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Tatiana Amaral
Copyright © 2023 Tatiana Amaral
The characters and events portrayed in this book are fictitious. Any similarity to real persons,
living or dead, is coincidental and not intended by the author.
No part of this book may be reproduced, or stored in a retrieval system, or transmitted in any
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express written permission of the publisher.
ISBN-13: 9781234567890
ISBN-10: 1477123456
CAPÍTULO 1
LAURA
Subi com pressa as escadas, ciente de que apesar disso, nenhum barulho eu
faria. Ninguém, com exceção do Sr. Quaresma, dormia daquele lado da
mansão. Um absurdo, eu pensava, ao mesmo tempo que me desobrigava a
pensar em repudiar o que os demais escolhiam para as suas vidas.
Eu tinha pressa, mas não por estar atrasada e sim porque precisava de
um tempo para estudar para o simulado que faria naquela noite. Faltava
pouco para o vestibular e eu me entupia de confiança de que conseguiria
ingressar numa faculdade pública, a de Enfermagem, como tanto sonhei.
Abri a porta com cuidado, certa de que o senhor de quase oitenta
anos dormia, já que seu estado de saúde inspirava cuidados. Entretanto, qual
não foi a minha surpresa ao encontrá-lo desperto, vestido e pronto para a
minha chegada?
— Bom dia, Laura! Preparada para o simulado de hoje? — ele
comentou no instante que entrei. O sorriso inevitável se prolongou em meu
rosto.
— Bom dia, Sr. Quaresma. Vejo que de novo não esperou por mim.
— Ora, não preciso de uma babá supervisionando a minha higiene
íntima. Agora enquanto pega todos esses que insiste em me fazer engolir, me
conte, está preparada para o simulado ou não?
— O senhor não esquece.
Coloquei minha pasta sobre a imensa mesa de trabalho instalada no
quarto do Sr. Quaresma, quando este começou a adoecer e ficou impedido de
gerir seus negócios. Em seguida, me encaminhei ao banheiro para lavar as
mãos.
— Eu sou idoso, mas não tenho Alzheimer — ele reclamou.
— Ninguém poderia dizer uma única palavra contra esta afirmação.
E a resposta é sim. Quero estudar um pouco mais, porém, sinto-me
preparada — informei ao retornar para o quarto e iniciar o meu trabalho. —
Esse chinelo não é o adequado, esqueceu que me prometeu que daríamos
uma volta no jardim?
— Isso atrasará os seus estudos. Prefiro ficar na biblioteca com um
livro enquanto finjo que não estou bisbilhotando o tanto que você estuda —
eu ri ao preparar o glicosímetro. — Você não nasceu para ser uma simples
técnica de enfermagem. Enfermeira-chefe é o mínimo que pode desejar.
— Ei, mais respeito com os técnicos de enfermagem.
Ele permitiu que eu verificasse a glicose e bufou alto quando me viu
fazer uma cara feia.
— Tomou a ceia ontem?
— Ceia. Isso é coisa de gente que não tem o que fazer. Onde já se
viu? Eu não tenho fome depois do jantar.
— Já tivemos essa conversa — preparei os remédios na bandeja e
acrescentei a injeção habitual de insulina. A pior parte para nós dois. — Tem
que comer mesmo sem fome. Um chá já faria uma grande diferença.
— E quem gosta de chá nessa cidade?
— Eu.
Ele aceitou os comprimidos e os engoliu na hora que minha mãe
entrou com a bandeja com o café da manhã. Dona Sara trabalhava naquela
casa há tantos anos que havia até perdido a conta. Acho que foi quando o Sr.
Quaresma casou, mas nem ela tem esta certeza. Era a governanta,
responsável pelo funcionamento e também, a mesma que contou ao nosso
chefe que eu estava prestes a me formar em técnica em enfermagem, dessa
forma, no momento que se viu impossibilitado de viver sem alguém que o
obrigasse a tomar os remédios na hora certa ou o auxiliasse em alguns
momentos, me contratou.
Eu tinha pouca experiência na época, estava em meu primeiro
estágio, ainda assim, ele assinou a minha carteira de trabalho e me pagou um
valor que ninguém da minha turma conseguiu. Na época pensei que tirei na
loteria, só para descobrir que iniciaria meu martírio.
Há anos não pisava naquela casa, não via os dois filhos do Sr.
Quaresma, Sabrina e Bernardo, que foram meus amigos na adolescência e
dos quais me afastei quando percebi que existia uma falácia imensa entre a
filha da governanta e os filhos dos patrões.
— Bom dia, Sr. Quaresma — minha mãe disse, sem utilizar qualquer
tom que a tirasse do profissional. — Que bom que Laura está aqui para
obrigá-lo a comer o que é necessário.
— Sara, como se sente sabendo que sua filha ingressará logo em uma
faculdade de enfermagem? — ele sondou, esquecendo-se, como sempre
fazia, que ali estavam empregado e patrão.
— Ingressarei tarde — eu os interrompi. — Mas preparada.
— Nunca é tarde para começar — ele rebateu.
— É o que sempre digo a ela — minha mãe colaborou.
— Ótimo, estamos todos acertados — brinquei. — Agora, vamos ao
café da manhã antes que esse índice glicêmico piore.
Eu adorava o Sr. Quaresma. Homem bom, correto, humilde. Rico,
muito rico, no entanto, conhecia a pobreza. Talvez por isso nunca deixou de
pensar nos outros. Já seus filhos… A falecida esposa, que Deus a tenha em
um bom lugar, seguia a mesma linha do marido, doou-se o máximo por
aquela família, mas… existia algo de muito errado no universo quando um
casal como aquele tinha filhos como Sabrina e Bernardo.
— Você tem ótimas meninas, Sara — ele continuou enquanto
aceitava o que eu lhe oferecia.
— O senhor sempre diz isso — minha mãe contribuiu, porém, sem
demonstrar intimidade.
— Porque é uma verdade. Essas meninas vão lhe encher de orgulho,
você verá.
— Amém — dissemos, nós duas ao mesmo tempo.
— Já os meus… — ele começou.
Eu odiava quando aquilo acontecia, em especial no meio do café da
manhã. Falar dos filhos sempre tirava a fome do Sr. Quaresma.
— Dois sem noção. Uma casa com um oportunista. Eu esperava mais
de Sabrina, tão esperta e inteligente, poderia casar com pessoas mais
interessantes e que agregassem ao invés de sugar.
— O senhor deveria se preocupar em comer e… — eu tentei, mas ele
rejeitou o que eu lhe oferecia.
— E Bernado… — Outro bufar, só que este bastante aborrecido. —
Quase quarenta anos na cara e nenhuma responsabilidade.
— Ele só tem 32 anos, Sr. Quaresma. Homens demoram mais para
amadurecerem mesmo. — Tentei, mais uma vez, sem qualquer sucesso,
fazê-lo aceitar a comida. — O senhor precisa tomar o restante dos remédios
e a insulina.
— Acabe logo com isso de uma vez — reclamou, desistindo de
continuar a refeição.
Minha mãe me deu um olhar de quem não contestava a decisão dos
patrões. Eu queria ser como ela, não me importar, mas… Caraca! Eu era
uma técnica em enfermagem, futura enfermeira, melhor, futura chefe da
enfermaria, logo, desistir de um paciente não estava em meus princípios.
— Se o senhor não comer pelo menos mais um pouco, eu vou avisar
ao Dr. Geraldo que o senhor está em uma missão suicida.
Minha mãe ficou horrorizada com minha atitude, mas o Sr. Quaresma
riu e aceitou que eu lhe desse a quantidade necessária de comida.
— Eu disse, essa menina será a enfermeira-chefe do maior e melhor
hospital dessa cidade.
Fiz o maior esforço para ignorar o olhar de orgulho da minha mãe
enquanto esta recolhia a bandeja e eu entregava ao meu paciente o que
restava de remédios para aquela manhã.
De verdade, diabetes nem era o pior problema do homem. Eram
tantos que eu me perguntava até quando ele duraria e rogava para que não
fosse tão cedo, pois a sua partida me impediria de pagar meu curso pré-
vestibular e com toda certeza minha mãe seria demitida.
Ele não estava de brincadeira quando se queixou dos filhos e do
genro. Eram todos terríveis. As piores pessoas que conheci na vida. E isso
porque ainda não contei que minha mãe ajudou a criá-los, no entanto, essa
realidade não modificava o comportamento de nenhum deles.
Assim que engoliu os comprimidos, o Sr. Quaresma levantou a
camisa para que eu aplicasse a insulina e identifiquei o quão ruim estava a
situação. Com cuidado, achei o local que menos o machucaria e fiz o meu
trabalho. Ele sequer reclamou.
— Então, que tal a biblioteca? — Quis saber tão logo eu me abaixei,
mas não tive tempo de responder.
— Bom dia, papai! —- Sabrina entrou no quarto com aquele jeito só
dela.
Impecável. Arrumada da maneira como condizia a sua função da
quase que maior rede de concessionárias que o pai construiu ao longo da
vida, altiva, intimidadora e… arrogante. A garota que um dia brincou
comigo e fez planos, sequer me olhou.
— Laura já acabou? — ela questionou diretamente ao pai, uma vez
que só se dirigia a mim se fosse uma extrema necessidade.
— Não — Sr. Quaresma disse sem se deixar abalar. — Pedi a Laura
para me acompanhar até a biblioteca.
— Isso pode esperar. Tenho coisas importantes para conversar com o
senhor.
— Eu vou até a cozinha, Sr. Quaresma — informei.
Na verdade, não era apenas o fato de Sabrina não me suportar, era
também o de eu não aguentá-la na mesma medida. O ranço era mútuo,
porém, naquela quebra de braço, apenas eu tinha motivos para tal. E eu o
encontrei onde menos queria, na cozinha vazia, como se soubesse que eu
seguiria para lá tão logo a esposa me expulsasse do quarto do pai.
— Bom dia, Laura — Vicente, marido de Sabrina, o tal aproveitador
que o Sr. Quaresma nunca deixava de apontar, me cumprimentou com toda a
cortesia que faltava em sua esposa.
— Bom dia, Vicente. — Minha resposta automática e sem qualquer
emoção sequer o intimidou.
Do outro lado do imenso balcão no meio da cozinha, fui até a
geladeira e peguei a jarra do suco, mas, assim que meus dedos se fecharam
em sua alça, eu quase a derrubei. Sem a minha autorização, Vicente me
agarrou por trás, juntou nossos corpos e beijou meu pescoço.
— Saudade desse seu jeitinho emburrado, sabia?
Que abusado!
— Tire as mãos de mim ou você terá que arrumar uma boa desculpa
para explicar a Sabrina, a sua cara cortada —- ameacei ao tentar afastá-lo,
mas o cara era totalmente sem noção.
— Você sabe que ela acreditará em qualquer desculpa que eu der.
E foi por causa dessa resposta, por saber que ele tinha razão, que eu,
sem pensar duas vezes, virei em sua direção e despejei todo o suco em sua
cabeça.
— Porra,Laura!
— Grite mais alto até Sabrina descer e tomar ciência de quem é o
imbecil do marido dela — ameacei.
— Você vai limpar isso — ele rosnou.
— Com prazer — rebati.
Dado por vencido, Vicente deixou a cozinha, afinal de contas
precisaria arrumar a bagunça que causei, todo pronto para fingir trabalhar na
empresa em que a esposa geria no lugar do pai.
Sorri para mim, satisfeita por não ter me intimidado, mas meu sorriso
morreu no mesmo instante em que também me congratulei por não ter
cedido.
Com um suspiro forte, busquei um pano para limpar o balcão e outro
para iniciar a limpeza do chão. Eu me esforcei para que meu cérebro se
concentrasse nisso e não no fato de, na adolescência, ter sido eu a apresentar
Vicente, meu namorado na época, a Sabrina, que eu acreditava ser a minha
melhor amiga.
Engoli as lágrimas e me obriguei a limpar a bagunça antes que mais
merdas acontecessem. Nem Vicente e nem Sabrina poderiam roubar mais
nada de mim e eu precisava estudar para a prova daquela noite.
Mas, como tudo o que é ruim, piora, quando finalizei o balcão e me
abaixei para limpar o chão ouvi passos atrás de mim para em seguida se
deterem. Na mesma posição, nada louvável, olhei para trás e vi parado, com
um sorriso debochado, Bernardo Quaresma, o irmão mais velho de Sabrina,
filho do senhor de quem eu cuidava pelo dinheiro, mas também pela
consideração e amor que nutria por ele e por tudo o que fez pela minha
família.
— Uau, Laura. Essa hora da manhã encontrar uma mulher de quatro
no meio da cozinha está na minha lista de desejos.
— Quantos anos você tem? Dez?
Ele riu com vontade.
Ao contrário da irmã, Bernardo nunca quis se afastar ou deixar de ser
meu amigo. Aconteceu por dois motivos: ele saiu do país para estudar fora e
depois os pais descobriram que ele só viajava o mundo sem se importar com
o conhecimento que jurou obter para aplicar nas empresas, e porque eu
deixei de frequentar a casa no momento que Sabrina roubou meu namorado.
Quer dizer… não nessa ordem, mas por estes motivos.
— Seu pai sabe que no meio da semana você chega em casa a esta
hora, mesmo em horário de trabalho? — Eu quis acrescentar o “e bêbado” às
acusações, no entanto, nada do que eu dissesse surtiria efeito.
— Não sabe e não precisa saber. Para que vamos piorar a saúde do
velho?
Encarei Bernardo sem acreditar naquelas palavras. Tudo bem que ele
era maior de idade e bastante crescidinho para tomar as suas decisões, mas
aos trinta e dois anos agir como um adolescente era de fato frustrante. Por
isso eu entendia tão bem o Sr. Quaresma. Um filho que só pensava em
usufruir do dinheiro que o pai se esforçou para conquistar e uma filha que
apesar de gerir muito bem as empresas, escolheu se casar com o cara errado.
Como condenar o idoso?
— Faça como quiser — resmunguei e me levantei com o pano na
mão.
— O que você aprontou? — ele quis saber ao sentar no balcão onde
no geral a cozinheira preparava a comida.
— Você fede a álcool. Vá tomar banho antes de se apresentar ao seu
pai e fingir que trabalha.
— Nossa, quanta amargura, Laura.
E eu estava de saco cheio de todos eles.
— Olha, Bernardo, se seu intuito aqui for me convencer a não contar
ao seu pai que você chegou agora, com esse fedor de cigarro e cachaça, fique
tranquilo, eu não tenho motivo para ser a fofoqueira dessa casa.
— Por isso eu gosto de você — ele troçou e eu tive vontade de ter
outra jarra de suco para derramar na cabeça daquele outro imbecil.
Mas, com a mesma leveza e desapego com que entrou na cozinha, a
deixou. E eu me vi com o pensamento de que, se fosse eu ali, com aquelas
oportunidades todas, seria tão imbecil quanto eles?
Não. Eu não teria sequer a oportunidade, quem dirá a imbecilidade
deles.
“Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade”
Insensatez - Tom Jobim / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 2
BERNARDO
SABRINA
Eu tremia, e odiava tremer.
Papai de fato conseguia arrancar de mim o equilíbrio que precisava
para, sozinha, sim, sozinha, gerir aquela empresa arcaica e volumosa. Ele
não entendia a nossa vontade de enxugar e tudo isso porque tinha o que eu
jamais me permitiria ter: apego. Onde já se viu acumular empresas
desnecessárias, abranger todos os detalhes do mundo automobilístico só
porque na época dele era o certo a ser feito?
Quando cheguei ao meu quarto, surpreendi Vicente, com roupas da
academia ainda, suado, como se não estivesse atrasado para o trabalho.
— Ainda aqui? — Minha pergunta saiu com o tom de acusação que
eu odiava, e ele também.
— Eu queria saber se você ficaria bem depois da conversa de hoje —
ele explicou com um olhar inocente que quase me fez amolecer.
— Você acabou de sair da academia, Vicente — acusei. — Não
percebe que é por isso que papai me inferniza? Ele não acredita que você se
importe com as empresas.
— Seu pai não acredita — ele enfatizou, aborrecido, contudo,
contido. — E você?
— Que pergunta é essa?
— Isso mesmo, Sabrina. Você acredita ou não?
— Claro que acredito. Você trabalha lá, não é mesmo? E pela
vontade de quem?
— Você não acredita — a decepção em sua acusação me fez esquecer
da briga com meu pai. — Eu fiquei por você, porque sabia que seu pai
sempre faz isso, ele sempre te enfraquece, te faz desacreditar em seu
potencial. Fiquei para que você não esquecesse quem é, para te incentivar, e
o que você faz? O mesmo que o velho, me acusa de ser um interesseiro, que
finge que trabalha.
Com isso, ele me desarmou por completo. Vicente não tinha a mesma
garra que eu, e nem precisava ter. O cargo que ele ocupava sequer exigia
dele o mesmo de dedicação que o meu, eu só… droga, meu pai me frustrava
ao ponto de abalar meu casamento, de me fazer implicar com a única pessoa
que de fato me valorizava naquela droga de família.
Ele não entendia, aliás, nenhum deles entendia o que significava
viver com Vicente. Meu marido me enxergava, incentivava e me amava
como nenhum deles foi capaz de me amar. Foi Vicente quem me incentivou
a estudar administração de empresas, que me fez pedir um estágio ao invés
de exigir um emprego, porque ele sabia que eu teria que conhecer setor por
setor para chegar onde eu queria.
Também partiu dele a ideia de uma segunda graduação ao invés de
partir para uma pós graduação ou MBA como meus colegas fizeram. E eu
me formei em ciências contábeis, ou seja, eu era imbatível. Depois disso, só
acumulei títulos e estudos que agregaram o meu valor.
Papai e mamãe queriam que eu fosse para fora do país, que estudasse
com os melhores, que seguisse os passos do meu irmão mais velho, só para
em seguida quebrarem a cara com Bernardo. Quase reprovado na faculdade
de direito, Bernardo não se deu ao trabalho de fazer o exame da OAB. Ele
fez uma pós-graduação em gestão de negócios e convenceu nossos pais que
estudar fora seria melhor, sendo que ele só fazia curtir e gastar, no final das
contas, não trouxe nada de útil em sua bagagem.
Era um idiota encostado, mas tinha um ótimo olhar para o que servia
e o que não servia na empresa, logo, não era imprestável.
Eu morei fora, claro. Fui estudar, mas só depois de casar e de fazer
meus pais aceitarem Vicente. Fomos juntos e ele me ajudou de uma forma
que nenhum deles teria feito, porque só quem viveu a solidão de morar longe
do seu país pode compreender o quão complicado é manter o foco.
— Eu acredito — anunciei com mais ênfase, desarmada. — Perdão,
meu bem. É que você sabe como meu pai é e as quartas-feiras são
insuportáveis. Papai não entende que o tempo dele passou, que ele deveria
descansar e me deixar trabalhar.
— Tudo bem.
Meu marido se aproximou, beijou o topo da minha cabeça, mas não
se encostou para não acabar com minha produção, uma vez que eu estava
pronta para trabalhar e ele suado de tanto malhar.
— Vou adivinhar, ele descobriu que você quer vender as empresas de
pneus e foi contra.
— Não só isso — suspirei e sentei na cama. — Ameaçou me
despedir se eu seguisse com a ideia.
— Seu pai é mesmo antiquado, amor. Aquelas empresas estão prestes
a nos dar prejuízo. Melhor vender. Toda empresa precisa enxugar ao
máximo. Não tem necessidade de termos empresas de pneus.
— Pois é!
Por isso que eu digo que só Vicente consegue me entender. Se
dependesse de Bernardo nada além do que já estava lá aconteceria. Ele mal
se importava com o trabalho, só pensava no dinheiro que entrava em sua
conta todos os meses, mas Vicente tinha visão, compreendia as necessidades
da empresa, e as nossas também, afinal de contas, queríamos filhos e para
isso precisávamos de um lugar nosso, amplo, com tudo o que pudesse
manter as crianças seguras e em um ambiente adequado.
A casa que encontramos era perfeita, mas não tínhamos economias o
suficiente para adquirí-la. Lógico que poderíamos financiar, no entanto eu
não me sentia à vontade para bancar juros altos quando poderíamos nos
livrar do fardo, comprar a casa e ainda sobrar dinheiro para aplicar e render
melhor.
— Amor, não fique tão aborrecida. Seu pai está velho e velho é assim
mesmo, apegado e teimoso.
— É irritante, isso sim — esbravejei, ele deu uma risadinha leve e
ergueu meu queixo para depositar um beijo inocente em meus lábios.
— Não fique aborrecida com seu pai. Ele logo não estará mais aqui.
Não que eu deseje que ele morra, não é nada disso, mas ouvi uma conversa
na cozinha e…
— Na cozinha? Você agora fica pela cozinha, Vicente?
— Eu precisava do meu pós-treino — explicou com inocência. —
Tá, esqueça. Não está mais aqui quem falou.
— Aposto que ouviu a Laura — supus com desdém, os braços
cruzados na frente do peito para ajustar a minha raiva.
— Ela disse para a mãe que seu pai não estava bem. Que as taxas não
estavam boas.
— E ela não me contou nada? — Fiz menção de sair, mas ele me
segurou pelo braço.
— Calma, ou vão dizer que fico na cozinha xeretando. Quero que
você pense, que se concentre, na ideia de que em breve você será a CEO
desse grupo e poderá tomar todas as decisões.
Vicente se aproximou, beijou meu pescoço e não deixou que a ideia
de perder meu pai fosse algo sofrido para mim, afinal de contas, quem
gostaria de viver doente, preso a uma casa, um quarto… eu já não conseguia
pensar em mais nada com suas mãos em mim, ansioso para desfazer a minha
figura de presidente do grupo, como ele adora dizer que fazia.
“Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo
Iguais à você”
Se todos fossem iguais a você - Tom Jobim e Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 3
LAURA
Esperei dois dias. Esse foi o máximo de tempo que consegui me dar
para retomar a ordem não só da minha vida, mas das empresas e
principalmente da casa. Não via a hora de me livrar dos fantasmas com os
quais precisei viver só por causa da mania absurda do meu pai de se apegar.
Por isso, naquela manhã, quando Sara entrou na nossa casa, recebeu logo o
recado para me encontrar no escritório. No meu escritório, lógico.
Aguardei com paciência, certa da pontualidade da governanta. Em
tantos anos, Sara jamais se atrasou, faltou ao trabalho, nem mesmo reclamou
de doença ou qualquer outra coisa. Que eu me lembre, ela se ausentou para
ter a segunda filha, Bruna, e nesse tempo o marido faleceu, logo, não
precisou de mais folga do que já tinha na licença maternidade.
Não posso dizer que a mulher não era boa. Sim, Sara era muito boa
no que fazia. Seguia ordens e não se envolvia como se fosse da família,
como muitos empregados gostavam de fazer. No entanto, mantê-la comigo
seria uma agressão, como foi durante todos esses anos.
Para piorar, quando contei meu desejo a Vicente, a maneira como ele
reagiu, me fez ter a certeza de que seria necessário. Ele foi contra a demissão
de Sara. Disse que era por puro ciúme e que Laura além de não significar
nada para ele, nem frequentaria a casa, pois não haveria mais trabalho para
ela. Ainda assim, eu preferia não arriscar. Cortaria o mal pela raíz.
A batida na porta me alertou. Aprumei o corpo e avisei para entrar.
Ela o fez, serena, certa de que eu lhe diria o que fazer nos próximos dias.
— Bom dia, Sabrina — disse com polidez.
Eu me incomodava. Ninguém me chamava pelo nome sem parecer
íntimo demais. Além disso, naquele momento eu era a Sra. Quaresma, ainda
que este não fosse o sobrenome do meu marido. Eu gostava demais do meu
para utilizar o dele e isso nunca o incomodou, pelo contrário, o próprio
Vicente utilizava esse sobrenome.
— Sente-se, Sara.
Não fui brusca, nem íntima. Ali nos tratávamos como patroa e
empregada. Nada mais. Ela me obedeceu e sentou, desconfortável, na beira
da cadeira do escritório. As mãos sobre a bolsa no colo. Tantos anos e Sara
nunca deixou de aparentar o que era, pobre. E ninguém podia dizer que ela
recebia mal, pelo amor de Deus, a mulher era governanta, ainda assim…
— Bom, Sara, eu te chamei aqui porque tenho um assunto que não é
fácil de tratar.
— Pode falar — ela disse com cuidado, e isso também me irritou,
porque eu não precisava da permissão dela para fazer o que queria fazer.
— Serei direta então. Quero vender a casa. Bernardo está de acordo,
logo, não precisaremos mais de uma governanta.
A mulher nada me disse. De certo o choque a emudeceu. Mas
também, graças aos céus, não fez qualquer escândalo. Seus olhos marejaram,
no entanto, nenhuma lágrima escorreu.
— Não se preocupe que você terá um bom valor pelos serviços
prestados. Já passei sua carteira para a nossa contadora e aqui estão os
documentos com tudo o que precisa assinar para o desligamento.
Empurrei os papéis em sua direção. Ela os olhou com atenção, mas
não como se desconfiasse da gente. Eu podia não querer mais Sara pela casa,
entretanto, não seria desonesta. Ela teria todos os seus direitos
indenizatórios, inclusive a multa por não ter aviso prévio. A mulher pegou a
caneta e assinou em todos os pontos indicados sem contestar nada.
— Ótimo! Mandarei o documento para a contadora e em breve ela
entrará em contato para te avisar sobre o seguro desemprego e o dia em que
o valor estará disponível na sua conta. Pedirei que seja o mais breve
possível.
— Tudo bem, Sabrina. Obrigada — ela disse, a emoção presa na voz.
Começou a levantar-se quando dei a minha cartada final, a que eu de fato
senti prazer em fazer.
— Ah, quase esqueço. Diga a Laura que os documentos dela estão na
empresa de contabilidade. Ela precisará assinar e acertar o desligamento,
afinal de contas, não há mais nada que ela possa fazer por aqui. O
procedimento é o mesmo. Agradeço pela dedicação de vocês.
A mulher assentiu e em seguida deixou o escritório.
Descansei as costas no espaldar da cadeira e me dei alguns minutos
antes de enviar um e-mail para uma empresa que presta serviços domésticos
e abri a vaga de governanta. Demoraria para que todos os ajustes fossem
feitos, eu assumisse o cargo na empresa e comprar a minha casa, logo,
precisávamos de uma governanta para ontem.
“Mas se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca”
Chega de saudade - Tom Jobim / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 4
LAURA
Mas não foi como eu imaginei. Aliás, não chegou nem perto.
Eu deveria ter desconfiado quando a convocação chegou para mim e
não para a minha mãe, que o acompanhou em boa parte da sua vida. Por
qual razão o Sr. Quaresma deixaria algo para mim e não para a minha mãe?
E por que, entre tantos empregados de confiança, apenas eu, a simples e
odiada técnica em enfermagem, fora convocada para a abertura do
testamento?
Além disso, no momento em que cheguei, constatei que além de
mim, só o Dr. Fernando e o pai dele, o Dr. Estevão, tinham conhecimento da
minha convocação. O que foi terrível.
— O que ela faz aqui? — Sabrina se manifestou com seu jeito
insuportável e olhar que detonava um.
Independente disso, eu me mantive firme. Receberia meu quadro,
minha xícara, a cadeira, ou qualquer outra coisa que o Sr. Quaresma, em sua
total gentileza, lembrou de deixar para mim, e então partiria sem olhar para
aqueles três patetas que aguardavam a abertura do testamento: os filhos e o
genro. Este último, claro, presente apenas para constatar a extensão do
quanto colocaria as mãos tão logo Sabrina tivesse a fortuna separada da do
irmão.
Eu sentei no local que me indicaram, incomodada pela proximidade e
também, confesso, pelas roupas simples que usava quando comparada a toda
a elegância que os herdeiros usaram para aquele momento tão aguardado,
quando poriam as mãos em definitivo no dinheiro do velho.
Ouvi com paciência as poucas palavras narradas pelo Dr. Estevão.
Pra dizer a verdade, termos jurídicos não eram o meu forte, apesar de desejar
entender para tentar um concurso público tão logo finalizasse a faculdade de
enfermagem, só dessa maneira eu não me preocuparia mais com as
demissões. Mas toda a minha atenção se voltou para o gentil senhor quando
Sabrina arquejou, Vicente precisou ampará-la e Bernardo… bom, Bernardo
me encarava como se eu fosse uma assombração.
— Laura? — Dr. Fernando chamou. — Você entendeu os termos?
— Que termos? — questionei, um pouco assustada com aquela
comoção.
— Laura, você ouviu o que lemos?
— Bom… eu… desculpe.
— O Sr. Quaresma entregou aos filhos, Sabrina e Bernardo
Quaresma, o que lhes cabia na herança, ou seja, 50% de tudo o que ele
possui.
— Certo — falei mais para fingir que entendia o assunto do que de
fato estivesse ciente do que havia de tão errado ali.
— Os outros 50% ficaram para você — ele anunciou.
— Espera… para mim?
— Isso é um erro — Sabrina bradou e o Dr. Estevão voltou a atenção
para a mulher prestes a perder toda a compostura. — Com certeza meu pai
não faria uma coisa dessa. O que ela é? Quem ela é?
— Sabrina, você precisa manter a calma. Fernando, por gentileza,
entregue uma cópia do testamento para todos. — No mesmo instante, Dr.
Fernando atendeu ao pai. — Laura, 50% de tudo é seu. Você é a sócia
majoritária do grupo Quaresma e inclusive, como condição especial, o Sr.
Quaresma deixou oficializada a sua vontade de que esta casa fizesse parte da
sua herança.
— Que herança, gente? — eu disse, tão confusa quanto os outros. —
Deve haver algum engano.
— Com certeza há um grande engano! — Sabrina gritou, o marido a
sua frente para que ela não fizesse alguma besteira. — O que você fez para
convencê-lo? Abusou da sua influência sobre um homem senil?
— Com o perdão da intromissão, Sabrina — o Dr. Estevão se
intrometeu. —- Mas seu pai não estava senil. O testamento está pronto há
mais de um ano.
— Eu contesto. Tenho como provar que meu pai não estava em pleno
domínio das suas faculdades mentais — ela disse, a respiração tão ofegante
que as palavras quase não saíam. — Ela não pode herdar 50% e eu 25% das
empresas. Tem noção do que isso significa?
— Total compreensão — Dr. Estevão confirmou, sem perder a
calma. — Laura agora comanda as empresas.
— Eu? Não, não, não. Calma aí! Eu sou técnica em enfermagem.
Não sei nem por onde começar no comando de uma empresa, quem dirá com
um grupo de empresas?
— Viu só? Ela nos levará à falência.
— Seu pai me pediu para que a ajudasse a conseguir. Eu e Fernando
estaremos atentos a todos os atos de Laura e…
Eu perdi o interesse na conversa. Aquilo não fazia qualquer sentido.
Como o Sr. Quaresma acreditou que me colocar à frente dos seus negócios
seria a vingança perfeita contra os filhos? Se ele reclamava do quanto
dilapidavam seu patrimônio, imagine o estrago que eu faria sem qualquer
conhecimento de causa.
— Ela é uma ladra, uma usurpadora. Eu não aceito, entendeu, Dr.
Estevão? A partir de hoje, o senhor não é mais meu advogado. Contestarei
esse testamento absurdo. E você Fernando, está demitido! — Sabrina gritou,
sem qualquer postura ou elegância que adorava exibir.
— Lamento, Sabrina, mas você não manda mais no grupo. Só quem
pode me demitir agora é a Laura.
E, juro, não havia alegria ou ironia na maneira como Dr. Fernando
falou. Ele demonstrava tanto espanto quanto eu, apesar disso, seguia firme
em sua postura de advogado.
— Isso não está certo — sussurrei, sem qualquer condição de
compreender. — Não está certo.
— Laura? — Dr. Estevão chamou por mim e quando o encarei, me
dei conta de que restávamos apenas nós três na sala. Eu, ele e o filho.
Os herdeiros… os reais herdeiros, deixaram o local. Provavelmente
para confabular em outro lugar. Encontrariam uma maneira de desfazer
aquela loucura, com toda certeza. E eu esperava que encontrassem, porque
não havia como aceitar algo como aquilo.
— Dr. Estevão, isso não é certo — eu repeti, apressada.
— Tenha calma — Dr. Fernando disse ao sentar-se ao meu lado, sem
nada da sua postura de advogado. — Nós estamos com você. Como meu pai
disse, o Sr. Quaresma solicitou a nossa ajuda. Com o tempo você pega o
ritmo.
— Não! Eu não quero pegar o ritmo. Eu sequer quero voltar a
conviver com aquelas pessoas. Você não entende? Se como técnica em
enfermagem eles já faziam questão de me sacanear, agora… não! Além do
mais, não é justo. Nada disso é meu. Eu nada fiz para merecer algo dessa
magnitude e…
— Calma — Dr. Estevão sentou à minha frente, encarou o filho e
assim que se sentiu confortável, continuou. — Eu sei que é assustador.
Joaquim te jogou em uma fogueira. — Ele sorriu de leve e coçou a cabeça.
— Por isso me fez prometer que a ajudaria, portanto, agora que estamos só
nós, é o momento de te entregar isso.
O homem tirou do bolso um outro envelope, mais simples, do estilo
tradicional e pequeno. Dobrado ao meio, eu só conseguia ver uma parte do
“Para Laura” nas letras do Sr. Quaresma. Peguei o papel e me afastei.
Abri o envelope com pressa e vi a carta escrita à mão, pelo homem
de quem eu cuidei por toda a vida. Ainda que não entendesse o motivo para
que ele me escolhesse, entendia nas suas palavras a sua indignação e dor
quanto aos filhos, além disso, entendia o motivo para aquilo tudo.
Quando acabei de ler, enxuguei as lágrimas que permiti cair e me
voltei para os homens.
— E então? — Dr. Estevão questionou.
— Pelo visto, não tenho outra opção que não seja atender ao último
pedido dele — reclamei. — Droga!
— Eu vou te ajudar, Laura. Prometo — Fernando pôs uma mão no
meu braço, a primeira vez que agia com tanta intimidade, e isso me assustou.
— Agora você entende o porquê de tudo, certo? — concordei.
— Preciso voltar para casa. Nem sei como contar isso à minha mãe
— resmunguei.
— Fernando lhe dará uma carona. Eu ainda preciso arrumar muita
coisa por aqui — Dr. Estevão demandou.
Todo o resto do caminho passou como um borrão. Uma mistura do
pedido do homem generoso que aprendi a amar, da missão que me designou
em seu último momento, e o medo de como encarar minha mãe e contar o
que havia naquele testamento.
E, quanto mais eu pensava, mas me agarrava a bolsa em meu colo,
dentro dela, a carta, a fatídica carta que me obrigava a seguir aquele caminho
sem saber se daria conta do que me fora solicitado.
Daria merda!
"Fecha os olhos devagar
Vem e chora comigo
O tempo que o amor não nos deu
Toda a infinita espera
O que não foi só teu e meu"
Derradeira primavera - Tom Jobim / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 5
BERNARDO
CAPÍTULO 6
LAURA
CAPÍTULO 7
LAURA
— Dará o maior trabalho, mas pelo visto era tudo o que eles queriam
ouvir — Dr. Fernando festejou o fato de eu ser aplaudida de pé pelos
funcionários até mesmo depois da minha saída.
— Mas você precisa cuidar do seu setor, Fernando, ou começarão a
questionar a capacidade da nova líder — Dr. Estevão, ainda que menos
eufórico, também gostou do que eu fiz. — Esse é o seu andar, Laura —
avisou.
— Todo o andar só para um cargo?
— Não. — Dr. Fernando riu. — Na verdade, metade de um andar, a
outra metade é para a diretoria e ao meio, a sala de reuniões principal. Você
tem vinte minutos para se preparar para essa outra etapa.
— Certo. — Respirei fundo, enquanto lutava contra o acelerar
desajustado em meu peito. — Sem discursos desta vez.
— Bom, os diretores sabem que não podem ganhar a sua antipatia,
por isso será mais fácil, mas amanhã… — O Dr. Fernando fez uma pausa
dramática proposital.
E eu sabia o motivo. Era o dia em que eu me encontraria com os
acionistas, ou seja, Sabrina, Bernardo e alguns outros que não tinham
qualquer expressão e que, ainda assim, podiam cobrar de mim uma boa
resposta para as perguntas que certamente surgiriam.
— Vá para a sua sala, Fernando. Eu cuido de Laura por enquanto.
— Tem certeza? — Dr. Fernando fez uma cara estranha, como se não
estivesse em seus planos me deixar em nenhum momento durante o dia
inteiro.
— Absoluta — o pai dele definiu e não houve contestação. Nós nos
despedimos e caminhamos para lados opostos. — Ali é a sala que você usará
para reuniões específicas — ele apontou para um local com apenas meia
parede, todo o restante era de vidro. — Aqui é a sala de espera. —
Mencionou com pressa. Observei o imenso local e me perguntei quantas
pessoas esperavam para ter alguns minutos do meu dia? — Essas são as suas
secretárias, Judite e Margarete.
— Bom dia, senhora — ambas disseram em unissono, de pé, os olhos
atentos à minha figura.
— Bom dia, Judite e…
— Margarete — a mulher, a que aparentava ser mais velha, me
informou.
— Margarete, certo — repeti, mas tive vontade de anotar os nomes.
— Ilma está na sala dela? — Dr. Estevão questionou.
— Sim. — A outra, mais magra e com aparência de quem vivia com
medo de tudo foi a que respondeu. Judite era o seu nome, eu pensei apenas
para conseguir gravar.
— Vamos — O homem me fez passar na frente delas e abriu a porta
sem bater.
Assim que ele entrou eu fiz o mesmo, certa de que aquela seria a
minha sala, mas havia apenas uma mesa, duas cadeiras e um sofá, e outros
móveis de decoração, e não foi isso que me fez entender não se tratar da
minha sala e sim a existência de uma mulher atrás da mesa, uma atitude
clara de que ali era o seu local de trabalho.
— Bom dia, Ilma, esta é a Srta. Lacerda. Esta é Ilma a sua assistente.
— Como vai? — eu disse com educação, no entanto com vontade de
perguntar porque um CEO precisava de duas secretarias e uma assistente.
— Muito bem, obrigada. E feliz em ter a senhorita à frente das
nossas operações. Seja bem-vinda. — Suas palavras ditas de forma firme e
convicta me deixaram admirada.
— Obrigada, Ilma — respondi depois de um tempo sem saber o que
dizer.
— Vamos a sua sala — Dr. Estevão disse ao passar pela mesa de
Ilma e seguir na direção de uma parede de madeira que só então me dei
conta se tratar de portas duplas. — Ilma, venha conosco — demandou sem
deixar opções.
Evitei demonstrar deslumbramento ao me deparar com a extensa
sala, do tipo que eu só via em filmes e julgava como irreal, afinal de contas,
por que um CEO precisava de uma mesa tão grande, uma sala com três sofás
longos, um ambiente que parecia uma copa e, céus, o que era aquilo, um
mini campo de golfe?
— Essa era a sala do Sr. Quaresma — Dr. Estevão disse com certo
saudosismo. — Agora é sua. E, claro, pode decorar como preferir.
— Ah… hum… eu… podemos deixar assim… por enquanto —
determinei por nem fazer ideia de como me comportar.
— Fique tranquila, Laura. —- O Dr. Estevão disse sem se importar
em ser íntimo na frente da assistente. — Ilma está aqui para ajudar. Ela sabe
que você não tem experiência.
— A senhorita pode contar comigo — a mulher disse sem deixar
dúvidas no seu tom de voz, da lealdade que dedicaria a mim. — Prometi ao
Sr. Quaresma que isso aqui não desandaria.
Apesar da sua altivez, notei o timbre emocionado em sua voz, e o
brilho lacrimoso no olhar. Confesso que meu coração aqueceu com tantas
pessoas dispostas a não deixar que o Sr. Quaresma fosse embora deste
mundo sem ter a certeza de que tudo ficaria bem. Tanta gente se esforçando
para que a essência daquele homem que durante alguns anos foi o meu
chefe, mas também meu amigo, que segurou a minha mão e me disse que
Sabrina me livrou de um encosto e que isso deveria ser considerado um ato
de amizade, mesmo que ele detestasse o encosto escolhido pela filha, não se
perdesse com filhos imaturos e manipulados.
E havia tanto naquilo que me deu a certeza de que, ainda que sem o
apoio da minha mãe, não havia nada de errado em atender o último pedido
de um homem que merecia tudo de mim.
Um dia ela entenderia. Um dia todos entenderiam. Por enquanto, eu
precisava apenas fazer dar certo. O resto aconteceria com o tempo.
Eu só esperava que não fosse muito tempo.
“Seja como for há de vencer o grande amor
que há de ser no coração
Como um perdão
Pra quem chorou”
O Grande Amor - Tom Jobim/ Vinícius De Moraes
CAPÍTULO 8
SABRINA
BERNARDO
Não foi a ideia maluca da minha irmã que me fez deixar a sala sem
dedicar qualquer agrado a Cindy, minha secretária, quase no papo para um
encontro, e seguir na direção da ala voltada para a nova CEO do nosso grupo
empresarial.
O que me fez de fato buscar por Laura foi a necessidade de constatar
os reais interesses de Fernando e do Dr. Estevão. Seriam eles tão canalhas
assim? E eu, seria? Sabrina não me obrigava a fazer o mesmo? Não. Eu tinha
um motivo justo e real, afinal de contas, Laura nem deveria ser citada no
testamento do nosso pai. Mas Fernando…
A verdade era que Fernando adorou aquela situação e faria o possível
para perpetuá-la, então, se ele agregasse à vontade de passar a perna em
Sabrina, a conquista de Laura e, por consequência pôr as mãos nas ações que
tirariam de vez minha irmã da jogada, ele teria a sua vingança perfeita.
O que não era justo comigo, que nada tinha a ver com aquela
confusão de casais.
Por ser o mais velho, e o mais desinteressado pela vida familiar, eu
pouco convivia com Laura nos dias em que ela frequentava a casa como
melhor amiga da minha irmã, no entanto, era fato que Sabrina paquerava
Fernando, mesmo que escondido do nosso pai, ou de todos os outros, uma
vez que seu sonho sempre foi gerenciar as empresas e relacionamentos entre
funcionários não era incentivado. Então, eu viajei e quando voltei minha
irmã namorava o ex-namorado da ex-melhor amiga.
Uma confusão dos infernos. Laura desapareceu da nossa casa,
Fernando se afastou de Sabrina e tudo corria com tranquilidade, ainda que
sob uma cortina de fumaça, até que nosso pai nos pregou aquela peça. Eu
entendia que ele não queria Vicente no meio das nossas empresas e que eu
não era uma pessoa confiável, mas daí a jogar nossa herança nas mãos de
uma menina que nada tinha a ver com nossos negócios passava de todos os
limites.
E, sem saber, papai deu a Fernando a vingança perfeita. Só que Laura
não sabia disso e agora a coitada seria disputada por dois canalhas que não
mereciam nem meio minuto da sua atenção. No final das contas Sabrina
tinha razão. Se eu não agisse logo, Fernando conquistaria Laura e
perderíamos tudo.
Foi com esta decisão que atravessei a sala de espera e sorri para as
duas mulheres que vigiavam a entrada.
— Judite e Margarete, as duas mulheres mais concorridas deste andar
— brinquei, elas sorriram, mas com um olhar repreendedor de Margarete,
Judite se corrigiu e me encarou como se soubesse que precisava defender
Laura. — Já conheceram Laura, digo, a Srta. Lacerda?
— Conhecemos sim, Sr. Bernardo. — Margarete informou.
Eu gostava daquela mulher. Gostava de olhá-la com seu rosto
redondo e olhos juntinhos como se estivessem pressionados pela caixa
craniana. Ela parecia um desenho animado e ainda assim, era agradável,
mesmo com a atitude de quem assumia a missão de me impedir de chegar
até Laura.
— E o que acharam?
— Bem… — Judite começou, mas Margarete a fez calar sem
precisar de uma palavra.
— Ela é jovem, educada e interessante — Margarete respondeu pelas
duas. — O que faz deste lado do andar?
— Ora, Margarete, não fale como se eu não vivesse do lado de cá.
Até pouco tempo era meu pai por trás daquela porta e sob o cuidado de
vocês.
No mesmo instante, as duas se renderam. Os olhos ficaram saudosos
e úmidos. E eu soube que nada mais me impediria de entrar.
— Vim saber se Laura precisa de alguma coisa. Crescemos juntos,
vocês sabiam?
— Sério? — Judite entrou na conversa e desta vez, Margarete não a
impediu.
— Sim, ela estava o tempo todo em nossa casa e nos últimos anos, ao
lado do nosso pai. — Evitei os detalhes, apesar de saber que em algum
momento, eles explodiriam como fofoca por todo o prédio. — E, na verdade,
com certeza Laura vai reformar a sala e deixá-la mais moderna, a cara dela,
não é? — Ambas concordaram, atentas as informações que eu passava sem
qualquer esforço. — Por isso me perguntei se ela não se importaria em me
dar os porta-retratos que estão sobre a mesa.
Elas sabiam bem de quais peças eu falava. Meu pai tinha retratos
nossos em todos os escritórios. Fotos de quando éramos crianças, das
formaturas, da mamãe…
— Oh, com certeza — Margarete disse, emocionada.
— Então, posso entrar?
— Ah, querido, precisamos perguntar a Ilma. Dr. Estevão continua lá
dentro — Judite me informou.
— Hum! E Dr. Fernando?
— Ele não apareceu por aqui ainda — Margarete respondeu com
curiosidade. — Mas vocês terão uma reunião em… — a mulher conferiu o
relógio de pulso que parecia minúsculo em seu braço rechonchudo, ainda
assim, eu gostava. — Vinte minutos.
— Sim, eu sei que Laura ficará ocupada o resto do dia, afinal de
contas é muita coisa para conhecer, não? — elas concordaram e com a
autorização de Margarete, Judite retirou o telefone do gancho e interfonou
para Ilma. — Eu só daria uma última olhada na sala — ressaltei para a
mulher que me encarou como uma mãe que quer colocar o filho no colo.
— Perdão, Sr. Bernardo, mas Ilma disse que a Srta. Lacerda quer
saber o assunto — Judite me avisou com certo pesar.
— Diga a ela. Os porta-retratos… — sussurrei à beira de perder a
paciência. Ela reproduziu o que eu disse, em seguida tapou outra vez o bocal
e se dirigiu a mim. — Ela pediu para o senhor aguardar.
Olhei para os lados sem lembrar da última vez que precisei aguardar
naquela sala, como uma pessoa comum, um simples diretor. Então forcei um
sorriso e fingi entender.
— Tudo bem.
Sentei no sofá do meio, bem no centro da sala, e aguardei. Em
instantes entraríamos em reunião e eu não teria outra oportunidade perfeita
como aquela. Na verdade, eu poderia voltar para a minha sala e recuperar
qualquer coisa depois, ou pedir para Cindy buscar, porém como convenceria
aquelas mulheres da minha boa vontade se desse as costas e desistisse?
Além do mais, Fernando não estava com Laura, como Sabrina
informou, desta forma, não havia nada para constatar. E apesar disso, eu me
mantive sentado naquele sofá por exatos quinze minutos, quando, enfim, a
porta se abriu, Ilma saiu com uma caixa de papelão na mão e se dirigiu até o
local onde eu estava.
— Bom dia, Sr. Bernardo — ela disse da maneira de sempre, fria e
seca. — São esses?
Colocou em meu colo a caixa para que eu constatasse que não seria
recebido pela nova CEO. Dentro dela diversos porta-retratos, arrumados
com cuidado. O que mais eu podia fazer?
— Sim, Ilma. Obrigado.
— Disponha.
Ela me deu as costas e voltou a se trancar sem me deixar entrar na
sala que pertencia ao meu pai, e que, por merecimento, deveria ser da minha
irmã. Encarei a porta até me dar conta de que as outras duas me olhavam
com pena. E eu não queria a droga da pena de ninguém.
Como provocação da vida, Fernando apareceu, cumprimentou as
mulheres e aguardou que estas avisassem a Ilma da sua presença. Enquanto
esperava, teve a cara de pau de me cumprimentar. Isso segundos antes de
informarem que ele podia entrar.
Ele podia entrar e eu não? Laura receberia aquele… aquele…
almofadinha e me dispensou sem nem sequer olhar na minha cara?
Levantei-me com a animação forjada, sorri para as mulheres e
mostrei a caixa, como se de fato estivesse satisfeito com a conquista.
— Obrigado, meninas!
— De nada — elas disseram ao mesmo tempo, com aquela
consternação que me incomodava.
Voltei para o meu lado do andar com a certeza de que não voltaria
atrás no plano. Laura não tinha direito de fazer aquilo comigo, não podia me
rejeitar sem ao menos me deixar tentar, ela não podia… não podia apenas
decidir pelo Fernando sem ao menos saber do que eu era capaz.
Então sim, era uma batalha de ego. Acima de quaisquer ações, de
patrimônio perdido, das loucuras da minha irmã. Eu conquistaria Laura,
porque não aceitaria perder para Fernando. Nunca mais.
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar
Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
O Amor Em Paz - Tom Jobim / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 9
LAURA
A reunião com os diretores só não foi mais fácil porque nela, Sabrina tinha
voz. Apesar de manter a posição de boa moça e de estar de acordo com a
escolha do pai, ela, em seu tom tranquilo, educado, no entanto assertiva, me
sabatinou. Queria saber dos meus planos, do quanto eu me inteirei das
empresas na semana antes da minha posse, o que eu achava sobre nos
desfazermos de algumas das empresas do grupo e reduzir ao máximo o
nosso time.
Confesso que ela acertou uma flechada em mim quando iniciou seus
argumentos. Eu fiquei igual um barco no meio do oceano à deriva. Não fazia
ideia de como se reduzia ao máximo uma empresa. Morria de medo da ideia
de demissão. Não conhecia como funcionava a venda de uma empresa como
a de pneus, não tinha ideia se de fato, ela seria ou não lucrativa e de que
forma ela impactava dentro do processo automobilístico como um todo.
A única coisa que eu sabia era que as concessionárias eram o carro
chefe do grupo. E eles tinham de tudo, de todas as marcas relevantes, com
nomes diferentes, estratégias de marketing e diversas equipes que
enfrentavam a outra como em uma competição. E eu não fazia ideia se
aquilo era ou não interessante para ser estimulado.
Perdida. Esta era a palavra exata para mim no início daquela reunião.
Mesmo com o apoio dos advogados, com a maneira como, de certa forma,
me receberam com entusiasmo, havia Sabrina que deixava claro que seu
único e exclusivo objetivo era deixar que todos percebessem a minha
incapacidade para gerir aquele cargo e aquilo me matava por dentro, porque
de fato, não havia qualquer aptidão em mim para assumir tal função e apesar
disso, se não fosse pelo pedido do Sr. Quaresma, naquele instante, seria pela
questão pessoal.
Sabrina roubou o homem com quem acreditei que um dia me casaria.
Mas este não era o meu combustível para fazer aquela loucura dar certo. No
final das contas, com as investidas descaradas do Vicente, eu percebi que ele
não seria legal para ninguém, nem para mim e nem para ela, e durante anos
me dividi entre a vontade de mostrar a minha ex-melhor amiga quem era o
homem com quem ela casou ou assistir de camarote o quanto ela era imbecil
por acreditar nele.
Durante aquela reunião, os ataques disfarçados de interesses da filha
caçula do Sr. Quaresma, se tornaram meu combustível. Eu não tinha o
preparo necessário, não tinha a capacidade intelectual dela para assuntos
administrativos, nem a sua visão de negócio, porém, não me deixaria
intimidar. Uma vez eu li em um livro, que quando você não tinha alguma
informação ou tino para algo, que criasse para si a melhor equipe possível,
que pudesse te fornecer toda e qualquer informação para que acontecesse.
Ninguém cresce só. Por isso, após minutos de perguntas sobre as
quais eu não conhecia as respostas, resolvi que aquela seria a minha
estratégia. Ergui a mão quando Sabrina abriu a boca para mais uma das suas
perguntas constrangedoras e fiz com eles, os grandes diretores, o que fiz com
os funcionários um pouco antes.
— Como puderam perceber, não tenho todas as respostas que a
nossa presidente, Sabrina Quaresma, busca. Mas eu sei que vocês podem tê-
las. Que muitos possuem opiniões que podem engrandecer o nosso trabalho.
Não vejo essa sala como setores individuais e indiferentes, eu nos vejo como
um imenso quebra-cabeça onde cada peça conta. Por isso, o intuito desta
reunião não é apenas nos conhecermos assim, em uma mera apresentação.
Ilma?
A gentil senhora que se prontificou a me ajudar naquela empreitada
se posicionou ao meu lado no instante que a chamei.
— Eu gostaria de organizar um dia em cada setor dirigido por esses
gestores. Assim que puder, verifique com cada um deles a melhor data.
Lógico que não precisam dedicar todas as suas horas para a minha estadia,
porque pretendo conversar com todos os funcionários e entender o papel
deles aqui dentro, ouvir o que cada pessoa tem a dizer, por isso…
— Mas isso é um absurdo! — Sabrina se prontificou a falar. — Sabe
quanto tempo levará este esquema? Somos muitos e de muitas empresas.
— Eu entendo, Sabrina, e sei que você tem pressa para algumas
questões. Porém creio que seu pai também tinha planos e pelo que entendi,
eles batem de frente com os seus. Antes de qualquer decisão, preciso
entender o esqueleto desse grupo, ouvir de quem está perto, mas também de
quem está longe. Inclusive, ah… Perdão, mas não gravei o seu nome, o
senhor, diretor de TI do grupo.
— Sérgio Marcondes, Srta. Lacerda — o homem de meia idade, bem
conservado e bem vestido, se apresentou sem que lhe parecesse ofensivo eu
não decorar o nome dele. Ainda assim, vi quando Sabrina balançou a cabeça
em desaprovação.
— Sr. Marcondes. Existe no grupo algum canal de comunicação
entre o meu cargo e os funcionários, no geral?
— Hum, não — mas um sorriso de interesse surgiu em seus lábios.
— Seria possível acrescentar um canal de comunicação mais direto?
— Uma posição como a sua exige bastante do seu tempo para gastá-
lo com conversa com o chão da fábrica — Sabrina interferiu.
— Bom, eu tenho duas secretárias e uma assistente. Há alguma
chance de termos algo que passe antes por elas e após o filtro chegue até
mim?
— Poderíamos criar — ele não se importou com a intromissão de
Sabrina e se interessou pela minha ideia. — Inclusive, não demandará quase
nada do nosso trabalho. O que tem em mente? Apenas a sede ou todos os
grupos?
— Se conseguir ativar o filtro, o ideal seria todas as empresas.
— Sem problema. Posso ser o primeiro em sua agenda?
Olhei para Ilma que abriu a agenda em seus braços e verificou.
— Amanhã. Reservei uns dias de adaptação — ela informou baixo
para que eu entendesse a sua intenção.
— Ótimo. Amanhã então estarei com o Sr. Marcondes. Ilma ajustará
a agenda com os demais. Não se preocupem em agendar imediatamente,
pedirei a ela que vá em cada sala para que possam ajustar o dia sem que o
trabalho seja interrompido. Agradeço a presença de todos.
Eles levantaram, alguns, os mais próximos apertaram a minha mão e
desejaram as boas-vindas, outros saíram com pressa, como se precisassem se
organizar para a minha visita. Eu só percebi a presença de Bernardo ao meu
lado quando não poderia fazer nada para evitá-la.
— Podemos começar hoje, se sua agenda estiver livre para o restante
do dia. Pelo que entendi, a ideia é conhecer todos os setores, então, eu sou o
diretor comercial. Trabalho diretamente com as questões das vendas e
necessidades de cada empresa. Seria bom conhecer os números e se
familiarizar, além de, claro, entender as prioridades.
— Você é o diretor comercial? — Expressei minha dúvida como se
aquilo não fosse algo possível para alguém como Bernardo, afinal de contas,
ele era bacharel em Direito, pois não tinha OAB.
— Sim — Ele sorriu como se contasse uma piada, o que me deixou
ainda mais assustada. — Não é algo tão complicado. Cada empresa possui o
seu diretor comercial regional, então o meu trabalho é fazer uma síntese dos
deles e encontrar o ponto chave para cada ponto que precise de melhoria.
— Você é o diretor comercial? — repeti sem acreditar naquela
hipótese. Como o Sr. Quaresma deu um cargo daqueles para alguém como
Bernardo?
— Hum!
Ele coçou atrás da cabeça e pôs uma mão na cintura, o paletó revelou
sem qualquer sacrifício o corpo bem trabalhado que eu já conhecia, ainda
que em rápidas passagens pela casa.
— Algum problema?
— Não. Na verdade não. Ilma?
A minha assistente se aproximou com eficiência, a agenda aberta
para aquele dia.
— O senhor Bernardo Quaresma deseja que iniciemos hoje a nossa
visita pelo seu setor. O que acha, temos tempo?
— Na verdade não agendei nada para hoje — ela revelou, sem se
opor ao que Bernardo faria com a informação. — É o seu primeiro dia, por
isso achei que quisesse de fato aprender mais sobre as empresas.
— Ótimo! — ele disse com um desinteresse fingido.
— Na verdade, eu pensei em sugerir que começássemos logo — Dr.
Fernando interferiu ao se posicionar ao lado de Bernardo.
Olhei os dois homens. Lindos na mesma medida e completamente
diferentes. Bernardo com seus fios escuros e olhos azuis que tiravam
qualquer pessoa do sério. Lindo como nenhum homem merecia ser, pois não
havia ninguém mais imbecil para lidar com a beleza do que o homem. E Dr.
Fernando, que, apesar de toda a sua formalidade, parecia um príncipe com
seu cabelo loiro nada comportado e olhos verdes.
— Você passou a semana com Laura, Fernando, não fez o seu
trabalho? — Bernardo rebateu a interrupção do colega.
— Eu orientei Laura sobre as empresas, mas ela quer conhecer cada
setor, ouvir os funcionários e…
— Eu entendi, mas também compreendi que cheguei primeiro — ele
disse com a sua nada elegante displicência e que ainda assim… não,
Bernardo tinha uma placa de perigo piscante na testa.
— Se me permite opinar — Ilma interferiu. — O setor comercial é o
mais importante agora. Conhecer como as empresas funcionam, as vendas e
tudo mais, acrescentará nas suas colocações dos demais setores.
— Ouça a voz da sabedoria — Bernardo brincou, porém eu não sorri.
Independente disso, Ilma conhecia cada detalhe daquela história e se me
dizia que passar um bom tempo com Bernardo era o melhor, então eu
deveria segui-la.
— Certo. Começamos com o setor comercial. Veja uma data que
caiba na agenda do Dr. Fernando, por favor.
Eu tinha certeza de que meu novo amigo não ficaria satisfeito com
aquela arrumação, afinal de contas, ele e o pai tomaram para si a missão de
me defender daquela família. Contudo, qual mal havia em estar com
Bernardo, dentro da empresa, com outras pessoas por perto? E eu teria
mesmo que enfrentar aquela parte da história em algum momento. Sem
contar que meu maior medo não era estar com o filho do Sr. Quaresma e sim
com o genro.
— Tudo bem. Podemos começar agora, se quiser — ele avisou com
um sorriso que parecia verdadeiro.
— Certo. Ilma?
A mulher fechou a agenda e concordou, como um soldado pronto
para a guerra.
E era isso, uma guerra em que cada batalha precisava de uma
definição. A última, com certeza, seria Sabrina, quando eu já tivesse todas as
respostas e certezas. Eu não faria um trabalho incompleto. Ela não perdia por
esperar.
BERNARDO
Não posso dizer que foi uma tarde ruim ou estranha. Laura, apesar de
tudo, era uma pessoa da minha convivência. Pouca convivência, mas… eu
não me sentia intimidado ou ansioso para convencê-la de nada. Foi como
conversar com alguém que faz parte da minha vida há anos. Um colega
antigo da escola que passou para me visitar e eu quis apresentar o meu
trabalho.
Laura sentou na cadeira em frente à mesa e aguardou que eu virasse
o computador para que ambos pudéssemos analisar o sistema que interligava
as empresas. Se fosse o meu pai ainda na posição de CEO não iria à minha
sala, a não ser que seu intuito fosse puxar a minha orelha. Todo e qualquer
assunto tratávamos na sala dele, mas Laura queria conhecer tudo, se cercar
dos melhores profissionais para formar a sua equipe de confiança e eu não
podia ficar de fora dessa, até porque Fernando já era membro certeiro.
Observei a garota de cabelos castanhos pesados, feições finas e com
maquiagem leve voltar a sua atenção para a tela do computador. Ela era
bonita. Um pouco mais de produção ajudaria, mas, ainda assim, bonita.
Usava roupas caras, do nível que necessitava após a herança, constatei e,
sem conseguir evitar, associei a mudança a Fernando. Incomodou-me a
ideia.
Engoli essa com dificuldade. Não que eu quisesse destruir Laura,
mas… meu pai vacilou quando deixou metade de tudo para ela. Bastava que
ele colocasse uma cláusula no testamento com um prazo para que
tomássemos as medidas corretas. Puxei o ar com força quando ela me
encarou diante do meu silêncio.
A luz sobre nós refletiu em seu olhar e eu não deixei de admirar a
mudança de cor, do castanho para o âmbar, em cílios longos de forma
natural. Quase ri quando pensei em Sabrina, que fazia alongamentos porque
tinha cílios pequenos e ralos. Laura era toda natural e conseguia ser bonita
assim, sem esforços.
— Hum! — Limpei a garganta antes de começar. — Esse sistema é
novo. Cada setor, função, gerente e diretor tem acesso conforme a
necessidade. No meu caso, tenho acesso a tudo. Então…
Digitei minha senha e a tela escura com letras brancas e vermelhas
abriu o sistema. Laura se aproximou mais, com interesse, o rosto próximo ao
meu e um perfume que eu desconhecia, mas deixava a aproximação
agradável.
— Como funciona? — ela disse sem desviar a atenção.
— Vamos lá. Cada empresa do grupo tem ações diferentes, porém, no
final, para o meu setor, tudo se resume da mesma forma, o que temos, o que
vendemos e como podemos melhorar. Eu tenho os analistas, eles avaliam os
resultados e comparam com os meses anteriores, da mesma maneira como os
anos. Então uma vez por semana nos reunimos para avaliarmos de que forma
a empresa precisa se ajustar. Veja aqui.
Apontei na tela o nome de uma das empresas, uma concessionária
mais antiga e sobre a qual tínhamos maiores certezas. Cliquei no ícone e
uma tela abriu demonstrando as filiais daquela marca.
— Cada filial do país precisa gerar um relatório diário. O setor
comercial deles faz o balanço do que vendemos naquele dia, fatura o carro e
envia um relatório para a fábrica e… não sei se você sabe, mas não somos a
fábrica.
— Eu sei. — Ela revirou os olhos e eu acabei sorrindo.
Ninguém naquela empresa demonstrava atitudes desinteressadas e
infantis, mas Laura não cresceu nem estudou para estar naquela posição, por
isso a naturalidade com que ela encarava cada detalhe chegava a ser
extraordinária.
— Por isso precisamos enviar um relatório diário para a fábrica.
Funciona como se fosse uma prestação de contas e em alguns casos, como
pedidos também, uma vez que os estoques se ajustam conforme as vendas. A
fábrica recebe o relatório, uma vez por semana confirma comigo, eu dou o
ok e as coisas acontecem.
— Você simplesmente concorda com cada venda ou compra?
— Não. Quando chega até aqui é porque já está definido. Cada
concessionária possui um diretor comercial e este precisa checar as
informações. Um carro vendido, em estoque, só nos mostra quanto entrou,
quanto é nosso e quanto é da fábrica, a margem de lucro, e se há a
necessidade de ajuste de estoque. O diretor comercial do local já nos manda
o parecer antes, por isso analisamos todo o material para uma vez na semana
acertarmos tudo.
— Entendi — ela anunciou com mais convicção. — Quero conhecer
os analistas.
— Claro, já pedi para Cindy avisar. Estaremos com eles logo após o
almoço. Enquanto isso…
Abri cada aba, mostrei como cada empresa funcionava, cada produto
que tínhamos, de que maneira era a relação com cada fábrica específica e no
final, quando Laura não demonstrou medo em suas perguntas e em seus
entendimentos os funcionários da sede ligado ao comercial, eu me perguntei
porque nunca fizemos aquilo. Por que Sabrina, apesar de conhecer os
detalhes daquele grupo empresarial, não fazia questão de interagir com as
pessoas que cuidavam daquilo?
Porque Laura, apesar da sua visível inexperiência, ouvia coisas que
de fato ganharam a minha atenção. Coisas que as pessoas da minha equipe
não conversavam comigo, ou que eu, por não me sentir interessado a
trabalhar mais, não fazia questão de perguntar. Todos eles demonstraram
uma preocupação com a estagnação profissional, apesar de termos um
sistema de crescimento, além de sentirem medo das demissões que estavam
nos planos de Sabrina, mesmo nenhum deles tendo certeza.
Quando voltamos ao elevador para irmos ao nosso andar, Laura se
trancou em seus pensamentos. Carregava nas mãos um monte de anotações e
focava nelas.
— Bernardo, no meu login tenho acesso aos documentos que você
me apresentou? — ela perguntou quando as portas se abriram.
— Sim. Meu pai costumava analisar o resumo apresentado
semanalmente, como eu te disse, após os analistas e…
— Sim, sim — ela me cortou, ainda pensativa. — Eu só queria
analisar alguns detalhes. Para acessar como faço?
Olhei em meu relógio de pulso e me dei conta de que eu planejava
sair uma hora mais cedo naquele dia. Era a despedida de solteiro de um
amigo e aconteceria em uma casa de stripper, o que me animou durante toda
a semana. Mas quando voltei os olhos para Laura e recordei as palavras da
minha irmã, tive a certeza de que precisava ficar. Se não a ajudasse como ela
queria, Fernando assumiria o meu lugar e eu não podia jogar com a sorte.
— Olha, se quiser eu posso te mostrar.
— Ótimo!
Ela me deu as costas e seguiu em direção a sua parte do andar.
Depois olhou para trás como se não compreendesse a minha hesitação.
Naquele mesmo dia ela me impediu de entrar em sua sala, o que pretendia
daquela vez? Levar o computador até a de espera?
— Você não vem?
Paralisado, encarei a mulher à minha frente. A roupa, apesar de
formal e de marca, a deixava… interessante. Não escondia suas curvas, as
quais eu sempre reparei, mas não me atrevi a eliminar as barreiras.
Certo, era hora de assumir que Laura era bonita e seduzi-la não me
daria uma dor de cabeça.
Foi com este pensamento que caminhei em sua direção, disposto a
passar quantas horas ela precisasse do meu dia ao seu lado.
"Morro pede passagem
Morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar"
O Morro Não Tem Vez - Tom Jobim / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 10
LAURA
Com a cabeça atordoada com bastante informações, não pensei duas vezes
quando pedi a Bernardo que me ajudasse um pouco mais. Ele era o inimigo,
eu sabia, Fernando sabia e até mesmo Ilma sabia. A prova foi ela aguentar o
passeio pelo setor comercial ao meu lado. Ainda assim, havia tanto a
aprender, a entender… e ele estava certo, o comercial era de fato o primeiro
passo. Eu tinha que entender o que funcionava e o que não funcionava
dentro daquela empresa.
E, constatar que reduzir era um passo necessário doeu o meu
coração, mesmo que eu não tivesse contato com o RH, nem com qualquer
outro setor ou nenhuma das empresas. Só de conhecer alguns funcionários
da sede, eu soube que faziam trabalhos desnecessários que podiam, sem
qualquer dificuldade, serem feitos por um só. Além disso, funcionários como
Cindy, secretária de Bernardo, que não faziam ideia do seu papel dentro da
empresa.
Ficou claro que a garota fora escolhida por outros atributos que não
os que deveriam constar em seu currículo. O Sr. Quaresma tinha razão, seu
filho mais velho, o que deveria ter paixão pelo que ele construiu, o que
deveria ser o maior interessado no sucesso das empresas, fazia daquilo o seu
parque de diversões.
Mas, sem pensar no problema, aceitei que Bernardo entrasse na
minha sala e não recusei quando ele puxou a cadeira para o meu lado e
começou a trabalhar no computador que seria o meu. Ilma me informou a
senha, eu digitei com o maior cuidado para que ele não visse e em seguida
iniciamos o trabalho.
— O que deseja ver?
— Tudo. Vamos começar do zero. Quero verificar os relatórios
diários e os enviados pelos analistas.
Aquele foi o único lugar em que constatei precisar de mais pessoas.
Três analistas para uma imensidão de empresas justificavam o clima tenso e
conturbado entre eles. Assim que estivesse com todas as informações nas
mãos, eu faria o meu próprio relatório com todos os pontos que achei
necessário e Sabrina veria que não seria tão fácil me derrubar. Pelo menos
não antes do tempo.
— Você viu algo que chamou a sua atenção? — ele questionou,
preocupado pela primeira vez no dia.
— Na verdade, tudo chamou a minha atenção. Sabrina quer liquidar
as lojas de pneus, mas eu preciso entender de que forma uma empresa que é
lucrativa pode não ser desejada por um grupo empresarial.
Ele se ajeitou na cadeira e se aproximou um pouco mais.
— Não é uma questão de lucro. Essas lojas apesar de serem
lucrativas na primeira análise, caem a cada ano. Os estudos indicaram que as
pessoas preferem comprar pneus ou pela internet ou em lojas de
departamentos. Existe ainda uma parcela de cliente que escolhe o pneu que
seu mecânico indica e seria mais fácil transformarmos em distribuidora para
atingir esses locais do que manter uma loja física.
— Mas as fábricas são as distribuidoras — argumentei. — Não
teremos preços para competir.
— Exato. Por isso a decisão está em aceitarmos ou não a proposta da
fábrica para sermos os distribuidores.
— E as lojas fechariam. Quantas pessoas seriam demitidas?
— O RH com certeza terá uma projeção. Quando acontecem coisas
desse tipo dentro de uma empresa de grande porte, deixamos primeiro que
alguns funcionários escolham a demissão voluntária. Pagamos tudo o que é
de direito deles. Os aposentados sempre são o alvo, pois eles precisam dar a
chance para os que ainda não garantiram o benefício. Alguns funcionários
são reaproveitados para outras empresas do grupo, conforme a
disponibilidade e, principalmente, a capacidade de cada um. Só depois disso
e com um planejamento específico, acontecem as demissões mais difíceis.
— Entendi. Então vamos ao relatório.
Fiz questão de não encarar aquele par de olhos azulados que sob a
luz pareciam mais escuros e de não me deixar levar pela voz mansa e
colaborativa, nem pelo sorriso educado e gentil. Bernardo era um lobo em
pele de cordeiro que o Sr. Quaresma deixou de herança para mim.
Onde eu estava com a cabeça quando me deixei convencer a aceitar
aquela loucura?
BERNARDO
— Entendi. Então vamos aos relatórios — ela solicitou com uma expressão
estranha. Uma pequena ruga entre os olhos que deixava claro que o assunto
incomodava.
No mesmo instante pensei em Sara, na maneira como minha irmã
querida a demitiu, por puro e simples deleite em sacanear Laura. De que
maneira aquilo impactaria na decisão da nova CEO na empresa?
Enquanto abria e fechava as abas, deixava que Laura as analisasse,
eu pensava no quanto deveria ter sido mais enérgico com a Sabrina ao invés
de deixá-la assumir tudo e me esconder na vida que eu queria. Se ela tivesse
o costume de me procurar antes de qualquer decisão, eu teria dito que Sara
era como da família, que demiti-la seria como cortar o último fio que
tínhamos com o nosso pai, com nossa mãe e nossa infância. Mas minha irmã
entendeu que eu concordava com tudo quando sinalizei que concordava com
a venda da casa, ainda que me incomodasse tal ideia.
— Com licença — Ilma entrou na sala após bater. — A senhorita
precisa de mim?
Laura a encarou, depois fez o mesmo com o relógio digital sobre a
mesa e se espantou com o horário.
— Você precisa ir, não é mesmo? — ela disse como se aquela
constatação também a colocasse para fora. Mas era a chance que eu tinha.
— Sim — Ilma disse com delicadeza, um tanto consternada por
precisar deixar Laura sozinha, comigo, no seu primeiro dia de trabalho. —
Na verdade, é o horário de todos.
— Certo — a garota comentou, confusa. — Eu só queria…
— Se pretende aprender mais sobre as empresas, eu posso ficar com
você — sugeri, sem deixar que minha voz entregasse o plano. Ilma ergueu
os olhos por sobre os óculos e me deu aquele olhar de quem desfaz da minha
oferta.
— As secretárias conseguiram organizar a agenda com os encontros
solicitados — a assistente anunciou sem sair do seu tom profissional. —
Mandei um e-mail com as informações e também coloquei um alerta para
que saiba trinta minutos antes, com quem será e o que precisará para cada
encontro. Fiz um resumo, se não se importar com a intromissão.
— Não, na verdade eu agradeço muito, Ilma. — Laura não deixava
de esconder o quanto cada detalhe a deixava nervosa e era neste ponto que
eu deveria focar para conseguir o meu intento.
— A senhorita ficará aqui?
— Eu acho que… Carlos precisa ir, certo?
— Com certeza ele esperará o tempo necessário — Ilma pontuou,
mas sem deixar de demonstrar que o ideal era Laura não ficar sozinha
comigo.
— Ou, eu posso te levar quando acabarmos aqui. — De novo sugeri
e recebi em troca o olhar acusador de Ilma. — Carlos não deveria esperar
tanto.
— Vamos demorar muito ainda? — Laura se voltou para mim com
aquele jeito simples e espantado, mas que ao mesmo tempo deixava claro
que desejava aprender.
— Um pouco, se quiser mesmo ter toda noção do setor. Amanhã a
reunião será na TI, certo? — ela concordou após um breve olhar para a
assistente. — E depois, pelo que Ilma informou, um dia com cada direção.
Mas se quiser encontrar um tempo para me encaixar na agenda… ou eu
posso aparecer todas as vezes que sentir alguma dúvida.
Ela encarou a tela, ciente de que demoraria a ter todas as respostas,
depois suspirou.
— Se não for incômodo, avise a Carlos que não precisa aguardar por
mim.
Ilma concordou sem contestar, como sempre fazia. A mulher saiu em
direção a porta, mas voltou em seguida.
— Ah, o Dr. Fernando está aqui fora — informou.
Puta merda! Fernando não nos deixaria em paz nem por um segundo.
— Mande-o entrar. Obrigada, Ilma. — Laura sorriu com genuinidade
e aquele sorriso me pareceu como um raio de sol.
Caralho, o que eu fazia? Não deveria admirar aquela garota, afinal de
contas, eu estava ali para seduzi-la e tomar de volta a minha herança.
Fernando entrou na sala como se soubesse da minha presença, sem
demonstrar surpresa ou desconforto.
— Vai virar a noite no trabalho logo no primeiro dia?
Ele sentou na cadeira da frente e Laura suspirou alto ao jogar a franja
crescida do cabelo para trás.
— Eu preciso compreender o funcionamento de cada empresa —
confessou.
— Imagino que tenha encontrado alguns problemas.
— No meu setor? Não. — Eu me intrometi, certo de que ele queria
queimar o meu filme.
— Na verdade, eu quero entender essa ideia de reduzir a empresa e
tudo o mais que Sabrina levantou hoje na reunião.
Fernando fez uma cara de quem se importava com a questão. Até
parece que ele se importava. O que ele queria era contestar Sabrina e fazê-la
pagar pelo abandono, assim como imaginávamos que Laura faria.
— Para ser bem sincero, ela tem razão em alguns pontos. Com
certeza, nesse seu primeiro contato, você descobriu funções que poderiam
deixar de existir sem nos causar transtornos.
— E também pessoas inadequadas para a função — Laura contribuiu
com um olhar crítico para mim.
— Eu? — questionei, ofendido.
— Não. Na verdade, você foi uma caixa de surpresa — ela confessou
com um sorriso verdadeiro, que me fez encará-la com admiração. — Mas
sua secretária…
— Ah, Cindy? — Cocei a cabeça e não soube como justificar a
minha atração por mulheres gostosas e sem muito intelecto. Fáceis de levar
para a cama e descartar sem qualquer peso na consciência.
— Bom, Laura, eu tenho que ir — Fernando se adiantou. — Precisa
de mim para alguma coisa?
— Eu acho que…
— Para questões comerciais? — Tomei à frente e ridicularizei a
proposta. — Não esquente a cabeça, Fernando. Você já tem o seu dia
agendado.
Mas o advogado sequer me deu atenção, ele olhou para Laura para
ter certeza de que era uma boa ideia ela ficar sozinha comigo depois do
expediente e após o que me pareceu uma infinidade de tempo em que Laura
decidia se deveria ou não ficar, ela soltou outro suspiro.
— Eu preciso mesmo entender isso aqui.
Com deleite, assisti Fernando concordar e em seguida, se despedir.
No momento que a porta bateu, escondi meu sorriso sacana.
LAURA
CAPÍTULO 11
BERNARDO
CAPÍTULO 12
SABRINA
LAURA
— Uma bela xícara de café e tudo entra nos eixos — Ilma comentou
ao colocar a xícara fumegante à minha frente.
Foi um único dia à frente das empresas e eu já me sentia no limite
das minhas forças. Trabalhei até tarde e quando voltei para casa, não
consegui relaxar. Além do medo de errar e destruir tudo o que o Sr.
Quaresma confiou a mim, havia a insegurança de não saber em quem
confiar.
Sabrina namorou o Dr. Fernando antes de roubar o meu namorado.
Dr. Fernando foi a pessoa que mais esteve ao meu lado desde que aquela
loucura toda começou, mesmo contra Sabrina e Bernardo, o que me levava a
questionar os seus motivos. E lógico, havia Bernardo com as suas duas
piscinas azuis que brilhavam em minha mente como se eu fosse uma
adolescente romântica e imbecil. Por que ele tinha que ser tão bonito? E por
que precisava ser tão ordinário?
— A reunião acontecerá em uma hora. Tomei a liberdade de trazer a
ficha de todos do setor, dessa forma a senhorita poderá ter uma noção de
qual direção seguir.
— Obrigada, Ilma! Eu nem pensei nisso, ainda bem que você existe.
Ela sorriu, satisfeita, porém, sem perder a postura profissional.
— Bom dia! — fomos surpreendidas pela voz marcante de Vicente.
— Sr. Vicente, como… — Ilma começou, mas a minha rebeldia me
fez ser mais rápida.
— O que faz aqui, Vicente?
— Não posso parabenizar a nova CEO do grupo?
Aquele imbecil teve a coragem de entrar na minha sala, com aquele
sorriso escroto, com sua falsa amabilidade, para quê? O que ele acreditava
conseguir com aquilo além de mais repulsa da minha parte?
— Você pode marcar um horário para isso. No momento estou
bastante ocupada — rebati com segurança.
Lutei contra toda a raiva que se avolumava em mim. Não deixaria
que Vicente me tirasse dos eixos. Ele não era a minha prioridade.
— É, eu sei. Você vai para o setor de TI, não é mesmo?
Ele continuou. Ignorou qualquer alerta de que não era bem-vindo.
Ilma colocou o material sobre a mesa e aguardou.
— Na verdade… Eu gostaria de conversar com você, Laura —
confessou.
— Agende com Ilma. — Puxei para mim os papéis que minha
assistente me entregou e tomei um longo gole do café para que ele
entendesse de uma vez por todas que não teria espaço em minha vida.
— Eu agendaria se fosse um assunto profissional, mas é pessoal.
Ergui as vistas e encontrei Ilma sem saber o que fazer, mas com a
agenda aberta em suas mãos. Em seguida encarei Vicente, que se mantinha
impassível, como se tivesse a certeza de que eu o atenderia.
— Pessoal?
Ele concordou com a cabeça, sem nada acrescentar.
— Que assunto pessoal eu tenho para tratar com você, Vicente?
— Sabrina não quis ser ela a estar aqui — ele disse sem o sorriso
escroto, sério.
Certo. A questão não era Vicente em minha sala e sim Sabrina não
querer estar ali para me dizer algo de cunho pessoal. E eu podia imaginar o
que ela pretendia. Com certeza algum acordo relacionado ao meu cargo, a
herança e tudo o que o próprio Bernardo tentou fazer. Sabrina era muito
imbecil de achar que enviar o marido, o cretino traidor, para ajustar aquela
questão, ajudaria.
Não sei dizer ao certo o que me impeliu a aceitar aquela história, se
foi a ideia de que Sabrina não tinha culhões para me encarar e implorar para
que eu devolvesse a sua herança e por isso enviava o marido, o que só a
tornava uma pessoa pior para mim, ou se o fato de ela acreditar que colocar
o Vicente à frente amenizaria a situação.
Levantei da minha cadeira, dei a volta na mesa e parei de frente ao
meu ex-noivo. Encarei seu rosto bonito e me perguntei se era só aquilo
mesmo, se tudo o que acreditei sentir durante anos, toda a dor que me
limitou por tanto tempo, se resumia em um rostinho bonito, pois ele não
tinha nada além disso para oferecer.
Vicente continuou impassível, sereno.
— Tudo bem. Você tem quinze minutos. Ilma, pode nos deixar
sozinhos, por favor?
A mulher não me questionou, mas encarou Vicente como se o
alertasse de que apenas uma porta os separava. Sorri de leve, satisfeita em
saber que Ilma também não aprovava aquele imbecil. Não me dei ao
trabalho de convidá-lo para sentar. De braços cruzados aguardei que
passasse a mensagem que a esposa enviou, mas não me preparei para o que
aconteceria.
No instante em que a porta fechou, Vicente me tomou nos braços e
me apertou forte. Eu sequer tive tempo ou reação para evitar o ataque.
— Que saudade! — Ele disse com a voz rouca, o corpo todo colado
ao meu, como se fôssemos amantes. — Que saudade de você, Laurinha.
— Vicente, você…
Mas eu não consegui evitar a boca que tomou a minha em um beijo
desesperado. O choque me paralisou por alguns segundos, porém, em
seguida, a fúria me dominou. Mordi os lábios que me ofereciam um amor
que não existia, a falsidade disfarçada de beleza. Vicente gemeu e se afastou
o suficiente para que eu o acertasse com um tapa no rosto.
Apesar disso, eu tinha total consciência de que não seria o suficiente.
Não era a primeira vez que ele tentava me beijar, assim como não era a
primeira em que eu lhe acertava com um tapa. Vicente não tinha limites.
— Seu cretino! — rosnei baixo sem entender porque não armei um
escândalo naquele momento. — Fique longe de mim ou farei com que sua
esposa saiba…
— Laura! — Ele me segurou pelos ombros e me sacudiu como se
precisasse que eu prestasse atenção nele. — Você sabe que sou louco por
você.
— Louco por dinheiro, isso sim — rebati com um empurrão que o
afastou outra vez. — Fique longe ou eu vou gritar e toda a empresa saberá o
que você faz.
Desta vez ele não tentou se aproximar. Vicente fez uma cara triste e
colocou as mãos nos bolsos da calça social que ostentava por ser de ótimo
corte e com certeza mais cara do que ele poderia pagar se não fosse por
Sabrina.
— Acabou, Laura. Há meses eu tento te dizer isso. Acabou.
— Acabou o quê?
— O meu casamento. — A bomba que ele jogou para mim por pouco
não explodiu em meu colo.
— E o que eu tenho com isso? Não sou advogada, não realizo
divórcios, nem sou terapeuta, portanto, não faço terapia de casais. — Ele riu
um pouco e deu um passo perigoso em minha direção.
— Você sempre foi tão divertida. — Vicente tentou me tocar, o que
me fez recuar. — A questão é que você está completamente inserida nisso.
— Eu? Tá doido?
— Doido por você.
— Pelo amor de Deus!
— Eu errei, Laura! Errei feio com você, errei com a Sabrina também,
mas o que você queria que eu fizesse? Nós dois vivíamos na luta e qual a
chance de vencermos? Sabrina sabia disso tudo e usou as melhores cartas
para me seduzir. Não, eu não vou culpar a Sabrina porque não sou nenhum
menino — admitiu como se conversasse consigo mesmo.
Então ergueu os olhos para o teto, puxou o ar com força e quando o
soltou parecia um homem arrasado.
— Só não posso mais continuar com isso. Pedi o divórcio ontem.
Sabrina está arrasada, mas como eu conseguiria estar aqui com você, todos
os dias e manter esse casamento que não existe mais?
— Vicente… — rosnei, enfurecida demais para me controlar. —
Saia, agora!
— Laura, espere… eu…
— Saia! — gritei. No mesmo instante a porta se abriu e Ilma se
interpôs como um guarda para levá-lo para longe de mim.
Ao invés de se intimidar com o meu estado ou com a presença da
minha assistente, ele se aproximou, os olhos focados nos meus, a expressão
séria. A minha vontade era de estapeá-lo, e estapeá-lo até que seu rosto
tivesse a marca de todos os meus dedos, mas Vicente agiu antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa.
— Não se iluda com Bernardo. Ele se juntou a Sabrina para te
derrubar. Eles planejam que Bernardo te seduza e que, depois de tê-la nas
mãos, consiga de volta o que acreditam que roubou deles. Sei que você não
acredita em mim, nem poderia, mas se precisa de uma prova, se há algo que
eu possa fazer para que confie em mim, então deixe Bernardo se aproximar e
descubra por si só o quanto esses dois sabem ser sórdidos.
Vicente, sem me dizer mais nada, saiu da minha sala. Ilma o
acompanhou e eu quase desabei quando me vi sozinha. O que foi aquilo?
"Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela"
O pato - Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 13
LAURA
CAPÍTULO 14
LAURA
Quando cruzei a linha entre a minha porta e a sala que eu ocupava devido a
armação do Sr. Quaresma contra os filhos, eu tinha uma certeza: demitiria
Bernardo e colocaria Sabrina no seu devido lugar. Ensandecida, culpada por
ser tão tola e me deixar enredar por aqueles abutres, perdi toda a minha
capacidade de ser generosa e, pelos segundos em que me permiti
enlouquecer, agradeci pela herança e pela condição de tirar aqueles dois da
minha vida.
Mas Fernando me puxou de volta à realidade.
— Laura?
Ele me chamou quando fechou a porta atrás de si. Eu andava de um
lado para o outro, impaciente, contava cada segundo que antecedia a
chegada de Bernardo.
— Laura?
Ele parou na minha frente e, com as mãos nos meus ombros, me
obrigou a escutá-lo.
— Eu tenho um plano. Antes de deixar Bernardo entrar, ouça o meu
plano.
Puxei o ar com força e encarei Fernando sem decidir entre escutar o
que ele tinha em mente ou só me deixar levar pelos instintos e cair pra cima
de Bernardo.
— Sente um pouco — ele pediu no mesmo segundo em que meu
interfone tocou. — Deve ser Ilma para avisar que Bernardo está lá fora.
— Ótimo!
— Laura? — ele segurou minha mão e me impediu de atender. —
Primeiro ouça o meu plano.
Cedi. Não porque Bernardo merecia uma chance, e eu sabia que era
disso que Fernando tentaria me convencer, mas porque… caraca, eu devia
tanto àquele homem que me recusar a ouvi-lo seria o mesmo que assumir
que eu era o monstro que Sabrina pintava. E Fernando merecia o meu
respeito.
— Tudo bem. — Ele liberou minha mão e eu pude atender a ligação
de Ilma. — Oi.
— Srta. Lacerda, o Sr. Bernardo aguarda aqui na minha sala.
— Peça para ele esperar, Ilma, obrigada!
Fernando sentou e aguardou por mim. Sentei na cadeira ao lado, nem
me dei ao trabalho de ocupar a destinada ao CEO. Eu sequer queria pensar
naquele cargo e na confusão que ele levava para a minha vida.
— Serei rápido — ele começou, a voz cansada, como se aquela
situação também o tivesse atingido. — O plano deles é que Bernardo te
conquiste, certo? — concordei, sem querer interrompê-lo.
— Deixe ele conseguir.
— O quê? — Levantei com pressa, mas Fernando segurou minha
mão e me fez sentar.
— Preste atenção, Laura. As instruções do Sr. Quaresma foram
claras. Como você acha que conseguirá cumprir com tudo o que ele pediu
sem ter Bernardo sob suas vistas? Com certeza não será demitindo-o.
— Mas também não será… sei lá… beijando-o. — Fiz uma careta de
nojo e raiva misturadas. Fernando riu.
— Você não precisa beijá-lo, é só deixar que ele pense que
conseguirá te conquistar. Podemos até mesmo fazê-lo pensar que eu faço o
mesmo. Conheço Bernardo e sei que ele não resistirá a competir comigo.
— Tem ideia do que é esse seu plano louco?
— Ele fará tudo o que você quiser só para ser o escolhido. Matamos
uma parte da questão aí — ele insistiu.
— Tá, mas é como você disse: uma parte. Tem Sabrina e… Ela
tentou me destruir agora a pouco.
— Pense bem, se Sabrina acreditar que você está apaixonada por
Bernardo, ficará quieta. Ela não tem qualquer intenção de destruir essa
empresa, afinal de contas, é o patrimônio dela. Então se Bernardo te
conquistar…
— Isso não tem como dar certo.
— Na verdade é um plano perfeito.
— Não é porque tem a questão do Vicente — ressaltei. — E eu quero
matar o Bernardo. Aliás, quero matar a Sabrina também e se puder, o
Vicente. — Ele riu mais uma vez.
— Vicente é uma questão mais delicada e exigirá mais de você —
Fernando emendou, a voz séria de repente e o olhar atento. — Você sabe, e
eu sei, que ele quer dinheiro. Se Sabrina conseguir recuperar a herança, é
com ela que ele ficará, mas se…
— Nunca! — Outra vez tentei levantar e ele me impediu.
— Tudo de mentira como será com o Bernardo e comigo, Laura. Não
precisa deixar ele se aproximar. Use essa sua raiva, finja ter mágoa, mas
também… faça com que ele acredite que se largar Sabrina, você o aceitará
de volta.
— Ah, merda! É muita coisa para assimilar.
— Pois é. Mas se você conseguir, estará livre.
Fechei os olhos e busquei a minha vida na minha mente. Dois dias
como herdeira daquele montante de dinheiro, daquele grupo empresarial e
tudo o que vivi se escondia lá no fundo das minhas memórias, como se
pertencesse a um passado bem distante. Quando cheguei em casa, tanto
minha mãe quanto minha irmã dormiam, quando saí, só minha mãe,
emburrada, perambulava por lá e mal trocou duas palavras comigo.
Então, tudo o que eu mais queria era voltar para a minha vida, para o
curso pré-vestibular, ter noites de irmãs com Bruna e uma mãe que não me
tratasse como se eu tivesse roubado aquela herança.
— E o que eu faço agora? Ele está lá fora.
— Demita ele — Fernando disse com a maior naturalidade.
— Mas você…
— Bernardo não vai aceitar, Laura. Ele vai usar tudo o que tem para
te fazer mudar de ideia. Por isso, faça com que ele acredite que tem força
sobre você.
— Certo — concordei rápido demais, porém, não havia tempo.
— Você precisa enviar o arquivo e eu preciso achar um lugar para
almoçarmos — ele avisou de pé, pronto para retirar-se.
— Almoçarmos? Vamos almoçar juntos?
— Se a ideia é fazer com que Bernardo ache que eu também quero te
aplicar um golpe, sim. Não se preocupe, não vou te obrigar a comer comida
japonesa.
Ele piscou, lindo, charmoso. E eu corei, porque não lembrava de ter
revelado aquela parte da minha noite.
Bernardo entrou na minha sala do jeito que imaginei que ele faria.
Sem jeito, certo de que receberia a minha fúria, mas sem qualquer certeza do
quanto de fúria eu guardava para ele. Quando Fernando deixou a sala, com
uma postura relaxada, cruzou com Bernardo na porta e deu um tapinha
amigável em seu braço, o que fez com que o filho do meu ex-patrão
estreitasse os olhos e, com toda certeza, criasse diversas teorias naquela
cabeça confusa e doentia.
— Ilma disse que você queria falar comigo — ele disse enquanto eu
finalizava a transmissão do documento que me jogou naquele inferno. —
Olha, Laura… eu não…
— Você está demitido — avisei sem olhá-lo, porém, confesso, que
desejei analisar cada detalhe daquele rosto perfeito, perder a compostura
após o meu aviso.
— Demi… tá louca? Você não pode me demitir — suas palavras
saíram como deveriam, sem enfeites ou compostura, sem a farsa que ele
inventou para me induzir ao erro.
— Posso e estou fazendo. Passe no RH e resolva as questões
burocráticas. — Cliquei em enviar e me voltei para o homem nervoso na
minha sala.
Bernardo me encarava sem acreditar no que eu fazia. E eu queria, de
verdade, poder demiti-lo, no entanto, Fernando tinha razão, colocar
Bernardo para fora da empresa não me ajudaria em nada a cumprir com o
último pedido do Sr. Quaresma. O problema era que aquele velho teimoso
não deveria ter feito aquilo comigo, não deveria ter colocado aquelas
empresas em minhas mãos assim como seus filhos.
— Isso foi ideia dele, não foi? — acusou, o dedo apontado para a
porta por onde Fernando saiu. — Ele disse para você fazer isso. Laura, eu
não tenho culpa sobre o relatório. Nem cheguei a pensar… — Ergui a mão
para calá-lo.
— Você e a sua irmã querem me derrubar, mas não conseguirão.
Ele não rebateu, nem sequer tentou desmentir a minha acusação.
— Seu pai decidiu que eu seria a CEO e se você ou Sabrina não
conseguem compreender isso, então que deixem as empresas.
— Essas empresas são nossas — ele disse com raiva. — Meu pai
ergueu esse império, mas nós estamos aqui, trabalhamos nesse sonho,
fizemos a nossa parte.
— É mesmo? Conte-me mais sobre a sua participação? — Cruzei as
pernas e me recostei na cadeira. — Transar com suas secretárias ajudou a
fortalecer o grupo?
Bernardo recuou e eu vi o exato momento em que seu pomo de adão
se movimentou para que ele engolisse as minhas acusações.
— Ou… fingir que estudava enquanto seu pai pagava as despesas das
suas diversões fora do país. Aliás, conte-me como as suas míseras seis horas
de trabalho diário acrescentaram tanto para o sucesso deste grupo?
— Você não pode…
— Posso. Sejamos honestos, Bernardo, você não gosta disso aqui.
Não gosta de trabalhar. Fazia a sua parte, péssima, por sinal, apenas para
agradar o seu pai, mas, veja só, o seu pai morreu, não há mais necessidade
de fingir. As ações são suas, você já é rico o suficiente para desfrutar a vida
que sempre sonhou, portanto… boa sorte.
— Laura, eu… — ele se deteve, a raiva fazia uma veia em seu
pescoço pulsar. — Por que você acha que eu não gosto disso aqui?
Ergui uma sobrancelha e não respondi. Nada mais óbvio do que o
desejo daquele homem de ter uma vida só de prazeres, ainda que eu
precisasse da sua mudança.
— Eu gosto disso aqui, tá legal! E eu me importo, só não… me
adaptei. É isso. Levei anos sem precisar ser o funcionário perfeito, mas a
morte do meu pai… porra, Laura! Olha o que ele fez! Você acha que eu não
sei que ele fez isso para nos punir? Que colocou você sentada aí porque
odiava a maneira como eu me comportava? Eu mudei, tá legal? Queria que
fosse antes, que houvesse tempo para… — ele se calou, a emoção fez seus
olhos brilharem, e em mim, foi como um tapa.
Bernardo não mentia, só… talvez a morte do pai, a ideia de ser
preterido tocasse ele de alguma forma. O problema era: por quanto tempo?
Até quando aquele cara suportaria a vida que o pai idealizou para ele? Eu
não fazia ideia, no entanto, não podia ignorar que aquela era a minha deixa
para cumprir com o pedido do Sr. Quaresma.
— Quer o seu emprego? — Aguardei até que ele entendesse que não
era uma pergunta retórica e sinalizasse que sim. — Então terá que seguir as
minhas regras.
— Quais regras?
A pergunta quase não passou pelos seus dentes trincados pela raiva.
— Você é funcionário como todos os outros. A partir de hoje, terá
que cumprir suas horas. Oito horas — sinalizei e amei a sua expressão de
perplexidade. — Chega de funcionárias burras e fúteis. Cindy está demitida.
— Mas…
— Ela ou você? — Ele se calou no mesmo segundo. — Ótimo! llma
encontrará a secretária correta para trabalhar no seu setor.
— Laura, eu não sabia que…
— Você já me disse isso e para ser sincera, não me importa. Agora
me dê licença porque preciso me reunir com o pessoal do TI e depois vou
almoçar com o Fernando.
— Com o Dr. Fernando? — Destacou o “doutor” com certa mágoa.
— Isso, com o Fernando.
Durante alguns segundos nos desafiamos com o olhar, até que Ilma
bateu na porta para que eu seguisse com o planejado.
— Ilma, entre, por favor. Tenho algo que preciso que faça pelo Sr.
Bernardo.
— Claro — ela disse com a sua postura profissional impecável.
— Cindy, a secretária da diretoria comercial, está demitida,
comunique ao RH, por gentileza.
— Anotado.
— E eu te peço que se encarregue, pessoalmente, de selecionar a
secretária ideal para o setor.
Havia um certo traço de sorriso nos lábios da senhora que se
esforçava para não demonstrar, contudo, não me dei ao trabalho de impedir o
meu.
— Com prazer, Srta. Lacerda.
— Isso é tudo. Bernardo, volte para o seu setor. Ilma, avise ao
pessoal do TI que estou pronta.
Minha assistente abriu a porta e deu passagem para um Bernardo
derrotado. Porém, Fernando tinha razão, ele não desistiria. Eu só não sabia
se havia preparação em mim o suficiente para suportar o peso daquele plano.
“Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor.”
Canto de Xangô - Vinícius de Moraes / Baden Powell
CAPÍTULO 15
BERNARDO
CAPÍTULO 16
LAURA
O clima em casa não me ajudava. Perdi mais um dia de cursinho, por isso
cedi a ideia de Fernando e comprei um curso on-line. Pelo menos dessa
maneira eu poderia acompanhar algumas aulas preparatórias para o Enem.
Minha mãe continuava monossilábica, apesar de sentar para jantar comigo e
Bruna, que não descansou até eu prometer que a levaria na escola no dia
seguinte no carro que a empresa designava ao meu transporte.
A única coisa boa era que Carlos, o motorista, foi muito legal com a
gente. Ele levou Bruna como uma princesa. Até desceu do carro para abrir a
porta para ela e disse com sua voz que chama a atenção de todos um sonoro
“Tenha um bom dia, Srta. Bruna”, o que quase transformou minha irmã em
um balão de tão cheia de si que ficou. Quando eu voltasse para casa teria
uma conversa com ela. A nossa vida melhoraria, com toda certeza, mas não
seria aquele conto de fadas que ela acreditava.
Devido a esta carona, cheguei cedo demais na empresa. Até mesmo o
som dos meus saltos ecoaram no chão polido quando passei. A única
recepcionista disponível naquele horário estranhou, conferiu no relógio para
se certificar de que as demais não estavam atrasadas.
No meu andar, uma ou outra luz acesa, pouca movimentação, em
algum lugar havia o barulho da cafeteira. Na minha ala, nenhuma das
secretárias e nem Ilma se materializou de algum lugar como ela sempre
fazia.
Sentei na cadeira, descansei as costas, olhei para fora e meu
pensamento foi: que porra eu estou fazendo?
O dia anterior foi um inferno. Eu não engolia o que Sabrina fez, mas
Fernando me garantiu que contornamos muito bem a situação, e só o fato do
presidente da fábrica compreender e perdoar minha falha, me deixava bem
com os acionistas e investidores. Apesar disso, eu não podia mais errar. Não
porque eles estariam de olho em mim, mas porque eu não queria.
A estadia com o TI me deixou menos tensa. Aquela era a equipe que
todo mundo sonhava trabalhar. Todos atenciosos, cheios de sugestões,
dispostos a colaborar, com um potencial inacreditável e, com toda a minha
incapacidade de gerir uma empresa, quem dirá um grupo de empresas, até eu
compreendi que não eram bem aproveitados. Decidimos que mudaríamos
todo o sistema da empresa. Seríamos integrados. Teríamos uma
comunicação mais fácil e fluida. Apresentaríamos o projeto em um mês aos
diretores, por isso eu me prepararia todos os dias para dominar o processo.
Com um suspiro, liguei o computador, acionei no celular a agenda do
dia e comecei a me organizar. Mas, apesar de haver muito trabalho, eu tinha
tempo, então fiz algo que me incomodou desde o primeiro dia naquela sala.
Bernardo me pediu os retratos dele com o pai e eu cedi. Mas Ilma,
encarregada no dia, pegou apenas as dele e, naquela imensa sala com direito
a um pequeno campo de minigolfe, havia muita coisa relacionada a Sabrina.
Coisas que eu queria rasgar, quebrar e queimar. Mas não podia.
Sendo assim, fui até a sala de Ilma, encontrei uma caixa de
documentos quase vazia, e a levei depois de deixar os papéis sobre a mesa
da mulher. Peguei os quadros com diplomas, artigos, fotos, cada coisa
relacionada a Sabrina, orgulho do pai, com exceção pelo casamento
desastroso com um interesseiro, e coloquei dentro da caixa. Graças a carona
que dei a minha irmã, eu teria a facilidade de deixar a caixa na sala de
Sabrina sem precisar encontrá-la.
Com a caixa em mãos, deixei minha sala e fui na direção do meu
objetivo, de modo que, quando passei em frente ao elevador, as portas se
abriram, Bernardo saiu com pressa, atento ao celular. Eu nem tive tempo de
alertá-lo, ou de impedir o choque. Ciente de que o atingiria com a caixa
pesada e cheia de porta-retratos com vidros, virei o corpo para o lado e
colidimos.
Não sei explicar o tamanho daquela confusão, mas ele se chocou
comigo. Atenta a caixa e preocupada em não deixar nada cair, me inclinei
para evitar o pior. Em algum momento que não tenho como descrever,
Bernardo decidiu que o melhor a fazer seria me segurar. A caixa foi ao chão,
as coisas se espalharam, ele virou comigo no braço e me imprensou contra a
parede como se precisasse me proteger.
A última imagem que tive daquela bagunça foi do celular dele
acabado no chão, junto com as coisas que eu carregava. Depois disso, o par
de olhos azuis entrou em meu campo de visão e minha mente virou gelatina.
— Laura? — ele disse com certo medo. As íris azuis, profundas,
hipnóticas, buscaram meus olhos. — Você está bem?
Bernardo, colado a mim, imprensava meu corpo na parede sem
perceber o que fazia. Dentro de mim a confusão se tornava maior do que a
bagunça que fizemos no chão, diante do elevador. Eu não conseguia pensar.
Era coisa demais. As mãos dele em minha cintura, o corpo dele encaixado ao
meu, os olhos que me prendiam e os lábios… caraca! Precisavam estar tão
próximos?
— Laura?
Bernardo chamou, mas sua voz possuía um tom diferente. Não mais
preocupado, não mais dominado pelo susto. Ela soou sussurrada,
encantadora, o perfeito canto da sereia que me conduzia ao erro.
E eu errei. Errei sem me preocupar, naquele segundo, do quanto
errada estava.
Quando os lábios de Bernardo encostaram nos meus, não com
desespero, nem mesmo com a prepotência que eu acreditava que ele usaria,
mas com suavidade e desejo, o mesmo que me consumia de uma maneira
estranha, nenhum alerta foi o suficiente para me fazer impedi-lo.
As mãos que antes me amparavam, apertaram minha cintura, me
puxaram para perto. O corpo que se encaixou no meu como forma de me
proteger da queda, assumiu outro objetivo, se imprensou a mim como se não
houvesse nada mais correto naquele mundo. Os lábios, macios, quentes,
suaves, abriram os meus sem esperar a minha permissão. A língua tocou a
minha e cada pedacinho da minha pele se arrepiou.
Podia um beijo ter tal efeito? Podia uma mão queimar um corpo
como a dele me queimava sem mesmo me tocar de uma maneira mais
ousada? Podia ser verdade aquela loucura que eu me permita viver?
Não. Não podia.
E quando me dei conta disso, o afastei de mim, talvez não com a
força e determinação necessárias, mas com a certeza de que não
permaneceria ao lado dele nem por mais um segundo.
Bernardo se afastou, não impôs a sua vontade. Seu rosto
avermelhado dizia que ele se envergonhava do feito da mesma forma que eu.
Claro. Eu era a filha da empregada, alguém em quem, em outra situação, ele
jamais prestaria atenção, pelo menos não com desejo, como fizera segundos
antes. Talvez por esta constatação, a raiva se apoderou de mim.
Raiva dele, sim. Odiava o desprezo daquela família. Odiava o fato de
saber que ele me beijava não por eu ser alguém digna dele e sim por ser a
idiota que ele acreditava conquistar para reaver a herança. E me odiava por
ter permitido, por ter gostado, por ter meu corpo invadido por tantas
sensações que tão cedo não me abandonariam.
— Suas coisas — ele disse, sem jeito, abaixando-se para arrumar o
que derrubamos.
— São da sua irmã. Deixe na sala dela, por favor.
Usei toda a minha dignidade para falar com ele sem parecer uma
garota boba que por um segundo acreditou que beijava o príncipe.
— Com licença.
Dei as costas e saí a passos rápidos. Naquele momento, eu não
trocaria mais nenhuma palavra com Bernardo, não queria ouvir qualquer
explicação sobre o ocorrido, e também, acima de tudo, não queria constatar
que ele fingiria que nada aconteceu.
Que grande merda!
Passei pela recepção, entrei na sala de Ilma e gritei. A mulher estava
lá. Mas como?
— Porra, Ilma!
— Senhorita!
— Ah, meu Deus, perdão. Perdão. Eu só…
Com a mão no peito, eu respirava de forma descontrolada, não
apenas pelo susto, mas por tudo o que aconteceu antes disso.
— Como você chegou aqui?
— Eu sempre chego cedo. Estava na copa. Fiz café. Vi que a
senhorita deixou suas coisas na mesa, então… A senhorita está bem?
— Estou… estou.
Eu não estava. Pra dizer a verdade, eu estava muito mal. Mesmo
assim, sorri.
— Posso pedir uma xícara de café?
— Claro, levo agora mesmo na sua sala.
— Obrigada.
Ainda trêmula, caminhei até a minha porta e relembrei a caixa que
roubei dela.
— Precisei de uma caixa. Encontrei uma com pouco material. Espero
que não se importe.
— Eu não me importo, Srta. Lacerda.
— Laura, por favor.
— Laura quando estivermos sozinhas — determinou com um sorriso
carinhoso. — Precisa de mais alguma coisa?
— Assim que o diretor do RH chegar, me avise. Vamos começar o
quanto antes.
— Como quiser.
Entrei em minha sala, me deixei cair na cadeira e me perguntei
quando a sensação daqueles lábios nos meus, passaria. E não encontrei uma
resposta que aliviasse a tensão em mim.
CAPÍTULO 17
LAURA
BERNARDO
CAPÍTULO 18
BERNARDO
CAPÍTULO 19
LAURA
Era sábado e desde que sábado se tornou sábado, Bernardo não ficava em
casa por nenhum motivo neste mundo, mas, naquele dia, naquele inferno de
dia, ele ficou. E, para piorar a minha situação, não havia um lugar por onde
eu passasse que ele não estivesse. Tomou sol na piscina. De sunga. Cacete!
Não que eu nunca tivesse visto aquele playboy de sunga na vida, só não me
dei ao trabalho de observar.
Mas foi impossível não observar.
Em especial depois do beijo e ainda mais, depois de ele ter invadido,
não, Bernardo não invadiu o meu quarto, eu o convidei e talvez esse fosse o
meu maior erro. Onde eu estava com a cabeça? O cara queria me conquistar
para tirar de mim a herança, que… ok, era dele, mesmo assim, tudo o que
vinha dele não passava de um grande plano, no qual eu cairia feito uma pata,
caso ele se aproximasse.
— O que há com você, Laura? — resmunguei antes de tomar o
último gole de suco de laranja que minha mãe levou no escritório.
Como não podia deixar de ser, ocupei o antigo escritório do Sr.
Quaresma, e, também, para variar, Bernardo se esbaldava na piscina que
ficava em um ângulo espetacular da janela atrás da cadeira que eu ocupava
enquanto estudava sobre as empresas e dava o meu melhor.
— Fernando tem razão. Seria melhor acabar com isso de uma vez —
resmunguei, cansada e confusa.
Mudar nos colocaria no plano, contudo, me jogava na fogueira como
as Bruxas de Salém.
— Isso o quê?
Vicente apareceu em minha porta sem me pedir autorização para
entrar. Suspirei. Minha vontade era de escurraçá-lo como a um cachorro,
entretanto, o melhor a fazer era dar corda, deixar Sabrina descobrir o cretino
do marido que escolheu e me livrar daquele peso.
— O que faz aqui, Vicente? Sua esposa terá outro ataque no instante
em que perceber que você não está rodeando as pernas dela — provoquei.
— Sabe que você fica…
Ele puxou o ar, como todo grande cafajeste faria. Sério? O que eu vi
naquele cara?
— Maravilhosa nesse escritório, shortinho curto, camiseta… —
Fechou a porta atrás de si. Que cretino!
A cada palavra, ele dava um passo na minha direção. Segurei o
notebook nos dois lados, pronta para meter na cara dele se fosse necessário.
— E trabalhando como uma executiva. Laura, Laura… — Balançou
a cabeça como se aquilo fosse sensual.
— Se Sabrina abre a porta desse escritório e te encontra comigo,
teremos um problema.
— Sabrina está dormindo. Ela ficou maluca. Tomou um desses
remédios para pessoas desequilibradas e adormeceu.
Eu me perguntei se deveria gravar aquela conversa. Seria uma ótima
prova. Bastava enviar para Sabrina e quem sabe, metade dos meus
problemas estariam resolvidos, mas Vicente se aproximou demais, as duas
mãos espalmadas na mesa onde eu trabalhava e próximo a elas, o meu
celular.
— E você tratou de correr para cá para me convencer de que me ama
e que seu casamento não existe mais?
— Você sabe que eu sempre te amei. Nunca deixei de mostrar o
quanto sentia a sua falta.
— Ah, claro, quando me agarrava na cozinha ou nos corredores desta
casa e recebia uma porrada minha como demonstração do meu amor.
— Não faz assim, Laurinha — pediu com dengo.
Meu Jesus Cristo, quando namorávamos ele não agia como um idiota
daquela forma. Agia? Não, eu me lembraria. Com certeza aquela voz
dengosa e infantil, ele adquiriu para agradar Sabrina.
— Quer provar que me ama? Vá embora. Largue Sabrina.
Vicente piscou várias vezes, ergueu a coluna e me deu a chance de
pegar meu celular. Ele passou a mão pelo cabelo em um penteado que com
certeza não gostaria de desfazer.
— Você está de brincadeira comigo — ele disse, sério, os olhos fixos
em mim.
Cruzei os braços e desejei ter tido mais tempo para aprender a
manusear o Iphone e gravar aquela conversa de uma vez por todas.
— Estou?
— Você não vai ficar comigo, Laura.
— Se acredita mesmo nisso, o que faz aqui?
— Se quisesse ficar comigo não beijaria o Bernardo — acusou.
Mas não foi uma acusação tranquila, foi como se eu o tivesse traído.
Que idiota! Entretanto, pisquei diversas vezes e meu rosto esquentou de uma
maneira absurda.
Levantei-me com pressa, fui até a janela e, Bernardo de sunga se
estirava na espreguiçadeira e exibia aqueles gominhos perfeitos do abdômen.
Puxei o ar com força.
— Ele te contou?
— Claro que ele me contou. Esses dois estão dispostos a tudo para
tirar essa herança das suas mãos. Você sempre foi tão inocente.
Virei para Vicente e o encarei, recuperada, contudo, continuava
impactada com a imagem de Bernardo tão à vontade na piscina.
— Bom, ele me beijou.
— E você fala assim?
— Vicente… — foi a minha vez de me apoiar na mesa e encará-lo.
— Vocês dois querem isso de mim. No final das contas, tudo se resume a
dinheiro, a herança, desse modo… — dei de ombros e fingi não me importar.
— Pelo menos Bernardo age.
Não sei se aquelas foram as palavras corretas para o momento. Eu
não queria dizer para Vicente me beijar, pelo amor de Deus, não! Eu só quis
fazê-lo entender que se ele me provasse o seu interesse, ganharia a corrida.
Porém, Vicente não entendeu dessa forma, e, antes que eu conseguisse
reagir, ele me segurou pelos ombros e me puxou em sua direção.
Graças a Deus a mesa estava entre nós. Ele me beijou. Não um beijo
como o que Bernardo me deu. Vicente me agarrou de surpresa, por isso seus
lábios encostaram nos meus e me certificaram de que nada restava daquele
amor inocente que um dia nutri por ele. Na verdade, assim que ele conseguiu
encostar nossas bocas, abriu os lábios e me babou de forma a me fazer
despertar do transe e empurrá-lo para longe.
— O que… seu…
— Ele não vai te tirar de mim — determinou.
— Vocês são dois idiotas. Saia do meu escritório! — Meu tom de voz
imperativo e alto o alertou.
— Você me ama, Laura — a convicção em sua voz me enojou. — A
gente ainda combina muito.
Ah, claro! Se eu adorasse ter a boca lambida por um cachorro, com
toda certeza.
Uma batida leve na porta fez com que Vicente se afastasse da mesa
com pressa.
— Entre — determinei e aproveitei para limpar os lábios babados.
Fernando abriu a porta e se surpreendeu com a presença de Vicente
no escritório, sozinho comigo. Meu amigo não passou da entrada. Colocou a
mão no bolso da bermuda informal e eu pude vislumbrar o quanto ele ficava
bonito vestido de forma casual.
— Atrapalho? — ele disse com certo receio.
— Não. Vicente já estava de saída — informei, mas meu ex não se
moveu. Ele encarou Fernando, depois a mim, e em seguida deu um sorriso
escroto.
— Como vai Dr. Fernando?
— Bem. E você? Onde está Sabrina?
— Dormindo.
Fernando concordou, sem acrescentar mais nada. O silêncio ficou
incômodo demais para mim, que não suportava a pressão.
— Vicente, pode nos dar licença?
— Reunião no sábado à tarde? — Vicente não se dava por vencido.
— Na verdade…
Respirei fundo, porque eu diria “não é da sua conta”, por isso
precisei relembrar que o plano era fazer com que Vicente se sentisse
estimulado o suficiente para dar aquele passo errado.
— Fernando ficará para o jantar — avisei. Fernando estreitou os
olhos, mas nada disse, já Vicente conferiu no relógio e estranhou.
— Cedo para o jantar.
— Eu quis chegar cedo para… — Fernando gesticulou na minha
direção e eu falei a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Jogar cartas.
— Jogar cartas? — os dois disseram ao mesmo tempo.
— Minha mãe adora, Fernando. Eu pensei em fazermos algo que ela
goste para que se sinta à vontade.
— Claro. Cartas — Fernando completou, perdido.
— Vamos? — Com pressa, fechei o notebook e procurei a chave do
escritório sobre a mesa. Não tinha como confiar em ninguém naquela casa.
Fui até Fernando, que abriu a porta e me deu passagem, depois
aguardou por Vicente, que continuava nos observando com interesse. Ele
saiu do escritório, eu o tranquei, coloquei a chave no bolso e tomei o
caminho das escadas como se dependesse daquilo para viver.
***
— Cartas?
Fernando sussurrou para mim quando estendemos a toalha sobre a
mesa no jardim, bastante próxima da piscina e de Bernardo que eu lutava
contra meus olhos para não acompanhar seus passos quando ele deixou a
área e sumiu para dentro da casa.
— Foi a primeira coisa que eu consegui pensar — respondi no
mesmo tom. — O idiota me beijou, acredita?
— Bernardo?
Fernando não demonstrou surpresa com a possibilidade. Apesar de
ser verdade, eu não contei a meu amigo sobre este detalhe, que ainda me
envergonhava, em especial depois do ocorrido pela manhã.
— Vicente.
— Vicente? — Seus olhos se ampliaram e Fernando esqueceu rápido
da toalha. — Vicente te beijou? Sério?
— Eu não beijei ele. Eca! Ele me beijou, de surpresa. Eu disse que se
ele me amava como dizia, que deixasse Sabrina e a casa, mas o que ele fez?
Ele me beijou.
— Isso me assusta, Laura — confessou.
— A ideia não era essa? Fazer com que Sabrina descobrisse o
cafajeste com quem casou?
— Bom… você terá um caso com ele?
Enquanto falava, Fernando alisava a toalha e tentava não colocar
peso em suas perguntas, entretanto, eu sentia o quanto pesava a ideia, a
situação e tudo o que viria com isso.
— Eca! — repeti com mais ênfase, para que ele tivesse essa certeza.
Fernando riu. — Mas você me disse para…
— O problema é que vocês foram noivos — pontuou sem me
encarar. — E se ainda restar algum sentimento por ele, com certeza Vicente
te ganha e desfaz todos os nossos planos.
— Eu já fui idiota uma vez. Uma vez. Pronto. Sei bem quem é a
peça. Fique tranquilo.
— Você sabe que existe uma câmera no escritório, não é?
No mesmo segundo meu rosto esquentou de forma violenta, desceu
pelo pescoço e quase explodiu minhas orelhas.
— Ah, você não sabia. — A maneira como ele me encarou me
deixou nervosa. — Bom, o Sr. Quaresma mandou instalar quando Sabrina
casou. Ele não confiava em Vicente e nem nos filhos, para dizer a verdade.
— Entendo. Então, temos uma prova.
— Não tão rápido. A câmera captura só as imagens e após 24hs a
empresa apaga. Na verdade, preciso verificar com meu pai se o vídeo ainda
está lá.
— Então o escritório é o melhor lugar — pontuei, a cabeça cheia de
ideias. — É um lugar de fácil acesso, longe dos olhos de Sabrina e que deixa
Vicente confortável.
— Mas não temos som. Com Sabrina precisaremos de tudo.
— Eu providenciarei o som, é só você me ajudar com…
— Vão jogar cartas? — Bernardo nos interrompeu.
Lindo. Cabelo molhado penteado para trás de forma casual, a pele
bronzeada tinha um brilho que dava a ele um ar de… não sei… estrela de
TV? Pode ser. Mas os olhos azuis ganharam um destaque mais especial. Ele
sorriu, exibiu aqueles dentes perfeitos e brancos dignos de um comercial de
creme dental. O abdome coberto por uma camisa polo ajustada ao corpo e
completava o visual com bermuda e sandália. No entanto, o que mais me
impactou foi o perfume, nada forte ou ativo, mas suave e… delicioso, como
se exalasse da própria pele.
— Laura? — Ele disse, um sorriso descarado nos lábios e as duas íris
azuis fixas em mim. — O que será? Carteado? Posso me juntar a vocês,
certo?
— Ah… — pigarreei e me odiei por isso. Bernardo mexia demais
comigo, me deixava boba, impactada e eu não era nada daquilo. — Minha
mãe joga canastra.
— Ótimo!
O cretino puxou a cadeira, a que ficava na minha frente, e sentou. O
que deixava claro que seríamos uma dupla. Cacete!
— Desculpem o atraso, mas precisei achar o baralho. — Minha mãe
chegou, alegre, um sorriso que aumentou quando viu Bernardo sentado à
mesa. — Já definiram as duplas? O senhor joga bem, Dr. Fernando?
— Hum, depende. Defina bem.
Minha mãe riu e me deixou contente. Não a imaginei rindo naquela
casa por um bom tempo, afinal de contas, pairava sobre as nossas cabeças o
fio da espada dos Quaresmas.
— Eu jogo muito bem — Bernardo se exibiu.
— Que bom, porque Laurinha não joga nada — minha mãe me
entregou.
A verdade era que eu pouco me interessava pelo jogo. Detestava a
ideia de segurar tantas cartas e ajustá-las na estratégia exata para derrotar o
adversário, apesar disso, odiei a ideia de Bernardo ter um desempenho
melhor do que o meu.
— Laurinha, distribua a mão, eu fico com o morto.
Minha mãe não nos deu oportunidade de escolher nada. Ela sentou,
deu as ordens e ficamos da seguinte forma: eu e Bernardo contra ela e
Fernando. E a pior parte era tê-lo à minha frente, com seu porte exibido e
seu sorriso… bom… lindo, ainda assim, sarcástico.
— Deveríamos beber algo, não? — Bernardo sugeriu. — Jogo de
cartas combina com bebidas.
Ao longe vi minha irmã passar enrolada em uma toalha e se
espreguiçar na beira da piscina. Eu não mensurava se aquilo era bom ou
ruim. Bruna entrou na água sem fazer alardes, deslizou seu corpo
adolescente, no início do desabrochar, e sumiu.
— O que você quer, Laura? — Fernando colocou a mão sobre a
minha e apertou meus dedos. No mesmo segundo, Bernardo inclinou a
cabeça e me deu um olhar reprovador.
— Eu… desculpe, o quê? — Fernando riu, acariciou minha mão e
repetiu a pergunta.
— Vou buscar as bebidas. O que você quer?
— Ah… suco? — Ele riu mais uma vez.
— Tudo bem, suco para Laura.
Fernando se ergueu da cadeira. Tão lindo e atlético quanto Bernardo
e ao mesmo tempo, tão diferente. Bernardo me encarou e me petrificou.
— Traga amendoim — ele acrescentou sem deixar de me olhar.
— Tem bolo de abacaxi que você tanto gosta — minha mãe fez como
sempre fazia quando trabalhava naquela casa, quis agradar o mimado do
Bernardo.
— Vamos jogar como adultos, Sara — Bernardo brincou, aquelas
duas bolas de gudes azuis em mim, que me gelavam e queimavam na mesma
medida, e ela se desmanchou por ele.
Minha mãe não podia se desmanchar por aquele traidor, que se
atrevia a me beijar quando queria.
— Menos, Laurinha. Ela bebe suco — pirraçou, minha mãe riu e
balançou a cabeça.
— Eu bebo…
Só que não tive tempo de responder. Enquanto minha mente virava
gelatina por causa daquele olhar infernal, perdi a noção da proteção que
deveria ter com a minha irmã, e todo o nosso clima evaporou, com o grito de
Sabrina.
— Saia imediatamente desta piscina!
“Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não.
Não há mal pior do que a descrença,
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão.”
Como dizia o poeta - Maria Bethânia/ Toquinho/ Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 20
LAURA
Eu não sei explicar como cheguei tão rápido a borda da piscina da qual a
minha irmã se refugiava enquanto a maluca da Sabrina gritava sem qualquer
controle. Desconheço como passei por minha mãe, por Bernardo e até
mesmo por Fernando que tão rápido quanto eu, se juntou a confusão.
— Saía dessa piscina — Sabrina repetia. — O que vocês acham que
estão fazendo? Vão destruir essa casa. Vão emporcalhar tudo. Saia!
— Sabrina… amor — Vicente tentava, mas a mulher parecia estar
fora de si.
— Olha no que estão transformando a nossa casa, em um cassino.
Ela riu, mas não foi como se de fato risse ou demonstrasse a sua
raiva através do riso. Foi débil, fora de si, como se estivesse… drogada.
Cacete!
Olhei com pressa para Vicente, no entanto, ele demonstrava vergonha
pela atitude da esposa e tentava, a todo custo, levá-la para dentro.
— Você vai emporcalhar a minha piscina — ela gritou para a minha
irmã.
O sangue criou um furação em minhas veias e o ódio me deixou
ensandecida.
— Cale essa boca! — gritei de volta.
Minha mãe correu e recebeu Bruna, chorosa, nos braços com uma
toalha estendida. Fernando, ao meu lado, segurou meu braço para me
impedir de avançar, já Bernardo, olhava de Vicente para Sabrina sem
entender o que acontecia.
— Essa casa é minha, entendeu? — Informei com toda a força dentro
de mim.
Poucos passos me afastavam daquela cretina, independente disso,
com o dedo em riste, gritei a verdade na cara dela. De uma vez por todas,
Sabrina teria que conscientizar-se o seu lugar naquela situação.
— Essa casa é minha!
Ela gritou de volta, a voz embolada passava a ideia de que havia
bebido além da conta, mas Vicente disse, não apenas para mim como para
Fernando, que Sabrina dormia.
— Sabrina, pare com isso!
Bernardo tentou, segurou em seu braço e quase a arrastou de volta,
porém ela não desistia e se afastou do irmão para direcionar sua raiva à
minha família.
— Pois então fora — gritei mais alto do que ela conseguia. Vicente
me deu um olhar estranho, Bernardo me encarou sem acreditar no que eu
fazia. — Saia da minha casa agora! Vou chamar a polícia e te colocar para
fora agora mesmo.
— Laura, espere, eu… — Bernardo deixou a irmã e se direcionou a
mim.
Fernando colocou a mão sobre a minha e me impediu de discar o
número da polícia, no mesmo instante Bernardo interrompeu os passos e me
encarou como se me cobrasse algo. Minha raiva atingiu seu limite máximo.
— Eu fico com isso. — Fernando retirou o celular da minha mão. —
Laura, Sabrina está…
— E olha esse biquíni, brega, pobre, o que quer vestida dessa
maneira, menina, fisgar um bom partido e garantir a sua parte também?
Eu não aguentei. Não deveria, mas não aguentei. Quando Sabrina
ofendeu minha irmã e a acusou daquelas coisas deploráveis, avancei sobre
ela e acertei um tapa em seu rosto com toda a mágoa que eu guardava dela
durante todos aqueles anos.
Quando eu soube que Sabrina roubou meu noivo, não briguei, não fiz
escândalo, não fui na porta dela cobrar a amizade que ela me devia. Eu
apenas me retirei da vida deles. Recolhi meus cacos e deixei o casal para
trás. Vontade de atacá-la eu tive, porém, valia mais o meu desprezo e da
mesma forma eu fiz quando precisei retornar àquela casa como empregada
do Sr. Quaresma e conviver com os pombinhos.
Contudo, quando ela roubou Vicente de mim, ninguém mais se
machucou, eu sofri, chorei e eu, apenas eu, remoí cada sentimento. Naquele
momento ela atingia a todos nós, não apenas a mim, e eu não deixaria
barato. Quando minha mão atingiu o rosto de Sabrina, foi com toda a minha
força e eu assisti cada segundo da cena em câmera lenta. Porque a vida tem
dessas coisas, né? Quando a gente quer manter algo, passa rápido, mas
quando quer se livrar, quando entende o erro no meio do caminho, ela te
pune desta forma.
Sabrina rodopiou na beira da piscina, Vicente, tão assustado quanto
Bernardo, tanto pela minha reação quanto pela de Sabrina, não conseguiram
segurá-la. Portanto, empurrada pelo meu tapa, eu a vi se desequilibrar e cair
na piscina. Mas esse seria o menor dos meus problemas.
Quando Sabrina iniciou aquele ataque, determinada a intimidar
minha irmã, se aproximava de Bruna cada vez mais, e minha irmã por sua
vez, assustada, fugiu dela, correu para as escadas até que estivesse fora da
piscina, onde minha mãe a acolheu e nós nos avolumamos. Por isso, ao
acertá-la com um tapa que demandou de mim uma força descomunal, foi
neste lugar que Sabrina caiu.
Entenda. Não estamos falando de uma piscina qualquer. Na mansão
dos Quaresmas a piscina principal, a que ficava disponível para todos da
casa e a única existente na planta original, foi arquitetada para ser
inesquecível. E era. Então ela começava com uma longa fileira de degraus
que afundavam até que a pessoa atingisse uma profundidade boa para
mergulhar.
Sabrina caiu nos degraus. E, claro, qualquer pessoa diria, mas é uma
piscina, tem água, ela boia. Não, isso não aconteceu. De fora da piscina, na
posição em que ela se posicionou, quando avancei e a esbofeteei, ela caiu
com facilidade, e, para a minha infelicidade, com a cabeça no degrau,
mesmo que com a existência da água.
E eu assisti cada segundo como se fossem horas. Ouvi Vicente gritar,
vi Bernardo se atirar para resgatar a irmã, minha mãe chamar por mim e
Fernando tentar me impedir. No entanto, o que de fato me alertou foi a
incapacidade de Sabrina se proteger.
Que ela não estava em seu estado normal, eu já tinha certeza, porém,
a maneira como seu corpo despencou, como caiu sem a proteção natural que
qualquer ser vivo teria, sem colocar os braços para impedir a queda ou até…
não sei dizer, mas ninguém teria apagado com um tapa, nem mesmo batido a
cabeça no degrau submerso da piscina.
Mas não para por aí. Ela caiu, bateu a cabeça, todos se assustaram até
que, com Bernardo dentro da piscina, que, por sinal, batia na sua canela,
vimos o sangue se espalhar. Por um segundo houve silêncio. Aquele som
morto, quando o mundo para e nada mais é capaz de reagir.
Puta merda, matei Sabrina.
CAPÍTULO 21
LAURA
CAPÍTULO 22
LAURA
CAPÍTULO 23
LAURA
CAPÍTULO 24
LAURA
CAPÍTULO 25
BERNARDO
Passei o dia envolto nos problemas que a falta de cuidado e atenção para
com as minhas obrigações na empresa, causaram. Contudo, demonstrar
interesse e desejo de encontrar uma solução animou minha equipe. Todos
trabalharam com mais afinco, falaram mais, sugeriram, debateram,
conversaram com as filiais e no final do dia, com mais uma reunião,
obtivemos mais resultados do que jamais ousei buscar em todos os anos que
trabalhei ali.
Eu me sentia… diferente. Não que trabalhar se tornou a minha
atividade preferida no mundo. Ainda sentia falta do lazer, do descanso e das
facilidades que a minha vida proporcionava, ainda assim, havia uma energia
diferente em minhas veias, que me impulsionava e me levava a cada
momento, a cada avanço, a ela, Laura.
E eu sabia que deveria seduzi-la até convencê-la de que o que meu
pai fez não passava de birra para nos punir e que, da minha parte, não havia
mais motivo para manter a farsa. Por isso recuperaria a herança e seguiria a
vida. Entretanto, quando eu pensava nesta parte do plano, nos dias em que
ela não faria mais parte disso, uma sensação estranha me acometia e, como
me acostumei a fazer, evitava o pensamento, jogava-o para o fundo da minha
mente e me mantinha em um lugar seguro.
O dia passou, meu horário acabou, a equipe aos poucos se dispersou,
mas eu não conseguia ir embora. Eu queria organizar o material que
produzimos e levar para ela, conversar sobre os problemas e as soluções que
encontramos, discutir as opções, qualquer coisa que me permitisse ficar ao
seu lado, conquistar a sua atenção, admiração… eu só queria estar com ela.
Por isso aguardei até que nenhuma das suas protetoras estivesse por
lá. Observei Fernando sair da sala e logo em seguida as duas secretárias.
Pouco tempo depois me certifiquei de que Carlos não comparecesse para
buscá-la e no instante que Ilma saiu, corri para finalizar o meu trabalho, de
olho no movimento do andar. Imprimi o relatório. Poderia enviar por e-mail,
mas conseguiria a sua atenção se comparecesse com os papéis em mãos.
Mas, ao abrir a porta da sala dela, me deparei com uma cena
inusitada. Uma parte de mim sabia que aquilo aconteceria em algum
momento se eu não agisse logo, só não esperava que Sabrina fosse
desapegada daquele ponto.
Vicente imprensava Laura contra a mesa, as mãos nos braços dela de
forma carinhosa. Beijavam-se quando entrei sem solicitar a permissão dela.
Assustada, Laura me encarou como se não acreditasse na minha intromissão
e Vicente… bom, esse nem sequer se afastou. Precisou que Laura,
recuperada do choque, fizesse isso por ele.
— Bernardo?
A voz dela, um tanto quanto fina e no limite da tensão, não aliviou o
meu choque.
Ela beijava Vicente. Não o reprimia, ou o afastava. Não fora algo
além dos limites que ela fingia ter ao lado do ex-noivo. Eu não deveria me
sentir tão aborrecido, contudo esta era a verdade, vê-los juntos me irritou por
diversos motivos: Vicente era casado com minha irmã. Sabrina o roubou de
Laura e eu já não fazia ideia se aquilo fazia parte de mais um plano da minha
irmã com o marido, diante da minha enrolação para resolver o problema, ou
se eu acabava de descobrir que Laura e Vicente nunca se afastaram e até
mesmo o casamento dele com Sabrina fazia parte de uma armação ainda
mais indecente e sórdida daquela que tramamos.
Contudo, o real motivo da minha irritação foi a ideia de não tê-la, de
ser o idiota que queria impressionar a garota e levava uma rasteira sem dó
nem piedade. O bolo em minha garganta, o qual eu me esforcei para engolir,
era do tamanho da minha amargura e cresceu quando me dei conta de que eu
também a magoaria com a farsa que Sabrina propôs.
No final das contas. Não prestávamos. Nenhum de nós.
— Desculpe, eu não queria interromper — eu disse, a voz azeda,
cheio de mágoa. A mão na porta, pronto para partir.
— Mas interrompeu.
Vicente me encarou sem qualquer medo da merda que daria quando
eu contasse a Sabrina o que aconteceu.
Confuso, me perguntei se minha irmã riria da minha cara e me
contaria que ela e Vicente decidiriam aquele jogo. E a mesma indignação
que me dominou quando ela me fez a proposta e depois quando Vicente
apareceu em meu quarto para me convencer a deixá-lo agir, me dominou.
— Não interrompeu.
Laura se colocou na distância que me separava do meu cunhado.
— Vicente está de saída.
A voz dela ganhou força, decidida a não deixar que eu soubesse de
mais nada.
— Eu também — anunciei.
— Bernardo, espere!
A súplica em sua voz se agarrou as minhas pernas, como uma
corrente que me impedia de deixar a sala, independente da minha vontade.
— Eu… preciso conversar com você.
— Laura? — Vicente protestou.
— Vá embora, Vicente. Agora.
Ela queria aquele teatro, precisava disso para me convencer de que
não havia armação e voltar a ser a garota insegura que me conquistou.
Conquistou? Era isso o que me deixava naquele estado? Eu não sabia
responder, e, por mais que tentasse, por mais que me revoltasse com o que
vi, uma parte de mim dizia para eu ficar.
Com um bufar de protesto, meu cunhado acatou a decisão dela, mas
ao passar por mim, abriu um sorriso escroto e piscou o olho. Precisei me
segurar para não atacá-lo, ou dar a volta e deixar Laura sozinha.
Assim que a porta bateu, Laura deu alguns passos em minha direção
e parou a uma distância segura. Os olhos aflitos buscavam a minha reação,
como se ela me devesse alguma explicação. Deu uma risada curta e sem
qualquer humor.
— O que quer, Laura?
— Isso é clichê e com certeza você não vai acreditar, mas… não
aconteceu nada.
Suspirei, cansado, humilhado, aborrecido. Passei por ela e encostei
na mesa que antes pertencia a meu pai. Cruzei os braços e aguardei pela
explicação que ela precisaria inventar.
— É sério, Bernardo. Não aconteceu nada.
— Não foi o que eu vi.
— Eu sei. É que…
— Só me diga uma coisa, Laura. Vocês ficaram juntos agora ou isso
é coisa antiga?
— O quê? Não! Eu não estou… não fiquei… não há nada entre mim
e Vicente.
— Bom, não foi o que eu vi — repeti a acusação. — Você precisa de
algo mais concreto para me convencer.
— Eu nem sequer preciso te convencer, Bernardo. Não há nada com
o Vicente e nada com você. Aliás, vocês dois estão ansiosos para garantir
que essa herança retorne para as mãos de vocês, por isso esse jogo sujo.
Mordi o lábio inferior, incerto sobre acreditar ou não nela. Uma parte
de mim tinha certeza de que Laura não faria aquilo. Mas a outra, gritava que
se ela aceitou uma herança que não lhe cabia, tudo era possível. Apesar
disso, aceitar que havia um caso antigo e que eles faziam aquilo para roubar
de Sabrina, não se parecia em nada com a Laura que eu conhecia. Nem com
a antiga, a garota pobre que cuidava do meu pai e que quase não conversava
comigo, nem a nova, a que detinha o poder nas mãos e jogava conosco como
peças do seu tabuleiro.
— Olha, se não quiser acreditar, tudo bem. Eu só me justifiquei
porque ele é marido da sua irmã e não quero mais problemas com Sabrina.
— Você não me deve nada, Laura.
Eu me afastei da mesa, os papéis ainda em minhas mãos, sem
qualquer utilidade depois do que vi.
— Mas se você e Vicente planejam algo, quero que saiba que
passaremos por cima de vocês como um…
— Espere um pouco — ela disse mais alto. — Você está me
ameaçando? Você? Logo você que me cerca há dias para tentar arrancar de
mim a herança que seu pai deixou? Fala sério, Bernardo! Se tem alguém
aqui com desvio de caráter, essa pessoa não sou eu.
— Mas eu sou solteiro. Posso desejar qualquer coisa com você,
desde recuperar a minha herança a uma vida juntos.
Laura arregalou os olhos diante da minha confissão. Ela falaria algo,
mas se calou sem encontrar palavras para rebater a minha acusação.
— Vicente é casado com Sabrina. Até hoje eu acreditava que ele era
um imbecil movido a dinheiro e que Sabrina era a sua melhor opção, mas
depois do que vi aqui…
— O que você viu foi a tentativa dele de me tornar a bola da vez.
— O que eu vi foi você muito à vontade com a situação.
— Porque eu… — ela se interrompeu, os olhos marejados, a raiva
destacada no rosto.
— Você gosta dele.
— Não.
— Não seja cínica, eu vi o beijo.
— E era um beijo de uma mulher apaixonada?
Por um segundo busquei a imagem em minha mente. A Laura que se
desmanchava em meus braços, que perdia o controle e se permitia seduzir
não foi a mesma que eu encontrei nos braços do Vicente. Ainda assim…
— Era o beijo de uma mulher que não censurava o homem em
questão.
— Argh! Você é tão idiota!
— Bom, me desculpe se eu não vejo as coisas sob o seu ângulo.
Então é isso? Vicente vence esse jogo? Vocês se juntaram contra nós? Foi
por isso que resolveu se mudar lá para casa?
— Cala a boca!
— Não! — Larguei os papéis sobre a mesa dela e avancei em sua
direção.
Não havia em mim apenas a sensação de derrota, mas de traição, de
orgulho ferido, de não ser o escolhido, e isso me assustava.
— Sabrina saberá por mim o que aconteceu aqui — ameacei e em
seguida me calei por me sentir ridículo naquele papel.
— Ótimo! Poupe-me deste trabalho. Menos um.
— Menos um?
— Você não entende nada mesmo — ela riu sem vontade e deslizou a
mão pelo cabelo. — E eu cansei de ser o troféu de vocês. Conte a Sabrina
sobre Vicente e diga para ela se divorciar, porque ele não vale nada.
— Claro, porque não facilitar a sua vida, não é mesmo? Sabrina sai
de cena e você fica livre para viver com o carinha que nunca esqueceu.
— Não sou obrigada a ouvir isso. Faça como quiser. Agora fora da
minha sala.
Por um segundo o choque me paralisou. O que era aquilo? Por que
ela agia daquela forma? E por que eu me incomodava tanto ao ponto de não
conseguir nem mesmo dar um passo em direção a porta?
Nós nos encarávamos, ofegantes, incertos. Eu repleto de mágoa e de
desespero. Ela… eu não fazia ideia do que aqueles olhos escuros, marejados,
queriam me dizer, mas sabia que eles me atingiam e me dominavam com
facilidade.
Talvez este seja o motivo para o que eu fiz. Ou talvez não houve
nenhuma outra saída para mim. Laura ocupava meus pensamentos, minhas
ações, meus desejos e isso só significava uma coisa: eu me apaixonei. Mas
como? Por que justo por ela? E por que quando eu não podia deixar
acontecer? Quando ela jamais acreditaria em meus sentimentos e tinha todos
os motivos para me condenar.
Com a mão firme, puxei Laura para mim. Não encontrei resistência,
pelo contrário. No instante em que eu a cerquei em meus braços, ela cedeu,
amoleceu, buscou meus lábios antes mesmo que eu me inclinasse sobre ela.
Laura me beijou com paixão e constatar essa ideia abriu uma ferida em mim.
Porque eu não sabia o que ela queria, o que sentia e em especial, se havia de
fato, um plano entre ela e Vicente. Porém, quando ela me beijou, quando sua
língua adoçou a minha, quando seu corpo se colou ao meu e minhas mãos
exploraram as curvas dela, nada fazia sentido além daquele quadro, da nossa
cena, daquele momento.
Porque Laura em mim fazia todo e qualquer sentido.
Esbarramos na mesa, espalhamos os papéis, afoitos, loucos por
aquele sentimento que nos dominava quando nos encontrávamos. Aquilo sim
era entrega, desejo, paixão. Não o que eu vi quando entrei naquela sala.
Puxei a saia para cima, abri suas pernas, explorei as coxas. Laura gemeu,
mas afastou os lábios dos meus.
— Nós não podemos…
— Por quê? — resmunguei ao tentar encontrar os lábios dela outra
vez e vê-la se afastar. — Por causa dele?
— Você sabe que não. Sabe a resposta. Por que insiste nisso?
Ela tentou levantar, mas eu a impedi.
— Olhe para mim — exigi, ela obedeceu sem contestar. — Você
ainda gosta dele?
— Não.
A firmeza em sua voz arrancou todas as dúvidas que perambulavam
em minha mente.
— Você gosta de mim?
Desta vez, Laura não respondeu. Seus olhos desviaram para a janela,
depois para meu peitoral. O silêncio machucava mais do que imaginei. Eu
não identificava a resposta, não sabia o que ela queria ou pensava e isso me
atormentava.
— Namore comigo.
As palavras atropelaram meus pensamentos e saíram por meus lábios
sem que eu pensasse no peso delas. Todavia, quando me ouvi dizê-las, não
tive dúvidas de que era o que eu queria. Laura voltou a me encarar, a
surpresa clara em seu rosto.
— Se você não gosta dele e se… sente alguma coisa por mim,
namore comigo.
— Bernardo…
— Namore comigo, Laura.
— Não.
Ela me afastou. A surpresa pela resposta me fez recuar. Outra vez, eu
não identificava se a sensação era boa ou ruim. Se por um lado havia a ideia
de que ela não me queria, e esse ponto deveria me derrubar na lona, por
outro, ouvi-la negar meu pedido era a certeza que eu precisava para anular
de vez a ideia de que ela e Vicente armavam contra Sabrina e eu.
— Por quê?
— Eu não confio em você.
O suspiro em sua voz demonstrava o cansaço e a luta que travava
para me impedir de avançar. Por isso, eu sorri. Vicente não era uma ameaça
e Laura não precisava daquela merda.
— Mas eu confio em você — revelei. — E manterei Vicente
afastado.
— Isso é um pedido de namoro ou um contrato de segurança?
Ela desceu da mesa, arrumou a saia e o cabelo. A bochecha corada a
deixava mais desejável, linda, perfeita para mim.
— Isso é… uma oferta de carona para casa.
Laura pegou a bolsa e a pasta sem voltar a me olhar.
— Só se você me garantir que não me beijará outra vez.
— Foi você quem me beijou — acusei. Ela ficou sem graça. — E eu
não reclamei.
— Vamos embora, Bernardo.
Ela passou por mim como se precisasse fugir daquilo. Eu a
acompanhei, os passos atrás dos dela, atento a tudo o que ela fazia, como
reagia. Aceso por dentro, louco por ela, desejoso do sim que ela não se
permitia dizer, mas que eu arrancaria dela e depois disso… bom, depois a
vida ganharia outro sentido.
“Era como se o amor doesse em paz”
Carta ao Tom - Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 26
BERNARDO
Laura não conversou durante todo o percurso até a minha casa. Nossa casa.
Que ironia sórdida e cruel. Puxei conversa, provoquei, mas ela se manteve
quieta, pensativa e algumas vezes, digitava rápido uma mensagem, o que me
jogou outra vez na teia da desconfiança, e eu odiava aquela sensação.
Nunca fui inseguro em relação às mulheres, nunca precisei fazer
nada além do que algumas palavras provocantes e sorrisos discretos. Laura
quebrava as minhas certezas, bagunçava meu ego e me fazia pensar em cada
gesto, cada palavra.
— Obrigada pela carona — ela disse assim que parei o carro na
garagem. — Mas amanhã eu irei com Carlos.
— Não há… — Ela não me deu a chance de contestar. Laura saiu do
carro, bateu a porta e correu para dentro de casa.
Respirei fundo, as mãos no volante. Desde quando eu precisava me
esforçar tanto para conquistar uma garota? E desde quando uma garota
resistia dessa maneira a mim?
— Saco!
Deixei o carro, passei pela sala vazia e fui direto para a minha ala.
No instante que fechei a porta atrás de mim, voltei a minha habitual
segurança. Larguei a pasta na mesa da sala, segui para meu quarto e quase
gritei de susto ao encontrar Sabrina sentada em minha cama.
— Pensei que você não chegaria nunca — ela resmungou.
— Quando você teve a ideia de dividir a casa em três, foi para que
tivéssemos privacidade. Para de invadir a minha.
— Não temos tempo para isso, Bernardo.
Minha irmã levantou da cama e me deu passagem. Retirei a gravata e
deixei sobre a poltrona junto com o paletó.
— Laura vai para a viagem?
— Vai.
— Ótimo! Essa será a sua chance. Não faça besteira desta vez.
Encarei Sabrina e me perguntei se ela de fato tinha consciência do
que o marido fazia, no entanto, relembrar a cena, Laura nos braços de
Vicente, o beijo, me incomodou.
— Onde está Vicente?
— Na academia. Precisamos ajustar a questão dos quartos. O seu
precisa sempre estar ao lado do dela.
Continuei a busca de informações através das expressões da minha
irmã. Sabrina seguia com os planos como se não soubesse que o marido agia
de encontro a eles. Outra vez um incômodo estranho em meu estômago me
alertou. Sabrina não sabia o que Vicente fazia? Então ou ele de fato tentava
reconquistar Laura e aplicar mais um golpe, ou… não. Eu não voltaria a
cogitar essa possibilidade.
— Por que você não desiste dessa abordagem e tem uma conversa
sincera com a Laura?
Minha irmã riu com escárnio.
— Pra quê? Para ela rir da minha cara e demonstrar todo o prazer por
se vingar de mim?
— É disso que se trata? Essa questão não se resolve por causa do
Vicente?
— Não resolve porque Laura não superou.
— E se ele for a única maneira de persuadi-la?
Tentei manter a neutralidade em minhas palavras, sufocar a mágoa
que a ideia causava em mim. Mas não perdi a dor que transpassou o rosto da
minha irmã. Não, Sabrina não concordava com o que o marido fazia.
— Isso não está em cogitação — ela rebateu ao tentar esconder de
mim o que sentia.
— Vicente concorda com a sua posição?
— Qual o problema, Bernardo? Lógico que Vicente concorda ou nem
seria mais meu marido. E ele está nessa com a gente.
Eu queria contar, dizer cada detalhe do que vi na sala que Laura
ocupava. Queria que Sabrina conhecesse a verdade e, ou abrisse o jogo
comigo e confessasse que agia com o marido pelas minhas costas, ou tivesse
total noção do quanto Vicente não prestava. Contudo, no segundo em que
abri a boca para revelar, não consegui.
Depois do acidente, de ver minha irmã em uma posição tão frágil, de
existir a suspeita de que a doparam, somada a ideia dolorosa de que não
existia mais ninguém naquela família além de nós dois, me fez calar. Eram
muitos problemas de uma vez só para qualquer pessoa suportar.
Independente disso, apesar da consciência de que deveria manter aquela
relação com a minha irmã, eu não podia mais enganar Laura, por isso
precisava mudar os planos, antes que fosse tarde demais.
— Eu pedi Laura em namoro — revelei.
Em meu peito um misto de sentimentos, todos amargos.
Primeiro porque pedi Laura em namoro não para fortalecer aquele
plano, e sim por uma atitude desesperada, quando pensei que a perderia para
Vicente e em seguida, quando me dei conta de que poderia perdê-la para
qualquer um. O que significava que… não, eu não pensaria na exatidão
daquela força estranha que me assolava. E segundo porque ela negou o meu
pedido, logo após beijar Vicente.
Engoli com dificuldade quando vi o sorriso esperançoso que se
esticava nos lábios da minha irmã. O rosto de Sabrina se iluminou como se
aquela informação perdida eliminasse o peso daquela guerra.
— Ela negou — informei com pressa e meu estômago revirou
quando o sorriso de Sabrina se esvaiu.
— Negou? Por que negou? O que você fez de errado?
Claro. Tudo o que eu precisava era de um sermão sobre como
conquistar uma mulher, dado pela minha irmã caçula.
— Essa não é a questão. Quando fui à sala de Laura para conversar,
encontrei Vicente com ela.
Outra vez engoli em seco ao perceber que a expressão de Sabrina
modificou muito rápido de apreensiva para raivosa.
— Na sala da Laura? E o que ele fazia lá?
Beijava ela, pensei com sarcasmo ao me permitir aquele breve
segundo de vingança. O mesmo que morreu em seguida. Como convencer
Sabrina a tirar Vicente de cena? Como fazê-la enxergar que o filho da puta
não merecia a nossa consideração? E, em especial, como fazer isso sem
quebrá-la em mil pedaços?
— Eu não sei. Mas se Vicente continuar interferindo, será ele a dar
um jeito nisso.
— Nunca!
A maneira raivosa como ela falou me deixou apreensivo. Não porque
o ciúme de Sabrina fosse algo preocupante, mas por me certificar, mais uma
vez, de que ela não suportaria aquela realidade, ainda que se apresentasse de
armadura em sua persona perfeita de mulher de aço.
— Você sabe que essa guerra tem nome e rosto — provoquei, não
por querer machucá-la, mas porque precisava que ela de fato tirasse Vicente
do meu caminho.
— Laura está encantada por você, mas ela é durona. Nunca vai
admitir que amoleceu para um Quaresma, que se apaixonou. Precisamos ser
mais fortes, incisivos, deixá-la frágil, uma presa fácil.
— Do que você está falando?
— Vamos quebrar a segurança dela. Deixá-la só, dependente de você.
— Sabrina…
— Não se preocupe. Eu dou um jeito nisso — ela disse após longos
segundos em silêncio, mas quando falou, havia uma determinação
assustadora em suas palavras. — Por enquanto, trate de manter Laura
apaixonada. Consiga dela o que combinamos, depois eu penso no que fazer
com o Vicente.
Derrotado, deixei que Sabrina ditasse as regras mais uma vez. Não
por desejar que fosse daquela forma, pelo contrário. Mas de nada adiantaria
bater de frente com a minha irmã, cavar aquela confusão. Dessa forma, optei
por deixá-la imaginar o que fazer e decidi que eu mesmo traçaria meu plano
e resolveria aquele problema.
Só que eu não imaginava que minha irmã iria tão longe.
LAURA
Os dias passaram como um foguete da NASA, com toda velocidade
para cima, com o intuito de rasgar cada camada protetora do meu campo de
defesa e deixando pelo caminho fragmentos que se destruiriam ao cair. Era
desse jeito que eu me sentia quando olhei o relógio e constatei que, mais
uma vez, não chegaria em casa no horário dos mortais.
Jamais imaginei que ser rica e com um cargo de chefia exigisse tanto
tempo de mim. Não era assim que eu imaginava a vida de uma pessoa de
sucesso, com seu sorriso cativante e cliques luxuosos em férias
inacreditáveis, estampadas nas revistas. Eu não tinha tempo, disposição e
coragem nem para caminhar trinta minutos em uma esteira, como eles
conseguiam?
Bernardo, Vicente e Sabrina malhavam todos os dias. Tinham
personal que esculpiam seus corpos perfeitos em uma rotina sagrada,
enquanto eu dormia como uma pedra nas poucas horas que me restavam
após perder um pouco da minha alma na dinâmica profissional na qual me
jogaram.
A batida na porta, naquele horário, todos os dias, não me surpreendia
mais. Bernardo entrou sem que Ilma se desse ao trabalho de acompanhá-lo.
Depois do dia em que me pediu em namoro e eu neguei, ele se manteve por
perto, sem, em momento algum, avançar o sinal.
Havia conforto nisso, afinal de contas, nada em mim recusava a sua
aproximação, com exceção da certeza que eu tinha de que ele cumpria com o
prometido, se dedicava ao máximo para tomar de mim a herança. Logo, se
Bernardo não avançava, poupava a minha força.
Por outro lado, havia também uma boa dose de frustração. Porque
Bernardo não me beijava e derrubava todas as minhas barreiras de uma vez,
porém, tudo nele me seduzia, me encantava e atraía, e ele sabia disso, então
usava cada detalhe como uma arma potente contra o meu juízo nada perfeito.
Ele se aproximava com seu perfume marcante, me tocava com o fogo
que escapava da ponta dos dedos e marcava a minha pele, mesmo que
disfarçado de cortesia, me seduzia com sorrisos que derretiam minha
concentração e com sua voz doce e aveludada, baixa, no timbre certo para
acionar algo dentro de mim que me fazia ter a certeza de que nada me
impediria de ceder a ele, caso ele tentasse outra vez.
Ou seja, Bernardo era um risco real.
Já Vicente, tomei a liberdade de impedir a entrada dele e, quando
Ilma saía, eu trancava a minha sala. Desta forma os encontros que tivemos
foram todos seguros, com Sabrina e seu olhar de raio laser que se pudesse,
me cortaria ao meio, me eliminava da humanidade e resolveria o problema,
não apenas da herança, mas da obsessão do seu marido por mim.
— Pronta? — Bernardo perguntou daquele jeito de quem não queria
nada e ao mesmo tempo, tomaria tudo de mim, até mesmo meu corpo.
Desviei o olhar porque naquele dia, ele usava um terno azul que
realçava seus olhos e me fazia suspirar por tanta beleza em um único corpo.
— Para o quê?
— Como para o quê, Laura? Para a viagem.
Engoli o estremecimento que me atingia todas as vezes que ele
mencionava a bendita viagem e o tempo em que passaríamos longe de tudo o
que me protegia. Também recordava a briga ridícula que travei com Sabrina
quando contei que Fernando nos acompanharia. Ela não contava com isso, o
que fortaleceu a ideia de que tanto ela quanto o irmão usariam aqueles dias
para me aplicar o golpe.
— Ainda tenho dois dias.
— Um final de semana. Isso serve para fazer as malas. E os
relatórios?
— Todos prontos, separados e arquivados. Ilma é incrível.
Vacilei e o encarei com um sorriso genuíno, só para me prender
àquela imagem máscula, atraente e perfeita que tinha tamanha força sobre
mim que se não existisse a gravidade que me prendia ao chão, eu levitaria
para orbitar ao redor dele.
Que merda eu fiz?
Bernardo sorriu ao me ver embasbacada, como sempre acontecia. Ele
se inclinou sobre a mesa, se aproximou de mim, certo de que eu não
conseguiria recuar, mas não me beijou, nem tentou, o que injetou uma dose
extra de frustração em minhas veias.
— Ilma é sim. Por isso meu pai confiava tanto nela. Às vezes eu me
pergunto porque ele deixou isso aqui para você e não para a Ilma, que daria
conta do trabalho com uma mão nas costas.
— Obrigada por salientar a minha incompetência.
Outra vez voltei a encarar o computador, a tela aberta do relatório
que eu precisava enviar todos os dias para a fábrica principal.
— Você não é incompetente, mas nem mesmo meu pai ganhava da
Ilma — ele continuou, imbatível, sem qualquer culpa pelo que dizia. —
Acho que Sabrina, talvez. Mas ele não queria ela no comando.
O incômodo que me atingia sempre que tocávamos naquele assunto,
se apresentou. O Sr. Quaresma confiava na filha e queria que ela assumisse
aquela posição. O problema era Vicente, não Sabrina. E não havia dúvida da
competência da mulher de aço que presidia aquele grupo empresarial. Mas
como separar a Sabrina profissional da Sabrina apaixonada pelo marido?
Esse era um ponto que eu não sabia como resolver.
Aliás, sabia sim, só não queria. A única maneira de dar um fim
àquela loucura era ceder a Vicente e acabar com o casamento deles, no
entanto, como fazer se cada partícula do meu corpo implorava por outra
pessoa? Como manter aquela farsa, aceitar as investidas do marido da minha
ex melhor amiga e esquecer o quanto eu desejava Bernardo e, ao mesmo
passo, detestava Vicente?
— Seu pai perdeu a confiança nela quando descobriu quem era
Vicente — revelei com a voz rouca.
Eu não podia fazer mais do que aquilo, entregar pequenas pistas para
que eles chegassem na conclusão correta.
— E quem é Vicente? — Bernardo incentivou.
Se eu não estivesse atenta, entregaria as cartas e permitiria que eles
encontrassem uma maneira de me enganar.
— Por que você não me diz? Qualquer julgamento meu terá o peso
da minha história com ele.
Bernardo puxou a cadeira e sentou à minha frente, separados pela
mesa, o que não impedia meu corpo de reconhecer o dele. Que loucura!
Aquilo não era normal, não era nem saudável. Como eu podia ter
consciência de que ele era o inimigo e ainda assim, deixar que minhas
células entrassem em transe todas as vezes que aqueles olhos azuis se
fixavam nos meus? Como minha pele desejava tanto um toque enquanto
minha mente alertava do perigo que seria a mínima junção da dele na
minha?
— Para mim? Vicente é um idiota que brinca de marido da minha
irmã. Ou, era assim que eu o via, mas depois daquele dia…
Meu rosto esquentou com força ainda que eu lutasse para manter a
dignidade diante da lembrança de quando ele me surpreendeu nos braços do
cunhado.
— Vicente vai para onde o dinheiro está — eu comentei sem receio,
certa de que não seria nenhuma novidade para Bernardo aquela declaração.
— E como você se sente com isso?
— Nossa, até parece que estou em uma sessão de terapia.
Eu me afastei o máximo possível, encostada na cadeira e com os
braços longe da mesa onde os dele estavam.
— Você faz terapia?
— Essa não é a questão.
Fechei os olhos e balancei a cabeça para fugir do encanto que ele
jogava sobre mim sempre que se aproximava, porque foi isso o que ele fez.
Certo da minha fragilidade, se inclinou outra vez sobre a mesa e manteve o
olhar firme em meu rosto.
— Eu sei que tudo o que conversarmos aqui chegará até Sabrina.
— Nem tudo. Eu não contei a ela que você e o Vicente…
— Não aconteceu nada — rosnei, porém consegui impedir que as
palavras “deveria contar”, saíssem pelos meus lábios. — Mas eu me
pergunto se não deveria deixar acontecer.
Bernardo se afastou, os lábios apertados e o olhar afiado como uma
acusação terrível. Suas mãos abandonaram a mesa e se cruzaram sobre o
abdômen perfeito.
— Se eu fingir que Vicente é bem-vindo e com isso fizer com que
Sabrina descubra o marido escroto que tem, matarei dois coelhos com uma
cajadada só. Ela se separa e ficará livre daquele traste e eu o jogarei na
sarjeta, que é de onde não deveria sair. Sem contar que seria uma deliciosa
vingança.
— Essa é a questão?
Ele se mantinha naquela posição defensiva, sério e aborrecido.
— Não, não é. Mas não posso mentir que seria interessante — menti.
— Eu preferiria que você deixasse o Vicente longe disso. Não que,
devido às circunstâncias, eu ainda o quisesse como cunhado, mas só de
imaginá-lo com as mãos em você tenho vontade de eu mesmo jogá-lo na
sarjeta.
A revelação me chocou. Apesar da placa luminosa que acendia em
minha tela mental com um grande e vermelho sinal de perigo, meu corpo
amoleceu e nada impediu o calor que me tomava de escorregar por minhas
veias como fogo líquido.
— Eu sei. Você também tem um objetivo bem definido — acusei,
apesar de me segurar para não pular a mesa e me jogar sobre ele.
O que fizeram comigo?
— Tenho. Você deveria confiar mais em mim.
Revirei os olhos como provocação, mas também, para quebrar aquele
encanto miserável e tentador.
— Eu não menti para você, Laura. Quero a herança de volta, mas
quero você junto com ela.
— E eu sou a idiota que acredita nesse conto para crianças bobas que
sonham com um príncipe encantado.
— Se levar em consideração que nunca me encaixei nesse papel…
— ele deu de ombros, mas sorriu daquela maneira que fundia meu cérebro.
— Pois é. Você é o vilão. Vou me lembrar deste detalhe.
— Eu sou o anti-herói. Não curto isso de seguir as regras, mas no
final, fico com a mocinha.
— Bernardo você é…
Não terminei a frase. Meu telefone tocou. A luz indicava ser uma
ligação de Ilma. Aproveitei a deixa para me livrar daquela conversa que
tendia a finalizar da maneira que meu corpo pedia, mas eu evitava.
— Oi, Ilma.
— Srta. Lacerda, sua irmã na linha. Ela disse que tentou ligar para o
seu celular várias vezes e não conseguiu.
— Pode passar.
Sem entender o motivo para Bruna me ligar com tanta insistência,
procurei pelo celular e o encontrei descarregado. Droga!
— Laura — minha irmã disse do outro lado da linha antes que eu
conseguisse falar qualquer coisa. E pelo seu tom, um arrepio transpassou
minha coluna e me fez levantar com pressa.
— Bruna, o que foi?
— É a mamãe — ela disse com voz de choro. — Ela passou mal. Eu
a trouxe para o hospital, mas…
— Qual hospital?
Bernardo levantou ao entender o teor da conversa. Eu anotei o nome
que minha irmã me passou, trêmula, incerta sobre a minha capacidade de
encarar aquela situação.
— Venha logo, por favor. Os médicos disseram que ela pode ter
ingerido veneno.
Encarei Bernardo e não sabia mais se o matava ou se aceitava a sua
ajuda.
“Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!”
A brusca poesia da mulher - Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 27
BERNARDO
CAPÍTULO 28
LAURA
Não houve surpresa com a chegada de Bernardo, uma vez que Fernando
enviou uma mensagem para me atualizar sobre o que ocorria em minha casa.
Mas ele chegou no momento mais delicado, quando o médico nos informava
que o veneno ingerido por minha mãe foi o beladona, oriundo da planta, que
em pouca quantidade não fazia mal a ninguém, mas que com conhecimento,
matava quem a ingerisse.
— E como ela bebeu isso? — Bruna se apressou a falar. — Todos na
casa comeram a mesma comida.
— Um café, um chá, suco, até mesmo na água — o médico sugeriu
com cuidado. — Não há dúvidas quanto à substância, agora a polícia se
encarregará de descobrir quem a utilizou para que chegasse até a sua mãe.
— E como ela está? — Eu me apressei a saber.
Havia em mim a necessidade de matar quem fez aquilo com minha
mãe, ao mesmo tempo, eu necessitava de paz para cuidar dela primeiro, me
certificar de que não haveria mais o risco e só depois disso agir.
— O quadro dela é estável. Ministramos o antídoto a tempo, mas
exige alguns cuidados, por isso vamos mantê-la na UTI esta noite, até que os
efeitos principais estejam controlados. Também precisamos sedá-la. O
envenenamento por beladona causa alucinações, dentre outros sintomas que
necessitam de cuidados.
— Nós não vamos passar a noite com ela? — Bruna perguntou,
chorosa.
— Não. Mas fiquem tranquilas que avisaremos se houver qualquer
alteração no quadro.
— Não podemos nem entrar um pouco para ver como ela está? — eu
pedi, cheia de receio.
— Eu posso autorizar, mas precisam ser rápidas. Ela teve uma
taquicardia preocupante, além das questões respiratórias. Portanto não se
assustem por termos entubado.
— Entubado? — Foi Bernardo quem disse, tão preocupado quanto eu
e minha irmã.
— Para garantir.
O médico autorizou que apenas eu entrasse, já que Bruna era menor
de idade. Minha irmã ficou com Bernardo, o que não me deixava nada
confortável. Ainda mais com a ideia que se formava em minha cabeça.
Eu me paramentei como o médico solicitou e entrei para ver minha
mãe. Não foi nada fácil. Segurei o primeiro soluço de choro.
— Ela está…
— Com a pele ressecada — o médico completou a minha fala. — É
normal. Em alguns casos chega a descascar e nós recomendamos que evite o
sol para não formar cicatriz.
— Meu Deus! — sussurrei, a mão sobre a dela, sem tocá-la, incerta
quanto a causar dor com o mínimo contato.
— Sua irmã não soube me responder, mas quais medicações sua mãe
toma?
— Ah, algumas. Pra pressão, açúcar, hipotireoidismo… — então
narrei os nomes que chegavam a minha mente confusa. — Não há beladona
em nenhum desses, há?
— Não que eu me lembre, mas é importante investigar. Independente
disso, se ela tomava a dosagem correta, prescrita por um profissional, não há
este risco.
— Ela usa um colírio também.
— Ficamos com a mesma dúvida. O risco de envenenamento por
colírio é mínimo. Ela mandou fazer as fórmulas ou comprava na farmácia?
— Na farmácia.
— Diminui as chances.
— Entendo. Mas ainda precisamos descobrir como alguém
conseguiu envenenar só ela em uma casa repleta de empregados.
— A polícia vai descobrir — ele disse para me acalmar.
Eu não sabia se a polícia descobriria, mas eu, com certeza, não
deixaria o trabalho todo para eles. Era hora de cortar aquele mal de uma vez
por todas.
CAPÍTULO 29
BERNARDO
Assim que entrei no meu quarto de hotel tratei de iniciar o plano que tracei
no intante que aconteceu a tentativa de assassinato de Sara. E eu tinha
muitos motivos para pensar e fazer tudo o que me propus a fazer. Por isso
liguei para Sabrina, pedi para que ela me encontrasse em meu quarto e que
fosse sozinha, o que não foi um problema, pois Vicente, incomodado com a
agitação do final do dia, agendou um massagista e desfrutava dos luxos
ofertados no estabelecimento.
Sabrina não demorou a chegar. Assim que abri a porta, conferi seus
olhos vermelhos e a mesma apatia de antes. Não havia como levantar
qualquer suspeita contra a minha irmã. Não quando ela se deixava ver tão
frágil.
— Tem notícias da Sara? — ela perguntou quando fechei a porta.
— Ela está na UTI, mas os médicos conseguiram identificar o
veneno rapidamente e aplicaram a medicação para reverter o quadro.
— Graças a Deus! — Sabrina suspirou e sentou no sofá. — Quem
faria algo deste tipo com a Sara?
Encarei minha irmã como se quisesse ler a alma dela, arrancar de
uma vez por todas as minhas suspeitas. E, mais uma vez, só enxerguei
inocência. Com o corpo todo dolorido devido a tensão, desfiz a minha
gravata e sentei no sofá à frente dela.
— Só existem três suspeitos, Sabrina — comecei. Ela arregalou os
olhos, mas quando intentou argumentar, eu a interrompi. — Vamos ter a
conversa mais honesta que já tivemos em toda a vida
— Eu não fiz isso — ela foi firme em sua afirmação. — Posso não
querer aquela família na nossa casa, mas não seria capaz de envenenar uma
pessoa para conseguir isso, Bernardo. Quem pensa que eu sou?
— Eu também não fiz. Para ser honesto, desisti de lutar contra Laura,
a herança e a vontade do nosso pai, há tempos. Portanto, se você garante que
não fez e eu tenho a consciência limpa…
— O que quer dizer… Não. Vicente nunca faria algo do tipo — ela
afirmou horrorizada.
— Tem certeza? Vicente tem muito interesse em colocar a herança e
o comando das empresas em suas mãos outra vez.
— É claro que ele jamais faria nada contra Sara. Ela foi sogra dele.
— Por quem ele não teve qualquer respeito ao trocar a filha dela por
você. Ora, Sabrina! Nós dois sabemos que Vicente não é nenhum inocente.
Conhecemos a ganância dele.
— Você está com ciúmes por causa da Laura — acusou, de repente
mais aborrecida do que abatida.
— Eu estou com ciúmes, mas não chegamos neste ponto. Eu, você e
o Vicente entramos nesse jogo tosco para recuperar a herança. A polícia sabe
que tentamos reverter a situação e que, lógico, algo deste tipo quase nunca
acontece na vida real, logo, uma técnica em enfermagem que nem pertence a
família, herdar 50% de tudo o que nosso pai construiu, é o suficiente para
nos colocar como principais suspeitos. Por isso eu tenho que perguntar: você
fez alguma coisa?
— Não! — rebateu com raiva e se levantou do sofá para se afastar de
mim. — Eu vou relevar essa sua insistência porque sei que está encantado
pela usurpadora.
Respirei fundo e me esforcei para ignorar o comentário da minha
irmã.
— Na última vez em que conversamos sobre esse plano louco, você
me disse que precisávamos fragilizar Laura, fazer com que ela se sentisse
fraca o suficiente para aceitar a minha oferta.
— E daí?
— E daí que foi exatamente o que aconteceu.
Sabrina se voltou para mim, não com olhos de felicidade ou
esperançosos, mas atentos.
— Ela aceitou te namorar?
— Não. Você acha que Laura tem cabeça para pensar nisso agora?
Tudo o que ela quer é distância de qualquer um com o sobrenome Quaresma.
— Mas…
— Você me disse que faria isso e em seguida alguém envenena Sara.
— Mas eu não fiz nada.
— E Vicente?
— Claro que ele não fez.
Suspirei com pesar. Era hora de abrir o jogo com a minha irmã.
— Você contou a ele a nossa conversa?
Sabrina ia responder, porém se deu conta de onde eu queria chegar
com aquela pergunta. Seus olhos já amedrontados ficaram maiores e ela
chegou a levar a mão à boca, o que, para mim, era a confissão que eu
precisava.
— Ele não fez nada — ela sussurrou sem qualquer convicção. —
Vicente tem um milhão de defeitos, mas matar alguém… a Sara! Não, ele
não fez isso.
— Sabrina, sente.
— Não. Eu preciso…
— Sente. Agora eu preciso te contar uma coisa.
Minha irmã, de maneira incomum, obedeceu. No geral Sabrina dava
as cartas, dizia como deveria ser, contava as novidades e tratava dos nossos
interesses. Pela primeira vez, eu assumia o papel de irmão mais velho, do
cara responsável e disposto a qualquer coisa para salvar o que restava da
minha família.
— Naquele dia…
Narrei para Sabrina o que aconteceu na noite em que entrei na sala de
Laura e a encontrei nos braços de Vicente. Apesar de me incomodar com a
lembrança, não escondi nada, nem mesmo quando toda a expressão da
minha irmã mudou de abatida para raivosa. Salientei a reação de Vicente, a
maneira como ele se comportou sem se importar com a minha presença, sem
tentar esconder o que aconteceu, depois o que Laura me disse.
— Aquele… — ela se calou, prestes a explodir, e se pôs de pé outra
vez. — Essa ideia de seduzir a Laura partiu de você. Foi você quem disse
que era ele quem ela queria.
— Não seja a irmã burra a esta altura do campeonato, Sabrina. Você
conhece o marido que tem.
— Conheço o suficiente para saber que ele preferiria dar um golpe na
Laura a me deixar por ela.
— Será? Não foi o que pareceu.
— Eu sei que Vicente jamais quis voltar para a Laura.
— Porque ela era pobre e nada podia oferecer a ele — provoquei.
— Tudo bem. Temos duas situações aqui. Vicente pode enxergar em
Laura mais vantagens do que enxerga em mim, ou… pode ele mesmo estar
disposto a resolver essa situação e enganar Laura para recuperar a herança.
Ela levou as mãos a cintura e me encarou em desafio, quando na
verdade, se esforçava para esconder de mim o quanto tremia e o abalo
causado pela revelação. Eu quis abraçar minha irmã e dizer que estava tudo
bem, que ela ficaria melhor sem o Vicente, entretanto, conhecia Sabrina bem
demais para saber que ela jamais aceitaria aquele tipo de conforto. Por isso
me mantive no lugar e dei andamento à conversa.
— O que nos leva ao início desta conversa.
— Vicente não envenenaria ninguém — ela rebateu com raiva.
— Mas se ele quer resolver a situação, não hesitaria em fragilizar
Laura.
— Bernardo… eu… é melhor essa conversa acabar aqui.
Ela caminhou, apressada, até a porta. Eu levantei, decidido a não
deixar a conversa acabar daquela forma. Sabrina precisava abrir os olhos
para o marido.
— De uma forma ou de outra, a polícia chegará a um de nós três. Eu
sei que não fiz nada que possa me incriminar e espero que essa merda não
respingue em você, irmã.
Apesar de ter parado para me ouvir, ela não se voltou para mim outra
vez. No instante que me calei, Sabrina abriu a porta e deixou o quarto. Caí
sentado no sofá, tão cansado que desejei ficar ali até o dia seguinte, porém,
não havia como. Eu tinha que ir até o final.
Não houve qualquer dificuldade em subir até o andar onde Laura se
hospedou. Todos os porteiros me conheciam, e não apenas por causa das
minhas visitas para entreter os convidados. Muitas vezes utilizei um dos
apartamentos do grupo para minha satisfação pessoal, com garotas e festas
que ultrapassavam o limite do decoro.
Eu só esperava que Laura não tivesse conhecimento desta
informação, ou eu jamais teria a sua confiança.
No espelho do elevador conferi a minha imagem. Só me dei ao luxo
de tomar um banho e trocar de roupa, pois não queria me apresentar para
uma conversa tão séria com a cara de ontem. Além do mais, vestido de
maneira informal não teria o peso de tudo o que eu precisava confessar.
Toquei a campainha e aguardei. Laura demorou a se aproximar. Eu
ouvi quando ela se encostou na porta e conferiu a minha imagem pelo olho
mágico. Depois disso, alguns segundos de tortura, como se ela deliberasse se
deveria ou não abrir a porta para mim, até que a decisão final chegou e me
deixou aliviado.
Ela abriu a porta, mas não o suficiente para me deixar entrar. Olhou
para mim com todas as suas dúvidas, raiva e temores, depois conferiu o
corredor que continha apenas mais um apartamento.
— O que faz aqui, Bernardo?
— Podemos conversar?
— Agora? Não pode ser amanhã? Eu estou…
— Por favor.
Meu pedido a pegou de surpresa, então Laura olhou para trás e,
finalmente, me deu passagem. Não havia nada de novidade para mim
naquele apartamento. Tudo continuava igual a quando estive ali meses antes,
para uma das aventuras mais loucas que já me permiti vivenciar. No mesmo
instante fiquei envergonhado. Laura passou na minha frente e foi até a sala,
para o sofá onde… melhor não pensar nisso.
— E então? — ela perguntou sem paciência. — O que de tão urgente
tem para falar?
— E Bruna?
Vi como minha fuga a deixou desconfortável.
— Dormindo. E era o que eu ia fazer quando…
— Laura, eu preciso te contar uma coisa — fui direto ao assunto. —
Talvez não seja surpresa para você ou… não sei. Mas eu preciso te contar
porque isso já foi longe demais.
— O que quer dizer?
Ela ficou tensa de imediato, os braços se cruzaram na frente do peito
e, se antes intentava sentar, desistiu.
— Você vai me odiar, mas…
— Fala logo de uma vez — rosnou.
Então contei a Laura sobre o plano. Contei como eu, Sabrina e
Vicente nos comprometemos com a ideia de fazê-la nos devolver a herança.
Do motivo para eu ter me aproximado, investido na sedução, de como
funcionaria o plano. E quando acabei, precisei encarar aqueles olhos repletos
de lágrimas e as feições que demonstravam a sua decepção.
— Por que me contou? — ela disse com a voz rouca de quem segura
o choro.
— Porque… eu queria te dizer que foi por causa de hoje, mas não é
verdade — admiti. — Eu desisti do plano há um tempo, mas Sabrina e
Vicente estavam obstinados. Ela me cobrava uma atitude, por isso pensei
que… a gente começava a se entender e eu queria…
— Ficar com os dois — ela completou sem eliminar a dor. — Eu e a
herança.
— Sim. Como eu te disse.
— Não espere compaixão por ter sido honesto.
— Não espero — confessei. — Mas também não quero mais que
aconteça.
— Então você confessa que tentaram envenenar minha mãe?
Havia uma nota de horror em sua voz que me atingiu com força.
— Não!
— É nisso que quer que eu acredite? Faz parte do plano me enganar
para limpar a barra de vocês? Isso não vai acontecer.
— Eu quero que você faça o que quiser, Laura. — Fui mais firme. —
Estou aqui porque cansei de deixar que as pessoas me maltratem por causa
dessa porcaria de herança.
— A polícia está ciente… — ela tentou, a voz embargada.
Com uma angústia que não sei descrever, alcancei Laura e segurei
pelos braços.
— Eu sei. Eu mesmo contei a eles que contestamos o testamento.
Mas nem precisava, qualquer um poderia fornecer essa informação a polícia,
contudo, eu falei das câmeras, entreguei as imagens, fiz tudo o que estava ao
meu alcance para encontrar quem fez isso com Sara e estou aqui, agora, para
te dizer que tenho a minha teoria.
Ela se libertou com um supetão e me afastou com raiva.
— Claro. Agora os ratos começam a pular do barco — acusou.
— Pense como quiser. Independente da sua acusação, não fiz nada
para obstruir a investigação, me coloquei à disposição e sei que nada, nada
mesmo, me ligará a essa atrocidade que fizeram com a sua mãe. Você pode
não me enxergar com bons olhos, mas Sara me criou, ela foi a única que
ficou quando tudo parecia desmoronar e eu jamais, por motivo algum, faria
mal a ela. No mais, a polícia tem tudo o que precisa para me riscar da lista
de suspeitos.
— E essa é a sua teoria? Você mesmo acabou de confessar que junto
com Sabrina e Vicente planejou a minha ruína.
— Planejamos recuperar a herança e isso não é novidade para você,
Laura — rebati, tão aborrecido quanto ela.
— Certo, se não foi você, quem foi? Quem você vai acusar para
livrar a sua cara?
— Ninguém.
Puxei o ar com força e me arrependi no mesmo instante. Laura
cheirava a lavanda, ao frescor de uma pele recém banhada. Céus, como eu
nunca olhei melhor para essa garota? Como nunca percebi a sua beleza, a
sua vivacidade, a luz que brilhava nela, mesmo que enfurecida?
— Eu disse que era uma teoria, não uma acusação.
— Muito bem.
— Vicente.
— Ah, claro!
— Pare de ser tão dura e preste atenção no que eu falo!
— Porque até agora você só falou bobagens.
Doeu. Não porque Laura não se importava com o que eu tinha para
falar, mas porque até ela, justamente ela, não acreditava na possibilidade de
Vicente agir de forma monstruosa, o que, para mim, só significava uma
coisa: ela ainda gostava dele.
— Você e Sabrina se merecem. São mulheres de bandido — acusei e
no mesmo instante recebi um tapa no rosto, tão forte que me fez virar o rosto
e fechar os olhos para conter a minha fúria.
— Nunca mais repita isso — ela grunhiu.
— Pois saiba que acabei de ter uma conversa honesta com Sabrina.
Contei a ela o que vi naquela noite em sua sala e sabe o que descobri?
Aquilo não fazia parte do acordo. Vicente agiu sozinho. Se para te enganar e
devolver a herança a Sabrina ou ficar com você e tudo o que levou de nós,
eu não sei dizer, mas ele agiu por nossas costas. Da mesma forma como
pode ter feito agora. Sabrina disse a ele que a única maneira de te desarmar
era te tornar frágil, te atingir ao ponto de você encontrar em mim o apoio que
precisava.
— Então Sabrina…
— Não. Ela não fez nada. A polícia também vai constatar isso. Mas
Vicente… pense bem, Laura. Vicente é capaz de tudo para manter a vida de
luxo que ostenta.
— E você e a sua irmã? Vai me dizer que são casos diferentes?
— São casos diferentes.
— Por quê?
— Porque eu me apaixonei por você!
Rebati sem pensar, no entanto, mesmo que tivesse total certeza de
que o momento não colaboraria para convencê-la dos meus sentimentos, não
me arrependi de expressá-los.
Laura recuou com a revelação. A raiva desapareceu do seu rosto,
assim como todo o sarcasmo utilizado desde a minha chegada. E eu não
resisti. Nunca resistiria ainda que a oportunidade fosse mínima, ou que
arriscasse receber outro tapa.
Com Laura desarmada e ainda no impulso do calor do nosso debate,
dei o passo que nos separava e a segurei contra meu corpo. Ela não me
impediu, não reagiu, só arfou, e aquela era a reação que fazia com que tudo
em mim buscasse tudo nela.
Beijei Laura com uma única certeza: eu a queria. Queria tanto que
doía imaginar não tê-la, construir uma vida sem ela ou… voltar a vida que
eu tinha, a qual desaparecia das minhas lembranças como se fosse um
passado que eu quisesse apagar. E quando meus lábios tomaram os dela,
quando nossas bocas se juntaram, ela cedeu.
Por um segundo, eu só quis prová-la, mesmo que por um átimo do
nosso tempo e depois lidar com a sua reprovação, com as consequências da
minha ousadia. Mas Laura cedeu. Seus lábios aceitaram os meus como se
não houvesse outra reação apropriada, sua língua acariciou a minha, seu
gosto se espalhou por minha boca, acendeu meus sentidos, meus instintos,
apagou qualquer outra situação que não fosse relacionada à maneira como
nossos corpos se colavam, como nossas mãos se buscavam e como o beijo…
ah, o beijo, comprovava que sim, existiam pessoas feitas umas para as
outras, a química perfeita e inalterável, a combinação que jamais se
associaria a outro com tamanha maestria.
Laura era isso, o meu molde, o meu complemento, a minha metade.
Ela gemeu em meus lábios, tão entregue que não acreditei que
conseguiria se afastar de mim algum dia, mas ela se afastou. Após a entrega
sôfrega, o cunhão de consciência que a fez desviar o rosto e me impedir de
tomá-la.
— Não — ela disse, ainda fraca, incerta quanto a sua decisão.
— Laura…
— Não, Bernardo. Por favor.
Foi o suficiente. Eu a deixei, me afastei um passo, apenas um. Era o
que eu suportaria naquele momento.
— Você não acredita em mim — afirmei o óbvio.
— Não — ela respondeu sem me olhar.
— Ainda assim sente o mesmo.
— Bernardo…
— Tudo bem. Eu espero, Laura. Sei que o momento não ajuda, então
deixarei que o tempo e minhas ações comprovem as minhas palavras.
Ela me encarou e eu pude enxergar o brilho das lágrimas que
segurava com bravura. Sim, aquele beijo a impactou tanto quanto a mim. A
ideia me deixava em êxtase e ao mesmo tempo, morto de medo. Eu queria
levar Laura para longe, protegê-la, guardá-la até que mais nada ameaçasse a
sua vida, ou o que tínhamos para viver. Porque eu queria tanto que assim
fosse que me desesperava imaginar que não seria.
— Como eu posso acreditar em você? Tudo nessa história está
coberto de mentira, de falsidade, de erros e segredos.
A primeira lágrima escorreu. Laura limpou o rosto com reprovação.
— Tudo o que nos trouxe até aqui… essa paixão que diz sentir por
mim, essa… coisa que me faz te querer por perto, é tudo mentira, Bernardo.
Um amontoado de mentiras que no final das contas, o que deveria corrigir,
vai destruir tudo.
— Do que está falando?
— É melhor você ir embora.
Ela se afastou, desta vez, com uma distância maior do que eu seria
capaz de abrir entre nós dois. Um nó estranho se fechou em minha garganta,
porque era como se Laura reerguesse o muro que nos separava.
— Tudo bem. Mas preciso te fazer um último pedido.
Ela ergueu o rosto e esperou com toda a sua capacidade de se manter
imparcial naquele conflito.
— Para a sua segurança, enquanto nada disso estiver solucionado,
sustente a ideia de que faço parte do seu grupo de inimigos.
— E quem disse que a realidade é diferente disso?
Eu sorri, deliciado com a sua força e também com os sentimentos
que ela reprimia por não aceitar nutri-los. Laura perdeu um pouco da sua
altivez e precisou desviar o olhar, o que ganhou ainda mais a minha atenção.
— Enquanto Sabrina e Vicente acreditarem que eu estou no jogo,
teremos mais chance de encontrarmos o culpado — revelei antes de sair.
Laura nada disse, porém eu sabia que estava no caminho certo.
“Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho.”
Tomara - Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 30
LAURA
Bernardo saiu, como eu pedi, ainda que não conseguisse entender como tive
tamanha força de vontade para afastá-lo enquanto minha mente se dissolvia
no êxtase de tê-lo em meus lábios e pela paixão declarada, ainda que eu
soubesse que não podia acreditar naquilo.
No instante em que ele me puxou, que sua pele tocou a minha, que
sua boca me beijou, a confusão dentro de mim silenciou, os medos
evaporaram, as certezas deixaram de existir. Eu o queria como queria a paz
que busquei durante toda a minha vida, com a mesma gana que lutei contra o
mundo, que almejei minha vitória, que construí sonhos.
Engraçado que depois de Vicente, nenhum relacionamento ou até
mesmo ideia de algo parecido fazia parte do meu planejamento de vida. Eu
focava em trabalhar, estudar, manter Bruna na linha e aliviar o peso das
costas da minha mãe. Seria assim se nada daquilo tivesse acontecido. Se o
Sr. Quaresma não quisesse se vingar dos filhos com aquele testamento e em
seguida, me envolvido naquela confusão com a carta que, para o bem da
verdade, colocou minha mãe na UTI de um hospital.
Porém, por mais que eu tivesse consciência de toda aquela realidade,
dos erros e das loucuras que aceitei viver, todo e qualquer plano traçado até
aquele momento se perdeu quando Bernardo me beijou. Eu não queria, mas
ele se tornou o ponto acima dos outros, mesmo que eu evitasse olhá-lo ou
desejá-lo, ele estava lá, no topo da minha lista de desejos, de objetivos, como
uma meta a ser atingida para que a minha vida tivesse sentido.
E não podia ser desta forma. Não podia.
Bastava apenas me convencer disso.
Quando a porta bateu eu caí sentada no sofá e afundei o rosto nas
mãos. Que bosta de dia! Com tantas coisas ruins, eu deveria chorar por
minha mãe no hospital, pela tentativa de assassinato que ela sofreu e não por
não ter Bernardo em minha vida. E, mesmo assim, era por isso que eu
chorava, porque eu o queria. Queria com toda a minha força que fosse
verdade, que a paixão declarada servisse como mágica capaz de mudar
nossos mundos, de apagar as diferenças e o passado desajeitado pela maneira
como começamos.
Eu queria que Bernardo me amasse porque eu o amava, e odiava
amá-lo. Não era justo, pelo contrário, era cruel, desumano demais. Que
espécie de brincadeira era aquela do universo, em que eu me apaixonaria
pelo meu algoz? Como podia Deus, em sua imensa sabedoria, permitir que
aquele tipo de tentação cruzasse o meu caminho e ameaçasse desmoronar
cada pedaço da minha vida?
Não tive tempo de aguardar pela resposta. Enquanto, de maneira
humilhante, lambia minhas feridas e buscava algum resquício de equilíbrio,
a campainha tocou outra vez e quebrou a tentativa do meu cérebro de me
restabelecer. Limpei as lágrimas, respirei fundo e fui até à porta. Precisava
ser forte para enxotar Bernardo de lá de uma vez por todas, mas quando abri
dei de cara com o inacreditável: Vicente.
— O que faz aqui? — sussurrei, impedida de reagir pelo impacto.
— Laura…
Ele não fez como Bernardo e simplesmente entrou no apartamento
sem aguardar pela minha permissão. Mesmo atônita, recuei e deixei que ele
me conduzisse. Vicente fechou a porta atrás de si e me encarou com aquele
mesmo olhar esfomeado que dirigia a mim muito antes da loucura da
herança acontecer.
— O que quer aqui, Vicente?
— Como Sara está?
— Veio confirmar se deu certo o seu plano?
— Laura… acha mesmo que eu teria coragem?
Seu rosto demonstrava decepção e a voz continha o tom de dor que
iludiria qualquer um. Mas aquele era Vicente, o mesmo homem que jurou
me amar em um dia, e no outro, me deixou para ficar com a minha melhor
amiga. Era o mesmo cara escroto que me assediava e agarrava dentro da casa
onde vivia com a esposa, como se pudesse me fazer de amante, da mesma
forma como não desistiu de me enganar quando tentou me seduzir para ficar
com o dinheiro que acreditava que herdei.
Rapidamente as palavras de Bernardo, “enquanto Sabrina e Vicente
acreditarem que eu estou no jogo, teremos mais chance de encontrar o
culpado”, ecoaram em minha cabeça.
— Você, Sabrina, Bernardo… quem mais vocês envolveram nesse
plano sórdido?
— Laurinha, eu jamais faria nada contra a sua família. Sara foi como
uma mãe para mim.
As mesmas palavras utilizadas por Bernardo, no entanto, apesar de
saber que ele também tinha motivos para nos atacar, havia a vantagem de ele
não ter mentido para mim. Bernardo deixou claro que queria a herança, já
Vicente…
— É melhor você ir embora. Sua mulher tentará algo pior se souber
da sua insistência comigo.
Vicente suspirou e sentou no sofá sem ser convidado. Eu só queria
que ele fosse embora. Estava cansada daquela droga, das mentiras, do medo
que todos eles demonstravam de serem incriminados, da farsa que
sustentavam para me convencer a entregar a herança.
— Então você contou a ela sobre nós — ele disse com calma.
— O quê?
— Você contou a Sabrina sobre aquele dia, quando me pediu para eu
deixá-la para ficar com você.
— O quê? — repeti, confusa demais para encontrar coerência
naquela conversa.
— Era o que você queria? Fazer com que ela me deixasse de uma
vez?
Vicente levantou do sofá, o corpo não mais amigável e sim, como
uma ameaça em todos os gestos. No mesmo segundo um calafrio
transpassou a minha coluna.
— Eu não sei do que você está falando.
Ele sorriu, sedutor. Deu dois passos em minha direção, o que me
obrigou a recuar um pouco mais.
— Você finalmente aceitou o que eu disse, não foi?
Outro passo em minha direção.
— Ah, Laurinha, eu sabia que cairia em si. Nós nos amamos! E
Sabrina… caramba, o que ela fez foi absurdo demais para continuar.
— Ah, então você afirma que Sabrina tentou envenenar minha mãe?
— Não sei se ela teria essa coragem. Não com as próprias mãos.
— Olha, Vicente, pra mim já deu!
Eu me posicionei à sua frente, no limite da minha raiva, o dedo em
riste apontado para o rosto impecável do homem que um dia cometi o erro
de amar.
— Eu não ficarei aqui ouvindo vocês se acusarem. A polícia tem as
imagens das câmeras, está com todas as provas sobre os passos de vocês e
logo saberemos quem colocou o veneno e onde, mas não pararei aí. Eu juro
que não sossegarei até que os três estejam atrás das grades.
— Imagens?
Foi a minha vez de sorrir. Vicente não fazia ideia de que na ala em
que eu e a minha família ocupávamos havia câmeras espalhadas. Mas, talvez
fosse um erro demonstrar qualquer emoção diante do que tínhamos naquele
momento, pois ele interpretou o meu sorriso de uma forma deturpada e
avançou sobre mim.
Com pressa, suas mãos alcançaram os meus braços e meu corpo
colou ao dele. Eu gritei por causa do susto, tentei me afastar, mas ele não
deixou. Vicente parecia outra pessoa, outra versão dentre tantas que
demonstrou assumir naquele mínimo espaço de tempo.
— Você me ama, Laurinha. Não tem como negar — ronronou com os
lábios escorregando da minha bochecha até meu pescoço. — A polícia
colocará aqueles dois na cadeia e nós ficaremos livres.
Ele riu, o que me deixou mais nervosa, pois me pareceu que Vicente
não tinha mais qualquer equilíbrio, que ali, finalmente, ele demonstrava toda
a sua loucura.
— Vicente, pare!
Eu tentei, mas ele me agarrava com força, beijava minha pele,
tentava alcançar meus lábios.
— Não! — gritei mais alto.
— Eu sei que você também pensou nisso. Com Sabrina presa, eu
terei toda a parte dela e nós seremos imbatíveis.
— Você está louco?
O desespero começava a tomar conta de mim. Não havia como deter
Vicente e a sua loucura. Bruna dormia no quarto e eu temia que ela
acordasse e ele lhe fizesse mal. Forcei para que me largasse, me debati, sem
conseguir afastá-lo.
— Pare, Vicente! Enlouqueceu? Eu não quero!
— Vai continuar com isso? Vai se fazer de difícil agora? Não tem
ninguém olhando, Laurinha. Hoje nós podemos fazer o que quisermos.
— Mas eu não quero! — gritei mais alto, desesperada, enojada.
E então, quando pensei que nada o faria recuar, um jarro se espatifou
na cabeça de Vicente e o fez cambalear e buscar apoio. Meu rosto ardeu e eu
não sabia se era de medo, pelo esforço, ou se no embalo me machuquei
também. Atrás de Vicente, Bruna me encarava assustada.
— Você está bem? — ela perguntou, ainda em posição de ataque.
Não respondi, segurei uma cadeira e levantei na direção do cretino.
— Porra, Bruna! — ele rosnou.
Vicente tirou a mão da cabeça e havia sangue nela. Bruna soltou um
grito e se escondeu atrás de mim.
— Que porra é essa?
— Bruna, chame a polícia — eu disse sem desviar o olhar dele, em
alerta, pronta para acertá-lo com aquela cadeira até que ele não fosse mais
uma ameaça.
— Você está louca? — ele gritou.
— Não, você está.
— Bruna, desligue esse telefone — ameaçou.
— Chame a polícia — reinterei.
— Eu vim te ajudar, sua cretina — grunhiu ao tentar se aproximar.
Ergui a cadeira para impedi-lo e ele recuou. — Sabrina e Bernardo não vão
parar por aí. Sara era a primeira parte do plano nojento deles.
— Alô, nós precisamos de ajuda — Bruna começou a falar atrás de
mim. Vicente a olhou com raiva e em seguida se afastou de vez.
— Você tem as imagens? Pois então eu vou te dizer: Bernardo
mantém uma amante trabalhando naquela casa. Uma idiota que é capaz de
fazer qualquer coisa por ele, inclusive colocar veneno na bebida da sua mãe.
Ele percebeu que a revelação me deixou em choque e sorriu de uma
forma que me fez estremecer.
— Eles não sujariam as mãos. Os dois têm álibis para se safar, já a
coitada…
Vicente não terminou. Ele aproveitou que não reagimos, abriu a porta
e deixou o apartamento. Por um tempo continuamos na mesma posição, eu
com a cadeira em riste, pronta para nos defender e Bruna atrás de mim,
escondida. Até que nos demos conta de que ele não voltaria mais.
Corri até a porta e tranquei. Meu corpo tremia, minhas pernas
ameaçavam perder qualquer capacidade de me manter de pé. Eu queria
chorar, me desesperar, mas não podia. Bruna precisava de mim e eu já tinha
permitido que merdas demais acontecessem com a minha família. Era hora
de reagir.
Saquei o celular e disquei para a única pessoa em quem eu podia
confiar.
— Fernando? Eu preciso de você aqui.
Capítulo 31
LAURA
CAPÍTULO 32
LAURA
BERNARDO
Poucas vezes na minha vida vi minha irmã tão frágil. Sabrina andava
de um lado para o outro da sua sala, com o celular na mão, tentando algum
tipo de comunicação com o marido. Minutos antes, ela me confessou que
tiveram uma briga por causa do que contei. Vicente foi grosseiro e
indelicado, como nunca era com ela, o que, para mim, deixava a situação
clara.
Após brigarem, ele disse que precisava de espaço e deixou o hotel.
Sabrina dormiu sozinha, e quando chegou à empresa descobriu que o marido
não apareceu para trabalhar. Ela não contou para ninguém, segurou a barra
até aquele instante, quando a procurei para avisar que Juliana, uma das
empregadas da casa que eu não fazia ideia de que existia, fora presa naquela
tarde como principal suspeita do crime contra Sara.
A revelação me chocou, não por não acreditar que alguém ali dentro
agiu, esse ponto não deixava qualquer dúvida, mas porque o irmão de
Juliana conseguiu o meu número e me pediu ajuda, pois eles não tinham
como arcar com um advogado. Prometi retornar e fui até Sabrina para saber
como agir.
Eu queria ligar para Laura e perguntar se ela sabia de alguma
desavença entre sua mãe e Juliana, mas então liguei alguns pontos e, se eu
não fiz aquilo, e Sabrina não fez, apenas Vicente poderia ter feito, no
entanto, eu conhecia meu cunhado o suficiente para saber que ele nunca
agiria na linha de frente, uma prova era o seu comportamento com Laura por
nossas costas. Então tudo ficou lúcido para mim. Vicente não sujaria as
mãos, mas faria com que alguém as sujasse por ele.
— Vicente não fez isso, Bernardo — ela disse ao desligar mais uma
vez a ligação fracassada. — Ele não é burro a este ponto. O que ele
ofereceria aquela menina que garantisse que ela jamais o entregaria?
Eu podia fazer uma lista, porém, preferi não alimentar a dor da minha
irmã.
— O que o irmão dela disse?
Ela fez a mesma pergunta umas três vezes e eu tinha a certeza de que
Sabrina evitava confrontar a verdade.
— Que Juliana não teve culpa.
Abreviei toda a conversa.
O que o rapaz disse mesmo foi que conhecia a irmã, que ela nunca
faria mal a ninguém e que com certeza alguém dentro daquela casa tentava
incriminá-la para abafar outros escândalos. Quais? Eu também tinha a minha
teoria.
— E que alguém tentava incriminá-la. Certo. Como isso chega
mesmo ao Vicente?
— Se excluirmos o pessoal de Laura, já que não podemos levar em
consideração que Laura ou Bruna tentariam matar a própria mãe, restam
como suspeitos, em especial, interessados em abafar escândalos daquela
casa, eu, você e o Vicente.
— E se os escândalos apontados não estiverem ligados a nós?
— E a quem mais estariam?
— Não sei.
Ela voltou a caminhar e, mais uma vez, tentou ligar para o marido.
— Um caso entre os empregados. Isso é bem possível, não?
Poderíamos até…
O telefone sobre a mesa de Sabrina tocou e impediu minha irmã de
concluir seu raciocínio. Sabrina agiu no automático, em poucos segundos
sua voz estava estabilizada e sua postura corrigida.
— Sim? Como? Claro.
Ela desligou, pálida, os olhos esbugalhados.
— O que houve? — perguntei com apreensão. Um milhão de notícias
ruins me alcançando sem filtro. — Sabrina.
— A polícia está aqui.
— Deve ser por causa da Sara. Avise a seu…
Nem tive tempo de instruir minha irmã a chamar pelo advogado dela.
A porta abriu e rapidamente a sala recepcionou seis policiais. Não, aquilo
estava longe de ser uma conversa para apurar detalhes.
— Delegada — minha irmã disse, a postura em seu melhor papel
profissional, contudo, trêmula e sem cor. — Em que posso ajudá-la?
— Seu marido, Vicente. Não o encontramos.
A mulher foi direto ao ponto, o que fez um calafrio percorrer minha
coluna.
— Temos uma ordem de prisão contra ele.
— Prisão? — Sabrina questionou, tão assustada quanto eu. — Por
qual motivo?
— Hoje mais cedo detivemos a senhora Juliana, que trabalha como
empregada na sua casa, corrigindo, na casa da senhora Laura Lacerda.
— Sim, acabamos de saber — minha irmã continuou. — E o que…
— Juliana confessou que colocou o veneno no copo ao lado da cama
de Sara, a mando do Sr. Vicente, seu marido.
— Impossível — Sabrina disse com a voz fraca.
— Sabrina não sabe onde ele está. — Tomei a frente da conversa. —
Vicente deixou o hotel ontem à noite e não retornou mais. Estávamos agora
mesmo tentando contato com ele, sem sucesso.
— E por qual motivo tentavam encontrá-lo?
— Porque ele é meu marido — Sabrina rebateu com raiva. —
Qualquer esposa se preocuparia nessa situação.
— Entendo. Sinto muito, mas a senhora precisará nos acompanhar
até a delegacia.
— Eu?
— Calma.
Fiquei entre os policiais e minha irmã.
— A senhora tem um mandado?
— Não estamos efetuando uma prisão, apenas convidando a senhora
para esclarecimentos. Se preferirem…
— Ligue para o seu advogado, Sabrina.
Minha irmã obedeceu, tremendo mais do que já assisti em qualquer
outro momento da nossa história.
— Nós iremos quando o advogado chegar — informei à delegada. —
A senhora tem certeza de que Vicente é o mandante?
— Este não é um assunto que eu gostaria de tratar aqui, Sr. Bernardo,
mas a garota, a Juliana, mantinha um caso com o seu cunhado há alguns
meses. Ele a convenceu a colocar o que afirmou ser “um remédio para
dormir” no copo da Sra. Sara. Interceptamos as conversas por mensagens no
celular dela e descobrimos que ela fez o mesmo em outro momento, com a
sua irmã.
— Puta merda!
Eu queria buscar mais informações e garantir que a polícia pegasse
Vicente o quanto antes, mas a delegada olhou para além de mim e suspirou,
culpada. Olhei na direção e dei de cara com Sabrina, os olhos fixos em nós
dois, a uma distância que com toda certeza conseguiria ouvir o que
conversávamos.
— Sabrina…
Ela não reagia. As mãos soltas ao lado do corpo, o celular quase
caindo dos seus dedos, a tela indicando que havia uma ligação em curso. Eu
me aproximei, segurei seus ombros e a encarei. Sabrina mantinha a atenção
fixa na delegada, mais pálida do que antes. Uma lágrima escorreu pelo rosto
e ela não tentou enxugá-la.
A porta abriu, olhei para trás e vi Fernando.
— Sabrina — ele disse com urgência na voz. — Meu pai acabou de
me avisar.
Sabrina continuava em seu estado catatônico.
— Cuida disso pra mim? — pedi a Fernando, que concordou,
segurou Sabrina com cuidado e a levou até o sofá. Voltei para a delegada. —
Do que vocês precisam?
E eu estava certo de que não sossegaria até que a polícia encontrasse
Vicente. Depois disso, me certificaria de que ele jamais respiraria do lado de
fora da cadeia.
“Com essa luz que veio me habitar
Com esse fogo que faz arder
Me dá medo e vem me encorajar
Fatalmente me fará sofrer”
Escravo da Alegria - Toquinho / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 33
LAURA
Não tenho como expressar o alívio que tomou conta do meu corpo ao
encontrar minha mãe acordada, livre de tubos, porém abatida e com um
aspecto horrível, devido a reação da pele ao veneno, ainda assim, era a
minha mãe, sem risco de morte, com aquele sorriso seguro e repleto de
amor, que enchia meus olhos de lágrimas.
Bruna se atirou sobre ela como se não existisse nada melhor no
mundo do que estar nos braços da mãe, mesmo que sobre uma cama de
hospital. E eu a entendia. Como censurá-la? Quando abracei minha mãe foi
como se todo o peso que carreguei naquele dia, as culpas e medos,
desaparecessem, por isso chorei como um pedido de desculpa por envolvê-la
naquela loucura e também como gratidão, por ela ainda estar comigo, apesar
de tudo.
O médico não restringiu o horário de visitas, uma vez que minha mãe
foi transferida para um quarto e também por estarmos no melhor hospital da
cidade, e o mais caro, devo ressaltar. O que o dinheiro não fazia? Essa era a
pergunta que eu jamais saberia responder. Antes eu diria “saúde”, contudo,
depois do que passamos, eu tinha as minhas dúvidas. Em um hospital
público conseguiriam salvar a minha mãe? Descobririam com agilidade qual
o veneno utilizado e ministrariam o antídoto com a mesma eficiência? Eu
tinha a desconfiança de que não. A falta de recursos e funcionários
atrapalharia no processo.
Como técnica em enfermagem, eu já vi paciente piorar o estado por
não ter a medicação correta disponível. Já convivi com a falta do básico e de
especialistas. Uma tristeza sem tamanho para um povo que nasce e morre
trabalhando, paga impostos, depende da melhor administração destes e
morre sem conseguir um atendimento.
Empurrei meus questionamentos para o lado, além da tristeza por
saber que a mesma herança que nos amaldiçoou e colocou minha mãe
naquele estado, também a salvou ao permitir a estadia dela naquele hospital,
e tratei de atualizá-la de todo o processo.
Contei sobre a garota, Juliana, que trabalhava como arrumadeira na
mansão Quaresma há pouco tempo, responsável por adicionar o veneno no
copo com água que minha mãe deixava sobre a mesa de apoio ao lado da
cama. Também deixei claro a suspeita da polícia de haver um mandante, mas
não ressaltei os três principais suspeitos.
Não sei porque não acusei Sabrina, Vicente e Bernardo no instante
em que contei tudo à minha mãe. Enquanto estava no quarto com ela, eu
tinha a certeza de que não o fiz porque não queria que seu quadro já sensível,
ficasse pior. Depois que a deixei, entendi que não conseguia acusar
Bernardo, apesar de tudo apontar para ser ele o amante de Juliana e
mandante do crime, em comum acordo com Sabrina e Vicente.
Por que eu não me conformava de uma vez? Por que não conseguia
simplesmente aceitar e finalizar aquela etapa? Com toda certeza a polícia
logo chegaria até ele, então quanto antes eu eliminasse aquele sentimento
sufocante, melhor.
Eu tinha total consciência de que sofreria. Como não sofrer? Sem a
confirmação eu já me torturava por amar o homem que atentou contra a
minha mãe, com a certeza de que ele era o mandante, eu cravaria a faca de
uma vez só no meu coração.
— Vamos para casa? — Bruna perguntou no instante em que a porta
do elevador abriu na garagem do hospital.
— Eu preciso voltar para a empresa. Desculpe. Deixei muita coisa
em aberto.
Bruna fez uma careta como se não suportasse a ideia.
— Mas eu posso te deixar na casa da Maitê, o que acha?
Bruna abriu um sorriso imenso. Desde que nos mudamos não
voltamos a casa da nossa antiga vizinha. Com certeza todos em nosso antigo
bairro acreditavam que ficamos esnobes, mas a verdade é que não houve paz
desde aquele dia e só retornamos porque eu não confiava em deixar minha
irmã sozinha em um apartamento em que todos tinham acesso. A prova disso
era tanto Bernardo quanto Vicente terem subido sem nenhuma permissão.
Só quando peguei o celular para ligar para Noemi, a mãe de Maitê e
amiga querida da minha mãe, percebi que não o liguei desde que deixei a
empresa e resolvi que merecia aquele tempo. Bastou ativá-lo para
notificações apitarem sem parar na tela. Mensagens de Fernando e Bernardo,
estas eu ignorei, e diversas ligações.
Preferi cumprir com o planejado e liguei para Noemi. Nós nos
falamos praticamente todos os dias desde que minha mãe deu entrada no
hospital. Ela queria notícias e se colocava à disposição para ajudar, então
aceitei. Bastou uma ligação rápida, notícias sobre o estado da minha mãe e o
pedido meio sem jeito para que tudo ficasse resolvido.
Carlos nos levou até nosso antigo endereço, aguardou enquanto eu
subia com Bruna, conversava com Noemi sobre a situação e o quadro da
minha mãe e em menos de meia hora seguíamos em direção ao escritório.
Aproveitei e retornei a ligação de Fernando.
— Laura, o que aconteceu? — ele disse preocupado.
— Esqueci o celular desligado, desculpe. Como estão as coisas?
— Loucas.
Meu amigo suspirou com pesar.
Ao fundo, eu ouvia barulho de pessoas e trânsito. Ele estava na rua.
Claro, já estávamos fora do horário de expediente, o que eu podia esperar?
— E sua mãe?
— Bem melhor. Alguma novidade?
— Sim. Juliana confessou.
Ele hesitou, como se esperasse que eu fizesse a pergunta chave,
porém, diante do que eu estava prestes a confirmar, não encontrei minha voz.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto enquanto eu encarava o trânsito do
lado de fora. Doía como se cada pedaço do meu coração se despreendesse e
partisse.
— Laura?
Precisei limpar a garganta para continuar a conversa, e não por
coragem, se dependesse desta eu teria desligado, descido do carro e
caminhado pela cidade agitada, qualquer coisa que me afastasse do que
aconteceria no instante em que Fernando confirmasse meus temores.
— Oi! — Enxuguei a lágrima, mas outras desciam de forma
incontrolável.
— Como eu te disse, Juliana confessou. A justiça expediu o mandado
de prisão. Acredita que a garota acreditava que colocou sonífero na água que
sua mãe beberia? Ela disse que não achou que fosse nada grave porque já fez
o mesmo com Sabrina e…
— Sabrina? Ele teve coragem de atentar contra Sabrina?
Levei a mão ao peito e recordei o incidente da piscina, quando os
exames apontaram a existência de soníferos no sangue de Sabrina. Bernardo
jurou que não encontrou o remédio no quarto da irmã e eu acreditei. Como
fui ingênua! Novas lágrimas desceram e me obrigaram a fungar. Eu não
queria que Fernando soubesse que eu chorava, entretanto, não sabia como
evitar.
— Pois é, mas confesso que não me deixa surpreso — ele disse com
certo desinteresse.
— Como não? Eu estou… aterrorizada!
— Imagino. — Ele suspirou. — Enfim, no celular da Juliana a
delegada encontrou diversas conversas comprometedoras e que
confirmavam tanto o caso entre eles, quanto o plano que levou ao
envenenamento da sua mãe.
Fechei os olhos com força e sufoquei um soluço. Tinha raiva de mim,
da minha inocência, de todas as vezes que permiti que aquela família me
passasse para trás. Se eu pudesse voltar no tempo teria vendido tudo e
desaparecido com o dinheiro. Sim, porque aqueles dois não mereciam o que
o Sr. Quaresma construiu, então abrir mão de cumprir com a vingança dele
não era uma opção.
E como Bernardo pôde dizer que estava apaixonado por mim, me
iludir com a sua falsa verdade, com confissões sobre suas intenções,
enquanto mantinha um caso com Juliana e a envolvia naquele plano
diabólico, tudo para fazer comigo o que um dia Sabrina fez, me deixar sem
nada e sozinha, passada para trás mais uma vez por um Quaresma.
Eu os odiava. Odiava tanto que naquele momento eu queria colocar
uma bomba na empresa e jogar tudo pelos ares. Queria reunir meus
advogados e solicitar que minha parte fosse vendida para qualquer pessoa
desde que não tivesse o sobrenome Quaresma.
— Ele tem que ser muito burro para tratar de algo deste teor por
mensagens — resmunguei no auge da minha dor.
— Bom… também não me surpreende.
— Não é possível que tenhamos visões tão diferentes, Fernando! —
rebati, disposta a arrumar qualquer briga que me tirasse daquela dor.
— Isso não importa agora, Laura. A polícia esteve lá na empresa
porque não conseguiu encontrá-lo em nenhum dos endereços informados,
por isso a partir de agora ele é um foragido.
— Foragido? Como não o encontraram? Quando saí, ele ainda estava
na empresa!
— Na empresa? — A surpresa do meu amigo me deixou
desconcertada. — Tem certeza?
— Sim, tenho. Você…
— Mas Sabrina confirmou que ele não apareceu para trabalhar hoje,
aliás, que ele deixou o hotel ontem a noite e não retornou.
— Quem? Como… espere um pouco. Como Sabrina pode confirmar
que ele não apareceu na empresa se hoje pela manhã Bernardo participou da
reunião conosco?
— Bernardo?
— Sim, ele estava na reunião e…
— Laura, espere um pouco. — Fernando me calou com urgência na
voz. — Não foi o Bernardo. Foi o Vicente.
— Vicente? — sussurrei, dividida entre o alívio e o arrependimento.
— Vicente? Você tem certeza?
— Sim. Juliana confessou tudo e Vicente desapareceu. Claro que eu
deveria imaginar que ele desapareceria. Quando ele foi até o seu
apartamento e…
Fernando falava e falava, mas eu não conseguia mais me concentrar.
Novas lágrimas banhavam meu rosto. Bernardo não mentiu? Ele não atentou
contra a minha mãe? Ele não tinha um caso com a empregada da mansão?
Deus, como um coração suporta tantas reviravoltas? Como em um espaço
tão pequeno cabe sentimentos imensos e inúmeros, todos ligados ao amor, a
felicidade, ao alívio em saber que ele não mentiu para mim.
— Laura?
— Oi! — Desta vez não escondi o choro, nem a alegria que aquela
notícia me levava. Fernando suspirou.
— Eu sei. Apesar de Vicente estar foragido, a melhor notícia do dia
foi Bernardo não ser o culpado.
— Você também acha? — funguei e ele riu com vontade.
— Por você? Sim, eu acho. Você está apaixonada, Laura. Ele
também. Eu ainda não gosto dele, mas tenho que admitir que Bernardo se
empenhou desta vez.
Eu ri e chorei um pouco mais. Desisti de limpar as lágrimas.
— Sim, ele se empenhou — admiti, pela primeira vez, para mim
mesma aquela verdade.
— Agora precisamos tomar algumas providências. Meu pai está
preocupado. Com Vicente foragido, não sabemos o que esperar, portanto
seria bom se você e sua família tivessem maior proteção.
— Você acha que ele pode tentar…
— Eu acho que não dá para imaginar nada agora. Falei com Sabrina,
mas ela se recusou a contratar seguranças. Disse que Vicente não se atreveria
a chegar perto dela outra vez. Bernardo concorda comigo que vocês
precisam reforçar a segurança, por isso ele ficou de providenciar esta parte.
A delegada enviou dois policiais para o hospital. Onde você está?
— Quase na empresa. Deixei Bruna na casa de uma antiga vizinha
nossa. Vou pedir para Carlos buscá-la — planejei, a tensão e o medo
tomando o espaço que deveria ser de felicidade.
— Faça isso. Na empresa você estará segura, mas não saia de lá
sozinha. Eu entro em contato.
— Certo.
Quando Fernando desligou, descansei no encosto do banco de couro
e me senti esgotada. Em poucos minutos, tive uma descarga imensa de
emoções. Eu queria pensar em como me proteger, a Bruna e a minha mãe, ao
mesmo tempo, queria fechar a porta e desaparecer por um tempo.
— Chegamos — Carlos anunciou ao constatar que eu não me movia.
— Vou acompanhá-la até o elevador.
Abri os olhos e encontrei os dele pelo retrovisor. Havia uma
preocupação real expressa em suas íris.
— Você já soube? — ele sorriu tímido.
— Essas coisas correm com o vento, Dona Laura. E eu fico muito
feliz em saber que os meninos Quaresma não possuem culpa no cartório.
Aqueles dois podem ser tudo, mas não são desajuizados. Eu trabalhei com o
Sr. Quaresma durante muitos anos, ouvia todas as queixas daquele pobre
homem, sei de coisas que eles aprontaram que a justiça descobriria — ele
riu, sem jeito. — Mas quando a mãe deles morreu, foi a sua quem ficou para
cuidar deles. Eu tinha certeza de que eles nunca atentariam contra a Sara.
— Eu tive dúvidas — confessei. — Mas fico feliz em não confirmá-
las. Você acha mesmo que Vicente pode tentar alguma coisa?
— Aquele ali nunca foi flor que se cheire, não é mesmo? Eu não sei
do que ele é capaz, Dona Laura, no entanto é melhor prevenir do que
remediar.
— Sim, com certeza.
Carlos desceu do carro e abriu a porta para mim. Eu tentei fingir que
não me preocupava, contudo foi impossível não observar ao redor em busca
de qualquer indício da presença de Vicente. Eu sempre o achei um covarde,
desses que ficavam por trás e observavam os outros se prejudicarem. E foi
desta forma mesmo que ele agiu quando convenceu Juliana a colocar o
veneno.
De maneira nenhuma pensei no Vicente como alguém capaz de dar a
cara a tapa. Se a situação fosse outra, eu poderia até mesmo apostar que
àquela altura do campeonato ele já estava fora do país, afinal de contas,
quando ele esteve no meu apartamento para contar sobre o possível caso do
Bernardo com a empregada, com certeza já sabia que chegaríamos a ela e
utilizou a minha desconfiança para desviar o foco sobre ele e desaparecer.
No entanto, diante de tudo o que aconteceu, não seria prudente
descartar uma atitude movida pelo desespero. Com Vicente como mandante
do atentado, com o caso entre ele e a empregada exposto, ele perdia tudo e
Vicente não era alguém que se contentava com nada.
Um calafrio transpassou minha coluna e arrepiou minha nuca. Olhei
para trás, assustada e encontrei a garagem praticamente vazia. Carlos se
mantinha próximo, também atento. Ele me passou confiança com o olhar e
me guiou até o elevador.
— Fique tranquila. Os seguranças estão cientes da situação e estão
acompanhando tudo pelas câmeras.
— Obrigada, Carlos. De verdade.
— É um prazer servir a senhora — ele disse enquanto a porta se
fechava e me prendia na solidão do espaço.
“O amor é o carinho
É o espinho que não se vê
Em cada flor”
O velho e a Flor - Toquinho / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 34
LAURA
— Ilma?
Eu me assustei quando entrei no meu setor e dei de cara com a senhora que
cuidava de tudo para que minha passagem pelo grupo não fosse um desastre.
— Ainda aqui?
— Sim — ela confirmou com um tom preocupado. — Eu tentei te
ligar, mas seu celular só dava caixa postal.
— Desculpe, eu desliguei para ter um pouco de paz enquanto estava
com minha mãe. Fernando me contou sobre o que aconteceu, mas pode ficar
tranquila, os seguranças estão atentos e Vicente não seria louco de tentar
entrar aqui no prédio quando a polícia está atrás dele.
— Certamente que não.
Ela me acompanhou em direção à sala, contudo, sem deixar de exalar
preocupação.
— Mas a senhora Sabrina está em sua sala — revelou. — Ela insistiu
em aguardar por você — completou ao perceber que eu interrompi meus
passos.
— Sabrina? Ela disse o que queria?
— Não. Eu tinha certeza de que o Dr. Fernando a levou para casa,
mas quando ainda tentava contato com a senhorita para saber sobre seus
planos, ela apareceu e informou que a aguardaria quanto tempo demorasse.
Eu não fazia ideia do que esperar. Sabrina tinha total liberdade para ir
até a minha sala e conversar comigo, afinal de contas ela era a presidente do
grupo empresarial em que me tornei CEO por acidente. Contudo, aquela não
era uma ocasião normal, uma reunião profissional ou um momento para
tratarmos de algum interesse do grupo.
Não tinha como me enganar e dizer que Sabrina trataria de outro
assunto, porque era mentira. Naquele dia, naquele instante e diante de tudo o
que aconteceu, só havia um motivo para ela estar ali: Vicente.
— A senhorita prefere que eu espere? — Ilma me tirou de minhas
conjecturas
— Não, Ilma. Vá para casa. Ficaremos bem.
Apesar de demonstrar receio, ela obedeceu. Ilma pegou a bolsa e
deixou o local sem nada dizer. Eu respirei fundo ao encarar a porta da minha
sala e, sem encontrar coragem, contudo, certa de que não havia como fugir
daquela conversa, entrei.
Encontrei Sabrina de costas para mim, de frente para a janela. Ela
ouviu a minha chegada e nem assim se voltou para me encarar. Fechei a
porta e, com cautela, caminhei até a metade da sala. Aguardei por alguns
segundos que se arrastaram, mas quando decidi pôr um fim naquele martírio,
ela falou.
— Acredito que esteja satisfeita.
A voz rouca indicava o choro recente. Sabrina não se moveu, não me
olhou, encarava algum ponto do lado de fora do escritório, na rua
movimentada. Coloquei o celular sobre a mesa e me apoiei nesta, ciente do
quanto difícil seria aquela conversa.
— Em descobrir quem atentou contra a minha mãe? Sim, estou
satisfeita. Mas não por completo, afinal de contas, Vicente, de maneira
conveniente, desapareceu.
— O que quer dizer com isso?
Ela se virou em minha direção, o corpo todo em alerta, os olhos
vermelhos e inchados, ainda assim, cheios de raiva e mágoa.
— Não sei, Sabrina. Diga você o que deveria significar, afinal de
contas, Vicente é seu marido.
Ela estreitou os olhos em minha direção.
— Isso lhe dá muito prazer, não é mesmo? A vingança que você
sempre sonhou por ele ter me preferido a você.
Eu ri, mesmo que sem qualquer vontade.
— Não vou dizer que nunca desejei que você conhecesse a versão
escrota do Vicente, mas daí a sentir satisfação por acontecer com o risco de
morte da minha mãe… — Meneei a cabeça e dei um sorriso escroto. — Não,
eu não sou como você, Sabrina.
— Eu nunca atentaria contra a vida da Sara — Ela se alterou diante
da acusação. — Nunca atentaria contra a vida de ninguém. Você me
conhece, Laura!
— Conheço? Porque durante um tempo acreditei que você fazia parte
do plano, afinal de contas, tramaram para tirar a herança de mim, através do
amor do Bernardo ou da sedução do Vivente, até que ele resolveu
acrescentar a amante na história.
Ela se afastou como se eu tivesse lhe atacado com uma espada.
Ferida e magoada. Os olhos injetados em mim. Lágrimas rolaram pelo rosto
transtornado.
— Até onde todos sabemos, foi você quem ele procurou ontem à
noite — ela acusou.
— Ah, claro. Então você manda o seu marido atrás de mim para
roubar a herança e eu sou a culpada?
— Eu não o mandei. Jamais modificaria a configuração do meu
casamento, Laura. Você não é nenhuma garota inocente, sabe que eu nunca
pediria ao Vicente para te seduzir e ainda assim, o aceitou.
— Eu? Eu jamais aceitaria o Vicente de volta à minha vida e você
deveria ter esta certeza — rebati com ímpeto, completamente fora da posição
que acreditei que me manteria naquela conversa.
— Então vai me dizer que não o beijava quando Bernardo os
surpreendeu?
— Ele me beijou!
— Coitadinha.
Meu rosto esquentou de vergonha e de raiva. Em qualquer outra
circunstância, eu jamais permitiria que Vicente me beijasse, mas quando
aconteceu, julguei que aquele era o caminho para agilizar o processo e me
ver livre daquele drama.
— Confesse que alimentou durante todos esses anos, o desejo de
roubá-lo de mim para se vingar — ela disse, mais forte, mais segura, se
aproximando de mim como se estivesse pronta para a luta.
— Não seria uma má ideia, já que você o roubou de mim primeiro —
disparei.
— Eu sabia, sua… usurpadora!
Sabrina não me deu tempo para reagir a sua explosão. Em segundos,
meu rosto queimou com o tapa estalado e o choque me congelou no lugar.
Até que a minha indignação cresceu dentro de mim e, sem me reconhecer,
me vi devolver o tapa, para em seguida avançar sobre ela com um grito
felino.
— Sua cretina! Eu te odeio! — esbravejei enquanto me engalfinhava
com aquela que um dia foi minha melhor amiga, em uma mistura de tapas,
puxões de cabelo e unhadas.
Em algum momento daquela briga constrangedora, caímos no chão,
rolamos, trocamos mais tapas, prendemos os dedos nos fios de cabelo
embaraçados, e durante todo o processo eu me perguntava porque ali,
naquele momento, naquela situação.
Quando Sabrina tirou Vicente de mim, minha única vontade era de
desaparecer. Doeu de tantas formas que não houve energia em mim para
atacá-la. Em uma porrada só, perdi o noivo e a melhor amiga, então foi
como se meu mundo funcionasse pela metade e eu precisasse me ocupar em
reconstruir a outra parte que faltava.
Mas daquela vez, todo o meu sistema de defesa me jogou contra
Sabrina. Por mais que ela também me machucasse, eu me libertava a cada
tapa. E, apesar disso, toda a cena me parecia ridícula, descabida, sem
propósito. Talvez por isso não tentei mais acertá-la e, após ter certeza de que
conseguiria, a afastei de mim com força, obrigando-a a ocupar o outro lado
da sala.
Nenhuma das duas falou. Nós nos encarávamos com todo o tipo de
sentimento: raiva, mágoa, dor… A respiração pesada, uma bagunça digna de
filme de terror. Minha pele ardeu nos lugares onde ela conseguiu me
arranhar, automaticamente, procurei pelos machucados que fiz nela e quando
os encontrava, me encolhia, sem acreditar que fui capaz de algo como
aquilo.
E, como se o universo tivesse orquestrado aquela confusão,
começamos a chorar, desarmadas, trêmulas. Eu me afastei ainda mais, toda a
explosão de sentimentos se transformando em outra necessidade, e então eu
não consegui mais me segurar.
— Você era a minha melhor amiga — acusei. — Como pôde fazer
isso comigo? Eu confiava em você mais do que em qualquer outra pessoa
deste mundo.
A cobrança que de maneira alguma tive coragem de fazer, atingiu
Sabrina mais do que qualquer tapa que eu lhe dei naquela noite. Ela se
encolheu, os olhos abandonaram a raiva e refletiram a vergonha que busquei
durante todos os anos que se passaram desde que nos afastamos.
— Você sabe o que aconteceu, Laura. Acha mesmo que não sei o que
vocês fizeram?
— Do que você está falando?
— Vicente me contou quando se apaixonou por mim. Quer dizer…
Ela desviou o olhar, passou a mão na testa e fechou os olhos com
raiva.
— Quando ele me fez acreditar que me amava — concluiu.
— Eu não sei do que você está falando, Sabrina, mas com certeza já
se deu conta de que, o que quer que seja, provavelmente partiu apenas do
Vicente. Ele nunca prestou.
Ela concordou sem abrir os olhos e seu choro ganhou a entonação de
dor. Sem conseguir se conter, Sabrina se arrastou até o sofá e, após se abrigar
nele, escondeu o rosto entre as mãos, permitindo-se extravasar. Sem me
entender ou encontrar dentro de mim o motivo para me condoer com o
sofrimento da minha ex-amiga, caminhei até o sofá da frente e sentei, pronta
para acudi-la quando precisasse.
— Eu fui tão burra — ela comentou entre soluços. — Fui tão idiota!
Quando ele apareceu lá em casa na primeira noite, com a desculpa de que
vocês brigaram, eu pensei que estava te ajudando. Então as visitas ficaram
mais frequentes, Vicente desabafava comigo, contava coisas que… não
parecia com você, mas ele era persuasivo e eu acreditei no sofrimento que
demonstrava.
— Ele fingiu para você que não estávamos bem?
— Ele me contou que você o pediu para me seduzir e dessa forma
conseguir arrancar algum dinheiro de mim.
— Eu?
Levantei do sofá como se este me pinicasse. Em segundos, meus
sentimentos ficaram confusos outra vez, a pena evaporou e a raiva ardeu em
minhas veias. Odiei Vicente, contudo não mais do que já o odiava, uma vez
que aprendi a esperar tudo dele, mas Sabrina… ela era a minha melhor
amiga, me conhecia desde menina, era minha confidente, quem conhecia
cada detalhe da minha vida, como pode acreditar que eu seria capaz de tal
coisa?
— E você preferiu acreditar nele, uma pessoa que mal conhecia —
acusei.
— Você se afastou, Laura. Quase não aparecia e ele… Vicente sabe
como convencer uma mulher a fazer o que ele quer. Uma prova disso é ter
envolvido aquela menina no envenenamento da sua mãe.
— Eu estava estudando, cuidando da minha irmã! Você sabia de tudo
e ainda assim preferiu acreditar nele? Por que não me confrontou? Por que
preferiu se atirar nos braços de um cara que não fez nada para conquistar a
sua confiança?
— Porque eu me apaixonei! — ela gritou, tão desesperada quanto eu.
— Eu me apaixonei — confessou em um tom mais sofrido. — E acreditei
que ele também me amava. Essas coisas acontecem, não? Durante todos
esses anos nunca cogitei a hipótese de Vicente mentir ou me manipular, até
que… Até que eu surtei naquele dia na piscina e os exames apontaram a
presença de remédios para dormir. Eu não tomo remédios para dormir. Ele
fez de tudo para me convencer de que vocês estavam tentando me
enlouquecer. Só que desta vez…
Sabrina olhou para os lados, como se finalmente se desse conta de
tudo o que o marido era. Ela levou a mão aos lábios, horrorizada, fechou os
olhos e negou os pensamentos.
— Eu sempre soube que ele adorava a vida fácil que tinha ao meu
lado, o dinheiro… mas fazer o que ele fez? Meu Deus! Como fui burra! Eu
deveria tê-lo impedido quando desconfiei, mas paguei para ver. Então
Bernardo me contou sobre o beijo que flagrou, a maneira como Vicente se
comportou. Eu não quis acreditar. Não quis! Só que não havia mais como
negar os fatos. Eu o mandei embora — explicou com a voz carregada de
choro outra vez. — Se não me sentisse tão instável emocionalmente, teria
chamado a polícia, alertado sobre minhas desconfianças, no entanto, até o
último momento, não acreditei que Vicente fosse capaz de algo tão…
horrível. Quando eu disse a ele que queria o divórcio foi, por causa do que
Bernardo me contou, da mágoa por saber que ele não pensou duas vezes
antes de correr atrás de você outra vez. Eu me senti tão… nada.
Assistir a dor de Sabrina não me deu qualquer orgulho, pelo
contrário, me partiu em muitos pedaços. No fundo eu entendia que Sabrina
era uma garota insegura, que se esforçava ao máximo para conseguir a
atenção e o reconhecimento dos pais, depois da sociedade e em seguida, das
pessoas envolvidas com as empresas. Apesar de toda a sua postura altiva,
aquela ainda era a garota que não se sentia amada.
Minhas lágrimas voltaram a cair quando relembrei as conversas que
eu tinha com Vicente, de tudo o que contei a ele sobre Sabrina, as suas
fraquezas e o que ela buscava. Eu dei a ele tudo o que precisava para
construir aquele plano. Vicente queria a vida que Sabrina podia lhe
proporcionar, mas ele só conseguiria isso se eliminasse da vida dela todos
aqueles em quem ela encontrava apoio. Por isso a mentira sobre mim, por
isso o ódio dela pela minha família.
Enxuguei as lágrimas e me sentei outra vez no sofá. Nós nos
encaramos. Não havia mais resistência de nenhuma das partes e eu não tinha
mais qualquer vontade de continuar aquela briga. Tive pena de Sabrina, de
mim, de Juliana, e muita raiva do Vicente por ele ter atentado contra a minha
mãe só para garantir que ficaria com o dinheiro. Para aquele homem, nada
mais importava, nem mesmo a vida da mulher que o recebeu como um filho,
que acolheu suas dores, cuidou das suas feridas. Vicente não era humano e
ninguém merecia estar na sua mira.
— Eu pensei que ele estava com você — ela sussurrou, fragilizada,
uma sombra da mulher que era. — Pensei que vocês tramaram para me
incriminar.
— Você acha mesmo que eu envenenaria a minha mãe?
— Ah, Laura, eu nem sei mais o que achar. Foram tantas teorias
enquanto eu sofria sozinha naquele quarto de hotel. São tantos pontos — ela
suspirou com pesar. — Eu me fiz de idiota muitas vezes quando ignorei os
empregados da casa e as fofocas sussurradas pelos cantos. Eles falavam
sobre vocês dois, de como ficavam quando alguém entrava em algum
cômodo em que estavam sozinhos.
Sabrina deu uma risada cheia de escárnio.
— Eu me convenci todas as vezes de que você tentava seduzi-lo
quando encontrava oportunidade, e de que Sara sabia e acobertava, por isso
convenceu meu pai a te contratar.
— Que absurdo, Sabrina! — resmunguei ao limpar as lágrimas. —
Ele me perseguia, me agarrava pela casa sem medo algum. Eu o afastava.
Nunca quis o Vicente de volta. E ainda que o quisesse, como pode cogitar a
ideia de eu aceitar que ele envenenasse a minha mãe?
Outra vez nos encaramos como se precisássemos disso para nos
assegurar da veracidade das minhas palavras. Ela limpou as lágrimas, fungou
e continuou com suas justificativas.
— A dosagem foi pequena. Vicente sabia o que estava fazendo. Ele
não quis matar Sara, quis te fragilizar. E, claro, a burra aqui deu todas as
cartas para que ele executasse. Eu disse a ele que precisávamos te fragilizar
para que você aceitasse Bernardo em sua vida. Só não imaginei que ele…
— Eu deveria acertar a sua cara por isso — rosnei. Sabrina nem se
abalou.
— Quando Bernardo me contou o que viu, tudo o que pensei foi que
vocês se juntaram para me tirar de cena. Lógico! Você me odeia e tem toda
essa história da herança que… sinceramente, em que realidade isso
aconteceria? Vicente sendo quem é, escolheria você e o poder que meu pai te
deu.
— Foi por isso que ficou amigável? — disparei, o azedume evidente
em minha voz.
— Eu precisava fazer com que todos acreditassem em mim. Não
deixaria que vocês me incriminassem pelo que aconteceu com Sara. De
ontem para hoje, eu só pensava em descobrir como vocês agiram e entregá-
los à polícia. Até que… até que vocês descobriram a Juliana e em seguida a
polícia descobriu o caso dela com o Vicente. O resto todo você já sabe.
Levantei outra vez, fui até a janela, encarei a cidade do alto, todas as
pessoas que caminhavam apressadas. A confissão de Sabrina fresca em
minha mente, a raiva por Vicente avivada a cada segundo. No final das
contas, éramos tão vítimas dele quanto minha mãe e Juliana. Ele jogou com
todo mundo, manipulou para garantir que não perderia a boa vida que
construiu.
E, só depois de chegar a esta conclusão, entendi o motivo para o Sr.
Quaresma fazer o que fez. Se Sabrina assumisse as empresas após a morte
do pai, Vicente daria um jeito de acabar com tudo, de tomar das mãos deles
o que meu ex-patrão construiu com tanto esforço. Respirei fundo e, pela
primeira vez desde que tudo mudou, eu me senti leve. De uma forma
horrível, Vicente facilitou o meu processo. Eu não precisava mais mentir,
nem me manter naquela confusão, não precisava esconder a verdade de
todos.
Restava apenas torná-los cientes e depois… viver.
— Eu preciso que você saiba de uma coisa — comecei com a voz
baixa, disposta a eliminar de uma vez por todas aquele peso.
“Tantas você fez que ela cansou
Porque você, rapaz
Abusou da regra três
Onde menos vale mais”
Regra Três - Toquinho / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 35
SABRINA
“Laura, querida, perdão por fazer isso com você, mas me vi sem
saída quanto ao que fazer para salvar o que construí a tanto custo para os
meus filhos. Como bem sabes, tenho medo do que acontecerá quando eu não
estiver mais aqui para controlá-los e garantir que continuem tendo todas as
oportunidades que um dia sonhei para cada um deles.
Tive a sorte de tê-la como ouvinte nesses anos em que cuidou de mim
com tanto carinho e compreensão. Perdoe-me por sobrecarregá-la com as
minhas queixas, e, mais uma vez, perdoe-me por colocá-la nesta situação.
No momento, não conheço pessoa mais íntegra em quem eu possa confiar
este pedido, e também, outra vez me desculpo por utilizar esta artimanha,
alguém que possa causar o impacto que espero causar em meus filhos, que
não seja você.
Eu sei que enquanto lê esta carta, está assustada. Eu ficaria em seu
lugar. Mas, acredite, fiz de tudo para que consiga atender esse último pedido
deste seu velho amigo.
Vamos aos fatos, pois se está lendo esta carta é porque eu já não
estou mais neste mundo.
Sabrina deveria me suceder, ela é a melhor gestora que já conheci e
eu sei que minha filha irá além do que eu fui. Tenho muito orgulho disso.
Mas ela não conseguirá enquanto for casada com o Vicente. Você conhece
esse rapaz, sabe o que ele já fez e do que é capaz de fazer para tirar o
máximo desta relação. Por isso, não posso deixar que Sabrina assuma as
empresas enquanto for casada com ele.
Não sei como você conseguirá fazer o que eu em momento algum
consegui, abrir os olhos da minha filha, mas eu te peço, Laura, aguente o
que for necessário, mas não permita que Vicente tenha mais nada de
Sabrina.
Caso ela nunca concorde, e eu temo que a teimosia e o orgulho de
Sabrina a cegue ainda mais para esta realidade, fique com o que lhe ofereci.
Eu prefiro que meu trabalho passe para as mãos de pessoas dignas, que
podem aprender e continuar com o lado humano do grupo, do que perder
tudo para um golpista que assim que conseguir o que quer, abandonará a
minha filha.
Se você conseguir, se Sabrina abrir os olhos e afastar esse rapaz
desta família, devolva a ela 20% dos cinquenta que te deixei, assim como o
comando das empresas.
Eu sei o que você está pensando, Laura. Mas, por favor, acredite
quando eu te digo que ninguém mais em todo este grupo empresarial, terá a
capacidade de Sabrina. Minha filha herdou a minha sagacidade para os
negócios. Com Sabrina à frente do grupo, o nome Quaresma continuará por
mais uma ou duas gerações.
E quando isso acontecer, quando você puder revelar finalmente a
Sabrina o que fiz e o porquê, não se esqueça de pedir para que ela me
perdoe. Eu sou apenas um pai que nunca conseguiu evitar os cuidados para
com ela. Diga que eu a amei em todas as etapas. Que mesmo com as
decepções, meu amor não diminuiu. Eu não sei o que acontece após a vida,
no entanto, um pai pode acreditar que um amor como esse transcende, não
acaba como o corpo, não se desfaz como a vida. Eu continuarei amando-a
independente de onde esteja.”
CAPÍTULO 36
LAURA
CAPÍTULO 37
BERNARDO
A decepção que minava meus sentimentos não se dava pelo fato de Laura
desconfiar de mim. Eu fiz por merecer, afinal de contas, me aproximei dela
para conquistá-la e tomar de volta a herança que pertencia a mim e a
Sabrina. O que doía ao ponto de bloquear a vontade de estar com ela, era o
quanto Vicente ainda tinha forças sobre ela.
Sim, Laura podia negar o quanto quisesse, podia até mesmo ter plena
consciência do quanto Vicente não prestava, porém, nada disso anulava a
força dele sobre ela.
Foi desse jeito quando ele entrou em sua sala e a beijou com
promessas absurdas e sentimentos falsos. Da mesma forma funcionou
quando ela o deixou entrar no apartamento e levantar suspeitas a meu
respeito pouco depois de eu ter me declarado, ter me exposto e desnudado
para ela.
Assumi minha culpa com o risco de perdê-la para sempre, mas fui
honesto, não poupei esforços para que toda a verdade se revelasse. Aceitei
até mesmo a sua recusa e me comprometi com a espera. E o que aconteceu?
Vicente apareceu e fez com que Laura acreditasse nas suas falsas acusações.
Ela não confiava em nenhum dos dois e isso eu aceitaria sem
sofrimento. Mas não aceitaria em momento algum que ela tivesse a pior
versão do Vicente e nem isso influenciasse suas decisões. Laura sabia do que
o ex-noivo era capaz, viveu na carne a facilidade com a qual ele traía e tirava
vantagem de tudo. De mim, ela teve uma tentativa frustrada de conquista e
uma confissão. Como meus erros podiam pesar mais do que os dele?
Só havia uma explicação: Laura ainda amava Vicente. Amava. Eu
não era tolo de ignorar essa verdade. Laura não queria Vicente de volta, não
reataria o noivado, não o aceitaria ao seu lado. Contudo, nada disso anulava
o sentimento. Por isso morri aos poucos nos diversos segundos desde que
Fernando me contou a verdade, em seguida Sabrina revelou a existência da
carta e eu me vi obrigado a procurá-la.
Não estava preparado para isso. Eu queria dizer que a mágoa e o
amor próprio me firmariam na presença dela, mas não era verdade. Eu
também convivia com um sentimento tão forte que moldava minhas ações,
me tornava vulnerável. Se Sabrina não aparecesse no quarto de hotel que eu
ocupava e me contasse toda a verdade, eu não teria procurado Laura. E não
era por orgulho, antes fosse. Era por dor, desilusão, frustração.
Mas, depois de descobrir sobre a carta, sobre as motivações do meu
pai, não havia como evitar aquele encontro, então que fosse logo, rápido e
certeiro, uma única porrada ao invés de vários socos dados de tempos em
tempos. Por isso evitei falar, evitei olhá-la, queria até mesmo não precisar
ouvi-la, apesar de saber ser impossível diante de todos os acontecimentos
que nos envolveram.
Eu me calei não porque ela não merecia uma resposta, e sim porque
falar em voz alta tudo o que eu sentia só ampliaria a minha dor. E, se
continuássemos, nada de bom fecharia aquele ciclo. Eu tinha em mãos um
ponto mais importante do que minhas desilusões amorosas. A carta do meu
pai.
Corri os olhos pelo texto narrado por minha irmã. Apesar de
conhecer o conteúdo, não amenizou a minha emoção e, somado a dor pelas
conclusões a respeito de Laura, passou a existir o peso das minhas escolhas,
tão cortante e ameaçador quanto o amor. O que eu fui até ali? O que fiz?
Meu pai morreu sem a segurança que deveríamos lhe proporcionar, que eu
deveria e me neguei a dar.
Limpei as lágrimas e continuei a leitura.
Joaquim Quaresma.”
CAPÍTULO 38
LAURA
CAPÍTULO 39
BERNARDO
CAPÍTULO 40
SABRINA
— Sabrina?
Sara, sentada na cama do hospital, com um aspecto melhor do que eu
esperava, uma revista no colo e flores, que enfeitavam e modificavam o
ambiente, quebrando a ideia de doença e morte que eu tanto odiava em
recintos como aquele, arregalou os olhos ao me ver na porta.
— Oi, Sara? Como vai?
Ela se ajeitou na cama, colocou a revista de lado e me analisou com
atenção antes de me responder.
— Bem melhor. Não esperava por sua visita — foi sincera. Esse era
um dos pontos que eu valorizava na minha ex-governanta.
— Imagino que não — sussurrei, um tanto quanto envergonhada não
apenas pela falha imensa em não tê-la visitado ainda, como por tudo o que
massacrou a nossa história. — Posso entrar?
— Claro. Venha.
Ela me indicou a poltrona ao seu lado, provavelmente a que Laura
ocupou antes de mim. Laura esteve com a mãe naquela noite e eu sabia disso
porque aguardei que ela saísse, escondida em um ponto estratégico, decidida
a não alertá-la sobre a minha presença. Meu único motivo para tanto gasto
de energia era a necessidade de me desculpar com Sara e para tanto não
necessitava de plateia.
Havia muito para desconstruir do meu ego antes que eu me
acostumasse a me fragilizar diante de pessoas que por muito tempo
considerei inimigas. Laura era uma delas, ainda que tivéssemos com o pé na
estrada da reconciliação.
Sentei na poltrona, disposta a eliminar aquela parte da minha
reconstrução, ainda que não conseguisse eliminar a sensação incômoda por
precisar encarar, mais uma vez, as minhas falhas. Sara aguardou em silêncio,
como sempre fazia, me dando espaço para falar quando eu quisesse, e se
quisesse.
Reconhecer que aquela mulher me conhecia melhor do que todos os
que restavam na minha vida, aumentava a culpa que me machucava. Quando
eu deixei de enxergar as pessoas ao meu redor?
— Desculpe por não ter vindo antes. Eu não queria aborrecer Laura
com a minha presença e… você sabe…
Desviei o olhar, certa de que, mais uma vez, eu não conseguiria
manter a pose de mulher forte. E, graças a Deus, nem precisava. Nada que eu
sustentasse diante de Sara a convenceria a me ver diferente do que sou.
— Até que a polícia desmascarasse Vicente, para Laura, éramos
todos culpados.
— Eu te entendo.
— Ela não estava errada, sabe? — continuei, disposta a não voltar
para casa sem dizer a Sara tudo o que eu precisava. — Fomos pessoas
horríveis com Laura, meu pai… você. — A última palavra saiu fraca, como
a confissão que arrancava a casca da ferida.
— Não se culpe desta forma, Sabrina. Apesar de tudo, você é tão
vítima do Vicente quanto eu e Laurinha.
— Laura me disse isso. — Sorri sem alegria. — Mas a verdade é que
não sou tão vítima quanto vocês. Durante muito tempo me permiti ser o meu
pior lado. Vicente não me fez quem eu sou, ele só me fez acreditar que essa
era a minha melhor versão. Ele não teria sucesso se eu fosse mais confiante,
se não me rebelasse ao ponto de não acreditar no amor de outras pessoas.
Vicente conhecia as minhas fraquezas, medos, e utilizou esses pontos para
me convencer a enxergar uma realidade distorcida. Nada adiantará se eu me
esconder atrás da ideia de vítima e mascarar os meus defeitos, Sara. Eu fui o
que quis ser. Movida pela mágoa, pela carência, por um ódio que alimentei e
se fundamentava apenas no ego. O que Vicente fez foi se apossar disso tudo
e alimentar.
— Eu não te julgaria com tanta força, mas entendo o seu
posicionamento. Ouvir essa confissão me deixa feliz. Seu pai, que Deus o
tenha em um bom lugar, fez o possível e impossível para que você chegasse
a esse entendimento, minha filha. Por isso estamos aqui, não é mesmo?
Porque ele não poderia partir sem tentar, uma última vez, mostrar o caminho
adequado aos filhos.
— Pois é.
Puxei o ar com força, os olhos úmidos, a emoção disposta a sabotar o
meu momento.
Pensar em meu pai, na carta, no que Laura teve que fazer, descobrir
todas as mentiras que ouvi, encarar as que criei, eram os pontos que me
atingiam com força e me jogavam no limbo. Ainda que essas porradas me
arrastassem para a necessidade de me recolher para lamber as feridas, havia
muito a ser feito, logo, me colocar naquela posição estava fora de cogitação.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro!
Sara, com a atenção focada em mim, não demonstrava incômodo ou
estranheza com a minha presença, nem com a minha necessidade de
encontrar respostas e buscar perdões.
— Por que você não foi embora, Sara? Digo… quando eu entrei em
casa com Vicente como meu namorado naquele primeiro dia… quando não
tive medo de magoar vocês com a minha escolha, por que você ficou?
Ela sorriu, nada abalada com a pergunta que nunca fiz.
No dia em que Vicente deixou Laura e se tornou meu namorado, eu
sentia tanto ódio da minha ex-melhor amiga e da mãe dela, que festejei o
momento disposta a humilhá-las. Avisei a Sara que meu namorado almoçaria
comigo e ordenei que ela fizesse uma comida especial.
Naquela manhã eu vi em Sara o tormento de Laura pelo fim do
noivado, mas ao invés de me compadecer, desejei que este nunca tivesse fim.
Levar Vicente para almoçar comigo e forçar Sara a servi-lo foi a maneira
que encontrei de me vingar pelo que tentaram fazer comigo.
E no fim, era tudo mentira do homem que amei, que acreditei me
amar. Sara e Laura não queriam meu dinheiro. Não abusaram da minha
amizade, da boa vontade da minha família, não utilizaram minha carência,
meus medos, para me aplicar um golpe. Enquanto eu me endurecia e as
odiava, Vicente fazia o que eu atribuí as duas. Naquele momento, eu era a
humilhada, a que merecia o desprezo de todos, a que se permitiu trair ao dar
as costas para a amizade e abraçar o inimigo.
Que fim trágico, Sabrina.
— Eu quis ir — Sara revelou. — Naquela tarde pedi demissão a seu
pai. Ele não aceitou, obviamente. Mas ter ido até ele, disposta a deixar a sua
família e manter a dignidade da minha, me ajudou a entender os fatos. Então
digamos que fiquei por você.
— Por mim?
O espanto derrubou de uma só vez as barreiras que ainda lutavam
para permanecer de pé.
— Por que por mim?
Limpei a primeira lágrima que caiu, respirei fundo, sob o olhar
amável de Sara e desabafei.
— Como por mim, Sara? Eu fui uma pessoa horrível com você. Eu te
demiti na primeira oportunidade.
— Porque Vicente te convenceu de que eu era a inimiga, Sabrina.
Não guardo ressentimentos, então não se culpe por nada. Deixe-me contar o
que de fato aconteceu… Naquele fim de tarde seu pai me obrigou a contar o
verdadeiro motivo para o meu pedido de demissão. Por mim eu não diria
nada. Também estava magoada. Vicente era como um filho e, apesar de
conhecer o seu lado ambicioso, nunca vi nisso uma preocupação. Quem não
quer conforto e tranquilidade nesta vida? Ele terminou com Laura na noite
anterior de uma forma cruel, rude demais para alguém que foi recebido e
amparado por todos nós, e no dia seguinte você o anunciou como seu
namorado. Eu vi em você uma menina mimada, invejosa e burra por se
desfazer de uma amizade para ficar com um homem que mal conhecia. Mas
Vicente… ele sim me fez repensar tudo o que vivemos. Aquele rapaz deixou
a minha filha aos prantos na porta de casa e no dia seguinte, não teve
vergonha de me encarar, não foi humilde para justificar a sua atitude, não foi
homem para assumir as escolhas sem precisar passar por cima das pessoas
que foram a família dele durante tanto tempo. Você lembra o que ele fez,
como me tratou.
— Lembro.
Envergonhada, desviei meu olhar para minhas mãos sobre minhas
pernas. Naquele dia eu ri e debochei de Sara quando levei Vicente para meu
quarto. Juntos festejamos e maldizemos a mulher que fingia ser uma pessoa
preocupada e dedicada a minha família, mas que na verdade tentava
encontrar uma forma de colocar as mãos em nosso dinheiro. Cheguei até
mesmo a planejar com Vicente formas de fazer com que meu pai a demitisse.
Assim ela saberia que por querer muito, não teria nada.
— Eu contei a seu pai o que aconteceu. Falei sobre o sofrimento de
Laura, a maneira como Vicente agiu e a sua mudança na maneira como me
tratava. Foi ele quem ligou os pontos.
— Como assim?
— Você conhece as qualidades do seu pai melhor do que eu. O Sr.
Quaresma não via nada como uma linha reta. Ele enxergava as nuances,
como dizia — ela deu uma risada curta e saudosa, que aqueceu meu coração
ao relembrar a infância. — Seu pai me perguntou como Laura conheceu
Vicente. Eu estranhei, mas acho que estava tão aborrecida e magoada que
encarei a pergunta como uma forma de me fazer desabafar.
— Eles se conheceram no ponto de ônibus, certo?
— Certo. Havia um rumor de que teríamos greve da polícia. Eu
fiquei preocupada com as meninas, por isso pedi para Laura, quando saísse
do curso, buscar Bruna na escola e me encontrar na mansão. Eu queria pegar
um táxi, mas não havia nenhum disponível, então fomos para o ponto de
ônibus. Enquanto Laura dava atenção a Bruna, percebi o Vicente
observando-as e fiquei em alerta. Ele notou como me posicionei, sorriu e se
apresentou. Falou que não tinha irmãos, então sempre ficava fascinado
quando assistia boas interações entre irmãos. Contou que trabalhava em um
dos prédios do outro lado da rua.
— Auxiliar Administrativo no setor de logística.
— Isso. Vicente fez tudo certo, Sabrina. Ele não demonstrou de cara
interesse na Laurinha, pelo contrário. Pegamos o mesmo ônibus, ele sentou
ao meu lado, conversamos até ele descer. Eu o ouvi com atenção porque me
pareceu um rapaz bom. Depois desse dia eu o encontrava com frequência no
ponto de ônibus. Ele sempre educado, gentil, disposto a falar sobre a vida, o
trabalho, as dificuldades que enfrentou.
— Os tios abusivos — interrompi mais uma vez, em um misto de
confusão e medo do que ela me revelaria.
Afinal de contas, meu pai não jogava conversa fora. Quando o velho
Quaresma se interessava por um assunto, era porque tinha algo de
importante nele.
— Sim, os tios abusivos principalmente.
— Por que meu pai queria saber sobre isso? Eu mesma contei a ele o
passado do Vicente, logo após revelar o namoro.
— Porque seu pai era um homem que prestava atenção, filha. Contei
a ele como o Vicente ganhou a minha confiança, contei que eu o convidei
para almoçar na minha casa em um domingo e foi dessa maneira que surgiu
o inicio de interesse dele na Laura. O namoro, o noivado… não deixei de
fora o fato de Laura tê-los apresentado. Até que revelei o fim do noivado
entre Vicente e Laura e a surpresa daquela tarde, com Vicente como seu
namorado. Até o momento eu não via nada além de uma traição horrível e da
necessidade de defender Laura. Mas seu pai viu além disso.
— O que ele viu?
— Ele viu Vicente como nenhum de nós conseguimos ver. No meu
primeiro relato, seu pai levantou a hipótese de Vicente ter se aproximado
com o intuito de chegar até você.
Se Sara me contasse aquela história uma semana antes eu a refutaria
sem me permitir pensar um segundo sobre o assunto. Nada do que vivi com
Vicente me levaria a crer naquela possibilidade. Porém, após o cair das
cortinas que escondiam a verdadeira face do homem com quem casei, nada
mais me surpreenderia.
— Ele me pediu para ficar. Eu relutei contra a ideia, Sabrina. Para
mim era tudo preto no branco. Ainda que Vicente estivesse interessado no
seu dinheiro, você não soube valorizar a amizade da minha filha. Preferiu
ele.
— Porque ele mentiu para mim.
— Eu sei. Mas não sabia quando tudo aconteceu.
— Desculpe, Sara — sussurrei.
— Não há do que se desculpar. Como eu disse, somos vítimas. Você
tinha a sua verdade e nós tínhamos a nossa.
— A minha verdade era uma farsa.
— Mas foi com o que você conviveu durante todos esses anos.
Concordei sem ter mais nada para acrescentar.
— Seu pai contratou um detetive para averiguar o que sabíamos
sobre o Vicente.
— E o que ele descobriu?
— Nada que nos ajudasse com a força que precisávamos. Você
estava apaixonada, cega, disposta a tudo para nos tirar da sua vida. E eu
soube pelo seu pai o que Vicente contou para te convencer do amor dele.
— Então você sempre soube?
Levei a mão à boca, horrorizada e envergonhada na mesma medida.
— Por que nunca se defendeu? Por que não me contou a verdade?
— Porque você não acreditaria em mim, menina. Vicente fez um
ótimo trabalho para te alienar. À medida que o tempo passava, mais difícil
ficava para te convencer do contrário. Não pense que não tentamos. Seu pai
não encontrava nada que pudesse incriminar o Vicente. Ele trabalhava onde
disse, tinha tios horríveis como narrou, morava no local que conhecíamos.
Ninguém nos disse nada além do que já sabíamos, que ele era ambicioso,
mulherengo, reservado, sem grandes amizades. A tia dele nos disse que
Vicente dizia que um dia seria tão rico que os varreria da face da Terra.
Descobrimos relacionamentos fracassados, mulheres que ele explorou,
enganou, extorquiu. Nada disso servia para lhe mostrar a realidade.
— E nem assim você desistiu.
— Não, eu não desisti. Pessoas como o Vicente um dia pisam em
falso. Seu pai e eu contávamos com isso. Mas ele não teve tempo.
— Por isso garantiu que Vicente não alcançasse o objetivo.
— Essa parte eu só soube quando Laura já estava no jogo.
Enxuguei o rosto com as costas das mãos, e respirei fundo, antes de
continuar.
— Papai era tão sábio — sussurrei. — Por que os jovens se julgam
mais espertos do que os velhos? — Sara riu.
— Não somos mais espertos. Somos mais experientes. E seu pai,
ainda que fosse um jovenzinho, mataria a charada. A prova disso é o império
que ele construiu. Ele enxergava as pessoas como elas eram, as
oportunidades nos meios mais inóspitos, a genialidade dos menos estudados.
— Ele enxergou Laura — admiti, outra vez de volta às lágrimas. —
Por isso confiou nela. Entregou a ela nossas empresas. Não teve medo de
estragar tudo.
— Ele precisava.
— Eu sei. — Funguei sem me importar com a classe. — Hoje eu sei,
Sara. E… droga! Ele tinha razão. Só de pensar que papai morreu com eu o
acusando de senil, tirando dele o brilho que nunca se apagava só porque ele
não alimentava meu ego, meu orgulho… Eu fui tão horrível!
— Oh, minha menina! Venha cá.
Sara abriu os braços para mim, disposta a cuidar das minhas dores,
como fez tantas outras vezes, quando eu ainda permitia que ela se
aproximasse. Durante anos Sara foi o que havia de mais perto da presença de
uma mãe. Ela me ouvia, me entendia, deixava que eu chorasse e confessasse
meus medos. Ela me abraçava e dizia que tudo ficaria bem. E eu deixei
aquilo tudo acabar porque me apaixonei pela pessoa errada.
Abracei Sara, deitei minha cabeça em seu colo e chorei sem receio.
Ela acariciou meu cabelo repetidas vezes, me abraçou com a promessa de
nunca mais soltar, enquanto repetia baixinho: está tudo bem, minha menina.
Tudo ficará bem.
“Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer”
Minha namorada - Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 41
LAURA
CAPÍTULO 42
LAURA
Pela primeira vez em anos, eu não sabia o que fazer. Parada em frente ao
espelho de corpo inteiro do closet, eu me observava incerta quanto ao que
vestir, como arrumar o cabelo, qual perfume e onde borrifar… E tudo isso
para jantar em casa, junto com a minha família, mas sob o olhar de
Bernardo. Este pequeno detalhe me tornava desconexa e insegura, como uma
adolescente apaixonada.
— Apaixonada — sussurrei em um misto de excitação e medo, com
o olhar fixo na minha imagem, no rosto corado, nos olhos brilhantes, no
sorriso bobo que de tempos em tempos se apresentava. — Meu Deus, eu
estou apaixonada.
Ri sozinha e passei a mão, mais uma vez, na saia comportada, apesar
de solta, que coloquei para compor o visual, mas que, ao me olhar no
espelho, pareceu-me ousada demais, ou, simples, até mesmo, despojada.
Cada hora, eu encontrava um adjetivo diferente que faria com que a peça se
juntasse ao monte das outras antes experimentadas.
Apesar de ser um jantar normal, cotidiano, com minha irmã
tagarelando sobre a escola, os amigos, minha mãe sobre a novela, o dia, os
funcionários, e de Bernardo ser figura cativa naquela mesa desde que nos
mudamos, tudo tornou-se diferente desde aquela manhã. E esse pequeno
detalhe tornava a escolha da roupa adequada uma missão impossível.
Não havia qualquer certeza relacionada ao que aconteceria. O que eu
tinha eram as lembranças que esquentavam meu corpo, e uma sutil promessa
para aquela noite. Não encontrei Bernardo em nenhum outro momento do
meu dia e só sabia que ele estava em casa porque vi o seu carro na garagem
quando Carlos me deixou.
Independente disso, eu não queria brincar com a sorte, então levei
longos minutos para escolher a calcinha e tomei consciência de que minha
gaveta merecia peças novas, menos confortáveis e mais ousadas. Escolher
uma que me desse um ar sedutor e ao mesmo tempo manter a ideia da
casualidade, quase me fez desistir do jantar, arrumar uma desculpa e me
esconder de Bernardo até ter meu problema resolvido.
Mas eu não podia me acovardar. Antes do meu ataque a Bernardo,
não havia esperança para nós dois. Ele me recusava, ressentido quanto as
minhas dúvidas e, para somar, lidava com o peso das descobertas. Desta
forma, eu não podia voltar atrás quanto a decisão de ficarmos juntos.
Bernardo precisava de certezas e não de inseguranças geradas por roupas ou
calcinhas.
— A saia está ótima — disse a mim mesma, disposta a encerrar o
assunto e encarar o jantar. E o que viria depois.
Só para não parecer tão à vontade, escolhi um par de tênis
confortáveis. E para não deixar claro o quanto me preparei para aquela noite,
optei por uma maquiagem discreta e básica. Hesitei outra vez na prateleira
dos perfumes. Qual deveria usar? Não podia borrifar em minha pele algo
forte, afinal de contas, era para fingir que não esperava pela conclusão.
— Você é tão idiota, Laura! — murmurei, no entanto, deixei de lado
tais fragrâncias.
Cheguei a pegar o frasco do meu perfume favorito, infantil e nada
adequado para o que eu queria que acontecesse. Com um suspiro pesaroso,
abandonei a ideia. Sobraram as lavandas. Não era o tipo de fragrância que
arrancava elogios, mas se eu queria não deixar clara a minha pretensão,
aquela era a melhor escolha.
Borrifei um pouco nos pontos estratégicos. No entanto, eu não podia
ser tão casual. Havia um objetivo por trás da aparência despretensiosa. A
calcinha escolhida poderia atestar tal verdade, logo… tomei coragem e
borrifei um pouco mais no espaço entre os seios, na nuca e… fechei os olhos
para não morrer de vergonha, abri as pernas e coloquei um pouco na
calcinha.
— Agora você conseguiu o seu atestado de louca — resmunguei ao
devolver o frasco a prateleira.
— Por que louca? — Bruna perguntou da porta do closet.
— Bruna!
Minha voz assustada possuía um tom a mais do que o necessário. No
mesmo instante meu rosto esquentou com violência e minhas orelhas
arderam.
— O que faz aqui?
— Mamãe mandou eu te chamar. Você está atrasada.
Observei com atenção o rosto da minha irmã, em busca da
confirmação sobre o que ela viu. Mas Bruna não dava indício de que assistiu
à minha atitude insana e vexatória.
— Estou?
Conferi o relógio de pulso e me dei conta de que sim, estava
atrasada.
Se a ideia era não demonstrar ansiedade para o que poderia
acontecer, ou que me preparei para isso, eu falharia com aquele atraso.
— Você está bem?
Ela fez uma careta estranha, no entanto, eu tinha consciência de que
eu era a estranha ali.
— Estou sim — menti. — Vamos.
Bruna me acompanhou pelo corredor sem dizer uma palavra, de
fones de ouvidos, absorta em seu próprio mundo. Porém, abatida pela
interrupção da minha irmã em um momento tão… delicado, eu agia como se
estivesse encurralada. Olhava para ela a cada segundo em busca de
informações, corava todas as vezes que imaginava a cena com Bruna ao
fundo e me desanimava como se este fato acendesse uma placa luminosa no
fundo da sala para evidenciar o quanto eu era ridícula.
Quando chegamos à mesa, eu não tinha mais energia para nada. Toda
a cena que fantasiei desapareceu da minha mente. Eu nem sequer olhei para
Bernardo, sentado em seu lugar habitual, com medo de que ele risse da
minha cara e fizesse piada com toda a minha preparação. Quando eu me
tornei tão infantil?
— Vai sair, Laurinha? — Minha mãe quis saber antes mesmo de eu
sentar e me refugiar atrás do copo de água.
— Não. Por quê?
Meu rosto esquentou de forma tamanha que precisei engolir a bebida
em um único gole como tentativa de apagar as provas contra mim.
— Eu te achei bonita — ela completou sem de fato prestar atenção
em mim. Mas o meu problema estava na Bruna.
— Arrumada demais para o meu gosto — minha irmã comentou, já
se servindo de uma porção generosa de carne.
— Arrumada? — tentei, de forma desesperada, desfazer aquela
confusão. — Uma saia simples e uma blusa básica é arrumada?
— Pra você… sim — Bruna provocou com a boca cheia.
Ouvi a risadinha de Bernardo, o que me enfureceu um pouco mais,
porém, me constrangeu em uma porcentagem maior. Encarei minha irmã
como se pudesse matá-la só com o olhar, sem encontrar palavras que
corrigissem as dela sem puxar para mim a imagem de adolescente. Bruna,
alheia a minha vergonha, fez gracinha, desdenhando de mim.
— Mãe!
Foi só o que consegui dizer, rendida por completo a frustração.
— Bruna, nada de celular na mesa
E isso foi o que minha mãe encontrou como forma de salvar a minha
honra. Eu, realmente, não precisava de inimigos.
— Eu te achei linda, Laura — Bernardo disse, baixinho, sem querer
chamar atenção das duas que travavam uma conversa repetida e cansativa
sobre a permissão do uso de celular à mesa.
Sem graça, mal consegui olhar para Bernardo, que me encarava sem
medo. Lindo como o diabo. Ele nem precisava de roupa especial ou de
longas horas em frente a um espelho para conseguir de mim a permissão
para fazer o que bem quisesse. Engoli o suspiro que ameaçou escapar pelos
meus lábios e fingi interesse pela comida.
— Uma saia simples e uma blusa básica — repeti, me esforçando ao
máximo para parecer casual. — Vocês fazem tempestade em um copo
d’água.
— A saia simples e a blusa básica que na garota linda ficaram
majestosas — gracejou, obrigando-me a encará-lo.
Como Bernardo conseguia aquilo? Minutos antes, eu me sentia
ridícula por ter pensado em cada detalhe para aquela noite e ter sido
desmascarada por minha irmã adolescente, exposta como um palhaço no
meio da praça. Mas, bastou que Bernardo me elogiasse e direcionasse para
mim o seu olhar quente, para que eu tivesse a certeza de que faria tudo outra
vez. Dez vezes repetidas se houvesse a oportunidade.
— Sabrina deu notícias? — Minha mãe estourou minha bolha ao
fazer com que Bernardo lhe desse atenção.
Foi o jantar mais longo já servido naquela casa. De tempos em
tempos eu precisava me lembrar de não sacudir as pernas, de não buscar em
Bernardo algum sinal, de não alertar minha mãe sobre minha intenção, e o
mais importante, de desencorajar Bruna.
Bernardo tinha aquele encanto que fazia com que todos ao seu redor
se rendessem ao seu charme. Com Bruna não foi diferente. Ela adorava o
rapaz! Conversava sobre as mais diversas bobagens como se os dois
fizessem parte do mesmo universo. E, para piorar a minha ansiedade,
Bernardo dava atenção a Bruna como se não tivesse pressa, como se nada
mais importante aguardasse por ele quando mais ninguém estivesse olhando.
Meu rosto voltou a esquentar devido aos meus pensamentos. Eu não
queria parecer tão garantida para ele, ao mesmo tempo, não pensava em
outra opção. Não havia motivos para me fazer de recatada quando cada
célula do meu corpo entrava em ebulição apenas com a expectativa de ter as
mãos de Bernardo outra vez em mim.
Contrariando todos esses apelos, eu me mantinha inerte, sem ação, na
espera de que ele fosse o primeiro a se manifestar, a buscar pelo meu afeto.
Uma imensa descarga de confusão que me eletrizava e cansava na mesma
proporção.
— Com licença, meus jovens. Vocês possuem toda disposição para
uma longa noite de conversa, mas eu não — minha mãe levantou, abatida.
— Está tudo bem, mamãe? — Bruna perguntou, tão atenta quanto eu.
— Sim, tudo ótimo! Mas eu preciso descansar. Foi a recomendação
do médico, então, se não se importam, vou para o meu quarto. A novela
começa em alguns minutos.
— Ah, a novela — minha irmã provocou.
— Exato, a novela. E não me censure. Você gosta tanto quanto eu.
— Adoro! — Bruna levantou também, os fones de ouvidos postos no
lugar e o celular na mão. — Por isso vou subir com a senhora só para
garantir o seu descanso.
Elas riram e entrelaçaram os braços. Enquanto se afastavam, imersas
naquele relacionamento que me dava orgulho, ficamos em silêncio, até que
este ganhou força, transformou-se em atmosfera, conduziu a eletricidade que
nos cercava quando sozinhos. E de repente, eu não era mais aquela garota
corajosa.
Bernardo encostou no espaldar da cadeira e manteve os olhos fixos
em mim. Apesar da maneira como meu corpo reagia, como passou a exigir
com mais força que eu diminuísse a distância que me impedia de tê-lo, eu
nada fiz.
— Vamos conversar? — ele disse com aquela voz modificada, mais
rouca, baixa, coberta de promessas invisíveis que acariciavam minha pele
com a mais crua luxúria. Respirei fundo. Imitei Bernardo na posição e cruzei
as mãos sobre as pernas.
— Vamos. Sobre o que quer conversar?
Um sorriso preguiçoso e leviano brincou nos lábios repletos de
pecado. Os olhos de Bernardo viraram brasas quando conferiram minha coxa
exposta.
— Não aqui.
— Não?
Engoli com dificuldade enquanto o assistia girar a cabeça sem pressa
em sua negativa, para em seguida umedecer o lábio inferior.
— Onde?
— Você conhece a minha Ala?
— N-Não. — Clareei a garganta para firmar a voz. — Não.
— Posso te convidar para um drink?
— Um drink?
O sorriso dele se ampliou, os olhos se estreitaram e a mão buscou a
minha, sobre a coxa, quando ele se inclinou na minha direção. A ponta do
dedo roçou minha pele, um gesto inocente para olhares desavisados, mas
ousado para o meu.
— De que forma você quer que eu diga que quero te beijar, Laura?
Foi a minha vez de sorrir. Aliás, eu nem consegui impedir o sorriso
de esticar meus lábios.
— E eu preciso ir a sua Ala para ganhar um beijo seu? — provoquei.
Bernardo se aproximou, o rosto tão próximo ao meu que roubou
minha capacidade de me manter naquela brincadeira.
— De que forma você quer que eu diga… — Os lábios roçaram os
meus, subiram por meu rosto e alcançaram minha orelha. — Que quero te
beijar na minha cama, Laura? — sussurrou no tom certo para atiçar minha
libido. Um suspiro escapou de mim quando, no mesmo compasso da voz,
houve o toque descarado da mão, a mão toda, em minha coxa.
— Bernardo… — gemi o nome ao ter o lóbulo da orelha capturado.
— Vamos — suplicou, ainda baixo, ainda com o tom que arrepiava a
minha pele e reverberava entre as minhas pernas.
— Vamos.
Ele levantou, a mão na minha, os dedos entrelaçados aos meus, e me
conduziu pela casa. Em silêncio. A cada passo na direção do espaço onde
não seríamos interrompidos, meu batimento cardíaco ganhava uma nova
velocidade. Um misto de sentimentos digladiavam dentro de mim. Euforia,
desejo, medo, insegurança… Cada um lutava para garantir o seu espaço,
porém nenhum deles vencia aquele que imperava em cada pensamento: a
paixão.
Enquanto Bernardo caminhava decidido e me levava para o seu
mundo, eu o olhava com devoção e me certificava de que nenhuma incerteza
quanto a gente, me impediria de ser dele naquela noite.
Subimos as escadas e paramos de frente a imensa porta dupla que
dava início à ala de Bernardo naquela casa. Ele a abriu e aguardou que eu
entrasse. As luzes acenderam quando dei o primeiro passo. Diante de mim
estava uma sala ampla com janelas imensas dos dois lados que davam a
impressão de que o chão se aventurava no espaço. Moderna, arrumada,
impecável, passava a ideia de que ninguém vivia ali. Por um momento, ao
pensar em Bernardo sozinho naquela ala, a tristeza roubou um pouco do
brilho daquele primeiro encontro.
A porta se fechou atrás de mim e o som das teclas chamou a minha
atenção. Bernardo acionava a tranca e nos isolava do lado de dentro. Alheio
ao incômodo que insistia em me atingir, ele se aproximou sem pressa e me
tomou pela cintura, colando nossos corpos. No mesmo instante uma música
suave preencheu o ambiente. Voltei a observar a sala, surpresa.
— Como você fez isso?
— Isso o quê?
Bernardo me conduziu em uma dança lenta, sensual, ao mesmo
tempo que explorava meu pescoço com os lábios. Eu me perdi na carícia,
envolvida com aquela porção de mim que ansiava por ele. Até que ele exigiu
meus olhos em busca da resposta.
— Isso o quê? — repetiu.
Eu queria mudar o foco da minha pergunta para “como você fez isso
com meu corpo? Com minha sanidade, minhas vontades, meus pudores?”,
mas, antes que eu me sentisse ousada ao ponto de tornar real as minhas
indagações, eu me ouvi dizer:
— A música.
— Ah! — ele pareceu surpreso com a pergunta, olhou para um ponto
distante da sala e sorriu. — É a Bete.
— Bete?
Parei de dançar assustada com a possibilidade de mais alguém estar
ali com a gente.
— Quem é Bete?
Bernardo percebeu a minha confusão, sorriu daquela forma que só
ele tinha, que me seduzia e irritava ao mesmo tempo e me puxou na sua
direção, se apossou das minhas costas, cintura, nuca… e me beijou com
volúpia. Eu queria dizer que tive força para impedi-lo e exigir que me
respondesse, mas bastou que sua língua buscasse meu sabor para que meu
corpo cedesse, entregue, quente e molhado por ele… para ele.
Devolvi o beijo com a mesma intensidade e acompanhei seus passos
quando ele me conduziu para o interior do ambiente até que nos
chocássemos contra o sofá. Envolvida, sem qualquer controle das minhas
ações, subi a coxa pela perna dele e a enlacei, aberta, sedenta de vontades
indescritíveis. Bernardo me agarrou pelos quadris, me prendeu na ereção
pronta sob a bermuda e alimentou minha libido quando apalpou minha coxa
e deslizou os dedos por minha bunda até encontrar a calcinha.
— Laura! — Ele gemeu meu nome com tanto tesão que arrepiou
minha pele.
Com uma necessidade crescente e volumosa em meu íntimo passei as
mãos por dentro da camisa dele e arranhei a pele ao me deparar com
músculos definidos e deliciosos. Porém, antes que eu pudesse dar vazão a
toda a minha vontade, Bernardo segurou minhas mãos e se afastou.
— Ainda não — ele disse, a voz arfante, as veias do pescoço
sobressaltadas, como se ele precisasse de toda a força para me impedir de
continuar.
— O que foi?
— Vai soar estranho, mas… nós precisamos conversar.
Minha mente demorou o que me pareceu uma eternidade para
entender o que acontecia ali. Com o corpo em chamas, assisti Bernardo se
afastar, os olhos fixos nos meus, um rastro de tristeza que acelerou meu
pulso.
— Nós precisamos conversar, Laura — ele repetiu, de repente mais
controlado, decidido.
Sem opção, respirei fundo enquanto a percepção do quadro caía
sobre mim. Bernardo me queria, nada que ele dissesse anularia este fato,
mas, talvez não como eu o queria. E o meu querer ia além da atração sexual.
Eu o valorizava por tentar esclarecer tudo antes, para que não houvesse a
necessidade de lágrimas e cobranças, contudo, era impossível evitar a dor.
Magoada e envergonhada, eu me tranquei dentro de mim. Ainda que
entendesse o lado dele, eu precisava me defender da dor real que me atingia.
Com os olhos úmidos, assisti Bernardo buscar as palavras certas. O silêncio
que estendia cada vez mais o buraco que ameaçava engolir meu coração.
— Desculpe — ele disse com uma careta hesitante, como se de
repente, se desse conta de que não deveríamos iniciar aquela conversa. —
Eu… estou louco por você, Laura — confessou, porém, não de uma forma
boa e sim, como se estar louco por mim fosse algo inconcebível.
Para provar a minha linha de raciocínio, Bernardo ergueu a mão na
direção do meu rosto e, impedindo-se de continuar, se afastou. Perdido em
sua confusão, enfiou as mãos no cabelo, fechou os olhos, respirou fundo e
recobrou a compostura.
— Vou direto ao assunto, certo?
Concordei, incerta se deveria ficar para ouvir o que ele diria. Travei
uma luta contra as lágrimas que se avolumavam e ameaçavam cair durante
os segundos eternos que ele permaneceu calado, os olhos fixos em mim, sem
saber como ser direto.
— Você ama o Vicente.
A afirmação me pegou de surpresa. Em nenhum momento cogitei
aquela hipótese. Nem sequer pensei no Vicente, ainda que ele continuasse
sendo uma ameaça, desde que nos beijamos pela manhã, no carro dele, na
garagem do prédio onde trabalhávamos. Tudo o que vivi naquele dia tinha o
foco em Bernardo, em nós dois, no que vivemos e no que queríamos viver.
Sem força para manter minhas barreiras suspensas, as lágrimas
desceram pelo meu rosto e deram a Bernardo a resposta errada. Eu vi a
maneira como o ar encheu os pulmões dele e a forma como ele o colocou
para fora, expulsando junto a esperança. Bernardo, desiludido, ameaçou se
afastar outra vez. Novas lágrimas escorreram pelo meu rosto à medida que
eu me dava conta do que acontecia. Do quanto fui boba em cogitar a
inexistência do amor dele por mim e também, da imensidão do meu.
Por isso agi, impulsionada pela emoção, com o amor transbordando
em mim junto com meu choro, de repente transformado, de pura felicidade.
Avancei sobre Bernardo, abraçando-o pelas costas, firme, disposta a lutar
por ele, por nós.
— Eu amo você — revelei sem medo. — Você, Bernardo Quaresma.
O homem mais incrível que já conheci, o único que pulou meu muro e me
sacudiu até que nada em mim tivesse controle. É você quem eu amo,
Bernardo. Acredite em mim.
— Porra, Laura! — ele rosnou ao se virar na minha direção e se
apossar de mim. — Eu te amo!
O beijo que nos uniu tinha força, mágica, poder. Liberou o universo
uma descarga de energia capaz de reconstruir as galáxias e criou ao nosso
redor uma fortaleza, segura, perfeita, que nos escondia do mundo e nos
fundia em um só.
Então, quando Bernardo me forçou para cima, cruzei as pernas em
sua cintura e não perguntei para onde ele me levaria, porque não importava,
desde que ele não deixasse de me beijar nunca mais.
“Você me olhou você sorriu
A você se derreteu
E se atirou, me envolveu, me brincou
Conferiu o que era seu”
Samba de volta - Toquinho / Vinícius de Moraes
CAPÍTULO 43
LAURA
CAPÍTULO 44
LAURA
CAPÍTULO 45
BERNARDO
CAPÍTULO 46
LAURA
CAPÍTULO 47
BERNARDO
LAURA
CAPÍTULO 48
BERNARDO
SABRINA
— A questão, Sabrina, é que somos concorrentes. — Jefesson, o
gerente geral de uma das nossas concessionárias, me alertou. — Precisamos
de ações diferenciadas.
— E teremos — eu o apaziguei. — Não estamos discutindo
marketing e sim resultados. Trabalhamos com fabricantes diferentes, logo
temos abordagens distintas, públicos semelhantes e estratégias
administrativas que precisam seguir o mesmo padrão. Como não
finalizaremos as atividades das casas de pneus, precisamos de uma ação em
conjunto.
— Você desistiu mesmo da ideia? — Theodoro, o gerente mais novo
entre os participantes, me questionou. — A nova CEO, Laura Lacerda, vai
seguir a linha do seu pai?
Dentre todos, ele era o que possuía ideias mais inovadoras e tinha
fôlego para o mercado. Quando levantei pela primeira vez a hipótese de
encerramos as atividades das lojas de pneus, ele foi o único que
compreendeu a importância de enxugar o grupo, porém, depois da carta do
meu pai, de tudo o que precisei vivenciar, eu não comungava mais da mesma
ideia.
— Laura e eu pensamos em conjunto. Entendemos que podemos
tornar a linha mais produtiva se fizermos algumas mudanças. Por isso
preciso de vocês.
— Com licença.
A secretária de Jefesson entrou na sala de reuniões e me interrompeu.
— Dona Sabrina, acabei de receber uma ligação do diretor jurídico, o
Sr. Fernando. Ele pediu para a senhora entrar em contato.
— Certo. Obrigada.
Estranhei a ligação do Fernando. Não havia motivo para ele entrar
em contato. Pelo menos não daquela forma, o que me fez pensar de imediato
que o interesse naquela comunicação era profissional e não… enfim. Meu
celular, dentro da bolsa, estava no modo silencioso, conforme eu fazia
sempre que entrava em alguma reunião.
— Com licença — avisei aos participantes antes de buscar pelo
aparelho e me deparar com mais de dez ligações perdidas. Muitas do
Bernardo e as últimas do Fernando. No mesmo instante entendi que algo de
errado aconteceu.
Plena por fora e assustada por dentro, deixei a sala decidida a
retornar as ligações quando meu celular avisou da chegada de outra ligação.
Parei sem acreditar no nome que aparecia na tela do celular. Vicente.
Olhei para trás para me certificar de que ninguém me ouviria, segurei
no guarda corpos à minha frente, necessitada de apoio, e atendi a ligação.
— Vicente? — sussurrei sem acreditar que ele de fato me ligava.
— Oi, meu amor — ele disse com cuidado.
— Meu amor? Como tem coragem…
— Sabrina, por favor, me ouça — pediu com urgência. — Eu sei que
você está com raiva. Eu também estou.
— Você não pode estar com raiva, você me traiu! Usou aquela garota
para me sedar, para envenenar Sara. Como ousa?
— Foi armação, amor.
A voz, cheia de pesar e sofrimento não neutralizou a minha
indignação.
— Você não percebe? Laura sempre quis se vingar de nós dois e ela
conseguiu.
— Não faça isso — rosnei. — Laura não atentaria contra a própria
mãe.
— Ela não, mas Bernardo sim.
Eu não queria pensar naquilo, ainda assim, a maneira como Vincente
falou me impediu de rebater.
— Eles estão juntos, não estão? Você leu a carta que seu pai
supostamente deixou.
— Como sabe disso?
— Eu nunca me afastei. Eles conseguiram me incriminar, mas eu não
podia te deixar sozinha, meu amor. Bernardo conquistou Laura depois de
envenenar Sara e tramar contra mim. Ele neutralizou nós dois.
— Laura vai me devolver minha parte da herança — minha voz fraca
foi o alimento que ele precisava.
— Não, meu amor. Ela vai provar a sua incompetência e te afastar do
grupo. Esse é o plano deles. Laura tentou me fazer te deixar, Sabrina. Ela
usou de todas as artimanhas para me convencer a ficar com ela, e quando me
neguei a te trair, Bernardo utilizou a oportunidade para dar o golpe. Ele sabia
que Laura era doida por mim e que queria vingança, então fez com que
aquela garota… eu nem sei o nome dela, meu amor. Ele pagou um preço alto
para que ela mentisse.
— Isso não é verdade.
— Quem sugeriu que a família se responsabilizasse pela defesa da
garota? Quem pagou um ótimo advogado para garantir que a menina não
sofreria danos maiores?
Olhei para trás outra vez, tão insegura que qualquer pessoa captaria a
minha situação. Eu me afastei um pouco mais, caminhei na direção do carro.
Precisava sair dali. Agir. Impedir que o pior acontecesse.
— Onde você está?
— Escondido como um rato — ele choramingou. — O que mais
posso fazer? Eles te convenceram a bloquear as contas, cancelar os cartões.
Além do mais, a polícia está na minha cola. Eles vão me prender sem me dar
chance de provar essa armação.
— Eu quero te ver, Vicente. Preciso te ver — sussurrei com ímpeto.
— Eu também, meu amor. Mas preciso que me ajude.
— Do que você precisa? Dinheiro? Roupas, comida?
— Você nunca falha, Sabrina — a voz, apesar de sofrida, deixava
transparecer o sorriso. — Preciso de dinheiro, amor. O suficiente para
desaparecer por um tempo e contratar um bom advogado para me defender,
como vocês fizeram com a empregada.
— Tudo bem. Levarei o dinheiro. É melhor você ficar com um dos
meus cartões de débito. Hoje é sábado, não tem como fazer um saque
grande, além do mais, se eu fizer isso, chamarei a atenção da polícia e eles
conseguirão te pegar.
— Tem razão, meu amor. Você é brilhante, Sabrina.
— Eu sou.
Destravei o carro e entrei sem me dar ao trabalho de me despedir dos
gerentes ou justificar minha saída repentina.
— Agora me diga onde você está. Vou comprar algumas roupas e
comida.
— Não precisa. Isso também pode chamar atenção. Traga apenas o
cartão. Tem bastante dinheiro na conta?
— O suficiente, não se preocupe.
— Certo, meu amor. Vou te passar o endereço, mas tome cuidado. O
local não é dos melhores.
Coloquei no GPS o endereço que ele me passou, liguei o carro e
encerrei a ligação. Antes de sair abri a bolsa e verifiquei se o que eu
precisava estava lá. Então fui embora. Vicente precisava de mim e eu era a
única que conseguiria dar um fim naquele problema.
“E por falar em saudade
Onde anda você?”
Onde anda Você - Toquinho / Vinicius de Moraes
CAPÍTULO 49
BERNARDO
LAURA
CAPÍTULO 50
SABRINA
CAPÍTULO 51
LAURA
Sempre gostei de acreditar que, por mais difícil que fosse, independente da
situação, eu tinha controle sobre mim. Eu podia ter medo, raiva, motivação,
mas tudo partia de mim, com a minha consciência, a minha capacidade de
compreender e fazer o melhor possível diante do que eu tinha à minha
disposição. Até mesmo quando Vicente me beijou e me fez concordar com
as loucuras dele, eu sabia que agia por instinto de sobrevivência. Em
nenhum momento eu me desconheci, perdi o meu controle.
Até Sabrina aparecer, a polícia invadir a casa e me levar embora,
antes passando por um Vicente sem vida, ensanguentado no chão. Foi a
partir deste momento que eu perdi todo e qualquer controle sobre mim. Em
choque, não conseguia falar, não controlava meu corpo que não parava de
tremer, não evitava as lágrimas que desciam volumosas e banhavam meu
rosto. Eu não ouvia o que falavam, não correspondia aos pedidos ou
comandos. Não enxergava com exatidão. Então adormeci.
E adormeci.
E adormeci.
E adormeci.
Em algum momento daquele sono profundo, eu tive consciência de
que ministravam medicações que me mantinham desacordada. Recordava
pouco do ocorrido e alucinava com coisas que eu não fazia ideia se eram
reais. Lembro de despertar gritando e adormecer logo em seguida. Da minha
mãe segurando meus ombros doloridos, me empurrando de volta para a
cama. Lembro de pessoas ofuscadas pela claridade que chegavam sem nada
dizer e partiam com o mesmo silêncio.
Por isso quando abri meus olhos e consegui mantê-los abertos, eu
não fazia ideia se ainda dormia ou sonhava. O silêncio estranho só era
quebrado pelo gotejar insistente ao meu lado. Observei o acesso interligado a
uma bolsa de soro e estranhei minha mão, as unhas cortadas, pequenas e a
marca vermelha em meus pulsos.
Voltei a fechar os olhos, as lembranças como um pesadelo a me
aterrorizar. Vicente perto demais, o beijo, a confissão antes de morrer pelas
mãos de Sabrina.
— Sabrina — eu disse, a voz pastosa e rouca. Minha garganta doeu
ao forçá-la.
Lembrei do choro e senti a lágrima escorrer pelo canto dos meus
olhos enquanto eu recordava os braços protetores de Sabrina em mim. O
abraço apertado enquanto a polícia preenchia o espaço do pequeno quarto
em que Vicente me manteve cativa.
— Sabrina — repeti, alarmada ao ver outra vez, em minha mente, o
corpo de Vicente estendido no chão, os olhos abertos, o buraco em seu rosto
indicando o local do tiro.
Como Sabrina escaparia dessa?
— Laura?
A voz dele reverberou em mim como bálsamo. Abri os olhos no
exato instante em que Bernardo colocou a mão sobre a minha.
— Laura?
Ele me encarava com preocupação, os olhos de um azul
reconfortante, atentos a mim como se eu pudesse surtar a qualquer momento.
— Ber… — Limpei a garganta, cada vez mais seca e irritada. —
Bernardo.
Falar exigia a energia que parecia ter desaparecido do meu corpo.
Passei a língua pelos lábios ressecados.
— Está tudo bem — ele sussurrou. — Você está bem, Laura.
— Água — pedi sem aguentar a sede.
Bernardo largou minha mão e eu ouvi a sua movimentação próximo
ao local onde eu estava deitada. O barulho de água derramada no copo me
fez abrir os olhos outra vez.
— Aqui — ele disse de volta para o meu lado. — Beba devagar.
Bernardo me auxiliou com a água. Meus braços não correspondiam
como eu queria. Tudo em mim doía. Bebi o máximo possível e não o
suficiente para aplacar a sede que arranhava minha garganta.
— Sabrina… — eu reagi, preocupada demais para aceitar a fraqueza
que me abatia. — Ela matou…
— Calma. Não se preocupe com nada. Sabrina está bem.
— Ela matou o Vicente — conclui.
Eu queria dizer muitas coisas, pedir para falar com a polícia e dizer
que Sabrina me salvou, que Vicente estava armado, o que ele tramava, tudo
o possível para livrar Sabrina daquilo. Mas eu não conseguia falar mais do
que aquilo.
— Laura — Bernardo suspirou, envolveu minha mão na dele e
sentou com o rosto perto do meu. — Sabrina atirou no Vicente porque ele ia
atirar nela.
Concordei sem conseguir falar. As lágrimas continuaram descendo,
eu não conseguia respirar direito.
— Fique calma, meu amor — ele suplicou.
— Eles vão prender Sabrina? — eu me esforcei para dizer. Bernardo
deu um risinho gentil e limpou o canto dos meus olhos.
— Não. Sabrina tem porte de arma. Ela atirou em legítima defesa. A
investigação conseguirá inocentá-la.
— Certo.
Mas eu continuava chorando, sem controle e sem identificar um
motivo específico.
— Vicente ligou para Sabrina depois de te sequestrar. Ele tentou
enganá-la. Disse que nós tramamos para separá-los. — Bernardo deu um
risinho irônico. — Às vezes eu me pergunto como Vicente acreditou que
conseguiria engabelar Sabrina com essa conversa. Logo Sabrina? Não se
esforce, Laura — ele me impediu de falar quando tentei colaborar com o que
dizia. — Você está fraca, meu amor.
Eu o encarei com um pedido no olhar e Bernardo compreendeu. Ele
sabia que precisava me contar tudo ou eu não teria paz. E assim eu soube
que Sabrina seguiu Vicente sem ter conhecimento do meu sequestro. Ela
queria entregá-lo à polícia e acabar com as incertezas que vivíamos, mas
acabou se deparando comigo.
Bernardo me garantiu que Fernando cuidaria de Sabrina e não
deixaria que a investigação desandasse, permitindo assim que Sabrina
continuasse livre. E então ele me contou sobre o enterro de Vicente.
— Eu fui — ele disse com certo amargor na voz. — A imprensa em
peso estava na porta do cemitério municipal. Sim, deixamos que o governo
cuidasse disso. Vicente não valia o nosso esforço. Eu fui porque queria ter a
certeza de que ele morreu mesmo. — Eu sorri porque não conseguia rir. Os
lábios ressecados esticaram e doeram no processo.-- Vicente é tão rançoso
que pensei em tampar o caixão e derrubar a terra sobre ele. Só para garantir
que não tinha volta.
— Bobo — sussurrei.
O olhar de Bernardo se acendeu com devoção quando ele acariciou
meu rosto.
— É tão bom te ter de volta — ele disse, cheio de emoção.
— É bom estar de volta. — Forcei minha voz a sair.
— Foram três dias terríveis, Laura.
— Três?
Minha garganta protestou quando falei com espanto. Engoli com
dificuldade e aceitei a água que Bernardo voltou a me oferecer.
— Três dias hoje — ele informou. — Você entrou em choque quando
a polícia te encontrou. Os médicos preferiram te acalmar com remédios
porque quando você saiu daquele estado que não correspondia a nada, ficou
agressiva, gritou muitas vezes, se arranhou. Foi horrível.
Eu mal conseguia acreditar nas palavras dele. Três dias? Como eu
consegui me perder por tanto tempo?
— E minha mãe?
— Foi para casa depois de eu insistir muito.
Concordei, controlando minha respiração. Eu não podia surtar.
Precisava voltar ao normal e assumir o controle sobre mim mesma. Três dias
perdida entre o sono e o desespero eram o suficiente. Eu não me permitiria
nem mais uma hora no descontrole.
— Eu te devo um pedido de desculpas — Bernardo falou com certo
receio.
— Por quê?
— Nada disso teria acontecido se não fosse por mim. Quer dizer…
por causa da minha família desajustada. Todos nós falhamos com você,
Laura. Até mesmo meu pai quando te fez esse pedido injusto. E veja o que
aconteceu? Primeiro Sara e agora você em uma cama de hospital. Eu… sinto
tanto.
Meu namorado abaixou a cabeça sobre a cama e escondeu o rosto de
mim, sem desconectar nossas mãos. Acariciei os dedos longos sem saber o
que dizer, se eu conseguisse dizer. Havia uma série de pontos ruins que só
aconteceram porque eu me envolvi com os Quaresma. Mas eu podia culpá-
los? Acho que não.
Sabrina roubou meu noivo e desfez a nossa amizade. Eu me culpava
por ter apresentado Vicente a ela, por ter confiado nele e revelado detalhes
sobre a vida da minha amiga. No final das contas, nós duas fomos usadas por
ele. Vicente era o grande vilão daquela história, não a gente. Fomos todos
manipulados e levados a agir.
Entretanto, se nada disso acontecesse, se o Sr. Quaresma não
percebesse o quanto a filha era enganada, não teria enxergado o que fazia
com Bernardo. Se ele não tivesse me envolvido naquela confusão, eu nunca
olharia Bernardo de outra forma, nunca o amaria e ele jamais pensaria em
mim como alguém possível.
Por isso eu sorri ao soltar minha mão da dele e levar meus dedos aos
fios lisos e sedosos do meu namorado. Quando Bernardo ergueu a cabeça e
me encarou, eu ainda sorria. Ele se aproximou, acariciou meu rosto e se
permitiu ser acalentado.
— Eu te amo — sussurrei. Ele me presenteou com um lindo sorriso,
tímido e apaixonado.
— E eu te amo demais, menina — confessou antes de depositar um
beijo rápido, mas carregado de sentimentos, em meus lábios.