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A Febre

Wallace Shawn

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Estou a viajar – e de repente acordo no silêncio antes do amanhecer num estranho quarto

de hotel, num país pobre onde não se fala a minha língua, e estou a tremer e a tiritar. –

Porquê? Há alguma coisa – está a acontecer alguma coisa – longe, noutro país. Sim,

lembro-me. É a execução. O artigo do jornal dizia que seria esta a hora, era esta a data.

Respiro fundo. E aí vêm eles agora – vêm buscar o homem deitado na cama de

lona, o homem-gato com uma cara tão grande, tão negra, que, ao abrir a cela, os guardas,

abalados, assustam-se uma vez mais. Rapam-lhe a cabeça, um bocado da perna, de modo

a que os eléctrodos fiquem bem presos à pele.

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E agora encaminham-no para a sala, e ele é amarrado à cadeira com correias de

couro. Os braços, prendem-nos aos braços da cadeira para que as testemunhas não os

vejam mexer, as pernas presas às pernas da cadeira. – Crescerá o pânico no coração do

homem? Um assistente cobre-lhe a cabeça com um capuz de modo a que nenhum de nós

veja a dor, o horror, a contorção da cara dele. A pele a estalar! Tudo o que vemos é o

corpo a virar-se para cima na cadeira, ligeiramente.

Não acham – quando estão a viajar num país estranho – que os cheiros são agudos

e inquietantes? E quando acordam a meio da noite – inesperadamente – quando acordam

a uma hora madrasta – quando estão a viajar algures e acordam num sítio estranho – não

ficam assustados?

Eu não consigo parar de tremer.

O candeeiro junto à minha cama não funciona, as luzes não acendem. Os rebeldes

fizeram explodir as torres de electricidade. Há uma pequena guerra em marcha neste país

pobre onde não se fala a minha língua. Os quartos de hotel têm todos umas velas com uns

candelabrozinhos. Levanto-me, acendo a vela, levo a vela para a casa de banho. Depois

ponho a vela com o candelabro no chão, e ajoelho-me em frente da sanita e vomito. –

Depois estou sentado, a tiritar, no chão da casa de banho, este frio quadrado de azulejos

numa noite quente num país quente, e não me consigo levantar para voltar para a cama –

não me consigo levantar – então fico aqui sentado, em silêncio, a tremer como se

estivesse sentado na neve. E no canto da casa da banho – castanho contra o azulejo – há

um insecto, grande, como um bicho da água – é achatado, pesado – pernas muito fortes,

parecem de metal – e está à espera, de cócoras, decidindo para que lado é que deve ir. – E

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num segundo passou por trás do lavatório, e está a deixar-se escorregar para um buraco

pequeno demais, mas ele cabe – dentro – ele cabe – foi-se. E eu vejo-me a mim mesmo.

Vejo-me a mim mesmo. Um momento de grande descoberta.

É a festa de anos no restaurante chique. Sim – lá está a mesa com as decorações

suaves e bonitas, o centro-de-mesa extravagante, cor-de-rosa e verde, e lá estão as

mulheres todas de batom vermelho-vivo e os homens de belas camisas, e as prendas todas

– prendas inconcebíveis, inesperadas, e cómicas – e lá estão os empregados a servir o

salmão e o vinho, e lá estou eu. Conversando calmamente com essa mulherzinha pálida

de vestido vermelho-e-azul sobre o caso amoroso com o homem mais velho, aquele filme

que a perturbou, a actriz, o psiquiatra, os criminosos, os passeios nocturnos através dos

bosques no campo, o apetite insaciável por sexo violento, o sofrimento das pessoas que

vivem em desespero no abrigo a abarrotar de gente do lado de lá da rua do restaurante

chique. E, enquanto conversava com essa mulher do vestido vermelho-e-azul, pensava

que era uma pessoa que estava a pensar numa festa, que tinha tantos problemas em

relação a isso, que gostava de alguns aspectos da festa, mas não de outros, que gostava de

algumas das pessoas, mas não de todas, que gostava do centro-de-mesa cor-de-rosa-e-

verde, mas que de facto não gostava daquele vestido vermelho-e-azul. Mas não. Não.

Vejo-o tão claramente. Vejo-me com o meu garfinho – eu não era uma pessoa que estava

a pensar numa festa. Eu era uma pessoa que estava numa festa, que se sentava à mesa,

bebia o vinho, e comia o peixe.

Não falávamos do peixe, não falávamos do restaurante, falávamos dos lagos nas

montanhas ao norte da Tailândia e do abrigo a abarrotar de gente do outro lado da rua.

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Mas onde é que nós estávamos? Onde é que estávamos? Não era junto aos lagos, não era

no abrigo. – Estávamos ali, só ali, nessa mesa, nesse restaurante. – Bem, talvez para

algumas pessoas – talvez para algumas pessoas que viveram no princípio do século vinte

– a vida interior fosse aquilo que era oculto e inconsciente. Talvez a única coisa que essas

pessoas pudessem ver fosse a circunstância externa, onde estavam, o que faziam, e não

fizessem nenhuma ideia sobre o que estava dentro delas. Mas alguma coisa tem estado

escondida de mim, também. Alguma coisa – uma parte de mim – tem estado escondida de

mim, e eu acho que é a parte que está lá à superfície, o que qualquer pessoa no mundo

poderia ver em mim se me visse da janela de um comboio a passar.

Porque eu sei bastantes coisas sobre o que está dentro de mim. Tenho sido um

estudioso dos meus sentimentos desde os nove anos de idade! Os meus sentimentos! Os

meus pensamentos! A incrível história dos meus sentimentos e dos meus pensamentos

daria para encher uma dúzia de livros de encadernação em pele. Mas a história da minha

vida – o meu comportamento, as minhas acções – isso já é um volume fininho, e eu

nunca o li. Bem, nunca o quis ler. Sempre achei que seria terrivelmente aborrecido. O que

é que poderia estar lá? Capítulo Um: A Minha Infância. Nasci, chorei. Capítulo Dois: O

Resto: Mantive-me. Levantei-me, fui para o trabalho, fui para casa, fui para a cama. Fui a

um restaurante, e comi peixe. O que é que interessa? Por amor de Deus – será que tive de

viajar para um país pobre onde não se imprime livros na minha própria língua – será que

tive de ser rebaixado para o chão da casa de banho de um estranho hotel – de maneira a,

finalmente, ser forçado a abrir esse volume chato, a história da minha vida?

E vomito outra vez. Meu Deus.

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Não, não me vou pôr a lê-lo. Não o vou ler. Os meus pais amaram-me.

Ensinaram-me a pensar nas pessoas, no mundo, na humanidade, na beleza – não a pensar

em restaurantes e peixe. Eu nasci para o espírito. O candeeiro. O aconchego da sala de

estar. O meu pai, numa poltrona, a ler sobre a China. A minha mãe num sofá comprido

com o jornal. Sumo de laranja num jarro de vidro em cima de uma mesa.

E eles liam-me um livro sobre todas aquelas pessoas, de tantas fardas diferentes,

que vinham a nossa casa ajudar a nossa família: originárias de todos os cantos da nossa

bela cidade, o homem das entregas da mercearia, o carteiro com o correio. Todos tão

amáveis. E, lá em baixo, na rua, a velha que trabalhava na padaria, que se curvava e me

dava pãezinhos de açúcar. E, meu Deus, eu nunca duvidei que a vida fosse preciosa.

Sempre pensei que a vida devia ser festejada.

Hoje, fui a um escritório, um escritório modesto – algumas divisórias e umas

cadeiras – e o trabalho deles era fazer o registo de todos os casos de assassínio político, e

tortura, e violação – a violação usada como uma forma de tortura ou durante o processo

de tortura. Um homem mostrou-me fotografias, nas paredes, dos cadáveres

ensanguentados dos amigos dele. O sangue era vermelho-vivo. Um era de uma

professora, morta perto da escola. E lá estavam os instantâneos a preto-e-branco de

mulheres e homens sorrindo timidamente em algum momento antes das suas mortes, e

estavam pregados lá junto das imagens dos cadáveres deles. Os rostos, radiantes de

bondade.

E eu pensei na delicadeza com que os meus pais me tinham ensinado a urinar para

a sanita, a ser cuidadoso nas proximidades das sanitas, a lavar as mãos, sempre com

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sabonete, a evitar pessoas com gripe, com constipações, a evitar correntes de ar, a evitar

salas que estivessem frias ou húmidas.

E pensei em como me tinham ensinado o gosto por viajar – as maravilhosas

viagens de comboio. A magia de seguir à noite pelos campos no nosso

compartimentozinho, escovando os dentes na carruagem em movimento.

E daqui, do meu lugar no chão da casa de banho, consigo ver pela janela,

deslumbrantes ao luar, as montanhas deslumbrantes do país pobre, encharcadas com o

sangue dos inocentes, encharcadas com o sangue daqueles rostos tímidos, tímidos rostos

quebrados.

A passear num jardim com a minha mãe – as rosas enormes. E num pinhal escuro

– o meu pai a apontar para um pássaro amarelo. Salvem-me.

Estão a ver, eu gosto de Beethoven. Eu gosto de ouvir o arco do violino a serrar a

corda. Eu gosto de seguir a frase do violino que vai e vai, como um orgasmo bem

enraizado espremido para uma corrente de som. Eu gosto de sair à noite numa cidade

cosmopolita e sentar-me num auditório às escuras a ver bailarinos voarem para os braços

uns dos outros.

Sim, suponham que certas pessoas – certas pessoas cujos corações estão

reconhecidamente cheios de amor – estão a ser acordadas à noite, de repente, por grupos

de homens armados. Suponham que elas estão a ser arrastadas para uma carrinha mal-

cheirosa com um tapete no chão e a ser pontapeadas por botas até os lábios ficarem

inchados como laranjas, a escorrer sangue. Sim, eu estava vivo quando estas coisas foram

feitas, vivia na cidade onde as ruas escorriam o sangue das bondosas vítimas, vestia as

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roupas que tinham sido arrancadas dos corpos das vítimas quando estas foram violadas e

mortas.

Mas adoro violino. Adoro música, bailarinos, vou a tudo, vejo tudo. A cidade com

as suas luzes, os teatros, os cafés, as bancas de jornais, os livros. A festa permanente. A

vida devia ser festejada. A vida é um presente.

E não aguento a maneira como as pessoas dizem, “Quando eu era criança,

adorava elefantes”, “Quando eu era criança, adorava balões”. Será que querem dizer que,

se parassem e olhassem para um balão, hoje, ou para um elefante, hoje, não os

adorariam? Porque não os adorariam? Eu acho que ainda adoramos o que sempre

adorámos. Como poderíamos não o fazer? E uma das coisas que eu sempre adorei – não

sei se vocês também – é a maneira maravilhosa como os pequenos objectos de valor – os

presentes de Natal e os presentes de aniversário que os adultos dão sempre uns aos outros

– são embrulhados, são embalados. Digamos que o presente era uma pequena chávena de

porcelana ou um pires ou uma minúscula jarra de porcelana. Bem, primeiro havia uma

caixa de cartão da loja que parecia que tinha de trazer lá dentro um cavalo de baloiço ou

um triciclo, porque era assim mesmo grande – excepto que, se pegássemos nela, era

sempre incrivelmente, miraculosamente leve – e imaginávamos sempre que essa grande

caixa castanha tinha sido empacotada e selada por uma espécie de enormes e musculados

operários industriais para quem o conteúdo da caixa era completamente indiferente. E

depois alguém fazia um corte com uma faca na fita gomada castanha no topo da caixa, e

quando puxavam as duas metades do topo uma para cada lado, havia sempre uma espécie

de enorme estrondo industrial. E depois, dentro dessa grande caixa de cartão,

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encontrávamos outra caixa, embrulhada num papel espesso e brilhante e atada com uma

dessas fitas espessas e brilhantes e de cores vivas, que na verdade não era necessária para

manter a caixa fechada, e naturalmente imaginávamos que esta caixa interior tinha sido

embrulhada por uma dessas senhoras muito distintas e de aparência modesta cujas mãos

eram amaciadas por cremes perfumados e que, com toda a certeza, se preocupava

muitíssimo com o que quer que fosse que estivesse dentro da caixa. E depois, quando se

desfazia e retirava o papel e a fita, e a caixa propriamente dita, com a sua superfície

macia como leite puro, era finalmente revelada, alguém tirava a tampa, e nesse momento

ouvíamos o barulhinho de uma coisa a roçar ou a aninhar-se, como o barulho de um

hamster a mexer-se na gaiola, e era o barulho de todas os minúsculos bocadinhos de

papel amarrotado que enchiam a caixa deixando sair uma espécie de leve suspirozinho

assim que o levantar da tampa lhes dava mais algum espaço para respirar. E depois

começava a parte mais emocionante da abertura do presente, que era a tentativa de

descobrir o que é que estava, ao certo, dentro da caixa, para além de todos aqueles

bocados de papel amarrotado, se é que de facto estava mais alguma coisa lá dentro,

porque primeiro pensávamos sempre, Bem, realmente, desta vez não há mais nada. E

então alguém – talvez um de vocês – metia a mão lá dentro, mesmo até ao fundo da

caixa, como se fosse um mergulhador à procura de uma pérola, e passado um bocado

acabava por dar com uma coisa dura, uma coisa muito bem embrulhada num papel de

outro tipo, e quando esse último embrulho era finalmente desfeito, lá estava uma chávena

ou um pires ou uma jarrinha minúscula, pensada para uma única florzinha. E se vocês

tivessem visto aquela chávena ou o pires ou a jarra numa prateleira de uma loja algures,

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talvez tivessem pensado que não era nada de especial, ou se tivessem visto isso num

monte de coisas iguais a um canto dum lugar escuro e cheio de pó onde se vendesse

bugigangas, talvez tivessem pensado que era tralha velha para o lixo, mas depois de ter

sido retirada de todo aquele papel, daquela caixa branca como o leite, daquela caixa de

cartão, parecia a coisa mais brilhante, mais cintilante do mundo. E parecia tão delicada –

tão quebrável e preciosa. E tinham razão, era mesmo.

E os meus amigos e eu éramos as crianças delicadas, preciosas, quebráveis, e

sempre o soubemos. Sabíamo-lo pela maneira como nos embrulhavam – por causa da

suave roupa interior estendida nas nossas camas, meias macias para nos proteger os pés.

E lembro-me que a minha querida mãe, a minha mãe bonita, a minha mãe

inocente, dizia-me a mim e aos meus amigos, “Vá, tenham cuidado, não se aproximem da

Primeira Avenida. É um bairro mau. Há miúdos mauzões lá.”

E nós não fazíamos ideia do que é que isso queria dizer. Ela não fazia ideia.

Pensávamos que alguns miúdos eram mauzões – talvez apenas quisessem ser assim. E

viviam em certos bairros – talvez porque estavam lá os amigos deles. As pessoas boas

tinham-se juntado no nosso bairro, tinham formado uma comunidade, e era um bairro

bom. Na Primeira Avenida e noutras avenidas, havia bairros maus, onde as pessoas

mazonas se tinham juntado, e esses eram os bairros que nós tínhamos de evitar.

Ainda os evitamos – todos os meus amigos. Os bairros maus. As pessoas que

vivem em lugares desses podem magoar-te, bater-te, cortar-te, matar-te. Todos esses que

te podem magoar juntam-se nesses bairros, como água nas sarjetas. E é terrível. É

horrível. Porque é que as pessoas hão-de querer magoar-se umas às outras? Eu digo

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sempre aos meus amigos, Nós devíamos estar contentes de estar vivos. Devíamos festejar

a vida. Devíamos compreender que a vida é maravilhosa.

Não devíamos decorar as nossas vidas e o nosso mundo como se estivéssemos

permanentemente em festa? Não devia haver sinos de papel pendurados no tecto, e balões

de papel, e serpentinas brancas e amarelas? As pessoas não deviam dançar e abraçar-se?

Não devíamos encher as mesas com um bolo e presentes?

Sim, mas não podemos fazer festejos exactamente na mesma sala onde há grupos

de pessoas a ser torturadas, ou grupos de pessoas a ser assassinadas. Temos de saber,

Onde é que nós estamos, e onde é que estão os que estão a ser torturados e assassinados?

Não na mesma sala? Não – mas certamente – não há nenhuma outra sala que possamos

usar? Sim, mas ainda ouviríamos as pessoas a gritar. Bem, então – não podemos usar o

edifício do outro lado da rua? Bem, talvez – mas não seria uma sensação estranha passar

pela janela durante os nossos festejos e olhar para o outro lado, para o edifício onde

estamos agora, e pensar no sangue e nas mortes e nos testículos que estão a ser

esmagados lá dentro?

Quem são os que estão a ser torturados e assassinados? Explicaram-me: os

seguidores de Marx.

A tontura faz-me cair de cabeça ao chão. Sinto-me como se uma corda enrolada à

volta das minhas têmporas fosse sendo apertada e aliviada, apertada e aliviada, e tenho

uma dor aguda no meio da barriga.

No meu próprio país sempre adorei ficar em hotéis. De facto, uma das coisas que

eu acho que gosto mais é de dormir num hotel numa nova cidade qualquer e depois

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levantar-me cedo enquanto os pássaros estão a cantar e ligar para o serviço de quartos e

fazer com que eles me tragam uma grande caneca de café, e depois deitar-me na cama e

telefonar aos meus amigos enquanto vou bebendo o meu café. Consigo passar horas

assim, literalmente, só a falar ao telefone e a rir e a beber mais café e a olhar o sol a

entrar pela janela e a andar pelo quarto. E depois levanto-me e vou ao meu dia.

Mas ficar num hotel num país estrangeiro é sempre diferente.

Vou-vos contar um episódio engraçado que aconteceu hoje ao almoço. Bem, para

dizer a verdade, a minha reacção é que foi engraçada. Havia um banquete no hotel. Toda

a gente tinha uns pratos enormes de comida: porco, camarões, lagosta, caça. Eu estava de

pé cá fora, e havia uma rapariga aí de dezasseis anos sentada nuns degraus não longe de

mim. Era uma camponesa, descalça, as pernas espreitando de uma saia desbotada. Os

olhos enevoados, como se tivesse sido chicoteada. Estava à espera de alguma coisa,

esculpida no canto da escadaria de pedra numa atitude de incrível gravidade e graça. De

repente, saiu do hotel um jovem, de fato, com uma expressão idiota. Vinha na direcção da

rapariga dos degraus, e pelo modo como ele lhe acenava percebi que ela devia ser uma

das criadas da família dele. Ele estendia-lhe um pratinho minúsculo com alguns feijões.

Aquilo era o almoço dela. Bem, ela sorriu para agradecer aquela oferta de comida, e eu

tive uma reacção imediata – queria esmurrar aquele jovem na cara, atirá-lo para os

arbustos. Foi bastante engraçado para dizer a verdade. Quem é que eu pensei que era, o

guerrilheiro radical da semana? Depois ele voltou para dentro – ignorando-me, claro – e o

momento passou.

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Há cerca de um ano passei um dia numa praia de nudistas com um grupo de

pessoas que não conhecia assim tão bem. Para ali deitado, nu, ao sol, havia um homem

que estava sempre a falar da “classe dirigente”, “a elite”, “os ricos”. Durante todo o dia,

“Os ricos são porcos, todos eles são porcos, um dia esses porcos vão ter o que merecem”,

e coisas assim. Era um homem magro com um grande bigode, com um ar pouco saudável

mas muito bonito, um fumador inveterado. Enquanto falava, punha-se a rir – uma espécie

de ladrar cruel que lhe saía sempre quando menos se esperava. Eu tinha ouvido falar

destas palavras e destas frases durante toda a minha vida, mas nunca tinha conhecido

alguém que realmente as usasse. Achei bastante divertido. Mas, desde essa altura, durante

cerca de um mês, aconteceu uma coisa estranha. Onde quer que fosse, começava a

conversar com pessoas que encontrava pela primeira vez – num comboio, num autocarro,

em festas, na fila do cinema – e toda a gente que eu encontrava falava como ele: Os ricos

são porcos, o dia deles há-de chegar, todos eles são porcos, e tal e tal. Comecei a pensar

que talvez estivesse maluco. Pensei que estava louco. Será que isto estava mesmo a

acontecer? Agora eram todos Comunistas menos eu?

E isto estava tudo a acontecer na mesmíssima altura em que o Comunismo tinha

morrido, finalmente, e os patologistas sociais discutiam qual seria a causa da morte. Os

jornais e revistas não noticiavam qualquer nostalgia em relação ao sistema defunto, e

parecia que todos os intelectuais e líderes políticos de quem se sabia terem alguma vez

caído sob a sua influência corriam em todas as direcções à procura de protecção. Portanto

quem é que eram todas estas pessoas que continuavam a puxar-me para o lado delas?

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Um dia estava um presente anónimo pousado no degrau da minha entrada – o

Volume Um de O Capital de Karl Marx, num saco de papel castanho. Uma piada? A

sério? E quem o teria mandado? Nunca descobri. Muito tarde, nessa noite, nu na cama,

folheei o livro. O começo era impenetrável, não conseguia perceber aquilo, mas quando

cheguei à parte sobre as vidas dos trabalhadores – os das minas de carvão, as crianças-

operárias – conseguia sentir-me a respirar mais devagar de repente. Tão zangado que ele

estava. Página atrás de página. Depois voltei atrás, a um capítulo anterior, e vim dar a

uma expressão que já tinha ouvido, uma expressão esquisita, perturbadora, um bocado

horrível: este era o capítulo sobre “fetichismo da mercadoria”, “o fetichismo da

mercadoria”. Queria compreender aquela expressão que soava tão estranha, mas sentia

que, para a compreendermos, toda a nossa vida tinha de mudar, provavelmente.

A explicação dele era muito engenhosa. Usava o exemplo das pessoas dizerem,

“Vinte metros de linho valem duas libras.” Sobre qualquer coisa, as pessoas dizem que

tem um certo valor. Isto vale tanto. Este casaco, esta camisola, esta chávena de café: cada

coisa vale uma quantidade de dinheiro, ou uma soma de outras coisas – um casaco vale

três camisolas, ou este dinheiro – como se aquele casaco, aparecido de repente sobre a

terra, contivesse algures dentro dele uma quantidade de valor, como uma alma, como se o

casaco fosse um fetiche, um objecto físico que contém um espírito vivo. Mas na verdade

o que é que determina o valor de um casaco? O que é isso que determina o preço de um

casaco? O preço do casaco resulta da sua história, a história de todas as pessoas que

estiveram envolvidas no fabrico e na venda do casaco e de todas as concretas relações

entre elas. E se compramos o casaco, também nós passamos a ter uma relação com essas

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pessoas, e no entanto ocultamos essas relações da nossa consciência fazendo de conta que

vivemos num mundo onde os casacos não têm qualquer história mas simplesmente caem

do céu com preços marcados dentro. “Gosto deste casaco”, dizemos, “não é caro”, como

se isso fosse um facto sobre o casaco e não o fim da história sobre todas as pessoas que o

fabricaram e o venderam, “Gosto das imagens nesta revista”.

Uma mulher nua debruça-se sobre uma cerca. Um homem compra uma revista e

olha para a imagem dela. Os destinos destes dois estão ligados. O homem pagou para que

a mulher tirasse as roupas, se debruçasse sobre a cerca. A fotografia contém a sua própria

história – o momento em que a mulher desapertou a saia, o maneira como ela se sentiu, o

que disse o fotógrafo. O preço da revista é um código que descreve as relações entre

todas essas pessoas – a mulher, o homem, o editor, o fotógrafo – que ordenaram, que

obedeceram. Uma chávena de café contém a história dos camponeses que apanharam os

grãos, o modo como alguns deles desmaiaram sob o calor do sol, alguns deles foram

espancados, alguns deles pontapeados.

Durante dois dias conseguia ver o fetichismo da mercadoria por todo o lado à

minha volta. Era uma sensação estranha. Depois ao terceiro dia perdi-o, foi-se, já não o

conseguia ver mais.

Mas, não muito depois da oferta do livro, eu estava à espera do autocarro. Alguém

com um sorriso muito simpático estava parado atrás de mim, o peito magro coberto por

uma t-shirt desbotada, e na t-shirt estava escrita uma só palavra: era o nome de um país

revolucionário. O autocarro estava atrasado, foi ficando tarde, cada vez mais tarde, e por

fim eu sorri ao sorriso que estava parado atrás de mim, e perguntei à pessoa, “Já foste a

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esse país – esse na tua t-shirt?” E a pessoa disse, “Sim – já estiveste lá, também?” com

um rubor de entusiasmo tomando-lhe conta da cara. Depois parou um autocarro, e a

pessoa entrou, mas não era o meu autocarro.

Cerca de seis meses depois, eu tinha estado numa festa numa zona chique da

cidade, e tinha bebido bastante. A noite estava escura. As ruas estavam molhadas. Eu

passava a correr por umas árvores azuis, e de repente vi uma poça de luz, e no meio da

luz um homem de fato sombrio, com uma cara em forma de noz e cabelo grisalho, estava

a chamar um táxi. Ele tinha estado na festa, mas não tínhamos falado. Perguntou-me se ia

para os lados dele, e eu ia. Ele tinha um sotaque musical. Entrámos no táxi. As mãos

tremiam-lhe de uma maneira esquisita, e a voz soava a xarope espesso e escuro. A falar,

usava umas expressões assim muito abreviadas e irónicas, e passado um bocado eu disse-

lhe, a despropósito, “Não consigo localizar o seu sotaque – é de onde?” Ele lançou-me

um olhar sombrio e, com especial ironia, revelou ter vindo do país revolucionário cujo

nome eu vira meses antes na t-shirt. Trabalhava para esse país como diplomata. “É difícil

viajar para o seu país?” perguntei. Ele explicou-me, gentilmente, que uma pessoa punha-

se lá numas horas.

Alguns meses mais tarde, fui ao país revolucionário. Não era como as mentiras

que tinha ouvido. Havia muitos soldados, de facto, mas a mim pareciam-me mais

pastores dos quadros renascentistas. Os uniformes verdes deles pareciam pijamas. Eu

estava muito revigorado. Conversava com os funcionários públicos que entravam nas

repartições de madrugada – todos eles muito cansados, mas muito educados, amáveis, de

bom humor – alguns eram muito calorosos, outros pareciam melancólicos. Um dia parei

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numa praça, e escrevi no meu caderno a frase romântica: “Estes sorrisos tímidos são

como um jardim para mim.” Fiquei num hotel extravagantemente caro, e os gelados lá

eram como uma droga – tão leves – deliciosos, perfeitos... Nunca me fartava destes

gelados incríveis. Um jornalista que estava no hotel, e que conheci ali, explicou-me que

não fazia sentido admirar a revolução por causa dos seus gelados, já que a verdade é que

podia ser considerado uma imperfeição da revolução que se aplicasse recursos à produção

de um único gelado quando algumas pessoas ainda não tinham o suficiente para comer. A

observação era válida, mas ele não apanhava o essencial: o gelado era agradabilíssimo.

Continuei a minha viagem, e decidi ir a mais países pobres. Fui a países pobres

cujos nomes não estavam escritos em t-shirts nenhumas, onde os soldados tinham caras

com expressões estranhas, onde as famílias ricas se sentavam em restaurantes

resplandecentes comendo prato atrás de prato de gelados multicolor, mas quando eu

provei o gelado, todos os sabores sabiam ao mesmo, e nenhum era delicioso. Vacilava a

ouvir descrições de tortura eléctrica, o estado dos corpos. Vi orquídeas de inalcançável

beleza onde uns operários tinham sido violados e pendurados em árvores. Mas num

domingo de sol radioso fui a uma igrejinha, a abarrotar de caras magras, e lá havia

canções alegres, e o padre falava de um Cristo de amor, da importância do perdão –

tolerância, piedade. E, uma tarde, num café escuro, tomei chá com uma guerrilheira

armada. Juana, uma seguidora de Marx. Foi um bocadinho assustador.

A pele dela era amarelada, os olhos demasiado brilhantes. Parecia estar a arder

com uma doença má. Bem, não era mesmo uma seguidora de Marx. Mas o nome parecia-

lhe maravilhoso, até a imagem dele lhe parecia bonita, porque ao contrário dos outros

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filósofos e gente culta, explicou-me ela, Marx tinha feito o estranho gesto de lançar a

vida aos pés dos pobres. Por outras palavras, Marx era um seguidor deles. Ele estava do

lado deles.

Eu ia tentando que ela falasse dela. Não via a casa há muito tempo. Amava os

pais. Tinha duas crianças pequenas. O marido tinha morrido com vinte e poucos anos.

Fechando e abrindo os punhos, ela falava-me, febrilmente, de uma irmã que tinha sido

morta. A cabeça tinha sido mutilada. Depois da morte da irmã, ela deixara a aldeia e

caminhara em direcção às montanhas à procura dos rebeldes. Aprendera a andar sem

comer durante dias. A postura, a dignidade, de um animal selvagem.

Voltei para casa, e retomei a minha vida normal. Mas não conseguia deixar de

reparar que me estava a acontecer uma coisa horrível. Primeiro tentei ignorá-la ou pô-la

de lado, como um sintoma que se espera que desapareça por si só, mas aquilo não

desaparecia. Que coisa era essa que estava a acontecer? Eu sempre disse, “Sou uma

pessoa feliz. Eu amo a vida”, mas agora havia uma espécie de horrível indiferença ou

vazio que vinha de alguma parte de dentro de mim e me enchia, aos poucos. Coisas que

em tempos me teriam encantado ou animado pareciam-me mortas, frustravam-me. Às

vezes era como se alguém me estivesse a estrangular.

Fui visitar umas pessoas que conhecia – amigos íntimos. Nunca tinha ido a casa

deles antes, e todos nós ansiávamos por essa minha visita há anos. “Este é o nosso

quarto”, abrindo uma porta. “Aqui dorme o bebé.” Todas as divisões eram bonitas – todas

de um bom-gosto simples, com toques surpreendentes, com adoráveis objectos de várias

partes do mundo. Nos quartos das crianças havia um papel de parede azul-celeste que ia

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até ao tecto, estantes com grandes galinhas e patos amarelos. Mas eu sentia-me falso.

Sentia-me enjoado. Não sentia nada – uma dormência.

Fui ver uma peça com um grupo de amigos – uma actriz lendária num grande

papel. Não tirávamos os olhos do palco. A pouco e pouco, a desgraça da mulher ia-se

aproximando. A casa de infância seria por fim vendida, as adoradas cerejeiras deitadas

abaixo. Sob as luzes intensas, a actriz mostrava fúria, bravata, o palco ressoava com o seu

riso juvenil, que expressava como esta se enganava a si mesma. Seria forçada a viver

num apartamento em Paris, não na quinta que fora sua. Um homem cujo pai tinha

trabalhado na quinta como servo ia agora comprá-la. Foi a dor solidária do irmão mais

velho dela que, por fim, conseguiu puxar lágrimas ao matulão de sobretudo sentado ao

meu lado. Mas o meu problema era que, sei lá como, de repente, eu não estava em mim.

Estava desconcertado. Porque é que era suposto estarmos a chorar, ao certo? Esta pessoa

não seria mais dona da quinta que em tempos tinha sido dela... Em vez disso, teria de

viver num apartamento... Não me lembrava porque é que era suposto eu estar a chorar.

Num táxi a caminho de casa, depois da peça, os meus amigos criticavam um dos

actores. A interpretação dele tinha sido frouxa, desajustada, mal pensada. Se a

personagem dele se comportava daquela maneira no Primeiro Acto, as acções dele mais

tarde não tinham explicação. Eu olhava, gelado, pela janela do táxi.

Algumas vezes estava óptimo. Lembro-me que uma manhã – um céu azul

maravilhoso – fui cortar o cabelo. Mãos delicadas moldavam-me o cabelo de modo que

ele assentasse sobre a forma do meu couro cabeludo como uma touca. Depois comprei

um par de meias para mim, e depois pus-me a olhar para elas com atenção, e comprei

!19
mais dois pares, porque não é fácil encontrar o tipo de meias de que eu gosto! Depois fui

a um restaurantezinho encantador almoçar com uma mulher de conjunto amarelo-limão

que conheço desde os meus oito anos. Mas depois entrei num táxi, e enquanto seguia pela

cidade, aquela sensação, aquele enjoo, tomou conta de mim outra vez. Parecia começar

no meu estômago e sair pelas minhas pernas, pelo meu peito. E o meu estômago batia, tal

e qual um coração. Suores frios na testa e no pescoço. Eu não era eu. Quando o táxi

chegou, a pessoa que saiu não era eu. Eu não estava em lado nenhum. A pessoa que

pagou ao motorista não era realmente ninguém.

Alguém com quem, há anos, eu tivera um caso amoroso muito feliz estava à

minha espera para me ver. Sorrimos, abraçámo-nos, mas eu não estava lá para ser

abraçado. A pessoa que eu apertava parecia-me uma boneca, electricamente aquecida. Eu

próprio era um boneco com um cheiro esquisito. No velho apartamento, cheio de

memórias, falámos de uma peça recente, de um filme, de um espectáculo terrível de um

grupo de bailarinos, um dos quais nós conhecíamos, e eu soube do jantar com a nossa

amiga Nadia, que estava a trabalhar nos quadros dela mas também fazia design gráfico, e

da história das figuras de madeira trazidas clandestinamente do México, embrulhadas na

roupa. Roubaram a carteira ao nosso divertido amigo Petrus. Espantosamente, a polícia

apanhara o ladrão quando este corria rua fora. O Petrus dissera que o cadastro do homem

era tão comprido como aquela biografia de Henry James. As aventuras do Petrus com a

polícia e os tribunais eram uma comédia hilariante, sendo o Petrus o Petrus. Mas

enquanto ouvia a história, eu lembrava-me que um amigo da minha mãe me tinha dito

!20
uma vez, “Gosto de ti, porque tu tens uma gargalhada tão boa, tão sonora, tão feliz”, e

dava-me conta que a minha gargalhada era como uma tossezinha presa.

Íamos jantar com outro amigo nosso no restaurante de um hotel perto do

escritório onde ele trabalhava, mas quando encontrámos o nosso amigo, fomos dar por

engano ao salão de baile do hotel. Lá estavam executivos com ar próspero, reformados

provavelmente, a dançar péssima música com as mulheres – homens de calças

largueironas e grandes coxas e moedas nos bolsos – e as mulheres tinham vestidos cheios

de floreados, cabelos que pareciam perucas, e o nosso amigo disse, “Meu Deus, como são

infelizes. Como é doloroso. Como é triste a vida”, mas eu olhava para os executivos nos

seus fatos escuros e sentia apenas aquela dormência, até estava na minha boca, na minha

língua, uma espécie de amargo desamor, uma espécie de podre, horrível desamor.

E quando o jantar já estava a acabar o nosso amigo contou-nos, finalmente, que o

pai dele tinha morrido. Descreveu o hospital, os médicos, as máquinas. Era como se ele

sentisse que nunca ninguém tinha morrido antes, como se sentisse que era uma grande

injustiça que o pai dele tivesse de morrer. No entanto, não tinha sido poupada qualquer

despesa para prolongar a vida do pai dele, para garantir que a morte dele fosse tão

confortável quanto possível. Especialistas esforçados rodeavam-lhe a cama fazendo tudo

o que podiam de forma que ele morresse sem sofrimento. Não pude deixar de mencionar

esses outros que todos os dias morriam na mesa de tortura, a gritar, cortados aos pedaços

com facas, rodeados nos seus leitos de morte por outros especialistas que faziam tudo o

que podiam para ter a certeza que aqueles que eles rodeavam morreriam em brutal agonia

– agonia inimaginável.

!21
As minhas observações eram despropositadas. Onde estava a compaixão que eu

devia ao meu amigo? A perda dele era real. Ele olhava para mim, horrorizado.

Era Natal nessa altura. Uma atmosfera festiva enchia as ruas e as lojas, e uma

noite eu tive um sonho, e sonhei que era Natal, e eu tinha uma família maravilhosa, com

duas ou três crianças pequenas, e no sonho eu acordava de repente, assustado e a suar, e

ia à casa de banho lavar os dentes. A minha escova, a pasta, e o copo estavam juntinhos

na prateleira, como é costume. Ao passar os olhos, por um momento, pelo espelho da

casa de banho, a prateleira sobre a qual assentavam estas coisas começou a inclinar-se. O

copo escorregou devagar por ela abaixo, depois caiu e partiu-se em pedaços grossos e

afiados no chão de azulejo. Desequilibrei-me, escorreguei, e pus o pé mesmo em cima de

um caco de vidro. O chão encheu-se de sangue. A minha família apareceu. Eu estava a

chorar, a soluçar. “Peço desculpa”, disse, “não vos posso dar mais presentes. Amo-vos a

todos, mas não vos quero dar mais presentes.” As palavras saíam-me da boca, de repente.

Não sabia porque é que as estava a dizer. Sempre quisera que os meus filhos fossem

felizes. Sempre quisera que eles tivessem o melhor de tudo. Depois acordei e pensei no

sonho, nos presentes. Pensei no Natal, nas ruas, nas lojas. Seria por isso que as pessoas

traziam crianças ao mundo – para que também elas pudessem, um dia, vaguear pelas

ruas, comprando, devorando, sempre “o melhor” – a melhor comida, a melhor roupa, o

melhor tudo – para que também eles pudessem exigir “o melhor”? Não haveria já

suficientes pessoas no mundo a exigir o melhor, a insistir no melhor? Não, é preciso

termos mais dessas pessoas, é preciso trazermos crianças, e depois é preciso

acumularmos mais tesouros de todo o mundo, mais do melhor, para que o tenham todas

!22
essas nossas novas crianças, porque as nossas crianças devem ter o melhor, seria uma

vergonha para nós, uma desonra, dar-lhes menos que o melhor. Nada nos impedirá de

lhes dar o melhor.

Eu estava péssimo. E não era que tivesse adorado especialmente a viagem que

acabara de fazer. Mas sentia que talvez devesse ir outra vez – ir outra vez a mais países

pobres – que talvez fosse isso que eu devia fazer para curar a minha sensação de enjoo ou

inquietação ou lá o que era. Até tinha uma mala ainda por desfazer. E por isso pensei,

Bem – talvez – e aqui estou eu.

A última noite no meu país, gastei-a num hotel de aeroporto. As pessoas do quarto

acima do meu ouviam música a horas mais que tardias. Liguei para a recepção e queixei-

me. Deitado na cama, imaginava as pessoas acima de mim a ouvir música. Estavam

vestidas com roupas confortáveis, informais – eram livres, felizes, talvez um bocadinho

bêbadas ou ganzadas. Talvez estivessem a dançar. Sempre gostei muito da canção que

eles estavam a ouvir – uma bela canção – e senti uma espécie de refinado prazer: deitar-

me na almofada, a ouvir a canção, à espera do momento em que o detective do hotel

bateria à porta do quarto acima do meu e a música pararia de repente a meio de uma

frase.

Tento levantar-me para sair da casa de banho. Ponho-me de joelhos, mas não

consigo levantar-me. Pendurado na banheira, há um tapete de banheira roxo. Agarro-o,

puxo-o para o chão, puxo-o para mim, e faço-o deslizar para baixo de mim.

Sabem? – há noites na cidade onde eu cresci, a cidade que eu mais amo, em que

está demasiado frio para chover, mas o céu ainda não pode nevar, embora se sinta que

!23
queria, e por isso, em vez disso, parece que num certo momento todos os carros e caras e

vidros ficam cobertos de repente por uma deliciosa humidade, como a humidade que se

pode ver numa cereja congelada, e em noites assim, quando se anda pelas ruas das zonas

boas da cidade, vê-se os homens todos, nuns sobretudos que caem direitos até ao chão, a

arregalarem os olhos de modo grosseiro, com um desejo guloso, às mulheres com

cabeças de raposa que trazem batons vibrantes, que trazem brincos vibrantes, enquanto

vão atravessando a luz e a escuridão desiguais do passeio. E isso é o tipo de coisa que os

Comunistas nunca vão perceber. Isso é o tipo de coisa que os Comunistas nunca vão

perceber, tal como a decência humana é o tipo de coisa que eu nunca irei perceber.

Olhem – há uma pergunta que eu gostava de vos fazer: Já tiveram alguns amigos

pobres? Estão a ver, eu acho que isso é uma ideia que muitas pessoas têm: “Porque é que

eu não haveria de ter alguns amigos pobres?”

Imaginei isso tantas vezes, como um sonho que vem e torna a vir. Tem havido

tantas pessoas – pessoas que vejo todos os dias, em trabalhos humildes– pessoas que me

chamam a atenção, que falam comigo, e eu penso, Tão bonito, É bonito, Se ao menos – e

imagino isso – mas depois o que eu imagino acaba sempre tão mal.

Imagino sempre que eles me convidam para ir a casa deles jantar, e – não sei o

que é – qualquer coisa a ver com as lâmpadas, o soalho que se está a levantar um

bocadinho de nada do chão, e tu entras e dizes para ti mesmo, Está bem, Isto está bem,

está tudo bastante bem, mas sabes que não está – e há aquela espécie de cheiro pegajoso

que vem de algum sítio, de um corredor, de um quarto – e a televisão – e as paredes

pintadas com esta espécie de rosa-choque, e há crianças mal-dispostas e a espirrar e a

!24
tossir. E há algumas cadeiras duras, e tu acabas por te sentares no chão, e andas a

contorcer-te pelo chão fora, e vais tentando arranjar algum encosto para as costas. E eles

oferecem-te alguma comida, e a carne é gordurosa e, ali pousado no teu prato, o bocado

de carne parece ficar maior, cada vez maior. E toda a gente é incrivelmente simpática. E

alguém muda a fralda do bebé. E, passada uma semana, eles ligam a convidar-te outra

vez, e tu não sabes o que dizer, por isso lá vais outra vez, e depois outra vez uns meses

mais tarde talvez, e depois – não sei – talvez te tenhas mudado para uma outra zona da

cidade, talvez te tenhas mudado para fora da cidade até, talvez eles se tenham mudado

para fora da cidade – mas na próxima ocasião em que lá vais passou um ano, e não há

mais nenhuma ocasião depois dessa.

Meu Deus, o que é que me está a acontecer? Sinto que não resta nada de mim.

Sinto que não penso nada – não me lembro... Que coisas é que eu estou sempre a dizer?

Acredito que haja... Acredito que –

Não – vamos parar com isto. Todas as pessoas são pessoas, todas as pessoas

acreditam em certas coisas. O meu amigo Bob – o meu amigo Bob acredita que “a

democracia é a pior forma de governo, com excepção de todas as outras”. E o Fred – o

Fred acredita que “o rebelde de hoje é o ditador de amanhã”. E a Natasha acredita que os

camponeses dos países pobres só querem que os deixem estar para cultivarem os campos

em paz e sossego e não ligam a mínima importância às ideologias da direita ou da

esquerda. O Mario acredita que a crítica social em peças de teatro e em filmes pode

expressar-se mais eficazmente através do uso do humor. E o Indrani acredita que as obras

de arte, incluindo espectáculos de ópera e ballet, podem transformar indivíduos e, através

!25
destes, a sociedade. E o Toshiko acredita que a única verdadeira contribuição que as

pessoas podem dar para a resolução dos problemas do mundo é educar as suas famílias

com bons valores. E a Ann-Marie acredita que os ricos e os pobres deviam viver como

amigos e deviam trabalhar juntos para tornar o futuro melhor do que o passado.

Mas a questão – a questão é – Importaria alguma coisa se fosse o Fred, em vez do

Bob, a acreditar que a democracia é a pior forma de governo, com excepção de todas as

outras? E se acontecesse o Fred acordar, uma manhã, e pensar que acreditava nisso,

esquecendo-se que, de facto, essa era a convicção do seu amigo Bob?

O Fred acredita em certas coisas – pode-se dizer isso. Mas o que é que isso quer

dizer? Quer dizer alguma coisa? Não me lembro...

E as minhas convicções? Sim, sim – sim, eu tenho convicções – acredito na

humanidade, na compaixão em relação aos outros – oponho-me à crueldade e à violência

O quê? Você aplaude a crueldade e a violência?

Não – eu disse que me oponho à crueldade e à violência – por amor de Deus –

oponho, oponho –

Mas ainda me consigo lembrar daquilo que gosto – não é? – se não daquilo em

que acredito. Eu sei do que é que gosto. Gosto de afecto, aconchego, prazer, amor –

presentes, cartas – gravuras bonitas – aquelas pinturas do Matisse... Sim, sou um esteta.

Gosto da beleza.

!26
Sim – os países pobres são belos. As pessoas pobres são belas. É uma sensação

maravilhosa ter dinheiro num país onde a maioria das pessoas é pobre, atravessar de táxi

os horríveis bairros de lata.

Sim – uma pedinte pode ser bela. Uma pedinte pode ter belos lábios, belos olhos.

Estás longe de casa. Para ti, o modesto xaile dela parece elegante, directo, a maneira certa

de vestir. Estás a vê-la a aproximar-se de muito longe. Ela é velha, magra, e sim, tem um

ar doente, muito doente, próximo da morte. Mas o rosto dela é belo – sedutor, luminoso.

Tu gostas dela – és atraído por ela. Sim, tu pensas – tens dinheiro na carteira – vais dar-

lhe algum.

E uma voz diz – Porque não todo? Porque não dar-lhe tudo o que tens?

Tem cuidado, essa é uma pergunta que te pode envenenar a vida. De facto, o teu

amor à beleza pode matar-te.

Se ouvires essa pergunta, quer dizer que estás doente. Estás mentalmente doente.

Tiveste um esgotamento.

E a casa de banho roda, a toda a volta, a uma velocidade mais ou menos

insuportável. Eu olho fixamente para a sanita.

Idiota, responde à pergunta. Não fiques só para aí sentadinho. Eu não posso dar à

pedinte tudo o que tenho, porque eu –

porque eu –

por –

Espera um segundo. Espera um segundo. Eu tenho convicções. Há uma razão

para que eu não dê à pedinte todo o meu dinheiro. Sim, vou dar-lhe algum – ofereço

!27
sempre quantias surpreendentes às pessoas que têm menos que eu. – Mas há uma razão

para ser eu quem tem o dinheiro em primeiro lugar, e por isso é que eu não vou oferecê-lo

todo. Por outras palavras, por amor de Deus, eu trabalhei para esse dinheiro. Trabalhei no

duro. Trabalhei. Trabalhei. Trabalhei no duro para fazer esse dinheiro, e é o meu dinheiro,

porque fui eu que o fiz. Eu fiz o dinheiro, e portanto eu é que o tenho, e eu posso gastá-lo

da maneira que eu quiser. Isto é a base de todas as nossas vidas. Porque é que eu posso

ficar neste hotel? Porque paguei para ficar aqui, com o meu dinheiro. Paguei para ficar

aqui, e isso dá-me direito a certas coisas. Tenho direito a ficar aqui, tenho direito a ser

servido, tenho direito a esperar que sejam feitas certas coisas. Agora, esta manhã, por

exemplo, a empregada deixou-me o quarto numa confusão. O chão estava sujo, não havia

lençóis lavados, e o cesto dos papéis ficou cheio. Portanto, eu paguei para ficar aqui,

paguei para ser servido, tenho direito a um serviço, mas a empregada não me serviu como

deve ser. Isso foi mal.

E sou apanhado de surpresa por outro vómito. Os ombros avançam em direcção à

sanita e puxam-me atrás deles. A cabeça lança-se em direcção à bacia da sanita, e eu

vomito uma e outra e outra vez.

Porque é que a velha está doente e a morrer? Porque é que ela não tem dinheiro?

Será que ela nunca trabalhou?

Seu idiota, seu patético idiota, claro que ela trabalhou. Ela trabalhou dezasseis

horas por dia num campo, numa fábrica. Ela trabalhou, a empregada trabalhou. – Tu dizes

que tu trabalhas. Mas porque é que o teu trabalho te dá tanto dinheiro, enquanto que o

trabalho delas não lhes dá praticamente nada? Tu dizes que “fazes” dinheiro. Que

!28
expressão maravilhosa. Mas como é que tu “fazes” tanto dele durante um tempo tão

curto, enquanto que durante o mesmo período elas “fazem” tão pouco?

O calor invade-me em pequenas vagas, e o roxo do tapete de banho torna-se mais

profundo, cada vez mais profundo, e bichos da água enormes, gordos, cobrem o chão, a

correr, rápidos. Centenas, a correr, formando padrões. Eu levanto-me para lhes escapar, e

um alto guarda revolucionário em camisola interior está a levantar o pé. Ele está a

levantar o pé. E depois rodopia, e dá-me um pontapé na cara, e eu caio para trás, e aterro

num beliche, num beliche duro. E estou numa cela, e o guarda mete a mão num grande

saco, e tira assim um livrinho fininho, e aquilo é-me vagamente familiar. E depois atira-o

contra mim e abandona a cela. “Lê isso”, diz. “Lê isso. Lê isso.”

Eu corro para a porta da cela e grito – É isto que vocês chamam o poder do povo?

– mas ele já se foi. Eu grito e grito até me doer a garganta. Mas agora estou sozinho com

o meu livrinho horrível. As mãos pingam-me de suor quando me sento no beliche e

começo a ler.

Claro, é tal e qual o que eu esperava que fosse. As perguntas mais entediantes,

respondidas por extenso, como se a vida de uma pessoa fosse um formulário da

alfândega. Capítulo Um: Em que país é que eu cresci, em que cidade, em que rua. As

origens da minha família, a cor da pele deles, quanto dinheiro é que faziam. O que é que

me davam para comer. O que é que me ensinavam. Capítulo Dois. Isto é inacreditável –

impresso num livro: “Lava o cabelo todos os dias a não ser que ‘com muita pressa’” abrir

aspas fechar aspas; “quando se vai encontrar com amigos para jantar ou para ir ao teatro,

toma banho ao fim da tarde, veste roupa nova”. Afinal de contas, o que é que está a

!29
acontecer? Isto não tem rigorosamente nada a ver com o que eu sou, com alguma coisa

importante acerca de mim! Será que eles não sabem que tudo o que está neste livro é tão

verdadeiro em relação à – à – à minha vizinha Jean como em relação a mim, a minha

vizinha Jean que diz piadas sobre “crianças a passar fome na Ásia”, a minha vizinha Jean

que se gaba de foder colegas no escritório em cima da mesa da sala de reuniões? Será que

eles não sabem isso?

Um dos guardas agarra-me os braços atrás das costas, o outro começa-me a bater

na cara com os punhos. Bate-me na cara muitas vezes, depois no peito, depois na barriga.

Na minha vida, nunca ninguém me bateu. Penso no estrago que cada pancada pode fazer.

E sai-me um bocadinho de sangue da boca.

Depois há outro guarda, uma mulher com uma cara que é como um bolo

encharcado em raiva. Está parada a um canto, e os meus berros ecoam pela cela – “Não!

Não!” E depois ela vem até mim, e cospe-me na cara. E eu grito-lhe muito alto, “Por

amor de Deus, o que é que eu fiz para a fazer sentir assim? Afinal de contas, o que é que

eu lhe fiz?”

Quando os guardas saem, choro como um animal. Não consigo deixar de pensar

na minha mãe – a maneira como ela tomava conta de mim – não suporto isto.

Aguento-me, controlo-me. Tenho de sobreviver. E então sento-me no beliche e

choro e leio e choro e leio. E o tempo passa – tanto tempo – parece uma eternidade – e

depois sim, sim, eu percebo – vejo que há uma resposta à minha pergunta. Sim, isto podia

ter sido previsto, a partir do conhecimento destas coisas – onde nasci, como fui educado –

quanto valeria, provavelmente, uma hora de trabalho minha – apesar de, para mim, a

!30
partir de dentro, a vida me ter parecido sempre como uma história que apenas se ia

desenrolando, imprevisível. Sim, eu nasci, e foi-me proporcionado um campo, um pedaço

de terra, a partir do qual suculentos frutos poderiam ser colhidos por mãos impetuosas. E

eu fui ensinado a ser muito impetuoso. A pedinte, a empregada do quarto – claro – se

vocês soubessem – as aldeias da infância delas – não, elas não foram ensinadas a ser

impetuosas. – Aqui está o teu terreno, o teu pedaço de terra – era árido, negro,

incultivável.

E eu vejo o mundo inteiro exposto à minha frente como um mapa a quatro

dimensões – toda a terra, as pessoas, os momentos de tempo – hoje, ontem. E posso ver

que, em cada momento específico, o mundo tem uma capacidade

específica de produzir as coisas de que as pessoas precisam: há uma certa quantidade de

terra pronta para ser cultivada, um certo número específico de trabalhadores, um certo

stock de maquinaria, um stock der ideias sobre como fazer as coisas, como organizar

todos aqueles que vão trabalhar. E, não sei como, a capacidade de cada dia parece tão

pequena. Está fixada, estabelecida. Todas as suas partes estão fixadas. E eu posso ver

todos os dias que já aconteceram, e em cada um deles, um número determinado de

pessoas trabalhou, e uma porção determinada de todos os recursos da Terra foi escavada e

usada, e um montinho determinado de bens foi produzido. Tão pequeno: sobre a grelha

da possibilidade infinita, esta capacidade finita, distribuída cada dia.

E, de todas as coisas que poderiam ter sido feitas, quais é que realmente

aconteceram?

!31
Os detentores de dinheiro determinam o que é feito – oferecem dinheiro pelas

coisas que querem, cada um de acordo com a quantia que possui – e cada bocadinho de

dinheiro determina alguma fracção das actividades do dia, de forma que aqueles que têm

pouco determinam pouco, e aqueles que têm muito determinam muito, e aqueles que não

têm nada não determinam nada. E depois o mundo obedece às instruções do dinheiro na

medida da sua capacidade, e depois pára. Fez o que podia. O dia acabou. Aconteceram

certas coisas. Se o dinheiro foi oferecido por jóias, houve prata torcida até ficar com a

forma de um anel. Se a oferta foi por ópera, houve trajes cosidos e lustres pendurados por

fios invisíveis.

E há um momento espantoso: Todos os dias, antes do dia começar, antes do

mercado abrir, antes que as ofertas comecem, há um momento de confusão: O dinheiro

está calado, ainda não falou. As suas decisões estão retidas, suspensas, pousadas, prontas.

Toda a gente sabe que o mundo não irá fazer tudo hoje: se for produzido alimento para as

crianças a passar fome, então algumas óperas não serão representadas; se certas

representações forem, de facto, oferecidas, então não será produzido alimento, e as

crianças morrerão.

Arrasto-me até à janela – não tem grades – e ponho a cabeça de fora. Gosto de

choramingar ao vento quente. Mas sinto a presença de um amigo atrás de mim, sentado

no meu beliche, a fumar com calma – e esperem – é o tal guarda! E portanto eu não

consigo deixar de falar impulsivamente e dizer, Olhe, eu sou um ser humano! Sim, claro

que quero ter um bom ordenado. O que é que pensa que é um ser humano? Acontece que

um ser humano é uma desprotegida criaturinha serpenteante, uma criaturinha esfolada

!32
sem uma carapaça ou uma pele ou pêlo sequer, lançado assim na terra como um olho

acabado de arrancar da órbita, como uma ostra descascada a tentar arrastar-se pelo chão.

Precisamos de construir as nossas próprias carapaças – sim, sapatos, cadeiras, paredes,

chãos, e por amor de Deus, sim, um confortozinho, um consolozinho. Porque, ai Jesus –

vocês sabem, vocês sabem, nós queríamos ser felizes, queríamos que as nossas vidas

fossem absolutamente magníficas. Ansiámos durante tanto tempo por uma certa noite

maravilhosa num certo hotel maravilhoso, um certo pequeno-almoço maravilhoso

apresentado num tabuleiro – ansiámos, como cães ofegantes, a babarem-se no tapete –

pelo modo como daríamos prazer àqueles que amámos com os nossos beijos na cama,

pelo modo como daríamos prazer aos nossos pais com os nossos grandes feitos, pelo

modo como daríamos prazer aos nossos filhos com brinquedos e surpresas. Mas estava

tudo errado: nunca esteve mesmo certo: o hotel, o pequeno-almoço, o que aconteceu na

cama, os nossos pais, os nossos filhos – e portanto sim, precisamos de conforto,

precisamos de consolo, precisamos de boa comida, precisamos de coisas boas para vestir,

precisamos de belos quadros, filmes, peças de teatro, passeios no campo, garrafas de

vinho. Nunca há suficiente conforto, nunca suficiente consolo.

Eu faço tudo o que é possível. Tento ser simpático. Tento ser descontraído,

interessante, engraçado. Conto histórias interessantes às pessoas. Conto anedotas ao

porteiro, todas as manhãs, ao funcionário do parque de estacionamento, todas as manhãs.

Tento ser divertido sempre que posso, para ajudar os meus amigos a aguentar o dia.

Escrevo bilhetinhos às pessoas de que gosto quando aprecio os artigos que escreveram ou

as suas interpretações no teatro. Quando um grupo de pessoas, numa festa, fazia

!33
comentários desagradáveis sobre homens-sanduíche, desviei a conversa para outro

assunto, porque a minha amiga Monica estava-se a sentir desconfortável, que o pai dela

trabalha como homem-sanduíche.

O beliche não tem nada, excepto o livro, mas as páginas do livro escorrem sangue

quando eu pego nele, encharcando-me a roupa, pingando o chão. Há ainda o prefácio –

tudo o que aconteceu antes de eu nascer. O voluptuoso campo que me foi oferecido –

como é que me foi oferecido mesmo esse, e não o que era negro e árido? Sim, aconteceu

assim porque antes de eu ter nascido, os campos foram rateados, e alguns desses campos

foram reunidos.

Não pelo acaso, não por obra do destino. Os campos foram reunidos um a um, por

ladrões, por assassinos. Ao longo dos anos, ao longo de séculos, noite após noite, facas a

brilhar, gargantas cortadas, uma e outra vez, até que, uma bela manhã de Natal,

acordámos e, orgulhosos, os nossos pais mostraram-nos os campos deslumbrantes,

resplandecentes, encharcados de sangue que agora eram nossos. Cultivem, disseram eles,

economizem tudo o que arrancarem da terra, guardem, poupem, depois dêem aos vossos

filhos a encosta seguinte, o vale seguinte. De cada vantagem, retira mais. Produz, cultiva,

conserva, guarda. Vai em frente até teres tudo. Os outros hão-de ficar sempre para trás,

recuar, dar-te o que tu queres ou vender-te o que tu queres pelo preço que tu queres. Não

têm escolha, porque são doentes e fracos. Tornaram-se “os pobres”.

E o livro continua, anos, séculos, até que chega o momento em que os nossos pais

dizem, o tempo do rateio chegou ao fim. Nós temos o que precisamos – a nossa posição

bem defendida de todos os lados. Agora, finalmente, pode-se congelar tudo, tal como

!34
está. A violência pode parar. A partir de agora, acabaram-se os roubos, acabaram-se as

mortes. A partir deste momento, um silêncio eterno, a ordem jurídica.

Portanto, nós temos tudo, mas há uma dificuldade que não conseguimos mesmo

ultrapassar, uma maldição: não conseguimos escapar à nossa ligação com os pobres.

Nós precisamos dos pobres. Sem os pobres para apanharem a fruta das árvores,

para tratarem do excremento debaixo da terra, para darem banho aos nossos bebés no dia

em que eles nascem, nós não poderíamos existir. Sem os pobres para fazerem o trabalho

horrível, nós gastaríamos as nossas vidas a fazer o trabalho horrível. Se os pobres não

fossem pobres, se os pobres fossem pagos da maneira que nós somos pagos, nós não nos

poderíamos dar ao luxo de comprar uma maçã, uma camisa, não nos poderíamos dar ao

luxo de fazer uma viagem, passar uma noite numa pousada numa cidade próxima. Mas o

horror é que os pobres crescem por todo o lado, como musgo, como erva. E nós nunca

podemos esquecer o tempo em que eles eram donos da terra. Nunca podemos esquecer a

morte das famílias deles, aquelas juras de vingança gritadas tão alto naquelas salas cheias

de sangue e tripas. E os pobres não esquecem. Alimentam-se da raiva. Comem raiva.

Querem erguer-se e acabar connosco, limpar-nos da superfície da Terra o mais rápido que

puderem.

E portanto, no nosso mundo congelado, no nosso mundo calado, nós temos de

falar com os pobres. Falar, ouvir, clarificar, explicar. Eles querem uma mudança. E

portanto nós dizemos, Sim. Mudança. Mas não uma mudança violenta. Nada de roubo,

nada de revolta, nada de vingança. Em vez disso, dêem ouvidos à ideia de uma mudança

gradual. Uma mudança que vos ajude, mas que não nos afecte. Moralidade. Lei. Mudança

!35
gradual. Nós explicamos isso tudo: um contrato com duas partes: nós damo-vos coisas,

muitas coisas, mas em troca vocês têm de aceitar que não têm direito a simplesmente tirar

aquilo que querem. Nós vamos dar-vos coisas maravilhosas. Sentem-se, esperem, não

tentem agarrar. – A coisa mais importante é ter paciência, esperar. Nós vamos dar-vos

muito muito mais do que vocês conseguem ganhar agora, mas há certas coisas que têm de

acontecer primeiro – são estas as coisas pelas quais temos de esperar. Primeiro, temos de

fazer mais e produzir mais, para que haja mais disponível para nós darmos. De outra

forma, se nós vos damos mais, ficamos com menos. Quando fizermos mais e

produzirmos mais, todos podemos ter mais – parte do aumento pode ir para vocês. Mas a

outra coisa é, assim que haja mais, temos de garantir que a moralidade prevalece. A

moralidade é a chave. O ano passado, fizemos mais e produzimos mais, mas não vos

demos mais. Todo o aumento ficou para nós. Isso foi errado. Aconteceu a mesma coisa no

anterior, e no ano antes disso. Temos de convencer toda a gente a aceitar a moralidade e,

no próximo ano, dar-vos parte do aumento.

Portanto temos todos de esperar. E, enquanto esperamos, temos de ter cuidado.

Porque nós sabemos como é que vocês são. Sabemos que há alguns que são violentos,

aqueles que não vão esperar. Esses são os destruidores. Os filhos deles estão a morrer,

doentes – sem remédios, sem comida, nada para pôr nos pés, nenhum lugar para viver, a

vomitar pelas ruas. Esses são os que estão bêbados de raiva, com a sua luxúria de

vingança. Nós sabemos o que é que eles planearam. Já imaginámos mil vezes isso tudo.

Imaginámo-lo todo o santo dia. Aquele barulho na porta – aquele estranho “crac” – o

barulho de alguma coisa a estilhaçar-se – depois eles arrombam a fechadura e entram a

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correr aos berros, tiram-nos de onde nós estamos reunidos, à volta da mesa familiar, a

gozar a nossa refeição, tiram os nossos velhos pais para fora da casa de banho, tiram os

pequeninos das suas camas, depois alinham-nos todos juntos no hall, dão-nos estaladas,

dão-nos pontapés, amaldiçoam-nos, gritam-nos na cara, os nossos pais a sangrar, os

nossos filhos a sangrar, eles a tirar as roupas dos nossos filhos dos armários, os

brinquedos das estantes, a arrancar as fotografias das paredes. O que é que nos vão fazer?

perguntamos uns aos outros. O quê? – vão dar todas as casas às pessoas que agora vivem

na rua?

Depois histórias terríveis – lojas destruídas, matanças fortuitas, um novo emprego

dado ao velho professor: limpar casas de banho na estação de caminho-de-ferro.

Parece impossível – será possível que isso tenha acontecido? Uma multidão de

criminosos – ou desempregados broncos – pessoas que há um ano estavam a morrer à

fome nos bairros de lata? Eles é que vão tomar conta das fábricas agora, das escolas, de

tudo, de todo o país, de todo o mundo?

Temos de evitar que isso aconteça, embora os violentos já estejam por toda a

parte, a ensinar aos pobres que o actual estado de coisas não é obra de Deus, que o mundo

pode ser gerido para benefício deles. E portanto nós temos de criar uma sala de aula

especial para os pobres, para ensinar aos pobres algumas lições sangrentas do passado –

todos os crimes cometidos pelos rebeldes violentos, pelos seguidores de Marx. Enfiar-

lhes lições de História pela garganta abaixo. História, História. Os crimes. A opressão. A

fome. Os desastres. Ensinar aos pobres que não devem nunca tentar conquistar o poder

para eles próprios, porque o governo dos pobres será sempre incompetente, e será sempre

!37
cruel. Os pobres são sanguinários. Ignorantes. Não têm as qualificações necessárias. Para

bem deles, isso não pode acontecer nunca. E eles têm de perceber que os sonhadores, os

idealistas, esses que dizem que amam os pobres, no fim tornar-se-ão todos odiosos

assassinos, e esses que afirmam poder criar algo melhor acabarão sempre por criar algo

pior. Os pobres têm de perceber estas lições fundamentais, estes capítulos da História. E

se não os perceberem, têm de ser levados todos para fora e ser fuzilados. Desatenção ou

falta de compreensão não podem ser permitidas.

E nos lugares onde descobrirmos que andam a escapar-se à sala de aula, temos de

avisar os pobres que até os inocentes irão sofrer. Não podemos aceitar violência contra os

símbolos da lei, os soldados, a polícia. Temos de matar aqueles que cometem esses

crimes. Mas se a violência se prolonga por muito tempo, aqueles a quem já matámos as

irmãs e os irmãos mais velhos podem estar tão cheios de raiva que não têm medo da

morte. E para controlar essas pessoas, podemos ter de ir mais longe – cortar-lhes as

línguas, cortar-lhes as caras, forçá-los a ver-nos torturar os pais, ver os soldados violar-

lhes os filhos. É a única maneira de controlar pessoas que não têm medo da morte.

E, portanto, nós vamos ensinar aos pobres que sim, sim, nós vamos dar-lhes

coisas, mas nós é que decidimos quanto é que vamos dar, e quando, porque não vamos

dar-lhes tudo.

E agora o livrinho horrível está de novo no Capítulo Um, e eu leio-o outra vez, e o

Capítulo Dois, e leio-o outra vez, e os bichos da água ainda cobrem o chão, a correr

formando os mesmos padrões complicados, mas eu afasto alguns para o lado e deito-me

no meio deles. Escuto o martelar estranho nos meus ouvidos.

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E é como se uma voz tipo vómito me estivesse a subir devagar pela garganta.

Pára!

Têm sido todos tão bons para mim.

Não. Ouve. Quero-te dizer uma coisa. Interpretaste tudo mal. A velha que se

curvava e te dava pãezinhos de açúcar não te amava. Tu não eras amado como achavas.

Claro que eu ainda sinto uma afeição por mim próprio – alguém tão feliz, querido,

engraçado? –

Não, estou-te a tentar dizer que as pessoas te odeiam. Estou-te a tentar explicar

que há pessoas que te odeiam.

Porque é que pensas que todos eles te amam? E o que é que pensas que eles amam

em ti? O que és tu? Não há nenhum charme em ti, não há nada de gracioso, nada que

valha a pena. És apenas um fanático implacável, insuportável. Sim, o comando que

rasteja toda a noite pela lama é muito muito menos fanático do que tu. Olha para ti. Olha.

Entras tão direitinho na tua cozinha todas as manhãs, aproximas-te do armário. Abres o

armário, e tiras o café, o café que esperas encontrar na prateleira. E tem de estar lá! E se

uma manhã não está lá – oh, a histeria! – o mundo inteiro vai ter de pagar! A mera ideia

de inesperado, privação inesperada, e começas-te a contorcer, a entrar em pânico, com

palpitações. Aquela falta de ar! Ouve a tua voz ao telefone, ouve esse tom que te toma

conta da voz quando estás a falar com um dos teus amigos íntimos e falas da tua vida e

usas aquelas expressões – “o que eu preciso para viver...” – “a quantia de que eu preciso

só para viver...”. És queridinho nessa altura? És engraçado nessa altura? Esse tom falso –

“a quantia de que eu preciso...” – solene, reservado, sem teatro – o tom da histeria, o tom

!39
do fanático – bem, sim, claro – faz sentido. Dás-te conta da tua situação. Sem um lugar

para viver, sem roupa, sem dinheiro, tu serias como eles, serias eles, serias o que eles são

– serias o sem-abrigo, o sem-conforto. Portanto, claro, tu sabes isso, farás qualquer coisa.

Não há limites para o que farás. Sem o dinheiro, a tua cara tornar-se-á o focinho de um

rato, as tuas mãos serão patas – afiadas, ágeis, prontas para arranhar, prontas para rasgar.

Claro, algumas vezes tu pensas no sofrimento dos pobres. – Deitado na cama,

sentes uma compaixão, sussurras para a almofada algumas palavras de esperança: Em

breve todos vocês terão remédios para os vossos filhos, em breve um lar. O mundo sem

coração, as pessoas sem coração, como a minha vizinha Jean, abrirão alas em breve, e

uma mudança gradual irá acontecer – como aconteceu – na Holanda – no século

dezanove...

Mas durante este compasso de espera, espera, esta interminável espera pela

mudança gradual, eles vêm um a um bater à tua porta e lamentam-se muito e imploram a

tua ajuda. E tu dizes, Levem-nos para longe daqui. Não suporto este permanente bater à

porta, estas pessoas que vêm com estas histórias ridículas, que afirmam ser a minha irmã,

que afirmam ser o meu irmão, durante todo o dia, dia após dia. E portanto todas essas

pessoas são levadas dali, e são postas a viver em sítios onde são provocadas, são gozadas,

levam sermões, fazem pouco delas, até que algumas começam a delirar irracionalmente e

até a rir, malvadamente, e depois as suas malvadezas enchem de horror absolutamente

toda a gente. E cada uma dessas pessoas malvadas é agarrada pelos ombros e mantida

presa, e a cabeça delas é rapada, e elas são atadas a uma cadeira, e são executadas, e és tu

aquele por quem elas estão a ser executadas, tal como foste sempre tu aquele sobre quem

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todas essas pessoas falavam há tantos anos quando não paravam de dizer, “Pela saúde dos

nossos filhos, temos de fazer isso, temos de pegar fogo a esta cidade, este celeiro, este

hospital, estas florestas, estes animais, este arroz, este mel”, tal como és tu ainda, por

causa do quanto gostas desses lençóis brancos lavados e da música e dos bailarinos e das

chamadas telefónicas, por quem todas essas pessoas de rostos radiantes estão esta noite a

ser torturadas, estão esta noite a morrer.

Lembras-te daquele dia na escola quando estavas a brincar com aquelas outras

três crianças, e a professora apareceu na sala com quatro bolinhos e deu-os todos, todos

os quatro bolinhos, àquele miudinho chamado Arthur, e nenhum a ti ou aos teus outros

dois amigos? Bem, primeiro, vocês os quatro ficaram apenas pasmados. Nesse primeiro

instante, todos os quatro souberam que o que tinha acontecido era injusto, louco. Mas

depois a tua amiga Ella tentou dizer uma gracinha, e o Arthur ficou furioso e bateu-lhe, e

depois foi para um canto e comeu os bolos todos. Foi um exemplo de alguém a safar-se

com alguma coisa.

E a tua vida é outro exemplo. É a vida de alguém que se safou com alguma coisa.

E, no entanto, o teu fanatismo é tão extremado que não permite que esse pensamento te

entre na cabeça.

Certas coisas não podem ser postas em causa. O café tem de estar lá na prateleira,

e nenhum pensamento pode entrar na tua cabeça se entrar em conflito com a presunção de

que tu és uma boa pessoa. Portanto, vai, pensa – pensa livremente – pensa no que

quiseres. Pensa na tua saúde, noutras pessoas, naqueles que te tratam mal, pensa nas

formas complicadas como te maltratas a ti próprio, pensa nas crianças com doenças

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incuráveis que foram entrevistadas naquela revista. Pensa em todas as coisas que

mostram que és boa pessoa, que mostram que aqueles que são como tu são boas pessoas

– os teus amigos, os teus entes queridos, e todas essas pessoas pelo mundo fora, em todos

os países, que te lembram de ti próprio – pessoas de boa-vontade que têm algum

dinheirinho mas acreditam sinceramente numa vida melhor para todos. Pensa em todas as

coisas que fizeste que foram bondosas, pensa na bondade de todas as tuas intenções. E se

alguma coisa que fizeste teve um mau resultado, pensa nos bons motivos por detrás da

acção – sorri, faz que sim com a cabeça, compreende, aceita. Não fales com pessoas que

não achem que és boa pessoa. Não leias livros, não leias artigos, de escritores que não

pensem que és boa pessoa, que não pensem que aqueles que são como tu são boas

pessoas. Os escritos deles baseiam-se numa falsa presunção. São enviesados, distorcidos.

O teu pensamento tem de se fundar na verdade, a verdade de que és uma boa pessoa.

Ora, uma boa pessoa não pode ser uma pessoa que se safou com alguma coisa.

Uma boa pessoa não pode ter aquilo que não é apropriado ter. E esta compreensão de ti

mesmo dá-te as bases para uma perspectiva do mundo. E assim podes olhar para a

maneira como o mundo funciona, e claro, há muitas muitas coisas que com certeza te

perturbam – a situação do teu amigo Knut, que adora Wagner, mas que é tão mal pago

pela editora dele que nem sequer se pode permitir ir ver as óperas que ama tão

profundamente, ou todos os exemplos de desumanidade do homem que vês na televisão

noite após noite, como aquele terrível capataz naquela plantação de borracha no sul da

Malásia – mas, ainda assim, podes dizer que a maneira como o mundo funciona não é

injusta, no essencial, porque tu recebeste uma porção de coisas que sabes ser apropriada

!42
para ti. E se é apropriado para ti teres a porção de coisas que de facto tens, e é apropriado

para todas as pessoas que são como tu por todo o mundo terem a porção que elas têm,

isso quer dizer que não é inapropriado para todos os outros terem a porção que sobra. Tu

sabes que o que tens é o que mereces, e isso quer dizer que o que eles têm é o que eles

merecem. Eles têm o que é apropriado terem. E tens de admitir, a empregada do quarto é

repugnante, ignorante – não é inapropriado que ela viva no inferno, porque para ti ela

parece mesmo uma criatura infernal. Passa a vida a chafurdar na imundície, a fazer coisas

nojentas, coisas asquerosas. Consegues imaginá-la a regressar à noite a um apartamento

cintilante? – ou a sair mais tarde para assistir a um espectáculo especialmente

meticuloso? Não – impossível. O que é que ela faria com uma bela escova, um belo

pente? Não saberia apreciá-los. O que é que ela faria com belos óleos de banho, belas

toalhas, belo sabonete? Consegues imaginá-la a servir aos filhos belos jantares, com

carnudos vegetais verdes, polpudos tomates vermelhos? Não – é apropriado para a

empregada do quarto ir para casa à noite para aquela porta específica naquela rua

específica, tal como é apropriado para ti e para os teus amigos passarem a vida a decidir

que produtos é que gostariam de comprar e a defender elevados padrões de desempenho

artístico. A maneira como o mundo funciona não é injusta, no essencial, portanto as

pessoas que querem manter o mundo são basicamente boas, e as que querem desmanchá-

lo, as que roubam nas ruas, os ladrões, os destruidores, são basicamente más. Tu – por

causa dos teus comentários inteligentes sobre os filmes em cartaz e das mensagens

atenciosas que escreveste à tia da tua mãe, e por causa de teres ficado tão perturbado

quando o empregado daquele restaurante trouxe, mesmo até à mesa, a lagosta viva que ia

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pôr a ferver na cozinha para o teu jantar – tu tens de ser definido como o tipo de ser

humano mais elevado e mais admirável, enquanto que a Juana, a seguidora de Marx que,

movida por uma devoção desesperada pelo povo que ama, oferece o corpo à faca do

torturador, pode apenas ser definida como o tipo de ser humano mais baixo e mais

repreensível, um tipo que merece a pena de morte.

Eu estou a flutuar no espaço, seguro a uma grossa barra de ferro. Muito lá em

baixo, há uma floresta. O calor vai subindo. As minhas mãos estão tão húmidas que mal

conseguem manter-se agarradas à barra. Tenho muito medo de cair, mas uma voz diz,

Larga-te da barra. Eu seguro-me com toda a força, mas a voz diz, Não te vais magoar.

Vais cair são e salvo na bela floresta.

Largo-me, flutuo através do espaço. Não paro de pensar, a esta hora já devia ter

aterrado, mas ainda estou a cair. Alguns ramos arranham-me as bochechas quase

suavemente enquanto caio. Caio tão devagar. A floresta conservada num silêncio vivo.

Agora o chão da casa de banho, a vela, a tremeluzir. Pego nela, levanto-me, saio

da casa de banho.

Agora estou de volta ao quarto, a apoiar-me à parede. Pouso a vela numa mesinha.

Uma brisa entra pela janela aberta. Puxo uma cadeira para junto da janela e sento-me.

Na rua, muito longe, um homem grita. A terra relaxa. Na cadeira eléctrica o

prisioneiro sofreu e morreu, e os guardas levaram-no para fora, para a sepultura dele. E

sim – ali – há uma aguada de azul na parede negra do céu, uma sugestão de azul.

É a hora mais fresca das vinte e quatro. Olho pela janela, e na brisa fresca lembro-

me de uma vez ter sido uma criança numa bela cidade, rodeada de esperança. E sinto

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tamanha alegria – a frescura da brisa – que penso para comigo se me posso aliviar por um

instante do meu fardo de mentiras, de mentir – simplesmente pousá-lo no chão junto a

mim. Tento imaginar como é que isso seria. Só por um breve instante, enquanto a brisa

sopra por aqui dentro, simplesmente pousá-lo, porque me sinto tão alegre, louco, nu, livre

que não quero que nada me restrinja, nada de nada.

Meu Deus, doem-me todos os músculos do corpo com o constante esforço de

mentir. Estou torcido, contorcido – mentindo do minuto em que me levanto, todos os

dias, até ao minuto em que vou para a cama, e mesmo quando durmo penso que estou a

mentir. Não consigo parar, porque a verdade está em todo o lado, está à vista –

Ouve, meu amor. Deixa lá isso acontecer, deixa lá isso acontecer só desta vez, só

esta noite, e depois amanhã voltamos à mentira de novo, como se isto nunca tivesse

acontecido. Vamos fazer de conta que isto nunca aconteceu. Vamos esquecer que isto

aconteceu.

Tudo bem, começa. Começa. Diz.

A vida que levo é irremediavelmente corrupta. Não tem justificação. Muitas vezes

penso que há aquela justificação que eu anotei algures, num papelinho qualquer, que não

me consigo lembrar do que está no papelinho, mas que ele está guardado na gaveta de

uma secretária qualquer num quarto qualquer de um lugar qualquer onde vivi. Mas a

verdade é que nunca hei-de encontrar esse papelinho, porque não há papelinho nenhum,

não existe.

Não há papelinho nenhum que justifique o que a pedinte tem e o que eu tenho. De

pé, nu, ao lado da pedinte – não há nenhuma diferença entre ela e eu a não ser uma

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diferença de sortes. Na verdade eu não mereço ter mil vezes mais do que tem a pedinte.

Não mereço ter mais duas côdeas de pão.

E depois, também isto: Os meus amigos e eu nunca fomos bem-intencionados e

bondosos. Os sádicos não eram sábios piedosos, tentando dar o seu melhor pela

humanidade. Deitar fogo aos campos, deitar fogo às crianças, não foram tentativas mal

direccionadas de fazer o bem. Cobardes que se sentam nas salas de conferências ou nos

salões de Estado a denunciar os crimes dos revolucionários não são tão admiráveis

quanto os agricultores e as freiras que correram tão prontamente em direcção ao vento,

que correram silenciosamente em direcção à morte. Aqueles que eu matei não eram as

piores pessoas de todos esses lugares; na verdade, eram as melhores.

Não está a mudar nada na vida dos pobres. Não há nenhuma mudança. A mudança

gradual não está a acontecer. Não vai acontecer. Era só uma coisa de que falávamos.

A compaixão que, no meu coração, eu sinto pelos pobres não muda a vida dos

pobres. A minha crença fervorosa na mudança gradual não muda a vida dos pobres. Pais

que ensinam bons valores aos filhos não mudam a vida dos pobres. Artistas que criam

obras de arte que inspiram compaixão e bons valores não mudam a vida dos pobres.

Cidadãos inspirados por artistas e pais a adoptar bons valores e a sentir compaixão pelos

pobres e a votar em políticos honestos que acreditam fervorosamente na mudança gradual

não mudam a vida dos pobres, porque políticos honestos que acreditam fervorosamente

na mudança gradual não mudam a vida dos pobres.

A situação da empregada do quarto não é temporária. Foi-lhe passada uma

sentença para toda a vida: ela deve fazer as limpezas para mim e dormir no lixo. Não, ela

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deve fazer as limpezas para mim hoje, e eu devo fazer as limpezas para ela amanhã, ou eu

devo fazer as limpezas para ela no próximo ano. Não, ela deve dormir no lixo esta noite,

e eu devo dormir no lixo amanhã à noite, ou noutra noite qualquer. Não. A sentença diz

que ela há-de servir, e depois no dia seguinte ela há-de servir, e depois ela há-de, e ela

há-de, sem parar até à morte.

Mas – coisa mais estranha – embora os termos da existência da empregada do

quarto tenham ficado assentes quando ela nasceu, os termos da minha existência não

ficaram assentes quando eu nasci.

Eu digo, Não é culpa minha ter nascido com melhor sorte na vida do que a

empregada do quarto. Não é culpa minha eu ter um dinheirinho e ela não.

Mas eu não “tenho” o dinheiro da maneira que eu “tenho” dois pés. O dinheiro

não faz parte de mim. O facto de eu o ter não é um facto sobre mim como a cor da minha

pele. Através de uma série de acontecimentos, o dinheiro veio ter comigo, mas devotar a

minha vida a defender a posse de algo que veio ter comigo não é um destino inescapável.

Guardar o dinheiro é apenas uma escolha que eu faço, uma escolha que eu faço todos os

dias. Eu podia perfeitamente pôr um fim a todo este laborioso número. Se há pessoas com

fome, dou-lhes comida. Se tenho mais do que outros, partilho o que tenho até não ter

mais do que eles. Vivo modestamente. Desisto de tudo. Torno-me pobre, eu próprio.

Sempre gostei de pessoas que sabem apreciar uma boa refeição, pessoas que

esperam vir a assistir a bons espectáculos. Claro que sim. Todas as pessoas que eu alguma

vez conheci são pessoas dessas, eu próprio sempre fui uma pessoa dessas. Sempre achei

que é muito mais agradável gostar de pessoas que estão contentes. Mas o que é engraçado

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é que todas as pessoas podem estar. Eu batalhei duramente para conseguir o que tenho.

Mas a minha batalha foi sempre contra outros. De facto, tenho estado a batalhar contra

aqueles que são pobres, e do ponto de vista daqueles que são pobres, claro que eu sou o

mesmo que a minha vizinha Jean. Sou exactamente o mesmo, e não estou do lado deles.

E isso, também, é uma escolha que eu faço. Eu podia mudar de lado. Podia

decidir lutar do outro lado. A vida de um traidor? Trair a minha gente? Caminhar em

direcção ao perigo? Muito difícil, mas uma escolha possível. Se eu pudesse aceitar a

dificuldade, aceitar o desconforto – porque não o sofrimento, a prisão, e até – ? –

Apago a vela e deslizo pelo quarto até à minha bela cama. Debaixo do cobertor,

de cabeça na almofada, deslizo até ao sono. Na semana que vem, casa.

O que será casa? A minha cama. A minha mesa-de-cabeceira. E em cima da mesa

– o quê? Em cima da mesa – o quê? – sangue – morte – um fragmento de osso – um

fragmento – um bocado – de um cérebro humano – uma mão amputada. – Deixem que

tudo o que é sujo, tudo o que é vil, venha pousar junto da minha cama, onde um dia tive o

candeeiro e o relógio, livros, cartas, presentes de anos e, deixadas dos presentes, fitas de

cores vivas. Perdoem-me. Perdoem-me. Eu sei que me perdoam. Ainda estou a cair.

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(tradução de Jacinto Lucas Pires)

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