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Wallace Shawn
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Estou a viajar – e de repente acordo no silêncio antes do amanhecer num estranho quarto
de hotel, num país pobre onde não se fala a minha língua, e estou a tremer e a tiritar. –
Porquê? Há alguma coisa – está a acontecer alguma coisa – longe, noutro país. Sim,
lembro-me. É a execução. O artigo do jornal dizia que seria esta a hora, era esta a data.
Respiro fundo. E aí vêm eles agora – vêm buscar o homem deitado na cama de
lona, o homem-gato com uma cara tão grande, tão negra, que, ao abrir a cela, os guardas,
abalados, assustam-se uma vez mais. Rapam-lhe a cabeça, um bocado da perna, de modo
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E agora encaminham-no para a sala, e ele é amarrado à cadeira com correias de
couro. Os braços, prendem-nos aos braços da cadeira para que as testemunhas não os
homem? Um assistente cobre-lhe a cabeça com um capuz de modo a que nenhum de nós
veja a dor, o horror, a contorção da cara dele. A pele a estalar! Tudo o que vemos é o
Não acham – quando estão a viajar num país estranho – que os cheiros são agudos
a uma hora madrasta – quando estão a viajar algures e acordam num sítio estranho – não
ficam assustados?
O candeeiro junto à minha cama não funciona, as luzes não acendem. Os rebeldes
fizeram explodir as torres de electricidade. Há uma pequena guerra em marcha neste país
pobre onde não se fala a minha língua. Os quartos de hotel têm todos umas velas com uns
candelabrozinhos. Levanto-me, acendo a vela, levo a vela para a casa de banho. Depois
Depois estou sentado, a tiritar, no chão da casa de banho, este frio quadrado de azulejos
numa noite quente num país quente, e não me consigo levantar para voltar para a cama –
não me consigo levantar – então fico aqui sentado, em silêncio, a tremer como se
um insecto, grande, como um bicho da água – é achatado, pesado – pernas muito fortes,
parecem de metal – e está à espera, de cócoras, decidindo para que lado é que deve ir. – E
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num segundo passou por trás do lavatório, e está a deixar-se escorregar para um buraco
pequeno demais, mas ele cabe – dentro – ele cabe – foi-se. E eu vejo-me a mim mesmo.
salmão e o vinho, e lá estou eu. Conversando calmamente com essa mulherzinha pálida
de vestido vermelho-e-azul sobre o caso amoroso com o homem mais velho, aquele filme
bosques no campo, o apetite insaciável por sexo violento, o sofrimento das pessoas que
que era uma pessoa que estava a pensar numa festa, que tinha tantos problemas em
relação a isso, que gostava de alguns aspectos da festa, mas não de outros, que gostava de
algumas das pessoas, mas não de todas, que gostava do centro-de-mesa cor-de-rosa-e-
verde, mas que de facto não gostava daquele vestido vermelho-e-azul. Mas não. Não.
Vejo-o tão claramente. Vejo-me com o meu garfinho – eu não era uma pessoa que estava
a pensar numa festa. Eu era uma pessoa que estava numa festa, que se sentava à mesa,
Não falávamos do peixe, não falávamos do restaurante, falávamos dos lagos nas
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Mas onde é que nós estávamos? Onde é que estávamos? Não era junto aos lagos, não era
no abrigo. – Estávamos ali, só ali, nessa mesa, nesse restaurante. – Bem, talvez para
algumas pessoas – talvez para algumas pessoas que viveram no princípio do século vinte
– a vida interior fosse aquilo que era oculto e inconsciente. Talvez a única coisa que essas
pessoas pudessem ver fosse a circunstância externa, onde estavam, o que faziam, e não
fizessem nenhuma ideia sobre o que estava dentro delas. Mas alguma coisa tem estado
escondida de mim, também. Alguma coisa – uma parte de mim – tem estado escondida de
mim, e eu acho que é a parte que está lá à superfície, o que qualquer pessoa no mundo
Porque eu sei bastantes coisas sobre o que está dentro de mim. Tenho sido um
estudioso dos meus sentimentos desde os nove anos de idade! Os meus sentimentos! Os
meus pensamentos! A incrível história dos meus sentimentos e dos meus pensamentos
daria para encher uma dúzia de livros de encadernação em pele. Mas a história da minha
nunca o li. Bem, nunca o quis ler. Sempre achei que seria terrivelmente aborrecido. O que
é que poderia estar lá? Capítulo Um: A Minha Infância. Nasci, chorei. Capítulo Dois: O
Resto: Mantive-me. Levantei-me, fui para o trabalho, fui para casa, fui para a cama. Fui a
um restaurante, e comi peixe. O que é que interessa? Por amor de Deus – será que tive de
viajar para um país pobre onde não se imprime livros na minha própria língua – será que
tive de ser rebaixado para o chão da casa de banho de um estranho hotel – de maneira a,
finalmente, ser forçado a abrir esse volume chato, a história da minha vida?
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Não, não me vou pôr a lê-lo. Não o vou ler. Os meus pais amaram-me.
estar. O meu pai, numa poltrona, a ler sobre a China. A minha mãe num sofá comprido
com o jornal. Sumo de laranja num jarro de vidro em cima de uma mesa.
E eles liam-me um livro sobre todas aquelas pessoas, de tantas fardas diferentes,
que vinham a nossa casa ajudar a nossa família: originárias de todos os cantos da nossa
bela cidade, o homem das entregas da mercearia, o carteiro com o correio. Todos tão
dava pãezinhos de açúcar. E, meu Deus, eu nunca duvidei que a vida fosse preciosa.
cadeiras – e o trabalho deles era fazer o registo de todos os casos de assassínio político, e
tortura, e violação – a violação usada como uma forma de tortura ou durante o processo
mulheres e homens sorrindo timidamente em algum momento antes das suas mortes, e
estavam pregados lá junto das imagens dos cadáveres deles. Os rostos, radiantes de
bondade.
E eu pensei na delicadeza com que os meus pais me tinham ensinado a urinar para
a sanita, a ser cuidadoso nas proximidades das sanitas, a lavar as mãos, sempre com
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sabonete, a evitar pessoas com gripe, com constipações, a evitar correntes de ar, a evitar
E daqui, do meu lugar no chão da casa de banho, consigo ver pela janela,
sangue dos inocentes, encharcadas com o sangue daqueles rostos tímidos, tímidos rostos
quebrados.
A passear num jardim com a minha mãe – as rosas enormes. E num pinhal escuro
corda. Eu gosto de seguir a frase do violino que vai e vai, como um orgasmo bem
enraizado espremido para uma corrente de som. Eu gosto de sair à noite numa cidade
cosmopolita e sentar-me num auditório às escuras a ver bailarinos voarem para os braços
Sim, suponham que certas pessoas – certas pessoas cujos corações estão
reconhecidamente cheios de amor – estão a ser acordadas à noite, de repente, por grupos
de homens armados. Suponham que elas estão a ser arrastadas para uma carrinha mal-
cheirosa com um tapete no chão e a ser pontapeadas por botas até os lábios ficarem
inchados como laranjas, a escorrer sangue. Sim, eu estava vivo quando estas coisas foram
feitas, vivia na cidade onde as ruas escorriam o sangue das bondosas vítimas, vestia as
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roupas que tinham sido arrancadas dos corpos das vítimas quando estas foram violadas e
mortas.
Mas adoro violino. Adoro música, bailarinos, vou a tudo, vejo tudo. A cidade com
adorava elefantes”, “Quando eu era criança, adorava balões”. Será que querem dizer que,
adorariam? Porque não os adorariam? Eu acho que ainda adoramos o que sempre
adorámos. Como poderíamos não o fazer? E uma das coisas que eu sempre adorei – não
presentes de Natal e os presentes de aniversário que os adultos dão sempre uns aos outros
– são embrulhados, são embalados. Digamos que o presente era uma pequena chávena de
porcelana ou um pires ou uma minúscula jarra de porcelana. Bem, primeiro havia uma
caixa de cartão da loja que parecia que tinha de trazer lá dentro um cavalo de baloiço ou
um triciclo, porque era assim mesmo grande – excepto que, se pegássemos nela, era
caixa castanha tinha sido empacotada e selada por uma espécie de enormes e musculados
depois alguém fazia um corte com uma faca na fita gomada castanha no topo da caixa, e
quando puxavam as duas metades do topo uma para cada lado, havia sempre uma espécie
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encontrávamos outra caixa, embrulhada num papel espesso e brilhante e atada com uma
dessas fitas espessas e brilhantes e de cores vivas, que na verdade não era necessária para
manter a caixa fechada, e naturalmente imaginávamos que esta caixa interior tinha sido
embrulhada por uma dessas senhoras muito distintas e de aparência modesta cujas mãos
eram amaciadas por cremes perfumados e que, com toda a certeza, se preocupava
muitíssimo com o que quer que fosse que estivesse dentro da caixa. E depois, quando se
desfazia e retirava o papel e a fita, e a caixa propriamente dita, com a sua superfície
macia como leite puro, era finalmente revelada, alguém tirava a tampa, e nesse momento
papel amarrotado que enchiam a caixa deixando sair uma espécie de leve suspirozinho
assim que o levantar da tampa lhes dava mais algum espaço para respirar. E depois
descobrir o que é que estava, ao certo, dentro da caixa, para além de todos aqueles
bocados de papel amarrotado, se é que de facto estava mais alguma coisa lá dentro,
porque primeiro pensávamos sempre, Bem, realmente, desta vez não há mais nada. E
então alguém – talvez um de vocês – metia a mão lá dentro, mesmo até ao fundo da
acabava por dar com uma coisa dura, uma coisa muito bem embrulhada num papel de
outro tipo, e quando esse último embrulho era finalmente desfeito, lá estava uma chávena
ou um pires ou uma jarrinha minúscula, pensada para uma única florzinha. E se vocês
tivessem visto aquela chávena ou o pires ou a jarra numa prateleira de uma loja algures,
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talvez tivessem pensado que não era nada de especial, ou se tivessem visto isso num
monte de coisas iguais a um canto dum lugar escuro e cheio de pó onde se vendesse
bugigangas, talvez tivessem pensado que era tralha velha para o lixo, mas depois de ter
sido retirada de todo aquele papel, daquela caixa branca como o leite, daquela caixa de
cartão, parecia a coisa mais brilhante, mais cintilante do mundo. E parecia tão delicada –
sempre o soubemos. Sabíamo-lo pela maneira como nos embrulhavam – por causa da
suave roupa interior estendida nas nossas camas, meias macias para nos proteger os pés.
E lembro-me que a minha querida mãe, a minha mãe bonita, a minha mãe
inocente, dizia-me a mim e aos meus amigos, “Vá, tenham cuidado, não se aproximem da
E nós não fazíamos ideia do que é que isso queria dizer. Ela não fazia ideia.
Pensávamos que alguns miúdos eram mauzões – talvez apenas quisessem ser assim. E
viviam em certos bairros – talvez porque estavam lá os amigos deles. As pessoas boas
tinham-se juntado no nosso bairro, tinham formado uma comunidade, e era um bairro
bom. Na Primeira Avenida e noutras avenidas, havia bairros maus, onde as pessoas
mazonas se tinham juntado, e esses eram os bairros que nós tínhamos de evitar.
vivem em lugares desses podem magoar-te, bater-te, cortar-te, matar-te. Todos esses que
te podem magoar juntam-se nesses bairros, como água nas sarjetas. E é terrível. É
horrível. Porque é que as pessoas hão-de querer magoar-se umas às outras? Eu digo
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sempre aos meus amigos, Nós devíamos estar contentes de estar vivos. Devíamos festejar
permanentemente em festa? Não devia haver sinos de papel pendurados no tecto, e balões
Sim, mas não podemos fazer festejos exactamente na mesma sala onde há grupos
Onde é que nós estamos, e onde é que estão os que estão a ser torturados e assassinados?
Não na mesma sala? Não – mas certamente – não há nenhuma outra sala que possamos
usar? Sim, mas ainda ouviríamos as pessoas a gritar. Bem, então – não podemos usar o
edifício do outro lado da rua? Bem, talvez – mas não seria uma sensação estranha passar
pela janela durante os nossos festejos e olhar para o outro lado, para o edifício onde
estamos agora, e pensar no sangue e nas mortes e nos testículos que estão a ser
esmagados lá dentro?
seguidores de Marx.
A tontura faz-me cair de cabeça ao chão. Sinto-me como se uma corda enrolada à
volta das minhas têmporas fosse sendo apertada e aliviada, apertada e aliviada, e tenho
No meu próprio país sempre adorei ficar em hotéis. De facto, uma das coisas que
eu acho que gosto mais é de dormir num hotel numa nova cidade qualquer e depois
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levantar-me cedo enquanto os pássaros estão a cantar e ligar para o serviço de quartos e
fazer com que eles me tragam uma grande caneca de café, e depois deitar-me na cama e
telefonar aos meus amigos enquanto vou bebendo o meu café. Consigo passar horas
assim, literalmente, só a falar ao telefone e a rir e a beber mais café e a olhar o sol a
entrar pela janela e a andar pelo quarto. E depois levanto-me e vou ao meu dia.
Vou-vos contar um episódio engraçado que aconteceu hoje ao almoço. Bem, para
dizer a verdade, a minha reacção é que foi engraçada. Havia um banquete no hotel. Toda
a gente tinha uns pratos enormes de comida: porco, camarões, lagosta, caça. Eu estava de
pé cá fora, e havia uma rapariga aí de dezasseis anos sentada nuns degraus não longe de
mim. Era uma camponesa, descalça, as pernas espreitando de uma saia desbotada. Os
olhos enevoados, como se tivesse sido chicoteada. Estava à espera de alguma coisa,
repente, saiu do hotel um jovem, de fato, com uma expressão idiota. Vinha na direcção da
rapariga dos degraus, e pelo modo como ele lhe acenava percebi que ela devia ser uma
das criadas da família dele. Ele estendia-lhe um pratinho minúsculo com alguns feijões.
Aquilo era o almoço dela. Bem, ela sorriu para agradecer aquela oferta de comida, e eu
tive uma reacção imediata – queria esmurrar aquele jovem na cara, atirá-lo para os
arbustos. Foi bastante engraçado para dizer a verdade. Quem é que eu pensei que era, o
guerrilheiro radical da semana? Depois ele voltou para dentro – ignorando-me, claro – e o
momento passou.
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Há cerca de um ano passei um dia numa praia de nudistas com um grupo de
pessoas que não conhecia assim tão bem. Para ali deitado, nu, ao sol, havia um homem
que estava sempre a falar da “classe dirigente”, “a elite”, “os ricos”. Durante todo o dia,
“Os ricos são porcos, todos eles são porcos, um dia esses porcos vão ter o que merecem”,
e coisas assim. Era um homem magro com um grande bigode, com um ar pouco saudável
mas muito bonito, um fumador inveterado. Enquanto falava, punha-se a rir – uma espécie
de ladrar cruel que lhe saía sempre quando menos se esperava. Eu tinha ouvido falar
destas palavras e destas frases durante toda a minha vida, mas nunca tinha conhecido
alguém que realmente as usasse. Achei bastante divertido. Mas, desde essa altura, durante
cerca de um mês, aconteceu uma coisa estranha. Onde quer que fosse, começava a
conversar com pessoas que encontrava pela primeira vez – num comboio, num autocarro,
em festas, na fila do cinema – e toda a gente que eu encontrava falava como ele: Os ricos
são porcos, o dia deles há-de chegar, todos eles são porcos, e tal e tal. Comecei a pensar
que talvez estivesse maluco. Pensei que estava louco. Será que isto estava mesmo a
parecia que todos os intelectuais e líderes políticos de quem se sabia terem alguma vez
caído sob a sua influência corriam em todas as direcções à procura de protecção. Portanto
quem é que eram todas estas pessoas que continuavam a puxar-me para o lado delas?
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Um dia estava um presente anónimo pousado no degrau da minha entrada – o
Volume Um de O Capital de Karl Marx, num saco de papel castanho. Uma piada? A
sério? E quem o teria mandado? Nunca descobri. Muito tarde, nessa noite, nu na cama,
folheei o livro. O começo era impenetrável, não conseguia perceber aquilo, mas quando
cheguei à parte sobre as vidas dos trabalhadores – os das minas de carvão, as crianças-
operárias – conseguia sentir-me a respirar mais devagar de repente. Tão zangado que ele
estava. Página atrás de página. Depois voltei atrás, a um capítulo anterior, e vim dar a
uma expressão que já tinha ouvido, uma expressão esquisita, perturbadora, um bocado
mercadoria”. Queria compreender aquela expressão que soava tão estranha, mas sentia
A explicação dele era muito engenhosa. Usava o exemplo das pessoas dizerem,
“Vinte metros de linho valem duas libras.” Sobre qualquer coisa, as pessoas dizem que
tem um certo valor. Isto vale tanto. Este casaco, esta camisola, esta chávena de café: cada
coisa vale uma quantidade de dinheiro, ou uma soma de outras coisas – um casaco vale
três camisolas, ou este dinheiro – como se aquele casaco, aparecido de repente sobre a
terra, contivesse algures dentro dele uma quantidade de valor, como uma alma, como se o
casaco fosse um fetiche, um objecto físico que contém um espírito vivo. Mas na verdade
o que é que determina o valor de um casaco? O que é isso que determina o preço de um
casaco? O preço do casaco resulta da sua história, a história de todas as pessoas que
entre elas. E se compramos o casaco, também nós passamos a ter uma relação com essas
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pessoas, e no entanto ocultamos essas relações da nossa consciência fazendo de conta que
vivemos num mundo onde os casacos não têm qualquer história mas simplesmente caem
do céu com preços marcados dentro. “Gosto deste casaco”, dizemos, “não é caro”, como
se isso fosse um facto sobre o casaco e não o fim da história sobre todas as pessoas que o
Uma mulher nua debruça-se sobre uma cerca. Um homem compra uma revista e
olha para a imagem dela. Os destinos destes dois estão ligados. O homem pagou para que
a mulher tirasse as roupas, se debruçasse sobre a cerca. A fotografia contém a sua própria
história – o momento em que a mulher desapertou a saia, o maneira como ela se sentiu, o
que disse o fotógrafo. O preço da revista é um código que descreve as relações entre
todas essas pessoas – a mulher, o homem, o editor, o fotógrafo – que ordenaram, que
obedeceram. Uma chávena de café contém a história dos camponeses que apanharam os
grãos, o modo como alguns deles desmaiaram sob o calor do sol, alguns deles foram
Durante dois dias conseguia ver o fetichismo da mercadoria por todo o lado à
minha volta. Era uma sensação estranha. Depois ao terceiro dia perdi-o, foi-se, já não o
Mas, não muito depois da oferta do livro, eu estava à espera do autocarro. Alguém
com um sorriso muito simpático estava parado atrás de mim, o peito magro coberto por
uma t-shirt desbotada, e na t-shirt estava escrita uma só palavra: era o nome de um país
revolucionário. O autocarro estava atrasado, foi ficando tarde, cada vez mais tarde, e por
fim eu sorri ao sorriso que estava parado atrás de mim, e perguntei à pessoa, “Já foste a
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esse país – esse na tua t-shirt?” E a pessoa disse, “Sim – já estiveste lá, também?” com
Cerca de seis meses depois, eu tinha estado numa festa numa zona chique da
cidade, e tinha bebido bastante. A noite estava escura. As ruas estavam molhadas. Eu
passava a correr por umas árvores azuis, e de repente vi uma poça de luz, e no meio da
luz um homem de fato sombrio, com uma cara em forma de noz e cabelo grisalho, estava
a chamar um táxi. Ele tinha estado na festa, mas não tínhamos falado. Perguntou-me se ia
para os lados dele, e eu ia. Ele tinha um sotaque musical. Entrámos no táxi. As mãos
tremiam-lhe de uma maneira esquisita, e a voz soava a xarope espesso e escuro. A falar,
usava umas expressões assim muito abreviadas e irónicas, e passado um bocado eu disse-
lhe, a despropósito, “Não consigo localizar o seu sotaque – é de onde?” Ele lançou-me
um olhar sombrio e, com especial ironia, revelou ter vindo do país revolucionário cujo
nome eu vira meses antes na t-shirt. Trabalhava para esse país como diplomata. “É difícil
viajar para o seu país?” perguntei. Ele explicou-me, gentilmente, que uma pessoa punha-
se lá numas horas.
Alguns meses mais tarde, fui ao país revolucionário. Não era como as mentiras
que tinha ouvido. Havia muitos soldados, de facto, mas a mim pareciam-me mais
estava muito revigorado. Conversava com os funcionários públicos que entravam nas
repartições de madrugada – todos eles muito cansados, mas muito educados, amáveis, de
bom humor – alguns eram muito calorosos, outros pareciam melancólicos. Um dia parei
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numa praça, e escrevi no meu caderno a frase romântica: “Estes sorrisos tímidos são
como um jardim para mim.” Fiquei num hotel extravagantemente caro, e os gelados lá
eram como uma droga – tão leves – deliciosos, perfeitos... Nunca me fartava destes
gelados incríveis. Um jornalista que estava no hotel, e que conheci ali, explicou-me que
não fazia sentido admirar a revolução por causa dos seus gelados, já que a verdade é que
podia ser considerado uma imperfeição da revolução que se aplicasse recursos à produção
de um único gelado quando algumas pessoas ainda não tinham o suficiente para comer. A
observação era válida, mas ele não apanhava o essencial: o gelado era agradabilíssimo.
Continuei a minha viagem, e decidi ir a mais países pobres. Fui a países pobres
cujos nomes não estavam escritos em t-shirts nenhumas, onde os soldados tinham caras
provei o gelado, todos os sabores sabiam ao mesmo, e nenhum era delicioso. Vacilava a
beleza onde uns operários tinham sido violados e pendurados em árvores. Mas num
domingo de sol radioso fui a uma igrejinha, a abarrotar de caras magras, e lá havia
tolerância, piedade. E, uma tarde, num café escuro, tomei chá com uma guerrilheira
A pele dela era amarelada, os olhos demasiado brilhantes. Parecia estar a arder
com uma doença má. Bem, não era mesmo uma seguidora de Marx. Mas o nome parecia-
lhe maravilhoso, até a imagem dele lhe parecia bonita, porque ao contrário dos outros
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filósofos e gente culta, explicou-me ela, Marx tinha feito o estranho gesto de lançar a
vida aos pés dos pobres. Por outras palavras, Marx era um seguidor deles. Ele estava do
lado deles.
Eu ia tentando que ela falasse dela. Não via a casa há muito tempo. Amava os
pais. Tinha duas crianças pequenas. O marido tinha morrido com vinte e poucos anos.
Fechando e abrindo os punhos, ela falava-me, febrilmente, de uma irmã que tinha sido
morta. A cabeça tinha sido mutilada. Depois da morte da irmã, ela deixara a aldeia e
Voltei para casa, e retomei a minha vida normal. Mas não conseguia deixar de
reparar que me estava a acontecer uma coisa horrível. Primeiro tentei ignorá-la ou pô-la
de lado, como um sintoma que se espera que desapareça por si só, mas aquilo não
desaparecia. Que coisa era essa que estava a acontecer? Eu sempre disse, “Sou uma
pessoa feliz. Eu amo a vida”, mas agora havia uma espécie de horrível indiferença ou
vazio que vinha de alguma parte de dentro de mim e me enchia, aos poucos. Coisas que
Fui visitar umas pessoas que conhecia – amigos íntimos. Nunca tinha ido a casa
deles antes, e todos nós ansiávamos por essa minha visita há anos. “Este é o nosso
quarto”, abrindo uma porta. “Aqui dorme o bebé.” Todas as divisões eram bonitas – todas
partes do mundo. Nos quartos das crianças havia um papel de parede azul-celeste que ia
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até ao tecto, estantes com grandes galinhas e patos amarelos. Mas eu sentia-me falso.
Fui ver uma peça com um grupo de amigos – uma actriz lendária num grande
papel. Não tirávamos os olhos do palco. A pouco e pouco, a desgraça da mulher ia-se
aproximando. A casa de infância seria por fim vendida, as adoradas cerejeiras deitadas
abaixo. Sob as luzes intensas, a actriz mostrava fúria, bravata, o palco ressoava com o seu
riso juvenil, que expressava como esta se enganava a si mesma. Seria forçada a viver
num apartamento em Paris, não na quinta que fora sua. Um homem cujo pai tinha
trabalhado na quinta como servo ia agora comprá-la. Foi a dor solidária do irmão mais
velho dela que, por fim, conseguiu puxar lágrimas ao matulão de sobretudo sentado ao
meu lado. Mas o meu problema era que, sei lá como, de repente, eu não estava em mim.
Estava desconcertado. Porque é que era suposto estarmos a chorar, ao certo? Esta pessoa
não seria mais dona da quinta que em tempos tinha sido dela... Em vez disso, teria de
viver num apartamento... Não me lembrava porque é que era suposto eu estar a chorar.
Num táxi a caminho de casa, depois da peça, os meus amigos criticavam um dos
personagem dele se comportava daquela maneira no Primeiro Acto, as acções dele mais
Algumas vezes estava óptimo. Lembro-me que uma manhã – um céu azul
maravilhoso – fui cortar o cabelo. Mãos delicadas moldavam-me o cabelo de modo que
ele assentasse sobre a forma do meu couro cabeludo como uma touca. Depois comprei
um par de meias para mim, e depois pus-me a olhar para elas com atenção, e comprei
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mais dois pares, porque não é fácil encontrar o tipo de meias de que eu gosto! Depois fui
que conheço desde os meus oito anos. Mas depois entrei num táxi, e enquanto seguia pela
cidade, aquela sensação, aquele enjoo, tomou conta de mim outra vez. Parecia começar
no meu estômago e sair pelas minhas pernas, pelo meu peito. E o meu estômago batia, tal
e qual um coração. Suores frios na testa e no pescoço. Eu não era eu. Quando o táxi
chegou, a pessoa que saiu não era eu. Eu não estava em lado nenhum. A pessoa que
Alguém com quem, há anos, eu tivera um caso amoroso muito feliz estava à
minha espera para me ver. Sorrimos, abraçámo-nos, mas eu não estava lá para ser
grupo de bailarinos, um dos quais nós conhecíamos, e eu soube do jantar com a nossa
amiga Nadia, que estava a trabalhar nos quadros dela mas também fazia design gráfico, e
apanhara o ladrão quando este corria rua fora. O Petrus dissera que o cadastro do homem
era tão comprido como aquela biografia de Henry James. As aventuras do Petrus com a
polícia e os tribunais eram uma comédia hilariante, sendo o Petrus o Petrus. Mas
enquanto ouvia a história, eu lembrava-me que um amigo da minha mãe me tinha dito
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uma vez, “Gosto de ti, porque tu tens uma gargalhada tão boa, tão sonora, tão feliz”, e
dava-me conta que a minha gargalhada era como uma tossezinha presa.
escritório onde ele trabalhava, mas quando encontrámos o nosso amigo, fomos dar por
largueironas e grandes coxas e moedas nos bolsos – e as mulheres tinham vestidos cheios
de floreados, cabelos que pareciam perucas, e o nosso amigo disse, “Meu Deus, como são
infelizes. Como é doloroso. Como é triste a vida”, mas eu olhava para os executivos nos
seus fatos escuros e sentia apenas aquela dormência, até estava na minha boca, na minha
língua, uma espécie de amargo desamor, uma espécie de podre, horrível desamor.
pai dele tinha morrido. Descreveu o hospital, os médicos, as máquinas. Era como se ele
sentisse que nunca ninguém tinha morrido antes, como se sentisse que era uma grande
injustiça que o pai dele tivesse de morrer. No entanto, não tinha sido poupada qualquer
despesa para prolongar a vida do pai dele, para garantir que a morte dele fosse tão
o que podiam de forma que ele morresse sem sofrimento. Não pude deixar de mencionar
esses outros que todos os dias morriam na mesa de tortura, a gritar, cortados aos pedaços
com facas, rodeados nos seus leitos de morte por outros especialistas que faziam tudo o
que podiam para ter a certeza que aqueles que eles rodeavam morreriam em brutal agonia
– agonia inimaginável.
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As minhas observações eram despropositadas. Onde estava a compaixão que eu
devia ao meu amigo? A perda dele era real. Ele olhava para mim, horrorizado.
Era Natal nessa altura. Uma atmosfera festiva enchia as ruas e as lojas, e uma
noite eu tive um sonho, e sonhei que era Natal, e eu tinha uma família maravilhosa, com
ia à casa de banho lavar os dentes. A minha escova, a pasta, e o copo estavam juntinhos
casa de banho, a prateleira sobre a qual assentavam estas coisas começou a inclinar-se. O
copo escorregou devagar por ela abaixo, depois caiu e partiu-se em pedaços grossos e
chorar, a soluçar. “Peço desculpa”, disse, “não vos posso dar mais presentes. Amo-vos a
todos, mas não vos quero dar mais presentes.” As palavras saíam-me da boca, de repente.
Não sabia porque é que as estava a dizer. Sempre quisera que os meus filhos fossem
felizes. Sempre quisera que eles tivessem o melhor de tudo. Depois acordei e pensei no
sonho, nos presentes. Pensei no Natal, nas ruas, nas lojas. Seria por isso que as pessoas
traziam crianças ao mundo – para que também elas pudessem, um dia, vaguear pelas
melhor tudo – para que também eles pudessem exigir “o melhor”? Não haveria já
acumularmos mais tesouros de todo o mundo, mais do melhor, para que o tenham todas
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essas nossas novas crianças, porque as nossas crianças devem ter o melhor, seria uma
vergonha para nós, uma desonra, dar-lhes menos que o melhor. Nada nos impedirá de
Eu estava péssimo. E não era que tivesse adorado especialmente a viagem que
acabara de fazer. Mas sentia que talvez devesse ir outra vez – ir outra vez a mais países
pobres – que talvez fosse isso que eu devia fazer para curar a minha sensação de enjoo ou
inquietação ou lá o que era. Até tinha uma mala ainda por desfazer. E por isso pensei,
A última noite no meu país, gastei-a num hotel de aeroporto. As pessoas do quarto
acima do meu ouviam música a horas mais que tardias. Liguei para a recepção e queixei-
me. Deitado na cama, imaginava as pessoas acima de mim a ouvir música. Estavam
vestidas com roupas confortáveis, informais – eram livres, felizes, talvez um bocadinho
bêbadas ou ganzadas. Talvez estivessem a dançar. Sempre gostei muito da canção que
eles estavam a ouvir – uma bela canção – e senti uma espécie de refinado prazer: deitar-
bateria à porta do quarto acima do meu e a música pararia de repente a meio de uma
frase.
Tento levantar-me para sair da casa de banho. Ponho-me de joelhos, mas não
puxo-o para o chão, puxo-o para mim, e faço-o deslizar para baixo de mim.
Sabem? – há noites na cidade onde eu cresci, a cidade que eu mais amo, em que
está demasiado frio para chover, mas o céu ainda não pode nevar, embora se sinta que
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queria, e por isso, em vez disso, parece que num certo momento todos os carros e caras e
vidros ficam cobertos de repente por uma deliciosa humidade, como a humidade que se
pode ver numa cereja congelada, e em noites assim, quando se anda pelas ruas das zonas
boas da cidade, vê-se os homens todos, nuns sobretudos que caem direitos até ao chão, a
cabeças de raposa que trazem batons vibrantes, que trazem brincos vibrantes, enquanto
vão atravessando a luz e a escuridão desiguais do passeio. E isso é o tipo de coisa que os
Comunistas nunca vão perceber. Isso é o tipo de coisa que os Comunistas nunca vão
perceber, tal como a decência humana é o tipo de coisa que eu nunca irei perceber.
Olhem – há uma pergunta que eu gostava de vos fazer: Já tiveram alguns amigos
pobres? Estão a ver, eu acho que isso é uma ideia que muitas pessoas têm: “Porque é que
Imaginei isso tantas vezes, como um sonho que vem e torna a vir. Tem havido
tantas pessoas – pessoas que vejo todos os dias, em trabalhos humildes– pessoas que me
chamam a atenção, que falam comigo, e eu penso, Tão bonito, É bonito, Se ao menos – e
imagino isso – mas depois o que eu imagino acaba sempre tão mal.
Imagino sempre que eles me convidam para ir a casa deles jantar, e – não sei o
que é – qualquer coisa a ver com as lâmpadas, o soalho que se está a levantar um
bocadinho de nada do chão, e tu entras e dizes para ti mesmo, Está bem, Isto está bem,
está tudo bastante bem, mas sabes que não está – e há aquela espécie de cheiro pegajoso
!24
tossir. E há algumas cadeiras duras, e tu acabas por te sentares no chão, e andas a
contorcer-te pelo chão fora, e vais tentando arranjar algum encosto para as costas. E eles
oferecem-te alguma comida, e a carne é gordurosa e, ali pousado no teu prato, o bocado
de carne parece ficar maior, cada vez maior. E toda a gente é incrivelmente simpática. E
alguém muda a fralda do bebé. E, passada uma semana, eles ligam a convidar-te outra
vez, e tu não sabes o que dizer, por isso lá vais outra vez, e depois outra vez uns meses
mais tarde talvez, e depois – não sei – talvez te tenhas mudado para uma outra zona da
cidade, talvez te tenhas mudado para fora da cidade até, talvez eles se tenham mudado
para fora da cidade – mas na próxima ocasião em que lá vais passou um ano, e não há
Meu Deus, o que é que me está a acontecer? Sinto que não resta nada de mim.
Sinto que não penso nada – não me lembro... Que coisas é que eu estou sempre a dizer?
Não – vamos parar com isto. Todas as pessoas são pessoas, todas as pessoas
acreditam em certas coisas. O meu amigo Bob – o meu amigo Bob acredita que “a
Fred acredita que “o rebelde de hoje é o ditador de amanhã”. E a Natasha acredita que os
camponeses dos países pobres só querem que os deixem estar para cultivarem os campos
esquerda. O Mario acredita que a crítica social em peças de teatro e em filmes pode
expressar-se mais eficazmente através do uso do humor. E o Indrani acredita que as obras
!25
destes, a sociedade. E o Toshiko acredita que a única verdadeira contribuição que as
pessoas podem dar para a resolução dos problemas do mundo é educar as suas famílias
com bons valores. E a Ann-Marie acredita que os ricos e os pobres deviam viver como
amigos e deviam trabalhar juntos para tornar o futuro melhor do que o passado.
Bob, a acreditar que a democracia é a pior forma de governo, com excepção de todas as
outras? E se acontecesse o Fred acordar, uma manhã, e pensar que acreditava nisso,
O Fred acredita em certas coisas – pode-se dizer isso. Mas o que é que isso quer
oponho, oponho –
Mas ainda me consigo lembrar daquilo que gosto – não é? – se não daquilo em
que acredito. Eu sei do que é que gosto. Gosto de afecto, aconchego, prazer, amor –
presentes, cartas – gravuras bonitas – aquelas pinturas do Matisse... Sim, sou um esteta.
Gosto da beleza.
!26
Sim – os países pobres são belos. As pessoas pobres são belas. É uma sensação
maravilhosa ter dinheiro num país onde a maioria das pessoas é pobre, atravessar de táxi
Sim – uma pedinte pode ser bela. Uma pedinte pode ter belos lábios, belos olhos.
Estás longe de casa. Para ti, o modesto xaile dela parece elegante, directo, a maneira certa
de vestir. Estás a vê-la a aproximar-se de muito longe. Ela é velha, magra, e sim, tem um
ar doente, muito doente, próximo da morte. Mas o rosto dela é belo – sedutor, luminoso.
Tu gostas dela – és atraído por ela. Sim, tu pensas – tens dinheiro na carteira – vais dar-
lhe algum.
E uma voz diz – Porque não todo? Porque não dar-lhe tudo o que tens?
Tem cuidado, essa é uma pergunta que te pode envenenar a vida. De facto, o teu
Se ouvires essa pergunta, quer dizer que estás doente. Estás mentalmente doente.
Tiveste um esgotamento.
Idiota, responde à pergunta. Não fiques só para aí sentadinho. Eu não posso dar à
porque eu –
por –
para que eu não dê à pedinte todo o meu dinheiro. Sim, vou dar-lhe algum – ofereço
!27
sempre quantias surpreendentes às pessoas que têm menos que eu. – Mas há uma razão
para ser eu quem tem o dinheiro em primeiro lugar, e por isso é que eu não vou oferecê-lo
todo. Por outras palavras, por amor de Deus, eu trabalhei para esse dinheiro. Trabalhei no
duro. Trabalhei. Trabalhei. Trabalhei no duro para fazer esse dinheiro, e é o meu dinheiro,
porque fui eu que o fiz. Eu fiz o dinheiro, e portanto eu é que o tenho, e eu posso gastá-lo
da maneira que eu quiser. Isto é a base de todas as nossas vidas. Porque é que eu posso
ficar neste hotel? Porque paguei para ficar aqui, com o meu dinheiro. Paguei para ficar
aqui, e isso dá-me direito a certas coisas. Tenho direito a ficar aqui, tenho direito a ser
servido, tenho direito a esperar que sejam feitas certas coisas. Agora, esta manhã, por
exemplo, a empregada deixou-me o quarto numa confusão. O chão estava sujo, não havia
lençóis lavados, e o cesto dos papéis ficou cheio. Portanto, eu paguei para ficar aqui,
paguei para ser servido, tenho direito a um serviço, mas a empregada não me serviu como
Porque é que a velha está doente e a morrer? Porque é que ela não tem dinheiro?
Seu idiota, seu patético idiota, claro que ela trabalhou. Ela trabalhou dezasseis
horas por dia num campo, numa fábrica. Ela trabalhou, a empregada trabalhou. – Tu dizes
que tu trabalhas. Mas porque é que o teu trabalho te dá tanto dinheiro, enquanto que o
trabalho delas não lhes dá praticamente nada? Tu dizes que “fazes” dinheiro. Que
!28
expressão maravilhosa. Mas como é que tu “fazes” tanto dele durante um tempo tão
curto, enquanto que durante o mesmo período elas “fazem” tão pouco?
profundo, cada vez mais profundo, e bichos da água enormes, gordos, cobrem o chão, a
correr, rápidos. Centenas, a correr, formando padrões. Eu levanto-me para lhes escapar, e
um alto guarda revolucionário em camisola interior está a levantar o pé. Ele está a
levantar o pé. E depois rodopia, e dá-me um pontapé na cara, e eu caio para trás, e aterro
num beliche, num beliche duro. E estou numa cela, e o guarda mete a mão num grande
saco, e tira assim um livrinho fininho, e aquilo é-me vagamente familiar. E depois atira-o
contra mim e abandona a cela. “Lê isso”, diz. “Lê isso. Lê isso.”
Eu corro para a porta da cela e grito – É isto que vocês chamam o poder do povo?
– mas ele já se foi. Eu grito e grito até me doer a garganta. Mas agora estou sozinho com
começo a ler.
Claro, é tal e qual o que eu esperava que fosse. As perguntas mais entediantes,
alfândega. Capítulo Um: Em que país é que eu cresci, em que cidade, em que rua. As
origens da minha família, a cor da pele deles, quanto dinheiro é que faziam. O que é que
me davam para comer. O que é que me ensinavam. Capítulo Dois. Isto é inacreditável –
impresso num livro: “Lava o cabelo todos os dias a não ser que ‘com muita pressa’” abrir
aspas fechar aspas; “quando se vai encontrar com amigos para jantar ou para ir ao teatro,
toma banho ao fim da tarde, veste roupa nova”. Afinal de contas, o que é que está a
!29
acontecer? Isto não tem rigorosamente nada a ver com o que eu sou, com alguma coisa
importante acerca de mim! Será que eles não sabem que tudo o que está neste livro é tão
vizinha Jean que diz piadas sobre “crianças a passar fome na Ásia”, a minha vizinha Jean
que se gaba de foder colegas no escritório em cima da mesa da sala de reuniões? Será que
Um dos guardas agarra-me os braços atrás das costas, o outro começa-me a bater
na cara com os punhos. Bate-me na cara muitas vezes, depois no peito, depois na barriga.
Na minha vida, nunca ninguém me bateu. Penso no estrago que cada pancada pode fazer.
Depois há outro guarda, uma mulher com uma cara que é como um bolo
encharcado em raiva. Está parada a um canto, e os meus berros ecoam pela cela – “Não!
Não!” E depois ela vem até mim, e cospe-me na cara. E eu grito-lhe muito alto, “Por
amor de Deus, o que é que eu fiz para a fazer sentir assim? Afinal de contas, o que é que
eu lhe fiz?”
Quando os guardas saem, choro como um animal. Não consigo deixar de pensar
na minha mãe – a maneira como ela tomava conta de mim – não suporto isto.
choro e leio e choro e leio. E o tempo passa – tanto tempo – parece uma eternidade – e
depois sim, sim, eu percebo – vejo que há uma resposta à minha pergunta. Sim, isto podia
ter sido previsto, a partir do conhecimento destas coisas – onde nasci, como fui educado –
quanto valeria, provavelmente, uma hora de trabalho minha – apesar de, para mim, a
!30
partir de dentro, a vida me ter parecido sempre como uma história que apenas se ia
de terra, a partir do qual suculentos frutos poderiam ser colhidos por mãos impetuosas. E
vocês soubessem – as aldeias da infância delas – não, elas não foram ensinadas a ser
impetuosas. – Aqui está o teu terreno, o teu pedaço de terra – era árido, negro,
incultivável.
dimensões – toda a terra, as pessoas, os momentos de tempo – hoje, ontem. E posso ver
terra pronta para ser cultivada, um certo número específico de trabalhadores, um certo
stock de maquinaria, um stock der ideias sobre como fazer as coisas, como organizar
todos aqueles que vão trabalhar. E, não sei como, a capacidade de cada dia parece tão
pequena. Está fixada, estabelecida. Todas as suas partes estão fixadas. E eu posso ver
pessoas trabalhou, e uma porção determinada de todos os recursos da Terra foi escavada e
usada, e um montinho determinado de bens foi produzido. Tão pequeno: sobre a grelha
E, de todas as coisas que poderiam ter sido feitas, quais é que realmente
aconteceram?
!31
Os detentores de dinheiro determinam o que é feito – oferecem dinheiro pelas
coisas que querem, cada um de acordo com a quantia que possui – e cada bocadinho de
dinheiro determina alguma fracção das actividades do dia, de forma que aqueles que têm
pouco determinam pouco, e aqueles que têm muito determinam muito, e aqueles que não
têm nada não determinam nada. E depois o mundo obedece às instruções do dinheiro na
medida da sua capacidade, e depois pára. Fez o que podia. O dia acabou. Aconteceram
certas coisas. Se o dinheiro foi oferecido por jóias, houve prata torcida até ficar com a
forma de um anel. Se a oferta foi por ópera, houve trajes cosidos e lustres pendurados por
fios invisíveis.
está calado, ainda não falou. As suas decisões estão retidas, suspensas, pousadas, prontas.
Toda a gente sabe que o mundo não irá fazer tudo hoje: se for produzido alimento para as
crianças a passar fome, então algumas óperas não serão representadas; se certas
crianças morrerão.
Arrasto-me até à janela – não tem grades – e ponho a cabeça de fora. Gosto de
choramingar ao vento quente. Mas sinto a presença de um amigo atrás de mim, sentado
no meu beliche, a fumar com calma – e esperem – é o tal guarda! E portanto eu não
consigo deixar de falar impulsivamente e dizer, Olhe, eu sou um ser humano! Sim, claro
que quero ter um bom ordenado. O que é que pensa que é um ser humano? Acontece que
!32
sem uma carapaça ou uma pele ou pêlo sequer, lançado assim na terra como um olho
acabado de arrancar da órbita, como uma ostra descascada a tentar arrastar-se pelo chão.
vocês sabem, vocês sabem, nós queríamos ser felizes, queríamos que as nossas vidas
fossem absolutamente magníficas. Ansiámos durante tanto tempo por uma certa noite
pelo modo como daríamos prazer àqueles que amámos com os nossos beijos na cama,
pelo modo como daríamos prazer aos nossos pais com os nossos grandes feitos, pelo
modo como daríamos prazer aos nossos filhos com brinquedos e surpresas. Mas estava
tudo errado: nunca esteve mesmo certo: o hotel, o pequeno-almoço, o que aconteceu na
precisamos de consolo, precisamos de boa comida, precisamos de coisas boas para vestir,
Eu faço tudo o que é possível. Tento ser simpático. Tento ser descontraído,
Tento ser divertido sempre que posso, para ajudar os meus amigos a aguentar o dia.
Escrevo bilhetinhos às pessoas de que gosto quando aprecio os artigos que escreveram ou
!33
comentários desagradáveis sobre homens-sanduíche, desviei a conversa para outro
assunto, porque a minha amiga Monica estava-se a sentir desconfortável, que o pai dela
O beliche não tem nada, excepto o livro, mas as páginas do livro escorrem sangue
tudo o que aconteceu antes de eu nascer. O voluptuoso campo que me foi oferecido –
como é que me foi oferecido mesmo esse, e não o que era negro e árido? Sim, aconteceu
assim porque antes de eu ter nascido, os campos foram rateados, e alguns desses campos
foram reunidos.
Não pelo acaso, não por obra do destino. Os campos foram reunidos um a um, por
ladrões, por assassinos. Ao longo dos anos, ao longo de séculos, noite após noite, facas a
brilhar, gargantas cortadas, uma e outra vez, até que, uma bela manhã de Natal,
resplandecentes, encharcados de sangue que agora eram nossos. Cultivem, disseram eles,
economizem tudo o que arrancarem da terra, guardem, poupem, depois dêem aos vossos
filhos a encosta seguinte, o vale seguinte. De cada vantagem, retira mais. Produz, cultiva,
conserva, guarda. Vai em frente até teres tudo. Os outros hão-de ficar sempre para trás,
recuar, dar-te o que tu queres ou vender-te o que tu queres pelo preço que tu queres. Não
E o livro continua, anos, séculos, até que chega o momento em que os nossos pais
dizem, o tempo do rateio chegou ao fim. Nós temos o que precisamos – a nossa posição
bem defendida de todos os lados. Agora, finalmente, pode-se congelar tudo, tal como
!34
está. A violência pode parar. A partir de agora, acabaram-se os roubos, acabaram-se as
Portanto, nós temos tudo, mas há uma dificuldade que não conseguimos mesmo
ultrapassar, uma maldição: não conseguimos escapar à nossa ligação com os pobres.
Nós precisamos dos pobres. Sem os pobres para apanharem a fruta das árvores,
para tratarem do excremento debaixo da terra, para darem banho aos nossos bebés no dia
em que eles nascem, nós não poderíamos existir. Sem os pobres para fazerem o trabalho
horrível, nós gastaríamos as nossas vidas a fazer o trabalho horrível. Se os pobres não
fossem pobres, se os pobres fossem pagos da maneira que nós somos pagos, nós não nos
poderíamos dar ao luxo de comprar uma maçã, uma camisa, não nos poderíamos dar ao
luxo de fazer uma viagem, passar uma noite numa pousada numa cidade próxima. Mas o
horror é que os pobres crescem por todo o lado, como musgo, como erva. E nós nunca
podemos esquecer o tempo em que eles eram donos da terra. Nunca podemos esquecer a
morte das famílias deles, aquelas juras de vingança gritadas tão alto naquelas salas cheias
Querem erguer-se e acabar connosco, limpar-nos da superfície da Terra o mais rápido que
puderem.
falar com os pobres. Falar, ouvir, clarificar, explicar. Eles querem uma mudança. E
portanto nós dizemos, Sim. Mudança. Mas não uma mudança violenta. Nada de roubo,
nada de revolta, nada de vingança. Em vez disso, dêem ouvidos à ideia de uma mudança
gradual. Uma mudança que vos ajude, mas que não nos afecte. Moralidade. Lei. Mudança
!35
gradual. Nós explicamos isso tudo: um contrato com duas partes: nós damo-vos coisas,
muitas coisas, mas em troca vocês têm de aceitar que não têm direito a simplesmente tirar
aquilo que querem. Nós vamos dar-vos coisas maravilhosas. Sentem-se, esperem, não
tentem agarrar. – A coisa mais importante é ter paciência, esperar. Nós vamos dar-vos
muito muito mais do que vocês conseguem ganhar agora, mas há certas coisas que têm de
acontecer primeiro – são estas as coisas pelas quais temos de esperar. Primeiro, temos de
fazer mais e produzir mais, para que haja mais disponível para nós darmos. De outra
forma, se nós vos damos mais, ficamos com menos. Quando fizermos mais e
produzirmos mais, todos podemos ter mais – parte do aumento pode ir para vocês. Mas a
outra coisa é, assim que haja mais, temos de garantir que a moralidade prevalece. A
moralidade é a chave. O ano passado, fizemos mais e produzimos mais, mas não vos
demos mais. Todo o aumento ficou para nós. Isso foi errado. Aconteceu a mesma coisa no
anterior, e no ano antes disso. Temos de convencer toda a gente a aceitar a moralidade e,
Porque nós sabemos como é que vocês são. Sabemos que há alguns que são violentos,
aqueles que não vão esperar. Esses são os destruidores. Os filhos deles estão a morrer,
doentes – sem remédios, sem comida, nada para pôr nos pés, nenhum lugar para viver, a
vomitar pelas ruas. Esses são os que estão bêbados de raiva, com a sua luxúria de
vingança. Nós sabemos o que é que eles planearam. Já imaginámos mil vezes isso tudo.
Imaginámo-lo todo o santo dia. Aquele barulho na porta – aquele estranho “crac” – o
!36
correr aos berros, tiram-nos de onde nós estamos reunidos, à volta da mesa familiar, a
gozar a nossa refeição, tiram os nossos velhos pais para fora da casa de banho, tiram os
pequeninos das suas camas, depois alinham-nos todos juntos no hall, dão-nos estaladas,
nossos filhos a sangrar, eles a tirar as roupas dos nossos filhos dos armários, os
brinquedos das estantes, a arrancar as fotografias das paredes. O que é que nos vão fazer?
perguntamos uns aos outros. O quê? – vão dar todas as casas às pessoas que agora vivem
na rua?
Parece impossível – será possível que isso tenha acontecido? Uma multidão de
fome nos bairros de lata? Eles é que vão tomar conta das fábricas agora, das escolas, de
Temos de evitar que isso aconteça, embora os violentos já estejam por toda a
parte, a ensinar aos pobres que o actual estado de coisas não é obra de Deus, que o mundo
pode ser gerido para benefício deles. E portanto nós temos de criar uma sala de aula
especial para os pobres, para ensinar aos pobres algumas lições sangrentas do passado –
todos os crimes cometidos pelos rebeldes violentos, pelos seguidores de Marx. Enfiar-
lhes lições de História pela garganta abaixo. História, História. Os crimes. A opressão. A
fome. Os desastres. Ensinar aos pobres que não devem nunca tentar conquistar o poder
para eles próprios, porque o governo dos pobres será sempre incompetente, e será sempre
!37
cruel. Os pobres são sanguinários. Ignorantes. Não têm as qualificações necessárias. Para
bem deles, isso não pode acontecer nunca. E eles têm de perceber que os sonhadores, os
idealistas, esses que dizem que amam os pobres, no fim tornar-se-ão todos odiosos
assassinos, e esses que afirmam poder criar algo melhor acabarão sempre por criar algo
pior. Os pobres têm de perceber estas lições fundamentais, estes capítulos da História. E
se não os perceberem, têm de ser levados todos para fora e ser fuzilados. Desatenção ou
E nos lugares onde descobrirmos que andam a escapar-se à sala de aula, temos de
avisar os pobres que até os inocentes irão sofrer. Não podemos aceitar violência contra os
símbolos da lei, os soldados, a polícia. Temos de matar aqueles que cometem esses
crimes. Mas se a violência se prolonga por muito tempo, aqueles a quem já matámos as
irmãs e os irmãos mais velhos podem estar tão cheios de raiva que não têm medo da
morte. E para controlar essas pessoas, podemos ter de ir mais longe – cortar-lhes as
línguas, cortar-lhes as caras, forçá-los a ver-nos torturar os pais, ver os soldados violar-
lhes os filhos. É a única maneira de controlar pessoas que não têm medo da morte.
E, portanto, nós vamos ensinar aos pobres que sim, sim, nós vamos dar-lhes
coisas, mas nós é que decidimos quanto é que vamos dar, e quando, porque não vamos
dar-lhes tudo.
E agora o livrinho horrível está de novo no Capítulo Um, e eu leio-o outra vez, e o
Capítulo Dois, e leio-o outra vez, e os bichos da água ainda cobrem o chão, a correr
formando os mesmos padrões complicados, mas eu afasto alguns para o lado e deito-me
!38
E é como se uma voz tipo vómito me estivesse a subir devagar pela garganta.
Pára!
Não. Ouve. Quero-te dizer uma coisa. Interpretaste tudo mal. A velha que se
curvava e te dava pãezinhos de açúcar não te amava. Tu não eras amado como achavas.
Claro que eu ainda sinto uma afeição por mim próprio – alguém tão feliz, querido,
engraçado? –
Não, estou-te a tentar dizer que as pessoas te odeiam. Estou-te a tentar explicar
Porque é que pensas que todos eles te amam? E o que é que pensas que eles amam
em ti? O que és tu? Não há nenhum charme em ti, não há nada de gracioso, nada que
rasteja toda a noite pela lama é muito muito menos fanático do que tu. Olha para ti. Olha.
Entras tão direitinho na tua cozinha todas as manhãs, aproximas-te do armário. Abres o
armário, e tiras o café, o café que esperas encontrar na prateleira. E tem de estar lá! E se
uma manhã não está lá – oh, a histeria! – o mundo inteiro vai ter de pagar! A mera ideia
palpitações. Aquela falta de ar! Ouve a tua voz ao telefone, ouve esse tom que te toma
conta da voz quando estás a falar com um dos teus amigos íntimos e falas da tua vida e
usas aquelas expressões – “o que eu preciso para viver...” – “a quantia de que eu preciso
só para viver...”. És queridinho nessa altura? És engraçado nessa altura? Esse tom falso –
“a quantia de que eu preciso...” – solene, reservado, sem teatro – o tom da histeria, o tom
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do fanático – bem, sim, claro – faz sentido. Dás-te conta da tua situação. Sem um lugar
para viver, sem roupa, sem dinheiro, tu serias como eles, serias eles, serias o que eles são
– serias o sem-abrigo, o sem-conforto. Portanto, claro, tu sabes isso, farás qualquer coisa.
Não há limites para o que farás. Sem o dinheiro, a tua cara tornar-se-á o focinho de um
rato, as tuas mãos serão patas – afiadas, ágeis, prontas para arranhar, prontas para rasgar.
breve todos vocês terão remédios para os vossos filhos, em breve um lar. O mundo sem
coração, as pessoas sem coração, como a minha vizinha Jean, abrirão alas em breve, e
dezanove...
Mas durante este compasso de espera, espera, esta interminável espera pela
mudança gradual, eles vêm um a um bater à tua porta e lamentam-se muito e imploram a
tua ajuda. E tu dizes, Levem-nos para longe daqui. Não suporto este permanente bater à
porta, estas pessoas que vêm com estas histórias ridículas, que afirmam ser a minha irmã,
que afirmam ser o meu irmão, durante todo o dia, dia após dia. E portanto todas essas
pessoas são levadas dali, e são postas a viver em sítios onde são provocadas, são gozadas,
levam sermões, fazem pouco delas, até que algumas começam a delirar irracionalmente e
toda a gente. E cada uma dessas pessoas malvadas é agarrada pelos ombros e mantida
presa, e a cabeça delas é rapada, e elas são atadas a uma cadeira, e são executadas, e és tu
aquele por quem elas estão a ser executadas, tal como foste sempre tu aquele sobre quem
!40
todas essas pessoas falavam há tantos anos quando não paravam de dizer, “Pela saúde dos
nossos filhos, temos de fazer isso, temos de pegar fogo a esta cidade, este celeiro, este
hospital, estas florestas, estes animais, este arroz, este mel”, tal como és tu ainda, por
causa do quanto gostas desses lençóis brancos lavados e da música e dos bailarinos e das
chamadas telefónicas, por quem todas essas pessoas de rostos radiantes estão esta noite a
Lembras-te daquele dia na escola quando estavas a brincar com aquelas outras
três crianças, e a professora apareceu na sala com quatro bolinhos e deu-os todos, todos
os quatro bolinhos, àquele miudinho chamado Arthur, e nenhum a ti ou aos teus outros
dois amigos? Bem, primeiro, vocês os quatro ficaram apenas pasmados. Nesse primeiro
instante, todos os quatro souberam que o que tinha acontecido era injusto, louco. Mas
depois a tua amiga Ella tentou dizer uma gracinha, e o Arthur ficou furioso e bateu-lhe, e
depois foi para um canto e comeu os bolos todos. Foi um exemplo de alguém a safar-se
E a tua vida é outro exemplo. É a vida de alguém que se safou com alguma coisa.
E, no entanto, o teu fanatismo é tão extremado que não permite que esse pensamento te
entre na cabeça.
Certas coisas não podem ser postas em causa. O café tem de estar lá na prateleira,
e nenhum pensamento pode entrar na tua cabeça se entrar em conflito com a presunção de
que tu és uma boa pessoa. Portanto, vai, pensa – pensa livremente – pensa no que
quiseres. Pensa na tua saúde, noutras pessoas, naqueles que te tratam mal, pensa nas
formas complicadas como te maltratas a ti próprio, pensa nas crianças com doenças
!41
incuráveis que foram entrevistadas naquela revista. Pensa em todas as coisas que
mostram que és boa pessoa, que mostram que aqueles que são como tu são boas pessoas
– os teus amigos, os teus entes queridos, e todas essas pessoas pelo mundo fora, em todos
dinheirinho mas acreditam sinceramente numa vida melhor para todos. Pensa em todas as
coisas que fizeste que foram bondosas, pensa na bondade de todas as tuas intenções. E se
alguma coisa que fizeste teve um mau resultado, pensa nos bons motivos por detrás da
acção – sorri, faz que sim com a cabeça, compreende, aceita. Não fales com pessoas que
não achem que és boa pessoa. Não leias livros, não leias artigos, de escritores que não
pensem que és boa pessoa, que não pensem que aqueles que são como tu são boas
pessoas. Os escritos deles baseiam-se numa falsa presunção. São enviesados, distorcidos.
O teu pensamento tem de se fundar na verdade, a verdade de que és uma boa pessoa.
Ora, uma boa pessoa não pode ser uma pessoa que se safou com alguma coisa.
Uma boa pessoa não pode ter aquilo que não é apropriado ter. E esta compreensão de ti
mesmo dá-te as bases para uma perspectiva do mundo. E assim podes olhar para a
maneira como o mundo funciona, e claro, há muitas muitas coisas que com certeza te
perturbam – a situação do teu amigo Knut, que adora Wagner, mas que é tão mal pago
pela editora dele que nem sequer se pode permitir ir ver as óperas que ama tão
noite após noite, como aquele terrível capataz naquela plantação de borracha no sul da
Malásia – mas, ainda assim, podes dizer que a maneira como o mundo funciona não é
injusta, no essencial, porque tu recebeste uma porção de coisas que sabes ser apropriada
!42
para ti. E se é apropriado para ti teres a porção de coisas que de facto tens, e é apropriado
para todas as pessoas que são como tu por todo o mundo terem a porção que elas têm,
isso quer dizer que não é inapropriado para todos os outros terem a porção que sobra. Tu
sabes que o que tens é o que mereces, e isso quer dizer que o que eles têm é o que eles
merecem. Eles têm o que é apropriado terem. E tens de admitir, a empregada do quarto é
repugnante, ignorante – não é inapropriado que ela viva no inferno, porque para ti ela
parece mesmo uma criatura infernal. Passa a vida a chafurdar na imundície, a fazer coisas
meticuloso? Não – impossível. O que é que ela faria com uma bela escova, um belo
pente? Não saberia apreciá-los. O que é que ela faria com belos óleos de banho, belas
toalhas, belo sabonete? Consegues imaginá-la a servir aos filhos belos jantares, com
empregada do quarto ir para casa à noite para aquela porta específica naquela rua
específica, tal como é apropriado para ti e para os teus amigos passarem a vida a decidir
pessoas que querem manter o mundo são basicamente boas, e as que querem desmanchá-
lo, as que roubam nas ruas, os ladrões, os destruidores, são basicamente más. Tu – por
causa dos teus comentários inteligentes sobre os filmes em cartaz e das mensagens
atenciosas que escreveste à tia da tua mãe, e por causa de teres ficado tão perturbado
quando o empregado daquele restaurante trouxe, mesmo até à mesa, a lagosta viva que ia
!43
pôr a ferver na cozinha para o teu jantar – tu tens de ser definido como o tipo de ser
humano mais elevado e mais admirável, enquanto que a Juana, a seguidora de Marx que,
movida por uma devoção desesperada pelo povo que ama, oferece o corpo à faca do
torturador, pode apenas ser definida como o tipo de ser humano mais baixo e mais
baixo, há uma floresta. O calor vai subindo. As minhas mãos estão tão húmidas que mal
conseguem manter-se agarradas à barra. Tenho muito medo de cair, mas uma voz diz,
Larga-te da barra. Eu seguro-me com toda a força, mas a voz diz, Não te vais magoar.
Largo-me, flutuo através do espaço. Não paro de pensar, a esta hora já devia ter
aterrado, mas ainda estou a cair. Alguns ramos arranham-me as bochechas quase
suavemente enquanto caio. Caio tão devagar. A floresta conservada num silêncio vivo.
Agora o chão da casa de banho, a vela, a tremeluzir. Pego nela, levanto-me, saio
da casa de banho.
Agora estou de volta ao quarto, a apoiar-me à parede. Pouso a vela numa mesinha.
Uma brisa entra pela janela aberta. Puxo uma cadeira para junto da janela e sento-me.
prisioneiro sofreu e morreu, e os guardas levaram-no para fora, para a sepultura dele. E
sim – ali – há uma aguada de azul na parede negra do céu, uma sugestão de azul.
É a hora mais fresca das vinte e quatro. Olho pela janela, e na brisa fresca lembro-
me de uma vez ter sido uma criança numa bela cidade, rodeada de esperança. E sinto
!44
tamanha alegria – a frescura da brisa – que penso para comigo se me posso aliviar por um
mim. Tento imaginar como é que isso seria. Só por um breve instante, enquanto a brisa
sopra por aqui dentro, simplesmente pousá-lo, porque me sinto tão alegre, louco, nu, livre
dias, até ao minuto em que vou para a cama, e mesmo quando durmo penso que estou a
mentir. Não consigo parar, porque a verdade está em todo o lado, está à vista –
Ouve, meu amor. Deixa lá isso acontecer, deixa lá isso acontecer só desta vez, só
esta noite, e depois amanhã voltamos à mentira de novo, como se isto nunca tivesse
acontecido. Vamos fazer de conta que isto nunca aconteceu. Vamos esquecer que isto
aconteceu.
A vida que levo é irremediavelmente corrupta. Não tem justificação. Muitas vezes
penso que há aquela justificação que eu anotei algures, num papelinho qualquer, que não
me consigo lembrar do que está no papelinho, mas que ele está guardado na gaveta de
uma secretária qualquer num quarto qualquer de um lugar qualquer onde vivi. Mas a
verdade é que nunca hei-de encontrar esse papelinho, porque não há papelinho nenhum,
não existe.
Não há papelinho nenhum que justifique o que a pedinte tem e o que eu tenho. De
pé, nu, ao lado da pedinte – não há nenhuma diferença entre ela e eu a não ser uma
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diferença de sortes. Na verdade eu não mereço ter mil vezes mais do que tem a pedinte.
bondosos. Os sádicos não eram sábios piedosos, tentando dar o seu melhor pela
humanidade. Deitar fogo aos campos, deitar fogo às crianças, não foram tentativas mal
direccionadas de fazer o bem. Cobardes que se sentam nas salas de conferências ou nos
salões de Estado a denunciar os crimes dos revolucionários não são tão admiráveis
que correram silenciosamente em direcção à morte. Aqueles que eu matei não eram as
Não está a mudar nada na vida dos pobres. Não há nenhuma mudança. A mudança
gradual não está a acontecer. Não vai acontecer. Era só uma coisa de que falávamos.
A compaixão que, no meu coração, eu sinto pelos pobres não muda a vida dos
pobres. A minha crença fervorosa na mudança gradual não muda a vida dos pobres. Pais
que ensinam bons valores aos filhos não mudam a vida dos pobres. Artistas que criam
obras de arte que inspiram compaixão e bons valores não mudam a vida dos pobres.
Cidadãos inspirados por artistas e pais a adoptar bons valores e a sentir compaixão pelos
não mudam a vida dos pobres, porque políticos honestos que acreditam fervorosamente
sentença para toda a vida: ela deve fazer as limpezas para mim e dormir no lixo. Não, ela
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deve fazer as limpezas para mim hoje, e eu devo fazer as limpezas para ela amanhã, ou eu
devo fazer as limpezas para ela no próximo ano. Não, ela deve dormir no lixo esta noite,
e eu devo dormir no lixo amanhã à noite, ou noutra noite qualquer. Não. A sentença diz
que ela há-de servir, e depois no dia seguinte ela há-de servir, e depois ela há-de, e ela
quarto tenham ficado assentes quando ela nasceu, os termos da minha existência não
Eu digo, Não é culpa minha ter nascido com melhor sorte na vida do que a
Mas eu não “tenho” o dinheiro da maneira que eu “tenho” dois pés. O dinheiro
não faz parte de mim. O facto de eu o ter não é um facto sobre mim como a cor da minha
pele. Através de uma série de acontecimentos, o dinheiro veio ter comigo, mas devotar a
minha vida a defender a posse de algo que veio ter comigo não é um destino inescapável.
Guardar o dinheiro é apenas uma escolha que eu faço, uma escolha que eu faço todos os
dias. Eu podia perfeitamente pôr um fim a todo este laborioso número. Se há pessoas com
fome, dou-lhes comida. Se tenho mais do que outros, partilho o que tenho até não ter
mais do que eles. Vivo modestamente. Desisto de tudo. Torno-me pobre, eu próprio.
Sempre gostei de pessoas que sabem apreciar uma boa refeição, pessoas que
esperam vir a assistir a bons espectáculos. Claro que sim. Todas as pessoas que eu alguma
vez conheci são pessoas dessas, eu próprio sempre fui uma pessoa dessas. Sempre achei
que é muito mais agradável gostar de pessoas que estão contentes. Mas o que é engraçado
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é que todas as pessoas podem estar. Eu batalhei duramente para conseguir o que tenho.
Mas a minha batalha foi sempre contra outros. De facto, tenho estado a batalhar contra
aqueles que são pobres, e do ponto de vista daqueles que são pobres, claro que eu sou o
mesmo que a minha vizinha Jean. Sou exactamente o mesmo, e não estou do lado deles.
E isso, também, é uma escolha que eu faço. Eu podia mudar de lado. Podia
decidir lutar do outro lado. A vida de um traidor? Trair a minha gente? Caminhar em
direcção ao perigo? Muito difícil, mas uma escolha possível. Se eu pudesse aceitar a
Apago a vela e deslizo pelo quarto até à minha bela cama. Debaixo do cobertor,
tudo o que é sujo, tudo o que é vil, venha pousar junto da minha cama, onde um dia tive o
candeeiro e o relógio, livros, cartas, presentes de anos e, deixadas dos presentes, fitas de
cores vivas. Perdoem-me. Perdoem-me. Eu sei que me perdoam. Ainda estou a cair.
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(tradução de Jacinto Lucas Pires)
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