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O “FATO EXTRAORDINÁRIO”

Carta de Manuel García Morente


dirigida, em setembro de 1940, ao Doutor
Dom José Maria García Lahiguera, e
tornada pública depois de sua morte.

O fato ocorreu na noite de 29 para 30 de abril de 1937, aproximadamente às


duas da madrugada. Permita-me o senhor que à sua narração circunstanciada
anteponha alguns pormenores, cujo prévio conhecimento me parece necessário ou
ao menos muito conveniente.
Em 28 de agosto de 1936 foi assassinado meu genro em Toledo. Eu sentia
por meu genro um grande carinho, misturado com algo assim como respeito e
admiração. Era um jovem de vinte e nove anos, digno de amor por todos os
conceitos. Sua conduta moral tinha sido sempre exemplar. Não creio equivocar-me
ao afirmar que tinha chegado ao matrimônio em perfeito estado de pureza. Sua
vida pessoal também tinha sido sempre de acendrada religiosidade. Pertencia à
Adoração Noturna. Talvez esta circunstância não tenha sido totalmente alheia à
sua desgraçada morte. Com isso, seu caráter era alegre, jovial, otimista, muito
juvenil e até infantil em certas coisas. Amava a matemática – em que era realmente
muito versado – e o esporte. Sua presença física era mais que medianamente
agradável. Era o que se diz um rapaz bonito. E em sua carreira de engenheiro
florestal e depois de engenheiro geógrafo ia caminhando para um porvir muito
promissor. Sem dúvida alguma teria chegado a alcançar uma excelente posição. Eu
estava realmente encantado com ele. Já me tinha dado uma netinha lindíssima, e
pouco antes – dois meses – de sua morte nasceu o neto. Recebi a notícia de sua
morte estando na Universidade no ato de entregar o decanato – de que fui
destituído pelo Governo vermelho – a meu sucessor, o Sr. Besteiro. De minha casa,
por telefone, comunicaram-me o falecimento de meu genro. Eu compreendi
imediatamente que tinha sido assassinado. E a impressão que a notícia me
produziu foi tal que caí desvanecido ao chão. Quando voltei a mim, pedi ao Sr.
Besteiro que interpusesse toda a sua influência para conseguir a rápida e segura
mudança de minha filha e netos de Toledo para Madri. Com efeito, o Sr. Besteiro,

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muito nobremente, conseguiu que um carro oficial, com escolta de dois guardas,
fosse a recolher minha filha e meus netos. Dois dias depois, às onze da noite,
chegavam eles a Madri. Nós, em casa, esperávamos desde as oito sua chegada.
Foram três horas de angústias mortais. Por minha imaginação desfilavam já toda
sorte de quadros trágicos; via minha filha também assassinada, meus netos
arrebatados por mãos hostis ou indiferentes, conduzidos a sabe Deus que
acampamentos ou asilos infantis, perdidos em vida para sempre. A angústia da
espera me oprimia e nos asfixiava a todos em casa. Por fim, às onze da noite,
chegou o carro, e nele minha filha, meus netos e duas criadas, todos em boa saúde.
Se refiro ao senhor estes nímios detalhes é porque me parecem úteis para
o conhecimento do estado de espírito que se ia apoderando de mim. Minha
sensibilidade, que de per si é sutil e excitável, exacerbava-se por vezes. A
tragédia de minha pobre filha, viúva aos vinte e dois anos, com dois filhinhos, aos
dois anos de matrimônio, transtornou por completo meu pensamento, meu
sentimento, minha vida inteira. Sobre meus ombros caía de novo o monte das
preocupações próprias de um pai. E em que momento! Quando a vida, a
fazenda, a honra, indefesas, se achavam à mercê de qualquer malvado ou mal-
intencionado que quisesse pisoteá-las. Em minha casa reinava o silêncio trágico
da angústia e o terror. Eu não saía em absoluto à rua. Ninguém de casa saía
senão o indispensável para as necessidades da vida.
Um dia, os milicianos vieram para levar o filho mais velho de nossos
vizinhos de andar. O pobre rapaz foi para a prisão, e mais tarde o assassinaram
em Paracuellos. Outro dia, sistematicamente, queimamos na caldeira da
calefação toda a documentação e correspondência que eu guardava do ano em
que estivera à frente da Subsecretaria de Instrução Pública no Governo do
General Berenguer. No dia seguinte – foi providencial – vieram revistar minha
casa. O dia inteiro passávamos espiando, por trás das venezianas abaixadas,
todos os carros que se detinham na porta da casa. Com o coração apertado
contávamos os degraus que os assassinos subiam, e quando tinham passado
nosso apartamento lançávamos um suspiro de satisfação. A morte ia para outra
casa! Minhas filhas, minha cunhada, minha tia, a antiga criada que temos há
vinte e seis anos reuniam-se num canto da casa e passavam horas e horas
rezando. Eu então não podia, e talvez não soubesse, rezar. Mas não sei que
ímpeto interior me empurrava a aprovar e a agradecer aquela tenra e submissa

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fé das boas mulheres. Nesta situação, em 26 de setembro, a um mês do
assassinato de meu genro, recebi pela manhã cedo o aviso confidencialíssimo de
que urgia me ausentasse de casa e, se possível, da Espanha, pois que tinham
acordado certos elementos descontentes com minha gestão no decanato da
Faculdade de Filosofia e Letras dar-me a morte, como era usual então. Obedeci
prudentemente ao aviso e conselho. Pude obter um salvo-conduto por meio de
um ministro que era amigo meu e, com o passaporte, ainda vigente, que me
tinha servido para ir a Poitiers nos primeiros dias de julho saí para Barcelona e
para a França. Em Barcelona passei um susto enorme. Estive a ponto de ser
detido, tendo sido confundido com outra pessoa. Por fim saí da Espanha e
cheguei a Paris em 2 de outubro. Tinha 75 francos no bolso.
Repito que, ainda ao preço de entediá-lo com minúcias, é necessário o
relato de antecedentes que talvez possam contribuir para fazer plausível uma
explicação natural do fato, que a mim me parece sobrenatural. Porque o senhor
há de ter em seu poder todos os dados úteis para julgar o caso, e o principal
deles é o estado de espírito em que iam pouco a pouco mergulhando-me os
acontecimentos. Parece-me firmissimamente que esse estado de espírito não
basta para dar conta por inteiro de certos aspectos e matizes do que me
aconteceu, mas devo declará-lo ao senhor totalmente para que o senhor possa
julgar com inteiro conhecimento.
Cheguei, pois, a Paris, sem dinheiro e com a alma transida de angústia e
de dor, e ademais corroída por preocupações de índole moral. Tinha feito bem
em abandonar minha casa e minhas filhas e pôr-me egoistamente a salvo? Mas,
por outro lado, se a confidência por mim recebida era verdadeira – e não tinha
motivo nenhum para duvidar dela, e sim muitas razões para conceder-lhe
inteiro crédito, já que a pessoa que ma remetia era por todos os ângulos digna
de fé –, eu teria sido assassinado ou pelo menos encerrado em prisão e posto,
por conseguinte, em situação de não poder auxiliar a minha gente e ainda de
ser-lhe mais prejudicial e gravoso que no desterro de Paris. Entre essas duas
ideias oscilava minha consciência, que umas vezes me acusava de fugitivo,
egoísta e covarde, e outras vezes me absolvia e mesmo me aplaudia por
prudente e precavido. E ainda hoje, quando os fatos demostraram com tanta
evidência quão acertado estive em sair de Madri, ainda, às vezes,
retrospectivamente, surpreendo em alguma dobra de minha alma certo

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reproche de covarde egoísmo quando penso em minha conduta de então, ao sair
precipitadamente de Madri. Que parece ao senhor? Em Paris, Deus me protegeu
suficientemente para não me deixar cair nas abjeções da total miséria, e,
todavia, não tanto que apagasse de minha alma a humilhação, a angústia, a
amargura. Um boníssimo amigo, espanhol, que tinha – e tem – um pequeno
apartamento em Paris, pôs à minha disposição um quarto com uma cama e um
armário. Uma boníssima senhora, francesa, viúva de um antigo colega meu de
estudos da Sorbonne – morto gloriosamente por sua pátria em 1914 –, brindou-
me caritativamente a mesa de seu lar. Dormia, pois, e comia. Não sem
humilhação, vergonha e pesar, mas com honrado sentimento de gratidão a meus
benfeitores. Na casa de meu amigo Ezequiel de Selgas passava, pois, as noites e
as manhãs. Saía para comer e jantar na casa de Madame Malovoy. Mas, como o
senhor Selgas, que atuava de correio secreto de Paris a Biarritz (entre José
Quiñones de León e o conde de los Andes), permanecia dias e noites ausente de
Paris, era frequente o caso de ter de estar eu sozinho no apartamento de meu
amigo durante dias e noites inteiros. Eis outro detalhe nímio, mas talvez
importante. Porque esta solidão, sobretudo noturna, teve de influir também não
pouco em meu estado de espírito.
Eu padeço bastante de insônia. Em épocas normais costumo combatê-la
com métodos psicológicos, que a experiência me mostrou eficazes: tais são, por
exemplo, repassar in mente teorias filosóficas, ou físicas, ou matemáticas, ou
problemas de xadrez – a este jogo fui, em minha juventude primeira,
sumamente aficionado, chegando nele a resultados que superavam a simples
mediania –; em suma: séries de ideias complicadas em que não ponho eu
nenhum interesse pessoal ou afetivo. Mas estes meios, que costumo usar com
fortuna para conciliar o sono rebelde, me falham quando tenho na alma alguma
emoção profunda, tenaz, perfurante, porque claro está que não posso empregá-
los, dado que o pensamento e a imaginação se me vão atrás da preocupação
afetiva e sentimental, que me invade. Por isso, quando verdadeiramente me
encontro sob o peso de uma profunda preocupação, a insônia em mim é quase
irremediável, e só a fadiga física, a muito altas horas e por pouco tempo, acaba
por render-me. Pois bem, em Paris a insônia foi o estado quase normal de
minhas noites tristíssimas. Passava-as cavilando sobre se tinha feito bem ou mal
em deixar minhas filhas e vir embora para Paris, sobre como poderia virar-me

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para ganhar algum dinheiro e sair da humilhante situação em que me via, sobre
o modo de tirar da Espanha minhas filhas e minha família, sobre a maneira de
fazê-las subsistir no estrangeiro (eu, que vivia de esmola) se, por fim, lograsse
tirá-las da Espanha. Também às vezes repassava na memória todo o curso de
minha vida: via quão infundada era a espécie de satisfação modorrenta em que
sobre mim mesmo tinha estado vivendo; percebia dolorosamente a incurável
inquietude e instabilidade espiritual em que dia após dia tinha ido crescendo
meu desassossego. Em não poucas ocasiões tinha de saltar da cama, incapaz de
sofrer por mais tempo a insônia na imobilidade do leito, e percorria o
apartamento, passeava febril pelo quarto, pegava um livro, que logo caía de
minhas mãos. O que mais consolo me dava era abrir as janelas e, apesar do frio,
permanecer horas inteiras contemplando delas – último andar, oitavo andar – a
imensa mole de Paris e no fundo a massa de Montmartre e a luz da torre Eiffel.
Tinha iniciado algumas gestões, à ventura, para tirar da Espanha minhas
filhas por meio da Embaixada da Inglaterra. Falharam. Iniciei depois outras,
por meio da Cruz Vermelha Internacional. Ainda não tive resposta a elas. E o
curioso é que estes fracassos não me impressionavam excessivamente, porque o
infinito desejo de ver os meus se atemperava não pouco por duas considerações:
a primeira, que recebia com regularidade carta de Madri – por uma terceira
pessoa –, que me tranquilizava sobre o estado de saúde e de dinheiro dos meus,
aos quais tinha deixado uma quantidade não desprezável, e, a segunda, que na
absoluta penúria econômica de que eu sofria me aterrava a perspectiva de ter de
sustentar sem um cêntimo as necessidades de oito pessoas em Paris. Nesse
meio-tempo, em fins de janeiro de 1937, um golpe de sorte modificou um tanto
minha situação. Recebi uma carta da Editora Garnier Frères rogando-me que
fosse a seu escritório. Cheio de curiosidade e farejando algum acontecimento
favorável, apresentei-me no escritório do Sr. Garnier. Com efeito, o Sr. Garnier
me propôs a elaboração de um dicionário francês-espanhol e espanhol-francês,
em substituição do antiquado e esgotado de Salvá, que a casa tinha editado
muitos anos antes. Um amigo meu, editor catalão, que, como eu e tantos outros,
estava fugido em Paris, tinha falado a Garnier de mim como pessoa capaz de
levar a efeito o trabalho necessário. Aceitei a proposta e as condições, pedindo
que me pagasse por entregas mensais de original. Pus-me a trabalhar
febrilmente. E me senti muito melhor e mais consolado. Já tinha, ao menos, um

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antídoto diurno, algo com que encher as horas do dia. As da noite, infelizmente,
não podiam subtrair-se assim tão facilmente das garras da insônia, da
preocupação, do desassossego, da inquietude moral e espiritual. No final de
fevereiro pude sentir a imensa satisfação de receber mil francos, fruto de meu
trabalho, e corri para compensar do melhor modo que pude a boa senhora que
me dava de comer em sua casa. Não era grande coisa, mas o bastante para
remediar em algo o cruel sentimento de humilhação em que vivia fazia cinco
meses. Quinze dias depois, ou seja, em meados de março, outro golpe de teatro.
Recebo um cabograma de Buenos Aires, assinado por meu antigo amigo o
professor Alberini, decano da Faculdade de Filosofia e Letras de Buenos Aires,
em que me oferece a cátedra de Filosofia na Universidad de Tucumán
(Argentina). Resposta paga. Meditei cinco minutos e respondi aceitando, mas
condicionando minha ida à Argentina à saída de minhas filhas e netos da
Espanha para que me acompanhassem. Convencido de que a resposta ia ser
afirmativa, dediquei-me outra vez febrilmente – e agora já com toda a minha
alma – a procurar uma maneira de tirar da Espanha minha família. Que fazer?
Como conseguir coisa tão difícil? Nessa época, em meados de março de 37,
houve vezes que passei até três noites sem dormir nem um segundo e sem ter
atividade alguma como derivativo da cruel insônia; no máximo, conseguia
conciliar meia hora ou uma hora de sono na extrema madrugada. Por muito que
pensasse, não encontrava maneira de tratar utilmente o problema de tirar da
Espanha minhas filhas. Como fazer? Justamente agora, quando o oferecimento
argentino me resolvia o problema de manter minha família fora da Espanha;
justamente agora é que eu não via luz alguma nem resquício por onde iniciar a
gestão.
Desesperava-me, e houve momentos em que, exacerbando-se de novo o
doloroso escrúpulo moral de ter abandonado os meus em Madri, me acometeu a
ideia – estranhíssima em mim, que não era crente – de que esse contraste entre
a atual possibilidade de prover às necessidades dos meus fora da Espanha e a
impossibilidade contrária de conseguir sua saída e reunião comigo era um
castigo de Deus por meu egoísmo e covardia. A primeira vez que a ideia “castigo
de Deus” roçou minha mente foi coisa fugaz e transitória, e não me detive nela.
Mas de noite a mesma ideia reapareceu, e esta vez já com clareza e persistência
tais que tive de prestar-lhe maior atenção. Mas foi para olhá-la, por assim dizer,

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depreciativamente e rechaçá-la com um movimento de irritação, de orgulho
intelectual e de soberba humana. “Não seja idiota”, disse-me a mim mesmo. E o
pensamento verteu sobre a pobre ideinha, humildinha e boa um monte rápido
de representações filosóficas científicas, etc., que a afogaram ainda em germe.
Poucas horas depois me aconteceu um fato pelo menos estranho. Ia eu
com certa frequência à casa que habitava em Auteuil José Ortega y Gasset. Para
ir lá tinha de pegar o metrô e descer na estação da avenue Mozart, de onde, a
pé, ia pela rue de l’Assomption até a casa de meu bom amigo. Nunca tinha
reparado no nome dessa rua nem no porquê desse nome. Mas naquele dia eis
que, ao sair pela escada do metrô na avenue Mozart, me assaltou a lembrança
de minha boníssima esposa no preciso instante em que, levantando a vista, se
cravaram meus olhos na placa que dizia: Rue de l’Assomption. Amontoou-se
então em minha mente uma porção de lembranças e de pensamentos. “Esta
rua”, pensei, “se chama da Assunção porque, sem dúvida, nela está ou esteve o
convento da Assunção, onde minha mulher se educou em Málaga. Claro! A casa-
mãe foi estabelecida em Auteuil. E em Auteuil estou. Logo, por aqui deve de
estar ou deve de ter estado o primitivo convento das freiras que educaram
minha boa esposa e minhas filhas. Vamos ver”. E, caminhando devagar, ia
reparando em todos os edifícios que via. Não tardei em descobrir o convento. Aí
está ainda. Um grande jardim de velhíssimas árvores constitui o resto
sobrevivente do imenso parque, convertido hoje em casas de renda. Durante
bom tempo contemplei a fachada do convento, atualmente casa de retiro e
repouso para senhoras e freiras doentes. A rua que faz esquina com o convento
atual se chamava rue Meilleret de Brou, que é o nome secular de Maria Eugênia,
fundadora da Assunção. Muitíssimas vezes tinha eu passado por ali naqueles
dias e naqueles meses, e nunca tinha visto na realidade a rua nem o convento
nem nada disto. Cheguei pensativo e preocupado à casa de José Ortega y Gasset.
E eis que esse dia encontrei na sala de José um catedrático de Madri, que estava
ali de visita, e a quem eu conhecia muito e tratava com intimidade e carinho.
Este senhor não era nem é vermelho. Mas tinha o coitado a desgraça enorme de
ter seus filhos – homens todos e já adultos – divididos na questão espanhola.
Um deles estava servindo como tenente de Engenheiros (voluntário) no exército
de Franco. O outro, em contrapartida, médico, era secretário particular do Dr.
Negrín. Durante a conversa saiu a reluzir a proposta que eu tinha recebido de

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uma cátedra da Argentina, a resposta que lhes tinha dado e o vivíssimo desejo e
também necessidade que sentia de tirar minha família para levá-la comigo para
a América. Então aquele senhor catedrático disse que seu filho, o secretário
particular de Negrín, chegava no dia seguinte de avião de Valência, que ele
falaria de meu desejo, que me proporcionaria alguma entrevista com o rapaz e
que talvez se pudesse conseguir algo. Eu fiquei pasmado. O conjunto do que me
estava sucedendo tinha caracteres verdadeiramente estranhos e
incompreensíveis. Ao redor de mim, ou melhor, sobre mim e
independentemente de mim, ia-se tecendo, sem a menor intervenção de minha
parte, toda a minha vida. O telefonema de Garnier, a incumbência do
dicionário, o oferecimento da cátedra argentina, este felicíssimo encontro com o
pai de um secretário de Negrín, nada disso tinha sido buscado, nem procurado,
nem sequer suspeitado por mim. Eu permanecia passivo por completo e
ignorante de tudo o que me sucedia. Dir-se-ia que algum poder incógnito, dono
absoluto do acontecer humano, arrumava sem mim todo o meu. E mais: tudo o
que eu fazia ou tentava por própria iniciativa saía mal e fracassava; minhas
gestões na Embaixada inglesa, com a Cruz Vermelha Internacional, todos os
esforços que tinha feito repetidas vezes para encontrar trabalho em Paris, tudo
tinha fracassado lamentavelmente. Em contrapartida, caíam-me como chovidos
do céu precisamente os acontecimentos que menos podia imaginar e em que
minha pessoal iniciativa não tinha a menor parte. Tive a profunda e pungente
sensação de ser um miserável fio de palha levado por um furacão onipotente.
Pela terceira vez a ideia da Providência se cravou em minha mente. Pela
terceira vez, no entanto, rechacei-a com teimosia e soberba. Mas também com
um vago sentimento de angústia e de confusão. Era demasiado evidente que eu,
por mim mesmo, não podia nada e que tudo o que de bom e de mau me estava
acontecendo tinha sua origem e propulsão em outro poder bem distinto e muito
superior. Contudo, refugiava-me na ideia cósmica do determinismo universal, e
uma vez que me ocorreu timidamente o pensamento de pedir, de pedir a Deus,
isto é, de rezar, de orar – que era, sem dúvida, a atitude mais lógica e
congruente com tudo o que me estava acontecendo –, o rechacei também como
néscia puerilidade. Que demência! Entrevistei-me, com efeito, com o filho do
catedrático, que chegou a Paris, de Valência, de avião no dia seguinte. Expus-lhe
meu desejo. Disse-lhe que Negrín me conhecia bem. Pedi-lhe que me

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propiciasse a saída de minhas filhas e netos. Negrín não era então presidente do
Conselho, mas ministro de Fazenda no Governo de Largo Caballero. O filho do
catedrático me prometeu fazer tudo quanto estivesse a seu alcance para
satisfazer meus desejos. Fiquei bem impressionado, cheio de otimismo e de
esperança. Escrevi a minhas filhas uma carta muito meditada. Eu, muitas vezes,
tinha-lhes recomendado que por nada do mundo saíssem de Madri nas
expedições mais ou menos forçadas que se faziam para Valência. Arrebatava-me
a ideia dessas estradas bombardeadas, dessas evacuações em camionetes, entre
milicianos e milicianas, à ventura de qualquer encontro mau. Mas agora tinha
de adverti-las de que sua saída era coisa minha, feita de acordo comigo, e que
cumprissem pontualmente tudo quanto lhes mandassem fazer da parte do filho
do catedrático. A carta, pois, que lhes escrevi era delicada e difícil. Entenderam-
na perfeitamente, graças a Deus. E, com efeito, no dia 2 de abril recebi um
telegrama de Valência em que me anunciavam sua chegada à capital levantina.
Dois dias depois recebi uma carta em que me comunicavam ter feito felizmente
de carro a viajem de Madri a Valência, e me referiam sua entrevista com Negrín,
que as tinha recebido muito amavelmente e tinha prometido dar-lhes em breve
o necessário passaporte para vir a Paris. Eu nadava em alegria. Parecia-me
seguro de que em poucos dias ia a ter a felicidade de abraçá-las. Já tinha
preparado o alojamento. Um velho amigo meu, colega de estudos na Sorbonne e
catedrático da Universidade de Caen, tinha posto à minha disposição o
apartamento que tinha em Paris e que não ocupava senão nas férias.
Aguardava impaciente o telegrama comunicando-me a chegada fixada
para tal dia a tal hora. Passaram-se três dias. “Serão”, pensava eu, “as
dificuldades burocráticas.” Recebi uma carta de Valência. Com efeito, minhas
filhas me diziam que as dificuldades burocráticas obstaculizavam a coisa, mas
que tinham a promessa do Ministério da Governação de obter o passaporte no
dia seguinte. Uma leve inquietude, uma espécie de pressentimento sombrio, que
se alçou em minha alma, foi rapidamente afogado pelo frio raciocínio. Não, não
tinha de temer; se tinham prometido dar-lhes o passaporte, é porque estavam
dispostos a dá-lo; era, pois, só questão de dias. Tranquilizei-me a mim mesmo e
voltei, como normalmente, a pôr toda a minha confiança na regularidade das
engrenagens naturais e humanas. Mas passaram-se outros três dias sem receber
o ansiado telegrama. Já começava a inquietar-me de novo. E de novo recebi

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carta de Valência. E de novo me asseguravam minhas filhas que tinham
promessa firme de receber o passaporte, que na Governação havia sobrecarga
de trabalho, que tivesse paciência, etc. Com a leitura desta carta, mordeu-me de
novo o coração o dente da dúvida, da apreensão e da angústia. Que acontecerá?
Será que estão escarnecendo delas em Valência, entretendo-as com vãs
promessas?
Derrubou-se outra vez em minha alma a confiança na determinação
natural de causas e efeitos, e a inquietude profunda se apoderou de mim. Não
podia fazer nada. O que quer que tivesse de acontecer, lá se forjava, longe, sem a
menor possibilidade de uma ação eficaz de minha parte. Eu sozinho em Paris,
do oitavo andar da casa do boulevard Sérurier, estava limitado a esperar,
angustiado, o rebentar dos fatos que se concertavam ou desconcertavam
sozinhos, por si sós, acima de minha cabeça. Aquelas noites foram atrozes. “Que
está fazendo de mim”, pensava, “Deus, a Providência, a Natureza, o Cosmos, o
que quer que seja?” A impotência, a ignorância, uma noite sombria em derredor
e nada, nada absolutamente, senão esperar a sentença dos acontecimentos.
Esperar! E como esperar sem saber? Que esperança é essa esperança que não se
sabe o que espera? Uma esperança que não sabe o que espera é propriamente...
a desesperação. Começou a invadir-me um sentimento estranho, uma espécie de
depressão total, absoluta de todo o meu ser, uma apatia infinita, da qual saía
como que pelo estímulo de uma chicotada interior, para precipitar-me em
estados de sobre-excitação febril. Passaram-se quatro ou cinco dias sem notícia
nenhuma. Minha angústia, minha amargura pareciam chegar ao paroxismo.
Estava às vezes como que entontecido e intumescido, sem pensar literalmente
em nada. Outras vezes me lançava à rua e caminhava até que me derrotasse o
cansaço. Mas isto era pior, porque chegava a casa fatigadíssimo e, no entanto,
era-me impossível dormir. No máximo, apoderava-se de mim durante uma hora
ou duas uma espécie de modorra, um adormecimento inquieto que não me
aproveitava.
Por volta do dia 20 de abril recebi outra carta de Valência que
veladamente me dava a entender que existiam “algumas dificuldades para a
projetada viagem”. Esta notícia, que confirmava todas as minhas suposições,
não acrescentava motivo novo de cavilação às que já laboravam em minha alma.
Mas é claro que intensificou o estado de depressão em que me encontrava. O

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mais característico talvez desse estado era a sensação de “absoluta impotência”,
de total passividade, de não intervenção nas engrenagens de minha própria
vida, e em face dela se erguia raivosa a vontade soberba, que não podia admitir
ver-se assim anulada e reduzida à “impotência absoluta”: esse dilaceramento
interior, essa cisão entre a vontade impotente, mas cheia de quereres e volições
afetivas, e em face dela o curso implacável, mas incógnito, dos fatos; esse
abismo entre um eu que quer ser e uma realidade que é o que é,
independentemente do eu volente, isso é o que me torturava até o indizível.
Assim transcorreu uma semana mais, sem notícias de Valência. Em 27 de abril
recebi um telegrama que dizia: “Impossível viagem. Diga-nos se retornamos
Madri ou vamos Barcelona”. Realizava-se minha suspeita. O Governo negava a
saída a minhas filhas. Ainda que, precisamente por temida, era esta solução já
aguardada, produziu-me um efeito tremendo. Primeiro foi de raiva e indignação
contra o Governo vermelho. Desatei-me em impropérios interiores. Não tinha
dúvida de que os vermelhos conservavam meus familiares como reféns para
manter-me a mim mudo e inativo. Respondi ao telegrama aconselhando a ida
para Barcelona, onde temos parentes muito próximos e queridos, em cuja
companhia pensava eu que minhas filhas sobrelevariam melhor a situação,
tanto moral quanto materialmente.
E de imediato me invadiu uma enorme depressão física e intelectual.
Durante umas horas estive como que atontado, indiferente, incapaz de pensar
no que me sucedia. Recordo-me muito bem de que durante um bom tempo,
deitado na cama, me entretive em ir seguindo com grande atenção e curiosidade
as evoluções de uma mosca (ou o que fosse) pelo teto e pela parede fronteira.
Pouco a pouco começou de novo a aparecer-me com claros contornos a situação.
Todas as minhas esperanças iam ao chão. Teria de renunciar à cátedra da
América, renunciar também a recobrar a minhas filhas e netos, continuar em
Paris a vida sombria de insônia e preocupações. Sem dúvida, ganhava com o
dicionário o bastante para pagar meus gastos próprios. Mas, persuadido de que
a guerra ia ser longa, via o porvir sumamente obscuro. E minhas filhas? Em
Barcelona estariam talvez melhor que em Madri, acompanhadas de excelentes
familiares e mais protegidas. Mas até quando? Porque agora, havendo-lhes já
negado o Governo a saída, seria inútil tentar outros meios, pois se via

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claramente que o Governo não queria deixá-las sair da Espanha. Que sorte
teriam?
Todo o dia 27 e sua noite estive dando voltas a estes pensamentos
particulares: minha situação, minhas filhas, minha casa de Madri, meu porvir
imediato ou remoto, o dos meus. Em 28 meu amigo Selgas foi a Biarritz, e fiquei
sozinho no apartamento por uns dias. Confesso que gostei da ideia de ficar só.
Propus-me a saborear, por assim dizer, essa solidão. (Advirto-o de que eu
jamais tive medo da solidão; ao contrário, sempre gostei dela
extraordinariamente; várias vezes escrevi seu elogio e sempre que posso a
aproveito como fruição morosa, e a todo momento, e hoje mesmo, e agora
mesmo a anelo indizivelmente.) Telefonei para Madame Malovoy, avisando-a de
que não ia para almoçar nem para jantar por vários dias, e com certo prazer
íntimo percorri o apartamento para convencer-me – pueril ideia – de que
efetivamente estava só.
Logo me ocorreu a ideia de que era insensato deixar a imaginação à rédea
solta para que caminhasse sem rumo nem ordem pelos passos que as leis
naturais da associação psíquica tivessem por bem indicar-lhe. Era, pois, preciso
pensar ordenada e metodicamente, não segundo o capricho momentâneo e
confusamente. De outra sorte, corria grave perigo de cair – quem sabe? – em
verdadeira perturbação mental. Assim, pois, comecei por fazer um repasso geral
de tudo o que tinha acontecido desde que se iniciara a guerra e do mais
importante em que tinha meditado desde então. O resultado evidente desta
reflexão foi: desde que tinha começado a guerra, eu não tinha intervindo pouco
nem muito em minha própria vida, na contextura real dos fatos de minha
própria existência. Minha vida, os fatos de minha vida tinham-se feito sem mim,
sem minha intervenção. Em certo sentido cabia dizer que eu os tinha
presenciado, mas de nenhum modo causado. Quem, pois, ou que ou qual era a
causa dessa vida que, sendo minha, não era minha? Porque o curioso e estranho
é que todos estes acontecimentos eram fatos de minha vida, isto é, meus; mas,
por outro lado, não tinham sido causados nem provocados, nem sequer
suspeitados, por mim; isto é, não eram meus. Havia aqui uma contradição
evidente. Por um lado, minha vida me pertence, dado que constitui o conteúdo
real histórico de meu ser no tempo. Mas, por outro lado, essa vida não me

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pertence, não é, estritamente falando, minha, dado que seu conteúdo vem, em
cada caso, produzido e causado por algo alheio à minha vontade.
Não encontrava eu para esta antinomia mais que uma solução: algo ou
alguém distinto de mim faz minha vida e ma entrega, atribui-a a mim,
adscreve-a a meu ser individual. Que algo ou alguém distinto de mim faça
minha vida explica suficientemente por que minha vida, em certo sentido, não é
minha. Mas o fato de que essa vida, feita por outro, me seja como que
presenteada ou atribuída a mim explica em certo sentido que eu a considere
como minha. Só assim cabia desfazer a contradição ou oposição entre essa vida
não minha porque outro a fez e, no entanto, minha porque eu sozinho a vivo.
Mas, chegado a esta conclusão, apresentaram-se diante de mim dois novos
problemas: Primeiro. Quem é esse algo, distinto de mim, que faz minha vida em
mim e ma dá? Segundo: E se eu não aceitasse o presente? E se eu não quisesse
receber como minha essa vida que eu não fiz? É ato propriamente meu, ato
livre, ou necessidade metafísica? Ante a gravidade destes dois problemas fiquei
perplexo e como que desconcertado.
(Parece-me, D. José María, que estou abusando de sua paciência e
bondade. Abuso, com efeito? Resta-me a esperança de que sua paciência e sua
bondade cheguem ao extremo de seguir lendo estas linhas. Se não for assim,
suspenda a leitura e rasgue as folhas. Parecer-me-á muito justo e natural. Mas
eu, de minha parte, já não posso deter-me nem abreviar mais do que a
gravidade do assunto me permita.)
Uma espécie de tranquilidade espiritual sobreveio então em minha alma,
porque adverti, com extraordinário gozo, que as preocupações que me agitavam
tinham saído de repente do âmbito particular e egoísta e tinham entrado no
terreno geral, universal e até, se se quiser, metafísico. Na realidade, já estava
pensando não em mim, particularmente, mas na vida humana em geral, através
de meu caso particular. Isto, repito, me alegrou muitíssimo, porque sempre me
repugnou um pouco a atitude do egoísmo ou solipsismo, e ademais me parece
que não é bom método para resolver os problemas – mesmo os mais pessoais e
íntimos – ou olhá-los de um ponto de vista exclusivamente subjetivo. A verdade,
ainda a individual, é sempre por um de seus lados verdade objetiva e geral, e se
se perde de vista este aspecto objetivo e geral há grande probabilidade de falhar
nas determinações individuais e pessoais. Assim, pois, resolvi estabelecer uma

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espécie de investigação metódica sobre os dois problemas que acabava de
formular-me. E ordenadamente comecei pelo primeiro: Quem é esse algo
distinto de mim que faz minha vida em mim e ma presenteia? É claro que logo
me apareceu na mente a ideia de Deus. Mas também logo teve de surgir em
meus lábios o sorriso irônico da soberba intelectual. “Vamos”, pensei, “Deus, se
o há, não cuida de outra coisa que de ser. Deixemo-nos de puerilidades.” E, com
efeito, realizei o ato interior de rechaçar essas, que eu chamava, puerilidades.
Mas eis que as puerilidades insistiam em ficar e se negavam a ser rechaçadas. E
sucedeu uma coisa estupenda, incompreensível para mim, a não ser por
evidente auxílio da graça, e foi que, sem me dar eu plena conta a princípio,
comecei a pensar com método estritamente inverso do que geralmente
costumava empregar nestes temas. Em geral, diante de um problema filosófico
ou metafisico costumo eu proceder, em minha íntima indagação, abraçando
carinhosamente a tese que mais me enche e satisfaz, e depois opondo-lhe
adequadas objeções, que procuro resolver, debater, desfazer, sempre com o
íntimo desejo de que, ante minha própria consciência racional, prevaleça a
primeira tese abraçada. Quando alguma vez as objeções e dificuldades com que
ataco dialeticamente a tese preferida se revelam fortes e decisivas e chegam
racionalmente a desfazê-la, sinto grande desconsolo, e custa-me certo trabalho
afetivo e sentimental desprender-me daquilo que vejo ser errôneo, para abraçar
o que vejo – com pena – ser verdadeiro. Até que, passando certo tempo, entrego
por fim meu coração à tese evidentemente verdadeira, e, então, igualmente me
custaria dolorosa pena prescindir dela.
Pois bem, eis o extraordinário do que me aconteceu: toda a carga
sentimental, durante a discussão interna, foi pousar-se não sobre a tese
antiprovidencialista, que tomei por ponto de partida, mas sobre as objeções
providencialistas que tive de opor-lhe no movimento dialético. Em suma,
obediente, por inércia do passado, à ordem que a soberba intelectual me ditava
de rechaçar as “puerilidades”, iniciei, com efeito, a discussão íntima,
formulando como ponto de partida a tese do determinismo natural por causas e
efeitos, ou seja, por causas eficientes; mas logo adverti – e isto é o estupendo e
extraordinário – que meu coração não estava com a tese, e sim com as objeções,
e que as “puerilidades” eram de meu agrado mais do que as supostas sapiências
de um estrito determinismo causal. Cada vez que descobria ou rememorava

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algum argumento contra o determinismo natural, alegrava-se meu coração, que
evidentemente estava com as objeções e contra a tese.
Uma objeção, sobretudo, inundou-me de gozo: a de que esta vida minha,
que eu não faço, senão que recebo, compõe-se de fatos plenos de sentido. Ora, o
mero determinismo natural – físico, histórico, psicológico – pode produzir
fatos, mas não fatos plenos de sentido, não esses fatos, como os da vida, que são
inteligíveis e inteligentes, dirigidos sabiamente a certos fins e efeitos. Seria
muito longo – e não é necessário – desenvolver tudo isto como deveria ser.
Baste dizer que, ao chegar a noite, tinha sofrido uma pequena crise em meu
dispositivo intelectual. Por um lado, a ideia de uma Providência divina, que faz
nossa vida e no-la dá e atribui, estava já profundamente gravada em meu
espírito. Por outro lado, não podia conceber essa Providência senão como
supremamente inteligente, supremamente ativa, fonte de vida, de minha vida e
de toda vida, quer dizer, de todo complexo ou sistema de fatos plenos de
sentido.
Chegado a essa conclusão, experimentei um grande consolo. E fiquei
estupefato ao considerá-lo. Como é possível – pensei – que a ideia dessa
Providência sábia, poderosa, ativa e ordenadora, mas que acaba de assestar-me
tão terrível golpe, me seja agora de consolo? Não o entendia bem. Mas o fato era
evidentíssimo. O fato era que me sentia mais tranquilo, mais sereno e
repousado. (Muito tempo depois, lendo Santo Agostinho descobri a verdadeira
chave do enigma na frase “Inquieto está meu coração enquanto não repousar
em Ti”.) Naquele momento não pude achar outra explicação senão a vulgar
psicológica: que a alma, atenazada pela angústia da ignorância e da impotência,
começa a consolar-se com a ideia de que “há” uma razão ou causa explicativa,
embora ainda não saiba qual é em concreto essa causa ou razão. O só
pensamento de que há uma providência sábia bastou para tranquilizar-me,
ainda que não compreendesse nem visse a razão ou causa concreta da crueldade
que essa mesma Providência praticava comigo, negando-me o retorno de
minhas filhas.
A noite de 28 para 29 passei-a melhor do que esperava. A espécie de
consolo ou tranquilidade que a ideia da Providência tinha proporcionado a meu
espírito me serviu de sedativo. Também é possível que uma meditação tão
continuada e longa, na qual as preocupações estritamente pessoais tinham

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passado, por assim dizer, a segundo plano, vencidas por considerações gerais e
metafísicas, tivesse contribuído para aquietar um tanto os movimentos
dolorosos da alma. O fato é que descansei um par de horas com tranquilidade, e
quando acordei tive força e serenidade bastantes para preparar-me o café da
manhã. Lembro muito bem que intencionadamente carreguei, quiçá com
excesso, na dose de café, pois estava decidido a prosseguir, com calma e método
o mais rigoroso possível, minhas reflexões de tipo geral. Estava bem provido de
tabaco. E devo dizer ao senhor que também lembro que esse dia 29 fumei
desesperadamente, quase continuamente.
Acumulo estes detalhes, talvez ridículos, porque se aproxima o momento
decisivo e desejo que o senhor tenha presentes todos os pormenores que eu
possa dar-lhe para que o ajudem a formar juízo. Também lhe direi que ao meio-
dia saí para almoçar num pequeno restaurante de operários que havia junto à
minha casa; que comi bem e com apetite. Regressei logo a casa e bebi uma
xícara de café, que também fiz muito carregado. Em contrapartida, na hora de
jantar não me senti com forças nem vontade de sair à rua. Tinha em casa unas
latas de conserva. Jantei uns biscoitos untados de foie-gras e tomei outra xícara
de café, também muito carregado, mas com um par de colheradas de leite
condensado. Já lhe disse que quase não cessava de fumar. Fisicamente me
encontrava muito bem; não sentia moléstia corpórea de nenhum tipo, e nem
antes nem depois do sucesso se alterou nem minimamente este perfeito
equilíbrio físico de meu corpo.
E, já que neste tema estamos no relativo à parte física e corpórea, direi ao
senhor que eu nunca padeci de transtornos nervosos, salvo duas vezes em
minha vida; uma, em 1910 (tinha eu vinte e quatro anos), estando na Alemanha;
senti-me fatigado de esforços intelectuais e fui passar um verão numa pequena
ilha do Mar do Norte, chamada Amrun. Ali tive um dia um ataque de nervos,
com perda de consciência, e o médico da localidade diagnosticou epilepsia. O
diagnóstico era verdadeiramente falso, pois eu regressei logo a Berlim,
assustado, e fui consultar o Dr. Lewandowky, que refutou rotundamente o
diagnóstico e atribuiu tudo sem vacilar ao estado de fadiga intelectual em que
me achava. Permaneceu em mim durante umas semanas uma ligeira agorafobia,
que em seguida desapareceu. A segunda vez foi em 1914, poucas horas depois do
nascimento de minha filha María Pepa. Também me encontrava muito cansado

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física e intelectualmente, e ademais a tensão nervosa que o parto longo de
minha mulher tinha produzido em mim foi, sem dúvida, a causa de que tivesse
um ligeiríssimo ataque, que, naturalmente, foi atribuído à fadiga. E desde então,
efetivamente, não voltei a sentir nada.
Toda a manhã do dia 29 de abril estive tranquilo, meditando, ou melhor,
refletindo sobre o que tanto me vinha preocupando intelectualmente. Pouco a
pouco me fui firmando na ideia providencialista e cheguei a formulá-la a mim
mesmo de modo claro e explícito. Mas ainda meu pensamento e minha
imaginação caminhavam por vias puramente abstratas e metafísicas. Pensava
em Deus; mas sempre no Deus do deísmo, no Deus da pura filosofia, nesse Deus
intelectual em que se pensa, mas a que não se reza. Deus humano,
transcendente, inacessível, puro ser muito longínquo, puro termo do olhar
intelectual. Considerava-o em sua providência, sim, mas como um poder
infinito com que o homem não tem outra relação que a de uma reverência total,
muda e imóvel, essa “absoluta dependência” com que Schleiermacher define o
sentimento religioso.
Nesse ambiente, e relativamente tranquilo, comecei a pensar que a única
atitude congruente com essa Providência impessoal era a simples resignação, a
submissão completa, e me dispus interiormente a verificá-lo. Mas meus esforços
neste sentido resultavam ineficazes; uma espécie de secura ia apoderando-se de
mim, um retesamento interior, uma frialdade ou rigidez que pouco a pouco se
foi convertendo em hostilidade, em rancor, em retraimento da alma, como que
ofendida da altitude inacessível em que esse Deus metafísico se tinha colocado
diante de mim. Em minha alma se produziu uma espécie de protesto, e creio,
Deus me perdoe, que algo assim como uma blasfêmia subiu à minha mente.
Creio que acusei de cruel, de indiferente, de zombeteira, de sarcástica essa
Providência que se comprazia em sacudir minha vida, em trazê-la e levá-la a seu
bel-prazer inexplicável, em dar-lhe e atribuir-lhe acontecimentos e fatos que eu
não queria, que eu repudiava. Que posso esperar – pensava eu – de um Deus
que assim se compraz em brincar comigo, que me seduz dessa maneira com a
iminente perspectiva da felicidade, para fazê-la desaparecer no momento
mesmo em que eu já ia a tê-la entre as mãos? Se Deus é quem faz os fatos da
vida e os dá e atribui e presenteia ao homem, eu posso em contrapartida recusar
o presente. É verdade que a vida não é minha, mas de Deus providente; mas,

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por outro lado, é minha, dado que estes fatos me acontecem a mim, Deus os dá a
mim. Ora, posso tomá-los ou recusá-los, e decididamente os recuso, não os
quero; não me submeto ao destino que Deus me quer dar; não quero nada com
Deus, com esse Deus inflexível, cruel, desapiedado.
Foi uma espécie de fúria, uma como tempestade de ira alvoroçou minha
alma; a raiva da impotência desconforme, da liberdade ineficaz. Apareceu-me
claramente que só uma coisa era livre de fazer para mostrar minha oposição a
esta Providência, que me parecia inacessível e hostil: tirar-me a vida. Assim, o
estoico contemplava no suicídio o ato de suprema liberdade humana.
Mas, assim que me dei conta da conclusão a que tinha chegado, espantei-
me de mim mesmo. Não pela ideia do suicídio em si, que já em outras ocasiões
tinha entrado nos âmbitos de minha consciência, mas antes pela absoluta
ineficácia de um ato assim, que a nada conduzia, que nada resolvia, e que ainda
menos podia resolver o problema teórico, metafísico, em que estava tentando
orientar-me. E esse espanto era principalmente como medo de ter sucumbido
ou estar sucumbindo a alguma anormalidade mental. Seriamente me entrou a
preocupação de se não estaria começando a desvariar.
Na realidade, tinha chegado ao fundo de um beco sem saída. Disse-me a
mim mesmo que era necessário voltar atrás e repensar todo esse processo
intelectual, que me tinha conduzido a tão grotesca conclusão. Fazendo um
esforço enorme de vontade, impus-me a obrigação de tomar algum descanso, de
permitir-me algumas horas de trégua no pensamento. Ocorreu-me ligar o rádio
para ajudar-me na distração.
Estavam irradiando música francesa: final de uma sinfonia de César
Frank; depois, ao piano, a Pavane pour une infante défunte, de Ravel; depois,
na orquestra, um fragmento de Berlioz intitulado L’enfance du Christ. O senhor
não pode imaginar-se o que é isto, se não o conhece: algo extraordinário,
suavíssimo, de uma delicadeza e ternura tais que ninguém pode escutá-lo com
os olhos secos. Cantava-o um tenor magnífico, de voz doce, aveludada, flexível e
suave, que matizava incomparavelmente a melodia pura, ingênua,
verdadeiramente divina.
Quando terminou, desliguei o rádio para não perturbar o estado de
deliciosa paz em que essa música me tinha submerso. E por minha mente
começaram a desfilar – sem que eu pudesse opor-lhes resistência – imagens da

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infância de Nosso Senhor Jesus Cristo. Vi-o, na imaginação, caminhando da
mão da Santíssima Virgem, ou sentado num banquinho e olhando com grandes
olhos atônitos para São José e para Maria. Segui representando outros períodos
da vida do Senhor: o perdão que concede à mulher adúltera, Madalena lavando
e secando com seus cabelos os pés do Salvador, Jesus atado à coluna, o Cireneu
ajudando o Senhor a levar a Cruz, as santas mulheres ao pé da Cruz. E assim,
pouco a pouco, se foi engrandecendo em minha alma a visão de Cristo, de Cristo
homem, pregado na Cruz, numa eminência dominando uma paisagem de
imensidão, uma infinita planície pululante de homens, mulheres, crianças,
sobre
os quais se estendiam os braços de Nosso Senhor Crucificado. E os braços de
Cristo cresciam, cresciam, e pareciam abraçar toda aquela humanidade dolente
e cobri-la com a imensidão de seu amor, e a Cruz subia, subia até o Céu e enchia
o âmbito todo e detrás dela também subiam muitos, muitos homens e mulheres
e crianças; subiam todos, nenhum ficava para trás; só eu, cravado no chão, via
desaparecer no alto a Cristo, rodeado pelo enxame inacabável dos que subiam
com Ele; só eu me via a mim mesmo, naquela paisagem já deserta, ajoelhado e
com os olhos postos no alto e vendo desvanecer-se os últimos resplendores
daquela glória infinita, que se afastava de mim.
Não pouca vergonha e pudor tenho de vencer, D. José María, para contar
ao senhor estas coisas. Conforta-me a convicção absoluta de que as conto a quem
pode entendê-las e saberá guardar delas a prudente reserva. Mas, como ainda
me restam outras várias, e maiores, que referir-lhe, permita-me que peça a Deus
Nosso Senhor a mercê de sua assistência, para que meu relato reproduza o
melhor possível, o mais fielmente possível, a nua verdade dos fatos que me
aconteceram naquela noite.
Não tenho a menor dúvida de que esta espécie de visão não foi senão
produto da fantasia excitada pela doce e penetrante música de Berlioz. Mas teve
um efeito fulminante em minha alma. “Esse é Deus, esse é o verdadeiro Deus,
Deus vivo; essa é a Providência viva” – disse-me a mim mesmo. Esse é Deus,
que entende os homens, que vive com os homens, que sofre com eles, que os
consola, que lhes dá alento e lhes traz a salvação. Se Deus não tivesse vindo ao
mundo, se Deus não se tivesse feito carne de homem no mundo, o homem não
teria salvação, porque entre Deus e o homem haveria sempre uma distância

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infinita que jamais poderia o homem vencer. Eu o tinha experimentado por
mim mesmo fazia poucas horas. Eu tinha querido com toda a sinceridade e
devoção abraçar-me a Deus, à Providência de Deus; eu tinha querido entregar-
me a essa Providência, que faz e desfaz a vida dos homens. E que me tinha
sucedido? Que a distância entre minha pobre humanidade e esse Deus teórico
da filosofia me tinha resultado invencível. Demasiado longe, demasiado alheio,
demasiado abstrato, demasiado geométrico e inumano. Mas Cristo, mas Deus
feito homem, Cristo sofrendo como eu, mais que eu, muitíssimo mais que eu, a
esse, sim, o entendo e esse, sim, me entende, a esse, sim, posso entregar
fielmente minha vontade inteira, depois da vida. A esse, sim, posso pedir,
porque sei ao certo que sabe o que é pedir e sei ao certo que dá e dará sempre, já
que se deu inteiro a nós, os homens. Vamos rezar, vamos rezar! E, posto de
joelhos, comecei a balbuciar o Pai-nosso. E, horror! D. José María, tinha-o
esquecido!
Permaneci de joelhos um grande tempo, oferecendo-me mentalmente a
Nosso Senhor Jesus Cristo com as palavras que me ocorriam ao acaso. Recordei-
me de minha infância; lembrei-me de minha mãe, a quem perdi quando eu
tinha nove anos de idade; representei claramente seu rosto, o colo em que me
recostava, estando de joelhos para rezar com ela; lentamente, com paciência, fui
lembrando trechos do Pai-nosso; alguns me ocorreram em francês, mas ao
traduzi-los restituí fielmente o texto espanhol. Ao fim de uma hora de esforços,
consegui restabelecer íntegro o texto sagrado e o escrevi num livrinho de notas.
Também pude restabelecer a Ave-Maria. Mas daqui não pude passar. O Credo
resistiu a mim por completo, assim como a Salve e o Senhor meu Jesus Cristo.
Tive de contentar-me com o Pai-nosso – que lia no papel –, não me atrevendo a
confiar numa lembrança tão dificilmente restaurada, e a Ave-Maria, que repeti
inúmeras vezes até que as duas orações ficassem já perfeitamente gravadas na
minha memória.
Uma imensa paz se tinha apoderado de minha alma. É verdadeiramente
extraordinário e incompreensível como uma transformação tão profunda possa
verificar-se em tão pouco tempo. Ou será que a transformação se vai verificando
na subconsciência desde muito antes de nos darmos conta dela? Neste caso, o
fato de dar-se conta seria simplesmente o termo final – único consciente – de
uma prévia evolução subterrânea e inconsciente.

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Seja o que for, o fato é que me via a mim mesmo como outro homem.
Quão exata é a frase de São Paulo acerca dos dois homens! Mas estava ainda
como o cavalo recém-domado, todo trêmulo, todo indeciso, sem saber que fazer
e sem poder realmente fazer nada. Ir a uma igreja? Já era noite e certamente
todos os templos estariam fechados. Procurar um sacerdote? Mas não conhecia
eu nenhum em Paris, e ademais uma invencível vergonha, um pudor
insuperável me impediam de falar destas coisas com ninguém que não fosse o
mesmíssimo Jesus Cristo. Andei pelo quarto apalpando-me eu mesmo os
braços, o rosto, a cabeça. Percorri todo o apartamento sem procurar nada, sem
objeto nem propósito algum. Na alcova de Selgas me olhei no espelho e estive
contemplando-me durante longo tempo. Encontrei-me diferente, muito
diferente, ainda que bem visse que era o mesmo. Comecei a sentir uma espécie
de desdobramento da personalidade. Aquele do espelho era o outro, o de ontem,
o de há mil anos; este, em contrapartida, este a quem considerava dentro de
mim, o novo, me parecia tão tenro, tão frágil, que o menor choque podia
quebrá-lo em mil pedaços. Voltei a meu quarto. De repente pensei em minhas
filhas. “Quando lhes disser isso, que emoção vão sentir!” Mas imediatamente fiz
o propósito e tomei a
resolução de não lhes dizer nada por escrito. A só ideia de falar com alguém de
tudo isto que me sucedia me produzia um encolhimento irreprimível. Sentei-me
numa poltrona diante da janela, por onde através do vidro via toda Paris, e no
fundo a massa obscura de Montmartre. Mons Martyrum! Imagens do
cristianismo primitivo sulcaram minha fantasia. O circo romano, as feras, os
cristãos ajoelhados na arena e deixando-se despedaçar heroicamente! Que
homens! A graça de Deus inundava-os, envolvia-os, sustentava-os. Sim, sem
dúvida; mas ademais eles mesmos recebiam e aceitavam submissamente essa
graça e tudo quanto Deus lhes enviava. Submissamente e livremente! Porque
bem claro sabiam o que faziam e o que queriam ao querer conformar-se com o
que Deus queria neles.
Com este pensamento me pareceu ter chegado por fim à solução mais
clara e nítida do problema da vida em mim e fora de mim. A vida e os fatos da
vida, que Deus providente faz e produz, Deus também no-los dá e atribui. Mas
nós os aceitamos, os recebemos livremente, e por isso são nossos tanto como
seus. São seus porque Ele é seu Autor, criador, distribuidor e provedor. São

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nossos porque nós livremente os aceitamos de sua mão. Aí está o toque, aí está a
essência da Humanidade: aceitar ao mesmo tempo submissa e livremente. O ato
mais próprio e verdadeiramente humano é a aceitação livre da vontade de Deus.
O animal aceita a vontade de Deus porque, não sendo livre, não pode não aceitá-
la. Ou melhor, não a aceita, senão que a recebe, a encontra acima dele sem ter
pensado nem pensar nisso. Mas o homem foi criado livre por Deus; quer dizer,
para realizar sua própria essência, para ser verdadeiramente homem livre, o
homem – eu neste caso particular – deve aceitar a vontade de Deus com
submissão total e ao mesmo tempo livremente. Querer livremente o que Deus
quiser! Eis o ápice da condição humana. “Faça-se tua vontade assim na terra
como no céu.”
E, prostrado de joelhos, perdido o olhar no longínquo horizonte do
casario de Paris, recitei com íntimo fervor mais uma vez o Pai-nosso,
entregando livremente toda a minha vontade nas mãos chagadas de Nosso
Senhor Jesus Cristo.
No reloginho de parede deram as doze. A noite estava serena e muito
clara. Em minha alma reinava uma paz extraordinária. Parece-me que devia de
sorrir. Sentei-me de novo na poltrona e pus-me a pensar lenta e
repousadamente sobre minha nova condição e o modo de vida que devia adotar.
Como quem com sã alegria medita gozoso os preparativos de uma anelada
viagem! “A primeira coisa que farei amanhã será comprar um livro devoto e
algum bom manual de doutrina cristã. Aprenderei as orações; instruir-me-ei o
melhor possível nas verdades dogmáticas, procurando recebê-las com a
inocência da criança, quer dizer, sem discuti-las nem sopesá-las por ora. Já terei
tempo de sobra, quando minha fé for sólida e robusta e estiver acima de toda
vacilação, para reedificar meu castelo filosófico sobre novas bases. Comprarei
também os Santos Evangelhos e uma vida de Jesus. Jesus, Jesus! Bondade!
Misericórdia! Uma figura branca, um sorriso, um gesto de amor, de perdão, de
universal ternura, Jesus!”
Aqui há uma lacuna em minhas lembranças tão minuciosas. Devo ter
adormecido. Minha memória recolhe o fio dos sucessos no momento em que
acordava sob a impressão de um sobressalto inexplicável. Não posso dizer
exatamente o que sentia: medo, angústia, apreensão, turbação, pressentimento
de algo imenso, formidável, inenarrável, que ia acontecer agora mesmo, no

22
mesmo momento, sem tardar. Pus-me de pé, todo trêmulo, e abri de par em par
a janela. Uma lufada de ar fresco me açoitou o rosto.
Virei o rosto para o interior do quarto e fiquei petrificado. Ali estava Ele.
Eu não o via, eu não o ouvia, eu não o tocava. Mas Ele estava ali. No quarto não
havia outra luz que a de uma lâmpada elétrica dessas diminutas, de uma ou
duas velas, num canto. Eu não via nada, não ouvia nada, não tocava nada. Não
tinha a menor sensação. Mas Ele estava ali. Eu permanecia imóvel, teso pela
emoção. E o percebia; percebia sua presença com a mesma clareza com que
percebo o papel em que estou escrevendo e as letras – preto sobre branco – que
estou traçando. Mas não tinha nenhuma sensação nem na visão, nem no ouvido,
nem no tato, nem no olfato, nem no gosto. No entanto, percebia-o ali presente,
com inteira clareza. E não podia caber-me a menor dúvida de que era Ele, dado
que o percebia, ainda que sem sensações. Como é isto possível? Eu não o sei.
Mas sei que Ele estava ali presente e que eu, sem ver, nem ouvir, nem cheirar,
nem saborear, nem tocar nada, o percebia com absoluta e indubitável evidência.
Se se me demonstra que não era Ele ou que eu delirava, poderei não ter nada
que responder à demonstração, mas assim que em minha memória se atualize a
lembrança ressurgirá em mim a convicção inquebrantável de que era Ele,
porque o percebi.
Não sei quanto tempo permaneci imóvel e como que hipnotizado diante
de sua presença. Sim, sei que não me atrevia a mover-me e que teria desejado
que tudo aquilo – Ele ali – durasse eternamente, porque sua presença me
inundava de tal e tão íntimo gozo que nada é comparável ao deleite sobre-
humano que eu sentia. Era como uma suspensão de tudo o que no corpo pesa e
gravita, uma sutileza tão delicada de toda a minha matéria que se diria não
tinha corporeidade, como se eu tivesse sido transformado num suspiro ou zéfiro
ou hálito. Era uma carícia infinitamente suave, impalpável, incorpórea, que
emanava d’Ele e que me envolvia e me sustentava no ar, como a mãe que tem
nos braços sua criança. Mas sem nenhuma sensação concreta de tato.
Como terminou a estada d’Ele ali? Também não o sei. Terminou. Em um
instante desapareceu. Um milésimo de segundo antes estava Ele ainda ali, e eu o
percebia e me sentia inundado desse gozo sobre-humano que disse. Um
milésimo de segundo depois Ele já não estava ali, já não havia ninguém no
quarto, já estava eu pesadamente gravitando sobre o chão e sentia meus

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membros e meu corpo sustentar-se pelo esforço natural dos músculos. Quanto
tempo durou sua presença? Já disse que não o sei. Tentando retrospectivamente
computá-lo, fiz o seguinte cálculo. Devo ter adormecido pouco depois do
momento em que soaram as doze no reloginho de parede. Supondo que
dormisse um par de horas, meu despertar sobressaltado ante a iminência do
fato deve de ter ocorrido por volta das duas da madrugada. Quando Ele
desapareceu, caí de novo na poltrona diante da janela aberta, e lembro
perfeitamente que em frente à casa, pela via férrea – o boulevard Sérurier fica
no extremo leste de Paris – passou um trem que vinha. Uns dias depois fui
discretamente informar-me dos trens e comprovei que às três e poucos minutos
da madrugada chegava àquela estação um trem carga diariamente. Segundo
isto, deve de ter durado Sua presença pouco mais de uma hora. O que se
confirma, de certo modo, pela lembrança de ter ouvido eu, muito mais tarde,
soar as quatro no reloginho de parede. Suponho, pois, que Sua presença
começou por volta das duas e terminou pouco depois das três da madrugada.
Mas estes cálculos podem muito bem ser errôneos. Pode ser que eu tenha
dormido mais de duas horas e que Sua presença tenha começado muito depois
das duas. Pode ser também que o trem tenha passado com atraso. Pode ser, por
conseguinte, que Sua presença não tenha durado mais que minutos ou mesmo
um brevíssimo instante. Não tenho quanto a isto nenhuma convicção firme.
Agora permita-me o senhor que, das infinitas reflexões que eu mesmo
objetiva e serenamente fiz sobre este acontecimento, lhe comunique algumas
que talvez possam ajudar o senhor a formar juízo.
A formulação psicológica do Fato poderia ser a seguinte: uma percepção
sem sensações. Sem dúvida, em boa ciência psicológica, não se concebe bem que
possa existir percepção sem sensações. As sensações não faltam nunca nem na
alucinação. Isso procede de que o ato de perceber uma presença ou a presença
de um objeto é um ato do composto humano em que necessariamente intervêm
os órgãos corpóreos sensoriais, os sentidos, e a alucinação é um funcionamento
subjetivo de todo o aparelho psicofísico, ainda que sem realidade objetiva
alguma do representado como presente. Mas o Fato por mim vivido se
caracteriza pela total ausência de sensações. Dir-se-ia uma percepção só pela
alma, sem auxílio do corpo condicionante. E, se a tal percepção só pela alma não
se lhe quiser dar o nome de percepção, chame-se como se queira; em todo caso,

24
o fato é uma intuição de presença desprovida de toda condicionalidade corpórea
(sensação).
Como a lembrança do Fato vivido por mim não se afasta de meu espírito,
e não houve dia desde que me aconteceu que não o rememore e pense n’Ele,
pouco ou muito, não é estranho que em minhas leituras esteja sempre atento a
ver se encontro descrito em alguma parte algo do que eu experimentei.
Faz pouco tempo li uma passagem de Santa Teresa onde se descreve algo
parecido. Está no capítulo XXVII da Vida, e diz assim: “Estando um dia do
glorioso São Pedro em oração, vi perto de mim, ou senti, por melhor dizer, que
com os olhos do corpo nem da alma não vi nada, mas parecia-me estava junto a
mim Cristo e via ser Ele quem me falava, a meu entender... Depois fui a meu
confessor muito fatigada a dizer-lhe o acontecido. Perguntou-me em que forma
via a Cristo. Eu lhe disse que não o via. Disse-me que como sabia eu que era
Cristo. Eu lhe disse que não sabia como, mas que não podia deixar de entender
estava junto de mim e o via claro e sentia...” Tenha o senhor em conta que a
terminologia de Santa Teresa carece de rigor psicológico; isso explica a aparente
contradição em seu texto quando diz que não o via e poucas linhas depois que o
via claro. Porque, quando diz que não o via, quer dizer que não tinha sensação
visual, e, quando diz que o via claro e sentia, quer dizer que o percebia e intuía
sem sensações.
O fato aqui descrito pela Santa é, pois, justamente o que eu vivi: uma
percepção sem sensações ou – se me permite o senhor a fórmula audaz – uma
percepção puramente espiritual. Há, contudo, diferenças profundas entre a
vivência tida pela Santa e a tida por mim. À Santa, Nosso Senhor lhe fala, sem
dúvida, com palavras também percebidas sem sensação auditiva. A mim, ao
contrário, não. À Santa acompanha-a a presença de Nosso Senhor longo tempo,
dias e dias, quer dizer, habitualmente – “parecia-me andar sempre a meu lado
Jesus Cristo”. A mim, não. Foi só um breve lapso de tempo, quiçá segundos,
quiçá minutos, quiçá uma hora na noite de 29 para 30 de abril de 1937. E não
voltou a acontecer jamais. Em contrapartida, minha vivência tem algo que não
vi descrito na da Santa. Em minha vivência há como um efeito produzido em
mim, no sujeito, pela presença do Senhor, efeito de desgravitação, de
aligeiramento, de volatilização; pareceu-me que me despojava do corpo, que já

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não tinha peso, que me convertia em sopro ou que alguém me levantava no ar.
Deste efeito não encontro nada na descrição da Santa.
A Santa, por fim, tenta também uma interpretação do estado que
descreve, e encontra para isso algumas fórmulas que me parecem muito
afortunadas e exatas. Por exemplo: “Porque parece que é como uma pessoa que
está às escuras, que não vê outro que está perto dela, ou, se é cega, não vai bem.
Alguma semelhança tem, mas não muita, porque sente com os sentidos ou a
ouve falar ou menear ou a toca. Cá [no estado que a Santa descreveu] não há
nada disto nem se vê escuridão, senão que se representa por uma notícia à
alma mais clara que o sol...” É perfeita a interpretação da Santa; efetivamente,
trata-se de uma “notícia à alma” e, como antes dizia eu, uma percepção
puramente espiritual, sine corpore interposito.
A possibilidade de semelhantes fatos só podem negá-la os psicólogos que
estiverem aferrados a uma interpretação puramente naturalista, humana dos
fatos místicos.
Mas uma cosa é que o fato seja em si possível e outra que efetiva e
realmente tenha eu experimentado a presença de Nosso Senhor. Entenda o
senhor bem o que quero dizer. É absolutamente verdadeiro que eu experimentei
tudo isso que descrevi. É também, a meu ver, absolutamente verdadeiro que em
si mesmo pode isso que descrevi ser uma vivência de Nosso Senhor presente.
Pois bem, essa possibilidade intrínseca é, efetivamente, também extrínseca e
real? Em outras palavras: embora o que a mim me sucedeu possa,
naturalmente, em qualquer pessoa em geral ser, com efeito, a percepção
espiritual de Nosso Senhor presente, pôde, no entanto, sê-lo em mim
precisamente? Aí está o problema.
Eu não duvido um instante de que o Senhor pode, se quiser, apresentar-
se a uma alma nessa maneira incorpórea, sem sensações, sem corpo interposto
sensível. Mas tenho muito fortes razões para pensar que a mim precisamente
não pode querer Nosso Senhor fazer-me essa insigne mercê, porque que tinha
feito eu para merecê-la? Nada. Tinha feito muito de mau para não a merecer.
Quer dizer, não só tinha em mim um estado privativo de méritos para a
obtenção dessa mercê, mas um estado negativo, um estado positivamente mau.
Ninguém melhor que eu – a não ser Nosso Senhor mesmo, que tudo sabe
– sabe quão pecador, quão radicalmente perverso sou em meu fundo natural.

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Toda a lira, toda a escala dos mais abjetos pecados, tinha sido percorrida por
minha alma. Com o agravante de uma superestrutura doutrinal ou ideológica
que os encobria sob o manto mendaz de uma ética natural, humana, mais ou
menos filosófica e racional, rematada numa concepção absurda e ímpia de Deus
e sua Providência. E a semelhante sujeito ia Deus Nosso Senhor apresentar-se
para derramar sobre ele mercês extraordinárias? Não. Não o posso crer.
Em todo caso, se tivesse precedido ao Fato uma longa e contínua série de
anos passados em penitências e oração, em contrição perfeita, robustecida pelos
Santos Sacramentos, talvez fosse possível que Nosso Senhor quisesse afinal
conceder a esmola de um olhar benévolo a seu servo fiel. Mas assim, de repente,
é de todo incrível. Como? Porque uma alma perversa e afastada de Deus sinta
uma bela tarde alguns movimentinhos de conversão, já isso vai ser motivo
suficiente para que, sem mais nem menos, Deus a presenteie com tanta mercê?
Não posso admiti-lo. E inclino-me resolutamente a pensar que, embora o que a
mim me aconteceu possa ser em si mesmo vivência de Nosso Senhor presente,
não o foi, porém, em mim, em meu caso particular e concreto. Logo, o que a
mim me sucedeu foi pura fantasia, pura imaginação: efeito de um estado
patológico anormal da subjetividade, ou uma ficção diabólica.
Mas, por outro lado, encontro também, pensando serenamente,
dificuldades graves nesta última conclusão. Porque ficção diabólica não me
parece realmente que possa ser. Com efeito, não se concebe que seja diabólico
um fato que produz as consequências que o Fato produziu em minha alma: uma
resolução inquebrantável, mantida sem desmaio até hoje – Deus queira seguir
alimentando-a com sua graça! – e através de mil dificuldades e obstáculos, de
dedicar-me, ainda por estado e ministério, ao serviço de Deus; uma graça que se
conservou atual durante mais de um ano até converter-se em graça santificante,
quando em 29 de junho de 1938 recebi do senhor bispo, em Vigo, o que eu
chamei minha segunda primeira comunhão; uma perseverança que triunfou até
agora – Deus queira seguir protegendo-me! – de todos os inconvenientes. É
possível que seja diabólica uma causa que produz estes efeitos?
Mas, se prescindimos da hipótese diabólica, não resta senão reconhecer
que fui enganado por minha subjetividade, extremamente comovida, e que o
Fato por mim vivido não é senão o efeito subjetivo de uma profunda crise
mental. Sem dúvida, nem no que precedeu, acompanhou e se seguiu ao Fato

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posso rastrear o menor indício de anormalidade, nem em mim mesmo senti eu
nunca elementos patológicos de certa ordem psíquica, salvo os dois ataques
nervosos que referi ao senhor e que foram evidente consequência da fadiga
mental. Precisamente esses dois ataques se caracterizam por sua índole
exclusivamente somática, sem mistura alguma de desordem psíquica, e foram
unicamente fisiológicos, nervosos, sem afetar em nada a ideação, nem a
representação, nem a imaginação. Eu jamais tive alucinações, nem complexos
mentais, nem sobre-excitações excessivas, nem, em suma: nenhuma
perturbação da vida psíquica. Nenhum psiquiatra que me examinasse
encontraria fundamento para diagnosticar em mim a menor doença psíquica.
Nenhuma das pessoas que me conhecem e me conheceram desde a infância
poderá jamais acreditar que eu seja um perturbado mental.
Mas eu tenho uma imaginação e uma sensibilidade talvez mais intensas e
mais abundantes do que é corrente, circunstância essa que com frequência me
causa padecimentos morais e reações interiores mais intensas também do que é
corrente. E, ainda que geralmente domine e contenha esse excesso de
sensibilidade e imaginação, graças a uma faculdade de autocrítica ou de
autobservação, que o estudo filosófico e a afeição a meditações solitárias
desenvolveram em mim, no entanto não é nada impossível, senão, pelo
contrário, muito provável que em ocasiões excepcionalíssimas, como nesta
ocasião única da profunda crise anteriormente descrita, a sensibilidade e a
imaginação, fortemente comovidas e mal reprimidas, se precipitem em
concreções informes, conduzindo-me a uma espécie de alucinação sem
sensações concomitantes. Não encontro outra maneira de explicar a vivência
que experimentei nessa noite inesquecível para mim. Porque resisto
resolutamente a pensar que a mim, tão depravado e miserável, tenha querido
Deus conceder-me um minuto sequer de Sua presença.
No máximo, poderia talvez supor que Deus, querendo firmar minha
conversão com uma graça tão profunda que se me gravasse inesquecivelmente
na alma, permitiu que se produzisse em minha mente esse fenômeno subjetivo
cuja lembrança indelével fosse capaz de ajudar-me a perseverar vitorioso diante
de todas as ameaças, dificuldades e inconvenientes que por necessidade haviam
de opor-se à minha vocação.

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Este é, pois, principalmente o objeto de minha consulta ao senhor, D.
José María. A ninguém no mundo, nem mesmo em confissão, falei jamais das
coisas que contém este tão longo relato. Nem penso, nem desejo, nem quereria
jamais falar disso com ninguém nem a ninguém, a não ser, é claro, que o senhor
mo mandasse. E mais: sinto tão profundo pudor e tanta vergonha destas coisas,
que um ano já faz que me pus sob sua direção e não me atrevera até agora a
dizer ao senhor mesmo nada disso. Meu mais profundo desejo seria conhecer
sua opinião e seu conselho e não voltar a aludir a isto sequer nem até com o
senhor mesmo.
Antes de terminar, talvez convenha ao senhor saber algumas
circunstâncias posteriores relacionadas com o Fato. Há já mais de três anos que
aconteceu. Desde então nada voltei a notar em mim que se pareça ao que
costuma chamar-se estados extraordinários ou sobrenaturais. Minha vida
espiritual seguiu um curso normal e robusto. Ofereci a Deus todos os
padecimentos morais que necessariamente minha conversão trouxe consigo, e
que não foram poucos. Sempre a lembrança do Fato constituiu para mim um
consolo extraordinariamente eficaz, e me serviu de escudo e me ajudou a
triunfar em todas as dificuldades e adversidades. A princípio, ou seja, durante
aproximadamente um ano e meio depois de sucedido, desejava às vezes que algo
mais ou menos parecido se repetisse em mim, e às vezes, ainda que poucas, o
pedi a Deus. Mas já antes de conhecer o senhor tinha cancelado definitivamente
esses desejos e pedidos. Submetido à vontade de Deus, não apeteço nem peço
nada disso; e mais: assusta-me a ideia de que algo parecido possa repetir-se, e o
que peço a Deus é que não se turbe a paz que alcancei em minha alma. Meu
único anelo e meu pedido constante é que Nosso Senhor me conserve a fé, na
qual desde então não fraquejei um momento, nem mesmo quando comecei o
estudo – tão perigoso para mim – da teologia dogmática. Que me conserve a fé
íntegra e me dê sua graça para servi-lo com honradez e fidelidade, com
dedicação plena e total até o limite de minhas já escassas forças. Que conserve
em minha alma a paz de que desfruto e que, a meu ver, já não é fácil de
perturbar se a proteção de Deus não me abandonar.
Acrescentarei ao senhor alguns dados concretos. No dia seguinte ao Fato,
tomei já a resolução de consagrar-me a Deus e abraçar o estado sacerdotal. Mas
como o porvir estava tão obscuro, sombrio e incerto, e não era coisa, naqueles

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dias de maio de 1937, de realizar atos definitivos, como ademais compreendia
que necessitava aquilatar e purificar minha alma e provar a capacidade de
perseverança que nela houvesse, adiei prudentemente toda manifestação
exterior. No dia 3 de maio recebi carta de minhas filhas, que já se tinham
trasladado a Barcelona, instalando-se na casa de nossos bons
parentes. Então, e vendo que a guerra ia ser longa, pensei que melhor seria
deixar Paris e reduzir-me à maior solidão e retiro possíveis. O trabalho do
dicionário, com que ganhava meu sustento, podia fazê-lo igualmente em
qualquer outro lugar afastado. Lembrei que um amigo meu, sacerdote francês, o
Padre Pierre Jobit, que então morava em Angulema – atualmente reside em
Madri –, era muito familiar dos beneditinos da Abadia de Ligugé, perto de
Poitiers. Gostava do lugar, que eu conhecia por visita de turismo, por ser
afastado, frondoso e aprazível. Escrevi, pois, ao Padre Jobit, e por meio dele me
pus em relação epistolar com o abade de Ligugé, que teve a bondade de admitir-
me como hóspede em seu convento. Já me preparava para a viagem quando
recebi a notícia da iminente chegada de minhas filhas a Paris.
Tinha sucedido nesse meio-tempo que, na primeira quinzena de maio,
tinha caído o Governo de Largo Caballero, sendo substituído pelo Gabinete
presidido pelo Dr. Negrín. Neste novo Governo não figurava Galarza, principal
autor da negativa a permitir a saída de minhas filhas. Meus amigos de Paris me
aconselhavam que, dado que Negrín se tinha mostrado anteriormente favorável
a meus desejos, retomasse agora meu pedido, já que agora, sendo presidente do
Conselho, lhe seria mais fácil atender a ele se, efetivamente, queria comprazer-
me. Sem grande confiança escrevi diretamente a Negrín uma carta, que
permaneceu sem resposta. Eu dava a coisa por perdida e, não havendo motivo
para nenhuma esperança, tinha já ultimados meus preparativos para minha
mudança para o convento de Ligugé, quando recebi um telegrama de Barcelona
anunciando-me que minhas filhas saíam para a França e telegrafariam de
Cerbère. Efetivamente, no dia seguinte recebi um telegrama de Cerbère com a
hora da chegada a Paris. Em 9 de junho tive a alegria imensa de abraçar minhas
filhas e netos. Encontrava-me à frente de uma família de seis pessoas adultas e
duas crianças. Não tinha que pensar em outra solução senão a da América.
Adiei, pois, tudo. Em poucos dias ficou arranjada a viagem a Buenos Aires,
recebido o dinheiro, obtidos os passaportes. Em 20 de junho embarcamos em

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Marselha. Em 10 de julho chegamos a Buenos Aires. Em 17, a Tucumán. E
comecei imediatamente minhas conferências e aulas. Comecei-as, e por dentro
estava eu literalmente aterrado. A prova que minha incipiente fé e minha
problemática perseverança em impunham era rudíssima. Ganhava muito,
pagavam-me bem. Vivíamos com fartura, e ainda mais que fartura:
guardávamos dinheiro. Por outro lado, tinha eu de dar duas cátedras: uma de
Filosofia geral e outra de Psicologia. Que de perigos, que de ciladas, que de
facilidades para deslizar de novo para as velhas sendas que tão dramaticamente
tinha abandonado!
Não quero abusar mais de sua paciência, D. José María. Baste dizer ao
senhor que, com a ajuda de Deus, triunfei de todos os perigos. Procurei – creio
que com bom êxito – dar a meus cursos na Universidade de Tucumán um
caráter anódino no que respeita aos problemas coincidentes com a Santa
Religião. Guardei meu segredo tão cuidadosamente que nem minhas filhas
puderam descobri-lo.
Onze meses após ter chegado a Tucumán, ou seja, em maio de 1938,
despedi-me da Universidade. Com o que tínhamos guardado e uma tournée de
conferências muito lucrativas que fiz em Montevidéu, Buenos Aires, Rosário,
Paraná, Córdoba e Santa Fé, reuni dinheiro suficiente para sufragar os gastos de
viagem à Espanha e conservar uma sobra capaz de manter à minha família e a
mim durante um ano inteiro. Não me parecia que a guerra pudesse durar mais.
Escrevi uma longuíssima carta ao senhor bispo – com quem desde 1930
mantinha muito boas relações pessoais – revelando-lhe meus planos, referindo-
lhe todos os detalhes de minha conversão, ainda que sem aludir para nada ao
Fato extraordinário que acabo de referir ao senhor. O senhor bispo me
respondeu por cabograma, aprovando tudo e dando-me seus parabéns
emocionados. Embarcamos em Buenos Aires em 3 de junho. Chegamos a Lisboa
no dia 24. Chegamos a Vigo em 27 pela noite. Já durante a viagem tinha
comunicado a minhas filhas meu novo ser de cristão e também de futuro
sacerdote. Choravam comigo de sentimento e de alegria.
No dia 28 pela manhã abracei o senhor bispo com insuperável emoção.
No mesmo dia 28, de tarde, confessei-me com ele, em confissão geral. Nela,
embora tenha sido longuíssima e detalhada, não pude atrever-me a aludir ao
Fato extraordinário, que é objeto deste relato. Não me pareceu necessário, e o

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pudor invencível me conteve irremediavelmente. No dia 29 pela manhã, na
capela de Atalaya de Castro, onde mora o senhor bispo, ouvimos todos a missa,
que rezou Sua Ilustríssima, e de sua própria mão recebi a Sagrada Comunhão
com as faces sulcadas por grossas lágrimas. Dois meses e meio depois, em 10 de
setembro de 1938, ingressava no convento dos Padres Mercedários de Poyo e
começava propriamente minha preparação para o sacerdócio.
Setembro de 1940. Laus Deo.

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