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“Rilla”

Rilla acordou debruçada sobre a fronha e também o colchão num hotel


decrépito de uma viela qualquer, pôs a cabeça na pia até sentir menos
enxaqueca, encheu a banheira branca até o topo com a água mais gelada
que conseguiu e acendeu um comprido cigarro. Pegou uma lata de coca da
geladeira, despiu-se com algum desprezo e submergiu pelo maior tempo
que pode nas águas glaciais da banheirinha de cem dólares. Só então pode
dissipar a dor de cabeça que sentia e voltar um pouco a si para recordar
como chegara naquele abismo. Bebeu outro trago de coca e esfumou o que
ainda restava do cigarro. Tudo começara há uns dez anos enquanto ainda
era mais uma patricinha da classe média da cidade e andava toda
desengonçada por um mundinho cor de rosa próprio. Acabara de terminar
com Cal, um ser que vivia à margem tempo carregando as encomendas do
mercado e passando o velho esfregão pelos corredores tanto sob seus pés
quanto aquém de seus pensamentos... Ela estava meio apática com tudo,
sentia-se dentro de um maquinário imenso... Sendo apenas mais uma
válvula ou engrenagem para que a máquina toda prosseguisse. Que é a
vida senão uma versão menos simplista disso?

Preparava-se com zelo para mais um daqueles bailezinhos que a escola


promovia todos os anos e no qual ela ficava se entediando e comendo uns
petiscos com ponche e falando baboseiras sobre maquiagem e mexericos
com as colegas. Ia comparecer um tal de Argos, estilista convidado para o
evento apenas para que a reitoria arrecadasse mais às custas de um nome.
Recordou como jamais bocejara tanto na vida até aquele comecinho de
noite do baile. Mas, de certa forma, e detestava admitir, era aquela noite
boba que mudaria sua vida irremediavelmente. Argos chegou, formou-se
um aglomerado em torno dele, a música parou e o salão parecia todo
concentrado na figura que ia e vinha requebrando e falando atrás da voz
mais melosa que os tímpanos de Rilla já haviam captado até então.
Olhava, mas não saia da mesa por arrogância. Finalmente perguntou à
amiga que estava ao seu lado:

— Quem é esse sujeito esquisito?

— Só o maior estilista desde o tempo dos hominídeos, em que aqueles


brutamontes andavam apenas com os pelos do corpo como roupa.

— Que exagero! – Redarguiu Rilla com ceticismo.

— Não é exagero, esse cara ganhou tantos prêmios que mal caberiam
nesse salão. É mais rico que... – Foi o suficiente.

O diretor pegou o microfone de seu vice e, do palco, anunciou que Argos


escolheria uma das garotas do colégio para lançar como modelo. Tratava-
se do preenchimento de algumas lacunas na passarela... A música
recomeçou, as garotas pareciam envolvidas no sonho de se tornarem
modelo. Rilla ficou no seu canto espiando a banda, bebericando de vez em
quando do seu ponche e escutando a amiga, que não parava de falar que o
tal estilista não desgrudava os olhos dela.

— É sério, veja: Ele não cansa de olhar para mim! – Dizia a menina com a
voz embargada de emoção.

— Sei — brincou Rilla.

III

Rilla, nesse instante, visualizou todas as caricaturas de seu colégio (que


conhecia tão bem, não por popularidade... Apenas por passar seu tempo
observando-as e rindo às custa delas ou com elas. Na verdade era a mais
tímida garota que aquele lugar conhecera.) Era um cenário de se
espantar, dividido em dois imensos círculos: Um circundava o tal estilista,
o outro circundava Chande... Um mulherengo bastante popular. Seu pai
era um dos banqueiros mais ricos do Estado e o filho era quem esbanjava
sua fortuna com luxos e coisas de marca.

Novamente o diretor subiu ao palco e anunciou que Argos já havia


escolhido sua mais nova modelo. Todos bradaram, assobiaram e
aplaudiram, menos Rilla, Chande e os distraídos de plantão. Argos já
estava com o microfone e olhava fixamente para o lugar em que Rilla e sua
enérgica amiga estavam sentadas. Começou seu discurso apenas quando
todos perceberam sua petulância e aquietaram. Por um momento se pode
escutar as gotinhas de chuva que caiam na rua, era um barulho
agradável.

— Bem, boa noite a todos... É um prazer estar aqui. Agradeço a todos os


funcionários e alunos pelo acolhimento. Bem, todos sabem o motivo de
minha presença aqui hoje. Como o senhor diretor mencionou, estou aqui
no intuito de escolher uma dessas belas moças para trabalhar para mim
como modelo, com um contrato de um ano no mínimo. É um projeto que
protelo há anos e concretizo agora, a moça escolhida é... Você —
Apontando em direção à mesa de Rilla e sua amiga, a amiga de Rilla
levantou-se instantaneamente... Gabando-se com os olhos de como estava
certa e preparando-se para se dirigir ao palco, Argos a impediu, abanando
a mão rapidamente — Não... A moça ao seu lado, por favor suba até aqui...

Depois tudo foi qual flash ou relâmpago ou tornozelos. Rilla teve sua
apatia mergulhada no mundo dos ricos e famosos, esqueceu-se de como
achava todo aquele universo efêmero e mesquinho. Foi sugada pelos
ambientes, pelas condutas ríspidas e fugazes. Tornou-se uma grande
modelo e não parou de subir. Decolou na carreira junto a Argos, adquiriu
afeição pelo que fazia. Vislumbrou-se como milhões de outros com as
suavidades dos famosos. Começou a ostentar, fazia e desfazia amigos
como quem compra acessórios e se desfaz deles. A vida era de ouro, valia
uma fortuna... Viagens, cruzeiros, táticas de avareza para manter as Grifes
coladas nela. Persuasão, arrogância... Tudo chegou como um verdadeiro
raio de diamantes... Numa carruagem. Com um unicórnio.
Rilla aprendeu a conviver naquele mundo tão rápido quanto um coiote
atravessa um bando de cordeiros em busca de uma presa apetitosa, já não
se deslumbrava com muitas coisas. Já havia, nesse ponto, feito de tudo e
aventurado-se em tudo. Apenas acomodou-se e obcecou-se em manter
todo seu dinheiro e multiplicá-lo, multiplicá-lo, multiplicá-lo. A avareza
vicia como qualquer outra tendência num indivíduo absorvido e engajado
em algo. E como se achou boa em ser uma “aparência do sucesso”, um
cartaz ambulante, uma foto de uma revista qualquer, tornou-se
exatamente isso.

E como era fácil praticar demagogia! Fazia um trabalho anual de três


milhões de dólares em qualquer área, doava quinze mil para uma
instituição qualquer e era reverenciada como se Deus a tivesse enviado à
terra dos homens maus. E ainda saia em todas as revistas e na capa da
Times para tirar uma. Naturalmente arrumara alguns contatos
importantes na imprensa que a mantinham num patamar incorruptível...
Ria-se da tenacidade que tinha em acreditar em coisas que logicamente
não são feitas sem intenções abtrusas, incoesas. De sua realidade fechada
e banal. Ria-se e debochava enfim de seu passado criança, jardim de
infância, ginásio, brinquedos, livros, cinema, amigos, vestibular. Ela e
Argos se tornaram exímios magnatas juntos, se o propagandismo dissesse
que uma roupa de Argos era a melhor, ela se tornava automaticamente a
melhor. E Rilla aprendeu rápido os segredos do capitalismo, pousava para
todas as grifes milionárias, derrubava a concorrência feminina como um
ás de guerra derruba um jatinho comercial desarmado. Conhecia todos do
seu ramo e podia subornar todos eles (tão raramente com dinheiro...). A
única coisa que ainda era etérea em sua vida era sua beleza exterior. Sua
imagem superficial era o adverso de sua índole, seu corpo era um espelho
ao avesso de seu caráter... Mas as jovenzinhas a amavam, tornara-se um
símbolo a ser conquistado para todas elas, um patamar a ser alcançado.
Uma existência a ser concebida e adquirida.

Agia friamente se era vantajoso e lucrativo a longo prazo... “Por que não?”.
Rilla tornara-se um desses oceanos de fortuna e garbo munido
exclusivamente de seu arsenal de ambição e aparências. Foi nesse apogeu
que se relacionou com Shane (quando soube que seu pai havia faturado
150 milhões de dólares com capital estrangeiro investido em alguns países
subdesenvolvidos). Seduzí-lo foi o mais fácil de tudo e o fez sem aparentar
interesses financeiros, fê-lo apenas para apalpar a herança de seu pai. Ele
sequer desconfiou, já estava cego naquela altura de seu valezinho de
encantos e mimos. Algumas festas, roupas insinuantes, conversas afáveis
e maquiagem e o “investimento” de Rilla estava concretizado e corria
prosperamente, casaram-se. As revistas paparazzis os elegeram o casal do
ano, o pai de Shane, que desconfiava de tudo desde o princípio, foi
temporariamente fisgado com as finíssimas conversas de Rilla.

Para Rilla, o mundo se esquivara como um lacaio se esquiva para seu amo.
Passeava pela vida deixando seus vestígios de ego esmigalhados nos fardos
dos outros, esses “outros” que não pertenciam às suas dimensões
empíricas de responsabilidade vital.

VI

Seu universo começou a esmorecer tão rápido quanto o tempo que


demorara para ser erigido: O tempo de uma sessão de estúdio, um crucial
efeito em cadeia. Lampejos de sucessivas frustrações para seu indicador
ferido. Tudo devido a um erro, erro gravíssimo em sua cautela. Quando
estamos no pico de uma colina estamos mais propícios a escorregar do que
quando estamos em sua base diz a lei de murphy. Um lampejo de
desatenção e estamos de volta à estaca zero. E tudo, absolutamente tudo,
transcorre como um gigantesco derrubar de dominós, tão selvagem e
arrasador quanto um terremoto e tão inflexível quanto uma rocha. Um
nocaute.

Rilla permitiu que sua ambição se tornasse descomunal, maior que ela,
mais necessária que ela. Rilla estava ausente dentro de um recôndito que
desenvolvia suas conjecturas e tiranias por si só. Seu corpo fora arrancado
por um espectro que ainda não conhecera jamais em tal proporção.

Rilla roubaria o pai de Shane e separar-se-ia do marido com metade dos


bens antes de ser descoberta. Shane a via como um reduto de conforto e
aninho... mas Rilla sairia de fininho do relacionamento com metade da
opulência de bens conquistada “dignamente” pelo banqueiro.

Contratou dois espiões e arquitetou uma ardilosa armadilha de situações


comuns para o banqueiro. Ficou semanas esquematizando o plano, tão
absorta que causou suspeitas no magnata. Com quem antes convivia
regularmente... Seus diálogos com ele se transformaram, seus assuntos
metamorfosearam. Era outra pessoa, mudara tão simplesmente com ele
como um camaleão.Seus colóquios rumavam para veredas diferentes, suas
gentilezas se exauriam... O perceptivo banqueiro resolveu em poucos dias
incumbir alguns de seus funcionários mais eficientes de contra-espionar
todos os passos e interesses de Rilla. Descobriu a existência dos indivíduos
que investigavam as senhas principais de suas contas em alguns dias de
vigília aguçada, e os planos de Rilla logo foram desvendados por meio de
outros subornos. Convenceu os espiões a se unirem a ele para capturar
Rilla em flagrante de tal modo que ela não escapasse de uma condenação
por tentativa de desvio de dinheiro de pessoa física e jurídica em troca de
não delatá-los à lei, com os abonados subornos nos bolsos eles
concordaram com a mesma simplicidade de atos de quem escova os dentes
ou leva o cachorro para passear.

VII
O arguto banqueiro, através dos espiões, conseguiu uma gravação em
vídeo de Rilla com informações a respeito do trabalho a ser feito antes do
crime. Todas as pegadas que deveriam dar e toda infiltração que deveriam
priorizar, foi suficiente para que ela fosse condenada e trancafiada por
cinco anos. A legislação só demora com casos ínfimos. Rilla perdeu quase
todo seu dinheiro com indenizações absurdas conferidas ao advogado e ao
banqueiro, o divórcio foi concedido de imediato sob circunstancias
evidentes e sem divisão de bens.

Foi enviada para um presídio de segurança máxima, onde cumpriu sua


pena e conheceu toda a escória pseudo-urbana que fora varrida das ruas.
Pequenas traficantes, assaltantes, gatunas, golpistas... Na prisão se
reergueu e adquiriu o mesmo respeito que tivera fora das grades, após
alguns meses acomodou-se e sentiu como se tivesse encontrado seu
verdadeiro ambiente. Contudo, sua augusta beleza se deteriorou em richas
e confrontos de gangues nas celas. Não admitia ser contrariada, sua frieza
não podia ser descongelada simplesmente.

Os cinco anos se passaram vagarosamente, Rilla aproveitava o tempo livre


que tinha para jogar xadrez, baralho e ler livros de moda, finanças e de
filosofia.

Quando se tira a liberdade de uma criatura, por mais cruel e inexorável


que essa criatura seja, retêm-se perversamente seu “alguém”, o “alguém”
exato que a discerne de outros para enclausurá-lo entre quatro tapumes
de reminiscências e sombras. Sobrevive à prisão quem impede que a
prisão irrompa seu âmago, sua mente e seu equilíbrio instintivo de espírito
livre.

VIII

Rilla refletiu nisso tudo antes de se levantar da água fria, que a


consumava e impregnava com memórias ignotas e admoestações
retroagidas. .

Desistira de se auto-destruir, enxugou-se com a toalha estirada na parede


do banheiro, vestiu sua melhor roupa e se encaminhou para o banco...
Precisava de um talão de cheques, marcaria um encontro com Argos em
algum restaurante do centro.

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