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O Taxista

Sou de mentira, sou coisa inventada.


Na sensibilidade informe da fantasia: turbinas; apreensões conotativas de nonsense;
medidores pairando feito gnomos, feito inconsciências.
Sirvo-me, somente, do próprio movimento.

O parque central amanhece em clima festeiro. Ligo o rádio do carro, fecho as janelas.
Deixo o dia premer, o dia é bigorna: Tábua, bigorna, céu aberto nos calcanhares.
Elis Regina cantando Folhas Secas. Trânsito regular, dimensões brancas, laranjas, azul
celeste em silhuetas de vento douradas.
Dirijo meu táxi quatro horas, falo telegraficamente com os passageiros.
Não sei quanto tempo passou desde o último naco de piripaque (aumento demais o que
não sei). Trabalho amores de sal, trabalho para gula de conchas espiraladas por
concupiscência e perdição. Trabalho mentalmente possibilidades fecundas. As rodas giram,
me sinto terrivelmente engaiolado. As raízes crescem e a planta carnívora come a gaiola,
libertando uma joaninha.
Almoço cedo e como pouco. Alimento-me mais por obrigação. Acho que sou um bicho
teimoso.

Atividades congênitas viram o sustento da corda bamba esticada. Bebo café numa
varandinha ao ar livre. Encaro o café restante, a mancha no fundo da xícara. A mancha
repetida da abstração, a mancha repetida da superstição astrologia, a mancha que nos lê de
algum modo qual um livro de colorir. Pago a conta, dou-me com a rua e ligo o motor. Pingo
colírio nos olhos devido a conjuntivite. Minha camisa havaiana é um arraso.

Quase esfolo o carro num caminhão (isso foi pouco antes do turno acabar): Homens
como eu precisam espiar a morte sem previsão nenhuma do abraço. No entanto seguimos
pela primavera.
Ajudei uma moça a usar uma máquina de venda de refrigerantes e quase esmurrei a
máquina. Seu filho me pareceu hostil, mostrou-me a língua e arrastou a mulher para o outro
lado da calçada. Vandalismo elegante. Terrorismo poético.
Fiquei vagando pelo bairro onde moro por longo período. Algo me intriga pelo andar.
Algo me intriga no som, nos volantes minúsculos dos ossos, na mensagem magnética dos
raios neuronais da coordenação seiva.
Fecho as persianas para evitar pernilongos. A lua parece o cookie que mastigo com leite
antes de dormir. Há algum tempo um colega me mostrou o poema Ismália, acho que todos
deviam ler.
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Recebi uma bateria de exames. Todos dizem que estou normal. Não me sinto normal.
Tive um sonho em que algo me empurrava para as mandíbulas de um poço-artesiano
luminoso.
Parecia o metrô. A eletricidade do metrô.

O relógio-termômetro denunciava treze graus mas não fazia muito frio. Não me importo
muito com o clima, porém gosto de ambientes arborizados.
Plantei algumas sementes de margarida no quintal.
Um colega pediu para que consertasse os freios de seu carro com ele; tentei
preguiçosamente ajudá-lo, não conseguimos.
Jantei numa cantina: Tortelli ao molho de manjericão.
Infelizmente, o patrão recusou o pedido de folga que deixei em sua mesa há uns meses.
Trabalho sem vontade, meus dedos doem, meus pés têm bolhas.
Para variar, um rapaz chato tentou puxar conversa. Tentou, tentou, meia-hora tentando.
“Tá nessa a quanto tempo?” “Sete anos” “Uma pancada de experiência! Tem um
fósforo?” “Tenho, mas é proibido fumar aqui dentro.” “Ah, sem problemas. Se sente feliz
dirigindo o dia todo?”, liguei o rádio e não respondi, “Pode me deixar aqui, pego o ônibus”
Espreitei um espetáculo de mímica na esquina de casa. Dei dois reais para o ator.
O cano do banheiro entupiu. Não achei a chave inglesa, não achei a máscara de oxigênio.
Pretendo dormir no quintal.

A casa infestou. Persigo ratos com uma vassoura. Estraçalho baratas com uma chinela. É
um faroeste injusto, são muitos parasitas contra outro que é somente maior. Talvez a
dedetização amenize a Normandia que se tornou minha casa (só espero que cheguem antes
que as criaturas me lancem pela janela). No trabalho, um pneu dianteiro furou e precisei
fazer hora extra. Ganhei gorjeta de um pugilista sem trocar meia-dúzia de palavras. Ás
vezes nos enxergamos em espelhos realmente excêntricos que, na verdade, não passam da
gente em partes incalculáveis ou num jogo de cubismo semiótico. O olhar é fechadura de
significados. Abro a porta. Descubro que preciso reparar o cano do banheiro com urgência
ou me mudar de vez para o quintal. Não sei se os ratos e baratas sumiram por causa do
veneno ou por pena. O cano continua solto (santos me protejam).

Chamei o encanador e ele demorou trinta minutos no banheiro e me cobrou o


equivalente a duas horas de meu ordenado. "Reconstrução, peças novas, produtos
mirabolantes". Conhecimento gerando lucro para minhas narinas (junto aos aromatizantes)
e meu tempo vago. Tinha uma conta com a empresa do homem, acumulei mais dívida. Sorri
amarelo.
As rondas policiais aumentaram. Pouparei o cantil com conteúdo âmbar.
Minha poltrona ficou empapada pelo calor. Lembrete: comprar manta com bolinhas de
madeira.
A nave acoplada é uma condição fortuita. Os estandartes, faroletes, transeuntes,
escândalos, sombras, faixas, automatos. Dirijo em modo automático, em modo charminho
chérri. A retórica fulmina minha sede por novidade. Pêsames íntimos. Temos que nos
ajudar. E eu principalmente já que moro sozinho.

Estacionei na firma. O supervisor geral me requisitou presença.


"Você é o motorista mais desleixado dessa companhia. Você chega fedendo, não apara o
cabelo, não se barbeia, não se veste bem. Está com a aparência de um hippie, de um
vagabundo. Trata os clientes terrivelmente mal, é resmungão e está sempre antipático. Sim,
já tivemos dezenas de reclamações nesse sentido. Você precisa entrar no paradigma, vir
limpinho, exercitar gentileza. Só continuará conosco bem vestido, de banho tomado, de
barba feita, de sorriso no rosto. Só continuará como chofer-colarinho, chofer-exemplo. A
partir de amanhã, a partir de amanhã... Agora saia para o almoço e tire uma tarde pra pensar
e fazer tudo que falei. O que tá esperando com essa cara de princesa abalada? Tá vendo
esse monte de papéis? Não sumirá sozinho da minha mesa"
As cadeiras ficam em prédios. Os donos das cadeiras são mestres em empurrar. Mestres
em moldar.
Sete anos, sete anos e nenhum elogio.
Quer dizer, alguns. Não sejamos injustos.

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Sobre a ordem hierárquica: Um mercenário com terno, uma secretária ocupada com
estojos de maquiagem, um otário que sabe dirigir (nesse caso eu), amarrar os sapatos e
anuir.
Rapei a cabeça, arranquei minhas preciosas costeletas e deixei o rosto liso como um
prato chinês. Terminei um livreto de Sudoku (voltarei aos HQs com heróis viciados em
new-wave). Recarreguei o frasco metálico, descarreguei o frasco metálico.
A tarde foi aprazível: achei uma moeda de cinco centavos, ninguém me pediu esmola,
ninguém me perturbou na multidão, nenhuma companhia telefônica ligou.
Encontrei um charuto de baunilha embaixo da cama, fiz uma sopa instantânea de cebola,
estourei as bolhas dos pés.
Lembrete: achar minha carapuça pela manhã.

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Os compositores boiam harmônicos em vibrações enquanto os acomodo no berço


auditivo. João Gilberto, Nara Leão, Tom Zé, Edu Lobo, Fernanda Takai.
Vou me cobrindo com lençóis. Avestruz órfão de cafofos amarfanhados. Expulso por
idade digna de censura. O expectador, o crepúsculo, o prego deitado no marasmo com
meios lentos de se locomover na areia. O balão de ar que quase encosta o teto e murcha. O
nau grávido de intervalos.
Braços abertos ante a janela cinza.
Fiquei meia-hora com uma bolsa de água fria na têmpora.
Lego, ácaro, papel higiênico toldando as meias. Creme para os cascões, pente, roupa
quase nova.
Não dormi. Carentes de táxi, comprem capacetes e trevos de quatro folhas.
Acho que ando meio daltônico; as faixas amarelas estão ficando laranjas paulatinamente,
as faixas brancas estão ficando cinzas. Os pedais parecem perfurar a sola dos sapatos. Os
pedais parecem arames estrídulos. Voz rouca a minha.
Recebi dispensa de duas semanas, já é uma folga.
Quebrei o cofrinho bancário. Comprarei passagem para o campo.
Braços abertos ante a janela cinza, braços abertos ante expectativas de oásis
clandestinos.

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Não peguei ônibus cheio, aproveitei a madrugada para fazer as malas e achar meu RG.
Documentos reunidos. Documentos que me reduzem a mais um fracassado na tabela
demográfica de classificação humana controlada pelos segredos dos poderosos. Controlada
por mais e mais fracasso. Documentos-apoio-sem-contato, documentos-chaveiros do
Grande Irmão. Documentos sem justificativa, sem privacidade, sem volta. Documentos-
coleira-espacial. Documentos quase físicos, introjetados em computadores que jamais terei
permissão de bisbilhotar (e que me bisbilhotam ao seu bel-prazer). Computadores CIA
limitada.
Encarei os documentos atentamente com interrogação.
Vaguei a rodoviária, olhei bem os guichês e a disponibilidade de municípios. Bebi leite
gelado e limitei o breakfest à potência de cigarros de filtro vermelho.
Levei mapas comigo, apesar de viajar sem destino. Minha carência psicológica é saber o
ponto de meu ser sobre a imensidão. Ninguém cuidará da casa (estremeço só em pensar).

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Paisagens amarelo-manga, verde-garrafa, verde-claro, verde-água, marrom-avelã.


Paisagens circunflexoras da cuca. Montanhas, sibilo, êxtase. O ônibus anda paulatinamente,
desliza como patins mazelados em graxa fina. A tarde e o crepúsculo caem ainda acesos
nessa sensibilidade.
Adeus infantarias de fumaça de carbono.

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Chegar é tão gostoso, chegar cansado, suado, ensandecido pela osmose atmosférica. Não
respirava há tanto tempo! Não tinha deveres Meus há tanto tempo! Tempo, tempo, tempo:
caixão mais que informal.
Aqui passei a acreditar mais no espírito.
Resolvi pegar um táxi e conversar com um irmão de rabugentice. Não foi o que
ocorreu. Na verdade, uma criaturinha lépida e proseadora deu a carona e arrancou meu
preconceito. Perguntei onde arrumar uma pensão barata. O molecote me levou à pensão
Fonte Gelada e disse que passaria bons bocados. Veremos se a tal fonte gelada não é, na
realidade, um balde de água fria.
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Desenterro minha privacidade com túnicas versáteis de equívoco. Não dormi muito, o
tempo de sono se impoem com a rasteira das pálpebras. Com mensagens explícitas,
magnéticas de estar acordado. Repetição, repetição e me surpreendo a encher copos de
pingado no frio estático da noite. A subliminação de querer abrir o mundo mais cedo
interrompe a flacidez onírica e preenche o caderninho de sonhos, o caderninho de ruptura
do relógio biológico, a barriga de uma razão pisoteada. Desafiar o instinto é viciar a
natureza mais retrógrada. Invejo os rígidos que dormem menos de quatro horas e desfiam
as amarras como se tivessem a dose exata de apagamento. Invejo os sobrenaturais, o
pernalonga e o homem que inventou o trombone. Os invetarados pregadores de atenção, em
maior ou menor nível.
Saí para caminhar antes dos passarinhos para voar; antes dos velhos que desfilam
imponentemente para seus compromissos diários depois de acordar cedo. Ás vezes careço
dos cílios dormentes conflituando os meus pesadamente pesados. Dos cílios pedantes,
arbitrários, lampejando os meus, há muito escarniçantes por camuflação, profundidades.
Parei um instante para amarrar os cadarços e fechar o zíper do molenton. Reduzi o
passo, bocejei com tédio; todas as cidades parecem tão diferentes, tão iguais, tão adaptadas
a si e a ninguém. Questão de alimento de plástico e alteregos. Questão de sopas baratas e
narcóticos caros.
Almocei numa cachoeira, sob o espetáculo das águas e de crianças traquinas. Aqui a paz
chega a dar comichões. Ainda não ouvi um grito, não vi uma briga, não soube de uma
manifestação qualquer. Os jornais tratam de concursos de bolo e corridas-de-saco. Onde
esse lugar esconde seus tumores? Onde estão os mendigos, os descontrolados, os
enérgicos? Um dia, santo Deus!, e meu sangue parece a única coisa que me queima a
fronte, que me grafita os remotos, que me diverge sem docilidades.
Acho que tudo que precisava era de folga, mas agora descobri que não: Precisava de paz.

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Arregacei as mangas do suéter, desandei por bailes, por bingos e por outros parques que
sombreei na aclamação acomodada de turista. Visitei o cinema, os pôsteres com odor
azinhavre, recebi flyers de campos de mini-golf, proibi-me de decidir e continuo passeando;
entro nos alojamentos mais serenos, nas catedrais grandes e nas pequenas, descubro atalhos
e descubro que nunca passa das dez da noite. Vi charretes e muitos, muitos artistas
espalhados por feirinhas, e muitas feirinhas espalhadas por onde há multidões. Conversei
com tanta gente e é folgadamente viável apreender eventos ao vivo. Basta pagar um chope
para algum aposentado ou abordar colegiais alegres. A cidade tem um clube do tiro,
superstições fortes, vendedoras de tapioca, mitômanos por vocação e poetas, muitos poetas
populares. A cidade me dá dejávus e deixa a novidade varada, cheia de boreais minúsculas,
inatingíveis, passageiras.
Aluguei uma bicicleta, visitei dois alambiques e experimentei uma ou duas doses.
Comprei uma revista de contos, entrei na pensão com cara exultante, tranquei a porta e
cochilei.
Empanturrei-me numa lanchonete, numa confeitaria de praça, numa barraquinha de
batidas de coco, maracujá, chocolate, morango. Faço a digestão na rede que quase encosta
no chão num vaivem hipnótico. Levantei no meio da madrugada entre o gorjear das corujas,
li meia dúzia de contos, voltei para a drágea de tecidos e contei ovelhas.

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Minha postura é tabu. Os pavões de butique me dão nojo, mas os ratos de brechó são
legais. Tenho uma pedra de estimação e uma agulha incandescente para acnes. Não faço
sucesso nenhum, detesto o escarrante gerundismo das hipóteses falsas, verborragia de
políticos, os casos de mesmice, os casos dos heróis por autodecreto. De pé-de-rã à chocalho
sem acústica. A razão virou "society", e bobos-da-corte não faltam. Espetaculam o banal
enquanto salivam hedonismo. Da padaria da esquina até o Resort do Capo Capone. Do
motelzinho barato até a varanda de casa. Há sempre alguém para ser amigo, confidente,
exemplo, amante. O detalhe é que isso é um porre quando você tá de mal com a vida. Porre,
enclave, e um tanto de egoísmo.
Prestatividade de luxo, onde coloco o aviso de que puxei o alçapão e pretendo cair
sozinho abraçado à vida? Não, não pretendo cair e muito menos derrubar ninguém. Onde
posso estender a faixa de Não Perturbe, Não Toque A Campainha, se vier com terceiras
intenções? Já tentei no meio do meu nariz mas não funcionou. Andei farto dos pregadores
de tudo. Das inusitadas novelas que me deram um papel que jamais faria, pois não aceito.
Quero nadar contra essa maré cotidiana mas no rio Tietê é impossível.

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Dessa vez, o dia veio como granada sem pino. Acordei cedo, requentado de ressaca,
vadio de detecções. Um monte de rufadas na porta (pedi uma pensão barata, não um
manicômio em maquete, bom enfatizar). As rufadas me retesaram, folga por folga não é
descanso. É oportunidade de se falir com visualização estrita do hoje.
Eu girei a maçaneta. Um investigador disse que o cara de cima estava vendendo erva.
Sim, o cara do banjo. O cara que chorava e fazia questão de deprimir a madrugada de todos
os não providos de tímpano.
Respondi o interrogatório de duas horas e não menti. Meu bafo também não. Disse ao
investigador que iria embora no final da tarde. Ele pediu meu endereço, meu número de
telefone, etc, etc. Passei tudo certinho, mas dei o telefone de uma mercearia por engano que
logo depois constatei.
Preparei a valise, devolvi a bicicleta. Como levei minhas bolsas, não sei explicar.
Aprendi a não viajar mais na base do unidunitê.
Meus pés pioraram. Eu os piorei. Mas depois melhora, é assim que as coisas são.

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Cada segmento enegrece a tintura das silhuetas. A arquitetura da afobação montada. A


raça virou liquidificador, virou alquimia de guarda roupas. De bidês, de camarins. Careca,
moicano, escovinha, chiquinha, rabo-de-cavalo, dread, black, boné de levantador dos
Lakers, boné de lavador de pratos. Chanel, tigelinha, boina, nerd-cult, panamá, chapéu-
coco. E seus ombros e seus tremiliques e seus bodes espiatórios e suas pulseiras e seus
turbantes contemporâneos e suas meias coladas, babadas e seus bolsos escondidos.
Tanta variedade, por que não ir pelos contrastes bola de cristal?
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O motorista é o carroceiro da posteridade movimentando seu baú pela crosta rebentada


por papelada, canteiros, rochas e pedágios boquiabertos. Ele é a bateria do autorama. O tato
superficial dos lenitivos, do céu ônix, da córnea gasta. É o movimentar de marchas, botões,
ícones, cabos e pedaleiros. O suscitar contagioso do vendaval na dimensão invisível. O cara
legal ou o pego pelo destino e que pode dobrar sua espinha dorsal por lhe passar o isqueiro
numa via imprópria.
'Foi algum acidente', passa por sua cabeça estriada de poeira e placas. Por seu crânio
crispado de preocupações e atenção. De patrulhas com, muitas vezes, inocentes no
bagageiro e sirenes em Fígaro. De curvas e contra-curvas, sonorizadores e lombadas,
catracas e cancelas, guichês e cornetas ensurdecedoras. E túneis e morros. E tráfego e
vazio. Os motoristas são metamorfoseados pelo trânsito da mente e do coração e do espírito
e do punho. Vivem o jargão da lebre e do jabuti. O rastro de uma continuação mal atada da
invencionice de Henry Ford. A locomoção estruturada na amídala e no furacão.
Cheguei à rodoviária da capital, o motorista que guiou o busão era um cara bacana. A
simultaneidade de saída e entrada nas plataformas me aflige. O tagarelar dos carburadores,
a substituição imediata-periódica de bondes fadigados, etecetera e tal.
Comprei balas de hortelã ao invés de charuto dessa vez.

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O mundo enobrece o orfanato das rebeliões. As gentalhas de irrelevância ao olhar


faminto do topo das cadeias: Os lobistas. Os galos de favelas no crime e na crueza.
Honestidade é baboseira de leigo. Novidades cansam. O conflito expande a vigilância. A
monocromatização do tempo. Asilo sem verdade completa. Película fria. Película morta de
sobras caninas. Noção rasteira de esgotar vidas. Noção engrandecedora de putridões. É
preciso jogar água sobre tudo isso.
Reformar, reescrever, vencer esse mundo.
Hoje não conheci absolutamente nada que não havia visto antes. Isso é realmente
devastador. Apenas passado fosco. Apenas um futuro antecipadamente esfaqueado por
gatunos. Só que, se depender de mim, esses mesmos gatunos terão seus sacos de moedas de
prata e ouro roubados por milhões de pessoas honestas. Hoje a canção não me invadiu as
avenidas de velocípedes metálicos. Simplesmente uma pena se moveu de modo distinto na
minha frente. Será fulminância contemporânea, piegas? Farta da idiossincrasia e de si
mesma? O tremular é apenas um murmúrio ausente na minha falta de curiosidade;
instigância venosa, intimidante vão no oco.
Depois de escrever isso fiquei curioso.
Veja bem: Os pés parecem em melhor estado. Não florescem mais feridas. E a
monotonia não representa nada. Vai-se, flutua, cai.

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Crivo meu rancor na peleja. Os térreis dos apartamentos tomados. A espreita quase
óssea, tamanho o sacrifício que tenho em me transportar de um lado a outro. Transportar a
visão como quem expande uma lona de sombras. Transtorno fotográfico, libertação
purulenta. Sem espaço atrás e nenhuma ideia. Quem gosta de congestionamento não tem
ideia de algo novo.
Entre as amoreiras e os transeuntes. Levados à glicose, ao delírio, às molecagens, à
pobreza. Dos químicos com instrumentos cozidos na perturbação. Refestalo moringas de
bonecos platinados pelo compasso adverso. Picho muros sem uma sílaba a pronunciar, a
procriar, a pagar a conta. Todavia, isso mudou de repente. Cansei de contar os dias como
quem tenta retardá-los e estafa pouco a pouco. Toco meu berimbau no jardim. Deixo as
preocupações se preocuparem sozinhas.

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Eram quatro da tarde e eu deixara um passageiro no Zológico Municipal. Uma sensação


esquisita me levou a olhar a grade que intersecciona o banco de passageiros com meu
banco. Essa grade tem uma placa de vidro como apoio. Uma placa limpa e fina. Olhei-a
bem fundo e vi um neurastenico em completo desfoque, um homem amargo que não
compreende ao certo a ligação toda que o levou até ali. Que o carcomeu a qualidade. O
mesmo sujeito de vinte anos atrás, com barba por fazer, cabelos desfiados, olhos redondos,
nariz adunco. Minha fisionomia me frustrava. Parecia mesmo um invólucro de dores,
caprichos, vagabundagem. Um Saturno bonachão abandonado por seus seguidores. Um
Saturno bonachão que abandonou seus seguidores. Uma proposição de tilt, blecaute
permanente. Uma extenção abatida por falta de faltas. Por comprometimento ao desistido.
De falas atadas ao silêncio e procuras atrofiadas no quase. Eu era de uma idoneidade
confiscada e de um medo abissal. Eu era da terra virulenta e usava pouco as rédeas. Não era
brincadeira ou chantagem do irreal. Não era narcisismo pasteurizado. Narcisismo num túnel
lamacento. Agora eu via uma luzinha, valha-me São Jorje.
Deixei o trambolho de aço na firma e fui para estação de ônibus quase à noite. Um
passageiro me ligou no celular e fez um convite. Era um blues-bar muito fera, com essas
gravuras ianques, com essas luzes líquidas e neóns gelados, e música e oxigênio etílico.
Iriam uns conhecidos que larguei para trás. Que não via por divergências sociais e de
horário. Armei meu mutirão de contradizeres, inseguranças e fui o primeiro a chegar. Pedi
logo uísque; organizando minha ressaca futura, meu vacante irrestrito de tédio. Não havia o
que fazer a não ser olhar para aquelas pessoas. Bancar o observador boêmio e tentar se
agradar ao máximo possível com a trilha sonora. Sentia-me errante na cadeira, uma peça
de ar num quebra-cabeça. A substância de tudo, a insignificância de tudo. Estava sendo
megalomaníaco, pensei. As mulheres usavam esses vestidos vintage e usavam maquiagem
desleixada de propósito. Algumas com chapéus espalhafatosos, outras com pulseiras de
pirata; essa esquisita maneira de se vestir como se fosse a última noite. Os viciados em
blues não estavam nem aí, pareciam uns mergulhadores de brechó. Eu tinha alteridade com
esses pilantras. Assemelhava-me bem no comportamento e na rudeza. Quem se apega
demais à algo, deixa o senso no distúrbio. Apaixonante mesmo não é o contentamento
contínuo e a felicidade imediata.
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É uma tortura de dentro para fora. Deixa minha fala despigmentada. Passo o lenço na
remela do cílios. Vick Vuporub no peito. Camisa do pijama larga. Tento desenhar alguma
coisa. Um ermitão, um daqueles protestadores colocando uma planta no rifle do soldado
que irá para o Vietnã logo. Quem será que era mais ofendido naqueles cinturões
desencarados? Ouço as tubulações embaixo do prédio. Sei que vou cochilar e acordar para
pegar um copo de água. Depois vou dormir mais pois o silêncio vai me abençoar. Então
lavo a louça, estouro pipoca, abro o jornal e, meio aborrecido, vou à varanda. Ponho as
mãos na grade e vago de janela em janela, acesas ou não. Uma selva de arranha-céus
educados. Bate vento, batem sinetas aqui ou ali por alarmes frágeis, o gosto de pipoca.
Perambulo até o telefone, ligo para minha mãe só para dizer que estou bem, que tranquei a
porta e fechei bem as persianas. Pareço um cobaia obediente numa caixa qualquer. Mas não
sou. Sou mais. Enveredando decisões muito imprevisíveis a ponto de contatar o
imprevisível. Parece tudo tão embaraçado em perspectiva. Mas não é simples assim. Morar
sozinho é incursionar sem estribeira. Engalfinhamentos de todos os lados, potências livres
mastigando os cômodos como se ouvissem cada bloco da parede. Certeza de erro, certeza
de truques iguais, mania de gestos invisíveis e mania de sabedorias intraduzidas. É um fio
de pólen no ouro negro da suficiência. Uma natureza de amor. A bobagem só reservada
especialmente para o tédio. O autovírus dependurado nos minutos. E ainda bem. Concretizo
o cochilo e tenho uma noite assim, confusamente boa.
Esse desdém cambiante. Esse firmamento de lantejoulas faltosas. Esse destino que
avançou para o invisível e levou na laringe da volúpia sua própria poeira. Esse destino que
me deixou para trás. Ah, agasalhos que tolhem as carnes mais frias. Ah, preenchimentos
desertores da autocompreensão. Ah, confins ancestrais num girassol de conhaque. Um
antagonismo desfutilizado de razões. Uma balela de descarte. Ah, destino que não me
deixou para trás. Sete notas musicais. Na ferida das sete cores cardiais. Vôos que se perdem
vastamente no obscuro dos silêncios. Que nos desorientam a ponto de jamais imaginarmos
o desdobramento da trajetória que nos é inerente. E eu sou o único réu do meu silêncio,
companheiro? Quem poderá me convencer do contrário? A paixão por desventuras? Sim,
ela também se adaptou à desordem. Sim, talvez eu não seja um existencialista ferrado. A
propósito, qual número você calça, destino? Qual seu nexo? Quem foi o articulador dos
meus marcapassos sem setas? Suspeito que foi o mesmo vácuo imbuído de fazer minhas
listas de leitmotiv. Entretanto, isso é uma sugestão. Listas de mãos. Minhas listas de Não-
destino. E prefiro que as espirais me deixem entontecido, prefiro um curso sem reta de
longa distância. Prefiro o oblíquo das curvas menos explícitas. Vantagens de isopor,
simbologias de fresagem, varíolas de costume. Ídolatrias de cera no abismo da minha
perspectiva cansada. Não é isso? Não é essa a sina dos que se emancipam da esteira?
Destino, escorreguei das suas mãos e você desapareceu por todas as direções repelentes.
Por todos os mistérios em que não vou estar. Porque agora estou aqui no banco de motorista
me lamentando após o almoço, mas depois eu vou trabalhar. E, destino, deixa que eu faço o
resto. Não sozinho, dando uma mãozinha.
Sou um pombo correio de seres humanos que levam mensagens. Faço o serviço de
locomoção deles e vou em busca do próximo que precisa de endereço. Dirijo rápido,
embora ligue pra segurança, o importante é saber usar o radar de raio infravermelho no
mapa que as pessoas pedem pra seguir. O melhor, o importante é ir, chegar e ganhar o
money. Quando me pedem o atalho, eu sigo. A única coisa que uma máquina não pode
substituir em um ser-humano é o seu sentir.

25

A placa luminosa onde está escrito táxi apagou, já passa da meia noite.

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