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Hoje
Mesmo em Las Vegas, quando uma garota com vestido de noiva entrava
em um bar, as pessoas viravam para olhar. A noiva, sem o noivo, parecia
não notar a atenção dos outros. Foi direto até o bar, largou a mala e
sentou no banco alto ao lado de Leo.
Foi então que ele percebeu que o espanto tinha menos a ver com o
enorme vestido branco bufante e mais com a beleza dela. Leo gostava de
pensar que era imune à beleza. Passara o último ano em Los Angeles,
onde não se podia sequer comprar uma caixa de leite na mercearia do
bairro sem ver pelo menos uma mulher que gastara milhares de dólares
na aparência. Um puxãozinho aqui, um excesso de pele retirado ali.
Mas aquela mulher era tão deslumbrante que ele estava feliz por ela ter
sentado a seu lado, permitindo-lhe ver cada detalhe perfeito de seu rosto
e se maravilhar com a forma como se uniam para formar um todo
impecável. Havia alguns retoques nele, mas era tudo muito discreto —
algumas injeções, botox na medida certa, fazendo-o ainda conseguir
demonstrar emoções.
O cabelo louro-mel estava preso no alto em um lindo penteado com
trança finalizado com uma tiara. Leo podia ver pelo brilho presunçoso
das pedras, mesmo sob a fraca iluminação do bar, que a tiara era
adornada por diamantes legítimos.
Havia mais diamantes reluzindo no dedo anelar, mas nenhuma
aliança, o que podia explicar por que sua boca em forma de coração
estava curvada nos cantos. Entretanto, quando Leo conseguiu chamar sua
atenção, ela o cumprimentou erguendo desanimadamente o canto dos
lábios.
— Olá — disse ela, com um sotaque inglês muito mais carregado do
que o dele, enquanto se acomodava melhor, fazendo as grandes saias
brancas do vestido flutuarem a seu redor como pétalas.
— Olá — disse Leo e, antes que pudesse falar qualquer outra coisa, o
barman mal-humorado, que tinha demorado uma eternidade para servi-
lo, quebrou o recorde de velocidade para se colocar diante dela e esperar
ansiosamente por seu pedido.
A mulher olhou indecisa para as diversas garrafas atrás do bar.
— Já largou o marido? — perguntou o barman, e ela piscou.
— Não sou casada. — Sua voz soou neutra, indiferente. Então
gesticulou em direção à infinidade de tule e tafetá de seda a seu redor. —
As aparências enganam.
— Noiva em fuga, então? Perdeu a coragem no último minuto?
A mulher jogou os ombros para trás como se fosse perder a calma e dar
um fora nele, mas então sorriu.
Antes de fazê-lo, ela era bonita. Mas, quando sorriu de fato, e seus
olhos azuis brilharam como os diamantes de suas joias, ela ficou
estonteantemente linda demais. E tudo o que restava a Leo era tentar não
babar.
— Ah, querido — disse ela ao barman, que agora tinha parado de
fingir polir o copo que segurava. — Esse é um assunto muito entediante.
Embora ela parecesse calma ali sentada, seus ombros estavam tão
tensos que os de Leo doeram só de vê-la — como se fosse um esforço
sobre-humano se manter firme quando tudo o que queria era
desmoronar.
— Então, foi você que deu o fora ou...
Ela ergueu a mão em sinal de protesto.
— Por favor, nada mais de perguntas. Não até eu tomar uma bebida.
— O que vai beber? É por conta da casa — perguntou o barman, como
se realmente achasse que tinha uma chance, apesar do pouco cabelo
oleoso penteado em um topete deprimente, da papada no queixo e do fato
de estar polindo copos e servindo bebidas em um bar fuleiro. Ainda
assim, não se pode culpar um cara por tentar.
— Uma taça de champanhe, por favor.
Ele a encarou como se ela falasse em marciano.
— Não servimos taças de champanhe. Não tenho nenhum champanhe
aqui.
— Sério? Que estranho! — Ela se voltou para Leo e balançou a cabeça,
convidando-o a compartilhar seu espanto. Ele deu de ombros e, dessa vez,
ela o recompensou com um sorriso cúmplice, antes de se virar de novo
para o barman. — Bem, o que você tem, então, querido?
Ela se contentou com um dirty martini. Torceu o nariz ao tomar o
primeiro gole, e foi aí que o barman percebeu que ela era muita, muita
areia para seu caminhão, porque começou a cuidar de suas tigelas de
tira-gostos fora da validade e a deixou em paz.
Leo e a mulher ficaram ali sentados, em silêncio, e só quando já havia
quase terminado a bebida ela se virou para ele.
— Vou fazer vinte e sete anos amanhã — disse ela.
Ele não sabia muito bem aonde ela chegaria com aquilo ou se queria
descobrir. Mulheres como ela, mulheres com aquele calibre de diamante,
só podiam ser problema, mas desde quando isso alguma vez o detivera?
— Feliz aniversário pelo dia de amanhã. — Ele levantou o copo de
uísque e brindou, batendo-o de leve no copo dela.
Ela se curvou para mais perto dele, e Leo achou que poderia se afogar
no doce e quente aroma de sua proximidade.
— A questão, querido, é que eu prometi que me casaria antes de
completar vinte e sete.
— Mas vinte e sete não é tanta coisa assim — retrucou ele. —
Consegui sobreviver a isso sem me casar.
— Para os homens, é diferente — insistiu ela, olhando para o anel de
noivado. — Para as mulheres, vinte e sete anos é... bem, é complicado
explicar.
Leo esperou que ela ao menos tentasse, mas ela ficou girando a enorme
pedra no dedo, fazendo-a brilhar sob a luz no alto, ofuscando a visão dele.
— Olhe, você obviamente está tendo um dia ruim, mas...
— O pior de todos os dias ruins. — Ela estendeu a mão diante do rosto
e olhou para o anel de noivado como se fosse responsável por todos os
seus atuais infortúnios. — O pior dia já registrado.
Ele nem teve de pensar muito a respeito.
— Sabe, eu poderia me casar com você. Se você quisesse.
Aquela visão, aquela deusa, se engasgou com a boca cheia de martíni.
— Você se casaria comigo? — perguntou ela ao se recuperar. — Por
que diabos você faria isso?
Leo deu de ombros.
— Eu já fui escoteiro. E ainda gosto de fazer uma boa ação todos os
dias.
Ela se mexeu no banquinho para ficar bem de frente para ele, a saia
branca e volumosa do vestido roçando a calça jeans dele na altura do
joelho.
— Você não é casado, é?
— Não. — Ele sorriu diante da confusão dela. Trêmula, ela sorriu de
volta e ele começou a gostar daquele jogo, ainda que não conhecesse as
regras.
— Você tem uma noiva ou uma garota com quem tenha algum
envolvimento?
— Não.
— Você é gay? Não que isso realmente importe, mas...
— Não!
Ela abriu bem as mãos.
— Ainda assim, querido, isso é muito repentino. Me dê uma boa razão
para eu me casar com você.
Havia mais de um milhão de razões ruins — exceto que se casar talvez
fosse a única coisa que ele não havia tentado. E aquilo tinha de ser o
destino: uma garota linda entrar num bar pronta para dizer “Aceito” e só
lhe faltar o noivo. Ele chamou o barman com um dedo preguiçoso e pediu
outro uísque e uma vodca com tônica para ela, já que o dirty martini não
tinha feito muito sucesso.
— Me dê uma boa razão para não fazer isso?
Ela balançou a cabeça quando o barman colocou uma nova bebida à
sua frente.
— Por onde eu começo?
— Daqui a poucas horas será meia-noite. Pensei que você estivesse
meio sem tempo.
Ela fez um biquinho, correndo o olhar em volta em busca de um
candidato mais adequado. Não havia um. Só dois velhos que vinham
enrolando com uma garrafa de cerveja cada um durante a última hora e
um homem no canto que olhava desconsolado para o copo vazio como se
tivesse acabado de apostar as economias de sua vida no preto e tivesse
dado vermelho. Ainda assim, ela estreitou os olhos enquanto avaliava as
opções.
— Você não tem que se casar comigo — disse Leo, e conseguiu mais
uma vez sua atenção. — Mas vamos beber, conversar um pouco e ver o
que a gente acha disso daqui a mais ou menos uma hora. Combinado?
Ela pegou o copo e abriu outro daqueles sorrisos que faziam Leo querer
encontrar uma poça para jogar sua jaqueta por cima para que ela
passasse.
— Combinado.
2
Setembro de 1943
Leo não esperava que a voz dela ficasse trêmula. Jane virou o rosto
perfeito de lado, engoliu em seco e, depois disso, suas palavras pareciam
tão claras e nítidas quanto gotas de champanhe. Quando ela lhe sorriu,
não era porque aquilo era uma grande piada, uma noite louca em Las
Vegas com a qual ele iria cansar as pessoas pelas próximas décadas, mas
porque, naquele momento, naquele gazebo de bom gosto, eles se
entendiam. Duas pessoas feridas à procura de algum conforto, algum tipo
de distração, e que tinham encontrado uma à outra.
Por mais dez dólares, a capela tinha fornecido alianças. Leo deslizou o
aro fino de metal prateado pelo dedo de Jane até este se aninhar contra o
anel de noivado no estilo art déco com um diamante imenso.
Em seguida, foi a vez de ela colocar uma aliança semelhante no dedo
dele, e os dois ainda estavam de mãos dadas quando foram declarados
marido e mulher.
— Vocês podem se beijar agora — lembrou o oficiante. — Já estão
casados.
— Não precisamos nos beijar — sussurrou Jane para Leo. — Não se
você não quiser.
— Por quê? Você não quer que eu a beije? — sussurrou ele de volta.
Eles ouviram gritos vindos de trás do gazebo.
— Não quero estragar seu momento especial, mas se vocês puderem se
apressar...
— Vamos fazer isso — decidiu Jane enquanto Leo ainda hesitava. Ela
puxou o decote em forma de coração do vestido com a mão e ajeitou o
cabelo com a outra. — A menos que você realmente não queira.
Ele notou a dúvida na voz dela e enevoando seus olhos.
— Bem, já chegamos tão longe. Não se deve economizar nos detalhes
finais.
Leo colocou delicadamente as mãos na curva da cintura dela. Jane
olhou para ele. Ele tinha achado que os olhos dela eram azuis, mas eram
verdes; talvez só ficassem azuis sob certa luz. Ela mordeu o lábio como se
tivesse esperado a vida toda que ele a beijasse.
— Vocês realmente têm que se apressar.
Leo se virou para o homem a fim de lhe dizer que ainda tinham um
minuto segundo o relógio e que era um minuto muito importante, mas
Jane levou a mão ao queixo dele para virar seu rosto de volta para ela, e
isso foi o suficiente para ele curvar a cabeça e beijá-la.
Ele sentiu a barba curta roçando a pele dela, macia como peônia, a
pressão firme da boca de Jane na dele. Não havia tempo para aquele ser
um beijo bom ou ruim, só dava para ser um beijo.
— Não ligo se você é a mãe dele, cala essa maldita boca! Eu vou me
casar com ele, não com você! — gritou alguém.
Jane e Leo se separaram para apressadamente sair por uma porta
escondida na folhagem do gazebo. Depois de uma longa caminhada por
um corredor, o tapete de veludo feito para parecer estar coberto de
pétalas de rosas vermelhas, e de passarem por outras portas duplas,
estavam na rua.
Estava frio porque Las Vegas era uma linda ilusão, uma cidade
reluzente escondida no meio do deserto. O calor penoso e brutal do dia
tinha dado lugar ao frio inclemente da noite. Jane se agachou e abriu a
mala para desembrulhar com delicadeza um casaquinho Chanel
aninhado entre várias camadas de papel de seda.
— Casada de preto, você vai querer voltar no tempo — disse Leo
enquanto ela o vestia.
Ela sorriu.
— Um pouco cedo para eu me arrepender, querido. — Ela se
endireitou nos saltos altos perigosamente finos. — Acho justo
brindarmos nossa união com uma taça de champanhe, não é?
— Concordo, mas gastei todo o meu dinheiro com as bebidas, os táxis e
a autorização para o casamento. — Leo não queria ser esse tipo de cara,
mas não sabia ser diferente. — A não ser que você...
— Nem um centavo. Eu devia me casar hoje, não achei que fosse
precisar de muito dinheiro, e não acredito em cartões de crédito.
— Você não acredita neles?
Ela balançou a cabeça.
— Dinheiro ou débito sempre.
Todos os tipos de sinos e alarmes dispararam na cabeça dele. Leo devia
ter prestado mais atenção quando ela falou sobre o ex. Sobre os milhões
em capital inicial. O que mais ela dissera? Ele não conseguia lembrar;
tinha estado muito ocupado olhando para ela, mas tentando fingir que
não estava. Foi então que se lembrou do que ela não dissera: ela não
falara sobre amor ou coração partido, o que se esperaria de alguém
abandonado minutos antes do casamento, mas Leo não conseguia se
preocupar muito com isso ao ver Jane de repente sorrindo para ele.
— Pagar pelas minhas bebidas estabelece um precedente perigoso, mas
preciso desesperadamente de uma taça de champanhe, por isso vamos
encontrar alguém que me pague uma. Na verdade, seria melhor uma
garrafa.
A capela ficava na rua principal e Jane já se dirigia para um farol
cintilante de vidro e néon perto dali a uma velocidade que Leo não teria
considerado possível. Pegou a mala vintage Louis Vuitton dela e logo a
alcançou. Ah, aquela ali era problema. Problema com P maiúsculo. O
noivo gênio da tecnologia, os investidores de risco e aquela história toda
sobre pedido de patente podiam ser tudo conversa fiada e talvez ele
acordasse dali a algumas horas em uma banheira cheia de gelo, sem os
rins. Tudo o que ele realmente sabia sobre ela era que faria vinte e sete
anos em menos de duas horas, a menos que isso também fosse papo
furado. O cheiro dela era forte, mas doce como cassis, e ele queria muito
poder lhe comprar uma garrafa de champanhe vintage.
— Querido, por favor, não fique com esse ar de quem se arrependeu. —
Mesmo cambaleante, Jane mostrava sua reprovação. — Serei uma esposa
exemplar.
Ainda que acabasse roubando seus rins, ela era linda e engraçada e
tinha o que sua tia-avó chamaria de presença de espírito.
— Você vai preparar café da manhã para mim todos os dias, passar
minhas camisas e falar bem de mim no baile anual do Rotary Club?
Ela balançou a cabeça.
— Acho que podemos conseguir algo um pouco melhor do que o
Rotary Club local... Por que esse prédio não parece ficar mais perto, não
importa o quanto a gente ande?
— É a perspectiva — respondeu Leo. Então lhe falou sobre os efeitos
do reflexo dos edifícios vizinhos nos revestimentos de vidro do prédio, e
Jane escutou e o manteve falando até chegarem ao templo monolítico de
aço e espelhos. Era um cassino com seu próprio ecossistema: hotel, vários
restaurantes elegantes, dois deles com estrelas Michelin, boutiques
sofisticadas e várias fileiras de máquinas caça-níqueis que piscavam e
zumbiam enquanto as pessoas sentavam de olhos vidrados diante delas,
enchendo as bocas escancaradas das máquinas com punhados de moedas
que pegavam de enormes copos plásticos.
Jane girou lentamente, estreitando os olhos. Em seguida, seu nariz se
contraiu como se de fato pudesse sentir o cheiro do dinheiro.
— Platinum Bar — anunciou, agarrando a mão de Leo e arrastando-o
em direção às escadas rolantes. Havia um brilho em seus olhos que não
estava lá antes. — Deixe que eu fale, querido. Você só presta atenção às
minhas deixas.
Sim, aquilo entraria para os anais das noites mais loucas que Leo já
tivera. Indiscutivelmente a número um, superando até aquela em que se
viu em um palco diante de cinquenta mil fãs enlouquecidos em Tóquio
para apresentar a banda do seu melhor amigo da faculdade de arte. A
festa depois do show acabara se transformando no tipo de orgia movida a
drogas da qual Leo pensara que só membros de bandas cock rock com
cabelo de poodle do fim dos anos 1980 participassem.
Ou a noite em que flertara com uma francesa no bar de Williamsburg,
onde ele trabalhava entre um serviço e outro. Depois de fechar, eles
pegaram duas garrafas de vodca, andaram até o Central Park e falaram
sobre vida, amor e o que os fazia chorar. Assistiram ao nascer do sol.
Beijaram-se como se fosse o fim do mundo. Na manhã seguinte, ele
acordara em um banco, com um policial de Nova York sacudindo-o e
trazendo-o de volta a um estado meio nebuloso de consciência. A
francesa havia roubado todo o seu dinheiro, exceto por uma nota de dez
dólares em que escrevera Je t’aimerai toujours com batom.
Aquela noite aos poucos ficava com cara de que superaria todas essas
outras, e tudo porque ele não tinha nada melhor para fazer do que se
casar com uma mulher bonita, já que isso daria uma grande história.
Se você não tivesse grandes histórias, então não estava vivendo por
inteiro.
E a história que Jane estava contando para Tom e Paula, Barbara e
Hank era uma de triunfo sobre a adversidade, risos em meio às lágrimas,
amor vencendo barreiras.
— Não posso acreditar que a companhia aérea perdeu toda a sua
bagagem — disparou Barbara.
Ela e o marido atarracado e de cabelo grisalho, Hank, que parecia ter
entrado com dificuldade no smoking, estavam em Las Vegas com seus
melhores amigos Tom e Paula para comemorar o aniversário de trinta
anos de casados dos quatro. Em cinco minutos, Jane havia descoberto que
os quatro eram melhores amigos desde o ensino médio, tinham até se
casado juntos — “Essa é uma das coisas mais adoráveis que já ouvi” — e
Tom e Hank eram donos de uma cadeia muito bem-sucedida de lojas de
materiais esportivos de inverno.
Barbara e Paula, que nunca perdiam um episódio de Downton Abbey,
ficaram fascinadas quando Jane lhes contou que Leo tinha sido
deserdado pela família, que era rica havia tantas gerações que seu avô
fora cavalariço de um dos reis George, por se casar com Jane, uma
ninguém.
— Meus pais acham que, se sua família não faz parte da alta sociedade,
então você está fora de questão — admitiu Leo alegremente, já que era a
escada para as falas de Jane. O Ernie do Eric de Jane. O Desi de sua Lucy.
— O amor é mais importante do que ser herdeiro de um ducado, certo?
As duas senhoras suspiraram e até mesmo Tom parecia estar com os
olhos um pouco enevoados. Barbara deu um tapinha na mão de Leo.
— É como algo saído de um romance. Você, quase um duque, Jane,
uma órfã...
— Ah, órfã é uma palavra tão dramática. O acidente de carro
aconteceu anos atrás — disse Jane, mas então deixou o olhar perdido e o
manteve assim por alguns instantes, até um garçom se aproximar com
uma enorme garrafa de champanhe. — Ah, não, vocês não devem fazer
isso. É incrivelmente gentil da parte de vocês, mas realmente não
podemos aceitar, não é mesmo, amor?
Leo balançou a cabeça.
— Realmente não podemos aceitar — disse ele com voz abafada. —
Agradecemos o gesto, mas não podemos aceitar.
Jane baixou a cabeça, os ombros ligeiramente caídos, e suspirou.
— Agora me escutem — disse Hank, decidido. — Nós vamos brindar
aos dois e vocês vão beber com a gente, quer queiram ou não.
— Querido, o que você acha? — perguntou Jane a Leo, como se
acatasse suas decisões sobre tudo quando ninguém jamais havia
assumido tal postura em relação a ele. Ela virou para Barbara. — Ele fica
tão orgulhoso e britânico.
Leo ficou inquieto sob o olhar recriminador de todos.
— Fico mesmo. Não posso evitar, mas me recuso a discutir com minha
linda noiva quando a tinta em nossa certidão de casamento ainda está
úmida.
Havia sorrisos e taças de champanhe por todos os lados. Os dois casais
mais velhos até pediram uma garrafa menor antes de irem embora e
insistiram para que Jane e Leo ficassem com ela e bebessem.
— Mesmo essa garrafa ainda é muito grande. — Jane observou-a com
certo receio. — Mas que diabos devemos fazer com tudo isso?
— Ficarmos completamente bêbados — respondeu Leo enquanto
colocava mais champanhe nas taças. — Topa?
Jane franziu o nariz.
— Nunca fiquei completamente bêbada. Talvez um pouco...
— Eu definitivamente já fiquei bêbado. Posso lhe dar algumas dicas. —
Ele vinha ansiando por tocá-la de novo desde que tinham selado o acordo
com um beijo. Então a cutucou de leve com o cotovelo. — Aposto que
você aprende rápido.
Ela o cutucou de volta com força o bastante para fazê-lo derramar
metade da taça na calça jeans.
— Talvez eu possa lhe ensinar uma ou duas coisas também.
Acabou que as únicas coisas que Jane poderia ensiná-lo eram do tipo
que ela devia ter aprendido em uma escola preparatória para moças de
sociedade na Suíça. Ela sabia como se dirigir a um baronete, a maneira
correta de servir ostras e como comprar o presente de agradecimento
perfeito.
— É muito importante incluir um bilhete escrito à mão. Muito
importante. Eu seria completamente inútil em um acidente de avião, mas,
se você fosse convidado para almoçar com um baronete e ele servisse
ostras, então eu com certeza receberia o devido reconhecimento.
Ela estava apoiada nele, o braço de Leo confortavelmente em torno de
seus ombros.
— Estar bêbado é muito mais divertido do que ser bom, não é?
— Pergunte-me amanhã, quando eu estiver de ressaca — retrucou
Jane. O que quer que ela fosse, interesseira, picareta ou até uma órfã
quase casada com um especialista em tecnologia, Leo gostava dela.
Gostava muito dela.
Mas, apesar de tudo que tinha bebido, a mandíbula dele estava cerrada.
Começava a sentir a fissura. Com dificuldade, ele se desvinculou.
— Tenho que ir ao banheiro — disse ele.
Jane fez beicinho.
— Prometa que não vai demorar muito — pediu ela, mas deixou-o sair
com um sorriso, e logo Leo estava descansando a cabeça latejante e
enevoada contra o mármore frio do banheiro. Em seguida, trancou-se em
um dos cubículos — não havia nada tão plebeu quanto mictórios ali.
Tinha o saquinho que conseguira pegar, com suas roupas, quando o
marido de Melissa voltara para casa inesperadamente. Ele devia estar
desconfiado — desconfiança justificada, já que o pau de Leo já estava na
metade da garganta de Melissa quando ouviram Norman subir
pesadamente as escadas, falando ao celular.
Leo estava muito velho para sair por janelas, descer por canos de
esgoto e pular portões de segurança. Também estava muito velho para
fazer carreirinhas em uma tampa de privada limpíssima com um cartão
de crédito cancelado havia três anos. Estar velho demais nunca parecera
uma razão boa o suficiente para parar.
Leo enrolou a última nota de dez dólares com a habilidade de um
expert. Duas fortes inaladas, e ele pôde sentir a cocaína cortar a sensação
inebriante causada pelo champanhe. Sentiu o sabor amargo e ácido no
fundo da garganta e tentou engolir para livrar-se dele. Endireitou-se,
sacudiu a cabeça duas vezes, piscou e soltou o ar.
Aquilo era muito melhor. Sentia-se mais como ele mesmo, e ainda
assim mais atento, mais inteligente, mais engraçado. Como se pudesse ir
até Jane e impressioná-la com sua esperteza e seu charme, porque o que
ela vira até então era apenas uma fração do que ele tinha a oferecer. Ela
podia até se apaixonar por ele.
Ele passou a ponta do indicador pela porcelana branca a fim de
recolher o que havia ficado para trás. Depois passou o dedo cheio de pó
pela gengiva e fez careta ao sentir o gosto amargo.
Quando Leo correu o olhar pelo cubículo, viu algo no canto. Algo
laranja, ele podia não acreditar em carma, mas uma ficha de jogo de mil
dólares tinha de ser um sinal de que, em algum momento da vida, ele
devia ter feito algo de bom.
4
Leo já tinha saído havia muito tempo... tempo o bastante para dois
homens começarem a circular em torno dela como tubarões.
Nem mesmo o vestido de noiva e o brilho de recém-casada bastaram
para detê-los.
“Estou esperando meu marido voltar”, diria ela se um deles se
aproximasse muito; mas, mesmo em sua cabeça, ela travava na palavra
“marido”. Porque Leo não era o marido com quem pensara que se casaria
quando acordara naquela manhã.
Além disso, a palavra “marido” soava errada. Estranha. Incômoda. Mas
também ela estava bêbada. Mais bêbada do que já estivera, porque antes
só tinha ficado levemente embriagada.
Estar bêbada até que era bom; fazia os enormes lustres no alto
brilharem ainda mais forte, e por um tempo ela ficou contente em erguer
a mão em direção à lâmpada para que seu anel de noivado capturasse a
luz e brilhasse tão intensamente quanto na primeira vez em que o vira.
Na ocasião, ele estava exposto sob uma única luz e refletira de volta para
ela todas as suas esperanças e os seus sonhos. Mas o problema com
esperanças e sonhos era que eles sempre...
— Você está novamente com aquele ar triste no rosto. Por favor, não
seja uma bêbada sentimental.
Jane piscou para Leo.
— Não sou sentimental. Estou só pensando.
Ele era muito alto, muito barulhento, mas então sentou e falou com
aquela voz cadenciada irresistível:
— Não é permitido pensar.
E ele era tudo o que tinha para se agarrar naquela noite estranha. Ela
trazia uma aliança no dedo e uma certidão de casamento na bolsa, mas
deveria estar com Andrew, deslizando pelo salão de baile de um hotel do
outro lado da cidade. A mãe de Andrew, Jackie, tinha insistido para que
fizessem aulas de dança de salão para terem uma primeira dança
coreografada. Com as aulas, uma planilha e um aplicativo que Andrew
criara numa tarde de domingo para que não tivesse de contar as batidas
baixinho, ele conseguira se tornar razoável no foxtrote.
— Você dança foxtrote? — perguntou a Leo.
— Vou adorar se você quiser dançar. — E sorriu como se tivesse
acabado de pensar na piada mais engraçada do mundo. — Acho que
renovei minhas energias.
— Queria poder dizer o mesmo. Você acha que alguém se importaria se
eu me deitasse e tirasse os sapatos? — Ela se apoiou com vontade em
Leo, mas dessa vez, quando ele passou o braço ao redor de Jane, seus
dedos tamborilaram inquietamente no braço dela.
— Pobre garota. — Leo beijou sua testa. — A gente resolve isso mais
tarde. Porque agora... bem, eu tenho uma surpresa para você.
Jane se esforçou para sentar direito.
— Que tipo de surpresa?
— Está em meu bolso. Vá em frente, pode pegar.
— Ah, querido, se ganhasse um dólar toda vez que um homem me pede
para procurar uma surpresa em seu bolso, eu estaria rica e independente
agora — disse ela com uma voz afetada.
Leo riu.
— Isso significa que você já ouviu todas as minhas melhores tiradas?
— Provavelmente. — Ela estendeu a mão. — É o tipo de surpresa que
você poderia me mostrar?
Ele enfiou a mão no bolso e tirou um disco laranja, que segurou entre o
polegar e o indicador.
— É meu presente de casamento para você. Ou... espere. Que horas
são? Feliz aniversário. Pode ser seu presente de aniversário também.
Desculpe, não tive a chance de embrulhá-lo.
Talvez Jane estivesse sentindo sua energia se renovar também porque,
de repente, estava muito melhor.
— Bem, isso muda tudo — disse ela, mas, quando estendeu a mão para
pegar a ficha, Leo fechou a dele.
— Muda — concordou ele, levantando tão depressa que ela quase
aterrissou de bruços no sofá sem tê-lo para apoiá-la. Leo estendeu a outra
mão.
— O dobro ou nada pelo menos. O.k.?
Jane deixou Leo puxá-la do fundo do sofá e levantá-la, o que fez a
cabeça dela girar e a sala rodar ao seu redor.
— Ah, Deus...
— A tontura é uma merda, não é? Venha. Peguei sua mala. Vamos lá!
Leo já estava saindo depressa do bar e ela teve de correr atrás dele. Os
sapatos dela não eram feitos para correr.
— O que quer dizer com o dobro ou nada?
— Na verdade, podemos fazer melhor do que o dobro ou nada — disse
Leo por cima do ombro. — Do que você gosta? Vinte e um? Dados?
Roleta?
— Você não vai apostar com essa ficha!
Agora ele seguia para as escadas rolantes a passos largos,
animadamente, então foram se distanciando e Jane teve de chiar como
uma esposa ofendida. Era um pouco cedo demais para isso.
Leo esperou por ela.
— Vamos jogar roleta. Você pensa em um número e eu...
— Você está louco? São mil dólares. É dinheiro no banco. Melhor do
que dinheiro no banco e você quer jogá-la fora? E onde a conseguiu
afinal? Pensei que estivesse sem grana.
Era difícil subir em uma escada rolante quando seu cérebro e suas
pernas não estavam se entendendo e você tentava ponderar com um
homem que não tinha a menor noção do que era ser ponderado; o tipo de
homem que se casaria com uma completa estranha só pela empolgação
de fazer algo do tipo.
Leo sorriu.
— Eu achei. É um sinal. Vai ser divertido.
Quando chegaram às mesas de roleta, Jane ainda tentava argumentar
com ele.
— Querido, a vida não é nem um pouco parecida com os filmes. Sei
que você está imaginando o momento em que beija a ficha, como se
estivesse em um filme de Martin Scorsese, e depois a coloca na mesa com
um ligeiro floreio. Então, a bolinha para no seu número, muito embora
todas as probabilidades estivessem contra você, e todo mundo comemora
e bate palmas e você sente que é invencível, mas a bolinha não vai parar
no seu número. Uma novidade para você: a casa sempre ganha.
— Nem sempre. — Leo balançou a cabeça. — Que tal se eu não beijar
a ficha e simplesmente colocá-la na mesa, com decoro?
A crupiê olhou para eles.
— Façam suas apostas.
— Vamos, Jane. Dez minutos atrás não tínhamos nada. Agora temos
algo. É um sinal. — Ele até piscou várias vezes para ela, batendo os cílios,
e Jane sinceramente não sabia dizer se tinha vontade de bagunçar o
cabelo dele ou socá-lo. — Não temos nada a perder.
— Temos mil dólares a perder.
— É uma noite para correr riscos. Não seja tão chata — disse Leo,
tentando persuadi-la. — Nunca pensei que você fosse chata.
— Uma coisa que nunca fui é chata — retrucou Jane com dignidade,
embora estivesse cansada para discutir isso quando Leo tinha todas as
cartas na mão. Ou melhor, a ficha laranja. — Ah, se você quer mesmo —
falou, rendendo-se com um suspiro cansado. — Mas escolha o dobro ou
nada. Vamos aumentar as chances. Preto ou vermelho. Aposte no preto.
— Qual é a graça disso?
— Aposte no preto — disse Jane. Leo fez isso, resmungando algo para
o homem sentado a seu lado sobre a “patroa”. O homem balançou a
cabeça e sorriu de maneira solidária.
— Últimas apostas — avisou a crupiê, e Leo agiu tão depressa que Jane
ainda estava piscando quando ele atirou a ficha no número vinte e sete,
no tempo que faltava para encerrarem-se as apostas.
— O que você fez? — resmungou Jane. Leo deu de ombros, mas
parecia satisfeitíssimo consigo mesmo.
— Quem não arrisca não petisca — disse ele, e Jane se virou e fechou
os olhos enquanto ouvia a roleta girar.
Fez-se um silêncio mortal em volta da mesa, apesar da conversa, do
tilintar de copos e do zumbido de expectativa na enorme sala que parecia
se estender por toda a vida.
— Não posso olhar — disse Jane desnecessariamente.
Então ouviu a bola enfim parar. Houve um momento de silêncio, e em
seguida Leo disse baixinho:
— Puta que pariu.
Ele mereceu, pensou ela.
— Bem, é isso.
— Puta que pariu, com certeza. — Ele teve que forçar as palavras a
passarem pelo nó em sua garganta. — Puta que pariu mesmo. Trinta e
seis mil dólares, Jane! Estamos ricos!
Que bom que Jane era bonita, porque ela não sabia merda nenhuma. A
casa nem sempre ganhava, e as pessoas em volta da mesa estavam
comemorando e aplaudindo, e Leo não pôde se conter. Ele a virou de
volta para si, viu os olhos dela brilharem quando a ficha caiu e então a
levantou no alto e a girou.
— Luck, be my lady tonight — disparou Leo, e Jane riu alto, e ele nunca
tinha visto ninguém, nem na vida real, nem mesmo em seus sonhos,
parecer tão incrivelmente linda como ela naquele momento.
Então ele a beijou pelo simples prazer de fazer isso e para a alegria da
plateia, embora as comemorações começassem a perder força, já que
eram apenas trinta e seis mil dólares. Havia pessoas ali que tinham
ganhado e perdido dez vezes mais do que isso em uma única noite e não
se importaram. Contudo, trinta e seis mil dólares tinham muita
importância para Leo.
— Ah Deus, se você continuar me girando, vou vomitar — alertou Jane
de repente, e Leo colocou-a de volta no chão bem na hora em que a
crupiê empurrou uma pilha maravilhosamente grande de fichas laranja
em sua direção. — Olá, queridinhas. Venham com a mamãe.
Até a crupiê abriu um sorriso indulgente.
— Façam suas apostas — anunciou.
— Vamos tentar de novo!
— Não — disse Jane enquanto juntava depressa as fichas. — Pela
primeira vez na sua vida, você vai sair enquanto está ganhando.
Isso era algo que ele não estava preparado para fazer.
— Mas, Jane, estou com sorte. É você. Você é meu amuleto da sorte.
— Não sou, não. Sou sua cara-metade — retrucou ela com firmeza,
embora essa expressão da Park Lane fosse muito menos forte do que
antes. — Nós tínhamos mil dólares, agora temos trinta e seis mil. Você
realmente quer arriscar tudo isso no girar de uma roleta? Você não pode
estar tão bêbado.
— Últimas apostas? — disse a crupiê, olhando para eles. Jane
balançou a cabeça.
Quando se tem dinheiro, tudo se resolve. Um funcionário do cassino
surgiu de repente e, por um instante angustiante, Leo pensou que ia lhes
perguntar onde tinham conseguido aquela primeira ficha laranja, mas ele
só queria ajudá-los a trocar as que ganharam. Mesmo que não fossem
apostadores perdulários, havia uma chance de que, com a dose certa de
mimo e bajulação, eles pudessem acabar devolvendo ao cassino os trinta
e seis mil dólares. Além disso, tinham acabado de se casar e todo mundo
gostava de casais apaixonados tanto quanto de vencedores, por isso,
enquanto um funcionário do cassino foi encarregado de preparar um
quarto de hotel para eles, uma atendente radiante os presenteava com
uma garrafa de champanhe grátis.
Jane disse que não aguentava nem mais um gole.
— Não tenho certeza se gosto de ficar assim tão bêbada e ainda há uma
chance de eu vomitar.
No entanto, Leo queria que ela estivesse bêbada, porque ele estava
bêbado e a euforia da cocaína tinha se tornado uma euforia de vitória, e
ele ainda não queria que aquela sensação passasse.
— Comida. Você precisa de comida — concluiu ele. — Alguma coisa
para diminuir o efeito do álcool. Não se preocupe, vou cuidar de você.
— Você não é um doce?
Leo não se achava particularmente doce. Não quando a deixou em um
sofá no saguão, beliscando um enorme sanduíche, para ir ao banheiro
mais próximo cheirar outras duas carreiras.
Quando voltou, sentou muito mais perto de Jane do que antes e não
conseguiu parar de balançar a perna enquanto a observava comer
lentamente metade do sanduíche e depois empurrar o prato.
— Acho que não vou mais passar mal — disse ela. — Agora estou bem
animada. Você torna tudo tão divertido. Não me divertia assim há muito
tempo.
— Nem mesmo com o sr. Ex? — perguntou ele, com a perna batendo
contra a dela até Jane colocar a mão no joelho dele para fazê-lo parar.
— Não me entenda mal, querido. Ele tem muitas qualidades
admiráveis, mas saber como se divertir não é uma delas. Não como você.
Você é muito bom em se divertir.
— Sou bom em várias coisas — disse ele, deliberadamente baixando a
voz, fazendo-a soar o mais misteriosa e insinuante possível. Jane não
conseguia arquear a sobrancelha, não com o botox, mas ainda assim
podia fingir surpresa.
— Minha nossa! Que tipo de coisas?
Leo se aproximou o suficiente para ver que a pele dela era macia e
perfeita como veludo, assim como a curva superior dos seios. Ele estava
excitado, além de meio doidão, e só conseguia pensar em como seria abrir
aquele vestido e sentir o peso suave deles. Só tinha de ter certeza de que
Jane queria o mesmo.
— Sou o tipo de cara sobre o qual sua mãe a alertou.
A gargalhada dela era um lindo e rouco gorgolejar.
— De alguma forma, eu duvido disso.
— É melhor acreditar — retrucou ele, abaixando a cabeça e
pressionando os lábios ao longo da clavícula de Jane, o perfume dela já
fraco, mas ele ainda podia sentir o cheiro persistente de cassis. Leo
chegou ao canto de sua boca e ela ficou sem ar, e essa foi a deixa para ele
se afastar.
Leo conhecia bem esse jogo. Avançar, recuar. Avançar, recuar. Deixá-
las se acostumarem com isso, gostarem, começarem a desejar, e então se
retirar. Fazê-las entrarem em pânico achando que vai deixá-las na
vontade e depois usar essa vantagem a seu favor.
Então, quando um carregador os levou para seu quarto, uma excelente
suíte presidencial, Leo dançou com Jane no elevador e por um corredor
bem longo, parando de vez em quando para se curvar sobre ela, beijando
seu rosto, sua orelha, seu ombro. Todas as vezes, Jane ria, e o riso se
tornava um suspiro quando ele parava. Em seguida, ele a tomava de novo
nos braços, e a dança recomeçava.
Quando chegaram à suíte, no final do corredor, o carregador abriu a
porta, conduziu-os para dentro e colocou a mala de Jane no chão. Então
Leo pegou a bolsa dela, que estava recheada de notas de cem dólares, e
deu uma para o rapaz, que os deixou, piscando para ele com um ar
astucioso.
— Acho que existe um inferno especial reservado para quem não dá
boas gorjetas — disse Jane, em aprovação.
— Viu, eu disse que era bom em muitas coisas — disse Leo. Ela estava
parada junto à porta, parecendo talvez um pouco incerta e insegura. Ela
inspirou e expirou, o que proporcionava uma visão maravilhosa de seus já
maravilhosos seios.
Leo se aproximou dela com um passo rápido de dança de salão do qual
até Gene Kelly teria se orgulhado. Jane não resistiu quando ele passou o
braço em volta da cintura dela e os dois dançaram os poucos movimentos
que a levaram a ficar pressionada contra a parede.
Leo nem teve que pensar no que fazer em seguida, porque era mesmo
bom nisso. Ele sempre ganhava a garota, mesmo que não quisesse ficar
com ela depois. Cobriu o ombro de Jane de beijos, levantou o braço dela e
beijou-a onde a pele era bastante macia.
— Sua barba está arranhando — murmurou ela, e Leo a beijou ainda
mais. Beijou o pescoço dela, roçou o nariz onde sentiu sua pulsação, que
batia em um ritmo frenético, e seguiu pelo queixo até a boca, que se
curvou em um leve sorriso.
A respiração de Jane estava mais ofegante agora. Os lábios dela se
entreabriram e ele parou. Permaneceu com o corpo pressionado contra o
dela, mas já não a beijava mais, e ela fez beicinho.
— Você é tão linda — disse ele e, daquela vez, não era apenas uma
frase de efeito. — Sei que não paro de dizer isso, mas você é e eu te quero
tanto. Estou duro só de olhar para você.
— Está, querido? — Ela mordeu o lábio. — Só de olhar?
— É, veja só.
Mesmo ele tendo preparado o terreno, provocando-a pela última meia
hora, o vestido dela já parecendo meio murcho, mechas do cabelo louro-
mel escapando da grinalda e do penteado bem preso, a maquiagem já
quase só na lembrança, ainda havia algo de intocável em relação a ela.
Leo pegou a mão de Jane, que estava quente e um pouco suada, e
beijou-a na palma antes de colocá-la em seu pênis. Os dedos dela
agarraram-no convulsivamente, e Jane umedeceu os lábios com a língua.
Ela não era assim tão intocável.
Ele abaixou a cabeça, levando a boca junto à orelha dela, e sussurrou:
— Dá para sentir o quanto eu te quero? Você me quer também?
Ela fechou os olhos e apertou mais uma vez o pau dele, que ficou ainda
mais duro, latejando contra o toque dela. Então tirou a mão e ele sentiu
um aperto no coração até ela lançar os braços em volta dele.
— Quero! Quero muito!
Leo não se deu mais ao trabalho de provocá-la. Beijou-a com força e
Jane retribuiu. Ele a levou até a cama enorme, que ficava em uma parte
mais alta do quarto, toda enfeitada com tecidos e travesseiros
minúsculos, e não parou de beijá-la, para que ela não tivesse tempo de
pensar.
Mas ela estava no mesmo clima que ele, feliz em cair na cama,
contorcendo-se embaixo dele enquanto ele devorava sua boca com a
língua. Leo queria abocanhar os seios dela em seguida, mas tinha visto a
quantidade enorme de minúsculos botões cobertos de seda que fechavam
o corpete do vestido dela e que demoraria muito tempo para abri-los.
Tempo suficiente para Jane mudar de ideia, e ele precisava daquilo. Em
um dia como outro qualquer, que se fundia a todos os outros dias, meses e
anos, em que ele nunca conseguia o que queria, nunca conquistava nada
relevante, uma estranha reviravolta do destino fizera ele conseguir aquela
garota.
— Puta que pariu, você é perfeita — sussurrou ele em sua pele, com a
boca no topo dos seios dela, enquanto começava a puxar para baixo o
corpete do vestido. Jane congelou.
— Não, querido — disse ela. — É vintage. Você pode rasgá-lo.
— Quero muito deixar você nua.
— E eu quero muito que você me beije de novo — pediu ela. Ele podia
fazer isso, e ela não se importou quando Leo levantou todos aqueles
metros de tule de seda e tafetá e se acomodou entre suas pernas.
Jane gemeu quando ele a pressionou e levantou o corpo para que
pudesse tirar a fina peça de cetim e renda que a cobria. Ele pressionou a
palma da mão contra ela e pôde senti-la nua e macia — ainda não
molhada o suficiente, mas ele cuidou disso com a mão. Um dedo dentro
dela e o polegar acariciando o clitóris, e ela gemeu um pouco, fechando
bem os olhos.
— Você é realmente bom nisso, não é? — disse ela, com voz rouca.
Ao chupar o dedo que enfiara nela, Leo descobriu que ela também
tinha gosto de cassis. Ele pensou em chupá-la, nunca havia se importado
com isso, gostava muito, às vezes até mesmo adorava, mas ela agora já
estava molhada. Ela não precisava disso e ele realmente estava louco para
transar.
— Vou morrer se não meter logo em você — disse ele, enquanto
colocava o polegar perto do clitóris, fazendo-a se contorcer para
posicioná-lo onde o queria. — Mal posso esperar para te foder.
— Não quero que você morra. — Ela levantou o quadril. — Deus, acho
que eu vou morrer.
— Você quer? Você me quer? — perguntou Leo, mas Jane não
respondeu, porque tinha arqueado as costas até um ponto que parecia
doloroso.
Ele pressionou o polegar contra o clitóris dela novamente, deixou que
Jane se esfregasse nele um pouco, mas, quando ela arqueou as costas e,
gemeu mais uma vez como se fosse gozar sem ele, Leo parou.
— Sim. Eu te quero! Por favor. Eu quero.
Ele poderia fazer isso com os olhos fechados e a mão amarrada nas
costas. Poderia mantê-la daquele jeito, enlouquecida, mas sem passar dos
limites, enquanto a fodia com dois dedos agora, e com a outra mão
tateava o bolso de trás para pegar uma camisinha, rasgava a embalagem
com os dentes, desabotoava e descia o zíper da calça. Ele pegou a mão
sem força dela e a colocou no pênis, fechou os dedos em volta dos dela,
enquanto ela o masturbava. Depois a camisinha ficou no lugar e ele
estava tão duro que doía, podia sentir a dor nas bolas, e deslizar bem
fundo dentro dela era a única coisa capaz de salvá-lo.
Ela era apertada. E ficou ainda mais apertada quando o agarrou,
prendendo-o com as pernas. Leo sequer tinha tirado a calça, e ela
merecia alguém que fizesse aquilo doce e lentamente, que fizesse amor
com ela. Mas ele não podia ser esse cara.
Então, ele tirou um pouco o pênis, depois arremeteu com força, e ela
fechou os olhos agarrando-se ainda mais firme, apesar de ele achar que
isso fosse impossível.
Em seguida, os olhos dela se abriram.
— Ah, querido, me foder até cansar é mais uma daquelas coisas em
que você é realmente bom? — ronronou ela com um sorriso felino. — Vá
em frente, então. Me mostre do que é capaz.
5
Outubro de 1943
Rose pensou em voltar para Durham muitas, muitas vezes. Quando ela
telefonara para casa naquela primeira incerta manhã cinzenta de
Londres um mês atrás, todos tinham saído, menos Shirley, que gritara
com Rose por pegar seus vestidos. Ela dissera que, se Rose voltasse,
ficaria confinada no quarto tricotando balaclavas até que pudessem
mandá-la para as Land Girls, isso se o pai não a prendesse antes.
Rose não tinha mais ligado para casa desde então. Estava se virando
muito bem sozinha. Tinha arranjado um emprego em um café no Soho,
administrado pelos proprietários, o sr. e a sra. Fisher. Ela fazia de tudo,
desde servir mesas até brigar com a temperamental chaleira com
torneira, descascar legumes e lavar. Quando chegava a hora do almoço,
seus pés já estavam doloridos e suas mãos, irritadas, vermelhas e feridas
de lavar panelas e frigideiras.
Todos os dias, Rose perguntava sobre vagas de emprego na Lyons
Corner House, na Tottenham Court Road. Preferia ser garçonete em um
vestido preto limpo do que usar um avental manchado sobre um vestido
de verão velho e um cardigã. Ela recebia duas libras por semana, além
das gorjetas, que eram praticamente inexistentes, e alugara um quarto
compartilhado com meia pensão em uma casa perto da Edgware Road
por uma libra e dez xelins por semana, assim não sobrava muito para ela
se manter.
Sua senhoria, a sra. Cannon, era magra, com um ar malvado, e
confiscara a caderneta de racionamento de Rose. Tinha de estar no café
às sete todas as manhãs, e a sra. Cannon deixava para ela uma insípida
fatia de pão com quase nada de margarina. Quando ela chegava em casa
do trabalho às cinco, havia um prato de ensopado com um monte de
repolho boiando e alguns pedaços de algo pálido e ao mesmo tempo
gelatinoso e cartilaginoso. Rose nunca tinha certeza se era carne ou
peixe.
Mas ela almoçava direito todos os dias, e a garota com quem dividia o
quarto, Olive, se ofereceu como voluntária para observar aviões inimigos
do telhado. As duas acertavam o alarme para as oito horas da noite e iam
direto para a cama após sua tigela de ensopado indeterminado e sem
sabor para um cochilo.
Às oito e meia, Olive subia no trólebus para seu turno e Rose voltava
para a cidade. Após duas semanas, ela parou de tentar entrar no Rainbow
Corner. Era impossível estar lá sem encontrar um soldado disposto a
ajudá-la, e aquelas garotas determinadas que enchiam o emaranhado de
ruas em torno da Piccadilly Circus não ficavam nem um pouco felizes
com recém-chegadas tentando atrapalhar seus negócios.
Todas essas garotas tinham lanternas que acendiam em seus
tornozelos cada vez que um homem de uniforme passava. Também
faziam coisas nas portas com os soldados. Mesmo as portas estando nas
sombras, os ruídos dos casais, uma perna nua enroscada vista de relance,
todas essas coisas faziam Rose passar depressa, desviando o olhar. E, na
noite em que viu duas garotas caírem no chão chutando, cuspindo e
puxando o cabelo uma da outra, brigando pela atenção de um soldado
magro com um narigão e dentuço, ela se perguntou se uma única noite
gloriosa no Rainbow Corner era tudo o que teria.
Rose tinha até voltado à estação de King’s Cross para ver se encontrava
um soldado na fonte, mas os que ela timidamente abordou ou não iam ao
Rainbow Corner, ou entenderam tudo errado. Um deles de repente exibiu
uma meia de nylon, como um mágico que tira lenços de um bolso
aparentemente vazio.
— Você quer a outra, doçura? Então por que você e eu não damos uma
voltinha?
Mas pelo menos ainda havia lugares, muitos deles, onde ela podia
dançar. Rose tinha se tornado uma especialista em jive, aprendendo com
os homens com quem dançava no Paramount ou no Frisco’s quando se
aventurava a voltar à Piccadilly. Também tinha ficado incrivelmente boa
em se defender dos avanços de rapazes com a cara cheia de espinha que
lhe diziam que estavam indo lutar por ela. Não era de admirar que ela
preferisse dançar com os negros.
Os negros com quem Rose dançava a chamavam de “senhora” e,
quando não estavam curvando-a e girando-a — e, em uma ocasião
gloriosa, levantando-a sobre a cabeça —, só tocavam em seu cotovelo
para guiá-la para fora de uma pista de dança lotada, que cedia e rangia
com o peso de todos os casais que rodopiavam.
Naquela noite, Rose estava indo ao Bouillabaisse Club, na New
Compton Street, com Kathy, que trabalhava na tabacaria duas portas
para baixo do café.
— Eles tocam jazz a noite toda — disse Kathy à Rose enquanto
entravam na fila para entrar. — Você gosta de jazz? Eu gosto.
— É a coisa que mais amo no mundo — assegurou-lhe Rose, embora
não se importasse de fato com o que tocavam, desde que a música tivesse
uma batida que lhe permitisse dançar. Logo estava nos braços de um forte
jamaicano chamado Cuthbert.
Quando Rose dançava, todos os horrores de sua nova vida — a fome, a
incerteza sobre o futuro e o medo de ser arrastada de volta à antiga vida e
ao terrível castigo que lhe esperava — desapareciam.
Os pés dela paravam de doer e faziam todos os tipos de passos
habilidosos e imprevisíveis que ela não sabia que podiam fazer. Cuthbert
tinha dentes brancos brilhantes e lhe disse que ela era bonita enquanto a
rodopiava várias vezes pelo salão. O vestido de tafetá azul-claro de
Shirley ficava mais capenga a cada dia.
Após uma hora de dança, Cuthbert comentou que ficaria feliz em
arrumar o melhor refrigerante de gengibre que o dinheiro podia comprar,
enquanto Rose ia ao banheiro feminino para ajeitar o cabelo.
O minúsculo banheiro estava lotado de garotas na fila para o único
reservado ou brigando por um espaço em frente ao espelho. Rose ficou
presa entre duas moças que debatiam os méritos de corante de molho em
contraste com chá frio para simular o efeito de meias-calças “se não
conseguissem encontrar um ianque”.
— Prefiro usar corante de molho do que conseguir um par de meias
com um ianque e arrumar, de quebra, uma gonorreia — murmurou uma
delas sombriamente.
Rose tentou não parecer chocada. Afinal, seu pai era médico. Havia
dois livros no escritório dele que eram mantidos trancados na gaveta da
escrivaninha, mas ele sempre guardava a chave em seu porta-caneta de
latão e, quando ele estava em uma de suas reuniões do Rotary Club ou da
maçonaria, sua mãe ia dormir cedo, por isso Rose não desconhecia essas
coisas da carne. Ainda assim, havia coisas que simplesmente não se
diziam em público.
Ela procurou manter distância até as duas liberarem o espaço em
frente ao espelho. Seu cabelo lisíssimo tinha, como de costume, escapado
dos quatro grampos que eram só o que lhe restava. Estava ainda mais
rebelde por ter sido lavado com água fria porque a sra. Cannon cobrava
um xelim extra para usar uma água ligeiramente morna por uma hora
todos os dias.
Rose passou nas bochechas vermelhas e na testa suada um pouco do
pó compacto do estojo dourado que Shirley lhe dera em seu aniversário
de dezesseis anos — embora sua mãe tivesse dito que ela era muito nova
e que o compacto parecia ordinário. Ela ainda estava vermelha e com a
pele oleosa e havia manchas de umidade no tafetá azul-claro, de onde
ela...
— Será que eu poderia pedir um pouquinho do seu batom?
Rose olhou para cima e viu uma garota em pé atrás dela. Esta tinha
olhos azuis puxados em um lindo rosto de boneca e cabelo no estilo Jean
Harlow, que Rose tinha certeza de que era descolorido. Mulheres com
cabelo descolorido também eram algo comum, mas aquela garota sem
dúvida não parecia com as moças atrevidas que iam ao café ou
costumavam bloquear a visão de Rose do espelho nos salões de dança de
Londres.
Quando Rose timidamente sorriu para a garota, ela sorriu de volta.
— Fique à vontade — respondeu Rose, estendendo sua preciosa
embalagem de Max Factor Tru-Color vermelho vivo. Assim que o
entregou à outra garota, Rose quis apanhá-lo de volta. Em vez disso,
assistiu ansiosamente ao batom ser passado com moderação no que
poderiam ser descritos em um romance como lábios carnudos.
— Você é um anjo. — A garota pressionou os lábios um contra o outro
para espalhar a cor. — Então o que você fez para conseguir um Max
Factor?
— O que eu fiz? Ah! Bem, nada, na verdade. Prudence, a irmã da
minha amiga Patience, trabalha em uma fábrica de munições. Todas as
meninas ganharam um batom como agradecimento por terem feito sua
parte, mas Prudence é contra maquiagem por motivos religiosos, e os
pais dela disseram que Patience era muito nova, então elas deram para
mim.
— Que tolice. Não consigo imaginar que Deus possa se importar se
uma garota usa um pouco de pó e maquiagem. Com certeza, Ele tem
coisas mais importantes com que se preocupar.
Rose assentiu.
— É verdade, não é?
Elas sorriram uma para a outra novamente.
— É muito difícil conversar com o reflexo de alguém — observou a
outra garota —, e estamos criando um terrível engarrafamento.
— Que chato! — Rose enfiou o pente, o pó compacto e o batom de
volta na bolsa e se afastou do espelho, seguindo a garota até a pequena
antessala que levava de volta ao clube. — A propósito, meu nome é Rose.
— Sylvia! — O nome saiu como um gritinho quando um homem forte
em um uniforme de marinheiro, que aparecera atrás de Sylvia, a
levantara do chão. — Adorei conhecer você. Obrigada pelo batom! —
Suas palavras foram engolidas pelo barulho ambiente à medida que era
levada dali.
Cuthbert esperava pacientemente por Rose no bar com o prometido
refrigerante de gengibre e, tão logo tomou a bebida, ela já estava de volta
nos braços dele.
Eles só tiveram tempo para um rápido jive antes que Sylvia cutucasse
Cuthbert no ombro.
— Posso interromper? — gritou ela, os braços já em torno da cintura
de Rose. — Precisamos de outra garota para igualar os números.
— Traga minha Rosie de volta sã e salva — disse Cuthbert, mas ele já
estava de olho nas moças ao lado da pista de dança, deslocando o peso de
um pé para o outro, enquanto procuravam por um rapaz disponível. Rose
não achava que Cuthbert fosse esperar por ela.
— Não tinha certeza se você precisava ser resgatada, mas tenho um
soldado de um metro e noventa de altura que está ficando com torcicolo
de dançar com tantas garotas baixas. Além disso, algumas garotas aqui se
sentem pouco à vontade dançando com um negro.
Kathy se sentia pouco à vontade dançando com negros. Dizia que
nenhum deles tomava banho direito, o que não era verdade, porque todos
com que Rose dançara estavam impecavelmente limpos e arrumados,
mas Kathy desaparecera com um marinheiro que mascava chiclete cinco
minutos depois que elas chegaram, o que deixou Rose livre para dançar
com quem escolhesse.
Então foi apresentada a um soldado gentil e sorridente chamado Ray,
que beijou sua mão, disse que ela parecia Hedy Lamarr, perguntou se ela
sabia dançar jive e puxou-a para a pista de dança, onde a levantou como
se ela fosse tão leve quanto um dente-de-leão, girando-a sobre a cabeça.
Ela só teve tempo e presença de espírito de dobrar as pernas para não
acertar as orelhas dele.
Quando a banda decidiu fazer uma pausa, o corpete do tafetá azul-
claro estava completamente encharcado e as pontas do cabelo de Rose,
pingando. Estava tão quente e úmido no pequeno clube que a
condensação pingava do teto e a maioria dos soldados tinha tirado a
jaqueta. O lugar cheirava a mofo e suor.
— Aqui! — Sylvia acenava freneticamente de um canto distante. —
Rose! Ray!
Ela deixou Ray conduzi-la pela multidão de dançarinos que
descansavam: garotas com as mãos nos joelhos enquanto tentavam
recuperar o fôlego, os homens secando a testa com lenços.
— Billy pegou uma bebida para você — disse Sylvia a Rose assim que
chegaram à mesa. Rose não sabia quem era Billy, e o copo que lhe
estenderam continha um líquido morno ainda pior do que a coca-cola
que tomara no Rainbow Corner. — Gin and French, leva gim e um
aperitivo licoroso. Divino, não é?
— Ah, é meu preferido — retrucou Rose.
Ela deixou Ray lhe acender um cigarro e lhe arrumar uma cadeira, e
foi só quando já estava sentada, tomando cautelosos goles da bebida e
dando baforadas hesitantes no cigarro, que notou as outras duas moças.
Uma era loura, embora não tão loura quanto Sylvia, e exibia os seios
grandes em toda a sua glória em um vestido esmeralda de cetim, e a
outra era mais magra, tinha a pele mais escura, estava toda de preto e
parecia extremamente elegante.
— Phyllis. — Sylvia primeiro indicou a loura, e depois a morena. —
Maggie. Esta é Rose. Ela me emprestou um pouco de batom e sabe dançar
jive.
Rose resistiu ao impulso de encolher os ombros quando Phyllis e
Maggie a examinaram.
— É um prazer conhecê-las — disse ela.
— Quantos anos você tem? — perguntou Maggie. Rose achou que ela
tinha sotaque, mas era difícil saber direito, já que a banda tinha voltado a
tocar.
— Tenho dezenove.
Maggie olhou para o vestido manchado de suor de Rose, para o cabelo
que mais uma vez tinha se soltado das amarras e não disse nada, porém
olhou para Phyllis com as sobrancelhas arqueadas.
— Então você já decidiu o que vai fazer quando for recrutada no ano
que vem? — perguntou Phyllis.
Rose não tinha pensado em nada porque ainda faltavam três anos para
completar vinte, e a guerra não poderia durar mais três anos, embora
muitas vezes parecesse que ia durar para sempre.
— Tudo menos entrar para as Land Girls — disse ela com fervor, mas
não queria que elas achassem que a única coisa que vinha fazendo pelo
esforço de guerra era dançar com soldados de licença. — Estou em
Londres só há algumas semanas, mas, agora que arrumei um lugar para
ficar e um emprego, estou procurando um trabalho voluntário. — Phyllis
e Maggie ainda franziam os lábios, o que não era muito encorajador. —
Olive, a garota com que moro, passa três noites de serviço como
observadora de telhado. Ela disse que as coisas andaram paradas durante
um bom tempo, mas têm ficado mais agitadas ultimamente.
Em Durham, os bombardeios tinham se tornado tão esporádicos que o
pai de Rose até guardava a bicicleta no abrigo antiaéreo, o que teria sido
impensável dois anos antes. No entanto, nas poucas semanas desde que
chegara a Londres, Rose tinha voltado a se acostumar com o gemido da
sirene e a ter de descer com cuidado três lances de escada no escuro até o
porão úmido. Só não tinha se acostumado com os barulhos aterrorizantes
dos canhões antiaéreos ou em ver o céu se iluminar tanto. Não só por
causa da cidade ardendo em chamas em razão das bombas que caíam,
mas também pelos raios de luz fantasmagóricos dos holofotes à procura
dos aviões alemães.
Essa era uma das vantagens de passar a maioria das noites em porões
mal-iluminados, onde a banda e o som surdo dos passos abafavam os
barulhos do mundo exterior. Na maioria das vezes, quando as sirenes
eram ligadas, não passavam de um gemido distante e todos continuavam
a dançar.
Mas aquilo não tinha importância naquele momento, quando Phyllis
olhava para ela como se tivesse confessado algo terrível, como ter um
amante secreto nazista ou que negociava no mercado negro. Maggie
também não parecia muito feliz e Sylvia não podia ajudar, pois estava de
costas para as três, enquanto conversava com dois pilotos.
— Eu disse algo que as ofendeu? — perguntou Rose timidamente.
— Não, é claro que não — respondeu Phyllis, mas seu enorme peito
arfava. — Mas, se Londres não é agitada o suficiente para você, então é
uma pena não ter estado aqui há dois anos. Garanto que nessa época as
coisas eram bem agitadas.
— Desculpe-me, não quis dizer isso.
Maggie pegou seu copo, quase tomou um gole e o colocou na mesa
molhada com certa força.
— Você tem alguma ideia do que... todos que eu conheço... todos
perderam alguém durante a Blitz.
— Sinto muito. Sinto muito de verdade.
Ela sentia do fundo do coração, mas mesmo assim Rose notara que os
londrinos tinham uma tendência a falar sem parar sobre a Blitz como se
nenhuma bomba tivesse caído em outro lugar. Como se ninguém
soubesse o que era de repente perder pessoas que conhecia, como Janet e
Susan da turma na escola e Timothy McFarlane, que certa vez levara
Shirley à feira e morrera na primeira missão da RAF. Mas era muito difícil
explicar isso àquelas duas garotas soberbas, que julgavam ter o
monopólio da perda só porque moravam em Londres. Era muito melhor
se desculpar de novo, pedir licença e ir embora.
— Então creio que vocês duas não se voluntariaram.
Ou ela poderia ficar e se encrencar ainda mais.
Dessa vez, o olhar trocado entre Phyllis e Maggie foi menos cético,
mais presunçoso.
— Nós fazemos trabalho voluntário — retrucou Phyllis. — Para a Cruz
Vermelha Americana.
— Mas temos direito a uma noite de folga — acrescentou Maggie.
E, embora seu cabelo estivesse encharcado e pesado, Rose achou que
de repente ele tinha se arrepiado.
— Ah. — Ela tentou parecer indiferente, mas essa única sílaba soara
tão aguda que rivalizava com qualquer nota que o saxofonista da banda
tocara aquela noite. — No Rainbow Corner?
Elas assentiram. Sylvia, que ouvira o último trecho da conversa,
inclinou-se sobre o ombro de Phyllis e disse:
— Às vezes acho que deveríamos lhes pagar pelo privilégio de sermos
voluntárias. É tão divertido, todo mundo é tão agradável, e as regalias...
Tenho barras de chocolate e pacotes de cigarros saindo pelas orelhas.
— Cale a boca, Syl. Como dizem, línguas soltas podem afundar navios
— alertou Phyllis, aproximando-se por trás para dar um cutucão nas
costelas da amiga. — Não que nós aceitemos quaisquer desses benefícios.
Rose não se importava se elas aceitavam ou não.
— Vocês são voluntárias no Rainbow Corner? É possível mesmo fazer
isso?
— Só quando se tem mais de dezoito anos — respondeu Maggie. — De
qualquer forma, há uma lista de espera. Que é enorme. Há também uma
lista de garotas que não podem passar pela porta.
Ela fez parecer que cuidaria pessoalmente para que o nome de Rose
estivesse na lista negra só porque tivera a audácia de não estar em
Londres durante a Blitz. Maggie e Phyllis eram muito desagradáveis e,
embora Sylvia parecesse bastante gentil, Rose não tinha certeza se
poderia confiar em alguém que era amiga de garotas tão rudes.
— Ah, olhe! Lá está Cordelia! Não a vejo há séculos! — Sylvia de
repente saiu, deixando Rose ali sentada com Phyllis e Maggie, que a
ignoraram por uns bons dois minutos até que Cuthbert felizmente
reapareceu e perguntou se ela poderia lhe dar o prazer da próxima dança.
6
Assim que ouviu Jane afundar na banheira com um suave suspiro infeliz,
Leo saltou para a ação.
Na verdade, fora mais um cambaleio do que um salto, direto para o
frigobar atrás de uma garrafa de cerveja importada para tirar o gosto
ruim da boca. A segunda garrafa teve um gosto melhor do que a primeira
e ainda havia um pouco de pó no saquinho, que ele cheirou como um
cavalheiro inalando rapé. A cocaína o deixou alerta, passando pelo
enevoamento da sua cabeça.
A bolsa de Jane estava aberta na cama. O dinheiro ganho na noite
anterior ainda estava lá, em sete pequenos maços. Cinco mil dólares em
cada bolinho de notas. Ele não era um monstro, deixaria um maço para
ela. Era justo. Além disso, ela carregava pelo menos cem mil dólares em
joias. Jane ficaria bem.
Quando acordara naquela manhã, Leo ficara lá deitado refletindo que
Jane não podia ser assim tão bonita. E se perguntou se a cocaína poderia
tê-lo enganado. Então veio o momento da mais pura mortificação quando
se lembrou de que não tinha conseguido gozar na noite anterior depois
que Jane lhe pedira para fodê-la até cansar e tivera de fingir.
Quase fora embora depois, mas não fora. Acordara e achou que seria
melhor enfrentar logo seus demônios e entrara no banheiro. Mesmo com
o rosto contraído, a pele pálida, o corpo tenso por causa da dor, ela ainda
era bonita.
Mas isso não mudava nada. Ele precisava tanto de uma esposa, mesmo
que linda, quanto de herpes. Leo se sentia um pouco mal em fugir sem
deixar um endereço ou número de telefone, mas essa era a única maneira
de ir embora com trinta mil dólares sem nenhuma discussão.
Ele não podia ficar em Las Vegas. Norman, o cara que acabara de levar
um chifre, tinha vários contatos com jeito de brutamontes e nomes
italianos. Não podia voltar para Los Angeles, pois tanto o seu senhorio
quanto o fornecedor de drogas haviam ameaçado quebrar suas pernas.
Também tinha uma série de dívidas e maridos irados em Nova York, mas
sempre havia Austin, Portland ou Chicago, e os Estados Unidos não eram
o mundo. Já havia passado tempo suficiente para ele poder voltar a
Berlim ou Praga e viver bem por um ano, voltar a sua pintura, desde que
só se prendesse à cerveja e à maconha.
Leo não tinha nada para levar consigo. Então enfiou os maços de
dinheiro no bolso da jaqueta e depois foi na ponta dos pés até a porta do
banheiro para se certificar de que Jane não iria sair de lá de repente,
querendo saber aonde ele estava indo.
Ouviu o barulho da descarga, Jane xingar e depois a descarga de novo.
Leo se perguntou se ela estava passando mal. Então percebeu que
estava prestes a ir embora sem o celular, que tinha deixado carregando
durante a noite no silencioso, já que não havia ninguém com quem
quisesse falar.
Havia três chamadas não atendidas de Melissa — ele não conseguira
ainda apagar o número dela — e uma ligação perdida de um número
internacional. Um número da Inglaterra. Um número de Londres. Um
número para o qual não ligava havia mais de dez anos, mas que ainda
sabia de cor, e, quando pegou o celular, seu toque o trouxe de volta à vida.
O aparelho vibrou. Aquele número apareceu outra vez na tela e sequer
ocorreu a Leo ignorá-lo.
— Alô?
— Leo! Venho tentando falar com você há dias. Devo ter ligado para
pelo menos uns dez números em cinco países. Conversei com várias ex
amargas e um homem que disse que era seu senhorio, e então despejou
em mim uma chuva de ofensas.
Leo relaxou, aliviado, porque não era ela. Então afundou na cama.
— Olá, Liddy, meu único e verdadeiro amor. Como raios você está?
— Ah, você ainda é exatamente o mesmo, não é? — Lydia não parecia
muito feliz com isso.
— Não é verdade, estou dez anos mais velho, em primeiro lugar.
— Mas não parece dez anos mais sábio — alfinetou ela.
— Talvez uns dois ou três anos mais sábio — desconversou Leo. Era
ótimo ouvir a voz dela: aquelas vogais londrinas pesadas que o faziam
pensar em estar sentado na cozinha, enquanto ela lhe preparava o café da
manhã e lhe servia infinitas canecas de chá. — Então, o que há?
— Você precisa voltar para casa. Ela não está bem, e isso já durou o
bastante — respondeu Lydia simples e não tão surpreendentemente.
Às vezes, ele parava para pensar... porque biologicamente, pelo menos,
ela era velha, mas sempre parecera mais divertida, mais jovem do que os
pais dele, que eram uns bons vinte e cinco anos mais novos do que ela.
Por outro lado, Leo achara muitas vezes que os pais tinham saído do útero
já preocupados com o plano de pensão e preferindo cores neutras. Ela era
velha, e Leo sabia que ela não viveria para sempre, mas...
— O que quer dizer com ela não estar bem? Como ela está
exatamente?
— Apareceu de novo — respondeu Lydia.
Leo sabia o que ela queria dizer sem ter de perguntar. Porque Lydia era
praticamente da família e, embora a família do lado de sua mãe tivesse
sido dilacerada pelo câncer, ninguém podia de fato dizer o nome da
doença.
— Eu nem sabia que ela tinha tido isso antes.
— Bem, você não estava aqui e naquela época o tratamento funcionou.
Desta vez, ela não está fazendo nenhum tratamento. — Leo conseguiu
imaginar o rosto redondo e gentil de Lydia tenso e ansioso. — Por favor,
venha para casa.
— Bem, talvez eu apareça no Natal — disse Leo, porque, quando
pensava em ir para casa, o que nunca, nunca acontecia, parecia que tinha
um monte de pedras pesadas na boca do estômago.
— O Natal é daqui a mais de dois meses. Você precisa vir antes disso.
— Ele tinha esquecido como Lydia podia ser teimosa.
— Eu não posso simplesmente aparecer como se nada tivesse
acontecido, posso? — Ele tinha algumas cicatrizes, tatuagens, várias
histórias, mas isso era tudo o que tinha para mostrar daqueles últimos
dez anos. Ela esperaria mais do que isso. — Ela pediu para você ligar?
Ele quase podia ouvir os lábios de Lydia se contraindo.
— Ela não sabe que estou ligando.
— Não vejo por que voltar para casa. Não vai trazer nada de bom, não
é?
— Você consegue viver com a consciência de que nunca fez as pazes
quando teve a chance? Está feliz em carregar esse fardo pelo resto da
vida? Você realmente não mudou nada, não é? — questionou Lydia.
Ela era a única pessoa, a única outra pessoa, que podia fazê-lo se sentir
uma forma subdesenvolvida de vida mesmo sem levantar a voz.
Ele não tinha mudado. Nem sequer tentara. Tinha decidido que era o
que era e que não poderia corresponder às expectativas dela, então não
havia por que tentar.
— Leo? Você vem para casa ou não?
Ele olhou para cima quando a porta do banheiro se abriu e Jane
apareceu coberta por um roupão branco macio e iluminada pela lâmpada
que deixara acesa atrás de si.
Naquele momento, ele tinha as roupas do corpo, trinta mil dólares que
eram cortesia de seu primeiro e único golpe de sorte e uma esposa que
poderia ter saído de um estúdio de Hollywood na época em que as
estrelas de cinema pareciam ter vindo do céu. Alguma coisa tinha de
estar indo bem em sua vida se ele aparecesse em casa de braços dados
com uma mulher daquelas.
Jane poderia relutar, mas precisava de sua assinatura nos papéis do
divórcio, então ele tinha poder de negociação.
— Sim — respondeu ele lentamente. — Tudo bem. Eu vou voltar para
casa.
7
Novembro de 1943
— Você iria para casa comigo? — perguntou Leo, quando Jane saiu do
banheiro e o encontrou sentado na cama, terminando o que parecia um
telefonema muito tenso. — Não para minha casa casa, mas para Londres.
Jane logo ficou desconfiada.
— O que há em Londres?
Leo levantou e passou os dedos pelo cabelo despenteado pelo sono.
— Minha... tia... bem, minha tia-avó. Ela está doente.
Jane cruzou os braços. Uma tia-avó doente parecia a mais esfarrapada
das desculpas. Muito provavelmente era uma farsa.
— E onde exatamente fica sua casa casa?
— Bem, minha casa casa na verdade fica em Durham, mas não vou lá
há séculos. Uns quinze anos, mais ou menos.
— Mas essa sua tia-avó está em Londres, não é?
— Você não precisa dizer isso assim, como se estivesse entre aspas. Ela
é minha tia-avó e eu também não a vejo há séculos, portanto, se recebi
uma ligação dizendo que ela não está bem, então é sério. — Havia uma
aspereza em sua voz que a fez se sobressaltar, porque ela não existia na
noite anterior. Jane também não se lembrava de tê-lo visto tão agitado.
Ele estava andando pelo quarto, o que podia se dever ao fato de ter
acabado de receber uma má notícia, mas Jane tinha certeza de que era
mais do que isso. — Podemos pegar um voo no início da noite. Você junta
suas coisas enquanto eu tomo um banho, e então a gente dá o fora daqui.
— E por que diabos eu iria querer viajar a Londres para conhecer sua
tia-avó doente? — questionou ela.
Ele parou de andar e fechou a cara. Então deve ter percebido que a
cara fechada não ajudaria a fazer Jane entrar em um clima conciliatório.
— Você vai voltar com o sr. Ex?
Jane deu de ombros.
— Ainda não decidi.
Leo franziu as sobrancelhas e tentou parecer triste. Aquilo não
combinava com ele.
— Ainda temos que anular o casamento e eu preciso mesmo ir para
Londres, então qual é o mal em vir comigo?
Ele tinha razão. Jane precisava sair de Las Vegas imediatamente. E, se
ela tinha necessidade de se reorganizar, planejar, seguir em frente com a
vida, então Londres era o melhor lugar para fazer isso. Por outro lado, ela
não queria embarcar de maneira precipitada em mais nada questionável
quando ainda se sentia tão frágil após os excessos da noite anterior.
— Vamos lá, o tempo está passando — ladrou Leo, que ainda se
atreveu a estalar os dedos para ela como se fosse uma criada ineficiente.
— Não estou vendo ninguém fazendo as malas.
Jane tinha um mau pressentimento com relação àquilo, mas, por outro
lado, ela também tinha maus pressentimentos sobre várias coisas e
procurava simplesmente ignorar. Entretanto, só quando já estavam no
aeroporto tentando conseguir lugares no próximo voo disponível para
Londres foi que Jane abriu a bolsa e descobriu que havia apenas um maço
de notas de cem dólares lá, quando deveria haver sete. Aquele maldito
ladrão!
— Não fique nervosa, estou com o resto — disse Leo depressa como se
não fosse grande coisa, quando na verdade era. — Só por segurança. Você
sabe como é o pessoal da limpeza nesses grandes hotéis.
Ele lhe devolveu três dos maços, e esse foi todo o alerta de que Jane
precisava para ficar colada nele até que pudessem se separar legal e
permanentemente.
Leo nem sequer lhe agradeceu quando conseguiram um upgrade para a
primeira classe, porque Jane segurara sua Chanel 2.55 de maneira bem
visível e flertou como louca com o atendente do check-in. Em seguida, ele
continuou andando de um lado para o outro, com os ombros curvados,
enquanto esperavam seu voo ser chamado, mas apenas quando sentou ao
lado dele no avião Jane percebeu que Leo estava sob a influência de algo
que com certeza não tinha sido comprado com receita médica.
A mandíbula dele estava trincada, um músculo na bochecha pulsava
como um milho na panela, braços e pernas se contraíam. Sem respeitar
de modo algum o espaço dela.
Pelo visto, seria um longo voo. Leo rejeitou a taça de champanhe
oferecida e pediu uma cerveja. Depois tirou um frasquinho do bolso da
jaqueta.
— Quer um ansiolítico? — ofereceu ele.
— Eu não tomo comprimidos — respondeu Jane baixinho.
Ele sorriu.
— Assim como você não acredita em cartões de crédito? Você vai ter
que criar para mim uma lista de todas as coisas que não faz. Deus, não
posso acreditar que estamos casados. — Isso não soou mal-intencionado,
mas sincero. — Você tem certeza de que nós não ficamos tão bêbados que
só pensamos que nos casamos?
— Infelizmente a certidão de casamento na minha bolsa diz o
contrário.
— Você era muito mais divertida bêbada. — Ele cutucou o braço dela,
e Jane nunca quisera tanto bater em alguém quanto queria dar um tapa
em Leo. Tinha a vaga lembrança de querer bater nele na noite anterior
também. — Vá em frente, tome um pouco de champanhe.
Ela não quis, mas Leo tomou mais duas cervejas e outro comprimido,
depois caiu no sono, com a cabeça no ombro dela. Jane teve de lhe dar
um bom empurrão para fazê-lo cair de volta ao próprio assento.
Eles já eram casados (o que ela queria anular o mais rápido dentro do
humanamente possível), então Jane não precisava ser conciliadora,
sedutora e nem um pouco charmosa. Isso, pelo menos, era um alívio.
Leo nem sequer se mexeu quando aterrissaram até Jane sacudi-lo. No
entanto, mesmo estando com os olhos já abertos e de pé, continuava
inútil. Jane teve de segurá-lo pela manga e puxá-lo pelos corredores
intermináveis e passarelas do aeroporto até a área de retirada de
bagagem, onde resmungou sobre precisar “carregar sua mala de novo.
Você não pode usar um carrinho como as outras pessoas?”.
Ele era irritante, mas Jane ficou grata pela distração que tirou sua
mente do absoluto pavor que tomava conta dela toda vez que entrava na
fila do controle de passaportes. E esse medo nunca tivera nada a ver com
os milhares de dólares em dinheiro e joias em sua bagagem de mão.
Jane não relaxou até estarem no banco traseiro de um táxi preto a
caminho do centro de Londres. Ela se hospedaria em um hotel enquanto
Leo iria ver a frágil “tia-avó”. Naquele ritmo, o dinheiro que ganharam
logo se reduziria a nada. Trinta e seis mil dólares parecia muito, mas,
divididos entre dois, mais alguns voos transatlânticos, quartos de hotel,
táxis — bem, o dinheiro acabaria logo, mesmo que Leo não tentasse
roubar sua parte de novo.
Enquanto se aproximavam depressa da rotatória de Hangar Lane,
passando por fileira após fileira de casas suburbanas com fachadas sujas
como toalhas brancas que tinham ficado cinza na lavagem, Jane se
lembrou de sua primeira corrida de táxi por Londres.
Também estava escurecendo naquele dia. Ela se empoleirara no
assento reversível, pronta para pegar a maçaneta da porta e pular fora ao
primeiro sinal de problema. Ela não sabia muito bem em que havia se
metido, mas esperava que aonde estivesse indo não pudesse ser pior do
que o lugar de onde viera.
Será que poderia?
A casa de Charles ficava em Notting Hill. Embora Jane não conseguisse
se lembrar se ele lhe dissera seu nome ou onde morava naquela primeira
noite.
Ele pagara o motorista e ainda não havia encostado nela, apenas a
guiara com uma série de gestos pela rua, pelo caminho que levava à casa
e pela porta da frente.
Então chegaram ao hall, onde tudo era muito claro e limpo, e ele
dissera:
— Você pode ficar aqui esta noite.
Pela primeira vez em dias, semanas, talvez até meses, ela encontrou a
voz.
— Você vai me comer?
Ninguém nunca tinha olhado para ela daquele jeito também. Como se
ela fosse uma pessoa de verdade, e não só uma coisa, uma coisa inútil.
— Você quer que eu te coma? — perguntou Charles, enquanto ela
observava os sapatos dele, porque ainda não conseguia olhá-lo no rosto.
Talvez ele fosse diferente de todos os outros, porque nenhum deles
jamais lhe dera uma escolha.
— Não — respondeu ela. Aquilo soara bem, então ela dissera de novo.
Mais alto. — Não. Não, eu não quero.
— Então estamos entendidos — disse ele.
Ela o seguiu ao longo de reluzentes pisos pretos e brancos até uma
cozinha e parou no meio do cômodo, com muito medo de sujar algo,
vendo-o colocar água para ferver na chaleira, fatiar o pão e colocá-lo em
uma torradeira.
Era como se ele soubesse que ela não tinha como fazer mais escolhas.
Uma caneca de chá, dois pedaços de torrada em um prato tão delicado
que ela sabia que poderia quebrar só de pressionar a ponta com um dedo
sujo. Ela tomara o chá e comera a torrada com uma das mãos, a outra
ainda segurando o maço de notas, ainda em guarda, ainda sem confiar
que horrores piores não estavam a caminho.
Foi quase um alívio quando ele passou por ela para abrir uma gaveta e
pegou uma faca grande e perigosa, que cintilou sob o brilho suave das
luzes no alto. Com comida na barriga e o corpo aquecido pelo chá, ela já
nem ligava mais.
Pelo menos ela tivera aquele vislumbre de algo mais. Não seria apenas
mais um nome no fim de uma lista de pessoas em situação de risco,
esquecido até ela ser encontrada nua com várias marcas de facada,
esperma espalhado por todo o corpo, em um terreno baldio.
A mão que segurava o maço de notas se contraía em expectativa pelo
momento em que ele apontaria a faca para ela. Miraria. E a cravaria bem
fundo.
— Vou levá-la até um quarto de hóspedes. Há um banheiro ao lado se
quiser tomar banho — explicou ele. Então lhe estendeu a faca. — Durma
com isso embaixo do travesseiro, vai ajudá-la a se sentir segura.
Não naquela hora, porém mais tarde, muito mais tarde, ela se
perguntou o que tinha acontecido com Charles para um dia ele também
ter dormido com uma faca embaixo do travesseiro.
Tantas coisas incríveis tinham acontecido com Jane desde então, mas
ela sempre achava que o mais incrível de tudo fora ter encontrado o
único homem decente de toda a Inglaterra naquele trem que a levava
depressa em direção a seu futuro.
Rose ignorou Leo explicitamente depois que Jane saiu da sala. Ela ainda
sabia dar um gelo como ninguém.
Ele esperava por isso. Então conversou com George sobre as últimas
fofocas do Victoria and Albert Museum e com Connie sobre projetos de
jardinagem.
De vez em quando, ele conseguia chamar a atenção de Rose e ela o
encarava com um olhar triste, depois virava para Elaine ou Gudrun, que
estavam mais próximos dela.
Isso o fazia lembrar de quando era bem pequeno e Rose ia a Durham
algumas vezes por ano. Ela chegava em seu MG escarlate com lindos
pacotes com laços para Linda, sua mãe, uísque para seu pai e grandes
caixas de Lego, que empurrava para Leo e depois o ignorava.
O que estava bom para Leo, já que odiava a tia-avó Rose. Sua mãe
passava a semana anterior às visitas de Rose dizendo-lhe para “respeitar
a etiqueta e só abrir a boca quando falarem com você”. Ele também não
tinha permissão para comer com os adultos e ficava preso na cozinha
com o irmão mais novo, Alistair, que era apenas um bebê, enquanto Leo
já era um garoto grande de três anos, depois quatro, depois cinco. Ainda
assim Rose o cumprimentava com um olhar de leve desgosto, como se
soubesse que ele não tinha lavado as mãos, mesmo tendo jurado para a
mãe que o fizera.
Então Rose aparecera para uma visita logo após o quinto aniversário de
Leo. Ele estava de pé no hall, pronto para ser apresentado a ela como se
fosse a rainha, e, com o filme que tinha acabado de ver fresco na mente e
Rose entrando com aquela mecha branca em meio ao cabelo castanho,
ele disparara:
— Tia-avó Rose, você parece a Cruella De Vil.
Fizera-se então um silêncio terrível. Sua mãe lhe lançara aquele olhar,
que sem dúvida queria dizer que ficaria sem TV por pelo menos uma
semana, e seu pai começara a pedir desculpas sem parar:
— Desculpe, Rose. Ele nunca pensa antes de abrir a boca.
E Rose encarara Leo fixamente, e ele a encarara de volta porque ela
realmente parecia uma vilã de desenho animado. Então Rose rira com
vontade: uma boa e sonora gargalhada.
— Pareço mesmo?
Leo assentira.
Ela, então, bagunçara o cabelo dele e se agachara.
— Quer saber um segredo?
Ele assentira de novo.
— Prefiro que você me chame de Cruella do que tia-avó Rose. Faz eu
me sentir muito, muito velha.
— Você não é tão velha.
Sua mãe respirara fundo, mas Rose rira de novo.
Eles se tornaram grandes amigos desde então. Na visita seguinte, ela
lhe comprara um dálmata de pelúcia da Hamleys e ele a desenhara como
Cruella.
— Ninguém diria que ele só tem cinco anos — falara Rose para Linda,
que sorrira orgulhosa.
Os sorrisos orgulhosos de Linda em geral eram reservados a Alistair
quando ele dava alguns passos sem cair ou conseguia levar uma colher à
boca sem derramar nada — e Leo já sabia fazer todas essas coisas.
Depois disso, eles recebiam sempre pacotes de Rose cheios de
canetinhas e lápis em mais cores do que Leo sabia dizer o nome.
Melhores ainda do que os pacotes eram os verões mágicos e
intermináveis na casa de Rose em Lullington Bay, Sussex. Foi onde ele
aprendeu a pintar enquanto tentava capturar a glória cor-de-rosa e
alaranjada do céu ao entardecer e a maneira como o mar brilhava ao sol.
Não houve qualquer discussão se ele deveria estudar para ser médico
como seu pai e seus dois avôs antes dele. Rose decidira que ele estudaria
arte na Chelsea School of Art and Design, e seu caminho ficou definido.
Seu futuro, traçado. Poucos rapazes de dezoito anos gostariam de ir
morar com uma tia-avó beirando os setenta, mas Rose nunca parecera
uma velha para ele. Ela fora sua mentora, confidente, amiga. Mas, antes
disso, ela o ignorara.
Naquele instante, sentado do outro lado da sala, deixado de lado, Leo
se perguntou o que seria necessário, o que ele tinha de fazer para que os
dois voltassem a ser amigos.
10
Janeiro de 1944
Rose não podia acreditar que estava em Londres havia quatro meses.
Parecia muito mais tempo e, às vezes, tinha a impressão de não ter
passado tempo algum. Rose se sentia mais velha, mas, no espelho, ainda
tinha aquele jeito irritante de menina.
O Natal tinha chegado e passado sem nenhum presente de Durham.
Em vez disso, sua mãe lhe mandou um pijama gasto do pai e sugeriu que
ela fizesse uma saia de verão com ele, e Shirley, um tecido de malha para
Rose substituir o pedaço das calcinhas que ficava em contato com as
partes íntimas. Era algo bem ordinário, tendo em vista que Rose lhes
enviara uma grande caixa de chocolates e vários maços de cigarro.
Mas ainda assim tinha sido um Natal mágico. Mesmo que Phyllis
tivesse precisado trabalhar pela manhã e Sylvia tivesse passado a noite da
véspera de Natal na casa dos pais em Hoxton. Rose inacreditavelmente
dormira às nove e meia e, ao acordar, vira Maggie, que tinha ganhado o
dia de folga na BBC Overseas Service, empoleirada no peitoril da janela do
salão para fumantes. Ela parecia tão triste, apesar de ser Natal. Então
Rose lembrara que Maggie era emigrante e que isso deveria ser levado em
consideração.
— Está sentindo muita falta da sua família? — perguntara, e Maggie
virara para ela e sorrira. Não era um sorriso muito feliz.
— Talvez. Embora sentir falta deles não adiante muito — dissera ela.
Então ela abrira um sorriso de verdade e falara que tinha um pouco de
café. Rose tinha alguns donuts meio passados que enfiara na bolsa na
noite anterior no Rainbow Corner, e as duas se banquetearam
aconchegadas junto à lareira a gás. Depois, Sylvia chegara em casa com
uma lata de chocolate quente e quatro tiras de bacon, “cortesia de Henry
e Edna Crapper, que mandaram seus votos de felicidades”, seguida de
Phyllis, que recebera um enorme pacote da família. Havia uma deliciosa
torta de abacaxi da estufa, bolo de ameixa, vinho de sabugueiro e um
frango, que Maggie conseguira assar no forninho Baby Belling.
Tinham ficado bem alegrinhas com o vinho de sabugueiro, e Rose
organizara um jogo de charadas, embora Maggie tenha se queixado muito
que o inglês não era sua língua materna e as outras tinham uma
vantagem injusta. Então, bem agasalhadas e procurando se recuperar do
choque repentino de uma fria noite de dezembro, depois de terem ficado
tão quentinhas dentro de casa, elas correram para o Rainbow Corner para
dançar a noite toda, e assim no fim o primeiro Natal de Rose em Londres
tinha sido maravilhoso.
Por outro lado, a maioria das coisas em Londres era maravilhosa. Rose
tinha suas amigas e as noites no Rainbow Corner e, mesmo que
estivessem passando pelo que os jornais chamavam de Pequena Blitz — a
Luftwaffe redobrando os esforços e lançando bombas todas as noites — e
o tempo estivesse frio e nebuloso, ainda preferia estar em Londres do que
em qualquer outro lugar.
Passava os dias matando-se de trabalhar, lavando pratos e levando
bronca da sra. Fisher, mas as noites eram cheias de infinitas
possibilidades. Como a noite em meados de janeiro, quando Rose
planejava se encontrar com Sylvia e algumas das outras colegas de
trabalho na Paramount depois do turno no Rainbow Corner. Ela estava no
banheiro colocando o casaco e se perguntando se o aviador canadense
que conhecera na outra noite estaria lá, quando sua amiga Pippa lhe
contou um pequeno segredo. A loja da esquina tinha recebido peixe.
— É melhor se apressar — advertiu Pippa. — A fila já saía pela porta
quando passei por lá.
Rose praticamente saiu pulando pelo saguão e cruzou depressa a porta,
dando de cara com um grupo de soldados.
— Eu sinto muito! — Rose se abaixou para pegar o quepe que um deles
havia deixado cair, mas o soldado também já estava se abaixando e ela
bateu o cotovelo em sua cabeça cheia de brilhantina. — Céus! Sinto
muito mesmo.
— Nunca fiquei tão feliz assim com um golpe desses — disse um deles.
— Poderia convencê-la a voltar e dançar com um pobre camarada que
poderá estar morto a essa hora na próxima semana?
Aquele apelo, que ela então já tinha ouvido inúmeras vezes ao longo
dos últimos meses, não abalou Rose. Ela balançou a cabeça, sorriu
tristemente, mas não se sentiu nem um pouco culpada.
— Eu adoraria, mas, se não chegar em casa logo, vão chamar uma
equipe de busca.
Nenhum homem gostaria de saber que valia menos do que peixe e
batata frita embrulhados em jornal de ontem.
— Só uma dança!
Todos eles olhavam para Rose como se ela tivesse acabado de sair da
tela do Empire na Leicester Square.
— Há várias garotas encantadoras lá dentro que ficarão mais do que
felizes em dançar com você — retrucou ela. E afastou-se relutantemente,
mesmo quando um deles segurou seu braço e tentou beijar-lhe a mão. —
Eu realmente tenho que ir.
Rose se afastou com um sorriso triste, satisfeita em seu íntimo em ver
como pareciam desconsolados por não terem conseguido convencê-la a
dançar com eles. Tudo teria sido perfeito se ela não tivesse esquecido o
degrau e só não tivesse caído porque duas mãos a agarraram pelos
cotovelos para firmá-la.
— Cuidado aí, querida, você não vai querer quebrar esse lindo
pescocinho — disse uma voz agradavelmente grave em seu ouvido que
soava familiar. Talvez um pouco como a de James Stewart. Algumas das
outras meninas disseram que ele ia ao Rainbow Corner quando estava em
Londres.
Rose virou a cabeça e seus olhos se arregalaram, a boca aberta em um
grito silencioso.
— Ah. É você!
— Ah! É você. Como você está, criança?
Definitivamente não era Jimmy Stewart, mas Danny seja lá qual fosse
seu sobrenome, o soldado detestável que conhecera em sua primeira
noite em Londres, com seu sorriso maroto e aquele jeito de olhar para
Rose como se a moral dela fosse duvidosa.
— Eu estou bem — limitou-se a responder Rose. — E você, está bem?
— Não estou morto, então acho que estou ótimo.
Então Rose lembrou que ele era o tipo de pessoa que sempre tinha uma
resposta inteligente para tudo. Também lembrou que ele era muito bonito
para quem gostava de homens morenos, que em geral não era seu caso.
— Você vai sempre ao Rainbow Corner agora? Não a alertei sobre
perambular por aí em lugares como este?
Rose gostaria de pensar que o encarava com ar de desdém.
— Sou voluntária da Cruz Vermelha Americana. Pode perguntar na
recepção, se não acredita em mim!
— Tinha esquecido como você é arrogante...
— Eu não sou arrogante...
— Mas não tinha me esquecido de como você é bonita.
Rose suspeitava que ele estava zombando dela novamente, mas ele
estava muito sério ali parado, a cabeça virada de lado, enquanto olhava
para ela de maneira atrevida como se sua beleza fosse só para ele.
— Bem, eu não tinha me esquecido de como você é rude — retrucou
Rose, sem rodeios. Estava determinada a acabar com aquele pequeno
frisson de prazer só porque ele tinha dito que ela era bonita. — Tenho
certeza de que você nem lembra meu nome. Naquela noite inteira você só
me chamou de “criança” num tom superior.
— Mas é porque você estava sendo uma fedelha — disse ele, piscando
com ar conspiratório. Ele era impossível. — Uma grande fedelha.
— Bem, de qualquer maneira, eu tenho que ir. É bom ver você de novo,
com certeza — disse Rose de uma forma curiosa. Não só porque ele
flertara com ela, mas também porque isso a fazia se sentir como uma
verdadeira londrina que esbarrava em conhecidos na rua.
Ela começou a caminhar pela Denham Street, acelerando ao passar
pelas meninas de rosto duro e os grupinhos de homens que queriam levá-
las para as entradas escuras dos prédios.
— Que tipo de cara eu seria se não a levasse até sua casa? —
questionou Danny, começando a acompanhá-la. — Você chegou a ir à
Associação Cristã Feminina?
— Não, e não preciso que ninguém me acompanhe até em casa. Além
disso, não estou indo para casa. — Ela atravessou depressa a rua. Danny
atravessou com ela. — Estou indo comprar peixe e batata frita, se ainda
houver sobrado.
— Ainda não experimentei peixe e fritas, vou com você — disse
Danny. — Que tipo de peixe é?
Por mais improvável que parecesse, eles falaram sobre peixes durante
os três minutos que levaram para chegar à loja e entrar no final da fila.
Havia um rumor sobre bacalhau, embora não fosse muito, e Rose estaria
contando, ansiosa, as cabeças na frente dela, mas Danny a distraiu
descrevendo a lagosta que tinha comido ao fim de longos dias de verão
passados em um lugar chamado Judith Point, em Rhode Island.
— Mas eu pensei que você fosse de Nova York. Não foi isso que você
disse quando nos conhecemos?
Danny sacudiu a cabeça com impaciência.
— Ninguém passa o verão em Nova York. É muito quente. Um homem
poderia perder a cabeça num calor daqueles.
— Eu adoraria ir a Nova York — disse ela. Tinham estado tão ocupados
conversando que Rose não percebera que haviam chegado à frente da fila.
— Só sobrou um pedaço. Vai dar para sua garota? — perguntou o
homem atrás do balcão a Danny.
Rose queria desesperadamente aquele pedaço de peixe, mesmo que
fosse esqualo, mas no Rainbow Corner tinham martelado em sua cabeça,
noite após noite, que os soldados americanos eram convidados em seu
país e estavam sacrificando suas vidas para defender a Grã-Bretanha dos
nazistas, por isso o mínimo que podia fazer era abrir mão de um pedaço
de peixe para a causa.
— Ele pode...
— Dê para minha garota — interrompeu Danny com firmeza. Ela com
certeza não era sua garota, nunca seria, mas nem sequer tentou
argumentar.
— Obrigada. — Rose ficou olhando um minúsculo pedaço de cauda,
que lhe garantiram ser bacalhau, ser colocado ao lado de uma pequena
pilha de batata frita, polvilhado com sal e vinagre e deixado aberto a
pedido dela.
Eles caminharam ao longo da Brewer Street. Estava mais tranquilo,
embora fosse difícil andar e comer batata frita (que tinha sido preparada
no que parecia ser óleo de motor velho) ao mesmo tempo. Rose deixou o
peixe para o final, da mesma forma que sempre deixara a cereja de seu
cupcake. Uma mordida, e metade fora embora.
— Aqui. Você pode ficar com o resto — disse ela a Danny, que também
tinha ficado em silêncio. — Mas me sinto obrigada a lhe dizer que o peixe
com fritas foi muito mal representado pelo que acabamos de comer.
— Estava ótimo. O melhor peixe com fritas que já comi. — Ela pôde
ver o brilho de seus dentes quando ele sorriu.
— Não que você já tenha comido peixe com fritas antes — lembrou
Rose. Eles atravessaram o cruzamento até a Old Compton Street. — Se
está determinado a me acompanhar até em casa, é melhor seguirmos
pelas ruas secundárias. Há menos chance de uma bomba cair em você se
evitar as ruas principais.
— Você ouviria a sirene antes de qualquer bomba começar a cair.
Eles caminhavam lado a lado pela estreita calçada, as mãos
ocasionalmente se roçando. Danny era grande sem ser corpulento, o que
fazia Rose se sentir segura, ou mais segura.
— Não se for só um bombardeiro que se separou dos colegas
bombardeiros, e for uma noite nublada, fazendo com que passe
despercebido — insistiu Rose.
Danny bufou um pouco.
— Não é assim que funciona.
Era um cenário bem plausível, mas provavelmente não valia a pena
discutir sobre isso.
— Então, hum... ah! Como está o Phil? Ele foi tão gentil naquela noite.
Espero que não esteja com muitas saudades de casa. Ele falou tanto sobre
Des Moines, como se sentisse muita falta de lá.
— Ele está morto — respondeu Danny tão baixo que Rose não teve
certeza se o ouvira direito. — Não voltou de sua primeira missão.
— Ele não pode estar morto. — Não Phil com seus braços e pernas
grandes e desengonçados, os quais não sabia controlar. Seu sorriso
tímido, porém fácil, as pontas das orelhas vermelhas das horas gastas
dançando só para agradá-la. — Ele ia ser veterinário depois da guerra.
Provavelmente foi feito prisioneiro ou está sendo trazido de volta para a
Inglaterra pela Resistência, ou...
— Criança, o avião dele caiu em chamas. Ele não vai voltar.
— Meu nome é Rose, não criança — conseguiu dizer Rose e, então,
inexplicavelmente, começou a chorar. Porque conhecera Phil antes das
preleções bem-intencionadas de Sylvia sobre não se envolver demais e
perder a cabeça por cada homem com quem compartilhava uma dança e
um donut.
Ela se virou, os ombros sacudindo sob o casaco de pele para enterros
da mãe. Então cambaleou até a porta mais próxima para poder esconder
o rosto na pedra fria e chorar.
— Rose... — Danny colocou a mão em seu braço. Ela o balançou para
se soltar. — Ouça, você deu a ele a melhor noite de sua vida. Ele não
parava de falar de você quando voltamos para a base e ele...
— Cale a boca! Não quero ouvir isso. Ah, Deus... Não me toque!
Mas ele estava tocando-a, virando-a de volta para ele com uma firmeza
que não podia ser negada quando se está chorando e tudo o que se quer é
desabar contra alguém, porque não é mais possível se conter.
Rose se viu desmanchar no abraço de Danny, o braço dele apertado em
volta de sua cintura, e quando ele segurou seu queixo ela sequer
conseguiu afastar a cabeça.
Ele roubou o próximo soluço de sua boca com um beijo.
O primeiro beijo de verdade dela.
Rose não sabia bem o que fazer. Eram tantas novas e estranhas
sensações. Ser pressionada tão fortemente contra um homem que nem
mesmo o vento poderia passar entre os dois. Danny era firme, forte; ela
podia perceber os músculos dele se tensionando, e ela se sentia tão
macia, tão maleável, como se ele pudesse moldá-la da forma que
desejasse. E também havia seus lábios, que formigavam e se moviam por
vontade própria, como se ela não tivesse controle sobre eles.
Ela suspirou. Contorceu-se para ainda mais perto, então recuou
quando Danny tentou enfiar a língua em sua boca.
— O que você está fazendo?
— Beijando-a como se deve — respondeu. — Você nunca tinha sido
beijada?
Rose estava prestes a dizer que tinha sido beijada várias vezes quando
pensou o que isso poderia dar a entender.
— Não exatamente — emendou ela.
— Deixe-me mostrar — disse Danny, e a voz dele era tão grave que fez
algo se agitar na boca do estômago dela. — Abra a boca um pouco.
Ela o deixou beijá-la novamente. Era impossível rejeitá-lo, e agora ela
poderia prová-lo, assim como senti-lo. A agitação se intensificou, e Rose
achou que seus joelhos pudessem ceder se Danny não a estivesse
segurando.
Então ele a beijou, a língua mergulhando profundamente em sua boca,
até os lábios dela ficarem doloridos e Rose mal conseguir respirar. Se uma
bomba tivesse caído sobre eles naquela hora, ela morreria feliz nos braços
dele. Mas, quando a mão dele deslizou por baixo do casaco de Rose e
tocou o seio dela por um breve instante, ela engasgou e foi bem fácil se
afastar.
— Já basta. — Sua voz soou tão fraca e sem fôlego que ela mal a
reconheceu. — Eu realmente deveria ir para casa agora.
Danny recuou. Na escuridão, o rosto dele era um misto de ângulos e
sombras. Ela nunca pensara que um homem poderia ser belo, mas ele era.
— Basta por enquanto — concordou ele. — Mas você vai me deixar vê-
la de novo, não vai?
— Sim, se você quiser. — Ela nem conseguia fingir que tinha um
milhão de coisas para fazer e que não esperaria por ele. — Quando você
estará de licença de novo?
Danny passou o braço pelo dela.
— Está muito frio para ficarmos aqui fora tagarelando. Vamos
caminhar.
Ela estava agoniada por não saber. Por fim, enquanto caminhavam pela
Theobalds Road e Rose já temia dizer adeus, ela não pôde mais suportar.
— Você não disse... quando estará de licença de novo?
— Não disse, não é? — Ela nunca mais voltaria a achar o sorriso dele
debochado. — Então você quer me ver de novo?
Rose odiava esse tipo de dança. Tinha medo de que pudesse perder o
equilíbrio e tropeçar.
— Só se você quiser me ver de novo. Você quer, não quer?
Então Danny pegou sua mão, e, mesmo através das luvas dos dois, ela
se sentiu confortada pelo toque.
— Claro que quero. Encontrarei você em frente ao Rainbow Corner na
mesma hora amanhã à noite. Acho que não deveria estar tão ansioso,
mas não quero que você saia com outro cara só porque fui lento demais
para declarar minhas intenções.
Rose nem se importava se as intenções dele eram honradas, ficou feliz
só em saber que ele tinha alguma. E sorriu para ele.
— Vejo você amanhã, então.
Mas Danny não estava lá na noite seguinte quando ela saiu do Rainbow
Corner com Sylvia e Maggie. Enquanto esperava por dez agonizantes e
longos minutos, Rose pensou que ele tinha lhe dado um bolo. Sylvia e
Maggie eram da mesma opinião.
— Rosie, quantas vezes tenho que lhe dizer que todos esses ianques são
cheios de conversa e promessas vazias? — repreendeu Sylvia. — Vamos
lá, encontraremos outro para fazer você esquecer isso.
Relutantemente, Rose deixou as duas a levarem dali. Tinham acabado
de virar a esquina para a Windmill Street, a fim de cortar caminho pelo
Soho, quando alguém se aproximou de mansinho e a agarrou pela
cintura, fazendo-a gritar de susto. Maggie não perdeu tempo e acertou
sua bolsa com tanta força na cabeça de Danny que ele soltou Rose, dando
também um grito.
Não era a mais promissora das apresentações. Maggie não pediu
desculpas por bater nele, e Sylvia apertou sua mão sem vontade, olhou-o
de cima a baixo com uma expressão cansada, então disse:
— Encantada, com certeza. — Ela parecia longe de estar encantada.
— Posso acompanhá-la até em casa, então? — perguntou Danny com
um sorriso. Ele não parecia nem um pouco irritado com a recepção fria.
Ela sorriu de volta e só conseguiu dizer “Bem, eu gostaria...”, quando
Sylvia e Maggie lhes deram os braços e começaram a andar, não lhe
oferecendo escolha a não ser andar com elas.
— Não deixamos Rose ir até em casa com nenhum Tom, Dick ou Harry
— disse Sylvia por cima do ombro.
— E que tal um Danny? Ela pode ser acompanhada até em casa por
um Danny? — perguntou ele enquanto as seguia pelas ruas escuras. —
Preciso pedir a meu comandante que escreva uma carta de
recomendação?
— Ainda não temos opinião formada sobre Dannies — disse Maggie.
— Sinto muito. Não sei por que elas estão agindo assim!
Sylvia lançou a Rose um olhar de pena.
— É exatamente por isso que não vamos deixá-la ir até em casa com
ele.
Então, Danny acompanhou-as até o Bouillabaisse e pagou pela entrada
delas.
— Eu não danço — afirmou ele quando Rose tirou o casaco, endireitou
o cabelo e a banda começou a tocar algo rápido no estilo jive. Ele olhou
em volta no salão lotado. — Você sabe que este é um clube de negros?
— E daí? Os negros têm modos e passos melhores do que a maioria dos
brancos com quem dançamos — informou Sylvia com altivez, mas Danny
apenas deu de ombros, como se estivesse acostumado a lidar com
melhores amigas arrogantes.
— Eles são realmente maravilhosos — concordou Rose.
Ela sentou a seu lado, porque queria estar perto dele. Perto o bastante
para que, se ela se curvasse, Danny pudesse beijá-la, mas Danny não
parecia inclinado a beijá-la, nem mesmo quando ela fez biquinho e olhou
para ele. Por fim, quando o terceiro homem criou coragem para chamar
Rose para dançar, Danny lhe disse para ir em frente.
Entre uma dança e outra, ele pagou para Maggie e Sylvia um Gin and
French e para Rose um refrigerante de gengibre, já que ela ainda não
tinha encontrado uma bebida de adulto palatável, então ficou guardando
a mesa, enquanto Rose dançava com homens que não eram ele.
Rose sempre ficava feliz em dançar, mas estava menos feliz ao ver que
Danny não se importava em vê-la dançar com outros homens. Com
certeza, se estivesse interessado nela, ele não deveria se importar um
pouco?
Rose pode até ter começado a se desesperar, mas então, na calmaria
entre as músicas e os parceiros de dança, Danny apareceu atrás dela.
Envolvendo-a com o casaco da mãe dela e seus braços, depois
empurrando-a depressa escada acima, enquanto Sylvia e Maggie estavam
no banheiro feminino com o batom vermelho de Rose.
Quando ela tentou dizer isso a Danny, ele silenciou-a com um beijo.
— Eu lhe compro outro batom — prometeu quando ela afastou a boca
da dele por simplesmente não conseguir aguentar mais a acelerada
palpitação em seu peito. — Preciso ficar um tempo a sós com você.
Era uma noite fria, densa. O nevoeiro os envolvia, embora Rose
pudesse jurar sobre uma pilha inteira de Bíblias que via estrelas no céu.
— Sinto muito por Maggie e Sylvia. Elas tendem a ser superprotetoras.
— Rose meio que esperava que elas irrompessem de repente pela porta
do clube, exigindo que Danny a soltasse.
Rose não queria ser solta, sobretudo quando Danny apertou os braços
em volta dela e seu olhar ficou menos carinhoso e mais determinado.
— Então, onde você mora, tem seu próprio quarto?
— Ah, não. Divido um quarto minúsculo com a Sylvia, e ela
provavelmente vai para casa logo, eu acho.
— Não há nenhum lugar onde possamos ficar sozinhos? — perguntou
Danny num sussurro que fez cócegas em seu ouvido e deixou Rose se
sentindo pesada e lânguida. — Só nós dois.
Rose sabia exatamente o que ele queria. Tinha ouvido Phyllis e Maggie
sussurrarem sobre um rapaz chamado Brian, que partira o coração de
Phyllis depois que ela lhe permitira certas intimidades que garantiriam a
Brian umas boas chicotadas se o pai dela um dia descobrisse.
E também havia aquelas meninas de olhos vermelhos e rosto pálido no
consultório de seu pai, com as mães de rosto desgostoso. Elas eram
enviadas para uma casa nos arredores de Newcastle e voltavam alguns
meses depois, mais gordas e ainda mais pálidas. E Rose já estava em
Londres havia quatro meses, tempo suficiente para saber bem o que
aquelas garotas de aparência atrevida queriam dizer quando gritavam
“Marcha rápida! Chuva de prata!” para os soldados a caminho do
Rainbow Corner.
Além disso, havia algo de assustador e imprevisível em beijar Danny —
como se Rose não se conhecesse mais ou pudesse começar a tentar
adivinhar o que dizer ou fazer para ele concordar em nunca parar de
beijá-la.
Então Rose fez questão de ficar com os olhos bem arregalados.
— Não há nenhum lugar.
Ela não teve de fingir o tremor na voz, porque Danny podia ser do tipo
que só queria tomar liberdades e, se ela não concordasse, então talvez
simplesmente saísse pelo nevoeiro para nunca mais ser visto.
— Sorte sua que você é tão bonita — disse Danny finalmente. —
Embora eu deva lhe dizer, criança, que ficar aos beijos pelas portas não é
meu estilo.
— Nem meu também — disse Rose com um pouco mais de convicção
agora que as coisas já tinham saído como queria. — Mas sua sorte é que
você é muito bom em ficar aos beijos pelas portas porque, afinal, não sabe
nem dançar!
Ninguém, nem Shirley ou Sylvia, já tinha sugerido que fazer um
homem rir poderia garantir sua devoção. Mas fazer Danny rir parecia ser
o truque mágico que o fazia voltar noite após noite.
Danny era piloto de bombardeiro. Ou melhor, ele não tinha negado
quando Rose lhe perguntara, só erguera a sobrancelha e dissera que
entendia de aviões. Embora agora estivesse havia um tempo em terra e
baseado em Londres. Algo a ver com um ferimento antigo que ele insistia
não ser nada e com alguma coisa oficial sobre a qual não estava
autorizado a falar, o que significava que ele estava alojado no Columbia
Club, em Lancaster Gate, por duas semanas.
Catorze noites. Pelas suas contas, Rose estava apaixonada a partir da
sexta noite.
Danny nunca entrava no Rainbow Corner, mas sempre a esperava do
lado de fora quando ela aparecia com uma ou às vezes todas as três
acompanhantes, embora Phyllis achasse Danny maravilhoso.
— Ele parece um Ronald Colman mais jovem e mais forte — dissera
suspirando depois de lhe ser apresentada, mas isso não significava que
ela era negligente em seus deveres.
Todas as noites, Danny ia com elas ao Paramount ou ao Bouillabaisse
ou, se elas conseguissem andar tanto, à Royal Opera House, em Covent
Garden, onde agora se dançava. Ele pagava a entrada delas, conseguia-
lhes uma mesa, comprava-lhes bebidas e via Rose dançar com outros
homens. Phyllis, Maggie e, principalmente, Sylvia estavam sempre
atentas e nunca deixavam os dois sozinhos, então ficava cada vez mais
difícil sair escondido para aqueles beijos apaixonados e enlouquecedores.
Mais difícil, porém não impossível quando Rose podia procurar os cantos
mais escuros do clube e esperar, com o coração acelerado, por mãos que a
agarrassem pela cintura, lábios que beijassem seu pescoço.
Ele também a tocava. Deslizava as mãos para descansá-las em seu
quadril ou sentir os seios dela sobre qualquer vestido emprestado que
estivesse usando, e Rose deixava porque, durante os primeiros segundos
em que as mãos dele se moviam sobre seu corpo, ela mal podia lembrar o
próprio nome. Então ela recuperava a razão e o afastava.
— Você não deve fazer isso. — Ela nunca soava firme. — Não está
certo.
Às vezes, ela achava que não dizia isso por causa do decoro, mas
porque Danny ria ao ouvir. Um riso lento e insolente que lhe provocava a
mesma sensação que os beijos, e quando eles enfim deixavam o salão
para a longa caminhada até sua casa repleta de pedidos de beijos, ela
estava tão aquecida que nem sequer notava o frio da noite escura de
inverno castigar sua pele.
11
***
Jane estava dormindo quando Leo acordou com uma sensação esquisita
na boca e um peso enorme na cabeça. Ele ficou deitado ali por um tempo,
feliz em observá-la, embora isso provavelmente fosse um tanto esquisito.
Até dormir era algo que ela fazia com perfeição. Braços e pernas
dobrados bem junto ao corpo, o rosto lindo e tranquilo, porque Jane
nunca faria nada tão deselegante quanto dormir com a boca aberta, babar
ou roncar.
Leo ainda se sentia culpado por tê-la jogado aos leões na noite anterior.
E, por falar nisso, era hora de ele ir para o Coliseu. Eram oito da manhã.
A casa já tinha ganhado vida. Ele podia ouvir o som distante de alguém
passando o aspirador, uma porta sendo aberta, vozes.
Leo vestiu depressa as mesmas roupas do dia anterior. E do dia antes
desse. Ele duvidava que houvesse alguma coisa na casa que ainda
coubesse nele, e também não queria acordar Jane ao abrir gavetas e
mexer em cabides.
Ele desceu as escadas, sorrindo para Anna, que desviou os olhos
enquanto arrastava o aspirador de pó atrás dela, e correu pelo corredor
em direção ao coração da casa.
— Ah, Leo, estávamos falando da sua esposa — disse Rose jovialmente
antes mesmo que ele chegasse à cozinha.
Ela e Lydia estavam tomando café da manhã juntas. E ocupando o
lugar de honra na mesa de pinho estava o grande bule Cornishware azul e
branco, de que Leo se lembrava tão bem de outros cafés da manhã na
cozinha. As pesadas canecas de porcelana, o suporte de prata cheio de
torradas e as geleias caseiras de Lydia em pequenas tigelas
descombinadas, tudo isso era antigo e familiar.
A cena acolhedora recordou Leo de chegar sorrateiramente em casa
“com o galo cantando”, como Rose falava, entrar pela porta dos fundos e
dar de cara com Lydia e Rose já na cozinha.
— Entre, Leo. Nós não mordemos — disse Lydia, o que lhe fez lembrar
que as duas sempre tiveram o costume de provocá-lo.
Diziam que ele era um galinha e que precisava sossegar com uma
garota legal. “Você pelo menos conhece alguma garota legal?”,
perguntava Rose, e as duas riam. Era uma lembrança agradável.
— Não parece que você tomou banho — comentou Rose enquanto Leo
sentava a seu lado. — Você não estava usando essa mesma camisa suja
ontem?
— Sim. Não trouxe nenhuma bagagem. Longa história.
Não era de fato uma história longa. A última vez em que vira sua
bagagem fora na casa da piscina de Melissa e Norm.
Rose olhou para Leo com ar cansado, como se tudo com ele sempre
fosse uma longa história.
— De qualquer forma, com relação à sua Jane... — disse ela. —
Estávamos falando aqui como ela é incrivelmente bonita.
— Nunca vi alguém tão bonito assim na vida real — acrescentou
Lydia. — Quer que eu prepare alguns ovos para você, Leo?
Ele balançou a cabeça e pegou um pedaço de torrada.
— Dá vontade de sentar de frente para ela e passar horas apenas
observando seu rosto — disse Rose com um sorriso irônico. — Você já
chegou a se cansar de olhar para ela?
Leo deu uma mordida na torrada com geleia e mastigou, pensativo.
— Ela é bonita, eu acho — disse ele, por fim. — Para dizer a verdade,
ela parece um pouco largada logo assim de manhã.
— Tenho certeza de que não é verdade, seu insensível.
Rose deu um tapa forte no braço dele e, sob a impiedosa luz da manhã,
sem maquiagem e com o cabelo coberto por um lenço, ele pôde ver os
escuros círculos roxos ao redor dos olhos azuis, que tinham ficado meio
turvos e avermelhados. Mesmo a mão que ela descansava sobre a mesa
tinha mudado. Rose tinha mãos bonitas e elegantes, com dedos
compridos. Mãos de pianista, Leo sempre pensara, mas agora ele via
veias saltadas como vermes azuis gordos e dedos tortos.
Não era só a crueldade do tempo de dez anos a mais em seu rosto e
corpo ou o novo som áspero em sua voz. Havia uma hesitação nos
movimentos, como se ela tivesse de pensar muito antes de levar a caneca
à boca ou de colocar um pouco de geleia no prato. Como se quisesse se
poupar e guardar forças para quando tivesse de tensionar os músculos
para afastar a dor.
Ela estava fazendo isso naquele momento. Um tremor fez seus dedos se
contraírem e ela abaixou a cabeça, respirou rapidamente duas vezes e
então suspirou, aliviada.
— Sua Jane é uma pessoa bem interessante, não é?
— Bem...
— Não consigo imaginar o que vocês dois têm em comum — disse
Rose com sarcasmo. Ela não tinha perdido nem um pouco o jeito afiado.
Aquele jeito tão afiado que poderia fazê-lo em pedaços, mas Leo estava
bem satisfeito em ver que tinha se preservado. — Vocês se casaram
mesmo?
— Sei que parece inacreditável, mas sim, nos casamos. Ela é muita
areia para o meu caminhãozinho, não é?
Lydia estava colocando mais pão na torradeira, mas olhou para Leo e
sorriu.
— Com certeza. Você sabe algo sobre ela que a obrigou a dizer
“aceito”? Você sabe algum segredo sobre o passado dela?
Parecia uma pena acabar com a atmosfera leve, mas ele não podia
mais ignorar a imobilidade calculada de Rose. Antes da partida dele, ela
sempre fora tão inquieta, em constante movimento. Leo cobriu os lindos
dedos prejudicados dela com a mão. Ela estava fria ao toque.
— Como você está? De verdade? — perguntou.
Ela olhou nos olhos dele por um tempo e a ligação que sempre tiveram
pareceu voltar momentaneamente à vida.
— Nada mal, creio eu — respondeu. Leo percebeu vagamente Lydia
sair da cozinha, deixando só os dois ali. Leo e Rose. — Levando em
consideração a situação toda.
— Câncer? — Ele mal pôde dizer a palavra. — Lydia disse que era.
Falou que você já teve antes. Por que você não está lutando contra a
doença dessa vez?
Se Rose podia desistir, então que chance ele tinha?
Agora era Rose que segurava sua mão, e não o contrário.
— Na primeira vez, lutei com tudo — respondeu ela. — Mas isso foi há
nove anos. Na minha idade, nove anos a mais conseguem fazer um
estrago e tanto. Além disso, eu sabia que voltaria. Sempre volta. Com mais
garras e dentes.
— Mas você é forte — protestou Leo. — Pode lutar de novo.
— Ah, meu menino — retrucou, como se ele ainda significasse muito
para ela. — Já enganei essa doença muitas vezes. Minha mãe, sua bisavó,
morreu não muito tempo depois da guerra. Ela só tinha quarenta e três
anos. E a sua avó, minha irmã, Shirley, mal conseguiu passar dos
cinquenta, então me saí muito bem chegando até aqui.
— Mas por que você não está fazendo quimioterapia, ou como é
mesmo? Radioterapia? — questionou ele.
Rose esfregou o polegar contra as costas da mão dele de uma maneira
distraída que não ajudou a acalmá-lo.
— Porque eu já fiz isso antes, as duas, e eu ficava muito cansada e
fraca. Não queria fazer nada. Ir a lugar nenhum. Ver ninguém. — As
pálpebras de Rose se abaixaram como se simplesmente lembrar o
tratamento fosse exaustivo. — Leo, estou no estágio quatro de um câncer
secundário de fígado. Tenho alguns meses, se tiver muita, muita sorte.
Semanas, se eu não...
— Mas a quimioterapia com certeza lhe daria meses...
— Prefiro gastar o tempo que me resta sem me sentir um trapo velho.
Qualidade de vida, como meu médico fala. Você não deveria se
preocupar, estou cheia de comprimidos. — Rose sorriu bravamente e se
balançou com muito cuidado na cadeira. — Se prestar bastante atenção,
pode ouvi-los chacoalhar.
Ela queria que ele sorrisse, estava esperando por isso. Então Leo
esticou os lábios obedientemente.
— Você está sentindo muita dor?
— Não muita. Semana passada até coloquei um capacete de segurança
para inspecionar um projeto de reforma, embora tenha achado melhor
não subir nenhuma escada. — O sorriso de Rose foi mais convincente do
que o dele. — Com relação à dor, numa escala de zero a dez, o nível está
em três com a ajuda dos remédios. Às vezes chego a seis quando não
tomo na hora certa. Não é tão ruim, não é?
— Acho que não. — Ele assentiu decididamente. — Mas, se ficar pior
do que um seis, podem lhe dar algo mais forte, certo?
Lydia tinha voltado à cozinha e o humor mudou novamente. Rose tirou
sua mão, endireitou o lenço e, quando olhou para Leo, ele pôde ver todos
os próprios erros. Da geleia no canto da boca à barba por fazer, à camisa
esticada sobre a barriga, o cheiro azedo que dava para sentir se não
mantivesse os braços colados ao corpo.
— Já que estamos sendo honestos um com o outro... preciso me
preocupar em ter analgésicos controlados em casa se você ficar? —
perguntou a ele. Rose ser tão franca nem sempre era algo positivo. Às
vezes, como naquele momento, era como ser cortado e ter as entranhas
expostas sob um microscópio.
— Deus, não. Não! Você não precisa se preocupar com isso. Eu nunca...
— Ele se limitou a soltar o ar pelo nariz.
— Você ainda usa drogas? — perguntou Lydia sem rodeios. As duas
eram implacáveis.
— De vez em quando. Só maconha. — Uma meia verdade era melhor
do que tentar explicar que era possível cheirar um grama de cocaína ao
longo de um fim de semana e depois não chegar nem perto do pó por
séculos. Houvera meses, até mais, em que ele simplesmente não quisera
nada. Como os dois anos que passara em Sydney, quando pintara casas,
trabalhara um pouco como bartender, surfara. Ele poderia até ter ficado
se o visto não tivesse vencido. — Nunca mais fiquei mal como naquela
época.
— Sério? Porque assistimos a um programa de TV sobre dois homens
que faziam metanfetamina — disse Lydia.
— Pois é, assistimos — confirmou Rose. — Não consigo imaginar por
que alguém iria querer usar algo assim. Não parecia nem um pouco
divertido.
Leo soltou uma risada, então escondeu o rosto nas mãos, os ombros
sacudindo. Talvez tenha até chorado um pouco.
— Se usasse metanfetamina, eu não estaria gordo como agora —
conseguiu dizer quando parou de rir.
— Imagino que sim — disse Rose. — Então você vai ficar por um
tempo?
— Eu não tinha pensado a longo prazo. Nunca penso, não é?
Havia alguma outra coisa incomodando Rose. Não só sua completa
inabilidade de pensar em um pedido de desculpas, mesmo que
esfarrapado. Algumas pessoas são incapazes de olhar nos olhos do outro
quando estão prestes a lhe dizer algo desagradável, mas isso não era o
estilo de Rose.
— Você precisa saber então que sua mãe está na cidade — avisou.
— Certo. O.k. — A notícia era como um bilhete preso à sua porta que
você pode ver enquanto sobe as escadas e, a cada passo dado, o medo
aumenta até quase engoli-lo. — Ela não vai ficar aqui, não é?
Rose balançou a cabeça.
— Não, ela insiste que seria um incômodo, embora não seja. Temos
sempre a mesma discussão toda vez que ela vem a Londres. — Ela
parecia exasperada, mas a autodepreciação de sua mãe era mesmo
cansativa. — Ela vai ficar em um apartamento vago naquele meu prédio
na Kensington Church Street.
— Então, ela está bem, não está? — perguntou Leo, inundado por
ondas frias e gordurosas de culpa.
— Está, e ela vem almoçar hoje aqui, então talvez seja melhor você não
aparecer. — Rose parecia irritada agora. — Dez anos, Leo, e você nem
sequer ligou ou lhe mandou um cartão-postal. Acho isso cruel de um
modo imperdoável.
— Se eu tivesse ligado, ela só teria ficado chateada. — Ficar fora da
vida da mãe fora a coisa mais gentil que poderia ter feito. Fora
praticamente nobre de sua parte. — Por favor, achei que estivéssemos nos
entendendo, Rose. Não pegue no meu pé por causa disso.
Rose pareceu murchar diante de seus olhos.
— Gosto de verdade da sua mãe. Ela volta para Durham em poucos
dias, e duvido que vamos nos ver outra vez...
Ela parou, virou a cabeça, mas não antes que Leo visse uma lágrima
rolar pelo rosto vincado. Mas não podia ser, porque Rose não fazia coisas
como chorar. Mesmo assim, ela levou a mão ao rosto para eliminar a
prova, e foi a vez de Leo virar a cabeça e perceber que também piscava
para se livrar das lágrimas. Toda aquela conversa sobre comprimidos e
qualidade de vida obscureciam o simples fato de que, em alguns meses,
Rose não estaria mais ali. Não sentaria para o café da manhã ou tocaria o
bule de chá para ver se estava quente, como fazia agora. Ela partiria.
— Eu gostaria, mais do que você imagina, que em algum momento
você se acertasse com sua mãe, lhe apresentasse Jane, se reconectasse,
mas não agora. Você só ficaria no caminho. É irracional da minha parte?
— Não — respondeu Leo. — Você está certa. Talvez eu não devesse ter
voltado.
Rose envolvia o bule com as mãos. Sua atenção não estava voltada para
ele, mas para a janela da cozinha, que dava para as cavalariças na parte
de trás da casa, onde dois homens estavam reunidos perto de uma
escada.
— Bem, sim, talvez você não devesse ter voltado — concordou ela.
13
Fevereiro de 1944
— Minha querida Rose, só porque Danny foi embora, não há motivo para
ficar de luto — disse Sylvia enquanto caminhavam pelas ruelas em
direção ao Rainbow Corner numa noite gélida no final de fevereiro.
Estava tão frio que Rose pedira à mãe para mandar sua roupa de baixo
térmica pelo correio. — Não há razão para colocar todos os seus ovos
numa única cesta, por assim dizer.
— Achei que ele já teria escrito a essa altura. Nem que fosse um
cartão-postal. Não demora nada escrever um cartão-postal — reclamou
Rose. — A não ser que algo terrível tenha acontecido com ele. E se...
— Eu me recuso a ouvir “e ses”. Vamos conversar sobre algo mais
alegre.
Sylvia ainda falava do novo chapéu que planejava comprar quando
chegaram ao Rainbow Corner e se prepararam para ir cada uma para um
lado.
— Vejo você aqui de novo às dez e meia — disse Rose. — Você quer
sair para dançar depois? Ir ao Opera House, talvez?
— Não estou com vontade de ir até Covent Garden — reclamou Sylvia,
mas, quando Rose ia sugerir que poderiam tentar o Astoria, sentiu uma
mão em seu braço.
— Exatamente a pequena que eu estava procurando — disse Mickey
Flynn, muito embora Rose fosse pelo menos dez centímetros mais alta do
que ele. — Sobre aquele favor que você me deve...
— Você deveria falar comigo sobre quaisquer favores — disse Sylvia
com rispidez.
— Só vim dizer à nossa Rosie que estamos quites.
— Estamos? — Era impossível fazer Mickey Flynn olhar nos olhos de
alguém. O olhar dele ou estava fixo em seu peito, ou em algum lugar à
meia distância, como se estivesse sempre em alerta atrás de alguém que
lhe devesse um favor. — E como isso aconteceu?
— Foi assim. Rose, Sylvia, conheçam Edward. Ele é um cara
importante. Um príncipe entre os homens. Sal da terra. Se seu bom amigo
Mickey Flynn tivesse de recomendar um homem, seria esse.
Sylvia e Rose trocaram um olhar de confusão, depois se viraram e
descobriram que Mickey tinha sumido como se tivesse evaporado no ar.
Em seu lugar havia um homem alto e magro, com uniforme de major, o
corpo um pouco curvado para a frente, o cabelo louro penteado para trás,
revelando feições nobres e um sorriso um tanto nervoso. Rose tinha
certeza de que já o vira antes, mas não conseguia de jeito nenhum
lembrar onde.
— Perguntei a Mickey se ele se importaria de nos apresentar
formalmente. Ele barganhou muito, então agora lhe devo um favor e você
está liberada de sua dívida — disse a Rose. — Talvez seja melhor que eu
deva algo a Mickey do que você. A ideia que Mickey tem de favor pode ser
bem desinteressante. — Sua voz era grave e melosa, e então Rose se
lembrou de onde o vira antes. Na noite em que conseguira seus
documentos, quando saíra da sala de bilhar desesperada para fugir de lá,
não só para longe do olhar lascivo de Mickey, mas daquele homem
também. — E me perguntei se vocês duas me fariam um favor, mas um
tipo muito bom de favor.
— O que é? — perguntou Sylvia, embora ele mal tivesse tirado os olhos
de Rose, que sorrira brevemente, e agora não sabia para onde olhar. Ele,
na verdade, a encarava.
— Minhas fontes alegam que vocês são as duas garotas mais bonitas do
Rainbow Corner e eu gostaria que concordassem em sair comigo e um
colega esta noite. — Ele se inclinou para perto. — Ele é um cara
importante na Unidade de Serviço, mas também é muito maçante. Posso
não conseguir ficar acordado até depois dos aperitivos.
Não parecia uma perspectiva tentadora sair com um cara maçante
encarregado de artigos de escritório e Edward, que a encarara de maneira
desconcertante por cinco minutos.
— Estaríamos em sérios apuros se apenas aceitássemos e fôssemos —
disse Rose calmamente. — Podemos até entrar para a lista negra.
— Não brinque com essas coisas. — Sylvia levou a mão à testa, como
se fosse desmaiar.
— Tenho certeza de que posso resolver isso com a sra. Atkins. Ela não é
a encarregada das voluntárias? — Ele já começava a se afastar como se
pensasse em ir atrás dela.
— Deve ser melhor do que três horas no balcão de informações —
disse Sylvia. — Três horas!
— Sim, mas...
— Ah, a propósito, pensei em irmos ao Criterion, se você estiver de
acordo.
Jane não sabia a que horas ela enfim tinha caído no sono, mas acordou
na manhã seguinte quando Leo entrou no quarto com uma bandeja de
café da manhã.
— Para compensar por colocá-la diante do pelotão de fuzilamento
ontem à noite — disse ele com um sorriso triste, que Jane ficou mais do
que feliz em retribuir, além de concordar em seguida com a sugestão de
Leo de passarem o dia como turistas.
O que mais ela poderia fazer? Além disso, passar o dia, muitos dias,
com Leo não tinha de ser uma provação. Ele era engraçado, fácil de lidar,
charmoso quando queria e, quando deixaram a casa e começaram a
andar por Kensington, ele tinha uma história sobre cada rua por que
passavam. Histórias sobre uma juventude desperdiçada de raves ilegais
em armazéns abandonados, correndo atrás de herdeiras de Chelsea que
não lhe davam a menor atenção e tentando curar suas ressacas comendo
frituras.
Naquela manhã, o sol de final de outubro estava alto e brilhante, mas
havia um cheiro de outono no ar que fez Jane pensar em fogueiras e fogos
de artifício. Eles caminharam pelas ruas secundárias, parando para
tomar café em um boteco italiano — Leo ficou desapontado por não se
lembrarem dele — e então no Victoria and Albert Museum.
— Vamos começar pela parte de baixo — disse Leo, embora a parte de
baixo fosse muito chata: entalhes em pedra detalhados, vasos e relíquias
religiosas antigas.
Até mesmo a palavra “artefato” fazia Jane querer bocejar. Em seguida,
havia as galerias. Jane sofreu em silêncio pelo bem de Leo, porque ele
obviamente gostava mais de arte do que ela, mas ele andava sem muito
entusiasmo, com as mãos nos bolsos de um velho casaco preto.
— Deus, isso é maçante — declarou ele. — Vamos ver os vestidos
bonitos.
Os vestidos bonitos eram a parte de que Jane mais gostava quando ia
ali nas tardes de domingo com Charles. Ele também começava pela parte
de baixo, mas eles sempre deixavam o melhor para o final e acabavam
nas galerias de moda.
— Vou querer aquele e aquele, não aquele, mas com certeza aquele
outro — dizia ela apontando para vestidos de baile Schiaparelli ou um
elegante vestido Balenciaga, como se estivesse andando pela Selfridges
com uma personal shopper.
Naquela época e agora, acabaram no café. Leo comeu bolo. Era muito
cedo para tomar uma bebida, embora, se ele estivesse sozinho, Jane tinha
certeza de que teria tomado uma. Jane tomou um café descafeinado.
— O que vamos fazer agora? — perguntou. — Que horas são?
Era só meio-dia e meia, o café ficando cheio com as pessoas que
vinham almoçar; adolescentes com ar inexpressivo carregando mochilas
enormes, mães com bebês em carrinhos e cangurus Björn e uma
quantidade assustadora de damas das províncias em sapatos confortáveis
e anoraques.
— Só podemos voltar daqui a pelo menos duas horas — observou Jane.
— Você não disse que Rose ia receber alguns convidados para o almoço?
— Não são convidados. É minha mãe. — Leo raspou a lateral do garfo
pelo prato para recolher as últimas migalhas de cobertura de cream
cheese. Eles estavam sentados ao lado de uma janela, e era a primeira vez
que Jane o via sob uma luz tão clara e forte. Estava ficando grisalho nas
têmporas, o rosto pálido, a pele flácida ao redor dos olhos e no queixo. —
Ela estará na cidade durante os próximos dias, então tenho que ficar na
minha. — Ele não a olhava nos olhos. — Não sou sequer fodido de uma
maneira interessante, incrível. Todos os meus problemas são tão classe
média branca.
Jane percebera isso cinco minutos depois de conhecê-lo.
— Você poderia escolher não ser fodido — sugeriu ela.
— Nada, todo mundo é fodido. Até você. Se o seu pai morreu mesmo
quando você era criança e sua mãe a enfiou em algum internato cheio de
malucos religiosos na selva australiana, então você é fodida também.
— Você pode superar o estado de fodido. É uma questão de se dedicar.
Leo fez um movimento com o garfo para ela, estreitando os olhos
inchados.
— A menos que nada disso seja verdade, o que significa que você está
fodida de uma maneira completamente diferente.
— Querido, temos mesmo que passar as próximas duas horas
debatendo os detalhes de ser fodido? — perguntou Jane. — Se for assim,
prefiro ir ver os artefatos religiosos entediantes.
— Só estou dizendo que...
— Olá! Que bom encontrar vocês aqui! — Os dois se viraram na
direção da voz empolgada e um tanto afetada.
Era George. O George de Rose, que chegara para salvá-los de si
mesmos. Como era um curador do museu, levou-os às entranhas do
prédio para lhes mostrar todos os tipos de tesouros. Uma coleção de
objetos de cristal escandinavos do início do século XX, uma calça bondage
de Vivienne Westwood, esculturas de origami menores do que o dedo de
Jane, que eram muito bonitas, mas tão frágeis, que a faziam se sentir
triste só de olhar para elas.
George insistiu que se juntassem a ele para almoçar no refeitório dos
funcionários para que pudesse deliciá-los com histórias sobre Rose.
Como eles se conheceram no balcão de queijos da Harvey Nichols havia
quase quarenta anos: George aos dezenove anos com seu moicano azul e
short de couro parando para perguntar à Rose se seu vestido de bolinhas
era um Claire McCardell vintage.
— Embora ela não dissesse que era vintage. Ainda não diz. Ela fala que
não há razão para se jogar fora roupas em perfeito estado. De qualquer
forma, foi amor à primeira vista. Não, isso é pura hipérbole. Foi um caso
de melhores amigos à primeira vista. — George de repente desmoronou.
Parecia que alguém tinha começado a apagar as bordas de seu rosto fino
e alegre de pássaro, os olhos de coruja se destacando por trás dos óculos
de aros grossos. — Acho que não se passou um dia desde então em que a
gente não tenha se falado. Não consigo imaginar minha vida sem Rose.
Ele estava chorando. Bem ali na mesa. Jane ficou ali sentada, na agonia
do constrangimento, porque todo mundo, todos os colegas de George,
olhavam para eles.
— Rose odiaria que eu chorasse, mas, quando não estou com ela, não
consigo parar — disse George. Suas lágrimas manchavam as lapelas finas
do terno, uma caiu com um som vívido no prato do seu pão, bem no meio
da manteiga.
Jane virou o rosto e enrijeceu o corpo. Odiava ver alguém chorar.
Sempre queria lhes dizer para serem homens. Serem fortes. Chorar não
resolvia nada, só fazia as pessoas o considerarem fraco.
— Ei, George, vamos lá, amigo. — Ela ouviu Leo dizer suavemente,
então ele desajeitadamente se levantou, pegou alguns guardanapos e se
agachou na frente do homem mais velho. — Você sabe que Rose iria
matá-lo se soubesse que chorou na cantina de funcionários do museu. Ela
esperaria que no mínimo fosse no Ritz.
George deu uma risada curta e fleumática, pegou os guardanapos que
Leo lhe oferecia e enxugou os olhos.
— Obrigado — agradeceu baixinho. Então assoou o nariz. — Na
verdade, Rose odeia o Ritz. Ela se recusa a frequentá-lo. Diz que é cheio
de turistas e pessoas com mais dinheiro do que sensatez.
Leo deu um tapinha no joelho de George. Jane não esperava que ele
fosse capaz de um gesto tão gentil. Tentar ajudar alguém que estava
sofrendo sem segundas intenções. Leo ainda estava agachado na frente de
George e tinha tomado as mãos do homem mais velho nas dele.
— Um dia, quando você realmente precisar se animar, vou lhe contar
sobre a única vez em que fui ao Ritz. Consegui dar um jeito de me
deixarem entrar na festa de vinte e um anos de uma supermodelo. Doze
horas mais tarde, fui levado para fora pela cozinha usando botas de
motociclista e um vestido dourado que ganhei de outra supermodelo. —
Ele se levantou e estufou o peito. — Fui banido para sempre de todos os
Ritz do mundo.
George ainda assoava o nariz, mas seu rosto estava firme de novo,
apesar de um pouco mais rosado do que antes.
— Senti sua falta, Leo — disse ele, com uma última fungada. — Nós
dois sentimos. Que bom que voltou.
Eles não ficaram por muito mais tempo depois disso. Já passava das
três.
— Bem, são três horas, a essa altura o almoço já deve ter acabado —
disse Jane. — Duas e meia é o padrão. Vamos voltar para eu trocar de
sapato.
Caminharam de volta para casa em silêncio. Desde que tinham se
despedido de George, Leo ficara muito quieto. E só se recuperou quando
chegaram à praça. O sol começava a baixar, com a luz suave e difusa e as
folhas que caíam criando sombras dançantes. Leo pegou o braço de Jane.
— Vamos dar a volta por trás — disse ele. — Assim não corremos o
risco de encontrar ninguém na entrada.
Jane resolveu não perguntar a Leo por que ele estava tão determinado
em evitar a mãe. Essas coisas de família eram sempre confusas, repletas
de desconsiderações reais e imaginárias, além de rixas que remontavam a
anos. Com sorte, ela não teria de ficar por tempo o bastante para se
envolver.
— Liddy e Frank moram ali... aquela com a porta vermelha — disse
Leo de repente, enquanto conduzia Jane por uma série de casas que
lembravam cavalariças à esquerda da casa, as pedras acabando com suas
sapatilhas. Ele apontava para uma casinha bonita, daquelas que já
abrigaram carruagens. — Você já conheceu o Frank? Ele é o marido de
Liddy e motorista de Rose. Também ajuda muito na casa. Trocando
lâmpadas, resolvendo...
Jane não estava prestando muita atenção até Leo parar de falar de
repente, com o olhar fixo em Rose e outra mulher, tão alta quanto ela,
porém mais jovem, o cabelo mais escuro, saindo por uma porta. Elas se
abraçaram, sem jeito, porém carinhosamente, como se a óbvia
consideração que tinham uma pela outra não costumasse se estender a
abraços.
— Bem, é isso — disparou Leo como se Jane o tivesse levado ao limite
e depois pressionado ainda mais. — Vou dar o fora daqui.
— Não seja tão bobo. — Qualquer que fosse a animosidade que
pudesse haver entre Leo e a mãe não era motivo para ele sair dali daquele
jeito irritado, o casaco balançando com o vento. — Pelo amor de Deus,
querido, volte!
Rose e a outra mulher — a mãe de Leo, porque só poderia ser ela — se
viraram para olhar.
Leo bem que poderia ter engolido o orgulho e tentado contornar a
situação. Podia ter dito Oi, você parece ótima, como está o papai? Está frio
para esta época do ano, não é?. Teria sido banal e um pouco doloroso, mas
não o teria matado. Também não mataria Jane. Então ela seguiu em
frente com o que Leo não teve coragem de fazer; estampou no rosto o
sorriso mais corajoso e caminhou em direção às duas mulheres.
— Olá — disse Jane alegremente. — Espero não estar interrompendo
nada.
Parada à soleira da porta da cozinha, Rose as apresentou.
— Linda, eu lhe falei sobre Jane, a mulher de Leo. E, Jane, não tive a
chance de lhe dizer nada sobre Linda, a filha mais nova da minha irmã
Shirley. Seu bebê da coroação, como Shirley costumava chamá-la.
Elas apertaram as mãos. Murmuraram cumprimentos. Linda voltou a
se encolher assim que o aperto de mão acabou. Havia um eco de Rose no
rosto dela, um ligeiro traço de Leo. Talvez ao redor dos olhos ou na curva
generosa dos lábios, que ela repuxou ansiosamente em um sorriso
educado.
— Sinto muito pelo Leo. Posso ir atrás dele — sugeriu Jane, na
esperança de uma fuga rápida.
— Não há razão para isso — afirmou Rose. Ela olhou para o céu, que
passara de azul a cinza enquanto estavam ali. — Vai chover.
— É melhor você entrar — disse-lhe Linda. — Está muito frio para
ficar parada aqui fora.
— Não exagere. Um pouco de brisa não vai me matar. — Mas então
Rose estremeceu, e Jane achou que ela poderia entrar sem discutir. Em
vez disso, parou e olhou para Linda, depois para Jane. — Vocês também
podiam sentar e conversar um pouco sobre aquele seu garoto.
Rose as deixou depois de levá-las pela cozinha e depois descendo meio
lance de escada até o que chamava de sala de estar da manhã e Jane teria
chamado de solário.
Linda ficou na beirada de um sofá azul-esverdeado como se pudesse
fugir a qualquer momento.
— Rose disse que você era muito bonita. — Isso soou como uma
acusação, e talvez Linda tenha percebido isso, porque afundou um pouco
como se estivesse se forçando a relaxar. — Sinto muito.
— Não tem problema. — Jane desejou que sua beleza se apagasse um
pouco. — Tenho certeza de que esta visita já é difícil o suficiente sem Leo
e eu aparecendo assim do nada.
Linda não era realmente relevante, mas era a mãe de Leo e Rose
parecia gostar dela, então talvez pudesse ser útil. Depois de três anos de
passeios de compras, dias de spa e almoços só das garotas com Jackie, ela
sabia desempenhar com perfeição o papel da nora ansiosa para agradar.
Então, quando Lydia entrou com uma bandeja cheia e Linda olhou
fixamente para o bolo de nozes, Jane disse que comeria uma fatia porque
Linda tinha o olhar faminto e desesperado de uma mulher que não podia
suportar comer bolo sozinha.
No entanto, tentar manter uma conversa era como andar em meio ao
melado com um salto de quinze centímetros. Foi só com obstinada
perseverança que Jane descobriu que Linda ficaria mais dois dias em
Londres e então pegaria o trem de volta para Durham na quinta de
manhã, pois detestava dirigir em estradas. E era uma espécie de tradição
que, em sua última noite em Londres, ela e Rose fossem ver um
espetáculo e depois jantassem no Joe Allen.
— Isso parece ótimo! — exclamou Jane. Ela já representara para
plateias difíceis antes, mas Linda devia ser a mais difícil até o momento.
Ela olhava para o chão, recusando-se a fazer contato visual, e não tinha
sequer tirado o casaco bege, que estava um pouco grande nela, como se o
tivesse comprado esperando que ainda fosse crescer. — O que vocês vão
ver?
— Leo estava na Austrália três anos atrás? — perguntou Linda. Ela
levantou a cabeça e suas maçãs do rosto estavam um pouco vermelhas.
— Em Sydney?
Jane e Leo ainda não tinham combinado o que estavam fazendo três
anos antes.
— Nosso namoro foi muito rápido. Você sabe como é. Então...
— Porque Alistair, o irmão dele, mora lá. Ele estava trabalhando para
os Médicos Sem Fronteiras, conheceu uma australiana. — Linda
visivelmente parou para se recompor. Respirou fundo três vezes, colocou
as mãos nos joelhos e os ombros para trás. De repente ocorreu a Jane que
a outra mulher não estava nervosa ou constrangida, mas tão irritada que
mal conseguia falar.
— Você está bem? — Jane tentou relaxar os próprios membros para
não ficar toda tensa também. — Não temos que falar sobre Leo se isso vai
chateá-la. É claro que eu o adoro, mas sei que ele pode ser difícil às vezes.
— Alistair viu Leo caminhando na direção dele e chamou seu nome.
Leo olhou bem para ele, depois seguiu em frente e passou por Alistair
como se o irmão não existisse. — Linda olhou para Jane, incrédula. —
Quem faz isso com o próprio irmão?
Jane não conseguia resistir ao impulso de se contorcer um pouco.
— Famílias são muito complicadas, não é?
— Houve uma época, quando ele estava na reabilitação após a
overdose, que eu me culpava — disse Linda, hesitante. Suas mãos não
estavam mais paradas, mas se retorcendo, mexendo nos anéis. — Ele não
lhe contou sobre isso, não é?
— Isso é coisa do passado — retrucou Jane com firmeza, embora não
fosse. Leo consumindo drogas era algo recente como dois dias atrás.
— Bem, não me culpo mais, eu o culpo. — O queixo de Linda se
projetou desafiadoramente. Ela parecia mais com Rose do que com Leo
agora. — Dez anos se passaram e mesmo hoje ainda há algumas noites
em que fico tão furiosa pensando nele que não consigo dormir. Sei que é
bobagem, mas, como Leo não estava por perto, nunca tive a chance de lhe
dizer como me sinto realmente. Como estou furiosa com ele, então digo
isso ao Leo na minha mente várias e várias vezes.
Jane não conversava com seus fantasmas. Ela simplesmente não os
deixava vir à tona. Quando tudo aquilo acabasse, Jane não se permitiria
uma única noite sem dormir pensando em Leo. Era mais fácil dessa
maneira.
— Já se passaram dez anos — disse ela gentilmente. — Você devia tê-
lo deixado para lá.
— Não dá para fazer isso quando se trata de família — argumentou
Linda. — Quando é sua família, nunca acaba.
— Ele não é tão ruim. — Isso dificilmente poderia ser considerado um
endosso de uma noiva apaixonada. Jane poderia fazer muito melhor do
que isso, nem que fosse para recompensar Leo por aqueles instantes de
doçura que ela presenciara. — Ele tem várias qualidades. É muito gentil e
incrível para animar as pessoas quando estão para baixo. Ele é engraçado,
não de uma maneira maldosa. Acho que você perceberia que ele mudou.
— Ele nunca me deu essa oportunidade — disparou Linda, que então
voltou a se controlar. — Sinto muito. Eu não deveria falar com você desse
jeito. É rude e inapropriado. Normalmente sou uma pessoa bastante
sensata e racional.
— Tenho certeza de que é. Não me entenda mal, acho Leo um amor,
mas ele pode ser bem irritante também. — Jane achou que podia arriscar
um leve sorriso de cumplicidade. — Quando ele se atrever a mostrar a
cara de novo, vou lhe dar um bom tapa na cabeça se puder ajudar.
— Pode ser — concordou Linda. Ela quase abriu um sorriso. — Você
tem muito trabalho pela frente.
— Eu sei. Isso mantém a vida interessante. — Jane descruzou as
pernas e mudou de posição, depois cruzou-as de novo, e foi fácil assim
mudar o clima. Estabelecer um fim. Começar de novo. — Você falou
sobre o Alistair... ele ainda está em Sydney? Você já foi visitá-lo?
Alistair era claramente o filho perfeito. Médico, como o pai e os avôs.
Formou-se em medicina com destaque pela Universidade de Dundee, três
anos em St. Barts, depois entrou para os Médicos Sem Fronteiras e
trabalhou no Níger, então Bangladesh, onde conheceu Vicky. Agora
moravam na costa norte de Sydney e estavam esperando a chegada do
primeiro filho para janeiro.
— É difícil... não ter mais os dois filhos por perto — disse Linda. Lydia
olhara da porta cinco minutos antes para perguntar se elas queriam uma
taça de vinho e Linda assentira agradecida. — Gavin, meu marido, tirou
uma licença sabática de seis meses e íamos para a Austrália. Passar o
Natal lá. A mãe de Vicky tem esclerose múltipla, então ela vai precisar de
uma mão quando o bebê nascer. Não que eu queira me meter.
— É claro que não, mas é o seu primeiro neto. Isso é algo muito
especial. — Jackie se mostrara muitíssimo animada com a perspectiva de
ter netos, embora Jane tivesse se recusado a se deixar envolver. — Seria
ótimo escapar do inverno. Passar o Natal na praia, esse tipo de coisa.
— Mas não há como a gente viajar, não com Rose tão mal assim —
disse Linda categoricamente. — Ela não para de falar que eu deveria ir,
mas realmente não vejo como eu poderia.
Jane fez de tudo para não se contorcer mais uma vez.
— Mas Rose pode estar bem no final do próximo ano.
— Ela não estará — retrucou Linda com a mesma voz sem emoção. —
Duvido que ela chegue ao Ano-Novo. Mas ela não vai gostar da ideia de
ficar em tratamento intensivo, e diz que, se eu não for para a Austrália,
não vai me deixar nem mesmo entrar em casa. Sei que Lydia é como se
fosse da família, mas isso não cabe a ela. — Linda olhou para Jane com
expectativa.
— Então, quanto tempo você e Leo estão planejando ficar?
Isso ia muito além do que qualquer um, até mesmo a mais dedicada
das jovens esposas, deveria ter de suportar.
— Eu não sei. Foi uma decisão meio repentina vir até aqui.
— Porque não é como se Leo fosse decidir fazer alguma coisa e... ah,
Deus, é tudo uma grande confusão.
E nada foi resolvido porque a situação era insolúvel. Era uma pena que
a vida não viesse com um monte de setas apontando na direção em que
se deveria ir, pensou Jane quando viu Linda à porta da frente naquele
momento.
— Não acho que Leo seja má pessoa. Eu ainda o amo, mas gostaria que
ele não fosse tão negligente. Ele nunca pensa antes de agir — disse Linda
enquanto apertava impiedosamente o cinto do casaco. As bochechas
tinham voltado a ficar vermelhas de raiva. — Talvez ele tenha mudado.
Não dizem que o amor de uma boa mulher pode mudar um homem?
— Acho que ele está tentando mudar — disse Jane, embora ela não
fosse uma boa mulher e ele não estivesse de fato fazendo tal coisa. Ela
podia ter falado bem dele para a mãe, mas acima de tudo estava furiosa
por ele ter jogado Linda para cima dela.
Linda estava parada na soleira da porta, nem dentro, nem fora.
— A questão é, Jane, que eu não posso me preocupar com esse garoto
agora que Rose... ela é a minha última ligação com a minha mãe; a única
pessoa que a conheceu quando era jovem, antes de ter casado e tido a
mim e meus irmãos. Rose me contou tantas histórias, mas tenho certeza
de que há ainda mais por contar. — Linda engoliu em seco, depois abriu a
bolsa e tentou pegar uma caixa de lenço de papel, mas suas mãos
tremiam muito.
Jane pegou a caixa e entregou um lenço à Linda.
— Vai ficar tudo bem. Você vai passar um tempo maravilhoso com
Rose enquanto estiver na cidade, depois pode voltar a Durham e pensar
por algumas semanas no que quer fazer. Se houver qualquer mudança no
estado de saúde de Rose, Lydia vai ligar para você.
A gratidão fez Linda abraçar Jane por um breve e embaraçoso
momento.
— Foi muito bom conhecer você. Leo é um rapaz de muita sorte. — Ela
olhou para a casa atrás de Jane. — É melhor você entrar. O calor está
saindo. Tenho medo de pensar na conta de luz de um lugar como esse.
Em seguida, ela foi embora — uma figura cinza-clara encurvada
atravessando a praça — e só restou a Jane voltar para dentro.
15
Apesar do frio que tomava conta do lugar à medida que o sol se escondia
por trás dos prédios e da garoa persistente que tinha começado a cair
logo que saíra da praça, Leo caminhava.
Caminhava para longe. Ele sabia que era um covarde. Poderia ter ido
até a mãe, dito olá e que pretendia entrar em contato agora que estava de
volta ao país. Assim como podia ter lhe enviado um cartão-postal de vez
em quando. Ligado para ela no dia do seu aniversário. Mas ele não fizera
nada disso. Era mais fácil não fazer, porque assim não precisaria se
lembrar do olhar decepcionado que sua mãe aperfeiçoara a cada vez que
se deparava com os piores exemplos de seu comportamento — era uma
mistura única de reprovação e perplexidade. De boletins escolares ruins e
a vez no ensino médio em que sua namorada achou que pudesse estar
grávida às sessões quando ele estava na reabilitação. Aconselhamento
familiar. Só que Rose não ia às sessões e seu pai achava todo o exercício
completamente autoindulgente, então era só Linda sentada em uma
cadeira plástica laranja com seu olhar decepcionado.
“É minha culpa”, dissera ela várias vezes durante aquelas duas
semanas. “Não é sua culpa. Sei que você é melhor do que isso.”
Mas ele não era melhor do que aquilo. Ainda era um merdinha egoísta.
Não sabia ser outra coisa. Então, continuou a andar.
Ele tinha se esquecido do simples prazer de dar um passeio. O truque
era ficar atento, assim não se perdia as coisas boas: o leão esculpido na
pedra angular de uma casa vitoriana, a casa com as cabeças grotescas de
gárgula de cada lado da porta da frente. Pedras com as datas das
construções e pedras angulares. Leo ficava feliz cada vez que reconhecia
alguma coisa... era como esbarrar em velhos amigos. Aconteceu o mesmo
quando redescobriu as placas azuis de William e Evelyn de Morgan,
Hablot Knight Browne e Alfred Hitchcock.
Quando ficara com torcicolo de tanto olhar para cima e a garoa se
transformara em uma chuva torrencial, Leo pegou um ônibus, depois
outro, até chegar a Shoreditch, seu antigo reduto.
Os armazéns e fábricas estavam todos reformados agora, lar de
designers, consultorias de marcas e agências de pesquisa de tendências.
Pessoas ficando ricas com besteiras. Nesse caso, Leo já deveria ter tido
várias chances de ser milionário e, logo que pensou isso, ouviu uma voz
alta e rouca atrás de si.
— Leo? — Leo se virou. — Leo Hurst, não acredito! Como raios você
está?
Era Voraz. Seu velho amigo da época da escola de arte de Chelsea.
Tinha esse apelido porque podia aspirar carreiras de cocaína no tempo
que qualquer um levava para enrolar uma nota de cinco libras e levá-la a
uma narina.
— Estou bem — respondeu Leo. — Como você está?
— Ótimo. — Voraz tinha a aparência bem nutrida de um homem que
estava acostumado a almoços por conta da empresa e menus de
degustação de dez pratos. — Meu Deus, já faz anos. Vamos beber alguma
coisa.
Eles encontraram um bar que tinha sido cuidadosamente restaurado
para se assemelhar ao açougue que fora uma centena de anos atrás.
Então foram várias bebidas e várias porções de batatas fritas do chef
Blumenthal enquanto Voraz contava a Leo histórias de modelos com
quem transou, malignos negociantes de arte que ele derrotara e
colecionadores que lhe pagavam muito dinheiro para projetar instalações
para suas casas.
— Afinal, quanto custa fazer uma porra de uma placa de néon?
Panacas!
Quando o bar começou a se encher de pessoas mais jovens, mais
descoladas e com cabelo mais bonito do que eles, Voraz convidou Leo a ir
ao seu estúdio, que ocupava o último andar de uma antiga gráfica perto
da Shoreditch High Street. Mesmo já tendo passado das oito, ainda havia
um grupo de assistentes correndo de um lado para o outro como quem
faz o papel de gente muito ocupada em uma peça. Voraz disse a uma
garota bonita com pernas absurdamente longas para lhes trazer algumas
cervejas e então os dois se acomodaram na sua sala, a cidade iluminada
se estendendo diante deles, e Leo relembrou todas as histórias que
relembrara muitas vezes antes. Sobre subir ao palco em Tóquio e a atriz
de Hollywood que lhe pagara um boquete, ah, e a vez que passou uma
noite na cadeia no México, o que ele realmente não recomendava, e sim,
claro, vamos cheirar um pouco.
Os dois estavam se vangloriando, contando um monte de vantagens,
mas a prova do sucesso de Voraz era tão tangível quanto o gosto amargo
no fundo da garganta de Leo enquanto aspirava e depois engolia. A inveja
e a decepção devem ter ficado estampadas em seu rosto porque Voraz
colocou a mão forte no joelho de Leo.
— Olha, amigo, se ajudar, se você precisar de um emprego...
— Ah, não. — Ele mal conseguia formular as frases. — Estou
esperando algumas grandes comissões. Sabe como é. Não quero azarar
nada.
— É claro que não. Mas sempre preciso de alguém que tenha ideias que
eu possa desenvolver. Eu não exploraria você, cara. Eu lhe pagaria um
valor decente.
Leo olhou ao redor do espaço cuidadosamente organizado. As
estúpidas placas de néon que diziam O FUTURO É AMANHÃ, e NADA É INFINITO,
SÓ A MORTE. As controversas máscaras mexicanas do Dia dos Mortos
decoradas com pele humana e dentes de verdade. Os retratos de famílias
que moram em casas de programas habitacionais, suas TVs de plasma e
pit-bulls representados de maneira tão adorável quanto Gainsborough
pintava barcos e cavalos.
Aquilo não era arte. Era comércio. Enganação. Enganação. Enganação.
Mas as enganações de Voraz pagaram por mais algumas carreiras de
cocaína e, quando eles saíram do prédio e chegaram à rua e Leo caiu de
joelhos na calçada molhada de chuva, Voraz deu a um taxista cinquenta
libras para levá-lo para casa.
Foi como nos velhos tempos. Ele vomitou na sarjeta, então cambaleou
pelas casas que antes eram cavalariças e bateu na porta da casa de Frank
e Lydia. Eles não ficaram muito felizes em vê-lo, embora não fosse tão
tarde. Ainda não tinha passado da meia-noite, então Leo achou que não
havia razão para Lydia parecer que tinha passado a noite chupando
limão.
Frank desligou o alarme para Leo poder entrar na casa. Ele pegou a
garrafa de uísque no aparador na sala de estar e praticamente se arrastou
escada acima.
Então lembrou que Rose ficava com raiva quando ele chegava em casa
assim. Ela não estava bem. Precisava dormir. Ele pensou em andar na
ponta dos pés pelo corredor, mas se contentou em andar silenciosamente.
Só quando abriu a porta de seu quarto, fechou-a com um cuidado
exagerado e depois se atirou na cama foi que Leo lembrou que tinha uma
esposa, que acordou com um grito abafado.
Jane o atacou e raspou as unhas no rosto de Leo, mas ele já estava
rolando para longe dela.
— Desculpe! Desculpe! Eu esqueci que tinha uma esposinha
esquentando minha cama.
Suas palavras soaram arrastadas e emboladas. Leo fez uma careta
quando Jane acendeu o abajur. Esperava que ela pensasse que a luz é que
tinha deixado suas pupilas tão dilatadas. De todo jeito, ele sabia que seu
rosto estava coberto de gotas de suor e, enquanto olhava para ela com os
olhos turvos, podia sentir a mandíbula se mexendo.
Ela sentou, cruzou os braços e olhou para Leo. Mesmo com a velha
camisa desbotada do Motörhead dele, o cabelo bagunçado e nenhuma
maquiagem, ela ainda era boa demais para ele.
— Você não está cansado disso, querido? — perguntou ela. Naquele
momento, enquanto ele se esparramava com metade do corpo para fora
da cama, com outra camisa velha esticada sobre a barriga, ele odiou Jane
por sua pena.
— De quê? — Leo tocou os lábios com a mão. Não conseguia acreditar
que ainda era capaz de fazer sons saírem da boca. — Cansado de quê?
— A festa acabou — respondeu Jane. — Já passou da hora de você
perceber que todos os outros já foram para casa.
Ela obviamente vinha tendo aulas com Rose sobre como fazer Leo se
sentir tão pequeno que, se não fosse pelo olhar de leve repulsa em seu
rosto, que tinha driblado os preenchimentos e o botox, ele juraria que era
invisível a olho nu.
— Sim, bem... Eu estou passando por umas coisas. Perdoe-me se talvez
eu quisesse sumir um pouco.
— Sumir um pouco? — repetiu ela, incrédula. — Ah, então você
precisava de um tempo fora por bom comportamento? Que bom
comportamento? — Ela apontou um dedo acusador para Leo. — Você
fugiu e me deixou sozinha com sua pobre mãe. Foi um verdadeiro toque
de classe.
— Não quero falar sobre minha mãe. — Leo tentou sentar, mas só
conseguiu escorregar ainda mais para fora da cama. — Não vamos
discutir. Pensei que éramos amigos — acrescentou em tom de queixa.
Jane revirou os olhos. Quanto mais ele a conhecia, menos doce ela se
tornava. Era tudo só fachada.
— Lydia lhe pediu para voltar porque esperava que, nesses dez anos
desde que foi levado para a reabilitação, a propósito, obrigada por me
contar esse pequeno detalhe, você teria amadurecido, mas ela estava
errada. Deus, como estava errada!
— Você não precisava vir a Londres comigo. Só veio porque lhe
convinha. — Leo não era um bêbado maldoso. Era um bêbado do tipo
charmoso, espirituoso, a vida da festa, o rei da espontaneidade, mas, pelo
visto, não naquela noite. — Não se esqueça de que vi você em ação na
noite em que nos conhecemos. O que é isso, sério? Algum tipo de golpe?
Leo não soube discernir se a vermelhidão que aparecera na parte de
cima do peito dela exposta pela abertura da camisa era culpa ou raiva.
— Não me julgue pelos seus padrões, querido.
Foi a vez de Leo ficar vermelho e agora transpirava por causa da
cocaína, então ele não disse nada, mas tentou se levantar, enquanto Jane
simplesmente ficou lá sentada olhando para ele como se ele estivesse
abaixo de uma massa de algas na cadeia alimentar.
— Pare de me olhar assim — murmurou Leo.
Ele enfim conseguiu se levantar e cambalear até o banheiro, onde
jogou água fria no rosto, o que não fez nada para clarear sua mente ou
fazê-lo se sentir melhor. Ele só se sentiu pior, sobretudo quando levantou
os olhos e viu que Jane o seguira e sentara em um banquinho em frente à
bancada.
— Sinto muito por ter sido rabugenta, querido. É tão bobo nós dois
discutirmos assim — disse ela com um sorriso apaziguador. — Acabamos
juntos ao acaso. Quem sabe por quanto tempo? E seria muito melhor se
não passássemos o tempo brigando.
Leo se virou um pouco rápido demais e cambaleou com o repentino e
nauseante fluxo de sangue para a cabeça.
— Então você vai ficar? — Não havia nenhuma razão para ela ficar
com ele. Não por seu charme e boa aparência, e com certeza não pelo seu
dinheiro, a menos que aquilo tivesse passado a ser sobre o dinheiro de
Rose, e nesse caso Jane ficaria terrivelmente desapontada. Havia outra
coisa o incomodando também. — Você não está com saudades do sr. Ex?
Nem um pouquinho?
— Isso realmente não é da sua conta, querido.
— Mas você ainda deve amá-lo, não é? Não se deixa de amar alguém
de repente. O amor não tem um botão de desligar.
— Não importa se eu o amo ou não. De qualquer forma, querido,
estamos nos desviando da questão. Nós tínhamos um acordo. Eu conheci
sua tia-avó, falei bem de você, tentei melhorar as coisas o máximo
possível com sua mãe, mas realmente não gostei de você ter saído
correndo daquele jeito.
Ela parecia calma, sentada ali, mas suas mãos estavam firmemente
juntas e ela não parava de flexionar os dedos do pé com as unhas
pintadas de rosa, o que era muito perturbador com Leo tendo tanta coisa
para processar. Ele até abriu a boca e se perguntou o que Jane pensaria
dele se confessasse o motivo de ter sido banido, expulso do reino. Em
seguida fechou a boca. Ele não precisa explicar nada a Jane. De qualquer
forma, ela também não era perfeita.
— Aposto que você estaria suspirando por ele se todos aqueles bilhões
de dólares do Google ou quem quer que fosse tivessem ido parar na conta
dele — disse Leo com voz arrastada. — Sim, você disse que foi ele que a
dispensou, mas não posso acreditar que, se realmente o amasse, você o
teria deixado escapar sem lutar. Então talvez tenha sido você que o
dispensou, porque não gosta de se misturar com caras pobres.
— Eu me casei com você, não foi? — Ela balançou a cabeça e fez um
movimento de enxotar com a mão como se afastasse as palavras de Leo.
— Mas não seja tão ingênuo. Não existe uma mulher viva que realmente
queira se casar com um cara pobre.
— Isso é o que você diz a si mesma para se sentir melhor, não é? —
Leo bufou. — Não surpreende a sua pressa para se casar antes de
começar a perder a beleza.
Ele estava determinado a irritá-la — talvez como vingança por julgá-lo,
por ser tão superior e distante, ou porque isso o fizesse parar de pensar
que precisava de outra bebida. De alguma forma, suas palavras
arrastadas tinham atingido um ponto sensível porque Jane deu um
pequeno pulo, um movimento brusco e desajeitado como se ele tivesse
tropeçado embriagadamente nos temores que mesmo ela não conseguia
esconder, que estavam lá toda vez que olhava no espelho.
— Cuidado, querido — retrucou ela com firmeza. — Pessoas com teto
de vidro e essas coisas.
Era um aviso para fazer Leo recuar, mas, como de costume, ele o
ignorou.
— O engraçado sobre ser uma esposa troféu, querida, é que parece pra
cacete com ser uma prostituta.
— Diz o homem que voltou para Londres o mais rápido possível
quando descobriu que sua rica tia-avó estava morrendo — retrucou Jane.
— Que pena que ela não estendeu o tapete de boas-vindas.
Leo se apoiou na pia e imaginou que poderia esmagar a porcelana com
as próprias mãos.
— Não foi por isso que voltei! — rosnou ele tão energicamente que
Jane deu outro pulo. — Você não sabe nada sobre isso.
Ela se levantou, colocando as mãos na cintura.
— Eu sei de muita coisa. Sinceramente, você acha que sou tão idiota
assim? Você não estava apenas bêbado em Las Vegas; estava com um
pouco de cocaína na cabeça também, não é? E também cheirou antes de
entrar no avião e acabou de fazer o mesmo. É por isso que suas pupilas
estão maiores do que pratos e você se transformou nesse idiota hostil. —
Ela assentiu, como se tudo estivesse se encaixando, como um baralho de
cartas sendo embaralhadas por um mestre. — Também sei que você ia
fugir com o dinheiro que nós ganhamos. Você foi até a minha bolsa,
pegou o dinheiro lá e nem sequer...
— Nem tudo... — protestou Leo. Não havia nada como uma briga para
fazer a sobriedade desabar de volta na sua cabeça, mas já era tarde
demais agora.
Ele podia sentir a raiva dela como se fosse uma terceira pessoa no
aposento, agachada lá aos pés dela, pronta para atacá-lo.
— Você acha que estou desesperada? Bem, pelo menos não sou um
Peter Pan geriátrico viciado em drogas que não pode funcionar em
qualquer nível real. — A linda voz modulada de Jane aos poucos ficava
mais alta e mais aguda. — Aposto que você passou a maior parte do
tempo em Los Angeles em cafés e bares horríveis, como aquele em Las
Vegas, tentando descolar drogas com universitários e perguntando se eles
sabiam onde rolavam as festas legais.
— Cale a boca — sussurrou ele, angustiado. — Rose vai ouvir você.
— Isso preocupa você, não é? Que a sua preciosa Rose descubra que
você é ainda mais fodido do que ela já chegou a suspeitar.
Ele tinha pedido por isso. Queria saber o que realmente havia sob o
jeito doce e radiante de Jane e agora sabia: era algo sombrio e escabroso.
— Pare com isso — pediu ele com urgência. — Nós dois precisamos
nos acalmar, porra.
— Estou muito calma!
Leo se afastou da pia e começou a se aproximar de Jane. Sua própria
raiva se dissipava mais a cada passo que dava. O efeito da droga estava
passando rápido, e ele já estava mal e envergonhado pelo que dissera a
ela. A verdade sempre machuca mais do que qualquer outra coisa.
— Isso é estúpido — disse ele. Leo estava perto o suficiente para
segurar o braço de Jane, para se conectar com ela, trazê-la de volta à
terra, mas não fez isso. Nunca toque uma mulher irritada; fazê-lo seria
como provocar um urso. Ele se forçou a ficar diante dela, apenas perto de
seu espaço pessoal, na esperança de que olhasse para ele, olhasse de
verdade para ele, e visse que estava arrependido. Que ele podia ser
melhor do que aquilo. — Por favor, você estava certa. Nós não devíamos
estar brigando.
— Isso... isso nunca vai dar certo — murmurou ela tão baixinho que
Leo teve de se curvar para ainda mais perto para ouvi-la. — Que
confusão.
— Não tem que ser uma confusão — disse ele suavemente.
— É um pouco tarde para isso — sibilou ela e jogou a cabeça para trás.
— Deus, quer parar de se aproximar?
— Por favor, Jane. — Tinha de haver uma maneira de vencer sua
resistência. Se Jane desistisse dele, então Rose também desistiria. Podia
imaginar a reação dela à notícia de que tinha conseguido perder a esposa
menos de três dias depois de prometer amá-la e protegê-la. — Me deixe
compensá-la.
— E como raios você acha que vai fazer isso? — Ela jogou a cabeça
para trás de novo como se o desafiasse a tentar.
Bem, não podia fazer mal.
Leo teve a vaga ideia de que poderia beijá-la — ela gostara quando ele
a beijara em Las Vegas —, mas as pontas dos seus dedos mal a tinham
tocado quando Jane se afastou com força de sua tentativa desajeitada.
— Não me toque!
Ela pegou de cima da bancada a estatueta art déco de bronze que Leo
usava para esconder drogas e a atirou. A estatueta acertou a lateral de
sua cabeça, fazendo Leo se afastar e deixar escapar um grunhido surpreso
de dor quando o objeto caiu no chão com um baque abafado, porém
ensurdecedor.
Jane ficou ali ofegante, as palmas das mãos contra a parede, o olhar
selvagem, a boca aberta. Leo tirou a mão da cabeça, que latejava, os
dedos molhados de sangue. Ele estava pronto para gritar, a raiva
crescendo dentro dele de novo, mas então viu Jane. Viu de verdade. O
rosto branco como uma vela, o peito subindo e descendo no mesmo ritmo
da respiração irregular, as mãos tensas.
Ele nunca tinha visto alguém tão aterrorizado e nunca havia se sentido
tão sóbrio em toda a sua vida.
— Mas que diabos aconteceu? — perguntou ele. — O que eu fiz? Eu
ia...
— Nunca mais se atreva a me tocar, ouviu? — gritou Jane com uma
voz que não se parecia em nada com a dela. — Não coloque a porra da
mão em mim a menos que eu lhe dê permissão. E nem pense que vai
dormir perto de mim esta noite.
16
Março de 1944
Leo dormiu em outro lugar. Jane não sabia onde e nem se importava. Ela
trancara a porta e tentou colocar uma cadeira sob a maçaneta, mas ele a
deixou em paz. Não que Jane tenha dormido.
Ela estava muito agitada para dormir. A lembrança de Leo assomando
sobre ela, invadindo seu espaço, o hálito quente em cima dela, depois as
mãos... ela estremeceu ao pensar nisso.
Apesar de que, quando ela parara de tremer, quando enfim se
acalmara, forçara os músculos tensos a relaxarem e repassara a cena, a
dúvida começou a se instalar. Ele não tinha de fato assomado sobre ela,
só que era tão mais alto, que a fizera se sentir encurralada. Jane odiava
ser encurralada. Tudo não passara de um leve toque no braço, somente os
dedos dele, nem mesmo com força suficiente para segurá-la, muito
menos deixar hematomas e marcas. Não era nem de longe um delito
capital.
Sua reação foi exagerada e, assim que percebeu isso, Jane se sentiu...
não arrependida, mas um pouco ridícula. Quando conhecera Leo,
instintivamente soubera que, apesar de seus muitos outros defeitos, ele
não era do tipo que feria uma mulher. Agora que voltara a ver as coisas
com racionalidade, sabia que isso ainda era verdade.
Era só que o fato de ela ter sido ferida tantas vezes antes e a maneira
como ele a encurralara, como se aproximara dela tinham despertado
lembranças de tempos difíceis e homens ruins de Gateshead a Moscou, e
isso não era culpa de Leo. Contudo, era culpa de Leo ter chegado em casa
completamente doidão e mostrado que sabia a verdade sobre Jane como
se a tivesse despido tão brutalmente quanto aqueles outros homens. Ele
vira o que havia por baixo de sua fachada construída com esmero...
Agora estava tudo fodido, o que era exatamente o que acontecia
quando se improvisava em vez de seguir um plano de ação apropriado.
Por um instante, enquanto estava lá deitada, Jane até pensou em ligar
para Andrew, mas foi apenas um lapso temporário de juízo e ela vinha
tendo muitos deles nos últimos dias. Ela destruíra suas chances com
Andrew. Ele provavelmente a perdoaria, mas Jackie nunca a receberia de
volta de braços abertos. Além disso, Andrew ainda estava sem os bilhões
de sua invenção.
Jane tinha ficado sentada na cama, encolhida e pensativa, por tanto
tempo que, sem que se desse conta, a escuridão fora embora. Havia
amanhecido.
Um novo dia.
Hora de mais um recomeço.
Abril de 1944
Abril de 1944
Querida Rosie,
Você ainda está chateada comigo?
Sei que agi como um idiota, mas eu queria tanto você. A questão é que
a maioria das garotas tem uma primeira vez ruim. Então é melhor
resolver isso o mais rápido possível.
Eu queria que você tivesse ficado para ter feito amor com você de novo
e de novo. Para ter mostrado a você como podia ser bom. Espero que você
ainda permita que eu faça isso. E espero que não me odeie, porque amo
de verdade a minha bela fedelha.
Diga que ainda me ama, Rosie. Eu odiaria pensar que, se o pior
acontecer, morrerei sem ser perdoado.
Com todo meu amor,
Danny
P.S.: Por favor, me responda, pelo menos para eu saber que você está
bem. O endereço no alto da página é do pub local, assim não precisamos
nos preocupar que os censores do Exército saibam o que houve entre nós.
Por favor, Rosie, dê uma trégua. Minha velha mãe sempre dizia que
nunca se deve ir para a cama brigado com alguém. Não vamos continuar
brigando quando não sabemos o que o futuro nos reserva.
Só espero ainda poder abraçá-la.
Com todo meu amor,
Danny
Fazia duas semanas que ele tinha levado Rose para aquele hotel. Se
aquela fosse apenas uma briga boba de namorados, ela teria cedido,
escrito de volta para ele, colocando todo seu amor e devoção em cada
letra, cada sinal de pontuação. Mas agora, toda vez que pensava em
Danny, Rose se lembrava daquele quarto, daquela cama e do que ele
fizera com ela ali, então era melhor não pensar mais nele de jeito
nenhum. Foi um alívio abençoado sua menstruação ter descido no dia
seguinte, assim ela não precisou sofrer com isso também, mas ainda se
sentia terrivelmente triste com relação a tudo aquilo quando esbarrou
com Edward nas escadas do Rainbow Corner.
— Olá, estranha — disse ele, e sorriu. — Como está a arrecadação?
Rose olhou para ele sem entender.
— Sinto muito. O que estamos arrecadando?
Edward ainda era uma incógnita. Ela mal tinha pensado nele naquelas
últimas semanas, mas não havia nada de enigmático na forma como
trincou a mandíbula. Quando falou, sua voz tinha perdido toda a
misteriosa cordialidade.
— Os refugiados que estão chegando da Europa. Perdoe-me se estou
enganado, mas me lembro claramente de você visitar a casa em
Kensington que estou preparando para recebê-los. Também me lembro de
você escrever uma lista com todas as coisas de que podem precisar e se
voluntariar para angariar alguns brinquedos para as crianças.
Não era que Rose tivesse esquecido, não por completo. Os refugiados
que chegariam da Europa em algum momento indeterminado no futuro
tinham sido empurrados para os confins mais profundos de sua mente e
deixados lá, enquanto ela chafurdava na autopiedade. Pensando apenas
em como estava infeliz, sem se preocupar com qualquer outro que
também pudesse estar sofrendo.
— Ah — disse ela. — Eu pretendia cuidar disso, mas não tive nenhum
tempo livre.
— Você não teve tempo de perguntar nem mesmo a uma pessoa se
poderia doar alguma roupa de lã ou um quebra-cabeça velho? — Cada
palavra era como uma estaca de gelo. — Não conseguiu arrecadar nem
uma boneca ou um jogo de tabuleiro?
— Bem, não, ainda não — admitiu Rose hesitante. Ninguém ficava tão
irritado assim com ela desde que deixara Durham, e tinha sido mais
decepção do que aquela raiva fria que fizera Edward desviar os olhos,
como se Rose fosse completamente repulsiva. — Mas vou recolher.
Imediatamente. Eu prometo. Quando eles vão chegar?
— Não importa. — Edward começou a se afastar antes mesmo de
terminar a frase. Mas só chegou até o primeiro degrau antes de se virar.
Rose se encolheu: antes só o tinha visto sério e gentil e odiava a expressão
dura e sombria em seu rosto. — Você realmente é uma garota muito
egoísta e negligente — disse ele em voz baixa. Não havia nada que Rose
pudesse dizer em sua defesa porque era verdade. Ela raramente pensava
em alguém além de si mesma. — Essas pessoas, elas passaram por
horrores indizíveis, arriscaram suas vidas para chegar a um país onde
não conhecem ninguém e você não teve oportunidade de conseguir
sequer um pião velho.
Ele desceu as escadas, e Rose correu para o toalete feminino e chorou
um pouco, porque não queria que as pessoas, sobretudo Edward,
achassem que ela era esse tipo de garota, superficial e sem coração.
Algo tinha de mudar. Ela estava cansada de ficar se remoendo ao
pensar em Danny — remoer-se não ia mudar as coisas, não apagaria a
lembrança do que ele lhe fizera. Ela não parava de reviver as lembranças
daquela noite e se repreender por não ter lutado o suficiente. Isso tinha
de acabar.
Então, Rose pensou nos refugiados e atormentou todo mundo que
conhecia pedindo doações. Não só as garotas do Rainbow Corner, mas
Stan e Gladys do café, que encontraram uma caixa de gibis velhos nos
fundos do guarda-roupa do quarto da filha. Rose não achava que os
refugiados falassem inglês, mas eles poderiam cortar as figuras e colá-las
nas paredes para dar um ar um pouco mais alegre e acolhedor à casa em
Kensington.
Mas no fim tinha juntado um conjunto de brinquedos meio acabados
que dificilmente alegrariam qualquer refugiado vindo da Europa
ocupada. Rose até pensou na possibilidade de fazer algo com o vestido já
troncho de tafetá azul-claro de Shirley.
— Quem sabe poderíamos cortá-lo para fazer um lindo vestido para
uma menininha? — sugeriu a Maggie.
Maggie olhou para o vestido, deu de ombros, depois disse com voz
arrastada:
— Você não acha que os refugiados já sofreram o bastante?
Assim, o vestido ficou pendurado como uma mortalha solitária atrás
da porta do quarto e foi Phyllis que veio ao resgate de Rose ao convidá-la
para passar o fim de semana em sua casa.
— Há pilhas de coisas no sótão para seus refugiados. Papai nunca
deixa ninguém jogar nada fora.
Elas viajaram para Norfolk no fim de tarde de sábado, na cabine de um
caminhão do Exército. Parte da casa da família de Phyllis havia sido
requisitada pelo Exército no início da guerra.
— Só a ala leste, então dificilmente notamos que eles estão lá —
explicou Phyllis, enquanto seguiam em alta velocidade por estradas
sinuosas, iluminadas apenas pela luz da lua cheia. Uma lua de
bombardeiro. — Na verdade, as pessoas evacuadas foram um problema
muito maior. Elas soltaram pequenos fogos de artifício na galeria e
abriram um buraco bem no meio de um Turner. Depois disso, mamãe
disse que só receberia garotas evacuadas vindas de boas famílias.
— Seus parentes são muito importantes, Phyllis?
Rose sabia que Phyllis era uma Honorável, ela até fora apresentada à
corte antes da guerra, mas toda aquela conversa sobre alas e galerias era
bem intimidante.
— Que nada! Não somos da aristocracia, só fidalgos rurais.
Isso não era nem um pouco reconfortante.
Assim como a mãe de Phyllis, Lady Carfax, que encarava Rose com
frieza como se suspeitasse que a jovem tinha unhas sujas e todos os tipos
de hábitos desleixados. Apesar do comportamento distante, Lady Carfax
deu carte blanche a Phyllis e Rose para levarem o que quisessem para os
refugiados.
No domingo, encorajadas por um café da manhã com ovo cozido e tiras
de torradas — um ovo de verdade colocado por uma galinha naquela
manhã —, Phyllis e Rose passaram a manhã lutando com teias de aranha
e abrindo caixas de madeira no sótão. Seu espólio incluía várias bonecas
vitorianas de aparência malévola, dois ursos de pelúcia que já tinham
visto dias melhores, uma casa de bonecas completa com móveis, blocos
de montar, um trilho de trenzinho, embora faltasse metade da pista, uma
pilha de jogos de tabuleiro e um conjunto de croquet.
Depois de um almoço com presunto e torta de alho-poró — com muito
mais alho-poró do que outra coisa —, elas atravessaram o terreno até os
estábulos. Seu destino era o velho celeiro onde equipamentos agrícolas
quebrados, cortadores de grama antigos e pedaços de metal enferrujado
que pareciam instrumentos de tortura medievais tinham sido
aposentados.
— Não acho que haja aqui algo que os refugiados possam querer —
disse Rose com tristeza, enquanto olhava numa caixa de papelão podre
que continha alguns catálogos mofados de sementes.
— Deve haver. Papai se empolgou um pouco quando a guerra foi
declarada e comprou todo tipo de coisas. — Phyllis mexia em uma
engenhoca letal que parecia um arado antigo. — Ele achava que treinaria
todos os homens que ficaram na cidade para transformá-los em uma
força letal caso houvesse uma invasão nazista, mas eles passam a maior
parte do tempo fazendo exercícios de treinamento na área de pasto da
cidade.
Com cuidado, Rose seguiu Phyllis até o interior do celeiro e praguejou
quando prendeu a saia de tweed em um prego.
— Rose! Aqui! Você nem vai adivinhar o que encontrei!
Ainda enroladas e envoltas em papel pardo estavam dez camas de
campanha. Dez! Havia também três caixas de madeira do Exército e da
Marinha lotadas de utensílios de cozinha, copos e talheres usados em
acampamentos militares, kits de primeiros socorros e,
inacreditavelmente, vários mosquiteiros.
Com a ajuda de um rapaz da vila que tinha vindo fazer o que pudesse
nos jardins, elas levaram seu espólio para o quintal para ser transportado
pelo mesmo caminhão que as levara a Norfolk e, com sorte, teria espaço
suficiente para levá-las de volta a Londres.
Ainda estava claro o suficiente para uma caminhada, então Phyllis
pôde mostrar a Rose o bosque, onde ela e os dois irmãos mais velhos
acampavam e faziam piqueniques quando eram mais novos. O mais
velho, Anthony, estava baseado no Egito, pelo que todos estavam gratos.
— Ele gostaria de ver mais ação, mas acho que minha mãe está bem
satisfeita do jeito que está — disse Phyllis ao sentarem em um tronco
caído. — Teddy está na Marinha. Não me lembro qual foi a última vez em
que estivemos todos juntos. Não é estranho que a gente costume não dar
valor às coisas corriqueiras e isso seja do que mais sente falta quando já
não se tem mais?
Rose tinha fugido de suas coisas corriqueiras e não sentia nem um
pouco de falta delas. Londres ainda era fascinante, e, se ela não tivesse
ido para Londres, nunca teria passado pelos portais sagrados do Rainbow
Corner. Nunca teria aprendido a dançar jive. Nunca teria se apaixonado.
Nunca teria deixado esse amor para trás. Nunca teria se tornado Rose
Beaumont.
— Não gosto das bombas ou do racionamento, ou da preocupação
constante de que algo terrível possa acontecer com as pessoas de que
gosto, mas os outros aspectos da guerra são bem empolgantes. Você não
acha?
Phyllis olhou para o longo gramado salpicado de pálidas prímulas
amarelas.
— Bem, se não fosse a guerra, eu nunca teria conhecido você ou a
Sylvia e a Maggie. — Ela balançou a cabeça. — Nunca cheguei a ser
amiga das meninas glamorosas da escola, então é bastante empolgante.
— Não fale besteira! Você é tão glamorosa quanto Sylvia ou Maggie —
repreendeu Rose decidida. Mas isso não era verdade e era por isso que
Rose amava Phyllis. Ela era gentil, firme e tinha um coração romântico e
sentimental, que costumava combinar perfeitamente com o de Rose. Mas
era àquele lugar que Phyllis de fato pertencia: entre as flores silvestres e
as cercas vivas, o doce ar fresco. — Não vamos ser piegas. A sra. Barnes
não disse algo sobre biscoito de gengibre? Venha, aposto uma corrida
com você até em casa!
23
Três horas da manhã. Jane estava bem acordada e com os olhos irritados.
Leo costumava se queixar de insônia desde que passara a beber menos,
mas ele estava apagado e roncando de leve do outro lado da cama, com a
mão em volta do travesseiro deles.
A noite se estendia diante de Jane. Ela tentou um exercício de
meditação, mas era difícil se concentrar quando só conseguia pensar em
Leo. E ela vinha pensando em Leo, enquanto o sono não vinha, desde a
confissão dele. O problema de Leo era ser frágil demais, e Jane era uma
idiota por não ter notado isso antes.
Os outros homens que Jane tivera deviam odiá-la por ter ferido seus
sentimentos, feito parecerem bobos, ferido seu orgulho, mas esses eram
efeitos colaterais normais. Na maioria das vezes, fora ela que tivera seus
serviços brutalmente dispensados.
Mas Leo... Jane não era um monstro, ou pelo menos não achava que
era, e não queria partir em pedaços alguém que simplesmente não
conseguia se recompor.
O que eu faço com você?
Não havia razão para ficar ali deitada com os pensamentos sempre
voltando ao mesmo ponto. Então, com cuidado, porque ela não queria
acordar Leo, Jane deixou a cama e saiu do quarto.
Ela sempre achara excitante andar pela casa dos outros na calada da
noite. Não revirava as gavetas ou espiava os armários. Ela não fazia o
reconhecimento da área ou um inventário das coisas, mas uma casa
sempre revela seus segredos quando se é a única pessoa acordada.
Jane sabia como era andar por uma casa e estremecer e querer sair dali
porque as coisas ruins que aconteceram ali estavam impregnadas nas
paredes, emitindo gases invisíveis, porém tóxicos. Mas isso estava longe
de se aplicar à casa de Rose. Jane não sentia um pressentimento terrível
ao entrar em um cômodo. Rose tinha sido feliz ali.
Jane fez uma varredura completa da casa e então, quando chegou ao
topo da escada, ainda nem um pouco cansada, ouviu um grito. Não era
alto, mas havia algo tão visceral naquele som que o coração de Jane bateu
forte em alerta.
O barulho continuou. Vinha do outro extremo do corredor, onde
ficavam os aposentos de Rose, e, quando Jane se aproximou, os sons se
transformaram em palavras.
— Ah, Deus! Meu Deus! — Era o grito frágil de uma idosa assustada.
Não houve resposta quando Jane bateu na porta. Esta levava a uma
sala de estar, depois outras portas duplas que davam no quarto. Jane não
acendeu as luzes, só chamou:
— Rose? Sou eu, Jane. Você está bem?
Rose gritou de novo, como se não conseguisse mais formar palavras. E
Jane tinha aberto a porta, mostrado que estava ali, então já havia se
envolvido. Ela acendeu uma das luzes da sala de estar para poder ver o
quarto. Rose, com sua camisola branca embolada para cima, estava caída
com metade do corpo para fora da cama. Parecia paralisada pelo medo de
que, caso se movesse, reagisse à dor que sentia com um forte espasmo, a
força pudesse quebrar os membros pálidos que Jane via largados de
qualquer jeito. Rose já não era mais a mulher calma, contida e
absolutamente formidável que Jane vira até então.
— Eu estava subindo as escadas quando ouvi você — explicou Jane,
como se Rose naquele momento se importasse em saber por que a outra
tinha aparecido de repente. — Você está sentindo muita dor? — Rose não
disse nada, nem mesmo virou a cabeça, que estava em um ângulo
estranho no travesseiro. — Que pergunta idiota, é claro que você está
com muita dor — disse Jane, aproximando-se da cama. Agora podia ver o
rosto de Rose, que parecia tão assustada, que Jane também ficou com
medo. Mas as duas não podiam ficar assustadas. Isso não resolveria nada.
— Você estava tentando sair da cama? Precisa ir ao banheiro? Ou dos
seus comprimidos? — Rose assentiu uma vez. — Estão no banheiro? —
Outra confirmação.
Jane tentou primeiro ajeitar Rose, girando as pernas dela com cuidado,
então segurando sua cabeça para poder arrumar os travesseiros e
esticando o lençol embolado o máximo que pôde. Rose mordia o lábio
inferior, então gemeu e agarrou o braço de Jane, depois se acalmou.
— O.k., você está segura agora. Vou pegar o seu remédio.
Ela deixou a luz do banheiro acesa quando voltou com comprimidos e
um copo de água.
— Achei que devia ser o tramadol. Você consegue sentar?
Rose não conseguia, mas Jane ajeitou os travesseiros de novo e passou
o braço com cuidado pelos ombros dela, colocou dois comprimidos em
sua língua, depois levou o copo aos seus lábios.
— Está tudo bem — disse Jane, que sempre mentira muito bem. —
Não tente falar. Apenas se concentre em inspirar e expirar devagar.
Ela sentou na beira da cama e segurou a mão de Rose, acariciando os
dedos dela no ritmo de sua respiração vacilante, que ficou mais firme à
medida que a dor obviamente começava a passar. A pele de Rose era fina
e frágil como papel, como vestidos de seda vintage que rasgam facilmente
quando não se é cuidadosa.
Então Rose abriu os olhos.
— Estou melhor — disse ela, como se tivesse tomado um gole de um
chá forte e restaurador. — Sou tão tola. Sempre vejo se tudo está na
mesinha de cabeceira antes de ir dormir.
— Você costuma acordar assim no meio da noite? — perguntou Jane.
— Você costuma perambular pela casa dos outros no meio da noite? —
rebateu Rose.
Jane levantou as mãos.
— Você pode me revistar para ter certeza de que não escondi a prataria
da família em algum lugar. — Rose ainda estava muito abalada e trêmula
para ser tão intimidadora como em geral era. — Você sempre acorda com
tanta dor?
Rose entrelaçou as mãos.
— É claro que não. Como eu disse, costumo deixar os comprimidos ao
meu lado, mas saí com George e estava tão cansada quando cheguei em
casa, que devo ter esquecido uma dose.
— Foi há quanto tempo, querida? Já faz meia hora que você tomou os
comprimidos e ainda está tremendo. Eles já deveriam ter feito mais do
que só abrandar a dor. Talvez você devesse tomar algo mais forte.
— Isso realmente não é da sua conta.
Velhinhas irascíveis não eram da alçada de Jane. Sua própria avó
falecera quando Jane tinha seis ou sete anos. Ela parecia velha por causa
do inchaço e do desgaste causados por tantos homens, bebidas e Deus
sabe mais o quê; mas só quando ficara um pouco mais velha e fizera as
contas foi que Jane percebera que a vovó Jo morrera na casa dos
quarenta anos. Ela não tinha sido tão ruim para uma avó — era uma
bêbada alegre e ativa, que podia colocar cereais em tigelas e mandá-los
para a escola —, mas, quando morrera, levara junto qualquer aparente
normalidade, e tudo o que restou foi a marca gordurosa no sofá onde
sentava dia após dia.
Ela também tivera uma bisavó, uma senhora de cabelo branco com um
pequeno jardim bem cuidado e uma pequena casa bem cuidada em uma
pequena cidade bem cuidada a alguns quilômetros de distância.
Jane fora lá uma vez, sobretudo para controlar as crianças menores,
enquanto a mãe batia na porta, que estava pintada de um tom alegre de
amarelo.
— Vovó Annie! Venha ver as crianças.
Jane ficara lá em pé, enquanto os pequenos faziam a maior bagunça no
jardim bem cuidado. Sua mãe lhes mandara parar uma vez, mas, como
vovó Annie ainda não tinha aparecido, apesar dos pedidos para que saísse
e lhes desse um beijo, e depois para que saísse e lhes desse algum
dinheiro, ela rira enquanto eles arrancavam as flores e chutavam terra no
rosto uns dos outros. Jane sentara no muro e vira um rosto pequeno e
ansioso espiando de uma janela do andar de cima. Os olhos delas se
encontraram por um segundo, então o rosto desapareceu atrás das
cortinas e um carro patrulha apareceu.
Jane pegara o menor e enfiara-o de volta no carrinho de bebê. Todo o
agradecimento que recebeu da mãe foi um tapa na cabeça.
— Empurra logo essa merda — dissera ela, indo embora. De cabeça
baixa, Jane seguira com o carrinho e as três outras crianças que se
empurravam e debochavam dos dois policiais que tinham saído do carro
e ficado lá de pé, com os braços cruzados.
Rose não parecia em nada com a vovó Jo ou a bisavó Annie.
— Você parece saber muito sobre drogas, minha querida — dizia ela
agora. — É algo que você e Leo têm em comum?
— Nunca tomei nada, mas conheço algumas pessoas que já tomaram, e
as suas não estão funcionando. — Por um instante, ela teve mais uma
daquelas pontadas de algo que podia ser empatia por Leo. Agora que se
sentia melhor, Rose parecia intratável e bem capaz de negar seu perdão, e
sua fortuna, independente do quanto Leo viesse a merecê-los. — É claro
que não é da minha conta, mas não entendo por que você iria querer
sentir dor.
— É claro que não quero sentir dor, mas também não quero minha
mente enevoada pelas drogas. Então em pouco tempo haveria
enfermeiros e cuidadores, estranhos perambulando pela minha casa. —
Rose soava petulante. — Ou pior, eu ficaria tão debilitada que me
colocariam em um tipo de tratamento intensivo. Linda tem boas
intenções, mas quer que eu conheça um lugar no meio de Hertfordshire
chamado Prados Tranquilos. Prados Tranquilos! Sinceramente, prefiro
explodir meus miolos com a velha espingarda do meu avô.
Não havia muito o que Jane pudesse dizer sobre isso, então ficou lá
sentada em silêncio. Rose parecia exausta pela própria rebeldia, porque
se recostou nos travesseiros e fechou os olhos.
— Bem, pelo menos você está melhor agora — disse Jane enquanto se
levantava com cuidado para não incomodar a idosa. — Você está certa, a
decisão tem que ser sua, mas não posso simplesmente ignorar o fato de
você estar sentindo dor e seus remédios não estarem dando conta.
— Foi só uma noite ruim. Não vamos exagerar.
Jane tinha feito o seu melhor e isso era tudo o que estava ao seu
alcance. Se Rose acordasse tomada pela dor na mesma hora na noite
seguinte, não seria problema de Jane — exceto que passara a ser
problema seu assim que abrira a porta da suíte de Rose e agora precisava
encontrar uma solução que beneficiasse todas as partes interessadas. Era
um assunto delicado. Jane entrou no banheiro para apagar a luz e,
quando saiu, decidiu o que fazer.
— O que eu fiz esta noite, bem, esse é basicamente o meu limite,
querida — disse a Rose, que tentava com cuidado ficar na horizontal. —
Não sou talhada para comadres ou qualquer coisa envolvendo fluidos
corporais.
As duas se entreolharam por um longo instante, com a única luz vindo
da sala de estar. Era difícil lembrar que trinta minutos antes Rose estava
paralisada e muda por causa da dor já que agora sorria. Era um sorriso
astuto, nada em que se pudesse confiar.
— Bem, fico feliz em ouvir isso, porque também não sou talhada para
essas coisas — retrucou secamente. — Além disso, seus cuidados com
uma pessoa na cama deixam muito a desejar. — Ela sorriu de novo. —
Que estranho. Pensei que essa seria uma área em que você se destacaria.
A resposta ácida de Rose tornou mais fácil Jane dizer o que precisava.
Ela colocou as mãos na cintura.
— Se você continuar sendo assim tão cruel, acho que eu teria todo o
direito de sufocá-la com uma das suas almofadas chiques de cem libras e
acabar logo com o nosso sofrimento.
Jane podia apostar que poucas pessoas tinham visto Rose chocada, a
boca aberta e os olhos arregalados em três grandes círculos de surpresa.
E também que era raro deixar Rose sem fala.
— Eu entendo, realmente entendo. Você está com dor. Mas é inútil você
sofrer e fazer todos à sua volta sofrerem — disse Jane enquanto
caminhava em direção à porta. Então se virou para olhar para Rose, que
ainda estava lá parada, a própria definição de perplexa. — Faça o que tem
que fazer, ligue para o seu médico, consiga outra receita, o que seja. Mas,
se não fizer isso, então vou telefonar para Linda e ela virá a Londres para
mandá-la para o Prados Tranquilos. A decisão é sua, querida.
Assim que abriu os olhos, Leo soube pela maneira como a luz do sol
passava pelas cortinas que já passava muito das sete e meia, a hora em
que Jane em geral o sacudia para acordá-lo antes de sair para sua aula de
ioga torturantemente quente. Ela ainda dormia ao seu lado, com o corpo
bem encolhido e só o topo da cabeça visível.
Quando ele saiu da casa alguns minutos depois, o carro de Rose
felizmente ainda andava devagar junto ao meio-fio.
— Mais trinta segundos e você teria que ir a pé — disse-lhe Frank com
alegria enquanto Leo deslizava para o banco de trás ao lado de Rose.
Ela olhava pela janela para a pracinha e não demonstrou ter notado a
presença dele. Rose nunca parecia contente em vê-lo, Leo estava
acostumado com isso, mas ignorá-lo por completo era novidade. No dia
anterior ele incentivara um jogo improvisado de futebol até Mark voltar
do depósito de material de construção e lhes dar uma bronca. Talvez Rose
tivesse ficado sabendo disso.
Leo olhou para o rosto de perfil de Rose. Quando se vê alguém todos os
dias, não se nota as mudanças. Mas ele só estava de volta havia cerca de
duas semanas e a imagem de Rose que guardava na cabeça era muito
mais jovem, muito mais vigorosa do que aquela Rose; por isso, toda vez
que a via, levava um choque. E, a cada vez que a via, tinha certeza de que
ela parecia um pouco mais fraca do que no dia anterior.
— Rose? — chamou quando Frank se afastou do meio-fio.
Ela virou e se encolheu um pouco.
— Ah, é você, Leo. Eu estava a quilômetros daqui. — Até o sorriso dela
parecia um pouco sem vida, algo puxando os cantos para baixo. —
Dormiu demais? Não achei que você tivesse saído ontem à noite.
Ele ignorou a implicação de que estava bêbado demais para acordar na
hora certa.
— Jane não foi para a aula de ioga, então não tive ninguém para me
cutucar até eu sair da cama. Eu realmente deveria usar o alarme do
celular.
— Deveria mesmo — disse Rose severamente, fazendo Leo logo ficar
alerta e se sentir culpado por todas as coisas que tinha feito e até pelas
que não fizera. — Agora, sobre aquela garota, aquela sua Jane.
— Ela não é minha...
— Indescritivelmente rude. Ela me ameaçou — murmurou Rose. —
Você tem que mantê-la na linha.
— O casamento não funciona assim nos dias de hoje — disse Leo,
como se fosse um especialista. — Como assim ela ameaçou você?
Rose suspirou, bufando ofendida.
— Sei que ameaçar me sufocar com uma das minhas almofadas Neisha
Crosland pode ter sido uma piada, ainda que de muito mau gosto, mas
não há nada de engraçado em querer ligar para a sua mãe para ela me
internar em algum lugar.
— Sério? Quando tudo isso aconteceu?
Rose fungou.
— Isso não importa. Mas não vou permitir que falem assim comigo,
não na minha própria casa.
A Rose que ele conhecia sempre se erguia acima dessas coisas tão
magnificamente, mas aquela Rose, em vez de se erguer, parecia mais
estar afundando. Então Leo entendeu.
— Em que nível de dor você está? — perguntou. — Você disse que
ficava no nível três com a ajuda dos remédios, e no seis quando o efeito
estava passando. Você está no sete agora, não é?
— Não é um sete — insistiu Rose, mas sem nenhuma veemência.
Leo notou como ela procurava cuidadosamente se conter.
— Você tem certeza?
— Tomei meus comprimidos quando acordei. A outra dose é só daqui a
umas duas horas — disse Rose, quando Frank virou na Kensington High
Street, entrando direto em um engarrafamento.
— Se você está com dor, tome um pouco mais. Você já deve ter criado
alguma tolerância a essa altura, não vai ter uma overdose. — Não havia
muita coisa em que Leo fosse especialista, mas disso ele entendia. —
Aliás, o que você está tomando? Diamorfina? Oxicodona? Fentanil?
— Talvez você devesse ter seguido a tradição da família e se tornado
médico, afinal — murmurou Rose. — Sabe muito sobre analgésicos
controlados. Estou tomando tramadol. Não me sinto nem um pouco
pronta para começar a tomar opiáceos.
— Que seja, Rose! Aposto que o tramadol não está dando conta.
Mesmo quando tinham sido amigos, sempre houvera certa distância
entre eles, não só pela idade de Rose, seu status venerado, mas seu jeito
meio distante que parecia em desacordo com o mundo moderno. Então o
teor daquela conversa fazia Leo sentir como se estivesse ultrapassando
um limite de alguma forma mais significativo do que todos os limites que
já ultrapassara.
— Ah, Leo, o que eu faço com você? — perguntou Rose com
tranquilidade. Ela levantou a mão, a pele seca e fina, mas ainda quente,
para acariciar o rosto dele. — Você nunca entende que é melhor deixar as
coisas como estão.
— Você disse que não queria o tratamento porque prefere aproveitar o
tempo que lhe resta. Como você poderá aproveitá-lo se estiver com dor?
Não tente negar isso — acrescentou quando Rose balançou a cabeça e
recolheu a mão. — Nem mesmo você consegue superar essa, Rose. Eu
queria que pudesse, queria de verdade, mas você não vai conseguir mais
tempo fingindo que a doença não está piorando. Você só está se
prejudicando.
— Posso aguentar — insistiu Rose. Leo então desejou que tivesse
herdado pelo mesmo uma parte da sua teimosia.
— Mas você não precisa. Tome remédios que deem conta. Caso
contrário, a dor só vai afundar você, consumi-la antes que esteja pronta.
Havia tantos assuntos inacabados entre os dois. Reparações que ele
ainda nem começara a fazer.
— Não quero ficar gagá — disse Rose calmamente. — Quero continuar
a ser eu. Gosto de ser eu. Antes... quando você usava drogas, foi para
deixar de ser você, se perder. Não estou pronta para isso.
— Você não vai se perder. Vai perder a dor — argumentou Leo, que
esperava estar certo. Contudo, até então ele não tinha conhecido
ninguém que tomou opiáceos para sua devida finalidade médica. — Você
me promete que vai procurar o seu médico? Se possível hoje. Porque, se
não fizer isso, vou ter que deixar Jane à vontade para cuidar de você de
novo.
Rose se irritou outra vez.
— Aquela garota. Há algo de errado com ela, algo que não sei dizer
direito o que é. Dou a vocês seis meses.
— Sério? Não tenho certeza se nos dou seis semanas — disse Leo. —
Sabe, ela me lembra um pouco você.
Com a dor já quase esquecida, Rose olhou furiosa para ele.
— Ela não é nada parecida comigo. — Rose se empertigou. — Espero
um pedido de desculpas dela, Leo.
Essa era uma conversa que Leo não ansiava em ter.
— Vou ver o que posso fazer. — Eles se aproximaram da rua lateral
onde ficavam os escritórios de Rose. — Estamos bem, então?
— Quase isso — concluiu Rose, o que era melhor do que Leo ousara
esperar.
24
Jane se sentiu mesmo como uma aluna malcriada quando ficou cara a
cara com Rose mais tarde naquela mesma noite. Rose teria dado uma
excelente diretora, autoritária e imponente.
— Sinto muito por ter ameaçado sufocá-la e mandá-la a força para
algum tipo de casa de saúde — disse ela. George, que estava sentado ao
lado de Rose no sofá, arfou, ao mesmo tempo chocado e intrigado. Rose o
ignorou para encarar Jane como se ela tivesse sido pega em uma situação
comprometedora atrás da quadra de tênis com um dos empregados
responsáveis por cuidar do terreno. — Não é desculpa, eu sei, mas,
quando tenho dificuldade para dormir, fico de péssimo humor.
— Muito bem, desculpas aceitas — disse Rose, assentindo para Jane,
como se ela estivesse dispensada.
Jane sentiu o impulso de se afastar devagar, sem desviar o olhar
daqueles frios olhos azuis até Rose lhe dar permissão para isso. Em vez
disso, permaneceu onde estava.
— Você ainda está chateada comigo, não é? — Era óbvio que Rose
estava. Jane já esperava por essa reação, e foi por isso que pegou o cartão
e o pequeno buquê de violetas, que comprara com o florista da esquina da
Kensington High Street e vinha escondendo atrás das costas. — Comprei
isso para você como uma oferta de paz.
Rose ponderou um pouco a respeito.
— Nunca gostei muito de violetas — disse ela. — Conheci uma mulher
que tenho certeza de que tomava banho com a colônia April Violets, da
Yardley. Eu não a suportava.
Jane já tinha jogado com muitas pessoas para saber quando estavam
jogando com ela.
— Bem, estarei logo ali — disse a Rose, que parecia achar graça agora,
em vez de estar ofendida. Então sentou ao lado de Leo, que passou o
braço em volta dela.
— Bem, você tentou — sussurrou ele um pouco convencido. — Você
acha que nunca comprei flores para ela no passado?
Mas a história de Leo com Rose era longa e complicada. As desculpas
dele exigiriam muito mais do que um cartão e buquê de flores, enquanto
Jane podia cometer alguns erros.
— Creio que você foi muito gentil e atenciosa antes de ameaçar me
sufocar, querida — admitiu Rose, com um sorriso felino. Jane suspeitava
que o médico tinha lhe dado comprimidos mais fortes e que a nova
medicação talvez estivesse lhe dando uma sensação exagerada de bem-
estar. — Nunca fui tão bonita como você, nem mesmo quando era jovem,
mas você fica tão bonita quando está arrependida que estou bem
inclinada a perdoá-la.
— Obrigada — disse Jane, que não pôde resistir à satisfação de dar
uma cotovelada de leve nas costelas de Leo. — Isso nunca mais vai
acontecer. Não a gentileza, quero dizer, as ameaças de sufocá-la.
— Mesmo que você me matasse com uma das minhas almofadas,
bastaria um olhar pesaroso para o júri e tenho certeza de que a deixariam
escapar impune do assassinato — disse Rose.
Enquanto Jane tentava absorver aquilo e pensar numa reposta, Lydia
apareceu na porta para anunciar que o jantar estava pronto.
A nova medicação de Rose teve efeito imediato. Ela não descia as escadas
saltitando todas as manhãs, mas conseguia sair regiamente de casa em
uma nuvem de Chanel No 22.
Mas, quando o efeito do remédio começava a passar, a dor de Rose era
mais intensa, menos clemente. Ela permanecia inflexível em querer
respeitar o intervalo de quatro horas entre as doses, mas, naqueles longos
minutos em que esperava a hora chegar, Leo tinha a impressão de que ela
tentava descobrir uma nova maneira de respirar.
Ela agora deixava o escritório o mais tardar às quatro e também ficava
em casa na maioria das noites, quando antes tinha uma vida social
bastante intensa para alguém que já passara dos oitenta. George
costumava vir para jantar e às vezes Elaine, do outro lado da praça, ou
Gudrun se juntava a eles. Às vezes eles jantavam com Lydia e Frank na
cozinha, o que deixava Leo muito feliz, já que podia beber cerveja em vez
de vinho e conversar sobre futebol com Frank.
Isso não queria dizer que os outros jantares eram maçantes. Rose
tomava os comprimidos às seis horas, e, por volta das seis e meia,
costumava já ter tomado metade de um gim-tônica e estar ótima. Mesmo
depois do jantar, ela continuava muito bem disposta, com os olhos
brilhando e o sorriso largo enquanto mantinha a conversa animada, e Leo
começava a se perguntar se Rose poderia se manter no três na escala de
dor subjetiva e arbitrária por meses se o médico conseguisse acertar na
medicação.
Rose definitivamente estava no nível três certa noite, com uma semana
seguindo o novo regime de medicação, quando, depois do jantar,
perguntou a Jane sobre seu casamento.
— Vocês não tiraram nem uma foto? — questionou, incrédula. — Não
é assim que as coisas são feitas. Agora só falta você me dizer que se casou
de jeans e camiseta.
Jane pareceu bastante ofendida com a sugestão.
— Eu usei um vestido de noiva de verdade — disse Jane, indignada. —
Um Dior vintage. Tive que perder dois centímetros de cintura para entrar
nele, mas valeu a pena.
— Eu tive o mais deslumbrante vestido preto de cetim que comprei na
Dior em uma viagem a Paris em 1948. Na verdade, Christian Dior entrou
na sala enquanto ajustavam o vestido em mim — contou Rose com um
discreto sorriso melancólico, que Leo achava nunca ter visto antes. —
Sempre que o usava, me sentia uma rainha.
George deu um leve suspiro.
— Tocada pela mão de Dior. Você realmente deveria escrever suas
memórias. — Ele, então, levou a mão à boca quando percebeu o que
dissera, mas Rose simplesmente lhe lançou um olhar carinhoso.
— Acho que é um pouco tarde para isso — disse ela. — Por falar em
vestidos, ainda não decidi o que fazer com eles. Eu estava pensando em
doar alguns dos mais bonitos para o Victoria and Albert Museum e queria
lhe perguntar qual é a etiqueta correta para isso, George, querido. O certo
é a pessoa contatar o museu antes de sua morte ou só acrescentar um
codicilo ao testamento?
— Não vamos falar sobre isso agora. — A voz de George ficou trêmula,
assim como ele. Jane, que estava sentada ao seu lado, deu um tapinha no
braço dele e murmurou algo em seu ouvido que Leo não conseguiu
entender, então virou para Rose.
— George nos contou sobre o vestido Claire McCardell que você estava
usando quando se conheceram — disse Jane a Rose. — Você ainda o
tem?
Quinze minutos depois, eles tinham levantado acampamento e ido até
o sótão no terceiro andar. O sótão de Rose não era um buraco
empoeirado que se acessava por um alçapão e uma escada bamba,
iluminado por uma única lâmpada pendurada e com tábuas de assoalho
podres, obrigando todo mundo a prestar atenção onde pisa. Eram
cômodos luminosos e arejados com prateleiras e armários sob medida.
— Ah, meu Deus — exclamou Jane. Então deu uma volta completa
devagar para poder captar tudo. — Isto é como estar na melhor loja
vintage do mundo.
— Venho postergando subir aqui — disse Rose. Quando olhou para as
prateleiras mais próximas, que estavam cheias de pastas e caixas, tudo
etiquetado e organizado, pareceu desanimar. — Uma pena que não vou
viver para ver o futuro sem papel sobre o qual li tanto. Estava ansiosa
para isso. Quantas coisas eu acumulei! E tem também sabe-se lá o que
mais em Lullington Bay. Leo, eu esperava que pudéssemos ir até lá se
possível na próxima semana. Agora você poderia fazer a gentileza de me
arrumar uma cadeira, por favor?
Assim que Rose e George estavam acomodados em espreguiçadeiras
Eames que combinavam, ela fez Leo e Jane procurarem o vestido Claire
McCardell. Eles vasculharam capas para roupas e descobriram casacos
estilosos e longos e vestidos de gala, até que Leo enfim encontrou o que
Rose estava procurando e colocou-o reverentemente em seu colo.
— Este aqui é como um velho amigo. Comprei-o em Nova York em
1946 — disse Rose sobre o vestido azul-marinho com bolinhas vermelhas
e gola contínua e curva do qual já tinham ouvido George falar. — Vocês
não podem imaginar como era estar em Nova York depois de todos
aqueles anos de racionamento. Você podia entrar em qualquer loja e
comprar o que quisesse. Bastava apontar, pagar e sair da loja com o que
queria... Eu tinha esquecido como era.
Jane parou bem no meio de abrir uma capa de roupa para olhar para
Rose como se ela estivesse maluca.
— Eles racionavam roupas durante a guerra? Por que fariam isso?
— Santo Deus. — Agora foi a vez de Rose parecer espantada. — Eles
não ensinam nada a vocês, jovens, nas escolas hoje em dia? É claro que as
roupas eram racionadas.
— Eu sabia que a comida era racionada — retrucou Jane, embora
parecesse insegura. — Mas acho que não aprendemos sobre
racionamento de roupas na escola. Isso foi há décadas.
— Obrigada por me fazer sentir velha — retrucou Rose.
— Acho que o efeito dos comprimidos está passando — disse Leo sem
emitir som a Jane. Ela mordia com força o lábio inferior, o que o fez
lembrar por uma fração de segundo que isso acontecera em Las Vegas,
quando ele a pressionara contra a parede do quarto de hotel.
Todos eles ficaram em silêncio, o que durou dois longos minutos,
tempo suficiente para Leo percorrer um álbum inteiro de imagens —
todas com Jane seminua embaixo dele —, mesmo enquanto ela se
agachava para pegar caixas de sapatos de uma prateleira de baixo, ainda
cheirando a cassis.
Então, de repente, ela se levantou.
— Tudo bem se não quiser falar sobre isso, mas... você podia comprar
calcinhas durante a guerra, não podia? — Jane em geral era perita em
captar dicas, em saber quando não tocar mais no assunto, mas ao que
parecia não estava conseguindo fazer isso naquela noite. — Por favor, me
diga que não racionavam calcinhas.
— E sutiãs e meias! — Rose sorriu diante do olhar escandalizado de
Jane. — Isso quando você conseguia encontrá-los nas lojas. O
racionamento de comida não era tão terrível... depois que me mudei para
Londres, até engordei um pouco. Mas eu ficava chateada em não poder
comprar um belo vestido sempre que queria.
— Como você engordou se havia racionamento de comida?
— Porque toda noite eu me enchia de donuts no clube da Cruz
Vermelha na Piccadilly Circus. Até hoje, se me deixarem sozinha com um
prato de donuts, eu poderia guardá-los em um guardanapo e enfiá-los na
bolsa em três segundos.
Isso trouxe de volta uma lembrança quase esquecida.
— Mamãe falou desse lugar. Contou algo sobre você fugir de casa com
o casaco de pele da minha bisavó. E você também roubou dois dos
melhores vestidos da vovó.
— Ah, eu não diria que roubei. Peguei emprestado sem pedir —
observou Rose, que deveria estar piorando aos poucos agora, mas de
repente parecia pronta para embarcar numa aventura.
Se Leo tivesse sugerido que saíssem naquela noite gélida de novembro
para encontrar um lugar para dançar e espantar o frio, Rose parecia que
iria na frente.
— Você nunca fala sobre a guerra — disse George. — E falamos sobre
tudo mais.
— Não falo? Que estranho. Nós últimos tempos, penso nisso o tempo
todo. — Rose estendeu uma perna e com cuidado girou o tornozelo,
depois o outro. — De qualquer forma, ninguém quer ouvir uma velha tola
tagarelando sobre seus dias de glória.
— Bem, eu gostaria, querida, ainda mais se isso incluir você envolvida
em romances com soldados fortes — disse Jane. — Parece algo saído de
um filme.
— Ah, tenho certeza de que você acharia tudo um tédio — disse Rose,
hesitando.
— Bem, considerando que Jane sequer sabia que as roupas eram
racionadas, sei que ela acharia instrutivo — disse Leo, saindo do alcance
do braço de Jane, que estava pronta para atacá-lo. — O quê? Até eu sabia
sobre o racionamento de roupas, e olhe que eu costumava dormir nas
aulas de história.
— A menos que seja muito doloroso para você falar sobre isso —
observou George. Rose então pousou a mão sobre a dele como se não
houvesse nada tão doloroso sobre o qual não pudessem falar. — Se doer
demais lembrar.
— Talvez um dia tenha sido, mas agora é muito agradável me lembrar
do Rainbow Corner. — Sua voz soava nostálgica. — Era o lugar mais
incrível. Quando abriu, eles jogaram a chave fora, porque disseram que
suas portas sempre estariam abertas para qualquer soldado americano
que precisasse de um lugar para ficar. Não apenas soldados... o Rainbow
Corner também nunca me deu as costas.
25
Maio de 1944
Cara Rose,
Você realmente foi muito além do que eu esperava. Por acaso invadiu
um depósito da NAAFI?
Por favor, aceite minhas desculpas por ter sido tão desnecessariamente
duro quando a vi pela última vez. Queria pedir desculpas pessoalmente,
mas precisei me ausentar de Londres nas últimas semanas.
Espero que você possa ir à casa de Kensington na quinta, às três.
Tenho certeza de que você será muito mais acolhedora para alguns
viajantes cansados, principalmente os pequenos, do que eu poderia ser.
Por favor, tente vir.
Meus mais sinceros cumprimentos,
Edward
Naquela quinta, com um ursinho de pelúcia tricotado com lã
reaproveitada de um velho suéter da escola e os bolsos abarrotados de
chocolate, Rose chegou à casa em Kensington.
Desde a última vez que estivera lá, a porta da frente tinha sido
repintada de um tom alegre de vermelho vivo. Rose tocou a campainha,
então esperou um bom tempo até a porta se abrir e Edward aparecer. Ele
deixara de lado o casaco do uniforme e os dois primeiros botões da
camisa estavam desabotoados e as mangas, arregaçadas.
— Ah, é você. — Ele franziu a testa. — Desculpe. Não quis parecer tão
rude.
Rose segurou o saco de papel que trazia mais junto ao peito.
— Então eles não estão aqui?
Edward passou a mão pelo cabelo louro, que estava bagunçado, como
se viesse fazendo isso a tarde toda.
— Estão, mas bem... é melhor você entrar.
Ela não queria entrar — ele parecia tão perturbado —, mas passou por
ele, entrando no hall. As paredes brilhavam de tão brancas e frescas. O
cheiro de tinta nova irritou a garganta de Rose enquanto seguia para a
sala da frente, mas Edward pegou seu braço.
— Só para avisá-la: eles não são uma visão muito bonita — disse ele
baixinho. — Tente não se assustar.
Em seguida, ele a conduziu para a sala. Rose prendeu a respiração
enquanto olhava timidamente em volta. O lugar tinha sido transformado:
as paredes eram muito brancas ali também, as tábuas podres do piso
tinham sido substituídas, lixadas e polidas, até o revestimento da lareira
tinha sido limpo e o suporte para a lenha pintado de preto.
Então ela os viu nos cantos, onde as sombras se encontravam. Foi bom
Edward tê-la prevenido, assim ela teve tempo de disfarçar o choque.
Havia seis — não, sete deles; fantasmas grudados nas paredes,
observando-a com rostos desconfiados. Dois homens e duas mulheres,
que poderiam ter dezoito ou oitenta anos, e três crianças. A pele deles,
amarelo-clara como as lindas prímulas que balançavam com a brisa
quando Rose sentara no bosque com Phyllis, parecia muito esticada sobre
os ossos salientes, e se uma corrente de ar entrasse por uma fresta nas
janelas recém-restauradas, eles podiam tombar como pinos de boliche.
Quando Edward colocou a mão em seu ombro, Rose quase gritou, mas
conseguiu reprimir esse impulso também e deixá-lo empurrá-la para a
frente.
— Esta é Rose — disse ele. — Ela veio dizer olá.
— Eles falam inglês? — sussurrou ela, embora sua voz tenha soado
alta e estridente no silêncio sufocante da sala.
— Eu não sei — sussurrou Edward de volta, como se estivesse tão
perdido quanto ela.
Uma das crianças, uma menininha com cabelo castanho-claro dividido
em duas tranças finas, era quem estava mais próximo. Rose sempre
odiara quando os adultos assomavam diante dela, então se agachou.
— Olá — disse ela. — Estou tão contente por vocês finalmente
estarem aqui. — Rose sorriu. E a garota olhou para ela. — Eu e meus
amigos andamos ocupados procurando todos os tipos de coisas para
vocês brincarem — disse ela, porque sua tagarelice era melhor do que o
silêncio. Empolgada, revirou o saco de papel que tinha colocado no chão e
pegou o urso verde-garrafa disforme que tricotara. — Fiz um novo amigo
para você para o caso de ter precisado deixar alguns dos antigos para
trás.
Ergueu-o para que a menina pudesse vê-lo. Maggie doara duas contas
pretas para fazer os olhos e Rose costurara um sorriso feito de um pedaço
de feltro vermelho. Então continuou:
— Ele se chama Bill. Bill, o urso. Ele é tão fofinho. Aqui, por que você
não pega o ursinho? — Nenhuma reação. — Trouxe outras coisas
também. — Rose sorriu para todas as crianças, uma de cada vez. —
Vocês gostam de chocolate?
Ela puxou um punhado de barras de chocolate do bolso. Num piscar de
olhos, elas foram pegas por mãozinhas famintas.
A mãe de Rose sempre dizia que ter boas maneiras significava fazer os
outros se sentirem confortáveis independente das circunstâncias, então,
quando as crianças se retiraram para um canto onde sentaram no chão e
começaram a cheirar os chocolates como se não tivessem certeza se eram
reais, ela se levantou e caminhou até uma das mulheres.
Quanto mais se aproximava, menos a mulher lhe passava a impressão
de uma aparição assombrada. Ela usava um casaco preto esfarrapado e
seu fino cabelo castanho cobria seu rosto quando olhou para Rose com
desconfiança. Seria tão mais fácil ir embora, simplesmente fugir daquela
casa e daquelas pessoas sofridas.
Foi muito mais difícil, talvez a coisa mais difícil que Rose já tivera de
fazer, estender a mão e dizer:
— Meu nome é Rose. É um prazer conhecê-la.
A mulher olhou para a mão estendida, depois levantou os olhos até a
expressão esperançosa no rosto de Rose. Rose tentou sorrir de modo
acolhedor, embora não tivesse certeza se tinha conseguido, pois a mulher
de repente baixou a cabeça e começou a chorar.
— Ah, por favor, não chore. Eu não pretendia chateá-la — disse Rose.
Até então teria sido mais fácil fugir do que passar os braços em volta da
mulher e abraçá-la enquanto soluçava, com a cabeça apoiada no ombro
de Rose. Ela era tão magra que Rose tinha medo de que pudesse se
quebrar. Por baixo do fino casaco, podia sentir cada um dos nós da coluna
dela, as costelas parecendo peças de pega-varetas. — Tudo vai ficar bem.
Vocês estão seguros agora. Edward vai cuidar disso.
Edward deu um passo adiante e ofereceu seu lenço. Então a mulher
deixou que a levassem a uma antiga poltrona estofada, onde sentou e
assoou o nariz.
— Obrigada — disse ela com sotaque. — Obrigada. Obrigada.
Obrigada.
Suas lágrimas tiraram os outros de sua inércia e, em pouco tempo,
todos os adultos estavam sentados nas cadeiras que Edward conseguira
trazer de algum lugar. Rose ainda segurava a mão da mulher, e a menina
de tranças, que agarrava Bill, o urso, como se nunca mais fosse soltá-lo,
subiu no colo dela, enquanto Edward foi à cozinha preparar chá.
Eles tomaram chá preto, já que os contatos de Edward não haviam
conseguido arranjar leite, e comeram bolos passados, embora ninguém
tenha parecido se importar. Também não se importaram em dormir em
camas de campanha ou por não haver muita mobília. Enquanto Edward e
Rose lhes mostravam a casa, eles exclamavam a cada nova descoberta —
desde lâmpadas até água corrente e uma sala de brinquedos no segundo
andar com o espólio de Rose à mostra nas prateleiras.
Rose não sabia de onde eles tinham vindo ou de que horrores haviam
escapado, mas quaisquer que fossem as circunstâncias, eles realmente
não precisavam ficar agradecendo o tempo todo. Era o mínimo que ela
poderia ter feito e só fizera isso para deixar de pensar em Danny. Aquelas
sete almas perdidas, e as centenas de milhares de outras como elas, eram
a razão pela qual ele subia em seu avião todas as noites. A forma como
Danny a tratara fora cruel e egoísta, mas até mesmo cruel e egoísta como
era, ele estava disposto a arriscar a vida vinte e cinco vezes mais para
salvar pessoas que nunca conhecera, de países que só tinha visto em um
atlas. Se Danny podia fazer isso, então Rose podia ter feito muito mais do
que reunir aquele monte de quinquilharias.
— Vou continuar procurando coisas para eles — disse Rose a Edward
quando ele a acompanhou até Kensington High Street para pegar o
ônibus. — Essas pobres pessoas. E os pequenininhos! O que aconteceu
com eles?
— Eles passaram os últimos dois anos escondidos em um porão, mas...
os detalhes não importam. Eles são judeus. Foi sorte terem passado os
últimos dois anos em um porão.
Rose encarou Edward. A voz dele soou sem emoção, inexpressiva, mas
seu rosto estava ainda mais duro do que quando a repreendera por ser
egoísta.
— Eles tiveram sorte por você ter ouvido falar deles, por tê-los trazido
para cá.
Ele deu de ombros.
— Sete afortunados. Milhares e milhares de outros não tão
afortunados.
— Você acha que vão chegar mais deles?
— Não. — Ele foi taxativo. — Não até que todo esse negócio horrível
acabe.
— Então irá acabar em breve? Sei que não devemos falar sobre isso
porque um de nós pode ser um espião, mas, se você fosse um agente
inimigo, não estaria trazendo escondido refugiados judeus da Europa. E
eu definitivamente não sou uma agente inimiga! — exclamou ela, porque
um oficial nazista só teria de encará-la com um olhar severo e um
“Achtung!”, para que entregasse tudo o que sabia.
— Ah, Rose! — Não era um dos sorrisos lentos e graves de Edward,
mas um que apagou a expressão preocupada que estivera em seu rosto a
tarde toda. — Se você for mesmo uma espiã nazista, então é uma muito
boa. De qualquer forma, você está no Rainbow Corner quase todas as
noites... Tenho certeza de que tem uma noção melhor do que está
acontecendo do que o próprio Winston.
Rose deu uma risadinha.
— Tenho certeza de que não. — Tinham chegado ao ponto de ônibus.
— Mas, bem, parece que algo grande está para acontecer. Talvez desta
vez, quando falarem que a guerra terminará até o Natal, possa ser
verdade.
O ônibus 9 parou, mas Rose não fez nenhuma menção de embarcar.
Logo chegaria outro. Ela queria passar um pouco mais de tempo com
Edward. Ele não a tratava como apenas mais uma garota bonita, mas
como se ela tivesse realmente algum conteúdo.
— Não tenho certeza se terminará até o Natal — disse ele. — Mas
estou certo de que as coisas provavelmente vão piorar antes de melhorar.
— Eu não vejo como — queixou-se Rose, enquanto pegava na bolsa os
três pence da passagem. — A menos que comecem a racionar água e ar
fresco, e os nazistas lancem bombas de manhã, à tarde e à noite.
— Mas que pensamento preocupante. — Edward sorriu de novo. —
Você se importaria muito de voltar na próxima quinta? Não precisa trazer
nada, só vir mesmo. E, se eles estiverem se sentindo um pouco mais
fortes e o tempo estiver bom, talvez você possa levar as crianças ao
parque.
— Claro. E vou trazer Phyllis. Consegui a maioria das coisas com ela,
que é ótima em fazer as pessoas se sentirem em casa.
— Traga Phyllis com certeza, e, quando você tiver uma noite livre,
gostaria de levá-la para sair como agradecimento. Você já foi ao Ritz?
Só de ouvir esse nome, Rose já sentiu o coração disparar.
— Você não precisa fazer isso. Estou feliz em poder fazer algo por eles.
Eu quero ajudar.
— E eu quero levá-la para jantar, desde que prometa que não vai pedir
Tournedos Rossini de novo. Você pode levar sua amiga Phyllis também se
quiser.
Rose achava melhor mesmo, porque jantar sozinha com um homem,
sobretudo em um lugar incrivelmente chique e caro, poderia lhe passar a
impressão errada. E também havia toda aquela situação horrível com
Danny, mas isso era complicado demais para explicar, principalmente
porque outro ônibus estava chegando.
— Isso seria ótimo — disse ela.
— Todos esses bilhetes através de Mickey Flynn são ridículos. Você
tem telefone? — perguntou Edward quando o ônibus parou.
— Só no trabalho. — Rose entrou no veículo. O ônibus estava se
afastando, por isso não havia tempo de pensar nas consequências de dar
seu número a Edward. — Gerrard 7531, mas você vai ter de fingir que é
uma emergência nacional. Não estou autorizada a receber telefonemas
particulares.
26
Às vezes, Jane achava que sua vida adulta podia ser medida pelo número
de jantares entediantes a que sobrevivera. Manter uma conversa fútil com
a pessoa à sua esquerda. Pensar desesperadamente em algo a dizer para
fazer a pessoa à sua direita sair da concha. Escolher o que comer em meio
a pratos que continham ingredientes dos quais nunca tinha ouvido falar,
com nomes que sequer sabia pronunciar.
Naquela noite teria um jantar maçante com dois dos consultores de
negócios de Rose. Não seria como os jantares que vinham tendo nos
últimos tempos, dos quais só participavam eles três e George. Depois do
jantar, eles costumavam se retirar para a sala de estar de Rose, onde ela
lhes contava histórias sobre o Rainbow Corner, e, enquanto ela falava,
Jane podia ver vislumbres daquela garota que dançava até as três da
manhã.
Estava tudo indo bem. Rose estava tomando a medicação certa e vendo
Leo sob uma luz mais carinhosa e afetuosa. Leo tinha um novo senso de
propósito e, mesmo que não confiasse em Jane, estava grato. Ela preferia
ter a gratidão de alguém do que sua confiança.
Enfim, o que era mais um jantar entediante, pensou Jane, enquanto
calçava os sapatos. Não usava saltos havia semanas e se desequilibrou um
pouco ao virar para conferir seu reflexo no espelho do banheiro. Rose
insistira de forma bastante incisiva na noite anterior que andavam
desrespeitando muito a etiqueta, mas que esperava que se vestissem
apropriadamente para o jantar.
Pelo menos George estaria presente e Leo havia prometido mantê-la
entretida.
— Vamos fazer um jogo de beber — dissera ele naquela manhã,
quando desceram para o café da manhã. — Nós dois temos de tomar um
gole toda vez que alguém mencionar a bolha imobiliária.
— Ou falar sobre habitações populares para os trabalhadores
essenciais — sugerira Jane.
Eles tinham trocado mensagens o dia todo com regras para o jogo,
embora a última de Leo tivesse sido um apelo para fazê-lo parar de beber
depois de uma taça de vinho. Então eu passo para a água. Não posso
deixar você se aproveitar de mim se ficar bêbado.
O pensamento dele estava bastante fixo na ideia de Jane se aproveitar
dele, e ela sabia que, se dispensasse os travesseiros no meio da cama, ele
se deitaria alegremente e acabaria transando com ela. Não que Jane fosse
fazer isso, mas, só de pensar no olhar de Leo caso fizesse, abriu um
sorriso quando começou a descer a escada. Então ouviu a campainha e
viu Anna correr para atender. Logo depois, dois homens entraram na
casa e Jane congelou. Literalmente. Como se de repente tivesse sido
transformada em gelo e temesse dar mais um passo e quebrar. Ele olhou
para cima: não era um truque da luz.
Era Charles, com toda a cor drenada de seu rosto, fazendo com que
parecesse uma imagem negativa, uma foto que não tinha sido revelada.
Levando a mão de repente ao coração disparado, ela se perguntou se
Charles ficara assim quando o deixara. Quando encontrara o bilhete que
Jane escrevera na bancada da cozinha, junto com as chaves dela.
Agora Charles esperava por ela, enquanto Jane descia devagar as
escadas, como se tivesse planejado sua entrada, mas não tinha.
Conseguia apenas colocar um pé na frente do outro.
Anna ainda esperava para pegar o casaco de Charles. O homem mais
jovem com quem ele viera também estava esperando, mas Jane só
conseguia ver Charles. Ele tinha envelhecido. O cabelo estava mais
grisalho, com entradas, e havia rugas ao redor dos olhos, da boca, que
não estavam lá antes. Ela se preparou para enfrentar a raiva e a decepção
dele, mas em vez disso Charles sorriu como se nada lhe desse mais prazer
do que ficar cara a cara com ela de novo.
— Jane, você está encantadora — afirmou ele, quando ela chegou ao
último degrau. Correu os olhos pelo cabelo bem cuidado dela, o vestido
preto curto e os saltos que ela aprendera a usar quando estava sob seus
cuidados. — Faz muito tempo mesmo.
— Faz — concordou ela.
Mais cinco passos aproximaram os dois, e então suas mãos estavam
nas dele e os lábios dele roçaram um lado do seu rosto, depois o outro, um
cumprimento trivial entre velhos amigos. Foi a primeira vez que ele a
tocou. Que estranho não haver nada de assustador com relação às mãos
de Charles. Elas mantinham Jane firme, mesmo ela tendo certeza de que
Charles podia sentir o tremor frenético que percorria seu corpo. A coisa
toda era insuportável. Jane sorriu e soltou as mãos, então olhou para o
homem mais jovem que esperava pacientemente para cumprimentá-la.
— E quem é este, querido?
Charles não gostara quando ela começara a chamar todo mundo de
querido.
— É tão terrivelmente artificial — reclamara ele.
No entanto, agora continuou a sorrir e pegou a mão dela mais uma vez,
como se vê-la de novo fosse tão maravilhoso que não quisesse que nada
estragasse o momento.
— Jane, este é Fergus, braço direito de Rose e um bom amigo meu —
disse Charles enquanto ela apertava a mão do homem alto, na casa dos
trinta, com cabelo bem vermelho e jeito de adolescente desengonçado.
— Jane, Leo me falou muito sobre você, mas eu não sabia que você
conhecia Charles também — disse Fergus com um sorriso largo e um
aperto de mão gentil. — Nunca sei se é reconfortante ou aterrorizante o
mundo ser tão pequeno. De onde vocês se conhecem?
Charles sempre a apresentara como sua sobrinha. Havia algo de mais
respeitável com relação a uma sobrinha do que uma afilhada ou a filha de
um velho amigo.
— Nossa, nos conhecemos há tanto tempo — disse Jane, e Charles
assentiu. — Tanto tempo que nem me lembro como nos conhecemos, não
é?
Charles não revelaria seus segredos, ou talvez planejasse fazer isso,
mas Lydia chegou para levá-los à sala de estar.
— Temo que a senhora esteja atrasada — disse ela. Jane nunca a
ouvira ser tão formal. — E ainda estamos esperando o sr. Hurst.
Foram trinta minutos absolutamente agonizantes, segurando uma taça
de vinho branco, empoleirada no braço de uma cadeira, enquanto eles
conversavam alegremente sobre o tempo, por que o governo estava
fazendo outra obra na Kensington High Street, para depois passarem
para possíveis planos para o Natal.
Ela havia cultivado a arte de ser espirituosa e espontânea, mas isso não
ajudava muito estando sentada de frente para Charles, que acompanhara
seu aprendizado no ofício. Sentia-se como uma boneca de corda cuja
engrenagem não estava funcionando direito; então, quando Fergus
começou a falar sobre a taxa básica do Banco da Inglaterra, foi um alívio
não precisar falar nada.
Foi um alívio ainda maior quando Leo chegou. Por um instante, Jane
não teve certeza de que era Leo. Ele não estava de camisa amarrotada e
calça jeans larga, e sim de terno. Leo não usava ternos, mas, ao que
parecia, usava sim: um terno azul-marinho bem ajustado ao corpo com
uma camisa preta. Ele esfregou as mãos nervosamente e sorriu.
— Fergus! Que bom vê-lo de novo. Você deve ser o Charles. Não, não
levante. Eu sou o Leo, sobrinho-neto de Rose. Desculpe por fazê-los
esperar. Posso lhes servir outra bebida?
Leo também tinha ido ao barbeiro. As pontas claras tinham sido
cortadas, e agora seu cabelo estava curto atrás e dos lados, mas ainda
havia o suficiente em cima para ele passar os dedos pelos fios como
estava fazendo agora, enquanto conversava com Fergus e Charles sobre
um trabalho que a equipe de manutenção tinha feito naquela manhã.
— Ele jurou que não sabia como o apartamento havia inundado, mas
depois descobrimos que todas as suas roupas tinham sido cortadas em
pedacinhos e ele acabou admitindo que tinha traído a namorada e ela
havia entrado lá enquanto ele estava no trabalho e deixado todas as
torneiras abertas. — Ele arqueou a sobrancelha para Jane. — Não vá ter
nenhuma ideia.
Àquela altura, ela tinha visto Leo todos os dias e todas as noite por
mais de um mês, por isso deixara de reparar nele e não notara que o rosto
dele estava mais magro, tinha afinado, a camisa não marcava mais a
barriga. Leo parecia ocupar mais espaço agora que havia um pouco
menos dele, pensou Jane enquanto o observava pegar um banquinho
baixo e sentar para falar com Fergus sobre um meio-campo do Arsenal
que não estava atendendo às expectativas dos vinte e cinco milhões de
sua transferência.
Leo olhou para onde ela ainda estava empoleirada no braço de uma
cadeira.
— Deus, eu tinha me esquecido como você sabe se arrumar — disse
ele. Jane já recebera elogios melhores e mais elegantes, porém sem a
sinceridade de Leo.
Quando queria agradar, Leo podia ser muito doce. De repente, Jane
quis fingir que era uma boa esposa e que Leo fora sincero quando
prometera amá-la, honrá-la e protegê-la. Naquela noite, ela precisava de
sua proteção.
Lydia foi até eles para anunciar que Rose os esperava na sala de jantar
e, quando Leo se levantou, Jane passou o braço pelo dele e o apertou um
pouco enquanto caminhavam.
— Você está mesmo ótimo — disse Jane um tanto incrédula, o que fez
Leo se perguntar se sua aparência era assim tão ruim antes. — Todo em
forma. Quanto trabalho pesado você tem feito, querido?
— Acho que é porque eu diminuí a bebida — retrucou Leo. — Se não
estou bêbado, não fico louco para comer um döner kebab com todos os
acompanhamentos quando pedem a última rodada.
— Eca. — Jane fez uma careta. — Temo por suas artérias.
Rose estava sentada à cabeceira da mesa, com George curvado em sua
direção para lhe mostrar algo no celular. Como Jane, ela estava toda
vestida de preto. Podia ser o efeito das velas na mesa, as luzes mais fracas
na parede, mas Leo estava certo de que o rosto dela tinha um tom
amarelado que nem o batom vermelho e o brilho discreto dos diamantes
poderiam mascarar. Leo notou que Rose não se levantou para
cumprimentar Fergus e Charles. Isso nunca tinha acontecido. Ela estava
bem de manhã, mas agora podia... não estar.
Mas Rose não tinha perdido o jeito autocrático. Indicara a todos os
seus lugares. Charles à sua direita, Jane sentada ao lado dele. Leo à sua
esquerda, Fergus ao seu lado e George na outra ponta da mesa. Ele não
sabia exatamente quem Charles era, só que era uma espécie de gênio dos
investimentos e que Rose lhe confiava suas carteiras — portanto tinha de
ser um boa pessoa, porque Rose dificilmente confiava em alguém. Então
ele ouviu Charles dizer a Rose:
— Na verdade, Jane e eu somos velhos amigos. Apesar de já fazer um
bom tempo que não nos víamos, não é?
Ser um velho amigo de Jane poderia significar qualquer coisa: gestor
de fundos, parente distante, amante. Era impossível dizer. Ela assentiu
muito brevemente, depois baixou a cabeça e não virou mais para Charles,
enquanto ele lhe lançou olhares furtivos quando achou que ninguém
notaria em meio à agitação de estender os guardanapos e Frank, que
seria o mordomo da noite, trazer o vinho.
Leo nunca curtira muito jantares, mas, em algum ponto entre o pão e a
sopa, ele começou a se divertir. Fergus era o mais provável sucessor de
Rose — charmoso, receptivo, mas com uma determinação de ferro, bem
como a própria Rose. Ele também parecia adorar tijolos e argamassa, as
casas, os lares, tudo o que compunha o cerne do negócio, tanto quanto
Rose.
— Você ia me contar sobre o lugar na Powis Square — disse Fergus a
Rose depois que o vinho foi servido.
Ela de repente ficou mais do que radiante ao embarcar em uma
história longa e engraçada sobre quando alugara uma casa em Notting
Hill nos anos 1970 para um astro do rock e sua esposa com um anexo
para o namorado do astro do rock e sua esposa.
Então George falou sobre como ele tinha trabalhado na Seditionaries, a
loja de Malcolm McClaren e Vivienne Westwood na King’s Road, e que, no
início de sua amizade, tinha levado Rose para ver os Sex Pistols tocarem
em um barco.
— Garotos adoráveis — disse Rose séria, de brincadeira, fazendo
Fergus tossir no guardanapo e Leo achar que iria chorar de tanto rir. — E
só cuspiram em mim uma vez antes que a polícia chegasse e acabasse
com tudo. Já fui a festas piores.
Jane e Charles eram os únicos que não estavam rindo. Ela estava
sentada em silêncio, mordendo o lábio inferior, a testa muito franzida
entre as sobrancelhas. Charles não conseguia tirar os olhos dela.
Nem Leo, aliás.
— Então, Leo, em que você trabalha? — Charles desviara o olhar de
Jane. — Sei que você morou no exterior por alguns anos, mas estava me
perguntando quais são seus planos agora que voltou a Londres.
— Ele é artista — disse Jane depressa, como se desafiasse qualquer um
a contradizê-la. — Principalmente retratos.
Não foi a expectativa de ver Rose bufar em desaprovação que fez Leo
admitir a verdade.
— Não chego a isso. Estou à espera de outra encomenda, embora, para
ser sincero, às vezes se passem anos inteiros entre um trabalho e outro.
— Essa era a questão em ficar sem beber. Fazia você ter de enfrentar
algumas verdades duras e feias. — Nessas últimas semanas, tenho
trabalhado com a equipe de manutenção. Trocado meus pastéis por
massa branca, você sabe.
É claro que suas ambições iam além de lixar rodapés, mas Leo já tinha
passado dos trinta anos e não sabia mais quais eram bem suas ambições.
Eles falaram sobre negócios ao longo do restante do jantar: Leo, Fergus
e Rose, Charles e George entrando na conversa com comentários
ocasionais, e Leo não conseguia se lembrar da última vez em que ficara
tão empolgado enquanto defendia a ideia de fazer algo legal com a pedra
angular e as impostas no mais recente projeto de reforma deles em
Westbourne Grove.
Ele também dizia “nós”, quando não era parte do “nós”, apenas um
terceiro desinteressado. Só que ele estava interessado, em especial
quando Rose falava sobre o direito à facilidade de compra de seus
empregados.
— Quando esta empresa começou, sua missão era unicamente abrigar
refugiados vindos da Europa no final da guerra — explicou ela. Leo não
sabia de nada disso. — Kensington ficava do lado errado do Parque, como
se costumava dizer. Podiam-se comprar várias propriedades atingidas por
bombas a um preço muito barato. Havia refugiados e soldados de repente
sem trabalho que precisavam de empregos. Eles recebiam um salário
decente e, por um aluguel muito menor, moravam nas propriedades que
reformavam. Naquela época, todos nós precisávamos de um senso de
propósito, a crença de que tudo pelo que tínhamos lutado não fora em
vão.
Rose, então, respirou fundo e continuou:
— Ainda acredito que, se as pessoas estão dispostas a trabalhar duro,
então deveriam ter um salário digno e um lugar pelo qual pudessem
pagar para morar. — Rose parou e sorriu ironicamente. Talvez ela
estivesse mesmo tendo um bom dia. — Deus do céu, acho que é hora de
eu descer do palanque.
— Gosto da visão de lá de cima — disse Fergus, e Leo não pôde deixar
de sentir uma pontada de alguma coisa. Não ciúme, não totalmente, mas
talvez arrependimento por ser Fergus quem compartilhava a paixão de
Rose, sua visão, e não Leo, ou Alistair, ou um dos primos deles, para que
ela pudesse manter o legado na família. — Você devia se orgulhar do
direito à facilidade de compra. Na verdade, Leo, se você estiver
interessado, tem uma construtora da Dinamarca que vem nos visitar que
está pensando em criar um esquema semelhante. Eles são especializados
em projetos neutros em emissão de carbono. Pode ser interessante se
você quiser participar. Me lembro que tivemos uma discussão acalorada
sobre os desafios de ser ecologicamente correto quando se está
reformando prédios tombados.
— Vocês discutiram? — Rose soou bastante surpresa. Então olhou
incisivamente para os cotovelos de Leo, que estavam apoiados na mesa.
Leo corrigiu a postura relaxada e sentou direito.
— Ah, sou apenas um artista desempregado fazendo um pouco de
decoração nas horas vagas. Seria melhor você levar alguém que soubesse
do que eles falarão.
— Não seja tão severo consigo mesmo. — Jane enfim saíra daquele
estado de medo. — Se você se interessa tanto assim pela maneira como
as pessoas vivem, então se envolva. Porque é importante, não é? Todos
deveriam ter um lar. Um lugar em que se sentissem seguros.
Era estranho ouvir Jane falar com tanta convicção também. Além
disso, ela não chamava ninguém de “querido” havia pelo menos uma
hora. Leo queria perguntar a Jane onde se sentia segura, mas o assunto já
tinha mudado para Charles, que aparentemente era um banqueiro ético
de investimentos, o que soava como um paradoxo para Leo.
Lydia tinha se excedido com a sobremesa — um fondant de chocolate
regado generosamente com brandy — e depois do jantar, quando
tomavam café, Rose sorriu para Leo; um sorriso caloroso, talvez até com
certa aprovação. Já fazia muito, muito tempo desde a última vez que ele
ganhara um sorriso como aquele de Rose.
A noite foi um sucesso sob todos os aspectos. Leo já não se sentia como
um garoto que tinham deixado ficar acordado até tarde com os adultos
apenas como um agrado. E até acompanhou Fergus e Charles à porta e se
despediu deles com um firme aperto de mão.
— Foi um prazer conhecê-lo — disse Charles, e parecia sincero.
Leo se perguntou qual era a história de Charles. O que ele era de Jane.
Ele não parecia do tipo que gastava indiscriminadamente seus fundos
eticamente investidos com uma mulher. Talvez Leo estivesse sentindo um
pouco de ciúme com relação a isso enquanto caminhava de volta à sala
de jantar para perguntar.
Mas George e Jane estavam agachados diante de Rose, que ainda
estava sentada à cabeceira da mesa, com a cabeça baixa, as mãos
agarrando o nada e fazendo um som horrível, enquanto tentava inspirar.
De repente, a noite não parecia mais um sucesso.
27
Junho-setembro de 1944
Cara Rose,
Eu ficaria encantado se pudesse jantar comigo no Ritz na sexta, 8 de
setembro, às 22h30. Se quiser, por favor leve sua amiga Phyllis.
Meus mais sinceros cumprimentos,
Edward
Rose pediu a Phyllis que fosse com ela ao Ritz, mas Phyllis não quis.
— Não estou prometendo nada, você entende — disse ela —, mas essa
é a véspera do seu aniversário de dezoito anos, e Maggie, Sylvia e eu
temos planos para essa noite que não envolvem você.
Elas sempre faziam surpresas de aniversário umas para as outras. Para
Sylvia, Maggie conseguira uma autorização para assistir a uma gravação
do American Eagle in Britain, na BBC, e Sylvia acabara dançando por um
corredor com o próprio Fred Astaire. Elas conseguiram um frasquinho de
Chanel No 5 e assentos em um camarote para ver Ivor Novello no The
Dancing Years, no Adelphi, no aniversário de Phyllis. A surpresa de
Maggie tinha sido muito mais difícil porque ela não falava muito sobre
seus gostos, mas Rose conseguira duas garrafas de vodca de um polonês
que trabalhava nas casas de Kensington e Sylvia, dois metros de seda
preta para Maggie fazer um vestido. Jantar com Edward daria às meninas
tempo suficiente para cuidar dos últimos detalhes para as surpresas de
aniversário de Rose, que ela esperava que incluíssem um novo vestido e
um batom, já que seu Tru-Color vermelho não passava de uma lembrança
distante.
As três se despediram dela em frente ao Rainbow Corner. Phyllis
colocou umas poucas gotas preciosas de Chanel No 5 nos pulsos de Rose,
e Sylvia a alertou para não beber demais.
— Você sabe o que aconteceu da última vez — disse ela, com os olhos
azuis brilhando. — Ele vai achar que você não sabe beber.
— Mas divirta-se, Rosie — disse Phyllis. — E não faça nada que eu não
faria!
Sylvia se virou para Phyllis com um olhar confuso.
— Mas Phyllis, querida, você nunca faz nada — disse de maneira
arrastada. Phyllis guinchou, indignada, e fingiu estrangular Sylvia
enquanto Maggie ria da brincadeira.
— É melhor você ir — disse a Rose, que também ria. — Você vai se
atrasar.
Rose se atrasou, mas Edward ainda a esperava em frente ao Ritz, como
se soubesse que ela estava muito nervosa em ter de entrar sozinha. Ele
estava de uniforme, que sempre parecia impecável, o corte tão perfeito
que Rose se perguntava se ele o encomendara a seus alfaiates, e tirou o
quepe em cumprimento quando viu Rose se aproximar apressada. Ele
estava mais alto, menos encurvado do que ela se lembrava.
— Olá — disse ele. Rose também havia esquecido como o sorriso dele
era acolhedor, então, de repente, não estava mais nervosa porque seu
vestido preto de crepe da china ficara brilhoso ou porque provavelmente
cometeria uma enorme gafe com os talheres. — Você está muito, muito
bonita.
Rose tinha certeza de que não estava. Já não tinha mais pó compacto e
a caminhada apressada pela Piccadilly tinha deixado seu rosto todo
vermelho. Ela dispensou o elogio com um gesto.
— Você voltou há muito tempo?
— Uma semana — respondeu, colocando o quepe debaixo do braço e
oferecendo o outro a Rose enquanto o porteiro os conduzia para dentro.
Quando a porta se fechou, abafando os sons da noite, foi como se o
mundo lá fora tivesse deixado de existir.
Eles seguiram um solene garçom através de uma vasta sala de jantar.
Rose teve de se esforçar ao máximo para não ficar de boca aberta como
uma imbecil olhando para os lustres que iluminavam a sala enorme, seu
brilho refletido nos espelhos, e a prata e os cristais que cintilavam nas
mesas pelas quais passavam. Os frisos pintados em painéis de parede
com bordas douradas eram como as figuras dos livros de arte que via nos
livros da biblioteca da escola. Mulheres em cetim, seda e peles pré-guerra
também brilhavam. Era como se de repente se visse em um lindo sonho.
Rose sentou na macia cadeira de veludo vermelho que fora puxada
para ela.
— É exatamente assim que eu imaginava a corte de Luís XVI antes da
Revolução Francesa.
Edward sorriu.
— Você acha que, se prestarmos bastante atenção, poderemos ouvir o
rugido dos camponeses irados vindo nos levar para a guilhotina?
— Ah, eles não me levariam, não depois que explicasse que sou apenas
uma simples trabalhadora — disse Rose. Talvez ela estivesse sendo um
pouco atrevida, mas valia a pena fazer Edward rir. De outro modo, ele
parecia tão sério. — Você pode me contar onde esteve e o que andou
fazendo ou isso é confidencial?
— Se eu lhe contasse, então os camponeses irados seriam substituídos
por policiais militares que nos levariam daqui e nos prenderiam. — Ele
fez sinal para um garçom que estava ansioso para lhes mostrar os menus.
— Agora, me diga, se você pudesse comer qualquer coisa mesmo, o que
escolheria?
Rose parou para pensar em frango assado e o recheio especial da Cook
com ameixa e damasco. Pensou em pavê. Pensou em um café da manhã
completo: ovos fritos, salsichas suculentas, bacon frito e cogumelos.
Pensou em todas essas coisas e então se lembrou do prato que queria
mais do que tudo.
— Torrada com molho de queijo — decidiu ela. — Feito com toneladas
e mais toneladas de queijo e nadando em molho Worcester.
— Então é isso que você deve comer — disse Edward. Ele chamou o
garçom. — Nós dois queremos torrada com molho de queijo
generosamente temperado com Worcester. Dois bellinis como aperitivo,
em seguida uma garrafa de Merlot. De 1937 se vocês ainda tiverem
alguma.
O garçom pareceu achar que torrada com queijo era algo
perfeitamente aceitável para se pedir no Ritz, e foi então que Rose pensou
que aquele deveria ser seu lugar favorito no mundo, ou talvez foi quando
os bellinis chegaram e ela fez a feliz descoberta de que champanhe podia
ser muito delicioso quando misturado com suco de pêssego, mesmo que
fosse um desperdício escandaloso de bons pêssegos.
Ela e Edward conversaram sobre os refugiados, apesar de não serem
mais os refugiados. Eram Hélène, Thérèse e Paul, que adoravam jogar sua
própria versão ruidosa de croquet e corriam para abraçar Rose quando
ela aparecia todas as tardes de quinta e domingo, mesmo com as mãos
deles correndo para os bolsos dela em busca de chocolate. Eram
Madeleine e Gisèle, que passavam a maior parte do tempo cavando,
arrancando ervas daninhas e capinando no jardim mesmo quando chovia
simplesmente porque adoravam ficar ao ar livre depois de tanto tempo
confinadas num porão. E eram Yves e Jacques, que sempre insistiam em
acompanhar Rose até o ponto de ônibus e foram até Montague Terrace
certa vez para tentar fazer algo com relação ao encanamento, pois os
canos faziam um barulho horrível toda vez que uma das garotas abria
uma torneira.
Rose perguntou a Edward sobre seus planos para a casa ao lado, que
estava quase habitável de novo, mesmo não tendo ninguém para morar
lá. Embora com certeza, agora que os Aliados estavam ganhando terreno
na Europa, as coisas seriam mais fáceis para aqueles que quisessem fugir.
— Vamos ver — disse Edward, quando o garçom colocou uma tigelinha
de prata diante de Rose. Ela pedira morangos com sorvete de sobremesa
e, como ela não tinha gostado muito do Merlot, Edward insistira para que
tomasse outro bellini. — Vamos falar de coisas mais alegres. — Ele olhou
para o relógio. — Ainda falta meia hora, mas feliz aniversário.
— Como você descobriu? — perguntou Rose.
— Um passarinho me contou — respondeu Edward. Rose imaginou
que o passarinho fosse Sylvia, ou Mickey Flynn, que provavelmente
registrava esse tipo de coisa. — Espero que não se importe, tenho uma
coisinha para lhe agradecer por...
— Você não tem que me agradecer — retrucou Rose de forma tão
decidida que fez Edward erguer as sobrancelhas. — Fiquei feliz em ajudar.
— Olhe, preciso lhe dizer que perdi o recibo e tenho certeza de que não
posso devolver, então você está me deixando em uma situação muito
difícil. — Ele enfiou a mão no bolso interno do paletó e puxou uma
caixinha de couro cinza. Então a deslizou sobre o delicado linho branco
da toalha de mesa em direção a Rose, e seria rude não pegá-la e...
— Ah! Eu não poderia de forma alguma aceitar isso — disse Rose,
arfando, ao olhar para os brincos de diamante aninhados em veludo
amarelo. — Não poderia mesmo.
— Eu já disse que perdi o recibo? — Ele era muito gentil, o que tornava
tudo mais difícil.
— Você não entende. — Rose vinha temendo isso. Sylvia lhe dissera
para ficar de boca fechada, mas Phyllis falara que era baixo deixar um
cara levá-la para jantar quando não se estava realmente interessada. — É
só que... bem, eu odiaria que você tivesse a ideia errada. Há um outro
homem. Havia outro homem. A relação não terminou bem.
Edward, embora ainda estivesse sentado ali, tomando seu Merlot e
fumando um cigarro, de repente se afastara dela sem sequer se recostar
na cadeira.
— Ah. Sinto muito. Meus pêsames.
— Não, você não entendeu. Ele não morreu. — Era difícil encontrar as
palavras certas, mesmo com Rose não tendo pensado em quase nada
além de como lhe contaria desde que recebera o bilhete de Edward. — Ele
é piloto de bombardeiro. Foi liberado para voltar para os Estados Unidos
e vender bônus de guerra, mas preferiu ficar e lutar — acrescentou ela
um pouco na defensiva.
Edward tinha acabado de apagar o cigarro, mas logo acendeu outro.
— Que louvável da parte dele — disse Edward naquela mesma voz
inexpressiva.
Rose não achou que o encorajara, embora, como Sylvia dissera, os
homens sempre acusavam as garotas de encorajá-los, e aceitar jantar
com Edward poderia ter lhe dado a ideia de que Rose estava interessada.
Mesmo que eles mal se conhecessem e ele fosse muito mais velho do que
ela. Era difícil dizer quão mais velho, mas ele devia ter no mínimo trinta.
No mínimo.
— A questão é que não tenho notícias dele há séculos. Desde antes da
invasão e, embora eu não sinta mais nada por ele, não carinho pelo
menos, eu estava pensando, e sei que é pedir muito, se você poderia
tentar descobrir algo. Ver se ele está seguro.
Edward mal piscou quando Rose enfiou a mão na bolsinha de festa e
pegou o papel em que escrevera as informações de Danny. Não era muito.
Só o seu nome, embora ela não tivesse certeza de como se escrevia o
sobrenome, onde ele estava baseado, e que sua família morava em Nova
York. Mas Rose sabia muito mais sobre Danny do que apenas os poucos
detalhes escritos no verso de um envelope. Depois do que ele lhe fizera,
ela sabia o que se passava no coração dele e, ainda que não fosse um bom
coração, um coração sincero, ela precisava saber se ainda estava batendo.
— Qual é o nome do esquadrão dele? Qual é a sua fileira? Há três
unidades da Força Aérea dos Estados Unidos em Cambridgeshire, você
poderia ser mais específica? Para onde você envia suas cartas quando
escreve para ele?
Rose não podia responder a nenhuma das perguntas que Edward
despejou sobre ela, porque não sabia as respostas. Não porque eles
tiveram algum encontro suspeito, mas porque havia toda aquela história
de Danny usar o pub local como caixa postal para driblar os censores do
Exército. Com certeza aquilo deveria ser contra o regulamento e Danny
poderia ter problemas se seu comandante descobrisse. Que coisas tolas as
pessoas faziam quando achavam que estavam apaixonadas, mas Edward
não entenderia. Ele era muito fechado, muito sério, para se permitir se
apaixonar.
— Deixe para lá — disse Rose. Ela estendeu a mão para pegar o papel.
— Lamento ter incomodado você.
Edward guardou o papel no bolso.
— Não estou prometendo nada, mas vou ver o que posso fazer.
O dourado do painel e os lustres, até os brincos de diamante diante
dela tinham perdido o brilho, as bolhas do champanhe não mais faziam
cócegas em sua língua. Rose olhou para seu sorvete, que derretia. Ela
ouviu Edward suspirar, depois não ouviu mais nada além do estrondo
terrível que fez a sala tremer e os lustres balançarem quando o espaço
sagrado do Ritz foi violado.
Houve gritos e Rose afastou a cadeira. Em seguida, houve outro
estrondo como se cem bombas voadoras de repente provocassem uma
enorme explosão ali em frente, e ela engasgou.
— Abaixe-se, sua tola!
Edward puxou Rose para baixo da mesa, seu corpo cobrindo o dela,
protegendo-a dos horrores lá fora.
— Ah, meu Deus, o que é isso? Por que eles não soaram a sirene? Não
posso suportar isso — sussurrou ela, com a briga já esquecida, já que fora
isso o que arruinara a noite. A maldita guerra. Ela arruinava tudo. — Eu
não posso suportar isso.
— Sim, você pode. Você tem que ser corajosa — disse Edward.
Ele pegou a mão de Rose, apertou os dedos trêmulos dela até se
acalmar, e naquele momento ela se sentiu segura. Nada poderia atingi-la,
porque Edward simplesmente não permitiria isso.
Ela pressionou o rosto contra o peito dele, sentiu os botões do casaco
dele afundarem em sua pele e procurou respirar junto com ele, lenta e
constantemente, até ela sentir seu coração parar de bater tão rápido.
Deixou a calma tomar conta de si e, quando a sirene enfim começou a
tocar, cinco minutos após a primeira explosão, ela ficou com raiva pelo
som ter quebrado o encanto.
Eles foram levados ao abrigo antibomba do Ritz, um restaurante, La
Popote, no porão, com um mural engraçado na parede. Edward pediu
mais champanhe e insistiu que Rose bebesse tudo porque estava muito
pálida. Havia uma banda tocando, pessoas dançando, rindo,
cumprimentando amigos — e de repente esperar que o sinal de que o
perigo havia passado soasse se tornou uma fabulosa festa. Edward até
dançou com ela — ele insistiu em uma valsa tranquila e lenta, embora
estivesse tocando um foxtrote, e pisou nos pés dela algumas vezes.
Entretanto, o puro altruísmo de Edward chamando-a para dançar porque
sabia que ela queria significava mais para Rose do que os brincos de
diamantes que ela pegara da mesa ao saírem do restaurante muito maior
no andar de cima.
Demorou uma eternidade para o sinal de fim de ataque aéreo soar. Eles
deixaram o Ritz pouco depois das duas da madrugada. Mesmo no melhor
dos tempos, era difícil encontrar um táxi. Naquela noite foi impossível.
— Vou acompanhá-la até em casa — disse Edward, e Rose não se
sentiu nem um pouco inclinada a discutir.
As bombas daquela noite a deixaram apavorada. No entanto, quando
atravessaram a Shaftesbury Avenue, encontraram um policial vindo do
outro lado que disse que não houvera nenhuma bomba.
— De acordo com o que foi informado, foi uma explosão de uma
tubulação de gás, senhor — dissera ele.
Isso explicava por que não houvera sirene, nenhum aviso, só aqueles
dois enormes estrondos, como se o céu quisesse mostrar como estava
furioso com a destruição que era obrigado a ver lá de cima todos os dias e
noites.
— Acho que a guerra vai acabar logo — disse Rose a Edward enquanto
caminhavam pela New Oxford Street. — Não tem havido muitas bombas
voadoras e não posso acreditar que os alemães não estejam tão cansados
de tudo isso quanto nós.
— Você deve ter cuidado com o que deseja — murmurou Edward
obliquamente. — Você está tremendo. Devia ter dito que estava com frio.
Pegue o meu casaco.
Ele o colocou sobre os ombros dela, e assim Rose pôde sentir o cheiro
suave de sua loção pós-barba, algo delicado e enfumaçado, e então
ficaram em silêncio. Os pés de Rose doíam e ela estava tão cansada que
parecia inútil ir para a cama só para ter que acordar logo que
adormecesse.
Apesar de que seria seu aniversário quando ela acordasse, e haveria
todos os tipos de surpresas. Até Shirley, que parecia ter ficado muito
irritada por Rose ter fugido com seus vestidos, enviara um pacote grande
e intrigante. Foi o suficiente para fazer Rose acelerar o passo, e então,
quando chegaram à Theobald’s Road e sua cama estava a apenas três
minutos de distância, foram forçados a parar. A rua estava cheia de cacos
de vidro das vitrines que tinham explodido. Havia enormes pedaços de
paredes e metais retorcidos caídos na estrada, onde naquela manhã havia
ônibus, bondes e táxis, pessoas apressadas indo para o trabalho.
Nenhum deles disse nada, porque não havia muito a dizer. Além disso,
estava muito difícil falar. Quanto mais se aproximavam de Montague
Terrace, mais pesado o ar ficava, cheio de poeira e fumaça, tanto que
Rose e Edward tiveram de pegar os lenços para cobrir a boca. Edward a
chamou, mas suas palavras foram engolidas pelo ar abafado.
Quanto mais Rose se aproximava de casa, maior era a devastação.
Nada de lojas, não restara nenhuma casa. Elas tinham sido
completamente destruídas e substituídas por montanhas carbonizadas de
detritos, ainda soltando fumaça, e Rose teve de procurar um caminho em
meio à devastação, mas sabia que, ao chegar à esquina de casa, tudo
estaria bem. Já tinha passado pelo olho do furacão, onde os danos tinham
sido maiores, e talvez algumas de suas janelas tivessem sido quebradas...
ela não se espantaria se o telhado tivesse caído, mas ela logo encontraria
as outras. Elas deveriam ter ido para o abrigo. Nem mesmo Sylvia poderia
ter dormido com todo aquele barulho.
— Você demorou — diria ela, e todas ririam quando Rose lhes
contasse que tinha ido ao Ritz para jantar torrada com queijo.
Edward a chamou de novo, mas ele estava muito, muito atrás de Rose, e
ela estava quase em casa. Era só virar a esquina. A poeira estava se
dissipando. Ali! O pior já tinha passado.
No alto de Montague Terrace, tinham passado um cordão de
isolamento, e, quando conseguiu se aproximar com dificuldade, Rose viu
que estava sendo vigiado por um patrulheiro da ARP. A poeira e a fumaça
não estavam mais tão fortes, porém pequenos pedaços de detritos
enegrecidos caíam flutuando do céu como confetes e Rose estremeceu de
novo. Tudo ia ficar bem. Ela estava quase em casa, mas quando engolia,
tudo o que sentia era medo e fuligem.
— Você não pode passar — gritou-lhe o patrulheiro da ARP, embora
Rose tivesse certeza de que suas pernas se recusariam a dar outro passo.
— Foi uma explosão na tubulação de gás.
— Qual foi o estrago? — Edward a tinha alcançado. — A jovem mora
nesta rua, entende.
— Você não pode passar — repetiu o patrulheiro. — Ninguém pode
passar.
— Rose! Volte aqui!
Ela correu, desviando do patrulheiro que gritou para que parasse. E ela
parou porque tinha dobrado a esquina da sua rua. Sua querida rua.
Estava tudo cheio de tijolos quebrados, vidro estilhaçado e a terrível
poeira era tão densa que cobria sua roupa e Rose a inalava a cada
respiração ofegante. Era impossível ver aonde ia com os olhos
lacrimejando, mas ainda assim ela continuou.
— Ah, meu Deus, ah, meu Deus, ah, meu Deus. — Ela se ouviu dizer ao
dar de cara com tijolos e escombros.
Aquele era o centro da explosão. Não era como os danos a que estava
acostumada, em que ainda era possível ver o esqueleto da casa que um
dia conhecera. A sua casa não estava mais ali. Simplesmente tinha
sumido. Não existia mais. Desaparecera. Não estava lá. Ali agora havia
uma cratera onde antes ficavam sua casa e as demais em volta, como se a
terra tivesse engolido todas elas de uma vez, e então cuspido as vigas e
ombreiras como se fossem ossos. Havia um imenso buraco em seu
mundo.
— Rose! Volte para fora do cordão de isolamento. Aqui não é seguro.
Edward chegou atrás dela, ofegante.
Ela se virou.
— As garotas! Onde estão as minhas amigas?
Ele passou o braço em volta de seus ombros trêmulos.
— Vamos descobrir.
— Senhorita, ouça o que ele diz. — O patrulheiro da ARP, com o rosto
coberto de fuligem vincado de preocupação, não gritava mais. — O
Serviço Real Voluntário Feminino montou uma cantina no salão da igreja
em Bloomsbury Way. Vá para lá tomar uma boa xícara de chá, comer um
bolo e se acalmar. Precisamos manter essa área livre para deixar os
rapazes da Defesa Civil fazerem o seu trabalho.
— Minhas amigas... — Ela não conseguia dizer mais do que isso,
porém apontou para o buraco. — Minha casa ficava ali. Minhas amigas
estavam na casa. Elas costumam sair para dançar, mas o meu aniversário
é amanhã, bem, acredito que já seja hoje, e elas voltaram para casa mais
cedo para planejar minhas surpresas. Elas estão bem, não estão?
O patrulheiro pegou a mão dela.
— Vá para a cantina do Serviço Real Voluntário Feminino, elas devem
ter montado um posto de informações sobre o incidente. Elas saberão o
que fazer.
Rose poderia até ter se deixado levar ao frio salão da igreja, mas então
viu o olhar trocado entre os dois homens, o rápido aceno de cabeça do
patrulheiro.
— Não!
Ela se soltou deles e saltou para a frente. Aquele tempo todo, ela havia
olhado cegamente para o buraco que se estendia por duas ruas. Só agora
que olhava para o que restara da calçada.
No chão, havia seis cobertores bege manchados, cobrindo o que havia
por baixo. Ao lado, havia um cesto de palha, do tipo que se enche de
sanduíches, frutas e garrafas de refrigerante para um piquenique. Rose
não conseguia imaginar o que aquilo estava fazendo ali e, então, se
lembrou de quando Sylvia lhe contou sobre a vez em que passara por uma
rua meia hora depois de uma bomba ter caído. Na ocasião, havia uma
jovem atendente da ambulância chorando enquanto recolhia pedaços de
carne (“Tenho certeza de que um deles era um pé minúsculo, foi a coisa
mais horrível que já vi e senti vontade de chorar também”), envolvia-os
com jornal e os colocava em uma cesta.
— São elas? São as minhas amigas? É isso? É isso?
Como poderiam ser elas? Se fossem, isso significaria que Sylvia a
deixara. Que ela nunca mais a veria, nem Phyllis ou Maggie. Nem mesmo
o infeliz sr. Bryce e as duas irmãs que moravam no apartamento térreo e
trabalhavam na biblioteca da Chancery Lane. Todos eles tinham
desaparecido e não voltariam mais. Nenhum adeus, nenhum bilhete. Ela
se despedira das garotas em frente ao Rainbow Corner, animada demais
com suas surpresas de aniversário e o jantar no Ritz para fazer com
aquele último “Tchauzinho. Não me esperem acordadas!” tivesse algum
significado.
— Rose, minha querida. — A voz de Edward falhou. — Não faça isso.
Querida, por favor, não faça.
Ela estava de joelhos, golpeando o chão com os punhos, que logo
ficaram ensanguentados. Exigindo que a terra, que tinha levado suas
amigas, trouxesse todas elas de volta sãs e salvas.
— Eu as quero de volta agora mesmo! Está me ouvindo? Traga-as de
volta para mim!
— Se pudesse, eu traria. Eu faria qualquer coisa por você.
Edward estava de joelhos também, segurando-a para que não pudesse
fazer mais nenhum estrago. O corpo grande dele a cobriu e ele a abraçou
com força, como se pudesse sugar toda a dor dela e carregá-la consigo,
dia após dia, para que Rose não tivesse de suportar o fardo.
Mas ele não podia. Ninguém podia. A dor era dela e só dela.
28
Após o almoço, Lydia pediu a Jane que levasse uma xícara de chá para
Rose. A idosa não tinha deixado seus aposentos durante toda a manhã; e,
quando entrou no quarto, Jane a encontrou sentada em uma cadeira
junto à janela panorâmica, que dava para uma bela sacada com grade de
ferro forjado.
— Não suporto ficar confinada o dia todo. Quero sair — disse Rose,
com os olhos ainda fixos na desolada paisagem de inverno lá fora.
— Você quer sair? Está se sentindo melhor, então?
— Não estou sugerindo um jantar e um espetáculo. — Era por isso que
Jane não gostava muito de ficar sozinha com Rose. Rose era tão decidida,
tão viva, e Jane sempre foi uma criatura de sombras. — Só quero ir
sentar na praça.
— Mas, querida, está congelando e...
— Eu não estava pedindo a sua permissão, mas minhas velhas pernas
tolas não querem me obedecer hoje, então preciso de sua ajuda. — Rose
levantou as mãos, frustrada. — Nunca fique velha. Não recomendo.
— É claro que vou ajudar. Você deve sair se quiser — disse Jane,
porque se lembrava de como era não poder fazer o que queria quando
queria. Mesmo agora, havia momentos em que sua liberdade ainda
parecia uma novidade. Como uma bugiganga delicada que poderia acabar
esmagada sob seus pés se não tomasse cuidado.
Então, se Rose queria sentar na praça, embora o frio fosse de penetrar
os ossos que, segundo o dr. Howard deixara implícito naquela manhã,
estavam sendo consumidos pelo câncer, Jane não recusaria o seu pedido.
— Vou chamar o Leo — disse ela.
Leo carregou Rose até o térreo de novo, mesmo com ela dizendo que
podia andar. Frank levou o carro o mais perto que pôde da porta dos
fundos, então dirigiu os poucos metros dobrando a esquina até o portão
trancado que dava para a pracinha. Então, apoiando-se com toda a força
em Jane, Rose caminhou até um banco de madeira, escondido em um
pequeno caramanchão criado pelas árvores, que, ao longo dos anos,
tinham se curvado em torno dele.
Rose usava um casaco de pele velho que tinham encontrado no sótão
havia cerca de uma semana.
— O casaco de pele que minha mãe usava em enterros — disse ela.
Lydia insistira para que ela colocasse luvas e um cachecol, Leo foi
mandado de volta ao carro para buscar a manta, e depois Rose lhe pediu
para ir ao seu escritório buscar alguns arquivos. — Eu tinha planejado
dar um pulo lá esta manhã. Havia algumas coisas em que eu queria dar
uma olhada no fim de semana — disse ela a Jane, como se de repente
precisasse justificar suas ações. — Mas com certeza irei ao escritório na
segunda de manhã. Não há o que discutir.
— É claro que não há — concordou Jane, enquanto se esforçava para
não tremer, ainda que Lydia a tivesse forçado a também usar algo para
cobrir a cabeça.
Leo sorrira satisfeito ao puxar um gorro de lã cinza, que desenterrara
de uma de suas gavetas sem fundo, na cabeça dela.
— Bem, não é nenhuma tiara — dissera ele.
Havia algo de diferente em Leo naqueles últimos dias. Não era só o
novo corte de cabelo e a forma como de repente ele parecia diferente, as
maçãs do rosto e todos aqueles ângulos salientes. Apesar de tudo, ele
parecia mais feliz, mais forte, mais ele mesmo.
Ela tinha ficado tão preocupada em não lhe machucar que não pensara
em se preocupar consigo mesma, o que era novidade. Mas agora, depois
da noite anterior, depois que Charles...
— Eu lhe contei sobre os refugiados?
Ela se virou para olhar para Rose, que também estivera perdida nos
próprios pensamentos.
— Não, acho que não.
— Eu costumava visitá-los nas minhas tardes de quinta-feira, quando
tinha folga no café. Parecia o mínimo que eu podia fazer. Todos eles
estavam tão fracos no início, mas as crianças se recuperaram depressa, e
nós vínhamos aqui, embora estivesse coberta com pilhas de escombros, e
jogávamos croquet. Bem ali. — Jane ainda não sabia direito sobre quem
Rose estava falando quando apontou para um canteiro de flores, onde
arbustos de viburno floresciam incrivelmente rosa sob a fraca luz da
tarde. — Madeleine e Gisèle transformaram o jardim dos fundos em uma
horta, e Yves e Jacques ajudavam a reformar a casa ao lado. Era muito
importante para eles sentir que estavam recompensando Edward de
alguma maneira, embora eu não ache que ele se sentisse da mesma
maneira.
— Você nunca mencionou Edward antes...
— Nunca mencionei? Que estranho! Na maior parte do tempo, eu
brincava com as crianças. Paul, Hélène e Thérèse, que, cerca de vinte
anos mais tarde, daria luz à nossa Lydia.
— Sério? Você a conhece há tanto tempo que chegou a trocar suas
fraldas?
— Eu nunca troquei uma fralda na vida — retrucou Rose com um
pouco daquela imperiosidade a que Jane aspirava. — É preciso ter alguns
limites.
— Devo dizer, com todo o respeito a Lydia, que ela é terrivelmente
mandona com você, alguém que a conhece desde que era uma pirralha
melequenta.
— Você notou isso também. — Rose se permitiu um discreto e seco
sorriso. — Então, esta praça, a casa, tem sido meu lar praticamente
minha vida inteira.
— Nunca tive um lar, só lugares em que morei por um tempo — disse
Jane. Naquele dia estava sensível a ponto de não aguentar mais ter de
tomar cuidado com tudo o que dizia. — Lar é onde você se sente seguro,
certo? A única coisa que me faz sentir minimamente segura é dinheiro.
Quando se tem o bastante, você pode fazer qualquer coisa, ir a qualquer
lugar, ser quem você quiser. Ninguém pode detê-lo.
— Você ainda não chegou lá então, não é?
Jane balançou a cabeça.
— Não faço ideia de quanto seja necessário. Cinco milhões? Dez
milhões? Um bilhão? — Ela se virou para Rose, que estava lúcida outra
vez e a observava como se ela fosse alguma curiosidade por trás de um
vidro no museu. — O seu dinheiro a faz se sentir segura?
— Eu nunca me importei muito com o dinheiro. Ah, é bom ter
dinheiro, e, sim, ele a resguarda um pouco, mas existem algumas coisas
contra as quais nem mesmo o dinheiro pode protegê-la — disse Rose, e
Jane não teve certeza se ela se referia à maneira como seu corpo estava
sucumbindo à doença ou se estava falando de algo do passado, já que
Rose estava ficando com aquele olhar distante de novo. — Sempre me
senti mais segura quando estou com as pessoas que amo. Eu amei muito,
nem sempre de forma inteligente, e esta casa e a casa em Lullington Bay
estão associadas a algumas das pessoas que amei muitíssimo. É por isso
que são meus portos seguros.
Depois de tudo o que lhe acontecera, não havia nenhuma possibilidade
de Jane ser capaz de amar, mas ela era capaz de ser gentil, mesmo
quando não tinha nada a ganhar com isso. Todo mundo merecia se sentir
seguro — principalmente no fim.
— Vou cuidar para que você fique aqui. Nada de casas de saúde. Eu
prometo. Aconteça o que acontecer.
— Obrigada — disse Rose, que então pegou a mão de Jane e, mesmo as
duas estando de luvas, segurou-a com uma força que Jane não pensara
ser possível. — Desde a última semana, mais ou menos, vejo todos os
meus entes queridos ao meu redor. À noite, quando não consigo dormir,
posso vê-los nas paredes.
Rose podia estar ficando com aquele olhar enevoado e sem foco de
novo, mas sua voz soava bem clara, por isso era difícil saber como
responder.
— Ah, bem... provavelmente são só os novos medicamentos que você
está tomando, querida.
— Não, acho que eles estão esperando por mim. Eu pensei que teria
mais tempo do que isso. Adoraria ter um pouco mais de tempo. Há ainda
tantas coisas por resolver. — Rose pousou a outra mão sobre os dedos
entrelaçados delas. — Mas acho que não terei de me preocupar com os
cartões de Natal este ano. Ter de escrevê-los sempre foi tão chato.
Era um alívio voltar aos assuntos frívolos.
— Você provavelmente também não terá de se preocupar em comprar
presentes de Natal.
— Ou comer couve-de-bruxelas. Nunca as suportei. Eram a única coisa
que tinha oferta abundante durante a guerra.
— Elas não são tão ruins se você tirar todas as folhas e fritar com
bacon — disse Jane, e dessa vez Rose não estava tão distante para lhe
lançar um olhar incrédulo. — Às vezes, não muitas, devo admitir, eu
cozinho. Ano passado, antes de eu conhecer o Leo, é claro, preparei a ceia
de Natal para a família do meu namorado. — Jane riu ao lembrar. — Eles
não entendiam muito bem o conceito de ceia de Natal. Ficavam dizendo
que o dia de Ação de Graças não tinha sido há tanto tempo assim para
comerem peru de novo. Jackie, a mãe de Andrew, disse que no ano
seguinte me daria sua receita de presunto cozido para eu poder fazer no
lugar do peru. Escapei de uma boa. Está com muito frio, querida? Vamos
entrar agora?
Rose olhava para ela com ar incrédulo de novo.
— Nossa, você é mesmo bem diferente — disse ela como se fosse
setenta anos mais jovem e não estivesse falando com Jane, mas com um
dos seus fantasmas que viviam nas paredes.
Então, graças a Deus, Leo vinha do portão ao encontro delas.
— Espero que vocês duas não estejam falando de mim — disse ele
alegremente. — Frank me deu uma carona até o escritório. Peguei tudo o
que você me pediu e Liddy disse que está muito frio e você tem de entrar
agora.
29
Setembro de 1944
Londres, 1944-1945
Os dois levaram muito tempo para sair de Londres. Leo não enfrentava a
confusa hora do rush havia anos e Jane não conseguia entender o GPS,
então ficava apertando botões aleatórios até Leo gritar com ela para
parar. Então ela gritou com Leo por ter gritado com ela.
Quando enfim pegaram a estrada, ficaram presos no engarrafamento.
Jane suspirou e então virou o corpo para olhar pelo vidro de trás como se
esperasse ver Lydia em um carro atrás sinalizando freneticamente para
voltarem.
Leo desejou que ainda fumasse. E desejou pela centésima vez que
tivesse continuado sem dinheiro em Las Vegas. Ele poderia ter se odiado
ao receber a ligação dizendo que Rose se fora, mas pelo menos não teria
tido de ouvir quando ela...
— Leo, Rose falou aquilo da boca para fora. — A mão de Jane cobriu a
dele, que descansava sobre a alavanca de câmbio. — Ela tem sentido
muita dor e está confusa por causa dos remédios.
Ele respirou fundo.
— Eu não devia ter voltado.
Jane apertou mais a mão, mesmo enquanto ele dava seta e depois
mudava de pista.
— Devia, sim. Não há nenhuma dúvida sobre isso.
— Não acho que eu tenha sido muito útil. — Ele odiava quando ficava
assim, tão para baixo. Em geral, a única saída era se perder. — Não serei
absolvido dos meus pecados só porque passei algumas semanas
emassando e pintando casas antigas.
— Você já fez muito mais do que isso — retrucou Jane. — Você ouviu
as histórias dela e a fez sorrir. Ela tem podido contar com você, confiar
em você. — Ela apertou os dedos de novo. — Leo, você tem que perceber
que Rose adora você. Ela não consegue esconder muito bem isso.
Leo olhou para Jane. O cabelo dela estava solto e pendia em mechas
encharcadas. Ela devia ter ficado na chuva por horas. Parecia ansiosa,
sobretudo quando falavam sobre Rose, mas também mais delicada. Ela
ainda era bonita, mas ele havia se acostumado com sua beleza.
— Já que tocamos no assunto: Rose também gosta de você.
— Bem... talvez. — Jane puxou o cinto de segurança. — Eu fiquei
principalmente pela comida da Lydia. Estou surpresa por ainda conseguir
fechar isso.
— Deixe de graça. Você sabe que é gostosa, mesmo com uns quilinhos
a mais — disse Leo, porque ela era mesmo, e seu humor melhorou
quando ela chiou e largou sua mão para socá-lo de leve no braço.
— Não quilos. Talvez algumas libras. Uma libra é mais do que um
quilo? Eu sempre esqueço. — Ela fez uma careta. — Duas libras
equivalem a um quilo, certo?
— Sim, mais ou menos. — A atmosfera tinha mudado assim como o
tráfego, que agora se movia lenta, porém constantemente. Leo sentiu falta
da mão de Jane sobre a dele.
— Você já pensou no que vai fazer quando tudo isso acabar? —
perguntou ela. — Você vai voltar para os Estados Unidos?
— Eu não sei — respondeu ele, porque era algo em que ele tentava não
pensar. Quando aquilo acabasse significava que Rose teria falecido. Além
disso, de uma maneira estranha, ele estava gostando daquele limbo.
Tinha abandonado os maus hábitos e, até agora, tinha conseguido não
adquirir nenhum novo. — Nunca fui bom em planejar o futuro. E você?
Acha que existe alguma chance remota de voltar com o sr. Ex?
Jane balançou a cabeça apenas uma vez.
— Ah, Deus, não. Esse navio já zarpou para longe. — Leo pensou que
podia ter entrado em território perigoso, mas então ela sorriu. — Sabe, às
vezes eu queria ter voltado para ele. Teria sido mais simples. Menos
confuso.
— Você não o amava? Não de verdade, não é mesmo?
Jane olhou para ele, com o rosto insondável.
— Não, é claro que não. — De repente, ela abriu um largo sorriso. —
Deus, ficar parada aqui neste carro é como estar presa em um
confessionário.
Leo queria perguntar a Jane se alguma vez ela havia amado, mas, lá no
fundo, ele já sabia a resposta. Havia tantas coisas que ele queria
perguntar a ela, dizer a ela, mas era melhor ficar em silêncio. Eles tinham
saído da autoestrada e agora dirigiam por estradas mais tranquilas do
interior e, embora achasse que ficariam irremediavelmente perdidos, Leo
percebeu que conhecia o caminho. Ele sempre soubera o caminho para
Lullington Bay.
Ele viu a estreita curva bem a tempo e virou à direita. Tudo o que ele
precisava fazer era pensar nas palavras “Lullington Bay” e no tempo que
levava lá estava outra curva, as árvores se esparsaram e ele pôde ver o
contorno indistinto da casa.
— Então, falando de amores perdidos e tudo mais, com quem Rose
ficou depois da guerra? Foi com Danny, que devo dizer que me parece o
cara errado, ou...
— Eu lhe conto mais tarde — prometeu Leo. O barulho dos pneus no
cascalho soava como voltar para casa. Ele se lembrava de cair da bicicleta
depois de tentar se equilibrar só na roda traseira e aterrissar de cara no
mesmo cascalho, e Rose e sua mãe tirarem pedacinhos das pedras de sua
pele com uma pinça, prometendo-lhe um sorvete se não chorasse. — Esta
é Lullington Bay.
Ele queria que estivessem ali em um dia de verão, quando o sol
brilhava no arenito e cintilava no telhado triangular. A casa ficava no alto
do penhasco, que ondulava suavemente até as dunas de areia embaixo,
que eles percorriam para chegar à praia. Sempre parecera que o mar
estava lhes provocando enquanto caminhavam vindo da casa carregados
de toalhas, cestas de piquenique, baldes e pás, sua mãe gritando para Leo
desacelerar antes que quebrasse o pescoço.
Eles saíram do carro e caminharam triturando os cascalhos em direção
à porta da frente.
— Pensei que fosse uma cabana. — Jane parecia um pouco
desconcertada. — Não achei que fosse tão grande.
— Era a antiga casa senhorial, mas foi incendiada nos anos 1900, então
a reconstruíram no estilo Arts and Crafts — explicou Leo. — Causou uma
confusão infernal na época. Vamos lá, vamos dar a volta.
Havia sensores de luz que acendiam a cada poucos metros e as formas
familiares do jardim apareceram. As roseiras, uma nova plantada a cada
ano, a horta, o jardim de ervas perto da porta de trás, coberto por uma
rede para protegê-lo dos gatos da vizinhança, e o pátio com as cadeiras e
a mesa de ferro forjado, onde costumavam fazer suas refeições quando
não estavam na praia.
— Passávamos todos os verões aqui. — Não importava se Jane estava
ouvindo, só o que ele queria era dizer as palavras em voz alta, tornar as
lembranças enevoadas um pouco mais claras, um pouco mais definidas.
— É um clichê tão triste, não é? Dizer que os verões eram mais longos
quando éramos crianças, mas parecia que eram. Nossos tios, tias e todos
os nossos primos também vinham para cá, então éramos sempre um
bando enorme. Às vezes caminhávamos ao longo da costa até chegarmos
a um pequeno quiosque que vendia sorvete com favo de mel de verdade e
chamávamos as crianças da vila para irem à nossa praia para brincarmos
de esconde-esconde nas dunas. Eu esperava ansioso pelas férias de verão.
— As minhas férias de verão não eram bem assim — disse Jane,
embora não tenha falado como eram as suas férias de verão. — Mas
parece legal.
— Sim, como algo saído das histórias de Enid Blyton — disse Leo com
um sorriso de deboche para contrabalançar o tom sonhador que surgira
em sua voz.
— Também nunca tive muito tempo para Enid Blyton — disse Jane, e
Leo achou impossível imaginar como ela era quando criança. — Então,
você chegou a aprender a arrombar janelas durante seus verões
intermináveis aqui ou tem a chave?
Não havia nenhuma equipe em tempo integral na casa, mas inquilinos:
Victoria e Katy, que ensinavam inglês na Universidade de Sussex. A casa
estava escura, então elas obviamente estavam fora, jogando bridge ou
participando de uma leitura das obras selecionadas de Virginia Woolf ali
perto, em Alfriston ou onde quer que professores de inglês de certa idade
iam depois das oito em uma noite de sexta-feira.
Havia sempre uma chave escondida na pequena casa de madeira no
alto do comedouro de pássaros e o código do alarme era o antigo número
de telefone de seus avós, mas ainda assim parecia que estavam invadindo
a casa quando Leo acendeu as luzes e levou Jane através da cozinha e
pelo corredor. O piso em parquete e as paredes com painéis tinham um
brilho fosco, e Leo ainda podia sentir o cheiro de cera de abelha e o suave
perfume de Rose, embora Lydia tivesse dito que Rose quase não tinha ido
ali no último verão.
— Este lugar passa uma sensação acolhedora, não é nada parecido
com a casa em Kensington — disse Jane, passando a mão pelo corrimão
esculpido enquanto subiam as escadas. — Aqui, aqui... parece um lar.
— Rose costumava passar a maior parte do tempo aqui. Isso há muito
tempo. Antes de eu nascer.
— Ah? Por que ela voltou para Londres? — perguntou Jane. A resposta
não era nada feliz, mas, antes que ele pudesse falar, sentiu o celular
vibrar.
Era Lydia. Por mais estoica e calma que ela estivesse quando ele
desmoronou à sua frente, agora pelo telefone sua voz soava como se
segurasse as lágrimas. O dr. Howard tinha estado em Kensington e foi
categórico em afirmar que Rose deveria usar uma bomba de morfina, e
ela nem discutiu.
— Estou esperando o dr. Howard voltar a qualquer momento. Ele ficou
muito chocado em ver o quanto o estado dela se deteriorou desde que a
vira nesta manhã. Enfim, como vocês estão indo? Encontraram tudo?
Como assim vocês acabaram de chegar? Deixe-me falar com Jane.
Enquanto Jane falava com Lydia, ele a guiou subindo as escadas até o
quarto de Rose, onde se podia olhar pelas janelas para o imenso azul lá
fora, onde o céu encontrava o mar. Quando era pequeno, ele ficava ali
deitado com Rose no começo da noite, quando ainda estava claro demais
lá fora para dormir, e ela lia para ele. E, quando ele ainda se recusava a
dormir, os dois ficavam olhando o horizonte com os grandes binóculos
dela para ver se encontravam um navio pirata.
Ela nem estava morta ainda, e ele já podia sentir seu fantasma naquela
casa.
— Vou ver se está ali. — Ele estava parado à toa no meio do quarto,
enquanto Jane, ainda ao telefone, foi até o grande guarda-roupa de
nogueira e abriu a porta. Outra intrusão. Ela prendeu o telefone entre o
ombro e a orelha, enquanto empurrava os cabides para um lado, parando
para abrir capas de roupa. Então ela enrijeceu e Leo sentiu um arrepio na
espinha. — Achei. Vou pegar o baú e vamos voltar.
Leo percebeu que os ombros de Jane tremiam, ela levou a mão ao
rosto. Então tirou a capa de roupa e, quando virou, seu rosto estava
pálido.
— Há um baú debaixo da cama. Creme com tiras de couro pretas e as
iniciais de Rose estampadas nele — disse ela.
Leo obedientemente ficou de joelhos, olhou embaixo da cama e
arrastou-o para fora.
— O que há na capa?
— Um vestido. — Jane olhou para os pés. Seus ombros tremeram mais
uma vez. — Um vestido de tafetá azul-claro meio troncho.
Sua voz falhou um pouco, e ela ficou com a cabeça abaixada por alguns
instantes até levantá-la e abrir para Leo mais um daqueles sorrisos vazios
e brilhantes, que prometiam tudo e não davam absolutamente nada.
— Você está bem?
— Estou. Você está bem?
— Não muito.
Jane assentiu.
— Lydia disse que todo o resto está no baú. Não precisamos abri-lo.
Vamos embora.
Era um baú pequeno, mas foi preciso que os dois o empurrassem e
puxassem com cuidado escada abaixo. Parecera pequeno, mas era muito
grande para caber no porta-malas do carro pequeno de Lydia. Por fim,
eles conseguiram colocá-lo no banco de trás, mas só depois de puxar os
assentos dianteiros tão para a frente que tiveram de voltar para Londres
com os joelhos quase tocando o queixo.
Maio de 1945
Rose dormiu o dia todo e, quando Agnieska chegou para render Neta, Leo
e Jane desistiram da vigília. Eles ainda não tinham conversado sobre o
que havia acontecido na noite anterior. Leo não seria o primeiro a tocar
no assunto. De jeito nenhum. Porque, se ele falasse algo, então Jane
minimizaria o que houve, chamaria Leo de querido, agiria de forma
leviana em vez de admitir que ela estava perigosamente perto de sentir
alguma coisa de verdade. Mas acabou que nenhum dos dois precisava
dizer nada.
Jane passou a mão lenta e deliberadamente por Leo quando cruzou
com ele ao entrar no quarto. Sem pensar, na mesma hora ele a pressionou
contra a parede, ela macia enquanto de repente ele estava dolorosamente
duro. Foi uma dança desajeitada até a cama, onde passaram a noite
redescobrindo o sabor e a textura um do outro. Leo achou que deveria se
sentir culpado por ele e Jane terem escolhido justo aquele momento para
se deparar com algo que se assemelhava à felicidade, mas não se sentia
culpado. Aquilo poderia ser alguma outra estratégia, outra jogada do
plano principal de Jane, mas Leo precisava se perder por horas e horas, e
Jane tinha os meios de realizar tal desejo.
No fim, Jane adormeceu antes de Leo. O sono não suavizou as tensões
do dia, porque ela não ficava parada. Suas pálpebras se contraíam como
se estivesse sonhando intensamente, e ela mordia o lábio inferior,
enquanto virava primeiro para um lado, depois para o outro. Leo ficou
observando-a até não suportar mais. Ela mantivera seu verdadeiro eu
guardado e observá-la agora parecia uma intrusão, como se lesse seus
documentos secretos, vasculhasse suas gavetas. Por fim, ele pegou os
travesseiros que tinham jogado no chão e colocou-os no meio da cama de
novo, separando-os, e então foi fácil cair no sono.
Passava das onze horas do dia seguinte quando Neta foi até a cozinha
para lhes dizer que Rose estava acordada e chamando por eles.
— Vocês foram a Lullington Bay? — perguntou Rose assim que
entraram no quarto. — Como estão as minhas rosas?
Leo deu um passo atrás, mas Jane o empurrou para a frente. Ele podia
fazer isso. Não tinha outra escolha.
— Suas rosas estão bem. Lindas. Nenhum pulgão nelas.
— Bom. — Apesar de ter dormido por quase vinte e quatro horas, os
olhos de Rose estavam vermelhos. Tinha outro lenço com padrão alegre
amarrado em volta da cabeça, que deixava ridículos o rosto fundo e os
lábios ressecados. — Onde estão as minhas coisas? Vocês acharam uma
caixa de madeira pequena?
Leo agachou e abriu o baú. Dentro havia maços de cartas, algumas
amareladas pelo tempo, como Rose, outras finas como lenço de papel e
com linhas azuis e vermelhas do correio aéreo nas bordas. Havia uma
caixinha de pau-rosa, que Leo passou para Jane, que entregou a Rose.
Seus dedos se atrapalharam com o fecho, depois começaram a passar
pela coleção de caixas de fósforos, enfeites de bebidas, menus de
restaurantes e casas noturnas. No fundo, havia um pequeno pedaço
rasgado de papelão com uma foto colada nele.
— Realmente aconteceu. Eu realmente estive lá — disse ela, enquanto
tentava fechar os dedos em volta dele.
Jane estendeu a mão e o pegou da caixa, depois mostrou para Leo. Era
um crachá do Rainbow Corner. Olhando para eles estava uma Rose
adolescente; o cabelo elaboradamente enrolado e preso, seu sorriso
escuro de batom.
— Minha nossa, querida, você parece uma estrela de cinema.
— Hedy Lamarr. — Rose curvou os dedos. — Onde estão as fotos? Elas
estão em um álbum.
Com cuidado, Leo passou por velhos cartões de aniversário e
programas de teatro até encontrar um álbum com capa de couro verde-
escuro. Rose o pegou com um suspiro suave, mas, antes de abrir, deu um
tapinha ao seu lado na cama.
— Venham aqui para vocês verem — chamou ela.
Quando Jane estava precariamente acomodada para não esbarrar em
Rose e Leo ficou de joelhos, com os cotovelos apoiados na beirada da
cama, Rose começou a folhear o álbum.
Havia uma foto de Rose ainda bebê usando um enorme vestido de
batizado cheio de babados. Fotos da escola, banguela e sardenta. Em
seguida, uma Rose adolescente e mal-humorada numa orla, com os
braços cruzados, o queixo para baixo, a testa franzida de profunda
irritação. Embora para Leo fosse penoso admitir, ela se parecia muito
com ele em sua própria adolescência mal-humorada. E então...
— Ah! Você está em Londres agora! — disse Jane alegremente, quando
viram Rose na Trafalgar Square com outra garota, as saias levantadas,
pernas numa pose de showgirl, flanqueando um homem baixo, de bigode
fino, num terno elegante e um sorriso agradável. — Quem são esses com
você?
— Esse é Mickey Flynn, o velho infame. O grasnar de Rose não
conseguia disfarçar seu deleite. — Eu não sei quem ela é. As amigas de
Mickey iam e vinham. Iam principalmente.
Leo se empoleirou do outro lado da cama e observou as duas mulheres,
suas cabeças juntas, enquanto Jane exclamava ao ver Rose toda
arrumada, posando para a câmera.
Chegaram a uma comemoração de Natal: uma árvore fina e
escassamente decorada no fundo, três crianças ajoelhadas na frente dos
adultos, que estavam sentados no sofá ou em volta dele. Rose tentou tocar
cada rosto, mas os dedos não a obedeciam.
— Minha outra família. Essa era a sala de estar no térreo e esses são
Yves, Jacques, Madeleine, que dessa vez não estava chorando, Gisèle e
essas são Thérèse e Hélène de cada lado do pequeno Paul. Mil novecentos
e quarenta e cinco. Esse foi um Natal difícil. Mas a mãe de Phyllis nos
mandou um frango e um bolo de ameixa. Fazia isso todos os anos até
falecer. Ela era bem mais assustadora do que eu.
— Duvido muito. — Leo revirou os olhos. — Você é aterrorizante como
ninguém, Rose.
Rose conseguiu bufar.
— Se eu estivesse me sentindo melhor, você ia ganhar um tapa na
orelha por isso.
Leo tinha temido que aquilo pudesse ser demais para Rose quando até
abrir os olhos no dia anterior fora uma tarefa hercúlea, mas naquela
manhã Rose estava alegre, ou o que se passava por alegre quando ela
estava tão perto do fim. Jane também parecia feliz em ficar vendo
fotografias de família de outra pessoa, porque não tinha nenhuma dela.
Se os pais dela estavam realmente mortos ou não, isso não importava. Ela
ainda tinha optado por não ter família.
Leo também não tinha tirado muitas fotos de família ao longo dos
últimos anos. Era apenas um rosto indistinto nas fotos de outras pessoas.
Quem é o cara que parece bêbado?
Ah, um amigo de um amigo. Não consigo me lembrar do seu nome, mas
mais tarde naquela noite ele vomitou na piscina.
Leo balançou a cabeça e voltou sua atenção para a foto que Rose e Jane
observavam.
— Quem é essa garota loira? — Ele tentou parecer ansioso e
interessado. — Ela parece bem divertida.
— É Sylvia. Minha irmã mais velha honorária.
Leo se inclinou para ver melhor a garota sorridente em preto e branco,
mãos na cintura, cabeça jogada para trás, mas Rose já estava virando
para a página seguinte, então disse com tranquila satisfação:
— Ah, aí estamos todas nós.
Apontou para cada uma delas de uma vez: Phyllis, que parecia solene e
um pouco ansiosa; ao lado dela estava Maggie, o rosto angular envolto na
fumaça do cigarro que segurava na mão direita, e Sylvia e Rose, com os
braços em torno uma da outra. Todas elas sorrindo, todas usando o
mesmo batom vermelho na fotografia colorida a mão.
— São suas garotas, Rose — disse Jane, como se quisesse saltar para
dentro da foto onde elas estavam.
Em todo o tempo que ele a conhecia, Rose nunca fora de
sentimentalismo, mas, com a ajuda de Jane, ela tirou a foto do álbum e a
descansou junto ao peito, na altura do coração.
— Eu não tinha fotos delas. Todas tinham se perdido, mas uma das
minhas velhas amigas do Rainbow Corner encontrou esta, anos depois da
guerra, e mandou para mim.
— Estou tão feliz por termos ido buscar isso para você — sussurrou
Jane.
Rose sorriu para ela, e Leo sentiu como se estivesse se intrometendo.
Então Jane acariciou a mão dele que descansava na cama, e ele se sentiu
incluído.
— Você tem fotos de vocês quatro depois da guerra? — perguntou Leo.
— Eu adoraria ver como vocês eram nos anos 1950, quando podiam se
arrumar de verdade — acrescentou Jane, mas Rose virou a cabeça.
— Não houve “depois da guerra” — respondeu baixinho. — Houve
uma bomba. Impacto direto. Elas ficaram em pedaços na rua.
Jane agarrou a mão de Leo com tanta força que ele quis protestar.
— Quando você falava delas... Eu nunca pensei que tivessem morrido
— disse Jane tão amargamente que até Rose pareceu assustada.
— É claro que elas morreram. Era óbvio.
— Não para mim.
— Jane! Rose não fez isso de propósito — disse Leo, olhando de
relance para Rose, que estava deitada com os olhos fechados, a foto ainda
junto ao coração. Ele franziu a testa, aproximou-se, depois se endireitou e
respirou trêmulo. Seus olhos encontraram os de Jane, como se dissesse:
Está tudo bem, ela ainda está aqui.
Jane logo se arrependeu.
— Querida, sinto muito que você tenha tido tão pouco tempo com elas.
— Acho que ela está dormindo — disse Leo. — É melhor a gente ir.
Eles deixaram o álbum no travesseiro de Rose, para que ficasse ao
alcance, e estavam tirando as coisas do baú, colocando cada caixinha
recheada de lembranças na mesa com rodinhas posicionada
confortavelmente sobre a cama, quando Rose abriu os olhos de novo.
— Eu não estou dormindo. — Rose levantou a cabeça e estremeceu
com o esforço que isso exigiu. — Vocês não poderiam compreender como
tudo era fugaz. Que de repente as pessoas que você amava iam embora
para sempre. Você dizia “Boa noite”, então na manhã seguinte elas
haviam desaparecido. O tempo delas tinha acabado. E a tragédia de tudo
isso é que elas nunca puderam chegar a ser quem deveriam ser.
Quando Jane apareceu para ver Rose um dia depois, a foto de suas
amigas do Rainbow Corner estava em uma moldura prateada na mesinha
de cabeceira.
Leo tinha ido a algum lugar com George. Rose havia se recusado a ver
George por três dias seguidos, e eles o encontraram nos degraus de trás
com Lydia, chorando enquanto tentava acender um cigarro.
— George, tenho que ir falar com um cara sobre um suporte. Eu
adoraria ter companhia — dissera Leo, e Jane vira os dois seguirem pela
rua, o braço de Leo em volta dos ombros de George. Tinha certeza de que
eles iam só até o pub mais próximo, mas, se Leo voltasse bêbado, dessa
vez o perdoaria.
Naquelas circunstâncias, dificilmente ela poderia se recusar a ficar
com Rose. Mas bem que queria se negar, porque era doloroso sentar e
assistir a alguém por quem você se afeiçoara se deteriorar à sua frente.
Jane sentava em uma poltrona que tinha colocado o mais longe da
cama que ousara e folheava revistas de moda, mas quase sempre ficava
olhando em volta do quarto, pela janela, para qualquer lugar menos para
Rose, que dormia a maior parte do tempo agora. O sono deveria ser
tranquilo, uma folga do papel que se desempenhava durante o dia, mas
Rose parecia tudo menos tranquila.
Sua respiração ofegante soava dolorosa, os gemidos, ainda pior, o rosto
ficava contorcido em uma careta contraída, embora Neta tivesse dito que
em breve Rose deixaria de lutar.
— Rose vai saber quando estiver pronta — dissera a Lydia e Jane. Neta
era muito zen.
Jane sabia que deveria ter pensado em um plano diferente. Todas
aquelas semanas naquela casa com aquelas pessoas a haviam modificado.
Ela não era a criatura deslumbrante que tinha se esforçado tanto para se
tornar, mas também não era a garota escondida embaixo da cama. Estava
presa em algum lugar entre as duas e a única hora em que de fato se
sentia feliz nos últimos tempos era quando estava com Leo. Então ela não
tinha de pensar em nada. Só sentir. Os dedos dele, a boca, o pênis, todos
fazendo coisas tão incríveis com ela que Jane começara mesmo a
imaginar o que o futuro poderia reservar para os dois se decidissem
tentar. Mas ela podia se recusar a falar sobre qualquer coisa que pensasse
quando estava no barato pós-orgasmo.
Em vez de procurar se conter, Jane dera a Leo e Rose tudo do que era
capaz, que podia não ser muito, mas, quando chegasse a hora de ir
embora, ela deixaria a melhor parte de si para trás. Então aquela vozinha,
mais insistente durante o dia, lembrava a Jane que ela não tinha de ir
embora. Mas como ela poderia ficar? A pessoa que Leo estava se
tornando merecia coisa tão melhor.
Então Rose voltou de repente à consciência com um grito surpreso de
dor. Ficou lá, imóvel, os olhos correndo freneticamente pelo quarto.
Jane levantou e foi até a cama. Serviu um pouco de água do jarro para
Rose, então apontou para o copo.
— Você quer beber alguma coisa, querida?
Rose quase não bebera nada por dois dias, mas havia uma caixa de
swabs de espuma na mesa de rodinhas. Jane mergulhou um deles na água
e passou-o pelos lábios secos e rachados de Rose. Rose agarrou o swab,
sugou-o com fraqueza e voltou ao seu corpo, voltou ao quarto.
— Você tem certeza de que não quer beber nada? Eu poderia ir lá
embaixo pegar um pouco de gelo.
— Dói para engolir. — A voz de Rose não passava de um ruído rouco.
— Dói para falar. — Mordeu o lábio ferido. — Não sei o que fazer comigo
mesma.
Jane sentou na cama com cuidado para não incomodar a outra mulher
e pegou a mão agora manchada de Rose.
— Querida, Leo vai voltar logo e, se estiver pronta, você então deveria
ir.
— Ainda não — disse Rose.
Quando Jane encontrou um pacote de canudinhos aninhado entre os
pacotes de gaze esterilizada e seringas no banheiro, Rose tomou um
pouco de água. Não muita, e Jane não sabia por que era ela quem estava
fazendo aquilo. Ela era a esposa com quem Leo se casara em cinco
minutos e que estava só de passagem. Por outro lado, naquele momento,
sem Leo ali e com Lydia cozinhando freneticamente coisas que Rose não
comeria, ela era a única pessoa disponível para isso.
Jane procurou na memória por algum filme que tivesse visto com
cenas parecidas. Talvez algum com Bette Davis?
— Tem alguma coisa que você queira fazer? Alguém de quem queira se
despedir, que ainda não teve chance?
— Não. Todos já partiram.
— E quem sabe o Danny? — perguntou Jane, porque tinha certeza de
que Danny tinha sido o verdadeiro amor de Rose. Não que ela de repente
acreditasse em amor verdadeiro, mas a jovem Rose acreditara. —
Quando foi a última vez que ouviu falar dele?
— Danny? — Parecia que Rose estava tendo dificuldade em identificar
o nome, embora estivesse um pouco menos grogue, talvez um pouco mais
confortável desde que conseguira tomar um pouco d’água e Jane
rearrumara os travesseiros. — Não desde a guerra.
Jane pegou o iPad.
— Eu poderia tentar localizá-lo. Ver se ainda está vivo. Tem essa coisa
chamada Facebook, que...
— Eu sei o que é Facebook. Ainda não estou morta. — Rose soou
rabugenta, mas então sorriu. — Danny. Ele era apenas um garoto. Um
garoto bobo e egoísta, mas todos os garotos da época iam para a guerra e
isso os fazia parecerem homens. Não como Leo. Acho que ele não vai
crescer nunca.
— Ele está tentando, querida. Isso tem que ter algum valor. — Jane se
perguntou onde Leo estava. Estava fora havia séculos, e ela estava
sentindo muita falta dele... não só porque era tão difícil lidar com Rose
sozinha. — Essa coisa de menino é tudo parte do seu charme.
— Você vai ficar com ele depois...?
Jane passou o polegar pelas costas da mão de Rose.
— Realmente ainda não pensei no depois — respondeu com cuidado.
— Eu gostaria que você ficasse. Não para sempre. Sei que você não é do
tipo que acredita em para sempre, mas me preocupo com o que vai
acontecer com ele. Leo tem tendência a sair dos trilhos. — Mesmo em seu
estado debilitado, Rose ainda conseguia parecer astuta, embora pudesse
ser um truque da fraca luz da tarde. — Você promete que ficará até ele
estar fora de perigo?
— É claro que sim. — Jane não teve de pensar duas vezes sobre isso, o
que era estranho. Em geral, as promessas que fazia tinham sido pensadas
estrategicamente, negociadas, às vezes até reconhecidas em cartório.
— Bom. — Rose afundou de volta nos travesseiros com cuidado. —
Pelo menos, não estou mais chateada com ele. Estou feliz que tenha
voltado para casa.
— Rose, querida, você acha que poderia dizer isso a ele? — Jane
apertou de leve a mão de Rose. — Sei que Leo bota muita banca às vezes,
mas, na verdade, tem o coração mole e está muito arrependido por
desapontá-la. Por todas essas coisas estúpidas e impensadas que ele fez
anos atrás.
— Absolvição no leito de morte? — perguntou Rose com um sorriso
fraco. — Que católico.
— Não, só perdão porque você o ama — retrucou Jane, porque Rose o
amava. Como poderia não amá-lo?
— Não era para ter sido assim. — Jane podia ver o cansaço tomando
conta de Rose de novo. — Champanhe, pílulas, uma suíte no Savoy com
vista para o rio. Era assim que eu ia embora. Não pretendia me demorar.
— Ainda não é tarde demais se você quiser descer as escadas
cambaleando, querida.
Ela só estava meio que brincando, mas de repente Rose segurou a mão
dela quase sem força.
— Quando eu estiver pronta, você vai estar aqui, não vai?
— Querida, eu não vou a lugar nenhum. Vamos cuidar para que você
não esteja sozinha.
— Tem que ser você. Você é forte. Vou precisar que você seja forte o
bastante por nós duas — disse Rose.
— Não sei se sou assim tão forte — hesitou Jane quando os olhos de
Rose, de repente bem focados, olharam bem no fundo dos dela.
— Você é. Como eu era. Acho que nós duas somos bem parecidas.
Nenhuma de nós tem medo de enfrentar o futuro de cabeça erguida.
— Ah, Rose, querida, não. Você... — Jane engoliu em seco. — Quando
veio para Londres, você estava correndo em direção a alguma coisa. Tudo
o que eu já fiz foi correr das coisas.
— Mas você não vai correr agora, vai? — perguntou Rose. — Vai estar
aqui quando eu precisar de você.
— Eu vou estar aqui — respondeu. Ela estaria. Leo também precisaria
dela.
Ela estava fazendo aquilo de novo: sendo abnegada. Nada de bom vinha
disso.
35
Fevereiro de 1946
— Senti sua falta — disse Rose a Leo na manhã seguinte. — Estou tão
feliz que tenha voltado.
— Também senti sua falta, Rose. — Com muita delicadeza, ele
levantou a mão sem a cânula e beijou o pulso direito dela, onde a
pulsação um dia deveria ter batido em ritmo frenético, mas agora estava
bem fraca. Ela cheirava a algo um pouco maduro demais, como flores um
dia antes de definharem. — Queria que voltássemos a ser amigos.
Ela sorriu. E bateu desajeitadamente de leve no rosto dele.
— Senti tanto a sua falta. Prometa que não vai embora de novo.
— Eu não vou.
A culpa o corroía. Era por isso que ele pagava penitência agora ao seu
lado e ficara ali durante todo o turno da noite, porque no dia anterior não
tinha aparecido. O dia anterior tinha sido terrível. Provavelmente não tão
terrível quanto para Jane, que ficara horas sentada ao lado de Rose e que
deixara o quarto dela parecendo que escapara por pouco de uma colisão
com um caminhão de dez toneladas, mas ainda assim fora muito ruim.
Rose estava muito fraca agora. Semanas tinham se tornado dias e os
dias se reduziam a horas. Horas que ele tinha desperdiçado indo a
Leytonstone com George em um dia em que o Leyton Orient estava
jogando em casa. Eles estavam no metrô, quando George de repente
dissera:
— Nós concordamos que, quando Rose estivesse perto do fim, ela não
iria me ver. Achamos que seria cruel demais para nós dois. Mas o fim
chegou depressa demais e eu não tive chance de lhe dizer adeus.
Então George tinha chorado de novo e, embora o trem estivesse lotado
de homens, toda aquela testosterona à sua volta, Leo pegara a mão de
George, desafiando-os a falar alguma coisa.
Leo pegou a colher do tapete e o copo da mão de Jane e foi até o banheiro,
onde lavou os dois devagar e com cuidado.
Ele não sabia por que Jane tinha se dado a todo aquele trabalho. Havia
morfina líquida em frascos dando sopa bem ali. Rose não conseguiria
mesmo cambalear até ali sozinha e nenhuma das caras enfermeiras da
agência sabia do histórico de Leo com as drogas.
Leo pegou dois dos frascos e uma seringa e abriu sua embalagem
esterilizada. Então voltou ao quarto.
A princípio, ele não viu Rose. Tudo o que pôde ver era um vestido azul-
claro troncho, meio chamuscado e amarelado, estendido à frente dela,
que descansava uma das mãos sobre o corpete.
E viu Jane, o braço em volta de Rose, gentilmente acariciando-a.
Naquele momento, Leo amou Jane. Ele podia ver que ela estava com
medo de chegar muito perto de Rose e daquele cheiro doce e enjoativo de
lírios em decomposição. Com medo de tocar Rose — não porque não
quisesse machucá-la, mas talvez porque a morte pudesse ser contagiosa,
mas ela a tocava mesmo assim.
Leo sentou na cama. Enfiou a seringa no selo plástico do primeiro
frasco, depois do segundo. Puxar o êmbolo mais para trás, dar uma leve
batidinha, verificar se há bolhas de ar, empurrar o êmbolo de volta para a
posição. Algumas coisas você nunca esquece.
— Não há por que ter medo — disse Jane, e Leo não soube se ela
estava falando com ele ou Rose, que estava muito quieta, só os seus lábios
se movendo quando aspirava pequenas porções de ar.
— Você tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou Leo.
Rose não respondeu a princípio. Então seus dedos, que descansavam
sobre a parte central do vestido queimado, levantaram-se.
— Tive uma vida maravilhosa — disse ela, e fechou os olhos. — Tem
sido ótimo, de verdade, mas agora preciso voltar para os meus amigos.
No final, foi simples. Ele se deitou de frente para Rose, mas olhando
para Jane, que olhou de volta para ele, firme e segura. Então Leo injetou a
seringa na cânula. Rose respirou mais duas vezes com dificuldade,
inspirou de novo e então parou.
Leo queria poder dizer que, naquele momento, sentiu a alma de Rose
deixar o corpo, mas não sentiu. A mão dele repousava em Rose; e a mão
de Jane, em cima da dele.
Depois de um tempo, embora Leo não soubesse dizer exatamente
quanto, ouviram uma batida na porta.
— Posso entrar? — perguntou Agnieska.
— Só um minuto — gritou Jane, enquanto Leo fechava os dedos em
volta do pulso de Rose, a pele dela perdendo o calor, mas não fria ainda.
Carne flexível, mas também resistente.
— Ela se foi — disse ele. Rose parecia uma cópia enevoada de si
mesma. Ela estava sem alma; aquele magnífico espírito inquieto. Sem
vida. Ele não queria se lembrar dela daquele jeito, então tirou a mão e
saiu da cama. Caminhou até a porta. Abriu. — Ela se foi — disse ele de
novo. — Você poderia acordar Lydia e depois chamar o médico?
— Sinto muito pela sua perda. — Agnieska nem sequer espiou pela
porta aberta, apenas se afastou rapidamente.
Leo não conseguia olhar para Jane ou para a cama. Foi até o banheiro,
lavou o rosto e as mãos com água fria e, quando terminou, Lydia estava
ali em um roupão lilás, o rosto franzido, chorando.
— Ah, minha querida. Minha Rose. — Lydia soluçava, os braços
apertados em torno da barriga.
Leo se perguntou se Jane tinha morrido também, porque ela estava
imóvel, mas, quando Agnieska se aproximou da cama, ela rolou para
longe do corpo e se levantou. Lydia caminhou em direção aos braços dela,
e Jane a acalentou, procurou aquietá-la, mas se recusou a olhar para Leo.
De repente, o celular de Agnieska tocou e, quando ouviu as notas
iniciais de Carmina Burana soarem, Leo riu. Tinha certeza de que Rose
teria rido também, embora fingisse ficar muito irritada. Se havia vida
após a morte, então aquele era o tipo certo e portentoso de fanfarra para
anunciar a chegada de Rose aos portões do céu.
Agnieska parecia afrontada.
— O dr. Howard chegou e não tem ninguém para abrir-lhe a porta —
disse ela ressentida.
Tudo correu tranquilamente depois disso. Leo esperou do lado de fora
do quarto enquanto Agnieska e o médico faziam o que quer que tivessem
a fazer. Então a porta se abriu e Leo estava pronto.
— Posso falar com você um minuto? — disse ele, então levou o dr.
Howard ao banheiro e pegou os frascos vazios. — Tenho que lhe contar
uma coisa. Eu...
Dr. Howard, elegantemente vestido, embora fossem apenas seis da
manhã, levantou a mão para calar Leo.
— Já assinei o atestado de óbito. Não deve haver necessidade de
autópsia. Não quando eu já a tinha visto ontem e, bem, isso era esperado.
— Mas eu...
— Só fique agradecido por você ter estado com Rose no final. Tenho
certeza de que foi imensamente reconfortante para ela. — O médico
trocou a maleta de mão. — Deixei um formulário para você entregar
quando for registrar o óbito. Os agentes funerários irão ajudá-lo com todo
o resto. — Ele parecia estar recitando falas. — Por favor, me ligue se você
precisar, mas, no que me diz respeito, está tudo em ordem, Leo.
Parecia que seu mundo estava oscilando à beira do caos.
— Mas... Não... Você tem certeza?
— Certeza absoluta. Pode deixar que eu saio sozinho. — Leo observou
o dr. Howard atravessar o quarto, passar pelo corpo, e então parar à porta.
— Sinto tanto pela sua perda. Rose... A srta. Beaumont, ela era realmente
uma mulher incrível. Vou sentir sua falta mais do que posso dizer.
Agnieska entrou no banheiro para guardar o equipamento médico, e
Leo desceu para a cozinha, onde Lydia, ainda de roupão, ainda fungando,
estava sentada junto à bancada. Frank pairava ansiosamente por perto.
— Chamei os agentes funerários — disse ele. — O que mais posso
fazer?
Não havia mais nada a fazer, além de tomar chá, fumar todos os
cigarros de Lydia, embora ela ainda afirmasse que só fumava socialmente
como falava desde que Leo a conhecia. Em seguida, com suspiros e passos
pesados, ela e Leo subiram de novo.
Nenhum deles olhou para a cama. Lydia foi direto para o closet e ele a
seguiu cegamente.
— Rose deixou instruções específicas. Não queria caixão aberto. Tem
um vestido que ela queria que... — Lydia não conseguiu terminar a frase.
Leo pousou as mãos em seus ombros trêmulos. — Não, eu estou bem.
Você acha que devo trocar a roupa dela agora?
— Não — respondeu Leo, porque Lydia não conseguiria cuidar disso
sozinha e ele não poderia ajudá-la. Rose não iria querer isso. — Vamos
deixar o vestido com os agentes funerários.
— Mas seu cabelo... ela odiaria que não arrumassem seu cabelo. —
Lydia virou e enterrou o rosto no peito de Leo e, quando ele fechou os
braços em torno dela, o corpo de Lydia foi sacudido pela força dos
soluços.
— Bem, pergunte ao cabeleireiro dela se eles podem mandar alguém
para a funerária. Vai ficar tudo bem, Liddy — disse Leo. De alguma forma
ele sabia a coisa certa a dizer sem ter que pensar sobre isso.
Os agentes funerários chegaram. Eles estacionaram o carro preto
diante da porta da frente, porque Leo não queria que Rose saísse
furtivamente pelos fundos. Lydia, Frank e Leo viram o corpo (coberto por
um lençol branco, porque ele também não permitiria que colocassem
Rose em um saco preto de defunto) ser levado embora e então passar de
carro ao redor da praça que ela tanto amava.
Eram sete e meia. Como poderia ser apenas sete e meia?
— Preciso registrar o óbito — disse ele, mas ainda tinha duas horas até
poder fazer isso, então voltou para a cozinha com Frank e Lydia, os três
em um estado de limbo. Não pelo choque, mas pela incerteza, porque
Rose se fora e ela ditara o ritmo de seus dias e, sem ela, eles não sabiam
bem o que fazer.
Lydia colocou a chaleira no fogo, mas Frank disse:
— Chega desse maldito chá. Vamos tomar uma bebida adequada.
Leo esperou Jane dizer “Champagne, querido. É o que Rose teria
desejado”. Foi então que percebeu que Jane não estava ali.
— Onde Jane está? — perguntou.
— Jane? Ela está por aí, não está? — Como Lydia olhava para os
saquinhos de chá e o leite como se não tivesse a mínima ideia do que
fazer com eles, Leo não ficou surpreso em ver que ela não se lembrava de
quando vira Jane pela última vez.
— Provavelmente voltou para a cama — disse Frank. — Quando
minha mãe morreu, meu pai dormiu quase uma semana inteira.
Jane não estava em nenhum dos cômodos do térreo. Ele não entrou de
novo no quarto de Rose, mas parou à porta, e isso foi o suficiente para ver
que Jane não estava lá.
Então entrou em seu quarto — não, no quarto deles. Estava vazio.
Havia uma toalha pendurada no encosto de uma cadeira. O celular e a
bolsa dela estavam jogados na cama, então ela não poderia ter ido longe.
Mas Leo não sabia exatamente aonde ela fora até ouvir seu choro.
Ele nunca tinha ouvido um choro assim. Como se estivesse sendo
arrancado dela contra a vontade. Como se ela estivesse presa em uma
batalha contra a própria dor.
— Jane? Onde você está?
Houve um instante de silêncio e então outro daqueles gritos sofridos,
mais terrível do que qualquer coisa que tinha ouvido de Rose, vindo de
baixo da cama.
Ele se agachou. Ela estava toda curvada, o cabelo no rosto, as mãos
segurando o cabelo.
— O que você está fazendo aí embaixo? Saia daí. — Jane não falou
nada. Leo pensou em empurrar a cama para trás, mas não queria
perturbar o pequeno casulo que ela fizera, então, em vez disso, estendeu o
corpo no chão. — Sei que foi terrível o que aconteceu com a Rose. Nem
posso lidar com isso direito, mas ela estava sentindo dores terríveis e
agora não está mais. Você tomou a decisão certa.
— Cale a boca — disse ela com voz rouca. — Cale a boca. Não seja
bom comigo. Eu não mereço. Eu sou repugnante. Sou um monstro. O pior
de todos.
— Não, você não é — retrucou Leo, porque ela não era. Ela era um
monte de coisas, mas não era uma má pessoa. Ele conhecia pessoas ruins,
e Jane não chegava nem perto de ser como elas.
— Ah, Leo, me desculpe. Eu sinto muito.
— Você não tem do que se desculpar.
— Você não sabe da missa um terço. — Sua voz estava rouca por ter
chorado tanto tempo no escuro. — Eu é que deveria ter feito aquilo. É por
isso que Rose me queria lá no final. Ela me conhecia. Ela sabia das coisas,
sabia de tudo.
— Nem tudo. Só porque era velha, isso não fazia dela um ser
onipotente, que tudo sabe e tudo vê. Alice Neel era sua artista favorita.
Então é óbvio que Rose não era alguém que sabia de tudo.
— Ela sabia como eu realmente sou sem que eu tivesse que dizer uma
única palavra.
Leo ainda não tinha empurrado a cama e puxado Jane para fora,
expondo-a à luz. Estava só ali deitado, olhando para ela com
preocupação, e não reprovação. Isso estava prestes a mudar.
— E como você realmente é? — perguntou ele.
Deus, ela não podia mais conter aquilo. A verdade estava vazando,
derrubando os muros que Jane tinha construído com tanto cuidado.
— Você sempre teve uma vida, Leo. Mesmo que você finja que não se
preocupa com seus pais, seu irmão, você tem uma família; você tem
raízes. Você tem história. Você é parte de algo. Mas, antes de vir para
Londres, eu não tinha uma vida. Mal tinha um nome. Praticamente não
existia. Eu me esgueirava pelas beiradas. Eu não era nada. Menos do que
nada. E ainda me sinto... um fantasma. Não há nada que me prenda. Sinto
como se pudesse ser levada embora para longe.
Naquela época, ela não tinha noção de coisas como o dia e a noite ou
que estação do ano era. Os dias não tinham ritmo.
Jane chegara a frequentar a escola antes disso, mas só quando vovó Jo
estava viva; depois que esta morrera, ela nem sequer tinha o refúgio da
escola por algumas horas.
Logo Jane aprendeu que era melhor ser ignorada, ficar longe de vista,
mesmo que isso significasse passar fome. Seus irmãos e irmãs lutavam
por aprovação, atenção, apesar de a aprovação nunca vir e a atenção
raramente resultar em algo de bom. Não demorou para começarem a
atacar uns aos outros, porque não havia honra entre ladrões, então ela se
escondia deles também.
Jane tinha ouvido tudo sobre o “pobre merecedor”. Tinha ido a jantares
com políticos, intelectuais, reformadores idealistas com uma visão
otimista das classes trabalhadoras decentes progredindo através da
educação e do trabalho honesto, mas ela viera dos pobres não
merecedores. Uma subclasse desprezada e temida pelas outras famílias
da cidade.
A sua parte da cidade era o lugar para onde o conselho empurrara a
grande ralé indesejável. O Beco da Ralé, como o chamavam, uma estrada
deserta onde ninguém, nem mesmo a polícia, aparecia depois do
anoitecer. Às vezes, para fugir, ela atravessava a cidade até a biblioteca.
Não para ler — não lhe ocorria que pudesse haver algo para ela nas
minúsculas letras pretas que preenchiam páginas —, mas a biblioteca era
quente e ao lado havia uma loja de onde a família dela não fora banida e
da qual conhecia o ponto cego em que poderia enfiar um enroladinho de
salsicha no seu agasalho sem que a senhora do caixa visse.
Houvera muitos momentos difíceis. Toda vez que sua mãe levava um
novo homem para casa, cada um pior que o anterior. Mais cruel. Mais
rígido. Mais exigente. Vezes terríveis em que se vira encurralada por um
deles, mas houvera momentos ainda piores do que esses. Como pouco
antes do dia de receber os benefícios quando não havia nada para comer,
nada para ajudar, nenhuma bebida, nenhuma pílula, nada para fumar,
nenhum pó — era então que os ânimos ficavam feios. Havia gritos. Coisas
e ossos se quebravam. Certa vez, sua mãe armara um soco para acertar
uma de suas irmãs, que se abaixara e sua mãe acabara enfiando o punho
direito na parede.
Ficar escondida em um dos quartos úmidos era uma boa maneira de
não ser notada, mas rastejar para baixo da cama era melhor — encolhida
contra a parede mofada, para não poder ser puxada dali a menos que a
cama fosse levantada. Mas a cama fora levantada naquele dia, quando
sua mãe se arrastara até lá em cima com suas pernas ulceradas.
— Você! Mova o seu traseiro até o Alan Gordo. Me traga alguma coisa e
coloque na conta.
A única bondade que sua mãe mostrava por ela era não mandá-la
comprar nada fiado no Alan Gordo antes de esgotar todas as outras
possibilidades.
Ela caminhara os dez minutos até a casa do Alan Gordo pela parte
mais bonita da cidade. Não lhe ocorrera dizer não. Dizer não era tão
inimaginável quanto ser convidada a entrar em uma das casas bonitas
pelas quais passava com seus revestimentos e suas antenas parabólicas;
algumas das mais chiques tinham até cestas de plantas e canteiros de
flores.
A casa de Alan Gordo não tinha canteiros. Apenas dois carros e uma
van branca estacionados na entrada da garagem, o que não era uma boa
notícia. Às vezes, Alan Gordo a forçava a ficar de joelhos assim que
fechava a porta. Enfiava o pau dele pela sua garganta com tanta força,
que ela engasgava e seu nariz ficava pressionado contra as dobras fedidas
de sua barriga caída, mas quando Alan Gordo tinha outros homens com
ele... Era a pior de todas as piores vezes. Ela apagava, fingia que estava
embaixo da cama até tudo acabar, até terminarem de fazer o que queriam
e ela poder sair de lá com um embrulho de algo que não valia mais do que
vinte libras.
— Quem diabos está aí? — gritou Alan Gordo quando ela bateu na
porta.
— Sally me mandou aqui — respondeu ela, e o ouviu rir antes de ver a
enorme massa informe que ele era através do painel fosco.
Ele abriu a porta. Ela entrou. Manteve a cabeça baixa, olhando para os
tênis dele, sentiu a mão gorda dele segurar sua nuca e deixou-o empurrá-
la para baixo, viu a outra mão dele mergulhar na calça esportiva e, então,
ouviram uma forte batida na porta. Duas batidas fortes. Pausa. Duas
batidas fortes. Pausa.
— Mas que diabo — gritara Alan Gordo para a pessoa que estava
batendo e que eles não podiam ver. — Me dá um minuto.
Ele a arrastou pelo corredor. Por um instante apavorante, eles
passaram pela sala de estar, onde o som das batidas fortes de uma música
reverberava pela porta, mas então ele seguiu em frente até chegarem à
cozinha.
— Não mexa a porra de um músculo — disse ele e fechou a porta.
O cachorro estava lá dentro. Era um enorme pastor-alemão chamado
Matador. Alan Gordo tratava o cão como todo o resto, mas o cão não
aceitava isso tranquilamente. Ele rosnava, arreganhava os dentes e latia.
Certa vez o cachorro a mordera quando Alan Gordo a fizera colocar a
mão na boca do animal.
Naquela hora o cão estava sentado ali, ouvidos alerta, encarando-a. Ela
olhava para todos os lados, menos para o cão. Para as garrafas, latas e
embalagens de comida para viagem vazias. Então, olhou para a mesa.
Havia vários saquinhos de pó e comprimidos porque Alan Gordo sabia
que ela era a única pessoa que poderia deixar ali com instruções estritas
de não mexer a porra de um músculo que não mexeria a porra de um
músculo.
Então ela viu o dinheiro. Um enorme rolo de notas presos por um
elástico. Aquele dinheiro todo nem parecia real, não quando ela mal
tinha visto uma nota de vinte libras antes, muito menos várias centenas
delas. E talvez tenha sido por isso que ela o pegou: só para ver se era real.
Ela não imaginava que dinheiro pudesse pesar alguma coisa. Que
poderia haver tanto dele que mal daria para ela fechar a mão em volta.
O cão só ficou ali sentado, vendo o que ela fazia, como se ele também
não pudesse acreditar.
Ela não sabia por quanto tempo ficou ali, segurando o dinheiro. Sem
sequer pensar no que daria para comprar com ele, porque isso já era coisa
demais para ela processar. Então Alan Gordo apareceu à porta.
— Mas que porra você está fazendo? — Ele não gritou. Não precisava.
— Pegando a merda do meu dinheiro, como uma piranha ladra? Me dê
um bom motivo para não cortar você de orelha a orelha.
Não havia bons motivos. Nenhum. Ele se aproximou. Ela o observou
chegar mais perto. Não estava com medo. Não de fato. Estava mais
resignada, aceitando que isso era o que lhe aguardava. Então ela viu a
faca. Era só uma faca comum. Em uma casa comum, as pessoas comuns a
usariam para cortar legumes. Ela pegou a faca, e ele riu, como se fosse
engraçado. Alan Gordo disse algo para ela, mas ela não ouviu porque
enfiou a faca nele. Não foi fácil. A faca não deslizou como se toda a
gordura dele fosse manteiga. Ela teve de cravá-la. Empurrá-la com força
para dentro dele.
Então ela tirou a mão. A faca ficou onde estava. Cravada centímetros
na carne dele.
— Mas por que diabos você fez isso? — Ele não parecia irritado, mas
curioso.
— Eu não sei.
— Sabe o que eu vou fazer com você?
— Não.
— Vou pegar a faca e vou enfiá-la na sua boceta até o seu rabo e então
vou fazer mais alguns buracos em você, e depois vou chamar os meus
amigos para foder cada um desses buracos. Vamos comer você até a
morte — disse ele, como se aquela fosse uma ótima maneira de passar a
tarde. — Isso é o que eu vou fazer.
Então ela puxou a faca. Não havia nenhum sangue até ela fazer isso,
mas depois houve muitíssimo, e ele deu um berro surpreso, e foi quando o
medo tomou conta dela, e ela enfiou a faca de novo. Foi muito mais fácil
dessa vez esfaqueá-lo através de toda aquela gordura, todas aquelas
camadas nojentas. Enfiar. Puxar. Enfiar. Puxar. Enfiar. E ele deve ter
lutado, mas ela não conseguia se lembrar, embora mais tarde tenha
descoberto que estava coberta de hematomas e, até hoje, não tenha mais
sensibilidade no dedo mínimo e no anelar da mão esquerda. Contudo,
naquele dia, ele escorregou no sangue e aterrissou com um baque surdo e
um rugido e ela ouviu alguém vindo pelo corredor e deixou a faca
cravada nele e a porta dos fundos estava destrancada e ela passou
correndo por lá.
Ela correu. Ouviu latidos e viu que Matador vinha atrás dela. Não, não
atrás dela. Ele corria com ela porque odiava Alan Gordo tanto quanto ela
e enfim estava livre também.
Ela continuou correndo, correndo, correndo para além dos limites da
cidade, correndo até chegar à estrada principal, então tirou o casaco
porque estava coberto de sangue e jogou-o sobre uma cerca-viva, em
seguida correu até chegar ao grande supermercado e diminuiu a
velocidade e, apesar do que tinha feito, pôde entrar despercebida em um
ônibus que seguia para a estação de trem, em meio a uma multidão de
senhoras com carrinhos de compras e tosse de fumantes.
Então ela se escondeu e esperou até o trem parar na plataforma.
Entrou nele. Encontrou um lugar, curvou-se o máximo que pôde e ficou
assim até o cobrador aparecer, pedir seu bilhete e ela fingir ignorá-lo. Mas
ele não ia embora, então ela percebeu que ainda segurava todo aquele
dinheiro e que poderia usar um pouco para comprar um bilhete, mas não
precisou fazer isso, porque alguém disse:
— Está tudo bem. Eu pago a passagem dela.
E foi quando ela conheceu Charles.
Lullington Bay
Título original
After the Last Dance
Capa
Estúdio Bogotá
Foto da capa
Roksolana Zasiadko
Preparação
Luana Luz
Revisão
Arlete Sousa
Renata Lopes Del Nero
ISBN 978-85-446-0678-5
Capa
Rosto
Agradecimentos
Prólogo
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Epílogo
Coda
Sobre a autora
Créditos