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Para todos os homens e mulheres que

passaram pelas portas do Rainbow Corner.


Obrigada por sua inspiração, sua
coragem e seu sacrifício.
AGRADECIMENTOS

Eu incomodei muitas pessoas com conversas bobas a respeito do Rainbow


Corner e de como um dia escreveria um romance sobre ele. Obrigada,
Julie Mayhew, Anna Carey e Sarah Franklin por terem suportado o fardo.
Agradeço a Sam Baker pelas reuniões com sua pizza épica e prosecco. E
Sophie Wilson e Sarah Bailey pela amabilidade compreensiva, além de
Lesley Lawson pelas conversas para o livro sobre a Parceria
Transpacífico.
Muitíssimos agradecimentos à minha agente, Karolina Sutton, por me
fazer chegar até o final, e também a Norah Perkins, Lucy Morris, Melissa
Pimentel e todos da Curtis Brown.
Muito obrigada à minha editora, Manpreet Grewal, por sua edição
incisiva, rigorosa e atenciosa, que realmente transformou este livro no
que eu queria que fosse. (Que nunca mais voltemos a falar das vinte mil
palavras que ela me fez cortar.)
E agradeço a Kate Hodges. Sempre teremos o nosso interesse na
capela.
PRÓLOGO

Londres, setembro de 1943

A estação de King’s Cross era cavernosa, maior do que uma catedral, e


estava cheia de gente.
Eram oito da noite, o que provavelmente não era tão tarde em Londres,
onde havia casas noturnas e restaurantes com toalhas de linho fino e
baldes prateados de champanhe, onde homens de ternos escuros e
mulheres com estolas de pele jantavam depois do teatro. Em Durham, as
pessoas não perambulavam pelas ruas à noite, porque não havia para
onde ir, fora os pubs, e bem... ela não conhecia ninguém que frequentaria
um pub.
Mas ali em Londres definitivamente havia bandos de pessoas andando
apressadas, com a cabeça baixa, rosto sombrio e sério. Soldados.
Marinheiros. Cáqui e azul-marinho para onde quer que ela olhasse. Um
senhor com uma mala a cumprimentou com o chapéu ao vê-la mirar em
sua direção. Uma mulher fazia malabarismos com diversas bagagens, dois
filhos pequenos e um bebê apoiado no quadril.
Em seguida, sua atenção se voltou para duas garotas não muito mais
velhas do que ela em uniformes da Força Aérea Auxiliar Feminina, a
WAAF: penteados impecáveis, braços dados enquanto andavam depressa. A
sarja azul era quase do mesmo tom dos olhos dela, que pensou em talvez
se juntar à WAAF quando tivesse idade suficiente para ser voluntária,
embora elas não pudessem pilotar aviões, o que era uma pena, porque
aprender a pilotar um avião seria emocionante.
Quanto mais tempo permanecia ali, mais seus olhos procuravam as
pessoas que se demoravam por lá, em vez de passarem depressa. Aquelas
que se despediam com abraços muito demorados; mãos tensas apertando
ombros, soluços não de todo engolidos pelo som distante de uma banda
de metais e pela cacofonia de portas de trem se fechando. Ela desviou o
olhar de um jovem casal, o rosto da garota quase oculto pelo lenço
enquanto chorava nos braços do soldado.
De repente, ela se sentiu muito pequena e muito sozinha. Com muito
medo de colocar um pé na frente do outro, de escolher uma direção para
seguir. Não tinha nenhum lugar aonde ir com pressa, ninguém com quem
ficar por ali, e era tomada pela apavorante suspeita de que tinha
cometido um erro terrível. Ela sempre fora repreendida por ser
impetuosa, embora tivesse sido mais do que impetuosidade o que a fizera
pular no trem para Londres com o casaco de pele “para velórios” da mãe
em volta dos ombros e os dois melhores vestidos da irmã enfiados na
mala de viagem.
Àquela altura eles já deveriam ter encontrado o tolo e rancoroso
bilhete que ela prendera atrás do relógio no aparador da lareira.
Eu não beijei Cedric. Ele tentou me beijar. Acho terrível que tenham se
recusado a me deixar explicar e esperassem que eu ficasse feliz em ser
mandada de navio para os confins do mundo para me juntar às Land Girls,
as trabalhadoras do esforço de guerra, assim que fizesse minhas provas.
Bem, eu não vou. Quando estiverem lendo isto, estarei em Londres
vivendo todo tipo de aventura, em vez de passar a guerra limpando esterco
de porco, capinando campos e usando calções de veludo e botas pesadas
horríveis.
Aquele provavelmente tinha sido seu ato mais imprudente e
impetuoso. Ah, se ao menos ela tivesse parado para pensar nas
consequências de suas ações...
— Ei! Presta atenção para onde você balança essa coisa — exclamou
uma voz alta à sua esquerda.
Ela se virou e viu dois homens carregando mochilas. Eles estavam de
uniforme, mas seus trajes eram vistosos, novos, e os dois usavam os
chapéus inclinados de um jeito descontraído. Um era louro, o outro,
moreno, porém ambos eram exemplares viris de masculinidade que não
se pareciam nada com seus camaradas britânicos de pele áspera e rosto
pálido.
Eles se aproximavam dela, que ficou parada de boca aberta, pois os
dois eram daquela terra mágica das estrelas de cinema, da Broadway, das
dançarinas em roupas brilhantes e de tudo o que era bom, maravilhoso e
gloriosamente tecnicolor.
Então passaram por ela, gracejando em voz alta e entusiasmados, e o
fato de ela estar sozinha, sem destino e em um grande apuro já não
importava mais. Correu atrás deles, com a mala batendo nas pernas.
— Por favor! Ah, por favor! — gritou, tentando alcançá-los e puxar
uma das mangas de camisa cáqui. — Por favor! Preciso que vocês me
levem ao Rainbow Corner!
Londres, setembro de 2003

A garota desceu aos tropeços do trem na estação de King’s Cross e ficou lá


parada, com o olhar triste.
De alguma forma, estava em Londres, embora não faria diferença se
estivesse na África ou em algum lugar à esquerda de Marte. Nada daquilo
podia ser real.
A única coisa concreta era o maço enrolado de dinheiro tão grosso que
ela mal fechava os dedos em volta dele. Vinha segurando-o assim havia
tanto tempo que a mão estava com cãibras, e o suor reduzira as notas de
fora a uma maçaroca. Já nem parecia mais dinheiro ao toque. Nunca
parecera. Desde o momento em que o pegara, era uma bomba-relógio.
Ouviu um barulho atrás de si e se afastou apenas o suficiente para que
o homem de terno também pudesse sair do trem. Seus olhos pousaram
nas pontas dos sapatos pretos polidos dele, buracos no couro formavam
um padrão. Eram tão brilhantes que, se ela se esforçasse bem, poderia ver
o próprio reflexo. Desviou o olhar.
— Você sabe para onde está indo? — Ela nunca ouvira ninguém falar
assim, como se cada palavra importasse, e não fossem apenas coisas a
serem gritadas ou berradas.
Palavras nunca foram o forte dela. Então permaneceu em silêncio.
Não sabia o que ele queria dela. Ele, com sua voz e sapatos bonitos e o
terno — nada de bom vinha de um homem de terno, isso ela sabia.
— Para onde você quer ir?
Dessa vez, as palavras soaram fortes o bastante para fazer ela se
distanciar um passo dele. Ela passou um braço por cima da barriga.
Notou as manchas de sangue na própria camisa, não mais vermelhas,
mas secas até um tom escuro e enferrujado de marrom.
— Você conhece alguém em Londres? Entende o que eu digo? —
Houve uma pausa. — Você fala inglês? — Ela deu de ombros. — Que
Deus me ajude — murmurou ele. E quase descansou a mão no ombro
dela. Quase, mas não chegou a fazê-lo. — É melhor você vir comigo,
então.
Não era “melhor” ela fazer nada. Podia cuidar de si mesma — só que
cuidar de si mesma significava ficar o mais quieta e parada possível.
Ela nunca tinha pensado em como o mundo poderia ser. Mal podia
pensar numa vida fora daquela casa, daquele quarto, sob aquela cama
onde tinha acordado naquela manhã. No entanto, de alguma forma ela
estava em Londres sem a menor ideia de como chegara ali.
Tudo o que tinha era aquele homem que não chegava a tocá-la e falava
como se ela tivesse alguma importância.
— Vamos pegar um táxi — anunciou ele, e a mão que não chegou a
tocá-la no ombro foi recolhida, e ela começou a mover os pés
acompanhando os dele, com os dedos mais uma vez se contraindo ao
redor do maço de notas.
1

Hoje

Mesmo em Las Vegas, quando uma garota com vestido de noiva entrava
em um bar, as pessoas viravam para olhar. A noiva, sem o noivo, parecia
não notar a atenção dos outros. Foi direto até o bar, largou a mala e
sentou no banco alto ao lado de Leo.
Foi então que ele percebeu que o espanto tinha menos a ver com o
enorme vestido branco bufante e mais com a beleza dela. Leo gostava de
pensar que era imune à beleza. Passara o último ano em Los Angeles,
onde não se podia sequer comprar uma caixa de leite na mercearia do
bairro sem ver pelo menos uma mulher que gastara milhares de dólares
na aparência. Um puxãozinho aqui, um excesso de pele retirado ali.
Mas aquela mulher era tão deslumbrante que ele estava feliz por ela ter
sentado a seu lado, permitindo-lhe ver cada detalhe perfeito de seu rosto
e se maravilhar com a forma como se uniam para formar um todo
impecável. Havia alguns retoques nele, mas era tudo muito discreto —
algumas injeções, botox na medida certa, fazendo-o ainda conseguir
demonstrar emoções.
O cabelo louro-mel estava preso no alto em um lindo penteado com
trança finalizado com uma tiara. Leo podia ver pelo brilho presunçoso
das pedras, mesmo sob a fraca iluminação do bar, que a tiara era
adornada por diamantes legítimos.
Havia mais diamantes reluzindo no dedo anelar, mas nenhuma
aliança, o que podia explicar por que sua boca em forma de coração
estava curvada nos cantos. Entretanto, quando Leo conseguiu chamar sua
atenção, ela o cumprimentou erguendo desanimadamente o canto dos
lábios.
— Olá — disse ela, com um sotaque inglês muito mais carregado do
que o dele, enquanto se acomodava melhor, fazendo as grandes saias
brancas do vestido flutuarem a seu redor como pétalas.
— Olá — disse Leo e, antes que pudesse falar qualquer outra coisa, o
barman mal-humorado, que tinha demorado uma eternidade para servi-
lo, quebrou o recorde de velocidade para se colocar diante dela e esperar
ansiosamente por seu pedido.
A mulher olhou indecisa para as diversas garrafas atrás do bar.
— Já largou o marido? — perguntou o barman, e ela piscou.
— Não sou casada. — Sua voz soou neutra, indiferente. Então
gesticulou em direção à infinidade de tule e tafetá de seda a seu redor. —
As aparências enganam.
— Noiva em fuga, então? Perdeu a coragem no último minuto?
A mulher jogou os ombros para trás como se fosse perder a calma e dar
um fora nele, mas então sorriu.
Antes de fazê-lo, ela era bonita. Mas, quando sorriu de fato, e seus
olhos azuis brilharam como os diamantes de suas joias, ela ficou
estonteantemente linda demais. E tudo o que restava a Leo era tentar não
babar.
— Ah, querido — disse ela ao barman, que agora tinha parado de
fingir polir o copo que segurava. — Esse é um assunto muito entediante.
Embora ela parecesse calma ali sentada, seus ombros estavam tão
tensos que os de Leo doeram só de vê-la — como se fosse um esforço
sobre-humano se manter firme quando tudo o que queria era
desmoronar.
— Então, foi você que deu o fora ou...
Ela ergueu a mão em sinal de protesto.
— Por favor, nada mais de perguntas. Não até eu tomar uma bebida.
— O que vai beber? É por conta da casa — perguntou o barman, como
se realmente achasse que tinha uma chance, apesar do pouco cabelo
oleoso penteado em um topete deprimente, da papada no queixo e do fato
de estar polindo copos e servindo bebidas em um bar fuleiro. Ainda
assim, não se pode culpar um cara por tentar.
— Uma taça de champanhe, por favor.
Ele a encarou como se ela falasse em marciano.
— Não servimos taças de champanhe. Não tenho nenhum champanhe
aqui.
— Sério? Que estranho! — Ela se voltou para Leo e balançou a cabeça,
convidando-o a compartilhar seu espanto. Ele deu de ombros e, dessa vez,
ela o recompensou com um sorriso cúmplice, antes de se virar de novo
para o barman. — Bem, o que você tem, então, querido?
Ela se contentou com um dirty martini. Torceu o nariz ao tomar o
primeiro gole, e foi aí que o barman percebeu que ela era muita, muita
areia para seu caminhão, porque começou a cuidar de suas tigelas de
tira-gostos fora da validade e a deixou em paz.
Leo e a mulher ficaram ali sentados, em silêncio, e só quando já havia
quase terminado a bebida ela se virou para ele.
— Vou fazer vinte e sete anos amanhã — disse ela.
Ele não sabia muito bem aonde ela chegaria com aquilo ou se queria
descobrir. Mulheres como ela, mulheres com aquele calibre de diamante,
só podiam ser problema, mas desde quando isso alguma vez o detivera?
— Feliz aniversário pelo dia de amanhã. — Ele levantou o copo de
uísque e brindou, batendo-o de leve no copo dela.
Ela se curvou para mais perto dele, e Leo achou que poderia se afogar
no doce e quente aroma de sua proximidade.
— A questão, querido, é que eu prometi que me casaria antes de
completar vinte e sete.
— Mas vinte e sete não é tanta coisa assim — retrucou ele. —
Consegui sobreviver a isso sem me casar.
— Para os homens, é diferente — insistiu ela, olhando para o anel de
noivado. — Para as mulheres, vinte e sete anos é... bem, é complicado
explicar.
Leo esperou que ela ao menos tentasse, mas ela ficou girando a enorme
pedra no dedo, fazendo-a brilhar sob a luz no alto, ofuscando a visão dele.
— Olhe, você obviamente está tendo um dia ruim, mas...
— O pior de todos os dias ruins. — Ela estendeu a mão diante do rosto
e olhou para o anel de noivado como se fosse responsável por todos os
seus atuais infortúnios. — O pior dia já registrado.
Ele nem teve de pensar muito a respeito.
— Sabe, eu poderia me casar com você. Se você quisesse.
Aquela visão, aquela deusa, se engasgou com a boca cheia de martíni.
— Você se casaria comigo? — perguntou ela ao se recuperar. — Por
que diabos você faria isso?
Leo deu de ombros.
— Eu já fui escoteiro. E ainda gosto de fazer uma boa ação todos os
dias.
Ela se mexeu no banquinho para ficar bem de frente para ele, a saia
branca e volumosa do vestido roçando a calça jeans dele na altura do
joelho.
— Você não é casado, é?
— Não. — Ele sorriu diante da confusão dela. Trêmula, ela sorriu de
volta e ele começou a gostar daquele jogo, ainda que não conhecesse as
regras.
— Você tem uma noiva ou uma garota com quem tenha algum
envolvimento?
— Não.
— Você é gay? Não que isso realmente importe, mas...
— Não!
Ela abriu bem as mãos.
— Ainda assim, querido, isso é muito repentino. Me dê uma boa razão
para eu me casar com você.
Havia mais de um milhão de razões ruins — exceto que se casar talvez
fosse a única coisa que ele não havia tentado. E aquilo tinha de ser o
destino: uma garota linda entrar num bar pronta para dizer “Aceito” e só
lhe faltar o noivo. Ele chamou o barman com um dedo preguiçoso e pediu
outro uísque e uma vodca com tônica para ela, já que o dirty martini não
tinha feito muito sucesso.
— Me dê uma boa razão para não fazer isso?
Ela balançou a cabeça quando o barman colocou uma nova bebida à
sua frente.
— Por onde eu começo?
— Daqui a poucas horas será meia-noite. Pensei que você estivesse
meio sem tempo.
Ela fez um biquinho, correndo o olhar em volta em busca de um
candidato mais adequado. Não havia um. Só dois velhos que vinham
enrolando com uma garrafa de cerveja cada um durante a última hora e
um homem no canto que olhava desconsolado para o copo vazio como se
tivesse acabado de apostar as economias de sua vida no preto e tivesse
dado vermelho. Ainda assim, ela estreitou os olhos enquanto avaliava as
opções.
— Você não tem que se casar comigo — disse Leo, e conseguiu mais
uma vez sua atenção. — Mas vamos beber, conversar um pouco e ver o
que a gente acha disso daqui a mais ou menos uma hora. Combinado?
Ela pegou o copo e abriu outro daqueles sorrisos que faziam Leo querer
encontrar uma poça para jogar sua jaqueta por cima para que ela
passasse.
— Combinado.
2

Setembro de 1943

Os dois soldados não se deixaram convencer facilmente.


— Por que você precisa ir ao Rainbow Corner? — perguntou um deles.
— Um dos nossos rapazes lhe fez mal e seu pai está esperando a postos
com uma espingarda?
— Perdão?
Ela observou o soldado. Ele tinha pele morena e olhos escuros, e, em
outra situação, ela poderia tê-lo achado bastante vistoso, mas não quando
tinha a crescente sensação de que ele estava zombando dela, ali vestida
com o casaco de pele da mãe e usando abrutalhados sapatos de amarrar e
meias na altura do tornozelo, o batom vermelho sedutor já desbotado de
tanto morder os lábios. Mesmo assim, não havia razão para ele olhá-la
como se achasse que estava aprontando alguma.
— Ah! Não é nada disso. É só que, bem... Eu vim lá de Durham... Vocês
conhecem Durham? — Os dois balançaram a cabeça e sorriram com
indulgência, como se ela fosse uma criança trazida para o andar de baixo
para dar boa-noite aos adultos. — É claro que vocês não conhecem
Durham, porque é o lugar mais patético e chato da Inglaterra e eu... eu...
nossa casa foi bombardeada e agora não tenho família nem casa, então
pensei que, já que teria de passar por dificuldades, poderia muito bem
fazer isso em Londres, e então vi o Rainbow Corner em um noticiário, e o
locutor disse que ele nunca fechava, que tinham jogado fora a chave da
porta da frente para que estivesse sempre aberto para qualquer um que
precisasse de um lugar onde ficar.
Ela estava um pouco envergonhada pelas mentiras que saíam de sua
boca com tamanha facilidade. Mas, para alguém que desconhecesse todas
as circunstâncias que levaram à fuga de Durham, ela poderia não ser
vista com bons olhos. Com certeza o soldado mais magro e mais alto, com
a cabeleira cor de trigo, não pareceria tão preocupado se soubesse a
verdade.
— Ah, pobre criança. Isso é terrível — disse ele, embora ela não fosse
mais criança. Duas semanas antes, ela completara dezessete anos. —
Você não tem mais ninguém com quem possa ficar?
Ela fez que não com a cabeça.
— Não. Estou sozinha agora. — Ela suspirou e achou que deveria
parecer bastante desamparada. — Terei de aprender a cuidar de mim
mesma.
Enquanto isso, o amigo dele tinha um brilho no olhar do qual ela não
gostou nem um pouco.
— Seria melhor você encontrar a Associação Cristã Feminina mais
próxima do que correr para o Rainbow Corner.
O desânimo ficou estampado no rosto dela.
— Mas a ACF vai ser cristã demais e pouco jovem.
Dessa vez, os dois riram, e então o louro disse:
— Vamos lá, Danny. Já faz séculos que não ajudamos uma donzela em
perigo.
— Quantos anos você tem mesmo? — perguntou Danny.
— Dezenove — respondeu de imediato, como se não tivesse de pensar
nem um pouco sobre isso porque já tinha dezenove anos havia vários
meses, mas ele debochou como se não acreditasse nisso também.
— Está bem, nós a levaremos ao Rainbow Corner, porém, se contar
mais uma mentira, vou começar a achar que você é uma agente inimiga.
E, em vez disso, posso levá-la à delegacia mais próxima.
— Ignore-o — disse o outro quando ela bufou, indignada. — Ele levou
uma bronca do comandante da nossa companhia semana passada. Tem
andado medroso desde então. Meu nome é Phillip, mas todos me chamam
de Phil.
— Meu nome é Rosem... Rose — corrigiu ela.
Ele abriu um sorriso branco deslumbrante e pegou a mala dela.
Quando desceram no metrô, ele pagou a passagem de Rose, arranjou-lhe
um lugar e não se importou em ver que a atenção dela oscilava entre ele e
o carro fortemente iluminado, a garota sentada em frente com um
chapéu extravagante invejável, as alças para segurar que balançavam
com o movimento do carro e até os anúncios — tantas coisas novas com
que se maravilhar.
Teria sido tudo emocionante se ela conseguisse parar de olhar para o
relógio, imaginando o que estaria acontecendo em Durham. Àquela
altura, eles já teriam lido seu bilhete. Shirley teria dito algo detestável,
como: “Mesmo quando não está aqui, ela consegue transtornar a todos!”.
A mãe provavelmente teria ido para a cama com uma de suas enxaquecas
e o pai teria se trancado no escritório. Eles também já teriam percebido
que ela levara o casaco de pele e pegara emprestados dois vestidos de
Shirley: o de crepe da china e o azul-claro de tafetá, o que só pioraria as
coisas.
— Qual é o problema? Você é muito bonita para ficar triste assim.
Rose corou. Ninguém nunca lhe tinha dito que era bonita, embora, se
estreitasse um pouco os olhos e fizesse determinada expressão, achasse
que parecia um pouco com Hedy Lamarr. Ainda assim, você se achar
bonita não bastava para as pessoas pensarem o mesmo.
— É muito gentil de sua parte, mas eu não sou...
— Você ficaria ainda mais bonita se sorrisse — interrompeu Phil, e
então ela sorriu e ele fingiu que estava prestes a desmaiar, apesar de
Danny ter resmungado. Rose achou que era melhor ignorá-lo.
A próxima estação era a da Piccadilly Circus.
Ela já se sentiu tomada pela emoção só de subir os degraus que iam da
estação até a rua. É claro que tinham apagado as luzes e ela não podia ver
Eros ou os famosos outdoors publicitários, mas levaram apenas alguns
segundos para as formas e os contornos na noite escura entrarem em
foco e se revelarem pessoas agitadas, indo de um lado para o outro. À
espera de amigos ou abrigadas nas entradas dos prédios enquanto
acendiam cigarros, em filas do lado de fora de restaurantes e clubes
noturnos; suas conversas e risadas formando um zum-zum elétrico.
A excitação da expectativa fazia os dedos das mãos de Rose se
contraírem e os dos pés se curvarem nos sapatos de amarrar. Era como se
tudo o que fosse bom e glamoroso tivesse convergido para aquele local,
incluindo o bando de garotas ruidosas, todas arrumadas e enfeitadas,
reunidas em uma esquina.
— Ei, soldado, precisa de alguém para dançar jive? — gritou uma das
meninas ao ver Phil e Danny.
— Eu lhe dou um beijo se me ajudar a entrar no Rainbow Corner —
prometeu outra garota, empurrando Rose com o quadril e fazendo-a
tropeçar, mas, antes que Rose pudesse dar-lhe um chute ou uma
cotovelada, Danny segurou firme seu braço e a fez seguir em frente.
— Você parece atrair problemas, não é? Aqui vai um conselho, garota:
passe esta noite por conta do Tio Sam, depois volte para casa.
— Mas eu já lhe disse, minha casa foi bombardeada. Não tenho onde
mo...
— Sim, sim. Conte essa história para outro, porque eu não caio nessa
— disse ele lentamente enquanto a puxava em meio à multidão que se
avolumava, e eles avançavam cada vez mais devagar. — Volte para casa
ou acabará como elas.
Rose seguiu o olhar dele até outro grupo de garotas de pé na esquina
em frente. Elas pareciam bem inofensivas. Bonitas até, embora houvesse
uma palavra para designar o tipo de garota que fica parada nas esquinas
falando com homens que evidentemente não conheciam. E pensar que
ela fora acusada de ser rápida por se atrever a atrair a atenção indesejável
do gordo Cedric, filho do gerente do banco.
— Elas não parecem tão más. O que há de errado com elas?
— Os destacamentos da Piccadilly? — respondeu ele com uma risada
irônica que era prima distante de uma gargalhada. — Você vai descobrir
logo se continuar abordando soldados em estações ferroviárias.
— Ei, olhe como fala! Não foi isso o que eu fiz!
— Pare com isso, Danny — ordenou Phil severamente enquanto abria
uma grande porta de vidro. — Depois de você, senhorita.
Rose havia sonhado com aquele momento por tanto tempo, mas
naquela hora estava preocupada com as provocações daquele homem
detestável, depois em passar espremida por um grupo barulhento de
soldados americanos que saíam, e então, de repente, lá estava ela...
Ela tinha deixado aquele mundo monótono e sem graça para trás —
toda aquela história de se contentar com o que se tinha e guardar as
coisas para uma ocasião melhor que nunca chegava. Ela mentira,
roubara, fugira e abordara homens estranhos para passar por uma porta
e ir parar no paraíso na Terra.
Rainbow Corner.
Não havia absolutamente nenhuma razão para ter sonhos se você não
faz de tudo em seu poder para torná-los realidade, concluiu Rose,
enquanto olhava ao redor. Na verdade, ficou um pouco decepcionada ao
observar o enorme saguão. No quadro de avisos à sua frente, havia os
mesmos cartazes de aparência oficial que ela via aonde quer que fosse.
Mas havia também uma seta apontando para o leste em que se lia BERLIM
— 966 quilômetros. E outra seta indicando a direção oposta com as
palavras NOVA YORK — 5264 quilômetros, além de uma bandeira
americana que pendia orgulhosamente do balcão no alto, ao qual se
chegava subindo uma grande escadaria. Se Rose ficasse bem quieta e
tentasse bloquear o som das pessoas falando e gritando umas às outras
daquela maneira descontraída que é característica dos americanos,
poderia ouvir os acordes distantes de uma banda tocando uma música
animada e contagiante. Era ali que ela queria estar...
— Rosie?
Phil puxou de leve a manga dela para levá-la à recepção, onde
trabalhavam duas mulheres em uniformes cinza-escuros. Ela ficou um
pouco mais atrás enquanto Phil e Danny se registravam e perguntavam se
os boatos sobre os chuveiros com água quente eram verdadeiros. Rose
ainda podia ouvir a banda; ela gingava no mesmo lugar, batendo um pé
no ritmo da música, até se dar conta das duas mulheres olhando para ela
de maneira indagadora.
— Olá — cumprimentou ela com o que esperava ser uma voz
confiante. — Estou com eles.
— Vocês acreditam que esta é a irmã caçula do Phil, que veio lá de Des
Moines? — Danny lançou às mulheres um olhar que Rose não pôde ver,
mas uma delas, uma morena com ar intrometido, sorriu.
— Não causarei nenhum problema — prometeu Rose. — Não mesmo.
A outra mulher, que parecia ainda mais intrometida, não parecia
convencida.
— Com certeza ela tem um sotaque engraçado para alguém vindo
daquela parte do mundo — observou ela secamente.
— Sim, ela é meio presunçosa. — disse Danny. Rose sibilou entre os
dentes cerrados. Como ele se atrevia? — Ela pretende conquistar um
duque enquanto estiver por aqui.
De repente, entrar no Rainbow Corner não parecia tão importante
quanto dar um soco forte no meio das costas de Danny, mas as duas
mulheres riram.
— Acho que tem um conde jogando bilhar por aqui... é melhor manter
sua irmã longe dele.
— Obrigada. Muito obrigada mesmo. Vocês não vão nem notar que
estou aqui — assegurou Rose, enquanto Phil a tirava de lá. Ela sorriu
para ele. — Por um minuto, achei que não daria certo. — Então se virou
para Danny. — Obrigada por sua ajuda — acrescentou com formalidade.
— Não foi nada, garota — disse ele, enquanto tocava o chapéu,
fingindo bater continência. — Até logo.
Foi um alívio quando ele se afastou, passando por eles. Phil também
pegou a mochila. Rose ficaria bem sozinha, já que todo mundo dizia que
os ianques eram muito simpáticos e sem cerimônia, e, além disso, ela
estava ali sob a proteção da Cruz Vermelha americana, então nada de
ruim lhe aconteceria.
— Bem, foi muito bom conhecê-lo e mais uma vez obrigada — disse
ela breve, porém alegremente. — Tenho certeza de que vou ficar bem
agora.
— Então é assim — retrucou Phil, o rosto gentil e simpático se
fechando um pouco. — Pensei que estávamos nos tornando amigos.
— Estávamos, estamos. Sério, você foi um cavalheiro, mas não precisa
se preocupar comigo — assegurou-lhe Rose, com uma leveza em que ela
não conseguia acreditar. — Estou certa de que você tem vários amigos
aqui com os quais gostaria de conversar, e eu detestaria atrapalhá-lo.
— Acho que você é que não quer que eu a atrapalhe — disse ele,
mudando a mochila de ombro. — De onde venho, temos um nome para
garotas como você.
— Não estou tentando me livrar de você. Estou ajudando você a se
livrar de mim — explicou ela. — Deixando você livre para, hã, conversar
com outras garotas.
Ele ficou completamente vermelho.
— Prefiro conversar com você — disparou ele. — Prefiro passar todas
as dezoito horas que tenho antes de voltar à base com você.
— Você prefere?
Ele assentiu, com um sorriso encabulado no rosto.
— Prefiro — afirmou ele, e estendeu o braço para conduzi-la até o alto
da escada que, observando mais de perto, não era tão grande quanto ela
gostaria que fosse.
Eles dançaram ao som de uma orquestra de swing na enorme pista de
dança, ambos ofuscados pelas luzes que irradiavam da seção de metais e
tentando não esbarrar em ninguém, pois devia haver pelo menos
duzentos outros casais se movendo no compasso quatro por quatro.
— Você já dançou jive? — quis saber Phil.
— Na verdade, não, mas quero dançá-lo mais do que tudo —
respondeu Rose, mas não havia espaço para muito além do que um
foxtrote rápido.
Phil dançou com Rose até os pés dela ficarem doloridos e sua garganta,
muito seca, mas, quando ele fez uma pausa, ofegante, ela não queria
parar de dançar.
— Vamos ficar só para mais uma dança — implorou, mas Phil riu e
balançou a cabeça.
— Ouvi um boato sobre este lugar — contou ele. — Se for verdade, é
ainda melhor do que dançar.
— Não consigo acreditar que possa haver algo melhor do que dançar
— retrucou Rose quando ele pegou sua mão e levou-a depressa para fora
do salão de baile, e depois descendo a escada.
— O que é?
— Não posso contar. É uma surpresa.
— Adoro surpresas!
Na verdade, Rose adorava tudo o que tinha lhe acontecido no Rainbow
Corner. Até os contratempos para entrar, porque aqueles poucos
momentos de angústia quando achou que seria atirada de volta à noite
cruel e implacável a fizeram apreciar ainda mais estar ali.
— Devo fechar os olhos para a surpresa ser mais surpreendente?
— É uma grande ideia — concordou Phil. Ele era o tipo de pessoa em
que se confia instintivamente. E Rose sabia que ele a conduziria escada
abaixo, tomando cuidado para que ninguém esbarrasse nela. — Mais dois
passos. Cuidado, Rosie. Então seguimos por aqui e... ei! Olhe por onde
anda, amigo, tem uma dama passando. Pode abrir os olhos quando eu
disser... agora!
Rose não abriu os olhos de imediato, porque queria deixar a
expectativa aumentar um pouco mais, e então, quando já não podia mais
esperar, enfim olhou.
— Ah, meu... — Ela achou que fosse desmaiar ou começar a chorar, ou
passar por alguma combinação inebriante dos dois. — Meu Deus, eu devo
estar sonhando.
Tal como o restante do Rainbow Corner, o porão estava cheio até o teto.
Havia pessoas espremidas em volta de mesinhas, mais gente pelos cantos
da sala e até ao longo das escadas, segurando canecas e mexendo a
cabeça no ritmo da música que tocava no jukebox, e, no meio do enorme
salão, havia uma máquina de refrigerantes. Uma máquina de
refrigerantes autêntica.
Phil visivelmente se encheu de orgulho com a reação dela.
— Nós temos uma igualzinha em Des Moines. Temos mais de uma.
— É absolutamente linda — disse Rose, suspirando, e Phil riu como se
ela estivesse brincando, mas ela nunca falara tão sério em toda a sua
vida.
— Ei! Vamos pegar aquela mesa. — Phil já a fazia sentar em uma
cadeira que de repente tinha ficado vaga.
Ciente de que o dinheiro em sua bolsa tinha de durar até... Deus do
céu, até arranjar um emprego, Rose resolveu se contentar com uma
xícara de chá e um pão. Sem dúvida, isso não devia custar mais do que
um xelim.
— O que vamos comer? — Phil olhou em volta à procura de uma
garçonete.
— Não estou com muita fome — mentiu ela. — Tenho o apetite de um
passarinho.
— Você estará com fome até a comida chegar, vai ver — afirmou Phil.
Sua mão se fechou sobre a de Rose quando ela tentou pegar a bolsa. —
Que tipo de homem dança com uma garota por horas e depois espera que
ela pague por sua comida? É por minha conta.
— É muito gentil de sua parte — murmurou Rose quando a garçonete
se aproximou.
Depois que a mulher se afastou, Rose não soube bem sobre o que iriam
conversar. Os garotos nunca tinham muito a dizer, embora, segundo sua
limitada experiência, isso não os impedia de falar sem parar.
Phil pegou um maço de cigarros do bolso do uniforme.
— Quer um?
— Sim, por favor. — Ela nunca tinha fumado, mas deixou Phil acender
o cigarro para ela, então se concentrou em soltar a fumaça pelo canto da
boca de maneira descontraída. Como ela queria ser descontraída! —
Então...
— Você é a garota mais bonita que já vi na Inglaterra — disparou Phil
de repente. — Não estou falando isso para você facilitar as coisas para
mim, é a verdade.
Era difícil ser descontraída quando se estava corando. A mão que
segurava sem muito jeito o cigarro no alto começou a torcer
nervosamente uma mecha de cabelo até Rose ouvir um som sibilante
antes mesmo de sentir o cheiro de chamuscado.
— Bem, não sei se sou assim tão bonita — retrucou, duvidando. Além
disso, ela não tinha muita certeza do que significava facilitar as coisas ou
se queria fazer isso. — Minha escova de cabelo ficou na minha mala e
tenho certeza de que devo estar um horror.
Phil balançou a cabeça.
— Não. Você está bonita. Muito bonita.
Ele a olhava tão abertamente que Rose não sabia o que dizer.
— Você é muito bonito também. — Ela conseguiu dizer, o que não era
de todo verdade.
Ele era alto e forte, só que também tinha uma aparência muito comum
e um espaço alarmante entre os dentes da frente, mas era uma das
pessoas mais gentis que Rose já conhecera. Ele a fazia se lembrar do
golden retriever que sua melhor amiga, Patience, tinha antes da guerra.
Prince tinha o mesmo olhar de alegre devoção quando alguém o chamava
de “bom menino” ou afagava sua cabeça.
— E você tem sido tão doce. Fez muito mais do que eu esperava quando
o abordei na estação de King’s Cross.
Felizmente Phil não teve a chance de dizer mais uma vez como Rose
era bonita porque a garçonete estava de volta.
— Aí está — disse ela, tirando de súbito um prato cheio de comida da
bandeja. — O especial da casa.
O especial da casa era um amontoado de donuts quentes e disformes.
— Os caras lá na base chamam este lugar de Dunker’s Den, a toca dos
donuts — explicou Phil. E empurrou o prato para mais perto dela. — Vá
em frente. Pegue um.
Rose estava com medo de tocá-los e não serem reais, mas, quando
estendeu a mão para pegar uma daquelas aparições fritas em muito óleo
e cobertas de açúcar, o donut estava tão quente que ela se encolheu e
colocou os dedos feridos na boca. Depois fechou os olhos quando os
cristais docílimos cobriram sua língua.
Então não ligou mais para seus modos quando rasgou um dos donuts
ao meio e o enfiou na boca. Era quente e gorduroso, e ela fechou os olhos
de novo em um instante de felicidade serena e tranquila. Quando voltou a
abri-los, Phil estava radiante.
— Coma quantos quiser — disse ele generosamente. — Quer algo para
beber enquanto come?
Phil indicou os dois copos que ela ainda não tinha notado. Estavam
cheios de um líquido marrom efervescente e nada atrativo.
— É cerveja preta? — arriscou ela.
— Não. — Phil sorriu, mostrando todos os dentes. — Tente de novo.
— Não tenho a menor ideia. Posso?
— Fique à vontade.
Rose pegou um dos copos e cheirou-o, cautelosa. As bolhas gasosas
saltaram do copo e fizeram cócegas em suas narinas. Ela tomou um gole,
hesitante, e então precisou de toda sua força de vontade para não
contrair o rosto e cuspir. O gosto era horrível, como o pior tipo de
medicamento.
— É bom — disse ela, que deve ter soado convincente, já que Phil
suspirou, como se estivesse receoso de que ela talvez não gostasse. —
Delicioso. O que é?
— É coca-cola! — exclamou ele. — E vai nos ajudar a vencer a guerra.
Talvez o Exército dos Estados Unidos planejasse pulverizar aquilo sobre
as hordas nazistas, em vez de atirar bombas nelas.
— Os americanos bebem muito isso? Que incrível. — Rose pegou o
copo e tentou beber o máximo possível, intercalando com mordidas no
donut para tirar o gosto ruim. Era terrível desperdiçar donuts tão bons
assim.
Depois de ter deixado apenas um donut e bebido todo o copo de coca-
cola, que agora sacolejava de um lado para o outro em sua barriga, Rose
sentiu como se tivesse recuperado a energia, apesar de o dia ter sido
agitado. E foi dominada por uma inquietação que não conseguia
controlar, que fazia os dedos tamborilarem na mesa e os dentes não
pararem de bater mesmo estando bem aquecida.
— Vamos dançar mais um pouco — sugeriu ela, levantando para tirar
o cardigã e amarrá-lo ao redor dos ombros. — Isto é, se você quiser.
Muitas e muitas danças depois, a banda parou de tocar e os casais
foram deixando o salão de braços dados. Phil disse que era tarde demais
para ele encontrar um lugar para ficarem, e assim os dois subiram as
escadas e atravessaram o clube flutuando como fantasmas, até
encontrarem um sofá vazio escondido em um canto. Era difícil se lembrar
de sentar com as costas eretas e as pernas elegantemente cruzadas na
altura do tornozelo quando ela não se recordava de já ter estado tão
cansada ou ficado acordada até tão tarde antes.
Enquanto Phil lhe descrevia Des Moines, em Iowa, que parecia ter um
monte de vacas e plantações de milho e uma loja de departamentos com
o nome improvável de Younkers, Rose teve de fazer um tremendo esforço
para conter os bocejos e abrir os olhos de novo toda vez que piscava. A
voz dele parecia vir cada vez de mais longe, e ficava muito difícil sorrir e
dizer “Minha nossa, isso parece interessante” a intervalos adequados,
mas era importante tentar.
Rose descansou a cabeça no ombro de Phil e não se importou quando
ele passou o braço ao redor dela com cuidado.
— Você pode dormir se quiser — disse ele. — Não me importo.
Também estou cansado.
Rose teve de cerrar a mandíbula com força para não bocejar.
— Bem, talvez pudéssemos dormir um pouco — sugeriu ela. — Mas só
um pouco, porque quero muito ouvir mais sobre Des Moines. Parece ser
um lugar charmoso.
— É o melhor que eu conheço — concordou Phil, mas já não
aparentava estar tão animado quanto antes e, quando mudou de posição
no sofá para que os dois pudessem desabar, este ficou muito mais
confortável. Então, ele fechou os olhos e pegou no sono antes mesmo que
Rose.
3

Depois que fecharam o acordo, e ficaram talvez noivos, eles se


apresentaram.
— Leo. — Seu aperto de mão era firme. Ela gostava disso em um
homem.
— Jane — disse ela. Feitas as apresentações, os dois puderam se
conhecer melhor.
Embora Jane já soubesse tudo o que precisava saber depois daqueles
trinta minutos que passara ao lado dele. Sob as luzes do bar, ela discernia
claramente as linhas que começavam a surgir em torno dos olhos dele e a
boca bonita, quase feminina, que parecia sempre prestes a abrir um
sorriso preguiçoso, como se sorrir de verdade exigisse muito esforço.
Mesmo largado em um banquinho muito desconfortável, ele era alto e
esguio, apesar de Jane apostar que, sob a camisa dos Ramones, começava
a se formar uma pancinha de tanto álcool e comida para viagem
comprada em qualquer lugar que ainda estivesse aberto quando ele era
expulso de qualquer que fosse o bar em que estivesse entocado. Ainda
assim, havia algo sexy em relação a ele. Talvez tivesse a ver com a
maneira como ele olhava, como se já tivesse tido muitas experiências,
mas ainda continuasse pronto para a próxima aventura. Se ele se livrasse
daquele cabelo bagunçado (as pontas mais claras imploravam para serem
cortadas), se arrumasse e vestisse um terno, isso faria toda a diferença.
Havia algo de misterioso nele, mas um mistério descomplicado.
Antigamente o teriam chamado de libertino, e ele estava flertando de
maneira descarada com ela.
— Não estou querendo me meter, não é do meu feitio, mas seja lá quem
for o cara com quem você não se casou... ele é um idiota. Está na cara que
ele não merecia você.
— Você não tem como saber — retrucou ela, que já falava meio
enrolado. Eles estavam bebendo havia uma hora. Ou melhor, ele
continuava pagando as bebidas e ela tomando, enquanto ele ainda
enrolava com o segundo uísque. — Até onde você sabe, eu poderia estar
na lista dos mais procurados do FBI.
— Você é bonita demais para ser uma criminosa de carreira —
argumentou ele.
— Quantos criminosos de carreira você já conheceu?
— Ah, muitos. Você também é muito bonita para ficar assim tão triste
— disse ele calmamente. Leo tinha uma maneira de olhar para ela como
se não fosse apenas mais uma mulher bonita, como se o coração dela
fosse tão bonito quanto o rosto, que fazia Jane sentir vontade de se abrir e
contar toda a tristeza que a envenenava por dentro. Bem, isso e as quatro
vodcas com tônica.
— Fiquei três anos com ele. Três anos! Então, em cinco minutos, nada
disso importa mais. — Jane estava perigosamente perto de perder o
controle e começar a falar alto. Ela empurrou o copo para longe,
endireitou os ombros e respirou fundo algumas vezes. — Tudo por causa
de um maldito pedido de patente.
Leo franziu a testa.
— Espera aí, como?
— É muito entediante. — Jane hesitou, mas precisava lhe dar algum
contexto. — Ele, Andrew, meu... Eu sempre odiei as palavras noivo ou
futuro esposo. Todas soam tão... — Ela não conseguia encontrar as
palavras certas naquele dia.
— Antiquadas? — sugeriu Leo. — Que tal chamá-lo de sr. Ex? Parece
apropriado.
Jane assentiu.
— Ele estava desenvolvendo esse software de reconhecimento facial e
de voz que tinha deixado todo mundo empolgado: Google, Apple, o
governo chinês... nem me peça para entrar em detalhes porque eu não
saberia. Os investidores estavam ansiosos para seguir em frente. Milhões
em capital inicial. Então hoje, quando tínhamos cinquenta convidados
entre familiares e amigos mais próximos dele à espera em um dos
terraços no TheHotel do Mandalay Bay, ele recebe um telefonema
dizendo que tinha preenchido errado a papelada do pedido de patente.
Deixado de fora algumas placas de circuito ou chips ou linhas de código.
Ou esquecido de colocar seu nome completo. Quem sabe?
— Mas isso dificilmente é o fim do mundo, não é? — Leo obviamente
não tinha ideia de como um pedido de patente errado era desastroso.
— Ah, é sim. Não dava nem para esperar algumas horas até nos
casarmos. Ele tinha que sair na mesma hora. Sou uma pessoa muito
compreensiva. — Jane colocou a mão na altura do coração, que já não
batia tão freneticamente quanto antes. Antes, parecia que ele queria fugir
do seu peito, arrastando-se para fora do corpete do vestido, e cair no
chão, batendo fraco. — Mas eu tenho meus limites e ele foi tão frio,
sequer se importou com meus sentimentos...
— Eu lhe disse que ele não merecia você — interrompeu Leo. Ele ainda
a encarava com os olhos azuis cheios de emoção, embora em geral ela
não achasse que olhos azuis pudessem ser expressivos. — Não posso
acreditar que ele se preocupou mais com o Google ou o governo chinês do
que com você.
— Não me importava de ele ser determinado. Eu gostava disso. Ser o
único foco da vida de alguém... bem, é muita pressão, mas nunca pensei
que ele pudesse me deixar no altar, ou o mais perto disso. Falou que tinha
que ir para Nova York resolver tudo e que se casar não era mais
prioridade. Então foi embora sem nem dizer adeus. — Ela pegou o copo
deixado de lado e bebeu o restante da bebida. — Não é uma sensação
muito boa saber que você não tem importância para alguém com quem
planejava passar o resto da vida.
— Ah, agora está parecendo triste de novo. Vou pedir outra bebida
para você — disse Leo.
Ele fez sinal para o barman e puxou outra nota de dez dólares
amassada do bolso de trás. Jane nem sabia ao certo se Leo realmente a
ouvia, ou se só gostava da maneira como os lábios dela se moviam ao
falar.
Mas então ele se virou para ela, olhou para seu rosto outra vez e ficou
um tanto boquiaberto, como se tivesse esquecido que, por algum acaso da
natureza e os cuidados de dois excelentes cirurgiões plásticos, as feições
dela — olhos, nariz, boca e o resto — se combinavam de maneira
belíssima.
— Deus do céu, você é tão bonita. Adoraria pintar você.
— Sério? Por que você iria querer fazer isso?
— Porque sou artista — respondeu Leo, estendendo as mãos para que
ela pudesse ver as manchas de tinta azul e amarela. — Um artista pobre.
Quer dizer, existe outro tipo de artista?
Jane não teve coragem de lhe dizer que havia. Que ela conhecia
artistas que ganhavam vários milhões de libras para colocar animais
mortos em formol ou fazer assinaturas de grafite nas paredes das casas de
astros do rap, então apenas assentiu.
— Isso envolve passar muita fome em sótãos?
— Sim. Tenho que vender meu corpo para comprar tinta — respondeu
ele, inclinando-se para mais perto dela. — O problema é que meu corpo
não vale muito e tinta custa muito caro. Viu? Sabia que podia fazê-la
abrir um sorriso.
— Continue assim e quem sabe dou uma risadinha? — comentou Jane.
E então deu mesmo uma risadinha, porque não podia evitar. Ela olhou
para o pedaço de platina em torno do pulso. A hora que tinham
combinado já havia passado. Embora Leo jamais seria sua primeira
escolha, ou a segunda, ou até mesmo sequer uma opção se as
circunstâncias não tivessem mudado tão drasticamente, ela poderia ter
escolhido alguém bem pior.
Ele tinha senso de humor, o que contava muito. Era um cara tranquilo,
mas também não era confiável. Parecia preguiçoso. Irresponsável, mas
não tinha o que era preciso para ferir alguém como ela.
— Há outro jeito de me fazer sorrir — disse ela.
Leo se aproximou o suficiente para fazer ela sentir a pele se arrepiar e
o discreto cheiro de uísque no hálito dele.
— E qual seria? — Sua voz era baixa e rouca, e ele tinha um jeito de
olhar como se ela fosse a única garota no mundo. Jane tinha certeza de
que ele já deixara várias mulheres chorando em seus travesseiros. Mas
ela nunca fora muito de chorar.
— Acho que ainda quero me casar. Você topa, querido?
Por um instante, Leo pareceu completamente apavorado, como se os
dois tivessem namorado desde o ensino médio e morassem juntos havia
pelo menos cinco anos, e ela tivesse lhe dado um ultimato com um teste
de gravidez positivo. Ele respirou fundo algumas vezes.
— Sim. Claro. Eu me ofereci, não foi? — Suas palavras, que no início
eram hesitantes, terminaram com muito mais convicção e tranquilizaram
Jane. — É preciso tentar de tudo pelo menos uma vez, certo?
— Ah, com certeza. — Jane juntou as mãos. Ela seria o caso curioso
que ele teria a contar sobre Las Vegas. A história maluca sobre a esposa
que conheceu em um bar e com quem se casou uma hora depois. Ela não
se importava. Já ouvira coisas piores do que um alerta sobre a
importância de não se casar às pressas.
— Você está com seu passaporte, não é?
Leo disse que sim, e até pagou pelo táxi que os levou ao cartório do
Condado de Cook para conseguir a autorização para casar. Enquanto
esperavam na fila com os outros casais — alguns bêbados, alguns
improváveis e dois adolescentes que pareciam ter acabado de fugir do
baile de formatura —, ele pediu opinião sobre as melhores capelas de
casamento.
— O que você acha de ter um cara vestido de Elvis? — perguntou
quando ela guardou a autorização na bolsa.
Jane balançou a cabeça.
— Nada tão clichê — respondeu com firmeza. — Nada cafona.
Nenhuma garota com roupa de hula. Nenhum néon. Ninguém vestido de
Elvis. Algum lugar de bom gosto.
Leo pesquisou “capelas de casamento de bom gosto em Las Vegas” no
celular e acabaram encontrando uma capela com um gazebo —
aparentemente trocavam os lírios todos os dias — e um cancelamento.
Ao chegarem à capela, embora ainda nem tivessem discutido táticas,
foram direto até a recepcionista de meia-idade, mascadora de chiclete, e
Jane começou a pechinchar, porque todo mundo sabia que nunca se paga
o preço cheio. Depois que ela gentilmente explicara que, de certa
maneira, de uma maneira bem considerável, ela e Leo estavam lhes
fazendo um favor ao ficarem com o horário vago, ele chegou para fechar a
tampa do caixão.
— Desculpe por termos aparecido assim, de repente, em cima da hora
— começou ele. — Aposto que você está cansada de ver garotas de
vestido branco o dia todo. — Ele se curvou sobre o balcão para poder
abaixar a voz, e seus olhos se demoraram na pele enrugada entre os seios
dela, à vista em um decote profundo da roupa com estampa de leopardo.
— Ouça, vou lhe contar um segredo. Se eu já não tivesse prometido me
casar com essa aí, estaria me ajoelhando agora mesmo.
Então ele abriu para a recepcionista só um esboço do sorriso
insinuante que tinha lançado à Jane, e ela abateu mais cinquenta dólares
do valor total, entregou-lhe um fichário e lhes disse para escolherem seus
votos.
Minutos depois, eles estavam de pé diante de um homem loquaz com
um bronzeado alaranjado, dentes assustadoramente brancos e o cabelo
castanho-avermelhado penteado para o lado para esconder a careca, que
lhes pediu para darem as mãos.
Duas horas atrás, eles nem sequer se conheciam, e agora estavam
prestes a prometer amar e cuidar um do outro na alegria e na tristeza, na
riqueza e na pobreza. Eu devia ter pedido para cortarem essa parte,
pensou Jane enquanto repetia os votos para o oficiante. Então Leo pegou
as mãos de Jane, e os olhos dela, que tinham se fixado nos lírios
entrelaçados na grade do gazebo, se concentraram nele.
Leo sorriu para ela e ergueu as sobrancelhas como se dissesse: Bem,
aqui estamos nós.
Jane abriu o sorriso que lhe prometera mais cedo e apertou de leve as
mãos dele, e talvez pelo menos naquele momento os dois tenham sentido
uma pequena conexão, uma leve força atraindo um em direção ao outro.
— Repita comigo: “Eu, Leo William Hurst, recebo você, Jane Audrey
Monroe...”.
Eles tinham escolhido os votos tradicionais, uma vez que os cartões
plastificados do fichário iam muito mais para o discurso de almas se
entrelaçando e completando uma à outra. Casar era uma coisa, mas
entrelaçamento de almas não fazia parte do acordo. No entanto, naquele
instante, enquanto aquele estranho prometia honrá-la, o sentimento por
trás das palavras tocou algo nela. Não por muito tempo, mas por um
segundo, as palavras importaram.
— Repita comigo: “Eu, Jane Audrey Monroe, recebo você, Leo William
Hurst...”.

Leo não esperava que a voz dela ficasse trêmula. Jane virou o rosto
perfeito de lado, engoliu em seco e, depois disso, suas palavras pareciam
tão claras e nítidas quanto gotas de champanhe. Quando ela lhe sorriu,
não era porque aquilo era uma grande piada, uma noite louca em Las
Vegas com a qual ele iria cansar as pessoas pelas próximas décadas, mas
porque, naquele momento, naquele gazebo de bom gosto, eles se
entendiam. Duas pessoas feridas à procura de algum conforto, algum tipo
de distração, e que tinham encontrado uma à outra.
Por mais dez dólares, a capela tinha fornecido alianças. Leo deslizou o
aro fino de metal prateado pelo dedo de Jane até este se aninhar contra o
anel de noivado no estilo art déco com um diamante imenso.
Em seguida, foi a vez de ela colocar uma aliança semelhante no dedo
dele, e os dois ainda estavam de mãos dadas quando foram declarados
marido e mulher.
— Vocês podem se beijar agora — lembrou o oficiante. — Já estão
casados.
— Não precisamos nos beijar — sussurrou Jane para Leo. — Não se
você não quiser.
— Por quê? Você não quer que eu a beije? — sussurrou ele de volta.
Eles ouviram gritos vindos de trás do gazebo.
— Não quero estragar seu momento especial, mas se vocês puderem se
apressar...
— Vamos fazer isso — decidiu Jane enquanto Leo ainda hesitava. Ela
puxou o decote em forma de coração do vestido com a mão e ajeitou o
cabelo com a outra. — A menos que você realmente não queira.
Ele notou a dúvida na voz dela e enevoando seus olhos.
— Bem, já chegamos tão longe. Não se deve economizar nos detalhes
finais.
Leo colocou delicadamente as mãos na curva da cintura dela. Jane
olhou para ele. Ele tinha achado que os olhos dela eram azuis, mas eram
verdes; talvez só ficassem azuis sob certa luz. Ela mordeu o lábio como se
tivesse esperado a vida toda que ele a beijasse.
— Vocês realmente têm que se apressar.
Leo se virou para o homem a fim de lhe dizer que ainda tinham um
minuto segundo o relógio e que era um minuto muito importante, mas
Jane levou a mão ao queixo dele para virar seu rosto de volta para ela, e
isso foi o suficiente para ele curvar a cabeça e beijá-la.
Ele sentiu a barba curta roçando a pele dela, macia como peônia, a
pressão firme da boca de Jane na dele. Não havia tempo para aquele ser
um beijo bom ou ruim, só dava para ser um beijo.
— Não ligo se você é a mãe dele, cala essa maldita boca! Eu vou me
casar com ele, não com você! — gritou alguém.
Jane e Leo se separaram para apressadamente sair por uma porta
escondida na folhagem do gazebo. Depois de uma longa caminhada por
um corredor, o tapete de veludo feito para parecer estar coberto de
pétalas de rosas vermelhas, e de passarem por outras portas duplas,
estavam na rua.
Estava frio porque Las Vegas era uma linda ilusão, uma cidade
reluzente escondida no meio do deserto. O calor penoso e brutal do dia
tinha dado lugar ao frio inclemente da noite. Jane se agachou e abriu a
mala para desembrulhar com delicadeza um casaquinho Chanel
aninhado entre várias camadas de papel de seda.
— Casada de preto, você vai querer voltar no tempo — disse Leo
enquanto ela o vestia.
Ela sorriu.
— Um pouco cedo para eu me arrepender, querido. — Ela se
endireitou nos saltos altos perigosamente finos. — Acho justo
brindarmos nossa união com uma taça de champanhe, não é?
— Concordo, mas gastei todo o meu dinheiro com as bebidas, os táxis e
a autorização para o casamento. — Leo não queria ser esse tipo de cara,
mas não sabia ser diferente. — A não ser que você...
— Nem um centavo. Eu devia me casar hoje, não achei que fosse
precisar de muito dinheiro, e não acredito em cartões de crédito.
— Você não acredita neles?
Ela balançou a cabeça.
— Dinheiro ou débito sempre.
Todos os tipos de sinos e alarmes dispararam na cabeça dele. Leo devia
ter prestado mais atenção quando ela falou sobre o ex. Sobre os milhões
em capital inicial. O que mais ela dissera? Ele não conseguia lembrar;
tinha estado muito ocupado olhando para ela, mas tentando fingir que
não estava. Foi então que se lembrou do que ela não dissera: ela não
falara sobre amor ou coração partido, o que se esperaria de alguém
abandonado minutos antes do casamento, mas Leo não conseguia se
preocupar muito com isso ao ver Jane de repente sorrindo para ele.
— Pagar pelas minhas bebidas estabelece um precedente perigoso, mas
preciso desesperadamente de uma taça de champanhe, por isso vamos
encontrar alguém que me pague uma. Na verdade, seria melhor uma
garrafa.
A capela ficava na rua principal e Jane já se dirigia para um farol
cintilante de vidro e néon perto dali a uma velocidade que Leo não teria
considerado possível. Pegou a mala vintage Louis Vuitton dela e logo a
alcançou. Ah, aquela ali era problema. Problema com P maiúsculo. O
noivo gênio da tecnologia, os investidores de risco e aquela história toda
sobre pedido de patente podiam ser tudo conversa fiada e talvez ele
acordasse dali a algumas horas em uma banheira cheia de gelo, sem os
rins. Tudo o que ele realmente sabia sobre ela era que faria vinte e sete
anos em menos de duas horas, a menos que isso também fosse papo
furado. O cheiro dela era forte, mas doce como cassis, e ele queria muito
poder lhe comprar uma garrafa de champanhe vintage.
— Querido, por favor, não fique com esse ar de quem se arrependeu. —
Mesmo cambaleante, Jane mostrava sua reprovação. — Serei uma esposa
exemplar.
Ainda que acabasse roubando seus rins, ela era linda e engraçada e
tinha o que sua tia-avó chamaria de presença de espírito.
— Você vai preparar café da manhã para mim todos os dias, passar
minhas camisas e falar bem de mim no baile anual do Rotary Club?
Ela balançou a cabeça.
— Acho que podemos conseguir algo um pouco melhor do que o
Rotary Club local... Por que esse prédio não parece ficar mais perto, não
importa o quanto a gente ande?
— É a perspectiva — respondeu Leo. Então lhe falou sobre os efeitos
do reflexo dos edifícios vizinhos nos revestimentos de vidro do prédio, e
Jane escutou e o manteve falando até chegarem ao templo monolítico de
aço e espelhos. Era um cassino com seu próprio ecossistema: hotel, vários
restaurantes elegantes, dois deles com estrelas Michelin, boutiques
sofisticadas e várias fileiras de máquinas caça-níqueis que piscavam e
zumbiam enquanto as pessoas sentavam de olhos vidrados diante delas,
enchendo as bocas escancaradas das máquinas com punhados de moedas
que pegavam de enormes copos plásticos.
Jane girou lentamente, estreitando os olhos. Em seguida, seu nariz se
contraiu como se de fato pudesse sentir o cheiro do dinheiro.
— Platinum Bar — anunciou, agarrando a mão de Leo e arrastando-o
em direção às escadas rolantes. Havia um brilho em seus olhos que não
estava lá antes. — Deixe que eu fale, querido. Você só presta atenção às
minhas deixas.
Sim, aquilo entraria para os anais das noites mais loucas que Leo já
tivera. Indiscutivelmente a número um, superando até aquela em que se
viu em um palco diante de cinquenta mil fãs enlouquecidos em Tóquio
para apresentar a banda do seu melhor amigo da faculdade de arte. A
festa depois do show acabara se transformando no tipo de orgia movida a
drogas da qual Leo pensara que só membros de bandas cock rock com
cabelo de poodle do fim dos anos 1980 participassem.
Ou a noite em que flertara com uma francesa no bar de Williamsburg,
onde ele trabalhava entre um serviço e outro. Depois de fechar, eles
pegaram duas garrafas de vodca, andaram até o Central Park e falaram
sobre vida, amor e o que os fazia chorar. Assistiram ao nascer do sol.
Beijaram-se como se fosse o fim do mundo. Na manhã seguinte, ele
acordara em um banco, com um policial de Nova York sacudindo-o e
trazendo-o de volta a um estado meio nebuloso de consciência. A
francesa havia roubado todo o seu dinheiro, exceto por uma nota de dez
dólares em que escrevera Je t’aimerai toujours com batom.
Aquela noite aos poucos ficava com cara de que superaria todas essas
outras, e tudo porque ele não tinha nada melhor para fazer do que se
casar com uma mulher bonita, já que isso daria uma grande história.
Se você não tivesse grandes histórias, então não estava vivendo por
inteiro.
E a história que Jane estava contando para Tom e Paula, Barbara e
Hank era uma de triunfo sobre a adversidade, risos em meio às lágrimas,
amor vencendo barreiras.
— Não posso acreditar que a companhia aérea perdeu toda a sua
bagagem — disparou Barbara.
Ela e o marido atarracado e de cabelo grisalho, Hank, que parecia ter
entrado com dificuldade no smoking, estavam em Las Vegas com seus
melhores amigos Tom e Paula para comemorar o aniversário de trinta
anos de casados dos quatro. Em cinco minutos, Jane havia descoberto que
os quatro eram melhores amigos desde o ensino médio, tinham até se
casado juntos — “Essa é uma das coisas mais adoráveis que já ouvi” — e
Tom e Hank eram donos de uma cadeia muito bem-sucedida de lojas de
materiais esportivos de inverno.
Barbara e Paula, que nunca perdiam um episódio de Downton Abbey,
ficaram fascinadas quando Jane lhes contou que Leo tinha sido
deserdado pela família, que era rica havia tantas gerações que seu avô
fora cavalariço de um dos reis George, por se casar com Jane, uma
ninguém.
— Meus pais acham que, se sua família não faz parte da alta sociedade,
então você está fora de questão — admitiu Leo alegremente, já que era a
escada para as falas de Jane. O Ernie do Eric de Jane. O Desi de sua Lucy.
— O amor é mais importante do que ser herdeiro de um ducado, certo?
As duas senhoras suspiraram e até mesmo Tom parecia estar com os
olhos um pouco enevoados. Barbara deu um tapinha na mão de Leo.
— É como algo saído de um romance. Você, quase um duque, Jane,
uma órfã...
— Ah, órfã é uma palavra tão dramática. O acidente de carro
aconteceu anos atrás — disse Jane, mas então deixou o olhar perdido e o
manteve assim por alguns instantes, até um garçom se aproximar com
uma enorme garrafa de champanhe. — Ah, não, vocês não devem fazer
isso. É incrivelmente gentil da parte de vocês, mas realmente não
podemos aceitar, não é mesmo, amor?
Leo balançou a cabeça.
— Realmente não podemos aceitar — disse ele com voz abafada. —
Agradecemos o gesto, mas não podemos aceitar.
Jane baixou a cabeça, os ombros ligeiramente caídos, e suspirou.
— Agora me escutem — disse Hank, decidido. — Nós vamos brindar
aos dois e vocês vão beber com a gente, quer queiram ou não.
— Querido, o que você acha? — perguntou Jane a Leo, como se
acatasse suas decisões sobre tudo quando ninguém jamais havia
assumido tal postura em relação a ele. Ela virou para Barbara. — Ele fica
tão orgulhoso e britânico.
Leo ficou inquieto sob o olhar recriminador de todos.
— Fico mesmo. Não posso evitar, mas me recuso a discutir com minha
linda noiva quando a tinta em nossa certidão de casamento ainda está
úmida.
Havia sorrisos e taças de champanhe por todos os lados. Os dois casais
mais velhos até pediram uma garrafa menor antes de irem embora e
insistiram para que Jane e Leo ficassem com ela e bebessem.
— Mesmo essa garrafa ainda é muito grande. — Jane observou-a com
certo receio. — Mas que diabos devemos fazer com tudo isso?
— Ficarmos completamente bêbados — respondeu Leo enquanto
colocava mais champanhe nas taças. — Topa?
Jane franziu o nariz.
— Nunca fiquei completamente bêbada. Talvez um pouco...
— Eu definitivamente já fiquei bêbado. Posso lhe dar algumas dicas. —
Ele vinha ansiando por tocá-la de novo desde que tinham selado o acordo
com um beijo. Então a cutucou de leve com o cotovelo. — Aposto que
você aprende rápido.
Ela o cutucou de volta com força o bastante para fazê-lo derramar
metade da taça na calça jeans.
— Talvez eu possa lhe ensinar uma ou duas coisas também.
Acabou que as únicas coisas que Jane poderia ensiná-lo eram do tipo
que ela devia ter aprendido em uma escola preparatória para moças de
sociedade na Suíça. Ela sabia como se dirigir a um baronete, a maneira
correta de servir ostras e como comprar o presente de agradecimento
perfeito.
— É muito importante incluir um bilhete escrito à mão. Muito
importante. Eu seria completamente inútil em um acidente de avião, mas,
se você fosse convidado para almoçar com um baronete e ele servisse
ostras, então eu com certeza receberia o devido reconhecimento.
Ela estava apoiada nele, o braço de Leo confortavelmente em torno de
seus ombros.
— Estar bêbado é muito mais divertido do que ser bom, não é?
— Pergunte-me amanhã, quando eu estiver de ressaca — retrucou
Jane. O que quer que ela fosse, interesseira, picareta ou até uma órfã
quase casada com um especialista em tecnologia, Leo gostava dela.
Gostava muito dela.
Mas, apesar de tudo que tinha bebido, a mandíbula dele estava cerrada.
Começava a sentir a fissura. Com dificuldade, ele se desvinculou.
— Tenho que ir ao banheiro — disse ele.
Jane fez beicinho.
— Prometa que não vai demorar muito — pediu ela, mas deixou-o sair
com um sorriso, e logo Leo estava descansando a cabeça latejante e
enevoada contra o mármore frio do banheiro. Em seguida, trancou-se em
um dos cubículos — não havia nada tão plebeu quanto mictórios ali.
Tinha o saquinho que conseguira pegar, com suas roupas, quando o
marido de Melissa voltara para casa inesperadamente. Ele devia estar
desconfiado — desconfiança justificada, já que o pau de Leo já estava na
metade da garganta de Melissa quando ouviram Norman subir
pesadamente as escadas, falando ao celular.
Leo estava muito velho para sair por janelas, descer por canos de
esgoto e pular portões de segurança. Também estava muito velho para
fazer carreirinhas em uma tampa de privada limpíssima com um cartão
de crédito cancelado havia três anos. Estar velho demais nunca parecera
uma razão boa o suficiente para parar.
Leo enrolou a última nota de dez dólares com a habilidade de um
expert. Duas fortes inaladas, e ele pôde sentir a cocaína cortar a sensação
inebriante causada pelo champanhe. Sentiu o sabor amargo e ácido no
fundo da garganta e tentou engolir para livrar-se dele. Endireitou-se,
sacudiu a cabeça duas vezes, piscou e soltou o ar.
Aquilo era muito melhor. Sentia-se mais como ele mesmo, e ainda
assim mais atento, mais inteligente, mais engraçado. Como se pudesse ir
até Jane e impressioná-la com sua esperteza e seu charme, porque o que
ela vira até então era apenas uma fração do que ele tinha a oferecer. Ela
podia até se apaixonar por ele.
Ele passou a ponta do indicador pela porcelana branca a fim de
recolher o que havia ficado para trás. Depois passou o dedo cheio de pó
pela gengiva e fez careta ao sentir o gosto amargo.
Quando Leo correu o olhar pelo cubículo, viu algo no canto. Algo
laranja, ele podia não acreditar em carma, mas uma ficha de jogo de mil
dólares tinha de ser um sinal de que, em algum momento da vida, ele
devia ter feito algo de bom.
4

Leo já tinha saído havia muito tempo... tempo o bastante para dois
homens começarem a circular em torno dela como tubarões.
Nem mesmo o vestido de noiva e o brilho de recém-casada bastaram
para detê-los.
“Estou esperando meu marido voltar”, diria ela se um deles se
aproximasse muito; mas, mesmo em sua cabeça, ela travava na palavra
“marido”. Porque Leo não era o marido com quem pensara que se casaria
quando acordara naquela manhã.
Além disso, a palavra “marido” soava errada. Estranha. Incômoda. Mas
também ela estava bêbada. Mais bêbada do que já estivera, porque antes
só tinha ficado levemente embriagada.
Estar bêbada até que era bom; fazia os enormes lustres no alto
brilharem ainda mais forte, e por um tempo ela ficou contente em erguer
a mão em direção à lâmpada para que seu anel de noivado capturasse a
luz e brilhasse tão intensamente quanto na primeira vez em que o vira.
Na ocasião, ele estava exposto sob uma única luz e refletira de volta para
ela todas as suas esperanças e os seus sonhos. Mas o problema com
esperanças e sonhos era que eles sempre...
— Você está novamente com aquele ar triste no rosto. Por favor, não
seja uma bêbada sentimental.
Jane piscou para Leo.
— Não sou sentimental. Estou só pensando.
Ele era muito alto, muito barulhento, mas então sentou e falou com
aquela voz cadenciada irresistível:
— Não é permitido pensar.
E ele era tudo o que tinha para se agarrar naquela noite estranha. Ela
trazia uma aliança no dedo e uma certidão de casamento na bolsa, mas
deveria estar com Andrew, deslizando pelo salão de baile de um hotel do
outro lado da cidade. A mãe de Andrew, Jackie, tinha insistido para que
fizessem aulas de dança de salão para terem uma primeira dança
coreografada. Com as aulas, uma planilha e um aplicativo que Andrew
criara numa tarde de domingo para que não tivesse de contar as batidas
baixinho, ele conseguira se tornar razoável no foxtrote.
— Você dança foxtrote? — perguntou a Leo.
— Vou adorar se você quiser dançar. — E sorriu como se tivesse
acabado de pensar na piada mais engraçada do mundo. — Acho que
renovei minhas energias.
— Queria poder dizer o mesmo. Você acha que alguém se importaria se
eu me deitasse e tirasse os sapatos? — Ela se apoiou com vontade em
Leo, mas dessa vez, quando ele passou o braço ao redor de Jane, seus
dedos tamborilaram inquietamente no braço dela.
— Pobre garota. — Leo beijou sua testa. — A gente resolve isso mais
tarde. Porque agora... bem, eu tenho uma surpresa para você.
Jane se esforçou para sentar direito.
— Que tipo de surpresa?
— Está em meu bolso. Vá em frente, pode pegar.
— Ah, querido, se ganhasse um dólar toda vez que um homem me pede
para procurar uma surpresa em seu bolso, eu estaria rica e independente
agora — disse ela com uma voz afetada.
Leo riu.
— Isso significa que você já ouviu todas as minhas melhores tiradas?
— Provavelmente. — Ela estendeu a mão. — É o tipo de surpresa que
você poderia me mostrar?
Ele enfiou a mão no bolso e tirou um disco laranja, que segurou entre o
polegar e o indicador.
— É meu presente de casamento para você. Ou... espere. Que horas
são? Feliz aniversário. Pode ser seu presente de aniversário também.
Desculpe, não tive a chance de embrulhá-lo.
Talvez Jane estivesse sentindo sua energia se renovar também porque,
de repente, estava muito melhor.
— Bem, isso muda tudo — disse ela, mas, quando estendeu a mão para
pegar a ficha, Leo fechou a dele.
— Muda — concordou ele, levantando tão depressa que ela quase
aterrissou de bruços no sofá sem tê-lo para apoiá-la. Leo estendeu a outra
mão.
— O dobro ou nada pelo menos. O.k.?
Jane deixou Leo puxá-la do fundo do sofá e levantá-la, o que fez a
cabeça dela girar e a sala rodar ao seu redor.
— Ah, Deus...
— A tontura é uma merda, não é? Venha. Peguei sua mala. Vamos lá!
Leo já estava saindo depressa do bar e ela teve de correr atrás dele. Os
sapatos dela não eram feitos para correr.
— O que quer dizer com o dobro ou nada?
— Na verdade, podemos fazer melhor do que o dobro ou nada — disse
Leo por cima do ombro. — Do que você gosta? Vinte e um? Dados?
Roleta?
— Você não vai apostar com essa ficha!
Agora ele seguia para as escadas rolantes a passos largos,
animadamente, então foram se distanciando e Jane teve de chiar como
uma esposa ofendida. Era um pouco cedo demais para isso.
Leo esperou por ela.
— Vamos jogar roleta. Você pensa em um número e eu...
— Você está louco? São mil dólares. É dinheiro no banco. Melhor do
que dinheiro no banco e você quer jogá-la fora? E onde a conseguiu
afinal? Pensei que estivesse sem grana.
Era difícil subir em uma escada rolante quando seu cérebro e suas
pernas não estavam se entendendo e você tentava ponderar com um
homem que não tinha a menor noção do que era ser ponderado; o tipo de
homem que se casaria com uma completa estranha só pela empolgação
de fazer algo do tipo.
Leo sorriu.
— Eu achei. É um sinal. Vai ser divertido.
Quando chegaram às mesas de roleta, Jane ainda tentava argumentar
com ele.
— Querido, a vida não é nem um pouco parecida com os filmes. Sei
que você está imaginando o momento em que beija a ficha, como se
estivesse em um filme de Martin Scorsese, e depois a coloca na mesa com
um ligeiro floreio. Então, a bolinha para no seu número, muito embora
todas as probabilidades estivessem contra você, e todo mundo comemora
e bate palmas e você sente que é invencível, mas a bolinha não vai parar
no seu número. Uma novidade para você: a casa sempre ganha.
— Nem sempre. — Leo balançou a cabeça. — Que tal se eu não beijar
a ficha e simplesmente colocá-la na mesa, com decoro?
A crupiê olhou para eles.
— Façam suas apostas.
— Vamos, Jane. Dez minutos atrás não tínhamos nada. Agora temos
algo. É um sinal. — Ele até piscou várias vezes para ela, batendo os cílios,
e Jane sinceramente não sabia dizer se tinha vontade de bagunçar o
cabelo dele ou socá-lo. — Não temos nada a perder.
— Temos mil dólares a perder.
— É uma noite para correr riscos. Não seja tão chata — disse Leo,
tentando persuadi-la. — Nunca pensei que você fosse chata.
— Uma coisa que nunca fui é chata — retrucou Jane com dignidade,
embora estivesse cansada para discutir isso quando Leo tinha todas as
cartas na mão. Ou melhor, a ficha laranja. — Ah, se você quer mesmo —
falou, rendendo-se com um suspiro cansado. — Mas escolha o dobro ou
nada. Vamos aumentar as chances. Preto ou vermelho. Aposte no preto.
— Qual é a graça disso?
— Aposte no preto — disse Jane. Leo fez isso, resmungando algo para
o homem sentado a seu lado sobre a “patroa”. O homem balançou a
cabeça e sorriu de maneira solidária.
— Últimas apostas — avisou a crupiê, e Leo agiu tão depressa que Jane
ainda estava piscando quando ele atirou a ficha no número vinte e sete,
no tempo que faltava para encerrarem-se as apostas.
— O que você fez? — resmungou Jane. Leo deu de ombros, mas
parecia satisfeitíssimo consigo mesmo.
— Quem não arrisca não petisca — disse ele, e Jane se virou e fechou
os olhos enquanto ouvia a roleta girar.
Fez-se um silêncio mortal em volta da mesa, apesar da conversa, do
tilintar de copos e do zumbido de expectativa na enorme sala que parecia
se estender por toda a vida.
— Não posso olhar — disse Jane desnecessariamente.
Então ouviu a bola enfim parar. Houve um momento de silêncio, e em
seguida Leo disse baixinho:
— Puta que pariu.
Ele mereceu, pensou ela.
— Bem, é isso.

— Puta que pariu, com certeza. — Ele teve que forçar as palavras a
passarem pelo nó em sua garganta. — Puta que pariu mesmo. Trinta e
seis mil dólares, Jane! Estamos ricos!
Que bom que Jane era bonita, porque ela não sabia merda nenhuma. A
casa nem sempre ganhava, e as pessoas em volta da mesa estavam
comemorando e aplaudindo, e Leo não pôde se conter. Ele a virou de
volta para si, viu os olhos dela brilharem quando a ficha caiu e então a
levantou no alto e a girou.
— Luck, be my lady tonight — disparou Leo, e Jane riu alto, e ele nunca
tinha visto ninguém, nem na vida real, nem mesmo em seus sonhos,
parecer tão incrivelmente linda como ela naquele momento.
Então ele a beijou pelo simples prazer de fazer isso e para a alegria da
plateia, embora as comemorações começassem a perder força, já que
eram apenas trinta e seis mil dólares. Havia pessoas ali que tinham
ganhado e perdido dez vezes mais do que isso em uma única noite e não
se importaram. Contudo, trinta e seis mil dólares tinham muita
importância para Leo.
— Ah Deus, se você continuar me girando, vou vomitar — alertou Jane
de repente, e Leo colocou-a de volta no chão bem na hora em que a
crupiê empurrou uma pilha maravilhosamente grande de fichas laranja
em sua direção. — Olá, queridinhas. Venham com a mamãe.
Até a crupiê abriu um sorriso indulgente.
— Façam suas apostas — anunciou.
— Vamos tentar de novo!
— Não — disse Jane enquanto juntava depressa as fichas. — Pela
primeira vez na sua vida, você vai sair enquanto está ganhando.
Isso era algo que ele não estava preparado para fazer.
— Mas, Jane, estou com sorte. É você. Você é meu amuleto da sorte.
— Não sou, não. Sou sua cara-metade — retrucou ela com firmeza,
embora essa expressão da Park Lane fosse muito menos forte do que
antes. — Nós tínhamos mil dólares, agora temos trinta e seis mil. Você
realmente quer arriscar tudo isso no girar de uma roleta? Você não pode
estar tão bêbado.
— Últimas apostas? — disse a crupiê, olhando para eles. Jane
balançou a cabeça.
Quando se tem dinheiro, tudo se resolve. Um funcionário do cassino
surgiu de repente e, por um instante angustiante, Leo pensou que ia lhes
perguntar onde tinham conseguido aquela primeira ficha laranja, mas ele
só queria ajudá-los a trocar as que ganharam. Mesmo que não fossem
apostadores perdulários, havia uma chance de que, com a dose certa de
mimo e bajulação, eles pudessem acabar devolvendo ao cassino os trinta
e seis mil dólares. Além disso, tinham acabado de se casar e todo mundo
gostava de casais apaixonados tanto quanto de vencedores, por isso,
enquanto um funcionário do cassino foi encarregado de preparar um
quarto de hotel para eles, uma atendente radiante os presenteava com
uma garrafa de champanhe grátis.
Jane disse que não aguentava nem mais um gole.
— Não tenho certeza se gosto de ficar assim tão bêbada e ainda há uma
chance de eu vomitar.
No entanto, Leo queria que ela estivesse bêbada, porque ele estava
bêbado e a euforia da cocaína tinha se tornado uma euforia de vitória, e
ele ainda não queria que aquela sensação passasse.
— Comida. Você precisa de comida — concluiu ele. — Alguma coisa
para diminuir o efeito do álcool. Não se preocupe, vou cuidar de você.
— Você não é um doce?
Leo não se achava particularmente doce. Não quando a deixou em um
sofá no saguão, beliscando um enorme sanduíche, para ir ao banheiro
mais próximo cheirar outras duas carreiras.
Quando voltou, sentou muito mais perto de Jane do que antes e não
conseguiu parar de balançar a perna enquanto a observava comer
lentamente metade do sanduíche e depois empurrar o prato.
— Acho que não vou mais passar mal — disse ela. — Agora estou bem
animada. Você torna tudo tão divertido. Não me divertia assim há muito
tempo.
— Nem mesmo com o sr. Ex? — perguntou ele, com a perna batendo
contra a dela até Jane colocar a mão no joelho dele para fazê-lo parar.
— Não me entenda mal, querido. Ele tem muitas qualidades
admiráveis, mas saber como se divertir não é uma delas. Não como você.
Você é muito bom em se divertir.
— Sou bom em várias coisas — disse ele, deliberadamente baixando a
voz, fazendo-a soar o mais misteriosa e insinuante possível. Jane não
conseguia arquear a sobrancelha, não com o botox, mas ainda assim
podia fingir surpresa.
— Minha nossa! Que tipo de coisas?
Leo se aproximou o suficiente para ver que a pele dela era macia e
perfeita como veludo, assim como a curva superior dos seios. Ele estava
excitado, além de meio doidão, e só conseguia pensar em como seria abrir
aquele vestido e sentir o peso suave deles. Só tinha de ter certeza de que
Jane queria o mesmo.
— Sou o tipo de cara sobre o qual sua mãe a alertou.
A gargalhada dela era um lindo e rouco gorgolejar.
— De alguma forma, eu duvido disso.
— É melhor acreditar — retrucou ele, abaixando a cabeça e
pressionando os lábios ao longo da clavícula de Jane, o perfume dela já
fraco, mas ele ainda podia sentir o cheiro persistente de cassis. Leo
chegou ao canto de sua boca e ela ficou sem ar, e essa foi a deixa para ele
se afastar.
Leo conhecia bem esse jogo. Avançar, recuar. Avançar, recuar. Deixá-
las se acostumarem com isso, gostarem, começarem a desejar, e então se
retirar. Fazê-las entrarem em pânico achando que vai deixá-las na
vontade e depois usar essa vantagem a seu favor.
Então, quando um carregador os levou para seu quarto, uma excelente
suíte presidencial, Leo dançou com Jane no elevador e por um corredor
bem longo, parando de vez em quando para se curvar sobre ela, beijando
seu rosto, sua orelha, seu ombro. Todas as vezes, Jane ria, e o riso se
tornava um suspiro quando ele parava. Em seguida, ele a tomava de novo
nos braços, e a dança recomeçava.
Quando chegaram à suíte, no final do corredor, o carregador abriu a
porta, conduziu-os para dentro e colocou a mala de Jane no chão. Então
Leo pegou a bolsa dela, que estava recheada de notas de cem dólares, e
deu uma para o rapaz, que os deixou, piscando para ele com um ar
astucioso.
— Acho que existe um inferno especial reservado para quem não dá
boas gorjetas — disse Jane, em aprovação.
— Viu, eu disse que era bom em muitas coisas — disse Leo. Ela estava
parada junto à porta, parecendo talvez um pouco incerta e insegura. Ela
inspirou e expirou, o que proporcionava uma visão maravilhosa de seus já
maravilhosos seios.
Leo se aproximou dela com um passo rápido de dança de salão do qual
até Gene Kelly teria se orgulhado. Jane não resistiu quando ele passou o
braço em volta da cintura dela e os dois dançaram os poucos movimentos
que a levaram a ficar pressionada contra a parede.
Leo nem teve que pensar no que fazer em seguida, porque era mesmo
bom nisso. Ele sempre ganhava a garota, mesmo que não quisesse ficar
com ela depois. Cobriu o ombro de Jane de beijos, levantou o braço dela e
beijou-a onde a pele era bastante macia.
— Sua barba está arranhando — murmurou ela, e Leo a beijou ainda
mais. Beijou o pescoço dela, roçou o nariz onde sentiu sua pulsação, que
batia em um ritmo frenético, e seguiu pelo queixo até a boca, que se
curvou em um leve sorriso.
A respiração de Jane estava mais ofegante agora. Os lábios dela se
entreabriram e ele parou. Permaneceu com o corpo pressionado contra o
dela, mas já não a beijava mais, e ela fez beicinho.
— Você é tão linda — disse ele e, daquela vez, não era apenas uma
frase de efeito. — Sei que não paro de dizer isso, mas você é e eu te quero
tanto. Estou duro só de olhar para você.
— Está, querido? — Ela mordeu o lábio. — Só de olhar?
— É, veja só.
Mesmo ele tendo preparado o terreno, provocando-a pela última meia
hora, o vestido dela já parecendo meio murcho, mechas do cabelo louro-
mel escapando da grinalda e do penteado bem preso, a maquiagem já
quase só na lembrança, ainda havia algo de intocável em relação a ela.
Leo pegou a mão de Jane, que estava quente e um pouco suada, e
beijou-a na palma antes de colocá-la em seu pênis. Os dedos dela
agarraram-no convulsivamente, e Jane umedeceu os lábios com a língua.
Ela não era assim tão intocável.
Ele abaixou a cabeça, levando a boca junto à orelha dela, e sussurrou:
— Dá para sentir o quanto eu te quero? Você me quer também?
Ela fechou os olhos e apertou mais uma vez o pau dele, que ficou ainda
mais duro, latejando contra o toque dela. Então tirou a mão e ele sentiu
um aperto no coração até ela lançar os braços em volta dele.
— Quero! Quero muito!
Leo não se deu mais ao trabalho de provocá-la. Beijou-a com força e
Jane retribuiu. Ele a levou até a cama enorme, que ficava em uma parte
mais alta do quarto, toda enfeitada com tecidos e travesseiros
minúsculos, e não parou de beijá-la, para que ela não tivesse tempo de
pensar.
Mas ela estava no mesmo clima que ele, feliz em cair na cama,
contorcendo-se embaixo dele enquanto ele devorava sua boca com a
língua. Leo queria abocanhar os seios dela em seguida, mas tinha visto a
quantidade enorme de minúsculos botões cobertos de seda que fechavam
o corpete do vestido dela e que demoraria muito tempo para abri-los.
Tempo suficiente para Jane mudar de ideia, e ele precisava daquilo. Em
um dia como outro qualquer, que se fundia a todos os outros dias, meses e
anos, em que ele nunca conseguia o que queria, nunca conquistava nada
relevante, uma estranha reviravolta do destino fizera ele conseguir aquela
garota.
— Puta que pariu, você é perfeita — sussurrou ele em sua pele, com a
boca no topo dos seios dela, enquanto começava a puxar para baixo o
corpete do vestido. Jane congelou.
— Não, querido — disse ela. — É vintage. Você pode rasgá-lo.
— Quero muito deixar você nua.
— E eu quero muito que você me beije de novo — pediu ela. Ele podia
fazer isso, e ela não se importou quando Leo levantou todos aqueles
metros de tule de seda e tafetá e se acomodou entre suas pernas.
Jane gemeu quando ele a pressionou e levantou o corpo para que
pudesse tirar a fina peça de cetim e renda que a cobria. Ele pressionou a
palma da mão contra ela e pôde senti-la nua e macia — ainda não
molhada o suficiente, mas ele cuidou disso com a mão. Um dedo dentro
dela e o polegar acariciando o clitóris, e ela gemeu um pouco, fechando
bem os olhos.
— Você é realmente bom nisso, não é? — disse ela, com voz rouca.
Ao chupar o dedo que enfiara nela, Leo descobriu que ela também
tinha gosto de cassis. Ele pensou em chupá-la, nunca havia se importado
com isso, gostava muito, às vezes até mesmo adorava, mas ela agora já
estava molhada. Ela não precisava disso e ele realmente estava louco para
transar.
— Vou morrer se não meter logo em você — disse ele, enquanto
colocava o polegar perto do clitóris, fazendo-a se contorcer para
posicioná-lo onde o queria. — Mal posso esperar para te foder.
— Não quero que você morra. — Ela levantou o quadril. — Deus, acho
que eu vou morrer.
— Você quer? Você me quer? — perguntou Leo, mas Jane não
respondeu, porque tinha arqueado as costas até um ponto que parecia
doloroso.
Ele pressionou o polegar contra o clitóris dela novamente, deixou que
Jane se esfregasse nele um pouco, mas, quando ela arqueou as costas e,
gemeu mais uma vez como se fosse gozar sem ele, Leo parou.
— Sim. Eu te quero! Por favor. Eu quero.
Ele poderia fazer isso com os olhos fechados e a mão amarrada nas
costas. Poderia mantê-la daquele jeito, enlouquecida, mas sem passar dos
limites, enquanto a fodia com dois dedos agora, e com a outra mão
tateava o bolso de trás para pegar uma camisinha, rasgava a embalagem
com os dentes, desabotoava e descia o zíper da calça. Ele pegou a mão
sem força dela e a colocou no pênis, fechou os dedos em volta dos dela,
enquanto ela o masturbava. Depois a camisinha ficou no lugar e ele
estava tão duro que doía, podia sentir a dor nas bolas, e deslizar bem
fundo dentro dela era a única coisa capaz de salvá-lo.
Ela era apertada. E ficou ainda mais apertada quando o agarrou,
prendendo-o com as pernas. Leo sequer tinha tirado a calça, e ela
merecia alguém que fizesse aquilo doce e lentamente, que fizesse amor
com ela. Mas ele não podia ser esse cara.
Então, ele tirou um pouco o pênis, depois arremeteu com força, e ela
fechou os olhos agarrando-se ainda mais firme, apesar de ele achar que
isso fosse impossível.
Em seguida, os olhos dela se abriram.
— Ah, querido, me foder até cansar é mais uma daquelas coisas em
que você é realmente bom? — ronronou ela com um sorriso felino. — Vá
em frente, então. Me mostre do que é capaz.
5

Outubro de 1943

Rose pensou em voltar para Durham muitas, muitas vezes. Quando ela
telefonara para casa naquela primeira incerta manhã cinzenta de
Londres um mês atrás, todos tinham saído, menos Shirley, que gritara
com Rose por pegar seus vestidos. Ela dissera que, se Rose voltasse,
ficaria confinada no quarto tricotando balaclavas até que pudessem
mandá-la para as Land Girls, isso se o pai não a prendesse antes.
Rose não tinha mais ligado para casa desde então. Estava se virando
muito bem sozinha. Tinha arranjado um emprego em um café no Soho,
administrado pelos proprietários, o sr. e a sra. Fisher. Ela fazia de tudo,
desde servir mesas até brigar com a temperamental chaleira com
torneira, descascar legumes e lavar. Quando chegava a hora do almoço,
seus pés já estavam doloridos e suas mãos, irritadas, vermelhas e feridas
de lavar panelas e frigideiras.
Todos os dias, Rose perguntava sobre vagas de emprego na Lyons
Corner House, na Tottenham Court Road. Preferia ser garçonete em um
vestido preto limpo do que usar um avental manchado sobre um vestido
de verão velho e um cardigã. Ela recebia duas libras por semana, além
das gorjetas, que eram praticamente inexistentes, e alugara um quarto
compartilhado com meia pensão em uma casa perto da Edgware Road
por uma libra e dez xelins por semana, assim não sobrava muito para ela
se manter.
Sua senhoria, a sra. Cannon, era magra, com um ar malvado, e
confiscara a caderneta de racionamento de Rose. Tinha de estar no café
às sete todas as manhãs, e a sra. Cannon deixava para ela uma insípida
fatia de pão com quase nada de margarina. Quando ela chegava em casa
do trabalho às cinco, havia um prato de ensopado com um monte de
repolho boiando e alguns pedaços de algo pálido e ao mesmo tempo
gelatinoso e cartilaginoso. Rose nunca tinha certeza se era carne ou
peixe.
Mas ela almoçava direito todos os dias, e a garota com quem dividia o
quarto, Olive, se ofereceu como voluntária para observar aviões inimigos
do telhado. As duas acertavam o alarme para as oito horas da noite e iam
direto para a cama após sua tigela de ensopado indeterminado e sem
sabor para um cochilo.
Às oito e meia, Olive subia no trólebus para seu turno e Rose voltava
para a cidade. Após duas semanas, ela parou de tentar entrar no Rainbow
Corner. Era impossível estar lá sem encontrar um soldado disposto a
ajudá-la, e aquelas garotas determinadas que enchiam o emaranhado de
ruas em torno da Piccadilly Circus não ficavam nem um pouco felizes
com recém-chegadas tentando atrapalhar seus negócios.
Todas essas garotas tinham lanternas que acendiam em seus
tornozelos cada vez que um homem de uniforme passava. Também
faziam coisas nas portas com os soldados. Mesmo as portas estando nas
sombras, os ruídos dos casais, uma perna nua enroscada vista de relance,
todas essas coisas faziam Rose passar depressa, desviando o olhar. E, na
noite em que viu duas garotas caírem no chão chutando, cuspindo e
puxando o cabelo uma da outra, brigando pela atenção de um soldado
magro com um narigão e dentuço, ela se perguntou se uma única noite
gloriosa no Rainbow Corner era tudo o que teria.
Rose tinha até voltado à estação de King’s Cross para ver se encontrava
um soldado na fonte, mas os que ela timidamente abordou ou não iam ao
Rainbow Corner, ou entenderam tudo errado. Um deles de repente exibiu
uma meia de nylon, como um mágico que tira lenços de um bolso
aparentemente vazio.
— Você quer a outra, doçura? Então por que você e eu não damos uma
voltinha?
Mas pelo menos ainda havia lugares, muitos deles, onde ela podia
dançar. Rose tinha se tornado uma especialista em jive, aprendendo com
os homens com quem dançava no Paramount ou no Frisco’s quando se
aventurava a voltar à Piccadilly. Também tinha ficado incrivelmente boa
em se defender dos avanços de rapazes com a cara cheia de espinha que
lhe diziam que estavam indo lutar por ela. Não era de admirar que ela
preferisse dançar com os negros.
Os negros com quem Rose dançava a chamavam de “senhora” e,
quando não estavam curvando-a e girando-a — e, em uma ocasião
gloriosa, levantando-a sobre a cabeça —, só tocavam em seu cotovelo
para guiá-la para fora de uma pista de dança lotada, que cedia e rangia
com o peso de todos os casais que rodopiavam.
Naquela noite, Rose estava indo ao Bouillabaisse Club, na New
Compton Street, com Kathy, que trabalhava na tabacaria duas portas
para baixo do café.
— Eles tocam jazz a noite toda — disse Kathy à Rose enquanto
entravam na fila para entrar. — Você gosta de jazz? Eu gosto.
— É a coisa que mais amo no mundo — assegurou-lhe Rose, embora
não se importasse de fato com o que tocavam, desde que a música tivesse
uma batida que lhe permitisse dançar. Logo estava nos braços de um forte
jamaicano chamado Cuthbert.
Quando Rose dançava, todos os horrores de sua nova vida — a fome, a
incerteza sobre o futuro e o medo de ser arrastada de volta à antiga vida e
ao terrível castigo que lhe esperava — desapareciam.
Os pés dela paravam de doer e faziam todos os tipos de passos
habilidosos e imprevisíveis que ela não sabia que podiam fazer. Cuthbert
tinha dentes brancos brilhantes e lhe disse que ela era bonita enquanto a
rodopiava várias vezes pelo salão. O vestido de tafetá azul-claro de
Shirley ficava mais capenga a cada dia.
Após uma hora de dança, Cuthbert comentou que ficaria feliz em
arrumar o melhor refrigerante de gengibre que o dinheiro podia comprar,
enquanto Rose ia ao banheiro feminino para ajeitar o cabelo.
O minúsculo banheiro estava lotado de garotas na fila para o único
reservado ou brigando por um espaço em frente ao espelho. Rose ficou
presa entre duas moças que debatiam os méritos de corante de molho em
contraste com chá frio para simular o efeito de meias-calças “se não
conseguissem encontrar um ianque”.
— Prefiro usar corante de molho do que conseguir um par de meias
com um ianque e arrumar, de quebra, uma gonorreia — murmurou uma
delas sombriamente.
Rose tentou não parecer chocada. Afinal, seu pai era médico. Havia
dois livros no escritório dele que eram mantidos trancados na gaveta da
escrivaninha, mas ele sempre guardava a chave em seu porta-caneta de
latão e, quando ele estava em uma de suas reuniões do Rotary Club ou da
maçonaria, sua mãe ia dormir cedo, por isso Rose não desconhecia essas
coisas da carne. Ainda assim, havia coisas que simplesmente não se
diziam em público.
Ela procurou manter distância até as duas liberarem o espaço em
frente ao espelho. Seu cabelo lisíssimo tinha, como de costume, escapado
dos quatro grampos que eram só o que lhe restava. Estava ainda mais
rebelde por ter sido lavado com água fria porque a sra. Cannon cobrava
um xelim extra para usar uma água ligeiramente morna por uma hora
todos os dias.
Rose passou nas bochechas vermelhas e na testa suada um pouco do
pó compacto do estojo dourado que Shirley lhe dera em seu aniversário
de dezesseis anos — embora sua mãe tivesse dito que ela era muito nova
e que o compacto parecia ordinário. Ela ainda estava vermelha e com a
pele oleosa e havia manchas de umidade no tafetá azul-claro, de onde
ela...
— Será que eu poderia pedir um pouquinho do seu batom?
Rose olhou para cima e viu uma garota em pé atrás dela. Esta tinha
olhos azuis puxados em um lindo rosto de boneca e cabelo no estilo Jean
Harlow, que Rose tinha certeza de que era descolorido. Mulheres com
cabelo descolorido também eram algo comum, mas aquela garota sem
dúvida não parecia com as moças atrevidas que iam ao café ou
costumavam bloquear a visão de Rose do espelho nos salões de dança de
Londres.
Quando Rose timidamente sorriu para a garota, ela sorriu de volta.
— Fique à vontade — respondeu Rose, estendendo sua preciosa
embalagem de Max Factor Tru-Color vermelho vivo. Assim que o
entregou à outra garota, Rose quis apanhá-lo de volta. Em vez disso,
assistiu ansiosamente ao batom ser passado com moderação no que
poderiam ser descritos em um romance como lábios carnudos.
— Você é um anjo. — A garota pressionou os lábios um contra o outro
para espalhar a cor. — Então o que você fez para conseguir um Max
Factor?
— O que eu fiz? Ah! Bem, nada, na verdade. Prudence, a irmã da
minha amiga Patience, trabalha em uma fábrica de munições. Todas as
meninas ganharam um batom como agradecimento por terem feito sua
parte, mas Prudence é contra maquiagem por motivos religiosos, e os
pais dela disseram que Patience era muito nova, então elas deram para
mim.
— Que tolice. Não consigo imaginar que Deus possa se importar se
uma garota usa um pouco de pó e maquiagem. Com certeza, Ele tem
coisas mais importantes com que se preocupar.
Rose assentiu.
— É verdade, não é?
Elas sorriram uma para a outra novamente.
— É muito difícil conversar com o reflexo de alguém — observou a
outra garota —, e estamos criando um terrível engarrafamento.
— Que chato! — Rose enfiou o pente, o pó compacto e o batom de
volta na bolsa e se afastou do espelho, seguindo a garota até a pequena
antessala que levava de volta ao clube. — A propósito, meu nome é Rose.
— Sylvia! — O nome saiu como um gritinho quando um homem forte
em um uniforme de marinheiro, que aparecera atrás de Sylvia, a
levantara do chão. — Adorei conhecer você. Obrigada pelo batom! —
Suas palavras foram engolidas pelo barulho ambiente à medida que era
levada dali.
Cuthbert esperava pacientemente por Rose no bar com o prometido
refrigerante de gengibre e, tão logo tomou a bebida, ela já estava de volta
nos braços dele.
Eles só tiveram tempo para um rápido jive antes que Sylvia cutucasse
Cuthbert no ombro.
— Posso interromper? — gritou ela, os braços já em torno da cintura
de Rose. — Precisamos de outra garota para igualar os números.
— Traga minha Rosie de volta sã e salva — disse Cuthbert, mas ele já
estava de olho nas moças ao lado da pista de dança, deslocando o peso de
um pé para o outro, enquanto procuravam por um rapaz disponível. Rose
não achava que Cuthbert fosse esperar por ela.
— Não tinha certeza se você precisava ser resgatada, mas tenho um
soldado de um metro e noventa de altura que está ficando com torcicolo
de dançar com tantas garotas baixas. Além disso, algumas garotas aqui se
sentem pouco à vontade dançando com um negro.
Kathy se sentia pouco à vontade dançando com negros. Dizia que
nenhum deles tomava banho direito, o que não era verdade, porque todos
com que Rose dançara estavam impecavelmente limpos e arrumados,
mas Kathy desaparecera com um marinheiro que mascava chiclete cinco
minutos depois que elas chegaram, o que deixou Rose livre para dançar
com quem escolhesse.
Então foi apresentada a um soldado gentil e sorridente chamado Ray,
que beijou sua mão, disse que ela parecia Hedy Lamarr, perguntou se ela
sabia dançar jive e puxou-a para a pista de dança, onde a levantou como
se ela fosse tão leve quanto um dente-de-leão, girando-a sobre a cabeça.
Ela só teve tempo e presença de espírito de dobrar as pernas para não
acertar as orelhas dele.
Quando a banda decidiu fazer uma pausa, o corpete do tafetá azul-
claro estava completamente encharcado e as pontas do cabelo de Rose,
pingando. Estava tão quente e úmido no pequeno clube que a
condensação pingava do teto e a maioria dos soldados tinha tirado a
jaqueta. O lugar cheirava a mofo e suor.
— Aqui! — Sylvia acenava freneticamente de um canto distante. —
Rose! Ray!
Ela deixou Ray conduzi-la pela multidão de dançarinos que
descansavam: garotas com as mãos nos joelhos enquanto tentavam
recuperar o fôlego, os homens secando a testa com lenços.
— Billy pegou uma bebida para você — disse Sylvia a Rose assim que
chegaram à mesa. Rose não sabia quem era Billy, e o copo que lhe
estenderam continha um líquido morno ainda pior do que a coca-cola
que tomara no Rainbow Corner. — Gin and French, leva gim e um
aperitivo licoroso. Divino, não é?
— Ah, é meu preferido — retrucou Rose.
Ela deixou Ray lhe acender um cigarro e lhe arrumar uma cadeira, e
foi só quando já estava sentada, tomando cautelosos goles da bebida e
dando baforadas hesitantes no cigarro, que notou as outras duas moças.
Uma era loura, embora não tão loura quanto Sylvia, e exibia os seios
grandes em toda a sua glória em um vestido esmeralda de cetim, e a
outra era mais magra, tinha a pele mais escura, estava toda de preto e
parecia extremamente elegante.
— Phyllis. — Sylvia primeiro indicou a loura, e depois a morena. —
Maggie. Esta é Rose. Ela me emprestou um pouco de batom e sabe dançar
jive.
Rose resistiu ao impulso de encolher os ombros quando Phyllis e
Maggie a examinaram.
— É um prazer conhecê-las — disse ela.
— Quantos anos você tem? — perguntou Maggie. Rose achou que ela
tinha sotaque, mas era difícil saber direito, já que a banda tinha voltado a
tocar.
— Tenho dezenove.
Maggie olhou para o vestido manchado de suor de Rose, para o cabelo
que mais uma vez tinha se soltado das amarras e não disse nada, porém
olhou para Phyllis com as sobrancelhas arqueadas.
— Então você já decidiu o que vai fazer quando for recrutada no ano
que vem? — perguntou Phyllis.
Rose não tinha pensado em nada porque ainda faltavam três anos para
completar vinte, e a guerra não poderia durar mais três anos, embora
muitas vezes parecesse que ia durar para sempre.
— Tudo menos entrar para as Land Girls — disse ela com fervor, mas
não queria que elas achassem que a única coisa que vinha fazendo pelo
esforço de guerra era dançar com soldados de licença. — Estou em
Londres só há algumas semanas, mas, agora que arrumei um lugar para
ficar e um emprego, estou procurando um trabalho voluntário. — Phyllis
e Maggie ainda franziam os lábios, o que não era muito encorajador. —
Olive, a garota com que moro, passa três noites de serviço como
observadora de telhado. Ela disse que as coisas andaram paradas durante
um bom tempo, mas têm ficado mais agitadas ultimamente.
Em Durham, os bombardeios tinham se tornado tão esporádicos que o
pai de Rose até guardava a bicicleta no abrigo antiaéreo, o que teria sido
impensável dois anos antes. No entanto, nas poucas semanas desde que
chegara a Londres, Rose tinha voltado a se acostumar com o gemido da
sirene e a ter de descer com cuidado três lances de escada no escuro até o
porão úmido. Só não tinha se acostumado com os barulhos aterrorizantes
dos canhões antiaéreos ou em ver o céu se iluminar tanto. Não só por
causa da cidade ardendo em chamas em razão das bombas que caíam,
mas também pelos raios de luz fantasmagóricos dos holofotes à procura
dos aviões alemães.
Essa era uma das vantagens de passar a maioria das noites em porões
mal-iluminados, onde a banda e o som surdo dos passos abafavam os
barulhos do mundo exterior. Na maioria das vezes, quando as sirenes
eram ligadas, não passavam de um gemido distante e todos continuavam
a dançar.
Mas aquilo não tinha importância naquele momento, quando Phyllis
olhava para ela como se tivesse confessado algo terrível, como ter um
amante secreto nazista ou que negociava no mercado negro. Maggie
também não parecia muito feliz e Sylvia não podia ajudar, pois estava de
costas para as três, enquanto conversava com dois pilotos.
— Eu disse algo que as ofendeu? — perguntou Rose timidamente.
— Não, é claro que não — respondeu Phyllis, mas seu enorme peito
arfava. — Mas, se Londres não é agitada o suficiente para você, então é
uma pena não ter estado aqui há dois anos. Garanto que nessa época as
coisas eram bem agitadas.
— Desculpe-me, não quis dizer isso.
Maggie pegou seu copo, quase tomou um gole e o colocou na mesa
molhada com certa força.
— Você tem alguma ideia do que... todos que eu conheço... todos
perderam alguém durante a Blitz.
— Sinto muito. Sinto muito de verdade.
Ela sentia do fundo do coração, mas mesmo assim Rose notara que os
londrinos tinham uma tendência a falar sem parar sobre a Blitz como se
nenhuma bomba tivesse caído em outro lugar. Como se ninguém
soubesse o que era de repente perder pessoas que conhecia, como Janet e
Susan da turma na escola e Timothy McFarlane, que certa vez levara
Shirley à feira e morrera na primeira missão da RAF. Mas era muito difícil
explicar isso àquelas duas garotas soberbas, que julgavam ter o
monopólio da perda só porque moravam em Londres. Era muito melhor
se desculpar de novo, pedir licença e ir embora.
— Então creio que vocês duas não se voluntariaram.
Ou ela poderia ficar e se encrencar ainda mais.
Dessa vez, o olhar trocado entre Phyllis e Maggie foi menos cético,
mais presunçoso.
— Nós fazemos trabalho voluntário — retrucou Phyllis. — Para a Cruz
Vermelha Americana.
— Mas temos direito a uma noite de folga — acrescentou Maggie.
E, embora seu cabelo estivesse encharcado e pesado, Rose achou que
de repente ele tinha se arrepiado.
— Ah. — Ela tentou parecer indiferente, mas essa única sílaba soara
tão aguda que rivalizava com qualquer nota que o saxofonista da banda
tocara aquela noite. — No Rainbow Corner?
Elas assentiram. Sylvia, que ouvira o último trecho da conversa,
inclinou-se sobre o ombro de Phyllis e disse:
— Às vezes acho que deveríamos lhes pagar pelo privilégio de sermos
voluntárias. É tão divertido, todo mundo é tão agradável, e as regalias...
Tenho barras de chocolate e pacotes de cigarros saindo pelas orelhas.
— Cale a boca, Syl. Como dizem, línguas soltas podem afundar navios
— alertou Phyllis, aproximando-se por trás para dar um cutucão nas
costelas da amiga. — Não que nós aceitemos quaisquer desses benefícios.
Rose não se importava se elas aceitavam ou não.
— Vocês são voluntárias no Rainbow Corner? É possível mesmo fazer
isso?
— Só quando se tem mais de dezoito anos — respondeu Maggie. — De
qualquer forma, há uma lista de espera. Que é enorme. Há também uma
lista de garotas que não podem passar pela porta.
Ela fez parecer que cuidaria pessoalmente para que o nome de Rose
estivesse na lista negra só porque tivera a audácia de não estar em
Londres durante a Blitz. Maggie e Phyllis eram muito desagradáveis e,
embora Sylvia parecesse bastante gentil, Rose não tinha certeza se
poderia confiar em alguém que era amiga de garotas tão rudes.
— Ah, olhe! Lá está Cordelia! Não a vejo há séculos! — Sylvia de
repente saiu, deixando Rose ali sentada com Phyllis e Maggie, que a
ignoraram por uns bons dois minutos até que Cuthbert felizmente
reapareceu e perguntou se ela poderia lhe dar o prazer da próxima dança.
6

Poderia ter sido qualquer um de uma série de sofrimentos o que forçou


Jane a acordar.
Ela estava de bruços, com a cabeça num ângulo desconfortável porque
ainda usava sua tiara, que agora parecia um instrumento de tortura.
Ainda estava vestida. Com seu vestido de noiva... ela se perguntou por
que ainda estava com o vestido de noiva. Quando se lembrou de todos os
horrores e indignidades das últimas vinte e quatro horas, Jane desejou
que ainda estivesse apagada. O corpo todo estava dolorido; desde os pés,
que doíam por ter andado muito de salto, até a cabeça, que parecia
envolvida por tenazes esmagando o crânio e tudo o que havia no meio
dele. Principalmente o que havia no meio.
Me fode até cansar.
Leo tinha levado a sério o que ela dissera. Transara com ela por tempo
suficiente para Jane perceber que, apesar de todas as preliminares, todo o
desenrolar das coisas, não ia gozar. Não parecia que ele ia gozar também,
nem mesmo depois de ela fingir um orgasmo. Dois orgasmos! Então
enfim ele gozou e Jane fingiu adormecer enquanto ele andava pela suíte
fazendo Deus sabe lá o quê.
Ele estava dormindo agora. Jane sentou muito devagar, com muito
cuidado, mordendo o lábio porque só de sentar teve de levar as mãos à
cabeça para fazê-la parar de latejar.
Leo estava esparramado ao lado dela; barrigudo e pálido, de cueca e
boca aberta, o que explicava por que fazia aquele barulho horrível, como
uma metralhadora cheia d’água disparando. Ele não parecera assim na
noite anterior. Ou talvez a tristeza dela e todo o champanhe tivessem
enevoado seu julgamento.
Jane levantou com as pernas bambas, pegou o celular na bolsa e se
arrastou em direção ao banheiro. Evitou o espelho, sentou na borda da
banheira e estendeu a mão esquerda. Os diamantes no anel brilharam,
mas ela já não se sentia feliz com isso.
Quando o noivado era tão novo e resplandecente quanto o anel e ela
percebera que conseguira, que seus dias de solteira tinham acabado, Jane
recitava a certificação do anel como poesia. Era poesia. Art déco,
diamante de 6,10 quilates com corte Asscher, ladeado por dois diamantes
retangulares e catorze diamantes de corte redondo com um peso
combinado de 4,44 quilates e cravação com garras, anel em platina. Uma
grana fodida, baby.
Era a sua recompensa por todo o tempo que passara à procura daquele
pote de ouro no fim do arco-íris. Todos os homens com quem ficara para
ver se daria certo. Os três anos que passara atraindo Andrew, muito
devagar, muito sutilmente, para que sempre achasse que era ele quem
estava no comando.
Três anos desde aqueles terríveis dois dias trancada em um quarto de
hotel de Moscou por um comerciante de petróleo russo que fizera coisas
terríveis... não havia sentido em reviver o passado. Ela soubera, então,
que a festa tinha acabado: ela precisava casar quando tivesse vinte e sete
anos, porque essa era a linha tênue, porém mortal, que separava uma
garota que só quer se divertir de uma com quem todo mundo se divertiu.
Além disso, ficar trancada naquele quarto de hotel com aquele
psicopata... não, ainda era melhor não ir por aí. Basta dizer que estava
cansada. Tão cansada de bares de hotéis em cidades estrangeiras, de
procurar no lugar por um homem que não hesitaria quando ela pedisse
uma taça de Louis Roederer Cristal 2000 Rosé e ele tivesse de comprar a
garrafa inteira. Refreá-lo, fazê-lo esperar por outro encontro, arrastando
aquilo o quanto pudesse. Além disso, as meninas que vinham depois dela
eram muito, muito mais jovens e mais famintas, e as garotas do Leste
Europeu não tinham respeito pela maneira como o jogo deveria ser
conduzido.
Jane estava cansada dos oligarcas russos. Cansada daquele lixo
europeu. Cansada dos filhos mimados dos magnatas do petróleo e do aço.
Ela precisava de alguém promissor, mas que ainda não tivesse chegado lá,
e realmente precisava de uma mudança de cenário. Então, um dia, em
um jantar em Aspen, ela estava sentada ao lado de um capitalista de risco
especialista em investir em start-ups. Ela selecionara os cérebros com
quem ele trabalhava, fizera algumas pesquisas, montara uma lista com
uma seleção final e fizera as malas para São Francisco.
Ela esbarrara em Andrew durante um intervalo em um TED talk sobre
inteligência artificial. Ele a ajudara com algum problema relacionado ao
iPad, corando o tempo todo e tropeçando com as palavras. Depois disso,
eles continuaram se esbarrando de vez em quando por toda a cidade.
Nenhuma coincidência — não quando Andrew não parava de tuitar sua
agenda.
Andrew era novo e inexperiente o bastante para, apesar de ter milhões
em capital inicial, ainda não contar com uma equipe grande, não ter
muitos parasitas em volta. Só uma sala cheia de rapazes que se pareciam
muito com ele trabalhando com programação e uma namorada com
quem estava desde o segundo ano em Harvard, que não teve a menor
chance. Seu problema mais premente tinha sido Jackie, a mãe anglo-
saxã, rica e protestante de Andrew, de Providence, Rhode Island, mas ela
mudara de ideia rapidinho quando Jane pedira seus conselhos para
preparar os pratos preferidos de Andrew, dera-lhe chá da Fortnum &
Mason de presente que mandara entregar na sua casa e enfim
conquistara seu coração com uma história incrementada sobre ter
sentado ao lado de Pippa Middleton em uma partida de polo. A única
outra pedra em seu caminho era a irmã de Andrew, Stephanie, que se
nomeara gerente dele. Mas arrumar para Andrew um gerente que
realmente soubesse gerir um negócio sempre estivera no topo da lista de
prioridades de Jane.
Parecia frio, mas mesmo a garota mais sonhadora avaliava o
casamento com algum cálculo. Andrew não era só alguém que podia ser
facilmente enganado. Ele era gentil, bonito e alinhado como um aluno de
colégio preparatório. Nunca, jamais levantaria os punhos ou a voz para
ela e criara o software de reconhecimento facial e de voz que o Google, a
Apple, a Nasa e os chineses tanto queriam, o que significava que Andrew
ficaria muito rico. Obscena, obsequiosa e oligarquicamente rico. Então,
mesmo que ela e Andrew não tivessem nada a ver, Jane poderia ter
esperado três anos.
Após três anos de casamento, ela teria ganhado um grande cheque de
pensão alimentícia, e ser uma divorciada tinha uma vibração
completamente diferente de ser uma garota já passada da idade que só
quer saber de festas.
Mas na manhã do dia anterior, a maldita Stephanie, apesar de todo
aquele papo de ter se formado como uma das melhores da turma em
Wharton, não preenchera direito toda a documentação do pedido de
patente. Estava faltando um número vital de informações, e,
ironicamente, o número quatro na lista de pretendentes da área de
tecnologia que Jane elaborara havia três anos estava trabalhando em algo
semelhante. Agora o Google, a Apple e os chineses iam dar a ele bilhões
de dólares. Em apenas uma hora, Andrew era passado. Apenas mais um
que quase chegou lá. Supérfluo.
— Vocês ainda podem se casar — insistira Jackie quando todo o clã
Hunnicot se reunira na suíte nupcial no TheHotel do Mandalay Bay.
Devia dar azar o noivo ver a noiva antes do casamento, mas o azar já
tinha chegado, se instalado e se servido de um copo grande de bebida.
Andrew parecia arrasado. Seu rosto estava tão cinza quanto o colete de
brocado de seda, mas, ao ouvir as palavras da mãe, ele virara os olhos
esperançosos em direção à Jane, que estava sentada na cama se
perguntando se alguém notaria caso ela colocasse a cabeça entre as
pernas, porque realmente achava que poderia desmaiar.
— Você ainda quer se casar comigo, Janey?
— É claro que sim — respondeu ela, porque não se pode chutar um
homem quando está caído. Não na frente dos familiares e amigos mais
próximos.
Então Andrew falara sobre a possibilidade de um emprego na
Microsoft. De se mudarem para Seattle, e talvez até de opções de compra
de ações. Jane assentira, sorrira e apertara a mão dele quando se
aproximou e sentou ao lado dela.
Mesmo com o anel de noivado já no dedo, de vez em quando Jane tinha
a sensação de que garras geladas estavam segurando seu coração. Que ela
estava perto, mas não perto o bastante, e que ainda poderia dar tudo
errado. E então os dedos gelados estavam de volta e não queriam soltá-la.
Além disso, a única vez em que tinha ido a Seattle chovera o tempo todo.
Ela enfim convencera Andrew de que tudo ia ficar bem, muito bem, e
ele saíra para esperá-la no terraço. Jackie, a maldita Stephanie e as
damas de honra de Jane, embora não fossem amigas, mas apenas
namoradas dos amigos de Andrew, ficaram, e Jane lhes pedira para ir
também.
— Eu só preciso de um minuto. — Ela engolira em seco delicadamente.
— Para pensar em meus pais. Queria que eles pudessem estar aqui hoje.
Elas se dispersaram, e Jane não perdera tempo. Rapidamente fizera a
mala, descera às escondidas a escada de serviço, saíra pela entrada de
funcionários e embarcara em um táxi que deixava alguém. Só tinha vinte
dólares, o bastante para dar uma gorjeta para a garota no toucador, e foi
apenas o suficiente para levá-la de volta à cidade e deixá-la na parte não
tão agradável dela.
Jane não fora talhada para ser outra coisa que não uma esposa troféu,
e um salário de seis dígitos da Microsoft e até opções de compra de ações
não eram exatamente um prêmio. Não fora nessa que ela embarcara, não
fora por isso que dissera sim quando Andrew lhe pedira em casamento.
Sim, ela era avarenta, mercenária e materialista, mas fora assim que a
vida a moldara. Ela não poderia ser feliz com o que Andrew lhe oferecia
agora, e, se Jane não fosse feliz, então não poderia fazer Andrew feliz.
O melhor era fazer um favor aos dois e dar o fora agora. Quando
descobrisse que ela tinha fugido, Andrew poderia odiá-la por um tempo,
mas na verdade ela estava lhe fazendo uma gentileza.
Contudo, ela não se sentia gentil. Sentia-se péssima. Com a emoção
enevoando seu poder de julgamento, entrara no primeiro bar que
encontrara e, esquecendo todas as regras sobre não se contentar com
nada menos do que riquezas incalculáveis, se casara com o primeiro
homem que olhara para ela.
— Ah, Deus, que completa idiota — disse ela em voz alta, levando as
mãos à cabeça.
— É a ressaca, não é?
Leo estava de pé na soleira da porta. Tinha vestido de novo a camisa e
a calça jeans, graças a Deus.
— Por aí — respondeu, sentando em frente à bancada da pia, de costas
para Leo. Esperava que ele entendesse a mensagem.
— Banheiro com área separada para ele e para ela, eu nem sabia que
isso existia. — Ele entrou no cômodo para desabar em uma das duas
poltronas estofadas e macias de veludo vermelho-escuro. — Morei em
casas que tinham menos metros quadrados do que este banheiro.
— É mesmo, querido? — Jane começou a tirar devagar grampo após
grampo, mas eles pareciam não acabar nunca e a tiara ainda estava
firmemente presa na cabeça. — Isso parece terrível.
— Deixe-me ajudar. — Leo se levantou com um grunhido. Aproximou-
se dela, avaliou por um instante o complicado arranjo de tranças e
prendedores, então começou a trabalhar metodicamente em uma parte
do cabelo.
Era muito desconcertante e, antes que o silêncio se tornasse
complicado, Jane olhou para ele pelo espelho.
— Você sabe que não podemos ficar casados, não é?
Não havia nenhum sorriso fácil naquela manhã, nenhum brilho nos
olhos azuis turvos.
— Já está cansada de mim? Ainda nem se passaram vinte e quatro
horas. Acho que é um recorde pessoal.
— Você tem que entender que na noite passada... bem, eu estava muito
pra baixo e você fez tudo ficar melhor por algum tempo, e eu lhe agradeço
por isso, agradeço mesmo, mas não preciso de um marido. Bem, preciso,
mas... — Ela parou de falar. Não tinha necessidade de dizer aquilo
claramente e ferir seus sentimentos, não quando queria outro favor dele.
— Sim, bem, eu seria um péssimo marido, de qualquer forma. — Leo
entregou-lhe duas mechas de cabelo que tinha soltado. — Poderíamos
pedir uma anulação por não consumação do casamento. Eu não conto
nada se você não contar. Como eles descobririam que não é verdade?
— Seria bastante medieval se pedissem um exame médico. — Jane
estremeceu, e Leo sorriu pela primeira vez naquela manhã.
— Então, você vai se casar com ele, o sr. Ex? Ele ligou?
— Não olhei — respondeu Jane.
Aqueles dedos gelados estrangulavam seu coração de novo. Ela
desligara o celular antes de sair da suíte nupcial. Mas passava das duas da
tarde, Andrew já devia ter ligado àquela altura. — Vou checar. Mais tarde.
— Então você não está com pressa? — questionou Leo. Seu rosto não
entregava nada quando começou a soltar o último pedaço do cabelo dela.
— Quer saborear os últimos momentos de liberdade?
— Deveríamos trocar os contatos dos nossos advogados antes de dizer
adeus — sugeriu Jane.
Não havia nenhuma liberdade a saborear até ela desfazer a bagunça
em que se metera na noite anterior, da mesma forma que Leo desfizera o
penteado que vinha matando-a aos poucos.
— Eu não tenho advogado — disse Leo, e Jane se perguntou se poderia
ser mais fácil e rápido encontrar um tribunal e um juiz compreensivo que
ouvisse a história triste deles em sua sala de audiências e lhes concedesse
a anulação na mesma hora. — Quer que eu tire o seu vestido agora?
Jane estreitou os olhos, o que fez sua cabeça doer de novo.
— Pensei que tínhamos concordado que a noite passada foi um terrível
engano.
— Querida, mesmo que eu quisesse, duvido que conseguiria. Sinto
como se tivesse sido passado num moedor de carne. E não imagino que
você esteja muito melhor.
— Não estou — admitiu Jane. — Não há um único pedaço de mim que
esteja menos do que péssimo. Eu sabia que havia uma razão para nunca
ter ficado bêbada.
— Não vai demorar. Na hora do almoço, você já vai estar se sentindo
melhor...
— Já passou da hora do almoço!
Leo deu de ombros.
— O melhor remédio é ficar bêbado de novo. Devo ver se há mais
champanhe no frigobar?
Jane refletiu por um instante. Ela nunca havia ficado bêbada antes
porque tinha medo de ser geneticamente programada para não conseguir
parar uma vez que começasse. No entanto, só de pensar em derramar
mais álcool por sua garganta, que parecia uma lixa, a fez agarrar a lateral
da penteadeira, sentindo o estômago se contrair violentamente.
— Deus, não! Não quero nem pensar nisso.
— Você não se importa se eu beber, não é? — Leo não parecia nem um
pouco envergonhado por ter acabado de acordar e já precisar de uma
bebida.
— Não se incomode comigo, desde que eu não tenha que assistir.
— Você está sendo muito crítica. Como uma esposa de verdade. — Ele
tinha sido tão mais dócil e receptivo na noite anterior. — Então, você
quer ajuda para abrir o vestido?
— Por favor. — Ela se endireitou de novo, mostrando-lhe as costas e
todos aqueles minúsculos botões cobertos de seda.
Jane manteve os cotovelos colados à lateral do corpo enquanto Leo
lentamente desabotoava o vestido, xingando baixinho quando a tarefa se
revelou árdua demais para seus dedos trêmulos e o cérebro pesado.
Ela prendeu a respiração quando ele terminou e passou o dedo por sua
coluna, porque estava em um quarto de hotel com um total desconhecido.
Às vezes isso não dava muito certo para ela.
— Por que você não toma um banho e fica aí de molho enquanto eu
tomo uma bebida?
Depois que ele saiu, Jane trancou a porta, afundou naquela água
deliciosa e avaliou o estrago. Dezessete ligações perdidas e mensagens de
voz de Andrew. Cinquenta e duas mensagens de texto. Três e-mails.
Andrew tinha tendência a se fixar em uma coisa e não enxergar mais
nada ao redor. Stephanie, amarga e frustrada porque Andrew sempre
seria o garoto de ouro, o centro das atenções, certa vez confessara a Jane
que Jackie o tinha levado para fazer alguns exames quando era mais novo
e que ele estava “com certeza dentro do espectro autista. No limite
inferior, mas ainda assim estava, Janey”.
E, por falar nelas, Jane tinha inúmeras ligações perdidas de Jackie e
Stephanie. Ligações das esposas dos colegas de trabalho de Andrew, com
as quais procurara se envolver e que chamava de amigas. Até do pai de
Andrew, Richard, embora ele tendesse a deixar a maior parte do trabalho
pesado para a esposa.
Uma pequena parte de Jane desejava que ainda estivesse bêbada
quando ligou para o correio de voz para ouvir a primeira mensagem de
Andrew.
“Janey! Onde você está? Nós esperamos um tempão, e depois um dos
ajudantes de garçom disse ter visto você entrar em um táxi. Sinto muito,
querida. Sinto muito por ter estragado tudo, mas eu ainda te amo e sei
que você me ama também. Por favor, volte para podermos conversar
sobre isso.”
Todas as mensagens de voz de Andrew eram variações sobre o mesmo
tema. Ele não estava nem um pouco irritado com ela, mas, lá pela décima
mensagem, estava chorando, e foi um alívio ouvir que a próxima
mensagem era de Jackie, que não estava chorando. Por que chorar
quando se pode gritar?
“Sua filha da puta! Como você se atreve a fazer isso com o Andrew?
Volte logo pra cá, mocinha. Temos um maldito salão cheio de familiares,
convidados, parceiros de negócios de Richard... Você humilhou esta
família...”
Não havia muito sentido em ouvir mais nada.
Jane suspirou quando uma lágrima e depois outra desceram
lentamente por cada bochecha.
Andrew era o homem com quem ia dividir a vida. Não só pelos bilhões
de dólares que ele com certeza valeria — Jane tivera outros critérios,
tivera outras ofertas antes de Andrew aparecer. Mas Andrew nunca ficava
de mau humor, nunca gritava, nunca ficava violento quando estava
bêbado. Na verdade, ele nunca ficava bêbado. Ele amava a mãe e o pai, e
até mesmo a irmã irritante. Mandava uma mensagem de texto dizendo
“eu te amo” para ela pelo menos uma vez por dia. Comprava flores.
Comprava sorvete para ela, embora ele é que acabasse sempre comendo.
Ela já sentia saudade de Andrew e ele ainda nem tinha certeza de que
ela não voltaria.
Jane levantou a cabeça para olhar no espelho e inspecionar os danos
no rosto. Não estava tão ruim. Ela só tinha conseguido derramar aquelas
duas lágrimas.
— Você não é uma pessoa ruim — disse ela em voz alta. — Coisas
ruins aconteceram com você e a transformaram no que é. Não é sua
culpa.
Andrew ficaria bem. Aceitaria o emprego na Microsoft, então poderia
partir para um recomeço em Seattle. Ele diria a si mesmo que seu
coração estava partido, mas logo conheceria outra garota que se
apaixonaria por ele, porque era muito fácil se apaixonar por ele. Essa
nova garota poderia até não ligar para suas opções de compra de ações da
Microsoft. Dentro de um ano, Andrew seria feliz novamente. Não havia
muito por que Jane se sentir culpada. Um ano passava muito rápido.
Jane saíra um tempo com um homem que colocara um rastreador GPS
em seu celular e, embora Andrew confiasse nela cegamente, era melhor
não arriscar. Depois de algumas tentativas frustradas e a ajuda de um
grampo, ela conseguiu tirar o cartão SIM do aparelho. Colocou-o na palma
da mão e o observou por um instante.
Mas já estava decidida. Não era nada com que tivesse de esquentar a
cabeça por mais tempo. O cartão SIM desapareceu depois de duas
descargas. Em seguida, apagou a conta de e-mail que Andrew achava que
era a única que ela tinha.
Jane não podia imaginar como as pessoas desapareciam cinquenta
anos atrás, mas hoje era tão simples quanto destruir um cartão SIM e
deslizar o dedo algumas vezes por uma tela. Você construía uma vida
com alguém, feita de sentimentos e experiências, todas as coisas que
compartilharam, todos aqueles dias e noites juntos. Mas, no fim, nada
daquilo era real. Vocês eram dois seres separados. Agora tinha levado
apenas cinco minutos para apagar Janey Monroe.

Assim que ouviu Jane afundar na banheira com um suave suspiro infeliz,
Leo saltou para a ação.
Na verdade, fora mais um cambaleio do que um salto, direto para o
frigobar atrás de uma garrafa de cerveja importada para tirar o gosto
ruim da boca. A segunda garrafa teve um gosto melhor do que a primeira
e ainda havia um pouco de pó no saquinho, que ele cheirou como um
cavalheiro inalando rapé. A cocaína o deixou alerta, passando pelo
enevoamento da sua cabeça.
A bolsa de Jane estava aberta na cama. O dinheiro ganho na noite
anterior ainda estava lá, em sete pequenos maços. Cinco mil dólares em
cada bolinho de notas. Ele não era um monstro, deixaria um maço para
ela. Era justo. Além disso, ela carregava pelo menos cem mil dólares em
joias. Jane ficaria bem.
Quando acordara naquela manhã, Leo ficara lá deitado refletindo que
Jane não podia ser assim tão bonita. E se perguntou se a cocaína poderia
tê-lo enganado. Então veio o momento da mais pura mortificação quando
se lembrou de que não tinha conseguido gozar na noite anterior depois
que Jane lhe pedira para fodê-la até cansar e tivera de fingir.
Quase fora embora depois, mas não fora. Acordara e achou que seria
melhor enfrentar logo seus demônios e entrara no banheiro. Mesmo com
o rosto contraído, a pele pálida, o corpo tenso por causa da dor, ela ainda
era bonita.
Mas isso não mudava nada. Ele precisava tanto de uma esposa, mesmo
que linda, quanto de herpes. Leo se sentia um pouco mal em fugir sem
deixar um endereço ou número de telefone, mas essa era a única maneira
de ir embora com trinta mil dólares sem nenhuma discussão.
Ele não podia ficar em Las Vegas. Norman, o cara que acabara de levar
um chifre, tinha vários contatos com jeito de brutamontes e nomes
italianos. Não podia voltar para Los Angeles, pois tanto o seu senhorio
quanto o fornecedor de drogas haviam ameaçado quebrar suas pernas.
Também tinha uma série de dívidas e maridos irados em Nova York, mas
sempre havia Austin, Portland ou Chicago, e os Estados Unidos não eram
o mundo. Já havia passado tempo suficiente para ele poder voltar a
Berlim ou Praga e viver bem por um ano, voltar a sua pintura, desde que
só se prendesse à cerveja e à maconha.
Leo não tinha nada para levar consigo. Então enfiou os maços de
dinheiro no bolso da jaqueta e depois foi na ponta dos pés até a porta do
banheiro para se certificar de que Jane não iria sair de lá de repente,
querendo saber aonde ele estava indo.
Ouviu o barulho da descarga, Jane xingar e depois a descarga de novo.
Leo se perguntou se ela estava passando mal. Então percebeu que
estava prestes a ir embora sem o celular, que tinha deixado carregando
durante a noite no silencioso, já que não havia ninguém com quem
quisesse falar.
Havia três chamadas não atendidas de Melissa — ele não conseguira
ainda apagar o número dela — e uma ligação perdida de um número
internacional. Um número da Inglaterra. Um número de Londres. Um
número para o qual não ligava havia mais de dez anos, mas que ainda
sabia de cor, e, quando pegou o celular, seu toque o trouxe de volta à vida.
O aparelho vibrou. Aquele número apareceu outra vez na tela e sequer
ocorreu a Leo ignorá-lo.
— Alô?
— Leo! Venho tentando falar com você há dias. Devo ter ligado para
pelo menos uns dez números em cinco países. Conversei com várias ex
amargas e um homem que disse que era seu senhorio, e então despejou
em mim uma chuva de ofensas.
Leo relaxou, aliviado, porque não era ela. Então afundou na cama.
— Olá, Liddy, meu único e verdadeiro amor. Como raios você está?
— Ah, você ainda é exatamente o mesmo, não é? — Lydia não parecia
muito feliz com isso.
— Não é verdade, estou dez anos mais velho, em primeiro lugar.
— Mas não parece dez anos mais sábio — alfinetou ela.
— Talvez uns dois ou três anos mais sábio — desconversou Leo. Era
ótimo ouvir a voz dela: aquelas vogais londrinas pesadas que o faziam
pensar em estar sentado na cozinha, enquanto ela lhe preparava o café da
manhã e lhe servia infinitas canecas de chá. — Então, o que há?
— Você precisa voltar para casa. Ela não está bem, e isso já durou o
bastante — respondeu Lydia simples e não tão surpreendentemente.
Às vezes, ele parava para pensar... porque biologicamente, pelo menos,
ela era velha, mas sempre parecera mais divertida, mais jovem do que os
pais dele, que eram uns bons vinte e cinco anos mais novos do que ela.
Por outro lado, Leo achara muitas vezes que os pais tinham saído do útero
já preocupados com o plano de pensão e preferindo cores neutras. Ela era
velha, e Leo sabia que ela não viveria para sempre, mas...
— O que quer dizer com ela não estar bem? Como ela está
exatamente?
— Apareceu de novo — respondeu Lydia.
Leo sabia o que ela queria dizer sem ter de perguntar. Porque Lydia era
praticamente da família e, embora a família do lado de sua mãe tivesse
sido dilacerada pelo câncer, ninguém podia de fato dizer o nome da
doença.
— Eu nem sabia que ela tinha tido isso antes.
— Bem, você não estava aqui e naquela época o tratamento funcionou.
Desta vez, ela não está fazendo nenhum tratamento. — Leo conseguiu
imaginar o rosto redondo e gentil de Lydia tenso e ansioso. — Por favor,
venha para casa.
— Bem, talvez eu apareça no Natal — disse Leo, porque, quando
pensava em ir para casa, o que nunca, nunca acontecia, parecia que tinha
um monte de pedras pesadas na boca do estômago.
— O Natal é daqui a mais de dois meses. Você precisa vir antes disso.
— Ele tinha esquecido como Lydia podia ser teimosa.
— Eu não posso simplesmente aparecer como se nada tivesse
acontecido, posso? — Ele tinha algumas cicatrizes, tatuagens, várias
histórias, mas isso era tudo o que tinha para mostrar daqueles últimos
dez anos. Ela esperaria mais do que isso. — Ela pediu para você ligar?
Ele quase podia ouvir os lábios de Lydia se contraindo.
— Ela não sabe que estou ligando.
— Não vejo por que voltar para casa. Não vai trazer nada de bom, não
é?
— Você consegue viver com a consciência de que nunca fez as pazes
quando teve a chance? Está feliz em carregar esse fardo pelo resto da
vida? Você realmente não mudou nada, não é? — questionou Lydia.
Ela era a única pessoa, a única outra pessoa, que podia fazê-lo se sentir
uma forma subdesenvolvida de vida mesmo sem levantar a voz.
Ele não tinha mudado. Nem sequer tentara. Tinha decidido que era o
que era e que não poderia corresponder às expectativas dela, então não
havia por que tentar.
— Leo? Você vem para casa ou não?
Ele olhou para cima quando a porta do banheiro se abriu e Jane
apareceu coberta por um roupão branco macio e iluminada pela lâmpada
que deixara acesa atrás de si.
Naquele momento, ele tinha as roupas do corpo, trinta mil dólares que
eram cortesia de seu primeiro e único golpe de sorte e uma esposa que
poderia ter saído de um estúdio de Hollywood na época em que as
estrelas de cinema pareciam ter vindo do céu. Alguma coisa tinha de
estar indo bem em sua vida se ele aparecesse em casa de braços dados
com uma mulher daquelas.
Jane poderia relutar, mas precisava de sua assinatura nos papéis do
divórcio, então ele tinha poder de negociação.
— Sim — respondeu ele lentamente. — Tudo bem. Eu vou voltar para
casa.
7

Novembro de 1943

Rose levou três semanas indo ao Bouillabaisse todas as noites e sendo


especialmente simpática com Phyllis e Maggie quando as via, até as duas
pararem de tratá-la com tanto desdém.
Todos os sorrisos e elogios e concordar com tudo o que diziam fizeram
Rose conseguir nada além de suspiros penosos. Ela dava às duas todo Gin
and French que seus parceiros de dança lhe pagavam. Finalmente, e Rose
mal podia esperar por isso, Phyllis a parara perto do lavabo.
— Se eu começar a ser legal com você, promete parar de ser tão
estranha e cansativa?
— Não estou sendo estranha, estou sendo simpática! — protestou
Rose, mas, depois de Phyllis ter admitido a derrota, Maggie relaxara um
pouco também. Não muito, mas Phyllis e Sylvia disseram que era só o
jeito de Maggie, que ela tinha emigrado da Tchecoslováquia e tivera de
deixar toda a família à mercê dos nazistas, então tudo isso precisava ser
levado em consideração.
No entanto, com as três garotas para recomendá-la e Phyllis sendo
uma Honorável com um pai visconde ou baronete ou algo assim,
conseguir uma entrevista no Rainbow Corner fora fácil.
— Diga a eles que você tem vinte e um — aconselhou Sylvia quando se
encontraram antes no Lyons.
Rose manteve os olhos na xícara de chá.
— Você sabe que não tenho vinte e um — disse ela com cuidado.
— Claro que eu sei! Nós todas sabemos que você não tem dezenove
também — Sylvia bufou, apesar de Rose estar usando o terninho azul de
sua colega de quarto, Olive, para não parecer uma garotinha. — Só
explique que você teve de sair de onde morava porque o lugar foi
bombardeado, exagere um pouco, e diga que seus documentos estão
sendo providenciados, porque estão, não estão?
— Bem, ainda não tive chance, e minha senhoria está com minha
caderneta de racionamento e... — Era muito difícil fugir e forjar uma
nova vida.
— Não se preocupe. Eu conheço um cara que conhece um cara —
falou Sylvia. Então pediu para Rose tirar o batom e beliscar as bochechas,
porque a Cruz Vermelha Americana preferia que suas voluntárias
parecessem saudáveis, em vez de glamorosas.
No final, não fora tão ruim. A sra. Atkins, a americana de meia-idade
gentil que a entrevistara, tinha sido muito amável. Ela assentira e sorrira
quando Rose lhe contou que crescera com quatro irmãos mais velhos, por
isso ficava bastante à vontade na companhia dos homens, mas não à
vontade daquele jeito. Rose esperava que os irmãos fossem bem recebidos
pelo povo por cuja liberdade estavam lutando, assim como esperava fazer
os soldados se sentirem bem-vindos caso se tornasse uma anfitriã. Ela
realmente precisava parar de dizer tantas mentiras.
— Acho que você provavelmente ficaria mais feliz dançando, não é,
querida? Se já trabalha como garçonete durante o dia.
— Ah, ficaria sim...
— Mas você não está aqui só para dançar o jitterbug, nossos rapazes
precisam de um ouvido solidário e um sorriso amigável.
— Eu posso fazer isso também.
— Vamos ver como você se sai em duas semanas — disse a sra. Atkins.
— Você acha que consegue ter seus documentos em ordem até lá?
— Vai dar tudo certo — prometeu Sylvia quando Rose saiu da
entrevista com o rosto ansioso e preocupado, além de um crachá de
membro do Rainbow Corner com a palavra TEMPORÁRIA em letras
vermelhas garrafais. — Siga-me.
No recanto mais escuro e esfumaçado da sala de bilhar do Rainbow
Corner, Sylvia foi direto até um homem em um terno risca de giz com
uma gravata amarelo-vivo que lia a Sporting Life. Ele levantou o olhar
com um sorriso quando se aproximaram. Tinha o queixo, as gengivas e a
linha do cabelo retraídos.
— Sylvia, amor da minha vida, não a vejo muito em meu escritório.
— Rose, este é Mickey Flynn, não acredite em uma palavra do que ele
diz — alertou Sylvia. — Mickey, esta é Rose. Ela teve a casa bombardeada
e perdeu todos os documentos. Todos. Não tem nem a certidão de
nascimento. Você pode imaginar uma coisa dessas?
Mickey, os olhos correndo por Rose como se ela fosse uma das garotas
pintadas do Teatro Windmill do outro lado da rua, concordou que não
podia e que Rose deveria ir às autoridades para que emitissem novos
documentos.
— Mas isso levaria séculos e ela teria de ir a tantos gabinetes e
departamentos, a menos que conhecesse alguém que pudesse fazer isso
por ela.
— Por uma taxa? — perguntou Mickey, e Rose não sabia qual seria o
valor dessa taxa, mas provavelmente era melhor que Sylvia conduzisse as
negociações. Ela era muito esperta e Mickey não parecia ser confiável.
Os dois, então, acertaram que Mickey providenciaria para Rose uma
nova certidão de nascimento, carteira de identidade e cadernetas de
racionamento por cinco guinéus. Era uma quantia bem alta, quase tudo o
que Rose tinha.
— Deve ser o bastante. — Mickey fez um gesto em direção à Rose. —
Mas agora ela me deve um favor.
— Depende do tipo de favor. Acho melhor passar por minha aprovação
primeiro. — Sylvia já não soava tão importante. Parecia muito com as
vendedoras que iam ao café e diziam “peraí” em vez de “espere aí”. —
Agora, onde está seu caderno? Você precisa anotar as informações dela.
Houve um momento delicado em que Rose teve de olhar para o crachá
de membro temporário do Rainbow Corner para se lembrar do ano em
que nasceu. O crachá também trazia seu novo sobrenome. Ela escolhera
“Beaumont” porque esse era o nome do cinema que ela e Shirley
frequentavam todas as tardes nas duas semanas de cada verão quando
eram mandadas para a casa da tia Patricia, em Aberdeen. Tia Patricia
acreditava piamente que garotas pequenas não deviam ser vistas nem
ouvidas, então sempre dava um xelim para cada uma de manhã e lhes
dizia para não voltarem até a hora do jantar.
Rose Beaumont. Era tudo o que um nome deveria ser. Sofisticado,
elegante, exótico. Alguém chamada Rose Beaumont viveria aventuras e
seria convidada para jantar por homens arrojados. Essas coisas
simplesmente não aconteciam para meninas chamadas Rosemary
Winthrop.
Rose também conseguiu uma nova moradia uma semana depois
quando, com a ajuda de Sylvia e Phyllis, se mudara às escondidas em
plena luz do dia. Phyllis manteve a sra. Cannon ocupada, contando
histórias sobre como brincara com as princesinhas, Elizabeth e Margaret,
quando era menina, enquanto Sylvia e Rose desciam aos tropeços as
escadas com a mala de Rose e uma dívida de uma semana de aluguel.
— Com o que ela lhe cobrava e esse negócio com sua caderneta de
racionamento... bem, ela tem sorte de não a denunciarmos à polícia —
disse Sylvia enquanto caminhavam pela Oxford Street até a nova
residência de Rose: um apartamento de dois quartos em Holborn, em
uma ruazinha perto do Museu Britânico, que Sylvia dividia com Phyllis e
Maggie. — Você vai ter que dormir comigo, mas, desde que não se mexa
muito ou ronque, deve dar certo — disse Sylvia. O aluguel era de apenas
quatorze xelins por semana para cada uma, e não havia nenhuma
senhoria morando no lugar para pegar sua caderneta de racionamento e
reclamar do barulho que fazia ao subir e descer as escadas.
Antes havia outra menina, Irene, mas ela tinha terminado o curso de
enfermagem e estava trabalhando em um hospital em Birmingham.
— Além disso, ela era baixa, mal chegava a meu ombro — disse
Maggie mais tarde naquela noite quando brindaram a chegada de Rose
com um bolinho de carne recheado com ovo dividido em quatro e uma
garrafa de vinho de pêssego. — Por isso não podíamos usar as roupas
dela.
Todas as roupas de Rose — lamentáveis fora o vestido preto de crepe
de Shirley e o casaco de pele para velórios de sua mãe — foram colocadas
no guarda-roupa comunitário, embora Sylvia dissesse que não havia por
que pendurar o vestido de tafetá azul-claro ali se nenhuma delas jamais
iria querer usá-lo.
Sylvia, Maggie e Phyllis foram muito acolhedoras naquela primeira
noite, mas também ficaram estarrecidas quando Rose confessara após
muito vinho de pêssego que não escrevera para os pais desde que tinha
fugido. Não tinham ficado tão chocadas com o fato de ela ter fugido, mas,
como Sylvia dissera:
— Tenha piedade, Rosie. Eles devem estar achando que aconteceram
coisas terríveis com você... que você foi morta por uma bomba ou
sequestrada por traficantes de escravas brancas.
Na noite seguinte, Phyllis fez Rose sentar assim que as duas chegaram
em casa do trabalho — Rose, do café, Phyllis, dos escritórios do
Almirantado em Whitehall — e, com seu apoio gentil, porém firme, Rose
escreveu uma carta para a família.
— É melhor ater-se aos fatos — aconselhou Phyllis. Então sorriu de
maneira travessa. — Embora os fatos estejam sempre abertos a
interpretações.
Primeiro, Rose pediu desculpas diversas vezes pelas palavras
rancorosas do bilhete que deixara apoiado contra o relógio no aparador
da lareira, em seguida passou para assuntos mais urgentes.
Por favor, não se preocupem comigo. Arranjei emprego num pequeno
negócio administrado por um simpático casal, escreveu ela. À noite,
trabalho como voluntária para a Cruz Vermelha e estou dividindo um lindo
apartamento perto do Museu Britânico com três moças de boa família.
Havia também vários parágrafos sobre aprender com os próprios erros
e como contribuir com sua parte para o esforço de guerra a fizera ver os
erros de seu modo de agir egoísta e impetuoso. Phyllis era muito boa em
ajudar a escrever cartas. Ela muitas vezes sentava na sala de leitura do
Rainbow Corner e ajudava soldados a escrever para namoradas e noivas
que tinham de ser deixadas gentilmente porque o homem para quem
acenaram em despedida nas docas estava agora casado com uma garota
britânica grávida.
Sua mãe escrevera de volta para dizer-lhe que, até onde todos sabiam,
ela estava até os joelhos de estrume com as Land Girls, e ninguém
imaginava que tinha envergonhado e decepcionado seus pais amorosos
em igual medida. Depois disso, esse assunto nunca mais foi mencionado.
Rose enviava à mãe cartas em que falava bastante sobre a vida em
Londres, concentrando-se mais nos esforços para encontrar frutas, e sua
mãe respondia com novidades do comitê do real serviço voluntário
feminino, o WRVS, o comitê social da igreja, o comitê hospitalar e todos os
muitos outros comitês em que estava envolvida, assim como conselhos
para tomar cuidado. A palavra “cuidado” era sempre sublinhada várias
vezes e seguida por um ponto de exclamação.
Naquelas primeiras semanas no Rainbow Corner, Rose foi mais
despreocupada do que cuidadosa. Todas as noites pareciam se fundir em
um todo encantador em que dançava com militares agradecidos que lhe
diziam que era linda. Em seguida, ela ia até o Dunker’s Den no porão e
deixava que lhe pagassem donuts, às vezes waffles, ou panquecas grossas
no estilo americano, e sempre coca-cola. Todas as vezes, Rose fingia que
era sua coisa preferida no mundo. Era um pequeno sacrifício que parecia
agradar todos os seus parceiros de dança. Ela não sabia ajudar a escrever
cartas para casa como Phyllis ou ouvir em silêncio suas confissões e
depois oferecer palavras gentis de conforto como Maggie, e Deus sabia
que nunca seria capaz de flertar como Sylvia, mas, depois de algumas
semanas, Rose sabia dançar jive como se tivesse nascido para isso e tomar
agradecidamente um copo de coca-cola como se fosse água fria de uma
fonte em um dia seco de verão.
O único problema era a falta de documentos. Mickey Flynn levou três
longas semanas para arranjá-los. Durante essas três semanas, Rose viveu
apavorada, com medo de ser chamada no escritório e entregue à polícia
por dar informações falsas em seu formulário de inscrição. Ou pior: ter
seu nome adicionado à lista de meninas proibidas de entrar no Rainbow
Corner!
Então, certa noite, depois de encontrar Sylvia no metrô da Piccadilly
Circus e as duas passarem correndo pelas garotas que ficavam na esquina
da Shaftesbury Avenue, que sempre as chamavam dos nomes mais
terríveis, Sylvia disse:
— Esbarrei com Mickey Flynn hoje. Você deve se encontrar com ele na
sala de bilhar às sete e meia. Você tem os cinco guinéus? Eu iria com
você, mas estou presa atrás do balcão de informações esta semana.
Sylvia já estava em apuros com as senhoras da administração por ter
sido vista beijando um marinheiro na escada, embora tivesse protestado,
alegando: “Ele estava me beijando e pareceu antipatriótico recusar”.
— Eu tenho o dinheiro — assegurou-lhe Rose enquanto registravam
sua entrada. Ela sentiu aquele delicioso frisson de medo ao entregar o
crachá de temporária para ser examinado, mas a boa e velha Joyce
simplesmente sorriu e o devolveu.
— Pediram-me para lhe dizer, mais uma vez, para não dançar o
jitterbug — disse ela com firmeza para Rose. — Mais algum daqueles
movimentos de levantar e girar, Rosie, e você vai acabar machucando
alguém.
— Prometo manter os pés no chão — disse Rose.
Sylvia resmungou sobre ter de passar a noite toda procurando camas
extras para soldados em algum dos clubes e hospedarias que tinham
registrados, mas, quando estavam para se separar, ela pegou o braço de
Rose.
— Se Mickey começar a falar sobre favores, diga que tem que falar
comigo — advertiu ela, com o rosto bonito e alegre bem sério dessa vez.
— Adoro o Mickey, mas ele sempre tenta a sorte. Embora essa seja a
única coisa que ele tente. Não faça nenhuma promessa, está bem?
— Ah, Sylvia, vai dar tudo certo. Sei lidar com tipos como Mickey
Flynn — assegurou Rose, que depois saiu depressa porque, quanto mais
cedo resolvesse aquilo, melhor.
Ela estava usando o vestido de veludo vermelho de Maggie, que ficava
um pouco curto nela, mas não indecente, e os novos sapatos de salto
pretos que comprara de Kathy, a assistente da tabacaria, que os arrumara
pouco depois do início do racionamento de roupas porque
equivocadamente pensara que os pés ainda estavam crescendo. As mãos
de Rose estavam úmidas quando abriu a porta da sala de bilhar e então,
com um olhar furtivo para se certificar de que não havia nenhuma das
senhoras da Cruz Vermelha à espreita, entrou. Não havia de fato nada a
se temer — era uma transação comercial simples, uma troca de dinheiro
por bens e serviços, mas seu coração pulsava freneticamente quando viu
Mickey sentado junto ao que parecia ser sua mesa de sempre.
— Entre em meu escritório, querida — chamou quando a viu. — Não
há por que ficar nervosa. Sente.
Não havia nenhuma mulher na sala de bilhar. Eram só grupos de
homens rindo, provocando uns aos outros, até mesmo com um jogo um
pouco mais turbulento em uma das mesas, e Rose, com o vestido
vermelho, sentindo-se como se todos os olhos estivessem sobre ela.
— Então, hã, estou com o dinheiro — disse ela a Mickey, que usava
uma gravata de cetim verde-esmeralda naquela noite. Ele tinha as mãos
muito brancas e macias, e acenou com uma delas, como se dissesse para
deixar para lá.
— Há muito tempo para isso — disse ele. — Vamos nos conhecer um
pouco. O que tem achado de Londres, minha querida?
Rose definitivamente não era sua querida, mas seria rude ressaltar
isso, sobretudo quando ele tinha seu futuro nas mãos — ou, é provável,
no envelope amarelo-claro na mesa à sua frente.
— Londres é maravilhosa.
— Acho que seria bom se pudéssemos ajudar um ao outro de tempos
em tempos — disse ele.
Ela engoliu em seco.
— Bem, isso é muito gentil da sua parte. Mas não sei se algum dia eu
poderia ajudar. A menos... bem, eu trabalho em um café na Wardour
Street, e provavelmente poderia lhe dar uma xícara de chá grátis de vez
em quando. Não que o chá seja bom.
Mickey riu, embora Rose não estivesse tentando ser engraçada.
— Tenho certeza de que uma garota bonita como você poderia ser de
muita ajuda sem sequer se esforçar...
Ele estava olhando para a direção do seu decote e Rose se contorceu.
— Sinto muito, eu não quero ser rude, mas devia estar fazendo meu
trabalho voluntário. Por isso, se eu pudesse apenas lhe pagar...
Ela abriu a bolsa para tirar a carteira. Mickey estendeu depressa a mão
para agarrar seu pulso.
— Jesus, Maria e José, você quer fazer o favor de guardar isso?
Todo o blefe e a bajulação desapareceram. Ele olhou em volta como um
vilão de pantomima, concluiu que sua reputação estava segura e sorriu
para Rose como se eles ainda fossem grandes amigos.
— Você devia ter trazido o dinheiro separado. Faça isso por baixo da
mesa.
Foi muito difícil pegar a carteira e tirar cinco notas de uma libra e
cinco xelins e entregá-los a Mickey escondido. Em um movimento hábil,
ele pegou o dinheiro, enfiou no bolso e empurrou o envelope para ela. Ele
até conseguiu colocar a mão no joelho dela por um longo instante, o que
fez Rose querer encolher os ombros de novo.
Em vez disso, ela ficou imóvel, todos os músculos tensos, até Mickey
tirar a mão, então enfiou o envelope na bolsa.
— Acalme-se agora, minha querida. Você não vai querer rasgar todos
esses documentos valiosos que seu bom amigo Mickey Flynn conseguiu
para você — disse ele.
Mickey olhava de soslaio agora, o que não era nada comparado a fixar-
se em seu decote ou curvar os dedos quentes em volta do seu joelho.
Rose não podia olhar o que havia no envelope, não ali, então se
levantou de súbito em um movimento espasmódico.
— Bem, eu adoraria ficar e conversar, realmente adoraria, mas tenho
que ir — disse ela, alisando a saia de veludo com as mãos nervosas.
Mickey tirou um chapéu imaginário.
— Vamos nos encontrar novamente em breve, querida Rose —
garantiu ele. — E lembre-se: você me deve um favor agora.
Rose assentiu enquanto se afastava.
— Ah, sim, bem, você sabe onde me encontrar.
Então ela não se importou mais com o que poderia parecer para um
observador casual e correu para a porta.
Mas, antes que pudesse chegar lá, um homem idiota bloqueou o
caminho, e os dois dançaram uma valsa desajeitada de passos
deselegantes e “Sinto muito”, “Não, eu sinto muito”, “Não, eu é que não
estava olhando para onde ia”.
— A culpa foi minha, deixe-me pegar isso para você — disse o homem.
Rose estava tão desesperada para sair dali, para ficar bem longe de
Mickey Flynn e de quaisquer favores que poderia lhe dever, que mal olhou
para o homem que segurava a porta aberta.
Ele usava um uniforme de oficial britânico, embora ela nunca soubesse
distinguir as patentes, e, mesmo de salto, teve de levantar a cabeça
quando lhe lançou um breve sorriso e murmurou um agradecimento. Foi
um olhar que não durou mais do que um segundo, mas ainda assim foi
tempo suficiente para observar as linhas graves do rosto dele e a
expressão desconcertada que Rose tinha certeza de que combinava
perfeitamente com a sua. Como se ele também não pertencesse de fato
àquele lugar.
Rose estava pronta para passar depressa por ele, veludo vermelho
contra sarja cáqui, quando ele se moveu, bloqueando sua rota de fuga, e
lhe estendeu a mão.
— Meu nome é Edward Abernathy — disse ele.
Sua voz era linda e fez Rose se lembrar de entrar furtivamente na
despensa quando Cook não estava olhando para abrir a lata de melado
que era usado nos bolos de gengibre. Rose enfiava o dedo indicador, então
o chupava e se maravilhava em perceber como aquela calda espessa
podia ser forte e doce. A voz dele era assim. Ele também parecia muito
importante, então Rose apertou sua mão e sentiu a força em seus dedos
longos e finos, mas ele a encarava de um jeito ainda mais intenso do que
Mickey.
Não para seu peito, mas para o rosto, para o fundo de seus olhos, como
se conhecesse todos os seus segredos, e ela quis desesperadamente se
afastar dele, de Mickey, de todo aquele negócio triste, e voltar para a pista
de dança onde se sentia segura.
— Foi muito bom conhecê-lo — disse Rose apressadamente. — Sinto
muito, mas eu deveria estar... Eu deveria estar em outro lugar.
Ele, então, se afastou, e Rose saiu depressa pela porta, disparou pelo
corredor, lembrando-se da sensação da mão de Mickey Flynn sobre ela e
depois dos olhos daquele homem chegando até sua alma, e só então
estremeceu.
Era como se ela tivesse deixado a escuridão tocá-la, o que era algo que
nunca fizera. Era por isso que preferia dançar com os soldados do que
conversar com eles. Talvez rir de suas piadas enquanto ficavam sentados
por dez minutos entre as danças, mas nada mais do que isso. Sylvia tinha
sido muito clara. Ela costumava dizer a Rose:
— A maioria deles não vai voltar. Eles vão morrer, ou então já têm
namoradas em casa. Não seja como Phyllis. Ela nunca se esquece de um
único soldado, depois fica em um estado lamentável quando descobre que
foram mortos. Sinceramente, Rosie, houve vezes em que ela chorou todas
as noites durante duas semanas.
Era muito melhor se resguardar, não deixar que o lado ruim da guerra
a consumisse. Por isso, naquela noite, Rose guardou a bolsa em um lugar
seguro, com o eco dos olhos de um estranho e o toque de Mickey Flynn, e
depois dançou sem parar até dez e meia.
8

— Você iria para casa comigo? — perguntou Leo, quando Jane saiu do
banheiro e o encontrou sentado na cama, terminando o que parecia um
telefonema muito tenso. — Não para minha casa casa, mas para Londres.
Jane logo ficou desconfiada.
— O que há em Londres?
Leo levantou e passou os dedos pelo cabelo despenteado pelo sono.
— Minha... tia... bem, minha tia-avó. Ela está doente.
Jane cruzou os braços. Uma tia-avó doente parecia a mais esfarrapada
das desculpas. Muito provavelmente era uma farsa.
— E onde exatamente fica sua casa casa?
— Bem, minha casa casa na verdade fica em Durham, mas não vou lá
há séculos. Uns quinze anos, mais ou menos.
— Mas essa sua tia-avó está em Londres, não é?
— Você não precisa dizer isso assim, como se estivesse entre aspas. Ela
é minha tia-avó e eu também não a vejo há séculos, portanto, se recebi
uma ligação dizendo que ela não está bem, então é sério. — Havia uma
aspereza em sua voz que a fez se sobressaltar, porque ela não existia na
noite anterior. Jane também não se lembrava de tê-lo visto tão agitado.
Ele estava andando pelo quarto, o que podia se dever ao fato de ter
acabado de receber uma má notícia, mas Jane tinha certeza de que era
mais do que isso. — Podemos pegar um voo no início da noite. Você junta
suas coisas enquanto eu tomo um banho, e então a gente dá o fora daqui.
— E por que diabos eu iria querer viajar a Londres para conhecer sua
tia-avó doente? — questionou ela.
Ele parou de andar e fechou a cara. Então deve ter percebido que a
cara fechada não ajudaria a fazer Jane entrar em um clima conciliatório.
— Você vai voltar com o sr. Ex?
Jane deu de ombros.
— Ainda não decidi.
Leo franziu as sobrancelhas e tentou parecer triste. Aquilo não
combinava com ele.
— Ainda temos que anular o casamento e eu preciso mesmo ir para
Londres, então qual é o mal em vir comigo?
Ele tinha razão. Jane precisava sair de Las Vegas imediatamente. E, se
ela tinha necessidade de se reorganizar, planejar, seguir em frente com a
vida, então Londres era o melhor lugar para fazer isso. Por outro lado, ela
não queria embarcar de maneira precipitada em mais nada questionável
quando ainda se sentia tão frágil após os excessos da noite anterior.
— Vamos lá, o tempo está passando — ladrou Leo, que ainda se
atreveu a estalar os dedos para ela como se fosse uma criada ineficiente.
— Não estou vendo ninguém fazendo as malas.
Jane tinha um mau pressentimento com relação àquilo, mas, por outro
lado, ela também tinha maus pressentimentos sobre várias coisas e
procurava simplesmente ignorar. Entretanto, só quando já estavam no
aeroporto tentando conseguir lugares no próximo voo disponível para
Londres foi que Jane abriu a bolsa e descobriu que havia apenas um maço
de notas de cem dólares lá, quando deveria haver sete. Aquele maldito
ladrão!
— Não fique nervosa, estou com o resto — disse Leo depressa como se
não fosse grande coisa, quando na verdade era. — Só por segurança. Você
sabe como é o pessoal da limpeza nesses grandes hotéis.
Ele lhe devolveu três dos maços, e esse foi todo o alerta de que Jane
precisava para ficar colada nele até que pudessem se separar legal e
permanentemente.
Leo nem sequer lhe agradeceu quando conseguiram um upgrade para a
primeira classe, porque Jane segurara sua Chanel 2.55 de maneira bem
visível e flertou como louca com o atendente do check-in. Em seguida, ele
continuou andando de um lado para o outro, com os ombros curvados,
enquanto esperavam seu voo ser chamado, mas apenas quando sentou ao
lado dele no avião Jane percebeu que Leo estava sob a influência de algo
que com certeza não tinha sido comprado com receita médica.
A mandíbula dele estava trincada, um músculo na bochecha pulsava
como um milho na panela, braços e pernas se contraíam. Sem respeitar
de modo algum o espaço dela.
Pelo visto, seria um longo voo. Leo rejeitou a taça de champanhe
oferecida e pediu uma cerveja. Depois tirou um frasquinho do bolso da
jaqueta.
— Quer um ansiolítico? — ofereceu ele.
— Eu não tomo comprimidos — respondeu Jane baixinho.
Ele sorriu.
— Assim como você não acredita em cartões de crédito? Você vai ter
que criar para mim uma lista de todas as coisas que não faz. Deus, não
posso acreditar que estamos casados. — Isso não soou mal-intencionado,
mas sincero. — Você tem certeza de que nós não ficamos tão bêbados que
só pensamos que nos casamos?
— Infelizmente a certidão de casamento na minha bolsa diz o
contrário.
— Você era muito mais divertida bêbada. — Ele cutucou o braço dela,
e Jane nunca quisera tanto bater em alguém quanto queria dar um tapa
em Leo. Tinha a vaga lembrança de querer bater nele na noite anterior
também. — Vá em frente, tome um pouco de champanhe.
Ela não quis, mas Leo tomou mais duas cervejas e outro comprimido,
depois caiu no sono, com a cabeça no ombro dela. Jane teve de lhe dar
um bom empurrão para fazê-lo cair de volta ao próprio assento.
Eles já eram casados (o que ela queria anular o mais rápido dentro do
humanamente possível), então Jane não precisava ser conciliadora,
sedutora e nem um pouco charmosa. Isso, pelo menos, era um alívio.
Leo nem sequer se mexeu quando aterrissaram até Jane sacudi-lo. No
entanto, mesmo estando com os olhos já abertos e de pé, continuava
inútil. Jane teve de segurá-lo pela manga e puxá-lo pelos corredores
intermináveis e passarelas do aeroporto até a área de retirada de
bagagem, onde resmungou sobre precisar “carregar sua mala de novo.
Você não pode usar um carrinho como as outras pessoas?”.
Ele era irritante, mas Jane ficou grata pela distração que tirou sua
mente do absoluto pavor que tomava conta dela toda vez que entrava na
fila do controle de passaportes. E esse medo nunca tivera nada a ver com
os milhares de dólares em dinheiro e joias em sua bagagem de mão.
Jane não relaxou até estarem no banco traseiro de um táxi preto a
caminho do centro de Londres. Ela se hospedaria em um hotel enquanto
Leo iria ver a frágil “tia-avó”. Naquele ritmo, o dinheiro que ganharam
logo se reduziria a nada. Trinta e seis mil dólares parecia muito, mas,
divididos entre dois, mais alguns voos transatlânticos, quartos de hotel,
táxis — bem, o dinheiro acabaria logo, mesmo que Leo não tentasse
roubar sua parte de novo.
Enquanto se aproximavam depressa da rotatória de Hangar Lane,
passando por fileira após fileira de casas suburbanas com fachadas sujas
como toalhas brancas que tinham ficado cinza na lavagem, Jane se
lembrou de sua primeira corrida de táxi por Londres.
Também estava escurecendo naquele dia. Ela se empoleirara no
assento reversível, pronta para pegar a maçaneta da porta e pular fora ao
primeiro sinal de problema. Ela não sabia muito bem em que havia se
metido, mas esperava que aonde estivesse indo não pudesse ser pior do
que o lugar de onde viera.
Será que poderia?
A casa de Charles ficava em Notting Hill. Embora Jane não conseguisse
se lembrar se ele lhe dissera seu nome ou onde morava naquela primeira
noite.
Ele pagara o motorista e ainda não havia encostado nela, apenas a
guiara com uma série de gestos pela rua, pelo caminho que levava à casa
e pela porta da frente.
Então chegaram ao hall, onde tudo era muito claro e limpo, e ele
dissera:
— Você pode ficar aqui esta noite.
Pela primeira vez em dias, semanas, talvez até meses, ela encontrou a
voz.
— Você vai me comer?
Ninguém nunca tinha olhado para ela daquele jeito também. Como se
ela fosse uma pessoa de verdade, e não só uma coisa, uma coisa inútil.
— Você quer que eu te coma? — perguntou Charles, enquanto ela
observava os sapatos dele, porque ainda não conseguia olhá-lo no rosto.
Talvez ele fosse diferente de todos os outros, porque nenhum deles
jamais lhe dera uma escolha.
— Não — respondeu ela. Aquilo soara bem, então ela dissera de novo.
Mais alto. — Não. Não, eu não quero.
— Então estamos entendidos — disse ele.
Ela o seguiu ao longo de reluzentes pisos pretos e brancos até uma
cozinha e parou no meio do cômodo, com muito medo de sujar algo,
vendo-o colocar água para ferver na chaleira, fatiar o pão e colocá-lo em
uma torradeira.
Era como se ele soubesse que ela não tinha como fazer mais escolhas.
Uma caneca de chá, dois pedaços de torrada em um prato tão delicado
que ela sabia que poderia quebrar só de pressionar a ponta com um dedo
sujo. Ela tomara o chá e comera a torrada com uma das mãos, a outra
ainda segurando o maço de notas, ainda em guarda, ainda sem confiar
que horrores piores não estavam a caminho.
Foi quase um alívio quando ele passou por ela para abrir uma gaveta e
pegou uma faca grande e perigosa, que cintilou sob o brilho suave das
luzes no alto. Com comida na barriga e o corpo aquecido pelo chá, ela já
nem ligava mais.
Pelo menos ela tivera aquele vislumbre de algo mais. Não seria apenas
mais um nome no fim de uma lista de pessoas em situação de risco,
esquecido até ela ser encontrada nua com várias marcas de facada,
esperma espalhado por todo o corpo, em um terreno baldio.
A mão que segurava o maço de notas se contraía em expectativa pelo
momento em que ele apontaria a faca para ela. Miraria. E a cravaria bem
fundo.
— Vou levá-la até um quarto de hóspedes. Há um banheiro ao lado se
quiser tomar banho — explicou ele. Então lhe estendeu a faca. — Durma
com isso embaixo do travesseiro, vai ajudá-la a se sentir segura.
Não naquela hora, porém mais tarde, muito mais tarde, ela se
perguntou o que tinha acontecido com Charles para um dia ele também
ter dormido com uma faca embaixo do travesseiro.
Tantas coisas incríveis tinham acontecido com Jane desde então, mas
ela sempre achava que o mais incrível de tudo fora ter encontrado o
único homem decente de toda a Inglaterra naquele trem que a levava
depressa em direção a seu futuro.

— Jane? Jane? Chegamos. Acorda! — Leo tocou em seu braço.


Ela ficou de repente tão tensa que Leo percebeu que não estava
dormindo, apenas perdida em outro mundo com os olhos fechados, a
cabeça caída para trás. Jane se endireitou e ajeitou o cabelo enquanto
olhava pela janela do táxi. Eles passavam devagar por uma praça com
jardim, rodeada de grandes casas vitorianas, brancas como bolos de
casamento.
— Onde exatamente nós “chegamos”? — perguntou ela.
— Kensington. — Leo vinha pensando muito no que deveria dizer, mas
ainda se sentia completamente despreparado. — Olhe, Jane, me desculpe
se fico provocando você.
— Foi tudo uma provocação? Ah, bem, isso faz eu me sentir muito
melhor.
Ela ainda olhava pela janela, e não para ele, quando o táxi parou junto
ao meio-fio. Era difícil continuar diante de nenhum encorajamento, mas
isso nunca o detivera.
— Sei que está tudo um pouco estranho entre nós, como se
estivéssemos nos recuperando de uma “viagem ruim”, mas preciso lhe
pedir um enorme favor.
— Mais um? — perguntou Jane secamente enquanto pagava o
motorista. Tinha trocado algum dinheiro no aeroporto, enquanto Leo
desabara contra uma pilastra. — Devo começar a manter um registro?
— Você poderia fazer isso ou eu poderia argumentar que me oferecer
para me casar com você foi um favor tão grande que automaticamente
nos deixa quites — ressaltou Leo.
Jane fez de novo outra quase careta ao sair do táxi.
— Não vou concordar com mais nada até você me dar os detalhes.
Leo pegou a mala dela de novo, dessa vez sem reclamar, e Jane teve de
segui-lo até a esquina da praça. Estava tão frio que seu corpo tremia, e ela
puxou a jaqueta Chanel para cobrir bem o corpo, embora a peça não
tivesse sido criada para isolar a temperatura. Nada do calor não
persistente e preguiçoso de meados de outubro. No centro da praça havia
um pequeno jardim, fechado para manter afastados a plebe e os sem-teto.
As folhas verdes dos sicômoros que a cercavam estavam em transição,
ficando amareladas nas pontas e se curvando em direção ao chão.
Leo olhou para os pés que arrastava no chão nos tênis gastos.
— Seria ótimo para mim se pudéssemos agir como se estivéssemos
casados de verdade — murmurou ele.
— Por que eu faria isso?
Leo resistiu à vontade de ranger os dentes. Tinha sido uma pena ele ter
dormido tanto tempo no avião, porque agora já fazia pelo menos doze
horas desde a última vez que bebera, e ele precisava muito de uma
bebida.
— Não é nada ruim ou ilegal, eu juro — explicou. — É só que, na
última vez em que a vi, tivemos uma briga...
Os olhos de Jane se estreitaram bem de leve.
— Ela quem?
— Eu já lhe disse: minha tia...
— Você quer dizer sua “tia-avó”, querido. E, não, você não me disse
nada sobre ela porque esteve praticamente catatônico por horas. — Ela
não parecera assim, tão ranzinza e azeda, naquela noite perdida em Las
Vegas.
— Era um voo de dez horas. O que mais eu devia fazer, além de
dormir? — Então lembrou que devia ser legal com ela. — Na última vez
em que a vi, anos atrás, tivemos uma grande discussão sobre minhas
escolhas de estilo de vida e, obviamente, eu cresci muito como pessoa
desde então...
— Cresceu mesmo, querido?
— Cresci. Cresci mesmo.
Jane não combinava com um homem que ainda se vestia como um
estudante de arte. Ela usava uma calça jeans de marca e uma blusa
listrada com sua jaqueta Chanel e sapatilhas, mas não eram a elegância e
o alinhamento de suas roupas que intimidavam Leo, mas sim o olhar
distante e indiferente em seu rosto. Ele prosseguiu:
— Se eu aparecer casado com uma mulher como você e que fala como
você, e se puder mostrar essa pedra gigantesca em seu dedo e sorrir para
mim com adoração de vez em quando, então seria um sinal de que não
me saí tão mal.
Jane cruzou os braços.
— Já se passaram dez anos, tenho certeza de que ela ficará feliz só em
ver você.
— Você não sabe como ela é. — Leo tinha a sensação horrível de que,
se tentasse se vangloriar sobre todas as exposições que não tinha feito, a
tia descobriria a verdade em um minuto, enquanto Jane era um fato
incontestável. — E onde está a mentira? Nós somos casados. Temos uma
prova legal disso.
— Onde é que essa sua tia-avó mora, afinal? — Jane voltou à questão
inicial. — Ela está enfiada por aqui em alguma quitinete alugada com
auxílio do governo?
— O quê? Não! — Leo apontou para o lugar à frente deles. — Ela mora
naquela casa. Tecnicamente são duas casas, mas não dá para ver a
divisão.
O olhar de Jane seguiu o dedo estendido. De repente, ela endireitou os
ombros e parou de se aconchegar na jaqueta. Não disse nada, porém
observou a casa por tanto tempo que Leo se perguntou se ela havia se
transformado em pedra. Ele poderia ter jurado que o nariz dela se
contraiu como no momento em Las Vegas em que ela descobriu o
Platinum Bar. Então Jane se virou para ele.
— O.k., querido, contra todo o bom senso, vou bancar a esposa
dedicada — disse ela. Leo não confiava em suas razões para de repente
concordar com o plano, mas estava aliviado demais para se importar. —
Agora, antes de entrarmos, há algo que eu deva saber? Eu realmente não
gosto de surpresas.
— Nem mesmo quando estão em caixinhas da Tiffany’s? — Outra
coisa que ele não tinha aprendido a fazer nos últimos dez anos era deixar
de falar tudo o que passava pela cabeça.
Jane pareceu um pouco ofendida.
— Bem, fora esse tipo de surpresa. — Ela apontou para a casa. — Não
tenho certeza se seremos convincentes como um casal apaixonado.
Leo não tinha pensado muito além de aparecer com Jane como um
símbolo de sua vida bem-sucedida. Contudo, agora, ao olhar para aquela
imponente porta preta, sabendo o que havia por trás, a recepção que
provavelmente teria, se sentiu nervoso. Na verdade, nervoso não chegava
nem perto de descrever a forma como sua garganta se contraiu
inesperadamente e o estômago ficou revirado.
— Vai dar tudo certo — disse ele a Jane com obstinação. — Nós vamos
ter que improvisar, mas faremos o mesmo que em Las Vegas. — Então ele
pensou naquela história que Jane contara no estilo Aninha, a pequena
órfã. Eles enfrentariam um público bem mais difícil do que Barbara e
Hank e o resto da gangue de Boulder, Colorado. — Talvez só não exagere
tanto, o.k.?
— Ai, Deus, queria tanto ter entrado em outro bar ontem —
murmurou Jane, mas ainda assim o seguiu em direção à casa. Subiu os
degraus com ele e ouviu os três longos toques da campainha.
— Vai dar tudo certo — disse ele mais uma vez.
Jane estava com a mão pressionada sobre a boca como se tivesse de se
impedir fisicamente de falar. O cabelo estava preso em um frouxo rabo de
cavalo. Uma mecha tinha escapado e pendia desamparada contra sua
bochecha.
— Seu cabelo... — Ela precisava parecer perfeita. Era parte do plano.
Na verdade, era seu único plano. Jane se esquivou quando ele tentou
prender a mecha rebelde atrás da orelha dela.
— Posso fazer isso — retrucou quando a porta abriu.
Leo estava pronto com um sorriso triste e um “Eu juro, você parece dez
anos mais jovem, não dez anos mais velha”, mas deu de cara com uma
jovem de uniforme: um vestido azul-claro de gola e punhos brancos.
Aquela garota não era Lydia, que Leo pretendia conquistar primeiro. O
plano era antes “amaciar” Liddy e pedir que intercedesse por ele.
— Lydia está? — perguntou ele, esperançoso.
A garota balançou a cabeça.
— Srta. Lydia ocupada — respondeu ela com um forte sotaque do
Leste Europeu. — Quer deixar recado?
Leo hesitou.
— Talvez a gente volte mais tarde.
Jane suspirou.
— Nós não estamos aqui para ver Lydia. Estamos aqui para ver a tia-
avó dele. Qual é mesmo o nome dela, querido?
— Estamos aqui para ver Rose.
9

Eles foram levados a um hall de entrada imponente. Dois enormes vasos


da altura de Jane, provavelmente chineses, ladeavam a porta da frente —
nada tão prosaico como um cabideiro ou um aparador para deixar as
chaves e a correspondência naquela casa. A empregada conduziu-os até o
alto de uma escada enorme e intricadamente esculpida, do tipo que as
mulheres em vestidos de gala desciam enquanto o acompanhante lá
embaixo as olhava admirado.
Aqueles não pareciam os domínios de uma senhora idosa. Nada de
chita, nem cadeira elevador e quinquilharias.
Não houve tempo para ajustar o que Jane sabia sobre essa tia-avó, o
que não ia muito além do fato de ela estar gravemente doente, antes que
uma porta dupla se abrisse para uma sala de estar onde se desenrolava
um coquetel, embora só passasse um pouco das quatro e meia de uma
tarde de domingo.
Aquilo não poderia ser considerado bem um coquetel — havia apenas
seis pessoas —, mas elas faziam uma algazarra e tanto. Todos
conversavam e riam bastante até que, então, um por um, sentiram que
havia intrusos entre eles e se viraram para encarar Leo e Jane parados
junto à porta. Era tentador se esconder atrás de Leo até sentir melhor o
ambiente, mas isso não seria possível, já que Leo a puxou para a frente a
fim de se esconder atrás dela.
— Ei — cumprimentou ele. — Oi, Rose. Olá a todos. Desculpe
aparecer assim.
Havia quatro mulheres e um homem em dois sofás enormes, mas Leo
estava falando com a mulher sentada em uma poltrona de couro branco
em forma de cubo emoldurada por duas grandes janelas no lado oposto
da sala. Mesmo sentada, Jane podia ver que ela era alta — longas pernas
harmoniosamente cruzadas na altura do tornozelo. Estava ali com a
postura e a elegância de uma rainha no trono.
— Leo — disse ela em uma voz direta, porém divertida. — Meu Deus,
você poderia pelo menos ter telefonado. — Ela fez uma pausa. — E feito a
barba.
Aquela era a querida tia-avó Rose? Supostamente à beira da morte?
Ela parecia bem enérgica e animada em um vestido azul-marinho
elegante e drapeado com um broche de diamantes preso na gola. O
cabelo branco como a neve estava cortado em um estilo curto e
assimétrico, os lábios e as unhas, pintados de vermelho vivo. Ela nem
sequer tinha varizes.
— Acabamos de chegar dos Estados Unidos — explicou Leo,
descansando as mãos nos ombros de Jane em uma demonstração de
união, embora ela quisesse se soltar dali porque não estavam juntos. —
Esta é Jane, minha esposa — acrescentou, com uma voz bastante
desafiadora.
Todos os olhos se voltaram para ela, mas o olhar de Jane estava fixo em
Rose. Ela não estava fazendo muita coisa; apenas permanecia sentada lá
com um leve sorriso no rosto, as sobrancelhas um pouco levantadas, mas
tinha presença. Também parecia alguém que podia farejar uma mentira a
cinquenta passos.
Jane se endireitou, aprumou-se e abriu mais o sorriso.
— Olá. É um prazer finalmente conhecê-la. Leo não para de falar em
você — disse ela. Depois deu um passo à frente, saindo de debaixo dos
dedos tensos de Leo e avançando pela sala.
Sentiu como se estivesse caminhando em um palco, mas continuou
andando até ser sugada para o centro gravitacional de Rose. Quando
conhecera Jackie, as duas tinham trocado beijos e abraços, mas, após
apenas dois minutos na presença de Rose, Jane soube que não deveria
tentar isso com ela. De qualquer forma, ela nunca fora muito de abraçar.
Em vez disso, estendeu a mão e Rose recebeu o cumprimento como um
tributo.
— Casado? Eu achava que mais ninguém se importasse em casar nos
dias de hoje.
— Bem, nós estávamos em Las Vegas, parecia uma boa ideia — disse
Jane ao lado da poltrona de Rose, sem saber direito o que fazer.
— Sim — retrucou Leo da porta onde ainda se escondia, porque não
tinha nenhum colhão. — Teria sido indelicado não casar.
— Ah, deixe de ficar enrolando, Leo — disse Rose com firmeza. — Por
que você não pega uma bebida para sua adorável esposa... Jane, não é
isso?
Arrumaram um canto em um dos sofás para Jane, e ela sentou ao lado
de uma ruiva impressionante chamada Connie, vestida com um cafetã
original Zandra Rhodes em tons de verde e rosa, que dirigia a própria
empresa de paisagismo.
Também estavam presentes Elaine, “do outro lado da praça”, e Gudrun,
um designer têxtil sueco; Sarah, que ensinava ioga para “prisioneiros,
donas de casa entediadas, dançarinos, pessoas de todo tipo, na verdade”, e
George, curador no Victoria and Albert Museum. Todos se apresentaram
em tom jovial, mas brevemente, à Jane, como se esperassem para voltar à
programação agendada. Jane ficou lá sentada segurando uma soda com
limão. Até mesmo o cheiro dos martínis deles fazia seus olhos
lacrimejarem, sem falar que qualquer coisa diferente de uma mente
perfeitamente clara poderia ser fatal.
Leo sentou no braço do sofá em frente, também com uma soda com
limão.
— Eu nunca bebo tão cedo. O sol ainda nem se pôs — disse ele,
agitando as sobrancelhas. — E num domingo, ainda por cima? Deus, que
bando de infames vocês são.
Rose apenas sorriu de um jeito contido e discreto e, em seguida, olhou
para Jane. Era como estar sob um microscópio, mas Jane já tinha
aprendido a parecer à vontade em uma sala cheia de estranhos.
Ela sempre se imaginava sentada em uma praia, o sol aquecendo seu
rosto, as ondas batendo suavemente, garçons servis prontos para lhe
trazer o que quer que desejasse. Quando pensava nisso, era fácil ficar ali
sentada com um ligeiro sorriso no rosto, a postura relaxada. Como se
pertencesse àquela sala bonita, com aquelas pessoas inteligentes e
articuladas.
As paredes eram de um cinza-escuro esfumaçado, e o ambiente não se
tornara escuro por causa das duas enormes janelas envidraçadas atrás da
poltrona de Rose e do fato de tudo o mais na sala ser branco, do chão aos
sofás, tapetes e lareira. Sobre a lareira, havia uma serigrafia de Rose feita
por Andy Warhol. Uma Rose mais jovem, o rosto um pouco mais suave, o
cabelo escuro, fora uma mecha branca saindo do bico de viúva, e o
mesmo sorriso astucioso.
Rose tinha um estilo que Jane, apesar do cuidado intenso com a
aparência, consultas a personal shoppers e roupas sempre pretas, brancas
ou cinza, porque tinha medo de tentar combinar cores e pavor de
estampas, nunca ousaria imitar.
— Leo, como você e Jane se conheceram? — perguntou Rose, cortando
um debate acalorado sobre o Prêmio Turner. — Adoro saber como as
pessoas ficaram juntas.
Leo sorriu, mas seus olhos correram pela sala, porque era um péssimo
mentiroso. Alguém que vivia como ele, de maneira imprevidente e
precária, improvisando sempre e contando com ocasionais golpes de
sorte, devia ser muito melhor em fingir.
— Você conta, amor — disse ele. — Você faz isso muito melhor do que
eu.
Por outro lado, ele era muito bom em transferir a responsabilidade
para outra pessoa. Todos os olhos estavam voltados para Jane outra vez.
Ela sorriu de novo, como se estivesse revivendo várias lembranças felizes.
— Bem, eu estava noiva de outro homem. Estava jantando com ele
quando tivemos uma daquelas discussões idiotas sobre nada que acabou
se transformando em uma briga horrível até que ele levantou, pediu o
anel de volta e saiu.
Ela realmente fez um favor a Leo quando explicou que ele era o garçom
dos dois, porque Rose, com seu olhar penetrante, nunca acreditaria que o
sobrinho era um artista bem-sucedido. Havia um iPad perto dela em uma
mesa lateral. Aquela era uma mulher que sabia como configurar um
alerta do Google.
Jane prosseguiu com a história, contando que Leo mantivera uma
distância discreta, a fim de lhe dar tempo para se recompor, e depois
colocou uma fatia de bolo de chocolate e uma taça de champanhe na sua
frente.
— Por conta da casa, o que foi muito gentil. Mas eu já estava à beira
das lágrimas, e aquilo deu um empurrãozinho. — Jane então passou a
descrever como Leo persistira incansavelmente, embora ela não estivesse
interessada em se envolver logo com outra pessoa, já que seu coração
estava não partido, mas ferido. — Definitivamente ferido. Mas Leo não
aceitou um não como resposta e, no final, acabou me vencendo pelo
cansaço.
Rose parecia acreditar nisso porque balançou a cabeça.
— Isso faz o estilo de Leo. Há quanto tempo estão casados?
Não havia por que mentir com relação a esse detalhe específico.
— Pouco mais de um dia — respondeu Jane, e todos arfaram chocados
e encantados. — Estávamos em Las Vegas a trabalho, e eu disse a Leo que
sempre planejara me casar antes dos vinte e sete anos, então nos casamos
com algumas horas de sobra.
— E decidiram passar a lua de mel em Londres? Há lugares melhores
do que Londres em outubro para se passar a lua de mel — disse Elaine.
— Não chegamos a planejar uma lua de mel, levando-se em
consideração...
— Lydia ligou — cortou Leo. Ele havia ficado em silêncio até então.
Sorrindo timidamente nos momentos certos, mas agora estava sério, com
um ar grave no rosto. — Ela disse... Insistiu para que eu viesse para casa.
Fez parecer... você sabe... — Ele deu de ombros e olhou para o copo.
Jane esperava que o silêncio tomasse conta da sala, mas a atmosfera
permaneceu descontraída e alegre.
— Ela lhe disse que eu estava no leito de morte? — perguntou Rose. —
Bem, não exatamente.
— Mas você está... você não está... Eu não sei...
Ele não conseguia encontrar as palavras. Todo seu jeito confiante e
convencido desapareceu de repente, como se alguém o tivesse esvaziado.
Jane não conseguiu deixar de sentir pena dele. Leo tinha ido até ali
esperando o pior e, agora que o pior não parecia tão ruim, estava perdido
e atrapalhado.
— Sim, estou — disse Rose gentilmente. — Não há razão para fazer
melodrama e mistério com isso. Dessa forma, posso aproveitar bem o
tempo para me despedir de todos os meus amigos queridos e fazer todas
as coisas que normalmente não faria, como tomar dois drinques antes do
jantar, em vez de apenas um. Não há razão para se preocupar e realmente
não sei por que você quis cruzar o Atlântico de uma hora para outra.
Aquilo pareceu desnecessariamente duro. O que quer que Leo tivesse
feito para ser banido não poderia ter sido tão terrível a fim de justificar a
humilhação na frente dos amigos de Rose.
Ainda assim, Rose era problema de Leo, não dela.
— Sinto muito por termos aparecido sem avisar — disse Jane. — Nós
já vamos embora, é só que Leo estava tão preocupado que quisemos vir
logo.
Leo já estava de pé, com um olhar agradecido no rosto.
— Sim, não vamos mais incomodá-la. Ainda temos que achar um
hotel.
— Não seja ridículo. Tenho certeza de que Lydia já arrumou seus
antigos quartos. — Rose pegou o iPad. — Anna vai mostrar à Jane onde
ela pode tomar um banho antes do jantar, e, Leo, você pode nos preparar
mais algumas bebidas. Você sempre soube fazer um bom martíni.
Um minuto depois de Rose tocar a tela do aparelho, a jovem que os
tinha deixado entrar estava de volta.
— Vá lá, querida — disse Rose gentilmente. — Vamos comer às sete.
Você e eu podemos nos conhecer melhor depois.
Foi um alívio ser liberada, sair atrás da jovem e subir outro lance de
escadas, seguir por um corredor até um conjunto de cômodos: closet, sala
de estar, banheiro e quarto, onde sua mala já havia sido deixada ao pé da
cama. O quarto era pintado em um tom suave e esfumaçado de índigo —
um quarto azul para um menino triste. Havia alguns croquis de caneta e
tinta emoldurados nas paredes, livros sobre arte nas prateleiras, mas
Jane estava mais interessada em pegar o próprio iPad na bolsa, ligá-lo e
digitar “Rose Beaumont Kensington” no Google.

Rose ignorou Leo explicitamente depois que Jane saiu da sala. Ela ainda
sabia dar um gelo como ninguém.
Ele esperava por isso. Então conversou com George sobre as últimas
fofocas do Victoria and Albert Museum e com Connie sobre projetos de
jardinagem.
De vez em quando, ele conseguia chamar a atenção de Rose e ela o
encarava com um olhar triste, depois virava para Elaine ou Gudrun, que
estavam mais próximos dela.
Isso o fazia lembrar de quando era bem pequeno e Rose ia a Durham
algumas vezes por ano. Ela chegava em seu MG escarlate com lindos
pacotes com laços para Linda, sua mãe, uísque para seu pai e grandes
caixas de Lego, que empurrava para Leo e depois o ignorava.
O que estava bom para Leo, já que odiava a tia-avó Rose. Sua mãe
passava a semana anterior às visitas de Rose dizendo-lhe para “respeitar
a etiqueta e só abrir a boca quando falarem com você”. Ele também não
tinha permissão para comer com os adultos e ficava preso na cozinha
com o irmão mais novo, Alistair, que era apenas um bebê, enquanto Leo
já era um garoto grande de três anos, depois quatro, depois cinco. Ainda
assim Rose o cumprimentava com um olhar de leve desgosto, como se
soubesse que ele não tinha lavado as mãos, mesmo tendo jurado para a
mãe que o fizera.
Então Rose aparecera para uma visita logo após o quinto aniversário de
Leo. Ele estava de pé no hall, pronto para ser apresentado a ela como se
fosse a rainha, e, com o filme que tinha acabado de ver fresco na mente e
Rose entrando com aquela mecha branca em meio ao cabelo castanho,
ele disparara:
— Tia-avó Rose, você parece a Cruella De Vil.
Fizera-se então um silêncio terrível. Sua mãe lhe lançara aquele olhar,
que sem dúvida queria dizer que ficaria sem TV por pelo menos uma
semana, e seu pai começara a pedir desculpas sem parar:
— Desculpe, Rose. Ele nunca pensa antes de abrir a boca.
E Rose encarara Leo fixamente, e ele a encarara de volta porque ela
realmente parecia uma vilã de desenho animado. Então Rose rira com
vontade: uma boa e sonora gargalhada.
— Pareço mesmo?
Leo assentira.
Ela, então, bagunçara o cabelo dele e se agachara.
— Quer saber um segredo?
Ele assentira de novo.
— Prefiro que você me chame de Cruella do que tia-avó Rose. Faz eu
me sentir muito, muito velha.
— Você não é tão velha.
Sua mãe respirara fundo, mas Rose rira de novo.
Eles se tornaram grandes amigos desde então. Na visita seguinte, ela
lhe comprara um dálmata de pelúcia da Hamleys e ele a desenhara como
Cruella.
— Ninguém diria que ele só tem cinco anos — falara Rose para Linda,
que sorrira orgulhosa.
Os sorrisos orgulhosos de Linda em geral eram reservados a Alistair
quando ele dava alguns passos sem cair ou conseguia levar uma colher à
boca sem derramar nada — e Leo já sabia fazer todas essas coisas.
Depois disso, eles recebiam sempre pacotes de Rose cheios de
canetinhas e lápis em mais cores do que Leo sabia dizer o nome.
Melhores ainda do que os pacotes eram os verões mágicos e
intermináveis na casa de Rose em Lullington Bay, Sussex. Foi onde ele
aprendeu a pintar enquanto tentava capturar a glória cor-de-rosa e
alaranjada do céu ao entardecer e a maneira como o mar brilhava ao sol.
Não houve qualquer discussão se ele deveria estudar para ser médico
como seu pai e seus dois avôs antes dele. Rose decidira que ele estudaria
arte na Chelsea School of Art and Design, e seu caminho ficou definido.
Seu futuro, traçado. Poucos rapazes de dezoito anos gostariam de ir
morar com uma tia-avó beirando os setenta, mas Rose nunca parecera
uma velha para ele. Ela fora sua mentora, confidente, amiga. Mas, antes
disso, ela o ignorara.
Naquele instante, sentado do outro lado da sala, deixado de lado, Leo
se perguntou o que seria necessário, o que ele tinha de fazer para que os
dois voltassem a ser amigos.
10

Janeiro de 1944

Rose não podia acreditar que estava em Londres havia quatro meses.
Parecia muito mais tempo e, às vezes, tinha a impressão de não ter
passado tempo algum. Rose se sentia mais velha, mas, no espelho, ainda
tinha aquele jeito irritante de menina.
O Natal tinha chegado e passado sem nenhum presente de Durham.
Em vez disso, sua mãe lhe mandou um pijama gasto do pai e sugeriu que
ela fizesse uma saia de verão com ele, e Shirley, um tecido de malha para
Rose substituir o pedaço das calcinhas que ficava em contato com as
partes íntimas. Era algo bem ordinário, tendo em vista que Rose lhes
enviara uma grande caixa de chocolates e vários maços de cigarro.
Mas ainda assim tinha sido um Natal mágico. Mesmo que Phyllis
tivesse precisado trabalhar pela manhã e Sylvia tivesse passado a noite da
véspera de Natal na casa dos pais em Hoxton. Rose inacreditavelmente
dormira às nove e meia e, ao acordar, vira Maggie, que tinha ganhado o
dia de folga na BBC Overseas Service, empoleirada no peitoril da janela do
salão para fumantes. Ela parecia tão triste, apesar de ser Natal. Então
Rose lembrara que Maggie era emigrante e que isso deveria ser levado em
consideração.
— Está sentindo muita falta da sua família? — perguntara, e Maggie
virara para ela e sorrira. Não era um sorriso muito feliz.
— Talvez. Embora sentir falta deles não adiante muito — dissera ela.
Então ela abrira um sorriso de verdade e falara que tinha um pouco de
café. Rose tinha alguns donuts meio passados que enfiara na bolsa na
noite anterior no Rainbow Corner, e as duas se banquetearam
aconchegadas junto à lareira a gás. Depois, Sylvia chegara em casa com
uma lata de chocolate quente e quatro tiras de bacon, “cortesia de Henry
e Edna Crapper, que mandaram seus votos de felicidades”, seguida de
Phyllis, que recebera um enorme pacote da família. Havia uma deliciosa
torta de abacaxi da estufa, bolo de ameixa, vinho de sabugueiro e um
frango, que Maggie conseguira assar no forninho Baby Belling.
Tinham ficado bem alegrinhas com o vinho de sabugueiro, e Rose
organizara um jogo de charadas, embora Maggie tenha se queixado muito
que o inglês não era sua língua materna e as outras tinham uma
vantagem injusta. Então, bem agasalhadas e procurando se recuperar do
choque repentino de uma fria noite de dezembro, depois de terem ficado
tão quentinhas dentro de casa, elas correram para o Rainbow Corner para
dançar a noite toda, e assim no fim o primeiro Natal de Rose em Londres
tinha sido maravilhoso.
Por outro lado, a maioria das coisas em Londres era maravilhosa. Rose
tinha suas amigas e as noites no Rainbow Corner e, mesmo que
estivessem passando pelo que os jornais chamavam de Pequena Blitz — a
Luftwaffe redobrando os esforços e lançando bombas todas as noites — e
o tempo estivesse frio e nebuloso, ainda preferia estar em Londres do que
em qualquer outro lugar.
Passava os dias matando-se de trabalhar, lavando pratos e levando
bronca da sra. Fisher, mas as noites eram cheias de infinitas
possibilidades. Como a noite em meados de janeiro, quando Rose
planejava se encontrar com Sylvia e algumas das outras colegas de
trabalho na Paramount depois do turno no Rainbow Corner. Ela estava no
banheiro colocando o casaco e se perguntando se o aviador canadense
que conhecera na outra noite estaria lá, quando sua amiga Pippa lhe
contou um pequeno segredo. A loja da esquina tinha recebido peixe.
— É melhor se apressar — advertiu Pippa. — A fila já saía pela porta
quando passei por lá.
Rose praticamente saiu pulando pelo saguão e cruzou depressa a porta,
dando de cara com um grupo de soldados.
— Eu sinto muito! — Rose se abaixou para pegar o quepe que um deles
havia deixado cair, mas o soldado também já estava se abaixando e ela
bateu o cotovelo em sua cabeça cheia de brilhantina. — Céus! Sinto
muito mesmo.
— Nunca fiquei tão feliz assim com um golpe desses — disse um deles.
— Poderia convencê-la a voltar e dançar com um pobre camarada que
poderá estar morto a essa hora na próxima semana?
Aquele apelo, que ela então já tinha ouvido inúmeras vezes ao longo
dos últimos meses, não abalou Rose. Ela balançou a cabeça, sorriu
tristemente, mas não se sentiu nem um pouco culpada.
— Eu adoraria, mas, se não chegar em casa logo, vão chamar uma
equipe de busca.
Nenhum homem gostaria de saber que valia menos do que peixe e
batata frita embrulhados em jornal de ontem.
— Só uma dança!
Todos eles olhavam para Rose como se ela tivesse acabado de sair da
tela do Empire na Leicester Square.
— Há várias garotas encantadoras lá dentro que ficarão mais do que
felizes em dançar com você — retrucou ela. E afastou-se relutantemente,
mesmo quando um deles segurou seu braço e tentou beijar-lhe a mão. —
Eu realmente tenho que ir.
Rose se afastou com um sorriso triste, satisfeita em seu íntimo em ver
como pareciam desconsolados por não terem conseguido convencê-la a
dançar com eles. Tudo teria sido perfeito se ela não tivesse esquecido o
degrau e só não tivesse caído porque duas mãos a agarraram pelos
cotovelos para firmá-la.
— Cuidado aí, querida, você não vai querer quebrar esse lindo
pescocinho — disse uma voz agradavelmente grave em seu ouvido que
soava familiar. Talvez um pouco como a de James Stewart. Algumas das
outras meninas disseram que ele ia ao Rainbow Corner quando estava em
Londres.
Rose virou a cabeça e seus olhos se arregalaram, a boca aberta em um
grito silencioso.
— Ah. É você!
— Ah! É você. Como você está, criança?
Definitivamente não era Jimmy Stewart, mas Danny seja lá qual fosse
seu sobrenome, o soldado detestável que conhecera em sua primeira
noite em Londres, com seu sorriso maroto e aquele jeito de olhar para
Rose como se a moral dela fosse duvidosa.
— Eu estou bem — limitou-se a responder Rose. — E você, está bem?
— Não estou morto, então acho que estou ótimo.
Então Rose lembrou que ele era o tipo de pessoa que sempre tinha uma
resposta inteligente para tudo. Também lembrou que ele era muito bonito
para quem gostava de homens morenos, que em geral não era seu caso.
— Você vai sempre ao Rainbow Corner agora? Não a alertei sobre
perambular por aí em lugares como este?
Rose gostaria de pensar que o encarava com ar de desdém.
— Sou voluntária da Cruz Vermelha Americana. Pode perguntar na
recepção, se não acredita em mim!
— Tinha esquecido como você é arrogante...
— Eu não sou arrogante...
— Mas não tinha me esquecido de como você é bonita.
Rose suspeitava que ele estava zombando dela novamente, mas ele
estava muito sério ali parado, a cabeça virada de lado, enquanto olhava
para ela de maneira atrevida como se sua beleza fosse só para ele.
— Bem, eu não tinha me esquecido de como você é rude — retrucou
Rose, sem rodeios. Estava determinada a acabar com aquele pequeno
frisson de prazer só porque ele tinha dito que ela era bonita. — Tenho
certeza de que você nem lembra meu nome. Naquela noite inteira você só
me chamou de “criança” num tom superior.
— Mas é porque você estava sendo uma fedelha — disse ele, piscando
com ar conspiratório. Ele era impossível. — Uma grande fedelha.
— Bem, de qualquer maneira, eu tenho que ir. É bom ver você de novo,
com certeza — disse Rose de uma forma curiosa. Não só porque ele
flertara com ela, mas também porque isso a fazia se sentir como uma
verdadeira londrina que esbarrava em conhecidos na rua.
Ela começou a caminhar pela Denham Street, acelerando ao passar
pelas meninas de rosto duro e os grupinhos de homens que queriam levá-
las para as entradas escuras dos prédios.
— Que tipo de cara eu seria se não a levasse até sua casa? —
questionou Danny, começando a acompanhá-la. — Você chegou a ir à
Associação Cristã Feminina?
— Não, e não preciso que ninguém me acompanhe até em casa. Além
disso, não estou indo para casa. — Ela atravessou depressa a rua. Danny
atravessou com ela. — Estou indo comprar peixe e batata frita, se ainda
houver sobrado.
— Ainda não experimentei peixe e fritas, vou com você — disse
Danny. — Que tipo de peixe é?
Por mais improvável que parecesse, eles falaram sobre peixes durante
os três minutos que levaram para chegar à loja e entrar no final da fila.
Havia um rumor sobre bacalhau, embora não fosse muito, e Rose estaria
contando, ansiosa, as cabeças na frente dela, mas Danny a distraiu
descrevendo a lagosta que tinha comido ao fim de longos dias de verão
passados em um lugar chamado Judith Point, em Rhode Island.
— Mas eu pensei que você fosse de Nova York. Não foi isso que você
disse quando nos conhecemos?
Danny sacudiu a cabeça com impaciência.
— Ninguém passa o verão em Nova York. É muito quente. Um homem
poderia perder a cabeça num calor daqueles.
— Eu adoraria ir a Nova York — disse ela. Tinham estado tão ocupados
conversando que Rose não percebera que haviam chegado à frente da fila.
— Só sobrou um pedaço. Vai dar para sua garota? — perguntou o
homem atrás do balcão a Danny.
Rose queria desesperadamente aquele pedaço de peixe, mesmo que
fosse esqualo, mas no Rainbow Corner tinham martelado em sua cabeça,
noite após noite, que os soldados americanos eram convidados em seu
país e estavam sacrificando suas vidas para defender a Grã-Bretanha dos
nazistas, por isso o mínimo que podia fazer era abrir mão de um pedaço
de peixe para a causa.
— Ele pode...
— Dê para minha garota — interrompeu Danny com firmeza. Ela com
certeza não era sua garota, nunca seria, mas nem sequer tentou
argumentar.
— Obrigada. — Rose ficou olhando um minúsculo pedaço de cauda,
que lhe garantiram ser bacalhau, ser colocado ao lado de uma pequena
pilha de batata frita, polvilhado com sal e vinagre e deixado aberto a
pedido dela.
Eles caminharam ao longo da Brewer Street. Estava mais tranquilo,
embora fosse difícil andar e comer batata frita (que tinha sido preparada
no que parecia ser óleo de motor velho) ao mesmo tempo. Rose deixou o
peixe para o final, da mesma forma que sempre deixara a cereja de seu
cupcake. Uma mordida, e metade fora embora.
— Aqui. Você pode ficar com o resto — disse ela a Danny, que também
tinha ficado em silêncio. — Mas me sinto obrigada a lhe dizer que o peixe
com fritas foi muito mal representado pelo que acabamos de comer.
— Estava ótimo. O melhor peixe com fritas que já comi. — Ela pôde
ver o brilho de seus dentes quando ele sorriu.
— Não que você já tenha comido peixe com fritas antes — lembrou
Rose. Eles atravessaram o cruzamento até a Old Compton Street. — Se
está determinado a me acompanhar até em casa, é melhor seguirmos
pelas ruas secundárias. Há menos chance de uma bomba cair em você se
evitar as ruas principais.
— Você ouviria a sirene antes de qualquer bomba começar a cair.
Eles caminhavam lado a lado pela estreita calçada, as mãos
ocasionalmente se roçando. Danny era grande sem ser corpulento, o que
fazia Rose se sentir segura, ou mais segura.
— Não se for só um bombardeiro que se separou dos colegas
bombardeiros, e for uma noite nublada, fazendo com que passe
despercebido — insistiu Rose.
Danny bufou um pouco.
— Não é assim que funciona.
Era um cenário bem plausível, mas provavelmente não valia a pena
discutir sobre isso.
— Então, hum... ah! Como está o Phil? Ele foi tão gentil naquela noite.
Espero que não esteja com muitas saudades de casa. Ele falou tanto sobre
Des Moines, como se sentisse muita falta de lá.
— Ele está morto — respondeu Danny tão baixo que Rose não teve
certeza se o ouvira direito. — Não voltou de sua primeira missão.
— Ele não pode estar morto. — Não Phil com seus braços e pernas
grandes e desengonçados, os quais não sabia controlar. Seu sorriso
tímido, porém fácil, as pontas das orelhas vermelhas das horas gastas
dançando só para agradá-la. — Ele ia ser veterinário depois da guerra.
Provavelmente foi feito prisioneiro ou está sendo trazido de volta para a
Inglaterra pela Resistência, ou...
— Criança, o avião dele caiu em chamas. Ele não vai voltar.
— Meu nome é Rose, não criança — conseguiu dizer Rose e, então,
inexplicavelmente, começou a chorar. Porque conhecera Phil antes das
preleções bem-intencionadas de Sylvia sobre não se envolver demais e
perder a cabeça por cada homem com quem compartilhava uma dança e
um donut.
Ela se virou, os ombros sacudindo sob o casaco de pele para enterros
da mãe. Então cambaleou até a porta mais próxima para poder esconder
o rosto na pedra fria e chorar.
— Rose... — Danny colocou a mão em seu braço. Ela o balançou para
se soltar. — Ouça, você deu a ele a melhor noite de sua vida. Ele não
parava de falar de você quando voltamos para a base e ele...
— Cale a boca! Não quero ouvir isso. Ah, Deus... Não me toque!
Mas ele estava tocando-a, virando-a de volta para ele com uma firmeza
que não podia ser negada quando se está chorando e tudo o que se quer é
desabar contra alguém, porque não é mais possível se conter.
Rose se viu desmanchar no abraço de Danny, o braço dele apertado em
volta de sua cintura, e quando ele segurou seu queixo ela sequer
conseguiu afastar a cabeça.
Ele roubou o próximo soluço de sua boca com um beijo.
O primeiro beijo de verdade dela.
Rose não sabia bem o que fazer. Eram tantas novas e estranhas
sensações. Ser pressionada tão fortemente contra um homem que nem
mesmo o vento poderia passar entre os dois. Danny era firme, forte; ela
podia perceber os músculos dele se tensionando, e ela se sentia tão
macia, tão maleável, como se ele pudesse moldá-la da forma que
desejasse. E também havia seus lábios, que formigavam e se moviam por
vontade própria, como se ela não tivesse controle sobre eles.
Ela suspirou. Contorceu-se para ainda mais perto, então recuou
quando Danny tentou enfiar a língua em sua boca.
— O que você está fazendo?
— Beijando-a como se deve — respondeu. — Você nunca tinha sido
beijada?
Rose estava prestes a dizer que tinha sido beijada várias vezes quando
pensou o que isso poderia dar a entender.
— Não exatamente — emendou ela.
— Deixe-me mostrar — disse Danny, e a voz dele era tão grave que fez
algo se agitar na boca do estômago dela. — Abra a boca um pouco.
Ela o deixou beijá-la novamente. Era impossível rejeitá-lo, e agora ela
poderia prová-lo, assim como senti-lo. A agitação se intensificou, e Rose
achou que seus joelhos pudessem ceder se Danny não a estivesse
segurando.
Então ele a beijou, a língua mergulhando profundamente em sua boca,
até os lábios dela ficarem doloridos e Rose mal conseguir respirar. Se uma
bomba tivesse caído sobre eles naquela hora, ela morreria feliz nos braços
dele. Mas, quando a mão dele deslizou por baixo do casaco de Rose e
tocou o seio dela por um breve instante, ela engasgou e foi bem fácil se
afastar.
— Já basta. — Sua voz soou tão fraca e sem fôlego que ela mal a
reconheceu. — Eu realmente deveria ir para casa agora.
Danny recuou. Na escuridão, o rosto dele era um misto de ângulos e
sombras. Ela nunca pensara que um homem poderia ser belo, mas ele era.
— Basta por enquanto — concordou ele. — Mas você vai me deixar vê-
la de novo, não vai?
— Sim, se você quiser. — Ela nem conseguia fingir que tinha um
milhão de coisas para fazer e que não esperaria por ele. — Quando você
estará de licença de novo?
Danny passou o braço pelo dela.
— Está muito frio para ficarmos aqui fora tagarelando. Vamos
caminhar.
Ela estava agoniada por não saber. Por fim, enquanto caminhavam pela
Theobalds Road e Rose já temia dizer adeus, ela não pôde mais suportar.
— Você não disse... quando estará de licença de novo?
— Não disse, não é? — Ela nunca mais voltaria a achar o sorriso dele
debochado. — Então você quer me ver de novo?
Rose odiava esse tipo de dança. Tinha medo de que pudesse perder o
equilíbrio e tropeçar.
— Só se você quiser me ver de novo. Você quer, não quer?
Então Danny pegou sua mão, e, mesmo através das luvas dos dois, ela
se sentiu confortada pelo toque.
— Claro que quero. Encontrarei você em frente ao Rainbow Corner na
mesma hora amanhã à noite. Acho que não deveria estar tão ansioso,
mas não quero que você saia com outro cara só porque fui lento demais
para declarar minhas intenções.
Rose nem se importava se as intenções dele eram honradas, ficou feliz
só em saber que ele tinha alguma. E sorriu para ele.
— Vejo você amanhã, então.
Mas Danny não estava lá na noite seguinte quando ela saiu do Rainbow
Corner com Sylvia e Maggie. Enquanto esperava por dez agonizantes e
longos minutos, Rose pensou que ele tinha lhe dado um bolo. Sylvia e
Maggie eram da mesma opinião.
— Rosie, quantas vezes tenho que lhe dizer que todos esses ianques são
cheios de conversa e promessas vazias? — repreendeu Sylvia. — Vamos
lá, encontraremos outro para fazer você esquecer isso.
Relutantemente, Rose deixou as duas a levarem dali. Tinham acabado
de virar a esquina para a Windmill Street, a fim de cortar caminho pelo
Soho, quando alguém se aproximou de mansinho e a agarrou pela
cintura, fazendo-a gritar de susto. Maggie não perdeu tempo e acertou
sua bolsa com tanta força na cabeça de Danny que ele soltou Rose, dando
também um grito.
Não era a mais promissora das apresentações. Maggie não pediu
desculpas por bater nele, e Sylvia apertou sua mão sem vontade, olhou-o
de cima a baixo com uma expressão cansada, então disse:
— Encantada, com certeza. — Ela parecia longe de estar encantada.
— Posso acompanhá-la até em casa, então? — perguntou Danny com
um sorriso. Ele não parecia nem um pouco irritado com a recepção fria.
Ela sorriu de volta e só conseguiu dizer “Bem, eu gostaria...”, quando
Sylvia e Maggie lhes deram os braços e começaram a andar, não lhe
oferecendo escolha a não ser andar com elas.
— Não deixamos Rose ir até em casa com nenhum Tom, Dick ou Harry
— disse Sylvia por cima do ombro.
— E que tal um Danny? Ela pode ser acompanhada até em casa por
um Danny? — perguntou ele enquanto as seguia pelas ruas escuras. —
Preciso pedir a meu comandante que escreva uma carta de
recomendação?
— Ainda não temos opinião formada sobre Dannies — disse Maggie.
— Sinto muito. Não sei por que elas estão agindo assim!
Sylvia lançou a Rose um olhar de pena.
— É exatamente por isso que não vamos deixá-la ir até em casa com
ele.
Então, Danny acompanhou-as até o Bouillabaisse e pagou pela entrada
delas.
— Eu não danço — afirmou ele quando Rose tirou o casaco, endireitou
o cabelo e a banda começou a tocar algo rápido no estilo jive. Ele olhou
em volta no salão lotado. — Você sabe que este é um clube de negros?
— E daí? Os negros têm modos e passos melhores do que a maioria dos
brancos com quem dançamos — informou Sylvia com altivez, mas Danny
apenas deu de ombros, como se estivesse acostumado a lidar com
melhores amigas arrogantes.
— Eles são realmente maravilhosos — concordou Rose.
Ela sentou a seu lado, porque queria estar perto dele. Perto o bastante
para que, se ela se curvasse, Danny pudesse beijá-la, mas Danny não
parecia inclinado a beijá-la, nem mesmo quando ela fez biquinho e olhou
para ele. Por fim, quando o terceiro homem criou coragem para chamar
Rose para dançar, Danny lhe disse para ir em frente.
Entre uma dança e outra, ele pagou para Maggie e Sylvia um Gin and
French e para Rose um refrigerante de gengibre, já que ela ainda não
tinha encontrado uma bebida de adulto palatável, então ficou guardando
a mesa, enquanto Rose dançava com homens que não eram ele.
Rose sempre ficava feliz em dançar, mas estava menos feliz ao ver que
Danny não se importava em vê-la dançar com outros homens. Com
certeza, se estivesse interessado nela, ele não deveria se importar um
pouco?
Rose pode até ter começado a se desesperar, mas então, na calmaria
entre as músicas e os parceiros de dança, Danny apareceu atrás dela.
Envolvendo-a com o casaco da mãe dela e seus braços, depois
empurrando-a depressa escada acima, enquanto Sylvia e Maggie estavam
no banheiro feminino com o batom vermelho de Rose.
Quando ela tentou dizer isso a Danny, ele silenciou-a com um beijo.
— Eu lhe compro outro batom — prometeu quando ela afastou a boca
da dele por simplesmente não conseguir aguentar mais a acelerada
palpitação em seu peito. — Preciso ficar um tempo a sós com você.
Era uma noite fria, densa. O nevoeiro os envolvia, embora Rose
pudesse jurar sobre uma pilha inteira de Bíblias que via estrelas no céu.
— Sinto muito por Maggie e Sylvia. Elas tendem a ser superprotetoras.
— Rose meio que esperava que elas irrompessem de repente pela porta
do clube, exigindo que Danny a soltasse.
Rose não queria ser solta, sobretudo quando Danny apertou os braços
em volta dela e seu olhar ficou menos carinhoso e mais determinado.
— Então, onde você mora, tem seu próprio quarto?
— Ah, não. Divido um quarto minúsculo com a Sylvia, e ela
provavelmente vai para casa logo, eu acho.
— Não há nenhum lugar onde possamos ficar sozinhos? — perguntou
Danny num sussurro que fez cócegas em seu ouvido e deixou Rose se
sentindo pesada e lânguida. — Só nós dois.
Rose sabia exatamente o que ele queria. Tinha ouvido Phyllis e Maggie
sussurrarem sobre um rapaz chamado Brian, que partira o coração de
Phyllis depois que ela lhe permitira certas intimidades que garantiriam a
Brian umas boas chicotadas se o pai dela um dia descobrisse.
E também havia aquelas meninas de olhos vermelhos e rosto pálido no
consultório de seu pai, com as mães de rosto desgostoso. Elas eram
enviadas para uma casa nos arredores de Newcastle e voltavam alguns
meses depois, mais gordas e ainda mais pálidas. E Rose já estava em
Londres havia quatro meses, tempo suficiente para saber bem o que
aquelas garotas de aparência atrevida queriam dizer quando gritavam
“Marcha rápida! Chuva de prata!” para os soldados a caminho do
Rainbow Corner.
Além disso, havia algo de assustador e imprevisível em beijar Danny —
como se Rose não se conhecesse mais ou pudesse começar a tentar
adivinhar o que dizer ou fazer para ele concordar em nunca parar de
beijá-la.
Então Rose fez questão de ficar com os olhos bem arregalados.
— Não há nenhum lugar.
Ela não teve de fingir o tremor na voz, porque Danny podia ser do tipo
que só queria tomar liberdades e, se ela não concordasse, então talvez
simplesmente saísse pelo nevoeiro para nunca mais ser visto.
— Sorte sua que você é tão bonita — disse Danny finalmente. —
Embora eu deva lhe dizer, criança, que ficar aos beijos pelas portas não é
meu estilo.
— Nem meu também — disse Rose com um pouco mais de convicção
agora que as coisas já tinham saído como queria. — Mas sua sorte é que
você é muito bom em ficar aos beijos pelas portas porque, afinal, não sabe
nem dançar!
Ninguém, nem Shirley ou Sylvia, já tinha sugerido que fazer um
homem rir poderia garantir sua devoção. Mas fazer Danny rir parecia ser
o truque mágico que o fazia voltar noite após noite.
Danny era piloto de bombardeiro. Ou melhor, ele não tinha negado
quando Rose lhe perguntara, só erguera a sobrancelha e dissera que
entendia de aviões. Embora agora estivesse havia um tempo em terra e
baseado em Londres. Algo a ver com um ferimento antigo que ele insistia
não ser nada e com alguma coisa oficial sobre a qual não estava
autorizado a falar, o que significava que ele estava alojado no Columbia
Club, em Lancaster Gate, por duas semanas.
Catorze noites. Pelas suas contas, Rose estava apaixonada a partir da
sexta noite.
Danny nunca entrava no Rainbow Corner, mas sempre a esperava do
lado de fora quando ela aparecia com uma ou às vezes todas as três
acompanhantes, embora Phyllis achasse Danny maravilhoso.
— Ele parece um Ronald Colman mais jovem e mais forte — dissera
suspirando depois de lhe ser apresentada, mas isso não significava que
ela era negligente em seus deveres.
Todas as noites, Danny ia com elas ao Paramount ou ao Bouillabaisse
ou, se elas conseguissem andar tanto, à Royal Opera House, em Covent
Garden, onde agora se dançava. Ele pagava a entrada delas, conseguia-
lhes uma mesa, comprava-lhes bebidas e via Rose dançar com outros
homens. Phyllis, Maggie e, principalmente, Sylvia estavam sempre
atentas e nunca deixavam os dois sozinhos, então ficava cada vez mais
difícil sair escondido para aqueles beijos apaixonados e enlouquecedores.
Mais difícil, porém não impossível quando Rose podia procurar os cantos
mais escuros do clube e esperar, com o coração acelerado, por mãos que a
agarrassem pela cintura, lábios que beijassem seu pescoço.
Ele também a tocava. Deslizava as mãos para descansá-las em seu
quadril ou sentir os seios dela sobre qualquer vestido emprestado que
estivesse usando, e Rose deixava porque, durante os primeiros segundos
em que as mãos dele se moviam sobre seu corpo, ela mal podia lembrar o
próprio nome. Então ela recuperava a razão e o afastava.
— Você não deve fazer isso. — Ela nunca soava firme. — Não está
certo.
Às vezes, ela achava que não dizia isso por causa do decoro, mas
porque Danny ria ao ouvir. Um riso lento e insolente que lhe provocava a
mesma sensação que os beijos, e quando eles enfim deixavam o salão
para a longa caminhada até sua casa repleta de pedidos de beijos, ela
estava tão aquecida que nem sequer notava o frio da noite escura de
inverno castigar sua pele.
11

Nada poderia estar mais longe da quitinete alugada com auxílio do


governo que Jane imaginara. Não aquela casa lindamente restaurada com
os cômodos de pé-direito duplo, ladrilhos de mosaico reluzente, piso em
parquete e todos aqueles detalhes de época: arquitraves, rosetas de teto e
outras coisas mais. Havia também as obras de arte: quando Jane seguiu
Anna descendo de novo as escadas antes do jantar, elas passaram por um
Pollock, três Mondrians e Deus sabe o que mais.
Ao ser guiada pela casa de uma estranha, com seus passos ecoando
enquanto atravessavam o salão, Jane sentia como se estivesse sendo
levada até um consultório médico. Sem esperança de cura. Pior, lembrou-
se de Charles novamente. Da chegada à casa dele. A sem-teto que ele
acolheu, sem perguntas, sem respostas.
Ela nunca gostava de pensar muito sobre aqueles primeiros meses em
Londres — agora parecia que aquilo havia acontecido com outra pessoa,
outra garota —, mas, quando pensava, as lembranças eram indesejáveis.
Ela não sabia dizer quanto tempo havia levado para conseguir dormir na
cama do charmoso quarto de hóspedes verde-hortelã e branco. No
começo, dormira debaixo da cama, no chão impecável, o tapete macio,
segurando a faca com uma das mãos e o rolo sujo de notas na outra.
Ela só saía dali quando ouvia Charles sair e se não fosse segunda ou
quinta-feira, os dias da faxineira dele. Então ia direto para a cozinha,
onde havia muita comida. Manteiga de amendoim, mesmo que fosse do
tipo crocante, maçãs minúsculas e doces, potes individuais de iogurte,
embalagens de papel-alumínio triangulares de queijo e pães de forma
quadrados que Charles devia ter comprado exclusivamente para ela. Jane
comia tudo.
Em seguida, passava horas no banho, a porta trancada e com uma
cadeira encaixada sob a maçaneta. Nunca se sentira tão limpa antes e,
quando mergulhava na água para ver por quanto tempo conseguia
prender a respiração, sempre vinha à tona muito antes de chegar a seu
limite.
Mas ainda parecia que aqueles dias estavam contados. Porque uma
noite tinha se transformado em muitos dias — tinha contado mais de
cem —, e ela teria que ir embora alguma hora, com o mundo fora daquela
casa esperando para machucá-la. E, se ela ficasse, bem, ele lhe dera um
lugar para ficar, e a alimentara, e vestira. É claro que ele iria querer algo
em troca.
Uma noite, ela estava esperando no hall quando ele chegou de onde
quer que tenha passado o dia todo. Ela mal tinha sido capaz de olhar para
ele na primeira noite, e agora estava surpresa por ele não ser tão alto ou
grisalho como pensara.
Ele era um homem claro e esguio, com a pele branca e rosada, na casa
dos quarenta anos, embora ela não soubesse disso na época. As pessoas
de quarenta anos eram bem diferentes no lugar de onde tinha vindo.
— Olá — cumprimentara ele, como se não estivesse surpreso por vê-la
ali.
Ela o seguira até a cozinha e se encostara na porta, vendo-o pegar
coisas da geladeira, hortaliças em sua maioria, picar, misturar,
acrescentar temperos, e então servir dois pratos de algo que disse ser do
estilo oriental, mas que não parecia nada com a comida chinesa para
viagem que ela comera certa vez.
Ela comera, de cabeça baixa, segurando o garfo como se fosse uma
arma, o braço protegendo o prato e, quando terminou, pegou os pratos
vazios e os lavou, porque podia fazer isso por ele, e esperou que Charles
lhe dissesse o que mais poderia fazer, mas ele nunca falou.
Ele apenas indicou que ela deveria segui-lo até o enorme salão na parte
de trás da casa. Havia um grande sofá de tweed cinza, onde Charles
sentou e depois apontou para o espaço no outro canto, deixando uma
distância entre os dois. Ela não ficou assustada. Isso a surpreendeu,
porque não conseguia se lembrar de um dia em que não tenha sentido
medo. Ele estava sempre lá, um gosto frio e metálico no fundo da
garganta, a pele se retraindo para longe dos ossos, e, ao se perguntar por
que não estava com medo, ela percebeu que já não sentia medo havia
algum tempo.
— É sexta-feira — dissera ele, o que não significava nada para ela. —
Gosto de relaxar vendo um filme nas sextas à noite. Você tem algum filme
preferido?
Filmes ou eram desenhos da Disney, ou alguma coisa com perseguições
de carros e explosões, pessoas sendo esmagadas. Ela o olhou como se
Charles pudesse estar zombando, mas ele não percebeu, apenas se
levantou, foi até as prateleiras sobre a TV e escolheu um DVD.
Então eles assistiram a Descalços no parque. Esse ainda é um dos filmes
preferidos dela.
Essa era a nova rotina dos dois. Jantar e um filme. Ela levou três
semanas para conseguir dizer o que queria, mas ainda assim soou
estranho.
— Obrigada — disse ela antes de lavar os pratos do assado de domingo
que ele havia preparado.
— De nada — disse Charles. — Há uma máquina de lavar louça sob o
balcão à sua esquerda.
— Está tudo bem. Eu quero fazer isso.
Foram pequenos passos durante todo o caminho. A primeira vez que
ela se levantou antes de ele sair para o trabalho, para poder lavar a louça
do café da manhã. A primeira vez que ela se levantou antes de Charles
para preparar o café da manhã dele porque agora já sabia que todas as
manhãs ele tomava mingau com apenas um toque de mel e precisamente
nove passas gordas de uva vermelha. A primeira vez que ela saiu de casa
com Charles para ir a um supermercado elegante e seguiu seus passos
enquanto ele empurrava o carrinho.
Provavelmente o maior passo foi a noite em que ela dormiu na cama,
em vez de embaixo dela, com a faca ainda na mão e o maço de notas sob
o travesseiro. Ou talvez o maior passo tenha sido a noite em que Charles
chegou em casa do trabalho e a encontrou na cozinha, cortando,
misturando e acrescentando temperos — o que não era algo inédito
àquela altura, mas sim o fato de o maço de dinheiro ter sido colocado
onde ele sempre sentava.
Mas levara meses para chegar lá — antes disso, foram meses de
desconforto, de se sentir uma intrometida, uma intrusa. Quantas vezes
ela sentira aquilo ao longo dos anos? Quantas vezes fingira que se sentia
em casa, mesmo quando tinha certeza de que era tudo um sonho e que
acordaria num carpete podre debaixo de uma cama de solteiro toda
envergada em uma casa úmida e caindo aos pedaços na pior rua da área
mais pobre de Gateshead?
Jane teve a mesma sensação naquele momento, parada diante da sala
de jantar. A mesa estava posta com linho branco; os talheres de prataria
antiga e cristais refinados resplandeciam sob a suave luz das velas. E lá
estava Leo, apoiado em um aparador, no mesmo estilo moderno de
meados do século da mesa e das cadeiras. Ainda sem tomar banho, ainda
com a barba por fazer, ainda usando as roupas com que se casara.
— Ah, aqui está ela! — anunciou, como se tivesse passado horas
vasculhando a casa tentando encontrá-la. — Eu sabia que ela devia estar
por aqui em algum lugar.
Ele conversava com uma mulher mais velha que observava toda a mesa
para verificar se cada talher, cada copo, cada guardanapo estava em
perfeito alinhamento. Devia ter uns quarenta e tantos ou cinquenta e
poucos anos — era difícil dizer — e seu cabelo era louro e enrolado,
cortado curto, o rosto gentil e redondo um tanto estressado ao sorrir
vagamente para Jane.
— Jane, esta é Lydia, governanta, cozinheira e santa. Está vendo,
Liddy? Eu disse que ela era linda.
— E eu falei que, nesse caso, você não era para o bico dele — disse
Lydia sem emoção na voz, o que fez Jane instintivamente saber que ela
não tinha muita paciência com gente tola ou com Leo. — Olá. Não vou
apertar sua mão porque estou no meio do jantar, mas é um prazer
conhecê-la.
— É um prazer conhecê-la também — disse Jane. Ela olhou para Leo e
então de volta para Lydia, que não usava um uniforme arrumadinho, mas
um avental florido sobre um casaco e uma calça cinza.
— Liddy é o amor da minha vida — disse Leo.
Ele ainda estava apoiado no aparador, como se fosse a única coisa que
o mantinha de pé. Parecia cansado e pálido. Desempenhar o papel de
filho pródigo devia demandar um esforço e tanto.
Lydia deve ter pensado o mesmo, porque lhe lançou um olhar
exasperado e depois se virou para Jane.
— Esqueci de perguntar: você não é vegetariana, não é?
— Não, como quase tudo. Menos polvo. Pernas demais — respondeu
Jane, e Lydia sorriu mais uma vez.
— Nenhum polvo, prometo. Quer uma bebida?
Jane, sempre a hóspede perfeita, balançou a cabeça.
— Água está bom. Ainda assim, se puder. Eu espero os outros.
— Preciso mesmo voltar para a cozinha. Mas fiz cartões indicando os
lugares. Jane, você está à direita de Rose — disse Lydia, e saiu apressada.
— Eu adoraria uma bebida — comentou Leo melancolicamente. —
Achei inteligente dizer que parei de beber por um tempo, sabe?
— Não sei, querido, porque você me atirou no fundo sem nem
perguntar se eu sabia nadar. Sua tia Rose, ela é uma pessoa
impressionante, não é...?
Leo estava de costas para ela, observando as garrafas no aparador.
— Você ainda não viu nada. Pode imaginar como ela é intimidante
quando está a todo vapor?
De todos os bares do mundo, Jane tinha de ter entrado naquele.
— Então ela não estava a todo vapor, não é?
— Eu realmente preciso de uma bebida. Talvez uma taça de brandy. —
Leo segurou uma das garrafas no alto, e o líquido âmbar brilhou à luz das
velas. — Sempre quis saber exatamente qual é a taça de brandy.
— É uma daquelas em forma de pera à sua esquerda. — Jane
estremeceu quando Leo tirou a rolha da garrafa e tomou um gole. —
Então, nós vamos continuar com a encenação como fizemos em Las
Vegas? Você ajudou muito mais do que agora há pouco.
Leo sorriu timidamente.
— Desculpe por isso. Olhe, vai ficar tudo bem, eu prometo.
— O que vai ficar bem?
Rose estava de pé na entrada, liderando a procissão de convidados para
o jantar. Ela era mais alta e mais imponente de pé. Jane se levantou.
— Não, você pode ficar sentada, querida. E não fique curvado assim,
Leo. Você vai acabar corcunda se não tomar cuidado.
Jane não tinha tido tempo de se trocar para o jantar e ainda estava com
a calça jeans e a camisa Breton com que viajara porque eram confortáveis
e ela estava toda dolorida. Agora tinha certeza de ter sido incluída no
olhar de desaprovação que Rose lançou a Leo quando sentou à cabeceira
da mesa. George, Gudrun e os outros se dispersaram segundo a
orientação dos cartões enquanto Rose arrumava uma das colheres,
desdobrava o guardanapo e o colocava no colo, para depois levantar os
olhos.
— Meu Deus, como vocês dois estão sérios. Sou tão assustadora assim?
— É claro que não — disse Leo, enquanto sentava à esquerda de Rose,
de frente para Jane. — Só estamos cansados da viagem. Jane não
consegue dormir em aviões e eu dormi demais.
— Você acha que vai conseguir dormir esta noite? — perguntou Rose à
Jane, quando George começou a conversar com Leo sobre a vez em que
fora a Las Vegas nos anos 1980.
— Espero que sim, mas acho que meu corpo não sabe o fuso horário
em que está.
— É uma sensação horrível, não é? Não se preocupe, prometo que não
vou perturbá-la com perguntas demais — disse Rose.
Rose sequer esperou terminarem de comer, logo partiu para o
interrogatório de Jane. Leo não tinha por que se sentir culpado, pois Jane
era totalmente capaz de cuidar de si mesma. Ela respondeu às perguntas
de Rose com educação, mas sem emoção na voz, como se já tivesse
respondido às mesmas perguntas diversas vezes.
— Meu pai era bem mais velho do que minha mãe — contou. — Ele
morreu quando eu era muito nova, mas antes disso nos mudamos várias
vezes por causa do trabalho dele.
— Seu pai era do Exército? Ou era do corpo diplomático? —
perguntou Rose.
Jane balançou a cabeça.
— Ele trabalhou na aviação. — Ela abriu um sorriso discreto. — Certa
vez ele me levou de avião à Groenlândia para ver o Papai Noel. Ele
morreu quando eu tinha acabado de fazer cinco anos. Acidente aéreo.
Depois ficamos só minha mãe e eu.
— Onde vocês foram morar?
— Bem, éramos ela, eu e vários padrastos. — Jane fungou. — Não
éramos muito próximas. Minha mãe tinha família na Austrália, uma tia,
então fui mandada para um internato em Nova Gales do Sul. Um
internato religioso.
— Isso parece muito ruim — disse Elaine, enquanto lhes serviam
robalo em algum tipo de molho cítrico. — Eu odiei ter ido para a escola.
Você gostou da sua?
— Um pouco de ênfase demais em orações, e eles nos faziam ir para
esses acampamentos no meio do mato, que eram horríveis. Minha mãe
morreu quando eu estava fazendo as provas finais e minha tia faleceu um
ano depois, por isso não tenho família. — Jane franziu o nariz como se o
fato de não ter família tivesse deixado de incomodá-la havia muito
tempo.
— Nem mesmo do lado do seu pai? — Elaine parecia fascinada pela
trágica biografia de Jane. Leo também estava muito interessado.
— Não que eu saiba. Pelo que minha tia me contou, a família dele não
aprovava o casamento. Acho que eles eram ricos e minha mãe, não. Isso
sempre soou um pouco vitoriano para mim.
Rose pousou ordenadamente a faca e o garfo no prato. Em uma sala
iluminada apenas por velas e abajures e cheia de sombras, ela parecia
mais velha do que antes. Leo achou que já havia algo de cadavérico em
seu rosto. Ele piscou para apagar a imagem, e esta se foi. Ela era a mesma
Rose de sempre, que agora sorria para Jane.
— Devo dizer que era bastante atraída pela ideia de ser órfã quando eu
era criança. E teria ficado muito feliz de não ter tido uma irmã também,
sem querer desrespeitar sua falecida avó, Leo.
— Não fico chateado — disse Leo, porque sua avó materna falecera
antes de ele nascer. — Eu também teria ficado muito feliz em não ter
irmão. Pelo menos você nunca teve nenhum irmão irritante fazendo-a se
meter em encrenca toda hora — acrescentou ele para Jane.
— Ah, tenho certeza de que você nunca teve dificuldade em se meter
em encrenca sozinho — retrucou ela docemente, e todos, exceto Leo,
riram.
— Você parece ter sido feita sob medida para o Leo — observou
George enquanto Rose murmurava algo, concordando. — Isso vai ser
ótimo.
Leo não se importava com um pouco de provocação descontraída —
era o acerto de contas que de fato temia, mas Rose não faria isso na
frente de outras pessoas.
— De qualquer forma, você tem família — lembrou ele a Jane. — Eu
sou sua família agora.
Soava ridículo. Como se ele ansiasse em passar suas noites em uma
cozinha daquelas de fazenda, com dois pirralhos louros de plantão, Jane
preparando comida caseira no fogão, enquanto ele passava os dias
pintando em um celeiro convertido em estúdio. O que estava muito longe
de ser a vida que sempre quis.
— Nunca senti falta de ter família — disse Jane, como se o comentário
de marido atencioso não merecesse a menor atenção. — Tenho muitos
amigos e o trabalho me mantém ocupada. Trabalho na área de hotelaria.
— É mesmo? Sempre quis saber o que significa exatamente trabalhar
em hotelaria — disse Rose. — Leo, você pode dizer à Liddy que estamos
prontos para o pudim e o café?
Quando voltou para a sala de jantar depois de enfim arrancar um
sorriso relutante de uma implacável Lydia, Jane estava em silêncio e
parecia grata por não ser mais o centro das atenções, já que os mais
velhos falavam sobre política.
Leo também estava feliz em ficar quieto. Sentou e tentou chamar a
atenção de Jane para poder sinalizar que estava tudo o.k., mas ela olhava
para todos os lugares, menos para ele.
— Onde vocês dois moram, então? — perguntou Rose quando Lydia
trouxe o café. — Você mencionou San Francisco, Jane, mas, Liddy, você
não disse que Leo morava em Los Angeles?
Era uma sensação horrível quando seu coração de repente se atirava
contra a caixa torácica.
— Não são tão distantes assim uma da outra... é pouco mais de uma
hora de voo e eu viajo tanto a trabalho que isso nunca chegou a ser um
problema — respondeu Jane com tranquilidade. — Depois do Natal,
vamos decidir onde iremos morar.
— Posso morar praticamente em qualquer lugar — observou Leo. —
Eu não preciso me deslocar para chegar ao trabalho.
— Então, você tem um trabalho, porque...
— Aliás, falando em viajar, sei que mal tivemos a chance de nos
conhecer, mas estou ficando muito cansada — disse Jane. — Sempre
acabo ficando com uma terrível dor de cabeça depois de um voo longo.
Seria muito rude se eu me retirasse?
— Claro que não — concedeu Rose. — Pobre garota, e eu aqui
parecendo a Santa Inquisição.
— Você deveria ter falado — disse Leo. — Quer que eu vá com você?
Jane o presenteou com outro daqueles sorrisos muito doces em que Leo
estava aprendendo a não confiar.
— Não há necessidade, querido. Fique. Sei que você e Rose têm tanta
coisa para pôr em dia.
12

O jantar transcorrera bem, pensou Jane enquanto tirava a roupa. Ela já


enfrentara adversários piores do que Rose, mesmo esta tendo uma altivez
de grande dama que fazia Jane pensar em uma duquesa viúva que se
recusava a dividir a propriedade da família com sua jovem nora surgida
do nada.
Jane não sabia se Rose acreditara nela, mas não havia razão para não
acreditar. Ela havia contado aquela história tantas vezes, para tantas
pessoas, que a familiaridade e a repetição lhe conferiam um grau de
autenticidade. Jane podia facilmente imaginar o pai ilustre e fascinante
que sabia pilotar aviões; a mãe caprichosa e descontente, ainda
perseguindo os últimos resquícios da própria juventude, que não queria
ficar presa a uma criança. Podia até imaginar o dormitório naquele
internato australiano; as risadinhas e os sussurros depois que as luzes
eram apagadas, alguém na cama perto da janela chorando por sentir
saudade de casa.
Não deveria mesmo importar se Rose acreditava nela ou não, e Jane
não deveria se preocupar. Ela deveria estar ali só de passagem, esse fora o
plano, só que não tinha sido bem um plano, e sim mais uma série de
eventos catastróficos que haviam colocado Jane na órbita de Rose.
Mas, já que estava ali, não havia mal algum em tentar tirar o melhor
proveito disso. A pesquisa que fizera no Google mais cedo tinha sido
muito interessante. O suficiente para deixar uma garota zonza.
Assim que a conhecera, Jane imaginara que Rose era uma viúva rica
com todo o seu capital atrelado à casa e à coleção de arte.
Isso não estava nem perto da verdade. Rose reinava sobre um império
de propriedades. Ela era dona de ruas inteiras de casas, recebia aluguel
de propriedades, lojas e escritórios de Kensington a Chelsea, Notting Hill
e Ladbroke Grove a Westbourne Park. Fora três imobiliárias, uma
empresa de manutenção predial e uma firma de design de interiores,
todos administrados pelos escritórios da sua empresa situados em um
estábulo convertido em uma estradinha atrás da Kensington High Street.
E, embora seus outros interesses empresariais incluíssem uma parceria
com uma associação habitacional que fornecia moradias a preços
acessíveis para os trabalhadores essenciais e um esquema de direito de
compra a seus empregados que lhe renderam um Prêmio da Rainha para
a Indústria, era óbvio que Rose não era alguém facilmente manipulável.
No fim das contas, Jane acabou entrando para uma família de dinheiro.
No entanto, uma coisa estava clara: ela precisava agir com muito cuidado.
Não apenas com Rose, mas com Leo também. Não havia sentido em
matar a galinha dos ovos de ouro.
Pela primeira vez desde que sentara naquela suíte nupcial em Las
Vegas e se perguntara se desmaiaria, Jane se sentiu esperançosa. Pelo
menos, agora que tinha marido, tinha opções.
Ela esperava que Leo fosse aparecer a qualquer minuto, então correu
com sua rotina de cuidados com a pele, depois vasculhou a cômoda atrás
de uma camisa que pudesse usar para dormir. E, no caso de Leo ter a
ideia errada, Jane colocou dois travesseiros no meio da cama. Não ia
mais distribuir amostras grátis, não com tanta coisa em jogo.
Quando Leo subiu, meia hora mais tarde, Jane estava dormindo. Ou
fingia que dormia. Ela o ouviu se aproximar da cama.
— Você está acordada? — sussurrou ele tão alto que ela poderia ter
mesmo acordado se estivesse dormindo. — Estamos bem? Precisamos
conversar? — Jane ficaria muito feliz se não precisasse dizer outra
palavra a ninguém por pelo menos uma semana. — Então, aquela
história sobre seus pais e o internato na Austrália, algo daquilo é
verdade?
Ela sentiu Leo chegando mais perto e prendeu a respiração, até que
lembrou que deveria estar dormindo. Começou a respirar lenta e
cadenciadamente; então, por via das dúvidas, ressonou, e Leo entendeu o
recado.
Jane o ouviu se afastar, ir ao banheiro e sair de lá. Depois, escutou
quando ele desenroscou alguma coisa e o barulho de pílulas sendo
agitadas, tudo amplificado no escuro. Ele tomou um, não, dois
comprimidos. Em seguida, tirou os tênis, jogou a roupa no chão, e ela
tentou não congelar de novo quando ele puxou as cobertas e o colchão
afundou na hora em que deitou na cama.
— Você só pode estar de sacanagem comigo — murmurou ele ao
descobrir seus companheiros travesseiros, então fez um barulho no fundo
da garganta como se aquilo fosse engraçado.
Cinco vezes Jane assistiu ao ponteiro dos segundos do relógio na mesa
de cabeceira dar a volta completa, e esse foi todo o tempo que levou para
Leo pegar no sono.

***

Jane estava dormindo quando Leo acordou com uma sensação esquisita
na boca e um peso enorme na cabeça. Ele ficou deitado ali por um tempo,
feliz em observá-la, embora isso provavelmente fosse um tanto esquisito.
Até dormir era algo que ela fazia com perfeição. Braços e pernas
dobrados bem junto ao corpo, o rosto lindo e tranquilo, porque Jane
nunca faria nada tão deselegante quanto dormir com a boca aberta, babar
ou roncar.
Leo ainda se sentia culpado por tê-la jogado aos leões na noite anterior.
E, por falar nisso, era hora de ele ir para o Coliseu. Eram oito da manhã.
A casa já tinha ganhado vida. Ele podia ouvir o som distante de alguém
passando o aspirador, uma porta sendo aberta, vozes.
Leo vestiu depressa as mesmas roupas do dia anterior. E do dia antes
desse. Ele duvidava que houvesse alguma coisa na casa que ainda
coubesse nele, e também não queria acordar Jane ao abrir gavetas e
mexer em cabides.
Ele desceu as escadas, sorrindo para Anna, que desviou os olhos
enquanto arrastava o aspirador de pó atrás dela, e correu pelo corredor
em direção ao coração da casa.
— Ah, Leo, estávamos falando da sua esposa — disse Rose jovialmente
antes mesmo que ele chegasse à cozinha.
Ela e Lydia estavam tomando café da manhã juntas. E ocupando o
lugar de honra na mesa de pinho estava o grande bule Cornishware azul e
branco, de que Leo se lembrava tão bem de outros cafés da manhã na
cozinha. As pesadas canecas de porcelana, o suporte de prata cheio de
torradas e as geleias caseiras de Lydia em pequenas tigelas
descombinadas, tudo isso era antigo e familiar.
A cena acolhedora recordou Leo de chegar sorrateiramente em casa
“com o galo cantando”, como Rose falava, entrar pela porta dos fundos e
dar de cara com Lydia e Rose já na cozinha.
— Entre, Leo. Nós não mordemos — disse Lydia, o que lhe fez lembrar
que as duas sempre tiveram o costume de provocá-lo.
Diziam que ele era um galinha e que precisava sossegar com uma
garota legal. “Você pelo menos conhece alguma garota legal?”,
perguntava Rose, e as duas riam. Era uma lembrança agradável.
— Não parece que você tomou banho — comentou Rose enquanto Leo
sentava a seu lado. — Você não estava usando essa mesma camisa suja
ontem?
— Sim. Não trouxe nenhuma bagagem. Longa história.
Não era de fato uma história longa. A última vez em que vira sua
bagagem fora na casa da piscina de Melissa e Norm.
Rose olhou para Leo com ar cansado, como se tudo com ele sempre
fosse uma longa história.
— De qualquer forma, com relação à sua Jane... — disse ela. —
Estávamos falando aqui como ela é incrivelmente bonita.
— Nunca vi alguém tão bonito assim na vida real — acrescentou
Lydia. — Quer que eu prepare alguns ovos para você, Leo?
Ele balançou a cabeça e pegou um pedaço de torrada.
— Dá vontade de sentar de frente para ela e passar horas apenas
observando seu rosto — disse Rose com um sorriso irônico. — Você já
chegou a se cansar de olhar para ela?
Leo deu uma mordida na torrada com geleia e mastigou, pensativo.
— Ela é bonita, eu acho — disse ele, por fim. — Para dizer a verdade,
ela parece um pouco largada logo assim de manhã.
— Tenho certeza de que não é verdade, seu insensível.
Rose deu um tapa forte no braço dele e, sob a impiedosa luz da manhã,
sem maquiagem e com o cabelo coberto por um lenço, ele pôde ver os
escuros círculos roxos ao redor dos olhos azuis, que tinham ficado meio
turvos e avermelhados. Mesmo a mão que ela descansava sobre a mesa
tinha mudado. Rose tinha mãos bonitas e elegantes, com dedos
compridos. Mãos de pianista, Leo sempre pensara, mas agora ele via
veias saltadas como vermes azuis gordos e dedos tortos.
Não era só a crueldade do tempo de dez anos a mais em seu rosto e
corpo ou o novo som áspero em sua voz. Havia uma hesitação nos
movimentos, como se ela tivesse de pensar muito antes de levar a caneca
à boca ou de colocar um pouco de geleia no prato. Como se quisesse se
poupar e guardar forças para quando tivesse de tensionar os músculos
para afastar a dor.
Ela estava fazendo isso naquele momento. Um tremor fez seus dedos se
contraírem e ela abaixou a cabeça, respirou rapidamente duas vezes e
então suspirou, aliviada.
— Sua Jane é uma pessoa bem interessante, não é?
— Bem...
— Não consigo imaginar o que vocês dois têm em comum — disse
Rose com sarcasmo. Ela não tinha perdido nem um pouco o jeito afiado.
Aquele jeito tão afiado que poderia fazê-lo em pedaços, mas Leo estava
bem satisfeito em ver que tinha se preservado. — Vocês se casaram
mesmo?
— Sei que parece inacreditável, mas sim, nos casamos. Ela é muita
areia para o meu caminhãozinho, não é?
Lydia estava colocando mais pão na torradeira, mas olhou para Leo e
sorriu.
— Com certeza. Você sabe algo sobre ela que a obrigou a dizer
“aceito”? Você sabe algum segredo sobre o passado dela?
Parecia uma pena acabar com a atmosfera leve, mas ele não podia
mais ignorar a imobilidade calculada de Rose. Antes da partida dele, ela
sempre fora tão inquieta, em constante movimento. Leo cobriu os lindos
dedos prejudicados dela com a mão. Ela estava fria ao toque.
— Como você está? De verdade? — perguntou.
Ela olhou nos olhos dele por um tempo e a ligação que sempre tiveram
pareceu voltar momentaneamente à vida.
— Nada mal, creio eu — respondeu. Leo percebeu vagamente Lydia
sair da cozinha, deixando só os dois ali. Leo e Rose. — Levando em
consideração a situação toda.
— Câncer? — Ele mal pôde dizer a palavra. — Lydia disse que era.
Falou que você já teve antes. Por que você não está lutando contra a
doença dessa vez?
Se Rose podia desistir, então que chance ele tinha?
Agora era Rose que segurava sua mão, e não o contrário.
— Na primeira vez, lutei com tudo — respondeu ela. — Mas isso foi há
nove anos. Na minha idade, nove anos a mais conseguem fazer um
estrago e tanto. Além disso, eu sabia que voltaria. Sempre volta. Com mais
garras e dentes.
— Mas você é forte — protestou Leo. — Pode lutar de novo.
— Ah, meu menino — retrucou, como se ele ainda significasse muito
para ela. — Já enganei essa doença muitas vezes. Minha mãe, sua bisavó,
morreu não muito tempo depois da guerra. Ela só tinha quarenta e três
anos. E a sua avó, minha irmã, Shirley, mal conseguiu passar dos
cinquenta, então me saí muito bem chegando até aqui.
— Mas por que você não está fazendo quimioterapia, ou como é
mesmo? Radioterapia? — questionou ele.
Rose esfregou o polegar contra as costas da mão dele de uma maneira
distraída que não ajudou a acalmá-lo.
— Porque eu já fiz isso antes, as duas, e eu ficava muito cansada e
fraca. Não queria fazer nada. Ir a lugar nenhum. Ver ninguém. — As
pálpebras de Rose se abaixaram como se simplesmente lembrar o
tratamento fosse exaustivo. — Leo, estou no estágio quatro de um câncer
secundário de fígado. Tenho alguns meses, se tiver muita, muita sorte.
Semanas, se eu não...
— Mas a quimioterapia com certeza lhe daria meses...
— Prefiro gastar o tempo que me resta sem me sentir um trapo velho.
Qualidade de vida, como meu médico fala. Você não deveria se
preocupar, estou cheia de comprimidos. — Rose sorriu bravamente e se
balançou com muito cuidado na cadeira. — Se prestar bastante atenção,
pode ouvi-los chacoalhar.
Ela queria que ele sorrisse, estava esperando por isso. Então Leo
esticou os lábios obedientemente.
— Você está sentindo muita dor?
— Não muita. Semana passada até coloquei um capacete de segurança
para inspecionar um projeto de reforma, embora tenha achado melhor
não subir nenhuma escada. — O sorriso de Rose foi mais convincente do
que o dele. — Com relação à dor, numa escala de zero a dez, o nível está
em três com a ajuda dos remédios. Às vezes chego a seis quando não
tomo na hora certa. Não é tão ruim, não é?
— Acho que não. — Ele assentiu decididamente. — Mas, se ficar pior
do que um seis, podem lhe dar algo mais forte, certo?
Lydia tinha voltado à cozinha e o humor mudou novamente. Rose tirou
sua mão, endireitou o lenço e, quando olhou para Leo, ele pôde ver todos
os próprios erros. Da geleia no canto da boca à barba por fazer, à camisa
esticada sobre a barriga, o cheiro azedo que dava para sentir se não
mantivesse os braços colados ao corpo.
— Já que estamos sendo honestos um com o outro... preciso me
preocupar em ter analgésicos controlados em casa se você ficar? —
perguntou a ele. Rose ser tão franca nem sempre era algo positivo. Às
vezes, como naquele momento, era como ser cortado e ter as entranhas
expostas sob um microscópio.
— Deus, não. Não! Você não precisa se preocupar com isso. Eu nunca...
— Ele se limitou a soltar o ar pelo nariz.
— Você ainda usa drogas? — perguntou Lydia sem rodeios. As duas
eram implacáveis.
— De vez em quando. Só maconha. — Uma meia verdade era melhor
do que tentar explicar que era possível cheirar um grama de cocaína ao
longo de um fim de semana e depois não chegar nem perto do pó por
séculos. Houvera meses, até mais, em que ele simplesmente não quisera
nada. Como os dois anos que passara em Sydney, quando pintara casas,
trabalhara um pouco como bartender, surfara. Ele poderia até ter ficado
se o visto não tivesse vencido. — Nunca mais fiquei mal como naquela
época.
— Sério? Porque assistimos a um programa de TV sobre dois homens
que faziam metanfetamina — disse Lydia.
— Pois é, assistimos — confirmou Rose. — Não consigo imaginar por
que alguém iria querer usar algo assim. Não parecia nem um pouco
divertido.
Leo soltou uma risada, então escondeu o rosto nas mãos, os ombros
sacudindo. Talvez tenha até chorado um pouco.
— Se usasse metanfetamina, eu não estaria gordo como agora —
conseguiu dizer quando parou de rir.
— Imagino que sim — disse Rose. — Então você vai ficar por um
tempo?
— Eu não tinha pensado a longo prazo. Nunca penso, não é?
Havia alguma outra coisa incomodando Rose. Não só sua completa
inabilidade de pensar em um pedido de desculpas, mesmo que
esfarrapado. Algumas pessoas são incapazes de olhar nos olhos do outro
quando estão prestes a lhe dizer algo desagradável, mas isso não era o
estilo de Rose.
— Você precisa saber então que sua mãe está na cidade — avisou.
— Certo. O.k. — A notícia era como um bilhete preso à sua porta que
você pode ver enquanto sobe as escadas e, a cada passo dado, o medo
aumenta até quase engoli-lo. — Ela não vai ficar aqui, não é?
Rose balançou a cabeça.
— Não, ela insiste que seria um incômodo, embora não seja. Temos
sempre a mesma discussão toda vez que ela vem a Londres. — Ela
parecia exasperada, mas a autodepreciação de sua mãe era mesmo
cansativa. — Ela vai ficar em um apartamento vago naquele meu prédio
na Kensington Church Street.
— Então, ela está bem, não está? — perguntou Leo, inundado por
ondas frias e gordurosas de culpa.
— Está, e ela vem almoçar hoje aqui, então talvez seja melhor você não
aparecer. — Rose parecia irritada agora. — Dez anos, Leo, e você nem
sequer ligou ou lhe mandou um cartão-postal. Acho isso cruel de um
modo imperdoável.
— Se eu tivesse ligado, ela só teria ficado chateada. — Ficar fora da
vida da mãe fora a coisa mais gentil que poderia ter feito. Fora
praticamente nobre de sua parte. — Por favor, achei que estivéssemos nos
entendendo, Rose. Não pegue no meu pé por causa disso.
Rose pareceu murchar diante de seus olhos.
— Gosto de verdade da sua mãe. Ela volta para Durham em poucos
dias, e duvido que vamos nos ver outra vez...
Ela parou, virou a cabeça, mas não antes que Leo visse uma lágrima
rolar pelo rosto vincado. Mas não podia ser, porque Rose não fazia coisas
como chorar. Mesmo assim, ela levou a mão ao rosto para eliminar a
prova, e foi a vez de Leo virar a cabeça e perceber que também piscava
para se livrar das lágrimas. Toda aquela conversa sobre comprimidos e
qualidade de vida obscureciam o simples fato de que, em alguns meses,
Rose não estaria mais ali. Não sentaria para o café da manhã ou tocaria o
bule de chá para ver se estava quente, como fazia agora. Ela partiria.
— Eu gostaria, mais do que você imagina, que em algum momento
você se acertasse com sua mãe, lhe apresentasse Jane, se reconectasse,
mas não agora. Você só ficaria no caminho. É irracional da minha parte?
— Não — respondeu Leo. — Você está certa. Talvez eu não devesse ter
voltado.
Rose envolvia o bule com as mãos. Sua atenção não estava voltada para
ele, mas para a janela da cozinha, que dava para as cavalariças na parte
de trás da casa, onde dois homens estavam reunidos perto de uma
escada.
— Bem, sim, talvez você não devesse ter voltado — concordou ela.
13

Fevereiro de 1944

— Minha querida Rose, só porque Danny foi embora, não há motivo para
ficar de luto — disse Sylvia enquanto caminhavam pelas ruelas em
direção ao Rainbow Corner numa noite gélida no final de fevereiro.
Estava tão frio que Rose pedira à mãe para mandar sua roupa de baixo
térmica pelo correio. — Não há razão para colocar todos os seus ovos
numa única cesta, por assim dizer.
— Achei que ele já teria escrito a essa altura. Nem que fosse um
cartão-postal. Não demora nada escrever um cartão-postal — reclamou
Rose. — A não ser que algo terrível tenha acontecido com ele. E se...
— Eu me recuso a ouvir “e ses”. Vamos conversar sobre algo mais
alegre.
Sylvia ainda falava do novo chapéu que planejava comprar quando
chegaram ao Rainbow Corner e se prepararam para ir cada uma para um
lado.
— Vejo você aqui de novo às dez e meia — disse Rose. — Você quer
sair para dançar depois? Ir ao Opera House, talvez?
— Não estou com vontade de ir até Covent Garden — reclamou Sylvia,
mas, quando Rose ia sugerir que poderiam tentar o Astoria, sentiu uma
mão em seu braço.
— Exatamente a pequena que eu estava procurando — disse Mickey
Flynn, muito embora Rose fosse pelo menos dez centímetros mais alta do
que ele. — Sobre aquele favor que você me deve...
— Você deveria falar comigo sobre quaisquer favores — disse Sylvia
com rispidez.
— Só vim dizer à nossa Rosie que estamos quites.
— Estamos? — Era impossível fazer Mickey Flynn olhar nos olhos de
alguém. O olhar dele ou estava fixo em seu peito, ou em algum lugar à
meia distância, como se estivesse sempre em alerta atrás de alguém que
lhe devesse um favor. — E como isso aconteceu?
— Foi assim. Rose, Sylvia, conheçam Edward. Ele é um cara
importante. Um príncipe entre os homens. Sal da terra. Se seu bom amigo
Mickey Flynn tivesse de recomendar um homem, seria esse.
Sylvia e Rose trocaram um olhar de confusão, depois se viraram e
descobriram que Mickey tinha sumido como se tivesse evaporado no ar.
Em seu lugar havia um homem alto e magro, com uniforme de major, o
corpo um pouco curvado para a frente, o cabelo louro penteado para trás,
revelando feições nobres e um sorriso um tanto nervoso. Rose tinha
certeza de que já o vira antes, mas não conseguia de jeito nenhum
lembrar onde.
— Perguntei a Mickey se ele se importaria de nos apresentar
formalmente. Ele barganhou muito, então agora lhe devo um favor e você
está liberada de sua dívida — disse a Rose. — Talvez seja melhor que eu
deva algo a Mickey do que você. A ideia que Mickey tem de favor pode ser
bem desinteressante. — Sua voz era grave e melosa, e então Rose se
lembrou de onde o vira antes. Na noite em que conseguira seus
documentos, quando saíra da sala de bilhar desesperada para fugir de lá,
não só para longe do olhar lascivo de Mickey, mas daquele homem
também. — E me perguntei se vocês duas me fariam um favor, mas um
tipo muito bom de favor.
— O que é? — perguntou Sylvia, embora ele mal tivesse tirado os olhos
de Rose, que sorrira brevemente, e agora não sabia para onde olhar. Ele,
na verdade, a encarava.
— Minhas fontes alegam que vocês são as duas garotas mais bonitas do
Rainbow Corner e eu gostaria que concordassem em sair comigo e um
colega esta noite. — Ele se inclinou para perto. — Ele é um cara
importante na Unidade de Serviço, mas também é muito maçante. Posso
não conseguir ficar acordado até depois dos aperitivos.
Não parecia uma perspectiva tentadora sair com um cara maçante
encarregado de artigos de escritório e Edward, que a encarara de maneira
desconcertante por cinco minutos.
— Estaríamos em sérios apuros se apenas aceitássemos e fôssemos —
disse Rose calmamente. — Podemos até entrar para a lista negra.
— Não brinque com essas coisas. — Sylvia levou a mão à testa, como
se fosse desmaiar.
— Tenho certeza de que posso resolver isso com a sra. Atkins. Ela não é
a encarregada das voluntárias? — Ele já começava a se afastar como se
pensasse em ir atrás dela.
— Deve ser melhor do que três horas no balcão de informações —
disse Sylvia. — Três horas!
— Sim, mas...
— Ah, a propósito, pensei em irmos ao Criterion, se você estiver de
acordo.

Felizmente, Rose estava com o vestido preto de crepe da china de Shirley.


Parecia um pouco apertado por causa da roupa de frio por baixo, mas
agora que estava no Criterion, sendo levada a uma mesa por um garçom
aprumado que andava como um pinguim, Rose se sentia eternamente
grata por não estar com o vestido de tafetá azul-claro já meio surrado.
Um corpulento homem de meia-idade se levantou quando se
aproximaram da mesa, olhou para as duas garotas e beijou suas mãos
enquanto Edward os apresentava, dizendo algo sobre o outro homem ser
brigadeiro. Rose não estava prestando atenção — estava ocupada demais
observando os outros clientes.
Aquela era a Londres com que sempre sonhara. Mulheres em vestidos
bonitos, pescoços brancos emergindo de nuvens de tule de seda. O
zumbido cortês da conversa em voz baixa. Todos os homens eram tão
bonitos, mesmo os mais velhos pareciam distintos, todos menos...
— Por favor, me chame de Bertie — pediu o homem corpulento.
Seu rosto era muito vermelho e ele cultivava um bigode fino que não
lhe caía bem. Foi espalhafatoso ao puxar a cadeira para Sylvia e sorriu
com aprovação quando o garçom respeitosamente colocou um
guardanapo branco no colo dela.
— Acho que está bem assim, não é, Rose? — disse Sylvia com um
sorriso travesso.
Coube a Edward puxar a cadeira para Rose. Então, sentou ao lado dela,
com Bertie do outro lado dela e Sylvia em frente, assim Rose pôde olhar
para ela com ar incrédulo quando abriu o menu e começou a ler. Ela
devia ter caído em um buraco de coelho como Alice em uma terra onde
havia lagosta e caviar, bife e pato.
— Acho que seria mais patriótico pedir o outro menu, que não tem
todos esses itens de luxo fora do racionamento — disse Edward com ar
sério para Rose. Então ele sorriu, e ela achou que estava fazendo uma
piada, por isso lhe deu um sorriso incerto. À sua esquerda, Bertie estava
contando uma piada inconveniente sobre ostras que fez Sylvia dar uma
risadinha.
Rose não tinha nenhuma vontade de comer ostras mesmo.
— Vou querer caviar — disse ao garçom com firmeza. Pediu Tournedos
Rossini como prato principal, o que lhe valeu um olhar estranho de
Bertie, e concordou com entusiasmo que uma garrafa de champanhe
como aperitivo “seria simplesmente divino”.
Nesse meio-tempo, Bertie os deleitou com histórias das vezes em que
saíra para caçar, atirar e pescar, e de como ele preferiria “caçar o huno” a
que fazer trabalho burocrático em um escritório em Whitehall.
Rose não conseguia imaginar que ele pudesse ser muito bom em
combate aberto. Era gordo demais para partir ao ataque. Não que Sylvia
se importasse. Ela ria de todas as piadas de Bertie, e havia muitas — ele
era particularmente fã de trocadilhos —, além de o bajular
descaradamente.
— Durante a última meia hora, venho tentando descobrir quem você
me lembra. Bertie parece um pouco com Clark Gable. Você não acha,
Rosie?
Rose não achava, mas assentiu mesmo assim. Ela se esforçava para
pensar em coisas inteligentes e espirituosas a dizer, mas era difícil, já que
Edward mal abria a boca e continuava a observá-la quando achava que
ela não estava olhando. Sempre que Rose pensava na vida londrina
glamorosa que esperava conhecer, imaginava-se lânguida e blasé, dizendo
“Ah, querido!” sem parar. No entanto, agora não estava fazendo nenhuma
dessas coisas e só ficou lá sentada, muda. Definitivamente podia sentir a
expressão estúpida em seu rosto.
Foi um alívio quando outro garçom chegou à mesa com uma garrafa
em um balde de prata cheio de gelo. Rose observou, fascinada, ele
habilmente tirar a rolha, que saiu com um sonoro estouro e a fez pensar
em fogos de artifício e outras coisas que amava.
Ela recebeu uma taça, as bolhas fazendo cócegas no nariz, então
ergueram as taças e disseram “Tim-tim!” e ela tomou o primeiro gole.
Rose achou que choraria porque champanhe era tão ruim quanto coca-
cola. Era pior. Pelo menos a coca-cola era doce. O champanhe tinha um
gosto amargo, e ela precisou se esforçar muito para não fazer uma careta.
— Você não gosta? — sussurrou Edward para ela. Tudo o que ele fizera
tinha sido olhar sem parar para ela, então deve ter notado o rápido
vislumbre de quem não gostara em seu rosto antes que conseguisse
disfarçar.
— Ah, não, é ótimo. Minha bebida preferida no mundo inteiro. — Rose
se preparou para tomar outro gole.
— Está tudo bem se você não gostar. Eu poderia perguntar se eles lhe
preparariam uma mimosa, que talvez você prefira — disse ele. — Vale a
pena tentar.
Rose teria gostado de pensar que Danny seria gentil assim, mas ele
nunca perdia uma oportunidade de frear o que chamava de sua fedelhice.
Com certeza, ela não podia imaginar Danny no Criterion. Ele não teria
ficado impressionado quando Bertie mostrara a mesa habitual de
Winston Churchill, teria chamado todos os garçons de “amigo” e sentado
todo largado na cadeira, com as pernas abertas. Mesmo com os ombros
ligeiramente arqueados, as costas de Edward estavam tão aprumadas
quanto possível enquanto esperava por sua resposta.
— O que é uma mimosa? — perguntou ela.
— Champanhe misturado com suco de laranja espremido na hora.
Costumavam servir isso no Ritz, em Paris, antes da guerra.
— Não posso acreditar que mesmo o Criterion consiga laranjas, e
tantas que não se importem de espremê-las para fazer suco. — Rose
balançou a cabeça tristemente. — É muito desperdício.
— Talvez eles usem o que sobra para fazer geleia? — sugeriu Edward.
— Ou bolo. Nosso cozinheiro, antes da guerra, fazia um bolo
maravilhoso de laranja e amêndoa — disse Rose saudosa.
— Com creme de manteiga? — perguntou Edward também um pouco
melancólico. Ele não parecia tão perturbador agora que estavam
conversando direito e Rose relaxou o suficiente para olhar nos olhos dele.
Ela até sorriu para ele.
— Sinto tanta falta de creme de manteiga! — Antes que ela pudesse
perguntar de que comida Edward sentia falta, dois garçons chegaram com
as ostras de Bertie num suporte de prata, as sardinhas de Sylvia (ela disse
que nenhum dos frutos do mar elegantes do mundo se comparavam a
sardinhas grelhadas) e o caviar de Edward e Rose.
Os minúsculos ovos pretos brilhantes estavam empilhados em uma
pequena tigela de prata, que vinha com uma colher também de prata,
para Rose pegá-lo e colocá-lo em torradinhas. Como o champanhe, seu
gosto era horrível. Estranho, gorduroso e até mais viscoso do que as
ostras de Bertie, que ele sorvia com prazer. Em seguida, ele comeu o resto
do caviar de Rose quando ela disse que estava satisfeita.
— Quem não desperdiça sempre tem. — Ele claramente ficava mais
feliz quando estava comendo. — É um dever patriótico e tudo mais.
Todas as esperanças de Rose residiam agora no Tournedos Rossini —
tinha certeza de que havia lido sobre esse prato em um livro.
Provavelmente em um dos romances de Shirley que sempre retratavam
mulheres jovens e impressionáveis convidadas para jantar por homens
muito gentis e ricos.
Rose sentiu um aperto no coração ao perceber que o que foi colocado à
sua frente, com certa cerimônia, não tinha nada a ver com o que
esperava. Em seu prato havia um enorme pedaço de pão seco com três
medalhões de bife por cima, e sobre cada um deles, uma generosa
camada de patê e alguns pedaços do que pareciam ser cogumelos. Tudo
isso vinha banhado por um molho marrom bem escuro.
Entretanto, Rose tinha conseguido comer metade do caviar com o
auxílio de grandes goles de água e poderia pedir a Edward alguns jarros
para engolir aquele bife tão vermelho e sangrento no meio, caso fosse
necessário. Eles comiam a carne sempre tão bem passada em sua casa
que tinham de serrar.
Mas o bife sangrento do Criterion era espetacularmente macio, o patê,
saboroso e amanteigado e o que Edward dissera serem pedaços de trufas
tinham um gosto “incrivelmente delicioso”, explicou ela a Sylvia entre
uma garfada e outra enquanto tomava Châteauneuf-du-Pape, que Edward
e Bertie tinham levado cinco minutos para pedir porque não conseguiam
decidir entre o de 1933 e o de 1936.
Foi quando Rose estava passando o pão pelo molho Madeira que notou
os três olhando para ela. Sylvia apontou discretamente para o prato de
Rose, que então percebeu que havia abandonado os talheres para usar as
mãos, como se fosse uma criança de rua encontrada pedindo esmolas do
lado de fora.
— Sinto muito — murmurou ela, com a boca cheia. Mesmo com o
rosto muito vermelho, uma combinação de constrangimento, comida e
vinho, além da roupa de baixo térmica, Rose não parou até o prato estar
limpo.
— Nada melhor do que uma garota que gosta da sua boia — declarou
Bertie, erguendo o copo para Rose. — Não suporto mulheres que vivem
de folhas e plantas. Ainda tem espaço para a sobremesa?
Rose engoliu a última migalha divina e assentiu.
— Com certeza.
— Não sei onde você armazena a comida — disse Sylvia. — Nossa
amiga Phyllis... Bertie, você deve conhecer a família dela. Eles são donos
de metade de Norfolk. Ela diz que Rose tem pernas ocas. Uma noite no
Rainbow Corner, um soldado desafiou Rose a comer um donut...
— Ah, Sylvia, ninguém quer ouvir isso — implorou Rose, embora fosse
um pouco tarde para afirmar que não tinha tendências glutonas.
— Eu adoraria ouvir — disse Edward. — Estou intrigado para saber o
que você faz no Rainbow Corner quando não está dançando.
— Aposto que parte alguns corações, hã? — Bertie cutucou Sylvia, e
ela lhe lançou um olhar travesso, que Rose sabia muito bem que ela
praticava na frente do espelho. — Aposto que há uns bons camaradas por
aí atrás de vocês duas.
— Não acho que estejam mais atrás de Rose do que contando aos
amigos sobre a garota que conheceram que comeu vinte e um donuts
numa noite — disse Sylvia com um sorriso travesso para Rose, que
escondeu o rosto no guardanapo. — Rose estabeleceu um novo recorde
no Rainbow Corner.
— Eram donuts muito pequenos — insistiu Rose, mas Bertie estava
rindo muito alto para ouvi-la.
Edward apenas sorriu e perguntou à Rose que sobremesa queria.
Ela terminou a refeição com uma pavlova e um copo de vinho de
sobremesa e, quando saíram, ficou grata pela súbita rajada de ar gelado
enquanto caminhavam pela Haymarket em direção ao apartamento de
Bertie, perto do parque St. James, para uma última bebida.
— Nós não vamos ter de fazer nada, não é? — perguntou Rose à Sylvia
enquanto caminhavam de braços dados, os dois homens um pouco à
frente delas. — Você acha que a conta saiu muito cara?
— Muito, principalmente porque você comeu por dois. — Sylvia estava
impossível. — Edward parece bastante impressionado. Nunca pensei que
ele teria uma queda por meninas ingênuas...
— Ah, então você o conhece? — perguntou Rose, surpresa, embora
Sylvia fosse do tipo de pessoa que conhece todo mundo.
— Eu sei quem ele é — respondeu Sylvia, baixando a voz. — Ele é
meio-americano, incrivelmente rico e faz algo extremamente secreto.
— Mas o que exatamente? — insistiu Rose, curiosa para saber o que o
estranho e silencioso Edward fazia.
Sylvia suspirou.
— É o tipo de coisa que não se deve perguntar. Lembre-se de que
estamos em guerra.
— Não tenho como esquecer. — Rose cutucou Sylvia. — Ele trabalha
na parte burocrática, como Bertie?
— Operações Especiais provavelmente — respondeu Sylvia de modo
breve. — Nós nem deveríamos estar conversando sobre isso.
Mais à frente, Bertie falava sem parar com Edward, que por sua vez
estava em silêncio, com uma expressão impassível.
— Quer dizer que ele é um espião? — sibilou ela.
— Está mais para chefe do serviço secreto — murmurou Sylvia, que
então sentiu pena de Rose. — Muito em off e você não ouviu isso de mim:
sei que ele parece ótimo, mas, você sabe o que dizem, águas tranquilas na
superfície podem ser turbulentas no fundo. Imagino que ele poderia ser
bem implacável se tivessem de interrogar agentes inimigos, e esse tipo de
coisa.
— Não seja boba — retrucou Rose, irritada. — É claro que ele não
interroga agentes inimigos. Ele definitivamente não faz o tipo.
— Quer fazer o favor de falar baixo? Meu Deus, Rose, você está bem?
Mesmo sob essa luz, você está parecendo um pouco pálida.
— Estou me sentindo um pouco estranha. — Rose puxou o casaco de
pele da mãe. Ela podia sentir o suor se formar na testa e no lábio superior.
Num instante, era como se estivesse sendo cozida viva, no outro estava
congelando, apesar da roupa de baixo térmica e do casaco de pele. —
Devo estar ficando gripada. — Phyllis e Maggie tinham ficado bastante
abatidas com uma gripe que afastara várias voluntárias do Rainbow
Corner.
— Bem, você vai ter de esperar chegarmos em casa para ficar doente
— disse Sylvia de maneira nada solidária quando as duas alcançaram
Edward e Bertie, que tinham parado em frente a um prédio enorme que
assomava em meio à escuridão. — Você não pode simplesmente ir
embora depois que um homem lhe paga três pratos e vinho. É
imensuravelmente rude.
Todos eles se espremeram em um pequeno elevador e, quando Bertie
fechou a porta com um estrondo, Rose sentiu algo reverberar em sua
barriga. O cheiro forte de lírios do perfume de Sylvia e a fumaça de
charuto impregnada no sobretudo de Bertie fizeram-na cambalear contra
Edward.
Ele colocou a mão no ombro de Rose para estabilizá-la.
— Você está bem? — sussurrou ele para não ser ouvido sobre o
barulho do elevador subindo e as gargalhadas de Bertie quando Sylvia lhe
dizia algo. — Você está muito pálida.
— Estou ótima. — Talvez ela pudesse ficar se sentasse em um canto
escuro do apartamento de Bertie e ficasse muito, muito quieta.
Mas, assim que entraram, o piso e as paredes começaram a se fechar
em volta de Rose, e ela sentiu o cheiro de restos de charutos e do peixe
defumado que Bertie comera no café da manhã, então seu estômago
revirou novamente e...
— Ah, querida! — exclamou Sylvia quando Rose levou as mãos à boca.
— Bertie, onde é o banheiro?
— Santo Deus! No fim do corredor, a última porta à esquerda.
Rose saiu em disparada, abriu a porta e caiu de joelhos.
Dez minutos depois, corada e encolhida, ela entrou na sala onde Bertie
e Sylvia davam uma olhada em discos, e Edward permanecia empoleirado
no braço de um sofá com um copo contendo um líquido branco
efervescente na mão.
— Venha e sente — disse ele gentilmente, apontando para o sofá. —
Peguei a última garrafa de Bromo-Seltzer do Bertie para você.
Ela sentou no sofá e pegou o copo, então se encolheu mais uma vez.
— Sinto muito mesmo. Não sei o que você deve estar pensando. —
Suas bochechas arderam ainda mais de vergonha. — Não pude nem abrir
a janela por causa do blecaute.
Bertie fez um movimento com a mão, dizendo que não era nada.
— Não foi pior do que eu depois de um jantar militar. A criada pode
cuidar disso de manhã.
Isso fez Rose voltar a se sentir envergonhada, porque imaginara que
Bertie fosse um tolo convencido, quando na verdade era um amor, com
um bom humor incansável.
Sylvia lhe lançou um olhar solidário.
— Nada de donuts para você por um tempo.
— Acho que eu nunca mais vou comer. — Rose tomou um gole do
Bromo-Seltzer. Como todas as outras bebidas que tomara em Londres, era
horrível. — Realmente sinto muito — disse ela de novo, mas Bertie e
Sylvia tinham colocado um disco para tocar, e só Edward a ouviu.
— Por favor, pare de se desculpar. Você não fez nada de tão terrível no
grande esquema das coisas. Embora eu tenha achado que pedir a pavlova
foi bastante imprudente. — Ele abriu aquele sorriso sério, que significava
que era uma piada.
— Bem, você poderia ter me dito — resmungou Rose. Ela terminou de
beber o Bromo-Seltzer, fazendo careta quando os últimos resíduos
amargos cobriram sua língua, mas depois se sentiu um pouco melhor.
Permanecia esgotada e frágil, porém já não achava que ia morrer.
— Eu teria falado se achasse que você ouviria meu conselho —
retrucou Edward. — Às vezes temos de aprender com nossos erros. Tenho
certeza de que você nunca mais vai pedir caviar e tournedos de novo.
— Não fale em comida — pediu Rose, e ele sorriu de novo. Ela estava
cansada e seus pensamentos tinham ficado bastante confusos. Ela
inclinara a cabeça para trás contra Edward e ele acariciava sua testa
quente com os dedos frios. Era tão bom. Reconfortante. Segura naquela
sala acolhedora, as cortinas fechadas escondendo a noite lá fora, Sylvia
cantando “Oh, please have some pity, I’m all alone in this big city, I tell you
I’m just a lonesome babe in the wood...”.
14

Jane não sabia a que horas ela enfim tinha caído no sono, mas acordou
na manhã seguinte quando Leo entrou no quarto com uma bandeja de
café da manhã.
— Para compensar por colocá-la diante do pelotão de fuzilamento
ontem à noite — disse ele com um sorriso triste, que Jane ficou mais do
que feliz em retribuir, além de concordar em seguida com a sugestão de
Leo de passarem o dia como turistas.
O que mais ela poderia fazer? Além disso, passar o dia, muitos dias,
com Leo não tinha de ser uma provação. Ele era engraçado, fácil de lidar,
charmoso quando queria e, quando deixaram a casa e começaram a
andar por Kensington, ele tinha uma história sobre cada rua por que
passavam. Histórias sobre uma juventude desperdiçada de raves ilegais
em armazéns abandonados, correndo atrás de herdeiras de Chelsea que
não lhe davam a menor atenção e tentando curar suas ressacas comendo
frituras.
Naquela manhã, o sol de final de outubro estava alto e brilhante, mas
havia um cheiro de outono no ar que fez Jane pensar em fogueiras e fogos
de artifício. Eles caminharam pelas ruas secundárias, parando para
tomar café em um boteco italiano — Leo ficou desapontado por não se
lembrarem dele — e então no Victoria and Albert Museum.
— Vamos começar pela parte de baixo — disse Leo, embora a parte de
baixo fosse muito chata: entalhes em pedra detalhados, vasos e relíquias
religiosas antigas.
Até mesmo a palavra “artefato” fazia Jane querer bocejar. Em seguida,
havia as galerias. Jane sofreu em silêncio pelo bem de Leo, porque ele
obviamente gostava mais de arte do que ela, mas ele andava sem muito
entusiasmo, com as mãos nos bolsos de um velho casaco preto.
— Deus, isso é maçante — declarou ele. — Vamos ver os vestidos
bonitos.
Os vestidos bonitos eram a parte de que Jane mais gostava quando ia
ali nas tardes de domingo com Charles. Ele também começava pela parte
de baixo, mas eles sempre deixavam o melhor para o final e acabavam
nas galerias de moda.
— Vou querer aquele e aquele, não aquele, mas com certeza aquele
outro — dizia ela apontando para vestidos de baile Schiaparelli ou um
elegante vestido Balenciaga, como se estivesse andando pela Selfridges
com uma personal shopper.
Naquela época e agora, acabaram no café. Leo comeu bolo. Era muito
cedo para tomar uma bebida, embora, se ele estivesse sozinho, Jane tinha
certeza de que teria tomado uma. Jane tomou um café descafeinado.
— O que vamos fazer agora? — perguntou. — Que horas são?
Era só meio-dia e meia, o café ficando cheio com as pessoas que
vinham almoçar; adolescentes com ar inexpressivo carregando mochilas
enormes, mães com bebês em carrinhos e cangurus Björn e uma
quantidade assustadora de damas das províncias em sapatos confortáveis
e anoraques.
— Só podemos voltar daqui a pelo menos duas horas — observou Jane.
— Você não disse que Rose ia receber alguns convidados para o almoço?
— Não são convidados. É minha mãe. — Leo raspou a lateral do garfo
pelo prato para recolher as últimas migalhas de cobertura de cream
cheese. Eles estavam sentados ao lado de uma janela, e era a primeira vez
que Jane o via sob uma luz tão clara e forte. Estava ficando grisalho nas
têmporas, o rosto pálido, a pele flácida ao redor dos olhos e no queixo. —
Ela estará na cidade durante os próximos dias, então tenho que ficar na
minha. — Ele não a olhava nos olhos. — Não sou sequer fodido de uma
maneira interessante, incrível. Todos os meus problemas são tão classe
média branca.
Jane percebera isso cinco minutos depois de conhecê-lo.
— Você poderia escolher não ser fodido — sugeriu ela.
— Nada, todo mundo é fodido. Até você. Se o seu pai morreu mesmo
quando você era criança e sua mãe a enfiou em algum internato cheio de
malucos religiosos na selva australiana, então você é fodida também.
— Você pode superar o estado de fodido. É uma questão de se dedicar.
Leo fez um movimento com o garfo para ela, estreitando os olhos
inchados.
— A menos que nada disso seja verdade, o que significa que você está
fodida de uma maneira completamente diferente.
— Querido, temos mesmo que passar as próximas duas horas
debatendo os detalhes de ser fodido? — perguntou Jane. — Se for assim,
prefiro ir ver os artefatos religiosos entediantes.
— Só estou dizendo que...
— Olá! Que bom encontrar vocês aqui! — Os dois se viraram na
direção da voz empolgada e um tanto afetada.
Era George. O George de Rose, que chegara para salvá-los de si
mesmos. Como era um curador do museu, levou-os às entranhas do
prédio para lhes mostrar todos os tipos de tesouros. Uma coleção de
objetos de cristal escandinavos do início do século XX, uma calça bondage
de Vivienne Westwood, esculturas de origami menores do que o dedo de
Jane, que eram muito bonitas, mas tão frágeis, que a faziam se sentir
triste só de olhar para elas.
George insistiu que se juntassem a ele para almoçar no refeitório dos
funcionários para que pudesse deliciá-los com histórias sobre Rose.
Como eles se conheceram no balcão de queijos da Harvey Nichols havia
quase quarenta anos: George aos dezenove anos com seu moicano azul e
short de couro parando para perguntar à Rose se seu vestido de bolinhas
era um Claire McCardell vintage.
— Embora ela não dissesse que era vintage. Ainda não diz. Ela fala que
não há razão para se jogar fora roupas em perfeito estado. De qualquer
forma, foi amor à primeira vista. Não, isso é pura hipérbole. Foi um caso
de melhores amigos à primeira vista. — George de repente desmoronou.
Parecia que alguém tinha começado a apagar as bordas de seu rosto fino
e alegre de pássaro, os olhos de coruja se destacando por trás dos óculos
de aros grossos. — Acho que não se passou um dia desde então em que a
gente não tenha se falado. Não consigo imaginar minha vida sem Rose.
Ele estava chorando. Bem ali na mesa. Jane ficou ali sentada, na agonia
do constrangimento, porque todo mundo, todos os colegas de George,
olhavam para eles.
— Rose odiaria que eu chorasse, mas, quando não estou com ela, não
consigo parar — disse George. Suas lágrimas manchavam as lapelas finas
do terno, uma caiu com um som vívido no prato do seu pão, bem no meio
da manteiga.
Jane virou o rosto e enrijeceu o corpo. Odiava ver alguém chorar.
Sempre queria lhes dizer para serem homens. Serem fortes. Chorar não
resolvia nada, só fazia as pessoas o considerarem fraco.
— Ei, George, vamos lá, amigo. — Ela ouviu Leo dizer suavemente,
então ele desajeitadamente se levantou, pegou alguns guardanapos e se
agachou na frente do homem mais velho. — Você sabe que Rose iria
matá-lo se soubesse que chorou na cantina de funcionários do museu. Ela
esperaria que no mínimo fosse no Ritz.
George deu uma risada curta e fleumática, pegou os guardanapos que
Leo lhe oferecia e enxugou os olhos.
— Obrigado — agradeceu baixinho. Então assoou o nariz. — Na
verdade, Rose odeia o Ritz. Ela se recusa a frequentá-lo. Diz que é cheio
de turistas e pessoas com mais dinheiro do que sensatez.
Leo deu um tapinha no joelho de George. Jane não esperava que ele
fosse capaz de um gesto tão gentil. Tentar ajudar alguém que estava
sofrendo sem segundas intenções. Leo ainda estava agachado na frente de
George e tinha tomado as mãos do homem mais velho nas dele.
— Um dia, quando você realmente precisar se animar, vou lhe contar
sobre a única vez em que fui ao Ritz. Consegui dar um jeito de me
deixarem entrar na festa de vinte e um anos de uma supermodelo. Doze
horas mais tarde, fui levado para fora pela cozinha usando botas de
motociclista e um vestido dourado que ganhei de outra supermodelo. —
Ele se levantou e estufou o peito. — Fui banido para sempre de todos os
Ritz do mundo.
George ainda assoava o nariz, mas seu rosto estava firme de novo,
apesar de um pouco mais rosado do que antes.
— Senti sua falta, Leo — disse ele, com uma última fungada. — Nós
dois sentimos. Que bom que voltou.
Eles não ficaram por muito mais tempo depois disso. Já passava das
três.
— Bem, são três horas, a essa altura o almoço já deve ter acabado —
disse Jane. — Duas e meia é o padrão. Vamos voltar para eu trocar de
sapato.
Caminharam de volta para casa em silêncio. Desde que tinham se
despedido de George, Leo ficara muito quieto. E só se recuperou quando
chegaram à praça. O sol começava a baixar, com a luz suave e difusa e as
folhas que caíam criando sombras dançantes. Leo pegou o braço de Jane.
— Vamos dar a volta por trás — disse ele. — Assim não corremos o
risco de encontrar ninguém na entrada.
Jane resolveu não perguntar a Leo por que ele estava tão determinado
em evitar a mãe. Essas coisas de família eram sempre confusas, repletas
de desconsiderações reais e imaginárias, além de rixas que remontavam a
anos. Com sorte, ela não teria de ficar por tempo o bastante para se
envolver.
— Liddy e Frank moram ali... aquela com a porta vermelha — disse
Leo de repente, enquanto conduzia Jane por uma série de casas que
lembravam cavalariças à esquerda da casa, as pedras acabando com suas
sapatilhas. Ele apontava para uma casinha bonita, daquelas que já
abrigaram carruagens. — Você já conheceu o Frank? Ele é o marido de
Liddy e motorista de Rose. Também ajuda muito na casa. Trocando
lâmpadas, resolvendo...
Jane não estava prestando muita atenção até Leo parar de falar de
repente, com o olhar fixo em Rose e outra mulher, tão alta quanto ela,
porém mais jovem, o cabelo mais escuro, saindo por uma porta. Elas se
abraçaram, sem jeito, porém carinhosamente, como se a óbvia
consideração que tinham uma pela outra não costumasse se estender a
abraços.
— Bem, é isso — disparou Leo como se Jane o tivesse levado ao limite
e depois pressionado ainda mais. — Vou dar o fora daqui.
— Não seja tão bobo. — Qualquer que fosse a animosidade que
pudesse haver entre Leo e a mãe não era motivo para ele sair dali daquele
jeito irritado, o casaco balançando com o vento. — Pelo amor de Deus,
querido, volte!
Rose e a outra mulher — a mãe de Leo, porque só poderia ser ela — se
viraram para olhar.
Leo bem que poderia ter engolido o orgulho e tentado contornar a
situação. Podia ter dito Oi, você parece ótima, como está o papai? Está frio
para esta época do ano, não é?. Teria sido banal e um pouco doloroso, mas
não o teria matado. Também não mataria Jane. Então ela seguiu em
frente com o que Leo não teve coragem de fazer; estampou no rosto o
sorriso mais corajoso e caminhou em direção às duas mulheres.
— Olá — disse Jane alegremente. — Espero não estar interrompendo
nada.
Parada à soleira da porta da cozinha, Rose as apresentou.
— Linda, eu lhe falei sobre Jane, a mulher de Leo. E, Jane, não tive a
chance de lhe dizer nada sobre Linda, a filha mais nova da minha irmã
Shirley. Seu bebê da coroação, como Shirley costumava chamá-la.
Elas apertaram as mãos. Murmuraram cumprimentos. Linda voltou a
se encolher assim que o aperto de mão acabou. Havia um eco de Rose no
rosto dela, um ligeiro traço de Leo. Talvez ao redor dos olhos ou na curva
generosa dos lábios, que ela repuxou ansiosamente em um sorriso
educado.
— Sinto muito pelo Leo. Posso ir atrás dele — sugeriu Jane, na
esperança de uma fuga rápida.
— Não há razão para isso — afirmou Rose. Ela olhou para o céu, que
passara de azul a cinza enquanto estavam ali. — Vai chover.
— É melhor você entrar — disse-lhe Linda. — Está muito frio para
ficar parada aqui fora.
— Não exagere. Um pouco de brisa não vai me matar. — Mas então
Rose estremeceu, e Jane achou que ela poderia entrar sem discutir. Em
vez disso, parou e olhou para Linda, depois para Jane. — Vocês também
podiam sentar e conversar um pouco sobre aquele seu garoto.
Rose as deixou depois de levá-las pela cozinha e depois descendo meio
lance de escada até o que chamava de sala de estar da manhã e Jane teria
chamado de solário.
Linda ficou na beirada de um sofá azul-esverdeado como se pudesse
fugir a qualquer momento.
— Rose disse que você era muito bonita. — Isso soou como uma
acusação, e talvez Linda tenha percebido isso, porque afundou um pouco
como se estivesse se forçando a relaxar. — Sinto muito.
— Não tem problema. — Jane desejou que sua beleza se apagasse um
pouco. — Tenho certeza de que esta visita já é difícil o suficiente sem Leo
e eu aparecendo assim do nada.
Linda não era realmente relevante, mas era a mãe de Leo e Rose
parecia gostar dela, então talvez pudesse ser útil. Depois de três anos de
passeios de compras, dias de spa e almoços só das garotas com Jackie, ela
sabia desempenhar com perfeição o papel da nora ansiosa para agradar.
Então, quando Lydia entrou com uma bandeja cheia e Linda olhou
fixamente para o bolo de nozes, Jane disse que comeria uma fatia porque
Linda tinha o olhar faminto e desesperado de uma mulher que não podia
suportar comer bolo sozinha.
No entanto, tentar manter uma conversa era como andar em meio ao
melado com um salto de quinze centímetros. Foi só com obstinada
perseverança que Jane descobriu que Linda ficaria mais dois dias em
Londres e então pegaria o trem de volta para Durham na quinta de
manhã, pois detestava dirigir em estradas. E era uma espécie de tradição
que, em sua última noite em Londres, ela e Rose fossem ver um
espetáculo e depois jantassem no Joe Allen.
— Isso parece ótimo! — exclamou Jane. Ela já representara para
plateias difíceis antes, mas Linda devia ser a mais difícil até o momento.
Ela olhava para o chão, recusando-se a fazer contato visual, e não tinha
sequer tirado o casaco bege, que estava um pouco grande nela, como se o
tivesse comprado esperando que ainda fosse crescer. — O que vocês vão
ver?
— Leo estava na Austrália três anos atrás? — perguntou Linda. Ela
levantou a cabeça e suas maçãs do rosto estavam um pouco vermelhas.
— Em Sydney?
Jane e Leo ainda não tinham combinado o que estavam fazendo três
anos antes.
— Nosso namoro foi muito rápido. Você sabe como é. Então...
— Porque Alistair, o irmão dele, mora lá. Ele estava trabalhando para
os Médicos Sem Fronteiras, conheceu uma australiana. — Linda
visivelmente parou para se recompor. Respirou fundo três vezes, colocou
as mãos nos joelhos e os ombros para trás. De repente ocorreu a Jane que
a outra mulher não estava nervosa ou constrangida, mas tão irritada que
mal conseguia falar.
— Você está bem? — Jane tentou relaxar os próprios membros para
não ficar toda tensa também. — Não temos que falar sobre Leo se isso vai
chateá-la. É claro que eu o adoro, mas sei que ele pode ser difícil às vezes.
— Alistair viu Leo caminhando na direção dele e chamou seu nome.
Leo olhou bem para ele, depois seguiu em frente e passou por Alistair
como se o irmão não existisse. — Linda olhou para Jane, incrédula. —
Quem faz isso com o próprio irmão?
Jane não conseguia resistir ao impulso de se contorcer um pouco.
— Famílias são muito complicadas, não é?
— Houve uma época, quando ele estava na reabilitação após a
overdose, que eu me culpava — disse Linda, hesitante. Suas mãos não
estavam mais paradas, mas se retorcendo, mexendo nos anéis. — Ele não
lhe contou sobre isso, não é?
— Isso é coisa do passado — retrucou Jane com firmeza, embora não
fosse. Leo consumindo drogas era algo recente como dois dias atrás.
— Bem, não me culpo mais, eu o culpo. — O queixo de Linda se
projetou desafiadoramente. Ela parecia mais com Rose do que com Leo
agora. — Dez anos se passaram e mesmo hoje ainda há algumas noites
em que fico tão furiosa pensando nele que não consigo dormir. Sei que é
bobagem, mas, como Leo não estava por perto, nunca tive a chance de lhe
dizer como me sinto realmente. Como estou furiosa com ele, então digo
isso ao Leo na minha mente várias e várias vezes.
Jane não conversava com seus fantasmas. Ela simplesmente não os
deixava vir à tona. Quando tudo aquilo acabasse, Jane não se permitiria
uma única noite sem dormir pensando em Leo. Era mais fácil dessa
maneira.
— Já se passaram dez anos — disse ela gentilmente. — Você devia tê-
lo deixado para lá.
— Não dá para fazer isso quando se trata de família — argumentou
Linda. — Quando é sua família, nunca acaba.
— Ele não é tão ruim. — Isso dificilmente poderia ser considerado um
endosso de uma noiva apaixonada. Jane poderia fazer muito melhor do
que isso, nem que fosse para recompensar Leo por aqueles instantes de
doçura que ela presenciara. — Ele tem várias qualidades. É muito gentil e
incrível para animar as pessoas quando estão para baixo. Ele é engraçado,
não de uma maneira maldosa. Acho que você perceberia que ele mudou.
— Ele nunca me deu essa oportunidade — disparou Linda, que então
voltou a se controlar. — Sinto muito. Eu não deveria falar com você desse
jeito. É rude e inapropriado. Normalmente sou uma pessoa bastante
sensata e racional.
— Tenho certeza de que é. Não me entenda mal, acho Leo um amor,
mas ele pode ser bem irritante também. — Jane achou que podia arriscar
um leve sorriso de cumplicidade. — Quando ele se atrever a mostrar a
cara de novo, vou lhe dar um bom tapa na cabeça se puder ajudar.
— Pode ser — concordou Linda. Ela quase abriu um sorriso. — Você
tem muito trabalho pela frente.
— Eu sei. Isso mantém a vida interessante. — Jane descruzou as
pernas e mudou de posição, depois cruzou-as de novo, e foi fácil assim
mudar o clima. Estabelecer um fim. Começar de novo. — Você falou
sobre o Alistair... ele ainda está em Sydney? Você já foi visitá-lo?
Alistair era claramente o filho perfeito. Médico, como o pai e os avôs.
Formou-se em medicina com destaque pela Universidade de Dundee, três
anos em St. Barts, depois entrou para os Médicos Sem Fronteiras e
trabalhou no Níger, então Bangladesh, onde conheceu Vicky. Agora
moravam na costa norte de Sydney e estavam esperando a chegada do
primeiro filho para janeiro.
— É difícil... não ter mais os dois filhos por perto — disse Linda. Lydia
olhara da porta cinco minutos antes para perguntar se elas queriam uma
taça de vinho e Linda assentira agradecida. — Gavin, meu marido, tirou
uma licença sabática de seis meses e íamos para a Austrália. Passar o
Natal lá. A mãe de Vicky tem esclerose múltipla, então ela vai precisar de
uma mão quando o bebê nascer. Não que eu queira me meter.
— É claro que não, mas é o seu primeiro neto. Isso é algo muito
especial. — Jackie se mostrara muitíssimo animada com a perspectiva de
ter netos, embora Jane tivesse se recusado a se deixar envolver. — Seria
ótimo escapar do inverno. Passar o Natal na praia, esse tipo de coisa.
— Mas não há como a gente viajar, não com Rose tão mal assim —
disse Linda categoricamente. — Ela não para de falar que eu deveria ir,
mas realmente não vejo como eu poderia.
Jane fez de tudo para não se contorcer mais uma vez.
— Mas Rose pode estar bem no final do próximo ano.
— Ela não estará — retrucou Linda com a mesma voz sem emoção. —
Duvido que ela chegue ao Ano-Novo. Mas ela não vai gostar da ideia de
ficar em tratamento intensivo, e diz que, se eu não for para a Austrália,
não vai me deixar nem mesmo entrar em casa. Sei que Lydia é como se
fosse da família, mas isso não cabe a ela. — Linda olhou para Jane com
expectativa.
— Então, quanto tempo você e Leo estão planejando ficar?
Isso ia muito além do que qualquer um, até mesmo a mais dedicada
das jovens esposas, deveria ter de suportar.
— Eu não sei. Foi uma decisão meio repentina vir até aqui.
— Porque não é como se Leo fosse decidir fazer alguma coisa e... ah,
Deus, é tudo uma grande confusão.
E nada foi resolvido porque a situação era insolúvel. Era uma pena que
a vida não viesse com um monte de setas apontando na direção em que
se deveria ir, pensou Jane quando viu Linda à porta da frente naquele
momento.
— Não acho que Leo seja má pessoa. Eu ainda o amo, mas gostaria que
ele não fosse tão negligente. Ele nunca pensa antes de agir — disse Linda
enquanto apertava impiedosamente o cinto do casaco. As bochechas
tinham voltado a ficar vermelhas de raiva. — Talvez ele tenha mudado.
Não dizem que o amor de uma boa mulher pode mudar um homem?
— Acho que ele está tentando mudar — disse Jane, embora ela não
fosse uma boa mulher e ele não estivesse de fato fazendo tal coisa. Ela
podia ter falado bem dele para a mãe, mas acima de tudo estava furiosa
por ele ter jogado Linda para cima dela.
Linda estava parada na soleira da porta, nem dentro, nem fora.
— A questão é, Jane, que eu não posso me preocupar com esse garoto
agora que Rose... ela é a minha última ligação com a minha mãe; a única
pessoa que a conheceu quando era jovem, antes de ter casado e tido a
mim e meus irmãos. Rose me contou tantas histórias, mas tenho certeza
de que há ainda mais por contar. — Linda engoliu em seco, depois abriu a
bolsa e tentou pegar uma caixa de lenço de papel, mas suas mãos
tremiam muito.
Jane pegou a caixa e entregou um lenço à Linda.
— Vai ficar tudo bem. Você vai passar um tempo maravilhoso com
Rose enquanto estiver na cidade, depois pode voltar a Durham e pensar
por algumas semanas no que quer fazer. Se houver qualquer mudança no
estado de saúde de Rose, Lydia vai ligar para você.
A gratidão fez Linda abraçar Jane por um breve e embaraçoso
momento.
— Foi muito bom conhecer você. Leo é um rapaz de muita sorte. — Ela
olhou para a casa atrás de Jane. — É melhor você entrar. O calor está
saindo. Tenho medo de pensar na conta de luz de um lugar como esse.
Em seguida, ela foi embora — uma figura cinza-clara encurvada
atravessando a praça — e só restou a Jane voltar para dentro.
15

Apesar do frio que tomava conta do lugar à medida que o sol se escondia
por trás dos prédios e da garoa persistente que tinha começado a cair
logo que saíra da praça, Leo caminhava.
Caminhava para longe. Ele sabia que era um covarde. Poderia ter ido
até a mãe, dito olá e que pretendia entrar em contato agora que estava de
volta ao país. Assim como podia ter lhe enviado um cartão-postal de vez
em quando. Ligado para ela no dia do seu aniversário. Mas ele não fizera
nada disso. Era mais fácil não fazer, porque assim não precisaria se
lembrar do olhar decepcionado que sua mãe aperfeiçoara a cada vez que
se deparava com os piores exemplos de seu comportamento — era uma
mistura única de reprovação e perplexidade. De boletins escolares ruins e
a vez no ensino médio em que sua namorada achou que pudesse estar
grávida às sessões quando ele estava na reabilitação. Aconselhamento
familiar. Só que Rose não ia às sessões e seu pai achava todo o exercício
completamente autoindulgente, então era só Linda sentada em uma
cadeira plástica laranja com seu olhar decepcionado.
“É minha culpa”, dissera ela várias vezes durante aquelas duas
semanas. “Não é sua culpa. Sei que você é melhor do que isso.”
Mas ele não era melhor do que aquilo. Ainda era um merdinha egoísta.
Não sabia ser outra coisa. Então, continuou a andar.
Ele tinha se esquecido do simples prazer de dar um passeio. O truque
era ficar atento, assim não se perdia as coisas boas: o leão esculpido na
pedra angular de uma casa vitoriana, a casa com as cabeças grotescas de
gárgula de cada lado da porta da frente. Pedras com as datas das
construções e pedras angulares. Leo ficava feliz cada vez que reconhecia
alguma coisa... era como esbarrar em velhos amigos. Aconteceu o mesmo
quando redescobriu as placas azuis de William e Evelyn de Morgan,
Hablot Knight Browne e Alfred Hitchcock.
Quando ficara com torcicolo de tanto olhar para cima e a garoa se
transformara em uma chuva torrencial, Leo pegou um ônibus, depois
outro, até chegar a Shoreditch, seu antigo reduto.
Os armazéns e fábricas estavam todos reformados agora, lar de
designers, consultorias de marcas e agências de pesquisa de tendências.
Pessoas ficando ricas com besteiras. Nesse caso, Leo já deveria ter tido
várias chances de ser milionário e, logo que pensou isso, ouviu uma voz
alta e rouca atrás de si.
— Leo? — Leo se virou. — Leo Hurst, não acredito! Como raios você
está?
Era Voraz. Seu velho amigo da época da escola de arte de Chelsea.
Tinha esse apelido porque podia aspirar carreiras de cocaína no tempo
que qualquer um levava para enrolar uma nota de cinco libras e levá-la a
uma narina.
— Estou bem — respondeu Leo. — Como você está?
— Ótimo. — Voraz tinha a aparência bem nutrida de um homem que
estava acostumado a almoços por conta da empresa e menus de
degustação de dez pratos. — Meu Deus, já faz anos. Vamos beber alguma
coisa.
Eles encontraram um bar que tinha sido cuidadosamente restaurado
para se assemelhar ao açougue que fora uma centena de anos atrás.
Então foram várias bebidas e várias porções de batatas fritas do chef
Blumenthal enquanto Voraz contava a Leo histórias de modelos com
quem transou, malignos negociantes de arte que ele derrotara e
colecionadores que lhe pagavam muito dinheiro para projetar instalações
para suas casas.
— Afinal, quanto custa fazer uma porra de uma placa de néon?
Panacas!
Quando o bar começou a se encher de pessoas mais jovens, mais
descoladas e com cabelo mais bonito do que eles, Voraz convidou Leo a ir
ao seu estúdio, que ocupava o último andar de uma antiga gráfica perto
da Shoreditch High Street. Mesmo já tendo passado das oito, ainda havia
um grupo de assistentes correndo de um lado para o outro como quem
faz o papel de gente muito ocupada em uma peça. Voraz disse a uma
garota bonita com pernas absurdamente longas para lhes trazer algumas
cervejas e então os dois se acomodaram na sua sala, a cidade iluminada
se estendendo diante deles, e Leo relembrou todas as histórias que
relembrara muitas vezes antes. Sobre subir ao palco em Tóquio e a atriz
de Hollywood que lhe pagara um boquete, ah, e a vez que passou uma
noite na cadeia no México, o que ele realmente não recomendava, e sim,
claro, vamos cheirar um pouco.
Os dois estavam se vangloriando, contando um monte de vantagens,
mas a prova do sucesso de Voraz era tão tangível quanto o gosto amargo
no fundo da garganta de Leo enquanto aspirava e depois engolia. A inveja
e a decepção devem ter ficado estampadas em seu rosto porque Voraz
colocou a mão forte no joelho de Leo.
— Olha, amigo, se ajudar, se você precisar de um emprego...
— Ah, não. — Ele mal conseguia formular as frases. — Estou
esperando algumas grandes comissões. Sabe como é. Não quero azarar
nada.
— É claro que não. Mas sempre preciso de alguém que tenha ideias que
eu possa desenvolver. Eu não exploraria você, cara. Eu lhe pagaria um
valor decente.
Leo olhou ao redor do espaço cuidadosamente organizado. As
estúpidas placas de néon que diziam O FUTURO É AMANHÃ, e NADA É INFINITO,
SÓ A MORTE. As controversas máscaras mexicanas do Dia dos Mortos
decoradas com pele humana e dentes de verdade. Os retratos de famílias
que moram em casas de programas habitacionais, suas TVs de plasma e
pit-bulls representados de maneira tão adorável quanto Gainsborough
pintava barcos e cavalos.
Aquilo não era arte. Era comércio. Enganação. Enganação. Enganação.
Mas as enganações de Voraz pagaram por mais algumas carreiras de
cocaína e, quando eles saíram do prédio e chegaram à rua e Leo caiu de
joelhos na calçada molhada de chuva, Voraz deu a um taxista cinquenta
libras para levá-lo para casa.
Foi como nos velhos tempos. Ele vomitou na sarjeta, então cambaleou
pelas casas que antes eram cavalariças e bateu na porta da casa de Frank
e Lydia. Eles não ficaram muito felizes em vê-lo, embora não fosse tão
tarde. Ainda não tinha passado da meia-noite, então Leo achou que não
havia razão para Lydia parecer que tinha passado a noite chupando
limão.
Frank desligou o alarme para Leo poder entrar na casa. Ele pegou a
garrafa de uísque no aparador na sala de estar e praticamente se arrastou
escada acima.
Então lembrou que Rose ficava com raiva quando ele chegava em casa
assim. Ela não estava bem. Precisava dormir. Ele pensou em andar na
ponta dos pés pelo corredor, mas se contentou em andar silenciosamente.
Só quando abriu a porta de seu quarto, fechou-a com um cuidado
exagerado e depois se atirou na cama foi que Leo lembrou que tinha uma
esposa, que acordou com um grito abafado.
Jane o atacou e raspou as unhas no rosto de Leo, mas ele já estava
rolando para longe dela.
— Desculpe! Desculpe! Eu esqueci que tinha uma esposinha
esquentando minha cama.
Suas palavras soaram arrastadas e emboladas. Leo fez uma careta
quando Jane acendeu o abajur. Esperava que ela pensasse que a luz é que
tinha deixado suas pupilas tão dilatadas. De todo jeito, ele sabia que seu
rosto estava coberto de gotas de suor e, enquanto olhava para ela com os
olhos turvos, podia sentir a mandíbula se mexendo.
Ela sentou, cruzou os braços e olhou para Leo. Mesmo com a velha
camisa desbotada do Motörhead dele, o cabelo bagunçado e nenhuma
maquiagem, ela ainda era boa demais para ele.
— Você não está cansado disso, querido? — perguntou ela. Naquele
momento, enquanto ele se esparramava com metade do corpo para fora
da cama, com outra camisa velha esticada sobre a barriga, ele odiou Jane
por sua pena.
— De quê? — Leo tocou os lábios com a mão. Não conseguia acreditar
que ainda era capaz de fazer sons saírem da boca. — Cansado de quê?
— A festa acabou — respondeu Jane. — Já passou da hora de você
perceber que todos os outros já foram para casa.
Ela obviamente vinha tendo aulas com Rose sobre como fazer Leo se
sentir tão pequeno que, se não fosse pelo olhar de leve repulsa em seu
rosto, que tinha driblado os preenchimentos e o botox, ele juraria que era
invisível a olho nu.
— Sim, bem... Eu estou passando por umas coisas. Perdoe-me se talvez
eu quisesse sumir um pouco.
— Sumir um pouco? — repetiu ela, incrédula. — Ah, então você
precisava de um tempo fora por bom comportamento? Que bom
comportamento? — Ela apontou um dedo acusador para Leo. — Você
fugiu e me deixou sozinha com sua pobre mãe. Foi um verdadeiro toque
de classe.
— Não quero falar sobre minha mãe. — Leo tentou sentar, mas só
conseguiu escorregar ainda mais para fora da cama. — Não vamos
discutir. Pensei que éramos amigos — acrescentou em tom de queixa.
Jane revirou os olhos. Quanto mais ele a conhecia, menos doce ela se
tornava. Era tudo só fachada.
— Lydia lhe pediu para voltar porque esperava que, nesses dez anos
desde que foi levado para a reabilitação, a propósito, obrigada por me
contar esse pequeno detalhe, você teria amadurecido, mas ela estava
errada. Deus, como estava errada!
— Você não precisava vir a Londres comigo. Só veio porque lhe
convinha. — Leo não era um bêbado maldoso. Era um bêbado do tipo
charmoso, espirituoso, a vida da festa, o rei da espontaneidade, mas, pelo
visto, não naquela noite. — Não se esqueça de que vi você em ação na
noite em que nos conhecemos. O que é isso, sério? Algum tipo de golpe?
Leo não soube discernir se a vermelhidão que aparecera na parte de
cima do peito dela exposta pela abertura da camisa era culpa ou raiva.
— Não me julgue pelos seus padrões, querido.
Foi a vez de Leo ficar vermelho e agora transpirava por causa da
cocaína, então ele não disse nada, mas tentou se levantar, enquanto Jane
simplesmente ficou lá sentada olhando para ele como se ele estivesse
abaixo de uma massa de algas na cadeia alimentar.
— Pare de me olhar assim — murmurou Leo.
Ele enfim conseguiu se levantar e cambalear até o banheiro, onde
jogou água fria no rosto, o que não fez nada para clarear sua mente ou
fazê-lo se sentir melhor. Ele só se sentiu pior, sobretudo quando levantou
os olhos e viu que Jane o seguira e sentara em um banquinho em frente à
bancada.
— Sinto muito por ter sido rabugenta, querido. É tão bobo nós dois
discutirmos assim — disse ela com um sorriso apaziguador. — Acabamos
juntos ao acaso. Quem sabe por quanto tempo? E seria muito melhor se
não passássemos o tempo brigando.
Leo se virou um pouco rápido demais e cambaleou com o repentino e
nauseante fluxo de sangue para a cabeça.
— Então você vai ficar? — Não havia nenhuma razão para ela ficar
com ele. Não por seu charme e boa aparência, e com certeza não pelo seu
dinheiro, a menos que aquilo tivesse passado a ser sobre o dinheiro de
Rose, e nesse caso Jane ficaria terrivelmente desapontada. Havia outra
coisa o incomodando também. — Você não está com saudades do sr. Ex?
Nem um pouquinho?
— Isso realmente não é da sua conta, querido.
— Mas você ainda deve amá-lo, não é? Não se deixa de amar alguém
de repente. O amor não tem um botão de desligar.
— Não importa se eu o amo ou não. De qualquer forma, querido,
estamos nos desviando da questão. Nós tínhamos um acordo. Eu conheci
sua tia-avó, falei bem de você, tentei melhorar as coisas o máximo
possível com sua mãe, mas realmente não gostei de você ter saído
correndo daquele jeito.
Ela parecia calma, sentada ali, mas suas mãos estavam firmemente
juntas e ela não parava de flexionar os dedos do pé com as unhas
pintadas de rosa, o que era muito perturbador com Leo tendo tanta coisa
para processar. Ele até abriu a boca e se perguntou o que Jane pensaria
dele se confessasse o motivo de ter sido banido, expulso do reino. Em
seguida fechou a boca. Ele não precisa explicar nada a Jane. De qualquer
forma, ela também não era perfeita.
— Aposto que você estaria suspirando por ele se todos aqueles bilhões
de dólares do Google ou quem quer que fosse tivessem ido parar na conta
dele — disse Leo com voz arrastada. — Sim, você disse que foi ele que a
dispensou, mas não posso acreditar que, se realmente o amasse, você o
teria deixado escapar sem lutar. Então talvez tenha sido você que o
dispensou, porque não gosta de se misturar com caras pobres.
— Eu me casei com você, não foi? — Ela balançou a cabeça e fez um
movimento de enxotar com a mão como se afastasse as palavras de Leo.
— Mas não seja tão ingênuo. Não existe uma mulher viva que realmente
queira se casar com um cara pobre.
— Isso é o que você diz a si mesma para se sentir melhor, não é? —
Leo bufou. — Não surpreende a sua pressa para se casar antes de
começar a perder a beleza.
Ele estava determinado a irritá-la — talvez como vingança por julgá-lo,
por ser tão superior e distante, ou porque isso o fizesse parar de pensar
que precisava de outra bebida. De alguma forma, suas palavras
arrastadas tinham atingido um ponto sensível porque Jane deu um
pequeno pulo, um movimento brusco e desajeitado como se ele tivesse
tropeçado embriagadamente nos temores que mesmo ela não conseguia
esconder, que estavam lá toda vez que olhava no espelho.
— Cuidado, querido — retrucou ela com firmeza. — Pessoas com teto
de vidro e essas coisas.
Era um aviso para fazer Leo recuar, mas, como de costume, ele o
ignorou.
— O engraçado sobre ser uma esposa troféu, querida, é que parece pra
cacete com ser uma prostituta.
— Diz o homem que voltou para Londres o mais rápido possível
quando descobriu que sua rica tia-avó estava morrendo — retrucou Jane.
— Que pena que ela não estendeu o tapete de boas-vindas.
Leo se apoiou na pia e imaginou que poderia esmagar a porcelana com
as próprias mãos.
— Não foi por isso que voltei! — rosnou ele tão energicamente que
Jane deu outro pulo. — Você não sabe nada sobre isso.
Ela se levantou, colocando as mãos na cintura.
— Eu sei de muita coisa. Sinceramente, você acha que sou tão idiota
assim? Você não estava apenas bêbado em Las Vegas; estava com um
pouco de cocaína na cabeça também, não é? E também cheirou antes de
entrar no avião e acabou de fazer o mesmo. É por isso que suas pupilas
estão maiores do que pratos e você se transformou nesse idiota hostil. —
Ela assentiu, como se tudo estivesse se encaixando, como um baralho de
cartas sendo embaralhadas por um mestre. — Também sei que você ia
fugir com o dinheiro que nós ganhamos. Você foi até a minha bolsa,
pegou o dinheiro lá e nem sequer...
— Nem tudo... — protestou Leo. Não havia nada como uma briga para
fazer a sobriedade desabar de volta na sua cabeça, mas já era tarde
demais agora.
Ele podia sentir a raiva dela como se fosse uma terceira pessoa no
aposento, agachada lá aos pés dela, pronta para atacá-lo.
— Você acha que estou desesperada? Bem, pelo menos não sou um
Peter Pan geriátrico viciado em drogas que não pode funcionar em
qualquer nível real. — A linda voz modulada de Jane aos poucos ficava
mais alta e mais aguda. — Aposto que você passou a maior parte do
tempo em Los Angeles em cafés e bares horríveis, como aquele em Las
Vegas, tentando descolar drogas com universitários e perguntando se eles
sabiam onde rolavam as festas legais.
— Cale a boca — sussurrou ele, angustiado. — Rose vai ouvir você.
— Isso preocupa você, não é? Que a sua preciosa Rose descubra que
você é ainda mais fodido do que ela já chegou a suspeitar.
Ele tinha pedido por isso. Queria saber o que realmente havia sob o
jeito doce e radiante de Jane e agora sabia: era algo sombrio e escabroso.
— Pare com isso — pediu ele com urgência. — Nós dois precisamos
nos acalmar, porra.
— Estou muito calma!
Leo se afastou da pia e começou a se aproximar de Jane. Sua própria
raiva se dissipava mais a cada passo que dava. O efeito da droga estava
passando rápido, e ele já estava mal e envergonhado pelo que dissera a
ela. A verdade sempre machuca mais do que qualquer outra coisa.
— Isso é estúpido — disse ele. Leo estava perto o suficiente para
segurar o braço de Jane, para se conectar com ela, trazê-la de volta à
terra, mas não fez isso. Nunca toque uma mulher irritada; fazê-lo seria
como provocar um urso. Ele se forçou a ficar diante dela, apenas perto de
seu espaço pessoal, na esperança de que olhasse para ele, olhasse de
verdade para ele, e visse que estava arrependido. Que ele podia ser
melhor do que aquilo. — Por favor, você estava certa. Nós não devíamos
estar brigando.
— Isso... isso nunca vai dar certo — murmurou ela tão baixinho que
Leo teve de se curvar para ainda mais perto para ouvi-la. — Que
confusão.
— Não tem que ser uma confusão — disse ele suavemente.
— É um pouco tarde para isso — sibilou ela e jogou a cabeça para trás.
— Deus, quer parar de se aproximar?
— Por favor, Jane. — Tinha de haver uma maneira de vencer sua
resistência. Se Jane desistisse dele, então Rose também desistiria. Podia
imaginar a reação dela à notícia de que tinha conseguido perder a esposa
menos de três dias depois de prometer amá-la e protegê-la. — Me deixe
compensá-la.
— E como raios você acha que vai fazer isso? — Ela jogou a cabeça
para trás de novo como se o desafiasse a tentar.
Bem, não podia fazer mal.
Leo teve a vaga ideia de que poderia beijá-la — ela gostara quando ele
a beijara em Las Vegas —, mas as pontas dos seus dedos mal a tinham
tocado quando Jane se afastou com força de sua tentativa desajeitada.
— Não me toque!
Ela pegou de cima da bancada a estatueta art déco de bronze que Leo
usava para esconder drogas e a atirou. A estatueta acertou a lateral de
sua cabeça, fazendo Leo se afastar e deixar escapar um grunhido surpreso
de dor quando o objeto caiu no chão com um baque abafado, porém
ensurdecedor.
Jane ficou ali ofegante, as palmas das mãos contra a parede, o olhar
selvagem, a boca aberta. Leo tirou a mão da cabeça, que latejava, os
dedos molhados de sangue. Ele estava pronto para gritar, a raiva
crescendo dentro dele de novo, mas então viu Jane. Viu de verdade. O
rosto branco como uma vela, o peito subindo e descendo no mesmo ritmo
da respiração irregular, as mãos tensas.
Ele nunca tinha visto alguém tão aterrorizado e nunca havia se sentido
tão sóbrio em toda a sua vida.
— Mas que diabos aconteceu? — perguntou ele. — O que eu fiz? Eu
ia...
— Nunca mais se atreva a me tocar, ouviu? — gritou Jane com uma
voz que não se parecia em nada com a dela. — Não coloque a porra da
mão em mim a menos que eu lhe dê permissão. E nem pense que vai
dormir perto de mim esta noite.
16

Março de 1944

Março chegou implacável mas, no fim do mês, açafrões e amores-


perfeitos preenchiam todos os espaços vagos de gramado. Na folga de
Rose na tarde de quinta-feira, o tempo estava muito agradável e ela
decidiu ir até Bayswater, já que Sylvia ficara sabendo por uma fonte
segura que um verdureiro tinha recebido uma entrega de bananas.
Depois planejava ir à Whiteleys, porque Pippa, uma das garotas do
Rainbow Corner, estava certa de que o departamento de aviamentos tinha
algumas sobras baratas do último verão. Talvez uma popelina ou um
algodão alegre, e Maggie prometera ajudar Rose a costurar um vestido já
que as habilidades de Rose estavam mais voltadas para remendar do que
propriamente criar.
Shirley tinha escrito naquela mesma manhã para informar
alegremente Rose de que pegara dois dos vestidos de verão de Rose e os
transformara em macacões para o bebê, porque até mesmo você
concordou que estavam muito curtos e ficando gastos embaixo dos braços.
O que é mais do que justo já que você fugiu com meu vestido preto de crepe
da china e aquele lindo de tafetá azul-claro. Rose estava muito tentada a
empacotar o vestido de tafetá azul-claro de Shirley e enviá-lo de volta
para Durham, mas então Shirley ficaria irritada de novo quando visse a
mancha de batom no corpete que, mesmo esfregando com sabão
carbólico, não havia saído. Na verdade, só tinha piorado.
Rose caminhava pelas estradas secundárias que corriam paralelas à
Oxford Street para evitar as multidões, desenhando mentalmente um
lindo vestido branco com botões vermelhos brilhantes na pala e nos
punhos, por isso demorou um pouco a notar que um homem tinha
começado a andar ao seu lado.
Por um glorioso segundo, Rose pensou que pudesse ser Danny. Mas
Danny lhe escrevera duas semanas antes. Rabiscara quatro linhas em um
cartão-postal. Princesa, espero ter um passe de 48 horas em meados de
abril. Vamos sair. Para algum lugar romântico. Só nós dois. D
Ainda faltavam quinze dias para meados de abril, então o homem
encurtando as largas passadas para ajustar-se ao seu ritmo mais lento
não podia ser Danny.
— Olá — disse Edward. — Exatamente a garota em que eu estava
pensando.
— Estava? — perguntou Rose com ar de dúvida, porque, quando não
achava que cada militar americano de cabelo escuro poderia ser Danny,
ainda ficava morta de vergonha quando se lembrava daquela noite no
Criterion e suas consequências biliosas. Sylvia tinha sido proibida de falar
daquilo sob ameaça de morte.
Agora Edward tinha aparecido de repente ao seu lado. Apesar do clima
ameno, ele estava usando um sobretudo de lã cinza-escuro e um chapéu
cinza, como se pudesse se fundir às sombras a qualquer momento. Como
se não fosse apenas um chefe de serviço secreto, mas também um espião.
— Você pode ser exatamente a pessoa que poderia me ajudar com um
pequeno projeto em que estou trabalhando — disse ele. — Só que parece
estar indo a algum lugar com um ar bastante determinado.
— Bayswater. — Rose resolveu ser econômica com as palavras como
Maggie, que tinha um ar de mistério e sofisticação. Além disso, ela não
queria encorajar Edward de nenhuma maneira. — Ouvi rumores sobre
uma entrega de bananas e depois quero comprar um tecido para um
vestido de verão.
Infelizmente, Rose não era nada misteriosa. Ela até contou a Edward
sobre a carta de Shirley e como terminara com o seguinte comentário
presunçoso: É típico de você ser tão do contra, Rosie, e passar pelo pico de
crescimento depois do início do racionamento de roupas.
Edward lhe lançou um olhar surpreso.
— Afinal, quantos anos você tem?
Ah, maldição.
— Eu amadureci muito tarde — improvisou. — Que pequeno projeto?
Tem a ver com a guerra? É confidencial?
— Não vou aborrecê-la com os detalhes agora. — Edward era vago da
mesma forma que Danny era evasivo. — Posso ir com você a Bayswater e
depois lhe mostrar o que eu tinha em mente?
Não havia nenhuma razão imaginável para Rose querer passar a tarde
com Edward. Ele era velho, tinha no mínimo uns trinta anos, e ela não
sabia nada sobre ele, fora que estava envolvido em coisas possivelmente
clandestinas, e, embora tivesse sido gentil naquela outra noite, era
alguém meio perturbador para se ter por perto.
— Com certeza você tem coisas melhores a fazer do que ir a Bayswater
numa caminhada provavelmente inútil em busca de bananas.
— Nunca vamos vencer a guerra com esse tipo de atitude — disse
Edward. Rose tinha esquecido aquele sorriso sério dele. — Vamos pegar o
ônibus? É por minha conta.
Não havia bananas. O verdureiro que haviam dito que teria recebido
uma entrega falou que, mesmo que as tivesse, as bananas seriam para
seus clientes regulares e Rose não devia achar que podia chegar assim de
repente, sem mais nem menos, para comprar bananas e privar as pessoas
boas de Bayswater das frutas.
Então Edward ressaltou que era ilegal ele se recusar a vender frutas
para Rose, incluindo bananas, porque elas não estavam racionadas, o que
só piorou as coisas. O verdureiro pegou sua vassoura e praticamente
colocou-os para fora da loja.
Rose nunca teria imaginado que ela e Edward, o sério e grave Edward,
correriam pela Queensway, de mãos dadas, sem fôlego de tanto rir.
Ela ainda estava rindo quando chegaram à Whiteleys; partes da loja
ainda mostravam as marcas dos estragos feitos pela Blitz. Era de se
imaginar que ficariam felizes em receber clientes, mas a jovem arrogante
do departamento de aviamentos se recusou até a procurar por qualquer
sobra de tecido de verão. Quando ela enfaticamente deu as costas para
Rose para atender outro cliente, Edward sussurrou em seu ouvido:
— Quem sabe ela é filha do verdureiro? Acho que vejo uma
semelhança. O queixo meio belicoso?
Rose deixou escapar uma risada, mas quando estavam no ônibus 27
para Kensington, ao perceber que sua tarde de folga fora desperdiçada,
ela suspirou.
— Nunca mais vou a Bayswater. Nem se estiverem dando vestidos de
seda. As pessoas são horríveis.
Edward disse que ela provavelmente estava sendo um pouco injusta e
então perguntou por Sylvia. Talvez fosse porque era dia e estavam em um
ônibus e depois caminhando pelas ruas de Kensington, mas pareceu a
Rose que Edward não a olhava daquele seu jeito desconcertante, e foi fácil
conversar com ele sem se atrapalhar com as palavras.
Ela se viu contando a Edward sobre as duas costeletas de porco e
feijões-da-espanha que a mãe de Phyllis mandara e como Maggie fizera
um de seus banquetes mágicos no fogão. Eles agora tinham parado de
andar. Ou Edward tinha parado e Rose também fizera uma pausa meio
incerta em sua história.
— E o apartamento ficou cheirando a alho durante dias, mas valeu a
pena. Estamos perto do projeto em que você está trabalhando?
— Estamos bem em frente, na verdade — respondeu Edward.
Rose não conhecia aquela parte de Londres — Kensington. As grandes
casas brancas eram diferentes das casas de tijolos vermelhos grudadas
umas nas outras de Holborn. Mas, sendo estuque branco ou tijolo
vermelho, todos os lugares de Londres estavam manchados de fuligem e
poeira. As ruas estavam incompletas, prédios rasgados ao meio com seu
interior à mostra. Casa, casa, então nada, além de detritos e poeira para
marcar o lugar onde as pessoas tomavam seu café da manhã e seu chá,
liam os jornais, tomavam banho. Sua ausência fez Rose pensar em dentes
quebrados de um pente velho.
Na pequena praça onde estavam, não havia lacunas, mas os prédios
estavam vazios e deteriorados. Do outro lado da praça, com um pequeno
trecho de grama e cascalho separando-as, as casas um dia altas e
elegantes estavam tombadas para um lado.
Rose se perguntou o que estava fazendo com um homem que mal
conhecia em uma praça meio abandonada, longe da agitação das ruas
mais habitadas onde alguém poderia ouvir se ela gritasse.
— Em frente a quê? — perguntou ela, segurando a bolsa à sua frente.
— Bem, a tudo isso — respondeu Edward. Ele apontou para o prédio
diante deles. A maioria das janelas estava faltando e, em vez de um
telhado, tinha uma lona verde batendo tristemente com a brisa. — Eu
comprei.
— Esta casa? Espero que não tenha lhe custado muito. — Rose se
virou. — Meu Deus, deve estar ficando tarde.
— Comprei toda a praça. Bem, fora três casas do outro lado que não
estavam à venda.
— Você o quê? — Ela olhou novamente para aquelas casas aqui e ali,
meio destruídas e tombadas de lado em direção ao céu que escurecia. —
Por que diabos você iria querer comprar isto?
— Sei que estão do lado errado do parque, mas eu tinha as minhas
razões. Boas razões — disse Edward. Depois abriu os braços, estendendo
as mãos em súplica. — No entanto, agora estou um pouco perdido e
precisando desesperadamente de ajuda.
— Mas não entendo absolutamente nada sobre comprar casas.
Apesar disso, sua curiosidade tinha sido aguçada, então Rose seguiu
Edward pelo caminho em ruínas que levava à casa, pisos pretos e brancos
um dia dispostos em um bonito padrão geométrico agora destruídos sem
chance de conserto.
Lá dentro havia uma grande agitação. Homens martelando, serrando e
pintando as paredes.
Não havia nenhum dano causado por bomba, só negligência e a
atenção determinada dos gatos do bairro, pensou Rose enquanto Edward
falava sobre seus planos.
— Pensei em colocar o fogão ali — disse ele quando chegaram ao
último cômodo do térreo, que dava para uma área cheia de mato que um
dia devia ter sido um jardim. — Isso aqui seria um banheiro se houvesse
um quarto de cada lado, você não acha? — perguntou ele depois de terem
subido uma escada bamba de madeira para chegar ao andar de cima,
porque a original da casa estava podre.
— Você vai morar aqui? É terrivelmente grande só para uma pessoa.
— Agora estavam no terceiro andar, onde Edward planejava colocar mais
quartos e até mesmo outro banheiro, o que parecia excessivo.
— Algumas pessoas estão vindo para ficar. Se tudo der certo —
respondeu, cruzando depois os dedos e abrindo aquele seu sorriso grave.
— Refugiados europeus.
— Refugiados? — Rose franziu a testa. — E como eles sairiam de seus
países?
— Isso pode ser feito. É difícil, perigoso, caro, mas existem maneiras.
Rose caminhou cuidadosamente pelo piso — parecia provável que as
tábuas também estivessem apodrecidas — para espiar a praça pela
janela.
— Mas você comprou todas essas casas... seria preciso uma grande
quantidade de refugiados para encher todas elas.
Ela o ouviu suspirar, depois seus passos cuidadosos quando foi ficar
atrás dela. Sem tocá-la, mas perto o suficiente para ser quase como se a
tocasse. Ele era mais alto do que Danny, mas Rose não sentiu aquela
agitação toda que tomava conta dela quando Danny estava por perto. A
sensação de querer as mãos dele em seu corpo, a boca dele, para depois
ficar apavorada quando seu pedido era atendido. Edward era uma
presença firme e sólida.
— A guerra não vai durar para sempre. Quando terminar, haverá mais
refugiados. Pessoas voltando para casa. Famílias reunidas. Todos eles vão
precisar de um lugar para morar.
Rose se lembrou de Sylvia lhe dizer que Edward tinha vários negócios
não declarados.
— Você não é um aproveitador, não é?
Ele deu de ombros.
— Não somos todos?
Rose se empertigou.
— Não! Nem todos nós.
— Tem certeza disso? E todos aqueles cigarros e barras de chocolate
que você recebe todas as noites de militares agradecidos? — Ele olhou
rapidamente para as pernas dela e de repente não pareceu tão firme e
sólido, e o coração de Rose começou a bater de novo daquele jeito
acelerado. — E essa meia?
— Foi um presente de Natal de uma amiga — respondeu Rose
indignada, porque nunca tinha feito nada com nenhum dos homens do
Rainbow Corner que justificasse ganhar uma meia de nylon. O que ela
fizera com Danny, o que ainda poderia fazer, era diferente porque
estavam apaixonados. — De qualquer forma, isso não é a mesma coisa.
Edward ergueu as mãos em protesto. Ele claramente era do tipo de
pessoa irritante que nunca fica com raiva. Sempre é tão mais fácil saber o
que uma pessoa pensa se ela se irrita com você.
— Eu me recuso a discutir — retrucou ele calmamente. — Se eu não
tivesse comprado estas casas, alguém teria, e depois da guerra talvez eu
faça algum dinheiro com elas, mas agora quero que sejam um lugar
seguro para as pessoas que perderam tudo e, para isso, preciso da sua
ajuda.
Rose se acalmou um pouco e deixou Edward guiá-la até o térreo. Então
deixaram a construção e foram até a casa de chá em Kensington Gardens.
Edward pegou um caderno e um lápis e perguntou a Rose de que móveis
iria precisar.
— Não dá para comprar móveis. Você só consegue móveis do programa
do governo se sua casa tiver sido bombardeada e tiver um formulário
especial, mas não tenho certeza se ser refugiado conta. — Rose balançou
a cabeça diante da enormidade do desafio de Edward. — Ninguém
consegue nem comprar lençóis. Uma das garotas do Rainbow Corner, que
até Phyllis disse que era de uma família absurdamente rica, pagou seis
guinéus por dois lençóis e, na primeira vez que os colocou na cama, seu
pé passou direto por um deles.
Edward não estava nem um pouco incomodado. E lhe pediu que fizesse
uma lista.
— Haverá crianças também. De que tipo de coisas elas gostam?
Brinquedos e coisas assim?
Rose tinha visto em um noticiário que os bombeiros de Londres
estavam recolhendo pedaços de madeira para fazer brinquedos para
crianças carentes, mas de novo ela não tinha certeza se as crianças
refugiadas se qualificavam. Ainda assim, escreveu tudo o que podia
lembrar com sua letra ainda alarmantemente infantil e depois a entregou
a Edward, que disse que estava tarde e era melhor colocá-la em um
ônibus para Piccadilly porque ela teria de ir direto para o Rainbow
Corner.
Era gentil e atencioso da parte dele e, embora ao chegarem ao ponto
ela tivesse visto o ônibus 9 se aproximando, Rose segurou a manga de
Edward.
— Vou perturbar todos que conheço para ver se têm algum brinquedo
velho e outras coisas de que não precisem mais. Se for ajudar.
Ela entrou no ônibus disposta a pedir a todos que conhecia para doar
alguma coisa, mesmo que fosse apenas um pano de prato, para os
refugiados. Mas, como tantas das boas intenções de Rose, essa foi
esquecida assim que pisou na pista de dança do Rainbow Corner para
dançar foxtrot, jive e outras coisas. Então seguiu para outro clube, depois
para casa para dormir por poucas horas, antes de se levantar para
trabalhar às seis.
Essa era a rotina corrida de seus dias e noites e, entre tudo isso e ansiar
pela chegada de Danny, esqueceu por completo os refugiados e as
promessas que tinha feito.
Além disso, era difícil se concentrar em qualquer coisa com os
zumbidos e estouros pelo ar que deixavam Rose assustada. Sussurros na
pista de dança, rumores sobre os Aliados desembarcarem na França. Até
mesmo sobre as chances de que a guerra pudesse terminar até o Natal.
Rose não tinha certeza sobre nada disso. Se até ela sabia que poderia
haver uma invasão aliada, parecia certo que Hitler também saberia, e as
pessoas diziam que a guerra acabaria antes do Natal todos os anos. Mas, a
cada ano, o Natal chegava e passava e a guerra se arrastava.
Ainda assim, parecia que uma mudança estava por vir, o que ficava
claro pelo grande número de homens que passavam pelo Rainbow
Corner. Todas as noites era um mar de rostos ávidos e ansiosos, e Rose
não tinha tempo entre as danças de compartilhar nada mais significativo
do que um nome e um gole rápido de uma bebida gelada.
Todas as noites, Phyllis alegava ter alguma informação privilegiada que
lhes contava quando todas se preparavam para dormir, sussurrando para
o caso de o sr. Bryce do andar de cima ser um agente alemão, além de
trabalhar no departamento de contabilidade da prefeitura de St. Pancras.
— Eles vão esperar pela lua cheia, bombardear Berlim até deixá-la aos
pedaços, então descer de paraquedas tantos homens quanto o número de
paraquedas lhes permitir. — Essa era apenas uma das coisas que tinha
ouvido.
Rose colocava os dedos nos ouvidos porque não queria pensar em
Danny pilotando seu avião em uma noite clara de lua cheia, sendo
facilmente detectado pelo radar e então... ela não podia suportar a ideia
de pensar no que poderia acontecer depois. Tudo em que conseguia
pensar era no período da noite de sexta à noite de domingo, dois dias
inteiros que passariam juntos. Ela e Danny. Rose pensou em todas as
coisas engraçadas que guardara para lhe contar, pedira para ter
preferência para usar o vestido de seda verde-escuro de Maggie e Sylvia a
levara ao farmacêutico no Soho, aquele com as palavras “Especialistas
em Contracepção” escritas em letras enormes na janela.
Rose atravessara depressa a estrada para não ser vista parada em
frente ao prédio. Sylvia entrara, então saíra dez minutos depois
segurando um saco marrom de papel, que empurrara para Rose.
— Uma caixa de gel Volpar e três camisinhas, das boas. Eu não
confiaria em um preservativo de um ianque da mesma forma que não
confiaria em um ianque que dissesse ter um — sussurrou ela. Quando o
sangue dela fervia, sua linguagem ficava bastante atrevida. — Você me
deve nove xelins e seis pence.
— Nove xelins e seis pence! Mas eu estava economizando para um
permanente!
— Um permanente não pegaria em seu cabelo e você gastaria muito
mais do que nove xelins e seis pence se acabasse com um bebê —
argumentou Sylvia, mas ela nunca ficava irritada ou de mau humor por
muito tempo.
Então, três dias depois, quando Rose recebeu um telegrama de Danny
lhe pedindo para encontrá-lo em Paddington sexta-feira à noite, Sylvia
até concordou em lhe emprestar sua mala de couro de crocodilo.
17

Leo dormiu em outro lugar. Jane não sabia onde e nem se importava. Ela
trancara a porta e tentou colocar uma cadeira sob a maçaneta, mas ele a
deixou em paz. Não que Jane tenha dormido.
Ela estava muito agitada para dormir. A lembrança de Leo assomando
sobre ela, invadindo seu espaço, o hálito quente em cima dela, depois as
mãos... ela estremeceu ao pensar nisso.
Apesar de que, quando ela parara de tremer, quando enfim se
acalmara, forçara os músculos tensos a relaxarem e repassara a cena, a
dúvida começou a se instalar. Ele não tinha de fato assomado sobre ela,
só que era tão mais alto, que a fizera se sentir encurralada. Jane odiava
ser encurralada. Tudo não passara de um leve toque no braço, somente os
dedos dele, nem mesmo com força suficiente para segurá-la, muito
menos deixar hematomas e marcas. Não era nem de longe um delito
capital.
Sua reação foi exagerada e, assim que percebeu isso, Jane se sentiu...
não arrependida, mas um pouco ridícula. Quando conhecera Leo,
instintivamente soubera que, apesar de seus muitos outros defeitos, ele
não era do tipo que feria uma mulher. Agora que voltara a ver as coisas
com racionalidade, sabia que isso ainda era verdade.
Era só que o fato de ela ter sido ferida tantas vezes antes e a maneira
como ele a encurralara, como se aproximara dela tinham despertado
lembranças de tempos difíceis e homens ruins de Gateshead a Moscou, e
isso não era culpa de Leo. Contudo, era culpa de Leo ter chegado em casa
completamente doidão e mostrado que sabia a verdade sobre Jane como
se a tivesse despido tão brutalmente quanto aqueles outros homens. Ele
vira o que havia por baixo de sua fachada construída com esmero...
Agora estava tudo fodido, o que era exatamente o que acontecia
quando se improvisava em vez de seguir um plano de ação apropriado.
Por um instante, enquanto estava lá deitada, Jane até pensou em ligar
para Andrew, mas foi apenas um lapso temporário de juízo e ela vinha
tendo muitos deles nos últimos dias. Ela destruíra suas chances com
Andrew. Ele provavelmente a perdoaria, mas Jackie nunca a receberia de
volta de braços abertos. Além disso, Andrew ainda estava sem os bilhões
de sua invenção.
Jane tinha ficado sentada na cama, encolhida e pensativa, por tanto
tempo que, sem que se desse conta, a escuridão fora embora. Havia
amanhecido.
Um novo dia.
Hora de mais um recomeço.

Leo passou a noite em um quarto frio do outro lado da casa. Em geral,


depois que o efeito da droga passava e o barato sumia, ele podia dormir
até de pé. Certa vez, em uma festa, ele adormecera no escorredor de
pratos com os pés na pia.
Mas, naquela noite, ele não dormiu. Ficou deitado na cama desfeita,
olhando para as sombras, os feixes de luz se estendendo pelo teto toda vez
que um carro passava lá fora, e pensou no rosto de Jane. Seu rosto bonito
e sem maquiagem todo contraído. A maneira como o atacara. As palavras
que despejara sobre ele.
Ela ficara irada com as acusações grosseiras que ele lhe fizera, suas
tentativas desajeitadas de consertar as coisas, mas sobretudo estava
assustada. Agora que as drogas não estavam mais enevoando seus
sentidos, ele sabia disso. Raiva e medo podiam ser parecidos, mas no
fundo eram duas coisas muito diferentes. Ninguém nunca tinha ficado
com medo de Leo. Ele era um monte de coisas de que não gostava, mas
ser aquele cara, o tipo com quem as mulheres não gostariam de ficar
sozinhas a menos que tivessem um caminho livre até a porta, era algo
que o fazia se sentir enojado.
Já passava das nove. Estava dominado demais pelo autodesprezo para
dormir, então era melhor levantar. Leo passou um bom tempo de frente
para a pia do banheiro da suíte procurando pistas em seu rosto. Havia
arranhões na bochecha direita de quando Jane acordara assustada e um
corte logo acima do olho, cortesia do arremesso dela. O corte tinha uma
crosta de sangue, um hematoma roxo amarronzado logo abaixo, que
parecia ainda mais chocante devido à palidez de seu rosto. Ele merecia.
Merecia os olhos inchados e injetados que não abriam mais do que
uma fenda, a papada que engrossava sua mandíbula, a barriga flácida que
pendia acima da calça jeans.
Merecia mais da ira de Jane, que ela tivera horas para deixar ferver, e
então caminhou pelo corredor e entrou em seu quarto, os ombros
curvados de temor e expectativa.
Levou um tempo para seu cérebro lento registrar que Jane não estava
lá, pelo que Leo ficou grato, embora parecesse um adiamento de execução
temporário. Então ele percebeu que todas as coisas dela tinham sumido.
Roupas, sapatos, o extraordinário número prodigioso de cremes e
loções... sua esposa de poucos dias guardara tudo na mala Louis Vuitton e
fizera desaparecer como mágica.
Ele deveria estar feliz por ter escapado da briga do dia seguinte, mas
tudo o que sentia era uma avassaladora sensação de que, mais uma vez,
tinha espetacularmente fodido tudo. Talvez uma morte rápida e indolor
fosse melhor do que sempre decepcionar qualquer um que se
aproximasse demais dele.
A morte não veio. Em vez disso, Leo saiu de novo no corredor
exatamente no momento em que Rose estava passando. Ela parou e se
virou para encará-lo. Leo ficou lá parado desejando poder encolher até
sumir, e assim tudo o que restasse dele fosse uma pequena pilha de
roupas sujas que Lydia poderia dar para o jardineiro incinerar.
Rose estava toda de preto e usando óculos escuros. Naquela manhã, ela
parecia bem aterrorizante. Leo tinha certeza que, se ela tirasse os óculos,
poderia transformá-lo em pedra com seus olhos azul-claros fulminantes.
— Ei, Rose — disse ele tão alegremente quanto pôde, como se fosse
algo trivial. — Sobre a noite passada. Se eu a incomodei... nós a
incomodamos... — Leo coçou a cabeça. — Tivemos uma briguinha. Eu e a
Jane. Então, sinto muito. — Sua língua, inchada, tinha dobrado de
tamanho, e ele teve de se esforçar para articular as palavras. Então sorriu
envergonhado e ainda assim Rose continuou lá parada, em silêncio,
impassível. — Eu realmente sinto muito. Não só pela noite passada, mas,
você sabe, por tudo — disse Leo de novo, não só por Rose, que continuava
lá completamente congelada, mas porque, se dissesse isso várias vezes
alto o bastante, então talvez se tornasse verdade. — Não vai acontecer de
novo, eu prometo.
Rose passou por ele e foi embora, como se nem o tivesse visto ou
ouvido uma única palavra.
Ele se virou e a viu se afastar, o passo forte e decidido como sempre,
então ela alcançou as escadas e desapareceu.
Quantas vezes Leo fugira de antigas namoradas? Garotas que achavam
ser o amor de sua vida até descobrirem que Leo estava transando com
outra pelas suas costas? Ele atravessara inúmeras ruas para evitar
inúmeros amigos a quem devia dinheiro. Escondera-se em lanchonetes e
farmácias e, uma vez, até em um salão de beleza para evitar alguém que
queria lhe fazer passar por algum constrangimento. Ele nunca tinha
pensado em como isso faria a outra pessoa se sentir. Agora ele sabia. Você
se sentia como um fantasma. Como se suas palavras não fossem nada
além de movimentos desconexos de dentes, língua e respiração. Como se
você sequer estivesse lá. Então pensou naquela vez em Sydney, quando
caminhava pelo parque Bondi, sem nenhum lugar para se abaixar ou se
esconder, e então passara direto por alguém da própria família...
Leo ouviu o clique da porta da frente. Rose devia ter saído para o
escritório. Ela estava na casa dos oitenta anos. Morrendo, pelo que disse,
e estava indo ao escritório quando tudo o que Leo conseguiu fazer foi
tomar banho, barbear-se com as mãos perigosamente trêmulas e então
descer cambaleante para a cozinha.
Lydia estava sentada em um dos bancos ao redor da bancada central,
laptop aberto enquanto consultava suas anotações de receitas e
cardápios.
— Eu sinto muito — disse Leo, porque, quando se falava isso uma vez,
a seguinte quase não exigia esforço algum. — Sinto muito por ontem à
noite, Lydia. Por ter acordado você e Frank daquele jeito. Fui um
completo idiota. Por favor, diga que está tudo bem. — Ele sorriu e o corte
acima do olho repuxou e latejou. — Que tal eu colocar a chaleira no fogo
e você me arrumar um ibuprofeno e quem sabe fazer um dos seus
famosos ovos mexidos?
Lydia verificou algo no laptop, depois digitou alguma coisa. Então
ergueu os olhos. Leo desejou que ela não tivesse feito isso.
— Não perdoo você.
Ele esperou que ela dissesse mais alguma coisa, que explicasse melhor,
embora ele não precisasse exatamente de nenhum esclarecimento, mas
ela só ficou lá sentada, o queixo agora apoiado nas mãos, o rosto em geral
bem-humorado exibindo uma expressão dura e desconfortável.
— Por favor, Liddy, eu pedi desculpas — disse ele hesitante, pisando
em terreno instável agora. — Estou sendo sincero. Rose não está falando
comigo. Jane me deixou. Por favor, não piore as coisas.
Lydia olhou para a esquerda, depois virou de volta como se tivesse
demorado a chegar a uma decisão.
— Conversei com Frank. Ele concorda. Eu nunca deveria ter lhe pedido
para voltar para casa.
Parecia que ela estava decidida e não havia nada que ele pudesse dizer
em sua defesa.
— Olhe, sei que posso ser meio babaca. Estou tentando mudar isso.
— Não, você não está. Nem um pouco. Pensei que poderíamos ser uma
equipe. Ficarmos juntos para apoiar Rose porque ela deveria ter a família
por perto agora e você costumava ser sua família. — A voz de Lydia
estava embargada e ela olhava para a esquerda de novo, porque estava à
beira das lágrimas, e Leo sabia que, se Lydia começasse a chorar, ele
também choraria.
— Eu ainda sou — retrucou ele num tom meio desesperado. — Eu
ainda poderia ser.
— Não. Você não pode. — Lydia se levantou do banco.
— Quando Rose voltar, vou pedir desculpas direito, explicar tudo a
ela...
Lydia caminhou até onde Leo estava parado junto à porta e olhou para
ele.
— Você a incomodou ontem à noite. Duas vezes. — Seus olhos ficaram
cheios d’água, e ela piscou rapidamente. — Você não pode ficar aqui. Não
está ajudando em nada. Posso lhe dar algum dinheiro, se você precisar,
mas não há razão para você ficar.
Àquela altura ele já deveria estar acostumado em não conseguir
corresponder até às baixas expectativas que todos tinham dele.
— Eu posso ajudar — sussurrou ele. — Eu vou ajudar. Vou mudar. Esse
foi o empurrão de que precisava. Você tem que acreditar em mim, Liddy.
— Ouvi dizer que você já fez esse discurso tantas vezes. — Ela tocou
delicadamente o corte no rosto dele. — Assim que você beber um pouco,
vai esquecer tudo. E quanto a Jane? Ela deu o fora daqui sem nem dizer
adeus. Havia um carro esperando por ela. Você fez besteira, não foi?
— Ah Deus, nem queira saber. Eu estraguei tudo. — Leo teria dado
qualquer coisa para afundar no chão e esconder o rosto. Começar uma
vida nova não deveria ser tão difícil. — Vou resolver as coisas com a Rose
e vocês nem vão saber que estou aqui. Não causarei nenhum problema.
— É um pouco tarde para isso — murmurou Lydia, mas Leo achou que
ela estava vacilante e se perguntou como poderia usar isso a seu favor,
quando ouviu uma batida na porta dos fundos.
Os dois se viraram, ansiosos pela distração. Era Mark, genro de Lydia,
embora fosse só o namorado da filha de Lydia quando Leo o conhecera.
Ele parecia mais velho, o cabelo bem curto um pouco grisalho, mas,
quando viu Leo ali de pé, sorriu e na mesma hora pareceu o mesmo rapaz
atrevido com que Leo se metera em todo tipo de confusão.
— E aí, cara? Ouvi dizer que estava de volta. — Mark obviamente
ainda trabalhava na equipe de manutenção, porque ele estava usando um
macacão incrustado de tinta e ficou parado junto à porta para não sujar a
ardósia reluzente de Lydia. — Também fiquei sabendo que se casou. Foi
ela quem fez isso com você?
De todos os seus problemas atuais, o corte na bochecha era o menor
deles.
— Mais ou menos isso. Como você está? Ainda trabalha para a
empresa, certo? Bill continua no comando?
— Não, ele se aposentou há alguns anos. Sou o chefe agora. — Mark
fingiu inflar o peito. — Comando as coisas com pulso firme. Nada mais de
levar o trabalho na flauta.
Nos velhos tempos, Leo saíra algumas vezes com a equipe de
manutenção. Eles jogavam futebol nas vastas salas vazias das
propriedades de Rose. Tinham longos almoços no pé-sujo mais próximo,
enquanto debatiam os detalhes do grande jogo de sábado e noites ainda
mais longas no pub tomando cerveja e jogando sinuca. Mas ele também
aprendera a emassar, religar uma placa de circuito e uma miríade de
outras habilidades do mundo real que sempre vieram a calhar quando ele
estava entre um serviço e outro. Às vezes parecia que a maior parte de
sua vida adulta tinha se passado entre serviços, como se ele fosse um ator
que só descansava.
Mark então perguntou a Lydia se ela e Frank iriam ao almoço de
domingo. Havia crianças, netos de Lydia. Ela estava radiante enquanto
Mark lhe mostrava uma foto no celular.
— Espere até eu contar a Rose que elas vão se vestir de sufragistas no
Dia das Bruxas — disse ela quando Leo se virou e começou a vasculhar a
geladeira bem abastecida.
Ele pegara tudo de que precisava para um sanduíche de ovo frito
quando a inspiração lhe veio. Podia haver apenas uma maneira de
começar a consertar as coisas. Com Rose. Com Lydia. Um pequeno passo
na direção certa.
— Mark, por acaso você precisa de um par de mãos extra em sua
equipe?
— Talvez. — Mark inclinou a cabeça. — Estamos sem alguns rapazes.
Você está pronto para pegar no trabalho pesado ou o choque o mataria?
Lydia estava encostada na bancada central, de braços cruzados.
— É possível — disse ela com sarcasmo. — Se a ressaca não o levar
primeiro.
— Provavelmente estou um pouco enferrujado — admitiu Leo. — Mas
estou dentro se você quiser.
Ele sentira falta daqueles meses em que jogar tinta em uma parede era
mais divertido do que fazê-lo em uma tela, e toda sexta-feira à tarde ele
recebia um pequeno envelope marrom cheio de notas que merecera.
— Tudo bem. Vamos testar um dia para ver como se sai. — Mark olhou
para Lydia, que assentiu.
— Não ligo para o que vai fazer com ele — disse ela. — Só tire ele do
meu pé.
18

Jane tinha reservado um quarto em um pequeno hotel boutique em


Mayfair, no qual já tinha se hospedado antes quando precisara de um
esconderijo, um lugar para lamber feridas que não iriam parar de doer.
Assim que foi levada ao seu quarto e a porta se fechou atrás dela com um
clique suave e discreto, ela sentou na cama com os ombros curvados.
— Você não é uma pessoa ruim — disse ela em voz alta. Essas eram as
palavras de conforto de seu antigo mantra. — Coisas ruins aconteceram
com você e a transformaram no que é.
Mas quem era ela? Ela não era a Janey Monroe de Andrew. Ou a Jane
Hurst de Leo. Depois de todos aqueles anos, estava na hora de ser
simplesmente Jane de novo.
O nome ainda combinava com ela tão perfeitamente quanto quando o
escolhera.
Ela morava com Charles havia um ano na época. Eles tinham
progredido além das idas ao supermercado. Ele a levara a galerias de arte,
museus e teatros. Charles gostava sobretudo de levá-la a restaurantes e
apresentá-la a menus repletos de pratos com nomes que ela ainda estava
aprendendo a ler. Em todo aquele tempo, ele nunca a tocara e Jane enfim
começava a acreditar que nunca faria isso.
Então, num domingo após o almoço, Charles pedira que sentasse.
— Você não tem que me dizer quem é ou de onde é — dissera ele. O
que tornava Charles especial era sempre providenciar a solução, em vez
de focar o problema. — Mas você não tem um nome. Você precisa de um
nome. Precisa de documentos. Uma pessoa não pode existir sem
documentos.
— Eu não tenho um nome — respondera ela, porque o abandonara
assim que entrara naquele trem e jamais voltaria a pronunciá-lo. — E eu
tenho não documento.
— Não tenho nenhum documento. Você não tem nenhum documento
— corrigira Charles gentilmente.
A princípio, ele achou que Jane estava mentindo quando disse que não
sabia qual era sua data de nascimento. Então, quando ficou claro que ela
estava dizendo a verdade e que nunca tivera um único aniversário com
cartões, presentes, soprar as velas e fazer um desejo, que ela só tinha
quinze anos quando ele a conhecera naquele trem, e só tinha dezesseis
anos agora embora se sentisse mais velha do que as colinas, ele desceu do
banquinho da cozinha, foi até o lavatório do andar de baixo e ficou lá por
algum tempo.
— Fale para mim uma ideia aproximada de quais podem ser a data e o
local do seu nascimento, e vou colocar alguém atrás disso — dissera ele
quando saíra de lá com o rosto vermelho e os olhos ainda mais
vermelhos. — Que estranho termos conseguido passar esse tempo todo
sem você ter um nome. Como gostaria que eu a chamasse?
Depois de assistir a Os homens preferem as louras todas as tardes
durante uma semana, ela escolheu Jane.
Jane Audrey Monroe. Audrey, porque Audrey Hepburn lhe ensinara a
falar como uma dama. Monroe, porque Marilyn sabia como fazer as
pessoas a tratarem como uma deusa. E Jane, porque Jane Russell não
aceitava desaforo de ninguém. Não aceitava mesmo. Ela não aceitava
desaforo de ninguém.
Charles ficara satisfeito.
— Eu gosto de Jane — dissera quando arrumou os formulários que ela
precisava preencher para se tornar uma nova pessoa. — É um bom nome.
As pessoas sempre achavam que sabiam o que esperar de uma Jane.
Janes eram uma tela em branco, poderiam ser qualquer coisa que alguém
quisesse que fossem. E uma Jane não tinha escrúpulos em ir sozinha a
um bar de hotel ao meio-dia, usando um vestido de jérsei preto
Alexander McQueen de gola alta e mangas compridas. Cabelo torcido em
um coque. Maquiagem básica. Ela sentou a uma mesa escondida em um
canto.
Jane ia tomar uma taça de champanhe, embora tivesse jurado nunca
mais beber, para marcar o fim desse capítulo em sua vida. Para brindar o
futuro, por mais incerto que fosse.
Ela olhou ao redor do salão. Era tudo muito discreto — cinza-claro e
madeira escura, tudo suavemente curvo, tranquilizadoramente caro. Os
outros clientes eram todos homens exceto por uma mulher de meia-
idade, de aparência meio solitária, que estava sentada com um homem
idoso e olhava resoluta através da janela enquanto ele lia o The Financial
Times.
Jane tentou chamar a atenção do garçom, mas ele já estava se
aproximando dela com uma taça de champanhe. Ele discretamente lhe
ofereceu um cartão de visita enquanto colocava a fina taça na mesa
diante dela.
— Do cavalheiro no bar — murmurou ele.
Jane nem sequer se dignou a olhar para o cartão.
— Agradeça a ele, mas diga que estou esperando uma pessoa.
Contudo, ainda assim tomou o champanhe pago por ele. Estava
chovendo lá fora, com pesadas gotas descendo pela janela, o salão
refletido de volta para ela, e assim ela pôde ver o homem no canto deixar
o bar.
Não fazia nem dois minutos que ele tinha ido embora quando o garçom
lhe trouxe outra taça de champanhe, outro cartão de visita de um homem
careca acima do peso algumas mesas adiante. Jane enviou tanto o
champanhe quanto o cartão de visita de volta. Ele se levantou, mandou o
garçom sair e lançou a Jane um olhar furioso e rancoroso, enquanto dizia
“piranha” sem emitir nenhum som.
Cinco minutos depois, mais uma taça de champanhe, porém nenhum
cartão de visita dessa vez, só um bilhete. Você é bonita demais para ficar
sozinha. Adoraria me juntar a você para uma bebida.
Jane não podia ver seu benfeitor.
— Ele está depois daquele canto — respondeu o garçom quando ela
perguntou. — Não notei nada de errado. Não é velho. Acho que é russo.
Pediu uma garrafa de champanhe de mil e quinhentos dólares, então me
disse para lhe trazer uma taça. O que quer que eu fale para ele?
Parecia fácil, mas na verdade era o caminho mais difícil para uma
garota conseguir sua fortuna. Ela não podia voltar àquilo.
Jane se levantou.
— Diga-lhe que agradeço muitíssimo, mas não, obrigada — disse ela, e
então saiu do bar.

Leo tinha vomitado a caminho do apartamento em Chelsea em que Mark


e sua equipe estavam trabalhando. Então ele não pôde fazer nada, além
de levar e trazer coisas muito devagar, enquanto os outros tiravam com
atenção um teto que cedia, tomando cuidado para não danificar as
cornijas.
Às cinco, ele pegou o ônibus de volta para Kensington e agora matava
tempo na praça, sem querer encarar Rose ou Lydia, mas ciente de que
tinha de fazer isso. Enquanto hesitava, um táxi parou quase ao seu lado.
Ele viu um cabelo louro mel e, quando chegou mais perto, o motorista
saiu, abriu o porta-malas e tirou de lá uma mala familiar.
— Mas que diabos você está fazendo aqui? — perguntou a Jane,
quando ela abriu a porta a tempo de Leo ajudá-la a sair. — Achei que
você tinha ido embora, que tinha me deixado.
— Mudança de planos, querido. — Ela estava junto dele na calçada, a
mala de viagem do lado. Parecia que tinham voltado no tempo. Só a
chuva era novidade. Jane olhou para Leo. Ele olhou para ela. O lábio
inferior dela tremia. Poderia ser por causa do frio ou porque ela estava se
lembrando da noite anterior...
— Sinto muito, Jane. — Leo estava ficando muito melhor em dizer isso.
— Sinto muito por voltar para casa naquele estado e mais ainda por ter
lhe dito todas aquelas coisas terríveis, mas você precisa saber que eu não
ia machucá-la quando me aproximei. Tudo tinha saído do controle e
pensei que, se pudesse tocá-la, me conectar com você...
Leo parou quando Jane colocou a mão no braço dele da mesma
maneira que ele tentara tocá-la na noite anterior.
— Eu sei, querido — disse ela suavemente. — Sinto muito também. Eu
exagerei. Não costumo acertar os outros com objetos pesados. O seu rosto
está muito dolorido?
— Sim, mas já passei por coisas piores — respondeu Leo depressa
antes que pudessem se desviar do assunto. — Você realmente não tem do
que se desculpar. Fui eu, não é verdade? Doidão de novo, e cheio de mãos,
acabei assustando você. E é isso que fez eu me sentir péssimo, ter deixado
você tão assustada.
Jane sorriu e balançou a cabeça.
— Querido, já era tarde, eu estava cansada, você me pegou
desprevenida. Eu não diria que estava com medo, só tive um déjà-vu
infeliz.
— Alguém já machucou você antes? — Aquilo não fez Leo se sentir
nem um pouco melhor, só ainda mais arrasado. Saber que Jane, que mal
chegava à altura do seu queixo e devia pesar metade do que ele, já tinha
sofrido nas mãos de outro homem. — Eu provoquei alguma...
— Olhe, você disse que sente muito, eu disse que sinto muito, nós dois
sentimos muito. — Jane apertou mais uma vez o braço dele. — Todos os
pedidos de desculpas foram ditos, querido. Vamos apenas seguir em
frente, o.k.?
Leo esperara ter de lutar muito mais pelo perdão dela. Foi um alívio ver
que não foi necessário.
— Por mim, tudo bem. Então agora você pode me contar por que
voltou.
— Bem, querido — disse ela devagar. — A questão é que estamos
casados, você e eu, e isso complica um pouco as coisas. E eu tinha uma
vida com o meu ex, e agora ele foi embora, e não sei quem eu sou sem ele,
onde eu deveria estar, o que fazer em seguida. Então pensei que talvez nós
devêssemos ficar casados por um tempo para ver o que acontece. — O
lábio inferior de Jane tremia de novo e Leo teve a impressão de que ela
tinha inclinado a cabeça na posição perfeita para que uma gota de chuva
se prendesse em seus cílios e depois começasse a descer devagar pelo
rosto.
— Ah, Jane, por favor, não tente enrolar o mestre da enrolação — disse
ele gentilmente. — Por que você não tenta de novo?
Por uma fração de segundo, ela parecia completamente furiosa, mas
depois pressionou com força os lábios, como se tentasse conter uma
risada.
— Querido — disse ela em tom de censura, como se fosse falta de
educação da parte de Leo não deixá-la o enganar com facilidade.
— Você quer tentar de novo sem o teatro? — perguntou ele.
Os dois ficaram ali na chuva, um esperando que o outro piscasse. Só
quando Jane estremeceu foi que Leo relaxou e descruzou os braços.
— Vamos lá — disse ele, pegando a mala dela. — Vamos beber alguma
coisa.
O pub ficava a algumas ruas de distância e estava vazio, fora alguns
retardatários em roupas de trabalho, enrolando ali com suas bebidas em
vez de ir para casa.
Ele tomou cerveja, e ela, uma taça de Viognier. Leo falou sobre como
sentia falta daquele cheiro abafado de cerveja choca e fumaça fedida que
costumava sentir antes de proibirem o fumo nos bares. Falou de pubs no
East End que frequentara quando era estudante de arte:
— Porque eram autênticos e cheios de velhos cochilando sobre suas
cervejas e exemplares do The Sun, e os achávamos autênticos também.
Eles nos odiavam por sermos pretensiosos, caras de outra classe
turistando por ali. Sempre trapaceavam quando jogávamos sinuca.
Ele riu. Ela riu também.
— Você tentou tomar cerveja amarga mesmo odiando o sabor?
— E você por acaso sabe o que é uma cerveja amarga? — Leo fingiu
engasgar com sua cerveja pouco encorpada e Jane deu uma risadinha. —
Você não é escolada em champanhe e canapés?
— Depois de um tempo uma garota pode se cansar de viver de
champanhe vintage e ovos de gaivota.
A pizza que tinham pedido chegou e ela comeu duas fatias. Leo comeu
o resto e, quando sua barriga estava cheia e ele estava na segunda cerveja
e se sentindo meio embriagado, expansivo, ela, então, decidiu confessar.
— Achei que Andrew, meu ex, me aceitaria de volta na mesma hora,
mas, quando liguei para ele, tive que contar que me casei com você em
Las Vegas. Eu precisava contar. Ele já estava falando em me levar direto
no cartório assim que eu aterrissasse no JFK.
Leo olhou para ela com curiosidade. Ainda não sabia discernir quando
ela estava mentindo.
— O que ele disse?
— Foram vários xingamentos, acusações; coisas muito difíceis de
esquecer... mais uma vez, eu vi um lado bem diferente dele. Não um lado
de que eu tenha gostado, então concluí que provavelmente era melhor
diminuir o prejuízo. — Jane recostou-se e girou os ombros, como se
estivesse tranquila e relaxada, mas seus dedos em volta da haste da taça
estavam tão retesados que Leo se perguntou se poderiam se quebrar. —
Aí está, querido. Sinceridade nem sempre é a melhor política.
— Não voltei pelo dinheiro de Rose — disse ele com calma. — Voltei
porque fiz algumas coisas antes de ir embora, coisas realmente horríveis,
traí a confiança dela. Não vou lhe contar o que fiz, mas quero... preciso
que Rose me perdoe, e sim, as coisas não começaram nada bem.
— Eu poderia ajudá-lo — disse Jane. — Tenho uma habilidade incrível
quando se trata de...
— Pare de tentar jogar comigo — retrucou ele ríspido o suficiente para
que os dedos de Jane voltassem a se retesar. Ela pousou a taça na mesa.
— Por que sempre parece que você tem segundas intenções?
— Querido...
— Chega desse papo de querido, chega de enrolação — disparou Leo.
Depois da noite anterior, depois do que quer que tivesse acontecido com o
sr. Ex, ela ainda não tinha motivo para voltar para ele, a menos... — Você
foi atrás de informações sobre Rose, não foi? Não deve ter sido muito
difícil. Tudo o que tinha a fazer era digitar o nome dela no Google ou na
Wikipédia.
Ele mesmo fizera isso ao longo dos anos. Quando a solidão e a saudade
de casa se transformavam em uma dor física e ele queria estar perto de
Rose de novo. Todos aqueles fatos crus em uma tela de computador nem
sequer chegavam perto de trazer a Leo tudo de que sentia falta, mas para
uma mulher como Jane, acostumada a certo padrão de vida, deviam ter
sido uma leitura bem interessante.
— É inútil — disse a Jane, que abaixou a cabeça como se admitisse que
tinha investigado. Talvez fosse por isso que não olhava nos olhos dele. —
Rose não vai me deixar um centavo, então se era nisso que você estava
apostando, posso lhe chamar outro táxi. Talvez você ainda consiga chegar
a Nova York esta noite.
Leo colocou as mãos na mesa com as palmas para cima, como se fosse
um mágico que quisesse que ela procurasse por chaves escondidas,
alguma armação, antes que fizesse seu próximo truque. Jane também
colocou as mãos na mesa.
— Então nenhum de nós é a pessoa que poderia ser. Bem, me fale,
quem é? — questionou ela. — Não há nenhuma razão para que a gente
não consiga fazer este casamento dar certo.
— Por que você iria querer ficar presa a mim? — perguntou Leo
porque lhe parecia que Jane poderia ter o mundo nas mãos se quisesse.
Que outro homem rico logo apareceria para melhorar tudo. — O que
você espera?
— Tive uma breve conversa com meu advogado esta tarde, antes de me
encontrar com ele semana que vem. — Jane nem sequer tentou
responder sua pergunta. — Acontece que não podemos pedir uma
anulação. Não por não consumação, nem que o papa confirmasse tudo.
Nenhum de nós já é casado, nem somos parentes de sangue e também
não podemos provar insanidade. Ou insanidade temporária.
— Que droga.
— Exatamente o que eu pensei. Temos que nos divorciar, querido. —
Jane se inclinou para a frente para pousar as mãos sobre as dele, palma
com palma. Parecia um atrevimento, mesmo eles já tendo se beijado, ele
já tendo estado dentro dela. — Sei que você não confia em mim, que não
lhe dei nenhuma razão para isso, mas não tenho para onde ir. Fora o que
ganhamos em Las Vegas, eu não tenho nada. Andrew insistiu muito para
eu lhe enviar imediatamente o anel de noivado e as joias por FedEx,
então não posso nem vendê-los. — Ela respirou fundo. — E é por isso que
eu realmente esperava que você ainda precisasse de uma esposa.
— Não quero mais mentir para Rose. Estou cansado de mentir para
todo mundo, inclusive para mim — retrucou Leo, embora fosse bom
fingir que Jane o escolhera.
— Mas não é uma mentira. Estamos casados e eu pensei, esperava...
que talvez pudéssemos voltar a ser aquelas duas pessoas que éramos
quando nos conhecemos — sugeriu Jane.
— Todos aqueles dias atrás?
— Parece que foram anos! — Jane passou o dedo pelo dedo médio dele
devagar e Leo pôde sentir o pau endurecendo só com aquele gesto suave.
Ele era um caso perdido. — Antes de nos casarmos. Quando estávamos
sentados naquele bar. Você, o estranho charmoso, e eu, a donzela em
perigo.
— Eu estava mesmo assim tão charmoso? — Os olhos de Leo pareciam
tão pesados que ele estava surpreso por ainda conseguir ver alguma
coisa.
— Você foi avassalador — respondeu Jane. — Se eu não tivesse
acabado de ser rejeitada e se estivéssemos em algum lugar mais
reservado, acho que você teria conseguido me deixar nua em cinco
minutos.
Ela ainda acariciava o dedo do meio dele para cima e para baixo
devagar. Muito devagar.
— Acho que você está exagerando — disse Leo. Ele sabia como entrar
naquele jogo. — Dez minutos provavelmente. Dez minutos para você ficar
nua, quinze para deixá-la toda molhada, vinte para fazê-la implorar. —
Leo riu quando Jane recolheu as mãos e fez melhor uso do dedo
balançando-o para ele, mas ela também estava rindo. — Ah, Jane, Jane,
Jane, por favor, pare de tentar jogar comigo, não vai funcionar mais.
O problema era que, quando ela jogava com ele, era tão divertido, e,
embora Jane tivesse dito que a nova trégua não se estendia a ela ficar nua
para ele, os dois caminharam de volta para casa de mãos dadas. E
chegaram bem a tempo de encontrar Rose voltando de sua noite fora com
a mãe dele.
Rose parecia cansada, um pouco triste, e talvez não fosse o momento
certo, mas Leo tinha de tentar.
Jane conseguiu falar primeiro:
— Você se divertiu com Linda? Jantar e um espetáculo, certo? O que
vocês viram, algo interessante?
Para Rose, boas maneiras estavam acima de tudo.
— Uma remontagem de Anything Goes. Não estávamos no clima de ver
nada muito desafiador — disse Rose e, quando começou a subir as
escadas, com os dois atrás dela, seus passos eram lentos e arrastados. Tão
diferente de como subira a escada naquela manhã. Mas já era tarde. Ela
fora ao escritório e a mãe de Leo era sempre difícil, então não era de
admirar que Rose estivesse exausta.
Era evidente que Rose precisava de todo o seu fôlego para subir os dois
lances de escada. Quando chegaram ao topo e estavam prestes a seguir
caminhos separados, Jane tocou o braço de Rose. Ela era tão mais
corajosa do que Leo.
— Nós dois sentimos tanto pela noite passada. Tenho certeza de que
você me ouviu gritar como uma feirante — disse Jane, indo direto ao
assunto. — Quando Leo chega em casa naquele estado, é assim que tendo
a reagir.
O sorriso de Rose era, no máximo, frio.
— E ainda assim você se casou com ele.
Jane apertou a mão de Leo.
— Eu tinha tomado muito champanhe — disse ela como se
confessasse um crime terrível, e um milagre aconteceu.
Rose sorriu. E isso tirou uns cinquenta, até mesmo sessenta anos dela.
Ela parecia mais jovem do que Jane, mais terrível do que Leo, naquela
fração de segundo.
— Se eu não tivesse bebido tanto champanhe e tomado algumas
decisões bastante questionáveis em função disso, acabaria levando uma
vida muito tranquila e chata — disse ela.
— Eu sinto muito. — Leo não podia dizer mais do que isso, não
importava o quanto quisesse. Havia coisas que ele não queria que Jane
soubesse, algumas coisas que não estava pronto para lembrar.
Jane deu o braço a Leo. Ele pensou em passar o braço ao redor do
ombro dela, mas achou melhor não.
— Nós tivemos uma briga. Não a nossa primeira. Não a nossa última, e
não é o fim do mundo, mas se você estiver farta de nós podemos ficar em
um hotel sem problemas — disse Jane.
— Não seja ridícula — retrucou Rose. Ela não estar cansada demais
para ficar irritada devia ser um bom sinal. — É claro que vocês devem
ficar aqui. A casa é grande, mas, da próxima vez que quiserem brigar,
talvez possam esperar até saírem daqui.
E, com isso, Rose saiu cambaleante pelo corredor sem nem mesmo lhes
desejar boa noite.
19

Abril de 1944

Embora a estação de King’s Cross estivesse lotada naquele dia de


setembro em que Rose chegara de trem, não era nada comparada a
Paddington naquela tarde de sexta-feira. As forças cáqui e azul-marinho
haviam crescido em número e agora se juntavam aos trabalhadores de
lojas e escritórios que deixavam a enfadonha rotina de nove às cinco para
trás até a manhã de segunda-feira.
Rose tentava não ser tragada para aquele turbilhão de pessoas quando
viu Danny. Mesmo em meio a um aglomerado fervilhante de pessoas, ela
sempre conseguia encontrá-lo. Ele a viu também, acenou e sorriu. Se
Rose se perdia em seus beijos, então seu sorriso sempre a encontrava de
novo.
Um minúsculo espaço se abriu na multidão, o suficiente para Rose se
lançar nos braços de Danny. Os pés dela deixaram o chão quando ele a
levantou, girou e então a pousou de volta.
— Como é que você ficou ainda mais bonita desde a última vez que a
vi? — Ninguém na MGM poderia ter pensado numa fala melhor.
— Senti sua falta — disse Rose, porque era tudo o que conseguia dizer.
— Senti tanto a sua falta.
— Senti sua falta também, Rosie.
Ele passou o braço em volta dos ombros dela para guiá-la pela
multidão, que havia recuado para um lugar distante, porque tudo o que
ela podia ver era Danny. O pequeno corte, onde ele devia ter se ferido
fazendo a barba, sua nuca macia, aquele espaço vulnerável entre a gola
de sua jaqueta de aviador e o cabelo brutalmente raspado na nuca, e seus
olhos que se estreitavam e brilhavam toda vez que olhava para ela.
Não havia lugares vagos no trem e eles tiveram de se encaixar em um
pequeno espaço em um corredor lotado. Danny manteve o braço em volta
de Rose, deu alguns chocolates para ela comer e roubou breves beijos que
ela ficou feliz em dar.
Eles desceram do trem em Henley-on-Thames.
— Eu reservei um quarto — disse ele a Rose. Ela vinha se sentido tão
aconchegada, tão querida, mas então o pânico a apunhalou. Rose tentou
não deixar transparecer, mas nunca conseguia esconder nada de Danny.
— Não precisa ficar tão assustada, Rosie. Vai ficar tudo bem.
— Não pense que eu sou assim e não fique bravo comigo, mas... — Era
difícil falar sobre essas coisas, até mesmo com Sylvia, que dirá com
Danny, que era quem queria fazer essas coisas com ela. Rose não pôde
deixar de pensar no pai de Prudence e Patience e como ele gostava de
dizer em seus sermões que “o nosso poder de não ceder aos nossos
impulsos mais primitivos é o que nos coloca acima dos animais e dos
selvagens”. — Eu não quero ser uma selvagem!
— Nunca vi uma selvagem usar batom vermelho. — Danny estava
rindo dela, mas, quando Rose fez cara feia, o rosto dele se suavizou. —
Tenho um presentinho para você, mas não vá ter nenhuma ideia. Pelo
menos não por enquanto.
— Que tipo de ideia? — Ele não respondeu, mas colocou um anel no
terceiro dedo da mão esquerda dela. Era muito grande. Rose teve de
fechar a mão para o anel não escorregar. — Ah...
Danny deu um soquinho de leve no queixo dela, de brincadeira.
— Eu falei para não ter nenhuma ideia. É só um anel barato da
Woolworths, mas depois da guerra... Bem, vamos ver o que acontece
quando a guerra acabar.
Ele prometeu tudo, mas não lhe deu nada — só um anel que Rose se
preocupava em não deixar cair, enquanto caminhavam pelas ruas escuras
que saíam da estação em direção ao rio.
O hotel já tivera dias melhores. O carpete e as cortinas estavam
surrados e gastos, a pintura, arranhada, o papel de parede floral,
desbotado. Rose viu uma pilha de jornais velhos no lounge, enquanto
estava de pé na recepção com um sorriso fraco, segurando a mala de
crocodilo de Sylvia, e Danny fazia o registro deles como sr. e sra. Smith.
O quarto, o quarto deles, “o mais bonito da casa” de acordo com o
jovem cheio de espinhas que subiu com a bagagem deles e foi
recompensado com seis pence e uma barra de chocolate de Danny, tinha
vista para o Tâmisa. A água ondulava escura lá fora diante da janela
antes de Rose descer o blecaute, depois fechar as cortinas.
Danny acendeu a luz e a cama e sua colcha azul bordada era tudo que
ela podia ver. Ela desviou o olhar para os lindos jarro e bacia de louça de
Delft em cima da penteadeira. A beirada do jarro estava quebrada. Danny
suspirou.
— Vamos comer alguma coisa.
— Não lá embaixo. Todas aquelas velhas se alvoroçaram quando
entramos. — Se eles saíssem, deixassem o hotel, então não seria uma
questão simples e rápida terminar a refeição e subir de novo para um
quarto com uma cama.
Danny suspirou de novo, mas eles logo descobriram um pequeno pub
que servia comida e, depois que conseguiu tomar alguns gins rosa, Rose
se sentiu melhor. Sua mão esquerda ainda estava fechada para o anel não
cair, mas ela podia sorrir, assentir e ouvir Danny lhe contar como era
voar à noite sobre os vales e campos britânicos que desconhecia. Às
vezes, disse ele, queria continuar voando até o céu acabar.
Eles nunca tinham passado tanto tempo na companhia um do outro
sem nada para fazer a não ser conversar. Não que Rose tivesse muito a
dizer, porque tudo em que conseguia pensar era naquela cama e as
palavras frias dos livros proibidos do escritório de seu pai. Só quando
serviram a torta de pedaços de bife e rim, que tinha mais rim do que bife
e mais cartilagem do que rim, foi que ela conseguiu olhar direito para ele.
Não só partes individuais, mas ele por inteiro.
Ele tinha sombras em torno dos olhos tão escuras quanto hematomas,
seu belo sorriso tinha perdido um pouco da exuberância e havia um
ligeiro tremor em suas mãos cada vez que acendia um cigarro.
— Ah, mas você não está bem, está? — questionou Rose. Ela empurrou
seu prato, só tendo beliscado a comida, para poder segurar a mão dele e
levá-la ao seu rosto. Danny deixou, com os olhos atentos e cautelosos. —
Por favor, você não vai me contar o que há de errado?
— Nada com que você precise se preocupar, princesa.
— Eu não sou uma princesa. Não sou tão frágil assim. — A garota que
era quando saltara do trem na King’s Cross e abordara os primeiros dois
soldados que encontrara tinha amadurecido muito. Rose poderia encarar
qualquer coisa que Danny tivesse para lhe dizer. Tinha certeza disso.
— Só estou cansado — disse ele, quando ela não soltou sua mão. — Os
últimos meses... têm sido intensos.
A ideia de uma caixa de metal que de repente poderia se transportar
pelo ar sempre parecera fantástica para Rose, mas subir em uma delas
noite após noite para viajar furtivamente pelos céus escuros, cruzar o
mar e passar sobre o território inimigo exigia uma coragem temerária
que ela não podia compreender.
— Você não fica com medo? Eu ficaria. Ficaria tão assustada — disse
ela, e ele abriu um sorriso discreto e segurou a mão dela em vez de ela
segurar a dele.
— O engraçado sobre o medo é que um cara pode se ver fazendo todo
tipo de coisas malucas para sentir seu gostinho. Como andar na grande
montanha-russa de Coney Island, mesmo sabendo que vai vomitar —
disse Danny, e Rose assentiu. Quando ela ouvia o gemido da sirene e
começava a correr para o abrigo mais próximo, muitas vezes no meio da
multidão, a patrulha de proteção durante ataques aéreos gritando, às
vezes ela queria parar de correr e simplesmente ficar parada no meio da
rua com os braços levantados, os punhos cerrados, e desafiar as bombas a
encontrarem-na. — Acho que sou um pouco maluco. Um cara em plena
posse de suas faculdades mentais não se inscreve na Força Aérea. Ele
tentaria a sorte em um emprego seguro, em um escritório quente e
agradável.
— Você ficaria infeliz preso em um escritório — retrucou Rose. Mesmo
sentado segurando as mãos dela, ele estava inquieto. Não era só o pé dele
batendo no chão ou como acariciava distraidamente um ponto no pulso
dela que parecia ultrassensível ao seu toque. Até a pele dele parecia
zumbir como se o sangue que corria por baixo estivesse efervescendo. —
Você sabe que sim.
— Se uma equipe sobrevive a vinte e cinco missões, então acaba —
explicou Danny em voz baixa. — Eles voltam para os Estados Unidos e
vendem bônus de guerra.
Rose olhou para o fino anel prateado que ele colocara em seu dedo sem
nenhuma sugestão de que isso poderia significar algo mais do que um
truque para enganar uma proprietária de hotel desconfiada.
— Quantas missões você completou?
Ela se recusou a encará-lo, mesmo quando Danny pegou seu queixo
entre o polegar e o indicador e tentou virar seu rosto na direção dele.
— Vinte e cinco. Vinte e cinco na semana passada.
Vinte e cinco missões bem-sucedidas significavam que ele tinha
enganado a morte surpreendentes vinte e cinco vezes. Ele estava vivo,
sentado ao lado dela, sólido e real. Isso era uma coisa boa e as manchas
roxas sob os olhos dele e as mãos trêmulas diziam a ela que talvez nem
toda a equipe dele tivesse dado a mesma sorte.
— Sua família deve estar muito feliz em saber que você vai voltar para
casa. — Rose tentou dar um sorriso corajoso. — Quando você viaja de
volta?
— Quarta-feira.
— Que bom. Quanto tempo até o navio chegar a Nova York? — Ela
olhou para a comida em que mal tinha tocado. A massa pelancuda e a
cartilagem pálida no prato deixavam Rose enjoada.
— Não faço ideia porque disse aos figurões que eles poderiam me
mandar de navio para casa, mas que eu ia pular na água e nadar de volta
para Blighty. É assim que vocês a chamam, não é?
Rose então olhou para Danny, os olhos vidrados, o lábio inferior
tremendo de tal modo que teve de mordê-lo para controlá-lo.
— Não brinque assim.
— Não estou brincando. Leva tempo para treinar um piloto e os
novatos que têm aparecido são uns inúteis — disse Danny irritado como
se essa não fosse a primeira vez que ele falasse isso. — Vou ajudar mais
no ar do que em casa vendendo bônus de guerra.
— Não tem medo de que possa morrer?
— Claro que tenho. — Ele fez um movimento desdenhoso com a mão
ao ouvi-la. — Mas tenho que acreditar que cada bomba que atiramos,
cada avião deles que derrubamos nos leva um pouco mais perto de
acabar com esta maldita guerra, com o perdão da palavra.
— Isso tudo é ótimo, mas você já fez a sua parte. Isso deveria ser
suficiente — Não havia escolha... ela preferia que Danny estivesse seguro
a milhares de quilômetros de distância do que em uma base aérea a uma
viagem de trem dela. Principalmente se ele pudesse subir em seu
estúpido avião naquela base aérea estúpida e nunca mais ser visto. —
Ninguém iria culpá-lo por ir para casa.
— Não me pinte como uma espécie de herói. Eu não sou um herói.
Claro, quero mandar os alemães para o inferno, mas vou lhe dizer uma
coisa, Rosie, nunca me senti tão vivo como quando estou voando. É um
prazer, uma loucura. Não tem nada parecido com isso.
De repente, ela ficou zangada com ele. Por ele virar seu coração de
cabeça para baixo e depois de volta simplesmente porque achava incrível
ficar perto da morte, socar o nariz dela e sair correndo na hora H.
— Bem, isso não é ótimo para você. — O sotaque americano dela
estava pronto para Hollywood. — Você não tem nenhuma compaixão
pelas pessoas que esperam desesperadamente que você volte para casa
em segurança?
Ela quis dizer a família dele em Nova York, sobre quem ela não sabia
nada exceto que moravam em Nova York, mas acima de tudo ela quis
dizer...
— Então você se preocupa comigo, princesa?
Eles não estavam mais de mãos dadas, mas estavam muito próximos,
joelho com joelho, nariz com nariz. Danny olhava direto para ela, como
se soubesse que ela passara muitas noites deitada na cama ao lado de
Sylvia, contando os aviões que ouvia voarem de volta para casa e rezando
para que ele estivesse em um deles.
— Não — respondeu ela com ar rebelde. — Na verdade, eu mal penso
em você.
— Isso não é justo quando a única outra coisa que me dá a mesma
sensação de voar é beijar você — disse Danny, e em pleno bar cheio, sem
se importar com o casal na outra mesa que se inclinava para perto para
não perder uma única palavra, ele a beijou.
Rose teve a impressão de que ele nunca mais parou de beijá-la, embora
imaginasse que ele deve ter feito isso em algum momento, porque pouco
depois estavam de volta ao quarto. Ela havia ficado com medo de acabar
deitada na colcha bordada, mas agora não conseguia pensar em nenhum
lugar da Terra em que preferiria estar.
Beijar em uma cama, presa embaixo dele, com a saia de tweed
embolada tão para cima que ela sentia a calça de lã dele arranhar a pele
macia e intocada acima da meia, era um tipo inteiramente novo de pavor.
A mão dele, que vinha puxando impaciente a blusa dela como se não
suportasse sentir o algodão em seus dedos, enfim a soltou da saia. Então
passou audaciosamente a mão pelas costelas dela. Rose mal teve tempo
de arfar quando a mão deslizou sob o delicado sutiã.
— Não! — disse ela. Suas mãos, que estavam indefesamente cerradas
sobre a colcha bordada, agarraram o pulso dele. — Não!
Danny parou de beijá-la e roçou o nariz traçando um caminho até a
orelha dela.
— Não?
— Não — gemeu ela. — Eu não sei. Isso... Eu não estava... Eu não
pretendia...
— Pretendia sim, Rose, você sabe. — Danny tinha parado de beijá-la.
Parou de tocar o rosto dela e o peito dela para que Rose sentisse falta de
suas mãos, então voltou para cima dela, prendendo os pulsos dela acima
da cabeça. — Você sabia quando lhe pedi para vir comigo que não
passaríamos o fim de semana todo de mãos dadas, não é?
É claro que ela sabia. Aquelas coisas que Sylvia comprara para ela
estavam enroladas em um lenço e guardadas num canto de sua mala. Ela
até lera as instruções que vieram com o gel Volpar, mas a coisa toda
parecia tão sórdida que tinha sido mais fácil não pensar na mecânica
daquilo tudo. Em vez disso, pensara na sensação inebriante que tomava
conta dela quando Danny a beijava, quando simplesmente estava perto
dela.
— Eu nunca... Eu não... Não quero que você pense que sou uma dessas
garotas — sussurrou ela, como se alguém pudesse estar com a orelha
pressionada contra a porta para anotar suas palavras e usá-las contra ela.
— Eu não suportaria se você pensasse isso.
— Você não é uma dessas garotas. Você é a minha garota. — Havia
momentos em que ele sabia exatamente o que dizer. — Isso não é bom?
Se era tão bom, então por que ela estava tão assustada? Porque, apesar
de todos os enfeites que pegara emprestado com Phyllis, Sylvia e Maggie,
apesar de todas as duras lições que aprendera desde que chegara a
Londres, havia uma enorme quantidade de vezes em que ela sentia como
se não tivesse amadurecido nem um pouco.
Além disso, iria doer. Shirley tinha dito isso quando voltara de sua lua
de mel em Southport. Não para Rose, mas ela sussurrara para a mãe
delas enquanto tomavam chá que ela “mal tinha conseguido caminhar
pela beira da praia e, então, Ian já queria fazer de novo. Era como sentar
em lâminas de barbear”.
— Que horrível! Por que Ian iria querer que você fizesse algo que se
parecesse com sentar em lâminas de barbear? — Elas tinham olhado
para Rose, lá sentada com um pedaço de pãozinho a meio caminho da
boca, e sua mãe lhe mandara ler um bom livro em seu quarto.
— Vai doer — disse Rose, com a cabeça virada para esconder o rosto
envergonhado no travesseiro. — Vai doer e eu não quero entrar em
apuros.
— Não vai doer — disse Danny, sorrindo. Rose não entendia o motivo,
porque não conseguia ver nenhuma graça naquilo. — E você não vai
entrar em apuros. Vou cuidar bem de você. Olhe para mim, Rosie.
Ela olhou para Danny. Ele abriu um sorriso delicado e gentil, mas ela
sabia como facilmente poderia se transformar em um sorriso debochado.
Rose o amava de todo o coração, mas ainda assim sabia que ele não seria
cuidadoso com ela — partiria seu coração se ela o desse para ele. Além
disso, tudo tinha acontecido rápido demais. Ela o vira quinze vezes, sem
incluir aquela, e na maioria dessas vezes eles só tinham trocado beijos
rápidos em portas.
Não dava para ir de repente de alguns beijos quando ninguém estava
olhando para fazer amor com um homem.
— Eu não posso — disse ela. — Sinto muito.
Ele soltou seus pulsos e saiu de cima dela. Seu rosto estava tenso e um
músculo, estalado na bochecha, mas ele não disse uma palavra. Sentou
no lado da cama e tirou um maço de cigarros do bolso da camisa.
— Eu estraguei tudo — disse Rose, enquanto sentava e tentava enfiar a
blusa de volta na saia.
Ela estava triste, meio enjoada com aquilo, mas também se sentia
imensamente aliviada, como se tivesse conseguido escapar com êxito de
algo assustador como uma prova ou um procedimento médico
desagradável.
— Não seja boba, você não estragou nada — disse Danny um tanto
mecanicamente. Acendeu um cigarro para ela e disse que daria uma
saída por uns cinco minutos se ela quisesse se trocar e que ela não
precisava se preocupar. — Não sou o tipo de cara que força a barra com
uma garota.
Depois que ele saiu, Rose descobriu que alguém tinha trocado o négligé
pêssego de seda da Dupont de Sylvia pela camisola de algodão de Phyllis
que haviam apelidado de A Reverenda Madre e sentiu-se aliviada de
novo. Não havia a menor chance de Danny ser tomado por alguma
luxúria depravada ao ver Rose envolta nos volumosos tecidos de Sua
Santidade Sagrada.
Danny até riu quando voltou e viu Rose na cama, com as cobertas
puxadas até o queixo.
— Relaxe, Rosie — disse ele, o que ela não tinha como fazer porque
ainda estava sozinha em um quarto de hotel com um homem.
Ele tinha ido até o bar encher o cantil com brandy de cereja que o
proprietário fermentava no galpão em seu quintal. Era a melhor bebida
de adulto que Rose experimentara, e Danny não se importou de ela beber
a maior parte e Rose não se importou muito quando ele tirou as botas, as
meias e a camisa. Ela desviou o olhar quando ele levou a mão à fivela do
cinto e tomou o último gole do brandy quando ele entrou na cama ao lado
dela de calção e camiseta.
Eles ficaram lá deitados por um tempo, Rose tentando criar coragem
para sugerir que colocassem o rolo de cama empelotado entre eles, mas
não conseguia. Na verdade, o brandy tivera um efeito bastante soporífero
sobre ela.
— Estou tão cansada — murmurou Rose.
— Eu também.
Ele roçou sua bochecha com o mais suave dos beijos, depois rolou para
o outro lado, desligou o abajur da mesa de cabeceira, e qualquer tensão
que Rose ainda estivesse sentindo aos poucos se dissipou.
Rose podia ouvir a respiração constante de Danny no escuro, sentir o
calor da proximidade dele, mas agora isso parecia reconfortante e ela
nem teria se importado se ele tivesse passado o braço em volta dela,
deixado que se aconchegasse junto ao corpo dele, mas o sono aos poucos
a venceu.
Ela sonhou que nadava no mar. As ondas batendo nela enquanto
boiava indolentemente de costas, cardumes de peixes minúsculos
beliscando seus dedos dos pés.
Rose não queria abrir os olhos, acordar, mas a água passou de morna
para fria, e seus olhos se abriram de repente, e o pavor fez com que não
conseguisse se mover, não conseguisse abrir a boca para gritar ao ver
Danny em cima dela no escuro, com as cobertas afastadas, aquela
camisola ridícula que acabava com qualquer desejo não cumprindo seu
papel já que tinha sido levantada, e ele arrancando sua calcinha sem o
menor cuidado.
Rose tentou chutá-lo para longe, mas as pernas dele prendiam as dela.
— O que você está fazendo? — conseguiu dizer ela.
— Eu preciso de você, Rosie. Você sabe que precisa de mim também —
disse ele. Ela mal entendeu as palavras emboladas e arrastadas. — Sabe
que sim.
Ela teria se contorcido para sair da cama se Danny não a estivesse
prendendo, forçando seu corpo onde ela não queria. Ela ficou sem ar,
então não pôde sequer gritar e teve de morder o lábio com força, mas
aquela pequena dor não era páreo para a coisa terrível que ele estava
fazendo com ela.
— Pare com isso — disse ela. — Pare! Pare! Pare!
Ele tapou a boca de Rose com a mão enquanto ela batia em suas costas.
Saia de cima de mim!, queria dizer ela, gritar, na verdade, mas a mão
dele estava de lado em sua boca, então Rose o mordeu. Ele tirou a mão,
xingando, mas não parou, mesmo com ela implorando.
— Por favor, Danny. Eu não quero. Assim não. Por favor.
— Só vai doer desta vez — disse ele. — Vamos acabar logo com isso.
Em seguida, cobriu a boca de Rose de novo com a mão, e ela tentou
lutar. Tentou de verdade. Ela arranhou, socou, mas, mesmo usando toda a
sua força, não era páreo para todo o peso dele. Danny a mantinha presa e
Rose nunca tinha se sentido tão pequena, fraca e inútil quanto naquele
momento, ele ali deitado em cima dela, enfiando aquela coisa dele dentro
dela de novo e de novo.
Agora Rose sabia o que significava estar arruinada. Ela nunca mais
seria a mesma depois daquilo. Não conseguiria imaginar que a dor um
dia pudesse ir embora e que ela pudesse voltar a se sentir como antes.
— Eu te amo, Rosie. Eu te amo.
Danny estava ofegante e, quando ela achou que estava se acostumando
com a dor e podia voltar a respirar, ele começou a se mover mais rápido e
com mais força dentro dela. Ela nem queria que ele parasse, mas só que
continuasse até que estivesse tudo acabado. Terminado. Chegado ao fim.
Em seguida, enfim tudo acabou com um grito sufocado e felizmente ele
estava tirando aquela coisa dela, salpicando a barriga dela com sua
semente. Então ele a soltou, saiu de cima dela, e Rose pôde limpar a
sujeira que ele fizera na camisola de Phyllis, que ela queimaria na
primeira chance que tivesse.
Ela sentiu o deslocamento do colchão quando Danny se levantou.
Ouviu um barulho de porcelana, depois o som de água naquele quarto
estranho, então os passos suaves dele voltando para a cama, para perto
dela.
— Vá embora — disse ela.
— Por favor, não seja assim, Rosie. Você não me ama mais?
— Não, não te amo — disse Rose com uma voz dura, mas descobriu
que não conseguia se mover. Não tinha mais certeza de que seu corpo lhe
pertencia, que faria as coisas que ela queria.
— Pobrezinha. Que confusão eu fiz na cabeça da minha linda garota.
— Não era certo ele falar daquele jeito depois do que fizera. Ele segurava
uma toalhinha e vinha em sua direção, com o olhar decidido.
Rose conseguiu sentar e levantar a mão de maneira imperativa.
— Dê isso para mim — exigiu. — Vire de costas. Você nunca mais vai
me ver.
Foi corajoso da parte dela falar assim, agora que sabia do que ele era
capaz, mas ele assentiu e lhe entregou a toalhinha molhada, com cuidado
para não tocá-la. Rose esperou até ele olhar obedientemente para uma
péssima reprodução de O menino de azul na parede oposta, antes de tirar
a camisola devagar.
Ela ainda sentia dor e uma ardência terrível lá embaixo, mas não
esperava as manchas de sangue na parte interna das coxas. Algumas já
tinham secado, outras ainda estavam frescas e vermelhas. Ela se levantou
desajeitadamente para limpar o sangue, esfregar furiosamente marcas
que não iriam sair porque eram hematomas que ainda não tinham tido
tempo de aflorar. Então, imaginou que estava limpa, mas não se sentia
assim e não conseguia conter as lágrimas que de repente escorriam pelo
seu rosto. Ela fungou, apertou o nariz, mas não adiantou nada.
— Ah, princesa, por favor, não chore. — Antes que ela pudesse dizer a
Danny para não se virar, que ela o odiava mais do que tudo, ele sentou na
beira da cama. Puxou o corpo tenso dela para si e beijou sua testa, as
bochechas, como se pudesse conter cada lágrima. — Por favor, não.
Rose nem sequer lutou, só ficou ali imóvel.
— Você estragou tudo e eu te odeio agora. — Ela soluçou. — Não
suporto ficar perto de você.
— Você não me odeia de verdade, Rosie — afirmou ele. — Mas você
não pode encorajar um cara, deixar que ele a beije, ser tão bonita quanto
você é e não esperar que ele tome algumas liberdades.
— Não foram algumas...
— Eu disse que não a colocaria em apuros e não coloquei. Na próxima
vez será melhor, eu prometo.
Danny tentou acariciar o cabelo dela, mas ela se encolheu para longe
dele. Agora ela sabia o que aquelas mãos podiam fazer.
— Nunca haverá uma próxima vez — disse Rose. — Porque não há a
menor possibilidade de aquilo ficar melhor. Mesmo que eu o tenha
encorajado, o que você fez foi errado.
— Não é errado. Começamos a lua de mel mais cedo, é só isso —
retrucou ele, que estava rindo agora. Até se atreveu a cutucá-la como se
Rose pudesse achar a tirada engraçada.
— Não sei como poderíamos ter começado a lua de mel mais cedo se
não somos casados. Não somos sequer noivos — lembrou-lhe. Rose
queria soar fria e séria, mas ainda fungava. — Acho que eu me lembraria
se tivéssemos ficado noivos, e, mesmo que fôssemos noivos, eu ainda o
odiaria. Na verdade, não quero mais nada com você.
Ela saiu da cama com movimentos bruscos e, Deus, aquela dor no
coração, que ele ferira de forma tão vil.
Rose virou as costas para Danny, pegou suas roupas que deixara
penduradas na cadeira e começou a se vestir, a camisola protegendo-a do
olhar dele, embora fosse tarde demais para isso agora.
Danny a vira nua e a vira completamente impotente, e Rose achava que
essa devia ser a pior parte.
— Rosie, você está sendo uma fedelha — disse ele de maneira
aduladora. — Vamos voltar para a cama. Está tarde. Você não vai a lugar
algum.
Rose o ignorou e, enquanto abotoava a blusa, sentiu uma nova
determinação, uma certeza que nunca tivera antes. Ela nunca deixaria
Danny, nem ninguém, tratá-la daquele modo de novo. Como se o que
pensava e sentia não importasse. Como se ela não importasse.
— Vou voltar para Londres — disse ela. — Vou para casa.
— Não seja boba. É uma e meia da manhã.
— Eu não me importo! Não quero passar nem mais um único segundo
na sua companhia. — Rose queria que suas palavras fossem balas, mas
observou com cautela Danny se levantar da cama.
— Rosie, querida — disse de maneira arrastada com aquela voz grave,
que ela já não suportava mais. — Vamos. Não aja assim.
Mais tarde, ela ficaria orgulhosa por não ter recuado quando ele veio
em sua direção.
— Se você chegar mais perto, juro por Deus que vou gritar para todo
mundo ouvir — ameaçou ela baixinho de um jeito que fez Danny parar
na mesma hora e ficar ali parado, parecendo magoado e confuso, como se
ele fosse a parte ofendida, enquanto Rose enfiava o resto das suas coisas
na mala.
Ela ficaria ainda mais orgulhosa porque, quando tirou o anel que ele
colocara em seu dedo, não o atirou nele em um gesto de petulância tolo e
sem sentido, mas deixou-o na penteadeira, ao lado do jarro quebrado.
Então saiu do quarto. Da vida dele. Deixando todas as suas esperanças e
sonhos infantis para trás.
20

Jane e Leo passaram o sábado como turistas de novo. Pegaram um barco


de Westminster para Greenwich, depois caminharam ao longo do rio até
Leo perceber que Jane estava petrificada de frio, congelada demais até
para tremer.
— Não tinha feito a mala pensando no inverno em Londres — disse
Jane, e, quando a levou a uma loja de departamentos e praticamente a
forçou a comprar um confortável casaco acolchoado, Leo achou que ela ia
chorar.
— E tenho que passar por mais essa agora — dizia ela todas as vezes
que via seu reflexo em uma vitrine, e todas as vezes batia no braço de Leo
quando ele ria.
Leo tinha achado que fingir serem as pessoas que fingiam ser em Las
Vegas não funcionaria. Que era como tentar tapar um buraco com papel
amassado, mas eles dois eram tão bons em fingir que acabou dando muito
certo.
No domingo, almoçaram com Rose e George no Bluebird em Chelsea.
Rose e George almoçavam lá domingo sim, outro não havia anos, para
que Lydia e Frank pudessem almoçar com a família.
Uma procissão constante de clientes e funcionários, até um antigo e
grisalho assistente de cozinha, passou rapidamente para cumprimentá-
los, enquanto George mantinha os três entretidos com histórias de outros
almoços de domingo.
— Ela estava tão incrivelmente bêbada, não é, Rose? Depois que ela
tirou quase toda a roupa, escorregou graciosamente para fora da cadeira
e dormiu embaixo da mesa.
Rose estava com um bom humor tão evidente, que Leo esperava tirar
proveito disso. Mas sempre que pousava os talheres e abria a boca para
começar a pedir desculpas, tentando se explicar, Jane colocava a mão na
sua perna. Ela chegou a chutá-lo, como se dissesse Não aqui. Não agora.
Jane não o chutou quando Leo se ofereceu para pagar a conta, embora
Rose tivesse erguido as sobrancelhas.
— Tem certeza de que pode pagar isso?
— Que feio, Rose — repreendeu George.
— Não existe essa coisa de almoço grátis — retrucou ela, com um
sorriso que era todo batom e dentes e por excelência Rose. — Certo, Leo?
— Certo — concordou ele. — Mas, se você precisar de algo, é só dizer.
— Do que mais eu poderia precisar de você? — perguntou Rose, e Jane
lhe abriu um sorriso encorajador, o que foi legal da parte dela, mas na
prática não ajudava muito.
— Eu não sei. — Ele tinha se comportado muito bem. Só tomara uma
cerveja durante o almoço, mas agora desejava que tivesse bebido mais. —
Bem, você... a questão é que trabalhei com a equipe de manutenção
algumas vezes esta semana. Não sei se Mark mencionou isso. Ele está
com alguns desfalques e pensei que eu poderia ajudar, como costumava
fazer, se estiver tudo bem para você. Quero ser útil enquanto estiver aqui.
Ajudar com qualquer coisa que você precise fazer.
— Compreendo — disse Rose, que ergueu as sobrancelhas de novo
quando a conta chegou e Leo pegou algumas notas do dinheiro que
ganharam em Las Vegas que ele tinha trocado para libras.
Levaram muito tempo para conseguir sair do restaurante com tantas
pessoas querendo falar com Rose. Pegar a mão dela, beijar o rosto, contar
uma história, como se Rose não fosse voltar, embora fosse, em duas
semanas. É claro que iria, pensou Leo, enquanto a observava caminhar à
frente dele e apresentar Jane para a garota da chapelaria. Era ridículo
pensar que Rose não estaria lá dali a dois domingos. Que ele poderia ir
embora de novo, voltar um ano, dois, até mesmo cinco anos depois, e
Rose não estaria almoçando domingo sim, domingo não com George, no
Bluebird. Por mais que desejasse que ela ainda fosse estar lá, ele sabia que
não era verdade e, pela primeira vez desde que voltou, Leo sentiu falta de
Rose, mesmo ela ainda não tendo ido embora.
— Meu Deus, Leo. Eu tinha me esquecido de como você fica mal-
humorado quando as coisas não são do seu jeito — disse Rose secamente,
quando ele passou pela porta que George segurava aberta. — Muito bem.
Vou fazer a minha primeira visita ao local de uma nova propriedade
amanhã, você pode ir junto se quiser.

Na manhã seguinte, Jane se despediu quando Leo foi trabalhar e depois


pegou um táxi e cruzou Londres até Hatton Garden.
Já fazia algum tempo, mas acabou encontrando a porta preta comum
que procurava e apertou a campainha. Então subiu três lances de escada
até outra porta e outra campainha, o que a levou ao escritório de um
cômodo de Solly Garfinkel, que pagava os melhores preços em Londres
pelas bugigangas que os ricos compravam para suas mulheres.
— Quanto tempo — disse ele a Jane, cumprimentando-a.
— Uns quatro anos, não é? — respondeu ela.
Terminados os cumprimentos formais, Solly se recostou na grande
cadeira de rodinhas.
— O que você tem para mim hoje?
Um por um, no pedaço de veludo preto que Solly desenrolou sobre a
mesa bagunçada, Jane colocou o anel de noivado, os brincos, a tiara de
casamento, dois anéis de pedra, uma pulseira e um colar exagerado com
safiras e flores rosa de diamantes que Andrew lhe comprara e do qual
nunca gostara. Então Solly pegou a lupa e curvou a cabeça para examinar
as pedras.
Eles chegaram ao valor de trezentas mil libras pelo lote, a maior parte
pelo anel de noivado art déco. Jane costumava negociar o valor, Solly
esperava por isso, mas dessa vez ela simplesmente entregou os
certificados de autenticação. Então se virou enquanto Solly abria o cofre
embaixo da mesa e, quando ele lhe disse que podia virar de volta, havia
quinze pilhas de notas de vinte libras na mesa.
Não era muito, pensou Jane sentada no banco de trás de outro táxi com
o dinheiro em um sacola de uma loja comum que Solly lhe dera. Não
pelos três anos que passara com Andrew e deixara de aproveitar a
oportunidade de sair com homens muito mais ricos por estar de olho em
lucros a longo prazo em vez de vantagens a curto prazo. Sim, havia
muitos outros presentes que Jane poderia ter vendido se não estivessem
na casa de Andrew na área da baía de São Francisco, isso se Jackie já não
os tivesse empacotado e mandado para a caridade. Mas trezentas mil
libras não era muito, sobretudo porque aquele era seu ápice. Jane não
ficaria mais bonita.
Os pensamentos inquietantes não pararam até Jane estar cinquenta
metros abaixo do solo em uma caixa-forte sob um banco particular em
Knightsbridge, com seu cofre esperando por ela em uma mesa de metal.
Antes de abrir a caixa com um código PIN de oito dígitos, o coração de
Jane sempre palpitava desagradavelmente, depois começava a bater mais
rápido do que deveria. Entretanto, quando abriu a caixa, tudo estava
como havia deixado. Um envelope contendo sua certidão de nascimento
antiga, que Charles conseguira localizar, os documentos da mudança de
nome. Alguns diamantes brutos que pareciam minúsculos seixos sem
brilho. Algumas joias que Solly não quisera, às quais ela acrescentou sua
tiara, uma vez que Solly dissera que não havia muita demanda por elas.
E havia também os pacotes de dinheiro e um pedaço de papel com seu
total atual: mais ou menos seiscentos e quarenta mil libras. Ao todo, tinha
pouco menos de um milhão em dinheiro — não que um milhão durasse
muito hoje.
Charles perderia a esperança com ela. Balançaria a cabeça, suspiraria
e diria que o cofre dela era o equivalente a uma velha senhora guardando
suas economias debaixo do colchão, mas Jane gostava de seus bens onde
pudesse acessá-los. Tocá-los. Saber que eram sólidos e reais.
Tão reais quanto eram naquela noite de quinta-feira havia muito,
muito tempo, quando Charles chegara em casa do trabalho e ela lhe
entregara aquele bolo sujo de dinheiro. Ele não aceitara o dinheiro pela
hospedagem e alimentação, não perguntara de onde viera, não gritara
com ela por reduzir quatro notas de vinte libras a quase uma papa por
causa do suor. Ele simplesmente sentou e explicou qual era seu trabalho.
Charles era o único banqueiro ético de investimentos de Londres. Ele
pegava o dinheiro dos seus clientes e se recusava a investi-lo em qualquer
lugar que pudesse financiar armas, drogas, trabalho infantil, tráfico
sexual — a lista de atividades amorais era interminável, embora Charles
tivesse rido com ironia e dito que ter princípios diminuía
consideravelmente sua taxa de retorno.
Ele era a única pessoa em que Jane tinha confiado. Ela lhe deu todo o
seu dinheiro, fora as poucas notas arruinadas, e ele dobrou seu valor, e
depois dobrou mais uma vez. Ela o usou para substituir os dentes que
tinham sido arrancados. Para endireitar e remodelar o nariz que tinha
sido quebrado, mas ainda parecia o nariz de sua mãe.
Jane tocou o nariz agora. Já não parecia mais o de sua mãe. Era o seu
nariz. Mas ela não queria pensar na mãe, ou em Charles, ou em qualquer
um de seus fantasmas.
Ela pegou uma das pilhas e, só com isso, o barulho em sua cabeça
parou. Aquela era sua estratégia final de fuga. Não importa quão ruim as
coisas ficassem ou quão incerto fosse o futuro, se você tivesse dinheiro,
muito dinheiro, sempre conseguiria escapar de uma hora para a outra,
cuidar de si mesmo. E, se algum dia precisasse de mais uma justificativa
para as coisas que fazia, ainda tinha as quatro notas de vinte libras em
um envelope branco. Estavam tão finas e gastas que o fio de segurança
prateado devia ser a única coisa que as mantinha inteiras. Ainda havia
manchas de sangue nelas.
O passado prende e limita as pessoas — era preciso superá-lo, mas não
era bom esquecê-lo por completo, pensou Jane, enquanto guardava tudo
na caixa de metal. Ela ainda tinha o que restava da sua metade do
dinheiro de Las Vegas — pouco mais de sete mil libras —, que enfiara na
bolsa para despesas ocasionais. Então fechou a tampa, que fez um som
metálico abafado gratificante como um ponto final. As joias se foram, o
dinheiro estava guardado no banco; riscara definitivamente o nome de
Andrew. Não havia por que lamentar pelo que poderia ter sido.
Seu último compromisso do dia era com seu advogado. Charles lhes
apresentara quando Jane precisara de novos documentos e, acima de
tudo, absoluta discrição. O sr. Whipple trabalhava dentro dos limites da
lei, mas os limites da lei eram repletos de sombras.
Ela sempre tinha medo de esbarrar com Charles, por isso nunca via o
sr. Whipple nas salas com painéis de madeira na Chancery Lane. Eles se
encontraram no saguão de um hotel e procuraram um canto sossegado. O
sr. Whipple era alto, magro e pálido (“como um personagem de um
romance de Dickens”, dissera Charles) e tomou chá com leite e fez
anotações com uma letra difícil de entender em um caderno com capa de
couro.
O advogado também foi muito encorajador. Ela e Leo não tinham
assinado um acordo pré-nupcial e, embora Nevada fosse um estado de
patrimônio conjugal, isso só se aplicava aos ativos adquiridos após o
casamento. Era improvável que Leo e qualquer advogado obscuro que
conseguisse pagar um dia localizassem os cofres de Jane ou a escritura de
seu apartamento com porta para o jardim em Primrose Hill ou a do
apartamento em Nova York que alugara pela temporada (ambos
presentes de despedida negociados com ex-amantes que já não tinham
serventia para ela), já que eram de propriedade de uma empresa cujo
escritório era uma caixa postal nas Ilhas Cayman. O sr. Whipple fora bem
firme com relação a isso na época.
Ele também assegurou a Jane que, a menos que fosse mencionado e
especificamente excluído do testamento de Rose, Leo tinha uma boa base
para reivindicar seu espólio. Mesmo que ele fosse excluído sem um
centavo, sempre havia brechas pelas quais o sr. Whipple poderia se
esgueirar como um contorcionista de circo.
— Mas vamos nos preocupar com isso se e quando acontecer — disse
ele tranquilamente. — Enquanto isso, espera-se que a srta. Beaumont
continue a aproveitar a vida por, digamos, pelo menos mais seis meses,
você acha?
Jane deu de ombros.
— Provavelmente. Eu não tenho certeza.
— Mas você precisa ficar casada até que o testamento seja validado.
Vocês ainda podem contestar o testamento até seis meses depois disso,
então é algo para se ter em mente.
— Com sorte, não chegará a isso — afirmou Jane. — Termos de
contestar o testamento. Rose é louca por Leo.
Ou seria quando Jane terminasse seu trabalho.
Sim, de modo geral, o dia tinha sido proveitoso.
21

Uma, e então duas semanas se passaram. Eles já estavam em meados de


um novembro cinza e úmido.
Jane entrara para a academia holística dobrando a esquina e, em
apenas um dia, já fizera amigos com que ia ao café, à pedicure e a Harvey
Nichols. Leo nunca, jamais seria capaz de bancar o estilo a que ela se
acostumara, mas ele ia ao escritório todas as manhãs com Rose. Lá ele se
encontrava com Mark e passava o resto do dia com a equipe de
manutenção.
Os outros caras, dos jovens aprendizes aos profissionais experientes
que vinham trabalhando com Rose havia vinte, até mesmo trinta anos,
trataram Leo com certo ceticismo no início porque ele era a ovelha negra
pessoal de Rose. Mas acabou que suas habilidades para emassar ainda
eram perfeitas e agora que não estava de ressaca todas as manhãs suas
mãos quase não tremiam, então ele foi acolhido pelo grupo e o deixaram
usar a furadeira e a pistola de pregos.
Era uma rotina, e Leo não conseguia se lembrar da última vez que
tivera uma. De repente, ele tinha metas tangíveis. Uma parede recém-
emassada lisinha e pintada de salmão. Rodapés lixados e à espera da
tinta. Dimmers de luz instalados. Pias desentupidas. Banheiros
rejuntados. Todas essas coisas feitas em um dia quando havia semanas,
meses, em que Leo não conseguia produzir uma pintura decente.
Isso significava que podia voltar para a casa de Rose e ter algo para
conversar que não fossem a saúde debilitada dela ou os próprios
fracassos. Toda vez que ele lhe mostrava uma foto no celular de um painel
antigo de papel de parede William Morris revelado depois de
desmontarem um armário de cozinha, um interruptor de luz Bakelite
totalmente funcional dos anos 1930 ou mesmo a máscara de bondage que
encontraram embaixo da cama de um de seus inquilinos, era mais uma
tentativa de encontrar uma maneira de se reaproximarem.
Talvez Rose estivesse cedendo um pouco porque, numa manhã de
sábado em que nem mesmo ela ia ao escritório, perguntou, enquanto
tomavam café da manhã, se ele se importaria de lhe fazer um favor.
— Qualquer coisa — respondeu Leo com a boca cheia de mingau.
— Eu não ficaria tão ansioso — disse Lydia, que também parecia estar
cedendo. — Rose, você não falou algo sobre precisar de um rim?
— Isso seria um problema, Leo? — Rose estava brincando com ele de
uma forma que não fazia desde aquela terrível noite em que chegara em
casa bêbado. Leo estava tão aliviado que provavelmente teria concordado
em lhe doar um rim, não que os seus estivessem em bom estado.
Ela não estava interessada em nenhum de seus órgãos vitais, mas
queria que ele fosse a Leytonstone, onde algumas de suas pinturas
estavam guardadas para fazer um inventário.
— Leve Jane com você — sugeriu Lydia. — Ou então ela irá a outra
daquelas aulas de ioga onde colocam o aquecedor central no máximo.
— É para melhorar a circulação sanguínea — explicou Jane, que
também se juntara a eles para o café naquela manhã. — Tenho aula às
onze, mas acho que posso faltar. Nunca fui a Leytonstone, então pode ser
uma aventura interessante.
— Só alguém que nunca tenha ido a Leytonstone poderia pensar isso
— murmurou Rose.
Leo queria que Rose estivesse com eles quando chegaram à estação de
Kensington e Jane confessou nunca ter estado em um metrô.
Ela também nunca tinha ido a um jogo de futebol. Ou comido no
McDonald’s (ou no Burger King, aliás), apostado em um cavalo, ido à
Escócia ou ao País de Gales, ou até mesmo a Devon e Cornwall, e uma
infinidade de outras coisas que uma pessoa comum teria feito ao decorrer
da vida.
— Então, você já foi a um supermercado?
Eles estavam na área climatizada do depósito de Rose agora. Era uma
tarefa trabalhosa. Cada obra de arte tinha de ser desembalada, conferida
com uma lista no iPad que Rose emprestara a Leo, em seguida
fotografada e embalada de novo.
— Claro que já! Não vivo uma existência tão refinada assim, querido.
— Não um supermercado orgânico chique, mas um supermercado
básico-padrão com marcas mais baratas e uma seção de comida
congelada.
Só havia umas cinquenta pinturas no depósito, as outras estavam em
Kensington ou emprestadas para várias galerias e museus. Eles
terminariam em uma hora, o que era bom já que ele achava que Jane não
tinha gostado muito de Leytonstone ou da preferência de Rose por pop
art inglesa.
— Waitrose conta? — perguntou Jane.
Leo estava prestes a concordar a contragosto, quando se deparou com a
pintura e sentiu a testa ficar logo úmida, a pele formigar e seu coração
disparar como se tivesse acabado de cheirar uma carreira da mais pura
cocaína. O que era horrível e ironicamente apropriado dadas as
circunstâncias em que ele vira aquela pintura pela última vez. Deus, ele
esperara nunca mais voltar a vê-la.
Ainda estava em sua moldura simples de madeira. Uma pintura a óleo
da beira de um penhasco escarpado. Lá embaixo via-se o mar azul-
escuro, a maré afastando-se da costa e criando lagos turquesa cobertos
por ondas espumantes. Pintado em 1967 por Dame Laura Knight, a quem
Rose fora apresentada logo após a guerra. Era uma das peças favoritas de
Rose. Ficava pendurado em seu escritório na casa em Lullington Bay,
depois em seu escritório bagunçado na casa em Kensington, mas depois...
bem, ela obviamente também não podia suportar sequer olhar para ele.
— Querido! Eu perguntei se Waitrose conta.
— O quê? — Leo se obrigou a virar, parar de olhar para a pintura. Jane
estava de pé atrás dele, com o iPad na mão. — Certo. Temos que parar de
enrolar e continuar com isso.
Ela assentiu, mas parecia bem irritada por ele não querer mais brincar.
Sua irritação deu lugar a ansiosos olhares de lado quando estavam de
volta ao metrô.
— Querido, você está bem? — perguntava ela após cada parada,
porque estava tão acostumada a vê-lo jogar para a plateia que o silêncio
dele era enervante.
Mas não havia nada a dizer. Não só para Jane, mas para Rose também.
Leo entendia isso agora que tinha visto a pintura de novo. Às vezes, à
noite, ao longo dos anos, ele sonhou com a pintura. Muitas vezes nos
sonhos ele pintava sobre ela, destruindo-a com grossas pinceladas de
tinta preta que pingava, enquanto Rose lhe implorava para que parasse.
Mas seus pesadelos não correspondiam nem de longe à amarga
realidade de óleo sobre tela.
Quando chegaram na casa, Leo estava decidido. Era melhor para todos,
sobretudo para Rose, se ele não estivesse ali.
— Querido? Você tem certeza de que está bem? O que você quer fazer
no almoço?
Leo já estava no meio da escada. Parou para olhar para Jane. Seu belo
rosto voltado para ele, como uma flor à procura do sol. Isso de repente
também não fez o menor sentido.
— O que você está fazendo aqui, Jane? — perguntou-lhe cansado, e ela
mais uma vez pareceu ofendida, começou a dizer algo, mas Leo virou de
costas, subiu a escada de dois em dois degraus para não ouvir o que dizia.
Tudo o que Leo precisava fazer era pegar o dinheiro de Las Vegas e o
passaporte, mas em vez disso sentou em seu closet no sofá Chesterfield
todo mole que trouxera da casa em Lullington Bay quando Rose concluíra
que já deixara de ser uma antiguidade havia muito tempo e agora era só
antigo. Pegara a garrafa de uísque da sala de visitas do segundo andar no
caminho, mas não começara de fato a beber ainda, já que só podia lidar
com tanto autodesprezo em um período de vinte e quatro horas.
Levantou-se. Havia uma antessala em frente ao closet — pequena
demais para um quarto, grande demais para um armário. Suas pinturas
estavam guardadas ali. Leo não gostava de chamá-las de sua arte, porque
isso o fazia soar como um babaca.
Folheou os painéis A2 montados em cartão como se fossem um baralho
de cartas. Depois sentou no meio de um círculo que formara com todas as
imagens que nunca tinham incendiado o mundo. A única maneira de
fazer isso era mergulhá-las em líquido de isqueiro e acender um fósforo.
Fazer uma fogueira e aquecer as mãos com seus sonhos desfeitos e
ambição fracassada. É isso que ele faria.
— Querido, por favor, você não quer me contar o que há de errado?
Jane estava de pé junto à porta. Parecia que toda a relação dos dois
tinha se passado com um deles enrolando junto a uma porta, sem querer
dar aqueles poucos passos que os aproximariam. Então Jane deu aqueles
poucos passos para poder sentar no chão ao lado dele e pegar a garrafa.
— Não bebi nada se você veio conferir. Ainda não pelo menos.
Jane colocou a garrafa no chão, então se inclinou para a frente para ver
um de seus desenhos, um estudo em carvão de um idoso em uma casa de
apostas.
— Então, o que é isso tudo?
— Minha juvenília — respondeu Leo.
Jane olhou para o trabalho dele, estreitando os olhos de maneira
avaliadora, como se estivesse em uma joalheria com um homem que
acabara de lhe perguntar se havia algo em especial pelo qual se
interessava.
Leo gostava de pensar que seu nicho era a cultura pop dos anos 1990,
representada nua e crua em preto e branco. Take That, Buffy, a Caça-
Vampiros e Leonardo DiCaprio pintados em turvas aquarelas para lhes
dar certa gravitas. Ele reunira material suficiente para uma exposição,
que chamaria de Nascido nos anos 1990, mas os marchands mal olhavam
para as telas. Isso quando ele conseguia passar pela porta para ver um
marchand — e isso só graças a Rose.
Sua técnica era impecável. Todo mundo dissera isso. E mesmo agora,
quando recebia uma rara encomenda para desenhar a esposa de alguém,
em geral com um brilho de quem acabou de foder, sua técnica ainda era
impecável — o.k., ele não ia registrar fielmente a teia de aranha de linhas
nos cantos dos olhos delas ou a mais leve sugestão de flacidez sob seus
queixos.
— Então, o que você acha? Minha arte tem alguma profundidade? —
Leo tentou soar irreverente.
— Bem, temo que não — respondeu Jane como se soubesse que pelo
menos dessa vez tivesse de ser sincera. — Não me entenda mal, é muito
divertida, mas não tem alma. Mas você já sabia disso, não é?
Leo quis fazer uma piada sobre ela saber o preço de tudo e o valor de
nada, mas isso teria sido tão clichê quanto suas gravuras de merda. A
gentileza de Jane era tão ilusória quanto o talento dele. Era apenas uma
fachada quando na verdade ela se mantinha tão distante e inviolável
quanto um ditador.
— Você não entenderia — disse ele estupidamente.
— Provavelmente não — concordou ela. — Mas sei que estávamos
brincando, nos divertindo, e então você deu uma olhada naquela pintura,
aquela com o mar e o penhasco, e se desligou. — Ela pegou sua mão e
entrelaçou os dedos frios nos dele. — Você vai me falar sobre aquela
pintura? Por que ela lhe perturbou tanto? Você não tem que falar se não
quiser, mas, como dizem, um problema fica mais leve quando é
compartilhado, querido. Por favor...
Leo não ia contar, mas algo na maneira como Jane estendeu a mão e
murmurou de um jeito encorajador fez com que se lembrasse de si
mesmo aos dezoito anos. Ele tinha ido a Londres, com a bolsa abarrotada
de lápis e tintas, a cabeça cheia de sonhos e planos, e sentava no
escritório da casa de Rose quando não estava na faculdade, admirando a
pintura de Laura Knight. Em grande parte da mesma forma que olhava
para ela quando era um menino e a pintura ficava pendurada na casa em
Lullington Bay.
Havia algo sobre aquela imagem, tão diferente das paisagens
marítimas que tinha pintado na praia durante os longos verões. A rocha
dura, o mar sombrio; ele pensava em como seria estar no topo do
penhasco e olhar para baixo. A pintura mexera com ele — algumas vezes,
até a esboçara —, mas o tipo de arte que trazia glória e exposições de
galeria não era a feita com imagens do mar.
Era 1999. Todo mundo em seu curso de graduação da Central St.
Martins estava fazendo experiências com vídeo, performance e
instalações de luz. Desenhar o que via à sua frente não atenderia às
expectativas.
A única coisa em que Leo era bom, tão bom quanto todos os seus
amigos eram com suas esculturas transparentes e vídeos interativos,
estava sendo desperdiçada. Arte era todo um estilo de vida. Você não
podia andar pelas ruas do Soho sem tropeçar em algum integrante do
Young British Artist, e se não tivesse se embebedado com Damien Hirst,
vomitado em frente a White Cube, cheirado um pouco com um candidato
ao prêmio Turner então sequer podia se intitular artista.
Depois da exposição final de formatura, quando todos os outros em seu
curso fecharam contrato com agentes e receberam várias bolsas e
prêmios, todos eles de repente descobriram sua ética de trabalho. Leo
descobrira o fundo de outra garrafa.
— Fique um ano fora — dissera Rose. — Não pense em pintura. Volte
com a mente renovada.
Ele poderia ter viajado. Ido para Ibiza. Para Goa. Acabara ficando em
Londres porque era onde seus amigos estavam, e, se continuasse bebendo
e indo a boates e festas com eles todas as noites, então ainda seria um
artista.
Rose ameaçou se afastar dele algumas vezes.
— Ninguém gosta de um bêbado, Leo — dizia ela quando ele chegava
aos tropeços, os olhos arregalados, após dias desaparecido. — Eles são
muito chatos.
Apesar de todo o seu conhecimento do mundo, ela não imaginara que o
barato dele vinha de comprimidos e pó. Leo tinha amigos que
trabalhavam a noite toda, cheirando uma carreira toda vez que
começavam a ficar desanimados, mas ele não estava trabalhando, só
dançando, transando e falando sem parar com qualquer um que quisesse
ouvir que ele ia ser alguém.
De vez em quando ele sentia medo. Como na manhã em que acordara
com dores no peito e o coração batendo tão rápido que ficara na
emergência por horas, até o coração acalmar um pouco e ele escapulir.
Ou quando um de seus amigos foi encontrado morto num prédio ocupado
ilegalmente em Camberwell com os detritos de costume em volta:
seringa, tubo de borracha e papéis enrolados aos montes.
Isso o assustara bastante por um tempo.
— Eu só preciso fazer algo real — dissera ele a Rose. — Parar de
enrolar e começar a crescer.
Fora então que Leo começara a sair com a equipe de manutenção.
Pintara e emassara, aprendera habilidades básicas de elétrica e
hidráulica, até mesmo projetara, reformara e substituíra uma roseta de
teto. Ele era tomado por certo sentimento de satisfação ao final de cada
dia, mas continuava bebendo. Em algumas manhãs estava com ressaca
demais para ir trabalhar, as manhãs tornaram-se dias, semanas e ele
voltara aos velhos hábitos, às antigas companhias.
Mas Rose nunca desistira de Leo até ele começar a se ressentir dela
também, por achar que fora ela quem enchera sua cabeça de besteiras.
Ela o deixara ávido por um mundo longe de Durham, longe da vidinha
segura que seus pais queriam para ele. Ela estava tão convencida do
talento de Leo que ele também acreditara que estava destinado a ser um
grande artista. Quando se passa a maior parte da vida esperando a
grandiosidade, é impossível se contentar quando ela nunca chega.
— Talento requer tempo — dissera Rose quando ele tentara explicar os
pensamentos que enchiam sua cabeça. — Um pianista simplesmente não
senta ao piano e começa a tocar. É preciso prática e perseverança, dia
após dia, durante anos. Você tem que estar preparado para se dedicar.
Você está preparado, Leo?
Quando ele dissera que estava porque era tão difícil dizer a Rose que
estava errada, ela mexeu mais alguns pauzinhos e lhe arranjou uma vaga
no programa de mestrado na Slade. Como uma demonstração de fé, ela
lhe dera a pintura de Laura Knight.
— Ganhei essa imagem de alguém que amava muito — dissera ela, a
voz tremendo um pouco, como se ainda amasse essa pessoa, embora
estivesse morta havia anos. — Mas sei o que significa para você e quero
que fique com ela.
Leo se deixou envolver novamente, tocado pela fé que Rose ainda tinha
nele. Mas só ficara três meses no programa de mestrado. Três meses
cercado por pessoas que eram melhores e mais brilhantes do que ele, e
Leo podia explicar tudo dizendo que fez isso porque estava irritado com
Rose por pressioná-lo tanto o tempo todo, mas talvez a simples verdade
fosse que fizera isso para se vingar dela. Ele vendera a pintura porque
sabia que não haveria como voltar atrás em tamanha desconsideração
pelos sentimentos de Rose, pelo amado que já não estava mais ao lado
dela, e, com o que sobrara depois de ter pago o seu fornecedor de drogas,
ele sumiu de cena e se afundou de verdade.
Uma semana depois, ele acordara no hospital, com a mãe sentada em
uma cadeira parecendo que tinha criado raízes.
— Leo — dissera ela com tristeza. — Como você pôde? Você quase
morreu. E você vendeu a pintura. Rose está furiosa.
Ele voltara a Kensington antes de ser mandado para a reabilitação.
Linda ficara lá embaixo, com mais medo de Rose do que ele. Enquanto
Leo pegava suas coisas, Rose aparecera à porta do seu quarto, tão fria e
distante quanto a pintura com a qual ele traíra sua confiança.
— Posso perdoar a sua preguiça — dissera ela enquanto Leo fechava o
zíper da bolsa. — Não dar importância a certas loucuras da juventude,
porque todos nós já fizemos coisas horríveis e arrogantes quando éramos
jovens, mas jogar fora tudo o que lhe dei...
— Você recuperou a pintura, não foi? Mamãe disse que um dos seus
marchands...
— Não estou falando da pintura — disparara Rose. — Sim, muito bem,
Leo, isso doeu mais do que você poderia imaginar, mas não posso perdoá-
lo por desperdiçar seu talento. Por virar as costas para ele em todas as
oportunidades que você teve. Estou cansada de esperar que você cresça.
Minha nossa, quando eu tinha a sua idade, até mais jovem do que você,
agarrei cada oportunidade que tive!
— Sim, sim, eu sei. Havia uma guerra acontecendo — dissera ele num
tom entediado.
Rose quase nunca falava sobre a guerra (embora a fuga da jovem Rose
para Londres usando o casaco de pele da mãe fosse uma lenda da
família), mas naquele momento, com a cabeça e os ossos doloridos,
quando até mesmo o esforço de pegar sua bolsa quase o derrubara, Leo
percebera que ele e Rose nunca tinham falado muito sobre ela. Rose
nunca falara sobre o homem que lhe dera a pintura, por exemplo.
Todo o foco obsessivo de Rose se concentrara nele. Ela o encorajara
baseada nos próprios sonhos, não nos dele, por isso não era de admirar
ele ter afundado.
Era tudo culpa de Rose.
— Sim, Leo, havia uma guerra — retrucara ela com frieza. — Ela nos
fez crescer rápido. E nos ensinou o que era importante, o que era
precioso; algo que você ainda precisa aprender. Se continuar assim,
duvido que algum dia você aprenda.
— Quem decide isso sou eu — dissera ele mal-humorado, covarde
demais para culpá-la. — Cabe a mim decidir como levo minha vida, não
a você.
— Saia logo daqui, Leo. — Rose nunca tinha gritado com ele. Ela não
precisava. Sua voz calma, as emoções impiedosamente refreadas, era tão
enérgica quanto um grito. — Saia e não pense em voltar até ter feito algo
da sua vida e criar coragem para me olhar nos olhos.
Então ela se virou, como se vê-lo sair de sua vida não valesse nem mais
um segundo de seu tempo. Mas ele parou à porta, observou-a caminhar
pelo corredor, as costas aprumadas, a cabeça erguida, e a única coisa que
pareceu real foi o quanto ele a odiava.
Agora tudo tinha voltado ao mesmo ponto. Ele estava de novo na casa
de Rose. Ainda não tinha crescido. Ainda não tinha feito nada da sua
vida, mas uma coisa mudara. Já não odiava Rose — nunca odiara. Só
tinha sido mais fácil odiar Rose do que si mesmo.
— Eu me importo com Rose — disse ele a Jane, que, por alguma razão,
estava de joelhos diante dele, com as mãos ainda nas suas. — Não teria
voltado se não me importasse. É só que, agora que estou aqui... bem, não
consigo consertar as coisas porque não posso ser quem ela quer que eu
seja. Ela nunca vai me perdoar por isso. — Leo se encolheu de novo. —
Ela também nunca vai me perdoar por vender a pintura.
— Acho que Rose só quer que você seja feliz. Isso é tudo o que alguém
quer para aqueles que ama, e ela ama você. — Jane apertou as mãos dele
mesmo quando Leo tentou soltá-las.
— Se você está brincando comigo... se isso ainda é um jogo, algum tipo
de...
— Não — disse ela. Leo percebeu então que durante todo o tempo em
que estivera falando, tempo bastante para sua voz estar rouca agora, Jane
não tinha tirado os olhos dele. Ela o ouvira de uma forma que fez Leo
pensar que em geral ela só fingia ouvi-lo. — Você e eu, nós não temos
relevância agora. Isso é sobre você e Rose. Você tem que encontrar um
jeito de se reaproximar dela.
— Eu sei. — Leo se inclinou para a frente de modo que sua testa
descansou contra a de Jane. Ele estava um pouco suado, mas ela não se
afastou. — Mas não acho que exista uma fórmula mágica para isso, não
é?
— Você precisa ser honesto com ela. — Leo não confiava de todo em
Jane e seus belos discursos, mas acreditou no conselho que ela lhe dava
agora. — Volte a Leytonstone e pegue a pintura.
— Não posso sequer olhar para ela. Tenho feito tantas coisas de que me
envergonho, mas essa é a pior. Esse é o meu segredo mais vergonhoso.
Não posso acreditar que lhe contei...
— Querido, acredite em mim, em se tratando de segredos, esse não é
um tão terrível. Há pessoas seguindo em frente alegremente com suas
vidas que têm segredos muito, muito piores — argumentou Jane. Ela se
curvou e tirou o cabelo do rosto de Leo. — Escute o que digo: só porque
você fez uma coisa ruim não significa que seja uma pessoa ruim.
— Talvez eu faça coisas ruins porque sou uma pessoa ruim...
Jane balançou a cabeça decidida como se estivesse inequivocamente
certa enquanto Leo estava sem a menor sombra de dúvida errado.
— No curto tempo que o conheço, você só fez coisas ruins quando
estava drogado. — Ela olhou para cima. — Como posso dizer isso de
forma educada? As drogas o transformam num babaca furioso, querido. É
tão simples. Basta parar de usar drogas e dar a pintura a Rose.
— Não posso devolver o que já é dela — ressaltou Leo com teimosia.
— É um símbolo, querido. — Jane se apoiou sobre os calcanhares e
tirou as mãos dele. — O que eu faço com você?
22

Abril de 1944

Quando enfim chegou a Montague Terrace depois de mendigar uma


carona de volta a Londres em um trem de carvão, Rose ficou aliviada ao
descobrir que só Maggie estava em casa. Phyllis ia demonstrar um
cuidado exagerado e Rose não conseguiria suportar isso naquele
momento, e Sylvia provavelmente tentaria minimizar o ocorrido, dizendo
algo desdenhoso sobre os ianques e como eles estão sempre atrás de uma
única coisa. Maggie simplesmente notou a aparência desalinhada de
Rose, as marcas de lágrimas e fuligem em seu rosto e disse:
— Parece que você precisa de uma bebida.
Rose teria dado tudo por uma xícara de chá, mas Maggie lhe serviu
uma pequena dose de vodca.
— Não tome só um golinho. Dê uma golada grande — ordenou ela.
Rose obedeceu, então tossiu e cuspiu, e seus olhos voltaram a arder,
mas enfim ela sentiu como se tivesse voltado ao próprio corpo.
— Não acredito que ele gostava de mim — disse a Maggie. — Se
gostasse, não teria... — Não conseguiu terminar a frase, não conseguia
colocar em palavras o que Danny lhe fizera, mas Maggie pareceu
entender porque sentou no braço da cadeira onde Rose estava sentada e
olhou para os braceletes de hematomas que adornavam os pulsos de
Rose.
— É melhor descobrir agora, antes que ele partisse o seu coração —
disse ela.
— Ele já partiu o meu coração — retrucou Rose.
Maggie beijou o topo da cabeça de Rose, murmurou algo em sua
própria língua e disse:
— Ah, pequena, eu esqueço como você é tão jovem. Seu coração não
está partido, só temporariamente ferido. Agora vá tomar um banho —
acrescentou quando Rose abriu a boca para insistir que já não era mais
tão jovem.
Naquele momento, sentia-se velha e triste. Ah, ela nunca tinha se
sentido tão triste assim.
— Não posso tomar banho. — Foi o que de fato disse. — Não em um
sábado. Estamos em guerra.
— Duvido que a guerra acabe só porque você tomou um banho — disse
Maggie. — Gostaria que fosse assim!
Rose queria muito encher a banheira do banheiro que compartilhavam
e afundar na água, mas estavam em guerra, então encheu a banheira só
até a marca de dez centímetros que o sr. Bryce tinha pintado por ser um
defensor de regras. Então entrou na água e esfregou impiedosamente o
corpo até ficar limpo. Tentou ignorar a dor pungente entre as pernas, as
marcas feias em suas coxas, e tentou não pensar em nada até que ouviu
uma batida na porta.
— Rose? Sou eu — chamou Sylvia. — Posso entrar?
Com um suspiro, Rose saiu da banheira, atravessou o linóleo fino e
rasgado sem fazer barulho e vestiu o penhoar antes de abrir a porta e
espiar lá fora.
— Chá. — Sylvia empurrou uma caneca fumegante para Rose,
enquanto tentava entrar no banheiro. — Achei que eu também poderia
tomar um banho se a banheira estiver com água. Está pelo menos um
pouco quente?
— Morninha — respondeu Rose enquanto Sylvia tirava as roupas,
porque não era nada pudica com esse tipo de coisa, mas ainda assim Rose
desviou o olhar. — Vou deixá-la à vontade, então.
— Você não vai fazer isso — ordenou Sylvia ao entrar na banheira. —
Fique comigo. Diga-me como você está e não minta. Eu sempre sei
quando você está mentindo.
Rose procurou se ajeitar na beirada da banheira e se obrigou a olhar
para Sylvia, que não estava nem um pouco tentando minimizar as coisas;
só havia preocupação em seu rosto.
— Doeu muito mesmo — sussurrou ela. — Ele não parava, por mais
que eu implorasse, e o pior é que é tudo minha culpa. Ele disse que eu o
encorajei e foi mesmo. Afinal, aceitei ficar sozinha com ele.
Sylvia dobrou as pernas em direção ao peito e apoiou o queixo nos
joelhos.
— Não posso concordar com isso. Parece-me que tudo o que é preciso
para se encorajar um cara é sorrir e dizer oi. — Ela fixou os límpidos
olhos azuis em Rose. — Toda garota que conheço passou por pelo menos
uma situação horrível como essa com um homem. Eles podem ser uns
verdadeiros animais, mas é melhor não pensar muito nisso, Rosie. Com o
homem certo, pode ser bem agradável. Melhor do que isso. Pode ser
muito, muito bom.
— Não vejo como isso é possível — retrucou Rose. Ela nem mesmo
queria dançar outra vez com um homem, que dirá fazer qualquer outra
coisa. — Foi a coisa mais horrível que já me aconteceu.
— Ah, querida, se essa é a coisa mais horrível que já lhe aconteceu,
então você não sabe a sorte que tem — disse Sylvia, soando tão sem
emoção, tão diferente do que costumava ser. Mas havia algo tão
misterioso com relação ao rosto em geral alegre de Sylvia que Rose sabia
que era melhor não perguntar nada. Então, Sylvia se recostou na
banheira e levantou uma perna longa e pálida para inspecionar o esmalte
vermelho dos dedos dos pés. — Diga que ele pelo menos usou camisinha,
que ele não foi tão imprudente.
Rose se achava incapaz de corar por alguma coisa, mas o calor
repentino em suas bochechas provou que estava errada.
— Acho que não. — Ela baixou a voz. — Ele espalhou aquela coisa em
cima de mim. — Então falou ainda mais baixo. — Dentro de mim.
— Desgraçado. — Sylvia fechou os olhos e suspirou. — Provavelmente
é melhor não se preocupar com isso até que haja algo com que se
preocupar.
— Mas e se houver algo com que me preocupar?
Rose tinha se concentrado tanto no ato em si, na traição, que não
pensara que poderia haver outras consequências.
— Você não seria a primeira garota a engravidar e ninguém precisa
continuar grávida — respondeu Sylvia. — Eu conheço um cara que
conhece um cara. Ele tem um consultório na Harley Street. Vai ficar tudo
bem, querida, eu prometo. Mas, se algum dia eu vir o seu Danny, vou
torcer o maldito pescoço dele.
Maggie era da mesma opinião. Só Phyllis se recusou a condená-lo.
— Você não deve ser tão dura com ele — disse a Rose uma semana
depois quando estavam a caminho do açougueiro para buscar sua porção
semanal de carne. — Parece apenas que ele foi tomado de paixão.
— Sinceramente, Phyll, não era paixão. Era força bruta — retrucou
Rose, mas Phyllis balançou a cabeça.
— Meu Brian foi tomado de paixão. Os homens simplesmente não
conseguem se controlar.
Danny não tinha sido levado a forçar a barra com ela, ele escolhera
isso. Esperara Rose dormir para tomar o que ela já tinha lhe dito que não
poderia ter. Mas, quando chegou uma carta dele na segunda-feira
seguinte, Rose não a rasgou sem ler. Ela pensou nisso, mas foi vencida
pela curiosidade.
Dentro estava o anel que ele tinha lhe dado e uma breve carta.

Querida Rosie,
Você ainda está chateada comigo?
Sei que agi como um idiota, mas eu queria tanto você. A questão é que
a maioria das garotas tem uma primeira vez ruim. Então é melhor
resolver isso o mais rápido possível.
Eu queria que você tivesse ficado para ter feito amor com você de novo
e de novo. Para ter mostrado a você como podia ser bom. Espero que você
ainda permita que eu faça isso. E espero que não me odeie, porque amo
de verdade a minha bela fedelha.
Diga que ainda me ama, Rosie. Eu odiaria pensar que, se o pior
acontecer, morrerei sem ser perdoado.
Com todo meu amor,
Danny
P.S.: Por favor, me responda, pelo menos para eu saber que você está
bem. O endereço no alto da página é do pub local, assim não precisamos
nos preocupar que os censores do Exército saibam o que houve entre nós.

Se isso era um pedido de desculpas, então era um muito fraco, pensou


Rose, decidida a não responder e superar todo aquele desastre. Até Sylvia
lhe dissera que era hora de parar de remoer aquilo.
— Você tem que se animar, querida. Se fosse um pobre soldado
solitário a quilômetros de casa, eu preferiria me arriscar com os alemães
do que ter que olhar para o seu rosto infeliz a noite toda.
Contudo, parecia que havia menos pobres soldados solitários no
Rainbow Corner nos últimos tempos. Ainda havia rumores de que a
invasão era iminente e que todas as licenças estavam para ser canceladas,
mas Rose não queria dar ouvido a isso. Não só porque era antipatriótico
ouvir esse tipo de fofoca fútil (apesar de isso nunca tê-la impedido antes),
mas porque seria Danny que lideraria a missão. Em seu avião, onde
aqueles holofotes e Stukas poderiam encontrá-lo e acabar com ele. Então
Rose imaginou que, apesar do que ele fizera, de alguma maneira mínima,
ela ainda se importava o suficiente com Danny para não querer que algo
terrível lhe acontecesse.
Ela decidiu que responderia a carta, para Danny ficar sabendo que não
guardava nenhum rancor. E ele deveria se considerar um cara de sorte
por Rose estar disposta a lhe oferecer isso.
Caro Danny,
Eu não o odeio e é claro que não lhe desejo mal algum. Mas não posso
perdoá-lo pelo que fez, por isso talvez seja melhor que a gente se afaste.
Por favor, fique bem.
Rose

Danny se recusou a desistir sem lutar. E respondeu logo no dia


seguinte.

Por favor, Rosie, dê uma trégua. Minha velha mãe sempre dizia que
nunca se deve ir para a cama brigado com alguém. Não vamos continuar
brigando quando não sabemos o que o futuro nos reserva.
Só espero ainda poder abraçá-la.
Com todo meu amor,
Danny

Fazia duas semanas que ele tinha levado Rose para aquele hotel. Se
aquela fosse apenas uma briga boba de namorados, ela teria cedido,
escrito de volta para ele, colocando todo seu amor e devoção em cada
letra, cada sinal de pontuação. Mas agora, toda vez que pensava em
Danny, Rose se lembrava daquele quarto, daquela cama e do que ele
fizera com ela ali, então era melhor não pensar mais nele de jeito
nenhum. Foi um alívio abençoado sua menstruação ter descido no dia
seguinte, assim ela não precisou sofrer com isso também, mas ainda se
sentia terrivelmente triste com relação a tudo aquilo quando esbarrou
com Edward nas escadas do Rainbow Corner.
— Olá, estranha — disse ele, e sorriu. — Como está a arrecadação?
Rose olhou para ele sem entender.
— Sinto muito. O que estamos arrecadando?
Edward ainda era uma incógnita. Ela mal tinha pensado nele naquelas
últimas semanas, mas não havia nada de enigmático na forma como
trincou a mandíbula. Quando falou, sua voz tinha perdido toda a
misteriosa cordialidade.
— Os refugiados que estão chegando da Europa. Perdoe-me se estou
enganado, mas me lembro claramente de você visitar a casa em
Kensington que estou preparando para recebê-los. Também me lembro de
você escrever uma lista com todas as coisas de que podem precisar e se
voluntariar para angariar alguns brinquedos para as crianças.
Não era que Rose tivesse esquecido, não por completo. Os refugiados
que chegariam da Europa em algum momento indeterminado no futuro
tinham sido empurrados para os confins mais profundos de sua mente e
deixados lá, enquanto ela chafurdava na autopiedade. Pensando apenas
em como estava infeliz, sem se preocupar com qualquer outro que
também pudesse estar sofrendo.
— Ah — disse ela. — Eu pretendia cuidar disso, mas não tive nenhum
tempo livre.
— Você não teve tempo de perguntar nem mesmo a uma pessoa se
poderia doar alguma roupa de lã ou um quebra-cabeça velho? — Cada
palavra era como uma estaca de gelo. — Não conseguiu arrecadar nem
uma boneca ou um jogo de tabuleiro?
— Bem, não, ainda não — admitiu Rose hesitante. Ninguém ficava tão
irritado assim com ela desde que deixara Durham, e tinha sido mais
decepção do que aquela raiva fria que fizera Edward desviar os olhos,
como se Rose fosse completamente repulsiva. — Mas vou recolher.
Imediatamente. Eu prometo. Quando eles vão chegar?
— Não importa. — Edward começou a se afastar antes mesmo de
terminar a frase. Mas só chegou até o primeiro degrau antes de se virar.
Rose se encolheu: antes só o tinha visto sério e gentil e odiava a expressão
dura e sombria em seu rosto. — Você realmente é uma garota muito
egoísta e negligente — disse ele em voz baixa. Não havia nada que Rose
pudesse dizer em sua defesa porque era verdade. Ela raramente pensava
em alguém além de si mesma. — Essas pessoas, elas passaram por
horrores indizíveis, arriscaram suas vidas para chegar a um país onde
não conhecem ninguém e você não teve oportunidade de conseguir
sequer um pião velho.
Ele desceu as escadas, e Rose correu para o toalete feminino e chorou
um pouco, porque não queria que as pessoas, sobretudo Edward,
achassem que ela era esse tipo de garota, superficial e sem coração.
Algo tinha de mudar. Ela estava cansada de ficar se remoendo ao
pensar em Danny — remoer-se não ia mudar as coisas, não apagaria a
lembrança do que ele lhe fizera. Ela não parava de reviver as lembranças
daquela noite e se repreender por não ter lutado o suficiente. Isso tinha
de acabar.
Então, Rose pensou nos refugiados e atormentou todo mundo que
conhecia pedindo doações. Não só as garotas do Rainbow Corner, mas
Stan e Gladys do café, que encontraram uma caixa de gibis velhos nos
fundos do guarda-roupa do quarto da filha. Rose não achava que os
refugiados falassem inglês, mas eles poderiam cortar as figuras e colá-las
nas paredes para dar um ar um pouco mais alegre e acolhedor à casa em
Kensington.
Mas no fim tinha juntado um conjunto de brinquedos meio acabados
que dificilmente alegrariam qualquer refugiado vindo da Europa
ocupada. Rose até pensou na possibilidade de fazer algo com o vestido já
troncho de tafetá azul-claro de Shirley.
— Quem sabe poderíamos cortá-lo para fazer um lindo vestido para
uma menininha? — sugeriu a Maggie.
Maggie olhou para o vestido, deu de ombros, depois disse com voz
arrastada:
— Você não acha que os refugiados já sofreram o bastante?
Assim, o vestido ficou pendurado como uma mortalha solitária atrás
da porta do quarto e foi Phyllis que veio ao resgate de Rose ao convidá-la
para passar o fim de semana em sua casa.
— Há pilhas de coisas no sótão para seus refugiados. Papai nunca
deixa ninguém jogar nada fora.
Elas viajaram para Norfolk no fim de tarde de sábado, na cabine de um
caminhão do Exército. Parte da casa da família de Phyllis havia sido
requisitada pelo Exército no início da guerra.
— Só a ala leste, então dificilmente notamos que eles estão lá —
explicou Phyllis, enquanto seguiam em alta velocidade por estradas
sinuosas, iluminadas apenas pela luz da lua cheia. Uma lua de
bombardeiro. — Na verdade, as pessoas evacuadas foram um problema
muito maior. Elas soltaram pequenos fogos de artifício na galeria e
abriram um buraco bem no meio de um Turner. Depois disso, mamãe
disse que só receberia garotas evacuadas vindas de boas famílias.
— Seus parentes são muito importantes, Phyllis?
Rose sabia que Phyllis era uma Honorável, ela até fora apresentada à
corte antes da guerra, mas toda aquela conversa sobre alas e galerias era
bem intimidante.
— Que nada! Não somos da aristocracia, só fidalgos rurais.
Isso não era nem um pouco reconfortante.
Assim como a mãe de Phyllis, Lady Carfax, que encarava Rose com
frieza como se suspeitasse que a jovem tinha unhas sujas e todos os tipos
de hábitos desleixados. Apesar do comportamento distante, Lady Carfax
deu carte blanche a Phyllis e Rose para levarem o que quisessem para os
refugiados.
No domingo, encorajadas por um café da manhã com ovo cozido e tiras
de torradas — um ovo de verdade colocado por uma galinha naquela
manhã —, Phyllis e Rose passaram a manhã lutando com teias de aranha
e abrindo caixas de madeira no sótão. Seu espólio incluía várias bonecas
vitorianas de aparência malévola, dois ursos de pelúcia que já tinham
visto dias melhores, uma casa de bonecas completa com móveis, blocos
de montar, um trilho de trenzinho, embora faltasse metade da pista, uma
pilha de jogos de tabuleiro e um conjunto de croquet.
Depois de um almoço com presunto e torta de alho-poró — com muito
mais alho-poró do que outra coisa —, elas atravessaram o terreno até os
estábulos. Seu destino era o velho celeiro onde equipamentos agrícolas
quebrados, cortadores de grama antigos e pedaços de metal enferrujado
que pareciam instrumentos de tortura medievais tinham sido
aposentados.
— Não acho que haja aqui algo que os refugiados possam querer —
disse Rose com tristeza, enquanto olhava numa caixa de papelão podre
que continha alguns catálogos mofados de sementes.
— Deve haver. Papai se empolgou um pouco quando a guerra foi
declarada e comprou todo tipo de coisas. — Phyllis mexia em uma
engenhoca letal que parecia um arado antigo. — Ele achava que treinaria
todos os homens que ficaram na cidade para transformá-los em uma
força letal caso houvesse uma invasão nazista, mas eles passam a maior
parte do tempo fazendo exercícios de treinamento na área de pasto da
cidade.
Com cuidado, Rose seguiu Phyllis até o interior do celeiro e praguejou
quando prendeu a saia de tweed em um prego.
— Rose! Aqui! Você nem vai adivinhar o que encontrei!
Ainda enroladas e envoltas em papel pardo estavam dez camas de
campanha. Dez! Havia também três caixas de madeira do Exército e da
Marinha lotadas de utensílios de cozinha, copos e talheres usados em
acampamentos militares, kits de primeiros socorros e,
inacreditavelmente, vários mosquiteiros.
Com a ajuda de um rapaz da vila que tinha vindo fazer o que pudesse
nos jardins, elas levaram seu espólio para o quintal para ser transportado
pelo mesmo caminhão que as levara a Norfolk e, com sorte, teria espaço
suficiente para levá-las de volta a Londres.
Ainda estava claro o suficiente para uma caminhada, então Phyllis
pôde mostrar a Rose o bosque, onde ela e os dois irmãos mais velhos
acampavam e faziam piqueniques quando eram mais novos. O mais
velho, Anthony, estava baseado no Egito, pelo que todos estavam gratos.
— Ele gostaria de ver mais ação, mas acho que minha mãe está bem
satisfeita do jeito que está — disse Phyllis ao sentarem em um tronco
caído. — Teddy está na Marinha. Não me lembro qual foi a última vez em
que estivemos todos juntos. Não é estranho que a gente costume não dar
valor às coisas corriqueiras e isso seja do que mais sente falta quando já
não se tem mais?
Rose tinha fugido de suas coisas corriqueiras e não sentia nem um
pouco de falta delas. Londres ainda era fascinante, e, se ela não tivesse
ido para Londres, nunca teria passado pelos portais sagrados do Rainbow
Corner. Nunca teria aprendido a dançar jive. Nunca teria se apaixonado.
Nunca teria deixado esse amor para trás. Nunca teria se tornado Rose
Beaumont.
— Não gosto das bombas ou do racionamento, ou da preocupação
constante de que algo terrível possa acontecer com as pessoas de que
gosto, mas os outros aspectos da guerra são bem empolgantes. Você não
acha?
Phyllis olhou para o longo gramado salpicado de pálidas prímulas
amarelas.
— Bem, se não fosse a guerra, eu nunca teria conhecido você ou a
Sylvia e a Maggie. — Ela balançou a cabeça. — Nunca cheguei a ser
amiga das meninas glamorosas da escola, então é bastante empolgante.
— Não fale besteira! Você é tão glamorosa quanto Sylvia ou Maggie —
repreendeu Rose decidida. Mas isso não era verdade e era por isso que
Rose amava Phyllis. Ela era gentil, firme e tinha um coração romântico e
sentimental, que costumava combinar perfeitamente com o de Rose. Mas
era àquele lugar que Phyllis de fato pertencia: entre as flores silvestres e
as cercas vivas, o doce ar fresco. — Não vamos ser piegas. A sra. Barnes
não disse algo sobre biscoito de gengibre? Venha, aposto uma corrida
com você até em casa!
23

Três horas da manhã. Jane estava bem acordada e com os olhos irritados.
Leo costumava se queixar de insônia desde que passara a beber menos,
mas ele estava apagado e roncando de leve do outro lado da cama, com a
mão em volta do travesseiro deles.
A noite se estendia diante de Jane. Ela tentou um exercício de
meditação, mas era difícil se concentrar quando só conseguia pensar em
Leo. E ela vinha pensando em Leo, enquanto o sono não vinha, desde a
confissão dele. O problema de Leo era ser frágil demais, e Jane era uma
idiota por não ter notado isso antes.
Os outros homens que Jane tivera deviam odiá-la por ter ferido seus
sentimentos, feito parecerem bobos, ferido seu orgulho, mas esses eram
efeitos colaterais normais. Na maioria das vezes, fora ela que tivera seus
serviços brutalmente dispensados.
Mas Leo... Jane não era um monstro, ou pelo menos não achava que
era, e não queria partir em pedaços alguém que simplesmente não
conseguia se recompor.
O que eu faço com você?
Não havia razão para ficar ali deitada com os pensamentos sempre
voltando ao mesmo ponto. Então, com cuidado, porque ela não queria
acordar Leo, Jane deixou a cama e saiu do quarto.
Ela sempre achara excitante andar pela casa dos outros na calada da
noite. Não revirava as gavetas ou espiava os armários. Ela não fazia o
reconhecimento da área ou um inventário das coisas, mas uma casa
sempre revela seus segredos quando se é a única pessoa acordada.
Jane sabia como era andar por uma casa e estremecer e querer sair dali
porque as coisas ruins que aconteceram ali estavam impregnadas nas
paredes, emitindo gases invisíveis, porém tóxicos. Mas isso estava longe
de se aplicar à casa de Rose. Jane não sentia um pressentimento terrível
ao entrar em um cômodo. Rose tinha sido feliz ali.
Jane fez uma varredura completa da casa e então, quando chegou ao
topo da escada, ainda nem um pouco cansada, ouviu um grito. Não era
alto, mas havia algo tão visceral naquele som que o coração de Jane bateu
forte em alerta.
O barulho continuou. Vinha do outro extremo do corredor, onde
ficavam os aposentos de Rose, e, quando Jane se aproximou, os sons se
transformaram em palavras.
— Ah, Deus! Meu Deus! — Era o grito frágil de uma idosa assustada.
Não houve resposta quando Jane bateu na porta. Esta levava a uma
sala de estar, depois outras portas duplas que davam no quarto. Jane não
acendeu as luzes, só chamou:
— Rose? Sou eu, Jane. Você está bem?
Rose gritou de novo, como se não conseguisse mais formar palavras. E
Jane tinha aberto a porta, mostrado que estava ali, então já havia se
envolvido. Ela acendeu uma das luzes da sala de estar para poder ver o
quarto. Rose, com sua camisola branca embolada para cima, estava caída
com metade do corpo para fora da cama. Parecia paralisada pelo medo de
que, caso se movesse, reagisse à dor que sentia com um forte espasmo, a
força pudesse quebrar os membros pálidos que Jane via largados de
qualquer jeito. Rose já não era mais a mulher calma, contida e
absolutamente formidável que Jane vira até então.
— Eu estava subindo as escadas quando ouvi você — explicou Jane,
como se Rose naquele momento se importasse em saber por que a outra
tinha aparecido de repente. — Você está sentindo muita dor? — Rose não
disse nada, nem mesmo virou a cabeça, que estava em um ângulo
estranho no travesseiro. — Que pergunta idiota, é claro que você está
com muita dor — disse Jane, aproximando-se da cama. Agora podia ver o
rosto de Rose, que parecia tão assustada, que Jane também ficou com
medo. Mas as duas não podiam ficar assustadas. Isso não resolveria nada.
— Você estava tentando sair da cama? Precisa ir ao banheiro? Ou dos
seus comprimidos? — Rose assentiu uma vez. — Estão no banheiro? —
Outra confirmação.
Jane tentou primeiro ajeitar Rose, girando as pernas dela com cuidado,
então segurando sua cabeça para poder arrumar os travesseiros e
esticando o lençol embolado o máximo que pôde. Rose mordia o lábio
inferior, então gemeu e agarrou o braço de Jane, depois se acalmou.
— O.k., você está segura agora. Vou pegar o seu remédio.
Ela deixou a luz do banheiro acesa quando voltou com comprimidos e
um copo de água.
— Achei que devia ser o tramadol. Você consegue sentar?
Rose não conseguia, mas Jane ajeitou os travesseiros de novo e passou
o braço com cuidado pelos ombros dela, colocou dois comprimidos em
sua língua, depois levou o copo aos seus lábios.
— Está tudo bem — disse Jane, que sempre mentira muito bem. —
Não tente falar. Apenas se concentre em inspirar e expirar devagar.
Ela sentou na beira da cama e segurou a mão de Rose, acariciando os
dedos dela no ritmo de sua respiração vacilante, que ficou mais firme à
medida que a dor obviamente começava a passar. A pele de Rose era fina
e frágil como papel, como vestidos de seda vintage que rasgam facilmente
quando não se é cuidadosa.
Então Rose abriu os olhos.
— Estou melhor — disse ela, como se tivesse tomado um gole de um
chá forte e restaurador. — Sou tão tola. Sempre vejo se tudo está na
mesinha de cabeceira antes de ir dormir.
— Você costuma acordar assim no meio da noite? — perguntou Jane.
— Você costuma perambular pela casa dos outros no meio da noite? —
rebateu Rose.
Jane levantou as mãos.
— Você pode me revistar para ter certeza de que não escondi a prataria
da família em algum lugar. — Rose ainda estava muito abalada e trêmula
para ser tão intimidadora como em geral era. — Você sempre acorda com
tanta dor?
Rose entrelaçou as mãos.
— É claro que não. Como eu disse, costumo deixar os comprimidos ao
meu lado, mas saí com George e estava tão cansada quando cheguei em
casa, que devo ter esquecido uma dose.
— Foi há quanto tempo, querida? Já faz meia hora que você tomou os
comprimidos e ainda está tremendo. Eles já deveriam ter feito mais do
que só abrandar a dor. Talvez você devesse tomar algo mais forte.
— Isso realmente não é da sua conta.
Velhinhas irascíveis não eram da alçada de Jane. Sua própria avó
falecera quando Jane tinha seis ou sete anos. Ela parecia velha por causa
do inchaço e do desgaste causados por tantos homens, bebidas e Deus
sabe mais o quê; mas só quando ficara um pouco mais velha e fizera as
contas foi que Jane percebera que a vovó Jo morrera na casa dos
quarenta anos. Ela não tinha sido tão ruim para uma avó — era uma
bêbada alegre e ativa, que podia colocar cereais em tigelas e mandá-los
para a escola —, mas, quando morrera, levara junto qualquer aparente
normalidade, e tudo o que restou foi a marca gordurosa no sofá onde
sentava dia após dia.
Ela também tivera uma bisavó, uma senhora de cabelo branco com um
pequeno jardim bem cuidado e uma pequena casa bem cuidada em uma
pequena cidade bem cuidada a alguns quilômetros de distância.
Jane fora lá uma vez, sobretudo para controlar as crianças menores,
enquanto a mãe batia na porta, que estava pintada de um tom alegre de
amarelo.
— Vovó Annie! Venha ver as crianças.
Jane ficara lá em pé, enquanto os pequenos faziam a maior bagunça no
jardim bem cuidado. Sua mãe lhes mandara parar uma vez, mas, como
vovó Annie ainda não tinha aparecido, apesar dos pedidos para que saísse
e lhes desse um beijo, e depois para que saísse e lhes desse algum
dinheiro, ela rira enquanto eles arrancavam as flores e chutavam terra no
rosto uns dos outros. Jane sentara no muro e vira um rosto pequeno e
ansioso espiando de uma janela do andar de cima. Os olhos delas se
encontraram por um segundo, então o rosto desapareceu atrás das
cortinas e um carro patrulha apareceu.
Jane pegara o menor e enfiara-o de volta no carrinho de bebê. Todo o
agradecimento que recebeu da mãe foi um tapa na cabeça.
— Empurra logo essa merda — dissera ela, indo embora. De cabeça
baixa, Jane seguira com o carrinho e as três outras crianças que se
empurravam e debochavam dos dois policiais que tinham saído do carro
e ficado lá de pé, com os braços cruzados.
Rose não parecia em nada com a vovó Jo ou a bisavó Annie.
— Você parece saber muito sobre drogas, minha querida — dizia ela
agora. — É algo que você e Leo têm em comum?
— Nunca tomei nada, mas conheço algumas pessoas que já tomaram, e
as suas não estão funcionando. — Por um instante, ela teve mais uma
daquelas pontadas de algo que podia ser empatia por Leo. Agora que se
sentia melhor, Rose parecia intratável e bem capaz de negar seu perdão, e
sua fortuna, independente do quanto Leo viesse a merecê-los. — É claro
que não é da minha conta, mas não entendo por que você iria querer
sentir dor.
— É claro que não quero sentir dor, mas também não quero minha
mente enevoada pelas drogas. Então em pouco tempo haveria
enfermeiros e cuidadores, estranhos perambulando pela minha casa. —
Rose soava petulante. — Ou pior, eu ficaria tão debilitada que me
colocariam em um tipo de tratamento intensivo. Linda tem boas
intenções, mas quer que eu conheça um lugar no meio de Hertfordshire
chamado Prados Tranquilos. Prados Tranquilos! Sinceramente, prefiro
explodir meus miolos com a velha espingarda do meu avô.
Não havia muito o que Jane pudesse dizer sobre isso, então ficou lá
sentada em silêncio. Rose parecia exausta pela própria rebeldia, porque
se recostou nos travesseiros e fechou os olhos.
— Bem, pelo menos você está melhor agora — disse Jane enquanto se
levantava com cuidado para não incomodar a idosa. — Você está certa, a
decisão tem que ser sua, mas não posso simplesmente ignorar o fato de
você estar sentindo dor e seus remédios não estarem dando conta.
— Foi só uma noite ruim. Não vamos exagerar.
Jane tinha feito o seu melhor e isso era tudo o que estava ao seu
alcance. Se Rose acordasse tomada pela dor na mesma hora na noite
seguinte, não seria problema de Jane — exceto que passara a ser
problema seu assim que abrira a porta da suíte de Rose e agora precisava
encontrar uma solução que beneficiasse todas as partes interessadas. Era
um assunto delicado. Jane entrou no banheiro para apagar a luz e,
quando saiu, decidiu o que fazer.
— O que eu fiz esta noite, bem, esse é basicamente o meu limite,
querida — disse a Rose, que tentava com cuidado ficar na horizontal. —
Não sou talhada para comadres ou qualquer coisa envolvendo fluidos
corporais.
As duas se entreolharam por um longo instante, com a única luz vindo
da sala de estar. Era difícil lembrar que trinta minutos antes Rose estava
paralisada e muda por causa da dor já que agora sorria. Era um sorriso
astuto, nada em que se pudesse confiar.
— Bem, fico feliz em ouvir isso, porque também não sou talhada para
essas coisas — retrucou secamente. — Além disso, seus cuidados com
uma pessoa na cama deixam muito a desejar. — Ela sorriu de novo. —
Que estranho. Pensei que essa seria uma área em que você se destacaria.
A resposta ácida de Rose tornou mais fácil Jane dizer o que precisava.
Ela colocou as mãos na cintura.
— Se você continuar sendo assim tão cruel, acho que eu teria todo o
direito de sufocá-la com uma das suas almofadas chiques de cem libras e
acabar logo com o nosso sofrimento.
Jane podia apostar que poucas pessoas tinham visto Rose chocada, a
boca aberta e os olhos arregalados em três grandes círculos de surpresa.
E também que era raro deixar Rose sem fala.
— Eu entendo, realmente entendo. Você está com dor. Mas é inútil você
sofrer e fazer todos à sua volta sofrerem — disse Jane enquanto
caminhava em direção à porta. Então se virou para olhar para Rose, que
ainda estava lá parada, a própria definição de perplexa. — Faça o que tem
que fazer, ligue para o seu médico, consiga outra receita, o que seja. Mas,
se não fizer isso, então vou telefonar para Linda e ela virá a Londres para
mandá-la para o Prados Tranquilos. A decisão é sua, querida.

Assim que abriu os olhos, Leo soube pela maneira como a luz do sol
passava pelas cortinas que já passava muito das sete e meia, a hora em
que Jane em geral o sacudia para acordá-lo antes de sair para sua aula de
ioga torturantemente quente. Ela ainda dormia ao seu lado, com o corpo
bem encolhido e só o topo da cabeça visível.
Quando ele saiu da casa alguns minutos depois, o carro de Rose
felizmente ainda andava devagar junto ao meio-fio.
— Mais trinta segundos e você teria que ir a pé — disse-lhe Frank com
alegria enquanto Leo deslizava para o banco de trás ao lado de Rose.
Ela olhava pela janela para a pracinha e não demonstrou ter notado a
presença dele. Rose nunca parecia contente em vê-lo, Leo estava
acostumado com isso, mas ignorá-lo por completo era novidade. No dia
anterior ele incentivara um jogo improvisado de futebol até Mark voltar
do depósito de material de construção e lhes dar uma bronca. Talvez Rose
tivesse ficado sabendo disso.
Leo olhou para o rosto de perfil de Rose. Quando se vê alguém todos os
dias, não se nota as mudanças. Mas ele só estava de volta havia cerca de
duas semanas e a imagem de Rose que guardava na cabeça era muito
mais jovem, muito mais vigorosa do que aquela Rose; por isso, toda vez
que a via, levava um choque. E, a cada vez que a via, tinha certeza de que
ela parecia um pouco mais fraca do que no dia anterior.
— Rose? — chamou quando Frank se afastou do meio-fio.
Ela virou e se encolheu um pouco.
— Ah, é você, Leo. Eu estava a quilômetros daqui. — Até o sorriso dela
parecia um pouco sem vida, algo puxando os cantos para baixo. —
Dormiu demais? Não achei que você tivesse saído ontem à noite.
Ele ignorou a implicação de que estava bêbado demais para acordar na
hora certa.
— Jane não foi para a aula de ioga, então não tive ninguém para me
cutucar até eu sair da cama. Eu realmente deveria usar o alarme do
celular.
— Deveria mesmo — disse Rose severamente, fazendo Leo logo ficar
alerta e se sentir culpado por todas as coisas que tinha feito e até pelas
que não fizera. — Agora, sobre aquela garota, aquela sua Jane.
— Ela não é minha...
— Indescritivelmente rude. Ela me ameaçou — murmurou Rose. —
Você tem que mantê-la na linha.
— O casamento não funciona assim nos dias de hoje — disse Leo,
como se fosse um especialista. — Como assim ela ameaçou você?
Rose suspirou, bufando ofendida.
— Sei que ameaçar me sufocar com uma das minhas almofadas Neisha
Crosland pode ter sido uma piada, ainda que de muito mau gosto, mas
não há nada de engraçado em querer ligar para a sua mãe para ela me
internar em algum lugar.
— Sério? Quando tudo isso aconteceu?
Rose fungou.
— Isso não importa. Mas não vou permitir que falem assim comigo,
não na minha própria casa.
A Rose que ele conhecia sempre se erguia acima dessas coisas tão
magnificamente, mas aquela Rose, em vez de se erguer, parecia mais
estar afundando. Então Leo entendeu.
— Em que nível de dor você está? — perguntou. — Você disse que
ficava no nível três com a ajuda dos remédios, e no seis quando o efeito
estava passando. Você está no sete agora, não é?
— Não é um sete — insistiu Rose, mas sem nenhuma veemência.
Leo notou como ela procurava cuidadosamente se conter.
— Você tem certeza?
— Tomei meus comprimidos quando acordei. A outra dose é só daqui a
umas duas horas — disse Rose, quando Frank virou na Kensington High
Street, entrando direto em um engarrafamento.
— Se você está com dor, tome um pouco mais. Você já deve ter criado
alguma tolerância a essa altura, não vai ter uma overdose. — Não havia
muita coisa em que Leo fosse especialista, mas disso ele entendia. —
Aliás, o que você está tomando? Diamorfina? Oxicodona? Fentanil?
— Talvez você devesse ter seguido a tradição da família e se tornado
médico, afinal — murmurou Rose. — Sabe muito sobre analgésicos
controlados. Estou tomando tramadol. Não me sinto nem um pouco
pronta para começar a tomar opiáceos.
— Que seja, Rose! Aposto que o tramadol não está dando conta.
Mesmo quando tinham sido amigos, sempre houvera certa distância
entre eles, não só pela idade de Rose, seu status venerado, mas seu jeito
meio distante que parecia em desacordo com o mundo moderno. Então o
teor daquela conversa fazia Leo sentir como se estivesse ultrapassando
um limite de alguma forma mais significativo do que todos os limites que
já ultrapassara.
— Ah, Leo, o que eu faço com você? — perguntou Rose com
tranquilidade. Ela levantou a mão, a pele seca e fina, mas ainda quente,
para acariciar o rosto dele. — Você nunca entende que é melhor deixar as
coisas como estão.
— Você disse que não queria o tratamento porque prefere aproveitar o
tempo que lhe resta. Como você poderá aproveitá-lo se estiver com dor?
Não tente negar isso — acrescentou quando Rose balançou a cabeça e
recolheu a mão. — Nem mesmo você consegue superar essa, Rose. Eu
queria que pudesse, queria de verdade, mas você não vai conseguir mais
tempo fingindo que a doença não está piorando. Você só está se
prejudicando.
— Posso aguentar — insistiu Rose. Leo então desejou que tivesse
herdado pelo mesmo uma parte da sua teimosia.
— Mas você não precisa. Tome remédios que deem conta. Caso
contrário, a dor só vai afundar você, consumi-la antes que esteja pronta.
Havia tantos assuntos inacabados entre os dois. Reparações que ele
ainda nem começara a fazer.
— Não quero ficar gagá — disse Rose calmamente. — Quero continuar
a ser eu. Gosto de ser eu. Antes... quando você usava drogas, foi para
deixar de ser você, se perder. Não estou pronta para isso.
— Você não vai se perder. Vai perder a dor — argumentou Leo, que
esperava estar certo. Contudo, até então ele não tinha conhecido
ninguém que tomou opiáceos para sua devida finalidade médica. — Você
me promete que vai procurar o seu médico? Se possível hoje. Porque, se
não fizer isso, vou ter que deixar Jane à vontade para cuidar de você de
novo.
Rose se irritou outra vez.
— Aquela garota. Há algo de errado com ela, algo que não sei dizer
direito o que é. Dou a vocês seis meses.
— Sério? Não tenho certeza se nos dou seis semanas — disse Leo. —
Sabe, ela me lembra um pouco você.
Com a dor já quase esquecida, Rose olhou furiosa para ele.
— Ela não é nada parecida comigo. — Rose se empertigou. — Espero
um pedido de desculpas dela, Leo.
Essa era uma conversa que Leo não ansiava em ter.
— Vou ver o que posso fazer. — Eles se aproximaram da rua lateral
onde ficavam os escritórios de Rose. — Estamos bem, então?
— Quase isso — concluiu Rose, o que era melhor do que Leo ousara
esperar.
24

Quando Jane chegou em casa naquela tarde, Leo já tinha voltado do


trabalho, tomado banho e estava sentado na cama, como se estivesse
esperando por ela. Ela havia saído para almoçar com algumas mulheres
da academia, beliscado uma salada e tomado água mineral no café do
quinto andar da Harvey Nichols, depois ficaram perambulando pela loja,
já que nenhuma delas tinha qualquer compromisso urgente. Jane tinha
esquecido como era cansativo matar o tempo, por isso Leo foi uma
distração bem-vinda.
— Olá, querido. Eu ia dizer “dia difícil no escritório?”, mas isso seria
um clichê terrível, não é mesmo?
— Sim, seria — concordou ele. Apesar dos dias nublados de novembro
em Londres, o céu sem cor, a garoa persistente, a incômoda desconfiança
de que o sol poderia nunca mais ser visto, Leo não parecia mais pálido.
Seu bronzeado tinha desbotado, mas seu olhar estava bem vivo, e Jane
achou que sua papada tinha diminuído um pouco. — Enfim, passei a
maior parte do dia discutindo com Rose sobre os méritos da cerâmica
sobre o porcelanato. Ficamos bastante exaltados uma hora. Pensei que
ela fosse acertar minha cabeça com o piso que preferia.
Jane desabotoou o casaco.
— Aposto que ela disse que essa era a única maneira de enfiar algum
bom senso na sua cabeça.
Leo sorriu. Talvez fosse porque o dia dela tinha sido tão mortalmente
entediante, mas Jane estava feliz em vê-lo.
— Basicamente. Como você sabia?
— Só um palpite, querido. Então é por isso que você chegou cedo em
casa? Devemos...
— Por falar em ameaças de violência, que diabos você disse a Rose
ontem à noite?
Não havia muito como Jane mudar a história a seu favor. Rose
obviamente tinha contado os pontos principais da discussão, e agora Jane
ficara como o policial mau da história e Leo estava bem, comparado a ela.
Por isso, na verdade, Jane lhe tinha feito mais um favor.
— Você ameaçou mesmo asfixiá-la e mandá-la para os Pastos Verdes?
— Prados Tranquilos, querido. — Jane estava em pé diante de Leo,
com as pernas cruzadas na altura do tornozelo, mãos atrás das costas,
cabeça baixa. Ele a olhava de cima a baixo e de um lado para o outro, com
a sobrancelha arqueada. Os homens eram tão previsíveis. — Eu estava
cansada. Não conseguia dormir direito. Podia estar um pouquinho mal-
humorada.
— Sim, eu entendo isso, mas essa cena da aluna travessa não mexeu
nem um pouco comigo — disse Leo com uma voz tão seca quanto vodca.
Ele parou de olhar para ela de cima a baixo daquela forma opressiva e
cruzou os braços, o que lembrava um pouco um diretor nada
impressionado. — Eu ficaria preocupado se tivesse.
Jane queria fechar a cara, mas se forçou a encarar a situação de bom
humor.
— Vou procurar ter isso em mente — disse ela e sentou ao seu lado.
Então se lembrou de coisas da noite anterior que não tinham nada a ver
com seu plano. — Ela estava sentindo muita dor. Quando eu entrei, ela
não conseguia nem falar. Ela lhe contou isso?
— Tivemos uma longa conversa esta manhã sobre, você sabe, como ela
está lidando com isso, então ela saiu do trabalho mais cedo para ir ao
médico. — Por um instante, os ombros de Leo pareciam se preparar para
receber um grande peso, mas então ele se alegrou. — Rose aceitando o
meu conselho e saindo do trabalho mais cedo? Isso deve ser um sinal de
que o fim dos tempos está próximo.
Jane se permitiu deleitar-se um pouco ao ver que todo mundo saíra
ganhando. Rose passaria a tomar os remédios certos e não sentiria tanta
dor e Leo avançara em sua causa, o que significava que a causa de Jane
também avançara.
— Vamos sair para jantar? Jantar e ver um filme? — Eles faziam
bastante isso, sair para jantar e ver um filme como se de fato fossem
recém-casados desesperados pela companhia um do outro.
— Você tem que pedir desculpas a Rose — disse Leo implacavelmente.
— Diga que sente muito, e não uma daquelas enrolações do tipo “Sinto
muito se você ficou ofendida por algo que eu disse”. Diga um pedido de
desculpas de verdade.

Jane se sentiu mesmo como uma aluna malcriada quando ficou cara a
cara com Rose mais tarde naquela mesma noite. Rose teria dado uma
excelente diretora, autoritária e imponente.
— Sinto muito por ter ameaçado sufocá-la e mandá-la a força para
algum tipo de casa de saúde — disse ela. George, que estava sentado ao
lado de Rose no sofá, arfou, ao mesmo tempo chocado e intrigado. Rose o
ignorou para encarar Jane como se ela tivesse sido pega em uma situação
comprometedora atrás da quadra de tênis com um dos empregados
responsáveis por cuidar do terreno. — Não é desculpa, eu sei, mas,
quando tenho dificuldade para dormir, fico de péssimo humor.
— Muito bem, desculpas aceitas — disse Rose, assentindo para Jane,
como se ela estivesse dispensada.
Jane sentiu o impulso de se afastar devagar, sem desviar o olhar
daqueles frios olhos azuis até Rose lhe dar permissão para isso. Em vez
disso, permaneceu onde estava.
— Você ainda está chateada comigo, não é? — Era óbvio que Rose
estava. Jane já esperava por essa reação, e foi por isso que pegou o cartão
e o pequeno buquê de violetas, que comprara com o florista da esquina da
Kensington High Street e vinha escondendo atrás das costas. — Comprei
isso para você como uma oferta de paz.
Rose ponderou um pouco a respeito.
— Nunca gostei muito de violetas — disse ela. — Conheci uma mulher
que tenho certeza de que tomava banho com a colônia April Violets, da
Yardley. Eu não a suportava.
Jane já tinha jogado com muitas pessoas para saber quando estavam
jogando com ela.
— Bem, estarei logo ali — disse a Rose, que parecia achar graça agora,
em vez de estar ofendida. Então sentou ao lado de Leo, que passou o
braço em volta dela.
— Bem, você tentou — sussurrou ele um pouco convencido. — Você
acha que nunca comprei flores para ela no passado?
Mas a história de Leo com Rose era longa e complicada. As desculpas
dele exigiriam muito mais do que um cartão e buquê de flores, enquanto
Jane podia cometer alguns erros.
— Creio que você foi muito gentil e atenciosa antes de ameaçar me
sufocar, querida — admitiu Rose, com um sorriso felino. Jane suspeitava
que o médico tinha lhe dado comprimidos mais fortes e que a nova
medicação talvez estivesse lhe dando uma sensação exagerada de bem-
estar. — Nunca fui tão bonita como você, nem mesmo quando era jovem,
mas você fica tão bonita quando está arrependida que estou bem
inclinada a perdoá-la.
— Obrigada — disse Jane, que não pôde resistir à satisfação de dar
uma cotovelada de leve nas costelas de Leo. — Isso nunca mais vai
acontecer. Não a gentileza, quero dizer, as ameaças de sufocá-la.
— Mesmo que você me matasse com uma das minhas almofadas,
bastaria um olhar pesaroso para o júri e tenho certeza de que a deixariam
escapar impune do assassinato — disse Rose.
Enquanto Jane tentava absorver aquilo e pensar numa reposta, Lydia
apareceu na porta para anunciar que o jantar estava pronto.

A nova medicação de Rose teve efeito imediato. Ela não descia as escadas
saltitando todas as manhãs, mas conseguia sair regiamente de casa em
uma nuvem de Chanel No 22.
Mas, quando o efeito do remédio começava a passar, a dor de Rose era
mais intensa, menos clemente. Ela permanecia inflexível em querer
respeitar o intervalo de quatro horas entre as doses, mas, naqueles longos
minutos em que esperava a hora chegar, Leo tinha a impressão de que ela
tentava descobrir uma nova maneira de respirar.
Ela agora deixava o escritório o mais tardar às quatro e também ficava
em casa na maioria das noites, quando antes tinha uma vida social
bastante intensa para alguém que já passara dos oitenta. George
costumava vir para jantar e às vezes Elaine, do outro lado da praça, ou
Gudrun se juntava a eles. Às vezes eles jantavam com Lydia e Frank na
cozinha, o que deixava Leo muito feliz, já que podia beber cerveja em vez
de vinho e conversar sobre futebol com Frank.
Isso não queria dizer que os outros jantares eram maçantes. Rose
tomava os comprimidos às seis horas, e, por volta das seis e meia,
costumava já ter tomado metade de um gim-tônica e estar ótima. Mesmo
depois do jantar, ela continuava muito bem disposta, com os olhos
brilhando e o sorriso largo enquanto mantinha a conversa animada, e Leo
começava a se perguntar se Rose poderia se manter no três na escala de
dor subjetiva e arbitrária por meses se o médico conseguisse acertar na
medicação.
Rose definitivamente estava no nível três certa noite, com uma semana
seguindo o novo regime de medicação, quando, depois do jantar,
perguntou a Jane sobre seu casamento.
— Vocês não tiraram nem uma foto? — questionou, incrédula. — Não
é assim que as coisas são feitas. Agora só falta você me dizer que se casou
de jeans e camiseta.
Jane pareceu bastante ofendida com a sugestão.
— Eu usei um vestido de noiva de verdade — disse Jane, indignada. —
Um Dior vintage. Tive que perder dois centímetros de cintura para entrar
nele, mas valeu a pena.
— Eu tive o mais deslumbrante vestido preto de cetim que comprei na
Dior em uma viagem a Paris em 1948. Na verdade, Christian Dior entrou
na sala enquanto ajustavam o vestido em mim — contou Rose com um
discreto sorriso melancólico, que Leo achava nunca ter visto antes. —
Sempre que o usava, me sentia uma rainha.
George deu um leve suspiro.
— Tocada pela mão de Dior. Você realmente deveria escrever suas
memórias. — Ele, então, levou a mão à boca quando percebeu o que
dissera, mas Rose simplesmente lhe lançou um olhar carinhoso.
— Acho que é um pouco tarde para isso — disse ela. — Por falar em
vestidos, ainda não decidi o que fazer com eles. Eu estava pensando em
doar alguns dos mais bonitos para o Victoria and Albert Museum e queria
lhe perguntar qual é a etiqueta correta para isso, George, querido. O certo
é a pessoa contatar o museu antes de sua morte ou só acrescentar um
codicilo ao testamento?
— Não vamos falar sobre isso agora. — A voz de George ficou trêmula,
assim como ele. Jane, que estava sentada ao seu lado, deu um tapinha no
braço dele e murmurou algo em seu ouvido que Leo não conseguiu
entender, então virou para Rose.
— George nos contou sobre o vestido Claire McCardell que você estava
usando quando se conheceram — disse Jane a Rose. — Você ainda o
tem?
Quinze minutos depois, eles tinham levantado acampamento e ido até
o sótão no terceiro andar. O sótão de Rose não era um buraco
empoeirado que se acessava por um alçapão e uma escada bamba,
iluminado por uma única lâmpada pendurada e com tábuas de assoalho
podres, obrigando todo mundo a prestar atenção onde pisa. Eram
cômodos luminosos e arejados com prateleiras e armários sob medida.
— Ah, meu Deus — exclamou Jane. Então deu uma volta completa
devagar para poder captar tudo. — Isto é como estar na melhor loja
vintage do mundo.
— Venho postergando subir aqui — disse Rose. Quando olhou para as
prateleiras mais próximas, que estavam cheias de pastas e caixas, tudo
etiquetado e organizado, pareceu desanimar. — Uma pena que não vou
viver para ver o futuro sem papel sobre o qual li tanto. Estava ansiosa
para isso. Quantas coisas eu acumulei! E tem também sabe-se lá o que
mais em Lullington Bay. Leo, eu esperava que pudéssemos ir até lá se
possível na próxima semana. Agora você poderia fazer a gentileza de me
arrumar uma cadeira, por favor?
Assim que Rose e George estavam acomodados em espreguiçadeiras
Eames que combinavam, ela fez Leo e Jane procurarem o vestido Claire
McCardell. Eles vasculharam capas para roupas e descobriram casacos
estilosos e longos e vestidos de gala, até que Leo enfim encontrou o que
Rose estava procurando e colocou-o reverentemente em seu colo.
— Este aqui é como um velho amigo. Comprei-o em Nova York em
1946 — disse Rose sobre o vestido azul-marinho com bolinhas vermelhas
e gola contínua e curva do qual já tinham ouvido George falar. — Vocês
não podem imaginar como era estar em Nova York depois de todos
aqueles anos de racionamento. Você podia entrar em qualquer loja e
comprar o que quisesse. Bastava apontar, pagar e sair da loja com o que
queria... Eu tinha esquecido como era.
Jane parou bem no meio de abrir uma capa de roupa para olhar para
Rose como se ela estivesse maluca.
— Eles racionavam roupas durante a guerra? Por que fariam isso?
— Santo Deus. — Agora foi a vez de Rose parecer espantada. — Eles
não ensinam nada a vocês, jovens, nas escolas hoje em dia? É claro que as
roupas eram racionadas.
— Eu sabia que a comida era racionada — retrucou Jane, embora
parecesse insegura. — Mas acho que não aprendemos sobre
racionamento de roupas na escola. Isso foi há décadas.
— Obrigada por me fazer sentir velha — retrucou Rose.
— Acho que o efeito dos comprimidos está passando — disse Leo sem
emitir som a Jane. Ela mordia com força o lábio inferior, o que o fez
lembrar por uma fração de segundo que isso acontecera em Las Vegas,
quando ele a pressionara contra a parede do quarto de hotel.
Todos eles ficaram em silêncio, o que durou dois longos minutos,
tempo suficiente para Leo percorrer um álbum inteiro de imagens —
todas com Jane seminua embaixo dele —, mesmo enquanto ela se
agachava para pegar caixas de sapatos de uma prateleira de baixo, ainda
cheirando a cassis.
Então, de repente, ela se levantou.
— Tudo bem se não quiser falar sobre isso, mas... você podia comprar
calcinhas durante a guerra, não podia? — Jane em geral era perita em
captar dicas, em saber quando não tocar mais no assunto, mas ao que
parecia não estava conseguindo fazer isso naquela noite. — Por favor, me
diga que não racionavam calcinhas.
— E sutiãs e meias! — Rose sorriu diante do olhar escandalizado de
Jane. — Isso quando você conseguia encontrá-los nas lojas. O
racionamento de comida não era tão terrível... depois que me mudei para
Londres, até engordei um pouco. Mas eu ficava chateada em não poder
comprar um belo vestido sempre que queria.
— Como você engordou se havia racionamento de comida?
— Porque toda noite eu me enchia de donuts no clube da Cruz
Vermelha na Piccadilly Circus. Até hoje, se me deixarem sozinha com um
prato de donuts, eu poderia guardá-los em um guardanapo e enfiá-los na
bolsa em três segundos.
Isso trouxe de volta uma lembrança quase esquecida.
— Mamãe falou desse lugar. Contou algo sobre você fugir de casa com
o casaco de pele da minha bisavó. E você também roubou dois dos
melhores vestidos da vovó.
— Ah, eu não diria que roubei. Peguei emprestado sem pedir —
observou Rose, que deveria estar piorando aos poucos agora, mas de
repente parecia pronta para embarcar numa aventura.
Se Leo tivesse sugerido que saíssem naquela noite gélida de novembro
para encontrar um lugar para dançar e espantar o frio, Rose parecia que
iria na frente.
— Você nunca fala sobre a guerra — disse George. — E falamos sobre
tudo mais.
— Não falo? Que estranho. Nós últimos tempos, penso nisso o tempo
todo. — Rose estendeu uma perna e com cuidado girou o tornozelo,
depois o outro. — De qualquer forma, ninguém quer ouvir uma velha tola
tagarelando sobre seus dias de glória.
— Bem, eu gostaria, querida, ainda mais se isso incluir você envolvida
em romances com soldados fortes — disse Jane. — Parece algo saído de
um filme.
— Ah, tenho certeza de que você acharia tudo um tédio — disse Rose,
hesitando.
— Bem, considerando que Jane sequer sabia que as roupas eram
racionadas, sei que ela acharia instrutivo — disse Leo, saindo do alcance
do braço de Jane, que estava pronta para atacá-lo. — O quê? Até eu sabia
sobre o racionamento de roupas, e olhe que eu costumava dormir nas
aulas de história.
— A menos que seja muito doloroso para você falar sobre isso —
observou George. Rose então pousou a mão sobre a dele como se não
houvesse nada tão doloroso sobre o qual não pudessem falar. — Se doer
demais lembrar.
— Talvez um dia tenha sido, mas agora é muito agradável me lembrar
do Rainbow Corner. — Sua voz soava nostálgica. — Era o lugar mais
incrível. Quando abriu, eles jogaram a chave fora, porque disseram que
suas portas sempre estariam abertas para qualquer soldado americano
que precisasse de um lugar para ficar. Não apenas soldados... o Rainbow
Corner também nunca me deu as costas.
25

Maio de 1944

Os refugiados chegaram em um dia ensolarado no final de maio.


Rose não via Edward no Rainbow Corner desde que ele a repreendera
na escada, mas ela mandara recado por Mickey Flynn e dois homens
apareceram em Montague Terrace para pegar as pilhas oscilantes de
doações guardadas no corredor.
Edward mandara um bilhete de volta por Mickey.

Cara Rose,
Você realmente foi muito além do que eu esperava. Por acaso invadiu
um depósito da NAAFI?
Por favor, aceite minhas desculpas por ter sido tão desnecessariamente
duro quando a vi pela última vez. Queria pedir desculpas pessoalmente,
mas precisei me ausentar de Londres nas últimas semanas.
Espero que você possa ir à casa de Kensington na quinta, às três.
Tenho certeza de que você será muito mais acolhedora para alguns
viajantes cansados, principalmente os pequenos, do que eu poderia ser.
Por favor, tente vir.
Meus mais sinceros cumprimentos,
Edward
Naquela quinta, com um ursinho de pelúcia tricotado com lã
reaproveitada de um velho suéter da escola e os bolsos abarrotados de
chocolate, Rose chegou à casa em Kensington.
Desde a última vez que estivera lá, a porta da frente tinha sido
repintada de um tom alegre de vermelho vivo. Rose tocou a campainha,
então esperou um bom tempo até a porta se abrir e Edward aparecer. Ele
deixara de lado o casaco do uniforme e os dois primeiros botões da
camisa estavam desabotoados e as mangas, arregaçadas.
— Ah, é você. — Ele franziu a testa. — Desculpe. Não quis parecer tão
rude.
Rose segurou o saco de papel que trazia mais junto ao peito.
— Então eles não estão aqui?
Edward passou a mão pelo cabelo louro, que estava bagunçado, como
se viesse fazendo isso a tarde toda.
— Estão, mas bem... é melhor você entrar.
Ela não queria entrar — ele parecia tão perturbado —, mas passou por
ele, entrando no hall. As paredes brilhavam de tão brancas e frescas. O
cheiro de tinta nova irritou a garganta de Rose enquanto seguia para a
sala da frente, mas Edward pegou seu braço.
— Só para avisá-la: eles não são uma visão muito bonita — disse ele
baixinho. — Tente não se assustar.
Em seguida, ele a conduziu para a sala. Rose prendeu a respiração
enquanto olhava timidamente em volta. O lugar tinha sido transformado:
as paredes eram muito brancas ali também, as tábuas podres do piso
tinham sido substituídas, lixadas e polidas, até o revestimento da lareira
tinha sido limpo e o suporte para a lenha pintado de preto.
Então ela os viu nos cantos, onde as sombras se encontravam. Foi bom
Edward tê-la prevenido, assim ela teve tempo de disfarçar o choque.
Havia seis — não, sete deles; fantasmas grudados nas paredes,
observando-a com rostos desconfiados. Dois homens e duas mulheres,
que poderiam ter dezoito ou oitenta anos, e três crianças. A pele deles,
amarelo-clara como as lindas prímulas que balançavam com a brisa
quando Rose sentara no bosque com Phyllis, parecia muito esticada sobre
os ossos salientes, e se uma corrente de ar entrasse por uma fresta nas
janelas recém-restauradas, eles podiam tombar como pinos de boliche.
Quando Edward colocou a mão em seu ombro, Rose quase gritou, mas
conseguiu reprimir esse impulso também e deixá-lo empurrá-la para a
frente.
— Esta é Rose — disse ele. — Ela veio dizer olá.
— Eles falam inglês? — sussurrou ela, embora sua voz tenha soado
alta e estridente no silêncio sufocante da sala.
— Eu não sei — sussurrou Edward de volta, como se estivesse tão
perdido quanto ela.
Uma das crianças, uma menininha com cabelo castanho-claro dividido
em duas tranças finas, era quem estava mais próximo. Rose sempre
odiara quando os adultos assomavam diante dela, então se agachou.
— Olá — disse ela. — Estou tão contente por vocês finalmente
estarem aqui. — Rose sorriu. E a garota olhou para ela. — Eu e meus
amigos andamos ocupados procurando todos os tipos de coisas para
vocês brincarem — disse ela, porque sua tagarelice era melhor do que o
silêncio. Empolgada, revirou o saco de papel que tinha colocado no chão e
pegou o urso verde-garrafa disforme que tricotara. — Fiz um novo amigo
para você para o caso de ter precisado deixar alguns dos antigos para
trás.
Ergueu-o para que a menina pudesse vê-lo. Maggie doara duas contas
pretas para fazer os olhos e Rose costurara um sorriso feito de um pedaço
de feltro vermelho. Então continuou:
— Ele se chama Bill. Bill, o urso. Ele é tão fofinho. Aqui, por que você
não pega o ursinho? — Nenhuma reação. — Trouxe outras coisas
também. — Rose sorriu para todas as crianças, uma de cada vez. —
Vocês gostam de chocolate?
Ela puxou um punhado de barras de chocolate do bolso. Num piscar de
olhos, elas foram pegas por mãozinhas famintas.
A mãe de Rose sempre dizia que ter boas maneiras significava fazer os
outros se sentirem confortáveis independente das circunstâncias, então,
quando as crianças se retiraram para um canto onde sentaram no chão e
começaram a cheirar os chocolates como se não tivessem certeza se eram
reais, ela se levantou e caminhou até uma das mulheres.
Quanto mais se aproximava, menos a mulher lhe passava a impressão
de uma aparição assombrada. Ela usava um casaco preto esfarrapado e
seu fino cabelo castanho cobria seu rosto quando olhou para Rose com
desconfiança. Seria tão mais fácil ir embora, simplesmente fugir daquela
casa e daquelas pessoas sofridas.
Foi muito mais difícil, talvez a coisa mais difícil que Rose já tivera de
fazer, estender a mão e dizer:
— Meu nome é Rose. É um prazer conhecê-la.
A mulher olhou para a mão estendida, depois levantou os olhos até a
expressão esperançosa no rosto de Rose. Rose tentou sorrir de modo
acolhedor, embora não tivesse certeza se tinha conseguido, pois a mulher
de repente baixou a cabeça e começou a chorar.
— Ah, por favor, não chore. Eu não pretendia chateá-la — disse Rose.
Até então teria sido mais fácil fugir do que passar os braços em volta da
mulher e abraçá-la enquanto soluçava, com a cabeça apoiada no ombro
de Rose. Ela era tão magra que Rose tinha medo de que pudesse se
quebrar. Por baixo do fino casaco, podia sentir cada um dos nós da coluna
dela, as costelas parecendo peças de pega-varetas. — Tudo vai ficar bem.
Vocês estão seguros agora. Edward vai cuidar disso.
Edward deu um passo adiante e ofereceu seu lenço. Então a mulher
deixou que a levassem a uma antiga poltrona estofada, onde sentou e
assoou o nariz.
— Obrigada — disse ela com sotaque. — Obrigada. Obrigada.
Obrigada.
Suas lágrimas tiraram os outros de sua inércia e, em pouco tempo,
todos os adultos estavam sentados nas cadeiras que Edward conseguira
trazer de algum lugar. Rose ainda segurava a mão da mulher, e a menina
de tranças, que agarrava Bill, o urso, como se nunca mais fosse soltá-lo,
subiu no colo dela, enquanto Edward foi à cozinha preparar chá.
Eles tomaram chá preto, já que os contatos de Edward não haviam
conseguido arranjar leite, e comeram bolos passados, embora ninguém
tenha parecido se importar. Também não se importaram em dormir em
camas de campanha ou por não haver muita mobília. Enquanto Edward e
Rose lhes mostravam a casa, eles exclamavam a cada nova descoberta —
desde lâmpadas até água corrente e uma sala de brinquedos no segundo
andar com o espólio de Rose à mostra nas prateleiras.
Rose não sabia de onde eles tinham vindo ou de que horrores haviam
escapado, mas quaisquer que fossem as circunstâncias, eles realmente
não precisavam ficar agradecendo o tempo todo. Era o mínimo que ela
poderia ter feito e só fizera isso para deixar de pensar em Danny. Aquelas
sete almas perdidas, e as centenas de milhares de outras como elas, eram
a razão pela qual ele subia em seu avião todas as noites. A forma como
Danny a tratara fora cruel e egoísta, mas até mesmo cruel e egoísta como
era, ele estava disposto a arriscar a vida vinte e cinco vezes mais para
salvar pessoas que nunca conhecera, de países que só tinha visto em um
atlas. Se Danny podia fazer isso, então Rose podia ter feito muito mais do
que reunir aquele monte de quinquilharias.
— Vou continuar procurando coisas para eles — disse Rose a Edward
quando ele a acompanhou até Kensington High Street para pegar o
ônibus. — Essas pobres pessoas. E os pequenininhos! O que aconteceu
com eles?
— Eles passaram os últimos dois anos escondidos em um porão, mas...
os detalhes não importam. Eles são judeus. Foi sorte terem passado os
últimos dois anos em um porão.
Rose encarou Edward. A voz dele soou sem emoção, inexpressiva, mas
seu rosto estava ainda mais duro do que quando a repreendera por ser
egoísta.
— Eles tiveram sorte por você ter ouvido falar deles, por tê-los trazido
para cá.
Ele deu de ombros.
— Sete afortunados. Milhares e milhares de outros não tão
afortunados.
— Você acha que vão chegar mais deles?
— Não. — Ele foi taxativo. — Não até que todo esse negócio horrível
acabe.
— Então irá acabar em breve? Sei que não devemos falar sobre isso
porque um de nós pode ser um espião, mas, se você fosse um agente
inimigo, não estaria trazendo escondido refugiados judeus da Europa. E
eu definitivamente não sou uma agente inimiga! — exclamou ela, porque
um oficial nazista só teria de encará-la com um olhar severo e um
“Achtung!”, para que entregasse tudo o que sabia.
— Ah, Rose! — Não era um dos sorrisos lentos e graves de Edward,
mas um que apagou a expressão preocupada que estivera em seu rosto a
tarde toda. — Se você for mesmo uma espiã nazista, então é uma muito
boa. De qualquer forma, você está no Rainbow Corner quase todas as
noites... Tenho certeza de que tem uma noção melhor do que está
acontecendo do que o próprio Winston.
Rose deu uma risadinha.
— Tenho certeza de que não. — Tinham chegado ao ponto de ônibus.
— Mas, bem, parece que algo grande está para acontecer. Talvez desta
vez, quando falarem que a guerra terminará até o Natal, possa ser
verdade.
O ônibus 9 parou, mas Rose não fez nenhuma menção de embarcar.
Logo chegaria outro. Ela queria passar um pouco mais de tempo com
Edward. Ele não a tratava como apenas mais uma garota bonita, mas
como se ela tivesse realmente algum conteúdo.
— Não tenho certeza se terminará até o Natal — disse ele. — Mas
estou certo de que as coisas provavelmente vão piorar antes de melhorar.
— Eu não vejo como — queixou-se Rose, enquanto pegava na bolsa os
três pence da passagem. — A menos que comecem a racionar água e ar
fresco, e os nazistas lancem bombas de manhã, à tarde e à noite.
— Mas que pensamento preocupante. — Edward sorriu de novo. —
Você se importaria muito de voltar na próxima quinta? Não precisa trazer
nada, só vir mesmo. E, se eles estiverem se sentindo um pouco mais
fortes e o tempo estiver bom, talvez você possa levar as crianças ao
parque.
— Claro. E vou trazer Phyllis. Consegui a maioria das coisas com ela,
que é ótima em fazer as pessoas se sentirem em casa.
— Traga Phyllis com certeza, e, quando você tiver uma noite livre,
gostaria de levá-la para sair como agradecimento. Você já foi ao Ritz?
Só de ouvir esse nome, Rose já sentiu o coração disparar.
— Você não precisa fazer isso. Estou feliz em poder fazer algo por eles.
Eu quero ajudar.
— E eu quero levá-la para jantar, desde que prometa que não vai pedir
Tournedos Rossini de novo. Você pode levar sua amiga Phyllis também se
quiser.
Rose achava melhor mesmo, porque jantar sozinha com um homem,
sobretudo em um lugar incrivelmente chique e caro, poderia lhe passar a
impressão errada. E também havia toda aquela situação horrível com
Danny, mas isso era complicado demais para explicar, principalmente
porque outro ônibus estava chegando.
— Isso seria ótimo — disse ela.
— Todos esses bilhetes através de Mickey Flynn são ridículos. Você
tem telefone? — perguntou Edward quando o ônibus parou.
— Só no trabalho. — Rose entrou no veículo. O ônibus estava se
afastando, por isso não havia tempo de pensar nas consequências de dar
seu número a Edward. — Gerrard 7531, mas você vai ter de fingir que é
uma emergência nacional. Não estou autorizada a receber telefonemas
particulares.
26

Às vezes, Jane achava que sua vida adulta podia ser medida pelo número
de jantares entediantes a que sobrevivera. Manter uma conversa fútil com
a pessoa à sua esquerda. Pensar desesperadamente em algo a dizer para
fazer a pessoa à sua direita sair da concha. Escolher o que comer em meio
a pratos que continham ingredientes dos quais nunca tinha ouvido falar,
com nomes que sequer sabia pronunciar.
Naquela noite teria um jantar maçante com dois dos consultores de
negócios de Rose. Não seria como os jantares que vinham tendo nos
últimos tempos, dos quais só participavam eles três e George. Depois do
jantar, eles costumavam se retirar para a sala de estar de Rose, onde ela
lhes contava histórias sobre o Rainbow Corner, e, enquanto ela falava,
Jane podia ver vislumbres daquela garota que dançava até as três da
manhã.
Estava tudo indo bem. Rose estava tomando a medicação certa e vendo
Leo sob uma luz mais carinhosa e afetuosa. Leo tinha um novo senso de
propósito e, mesmo que não confiasse em Jane, estava grato. Ela preferia
ter a gratidão de alguém do que sua confiança.
Enfim, o que era mais um jantar entediante, pensou Jane, enquanto
calçava os sapatos. Não usava saltos havia semanas e se desequilibrou um
pouco ao virar para conferir seu reflexo no espelho do banheiro. Rose
insistira de forma bastante incisiva na noite anterior que andavam
desrespeitando muito a etiqueta, mas que esperava que se vestissem
apropriadamente para o jantar.
Pelo menos George estaria presente e Leo havia prometido mantê-la
entretida.
— Vamos fazer um jogo de beber — dissera ele naquela manhã,
quando desceram para o café da manhã. — Nós dois temos de tomar um
gole toda vez que alguém mencionar a bolha imobiliária.
— Ou falar sobre habitações populares para os trabalhadores
essenciais — sugerira Jane.
Eles tinham trocado mensagens o dia todo com regras para o jogo,
embora a última de Leo tivesse sido um apelo para fazê-lo parar de beber
depois de uma taça de vinho. Então eu passo para a água. Não posso
deixar você se aproveitar de mim se ficar bêbado.
O pensamento dele estava bastante fixo na ideia de Jane se aproveitar
dele, e ela sabia que, se dispensasse os travesseiros no meio da cama, ele
se deitaria alegremente e acabaria transando com ela. Não que Jane fosse
fazer isso, mas, só de pensar no olhar de Leo caso fizesse, abriu um
sorriso quando começou a descer a escada. Então ouviu a campainha e
viu Anna correr para atender. Logo depois, dois homens entraram na
casa e Jane congelou. Literalmente. Como se de repente tivesse sido
transformada em gelo e temesse dar mais um passo e quebrar. Ele olhou
para cima: não era um truque da luz.
Era Charles, com toda a cor drenada de seu rosto, fazendo com que
parecesse uma imagem negativa, uma foto que não tinha sido revelada.
Levando a mão de repente ao coração disparado, ela se perguntou se
Charles ficara assim quando o deixara. Quando encontrara o bilhete que
Jane escrevera na bancada da cozinha, junto com as chaves dela.
Agora Charles esperava por ela, enquanto Jane descia devagar as
escadas, como se tivesse planejado sua entrada, mas não tinha.
Conseguia apenas colocar um pé na frente do outro.
Anna ainda esperava para pegar o casaco de Charles. O homem mais
jovem com quem ele viera também estava esperando, mas Jane só
conseguia ver Charles. Ele tinha envelhecido. O cabelo estava mais
grisalho, com entradas, e havia rugas ao redor dos olhos, da boca, que
não estavam lá antes. Ela se preparou para enfrentar a raiva e a decepção
dele, mas em vez disso Charles sorriu como se nada lhe desse mais prazer
do que ficar cara a cara com ela de novo.
— Jane, você está encantadora — afirmou ele, quando ela chegou ao
último degrau. Correu os olhos pelo cabelo bem cuidado dela, o vestido
preto curto e os saltos que ela aprendera a usar quando estava sob seus
cuidados. — Faz muito tempo mesmo.
— Faz — concordou ela.
Mais cinco passos aproximaram os dois, e então suas mãos estavam
nas dele e os lábios dele roçaram um lado do seu rosto, depois o outro, um
cumprimento trivial entre velhos amigos. Foi a primeira vez que ele a
tocou. Que estranho não haver nada de assustador com relação às mãos
de Charles. Elas mantinham Jane firme, mesmo ela tendo certeza de que
Charles podia sentir o tremor frenético que percorria seu corpo. A coisa
toda era insuportável. Jane sorriu e soltou as mãos, então olhou para o
homem mais jovem que esperava pacientemente para cumprimentá-la.
— E quem é este, querido?
Charles não gostara quando ela começara a chamar todo mundo de
querido.
— É tão terrivelmente artificial — reclamara ele.
No entanto, agora continuou a sorrir e pegou a mão dela mais uma vez,
como se vê-la de novo fosse tão maravilhoso que não quisesse que nada
estragasse o momento.
— Jane, este é Fergus, braço direito de Rose e um bom amigo meu —
disse Charles enquanto ela apertava a mão do homem alto, na casa dos
trinta, com cabelo bem vermelho e jeito de adolescente desengonçado.
— Jane, Leo me falou muito sobre você, mas eu não sabia que você
conhecia Charles também — disse Fergus com um sorriso largo e um
aperto de mão gentil. — Nunca sei se é reconfortante ou aterrorizante o
mundo ser tão pequeno. De onde vocês se conhecem?
Charles sempre a apresentara como sua sobrinha. Havia algo de mais
respeitável com relação a uma sobrinha do que uma afilhada ou a filha de
um velho amigo.
— Nossa, nos conhecemos há tanto tempo — disse Jane, e Charles
assentiu. — Tanto tempo que nem me lembro como nos conhecemos, não
é?
Charles não revelaria seus segredos, ou talvez planejasse fazer isso,
mas Lydia chegou para levá-los à sala de estar.
— Temo que a senhora esteja atrasada — disse ela. Jane nunca a
ouvira ser tão formal. — E ainda estamos esperando o sr. Hurst.
Foram trinta minutos absolutamente agonizantes, segurando uma taça
de vinho branco, empoleirada no braço de uma cadeira, enquanto eles
conversavam alegremente sobre o tempo, por que o governo estava
fazendo outra obra na Kensington High Street, para depois passarem
para possíveis planos para o Natal.
Ela havia cultivado a arte de ser espirituosa e espontânea, mas isso não
ajudava muito estando sentada de frente para Charles, que acompanhara
seu aprendizado no ofício. Sentia-se como uma boneca de corda cuja
engrenagem não estava funcionando direito; então, quando Fergus
começou a falar sobre a taxa básica do Banco da Inglaterra, foi um alívio
não precisar falar nada.
Foi um alívio ainda maior quando Leo chegou. Por um instante, Jane
não teve certeza de que era Leo. Ele não estava de camisa amarrotada e
calça jeans larga, e sim de terno. Leo não usava ternos, mas, ao que
parecia, usava sim: um terno azul-marinho bem ajustado ao corpo com
uma camisa preta. Ele esfregou as mãos nervosamente e sorriu.
— Fergus! Que bom vê-lo de novo. Você deve ser o Charles. Não, não
levante. Eu sou o Leo, sobrinho-neto de Rose. Desculpe por fazê-los
esperar. Posso lhes servir outra bebida?
Leo também tinha ido ao barbeiro. As pontas claras tinham sido
cortadas, e agora seu cabelo estava curto atrás e dos lados, mas ainda
havia o suficiente em cima para ele passar os dedos pelos fios como
estava fazendo agora, enquanto conversava com Fergus e Charles sobre
um trabalho que a equipe de manutenção tinha feito naquela manhã.
— Ele jurou que não sabia como o apartamento havia inundado, mas
depois descobrimos que todas as suas roupas tinham sido cortadas em
pedacinhos e ele acabou admitindo que tinha traído a namorada e ela
havia entrado lá enquanto ele estava no trabalho e deixado todas as
torneiras abertas. — Ele arqueou a sobrancelha para Jane. — Não vá ter
nenhuma ideia.
Àquela altura, ela tinha visto Leo todos os dias e todas as noite por
mais de um mês, por isso deixara de reparar nele e não notara que o rosto
dele estava mais magro, tinha afinado, a camisa não marcava mais a
barriga. Leo parecia ocupar mais espaço agora que havia um pouco
menos dele, pensou Jane enquanto o observava pegar um banquinho
baixo e sentar para falar com Fergus sobre um meio-campo do Arsenal
que não estava atendendo às expectativas dos vinte e cinco milhões de
sua transferência.
Leo olhou para onde ela ainda estava empoleirada no braço de uma
cadeira.
— Deus, eu tinha me esquecido como você sabe se arrumar — disse
ele. Jane já recebera elogios melhores e mais elegantes, porém sem a
sinceridade de Leo.
Quando queria agradar, Leo podia ser muito doce. De repente, Jane
quis fingir que era uma boa esposa e que Leo fora sincero quando
prometera amá-la, honrá-la e protegê-la. Naquela noite, ela precisava de
sua proteção.
Lydia foi até eles para anunciar que Rose os esperava na sala de jantar
e, quando Leo se levantou, Jane passou o braço pelo dele e o apertou um
pouco enquanto caminhavam.

— Você está mesmo ótimo — disse Jane um tanto incrédula, o que fez
Leo se perguntar se sua aparência era assim tão ruim antes. — Todo em
forma. Quanto trabalho pesado você tem feito, querido?
— Acho que é porque eu diminuí a bebida — retrucou Leo. — Se não
estou bêbado, não fico louco para comer um döner kebab com todos os
acompanhamentos quando pedem a última rodada.
— Eca. — Jane fez uma careta. — Temo por suas artérias.
Rose estava sentada à cabeceira da mesa, com George curvado em sua
direção para lhe mostrar algo no celular. Como Jane, ela estava toda
vestida de preto. Podia ser o efeito das velas na mesa, as luzes mais fracas
na parede, mas Leo estava certo de que o rosto dela tinha um tom
amarelado que nem o batom vermelho e o brilho discreto dos diamantes
poderiam mascarar. Leo notou que Rose não se levantou para
cumprimentar Fergus e Charles. Isso nunca tinha acontecido. Ela estava
bem de manhã, mas agora podia... não estar.
Mas Rose não tinha perdido o jeito autocrático. Indicara a todos os
seus lugares. Charles à sua direita, Jane sentada ao lado dele. Leo à sua
esquerda, Fergus ao seu lado e George na outra ponta da mesa. Ele não
sabia exatamente quem Charles era, só que era uma espécie de gênio dos
investimentos e que Rose lhe confiava suas carteiras — portanto tinha de
ser um boa pessoa, porque Rose dificilmente confiava em alguém. Então
ele ouviu Charles dizer a Rose:
— Na verdade, Jane e eu somos velhos amigos. Apesar de já fazer um
bom tempo que não nos víamos, não é?
Ser um velho amigo de Jane poderia significar qualquer coisa: gestor
de fundos, parente distante, amante. Era impossível dizer. Ela assentiu
muito brevemente, depois baixou a cabeça e não virou mais para Charles,
enquanto ele lhe lançou olhares furtivos quando achou que ninguém
notaria em meio à agitação de estender os guardanapos e Frank, que
seria o mordomo da noite, trazer o vinho.
Leo nunca curtira muito jantares, mas, em algum ponto entre o pão e a
sopa, ele começou a se divertir. Fergus era o mais provável sucessor de
Rose — charmoso, receptivo, mas com uma determinação de ferro, bem
como a própria Rose. Ele também parecia adorar tijolos e argamassa, as
casas, os lares, tudo o que compunha o cerne do negócio, tanto quanto
Rose.
— Você ia me contar sobre o lugar na Powis Square — disse Fergus a
Rose depois que o vinho foi servido.
Ela de repente ficou mais do que radiante ao embarcar em uma
história longa e engraçada sobre quando alugara uma casa em Notting
Hill nos anos 1970 para um astro do rock e sua esposa com um anexo
para o namorado do astro do rock e sua esposa.
Então George falou sobre como ele tinha trabalhado na Seditionaries, a
loja de Malcolm McClaren e Vivienne Westwood na King’s Road, e que, no
início de sua amizade, tinha levado Rose para ver os Sex Pistols tocarem
em um barco.
— Garotos adoráveis — disse Rose séria, de brincadeira, fazendo
Fergus tossir no guardanapo e Leo achar que iria chorar de tanto rir. — E
só cuspiram em mim uma vez antes que a polícia chegasse e acabasse
com tudo. Já fui a festas piores.
Jane e Charles eram os únicos que não estavam rindo. Ela estava
sentada em silêncio, mordendo o lábio inferior, a testa muito franzida
entre as sobrancelhas. Charles não conseguia tirar os olhos dela.
Nem Leo, aliás.
— Então, Leo, em que você trabalha? — Charles desviara o olhar de
Jane. — Sei que você morou no exterior por alguns anos, mas estava me
perguntando quais são seus planos agora que voltou a Londres.
— Ele é artista — disse Jane depressa, como se desafiasse qualquer um
a contradizê-la. — Principalmente retratos.
Não foi a expectativa de ver Rose bufar em desaprovação que fez Leo
admitir a verdade.
— Não chego a isso. Estou à espera de outra encomenda, embora, para
ser sincero, às vezes se passem anos inteiros entre um trabalho e outro.
— Essa era a questão em ficar sem beber. Fazia você ter de enfrentar
algumas verdades duras e feias. — Nessas últimas semanas, tenho
trabalhado com a equipe de manutenção. Trocado meus pastéis por
massa branca, você sabe.
É claro que suas ambições iam além de lixar rodapés, mas Leo já tinha
passado dos trinta anos e não sabia mais quais eram bem suas ambições.
Eles falaram sobre negócios ao longo do restante do jantar: Leo, Fergus
e Rose, Charles e George entrando na conversa com comentários
ocasionais, e Leo não conseguia se lembrar da última vez em que ficara
tão empolgado enquanto defendia a ideia de fazer algo legal com a pedra
angular e as impostas no mais recente projeto de reforma deles em
Westbourne Grove.
Ele também dizia “nós”, quando não era parte do “nós”, apenas um
terceiro desinteressado. Só que ele estava interessado, em especial
quando Rose falava sobre o direito à facilidade de compra de seus
empregados.
— Quando esta empresa começou, sua missão era unicamente abrigar
refugiados vindos da Europa no final da guerra — explicou ela. Leo não
sabia de nada disso. — Kensington ficava do lado errado do Parque, como
se costumava dizer. Podiam-se comprar várias propriedades atingidas por
bombas a um preço muito barato. Havia refugiados e soldados de repente
sem trabalho que precisavam de empregos. Eles recebiam um salário
decente e, por um aluguel muito menor, moravam nas propriedades que
reformavam. Naquela época, todos nós precisávamos de um senso de
propósito, a crença de que tudo pelo que tínhamos lutado não fora em
vão.
Rose, então, respirou fundo e continuou:
— Ainda acredito que, se as pessoas estão dispostas a trabalhar duro,
então deveriam ter um salário digno e um lugar pelo qual pudessem
pagar para morar. — Rose parou e sorriu ironicamente. Talvez ela
estivesse mesmo tendo um bom dia. — Deus do céu, acho que é hora de
eu descer do palanque.
— Gosto da visão de lá de cima — disse Fergus, e Leo não pôde deixar
de sentir uma pontada de alguma coisa. Não ciúme, não totalmente, mas
talvez arrependimento por ser Fergus quem compartilhava a paixão de
Rose, sua visão, e não Leo, ou Alistair, ou um dos primos deles, para que
ela pudesse manter o legado na família. — Você devia se orgulhar do
direito à facilidade de compra. Na verdade, Leo, se você estiver
interessado, tem uma construtora da Dinamarca que vem nos visitar que
está pensando em criar um esquema semelhante. Eles são especializados
em projetos neutros em emissão de carbono. Pode ser interessante se
você quiser participar. Me lembro que tivemos uma discussão acalorada
sobre os desafios de ser ecologicamente correto quando se está
reformando prédios tombados.
— Vocês discutiram? — Rose soou bastante surpresa. Então olhou
incisivamente para os cotovelos de Leo, que estavam apoiados na mesa.
Leo corrigiu a postura relaxada e sentou direito.
— Ah, sou apenas um artista desempregado fazendo um pouco de
decoração nas horas vagas. Seria melhor você levar alguém que soubesse
do que eles falarão.
— Não seja tão severo consigo mesmo. — Jane enfim saíra daquele
estado de medo. — Se você se interessa tanto assim pela maneira como
as pessoas vivem, então se envolva. Porque é importante, não é? Todos
deveriam ter um lar. Um lugar em que se sentissem seguros.
Era estranho ouvir Jane falar com tanta convicção também. Além
disso, ela não chamava ninguém de “querido” havia pelo menos uma
hora. Leo queria perguntar a Jane onde se sentia segura, mas o assunto já
tinha mudado para Charles, que aparentemente era um banqueiro ético
de investimentos, o que soava como um paradoxo para Leo.
Lydia tinha se excedido com a sobremesa — um fondant de chocolate
regado generosamente com brandy — e depois do jantar, quando
tomavam café, Rose sorriu para Leo; um sorriso caloroso, talvez até com
certa aprovação. Já fazia muito, muito tempo desde a última vez que ele
ganhara um sorriso como aquele de Rose.
A noite foi um sucesso sob todos os aspectos. Leo já não se sentia como
um garoto que tinham deixado ficar acordado até tarde com os adultos
apenas como um agrado. E até acompanhou Fergus e Charles à porta e se
despediu deles com um firme aperto de mão.
— Foi um prazer conhecê-lo — disse Charles, e parecia sincero.
Leo se perguntou qual era a história de Charles. O que ele era de Jane.
Ele não parecia do tipo que gastava indiscriminadamente seus fundos
eticamente investidos com uma mulher. Talvez Leo estivesse sentindo um
pouco de ciúme com relação a isso enquanto caminhava de volta à sala
de jantar para perguntar.
Mas George e Jane estavam agachados diante de Rose, que ainda
estava sentada à cabeceira da mesa, com a cabeça baixa, as mãos
agarrando o nada e fazendo um som horrível, enquanto tentava inspirar.
De repente, a noite não parecia mais um sucesso.
27

Junho-setembro de 1944

No dia 7 de junho, eles acordaram com a notícia de que a Segunda Frente


tinha começado. As Forças Aliadas haviam desembarcado nas praias da
Normandia.
Como era de se esperar, o Rainbow Corner estava deserto. As anfitriãs
tinham se reunido em volta do grande radiograma na sala de bilhar, e,
entre as reportagens, elas se revezavam para descrever como suas vidas
seriam maravilhosas quando a guerra acabasse. Como nunca mais teriam
de comer dobradinha ou se banhar em dez centímetros de água morna.
Era impossível não se sentir otimista.
Se elas soubessem que ainda havia novos horrores por vir.
Na tarde de sábado, uma semana depois do Dia D, Rose caminhava até
o açougueiro para buscar a carne de domingo, quando ouviu um ronco
acima dela, como um motor de moto prestes a parar. Ela olhou para cima
e viu um pequeno avião com a cauda em chamas.
O ronco se tornou um rugido, que se tornou um zumbido estranho e
então... silêncio. Rose observou o avião em chamas deslizar
graciosamente para fora de vista, para além dos prédios, em seguida
ouviu um imenso estrondo. Então ela se jogou no chão, esfolando os
joelhos, enquanto cobria a cabeça com as mãos.
Durante todo o fim de semana e pelas semanas que se seguiram, as V1s
— as bombas voadoras — caíram.
Se estivessem em casa, teriam de ir para o abrigo ao ouvirem a sirene,
mas os dois abrigos mais próximos ficavam na Queen Square e na estação
Holborn do metrô e, como Sylvia disse:
— O mais provável é que morrêssemos antes de chegarmos lá. De
qualquer forma, se uma bomba tiver seu nome nela, então vai encontrá-
la.
Então, elas costumavam ficar em suas camas, embora o sr. Bryce
ameaçasse denunciá-las para o patrulheiro da ARP, a equipe de proteção
durante ataques aéreos.
Não era o barulho das V1s que assustava Rose. Embora às vezes à noite
o rugido delas parecesse tão próximo que ela jurava que raspavam o
telhado da casa ao passarem por lá. O que mais a aterrorizava era o
silêncio mortal antes de o míssil cair, já com o alvo definido. Era
insuportável — mas, de alguma forma, ela precisava suportá-lo.
Até sua mãe telefonou para o café e lhe pediu que voltasse para casa.
— Você não vai ter de se juntar às Land Girls, querida. Só queremos
que esteja segura.
Pela primeira vez desde que chegara a Londres, parte de Rose quis
voltar para Durham, mas Londres era sua casa agora. Suas amigas eram
sua família, as crianças da casa em Kensington, Paul, Hélène e Thérèse,
todos eles precisavam dela — Edward contava com ela para cuidar deles.
Ela não podia ir para casa, porém prometeu à mãe que escreveria todos
os dias e iria direto para um abrigo ao ouvir a sirene. Sim, mesmo que
estivesse em meio à agitação da hora do almoço. Era uma promessa.
Junho se tornou julho, e julho trouxe tempestades e o Rainbow Corner
estava cheio de novos recrutas e reservistas, jovens inexperientes e
imaturos, que pisavam nos pés dela e não sabiam segurá-la, e as bombas
continuaram caindo noite após noite. Londres estava coberta de sangue,
enegrecida e oprimida, e Rose se perguntava se um dia se acostumaria
com o pavor que agora se alojava como pedras pesadas em seu estômago.
O medo a fazia sentir falta de Edward, que havia desaparecido por algum
motivo de trabalho, porque ele era sempre calmo e firme, mesmo quando
tudo ao redor parecia um caos.
Apesar de tudo, Rose também sentia falta de Danny de uma forma um
pouco estranha. Ou melhor, ela sentia falta do amor que costumava sentir
por ele, o amor voraz que não pudera ser saciado pelo pouco que ele lhe
dera em troca. Aquele amor a fizera se sentir tão viva. Mas não se pode
passar a vida lamentando um amor que não fora correspondido e do qual
impiedosamente haviam tirado vantagem. Os hematomas de Rose
tinham sumido, embora não a lembrança do que Danny lhe fizera, mas
ainda assim ela precisava saber que ele estava vivo. Rose enviara várias
cartas para o endereço que ele lhe dera, o pub, mas nunca recebeu
resposta, então começou a temer o pior. Ela tentava se manter
esperançosa, mas às vezes a esperança parecia tão escassa quanto as
laranjas.
Ela não queria vê-lo nunca mais, mas também não queria que estivesse
morto ou mesmo ferido.
— Ou talvez um pouco ferido — disse ela a Sylvia, depois de mais um
dia sem sequer uma linha de Danny rabiscada às pressas em um cartão-
postal. — Eu não me importaria se ele perdesse um dedo ou fosse ferido
por um estilhaço.
No final de agosto, com o verão já menos intenso, Paris foi libertada, e
todos eles comemoraram muito ao ouvirem aquela gloriosa notícia.
Londres também começava a se reerguer e se atrever a sonhar
novamente. Rose estava até ansiosa para a chegada do seu aniversário
porque todas vinham economizando suas rações de açúcar e Mickey lhe
prometera três ovos — o suficiente para Maggie fazer um esplêndido bolo
de aniversário.
Então Edward voltou.
Havia um bilhete à sua espera no primeiro domingo de setembro,
quando foi a Kensington. As crianças lhe entregaram o envelope com
tanta cerimônia quanto se tivesse vindo do Palácio de Buckingham,
trazido por um cavalariço de peruca.

Cara Rose,
Eu ficaria encantado se pudesse jantar comigo no Ritz na sexta, 8 de
setembro, às 22h30. Se quiser, por favor leve sua amiga Phyllis.
Meus mais sinceros cumprimentos,
Edward

Rose pediu a Phyllis que fosse com ela ao Ritz, mas Phyllis não quis.
— Não estou prometendo nada, você entende — disse ela —, mas essa
é a véspera do seu aniversário de dezoito anos, e Maggie, Sylvia e eu
temos planos para essa noite que não envolvem você.
Elas sempre faziam surpresas de aniversário umas para as outras. Para
Sylvia, Maggie conseguira uma autorização para assistir a uma gravação
do American Eagle in Britain, na BBC, e Sylvia acabara dançando por um
corredor com o próprio Fred Astaire. Elas conseguiram um frasquinho de
Chanel No 5 e assentos em um camarote para ver Ivor Novello no The
Dancing Years, no Adelphi, no aniversário de Phyllis. A surpresa de
Maggie tinha sido muito mais difícil porque ela não falava muito sobre
seus gostos, mas Rose conseguira duas garrafas de vodca de um polonês
que trabalhava nas casas de Kensington e Sylvia, dois metros de seda
preta para Maggie fazer um vestido. Jantar com Edward daria às meninas
tempo suficiente para cuidar dos últimos detalhes para as surpresas de
aniversário de Rose, que ela esperava que incluíssem um novo vestido e
um batom, já que seu Tru-Color vermelho não passava de uma lembrança
distante.
As três se despediram dela em frente ao Rainbow Corner. Phyllis
colocou umas poucas gotas preciosas de Chanel No 5 nos pulsos de Rose,
e Sylvia a alertou para não beber demais.
— Você sabe o que aconteceu da última vez — disse ela, com os olhos
azuis brilhando. — Ele vai achar que você não sabe beber.
— Mas divirta-se, Rosie — disse Phyllis. — E não faça nada que eu não
faria!
Sylvia se virou para Phyllis com um olhar confuso.
— Mas Phyllis, querida, você nunca faz nada — disse de maneira
arrastada. Phyllis guinchou, indignada, e fingiu estrangular Sylvia
enquanto Maggie ria da brincadeira.
— É melhor você ir — disse a Rose, que também ria. — Você vai se
atrasar.
Rose se atrasou, mas Edward ainda a esperava em frente ao Ritz, como
se soubesse que ela estava muito nervosa em ter de entrar sozinha. Ele
estava de uniforme, que sempre parecia impecável, o corte tão perfeito
que Rose se perguntava se ele o encomendara a seus alfaiates, e tirou o
quepe em cumprimento quando viu Rose se aproximar apressada. Ele
estava mais alto, menos encurvado do que ela se lembrava.
— Olá — disse ele. Rose também havia esquecido como o sorriso dele
era acolhedor, então, de repente, não estava mais nervosa porque seu
vestido preto de crepe da china ficara brilhoso ou porque provavelmente
cometeria uma enorme gafe com os talheres. — Você está muito, muito
bonita.
Rose tinha certeza de que não estava. Já não tinha mais pó compacto e
a caminhada apressada pela Piccadilly tinha deixado seu rosto todo
vermelho. Ela dispensou o elogio com um gesto.
— Você voltou há muito tempo?
— Uma semana — respondeu, colocando o quepe debaixo do braço e
oferecendo o outro a Rose enquanto o porteiro os conduzia para dentro.
Quando a porta se fechou, abafando os sons da noite, foi como se o
mundo lá fora tivesse deixado de existir.
Eles seguiram um solene garçom através de uma vasta sala de jantar.
Rose teve de se esforçar ao máximo para não ficar de boca aberta como
uma imbecil olhando para os lustres que iluminavam a sala enorme, seu
brilho refletido nos espelhos, e a prata e os cristais que cintilavam nas
mesas pelas quais passavam. Os frisos pintados em painéis de parede
com bordas douradas eram como as figuras dos livros de arte que via nos
livros da biblioteca da escola. Mulheres em cetim, seda e peles pré-guerra
também brilhavam. Era como se de repente se visse em um lindo sonho.
Rose sentou na macia cadeira de veludo vermelho que fora puxada
para ela.
— É exatamente assim que eu imaginava a corte de Luís XVI antes da
Revolução Francesa.
Edward sorriu.
— Você acha que, se prestarmos bastante atenção, poderemos ouvir o
rugido dos camponeses irados vindo nos levar para a guilhotina?
— Ah, eles não me levariam, não depois que explicasse que sou apenas
uma simples trabalhadora — disse Rose. Talvez ela estivesse sendo um
pouco atrevida, mas valia a pena fazer Edward rir. De outro modo, ele
parecia tão sério. — Você pode me contar onde esteve e o que andou
fazendo ou isso é confidencial?
— Se eu lhe contasse, então os camponeses irados seriam substituídos
por policiais militares que nos levariam daqui e nos prenderiam. — Ele
fez sinal para um garçom que estava ansioso para lhes mostrar os menus.
— Agora, me diga, se você pudesse comer qualquer coisa mesmo, o que
escolheria?
Rose parou para pensar em frango assado e o recheio especial da Cook
com ameixa e damasco. Pensou em pavê. Pensou em um café da manhã
completo: ovos fritos, salsichas suculentas, bacon frito e cogumelos.
Pensou em todas essas coisas e então se lembrou do prato que queria
mais do que tudo.
— Torrada com molho de queijo — decidiu ela. — Feito com toneladas
e mais toneladas de queijo e nadando em molho Worcester.
— Então é isso que você deve comer — disse Edward. Ele chamou o
garçom. — Nós dois queremos torrada com molho de queijo
generosamente temperado com Worcester. Dois bellinis como aperitivo,
em seguida uma garrafa de Merlot. De 1937 se vocês ainda tiverem
alguma.
O garçom pareceu achar que torrada com queijo era algo
perfeitamente aceitável para se pedir no Ritz, e foi então que Rose pensou
que aquele deveria ser seu lugar favorito no mundo, ou talvez foi quando
os bellinis chegaram e ela fez a feliz descoberta de que champanhe podia
ser muito delicioso quando misturado com suco de pêssego, mesmo que
fosse um desperdício escandaloso de bons pêssegos.
Ela e Edward conversaram sobre os refugiados, apesar de não serem
mais os refugiados. Eram Hélène, Thérèse e Paul, que adoravam jogar sua
própria versão ruidosa de croquet e corriam para abraçar Rose quando
ela aparecia todas as tardes de quinta e domingo, mesmo com as mãos
deles correndo para os bolsos dela em busca de chocolate. Eram
Madeleine e Gisèle, que passavam a maior parte do tempo cavando,
arrancando ervas daninhas e capinando no jardim mesmo quando chovia
simplesmente porque adoravam ficar ao ar livre depois de tanto tempo
confinadas num porão. E eram Yves e Jacques, que sempre insistiam em
acompanhar Rose até o ponto de ônibus e foram até Montague Terrace
certa vez para tentar fazer algo com relação ao encanamento, pois os
canos faziam um barulho horrível toda vez que uma das garotas abria
uma torneira.
Rose perguntou a Edward sobre seus planos para a casa ao lado, que
estava quase habitável de novo, mesmo não tendo ninguém para morar
lá. Embora com certeza, agora que os Aliados estavam ganhando terreno
na Europa, as coisas seriam mais fáceis para aqueles que quisessem fugir.
— Vamos ver — disse Edward, quando o garçom colocou uma tigelinha
de prata diante de Rose. Ela pedira morangos com sorvete de sobremesa
e, como ela não tinha gostado muito do Merlot, Edward insistira para que
tomasse outro bellini. — Vamos falar de coisas mais alegres. — Ele olhou
para o relógio. — Ainda falta meia hora, mas feliz aniversário.
— Como você descobriu? — perguntou Rose.
— Um passarinho me contou — respondeu Edward. Rose imaginou
que o passarinho fosse Sylvia, ou Mickey Flynn, que provavelmente
registrava esse tipo de coisa. — Espero que não se importe, tenho uma
coisinha para lhe agradecer por...
— Você não tem que me agradecer — retrucou Rose de forma tão
decidida que fez Edward erguer as sobrancelhas. — Fiquei feliz em ajudar.
— Olhe, preciso lhe dizer que perdi o recibo e tenho certeza de que não
posso devolver, então você está me deixando em uma situação muito
difícil. — Ele enfiou a mão no bolso interno do paletó e puxou uma
caixinha de couro cinza. Então a deslizou sobre o delicado linho branco
da toalha de mesa em direção a Rose, e seria rude não pegá-la e...
— Ah! Eu não poderia de forma alguma aceitar isso — disse Rose,
arfando, ao olhar para os brincos de diamante aninhados em veludo
amarelo. — Não poderia mesmo.
— Eu já disse que perdi o recibo? — Ele era muito gentil, o que tornava
tudo mais difícil.
— Você não entende. — Rose vinha temendo isso. Sylvia lhe dissera
para ficar de boca fechada, mas Phyllis falara que era baixo deixar um
cara levá-la para jantar quando não se estava realmente interessada. — É
só que... bem, eu odiaria que você tivesse a ideia errada. Há um outro
homem. Havia outro homem. A relação não terminou bem.
Edward, embora ainda estivesse sentado ali, tomando seu Merlot e
fumando um cigarro, de repente se afastara dela sem sequer se recostar
na cadeira.
— Ah. Sinto muito. Meus pêsames.
— Não, você não entendeu. Ele não morreu. — Era difícil encontrar as
palavras certas, mesmo com Rose não tendo pensado em quase nada
além de como lhe contaria desde que recebera o bilhete de Edward. — Ele
é piloto de bombardeiro. Foi liberado para voltar para os Estados Unidos
e vender bônus de guerra, mas preferiu ficar e lutar — acrescentou ela
um pouco na defensiva.
Edward tinha acabado de apagar o cigarro, mas logo acendeu outro.
— Que louvável da parte dele — disse Edward naquela mesma voz
inexpressiva.
Rose não achou que o encorajara, embora, como Sylvia dissera, os
homens sempre acusavam as garotas de encorajá-los, e aceitar jantar
com Edward poderia ter lhe dado a ideia de que Rose estava interessada.
Mesmo que eles mal se conhecessem e ele fosse muito mais velho do que
ela. Era difícil dizer quão mais velho, mas ele devia ter no mínimo trinta.
No mínimo.
— A questão é que não tenho notícias dele há séculos. Desde antes da
invasão e, embora eu não sinta mais nada por ele, não carinho pelo
menos, eu estava pensando, e sei que é pedir muito, se você poderia
tentar descobrir algo. Ver se ele está seguro.
Edward mal piscou quando Rose enfiou a mão na bolsinha de festa e
pegou o papel em que escrevera as informações de Danny. Não era muito.
Só o seu nome, embora ela não tivesse certeza de como se escrevia o
sobrenome, onde ele estava baseado, e que sua família morava em Nova
York. Mas Rose sabia muito mais sobre Danny do que apenas os poucos
detalhes escritos no verso de um envelope. Depois do que ele lhe fizera,
ela sabia o que se passava no coração dele e, ainda que não fosse um bom
coração, um coração sincero, ela precisava saber se ainda estava batendo.
— Qual é o nome do esquadrão dele? Qual é a sua fileira? Há três
unidades da Força Aérea dos Estados Unidos em Cambridgeshire, você
poderia ser mais específica? Para onde você envia suas cartas quando
escreve para ele?
Rose não podia responder a nenhuma das perguntas que Edward
despejou sobre ela, porque não sabia as respostas. Não porque eles
tiveram algum encontro suspeito, mas porque havia toda aquela história
de Danny usar o pub local como caixa postal para driblar os censores do
Exército. Com certeza aquilo deveria ser contra o regulamento e Danny
poderia ter problemas se seu comandante descobrisse. Que coisas tolas as
pessoas faziam quando achavam que estavam apaixonadas, mas Edward
não entenderia. Ele era muito fechado, muito sério, para se permitir se
apaixonar.
— Deixe para lá — disse Rose. Ela estendeu a mão para pegar o papel.
— Lamento ter incomodado você.
Edward guardou o papel no bolso.
— Não estou prometendo nada, mas vou ver o que posso fazer.
O dourado do painel e os lustres, até os brincos de diamante diante
dela tinham perdido o brilho, as bolhas do champanhe não mais faziam
cócegas em sua língua. Rose olhou para seu sorvete, que derretia. Ela
ouviu Edward suspirar, depois não ouviu mais nada além do estrondo
terrível que fez a sala tremer e os lustres balançarem quando o espaço
sagrado do Ritz foi violado.
Houve gritos e Rose afastou a cadeira. Em seguida, houve outro
estrondo como se cem bombas voadoras de repente provocassem uma
enorme explosão ali em frente, e ela engasgou.
— Abaixe-se, sua tola!
Edward puxou Rose para baixo da mesa, seu corpo cobrindo o dela,
protegendo-a dos horrores lá fora.
— Ah, meu Deus, o que é isso? Por que eles não soaram a sirene? Não
posso suportar isso — sussurrou ela, com a briga já esquecida, já que fora
isso o que arruinara a noite. A maldita guerra. Ela arruinava tudo. — Eu
não posso suportar isso.
— Sim, você pode. Você tem que ser corajosa — disse Edward.
Ele pegou a mão de Rose, apertou os dedos trêmulos dela até se
acalmar, e naquele momento ela se sentiu segura. Nada poderia atingi-la,
porque Edward simplesmente não permitiria isso.
Ela pressionou o rosto contra o peito dele, sentiu os botões do casaco
dele afundarem em sua pele e procurou respirar junto com ele, lenta e
constantemente, até ela sentir seu coração parar de bater tão rápido.
Deixou a calma tomar conta de si e, quando a sirene enfim começou a
tocar, cinco minutos após a primeira explosão, ela ficou com raiva pelo
som ter quebrado o encanto.
Eles foram levados ao abrigo antibomba do Ritz, um restaurante, La
Popote, no porão, com um mural engraçado na parede. Edward pediu
mais champanhe e insistiu que Rose bebesse tudo porque estava muito
pálida. Havia uma banda tocando, pessoas dançando, rindo,
cumprimentando amigos — e de repente esperar que o sinal de que o
perigo havia passado soasse se tornou uma fabulosa festa. Edward até
dançou com ela — ele insistiu em uma valsa tranquila e lenta, embora
estivesse tocando um foxtrote, e pisou nos pés dela algumas vezes.
Entretanto, o puro altruísmo de Edward chamando-a para dançar porque
sabia que ela queria significava mais para Rose do que os brincos de
diamantes que ela pegara da mesa ao saírem do restaurante muito maior
no andar de cima.
Demorou uma eternidade para o sinal de fim de ataque aéreo soar. Eles
deixaram o Ritz pouco depois das duas da madrugada. Mesmo no melhor
dos tempos, era difícil encontrar um táxi. Naquela noite foi impossível.
— Vou acompanhá-la até em casa — disse Edward, e Rose não se
sentiu nem um pouco inclinada a discutir.
As bombas daquela noite a deixaram apavorada. No entanto, quando
atravessaram a Shaftesbury Avenue, encontraram um policial vindo do
outro lado que disse que não houvera nenhuma bomba.
— De acordo com o que foi informado, foi uma explosão de uma
tubulação de gás, senhor — dissera ele.
Isso explicava por que não houvera sirene, nenhum aviso, só aqueles
dois enormes estrondos, como se o céu quisesse mostrar como estava
furioso com a destruição que era obrigado a ver lá de cima todos os dias e
noites.
— Acho que a guerra vai acabar logo — disse Rose a Edward enquanto
caminhavam pela New Oxford Street. — Não tem havido muitas bombas
voadoras e não posso acreditar que os alemães não estejam tão cansados
de tudo isso quanto nós.
— Você deve ter cuidado com o que deseja — murmurou Edward
obliquamente. — Você está tremendo. Devia ter dito que estava com frio.
Pegue o meu casaco.
Ele o colocou sobre os ombros dela, e assim Rose pôde sentir o cheiro
suave de sua loção pós-barba, algo delicado e enfumaçado, e então
ficaram em silêncio. Os pés de Rose doíam e ela estava tão cansada que
parecia inútil ir para a cama só para ter que acordar logo que
adormecesse.
Apesar de que seria seu aniversário quando ela acordasse, e haveria
todos os tipos de surpresas. Até Shirley, que parecia ter ficado muito
irritada por Rose ter fugido com seus vestidos, enviara um pacote grande
e intrigante. Foi o suficiente para fazer Rose acelerar o passo, e então,
quando chegaram à Theobald’s Road e sua cama estava a apenas três
minutos de distância, foram forçados a parar. A rua estava cheia de cacos
de vidro das vitrines que tinham explodido. Havia enormes pedaços de
paredes e metais retorcidos caídos na estrada, onde naquela manhã havia
ônibus, bondes e táxis, pessoas apressadas indo para o trabalho.
Nenhum deles disse nada, porque não havia muito a dizer. Além disso,
estava muito difícil falar. Quanto mais se aproximavam de Montague
Terrace, mais pesado o ar ficava, cheio de poeira e fumaça, tanto que
Rose e Edward tiveram de pegar os lenços para cobrir a boca. Edward a
chamou, mas suas palavras foram engolidas pelo ar abafado.
Quanto mais Rose se aproximava de casa, maior era a devastação.
Nada de lojas, não restara nenhuma casa. Elas tinham sido
completamente destruídas e substituídas por montanhas carbonizadas de
detritos, ainda soltando fumaça, e Rose teve de procurar um caminho em
meio à devastação, mas sabia que, ao chegar à esquina de casa, tudo
estaria bem. Já tinha passado pelo olho do furacão, onde os danos tinham
sido maiores, e talvez algumas de suas janelas tivessem sido quebradas...
ela não se espantaria se o telhado tivesse caído, mas ela logo encontraria
as outras. Elas deveriam ter ido para o abrigo. Nem mesmo Sylvia poderia
ter dormido com todo aquele barulho.
— Você demorou — diria ela, e todas ririam quando Rose lhes
contasse que tinha ido ao Ritz para jantar torrada com queijo.
Edward a chamou de novo, mas ele estava muito, muito atrás de Rose, e
ela estava quase em casa. Era só virar a esquina. A poeira estava se
dissipando. Ali! O pior já tinha passado.
No alto de Montague Terrace, tinham passado um cordão de
isolamento, e, quando conseguiu se aproximar com dificuldade, Rose viu
que estava sendo vigiado por um patrulheiro da ARP. A poeira e a fumaça
não estavam mais tão fortes, porém pequenos pedaços de detritos
enegrecidos caíam flutuando do céu como confetes e Rose estremeceu de
novo. Tudo ia ficar bem. Ela estava quase em casa, mas quando engolia,
tudo o que sentia era medo e fuligem.
— Você não pode passar — gritou-lhe o patrulheiro da ARP, embora
Rose tivesse certeza de que suas pernas se recusariam a dar outro passo.
— Foi uma explosão na tubulação de gás.
— Qual foi o estrago? — Edward a tinha alcançado. — A jovem mora
nesta rua, entende.
— Você não pode passar — repetiu o patrulheiro. — Ninguém pode
passar.
— Rose! Volte aqui!
Ela correu, desviando do patrulheiro que gritou para que parasse. E ela
parou porque tinha dobrado a esquina da sua rua. Sua querida rua.
Estava tudo cheio de tijolos quebrados, vidro estilhaçado e a terrível
poeira era tão densa que cobria sua roupa e Rose a inalava a cada
respiração ofegante. Era impossível ver aonde ia com os olhos
lacrimejando, mas ainda assim ela continuou.
— Ah, meu Deus, ah, meu Deus, ah, meu Deus. — Ela se ouviu dizer ao
dar de cara com tijolos e escombros.
Aquele era o centro da explosão. Não era como os danos a que estava
acostumada, em que ainda era possível ver o esqueleto da casa que um
dia conhecera. A sua casa não estava mais ali. Simplesmente tinha
sumido. Não existia mais. Desaparecera. Não estava lá. Ali agora havia
uma cratera onde antes ficavam sua casa e as demais em volta, como se a
terra tivesse engolido todas elas de uma vez, e então cuspido as vigas e
ombreiras como se fossem ossos. Havia um imenso buraco em seu
mundo.
— Rose! Volte para fora do cordão de isolamento. Aqui não é seguro.
Edward chegou atrás dela, ofegante.
Ela se virou.
— As garotas! Onde estão as minhas amigas?
Ele passou o braço em volta de seus ombros trêmulos.
— Vamos descobrir.
— Senhorita, ouça o que ele diz. — O patrulheiro da ARP, com o rosto
coberto de fuligem vincado de preocupação, não gritava mais. — O
Serviço Real Voluntário Feminino montou uma cantina no salão da igreja
em Bloomsbury Way. Vá para lá tomar uma boa xícara de chá, comer um
bolo e se acalmar. Precisamos manter essa área livre para deixar os
rapazes da Defesa Civil fazerem o seu trabalho.
— Minhas amigas... — Ela não conseguia dizer mais do que isso,
porém apontou para o buraco. — Minha casa ficava ali. Minhas amigas
estavam na casa. Elas costumam sair para dançar, mas o meu aniversário
é amanhã, bem, acredito que já seja hoje, e elas voltaram para casa mais
cedo para planejar minhas surpresas. Elas estão bem, não estão?
O patrulheiro pegou a mão dela.
— Vá para a cantina do Serviço Real Voluntário Feminino, elas devem
ter montado um posto de informações sobre o incidente. Elas saberão o
que fazer.
Rose poderia até ter se deixado levar ao frio salão da igreja, mas então
viu o olhar trocado entre os dois homens, o rápido aceno de cabeça do
patrulheiro.
— Não!
Ela se soltou deles e saltou para a frente. Aquele tempo todo, ela havia
olhado cegamente para o buraco que se estendia por duas ruas. Só agora
que olhava para o que restara da calçada.
No chão, havia seis cobertores bege manchados, cobrindo o que havia
por baixo. Ao lado, havia um cesto de palha, do tipo que se enche de
sanduíches, frutas e garrafas de refrigerante para um piquenique. Rose
não conseguia imaginar o que aquilo estava fazendo ali e, então, se
lembrou de quando Sylvia lhe contou sobre a vez em que passara por uma
rua meia hora depois de uma bomba ter caído. Na ocasião, havia uma
jovem atendente da ambulância chorando enquanto recolhia pedaços de
carne (“Tenho certeza de que um deles era um pé minúsculo, foi a coisa
mais horrível que já vi e senti vontade de chorar também”), envolvia-os
com jornal e os colocava em uma cesta.
— São elas? São as minhas amigas? É isso? É isso?
Como poderiam ser elas? Se fossem, isso significaria que Sylvia a
deixara. Que ela nunca mais a veria, nem Phyllis ou Maggie. Nem mesmo
o infeliz sr. Bryce e as duas irmãs que moravam no apartamento térreo e
trabalhavam na biblioteca da Chancery Lane. Todos eles tinham
desaparecido e não voltariam mais. Nenhum adeus, nenhum bilhete. Ela
se despedira das garotas em frente ao Rainbow Corner, animada demais
com suas surpresas de aniversário e o jantar no Ritz para fazer com
aquele último “Tchauzinho. Não me esperem acordadas!” tivesse algum
significado.
— Rose, minha querida. — A voz de Edward falhou. — Não faça isso.
Querida, por favor, não faça.
Ela estava de joelhos, golpeando o chão com os punhos, que logo
ficaram ensanguentados. Exigindo que a terra, que tinha levado suas
amigas, trouxesse todas elas de volta sãs e salvas.
— Eu as quero de volta agora mesmo! Está me ouvindo? Traga-as de
volta para mim!
— Se pudesse, eu traria. Eu faria qualquer coisa por você.
Edward estava de joelhos também, segurando-a para que não pudesse
fazer mais nenhum estrago. O corpo grande dele a cobriu e ele a abraçou
com força, como se pudesse sugar toda a dor dela e carregá-la consigo,
dia após dia, para que Rose não tivesse de suportar o fardo.
Mas ele não podia. Ninguém podia. A dor era dela e só dela.
28

Quando conseguiu respirar de novo, quando seus lábios já não estavam


mais azuis, Rose proibira Leo de ligar para seu médico. Também não
deixou que mandassem chamar uma ambulância.
Mas enfim, após muita insistência, permitiu que Leo a levasse para o
quarto. Jane e Lydia os seguiram a uma distância respeitável para lhe
conceder certa dignidade e poderem fingir que não a ouviam arfar
gemendo cada vez que Leo tinha de ajeitá-la nos braços.
Depois que Rose estava acomodada, eles dispensaram Lydia e Jane
ficara. Eles quase não falaram. O rosto de Jane estava branco, a
maquiagem feita com esmero de repente pareceu exagerada. Depois de
um tempo, Leo dissera para ela ir se deitar também. Jane obedecera sem
nenhum sinal de protesto, e Leo passara o resto da noite sentado ao lado
de Rose, que dormia e acordava com dor toda hora.
Leo calculou que devia ter cochilado na poltrona porque a chegada de
Lydia com uma bandeja de café da manhã seguida de perto por um
homem que ele imaginou ser o médico de Rose fez os olhos dele se
abrirem de repente. Ele esticou as pernas, sentiu a panturrilha direita
começar a ter cãibra.
— Sério, quanto barulho por nada — disse uma voz firme que vinha da
cama. Rose estava sentada. Ela parecia melhor do que na noite anterior,
mas, como houvera cinco longos minutos em que Leo achara que Rose
poderia morrer sufocada com a falta de oxigênio, melhor era um conceito
relativo.
Eu nunca deveria ter voltado, pensou Leo enquanto cambaleava até a
cozinha. Ele não tinha coragem de lidar com aquela situação, que só
pioraria.
Por outro lado, talvez ele nunca devesse ter ido embora para início de
conversa.
Jane estava na cozinha, entre ele e a cafeteira. Ela estava de calça jeans
e um velho suéter preto que devia ter encontrado na cômoda dele. Seu
cabelo estava bagunçado, o rosto ainda marcado da cama.
— Você deve estar desesperado por um pouco de café, querido — disse
ela. — Forte, certo?
— O mais forte possível.
Ele sentou em um dos bancos de madeira e apoiou os cotovelos na
bancada enquanto Jane colocava café em duas canecas. Ela lhe entregou
uma, ficou com outra e tomou um gole. Leo esperou que ela dissesse algo,
mas Jane ficou em silêncio. Como se esperasse por ele.
— Estávamos todos nos enganando, Rose inclusive, de que tudo estava
sob controle — finalmente admitiu Leo. Ele olhou para as lâmpadas de
halogênio no teto da cozinha como se fosse encontrar uma salvação em
seu brilho suave. — Que ela poderia continuar do jeito que estava por
vários meses.
— Ontem à noite pode ter sido um fato isolado. — Jane franziu o
cenho. — Embora eu tenha notado que ela não tem tido muito apetite
ultimamente.
— Isso não é mais um jogo, Jane. Você sabe disso, não sabe? —
perguntou Leo sem rodeios, porque, desde a noite anterior, parecia que
tinha sido dominado por uma sensação horrível de medo, como se o fim
do mundo estivesse próximo. Ele não queria tomar parte do que quer que
Jane estivesse tramando. — Você não pode ficar aqui, na casa de Rose, se
está só...
— O quê? Só o quê? — Ela não estava mais pálida, mas com o rosto
vermelho, e com certeza nem mesmo Jane podia se fazer corar quando
quisesse. — Eu disse que o ajudaria, querido, e a promessa ainda está de
pé.
— Por quê? Eu já lhe disse que não vai rolar nenhum dinheiro.
Mesmo com o rosto dela parecendo ter recuperado a capacidade de
demonstrar emoção, ainda era difícil entender o que estava pensando,
principalmente depois que ela se virou para olhar pela janela.
— Independente do que mais que a gente possa ou não possa ser um do
outro, pensei que fôssemos amigos e, como amiga, queria poder ajudá-lo.
Jane parecia diferente naquela manhã. Sua cabeça estava curvada, a
linha graciosa de seus ombros, caída, a postura, desamparada. Leo
levantou e caminhou até ela. Pensou em ajeitar uma mecha solta do
cabelo dela, mas acabou desistindo.
— Então, aquele Charles... ele é gay?
Não era o que ele ia dizer. Não era a hora nem o lugar certo, mas agora
já era. Já tinha falado.
Os ombros de Jane se contraíram.
— Ah... Charles... ele não é nada disso, acho que não. Não é gay, nem
hétero, ele só não está interessado. — Ela se virou e Leo não tinha
percebido como havia chegado perto dela. Mais um passo e estariam cara
a cara, mas, antes que pudesse se afastar para que Jane não pensasse que
a encurralava, ela colocou a mão em seu braço, os dedos frios em sua pele
cansada. — Olhe, eu não sou tudo o que você pensa que sou. E não estou
sempre tramando algo para me dar bem. Gostaria de ficar, mas só se você
quiser.
E, quando ela colocou as coisas nesses termos, Leo não teve de pensar
duas vezes.
— Eu quero que fique.
Ela abriu um sorriso discreto.
— Mas não quero mais bancar o tira mau.
— Você não vai mais — disse Leo com firmeza. Tudo estava ficando
dolorosamente sério de novo. Haveria tempo suficiente para isso mais
tarde. Ele temia pensar no depois, então tentou espantar o pensamento
com um sorriso travesso. — Mas não posso prometer não usá-la como
escudo humano para desviar o impacto de um dos olhares fuzilantes de
Rose.
— Isso eu permito — afirmou Jane, que então passou por ele para
subir num banquinho.
Eles ainda não tinham terminado o café quando Lydia ligou para eles
pelo telefone da casa e pediu que subissem até a suíte de Rose.
Rose estava instalada no sofá de sua sala de estar, como se estivesse
apenas descansando entre compromissos sociais.
— Achei que seria melhor que vocês fossem atualizados enquanto o
dr. Howard ainda está aqui. Detesto ter de repetir tudo.
O dr. Howard estava estranhamente empoleirado num banquinho
baixo, mas se levantou para cumprimentá-los. Ele era um pouco mais alto
do que Jane e tão escorregadio, misterioso e esperto quanto uma lontra.
— É tão importante ter a família por perto em momentos como este —
murmurou ele. Leo se perguntou se algum dia ele já tivera de levantar a
voz. — A srta. Beaumont concordou que um enfermeiro lhe administre
uma injeção três vezes ao dia, para um alívio mais eficaz da dor, apesar de
termos falado sobre uma cânula...
— Não, Gerard, você falou sobre uma cânula — lembrou-lhe Rose. Pelo
olhar firme e contido de Lydia, Rose devia vir lembrando o dr. Howard de
várias coisas naquela manhã. — E eu já lhe disse de forma bem clara
diversas vezes que isso só me atrapalharia.
O médico afundou de volta no banquinho. Ele já não parecia tão calmo
e capaz como quando Leo o vira mais cedo. Rose obviamente vinha
testando sua paciência ao limite.
— Agora, srta. Beaumont, nós já conversamos sobre isso. Este é o
momento de começar a pensar em todas as nossas opções. Se podemos
fazer algumas modificações aqui para deixá-la mais confortável ou...
— Não use o plural majestático comigo, meu jovem — disse Rose com
grandiloquência, e Leo sabia que eles tinham de lhe permitir isso: lutar
com coragem, sacudir o punho na cara da morte e tudo mais. Ele entraria
em pânico quando ela parasse de lutar. — Admito que talvez eu esteja me
excedendo um pouco, mas vou tirar o fim de semana para me reagrupar.
Ficarei bem até segunda, e amanhã vamos a Lullington Bay. Vou estar
sentada no carro, então não vai ser cansativo. — Rose suspirou. — É uma
pena que as rosas não terão florido. Promete que vamos amanhã, Leo,
sem desculpas?
Ele prometeu, com a mão no peito, então eles saíram dos aposentos de
Rose para deixá-la descansar um pouco. Leo e Jane acompanharam o dr.
Howard até a porta. Ele estendeu a mão para os dois por um tempo
desconfortavelmente longo e fez um discurso murmurado sobre como
Rose era forte, que sua geração mantinha a força dos tempos da Blitz e
que não havia mais pessoas assim.
— É sempre mais escuro antes do amanhecer — concluiu ele, pouco
antes de Leo fechar a porta.
— Você acha que ele ensaiou isso na frente de um espelho? —
perguntou Leo a Jane. — Treinou muito para acertar o tom de
sinceridade?
— Acho que ele provavelmente teve um professor de teatro — disse
Jane, fungando. Mesmo que eles só estivessem fingindo ser uma frente
unida, ainda era muito melhor do que ele ter de fazer isso sozinho.

Após o almoço, Lydia pediu a Jane que levasse uma xícara de chá para
Rose. A idosa não tinha deixado seus aposentos durante toda a manhã; e,
quando entrou no quarto, Jane a encontrou sentada em uma cadeira
junto à janela panorâmica, que dava para uma bela sacada com grade de
ferro forjado.
— Não suporto ficar confinada o dia todo. Quero sair — disse Rose,
com os olhos ainda fixos na desolada paisagem de inverno lá fora.
— Você quer sair? Está se sentindo melhor, então?
— Não estou sugerindo um jantar e um espetáculo. — Era por isso que
Jane não gostava muito de ficar sozinha com Rose. Rose era tão decidida,
tão viva, e Jane sempre foi uma criatura de sombras. — Só quero ir
sentar na praça.
— Mas, querida, está congelando e...
— Eu não estava pedindo a sua permissão, mas minhas velhas pernas
tolas não querem me obedecer hoje, então preciso de sua ajuda. — Rose
levantou as mãos, frustrada. — Nunca fique velha. Não recomendo.
— É claro que vou ajudar. Você deve sair se quiser — disse Jane,
porque se lembrava de como era não poder fazer o que queria quando
queria. Mesmo agora, havia momentos em que sua liberdade ainda
parecia uma novidade. Como uma bugiganga delicada que poderia acabar
esmagada sob seus pés se não tomasse cuidado.
Então, se Rose queria sentar na praça, embora o frio fosse de penetrar
os ossos que, segundo o dr. Howard deixara implícito naquela manhã,
estavam sendo consumidos pelo câncer, Jane não recusaria o seu pedido.
— Vou chamar o Leo — disse ela.
Leo carregou Rose até o térreo de novo, mesmo com ela dizendo que
podia andar. Frank levou o carro o mais perto que pôde da porta dos
fundos, então dirigiu os poucos metros dobrando a esquina até o portão
trancado que dava para a pracinha. Então, apoiando-se com toda a força
em Jane, Rose caminhou até um banco de madeira, escondido em um
pequeno caramanchão criado pelas árvores, que, ao longo dos anos,
tinham se curvado em torno dele.
Rose usava um casaco de pele velho que tinham encontrado no sótão
havia cerca de uma semana.
— O casaco de pele que minha mãe usava em enterros — disse ela.
Lydia insistira para que ela colocasse luvas e um cachecol, Leo foi
mandado de volta ao carro para buscar a manta, e depois Rose lhe pediu
para ir ao seu escritório buscar alguns arquivos. — Eu tinha planejado
dar um pulo lá esta manhã. Havia algumas coisas em que eu queria dar
uma olhada no fim de semana — disse ela a Jane, como se de repente
precisasse justificar suas ações. — Mas com certeza irei ao escritório na
segunda de manhã. Não há o que discutir.
— É claro que não há — concordou Jane, enquanto se esforçava para
não tremer, ainda que Lydia a tivesse forçado a também usar algo para
cobrir a cabeça.
Leo sorrira satisfeito ao puxar um gorro de lã cinza, que desenterrara
de uma de suas gavetas sem fundo, na cabeça dela.
— Bem, não é nenhuma tiara — dissera ele.
Havia algo de diferente em Leo naqueles últimos dias. Não era só o
novo corte de cabelo e a forma como de repente ele parecia diferente, as
maçãs do rosto e todos aqueles ângulos salientes. Apesar de tudo, ele
parecia mais feliz, mais forte, mais ele mesmo.
Ela tinha ficado tão preocupada em não lhe machucar que não pensara
em se preocupar consigo mesma, o que era novidade. Mas agora, depois
da noite anterior, depois que Charles...
— Eu lhe contei sobre os refugiados?
Ela se virou para olhar para Rose, que também estivera perdida nos
próprios pensamentos.
— Não, acho que não.
— Eu costumava visitá-los nas minhas tardes de quinta-feira, quando
tinha folga no café. Parecia o mínimo que eu podia fazer. Todos eles
estavam tão fracos no início, mas as crianças se recuperaram depressa, e
nós vínhamos aqui, embora estivesse coberta com pilhas de escombros, e
jogávamos croquet. Bem ali. — Jane ainda não sabia direito sobre quem
Rose estava falando quando apontou para um canteiro de flores, onde
arbustos de viburno floresciam incrivelmente rosa sob a fraca luz da
tarde. — Madeleine e Gisèle transformaram o jardim dos fundos em uma
horta, e Yves e Jacques ajudavam a reformar a casa ao lado. Era muito
importante para eles sentir que estavam recompensando Edward de
alguma maneira, embora eu não ache que ele se sentisse da mesma
maneira.
— Você nunca mencionou Edward antes...
— Nunca mencionei? Que estranho! Na maior parte do tempo, eu
brincava com as crianças. Paul, Hélène e Thérèse, que, cerca de vinte
anos mais tarde, daria luz à nossa Lydia.
— Sério? Você a conhece há tanto tempo que chegou a trocar suas
fraldas?
— Eu nunca troquei uma fralda na vida — retrucou Rose com um
pouco daquela imperiosidade a que Jane aspirava. — É preciso ter alguns
limites.
— Devo dizer, com todo o respeito a Lydia, que ela é terrivelmente
mandona com você, alguém que a conhece desde que era uma pirralha
melequenta.
— Você notou isso também. — Rose se permitiu um discreto e seco
sorriso. — Então, esta praça, a casa, tem sido meu lar praticamente
minha vida inteira.
— Nunca tive um lar, só lugares em que morei por um tempo — disse
Jane. Naquele dia estava sensível a ponto de não aguentar mais ter de
tomar cuidado com tudo o que dizia. — Lar é onde você se sente seguro,
certo? A única coisa que me faz sentir minimamente segura é dinheiro.
Quando se tem o bastante, você pode fazer qualquer coisa, ir a qualquer
lugar, ser quem você quiser. Ninguém pode detê-lo.
— Você ainda não chegou lá então, não é?
Jane balançou a cabeça.
— Não faço ideia de quanto seja necessário. Cinco milhões? Dez
milhões? Um bilhão? — Ela se virou para Rose, que estava lúcida outra
vez e a observava como se ela fosse alguma curiosidade por trás de um
vidro no museu. — O seu dinheiro a faz se sentir segura?
— Eu nunca me importei muito com o dinheiro. Ah, é bom ter
dinheiro, e, sim, ele a resguarda um pouco, mas existem algumas coisas
contra as quais nem mesmo o dinheiro pode protegê-la — disse Rose, e
Jane não teve certeza se ela se referia à maneira como seu corpo estava
sucumbindo à doença ou se estava falando de algo do passado, já que
Rose estava ficando com aquele olhar distante de novo. — Sempre me
senti mais segura quando estou com as pessoas que amo. Eu amei muito,
nem sempre de forma inteligente, e esta casa e a casa em Lullington Bay
estão associadas a algumas das pessoas que amei muitíssimo. É por isso
que são meus portos seguros.
Depois de tudo o que lhe acontecera, não havia nenhuma possibilidade
de Jane ser capaz de amar, mas ela era capaz de ser gentil, mesmo
quando não tinha nada a ganhar com isso. Todo mundo merecia se sentir
seguro — principalmente no fim.
— Vou cuidar para que você fique aqui. Nada de casas de saúde. Eu
prometo. Aconteça o que acontecer.
— Obrigada — disse Rose, que então pegou a mão de Jane e, mesmo as
duas estando de luvas, segurou-a com uma força que Jane não pensara
ser possível. — Desde a última semana, mais ou menos, vejo todos os
meus entes queridos ao meu redor. À noite, quando não consigo dormir,
posso vê-los nas paredes.
Rose podia estar ficando com aquele olhar enevoado e sem foco de
novo, mas sua voz soava bem clara, por isso era difícil saber como
responder.
— Ah, bem... provavelmente são só os novos medicamentos que você
está tomando, querida.
— Não, acho que eles estão esperando por mim. Eu pensei que teria
mais tempo do que isso. Adoraria ter um pouco mais de tempo. Há ainda
tantas coisas por resolver. — Rose pousou a outra mão sobre os dedos
entrelaçados delas. — Mas acho que não terei de me preocupar com os
cartões de Natal este ano. Ter de escrevê-los sempre foi tão chato.
Era um alívio voltar aos assuntos frívolos.
— Você provavelmente também não terá de se preocupar em comprar
presentes de Natal.
— Ou comer couve-de-bruxelas. Nunca as suportei. Eram a única coisa
que tinha oferta abundante durante a guerra.
— Elas não são tão ruins se você tirar todas as folhas e fritar com
bacon — disse Jane, e dessa vez Rose não estava tão distante para lhe
lançar um olhar incrédulo. — Às vezes, não muitas, devo admitir, eu
cozinho. Ano passado, antes de eu conhecer o Leo, é claro, preparei a ceia
de Natal para a família do meu namorado. — Jane riu ao lembrar. — Eles
não entendiam muito bem o conceito de ceia de Natal. Ficavam dizendo
que o dia de Ação de Graças não tinha sido há tanto tempo assim para
comerem peru de novo. Jackie, a mãe de Andrew, disse que no ano
seguinte me daria sua receita de presunto cozido para eu poder fazer no
lugar do peru. Escapei de uma boa. Está com muito frio, querida? Vamos
entrar agora?
Rose olhava para ela com ar incrédulo de novo.
— Nossa, você é mesmo bem diferente — disse ela como se fosse
setenta anos mais jovem e não estivesse falando com Jane, mas com um
dos seus fantasmas que viviam nas paredes.
Então, graças a Deus, Leo vinha do portão ao encontro delas.
— Espero que vocês duas não estejam falando de mim — disse ele
alegremente. — Frank me deu uma carona até o escritório. Peguei tudo o
que você me pediu e Liddy disse que está muito frio e você tem de entrar
agora.
29

Setembro de 1944

Rose sentou em uma cadeira de madeira, segurando uma caneca com um


chá que lembrava um pouco o gosto de couve-de-bruxelas, enquanto uma
senhora do Serviço Real Voluntário Feminino lhe fazia perguntas, cada
uma pontuada pela palavra “querida”.
— Você tem o endereço dos parentes mais próximos de Phyllis Carfax,
querida?
— Sabe quando Magda Novotny chegou à Inglaterra? É assim que se
escreve o sobrenome dela, querida?
— É Sylvia ou Sylvie, querida?
— Você tem o seu livro de registro de aluguel, querida?
Então ela mandou Rose para o outro lado do salão da igreja para falar
com uma atendente do setor de informações. Houve então mais
perguntas, formulários a serem preenchidos e um cartão com o endereço
do necrotério, porque Maggie — não paravam de chamá-la de Magda,
embora ela fosse Maggie — não tinha parentes para identificar o corpo.
— Você não pode esperar que ela faça isso — disse Edward
asperamente. — Ela acabou de fazer dezoito anos.
Rose estava feliz por Edward saber a verdade e assim não ter de mentir
para ele também. Estava farta de mentir.
— Eu não me importo — disse ela. — Não posso suportar a ideia de
Maggie... Eu quero fazer isso.
Eles pegaram carona até o Hospital New Middlesex com uma das
equipes de ambulância e esperaram em um corredor até as nove horas,
quando o necrotério abriu. Rose entregou o cartão, e eles voltaram a
esperar do lado de fora.
— Estou tão atrasada para o trabalho — disse ela a Edward. — E ainda
preciso ir para casa para me trocar.
Ela toda hora esquecia que não havia mais casa a qual voltar, nenhuma
roupa com que se trocar, ninguém para gritar com ela para que lhe fizesse
uma xícara de chá também.
— Não tem problema — disse Edward. Seu cabelo claro estava coberto
de fuligem. Também havia fuligem e pó de tijolo por todo o seu uniforme,
e ele tinha perdido o quepe na confusão. Edward era uma pessoa muito
importante, então ele provavelmente precisava ir trabalhar também,
muito embora fosse um sábado, mas ele balançou a cabeça quando Rose o
lembrou disso. — Nada disso importa hoje.
Por fim, Rose foi chamada por uma jovem em um terno de tweed, que
desceu com eles vários lances de escada, depois passaram por um
labirinto de corredores, até chegarem à porta com um cartaz feito à mão:
NECROTÉRIO.
A mulher falava com ela.
— Vou tentar fazer isso da forma mais rápida e indolor possível, mas
foi uma explosão muito concentrada. Você precisa se preparar.
Rose ergueu o queixo e endireitou os ombros.
— Estou perfeitamente bem — insistiu ela, mas estava feliz pela mão
de Edward estar apoiada na parte inferior de suas costas quando passou
pela porta.
A sala lembrava o laboratório de ciências de sua antiga escola. Os
mesmos potes e frascos dispostos em prateleiras. Havia até um quadro-
negro e o cheiro incômodo, ainda que discreto, de produtos químicos, mas
o laboratório de ciências da sua escola nunca tivera um cadáver coberto
sobre uma cama de rodinhas no meio da sala.
Só que era muito pequeno para ser um cadáver, e Rose ficou paralisada,
mas Edward flexionou os dedos, empurrando-a para a frente, e ela andou
com os pés vacilantes.
Então parou.
— Parece muito pequena para ser a Maggie...
A mulher consultou sua prancheta.
— Maggie? Magda Novotny?
— Nós a chamamos de Maggie. Bem, nós a chamávamos de Maggie. —
Rose apontou para a figura coberta. — Ela não era tão alta quanto eu,
mas era maior do que isso.
Ela ouviu Edward respirar fundo. A mulher olhou fixamente para os
papéis à sua frente.
— Foi uma explosão muito concentrada — repetiu. Então olhou para
Rose e ergueu as sobrancelhas. Rose olhou para ela. — Ou seja, nem
todos os corpos estão, hum... intactos.
Rose pensou na cesta de vime em cima do que restou da calçada.
Pensou mais uma vez em Sylvia lhe contando sobre o pezinho e não
conseguiu evitar um soluço. Ela levou a mão à boca.
— Rose, querida, você não tem que fazer isso — disse Edward,
levantando as mãos para apoiá-las nos ombros dela, os dedos
pressionando bem os ossos dela como se tentasse passar sua força para
ela. — Você não precisa ser tão corajosa.
— Não acho que estou sendo muito corajosa. — Ela respirou fundo
agora. Lembrou-se de todas as pequenas gentilezas que Maggie lhe fizera.
Todos os remendos, todas aquelas coisas deliciosas que preparara
milagrosamente no pequeno fogão delas, todos os bons conselhos que
recebera. Aquela era sua única chance de retribuí-los. — Estou pronta.
A mulher se aproximou da mesa e pegou com cuidado uma ponta do
lençol entre o polegar e o dedo indicador para poder levantá-lo devagar e
mostrar apenas metade do rosto de Maggie.
Era o seu cabelo escuro ondulado, o nariz imperioso, mas os lábios não
estavam curvados no discreto sorriso que costumava exibir, e o olho
estava fechado com fita adesiva. Rose se aproximou devagar e, só de
espiar por baixo da ponta do lençol, viu algo vermelho, lívido e em carne
viva que a fez se virar e pressionar o rosto contra a camisa de Edward. Ele
era cálido e sólido.
— Querida, é a Maggie?
— Sim — murmurou ela contra o algodão cáqui imundo. — Podemos
ir agora?
Eles voltaram pelo mesmo caminho, assinaram mais formulários e só
então foram liberados. Para abrir as grandes portas duplas que se abriam
para um mundo que corria sem se dar conta de que algo terrível tinha
acontecido.
Rose se agarrou às grades do prédio.
— Sinto que deveria estar chorando, mas não consigo chorar.
— Não acho que você tenha que chorar se não estiver com vontade —
disse Edward. Ela ainda estava com o casaco dele sobre os ombros; ele
procurou em um dos bolsos por sua cigarreira e o isqueiro. — É o choque.
Ele pode fazer coisas estranhas com as pessoas.
— Eu deveria ir trabalhar agora. A sra. Fisher sempre briga comigo por
chegar atrasada. — Rose pegou o cigarro oferecido por Edward. — Não
quero ser demitida.
Mas ela não foi trabalhar. Em vez disso, eles caminharam. Até o
Regent’s Park, passaram pelo zoológico todo fechado por tábuas,
cruzaram o Rose Garden e deram a volta no lago.
Ela e Edward contaram os sacos de areia enquanto passavam pela
Broadcasting House, viram os produtos de pouco valor expostos ao longo
da Oxford Street, então procuraram passar pela Mayfair até chegarem ao
prédio dele.
Era um edifício com várias residências, que dava vista para o Green
Park.
— Muito conveniente ter uma Fortnum & Mason bem na esquina —
brincou ele enquanto Rose o seguiu pelas escadas de mármore até seu
apartamento no quarto andar. Havia um elevador, mas aparentemente
não estava funcionando havia semanas.
Edward a levou até a sala de estar, que era tranquila e tinha poucos
móveis e objetos, fora as estantes abarrotadas e as obras de arte nas
paredes. Obras que não se pareciam com coisas reais, como pessoas,
animais ou paisagens.
Rose sentou em um sofá, o couro marrom gasto em alguns lugares
porque Edward era rico e os ricos não pareciam se estressar tanto com
coisas gastas, e viu quando ele serviu brandy em dois copos.
— Não gosto muito de brandy — avisou.
— Você está em choque e vai beber — disse ele, e lhe entregou o copo e
sentou ao lado dela.
Rose tomou um gole cauteloso. Ela imaginava que a bebida pareceria
quente e suave, só que era muito forte, mas gostava do jeito como a sentia
descer queimando até o estômago.
— Você acha que demorou muito? Acha que elas sofreram? Que
ficaram lá caídas, com dor e assustadas, esperando que alguém fosse
ajudá-las?
Edward moveu a mão para mais perto de onde a dela descansava no
sofá, mas não a tocou.
— Acho que foi instantâneo. Que elas estavam dormindo e não
acordaram mais.
— Mas foi uma tubulação de gás com defeito? — Essa era outra coisa
que a preocupava. — Se foi, por que o patrulheiro da ARP estava lá? Por
que de repente o lugar estava fervilhando com todos aqueles homens de
terno enquanto caminhávamos até o salão da igreja?
Ele deu de ombros, impotente.
— Eu não sei, Rose. Tenho certeza de que, se foi uma explosão de gás
ou qualquer outra coisa, eles simplesmente seguiram os protocolos já
existentes.
Ela também não ficou satisfeita com essa explicação.
— Elas não deveriam nem estar lá. Nós sempre saímos para dançar nas
sextas à noite depois do Rainbow Corner, sempre. Elas voltaram para casa
porque era meu aniversário hoje e eu perturbei Maggie para fazer um
bolo de aniversário porque tínhamos açúcar e ovos suficientes. E se foi a
tubulação de gás? E se foi o nosso forno? E se você não tivesse me
convidado para jantar? E se...?
— Pelo amor de Deus, Rose. — Edward esvaziou o conteúdo de seu
copo em um gole irritado. — Você não estava lá, elas estavam. Não há
nenhuma razão para o que houve. Você não entendeu isso até agora?
— Só aceitei jantar com você porque eu queria ir ao Ritz e lhe pedir
para me ajudar a encontrar o Danny. — Rose não sabia por que estava
fazendo isso. Só porque estava em choque não havia motivo para deixar
Edward furioso pelos dois. — Eu estava sendo egoísta e mimada. Pior, fui
recompensada por ser egoísta e mimada, porque estou aqui sentada
tomando brandy, viva, e elas estão mortas. Bem, não acho isso justo!
— Você quer calar a boca?
Edward parecia em agonia. Como se tivesse ficado lá deitado com os
mortos e moribundos, esperando em vão que alguém fosse resgatá-lo,
mas, quando Rose virou para ele para pedir desculpas, viu as marcas das
lágrimas no rosto dele e, antes que pudesse dizer alguma coisa, ele a
segurou.
Ela jamais esperou que Edward fosse beijá-la.
Jamais esperou que fosse retribuir o beijo.
Por fim, ela sentiu algo: que estava realmente viva e em um corpo que
se movia e retorcia por baixo de outra pessoa, porque Edward estava
muito ávido. Ele exigiu tudo o que ela ainda podia ter para dar e Rose deu
de bom grado.
Ela nunca se sentira assim quando Danny a beijava. Aquele desejo
louco e desenfreado, que a fazia beijar Edward de uma forma confusa e
desajeitada e deslizar as mãos por baixo da camisa dele para poder
arranhar suas costas, toda aquela pele quente implorando pelo toque
dela.
Era luxúria. Luxúria carnal. Degradante. Imoral. Todas as palavras que
Rose nunca tinha de fato entendido até aquele momento no sofá de
Edward, enquanto ela se contorcia e gemia e arfava, enquanto ele fazia
coisas absolutamente enlouquecedoras com a boca e os dedos que Danny
nunca fizera.
Então Edward estava dentro dela, as mãos ainda pelo seu corpo,
beijando-a, até que a única coisa de que Rose tinha certeza era que nunca
se sentira tão bem antes. Que justo Edward podia fazê-la perder
completamente a compostura e ela não tinha nem tirado os sapatos ou
desabotoado o vestido. Isso deveria ter bastado para fazê-la se sentir
terrível, mas não bastou, não até Edward de repente agarrar seus pulsos e
arremeter para dentro dela com um último impulso feroz.
— Eu te amo! — As palavras foram arrancadas de dentro dele. —
Como eu te amo!
— Ah, Deus! Saia de cima de mim! — Ela empurrou o peso imóvel
dele, bateu nos ombros que tinha agarrado minutos antes. — Saia de
cima de mim!
Edward recuou tão de repente que caiu no chão com um baque e uma
expressão tão espantada que quase fez Rose rir. Mas não havia nada do
que rir com o esperma dele escorrendo por suas coxas, seu vestido
levantado até a cintura e suas amigas mortas.
— Rose? — Edward estava sentado no chão. Ele fora seu alicerce hoje,
seu saco de areia, mas agora parecia tão perdido quanto ela. Rose tinha
arrancado os botões da camisa dele, que estavam espalhados como
moedas pelo tapete, e ela podia ver a curva do ombro dele, a saliência da
clavícula, a pele tão pálida e vulnerável que a fez querer chorar. — Sei
que escolhi a hora errada, a pior hora, mas você precisa saber que eu te
amo. Acho que a amei desde a primeira vez que a vi.
Ele estava vermelho por causa do esforço, e Rose tinha certeza de que,
se olhasse com atenção, veria o sangue correndo por suas veias, o coração
batendo para manter o bombeamento do sangue. A menos que seu
coração tivesse voado do corpo, sido recolhido por um atendente de
ambulância e enfiado em uma cesta de vime.
Edward deve ter tomado o silêncio dela por encorajamento, embora
Rose não conseguisse imaginar por quê. Ele limpou a garganta e tentou
sorrir.
— Sei que agora você se sente como se nunca mais fosse ser feliz, mas
não vai ficar sempre assim.
— Eu não quero ser feliz — disse ela. — Não tenho o direito de ser
feliz.
— Mas você tem sim e, se me deixar, eu gostaria de tentar fazer isso...
Eu te amo.
Rose levantou para poder olhar de cima para Edward sentado no chão,
desajeitado e diminuído.
— Bem, eu não te amo. Eu nunca poderia amar você.
30

Como Jane e Leo poderiam saber, ao acompanharem Rose em sua lenta


caminhada de volta à casa, que aquela seria a última vez que ela sairia?
No dia seguinte, domingo, Rose estava muito cansada para ir a
Lullington Bay. Na segunda de manhã, ela disse que iria ao escritório
depois do almoço, mas não foi. Nem na terça, e assim foi o resto da
semana; e, na semana seguinte, o escritório foi até ela. Fergus aparecia
pelas manhãs e ficava por cerca de uma hora, e Leo dava um pulo em
casa depois do almoço com papéis, projetos, amostras de tinta e azulejo, e
ia embora não com uma série de instruções que tinham de ser seguidas
ao pé da letra, mas com Rose dizendo:
— Faça o que achar melhor, querido. Fale com Fergus se não tiver
certeza.
Cada dia trazia uma novidade, um novo sintoma de declínio que
deixava o fim de Rose cada vez mais próximo: o primeiro dia em que não
saiu do quarto, a bandeja de café da manhã intocada, a ligação para Jane
pelo telefone interno da casa para que a ajudasse a ir do sofá ao banheiro.
George ainda aparecia para o jantar e Rose falou sobre o Rainbow Corner,
mas estava começando a ficar repetitiva.
Ainda assim, Rose continuava a ser inequivocamente Rose. Ainda
estava em plena posse de suas faculdades mentais e ainda poderia mudar
seu testamento, enquanto estivesse em seu juízo perfeito. Acrescentar um
codicilo que garantisse uma herança favorável ao seu problemático,
porém muito amado sobrinho-neto. Contudo, Jane tinha outros
problemas que pesavam ainda mais sobre ela.
Foi ao escritório de Charles no final da primeira semana de dezembro.
Ele trabalhava em um conjunto de três salas interligadas no térreo de
uma casa georgiana perto da embaixada americana, embora, àquela hora
de uma tarde de sexta-feira, estivessem ali apenas Charles e sua
assistente pessoal, sua beleza discreta ainda mais discreta por causa dos
óculos de armação grossa e escura e um penteado muito preso que não
lhe favorecia nem um pouco.
O trabalho de Charles não era do tipo em que se atendia quem chegava
de repente, mas a mulher nem sequer perguntou se Jane tinha hora
marcada. Ela ligou para Charles, depois levou Jane pela sala do meio
cheia de arquivos até seu refúgio sagrado.
Ele não pareceu surpreso com a visita repentina de Jane. Por que se
espantaria, já que sabia o suficiente para destruí-la? Com pouco esforço,
Charles poderia desmantelar a vida incrível que Jane construíra, porque
muitas vezes ela achava que tinha colado tudo com laquê, chiclete diet e
ah, sim, uma rede de mentiras. Em vez disso, ele simplesmente disse:
— Olá. Eu esperava que pudéssemos nos ver de novo.
Charles deu a volta na mesa e apontou para uma das duas poltronas de
couro preto. Perguntou a Jane se ela queria beber algo. Então sentaram e
tiveram uma conversa perfeitamente amigável sobre Rose e sobre o
maldito clima de novo, e o tempo todo Charles a encarou com olhos
tristes e Jane teve certeza de que apenas sob firme interrogatório, talvez
até afogamento simulado, ele admitiria como de fato se sentia em relação
a ela. Mesmo assim, ele diria algo típico dele, como: “Eu nunca poderia
ficar com raiva de você. Só estou um pouco decepcionado”.
Ela não pôde adiar mais:
— Vim aqui porque preciso falar com você.
As mãos de Jane estavam suando, então as deixou ao lado do corpo. Ela
nunca tinha pedido desculpas a ninguém. Por outro lado, ela nunca ficara
por perto o suficiente para se desculpar. Quando seus crimes eram
descobertos, ela já tinha ido embora. De qualquer forma, um pedido de
desculpas era na verdade uma admissão de culpa, e Jane não tinha do
que se sentir culpada — isso era o que sempre dissera a si mesma. As
decisões que tomava, o estrago que às vezes provocava nas outras
pessoas, estavam além de seu controle.
E, em alguns aspectos, estavam. Cada soco, cada tapa, cada chute,
cada... crueldade infligida contra ela fizera dela o que era, mas Charles
tinha sido sua salvação. Ele a tratara somente com gentileza e bondade e
Jane se deixara convenientemente esquecer disso, mas estar de volta a
Londres lhe trouxera inúmeras lembranças dele, de como ela o magoara
quando ele não merecia. Então, por algum motivo que ela não podia, não
iria analisar, ela queria, não, ela precisava fazer as pazes com Charles.
Jane respirou fundo.
— Eu queria lhe dizer que, quando fui embora... antes de eu ir embora,
eu deveria ter... — Deus, era difícil, mas Charles já estava balançando a
cabeça.
— Nós não temos que fazer isso, eu e você — disse ele suave, porém
firmemente, e Jane deveria ter se sentido aliviada... por ter conseguido
passar uma borracha naquilo. Mas pôde sentir o pânico tomando conta
dela.
— Temos, sim. Eu tenho. Nunca lhe agradeci por salvar minha vida,
porque foi isso o que você fez. — Suas palavras soaram tão baixo, a
garganta trêmula e irritada, como se as lágrimas estivessem prestes a
cair.
Charles se levantou da poltrona para se ajoelhar aos pés dela e
perguntou:
— Posso?
Jane estendeu as mãos e Charles as pegou, e Jane se perguntou o que
poderia ter acontecido, como sua vida poderia ter sido diferente se o
tivesse deixado pegar suas mãos todos aqueles anos atrás. Agora ela se
agarrou ao seu toque, seu toque que jamais vacilava. Baixou a cabeça,
porque não podia suportar olhar para ele e ver nada mesmo que próximo
de pena em seus olhos. Então ela sentiu os lábios dele roçarem de leve os
nós de seus dedos tão brevemente que ela poderia até ter apenas
imaginado isso.
— Eu não mereço tanto crédito — disse Charles, depois que Jane se
soltara e ele sentara em sua poltrona, as mãos dos dois de novo ao lado
do corpo. — Ao entrar naquele trem, você salvou a própria vida, e, Jane,
acho que você deve ter percebido muito antes de mim que, uma vez que
estava salva, não podíamos continuar como estávamos.
Tinham continuado do jeito que estavam por dois anos, Charles ainda
tentando moldá-la, adaptar a vida dela segundo as diretrizes restritas da
existência ordenada dele, então quem poderia culpá-la por começar a
resistir? Por ficar impaciente? Ela gostava de Charles. Talvez, da sua
própria maneira torta, ela até tenha tentado amá-lo, mas isso não
significava que tinha de ficar com ele.
Rafe era jovem e bonito de um jeito elegante de playboy rico e olhava
para Jane como se não pudesse acreditar que tinha o privilégio de
respirar o mesmo ar que ela.
Eles se conheceram pela cerca do jardim. Rafe tinha amigos que
moravam na casa ao lado e deixavam Charles o mais irritado que Jane já
vira com suas festas ruidosas que duravam a noite toda e seus convidados
que nunca falavam, só berravam de forma confiante e vomitavam na rua.
Mas Rafe não era assim. Era calmo, carinhoso e muito persistente. E seus
pais eram muito, muito ricos. Até compraram um apartamento para Jane
em Primrose Hill para se livrarem dela quando pareceu que ela se
tornaria um elemento permanente, mas isso foi um ano depois de se
conhecerem.
Para começar, tinha sido um namoro rápido que se desenrolava
durante o dia, quando Charles estava no trabalho e Jane ficava sozinha —
Charles provavelmente achava que ela estava arrumando flores e
procurando receitas e todas as outras pequenas tarefas que faziam parte
de sua busca contínua por autoaperfeiçoamento. Em vez disso, ela era
levada ao Cowdray Park para tomar champanhe e ver Rafe jogar polo.
Voava para almoçar em Paris. Ganhava seu primeiro diamante. E tudo o
que tinha de fazer em troca era agradecer Rafe com um beijo que
significava mais para ele do que o diamante para ela.
Deixar Charles não foi uma decisão fácil para Jane, mas ela a tomara
mesmo assim. Já tinha prática e, pelo menos dessa vez, deixou um bilhete
com o feio garrancho que era uma das poucas coisas que não conseguira
melhorar. Obrigada por tudo que você fez, dissera no bilhete. Talvez ela
devesse ter se estendido mais, detalhado melhor o agradecimento em
várias folhas do elegante papel de boa gramatura de Charles, mas
couberam àquelas seis palavras dizer como ele a salvou.
— Sinto muito por ter ido embora daquele jeito. Quero que saiba disso.
— Ela tinha dito isso agora e não podia acreditar como era fácil. Talvez
ela começasse a pedir desculpas com mais frequência.
— Você foi embora em uma sexta-feira — disse Charles, com o olhar
fixo em algum lugar além de Jane. — Era junho. Estava tão ensolarado,
quente, e você tinha falado em passear fora de Londres, que você só tinha
visto o mar uma vez. Eu saí do trabalho mais cedo, reservei dois quartos
em um lugar em Brighton e pensei em irmos de carro até lá naquela
noite. Assim que abri a porta, antes mesmo de ver seu bilhete, eu sabia
que você tinha ido embora.
Acabou que não era assim tão fácil. Não era nada fácil.
— Charles, por favor...
— Não poderíamos continuar como estávamos, mas você não estava
feliz? Foi algo que eu fiz? Algo que eu disse? Eu lhe dei algum motivo
para não confiar em mim? — Charles ainda não olhava para ela e seu
tom de voz, suas difíceis e intermináveis perguntas não eram cruéis, mas
resignadas, ensaiadas como se ficasse acordado revivendo o momento em
que voltara para casa e descobrira que ela fora embora. E ele continuou:
— O que havia de tão especial naquele rapaz... porque eu sabia sobre ele,
você não era tão boa em disfarçar o que fazia quanto pensava. Passamos
dois anos juntos e então você foi embora me deixando seis palavras em
um pedaço de papel, Jane. Pensei que eu merecesse mais do que isso.
Jane cobriu o rosto com as mãos geladas.
— Não posso evitar ser quem sou, Charles. Fiz uma coisa ruim para
você, eu sei, mas isso não faz de mim uma pessoa má.
— Isso é uma desculpa, não um motivo — disse Charles gentilmente, e
era essa gentileza que ameaçava romper as barreiras de Jane, fazer os
soluços virem à tona.
Seis palavras não eram o suficiente. Pedir desculpas não era o
suficiente. Ela lhe devia algum tipo de explicação.
— Entenda, com você, eu não estava mais com medo, mas ainda não
me sentia segura — disse Jane hesitante. — Ainda parecia que o mundo
poderia desabar em cima de mim a qualquer momento e pensei que, se eu
tivesse dinheiro, se estivesse com alguém que tivesse muito dinheiro,
mais dinheiro do que você, então isso amorteceria o golpe. Dinheiro nos
dá segurança. E nos deixa à prova de bombas, eu sempre pensei assim,
embora nos últimos tempos venha me perguntando até que ponto isso é
verdade.
— Ninguém é à prova de bombas — retrucou Charles. — Todo mundo
pode ser ferido, não importa quanto dinheiro tenha.
— E eu feri você e sinto muito, Charles... Não sei mais o que dizer, além
de “me desculpe”. Não sei como fazer essas palavras significarem tudo o
que deveriam. — Ela estava começando a soar suplicante, chorosa. —
Você tem que acreditar em mim.
— Eu acredito. Está tudo bem. Desculpas aceitas — disse Charles
depressa como se não pudesse mais suportar ouvir nenhuma palavra,
mas Jane não tinha acabado. Havia chegado tão longe e agora não tinha
escolha a não ser seguir em frente de maneira decidida, ainda que fosse
difícil.
— Há mais uma coisa. Naquela primeira noite... você deve ter se
perguntado... Quer dizer, eu tinha sangue pelo corpo... minhas roupas,
minhas mãos, e você nunca nem... você não... — As palavras saíam
atrapalhadamente, os dois sem acreditar que ela estava falando isso.
Tocando nesse assunto.
— Jane, por favor, pare agora — sussurrou Charles. — Eu não posso
fazer isso.
— Mas eu preciso. — Ela mal reconheceu a própria voz, a cadência
meio louca, desesperada e perdida que havia em seu tom. — Porque
também ponderei sobre você. Quando você me deu a faca naquela
primeira noite e disse para dormir com ela para me sentir mais segura.
Eu preciso saber o que aconteceu com você.
— Eu não posso. Você não pode esperar que eu...
— Mas...
— Não sou corajoso como você. Por favor, Jane, se você algum dia se
importou comigo, deixe isso para lá.
Jane estendeu as mãos para ele, implorando, mas Charles balançou a
cabeça e o rosto, seu rosto bondoso e gentil, estava à beira de um colapso,
então ela não insistiu.
— Você está certo — disse ela. — Não vamos mais falar sobre isso.
Charles assentiu. Cruzou um joelho sobre o outro e forçou um sorriso.
— Então, Rose me contou que você tem ajudado a ver as coisas que ela
guarda no sótão e que encontrou uma coleção inteira de taxidermia de
que ela não tem a mais remota lembrança de ter comprado.
Eles, então, tiveram outra conversa perfeitamente agradável, embora
isso também tenha feito Jane sentir vontade de chorar, em seguida,
Charles a acompanhou até a porta.
— A propósito — disse ele, pouco antes de ela sair, um pé já no solado
da porta. — Gostei do seu Leo. Gostei muito dele.
Estava chovendo lá fora. Torrencialmente. Uma chuva forte e bíblica.
Jane não tinha guarda-chuva. Não queria pegar um táxi. Ela sentia... nem
sabia bem o que sentia, mas, enquanto caminhava, se perguntou se estava
mesmo chorando ou se era apenas a chuva em seu rosto. Quando chegou
a Kensington, concluiu que não havia mais por que se sentir culpada. Era
mais fácil quando não sentia nada tão profundo, para começo de
conversa. Ela não podia evitar que houvesse algo faltando, que algo em
sua fiação interna não estivesse conectado corretamente. Não era culpa
dela de forma alguma.
Assim que abriu a porta da frente, Jane soube que havia algo errado. A
casa podia dizer muita coisa e estava silenciosamente gritando com ela.
Jane subiu as escadas de dois em dois degraus. Quando passou do
primeiro andar, pôde ouvir uma espécie de grito rouco, que ficava mais
alto à medida que subia o último lance de escadas e seguia pelo corredor
até a sala de estar de Rose.
Lydia, Agnieska, uma das enfermeiras contratadas que vinham dar as
injeções em Rose, e Leo, com um olhar aflito no rosto, estavam ali de pé
enquanto Rose gritava com ele.
— Foi você! Foi você que fez isso comigo! Eu estava bem até você
voltar. Por que você voltou?
— Rose, você sabe por que eu voltei. — Ele engasgava a cada palavra.
— Porque gosto de você.
— Você gosta é do meu dinheiro. Bem, você não vai receber nem um
centavo!
Rose estava agachada e curvada em uma posição horrível, enquanto
tentava se levantar do sofá. Mas o pior era o olhar em seu rosto. Parecia
um animal encurralado e aterrorizado, selvagem, porém enjaulado.
Jane tinha de dizer algo para tirar Rose daquele estado.
— Isso não é verdade, querida. Leo está aqui porque queria fazer as
pazes com você.
Rose virou os olhos acusadores para Jane, de pé junto à porta.
— Você! Quem é você? Vocês dois estão de conluio um com o outro.
Vocês estão tentando acabar comigo. Estão me envenenando!
E, para terminar, ela se levantou com muito esforço e depois desabou
com um grito assustado, ficando de joelhos enquanto todos iam socorrê-
la.
Pareceu um longo tempo até Agnieska terminar de checar a agora
dócil e obediente Rose — nenhum osso quebrado, nenhum dano maior,
exceto pela respiração ofegante dela.
Rose de repente relaxou e, por um instante assustador, Jane achou que
ela tinha morrido. Em seguida, seus olhos se abriram.
— Eu odeio todos vocês — disse ela com petulância. — Me deixem
sozinha. Saiam!
— Chega, Rose — disse Lydia, tranquilamente. — Você não nos odeia e
ninguém está aqui para machucá-la.
— Estou sozinha. — A voz de Rose tremia. — Não tenho mais nenhum
amigo no mundo.
— Não seja boba, Rose. — Jane não sabia como Lydia podia soar tão
firme. — Vou preparar um pouco de chocolate quente e ficar aqui com
você enquanto bebe. Vamos fazer isso?
Rose assentiu obediente, e Agnieska disse que ficaria e colocaria Rose
na cama.
— Venham comigo, vocês dois — disse Lydia, apressando Leo e Jane
para fora da sala. Eles desceram as escadas e foram até a cozinha com
ela.
Leo fungou e esfregou os olhos.
— Voltei porque você me pediu — disse ele, como se Lydia também
precisasse ser convencida. — Não podia deixar as coisas entre nós do
jeito que estavam. Não tenho feito o suficiente para provar isso para
vocês?
— Eu sei disso e ela também — retrucou Lydia, enquanto se virava
para colocar a chaleira no fogo. — Imagino que sejam os remédios e sei lá
mais o quê, mas ela não está bem. Nada bem. Não sei quanto tempo mais
poderemos continuar assim.
— Mas ela tem estado bem nas últimas duas semanas — arriscou Jane.
— Agora que ela não está mais indo ao escritório e passeando por toda
Londres.
— Sim, ela está um pouco mais como costumava ser — acrescentou
Leo e abriu um sorriso agradecido para Jane. Ela tentou retribuir, mas
seu rosto não queria ajudar.
Lydia virou para eles, com a expressão decidida.
— Tenho que ligar para a sua mãe, Leo. Rose diz que não quer que ela
venha, mas ela tem que saber.
— Humm, eu devo fazer isso? Você quer que eu ligue para ela? —
perguntou ele incerto como se estivesse se voluntariando para uma
cirurgia de peito aberto sem qualquer anestésico, porque não queria
causar uma confusão.
— Eu faço isso — disse Lydia, que depois acariciou o rosto de Leo.
Naquele momento, Jane imaginou que ela de fato o tinha perdoado. —
Quero que você vá a Lullington Bay e traga algumas coisas de Rose. Nós
fizemos uma lista outro dia.
— Sim, claro. Amanhã. — Leo olhou através da porta aberta. — Eu
faço isso amanhã.
— Não, faça agora. Leve Jane com você. — Lydia começou a revirar a
gaveta ao lado dela e, por fim, pegou uma chave de carro. — Você pode
levar o meu pequeno Nissan. — Então abriu suas anotações de receitas e
cardápios e pegou um pedaço de papel. — Acho que está tudo em um baú
no quarto dela. Me ligue se tiver qualquer problema.
— Mas não podemos ir agora. Está tarde — protestou Leo.
— Não são nem seis e meia. — Ela estendeu um papel para Jane, que
não teve escolha, a não ser pegá-lo. — Vocês devem conseguir ir até lá e
voltar em quatro horas.
Jane puxou a manga de Leo, porque ele não parecia inclinado a se
mexer.
— Mas você vai nos ligar se, você sabe...
— É claro que eu vou. Bem, não fiquem aí parados. Vão!
Eles foram.
31

Londres, 1944-1945

Embora fosse contra as regras, quando Rose apareceu no Rainbow Corner


naquela tarde de sábado depois de deixar o apartamento de Edward, em
estado de choque e tremendo, as outras garotas montaram um recanto
acolhedor para ela no quarto Onde eu estou?. Rose ficou ali por três dias,
que passaram em um borrão entre olhar as paredes, intermináveis
xícaras de chá e pessoas aparecendo para lhe dizer o quanto lamentavam
o que acontecera.
Ali ela também recebeu a visita de uma das mais grandiosas damas da
Cruz Vermelha Americana, cuja irmã era casada com alguém muito
importante no Ministério da Guerra, quase tão importante quanto o
próprio Winston Churchill. A mulher sentou na cama ao lado de Rose,
pegou sua mão e sussurrou no ouvido dela que não tinha sido uma
explosão numa tubulação de gás, mas uma bomba como nunca tinham
visto antes. Uma V2, o “foguete de vingança” de Hitler, sua arma secreta,
que sempre fora uma espécie de piada nacional quando todos
especulavam o que o velho Adolf aprontaria como seu ato final.
Logo voltaram a precisar do quarto para soldados que ficavam
embriagados demais para chegarem aos alojamentos, e Rose se mudou
para a casa em Kensington. Ela dormia em um quarto dos fundos, em
uma das camas de campanha doadas por Phyllis, que cheirava à cera de
parafina. Foi para lá que mandaram os itens recuperados de Montague
Terrace.
— Você é uma garota de muita sorte — disse um homem da Defesa
Civil enquanto subiam as escadas com o guarda-roupa e as gavetas. — A
maioria de suas roupas ainda está aí. Isso é mais do que um monte de
gente tem, você sabe.
A mala de couro de crocodilo de Sylvia também tinha sido salva, e,
envolto em um lençol rasgado e sujo, também rasgado e sujo, estava o
vestido de tafetá azul-claro já meio troncho de Shirley. Estava pendurado
atrás da porta do quarto e continuara lá mesmo quando a porta fora
parar em um jardim a três ruas de distância.
O vestido de tafetá azul-claro de Shirley acabaria durando muito mais
do que todos eles, pensou Rose. Era estranhamente reconfortante usar as
roupas das amigas mortas. Ainda ter alguma parte delas, mesmo que
fossem apenas coisas, significava que Rose tinha algo para passar para
aqueles que tinham ficado.
Depois do enterro de Maggie, suas amigas emigrantes convidaram Rose
para a despedida em um barzinho num porão em Bayswater. Rose sentou
e tomou vodca com elas, que lhe contaram o pouco que sabiam sobre
Maggie. Ela estudara arte na Escola de Praga, o pai ensinara filosofia na
universidade. Quando Hitler invadira os Sudetos em 1938, Maggie pintara
o cabelo de loiro e fora para Paris com documentos falsos. Ela fugira
depressa para longe dos nazistas, mas eles acabaram encontrando-a no
final.
Havia uma mulher ruiva que conhecera Maggie em Praga e trabalhara
com ela na BBC, que não disse uma palavra enquanto todo mundo falava
sobre Maggie. Mas, quando Rose lhe deu o bracelete de cobre batido de
Maggie e o lenço que ela bordara, embora na verdade quisesse ficar com
eles, a mulher beijou Rose nos lábios, então levantou e foi embora.
Depois, foi o enterro de Sylvia. Os parentes dela eram de Hoxton,
aonde Mickey Flynn disse que nem ele iria depois que escurecesse. Rose
sabia que Sylvia não tinha dinheiro. Ela mencionara um tio bondoso “que
me tirou da sarjeta como os tios bondosos costumam fazer”, mas dissera
isso piscando e cutucando-a com o cotovelo, então Rose concluíra que,
estritamente falando, ele não era tio dela.
O que restara de Sylvia foi colocado em um caixão de mogno e levado
por uma carruagem fúnebre puxada por cavalos, plumas pretas dançando
com a brisa. Apoiado contra o caixão estava um arranjo floral, com
Descanse em Paz, Nossa Syl escrito com crisântemos brancos. Foram as
flores que quase fizeram Rose chorar, mas Sylvia não iria querer isso.
— Acalme-se, querida — teria dito ela. — Que desperdício de rímel.
Não havia nada de especial em um cortejo fúnebre, não naquela época,
mas à medida que avançavam lenta e penosamente ao longo da New
North Road em direção à igreja, as pessoas paravam, tiravam os chapéus
e curvavam a cabeça enquanto Sylvia passava.
— Ela adoraria isso — disse Rose a Mickey, mas ele retrucou que
Sylvia teria preferido que suas cinzas fossem espalhadas pela pista de
dança do Embassy Club do que enterradas no cemitério da igreja São
João Batista.
A despedida foi no George & Vulture, na Pitfield Street. Rose e Mickey
sentaram no canto, cercados por um monte de gente se divertindo, até
que a multidão de repente se abriu para deixar passar um homem e uma
mulher de meia-idade. O rosto do homem era grande, vermelho e
irritado, e ele havia tirado o paletó e arregaçado as mangas da camisa,
revelando braços fortes cobertos por brutas tatuagens. Em contraste, sua
esposa era tão magra que os ombros pareciam cabides em seu vestido
preto.
— Você conhecia a nossa menina? Nossa Syl? — perguntou o homem,
e Rose queria se encolher, mas Mickey apertou sua mão e ela assentiu.
— Sim. — Ela não conseguia falar mais alto do que um sussurro. —
Ela era... Eu... — Era impossível resumir o que Sylvia, a adorável, ágil e
maior do que a vida Sylvia significava para ela. — Ela era minha amiga.
Minha amiga muito querida.
Rose foi levada de sua cadeira para desfilar pela sala. Foi apresentada a
tios, tias, primos e amigos da família como “uma das amiga do Up West
da nossa Syl”. Todos eles apertaram a mão dela e uma mulher até se
curvou como se Rose fosse uma das jovens princesas. Mas, quando Rose
deu aos pais de Sylvia o medalhão de ouro e o pó compacto da filha, sua
mãe fez um som horrível, um lamento, que arrepiou os pelos da nuca de
Rose. A sra. Crapper de repente fechou a mão sobre o peito e, então, foi
engolida por um grupo de mulheres da família que a levaram dali. Rose
então ficou ali com o marido dela, que parecia ainda maior e mais
vermelho e mais irritado.
— Sinto muito — disse ela no mesmo sussurro rouco. — Achei que
vocês gostariam de ficar com eles. Eu não pretendia...
O rosto dele de repente se franziu como um saco de papel esmagado
por um punho descuidado.
— A Syl sempre disse que você era como uma irmã para ela. — As
lágrimas escorriam pelas enormes bochechas. Rose observou perplexa,
com lágrimas se derramando descontroladamente também pelo seu
rosto, aquele homem corpulento cair de joelhos. Ele desabou com força e,
quando Rose se agachou para ver se estava bem, ele agarrou a sua mão.
— Você é da família agora — disse ele, como se quisesse ver se Rose o
desafiaria. — Se algum dia você precisar de alguma coisa... qualquer
coisa, é só vir a Hoxton e procurar Henry Crapper.
Só restou o enterro de Phyllis, mas Rose não pudera tirar folga do
trabalho.
— Lamentamos pelas suas amigas, é claro, mas elas não eram
exatamente da sua família — disse a sra. Fisher. — Além disso, não há
nada como um pouco de trabalho duro para distrair a mente.
Um dia antes do enterro, como combinado, Lady Carfax entrou no café,
como se entrasse no Claridge’s. Ela sentou a uma mesa rodeada por
feirantes e funcionários de escritório e tomou chá de uma caneca lascada
enquanto esperava Rose terminar de lavar a louça.
Rose nunca esperou que Lady Carfax fosse segurar suas mãos
avermelhadas e não soltar mais. Parecia que fora vidas inteiras atrás que
tinha ido a Norfolk com Phyllis, e Lady Carfax se mostrara fria e austera,
encarando Rose com ar superior. Agora ela havia envelhecido dez anos
nos meses anteriores.
— Na última vez que você a viu, ela estava feliz? — perguntou ela.
Rose pensou em Phyllis em frente ao Rainbow Corner com Maggie e
Sylvia, acenando para Rose com seu sorriso largo e cheio de dentes.
— Ela estava muito feliz — respondeu Rose com o máximo de fervor
possível. — E disseram... que... ela... elas não devem... elas estavam
dormindo quando a bomba explodiu. Não devem ter acordado. Elas não
devem ter sentido nada.
Rose tinha de acreditar que a morte havia sido rápida e misericordiosa.
Ela não conseguira encontrar nada de Phyllis, então deu a Lady Carfax
o pequeno broche de ouro e pérola que ganhara dos pais de presente pelo
aniversário de dezesseis anos. Ela nunca tinha achado tão difícil mentir
antes.
— Phyllis sempre usava isto — disse ela. — Ela iria querer que ficasse
com ele.
— Você espera perder seus filhos em uma guerra — disse Lady Carfax
com tristeza. — Isso teria sido mais fácil, eu acho. Mas não Phyllis. Não a
minha garotinha.
Então ela foi embora para acompanhar o corpo dilacerado de sua
garotinha de volta para casa, a fim de que pudesse ser enterrado no jazigo
da família no cemitério da igreja local.
Houve apenas mais um visitante. O sr. Winthrop surpreendeu Rose no
fim da tarde seguinte, enquanto ela colocava as cadeiras em cima das
mesas para esfregar o chão e, embora tenha suspirado e murmurado algo
sobre descontar um dinheiro do pagamento de Rose, a sra. Fisher a
deixou sair mais cedo para que pudesse levar o pai ao Lyons na
Tottenham Court Road.
— Já basta, Rosemary — dissera ele rispidamente depois que tomaram
um bule de chá e comeram dois pãezinhos, e ela recusara todos os seus
apelos. — Chega dessa bobagem. Você vai voltar para Durham comigo.
Estará mais segura lá.
Estar seguro já não queria dizer mais nada.
Rose duvidava que seus fantasmas iriam segui-la até Durham, por isso
tinha de ficar em Londres e andar pelas ruas por onde passara com suas
amigas. Comer nos mesmos cafés, dançar nos mesmos clubes. Mantê-las
por perto, caso contrário as perderia de vista.
— Papai, você tem que aceitar que eu vou ficar aqui — disse ela, como
vinha dizendo durante a última hora. Ela não pertencia mais a Durham
do que seu pai a Londres, com o terno camponês de tweed e seus
costumes do campo. — Há pessoas aqui que precisam de mim.
— Não sei se sua mãe vai me deixar entrar se eu voltar para casa sem
você — disse ele. Então abraçou Rose por certo tempo e beijou a testa
dela como fazia quando ela era pequena, antes de correr para pegar o
trem.
Mas Londres não era apenas o lar de seus fantasmas; era o lar do
Rainbow Corner. Rose passava o dia todo como uma sonâmbula, como se
apenas fingisse viver. Ah, ela escovava o cabelo e os dentes, lavava a louça
e anotava pedidos, tomava o café da manhã, almoçava e jantava, e o
tempo todo era como se representasse um papel. No entanto, durante três
horas todas as noites, na pista de dança do Rainbow Corner, ela quase
podia voltar a ser a menina ingênua e despreocupada que já fora um dia.
Podia sentir algo que não a tristeza que cobria seus ossos e encerrava seu
coração.
Contudo, havia outra maneira de sentir algo.
Nas noites em que Rose saía do Rainbow Corner e sabia que não
conseguiria dormir, seus pés a levavam a Mayfair. Ao apartamento de
Edward.
É claro que eles tinham se visto várias vezes desde aquela terrível noite
e o terrível dia que se seguiu. Afinal, ela estava morando em uma das
casas de Edward, e ele fora um dos que acompanharam o cortejo quando
enterraram Maggie e Sylvia. Edward até pegara o ônibus de volta com ela
e Mickey Flynn após a despedida de Sylvia quando Rose não fora capaz de
dizer uma palavra, pois sabia que, se abrisse a boca, sufocaria com as
lágrimas.
Mickey tinha descido do ônibus na Piccadilly Circus, mas Edward e
Rose seguiram em direção a Kensington. Os dois não ficavam sozinhos
desde aquela tarde em seu apartamento e a situação deveria ter sido
terrivelmente estranha, mas de alguma forma não fora.
Edward era muito cavalheiro para sequer mencionar o que acontecera,
mas, apesar do que houvera, Rose ainda se sentia reconfortada e calma
com a sua presença. De uma maneira peculiar, ela imaginava que o
amava. Não, não amava, mas gostava imensamente dele.
— Não é que eu não o ame — disparara ela de repente bem ali no
andar de cima do ônibus 9. — É só que eu não posso. Não mais. Todo
mundo que eu amo é tirado de mim, então talvez seja melhor que eu não
ame ninguém.
— Rose... — dissera Edward. Ele não parecia nem um pouco zangado
com ela. — Ah, Rose, o que eu faço com você?
— Você pode ser meu amigo — dissera Rose. Não era a palavra certa,
mas teria que servir. — Você é o melhor homem que conheço e eu não
poderia suportar se não fôssemos amigos.
Ficaram em silêncio durante o resto do trajeto, mas Edward pegara a
mão de Rose e ela ficara feliz com isso.
Mas nas noites em que ia ao apartamento dele em Mayfair, não era
para falar, mas para sentir. Rose sabia que era errado se sentir feliz
durante aquelas horas, em que ele a levava para sua cama, mas ela não
conseguia viver sem isso. Ela fazia tudo o que ele lhe pedia: tocá-lo, tomá-
lo em sua boca, ficar de quatro no tapete do quarto dele para que pudesse
possui-la daquele jeito, e ela fazia isso tudo porque tudo o que ele fazia
com ela era muito bom.
Então, depois disso, eles mal falavam, mas se davam as mãos de novo
enquanto Edward acompanhava Rose por todo o caminho de volta até
Kensington. Ele a levava até a porta da frente, tirava o chapéu, em
seguida desaparecia em meio às sombras das ruas escuras por causa da
guerra.
32

Os dois levaram muito tempo para sair de Londres. Leo não enfrentava a
confusa hora do rush havia anos e Jane não conseguia entender o GPS,
então ficava apertando botões aleatórios até Leo gritar com ela para
parar. Então ela gritou com Leo por ter gritado com ela.
Quando enfim pegaram a estrada, ficaram presos no engarrafamento.
Jane suspirou e então virou o corpo para olhar pelo vidro de trás como se
esperasse ver Lydia em um carro atrás sinalizando freneticamente para
voltarem.
Leo desejou que ainda fumasse. E desejou pela centésima vez que
tivesse continuado sem dinheiro em Las Vegas. Ele poderia ter se odiado
ao receber a ligação dizendo que Rose se fora, mas pelo menos não teria
tido de ouvir quando ela...
— Leo, Rose falou aquilo da boca para fora. — A mão de Jane cobriu a
dele, que descansava sobre a alavanca de câmbio. — Ela tem sentido
muita dor e está confusa por causa dos remédios.
Ele respirou fundo.
— Eu não devia ter voltado.
Jane apertou mais a mão, mesmo enquanto ele dava seta e depois
mudava de pista.
— Devia, sim. Não há nenhuma dúvida sobre isso.
— Não acho que eu tenha sido muito útil. — Ele odiava quando ficava
assim, tão para baixo. Em geral, a única saída era se perder. — Não serei
absolvido dos meus pecados só porque passei algumas semanas
emassando e pintando casas antigas.
— Você já fez muito mais do que isso — retrucou Jane. — Você ouviu
as histórias dela e a fez sorrir. Ela tem podido contar com você, confiar
em você. — Ela apertou os dedos de novo. — Leo, você tem que perceber
que Rose adora você. Ela não consegue esconder muito bem isso.
Leo olhou para Jane. O cabelo dela estava solto e pendia em mechas
encharcadas. Ela devia ter ficado na chuva por horas. Parecia ansiosa,
sobretudo quando falavam sobre Rose, mas também mais delicada. Ela
ainda era bonita, mas ele havia se acostumado com sua beleza.
— Já que tocamos no assunto: Rose também gosta de você.
— Bem... talvez. — Jane puxou o cinto de segurança. — Eu fiquei
principalmente pela comida da Lydia. Estou surpresa por ainda conseguir
fechar isso.
— Deixe de graça. Você sabe que é gostosa, mesmo com uns quilinhos
a mais — disse Leo, porque ela era mesmo, e seu humor melhorou
quando ela chiou e largou sua mão para socá-lo de leve no braço.
— Não quilos. Talvez algumas libras. Uma libra é mais do que um
quilo? Eu sempre esqueço. — Ela fez uma careta. — Duas libras
equivalem a um quilo, certo?
— Sim, mais ou menos. — A atmosfera tinha mudado assim como o
tráfego, que agora se movia lenta, porém constantemente. Leo sentiu falta
da mão de Jane sobre a dele.
— Você já pensou no que vai fazer quando tudo isso acabar? —
perguntou ela. — Você vai voltar para os Estados Unidos?
— Eu não sei — respondeu ele, porque era algo em que ele tentava não
pensar. Quando aquilo acabasse significava que Rose teria falecido. Além
disso, de uma maneira estranha, ele estava gostando daquele limbo.
Tinha abandonado os maus hábitos e, até agora, tinha conseguido não
adquirir nenhum novo. — Nunca fui bom em planejar o futuro. E você?
Acha que existe alguma chance remota de voltar com o sr. Ex?
Jane balançou a cabeça apenas uma vez.
— Ah, Deus, não. Esse navio já zarpou para longe. — Leo pensou que
podia ter entrado em território perigoso, mas então ela sorriu. — Sabe, às
vezes eu queria ter voltado para ele. Teria sido mais simples. Menos
confuso.
— Você não o amava? Não de verdade, não é mesmo?
Jane olhou para ele, com o rosto insondável.
— Não, é claro que não. — De repente, ela abriu um largo sorriso. —
Deus, ficar parada aqui neste carro é como estar presa em um
confessionário.
Leo queria perguntar a Jane se alguma vez ela havia amado, mas, lá no
fundo, ele já sabia a resposta. Havia tantas coisas que ele queria
perguntar a ela, dizer a ela, mas era melhor ficar em silêncio. Eles tinham
saído da autoestrada e agora dirigiam por estradas mais tranquilas do
interior e, embora achasse que ficariam irremediavelmente perdidos, Leo
percebeu que conhecia o caminho. Ele sempre soubera o caminho para
Lullington Bay.
Ele viu a estreita curva bem a tempo e virou à direita. Tudo o que ele
precisava fazer era pensar nas palavras “Lullington Bay” e no tempo que
levava lá estava outra curva, as árvores se esparsaram e ele pôde ver o
contorno indistinto da casa.
— Então, falando de amores perdidos e tudo mais, com quem Rose
ficou depois da guerra? Foi com Danny, que devo dizer que me parece o
cara errado, ou...
— Eu lhe conto mais tarde — prometeu Leo. O barulho dos pneus no
cascalho soava como voltar para casa. Ele se lembrava de cair da bicicleta
depois de tentar se equilibrar só na roda traseira e aterrissar de cara no
mesmo cascalho, e Rose e sua mãe tirarem pedacinhos das pedras de sua
pele com uma pinça, prometendo-lhe um sorvete se não chorasse. — Esta
é Lullington Bay.
Ele queria que estivessem ali em um dia de verão, quando o sol
brilhava no arenito e cintilava no telhado triangular. A casa ficava no alto
do penhasco, que ondulava suavemente até as dunas de areia embaixo,
que eles percorriam para chegar à praia. Sempre parecera que o mar
estava lhes provocando enquanto caminhavam vindo da casa carregados
de toalhas, cestas de piquenique, baldes e pás, sua mãe gritando para Leo
desacelerar antes que quebrasse o pescoço.
Eles saíram do carro e caminharam triturando os cascalhos em direção
à porta da frente.
— Pensei que fosse uma cabana. — Jane parecia um pouco
desconcertada. — Não achei que fosse tão grande.
— Era a antiga casa senhorial, mas foi incendiada nos anos 1900, então
a reconstruíram no estilo Arts and Crafts — explicou Leo. — Causou uma
confusão infernal na época. Vamos lá, vamos dar a volta.
Havia sensores de luz que acendiam a cada poucos metros e as formas
familiares do jardim apareceram. As roseiras, uma nova plantada a cada
ano, a horta, o jardim de ervas perto da porta de trás, coberto por uma
rede para protegê-lo dos gatos da vizinhança, e o pátio com as cadeiras e
a mesa de ferro forjado, onde costumavam fazer suas refeições quando
não estavam na praia.
— Passávamos todos os verões aqui. — Não importava se Jane estava
ouvindo, só o que ele queria era dizer as palavras em voz alta, tornar as
lembranças enevoadas um pouco mais claras, um pouco mais definidas.
— É um clichê tão triste, não é? Dizer que os verões eram mais longos
quando éramos crianças, mas parecia que eram. Nossos tios, tias e todos
os nossos primos também vinham para cá, então éramos sempre um
bando enorme. Às vezes caminhávamos ao longo da costa até chegarmos
a um pequeno quiosque que vendia sorvete com favo de mel de verdade e
chamávamos as crianças da vila para irem à nossa praia para brincarmos
de esconde-esconde nas dunas. Eu esperava ansioso pelas férias de verão.
— As minhas férias de verão não eram bem assim — disse Jane,
embora não tenha falado como eram as suas férias de verão. — Mas
parece legal.
— Sim, como algo saído das histórias de Enid Blyton — disse Leo com
um sorriso de deboche para contrabalançar o tom sonhador que surgira
em sua voz.
— Também nunca tive muito tempo para Enid Blyton — disse Jane, e
Leo achou impossível imaginar como ela era quando criança. — Então,
você chegou a aprender a arrombar janelas durante seus verões
intermináveis aqui ou tem a chave?
Não havia nenhuma equipe em tempo integral na casa, mas inquilinos:
Victoria e Katy, que ensinavam inglês na Universidade de Sussex. A casa
estava escura, então elas obviamente estavam fora, jogando bridge ou
participando de uma leitura das obras selecionadas de Virginia Woolf ali
perto, em Alfriston ou onde quer que professores de inglês de certa idade
iam depois das oito em uma noite de sexta-feira.
Havia sempre uma chave escondida na pequena casa de madeira no
alto do comedouro de pássaros e o código do alarme era o antigo número
de telefone de seus avós, mas ainda assim parecia que estavam invadindo
a casa quando Leo acendeu as luzes e levou Jane através da cozinha e
pelo corredor. O piso em parquete e as paredes com painéis tinham um
brilho fosco, e Leo ainda podia sentir o cheiro de cera de abelha e o suave
perfume de Rose, embora Lydia tivesse dito que Rose quase não tinha ido
ali no último verão.
— Este lugar passa uma sensação acolhedora, não é nada parecido
com a casa em Kensington — disse Jane, passando a mão pelo corrimão
esculpido enquanto subiam as escadas. — Aqui, aqui... parece um lar.
— Rose costumava passar a maior parte do tempo aqui. Isso há muito
tempo. Antes de eu nascer.
— Ah? Por que ela voltou para Londres? — perguntou Jane. A resposta
não era nada feliz, mas, antes que ele pudesse falar, sentiu o celular
vibrar.
Era Lydia. Por mais estoica e calma que ela estivesse quando ele
desmoronou à sua frente, agora pelo telefone sua voz soava como se
segurasse as lágrimas. O dr. Howard tinha estado em Kensington e foi
categórico em afirmar que Rose deveria usar uma bomba de morfina, e
ela nem discutiu.
— Estou esperando o dr. Howard voltar a qualquer momento. Ele ficou
muito chocado em ver o quanto o estado dela se deteriorou desde que a
vira nesta manhã. Enfim, como vocês estão indo? Encontraram tudo?
Como assim vocês acabaram de chegar? Deixe-me falar com Jane.
Enquanto Jane falava com Lydia, ele a guiou subindo as escadas até o
quarto de Rose, onde se podia olhar pelas janelas para o imenso azul lá
fora, onde o céu encontrava o mar. Quando era pequeno, ele ficava ali
deitado com Rose no começo da noite, quando ainda estava claro demais
lá fora para dormir, e ela lia para ele. E, quando ele ainda se recusava a
dormir, os dois ficavam olhando o horizonte com os grandes binóculos
dela para ver se encontravam um navio pirata.
Ela nem estava morta ainda, e ele já podia sentir seu fantasma naquela
casa.
— Vou ver se está ali. — Ele estava parado à toa no meio do quarto,
enquanto Jane, ainda ao telefone, foi até o grande guarda-roupa de
nogueira e abriu a porta. Outra intrusão. Ela prendeu o telefone entre o
ombro e a orelha, enquanto empurrava os cabides para um lado, parando
para abrir capas de roupa. Então ela enrijeceu e Leo sentiu um arrepio na
espinha. — Achei. Vou pegar o baú e vamos voltar.
Leo percebeu que os ombros de Jane tremiam, ela levou a mão ao
rosto. Então tirou a capa de roupa e, quando virou, seu rosto estava
pálido.
— Há um baú debaixo da cama. Creme com tiras de couro pretas e as
iniciais de Rose estampadas nele — disse ela.
Leo obedientemente ficou de joelhos, olhou embaixo da cama e
arrastou-o para fora.
— O que há na capa?
— Um vestido. — Jane olhou para os pés. Seus ombros tremeram mais
uma vez. — Um vestido de tafetá azul-claro meio troncho.
Sua voz falhou um pouco, e ela ficou com a cabeça abaixada por alguns
instantes até levantá-la e abrir para Leo mais um daqueles sorrisos vazios
e brilhantes, que prometiam tudo e não davam absolutamente nada.
— Você está bem?
— Estou. Você está bem?
— Não muito.
Jane assentiu.
— Lydia disse que todo o resto está no baú. Não precisamos abri-lo.
Vamos embora.
Era um baú pequeno, mas foi preciso que os dois o empurrassem e
puxassem com cuidado escada abaixo. Parecera pequeno, mas era muito
grande para caber no porta-malas do carro pequeno de Lydia. Por fim,
eles conseguiram colocá-lo no banco de trás, mas só depois de puxar os
assentos dianteiros tão para a frente que tiveram de voltar para Londres
com os joelhos quase tocando o queixo.

Quando eles chegaram em Kensington, Rose ainda estava dormindo.


Agnieska estava sentada ao lado da cama, tricotando.
— Vou passar a noite aqui. A srta. Beaumont está bem. Nem sequer
acordou quando medi sua pressão. — Ela assentiu de maneira
aprovadora. — O sono vai lhe fazer bem.
— Até parece que uma boa noite de sono vai curar o câncer do nada —
resmungou Leo no caminho para o seu quarto. — Talvez eu devesse ficar
lá com ela.
— Talvez não — disse Jane porque ele parecia pálido de cansaço. —
Não esta noite. Quem sabe o que o amanhã pode trazer?
Leo traçou um padrão no chão com a ponta do tênis.
— Devemos tentar dormir um pouco então.
Ele só ficou ali, imóvel, até Jane puxá-lo para o quarto e fechar a porta.
Toda a confiança recém-descoberta de Leo tinha desaparecido, e ele
parecia... perdido. Tinha sido um dia realmente horrível.
— Não estou nem um pouco cansada — disse ela. — Você se importa
de ficarmos acordados conversando um pouco? Se você quiser, é claro.
— Você quer dizer o que os jovens chamam de bater um papo? — Leo
sentou na cama e tirou os tênis. — Às vezes eu acho que você aprendeu a
falar no início do século XX.
Ele estava com um olhar chateado de novo, o que não era nada
surpreendente.
— Quer que eu lhe conte um segredo? Isso com certeza vai animá-lo.
— Jane não quis dizer aquele tipo de segredo, mas Leo obviamente
pensou que sim, porque assentiu, seu repentino sorriso a um milímetro
de ser malicioso.
— Sim, vá em frente. Tente o melhor que puder.
Jane fez uma pose: mão na cintura, perna dobrada.
— Em Hereford e Hampshire, raramente ocorrem furacões.
Leo olhou para Jane como se ela estivesse falando coisas sem sentido.
— O quê?
— A chuva na Espanha permanece principalmente na planície —
elaborou ela. Quando Leo balançou a cabeça e lhe lançou um sorriso
discreto, divertido e quase de pena, como se achasse que ela perdera
completamente a razão, Jane levantou as mãos, exasperada. — Audrey
Hepburn, querido! My Fair Lady, que eu devo ter visto pelo menos umas
cinquenta vezes. — Jane entrou no banheiro. — Foi assim que aprendi a
falar corretamente.
— Sério? Como você falava antes, então?
— Incorretamente. Sobretudo através de uma série de grunhidos e
gestos.
Leo riu, embora nada daquilo fosse mentira.
— Aposto que suas primeiras palavras foram uma frase muito bem
construída, com perfeito sotaque britânico.
Jane já estava tirando a maquiagem, mas fez questão de olhar nos
olhos dele, enquanto Leo se apoiava na ombreira da porta, para arquear a
sobrancelha. Ela não fazia aquilo havia muito, muito tempo. Tinha muito
medo de sujeitar a delicada pele ao redor da boca e dos olhos a qualquer
um que não fosse o homem em Nova York responsável por seus
preenchimentos e injeções de botox. Talvez, quando voltasse a ter
sensibilidade no rosto, sentisse também outras coisas que vinha
escondendo por tanto tempo que achava que estavam mortas e
enterradas.
— Dificilmente, querido — disse ela, soando tão ingênua e astuta
como sempre.
— Já não tínhamos deixado para trás toda essa bobagem de “querido”?
— Leo entrou no banheiro, abaixou a tampa da privada e sentou. — Você
me chamou de Leo no carro. Nem tente negar isso.
— Então eu chamei.
Jane se concentrava em tirar todos os resquícios da maquiagem. Talvez
fossem as horas que passara ouvindo Rose contar suas histórias, fazendo
um balanço de sua vida, puxando os fios, traçando-os de volta ao
primeiro ponto. Ou ver Charles de novo, o que a transtornara,
desestabilizara, fazendo-a se lembrar de muita coisa, mas Jane também
queria contar suas histórias a alguém. Mas haveria consequências...
— Leo — disse ela deliberadamente, demorando-se em seu nome. —
Fale mais sobre os verões em Lullington Bay.
— O que eu devo dizer? — perguntou.
— Tudo.
Então Leo lhe disse que podia ficar acordado até tarde, acender
fogueiras na praia e assar marshmallows, enquanto Rose lhes contava
histórias sobre os Estados Unidos. Histórias sobre drive-ins e caubóis e
dirigir até o deserto para ver foguetes voarem para o espaço e uma
centena de outras coisas que ela sabia que encantariam dois meninos
pequenos.
Com o rosto de Jane coberto por um creme de um pote de ingredientes
mágicos que custavam mais de cem libras, os dois sentaram de pernas
cruzadas na cama e Leo lhe contou que costumava se deitar no chão da
sala de estar em Lullington Bay com os livros de arte de Rose espalhados
diante dele para copiar as imagens enquanto Rose o observava com
aprovação. E que ela já não aprovava tanto quando ele ficou mais velho e
se embebedava tomando sidra com os rapazes da vila e depois escapava
com uma das irmãs deles para a viela atrás do pub.
— Ela não falava muito, mas você sabe como Rose é. Ela pode dizer
muita coisa só com um olhar — disse Leo. Ele franziu os lábios, inflou as
narinas e estreitou os olhos, mas mesmo assim não chegou nem perto do
ar de reprovação de Rose. — Ela deixava camisinhas embaixo do meu
travesseiro. Tinha de ser a Rose. Não tinha como ser coisa da minha mãe.
— Não, não consigo imaginar sua mãe entrando em uma farmácia e
pedindo um pacote de camisinhas — concordou Jane. Pensar em Linda
fazendo isso, com a bolsa agarrada firmemente na frente do corpo,
enquanto olhava de soslaio para os lados para ter certeza de que
nenhuma das frequentadoras do Rotary Club a vira, fez Jane rir, mas
então ela notou que Leo não estava rindo também. — Ah, querido... Leo,
não. Por favor, não.
Ele estava chorando. Jane odiava ver as pessoas chorarem.
Dependendo de quem era, ela podia ser solidária, acariciando seu cabelo
e dizendo trivialidades, mas agora, quando ela estendeu a mão para tocar
de leve a cabeça raspada de Leo, foi diferente. Leo era diferente. Ah,
Deus, ela havia mudado. Como isso tinha acontecido?
— Você tem todas essas lembranças felizes de Rose — disse ela
suavemente. — Isso é muito mais do que algumas pessoas têm.
Ele ficou em silêncio, mas cobriu o rosto com as mãos, como devia
fazer quando era um menino que gostava de procurar navios piratas e
ficar acordado até tarde para assar marshmallows.
Foi puro instinto ela se levantar, apoiada nos joelhos, e se aproximar
para abraçá-lo e beijar o topo da cabeça curvada.
— Por favor, não chore, Leo. Você vai me fazer chorar também.
Ele murmurou algo, mas era ininteligível em meio aos soluços que não
conseguia segurar.
— Por favor. Você precisa continuar sendo forte por mais um
tempinho.
Leo respirou fundo algumas vezes e, quando levantou a cabeça, Jane
desejou que não tivesse levantado, porque ele nem sequer se preocupou
em tentar esconder sua vulnerabilidade.
— Eu vou sentir falta dela — sussurrou ele. — Eu gostaria de ter me
tornado alguém de quem ela pudesse se orgulhar em vez de perder todos
esses anos fazendo merda. Rose tinha tanta fé em mim e eu estraguei
tudo.
— Isso não importa. Você mostrou a Rose quem poderia ser e agora
deve a ela se tornar essa pessoa.
Jane ainda o abraçava, suas testas quase se tocando. Confortar alguém
era algo muito íntimo. Também não era de todo desagradável.
— Mas não é assim tão fácil se tornar outra pessoa, não é? — disse Leo
baixinho.
Jane não pôde deixar de sorrir.
— Ah, é muito mais fácil do que você pensa.
Naquele momento, ela estava simplesmente desesperada para lhe
contar sua história, quase tanto quanto queria desfazer o olhar
assombrado do rosto dele.
Era mais fácil, mais seguro, acabar com o minúsculo espaço que os
separava e beijá-lo.
Beijou-o quando ele deixou escapar o soluço seguinte e continuou a
beijá-lo até Leo entender a mensagem de que podia retribuir o beijo. Ele
ainda parecia que ia chorar, mas isso foi só porque Jane se afastou dele,
tirou o suéter e soltou o sutiã. Ela estava acostumada a ver os homens
parecerem que iam chorar quando tirava a roupa.
Leo olhou para o rosto dela fixamente como se fosse um esforço sobre-
humano de vontade não olhar para os seios dela em vez disso.
— Por quê? Por que agora? Quer dizer, Las Vegas não conta, nós dois
estávamos bêbados.
Jane deu de ombros, e os olhos de Leo correram então para os seus
seios. Ela teria se sentido insultada se não tivessem feito isso.
— Porque eu quero e porque acho que nós dois precisamos esvaziar um
pouco a cabeça de uma forma que não envolva estimulantes artificiais.
— Já nem sei mais dizer se você ainda está jogando comigo —
murmurou Leo, embora Jane não estivesse. Pelo menos ela não achava
que estava, mas, antes que ela pudesse contradizê-lo, ele ergueu as mãos.
— Só para deixar tudo claro: posso tocar, não posso? Você não vai me
bater de novo?
— Só se você quiser, querido — disse ela devagar. Aquilo podia ser
apenas uma tentativa de aliviar o sofrimento dele, mas, a maneira como
Leo olhava para ela com os olhos semicerrados, a língua entre os dentes,
fez Jane se perguntar se estava mesmo fazendo isso só por bondade. —
Venha aqui e me beije.
Os beijos de Leo tinham o gosto de todas as coisas doces que Jane
conhecia: champanhe, bolo red velvet e algodão doce rosa da feira. Mas
ela deu um tapa nele quando agarrou os seios dela e sussurrou:
— Pensei que você tinha dito que não faríamos nada que envolvesse
estimulantes artificiais.
Isso porque seus seios eram todos dela. Nenhum implante. Era só a
gordura tirada da bunda que fora usada para aumentar o que quase não
tinha. Ela ainda era mais ossos e pontas e linhas duras, mas parecia que
sua carne se derramava voluptuosamente nas mãos reverentes de Leo. Ele
disse que nunca tinha sentido nada tão suave quanto seus seios e coxas e
a pequena saliência de sua barriga enquanto esfregava o rosto contra ela.
Jane não pôde deixar de rir, mesmo que o sexo nunca fosse motivo de
riso.
— Você está fazendo cócegas — sussurrou ela.
— Desculpe — sussurrou ele de volta, embora só a lua brilhando pela
janela fosse testemunha dos dois ali esparramados na cama.
— Tudo bem, é um tipo bom de cócegas — disse ela.
Leo, mesmo com as mãos ocupadas tocando o corpo dela, lançou-lhe
um olhar desconfiado e temeroso como se pudesse de fato ouvir as
engrenagens zunindo no cérebro dela.
— Ah, não — murmurou ele ferozmente. — Nem pense nisso, Jane.
— Mas, agora que pensei, não dá para apagar o pensamento —
argumentou ela. — Você sente cócegas? Aposto que sim.
Leo tentou detê-la com beijos, mas as mãos dela já corriam pelas
costas dele, livrando-se da camisa para traçar números oito com as
pontas dos dedos.
Ele se contorceu para longe dela, mas Jane deslizou os dedos pela caixa
torácica dele e, então, para baixo dos braços. Leo parecia indefeso como
um bebê enquanto ela descobria seus segredos. Jane observou incrédula
ele rir e gemer e lhe implorar que parasse quando ela correu os dedos
pela pele macia de seus braços.
— Acho que você precisava gargalhar ainda mais do que transar —
disse Jane quando ele afastou as mãos dela e deitou de costas, ofegante.
Era verdade. Ele estava sempre brincando, sempre sorrindo, mas nunca
dava uma boa gargalhada.
— Não tenho tido muitos motivos para isso ultimamente. E, na
verdade, agora que você falou nisso, acho que nunca vi você gargalhar
também. Não com vontade.
Então foi a vez de Leo confortá-la, embora Jane não estivesse
chorando, apenas exibindo a mesma expressão neutra que parecia exigir
um grande esforço nos últimos dias. No entanto, ainda assim, Leo puxou-
a para mais perto para afastar com beijos as sombras de seu rosto.
Talvez sentimentalismo fosse algo contagioso, mas Jane teve a
impressão de que Leo curava cada centímetro seu que tocava, a boca dele
uma coisa quente, úmida e insistente, que percorria todo o seu corpo. Ela
não tinha tantos problemas assim que precisasse fingir (não o tempo
todo), e Leo era bom naquilo. Muito bom, pensou Jane, revirando os
olhos, quando ele passou as pernas dela por cima dos ombros e se
banqueteou com ela.
Não era de admirar que todas aquelas mulheres, todas aquelas esposas
de outros homens, tivessem sentido tanto tesão por ele, tendo em vista
que era tão bom com as mãos e a boca, tão generoso com suas atenções, e
sentia tanto prazer em ver que Jane sentia prazer com ele, que a fez gozar
uma e depois outra vez, embora, tecnicamente falando, fosse sua vez
agora. Ela se contorcia embaixo dele enquanto a fodia com os dedos e, ao
mesmo tempo, a acariciava sem parar com língua de novo e de novo e de
novo.
— Não. Para. Para — disse ela quando conseguiu falar novamente. Não
foi necessário muito esforço para convencê-lo a vir mais para cima da
cama, já que ele estava muito duro e ávido por ela. Leo suspirou de alívio
quando ela agarrou o pau dele e começou a acariciá-lo suavemente. —
Você é tão bonito, Leo — ronronou ela, roçando o rosto contra o pênis
dele. — Isso tudo é para mim?
— Você não precisa fazer isso — disse ele, estendendo a mão para ela,
mas Jane se afastou e deu língua para ele.
— Eu quero fazer isso — insistiu Jane. — Você só tem que deitar e
relaxar.
No final, ele desistiu e deixou-a fazer seu trabalho. Jane também tinha
seus talentos nessa área, sempre recebera comentários elogiosos, e não
ficou surpresa quando viu que seus cuidados, com os dois nus agora,
fizeram Leo empinar o quadril e lhe implorar para fodê-lo.
Ela mal tinha começado, acabara de descer o corpo, encaixando-se
nele, quando ele gozou. Gozou e chorou embaixo dela, mas Jane não o
desprezou por ser fraco. Dessa vez, Jane compreendia. Ficou onde estava,
com o corpo tremulando em volta dele enquanto lambia suas lágrimas.
— Vamos lá, Leo, isso era para fazer você feliz — disse ela, suspirando.
— Por que você tem tanto medo de se sentir feliz?
— Eu não sei — disse ele. Então olhou para ela. Seu rosto ainda estava
úmido, mas ele sorriu. Foi um sorriso trêmulo e fraco, mas era
exatamente o que Jane queria ver. — Não costumo gozar assim tão
rápido. De verdade. Você pode ligar para algumas das minhas exs e elas
vão lhe dizer que dou conta a noite toda. Depois vão lhe dizer que sou
insaciável.
— Querido, eu já descobri isso tudo sozinha — disse Jane.
Leo então riu. Ele ainda estava meio duro dentro dela e ficou ainda
mais duro quando Jane levou as mãos dele aos seios.
— Falando sério, eles são reais? Parecem reais.
— Ah! — Ela arfou quando ele começou a brincar com um mamilo
com o polegar e o indicador e sugou o outro para o calor úmido de sua
boca, fazendo com que ela mal conseguisse pensar. — Não tenho certeza
se alguma parte de mim é real — respondeu, embora não estivesse
falando sério.
— Isso aqui... agora, isso é real — disse Leo, que se sentou. Seu peito,
com a pele tão quente, se colou ao dela para que pudesse beijá-la
novamente.
Foi a primeira vez que Jane disse a um homem exatamente do que
gostava, em vez de fingir que tudo o que ele fazia era bom. Leo era muito
obediente. Ele agarrou os pulsos dela, segurou-os com força atrás das
costas dela, porque Jane precisava daquela leve pontada de dor, enquanto
sua boca se ocupava dos seios dela de novo, lambendo, puxando, sugando.
Depois de um tempo, para recompensar seus esforços, Jane se ergueu por
cima dele e, devagar, centímetro por centímetro, enfiou-o dentro do corpo
de novo. Ela se perguntou se Leo também sentia como se estivesse
mergulhando em oceanos aquecidos pelo sol.
Em seguida, ele pareceu se dar conta instintivamente de que nada
suave seria suficiente, então virou os dois, ficando por cima, com Jane
por baixo, e então a montou desse jeito. O quadril batendo contra o dela,
as pernas dela enroscadas com força em volta dele e ela estava quase lá,
só precisava que ele arremetesse mais uma vez bem fundo, sussurrasse
mais uma baixaria em seu ouvido. Ela tentando atingir algo pouco além
do seu alcance.
— Está tudo bem — disse Leo. — Você é minha. — E com isso ele a
levou onde ela queria.
33

Maio de 1945

Todos os dias, os jornais listavam as vilas e cidades estrangeiras, a um


mar de distância, que haviam sido recuperadas pelas Forças Aliadas. Era
difícil aceitar as fotos de mulheres com lenços, crianças pequenas
agitando bandeiras, todos comemorando à medida que os tanques
passavam, como uma troca satisfatória pelo que fora perdido.
Quando eles libertaram os campos de concentração, aqueles lugares
terríveis com nomes feios, até Rose foi levada com o choque a sair do
torpor que se instalara ao redor dela como uma fina névoa de perfume.
Sentada em um cinema, ela levou a mão à boca, enquanto assistia ao
noticiário. Era impossível acreditar que as montanhas sepulcrais de peles
e ossos pálidos poderiam um dia terem sido pessoas. Mas tinham sido,
porém havia uma descrença coletiva de que qualquer pessoa, que dirá
nações inteiras, pudesse ser tão cruel.
Teria sido mais fácil fingir que nada daquilo acontecera, mas Rose
dançava com homens no Rainbow Corner que tinham visto tais
barbaridades em primeira mão. Eles eram diferentes dos outros homens
que passaram por lá em seu caminho de volta para casa. Tinham um quê
de assombrados, certo desespero na forma como seguravam Rose com
um pouco de força demais.
Em Kensington, Yves tinha socado a parede por pura raiva impotente e
Madeleine chorava o tempo todo. Ela chorava enquanto descascava as
batatas, cuidava de sua amada horta e limpava o chão da cozinha.
Chorava até na frente de Edward quando ele aparecia, o que fazia com
bastante frequência. Ele sempre chegava com alguma coisa — flores, um
brinquedo, certa vez uma garrafa de vinho tinto — e os sorrisos mais
doces e suaves para Rose como se ele se lembrasse dos beijos mais
recentes que tinham trocado, de tocar cada centímetro do corpo dela.
Mas, no dia em que os jornais noticiaram a libertação de Auschwitz e
Madeleine chorou enquanto colocava a mesa, ele tomou Madeleine nos
braços e beijou o alto de sua cabeça.
— Eles vão pagar por isso — disse ele a Madeleine com a voz tensa. —
Eu prometo.
Eles esconderam os jornais no balde de carvão para que as crianças
não os vissem, mas, quando Thérèse acordou gritando três vezes durante
a noite, Rose pegou os jornais e os queimou.
Contudo, havia tão pouco tempo para lamentar quando se tinha tanto o
que comemorar. As bombas tinham parado de cair e, numa noite de
segunda-feira, no final de abril, o blecaute terminou oficialmente. No dia
seguinte, os jornais noticiaram que Hitler cometera suicídio e de repente
o fim da guerra era inevitável, apesar de a guerra ter sido uma realidade
sombria por tanto tempo que Rose não conseguia imaginar a vida sem
ela.
Demorou pouco mais de uma semana e, então, tudo acabou. Rose
estava no trabalho, lutando com a chaleira com torneira, que estava nos
seus últimos dias, quando a BBC anunciou que a guerra tinha acabado.
Todo mundo parou de falar. Até mesmo as anêmicas salsichas na
frigideira pararam de espirrar.
— É mesmo verdade? — perguntou alguém e, em seguida, todos
aplaudiram e um rapaz pulou o balcão e tentou beijar Rose, mas ela pisou
forte no seu pé. O sr. Fisher ficou tão emocionado na hora que disse que o
chá e os bolinhos eram por conta da casa.
Rose nunca tinha visto ninguém tão emburrada e furiosa quanto
Gladys Fisher ao ver o marido distribuir bolinhos de graça para todos.
Então, enquanto ela ainda se recuperava do choque, ele fechou o café e
abriu a garrafa de xerez que tinha guardado exatamente para aquele dia,
aquele momento. Os dois estavam bastante embriagados enquanto
valsavam em torno das mesas e cadeiras e disseram a Rose que ela podia
ir para casa e tirar o dia seguinte de folga também.
Terça-feira, 8 de maio, Dia da Vitória na Europa. Todos eles, até as
crianças, foram à cidade. Madeleine ainda estava chorando, mas disse
que eram lágrimas de alegria, e Yves e Jacques compraram chapéus
vermelhos, brancos e azuis de um vendedor ambulante em frente ao
Royal Albert Hall e fitas vermelhas, brancas e azuis, que as garotas
amarraram no cabelo. Eles caminharam pelo Hyde Park e todos por quem
passavam sorriam e diziam olá e “Não é uma notícia maravilhosa?”.
Eles se juntaram à multidão em frente ao Palácio de Buckingham, mas
ficaram espremidos como sardinhas, e um policial disse que o rei e a
rainha ainda levariam horas para aparecer. Rose estava tão preocupada
que as crianças pudessem ser esmagadas, que acabaram voltando para
casa e sentando-se perto do lago redondo em Kensington Gardens para
comer seus sanduíches.
— Eu não quero voltar — disse Gisèle no seu inglês carregado de
sotaque para Rose enquanto caminhavam de volta para a casa, com as
crianças arrastando os pés e reclamando que estavam cansadas. — Aqui
não é o meu lar, mas nossa casa também não é o meu lar.
Para Rose, seu lar era o Rainbow Corner — ele era sua âncora, sua
pedra-ímã, mas, naquela noite, assim que atravessou as portas, foi levada
de volta à calçada.
Ela se viu de braços dados com dois marinheiros marchando pelas ruas
lotadas da Trafalgar Square. Havia bandeiras por toda parte, as luzes
brilhando desafiadoramente após todos aqueles anos de escuridão, e
pessoas, muitas pessoas. Agarradas a postes, jogadas nas fontes, em cima
dos leões imponentes que tinham montado guarda ao longo da guerra.
Rose se juntou ao final de uma enorme fila de conga, enquanto ria,
comemorava e cantava “Pack Up Your Troubles”, fazendo uma grande
cena — um jornalista até tirou uma foto sua, mas ela se perguntou por
que tinha de fingir estar feliz. Ela não deveria simplesmente estar feliz?
Mais tarde, enquanto caminhava em direção a Mayfair, ela se
perguntou se o triunfo valia tudo o que tinham sacrificado. Talvez fosse
por isso que a vitória parecia o fim de uma festa incrivelmente monótona
que se arrastara por muito tempo e agora era hora de voltar para casa,
passando por ruas vazias e frias, sabendo que não havia comida na
despensa, nenhum dinheiro para o parquímetro.
Mas ela não estava indo para casa. Estava indo para o apartamento de
Edward. Havia a possibilidade de ele ter saído para tomar brandy e fumar
charutos com os amigos de Whitehall em um clube de cavalheiros, porém
ele nunca a deixara na mão.
Então Rose não ficou de todo surpresa ao ouvir os passos dele vindo em
sua direção quando bateu à porta. Ela não achou que ele tivesse chegado
em casa havia muito tempo porque ainda estava de uniforme, o casaco
desabotoado, e estava com aquele olhar suave que sempre exibia quando
tinha bebido.
— Eu esperava vê-la esta noite — disse ele, e ela ficou lá parada,
deliciando-se com o tremor em suas pernas, a maneira como de repente
parecia difícil respirar.
Algumas noites, assim que fechava a porta atrás dela, Edward lhe dizia
para tirar a roupa com aquela sua voz cerimoniosa e ficava ali lhe
assistindo se despir para ele, mas naquela noite ele simplesmente pegou
sua mão e levou-a até o sofá.
— Tenho uma garrafa de champanhe que vinha guardando, você quer
uma taça?
Rose ajeitou o cabelo, puxou para baixo a saia e ficou ali inquieta
enquanto Edward estava na cozinha. Sua mão tremia um pouco quando
pegou da mão dele o copo de uísque, que estava cheio quase até a borda.
— Receio que minhas taças de champanhe tenham sido outras baixas
da guerra — disse ele, enquanto sentava ao lado dela.
Ele estava muito sério naquela noite, e Rose ficou toda confusa porque
em geral, àquela altura, ele pelo menos já a teria beijado.
Ainda assim, ele ficou assistindo a Rose tomar seu champanhe tão
avidamente quanto a beijaria. Apesar de todas as coisas que tinham feito,
Rose se sentia inexplicavelmente envergonhada. Estava corada quando
pousou o copo na mesa.
— Eu achava que o fim da guerra significaria alguma coisa — enfim
disse ela. — Que tornaria tudo melhor, mas não. Não tornou mesmo.
— Bem, ainda não terminou de fato. Ainda há guerra no Extremo
Oriente.
— Mas isso é lá no Extremo Oriente... é terrivelmente longe, caso
contrário o chamariam de Oriente Próximo.
Os dois sorriram e a tensão foi aliviada o suficiente para que Rose
tirasse os sapatos e dobrasse as pernas embaixo de si. Ela não estava
nervosa agora, relaxou diante do olhar firme de Edward porque ele lhe
tinha dito várias vezes que adorava olhar para ela. Não dizia que a amava,
ela achava que ele nunca mais diria isso, não agora que ela explicara seus
motivos, mas era reconfortante saber que, por fora, ela ainda era a
mesma garota que acabara de descer do trem e que ele conhecera todos
aqueles meses atrás no Rainbow Corner.
— Estou feliz que esteja aqui. Bem, fico sempre feliz quando você está
aqui, mas tem uma coisa que eu queria lhe dizer pessoalmente, e não por
carta — disse Edward de modo casual enquanto tirava as abotoaduras e
as colocava na mesa lateral. — Receio que eu tenha que ir embora.
— Para onde você vai? Você não vai ficar muito tempo longe, vai?
Todo mundo a tinha deixado, mas não Edward. Ele deveria ser uma
presença constante. Deveria estar ali sempre que ela precisasse.
— Vou à Alemanha — respondeu ele, e, imediatamente, o mundo dela
caiu.
— Por que diabos você poderia querer ir para lá? — Rose virou para
Edward, mas, dessa vez, ele se recusou a olhar nos olhos dela.
— Tenho que lhe contar uma coisa — disse ele sem jeito, embora nada
pudesse ser pior do que ele ir para a Alemanha, ficar entre aquelas
pessoas. — Pode ser um choque.
— O quê? O que você tem que me contar?
Ele afastou um pouco o corpo.
— Eu sou judeu. — Ele chegou a se encolher nesse momento, como se
esperasse que Rose pudesse bater nele ou se virar para o outro lado com
desgosto, embora ela não tivesse a menor inclinação de fazer nenhuma
dessas coisas. — Ou melhor, a minha mãe é, ou foi, portanto, de acordo
com a lei judaica e bem, Hitler, isso faz de mim um judeu também.
O alívio deixou Rose zonza.
— É só isso? Santo Deus, por um instante você me deixou preocupada.
De qualquer forma, pensei que sua mãe fosse americana.
— Rose. — Edward balançou a cabeça devagar, tentando conter um
sorriso. — Essas coisas não são excludentes. Oficialmente, a família dela
deixou a Rússia em meados do século passado por causa dos seus
interesses comerciais. Extraoficialmente, eles foram para os Estados
Unidos para escapar da perseguição. E eles se saíram muito bem. Minha
avó se casou com um banqueiro e, em algum ponto ao longo do caminho,
sua história, sua religião e a família, que ficara para trás nas shtetls, se
perderam. Isso é bastante curioso, na verdade... Eu nunca pisei em uma
sinagoga, como bacon sem problemas e faço tudo o que quero no
Sabbath, mas nos últimos tempos ser judeu parece ter uma relevância
enorme.
Agora Rose entendia por que ele gastara todo aquele dinheiro para
comprar casas para sete refugiados judeus. No entanto, ela não conseguia
entender por que ele queria deixá-la para ir à Alemanha, onde aqueles
miseráveis tinham tentado exterminar o seu povo.
— Acho que ir para lá seria um erro terrível. — Rose pegou a mão dele
e tentou colocar tudo o que não poderia dizer na forma como entrelaçou
seus dedos aos dele. — Não vejo como isso poderia ser útil. A guerra
acabou agora.
Edward soltou seus dedos, mas não largou a mão dela.
— Eu era advogado antes da guerra e vou voltar a advogar. Vou
encontrar as pessoas responsáveis pelos campos de concentração, por
todo aquele sofrimento, e fazê-las confessar seus crimes. Levá-las a
julgamento. Descobrir testemunhas de acusação. Elas têm de ser
responsabilizadas.
— Edward, não são pessoas! São animais.
— Não! São pessoas. Se pensarmos nelas como animais, então
permitiremos que se livrem de toda responsabilidade pelo que fizeram.
Nós as perdoaremos por apenas seguirem cegamente as ordens. —
Mesmo com ele tentando manter o controle, Rose pôde sentir sua raiva.
— A justiça deve ser feita.
Rose sabia, com uma certeza dura e resignada, que, quando voltasse,
ele não seria mais o mesmo. Ele estaria fundamentalmente alterado. Era
provável que ela perdesse Edward — seu doce e sério Edward — também.
Pensar nisso a fez sofrer.
— Gostaria que houvesse uma maneira de eu fazê-lo mudar de ideia.
Edward deu um tapinha no braço dela para sinalizar que não poderia
atender o seu desejo.
— Enquanto estiver fora, eu preciso que faça algo para mim — disse
ele. — Que faça várias coisas, na verdade.
— Regar as plantas e lhe encaminhar a correspondência? — Rose
franziu a testa. — Você não tem alguém que faz isso por você?
— Não é nada disso. Temos todas aquelas casas vazias em Kensington e
ninguém para morar nelas, e há todas aquelas pessoas sem um lugar para
onde ir. Vou mandá-las para você — explicou Edward, como se fosse um
plano perfeitamente sensato. — Você vai precisar arranjar os
documentos deles, encontrar pessoas que se prontifiquem a dizer que são
seus parentes britânicos, supervisionar as obras das casas, mobiliá-las.
Então vai ter que encontrar empregos para aqueles que puderem
trabalhar, mas até os que não puderem terão um teto sobre suas cabeças.
Todos terão um lugar para chamar de lar.
— Eu não posso fazer disso! — Havia cem, mil razões pelas quais não
podia. Rose começou com a mais óbvia: — Eu não tenho tempo. Preciso
trabalhar...
— Rose, você é um talento desperdiçado naquele café. Você deveria
estar fazendo mais da sua vida do que esfregar o chão e descascar
cenouras.
— Não dá para “arrumar” parentes há muito tempo perdidos assim do
nada. — A guerra não tinha acabado nem havia um dia e Rose sabia que,
quando fosse às lojas pela manhã, as prateleiras não estariam
subitamente abarrotadas com todas as coisas que tinham desaparecido
aos poucos. — Tentei comprar um pacote de grampos e o vendedor me
olhou como se eu tivesse pedido para comprar as joias da Coroa.
Edward não se abalou.
— Dinheiro não será problema. Meu advogado e o homem responsável
por cuidar dos meus negócios vão ajudar. Você pode até colocar Mickey
Flynn na folha de pagamento se for preciso.
— Mas, Edward, eu não posso! — Ela se apoiou nos joelhos para poder
olhá-lo nos olhos. Ele a encarou fixamente e depois estendeu a mão para
ajeitar a mecha teimosa do cabelo dela que nunca ficava presa. —
Ninguém me levaria a sério. Sou só uma garota.
— Você é a única pessoa em quem confio para fazer isso. — Ele
suspirou. — Além disso, depois que você se entrega de coração a algo, é
impossível lhe dizer não.
— Isso não é verdade — retrucou Rose, porque o que as pessoas
sempre fizeram fora dizer não para ela.
— Deixe-me lembrá-la. — Edward levantou, caminhou até a mesa
perto da janela e abriu uma das gavetas. — Eu não queria lhe entregar
isso antes... Você tentou parecer corajosa, mas sei que estava triste, tão
terrivelmente triste, e eu não queria fazê-la sofrer ainda mais.
Ele lhe estendeu uma folha de papel, mas Rose não fez nenhum
movimento para pegá-la. Ela achava que não poderia suportar nem mais
um pingo de infelicidade.
— Você me pediu para descobrir o que havia acontecido com... uma
pessoa de quem gostava? — completou Edward.
Rose deu de ombros. Ela já sabia o que tinha acontecido com as
amigas. Quando ela conseguia passar uma hora sem pensar nas três,
então aquela era uma boa hora, até que se lembrava de que não tinha
nada que se sentir bem e voltava a ficar arrasada.
— O que foi?
— Seu Danny — respondeu Edward. Ah, essa pessoa. Fazia tempo que
Rose superara a complicada e conflitante perda de Danny, pois esta não
se comparava à dor excruciante de ter suas amigas arrancadas dela. No
entanto, quando Edward lhe estendeu o papel de novo, ela balançou a
cabeça. Quando visse as palavras, preto no branco, então seria real.
— Só me diga — implorou ela. — Com cuidado.
— Sargento Daniel de Franco, Divisão de Manutenção de Aeronaves.
Uma equipe de bombardeio só é boa o bastante se tiver uma competente
equipe em terra, mas seu Danny nunca foi piloto. Ele agora está de volta a
Newport, Massachusetts, onde tem esposa e dois filhos. — Ele parou e fez
questão de olhar nos olhos dela. — Sei que não soa sincero vindo de mim,
mas eu sinto muito, Rose.
Deveria ter sido um choque; e de certa forma era, mas também fazia
todo sentido. Agora, com apenas alguns segundos para analisar essa nova
informação, tudo era tão óbvio, tão na cara, que Rose se sentiu uma
completa idiota. Tinha sido só um jogo para ele conquistar seu coração,
sua completa devoção, e tudo isso para quê? Por uma noite ruim em um
hotel em Henley-on-Thames.
Como costumava fazer muito nos últimos dias, Rose pensou no que as
amigas teriam dito se soubessem. Maggie nem sequer fingiria surpresa.
Phyllis teria ficado indignada e irritada por Rose, e Sylvia... Sylvia teria
rido muito, como Rose fazia naquele momento. Ela riu até as lágrimas
escorrerem pelo rosto.
— Bem — balbuciou ela. — Bem... pelo menos ele não está morto, eu
acho. Isso já é alguma coisa.
O pior de pensar que Danny podia ter morrido era que na verdade não
importava, não só pelo que ele tinha feito com ela, mas porque ela não
tinha espaço para pranteá-lo também. Mesmo as boas lembranças — seu
belo rosto, o som de sua voz e a maneira como ela se sentia quando ele a
beijava — eram fracas e indistintas.
E também havia Edward, seu Edward, porque Rose percebeu naquele
momento que pensava nele como sendo seu. Àquela altura ela o conhecia
já pelo dobro do tempo que conhecera Danny. Tinha passado várias horas
com ele. Tantas horas que, se juntasse todas, elas somaram dias, até
mesmo semanas. Não só as horas que eles passavam no escuro, o corpo
dele ensinando ao dela novas formas e padrões...
— Eu sabia que isso iria perturbá-la. — Ele olhou com ansiedade para
Rose quando ela sentou no sofá ainda tremendo de alegria pela completa
estupidez de tudo aquilo e tentando enxugar as lágrimas com as costas
das mãos. — Você está bastante histérica.
— Não estou. Sou só estúpida! Tão estúpida que mal posso suportar.
Edward deve ter pensado que ela era um caso perdido, porque saiu da
sala, mas voltou quase de imediato com um lenço e um copo de água.
Sentou-se, mergulhou o quadrado de linho branco na água e começou a
tocar de leve o rosto dela com o pano.
— Você não é estúpida. Você é a pessoa mais corajosa, bonita e doce
que já conheci — disse ele suavemente.
Rose se acalmou de imediato sob o toque tranquilizador dele.
— Não sou nenhuma dessas coisas.
— Você também é muito jovem e já passou por muita coisa. — O lenço
foi deixado de lado, mas ele continuou a acariciar seu rosto coberto de
lágrimas com as mãos, inclinando o queixo dela para que fosse banhada
pelo brilho da luz. Ela nunca tinha estado tão nua na frente dele. Nem
mesmo quando estava de fato sem roupa. — Foi um erro eu lhe pedir...
— Não, não foi. — Ela colocou as mãos sobre as dele, que estavam em
seu rosto. — Eu quero fazer isso. A recíproca é verdadeira, Edward... isso
de achar impossível dizer não. Qualquer coisa que você queira que eu
faça, é só pedir, e você sabe que direi sim.
— Qualquer coisa?
— Qualquer coisa.
34

Leo estava acordado quando Jane saiu do banheiro na manhã seguinte.


Estava sentado de short na lateral da cama, parecendo muito seguro de
si. E sorriu quando a viu.
— Decidi que vou passar o dia de hoje sem chorar — anunciou ele.
Jane parou à porta.
— Não vamos nos precipitar. Até a hora do almoço, talvez, querido?
— Também decidi que você não vai mais me chamar de querido. — Ele
levantou e se espreguiçou.
Jane tinha contado apenas com o tato para guiá-la na noite anterior,
mas agora podia ver que ele tinha músculos e depressões onde antes seu
corpo era mole e cheio de pneuzinhos.
— Chamo todo mundo de querido — disse ela distraidamente.
— Eu não sou todo mundo — argumentou Leo. Essa resposta parecia
anteceder uma conversa sobre aonde eles estavam indo e o que fariam
quando chegassem lá, mas ele só coçou a cabeça e foi até o banheiro. —
Não vou demorar. Você vai descer? Poderia colocar a chaleira no fogo...
ou, melhor, eu provavelmente deveria checar, ver se aconteceu alguma
coisa...
— A essa altura, nós já saberíamos — disse Jane. — Se houvesse o que
saber.
Rose tinha dormido a noite toda, contou-lhe Lydia em tom de espanto,
como se Rose costumasse ser um bebê difícil.
Neta, que tinha chegado para o turno da manhã, estava com Rose
quando eles levaram o baú até o quarto dela. Naquele dia as coisas
pareciam muito, muito diferentes, porque Rose estava deitada na cama,
esperando que Neta arrumasse os travesseiros do jeito que queria, com
um lenço de seda cobrindo o cabelo. Talvez Jane não tivesse notado seu
declínio gradual, nunca tinha visto Rose em seus áureos dias, mas de
repente, no espaço de vinte e quatro horas, parecia que ela estava
morrendo.
Sua pele estava amarela agora, em vez de apenas com um tom
amarelado, e pele pendia dos ossos como se murchasse devagar. Os olhos
de Rose estavam fechados, a respiração irregular como um disco pulando,
e ela mexia com a mão na barriga, que estava distendida o bastante para
ficar visível mesmo sob as cobertas.
— Vamos deixá-la confortável, srta. Beaumont — disse Neta, e Jane
ficou feliz em ver que ainda havia uma aparente dignidade.
Rose abriu os olhos lentamente quando Neta lhe pediu que se
inclinasse para a frente. Depois os fechou de novo quando os travesseiros
foram colocados atrás dela, como se mesmo aquela pequena gentileza lhe
causasse sofrimento.
Quando um travesseiro foi colocado sob os pés de Rose por motivos
sinistros que Neta dissera que eles não precisavam saber, a enfermeira
entrelaçou as mãos e saiu do quarto.
— Estarei com a srta. Liddy se precisarem de mim.
Jane e Leo se entreolharam, e ela se perguntou se ele sabia como se
sentia indefesa. Então Leo tocou seu braço quando foi até a cama —
apenas um leve toque de seus dedos, mas que significava que algo havia
mudado entre eles. Jane colocou uma cadeira ao lado da dele.
— Então, nós fomos a Lullington Bay e pegamos as coisas que você
queria — disse ele, e os olhos de Rose se abriram.
— Eu já lhes contei sobre meu amigo Mickey Flynn? — Até a voz dela
estava diferente, pouco mais que um grasnado. — Ele costumava dizer
que eu lhe devia tantos favores que teria de viver até os cem anos para
quitar tudo. Vocês acham que ele aceitaria uma promissória?
— Tenho certeza de que sim, querida — retrucou Jane. — Embora ele
provavelmente já tenha esquecido isso.
— Esquecer é fácil. Lembrar é que é difícil. Muitas vezes queremos
lembrar apenas os bons momentos, mas os maus dão um jeito de ficar
com você também.
Ela ficou em silêncio. Leo olhou para Jane, as sobrancelhas erguidas,
porque nenhum dos dois sabia se aquelas eram suas últimas palavras
profundas ou pensamentos confusos provocados pela morfina que estava
sendo administrada por uma bomba do outro lado da cama, que zumbia
alegremente enquanto cumpria seu papel.
Eles ficaram ali sentados. Jane ouvia a bomba e olhava para as copas
nuas das árvores que via pela janela. Ela queria muito ter trazido uma
xícara de chá e uma revista para folhear. Semanas atrás, Jane tinha a
noção indistinta de que, por ser velha e estar com câncer, Rose iria para a
cama uma noite e simplesmente não acordaria. Não esperava que a morte
pudesse envolver passar várias horas sentada, esperando, tendo de fingir
que estava perdida nos próprios pensamentos, quando, na verdade, estava
bastante entediada.
— Vocês pegaram minhas coisas? — perguntou Rose, e Leo deu um
pequeno pulo, como se estivesse cochilando.
— Sim, eu já disse. Tudo que estava na lista.
— Como está Lullington Bay? Minhas rosas?
— O jardim parecia muito bonito — respondeu Leo, embora o jardim
parecesse um emaranhado sombrio de árvores e arbustos quando tinham
visitado. — A casa está exatamente como eu me lembrava.
Rose sorriu, e seus membros rígidos relaxaram um pouco quando Leo
falou sobre Lullington Bay, sobre aqueles dias intermináveis na praia e as
noites quentes e pegajosas. O gato de rua que tinham recolhido e
chamado de sr. Bobbins e que acabara se revelando a sra. Bobbins e dera
à luz uma ninhada de gatinhos na cama de Rose.
Leo falou, com a voz rouca, até o dr. Howard chegar. E Rose abrir os
olhos e admitir que a dor estava “bem ruim” era outra coisa muito, muito
diferente.
Eles desceram para a cozinha, onde Lydia estava no meio de um
frenesi culinário. Biscoito de gengibre, pãezinhos, biscoitos
amanteigados, um panetone, mas só de passas. Rose detestava frutas
secas. Sempre dizia que casca açucarada de frutas cítricas e tâmaras
picadas arruinavam qualquer bolo.
Nem Jane nem Leo precisavam ressaltar que havia dias, talvez até
semanas, que Rose não comia nada tão substancial quanto um pedaço de
bolo, porque havia tantas coisas que não precisavam mais ser ditas.
Embora o dr. Howard tivesse muito a dizer quando entrou na cozinha
vinte minutos depois.
Falou principalmente sobre os rins de Rose. Sobre como corriam o
risco de parar de funcionar e que, se concordasse com um cateter, Rose
poderia receber medicação intravenosa.
— Se Rose não quer isso, não tenho certeza se poderei convencê-la —
disse Leo.
— Alguém vai ter que tomar decisões por Rose se ela não for capaz de
tomá-las sozinha — disse o dr. Howard. Naquele dia, ele nem sequer
tentou suavizar as coisas. — Isso não vai demorar a acontecer.
— Mas ela não está como ontem — argumentou Leo, enquanto
levavam o médico até a porta. — Então deve ser um bom sinal, não é?
— Um alívio temporário, receio. Chegará um momento em que você
talvez decida que o melhor para a srta. Beaumont é mantê-la sedada até
que faleça.
— Mas ela não sofreria, não é? — perguntou Jane, porque não podia
imaginar como seria terrível para Rose ficar presa entre mundos, com
nada além da dor mantendo-a aqui. — Quanto de morfina você pode
prescrever sem que ela tenha uma overdose?
— Não sou um homem punitivo. — O médico fez uma pausa enquanto
colocava seu chapéu. Ele era um daqueles homens que ainda usava um
antiquado chapéu de feltro. — Não acredito em sofrimento desnecessário
e, às vezes, se os remédios fazem o seu trabalho antes de o corpo falhar,
bem, então pode ser uma bênção.
Quando ele saiu, Leo se sentou com força no último degrau da escada.
— Porra. — Ele esfregou o rosto com as palmas das mãos, mas, quando
as tirou, seus olhos estavam secos. — Puta merda. Não sei se posso fazer
isso.
Jane passou os dedos pelo cabelo de Leo enquanto passava por ele.
— Foi por isso que você voltou. Para fazer o que for melhor para Rose,
então sim, você pode fazer isso.

Rose dormiu o dia todo e, quando Agnieska chegou para render Neta, Leo
e Jane desistiram da vigília. Eles ainda não tinham conversado sobre o
que havia acontecido na noite anterior. Leo não seria o primeiro a tocar
no assunto. De jeito nenhum. Porque, se ele falasse algo, então Jane
minimizaria o que houve, chamaria Leo de querido, agiria de forma
leviana em vez de admitir que ela estava perigosamente perto de sentir
alguma coisa de verdade. Mas acabou que nenhum dos dois precisava
dizer nada.
Jane passou a mão lenta e deliberadamente por Leo quando cruzou
com ele ao entrar no quarto. Sem pensar, na mesma hora ele a pressionou
contra a parede, ela macia enquanto de repente ele estava dolorosamente
duro. Foi uma dança desajeitada até a cama, onde passaram a noite
redescobrindo o sabor e a textura um do outro. Leo achou que deveria se
sentir culpado por ele e Jane terem escolhido justo aquele momento para
se deparar com algo que se assemelhava à felicidade, mas não se sentia
culpado. Aquilo poderia ser alguma outra estratégia, outra jogada do
plano principal de Jane, mas Leo precisava se perder por horas e horas, e
Jane tinha os meios de realizar tal desejo.
No fim, Jane adormeceu antes de Leo. O sono não suavizou as tensões
do dia, porque ela não ficava parada. Suas pálpebras se contraíam como
se estivesse sonhando intensamente, e ela mordia o lábio inferior,
enquanto virava primeiro para um lado, depois para o outro. Leo ficou
observando-a até não suportar mais. Ela mantivera seu verdadeiro eu
guardado e observá-la agora parecia uma intrusão, como se lesse seus
documentos secretos, vasculhasse suas gavetas. Por fim, ele pegou os
travesseiros que tinham jogado no chão e colocou-os no meio da cama de
novo, separando-os, e então foi fácil cair no sono.

Passava das onze horas do dia seguinte quando Neta foi até a cozinha
para lhes dizer que Rose estava acordada e chamando por eles.
— Vocês foram a Lullington Bay? — perguntou Rose assim que
entraram no quarto. — Como estão as minhas rosas?
Leo deu um passo atrás, mas Jane o empurrou para a frente. Ele podia
fazer isso. Não tinha outra escolha.
— Suas rosas estão bem. Lindas. Nenhum pulgão nelas.
— Bom. — Apesar de ter dormido por quase vinte e quatro horas, os
olhos de Rose estavam vermelhos. Tinha outro lenço com padrão alegre
amarrado em volta da cabeça, que deixava ridículos o rosto fundo e os
lábios ressecados. — Onde estão as minhas coisas? Vocês acharam uma
caixa de madeira pequena?
Leo agachou e abriu o baú. Dentro havia maços de cartas, algumas
amareladas pelo tempo, como Rose, outras finas como lenço de papel e
com linhas azuis e vermelhas do correio aéreo nas bordas. Havia uma
caixinha de pau-rosa, que Leo passou para Jane, que entregou a Rose.
Seus dedos se atrapalharam com o fecho, depois começaram a passar
pela coleção de caixas de fósforos, enfeites de bebidas, menus de
restaurantes e casas noturnas. No fundo, havia um pequeno pedaço
rasgado de papelão com uma foto colada nele.
— Realmente aconteceu. Eu realmente estive lá — disse ela, enquanto
tentava fechar os dedos em volta dele.
Jane estendeu a mão e o pegou da caixa, depois mostrou para Leo. Era
um crachá do Rainbow Corner. Olhando para eles estava uma Rose
adolescente; o cabelo elaboradamente enrolado e preso, seu sorriso
escuro de batom.
— Minha nossa, querida, você parece uma estrela de cinema.
— Hedy Lamarr. — Rose curvou os dedos. — Onde estão as fotos? Elas
estão em um álbum.
Com cuidado, Leo passou por velhos cartões de aniversário e
programas de teatro até encontrar um álbum com capa de couro verde-
escuro. Rose o pegou com um suspiro suave, mas, antes de abrir, deu um
tapinha ao seu lado na cama.
— Venham aqui para vocês verem — chamou ela.
Quando Jane estava precariamente acomodada para não esbarrar em
Rose e Leo ficou de joelhos, com os cotovelos apoiados na beirada da
cama, Rose começou a folhear o álbum.
Havia uma foto de Rose ainda bebê usando um enorme vestido de
batizado cheio de babados. Fotos da escola, banguela e sardenta. Em
seguida, uma Rose adolescente e mal-humorada numa orla, com os
braços cruzados, o queixo para baixo, a testa franzida de profunda
irritação. Embora para Leo fosse penoso admitir, ela se parecia muito
com ele em sua própria adolescência mal-humorada. E então...
— Ah! Você está em Londres agora! — disse Jane alegremente, quando
viram Rose na Trafalgar Square com outra garota, as saias levantadas,
pernas numa pose de showgirl, flanqueando um homem baixo, de bigode
fino, num terno elegante e um sorriso agradável. — Quem são esses com
você?
— Esse é Mickey Flynn, o velho infame. O grasnar de Rose não
conseguia disfarçar seu deleite. — Eu não sei quem ela é. As amigas de
Mickey iam e vinham. Iam principalmente.
Leo se empoleirou do outro lado da cama e observou as duas mulheres,
suas cabeças juntas, enquanto Jane exclamava ao ver Rose toda
arrumada, posando para a câmera.
Chegaram a uma comemoração de Natal: uma árvore fina e
escassamente decorada no fundo, três crianças ajoelhadas na frente dos
adultos, que estavam sentados no sofá ou em volta dele. Rose tentou tocar
cada rosto, mas os dedos não a obedeciam.
— Minha outra família. Essa era a sala de estar no térreo e esses são
Yves, Jacques, Madeleine, que dessa vez não estava chorando, Gisèle e
essas são Thérèse e Hélène de cada lado do pequeno Paul. Mil novecentos
e quarenta e cinco. Esse foi um Natal difícil. Mas a mãe de Phyllis nos
mandou um frango e um bolo de ameixa. Fazia isso todos os anos até
falecer. Ela era bem mais assustadora do que eu.
— Duvido muito. — Leo revirou os olhos. — Você é aterrorizante como
ninguém, Rose.
Rose conseguiu bufar.
— Se eu estivesse me sentindo melhor, você ia ganhar um tapa na
orelha por isso.
Leo tinha temido que aquilo pudesse ser demais para Rose quando até
abrir os olhos no dia anterior fora uma tarefa hercúlea, mas naquela
manhã Rose estava alegre, ou o que se passava por alegre quando ela
estava tão perto do fim. Jane também parecia feliz em ficar vendo
fotografias de família de outra pessoa, porque não tinha nenhuma dela.
Se os pais dela estavam realmente mortos ou não, isso não importava. Ela
ainda tinha optado por não ter família.
Leo também não tinha tirado muitas fotos de família ao longo dos
últimos anos. Era apenas um rosto indistinto nas fotos de outras pessoas.
Quem é o cara que parece bêbado?
Ah, um amigo de um amigo. Não consigo me lembrar do seu nome, mas
mais tarde naquela noite ele vomitou na piscina.
Leo balançou a cabeça e voltou sua atenção para a foto que Rose e Jane
observavam.
— Quem é essa garota loira? — Ele tentou parecer ansioso e
interessado. — Ela parece bem divertida.
— É Sylvia. Minha irmã mais velha honorária.
Leo se inclinou para ver melhor a garota sorridente em preto e branco,
mãos na cintura, cabeça jogada para trás, mas Rose já estava virando
para a página seguinte, então disse com tranquila satisfação:
— Ah, aí estamos todas nós.
Apontou para cada uma delas de uma vez: Phyllis, que parecia solene e
um pouco ansiosa; ao lado dela estava Maggie, o rosto angular envolto na
fumaça do cigarro que segurava na mão direita, e Sylvia e Rose, com os
braços em torno uma da outra. Todas elas sorrindo, todas usando o
mesmo batom vermelho na fotografia colorida a mão.
— São suas garotas, Rose — disse Jane, como se quisesse saltar para
dentro da foto onde elas estavam.
Em todo o tempo que ele a conhecia, Rose nunca fora de
sentimentalismo, mas, com a ajuda de Jane, ela tirou a foto do álbum e a
descansou junto ao peito, na altura do coração.
— Eu não tinha fotos delas. Todas tinham se perdido, mas uma das
minhas velhas amigas do Rainbow Corner encontrou esta, anos depois da
guerra, e mandou para mim.
— Estou tão feliz por termos ido buscar isso para você — sussurrou
Jane.
Rose sorriu para ela, e Leo sentiu como se estivesse se intrometendo.
Então Jane acariciou a mão dele que descansava na cama, e ele se sentiu
incluído.
— Você tem fotos de vocês quatro depois da guerra? — perguntou Leo.
— Eu adoraria ver como vocês eram nos anos 1950, quando podiam se
arrumar de verdade — acrescentou Jane, mas Rose virou a cabeça.
— Não houve “depois da guerra” — respondeu baixinho. — Houve
uma bomba. Impacto direto. Elas ficaram em pedaços na rua.
Jane agarrou a mão de Leo com tanta força que ele quis protestar.
— Quando você falava delas... Eu nunca pensei que tivessem morrido
— disse Jane tão amargamente que até Rose pareceu assustada.
— É claro que elas morreram. Era óbvio.
— Não para mim.
— Jane! Rose não fez isso de propósito — disse Leo, olhando de
relance para Rose, que estava deitada com os olhos fechados, a foto ainda
junto ao coração. Ele franziu a testa, aproximou-se, depois se endireitou e
respirou trêmulo. Seus olhos encontraram os de Jane, como se dissesse:
Está tudo bem, ela ainda está aqui.
Jane logo se arrependeu.
— Querida, sinto muito que você tenha tido tão pouco tempo com elas.
— Acho que ela está dormindo — disse Leo. — É melhor a gente ir.
Eles deixaram o álbum no travesseiro de Rose, para que ficasse ao
alcance, e estavam tirando as coisas do baú, colocando cada caixinha
recheada de lembranças na mesa com rodinhas posicionada
confortavelmente sobre a cama, quando Rose abriu os olhos de novo.
— Eu não estou dormindo. — Rose levantou a cabeça e estremeceu
com o esforço que isso exigiu. — Vocês não poderiam compreender como
tudo era fugaz. Que de repente as pessoas que você amava iam embora
para sempre. Você dizia “Boa noite”, então na manhã seguinte elas
haviam desaparecido. O tempo delas tinha acabado. E a tragédia de tudo
isso é que elas nunca puderam chegar a ser quem deveriam ser.

Quando Jane apareceu para ver Rose um dia depois, a foto de suas
amigas do Rainbow Corner estava em uma moldura prateada na mesinha
de cabeceira.
Leo tinha ido a algum lugar com George. Rose havia se recusado a ver
George por três dias seguidos, e eles o encontraram nos degraus de trás
com Lydia, chorando enquanto tentava acender um cigarro.
— George, tenho que ir falar com um cara sobre um suporte. Eu
adoraria ter companhia — dissera Leo, e Jane vira os dois seguirem pela
rua, o braço de Leo em volta dos ombros de George. Tinha certeza de que
eles iam só até o pub mais próximo, mas, se Leo voltasse bêbado, dessa
vez o perdoaria.
Naquelas circunstâncias, dificilmente ela poderia se recusar a ficar
com Rose. Mas bem que queria se negar, porque era doloroso sentar e
assistir a alguém por quem você se afeiçoara se deteriorar à sua frente.
Jane sentava em uma poltrona que tinha colocado o mais longe da
cama que ousara e folheava revistas de moda, mas quase sempre ficava
olhando em volta do quarto, pela janela, para qualquer lugar menos para
Rose, que dormia a maior parte do tempo agora. O sono deveria ser
tranquilo, uma folga do papel que se desempenhava durante o dia, mas
Rose parecia tudo menos tranquila.
Sua respiração ofegante soava dolorosa, os gemidos, ainda pior, o rosto
ficava contorcido em uma careta contraída, embora Neta tivesse dito que
em breve Rose deixaria de lutar.
— Rose vai saber quando estiver pronta — dissera a Lydia e Jane. Neta
era muito zen.
Jane sabia que deveria ter pensado em um plano diferente. Todas
aquelas semanas naquela casa com aquelas pessoas a haviam modificado.
Ela não era a criatura deslumbrante que tinha se esforçado tanto para se
tornar, mas também não era a garota escondida embaixo da cama. Estava
presa em algum lugar entre as duas e a única hora em que de fato se
sentia feliz nos últimos tempos era quando estava com Leo. Então ela não
tinha de pensar em nada. Só sentir. Os dedos dele, a boca, o pênis, todos
fazendo coisas tão incríveis com ela que Jane começara mesmo a
imaginar o que o futuro poderia reservar para os dois se decidissem
tentar. Mas ela podia se recusar a falar sobre qualquer coisa que pensasse
quando estava no barato pós-orgasmo.
Em vez de procurar se conter, Jane dera a Leo e Rose tudo do que era
capaz, que podia não ser muito, mas, quando chegasse a hora de ir
embora, ela deixaria a melhor parte de si para trás. Então aquela vozinha,
mais insistente durante o dia, lembrava a Jane que ela não tinha de ir
embora. Mas como ela poderia ficar? A pessoa que Leo estava se
tornando merecia coisa tão melhor.
Então Rose voltou de repente à consciência com um grito surpreso de
dor. Ficou lá, imóvel, os olhos correndo freneticamente pelo quarto.
Jane levantou e foi até a cama. Serviu um pouco de água do jarro para
Rose, então apontou para o copo.
— Você quer beber alguma coisa, querida?
Rose quase não bebera nada por dois dias, mas havia uma caixa de
swabs de espuma na mesa de rodinhas. Jane mergulhou um deles na água
e passou-o pelos lábios secos e rachados de Rose. Rose agarrou o swab,
sugou-o com fraqueza e voltou ao seu corpo, voltou ao quarto.
— Você tem certeza de que não quer beber nada? Eu poderia ir lá
embaixo pegar um pouco de gelo.
— Dói para engolir. — A voz de Rose não passava de um ruído rouco.
— Dói para falar. — Mordeu o lábio ferido. — Não sei o que fazer comigo
mesma.
Jane sentou na cama com cuidado para não incomodar a outra mulher
e pegou a mão agora manchada de Rose.
— Querida, Leo vai voltar logo e, se estiver pronta, você então deveria
ir.
— Ainda não — disse Rose.
Quando Jane encontrou um pacote de canudinhos aninhado entre os
pacotes de gaze esterilizada e seringas no banheiro, Rose tomou um
pouco de água. Não muita, e Jane não sabia por que era ela quem estava
fazendo aquilo. Ela era a esposa com quem Leo se casara em cinco
minutos e que estava só de passagem. Por outro lado, naquele momento,
sem Leo ali e com Lydia cozinhando freneticamente coisas que Rose não
comeria, ela era a única pessoa disponível para isso.
Jane procurou na memória por algum filme que tivesse visto com
cenas parecidas. Talvez algum com Bette Davis?
— Tem alguma coisa que você queira fazer? Alguém de quem queira se
despedir, que ainda não teve chance?
— Não. Todos já partiram.
— E quem sabe o Danny? — perguntou Jane, porque tinha certeza de
que Danny tinha sido o verdadeiro amor de Rose. Não que ela de repente
acreditasse em amor verdadeiro, mas a jovem Rose acreditara. —
Quando foi a última vez que ouviu falar dele?
— Danny? — Parecia que Rose estava tendo dificuldade em identificar
o nome, embora estivesse um pouco menos grogue, talvez um pouco mais
confortável desde que conseguira tomar um pouco d’água e Jane
rearrumara os travesseiros. — Não desde a guerra.
Jane pegou o iPad.
— Eu poderia tentar localizá-lo. Ver se ainda está vivo. Tem essa coisa
chamada Facebook, que...
— Eu sei o que é Facebook. Ainda não estou morta. — Rose soou
rabugenta, mas então sorriu. — Danny. Ele era apenas um garoto. Um
garoto bobo e egoísta, mas todos os garotos da época iam para a guerra e
isso os fazia parecerem homens. Não como Leo. Acho que ele não vai
crescer nunca.
— Ele está tentando, querida. Isso tem que ter algum valor. — Jane se
perguntou onde Leo estava. Estava fora havia séculos, e ela estava
sentindo muita falta dele... não só porque era tão difícil lidar com Rose
sozinha. — Essa coisa de menino é tudo parte do seu charme.
— Você vai ficar com ele depois...?
Jane passou o polegar pelas costas da mão de Rose.
— Realmente ainda não pensei no depois — respondeu com cuidado.
— Eu gostaria que você ficasse. Não para sempre. Sei que você não é do
tipo que acredita em para sempre, mas me preocupo com o que vai
acontecer com ele. Leo tem tendência a sair dos trilhos. — Mesmo em seu
estado debilitado, Rose ainda conseguia parecer astuta, embora pudesse
ser um truque da fraca luz da tarde. — Você promete que ficará até ele
estar fora de perigo?
— É claro que sim. — Jane não teve de pensar duas vezes sobre isso, o
que era estranho. Em geral, as promessas que fazia tinham sido pensadas
estrategicamente, negociadas, às vezes até reconhecidas em cartório.
— Bom. — Rose afundou de volta nos travesseiros com cuidado. —
Pelo menos, não estou mais chateada com ele. Estou feliz que tenha
voltado para casa.
— Rose, querida, você acha que poderia dizer isso a ele? — Jane
apertou de leve a mão de Rose. — Sei que Leo bota muita banca às vezes,
mas, na verdade, tem o coração mole e está muito arrependido por
desapontá-la. Por todas essas coisas estúpidas e impensadas que ele fez
anos atrás.
— Absolvição no leito de morte? — perguntou Rose com um sorriso
fraco. — Que católico.
— Não, só perdão porque você o ama — retrucou Jane, porque Rose o
amava. Como poderia não amá-lo?
— Não era para ter sido assim. — Jane podia ver o cansaço tomando
conta de Rose de novo. — Champanhe, pílulas, uma suíte no Savoy com
vista para o rio. Era assim que eu ia embora. Não pretendia me demorar.
— Ainda não é tarde demais se você quiser descer as escadas
cambaleando, querida.
Ela só estava meio que brincando, mas de repente Rose segurou a mão
dela quase sem força.
— Quando eu estiver pronta, você vai estar aqui, não vai?
— Querida, eu não vou a lugar nenhum. Vamos cuidar para que você
não esteja sozinha.
— Tem que ser você. Você é forte. Vou precisar que você seja forte o
bastante por nós duas — disse Rose.
— Não sei se sou assim tão forte — hesitou Jane quando os olhos de
Rose, de repente bem focados, olharam bem no fundo dos dela.
— Você é. Como eu era. Acho que nós duas somos bem parecidas.
Nenhuma de nós tem medo de enfrentar o futuro de cabeça erguida.
— Ah, Rose, querida, não. Você... — Jane engoliu em seco. — Quando
veio para Londres, você estava correndo em direção a alguma coisa. Tudo
o que eu já fiz foi correr das coisas.
— Mas você não vai correr agora, vai? — perguntou Rose. — Vai estar
aqui quando eu precisar de você.
— Eu vou estar aqui — respondeu. Ela estaria. Leo também precisaria
dela.
Ela estava fazendo aquilo de novo: sendo abnegada. Nada de bom vinha
disso.
35

Fevereiro de 1946

As bombas já não caíam. Não havia mais garotos bonitos morrendo em


campos estrangeiros, mas o fim da guerra ainda parecia uma gigantesca
decepção. Ainda havia escombros e cadernetas de racionamento. A perda
do que havia sido ainda corroía Rose se ela ficasse parada por muito
tempo, então ela fazia questão de estar sempre em movimento.
Ajudava o fato de ela se manter ocupada com os refugiados que Edward
não parava de lhe mandar. Muitas vezes, ela ia a Dover para recebê-los
quando saíam do navio. Então, quando estavam de volta a Londres, era
uma peregrinação interminável por filas intermináveis. Todo mundo
precisava de cadernetas de racionamento, autorizações de trabalho e
carteiras de identidade.
Felizmente Mickey Flynn podia fazer milagres; qualquer coisa, desde
conseguir fichas de leite até a instalação de um telefone na casa de
Kensington de uma hora para a outra. Lady Carfax também conhecia
todo tipo de figurão, até mesmo alguns lordes, o que era incrivelmente
útil quando se tratava de evitar a burocracia.
Também havia os velhos amigos de Maggie, que ficavam felizes em
oferecer seus serviços sempre que Rose precisava de um tradutor. Até
mesmo Henry Crapper, o pai de Sylvia, que, embora tivesse dito que não
queria nada com um bando de estrangeiros que surgiam do nada e
achavam que tinham direito a receber moradia e comida antes das
pessoas que tinham nascido ali, arrumou algumas pessoas para fingir ser
parentes dos refugiados.
— Parece-me bem estranho que tantos moradores de Hoxton tenham
parentes judeus há muito perdidos, mas tenham imensa dificuldade em
lembrar seus nomes — dissera irritado o sr. Costello, do Departamento de
Estrangeiros do Ministério do Interior, a Rose.
Ele também dissera, um pouco menos irritado, que sua equipe tremia
de medo quando Rose aparecia pontualmente às nove horas na primeira
segunda-feira de cada mês e se recusava a sair dali até ter seus
formulários carimbados e assinados. Ela chegava preparada para ficar ali
o dia inteiro, sentada com seu tricô em uma cadeira de espaldar duro que
um dos secretários arrumava a contragosto para ela.
Ele disse que o barulho das minhas agulhas distrai todos eles, escreveu
Rose para Edward. A partir de agora, vou pedir para falar com ele
pessoalmente e ele vai me ver dentro de meia hora. Acho que isso é o que se
poderia chamar de um sucesso palpável!
Edward não saía de seus pensamentos. Sobretudo porque estava
sempre lhe mandando pessoas que contavam com Rose para lhes dar algo
que se assemelhasse à vida normal com que dificilmente se atreviam a
sonhar quando estavam nos campos de concentração.
E Edward lhe escrevia cartas. Não só listas com nomes, datas de
nascimento, países de origem das pessoas que ela deveria receber saídas
dos navios e trens, mas cartas surpreendentemente engraçadas e doces.
Ela não conseguia imaginar como ele podia encontrar coisas divertidas
para falar tendo ido àqueles lugares com nomes horríveis que ela ainda
tinha dificuldade de dizer em voz alta. Tendo conversado com as pessoas
que tinham vivido lá, embora aquilo mal fosse vida. Pessoas que viram
seus entes queridos morrerem baleados, de fome ou nas câmaras de gás.
E depois tendo se sentado na mesma sala que os homens e mulheres que
tinham perpetrado tais crimes.
Com tanta coisa acontecendo, Rose só aparecia no Rainbow Corner às
sete e meia, seis noites por semana, porque era um hábito bem arraigado
e ela podia conseguir chocolate e cigarros com os soldados para trocar
por coisas mais úteis. Rose muitas vezes se perguntava por quanto tempo
o Rainbow Corner ficaria aberto — corriam rumores sobre seu fim desde
o Dia da Vitória sobre o Japão. Então, em um dia chuvoso de janeiro,
quando chegou para o seu turno, Rose encontrou um grupinho de garotas
diante do quadro de avisos no banheiro.
Ela ficou na ponta dos pés para ver o edital sobre as cabeças na sua
frente. O Rainbow Corner ia fechar.
— Ah, bem. Todas nós sabíamos que esse dia ia chegar.
— Mas tão cedo. Só duas semanas — retrucou uma das outras garotas.
Rose não sabia o nome dela. Havia tantas garotas novas naqueles dias.
A maioria das mulheres que estivera ali quando ela começara, que
cuidara dela, que lhe emprestara grampos, que lhe ensinara a se defender
contra os avanços dos soldados amorosos demais, já se fora havia muito
tempo. Algumas, porque tinham falecido, outras simplesmente porque se
dispersaram, voltando para suas cidades para reconstruir a vida.
Algumas tinham partido para os Estados Unidos para se reencontrarem
com os homens que as cortejaram no Rainbow Corner. A Cruz Vermelha
Americana até organizara aulas de orientação para noivas da época da
guerra.
Com o Rainbow Corner fechado, Rose teria mais tempo para o seu
trabalho, suas almas perdidas. Entretanto, na última noite do Rainbow
Corner, quando colocou seu fiel vestido preto de crepe da china, que ela
havia jurado que nunca voltaria a usar, mas a necessidade fizera dela uma
mentirosa, Rose ficou surpresa ao sentir certo frisson de empolgação.
Então tudo bem. Ela se despediria do Rainbow Corner na pista de
dança, nos braços do soldado mais bonito que pudesse encontrar. Ela
comeria aqueles donuts disformes polvilhados de açúcar pela última vez,
tomando coca-cola.
Rose celebraria naquela noite todas as coisas com relação ao Rainbow
Corner que já faziam parte de sua rotina. E tentaria não ver seus
fantasmas, mas sabia que Phyllis, Maggie e Sylvia estariam ali com ela,
em seu coração, anjos em seu ombro. Ela dançaria para elas. Brindaria à
sua memória.
Primeiro, tinha de entrar no maldito lugar. A Shaftesbury Avenue
estava lotada e só havia um policial na porta tentando contê-los com
valentia.
Rose deu a volta pelos fundos, descendo os degraus que levavam ao
porão e bateu com força na porta da cozinha até um dos ajudantes de
garçom deixá-la entrar.
Tudo parecia um pandemônio logo que ela saiu da agitação cheia de
vapor da cozinha para a Dunker’s Den. Rose teve praticamente de nadar
por um mar de uniformes cáqui para alcançar as escadas e usar os
cotovelos para abrir caminho e subir. Uma hora teve até de dar um
pontapé no tornozelo de um aviador convencido que se aproveitou da
confusão para apertar o seu traseiro.
— Rosie! Por aqui! — Havia um bando de meninas atrás do balcão da
recepção. Dora, Jean e Peggy, de volta de Lowestoft. A caminho do salão
de baile, elas reuniram mais retardatárias.
Naquela noite, quando não havia espaço para fazer nada além de
arrastar os pés ao som da música, elas ficaram felizes em encontrar um
canto e compartilhar suas histórias. O aspirante bêbado que tinha
vomitado nos sapatos de dança de camurça de Peggy. A vez em que
Nancy levara a irmã mais nova escondida para comer uma pilha de
panquecas e, em vez disso, ela acabara ficando noiva de um soldado. O
terrível mês em que nem mesmo Mickey Flynn conseguiu arrumar
nenhuma meia-calça e todas elas pintaram as pernas com chá, que
acabou escorrendo em pequenos riachos no calor sufocante do salão.
Rose riu até as costelas doerem. Posou para fotos. Trocou endereços e
fez uma anotação para lembrar de pressionar uma das chefonas da Cruz
Vermelha Americana para descobrir o que pretendiam fazer com as
cadeiras e as mesas. Com todos aqueles pratos e canecas. As cortinas. A
lista era interminável.
— Devíamos pelo menos tentar dançar — disse alguém. — Nunca
mais teremos essa chance.
Era uma simples questão de encontrar um homem que quisesse girar
uma garota em seus braços, não que houvesse espaço para isso.
Quando a banda parou de tocar, a multidão gritou, reclamando.
— O que está acontecendo? — perguntou Rose, esticando o pescoço
para ver uma das importantes damas da Cruz Vermelha Americana subir
no palco, seguida por... — É alguém importante! — gritou ela para as
meninas. — Anthony Eden. Meu Deus! É a Eleanor Roosevelt. Ela é
maravilhosa!
Ela foi aquela garota naquela noite. A pequena Rosemary Winthrop de
olhos arregalados e apaixonada por Londres, e o Rainbow Corner era o
coração pulsante da cidade.
Houve discursos.
— Acredito que este clube provou que podemos trabalhar juntos —
disse Eleanor Roosevelt, enquanto Dora enxugava as lágrimas e Peggy
fungava. — Mais de oitenta por cento dos voluntários daqui eram
britânicos, e eles trabalharam com nossa equipe americana e fizeram
deste clube o que era e o que sempre será no coração dos nossos
militares: um incrível sucesso!
Rose bateu palmas até as mãos ficarem doloridas, gritou até a garganta
ficar rouca e ainda assim se recusava a acreditar que estava chegando ao
fim. Que aquela seria a última vez em que estaria ali naquele lugar onde
de fato amadurecera. Que nunca mais sentiria o cheiro da mistura de
cigarros Lucky Strike, brilhantina Brylcreem, lã úmida e suor. Talvez, se
ela se recusasse a sair e sentasse na pista de dança se fosse preciso, o
Rainbow Corner ficaria aberto.
Ela não era a única a se sentir assim.
— Eu não vou embora — disse Jean. — Só se me arrastarem daqui.
As outras concordaram e, apesar de as damas da Cruz Vermelha
Americana andarem pela multidão em seus uniformes cinza-escuro,
tentando convencer as pessoas a seguirem em direção às portas, elas
permaneceram firmes.
— Uma das garotas do escritório disse que tinham perdido a chave
original e houve uma tremenda confusão esta tarde para mandarem fazer
uma nova — contou Jean.
— Eles não vão fechar a porta de verdade — zombou Rose. — O
Rainbow Corner está sempre aberto. É só uma cerimônia de
encerramento. Não vão fechar o local de fato e nenhuma de nós vai se
mover daqui. Não podem nos forçar a sair.
Então, eles permaneceram onde estavam. Não só Rose e suas amigas,
mas todos os homens e mulheres que tinham conseguido entrar ali.
Alguns dos americanos começaram a cantar, e todos logo
acompanharam:
“Ninguém vai nos tirar daqui.
Ninguém vai nos tirar daqui.
Assim como uma árvore à beira d’água, ninguém vai nos tirar daqui.”
De repente, ouviram as notas tristes do trompete se aproximando cada
vez mais, a melodia triste de “Auld Lang Syne” ecoando em seus ouvidos.
O trompetista tinha descido do palco e andava pelo salão, com as pessoas
atrás dele. Foi assim que Rose deixou o Rainbow Corner pela última vez,
como parte de um enorme e ávido grupo, que saiu do clube para a rua,
onde milhares de pessoas ainda estavam reunidas.
Aquela multidão ergueu suas vozes, cantando.
Os antigos conhecidos deveriam ser esquecidos e jamais relembrados?
Os antigos conhecidos deveriam ser esquecidos e os velhos tempos?
Rose não entendia como podia ser uma daquelas milhares de pessoas e
se sentir tão sozinha.
— Rosie! Rosie, minha querida! Aqui em cima!
Rose passou a mão impaciente pela bochecha, olhou para cima e viu
Mickey Flynn pendurado em um poste de luz.
— Rosie! Suba! Ei, ianque, dê uma ajuda para a garota, por favor.
Antes que pudesse decidir se queria escalar um poste de luz, e assim
todo mundo poder levantar a cabeça e ver seu vestido por baixo, Rose foi
içada no ar. Alguma lembrança nebulosa de como subir em uma árvore,
uma arte perdida de sua infância, veio à tona e ela avançou lentamente
pelo poste até Mickey puxá-la pelos últimos centímetros e ela ficar com
ele na caixa de junção.
Eles estavam muito, muito, muito mais altos do que a multidão. Tão
altos que outra garota e seu companheiro tinham encontrado um lugar
para se pendurar logo abaixo deles. Mickey tinha feito um esforço
especial naquela noite: sua gravata de seda exibia as estrelas e as listras,
mas seu habitual sorriso astuto parecia caído nos cantos.
— Qual é o problema, Mickey? Está desolado porque seu fornecimento
de cigarros americanos vai acabar? — perguntou ela com uma risada.
— Ah, eu não diria isso, Rosie. Onde ainda há um soldado, há um jeito.
— Ele olhou para a multidão ali embaixo. Mesmo estando muito frio
naquela gelada noite de fevereiro, havia tantas pessoas reunidas abaixo
deles, aquele calor todo subindo, que Rose podia sentir o vestido preto
grudar no corpo. — Olhe só para eles. Este é o nosso pedaço de história.
Um dia escreverão livros e farão filmes sobre este lugar. Ninguém
esquecerá o Rainbow Corner.
— É claro que não — concordou Rose. — De qualquer forma, como
andei dizendo, não vão de fato fechar este lugar. Tenho certeza de que
Eleanor Roosevelt quis visitá-lo e acharam que tinham que fazer alguma
coisa importante para ela. Nós todos vamos nos sentir muito bobos
amanhã.
— Talvez você esteja certa.
Mickey não parecia convencido, e Rose já ia lhe dizer todas as razões
pelas quais o Rainbow Corner não poderia fechar quando ouviram um
grito vindo lá de baixo.
Dali, Rose tinha uma ótima visão da frente do Rainbow Corner e,
embora não pudesse ouvir a porta se fechando ou a chave girando na
fechadura, viu e sentiu isso em seu coração.
Ah, e como sentiu!
Rose começou a chorar, porque tinha realmente acabado. Apesar de
tudo o mais que tinha perdido, e ela tinha perdido tanto, Rose sempre
tivera o Rainbow Corner. Sabia que poderia entrar por aquelas portas e
nunca ser mandada embora. Agora haviam fechado as portas duplas,
trancado de vez, e ela não tinha mais nada a perder.
— Não chore, Rosie, minha querida — disse Mickey, mas ela não
conseguia parar de chorar.
Ela tinha passado tanto tempo tentando ser corajosa e forte, e tinha
sido fácil, porque havia sempre um lugar aonde poderia ir para esquecer
todos os seus problemas.
— O que vou fazer agora? Para onde eu vou? Quem vai cuidar de
mim? — Não estava falando com Mickey, mas sim erguera os olhos
lacrimejantes em direção ao céu.
Rose começou a descer pelo poste, deslizando tão rápido por causa das
mãos suadas, que o casal abaixo dela teve de sair também antes que ela
fizesse os dois voarem dali.
Mickey a chamou pouco antes de seus pés tocarem o chão, mas ela
virou e saiu aos tropeços, passando por uma rua, depois outra, até
encontrar um pátio tranquilo e poder afundar ali, com a cabeça entre as
mãos, e chorar por tudo o que tinha perdido.
Ela não sabia por quanto tempo tinha chorado, mas, quando parou,
agora fungando em vez de chorando, percebeu que não sofria pela dor de
tudo aquilo, mas sim porque estava sentada no meio-fio em uma noite
fria de fevereiro e seu casaco ainda estava pendurado no banheiro do
Rainbow Corner. Ia ser muito útil para ela lá. Rose estremeceu, levantou a
cabeça e então viu Edward de pé na entrada do beco.
Foi um choque tão grande vê-lo ali que, por um instante, ela o
confundiu com um de seus fantasmas. Da mesma forma que toda loura
platinada poderia ser Sylvia, toda garota morena e magra poderia ser
Maggie e o sotaque de alguém de alta classe fazia Rose olhar em volta
para ver se Phyllis tinha voltado dos mortos. Mas seus fantasmas eram
apenas fantasmas e Edward ia ao seu encontro naquele momento, com
um sorriso hesitante no rosto.
— Vi você quase quebrar o pescoço ao descer daquele poste — disse
ele, como se a lembrança não fosse algo feliz. — Então vi como estava
transtornada e não queria me intrometer. Se eu estiver...
— Você não está se intrometendo. De forma alguma — retrucou Rose.
Ela deu um tapinha no chão ao seu lado como se fosse um convidativo
sofá macio, e não uma calçada dura. — Pode puxar um banco se quiser.
Ao pensar que Edward a vira chorar, ou gemer, para ser mais exata,
incomodou um pouco Rose, mas não muito. Ele já tinha visto o melhor e
o pior dela, mas ainda estava ali, sentado ao seu lado, tentando puxar o
casaco sobre os ombros dela.
— Não há por que nós dois sentirmos frio — disse Rose. No entanto,
deixou Edward passar o braço em volta dela, para que pudesse se aninhar
nele. — Deus do céu, você me assustou surgindo assim do meio das
sombras, mas, parando para pensar, não estou surpresa por você estar
aqui.
— Pensei em erguer um brinde para o bom e velho Rainbow Corner em
alguma sombria cervejaria alemã, mas não podia deixar de dizer adeus,
por isso estou aqui.
— Mas você vai voltar para lá então?
— Sim. — Ele suspirou. — Tenho que voltar. Entende, não é...
— Certa vez você disse que era impossível dizer não para mim, então
estou lhe pedindo para não voltar para a Alemanha. Para ficar aqui.
Comigo. — Ela olhou para o rígido perfil dele. Um pequeno músculo em
sua pálpebra esquerda pulsou quando ela segurou seu joelho. Os joelhos
dele eram ossudos. — Por favor, Edward. Todo mundo me deixa e não
volta. Eu odeio isso.
Ele balançou a cabeça.
— Tenho que levar isso até o fim. Você não entende? Eu preferiria estar
em qualquer lugar que não a Alemanha.
Rose saiu de baixo do braço dele para poder abraçá-lo. Beijou a testa
dele, as têmporas, então tomou o rosto dele nas mãos geladas para
pressionar os lábios nos dele.
— É muito horrível? — sussurrou ela.
Edward balançou a cabeça de novo, como se não tivesse palavras para
explicar.
— Eu diria que é inimaginável, mas isso seria uma mentira, porque
aconteceu. É por isso que é importante mostrar o que houve. Gritar aos
quatro ventos até que todo mundo saiba.
Rose começou a chorar novamente, embora achasse que não tinha o
direito de chorar quando seu sofrimento era tão irrelevante, infinitesimal
em comparação com o que os outros tinham passado.
— Sinto muito — disse ela.
— Eu também sinto muito. Por favor, não chore mais. — Ele virou a
cabeça para beijar as mãos dela. — Devo lhe dizer algo que vai fazer você
sorrir?
Ela achava que não havia nada que pudesse fazê-la sorrir, mas agora
que Edward estava ali, sendo tão carinhoso e tão brincalhão quando não
se permitira ser nenhuma dessas coisas antes, Rose só conseguia pensar
em quanto sentira sua falta.
— Você pode tentar.
Ele abriu um repentino sorriso travesso.
— Mais cedo fui ao meu clube e um homem do Ministério do Interior
fez questão de atravessar o bar expressamente para me dizer, e vou
repetir suas exatas palavras: “Aquela sua garota é um maldito estorvo”.
Rose deu uma gargalhada.
— Não era o sr. Costello, não é?
— Provavelmente era o chefe do sr. Costello.
— Espero que você tenha lhe dito que o Ministério do Interior e as
milhares de burocracias pelas quais esperam que alguém passe também
são um maldito estorvo!
— Não fiz nada disso. — Ele se afastou das mãos dela. — Rose, está
muito, muito frio e fomos muito bem educados para ficarmos assim
sentados na sarjeta.
Edward se levantou e estendeu a mão. Rose deixou que ele a ajudasse a
se levantar.
— Havia tantas pessoas e, quando eles fecharam as portas do Rainbow
Corner, eu fiquei tão triste. Como se nada de bom fosse voltar a acontecer.
Sei que pareço má por dizer isso, mas sinto falta da guerra. De certa
forma, foi glorioso, não foi? Não foi?
Ela tinha vivido com a incerteza da guerra por tanto tempo e agora
todos os dias pareciam iguais. A vida parecia menor. Os bons tempos não
eram mais árduos, mais rápidos, mais animados em comparação com os
tempos difíceis, que já não tinham a profundidade do desespero e da
depravação. Sem os altos e baixos, Rose se sentia à deriva, como se
estivesse simplesmente caminhando pela água, o horizonte nunca
chegando mais perto ou mais longe. Então, sim, ela sentia falta da guerra.
— A guerra fez de todos nós heróis, não é? — retrucou Edward,
enquanto dava o braço a ela e a conduzia para fora do beco. — Quer
merecêssemos ou não.
Edward, do seu jeito tranquilo, era um herói. Ele tinha salvado vidas,
resgatado viúvas e órfãos, e mesmo naquele momento, enquanto outros
homens penduravam os uniformes, ele vingava as pessoas cujas vidas não
pudera salvar.
— Não sou uma heroína — disse Rose. — Não quando fugi para
Londres pela emoção e pelo glamour e porque não queria ser uma Land
Girl e usar calções de veludo.
— Você teve momentos heroicos. Todos nós tivemos — argumentou
Edward enfaticamente. E talvez ele estivesse certo. Talvez todos eles
tivessem sido heróis à sua própria maneira.
Chegaram, então, a Piccadilly, onde as multidões se dispersavam,
correndo para pegar os últimos trens e ônibus de volta para os subúrbios.
— Podemos ir a algum lugar? — perguntou ela, porque não queria que
sua última lembrança do Rainbow Corner ficasse marcada por lágrimas e
não queria voltar ao apartamento de Edward. Ainda não. — Algum lugar
onde a gente possa dançar.
— E tomar champanhe. O American Bar do Savoy parece apropriado.
Vamos achar um táxi.
Não havia táxis.
— Qualquer um pensaria que estamos em guerra! — disse Rose
enquanto caminhavam pela Coventry Street. — Vai ser estranho não
ouvir mais o sotaque americano quando todos os soldados enfim forem
para casa. Você não parece nem um pouco americano.
— Moro aqui desde os oito anos, então perdi qualquer sotaque que
tivesse no ensino fundamental — explicou Edward. Eles estavam de mãos
dadas agora, e Rose usava seu casaco porque era mais fácil usá-lo do que
discutir se deveria fazê-lo. — Vou ter que voltar a Nova York por um
tempo quando terminar de resolver as coisas na Alemanha.
Rose parou de repente no meio da rua.
— Você disse que voltaria depois da Alemanha. Para mim. Você não
disse que iria embora de novo.
Ele olhou para a mão que ela vinha segurando antes como se não
conseguisse entender por que a havia soltado.
— Bem... Eu pensei, isto é, eu esperava que você fosse comigo.
— Mas há tanto o que fazer aqui. Todas essas pessoas aparecendo e
nenhuma delas está pronta para trabalhar. Eles precisam de um lugar
para ficar, comida e roupas quentes. Como eu poderia ir a Nova York? —
perguntou ela, que não sabia por que estava pensando em razões,
desculpas, obstáculos para impedi-la. Por outro lado, alguém já tinha lhe
prometido o mundo e essa promessa se revelara tão vazia quanto o
coração dele.
Edward se afastou de Rose.
— Seria muito fácil arrumar um assistente para você, mas se está
determinada a ficar, então não vou tentar fazê-la mudar de ideia — disse
ele com rispidez. — Eu estava enganado. Perdoe-me.
Essa era outra coisa que fazia Rose sentir falta da guerra. Como ela
simplificava tudo em sim ou não, branco ou preto, dançar ou ficar
sentada. Tudo era tão mais complicado agora. Não havia mais pequenos
panfletos do governo para lhe dizer o que deveria fazer. Rose não podia
dizer a Edward que o amava, mas sabia que queria estar com ele pelo
tempo que ele quisesse.
— Você ainda não percebeu que muitas vezes digo coisas que de fato
não pretendia? — questionou ela. — Se você puder suportar ficar com
alguém assim, então eu ainda gostaria de ir ao American Bar com você, e
talvez a Nova York — insistiu, e Edward já não parecia tão chateado
quanto antes. Até estendeu a mão para Rose. — Ouvi um boato de que
não há racionamento nos Estados Unidos. Que você pode entrar em uma
loja e o deixam comprar o que quiser. Não posso nem imaginar tal coisa.
— Provavelmente é só um boato cruel. Tenho certeza de que eles têm
de racionar algumas coisas, ou seria até um desrespeito. — Edward ainda
soava um pouco rude. — Além disso, quando voltarmos de Nova York,
vou comprar outra casa. Você gostaria de morar perto do mar, Rose?
— Talvez — disse ela, que não se permitiria dizer mais do que isso.
Primeiro, ele tinha de ir embora de novo e, então, voltar. Depois, poderia
haver uma viagem a Nova York, e só então ela pensaria se gostaria de
morar perto do mar.
— Acho que seria maravilhoso ter uma pequena cabana em algum
lugar em Sussex ou Kent. Morar no campo, mas também perto do mar. —
Edward olhou de lado para ela. — Quando estou em meu árido quarto de
hotel em Nuremberg, lendo depoimentos de testemunhas, fecho os olhos
e penso em nós dois sentados em um jardim inglês no campo, com
macieiras e roseiras de todas as cores que você poderia pensar. Posso
ouvir o canto dos pássaros e, por baixo disso, o som das ondas batendo na
costa. Tem que haver um jardim como esse em algum lugar na Inglaterra,
não é?
Edward sorriu timidamente como se não tivesse pretendido falar tanta
coisa, mas Rose estava feliz por ele tê-lo feito. Passavam agora pela
estação de Charing Cross. Logo chegariam ao Savoy.
— Senti sua falta — disse ela. — Estou tão feliz que tenha voltado.
36

— Senti sua falta — disse Rose a Leo na manhã seguinte. — Estou tão
feliz que tenha voltado.
— Também senti sua falta, Rose. — Com muita delicadeza, ele
levantou a mão sem a cânula e beijou o pulso direito dela, onde a
pulsação um dia deveria ter batido em ritmo frenético, mas agora estava
bem fraca. Ela cheirava a algo um pouco maduro demais, como flores um
dia antes de definharem. — Queria que voltássemos a ser amigos.
Ela sorriu. E bateu desajeitadamente de leve no rosto dele.
— Senti tanto a sua falta. Prometa que não vai embora de novo.
— Eu não vou.
A culpa o corroía. Era por isso que ele pagava penitência agora ao seu
lado e ficara ali durante todo o turno da noite, porque no dia anterior não
tinha aparecido. O dia anterior tinha sido terrível. Provavelmente não tão
terrível quanto para Jane, que ficara horas sentada ao lado de Rose e que
deixara o quarto dela parecendo que escapara por pouco de uma colisão
com um caminhão de dez toneladas, mas ainda assim fora muito ruim.
Rose estava muito fraca agora. Semanas tinham se tornado dias e os
dias se reduziam a horas. Horas que ele tinha desperdiçado indo a
Leytonstone com George em um dia em que o Leyton Orient estava
jogando em casa. Eles estavam no metrô, quando George de repente
dissera:
— Nós concordamos que, quando Rose estivesse perto do fim, ela não
iria me ver. Achamos que seria cruel demais para nós dois. Mas o fim
chegou depressa demais e eu não tive chance de lhe dizer adeus.
Então George tinha chorado de novo e, embora o trem estivesse lotado
de homens, toda aquela testosterona à sua volta, Leo pegara a mão de
George, desafiando-os a falar alguma coisa.

No entanto, quando chegaram ao depósito de arte, a mulher na recepção


se recusara a deixar Leo entrar sem dois documentos de identificação e
uma autorização assinada. Ela não se importara que Leo não tivesse
muito mais tempo.
Ele gritara com ela. Depois a xingara. Então chorara quando George o
levara para um canto e dissera:
— Meu rapaz, pare de causar tanta comoção. Posso autorizar a nossa
entrada.
Se Leo tivesse parado para pensar sobre isso, então teria imaginado
que George era o curador de Rose.
Agora a pintura estava encostada na parede do quarto, mas,
independente de aquela obra simbolizar que o abismo entre eles estava se
fechando, Leo não podia devolvê-la a Rose. A beira do penhasco, o mar
escuro — era presciente demais. Ele queria chorar de novo.
Isso talvez se devesse ao fato de estar sem o álcool e as pílulas. Ele não
estava mais entorpecido, tinha de sentir tudo.
Então ouviu uma suave batida na porta. Agnieska, prestes a terminar o
turno da noite, e Neta, que ficaria com o da manhã, estavam ali para
recarregar a bomba, verificar a pressão e a temperatura de Rose, trocar a
roupa de cama e “deixar a srta. Beaumont um pouco mais confortável”.
Era um velho clichê banal, mas havia certa verdade em “Viva
intensamente, morra jovem, deixe um cadáver bonito”, pensou Leo ao sair
do quarto, embora não tivesse certeza se ele se qualificava. Fora a parte
de viver intensamente. Deus do céu, com certeza ele tinha feito isso.
— Bom dia, querido. — Jane subia lentamente a escada com uma
bandeja cheia. — Achei que você estaria pronto para o café da manhã.
Ela o alcançou e deixou a bandeja numa mesa que tinha sido colocada
em frente à suíte de Rose, com duas poltronas, e os dois tomaram o café
da manhã juntos. Houve um momento tenso em que Jane lhe
repreendera por deixar migalhas na manteiga, mas ele encontrou
conforto naquela situação trivial.
— Deus, agora me sinto mal em saborear uma torrada com geleia,
acompanhadas de um chá quentinho.
Jane parou com a faca na geleia de framboesa.
— Já não sei mais como eu me sinto — disse ela, segurando uma
torrada de Lydia como prova. — Estou compensando na comida.
— Bom dia. — Os dois viraram para cumprimentar o dr. Howard, que
abriu a porta da suíte de Rose apenas o suficiente para entrar, então a
fechou. Como se todos os tipos de rituais misteriosos estivessem se
desenrolando lá dentro.
— Ela estava acordada? — Jane baixou a voz para um sussurro, como
se qualquer coisa mais alto pudesse passar pelas paredes.
— Não por muito tempo, mas disse que sentiu minha falta e que estava
feliz por eu estar de volta. — Deus, ele estava à beira das lágrimas de
novo. — Não tem como lhe explicar como isso foi importante para mim.
— Ele baixou ainda mais a voz. — Mesmo que ela parta hoje, eu tive esse
momento.
Jane pegou a mão dele, os dedos sujos de geleia, e Leo levou-a aos
lábios, como fizera com Rose, e beijou os nós dos dedos de Jane. A pele de
Jane estava aquecida pelo chá e pulsando de vida.
— Ela falou muito ontem — disse Jane. — Sobre o passado,
principalmente, mas também que, quando estiver pronta, quer que nós
dois estejamos lá com ela. Também disse ontem que estava muito
contente por você ter voltado.
Jane era uma grande mentirosa. Leo tinha certeza de que poderiam
ligá-la a todo tipo de aparelho e ela nunca se trairia. Por outro lado, Rose
lhe dissera exatamente a mesma coisa, então as duas não podiam estar
mentindo.
— Olhe, essa coisa entre nós, eu sei que é complicado, mas estou feliz
que você tenha ficado. Não sei como eu teria enfrentado tudo se você não
estivesse aqui.
— Você teria se saído muito bem — disse Jane. Isso era uma mentira e
os dois sabiam. — Querido, há alguma chance de devolver minha mão
para eu poder tomar o chá e comer a torrada ao mesmo tempo?
— Então você prefere tomar chá do que segurar minha mão? —
perguntou a Jane, porque sentia aquela vibração entre eles novamente.
— Deus do céu, você é uma patife sem coração.
Ela fez beicinho.
— Não sou, não, querido. Só estou com muita fome.
Ele soltou a mão dela.
— Aí está. Ela é toda sua de novo.
— Deixe só eu terminar a torrada e então você pode segurá-la de novo
— prometeu ela, como se não fosse sua esposa, mas uma garota bonita
com quem ele estava flertando em um bar.
Se eles ficassem casados por cinquenta anos, tomassem café da manhã
juntos todas as manhãs, ele inevitavelmente deixaria de prestar atenção
em Jane ou sempre flertaria com ela como se fosse uma garota bonita que
acabara de conhecer em um bar? Valia a pena parar para pensar nisso.
— Desde que você limpe a geleia e a manteiga dos dedos primeiro —
disse ele com um sorriso. — Você está meio grudenta.
— Estou — concordou Jane e chupou os dedos ofensivos, sorriu ao
redor deles quando Leo ergueu as sobrancelhas e...
— Deus! Faça isso parar! Faça isso parar! Faça isso parar!
A voz assustada, choramingando, era alta o suficiente para atravessar
as paredes.
Leo congelou numa agonia de indecisão. Eles deveriam entrar? Iriam
ver algo que não deveriam? Comprometeriam a dignidade de Rose?
Havia tantas razões para ficar ali sentado e não fazer nada...
Então um lamento agudo e estridente fez os dois entrarem depressa no
quarto, onde Rose estava apoiada entre Neta e Agnieska, empacada a
caminho do banheiro. O cabelo branco caído sobre o rosto distorcido de
dor, as mãos agarrando o nada, enquanto até mesmo o dr. Howard
parecia impotente.
Foi preciso que os cinco ajudassem Rose a voltar para a cama, já que cada
movimento, cada toque, até mesmo o deslocamento de ar contra sua pele
a fazia gemer.
Quando Rose recuperara algum controle sobre seu corpo desleal e já
não estava mais fazendo aqueles sons terríveis, Jane tomou coragem para
se aproximar da cama e pegar as mãos dela.
— Querida, você está bem. Tudo vai ficar bem.
— Não estou — insistiu Rose. — Faça alguma coisa. Mande essa dor
embora. Faça isso parar! Faça isso parar! Faça isso parar!
Ela deveria estar pronta agora. Então por que estava lutando tanto?
— Dê alguma coisa a ela — bradou Jane para o médico. — Ela não
deveria estar com tanta dor.
Leo entrou no coro.
— Sim. Faça alguma coisa.
Dr. Howard assentiu.
— Você tem certeza?
Ele estava olhando direto para Leo, que sustentou o olhar e assentiu de
volta.
— Certeza absoluta.
Então Leo virou para olhar para Rose, embora a cabeça dela estivesse
abaixada e ela continuasse falando “Faça isso parar! Faça isso parar! Faça
isso parar!”, baixinho, como um mantra.
Jane observou o médico dizer a Neta para injetar algo direto na cânula
nas costas da mão de Rose. Pareceu levar um longo tempo até Rose se
acalmar, então cochilar e Neta poder rearrumar os travesseiros e puxar as
cobertas para cima quando ela enfim dormiu.
Jane ainda sentia aquele medo terrível de que Rose pudesse estar
sentindo toda a dor, mas estivesse presa em um torpor induzido pelos
remédios e não conseguisse avisá-los.
Contudo, ainda assim todos eles fingiam que Rose estava apenas
dormindo, embora o dr. Howard tivesse dito que os rins dela agora
estavam parando.
— Se houver alguma mudança, me ligue — murmurou ele antes de
sair. — Pode levar horas, ou dias.
Ele vinha dizendo isso pelo que pareciam ser semanas. A morte não
cumpria uma programação. Assim que o médico descera as escadas, Leo
virou para Jane, que estendeu os braços para que ele pudesse se
aconchegar neles.
— Vamos enfrentar isso, Leo — disse ela bruscamente. — Porque Rose
precisa de nós e não queremos deixá-la na mão.
— Não venha bancar a durona comigo — resmungou ele, mas beijou a
bochecha dela e, pelo menos, ainda estava disposto a fazer piadas, mesmo
que não fossem boas.
A vigília continuou. Neta foi banida para a cozinha, mas subia a cada
hora, junto com Lydia, que trazia chá e sanduíches, ou chá e bolo, ou
apenas chá, para ver como Rose estava.
Rose dormia, com a boca aberta enquanto seu corpo tentava liberar as
toxinas que os rins não conseguiam processar. Sua respiração ofegante se
somava ao ruído ambiente que vinha da cama e da bomba e o barulho do
jogo do celular de Leo, que era irritante, mas Jane não tinha energia para
lhe dizer que era irritante. Era exaustivo ver alguém morrer.
Ela acabou descendo para jantar e então ficou tremendo do lado de
fora da casa, diante da porta da cozinha, enquanto ela e Lydia tomavam
uma taça de vinho e Lydia fumava um cigarro, soprando a fumaça de um
lado da boca como uma heroína mordaz de um filme preto e branco.
Depois Jane subiu correndo, com medo de que Rose pudesse ter
falecido em sua ausência. De que a busca por ar tivesse diminuído aos
poucos e então simplesmente parado. Sem confissões no leito de morte.
Sem últimas palavras. De que ela simplesmente tivesse partido.
Mas ela ainda não estava pronta. Katya rendeu Neta. E Agnieska
rendeu Katya. Jane dissera a Leo para ir para a cama dormir um pouco,
mas ele estava esparramado na cadeira ao lado da dela, respirando
pesado, e de vez em quando adormecia por tempo o bastante para roncar
tão alto que acabava acordando com um grito assustado:
— Eu não estava dormindo.
Toda vez que isso acontecia, Jane ria. Leo riu também quando lhe disse
que não queria que a última coisa que Rose ouvisse fosse Jane
mastigando, enquanto acabava com um saco de batatas chips.
Eles se revezavam para umedecer os lábios de Rose com os swabs de
espuma mergulhados em água gelada. E até jogaram “eu espio com os
meus olhos” a certa altura, mas agora Agnieska estava ali para fazer sua
checagem e dizer que a pressão de Rose estava baixa, mas sua pulsação,
firme, e Leo estava dormindo. Ele não roncava mais, só ficou encolhido o
máximo que podia na cadeira, e só Jane vigiava Rose.
Era muito solitário. Jane se perguntou por que os alemães com suas
estranhas palavras formadas pela combinação de outras duas não tinham
uma para descrever o clima lúgubre que se instalava à sua volta entre três
e cinco da manhã, quando você e o moribundo eram os únicos acordados.
— Rose? — sussurrou ela, porque os olhos de Rose estavam abertos e
fixos nela. — Você está bem?
— Estou pronta. Todos estão esperando por mim, mas eu não posso ir...
— Por que não? — Jane se perguntou se aquilo era um sonho estranho.
Ela checou de várias maneiras, até se beliscou, mas, não, era sorte sua
ainda estar acordada. — Querida, nós já conversamos sobre isso. Você
não precisa ficar se estiver pronta, você pode ir.
— Eu não consigo. — Jane só conseguia entendê-la porque o quarto
estava muito silencioso. — Estou presa.
— Você consegue ver uma luz? Pode ir em direção a ela? — Pelo amor
de Deus, do que ela estava falando? Não havia luz. Nem céu. Nem
inferno. Nada.
— Me ajude. Não posso mais continuar. Não. Faça isso parar! Faça isso
parar! Faça isso parar!
— Está tudo bem, querida. Estou aqui.
— Você disse que me ajudaria quando chegasse a hora. Agora. É agora.
Jane não tinha percebido que era com isso que havia concordado
quando prometera a Rose que estaria ali no final. Ou talvez tivesse,
porque Jane não estava atormentada com relação ao que deveria ou não
fazer. Já estava olhando ao redor do quarto iluminado para ver o que
poderia usar para ajudar Rose a seguir seu caminho. Uma almofada
parecia ser a melhor opção, mas e se Rose não estivesse de fato pronta? E
se ela se debatesse? Se lutasse? Então isso não serviria. Seria outra coisa,
algo que Jane não tinha certeza de que poderia fazer.
Mas era o que Rose queria, o que tinha planejado.
— O champanhe e as pílulas? Você quer isso, Rose? Você consegue
engolir?
— Faça isso parar! Faça isso parar! Faça isso parar! Faça isso parar! Ah,
por favor. Por favor. Faça isso parar!
Se Rose estava presa ali, então não iria a lugar algum, e Jane pôde sair
do quarto sem fazer barulho e caminhar em silêncio pela casa. Fumou
um dos cigarros de Lydia enquanto escolhia com calma uma garrafa de
champanhe da enorme adega climatizada, um Dom Ruinart de 2002, não
o mais caro, mas provavelmente o melhor. Então voltou para o quarto de
Rose, para o banheiro, onde as enfermeiras e até o dr. Howard tinham
sido desleixados e tirado um pacote de comprimidos do cofre verde de
remédios, deixando-o destrancado.
A seu favor era preciso dizer que ela pensara em fugir, pensara de novo,
depois voltara para o quarto de Rose.
— Onde você estava? — perguntou Leo com a voz rouca. Não era para
ele estar acordado. — Champanhe? Sério?
— É para Rose, não é, querida?
Os olhos de Rose estavam abertos, mas ela murmurava indistintamente
e parecia assustada. Ela estava determinada a tornar aquilo o mais difícil
possível.
— É gentil da sua parte, mas, se ela não consegue engolir água, então
como é que vai tomar champanhe?
Jane vinha se perguntando isso também. Em como faria Rose engolir
três ou quatro, até mesmo cinco ou seis comprimidos de temazepam sem
que ela lutasse. Era com isso que ela mais se preocupava. Mas, agora que
Leo estava acordado, essa era outra preocupação.
Uma coisa de cada vez. Ela ignorou Leo quando deu a volta na cama,
então sentou do outro lado e pegou a mão de Rose.
— Querida, você ainda quer partir?
Rose deixou escapar apenas murmúrios sem sentido. Jane se
perguntava por que era tão difícil morrer, embora já soubesse a resposta,
quando então Rose disse muito claramente:
— Eu quero partir. Não posso mais suportar. Me ajude. Agora.
Leo respirou fundo.
— Basta fechar os olhos e dormir. — Ele estava tremendo, as lágrimas
prestes a caírem. — Você pode ir. Está tudo bem.
— Querido, ela não precisa da sua permissão, ela precisa de ajuda.
Minha ajuda. Rose e eu conversamos sobre isso. Eu prometi a ela.
Rose estava lá deitada, os olhos correndo entre eles.
— Faça isso — disse ela. — Me ajude.
— Você não pode. Ela não pode, Rose — disse Leo, suplicante. — É
errado.
— Mas você ouviu o que o médico disse no outro dia sobre... — Sobre
pacientes com câncer em estado terminal receberem uma dose suficiente
de remédio para não sofrerem com a devastação final. Como ela poderia
dizer aquilo com Rose ali? Então, Jane agarrou Leo pela manga do suéter
e puxou-o para o canto. — Cale a boca! — sussurrou ela. — Se eu não
fizer isso, ela vai passar um dia, talvez três ou quatro dias, até mesmo
uma semana sentindo dor. Numa agonia fodida, Leo. Ela vai morrer de
qualquer jeito.
— Você não tem como saber. E se ela fosse morrer na próxima hora?
Então você teria a morte dela na sua consciência sem necessidade.
Ele tentou segurar o rosto dela, mas Jane puxou a cabeça para trás. Ela
estava bem, desde que Leo não a tocasse.
— Querido, não tenho tanta consciência assim para isso ser um
problema. — Jane fez suas palavras soarem o mais diretas e duras que
podia. Como um diamante.
Afinal, era verdade. Fora por isso que Rose quisera que ela ficasse.
Talvez estar tão perto da morte tenha lhe dado clareza, Jane não tinha
certeza. Tudo o que sabia era que Rose podia ver além de todo o falso
glamour e elegância, além de toda aquela besteira, a sórdida verdade de
quem Jane era de verdade.
Se Rose precisava de um carrasco, então Jane era a sua garota.
— É a coisa certa a fazer — disse ela a Leo, que já não tentava segurá-
la, mas a olhava com repulsa, o que ela merecia. Ela fez por merecer. —
Rose viveu a vida exatamente como queria. Ela tem o direito de decidir
como e quando quer acabar com ela. Você tem que respeitar isso.
— Você nem a conhece! — retrucou Leo taciturno enquanto sentava e
a observava tirar os comprimidos da embalagem.
— Mas Rose me conhece. — Jane olhou para os comprimidos em sua
mão, depois para Rose, que olhava para ela. Não alerta, mas presente. —
Rose, querida, você acha que consegue engolir essas pílulas?
— É claro que ela não consegue! — Leo parecia prestes a explodir. —
Caralho, eu nunca vou perdoá-la por isso.
— Não se trata de você, Leo — disse Jane, distraidamente. — Rose?
Você consegue tomar um dos comprimidos?
Ela queria que Rose estendesse a mão, pegasse as pílulas e as colocasse
na boca. Assim, Rose seria a única responsável. Seria a mão dela. Jane
seria isenta do último passo.
— Eu não consigo. Me ajude.
Ela podia triturar os comprimidos, misturá-los no champanhe, segurar
as costas da mão de Rose e virar a mistura em sua garganta. Jane podia
fazer isso. Quantas vezes já tinha feito isso quando tentava convencer
Rose a tomar um pouco de água?
— Vou dissolvê-los no champanhe e, então, você só precisa beber.
Leo não disse nada, talvez porque estivesse beijando a testa de Rose,
ajeitando os fios soltos de seu cabelo, enquanto os dois observavam Jane
tentar triturar quatro comprimidos entre duas colheres de chá. Ela fez um
péssimo trabalho. Então abriu o champanhe com um estouro que soou
inadequadamente eufórico e colocou um pouco no copo com os
comprimidos esmagados, depois mexeu para misturar. Logo os farelos de
remédio se misturaram ao champanhe, transformando-se numa pasta
branca grudenta.
Ela poderia dar aquela mistura para Rose numa colher. Havia uma
linha muito tênue entre ajudar uma pessoa com o seu último desejo e
matá-la — mesmo que você a matasse por bondade.
Ela prometera a Rose, mas nos últimos tempos Jane tinha parado de
fazer promessas que não podia cumprir.
— Tudo bem — sussurrou ela. Então pegou o copo e a colher e deu os
quatro passos até a cama. — Vou colocar isto na sua boca, querida, e
depois lhe dar um pouco de champanhe para ajudá-la a engolir.
Rose piscou, então assentiu. Pelo menos Jane achou que tinha
assentido. Talvez estivesse vendo apenas o que queria ver.
— Rose, querida? Preciso ter certeza de que é isso que você quer.
— Faça. — Rose mais mexeu os lábios do que falou de fato. — Agora.
Por favor.
— Tem certeza? — perguntou Leo. — Você não consegue
simplesmente partir?
— Faça.
— Vá em frente, então — disse Leo. Dessa vez, quando Jane olhou em
seus olhos, ele assentiu.
Jane olhou para o conteúdo do copo, depois raspou um pouco da pasta
na colher. Levaria umas cinco colheradas para ela engolir tudo. Cinco
vezes que Jane teria de levar a mistura à boca de Rose. Cinco vezes que
teria de inclinar a cabeça dela e fazê-la beber. Cinco vezes. Cinco vezes
era muita coisa. Cinco passos longos demais — até mesmo para Jane.
Ela se virou e deixou a colher cair no chão.
— Sinto muito, eu não posso fazer isso. Simplesmente não posso.
— Está tudo bem — disse Leo. Ele deu outro beijo na testa franzida de
Rose. — Eu posso. Eu farei isso.
37

Lullington Bay, 1974

Era uma bela noite de setembro, o verão determinado a estender sua


estadia. Eles sentaram no jardim, que era uma gloriosa profusão de cores
e aromas, apesar de as rosas — às quais eles acrescentavam novos
exemplares a cada ano — terem florescido em junho e agora já fazer
muito tempo que não abriam mais botões.
Ainda assim, havia flores suficientes para as abelhas, cheias de pólen,
dançarem preguiçosamente entre as pétalas. Pássaros circulavam no alto
e, se Rose prestasse atenção, poderia ouvir o fraco som do mar batendo.
No passado, eles arrastavam espreguiçadeiras pelo jardim e as dunas
até a praia, mas agora Edward só conseguia fazer a curta caminhada da
casa até a pequena área com sombra no jardim onde gostavam de sentar.
Edward só tinha mais algumas semanas pela frente, embora nenhum
dos dois soubesse disso. Ele tinha uma cirurgia marcada para meados de
outubro — e eles já haviam começado a planejar o Natal em Palm
Springs.
Mas não importava onde estivessem, e àquela altura Rose achava que
já deviam ter dado a volta ao mundo pelo menos duas vezes, às seis era
hora de uma parada para uma bebida.
Em aniversários e ocasiões especiais, eles tomavam bellinis, mas
naquela noite era um gim-tônica. Rose girou o gelo em seu copo, olhou
para o jardim, depois para Edward, seu rosto de perfil, e se sentiu em paz.
Ela estava onde era mais feliz e com a única pessoa que a fazia ainda mais
feliz.
— Eu te amo, Edward. — Era a mais simples das verdades, mas ela
nunca dissera isso antes. Nem tinha percebido. Seu amor por ele tomara
conta dela aos poucos, infiltrara-se até o âmago do seu ser, e ela estava
tão acostumada com aquele sentimento ali, que nunca pensara em lhe
dar um nome. — Eu te amo há tanto tempo e não lhe disse isso uma
única vez.
Ele virou a cabeça e sorriu para ela. Ela lhe lembrava várias vezes que
ele era um papa-anjo — “Você é muito, muito mais velho do que eu” —,
mas agora era como se os anos e a doença dele tivessem desaparecido e
ela pudesse vê-lo como era na noite em que o Rainbow Corner fechou.
Quando ele dançara com ela no Savoy e não parara de pedir desculpas
por pisar nos seus pés. Ele ainda era terrível nisso.
— Eu também te amo, minha querida — disse ele tão natural e
facilmente quanto se dissesse isso o tempo todo, embora não dissesse, não
desde aquela noite em que ela desdenhara do seu “eu te amo”.
Talvez também fosse por isso que ele nunca lhe pedira em casamento,
não que Rose se importasse. E uma prova de que seus pais haviam
adorado Edward era o fato de nunca terem se ressentido disso também.
Casamento não era algo que eles discutiam. Nem filhos. Ou a exata
natureza do trabalho dele na época da guerra.
Havia tantas coisas não ditas entre os dois, mas no final isso não
importava. Desde que dissessem o que era de fato importante pelo menos
uma vez.
— Vou lhe dizer que eu te amo todos os dias agora — decidiu ela. — Às
vezes até duas ou três vezes.
— Nós somos dois velhos tolos, não somos?
Edward suspirou, e então Rose levantou da cadeira e sentou muito
suavemente em seu colo para poder beijá-lo.
A pele dele estava quente sob seus lábios e mãos, e ela ficou ali
sentada, com os braços dele envolvendo-a, ouvindo o barulho do mar. Ela
poderia alegremente ter ficado assim para sempre.
38

Leo pegou a colher do tapete e o copo da mão de Jane e foi até o banheiro,
onde lavou os dois devagar e com cuidado.
Ele não sabia por que Jane tinha se dado a todo aquele trabalho. Havia
morfina líquida em frascos dando sopa bem ali. Rose não conseguiria
mesmo cambalear até ali sozinha e nenhuma das caras enfermeiras da
agência sabia do histórico de Leo com as drogas.
Leo pegou dois dos frascos e uma seringa e abriu sua embalagem
esterilizada. Então voltou ao quarto.
A princípio, ele não viu Rose. Tudo o que pôde ver era um vestido azul-
claro troncho, meio chamuscado e amarelado, estendido à frente dela,
que descansava uma das mãos sobre o corpete.
E viu Jane, o braço em volta de Rose, gentilmente acariciando-a.
Naquele momento, Leo amou Jane. Ele podia ver que ela estava com
medo de chegar muito perto de Rose e daquele cheiro doce e enjoativo de
lírios em decomposição. Com medo de tocar Rose — não porque não
quisesse machucá-la, mas talvez porque a morte pudesse ser contagiosa,
mas ela a tocava mesmo assim.
Leo sentou na cama. Enfiou a seringa no selo plástico do primeiro
frasco, depois do segundo. Puxar o êmbolo mais para trás, dar uma leve
batidinha, verificar se há bolhas de ar, empurrar o êmbolo de volta para a
posição. Algumas coisas você nunca esquece.
— Não há por que ter medo — disse Jane, e Leo não soube se ela
estava falando com ele ou Rose, que estava muito quieta, só os seus lábios
se movendo quando aspirava pequenas porções de ar.
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Leo.
Rose não respondeu a princípio. Então seus dedos, que descansavam
sobre a parte central do vestido queimado, levantaram-se.
— Tive uma vida maravilhosa — disse ela, e fechou os olhos. — Tem
sido ótimo, de verdade, mas agora preciso voltar para os meus amigos.
No final, foi simples. Ele se deitou de frente para Rose, mas olhando
para Jane, que olhou de volta para ele, firme e segura. Então Leo injetou a
seringa na cânula. Rose respirou mais duas vezes com dificuldade,
inspirou de novo e então parou.
Leo queria poder dizer que, naquele momento, sentiu a alma de Rose
deixar o corpo, mas não sentiu. A mão dele repousava em Rose; e a mão
de Jane, em cima da dele.
Depois de um tempo, embora Leo não soubesse dizer exatamente
quanto, ouviram uma batida na porta.
— Posso entrar? — perguntou Agnieska.
— Só um minuto — gritou Jane, enquanto Leo fechava os dedos em
volta do pulso de Rose, a pele dela perdendo o calor, mas não fria ainda.
Carne flexível, mas também resistente.
— Ela se foi — disse ele. Rose parecia uma cópia enevoada de si
mesma. Ela estava sem alma; aquele magnífico espírito inquieto. Sem
vida. Ele não queria se lembrar dela daquele jeito, então tirou a mão e
saiu da cama. Caminhou até a porta. Abriu. — Ela se foi — disse ele de
novo. — Você poderia acordar Lydia e depois chamar o médico?
— Sinto muito pela sua perda. — Agnieska nem sequer espiou pela
porta aberta, apenas se afastou rapidamente.
Leo não conseguia olhar para Jane ou para a cama. Foi até o banheiro,
lavou o rosto e as mãos com água fria e, quando terminou, Lydia estava
ali em um roupão lilás, o rosto franzido, chorando.
— Ah, minha querida. Minha Rose. — Lydia soluçava, os braços
apertados em torno da barriga.
Leo se perguntou se Jane tinha morrido também, porque ela estava
imóvel, mas, quando Agnieska se aproximou da cama, ela rolou para
longe do corpo e se levantou. Lydia caminhou em direção aos braços dela,
e Jane a acalentou, procurou aquietá-la, mas se recusou a olhar para Leo.
De repente, o celular de Agnieska tocou e, quando ouviu as notas
iniciais de Carmina Burana soarem, Leo riu. Tinha certeza de que Rose
teria rido também, embora fingisse ficar muito irritada. Se havia vida
após a morte, então aquele era o tipo certo e portentoso de fanfarra para
anunciar a chegada de Rose aos portões do céu.
Agnieska parecia afrontada.
— O dr. Howard chegou e não tem ninguém para abrir-lhe a porta —
disse ela ressentida.
Tudo correu tranquilamente depois disso. Leo esperou do lado de fora
do quarto enquanto Agnieska e o médico faziam o que quer que tivessem
a fazer. Então a porta se abriu e Leo estava pronto.
— Posso falar com você um minuto? — disse ele, então levou o dr.
Howard ao banheiro e pegou os frascos vazios. — Tenho que lhe contar
uma coisa. Eu...
Dr. Howard, elegantemente vestido, embora fossem apenas seis da
manhã, levantou a mão para calar Leo.
— Já assinei o atestado de óbito. Não deve haver necessidade de
autópsia. Não quando eu já a tinha visto ontem e, bem, isso era esperado.
— Mas eu...
— Só fique agradecido por você ter estado com Rose no final. Tenho
certeza de que foi imensamente reconfortante para ela. — O médico
trocou a maleta de mão. — Deixei um formulário para você entregar
quando for registrar o óbito. Os agentes funerários irão ajudá-lo com todo
o resto. — Ele parecia estar recitando falas. — Por favor, me ligue se você
precisar, mas, no que me diz respeito, está tudo em ordem, Leo.
Parecia que seu mundo estava oscilando à beira do caos.
— Mas... Não... Você tem certeza?
— Certeza absoluta. Pode deixar que eu saio sozinho. — Leo observou
o dr. Howard atravessar o quarto, passar pelo corpo, e então parar à porta.
— Sinto tanto pela sua perda. Rose... A srta. Beaumont, ela era realmente
uma mulher incrível. Vou sentir sua falta mais do que posso dizer.
Agnieska entrou no banheiro para guardar o equipamento médico, e
Leo desceu para a cozinha, onde Lydia, ainda de roupão, ainda fungando,
estava sentada junto à bancada. Frank pairava ansiosamente por perto.
— Chamei os agentes funerários — disse ele. — O que mais posso
fazer?
Não havia mais nada a fazer, além de tomar chá, fumar todos os
cigarros de Lydia, embora ela ainda afirmasse que só fumava socialmente
como falava desde que Leo a conhecia. Em seguida, com suspiros e passos
pesados, ela e Leo subiram de novo.
Nenhum deles olhou para a cama. Lydia foi direto para o closet e ele a
seguiu cegamente.
— Rose deixou instruções específicas. Não queria caixão aberto. Tem
um vestido que ela queria que... — Lydia não conseguiu terminar a frase.
Leo pousou as mãos em seus ombros trêmulos. — Não, eu estou bem.
Você acha que devo trocar a roupa dela agora?
— Não — respondeu Leo, porque Lydia não conseguiria cuidar disso
sozinha e ele não poderia ajudá-la. Rose não iria querer isso. — Vamos
deixar o vestido com os agentes funerários.
— Mas seu cabelo... ela odiaria que não arrumassem seu cabelo. —
Lydia virou e enterrou o rosto no peito de Leo e, quando ele fechou os
braços em torno dela, o corpo de Lydia foi sacudido pela força dos
soluços.
— Bem, pergunte ao cabeleireiro dela se eles podem mandar alguém
para a funerária. Vai ficar tudo bem, Liddy — disse Leo. De alguma forma
ele sabia a coisa certa a dizer sem ter que pensar sobre isso.
Os agentes funerários chegaram. Eles estacionaram o carro preto
diante da porta da frente, porque Leo não queria que Rose saísse
furtivamente pelos fundos. Lydia, Frank e Leo viram o corpo (coberto por
um lençol branco, porque ele também não permitiria que colocassem
Rose em um saco preto de defunto) ser levado embora e então passar de
carro ao redor da praça que ela tanto amava.
Eram sete e meia. Como poderia ser apenas sete e meia?
— Preciso registrar o óbito — disse ele, mas ainda tinha duas horas até
poder fazer isso, então voltou para a cozinha com Frank e Lydia, os três
em um estado de limbo. Não pelo choque, mas pela incerteza, porque
Rose se fora e ela ditara o ritmo de seus dias e, sem ela, eles não sabiam
bem o que fazer.
Lydia colocou a chaleira no fogo, mas Frank disse:
— Chega desse maldito chá. Vamos tomar uma bebida adequada.
Leo esperou Jane dizer “Champagne, querido. É o que Rose teria
desejado”. Foi então que percebeu que Jane não estava ali.
— Onde Jane está? — perguntou.
— Jane? Ela está por aí, não está? — Como Lydia olhava para os
saquinhos de chá e o leite como se não tivesse a mínima ideia do que
fazer com eles, Leo não ficou surpreso em ver que ela não se lembrava de
quando vira Jane pela última vez.
— Provavelmente voltou para a cama — disse Frank. — Quando
minha mãe morreu, meu pai dormiu quase uma semana inteira.
Jane não estava em nenhum dos cômodos do térreo. Ele não entrou de
novo no quarto de Rose, mas parou à porta, e isso foi o suficiente para ver
que Jane não estava lá.
Então entrou em seu quarto — não, no quarto deles. Estava vazio.
Havia uma toalha pendurada no encosto de uma cadeira. O celular e a
bolsa dela estavam jogados na cama, então ela não poderia ter ido longe.
Mas Leo não sabia exatamente aonde ela fora até ouvir seu choro.
Ele nunca tinha ouvido um choro assim. Como se estivesse sendo
arrancado dela contra a vontade. Como se ela estivesse presa em uma
batalha contra a própria dor.
— Jane? Onde você está?
Houve um instante de silêncio e então outro daqueles gritos sofridos,
mais terrível do que qualquer coisa que tinha ouvido de Rose, vindo de
baixo da cama.
Ele se agachou. Ela estava toda curvada, o cabelo no rosto, as mãos
segurando o cabelo.
— O que você está fazendo aí embaixo? Saia daí. — Jane não falou
nada. Leo pensou em empurrar a cama para trás, mas não queria
perturbar o pequeno casulo que ela fizera, então, em vez disso, estendeu o
corpo no chão. — Sei que foi terrível o que aconteceu com a Rose. Nem
posso lidar com isso direito, mas ela estava sentindo dores terríveis e
agora não está mais. Você tomou a decisão certa.
— Cale a boca — disse ela com voz rouca. — Cale a boca. Não seja
bom comigo. Eu não mereço. Eu sou repugnante. Sou um monstro. O pior
de todos.
— Não, você não é — retrucou Leo, porque ela não era. Ela era um
monte de coisas, mas não era uma má pessoa. Ele conhecia pessoas ruins,
e Jane não chegava nem perto de ser como elas.
— Ah, Leo, me desculpe. Eu sinto muito.
— Você não tem do que se desculpar.
— Você não sabe da missa um terço. — Sua voz estava rouca por ter
chorado tanto tempo no escuro. — Eu é que deveria ter feito aquilo. É por
isso que Rose me queria lá no final. Ela me conhecia. Ela sabia das coisas,
sabia de tudo.
— Nem tudo. Só porque era velha, isso não fazia dela um ser
onipotente, que tudo sabe e tudo vê. Alice Neel era sua artista favorita.
Então é óbvio que Rose não era alguém que sabia de tudo.

— Ela sabia como eu realmente sou sem que eu tivesse que dizer uma
única palavra.
Leo ainda não tinha empurrado a cama e puxado Jane para fora,
expondo-a à luz. Estava só ali deitado, olhando para ela com
preocupação, e não reprovação. Isso estava prestes a mudar.
— E como você realmente é? — perguntou ele.
Deus, ela não podia mais conter aquilo. A verdade estava vazando,
derrubando os muros que Jane tinha construído com tanto cuidado.
— Você sempre teve uma vida, Leo. Mesmo que você finja que não se
preocupa com seus pais, seu irmão, você tem uma família; você tem
raízes. Você tem história. Você é parte de algo. Mas, antes de vir para
Londres, eu não tinha uma vida. Mal tinha um nome. Praticamente não
existia. Eu me esgueirava pelas beiradas. Eu não era nada. Menos do que
nada. E ainda me sinto... um fantasma. Não há nada que me prenda. Sinto
como se pudesse ser levada embora para longe.
Naquela época, ela não tinha noção de coisas como o dia e a noite ou
que estação do ano era. Os dias não tinham ritmo.
Jane chegara a frequentar a escola antes disso, mas só quando vovó Jo
estava viva; depois que esta morrera, ela nem sequer tinha o refúgio da
escola por algumas horas.
Logo Jane aprendeu que era melhor ser ignorada, ficar longe de vista,
mesmo que isso significasse passar fome. Seus irmãos e irmãs lutavam
por aprovação, atenção, apesar de a aprovação nunca vir e a atenção
raramente resultar em algo de bom. Não demorou para começarem a
atacar uns aos outros, porque não havia honra entre ladrões, então ela se
escondia deles também.
Jane tinha ouvido tudo sobre o “pobre merecedor”. Tinha ido a jantares
com políticos, intelectuais, reformadores idealistas com uma visão
otimista das classes trabalhadoras decentes progredindo através da
educação e do trabalho honesto, mas ela viera dos pobres não
merecedores. Uma subclasse desprezada e temida pelas outras famílias
da cidade.
A sua parte da cidade era o lugar para onde o conselho empurrara a
grande ralé indesejável. O Beco da Ralé, como o chamavam, uma estrada
deserta onde ninguém, nem mesmo a polícia, aparecia depois do
anoitecer. Às vezes, para fugir, ela atravessava a cidade até a biblioteca.
Não para ler — não lhe ocorria que pudesse haver algo para ela nas
minúsculas letras pretas que preenchiam páginas —, mas a biblioteca era
quente e ao lado havia uma loja de onde a família dela não fora banida e
da qual conhecia o ponto cego em que poderia enfiar um enroladinho de
salsicha no seu agasalho sem que a senhora do caixa visse.
Houvera muitos momentos difíceis. Toda vez que sua mãe levava um
novo homem para casa, cada um pior que o anterior. Mais cruel. Mais
rígido. Mais exigente. Vezes terríveis em que se vira encurralada por um
deles, mas houvera momentos ainda piores do que esses. Como pouco
antes do dia de receber os benefícios quando não havia nada para comer,
nada para ajudar, nenhuma bebida, nenhuma pílula, nada para fumar,
nenhum pó — era então que os ânimos ficavam feios. Havia gritos. Coisas
e ossos se quebravam. Certa vez, sua mãe armara um soco para acertar
uma de suas irmãs, que se abaixara e sua mãe acabara enfiando o punho
direito na parede.
Ficar escondida em um dos quartos úmidos era uma boa maneira de
não ser notada, mas rastejar para baixo da cama era melhor — encolhida
contra a parede mofada, para não poder ser puxada dali a menos que a
cama fosse levantada. Mas a cama fora levantada naquele dia, quando
sua mãe se arrastara até lá em cima com suas pernas ulceradas.
— Você! Mova o seu traseiro até o Alan Gordo. Me traga alguma coisa e
coloque na conta.
A única bondade que sua mãe mostrava por ela era não mandá-la
comprar nada fiado no Alan Gordo antes de esgotar todas as outras
possibilidades.
Ela caminhara os dez minutos até a casa do Alan Gordo pela parte
mais bonita da cidade. Não lhe ocorrera dizer não. Dizer não era tão
inimaginável quanto ser convidada a entrar em uma das casas bonitas
pelas quais passava com seus revestimentos e suas antenas parabólicas;
algumas das mais chiques tinham até cestas de plantas e canteiros de
flores.
A casa de Alan Gordo não tinha canteiros. Apenas dois carros e uma
van branca estacionados na entrada da garagem, o que não era uma boa
notícia. Às vezes, Alan Gordo a forçava a ficar de joelhos assim que
fechava a porta. Enfiava o pau dele pela sua garganta com tanta força,
que ela engasgava e seu nariz ficava pressionado contra as dobras fedidas
de sua barriga caída, mas quando Alan Gordo tinha outros homens com
ele... Era a pior de todas as piores vezes. Ela apagava, fingia que estava
embaixo da cama até tudo acabar, até terminarem de fazer o que queriam
e ela poder sair de lá com um embrulho de algo que não valia mais do que
vinte libras.
— Quem diabos está aí? — gritou Alan Gordo quando ela bateu na
porta.
— Sally me mandou aqui — respondeu ela, e o ouviu rir antes de ver a
enorme massa informe que ele era através do painel fosco.
Ele abriu a porta. Ela entrou. Manteve a cabeça baixa, olhando para os
tênis dele, sentiu a mão gorda dele segurar sua nuca e deixou-o empurrá-
la para baixo, viu a outra mão dele mergulhar na calça esportiva e, então,
ouviram uma forte batida na porta. Duas batidas fortes. Pausa. Duas
batidas fortes. Pausa.
— Mas que diabo — gritara Alan Gordo para a pessoa que estava
batendo e que eles não podiam ver. — Me dá um minuto.
Ele a arrastou pelo corredor. Por um instante apavorante, eles
passaram pela sala de estar, onde o som das batidas fortes de uma música
reverberava pela porta, mas então ele seguiu em frente até chegarem à
cozinha.
— Não mexa a porra de um músculo — disse ele e fechou a porta.
O cachorro estava lá dentro. Era um enorme pastor-alemão chamado
Matador. Alan Gordo tratava o cão como todo o resto, mas o cão não
aceitava isso tranquilamente. Ele rosnava, arreganhava os dentes e latia.
Certa vez o cachorro a mordera quando Alan Gordo a fizera colocar a
mão na boca do animal.
Naquela hora o cão estava sentado ali, ouvidos alerta, encarando-a. Ela
olhava para todos os lados, menos para o cão. Para as garrafas, latas e
embalagens de comida para viagem vazias. Então, olhou para a mesa.
Havia vários saquinhos de pó e comprimidos porque Alan Gordo sabia
que ela era a única pessoa que poderia deixar ali com instruções estritas
de não mexer a porra de um músculo que não mexeria a porra de um
músculo.
Então ela viu o dinheiro. Um enorme rolo de notas presos por um
elástico. Aquele dinheiro todo nem parecia real, não quando ela mal
tinha visto uma nota de vinte libras antes, muito menos várias centenas
delas. E talvez tenha sido por isso que ela o pegou: só para ver se era real.
Ela não imaginava que dinheiro pudesse pesar alguma coisa. Que
poderia haver tanto dele que mal daria para ela fechar a mão em volta.
O cão só ficou ali sentado, vendo o que ela fazia, como se ele também
não pudesse acreditar.
Ela não sabia por quanto tempo ficou ali, segurando o dinheiro. Sem
sequer pensar no que daria para comprar com ele, porque isso já era coisa
demais para ela processar. Então Alan Gordo apareceu à porta.
— Mas que porra você está fazendo? — Ele não gritou. Não precisava.
— Pegando a merda do meu dinheiro, como uma piranha ladra? Me dê
um bom motivo para não cortar você de orelha a orelha.
Não havia bons motivos. Nenhum. Ele se aproximou. Ela o observou
chegar mais perto. Não estava com medo. Não de fato. Estava mais
resignada, aceitando que isso era o que lhe aguardava. Então ela viu a
faca. Era só uma faca comum. Em uma casa comum, as pessoas comuns a
usariam para cortar legumes. Ela pegou a faca, e ele riu, como se fosse
engraçado. Alan Gordo disse algo para ela, mas ela não ouviu porque
enfiou a faca nele. Não foi fácil. A faca não deslizou como se toda a
gordura dele fosse manteiga. Ela teve de cravá-la. Empurrá-la com força
para dentro dele.
Então ela tirou a mão. A faca ficou onde estava. Cravada centímetros
na carne dele.
— Mas por que diabos você fez isso? — Ele não parecia irritado, mas
curioso.
— Eu não sei.
— Sabe o que eu vou fazer com você?
— Não.
— Vou pegar a faca e vou enfiá-la na sua boceta até o seu rabo e então
vou fazer mais alguns buracos em você, e depois vou chamar os meus
amigos para foder cada um desses buracos. Vamos comer você até a
morte — disse ele, como se aquela fosse uma ótima maneira de passar a
tarde. — Isso é o que eu vou fazer.
Então ela puxou a faca. Não havia nenhum sangue até ela fazer isso,
mas depois houve muitíssimo, e ele deu um berro surpreso, e foi quando o
medo tomou conta dela, e ela enfiou a faca de novo. Foi muito mais fácil
dessa vez esfaqueá-lo através de toda aquela gordura, todas aquelas
camadas nojentas. Enfiar. Puxar. Enfiar. Puxar. Enfiar. E ele deve ter
lutado, mas ela não conseguia se lembrar, embora mais tarde tenha
descoberto que estava coberta de hematomas e, até hoje, não tenha mais
sensibilidade no dedo mínimo e no anelar da mão esquerda. Contudo,
naquele dia, ele escorregou no sangue e aterrissou com um baque surdo e
um rugido e ela ouviu alguém vindo pelo corredor e deixou a faca
cravada nele e a porta dos fundos estava destrancada e ela passou
correndo por lá.
Ela correu. Ouviu latidos e viu que Matador vinha atrás dela. Não, não
atrás dela. Ele corria com ela porque odiava Alan Gordo tanto quanto ela
e enfim estava livre também.
Ela continuou correndo, correndo, correndo para além dos limites da
cidade, correndo até chegar à estrada principal, então tirou o casaco
porque estava coberto de sangue e jogou-o sobre uma cerca-viva, em
seguida correu até chegar ao grande supermercado e diminuiu a
velocidade e, apesar do que tinha feito, pôde entrar despercebida em um
ônibus que seguia para a estação de trem, em meio a uma multidão de
senhoras com carrinhos de compras e tosse de fumantes.
Então ela se escondeu e esperou até o trem parar na plataforma.
Entrou nele. Encontrou um lugar, curvou-se o máximo que pôde e ficou
assim até o cobrador aparecer, pedir seu bilhete e ela fingir ignorá-lo. Mas
ele não ia embora, então ela percebeu que ainda segurava todo aquele
dinheiro e que poderia usar um pouco para comprar um bilhete, mas não
precisou fazer isso, porque alguém disse:
— Está tudo bem. Eu pago a passagem dela.
E foi quando ela conheceu Charles.

Ela estava chorando de novo, as lágrimas se derramando junto com sua


confissão. O fardo que carregara nas costas todos aqueles anos... a
oprimira. Debilitara. E a tornara dura. Mas mesmo agora ela não se
sentia arrependida. Não tinha vergonha do que fizera. Se não tivesse
matado Alan Gordo, não teria conseguido matar a sombra que ela era.
Mas o problema das sombras era que elas davam um jeito de reaparecer
quando escurececia.
— É isso — disse Jane. — É quem eu sou. Agora você sabe como eu
realmente sou.
Ela esperou que Leo olhasse para ela como se não pudesse suportar
olhá-la. Esperou que ele se afastasse. Que a odiasse. Que a tirasse de
baixo da cama.
Mas ele ainda estava deitado no chão, com os olhos fixos no rosto dela.
Então ele estendeu o braço e ela se encolheu para longe dele.
— Jane, por favor — disse ele. Essas duas palavras não davam
qualquer pista. — Já perdi muito peso, mas ainda sou muito grande para
conseguir entrar aí embaixo da cama com você.
— Você nunca é tão engraçado quanto pensa que é — retrucou ela,
embora de alguma forma ele tivesse conseguido arrancar um sorriso de
seu rosto congelado. — Você não pode se esconder atrás de uma piada
para sempre.
— Sim, estou começando a entender isso. — Leo estendeu o braço de
novo, e dessa vez ela o deixou pegar sua mão. — Está tudo bem. Tudo vai
ficar bem. Você tem que confiar em mim.
Leo não disse mais nada. Segurou a mão dela e acariciou seus dedos
várias e várias vezes, enquanto ela chorava. Mesmo quando ela conseguiu
parar de chorar, ele não a soltou, e Jane esperava que eles pudessem ficar
assim para sempre.
EPÍLOGO

Lullington Bay

No final, os dois escolheram não serem fodidos.


Embora Leo não tivesse percebido como seria difícil amar alguém que
não acreditava no amor.
Ainda assim, ele se sente incrivelmente feliz com seu amor, embora
não esperasse que fosse algo sentimental demais como uma canção
romântica brega tocando no rádio e escapando por uma janela aberta em
um dia ensolarado.
Seu amor por Jane, e ele estremece só de pensar, faz com que queira
ser um homem melhor. Ele não imagina que um dia volte a usar drogas.
Não agora que sabe o que sabe. Ele só vacilou uma vez e foi uma farra
regada a álcool na noite em que Jane confessou seus crimes. Seus outros
crimes. O homem que ela havia abandonado, e não o contrário. A grande
trapaça que tinha planejado: esperar até conseguir uma pensão decente
após a morte de Rose.
Leo ficara tão bêbado que mal conseguia enxergar direito. Então
voltara, vomitara nas rosas de Rose e acabara em coma no chão da
cozinha.
Jane ficara furiosa.
— Se você prometer que nunca mais vai ficar assim, então eu prometo
que nunca mais vou guardar outro segredo de você. Mas tem que
prometer, Leo. Não posso ser forte o suficiente por nós dois. Não posso
mais fazer isso.
Leo prometera porque um mundo sem Jane seria algo frio e solitário, e
ele logo voltaria aos velhos hábitos. Mas Jane virou seu mundo em cento
e oitenta graus e costuma estar certa sobre tudo, fora as vezes em que
está incrivelmente errada.
Assim como ele constrói casas, está construindo uma vida para os dois.
Ele quer dar a Jane as coisas que ela nunca teve, as do tipo que não se
pode comprar com dinheiro.
Agora que é verão em Lullington Bay, nos fins de semana ele enche a
casa de gente. George, é claro, e Lydia e Frank, que estão reformando
uma pousada no litoral, em Brighton; Mark e sua família, Fergus, a
esposa e as três menininhas ruivas e sardentas. Leo até convidou os pais,
embora os dois dias que passaram juntos tenham sido repletos de
silêncios constrangedores, farpas, comentários passivos-agressivos e uma
grande briga entre ele e sua mãe durante o almoço de domingo. Apesar
de estar chovendo torrencialmente, Jane e o pai de Leo acabaram dando
um jeito de escapulir e foram até o pub da vila, onde fizeram amizade ao
falar sobre seu amor mútuo pelas comédias dos estúdios Ealing e bolo
com calda de caramelo.
Agora ele fala com a mãe pelo Skype todo domingo à tarde e ela tricota
casacos para os dois filhotes mestiços de Staffordshire bull terrier que ele
e Jane encontraram em um acostamento quando foram ver um homem
em Hayward’s Heath para falar sobre algumas madeiras de demolição.
— Mas eles têm que ficar lá embaixo, Leo — disse Jane na primeira
noite, mas era sempre ela que levantava para confortá-los quando
começavam a choramingar e uivar. Agora os filhotes dormem em uma
cesta ao lado da cama deles.
É quase uma família. São laços que os unem.
Leo ainda é um homem que gosta de apostar, de correr riscos. Jane
pode não saber o que é o amor, mas, se ele a amar de todo o coração, uma
hora até ela terá de ceder. Ele conta com isso.
Ele apostou tudo o que tem no vermelho e está esperando a roleta
parar de girar.

É fácil, a coisa mais fácil do mundo, amar Leo.


Ele é mesmo muito adorável. Não de uma forma doce e melosa que
envolva encontros e flores compradas em postos de gasolina numa sexta
à noite. Ou colares e bichos de pelúcia que dizem “Eu te amo”. Esse não é
o jeito deles.
Mas o amor não é algo que Jane encare de maneira leviana. Houve um
tempo em que ela achava ridiculamente fácil dizer “Eu te amo”, porque
não era verdade, mas, quando se achava que poderia ser a maior verdade
que já disse, era muito, muito difícil. Além disso, quando se diz a alguém
que você o ama e se é sincero, mostra-se toda a sua mão, e Jane sempre
jogou com as cartas bem junto ao peito.
Por um longo tempo após a morte de Rose, parecia que Jane estava
prendendo a respiração e ela só soltou o ar quando o testamento de Rose
não poderia mais ser contestado. Quando ela disse a seu advogado, o sr.
Whipple, que não queria o divórcio. Quando Leo sentou com Charles, o
testamenteiro de Rose, e disse que queria sua herança depositada em um
fundo e que então viveria do salário que receberia pelo que Rose
estipulara em seu testamento como sendo um executivo sem pasta.
— Se me der acesso a todo esse dinheiro, eu poderei sair dos trilhos —
disse Leo. — E realmente não quero sair dos trilhos.
Com o salário de Leo e os juros que Jane ganha sobre os investimentos
que Charles faz para ela, eles estão confortáveis. Têm uma vida
confortável. Às vezes, o que você acha que quer não chega nem perto do
que você de fato precisa.
Jane precisa de Leo agora que ele é a melhor versão de si mesmo. Ele
usa seu tempo com sabedoria: trabalha com Mark para converter um
antigo bloco art déco em Stoke Newington em casas para trabalhadores
essenciais. Passa um dia por semana atrás de um arquiteto e está sempre
tendo reuniões com pessoas do Tate Modern sobre uma exposição de Pop
Art britânica da qual é curador, a maioria das obras tendo sido
selecionada da coleção de arte de Rose.
Durante a semana, eles moram na pequena casa da área das antigas
cavalariças em Kensington. Jane ajuda George a embalar as coisas da
casa de Rose e tem aulas, estuda anatomia e faz anotações enquanto
pratica para se tornar instrutora de ioga. Então, na sexta à tarde, eles
seguem para Sussex.
Lullington Bay está invariavelmente cheia de gente, mas Jane prefere
quando estão só ela e Leo e seus dois cães bobocas. Eles dançam
enquanto cozinham nas noites de sexta e Leo levanta cedo para ir até a
praia pintar o mar. Jane prefere as pinturas que ele faz em dias nublados.
Jane vive principalmente para aquelas noites longas em Lullington
Bay, quando está na cama nos braços de Leo, a mão no peito dele.
Naqueles momentos, ela enfim sabe o que é se sentir segura. Por baixo da
cadência constante da respiração dele, ela pode ouvir o suave barulho do
mar batendo contra a costa, que ecoa em sua mente como as palavras que
ainda não encontrou coragem de dizer.
Eu te amo, eu te amo, eu te amo.
CODA

Rose está de volta à pista de dança do Rainbow Corner, com o cheiro de


brilhantina e raiom encharcado de suor irritando o fundo de sua
garganta. A banda não para de tocar, a luz dos lustres refletindo na seção
de metais, enquanto Rose é curvada para trás e rodopiada.
Todos que ela ama estão ali. Ela está com suas garotas, suas amadas e
preciosas amigas. Sylvia, bela e radiante como sempre, passa por ela nos
braços de um soldado forte. Phyllis acena toda vez que Rose desliza por
perto e grita algo que se perde em meio à batida da música, e Maggie está
sentada com um drinque na mão e seu sorriso já não é mais misterioso.
Às vezes, ela acha que vê Danny. Homens com quem dançou. Garotas
que lhe deram lenços, uma peça de roupa, um ombro no qual chorar.
Puxa, até Shirley está ali, absolutamente magnífica em seu vestido de
tafetá azul-claro. Mas Rose só tem olhos para Edward, que a segura nos
braços e não pisou em seus pés uma vez sequer.
Ela ficará ali para sempre. Porque o Rainbow Corner nunca fecha. Eles
nunca dão as costas a ninguém.
Quando abriram as portas do Rainbow Corner, jogaram a chave fora.
CHARLIE HOPKINSON

SARRA MANNING é escritora e jornalista. Atualmente é editora da


revista Red e colabora para o jornal The Guardian e para as revistas
ELLE, Grazia e YOU. É autora de inúmeros best-sellers e vive em
Londres.
Copyright © 2015 by Sarra Manning

Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa de 1990,


que entrou em vigor no Brasil em 2009.

Título original
After the Last Dance

Capa
Estúdio Bogotá

Foto da capa
Roksolana Zasiadko

Preparação
Luana Luz

Revisão
Arlete Sousa
Renata Lopes Del Nero

ISBN 978-85-446-0678-5

Todos os direitos desta edição reservados à


EDITORA SCHWARCZ S.A.
Rua Cosme Velho, 103
22241-090 – Rio de Janeiro – RJ
Telefone: (21) 2199-7824
Fax: (21) 2199-7825
www.objetiva.com.br
Sumário

Capa
Rosto
Agradecimentos
Prólogo
1
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38
Epílogo
Coda
Sobre a autora
Créditos

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