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O HORLA
(Versão de 1886)
Guy de Maupassant
(1850 – 1893)
E o doutor tocou a campainha. Um criado fez entrar um homem. Este era muito
magro, de uma magreza cadavérica, como são magros certos doidos devorados por um
pensamento, porque o pensamento doentio consome a carne do corpo mais que a febre
e a tuberculose.
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Depois de cumprimentar e sentar-se, ele disse:
— Meus senhores, eu sei que por que estão aqui reunidos, e estou pronto a
contar-lhes a minha história, satisfazendo o pedido de meu amigo Marrande.
Durante muito tempo ele considerou-me louco. Hoje duvida. Daqui a algum
tempo, todos os senhores saberão que eu tenho o espírito tão são, tão lúcido, vendo tão
claramente quanto os senhores, infelizmente para mim, e para os senhores, e para a
humanidade inteira.
Mas eu quero começar pelos fatos em si, pelos fatos em toda a sua simplicidade.
Tenho quarenta e dois anos. Não sou casado e a minha fortuna dá-me para viver
com certo luxo. Eu morava em um imóvel de minha propriedade, às margens do Sena,
em Biessard, perto de Rouen. Gosto de caçar e de pescar. Ora, por trás da minha casa,
acima dos grandes rochedos que a dominam, tinha eu uma das mais belas florestas da
França, a de Roumare, e, em frente, um dos mais belos rios do mundo.
A minha casa é espaçosa, pintada de branco por fora, bonita, antiga, no meio de
um grande jardim plantado de árvores magníficas, e que vai ter à floresta, subindo
pelos enormes rochedos de que lhes falei há pouco.
Imaginem um homem que dorme e que está sendo assassinado, e acorda com
uma faca na garganta; que agoniza coberto de sangue, que não pode mais respirar, e
vai morrer e não compreende nada — e aí têm o que isso é.
Eu emagreci de um modo inquietador, contínuo; e, de repente, percebi que o
meu cocheiro, que era muito gordo, começava a emagrecer como eu!
Por fim, perguntei-lhe:
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— Eu creio que apanhei a mesma doença que o patrão. São as noites que passo
em claro.
Pensei, portanto, que havia em casa uma influência febril devida à vizinhança
do rio, e estava pronto para me afastar por dois ou três meses, apesar de estarmos em
plena estação de caça, quando um pequeno fato muito excêntrico, observado por acaso,
levou-me a fazer uma tal série de descobertas inverossímeis, fantásticas, aterradoras,
que me induziram à decisão de ficar.
Tendo sede uma noite, bebi meio copo d’água, e notei que a garrafa, posta sobre
a cômoda, defronte da minha cama, estava cheia até a rolha de cristal.
Durante a noite, tive um despertar terrível como o de que lhes falei. Acendi a
vela, cheio de medonha angústia, e, como quis beber outra vez, vi, com espanto, que a
garrafa estava vazia. Eu não queria acreditar no que via. Ou alguém tinha entrado no
meu quarto, ou então eu era sonâmbulo.
Na noite seguinte, quis fazer a mesma experiência. Fechei a porta a chave, para
ter certeza de que ninguém poderia entrar no meu quarto. Adormeci e acordei como
sempre. Tinham bebido toda a água que vira duas horas antes. Quem tinha bebido essa
água? Eu, sem dúvida, e, no entanto, julgava ter a certeza, a certeza absoluta, de que
não tinha feito um movimento durante o meu sono profundo e doloroso.
Então recorri a artifícios para convencer-me de que eu não praticava esses atos
inconscientes. Pus à noite, ao lado da garrada d’água, uma outra de Bordeaux velho,
uma xícara de leite (de que tenho horror) e bolos de chocolate (de que gosto muito).
O vinho e os bolos ficaram intactos. O leite e a água desapareceram. Então,
todos os dias, mudei as bebidas e os alimentos. Nunca tocaram nas coisas sólidas,
compactas, e, quanto aos líquidos, só beberam leite fresco e principalmente água.
Mas a dúvida pungente ficava-me na alma. Não seria eu que me levantava sem
consciência, e que bebia mesmo as coisas de detestava, porque os meus sentidos,
entorpecidos pelo sono de sonâmbulo, podiam ser modificados, ter perdido a suas
repugnâncias ordinárias e adquirido gostos diferentes?
Servi-me então de um artifício novo contra mim mesmo. Envolvi todos os
objetos em que teria infalivelmente que tocar com tiras de musselina branca e cobertos
com uma toalha fina.
Ora, a minha porta, fechada com uma chave de segurança, e as janelas, fechadas
a cadeado, não podiam ter deixado entrar ninguém.
Então fiz a mim mesmo esta pergunta: quem andava ali, todas as noites, perto
de mim?
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Eu lhes deveria descrever, minudentemente, esta emoção de um homem que,
fechado em seu quarto, com o espírito são, vê, através do vidro de uma garrafa, um
pouco de água que desapareceu enquanto ele dormia.
Eu deveria ter-lhes feito compreender esta tortura, que se repetia todas as noites
e todas as manhãs, e aquele despertar mais assustador ainda.
Mas eu continuo.
De repente, o fenômeno cessou.
Primeiro, entre os meus criados, havia diariamente discussões furiosas por mil
causas aparentemente fúteis, mas, desde então, explicáveis para mim.
O criado de quarto acusou a cozinheira, esta a roupeira e esta não sei quem.
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Portas que ficavam fechadas à noite estavam abertas de manhã. Roubavam leite,
todas às noites, na copa. Ah!
Quem era? De que natureza? Uma curiosidade nervosa — mistura de cólera e
terror — mantinha-me dia e noite em um estado de agitação extrema.
Mas a casa tornou-se outra vez calma; eu pensava de novo que tinham sido
sonhos, quando se deu o fato seguinte.
Foi no dia 20 de julho, às oito horas da noite. Fazia muito calor. Eu tinha
deixado a janela escancarada, o lampião aceso em cima da mesa, iluminando um
volume de Musset[1], aberto nas Noites de maio, e tinha-me estendido em uma grande
poltrona, onde adormeci.
Ora, depois de dormir cerca de quarenta minutos, abri os olhos, sem me mexer,
despertado por não sei que emoção confusa e extravagante. A princípio, nada vi.
Depois, de repente, pareceu-me que as páginas do livro viravam-se sozinhas. Nenhum
sopro de ar entrava pela janela. Fiquei surpreso. Esperei. Depois de cerca de quarenta
minutos, eu vi — vi, sim, meus senhores —, vi com os meus olhos, levantar-se uma
página e cair contra a precedente, como se um dedo a folheasse. A minha cadeira
estava vazia, mas eu compreendi que lá estava ele! De um pulo, atravessei o quarto
para apanhá-lo, para tocar-lhe, para apoderar-me dele se fosse possível...Mas a minha
cadeira, antes que eu lá chegasse, caiu de costas, como se alguém fugisse diante de
mim. O lampião também caiu, e apagou-se, com o vidro quebrado. E a janela —
bruscamente empurrada, como se um malfeitor, a escapar, tivesse-lhe deitado a mão —
foi ter no batente... Ah!
Atirei-me à campainha e chamei. Quando o criado apareceu, eu lhe disse:
Não, não havia sido eu. Eu sabia disto a ponto de não duvidar por um segundo
sequer. E, no entanto, queria quer nisto.
Esperem. O ente! Como eu o chamarei? O Invisível. Não, isto não basta. Eu o
batizei de o Horla. Por quê? Não sei. O Horla já quase não me deixava. Eu tinha dia
e noite a sensação, a certeza, da presença desse vizinho implacável, e a certeza também
de que ele me sugava a vida, hora a hora, minuto a minuto.
Defronte de mim estava a minha cama, uma antiga cama de carvalho, com
colunas. À direita, a lareira.
Eu estava, pois, a fingir que lia para enganá-lo, porque ele também me
espreitava e, de repente, senti, tive certeza que ele lia por cima de meu ombro, que
estava ali, a roçar-me na orelha.
Levantei-me, voltando tão depressa que quase caí. Pois bem... estava tudo claro
como o meio-dia... e eu não me via no espelho! O espelho estava vazio, claro, cheio
de luz.
Via o vidro límpido, de cima a baixo! E olhava para isso com os olhos de um
doido, e não me atrevia a caminhar, sentindo bem que ele estava entre nós — ele —, e
que iria me escapar outra vez, mas que seu corpo imperceptível tinha absorvido o meu
reflexo.
(O médico respondeu:
—É verdade!)
— Desapareceram.)
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— Portanto, senhores, um Ente, um Ente novo, que sem dúvida se multiplicará
em breve, assim como nós nos multiplicamos, acaba de aparecer sobre a terra.
Ah, os senhores sorriem? Por quê? Porque esse Ente conserva-se invisível. Mas
os nossos órgãos, senhores, são órgãos tão elementares que apenas podem distinguir o
indispensável à nossa existência. O que é pequeno demais, escapa-lhes; o que é muito
grande, escapa-lhes; o que está muito longe, escapa-lhes também. Eles desconhecem
as miríades de pequenos animais que vivem em uma gota d’água. Não conhecem os
habitantes, as plantas e o solo das estrelas vizinhas. Não chegam a ver sequer o
transparente. Ponham diante deles um espelho sem estanho, perfeito, e eles não o
distinguirão e irão nos lançar para cima da lâmina como um pássaro preso em casa,
que quebra a cabeça de encontro às vidraças. Portanto, eles não veem o ar quente de
que nos alimentamos, não veem o vento, que é a maior força da natureza, que derruba
os homens, abate edifícios, arranca árvores pela raiz, levanta o mar em montanhas
d’água, que derroca as de granito. Que há de admirável em que não vejam um corpo
novo, ao qual falta talvez somente a propriedade de deter os raios luminosos?
Todas as lendas das fadas, dos gnomos, dos vagabundos do ar, impalpáveis e
maléficos, era dele que elas falavam. Dele, já pressentido pelo homem inquieto e
trêmulo.
E aqui está, senhores, para acabar, o fragmento de um jornal que me caiu nas
mãos e que vem do Rio de Janeiro. Eu leio: “Uma espécie de epidemia de loucura
parece alastrar-se há algum tempo na província de São Paulo. Os habitantes de
diversas aldeias têm fugido, abandonando as suas terras e casas, e dizendo-se
perseguidos e devorados por vampiros invisíveis, que se alimentam da respiração deles
durante o sono, e que só bebem água e às vezes leite.”
Acrescento: dias antes do primeiro ataque do mal de que estive para morrer,
lembro-me perfeitamente de ter visto passar uma grande galera brasileira, com sua
bandeira posta ao vento... Eu lhes disse que a minha casa fica à margem d’água... toda
branca. Sem dúvida, ele estava escondido nesse navio.
Nada mais tenho a acrescentar, meus senhores.
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[1] Alfred de Musset (1810 — 1857), poeta, dramaturgo e novelista romântico francês.
Tá incompleto?
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barão, acredito que os horlas são algum tipo de djinn. Eu ando estudando
as versões deste conto pra buscar inspiração numa novela de FC que
pretendo escrever, o horla no caso seria um tipo de alien.
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