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Paletó

Passando pelo supermercado, atum, aliche, líquido com lactobacilos potentes, suco, azeite,
barrilzinho de chope, provolone, ovos de codorna, energético, salgadinhos, nozes, pistache,
bagres, vinhos e vinagres. Alguns itens no carrinho, outros só na imaginação.

Tento não passar inconvenientes com a lua ao pintá-la quadrada e apegada às venezianas e
nuvens largas e largadas, distantes, dengosas. Recolho os dedos e a semântica obscura que
levo. Recolho o lume de mim e da mesa e a faixa que diz para não apontar ou aportar,
sacolas na cozinha, castiçais sem comando, quase lágrimas da ausência de talheres iguais,
da flor solitária no vasinho de vidro que representa uma perda, antes fosse um ganho...

... A rebeldia é um filme em fita cassete, uma rua proibida aonde vai um buquê hippie
nadando pelos lábios rachados do vento qual um punhal pausado, um retrato quebrado na
prateleira da sala, palito de dente na boca de um marinheiro numa taberna de segunda, uma
vertigem no carrasco atrás das docas, um capricho de gato ou ratoeira, uma perseguição
policial, a banalidade de errar sem remorso ou encanações, um muro de tijolos lixados com
alguém que espera no peito que bate dentro da capa de chuva.

A conveniência me dá condição, narcisismo e condução; uma retaliação de papéis que vira


origamis, nouvélle vague, oleodutos, e, pelos dispositivos intuitivos das pálpebras, artigos,
cílios e disparos, acréscimos. Ponho, aí, os conjuntos na lavanderia e recarrego a Polaroid
antes de ligar a torneira da banheira e me lavar de um dia de trabalho, atribuições de aulas,
mofos de móveis e tribulações de terapia com hora marcada, consciência fraca, franquezas
e rojões, maneiras e estadias de alongar-se na preguiça como cobra; sangue, riso e
fantoches placebos: muita pulseira para pouco pulsar e é nisso que dá a indução diária do
corpo que puxa a cortina: rodamoinhos no ralo, a rotina de artista plástico e forasteiro com
cookies de desculpa nas mãos e bolsos e indo pelo corredor buscar a toalha esquecida há
muito tempo atrás da geladeira após ter sumido.

Capoto de cansaço, durante a madrugada acordo de um pesadelo, bebo um copo de leite e


como arroz doce com canela para me acalmar e volto para debaixo dos edredons. Ás vezes
é esquisito ver as estrelas. Bocejo para terminar babando no acolhimento (necessário) do
travesseiro, fiel compadre.

Não há ciclo inteiro com os prazeres desativados, pétalas murcham para outras ganharem
vivacidade e a janela. A fervura excessiva do café faz a língua queimar e adoecer por três
dias, a gula cobra alto seu preço (e é ainda pior se resolvemos dar a ela um desconto).
Contemplo os lados da rua ao atravessar sobrecarregado de telas, tintas, quinquilharias e
um coice no coração de artista tatuado com carga de caneta-tinteiro. Cavoco inspiração dos
setores mais inóspitos da eletricidade contemporânea da realidade provisória e a encontro
no cantinho que a cachaça não alcança: fazendo uma aquarela no ônibus só vidros e
passagens.

A enrolação diária é uma barra de ferro para mim: Não vendo nada e pago o aluguel nos
quarenta minutos do segundo tempo tendo, de raspão, quase que voltar a morar na casa dos
meus pais; tenho a cara limpa demais para fazer empréstimos, quase tanto quanto um vaso
chinês...

Devoro farofa com pizza marguerita amanhecida de almoço, desmarco da agenda o


compromisso de uma paquera. Entendo-me e me desentendo com um programa de
auditório a respeito da pílula do dia seguinte; xereta que sou. Que dia seguinte que nada,
difícil mesmo é o de hoje, o nunca e o sempre. E o tantão de dias entre a gente.

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