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Herdeiros

Até onde você iria por uma herança?

Tatiana Amaral
Copyright © 2023 Tatiana Amaral

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The characters and events portrayed in this book are fictitious. Any similarity to real persons,
living or dead, is coincidental and not intended by the author.

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express written permission of the publisher.

ISBN-13: 9781234567890
ISBN-10: 1477123456

Cover design by: Renato Klisman


Printed in the Brasil
“Nessa estrada não nos cabe conhecer ou ver o que virá
O fim dela ninguém sabe bem ao certo onde vai dar
Vamos todos numa linda passarela
de uma aquarela que um dia enfim
Descolorirá”
Aquarela - Tom Jobim / Vinícius de Moraes
“Eu sempre tive uma certeza,
Que só me deu desilusão
É que o amor é uma tristeza,
Muita mágoa demais para um coração”
Água de beber - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 1
LAURA

Subi com pressa as escadas, ciente de que apesar disso, nenhum barulho eu
faria. Ninguém, com exceção do Sr. Quaresma, dormia daquele lado da
mansão. Um absurdo, eu pensava, ao mesmo tempo que me desobrigava a
pensar em repudiar o que os demais escolhiam para as suas vidas.
Eu tinha pressa, mas não por estar atrasada e sim porque precisava de
um tempo para estudar para o simulado que faria naquela noite. Faltava
pouco para o vestibular e eu me entupia de confiança de que conseguiria
ingressar numa faculdade pública, a de Enfermagem, como tanto sonhei.
Abri a porta com cuidado, certa de que o senhor de quase oitenta
anos dormia, já que seu estado de saúde inspirava cuidados. Entretanto, qual
não foi a minha surpresa ao encontrá-lo desperto, vestido e pronto para a
minha chegada?
— Bom dia, Laura! Preparada para o simulado de hoje? — ele
comentou no instante que entrei. O sorriso inevitável se prolongou em meu
rosto.
— Bom dia, Sr. Quaresma. Vejo que de novo não esperou por mim.
— Ora, não preciso de uma babá supervisionando a minha higiene
íntima. Agora enquanto pega todos esses que insiste em me fazer engolir, me
conte, está preparada para o simulado ou não?
— O senhor não esquece.
Coloquei minha pasta sobre a imensa mesa de trabalho instalada no
quarto do Sr. Quaresma, quando este começou a adoecer e ficou impedido de
gerir seus negócios. Em seguida, me encaminhei ao banheiro para lavar as
mãos.
— Eu sou idoso, mas não tenho Alzheimer — ele reclamou.
— Ninguém poderia dizer uma única palavra contra esta afirmação.
E a resposta é sim. Quero estudar um pouco mais, porém, sinto-me
preparada — informei ao retornar para o quarto e iniciar o meu trabalho. —
Esse chinelo não é o adequado, esqueceu que me prometeu que daríamos
uma volta no jardim?
— Isso atrasará os seus estudos. Prefiro ficar na biblioteca com um
livro enquanto finjo que não estou bisbilhotando o tanto que você estuda —
eu ri ao preparar o glicosímetro. — Você não nasceu para ser uma simples
técnica de enfermagem. Enfermeira-chefe é o mínimo que pode desejar.
— Ei, mais respeito com os técnicos de enfermagem.
Ele permitiu que eu verificasse a glicose e bufou alto quando me viu
fazer uma cara feia.
— Tomou a ceia ontem?
— Ceia. Isso é coisa de gente que não tem o que fazer. Onde já se
viu? Eu não tenho fome depois do jantar.
— Já tivemos essa conversa — preparei os remédios na bandeja e
acrescentei a injeção habitual de insulina. A pior parte para nós dois. — Tem
que comer mesmo sem fome. Um chá já faria uma grande diferença.
— E quem gosta de chá nessa cidade?
— Eu.
Ele aceitou os comprimidos e os engoliu na hora que minha mãe
entrou com a bandeja com o café da manhã. Dona Sara trabalhava naquela
casa há tantos anos que havia até perdido a conta. Acho que foi quando o Sr.
Quaresma casou, mas nem ela tem esta certeza. Era a governanta,
responsável pelo funcionamento e também, a mesma que contou ao nosso
chefe que eu estava prestes a me formar em técnica em enfermagem, dessa
forma, no momento que se viu impossibilitado de viver sem alguém que o
obrigasse a tomar os remédios na hora certa ou o auxiliasse em alguns
momentos, me contratou.
Eu tinha pouca experiência na época, estava em meu primeiro
estágio, ainda assim, ele assinou a minha carteira de trabalho e me pagou um
valor que ninguém da minha turma conseguiu. Na época pensei que tirei na
loteria, só para descobrir que iniciaria meu martírio.
Há anos não pisava naquela casa, não via os dois filhos do Sr.
Quaresma, Sabrina e Bernardo, que foram meus amigos na adolescência e
dos quais me afastei quando percebi que existia uma falácia imensa entre a
filha da governanta e os filhos dos patrões.
— Bom dia, Sr. Quaresma — minha mãe disse, sem utilizar qualquer
tom que a tirasse do profissional. — Que bom que Laura está aqui para
obrigá-lo a comer o que é necessário.
— Sara, como se sente sabendo que sua filha ingressará logo em uma
faculdade de enfermagem? — ele sondou, esquecendo-se, como sempre
fazia, que ali estavam empregado e patrão.
— Ingressarei tarde — eu os interrompi. — Mas preparada.
— Nunca é tarde para começar — ele rebateu.
— É o que sempre digo a ela — minha mãe colaborou.
— Ótimo, estamos todos acertados — brinquei. — Agora, vamos ao
café da manhã antes que esse índice glicêmico piore.
Eu adorava o Sr. Quaresma. Homem bom, correto, humilde. Rico,
muito rico, no entanto, conhecia a pobreza. Talvez por isso nunca deixou de
pensar nos outros. Já seus filhos… A falecida esposa, que Deus a tenha em
um bom lugar, seguia a mesma linha do marido, doou-se o máximo por
aquela família, mas… existia algo de muito errado no universo quando um
casal como aquele tinha filhos como Sabrina e Bernardo.
— Você tem ótimas meninas, Sara — ele continuou enquanto
aceitava o que eu lhe oferecia.
— O senhor sempre diz isso — minha mãe contribuiu, porém, sem
demonstrar intimidade.
— Porque é uma verdade. Essas meninas vão lhe encher de orgulho,
você verá.
— Amém — dissemos, nós duas ao mesmo tempo.
— Já os meus… — ele começou.
Eu odiava quando aquilo acontecia, em especial no meio do café da
manhã. Falar dos filhos sempre tirava a fome do Sr. Quaresma.
— Dois sem noção. Uma casa com um oportunista. Eu esperava mais
de Sabrina, tão esperta e inteligente, poderia casar com pessoas mais
interessantes e que agregassem ao invés de sugar.
— O senhor deveria se preocupar em comer e… — eu tentei, mas ele
rejeitou o que eu lhe oferecia.
— E Bernado… — Outro bufar, só que este bastante aborrecido. —
Quase quarenta anos na cara e nenhuma responsabilidade.
— Ele só tem 32 anos, Sr. Quaresma. Homens demoram mais para
amadurecerem mesmo. — Tentei, mais uma vez, sem qualquer sucesso,
fazê-lo aceitar a comida. — O senhor precisa tomar o restante dos remédios
e a insulina.
— Acabe logo com isso de uma vez — reclamou, desistindo de
continuar a refeição.
Minha mãe me deu um olhar de quem não contestava a decisão dos
patrões. Eu queria ser como ela, não me importar, mas… Caraca! Eu era
uma técnica em enfermagem, futura enfermeira, melhor, futura chefe da
enfermaria, logo, desistir de um paciente não estava em meus princípios.
— Se o senhor não comer pelo menos mais um pouco, eu vou avisar
ao Dr. Geraldo que o senhor está em uma missão suicida.
Minha mãe ficou horrorizada com minha atitude, mas o Sr. Quaresma
riu e aceitou que eu lhe desse a quantidade necessária de comida.
— Eu disse, essa menina será a enfermeira-chefe do maior e melhor
hospital dessa cidade.
Fiz o maior esforço para ignorar o olhar de orgulho da minha mãe
enquanto esta recolhia a bandeja e eu entregava ao meu paciente o que
restava de remédios para aquela manhã.
De verdade, diabetes nem era o pior problema do homem. Eram
tantos que eu me perguntava até quando ele duraria e rogava para que não
fosse tão cedo, pois a sua partida me impediria de pagar meu curso pré-
vestibular e com toda certeza minha mãe seria demitida.
Ele não estava de brincadeira quando se queixou dos filhos e do
genro. Eram todos terríveis. As piores pessoas que conheci na vida. E isso
porque ainda não contei que minha mãe ajudou a criá-los, no entanto, essa
realidade não modificava o comportamento de nenhum deles.
Assim que engoliu os comprimidos, o Sr. Quaresma levantou a
camisa para que eu aplicasse a insulina e identifiquei o quão ruim estava a
situação. Com cuidado, achei o local que menos o machucaria e fiz o meu
trabalho. Ele sequer reclamou.
— Então, que tal a biblioteca? — Quis saber tão logo eu me abaixei,
mas não tive tempo de responder.
— Bom dia, papai! —- Sabrina entrou no quarto com aquele jeito só
dela.
Impecável. Arrumada da maneira como condizia a sua função da
quase que maior rede de concessionárias que o pai construiu ao longo da
vida, altiva, intimidadora e… arrogante. A garota que um dia brincou
comigo e fez planos, sequer me olhou.
— Laura já acabou? — ela questionou diretamente ao pai, uma vez
que só se dirigia a mim se fosse uma extrema necessidade.
— Não — Sr. Quaresma disse sem se deixar abalar. — Pedi a Laura
para me acompanhar até a biblioteca.
— Isso pode esperar. Tenho coisas importantes para conversar com o
senhor.
— Eu vou até a cozinha, Sr. Quaresma — informei.
Na verdade, não era apenas o fato de Sabrina não me suportar, era
também o de eu não aguentá-la na mesma medida. O ranço era mútuo,
porém, naquela quebra de braço, apenas eu tinha motivos para tal. E eu o
encontrei onde menos queria, na cozinha vazia, como se soubesse que eu
seguiria para lá tão logo a esposa me expulsasse do quarto do pai.
— Bom dia, Laura — Vicente, marido de Sabrina, o tal aproveitador
que o Sr. Quaresma nunca deixava de apontar, me cumprimentou com toda a
cortesia que faltava em sua esposa.
— Bom dia, Vicente. — Minha resposta automática e sem qualquer
emoção sequer o intimidou.
Do outro lado do imenso balcão no meio da cozinha, fui até a
geladeira e peguei a jarra do suco, mas, assim que meus dedos se fecharam
em sua alça, eu quase a derrubei. Sem a minha autorização, Vicente me
agarrou por trás, juntou nossos corpos e beijou meu pescoço.
— Saudade desse seu jeitinho emburrado, sabia?
Que abusado!
— Tire as mãos de mim ou você terá que arrumar uma boa desculpa
para explicar a Sabrina, a sua cara cortada —- ameacei ao tentar afastá-lo,
mas o cara era totalmente sem noção.
— Você sabe que ela acreditará em qualquer desculpa que eu der.
E foi por causa dessa resposta, por saber que ele tinha razão, que eu,
sem pensar duas vezes, virei em sua direção e despejei todo o suco em sua
cabeça.
— Porra,Laura!
— Grite mais alto até Sabrina descer e tomar ciência de quem é o
imbecil do marido dela — ameacei.
— Você vai limpar isso — ele rosnou.
— Com prazer — rebati.
Dado por vencido, Vicente deixou a cozinha, afinal de contas
precisaria arrumar a bagunça que causei, todo pronto para fingir trabalhar na
empresa em que a esposa geria no lugar do pai.
Sorri para mim, satisfeita por não ter me intimidado, mas meu sorriso
morreu no mesmo instante em que também me congratulei por não ter
cedido.
Com um suspiro forte, busquei um pano para limpar o balcão e outro
para iniciar a limpeza do chão. Eu me esforcei para que meu cérebro se
concentrasse nisso e não no fato de, na adolescência, ter sido eu a apresentar
Vicente, meu namorado na época, a Sabrina, que eu acreditava ser a minha
melhor amiga.
Engoli as lágrimas e me obriguei a limpar a bagunça antes que mais
merdas acontecessem. Nem Vicente e nem Sabrina poderiam roubar mais
nada de mim e eu precisava estudar para a prova daquela noite.
Mas, como tudo o que é ruim, piora, quando finalizei o balcão e me
abaixei para limpar o chão ouvi passos atrás de mim para em seguida se
deterem. Na mesma posição, nada louvável, olhei para trás e vi parado, com
um sorriso debochado, Bernardo Quaresma, o irmão mais velho de Sabrina,
filho do senhor de quem eu cuidava pelo dinheiro, mas também pela
consideração e amor que nutria por ele e por tudo o que fez pela minha
família.
— Uau, Laura. Essa hora da manhã encontrar uma mulher de quatro
no meio da cozinha está na minha lista de desejos.
— Quantos anos você tem? Dez?
Ele riu com vontade.
Ao contrário da irmã, Bernardo nunca quis se afastar ou deixar de ser
meu amigo. Aconteceu por dois motivos: ele saiu do país para estudar fora e
depois os pais descobriram que ele só viajava o mundo sem se importar com
o conhecimento que jurou obter para aplicar nas empresas, e porque eu
deixei de frequentar a casa no momento que Sabrina roubou meu namorado.
Quer dizer… não nessa ordem, mas por estes motivos.
— Seu pai sabe que no meio da semana você chega em casa a esta
hora, mesmo em horário de trabalho? — Eu quis acrescentar o “e bêbado” às
acusações, no entanto, nada do que eu dissesse surtiria efeito.
— Não sabe e não precisa saber. Para que vamos piorar a saúde do
velho?
Encarei Bernardo sem acreditar naquelas palavras. Tudo bem que ele
era maior de idade e bastante crescidinho para tomar as suas decisões, mas
aos trinta e dois anos agir como um adolescente era de fato frustrante. Por
isso eu entendia tão bem o Sr. Quaresma. Um filho que só pensava em
usufruir do dinheiro que o pai se esforçou para conquistar e uma filha que
apesar de gerir muito bem as empresas, escolheu se casar com o cara errado.
Como condenar o idoso?
— Faça como quiser — resmunguei e me levantei com o pano na
mão.
— O que você aprontou? — ele quis saber ao sentar no balcão onde
no geral a cozinheira preparava a comida.
— Você fede a álcool. Vá tomar banho antes de se apresentar ao seu
pai e fingir que trabalha.
— Nossa, quanta amargura, Laura.
E eu estava de saco cheio de todos eles.
— Olha, Bernardo, se seu intuito aqui for me convencer a não contar
ao seu pai que você chegou agora, com esse fedor de cigarro e cachaça, fique
tranquilo, eu não tenho motivo para ser a fofoqueira dessa casa.
— Por isso eu gosto de você — ele troçou e eu tive vontade de ter
outra jarra de suco para derramar na cabeça daquele outro imbecil.
Mas, com a mesma leveza e desapego com que entrou na cozinha, a
deixou. E eu me vi com o pensamento de que, se fosse eu ali, com aquelas
oportunidades todas, seria tão imbecil quanto eles?
Não. Eu não teria sequer a oportunidade, quem dirá a imbecilidade
deles.
“Vai, meu coração, ouve a razão
Usa só sinceridade
Quem semeia vento, diz a razão
Colhe sempre tempestade”
Insensatez - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 2
BERNARDO

Quarta-feira era o meu pior dia da semana.


Não era nem o início para que eu pudesse reclamar sobre acabar o final de
semana, nem o fim para que eu pudesse me animar, era simplesmente o meio
e o meio era um saco. Contudo, às quartas-feiras tinham um sabor amargo
todas as manhãs, porque o dia começava cedo e não por causa do trabalho,
mas porque meu pai insistia em nos reunir neste dia para nos passar todos os
sermões que guardava dos outros.
De fato, eu odiava as quartas-feiras. Como poderia gostar?
Por mais que me esforçasse, e olha que eu me esforçava pra caramba,
meu pai só enxergava em mim o meu gosto pela vida. E, de verdade, que
mal havia em gostar da vida? O que ele queria, que eu adoecesse e
envelhecesse debruçado sobre uma mesa de escritório como ele fez? Nem
fodendo!
Não que trabalhar me incomodasse. Eu até curtia, tinha aquela coisa
de ser o carinha responsável e tal, o que agradava muito as garotas, mas até
enlouquecer? Jamais. Eu fazia o meu melhor. Conhecia tudo naquela
empresa. Visitava as filiais com frequência, me inteirava dos fatos e sabia
como tudo funcionava, mas… Sabrina era a pessoa certa para colocar aquilo
sempre em movimento. Eu só era os seus olhos, e eu nunca me importei em
enxergar.
Arrumei o nó da gravata, apesar de odiar aquela formalidade e
conferi minha imagem no espelho do closet. Eu era uma beleza, mas… todo
fruto amadurece e cai podre, então, por quais motivos eu desperdiçaria os
melhores anos da minha vida preso em um escritório?
Vesti o paletó, ciente de que o tiraria assim que deixasse o quarto do
meu pai, conferi a barba bem aparada e segui na direção oposta a qual eu
ocupava. Aquela casa era imensa de uma maneira deliciosa. Eu entrava e
saía sem precisar dar satisfações, e podia, se quisesse, ter a companhia do
meu gosto sem que qualquer pessoa tentasse me impedir, porém, não curtia
levar mulheres para casa. Nunca era divertido quando elas tinham uma
noção do que teriam caso se tornassem a senhora Bernardo Quaresma, logo,
eu evitava problemas.
De maneira estratégica, minha irmã soube expandir a construção com
três alas bem separadas, o que nos permitia a plena liberdade, sem contar
com a facilidade de não precisar dos encontros desnecessários. Nossa mãe
jamais estaria de acordo com aquilo, mas… ela morreu, então, Sabrina se
tornou a responsável pelo funcionamento da casa. Ela só não podia mexer
com Sara, graças a Deus, e agora, com Laura, o seu pior pesadelo.
Eu me divertia com a situação. Minha irmã era muito séria. Ansiava
pela aprovação do nosso pai e por se tornar, de forma definitiva, a CEO do
nosso grupo de concessionárias. Eu jamais me oporia. Ela detinha o poder,
contudo, ter escolhido Vicente como marido fez com que meu pai retardasse
tudo.
— Bom, Bernardo — ela disse quando nos encontramos, de maneira
ocasional, na sala central, a que interligava as três alas. — Tenho algum
motivo para temer o que nosso pai dirá hoje?
Revirei os olhos. Lógico que Sabrina sempre jogava para mim o
motivo das reclamações do nosso pai. Ela se negava a atribuir a insatisfação
dele ao fato de ela insistir naquele casamento ridículo. Por isso eu não casei.
Minha irmã me traumatizou pelo resto da vida.
— Você pediu o divórcio? — pirracei. Ela endureceu o olhar.
— Nosso pai está senil, por isso implica tanto com o Vicente.
Dei de ombros. Ela não gostou nadinha da minha atitude e manteve a
marcha até a ala onde nosso pai vivia. Toda quarta-feira, quando
precisávamos nos reunir no quarto dele, eu sentia medo. Não como o
moleque que sabia que o pai o colocaria de castigo por ter desobedecido. Há
muito eu simplesmente não me importava com essas questões, mas lá no
meu íntimo, sem que ninguém precisasse saber da verdade, eu tinha medo de
abrir a porta e…
— Bom dia, papai! — Sabrina o saudou como sempre fazia. Soltei o
ar preso nos pulmões.
— Entre, entre — meu pai, seguindo o mesmo padrão de todas as
quartas-feiras, não se deu ao trabalho de ser educado.
— Bom dia, pai — eu disse mais por educação do que pela vontade
de assisti-lo me ignorar.
Como acontecia todas as quartas-feiras, ele se arrumava como se de
fato estivéssemos na empresa e se impunha com a sua imensa capacidade de
ser o verdadeiro gestor daquele conglomerado de empresas.
— Muito bem, sentem-se — ele pediu.
Obedecemos. Sabrina há muito abandonou a necessidade de se
explicar antes que ele despejasse as suas frustrações e eu, bom, a cada
semana ele tinha reclamações diferentes a meu respeito, então só me restava
aguardar.
— Estevão me enviou o relatório esta semana.
Ele começou e eu logo me mexi incomodado. Sempre que Dr.
Estevão, o advogado da família, e seu filho, que o representava ocupando o
cargo de diretor jurídico das nossas empresas, enviavam um relatório, eu já
me preparava para a porrada. No geral, eles conversavam sobre os gastos,
dilapidação dos bens, como meu pai dizia, sobre problemas na administração
das empresas que geravam embaraços jurídicos e também, em alguns
problemas que eu me metia.
— Não seria mais saudável se Dr. Estevão me enviasse o relatório?
Sabrina tentou, mais uma vez, evitar que nosso pai tivesse aquele
desgaste semanal, já que nunca cessavam e os problemas surgiam sem que
tivéssemos conhecimento.
— Não seria mais justo se eu soubesse que você colocou a proposta
da venda das empresas de pneus para os acionistas? — meu pai rebateu.
— Eu conversei antes com o senhor. Já expliquei que as empresas
não possuem o retorno necessário e…
— E eu não morri ainda, Sabrina! Não vou me desfazer do meu
patrimônio para que vocês fiquem mais ricos e desperdicem a minha
fortuna!
— Papai, o senhor…
— Se houver mais uma desobediência sua, eu a demitirei, ouviu
bem? — ele gritou, o que me deixou preocupado.
Nosso pai não podia se alterar, sua saúde era frágil desde que mamãe
faleceu e aquele destempero era além do que o recomendado.
— Que absurdo! — Sabrina rebateu. — Eu estou à frente das
empresas, trabalho dia e noite, dou o meu melhor e o senhor…
— Não permitirei. Enquanto eu estiver vivo e quem sabe até depois
disso, não acontecerá, você entendeu? Sabe quantos funcionários nós temos
nessas empresas? Sabe quantas famílias perderão o sustento?
— Papai… — minha irmã suspirou, cansada e aborrecida pelo
ataque. — A venda não é um desmonte. Podemos exigir nas cláusulas uma
porcentagem de empregados que precisam permanecer nas empresas.
— Não se faça de tonta, Sabrina. Eu sei que quer aquela casa na
praia, absurda de cara. Compre com o seu próprio dinheiro — bradou.
Enquanto meu pai gritava e jogava na cara da minha irmã a realidade
— de fato ela queria se desfazer de algumas empresas porque não via motivo
para nos cercarmos de todos os meios de sustento automobilístico, mas em
especial porque queria a casa de praia que Vicente encontrou e que não
parava de falar — eu o vi ficar vermelho, depois roxo, uma veia se alterar
em seu pescoço, o suor escorrer ainda que o ar-condicionado estivesse
ligado. Ele não deveria se alterar tanto.
— Pai, é melhor o senhor se acalmar — pedi.
— E não me venha com suas palavras de conforto, Bernardo. O que
você faz além de gastar o meu dinheiro? De desfilar nas noites com
mulheres, várias, cada dia uma diferente? Quanto mais de vergonha acha que
consegue me fazer passar? Se sua mãe fosse viva…
E não parou mais.
Outra quarta-feira fodida.

SABRINA
Eu tremia, e odiava tremer.
Papai de fato conseguia arrancar de mim o equilíbrio que precisava
para, sozinha, sim, sozinha, gerir aquela empresa arcaica e volumosa. Ele
não entendia a nossa vontade de enxugar e tudo isso porque tinha o que eu
jamais me permitiria ter: apego. Onde já se viu acumular empresas
desnecessárias, abranger todos os detalhes do mundo automobilístico só
porque na época dele era o certo a ser feito?
Quando cheguei ao meu quarto, surpreendi Vicente, com roupas da
academia ainda, suado, como se não estivesse atrasado para o trabalho.
— Ainda aqui? — Minha pergunta saiu com o tom de acusação que
eu odiava, e ele também.
— Eu queria saber se você ficaria bem depois da conversa de hoje —
ele explicou com um olhar inocente que quase me fez amolecer.
— Você acabou de sair da academia, Vicente — acusei. — Não
percebe que é por isso que papai me inferniza? Ele não acredita que você se
importe com as empresas.
— Seu pai não acredita — ele enfatizou, aborrecido, contudo,
contido. — E você?
— Que pergunta é essa?
— Isso mesmo, Sabrina. Você acredita ou não?
— Claro que acredito. Você trabalha lá, não é mesmo? E pela
vontade de quem?
— Você não acredita — a decepção em sua acusação me fez esquecer
da briga com meu pai. — Eu fiquei por você, porque sabia que seu pai
sempre faz isso, ele sempre te enfraquece, te faz desacreditar em seu
potencial. Fiquei para que você não esquecesse quem é, para te incentivar, e
o que você faz? O mesmo que o velho, me acusa de ser um interesseiro, que
finge que trabalha.
Com isso, ele me desarmou por completo. Vicente não tinha a mesma
garra que eu, e nem precisava ter. O cargo que ele ocupava sequer exigia
dele o mesmo de dedicação que o meu, eu só… droga, meu pai me frustrava
ao ponto de abalar meu casamento, de me fazer implicar com a única pessoa
que de fato me valorizava naquela droga de família.
Ele não entendia, aliás, nenhum deles entendia o que significava
viver com Vicente. Meu marido me enxergava, incentivava e me amava
como nenhum deles foi capaz de me amar. Foi Vicente quem me incentivou
a estudar administração de empresas, que me fez pedir um estágio ao invés
de exigir um emprego, porque ele sabia que eu teria que conhecer setor por
setor para chegar onde eu queria.
Também partiu dele a ideia de uma segunda graduação ao invés de
partir para uma pós graduação ou MBA como meus colegas fizeram. E eu
me formei em ciências contábeis, ou seja, eu era imbatível. Depois disso, só
acumulei títulos e estudos que agregaram o meu valor.
Papai e mamãe queriam que eu fosse para fora do país, que estudasse
com os melhores, que seguisse os passos do meu irmão mais velho, só para
em seguida quebrarem a cara com Bernardo. Quase reprovado na faculdade
de direito, Bernardo não se deu ao trabalho de fazer o exame da OAB. Ele
fez uma pós-graduação em gestão de negócios e convenceu nossos pais que
estudar fora seria melhor, sendo que ele só fazia curtir e gastar, no final das
contas, não trouxe nada de útil em sua bagagem.
Era um idiota encostado, mas tinha um ótimo olhar para o que servia
e o que não servia na empresa, logo, não era imprestável.
Eu morei fora, claro. Fui estudar, mas só depois de casar e de fazer
meus pais aceitarem Vicente. Fomos juntos e ele me ajudou de uma forma
que nenhum deles teria feito, porque só quem viveu a solidão de morar longe
do seu país pode compreender o quão complicado é manter o foco.
— Eu acredito — anunciei com mais ênfase, desarmada. — Perdão,
meu bem. É que você sabe como meu pai é e as quartas-feiras são
insuportáveis. Papai não entende que o tempo dele passou, que ele deveria
descansar e me deixar trabalhar.
— Tudo bem.
Meu marido se aproximou, beijou o topo da minha cabeça, mas não
se encostou para não acabar com minha produção, uma vez que eu estava
pronta para trabalhar e ele suado de tanto malhar.
— Vou adivinhar, ele descobriu que você quer vender as empresas de
pneus e foi contra.
— Não só isso — suspirei e sentei na cama. — Ameaçou me
despedir se eu seguisse com a ideia.
— Seu pai é mesmo antiquado, amor. Aquelas empresas estão prestes
a nos dar prejuízo. Melhor vender. Toda empresa precisa enxugar ao
máximo. Não tem necessidade de termos empresas de pneus.
— Pois é!
Por isso que eu digo que só Vicente consegue me entender. Se
dependesse de Bernardo nada além do que já estava lá aconteceria. Ele mal
se importava com o trabalho, só pensava no dinheiro que entrava em sua
conta todos os meses, mas Vicente tinha visão, compreendia as necessidades
da empresa, e as nossas também, afinal de contas, queríamos filhos e para
isso precisávamos de um lugar nosso, amplo, com tudo o que pudesse
manter as crianças seguras e em um ambiente adequado.
A casa que encontramos era perfeita, mas não tínhamos economias o
suficiente para adquirí-la. Lógico que poderíamos financiar, no entanto eu
não me sentia à vontade para bancar juros altos quando poderíamos nos
livrar do fardo, comprar a casa e ainda sobrar dinheiro para aplicar e render
melhor.
— Amor, não fique tão aborrecida. Seu pai está velho e velho é assim
mesmo, apegado e teimoso.
— É irritante, isso sim — esbravejei, ele deu uma risadinha leve e
ergueu meu queixo para depositar um beijo inocente em meus lábios.
— Não fique aborrecida com seu pai. Ele logo não estará mais aqui.
Não que eu deseje que ele morra, não é nada disso, mas ouvi uma conversa
na cozinha e…
— Na cozinha? Você agora fica pela cozinha, Vicente?
— Eu precisava do meu pós-treino — explicou com inocência. —
Tá, esqueça. Não está mais aqui quem falou.
— Aposto que ouviu a Laura — supus com desdém, os braços
cruzados na frente do peito para ajustar a minha raiva.
— Ela disse para a mãe que seu pai não estava bem. Que as taxas não
estavam boas.
— E ela não me contou nada? — Fiz menção de sair, mas ele me
segurou pelo braço.
— Calma, ou vão dizer que fico na cozinha xeretando. Quero que
você pense, que se concentre, na ideia de que em breve você será a CEO
desse grupo e poderá tomar todas as decisões.
Vicente se aproximou, beijou meu pescoço e não deixou que a ideia
de perder meu pai fosse algo sofrido para mim, afinal de contas, quem
gostaria de viver doente, preso a uma casa, um quarto… eu já não conseguia
pensar em mais nada com suas mãos em mim, ansioso para desfazer a minha
figura de presidente do grupo, como ele adora dizer que fazia.
“Existiria a verdade
Verdade que ninguém vê
Se todos fossem no mundo
Iguais à você”
Se todos fossem iguais a você - Tom Jobim e Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 3
LAURA

Naquela manhã, a tensão fazia parte da composição do ar. Todas as quartas-


feiras eu me preocupava, afinal de contas, era o dia da reunião do Sr.
Quaresma com os filhos e sempre, em todas as quartas-feiras, eu precisava
agir em seguida. Não foi diferente naquele dia.
Fiquei de olho, atenta a quando os filhos deixassem o quarto do pai,
escondida, claro, afinal de contas, nem precisava saber o que acontecia lá
dentro, de ter total conhecimento do básico: Sabrina e o marido aproveitador
e Bernardo e a sua incapacidade de ser responsável.
Sinceramente? Eu nem entendia porque o Sr. Quaresma ainda se
importava. Sabrina era louca pelo marido e era manipulada por este há tantos
anos que eu me perguntava se o cérebro dela deu algum tipo de pane e não
assimilava os erros que Vicente cometia, não apenas por me paquerar, mas
por se aproveitar de tudo o que aquela família poderia proporcionar a ele.
Vicente era um escroto. Jamais deixaria de ser o sanguessuga. Ele
encontrou em Sabrina a carência necessária para ganhar na loteria e acertou
todos os números. Não pensou duas vezes antes de me largar e engatar o
namoro com a idiota.
E Bernardo, caraca, quem poderia acreditar naquele cara? Ele entrou
na fila para ser playboy e abusou. Mais famoso pelas suas noitadas e desfiles
com mulheres jovens e lindas do que pelo seu desempenho na empresa do
pai. O cara nem se dava conta que no momento que o Sr. Quaresma
morresse, ele só teria a opção de confiar na irmã para garantir o seu sustento
e pior, aceitar o cunhado vigarista com as mãos na parte dele também.
Bando de imbecis!
Por isso que eu não podia acreditar que Deus era justo. Como aqueles
idiotas conseguiam aquela vida enquanto eu, aos quase trinta anos, não
conseguia nem sequer ter um nível superior, porque trabalhava para ajudar
nos estudos da minha irmã e no sustento da casa?
Igualdade meu ovo!
Caminhei com cuidado quando eles desceram as escadas e as vozes
ficaram distantes. Bati na porta do quarto, mas como não ouvi resposta achei
por bem abrir de uma vez. Encontrei o Sr. Quaresma encostado na mesa,
uma mão no peito, a cabeça baixa e a respiração irregular.
— Sr. Quaresma! — Corri em sua direção, mas ele fez menção para
que eu me afastasse.
— Eu estou bem — alegou com a voz frágil. — Esses dois querem
tirar a minha vida — resmungou.
— O senhor deveria acabar com essas reuniões nas quartas-feiras —
rebati, o esfigmomanômetro, ou, para os leigos, aparelho de aferir pressão
arterial nas mãos, pronta para iniciar a triagem que me diria se ele estava de
fato bem ou não.
— É o que eles querem, que eu me afaste de vez para dilapidarem
minhas empresas — voltou a ficar nervoso, o que me deixou apreensiva. —
Acabo com tudo antes que eles dancem sobre o meu túmulo.
— Sr. Quaresma, por favor, tente se acalmar.
Coloquei o aparelho em seu pulso e percebi que ele tremia, a mão
quase não parava sobre a mesa. E não deu outra, pressão alta demais. Corri
para buscar o remédio. Enquanto eu abria as portas dos armários no banheiro
para pegar o que precisava, o ouvi comentar.
— Meu estômago está doendo — reclamou. — Eu não disse que…
E nada mais ele disse.
— Sr. Quaresma? — Chamei. O frasco na mão, aberto para que eu
retirasse de dentro uma única pílula. — Quer um antiácido?
Preocupada, voltei para o quarto e o encontrei caído, os olhos
abertos, o corpo todo rígido, babava, as mãos contorcidas e o rosto
vermelho.
— Ai meu Deus do céu! — Abri a porta do quarto com pressa, o
celular na mão, o número de emergência, o que eu deixava como principal,
acionado. — Socorro! — Gritei da escada para que alguém me ouvisse. —
Preciso de ajuda!
Voltei para dentro, peguei um travesseiro, virei o homem de lado e o
mantive dessa forma, quando alguém atendeu a ligação.
— Preciso de uma ambulância para o endereço… — Passei a nossa
localização e o número da carteira do médico que eu já conhecia decorado.
— Qual a emergência, senhora?
— Eu não sei. Sou a técnica de enfermagem que cuida dele. A
pressão estava alta, eu fui buscar o remédio e ele reclamou de dor no
estômago, quando voltei o encontrei no chão, parece um AVC, mas preciso
de um médico de verdade para confirmar.
Neste momento, minha mãe e Flávia, a cozinheira, apareceram na
porta.
— Misericórdia! — Minha mãe falou e correu em nossa direção.
— Por favor, é urgente — eu avisei, quase em lágrimas.
— Em dez minutos a ambulância mais próxima chegará aí.
— Obrigada.
Desliguei a ligação, e fiz tudo o que aprendi a fazer na escola de
técnica em enfermagem, para os primeiros socorros. A ambulância chegou
no tempo certo, apesar disso, pareceu uma eternidade. Flávia correu para
avisar a Vicente e Sabrina, que ainda estavam em casa e quando eles
chegaram no quarto, pareciam assustados, mas não surpresos.
Foram cinco dias em que não precisei retornar aquela casa, pois o Sr.
Quaresma estava na UTI. Sabrina fez questão de impedir as visitas que não
fossem da família, mas, através de uma colega de trabalho, consegui
informações do quadro dele. Piorava a cada dia. Um AVC, um derrame,
algumas paradas cardíacas. O Sr. Quaresma deu trabalho antes de partir, mas
ele partiu, cinco dias depois.
— Eles não falaram nada. Não avisaram onde seria o enterro, nem o
horário. Não querem os empregados por lá. — Minha mãe me contou por
telefone depois da minha terceira ligação para saber alguma informação
sobre o sepultamento.
— Sabrina é muito desgraçada mesmo — murmurei.
— Não fale desse jeito, Laurinha, ela acabou de perder o pai. Lembra
como foi difícil quando seu pai se foi?
Minha mãe sempre arrumava uma maneira de defender aqueles dois.
Às vezes eu me perguntava se era pelo fato de tê-los criado ou se apenas
cumpria a sua obrigação cristã. Porque era muita sacanagem eles impedirem
os empregados, os mesmos que estiveram por anos no convívio com o Sr.
Quaresma, então não havia como justificar aquilo.
— Eu queria me despedir.
O nó em minha garganta se apertou com mais força. Na noite
anterior, quando Sabrina telefonou para informar sobre o falecimento do Sr.
Quaresma, eu chorei como uma criança. Mesmo certa de que aconteceria,
senti pena do homem que morreu brigado com os filhos e decepcionado com
o que eles eram. Eu sei que o Sr. Quaresma queria algo melhor para eles, e
precisar ver dia após dia o que os filhos se tornaram foi o que de fato o
adoeceu.
— Coitado do Sr. Quaresma — eu disse sem pensar.
— A morte não é um castigo, Laura. Quem sabe agora, depois do que
aconteceu, eles tomem jeito.
—- Nem se o próprio Deus descesse para puxar a orelha deles —
reclamei. — Quer saber, eles não querem a gente no enterro, ótimo, menos
um transporte para pegar.
— Misericórdia! Sabrina esteve aqui mais cedo, disse que fará uma
pequena recepção para algumas pessoas, coisa de gente granfina né?
— Coisa de gente besta! — rebati. Isso nem existe aqui no Brasil. —
Enterrou, cada um vai comer na sua casa, mas Sabrina nunca foi gente, tem
que se mostrar até no enterro do pai.
— Tenho que desligar. Tem flores chegando e eu preciso saber o que
ela deseja que eu faça.
Minha mãe desligou. Eu sentei no sofá e, sem saber o que fazer,
resolvi que mesmo com o corpo da melhor pessoa, fora a minha família, que
eu conhecia, ainda fresco, eu precisava encontrar logo outro emprego. Então
passei a tarde focada em enviar mensagens e currículos.
SABRINA

Esperei dois dias. Esse foi o máximo de tempo que consegui me dar
para retomar a ordem não só da minha vida, mas das empresas e
principalmente da casa. Não via a hora de me livrar dos fantasmas com os
quais precisei viver só por causa da mania absurda do meu pai de se apegar.
Por isso, naquela manhã, quando Sara entrou na nossa casa, recebeu logo o
recado para me encontrar no escritório. No meu escritório, lógico.
Aguardei com paciência, certa da pontualidade da governanta. Em
tantos anos, Sara jamais se atrasou, faltou ao trabalho, nem mesmo reclamou
de doença ou qualquer outra coisa. Que eu me lembre, ela se ausentou para
ter a segunda filha, Bruna, e nesse tempo o marido faleceu, logo, não
precisou de mais folga do que já tinha na licença maternidade.
Não posso dizer que a mulher não era boa. Sim, Sara era muito boa
no que fazia. Seguia ordens e não se envolvia como se fosse da família,
como muitos empregados gostavam de fazer. No entanto, mantê-la comigo
seria uma agressão, como foi durante todos esses anos.
Para piorar, quando contei meu desejo a Vicente, a maneira como ele
reagiu, me fez ter a certeza de que seria necessário. Ele foi contra a demissão
de Sara. Disse que era por puro ciúme e que Laura além de não significar
nada para ele, nem frequentaria a casa, pois não haveria mais trabalho para
ela. Ainda assim, eu preferia não arriscar. Cortaria o mal pela raíz.
A batida na porta me alertou. Aprumei o corpo e avisei para entrar.
Ela o fez, serena, certa de que eu lhe diria o que fazer nos próximos dias.
— Bom dia, Sabrina — disse com polidez.
Eu me incomodava. Ninguém me chamava pelo nome sem parecer
íntimo demais. Além disso, naquele momento eu era a Sra. Quaresma, ainda
que este não fosse o sobrenome do meu marido. Eu gostava demais do meu
para utilizar o dele e isso nunca o incomodou, pelo contrário, o próprio
Vicente utilizava esse sobrenome.
— Sente-se, Sara.
Não fui brusca, nem íntima. Ali nos tratávamos como patroa e
empregada. Nada mais. Ela me obedeceu e sentou, desconfortável, na beira
da cadeira do escritório. As mãos sobre a bolsa no colo. Tantos anos e Sara
nunca deixou de aparentar o que era, pobre. E ninguém podia dizer que ela
recebia mal, pelo amor de Deus, a mulher era governanta, ainda assim…
— Bom, Sara, eu te chamei aqui porque tenho um assunto que não é
fácil de tratar.
— Pode falar — ela disse com cuidado, e isso também me irritou,
porque eu não precisava da permissão dela para fazer o que queria fazer.
— Serei direta então. Quero vender a casa. Bernardo está de acordo,
logo, não precisaremos mais de uma governanta.
A mulher nada me disse. De certo o choque a emudeceu. Mas
também, graças aos céus, não fez qualquer escândalo. Seus olhos marejaram,
no entanto, nenhuma lágrima escorreu.
— Não se preocupe que você terá um bom valor pelos serviços
prestados. Já passei sua carteira para a nossa contadora e aqui estão os
documentos com tudo o que precisa assinar para o desligamento.
Empurrei os papéis em sua direção. Ela os olhou com atenção, mas
não como se desconfiasse da gente. Eu podia não querer mais Sara pela casa,
entretanto, não seria desonesta. Ela teria todos os seus direitos
indenizatórios, inclusive a multa por não ter aviso prévio. A mulher pegou a
caneta e assinou em todos os pontos indicados sem contestar nada.
— Ótimo! Mandarei o documento para a contadora e em breve ela
entrará em contato para te avisar sobre o seguro desemprego e o dia em que
o valor estará disponível na sua conta. Pedirei que seja o mais breve
possível.
— Tudo bem, Sabrina. Obrigada — ela disse, a emoção presa na voz.
Começou a levantar-se quando dei a minha cartada final, a que eu de fato
senti prazer em fazer.
— Ah, quase esqueço. Diga a Laura que os documentos dela estão na
empresa de contabilidade. Ela precisará assinar e acertar o desligamento,
afinal de contas, não há mais nada que ela possa fazer por aqui. O
procedimento é o mesmo. Agradeço pela dedicação de vocês.
A mulher assentiu e em seguida deixou o escritório.
Descansei as costas no espaldar da cadeira e me dei alguns minutos
antes de enviar um e-mail para uma empresa que presta serviços domésticos
e abri a vaga de governanta. Demoraria para que todos os ajustes fossem
feitos, eu assumisse o cargo na empresa e comprar a minha casa, logo,
precisávamos de uma governanta para ontem.
“Mas se ela voltar, se ela voltar
Que coisa linda, que coisa louca”
Chega de saudade - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 4
LAURA

Tirei a carteira da bolsa velha e a coloquei na que usava apenas para


ocasiões especiais. Uma semana se passou desde que Sabrina demitiu minha
mãe e a coitada, apesar de ter recebido dinheiro o suficiente para montar
algo para nunca mais trabalhar para alguém, era melancolia pura.
Já eu, apesar de lamentar a falta das conversas com o Sr. Quaresma,
da rotina que mantinha há tanto tempo, não pensava no assunto o tempo
todo. Para mim, mais do que relaxar com o seguro desemprego ou com o que
ganhei ao ser demitida, havia a necessidade de conseguir um novo emprego
para garantir a escola particular da minha irmã, meu curso pré-vestibular e
não deixar que nenhum gasto anormal tirasse a nossa paz no futuro.
— Vai sair?
Bruna, minha irmã caçula, ou melhor, minha única irmã, com dez
anos de diferença entre nós duas, deitou em sua cama, no quarto que
compartilhávamos e me encarou com atenção.
— Tenho uma entrevista em uma hora. O que acha, cabelo solto ou
preso? — Fiz uma pose para que ela pudesse comparar, mas arranquei uma
gargalhada da minha irmã.
— Preso, Laura. Você é técnica em enfermagem, precisa mostrar que
entende a importância de estar com o cabelo preso.
— Garota esperta.
Pisquei para ela, dei uma última olhada no espelho da penteadeira
que dividíamos também e me aprumei para deixar o cômodo quando minha
mãe gritou da sala.
— Laura, venha aqui, por favor.
Eu e Bruna trocamos um olhar intrigado. Eu por não saber o que
minha mãe poderia querer de mim uma hora antes da minha entrevista - e eu
pegaria dois ônibus para chegar até o local - e minha irmã por achar que o
tom utilizado por nossa mãe era de reprimenda, ou seja, um sermão, e eu não
tinha tempo para isso, apesar de nem acreditar que fiz algo para merecer.
Joguei a bolsa sobre os ombros e deixei o quarto. Eu tinha certeza de
que Bruna espiaria para saber o que tanto minha mãe desejava, ainda assim,
não me dei ao trabalho de impedi-la. Mas quando cheguei à sala, o choque
foi real. Parado próximo a nossa pequena mesa de jantar, que fazia parte da
sala conjunta e apertada, estava o Dr. Fernando, diretor jurídico do Grupo
Quaresma e eu não entendia qual tipo de ligação poderia haver entre nós.
— Laura — minha mãe disse com certa autoridade. — O Dr.
Fernando quer conversar com você.
Comigo?
Nem precisei expressar as palavras. Elas se estamparam em meu
rosto para não deixar dúvidas do quanto estranhei aquele fato. Conhecia Dr.
Fernando da mansão dos Quaresmas, no entanto, apesar de tê-lo em alta
conta pela sua educação e simplicidade, não havia nenhum tipo de relação
entre nós que o levasse até a minha casa para ter uma conversa comigo.
— Podemos nos sentar? — ele perguntou. Olhei o relógio em meu
pulso e fiz uma nova careta. — Será rápido — garantiu.
— Tenho que pegar dois ônibus para uma entrevista de emprego, Dr.
Fernando. — Ainda assim, caminhei até a mesa e sentei na cadeira à sua
frente. — O que aconteceu? — fui direto ao assunto, afinal, não havia tempo
a perder.
— Laura, escute o que o Dr. Fernando tem a dizer — minha mãe
cobrou minha educação, mesmo que me custasse a entrevista de emprego.
Como se não tivéssemos perdido demais por causa daquela família.
— Laura, eu sei que é estranho, mas… — ele clareou a garganta
antes de falar. — Serei bastante informal, afinal de contas a tarefa não é
minha. Vim fazer um favor ao meu pai. A questão é a seguinte: hoje à tarde
faremos a leitura do testamento do Sr. Quaresma.
— Ele tinha um? — eu o interrompi. — Deve ter deserdado os filhos
— abri um sorriso escroto, mas minha mãe simulou uma tosse, uma
indicação clara de que não concordava com o meu comportamento. —
Desculpe, Dr. Fernando, pode continuar. Eu só não entendo o que tenho a
ver com isso.
— Na verdade… — ele clareou outra vez a garganta e me entregou
um envelope lacrado com o símbolo da firma de advocacia do pai dele. —
Você é parte interessada no testamento.
— Eu?
— Ela? — Minha mãe perdeu completamente a compostura. Em dois
segundos apareceu ao meu lado e verificou com ansiedade o envelope em
minha mão.
— Abra, é uma convocação. — O advogado avisou. — O Sr.
Quaresma deixou tudo muito bem organizado, cada detalhe do testamento e
da herança, então, você é parte interessada.
— O senhor quer dizer que ele deixou algo para a minha filha? —
minha mãe interrompeu.
— Não sei o conteúdo do testamento. Sei que pela lei ele precisa
deixar metade de tudo para os filhos, exceto os que foram deserdados e…
enfim… a outra metade ele pode dispor como desejar.
— Alguém mais foi convocado? — questionei, curiosa ao mesmo
tempo que me sentia desconfortável com a ideia.
— Hum! Não.
De imediato encarei minha mãe. Qual a chance de aquilo ser mais
uma armação da Sabrina para tentar me humilhar?
— O senhor disse hoje à tarde?
— Sim.
— Mas eu tenho uma entrevista de emprego. Não sei que horas
conseguirei sair e…
— Laura — ele me interrompeu. — Se quer um conselho, esteja na
mansão no horário combinado, mesmo que lhe custe essa entrevista.
— É ilegal não comparecer? — Minha mãe se assustou com a
possibilidade.
— Não, mas se você não for, precisa enviar alguém que lhe
represente e isso exige uma série de burocracias, então, de uma forma ou de
outra, você perderá a entrevista.
— Puta merda! — reclamei e recebi um tapa no ombro como
advertência pelo xingamento. — Eles não poderiam só me deixar em paz?
Que família mais pé no saco! — recebi outro tapa.
— Desculpe por isso, Dr. Fernando — minha mãe tomou a frente. —
Laura estará lá no horário combinado.
— Mãe!
— Não sei se ajuda, mas pense nisso como algo feito pelo Sr.
Quaresma, já que nem ao enterro você pôde ir — Dr. Fernando sugeriu.
Viu? Era por isso que eu gostava do Dr. Fernando. Ele não
concordava com aquela família, aliás, com os herdeiros. Jamais aceitou o
comportamento de Bernardo e apesar de não declarar em alto e bom som,
não gostava de Vicente.
— Tudo bem — respondi com um misto de aborrecida e curiosa. —
Vou lá receber o quadro que ele deixou para mim.
— Que quadro, menina? — Minha mãe, ralhou.
— Sei lá. O que o Sr. Quaresma deixaria para mim? Uma cadeira? —
Comecei a rir, mas ninguém me acompanhou. — Tá bom, estarei lá, Dr.
Fernando. Quem sabe eu herde um conjunto de louça, ficaria legal.

Mas não foi como eu imaginei. Aliás, não chegou nem perto.
Eu deveria ter desconfiado quando a convocação chegou para mim e
não para a minha mãe, que o acompanhou em boa parte da sua vida. Por
qual razão o Sr. Quaresma deixaria algo para mim e não para a minha mãe?
E por que, entre tantos empregados de confiança, apenas eu, a simples e
odiada técnica em enfermagem, fora convocada para a abertura do
testamento?
Além disso, no momento em que cheguei, constatei que além de
mim, só o Dr. Fernando e o pai dele, o Dr. Estevão, tinham conhecimento da
minha convocação. O que foi terrível.
— O que ela faz aqui? — Sabrina se manifestou com seu jeito
insuportável e olhar que detonava um.
Independente disso, eu me mantive firme. Receberia meu quadro,
minha xícara, a cadeira, ou qualquer outra coisa que o Sr. Quaresma, em sua
total gentileza, lembrou de deixar para mim, e então partiria sem olhar para
aqueles três patetas que aguardavam a abertura do testamento: os filhos e o
genro. Este último, claro, presente apenas para constatar a extensão do
quanto colocaria as mãos tão logo Sabrina tivesse a fortuna separada da do
irmão.
Eu sentei no local que me indicaram, incomodada pela proximidade e
também, confesso, pelas roupas simples que usava quando comparada a toda
a elegância que os herdeiros usaram para aquele momento tão aguardado,
quando poriam as mãos em definitivo no dinheiro do velho.
Ouvi com paciência as poucas palavras narradas pelo Dr. Estevão.
Pra dizer a verdade, termos jurídicos não eram o meu forte, apesar de desejar
entender para tentar um concurso público tão logo finalizasse a faculdade de
enfermagem, só dessa maneira eu não me preocuparia mais com as
demissões. Mas toda a minha atenção se voltou para o gentil senhor quando
Sabrina arquejou, Vicente precisou ampará-la e Bernardo… bom, Bernardo
me encarava como se eu fosse uma assombração.
— Laura? — Dr. Fernando chamou. — Você entendeu os termos?
— Que termos? — questionei, um pouco assustada com aquela
comoção.
— Laura, você ouviu o que lemos?
— Bom… eu… desculpe.
— O Sr. Quaresma entregou aos filhos, Sabrina e Bernardo
Quaresma, o que lhes cabia na herança, ou seja, 50% de tudo o que ele
possui.
— Certo — falei mais para fingir que entendia o assunto do que de
fato estivesse ciente do que havia de tão errado ali.
— Os outros 50% ficaram para você — ele anunciou.
— Espera… para mim?
— Isso é um erro — Sabrina bradou e o Dr. Estevão voltou a atenção
para a mulher prestes a perder toda a compostura. — Com certeza meu pai
não faria uma coisa dessa. O que ela é? Quem ela é?
— Sabrina, você precisa manter a calma. Fernando, por gentileza,
entregue uma cópia do testamento para todos. — No mesmo instante, Dr.
Fernando atendeu ao pai. — Laura, 50% de tudo é seu. Você é a sócia
majoritária do grupo Quaresma e inclusive, como condição especial, o Sr.
Quaresma deixou oficializada a sua vontade de que esta casa fizesse parte da
sua herança.
— Que herança, gente? — eu disse, tão confusa quanto os outros. —
Deve haver algum engano.
— Com certeza há um grande engano! — Sabrina gritou, o marido a
sua frente para que ela não fizesse alguma besteira. — O que você fez para
convencê-lo? Abusou da sua influência sobre um homem senil?
— Com o perdão da intromissão, Sabrina — o Dr. Estevão se
intrometeu. —- Mas seu pai não estava senil. O testamento está pronto há
mais de um ano.
— Eu contesto. Tenho como provar que meu pai não estava em pleno
domínio das suas faculdades mentais — ela disse, a respiração tão ofegante
que as palavras quase não saíam. — Ela não pode herdar 50% e eu 25% das
empresas. Tem noção do que isso significa?
— Total compreensão — Dr. Estevão confirmou, sem perder a
calma. — Laura agora comanda as empresas.
— Eu? Não, não, não. Calma aí! Eu sou técnica em enfermagem.
Não sei nem por onde começar no comando de uma empresa, quem dirá com
um grupo de empresas?
— Viu só? Ela nos levará à falência.
— Seu pai me pediu para que a ajudasse a conseguir. Eu e Fernando
estaremos atentos a todos os atos de Laura e…
Eu perdi o interesse na conversa. Aquilo não fazia qualquer sentido.
Como o Sr. Quaresma acreditou que me colocar à frente dos seus negócios
seria a vingança perfeita contra os filhos? Se ele reclamava do quanto
dilapidavam seu patrimônio, imagine o estrago que eu faria sem qualquer
conhecimento de causa.
— Ela é uma ladra, uma usurpadora. Eu não aceito, entendeu, Dr.
Estevão? A partir de hoje, o senhor não é mais meu advogado. Contestarei
esse testamento absurdo. E você Fernando, está demitido! — Sabrina gritou,
sem qualquer postura ou elegância que adorava exibir.
— Lamento, Sabrina, mas você não manda mais no grupo. Só quem
pode me demitir agora é a Laura.
E, juro, não havia alegria ou ironia na maneira como Dr. Fernando
falou. Ele demonstrava tanto espanto quanto eu, apesar disso, seguia firme
em sua postura de advogado.
— Isso não está certo — sussurrei, sem qualquer condição de
compreender. — Não está certo.
— Laura? — Dr. Estevão chamou por mim e quando o encarei, me
dei conta de que restávamos apenas nós três na sala. Eu, ele e o filho.
Os herdeiros… os reais herdeiros, deixaram o local. Provavelmente
para confabular em outro lugar. Encontrariam uma maneira de desfazer
aquela loucura, com toda certeza. E eu esperava que encontrassem, porque
não havia como aceitar algo como aquilo.
— Dr. Estevão, isso não é certo — eu repeti, apressada.
— Tenha calma — Dr. Fernando disse ao sentar-se ao meu lado, sem
nada da sua postura de advogado. — Nós estamos com você. Como meu pai
disse, o Sr. Quaresma solicitou a nossa ajuda. Com o tempo você pega o
ritmo.
— Não! Eu não quero pegar o ritmo. Eu sequer quero voltar a
conviver com aquelas pessoas. Você não entende? Se como técnica em
enfermagem eles já faziam questão de me sacanear, agora… não! Além do
mais, não é justo. Nada disso é meu. Eu nada fiz para merecer algo dessa
magnitude e…
— Calma — Dr. Estevão sentou à minha frente, encarou o filho e
assim que se sentiu confortável, continuou. — Eu sei que é assustador.
Joaquim te jogou em uma fogueira. — Ele sorriu de leve e coçou a cabeça.
— Por isso me fez prometer que a ajudaria, portanto, agora que estamos só
nós, é o momento de te entregar isso.
O homem tirou do bolso um outro envelope, mais simples, do estilo
tradicional e pequeno. Dobrado ao meio, eu só conseguia ver uma parte do
“Para Laura” nas letras do Sr. Quaresma. Peguei o papel e me afastei.
Abri o envelope com pressa e vi a carta escrita à mão, pelo homem
de quem eu cuidei por toda a vida. Ainda que não entendesse o motivo para
que ele me escolhesse, entendia nas suas palavras a sua indignação e dor
quanto aos filhos, além disso, entendia o motivo para aquilo tudo.
Quando acabei de ler, enxuguei as lágrimas que permiti cair e me
voltei para os homens.
— E então? — Dr. Estevão questionou.
— Pelo visto, não tenho outra opção que não seja atender ao último
pedido dele — reclamei. — Droga!
— Eu vou te ajudar, Laura. Prometo — Fernando pôs uma mão no
meu braço, a primeira vez que agia com tanta intimidade, e isso me assustou.
— Agora você entende o porquê de tudo, certo? — concordei.
— Preciso voltar para casa. Nem sei como contar isso à minha mãe
— resmunguei.
— Fernando lhe dará uma carona. Eu ainda preciso arrumar muita
coisa por aqui — Dr. Estevão demandou.
Todo o resto do caminho passou como um borrão. Uma mistura do
pedido do homem generoso que aprendi a amar, da missão que me designou
em seu último momento, e o medo de como encarar minha mãe e contar o
que havia naquele testamento.
E, quanto mais eu pensava, mas me agarrava a bolsa em meu colo,
dentro dela, a carta, a fatídica carta que me obrigava a seguir aquele caminho
sem saber se daria conta do que me fora solicitado.
Daria merda!
"Fecha os olhos devagar
Vem e chora comigo
O tempo que o amor não nos deu
Toda a infinita espera
O que não foi só teu e meu"
Derradeira primavera - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 5
BERNARDO

Eu não tive reação. Enquanto Sabrina berrava e acusava Laura de todas as


coisas possíveis, eu apenas encarei a garota simples a quem meu pai confiou
50% de tudo o que nós tínhamos, inclusive a nossa casa, a mesma em que
ele viveu com nossa mãe e na qual crescemos.
Na verdade, não me incomodava a falta do poder, nem mesmo a ideia
de ter apenas 25% do nosso patrimônio. Na verdade, para mim era até
demais. Tínhamos muito, tanto que eu, se quisesse, viveria com todos os
meus luxos e desejos sem voltar a pisar na empresa.
Ainda assim, eu encarava Laura com sofrimento e foi com este pesar
que deixei a sala e me abriguei na minha ala da casa, pelo menos enquanto
ela ainda me pertencia. E não havia qualquer desconhecimento do motivo
para meu pai ter feito aquilo. Sabrina podia esbravejar, se descabelar,
ameaçar tudo e todos. Minha irmã podia ser uma fera nos negócios, bem
melhor do que Laura conseguiria, apesar disso, era burra e cega quando o
assunto era Vicente. Ela não entendia que se assumisse os legítimos 50% da
empresa, daria àquele canalha o direito a 25% de imediato.
Talvez fosse essa a questão. Mas não era. Pelo menos não só essa.
A parte que me coube a mim era mais do que meu pai confiaria em
minhas mãos se ainda estivesse vivo. E o pior, a parte que doía de verdade,
era encarar a realidade. Eu nada fiz além de usufruir, de gastar e viver da
melhor maneira, o que o dinheiro fácil me permitia. A empresa nunca foi
importante para mim, bastava que alguém continuasse fazendo-a gerar
dinheiro. Como? Eu pouco me importava.
Então, a minha fatídica realidade, a que me afligia desde que enterrei
meu pai, era a de ser uma completa e inevitável decepção. Eu não fui o que
ele queria e enquanto o tive vivo, não me importei. Os pais projetam nos
filhos a vida que querem para eles, e eu não queria nada daquilo para mim.
Não que eu quisesse passar o resto da vida em festas, bebedeiras e
mulheres. Talvez eu até quisesse, para ser honesto comigo mesmo, jamais
seria ruim esta parte, mas, quando pensava em meu pai e seu olhar
reprovador, eu perguntava: por que não me esforcei um pouco mais? Por que
não lhe dei um pouco de alegria antes da morte?
Não tive tempo de buscar a resposta, pois quando pensei em deitar e
encarar o teto até que aquela melancolia tivesse um fim, Sabrina e Vicente
entraram em meu quarto como se fugissem de um incêndio.
— Você vai dormir? — ela gritou em reprovação.
— Bernardo, o assunto é sério e precisa da nossa atenção — Vicente
colaborou.
Quase ri da cara dele só em pensar na casa de praia que perderiam.
— Bernardo, é sério! — Sabrina falou daquele jeito que me irritava.
Eu era o irmão mais velho e ainda assim, ela era a que mandava, não
apenas nas empresas, mas em tudo. Por isso eu vivia longe. Por isso eu tinha
uma ala só para mim. Que inferno!
Sentei-me na cama e os encarei.
— Vamos contestar o testamento — ela anunciou.
— Eu entendi quando você gritou para que todo o bairro ouvisse —
pirracei.
— E então?
Ela levou as duas mãos à cintura e me encarou com os olhos
esbugalhados, a respiração errática e a expressão de quem exigia que eu lhe
desse razão.
— Sabrina — suspirei. — Vai levar um tempão. As ações das
empresas vão despencar e, no final das contas, qualquer juiz levará em
consideração o que papai deixou no testamento.
— Então você aceita sem contestar. É isso?
Inferno! Aquilo viraria uma guerra.
— Se você quer saber se eu pretendo recorrer às vias legais de
verdade, se essa é a sua vontade, ok. Mas eu sou o que estudou Direito aqui
e sei que vai dar merda. Além disso, há muito o que perder iniciando uma
guerra contra a Laura. Nós podemos… conversar com ela. Fazê-la
compreender que nosso pai não foi justo e…
Ela deu uma gargalhada alta.
— Você acha que aquela cretina vai devolver uma herança dessa
assim? Ela nunca abrirá mão disso e por pura vingança.
— Ah, claro! Você roubou o namorado dela.
— Eu não…
— Gente, não vamos por este caminho agora. — Vicente se
intrometeu. — Há outros meios.
— Que meios? — Sabrina se interessou, contudo, descrente.
— Bom, com você ela não conversará mesmo — ele explicou para a
esposa.
— Mas se você se aproximar… — coloquei lenha na fogueira e vi os
olhos da minha irmã se injetarem.
— Nem pensar! Agora que ela é a maioral vai correr como um
cachorro de volta para aquela miserável?
— Agora ela não é mais miserável — brinquei, cansado daquela
confusão no meu quarto.
— Bernardo, dá um tempo, tá? — Vicente apaziguou. — Amor, não
é nada disso. Eu pensei no Bernardo.
— Eu? — o choque me fez levantar da cama e andar até eles. — Eu?
Tá maluco?
Mas a merda estava feita. Sabrina me olhou com aquele brilho que
ela sempre emanava quando tinha um plano que julgava perfeito. Eu odiava
ser o mais velho e apesar disso, ser a marionete da minha irmã.
— Perfeito! — ela constatou — Laura sabe que eu de maneira
nenhuma me aproximaria dela, então o meu papel é simplesmente: tornar a
vida dela um inferno, e eu farei — explicou com orgulho. — Se ela pensa
que assumirá aquele cargo no meu lugar, não faz ideia do problema que
arranjou para a vida.
— A gente nem sabe se ela vai ou não assumir — tentei dissuadi-la,
apesar de ter a certeza de que uma vez um plano elaborado na cabeça da
minha irmã, ninguém a faria mudar de opinião.
— Ela vai — Sabrina afirmou com veemência. — Isso é tudo o que
Laura sempre quis. Ela não perderá a oportunidade de ser a minha chefe.
Minha chefe. Viu como isso soa ridículo? Não tem nem afinidade com o
universo essa mínima ideia.
— Sabrina… — tentei chamá-la para a realidade.
Entrar em uma disputa com Laura só nos traria mais problemas. O
correto seria acalmar os ânimos, conversar com a garota e convencê-la de
que aquilo não era honesto, se é que podemos colocar os fatos sob esta ótica.
— É você, Bernardo. Claro! Como não pensei nisso antes — ela
continuou, como uma louca, certa de que o que quer que estivesse em seus
pensamentos era o correto a fazermos.
— Eu converso com a Laura. Uma semana. Apenas uma semana e eu
resolvo isso, combinado? — Coloquei mais ênfase em minhas palavras.
— Ela não aceitará. Laura vai usar essa carta contra mim. — Minha
irmã não desistiria, no entanto, eu não era obrigado a concordar com os
planos malucos dela.
— Sua irmã tem razão — Vicente confirmou, o que fortaleceu a
decisão de Sabrina.
— É claro que eu tenho! Laura gosta de homens mais velhos — ela
falava com os olhos fixos em uma imagem que não existia, estabelecia cada
detalhe daquele plano. — Gosta de homens bonitos. Dinheiro? Hum! Talvez
seja uma exigência. Ela tem certo orgulho — disse para o marido que
concordou, como alguém que conhecia Laura em todos os detalhes. — Tem
uma forte queda por canalhas.
— Ei! — Vicente contestou, mas minha irmã estendeu a mão e o
impediu de interrompê-la.
— Sem ofensas, mas vamos trabalhar com a verdade. Não podemos
perder nenhum detalhe para essa operação.
— Que operação? — Eu me coloquei entre os dois, mas Sabrina
parecia não me enxergar.
— Você é o cara perfeito, Bernardo.
— Perfeito para o que, cacete?
— Você vai seduzir Laura e fazê-la devolver a nossa herança.
— Eu? — Minha voz saiu mais alta do que eu costumava usar. Mas
aquela ideia me pareceu tão ridícula que eu nem conseguia acreditar nela. —
Ficou maluca?
— Você sabe como fazer uma mulher comer em suas mãos,
irmãozinho —- ela sorriu com a certeza de quem sabia apostar, seus olhos
brilharam. — Ela se apaixona fácil. Depois de algumas promessas e de fazê-
la sentir pena de você, ela devolverá tudo. Em seguida, você dará um
pontapé na bunda daquela cretina e assunto resolvido.
— Vamos com calma! — Falei alto para me impor. Sabrina parou, as
mãos na cintura e o queixo erguido como sempre fazia quando não aceitava
outra sugestão. — Vocês estão falando de mim. Seduzir uma mulher para
arrancar dinheiro dela não é a minha especialidade. E outra coisa, é a Laura.
— O que tem a Laura? Ela é bem bonita — Vicente se intrometeu,
porém, diante do olhar da minha irmã, ajustou a sua fala. — Bonitinha, eu
quis dizer. Sem classe, mas você não precisa desfilar com ela nem apresentá-
la para a sociedade, não é mesmo? — Recorreu a Sabrina como se precisasse
que ela esquecesse a falha cometida.
— Com toda certeza. Mantenha Laura no mundo dela e tudo se
resolverá bem rápido.
— Só falta uma coisa nessa história — eu disse, certo de que eles não
me convenceriam. — Eu aceitar fazer parte dela.
— Você fará parte — Sabrina determinou.
— Não mesmo.
— Claro que fará — ela sorriu daquela forma maledicente que me
deixava aborrecido. Sabrina sempre tinha uma carta na manga.
— Não farei. — Porém não havia a mesma determinação em minha
voz.
— Eu não sei se você ficaria bem com 25% de nada.
— O que quer dizer com isso?
— Que se não recuperar as nossas ações, em breve não sobrará nada
para chamarmos de nosso, entendeu?
Respirei fundo, decidido a não querer aquela missão maluca, ainda
assim, Sabrina tinha razão. Laura não tinha o necessário para assumir o
nosso grupo empresarial. Em especial, com cada empresa em pleno
funcionamento. Se ela não fosse certeira em suas ações, como Sabrina
conseguia ser, destruiria nosso patrimônio em pouco tempo.
Pensei em mim, na vida que eu levava, na vergonha de nunca ter a
aprovação do meu pai ao ponto de vivenciar aquele testamento louco, nas
garotas com quem eu saía e na facilidade que amava ter. Depois pensei na
Laura, na sua simplicidade, no seu jeito tão trabalhador e… sim, ela era
bonita. Nada parecida com as mulheres com quem eu costumava sair,
contudo, bonita. Com o estilo certo e a produção correta seria até mesmo
apresentável, mas… não, não havia uma imagem legal quando pensava em
nós dois juntos.
Então, o que eu podia fazer era: manter minha irmã na sua bolha
enquanto dava o melhor da minha amizade para que Laura compreendesse
que aquilo não era certo e devolvesse o que era nosso por direito.
Sim, era o que eu faria.
"Não posso esquecer
O teu olhar
Longe dos olhos meus"
Lamento No Morro - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 6
LAURA

— Não, não, não, Laurinha — minha mãe repetia.


Andava de um lado para o outro na nossa pequena sala. Angustiada com a
novidade. Ao meu lado, Dr. Fernando me ajudava a explicar os termos de
forma simples e clara para que minha mãe compreendesse a questão, no
entanto, nada a convencia. Pra dizer a verdade, se junto a herança não viesse
a tal carta do Sr. Quaresma, eu agiria como Dona Sara, mulher honesta e
ciente do que era certo e errado.
Entretanto, mesmo que minha consciência me obrigasse a concordar
com a minha mãe, eu não podia. Ela jamais entenderia e eu não podia revelar
toda a verdade, o que me angustiava mais.
— Dona Sara — Dr. Fernando tentou mais uma vez. — Não há nada
de ilegal aqui. Todas as pessoas possuem o direito de se desfazer de 50% dos
seus bens para outras finalidades que não seja entregá-los aos herdeiros
necessários. Laura não fez nada de errado.
— Se fez, eu não sei. — Ela me lançou um olhar duro, que fez meus
olhos lacrimejarem.
Não que eu não esperasse por aquilo. Eu só não esperava que partisse
dela. Dos outros, com toda certeza aconteceria. Eu seria acusada de muitas
coisas, dentre as quais, de ser amante de um homem carente em seu leito de
morte. Argh! Eu odiava essa parte da história que precisaria enfrentar, mas
se pelo menos não fosse minha mãe a apontá-la na minha cara…
— O que sei é que isso não é o correto — Dona Sara continuou,
dura, certa de que não me olharia na cara se eu levasse adiante aquela
questão.
A primeira lágrima que escorreu no meu rosto foi de raiva. Como ela
podia pensar aquilo de mim? As outras foram de desespero. Se nem minha
mãe eu teria ao meu lado, como seguir com aquilo?
— Não é correto — eu afirmei, a voz cheia de mágoa. — Mas, muito
pior do que o Sr. Quaresma ter feito o que fez para punir os filhos, que são
horríveis e irresponsáveis, a senhora sabe muito bem disso, é a minha
própria mãe cogitar algo tão… — fiz uma careta na tentativa de encontrar
uma palavra que não me causasse nojo. — A senhora não me conhece. Não
conhece a filha que criou. Não valorizou tudo o que fiz e faço para que nada
aqui desmorone. Tenho raiva deles? Com toda certeza. Sabrina roubou meu
noivo, esqueceu disso? E teve a cara de pau de lhe demitir no instante que se
livrou do cabresto do pai. Mas pelo visto a senhora confia mais naqueles
dois do que em mim.
Meu desabafo fez com que ela recuasse. Seu olhar perdeu a dureza
das pedras que atiravam em mim e se tornou sofrido.
— Não estou te acusando, Laura. Sei que você, apesar de tudo o que
viveu com aquela família, manteve respeito e honestidade. Mas como
justificar isso? Como aceitar que o Sr. Quaresma deixou 50% de tudo para
você, inclusive aquela casa, pelo amor de Deus! Não está certo!
— Mãe, se o Dr. Fernando diz que está, então está — continuei com
mais energia. — E eu tinha apreço demais pelo Sr. Quaresma para rejeitar o
que ele quis que ficasse para mim. Com toda certeza ele sabia que os filhos
destruiriam tudo, que colocariam seu patrimônio no chão em pouco tempo.
Eu não quero me aproveitar deles, mas não posso negar o que ele deixou
para mim como seu último pedido.
— E desde quando você entende de empresas de carros, menina? —
Ela sentou na cadeira próxima e passou a mão no rosto para clarear os
pensamentos. — O Sr. Quaresma não estava bem da cabeça.
— A senhora sabe que ele estava muito bem da cabeça, mãe.
— Você é técnica em enfermagem, Laura! — repetiu como se
precisasse me fazer compreender que eu não daria conta.
E eu não daria mesmo. Nem imaginava como era trabalhar em
escritório. Com dezesseis anos iniciei um trabalho como assistente de
veterinário, depois de insistir e minha mãe pagar, com muito custo, um curso
de tosagem. Depois, aos dezoito, com meu dinheiro, fiz o curso de técnica
em enfermagem, aos vinte já trabalhava em laboratório, depois em clínicas e
por último em hospital.
Mas o dinheiro nunca dava para pagar uma faculdade de
enfermagem, como eu sonhava, pois queria que minha irmã, Bruna, tivesse
melhores opções, por isso investia nos estudos dela. Com o trabalho na casa
do Sr. Quaresma, eu consegui incluir no orçamento, ainda que apertado, um
curso pré-vestibular para tentar uma vaga na universidade pública. Tudo
fluía bem, até aquele dia.
Escondi o rosto entre as mãos e relembrei a carta. Como eu podia
deixar aquilo no esquecimento?
— Dr. Fernando me ajudará — respondi de novo. Ela já havia
questionado a minha capacidade como gestora diversas vezes naquela
conversa. — E Dr. Estevão também.
— Não é tão difícil como parece. E Laura pode estudar, fazer alguns
cursos, na verdade, agora ela pode tudo — ele me deu um olhar confiante e
um sorriso gentil.
— Então… — ela se levantou, arrumou o vestido sem me direcionar
o olhar. — Se vocês estão decididos, não digam que eu não avisei.
Em seguida saiu para o quarto, bateu a porta e se trancou.
Envergonhada, não soube como me comportar diante do advogado que
empenhava toda a sua boa vontade para fazer valer o que o Sr. Quaresma
desejava. E eu me vi me questionando se um dia optasse pela carreira de
advogada, teria coragem de assumir algo tão sério e complicado.
— Ela vai entender — ele comentou com cuidado, ciente do quanto
aquela situação me deixava triste.
— Não vai. Ela jamais entenderá — admiti.
— Então você vai desistir?
— Por que eu acho que você e seu pai se divertem com isso tudo?
Dr. Fernando me deu um sorriso amplo, como nunca fez diante de
mim. Sim, ele gostava daquela situação. Restava descobrir o porquê.
— De verdade? Convivo com Sabrina e Bernardo há tanto tempo que
nem lembro de algum momento da minha vida em que a família Quaresma
não estivesse envolvida.
— Neste caso, você deveria estar do lado deles, e não do meu.
— Laura — ele se moveu no sofá duro e desconfortável da minha
casa. — Tudo o que o Sr. Quaresma falou, é verdade. Há um ano, ele fez este
testamento porque sabia que daria tudo errado se ele não sobrevivesse a
tantos problemas de saúde. Sabrina é ótima gestora, ela é… incrível. — Ele
sorriu com paixão, como se a versão executiva de Sabrina fosse algo que ele
aprovaria e lutaria para manter. — Mas aquele marido dela… perdão, eu sei
que ele foi seu noivo e…
— Ele é um cretino, eu sei. Não se desculpe por precisar falar de
Vicente da maneira como ele merece.
— Pois é. — Dr. Fernando soltou um risinho fraco, sem a mesma
emoção de antes. — Ele acabaria com tudo bem rápido.
— Mas tem Bernardo. Ele ficaria com 50%.
— Bernardo não quer outra vida que não seja a de playboy, Laura.
Nem sei se ele continuará fingindo que trabalha, agora que o pai não está
mais aqui para conferir.
Suspirei com pesar. Dr. Fernando tinha razão. Sabrina atenderia todas
as vontades de Vicente e este se aproveitaria da facilidade de manipular a
esposa para tirar tudo dela. Bernardo também perderia, uma vez que era
certo que ele entregaria nas mãos da irmã a administração dos seus bens e
partiria pelo mundo para viver o que sempre quis.
No final das contas, eles tinham razão. O Sr. Quaresma queria salvar
o que ergueu com muito esforço. Eu só não entendia como ele poderia
confiar em minhas ações. Se fizesse isso pelo Dr. Fernando, filho do seu
amigo mais leal, advogado da sua confiança de uma vida inteira, seria mais
prudente.
— O que eu preciso fazer agora? Sabrina disse que contestaria o
testamento.
— Ela não o fará — ele avisou com a certeza que os bons advogados
exalavam. — Quer saber como será? Eles vão tentar te fazer desistir. Vão se
esforçar ao máximo para que cometa erros.
— E eu cometerei — admiti, morta de medo do que seria aquela
guerra.
— Não — ele afirmou com certa ironia. — Eu estarei lá, esqueceu?
Vou te proteger como prometi ao Sr. Quaresma.
— Minha mãe tem razão, eu não sei nada sobre empresas, não faço
ideia de como funciona, eu… eu… eu sequer tenho roupas para me
apresentar a eles.
Outra vez, levei a mão ao rosto e escondi a minha vergonha.
— Bom, sei que é chato, mas ele pensou nisso também.
Ergui o rosto e encarei o homem ao meu lado. Ele não sorria, mas
mantinha a serenidade de quem sabia o que fazer.
— O Sr. Quaresma destinou uma quantia para esse seu início.
Roupas, sapatos, bolsas… um carro.
— Um carro? Eu nem sei dirigir! — Outra vez, me deixei cercar pelo
pânico. Ele riu.
— Não precisa. Temos um motorista. Tudo da empresa, claro, mas
destinado para o CEO, que é o cargo que você ocupará.
— CEO — resfoleguei. — Isso só existe nos livros, não? — o sorriso
torto que ele me deu, me fez perceber o homem bonito que havia por trás da
seriedade que ele sempre resguardava.
— Bom, agora você é a CEO dos seus livros — brincou. — E, como
eu disse, eu te ajudarei. Inclusive, com as compras.
Eu ri alto, mas ele se manteve sério.
— O que foi? Acha que ter duas irmãs mais novas não me ajuda a
conhecer cada detalhe do que uma mulher pode ou não vestir?
— Você fará compras comigo, então?
— Com toda certeza.
Porém, antes que eu conseguisse rebater ou tentar entender melhor
como funcionaria aquela dinâmica, a campainha soou. Levantei sem me
preocupar. Com certeza era alguma amiga da Bruna, por isso, quando abri a
porta e dei de cara com Bernardo Quaresma em pessoa, fiquei muda e
trêmula ao mesmo tempo.

Sentados os três na sala do apartamento onde eu cresci, nunca me


senti tão desconfortável. Não tive coragem de chamar mamãe para receber
Bernardo, afinal de contas, a visita com toda certeza não seria cordial. Eu o
convidei para entrar no automático, não ofereci nada porque meus
pensamentos, e o pavor que estes me traziam, me fizeram esquecer da boa
educação. Indiquei o sofá de dois lugares ao lado do de três, em que Dr.
Fernando se mantinha e voltei para o meu lugar.
Durante alguns segundos nada dissemos. Olhares de todos os lados e
para todos os participantes daquela estranha reunião fazia com que cada um
de nós aguardasse que o outro falasse primeiro. Até que não suportei mais.
— Certo… — eu iniciei com o olhar fixo no homem que jamais
imaginei na sala da minha casa.
Dr. Fernando, ainda que rico e de boa educação, não me pareceu
destoante com a nossa realidade ao adentrar meu apartamento e agir neste
como se não houvesse nada que o incomodasse. Já Bernardo… ele era uma
figura completamente em desarmonia com o lugar. Destoava de tudo, como
um jarro de ouro em uma caverna abandonada e foi horrível de pensar.
— Bom, Laura… — ele disse, movendo-se outra vez no sofá que se,
para mim era duro demais, imagine para aquela bunda acostumada a
privadas com assentos acolchoados.
Quase ri do meu pensamento, mas a tensão me obrigou a não desviar
o foco.
— Eu vim conversar. Não esperava encontrá-lo aqui Fernando.
De repente, como se não tivesse coragem para me dizer o que
pretendia na frente do advogado, ele mudou o direcionamento da conversa.
Dr. Fernando riu, cruzou as pernas e apoiou a cabeça na mão do braço que
descansava no sofá, como quem quisesse deixar claro que não perderia
aquela conversa por nada.
Eu gostava de gente desse jeito. Se antes o homem já tinha pontos
comigo, cresceu na minha tabela.
— Posso dizer o mesmo. O que faz aqui Bernardo?
— Você é o advogado da Laura agora?
Havia certo espanto na pergunta e até mesmo, idiotice, uma vez que
Dr. Fernando era diretor do jurídico do grupo, e se eu tinha 50% de tudo, ele
era meu advogado. Qual a dúvida quanto a isso?
— Além de todas as questões que você com certeza se deu conta…
seu pai me pediu para cuidar pessoalmente de Laura.
— Então é o segurança agora?
Era impressão minha ou havia certa animosidade entre eles? Apesar
da provocação, Dr. Fernando riu.
— Cuido dos interesses da nova CEO do grupo empresarial
Quaresma — ele disse palavra por palavra com todo cuidado, e levou
Bernardo a se dar conta da situação.
Eu em momento algum reparei no quanto ele era lento no raciocínio.
Ou, preguiçoso.
— Ah, então você vai de fato assumir? — Bernardo perguntou para
mim, os olhos presos aos meus, aquele azul incrível, escuro, penetrante, me
emudeceu. Eu jamais tinha encarado aquele homem, nem mesmo quando
criança, como amiga da sua irmã.
— Sim, Laura assumirá na próxima semana. O setor jurídico ajustará
as questões para que todas as empresas saibam da nova condição, após isso,
ela assumirá o cargo e prosseguirá com os planos do Sr. Quaresma.
— Na próxima semana? — Eu perguntei talvez alto demais para a
segurança que eu lutava em demonstrar. O que, com certeza, seria utilizado
como arma contra mim a qualquer momento.
— Não se sente segura? — Bernardo atraiu outra vez a minha
atenção. Abri a boca e fechei diversas vezes, incerta se conseguiria dizer
algo que não me colocasse em péssima situação.
— Claro que ela não se sente segura, Bernardo. Você se sentiria? —
Dr. Fernando rebateu.
— Eu? Eh, não — admitiu por fim. Os olhos perderam a força em
mim quando desviaram para o chão e demonstraram a forma como o homem
se perdeu em seus pensamentos. — Mas Sabrina sim. E você sabe,
Fernando, que ela é a pessoa ideal para o cargo. Com todo o respeito, Laura,
mas você não deve nem saber ler uma planilha.
Aquilo me enfureceu. Lógico que eu sabia ler uma planilha. Quem
ele pensava que eu era?
— Eu sei ler uma planilha — anunciei com os dentes trincados e uma
vontade imensa de avançar na cara daquele cretino. — Para as demais
questões, Dr. Fernando estará lá para me ajudar.
— Nesse caso, você vai mesmo fazer isso? Quer dizer… eu sei que
Fernando te explicou como funciona o direito de sucessão e sei que você já
sabe que meu pai podia fazer o que fez, mas, apesar disso, Laura, você acha
que é justo? Acha que tem direito a essas ações, a tudo o que ele lhe
entregou de mãos beijadas?
— Entregou a todos nós, não? — eu rebati, sem dar chance de Dr.
Fernando me defender. — Ou você acha que mereceu os seus 25%? —
aquilo o fez recuar. Bernardo tinha total compreensão de que não merecia o
que o pai deixou.
— Ainda assim, Laura — ele argumentou, sem se recuperar da
primeira porrada. — Nós somos os filhos dele e você é…
— A filha da empregada — completei a sua fala e, sem acreditar na
minha força, sorri, mesmo com o choro preso na garganta. — Eu sei. O Sr.
Quaresma tinha mesmo um ótimo senso de humor, não acha?
— Bernardo… — Dr. Fernando se intrometeu. — Vocês têm o
direito de contestar o testamento. Se não concordam com a posse de Laura,
façam isso de maneira formal, correta. Laura aceitou o desafio e assumirá o
cargo. Portanto, em relação a este assunto, você precisa discutir comigo, que
sou o advogado designado para tratar do caso, e não com ela.
Bernardo se movimentou outra vez, pensou sobre os argumentos do
advogado e em seguida levantou-se do sofá como se não conseguisse mais
estar sobre ele.
— Tudo bem — ele recuou. — Neste caso, se esta foi a vontade do
meu pai, eu… — ele mordeu o lábio inferior, refletiu e em seguida soltou
tudo de vez. — Ajudarei também — definiu. — Você precisará de toda ajuda
possível, diante disso… darei o meu melhor. Seja bem-vinda ao grupo.
E ele deixou minha casa tão rápido que eu não consegui nem
agradecer.
— Não se esqueça do que eu disse: eles tentarão te derrubar — Dr.
Fernando me alertou, mas meus olhos encaravam a porta fechada por onde
Bernardo saiu segundos antes, sem acreditar em tudo o que aconteceu em
apenas um dia.
“O morro não tem vez
E o que ele fez já foi demais
Mas olhem bem vocês
Quando derem vez ao morro
Toda a cidade vai cantar”
O Morro Não Tem Vez - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 7
LAURA

Respire, demandei em meus pensamentos. Só respire, Laura.


Do lado de fora do prédio, protegida pelo vidro escurecido do carro que me
pegou na porta do meu prédio, eu não encontrava paz de espírito. Eu não
encontrava nem mesmo a paz no meu corpo que tremia e transpirava.
Uma semana passou em um piscar de olhos. Não que eu tivesse me
dado conta enquanto a vivenciava. Foram dias diferentes de todos os outros
que tive na vida. Fazer compras com o Dr. Fernando, acompanhada, lógico,
de Bruna que me atormentou até conseguir a permissão, acabou em um
jantar divertido e muitas sacolas repletas de roupas, sapatos, bolsas e
acessórios que eu jamais me dei ao luxo de me imaginar usando.
Nos outros dias, apesar de não ter recebido nem um segundo de
apoio da minha mãe, eu me mantive bastante ocupada com Dr. Fernando,
que fez questão de me preparar para aquele momento.
Administrar uma empresa não era para qualquer um, quem dirá um
grupo de empresas. E eram tantas, de diversos tipos, com bastante
funcionários que comecei a ter pesadelos diários com a minha falta de
experiência evidenciada. Eu acordava suada, sufocada, com uma vontade de
chorar que embolava em minha garganta, então lembrava da carta do Sr.
Quaresma e repetia para mim mesma que eu precisava ir em frente,
precisava pelo menos tentar.
Por isso eu acordava no dia seguinte e dava o meu melhor. Apesar da
péssima internet que tínhamos, recebi um notebook que meu advogado disse
ser necessário para que eu tivesse às mãos tudo o que precisava para gerir
meus negócios.
Meus negócios.
Cacete!
Enfim, já que eu teria que utilizar um notebook, aproveitei para
pesquisar cada empresa que fazia parte daquele grupo, li algumas matérias,
busquei pelos nomes principais dos gestores e aos poucos aquilo não me
assustava com a mesma potência dos primeiros dias. Ainda assim, quando o
carro parou em frente à sede, um prédio de quatro andares, extenso, todo
espelhado, ou qualquer outro material que refletia o sol daquela manhã, não
encontrei coragem para abrir a porta e descer.
Meu Iphone… Porra, eu tinha um Iphone! Só não entendia porque
precisava de um, mas eu o tinha, tocou dentro da bolsa que custou mais do
que um ano inteiro de trabalho meu, mas que Dr. Fernando me disse que eu
precisava dela, e me sobressaltou. Trêmula, procurei o aparelho e
identifiquei um dos poucos números gravados na agenda.
— A-alô! — Gaguejei de primeira e nem deveria, porque era Dr.
Fernando na linha e eu não tinha motivos para me sentir insegura com ele.
— Laura? — ele sussurrou. — Cadê você?
— E-eu… e-eu… não consigo — desabafei.
— Claro que consegue — ele suspirou. — Você sabe que consegue.
Tem um discurso decorado, nem precisará olhar para os funcionários, só
finja que eles não estão lá. CEOs são arrogantes mesmo.
— Mas eu não sou e eu… eu… droga! — choraminguei e ao mesmo
tempo, comecei a me abanar com as mãos para que as lágrimas não
descessem e estragassem a maquiagem. — Eu estou em frente ao prédio e
não consigo nem abrir a porta e sair.
— Estou indo te buscar — ele informou e desligou sem ao menos se
despedir.
— Senhora? — Sr. Carlos, o motorista todo formal que me tratava
como se de fato eu fosse rica, e… cacete, eu era rica, só não conseguia
assimilar, diante disso… não, nada daquilo era real, eu… — Senhora?
Olhei para o homem que me encarava pelo retrovisor, ele me olhava
com atenção, como se eu estivesse prestes a ter um surto. E eu estava prestes
a ter.
— S-sim?
— Com o perdão da minha intromissão, mas fui motorista do Sr.
Quaresma durante anos. Lamentei a morte dele e temi que um dos filhos
assumisse a empresa porque… — ele sorriu tímido. — A senhora com
certeza sabe, mas o Sr. Quaresma sempre foi um homem simples, humilde,
gentil e atencioso. Por isso quero que saiba que, mesmo não sendo da minha
conta, se ele confiou na senhora para assumir este cargo, então a senhora é
sim capaz.
Uma lágrima escorreu e eu quis abraçar o homem, mas me contive e
voltei a me abanar. Eu não podia entrar naquela empresa com cara de choro,
nem com cara de palhaça. Funguei sem delicadeza mesmo, dei umas
batidinhas de leve no rosto para eliminar a lágrima sorrateira.
— Vá lá e mostre para eles que gente como nós também pode — ele
incentivou ao se voltar para mim, olho no olho, cheio de orgulho.
Será que ele sabia que eu não só assumiria o cargo como também
abocanhei metade da herança dos herdeiros imprestáveis? Será que ele tinha
noção do quão absurdo aquilo era? Uma técnica em enfermagem assumir o
cargo de CEO de um conglomerado de empresas? Pelo amor de Deus!
Ainda assim, devolvi o sorriso e fingi que era isso. Não havia nada
além de uma garota simples e humilde assumindo uma posição de liderança.
— Obrigada, Sr. Carlos!
Uma batida no vidro ao meu lado me fez perder todo o foco, o medo,
a insegurança, o pavor daquele momento, voltou com toda a força nos
segundos em que eu me encolhia para em seguida constatar ser Dr.
Fernando, como prometeu que faria.
Abri a porta e ele me ofereceu a mão, a qual aceitei apesar de toda a
carga emocional que eu carregava. Na outra, segurei a pequena maleta, linda
por sinal, que levava tudo o que eu precisava como CEO daquela farsa.
— Tudo bem? — Ele analisou meu rosto com atenção.
— Não, mas… é isso, né? Chegamos aqui e não vamos voltar atrás.
— É dessa maneira que eu gosto.
Dr. Fernando fechou a porta do carro e me conduziu pelas escadas
que me levariam à entrada do prédio. Lindo, chique e completamente
inadequado à minha pessoa. Claro que com as roupas que eu vestia e com os
saltos que escolhi, além da bolsa e tudo mais, qualquer pessoa me
confundiria com um deles, mas quando eu abrisse a boca…
— Eu sou Laura Lacerda e estou muito feliz em finalmente conhecê-
los — sussurrei ao relembrar tudo o que ensaiamos para aquele momento. —
Meu Deus, eu não acredito que farei isso mesmo.
— Relaxe — Dr. Fernando orientou. — Como conversamos,
primeiro teremos a apresentação geral, para que os funcionários saibam
quem é você e depois…
— A jaula dos leões — completei. Ele riu.
— Na verdade, nem mesmo Sabrina terá coragem de desfazer de
você diante dos diretores. Ela sabe que esse tipo de coisa gera desconfiança e
em seguida uma avalanche de situações que prejudicarão a empresa. E tudo
o que ela quer é a empresa, por consequência, qualquer ataque será nos
bastidores.
— Ainda assim…
— Você só precisará ouvir. Como CEO, neste primeiro momento,
escute o que os diretores têm a dizer, ouça as queixas e propostas, pergunte
mesmo que lhe pareça ridículo. O que temos aqui é uma verdadeira fábrica,
só que desmontada e segmentada, lembra? Uma empresa precisa da outra e
todos eles, todos mesmo, querem destaque, por isso só ouça, depois
conversaremos sobre o que eles disserem.
— Certo.
Respirei fundo quando Dr. Fernando só precisou acenar para que a
catraca se abrisse e minha passagem fosse liberada. Encarei um ponto na
parede mais distante e andei como se nada de anormal acontecesse naquele
instante. A postura ensaiada ajudou, repetir na mente o discurso ensaiado
também.
— Por aqui — Dr. Fernando me fez parar diante da porta do
elevador. — Você sempre pega este elevador — ele sussurrou para mim.
— Por quê? — sussurrei de volta, como se trocássemos segredos.
— Ele é só para… você sabe… para a diretoria.
— Hum! — Eu tinha total ciência de que meus olhos esbugalhados
entregavam a simplicidade da minha vida. Em qual mundo pessoas normais
pegavam elevadores exclusivos?
— E lá vamos nós — ele comentou no instante que a porta abriu e
iniciamos a nossa jornada.
Dr. Estevão foi o primeiro a me receber. O bom senhor tinha um
sorriso delicado, contudo, um aperto de mão forte, confiante e decidido.
— Seja bem-vinda, Laura — falou baixo, como se a intimidade do
meu nome fosse algo proibido dentro daquelas paredes.
— Obrigada.
O falatório do auditório me deixou nervosa antes mesmo de adentrar
o local. Minha respiração entregaria toda a minha inexperiência e as pessoas,
os funcionários daquele prédio levariam dias fofocando sobre a inabilidade
da nova CEO. Eu cairia no meio do caminho, com toda certeza, e também
gaguejaria.
No entanto, no momento que a porta se abriu, Dr. Fernando deu
passagem ao pai, mas me fez caminhar entre eles, uma atitude que amenizou
a minha insegurança, o silêncio se fez. Eu havia prometido a mim mesma
que sempre procuraria um ponto para encarar ao invés de buscar no rosto de
cada pessoa o que achavam de mim, e foi o que fiz quando cheguei ao
prédio, mas quando entrei no auditório e busquei no ponto acima do palco
para seguir meus passos, o que encontrei me desestabilizou.
Eles estavam lá, todos eles. Sabrina, Vicente e Bernardo, sentados em
cadeiras postas de forma estratégica para ouvirem a minha desgraça ao me
apresentar aos funcionários. Eu não esperava por isso, nem mesmo o Dr.
Fernando, ou ele teria me avisado.
No entanto, o que mais me assustou, foi o fato de Bernardo ser o
ponto que minha mente encontrou para fixar a minha atenção enquanto
buscava o equilíbrio dos meus passos. Não exatamente Bernardo, mas
aqueles olhos azuis que mereciam um quadro. Ele se levantou e aguardou
por mim na subida dos pequenos três degraus que me colocariam diante de
um grupo incontável de pessoas, todas atentas, ansiosas para saber quem era
Laura Lacerda e porque ela assumiria o cargo de CEO, e não um legítimo
Quaresma.
Bernardo manteve os olhos nos meus sem demonstrar incômodo,
como se de fato quisesse me ajudar a fazer aquilo. Na semana que se passou
após a sua visita, ele não apareceu para cumprir com a promessa de ajuda,
nem mesmo me procurou. O silêncio dos Quaresmas me deixava nervosa,
afinal de contas, como contra-atacar quando você nem conhece os passos do
oponente?
Porém, o fato de ele ter se levantado para me receber, parecia um ato
estudado, uma maneira discreta de dizer a todos que os herdeiros legítimos
concordavam com a minha posse e que se eles confiavam em mim, todos
poderiam confiar.
Eu quis chorar, mas não podia. Quis vomitar também, só que seria
pior de forma considerável. Então, quando Bernardo cumprimentou o Dr.
Estevão, em seguida ofereceu a mão a mim para um cumprimento amigável
e se deu ao trabalho de segurar os meus pertences e o levar até uma das
cadeiras restantes, eu me perguntei se aquela bandeira branca era real.
Não havia como ser. O Sr. Quaresma deu uma rasteira nos filhos ao
me designar como maior acionista daquele grupo empresarial, ao estabelecer
em seu testamento que eu seria a sua substituta na liderança das empresas, a
CEO, como eles chamavam, ao colocá-los abaixo de mim de todas as
maneiras legais que encontrou. Eles nunca hasteariam a bandeira branca para
mim.
Aquilo era um teatro ensaiado, da mesma forma como eu e o Dr.
Fernando fizemos durante toda a semana. Por isso, assim que Dr. Estevão
fez a última homenagem ao Sr. Quaresma e iniciou a minha apresentação,
engoli o medo. Eu precisava colocá-lo em algum lugar bem ao fundo da
minha essência, precisava ser a Laura a quem o meu ex-chefe recorreu em
seu último pedido. Não podia cair. Não podia errar.
As pessoas aplaudiram quando ele me chamou ao microfone, depois
silenciaram para que pudessem me ouvir. Desta vez eu não encarei um ponto
em algum lugar ao fundo, na parede. Levei alguns minutos para olhá-los, os
funcionários, as pessoas que faziam com que aquela empresa funcionasse, e
só quando entendi o que tanto me incomodava, iniciei meu discurso.
— Bom dia. Como vocês sabem, eu sou Laura Lacerda, designada
pelo Sr. Quaresma para ocupar o cargo de CEO desse grupo empresarial. Eu
tinha um discurso pronto, impessoal, decorado, porque não sabia o que dizer
às pessoas que eu não conheço. Mas então, diante de vocês, eu entendi esta
verdade. Eu não os conheço, e nem vocês a mim. Do que adiantaria um
discurso que nada diria de concreto a qualquer um aqui presente? Por isso
agora, neste momento, encurtarei o que tenho para dizer, mas quero que
entendam o que eu vou dizer e levem a sério. Eu quero conhecê-los. Quero
ouvir o que vocês tem para me contar sobre essas empresas, quero saber o
que mudariam, como conseguiriam gerir se lhes fosse dada a oportunidade.
Quero conhecer os projetos, o que precisamos melhorar, o que não precisa
mudar. E eu espero que vocês façam isso, porque não há como eu fazer este
papel sem a colaboração de cada um. Somos, verdadeiramente, uma equipe.
Obrigada!
Dei as costas ao público quando começaram a me aplaudir. Sabrina
me encarava emburrada, insatisfeita e eu não sabia se o que fiz foi algo
adequado, porém a verdade era que eu não conseguiria mesmo se não
soubesse de quem estava na base, como aquilo funcionava. Evitei olhar outra
vez para Bernardo, ele me desconcertava, então aceitei minha pasta e bolsa
das mãos do Dr. Fernando e segui o Dr. Estevão para a saída do auditório.

— Dará o maior trabalho, mas pelo visto era tudo o que eles queriam
ouvir — Dr. Fernando festejou o fato de eu ser aplaudida de pé pelos
funcionários até mesmo depois da minha saída.
— Mas você precisa cuidar do seu setor, Fernando, ou começarão a
questionar a capacidade da nova líder — Dr. Estevão, ainda que menos
eufórico, também gostou do que eu fiz. — Esse é o seu andar, Laura —
avisou.
— Todo o andar só para um cargo?
— Não. — Dr. Fernando riu. — Na verdade, metade de um andar, a
outra metade é para a diretoria e ao meio, a sala de reuniões principal. Você
tem vinte minutos para se preparar para essa outra etapa.
— Certo. — Respirei fundo, enquanto lutava contra o acelerar
desajustado em meu peito. — Sem discursos desta vez.
— Bom, os diretores sabem que não podem ganhar a sua antipatia,
por isso será mais fácil, mas amanhã… — O Dr. Fernando fez uma pausa
dramática proposital.
E eu sabia o motivo. Era o dia em que eu me encontraria com os
acionistas, ou seja, Sabrina, Bernardo e alguns outros que não tinham
qualquer expressão e que, ainda assim, podiam cobrar de mim uma boa
resposta para as perguntas que certamente surgiriam.
— Vá para a sua sala, Fernando. Eu cuido de Laura por enquanto.
— Tem certeza? — Dr. Fernando fez uma cara estranha, como se não
estivesse em seus planos me deixar em nenhum momento durante o dia
inteiro.
— Absoluta — o pai dele definiu e não houve contestação. Nós nos
despedimos e caminhamos para lados opostos. — Ali é a sala que você usará
para reuniões específicas — ele apontou para um local com apenas meia
parede, todo o restante era de vidro. — Aqui é a sala de espera. —
Mencionou com pressa. Observei o imenso local e me perguntei quantas
pessoas esperavam para ter alguns minutos do meu dia? — Essas são as suas
secretárias, Judite e Margarete.
— Bom dia, senhora — ambas disseram em unissono, de pé, os olhos
atentos à minha figura.
— Bom dia, Judite e…
— Margarete — a mulher, a que aparentava ser mais velha, me
informou.
— Margarete, certo — repeti, mas tive vontade de anotar os nomes.
— Ilma está na sala dela? — Dr. Estevão questionou.
— Sim. — A outra, mais magra e com aparência de quem vivia com
medo de tudo foi a que respondeu. Judite era o seu nome, eu pensei apenas
para conseguir gravar.
— Vamos — O homem me fez passar na frente delas e abriu a porta
sem bater.
Assim que ele entrou eu fiz o mesmo, certa de que aquela seria a
minha sala, mas havia apenas uma mesa, duas cadeiras e um sofá, e outros
móveis de decoração, e não foi isso que me fez entender não se tratar da
minha sala e sim a existência de uma mulher atrás da mesa, uma atitude
clara de que ali era o seu local de trabalho.
— Bom dia, Ilma, esta é a Srta. Lacerda. Esta é Ilma a sua assistente.
— Como vai? — eu disse com educação, no entanto com vontade de
perguntar porque um CEO precisava de duas secretarias e uma assistente.
— Muito bem, obrigada. E feliz em ter a senhorita à frente das
nossas operações. Seja bem-vinda. — Suas palavras ditas de forma firme e
convicta me deixaram admirada.
— Obrigada, Ilma — respondi depois de um tempo sem saber o que
dizer.
— Vamos a sua sala — Dr. Estevão disse ao passar pela mesa de
Ilma e seguir na direção de uma parede de madeira que só então me dei
conta se tratar de portas duplas. — Ilma, venha conosco — demandou sem
deixar opções.
Evitei demonstrar deslumbramento ao me deparar com a extensa
sala, do tipo que eu só via em filmes e julgava como irreal, afinal de contas,
por que um CEO precisava de uma mesa tão grande, uma sala com três sofás
longos, um ambiente que parecia uma copa e, céus, o que era aquilo, um
mini campo de golfe?
— Essa era a sala do Sr. Quaresma — Dr. Estevão disse com certo
saudosismo. — Agora é sua. E, claro, pode decorar como preferir.
— Ah… hum… eu… podemos deixar assim… por enquanto —
determinei por nem fazer ideia de como me comportar.
— Fique tranquila, Laura. —- O Dr. Estevão disse sem se importar
em ser íntimo na frente da assistente. — Ilma está aqui para ajudar. Ela sabe
que você não tem experiência.
— A senhorita pode contar comigo — a mulher disse sem deixar
dúvidas no seu tom de voz, da lealdade que dedicaria a mim. — Prometi ao
Sr. Quaresma que isso aqui não desandaria.
Apesar da sua altivez, notei o timbre emocionado em sua voz, e o
brilho lacrimoso no olhar. Confesso que meu coração aqueceu com tantas
pessoas dispostas a não deixar que o Sr. Quaresma fosse embora deste
mundo sem ter a certeza de que tudo ficaria bem. Tanta gente se esforçando
para que a essência daquele homem que durante alguns anos foi o meu
chefe, mas também meu amigo, que segurou a minha mão e me disse que
Sabrina me livrou de um encosto e que isso deveria ser considerado um ato
de amizade, mesmo que ele detestasse o encosto escolhido pela filha, não se
perdesse com filhos imaturos e manipulados.
E havia tanto naquilo que me deu a certeza de que, ainda que sem o
apoio da minha mãe, não havia nada de errado em atender o último pedido
de um homem que merecia tudo de mim.
Um dia ela entenderia. Um dia todos entenderiam. Por enquanto, eu
precisava apenas fazer dar certo. O resto aconteceria com o tempo.
Eu só esperava que não fosse muito tempo.
“Seja como for há de vencer o grande amor
que há de ser no coração
Como um perdão
Pra quem chorou”
O Grande Amor - Tom Jobim/ Vinícius De Moraes

CAPÍTULO 8
SABRINA

Nem mesmo a atenção de Vicente me acalmou. Minha ira atingia um nível


altíssimo a cada segundo que aquela usurpadora proferia seu discurso
imbecil. Era para ser eu ali. Durante anos ensaiei o que diria, como faria…
não que contasse os dias para a morte do meu pai, longe disso. Eu sonhava
em assumir após a sua aposentadoria e ainda assim, tê-lo em minha posse do
cargo de CEO, com os olhos repletos de orgulho e confiança de que eu faria
um excelente trabalho.
Porque eu faria um excelente trabalho e ninguém podia negar essa
verdade, já aquela… aquela… Ah, como eu odiava Laura!
E, apesar de toda a raiva, a dor e a humilhação, eu sorria e agia como
se todos concordássemos com aquela loucura, porque era isso ou enfrentar
uma crise e não sobrar nada para gerir após a queda da impostora.
— Onde está Bernardo? — rosnei para meu marido, incapaz de me
manter parada, de fingir calma, trancada em minha sala.
— Não sei. Deve estar na sala dele. Amor… — Ergui a mão e impedi
que Vicente tentasse qualquer coisa para me acalmar.
De fato eu funcionava melhor sob pressão, na força do ódio, com um
objetivo fixo do qual ninguém me demoveria. Naquele momento, derrubar
Laura era o meu objetivo e eu não descansaria, não iria para um SPA, não
faria uma viagem de férias ou nada das bobagens que meu marido sugeriu.
Eu ficaria ali, naquela empresa, atenta a cada passo daquela cretina, daria o
meu melhor para provar a sua imensa incapacidade de ser a CEO do nosso
grupo empresarial.
— Ótimo!
Ergui os ombros e abri a porta. No mesmo segundo, a máscara
tranquila desceu sobre meu rosto. Todos os funcionários da presidência
daquela sede sabiam que eu seria a CEO, por isso os olhares sérios e atentos.
Com um sorriso educado, atravessei o setor e fui até a sala do meu irmão.
Infelizmente, todos ficávamos no mesmo andar. Eu não conseguia
nem respirar o mesmo ar daquela ladra, quem dirá conviver com ela de
forma civilizada. Entretanto, havia muito em jogo, por isso mantive a
compostura durante os poucos passos que me levavam até a sala do meu
irmão.
E, como já esperava, o encontrei fora desta, de papo com a secretária
burra e gostosa que ele mantinha. Bernardo não tinha jeito. Demiti diversas
secretárias incompetentes que ele aprovou, mas nada o impedia de contratar
outra e seduzi-la. E todas, sem nenhuma exceção, cediam aos encantos do
meu irmão como se ele fosse capaz de conquistá-las além da beleza, porque
de papo Bernardo era um fracasso total.
— Tem sido difícil, você sabe… — ele dizia quando passei ao lado
dos dois e entrei em sua sala sem pedir permissão. — Sabrina?
Sem qualquer palavra, apenas um olhar mortal para meu irmão que
fez com que a garota idiota se encolhesse também, abri a porta da sala
reservada e o aguardei. Não demorou nada para que os dois homens,
Bernardo e Vicente, se postassem à minha frente para receber minhas
ordens.
Era desta forma que eu gostava.
— E então? — questionei meu irmão, que buscou respostas em
Vicente e este deu de ombros.
— E então o quê? — ele devolveu.
— Por que perde tempo com essa energúmena ao invés de paparicar
a Laura?
— Bom… tanto Fernando quanto Dr. Estevão não saem da cola dela
e… — ergui a mão e meu irmão se calou.
— Era para você executar esse papel. Como quer que aquela ladra
confie em você se não faz nada além de conquistar mulheres burras e
incompetentes?
— Sabrina, você não…
— Por favor, Bernardo, me poupe dessas desculpas idiotas. É o nosso
patrimônio que está em jogo. Se você deixar, o Fernando chega na sua
frente, conquista a usurpadora e nos deixa sem nada.
— O Fernando? Não! Ele… — Levantei a mão outra vez e meu
irmão silenciou.
— Já parou para pensar que esse pode ser o plano? Papai confiou o
testamento ao Dr. Estevão, o que é compreensível, mas nada impediria o
velho de pôr o filho na jogada e garantir um futuro melhor, não? — Cruzei
os braços na frente do peito e me deliciei com as expressões dos dois ao se
darem conta do tamanho daquele problema.
— Puta merda, amor! — Vicente foi o primeiro a falar. — Como não
pensamos nisso antes. É claro que eles planejaram um golpe. Quem não
planejaria? A garota é ingênua, insegura, está perdida no meio dessa loucura
que é ser CEO de um grande grupo empresarial… e Fernando está com ela
desde que soubemos o que seu pai aprontou. Lógico! Ele vai tentar
conquistá-la.
— Por que vocês acham que todo mundo está disposto a morrer e
matar por este cargo? — meu irmão, idiota, questionou, incapaz de
compreender a seriedade do problema.
— Porque eu estou disposta a matar e morrer para garantir o nosso
patrimônio, Bernardo — rosnei. Ele recuou. — E se você não se importa em
perder seu tempo com qualquer mulher, seduzir Laura e conquistar a sua
confiança não será nenhum tormento.
— A questão é que eu escolho as mulheres que quero seduzir — ele
rebateu. No rosto, a confissão do quão desconfortável ficou ao ser exposto
daquela forma.
— A questão, irmãozinho, é que você não ganha nenhuma mulher
sem a sua carteira recheada. Por isso, trate de fazer o combinado e afastar
aquela impostora do meu lugar — quase gritei, mas me contive no último
segundo.
— Putz! — Vicente riu diante do embaraço do meu irmão. — Sério,
cunhado, nunca te vi com medo de seduzir uma mulher. Que foi? Laura é
demais para você?
— Ela era demais para você? — Bernardo rebateu, aborrecido com o
comentário do meu marido.
— Não temos tempo para esta bobagem — eu me intrometi,
enfurecida pela lembrança de que um dia ela foi namorada do homem que eu
amava. — Temos menos de meia hora para a reunião, por isso trate de fazer
o que combinamos.
— O quê? Você acha mesmo que é só eu entrar naquela sala para ela
se derreter por mim? Não é tão fácil quanto parece.
— Não será se você não começar — eu o desafiei. — Portanto,
comece!
Sem aguardar por respostas, saí da sala do meu irmão e nem me dei
ao trabalho de bater à porta.

BERNARDO

Não foi a ideia maluca da minha irmã que me fez deixar a sala sem
dedicar qualquer agrado a Cindy, minha secretária, quase no papo para um
encontro, e seguir na direção da ala voltada para a nova CEO do nosso grupo
empresarial.
O que me fez de fato buscar por Laura foi a necessidade de constatar
os reais interesses de Fernando e do Dr. Estevão. Seriam eles tão canalhas
assim? E eu, seria? Sabrina não me obrigava a fazer o mesmo? Não. Eu tinha
um motivo justo e real, afinal de contas, Laura nem deveria ser citada no
testamento do nosso pai. Mas Fernando…
A verdade era que Fernando adorou aquela situação e faria o possível
para perpetuá-la, então, se ele agregasse à vontade de passar a perna em
Sabrina, a conquista de Laura e, por consequência pôr as mãos nas ações que
tirariam de vez minha irmã da jogada, ele teria a sua vingança perfeita.
O que não era justo comigo, que nada tinha a ver com aquela
confusão de casais.
Por ser o mais velho, e o mais desinteressado pela vida familiar, eu
pouco convivia com Laura nos dias em que ela frequentava a casa como
melhor amiga da minha irmã, no entanto, era fato que Sabrina paquerava
Fernando, mesmo que escondido do nosso pai, ou de todos os outros, uma
vez que seu sonho sempre foi gerenciar as empresas e relacionamentos entre
funcionários não era incentivado. Então, eu viajei e quando voltei minha
irmã namorava o ex-namorado da ex-melhor amiga.
Uma confusão dos infernos. Laura desapareceu da nossa casa,
Fernando se afastou de Sabrina e tudo corria com tranquilidade, ainda que
sob uma cortina de fumaça, até que nosso pai nos pregou aquela peça. Eu
entendia que ele não queria Vicente no meio das nossas empresas e que eu
não era uma pessoa confiável, mas daí a jogar nossa herança nas mãos de
uma menina que nada tinha a ver com nossos negócios passava de todos os
limites.
E, sem saber, papai deu a Fernando a vingança perfeita. Só que Laura
não sabia disso e agora a coitada seria disputada por dois canalhas que não
mereciam nem meio minuto da sua atenção. No final das contas Sabrina
tinha razão. Se eu não agisse logo, Fernando conquistaria Laura e
perderíamos tudo.
Foi com esta decisão que atravessei a sala de espera e sorri para as
duas mulheres que vigiavam a entrada.
— Judite e Margarete, as duas mulheres mais concorridas deste andar
— brinquei, elas sorriram, mas com um olhar repreendedor de Margarete,
Judite se corrigiu e me encarou como se soubesse que precisava defender
Laura. — Já conheceram Laura, digo, a Srta. Lacerda?
— Conhecemos sim, Sr. Bernardo. — Margarete informou.
Eu gostava daquela mulher. Gostava de olhá-la com seu rosto
redondo e olhos juntinhos como se estivessem pressionados pela caixa
craniana. Ela parecia um desenho animado e ainda assim, era agradável,
mesmo com a atitude de quem assumia a missão de me impedir de chegar
até Laura.
— E o que acharam?
— Bem… — Judite começou, mas Margarete a fez calar sem
precisar de uma palavra.
— Ela é jovem, educada e interessante — Margarete respondeu pelas
duas. — O que faz deste lado do andar?
— Ora, Margarete, não fale como se eu não vivesse do lado de cá.
Até pouco tempo era meu pai por trás daquela porta e sob o cuidado de
vocês.
No mesmo instante, as duas se renderam. Os olhos ficaram saudosos
e úmidos. E eu soube que nada mais me impediria de entrar.
— Vim saber se Laura precisa de alguma coisa. Crescemos juntos,
vocês sabiam?
— Sério? — Judite entrou na conversa e desta vez, Margarete não a
impediu.
— Sim, ela estava o tempo todo em nossa casa e nos últimos anos, ao
lado do nosso pai. — Evitei os detalhes, apesar de saber que em algum
momento, eles explodiriam como fofoca por todo o prédio. — E, na verdade,
com certeza Laura vai reformar a sala e deixá-la mais moderna, a cara dela,
não é? — Ambas concordaram, atentas as informações que eu passava sem
qualquer esforço. — Por isso me perguntei se ela não se importaria em me
dar os porta-retratos que estão sobre a mesa.
Elas sabiam bem de quais peças eu falava. Meu pai tinha retratos
nossos em todos os escritórios. Fotos de quando éramos crianças, das
formaturas, da mamãe…
— Oh, com certeza — Margarete disse, emocionada.
— Então, posso entrar?
— Ah, querido, precisamos perguntar a Ilma. Dr. Estevão continua lá
dentro — Judite me informou.
— Hum! E Dr. Fernando?
— Ele não apareceu por aqui ainda — Margarete respondeu com
curiosidade. — Mas vocês terão uma reunião em… — a mulher conferiu o
relógio de pulso que parecia minúsculo em seu braço rechonchudo, ainda
assim, eu gostava. — Vinte minutos.
— Sim, eu sei que Laura ficará ocupada o resto do dia, afinal de
contas é muita coisa para conhecer, não? — elas concordaram e com a
autorização de Margarete, Judite retirou o telefone do gancho e interfonou
para Ilma. — Eu só daria uma última olhada na sala — ressaltei para a
mulher que me encarou como uma mãe que quer colocar o filho no colo.
— Perdão, Sr. Bernardo, mas Ilma disse que a Srta. Lacerda quer
saber o assunto — Judite me avisou com certo pesar.
— Diga a ela. Os porta-retratos… — sussurrei à beira de perder a
paciência. Ela reproduziu o que eu disse, em seguida tapou outra vez o bocal
e se dirigiu a mim. — Ela pediu para o senhor aguardar.
Olhei para os lados sem lembrar da última vez que precisei aguardar
naquela sala, como uma pessoa comum, um simples diretor. Então forcei um
sorriso e fingi entender.
— Tudo bem.
Sentei no sofá do meio, bem no centro da sala, e aguardei. Em
instantes entraríamos em reunião e eu não teria outra oportunidade perfeita
como aquela. Na verdade, eu poderia voltar para a minha sala e recuperar
qualquer coisa depois, ou pedir para Cindy buscar, porém como convenceria
aquelas mulheres da minha boa vontade se desse as costas e desistisse?
Além do mais, Fernando não estava com Laura, como Sabrina
informou, desta forma, não havia nada para constatar. E apesar disso, eu me
mantive sentado naquele sofá por exatos quinze minutos, quando, enfim, a
porta se abriu, Ilma saiu com uma caixa de papelão na mão e se dirigiu até o
local onde eu estava.
— Bom dia, Sr. Bernardo — ela disse da maneira de sempre, fria e
seca. — São esses?
Colocou em meu colo a caixa para que eu constatasse que não seria
recebido pela nova CEO. Dentro dela diversos porta-retratos, arrumados
com cuidado. O que mais eu podia fazer?
— Sim, Ilma. Obrigado.
— Disponha.
Ela me deu as costas e voltou a se trancar sem me deixar entrar na
sala que pertencia ao meu pai, e que, por merecimento, deveria ser da minha
irmã. Encarei a porta até me dar conta de que as outras duas me olhavam
com pena. E eu não queria a droga da pena de ninguém.
Como provocação da vida, Fernando apareceu, cumprimentou as
mulheres e aguardou que estas avisassem a Ilma da sua presença. Enquanto
esperava, teve a cara de pau de me cumprimentar. Isso segundos antes de
informarem que ele podia entrar.
Ele podia entrar e eu não? Laura receberia aquele… aquele…
almofadinha e me dispensou sem nem sequer olhar na minha cara?
Levantei-me com a animação forjada, sorri para as mulheres e
mostrei a caixa, como se de fato estivesse satisfeito com a conquista.
— Obrigado, meninas!
— De nada — elas disseram ao mesmo tempo, com aquela
consternação que me incomodava.
Voltei para o meu lado do andar com a certeza de que não voltaria
atrás no plano. Laura não tinha direito de fazer aquilo comigo, não podia me
rejeitar sem ao menos me deixar tentar, ela não podia… não podia apenas
decidir pelo Fernando sem ao menos saber do que eu era capaz.
Então sim, era uma batalha de ego. Acima de quaisquer ações, de
patrimônio perdido, das loucuras da minha irmã. Eu conquistaria Laura,
porque não aceitaria perder para Fernando. Nunca mais.
Ao sentir que iria sofrer
E me desesperar
Foi então
Que da minha infinita tristeza
Aconteceu você
O Amor Em Paz - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 9
LAURA

A reunião com os diretores só não foi mais fácil porque nela, Sabrina tinha
voz. Apesar de manter a posição de boa moça e de estar de acordo com a
escolha do pai, ela, em seu tom tranquilo, educado, no entanto assertiva, me
sabatinou. Queria saber dos meus planos, do quanto eu me inteirei das
empresas na semana antes da minha posse, o que eu achava sobre nos
desfazermos de algumas das empresas do grupo e reduzir ao máximo o
nosso time.
Confesso que ela acertou uma flechada em mim quando iniciou seus
argumentos. Eu fiquei igual um barco no meio do oceano à deriva. Não fazia
ideia de como se reduzia ao máximo uma empresa. Morria de medo da ideia
de demissão. Não conhecia como funcionava a venda de uma empresa como
a de pneus, não tinha ideia se de fato, ela seria ou não lucrativa e de que
forma ela impactava dentro do processo automobilístico como um todo.
A única coisa que eu sabia era que as concessionárias eram o carro
chefe do grupo. E eles tinham de tudo, de todas as marcas relevantes, com
nomes diferentes, estratégias de marketing e diversas equipes que
enfrentavam a outra como em uma competição. E eu não fazia ideia se
aquilo era ou não interessante para ser estimulado.
Perdida. Esta era a palavra exata para mim no início daquela reunião.
Mesmo com o apoio dos advogados, com a maneira como, de certa forma,
me receberam com entusiasmo, havia Sabrina que deixava claro que seu
único e exclusivo objetivo era deixar que todos percebessem a minha
incapacidade para gerir aquele cargo e aquilo me matava por dentro, porque
de fato, não havia qualquer aptidão em mim para assumir tal função e apesar
disso, se não fosse pelo pedido do Sr. Quaresma, naquele instante, seria pela
questão pessoal.
Sabrina roubou o homem com quem acreditei que um dia me casaria.
Mas este não era o meu combustível para fazer aquela loucura dar certo. No
final das contas, com as investidas descaradas do Vicente, eu percebi que ele
não seria legal para ninguém, nem para mim e nem para ela, e durante anos
me dividi entre a vontade de mostrar a minha ex-melhor amiga quem era o
homem com quem ela casou ou assistir de camarote o quanto ela era imbecil
por acreditar nele.
Durante aquela reunião, os ataques disfarçados de interesses da filha
caçula do Sr. Quaresma, se tornaram meu combustível. Eu não tinha o
preparo necessário, não tinha a capacidade intelectual dela para assuntos
administrativos, nem a sua visão de negócio, porém, não me deixaria
intimidar. Uma vez eu li em um livro, que quando você não tinha alguma
informação ou tino para algo, que criasse para si a melhor equipe possível,
que pudesse te fornecer toda e qualquer informação para que acontecesse.
Ninguém cresce só. Por isso, após minutos de perguntas sobre as
quais eu não conhecia as respostas, resolvi que aquela seria a minha
estratégia. Ergui a mão quando Sabrina abriu a boca para mais uma das suas
perguntas constrangedoras e fiz com eles, os grandes diretores, o que fiz com
os funcionários um pouco antes.
— Como puderam perceber, não tenho todas as respostas que a
nossa presidente, Sabrina Quaresma, busca. Mas eu sei que vocês podem tê-
las. Que muitos possuem opiniões que podem engrandecer o nosso trabalho.
Não vejo essa sala como setores individuais e indiferentes, eu nos vejo como
um imenso quebra-cabeça onde cada peça conta. Por isso, o intuito desta
reunião não é apenas nos conhecermos assim, em uma mera apresentação.
Ilma?
A gentil senhora que se prontificou a me ajudar naquela empreitada
se posicionou ao meu lado no instante que a chamei.
— Eu gostaria de organizar um dia em cada setor dirigido por esses
gestores. Assim que puder, verifique com cada um deles a melhor data.
Lógico que não precisam dedicar todas as suas horas para a minha estadia,
porque pretendo conversar com todos os funcionários e entender o papel
deles aqui dentro, ouvir o que cada pessoa tem a dizer, por isso…
— Mas isso é um absurdo! — Sabrina se prontificou a falar. — Sabe
quanto tempo levará este esquema? Somos muitos e de muitas empresas.
— Eu entendo, Sabrina, e sei que você tem pressa para algumas
questões. Porém creio que seu pai também tinha planos e pelo que entendi,
eles batem de frente com os seus. Antes de qualquer decisão, preciso
entender o esqueleto desse grupo, ouvir de quem está perto, mas também de
quem está longe. Inclusive, ah… Perdão, mas não gravei o seu nome, o
senhor, diretor de TI do grupo.
— Sérgio Marcondes, Srta. Lacerda — o homem de meia idade, bem
conservado e bem vestido, se apresentou sem que lhe parecesse ofensivo eu
não decorar o nome dele. Ainda assim, vi quando Sabrina balançou a cabeça
em desaprovação.
— Sr. Marcondes. Existe no grupo algum canal de comunicação
entre o meu cargo e os funcionários, no geral?
— Hum, não — mas um sorriso de interesse surgiu em seus lábios.
— Seria possível acrescentar um canal de comunicação mais direto?
— Uma posição como a sua exige bastante do seu tempo para gastá-
lo com conversa com o chão da fábrica — Sabrina interferiu.
— Bom, eu tenho duas secretárias e uma assistente. Há alguma
chance de termos algo que passe antes por elas e após o filtro chegue até
mim?
— Poderíamos criar — ele não se importou com a intromissão de
Sabrina e se interessou pela minha ideia. — Inclusive, não demandará quase
nada do nosso trabalho. O que tem em mente? Apenas a sede ou todos os
grupos?
— Se conseguir ativar o filtro, o ideal seria todas as empresas.
— Sem problema. Posso ser o primeiro em sua agenda?
Olhei para Ilma que abriu a agenda em seus braços e verificou.
— Amanhã. Reservei uns dias de adaptação — ela informou baixo
para que eu entendesse a sua intenção.
— Ótimo. Amanhã então estarei com o Sr. Marcondes. Ilma ajustará
a agenda com os demais. Não se preocupem em agendar imediatamente,
pedirei a ela que vá em cada sala para que possam ajustar o dia sem que o
trabalho seja interrompido. Agradeço a presença de todos.
Eles levantaram, alguns, os mais próximos apertaram a minha mão e
desejaram as boas-vindas, outros saíram com pressa, como se precisassem se
organizar para a minha visita. Eu só percebi a presença de Bernardo ao meu
lado quando não poderia fazer nada para evitá-la.
— Podemos começar hoje, se sua agenda estiver livre para o restante
do dia. Pelo que entendi, a ideia é conhecer todos os setores, então, eu sou o
diretor comercial. Trabalho diretamente com as questões das vendas e
necessidades de cada empresa. Seria bom conhecer os números e se
familiarizar, além de, claro, entender as prioridades.
— Você é o diretor comercial? — Expressei minha dúvida como se
aquilo não fosse algo possível para alguém como Bernardo, afinal de contas,
ele era bacharel em Direito, pois não tinha OAB.
— Sim — Ele sorriu como se contasse uma piada, o que me deixou
ainda mais assustada. — Não é algo tão complicado. Cada empresa possui o
seu diretor comercial regional, então o meu trabalho é fazer uma síntese dos
deles e encontrar o ponto chave para cada ponto que precise de melhoria.
— Você é o diretor comercial? — repeti sem acreditar naquela
hipótese. Como o Sr. Quaresma deu um cargo daqueles para alguém como
Bernardo?
— Hum!
Ele coçou atrás da cabeça e pôs uma mão na cintura, o paletó revelou
sem qualquer sacrifício o corpo bem trabalhado que eu já conhecia, ainda
que em rápidas passagens pela casa.
— Algum problema?
— Não. Na verdade não. Ilma?
A minha assistente se aproximou com eficiência, a agenda aberta
para aquele dia.
— O senhor Bernardo Quaresma deseja que iniciemos hoje a nossa
visita pelo seu setor. O que acha, temos tempo?
— Na verdade não agendei nada para hoje — ela revelou, sem se
opor ao que Bernardo faria com a informação. — É o seu primeiro dia, por
isso achei que quisesse de fato aprender mais sobre as empresas.
— Ótimo! — ele disse com um desinteresse fingido.
— Na verdade, eu pensei em sugerir que começássemos logo — Dr.
Fernando interferiu ao se posicionar ao lado de Bernardo.
Olhei os dois homens. Lindos na mesma medida e completamente
diferentes. Bernardo com seus fios escuros e olhos azuis que tiravam
qualquer pessoa do sério. Lindo como nenhum homem merecia ser, pois não
havia ninguém mais imbecil para lidar com a beleza do que o homem. E Dr.
Fernando, que, apesar de toda a sua formalidade, parecia um príncipe com
seu cabelo loiro nada comportado e olhos verdes.
— Você passou a semana com Laura, Fernando, não fez o seu
trabalho? — Bernardo rebateu a interrupção do colega.
— Eu orientei Laura sobre as empresas, mas ela quer conhecer cada
setor, ouvir os funcionários e…
— Eu entendi, mas também compreendi que cheguei primeiro — ele
disse com a sua nada elegante displicência e que ainda assim… não,
Bernardo tinha uma placa de perigo piscante na testa.
— Se me permite opinar — Ilma interferiu. — O setor comercial é o
mais importante agora. Conhecer como as empresas funcionam, as vendas e
tudo mais, acrescentará nas suas colocações dos demais setores.
— Ouça a voz da sabedoria — Bernardo brincou, porém eu não sorri.
Independente disso, Ilma conhecia cada detalhe daquela história e se me
dizia que passar um bom tempo com Bernardo era o melhor, então eu
deveria segui-la.
— Certo. Começamos com o setor comercial. Veja uma data que
caiba na agenda do Dr. Fernando, por favor.
Eu tinha certeza de que meu novo amigo não ficaria satisfeito com
aquela arrumação, afinal de contas, ele e o pai tomaram para si a missão de
me defender daquela família. Contudo, qual mal havia em estar com
Bernardo, dentro da empresa, com outras pessoas por perto? E eu teria
mesmo que enfrentar aquela parte da história em algum momento. Sem
contar que meu maior medo não era estar com o filho do Sr. Quaresma e sim
com o genro.
— Tudo bem. Podemos começar agora, se quiser — ele avisou com
um sorriso que parecia verdadeiro.
— Certo. Ilma?
A mulher fechou a agenda e concordou, como um soldado pronto
para a guerra.
E era isso, uma guerra em que cada batalha precisava de uma
definição. A última, com certeza, seria Sabrina, quando eu já tivesse todas as
respostas e certezas. Eu não faria um trabalho incompleto. Ela não perdia por
esperar.

BERNARDO

Não posso dizer que foi uma tarde ruim ou estranha. Laura, apesar de
tudo, era uma pessoa da minha convivência. Pouca convivência, mas… eu
não me sentia intimidado ou ansioso para convencê-la de nada. Foi como
conversar com alguém que faz parte da minha vida há anos. Um colega
antigo da escola que passou para me visitar e eu quis apresentar o meu
trabalho.
Laura sentou na cadeira em frente à mesa e aguardou que eu virasse
o computador para que ambos pudéssemos analisar o sistema que interligava
as empresas. Se fosse o meu pai ainda na posição de CEO não iria à minha
sala, a não ser que seu intuito fosse puxar a minha orelha. Todo e qualquer
assunto tratávamos na sala dele, mas Laura queria conhecer tudo, se cercar
dos melhores profissionais para formar a sua equipe de confiança e eu não
podia ficar de fora dessa, até porque Fernando já era membro certeiro.
Observei a garota de cabelos castanhos pesados, feições finas e com
maquiagem leve voltar a sua atenção para a tela do computador. Ela era
bonita. Um pouco mais de produção ajudaria, mas, ainda assim, bonita.
Usava roupas caras, do nível que necessitava após a herança, constatei e,
sem conseguir evitar, associei a mudança a Fernando. Incomodou-me a
ideia.
Engoli essa com dificuldade. Não que eu quisesse destruir Laura,
mas… meu pai vacilou quando deixou metade de tudo para ela. Bastava que
ele colocasse uma cláusula no testamento com um prazo para que
tomássemos as medidas corretas. Puxei o ar com força quando ela me
encarou diante do meu silêncio.
A luz sobre nós refletiu em seu olhar e eu não deixei de admirar a
mudança de cor, do castanho para o âmbar, em cílios longos de forma
natural. Quase ri quando pensei em Sabrina, que fazia alongamentos porque
tinha cílios pequenos e ralos. Laura era toda natural e conseguia ser bonita
assim, sem esforços.
— Hum! — Limpei a garganta antes de começar. — Esse sistema é
novo. Cada setor, função, gerente e diretor tem acesso conforme a
necessidade. No meu caso, tenho acesso a tudo. Então…
Digitei minha senha e a tela escura com letras brancas e vermelhas
abriu o sistema. Laura se aproximou mais, com interesse, o rosto próximo ao
meu e um perfume que eu desconhecia, mas deixava a aproximação
agradável.
— Como funciona? — ela disse sem desviar a atenção.
— Vamos lá. Cada empresa do grupo tem ações diferentes, porém, no
final, para o meu setor, tudo se resume da mesma forma, o que temos, o que
vendemos e como podemos melhorar. Eu tenho os analistas, eles avaliam os
resultados e comparam com os meses anteriores, da mesma maneira como os
anos. Então uma vez por semana nos reunimos para avaliarmos de que forma
a empresa precisa se ajustar. Veja aqui.
Apontei na tela o nome de uma das empresas, uma concessionária
mais antiga e sobre a qual tínhamos maiores certezas. Cliquei no ícone e
uma tela abriu demonstrando as filiais daquela marca.
— Cada filial do país precisa gerar um relatório diário. O setor
comercial deles faz o balanço do que vendemos naquele dia, fatura o carro e
envia um relatório para a fábrica e… não sei se você sabe, mas não somos a
fábrica.
— Eu sei. — Ela revirou os olhos e eu acabei sorrindo.
Ninguém naquela empresa demonstrava atitudes desinteressadas e
infantis, mas Laura não cresceu nem estudou para estar naquela posição, por
isso a naturalidade com que ela encarava cada detalhe chegava a ser
extraordinária.
— Por isso precisamos enviar um relatório diário para a fábrica.
Funciona como se fosse uma prestação de contas e em alguns casos, como
pedidos também, uma vez que os estoques se ajustam conforme as vendas. A
fábrica recebe o relatório, uma vez por semana confirma comigo, eu dou o
ok e as coisas acontecem.
— Você simplesmente concorda com cada venda ou compra?
— Não. Quando chega até aqui é porque já está definido. Cada
concessionária possui um diretor comercial e este precisa checar as
informações. Um carro vendido, em estoque, só nos mostra quanto entrou,
quanto é nosso e quanto é da fábrica, a margem de lucro, e se há a
necessidade de ajuste de estoque. O diretor comercial do local já nos manda
o parecer antes, por isso analisamos todo o material para uma vez na semana
acertarmos tudo.
— Entendi — ela anunciou com mais convicção. — Quero conhecer
os analistas.
— Claro, já pedi para Cindy avisar. Estaremos com eles logo após o
almoço. Enquanto isso…
Abri cada aba, mostrei como cada empresa funcionava, cada produto
que tínhamos, de que maneira era a relação com cada fábrica específica e no
final, quando Laura não demonstrou medo em suas perguntas e em seus
entendimentos os funcionários da sede ligado ao comercial, eu me perguntei
porque nunca fizemos aquilo. Por que Sabrina, apesar de conhecer os
detalhes daquele grupo empresarial, não fazia questão de interagir com as
pessoas que cuidavam daquilo?
Porque Laura, apesar da sua visível inexperiência, ouvia coisas que
de fato ganharam a minha atenção. Coisas que as pessoas da minha equipe
não conversavam comigo, ou que eu, por não me sentir interessado a
trabalhar mais, não fazia questão de perguntar. Todos eles demonstraram
uma preocupação com a estagnação profissional, apesar de termos um
sistema de crescimento, além de sentirem medo das demissões que estavam
nos planos de Sabrina, mesmo nenhum deles tendo certeza.
Quando voltamos ao elevador para irmos ao nosso andar, Laura se
trancou em seus pensamentos. Carregava nas mãos um monte de anotações e
focava nelas.
— Bernardo, no meu login tenho acesso aos documentos que você
me apresentou? — ela perguntou quando as portas se abriram.
— Sim. Meu pai costumava analisar o resumo apresentado
semanalmente, como eu te disse, após os analistas e…
— Sim, sim — ela me cortou, ainda pensativa. — Eu só queria
analisar alguns detalhes. Para acessar como faço?
Olhei em meu relógio de pulso e me dei conta de que eu planejava
sair uma hora mais cedo naquele dia. Era a despedida de solteiro de um
amigo e aconteceria em uma casa de stripper, o que me animou durante toda
a semana. Mas quando voltei os olhos para Laura e recordei as palavras da
minha irmã, tive a certeza de que precisava ficar. Se não a ajudasse como ela
queria, Fernando assumiria o meu lugar e eu não podia jogar com a sorte.
— Olha, se quiser eu posso te mostrar.
— Ótimo!
Ela me deu as costas e seguiu em direção a sua parte do andar.
Depois olhou para trás como se não compreendesse a minha hesitação.
Naquele mesmo dia ela me impediu de entrar em sua sala, o que pretendia
daquela vez? Levar o computador até a de espera?
— Você não vem?
Paralisado, encarei a mulher à minha frente. A roupa, apesar de
formal e de marca, a deixava… interessante. Não escondia suas curvas, as
quais eu sempre reparei, mas não me atrevi a eliminar as barreiras.
Certo, era hora de assumir que Laura era bonita e seduzi-la não me
daria uma dor de cabeça.
Foi com este pensamento que caminhei em sua direção, disposto a
passar quantas horas ela precisasse do meu dia ao seu lado.
"Morro pede passagem
Morro quer se mostrar
Abram alas pro morro
Tamborim vai falar"
O Morro Não Tem Vez - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 10
LAURA

Com a cabeça atordoada com bastante informações, não pensei duas vezes
quando pedi a Bernardo que me ajudasse um pouco mais. Ele era o inimigo,
eu sabia, Fernando sabia e até mesmo Ilma sabia. A prova foi ela aguentar o
passeio pelo setor comercial ao meu lado. Ainda assim, havia tanto a
aprender, a entender… e ele estava certo, o comercial era de fato o primeiro
passo. Eu tinha que entender o que funcionava e o que não funcionava
dentro daquela empresa.
E, constatar que reduzir era um passo necessário doeu o meu
coração, mesmo que eu não tivesse contato com o RH, nem com qualquer
outro setor ou nenhuma das empresas. Só de conhecer alguns funcionários
da sede, eu soube que faziam trabalhos desnecessários que podiam, sem
qualquer dificuldade, serem feitos por um só. Além disso, funcionários como
Cindy, secretária de Bernardo, que não faziam ideia do seu papel dentro da
empresa.
Ficou claro que a garota fora escolhida por outros atributos que não
os que deveriam constar em seu currículo. O Sr. Quaresma tinha razão, seu
filho mais velho, o que deveria ter paixão pelo que ele construiu, o que
deveria ser o maior interessado no sucesso das empresas, fazia daquilo o seu
parque de diversões.
Mas, sem pensar no problema, aceitei que Bernardo entrasse na
minha sala e não recusei quando ele puxou a cadeira para o meu lado e
começou a trabalhar no computador que seria o meu. Ilma me informou a
senha, eu digitei com o maior cuidado para que ele não visse e em seguida
iniciamos o trabalho.
— O que deseja ver?
— Tudo. Vamos começar do zero. Quero verificar os relatórios
diários e os enviados pelos analistas.
Aquele foi o único lugar em que constatei precisar de mais pessoas.
Três analistas para uma imensidão de empresas justificavam o clima tenso e
conturbado entre eles. Assim que estivesse com todas as informações nas
mãos, eu faria o meu próprio relatório com todos os pontos que achei
necessário e Sabrina veria que não seria tão fácil me derrubar. Pelo menos
não antes do tempo.
— Você viu algo que chamou a sua atenção? — ele questionou,
preocupado pela primeira vez no dia.
— Na verdade, tudo chamou a minha atenção. Sabrina quer liquidar
as lojas de pneus, mas eu preciso entender de que forma uma empresa que é
lucrativa pode não ser desejada por um grupo empresarial.
Ele se ajeitou na cadeira e se aproximou um pouco mais.
— Não é uma questão de lucro. Essas lojas apesar de serem
lucrativas na primeira análise, caem a cada ano. Os estudos indicaram que as
pessoas preferem comprar pneus ou pela internet ou em lojas de
departamentos. Existe ainda uma parcela de cliente que escolhe o pneu que
seu mecânico indica e seria mais fácil transformarmos em distribuidora para
atingir esses locais do que manter uma loja física.
— Mas as fábricas são as distribuidoras — argumentei. — Não
teremos preços para competir.
— Exato. Por isso a decisão está em aceitarmos ou não a proposta da
fábrica para sermos os distribuidores.
— E as lojas fechariam. Quantas pessoas seriam demitidas?
— O RH com certeza terá uma projeção. Quando acontecem coisas
desse tipo dentro de uma empresa de grande porte, deixamos primeiro que
alguns funcionários escolham a demissão voluntária. Pagamos tudo o que é
de direito deles. Os aposentados sempre são o alvo, pois eles precisam dar a
chance para os que ainda não garantiram o benefício. Alguns funcionários
são reaproveitados para outras empresas do grupo, conforme a
disponibilidade e, principalmente, a capacidade de cada um. Só depois disso
e com um planejamento específico, acontecem as demissões mais difíceis.
— Entendi. Então vamos ao relatório.
Fiz questão de não encarar aquele par de olhos azulados que sob a
luz pareciam mais escuros e de não me deixar levar pela voz mansa e
colaborativa, nem pelo sorriso educado e gentil. Bernardo era um lobo em
pele de cordeiro que o Sr. Quaresma deixou de herança para mim.
Onde eu estava com a cabeça quando me deixei convencer a aceitar
aquela loucura?

BERNARDO

— Entendi. Então vamos aos relatórios — ela solicitou com uma expressão
estranha. Uma pequena ruga entre os olhos que deixava claro que o assunto
incomodava.
No mesmo instante pensei em Sara, na maneira como minha irmã
querida a demitiu, por puro e simples deleite em sacanear Laura. De que
maneira aquilo impactaria na decisão da nova CEO na empresa?
Enquanto abria e fechava as abas, deixava que Laura as analisasse,
eu pensava no quanto deveria ter sido mais enérgico com a Sabrina ao invés
de deixá-la assumir tudo e me esconder na vida que eu queria. Se ela tivesse
o costume de me procurar antes de qualquer decisão, eu teria dito que Sara
era como da família, que demiti-la seria como cortar o último fio que
tínhamos com o nosso pai, com nossa mãe e nossa infância. Mas minha irmã
entendeu que eu concordava com tudo quando sinalizei que concordava com
a venda da casa, ainda que me incomodasse tal ideia.
— Com licença — Ilma entrou na sala após bater. — A senhorita
precisa de mim?
Laura a encarou, depois fez o mesmo com o relógio digital sobre a
mesa e se espantou com o horário.
— Você precisa ir, não é mesmo? — ela disse como se aquela
constatação também a colocasse para fora. Mas era a chance que eu tinha.
— Sim — Ilma disse com delicadeza, um tanto consternada por
precisar deixar Laura sozinha, comigo, no seu primeiro dia de trabalho. —
Na verdade, é o horário de todos.
— Certo — a garota comentou, confusa. — Eu só queria…
— Se pretende aprender mais sobre as empresas, eu posso ficar com
você — sugeri, sem deixar que minha voz entregasse o plano. Ilma ergueu
os olhos por sobre os óculos e me deu aquele olhar de quem desfaz da minha
oferta.
— As secretárias conseguiram organizar a agenda com os encontros
solicitados — a assistente anunciou sem sair do seu tom profissional. —
Mandei um e-mail com as informações e também coloquei um alerta para
que saiba trinta minutos antes, com quem será e o que precisará para cada
encontro. Fiz um resumo, se não se importar com a intromissão.
— Não, na verdade eu agradeço muito, Ilma. — Laura não deixava
de esconder o quanto cada detalhe a deixava nervosa e era neste ponto que
eu deveria focar para conseguir o meu intento.
— A senhorita ficará aqui?
— Eu acho que… Carlos precisa ir, certo?
— Com certeza ele esperará o tempo necessário — Ilma pontuou,
mas sem deixar de demonstrar que o ideal era Laura não ficar sozinha
comigo.
— Ou, eu posso te levar quando acabarmos aqui. — De novo sugeri
e recebi em troca o olhar acusador de Ilma. — Carlos não deveria esperar
tanto.
— Vamos demorar muito ainda? — Laura se voltou para mim com
aquele jeito simples e espantado, mas que ao mesmo tempo deixava claro
que desejava aprender.
— Um pouco, se quiser mesmo ter toda noção do setor. Amanhã a
reunião será na TI, certo? — ela concordou após um breve olhar para a
assistente. — E depois, pelo que Ilma informou, um dia com cada direção.
Mas se quiser encontrar um tempo para me encaixar na agenda… ou eu
posso aparecer todas as vezes que sentir alguma dúvida.
Ela encarou a tela, ciente de que demoraria a ter todas as respostas,
depois suspirou.
— Se não for incômodo, avise a Carlos que não precisa aguardar por
mim.
Ilma concordou sem contestar, como sempre fazia. A mulher saiu em
direção a porta, mas voltou em seguida.
— Ah, o Dr. Fernando está aqui fora — informou.
Puta merda! Fernando não nos deixaria em paz nem por um segundo.
— Mande-o entrar. Obrigada, Ilma. — Laura sorriu com genuinidade
e aquele sorriso me pareceu como um raio de sol.
Caralho, o que eu fazia? Não deveria admirar aquela garota, afinal de
contas, eu estava ali para seduzi-la e tomar de volta a minha herança.
Fernando entrou na sala como se soubesse da minha presença, sem
demonstrar surpresa ou desconforto.
— Vai virar a noite no trabalho logo no primeiro dia?
Ele sentou na cadeira da frente e Laura suspirou alto ao jogar a franja
crescida do cabelo para trás.
— Eu preciso compreender o funcionamento de cada empresa —
confessou.
— Imagino que tenha encontrado alguns problemas.
— No meu setor? Não. — Eu me intrometi, certo de que ele queria
queimar o meu filme.
— Na verdade, eu quero entender essa ideia de reduzir a empresa e
tudo o mais que Sabrina levantou hoje na reunião.
Fernando fez uma cara de quem se importava com a questão. Até
parece que ele se importava. O que ele queria era contestar Sabrina e fazê-la
pagar pelo abandono, assim como imaginávamos que Laura faria.
— Para ser bem sincero, ela tem razão em alguns pontos. Com
certeza, nesse seu primeiro contato, você descobriu funções que poderiam
deixar de existir sem nos causar transtornos.
— E também pessoas inadequadas para a função — Laura contribuiu
com um olhar crítico para mim.
— Eu? — questionei, ofendido.
— Não. Na verdade, você foi uma caixa de surpresa — ela confessou
com um sorriso verdadeiro, que me fez encará-la com admiração. — Mas
sua secretária…
— Ah, Cindy? — Cocei a cabeça e não soube como justificar a
minha atração por mulheres gostosas e sem muito intelecto. Fáceis de levar
para a cama e descartar sem qualquer peso na consciência.
— Bom, Laura, eu tenho que ir — Fernando se adiantou. — Precisa
de mim para alguma coisa?
— Eu acho que…
— Para questões comerciais? — Tomei à frente e ridicularizei a
proposta. — Não esquente a cabeça, Fernando. Você já tem o seu dia
agendado.
Mas o advogado sequer me deu atenção, ele olhou para Laura para
ter certeza de que era uma boa ideia ela ficar sozinha comigo depois do
expediente e após o que me pareceu uma infinidade de tempo em que Laura
decidia se deveria ou não ficar, ela soltou outro suspiro.
— Eu preciso mesmo entender isso aqui.
Com deleite, assisti Fernando concordar e em seguida, se despedir.
No momento que a porta bateu, escondi meu sorriso sacana.

LAURA

Depois que Dr. Fernando saiu, eu me dei conta do quão complicada a


minha situação se tornou ao me permitir guiar por Bernardo.
Mesmo perdida em relação a minha ingenuidade, tentei ao máximo
não demonstrar o meu incômodo. Não por acreditar que Bernardo tentaria
algo como me matar ou me ameaçar, uma vez que testemunhas poderiam
depor contra ele, caso eu não aparecesse no dia seguinte, mas era certo que
ele não se mantinha ao meu lado por não se importar com aquela situação.
Dr. Fernando me alertou de que eles tentariam algo, mas o que seria?
Diante disso, me mantive mais alerta. O computador possuía o meu login,
era o meu perfil naqueles arquivos, logo, redobrei a atenção. Até meu celular
tocar e o nome “Dona Sara” surgir na tela.
— Ah, droga! — resmunguei incerta quanto a atender a ligação,
mesmo com o inimigo ao lado. — Oi, mãe! Eu vou chegar mais tarde
porque…
— Custava avisar, Laura? Eu aqui apreensiva, sem saber o seria de
você nesse primeiro dia e você não faz uma ligação para me dizer como foi?
Suspirei. Meus olhos tentaram não encontrar com os de Bernardo
para conferir se ele prestava atenção na minha conversa. Próximos, cadeira
lado a lado, com certeza ele conseguiria escutar o que minha mãe dizia, e
teria noção do que ela achava dos “meninos” que ajudou a criar.
Pensando bem, não era uma situação tão ruim. Apesar disso, sorri
sem graça e fingi me encostar na mesa como se precisasse descansar o
corpo. No mesmo instante Bernardo sacou o celular e começou a digitar,
desinteressado.
— Tá tudo tranquilo. Eu passei o dia com tantas atividades que nem
consigo acreditar. Estou exausta.
— Tem certeza que continuará com isso, Laurinha? — A reprovação,
mesmo que escondida na maneira carinhosa como ela se referiu a mim,
revirou meu estômago.
— Mãe, já conversamos.
— Não está certo — ela insistiu.
— Não é o melhor momento. Eu estou com… — Voltei a olhar para
Bernardo, que se manteve atento ao celular, sem demonstrar interesse na
minha conversa. — Estou com um dos diretores aqui — sussurrei.
— E o curso? Vai abandonar as aulas?
— Ah, droga! — resmunguei de novo.
Com tantos acontecimentos eu nem pensei no curso pré-vestibular.
Aliás, durante a semana eu me questionei diversas vezes se deveria manter
alguma parte da minha antiga vida, apesar de frequentar as aulas todas as
noites, como se precisasse disso para me lembrar dos meus próprios planos.
— Hoje não dá. Eu preciso conhecer as empresas e…
A conversa com minha mãe me fez levantar, me afastar de Bernardo
e esquecer por completo do computador.
Caminhei pela sala, fui até a janela e olhei para fora, para a noite que
vencia o dia e a movimentação que indicava que todas as pessoas normais
seguiam para suas casas, suas famílias e seu conforto.
— Vai abrir mão do seu sonho para cuidar de uma empresa que não
te pertence? E quando eles conseguirem tirar tudo de você, o que será? O
que fará, Laura?
— Mãe, eu… não posso ter essa conversa agora. Desculpe. Quando
chegar em casa respondo a todas as suas dúvidas.
— Certo. O jantar está em cima do fogão. Guarde tudo quando
acabar — avisou com aquele tom de quem não concordava, mas não
insistiria no assunto.
— Tudo bem. Até mais tarde.
No instante que desliguei me dei conta do vacilo. Em um átimo virei
na direção de Bernardo, pronta para pegá-lo no ato ou certa de que teria que
descobrir o que ele fez para me prejudicar, mas não o encontrei.
Olhei para os lados, procurei em cada canto daquela sala sem
qualquer ideia de onde ele estaria. Sumiu. Evaporou. Como?
— Puta merda! O que ele…
Mas não consegui terminar a frase. Quando comecei a formular mil
teorias, Bernardo passou pela porta da sala com uma encomenda que logo
identifiquei como uma barca de sushi.
Sushi?
Onde ele conseguiu aquilo?
— Já que vamos ficar até mais tarde… — explicou ao depositar a
barca sobre a mesa e uma sacola de papel de onde retirou duas latas de
refrigerante. — Providenciei o jantar.
Ele então se aprumou e me encarou com um sorriso encantador e o
olhar que me prendia.
Eu sabia que era um erro, um risco, uma maneira de simplificar o
plano dele de me tirar da jogada, ainda assim, não resisti ao convite, a beleza
das suas íris e ao encanto do seu sorriso. Perdida, voltei para a minha cadeira
e permiti que Bernardo fizesse daquele momento algo mais íntimo do que
deveria ser.
"Por isso, meu amor
Não tenha medo de sofrer
Que todos os caminhos me encaminham pra você
Eu Não Existo Sem Você" -
Tom Jobim/ Vinícius De Moraes

CAPÍTULO 11
BERNARDO

Sabrina não parava de enviar mensagens e eu não sabia mais como


disfarçar. Com certeza Laura pensaria que ou era displicente com assuntos
referentes ao trabalho ou ignorava alguma paquera por estar disposto, e eu
estava mesmo, a seduzi-la. No entanto, nenhuma das opções me levariam ao
sucesso e minha irmã naquele momento só me atrapalhava.
A sorte jogou a meu favor quando Sara telefonou para saber da filha.
O desconforto de Laura ao atender a ligação ao meu lado foi a arma que eu
precisava para saber o que minha irmã tanto queria. Peguei o celular e fingi
indiferença ao conferir as mensagens, mas quase engasguei quando li
“Segure Laura o máximo que puder. Já providenciei o jantar para vocês.
Faça o que precisa ser feito”
Engoli com dificuldade, ciente de que a garota não me perderia de
vista e eu não podia vacilar. Então digitei rápido: “Como você soube?”. Eu
podia ver minha irmã revirar os olhos e suspirar como se eu fosse um cara
burro e sem noção da sua capacidade, apesar disso, não me arrependi da
pergunta. Sabrina era minha irmã caçula, era para eu antecipar os passos dela
e não ela os meus.
Aliás, se eu tivesse feito meu trabalho corretamente como irmão mais
velho, ela não teria roubado o namorado da melhor amiga, casado com o
cara mais imbecil da face da Terra, engatado um relacionamento saudável
com Fernando e ninguém precisaria passar por aquilo.
Porque eu até podia ser um babaca quando o assunto era interesse
pelas empresas ou qualquer outro tipo de compromisso, mas a babaquice
acabava aí. Laura jamais me puniria pela criação mimada que minha mãe me
deu, nem pelo descuido do meu pai, perdido ao se deparar viúvo e com
filhos complicados. No entanto, ela sempre, para toda a eternidade, puniria
Sabrina por tê-la traído daquela forma.
E ainda assim, quem faria o trabalho sujo? Eu. Eu seria o cara desleal
que trairia a confiança de Laura mais uma vez para recuperar a herança que
Sabrina fez questão de jogar pela janela.
“Eu sou os olhos dessa empresa. Enviei sushi. Espero que essa
caipira saiba comer.”
Minha irmã não pegava leve naquela mágoa e isso a fazia fechar os
olhos para compreender que o primeiro tiro partiu dela. Olhei na direção de
Laura e ouvi o seu suspiro. Com certeza não era fácil para ela também.
Talvez eu nem precisasse seduzi-la, só… impedir que Fernando fizesse.
Laura não nasceu para aquilo. Ela podia achar que eu não prestava atenção
nela, mas… caramba, ela cuidava do meu pai e eu via a sua dedicação, seu
talento. Laura nasceu para levar carinho e esperança para os desacreditados e
não para se tornar uma CEO fria em suas decisões.
“O segurança aguarda por você na porta da sala de Ilma. Não
demore.” A mensagem vibrou em minha mão e me fez desviar a atenção da
garota que, alheia ao mal que planejávamos para ela, fazia o seu máximo
para não errar diante daquele desafio.
Levantei sem atrair a sua atenção e fui até a porta de Ilma para
receber o tal jantar. Se Sabrina não fosse tão enxerida eu poderia convidar
Laura para jantar em algum lugar depois dali, conversar, ser amigável e
conquistar a sua confiança, mas minha irmã não sabia nada sobre sedução.
Comer uma barca de sushi em uma mesa de escritório não era o meu padrão
quando o assunto era fazer a mulher ser minha.
Abri a porta e dei de cara com o segurança que equilibrava a
encomenda com todo o cuidado e segurava uma pequena sacola de papel.
— Boa noite, Sr. Bernardo — ele disse no momento que me avistou.
— Boa noite, amigo. Tudo certo?
— Tudo certo. — Ele me passou a encomenda e pareceu
desconcertado. — Perdoe pela intromissão, mas eu queria dizer que lamento
muito pelo seu pai. Ele era uma ótima pessoa.
— Ah! — Engoli com dificuldade e fiquei desconcertado. —
Obrigado.
Aqueles momentos eram os piores para mim. Eu tinha uma imagem
do meu pai e esta se desmanchava quando pessoas como o segurança
noturno da empresa se aproximava para lamentar a sua morte. Meu pai com
certeza saberia o nome do rapaz, se tinha filhos, qual era a sua vida,
enquanto eu e Sabrina… a gente nunca se preocupou em conhecer ninguém
além dos necessários para fazer aquele grupo andar. Em momento algum me
envergonhei disso, aliás, de maneira nenhuma pensei no assunto, até o Sr.
Quaresma partir dessa para melhor, entregar metade da nossa herança para a
sua cuidadora e esfregar na nossa cara que não aprovava quem nós éramos.
Entrei na sala de Ilma e me permiti um minuto de paz. Fechei os
olhos, encostei a testa na porta, respirei fundo e me perguntei o quanto mais
meu pai me detestaria por causa daquele plano? Muito, com toda certeza.
Independente disso, não havia como fazer diferente. Não apenas pela pressão
da minha irmã, ou pela ameaça de ter Fernando com as mãos no que era
nosso por direito, mas também por Laura. Ela não deveria estar ali.
Por isso coloquei um sorriso no rosto e disse a mim mesmo que eu
faria sem danos, do meu jeito, e quem sabe, um dia, meu pai me perdoasse
por deixar aquela situação chegar àquele ponto.
Foi com este sorriso que entrei na sala e encontrei uma Laura
perdida. E não vou dizer que não gostei da maneira como ela me olhou e
relaxou quando entendeu que eu não a abandonei, não aprontei nada, apenas
providenciei o nosso jantar, ou Sabrina providenciou, mas essa parte ela não
precisava saber.
— Já que vamos ficar até mais tarde, providenciei o jantar.
Coloquei tudo sobre a mesa para que ela pudesse se aproximar sem
medo e voltei a encará-la com meu sorriso forçado. Laura não saiu do lugar.
Ela me olhava de uma maneira que eu bem conhecia e que, naquele
momento, não me orgulhava. A garota de cabelo longo e pesado, com
certeza escovados naquele dia, domados, se abraçou e nunca me pareceu tão
frágil.
— O que foi? Não gosta de sushi?
Laura limpou a garganta e se atreveu a dar alguns passos em minha
direção. Seus olhos se desprenderam dos meus e não evitavam a insegurança
que ela exalava quando encontrou a comida escolhida.
— Poxa, eu deveria esperar para fazer o pedido. É que…
— Não — ela me interrompeu, um pouco da sua segurança de volta
ao corpo. — Na verdade eu estava tão concentrada no sistema que esqueci
que precisávamos comer. — seu sorriso amarelo indicava que havia algo de
errado naquela história. — E eu… hum… não sei comer com os pauzinhos
— confessou.
Eu quis rir, mas mantive o sorriso acolhedor. Ele sempre funcionava.
Entretanto minha vontade de rir não chega nem perto de um sentido ruim
para aquela informação. Laura com certeza achava que era uma ofensa,
como jogar lama na etiqueta, não saber manusear o hashi. Tudo bem que em
minha roda de amigos todos usavam, eram acostumados com a culinária e os
costumes, mas… sério mesmo, ninguém era obrigado a saber.
— Bom, isso não é exatamente um problema — brinquei ao abrir a
barca.
Eu amava comida japonesa, mas minhas escolhas nem sempre se
direcionavam para uma variedade de sushis. Para que Laura se sentisse
confortável, peguei uma peça com a mão e a levei à boca. Ela sorriu e seus
ombros relaxaram. Demos a volta na mesa e retornamos para os nossos
lugares, porém, melhor organizados para aquele jantar improvisado.
— Mas sabe… — Abri os refrigerantes e servi nossos copos. — Uma
das fábricas mais importantes com quem trabalhamos é japonesa. Isso não
seria problema se o presidente desta também não fosse japonês. E, claro, se a
relação entre ele e o CEO deste grupo não fosse bastante estreita.
— Ai meu Deus! — Laura engasgou no primeiro gole de
refrigerante. — Isso é sério?
— É sim — confessei. — Já participei de muitas rodadas em
restaurantes japoneses pelo Brasil.
— Que droga! — ela resmungou e por um instante, se desinteressou
pela comida.
— Relaxe, Laura. Você encantou todo mundo até agora. Seu jeito
natural e simples talvez seja o charme para perdoar qualquer deslize.
— Eu não posso jantar com esse homem — ela disse com pressa. —
Quer dizer… ele jantava com o seu pai, certo? Não precisa jantar comigo.
Eu ri do seu desespero. Era, de certa forma, bonitinho de assistir.
— Você não pode fugir o tempo todo dos compromissos. É a nova
CEO. Os laços precisam permanecer.
Nós nos encaramos por alguns segundos, até que seu olhar se
estreitou e ela se afastou tanto de mim quanto do pratinho que coloquei à sua
frente.
— Você fez de propósito, não?
— Eu… o que exatamente?
— Essa comida, a pressão, o trabalho… fez para que eu não me
sentisse capaz.
— Caramba, Laura. Não! — Minha resposta, genuinamente
indignada, fez com que ela titubeasse. No entanto, não me neguei a pensar
em alguns xingamentos para a minha irmã por ser ansiosa e me atirar
naquela fogueira. — Olha, eu nem sabia que você não sabe comer com o
hashi, mas se essa é a questão…
Peguei as duas peças sobre o meu prato e puxei minha cadeira para
perto dela. Laura não recuou, mas se manteve desconfiada, seus olhos
atentos e frenéticos em cada movimento meu.
— Não é tão difícil — comecei a explicar sem me preocupar com a
desconfiança dela. Quanto menos atenção eu desse àquela acusação, mais
rápido ela se concentraria em minha ajuda e esqueceria aquela bola fora. —
Na verdade, é só prática. Veja, você fixa um deles e o outro…
Ela pegou os que estavam sobre o pratinho posto à sua frente e tratou
de me seguir. Testou a mobilidade e errou, claro, ninguém acertava de
primeira.
— Agora, mantenha os dois equilibrados —- continuei a instrução.
— E encaixe uma peça.
Ela obedeceu, pegou um sushi e, com todo o cuidado, como se
carregasse um ovo cru, o levou até a boca. Festejei sem precisar de esforço
para isso. Ela riu enquanto mastigava.
— Agora experimente com o shoyo, ou você prefere tarê?
— O doce, é o tarê, certo?
— Isso. Tá vendo? Não é difícil.
— É difícil. Bruna estaria me zoando agora — confessou com um
sorriso imenso e lindo.
Ela se atreveu a pegar outra peça, mas se atrapalhou e com isso
deixou o sushi cair. A confusão que fizemos para recuperar a peça antes que
esta caísse no chão nos fez rir alto.
— Você precisa treinar mais. — Limpei a mão no guardanapo e me
deliciei com a garota desarmada que sorria como se eu não fosse uma
ameaça.
— Eu já sou quase uma profissional — brincou e se concentrou em
levar o sushi ao prato, molhar no tarê e depois, sem fazer estardalhaço,
direcioná-lo à boca. No instante que sentiu a segurança da peça, festejou.
— Bom, com sushi talvez — pisquei travesso. — Mas isso aqui não
é nada perto do que você precisa comer com esses “pauzinhos”.
Laura engoliu a comida, séria e fixou os olhos em mim.
— O restante da comida não pode ser de garfo, de forma normal?
— Defina normal — pirracei. — Uma comida japonesa nunca é só
uma comida japonesa, aprenda isso, em especial quando você estiver em um
jantar de negócios com japoneses de verdade.
Ainda séria, ela prestava atenção ao que eu dizia, como se precisasse
beber daquela fonte. Linda, concentrada, focada em acertar. Desviei o olhar
e me obriguei a pensar no plano: nada de decepções, nada de sedução, era só
fazê-la entender que aquele era o meu papel e o de Sabrina, não o dela. Sem
traumas e sem dor.
— E quando acontecerá? — ela perguntou.
— O quê?
— O jantar com esse cara. — Eu ri e balancei a cabeça.
— Não tão cedo. Relaxe. Até lá eu te ensino cada detalhe, nem que
para isso eu tenha que te levar para jantar todos os dias.
No mesmo instante, parei de falar. Ela engoliu em seco. Eu engoli em
seco. Que inferno de promessa era aquela?
— Mas aí você enjoará de comida japonesa e desmarcará o encontro
com o presidente da fábrica. — Corri para me corrigir, apesar disso, o clima
ficou bastante estranho. — Enfim… você consegue. — Coloquei meu
sorriso plastificado no rosto e me dediquei à comida.
— Eu sei que vocês esperam pela minha queda — ela disse tão baixo
que precisei encará-la para saber se de fato falava comigo. — Sei que
planejam isso.
— Ah, Laura…
— Eu sei, Bernardo. Acha que não pensei nisso, que acreditaria que
me aceitariam assim, sem ao menos tentarem? Acha que não quis desistir?
— E por que não desistiu? — Meu tom não saiu acusatório, nem o
dela parecia o de alguém disposto a brigar. Laura suspirou, pegou o copo e
deu mais um gole em seu refrigerante antes de falar.
— Eu adorava o seu pai —- confessou. — Não posso desistir de algo
que ele planejou para mim.
— Já parou para pensar que ele pode não ter planejado nada para
você e sim para Sabrina e eu?
— Claro que sim. O Sr. Quaresma não cansava de reclamar de vocês.
— Eu me afastei, incomodado com aquela verdade. Encostei-me no espaldar
da cadeira e permiti que ela continuasse. — Eu não queria nada disso, mas…
Foi como ele quis, então, porque não tentar? Por ele. Pelo homem que
ergueu esse império e que, de uma forma louca, me jogou nesse meio.
Mordi o interior das bochechas e me envergonhei. Sim, Laura fazia o
que eu deveria ter feito quando meu pai ainda era vivo. Eu poderia tentar por
ele, fazer diferente, evitar aquela confusão.
— Olha, Laura, não vou dizer que é fácil, que não olho para você e
vejo essa bobagem que meu pai fez. Mas eu… em momento algum quis isso
aqui. — Abri os braços para indicar aquela sala, o cargo, a responsabilidade.
— O que eu tinha era o suficiente, mas Sabrina… Ela deu sangue por isso.
— Ela casou com o Vicente — acusou.
Eu fiz uma careta, porque sabia que a acusação não partia apenas
dela, mas também do meu pai que sempre foi contra aquela relação e fazia
questão de deixar esse ponto claro. Tanto que morávamos embaixo do
mesmo teto, mas meu cunhado fazia questão de ficar bem longe do caminho
do meu pai.
Porém, deixar o assunto seguir por aquele caminho não nos ajudaria
em nada. Laura tinha motivos para punir Sabrina, meu pai também,
entretanto, eu não tinha motivos para deixar que ela seguisse com tudo e
entregasse nas mãos do Fernando. Por isso, eu precisava atacar.
— E em pensar que Sabrina namorava o Fernando antes de se
envolver com o Vicente. — Fingi interesse na comida enquanto deixava
Laura receber aquela informação.
— Não. Isso é mentira, não é? — eu ri e esperei o tempo certo para
mastigar e engolir, assim ela ficaria mais ansiosa pela fofoca.
— Claro que não. Era um namoro escondido. Eles trabalhavam
juntos e a política da empresa não incentiva tal comportamento. Vocês eram
amigas, ela nunca te contou?
— Não.
O olhar da garota voltou para o hashi sem buscar a comida outra vez.
Havia muita dor quando o assunto era a amizade interrompida pela traição
da minha irmã, desse modo, era hora de aliviar para o lado de Sabrina.
— Fernando nunca se conformou. Ele era doido por ela. É doido por
ela — frisei.
— Ainda? — Laura franziu o cenho como se preocupasse com
aquela parte da história. Eu dei de ombros e me mantive no fingimento.
— Há amores que duram a vida toda.
— Verdade — ela murmurou, mas não funcionou em mim da
maneira como imaginei, porque a maneira como ela falou me atravessou
com a certeza de que assim como funcionava com o Fernando, funcionava
para o que ela sentia pelo Vicente.
Esse sim seria um grande problema.
"Sou feita de madeira
Madeira, matéria morta
Não há nada no mundo
Mais viva que uma porta"
A porta - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 12
SABRINA

De frente para o espelho do banheiro peguei mais uma quantidade de


hidratante e espalhei pelo braço, atenta à minha imagem, ao passar leve e
suave da pasta sobre a minha pele, contudo, os pensamentos acelerados
desfaziam a ideia de que naquela noite eu me sentia em paz.
Bernardo precisava recuperar nossas ações, nossa herança, tudo pelo
que lutamos. Suspirei e arrumei a camisola no corpo. Não lutamos. Eu lutei.
Apesar disso, meu irmão não podia cruzar os braços e aceitar que Laura
ficasse com tudo. Ele sabia que seduzi-la era a nossa única opção ou ela
arruinaria nossas vidas.
Deixei que outro suspiro escapasse e não consegui mais me encarar.
Com as mãos como suporte para o meu corpo, sobre o mármore da pia,
relembrei as sensações incômodas das horas em que estive no escritório.
Nunca me senti tão mal entre aquelas paredes. Ali era o meu universo, o
lugar onde eu me sentia mais segura e completa. Porém, aquela manhã foi a
pior de todas que já vivenciei.
Não apenas por Laura ter feito algo que agradou do chão ao teto, da
base até a ponta da pirâmide. Algo sobre o qual eu não me dei ao trabalho de
fazer, de pensar. Com meu pai à frente das empresas, sua imagem como
suporte para as questões humanas, eu não precisava ser a figura que se
importava, só precisava ser a pessoa que acertaria a flecha no alvo.
Então meu pai morreu, Laura se apropriou da minha herança, do meu
cargo e fez o que eu deveria ter feito naquela semana em que ela se manteve
distante. Se eu tivesse aquela ideia antes, talvez, quem sabe? Todos
voltariam à sua atenção para a importância de me ter naquele cargo, não uma
impostora.
E ainda havia a questão do Fernando. Eu não queria, não me preparei
para tudo o que senti ao vê-lo como um cão de guarda ao lado dela. Para me
atingir, é claro, afinal de contas, antes de Laura se tornar alguém de
relevância em nossas vidas, Fernando dentro daquela empresa era o diretor
jurídico que lambia as feridas e fingia não se impactar com a minha
presença.
Merda!
Não havia nada em mim que duvidasse da decisão de trocar
Fernando por Vicente. Além do amor e da sensação maravilhosa de ser
cuidada, o centro das atenções do homem amado, de ser venerada sem
disputas, havia também a questão que nasceu depois de um tempo: Vicente
não era e nunca seria meu concorrente. Ele somava, porém, jamais se
igualando a mim dentro daquela empresa. Já Fernando… a prova de que a
minha ideia quanto a sua ganância era o fato de, naquele momento tão
complicado para mim, ele estar ao lado de Laura, não apenas como a pessoa
de confiança do meu pai, mas também, como alguém que a seduziria com
facilidade, assumiria as empresas e me humilharia sem dó nem piedade.
Porque éramos iguais. Iguais demais para ficarmos juntos, para
vivermos um relacionamento saudável e tranquilo. Nunca daria certo.
— Sua cabeça não sai da empresa, não é? — Vicente entrou no
banheiro e me abraçou por trás. Seus lábios depositaram um beijo suave em
meu pescoço. — Ah, eu amo o cheiro do seu hidratante — sussurrou em
meu ouvido, cheio de segundas intenções.
Voltei a me encarar no espelho sem buscar os olhos do meu marido.
Meu estômago embrulhou. Não estive bem o dia todo, não me sentia melhor
à noite. Por isso me libertei da sua proposta silenciosa e voltei para o quarto.
Ignorei o rosnado de protesto. Não cederia às vontades do meu marido
apenas para satisfazê-lo.
— Bernardo não dará conta — meu marido sinalizou ao retornar para
o quarto.
— Por que você acha isso?
— Porque Laura com certeza sabe que ele jamais se aproximaria dela
se não fosse pela recuperação da herança. Ela vivia aqui e isso nunca fez
com que ele tentasse seduzi-la.
Outro suspiro escapou dos meus lábios, desta vez, aborrecido.
— Se acredita mesmo nisso, por que me apoiou? Por que fez com
que eu acreditasse que daria certo? — Ele deu de ombros e andou pelo
espaço sem um objetivo específico.
— Eu quero que ele consiga, amor — admitiu por fim. — Você não
pensará em outra coisa enquanto Laura estiver naquele cargo, ou com tudo o
que deveria ser seu.
— Se Bernardo pelo menos se esforçasse — resmunguei. —
Fernando não pode ganhar essa.
— Se aquele merdinha prepotente estiver mesmo disposto a se
vingar, ele tem a faca e o queijo na mão.
— Você acha?
As palavras de Vicente ecoaram com força em meus pensamentos e o
pavor de Laura permitir que Fernando assumisse as empresas, de ele
envolvê-la ao ponto de tomar para si o que era meu, me deixou em alerta.
— Se a disputa for entre Fernando e Bernardo, com certeza. Pense
comigo, Laura não se aproximou de mais ninguém depois que terminamos.
— Como você tem esta certeza? Ela se afastou e eu perdi todo e
qualquer interesse na vida dela.
— Eu sei porque… bom… eu morava no mesmo bairro que ela,
esqueceu? Tínhamos amigos em comum.
Vicente demonstrou desconforto com o assunto. Eu o entendia. Não
foi fácil para nós dois depois que nos descobrimos apaixonados. Se não
fosse o amor que nos envolveu, eu jamais desconfiaria dos planos de Laura,
a amiga em quem mais confiei, a única pessoa fora do meu meio social que
tinha total acesso à minha vida, e que estava disposta a fazer comigo o que
eu fazia com ela naquele momento.
Ela me apresentou a Vicente para que ele me seduzisse, para que
arrancasse de mim tudo e depois me abandonasse. Ingrata! Infeliz! Cretina!
Não bastava a minha amizade e disposição para ajudá-la no que fosse
possível. E Sara, aquela sonsa, sabia do plano da filha. Duas ladras.
— E o que você quer dizer com isso?
— Que Laura nunca me esqueceu — Vicente foi direto ao ponto. —
Ou você nunca percebeu os olhares direcionados a mim quando porventura
nos encontrávamos?
— Claro que eu percebia — bufei, aborrecida demais para me manter
quieta. — E daí?
— E daí que podemos fazer com ela o mesmo que ela tentou fazer
com a gente.
— Não é o que Bernardo está fazendo neste exato momento? Ou
você acha que ela não desconfiaria se fosse você?
Meu marido, com os olhos fixos aos meus, passou a língua no lábio
inferior, hábito utilizado quando pretendia encontrar as palavras certas para
me convencer de algo. A armadura que me revestiu entrou no modo
automático.
— Esse era o plano dela, Sabrina — ele disse com cuidado. — Por
isso, se ela acreditar que estamos nos separando, que ficarei com metade da
sua parte…
— Não.
— Se Laura acreditar que eu fiz isso por ela, para garantir que o
plano desse certo…
— Não — repeti com mais firmeza.
— Não era o que seu pai queria? O velho não escondia de ninguém
que não te perdoava por casar comigo. Com certeza foi por isso que ele fez o
que fez.
— Bernardo resolverá esta parte — determinei.
— E se Laura acreditar que de fato eu queria o golpe e não você? Ela
nunca me esqueceu, Sabrina. Resolveremos isso rápido e…
— Já chega! — rosnei, a fúria no limite dentro de mim. — Nosso
casamento não é uma brincadeira para mim, Vicente.
— Amor…
— Eu não aceitarei isso. Nem Laura nem ninguém… nem por um
segundo… — puxei o ar com força. — Não deixarei que acreditem que
tinham razão, entendeu? Eu abri mão de muita coisa, lutei com tudo o que
tinha para ficar com você. Enfrentei meu pai, desfiz todas as tentativas dele
de me convencer de que você era um oportunista.
— Sabrina, é uma mentira. Eu não vou…
— Não vai! — gritei por fim, incapaz de aceitar o que Vicente me
propunha. — Nem como uma mentira, deixarei que alguém questione o que
somos. E não conversaremos mais sobre isso.
Ele soltou o ar, mordeu o lábio inferior e quando imaginei que
rebateria, relaxou, se deu por vencido, tomou ciência da insanidade que
falava.
— Tudo bem. Você tem razão.
Meu marido se aproximou e me abraçou. Não tive capacidade de
impedi-lo. A mínima ideia de aceitar aquele plano embrulhava meu
estômago. Eu não o queria perto de Laura, mas em especial, não queria que
Laura acreditasse, nem por um segundo, que me venceu.
Ela não me venceria.
Bernardo daria conta.

LAURA

— Uma bela xícara de café e tudo entra nos eixos — Ilma comentou
ao colocar a xícara fumegante à minha frente.
Foi um único dia à frente das empresas e eu já me sentia no limite
das minhas forças. Trabalhei até tarde e quando voltei para casa, não
consegui relaxar. Além do medo de errar e destruir tudo o que o Sr.
Quaresma confiou a mim, havia a insegurança de não saber em quem
confiar.
Sabrina namorou o Dr. Fernando antes de roubar o meu namorado.
Dr. Fernando foi a pessoa que mais esteve ao meu lado desde que aquela
loucura toda começou, mesmo contra Sabrina e Bernardo, o que me levava a
questionar os seus motivos. E lógico, havia Bernardo com as suas duas
piscinas azuis que brilhavam em minha mente como se eu fosse uma
adolescente romântica e imbecil. Por que ele tinha que ser tão bonito? E por
que precisava ser tão ordinário?
— A reunião acontecerá em uma hora. Tomei a liberdade de trazer a
ficha de todos do setor, dessa forma a senhorita poderá ter uma noção de
qual direção seguir.
— Obrigada, Ilma! Eu nem pensei nisso, ainda bem que você existe.
Ela sorriu, satisfeita, porém, sem perder a postura profissional.
— Bom dia! — fomos surpreendidas pela voz marcante de Vicente.
— Sr. Vicente, como… — Ilma começou, mas a minha rebeldia me
fez ser mais rápida.
— O que faz aqui, Vicente?
— Não posso parabenizar a nova CEO do grupo?
Aquele imbecil teve a coragem de entrar na minha sala, com aquele
sorriso escroto, com sua falsa amabilidade, para quê? O que ele acreditava
conseguir com aquilo além de mais repulsa da minha parte?
— Você pode marcar um horário para isso. No momento estou
bastante ocupada — rebati com segurança.
Lutei contra toda a raiva que se avolumava em mim. Não deixaria
que Vicente me tirasse dos eixos. Ele não era a minha prioridade.
— É, eu sei. Você vai para o setor de TI, não é mesmo?
Ele continuou. Ignorou qualquer alerta de que não era bem-vindo.
Ilma colocou o material sobre a mesa e aguardou.
— Na verdade… Eu gostaria de conversar com você, Laura —
confessou.
— Agende com Ilma. — Puxei para mim os papéis que minha
assistente me entregou e tomei um longo gole do café para que ele
entendesse de uma vez por todas que não teria espaço em minha vida.
— Eu agendaria se fosse um assunto profissional, mas é pessoal.
Ergui as vistas e encontrei Ilma sem saber o que fazer, mas com a
agenda aberta em suas mãos. Em seguida encarei Vicente, que se mantinha
impassível, como se tivesse a certeza de que eu o atenderia.
— Pessoal?
Ele concordou com a cabeça, sem nada acrescentar.
— Que assunto pessoal eu tenho para tratar com você, Vicente?
— Sabrina não quis ser ela a estar aqui — ele disse sem o sorriso
escroto, sério.
Certo. A questão não era Vicente em minha sala e sim Sabrina não
querer estar ali para me dizer algo de cunho pessoal. E eu podia imaginar o
que ela pretendia. Com certeza algum acordo relacionado ao meu cargo, a
herança e tudo o que o próprio Bernardo tentou fazer. Sabrina era muito
imbecil de achar que enviar o marido, o cretino traidor, para ajustar aquela
questão, ajudaria.
Não sei dizer ao certo o que me impeliu a aceitar aquela história, se
foi a ideia de que Sabrina não tinha culhões para me encarar e implorar para
que eu devolvesse a sua herança e por isso enviava o marido, o que só a
tornava uma pessoa pior para mim, ou se o fato de ela acreditar que colocar
o Vicente à frente amenizaria a situação.
Levantei da minha cadeira, dei a volta na mesa e parei de frente ao
meu ex-noivo. Encarei seu rosto bonito e me perguntei se era só aquilo
mesmo, se tudo o que acreditei sentir durante anos, toda a dor que me
limitou por tanto tempo, se resumia em um rostinho bonito, pois ele não
tinha nada além disso para oferecer.
Vicente continuou impassível, sereno.
— Tudo bem. Você tem quinze minutos. Ilma, pode nos deixar
sozinhos, por favor?
A mulher não me questionou, mas encarou Vicente como se o
alertasse de que apenas uma porta os separava. Sorri de leve, satisfeita em
saber que Ilma também não aprovava aquele imbecil. Não me dei ao
trabalho de convidá-lo para sentar. De braços cruzados aguardei que
passasse a mensagem que a esposa enviou, mas não me preparei para o que
aconteceria.
No instante em que a porta fechou, Vicente me tomou nos braços e
me apertou forte. Eu sequer tive tempo ou reação para evitar o ataque.
— Que saudade! — Ele disse com a voz rouca, o corpo todo colado
ao meu, como se fôssemos amantes. — Que saudade de você, Laurinha.
— Vicente, você…
Mas eu não consegui evitar a boca que tomou a minha em um beijo
desesperado. O choque me paralisou por alguns segundos, porém, em
seguida, a fúria me dominou. Mordi os lábios que me ofereciam um amor
que não existia, a falsidade disfarçada de beleza. Vicente gemeu e se afastou
o suficiente para que eu o acertasse com um tapa no rosto.
Apesar disso, eu tinha total consciência de que não seria o suficiente.
Não era a primeira vez que ele tentava me beijar, assim como não era a
primeira em que eu lhe acertava com um tapa. Vicente não tinha limites.
— Seu cretino! — rosnei baixo sem entender porque não armei um
escândalo naquele momento. — Fique longe de mim ou farei com que sua
esposa saiba…
— Laura! — Ele me segurou pelos ombros e me sacudiu como se
precisasse que eu prestasse atenção nele. — Você sabe que sou louco por
você.
— Louco por dinheiro, isso sim — rebati com um empurrão que o
afastou outra vez. — Fique longe ou eu vou gritar e toda a empresa saberá o
que você faz.
Desta vez ele não tentou se aproximar. Vicente fez uma cara triste e
colocou as mãos nos bolsos da calça social que ostentava por ser de ótimo
corte e com certeza mais cara do que ele poderia pagar se não fosse por
Sabrina.
— Acabou, Laura. Há meses eu tento te dizer isso. Acabou.
— Acabou o quê?
— O meu casamento. — A bomba que ele jogou para mim por pouco
não explodiu em meu colo.
— E o que eu tenho com isso? Não sou advogada, não realizo
divórcios, nem sou terapeuta, portanto, não faço terapia de casais. — Ele riu
um pouco e deu um passo perigoso em minha direção.
— Você sempre foi tão divertida. — Vicente tentou me tocar, o que
me fez recuar. — A questão é que você está completamente inserida nisso.
— Eu? Tá doido?
— Doido por você.
— Pelo amor de Deus!
— Eu errei, Laura! Errei feio com você, errei com a Sabrina também,
mas o que você queria que eu fizesse? Nós dois vivíamos na luta e qual a
chance de vencermos? Sabrina sabia disso tudo e usou as melhores cartas
para me seduzir. Não, eu não vou culpar a Sabrina porque não sou nenhum
menino — admitiu como se conversasse consigo mesmo.
Então ergueu os olhos para o teto, puxou o ar com força e quando o
soltou parecia um homem arrasado.
— Só não posso mais continuar com isso. Pedi o divórcio ontem.
Sabrina está arrasada, mas como eu conseguiria estar aqui com você, todos
os dias e manter esse casamento que não existe mais?
— Vicente… — rosnei, enfurecida demais para me controlar. —
Saia, agora!
— Laura, espere… eu…
— Saia! — gritei. No mesmo instante a porta se abriu e Ilma se
interpôs como um guarda para levá-lo para longe de mim.
Ao invés de se intimidar com o meu estado ou com a presença da
minha assistente, ele se aproximou, os olhos focados nos meus, a expressão
séria. A minha vontade era de estapeá-lo, e estapeá-lo até que seu rosto
tivesse a marca de todos os meus dedos, mas Vicente agiu antes que eu
pudesse fazer qualquer coisa.
— Não se iluda com Bernardo. Ele se juntou a Sabrina para te
derrubar. Eles planejam que Bernardo te seduza e que, depois de tê-la nas
mãos, consiga de volta o que acreditam que roubou deles. Sei que você não
acredita em mim, nem poderia, mas se precisa de uma prova, se há algo que
eu possa fazer para que confie em mim, então deixe Bernardo se aproximar e
descubra por si só o quanto esses dois sabem ser sórdidos.
Vicente, sem me dizer mais nada, saiu da minha sala. Ilma o
acompanhou e eu quase desabei quando me vi sozinha. O que foi aquilo?
"Caiu no poço
Quebrou a tigela
Tantas fez o moço
Que foi pra panela"
O pato - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 13
LAURA

— Então Bernardo te contou do romance que tive com Sabrina?


Dr. Fernando não demonstrava qualquer aborrecimento ou constrangimento
com a minha acusação. Apesar de saber que me atrasava quanto mais
prorrogava aquela conversa, depois de Vicente ter a ousadia de me agarrar e
comemorar minha herança como se aquilo fizesse parte de um plano nosso,
de mentir ao anunciar o fim do casamento com Sabrina e finalizar com a
confissão de que Bernardo e a irmã de fato conspiravam contra mim, não
havia mais energia para suportar aquele peso.
— De verdade, esse é o meu segundo dia e não suporto mais. Não
quero essa porcaria de cargo, não quero esses loucos no meu pé e não
quero… — encarei Dr. Fernando e meu rosto esquentou com o que quase eu
disse.
— Vamos lá… — ele também suspirou. — Eu tenho certeza de que
Bernardo contou que eu me aproximaria de você para me vingar de Sabrina.
— O ardor em meu rosto se acentuou. — Não é uma má ideia, Laura, mas…
não sou essa pessoa. Sabrina escolheu o babaca do Vicente e eles vivem essa
fantasia maluca de que eu não me conformo com o fim, então não, eu não
tentaria nada com você só para me vingar de Sabrina. Para dizer a verdade, o
Sr. Quaresma foi um grande homem, talvez o melhor que já conheci, e, por
favor, não conte a meu pai. Eu estou nessa por ele, porque sei que isso
aqui… — ele fez um gesto amplo como se toda a empresa coubesse naquela
sala. — Desmorona no instante em que Vicente, ou Bernardo, colocarem as
mãos.
— E Sabrina?
— Sabrina é uma grande empresária. Visionária, esperta, excelente
na negociação. Ela faria dessas empresas um lugar superior ao que o Sr.
Quaresma nos levou.
— Então…
— Mas ela tem Vicente e… de uma forma que não sei explicar… —
Dr. Fernando, de repente, perdeu a postura e soltou o ar ao estender os
braços pela mesa que nos separava. — Ela seria capaz de vender tudo aqui
para viver uma promessa de sonho com ele. Essa é a verdade.
— Nunca imaginei que Sabrina fosse tão burra — resmunguei. —
Eles não vão se conformar com isso, nem mesmo depois que…
Respirei fundo, me encostei no espaldar da cadeira e olhei para fora
do prédio como se precisasse de uma imagem neutra para confessar meus
demônios.
— Você conhece a minha história com Sabrina, eu a apresentei ao
Vicente. Ele era meu noivo e ela… minha melhor amiga. Durante anos
desejei que ela fosse infeliz, mas isso… eu não planejei isso e não quero usar
nada do que tenho aqui para puni-la. Como se estar casada com Vicente já
não fosse o suficiente. — Ele riu e relaxou um pouco mais, eu não deveria,
apesar disso, desabafei. — Dr. Fernando… Vicente nunca me deixou em
paz. Ele casou com Sabrina por dinheiro, o que não é novidade para
ninguém, contudo, todos esses anos ele tentou me fazer de amante, me
agarrava na casa deles e hoje ele… ai, meu Deus. — fechei os olhos para
esconder a vergonha. — Ele teve a cara de pau de vir aqui, na minha sala,
tentar reatar. Argumentou que ele e Sabrina estavam em processo de
divórcio e me contou como ela e o irmão pretendem me derrubar.
— Mas nós sabíamos disso — ele disse com calma, sem questionar
se eu era ou não amante do Vicente. — Portanto, Laura, já que agora
sabemos que eles de fato planejam contra você…
Ilma bateu à porta e entrou sem aguardar por mim. Sua aflição,
apesar de contida, me fez estremecer.
— Estou atrasada, Ilma, eu sei, já…
— Na verdade, Srta. Lacerda… A Sra. Quaresma, quer dizer…
Sabrina Quaresma, convocou uma reunião de urgência com todos os
acionistas das empresas e eles estão, neste momento, na sala de reuniões.
Aguardam pela senhorita.
Puta merda, pobre não tem um dia de paz!

Dr. Fernando fez questão de me acompanhar. No caminho entre a


minha ala e o local onde aconteceria a reunião convocada por Sabrina,
telefonou para o pai e solicitou a sua presença. Ninguém precisou dizer nada,
porém, de alguma forma, sabíamos que deu merda.
A sensação não era como se soubéssemos que Sabrina armaria um
escândalo e cobraria dos acionistas que eu fosse expulsa do cargo. Se
acreditássemos que esse era o motivo da reunião ficaríamos relaxados, afinal
de contas, tanto Dr. Fernando como também Dr. Estevão garantiram que
nenhum acionista daquele grupo se colocaria contra o último desejo do Sr.
Quaresma.
Mas não. Se nós tínhamos esta certeza, Sabrina não seria a idiota a
não conhecer esta verdade. Por isso, se ela convocou os acionistas, algo de
muito ruim aconteceu. Algo que eu fiz, que me colocaria na berlinda e
comprovaria a minha imensa incapacidade.
— Laura, não demonstre medo. Independente do que Sabrina tenha
para expor, fique tranquila.
— Porra, Fernando! Quer dizer… Dr. Fernando… — ele sorriu, os
passos apressados acompanhavam os meus, ainda assim, seu sorriso foi
encantador.
— Fernando, pelo amor de Deus! Eu não te chamo de Srta. Lacerda.
— Justo.
Paramos, os três, eu, Fernando e Ilma, diante da porta fechada da sala
de reuniões. Por um segundo cogitei fugir dali.
— Aconteça o que acontecer, eu tenho um plano — Fernando
sussurrou.
— Eu também — Ilma colaborou do outro lado e nós dois olhamos
surpresos para a senhora até aquele instante inofensiva.
— Certo. Então vamos…
A porta abriu de supetão. Diante de nós, uma Sabrina cheia de si, me
encarou com triunfo, como se soubesse que no minuto em que eu colocasse
meus pés naquela sala, seria derrotada.
— Laura — ela disse sem esconder a empolgação. — Estávamos
agora mesmo nos perguntando do motivo do seu atraso.
— Eu acabei de saber que você convocou a reunião — fui fria,
contudo, por dentro tudo em mim tremia. — E não entendi o motivo pelo
qual a CEO do grupo empresarial não foi comunicada de uma reunião como
esta.
Seus olhos crepitaram em minha direção. Eu tinha certeza que, se
pudesse, Sabrina pularia sobre mim ali mesmo, na frente de todos, e rolaria
comigo no chão como se fôssemos duas selvagens. Mas ela sorriu e foi com
este sorriso que meus ossos gelaram. Sabrina tinha uma grande arma contra
mim.
— Entre, Laura. Vejo que trouxe seu novo conselheiro, Dr. Fernando.
Não tem trabalho em seu setor?
— Bom dia, Sabrina. Bom dia a todos — Fernando não se deixou
intimidar e ignorou a ex com sucesso. — A Srta. Lacerda solicitou a minha
presença e como CEO deste grupo, eu devo obedecer. — Os acionistas, na
maioria homens, riram, mas Sabrina ficou furiosa.
Fernando me indicou a cadeira na cabeceira da mesa imensa.
Enquanto andava, com Ilma no meu encalço, vi Bernardo entre os acionistas,
apesar da sua beleza que nos últimos tempos fazia minhas pernas tremerem,
o que atraiu a minha atenção naquele segundo foi a maneira como ele baixou
o olhar, como se acorvadasse ou se envergonhasse de algo. Nesse instante eu
tive a confirmação de que eles conseguiram me pegar. O Bernardo da noite
anterior não existia mais.
— Muito bem… — eu disse ao me sentar, firme, mesmo que tensa,
ao encarar cada pessoa convocada para aquela reunião. — Hoje é o meu
segundo dia à frente deste grupo. Como devem saber, estou em processo de
reconhecimento, logo, neste momento eu deveria estar com o pessoal do TI,
mas… Sabrina tem algo para nos dizer.
— Tenho.
Ela se levantou e como se a ação fosse sincronizada, uma mulher,
com certeza a sua secretária, distribuiu documentos para todos. Eu o recebi e
não tive ideia do que era, mas havia um anexo, uma cópia de uma troca de e-
mails que identifiquei como de Sabrina com a fábrica mais importante dentre
as marcas que trabalhávamos.
Com uma olhada rápida captei a ideia de ausência de documento,
atraso na aprovação do pedido e perda considerável. Eu não entendia o que
era, mas com certeza, deu merda.
— A senhorita não enviou o arquivo ontem? — Ilma sussurrou
próxima a mim.
— Que documento? — respondi no mesmo tom. Ela me encarou com
curiosidade e depois com pena.
— Estava na agenda junto com todos os passos que deixei para que a
senhorita fizesse. São os passos básicos de trabalhos que precisa cumprir
diariamente, como aprovar o pedido dos carros vendidos nas concessionárias
e que a fábrica dá baixa e libera o pagamento. — Suas palavras baixas e
contidas não passariam despercebidas em uma sala tão silenciosa.
Ergui a cabeça e encontrei todos me encarando, como se
aguardassem uma resposta, uma justificativa para o meu erro.
— Como podem ver — Sabrina iniciou. — A Srta. Lacerda assumiu
ontem o cargo de CEO do grupo, conforme constava no testamento do meu
pai, o qual respeitamos.
Ela indicou o irmão que, sem jeito, envergonhado, concordou.
— Mas ontem mesmo tivemos um prejuízo injustificável, como
podem verificar nos documentos entregues. E aqui…
No mesmo instante a secretária dela fez com que uma imagem se
projetasse na tela de frente para mim, ao fundo da sala.
— Isso não ocorre desde… na verdade nunca ocorreu. Não por este
motivo.
Houve um burburinho na sala. Eu me mantive calada, dura como
uma pedra, porque, na verdade, não encontrava uma ação para o meu corpo.
Que merda eu fiz? No meu primeiro dia e eu já tinha colocado a empresa na
berlinda? Como o Sr. Quaresma pode confiar em alguém como eu para
aquele cargo, aquela responsabilidade?
— E então… quer nos contar o que aconteceu?
Ela finalizou o discurso que perdi porque me tranquei em meus
pensamentos com todas as culpas, medos, vergonhas e qualquer outro
sentimento que me puxava para baixo como se eu precisasse me afundar até
desaparecer.
— Com licença — Dr. Estevão surgiu neste exato momento e
desviou a atenção de mim. — Bom dia a todos. Peço perdão pela demora.
— O que faz aqui, Dr. Estevão?
Sabrina guinchou, como se a presença do homem pudesse destruir o
seu plano, foi o pontinho de esperança que eu precisava para não chorar
diante de todos.
— Ora, o que faço aqui, Sabrina? Sou o advogado pessoal da Srta.
Lacerda, da mesma forma como fui do seu pai por vários anos.
— Esse é um caso da empresa. Laura como…
— Eu sei, eu sei — ele a calou sem lhe dar a atenção que ela
desejava. — Para advogar pela empresa temos o Fernando, diretor jurídico.
Eu estou aqui porque na qualidade de advogado pessoal da CEO do grupo,
tomei a liberdade de conversar diretamente com o presidente da marca sobre
a qual tivemos problemas ontem. Obrigado pela foto, Fernando. Desse
modo, como os senhores sabem, a Srta. Lacerda assumiu ontem, e está aqui
como um pedido especial do nosso amigo Joaquim Quaresma, ou seja, ela é
uma pessoa que fazia parte do seu rol de confiança.
Com um nó na garganta, assisti quando cada membro daquela
reunião, com exceção de Sabrina, se envergonhava e aceitava o que Dr.
Estevão dizia.
— Pelo que conheço da causa, houve um equívoco. A senhorita sabia
que esta atividade constava entre as suas obrigações?
— Bom… — pigarreei e me endireitei na cadeira. — Na verdade,
não. Ilma acabou de me informar que deixou cada passo em minha agenda
ontem, antes de sair.
— E por qual motivo não cumpriu com uma tarefa tão simples? —
Sabrina voltou a atacar, contudo, com a voz bem disfarçada.
— Para ser honesta com todos, ontem fiquei na empresa até tarde
para me familiarizar com cada processo e o Sr. Bernardo esteve comigo, pois
se ofereceu para me ajudar, no entanto, em momento algum essa tarefa se
enquadrou nos assuntos importantes que ele fez questão de levantar. Eu não
fazia ideia da sua necessidade até este momento.
— O Sr. Bernardo esteve com a senhorita ontem à noite para auxiliar
com as suas tarefas?
Dr. Estevão questionou, não com surpresa, mas como se precisasse
que todos ouvissem que Bernardo fazia parte daquele erro.
— E, como diretor comercial, não lhe questionou sobre essa parte tão
importante para a gestão dele? Não se interessou sobre a aprovação dos
pedidos?
— Hum! Não — confessei.
— Em minha defesa, eu não sabia que La… a Srta. Lacerda não
obteve a orientação da sua assistente para tal atividade.
— Perdão, Bernardo. Não vou trazer terror para nenhum de vocês —
Dr. Estevão continuou com a sua voz mansa e certeira. — Na verdade, a
questão está resolvida. O presidente compreendeu sobre ser o primeiro dia
da Srta. Lacerda e aceitou o envio do arquivo o quanto antes para que ele
possa liberar, em caráter de urgência, o pagamento para o grupo.
Outra vez, houve agitação na sala, mas, sem a tensão de antes.
— Apesar disso… Acredito que todos saibam da atitude inovadora
da Srta. Lacerda em conhecer os funcionários e entender como cada detalhe
deste grupo funciona. — Ele acrescentou com orgulho. — E, por favor, Ilma,
confirme para mim, ontem a Srta. Lacerda passou o dia com o setor…
— Comercial — Ilma informou como quem entrega a melhor prova
ao tribunal.
— Com o Sr. Bernardo
Dr. Estevão completou e eu vi quando Bernardo se encolheu, assim
como eu fiz quando a acusação recaía sobre mim.
Eu podia me compadecer, no entanto, naquele instante, eu só tinha
raiva. Dele, de mim, de Sabrina, de todos os Quaresmas.
— E o senhor não fez questão de confirmar o envio do relatório mais
importante do seu setor? Mesmo quando entendia a sua função ao conduzir a
Srta. Lacerda a respeito das atividades que o senhor conhecia tão bem, mas
ela não?
Encarei Bernardo, enfurecida, mas ele encarava as mãos, sacudia as
pernas e se comportava como uma criança quando os pais são chamados na
sala da diretoria.
— O senhor não entendeu, Dr. Estevão — Sabrina o interrompeu,
agora, sem esconder a irritação. — Não cabe a Bernardo, nem a nenhum de
nós ensinar a nossa CEO como se trabalha neste grupo.
— Tem razão, Sabrina. Não cabe. Mas o Sr. Bernardo se ofereceu,
não foi mesmo?
Outra vez, como uma criança pega em alguma travessura, ele
concordou, os ombros encolhidos, a cabeça baixa. Sabrina abriu a boca e
fechou em busca de argumentos, no entanto, nada mais poderia ser dito sem
que o irmão levasse a culpa. Respirei fundo e levantei.
— Senhores, eu peço perdão pelo deslize. Não voltará a acontecer.
Dr. Estevão, obrigada pela prontidão.
— Sempre à sua disposição — ele disse com um sorriso generoso.
— Ilma, eu preciso enviar este arquivo agora mesmo — fui direto ao
ponto. — Por gentileza, avise ao pessoal do TI que me atrasarei, mais —
salientei. — Dr. Fernando, o senhor pode me acompanhar?
— Claro. — Fernando não fazia ideia do que eu tinha em mente,
ainda assim, sequer cogitou a opção de me deixar sem a sua ajuda.
— Agradeço a todos pela presença, mas eu tenho bastante trabalho a
fazer. Com licença.
Deixei a sala com meus fiéis escudeiros atrás de mim. Eu fervia de
raiva, tinha um plano em mente e não deixaria passar em branco. Dr. Estevão
se despediu na porta do elevador. Ele tinha uma reunião importante.
Agradeci com a sensação de que devia a minha alma a ele. Assim que ganhei
o corredor da minha sala, me virei para Ilma.
— Avise a Bernardo que o quero na minha sala agora. — Ela
concordou e voltou pelo mesmo caminho.
— O que pretende fazer, Laura? — Fernando se adiantou.
— Demitir Bernardo. Eu posso, não posso?
Fernando arregalou os olhos, passou as mãos no cabelo e soltou o ar
com força.
— Bem… pode.
— Ótimo!
Então voltei com pressa para a minha sala. Havia muito a fazer.
“É, meu amigo, só resta uma certeza
É preciso acabar com essa tristeza
É preciso inventar de novo o amor.”
Carta ao tom 74 - Vinícius de Moraes / Antônio Pecci Filho

CAPÍTULO 14
LAURA

Quando cruzei a linha entre a minha porta e a sala que eu ocupava devido a
armação do Sr. Quaresma contra os filhos, eu tinha uma certeza: demitiria
Bernardo e colocaria Sabrina no seu devido lugar. Ensandecida, culpada por
ser tão tola e me deixar enredar por aqueles abutres, perdi toda a minha
capacidade de ser generosa e, pelos segundos em que me permiti
enlouquecer, agradeci pela herança e pela condição de tirar aqueles dois da
minha vida.
Mas Fernando me puxou de volta à realidade.
— Laura?
Ele me chamou quando fechou a porta atrás de si. Eu andava de um
lado para o outro, impaciente, contava cada segundo que antecedia a
chegada de Bernardo.
— Laura?
Ele parou na minha frente e, com as mãos nos meus ombros, me
obrigou a escutá-lo.
— Eu tenho um plano. Antes de deixar Bernardo entrar, ouça o meu
plano.
Puxei o ar com força e encarei Fernando sem decidir entre escutar o
que ele tinha em mente ou só me deixar levar pelos instintos e cair pra cima
de Bernardo.
— Sente um pouco — ele pediu no mesmo segundo em que meu
interfone tocou. — Deve ser Ilma para avisar que Bernardo está lá fora.
— Ótimo!
— Laura? — ele segurou minha mão e me impediu de atender. —
Primeiro ouça o meu plano.
Cedi. Não porque Bernardo merecia uma chance, e eu sabia que era
disso que Fernando tentaria me convencer, mas porque… caraca, eu devia
tanto àquele homem que me recusar a ouvi-lo seria o mesmo que assumir
que eu era o monstro que Sabrina pintava. E Fernando merecia o meu
respeito.
— Tudo bem. — Ele liberou minha mão e eu pude atender a ligação
de Ilma. — Oi.
— Srta. Lacerda, o Sr. Bernardo aguarda aqui na minha sala.
— Peça para ele esperar, Ilma, obrigada!
Fernando sentou e aguardou por mim. Sentei na cadeira ao lado, nem
me dei ao trabalho de ocupar a destinada ao CEO. Eu sequer queria pensar
naquele cargo e na confusão que ele levava para a minha vida.
— Serei rápido — ele começou, a voz cansada, como se aquela
situação também o tivesse atingido. — O plano deles é que Bernardo te
conquiste, certo? — concordei, sem querer interrompê-lo.
— Deixe ele conseguir.
— O quê? — Levantei com pressa, mas Fernando segurou minha
mão e me fez sentar.
— Preste atenção, Laura. As instruções do Sr. Quaresma foram
claras. Como você acha que conseguirá cumprir com tudo o que ele pediu
sem ter Bernardo sob suas vistas? Com certeza não será demitindo-o.
— Mas também não será… sei lá… beijando-o. — Fiz uma careta de
nojo e raiva misturadas. Fernando riu.
— Você não precisa beijá-lo, é só deixar que ele pense que
conseguirá te conquistar. Podemos até mesmo fazê-lo pensar que eu faço o
mesmo. Conheço Bernardo e sei que ele não resistirá a competir comigo.
— Tem ideia do que é esse seu plano louco?
— Ele fará tudo o que você quiser só para ser o escolhido. Matamos
uma parte da questão aí — ele insistiu.
— Tá, mas é como você disse: uma parte. Tem Sabrina e… Ela
tentou me destruir agora a pouco.
— Pense bem, se Sabrina acreditar que você está apaixonada por
Bernardo, ficará quieta. Ela não tem qualquer intenção de destruir essa
empresa, afinal de contas, é o patrimônio dela. Então se Bernardo te
conquistar…
— Isso não tem como dar certo.
— Na verdade é um plano perfeito.
— Não é porque tem a questão do Vicente — ressaltei. — E eu quero
matar o Bernardo. Aliás, quero matar a Sabrina também e se puder, o
Vicente. — Ele riu mais uma vez.
— Vicente é uma questão mais delicada e exigirá mais de você —
Fernando emendou, a voz séria de repente e o olhar atento. — Você sabe, e
eu sei, que ele quer dinheiro. Se Sabrina conseguir recuperar a herança, é
com ela que ele ficará, mas se…
— Nunca! — Outra vez tentei levantar e ele me impediu.
— Tudo de mentira como será com o Bernardo e comigo, Laura. Não
precisa deixar ele se aproximar. Use essa sua raiva, finja ter mágoa, mas
também… faça com que ele acredite que se largar Sabrina, você o aceitará
de volta.
— Ah, merda! É muita coisa para assimilar.
— Pois é. Mas se você conseguir, estará livre.
Fechei os olhos e busquei a minha vida na minha mente. Dois dias
como herdeira daquele montante de dinheiro, daquele grupo empresarial e
tudo o que vivi se escondia lá no fundo das minhas memórias, como se
pertencesse a um passado bem distante. Quando cheguei em casa, tanto
minha mãe quanto minha irmã dormiam, quando saí, só minha mãe,
emburrada, perambulava por lá e mal trocou duas palavras comigo.
Então, tudo o que eu mais queria era voltar para a minha vida, para o
curso pré-vestibular, ter noites de irmãs com Bruna e uma mãe que não me
tratasse como se eu tivesse roubado aquela herança.
— E o que eu faço agora? Ele está lá fora.
— Demita ele — Fernando disse com a maior naturalidade.
— Mas você…
— Bernardo não vai aceitar, Laura. Ele vai usar tudo o que tem para
te fazer mudar de ideia. Por isso, faça com que ele acredite que tem força
sobre você.
— Certo — concordei rápido demais, porém, não havia tempo.
— Você precisa enviar o arquivo e eu preciso achar um lugar para
almoçarmos — ele avisou de pé, pronto para retirar-se.
— Almoçarmos? Vamos almoçar juntos?
— Se a ideia é fazer com que Bernardo ache que eu também quero te
aplicar um golpe, sim. Não se preocupe, não vou te obrigar a comer comida
japonesa.
Ele piscou, lindo, charmoso. E eu corei, porque não lembrava de ter
revelado aquela parte da minha noite.

Bernardo entrou na minha sala do jeito que imaginei que ele faria.
Sem jeito, certo de que receberia a minha fúria, mas sem qualquer certeza do
quanto de fúria eu guardava para ele. Quando Fernando deixou a sala, com
uma postura relaxada, cruzou com Bernardo na porta e deu um tapinha
amigável em seu braço, o que fez com que o filho do meu ex-patrão
estreitasse os olhos e, com toda certeza, criasse diversas teorias naquela
cabeça confusa e doentia.
— Ilma disse que você queria falar comigo — ele disse enquanto eu
finalizava a transmissão do documento que me jogou naquele inferno. —
Olha, Laura… eu não…
— Você está demitido — avisei sem olhá-lo, porém, confesso, que
desejei analisar cada detalhe daquele rosto perfeito, perder a compostura
após o meu aviso.
— Demi… tá louca? Você não pode me demitir — suas palavras
saíram como deveriam, sem enfeites ou compostura, sem a farsa que ele
inventou para me induzir ao erro.
— Posso e estou fazendo. Passe no RH e resolva as questões
burocráticas. — Cliquei em enviar e me voltei para o homem nervoso na
minha sala.
Bernardo me encarava sem acreditar no que eu fazia. E eu queria, de
verdade, poder demiti-lo, no entanto, Fernando tinha razão, colocar
Bernardo para fora da empresa não me ajudaria em nada a cumprir com o
último pedido do Sr. Quaresma. O problema era que aquele velho teimoso
não deveria ter feito aquilo comigo, não deveria ter colocado aquelas
empresas em minhas mãos assim como seus filhos.
— Isso foi ideia dele, não foi? — acusou, o dedo apontado para a
porta por onde Fernando saiu. — Ele disse para você fazer isso. Laura, eu
não tenho culpa sobre o relatório. Nem cheguei a pensar… — Ergui a mão
para calá-lo.
— Você e a sua irmã querem me derrubar, mas não conseguirão.
Ele não rebateu, nem sequer tentou desmentir a minha acusação.
— Seu pai decidiu que eu seria a CEO e se você ou Sabrina não
conseguem compreender isso, então que deixem as empresas.
— Essas empresas são nossas — ele disse com raiva. — Meu pai
ergueu esse império, mas nós estamos aqui, trabalhamos nesse sonho,
fizemos a nossa parte.
— É mesmo? Conte-me mais sobre a sua participação? — Cruzei as
pernas e me recostei na cadeira. — Transar com suas secretárias ajudou a
fortalecer o grupo?
Bernardo recuou e eu vi o exato momento em que seu pomo de adão
se movimentou para que ele engolisse as minhas acusações.
— Ou… fingir que estudava enquanto seu pai pagava as despesas das
suas diversões fora do país. Aliás, conte-me como as suas míseras seis horas
de trabalho diário acrescentaram tanto para o sucesso deste grupo?
— Você não pode…
— Posso. Sejamos honestos, Bernardo, você não gosta disso aqui.
Não gosta de trabalhar. Fazia a sua parte, péssima, por sinal, apenas para
agradar o seu pai, mas, veja só, o seu pai morreu, não há mais necessidade
de fingir. As ações são suas, você já é rico o suficiente para desfrutar a vida
que sempre sonhou, portanto… boa sorte.
— Laura, eu… — ele se deteve, a raiva fazia uma veia em seu
pescoço pulsar. — Por que você acha que eu não gosto disso aqui?
Ergui uma sobrancelha e não respondi. Nada mais óbvio do que o
desejo daquele homem de ter uma vida só de prazeres, ainda que eu
precisasse da sua mudança.
— Eu gosto disso aqui, tá legal! E eu me importo, só não… me
adaptei. É isso. Levei anos sem precisar ser o funcionário perfeito, mas a
morte do meu pai… porra, Laura! Olha o que ele fez! Você acha que eu não
sei que ele fez isso para nos punir? Que colocou você sentada aí porque
odiava a maneira como eu me comportava? Eu mudei, tá legal? Queria que
fosse antes, que houvesse tempo para… — ele se calou, a emoção fez seus
olhos brilharem, e em mim, foi como um tapa.
Bernardo não mentia, só… talvez a morte do pai, a ideia de ser
preterido tocasse ele de alguma forma. O problema era: por quanto tempo?
Até quando aquele cara suportaria a vida que o pai idealizou para ele? Eu
não fazia ideia, no entanto, não podia ignorar que aquela era a minha deixa
para cumprir com o pedido do Sr. Quaresma.
— Quer o seu emprego? — Aguardei até que ele entendesse que não
era uma pergunta retórica e sinalizasse que sim. — Então terá que seguir as
minhas regras.
— Quais regras?
A pergunta quase não passou pelos seus dentes trincados pela raiva.
— Você é funcionário como todos os outros. A partir de hoje, terá
que cumprir suas horas. Oito horas — sinalizei e amei a sua expressão de
perplexidade. — Chega de funcionárias burras e fúteis. Cindy está demitida.
— Mas…
— Ela ou você? — Ele se calou no mesmo segundo. — Ótimo! llma
encontrará a secretária correta para trabalhar no seu setor.
— Laura, eu não sabia que…
— Você já me disse isso e para ser sincera, não me importa. Agora
me dê licença porque preciso me reunir com o pessoal do TI e depois vou
almoçar com o Fernando.
— Com o Dr. Fernando? — Destacou o “doutor” com certa mágoa.
— Isso, com o Fernando.
Durante alguns segundos nos desafiamos com o olhar, até que Ilma
bateu na porta para que eu seguisse com o planejado.
— Ilma, entre, por favor. Tenho algo que preciso que faça pelo Sr.
Bernardo.
— Claro — ela disse com a sua postura profissional impecável.
— Cindy, a secretária da diretoria comercial, está demitida,
comunique ao RH, por gentileza.
— Anotado.
— E eu te peço que se encarregue, pessoalmente, de selecionar a
secretária ideal para o setor.
Havia um certo traço de sorriso nos lábios da senhora que se
esforçava para não demonstrar, contudo, não me dei ao trabalho de impedir o
meu.
— Com prazer, Srta. Lacerda.
— Isso é tudo. Bernardo, volte para o seu setor. Ilma, avise ao
pessoal do TI que estou pronta.
Minha assistente abriu a porta e deu passagem para um Bernardo
derrotado. Porém, Fernando tinha razão, ele não desistiria. Eu só não sabia
se havia preparação em mim o suficiente para suportar o peso daquele plano.
“Mas amar é sofrer
Mas amar é morrer de dor.”
Canto de Xangô - Vinícius de Moraes / Baden Powell

CAPÍTULO 15
BERNARDO

Com raiva, revoltado, trabalhei as horríveis oito horas que Laura


determinou. E ao invés de odiá-la por cada situação que passei naquele dia
infernal, odiei Sabrina.
Quando o RH chamou Cindy, minha vontade era a de me esconder
no banheiro até ela deixar a empresa, de tanta vergonha que senti,
independente disso, fiquei na sala, aguardei que ela retornasse, lamentei seus
olhos e nariz vermelhos que indicavam o choro.
— Por quê? O que eu fiz de errado? — Ela disse sem conter as
lágrimas.
— Oh, querida!
Segurei seu rosto entre as minhas mãos e a raiva de Sabrina cresceu a
um nível inimaginável.
Porque, na verdade, a coitada da Cindy não teve qualquer culpa do
que aconteceu, e, para ser honesto, não rolou nada além de um beijinho de
despedida após uma carona. Rolaria, com toda certeza, e ela se demitiria no
instante em que percebesse que não teria nada entre a gente, eu também
tinha esta certeza, ainda assim, Cindy não merecia aquilo.
— Laura fará algumas mudanças no setor.
Eu me arrependi no mesmo instante de dizer aquelas palavras. A
demissão da minha secretária correria os corredores como fogo em espuma,
e a informação de mudanças no setor causaria pânico entre os funcionários.
O restante do dia foi uma merda. A cada segundo eu queria encontrar
a minha irmã e matá-la, trucidá-la, parti-la em pedacinhos e atirar em
diversos pontos da cidade, mas quis o destino que ela, diferente de mim,
mantivesse uma agenda lotada, repleta de reuniões e conversas.
Também assisti, com certa amargura, Fernando, o cretino que
pensava que tomaria de mim o que era meu por direito, sair com Laura para
almoçar. Eles riam e dividiam uma intimidade que me irritava. Meu
estômago embrulhou e por causa disso, almocei em minha sala, uma comida
pedida no meu restaurante preferido, mesmo assim, indigesta.
Eu precisava arrumar uma forma de recuperar a confiança de Laura,
antes que não houvesse mais volta, que ela se apaixonasse por aquele idiota
e estragasse os meus planos. Meus planos? Não! Planos de Sabrina. Eu ainda
não encontrava conforto na ideia, contudo, incomodava-me mais imaginar
que Fernando assumiria o que era meu por direito.
E para piorar o meu humor, recebi várias ligações, de todos os
setores, quase todos os diretores, todos interessados em saber se teríamos
mesmo cortes na empresa, se eu sabia quem sairia, quem ficaria e tudo o
mais que roubava cada gota de paciência existente em mim.
No final do que seria o meu expediente, a partir daquele dia, olhei
para o relógio e me perguntei se haveria disposição em mim para malhar,
enquanto me dirigia à sala dos analistas para tirar uma dúvida a respeito das
vendas de uma das nossas lojas, quando, ao longe, avistei, outra vez, Laura e
Fernando, juntos, em frente ao elevador.
Primeiro ele a levava para almoçar, depois a acompanhava na hora de
ir embora? Aquilo passava de todos os limites. Sem contar que, de alguma
forma, a cena me incomodou. Laura ria, livre, leve, sem o peso ou a
preocupação de quando passou a noite comigo em sua sala. Assisti-la sorrir
causava um alvoroço estranho em meu estômago. Com certeza era a
sensação de derrota, a ideia de perder de vez o que restava da minha herança
e aceitar que esta passaria para as mãos do cretino do Fernando.
— Quer saber? Vou embora. Já passou do meu horário —
resmunguei para ninguém.
Dei as costas para o casal, que eu não permitiria que se concretizasse
como casal, e entrei na sala dos analistas. Com certeza minha cara não era
das melhores, pois todos eles se assustaram ao me ver entrar naquele horário.
— Crimélio! — Minha voz saiu mais alta do que deveria.
Meu analista enrijeceu na sua cadeira, como se esperasse que a onda
de demissões chegasse ali também. Suspirei e me obriguei a não descontar
nele, ou em qualquer outro, as minhas frustrações.
— Reveja esse relatório, por favor. Ele está diferente do que vimos
nos últimos meses.
— Ah, Sr. Bernardo… — o rapaz pigarreou ao apanhar o relatório
que eu estendia à sua frente. — Esse relatório… hum! Eu revi duas vezes e é
isso mesmo.
— Mas isso é bem menos do que realizamos — reclamei.
— Pois é. Tomei a liberdade de conversar com o gerente de vendas e
soube que houve um corte grande de investimento na loja, então…
— Houve? E por quê?
Ele olhou para os colegas, depois para mim, então, após pigarrear
outra vez, disse com um tom mais preocupado.
— O senhor decidiu dessa maneira.
Minha primeira reação foi achar que era uma brincadeira, depois que
houve algum erro. Mas em seguida me dei conta de que, em especial, nos
últimos meses, eu aceitava toda e qualquer sugestão de Sabrina sem
questionar.
Peguei outra vez o relatório das mãos dele, verifiquei a loja, constatei
o material, e me dei conta que, mesmo sem autorização para desmontar as
empresas, minha irmã fazia aquilo aos poucos, da sua forma.
A raiva cresceu em mim com mais força.
— Precisamos reverter isso. Então… — eu não fazia ideia do que
fazer. Meu rosto esquentou, minhas mãos suaram e eu só conseguia pensar
nas acusações de Laura.
Puta que pariu, eu era de fato uma porcaria de profissional. Assinei
os documentos que cortavam os investimentos na loja, com certeza com
pressa para uma partida de tênis, para um jantar com alguma garota ou para
uma das minhas viagens.
— Pensem em algo. — Inclui todos naquela missão. — Amanhã, no
nosso primeiro horário, conversaremos sobre as ideias.
Deixei a sala sem ouvir qualquer contestação. Entrei na minha, senti
falta de Cindy e, por um segundo, me perguntei que tipo de secretária Ilma
arrumaria para ocupar aquela mesa.
— Que droga!
Peguei minha pasta, desliguei o computador sem me preocupar com
o que estava na tela e saí. Diante do elevador, minha mente me traia com as
imagens de Laura e Fernando. Eu me perguntei se ele conseguiu algum
avanço, se já eram amantes, se Laura aceitava aquele idiota ao ponto de não
perceber o golpe? E a sensação ruim aumentou. Perder a herança de fato
mexia comigo. Foi o que pensei quando entrei no elevador e deixei a
empresa.

Quando entrei em casa não me dei ao trabalho de me dirigir à minha


ala. Eu tinha um objetivo bastante definido e nada me impediria. Cortei
caminho pela cozinha até entrar no perímetro que minha irmã ocupava com
o marido.
Como em todas as alas, uma porta imensa impedia os indesejados de
invadir a intimidade do morador. Logo toquei o interfone com insistência.
Pouco tempo depois, uma das empregadas que atendia as imensas
necessidades da minha irmã, me recepcionou. Eu entrei sem lhe dar direito
de contestar.
— Chame Sabrina — eu disse com raiva.
E assim o fiz para que ela soubesse que pouco me importava se
naquele momento minha irmã dormia, fazia massagem, malhava ou transava
com o marido. Ela pararia para me ouvir ou… eu não sabia o que fazer, mas
faria.
— O senhor… eu… aguarde um pouco.
Ela saiu com pressa. Olhei a imensa sala que minha irmã construiu e
me perguntei porque aceitei aquilo? Tínhamos uma casa, éramos uma
família, vivíamos de uma forma espetacular quando mamãe era viva. Então
eu pisquei e Sabrina assumiu tudo, dividiu a casa em três e fez daquele
espaço algo tão desnecessário que me incomodou, mesmo que tarde demais
para contestar.
Caminhei pelo local, observei os detalhes já conhecidos, a maneira
como minha irmã demonstrava a sua superioridade em cada pedacinho
exposto naquele ambiente. E eu não sabia porque aquilo passou a me
incomodar.
— Bernardo? — Minha irmã desceu a escada com um roupão e
cabelo molhado.
Com certeza dava suas braçadas na piscina aquecida que implantou
na sua parte da casa. Estranhei o fato de Vicente, seu cachorrinho de
estimação, não estar atrás dela.
— Finalmente você chegou — ela disse com aquela superioridade
que tanto me irritava. Como se não tivesse feito uma besteira sem tamanho.
— Eu soube que Laura te chamou para conversar e que em seguida demitiu a
sua secretária.
— Que espécie de merda você acha que dará certo nessa sua loucura?
— ataquei de vez.
Ela se surpreendeu, porém, sem perder a altivez.
— Laura esqueceu de enviar o relatório. Eu soube ontem à noite,
antes de você chegar, e torci para que ela não lembrasse dele até hoje pela
manhã — confessou.
— Tá maluca? — falei mais alto, irritado ao meu limite. — Como
pôde acreditar que fazer com que Laura esquecesse o relatório seria o melhor
para as nossa empresas?
— Deixe de drama. O valor sequer nos prejudicaria. Eu só queria que
ela se sentisse incompetente. Deu certo?
— Não, sua idiota! Laura me demitiu!
— O quê? Mas ela não pode…
— Ela pode! — Minha voz, cada vez mais alta, alertava a minha
irmã. — Como você teve coragem de me deixar lá, a noite inteira com ela, e
não me alertar do relatório? Não pensou em mim nem por um segundo?
Sabrina recuou. Eu vi em seus olhos que ela não esperava por aquilo.
Minha irmã mordeu o lábio inferior, como se buscasse uma solução para a
minha demissão.
— Laura reconsiderou — avisei.
Não queria entrar em mais problemas enquanto ela confabulava
maneiras de me reintegrar a empresa.
— Mas demitiu Cindy, e eu agora tenho que trabalhar oito horas
diárias, um mês de férias por ano, tudo como qualquer funcionário normal.
Sabrina sorriu e pôs as mãos na cintura.
— Não tivemos qualquer perda então. — Sua voz vitoriosa me
incomodou até o fio de cabelo mais escondido em meu corpo. — Ora, não
fique assim. Cindy era uma incompetente. Você só queria transar com ela.
— Você não me ouviu, não é?
— Deixe de ser esse garoto chorão. Já passou da hora de assumir
suas responsabilidades. Ninguém morre por trabalhar oito horas por dia e ter
apenas um mês de férias ao ano. É o que todo brasileiro faz.
— Não era o que eu fazia. E além disso, paguei pela sua sacanagem.
Eu, sozinho, serei sacrificado porque você achou bom sacanear a Laura.
— Se Laura reconsiderou e demitiu Cindy… — ela caminhou pela
sala, o dedo magro nos lábios como ela fazia quando confabulava. — Então
deu certo. Laura está caidinha por você.
— Sabe, Sabrina, você não era tão idiota assim.
Minha irmã fez uma expressão de choque, horrorizada com a minha
acusação.
— De quem partiu essa ideia, do Vicente?
— Bernardo, você não… Por que não se concentra em conquistar a
Laura ao invés de entregar a nossa herança a vingança do Fernando?
— Eu… eu não…
Eu quis dizer que não faria mais nada do que ela sugerisse. Que não
permitiria que interferisse no meu setor, na minha vida e sequer nas minhas
conquistas amorosas. Mas quando pensei em dizer à Sabrina que não entraria
naquela jogada, a imagem de Laura, relaxada, rindo com Fernando,
embrulhou o meu estômago.
— Você minou a confiança de Laura em mim. Ela me acusou de me
aproximar para induzi-la ao erro.
Eu me vi enumerando os desastres da minha irmã ao invés de dizer
de uma vez que não seduziria a garota que usurpou a nossa herança.
— E você deixou claro que isso não aconteceu, não é? Claro que
deixou, ela até o perdoou. Agora o que precisamos fazer é acabar com a
confiança dela no Fernando. Eu acho que…
— Chega — resmunguei. — Vou dormir. — Dei as costas à minha
irmã e caminhei até a porta. — E faça o favor de não se meter nessa parte.
Lembre que prejudicar Laura, nos prejudica e elimina qualquer possibilidade
de termos a nossa herança de volta. Quanto mais você ataca, menos ela
confia em mim e se deixa levar pelo Fernando.
Sabrina cruzou os braços na frente do corpo. Rebateria as minhas
palavras, com certeza, mas eu não fiquei para ouvir. Cansado, abandonei a
ala da minha irmã e fui para a minha, não antes de passar pela escada que
levava a que meu pai ocupava e me senti terrível por ser uma decepção para
ele.
Naquela noite eu não dormi de imediato como imaginei. Corri na
esteira por quase uma hora, levantei alguns pesos e a cada segundo eu me
perguntava se Laura de fato se permitiria seduzir pelo Fernando, afinal de
contas, ele foi o seu herói naquele dia. Agiu tão rápido que nem eu, que nem
sequer sabia o que minha irmã aprontava, agiria.
Eu tinha um novo pesadelo, e precisava arrumar uma maneira de me
livrar dele.
“Amo-te como um bicho, simplesmente
De um amor sem mistério e sem virtude
Com um desejo maciço e permanente.”
Soneto do amor total - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 16
LAURA

O clima em casa não me ajudava. Perdi mais um dia de cursinho, por isso
cedi a ideia de Fernando e comprei um curso on-line. Pelo menos dessa
maneira eu poderia acompanhar algumas aulas preparatórias para o Enem.
Minha mãe continuava monossilábica, apesar de sentar para jantar comigo e
Bruna, que não descansou até eu prometer que a levaria na escola no dia
seguinte no carro que a empresa designava ao meu transporte.
A única coisa boa era que Carlos, o motorista, foi muito legal com a
gente. Ele levou Bruna como uma princesa. Até desceu do carro para abrir a
porta para ela e disse com sua voz que chama a atenção de todos um sonoro
“Tenha um bom dia, Srta. Bruna”, o que quase transformou minha irmã em
um balão de tão cheia de si que ficou. Quando eu voltasse para casa teria
uma conversa com ela. A nossa vida melhoraria, com toda certeza, mas não
seria aquele conto de fadas que ela acreditava.
Devido a esta carona, cheguei cedo demais na empresa. Até mesmo o
som dos meus saltos ecoaram no chão polido quando passei. A única
recepcionista disponível naquele horário estranhou, conferiu no relógio para
se certificar de que as demais não estavam atrasadas.
No meu andar, uma ou outra luz acesa, pouca movimentação, em
algum lugar havia o barulho da cafeteira. Na minha ala, nenhuma das
secretárias e nem Ilma se materializou de algum lugar como ela sempre
fazia.
Sentei na cadeira, descansei as costas, olhei para fora e meu
pensamento foi: que porra eu estou fazendo?
O dia anterior foi um inferno. Eu não engolia o que Sabrina fez, mas
Fernando me garantiu que contornamos muito bem a situação, e só o fato do
presidente da fábrica compreender e perdoar minha falha, me deixava bem
com os acionistas e investidores. Apesar disso, eu não podia mais errar. Não
porque eles estariam de olho em mim, mas porque eu não queria.
A estadia com o TI me deixou menos tensa. Aquela era a equipe que
todo mundo sonhava trabalhar. Todos atenciosos, cheios de sugestões,
dispostos a colaborar, com um potencial inacreditável e, com toda a minha
incapacidade de gerir uma empresa, quem dirá um grupo de empresas, até eu
compreendi que não eram bem aproveitados. Decidimos que mudaríamos
todo o sistema da empresa. Seríamos integrados. Teríamos uma
comunicação mais fácil e fluida. Apresentaríamos o projeto em um mês aos
diretores, por isso eu me prepararia todos os dias para dominar o processo.
Com um suspiro, liguei o computador, acionei no celular a agenda do
dia e comecei a me organizar. Mas, apesar de haver muito trabalho, eu tinha
tempo, então fiz algo que me incomodou desde o primeiro dia naquela sala.
Bernardo me pediu os retratos dele com o pai e eu cedi. Mas Ilma,
encarregada no dia, pegou apenas as dele e, naquela imensa sala com direito
a um pequeno campo de minigolfe, havia muita coisa relacionada a Sabrina.
Coisas que eu queria rasgar, quebrar e queimar. Mas não podia.
Sendo assim, fui até a sala de Ilma, encontrei uma caixa de
documentos quase vazia, e a levei depois de deixar os papéis sobre a mesa
da mulher. Peguei os quadros com diplomas, artigos, fotos, cada coisa
relacionada a Sabrina, orgulho do pai, com exceção pelo casamento
desastroso com um interesseiro, e coloquei dentro da caixa. Graças a carona
que dei a minha irmã, eu teria a facilidade de deixar a caixa na sala de
Sabrina sem precisar encontrá-la.
Com a caixa em mãos, deixei minha sala e fui na direção do meu
objetivo, de modo que, quando passei em frente ao elevador, as portas se
abriram, Bernardo saiu com pressa, atento ao celular. Eu nem tive tempo de
alertá-lo, ou de impedir o choque. Ciente de que o atingiria com a caixa
pesada e cheia de porta-retratos com vidros, virei o corpo para o lado e
colidimos.
Não sei explicar o tamanho daquela confusão, mas ele se chocou
comigo. Atenta a caixa e preocupada em não deixar nada cair, me inclinei
para evitar o pior. Em algum momento que não tenho como descrever,
Bernardo decidiu que o melhor a fazer seria me segurar. A caixa foi ao chão,
as coisas se espalharam, ele virou comigo no braço e me imprensou contra a
parede como se precisasse me proteger.
A última imagem que tive daquela bagunça foi do celular dele
acabado no chão, junto com as coisas que eu carregava. Depois disso, o par
de olhos azuis entrou em meu campo de visão e minha mente virou gelatina.
— Laura? — ele disse com certo medo. As íris azuis, profundas,
hipnóticas, buscaram meus olhos. — Você está bem?
Bernardo, colado a mim, imprensava meu corpo na parede sem
perceber o que fazia. Dentro de mim a confusão se tornava maior do que a
bagunça que fizemos no chão, diante do elevador. Eu não conseguia pensar.
Era coisa demais. As mãos dele em minha cintura, o corpo dele encaixado ao
meu, os olhos que me prendiam e os lábios… caraca! Precisavam estar tão
próximos?
— Laura?
Bernardo chamou, mas sua voz possuía um tom diferente. Não mais
preocupado, não mais dominado pelo susto. Ela soou sussurrada,
encantadora, o perfeito canto da sereia que me conduzia ao erro.
E eu errei. Errei sem me preocupar, naquele segundo, do quanto
errada estava.
Quando os lábios de Bernardo encostaram nos meus, não com
desespero, nem mesmo com a prepotência que eu acreditava que ele usaria,
mas com suavidade e desejo, o mesmo que me consumia de uma maneira
estranha, nenhum alerta foi o suficiente para me fazer impedi-lo.
As mãos que antes me amparavam, apertaram minha cintura, me
puxaram para perto. O corpo que se encaixou no meu como forma de me
proteger da queda, assumiu outro objetivo, se imprensou a mim como se não
houvesse nada mais correto naquele mundo. Os lábios, macios, quentes,
suaves, abriram os meus sem esperar a minha permissão. A língua tocou a
minha e cada pedacinho da minha pele se arrepiou.
Podia um beijo ter tal efeito? Podia uma mão queimar um corpo
como a dele me queimava sem mesmo me tocar de uma maneira mais
ousada? Podia ser verdade aquela loucura que eu me permita viver?
Não. Não podia.
E quando me dei conta disso, o afastei de mim, talvez não com a
força e determinação necessárias, mas com a certeza de que não
permaneceria ao lado dele nem por mais um segundo.
Bernardo se afastou, não impôs a sua vontade. Seu rosto
avermelhado dizia que ele se envergonhava do feito da mesma forma que eu.
Claro. Eu era a filha da empregada, alguém em quem, em outra situação, ele
jamais prestaria atenção, pelo menos não com desejo, como fizera segundos
antes. Talvez por esta constatação, a raiva se apoderou de mim.
Raiva dele, sim. Odiava o desprezo daquela família. Odiava o fato de
saber que ele me beijava não por eu ser alguém digna dele e sim por ser a
idiota que ele acreditava conquistar para reaver a herança. E me odiava por
ter permitido, por ter gostado, por ter meu corpo invadido por tantas
sensações que tão cedo não me abandonariam.
— Suas coisas — ele disse, sem jeito, abaixando-se para arrumar o
que derrubamos.
— São da sua irmã. Deixe na sala dela, por favor.
Usei toda a minha dignidade para falar com ele sem parecer uma
garota boba que por um segundo acreditou que beijava o príncipe.
— Com licença.
Dei as costas e saí a passos rápidos. Naquele momento, eu não
trocaria mais nenhuma palavra com Bernardo, não queria ouvir qualquer
explicação sobre o ocorrido, e também, acima de tudo, não queria constatar
que ele fingiria que nada aconteceu.
Que grande merda!
Passei pela recepção, entrei na sala de Ilma e gritei. A mulher estava
lá. Mas como?
— Porra, Ilma!
— Senhorita!
— Ah, meu Deus, perdão. Perdão. Eu só…
Com a mão no peito, eu respirava de forma descontrolada, não
apenas pelo susto, mas por tudo o que aconteceu antes disso.
— Como você chegou aqui?
— Eu sempre chego cedo. Estava na copa. Fiz café. Vi que a
senhorita deixou suas coisas na mesa, então… A senhorita está bem?
— Estou… estou.
Eu não estava. Pra dizer a verdade, eu estava muito mal. Mesmo
assim, sorri.
— Posso pedir uma xícara de café?
— Claro, levo agora mesmo na sua sala.
— Obrigada.
Ainda trêmula, caminhei até a minha porta e relembrei a caixa que
roubei dela.
— Precisei de uma caixa. Encontrei uma com pouco material. Espero
que não se importe.
— Eu não me importo, Srta. Lacerda.
— Laura, por favor.
— Laura quando estivermos sozinhas — determinou com um sorriso
carinhoso. — Precisa de mais alguma coisa?
— Assim que o diretor do RH chegar, me avise. Vamos começar o
quanto antes.
— Como quiser.
Entrei em minha sala, me deixei cair na cadeira e me perguntei
quando a sensação daqueles lábios nos meus, passaria. E não encontrei uma
resposta que aliviasse a tensão em mim.

— De fato sua reunião com o pessoal do RH após a saída da


secretária do comercial, deixou os funcionários em alerta — Fernando
continuou a conversa que eu mal conseguia acompanhar.
Sentado em minha sala, à vontade como um amigo ficaria, e ele de
fato tornava-se um amigo mais atuante em minha vida do que me permiti
aceitar depois da traição de Sabrina, me atualizava de todos os
acontecimentos na empresa. Ele, mais uma vez, aguardava a minha saída,
mesmo que custasse mais do seu tempo na empresa.
— Isso é ruim, não é mesmo? — Fiz uma careta, incerta sobre como
deveria agir.
Passar o dia com o RH, ainda que impactada pelo beijo em Bernardo,
me fez perceber o quanto nossa folha de pagamento estava inchada. Eu
pouco entendia daquela formação, mas o próprio diretor me disse que o Sr.
Quaresma mantinha funcionários que já deveriam estar aposentados, e,
caraca, eu entendia o medo da aposentadoria no Brasil, ainda assim… A
empresa precisava mesmo se reestruturar.
Por exemplo, por qual motivo um gerente regional precisaria de uma
assistente e três secretárias? Eu, em meu cargo de CEO, possuía duas, logo,
eu me via diante de uma balança terrível, no entanto, necessária. Se o Sr.
Quaresma não queria acabar com algumas das empresas que Sabrina
afirmava não serem necessárias para o grupo, então precisávamos enxugar
os setores o máximo possível. As duas coisas juntas não funcionariam e a
conta chegaria em um prazo que, para mim, era curto, mas que Fernando me
certificou não ser, para uma empresa do porte das que eu geria.
Dessa forma, em algum momento, eu teria que ter aquela conversa
com Sabrina, por isso pedi ao diretor geral do RH para providenciar um
ótimo plano, com tudo bem definido para que pudéssemos debater a melhor
decisão.
— Toda empresa, um dia, precisa se reorganizar — ele informou com
a voz tranquila. — Não se torture com isso, Laura. Você hoje está pior do
que ontem e não tivemos nenhum grande acontecimento, nenhuma tentativa
de te derrubar ou te acusar de qualquer coisa. Podemos dizer que foi um dia
normal como qualquer outro na vida de uma CEO.
Isso porque ele não sabia sobre o beijo. E eu não tinha coragem de
contar. Não porque Fernando me julgaria, mas porque eu mesma me julgava,
me punia e me censurava por ter cedido. Além disso, todas as vezes em que
eu fechava os olhos, relembrava, sentia… como aquilo era possível?
— Eu tenho outra coisa para falar com você — ele anunciou com a
voz séria, o que me fez desviar a atenção da tela do computador para encará-
lo. — Você sabe… no testamento, o Sr. Quaresma deixou a casa para você.
— Fora de cogitação, Fernando. Eu não posso viver debaixo do
mesmo teto que Sabrina e minha mãe…
— Dona Sara precisa de um novo emprego, a casa é sua e as
empresas também. Recontrate-a. Laura, você quer acabar logo com isso,
certo? — concordei, em especial porque o beijo aconteceu, e… Eu precisava
me livrar do Bernardo. — Para ser sincero, gosto mais da ideia de você à
frente das empresas do que Sabrina — ele deu um sorriso torto que o
deixava encantador. Como Sabrina trocou aquele homem pelo Vicente?
— Isso porque você ainda se ressente do final do relacionamento —
provoquei.
— Não. A vida segue, Laura. Sabrina é brilhante e eu sei que ela fará
muito pela empresa, mas, de verdade, sem o Vicente para atrapalhar. Por isso
prefiro você a ela.
— Eu sou a pessoa mais despreparada para estar neste cargo, e você
sabe disso.
Fernando não discordou e, como sempre fazia quando pretendia
aprofundar o assunto, se inclinou sobre a mesa, os braços estirados em
minha direção.
— Se você estiver naquela casa será mais fácil estar um passo à
frente deles, além de, lógico, atingir o objetivo que buscamos.
— Eu, Sabrina e Vicente naquela casa? — Ri sem qualquer vontade.
Depois me dei conta de que essa era a ideia, então fiquei séria.
— Você não precisa deixar que nenhum deles se aproxime — ele
continuou, mas não sabia que um deles já se aproximou até demais. — Não
precisa fazer nada que não queira, Laura — assegurou com os olhos fixos
em mim. — Mas precisa fazer Sabrina saber quem é o marido dela, mesmo
achando que ela mereça aquele… imbecil.
— Traste.
— Malandro.
— Interesseiro.
— Manipulador — ele completou com o sorriso de volta. Lindo!
— Se Sabrina se separar do Vicente, você pensa em tentar… sei lá…
um retorno?
Testei Fernando. Precisava saber até onde ia a sua promessa em
cumprir com o pedido do Sr. Quaresma e o seu interesse naquele caso.
— Eu? Não. Sabrina é maravilhosa como executiva, mas foi uma
mulher terrível para mim. Funcionamos melhor separados. E você? Se ela se
separar do Vicente, você o aceitará de volta?
— Deus é pai, não é padrasto! — resmunguei com convicção, o que
fez Fernando rir com vontade. — Mas essa ideia… morar na mansão
Quaresma… Minha mãe mal olha na minha cara desde que aceitei essa
loucura, ela nunca concordará com a posse da casa.
— Se me permite mais um conselho… conte a verdade a ela.
— A minha mãe? Mas eu não posso, esqueceu? Eu assinei aquele
documento…
— Conte sobre isso também. Aposto que Dona Sara mudará de
opinião. Ela trabalhou por anos para a família Quaresma. Ajudou a criar os
filhos, vivenciou a morte da matriarca e a decepção do patrão, diante disso…
ela entenderá.
— E se não entender?
— Bom, ainda que ela não entenda, saberá que você quebrou uma
regra importante ao revelar a verdade para ela, logo, o instinto materno a
obrigará a te proteger.
Será? Minha mãe mudaria de opinião em relação aquela loucura se
conhecesse toda a verdade? Aceitaria voltar para aquela casa? Ficaria ao
meu lado? Eu não tinha como saber se não tentasse, mas uma coisa era certa,
sem Dona Sara naquela casa para me proteger de Bernardo e Vicente, eu não
me mudaria.
“A vida não é brincadeira, amigo.
A vida é a arte do encontro embora haja tanto desencontro pela
vida.”
Samba da Bênção - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 17
LAURA

Três dias se passaram desde que Fernando me convenceu a tomar aquela


decisão. Eu acho que nunca tive tanto medo em toda a minha vida, nem
mesmo quando meu pai morreu e deixou minha mãe com uma criança
recém-nascida e eu para criar, nem mesmo quando desconfiei de que Vicente
me deixaria ou quando, após aceitar o meu papel naquele ajuste de vida,
pisei pela primeira vez no prédio em que trabalhava como CEO.
Quando cheguei em casa naquela noite, minha mãe lavava os pratos
da janta enquanto Bruna estudava na mesa da sala. A conversa, em pé, na
cozinha, com a Dona Sara de costas para mim, aconteceu como imaginei que
seria. O primeiro momento foi de acusação, de negação e por pouco, por
bem pouco, não me fez desistir. Contudo, outra vez, Fernando tinha razão.
Quando retirei a carta da bolsa e entreguei para que minha mãe lesse,
ela secou as mãos no avental e me olhou com desconfiança. Então, à medida
que lia cada linha escrita à mão pelo seu patrão, eu assistia a realidade recair
sobre ela. A mão foi a boca muitas vezes, os olhos marejaram e quando ela
finalizou, com os dedos trêmulos estendeu o papel de volta para mim pela
mesa pequena da cozinha, em seguida, sentou-se e se deixou levar pelos
pensamentos.
— A senhora entende agora?
— Por que não me contou antes?
A voz cansada, entretanto não mais carregada de acusação, surtiu
efeito calmante em mim.
— Porque ele exigiu segredo. Inclusive, antes de recebê-la, assinei
um termo de sigilo. Não posso falar sobre isso com ninguém.
No mesmo instante olhei para a sala, Bruna na minha visão
balançava a cabeça ao som da música em seus fones, enquanto anotava algo
no caderno. Em dia normal eu chamaria a sua atenção, mandaria retirar os
fones, prestar atenção na atividade, porém, o momento não poderia ser mais
oportuno.
— Então por que contou? — Minha mãe me encarou com olhos
imensos, assustada.
— Como convencê-la de que precisamos mesmo nos mudar para a
mansão? — sussurrei, incerta sobre Bruna.
— Não sei, Laura…
Mas ela sabia e no final das contas, aconteceu. Combinamos de
vender todos os móveis que estavam em bom estado e levar só as nossas
coisas. Com minha mãe ciente de cada termo daquela herança, ficou mais
fácil trabalhar no que deveria fazer. E a verdade era que havia dinheiro para
nos deixar despreocupadas, o Sr. Quaresma soube ser generoso comigo
naquele seu último pedido. Quando aquele inferno tivesse um fim,
recomeçaríamos longe deles.
Carlos entrou com o carro na garagem e eu podia jurar que jamais vi
aquele homem com um sorriso mais satisfeito. Já minha mãe, desacostumada
com o luxo, quando este se voltava para o nosso uso, agarrava a bolsa como
se esta fosse a sua bóia salvadora. Bruna, por outro lado, não se continha de
tanta ansiedade.
— Meu Deus, nem acredito que vamos mesmo morar aqui — ela
disse com a mão na porta, pronta para abrir no instante em que Carlos
parasse o carro. — Meu quarto é grande? Não vamos mesmo dividir um
quarto, não é? Posso ter um cachorro? Laura, você sabe que eu sempre quis
um cachorro.
— Cachorro é responsabilidade — minha mãe argumentou com as
palavras que utilizava para tirar aquela ideia da cabeça da minha irmã
sempre que o assunto surgia. — E a sua responsabilidade agora é estudar.
— Mas nós podemos ter alguém para cuidar do cachorro, não
podemos? Sabia que existem pessoas que são pagas para passear com os
cachorros dos granfinos? — Bruna não se deixou intimidar. — E também
podemos pagar banho, tosa, ração… e alguém pode se encarregar de
adestrar, então…
— Bruna, não seremos essas pessoas — eu a interrompi. —
Esqueceu o que conversamos sobre utilizar esse dinheiro com sabedoria?
— Mas é muito dinheiro!
Sim, muito, contudo, não meu, mas minha irmã não podia saber deste
detalhe.
— Tudo é merecimento — concluí com as minhas palavras sempre
usadas quando minha irmã tentava me persuadir a convencer a nossa mãe.
— Faça a sua parte para merecer um cachorro.
— Que saco! — ela ralhou, porém a sua birra não durou nem dois
segundos. Carlos estacionou o carro e Bruna pulou para fora como se o
banco de couro pegasse fogo.
— Ei, garota, não entre desse jeito! — Minha mãe gritou para conter
a filha, sem sucesso. Bruna desapareceu porta adentro. — Tem certeza de
que é isso o que quer? — ela disse ao voltar-se para mim.
Dei de ombros. Do que adiantaria responder se chegamos até a porta?
Voltar não era uma opção.
O problema “Bruna” perdeu a nossa atenção quando Fernando
chegou em seguida no próprio carro. Ele fez questão de ajudar com a
mudança e levar a outra parte das nossas malas. Eram poucas, no entanto, o
carro que Carlos usava para me conduzir não possuía espaço para três
pessoas e todas as nossas coisas.
— Dr. Fernando está bastante interessado nisso — minha mãe
resmungou e eu segurei o sorriso que se estamparia em meus lábios.
— Ele também sabe de tudo — sussurrei.
— Isso vai além do interesse profissional — ela devolveu no mesmo
tom.
— Mãe!
— Não entraram ainda? — Fernando falou antes de estacionar o
carro.
— Eu preferia fazer isso com você, porque…
Mas não tive tempo de explicar a minha preocupação. O grito de
Bruna me alertou, no mesmo segundo avancei para dentro da casa. Então a
encontrei com dois seguranças, um segurava em seu braço e o outro falava
pelo rádio. Atrás deles, Sabrina e Vicente.
— O que estão fazendo? Largue ela! — rosnei ao puxar minha irmã
da mão do brutamontes. — Quem você pensa que é?
Quando trabalhávamos naquela casa não havia seguranças como
aqueles, no máximo um caseiro, um jardineiro e um funcionário que servia
tanto de porteiro como de segurança. À noite, acionavam os alarmes e não
havia medo, até porque era uma casa de luxo dentro de um condomínio de
luxo.
— A senhora… — ele começou a dizer, mas Sabrina se adiantou.
— Sua irmã invadiu a minha casa — acusou com o tom educado
mais falso que existia no planeta. — Pedi aos seguranças para retirá-la. Não
se preocupe, não chamei a polícia — e ela teve a ousadia de sorrir para mim
como se a gentileza fosse, de fato, real e necessária.
— Pois chame a polícia que você verá quem será escoltado para fora
desta casa. Aliás, da minha casa — ressaltei, enfurecida, raivosa ao limite.
Sabrina se surpreendeu com a minha resposta, seu sorriso se desfez,
sua postura deixou claro que se não fosse pela mão do marido em seu
ombro, partiria para cima de mim.
— Essa casa é minha. Pertence a minha família — devolveu sem a
educação forjada.
— Não é o que diz o testamento — desafiei.
— Laura, calma. — Minha mãe se aproximou de mim, abraçou
Bruna e, para alimentar a minha raiva, baixou o olhar diante de Sabrina. —
Você não avisou a eles que viríamos? — disse, baixinho.
— Viriam? E por que viriam a minha casa sem um convite? — A
maluca continuava na sua missão de se fazer de desentendida.
— A casa é minha, Sabrina —- eu disse, a voz moldada, obrigada a
não fazer daquilo uma guerra para não desestimular minha mãe no seu
primeiro dia. — E sim, viemos para ficar. Mas não se preocupe — ergui a
mão para calá-la quando ela ameaçou falar as bobagens que dizia quando
entrava em um embate comigo. — Sou uma pessoa generosa, nesse caso, por
enquanto, vocês podem ficar. Ocuparemos a ala que antes pertencia ao Sr.
Quaresma.
— Você não fará isso! — Sua voz, antes educada, parecia pior do que
a de uma pessoa criada na selva. — Vicente, ligue para o nosso advogado.
— Na verdade não precisa, Vicente — Fernando se intrometeu. —
Sabrina, bom dia. Como você sabe, no testamento deixado pelo seu pai e…
— Eu sei! — ela gritou. — Mas não concordo. Meu advogado
resolverá isso.
— Tudo bem, enquanto isso, Laura e a família possuem o direito e a
ordem judicial, para tomar posse da casa,
Fernando lhe estendeu o documento que teve o cuidado de
providenciar para garantir que não seríamos escorraçados de lá. Sabrina
pegou o papel, Vicente, atrás dela, lia o que conseguia sobre os ombros da
esposa. Ele não teve a decência de fingir me odiar por aquilo, pelo contrário,
valendo-se da sua posição, olhou para mim e sorriu, como se me apoiasse e
esperasse que com isso, conseguisse a minha confiança, ou o meu amor.
Cacete! Como eu pude amar aquele idiota um dia?
— Você adorou isso, não foi mesmo, Fernando?
Sabrina disse ao abandonar o documento sobre o sofá. Toda a sua
atenção focada no meu advogado, enquanto ignorava o marido que me
lançava olhares cheios de segundas intenções.
— Essa é sua vingança pessoal?
Atrás dela, Vicente deu uma risada curta e escrota, como se adorasse
aquela situação, ser o cara que roubou a vaca gorda do outro, a galinha dos
ovos dourados.
— Você acha mesmo que eu perderia o meu tempo por isso? —
Fernando ironizou e seu tom de voz deixou claro o quanto ela era infantil.
Sabrina recuou, talvez envergonhada, mas eu não podia ter esta
certeza, já que ela era um ser capaz de esconder os sentimentos se assim
desejasse.
— Tudo bem. O juiz determinou e não serei eu a contrariar a lei.
Meu advogado entrará com o pedido de reintegração de posse, nesse caso,
não fiquem à vontade. E Laura… cuidado, esse pode ser o seu inferno.
Ela deixou a sala, os pés nada controlados, batiam no porcelanato
enquanto ela se dirigia para a ala que pertencia ao irmão.
— Vicente! — Gritou no instante que desapareceu na escada.
O marido, que perdia seu tempo com sorrisos e expressões para me
agradar, se deu conta de que, como cão fiel, deveria correr atrás da esposa.
Quando ele saiu, eu respirei aliviada.
— Eu avisei que não deveríamos vir — minha mãe acusou, porém
não como se censurasse, mas com medo pela ameaça de Sabrina.
— Não se preocupe, Dona Sara, Sabrina ladra, mas não morde.
Nunca mordeu — Fernando brincou.
— Mordeu quando roubou o noivo da minha filha.
Pela primeira vez, desde que aquele dia começou, eu sorri de
verdade. Minha mãe tomava a minha defesa, demonstrava onde estava o seu
apoio e eu soube que, apesar de tudo, ela não permitiria que ninguém me
machucasse.

BERNARDO

No geral, eu acordava com uma ereção. Nem sempre uma ereção


potente, de tesão acumulado ou desejo, mas aquela do sono, do despertar
delicioso em uma cama fantástica. Contudo, naquele dia, ou, para ser
sincero, há alguns dias, eu acordava com o corpo castigado, sofrido por um
desejo que eu odiava sentir.
E a culpa disso era de Laura Lacerda, a usurpadora dos lábios mais
doces, delicados e deliciosos que já experimentei. A dona da língua sensual
que acariciou a minha como a serpente que seduziu Eva, e do corpo sem
exageros e sem faltas, tão bem encaixado ao meu que me fez sentir… raiva.
Eu sentia raiva. Ponto final.
Ignorei a ereção todos os dias, corri na esteira, joguei tênis, até
mesmo meditei. Não daria àquela garota a ousadia de uma punheta em sua
homenagem. Não. Laura primeiro precisava devolver a nossa empresa e
então… Não… sem então e sem primeiro. Laura devolveria a nossa empresa
e pronto.
Porém, meu ego exacerbado, meu instinto de macho incapaz de não
se gabar, gritava vitória quando se perdia na lembrança do beijo. Ela
correspondeu a Fernando da mesma forma? Ele a beijou? Havia a mesma
conexão? E até esse pensamento me fazia odiá-la.
O barulho do lado de fora do meu quarto me alertou. Sentei na cama,
puxei o edredom para esconder a vergonha por acordar cheio de tesão por
causa de uma porra de um beijo e aguardei.
— Ele já deveria ter acordado — ouvi Sabrina dizer com um tom
nada amigável e no segundo seguinte, abrir a porta do meu quarto sem pedir
licença. — Ótimo! Ele já acordou.
— E você deveria ter mais educação — acusei.
Vicente surgiu na porta e me cumprimentou de forma descuidada,
ciente do quanto a esposa estava em seu momento “não me atrapalhe”.
Aquele cara era muito imbecil. No entanto, pensar no quanto eu acusava o
meu cunhado por ser um pau mandado da minha irmã caçula, me dava conta
de que eu também era aquele cara, ou fui, porque se havia algo que Sabrina
fazia com maestria, era manipular as pessoas.
— Não temos tempo para isso. A situação é crítica — ela foi direto
ao assunto.
Andava pelo meu quarto sem me olhar, os pensamentos, com toda
certeza do mundo, trabalhavam em algum plano
— Sabe o que aquela cretina fez? Acabou de se mudar para cá. Ela,
Sara e aquela menina horrorosa que destruirá a nossa casa.
— Ah, foi mesmo?
Confesso que me obriguei a não sorrir. Laura era inimiga e eu não
podia ceder a garota só por causa de um beijo, e da maneira como sua língua
era gostosa, ou de como nossos corpos se encaixavam e… Não, porra! Ainda
assim, apesar da frustração matinal de acordar desperto pelo desejo sobre o
qual não havia a minha permissão, a informação de que Laura agora morava
na mesma casa que eu, de certa forma, potencializou a minha ereção, que,
àquela altura, já deveria ter desaparecido. Em especial por minha irmã
caminhar pelo quarto como um animal prestes a atacar.
— Você!
Ela apontou para mim e me encarou com toda a sua raiva.
— Eu?
— Você vai usar cada segundo do seu dia para seduzir essa garota.
Transe com ela. Faça um filho nela, faça qualquer coisa, mas eu quero a
minha vida de volta! — Gritou essa última parte como se não houvesse mais
equilíbrio nela.
— Eu acho que essa ideia é um pouco… — Vicente se intrometeu,
mas bastou um olhar de Sabrina para que se calasse.
— Sabrina, sério? Um filho? O que acha que um filho fará para nos
devolver a nossa herança?
— Não sei! — Ela gritou outra vez, descontrolada com toda certeza.
— Faça alguma coisa porque aquele cretino do Fernando está lá, com ela, se
achando o próximo a comandar tudo e eu… eu… Case com ela —
determinou cheia de si. Case-se com aquela filha da puta. Faça ela assinar
um documento que te dá posse de tudo e em seguida chute a bunda dela até
que ela volte para o inferno de onde saiu.
— Vocês eram melhores amigas — acusei, horrorizado com a
maneira como minha irmã formulava a desgraça de uma pessoa que já foi
importante para ela.
— E hoje mato aquela desgraçada sem pensar duas vezes — ela
confessou, sem titubear, repleta daquela certeza. Até eu me assustei com a
possibilidade. — Primeiro, case com ela. Prometo jogá-la da escada na lua
de mel.
— Olha, isso não tem sentido algum. Você não está em seu estado
natural e…
— Eu sei! — Mais uma vez minha irmã gritou, histérica.
— Amor…
Vicente tentou alcançá-la, mas o idiota era tão desatento ao que
Sabrina era, que mesmo depois de alguns anos ao lado dela, não entendia
que quando minha irmã surtava, não suportava que lhe tocassem.
— Faça alguma coisa — ela proferiu com raiva, a atenção focada em
mim e o corpo longe do marido. — Faça alguma coisa ou eu mesma farei —
ameaçou para logo após, sair do meu quarto sem se importar com o marido,
idiota, parado sem nada fazer.
— Hum… Vicente… Poderia…
— Cara! — Ele passou as mãos no cabelo, os olhos fixos na porta
por onde a esposa passou e o deixou para trás. — Ela está louca.
— Eu percebi. Então… você poderia…
— Bernardo…
Vicente andou em minha direção e sentou na minha cama como se
não houvesse nada de errado em ele sentar próximo a mim enquanto a minha
ereção se mantinha presente. Recuei, intimidado, aborrecido, sei lá.
— Sabrina não quer me ouvir, mas, cara… — Ele se inclinou em
minha direção com intensidade. — Eu resolveria isso em pouco tempo.
— Você?
— Claro! Laura ainda é louca por mim. Sempre foi.
Ok! Vicente encontrou uma maneira de me fazer broxar.
— Vicente, eu acho que…
— Não significaria nada. Eu sou louco pela sua irmã. Mas Laura só
cederá a mim e Sabrina não aceita isso.
— Porque na verdade Laura te odeia — revelei. — E se você tentar
algo, ela descontará em mim e na minha irmã.
— Ou… ela encontrará uma maneira de se vingar de Sabrina sem
saber que a enlacei em um plano perfeito.
— Eu agradeço a sua preocupação, mas é melhor manter suas mãos,
seus olhos e tudo ligado a você, voltado para Sabrina, ou teremos duas
mortes aqui.
— Laura é louca por mim, cara. — Ele tentou mais uma vez, o que
me enlouqueceu.
— Ela me beijou. Ontem. Então… — dei de ombros. — Estamos no
caminho certo. Eu assumo daqui. Agora, se me der licença… — indiquei a
porta do quarto, mas Vicente me encarava de uma forma estranha.
— Ela te beijou?
— Beijou.
Ok. Confesso que meu tom orgulhoso não deveria se apresentar,
mas… lá estava ele, se exibindo como se beijar Laura fosse como acertar na
loteria.
— Mas beijou… beijou?
— Vicente, saia do meu quarto e me deixe em paz. Pelo amor de
Deus!
Ele obedeceu, não sem demonstrar preocupação. Contudo, não me
demorei na ideia. Corri para o banheiro e me preparei para o que seria aquele
encontro.
Laura embaixo do mesmo teto que eu… Era muita sorte.
“Quem já passou por essa vida e não viveu,
Pode ser mais, mas sabe menos do que eu.
Porque a vida só se dá pra quem se deu,
Pra quem amou, pra quem chorou, pra quem sofreu.”
Como dizia o poeta -
Maria Betânia / Toquinho /Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 18
BERNARDO

Eu tinha reais motivos para atravessar a minha ala e me atrever a adentrar a


dela, quer dizer, a do meu pai, que passou a ser dela e que, de alguma forma,
deveria ser minha e de Sabrina. Porém, confesso que, todos os meus passos,
desde que me levantei da cama, tomei banho e me arrumei, nenhum dos
motivos que eu teria para fazer aquele jogo, me impulsionou. Eu até quis,
mas a verdade era que apenas o beijo me movia.
Olhar Laura em sua vida fora da empresa, talvez quebrasse o
encanto, me fizesse ver que não era tudo aquilo que me permiti sonhar ou
entendesse, de uma vez por todas, a inconformidade do que eu lembrava
como a realidade. Atravessei a sala e me dei conta da movimentação na
cozinha. Sara, de volta ao que amava fazer, me fez repensar o passado e
amansar meus demônios.
Eu sentia falta daquilo, do cheiro da comida, dos falatórios das
mulheres, do tilintar dos talheres. Por um segundo me perguntei se ela faria
aquele bolo de abacaxi com chocolate que ninguém mais fazia e, por um
instante, me permiti divagar, retornar a infância, quando eu voltava para casa
e roubava algo da cozinha, sempre descoberto por Sara e pago com um
beijo.
Em algum lugar da casa, no passado tão distante, Sabrina e Laura
brincavam. Eu ouvia as risadas, mas nunca me preocupava em conferi-las.
Minha mãe, ainda viva, perguntava pelo meu dia, mas era Sara a primeira a
fazer isso, nós só não contávamos. Meu pai, no trabalho ou em alguma
viagem, era uma ausência constante, apesar disso, eu sentia a sua falta.
Eu deveria desistir daquela loucura. Mas como? Se Laura ficasse
com os 50% e fizesse o melhor pelas empresas, eu… não, não serei hipócrita
a este ponto. Eu ficaria puto da vida mesmo. Ela não era nem sequer da
família e ficaria com a metade só porque meu pai se decepcionou com os
filhos que ele mesmo criou?
Independente disso, eu não tinha mágoa dela. Não naquele momento
e definitivamente não por ela insistir naquela loucura. Por pior que fosse
para nós, Laura foi vítima de Sabrina e Vicente. Qualquer ser humano com
sangue correndo nas veias, se divertiria um pouco como vingança. Por isso,
eu não seria uma pessoa ruim com ela. Não planejei aquele erro do arquivo,
não a faria errar, só… compreender que ela mesma não queria nada daquilo.
Até cheguei a acreditar que com o tempo, a confiança e a percepção
de que nada daquilo valia à pena, Laura aceitasse uma porcentagem,
pequena, porém, o suficiente para que tivesse uma vida tranquila. Afinal de
contas, foi nela que meu pai confiou, alguma coisa ele gostaria que ela
mantivesse.
Mas 50% era demais. Acabava com nossa dignidade. Nem tanto a
minha, mas a de Sabrina… Tudo bem, a minha também, mas só quando eu
pensava que Fernando colocaria as mãos no que era meu. Não que eu
detestasse o cara. Pra falar a verdade, antes de Laura assumir, eu nem
pensava em Fernando.
Ele era o carinha lá do jurídico, competente, com toda certeza, digno
da confiança do meu pai, e que um dia trocou uns amassos com minha irmã.
Se houve promessas, ficou entre os dois. Logo, Fernando não cheirava nem
fedia para mim. Mas Laura herdou metade da herança e por um passe de
mágica, se tornou a vingança perfeita de Fernando contra Sabrina. E eu, que
nada tinha com isso, perderia? De forma alguma.
— Sr. Bernardo? — Sara me interpelou no momento em que eu me
encaminhava para a ala onde agora ela e a família ocupavam.
— Sara! — Sorri, nervoso e feliz pela sua presença. — É bom te ver
aqui outra vez.
A mulher tentou não sorrir, mas Sara sempre sorria quando eu a
tratava como alguém da família, e, de verdade, era o que ela era.
— Então o senhor não sabe de tudo — ela retrucou, um pouco tensa
e ansiosa.
— Sei. Sei sim, Sara. Laura se mudou para cá esta manhã. Sabrina
gritou meia hora em meu ouvido. — A mulher se encolheu. — Mas seja
bem-vinda. Senti tanta falta do seu bolo de abacaxi com chocolate! — Ela
sorriu, mas não como fazia antes. Havia certa resistência em sua maneira de
agir.
— Laura disse que eu poderia cuidar da casa. Reassumir minha
antiga função, se eu quisesse. Eu soube que a última governanta foi embora
no segundo dia de trabalho.
— Foi mesmo? — Coloquei as mãos nos bolsos da bermuda e
encarei a mulher, interessado no assunto. — Eu estive bastante ocupado esta
semana. Laura me colocou para trabalhar oito horas por dia. Chegava tão
cansado que nem sabia quem era quem pela casa.
— Ah sim, então Laura está fazendo com você o que seu pai não
conseguiu.
A acusação me causou um certo desconforto. Mas Sara tinha razão.
Meu pai reclamou muitas e muitas vezes do meu horário na empresa e nem
isso me fez mudar. Só… não o beijo, mas o medo de não ser mais parte
daquele sonho. A certeza fez outra vez o desconforto em meu estômago
aparecer.
— Onde ela está? — Eu questionei.
Era melhor encarar a fera de uma vez e tentar amenizar o clima
dentro de casa do que ouvir as verdades que Sara me dizia sem dó nem
piedade.
— Lá em cima. Ela e a irmã estão escolhendo os quartos.
— Alguém de vocês ficará com o do meu pai? — a ideia revirou meu
estômago e eu não conseguia explicar o motivo.
— Por enquanto, Laura.
— Ah! — Cem imagens daquela mulher no quarto do meu pai
desfilaram na minha mente. — Ela está habituada com o local — completei,
a boca seca, a garganta travada.
— Na verdade, só temos três quartos na ala, um escritório e a
biblioteca.
— Verdade. Eu poderia…
— Acho que Laura se importaria, apesar disso… suba.
Sara me deu um sorriso travesso, o que me fez questionar se deveria
mesmo fazer aquilo.
— Tá bom.
Subi as escadas, os meus pés faziam mais barulho do que deveriam, e
com toda certeza utilizei aquela técnica para que tanto Laura quanto a irmã,
soubessem que alguém adentrava a ala. Meu pai em momento algum fez
questão de separar as partes da casa. Deu a Sabrina o direito, uma vez que
fazia parte da herança da nossa mãe, mas se negou a isolar a parte dele com
portas como se não fôssemos mais habitantes da mesma casa. O que de certa
forma facilitava para estar com ele em seus últimos momentos, ainda assim,
a ideia de invadir um local que não era meu, me deixou desconfortável.
Diante da porta aberta, vi Laura, cabelo solto, camiseta regata e
short. Simples e linda. Ainda mais bonita do que quando se produzia para
trabalhar. Demorei alguns segundos só para observá-la. Pernas roliças,
douradas, pés pequenos e bem feitos, coxas proporcionais, bunda empinada
naquele short, a cintura fina fazia a camiseta afrouxar no local, mas os seios
fartos davam todo um sentido ao restante. Ela era espetacular.
— Vai decorar meus passos ou revelar logo o motivo da inspeção? —
Ela disse sem me olhar, sem interromper seus movimentos para arrumar as
coisas da forma como conseguia.
Limpei a garganta e dei um passo à frente.
— Então você resolveu mesmo morar aqui.
— Se vai gritar, dizer que seu advogado cuidará disso, nem se dê ao
trabalho. A maluca da sua irmã já fez por todos vocês.
Sorri. Sabrina estava mesmo possessa com aquela mudança.
— Creio que tenhamos o mesmo advogado. Logo… — Laura parou
o que fazia e me encarou, surpresa.
— Sabrina demitiu o Dr. Estevão. Eu não. E se ele é seu advogado e
meu… não há como aceitar uma questão tão conflitante.
— Você é advogado — acusou.
— Na teoria. Não tenho OAB.
— Às vezes eu esqueço tudo o que você jogou fora nesta vida.
Essa doeu. Independente disso, não me deixaria abater.
— É uma questão de escolha, Laura.
Dei mais um passo para dentro do quarto e observei as coisas que
ainda restavam do meu pai.
— Eu não queria advogar. Mas é excelente para a gestão, ter pleno
conhecimento das leis.
— E do que adianta ter pleno conhecimento das leis se você nem
sequer tem interesse em gestão. Largou tanto as coisas de lado que elas
acabaram nas minhas mãos.
Dei mais um passo para dentro. Laura, ocupada em sua mudança,
nem se deu conta do quão próximos estávamos.
— Se continuar me alfinetando dessa maneira, não sobrará nada de
mim para as boas-vindas.
Sussurrei em seu ouvido. Ela se virou com pressa, tensa, mas
arrepiada, eu notei sem precisar de esforço.
Na beira da antiga cama do meu pai, Laura não tinha escapatória, ou
me empurraria para longe, ou se deitaria nela comigo. A ideia, mesmo que
nada saudável para ambos, me atiçou.
A verdade é que nunca fui homem de fugir de um desafio. E Laura
era um. Não porque Sabrina disse que precisava ser, nem mesmo porque
Fernando me fazia pensar nisso sempre que se aproximava demais, mas
porque aquele beijo se embrenhou em mim, em meu corpo, minhas células,
minha mente.
— Bernardo eu…
— Você… — Um mínimo movimento meu e ela se inclinou para
trás.
Perfeita, pronta para mim. Tão entregue que eu poderia beijá-la
naquele momento. Com todo o meu desejo, meu corpo, minhas vontades.
Mas Laura, apesar de demonstrar o efeito que eu tinha sobre ela, me atiçava
ao ponto de eu desejar mais daquilo, daquela brincadeira, da deliciosa
sensação que antecedia o ato.
— Bem-vinda, Laura — sussurrei em seus lábios.
Ela fechou os olhos, rendida, pronta para ter de mim o que eu
desejasse lhe dar, mas eis que o destino não quis assim. No instante em que
meus lábios tocaram os dela, que sentiram aquela deliciosa maciez, a textura
magnífica, Bruna, a irmã mais nova, entrou no quarto com tudo.
— Laura eu encontrei…
Laura, assustada, deu pra trás. O problema era que na posição em que
estávamos, ou ela se agarrava em mim ou desabava sobre a cama. Eu
escolheria qualquer um dos dois, se pudesse continuar o beijo, o fim seria o
mesmo independente da reação, no entanto, assustada com a chegada
repentina da irmã, Laura caiu pra trás, se espatifou sobre a cama, as pernas
abertas como se esperasse que eu me juntasse a ela, se não fosse a garota
intrometida.
— Laura!
A garota gritou, espantou o clima e, como se eu fosse parte da
mobília, me empurrou para o lado e ofereceu a mão para ajudar a irmã.
— Você está bem?
— Estou — Laura disse, atordoada.
— Lógico que ela está — pirracei, as mãos nos bolsos da bermuda
para esconder a reação do meu corpo.
Maldito poder que aquela pele brilhante tinha sobre mim.
— Eu estava… — Laura tentou encontrar uma desculpa e se perdeu
nesta. Eu sorri porque tinha a resposta exata.
— Testando a cama — complementei sem titubear e ela me lançou
um olhar reprovador que me atiçou ainda mais. — Eu te disse que era macia.
Meu pai gostava de camas boas. O colchão é o mesmo do meu, por isso
posso dizer que é uma delícia passar a noite sobre ele.
Quanto mais eu falava, mais vermelha ela ficava, e quanto mais
vermelha ficava, mais desfrutável me parecia. Porra, eu queria aquele beijo,
queria aquele corpo e aquele teste do colchão.
— E então, Bruna… Bruna, não é?
A garota sorriu e corou, não como a irmã. Era mais espevitada, não
escondia o quanto a minha beleza a agradava e seu sorriso fácil não deixava
dúvidas da diferença entre ambas.
— Isso. — Ela disse com uma mecha de cabelo na mão, que torcia
no dedo. Tão jovem.
— Gostou do seu quarto?
— Adorei! — a garota só faltou pular sobre mim. — Tem um closet,
meu Deus! Eu sempre sonhei com um closet. Acho que estou meio como as
garotas dos filmes. E tem uma banheira, sabia?
— Bruna! — Laura tentou fazer a irmã parar de tagarelar, mas eu me
divertia com aquilo.
— Não me lembro bem das banheiras desta ala, mas a sua tem uns
botões para massagear? — Dei corda. A menina começou a saltitar.
— Não sei. Ai meu Deus! Eu preciso descobrir como fazer isso.
— E tem as bolinhas de espumas que…
— Já chega — Laura quase gritou. — Bernardo, eu agradeço a sua
ajuda, mas no momento estamos ocupadas demais.
— Que coisa, horrível, Laura! — Bruna reclamou. — Se a mamãe
estivesse aqui, você não falaria desse jeito com o Sr. Bernardo.
— Só Bernardo, por favor — continuei o galanteio, ciente de que
Laura se incomodava cada vez mais.
— Tudo bem, Bernardo, então, como funciona mesmo esse tal botão
na banheira?
— Eu te ensino — Laura tomou a frente e no mesmo instante, com as
mãos espalmadas em meu peito, me empurrou para fora. — Bernardo, eu
agradeço as boas-vindas, mas como eu disse, estamos mesmo ocupadas.
Ela me colocou para fora do quarto e bateu a porta na minha cara. No
entanto, há muito tempo eu não me sentia tão animado.
“O amor (Por céus e mares eu andei)
É o carinho (vi um poeta e vi um rei)
É o espinho (Na esperança de saber)
Que não se vê (O que é o amor)
Em cada flor.”
O velho e a flor - Toquinho /Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 19
LAURA

Era sábado e desde que sábado se tornou sábado, Bernardo não ficava em
casa por nenhum motivo neste mundo, mas, naquele dia, naquele inferno de
dia, ele ficou. E, para piorar a minha situação, não havia um lugar por onde
eu passasse que ele não estivesse. Tomou sol na piscina. De sunga. Cacete!
Não que eu nunca tivesse visto aquele playboy de sunga na vida, só não me
dei ao trabalho de observar.
Mas foi impossível não observar.
Em especial depois do beijo e ainda mais, depois de ele ter invadido,
não, Bernardo não invadiu o meu quarto, eu o convidei e talvez esse fosse o
meu maior erro. Onde eu estava com a cabeça? O cara queria me conquistar
para tirar de mim a herança, que… ok, era dele, mesmo assim, tudo o que
vinha dele não passava de um grande plano, no qual eu cairia feito uma pata,
caso ele se aproximasse.
— O que há com você, Laura? — resmunguei antes de tomar o
último gole de suco de laranja que minha mãe levou no escritório.
Como não podia deixar de ser, ocupei o antigo escritório do Sr.
Quaresma, e, também, para variar, Bernardo se esbaldava na piscina que
ficava em um ângulo espetacular da janela atrás da cadeira que eu ocupava
enquanto estudava sobre as empresas e dava o meu melhor.
— Fernando tem razão. Seria melhor acabar com isso de uma vez —
resmunguei, cansada e confusa.
Mudar nos colocaria no plano, contudo, me jogava na fogueira como
as Bruxas de Salém.
— Isso o quê?
Vicente apareceu em minha porta sem me pedir autorização para
entrar. Suspirei. Minha vontade era de escurraçá-lo como a um cachorro,
entretanto, o melhor a fazer era dar corda, deixar Sabrina descobrir o cretino
do marido que escolheu e me livrar daquele peso.
— O que faz aqui, Vicente? Sua esposa terá outro ataque no instante
em que perceber que você não está rodeando as pernas dela — provoquei.
— Sabe que você fica…
Ele puxou o ar, como todo grande cafajeste faria. Sério? O que eu vi
naquele cara?
— Maravilhosa nesse escritório, shortinho curto, camiseta… —
Fechou a porta atrás de si. Que cretino!
A cada palavra, ele dava um passo na minha direção. Segurei o
notebook nos dois lados, pronta para meter na cara dele se fosse necessário.
— E trabalhando como uma executiva. Laura, Laura… — Balançou
a cabeça como se aquilo fosse sensual.
— Se Sabrina abre a porta desse escritório e te encontra comigo,
teremos um problema.
— Sabrina está dormindo. Ela ficou maluca. Tomou um desses
remédios para pessoas desequilibradas e adormeceu.
Eu me perguntei se deveria gravar aquela conversa. Seria uma ótima
prova. Bastava enviar para Sabrina e quem sabe, metade dos meus
problemas estariam resolvidos, mas Vicente se aproximou demais, as duas
mãos espalmadas na mesa onde eu trabalhava e próximo a elas, o meu
celular.
— E você tratou de correr para cá para me convencer de que me ama
e que seu casamento não existe mais?
— Você sabe que eu sempre te amei. Nunca deixei de mostrar o
quanto sentia a sua falta.
— Ah, claro, quando me agarrava na cozinha ou nos corredores desta
casa e recebia uma porrada minha como demonstração do meu amor.
— Não faz assim, Laurinha — pediu com dengo.
Meu Jesus Cristo, quando namorávamos ele não agia como um idiota
daquela forma. Agia? Não, eu me lembraria. Com certeza aquela voz
dengosa e infantil, ele adquiriu para agradar Sabrina.
— Quer provar que me ama? Vá embora. Largue Sabrina.
Vicente piscou várias vezes, ergueu a coluna e me deu a chance de
pegar meu celular. Ele passou a mão pelo cabelo em um penteado que com
certeza não gostaria de desfazer.
— Você está de brincadeira comigo — ele disse, sério, os olhos fixos
em mim.
Cruzei os braços e desejei ter tido mais tempo para aprender a
manusear o Iphone e gravar aquela conversa de uma vez por todas.
— Estou?
— Você não vai ficar comigo, Laura.
— Se acredita mesmo nisso, o que faz aqui?
— Se quisesse ficar comigo não beijaria o Bernardo — acusou.
Mas não foi uma acusação tranquila, foi como se eu o tivesse traído.
Que idiota! Entretanto, pisquei diversas vezes e meu rosto esquentou de uma
maneira absurda.
Levantei-me com pressa, fui até a janela e, Bernardo de sunga se
estirava na espreguiçadeira e exibia aqueles gominhos perfeitos do abdômen.
Puxei o ar com força.
— Ele te contou?
— Claro que ele me contou. Esses dois estão dispostos a tudo para
tirar essa herança das suas mãos. Você sempre foi tão inocente.
Virei para Vicente e o encarei, recuperada, contudo, continuava
impactada com a imagem de Bernardo tão à vontade na piscina.
— Bom, ele me beijou.
— E você fala assim?
— Vicente… — foi a minha vez de me apoiar na mesa e encará-lo.
— Vocês dois querem isso de mim. No final das contas, tudo se resume a
dinheiro, a herança, desse modo… — dei de ombros e fingi não me importar.
— Pelo menos Bernardo age.
Não sei se aquelas foram as palavras corretas para o momento. Eu
não queria dizer para Vicente me beijar, pelo amor de Deus, não! Eu só quis
fazê-lo entender que se ele me provasse o seu interesse, ganharia a corrida.
Porém, Vicente não entendeu dessa forma, e, antes que eu conseguisse
reagir, ele me segurou pelos ombros e me puxou em sua direção.
Graças a Deus a mesa estava entre nós. Ele me beijou. Não um beijo
como o que Bernardo me deu. Vicente me agarrou de surpresa, por isso seus
lábios encostaram nos meus e me certificaram de que nada restava daquele
amor inocente que um dia nutri por ele. Na verdade, assim que ele conseguiu
encostar nossas bocas, abriu os lábios e me babou de forma a me fazer
despertar do transe e empurrá-lo para longe.
— O que… seu…
— Ele não vai te tirar de mim — determinou.
— Vocês são dois idiotas. Saia do meu escritório! — Meu tom de voz
imperativo e alto o alertou.
— Você me ama, Laura — a convicção em sua voz me enojou. — A
gente ainda combina muito.
Ah, claro! Se eu adorasse ter a boca lambida por um cachorro, com
toda certeza.
Uma batida leve na porta fez com que Vicente se afastasse da mesa
com pressa.
— Entre — determinei e aproveitei para limpar os lábios babados.
Fernando abriu a porta e se surpreendeu com a presença de Vicente
no escritório, sozinho comigo. Meu amigo não passou da entrada. Colocou a
mão no bolso da bermuda informal e eu pude vislumbrar o quanto ele ficava
bonito vestido de forma casual.
— Atrapalho? — ele disse com certo receio.
— Não. Vicente já estava de saída — informei, mas meu ex não se
moveu. Ele encarou Fernando, depois a mim, e em seguida deu um sorriso
escroto.
— Como vai Dr. Fernando?
— Bem. E você? Onde está Sabrina?
— Dormindo.
Fernando concordou, sem acrescentar mais nada. O silêncio ficou
incômodo demais para mim, que não suportava a pressão.
— Vicente, pode nos dar licença?
— Reunião no sábado à tarde? — Vicente não se dava por vencido.
— Na verdade…
Respirei fundo, porque eu diria “não é da sua conta”, por isso
precisei relembrar que o plano era fazer com que Vicente se sentisse
estimulado o suficiente para dar aquele passo errado.
— Fernando ficará para o jantar — avisei. Fernando estreitou os
olhos, mas nada disse, já Vicente conferiu no relógio e estranhou.
— Cedo para o jantar.
— Eu quis chegar cedo para… — Fernando gesticulou na minha
direção e eu falei a primeira coisa que me veio à cabeça.
— Jogar cartas.
— Jogar cartas? — os dois disseram ao mesmo tempo.
— Minha mãe adora, Fernando. Eu pensei em fazermos algo que ela
goste para que se sinta à vontade.
— Claro. Cartas — Fernando completou, perdido.
— Vamos? — Com pressa, fechei o notebook e procurei a chave do
escritório sobre a mesa. Não tinha como confiar em ninguém naquela casa.
Fui até Fernando, que abriu a porta e me deu passagem, depois
aguardou por Vicente, que continuava nos observando com interesse. Ele
saiu do escritório, eu o tranquei, coloquei a chave no bolso e tomei o
caminho das escadas como se dependesse daquilo para viver.

***

— Cartas?
Fernando sussurrou para mim quando estendemos a toalha sobre a
mesa no jardim, bastante próxima da piscina e de Bernardo que eu lutava
contra meus olhos para não acompanhar seus passos quando ele deixou a
área e sumiu para dentro da casa.
— Foi a primeira coisa que eu consegui pensar — respondi no
mesmo tom. — O idiota me beijou, acredita?
— Bernardo?
Fernando não demonstrou surpresa com a possibilidade. Apesar de
ser verdade, eu não contei a meu amigo sobre este detalhe, que ainda me
envergonhava, em especial depois do ocorrido pela manhã.
— Vicente.
— Vicente? — Seus olhos se ampliaram e Fernando esqueceu rápido
da toalha. — Vicente te beijou? Sério?
— Eu não beijei ele. Eca! Ele me beijou, de surpresa. Eu disse que se
ele me amava como dizia, que deixasse Sabrina e a casa, mas o que ele fez?
Ele me beijou.
— Isso me assusta, Laura — confessou.
— A ideia não era essa? Fazer com que Sabrina descobrisse o
cafajeste com quem casou?
— Bom… você terá um caso com ele?
Enquanto falava, Fernando alisava a toalha e tentava não colocar
peso em suas perguntas, entretanto, eu sentia o quanto pesava a ideia, a
situação e tudo o que viria com isso.
— Eca! — repeti com mais ênfase, para que ele tivesse essa certeza.
Fernando riu. — Mas você me disse para…
— O problema é que vocês foram noivos — pontuou sem me
encarar. — E se ainda restar algum sentimento por ele, com certeza Vicente
te ganha e desfaz todos os nossos planos.
— Eu já fui idiota uma vez. Uma vez. Pronto. Sei bem quem é a
peça. Fique tranquilo.
— Você sabe que existe uma câmera no escritório, não é?
No mesmo segundo meu rosto esquentou de forma violenta, desceu
pelo pescoço e quase explodiu minhas orelhas.
— Ah, você não sabia. — A maneira como ele me encarou me
deixou nervosa. — Bom, o Sr. Quaresma mandou instalar quando Sabrina
casou. Ele não confiava em Vicente e nem nos filhos, para dizer a verdade.
— Entendo. Então, temos uma prova.
— Não tão rápido. A câmera captura só as imagens e após 24hs a
empresa apaga. Na verdade, preciso verificar com meu pai se o vídeo ainda
está lá.
— Então o escritório é o melhor lugar — pontuei, a cabeça cheia de
ideias. — É um lugar de fácil acesso, longe dos olhos de Sabrina e que deixa
Vicente confortável.
— Mas não temos som. Com Sabrina precisaremos de tudo.
— Eu providenciarei o som, é só você me ajudar com…
— Vão jogar cartas? — Bernardo nos interrompeu.
Lindo. Cabelo molhado penteado para trás de forma casual, a pele
bronzeada tinha um brilho que dava a ele um ar de… não sei… estrela de
TV? Pode ser. Mas os olhos azuis ganharam um destaque mais especial. Ele
sorriu, exibiu aqueles dentes perfeitos e brancos dignos de um comercial de
creme dental. O abdome coberto por uma camisa polo ajustada ao corpo e
completava o visual com bermuda e sandália. No entanto, o que mais me
impactou foi o perfume, nada forte ou ativo, mas suave e… delicioso, como
se exalasse da própria pele.
— Laura? — Ele disse, um sorriso descarado nos lábios e as duas íris
azuis fixas em mim. — O que será? Carteado? Posso me juntar a vocês,
certo?
— Ah… — pigarreei e me odiei por isso. Bernardo mexia demais
comigo, me deixava boba, impactada e eu não era nada daquilo. — Minha
mãe joga canastra.
— Ótimo!
O cretino puxou a cadeira, a que ficava na minha frente, e sentou. O
que deixava claro que seríamos uma dupla. Cacete!
— Desculpem o atraso, mas precisei achar o baralho. — Minha mãe
chegou, alegre, um sorriso que aumentou quando viu Bernardo sentado à
mesa. — Já definiram as duplas? O senhor joga bem, Dr. Fernando?
— Hum, depende. Defina bem.
Minha mãe riu e me deixou contente. Não a imaginei rindo naquela
casa por um bom tempo, afinal de contas, pairava sobre as nossas cabeças o
fio da espada dos Quaresmas.
— Eu jogo muito bem — Bernardo se exibiu.
— Que bom, porque Laurinha não joga nada — minha mãe me
entregou.
A verdade era que eu pouco me interessava pelo jogo. Detestava a
ideia de segurar tantas cartas e ajustá-las na estratégia exata para derrotar o
adversário, apesar disso, odiei a ideia de Bernardo ter um desempenho
melhor do que o meu.
— Laurinha, distribua a mão, eu fico com o morto.
Minha mãe não nos deu oportunidade de escolher nada. Ela sentou,
deu as ordens e ficamos da seguinte forma: eu e Bernardo contra ela e
Fernando. E a pior parte era tê-lo à minha frente, com seu porte exibido e
seu sorriso… bom… lindo, ainda assim, sarcástico.
— Deveríamos beber algo, não? — Bernardo sugeriu. — Jogo de
cartas combina com bebidas.
Ao longe vi minha irmã passar enrolada em uma toalha e se
espreguiçar na beira da piscina. Eu não mensurava se aquilo era bom ou
ruim. Bruna entrou na água sem fazer alardes, deslizou seu corpo
adolescente, no início do desabrochar, e sumiu.
— O que você quer, Laura? — Fernando colocou a mão sobre a
minha e apertou meus dedos. No mesmo segundo, Bernardo inclinou a
cabeça e me deu um olhar reprovador.
— Eu… desculpe, o quê? — Fernando riu, acariciou minha mão e
repetiu a pergunta.
— Vou buscar as bebidas. O que você quer?
— Ah… suco? — Ele riu mais uma vez.
— Tudo bem, suco para Laura.
Fernando se ergueu da cadeira. Tão lindo e atlético quanto Bernardo
e ao mesmo tempo, tão diferente. Bernardo me encarou e me petrificou.
— Traga amendoim — ele acrescentou sem deixar de me olhar.
— Tem bolo de abacaxi que você tanto gosta — minha mãe fez como
sempre fazia quando trabalhava naquela casa, quis agradar o mimado do
Bernardo.
— Vamos jogar como adultos, Sara — Bernardo brincou, aquelas
duas bolas de gudes azuis em mim, que me gelavam e queimavam na mesma
medida, e ela se desmanchou por ele.
Minha mãe não podia se desmanchar por aquele traidor, que se
atrevia a me beijar quando queria.
— Menos, Laurinha. Ela bebe suco — pirraçou, minha mãe riu e
balançou a cabeça.
— Eu bebo…
Só que não tive tempo de responder. Enquanto minha mente virava
gelatina por causa daquele olhar infernal, perdi a noção da proteção que
deveria ter com a minha irmã, e todo o nosso clima evaporou, com o grito de
Sabrina.
— Saia imediatamente desta piscina!
“Quem nunca curtiu uma paixão
Nunca vai ter nada, não.
Não há mal pior do que a descrença,
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão.”
Como dizia o poeta - Maria Bethânia/ Toquinho/ Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 20
LAURA

Eu não sei explicar como cheguei tão rápido a borda da piscina da qual a
minha irmã se refugiava enquanto a maluca da Sabrina gritava sem qualquer
controle. Desconheço como passei por minha mãe, por Bernardo e até
mesmo por Fernando que tão rápido quanto eu, se juntou a confusão.
— Saía dessa piscina — Sabrina repetia. — O que vocês acham que
estão fazendo? Vão destruir essa casa. Vão emporcalhar tudo. Saia!
— Sabrina… amor — Vicente tentava, mas a mulher parecia estar
fora de si.
— Olha no que estão transformando a nossa casa, em um cassino.
Ela riu, mas não foi como se de fato risse ou demonstrasse a sua
raiva através do riso. Foi débil, fora de si, como se estivesse… drogada.
Cacete!
Olhei com pressa para Vicente, no entanto, ele demonstrava vergonha
pela atitude da esposa e tentava, a todo custo, levá-la para dentro.
— Você vai emporcalhar a minha piscina — ela gritou para a minha
irmã.
O sangue criou um furação em minhas veias e o ódio me deixou
ensandecida.
— Cale essa boca! — gritei de volta.
Minha mãe correu e recebeu Bruna, chorosa, nos braços com uma
toalha estendida. Fernando, ao meu lado, segurou meu braço para me
impedir de avançar, já Bernardo, olhava de Vicente para Sabrina sem
entender o que acontecia.
— Essa casa é minha, entendeu? — Informei com toda a força dentro
de mim.
Poucos passos me afastavam daquela cretina, independente disso,
com o dedo em riste, gritei a verdade na cara dela. De uma vez por todas,
Sabrina teria que conscientizar-se o seu lugar naquela situação.
— Essa casa é minha!
Ela gritou de volta, a voz embolada passava a ideia de que havia
bebido além da conta, mas Vicente disse, não apenas para mim como para
Fernando, que Sabrina dormia.
— Sabrina, pare com isso!
Bernardo tentou, segurou em seu braço e quase a arrastou de volta,
porém ela não desistia e se afastou do irmão para direcionar sua raiva à
minha família.
— Pois então fora — gritei mais alto do que ela conseguia. Vicente
me deu um olhar estranho, Bernardo me encarou sem acreditar no que eu
fazia. — Saia da minha casa agora! Vou chamar a polícia e te colocar para
fora agora mesmo.
— Laura, espere, eu… — Bernardo deixou a irmã e se direcionou a
mim.
Fernando colocou a mão sobre a minha e me impediu de discar o
número da polícia, no mesmo instante Bernardo interrompeu os passos e me
encarou como se me cobrasse algo. Minha raiva atingiu seu limite máximo.
— Eu fico com isso. — Fernando retirou o celular da minha mão. —
Laura, Sabrina está…
— E olha esse biquíni, brega, pobre, o que quer vestida dessa
maneira, menina, fisgar um bom partido e garantir a sua parte também?
Eu não aguentei. Não deveria, mas não aguentei. Quando Sabrina
ofendeu minha irmã e a acusou daquelas coisas deploráveis, avancei sobre
ela e acertei um tapa em seu rosto com toda a mágoa que eu guardava dela
durante todos aqueles anos.
Quando eu soube que Sabrina roubou meu noivo, não briguei, não fiz
escândalo, não fui na porta dela cobrar a amizade que ela me devia. Eu
apenas me retirei da vida deles. Recolhi meus cacos e deixei o casal para
trás. Vontade de atacá-la eu tive, porém, valia mais o meu desprezo e da
mesma forma eu fiz quando precisei retornar àquela casa como empregada
do Sr. Quaresma e conviver com os pombinhos.
Contudo, quando ela roubou Vicente de mim, ninguém mais se
machucou, eu sofri, chorei e eu, apenas eu, remoí cada sentimento. Naquele
momento ela atingia a todos nós, não apenas a mim, e eu não deixaria
barato. Quando minha mão atingiu o rosto de Sabrina, foi com toda a minha
força e eu assisti cada segundo da cena em câmera lenta. Porque a vida tem
dessas coisas, né? Quando a gente quer manter algo, passa rápido, mas
quando quer se livrar, quando entende o erro no meio do caminho, ela te
pune desta forma.
Sabrina rodopiou na beira da piscina, Vicente, tão assustado quanto
Bernardo, tanto pela minha reação quanto pela de Sabrina, não conseguiram
segurá-la. Portanto, empurrada pelo meu tapa, eu a vi se desequilibrar e cair
na piscina. Mas esse seria o menor dos meus problemas.
Quando Sabrina iniciou aquele ataque, determinada a intimidar
minha irmã, se aproximava de Bruna cada vez mais, e minha irmã por sua
vez, assustada, fugiu dela, correu para as escadas até que estivesse fora da
piscina, onde minha mãe a acolheu e nós nos avolumamos. Por isso, ao
acertá-la com um tapa que demandou de mim uma força descomunal, foi
neste lugar que Sabrina caiu.
Entenda. Não estamos falando de uma piscina qualquer. Na mansão
dos Quaresmas a piscina principal, a que ficava disponível para todos da
casa e a única existente na planta original, foi arquitetada para ser
inesquecível. E era. Então ela começava com uma longa fileira de degraus
que afundavam até que a pessoa atingisse uma profundidade boa para
mergulhar.
Sabrina caiu nos degraus. E, claro, qualquer pessoa diria, mas é uma
piscina, tem água, ela boia. Não, isso não aconteceu. De fora da piscina, na
posição em que ela se posicionou, quando avancei e a esbofeteei, ela caiu
com facilidade, e, para a minha infelicidade, com a cabeça no degrau,
mesmo que com a existência da água.
E eu assisti cada segundo como se fossem horas. Ouvi Vicente gritar,
vi Bernardo se atirar para resgatar a irmã, minha mãe chamar por mim e
Fernando tentar me impedir. No entanto, o que de fato me alertou foi a
incapacidade de Sabrina se proteger.
Que ela não estava em seu estado normal, eu já tinha certeza, porém,
a maneira como seu corpo despencou, como caiu sem a proteção natural que
qualquer ser vivo teria, sem colocar os braços para impedir a queda ou até…
não sei dizer, mas ninguém teria apagado com um tapa, nem mesmo batido a
cabeça no degrau submerso da piscina.
Mas não para por aí. Ela caiu, bateu a cabeça, todos se assustaram até
que, com Bernardo dentro da piscina, que, por sinal, batia na sua canela,
vimos o sangue se espalhar. Por um segundo houve silêncio. Aquele som
morto, quando o mundo para e nada mais é capaz de reagir.
Puta merda, matei Sabrina.

— Pedi para esvaziar a piscina — Fernando avisou ao se sentar ao


meu lado, junto à mesa onde antes fazíamos planos de jogar e beber.
Eu não conseguia entrar na casa, não conseguia desviar meus olhos
da mancha vermelha que dançava na piscina azul escuro, não conseguia…
respirar. Ele me passou um copo, o qual segurei sem nenhuma reação.
— Beba, Laura. Vai te acalmar.
— Por que ela não colocou a mão para se proteger? — sussurrei,
assustada, sem acreditar no desenrolar daquela confusão.
Mesmo sem olhar para outra direção eu podia ver, refletido na água,
o balançar azul e vermelho da sirene da ambulância e a cada segundo meu
corpo gelava, minha alma gelava, minha mente… eu me encolhi quando
Fernando colocou uma toalha sobre meus ombros.
— Eu acho que… acho que ela bebeu — ele explicou por fim. —
Sabrina não estava em seu estado normal.
— Meu Deus, Fernando!
As lágrimas desceram de uma vez. Até aquele momento eu não me
permiti derramar uma lágrima. Quando vimos o sangue, Vicente pulou na
piscina e Fernando, mais capacitado de todos ali, o impediu de mexer na
esposa.
— Mantenha a cabeça dela fora da água, mas não force o pescoço.
Fernando orientou Bernardo, que, apesar do pânico, obedeceu a cada
instrução. Eles conferiram o ferimento na cabeça, a pulsação, se certificaram
de que ela estava viva, mas nem assim eu respirei, chorei ou reagi. Meu
corpo não aceitava nenhum comando.
Rápido alguém chamou uma ambulância, os bombeiros. “Um
acidente na piscina” eles informaram. Ninguém me acusou, ninguém me
bateu ou me fez pagar por aquele erro. Uma equipe preparada a retirou com
cuidado. Sabrina balbuciava algo. Conferiram suas pupilas, o corte na
cabeça fora superficial, mas levaria alguns pontos. Ela teria que ir ao
hospital para fazer exames.
“Como aconteceu?” um dos bombeiros quis saber. “Ela escorregou
na beira”, Vicente informou, “ela bebeu? Usou drogas? Tomou algum
remédio?” o bombeiro insistia. Não sei o que disseram porque dentro de
mim, eu gritava “Eu. Eu a matei. Eu a derrubei na piscina porque queria
matá-la. Eu queria. Meu Deus, eu queria!”.
— Sabrina está bem, Laura — Fernando sussurrou bem perto de
mim.
Chorei com mais força. Desesperada, magoada, triste. Eu quis matá-
la. Quis. Mas… não queria. Como entender? Quando ela falou aquela
bobagem para minha irmã, tudo o que eu queria era que Sabrina
desaparecesse da minha vida, mas quando a vi na piscina, quando vi o
sangue, eu só lembrava da minha amiga, da que só existia na minha
memória, no meu passado.
— Ela não bebeu? — ouvi minha mãe perguntar ao puxar a cadeira
ao lado e sentar. — Beba, Laura. É maracujá, vai te fazer bem.
Sua mão familiar alisou meu braço, depois meu cabelo, contudo, eu
não merecia ser acarinhada, nem confortada. O que fiz foi monstruoso.
Fechei os olhos e tudo o que vinha em minha cabeça era “Perdão, Sr.
Quaresma. Perdão, Sr. Quaresma. Perdão, Sr. Quaresma.”
— Não fique assim, minha filha. Sabrina está bem. Bernardo acabou
de avisar que os exames não apontaram nada. Ela passará a noite no hospital
com Vicente, mas amanhã estará em casa. E Bernardo deve chegar a
qualquer momento.
Sem coragem de falar qualquer coisa, bebi o suco forte que minha
mãe fez e não limpei as lágrimas.
— E Bruna? — Fernando perguntou a minha mãe.
— Bruna está no quarto. Ela ficou bastante assustada.
— Imagino. Todos ficamos.
Eu não sabia que conseguia chorar tanto, porque quando Fernando
comentou que todos ficaram assustados com a situação, os soluços
desesperados começaram. Meu corpo tremia e se debatia com força, ao
ponto de minha mãe passar a mão por meus ombros e me puxar para o seu
colo.
— Minha filha — ela disse com todo carinho. — Minha Laurinha,
não se culpe. Se eu soubesse que o Sr. Quaresma lhe daria essa
responsabilidade, teria obrigado ele a desistir. Não é justo, nem com você
nem com eles. Veja só no que deu.
— Por que você não sobe, toma um banho e descansa um pouco? —
Fernando sugeriu.
— Isso, vamos descansar.
Minha mãe me fez levantar. Eles me levaram para dentro e Fernando
precisou me auxiliar durante todo o percurso, porque minhas pernas
pareciam gelatina. No quarto, ele avisou que estaria lá embaixo se
precisássemos de algo. Todo o restante aconteceu sem que eu tivesse
qualquer noção. Sozinha com minha mãe, eu chorei como uma criança. Ela
me banhou, me vestiu e me fez deitar. Puxou os lençóis para que eu parasse
de tremer e ficou ao meu lado até que, vencida pelo corpo, adormeci.
Acordei quando alguém se sentou ao meu lado. Meus olhos,
doloridos e, com toda certeza, inchados, se fecharam com a claridade, não a
de fora, mas a luz acesa.
— Mãe, apague isso, por favor. — Minha voz rouca pelo sono e pelo
choro, me alertou e me levou de volta ao fato ocorrido.
— Sou eu, Laura.
Bernardo, sentado ao meu lado na cama, sem proximidade ou
tentativa de intimidade. Sua presença me fez sentar com pressa.
— Fique calma. Eu vim porque sua mãe contou que você ficou muito
nervosa.
— Sabrina… como… — Novas lágrimas surgiram em meus olhos.
Em todos os momentos naquela casa, ou desde que eu soube que
seria uma das herdeiras, nunca me senti tão intrusa como naquele. O que eu
mais queria era desistir, contar a verdade, entregar aos herdeiros verdadeiros
o que era deles por direito. Eu não merecia a confiança do Sr. Quaresma. Era
tão louca e desequilibrada quanto os filhos dele.
— Fique calma. Sabrina está bem. Na verdade…
Ele descansou os cotovelos nos joelhos. Observei Bernardo e vi que
ele tinha tomado banho, trocado de roupa e levava no rosto uma expressão
cansada e preocupada.
— Ela não lembra de nada, só que deitou para dormir e depois…
nada — revelou. — Os médicos pediram alguns exames.
— Ai meu Deus! — Sussurrei e quando fechei os olhos para não
enxergar nos dele a acusação, as lágrimas desceram. — Eu… eu a
empurrei… eu…
— Laura, calma.
Bernardo se aproximou e sua mão tocou meu rosto. Apesar do
desespero, da dor, de todos os sentimentos que me deprimiam, não fui capaz
de ignorar o seu toque, a maneira gentil como ele secou minhas lágrimas,
segurou meu rosto e me deu um sorriso tímido, mas confiante.
— Os exames neurais não apontaram nada, mas os de sangue… Ela
bebeu um pouco. Disse que duas taças de vinho apenas. Depois, por causa de
toda a movimentação desta manhã, sentiu sono.
— Vicente me falou que ela tomou remédio. Não, ele disse que ela
toma remédios para dormir. Será que…
— Sabrina? Minha irmã não toma remédios para dormir. Não há
motivos para isso. Sabrina é ativa, se exercita, trabalha muito, faz terapia,
mas eu acho que é só porque todas as amigas fazem — ele riu um pouco. —
Sabrina não toma remédio para dormir. — Então ele se deu conta. —
Quando Vicente te disse isso?
Eu me encolhi na cama, temerosa. Tão corrupta e indigna quanto
todos eles. Quem era eu para julgá-los?
— Um pouco antes de Fernando chegar. Eu perguntei por Sabrina e
ele disse que ela tomou remédios e dormiu.
— Estranho. Acho que eu deveria procurar por estes remédios então.
Os exames toxicológicos ficarão prontos logo. É possível que ela tenha
alucinado?
— Eu bati nela, Bernardo.
— É, bateu mesmo.
— E ela podia ter morrido.
— Mas não morreu. Sabrina pegou pesado com Bruna e, eu sei que
você acredita no que eu digo porque vocês foram melhores amigas. Minha
irmã é capaz de muita coisa. Neste momento, ela te odeia por causa da
herança, mas ela jamais faria aquela cena, sejamos honestos.
— Eu não reconheço mais a Sabrina.
Enxuguei as lágrimas e me aprumei na cama.
— Mas percebi que ela não estava em seu estado normal. Quando eu
bati nela, ela sequer tentou se defender ou… sei lá… impedir a queda,
amenizar os danos como qualquer pessoa em situação de risco faria. Ela
só… apagou.
— Isso eu não sei dizer, Laura. Foi rápido demais. Quando eu vi
Sabrina caiu na piscina e bateu a cabeça.
— E vocês mentiram para os bombeiros — sussurrei.
— Eu não sei se mentiria se você tivesse matado a minha irmã.
Nós nos encaramos, eu em choque, ele sério. Bernardo acariciou
outra vez minha bochecha e deixou um rastro de fogo no lugar. Como podia?
Eu tinha medo do que seria de mim, ele só queria a herança e ainda assim, eu
reagia a ele. Sempre reagia a ele.
— Mas deu tudo certo. O corte foi pequeno. Cinco pontos e com o
cabelo por cima, ela nem vai reclamar — ele brincou diante da tensão que se
estabeleceu entre nós. — É melhor eu ir. Vou na ala dela procurar pelos
remédios.
— Faça isso.
Bernardo levantou, colocou as mãos nos bolsos, me encarou e
chegou a abrir a boca para me dizer algo, mas minha mãe entrou no quarto
no exato momento. Levava uma bandeja com comida para mim.
— Ah, você está aqui — ela se surpreendeu com Bernardo. — Pensei
que queria falar com Bruna.
— E vou — ele disse, um pouco envergonhado, um pouco charmoso.
— Passei aqui para saber como Laura estava e trazer notícias de Sabrina.
Coma — demandou com os olhos fixos em mim.
— Eu estarei aqui para garantir que ela comerá — minha mãe sentou
ao meu lado e colocou a bandeja em meu colo. Meu estômago roncou com a
torta de frango com legumes que ela fez para o jantar.
— Depois desça para jantar, Bernardo, já mandei servir.
— Sim, senhora.
Pelas costas da minha mãe, Bernardo bateu continência e saiu
marchando do quarto. Eu não sabia porque tudo em mim reagia bem a ele.
“De repente do riso fez-se o pranto
Silencioso e branco como a bruma
E das bocas unidas fez-se a espuma”
Soneto da separação I - Antônio Carlos Jobim / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 21
LAURA

Apesar de todos sentados à mesa manterem o clima leve, eu me assustava a


cada movimentação diferente pela imensa casa. Lutei contra meus olhos,
mas de tempos em tempos, me voltava para a entrada. A qualquer momento
Sabrina entraria e, apesar de Bernardo garantir que ela não lembrava de nada
e que se assustou com a ideia de ofender Bruna de maneira tão baixa, o fato
de estarmos no mesmo ambiente me deixava insegura.
Fernando aceitou o convite da minha mãe e compareceu ao almoço.
Ninguém tocou no assunto, mas eu sabia que ela fazia isso para me ajudar a
relaxar, e que meu amigo e advogado estava ali pelo mesmo motivo.
Contudo, nem se o próprio papa sentasse à mesa, com as mãos nas minhas
para me acalentar, me deixaria relaxada.
Cacete! Ela podia não lembrar de nada, mas sabia que caiu na piscina
porque lhe dei um tapa, que por causa disso esteve com a vida em risco, que
meu descontrole desajustou toda a sua rotina. E tudo porque o Sr. Quaresma
deixou para mim aquela missão.
Fechei os olhos e suspirei. Onde ele estava com a cabeça quando
acreditou que eu conseguiria? Não sabia ele que ter eu e Sabrina no mesmo
ambiente era desafiar as leis divinas?
— Posso ir para a piscina hoje? — Bruna atraiu a minha atenção ao
mencionar a mesma situação que me jogou naquele loop infinito de culpa e
dor. — Eles cuidaram de tudo bem rápido.
— Melhor não. Vamos nos manter discretos por um tempo — minha
mãe tomou a frente e me deu uma olhada rápida. — Coma, Laurinha. Você
só remexeu a comida.
— Mas Laura disse que a casa é dela e se…
— Bruna, eu disse não.
Quando minha mãe usava aquele tom e mesclava com aquele olhar,
ninguém se atrevia a contestar. Bruna, emburrada, voltou a comer. Na minha
bolha de dor e culpa, não conversei com minha irmã sobre o ocorrido. Na
verdade, eu me escondi dela, de todos.
Depois que meu pai morreu, apesar da minha pouca idade, precisei
ser forte, ser o apoio que minha mãe precisava para criar uma bebê e uma
criança. Então me tornei o exemplo. Eu era o exemplo para Bruna, eu
cobrava a sua compostura, educação e dedicação aos estudos. Porém, um dia
antes eu fui tudo o que ela não precisava ver. Agredi uma mulher, quase
causei a sua morte, me descontrolei. Perdi o direito de ser o exemplo, perdi
qualquer direito, para ser mais honesta.
— Laura, quer fazer alguma coisa depois do almoço? Sair daqui, dar
um passeio? — Fernando tentou.
Todos ali sabiam, mesmo sem as minhas palavras, o quanto aguardar
pela chegada de Sabrina me adoecia. Ele me deu a chance de escapar, no
entanto, não seria justo. Se ainda havia um pingo de dignidade em mim, eu a
usaria para recepcionar a minha ex-amiga e encarar os meus erros.
— Acho melhor não.
Remexi na comida mais uma vez, sem fome, sem coragem, sem
nada. Foi quando ela chegou.
Primeiro Bernardo apareceu na sala, no canto mais distante do local
onde almoçávamos, ainda assim, meus batimentos dispararam quando ele,
alertado pela movimentação, olhou em minha direção e nossos olhares se
conectaram. Busquei nele a resposta que eu precisava e, de forma estranha,
encontrei um pouco de paz. Bernardo não demonstrou qualquer
preocupação, até sorriu ao me ver. Então Sabrina entrou, amparada pelo
marido.
No mesmo instante os dois olharam para o nosso grupo. Voltei a ficar
tensa, apreensiva. Eles falaram algo, não ouvimos porque, de verdade, a sala
era imensa. Vicente tentou fazer a esposa seguir em direção a sua ala, mas
Bernardo disse algo como se incentivasse a irmã a fazer o que pretendia.
No mesmo instante larguei os talheres, minha coluna ficou rígida na
cadeira e precisei esconder as mãos embaixo da mesa para não revelar o
tremor.
— Hum, ok! Fique calma — Fernando me alertou quando os três,
Sabrina, Vicente e Bernardo, se dirigiram ao nosso grupo.
Minha mãe levantou, como se ainda fosse a pessoa responsável por
cuidar deles. Eu reclamaria se houvesse algum espaço dentro de mim para a
raiva. Mas não havia. Enquanto Sabrina andava em nossa direção, o marido
a amparava como se ela precisasse de muletas, sua expressão nada dizia.
Mantinha o rosto sério, no entanto, sem a ideia de superioridade ou de
loucura demonstrada no dia anterior.
— Sabrina, como está? Ficamos tão preocupadas — minha mãe se
apressou a dizer.
Havia de fato preocupação nela. Não apenas por eu ter cometido um
crime, mesmo que sem intenção, e ainda que não denunciado pelas partes
interessadas, mas também porque foi ela quem criou aqueles dois, foi ela
quem cuidou das feridas de Sabrina quando a mãe morreu e a menina se viu
só com um pai que mais viajava do que ficava em casa para cuidar dos
filhos.
Meus olhos marejaram, porque naquele instante relembrei a Sabrina
que foi minha amiga, que confidenciava a sua dor, que sentia saudade da
mãe e se esforçava para ganhar a admiração do pai.
— Estou bem, Sara, não se preocupe.
Não havia carinho na voz de Sabrina, todavia, não havia também a
rejeição.
— Bruna? — Ela chamou e posso dizer que todos nós, sem deixar
ninguém de fora, ficamos tensos.
Minha irmã a encarou com rancor. Quem poderia julgá-la? Bruna era
nova, cheia de energia e hormônios que justificavam sua ida aos extremos
sempre que era desafiada.
— Creio que Bernardo explicou que não lembro do ocorrido. Não sei
dizer o que aconteceu, porque reagi daquela forma. Os médicos acham que
tive um surto, mas… nada justifica. Mesmo que não me lembre, peço
desculpas. Em meu estado normal jamais faria algo do tipo.
O silêncio se fez, meus olhos ficaram úmidos pela sinceridade de
Sabrina e, ao mesmo tempo, pela culpa. Eu soube, desde que me aproximei
dela na piscina, que ela não estava bem, ainda assim, quase a matei.
— Responde, menina — minha mãe ralhou.
— Tudo bem — Bruna deu de ombros e voltou a se interessar na
comida.
Apesar de me concentrar em Sabrina, pronta para receber dela a
minha punição, eu sabia que Bernardo me encarava. Algo me dizia que
assim acontecia, talvez pelo queimar em minha pele, ou… por desejar a
calmaria que ele me transmitia naquele momento.
— Laura?
Sabrina se voltou para mim, a mesma expressão neutra, mas um
brilho diferenciado no olhar.
— Vicente me contou que você causou isso.
Apontou para o pequeno curativo em sua cabeça. Como Bernardo
disse, o cabelo esconderia a cicatriz, se houvesse uma.
— Não vou dizer que te desculpo porque poderia custar a minha
vida, mas não darei queixa. O que eu disse causaria essa reação em
qualquer… — ela engoliu com dificuldade, como se a palavra lhe causasse
dor. — Irmã. — concluiu. — E como eu disse: não lembro de nada, nem do
tapa que me deu. Os médicos não encontraram nada que justificasse a falta
de memória e acreditam que seja pela pancada na cabeça, independente,
antes disso muita coisa aconteceu, e eu não tenho qualquer consciência
disso.
— Você bebeu e tomou remédio para dormir — informei, não como
uma acusação, mas como se, naquele momento, precisasse ajudá-la a
compreender, ou a me perdoar.
— Não há fundamento nessa teoria. Eu não tomo remédio, nem para
dormir e nem para nada — refutou sem assombro.
Olhei para Bernardo e ele, discreto, confirmou o que a irmã disse.
Mas como? Vicente afirmou que ela tomou remédio para dormir. Que fazia
uso de medicação e inclusive atribuiu isso a sua pouca saúde mental.
— Entendo. Com certeza uma hora a verdade surge.
— Com certeza — Foi Vicente quem respondeu. — Você também
mora aqui agora, Fernando?
Apesar do desconforto dele em ter Fernando em casa o tempo todo, e
de podermos justificar pelo fato do meu amigo e Sabrina terem uma história
que foi interrompida por causa de Vicente, estranhei a maneira como ele
falou, como se precisasse desviar o foco, ou, causar um pouco mais de
confusão.
— Fernando é meu convidado.
Fui direto ao assunto, seca, disposta a não deixar que aquilo se
transformasse em mais um dia de brigas. Não havia energia em mim para
tanto.
— Vocês são namorados agora? — Sabrina questionou, ainda com a
mesma falta de expressão, entretanto, algo me alertou, talvez alguma nota
errada em seu tom de voz.
— Somos amigos — eu reagi com pressa.
— Vocês querem almoçar? Eu posso… — Minha mãe se adiantou,
talvez tão ciente quanto de que aquilo poderia piorar a nossa situação.
— Vou para o quarto — Sabrina avisou. — Pedirei para servirem
nosso almoço por lá.
— Claro — Vicente, de volta a sua natureza de cachorro, aceitou o
que a esposa demandou e a seguiu sem nada acrescentar.
— E você, Bernardo? — minha mãe insistiu.
Bernardo me olhou, passou a língua no lábio inferior, depois deu uma
olhada rápida na direção de Fernando e em seguida, puxou a cadeira.
— Estou morto de fome, Sara.
— Eu sabia — minha mãe gracejou. Ela tinha adoração por Bernardo
e isso me incomodava.
— Bruna, não vai para a piscina hoje? — Ele puxou assunto tão logo
minha mãe saiu em busca de algum empregado que pudesse servir o
queridinho da família.
— Não. Estou temporariamente obrigada a ser discreta — minha
irmã resmungou.
— Sério? Por causa de ontem? — ele continuou, como se o assunto
não fosse indigesto o suficiente. — Sabrina acabou de se desculpar. Não há
motivos para isso.
— Eu gostaria, Bernardo, que não se intrometesse na educação que
damos a Bruna. Orientamos que hoje ela não entrará na piscina. E assim
será.
— Eu avisei que ela era chata — Bruna sussurrou como se eu não
pudesse ouvir. Tão íntima de Bernardo que me incomodou.
— Não, ela só é… digamos que… cuidadosa demais.
Bernardo piscou um olho para mim e posso dizer que aquele simples
ato, causou uma confusão entre minhas células. Não era possível que eu
fosse tão tola.
— E então, agora que estamos todos bem, que tal reconsiderar o
convite?
Fernando disse para mim, toda a sua atenção em meu rosto. Minha
mãe retornou para a mesa, uma empregada colocou um prato para Bernardo,
mas este não se mexeu para comer.
— Claro — eu concordei, porém não por me sentir confortável para
deixar a casa, mas porque entendi que Fernando me alertava sobre a
necessidade de irmos.
— Ótimo.
— Vão sair? — Bernardo quis saber, de repente bastante interessado
na nossa conversa. — Amigos saem, não é mesmo? E vocês saem até
demais.
— Até parece que está com ciúmes — Bruna brincou. Sua risada
esquentou meu rosto e desconcertou Bernardo.
— Eu estava pensando em seduzir Laura, já que agora ela é mais rica
do que eu — ele troçou e piscou, daquela mesma forma que fez para mim, só
que para Bruna. — Mas já que ela não está disponível, vou paquerar você,
afinal de contas, a fortuna é a mesma.
— Bernardo…
A irritação me fez quase pular no pescoço daquele idiota que
arrancava de mim o melhor e o pior que existia sem fazer muito esforço.
Mas Bruna riu e minha mãe também.
— Então você aceitou, Laurinha? — minha mãe se intrometeu. —
Que bom, você precisa mesmo se divertir um pouco. Mas coma alguma
coisa.
Aproveitei a deixa e dei uma garfada para me impedir de dar
continuidade à conversa, e, durante todo o tempo que permanecemos na
mesa, evitei olhar para Bernardo.
No final das contas Fernando me levou para um passeio na orla.
Disse que eu precisava me movimentar, gerar energia para a semana que se
seguiria. Até comprou sorvete para mim.
— Vicente e Bernardo se incomodam comigo. Isso é um bom sinal.
— Não sei — minha resposta desanimada o alertou. — Acho que
seria melhor desistir disso. Aquela conversa do Bernardo em relação a
Bruna… ela é só uma menina!
— Ele brincou, Laura — meu amigo desfez da minha irritação. —
Mas você se incomodou demais.
— Ela é uma menina! — repeti, bastante aborrecida. — Quer saber?
Isso já foi longe demais. Eu poderia chamar os dois, contar a verdade e dar o
prazo para que se ajustem.
— Você sabe que não pode fazer isso.
— Bom, eu posso. O que perco: um dinheiro que manteria minha
família confortável por um bom tempo? — Dei de ombros. — E ganho no
máximo o espírito do Sr. Quaresma no meu pé por quebrar a promessa que
eu nem fiz a ele.
— Não é bem desse jeito. Você só está desanimada por causa do
acidente. Mas vou te dizer uma coisa, estamos bem perto de desmascarar
Vicente, quem sabe até jogá-lo na cadeia.
— Por trair a esposa? Por querer o dinheiro dela? — Ri sem vontade.
— Isso é o que mais existe no Brasil.
— Laura, sua apatia te impede de raciocinar.
Fernando colocou o sorvete de lado e se voltou para mim.
— Ontem ele te disse que Sabrina tomava remédios para dormir,
certo? — concordei. — Sabrina bebeu, dormiu e teve um surto. Os exames
indicaram a presença do álcool e de drogas. Sabrina não usa drogas e hoje
nos disse que não toma remédios para dormir.
Puxei o ar com força. Eu não queria aquela merda. Não pretendia
entrar naquele jogo de detetive e psicopata. Não queria descobrir que o que
deveria ser uma lição de vida, se tornaria na caça ao bandido. Era coisa
demais para assimilar.
— Ontem Bernardo me disse que Sabrina não tomava remédios. Ele
disse que faria uma busca na ala dela para conversar com o médico se
encontrasse alguma coisa.
— E ele encontrou?
— Não sei. Não nos falamos depois disso. Mas ele pareceu
concordar com Sabrina quando ela afirmou que não tomava.
— Hum! Você acha que ele te contaria se soubesse de algum remédio
que Sabrina fizesse uso?
— Não sei.
— A câmera do escritório está ativa. Conversei com meu pai ontem e
ele me disse que guardaria as imagens para usarmos no momento certo.
— Fernando, se Vicente estiver drogando a esposa para que todos
pensem que ela é maluca, precisamos de mais do que a imagem de ele me
beijando.
Meu amigo concordou, resgatou o sorvete e encarou o mar à nossa
frente.
— Bom, Sabrina precisa contestar os exames. Se ela insiste que não
usa os remédios, com certeza pediu para refazerem. Vamos esperar.
Enquanto isso… faça Bernardo te contar sobre o que descobriu.
Não respondi, mas a ideia de estar com Bernardo por qualquer que
fosse o motivo, fazia minhas mãos suarem.
“E por falar em paixão
Em razão de viver
Você bem que podia me aparecer”
Onde anda você - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 22
LAURA

Fernando me deixou em casa, mas não entrou. Disse que precisava


descansar, afinal de contas, trabalharíamos no dia seguinte e tivemos
máximo de esgotamento emocional para um final de semana. Não contestei.
Eu queria mesmo ter aquele tempo para conversar com Bruna, estabelecer
alguns limites e nos manter longe do caminho de Sabrina pelo tempo que
permaneceríamos naquela casa. De alguma forma, eu precisaria explicar à
minha irmã que aquela vida não duraria, só não sabia como.
Atravessei a sala e fui direto para a cozinha. Eu tinha a certeza de
que minha mãe estaria por lá. Alguns hábitos nunca mudariam.
— E a sopa? — Ouvi minha mãe perguntar, provavelmente para a
cozinheira.
— Tá quase pronta, Dona Sara. Mando servir a Sra. Sabrina na ala
dela?
— Faça isso, minha filha. Eles não apareceram o dia todo.
— Oi, mãe! Oi, Flávia!
— Laura, já voltou?
— Já sim. Estou cansada. Onde está Bruna?
— Na sala de cinema.
Minha mãe pôs a mão no meu ombro e me afastou da cozinha. Dei
um adeus para Flávia que retribuiu com um sorriso imenso. Dois dias
naquela casa, um desastre e apesar disso, todos os empregados agiam como
se eu fosse a super-heroína deles.
— Como foi com o Dr. Fernando? — mamãe perguntou assim que
nós viu sozinhas. — Ele tem sido bastante atencioso.
— Não se esqueça que a senhora o convidou para almoçar hoje.
Minha mãe suspirou, tirou o braço dos meus ombros e me fez parar a
sua frente.
— Eu precisava ter certeza de que nada aconteceria com você —
confessou.
Meus olhos marejaram, mas eu estava cansada de chorar.
— Laura, tenho orgulho por defender sua irmã, mas nunca me
perdoaria se matasse Sabrina por isso.
— A senhora não teve culpa em nada.
— Teria se o cenário fosse o pior. Eu mato por vocês. Mato qualquer
um que se atreva a ameaçá-las, mas vocês… — ela acariciou meu rosto com
afeto, tão emocionada quanto eu. — Vocês não.
— Mãe, eu não…
— Não se preocupe mais com isso, certo? Nada aconteceu. Sabrina
está bem, vocês estão bem. Vá ver a sua irmã.
Minha mãe saiu e me deixou sozinha no caminho da sala de cinema
que fora instalada na casa quando Bernardo e Sabrina se tornaram adultos e
ficaram cheios de vontades. No fundo eu sabia que ela fazia aquilo porque
não gostava que enxergássemos a sua fraqueza. Minha mãe não se
desesperava, não sofria, não era fraca nunca. Precisou se tornar essa
fortaleza quando meu pai morreu e se viu sozinha para nos educar. E eu
respeitava as suas escolhas, mesmo que soubesse o que ela não me deixava
enxergar.
Puxei o ar, recuperei meu equilíbrio e segui casa a dentro. Precisava
de serenidade, maturidade e paz para ter aquela conversa com Bruna. A
coitada se fazia de forte, até porque, aquela ali sustentava uma personalidade
complicada. Mas eu tinha certeza de que por dentro Bruna temia um outro
ataque, outra ofensa, qualquer coisa que a fizesse se sentir inferior, apesar da
promessa de Sabrina.
A porta fechada do cinema não me impediu. Claro que estaria
fechada, era um cinema de verdade, em menor proporção, com mais luxo,
ar-condicionado potente e tudo o que o dinheiro poderia bancar. Abri a porta
sem pensar no que fazia, entrei com pressa e de cara vi Bruna enrolada em
uma manta e toda encolhida em uma das poltronas confortáveis, no entanto,
duas cadeiras depois dela Bernardo se mantinha quieto, os olhos não na tela,
mas em mim, sem demonstrar qualquer surpresa.
— O que faz aqui?
Minha pergunta saiu alta devido à surpresa e também… não sei
explicar. O fato era que encontrar Bernardo ao lado de Bruna, ainda que
separados por duas poltronas, em uma sala climatizada, escura e fechada, me
incomodou.
— Bruna me pediu para ensiná-la a usar a sala. Escolhemos um filme
e assistimos, mas ela dormiu.
Precisei de um tempo para analisar cada detalhe do que ele falou.
Não havia qualquer falha no seu tom de voz, o que indicava segurança em
relação ao que dizia. A falta de surpresa em sua expressão também
demonstrava que nada de absurdo acontecia naquele local. Ainda assim…
— Bruna? Bruna! — Sacudi minha irmã até que ela erguesse a
cabeça e me encarasse confusa.
— O que foi?
— Você dormiu. Vá para o seu quarto.
Bruna olhou ao redor, perdida, como se tivesse esquecido onde
estava, até que encontrou Bernardo e sorriu.
— Perdi o filme?
O cretino do Bernardo também sorriu para ela e aquilo despertou
uma sensação estranha dentro de mim.
Por um lado, eu não gostava daquela gentileza toda da parte dele
porque era de mentira. A única intenção de Bernardo era nos iludir e essa
forma conquistar a nossa confiança para concretizar o golpe que julgava ser
capaz de dar. Em contrapartida, enquanto Sabrina mostrava-se uma inimiga
declarada e uma ameaça constante, ter Bernardo como alguém que deixaria
minha família mais segura e confortável naquela casa, fazia com que uma
parte da minha barreira desmoronasse.
— Perdeu, mas agora você já sabe como funciona.
Bruna coçou os olhos e voltou sua atenção para a tela.
— Que filme é esse?
— Trezentos. É antigo, mas eu gosto.
— Eu não.
Minha irmã levantou, deixou a manta sobre a poltrona e andou em
direção a porta sem qualquer peso ou temor.
— Mas Laura curte filmes antigos — ela bocejou ao abrir a porta. —
Vou para o meu quarto. Aproveitem.
— Bruna! — resmunguei e quando fiz menção de segui-la, Bernardo
segurou em minha mão, o que me congelou no lugar.
— Se gosta do filme, fique — ele disse com cuidado.
— Eu não curto cinema.
— Por quê?
— É frio.
Seu sorriso torto se apresentou para me fazer esquecer os motivos da
primeira metade para não gostar daquela situação.
— Isso aqui não é propriamente um cinema — ele começou, a mão
abandonou a minha sem qualquer pressa. — E é por isso que temos mantas.
— Bernardo…
— Fique.
Não foi um pedido qualquer. Quando a palavra saiu por seus lábios,
seu corpo se aproximou do meu, seus olhos encontraram o ponto de luz
exato para obrigarem os meus a se perderem naquele azul desconcertante. Eu
já não me conhecia mais. Porque bastou essa pequena palavra, um misto de
súplica e ordem, para que meus pensamentos se desconectassem da realidade
e se prendessem àquele homem.
Sem saída, puxei a manta deixada por Bruna, sentei na poltrona e me
acomodei, não sem perceber e me confundir quando ele sentou ao meu lado,
sem o espaço antes respeitado.
Por alguns minutos fixamos nossa atenção no filme. Enquanto
Bernardo demonstrava interesse no que passava na tela, eu sequer assimilava
o que acontecia. Conhecia a história, gostava do enredo, apesar disso, eu não
me prendia a nada que acontecia naquela sala que fosse extra a aproximação
dos nossos corpos. Portanto, sem que eu estivesse pronta para isso, fechei os
olhos quando o dedo dele roçou em minha mão, uma carícia delicada,
despretensiosa, e, ainda assim, íntima de uma forma indescritível.
E foi como se aquele pequeno toque, o arrastar preguiçoso do seu
dedo em minha pele se igualasse a um fósforo se arrastando para acender.
Porque queimou, me atingiu com força, deixou sensíveis partes a tempos
esquecidas do meu corpo.
— Com sono?
O hálito dele em meu rosto deixava clara a aproximação. Quando
aconteceu? Não sei dizer. O fato era que Bernardo, ou melhor, os lábios dele,
estavam quase nos meus. Eu não fiz nada para impedi-lo. Minha boca abriu
um mínimo espaço, não para respondê-lo, mas para absorver o ar dele, uma
espécie de necessidade que se apossava de mim. E este foi todo o incentivo
que ele precisou.
A delicadeza da junção dos nossos lábios obteve o mínimo daquela
ação. No instante que o beijo se concretizou, a urgência nos cercou.
Bernardo me puxou para si, a língua invadiu minha boca com a deliciosa
sensação de que ali era o seu lugar. O encaixe perfeito servia para nos
estimular com a promessa de que se o beijo mexia conosco daquela forma,
qualquer outra intimidade eletrizaria não apenas o ambiente, mas tudo ao
nosso redor.
Sem se afastar nem por um segundo, suas mãos percorreram minhas
costas. A manta esquecida por mim, uma vez que, conectada apenas ao que
sentia, minhas mãos buscaram por ele, encontraram os braços fortes, os fios
sedosos do cabelo, as costas largas.
Ofeguei quando Bernardo, antes passivo, permitia que o lhe
explorasse com o desejo que me cercava, retomou a situação e avançou
sobre meu corpo. A palma quente encontrou minha coxa por baixo da manta
e descoberta pelo vestido que eu usava. Ele apertou minha carne no exato
momento em que mordiscou meu lábio inferior, o que fez com que meus
pontos sensíveis encontrassem ligações entre eles e enviassem informações
que arrancavam de mim qualquer controle.
Cada parte do meu cérebro registrou os centímetros vencidos pelas
mãos nada afoitas do homem que me beijava. Ao mesmo tempo que alertas
de urgência incendiavam meu corpo e imploravam para que ele avançasse,
havia outra parte que desfrutava da lentidão, saboreava as sensações
deliciosas, a maneira como minhas células reagiam, a vontade… sempre a
vontade de continuar, de parar a vida, o mundo, o universo para que cada
coisa acontecesse de maneira mais lenta possível e não encontrasse o fim.
Porque eu não queria um fim e compreender esse sentimento foi o
que me impactou de tal forma que me fez afastá-lo. Empurrei Bernardo,
nossos lábios se largaram, ele gemeu em protesto, me segurou contra seu
corpo.
— Pare — ordenei, contudo, sem a força necessária para convencê-
lo, e, apesar disso, foi o suficiente para que ele respeitasse a minha vontade.
Pensei com tristeza na diferença entre Bernardo e Vicente, de todas
as formas e ângulos. Como ele podia colaborar com uma pessoa tão baixa?
Como permitia que aquele homem, o cretino que casou com a sua irmã só
por causa de dinheiro, o manipulasse para aquele plano? E, acima de todos
esses pensamentos que me magoavam, como Bernardo podia ser aquela
pessoa gentil, atenciosa, tão cheia de desejo e ao mesmo tempo, respeito,
quando sabia que tudo o que fazia era uma farsa?
— Tem certeza? — ele sussurrou, nada ofendido.
Sua mão abandonou minha coxa e acariciou meu rosto. Não havia
voz em mim para negar, por isso só balancei a cabeça para sinalizar que
aquela era a minha decisão, então ele se afastou. Não o suficiente para me
impedir de desejá-lo, mas uma distância segura, respeitosa. Algo dentro de
mim se apertou, afundou e sangrou. Eu não podia me apaixonar por
Bernardo, no entanto, era exatamente o que eu fazia.
— É melhor eu ir embora — anunciei.
— Você não precisa ir. Eu já entendi que agora não posso mais beijá-
la.
E eu compreendi o agora posto de forma esclarecedora em sua fala.
Um nó fechou com força a minha garganta, porque eu não queria ir e ao
mesmo tempo, precisava. Por isso levantei com pressa, Bernardo fez o
mesmo, nós nos encaramos, o clima voltou a crepitar e em mim avançou
como um corte de faca afiada.
— Não faça isso — implorei.
— Não farei — ele garantiu, no entanto, um mínimo passo desfez a
pequena distância entre nós. — Só que você quer tanto que eu faça.
— Tudo o que você quer é recuperar a sua herança — rebati,
magoada não com ele, pois eu sabia o seu real interesse, mas comigo por ser
uma tola.
— E se eu quiser os dois, Laura? — Bernardo deu mais um passo, o
que me obrigou a fazer o mesmo. — E se eu quiser a herança e você?
— Eu já fui a pobre idiota que perdeu o noivo para uma garota que se
dizia a minha melhor amiga, Bernardo. Não há mais nada daquela garota em
mim. Você não me convence porque a gente… a gente tem…
— Uma química deliciosa — ele complementou com diversão na voz
ao identificar o meu desespero para encontrar uma definição para o que eu
não tinha coragem de dizer em voz alta.
— Algo do tipo.
— Isso. Porém, temos um problema.
Ele me encarou sem finalizar a ideia. O sorriso torto se apresentou,
os olhos cintilaram nos meus. Ele sabia como jogar comigo, o que
alimentava a minha fúria. Como eu era idiota!
— Isso aqui não muda nada. Qualquer intimidade entre nós, não
muda a nossa posição em relação a herança. Ou você é o tipo de garota que
recua quando se apaixona?
— Apaixonar? — eu ri, não por achar graça, e sim por desespero.
Bernardo não podia ter aquela facilidade em me ler, ele não podia ter
tanta certeza quanto aos meus sentimentos.
— Então se você não é o tipo de garota que se apaixona por causa do
sexo, voltamos ao meu ponto. Não muda nada. Agora me diga, que tipo de
garota é você, a que recuará porque se apaixonou ou a que aproveitará o
momento e manterá a sua posição?
— Essas são as minhas opções? — desdenhei, grata pela escuridão
da sala que o impedia de identificar a minha dor.
— Diante do que acontece entre a gente todas as vezes que ficamos
sozinhos, sim, essas são as suas opções.
— Você é ridículo, Bernardo.
— E você é infantil se pensa que me convencerá desta forma.
— Porque eu não quero te convencer de nada!
— Não?
Outro passo, outro recuo da minha parte. O sorriso dele se ampliou.
— E o que a gente faz com isso?
— Isso o quê?
Bernardo riu. Não foi uma gargalhada, mas um riso rouco de quem
tinha total controle da situação. Eu limpei a garganta, incomodada e ao
mesmo tempo, mexida com a maneira como ele agia.
— Você disse que verificaria o quarto de Sabrina em busca do
remédio. Encontrou algo?
Ele levou alguns segundos sem desviar os olhos do meu rosto até
aceitar a mudança de assunto, o que me fez soltar o ar preso nos pulmões. Eu
precisava daquela trégua, nem que fosse por só mais um dia.
— Não. Mas algo aconteceu. O que você tem em mente?
— Ou Sabrina mentiu, ou Vicente mentiu.
— Isso é bastante óbvio, Laura. O que você tem em mente? — ele
repetiu a pergunta com mais ênfase, como se cobrasse a minha confissão.
— Nada.
— Laura.
— Nada, eu já disse.
— Por que você não confia em mim?
— E eu deveria?
— Deveria. Pelo menos eu fui honesto com você.
— Quando?
O desespero em minha voz ao identificar que Bernardo deixaria a
sala e me abandonaria, não passou despercebido. Ele se virou para mim, o
sorriso de volta ao rosto. Lindo até mesmo na sala escura que deveria me
proteger de tanta beleza e que falhava sem me deixar alternativa que não
fosse me prender cada vez mais naquela imagem.
— Quando eu disse que queria os dois — ele confessou antes de
desistir da conversa e me deixar.
A claridade adentrou a sala e em seguida escureceu. Bernardo foi
embora e eu fiquei, mais uma vez, sem saber o que fazer para superar aquela
situação.
“E a coisa mais divina
Que há no mundo
É viver cada segundo
Como nunca mais”
Tomara - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 23
LAURA

A mansão ficava perto da empresa, logo, ganhei minutos extras para me


preparar para aquele primeiro dia após os problemas que tive com Sabrina e
também os que vivenciei com Bernardo.
Por sorte, o café da manhã foi solitário. Nem mesmo minha mãe
sentou para me acompanhar. Animada com o seu retorno à organização
daquela casa, Dona Sara levantou cedo, providenciou o café da manhã para
todas as alas e se ocupou em recepcionar os funcionários que trabalhavam na
casa durante a semana.
Incomodada e apreensiva, apesar da rotina de trabalho não me
assustar como antes, eu tinha motivos de sobra para não desejar aquele dia,
ainda assim, escolhi uma das muitas roupas que Fernando me fez comprar, a
bolsa e o sapato e no horário combinado com Carlos, apareci na porta da
casa. Contudo, quem esperava por mim não era o meu motorista e sim
Bernardo.
Graças a Deus ele usava óculos escuros, o que o impedia de criar o
magnetismo que aqueles olhos tinham sobre mim. Eu quis ignorá-lo, ser a
garota infantil que ele insinuou que eu fosse, no entanto, se queria um final
feliz para aquela história, fingir que ele não estava ali, na porta de casa,
encostado no carro como se aguardasse pela minha saída, não era a melhor
opção.
— Bom dia, Bernardo — fui a primeira a falar, pois acreditei que
dessa maneira demonstraria o quanto o que aconteceu no dia anterior não me
impactou.
E se eu achei que não permitir a conexão entre nossos olhos era a
melhor saída, me enganei feio. Ainda havia aquele sorriso torto, descarado,
que me aquecia de dentro pra fora e me desconcertava.
— Laura.
A voz arrastada, rouca, como a de alguém prestes a me devorar,
entretanto, decidido a manter distância me alertou.
— Pensei que se atrasaria hoje.
Consultei o relógio em meu pulso e conferi a hora. De fato, se
Carlos não aparecesse logo, eu me atrasaria. Olhei ao redor sem encontrar o
carro em nenhum lugar próximo à casa.
— Isso agora está nas mãos do Carlos — revelei.
— Eu sou o seu motorista — ele anunciou sem qualquer alteração no
tom de voz, de forma tão trivial que me perguntei se tínhamos mesmo aquela
rotina juntos. — Carlos levará Bruna na escola.
— Mas… Eu não pedi que ele fizesse isso
— Eu pedi, Laura. Entre no carro.
A impaciência em sua voz ativou algo dentro de mim.
— Você não pode tomar decisões por mim — rebati, enfurecida.
— E não posso te oferecer uma carona?
— Por quê?
— Porque eu quero. Porque vamos para o mesmo lugar. Porque
precisamos nos preocupar com o consumo exacerbado de combustível no
mundo… De quantas desculpas você precisa para não nos atrasar?
Olhei outra vez para o relógio e depois para o espaço do lado de fora
e me vi sem opções.
— Como se você tivesse mesmo interesse nas atividades da empresa
— provoquei ao abrir a porta do carro.
— Bom, eu tenho uma reunião importante com a minha equipe. Você
deveria ficar feliz por isso.
Bernardo entrou e bateu a porta do carro sem aguardar por mim.
Onde estava aquele cara gentil do dia anterior?
— Você deveria fazer o mesmo com Sabrina e Vicente, assim de fato
me convenceria de que se preocupa com o meio ambiente.
— Nós quatro dentro de um mesmo carro… — Ele deu partida, mas
não arrancou. — Que grande festa seria, não?
Engoli com dificuldade ao imaginar a cena e percebi como eu não me
sentia pronta para encarar Sabrina e Vicente.
— O cinto, querida.
A voz doce e sedutora me arrancou do transe. Passei o cinto de
segurança pelo meu corpo e só então Bernardo deixou a casa.
— Agora explique, qual o motivo dessa reunião tão cedo?
Iniciei o assunto um tempo após o silêncio começar a me incomodar.
— O rendimento de algumas empresas do nosso grupo. Os analistas
vão me passar um parecer hoje e discutiremos algumas ações.
— Hum!
Encarei minhas unhas e me dei conta de que uma manicure não cairia
mal, afinal de contas, aquelas não eram unhas adequadas para uma CEO, não
com as pontas do esmalte descascando. Por instinto, encolhi os dedos,
disposta a não deixar que Bernardo visse aquela falha.
— Acredito que Ilma já te informou sobre a viagem — ele anunciou
sem tirar os olhos da estrada.
— Que viagem?
— Para as filiais. Ela não te falou nada?
— O seu pai visitaria as filiais?
— Não. Sabrina faria este papel, mas como a nova CEO é melhor
que você faça.
Engoli um gemido insatisfeito. Aquele pesadelo não chegaria ao fim?
— Melhor deixar Sabrina em paz com o trabalho dela.
— Isso é medo?
— Isso é respeito. Se ela faz esse papel, não preciso me intrometer.
Bernardo deu aquela risada que começava a se tornar habitual e que
dizia o quanto meus argumentos não o convenciam de nada. Eu me sentia
ridícula todas as vezes que ele ria daquela forma.
— Bom, diante disso, você ficará surpresa ao saber que a própria
Sabrina solicitou a sua presença. Há um tempo corre o boato de que
reduziremos as empresas. Ela acha que a sua presença desviará a atenção,
afinal de contas todo mundo quer conhecer a nova CEO.
Puta merda!
Fechei os olhos com força, contei até dez e os abri outra vez. Meu
estômago embrulhou quando me dei conta de que era aquilo mesmo. Sabrina
manteria o plano de me sabotar, por isso armou aquela viagem. E como seria
aquilo? Eu e ela? Não! Eu precisava arrumar uma maneira de não participar
daquilo.
— Sua irmã quer me fazer de cortina de fumaça para colocar em
prática as ideias dela? Não mesmo.
— Deixe de ser boba, Laura. Sabrina te detesta, mas ela jamais
colocaria em risco as nossas empresas. E eu também vou, então não há com
o que se preocupar.
— Eu, você e Sabrina? Que divertido — desdenhei. — Não.
— Bom, se você relaxar pode ser divertido mesmo, linda.
— Não me chame de… o que é isso? Você tirou o dia para me
atormentar?
Ele diminuiu a velocidade e logo entrou na garagem do prédio onde
trabalhávamos. O sorriso torto que arrancava o meu juízo brincou em seus
lábios. Sem uma palavra para rebater a minha pergunta, Bernardo estacionou
na vaga e desligou o carro.
— Que ótimo! — resmunguei ao me enrolar com o cinto de
segurança. Talvez por isso, ele me surpreendeu.
Quando dei por mim, meus dedos enroscaram nos dele ao tentar me
ajudar e a corrente elétrica que passou por nós me paralisou. Bernardo, com
o corpo projetado sobre o meu, arrancava minha resistência. O cheiro
delicioso do perfume dele confundiu meus pensamentos. Fechei os olhos
outra vez, pronta para o beijo, para a insanidade que nos dominava quando
chegávamos tão perto um do outro, como ele afirmou no dia anterior.
Mas Bernardo não me beijou. Seus lábios, quase nos meus, desceram
por minha bochecha, a ponta do nariz arrastou até meu queixo, depois pelo
pescoço, aspirou o meu cheiro. A mão subiu pelo meu braço, arrepiou meu
corpo.
— Bernardo…
— Quietinha — ele sussurrou, os lábios roçavam minha pele e me
enlouqueciam. — Ou eu vou te beijar, Laura.
Mais uma vez ele aspirou meu cheiro e em seguida se afastou. Tudo
em mim gritou em protesto.
— Eu adoro esse perfume — declarou, sem abalo na voz.
Ele abriu a porta do carro e desceu. Em seguida, eu me dei conta de
que Bernardo me livrou do cinto de segurança. A porta bateu, mas ele
aguardou por mim. Eu só queria que ele seguisse na frente e me desse os
minutos que eu precisava para me recompor. No entanto, não estava nos
planos dele me deixar em paz.
Bernardo deu a volta no carro e abriu a porta do carona.
— Eu preciso trancar o carro, linda.
Ainda com a sensação de embriaguez, segurei a bolsa, a pasta e
desci, incerta sobre o meu equilíbrio. Bernardo fechou a porta, ativou o
alarme enquanto eu me virava para fugir dele.
— Quer saber? — ele disse ao me segurar pelo braço. — Eu vou te
beijar.
E eu não tive tempo de reagir. Ele me imprensou no carro, juntou
nossos corpos e me beijou com posse. Uma confusão de sensações e desejos
explodiu em mim. Sua mão afundou em meu cabelo e manteve meus lábios
presos aos dele - como se eu fosse capaz de afastá-lo caso ela não me
mantivesse cativa, - e a língua dominou todos os meus neurônios.
Bernardo tinha gosto de creme dental com enxaguante bucal
misturado com algo que eu não conseguia identificar. Delicioso, dominante,
capaz de ter tudo o que quisesse de mim, em qualquer lugar. Era impossível
não desejar aquele homem. Não quando ele me cercava e me mostrava o
quanto me queria.
Podia ser uma mentira, uma farsa para recuperar a herança, uma
armação em comum acordo com a irmã e o cunhado, e ainda assim, era real,
porque não havia como fugir daquele desejo, daquela vontade que nos
enroscava e seduzia ao ponto de nos enlaçarmos no estacionamento do
prédio onde trabalhávamos.
Puta merda!
— Bernardo! — Empurrei ele, que se afastou com o sorriso de
satisfação nos lábios molhados.
— Bom dia para você, linda.
Outra vez ele me deixou, mas não lamentei. Eu precisava de ar, de
espaço, para reorganizar os pensamentos e estabelecer o que faria com
aquilo. Porque ele tinha razão, eu precisava ser uma das duas garotas que ele
colocou para mim como opção. Mas qual?
“Você tem que vir comigo em meu caminho
E talvez o meu caminho seja triste pra você”
Minha namorada -
Vinícius de Moraes / Carlos Eduardo Lyra barbosa

CAPÍTULO 24
LAURA

— Então eu não tenho mesmo como me livrar disso?


Fernando se recostou na cadeira e soltou o ar, pensativo.
— Eu não sei o que dizer.
Ele coçou o queixo, depois deslizou a mão pelo cabelo e em seguida
se endireitou na cadeira.
— O Sr. Quaresma não fazia essas visitas às filiais por motivo de
saúde e Sabrina assumiu as tarefas desde então, mas Bernardo nunca a
acompanhou. Quem fazia esse papel era o Vicente, apesar de não ter
qualquer ligação com as atividades mencionadas.
— É esse o problema, Fernando. É uma armação.
— Com certeza é, o problema é que se você não for, Sabrina pode se
fortalecer e se for…
— Eu preciso de um plano mais consistente — alertei.
Durante toda a tarde, eu me questionei sobre aquele problema.
Bernardo não só tornara-se mais incisivo como também sabia o efeito que
possuía sobre mim. Sabrina com certeza tinha esta informação e usava as
armas que tinha para me jogar de uma vez por todas nas garras do irmão,
como se eu fosse de fato, me tornar a garota apaixonada que entrega os
pontos com tanta facilidade.
Eu era?
Puta merda! Havia uma chance significativa de a resposta ser
positiva. Sem me apaixonar eu não queria prorrogar aquele problema,
apaixonada eu cederia com facilidade.
Ilma me comunicou das viagens no momento em que cheguei e se
alarmou quando eu disse, com uma rispidez desnecessária, que tinha
conhecimento da solicitação de Sabrina. Quando ela armou aquilo? Quando
eu me mudei para a mansão? Antes disso? Depois do acidente? Eu precisava
saber de cada detalhe para me assegurar dos meus passos.
— Você vai também — anunciei.
Fernando me encarou sem acreditar na solução que encontrei para me
proteger dos irmãos Quaresma.
— Laura! Eu não posso deixar o meu posto e seguir viagem com
vocês sem necessidade.
— Pode.
— Claro que não posso. Eu tenho uma função dentro deste grupo.
— Que é cuidar de todas as questões legais.
— Exato.
— Logo… você vai comigo. É um respaldo legal. Eu ainda estou me
ambientando quanto às questões da empresa, preciso do meu advogado para
me ajudar a não fazer besteira.
Ele suspirou, cansado, balançou a cabeça e me encarou.
— Sabrina não concordará.
— Ninguém pediu a opinião dela.
— Ela é a presidente, Laura. Eu estou em um patamar inferior.
— E eu em um nível superior ao dela, hierarquicamente falando.
Você vai. Por favor! — acrescentei em desespero. Ele riu e relaxou.
— Tudo bem, mas você comunicará a Sabrina sobre a minha ida e os
motivos.
— Eu não devo explicações a Sabrina.
— Você não pode viver com medo desse encontro. As duas
trabalham aqui, juntas, uma hora vão se esbarrar pelos corredores.
— Uma hora, não agora.
Eu me encolhi, envergonhada por me manter naquela posição
covarde, mas a verdade era que eu não me sentia preparada para encontrá-la.
Não depois de quase provocar a sua morte.
— Tudo bem — ele concordou ao se pôr de pé. — Então eu vou me
organizar para acompanhá-los.
— Obrigada!
Estendi minha mão sobre a mesa e Fernando a segurou com carinho.
— Quem consegue dizer não a você?
— Eu tenho uma lista. Você prefere em ordem alfabética?
Meu amigo riu outra vez. Fernando ficava lindo quando relaxava,
aliás, beleza era o que não faltava nele, apesar de se manter sério na maior
parte do tempo.
— Eu tenho que ir. Vou solicitar a Ilma o roteiro da viagem.
Ele saiu, eu voltei a olhar para o computador ciente de que precisava
analisar o arquivo e enviar para a fábrica o quanto antes, contudo, sem
qualquer condição de me concentrar. A hora de ir embora se aproximava,
Bernardo não entrou em contato em nenhum momento e eu começava a me
questionar se Carlos estaria à postos para me levar para casa quando Ilma
entrou na sala.
— Srta. Lacerda, a senhora ficará até mais tarde?
— Parece que sim, Ilma — resmunguei. — O pessoal da
contabilidade me deu o que pensar. — Ela sorriu de forma amigável. — Mas
não se preocupe, eu só preciso enviar o relatório e fazer alguns pagamentos
pessoais. Você pode ir pra casa.
— Tem certeza?
— Tenho sim.
Abri um sorriso forçado para que ela acreditasse em mim, quando na
verdade eu não decidia se procurava Bernardo ou se solicitava um carro por
aplicativo. Também não queria pedir que ela encontrasse Carlos, pois me
recusava a contar que peguei carona naquela manhã.
— Neste caso…
A mulher se retirou e eu respirei aliviada. Ilma era uma excelente
aliada, ainda assim, confessar aquela… confusão, não ajudaria em nada.
Voltei a atenção para o computador, me obriguei a analisar de forma
correta o arquivo antes de enviá-lo à fábrica. Eu ainda travava com as
lembranças do meu erro no primeiro dia de trabalho e me esforçava para não
cometer outro enquanto estivesse à frente daquele grupo.
Livre das obrigações do meu cargo, peguei o celular e acessei o
aplicativo do banco. Outro momento que me travava. Todas as vezes que
acessava a minha conta, antes com dinheiro restrito e contado, eu me
assustava. Jamais imaginei que tamanha quantia pudesse existir, pelo menos
não para mim, uma simples técnica em enfermagem. Mordi o lábio e fiz o
que me recusei a fazer desde que descobri o problema em que o Sr.
Quaresma me colocou, alterei todas as contas da família para débito
automático.
Eu não queria me acostumar com aquilo, com a facilidade do
dinheiro, com a tranquilidade das contas. Porém, desde que a tecnologia
facilitou a vida de cidadãos trabalhadores, eu assumi essa tarefa, uma vez
que minha mãe se recusava a se atualizar e continuava em filas para realizar
os pagamentos, além de se arriscar ao sacar todo o salário de uma vez só, já
que se enrolava com a senha do cartão.
Desta forma, além de CEO de um grupo empresarial, eu acumulava a
função antiga, de responsável financeira da nossa família. Por isso tomei
aquela decisão. Era isso ou uma das atividades sairia prejudicada.
Assim que terminei, conferi o horário e suspirei com pesar. Bernardo
com certeza já estava em casa e eu teria que me virar para retornar.
Desliguei o computador, arrumei minha pasta e quando, de pé,
organizava a bolsa, ouvi a batida fraca na porta. Por um instante, todo o meu
mundo se concentrou nos segundos que antecipavam a entrada da pessoa e
em seguida, desmoronou ao aparecer Vicente, e não Bernardo.
— O que faz aqui? — Fui seca.
— Eu esperei a sua saída, mas você demorou demais. Alguma
dificuldade?
Eu não acreditava em nada que partisse do Vicente, piorava quando
demonstrava interesse em meu trabalho, por isso cruzei os braços e tentei
colocar um fim naquilo.
— O que faz aqui, Vicente?
Ele fechou a porta atrás de si, o que embrulhou o meu estômago,
entretanto, eu sabia me proteger e se ele tentasse alguma coisa, eu lhe daria
uma surra e o jogaria na cadeia. Talvez fosse ótimo, menos um problema
para resolver. Mas Vicente não se moveu, ele continuou com a sua postura
relaxada a uma distância segura.
— Não tivemos tempo para conversar depois do que aconteceu. Eu
queria saber como você está.
— Depois de quase matar a sua esposa? Ótima!
Ele sorriu, como se de fato gostasse da ideia. Sério?
— Sabrina disse que não toma remédios, mas o exame toxicológico
apontou o uso de drogas.
— Pois é. Ela não conta a ninguém sobre isso.
— Você confirma que ela toma remédios?
— É complicado, Laura. Sabrina não gosta que as pessoas saibam
disso. Eu mesmo só descobri depois que casamos.
— Então é algo sério?
Ele se aproximou, sem demonstrar ser uma ameaça. As mãos nos
bolsos da calça social, o paletó aberto, apesar da ausência da gravata.
— Ela tem depressão — revelou. — Toma remédio controlado para
dormir e acordar.
Puxei o ar com força. Vicente demonstrava interesse em colaborar,
mas como acreditar nele? Se meu ex-noivo falava a verdade, então Bernardo
mentia? Ou havia alguma maneira deste não saber sobre os problemas da
irmã? Além de tudo isso, como Sabrina tinha depressão se até antes de ela
roubar meu noivo, nada a afligia?
— E… ela tem crises como aquela com regularidade? — incentivei.
Alguma coisa eu precisava extrair daquilo. Vicente concordou, os
olhos fixos em mim. Ele mordeu o lábio inferior e deu mais um pequeno
passo.
— Não como aquela. Sabrina é ciumenta. Ela inventa histórias na
cabeça e faz da nossa vida um inferno.
Estreitei os olhos para analisar suas palavras. Eu não duvidava do
ciúme da minha ex-amiga. Mas se aquilo era verdade, como Vicente se
arriscava tanto quando me agarrava pela casa? E aquilo acontecia desde
antes da herança passar para as minhas mãos.
— Onde ela está agora?
— Em um jantar de negócios.
— Jantar de negócios? — Arqueei uma sobrancelha. O que eles
tramavam?
— Nem tudo gira em torno do seu cargo — ele sorriu. — Sabrina é a
presidente. Mas com certeza Ilma sabe do que se trata e amanhã ela terá que
te contar sobre. Fique tranquila, foi um jantar que já estava na agenda há
muito tempo, com os diretores das concessionárias. Importante para definir
alguns pontos da viagem.
— Certo.
Continuei na defensiva, atenta a todos os passos de Vicente. Ele se
aproximou da minha mesa, desinteressado, antes de voltar a me encarar.
— Falei com Bruna — ele começou. — Meu Deus, ela cresceu
rápido demais. — Deu uma risada descontraída. — Eu expliquei a ela que
Sabrina não estava bem e que o pedido de desculpas foi verdadeiro.
— Eu preferiria que vocês não tivessem contato com minha irmã.
— Não é verdade, Laura, afinal de contas, moramos todos na mesma
casa agora. Se você quisesse mantê-la longe de nós, não a colocaria em
nosso caminho.
Eu não sabia se ele tentava aliviar a situação ou se fazia uma ameaça.
Meu corpo inteiro retraiu.
— A casa é minha. Eu ainda posso exigir a saída de vocês.
Vicente ergueu as mãos em sinal de rendição e voltou a rir.
— Calma. Não precisa se defender. A casa é sua, mas eu sei e você
também, que não exigirá que Sabrina e Bernardo deixem a casa.
— Você não me conhece mais, Vicente.
— Eu acho que tem razão. Você mudou muito. Independente disso,
aquela casa pertenceu aos pais deles, é a vida dos Quaresma que vibra ali,
por isso eu sei que não há esse instinto em você. Enquanto eles quiserem
viver lá, nada mudará.
— Se houver qualquer ameaça a minha família, tudo muda.
— Eu gosto disso, sabia? Da maneira como você defende a sua
família, tão decidida a mantê-las seguras.
— Se já disse tudo o que precisava dizer…
Andei até a minha mesa, decidida a interromper aquela conversa, ao
mesmo tempo, me questionava se não deveria fazer o que Fernando sugeriu,
dar espaço a Vicente e usar a situação como arma para forçar Sabrina a
descartá-lo.
— Laura… — ele sussurrou ao me abraçar pelas costas.
Petrifiquei no lugar, incerta se deveria atacá-lo com toda a minha
fúria pela ousadia de ele me tocar outra vez, ou só deixar que Vicente se
enforcasse naquela corda. De qualquer forma, a proximidade me deixava
nauseada. Enquanto eu não reagia, ele tomava como incentivo o meu
silêncio. Seus lábios depositaram beijos carinhosos em meu pescoço. Os
braços não me prendiam só acariciavam minha pele.
Eu amei Vicente um dia. Amei o suficiente para entregar a ele tudo o
que eu era, o que eu tinha, e acreditei no amor que ele afirmava sentir.
Durante anos, nem mesmo a traição, o abandono e a humilhação desfez o
que eu sentia. E eu me cobrava, sofria, odiava-me por não esquecê-lo de vez.
Até que aos poucos o ódio sufocou o amor e em seguida o desprezo tomou
conta de mim.
Quando comecei a trabalhar naquela casa, Vicente não passava de
um idiota interesseiro que se tornou cachorrinho de madame em troca de
uma vida de luxo. Eu não mais o enxergava como antes e o alívio por ter me
afastado de tudo o que ele era, me impulsionava a buscar sempre o melhor,
para mim e para a minha família.
Até que aquela bomba caiu em meu colo e de repente, ceder a
Vicente seria a solução para os meus problemas.
— Sinto sua falta — ele continuou a sussurrar, os lábios se
arrastavam pelo meu pescoço, alcançaram minha orelha. — Sinto tanto a sua
falta.
Fechei os olhos. Tive vontade de chorar. Não pelos motivos que
qualquer um tomaria como verdade, mas porque, quanto mais Vicente me
tocava, beijava minha pele e sussurrava em meu ouvido, mais as lembranças
de como era com Bernardo, me invadiam.
E eu me peguei desejosa de vivenciar aquela situação com o cara que
deveria ser meu inimigo. Pensei em como seria se fosse ele ali, como meu
corpo reagiria, de qual maneira ele me convenceria a aceitá-lo, e de qual
forma eu, rendida, não teria forças para afastá-lo, como aconteceu naquela
manhã, e no dia anterior e sempre que de alguma forma, Bernardo se
aproximava.
E então a verdade me invadiu com força. Eu não podia, e deveria
lutar com todas as minhas forças contra, porém, tudo em mim queria
Bernardo, ainda que sendo uma mentira, uma farsa ultrajante para arrancar a
herança de mim e depois me descartar. Eu queria viver aquilo com ele.
Vicente, diante da minha passividade, me virou em sua direção. Por
um segundo pensei em impedi-lo, em desviar o beijo. Ao mesmo tempo,
algo em mim dizia que aquele sacrifício valeria a minha liberdade, que se
Sabrina tivesse as provas de que precisava, deixaria o marido, que Bernardo
seguia em um bom caminho e demonstrava disposição para o trabalho,
então, beijar Vicente tornou-se uma opção vantajosa para alguém que se via
cada vez mais enredada com aquele “acordo”.
No entanto, no mesmo segundo em que nossos lábios se juntaram, os
dele com a ânsia de quem saboreava a vitória, os meus com o desespero de
quem assume a posição de mártir, o pior aconteceu. A porta abriu, eu me
assustei, Bernardo entrou e nada mais fazia sentido.
“E eu que andava nessa escuridão
De repente foi me acontecer
Me roubou o sono e a solidão
Me mostrou o que eu temia ver”
Escravo da Alegria - Vinícius de Moraes / Toquinho

CAPÍTULO 25
BERNARDO

Passei o dia envolto nos problemas que a falta de cuidado e atenção para
com as minhas obrigações na empresa, causaram. Contudo, demonstrar
interesse e desejo de encontrar uma solução animou minha equipe. Todos
trabalharam com mais afinco, falaram mais, sugeriram, debateram,
conversaram com as filiais e no final do dia, com mais uma reunião,
obtivemos mais resultados do que jamais ousei buscar em todos os anos que
trabalhei ali.
Eu me sentia… diferente. Não que trabalhar se tornou a minha
atividade preferida no mundo. Ainda sentia falta do lazer, do descanso e das
facilidades que a minha vida proporcionava, ainda assim, havia uma energia
diferente em minhas veias, que me impulsionava e me levava a cada
momento, a cada avanço, a ela, Laura.
E eu sabia que deveria seduzi-la até convencê-la de que o que meu
pai fez não passava de birra para nos punir e que, da minha parte, não havia
mais motivo para manter a farsa. Por isso recuperaria a herança e seguiria a
vida. Entretanto, quando eu pensava nesta parte do plano, nos dias em que
ela não faria mais parte disso, uma sensação estranha me acometia e, como
me acostumei a fazer, evitava o pensamento, jogava-o para o fundo da minha
mente e me mantinha em um lugar seguro.
O dia passou, meu horário acabou, a equipe aos poucos se dispersou,
mas eu não conseguia ir embora. Eu queria organizar o material que
produzimos e levar para ela, conversar sobre os problemas e as soluções que
encontramos, discutir as opções, qualquer coisa que me permitisse ficar ao
seu lado, conquistar a sua atenção, admiração… eu só queria estar com ela.
Por isso aguardei até que nenhuma das suas protetoras estivesse por
lá. Observei Fernando sair da sala e logo em seguida as duas secretárias.
Pouco tempo depois me certifiquei de que Carlos não comparecesse para
buscá-la e no instante que Ilma saiu, corri para finalizar o meu trabalho, de
olho no movimento do andar. Imprimi o relatório. Poderia enviar por e-mail,
mas conseguiria a sua atenção se comparecesse com os papéis em mãos.
Mas, ao abrir a porta da sala dela, me deparei com uma cena
inusitada. Uma parte de mim sabia que aquilo aconteceria em algum
momento se eu não agisse logo, só não esperava que Sabrina fosse
desapegada daquele ponto.
Vicente imprensava Laura contra a mesa, as mãos nos braços dela de
forma carinhosa. Beijavam-se quando entrei sem solicitar a permissão dela.
Assustada, Laura me encarou como se não acreditasse na minha intromissão
e Vicente… bom, esse nem sequer se afastou. Precisou que Laura,
recuperada do choque, fizesse isso por ele.
— Bernardo?
A voz dela, um tanto quanto fina e no limite da tensão, não aliviou o
meu choque.
Ela beijava Vicente. Não o reprimia, ou o afastava. Não fora algo
além dos limites que ela fingia ter ao lado do ex-noivo. Eu não deveria me
sentir tão aborrecido, contudo esta era a verdade, vê-los juntos me irritou por
diversos motivos: Vicente era casado com minha irmã. Sabrina o roubou de
Laura e eu já não fazia ideia se aquilo fazia parte de mais um plano da minha
irmã com o marido, diante da minha enrolação para resolver o problema, ou
se eu acabava de descobrir que Laura e Vicente nunca se afastaram e até
mesmo o casamento dele com Sabrina fazia parte de uma armação ainda
mais indecente e sórdida daquela que tramamos.
Contudo, o real motivo da minha irritação foi a ideia de não tê-la, de
ser o idiota que queria impressionar a garota e levava uma rasteira sem dó
nem piedade. O bolo em minha garganta, o qual eu me esforcei para engolir,
era do tamanho da minha amargura e cresceu quando me dei conta de que eu
também a magoaria com a farsa que Sabrina propôs.
No final das contas. Não prestávamos. Nenhum de nós.
— Desculpe, eu não queria interromper — eu disse, a voz azeda,
cheio de mágoa. A mão na porta, pronto para partir.
— Mas interrompeu.
Vicente me encarou sem qualquer medo da merda que daria quando
eu contasse a Sabrina o que aconteceu.
Confuso, me perguntei se minha irmã riria da minha cara e me
contaria que ela e Vicente decidiriam aquele jogo. E a mesma indignação
que me dominou quando ela me fez a proposta e depois quando Vicente
apareceu em meu quarto para me convencer a deixá-lo agir, me dominou.
— Não interrompeu.
Laura se colocou na distância que me separava do meu cunhado.
— Vicente está de saída.
A voz dela ganhou força, decidida a não deixar que eu soubesse de
mais nada.
— Eu também — anunciei.
— Bernardo, espere!
A súplica em sua voz se agarrou as minhas pernas, como uma
corrente que me impedia de deixar a sala, independente da minha vontade.
— Eu… preciso conversar com você.
— Laura? — Vicente protestou.
— Vá embora, Vicente. Agora.
Ela queria aquele teatro, precisava disso para me convencer de que
não havia armação e voltar a ser a garota insegura que me conquistou.
Conquistou? Era isso o que me deixava naquele estado? Eu não sabia
responder, e, por mais que tentasse, por mais que me revoltasse com o que
vi, uma parte de mim dizia para eu ficar.
Com um bufar de protesto, meu cunhado acatou a decisão dela, mas
ao passar por mim, abriu um sorriso escroto e piscou o olho. Precisei me
segurar para não atacá-lo, ou dar a volta e deixar Laura sozinha.
Assim que a porta bateu, Laura deu alguns passos em minha direção
e parou a uma distância segura. Os olhos aflitos buscavam a minha reação,
como se ela me devesse alguma explicação. Deu uma risada curta e sem
qualquer humor.
— O que quer, Laura?
— Isso é clichê e com certeza você não vai acreditar, mas… não
aconteceu nada.
Suspirei, cansado, humilhado, aborrecido. Passei por ela e encostei
na mesa que antes pertencia a meu pai. Cruzei os braços e aguardei pela
explicação que ela precisaria inventar.
— É sério, Bernardo. Não aconteceu nada.
— Não foi o que eu vi.
— Eu sei. É que…
— Só me diga uma coisa, Laura. Vocês ficaram juntos agora ou isso
é coisa antiga?
— O quê? Não! Eu não estou… não fiquei… não há nada entre mim
e Vicente.
— Bom, não foi o que eu vi — repeti a acusação. — Você precisa de
algo mais concreto para me convencer.
— Eu nem sequer preciso te convencer, Bernardo. Não há nada com
o Vicente e nada com você. Aliás, vocês dois estão ansiosos para garantir
que essa herança retorne para as mãos de vocês, por isso esse jogo sujo.
Mordi o lábio inferior, incerto sobre acreditar ou não nela. Uma parte
de mim tinha certeza de que Laura não faria aquilo. Mas a outra, gritava que
se ela aceitou uma herança que não lhe cabia, tudo era possível. Apesar
disso, aceitar que havia um caso antigo e que eles faziam aquilo para roubar
de Sabrina, não se parecia em nada com a Laura que eu conhecia. Nem com
a antiga, a garota pobre que cuidava do meu pai e que quase não conversava
comigo, nem a nova, a que detinha o poder nas mãos e jogava conosco como
peças do seu tabuleiro.
— Olha, se não quiser acreditar, tudo bem. Eu só me justifiquei
porque ele é marido da sua irmã e não quero mais problemas com Sabrina.
— Você não me deve nada, Laura.
Eu me afastei da mesa, os papéis ainda em minhas mãos, sem
qualquer utilidade depois do que vi.
— Mas se você e Vicente planejam algo, quero que saiba que
passaremos por cima de vocês como um…
— Espere um pouco — ela disse mais alto. — Você está me
ameaçando? Você? Logo você que me cerca há dias para tentar arrancar de
mim a herança que seu pai deixou? Fala sério, Bernardo! Se tem alguém
aqui com desvio de caráter, essa pessoa não sou eu.
— Mas eu sou solteiro. Posso desejar qualquer coisa com você,
desde recuperar a minha herança a uma vida juntos.
Laura arregalou os olhos diante da minha confissão. Ela falaria algo,
mas se calou sem encontrar palavras para rebater a minha acusação.
— Vicente é casado com Sabrina. Até hoje eu acreditava que ele era
um imbecil movido a dinheiro e que Sabrina era a sua melhor opção, mas
depois do que vi aqui…
— O que você viu foi a tentativa dele de me tornar a bola da vez.
— O que eu vi foi você muito à vontade com a situação.
— Porque eu… — ela se interrompeu, os olhos marejados, a raiva
destacada no rosto.
— Você gosta dele.
— Não.
— Não seja cínica, eu vi o beijo.
— E era um beijo de uma mulher apaixonada?
Por um segundo busquei a imagem em minha mente. A Laura que se
desmanchava em meus braços, que perdia o controle e se permitia seduzir
não foi a mesma que eu encontrei nos braços do Vicente. Ainda assim…
— Era o beijo de uma mulher que não censurava o homem em
questão.
— Argh! Você é tão idiota!
— Bom, me desculpe se eu não vejo as coisas sob o seu ângulo.
Então é isso? Vicente vence esse jogo? Vocês se juntaram contra nós? Foi
por isso que resolveu se mudar lá para casa?
— Cala a boca!
— Não! — Larguei os papéis sobre a mesa dela e avancei em sua
direção.
Não havia em mim apenas a sensação de derrota, mas de traição, de
orgulho ferido, de não ser o escolhido, e isso me assustava.
— Sabrina saberá por mim o que aconteceu aqui — ameacei e em
seguida me calei por me sentir ridículo naquele papel.
— Ótimo! Poupe-me deste trabalho. Menos um.
— Menos um?
— Você não entende nada mesmo — ela riu sem vontade e deslizou a
mão pelo cabelo. — E eu cansei de ser o troféu de vocês. Conte a Sabrina
sobre Vicente e diga para ela se divorciar, porque ele não vale nada.
— Claro, porque não facilitar a sua vida, não é mesmo? Sabrina sai
de cena e você fica livre para viver com o carinha que nunca esqueceu.
— Não sou obrigada a ouvir isso. Faça como quiser. Agora fora da
minha sala.
Por um segundo o choque me paralisou. O que era aquilo? Por que
ela agia daquela forma? E por que eu me incomodava tanto ao ponto de não
conseguir nem mesmo dar um passo em direção a porta?
Nós nos encarávamos, ofegantes, incertos. Eu repleto de mágoa e de
desespero. Ela… eu não fazia ideia do que aqueles olhos escuros, marejados,
queriam me dizer, mas sabia que eles me atingiam e me dominavam com
facilidade.
Talvez este seja o motivo para o que eu fiz. Ou talvez não houve
nenhuma outra saída para mim. Laura ocupava meus pensamentos, minhas
ações, meus desejos e isso só significava uma coisa: eu me apaixonei. Mas
como? Por que justo por ela? E por que quando eu não podia deixar
acontecer? Quando ela jamais acreditaria em meus sentimentos e tinha todos
os motivos para me condenar.
Com a mão firme, puxei Laura para mim. Não encontrei resistência,
pelo contrário. No instante em que eu a cerquei em meus braços, ela cedeu,
amoleceu, buscou meus lábios antes mesmo que eu me inclinasse sobre ela.
Laura me beijou com paixão e constatar essa ideia abriu uma ferida em mim.
Porque eu não sabia o que ela queria, o que sentia e em especial, se havia de
fato, um plano entre ela e Vicente. Porém, quando ela me beijou, quando sua
língua adoçou a minha, quando seu corpo se colou ao meu e minhas mãos
exploraram as curvas dela, nada fazia sentido além daquele quadro, da nossa
cena, daquele momento.
Porque Laura em mim fazia todo e qualquer sentido.
Esbarramos na mesa, espalhamos os papéis, afoitos, loucos por
aquele sentimento que nos dominava quando nos encontrávamos. Aquilo sim
era entrega, desejo, paixão. Não o que eu vi quando entrei naquela sala.
Puxei a saia para cima, abri suas pernas, explorei as coxas. Laura gemeu,
mas afastou os lábios dos meus.
— Nós não podemos…
— Por quê? — resmunguei ao tentar encontrar os lábios dela outra
vez e vê-la se afastar. — Por causa dele?
— Você sabe que não. Sabe a resposta. Por que insiste nisso?
Ela tentou levantar, mas eu a impedi.
— Olhe para mim — exigi, ela obedeceu sem contestar. — Você
ainda gosta dele?
— Não.
A firmeza em sua voz arrancou todas as dúvidas que perambulavam
em minha mente.
— Você gosta de mim?
Desta vez, Laura não respondeu. Seus olhos desviaram para a janela,
depois para meu peitoral. O silêncio machucava mais do que imaginei. Eu
não identificava a resposta, não sabia o que ela queria ou pensava e isso me
atormentava.
— Namore comigo.
As palavras atropelaram meus pensamentos e saíram por meus lábios
sem que eu pensasse no peso delas. Todavia, quando me ouvi dizê-las, não
tive dúvidas de que era o que eu queria. Laura voltou a me encarar, a
surpresa clara em seu rosto.
— Se você não gosta dele e se… sente alguma coisa por mim,
namore comigo.
— Bernardo…
— Namore comigo, Laura.
— Não.
Ela me afastou. A surpresa pela resposta me fez recuar. Outra vez, eu
não identificava se a sensação era boa ou ruim. Se por um lado havia a ideia
de que ela não me queria, e esse ponto deveria me derrubar na lona, por
outro, ouvi-la negar meu pedido era a certeza que eu precisava para anular
de vez a ideia de que ela e Vicente armavam contra Sabrina e eu.
— Por quê?
— Eu não confio em você.
O suspiro em sua voz demonstrava o cansaço e a luta que travava
para me impedir de avançar. Por isso, eu sorri. Vicente não era uma ameaça
e Laura não precisava daquela merda.
— Mas eu confio em você — revelei. — E manterei Vicente
afastado.
— Isso é um pedido de namoro ou um contrato de segurança?
Ela desceu da mesa, arrumou a saia e o cabelo. A bochecha corada a
deixava mais desejável, linda, perfeita para mim.
— Isso é… uma oferta de carona para casa.
Laura pegou a bolsa e a pasta sem voltar a me olhar.
— Só se você me garantir que não me beijará outra vez.
— Foi você quem me beijou — acusei. Ela ficou sem graça. — E eu
não reclamei.
— Vamos embora, Bernardo.
Ela passou por mim como se precisasse fugir daquilo. Eu a
acompanhei, os passos atrás dos dela, atento a tudo o que ela fazia, como
reagia. Aceso por dentro, louco por ela, desejoso do sim que ela não se
permitia dizer, mas que eu arrancaria dela e depois disso… bom, depois a
vida ganharia outro sentido.
“Era como se o amor doesse em paz”
Carta ao Tom - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 26
BERNARDO

Laura não conversou durante todo o percurso até a minha casa. Nossa casa.
Que ironia sórdida e cruel. Puxei conversa, provoquei, mas ela se manteve
quieta, pensativa e algumas vezes, digitava rápido uma mensagem, o que me
jogou outra vez na teia da desconfiança, e eu odiava aquela sensação.
Nunca fui inseguro em relação às mulheres, nunca precisei fazer
nada além do que algumas palavras provocantes e sorrisos discretos. Laura
quebrava as minhas certezas, bagunçava meu ego e me fazia pensar em cada
gesto, cada palavra.
— Obrigada pela carona — ela disse assim que parei o carro na
garagem. — Mas amanhã eu irei com Carlos.
— Não há… — Ela não me deu a chance de contestar. Laura saiu do
carro, bateu a porta e correu para dentro de casa.
Respirei fundo, as mãos no volante. Desde quando eu precisava me
esforçar tanto para conquistar uma garota? E desde quando uma garota
resistia dessa maneira a mim?
— Saco!
Deixei o carro, passei pela sala vazia e fui direto para a minha ala.
No instante que fechei a porta atrás de mim, voltei a minha habitual
segurança. Larguei a pasta na mesa da sala, segui para meu quarto e quase
gritei de susto ao encontrar Sabrina sentada em minha cama.
— Pensei que você não chegaria nunca — ela resmungou.
— Quando você teve a ideia de dividir a casa em três, foi para que
tivéssemos privacidade. Para de invadir a minha.
— Não temos tempo para isso, Bernardo.
Minha irmã levantou da cama e me deu passagem. Retirei a gravata e
deixei sobre a poltrona junto com o paletó.
— Laura vai para a viagem?
— Vai.
— Ótimo! Essa será a sua chance. Não faça besteira desta vez.
Encarei Sabrina e me perguntei se ela de fato tinha consciência do
que o marido fazia, no entanto, relembrar a cena, Laura nos braços de
Vicente, o beijo, me incomodou.
— Onde está Vicente?
— Na academia. Precisamos ajustar a questão dos quartos. O seu
precisa sempre estar ao lado do dela.
Continuei a busca de informações através das expressões da minha
irmã. Sabrina seguia com os planos como se não soubesse que o marido agia
de encontro a eles. Outra vez um incômodo estranho em meu estômago me
alertou. Sabrina não sabia o que Vicente fazia? Então ou ele de fato tentava
reconquistar Laura e aplicar mais um golpe, ou… não. Eu não voltaria a
cogitar essa possibilidade.
— Por que você não desiste dessa abordagem e tem uma conversa
sincera com a Laura?
Minha irmã riu com escárnio.
— Pra quê? Para ela rir da minha cara e demonstrar todo o prazer por
se vingar de mim?
— É disso que se trata? Essa questão não se resolve por causa do
Vicente?
— Não resolve porque Laura não superou.
— E se ele for a única maneira de persuadi-la?
Tentei manter a neutralidade em minhas palavras, sufocar a mágoa
que a ideia causava em mim. Mas não perdi a dor que transpassou o rosto da
minha irmã. Não, Sabrina não concordava com o que o marido fazia.
— Isso não está em cogitação — ela rebateu ao tentar esconder de
mim o que sentia.
— Vicente concorda com a sua posição?
— Qual o problema, Bernardo? Lógico que Vicente concorda ou nem
seria mais meu marido. E ele está nessa com a gente.
Eu queria contar, dizer cada detalhe do que vi na sala que Laura
ocupava. Queria que Sabrina conhecesse a verdade e, ou abrisse o jogo
comigo e confessasse que agia com o marido pelas minhas costas, ou tivesse
total noção do quanto Vicente não prestava. Contudo, no segundo em que
abri a boca para revelar, não consegui.
Depois do acidente, de ver minha irmã em uma posição tão frágil, de
existir a suspeita de que a doparam, somada a ideia dolorosa de que não
existia mais ninguém naquela família além de nós dois, me fez calar. Eram
muitos problemas de uma vez só para qualquer pessoa suportar.
Independente disso, apesar da consciência de que deveria manter aquela
relação com a minha irmã, eu não podia mais enganar Laura, por isso
precisava mudar os planos, antes que fosse tarde demais.
— Eu pedi Laura em namoro — revelei.
Em meu peito um misto de sentimentos, todos amargos.
Primeiro porque pedi Laura em namoro não para fortalecer aquele
plano, e sim por uma atitude desesperada, quando pensei que a perderia para
Vicente e em seguida, quando me dei conta de que poderia perdê-la para
qualquer um. O que significava que… não, eu não pensaria na exatidão
daquela força estranha que me assolava. E segundo porque ela negou o meu
pedido, logo após beijar Vicente.
Engoli com dificuldade quando vi o sorriso esperançoso que se
esticava nos lábios da minha irmã. O rosto de Sabrina se iluminou como se
aquela informação perdida eliminasse o peso daquela guerra.
— Ela negou — informei com pressa e meu estômago revirou
quando o sorriso de Sabrina se esvaiu.
— Negou? Por que negou? O que você fez de errado?
Claro. Tudo o que eu precisava era de um sermão sobre como
conquistar uma mulher, dado pela minha irmã caçula.
— Essa não é a questão. Quando fui à sala de Laura para conversar,
encontrei Vicente com ela.
Outra vez engoli em seco ao perceber que a expressão de Sabrina
modificou muito rápido de apreensiva para raivosa.
— Na sala da Laura? E o que ele fazia lá?
Beijava ela, pensei com sarcasmo ao me permitir aquele breve
segundo de vingança. O mesmo que morreu em seguida. Como convencer
Sabrina a tirar Vicente de cena? Como fazê-la enxergar que o filho da puta
não merecia a nossa consideração? E, em especial, como fazer isso sem
quebrá-la em mil pedaços?
— Eu não sei. Mas se Vicente continuar interferindo, será ele a dar
um jeito nisso.
— Nunca!
A maneira raivosa como ela falou me deixou apreensivo. Não porque
o ciúme de Sabrina fosse algo preocupante, mas por me certificar, mais uma
vez, de que ela não suportaria aquela realidade, ainda que se apresentasse de
armadura em sua persona perfeita de mulher de aço.
— Você sabe que essa guerra tem nome e rosto — provoquei, não
por querer machucá-la, mas porque precisava que ela de fato tirasse Vicente
do meu caminho.
— Laura está encantada por você, mas ela é durona. Nunca vai
admitir que amoleceu para um Quaresma, que se apaixonou. Precisamos ser
mais fortes, incisivos, deixá-la frágil, uma presa fácil.
— Do que você está falando?
— Vamos quebrar a segurança dela. Deixá-la só, dependente de você.
— Sabrina…
— Não se preocupe. Eu dou um jeito nisso — ela disse após longos
segundos em silêncio, mas quando falou, havia uma determinação
assustadora em suas palavras. — Por enquanto, trate de manter Laura
apaixonada. Consiga dela o que combinamos, depois eu penso no que fazer
com o Vicente.
Derrotado, deixei que Sabrina ditasse as regras mais uma vez. Não
por desejar que fosse daquela forma, pelo contrário. Mas de nada adiantaria
bater de frente com a minha irmã, cavar aquela confusão. Dessa forma, optei
por deixá-la imaginar o que fazer e decidi que eu mesmo traçaria meu plano
e resolveria aquele problema.
Só que eu não imaginava que minha irmã iria tão longe.

LAURA
Os dias passaram como um foguete da NASA, com toda velocidade
para cima, com o intuito de rasgar cada camada protetora do meu campo de
defesa e deixando pelo caminho fragmentos que se destruiriam ao cair. Era
desse jeito que eu me sentia quando olhei o relógio e constatei que, mais
uma vez, não chegaria em casa no horário dos mortais.
Jamais imaginei que ser rica e com um cargo de chefia exigisse tanto
tempo de mim. Não era assim que eu imaginava a vida de uma pessoa de
sucesso, com seu sorriso cativante e cliques luxuosos em férias
inacreditáveis, estampadas nas revistas. Eu não tinha tempo, disposição e
coragem nem para caminhar trinta minutos em uma esteira, como eles
conseguiam?
Bernardo, Vicente e Sabrina malhavam todos os dias. Tinham
personal que esculpiam seus corpos perfeitos em uma rotina sagrada,
enquanto eu dormia como uma pedra nas poucas horas que me restavam
após perder um pouco da minha alma na dinâmica profissional na qual me
jogaram.
A batida na porta, naquele horário, todos os dias, não me surpreendia
mais. Bernardo entrou sem que Ilma se desse ao trabalho de acompanhá-lo.
Depois do dia em que me pediu em namoro e eu neguei, ele se manteve por
perto, sem, em momento algum, avançar o sinal.
Havia conforto nisso, afinal de contas, nada em mim recusava a sua
aproximação, com exceção da certeza que eu tinha de que ele cumpria com o
prometido, se dedicava ao máximo para tomar de mim a herança. Logo, se
Bernardo não avançava, poupava a minha força.
Por outro lado, havia também uma boa dose de frustração. Porque
Bernardo não me beijava e derrubava todas as minhas barreiras de uma vez,
porém, tudo nele me seduzia, me encantava e atraía, e ele sabia disso, então
usava cada detalhe como uma arma potente contra o meu juízo nada perfeito.
Ele se aproximava com seu perfume marcante, me tocava com o fogo
que escapava da ponta dos dedos e marcava a minha pele, mesmo que
disfarçado de cortesia, me seduzia com sorrisos que derretiam minha
concentração e com sua voz doce e aveludada, baixa, no timbre certo para
acionar algo dentro de mim que me fazia ter a certeza de que nada me
impediria de ceder a ele, caso ele tentasse outra vez.
Ou seja, Bernardo era um risco real.
Já Vicente, tomei a liberdade de impedir a entrada dele e, quando
Ilma saía, eu trancava a minha sala. Desta forma os encontros que tivemos
foram todos seguros, com Sabrina e seu olhar de raio laser que se pudesse,
me cortaria ao meio, me eliminava da humanidade e resolveria o problema,
não apenas da herança, mas da obsessão do seu marido por mim.
— Pronta? — Bernardo perguntou daquele jeito de quem não queria
nada e ao mesmo tempo, tomaria tudo de mim, até mesmo meu corpo.
Desviei o olhar porque naquele dia, ele usava um terno azul que
realçava seus olhos e me fazia suspirar por tanta beleza em um único corpo.
— Para o quê?
— Como para o quê, Laura? Para a viagem.
Engoli o estremecimento que me atingia todas as vezes que ele
mencionava a bendita viagem e o tempo em que passaríamos longe de tudo o
que me protegia. Também recordava a briga ridícula que travei com Sabrina
quando contei que Fernando nos acompanharia. Ela não contava com isso, o
que fortaleceu a ideia de que tanto ela quanto o irmão usariam aqueles dias
para me aplicar o golpe.
— Ainda tenho dois dias.
— Um final de semana. Isso serve para fazer as malas. E os
relatórios?
— Todos prontos, separados e arquivados. Ilma é incrível.
Vacilei e o encarei com um sorriso genuíno, só para me prender
àquela imagem máscula, atraente e perfeita que tinha tamanha força sobre
mim que se não existisse a gravidade que me prendia ao chão, eu levitaria
para orbitar ao redor dele.
Que merda eu fiz?
Bernardo sorriu ao me ver embasbacada, como sempre acontecia. Ele
se inclinou sobre a mesa, se aproximou de mim, certo de que eu não
conseguiria recuar, mas não me beijou, nem tentou, o que injetou uma dose
extra de frustração em minhas veias.
— Ilma é sim. Por isso meu pai confiava tanto nela. Às vezes eu me
pergunto porque ele deixou isso aqui para você e não para a Ilma, que daria
conta do trabalho com uma mão nas costas.
— Obrigada por salientar a minha incompetência.
Outra vez voltei a encarar o computador, a tela aberta do relatório
que eu precisava enviar todos os dias para a fábrica principal.
— Você não é incompetente, mas nem mesmo meu pai ganhava da
Ilma — ele continuou, imbatível, sem qualquer culpa pelo que dizia. —
Acho que Sabrina, talvez. Mas ele não queria ela no comando.
O incômodo que me atingia sempre que tocávamos naquele assunto,
se apresentou. O Sr. Quaresma confiava na filha e queria que ela assumisse
aquela posição. O problema era Vicente, não Sabrina. E não havia dúvida da
competência da mulher de aço que presidia aquele grupo empresarial. Mas
como separar a Sabrina profissional da Sabrina apaixonada pelo marido?
Esse era um ponto que eu não sabia como resolver.
Aliás, sabia sim, só não queria. A única maneira de dar um fim
àquela loucura era ceder a Vicente e acabar com o casamento deles, no
entanto, como fazer se cada partícula do meu corpo implorava por outra
pessoa? Como manter aquela farsa, aceitar as investidas do marido da minha
ex melhor amiga e esquecer o quanto eu desejava Bernardo e, ao mesmo
passo, detestava Vicente?
— Seu pai perdeu a confiança nela quando descobriu quem era
Vicente — revelei com a voz rouca.
Eu não podia fazer mais do que aquilo, entregar pequenas pistas para
que eles chegassem na conclusão correta.
— E quem é Vicente? — Bernardo incentivou.
Se eu não estivesse atenta, entregaria as cartas e permitiria que eles
encontrassem uma maneira de me enganar.
— Por que você não me diz? Qualquer julgamento meu terá o peso
da minha história com ele.
Bernardo puxou a cadeira e sentou à minha frente, separados pela
mesa, o que não impedia meu corpo de reconhecer o dele. Que loucura!
Aquilo não era normal, não era nem saudável. Como eu podia ter
consciência de que ele era o inimigo e ainda assim, deixar que minhas
células entrassem em transe todas as vezes que aqueles olhos azuis se
fixavam nos meus? Como minha pele desejava tanto um toque enquanto
minha mente alertava do perigo que seria a mínima junção da dele na
minha?
— Para mim? Vicente é um idiota que brinca de marido da minha
irmã. Ou, era assim que eu o via, mas depois daquele dia…
Meu rosto esquentou com força ainda que eu lutasse para manter a
dignidade diante da lembrança de quando ele me surpreendeu nos braços do
cunhado.
— Vicente vai para onde o dinheiro está — eu comentei sem receio,
certa de que não seria nenhuma novidade para Bernardo aquela declaração.
— E como você se sente com isso?
— Nossa, até parece que estou em uma sessão de terapia.
Eu me afastei o máximo possível, encostada na cadeira e com os
braços longe da mesa onde os dele estavam.
— Você faz terapia?
— Essa não é a questão.
Fechei os olhos e balancei a cabeça para fugir do encanto que ele
jogava sobre mim sempre que se aproximava, porque foi isso o que ele fez.
Certo da minha fragilidade, se inclinou outra vez sobre a mesa e manteve o
olhar firme em meu rosto.
— Eu sei que tudo o que conversarmos aqui chegará até Sabrina.
— Nem tudo. Eu não contei a ela que você e o Vicente…
— Não aconteceu nada — rosnei, porém consegui impedir que as
palavras “deveria contar”, saíssem pelos meus lábios. — Mas eu me
pergunto se não deveria deixar acontecer.
Bernardo se afastou, os lábios apertados e o olhar afiado como uma
acusação terrível. Suas mãos abandonaram a mesa e se cruzaram sobre o
abdômen perfeito.
— Se eu fingir que Vicente é bem-vindo e com isso fizer com que
Sabrina descubra o marido escroto que tem, matarei dois coelhos com uma
cajadada só. Ela se separa e ficará livre daquele traste e eu o jogarei na
sarjeta, que é de onde não deveria sair. Sem contar que seria uma deliciosa
vingança.
— Essa é a questão?
Ele se mantinha naquela posição defensiva, sério e aborrecido.
— Não, não é. Mas não posso mentir que seria interessante — menti.
— Eu preferiria que você deixasse o Vicente longe disso. Não que,
devido às circunstâncias, eu ainda o quisesse como cunhado, mas só de
imaginá-lo com as mãos em você tenho vontade de eu mesmo jogá-lo na
sarjeta.
A revelação me chocou. Apesar da placa luminosa que acendia em
minha tela mental com um grande e vermelho sinal de perigo, meu corpo
amoleceu e nada impediu o calor que me tomava de escorregar por minhas
veias como fogo líquido.
— Eu sei. Você também tem um objetivo bem definido — acusei,
apesar de me segurar para não pular a mesa e me jogar sobre ele.
O que fizeram comigo?
— Tenho. Você deveria confiar mais em mim.
Revirei os olhos como provocação, mas também, para quebrar aquele
encanto miserável e tentador.
— Eu não menti para você, Laura. Quero a herança de volta, mas
quero você junto com ela.
— E eu sou a idiota que acredita nesse conto para crianças bobas que
sonham com um príncipe encantado.
— Se levar em consideração que nunca me encaixei nesse papel…
— ele deu de ombros, mas sorriu daquela maneira que fundia meu cérebro.
— Pois é. Você é o vilão. Vou me lembrar deste detalhe.
— Eu sou o anti-herói. Não curto isso de seguir as regras, mas no
final, fico com a mocinha.
— Bernardo você é…
Não terminei a frase. Meu telefone tocou. A luz indicava ser uma
ligação de Ilma. Aproveitei a deixa para me livrar daquela conversa que
tendia a finalizar da maneira que meu corpo pedia, mas eu evitava.
— Oi, Ilma.
— Srta. Lacerda, sua irmã na linha. Ela disse que tentou ligar para o
seu celular várias vezes e não conseguiu.
— Pode passar.
Sem entender o motivo para Bruna me ligar com tanta insistência,
procurei pelo celular e o encontrei descarregado. Droga!
— Laura — minha irmã disse do outro lado da linha antes que eu
conseguisse falar qualquer coisa. E pelo seu tom, um arrepio transpassou
minha coluna e me fez levantar com pressa.
— Bruna, o que foi?
— É a mamãe — ela disse com voz de choro. — Ela passou mal. Eu
a trouxe para o hospital, mas…
— Qual hospital?
Bernardo levantou ao entender o teor da conversa. Eu anotei o nome
que minha irmã me passou, trêmula, incerta sobre a minha capacidade de
encarar aquela situação.
— Venha logo, por favor. Os médicos disseram que ela pode ter
ingerido veneno.
Encarei Bernardo e não sabia mais se o matava ou se aceitava a sua
ajuda.
“Eis que chega de longe, como a estrela
De longe, como o tempo
A minha amada última!”
A brusca poesia da mulher - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 27
BERNARDO

Laura me deixou levá-la ao hospital, não sem expressar a raiva sentida e a


acusação sobre a minha família, ou melhor, sobre Sabrina e o plano de tomar
de volta a herança deixada pelo nosso pai.
Com as mãos fixas no volante, atento à rua e na velocidade máxima
permitida, eu me questionava se Sabrina tivera coragem. Eu conhecia a
minha irmã, a sua obstinação e a maneira como tomou para si aquela guerra,
e, em se tratando de guerra, Sabrina não desistia sem vencer, porque ela
jamais foi derrotada.
Contudo, se meus medos se confirmassem, o que eu faria? Protegeria
a minha irmã? Encontraria justificativas para o que fez? A entregaria a
polícia?
— Fernando? — Laura disse ao meu lado. A voz indicava o choro
que segurava com firmeza. — Sim, que bom que Ilma te procurou.
Eu não deveria impedi-la de buscar apoio em Fernando, afinal de
contas, apesar das minhas teorias quanto a participação dele naquela história,
era o seu homem de confiança, ainda que me incomodasse tal ideia. Mesmo
assim, ouvi-la recorrer a ele me deixou tenso. Fernando era o advogado que
cuidava não apenas das questões jurídicas do nosso grupo, mas assumiu para
si os interesses pessoais de Laura, o que significava que ela não aceitaria
qualquer justificativa.
— O hospital já fez isso? — Laura disse, de repente, bastante
assustada. — Então não é mais uma suspeita. Ela foi envenenada? Sim, eu
entendo. Claro, quero que encontrem quem fez isso com minha mãe. Os
funcionários? Certo. Todos eles. E as câmeras? Certo. Poderia cuidar desta
parte lá em casa? Ótimo. Eu te manterei informado.
Ela encerrou a ligação e nada me disse, mas eu não suportava mais
aquele silêncio acusatório. Agradeci quando chegamos ao hospital, passamos
pela cancela e entramos no estacionamento. Laura abriu a porta antes de eu
desligar o carro.
— Merda! — rosnei ao precisar me apressar para acompanhá-la. —
Laura?
Ela não se virou para me olhar, nem reduziu a velocidade dos passos.
— Laura? — Eu me aproximei, mas precisei manter as passadas
largas. — O que Fernando disse?
— Que a polícia já está com o caso.
— A polícia?
— O que achou que seria?
Ela se virou para mim ao parar na frente do elevador. Em seu rosto a
mais real expressão de ódio.
— Minha mãe foi envenenada dentro daquela casa. Agora me diga,
quem mais teria interesse em envenená-la?
Estremeci. Apesar de Sabrina defender seu direito de ir até o último
recurso contra Laura, eu ainda me perguntava se ela seria capaz de algo
como aquilo. Matar uma pessoa? Envenenar a mulher que nos criou? Não.
Eu não enxergava aquela atitude na minha irmã. Apesar disso, não fazia
mais do que três dias que ela afirmou que algo precisava acontecer para
enfraquecer Laura e torná-la vulnerável.
Porra!
— Olha, eu sei que isso tudo é uma droga — comecei, sem saber ao
certo se havia algo que eu pudesse dizer que amenizasse aquela confusão. —
Mas Sabrina jamais faria isso.
— Tem certeza? — ela rebateu com ironia. — Sabrina, você,
Vicente… o que mais seriam capazes de fazer para reaver essa maldita
herança? Por que não entendem que se seu pai fez isso, era porque vocês não
mereciam nada do que ele construiu?
Ela gritou esta última parte, o que me fez recuar.
— Vocês não são nada além de um bando de sanguessugas,
desrespeitosos, desleais e desonestos. E o Sr. Quaresma sabia disso,
portanto, cacete, respeitem a vontade dele e deixem a minha família em paz!
— Laura! — eu disse, chocado e completamente estarrecido com
aquela enxurrada de realidade que me atingiu sem piedade. — Ok! Meu pai
tinha esse direito e não há nada para contestar aqui em relação a isso. Mas
daí acreditar que seríamos capazes de tentar matar a sua mãe? Sara
praticamente nos criou! Ela é como uma mãe para mim.
Os olhos dela ficaram repletos de lágrimas e desta vez ela não se
importou em derramá-las. Tentei tocá-la, mas Laura recuou, recusou meu
acalento, o que, talvez, doeu mais do que as palavras duras que me disse.
— Nós não pedimos nada disso — ela disse entre lágrimas. — Minha
mãe não concordou, eu não concordei, mas o seu pai… ele… ele pediu para
que eu não desistisse porque vocês não mereciam ficar com nada. E o Sr.
Quaresma tinha razão. Vocês não merecem.
A porta do elevador abriu e ela entrou sem olhar para mim outra vez.
Tudo em mim doía. Tudo. Não apenas a rejeição dela, mas a confissão de
que decepcionei tanto meu pai ao ponto de deixá-lo morrer sem qualquer
vontade de nos deixar o seu legado. Eu queria segui-la, me manter firme ao
lado dela, mas não podia, porque a única coisa que eu queria era me trancar
em meu quarto e chorar até que a minha casca caísse e eu me tornasse
alguém melhor.
Sara não merecia passar por aquilo. Nenhuma delas merecia. E era
uma questão de honra não deixar mais que acontecesse.

Duas viaturas estacionadas na porta da minha casa faziam com que


vizinhos e funcionários se mantivessem atentos a todos os movimentos para
não perder nenhuma parte da fofoca. Com toda certeza só não havia
repórteres porque o condomínio não permitiria o acesso, ou porque Sabrina e
Vicente deram um jeito de abafar a situação até termos que falar a respeito.
Estacionei na minha vaga habitual e desci com pressa, grato por não
precisar me expor para entrar na minha própria casa.
— Boa tarde, Sr. Bernardo — um dos funcionários me
cumprimentou, mas eu não tinha nem força e nem vontade de relembrar o
nome.
— Onde está Sabrina?
— Na sala principal, conversando com os policiais.
Era só o que me faltava. Eu só não queria que aquela merda
respingasse em mim. Nem em Sara. Porra! Sara? Que loucura era aquela?
Encontrei Sabrina sentada no imenso sofá, amparada por Vicente que
acompanhava os policiais de perto. Antes de chegar até eles, ouvi barulhos
na cozinha e vozes. Os empregados também seriam ouvidos.
— Bernardo, onde esteve? — Sabrina se apressou em perguntar ao
me avistar.
Antes mesmo de alcançá-la, enxerguei seus olhos vermelhos e
acreditei no abalo em seu rosto. Parei por um segundo para analisá-la e
depois dei uma rápida olhada para os dois policiais que se mantinham de pé,
mas não pareciam hostis.
— Com Laura. Acabei de deixá-la no hospital. O que aconteceu?
A pergunta foi para a minha irmã, contudo, um dos policiais me
respondeu, o que não aliviava a minha tensão.
— A Sra. Sara foi envenenada. Por sorte tanto a filha caçula… —
Procurou no bloco o nome antes de acrescentar. — Bruna Lacerda, quanto a
cozinheira, Flávia, agiram rápido.
— Eu soube — informei. — Estava com Laura quando Bruna ligou
para ela. O que quero saber é como isso aconteceu?
— Ainda não sabemos — o homem revelou com o olhar atento a
tudo o que eu dizia.
— Todos comeram a mesma coisa — Sabrina se apressou em dizer.
— Como apenas Sara pode ter sido envenenada?
— Entre o horário do almoço e o ocorrido ela pode ter comido algo
— o outro policial continuou. — Confirmamos que não houve entregas hoje
na casa. Os funcionários, em sua maioria, são os mesmos há algum tempo.
Estávamos na parte em que buscávamos informações entre as desavenças
das famílias Quaresma e Lacerda após as questões do testamento.
Vicente se moveu incomodado, mas não largou a mão de Sabrina em
momento algum.
— É melhor chamarmos nosso advogado — ele disse a Sabrina que
confirmou com um gesto singelo, dando ao marido o direito de agir.
— Ainda assim estou disposta a falar tudo o que for necessário — ela
completou.
— Sabrina… — Vicente nem completou a ligação e repreendeu a
esposa. — Tudo o que você responder a eles pode te colocar como principal
suspeita.
— Impossível — Sabrina reagiu sem se abalar. — Eu rara vezes
entro naquela cozinha. Toda e qualquer comida, independente da ala, é
preparada na mesma cozinha. Nós temos para as áreas comuns uma
cozinheira, uma copeira, uma ajudante de cozinha e a Sara, que apesar de ser
a mãe da pessoa que possui a maior parte da herança, é a governanta. Além
do mais, hoje estive o dia todo fora de casa. Voltei mais cedo porque recebi a
notícia e fiquei abalada.
Vicente retornou mais rápido do que eu previa, sentou no braço do
sofá e colocou uma mão no ombro da minha irmã.
— E o senhor?
O policial que fazia as perguntas se dirigiu ao meu cunhado, que se
surpreendeu por precisar se explicar.
— Eu? Ah… eu saí para trabalhar junto com Sabrina, passei uma
grande parte do meu dia no escritório, depois voltei para casa para trocar de
roupa e pegar minhas coisas para ir para academia. Até o horário que saí, a
casa funcionava sem nenhum problema.
— Então o senhor voltou para casa? Sabe me dizer o horário?
— Não exatamente. Acho que… entre as 16 e 16:30hs.
— E saiu que horário?
— Às 17h, ou um pouco mais do que isso.
— Logo depois a Sra. Lacerda passou mal — o outro policial, o que
anotava tudo, comunicou ao seu colega.
Houve um silêncio horrível na sala enquanto o homem encarava
Vicente sem nada dizer.
— E o senhor? — desta vez ele perguntou para mim.
— Saí para trabalhar no mesmo horário que Laura, 7h da manhã,
passei o dia no escritório e já era para eu estar em casa, mas Laura está em
processo de adaptação, por isso dou uma força no final do expediente. Eu
estava com ela quando Bruna informou o ocorrido, então a levei até o
hospital e vim para casa para saber o que houve. Até onde entendi Sara está
fora de perigo.
Sabrina respirou aliviada e eu vi que ela segurava as lágrimas, já
Vicente parecia se esforçar para manter a máscara.
— Você a viu? — Minha irmã quis saber. — Eles já confirmaram que
foi veneno mesmo? Descobriram que tipo utilizaram? Meu Deus, como isso
pode acontecer aqui em casa?
— Eu não a vi — revelei. — Mas Fernando deve chegar a qualquer
momento. Laura pediu para que ele…
— Boa noite.
— Por falar no diabo… — resmunguei baixo.
— Fernando! — Sabrina levantou do sofá, abalada. — Você tem
notícias? Viu Sara? Como ela está?
— Calma. Eu vim direto para cá a pedido de Laura.
O advogado acolheu Sabrina com cuidado, o que deixou Vicente
mais incomodado ainda.
— Sou Fernando Estevão. Represento a Srta. Lacerda. Sou diretor
jurídico do Grupo Empresarial Quaresma.
Ele apertou as mãos dos policiais como se tivesse prática em salvar o
pescoço de alguém da forca.
— E o que descobrimos?
— Até o momento…
O policial repetiu tudo o que disseram para mim quando cheguei.
Enquanto domava meu gênio para cada resposta do Fernando, passei o olho
pelo ambiente e acompanhei a movimentação de policiais que entravam e
saiam com sacos. Com toda certeza levariam o lixo como prova, além de
amostras de toda a comida da geladeira e dos armários. Eu nem me aborreci
com isso, afinal de contas, veneno era veneno e se estivesse em qualquer
fruta, verdura ou proteína da casa, eu preferia jogar tudo fora mesmo.
— Capitão? — Uma policial saiu da cozinha para se direcionar ao
nosso grupo. Ela usava luvas brancas, o que me deixou mais apreensivo. —
Acabamos com a cozinha, os quartos dos empregados e a área de serviço.
— Ótimo. Precisamos de acesso aos outros quartos — O Capitão,
que era o que fazia os questionamentos, apenas informou.
— Todos? — Vicente se pronunciou, preocupado, o que me fez
iniciar minhas teorias.
— Todos. É um caso de envenenamento que ocorreu nesta
residência. Precisamos identificar as pistas o mais rápido possível.
— Eles precisam deixar a casa? — Fernando iniciou a negociação.
— A casa é grande. — O homem percorreu os olhos pelo espaço,
sem qualquer noção do quão grande era. — Pode demorar um pouco.
— Existe um mandado? — Vicente se intrometeu outra vez.
— Não, mas já solicitamos. Se preferirem…
— Não — eu me adiantei a falar. — Nós temos interesse em resolver
o caso o mais breve possível, entretanto, só pedirei para que um funcionário
acompanhe a sua equipe. Nós temos câmeras de segurança pela casa, os
senhores podem solicitar as imagens ao pessoal da segurança.
Fernando me encarou com certa surpresa. Sabrina não demonstrou
qualquer reação, pensativa, o corpo encurvado sobre as pernas, onde torcia
os dedos uns nos outros, já Vicente… seria possível?
— Meu amor, vamos pegar algumas coisas e ir para um hotel. Isso
aqui tá uma loucura — Vicente sugeriu.
— Não. Eu preciso estar aqui para quando Sara voltar.
— Com certeza ela não voltará hoje — ele tentou outra vez.
— Já disse que não vou, Vicente. Laura e Bruna estão sozinhas no
hospital. Nós deveríamos estar lá com elas.
— Sabrina, você sabe que Laura…
— Vá você, Bernardo — minha irmã se voltou para mim com súplica
na voz. — Sara praticamente nos criou. Não é justo nenhum de nós não estar
lá em um momento como este.
Encarei Fernando sem saber ao certo o que deveria fazer, mas ele
concordou com a ideia.
— Posso subir ao meu quarto para tomar um banho e pegar algumas
coisas? — Questionei ao policial. Este, com um gesto de cabeça, sinalizou
para que outro policial me acompanhasse.
— Agora precisamos conversar sobre os problemas existentes por
causa da herança — ele disse no instante que dei as costas.
— É de praxe
Fernando avisou a minha irmã e a Vicente, de certo para tranquilizá-
los.
— Ele procura por motivações. Mas, Capitão, antes precisamos que o
hospital nos diga de que forma ocorreu o envenenamento…
Não fiquei para ouvir o restante. A competência de Fernando não
seria questionada e, se não encontrassem nada pela casa, não havia motivo
para ter medo. Ainda assim, eu precisava de um minuto com Sabrina, longe
de todos, e encontrar as informações necessárias para tornar Vicente um
suspeito ou não.
“O amor é o carinho
É o espinho que não se vê
Em cada flor
É a vida quando
Chega sangrando
Aberta em pétalas de amor”
O velho e a flor - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 28
LAURA

Não houve surpresa com a chegada de Bernardo, uma vez que Fernando
enviou uma mensagem para me atualizar sobre o que ocorria em minha casa.
Mas ele chegou no momento mais delicado, quando o médico nos informava
que o veneno ingerido por minha mãe foi o beladona, oriundo da planta, que
em pouca quantidade não fazia mal a ninguém, mas que com conhecimento,
matava quem a ingerisse.
— E como ela bebeu isso? — Bruna se apressou a falar. — Todos na
casa comeram a mesma comida.
— Um café, um chá, suco, até mesmo na água — o médico sugeriu
com cuidado. — Não há dúvidas quanto à substância, agora a polícia se
encarregará de descobrir quem a utilizou para que chegasse até a sua mãe.
— E como ela está? — Eu me apressei a saber.
Havia em mim a necessidade de matar quem fez aquilo com minha
mãe, ao mesmo tempo, eu necessitava de paz para cuidar dela primeiro, me
certificar de que não haveria mais o risco e só depois disso agir.
— O quadro dela é estável. Ministramos o antídoto a tempo, mas
exige alguns cuidados, por isso vamos mantê-la na UTI esta noite, até que os
efeitos principais estejam controlados. Também precisamos sedá-la. O
envenenamento por beladona causa alucinações, dentre outros sintomas que
necessitam de cuidados.
— Nós não vamos passar a noite com ela? — Bruna perguntou,
chorosa.
— Não. Mas fiquem tranquilas que avisaremos se houver qualquer
alteração no quadro.
— Não podemos nem entrar um pouco para ver como ela está? — eu
pedi, cheia de receio.
— Eu posso autorizar, mas precisam ser rápidas. Ela teve uma
taquicardia preocupante, além das questões respiratórias. Portanto não se
assustem por termos entubado.
— Entubado? — Foi Bernardo quem disse, tão preocupado quanto eu
e minha irmã.
— Para garantir.
O médico autorizou que apenas eu entrasse, já que Bruna era menor
de idade. Minha irmã ficou com Bernardo, o que não me deixava nada
confortável. Ainda mais com a ideia que se formava em minha cabeça.
Eu me paramentei como o médico solicitou e entrei para ver minha
mãe. Não foi nada fácil. Segurei o primeiro soluço de choro.
— Ela está…
— Com a pele ressecada — o médico completou a minha fala. — É
normal. Em alguns casos chega a descascar e nós recomendamos que evite o
sol para não formar cicatriz.
— Meu Deus! — sussurrei, a mão sobre a dela, sem tocá-la, incerta
quanto a causar dor com o mínimo contato.
— Sua irmã não soube me responder, mas quais medicações sua mãe
toma?
— Ah, algumas. Pra pressão, açúcar, hipotireoidismo… — então
narrei os nomes que chegavam a minha mente confusa. — Não há beladona
em nenhum desses, há?
— Não que eu me lembre, mas é importante investigar. Independente
disso, se ela tomava a dosagem correta, prescrita por um profissional, não há
este risco.
— Ela usa um colírio também.
— Ficamos com a mesma dúvida. O risco de envenenamento por
colírio é mínimo. Ela mandou fazer as fórmulas ou comprava na farmácia?
— Na farmácia.
— Diminui as chances.
— Entendo. Mas ainda precisamos descobrir como alguém
conseguiu envenenar só ela em uma casa repleta de empregados.
— A polícia vai descobrir — ele disse para me acalmar.
Eu não sabia se a polícia descobriria, mas eu, com certeza, não
deixaria o trabalho todo para eles. Era hora de cortar aquele mal de uma vez
por todas.

— Como ela está? — Bruna se apressou em minha direção. Ela tinha


uma lata de refrigerante na mão e Bernardo no seu encalço.
— Ela está bem. Quer comer alguma coisa? — minha irmã negou, os
olhos úmidos. — Você precisa comer, Bruna.
— E a lanchonete daqui é muito boa — Bernardo contribuiu.
— Tome, vá até lá e escolha alguma coisa — entreguei uma nota a
minha irmã para que ela nos deixasse a sós de uma vez.
— E vocês?
— Eu preciso assinar alguns documentos — informei.
— Bernardo? — ela insistiu.
— Desta vez vou cuidar um pouco da Laura, tá?
O maldito piscou para minha irmã, que sorriu satisfeita antes de nos
deixar.
Observei Bruna se afastar e só falei outra vez quando ela desapareceu
no corredor seguinte.
— Como Sara está?
— Bem — minha voz saiu seca, fria.
— Laura, envenenamento por beladona? Como conseguiram fazer
isso só com a sua mãe?
— Eu não sei, mas descobrirei.
— Certo. A polícia levou tudo o que encontrou que pudesse
comprovar o ocorrido. Eu pesquisei na internet. Sei que não é nada como
entender das pesquisas forenses, mas dá para ter uma ideia. O problema é
descobrir como fizeram isso acontecer só com a Sara.
— A polícia descobrirá, mas contratarei um detetive particular para
ajudar com o caso.
— Você acha necessário?
Encarei Bernardo, vasculhei em seu rosto qualquer sinal de
preocupação ou nervosismo com o que informei, mas ele não demonstrou
nada além da vontade de descobrir quem fez aquilo com a minha mãe.
— De alguma forma teremos que chegar ao assassino.
— Ninguém morreu.
— Mas tentou matar a minha mãe.
Minha resposta ríspida o fez recuar.
— Tudo bem. Eu quero que saiba que ajudarei no que for possível.
Sabrina também se colocou à disposição. Ela está bem abalada.
— Imagino.
Revirei os olhos, o que não passou despercebido por Bernardo.
— Eu posso estar errado, Laura, mas acredito que não foi Sabrina.
Ela precisaria ser muito dissimulada para atentar contra a Sara e ficar
naquele estado.
— Dissimular é o que melhor a sua irmã sabe fazer.
— Tudo bem. Eu não acredito na culpa dela, mas se você quer seguir
por essa linha de raciocínio, a polícia tomou o depoimento dela e as
informações conferem.
— E você? — acusei sem qualquer remorso.
— Eu? Eu estava com você, quer dizer, estive na empresa durante
todo o tempo desde que saímos de casa e depois… olha, se quiser pode
conferir as informações, mas a polícia com certeza fará isso. Não fui eu,
Laura.
Eu não queria acreditar naquele olhar de cachorro abandonado, tão
repleto de confissão que fez meu rosto corar pela acusação aberta. Mas
Bernardo tinha todos os álibis a seu favor. Ele de fato esteve na empresa
durante todo o tempo, da mesma forma que Sabrina que ainda estava lá
quando soubemos do ocorrido. Restava uma única pessoa capaz de fazer
algo: Vicente. No entanto, a ação de um, não inocentava os outros. Eles
agiam em conjunto, por isso, enquanto dois agiam para não chamar atenção,
um fazia o trabalho sujo.
— Pronto — Bruna apareceu atrás de mim e me pegou de surpresa
no instante em que eu revelaria a Bernardo o que pretendia fazer. — Comi
uma bobagem bem pequena. Nada descia.
— Ótimo, porque a polícia levou toda a nossa comida.
Bernardo sorriu com carinho para Bruna que fez um muxoxo.
— Melhor assim, não?
— Com certeza.
— A polícia já sabe quem fez isso?
— Ainda não, mas eu acho que em breve teremos uma resposta.
Ele passou o braço pelos ombros da minha irmã e a conduziu até o
elevador, depois até o carro, onde abriu a porta com a maior cortesia e
aguardou por mim. Entrei disposta a me convencer de que o melhor a ser
feito era acabar com aquilo de uma vez, afinal de contas, como confiar nos
Quaresmas?

Fernando esperava por mim na garagem. No momento que o vi, dei


ordem a Bruna para não sumir das minhas vistas e fui até meu amigo.
— Como ela está? — ele quis saber.
— Que merda, Fernando — sussurrei, abatida e cansada demais para
continuar aquele jogo. Ele me abraçou e deixou que eu descansasse um
pouco em seus braços.
— Tomei a liberdade de pedir para dois empregados comprarem
alimentos. A polícia levou amostra de tudo, mas Sabrina mandou jogar o
restante fora, já que ninguém sabe ainda de onde veio isso.
— Eu tomei uma decisão importante e vou precisar de você.
Bernardo acompanhou Bruna até a porta e desapareceu com ela,
como se preferisse evitar Fernando.
— Quer ir para o escritório?
— Não. Aqui é mais seguro.
Eu me afastei um pouco da entrada e me alojei próximo ao carro que
Carlos dirigia. Fernando parou à minha frente, toda a sua atenção voltada
para mim.
— E então?
— Eu quero que eles saiam — fui direto ao assunto.
— Laura… tem certeza?
— Absoluta — rosnei, incapaz de segurar minha raiva por mais
tempo. — O que mais falta acontecer? Alguém tentou matar a minha mãe.
Você consegue pensar em mais alguém além desses três?
— Não. Mas temos vários pontos aqui. Sabrina esteve fora o dia todo
e você sabe, sua ala é monitorada por câmeras, logo, temos total acesso a
quem esteve no quarto da sua mãe em qualquer horário.
— Temos câmeras no quarto dela?
A ideia me chocou, mas Fernando sorriu, tranquilo.
— Não, no corredor, como te disse. É uma câmera para certificar
quem acessa a ala e para onde vai. Por isso podemos identificar quem teve
acesso ao quarto da sua mãe. A polícia está ciente disso, meu pai já solicitou
as gravações e pedimos também das câmeras de segurança para confirmar os
horários de Sabrina e Vicente.
— Mesmo assim.
Cruzei os braços na frente do peito, me recusando a aceitar mantê-los
no mesmo ambiente que a minha família.
— Eu os quero fora. Tenho este direito, não é mesmo?
— Tem, mas eu preferia que esperasse um pouco mais.
— Mais? Mais até quando? E se a próxima vítima for a Bruna?
— Eu acho que ninguém será louco de tentar algo pelos próximos
dias.
— Fernando…
— Eu tenho uma sugestão — ele disse ao me interromper. — Você
tem muitos imóveis. Leve sua família para um deles. É só por um tempo.
— Não vou sair de casa.
— Todos vão. Sabrina e Vicente fizeram uma mala sob a supervisão
da polícia. Vão passar uns dias em um hotel.
— Vão tentar fugir.
— Até o momento não temos nada contra eles, mas com os dois fora
da casa, fica mais fácil agir. Na sua mensagem falamos sobre contratar um
detetive particular. Sem as pessoas na casa, fica mais fácil colher os detalhes.
E ainda temos a investigação policial.
— E Bernardo?
— Ele pode ir para algum hotel também. — Fernando deu de
ombros.
— Tem certeza de que essa é a melhor opção? Eu continuo querendo
que eles fiquem longe da minha família.
— Laura…
Meu advogado colocou as mãos em meus ombros e me encarou.
— Eu te garanto que se tivermos qualquer indício, serei o primeiro a
preparar a ordem de despejo deles.
— Tudo bem.
Soltei o ar preso em meu pulmão. Fernando estava certo. Era melhor
deixar a polícia agir, fazer uma investigação mais completa e dessa forma,
pegar o desgraçado que fez aquilo com minha mãe.

— Tem certeza de que esta é a decisão certa?


Bernardo perguntou pela milésima vez ao me observar fazer as
malas. Eu não o queria em meu quarto, mas uma policial acompanhava meus
passos, por isso não havia qualquer risco de tê-lo tão perto.
— Para onde vocês vão?
— Fernando informou que temos um apartamento próximo ao
hospital. Ele nos deixará lá.
— Eu sei qual é. Pertence ao grupo, a fim de hospedar investidores
ou outros empresários quando temos reuniões ou algum negócio em
andamento.
— Ótimo. — Fechei a mala com as coisas que eu precisava e o
encarei. —- E você?
— Vou para o mesmo hotel onde Sabrina e Vicente estão.
— Claro — revirei os olhos e Bernardo fez uma careta.
— Eu tenho as minhas teorias, mas… — ele olhou discretamente
para a policial, que nos monitorava sem deixar nada passar. — É melhor eu
ficar perto do Vicente.
— Vicente?
— É.
Outra vez ele olhou para a policial. Bernardo nada diria na frente
dela, o que ativou até meu último neurônio destinado a ansiedade. Ele sabia
de algo e eu precisava que ele me contasse logo.
— Vamos nos falar, certo?
A minha ideia não ultrapassava o limite da necessidade de iniciar a
montagem daquele quebra-cabeça, mas Bernardo me deu aquele sorriso torto
e sexy, que nunca deveria aparecer em um momento tão delicado como
aquele e, apesar disso, mexeu comigo. Desviei a atenção dele e tratei de
arrumar meu cabelo, sem que houvesse aquela necessidade.
— Claro! Amanhã, antes de ir para a empresa, passarei no hospital
para ter notícias de Sara — Ele avisou. — Acredito que você não vá
trabalhar.
A conversa me irritou, pois não ir trabalhar seria o mesmo que deixar
Sabrina atingir o seu objetivo, me afastar de cena. Então ficou claro para
mim o motivo para minha mãe ser atingida. Se eles me deixassem em uma
situação vulnerável, com uma irmã menor de idade para criar e uma mãe
hospitalizada, não haveria espaço para o trabalho.
— Eu vou sim — anunciei.
Bernardo, pego de surpresa, não conseguiu evitar a expressão.
— Tem certeza? E Bruna?
— Eu cuido disso, Bernardo. Agora é melhor eu ir.
Puxei a mala para fora do closet, mas ele a pegou da minha mão e a
levou para fora. Fez o mesmo com a de Bruna e nos acompanhou até o carro
de Fernando.
— Falo com você depois — ele disse ao entregar ambas as malas
para meu amigo e antes de sair, me deu um beijo demorado na bochecha. —
Sinto muito por tudo isso.
Eu não deveria, mas o abalo que fez minhas pernas tremerem me
pegou sem anunciar a sua chegada e me deixou tonta com aquela
aproximação. Ele sorriu outra vez, fortaleceu a maneira como me dominava
e se afastou para beijar o rosto da minha irmã e seguir na direção do carro
dele.
“Não há mal pior do que a descrença,
Mesmo o amor que não compensa
É melhor que a solidão.”
Como dizia o poeta - Maria Bethânia / Toquinho /Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 29
BERNARDO

Assim que entrei no meu quarto de hotel tratei de iniciar o plano que tracei
no intante que aconteceu a tentativa de assassinato de Sara. E eu tinha
muitos motivos para pensar e fazer tudo o que me propus a fazer. Por isso
liguei para Sabrina, pedi para que ela me encontrasse em meu quarto e que
fosse sozinha, o que não foi um problema, pois Vicente, incomodado com a
agitação do final do dia, agendou um massagista e desfrutava dos luxos
ofertados no estabelecimento.
Sabrina não demorou a chegar. Assim que abri a porta, conferi seus
olhos vermelhos e a mesma apatia de antes. Não havia como levantar
qualquer suspeita contra a minha irmã. Não quando ela se deixava ver tão
frágil.
— Tem notícias da Sara? — ela perguntou quando fechei a porta.
— Ela está na UTI, mas os médicos conseguiram identificar o
veneno rapidamente e aplicaram a medicação para reverter o quadro.
— Graças a Deus! — Sabrina suspirou e sentou no sofá. — Quem
faria algo deste tipo com a Sara?
Encarei minha irmã como se quisesse ler a alma dela, arrancar de
uma vez por todas as minhas suspeitas. E, mais uma vez, só enxerguei
inocência. Com o corpo todo dolorido devido a tensão, desfiz a minha
gravata e sentei no sofá à frente dela.
— Só existem três suspeitos, Sabrina — comecei. Ela arregalou os
olhos, mas quando intentou argumentar, eu a interrompi. — Vamos ter a
conversa mais honesta que já tivemos em toda a vida
— Eu não fiz isso — ela foi firme em sua afirmação. — Posso não
querer aquela família na nossa casa, mas não seria capaz de envenenar uma
pessoa para conseguir isso, Bernardo. Quem pensa que eu sou?
— Eu também não fiz. Para ser honesto, desisti de lutar contra Laura,
a herança e a vontade do nosso pai, há tempos. Portanto, se você garante que
não fez e eu tenho a consciência limpa…
— O que quer dizer… Não. Vicente nunca faria algo do tipo — ela
afirmou horrorizada.
— Tem certeza? Vicente tem muito interesse em colocar a herança e
o comando das empresas em suas mãos outra vez.
— É claro que ele jamais faria nada contra Sara. Ela foi sogra dele.
— Por quem ele não teve qualquer respeito ao trocar a filha dela por
você. Ora, Sabrina! Nós dois sabemos que Vicente não é nenhum inocente.
Conhecemos a ganância dele.
— Você está com ciúmes por causa da Laura — acusou, de repente
mais aborrecida do que abatida.
— Eu estou com ciúmes, mas não chegamos neste ponto. Eu, você e
o Vicente entramos nesse jogo tosco para recuperar a herança. A polícia sabe
que tentamos reverter a situação e que, lógico, algo deste tipo quase nunca
acontece na vida real, logo, uma técnica em enfermagem que nem pertence a
família, herdar 50% de tudo o que nosso pai construiu, é o suficiente para
nos colocar como principais suspeitos. Por isso eu tenho que perguntar: você
fez alguma coisa?
— Não! — rebateu com raiva e se levantou do sofá para se afastar de
mim. — Eu vou relevar essa sua insistência porque sei que está encantado
pela usurpadora.
Respirei fundo e me esforcei para ignorar o comentário da minha
irmã.
— Na última vez em que conversamos sobre esse plano louco, você
me disse que precisávamos fragilizar Laura, fazer com que ela se sentisse
fraca o suficiente para aceitar a minha oferta.
— E daí?
— E daí que foi exatamente o que aconteceu.
Sabrina se voltou para mim, não com olhos de felicidade ou
esperançosos, mas atentos.
— Ela aceitou te namorar?
— Não. Você acha que Laura tem cabeça para pensar nisso agora?
Tudo o que ela quer é distância de qualquer um com o sobrenome Quaresma.
— Mas…
— Você me disse que faria isso e em seguida alguém envenena Sara.
— Mas eu não fiz nada.
— E Vicente?
— Claro que ele não fez.
Suspirei com pesar. Era hora de abrir o jogo com a minha irmã.
— Você contou a ele a nossa conversa?
Sabrina ia responder, porém se deu conta de onde eu queria chegar
com aquela pergunta. Seus olhos já amedrontados ficaram maiores e ela
chegou a levar a mão à boca, o que, para mim, era a confissão que eu
precisava.
— Ele não fez nada — ela sussurrou sem qualquer convicção. —
Vicente tem um milhão de defeitos, mas matar alguém… a Sara! Não, ele
não fez isso.
— Sabrina, sente.
— Não. Eu preciso…
— Sente. Agora eu preciso te contar uma coisa.
Minha irmã, de maneira incomum, obedeceu. No geral Sabrina dava
as cartas, dizia como deveria ser, contava as novidades e tratava dos nossos
interesses. Pela primeira vez, eu assumia o papel de irmão mais velho, do
cara responsável e disposto a qualquer coisa para salvar o que restava da
minha família.
— Naquele dia…
Narrei para Sabrina o que aconteceu na noite em que entrei na sala de
Laura e a encontrei nos braços de Vicente. Apesar de me incomodar com a
lembrança, não escondi nada, nem mesmo quando toda a expressão da
minha irmã mudou de abatida para raivosa. Salientei a reação de Vicente, a
maneira como ele se comportou sem se importar com a minha presença, sem
tentar esconder o que aconteceu, depois o que Laura me disse.
— Aquele… — ela se calou, prestes a explodir, e se pôs de pé outra
vez. — Essa ideia de seduzir a Laura partiu de você. Foi você quem disse
que era ele quem ela queria.
— Não seja a irmã burra a esta altura do campeonato, Sabrina. Você
conhece o marido que tem.
— Conheço o suficiente para saber que ele preferiria dar um golpe na
Laura a me deixar por ela.
— Será? Não foi o que pareceu.
— Eu sei que Vicente jamais quis voltar para a Laura.
— Porque ela era pobre e nada podia oferecer a ele — provoquei.
— Tudo bem. Temos duas situações aqui. Vicente pode enxergar em
Laura mais vantagens do que enxerga em mim, ou… pode ele mesmo estar
disposto a resolver essa situação e enganar Laura para recuperar a herança.
Ela levou as mãos a cintura e me encarou em desafio, quando na
verdade, se esforçava para esconder de mim o quanto tremia e o abalo
causado pela revelação. Eu quis abraçar minha irmã e dizer que estava tudo
bem, que ela ficaria melhor sem o Vicente, entretanto, conhecia Sabrina bem
demais para saber que ela jamais aceitaria aquele tipo de conforto. Por isso
me mantive no lugar e dei andamento à conversa.
— O que nos leva ao início desta conversa.
— Vicente não envenenaria ninguém — ela rebateu com raiva.
— Mas se ele quer resolver a situação, não hesitaria em fragilizar
Laura.
— Bernardo… eu… é melhor essa conversa acabar aqui.
Ela caminhou, apressada, até a porta. Eu levantei, decidido a não
deixar a conversa acabar daquela forma. Sabrina precisava abrir os olhos
para o marido.
— De uma forma ou de outra, a polícia chegará a um de nós três. Eu
sei que não fiz nada que possa me incriminar e espero que essa merda não
respingue em você, irmã.
Apesar de ter parado para me ouvir, ela não se voltou para mim outra
vez. No instante que me calei, Sabrina abriu a porta e deixou o quarto. Caí
sentado no sofá, tão cansado que desejei ficar ali até o dia seguinte, porém,
não havia como. Eu tinha que ir até o final.
Não houve qualquer dificuldade em subir até o andar onde Laura se
hospedou. Todos os porteiros me conheciam, e não apenas por causa das
minhas visitas para entreter os convidados. Muitas vezes utilizei um dos
apartamentos do grupo para minha satisfação pessoal, com garotas e festas
que ultrapassavam o limite do decoro.
Eu só esperava que Laura não tivesse conhecimento desta
informação, ou eu jamais teria a sua confiança.
No espelho do elevador conferi a minha imagem. Só me dei ao luxo
de tomar um banho e trocar de roupa, pois não queria me apresentar para
uma conversa tão séria com a cara de ontem. Além do mais, vestido de
maneira informal não teria o peso de tudo o que eu precisava confessar.
Toquei a campainha e aguardei. Laura demorou a se aproximar. Eu
ouvi quando ela se encostou na porta e conferiu a minha imagem pelo olho
mágico. Depois disso, alguns segundos de tortura, como se ela deliberasse se
deveria ou não abrir a porta para mim, até que a decisão final chegou e me
deixou aliviado.
Ela abriu a porta, mas não o suficiente para me deixar entrar. Olhou
para mim com todas as suas dúvidas, raiva e temores, depois conferiu o
corredor que continha apenas mais um apartamento.
— O que faz aqui, Bernardo?
— Podemos conversar?
— Agora? Não pode ser amanhã? Eu estou…
— Por favor.
Meu pedido a pegou de surpresa, então Laura olhou para trás e,
finalmente, me deu passagem. Não havia nada de novidade para mim
naquele apartamento. Tudo continuava igual a quando estive ali meses antes,
para uma das aventuras mais loucas que já me permiti vivenciar. No mesmo
instante fiquei envergonhado. Laura passou na minha frente e foi até a sala,
para o sofá onde… melhor não pensar nisso.
— E então? — ela perguntou sem paciência. — O que de tão urgente
tem para falar?
— E Bruna?
Vi como minha fuga a deixou desconfortável.
— Dormindo. E era o que eu ia fazer quando…
— Laura, eu preciso te contar uma coisa — fui direto ao assunto. —
Talvez não seja surpresa para você ou… não sei. Mas eu preciso te contar
porque isso já foi longe demais.
— O que quer dizer?
Ela ficou tensa de imediato, os braços se cruzaram na frente do peito
e, se antes intentava sentar, desistiu.
— Você vai me odiar, mas…
— Fala logo de uma vez — rosnou.
Então contei a Laura sobre o plano. Contei como eu, Sabrina e
Vicente nos comprometemos com a ideia de fazê-la nos devolver a herança.
Do motivo para eu ter me aproximado, investido na sedução, de como
funcionaria o plano. E quando acabei, precisei encarar aqueles olhos repletos
de lágrimas e as feições que demonstravam a sua decepção.
— Por que me contou? — ela disse com a voz rouca de quem segura
o choro.
— Porque… eu queria te dizer que foi por causa de hoje, mas não é
verdade — admiti. — Eu desisti do plano há um tempo, mas Sabrina e
Vicente estavam obstinados. Ela me cobrava uma atitude, por isso pensei
que… a gente começava a se entender e eu queria…
— Ficar com os dois — ela completou sem eliminar a dor. — Eu e a
herança.
— Sim. Como eu te disse.
— Não espere compaixão por ter sido honesto.
— Não espero — confessei. — Mas também não quero mais que
aconteça.
— Então você confessa que tentaram envenenar minha mãe?
Havia uma nota de horror em sua voz que me atingiu com força.
— Não!
— É nisso que quer que eu acredite? Faz parte do plano me enganar
para limpar a barra de vocês? Isso não vai acontecer.
— Eu quero que você faça o que quiser, Laura. — Fui mais firme. —
Estou aqui porque cansei de deixar que as pessoas me maltratem por causa
dessa porcaria de herança.
— A polícia está ciente… — ela tentou, a voz embargada.
Com uma angústia que não sei descrever, alcancei Laura e segurei
pelos braços.
— Eu sei. Eu mesmo contei a eles que contestamos o testamento.
Mas nem precisava, qualquer um poderia fornecer essa informação a polícia,
contudo, eu falei das câmeras, entreguei as imagens, fiz tudo o que estava ao
meu alcance para encontrar quem fez isso com Sara e estou aqui, agora, para
te dizer que tenho a minha teoria.
Ela se libertou com um supetão e me afastou com raiva.
— Claro. Agora os ratos começam a pular do barco — acusou.
— Pense como quiser. Independente da sua acusação, não fiz nada
para obstruir a investigação, me coloquei à disposição e sei que nada, nada
mesmo, me ligará a essa atrocidade que fizeram com a sua mãe. Você pode
não me enxergar com bons olhos, mas Sara me criou, ela foi a única que
ficou quando tudo parecia desmoronar e eu jamais, por motivo algum, faria
mal a ela. No mais, a polícia tem tudo o que precisa para me riscar da lista
de suspeitos.
— E essa é a sua teoria? Você mesmo acabou de confessar que junto
com Sabrina e Vicente planejou a minha ruína.
— Planejamos recuperar a herança e isso não é novidade para você,
Laura — rebati, tão aborrecido quanto ela.
— Certo, se não foi você, quem foi? Quem você vai acusar para
livrar a sua cara?
— Ninguém.
Puxei o ar com força e me arrependi no mesmo instante. Laura
cheirava a lavanda, ao frescor de uma pele recém banhada. Céus, como eu
nunca olhei melhor para essa garota? Como nunca percebi a sua beleza, a
sua vivacidade, a luz que brilhava nela, mesmo que enfurecida?
— Eu disse que era uma teoria, não uma acusação.
— Muito bem.
— Vicente.
— Ah, claro!
— Pare de ser tão dura e preste atenção no que eu falo!
— Porque até agora você só falou bobagens.
Doeu. Não porque Laura não se importava com o que eu tinha para
falar, mas porque até ela, justamente ela, não acreditava na possibilidade de
Vicente agir de forma monstruosa, o que, para mim, só significava uma
coisa: ela ainda gostava dele.
— Você e Sabrina se merecem. São mulheres de bandido — acusei e
no mesmo instante recebi um tapa no rosto, tão forte que me fez virar o rosto
e fechar os olhos para conter a minha fúria.
— Nunca mais repita isso — ela grunhiu.
— Pois saiba que acabei de ter uma conversa honesta com Sabrina.
Contei a ela o que vi naquela noite em sua sala e sabe o que descobri?
Aquilo não fazia parte do acordo. Vicente agiu sozinho. Se para te enganar e
devolver a herança a Sabrina ou ficar com você e tudo o que levou de nós,
eu não sei dizer, mas ele agiu por nossas costas. Da mesma forma como
pode ter feito agora. Sabrina disse a ele que a única maneira de te desarmar
era te tornar frágil, te atingir ao ponto de você encontrar em mim o apoio que
precisava.
— Então Sabrina…
— Não. Ela não fez nada. A polícia também vai constatar isso. Mas
Vicente… pense bem, Laura. Vicente é capaz de tudo para manter a vida de
luxo que ostenta.
— E você e a sua irmã? Vai me dizer que são casos diferentes?
— São casos diferentes.
— Por quê?
— Porque eu me apaixonei por você!
Rebati sem pensar, no entanto, mesmo que tivesse total certeza de
que o momento não colaboraria para convencê-la dos meus sentimentos, não
me arrependi de expressá-los.
Laura recuou com a revelação. A raiva desapareceu do seu rosto,
assim como todo o sarcasmo utilizado desde a minha chegada. E eu não
resisti. Nunca resistiria ainda que a oportunidade fosse mínima, ou que
arriscasse receber outro tapa.
Com Laura desarmada e ainda no impulso do calor do nosso debate,
dei o passo que nos separava e a segurei contra meu corpo. Ela não me
impediu, não reagiu, só arfou, e aquela era a reação que fazia com que tudo
em mim buscasse tudo nela.
Beijei Laura com uma única certeza: eu a queria. Queria tanto que
doía imaginar não tê-la, construir uma vida sem ela ou… voltar a vida que
eu tinha, a qual desaparecia das minhas lembranças como se fosse um
passado que eu quisesse apagar. E quando meus lábios tomaram os dela,
quando nossas bocas se juntaram, ela cedeu.
Por um segundo, eu só quis prová-la, mesmo que por um átimo do
nosso tempo e depois lidar com a sua reprovação, com as consequências da
minha ousadia. Mas Laura cedeu. Seus lábios aceitaram os meus como se
não houvesse outra reação apropriada, sua língua acariciou a minha, seu
gosto se espalhou por minha boca, acendeu meus sentidos, meus instintos,
apagou qualquer outra situação que não fosse relacionada à maneira como
nossos corpos se colavam, como nossas mãos se buscavam e como o beijo…
ah, o beijo, comprovava que sim, existiam pessoas feitas umas para as
outras, a química perfeita e inalterável, a combinação que jamais se
associaria a outro com tamanha maestria.
Laura era isso, o meu molde, o meu complemento, a minha metade.
Ela gemeu em meus lábios, tão entregue que não acreditei que
conseguiria se afastar de mim algum dia, mas ela se afastou. Após a entrega
sôfrega, o cunhão de consciência que a fez desviar o rosto e me impedir de
tomá-la.
— Não — ela disse, ainda fraca, incerta quanto a sua decisão.
— Laura…
— Não, Bernardo. Por favor.
Foi o suficiente. Eu a deixei, me afastei um passo, apenas um. Era o
que eu suportaria naquele momento.
— Você não acredita em mim — afirmei o óbvio.
— Não — ela respondeu sem me olhar.
— Ainda assim sente o mesmo.
— Bernardo…
— Tudo bem. Eu espero, Laura. Sei que o momento não ajuda, então
deixarei que o tempo e minhas ações comprovem as minhas palavras.
Ela me encarou e eu pude enxergar o brilho das lágrimas que
segurava com bravura. Sim, aquele beijo a impactou tanto quanto a mim. A
ideia me deixava em êxtase e ao mesmo tempo, morto de medo. Eu queria
levar Laura para longe, protegê-la, guardá-la até que mais nada ameaçasse a
sua vida, ou o que tínhamos para viver. Porque eu queria tanto que assim
fosse que me desesperava imaginar que não seria.
— Como eu posso acreditar em você? Tudo nessa história está
coberto de mentira, de falsidade, de erros e segredos.
A primeira lágrima escorreu. Laura limpou o rosto com reprovação.
— Tudo o que nos trouxe até aqui… essa paixão que diz sentir por
mim, essa… coisa que me faz te querer por perto, é tudo mentira, Bernardo.
Um amontoado de mentiras que no final das contas, o que deveria corrigir,
vai destruir tudo.
— Do que está falando?
— É melhor você ir embora.
Ela se afastou, desta vez, com uma distância maior do que eu seria
capaz de abrir entre nós dois. Um nó estranho se fechou em minha garganta,
porque era como se Laura reerguesse o muro que nos separava.
— Tudo bem. Mas preciso te fazer um último pedido.
Ela ergueu o rosto e esperou com toda a sua capacidade de se manter
imparcial naquele conflito.
— Para a sua segurança, enquanto nada disso estiver solucionado,
sustente a ideia de que faço parte do seu grupo de inimigos.
— E quem disse que a realidade é diferente disso?
Eu sorri, deliciado com a sua força e também com os sentimentos
que ela reprimia por não aceitar nutri-los. Laura perdeu um pouco da sua
altivez e precisou desviar o olhar, o que ganhou ainda mais a minha atenção.
— Enquanto Sabrina e Vicente acreditarem que eu estou no jogo,
teremos mais chance de encontrarmos o culpado — revelei antes de sair.
Laura nada disse, porém eu sabia que estava no caminho certo.
“Tomara
Que você volte depressa
Que você não se despeça
Nunca mais do meu carinho.”
Tomara - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 30
LAURA

Bernardo saiu, como eu pedi, ainda que não conseguisse entender como tive
tamanha força de vontade para afastá-lo enquanto minha mente se dissolvia
no êxtase de tê-lo em meus lábios e pela paixão declarada, ainda que eu
soubesse que não podia acreditar naquilo.
No instante em que ele me puxou, que sua pele tocou a minha, que
sua boca me beijou, a confusão dentro de mim silenciou, os medos
evaporaram, as certezas deixaram de existir. Eu o queria como queria a paz
que busquei durante toda a minha vida, com a mesma gana que lutei contra o
mundo, que almejei minha vitória, que construí sonhos.
Engraçado que depois de Vicente, nenhum relacionamento ou até
mesmo ideia de algo parecido fazia parte do meu planejamento de vida. Eu
focava em trabalhar, estudar, manter Bruna na linha e aliviar o peso das
costas da minha mãe. Seria assim se nada daquilo tivesse acontecido. Se o
Sr. Quaresma não quisesse se vingar dos filhos com aquele testamento e em
seguida, me envolvido naquela confusão com a carta que, para o bem da
verdade, colocou minha mãe na UTI de um hospital.
Porém, por mais que eu tivesse consciência de toda aquela realidade,
dos erros e das loucuras que aceitei viver, todo e qualquer plano traçado até
aquele momento se perdeu quando Bernardo me beijou. Eu não queria, mas
ele se tornou o ponto acima dos outros, mesmo que eu evitasse olhá-lo ou
desejá-lo, ele estava lá, no topo da minha lista de desejos, de objetivos, como
uma meta a ser atingida para que a minha vida tivesse sentido.
E não podia ser desta forma. Não podia.
Bastava apenas me convencer disso.
Quando a porta bateu eu caí sentada no sofá e afundei o rosto nas
mãos. Que bosta de dia! Com tantas coisas ruins, eu deveria chorar por
minha mãe no hospital, pela tentativa de assassinato que ela sofreu e não por
não ter Bernardo em minha vida. E, mesmo assim, era por isso que eu
chorava, porque eu o queria. Queria com toda a minha força que fosse
verdade, que a paixão declarada servisse como mágica capaz de mudar
nossos mundos, de apagar as diferenças e o passado desajeitado pela maneira
como começamos.
Eu queria que Bernardo me amasse porque eu o amava, e odiava
amá-lo. Não era justo, pelo contrário, era cruel, desumano demais. Que
espécie de brincadeira era aquela do universo, em que eu me apaixonaria
pelo meu algoz? Como podia Deus, em sua imensa sabedoria, permitir que
aquele tipo de tentação cruzasse o meu caminho e ameaçasse desmoronar
cada pedaço da minha vida?
Não tive tempo de aguardar pela resposta. Enquanto, de maneira
humilhante, lambia minhas feridas e buscava algum resquício de equilíbrio,
a campainha tocou outra vez e quebrou a tentativa do meu cérebro de me
restabelecer. Limpei as lágrimas, respirei fundo e fui até à porta. Precisava
ser forte para enxotar Bernardo de lá de uma vez por todas, mas quando abri
dei de cara com o inacreditável: Vicente.
— O que faz aqui? — sussurrei, impedida de reagir pelo impacto.
— Laura…
Ele não fez como Bernardo e simplesmente entrou no apartamento
sem aguardar pela minha permissão. Mesmo atônita, recuei e deixei que ele
me conduzisse. Vicente fechou a porta atrás de si e me encarou com aquele
mesmo olhar esfomeado que dirigia a mim muito antes da loucura da
herança acontecer.
— O que quer aqui, Vicente?
— Como Sara está?
— Veio confirmar se deu certo o seu plano?
— Laura… acha mesmo que eu teria coragem?
Seu rosto demonstrava decepção e a voz continha o tom de dor que
iludiria qualquer um. Mas aquele era Vicente, o mesmo homem que jurou
me amar em um dia, e no outro, me deixou para ficar com a minha melhor
amiga. Era o mesmo cara escroto que me assediava e agarrava dentro da casa
onde vivia com a esposa, como se pudesse me fazer de amante, da mesma
forma como não desistiu de me enganar quando tentou me seduzir para ficar
com o dinheiro que acreditava que herdei.
Rapidamente as palavras de Bernardo, “enquanto Sabrina e Vicente
acreditarem que eu estou no jogo, teremos mais chance de encontrar o
culpado”, ecoaram em minha cabeça.
— Você, Sabrina, Bernardo… quem mais vocês envolveram nesse
plano sórdido?
— Laurinha, eu jamais faria nada contra a sua família. Sara foi como
uma mãe para mim.
As mesmas palavras utilizadas por Bernardo, no entanto, apesar de
saber que ele também tinha motivos para nos atacar, havia a vantagem de ele
não ter mentido para mim. Bernardo deixou claro que queria a herança, já
Vicente…
— É melhor você ir embora. Sua mulher tentará algo pior se souber
da sua insistência comigo.
Vicente suspirou e sentou no sofá sem ser convidado. Eu só queria
que ele fosse embora. Estava cansada daquela droga, das mentiras, do medo
que todos eles demonstravam de serem incriminados, da farsa que
sustentavam para me convencer a entregar a herança.
— Então você contou a ela sobre nós — ele disse com calma.
— O quê?
— Você contou a Sabrina sobre aquele dia, quando me pediu para eu
deixá-la para ficar com você.
— O quê? — repeti, confusa demais para encontrar coerência
naquela conversa.
— Era o que você queria? Fazer com que ela me deixasse de uma
vez?
Vicente levantou do sofá, o corpo não mais amigável e sim, como
uma ameaça em todos os gestos. No mesmo segundo um calafrio
transpassou a minha coluna.
— Eu não sei do que você está falando.
Ele sorriu, sedutor. Deu dois passos em minha direção, o que me
obrigou a recuar um pouco mais.
— Você finalmente aceitou o que eu disse, não foi?
Outro passo em minha direção.
— Ah, Laurinha, eu sabia que cairia em si. Nós nos amamos! E
Sabrina… caramba, o que ela fez foi absurdo demais para continuar.
— Ah, então você afirma que Sabrina tentou envenenar minha mãe?
— Não sei se ela teria essa coragem. Não com as próprias mãos.
— Olha, Vicente, pra mim já deu!
Eu me posicionei à sua frente, no limite da minha raiva, o dedo em
riste apontado para o rosto impecável do homem que um dia cometi o erro
de amar.
— Eu não ficarei aqui ouvindo vocês se acusarem. A polícia tem as
imagens das câmeras, está com todas as provas sobre os passos de vocês e
logo saberemos quem colocou o veneno e onde, mas não pararei aí. Eu juro
que não sossegarei até que os três estejam atrás das grades.
— Imagens?
Foi a minha vez de sorrir. Vicente não fazia ideia de que na ala em
que eu e a minha família ocupávamos havia câmeras espalhadas. Mas, talvez
fosse um erro demonstrar qualquer emoção diante do que tínhamos naquele
momento, pois ele interpretou o meu sorriso de uma forma deturpada e
avançou sobre mim.
Com pressa, suas mãos alcançaram os meus braços e meu corpo
colou ao dele. Eu gritei por causa do susto, tentei me afastar, mas ele não
deixou. Vicente parecia outra pessoa, outra versão dentre tantas que
demonstrou assumir naquele mínimo espaço de tempo.
— Você me ama, Laurinha. Não tem como negar — ronronou com os
lábios escorregando da minha bochecha até meu pescoço. — A polícia
colocará aqueles dois na cadeia e nós ficaremos livres.
Ele riu, o que me deixou mais nervosa, pois me pareceu que Vicente
não tinha mais qualquer equilíbrio, que ali, finalmente, ele demonstrava toda
a sua loucura.
— Vicente, pare!
Eu tentei, mas ele me agarrava com força, beijava minha pele,
tentava alcançar meus lábios.
— Não! — gritei mais alto.
— Eu sei que você também pensou nisso. Com Sabrina presa, eu
terei toda a parte dela e nós seremos imbatíveis.
— Você está louco?
O desespero começava a tomar conta de mim. Não havia como deter
Vicente e a sua loucura. Bruna dormia no quarto e eu temia que ela
acordasse e ele lhe fizesse mal. Forcei para que me largasse, me debati, sem
conseguir afastá-lo.
— Pare, Vicente! Enlouqueceu? Eu não quero!
— Vai continuar com isso? Vai se fazer de difícil agora? Não tem
ninguém olhando, Laurinha. Hoje nós podemos fazer o que quisermos.
— Mas eu não quero! — gritei mais alto, desesperada, enojada.
E então, quando pensei que nada o faria recuar, um jarro se espatifou
na cabeça de Vicente e o fez cambalear e buscar apoio. Meu rosto ardeu e eu
não sabia se era de medo, pelo esforço, ou se no embalo me machuquei
também. Atrás de Vicente, Bruna me encarava assustada.
— Você está bem? — ela perguntou, ainda em posição de ataque.
Não respondi, segurei uma cadeira e levantei na direção do cretino.
— Porra, Bruna! — ele rosnou.
Vicente tirou a mão da cabeça e havia sangue nela. Bruna soltou um
grito e se escondeu atrás de mim.
— Que porra é essa?
— Bruna, chame a polícia — eu disse sem desviar o olhar dele, em
alerta, pronta para acertá-lo com aquela cadeira até que ele não fosse mais
uma ameaça.
— Você está louca? — ele gritou.
— Não, você está.
— Bruna, desligue esse telefone — ameaçou.
— Chame a polícia — reinterei.
— Eu vim te ajudar, sua cretina — grunhiu ao tentar se aproximar.
Ergui a cadeira para impedi-lo e ele recuou. — Sabrina e Bernardo não vão
parar por aí. Sara era a primeira parte do plano nojento deles.
— Alô, nós precisamos de ajuda — Bruna começou a falar atrás de
mim. Vicente a olhou com raiva e em seguida se afastou de vez.
— Você tem as imagens? Pois então eu vou te dizer: Bernardo
mantém uma amante trabalhando naquela casa. Uma idiota que é capaz de
fazer qualquer coisa por ele, inclusive colocar veneno na bebida da sua mãe.
Ele percebeu que a revelação me deixou em choque e sorriu de uma
forma que me fez estremecer.
— Eles não sujariam as mãos. Os dois têm álibis para se safar, já a
coitada…
Vicente não terminou. Ele aproveitou que não reagimos, abriu a porta
e deixou o apartamento. Por um tempo continuamos na mesma posição, eu
com a cadeira em riste, pronta para nos defender e Bruna atrás de mim,
escondida. Até que nos demos conta de que ele não voltaria mais.
Corri até a porta e tranquei. Meu corpo tremia, minhas pernas
ameaçavam perder qualquer capacidade de me manter de pé. Eu queria
chorar, me desesperar, mas não podia. Bruna precisava de mim e eu já tinha
permitido que merdas demais acontecessem com a minha família. Era hora
de reagir.
Saquei o celular e disquei para a única pessoa em quem eu podia
confiar.
— Fernando? Eu preciso de você aqui.

Quando Fernando chegou, a polícia terminava de pegar o meu


depoimento. Alarmado, quase não conseguiu se apresentar como meu
advogado, sentou ao meu lado e exigiu saber o que aconteceu.
Eu e Bruna narramos tudo. Ela apática, sem acreditar no tanto de
coisas que aconteceram no momento que nos tornamos ricas. Se
imaginássemos a quantidade de problemas que teríamos, jamais
desejaríamos a fortuna. Eu, nervosa, não suportava mais explicar cada passo
da conversa que tive com Vicente. Escondi, de forma proposital, o que ele
disse a respeito de Bernardo. Se alguém me perguntasse o motivo, eu diria
que não levantaria testemunho em falso, mas a verdade era que eu não queria
acreditar naquela possibilidade.
Em um mundo normal, Vicente seria o vilão, o que merecia a
punição, o que levava consigo o egoísmo mais sádico e desumano. Bernardo
seria o príncipe encantado, de sorriso avassalador, gentil, compreensivo e
apaixonante. Fora desse contexto, meu mundo perdia o sentido, o universo
se desalinhava, a gravidade exercia uma força maior do que o necessário e
me esmagava.
— A senhora precisará ir até a delegacia para registrar um B.O. e
solicitar uma medida protetiva — o policial me informou. — É a única
forma de conseguirmos manter o senhor Vicente longe.
— Mas ele tentou matar a nossa mãe — Bruna disse com raiva. —
Vocês precisam prendê-lo.
— Até o momento, tudo o que temos contra ele é a violência contra a
sua irmã. Só podemos utilizar este fato para o B.O.
— Mas eu preciso ir hoje? — perguntei ao Fernando, alarmada,
cansada demais para qualquer outra coisa.
— Não, mas iremos amanhã no primeiro horário. — Ele informou ao
policial. — Já existe o seu depoimento e a comprovação dos fatos. O
restante podemos fazer amanhã.
— Bruna também?
— Sim — Fernando respondeu em seu modo profissional. — Ela
acertou o Vicente com um jarro. Ele pode usar isso como argumento. Então
precisamos que ela narre outra vez o motivo da agressão.
— Tudo bem.
Encostei-me no sofá, esgotada. Sem força nem mesmo para tomar
um banho. Fernando cuidou de todo o restante. Ele acompanhou os policiais
até a porta e depois voltou para o nosso lado.
— Vocês precisam descansar — sugeriu. — Foi um dia difícil.
— Só se um policial ficar na nossa porta — Bruna rebateu, tão
assustada que despertava tanto a minha pena quanto a minha ira.
— Não se preocupe — eu a tranquilizei ao colocar minha mão sobre
a dela. — Ele não volta mais, eu garanto. Agora descanse um pouco. Eu
preciso conversar com o Dr. Fernando.
— Você sabe que o que aquele idiota disse sobre o Bernardo é
mentira, não é?
— Bruna, por favor.
— Ele mentiu, Laurinha!
Minha irmã choramingou, o que apertou meu coração com força.
Sim, ela também se perdeu nos encantos daquele rapaz lindo que conseguia
o que quisesse com um sorriso torto e gentileza.
— Bernardo não é um assassino. E ele gosta de você. De verdade!
— Ninguém disse que ele era — argumentei sem a firmeza que
precisava.
Naquele momento, diante de tantas revelações e após tantas mentiras,
eu não seria capaz de atestar a inocência de mais ninguém.
— Ainda assim você precisa dormir. Amanhã vamos ao hospital
saber da nossa mãe, depois na delegacia, e eu preciso trabalhar.
— Eu não quero ir para a escola.
— E não vai. Amanhã você ficará comigo o tempo todo.
Minha irmã sorriu de verdade pela primeira vez desde que eu soube o
que aconteceu com a nossa mãe. Acariciei seu rosto e, após se despedir de
Fernando, Bruna nos deixou sozinhos.
— O que tem para me contar que não incluiu em seu depoimento?
— Muitas coisas — suspirei, a voz baixa o suficiente para que minha
irmã não nos ouvisse.
— Por isso Bruna defendeu o Bernardo?
— Ela o adora. Sejamos justos, Bernardo sabe como convencer as
mulheres.
— Então ele te convenceu?
Mordi o lábio e não consegui encarar meu amigo. Com os dedos
entrelaçados, preferi fincar a minha atenção neles a ter que admitir meus
sentimentos.
— Bernardo esteve aqui mais cedo, antes do Vicente.
— Hum.
— Ele disse que… ele me contou a verdade sobre o acordo feito com
a irmã e Vicente para recuperarem a herança.
— Então eu sempre tive razão — Fernando pontuou, porém, sem me
recriminar.
— Sim, mas a verdade é que ele sempre deixou claro para mim que
queria a herança. — Preferi deixar o fato de que ele me queria também, de
lado. — Por isso não fiquei surpresa.
— Então, o que há de novo nessa história?
— Ele me contou que Sabrina não sabia das investidas do Vicente.
Que ela não o queria envolvido. E que… ele desconfia do Vicente.
— Certo. Todos desconfiamos do Vicente. A parte do Bernardo é
essa?
Concordei sem nada dizer, ainda sem condições de encará-lo e
mentir.
— E quanto ao Vicente?
— Esse é o problema. Vicente me disse que Sabrina e Bernardo
foram os culpados. Ele me disse que nenhum dos dois seria capaz de sujar as
mãos, mas que Bernardo mantém um caso com uma das empregadas da casa
e esta se submeteria a executar qualquer coisa por ele.
Fernando ficou sério. Tão silencioso que me obrigou a encará-lo. Em
seguida, sacou o celular do bolso e discou para alguém.
— Arnaldo? Preciso que cheque uma coisa para mim.
Fiquei tensa no mesmo instante. Arnaldo era o detetive particular que
contratamos para acompanhar o caso do envenenamento da minha mãe, e ele
estava na mansão naquele momento.
— Na ala que a família de Laura estava. Isso, no quarto da Sara. Já?
Mas preciso que preste atenção em um detalhe. Algum frasco de remédio,
um copo ou alguma garrafa de água, qualquer objeto que possibilite alguém
ingerir a bebida. Um copo?
Meu amigo me olhou assustado com a informação recebida.
— Leve este copo até o laboratório e verifique se há… hum! Ótimo!
Aguardo a resposta. Obrigado.
Fernando desligou e só depois disso, ele me explicou o motivo da
ligação.
— Apenas os empregados estiveram na sua ala hoje. E desses, só a
arrumadeira entrou no quarto de Sara. Ela é jovem e bonita, o que confirma a
versão de Vicente. Mas a questão não será essa. Um tempo depois Sara foi
até o quarto. Saiu alguns minutos depois e após um tempo, passou mal.
— Você tem certeza?
Foi com o coração se partindo em milhões de pedaços que vi meu
amigo confirmar a informação. Era real: Bernardo mentia para mim.
Eu só não sabia como sobreviveria àquela informação.
“E da paixão fez-se o pressentimento
E do momento imóvel fez-se o drama
De repente, não mais que de repente
Fez-se de triste o que se fez amante”
Soneto da separação I - Tom Jobim / Vinícius de Moraes

Capítulo 31
LAURA

Naquela manhã não senti qualquer prazer em colocar os pés na empresa. O


que antes me assustava e depois me deixava orgulhosa, passou a ter um
gosto amargo, a sensação de que ali reinava o que havia de pior na
humanidade, tal fato não me deixou pregar os olhos na noite anterior.
Bruna, ao meu lado, não seguia no mesmo clima que eu, apesar de
também não demonstrar animação em estar ali, os olhos da minha irmã
brilhavam com todas as novidades com que se deparava. Não tive força para
censurá-la, não depois de tantos problemas que vivíamos, de gastarmos
algumas horas na delegacia para o B.O. e tantas outras coisas que só
aconteceram porque me intrometi naquela confusão de família. Uma família
que nem era minha.
— Bom dia, Srta. Lacerda — as secretárias, Judite e Margarete, me
cumprimentaram com preocupação.
— Bom dia. Ilma já chegou?
— Aguarda pela senhorita na sua sala — Judite avisou. — Se me
permite, como está a sua mãe? Nunca nos conhecemos pessoalmente, mas
falei com Sara diversas vezes por telefone.
— Está melhor. O médico está confiante. Obrigada pela preocupação.
— Sorri sem qualquer alegria. — Essa é minha irmã, Bruna. Ela passará o
dia conosco.
— Muito prazer, Srta. Bruna. — As duas falaram ao mesmo tempo.
— Deseja alguma coisa? Um lanche? — Margarete fez minha irmã
sorrir pela primeira vez no dia.
— Sim, se for possível — Bruna respondeu baixo, sem graça e
insegura.
— O que gostaria? Doce ou salgado? — Margarete continuou em sua
gentileza. — Café, suco… — Bruna me olhou sem saber o que responder.
— Traz algo doce para ela e salgado para mim, Margarete. Bruna
prefere suco integral, mas eu quero mesmo uma xícara de café. Obrigada.
— Como quiser.
Passamos pelas duas e abrimos a porta de acesso à sala de Ilma. Ela
não estava em seu posto, mas minha sala aberta indicava onde eu a
encontraria. No instante em que entramos ouvi um delicado “uau” de Bruna.
De fato, não havia como não se expressar diante daquela sala imensa e tão
bem arrumada.
— Essa é a sua sala? — minha irmã falou baixo, talvez tímida diante
de Ilma, parada ao lado da minha mesa.
— Sim, e esta é Ilma. Bom dia, Ilma, essa é Bruna, minha irmã.
— Como vai, Bruna?
— Bem, obrigada.
Tive a impressão de que Bruna se encolhia atrás de mim, o que
pareceu engraçado, uma vez que aquele não era o seu comportamento típico.
— Como está sua mãe, Laura?
— Melhor, graças a Deus.
Coloquei a pasta sobre a mesa e a bolsa na minha cadeira. Vi quando
Bruna se afastou e começou a observar cada detalhe da minha sala.
— Que bom. Sara com certeza ficará bem.
— Obrigada. E a reunião?
— Todos avisados. Você tem quarenta minutos antes de encontrá-los.
Gostaria de solicitar algo?
— Não, Ilma. Pedi a Margarete para providenciar um lanche. Com
tantos problemas, quase não conseguimos comer antes de sair.
— Imagino.
— Na verdade…
Olhei rápido para Bruna, que, sentada no sofá, se ocupava com o
celular.
— Bruna ficará por aqui quando eu for para a reunião. Não quis levá-
la à escola. Você pode ficar de olho nela quando eu sair?
— Obviamente!
A mulher sorriu como se a missão fosse o motivo da sua alegria pela
manhã.
— Obrigada.
No momento em que Ilma saiu, liguei o computador e chequei os e-
mails, depois baixei alguns relatórios e fiz anotações sobre coisas que eu não
podia esquecer. Margarete logo entrou com uma profusão de doces e
salgados, o que animou a minha irmã. Pelo menos um ponto de menos
tensão no dia, enquanto eu me preparava para o próximo embate.

Respire, Laura. Demandei diante da porta de madeira que me


separava deles. Eu tremia de leve, mas me obrigava a não pensar no
problema. Em segundos estaria de frente com Bernardo e Sabrina, os dois
principais suspeitos do atentado contra a minha mãe, e eu nem podia agir
contra eles, uma vez que ainda não tinha provas concretas.
Meu estômago embrulhou, o que fez com que eu me arrependesse de
ter comido pouco antes. Considerar Sabrina como suspeita do caso, não me
deixava surpresa. A verdade é que o nome de Bernardo encabeçando a lista
não deveria me deixar mal também, mas deixava. E eu sabia o motivo, só
não queria pensar nele.
Meus olhos ficaram úmidos, o que me deixou aborrecida. Eu não
deveria lamentar por confirmar que aquela família não prestava. Nunca
prestaram. Eu tinha motivos de sobra para ter esta certeza. E, apesar disso,
Bernardo furou a minha bolha de proteção, conquistou espaço e… Não,
Laura! Ele não tem espaço no seu coração.
Abri a porta com a força da raiva que se avolumava em meu peito.
Puxei o ar com vigor quando dei de cara com o primeiro par de olhos azuis,
penetrantes e… apaixonados? Não. Se havia alguma preocupação em
Bernardo, de certo era por medo de ser preso pelo que fez, ou mandou a sua
comparsa fazer.
Desviei o olhar invocando a raiva que deveria me guiar, mas que
perdeu metade da força ao se deparar com seu algoz. No que eu estava
pensando? Por que não conseguia odiá-lo como deveria? Que espécie de
paixão era aquela que implorava para que tudo fosse uma mentira, só para
não perdê-lo? Bernardo tentou matar minha mãe. Ele, Sabrina e,
provavelmente, Vicente. Os três eram culpados e deveriam pagar por isso.
Então, por que doía tanto?
— Laura — Fernando me cumprimentou, pela segunda vez naquele
dia, e me arrancou dos meus pensamentos conflituosos.
— Fernando.
— Laura? Como está Sara? — Sabrina me pegou de surpresa com a
sua pergunta, aparentemente, preocupada.
Precisei me lembrar de que aquela cara ingênua e olhos sofridos não
passavam de uma encenação bizarra. Sabrina fingiu ser minha amiga, fingiu
apoiar meu noivado, fingiu me aceitar na empresa e naquele momento,
fingia se preocupar com a mulher que mandou matar. Que cretina!
— Melhorando — eu comentei com um bolo enorme na garganta, a
raiva se avolumando cada vez mais dentro de mim. — Hum… — Limpei a
garganta para me desvencilhar daquela sensação. — Podemos iniciar.
Pretendo ser breve.
— Claro — Fernando respondeu e puxou a cadeira para que eu
sentasse.
Traindo a mim mesma, olhei para Bernardo e fisguei um olhar
estranho dele para a cena: Fernando cuidadoso, atencioso comigo. Outra vez
minha garganta travou e meus olhos ficaram úmidos. Eu era tão boba que
permitia que minha mente encontrasse todas as mentiras para justificar o que
Bernardo fazia. Para encontrar amor onde só havia traição. Eu deveria odiá-
lo. Por que não conseguia?
— Hum…
Limpei outra vez a garganta. Incomodada. Louca para deixar aquela
sala o quanto antes, mas eu sabia que não seria daquela forma.
Quando Sabrina soubesse que eu cancelaria a viagem já acordada e
planejada, deixaria cair a máscara de boa moça e criaria uma confusão. Tudo
o que eu menos queria para aquele dia.
— Serei direta. Vou cancelar a viagem programada. Eu sei que
gerenciar um grupo empresarial exige de mim uma postura profissional que
deixe de lado os problemas pessoais, porém não há qualquer possibilidade de
eu deixar minha mãe hospitalizada devido a uma tentativa de assassinato, e
minha irmã adolescente como responsável. Desta forma…
— Você está certa, Laura.
Sabrina me pegou de surpresa mais uma vez. A voz mansa acalmava
meu corpo de uma maneira que eu não queria permitir. Independente disso,
foi como aconteceu.
— Ninguém jamais te pediria algo assim. Estamos todos
preocupados com o que aconteceu com Sara e sem cabeça para viagens, por
mais que isso soe nada profissional.
Meus olhos umedeceram com intensidade. Que idiota eu era! Aquela
mulher de fala mansa era a culpada por todas as minhas dores. Nada de bom
vinha de Sabrina. Nada.
— Não é o momento para cumprir compromissos profissionais que
podem ser adiados — ela continuou. — Estão todos de acordo?
Tanto Fernando quanto Bernardo se manifestaram concordando com
Sabrina. Eu não queria nada daquilo, mas também não queria uma guerra.
Não naquele dia. Engoli com dificuldade outra vez, sem coragem de encará-
los.
— Já que estamos de acordo…
Levantei com pressa, cada célula do meu corpo implorando para
deixar a sala.
— Pedirei a Ilma que faça as devidas alterações. Com licença.
Eu tinha a certeza de que todos perceberam o meu estado
descontrolado, contudo, nada me impediu de deixar a sala com pressa e
caminhar como um foguete até a minha. No mesmo instante parei. Ilma
aguardava por mim, acompanhada de Bruna e de um policial. Voltei a olhar
para a minha irmã que parecia apenas curiosa, o que me tranquilizou a não
entrar em pânico.
— Srta. Lacerda, o Agente Braga deseja falar com a senhorita —
Ilma tratou de explicar.
— Certo — estendi a mão suada e trêmula para o homem que a
apertou com firmeza.
— Srta. Laura Lacerda? Sou o Agente Braga, da polícia civil. Estou
aqui para falarmos sobre o caso da sua mãe, a senhora Sara Lacerda.
— Sente-se, por favor — Indiquei a ele a cadeira que ficava à frente
da minha mesa. — Ilma, pode acompanhar Bruna em um tour pelo andar?
— Claro.
— Laura! Se é sobre a mamãe, eu quero saber — Bruna protestou.
— E saberá, mas não antes de eu entender tudo. Acompanhe Ilma,
por favor, Bruna.
Em qualquer outro momento, minha irmã bateria o pé e demonstraria
a sua idade sem pestanejar, mas, por algum motivo divino, estar naquela
empresa freava um pouco o seu comportamento imaturo. Bruna apertou os
lábios e acompanhou Ilma para fora da sala. Aliviada, sentei na minha
cadeira e fiquei de frente para o policial.
— Então? Temos alguma novidade?
— Como a senhorita sabe, recebemos do investigador Arnaldo, o
laudo do copo que a senhorita pediu para analisar com a suspeita de que ali
estava a causa do envenenamento da sua mãe.
— E o que indicava?
— Beladona. Na dose errada, é um veneno. E foi o que o médico
encontrou no organismo da sua mãe.
Engoli com dificuldade e, mais uma vez, tive vontade de chorar. O
que mais faltava para que meu coração mudasse o comportamento e
entregasse Bernardo em uma bandeja à polícia? Nada. Não podia haver
mais nada. Ainda que a dor me consumisse. Eu a merecia, afinal de contas,
me apaixonei pelo vilão do meu conto de fadas.
— Eu sei — avisei com cuidado para não engasgar com minha dor.
— Sua mãe tomava algum remédio que possa ter provocado o auto
envenenamento?
— É nessa linha de investigação que vão trabalhar? — rebati.
— Vamos trabalhar com o que temos, portanto precisamos eliminar
todas as possibilidades.
— Não, minha mãe não toma nenhuma medicação que contenha
beladona. O copo estava ao lado da cama dela, como ela sempre fez.
— Certo. Tem algo mais que queira me contar?
Foi como uma faca afiada partindo meu coração aos poucos. Limpei
a garganta de novo, segurei o choro e abri meu e-mail. Procurei pelas
imagens que Fernando me enviou e virei a tela para o policial.
— Essas são as imagens do circuito interno de segurança da minha
ala. Com elas descobrimos que além da minha mãe, apenas a empregada que
faz a limpeza dos cômodos, entrou no quarto.
— Eu preciso dessas imagens — ele anunciou com preocupação. —
E do nome da empregada.
Em pouco tempo eu já tinha todas as informações. Passei para o e-
mail solicitado e vi quando o Agente Braga solicitou um mandado de prisão.
Chegaríamos a Bernardo, depois a Sabrina e Vicente. E eu não podia ser
benevolente. Não podia.
Mas, como tudo na Terra acontece para que você lembre que não está
aqui para brincar, no instante em que levei o agente até a saída da minha
sala, encontrei Bernardo com Judite e Margarete. Ele olhou de mim para o
policial com certa apreensão. Respirei fundo e me obriguei a não fazer nada
precipitado.
— Laura, está tudo bem? — ele disse sem se preocupar com as
pessoas que nos assistiam. — Está tudo bem com Sara?
— Sim, tudo bem, Bernardo. O que faz aqui?
— Eu queria… falar com você.
Os olhos azuis convidativos, sedutores e quentes, pousaram sobre
mim com carinho. Respirei fundo outra vez e precisei relembrar ao meu
cérebro de que aquele homem lindo, cheiroso e… Não, Laura! Bernardo era
o mandante da tentativa de assassinato contra a minha mãe. Por Deus, não
dá para entender!
— Obrigada, agente Braga — prossegui como uma fuga, não como
necessidade para estar a sós com Bernardo, mas foi o que aconteceu.
— Entrarei em contato em breve.
O homem saiu sem olhar para trás. Tinha pressa em encontrar o
desfecho daquele caso e eu… Eu não fazia ideia de como fazer meu corpo
entender o óbvio.
— Venha — resmunguei para que Bernardo me acompanhasse.
— Laura? — ele chamou tão logo a porta se fechou atrás da gente.
— Está tudo bem mesmo com Sara? A polícia descobriu alguma coisa?
Eu não queria encará-lo outra vez. Deveria me recusar a olhá-lo, a
falar com ele, a ouvir o som daquela voz tão… Amorosa. Deus, isso não é
justo!
Porque apesar de saber de tudo, de desejar esbofeteá-lo e acusá-lo de
tudo, inclusive da minha paixão desesperadora, eu não podia. Na verdade,
indiferente a todos os sentimentos que me machucavam, havia a necessidade
de manter Bernardo e Sabrina na ignorância. A polícia pegaria a garota que
executou o crime e através dela, conseguiria chegar aos mandantes. Se eu,
por impulso, alertasse Bernardo sobre o que descobrimos, daria a ele a
chance de sumir, desaparecer do Brasil e não pagar pelo que fez.
— Nada de novo.
Empenhei o máximo de força e capacidade de atuação para ter aquela
conversa.
— O agente Braga queria eliminar alguns aspectos da investigação.
— Como o quê?
Ele se aproximou, interessado demais em descobrir o que eu tinha
para contar.
— O mesmo que o médico perguntou: se minha mãe tomava alguma
medicação que continha beladona.
— Hum, eu pensei que eles eliminaram a ideia na noite passada.
— Eu também. Enfim, algo mais?
De tudo o que eu fiz naquele dia, o mais difícil foi não me comover
com a preocupação que ele fingia ter. Minha mente me alertava sobre meu
erro enquanto meu coração chorava a minha dor. E eram tantas. Eu me sentia
tão partida, ferida, que lutava contra a vontade de ceder, deixar a mentira ir
além e me confortar nos braços dele. Permitir que Bernardo me abraçasse e
dissesse, sem que eu precisasse acreditar, que tudo ficaria bem. Mas eu não
podia.
— Não. Encontrei Bruna com Ilma no corredor. Ela é forte. Aguenta
bem as adversidades.
— É.
Abracei meu corpo e implorei para que minha encenação não se
desfizesse em lágrimas.
— Laura, eu…
Bernardo tentou me alcançar. Por um segundo, um miserável
segundo, cogitei a ideia, até que me dei conta do absurdo que aquilo seria e
me desvencilhei.
— Bruna volta a qualquer momento. E eu preciso… Trabalhar.
A decepção no rosto dele deveria me alegrar, porém, só afundou um
pouco mais a faca em meu coração.
— Certo. Se precisar de mim, sabe onde me encontrar.
E Bernardo deixou a sala.
Eu queria que o ar ficasse mais leve, mas não ficou.
“Quem diz muito que vai, não vai
E assim como não vai, não vem”
Berimbau - Consolação - Maria Creuza / Toquinho / Vinícius de
Moraes

CAPÍTULO 32
LAURA

O dia se arrastou como um filme de terror passado em câmera lenta.


Durante muitos momentos eu só quis ir embora e em outros, quis socar
alguém.
Todas as vezes que meu telefone tocava ou Ilma batia à minha porta,
eu estremecia com a ideia de que, a qualquer momento, Bernardo e Sabrina
seriam desmascarados, presos e levados embora. E sim, isso me aterrorizava.
Enquanto meu coração conseguisse, me alertaria de que contra eles
havia apenas a suspeita, não as provas, e, por mais que eu detestasse a
maneira como eles arquitetaram reaver a herança de volta, que tivesse muitas
mágoas de Sabrina, eu me pegava torcendo para que não fosse verdade.
Por isso a dor, a culpa, a mágoa sem fim. Como eu podia desejar que
eles não fossem os culpados se tudo apontava naquela direção? Como a
necessidade de não vivenciar a decepção causada por Bernardo podia ser
maior do que a dor de quase perder a minha mãe?
— Bom, não é maior — falei para mim mesma em um resmungo
baixo que mal conseguia definir se servia de acalento ou repreensão. — São
só… situações diferentes.
— O quê? — Bruna resmungou, entediada, jogada no sofá como se
estivesse com uma doença letal.
— Nada.
— Vou assistir um filme, tá?
Sem aguardar por mim, minha irmã colocou os fones de ouvido e se
perdeu no mundo dela. Melhor assim.
No horário que me planejei para deixar a empresa e levar Bruna para
visitar nossa mãe, Ilma me avisou que Fernando queria falar comigo.
Autorizei a entrada e aguardei com apreensão.
— Laura…
Ele olhou de canto de olho para Bruna, ainda largada no sofá, absorta
no filme que passava na pequena tela do celular. Então ele se aproximou da
minha mesa e anunciou.
— Deu certo. Eles fizeram uma prisão preventiva e interrogaram a
mulher. Ela negou tudo. Agora estão esperando a comparação das digitais
para terem uma prova mais contundente.
— E o que isso significa? — questionei no mesmo tom.
— Que precisamos aguardar um pouco mais. A delegada disse que
consegue segurá-la por 24hs. Só a imagem dela entrando no quarto não se
configura como uma prova, e sim um indício.
— E se não houver uma digital? E se não conseguirem nada que a
incrimine?
— Calma. Meu pai está acompanhando tudo de perto. Ele contou que
a delegada avisou sobre procurarem digitais no copo e fazerem uma busca na
casa dela. Segundo ela, mais um pouco e teremos uma confissão. A mulher
está assustada.
— Não sei, Fernando.
Suspirei, cansada para carregar mais aquela tensão nos ombros.
— Não sei mais o que esperar.
— No momento isso é tudo o que temos.
— O que é uma droga.
— Vamos tentar um acordo, Laura. Quando ela souber que pode
passar o resto da vida na cadeia, vai entregar o mandante.
— Nós sabemos quem mandou, basta só ela confessar — resmunguei
com um misto de tristeza e raiva.
E esta última não era apenas por terem ousado tocar na minha mãe e
sim por Bernardo ter feito aquilo, como se me machucar não tivesse
qualquer peso naquela história.
— Você ainda acha que foi o Bernardo? — meu amigo questionou,
sem demonstrar para que lado pendia a sua suspeita.
— E a Sabrina.
— Entendo. Na verdade, cada vez que nos aprofundamos nessa
história, percebemos que estamos sempre seguindo na direção daqueles três.
— Você acha que Vicente está envolvido?
Fernando se mexeu na cadeira, como se tocar no assunto, o afetasse.
— Como advogado detesto a ideia de levantar falso testemunho.
Precisamos das provas para direcionar o caso e só depois disso procuramos
as brechas que nos farão amenizar ou agravar a situação.
— Mas?
Ele suspirou, se mexeu outra vez e ajeitou o paletó como se este o
sufocasse preso ao corpo.
— Sempre tem um mas, não é mesmo? — Concordei sem nada dizer.
— Eu conheço Bernardo e Sabrina há muito tempo. Sei que Bernardo
concordou em fazer parte deste plano, mas tenho minhas dúvidas quanto até
onde ele iria. Bernardo, e tudo o que ele é, não combina com essa versão.
— Qual? Dormir com uma empregada ou convencê-la a envenenar
uma pessoa?
— Pra ser sincero, os dois. Nunca houve um escândalo dessa forma
na família, mesmo que nos bastidores.
— Mas ele costumava ter casos com as secretárias.
— Não. — Fernando riu, despreocupado. — Ele costumava trazer os
casos para trabalharem como secretárias dele. Há uma imensa diferença na
inversão da ordem.
— Tanto faz — resmunguei mais uma vez, mortificada com as
imagens que se formavam na minha mente.
Bernardo tinha o dom de me fazer odiá-lo e amá-lo na mesma
medida.
— Se ele não agiu por iniciativa própria, fez por pressão de Sabrina.
— Por mais que eu deteste livrar a barra dos irmãos Quaresma,
também não acredito que Sabrina seja capaz de algo dessa proporção.
— Claro que não — revirei os olhos, cansada demais de fingir que
aquilo tudo não o afligia pelo mesmo motivo que o meu. — Sabrina é uma
santa.
— Ela está longe de ser qualquer coisa que esteja perto de uma santa.
Ela armou para Bernardo te seduzir e assim conseguirem recuperar a
herança, mas daí a mandar matar Sara? Duvido.
— Ela tomou o meu noivo e casou com ele — cutuquei a ferida que
ainda ardia em nós dois. — E tentou me fazer dar um prejuízo absurdo a
empresa, só para provar que eu não estava apta para o cargo.
— Sim, ela fez tudo isso. Como eu disse, ela não se assemelha a uma
santa. Eu sei que Sabrina é capaz de coisas deste tipo para ter o que quer.
Existe uma diferença, Laura. E tem alguns pontos: Quando Bernardo soube
o que fizeram a Sara, te contou toda a verdade e mais do que isso, ele contou
à polícia.
— Porque a polícia descobriria que eles contestaram a herança e
chegariam até eles em um piscar de olhos.
— E se entregaram dessa maneira? Não. Desculpa, mas não acredito
nisso. Além do mais, Sabrina e Bernardo continuariam bem financeiramente,
ainda que não recuperassem a herança.
— Como se fosse o suficiente para eles.
— Para eles talvez, mas, pense bem, quem sofreria mais com a
mudança na vida luxuosa e fácil?
— Vicente — sussurrei, confusa, com o corpo cheio de esperança e
ao mesmo tempo, repleto de medo de me permitir acreditar. — Então por
que ele me contaria que…
— Laura, Vicente apertou as investidas quando você assumiu a
herança, certo?
Concordei, ainda envolta na névoa que me fazia encontrar mais
justificativas para isentar Bernardo da culpa.
— Ele te disse que Sabrina tomava remédio para dormir e misturava
com bebida alcoólica. Também sugeriu que vocês ficassem juntos e se
vingassem da esposa dele. Agora, ciente de que você está apaixonada pelo
Bernardo, e com tudo o que certamente o ligará a tentativa de assassinato,
ele lhe contou sobre a empregada com quem Bernardo tem um caso. Isso sim
é, para mim, uma baita confissão.
— Eu não sou apaixonada pelo Bernardo — rebati, sem me apegar a
mais nada dito após a exposição. Fernando me deu um sorriso contido.
— É claro que você é — ele enfatizou com delicadeza. — E eu sei
que é horrível admitir isso sendo ele um suspeito.
Eu contestaria se fosse capaz, contudo, ter a verdade exposta daquela
forma, fez meus olhos ficarem úmidos e as palavras se prenderem na
garganta, como se não houvesse mais o que dizer.
— Laurinha? — Bruna chamou do sofá. — Quando vamos ver a
mamãe?
— Agora — avisei com a voz rouca e sem mais nenhuma certeza.

BERNARDO

Poucas vezes na minha vida vi minha irmã tão frágil. Sabrina andava
de um lado para o outro da sua sala, com o celular na mão, tentando algum
tipo de comunicação com o marido. Minutos antes, ela me confessou que
tiveram uma briga por causa do que contei. Vicente foi grosseiro e
indelicado, como nunca era com ela, o que, para mim, deixava a situação
clara.
Após brigarem, ele disse que precisava de espaço e deixou o hotel.
Sabrina dormiu sozinha, e quando chegou à empresa descobriu que o marido
não apareceu para trabalhar. Ela não contou para ninguém, segurou a barra
até aquele instante, quando a procurei para avisar que Juliana, uma das
empregadas da casa que eu não fazia ideia de que existia, fora presa naquela
tarde como principal suspeita do crime contra Sara.
A revelação me chocou, não por não acreditar que alguém ali dentro
agiu, esse ponto não deixava qualquer dúvida, mas porque o irmão de
Juliana conseguiu o meu número e me pediu ajuda, pois eles não tinham
como arcar com um advogado. Prometi retornar e fui até Sabrina para saber
como agir.
Eu queria ligar para Laura e perguntar se ela sabia de alguma
desavença entre sua mãe e Juliana, mas então liguei alguns pontos e, se eu
não fiz aquilo, e Sabrina não fez, apenas Vicente poderia ter feito, no
entanto, eu conhecia meu cunhado o suficiente para saber que ele nunca
agiria na linha de frente, uma prova era o seu comportamento com Laura por
nossas costas. Então tudo ficou lúcido para mim. Vicente não sujaria as
mãos, mas faria com que alguém as sujasse por ele.
— Vicente não fez isso, Bernardo — ela disse ao desligar mais uma
vez a ligação fracassada. — Ele não é burro a este ponto. O que ele
ofereceria aquela menina que garantisse que ela jamais o entregaria?
Eu podia fazer uma lista, porém, preferi não alimentar a dor da minha
irmã.
— O que o irmão dela disse?
Ela fez a mesma pergunta umas três vezes e eu tinha a certeza de que
Sabrina evitava confrontar a verdade.
— Que Juliana não teve culpa.
Abreviei toda a conversa.
O que o rapaz disse mesmo foi que conhecia a irmã, que ela nunca
faria mal a ninguém e que com certeza alguém dentro daquela casa tentava
incriminá-la para abafar outros escândalos. Quais? Eu também tinha a minha
teoria.
— E que alguém tentava incriminá-la. Certo. Como isso chega
mesmo ao Vicente?
— Se excluirmos o pessoal de Laura, já que não podemos levar em
consideração que Laura ou Bruna tentariam matar a própria mãe, restam
como suspeitos, em especial, interessados em abafar escândalos daquela
casa, eu, você e o Vicente.
— E se os escândalos apontados não estiverem ligados a nós?
— E a quem mais estariam?
— Não sei.
Ela voltou a caminhar e, mais uma vez, tentou ligar para o marido.
— Um caso entre os empregados. Isso é bem possível, não?
Poderíamos até…
O telefone sobre a mesa de Sabrina tocou e impediu minha irmã de
concluir seu raciocínio. Sabrina agiu no automático, em poucos segundos
sua voz estava estabilizada e sua postura corrigida.
— Sim? Como? Claro.
Ela desligou, pálida, os olhos esbugalhados.
— O que houve? — perguntei com apreensão. Um milhão de notícias
ruins me alcançando sem filtro. — Sabrina.
— A polícia está aqui.
— Deve ser por causa da Sara. Avise a seu…
Nem tive tempo de instruir minha irmã a chamar pelo advogado dela.
A porta abriu e rapidamente a sala recepcionou seis policiais. Não, aquilo
estava longe de ser uma conversa para apurar detalhes.
— Delegada — minha irmã disse, a postura em seu melhor papel
profissional, contudo, trêmula e sem cor. — Em que posso ajudá-la?
— Seu marido, Vicente. Não o encontramos.
A mulher foi direto ao ponto, o que fez um calafrio percorrer minha
coluna.
— Temos uma ordem de prisão contra ele.
— Prisão? — Sabrina questionou, tão assustada quanto eu. — Por
qual motivo?
— Hoje mais cedo detivemos a senhora Juliana, que trabalha como
empregada na sua casa, corrigindo, na casa da senhora Laura Lacerda.
— Sim, acabamos de saber — minha irmã continuou. — E o que…
— Juliana confessou que colocou o veneno no copo ao lado da cama
de Sara, a mando do Sr. Vicente, seu marido.
— Impossível — Sabrina disse com a voz fraca.
— Sabrina não sabe onde ele está. — Tomei a frente da conversa. —
Vicente deixou o hotel ontem à noite e não retornou mais. Estávamos agora
mesmo tentando contato com ele, sem sucesso.
— E por qual motivo tentavam encontrá-lo?
— Porque ele é meu marido — Sabrina rebateu com raiva. —
Qualquer esposa se preocuparia nessa situação.
— Entendo. Sinto muito, mas a senhora precisará nos acompanhar
até a delegacia.
— Eu?
— Calma.
Fiquei entre os policiais e minha irmã.
— A senhora tem um mandado?
— Não estamos efetuando uma prisão, apenas convidando a senhora
para esclarecimentos. Se preferirem…
— Ligue para o seu advogado, Sabrina.
Minha irmã obedeceu, tremendo mais do que já assisti em qualquer
outro momento da nossa história.
— Nós iremos quando o advogado chegar — informei à delegada. —
A senhora tem certeza de que Vicente é o mandante?
— Este não é um assunto que eu gostaria de tratar aqui, Sr. Bernardo,
mas a garota, a Juliana, mantinha um caso com o seu cunhado há alguns
meses. Ele a convenceu a colocar o que afirmou ser “um remédio para
dormir” no copo da Sra. Sara. Interceptamos as conversas por mensagens no
celular dela e descobrimos que ela fez o mesmo em outro momento, com a
sua irmã.
— Puta merda!
Eu queria buscar mais informações e garantir que a polícia pegasse
Vicente o quanto antes, mas a delegada olhou para além de mim e suspirou,
culpada. Olhei na direção e dei de cara com Sabrina, os olhos fixos em nós
dois, a uma distância que com toda certeza conseguiria ouvir o que
conversávamos.
— Sabrina…
Ela não reagia. As mãos soltas ao lado do corpo, o celular quase
caindo dos seus dedos, a tela indicando que havia uma ligação em curso. Eu
me aproximei, segurei seus ombros e a encarei. Sabrina mantinha a atenção
fixa na delegada, mais pálida do que antes. Uma lágrima escorreu pelo rosto
e ela não tentou enxugá-la.
A porta abriu, olhei para trás e vi Fernando.
— Sabrina — ele disse com urgência na voz. — Meu pai acabou de
me avisar.
Sabrina continuava em seu estado catatônico.
— Cuida disso pra mim? — pedi a Fernando, que concordou,
segurou Sabrina com cuidado e a levou até o sofá. Voltei para a delegada. —
Do que vocês precisam?
E eu estava certo de que não sossegaria até que a polícia encontrasse
Vicente. Depois disso, me certificaria de que ele jamais respiraria do lado de
fora da cadeia.
“Com essa luz que veio me habitar
Com esse fogo que faz arder
Me dá medo e vem me encorajar
Fatalmente me fará sofrer”
Escravo da Alegria - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 33
LAURA

Não tenho como expressar o alívio que tomou conta do meu corpo ao
encontrar minha mãe acordada, livre de tubos, porém abatida e com um
aspecto horrível, devido a reação da pele ao veneno, ainda assim, era a
minha mãe, sem risco de morte, com aquele sorriso seguro e repleto de
amor, que enchia meus olhos de lágrimas.
Bruna se atirou sobre ela como se não existisse nada melhor no
mundo do que estar nos braços da mãe, mesmo que sobre uma cama de
hospital. E eu a entendia. Como censurá-la? Quando abracei minha mãe foi
como se todo o peso que carreguei naquele dia, as culpas e medos,
desaparecessem, por isso chorei como um pedido de desculpa por envolvê-la
naquela loucura e também como gratidão, por ela ainda estar comigo, apesar
de tudo.
O médico não restringiu o horário de visitas, uma vez que minha mãe
foi transferida para um quarto e também por estarmos no melhor hospital da
cidade, e o mais caro, devo ressaltar. O que o dinheiro não fazia? Essa era a
pergunta que eu jamais saberia responder. Antes eu diria “saúde”, contudo,
depois do que passamos, eu tinha as minhas dúvidas. Em um hospital
público conseguiriam salvar a minha mãe? Descobririam com agilidade qual
o veneno utilizado e ministrariam o antídoto com a mesma eficiência? Eu
tinha a desconfiança de que não. A falta de recursos e funcionários
atrapalharia no processo.
Como técnica em enfermagem, eu já vi paciente piorar o estado por
não ter a medicação correta disponível. Já convivi com a falta do básico e de
especialistas. Uma tristeza sem tamanho para um povo que nasce e morre
trabalhando, paga impostos, depende da melhor administração destes e
morre sem conseguir um atendimento.
Empurrei meus questionamentos para o lado, além da tristeza por
saber que a mesma herança que nos amaldiçoou e colocou minha mãe
naquele estado, também a salvou ao permitir a estadia dela naquele hospital,
e tratei de atualizá-la de todo o processo.
Contei sobre a garota, Juliana, que trabalhava como arrumadeira na
mansão Quaresma há pouco tempo, responsável por adicionar o veneno no
copo com água que minha mãe deixava sobre a mesa de apoio ao lado da
cama. Também deixei claro a suspeita da polícia de haver um mandante, mas
não ressaltei os três principais suspeitos.
Não sei porque não acusei Sabrina, Vicente e Bernardo no instante
em que contei tudo à minha mãe. Enquanto estava no quarto com ela, eu
tinha a certeza de que não o fiz porque não queria que seu quadro já sensível,
ficasse pior. Depois que a deixei, entendi que não conseguia acusar
Bernardo, apesar de tudo apontar para ser ele o amante de Juliana e
mandante do crime, em comum acordo com Sabrina e Vicente.
Por que eu não me conformava de uma vez? Por que não conseguia
simplesmente aceitar e finalizar aquela etapa? Com toda certeza a polícia
logo chegaria até ele, então quanto antes eu eliminasse aquele sentimento
sufocante, melhor.
Eu tinha total consciência de que sofreria. Como não sofrer? Sem a
confirmação eu já me torturava por amar o homem que atentou contra a
minha mãe, com a certeza de que ele era o mandante, eu cravaria a faca de
uma vez só no meu coração.
— Vamos para casa? — Bruna perguntou no instante em que a porta
do elevador abriu na garagem do hospital.
— Eu preciso voltar para a empresa. Desculpe. Deixei muita coisa
em aberto.
Bruna fez uma careta como se não suportasse a ideia.
— Mas eu posso te deixar na casa da Maitê, o que acha?
Bruna abriu um sorriso imenso. Desde que nos mudamos não
voltamos a casa da nossa antiga vizinha. Com certeza todos em nosso antigo
bairro acreditavam que ficamos esnobes, mas a verdade é que não houve paz
desde aquele dia e só retornamos porque eu não confiava em deixar minha
irmã sozinha em um apartamento em que todos tinham acesso. A prova disso
era tanto Bernardo quanto Vicente terem subido sem nenhuma permissão.
Só quando peguei o celular para ligar para Noemi, a mãe de Maitê e
amiga querida da minha mãe, percebi que não o liguei desde que deixei a
empresa e resolvi que merecia aquele tempo. Bastou ativá-lo para
notificações apitarem sem parar na tela. Mensagens de Fernando e Bernardo,
estas eu ignorei, e diversas ligações.
Preferi cumprir com o planejado e liguei para Noemi. Nós nos
falamos praticamente todos os dias desde que minha mãe deu entrada no
hospital. Ela queria notícias e se colocava à disposição para ajudar, então
aceitei. Bastou uma ligação rápida, notícias sobre o estado da minha mãe e o
pedido meio sem jeito para que tudo ficasse resolvido.
Carlos nos levou até nosso antigo endereço, aguardou enquanto eu
subia com Bruna, conversava com Noemi sobre a situação e o quadro da
minha mãe e em menos de meia hora seguíamos em direção ao escritório.
Aproveitei e retornei a ligação de Fernando.
— Laura, o que aconteceu? — ele disse preocupado.
— Esqueci o celular desligado, desculpe. Como estão as coisas?
— Loucas.
Meu amigo suspirou com pesar.
Ao fundo, eu ouvia barulho de pessoas e trânsito. Ele estava na rua.
Claro, já estávamos fora do horário de expediente, o que eu podia esperar?
— E sua mãe?
— Bem melhor. Alguma novidade?
— Sim. Juliana confessou.
Ele hesitou, como se esperasse que eu fizesse a pergunta chave,
porém, diante do que eu estava prestes a confirmar, não encontrei minha voz.
Uma lágrima escorreu pelo meu rosto enquanto eu encarava o trânsito do
lado de fora. Doía como se cada pedaço do meu coração se despreendesse e
partisse.
— Laura?
Precisei limpar a garganta para continuar a conversa, e não por
coragem, se dependesse desta eu teria desligado, descido do carro e
caminhado pela cidade agitada, qualquer coisa que me afastasse do que
aconteceria no instante em que Fernando confirmasse meus temores.
— Oi! — Enxuguei a lágrima, mas outras desciam de forma
incontrolável.
— Como eu te disse, Juliana confessou. A justiça expediu o mandado
de prisão. Acredita que a garota acreditava que colocou sonífero na água que
sua mãe beberia? Ela disse que não achou que fosse nada grave porque já fez
o mesmo com Sabrina e…
— Sabrina? Ele teve coragem de atentar contra Sabrina?
Levei a mão ao peito e recordei o incidente da piscina, quando os
exames apontaram a existência de soníferos no sangue de Sabrina. Bernardo
jurou que não encontrou o remédio no quarto da irmã e eu acreditei. Como
fui ingênua! Novas lágrimas desceram e me obrigaram a fungar. Eu não
queria que Fernando soubesse que eu chorava, entretanto, não sabia como
evitar.
— Pois é, mas confesso que não me deixa surpreso — ele disse com
certo desinteresse.
— Como não? Eu estou… aterrorizada!
— Imagino. — Ele suspirou. — Enfim, no celular da Juliana a
delegada encontrou diversas conversas comprometedoras e que
confirmavam tanto o caso entre eles, quanto o plano que levou ao
envenenamento da sua mãe.
Fechei os olhos com força e sufoquei um soluço. Tinha raiva de mim,
da minha inocência, de todas as vezes que permiti que aquela família me
passasse para trás. Se eu pudesse voltar no tempo teria vendido tudo e
desaparecido com o dinheiro. Sim, porque aqueles dois não mereciam o que
o Sr. Quaresma construiu, então abrir mão de cumprir com a vingança dele
não era uma opção.
E como Bernardo pôde dizer que estava apaixonado por mim, me
iludir com a sua falsa verdade, com confissões sobre suas intenções,
enquanto mantinha um caso com Juliana e a envolvia naquele plano
diabólico, tudo para fazer comigo o que um dia Sabrina fez, me deixar sem
nada e sozinha, passada para trás mais uma vez por um Quaresma.
Eu os odiava. Odiava tanto que naquele momento eu queria colocar
uma bomba na empresa e jogar tudo pelos ares. Queria reunir meus
advogados e solicitar que minha parte fosse vendida para qualquer pessoa
desde que não tivesse o sobrenome Quaresma.
— Ele tem que ser muito burro para tratar de algo deste teor por
mensagens — resmunguei no auge da minha dor.
— Bom… também não me surpreende.
— Não é possível que tenhamos visões tão diferentes, Fernando! —
rebati, disposta a arrumar qualquer briga que me tirasse daquela dor.
— Isso não importa agora, Laura. A polícia esteve lá na empresa
porque não conseguiu encontrá-lo em nenhum dos endereços informados,
por isso a partir de agora ele é um foragido.
— Foragido? Como não o encontraram? Quando saí, ele ainda estava
na empresa!
— Na empresa? — A surpresa do meu amigo me deixou
desconcertada. — Tem certeza?
— Sim, tenho. Você…
— Mas Sabrina confirmou que ele não apareceu para trabalhar hoje,
aliás, que ele deixou o hotel ontem a noite e não retornou.
— Quem? Como… espere um pouco. Como Sabrina pode confirmar
que ele não apareceu na empresa se hoje pela manhã Bernardo participou da
reunião conosco?
— Bernardo?
— Sim, ele estava na reunião e…
— Laura, espere um pouco. — Fernando me calou com urgência na
voz. — Não foi o Bernardo. Foi o Vicente.
— Vicente? — sussurrei, dividida entre o alívio e o arrependimento.
— Vicente? Você tem certeza?
— Sim. Juliana confessou tudo e Vicente desapareceu. Claro que eu
deveria imaginar que ele desapareceria. Quando ele foi até o seu
apartamento e…
Fernando falava e falava, mas eu não conseguia mais me concentrar.
Novas lágrimas banhavam meu rosto. Bernardo não mentiu? Ele não atentou
contra a minha mãe? Ele não tinha um caso com a empregada da mansão?
Deus, como um coração suporta tantas reviravoltas? Como em um espaço
tão pequeno cabe sentimentos imensos e inúmeros, todos ligados ao amor, a
felicidade, ao alívio em saber que ele não mentiu para mim.
— Laura?
— Oi! — Desta vez não escondi o choro, nem a alegria que aquela
notícia me levava. Fernando suspirou.
— Eu sei. Apesar de Vicente estar foragido, a melhor notícia do dia
foi Bernardo não ser o culpado.
— Você também acha? — funguei e ele riu com vontade.
— Por você? Sim, eu acho. Você está apaixonada, Laura. Ele
também. Eu ainda não gosto dele, mas tenho que admitir que Bernardo se
empenhou desta vez.
Eu ri e chorei um pouco mais. Desisti de limpar as lágrimas.
— Sim, ele se empenhou — admiti, pela primeira vez, para mim
mesma aquela verdade.
— Agora precisamos tomar algumas providências. Meu pai está
preocupado. Com Vicente foragido, não sabemos o que esperar, portanto
seria bom se você e sua família tivessem maior proteção.
— Você acha que ele pode tentar…
— Eu acho que não dá para imaginar nada agora. Falei com Sabrina,
mas ela se recusou a contratar seguranças. Disse que Vicente não se atreveria
a chegar perto dela outra vez. Bernardo concorda comigo que vocês
precisam reforçar a segurança, por isso ele ficou de providenciar esta parte.
A delegada enviou dois policiais para o hospital. Onde você está?
— Quase na empresa. Deixei Bruna na casa de uma antiga vizinha
nossa. Vou pedir para Carlos buscá-la — planejei, a tensão e o medo
tomando o espaço que deveria ser de felicidade.
— Faça isso. Na empresa você estará segura, mas não saia de lá
sozinha. Eu entro em contato.
— Certo.
Quando Fernando desligou, descansei no encosto do banco de couro
e me senti esgotada. Em poucos minutos, tive uma descarga imensa de
emoções. Eu queria pensar em como me proteger, a Bruna e a minha mãe, ao
mesmo tempo, queria fechar a porta e desaparecer por um tempo.
— Chegamos — Carlos anunciou ao constatar que eu não me movia.
— Vou acompanhá-la até o elevador.
Abri os olhos e encontrei os dele pelo retrovisor. Havia uma
preocupação real expressa em suas íris.
— Você já soube? — ele sorriu tímido.
— Essas coisas correm com o vento, Dona Laura. E eu fico muito
feliz em saber que os meninos Quaresma não possuem culpa no cartório.
Aqueles dois podem ser tudo, mas não são desajuizados. Eu trabalhei com o
Sr. Quaresma durante muitos anos, ouvia todas as queixas daquele pobre
homem, sei de coisas que eles aprontaram que a justiça descobriria — ele
riu, sem jeito. — Mas quando a mãe deles morreu, foi a sua quem ficou para
cuidar deles. Eu tinha certeza de que eles nunca atentariam contra a Sara.
— Eu tive dúvidas — confessei. — Mas fico feliz em não confirmá-
las. Você acha mesmo que Vicente pode tentar alguma coisa?
— Aquele ali nunca foi flor que se cheire, não é mesmo? Eu não sei
do que ele é capaz, Dona Laura, no entanto é melhor prevenir do que
remediar.
— Sim, com certeza.
Carlos desceu do carro e abriu a porta para mim. Eu tentei fingir que
não me preocupava, contudo foi impossível não observar ao redor em busca
de qualquer indício da presença de Vicente. Eu sempre o achei um covarde,
desses que ficavam por trás e observavam os outros se prejudicarem. E foi
desta forma mesmo que ele agiu quando convenceu Juliana a colocar o
veneno.
De maneira nenhuma pensei no Vicente como alguém capaz de dar a
cara a tapa. Se a situação fosse outra, eu poderia até mesmo apostar que
àquela altura do campeonato ele já estava fora do país, afinal de contas,
quando ele esteve no meu apartamento para contar sobre o possível caso do
Bernardo com a empregada, com certeza já sabia que chegaríamos a ela e
utilizou a minha desconfiança para desviar o foco sobre ele e desaparecer.
No entanto, diante de tudo o que aconteceu, não seria prudente
descartar uma atitude movida pelo desespero. Com Vicente como mandante
do atentado, com o caso entre ele e a empregada exposto, ele perdia tudo e
Vicente não era alguém que se contentava com nada.
Um calafrio transpassou minha coluna e arrepiou minha nuca. Olhei
para trás, assustada e encontrei a garagem praticamente vazia. Carlos se
mantinha próximo, também atento. Ele me passou confiança com o olhar e
me guiou até o elevador.
— Fique tranquila. Os seguranças estão cientes da situação e estão
acompanhando tudo pelas câmeras.
— Obrigada, Carlos. De verdade.
— É um prazer servir a senhora — ele disse enquanto a porta se
fechava e me prendia na solidão do espaço.
“O amor é o carinho
É o espinho que não se vê
Em cada flor”
O velho e a Flor - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 34
LAURA

— Ilma?
Eu me assustei quando entrei no meu setor e dei de cara com a senhora que
cuidava de tudo para que minha passagem pelo grupo não fosse um desastre.
— Ainda aqui?
— Sim — ela confirmou com um tom preocupado. — Eu tentei te
ligar, mas seu celular só dava caixa postal.
— Desculpe, eu desliguei para ter um pouco de paz enquanto estava
com minha mãe. Fernando me contou sobre o que aconteceu, mas pode ficar
tranquila, os seguranças estão atentos e Vicente não seria louco de tentar
entrar aqui no prédio quando a polícia está atrás dele.
— Certamente que não.
Ela me acompanhou em direção à sala, contudo, sem deixar de exalar
preocupação.
— Mas a senhora Sabrina está em sua sala — revelou. — Ela insistiu
em aguardar por você — completou ao perceber que eu interrompi meus
passos.
— Sabrina? Ela disse o que queria?
— Não. Eu tinha certeza de que o Dr. Fernando a levou para casa,
mas quando ainda tentava contato com a senhorita para saber sobre seus
planos, ela apareceu e informou que a aguardaria quanto tempo demorasse.
Eu não fazia ideia do que esperar. Sabrina tinha total liberdade para ir
até a minha sala e conversar comigo, afinal de contas ela era a presidente do
grupo empresarial em que me tornei CEO por acidente. Contudo, aquela não
era uma ocasião normal, uma reunião profissional ou um momento para
tratarmos de algum interesse do grupo.
Não tinha como me enganar e dizer que Sabrina trataria de outro
assunto, porque era mentira. Naquele dia, naquele instante e diante de tudo o
que aconteceu, só havia um motivo para ela estar ali: Vicente.
— A senhorita prefere que eu espere? — Ilma me tirou de minhas
conjecturas
— Não, Ilma. Vá para casa. Ficaremos bem.
Apesar de demonstrar receio, ela obedeceu. Ilma pegou a bolsa e
deixou o local sem nada dizer. Eu respirei fundo ao encarar a porta da minha
sala e, sem encontrar coragem, contudo, certa de que não havia como fugir
daquela conversa, entrei.
Encontrei Sabrina de costas para mim, de frente para a janela. Ela
ouviu a minha chegada e nem assim se voltou para me encarar. Fechei a
porta e, com cautela, caminhei até a metade da sala. Aguardei por alguns
segundos que se arrastaram, mas quando decidi pôr um fim naquele martírio,
ela falou.
— Acredito que esteja satisfeita.
A voz rouca indicava o choro recente. Sabrina não se moveu, não me
olhou, encarava algum ponto do lado de fora do escritório, na rua
movimentada. Coloquei o celular sobre a mesa e me apoiei nesta, ciente do
quanto difícil seria aquela conversa.
— Em descobrir quem atentou contra a minha mãe? Sim, estou
satisfeita. Mas não por completo, afinal de contas, Vicente, de maneira
conveniente, desapareceu.
— O que quer dizer com isso?
Ela se virou em minha direção, o corpo todo em alerta, os olhos
vermelhos e inchados, ainda assim, cheios de raiva e mágoa.
— Não sei, Sabrina. Diga você o que deveria significar, afinal de
contas, Vicente é seu marido.
Ela estreitou os olhos em minha direção.
— Isso lhe dá muito prazer, não é mesmo? A vingança que você
sempre sonhou por ele ter me preferido a você.
Eu ri, mesmo que sem qualquer vontade.
— Não vou dizer que nunca desejei que você conhecesse a versão
escrota do Vicente, mas daí a sentir satisfação por acontecer com o risco de
morte da minha mãe… — Meneei a cabeça e dei um sorriso escroto. — Não,
eu não sou como você, Sabrina.
— Eu nunca atentaria contra a vida da Sara — Ela se alterou diante
da acusação. — Nunca atentaria contra a vida de ninguém. Você me
conhece, Laura!
— Conheço? Porque durante um tempo acreditei que você fazia parte
do plano, afinal de contas, tramaram para tirar a herança de mim, através do
amor do Bernardo ou da sedução do Vivente, até que ele resolveu
acrescentar a amante na história.
Ela se afastou como se eu tivesse lhe atacado com uma espada.
Ferida e magoada. Os olhos injetados em mim. Lágrimas rolaram pelo rosto
transtornado.
— Até onde todos sabemos, foi você quem ele procurou ontem à
noite — ela acusou.
— Ah, claro. Então você manda o seu marido atrás de mim para
roubar a herança e eu sou a culpada?
— Eu não o mandei. Jamais modificaria a configuração do meu
casamento, Laura. Você não é nenhuma garota inocente, sabe que eu nunca
pediria ao Vicente para te seduzir e ainda assim, o aceitou.
— Eu? Eu jamais aceitaria o Vicente de volta à minha vida e você
deveria ter esta certeza — rebati com ímpeto, completamente fora da posição
que acreditei que me manteria naquela conversa.
— Então vai me dizer que não o beijava quando Bernardo os
surpreendeu?
— Ele me beijou!
— Coitadinha.
Meu rosto esquentou de vergonha e de raiva. Em qualquer outra
circunstância, eu jamais permitiria que Vicente me beijasse, mas quando
aconteceu, julguei que aquele era o caminho para agilizar o processo e me
ver livre daquele drama.
— Confesse que alimentou durante todos esses anos, o desejo de
roubá-lo de mim para se vingar — ela disse, mais forte, mais segura, se
aproximando de mim como se estivesse pronta para a luta.
— Não seria uma má ideia, já que você o roubou de mim primeiro —
disparei.
— Eu sabia, sua… usurpadora!
Sabrina não me deu tempo para reagir a sua explosão. Em segundos,
meu rosto queimou com o tapa estalado e o choque me congelou no lugar.
Até que a minha indignação cresceu dentro de mim e, sem me reconhecer,
me vi devolver o tapa, para em seguida avançar sobre ela com um grito
felino.
— Sua cretina! Eu te odeio! — esbravejei enquanto me engalfinhava
com aquela que um dia foi minha melhor amiga, em uma mistura de tapas,
puxões de cabelo e unhadas.
Em algum momento daquela briga constrangedora, caímos no chão,
rolamos, trocamos mais tapas, prendemos os dedos nos fios de cabelo
embaraçados, e durante todo o processo eu me perguntava porque ali,
naquele momento, naquela situação.
Quando Sabrina tirou Vicente de mim, minha única vontade era de
desaparecer. Doeu de tantas formas que não houve energia em mim para
atacá-la. Em uma porrada só, perdi o noivo e a melhor amiga, então foi
como se meu mundo funcionasse pela metade e eu precisasse me ocupar em
reconstruir a outra parte que faltava.
Mas daquela vez, todo o meu sistema de defesa me jogou contra
Sabrina. Por mais que ela também me machucasse, eu me libertava a cada
tapa. E, apesar disso, toda a cena me parecia ridícula, descabida, sem
propósito. Talvez por isso não tentei mais acertá-la e, após ter certeza de que
conseguiria, a afastei de mim com força, obrigando-a a ocupar o outro lado
da sala.
Nenhuma das duas falou. Nós nos encarávamos com todo o tipo de
sentimento: raiva, mágoa, dor… A respiração pesada, uma bagunça digna de
filme de terror. Minha pele ardeu nos lugares onde ela conseguiu me
arranhar, automaticamente, procurei pelos machucados que fiz nela e quando
os encontrava, me encolhia, sem acreditar que fui capaz de algo como
aquilo.
E, como se o universo tivesse orquestrado aquela confusão,
começamos a chorar, desarmadas, trêmulas. Eu me afastei ainda mais, toda a
explosão de sentimentos se transformando em outra necessidade, e então eu
não consegui mais me segurar.
— Você era a minha melhor amiga — acusei. — Como pôde fazer
isso comigo? Eu confiava em você mais do que em qualquer outra pessoa
deste mundo.
A cobrança que de maneira alguma tive coragem de fazer, atingiu
Sabrina mais do que qualquer tapa que eu lhe dei naquela noite. Ela se
encolheu, os olhos abandonaram a raiva e refletiram a vergonha que busquei
durante todos os anos que se passaram desde que nos afastamos.
— Você sabe o que aconteceu, Laura. Acha mesmo que não sei o que
vocês fizeram?
— Do que você está falando?
— Vicente me contou quando se apaixonou por mim. Quer dizer…
Ela desviou o olhar, passou a mão na testa e fechou os olhos com
raiva.
— Quando ele me fez acreditar que me amava — concluiu.
— Eu não sei do que você está falando, Sabrina, mas com certeza já
se deu conta de que, o que quer que seja, provavelmente partiu apenas do
Vicente. Ele nunca prestou.
Ela concordou sem abrir os olhos e seu choro ganhou a entonação de
dor. Sem conseguir se conter, Sabrina se arrastou até o sofá e, após se abrigar
nele, escondeu o rosto entre as mãos, permitindo-se extravasar. Sem me
entender ou encontrar dentro de mim o motivo para me condoer com o
sofrimento da minha ex-amiga, caminhei até o sofá da frente e sentei, pronta
para acudi-la quando precisasse.
— Eu fui tão burra — ela comentou entre soluços. — Fui tão idiota!
Quando ele apareceu lá em casa na primeira noite, com a desculpa de que
vocês brigaram, eu pensei que estava te ajudando. Então as visitas ficaram
mais frequentes, Vicente desabafava comigo, contava coisas que… não
parecia com você, mas ele era persuasivo e eu acreditei no sofrimento que
demonstrava.
— Ele fingiu para você que não estávamos bem?
— Ele me contou que você o pediu para me seduzir e dessa forma
conseguir arrancar algum dinheiro de mim.
— Eu?
Levantei do sofá como se este me pinicasse. Em segundos, meus
sentimentos ficaram confusos outra vez, a pena evaporou e a raiva ardeu em
minhas veias. Odiei Vicente, contudo não mais do que já o odiava, uma vez
que aprendi a esperar tudo dele, mas Sabrina… ela era a minha melhor
amiga, me conhecia desde menina, era minha confidente, quem conhecia
cada detalhe da minha vida, como pode acreditar que eu seria capaz de tal
coisa?
— E você preferiu acreditar nele, uma pessoa que mal conhecia —
acusei.
— Você se afastou, Laura. Quase não aparecia e ele… Vicente sabe
como convencer uma mulher a fazer o que ele quer. Uma prova disso é ter
envolvido aquela menina no envenenamento da sua mãe.
— Eu estava estudando, cuidando da minha irmã! Você sabia de tudo
e ainda assim preferiu acreditar nele? Por que não me confrontou? Por que
preferiu se atirar nos braços de um cara que não fez nada para conquistar a
sua confiança?
— Porque eu me apaixonei! — ela gritou, tão desesperada quanto eu.
— Eu me apaixonei — confessou em um tom mais sofrido. — E acreditei
que ele também me amava. Essas coisas acontecem, não? Durante todos
esses anos nunca cogitei a hipótese de Vicente mentir ou me manipular, até
que… Até que eu surtei naquele dia na piscina e os exames apontaram a
presença de remédios para dormir. Eu não tomo remédios para dormir. Ele
fez de tudo para me convencer de que vocês estavam tentando me
enlouquecer. Só que desta vez…
Sabrina olhou para os lados, como se finalmente se desse conta de
tudo o que o marido era. Ela levou a mão aos lábios, horrorizada, fechou os
olhos e negou os pensamentos.
— Eu sempre soube que ele adorava a vida fácil que tinha ao meu
lado, o dinheiro… mas fazer o que ele fez? Meu Deus! Como fui burra! Eu
deveria tê-lo impedido quando desconfiei, mas paguei para ver. Então
Bernardo me contou sobre o beijo que flagrou, a maneira como Vicente se
comportou. Eu não quis acreditar. Não quis! Só que não havia mais como
negar os fatos. Eu o mandei embora — explicou com a voz carregada de
choro outra vez. — Se não me sentisse tão instável emocionalmente, teria
chamado a polícia, alertado sobre minhas desconfianças, no entanto, até o
último momento, não acreditei que Vicente fosse capaz de algo tão…
horrível. Quando eu disse a ele que queria o divórcio foi, por causa do que
Bernardo me contou, da mágoa por saber que ele não pensou duas vezes
antes de correr atrás de você outra vez. Eu me senti tão… nada.
Assistir a dor de Sabrina não me deu qualquer orgulho, pelo
contrário, me partiu em muitos pedaços. No fundo eu entendia que Sabrina
era uma garota insegura, que se esforçava ao máximo para conseguir a
atenção e o reconhecimento dos pais, depois da sociedade e em seguida, das
pessoas envolvidas com as empresas. Apesar de toda a sua postura altiva,
aquela ainda era a garota que não se sentia amada.
Minhas lágrimas voltaram a cair quando relembrei as conversas que
eu tinha com Vicente, de tudo o que contei a ele sobre Sabrina, as suas
fraquezas e o que ela buscava. Eu dei a ele tudo o que precisava para
construir aquele plano. Vicente queria a vida que Sabrina podia lhe
proporcionar, mas ele só conseguiria isso se eliminasse da vida dela todos
aqueles em quem ela encontrava apoio. Por isso a mentira sobre mim, por
isso o ódio dela pela minha família.
Enxuguei as lágrimas e me sentei outra vez no sofá. Nós nos
encaramos. Não havia mais resistência de nenhuma das partes e eu não tinha
mais qualquer vontade de continuar aquela briga. Tive pena de Sabrina, de
mim, de Juliana, e muita raiva do Vicente por ele ter atentado contra a minha
mãe só para garantir que ficaria com o dinheiro. Para aquele homem, nada
mais importava, nem mesmo a vida da mulher que o recebeu como um filho,
que acolheu suas dores, cuidou das suas feridas. Vicente não era humano e
ninguém merecia estar na sua mira.
— Eu pensei que ele estava com você — ela sussurrou, fragilizada,
uma sombra da mulher que era. — Pensei que vocês tramaram para me
incriminar.
— Você acha mesmo que eu envenenaria a minha mãe?
— Ah, Laura, eu nem sei mais o que achar. Foram tantas teorias
enquanto eu sofria sozinha naquele quarto de hotel. São tantos pontos — ela
suspirou com pesar. — Eu me fiz de idiota muitas vezes quando ignorei os
empregados da casa e as fofocas sussurradas pelos cantos. Eles falavam
sobre vocês dois, de como ficavam quando alguém entrava em algum
cômodo em que estavam sozinhos.
Sabrina deu uma risada cheia de escárnio.
— Eu me convenci todas as vezes de que você tentava seduzi-lo
quando encontrava oportunidade, e de que Sara sabia e acobertava, por isso
convenceu meu pai a te contratar.
— Que absurdo, Sabrina! — resmunguei ao limpar as lágrimas. —
Ele me perseguia, me agarrava pela casa sem medo algum. Eu o afastava.
Nunca quis o Vicente de volta. E ainda que o quisesse, como pode cogitar a
ideia de eu aceitar que ele envenenasse a minha mãe?
Outra vez nos encaramos como se precisássemos disso para nos
assegurar da veracidade das minhas palavras. Ela limpou as lágrimas, fungou
e continuou com suas justificativas.
— A dosagem foi pequena. Vicente sabia o que estava fazendo. Ele
não quis matar Sara, quis te fragilizar. E, claro, a burra aqui deu todas as
cartas para que ele executasse. Eu disse a ele que precisávamos te fragilizar
para que você aceitasse Bernardo em sua vida. Só não imaginei que ele…
— Eu deveria acertar a sua cara por isso — rosnei. Sabrina nem se
abalou.
— Quando Bernardo me contou o que viu, tudo o que pensei foi que
vocês se juntaram para me tirar de cena. Lógico! Você me odeia e tem toda
essa história da herança que… sinceramente, em que realidade isso
aconteceria? Vicente sendo quem é, escolheria você e o poder que meu pai te
deu.
— Foi por isso que ficou amigável? — disparei, o azedume evidente
em minha voz.
— Eu precisava fazer com que todos acreditassem em mim. Não
deixaria que vocês me incriminassem pelo que aconteceu com Sara. De
ontem para hoje, eu só pensava em descobrir como vocês agiram e entregá-
los à polícia. Até que… até que vocês descobriram a Juliana e em seguida a
polícia descobriu o caso dela com o Vicente. O resto todo você já sabe.
Levantei outra vez, fui até a janela, encarei a cidade do alto, todas as
pessoas que caminhavam apressadas. A confissão de Sabrina fresca em
minha mente, a raiva por Vicente avivada a cada segundo. No final das
contas, éramos tão vítimas dele quanto minha mãe e Juliana. Ele jogou com
todo mundo, manipulou para garantir que não perderia a boa vida que
construiu.
E, só depois de chegar a esta conclusão, entendi o motivo para o Sr.
Quaresma fazer o que fez. Se Sabrina assumisse as empresas após a morte
do pai, Vicente daria um jeito de acabar com tudo, de tomar das mãos deles
o que meu ex-patrão construiu com tanto esforço. Respirei fundo e, pela
primeira vez desde que tudo mudou, eu me senti leve. De uma forma
horrível, Vicente facilitou o meu processo. Eu não precisava mais mentir,
nem me manter naquela confusão, não precisava esconder a verdade de
todos.
Restava apenas torná-los cientes e depois… viver.
— Eu preciso que você saiba de uma coisa — comecei com a voz
baixa, disposta a eliminar de uma vez por todas aquele peso.
“Tantas você fez que ela cansou
Porque você, rapaz
Abusou da regra três
Onde menos vale mais”
Regra Três - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 35
SABRINA

Outras lágrimas caíram ao me deparar com todo o absurdo que me permiti


viver naquelas últimas horas. Eu que precisei me endurecer após as pancadas
que a vida me deu, quando perdi minha mãe e quando sofri por acreditar que
Laura e Sara tentaram me aplicar um golpe, não chorei quando mandei
Vicente embora. Nenhuma lágrima derramei até ele finalizar os gritos e bater
a porta.
Só então desabei. A dor da traição outra vez me destruiu e, como se
não bastasse, outra vez por Laura, dessa maneira acreditei. Quando consegui
levantar do chão, humilhada, enlouquecida, procurei a certidão de casamento
para me assegurar de que Vicente não deu um jeito de mudar o que ficou
acertado no papel.
Divisão parcial de bens, era o que dizia. O primeiro suspiro foi de
alívio, o segundo de tristeza. Ele não colocaria as mãos no que era meu,
ainda assim, nos anos em que ficamos casados, fiz todas as vontades do meu
marido, confiei nele e em tudo o que ele sugeria como investimento,
aumentei a minha fortuna, logo, garanti a dele. Aquele cretino teria dinheiro
e saúde para usufruir com Laura.
Eles conseguiram, afinal. Ficariam com quase tudo e me
humilhariam pelo restante da vida. Ririam de mim enquanto se apropriavam
do que pertencia a minha família. Então me dei conta de tudo o que Vicente
tinha para me tirar de cena, e, juntando com a raiva que Laura nutria por
mim, não deixariam de dar a cartada final.
Desta forma, durante toda a noite eu revivi as conversas que tive com
meu marido, a maneira como tramei para que Bernardo conquistasse a
confiança de Laura, como o instiguei a enganá-la e recuperar a nossa
herança. Vicente tinha até mesmo as minhas palavras quando afirmei que
alguma coisa precisava acontecer para fragilizar Laura e trazê-la para as
nossas garras.
E quando a verdade veio à tona, quando a delegada comunicou que
uma empregada da casa agiu a mando do meu marido, seu amante, e que
também eram responsáveis pelo ocorrido na piscina, tudo o que planejei
durante a noite caiu por terra. E eu já não sabia mais no que acreditar, em
quem confiar, no que esperar.
— Eu preciso que você saiba de uma coisa — Laura falou com a voz
segura, ainda de costas para mim, os olhos fixos na paisagem do lado de
fora.
Pela maneira como entoou as palavras, eu implorei mentalmente para
que ela não me jogasse de volta àquela confusão, que não mudasse outra vez
minhas teorias e conclusões. Baixei a cabeça e suspirei, cansada, destruída,
sem me reconhecer. Envergonhada sobre muitas coisas, fragilizada por
outras. Eu nem sabia se algum dia voltaria a fechar os olhos e dormir em paz
depois de descobrir tantas verdades em tão pouco tempo.
— O que mais eu preciso saber? — resmunguei.
Mesmo de olhos fechados ouvi os passos de Laura se aproximarem e
pararem próximos ao sofá à minha frente. Não tive coragem de olhá-la, não
tinha mais vontade de nada.
— Quando seu pai fez aquele testamento, ele sabia quem Vicente era
e do que era capaz — Laura começou, a voz séria, contudo, tranquila.
— Ele nunca aceitou o meu casamento — confessei, sem qualquer
surpresa quanto ao assunto.
Desde que houve a leitura do testamento, eu soube que meu pai se
vingou de mim por não ter atendido ao seu apelo quando decidi me casar
com Vicente. Na época acreditei que ele não gostava do meu namorado por
causa de Sara e das coisas que ela falava ao meu pai, quando ninguém estava
ouvindo. Na minha cabeça, Sara não aceitava que Vicente tivesse acesso
sozinho ao meu dinheiro, que ele frustrasse os seus planos, por isso
envenenou meu pai contra o meu relacionamento.
Eu tentei alertá-lo, falei sobre o que Sara e Laura tentaram fazer, mas
meu pai não acreditou. Porque meu pai sempre foi mais astuto do que eu.
Por mais que eu me esforçasse para ser uma cópia do que ele era, para fazê-
lo me enxergar como sua sucessora, eu não conseguia. O Sr. Quaresma
enxergava o que ninguém mais via, assimilava como ninguém conseguia.
Por isso o império que criou, o sucesso que fez, a fortuna que avolumou.
Se eu não estivesse tão decidida a provar a ele que eu sabia o que
fazia, que também era esperta, também era capaz, teria enxergado as
entrelinhas, perceberia quem Vicente era e não teria perdido as duas pessoas
que eu amava tanto. Porém, minha obstinação me cegou, o amor que eu
sentia por Vicente me modificou, me tornou uma pessoa pior, arrogante,
incapaz de me identificar com o sofrimento dos outros. Ele vendou meus
olhos e eu não fiz nenhum esforço para enxergar.
— Ele não confiava em mim. Por mais que eu me esforçasse, não
consegui ser o suficiente para ele.
— É claro que foi.
Laura tentou interferir, mas eu ergui a mão, disposta a não deixar que
ela tivesse compaixão por mim.
— Meu pai sabia que Vicente me venceria. Ele sempre soube. Eu me
esforcei para ser a pessoa de confiança do meu pai, mas esqueci de confiar
nele. Fiquei tão cega por causa do Vicente que me convenci de que precisava
fazer meu pai separar as coisas, olhar para mim como a sua melhor
substituta, como se não existisse ao meu lado uma pessoa capaz de arruinar
tudo.
— Não foi sua culpa, Sabrina.
— Foi minha culpa. Eu posso não ter percebido quem Vicente era,
mas escolhi não tentar descobrir. Meu pai ameaçou me deserdar quando
descobriu sobre o meu casamento e o que eu fiz? Não me importei. A
maneira como ele esbravejou só me convenceu do que Vicente dizia, que
meu pai não pensaria duas vezes antes de atirá-lo na rua, na sarjeta, quando
tivesse oportunidade, dessa forma tratei de garantir que isso não aconteceria.
— Você é vítima de um homem desumano — ela tentou outra vez.
— Não. Eu sou burra, mas não sou vítima.
— Isso não importa mais agora — Laura disse sem titubear.
— Tem razão
— Seu pai se assegurou que acontecesse como ele desejava. Ele
garantiu o que você não foi capaz.
— Tem razão — repeti, cada vez mais deprimida, porém, disposta a
aceitar o que ela me dissesse. Eu merecia.
— Por isso ele me pediu para só lhe devolver a sua parte da herança
quando você estivesse divorciada do Vicente — ela revelou.
De súbito ergui a cabeça e a encarei em choque. Cheguei até mesmo
a acreditar que me enganei, que não ouvi ou entendi o que Laura dizia.
— Ele pediu? — questionei ainda em dúvida quanto aquela
realidade.
— Pediu.
— Como assim, ele pediu?
— Eu também não sabia. Fiquei tão surpresa quanto vocês na leitura
do testamento. Mas quando saíram, Fernando e o pai conversaram comigo e
me entregaram uma carta. Era do Sr. Quaresma.
Laura levantou e foi na direção da mesa. Eu acompanhava seus
passos com os olhos, ainda presa entre acreditar que não compreendia o que
ela me dizia e acreditar que sim, meu pai seria capaz de algo do tipo.
Quando Laura me entregou a carta, meus olhos voltaram a ficar
úmidos. Reconheci a letra do meu pai, a caligrafia que se inclinava para o
lado direito, as letras que seguiam juntas uma à outra e às vezes se
embolavam. Funguei sem disfarçar ao me dar conta de que sim, meu pai fez
aquilo. E, apesar da frustração por confirmar que não trilhei o caminho certo,
havia alívio em mim por saber que mesmo após a morte, o Sr. Quaresma, o
homem que durante anos acreditei ser duro demais, frio em demasia para
com os filhos, sempre esteve certo em relação aos meus erros.
— Leia — Laura pediu. Eu concordei sem nada dizer.
Com as mãos trêmulas, ciente de que ali estava a confirmação dos
meus erros, não me acovardei. Abri a carta e iniciei a leitura.

“Laura, querida, perdão por fazer isso com você, mas me vi sem
saída quanto ao que fazer para salvar o que construí a tanto custo para os
meus filhos. Como bem sabes, tenho medo do que acontecerá quando eu não
estiver mais aqui para controlá-los e garantir que continuem tendo todas as
oportunidades que um dia sonhei para cada um deles.
Tive a sorte de tê-la como ouvinte nesses anos em que cuidou de mim
com tanto carinho e compreensão. Perdoe-me por sobrecarregá-la com as
minhas queixas, e, mais uma vez, perdoe-me por colocá-la nesta situação.
No momento, não conheço pessoa mais íntegra em quem eu possa confiar
este pedido, e também, outra vez me desculpo por utilizar esta artimanha,
alguém que possa causar o impacto que espero causar em meus filhos, que
não seja você.
Eu sei que enquanto lê esta carta, está assustada. Eu ficaria em seu
lugar. Mas, acredite, fiz de tudo para que consiga atender esse último pedido
deste seu velho amigo.
Vamos aos fatos, pois se está lendo esta carta é porque eu já não
estou mais neste mundo.
Sabrina deveria me suceder, ela é a melhor gestora que já conheci e
eu sei que minha filha irá além do que eu fui. Tenho muito orgulho disso.
Mas ela não conseguirá enquanto for casada com o Vicente. Você conhece
esse rapaz, sabe o que ele já fez e do que é capaz de fazer para tirar o
máximo desta relação. Por isso, não posso deixar que Sabrina assuma as
empresas enquanto for casada com ele.
Não sei como você conseguirá fazer o que eu em momento algum
consegui, abrir os olhos da minha filha, mas eu te peço, Laura, aguente o
que for necessário, mas não permita que Vicente tenha mais nada de
Sabrina.
Caso ela nunca concorde, e eu temo que a teimosia e o orgulho de
Sabrina a cegue ainda mais para esta realidade, fique com o que lhe ofereci.
Eu prefiro que meu trabalho passe para as mãos de pessoas dignas, que
podem aprender e continuar com o lado humano do grupo, do que perder
tudo para um golpista que assim que conseguir o que quer, abandonará a
minha filha.
Se você conseguir, se Sabrina abrir os olhos e afastar esse rapaz
desta família, devolva a ela 20% dos cinquenta que te deixei, assim como o
comando das empresas.
Eu sei o que você está pensando, Laura. Mas, por favor, acredite
quando eu te digo que ninguém mais em todo este grupo empresarial, terá a
capacidade de Sabrina. Minha filha herdou a minha sagacidade para os
negócios. Com Sabrina à frente do grupo, o nome Quaresma continuará por
mais uma ou duas gerações.
E quando isso acontecer, quando você puder revelar finalmente a
Sabrina o que fiz e o porquê, não se esqueça de pedir para que ela me
perdoe. Eu sou apenas um pai que nunca conseguiu evitar os cuidados para
com ela. Diga que eu a amei em todas as etapas. Que mesmo com as
decepções, meu amor não diminuiu. Eu não sei o que acontece após a vida,
no entanto, um pai pode acreditar que um amor como esse transcende, não
acaba como o corpo, não se desfaz como a vida. Eu continuarei amando-a
independente de onde esteja.”

Havia mais na carta, contudo, essa parte, me obrigou a fazer uma


parada providencial. Novas lágrimas caiam e eu não conseguia mais conter
os soluços.
A vida era ardilosa em suas lições. Talvez meu pai tenha esperado
demais para me dizer aquelas palavras e quando se viu lutando contra o
tempo, não podia mais dizê-las. Talvez eu tivesse me afastado demais,
relutando como uma criança para ter suas vontades atendidas, e com isso,
acreditei que teria tempo para declarar o meu amor, para dizer que cada
passo que dei foi em busca do seu orgulho. E por isso, pelo meu ego e pela
necessidade do meu pai de me fazer aprender, perdemos aquela
oportunidade.
— Você está bem? — Laura sussurrou ao sentar ao meu lado.
Por um segundo esqueci das nossas desavenças, das diferenças que
nos afastaram, de tudo o que fiz a ela. Balancei a cabeça em negação,
implorando para que ela me ajudasse a conter aquela dor. E Laura, que
sempre foi alguém melhor do que eu, não precisou do meu pedido. Ela me
abraçou e permitiu que eu chorasse em seu ombro, como fizemos tantas
vezes antes de Vicente destruir a nossa amizade.
E eu entendi que não deveria acreditar no tempo, confiar nos dias.
Não havia uma segurança no amanhã, nem certeza da hora seguinte. Eu não
podia mais me esconder atrás do muro que construí para me fazer ser ouvida,
não podia nunca mais deixar meu orgulho me cegar, minha carência me
entregar de bandeja para quem nada queria de mim além do meu status.
Aquela era a minha vida e eu precisava assumir as rédeas. Sem esperar por
nada, sem permitir que a ilusão do tempo criaria as oportunidades. Não seria
uma nova Sabrina, mas a que um dia calei dentro de mim. Ela era muito
melhor do que a que eu me tornei.
Por isso, sem aguardar pelo segundo seguinte, abracei Laura com
força, e sussurrei em seu ouvido:
— Me perdoe.
Ela não me respondeu, mas a maneira como relaxou em meus braços
e me acalentou, tirou da cena toda a necessidade de palavras. Era disso que
eu precisava, do milagre, da nova chance que a vida não dava, mas que,
ironicamente, me ofertava naquele momento. E eu a agarraria com toda a
minha força. Nunca mais me roubariam de mim.
“E que me salta aos olhos a me atraiçoar
E que me aperta o peito e me faz confessar
O que não tem mais jeito de dissimular
E que nem é direito ninguém recusar”
O que será - Vinícius de Moraes / Tom Jobim.

CAPÍTULO 36
LAURA

Abri a porta do apartamento e sentei no sofá na sala escura. Só então me dei


conta do quão solitária eu me sentia naquele momento. Confesso que quando
liguei para Noemi e avisei que buscaria Bruna, fiquei aliviada ao ouvi-la me
pedir para que minha irmã passasse a noite com elas.
Ainda que a nossa antiga vizinha morasse em um prédio simples,
inspirava mais confiança do que aquele apartamento que ocupamos depois
do atentado contra a minha mãe. Além disso, ninguém sabia onde Bruno
estava, o que me dava ao menos uma noite sem o peso do medo.
Seria perfeito o esquema improvisado se eu não estivesse tão abalada
pela conversa com Sabrina. Em nenhuma realidade projetada por mim, me vi
abraçada com ela outra vez. Por isso, até aquele momento, eu não fazia ideia
do quanto senti falta dela.
Se alguém um dia sugerisse aquela possibilidade, a mágoa que
habitava em mim refutaria a ideia, mas… Caramba! Não houve sabor ao
assistir Sabrina quebrada por causa do Vicente. Nem sequer a sensação de
vingança. O único sentimento em mim era o de tristeza e culpa.
Não há como fugir da culpa, ainda que houvesse consciência em mim
de que nada fiz. No entanto, desde que Sabrina se desarmou na minha frente,
eu me castiguei com a ideia de que fui eu quem levou o Vicente e o coloquei
na vida dela. Eu que namorava um cara sem escrúpulos, fui incapaz de
reconhecer os sinais e com isso desajustei a vida de muitas pessoas.
Porque Vicente destruiu Sabrina, atentou contra a minha mãe,
colocou a coitada da empregada na cadeia. Quantas pessoas mais cairiam por
que não identifiquei quem ele era antes?
Suspirei com pesar e segurei as lágrimas. Não queria chorar por
causa do Vicente, nem permitir que a lástima me abatesse uma vez que o
único criminoso naquela história era ele. Vicente era a pessoa que merecia se
lamentar por toda aquela confusão. Era quem deveria sofrer as
consequências dos seus atos. Não eu, nem Sabrina, e definitivamente, não a
minha mãe.
Aborrecida, me coloquei de pé para tomar um banho, jantar e me
deixar contaminar apenas pelas coisas boas. A polícia sabia dos crimes do
Vicente e estava à procura dele. Logo não teríamos mais que temer qualquer
atitude insana dele. Porém, no instante em que tomei coragem para reagir, o
interfone tocou.
Intrigada, atendi, com um misto de medo e curiosidade. Vicente com
certeza não apareceria, pois seria reconhecido pelos funcionários, e os
irmãos Quaresma não interfonariam. Quem poderia ser? Eu me questionei ao
tirar o aparelho do gancho e me surpreendi ao ouvir que Bernardo pedia
autorização para subir.
— Bernardo? Tem certeza?
O rapaz do outro lado da linha pigarreou antes de falar.
— Sim, senhora. Bernardo Quaresma.
— Hoje vocês interfonam? — reclamei, mas de imediato percebi que
de nada adiantaria reclamar, uma vez que eu queria que continuassem
anunciando a entrada de qualquer pessoa.
— Desculpe, senhora. Mas os seguranças foram taxativos em relação
à necessidade de anunciar qualquer visitante para a senhora.
Revirei os olhos. Precisou que um crime acontecesse para que eles
cumprissem com uma regra existente em todo e qualquer edifício.
— Tudo bem. Eu receberei o Bernardo.
O rapaz desligou. Por impulso corri até o banheiro e conferi minha
imagem. A cara de cansada não havia como arrumar, e eu tinha todos os
motivos para não me envergonhar disso. Então me dediquei a melhorar o
aspecto do meu cabelo, em seguida, com uma preocupação ridícula, conferi
meu desodorante, borrifei um pouco de perfume nos pulsos e atrás das
orelhas, só para me sentir ridícula. Claro que Bernardo perceberia que eu me
perfumei. Quem neste mundo chega ao final de um dia desastroso, com o
perfume renovado?
— Meu Deus, Laura! Você é absurda!
A campainha soou. Eu me encarei no espelho, nada satisfeita com a
minha imagem. Porém não havia tempo para ajustar nada.
Um frio incomum brincou em meu estômago. Bernardo mexia
comigo até antes de eu me descobrir apaixonada. Ele me fazia querer coisas
que há muito não desejava. Contudo, o sentimento que me dominou
naqueles segundos em que demorei para caminhar até a porta e recebê-lo
era… confuso.
— Respire — sussurrei parada a um metro da porta. — Céus!
Acordei com ódio dele, sofri parte do meu dia por me apaixonar por um
homem que, eu acreditei, foi capaz de fazer mal a minha família, terminei a
tarde aliviada por saber que Bernardo era inocente e agora…
A campainha soou outra vez e me impediu de encontrar a definição
correta para aquilo que se agitava em meu estômago. Ainda sem me sentir
pronta, abri a porta e encarei Bernardo. Nunca antes ele me pareceu tão
bonito. Com o cabelo molhado e roupas casuais, ele se assemelhava a um
príncipe encantado - a minha versão de príncipe encantado.
Porém, o abalo ao encará-lo e me encantar com a sua presença nunca
antes tão avassaladora, atingiu apenas a mim. Bernardo não sorriu, não
brincou, não demonstrou a paixão que jurou sentir por mim na noite anterior.
Foi o suficiente para me desestabilizar.
— Bernardo — eu disse baixo, inquieta, tão enfraquecida pela frieza
dele que me esforcei para não chorar.
— Laura.
A voz fria e distante transformou a sensação no meu estômago em
uma pedra.
— Sabrina me contou sobre a carta.
Direto. Sem interesse por mim, pelo meu dia, minhas dores.
Respirei fundo, de repente, atenta a tudo o que acontecia entre nós e
dentro de mim. E chegar a uma conclusão doeu como não imaginei ser
possível. Bernardo se aproximou de mim para tentar roubar a herança, mas
Sabrina contou a ele sobre a carta, logo, não havia mais porque se esforçar
para me conquistar.
Sem conseguir equilibrar os sentimentos, saí da frente para que ele
pudesse passar. Bernardo entrou no apartamento como um estranho. Ele
olhou ao redor e parou no meio da sala. Não sentou. Cada atitude dele me
atingia como flechas envenenadas. Fechei a porta, mas me mantive distante.
— Eu posso ler a carta?
Incapaz de controlar a sensação horrível de perda, concordei sem
nada dizer. Caminhei até a bolsa sobre o sofá e me arrependi de ter ido até o
quarto quando cheguei. Se a bolsa estivesse sobre a minha cama, eu teria
tempo para me recuperar do abalo. Mas tudo o que tinha eram os parcos
segundos em que poderia me manter de costas para ele até precisar me virar
outra vez e encarar a minha dor.
Entreguei a carta e me sentei no sofá. Eu tremia. Minhas pernas
quase não conseguiam me sustentar, por isso sentei na presença dele quando
queria apenas chegar ao quarto e me esconder com a desculpa de que daria
privacidade a ele. Bernardo imitou o meu gesto, mas sem qualquer reação
quanto a minha presença. Ele mantinha os olhos na carta, concentrado,
decidido a descobrir os motivos do pai.
Eu não queria, não deveria modificar aquele quadro, em especial
diante de toda a indiferença demonstrada por Bernardo. Mas, apesar da dor
que me consumia, da certeza de que nada mudaria entre nós, eu sabia que
aquela seria a minha única chance de falar. Quando Bernardo lesse a carta
nada mais teria importância, fosse por abalo quanto ao que o pai escreveu,
ou por alívio por não precisar mais lutar por algo que lhe pertencia. Então,
antes mesmo que eu reunisse toda a minha força para ter uma conversa curta,
mas necessária, eu me vi falando tudo de uma vez, de forma atropelada e em
tom de súplica.
— Eu preciso te pedir desculpas por ter desconfiado de você — eu
disse com pressa.
Bernardo ergueu os olhos antes fixos na carta e me encarou. Engoli
com dificuldade ao me deparar com o contraste impactante do azul profundo
das íris com a vermelhidão das bordas dos olhos. Mordi os lábios e obriguei
o bolo em minha garganta a descer diante da realidade do sofrimento dele. E
me senti mal diante do egoísmo de me preocupar apenas comigo e com a
minha dor. Claro que ele sofreria. Como não sofrer?
Cruzei os dedos e mantive as mãos apertadas para me impedir de
confortá-lo. Bernardo não queria aquilo da mulher que mentiu, que escondeu
de todos aquele último pedido do pai, que desconfiou da sua honestidade e
caráter.
— Fernando me contou — ele disse com a voz rouca, embargada.
— Fernando?
— Ele revelou o que Vicente fez, o que falou.
— Ah!
Engoli com dificuldade outra vez, certa de que as palavras sem
emoção que ele dirigia a mim eram um reflexo da dor da descoberta sobre a
carta.
— Bom, ele…
— Não me surpreendeu, Laura — afirmou sem me deixar terminar as
desculpas.
Meus olhos ficaram marejados com a acusação nítida, e as palavras
se recusaram a sair.
— Você nunca confiou em mim. Estranho seria se não acreditasse no
Vicente.
Abri a boca para rebater, mas não encontrei argumentos, ainda que
não houvesse qualquer indício de predileção por Vicente. O problema era
que da mesma maneira como eu tinha motivos para desconfiar de Bernardo,
ele tinha para desconfiar de mim, afinal de contas, ele me surpreendeu com
Vicente antes de toda a verdade vir à tona. Eu conseguia enxergar a
inocência dele, porém assim o era apenas porque contra fatos não havia
argumentos. Nada incriminava Bernardo. A meu favor havia somente a
minha palavra.
— Eu não… — fechei os olhos e repensei o que diria. — Eu não
confiava em nenhum dos dois — admiti.
Bernardo apertou os lábios enquanto me encarava, os olhos fixos em
meu rosto. Deliberava quanto ao que me dizer e no final, optou pelo silêncio.
Com a atenção de volta a carta eu soube, não havia nada que eu pudesse
fazer para mudar aquela situação.
“Ó minha amada, que olhos os teus
São cais noturnos cheios de adeus
São docas mansas trilhando luzes
Que brilham longe, longe dos breus”
Poema dos olhos da amada - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 37
BERNARDO

A decepção que minava meus sentimentos não se dava pelo fato de Laura
desconfiar de mim. Eu fiz por merecer, afinal de contas, me aproximei dela
para conquistá-la e tomar de volta a herança que pertencia a mim e a
Sabrina. O que doía ao ponto de bloquear a vontade de estar com ela, era o
quanto Vicente ainda tinha forças sobre ela.
Sim, Laura podia negar o quanto quisesse, podia até mesmo ter plena
consciência do quanto Vicente não prestava, porém, nada disso anulava a
força dele sobre ela.
Foi desse jeito quando ele entrou em sua sala e a beijou com
promessas absurdas e sentimentos falsos. Da mesma forma funcionou
quando ela o deixou entrar no apartamento e levantar suspeitas a meu
respeito pouco depois de eu ter me declarado, ter me exposto e desnudado
para ela.
Assumi minha culpa com o risco de perdê-la para sempre, mas fui
honesto, não poupei esforços para que toda a verdade se revelasse. Aceitei
até mesmo a sua recusa e me comprometi com a espera. E o que aconteceu?
Vicente apareceu e fez com que Laura acreditasse nas suas falsas acusações.
Ela não confiava em nenhum dos dois e isso eu aceitaria sem
sofrimento. Mas não aceitaria em momento algum que ela tivesse a pior
versão do Vicente e nem isso influenciasse suas decisões. Laura sabia do que
o ex-noivo era capaz, viveu na carne a facilidade com a qual ele traía e tirava
vantagem de tudo. De mim, ela teve uma tentativa frustrada de conquista e
uma confissão. Como meus erros podiam pesar mais do que os dele?
Só havia uma explicação: Laura ainda amava Vicente. Amava. Eu
não era tolo de ignorar essa verdade. Laura não queria Vicente de volta, não
reataria o noivado, não o aceitaria ao seu lado. Contudo, nada disso anulava
o sentimento. Por isso morri aos poucos nos diversos segundos desde que
Fernando me contou a verdade, em seguida Sabrina revelou a existência da
carta e eu me vi obrigado a procurá-la.
Não estava preparado para isso. Eu queria dizer que a mágoa e o
amor próprio me firmariam na presença dela, mas não era verdade. Eu
também convivia com um sentimento tão forte que moldava minhas ações,
me tornava vulnerável. Se Sabrina não aparecesse no quarto de hotel que eu
ocupava e me contasse toda a verdade, eu não teria procurado Laura. E não
era por orgulho, antes fosse. Era por dor, desilusão, frustração.
Mas, depois de descobrir sobre a carta, sobre as motivações do meu
pai, não havia como evitar aquele encontro, então que fosse logo, rápido e
certeiro, uma única porrada ao invés de vários socos dados de tempos em
tempos. Por isso evitei falar, evitei olhá-la, queria até mesmo não precisar
ouvi-la, apesar de saber ser impossível diante de todos os acontecimentos
que nos envolveram.
Eu me calei não porque ela não merecia uma resposta, e sim porque
falar em voz alta tudo o que eu sentia só ampliaria a minha dor. E, se
continuássemos, nada de bom fecharia aquele ciclo. Eu tinha em mãos um
ponto mais importante do que minhas desilusões amorosas. A carta do meu
pai.
Corri os olhos pelo texto narrado por minha irmã. Apesar de
conhecer o conteúdo, não amenizou a minha emoção e, somado a dor pelas
conclusões a respeito de Laura, passou a existir o peso das minhas escolhas,
tão cortante e ameaçador quanto o amor. O que eu fui até ali? O que fiz?
Meu pai morreu sem a segurança que deveríamos lhe proporcionar, que eu
deveria e me neguei a dar.
Limpei as lágrimas e continuei a leitura.

“Quanto a Bernardo, sei que resmunguei muito a respeito do meu


filho. Como fugir das regras que aprendi e precisei respeitar? Como homem
antigo, alimentei a esperança de que o meu filho mais velho seguisse os
meus passos. Confesso que uma boa parte da formação do Bernardo se deu
sob a minha vigilância constante, para que ele não se desviasse e garantisse
a sua participação nas empresas.
Eu errei. Queria ter mais tempo para consertar o que fiz. Cego pelo
orgulho, obriguei meu filho a ser o que eu queria, não a encontrar as suas
próprias paixões, e assim, criei um rapaz infeliz, desinteressado,
comprometido unicamente com as obrigações impostas por mim.
Eu deveria me orgulhar quando ele me contou que queria ser
astronauta, ou investir quando ele inventou que queria ser músico. Deveria
prestar atenção ao que instigava meu filho e não refutar qualquer ideia
diferente do que planejei para ele.
O tempo passou, Laura. Todas as nossas perdas e a rapidez com que
a morte me alcançava me obrigaram a insistir. Não havia mais como voltar
atrás, acreditei. Se toda a minha rigidez não despertou em meu filho o amor
pelas empresas, nada mais o faria. Meu erro transformou o que lutei para
conseguir, em um desafio pior e mais desesperador. Bernardo não mais
encontrava paixões, não aspirava uma vida profissional, descontava o vazio
do seu interior em noites extravagantes e gastos descabidos, com mulheres
fúteis com quem não se interessava em firmar um compromisso, embora as
procurasse.
O que eu fiz? Meu filho podia ser tudo se eu o tivesse incentivado e,
por insistência minha, ele se tornou um imenso nada.
Sei que Bernardo acredita que quando o olho, reflito decepção pelo
que ele se tornou, mas não é verdade. Se eu acreditasse que mudaria alguma
coisa em meu filho, abriria o meu coração e lhe diria que a decepção que
ele enxerga em meus olhos é única e exclusivamente voltada para mim, para
a minha falha, para o que fiz com ele. Mas eu sei que de nada adiantaria
nessa altura do campeonato desfazer essa confusão.
Essa é a sua missão com o meu filho, minha querida amiga.
Preciso que Bernardo se encontre, que volte a sonhar com o universo
ou com a fama em cima de um palco. Eu preciso que meu filho tenha de
volta o brilho nos olhos de quando era uma criança. Talvez isso aconteça
quando ele olhar para o que tem, para o que é dentro do nosso grupo
empresarial, e perceba o quão importante pode ser a sua participação. Se
isso acontecesse eu descansaria em paz, pois amenizaria a minha culpa.
Mas não quero ser, nessa minha última oportunidade, egoísta.
Bernardo precisa apenas encontrar uma paixão, uma profissão que
agarre e se dedique ainda que esta lhe tire parte da facilidade que tem ao
ceder aos meus caprichos. Eu sei que não terá dificuldade com esta missão.
Bernardo é gentil e atencioso, odeia normas e rotina, é inteligente de forma
única, aprende com facilidade. Em algum momento, com o incentivo correto,
acontecerá.
O procedimento é o mesmo que ditei para Sabrina, 20% do que
destinei aos seus cuidados para que meu filho possa recomeçar sem riscos,
mas apenas quando ou se ele se encontrar. Mesmo que eu admita meu erro
ao impor a minha vontade a Bernardo, não terei paz se tudo o que construí,
acabar com farras e gastos exorbitantes, para isso os 25% que ele herdará
são o suficiente.
Quando precisar revelar a verdade a meu filho, se possível, diga a
ele que sinto muito. Que me orgulharei de qualquer coisa que ele decidir ser.
Diga que o amo com o mais puro amor que um pai pode ter por um filho e
que, como meu último desejo, há apenas a vontade de saber que ele acorda
feliz, ainda que seja uma quarta-feira.
Para você, minha amiga queria, como agradecimento e pedido de
desculpas por entregar uma missão tão árdua, peço, não, insisto, que fique
com 10%. Tenho certeza de que não aceitará, pois você sempre foi honesta,
de índole pura, trabalhadora. Porém, quero continuar a fazer o que me
ocupei durante todos esses anos, ainda que minha presença física não esteja
mais com vocês.
Cuidei de você e de Bruna por admiração, mas, em especial, por
agradecimento pelo que Sara foi para esta família durante todos esses anos.
Se não percebe que merece fazer parte dessa herança, então pense que sua
mãe merece. Aceite, eu imploro. Dê a chance de esse velho amigo partir em
paz.
Obrigado, Laura. Por tudo. Você é a leveza que todos precisam
encontrar na vida. Nunca se esqueça disso.

Joaquim Quaresma.”

Dobrei o papel com cuidado, limpei as lágrimas que desciam pelo


meu rosto e levantei, ansioso por um pouco de ar. Sem pedir autorização,
caminhei até a varanda e me ocupei em respirar, aos poucos, para acalmar
meu corpo, uma vez que minha alma demandaria um trabalho maior.
Laura não entrou em meu campo de visão. O que denunciou a sua
presença foi o leve fungar a uma curta distância de mim. Fechei os olhos,
ciente de que todas as descobertas, em um espaço tão curto de tempo,
tiveram um impacto profundo em mim. Eu teria que lidar com todos os
problemas, todas as verdades, mas que pelo menos fosse uma de cada vez.
Portanto eu começaria pela mais fácil.
Quando me enchi de coragem e virei para encará-la, me impactei
com os olhos chorosos, sua postura rígida, como se ela se vigiasse para não
passar de nenhum limite comigo. Laura era linda. Tudo nela acionava meus
sentimentos, mas também me machucava. Ergui a carta em sua direção, ela a
pegou sem desviar os olhos dos meus.
— Obrigado — eu disse com a voz por um fio, embargada, sofrida.
— Desculpe por mentir. Eu não tive escolha.
A voz dela, carregada de sofrimento como a minha, socava minhas
defesas. Eu não podia permitir. Limpei a garganta, respirei fundo e coloquei
para fora as decisões, ainda que tomadas no calor da emoção.
— Eu não quero a minha parte da herança — anunciei. — Não a que
você assumiu a pedido do meu pai.
— Mas… Bernardo…
Ergui a mão para impedi-la de falar.
— Meu pai tinha razão. Eu em momento algum quis trabalhar na
empresa. Durante todos esses anos, acreditei que meu fracasso profissional
era por causa da minha incapacidade, e convivi com a frustração dele todos
os dias. Eu não queria trabalhar lá, e, ainda assim, queria, porque era a
vontade dele. E quer saber a verdade? Nada mudou. Eu continuo sendo uma
pessoa sem perspectiva.
— Não é verdade.
Ela se aproximou, tão aflita que por um segundo me fez enxergar
amor no olhar que dirigia a mim. Fechei os olhos, balancei a cabeça e me
recuperei rápido do impacto.
— É verdade. A única diferença é que agora eu sei que não preciso
me esforçar mais. Vou pedir demissão e me afastar do grupo.
— Bernardo, não!
Laura tentou me tocar, mas segurei sua mão. Se eu permitisse que ela
me tocasse, se aceitasse a mínima demonstração de carinho, não teria forças
para me afastar. E eu precisava me afastar.
— Você mudou — ela insistiu. — Pode não amar o que faz na
empresa, mas se tornou um profissional comprometido. Seu pai…
— Eu mudei, Laura. Por você e não por ele. Menos ainda por mim
— esbravejei, de repente sem conseguir frear minhas palavras. — Eu mudei
por você — confessei. — Porque me apaixonei. Não deveria. Nós dois
estávamos em missões que não permitiam a existência de um sentimento
tão… Eu fui um canalha, e tudo para recuperar uma herança que eu nem
queria. — Ri sem qualquer alegria. — Eu não quero essa herança —
reafirmei.
— Diferente de Sabrina, você nunca quis o poder.
Laura abraçou o próprio corpo, outra vez se impedindo de me
alcançar. A voz dela continha uma emoção sufocante que gerou novas
lágrimas em meus olhos.
— Seu pai acreditava que te transformou em um homem sem
paixões, sem objetivos. É uma tristeza saber que o Sr. Quaresma não teve a
chance de te enxergar como você é. Você pode estar perdido, Bernardo, mas
sabe com exatidão o que não quer para a sua vida. Esse já é um ótimo
começo.
— É — concordei sem receio.
Havia tanta coisa em mim, tristeza, mágoa e… liberdade. Sim,
liberdade. Finalmente eu não precisava mais daquela sensação horrível de
fingir ser o que eu não queria. O peso da ideia de que decepcionei meu pai, o
desespero para não mais decepcioná-lo. O medo misturado com a ansiedade
de encontrar. O quê? Eu não fazia ideia. Mas precisava encontrar.
— Eu nunca contestaria o testamento, sabia? Quando o Dr. Estevão
leu o que meu pai definiu, fiquei triste, mas não porque não herdaria 50% de
tudo. Eu me senti horrível por ter desapontado tanto meu pai ao ponto de ele
preferir entregar tudo nas suas mãos. E tinha Sabrina. Minha irmã se
preparou muito para assumir as empresas. Por isso, quando ela pediu o meu
apoio, eu não via outro caminho. Sabrina foi tudo o que me restou. Eu não
queria te enganar, só… te convencer do quanto essa situação era ruim. Se
Sabrina não tivesse recorrido a mim, eu pegaria o que tinha e seguiria a
minha vida.
Em silêncio nos encaramos. A tensão crepitando entre nós. A
ansiedade transbordava dos olhos dela. Eu não podia. Meu pai me deu a
chance única de mudar, de fazer algo de bom, justo, de buscar a minha
felicidade. E era o que eu faria.
— Mas você não enxergaria isso, porque nunca confiou em mim.
— Eu confio agora.
Ela deu outro passo mínimo, tão perto que confundia minha cabeça.
— Eu também me apaixonei, Bernardo.
Por um segundo, um mísero segundo, meu ar congelou, minhas
células pararam, tudo ao meu redor deixou de funcionar. Laura aproveitou a
minha falta de reação, ou reação explícita, e se aproximou mais, mesmo sem
me tocar, ficou na ponta dos pés e me beijou. Eu perdi a capacidade de
resistir àquela mulher.
Aceitei o beijo, o leve roçar dos lábios atiçou fogo em minhas veias,
lançou névoa em meus pensamentos e guiou meus gestos. Sem planejar,
enlacei a cintura de Laura, me apropriei do corpo ao eliminar o espaço entre
a gente, aprofundei o beijo e estremeci ao receber a língua doce em resposta
a minha.
Laura me enlouquecia. Ela me dominava ao ponto de conseguir que
por um instante eu esquecesse tudo o que nos impedia. Mas nenhum feitiço
está livre do fim. Bastou minha mente tomar consciência de que era ela em
meus braços para me alimentar com imagens diversas, boas e ruins.
Desfilava em minha tela mental a alegria de tê-la para mim, mas
também tudo o que projetei nas últimas horas. Ganhou destaque a imagem
dela com Vicente. Os olhares estranhos daquele dia. A conversa com
Fernando e Sabrina. A certeza de que ela não me amava.
Foi demais para mim.
Afastei Laura com delicadeza e garanti uma distância segura. Ela me
encarou sem compreender. Tudo em mim gritava para não fazer aquilo. A
ilusão era melhor do que a dor. Ela amava Vicente, mas não o queria, logo,
poderia me amar em algum momento. Fechei os olhos e balancei a cabeça.
Por que o amor tornava as pessoas medíocres?
— Não vai dar certo, Laura — afirmei com a dor me dilacerando por
dentro. — Você não confia em mim. Esse é o melhor argumento para nos
impedir de continuar.
— Bernardo, não…
— Acredite em mim, é melhor desse jeito.
Não quis estender a situação. Eu tinha tudo o que precisava. Laura
não precisava mais cuidar dos filhos inconsequentes de Joaquim Quaresma,
eu não precisava mais viver aquela vida. Éramos livres.
Ergui a mão e acariciei o rosto dela. Laura inclinou o rosto na direção
do meu toque. Tão linda. Mas aquilo era o máximo que eu me permitiria.
Sem uma despedida adequada, dei as costas e deixei o apartamento. Deixei
Laura. Restava me encontrar.
“O canto gentil
De quem bem te viu
Num pranto desolador
Não chora, me ouviu?
Que as cores de abril
Não querem saber de dor”
Cores de Abril - Vinícius de Moraes / Toquinho

CAPÍTULO 38
LAURA

Coloquei as flores no jarro próximo a cama do hospital e as ajustei com uma


atenção exagerada. No quarto do hospital, já totalmente fora de perigo,
minha mãe necessitava apenas ser monitorada e de cuidados com a pele
ressecada. Para mim, encontrá-la sentada, bem disposta e falante equivalia
ao melhor momento dos últimos dias.
— Você acha que o Vicente é um risco? — Ela perguntou no instante
em que lhe coloquei a par da situação.
Suspirei, cansada ao limite. Não queria preocupar minha mãe com
mais problemas, contudo a verdade era que Vicente continuava desaparecido
e a polícia não tinha qualquer pista sobre seu paradeiro, logo, sim, ele ainda
era uma ameaça para qualquer um de nós.
— Contratei seguranças. Se preocupe apenas em se recuperar.
Puxei a poltrona para perto da cama e sentei, obrigando-me a colocar
um sorriso no rosto, apesar de estar destruída por dentro. Passei a noite
dividida entre sonhos angustiantes e momentos acordada, sem conseguir me
desvencilhar da última conversa com Bernardo. E, naquela manhã, eu
prolongava a minha visita porque não queria chegar na empresa e descobrir
que ele cumpriu com o prometido.
— Você disse que contou sobre a carta para Sabrina e Bernardo. Não
resta mais nada a fazer, Laurinha. Entregue tudo a eles e vamos embora.
— Mãe… — coloquei minha mão sobre a dela para acalmá-la. — Eu
não posso fazer nada ainda. Sabrina até o momento não se divorciou e
mesmo que tivesse, não funciona desta forma. Eu não posso simplesmente
desaparecer ou chegar na empresa e entregar o cargo. A senhora não tem
noção de como funciona, mas sempre que algo assim acontece, as ações
despencam no mercado financeiro, pois gera a sensação de insegurança junto
aos investidores. Precisamos nos planejar.
— Então organize isso logo. Não consigo ficar aqui enquanto você e
sua irmã estão lá fora, expostas a um psicopata.
Psicopata talvez fosse um termo perfeito para alguém que não tinha
qualquer emoção ao atentar contra a vida de outra pessoa, como Vicente fez.
Estremeci só de pensar na possibilidade. Quanto tempo eu vivi com ele? E
Sabrina? O que mais Vicente seria capaz de fazer para atingir os seus
objetivos? Estremeci mais uma vez e me obriguei a não me deixar levar pelo
desespero da minha mãe.
— Não é tão fácil quanto a senhora pensa, mas… estamos bem. Os
seguranças não deixarão a porta do seu quarto e eu e Bruna seguimos o
mesmo padrão. Com certeza, Vicente logo será preso. Sabrina cancelou os
cartões de crédito e bloqueou o acesso dele às contas. Só não pudemos fazer
nada em relação ao dinheiro que ele já tinha. Além do mais, não vou me
esconder como uma criminosa e não quero estar longe quando a polícia
colocar as mãos no Vicente.
— Pois eu quero estar bem longe. Você me convenceu a aceitar por
causa da carta do Sr. Quaresma. Pronto, não há mais nada a fazer.
— Vicente tentou matar a senhora.
— Ele não tentaria se não estivéssemos envolvidas nessa confusão.
— Então vamos justificar a tentativa de assassinato, com o pedido de
ajuda do Sr. Quaresma. Uma coisa justifica a outra?
— Claro que não. Nada justifica o que o Vicente fez. Nada nunca
justificou.
Engoli com dificuldade ao lembrar do primeiro conflito entre a
minha família e a do Sr. Quaresma. Outra vez a culpa me abateu, ainda que
não fosse justo comigo.
— Isso não importa, dona Sara. Não há nada a fazer que não seja
esperar. Agora vamos mudar de assunto porque a senhora não pode se
estressar.
Ela se aprumou na cama, aborrecida por não poder nos acompanhar
de perto e garantir a nossa segurança. Minha mãe nunca reagiria de forma
diferente quando o assunto envolvia as filhas. Não havia nada de medo
relacionado a sua integridade física, apenas a necessidade de nos afastar
daquela confusão antes que piorasse.
— Você me disse que Sabrina vai pedir o divórcio, mas não me
contou como Bernardo reagiu à carta.
Ela fez o que eu pedi, mudou o assunto, mas entrou em outro tão
ruim quanto. Fixei minha atenção nas nossas mãos unidas e me fortaleci com
a ideia de que, se ela não visse meus olhos, não saberia a intensidade dos
meus sentimentos.
— Ele…
— Bom dia. — A voz de Bernardo me fez erguer a cabeça com
pressa e buscar pela sua figura.
Parado à porta, Bernardo segurava um buquê de rosas brancas. Usava
roupas informais, o que não diminuía em nada o impacto que causava em
mim sempre que aparecia, o cabelo levemente bagunçado e o rosto
escurecido pela barba bem aparada não encobriam as marcas do sofrimento
pelas descobertas recentes.
O fato de ele estar no hospital naquele horário abria uma fissura
maior em meu peito. Ele não foi trabalhar, não estava vestido para trabalhar,
logo… Ele me encarava, tão surpreso quanto eu. Na certa escolheu aquele
horário para visitar minha mãe por acreditar que eu estaria na empresa, o que
gerou um pouco mais de dor na ferida que se abria em mim.
— Bernardo! — Minha mãe o chamou com a alegria habitual e o fez
me libertar do olhar que me mantinha hipnotizada.
Ele seguiu até minha mãe, lhe deu um beijo na testa sem voltar a me
olhar, ou a demonstrar qualquer emoção por me encontrar ali. Seria desta
forma? Ele me ignoraria para sempre?
— Como vai, Sara?
— Melhorando. E você?
— Melhorando — ele repetiu com um leve tom de tristeza. — Eu
passei para deixar as rosas e a enfermeira me avisou que as visitas estavam
liberadas. Uma novidade maravilhosa.
— Uma novidade menos pior. Eu quero mesmo é voltar para casa.
Para a minha casa — minha mãe enfatizou.
Surpresa, vi quando Bernardo me olhou pelos cantos dos olhos. Por
que ele fazia aquilo? Por que não falava comigo?
— Acabei de falar com Laurinha que fizemos a nossa parte do
acordo. Não há mais motivos para ficarmos…
— A casa é de vocês — ele a interrompeu. — Meu pai a doou para
Laura. Não há motivo para sair.
— Não ficaremos com a casa, não é mesmo, Laurinha?
Com o foco em mim, Bernardo se traiu e voltou a me olhar. O
constrangimento expresso por ele também me dominava.
— Não pensei nos detalhes ainda. Eu e… hum! Sabrina. Eu e Sabrina
vamos ajustar tudo.
— E Bernardo — minha mãe me lembrou daquele detalhe sobre o
qual eu não queria pensar. — Ele também terá de volta a parte dele da
herança.
— Deixe-me colocar as flores no jarro — ele disse, tão perdido
quanto ao que fazer quanto eu. — Aliás… — Parou ao perceber as minhas
no único jarro disponível.
— Eu vou pedir outro jarro. — Levantei por impulso.
Havia uma confusão de sentimentos correndo pelo meu corpo e entre
esses o que me impelia a ficar e puxar conversa, obrigando-o a falar comigo.
Eu não podia fazer aquilo. Não podia permanecer enquanto Bernardo
encontrava desculpas para não interagir.
Deixei o quarto com pressa antes que eles conseguissem me impedir.
Caminhei pelos corredores do hospital sem ter ideia de para onde poderia ir.
Eu só queria me afastar, andar para gastar a energia e colocar os
pensamentos em ordem, fugir da rejeição e me convencer de que aquela dor
não duraria para sempre. Porém, impossível me livrar da rejeição quando
esta pulsava no ritmo do meu coração e me lembrava a cada respiração de
que ele não me queria.
— Você é tão burra, Laura! — resmunguei ao acelerar meus passos
para o lado de fora do hospital.
E, quando voltei ao quarto, muito tempo depois, Bernardo não estava
mais lá.
Eu não sabia se respirava aliviada ou desolada.
Fernando entrou na minha sala quando consegui despachar mais da
metade do trabalho que acumulei da manhã. Com o déficit de sono e o abuso
da tristeza que me batia sem cessar, eu me sentia como se estivesse na
empresa por mais de quarenta e oito horas sem direito a descanso.
Meu amigo, por outro lado, exalava tranquilidade. Com um aspecto
digno de galã de filmes, arrumado com esmero, Fernando sorria e agia sem
pressa, como se o dia não lhe cobrasse agilidade. Ele sentou à minha frente,
cruzou as pernas e sorriu.
— Como você está?
— Pelo visto nem perto de como você está — revidei com certa
curiosidade. — O que aconteceu?
— Comigo?
Ele se ajeitou na cadeira, afastou o paletó e me encarou.
— Nada. Como está Sara?
— Bem melhor. Só em observação.
— Que bom.
— Sim. A melhor notícia desde que herdei a missão do Sr.
Quaresma. Tem alguma novidade sobre Vicente?
— Estão trabalhando com a construção da linha do tempo. Vicente
deixou o hotel com roupas de academia e uma mala esportiva. Como você
sabe, ele não retornou mais. A polícia conseguiu as imagens das câmeras de
segurança, mas parece que ele tinha tudo esquematizado e após um tempo
entrando e saindo de ruas, as imagens acabaram. Até o momento ele não
utilizou cartão de banco, não acessou as contas, não tentou contato com
ninguém.
— Que droga!
— Ele vai aparecer. Não estou sendo o otimista, mas Vicente não
sabe viver na pobreza. Ele dará um jeito. Ele e Sabrina casaram em
comunhão parcial de bens. O divórcio o ajudaria, mas antes ele precisa
encontrar uma forma de se livrar da acusação. Meu palpite é que Vicente vai
se esconder por um tempo, encontrar um advogado e tentar confundir a
polícia. Até porque, tudo o que existe contra ele são as mensagens trocadas
com Juliana e nestas, ele fala sobre um remédio para dormir.
— Então existe a chance de Vicente sair ileso disso tudo?
— Infelizmente. Mas não vamos facilitar para ele.
— Isso é uma imensa droga, Fernando! Não sei se Sabrina pedirá o
divórcio se souber que ele ficará com metade de tudo.
— Em relação à divisão dos bens, não há como Sabrina se livrar
disso.
— Logo, não há como eu me livrar disso.
— Sabrina pedirá o divórcio, Laura.
A maneira como ele falou, tão certo daquele detalhe, chamou a
minha atenção. Encarei meu amigo enquanto digeria as informações e, ao
mesmo tempo, não conseguia deixar de buscar uma resposta para a mudança
perceptível do Fernando.
— Eu contei a Sabrina sobre a carta — revelei. Fernando concordou
comigo sem nada dizer. — Você não parece surpreso.
— Sabrina me procurou ontem a noite para tratar dessa situação.
— Ah, foi? — Recostei-me na cadeira e afiei meu olhar na direção
dele.
Apesar de saber que Sabrina demonstrava boa vontade em corrigir
seus erros, nada me faria acreditar que ela procuraria Fernando, logo ele,
para tratar daquele assunto, uma vez que não aceitava nem mesmo que o pai
dele cuidasse dos interesses pessoais dela desde que abrimos o testamento do
Sr. Quaresma.
Alimentou a minha desconfiança assistir Fernando corar, tentar
disfarçar, se ajeitar outra vez na cadeira e, sem opção que pudesse ajudá-lo a
mudar o foco, fechar o paletó. Toda a tranquilidade demonstrada antes, se
esvaiu.
— Por que ela não procurou o seu pai? Não é ele quem cuida do
testamento? — provoquei.
— Bom… hum! Sim. Não sei porque ela não procurou o meu pai,
mas ela queria saber sobre o divórcio e de que forma favoreceria o Vicente.
— Entendi.
Observei Fernando se incomodar com a minha curiosidade e me
perguntei se aquilo seria possível. Fernando e Sabrina? Não. Não depois do
que ela fez com ele. Mas… Será?
Não precisei de muito para confirmar. Quando pensei em ser direta
com Fernando e arrancar dele uma confissão, Sabrina entrou em minha sala
sem ser anunciada. Nós dois olhamos para ela, mas ela olhou apenas para
Fernando.
E eu vi tudo, desde a surpresa ao desconcerto. Com o rosto
avermelhado, após deixar claro que havia mais ali do que queriam
demonstrar, Sabrina lembrou de que estava em minha sala e voltou à atenção
para mim.
— Ilma me deixou entrar — ela se justificou. — Não sabia que o Dr.
Fernando estaria aqui.
— Não se preocupe — Fernando levantou e ofereceu a cadeira a ela.
— Eu já estava de saída.
— Já?
Eles se encararam com… não sei dizer. Pareciam enamorados.
— Digo… não atrapalho vocês?
Ela se corrigiu, de repente tão gentil e educada que em nada parecia a
Sabrina que todos conheciam.
— De forma alguma. Eu preciso resolver algumas coisas. Com
licença.
Fernando saiu, Sabrina sentou na cadeira à minha frente, ajustou o
cabelo atrás da orelha, também vermelha, e, com um puxar exagerado do ar,
voltou a sua versão real. Pisquei os olhos, confusa com a mudança drástica.
— Como está Sara? Eu soube que você foi ao hospital hoje pela
manhã.
— Soube?
— Bernardo me contou.
— Contou?
Aquela conversa estava tão estranha que cogitei chamar Fernando de
volta.
— Ele me disse que foi até o seu apartamento ontem.
— Hum!
— E que vai deixar o grupo.
Não havia nenhum pesar em Sabrina em relação ao afastamento do
irmão, o que me deixou chocada.
— Bernardo jamais quis estar aqui — ela informou como se
precisasse se desculpar. — Se até o papai o livrou desta obrigação, eu só
desejo que ele se encontre.
— Não sei se estou tão segura quanto a isso, mas quem sou eu para
opinar a este respeito?
— Você é a pessoa que o ajudou a se libertar. — Ela me deu um
sorriso mínimo.
— Na verdade, eu pensei que Bernardo só precisava perder o
emprego para se dedicar a este. Nunca imaginei que ele tomaria esta decisão.
Foi a minha vez de me mexer na cadeira, de repente tão
desconfortável quanto Fernando esteve pouco antes.
— Ele já pediu demissão?
— Não! — Sabrina riu. Agia como se minha pergunta fosse uma
bobagem. — Bernardo pode detestar o cargo, mas não é um irresponsável.
Ele vai indicar um substituto e finalizar as suas atividades.
— Ah!
Eu não deveria me sentir daquela forma. Em especial quando ainda
sofria com a rejeição dele. Mas saber que veria Bernardo nos meus últimos
dias ao lado daquela família, de certa forma, aliviava a minha dor.
— Mas eu vim aqui para tratarmos de outro assunto. Eu pensei em
uma solução para darmos andamento ao que tínhamos planejado…
E Sabrina, com toda a sua competência profissional, traçou um plano
magnífico, que me ajudaria com a transição dos cargos e não deixaria as
empresas saírem da rota. O único problema, e este fez meu estômago apertar,
era que precisávamos de Bernardo para colocar o plano em prática.
Eu não sabia se estava preparada para encará-lo outra vez naquele
dia, mas precisava.
“Se não tivesse o amor
Se não tivesse essa dor
E se não tivesse o sofrer
E se não tivesse o chorar
Melhor era tudo se acabar”
Berimbau - Consolação - Maria Creuza / Vinícius de Moraes /
Toquinho

CAPÍTULO 39
BERNARDO

Respondi mais um e-mail com a consolidação da lista de espera para o


lançamento de um veículo que estava com campanha ativa em todas as
nossas redes. Nada mudou em mim desde que descobri que não precisava
mais me obrigar a trabalhar no grupo. Continuava com a certeza de que
precisava ir embora, ceder meu lugar para alguém competente e
comprometido, e, quem sabe, retornar a sonhos antigos, ou desejos sobre os
quais precisei abrir mão.
Ser astronauta ou ter uma banda de rock, como meu pai citou em sua
carta, há muito não passava de um desejo infantil, quando eu ainda tinha
uma visão mágica da vida, logo, eram duas atividades descartadas. Contudo,
fora pouco tempo entre entender que estava livre daquilo e buscar dentro de
mim o que de fato eu queria para a vida. Eu não tinha a mínima noção de por
onde começar.
Talvez estudar. Talvez tirar um ano sabático, viajar o mundo em
busca de respostas, comprar uma casa pequena em alguma ilha isolada e
simplesmente viver um dia de cada vez.
Mas nada do que eu pudesse projetar seria de imediato. Apesar da
liberdade que meu pai me deu através daquela carta, Laura estava certa sobre
um detalhe, eu mudei. Em qualquer outro momento, diante de tal libertação,
eu teria batido a porta, entrado no carro e desaparecido por um bom tempo.
Entregaria o cargo sem medo. Só pensaria na empresa quando precisasse
utilizar o dinheiro que as ações me dariam.
Porém, eu mudei. Podia não amar o trabalho, desejar me distanciar,
ainda assim, tudo ali continuava a ser o sonho do meu pai, a sua luta, e eu
não podia e nem queria, desvalorizar o que ele construiu.
Ainda tinha Sabrina. Minha irmã finalmente se divorciaria de
Vicente, em algum momento assumiria o grupo como CEO, e faria um
trabalho magnífico. Ela não precisava ter a sua vitória apagada pelas
incertezas que meu afastamento ocasionariam para o grupo. E eu não podia
esquecer do perigo real que era Vicente. Com meu cunhado desaparecido
após descobrirmos todos os seus crimes, não havia dúvida de que tínhamos
um alvo imenso pendurado no peito. Vicente era uma ameaça real que
poderia atacar a qualquer instante.
Por isso domei a vontade de abraçar a liberdade e me mantive firme
em meu cargo. Não como no começo, não posso mentir. Apesar de ainda
haver em mim o comprometimento recém adquirido, a vontade de fazer um
bom trabalho, eu não queria mais o que tinha. Por isso aboli de vez o paletó.
Não que me incomodasse. Era apenas a sensação sufocante que a imagem
me trazia, como se a vestimenta passasse a ser a algema que me mantinha
preso naquele universo que eu não mais desejava.
Se era para ficar, então que fosse agradável. Adotei um traje esporte
fino, nem tão formal para exercer o cargo que eu ainda assumia, nem muito
informal para quebrar o padrão da empresa.
Com a certeza de que fazia o correto, peguei o telefone para entrar
em contato com o gerente de uma das nossas lojas quando uma batida leve
na minha porta desviou o meu foco. Rita, a nova secretária, exatamente no
padrão que Laura definiu para que não desviasse o meu foco, colocou a
cabeça para dentro e verificou se eu estava lá.
Tive vontade de revirar os olhos. Lógico que eu estava. Não havia
como sair sem passar por ela, logo, se ela não me viu sair pela única porta
existente, só tinha duas opções, ou eu voei pela janela ou evaporei.
Controlei minha intolerância, lembrando-me de que minha aversão a
mulher não era pela sua incompetência, o que de fato não existia. Rita era
mais do que competente, ela era afiada em suas funções, como não me
acostumei a trabalhar. Mas este também não era o ponto que minava a minha
paciência. Depois de dias trabalhando ao lado dela, me dei conta de que o
incômodo que eu sentia, existia por causa de Laura.
Laura escolheu uma secretária competente para mim, não feia, eu não
poderia atribuir tal adjetivo a mulher que corava e ajustava os óculos ao se
deparar comigo, mas exatamente como deveria ser, séria, competente e
inteligente. E, lógico, nada disso deveria me irritar, mas irritou quando me
dei conta de que eu, em posse das minhas obrigações com o que meu pai
construiu, ciente de que o decepcionei ao ponto de entregar a direção daquilo
tudo a alguém que não fazia parte da sua linha de sucessão, não fui capaz de
fazer.
Somado a esta sensação terrível que aumentava à medida que eu
trabalhava com a mulher, havia a nova realidade, descoberta um dia antes.
Laura a escolheu porque precisava cumprir com a última vontade do meu
pai.
Eu não sabia o que era pior, encarar a minha incompetência diante do
que meu pai deixou para mim ou saber que tudo o que Laura fez foi única e
exclusivamente por sua obrigação de me fazer entrar na linha.
— Sr. Bernardo?
Quem mais estava na sala para ela precisar confirmar se eu era eu?
— Sim, Rita. Algum problema?
— A Sra. Sabrina ligou e pediu que o senhor a encontrasse…
— Sabrina? Por que ela não ligou para mim?
— O seu telefone estava ocupado.
Como se precisasse comprovar a minha falta de atenção, ela olhou
para o aparelho na minha mão sem fazer nenhuma observação. Frustrado,
coloquei-o no gancho e a encarei.
— Ela disse que era importante e urgente — salientou.
No mesmo instante me coloquei de pé. Sabrina podia ter uma veia
dramática, mas ela jamais deixaria aquele recado se não houvesse uma
situação com urgência para ser resolvida.
— Na sala dela?
— Não, senhor. Na sala da Srta. Lacerda.
Encarei minha secretária, incerto sobre o que ouvi. Ela devolveu o
olhar, certa de que não havia motivo para me explicar melhor o recado. E de
fato não precisava. Rita não sabia sobre como eu me sentia ao precisar
encarar Laura pela segunda vez naquele dia, por isso não merecia uma
reação ruim da minha parte, independente disso, engoli com dificuldade toda
a irritação, peguei o celular e sai da sala sem nada dizer.
Caminhei pelas baias e salas ciente de que muitos me olhavam sem
entender porque eu não me vestia conforme me posicionei durante todos
aqueles anos, e me envergonhei ao admitir que em breve correria a fofoca de
que eu me vestia mais informal porque não me dedicaria mais a empresa,
viveria a facilidade financeira que meu pai construiu para mim. Com a raiva
à flor da pele, fingi ignorar os olhares e segui até a ala ocupada por Laura.
— Judite. Margarete. — Cumprimentei as secretárias que sorriram ao
me avistar. — Como vão?
— Sr. Bernardo — Judite respondeu com o suspiro gentil e o sorriso
doce de sempre. — Não sabia que o senhor estava de férias.
Olhei para as minhas roupas sem acreditar que passava aquela
imagem, mas não tive tempo de rebater, Margarete logo falou e roubou de
mim as palavras.
— Quem se veste dessa maneira nas férias, Judite? — Ela riu sem
escarnecer da colega. — Se o Sr. Bernardo estivesse de férias ou estaria em
trajes de banho ou com aquelas roupas quentes, que só deixam os olhos de
fora, esquiando em algum lugar. De certo não estaria aqui, a nossa frente.
Entortei a boca com o azedume que subia do meu estômago. Eu tinha
mesmo a imagem de quem desfrutava o luxo que meu nome proporcionava e
apenas brincava de trabalhar em momentos esporádicos. Todos naquele
grupo sabiam que as férias eram coletivas, divididas em dois grupos para
que não prejudicasse as atividades.
— Sabrina e Laura me chamaram — fui direto ao assunto.
— Hum! Avisarei a Ilma.
Judite prontamente tirou o telefone do gancho para cumprir com o
seu papel, quando Ilma abriu a porta e me avistou.
— Sr. Bernardo — ela disse com toda a sua seriedade. — Sua irmã e
a Srta. Lacerda aguardam pelo senhor.
— Com licença.
Passei pelas secretárias com mais pressa do que deveria,
cumprimentei Ilma com um aceno de cabeça e a segui até que ela abrisse a
porta da sala de Laura e permitisse a minha entrada.
Verdade seja dita, eu não tinha estrutura para encarar Laura sem me
sentir impactado. Apesar de não compreender meus sentimentos, a maneira
como aquela paixão afetava meu corpo tornava-se habitual. Nada havia de
diferente em Laura desde que a vi no hospital. A mesma roupa, o cabelo com
o mesmo penteado e o rosto com a mesma maquiagem. Então porque meu
tórax apanhava daquela forma e o ar rareava? Por que meus olhos insistiam
em verificar cada detalhe do rosto, dos lábios cheios. E por que minha mente
se iludia com o olhar dela, tão intenso e carente?
— Bernardo — Sabrina falou sem qualquer noção da bagunça dentro
de mim. — Entre. Estamos discutindo uma situação importante e queremos a
sua participação.
— Certo.
Caminhei até minha irmã, sem conseguir desviar a atenção da outra
mulher que me acompanhava com um olhar ansioso. Não, nada nela deveria
expressar a necessidade que apenas minha mente apaixonada conseguia
enxergar. Deixe de ser idiota, Bernardo! Alcancei minha irmã e sentei na
cadeira ao seu lado.
— Laura — eu disse em um cumprimento simples. Ela apenas
maneou a cabeça.
— Eu trouxe para Laura o plano de darmos seguimento às viagens
pelas filiais — Sabrina começou a falar em seu tom profissional.
Invejei minha irmã. Quem a visse naquele instante jamais diria que
um dia antes ela esteve tão abatida por causa do ocorrido com o marido. Mas
Sabrina sempre foi daquele jeito. Quando o mundo desabava, ela mudava o
foco e se mantinha de pé com o que podia. Naquele momento restava a ela
apenas as empresas pelas quais lutou. Por isso ela demonstrava mais força e
sagacidade do que qualquer um, enquanto eu me arrastava pelos cantos por
ter me apaixonado, por ironia da vida, pela primeira vez, por uma mulher
que amava outro. Que idiota eu sou, pensei ao reprimir um suspiro de
indignação.
— Laura vai viajar? E Sara?
Minha atenção repentina à mulher sentada à minha frente fez com
que ela corasse de forma violenta e desviasse os olhos de mim para se
ocupar de qualquer coisa irrelevante sobre sua mesa.
— Não, Laura não vai. Eu farei a viagem sozinha.
— Sozinha? — Questionei sem conseguir achar o fio que justificava
aquela mudança drástica nas duas.
— Eu pensei em te levar junto, mas com a sua decisão de deixar o
grupo, achei melhor levar a pessoa que você indicar, dessa forma teremos
uma boa imagem a consolidar e também prepararemos todos para as
mudanças que virão.
— Entendo.
Ruminei o assunto, ainda confuso com a maneira rápida como tudo
acontecia.
— Mas eu estou indeciso entre dois nomes. Por que darmos
seguimento às viagens agora? Não acha precipitado com tantas coisas que
precisam se ajustar?
— A verdade é que a história do Vicente já chegou em todas as
empresas do grupo. Estamos lidando com uma crise prestes a explodir —
Laura comentou em um tom sério e preocupado. — Graças a Deus
concordamos que não podemos mudar a configuração do grupo neste exato
momento. Logo, eu preciso me manter no cargo até que Sabrina consiga
fazer a transição. Sabrina precisa demonstrar que o divórcio e os crimes do
Vicente, não abalaram nossas estruturas e você precisa organizar o seu setor
e prepará-lo para as mudanças.
— E eu preciso me afastar daqui — Sabrina admitiu, de repente, com
uma pequena demonstração da sua fragilidade. — Fernando vai cuidar do
meu divórcio, enquanto isso, farei o meu melhor, guiarei esse grupo para que
nada mais nos afete e não reflita nas ações.
— Tudo bem. Qual é a minha participação nisso?
— A indicação de quem ficará em seu lugar — Sabrina quem
respondeu, porque Laura se afastou, como se essa parte a incomodasse.
— Tenho dois nomes. Vamos discutir sobre isso mais tarde, pode
ser? — falei para minha irmã, que se mantinha interessada. — É o tempo
que preciso para analisar tudo o que tenho dos dois.
— Ótimo!
Sabrina levantou, encerrando o assunto. Por impulso, fiz o mesmo,
mas Laura me impediu.
— Fique, Bernardo — ela pediu. — Eu ainda preciso falar com você.
Sob o olhar da minha irmã, que refletia contentamento com o que
via, me fez sentir um frio indesejado. Por qual motivo Sabrina ficaria feliz
em me aproximar de Laura? Se o plano não existia mais, como ela podia
demonstrar interesse em nos unir? Algo gritava em minha cabeça e me
deixava incomodado. Voltei a sentar.
Laura aguardou em silêncio até que Sabrina fechasse a porta. Nós
nos encaramos por poucos segundos até que o ambiente se tornasse fechado
demais para respirar e, apesar do ar-condicionado, a temperatura aumentar.
— Então você vai mesmo se afastar? — ela iniciou a conversa.
Concordei sem nada dizer, e incerto se deveríamos perder tempo com
aquele assunto.
— Você tem certeza de que quer mesmo deixar tanto poder na mão
de Sabrina?
Laura recuou, encostou-se na cadeira e me encarou com certa
insegurança.
— Você leu a carta. O cargo é dela, assim como as ações.
— Ainda não é. Sabrina precisa se separar do Vicente, esqueceu?
Observei Laura se agitar com a minha colocação, de certo porque
também pensou a respeito. Ela cruzou os braços na frente do peito, uma
atitude clara de proteção, e os olhos perderam um pouco do brilho.
— Não esqueci — rebateu. — Mas, sinceramente, eu fiz a minha
parte. Sabrina não terá as ações agora, nem assumirá o cargo enquanto não
resolver esses problemas, o que já tira toda a minha força. Tudo o que eu
queria era que vocês, os herdeiros, ajustassem essa situação para que eu
pudesse cuidar do que realmente importa, a minha família.
— Você não terminou o seu trabalho por aqui, Laura. Meu pai deixou
bem claro que…
E eu nem sabia porque dizia aquilo. A bagunça dentro de mim se
transformou em desespero ao perceber que em pouco tempo ela se afastaria,
eu me afastaria e nós nos perderíamos para sempre. Eu sabia que era o certo,
que nada podia ser feito quanto a esta questão, mas, por mais que minha
mente trabalhasse com a lógica, meu corpo reagia com os sentimentos e
estes não queriam aceitar as coisas como elas eram.
Laura levantou. Tudo nela parecia estudado e esquematizado quando
ela contornou a mesa e parou ao meu lado. Ela puxou a cadeira que antes
Sabrina ocupava e sentou. Tão próxima de mim, tão atenta. Eu me sentia um
adolescente diante de toda a explosão de sentimentos que corria por minhas
veias e acelerava sem parar, implorando para que eu diminuísse a distância,
para que esquecesse minhas barreiras e a beijasse outra vez, que me iludisse,
aceitasse o pouco que tinha e me contentasse com isso.
— Você tem a mesma quantidade de ações de Sabrina — ela
enfatizou, jogando um balde de água fria em minhas terminações nervosas
que interpretavam aquela aproximação com outro teor. — Se assumi-las,
poderá conter a sua irmã caso alguma coisa dê errado.
— Eu não quero as ações, Laura. E não estarei aqui. De nada valerá o
que eu achar. — Ela se afastou, aborrecida.
— Você não tem opção — a voz demonstrou uma preocupação
evidente. — Não pode simplesmente dizer que não quer as ações e abrir mão
das suas obrigações.
— Por um segundo precisei me certificar de que não era o meu pai
falando.
Ela ampliou os olhos, assustada, ao se dar conta do que fazia. Isso fez
com que Laura se aproximasse. A mão dela foi em direção a minha, mas
recuou no último segundo. Minha pele queimou diante do contato frustrado e
meu coração acelerou, enfatizando a necessidade que eu tinha daquele toque.
— Desculpe — ela sussurrou. — Eu não tenho esse direito.
— Não tem.
— Desculpe — ela repetiu, aflita, vulnerável ao ponto de me fazer
querer abraçá-la, beijá-la… Mas eu não podia. — Você tem razão. Sabrina
precisa sair um pouco daqui. Ela saberá como acalmar as empresas em
relação ao que aconteceu com Vicente. Enquanto isso, Fernando cuidará do
divórcio e nós vamos pedir a Deus para que a polícia encontre Vicente o
quanto antes.
— Certo.
— E você vai definir todos os pontos referentes ao seu afastamento.
Não precisa se desfazer das ações. Sabrina não voltará atrás. Ela cuidará de
tudo por aqui.
— E você?
Laura se surpreendeu com a minha pergunta, nossos olhares se
conectaram e uma força carnal, repleta de necessidade me atingiu. Eu queria
tantas coisas com ela que meu corpo doía.
— O que tem eu?
A voz baixa, tão impactada quanto a minha, servia como incentivo.
Eu não podia ceder.
— Você tem dez por cento das ações que meu pai deixou. Agora faz
parte disso.
— Ainda não decidi nada quanto a isso.
O rosto dela ficou ainda mais corado. Meus dedos arderam de
vontade de tocá-la.
— Por enquanto, eu quero colocar a minha família em segurança e
voltar a estudar. Quero ser enfermeira. Seu pai sabia disso e nada mudaria se
ele não tivesse interferido.
— Você é muito bondosa com o velho Quaresma, depois de ele ter
atirado essa bomba em seu colo.
Ela deu um sorriso mínimo. Linda!
— Sou grata a tudo o que ele fez por mim e pela minha família. A
carta foi uma surpresa desagradável, mas eu em momento algum deixaria de
atender a um pedido dele.
— Eu sei.
Outra vez a conexão entre a gente vibrou. Os fios que nos ligavam
esticaram, ansiosos pela aproximação. A energia crepitava, envolvia meu
corpo e me eletrizava de desejo. Como aquilo era possível?
— Vocês deveriam voltar para a mansão — eu me ouvi dizer.
— Bernardo…
— É o local mais seguro, Laura. Acredite. Mesmo que Vicente tenha
algum poder sobre alguém ali dentro, a rapidez com que pegamos Juliana
servirá de empecilho para novas tentativas.
— Talvez você tenha razão. Mas não posso voltar para aquela casa
sem vocês — definiu.
Eu não deveria deixar que a esperança me tocasse. Deveria até
mesmo me incomodar com a ideia. Porém, tudo o que me atingiu foi alívio.
— Foi ali que vocês cresceram. A casa é de vocês. Posso aceitar
estender minha estadia por causa da segurança, mas não quero ficar com ela.
— Meu pai deixou para você.
Minha voz embargou diante da generosidade de Laura. Fomos
horríveis para aquela garota e apesar disso, ela não se voltava contra nós.
— Vamos fazer o seguinte, conversamos sobre esses detalhes quando
Vicente não for mais um perigo.
— Combinado.
Laura sorriu para mim com leveza e acalmou minha alma. A paz que
me invadiu me fazia querer aquela garota ao meu lado pelo resto da vida.
Era tão forte e único que se Ilma não tivesse batido na porta e entrado, eu
teria abraçado Laura, declarado meu amor e… me decepcionado mais uma
vez.
Bendita interferência divina, resmunguei para mim mesmo.
“Ah, mundo enganador
Paz não quer mais dizer amor”
Tempo de Amor - Baden Powell / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 40
SABRINA

— Sabrina?
Sara, sentada na cama do hospital, com um aspecto melhor do que eu
esperava, uma revista no colo e flores, que enfeitavam e modificavam o
ambiente, quebrando a ideia de doença e morte que eu tanto odiava em
recintos como aquele, arregalou os olhos ao me ver na porta.
— Oi, Sara? Como vai?
Ela se ajeitou na cama, colocou a revista de lado e me analisou com
atenção antes de me responder.
— Bem melhor. Não esperava por sua visita — foi sincera. Esse era
um dos pontos que eu valorizava na minha ex-governanta.
— Imagino que não — sussurrei, um tanto quanto envergonhada não
apenas pela falha imensa em não tê-la visitado ainda, como por tudo o que
massacrou a nossa história. — Posso entrar?
— Claro. Venha.
Ela me indicou a poltrona ao seu lado, provavelmente a que Laura
ocupou antes de mim. Laura esteve com a mãe naquela noite e eu sabia disso
porque aguardei que ela saísse, escondida em um ponto estratégico, decidida
a não alertá-la sobre a minha presença. Meu único motivo para tanto gasto
de energia era a necessidade de me desculpar com Sara e para tanto não
necessitava de plateia.
Havia muito para desconstruir do meu ego antes que eu me
acostumasse a me fragilizar diante de pessoas que por muito tempo
considerei inimigas. Laura era uma delas, ainda que tivéssemos com o pé na
estrada da reconciliação.
Sentei na poltrona, disposta a eliminar aquela parte da minha
reconstrução, ainda que não conseguisse eliminar a sensação incômoda por
precisar encarar, mais uma vez, as minhas falhas. Sara aguardou em silêncio,
como sempre fazia, me dando espaço para falar quando eu quisesse, e se
quisesse.
Reconhecer que aquela mulher me conhecia melhor do que todos os
que restavam na minha vida, aumentava a culpa que me machucava. Quando
eu deixei de enxergar as pessoas ao meu redor?
— Desculpe por não ter vindo antes. Eu não queria aborrecer Laura
com a minha presença e… você sabe…
Desviei o olhar, certa de que, mais uma vez, eu não conseguiria
manter a pose de mulher forte. E, graças a Deus, nem precisava. Nada que eu
sustentasse diante de Sara a convenceria a me ver diferente do que sou.
— Até que a polícia desmascarasse Vicente, para Laura, éramos
todos culpados.
— Eu te entendo.
— Ela não estava errada, sabe? — continuei, disposta a não voltar
para casa sem dizer a Sara tudo o que eu precisava. — Fomos pessoas
horríveis com Laura, meu pai… você. — A última palavra saiu fraca, como
a confissão que arrancava a casca da ferida.
— Não se culpe desta forma, Sabrina. Apesar de tudo, você é tão
vítima do Vicente quanto eu e Laurinha.
— Laura me disse isso. — Sorri sem alegria. — Mas a verdade é que
não sou tão vítima quanto vocês. Durante muito tempo me permiti ser o meu
pior lado. Vicente não me fez quem eu sou, ele só me fez acreditar que essa
era a minha melhor versão. Ele não teria sucesso se eu fosse mais confiante,
se não me rebelasse ao ponto de não acreditar no amor de outras pessoas.
Vicente conhecia as minhas fraquezas, medos, e utilizou esses pontos para
me convencer a enxergar uma realidade distorcida. Nada adiantará se eu me
esconder atrás da ideia de vítima e mascarar os meus defeitos, Sara. Eu fui o
que quis ser. Movida pela mágoa, pela carência, por um ódio que alimentei e
se fundamentava apenas no ego. O que Vicente fez foi se apossar disso tudo
e alimentar.
— Eu não te julgaria com tanta força, mas entendo o seu
posicionamento. Ouvir essa confissão me deixa feliz. Seu pai, que Deus o
tenha em um bom lugar, fez o possível e impossível para que você chegasse
a esse entendimento, minha filha. Por isso estamos aqui, não é mesmo?
Porque ele não poderia partir sem tentar, uma última vez, mostrar o caminho
adequado aos filhos.
— Pois é.
Puxei o ar com força, os olhos úmidos, a emoção disposta a sabotar o
meu momento.
Pensar em meu pai, na carta, no que Laura teve que fazer, descobrir
todas as mentiras que ouvi, encarar as que criei, eram os pontos que me
atingiam com força e me jogavam no limbo. Ainda que essas porradas me
arrastassem para a necessidade de me recolher para lamber as feridas, havia
muito a ser feito, logo, me colocar naquela posição estava fora de cogitação.
— Posso te fazer uma pergunta?
— Claro!
Sara, com a atenção focada em mim, não demonstrava incômodo ou
estranheza com a minha presença, nem com a minha necessidade de
encontrar respostas e buscar perdões.
— Por que você não foi embora, Sara? Digo… quando eu entrei em
casa com Vicente como meu namorado naquele primeiro dia… quando não
tive medo de magoar vocês com a minha escolha, por que você ficou?
Ela sorriu, nada abalada com a pergunta que nunca fiz.
No dia em que Vicente deixou Laura e se tornou meu namorado, eu
sentia tanto ódio da minha ex-melhor amiga e da mãe dela, que festejei o
momento disposta a humilhá-las. Avisei a Sara que meu namorado almoçaria
comigo e ordenei que ela fizesse uma comida especial.
Naquela manhã eu vi em Sara o tormento de Laura pelo fim do
noivado, mas ao invés de me compadecer, desejei que este nunca tivesse fim.
Levar Vicente para almoçar comigo e forçar Sara a servi-lo foi a maneira
que encontrei de me vingar pelo que tentaram fazer comigo.
E no fim, era tudo mentira do homem que amei, que acreditei me
amar. Sara e Laura não queriam meu dinheiro. Não abusaram da minha
amizade, da boa vontade da minha família, não utilizaram minha carência,
meus medos, para me aplicar um golpe. Enquanto eu me endurecia e as
odiava, Vicente fazia o que eu atribuí as duas. Naquele momento, eu era a
humilhada, a que merecia o desprezo de todos, a que se permitiu trair ao dar
as costas para a amizade e abraçar o inimigo.
Que fim trágico, Sabrina.
— Eu quis ir — Sara revelou. — Naquela tarde pedi demissão a seu
pai. Ele não aceitou, obviamente. Mas ter ido até ele, disposta a deixar a sua
família e manter a dignidade da minha, me ajudou a entender os fatos. Então
digamos que fiquei por você.
— Por mim?
O espanto derrubou de uma só vez as barreiras que ainda lutavam
para permanecer de pé.
— Por que por mim?
Limpei a primeira lágrima que caiu, respirei fundo, sob o olhar
amável de Sara e desabafei.
— Como por mim, Sara? Eu fui uma pessoa horrível com você. Eu te
demiti na primeira oportunidade.
— Porque Vicente te convenceu de que eu era a inimiga, Sabrina.
Não guardo ressentimentos, então não se culpe por nada. Deixe-me contar o
que de fato aconteceu… Naquele fim de tarde seu pai me obrigou a contar o
verdadeiro motivo para o meu pedido de demissão. Por mim eu não diria
nada. Também estava magoada. Vicente era como um filho e, apesar de
conhecer o seu lado ambicioso, nunca vi nisso uma preocupação. Quem não
quer conforto e tranquilidade nesta vida? Ele terminou com Laura na noite
anterior de uma forma cruel, rude demais para alguém que foi recebido e
amparado por todos nós, e no dia seguinte você o anunciou como seu
namorado. Eu vi em você uma menina mimada, invejosa e burra por se
desfazer de uma amizade para ficar com um homem que mal conhecia. Mas
Vicente… ele sim me fez repensar tudo o que vivemos. Aquele rapaz deixou
a minha filha aos prantos na porta de casa e no dia seguinte, não teve
vergonha de me encarar, não foi humilde para justificar a sua atitude, não foi
homem para assumir as escolhas sem precisar passar por cima das pessoas
que foram a família dele durante tanto tempo. Você lembra o que ele fez,
como me tratou.
— Lembro.
Envergonhada, desviei meu olhar para minhas mãos sobre minhas
pernas. Naquele dia eu ri e debochei de Sara quando levei Vicente para meu
quarto. Juntos festejamos e maldizemos a mulher que fingia ser uma pessoa
preocupada e dedicada a minha família, mas que na verdade tentava
encontrar uma forma de colocar as mãos em nosso dinheiro. Cheguei até
mesmo a planejar com Vicente formas de fazer com que meu pai a demitisse.
Assim ela saberia que por querer muito, não teria nada.
— Eu contei a seu pai o que aconteceu. Falei sobre o sofrimento de
Laura, a maneira como Vicente agiu e a sua mudança na maneira como me
tratava. Foi ele quem ligou os pontos.
— Como assim?
— Você conhece as qualidades do seu pai melhor do que eu. O Sr.
Quaresma não via nada como uma linha reta. Ele enxergava as nuances,
como dizia — ela deu uma risada curta e saudosa, que aqueceu meu coração
ao relembrar a infância. — Seu pai me perguntou como Laura conheceu
Vicente. Eu estranhei, mas acho que estava tão aborrecida e magoada que
encarei a pergunta como uma forma de me fazer desabafar.
— Eles se conheceram no ponto de ônibus, certo?
— Certo. Havia um rumor de que teríamos greve da polícia. Eu
fiquei preocupada com as meninas, por isso pedi para Laura, quando saísse
do curso, buscar Bruna na escola e me encontrar na mansão. Eu queria pegar
um táxi, mas não havia nenhum disponível, então fomos para o ponto de
ônibus. Enquanto Laura dava atenção a Bruna, percebi o Vicente
observando-as e fiquei em alerta. Ele notou como me posicionei, sorriu e se
apresentou. Falou que não tinha irmãos, então sempre ficava fascinado
quando assistia boas interações entre irmãos. Contou que trabalhava em um
dos prédios do outro lado da rua.
— Auxiliar Administrativo no setor de logística.
— Isso. Vicente fez tudo certo, Sabrina. Ele não demonstrou de cara
interesse na Laurinha, pelo contrário. Pegamos o mesmo ônibus, ele sentou
ao meu lado, conversamos até ele descer. Eu o ouvi com atenção porque me
pareceu um rapaz bom. Depois desse dia eu o encontrava com frequência no
ponto de ônibus. Ele sempre educado, gentil, disposto a falar sobre a vida, o
trabalho, as dificuldades que enfrentou.
— Os tios abusivos — interrompi mais uma vez, em um misto de
confusão e medo do que ela me revelaria.
Afinal de contas, meu pai não jogava conversa fora. Quando o velho
Quaresma se interessava por um assunto, era porque tinha algo de
importante nele.
— Sim, os tios abusivos principalmente.
— Por que meu pai queria saber sobre isso? Eu mesma contei a ele o
passado do Vicente, logo após revelar o namoro.
— Porque seu pai era um homem que prestava atenção, filha. Contei
a ele como o Vicente ganhou a minha confiança, contei que eu o convidei
para almoçar na minha casa em um domingo e foi dessa maneira que surgiu
o inicio de interesse dele na Laura. O namoro, o noivado… não deixei de
fora o fato de Laura tê-los apresentado. Até que revelei o fim do noivado
entre Vicente e Laura e a surpresa daquela tarde, com Vicente como seu
namorado. Até o momento eu não via nada além de uma traição horrível e da
necessidade de defender Laura. Mas seu pai viu além disso.
— O que ele viu?
— Ele viu Vicente como nenhum de nós conseguimos ver. No meu
primeiro relato, seu pai levantou a hipótese de Vicente ter se aproximado
com o intuito de chegar até você.
Se Sara me contasse aquela história uma semana antes eu a refutaria
sem me permitir pensar um segundo sobre o assunto. Nada do que vivi com
Vicente me levaria a crer naquela possibilidade. Porém, após o cair das
cortinas que escondiam a verdadeira face do homem com quem casei, nada
mais me surpreenderia.
— Ele me pediu para ficar. Eu relutei contra a ideia, Sabrina. Para
mim era tudo preto no branco. Ainda que Vicente estivesse interessado no
seu dinheiro, você não soube valorizar a amizade da minha filha. Preferiu
ele.
— Porque ele mentiu para mim.
— Eu sei. Mas não sabia quando tudo aconteceu.
— Desculpe, Sara — sussurrei.
— Não há do que se desculpar. Como eu disse, somos vítimas. Você
tinha a sua verdade e nós tínhamos a nossa.
— A minha verdade era uma farsa.
— Mas foi com o que você conviveu durante todos esses anos.
Concordei sem ter mais nada para acrescentar.
— Seu pai contratou um detetive para averiguar o que sabíamos
sobre o Vicente.
— E o que ele descobriu?
— Nada que nos ajudasse com a força que precisávamos. Você
estava apaixonada, cega, disposta a tudo para nos tirar da sua vida. E eu
soube pelo seu pai o que Vicente contou para te convencer do amor dele.
— Então você sempre soube?
Levei a mão à boca, horrorizada e envergonhada na mesma medida.
— Por que nunca se defendeu? Por que não me contou a verdade?
— Porque você não acreditaria em mim, menina. Vicente fez um
ótimo trabalho para te alienar. À medida que o tempo passava, mais difícil
ficava para te convencer do contrário. Não pense que não tentamos. Seu pai
não encontrava nada que pudesse incriminar o Vicente. Ele trabalhava onde
disse, tinha tios horríveis como narrou, morava no local que conhecíamos.
Ninguém nos disse nada além do que já sabíamos, que ele era ambicioso,
mulherengo, reservado, sem grandes amizades. A tia dele nos disse que
Vicente dizia que um dia seria tão rico que os varreria da face da Terra.
Descobrimos relacionamentos fracassados, mulheres que ele explorou,
enganou, extorquiu. Nada disso servia para lhe mostrar a realidade.
— E nem assim você desistiu.
— Não, eu não desisti. Pessoas como o Vicente um dia pisam em
falso. Seu pai e eu contávamos com isso. Mas ele não teve tempo.
— Por isso garantiu que Vicente não alcançasse o objetivo.
— Essa parte eu só soube quando Laura já estava no jogo.
Enxuguei o rosto com as costas das mãos, e respirei fundo, antes de
continuar.
— Papai era tão sábio — sussurrei. — Por que os jovens se julgam
mais espertos do que os velhos? — Sara riu.
— Não somos mais espertos. Somos mais experientes. E seu pai,
ainda que fosse um jovenzinho, mataria a charada. A prova disso é o império
que ele construiu. Ele enxergava as pessoas como elas eram, as
oportunidades nos meios mais inóspitos, a genialidade dos menos estudados.
— Ele enxergou Laura — admiti, outra vez de volta às lágrimas. —
Por isso confiou nela. Entregou a ela nossas empresas. Não teve medo de
estragar tudo.
— Ele precisava.
— Eu sei. — Funguei sem me importar com a classe. — Hoje eu sei,
Sara. E… droga! Ele tinha razão. Só de pensar que papai morreu com eu o
acusando de senil, tirando dele o brilho que nunca se apagava só porque ele
não alimentava meu ego, meu orgulho… Eu fui tão horrível!
— Oh, minha menina! Venha cá.
Sara abriu os braços para mim, disposta a cuidar das minhas dores,
como fez tantas outras vezes, quando eu ainda permitia que ela se
aproximasse. Durante anos Sara foi o que havia de mais perto da presença de
uma mãe. Ela me ouvia, me entendia, deixava que eu chorasse e confessasse
meus medos. Ela me abraçava e dizia que tudo ficaria bem. E eu deixei
aquilo tudo acabar porque me apaixonei pela pessoa errada.
Abracei Sara, deitei minha cabeça em seu colo e chorei sem receio.
Ela acariciou meu cabelo repetidas vezes, me abraçou com a promessa de
nunca mais soltar, enquanto repetia baixinho: está tudo bem, minha menina.
Tudo ficará bem.
“Aquela amada pelo amor predestinada
Sem a qual a vida é nada
Sem a qual se quer morrer”
Minha namorada - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 41
LAURA

— Por favor, Daniela, não se esqueça de me avisar sobre as medicações.


Repeti as recomendações pela milionésima vez desde a chegada da minha
mãe à mansão Quaresma no final da tarde do dia anterior.
Aceitar o pedido de Bernardo para que ficássemos na casa enquanto
Vicente ainda fosse um perigo foi o nosso maior desafio. Dona Sara insistiu
para que recomeçássemos nossas vidas em outro lugar, mas no fim, cedeu,
não sem antes ouvir da delegada sobre os perigos que Vicente ainda
representava, de Fernando sobre a segurança reforçada na casa e de
Bernardo sobre a maneira como todos juntos facilitaria o trabalho da polícia.
E Sabrina me surpreendeu ao utilizar como argumento a necessidade dela de
ter Sara sob os nossos olhos. Pelo visto, ela demoraria a deixar de nos
surpreender.
Por isso retornamos à mansão Quaresma. Contratei uma amiga de
confiança, técnica em enfermagem, para cuidar da minha mãe enquanto eu
estivesse fora e a empresa de segurança designou um funcionário que se
ocuparia dos cuidados com a nossa Ala. Todas as câmeras foram verificadas
e aprovadas. Mais segurança do que isso só se morássemos em uma prisão
de segurança máxima, do tipo que só existe em filmes.
— Avisarei, Laura — Daniela não escondeu o sorriso diante do meu
excesso de cuidado. — Pode ficar tranquila.
— E você tem acesso às câmeras, Laurinha. O que mais pode querer?
— Minha mãe, impaciente, colaborou.
— Posso querer um monte de coisas, Dona Sara. Mas a segurança da
minha família é a minha prioridade.
— Vá trabalhar, menina! Você prometeu a Sabrina que cuidaria de
tudo enquanto ela estivesse viajando.
— Eu estou cansada de tantas promessas a família Quaresma. Não
vejo a hora de isso acabar — resmunguei ao ajustar a bolsa no ombro. — Eu
volto…
— Cedo. Você já disse — minha mãe não facilitava. — Tchau,
Laura!
— Credo! Tchau!
Deixei o quarto e me obriguei a não pensar nas coisas ruins que
poderiam acontecer na minha ausência. Aquele medo acabava comigo. Na
escada encontrei o segurança, que me cumprimentou com eficiência. A
postura rígida e a cara fechada me passou um pouco de confiança.
Atravessei as salas, avistei o segurança que transitava pela área da
piscina, cortei caminho pela cozinha e saí na garagem. Dois homens
permaneciam ali com a mesma postura profissional dos outros. Mais à
frente, Carlos aguardava por mim e Bruna conversava com… Bernardo.
Definitivamente não havia como ser indiferente àquele homem. Em
especial depois de eliminar todas as dúvidas sobre ele e restar apenas aquele
sentimento louco, cansativo e castigante que acelerava meu sangue e
confundia meus pensamentos. Bernardo, em sua nova versão, calça de sarja
e uma camisa de manga comprida, dobrada até o antebraço, exalava
jovialidade e leveza. O cabelo, antes penteado e fixado, desajustava-se em
fios lisos e bagunçados. Lindo. Tão lindo que roubava meu ar, meu
equilíbrio, minha vontade.
Ele também voltou para a mansão no dia anterior, mas não nos
encontramos. Resisti a tentação de procurar por ele, como uma adolescente
apaixonada e ocupei-me dos cuidados com a minha mãe e não voltei a
pensar naquele homem de corpo impecável com olhos de um azul fascinante
e um sorriso digno de um troféu, até que ele se materializasse naquele
momento.
— Bom dia! — Cumprimentei todos. Bruna me ignorou, com os
fones no ouvido. — Como vai Bernardo?
— Bem. E Sara?
Sara. Meu coração antes inflado se encolheu alguns centímetros.
— Está bem. Daniela é uma ótima profissional.
— Que bom. Como foi a sua primeira noite em casa?
Enquanto ele se mostrava tranquilo naquela conversa, com uma
postura despreocupada e o sorriso encantador, eu me esforçava para não sair
do tom e começava a me sentir esgotada. Uma parte minha queria apenas
sorrir de volta e me permitir ser a boba apaixonada, a outra queria empareda-
lo, fazer perguntas, exigir respostas, confessar o amor rejeitado.
— Foi… tranquila — menti. — E a sua?
— É estranho estar aqui sem Sabrina.
— Ah.
Os parcos segundos em silêncio, enquanto nos encarávamos,
agitaram minhas células e elevaram a temperatura dentro de mim. Passei as
mãos pela calça, sem saber o que fazer com elas.
— Você…
— Eu vou chegar atrasada — Bruna resmungou ao meu lado e me
impediu de dar aquele passo.
— Quer uma carona? — ele ofereceu, sem deixar que minha mente
fértil imaginasse a segunda intenção por trás da oferta. — Já que vamos para
o mesmo lugar, Carlos pode levar Bruna e você… pode vir comigo.
Eu captei uma certa insegurança nas suas últimas palavras, assim
como um brilho diferente no olhar dele, mas disse a mim mesma que
mulheres apaixonadas enxergam o que não existe, logo, era mais fácil
encarar a oferta como nada além disso. A praticidade do transporte e a
gentileza entre pessoas com interesse mútuo, que, lógico, nada tinha a ver
com a minha necessidade de beijá-lo, ou de sentir aquelas mãos em minha
cintura e…
— Ótimo! — Bruna respondeu por mim, entrou no carro e bateu a
porta.
— Tenha um bom dia também, irmã — resmunguei.
Bernardo manteve o sorriso ao me indicar o carro dele, parado
poucos metros depois do nosso.
— O que fazia aqui? Digo… por que não foi logo para a empresa?
Ele acionou as travas do carro, deu a volta e abriu a porta para mim.
Ainda tão leve e tranquilo que começava a me intrigar.
— Eu queria te oferecer uma carona — confessou antes de bater a
porta e caminhar de volta para o lado do motorista.
Avaliei a maneira como ele falou e travei uma luta comigo mesma
entre me permitir iludir ou me manter na realidade.
— Pronta? — ele disse antes de ligar o carro.
— Sempre — respondi no automático, mas recebi dele um olhar
quente e um sorriso sedutor.
Bernardo aguardou alguns minutos antes de iniciar uma conversa. Eu
o vi conferir se os seguranças nos acompanhavam, solicitar a rota no painel,
testar o ar-condicionado e uma infinidade de coisas que faziam com que meu
estômago protestasse e a inquietude se apossasse do meu corpo.
— Está tudo bem? — ele perguntou após eu me mexer no banco pela
terceira vez, sem encontrar uma posição confortável.
— Fernando contou que Sabrina pode tentar eliminar o direito do
Vicente em relação a separação de bens sem levar o divórcio para a justiça
em um processo longo — tagarelei, sem qualquer noção do que poderia
falar.
— É, eu sei. Mas primeiro Vicente precisa aparecer. Se ele sumir
definitivamente, ela pode conseguir que a justiça dissolva o casamento, mas
só depois de alguns anos. Isso te preocupa?
— Preocupa.
Bernardo olhou rapidamente em minha direção e conferiu meu rosto.
Eu me mexi outra vez, dobrei as pernas e desdobrei, desconfortável.
— Ela precisa estar divorciada para assumir o cargo na empresa.
— Não legalmente. O que você tem é uma carta deixada em segredo
pelo meu pai, Laura. E o que precisa fazer é passar as ações para o nome de
Sabrina por livre e espontânea vontade. Ninguém precisa saber dos
pormenores.
— E para o seu nome — provoquei. Bernardo suspirou e ficou em
silêncio. — Você sabe que eu tenho que te devolver as ações. Não dificulte
as coisas.
— Eu estou dando-as de presente a você — explicou com paciência,
cada palavra em seu devido lugar e na entonação de quem fala com uma
criança.
— Espero que você saiba o quanto louco parece tal atitude.
— Não me importo — ele rebateu sem se alterar.
— Mas eu me importo, Bernardo! — e com isso eu perdi o jogo de
tolerância que iniciamos na garagem de casa. — Eu não quero as suas ações.
Não quero nada disso. Seu pai me jogou nessa confusão e tudo o que eu
quero é voltar a ter a minha vida, fazer a faculdade de enfermagem, trabalhar
como uma pessoa normal e cuidar da minha família. Então, por favor, não
me obrigue a conviver com a ideia de que usurpei a herança de vocês.
Ele deu uma risada fraca, curta e rouca. Um indício de que também
estava prestes a perder a batalha com a paciência.
— Usurpar? Legalmente tudo isso é seu. Ou você acha que a justiça
levará em consideração uma carta deixada em segredo, com instruções para
aguardar que os filhos se organizem?
— Não me importa como a justiça verá essa situação. Eu não aceitei
o pedido do Sr. Quaresma para receber algo em troca. E tudo se resolveu
como ele queria, então não há mais nada a fazer.
— Não como ele queria. Sara quase morreu.
Engoli em seco ao reconhecer aquela verdade. Ainda assim, nada
mudava. As ações eram deles, assim como tudo o mais que eu ainda
utilizava.
— Eu só quero seguir com os meus planos — gemi uma súplica,
angustiada, sufocada com aquela realidade que se estendia além do
acordado.
— Eu também, Laura — ele admitiu, de repente sem a leveza ou o
sorriso de antes. — Você merece mais essas ações do que eu. Em todos esses
anos eu nunca cheguei perto do que você realizou ali dentro. Não tinha
interesse além de bater ponto e mostrar a meu pai que fiz a sua vontade,
estive na empresa. Agora estou livre disso, não vê? Ninguém mais esconderá
a frustração por não alcançar meu cargo mesmo sendo mais competente do
que eu. Ninguém mais vai precisar trabalhar por mim só para encobrir
minhas falhas.
— Ok! Eu entendo que você não quer mais trabalhar na empresa,
mas não se diminua por causa disso. Você fez a diferença nos últimos meses.
Mudou. Levou a sério. O que não te obriga a permanecer no cargo. Mas
desistir das ações? Abrir mão do que seu pai construiu para você, depois de
tudo o que ele fez para manter essas ações com a família?
— Não exatamente para manter com a família. Ele deu dez por cento
a você, esqueceu? E não estou reclamando — ele me impediu de desistir das
ações também, ao calar meu protesto. — São suas. Merecidas, Laura! Eu não
mereci nada do que ele deixou.
— Porque não quer se enxergar como de fato é — rebati, envolvida
demais naquela confusão que me surpreendi quando o carro parou, na
garagem do prédio onde trabalhávamos. — Você leu a carta, Bernardo. Seu
pai errou e quis cuidar para que você não sofresse com o erro dele.
— Você não entende. Eu continuo perdido. Continuo sem qualquer
noção do que ser ou fazer. O que mudou? Nada!
— Mudou — insisti. — Mudou na sua maturidade, na maneira como
você conduzirá tudo isso. Você pode não saber o que fazer, mas isso não
apaga o fato de ser o homem que seu pai queria.
Ele me encarou com os olhos úmidos, a mandíbula travada pela
emoção.
— Não pelos méritos dele.
A voz baixa e rasgante indicava o quanto ele sofria com aquilo tudo e
me atingiu com toda a força necessária para abalar o coração de uma mulher
apaixonada.
Incapaz de me conter, soltei o cinto de segurança e avancei sobre ele.
Bernardo não me rejeitou quando segurei seu rosto com as duas mãos e o
obriguei a me encarar.
— Não importa — eu disse repleta de amor. — Você se tornou o
homem que eu quero.
E eu o beijei, disposta a tudo, até mesmo a enfrentar a sua rejeição.
Mas esta não aconteceu. Bernardo me recebeu com lábios desejosos, com a
mesma urgência que me impelia a agir, com a mesma fome que me assolava.
Gemi deliciada ao ter aqueles lábios nos meus, ao saborear a língua que me
buscava, ao ter mãos afoitas em minhas costas, meu cabelo, sempre
exigentes, sempre com a determinação de me manter perto.
Eu esqueci do mundo. Nada mais existia além de nós dois, do desejo
que me impulsionava, da sensação inigualável de me perder naquela boca
experiente. Foi como um raio devolvido ao universo após tocar a terra. Nos
fuzilava de baixo com toda a sua potência, eletrificava nossos corpos, nos
tornava ativos, insanos, ansiosos.
Não havia espaço para aquele sentimento que ameaçava explodir
dentro de mim. Não havia uma única partícula do meu corpo que não se
agitasse, rebelasse e implorasse por ele. Eu o queria. Eu o amava. Céus! Eu o
amava tanto e com tanta intensidade que daria minha vida, minha alma,
meus sonhos, só para aliviar a dor que enxerguei nos seus olhos antes de
agir.
Bernardo, tão entregue quanto eu, alimentava meus lábios com os
dele e minhas certezas com as mãos quentes que exploravam meu corpo sem
pudor, tocando-me sem cuidados, sem limites. Desfiz o beijo e gemi sem
condições de me conter quando ele me puxou para a ereção presa nas calças.
Ele não quebrou o encanto, beijou meu pescoço, chupou minha pele, se
aventurou por minha bunda, desceu os dedos por minha calça e me tocou,
daquela forma tão íntima, tão gostosa, tomando posse de tudo o que havia
em mim.
Estremeci, sensível, pronta, sem qualquer indício de razão. Quanto
tempo esperei por aquilo? Quantas vezes me enganei e me impedi de tê-lo?
Quanto de desejo acumulado se avolumava em meu corpo, escapava por
minha pele, lambia meus pontos mais sedentos de atenção?
Dentes e lábios desceram a alça da minha blusa. Uma mão ousada
me estimulava por trás, descendo tão fundo em minha bunda que me tocava
por inteira, enquanto a outra se aventurou por meu seio, disposta a dar
passagem para uma boca que desfilava promessas e encantos, me seduzia,
me ganhava.
Mas, como o universo atento a nós não brincava em serviço, o som
de alarme de carro em algum lugar naquele recinto, estourou nossa bolha e
nos puxou para a realidade. Abri os olhos, assustada, ciente de que
estávamos prestes a causar o escândalo mais quente daquela empresa.
— Puta merda! — resmunguei. Bernardo riu e me ajudou a voltar
para o banco ao lado. — Puta merda, Bernardo!
— Fique tranquila. Ele acabou de sair do carro — comentou ao
conferir o retrovisor, ao mesmo tempo que tentava ajustar a roupa amassada
e esconder a animação do corpo.
A voz rouca e abalada, disparou correntes elétricas por minha pele.
Eu o olhei com desejo, uma vontade que formigava em meu ventre e mexia
com meu autocontrole. Mordi o lábio, levantei a alça da minha blusa, tudo
sob o olhar atento do homem disposto a me enlouquecer.
— Precisa de alguma coisa?
Inclinei a cabeça, confusa com a pergunta que poderia ter um
significado inocente ou um sentido indecente que minha mente estava mais
tentada a aceitar.
— É melhor sairmos.
Eu continuava na mesma. A emenda feita por Bernardo poderia ser
um indicativo para que iniciássemos o trabalho ou um convite para
abandonarmos tudo e darmos continuidade ao que começamos.
— Laura, se continuar me olhando dessa maneira, eu não conseguirei
fingir que nada aconteceu — confessou com aquele timbre que me fazia
jogar tudo para o ar e me atirar sobre ele outra vez. — Laura?
— Certo.
Pisquei várias vezes para sair do transe, arrumei o cabelo, verifiquei
minhas roupas quando ele segurou minha mão.
— Conversamos à noite?
E lá estava o olhar quente, o sorriso sedutor, o pedido e a promessa
que eu precisava.
— Sim — foi o que consegui dizer.
Tão boba e tão apaixonada que me fez sorrir ao deixar o carro e
acompanhá-lo. E contar os segundos foi a minha atividade mais angustiante
daquele dia.
“Me faça sofrer
Ah, me faça morrer
Mas me faça morrer de amar”
Canto de Xangô - Baden Powell / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 42
LAURA

Pela primeira vez em anos, eu não sabia o que fazer. Parada em frente ao
espelho de corpo inteiro do closet, eu me observava incerta quanto ao que
vestir, como arrumar o cabelo, qual perfume e onde borrifar… E tudo isso
para jantar em casa, junto com a minha família, mas sob o olhar de
Bernardo. Este pequeno detalhe me tornava desconexa e insegura, como uma
adolescente apaixonada.
— Apaixonada — sussurrei em um misto de excitação e medo, com
o olhar fixo na minha imagem, no rosto corado, nos olhos brilhantes, no
sorriso bobo que de tempos em tempos se apresentava. — Meu Deus, eu
estou apaixonada.
Ri sozinha e passei a mão, mais uma vez, na saia comportada, apesar
de solta, que coloquei para compor o visual, mas que, ao me olhar no
espelho, pareceu-me ousada demais, ou, simples, até mesmo, despojada.
Cada hora, eu encontrava um adjetivo diferente que faria com que a peça se
juntasse ao monte das outras antes experimentadas.
Apesar de ser um jantar normal, cotidiano, com minha irmã
tagarelando sobre a escola, os amigos, minha mãe sobre a novela, o dia, os
funcionários, e de Bernardo ser figura cativa naquela mesa desde que nos
mudamos, tudo tornou-se diferente desde aquela manhã. E esse pequeno
detalhe tornava a escolha da roupa adequada uma missão impossível.
Não havia qualquer certeza relacionada ao que aconteceria. O que eu
tinha eram as lembranças que esquentavam meu corpo, e uma sutil promessa
para aquela noite. Não encontrei Bernardo em nenhum outro momento do
meu dia e só sabia que ele estava em casa porque vi o seu carro na garagem
quando Carlos me deixou.
Independente disso, eu não queria brincar com a sorte, então levei
longos minutos para escolher a calcinha e tomei consciência de que minha
gaveta merecia peças novas, menos confortáveis e mais ousadas. Escolher
uma que me desse um ar sedutor e ao mesmo tempo manter a ideia da
casualidade, quase me fez desistir do jantar, arrumar uma desculpa e me
esconder de Bernardo até ter meu problema resolvido.
Mas eu não podia me acovardar. Antes do meu ataque a Bernardo,
não havia esperança para nós dois. Ele me recusava, ressentido quanto as
minhas dúvidas e, para somar, lidava com o peso das descobertas. Desta
forma, eu não podia voltar atrás quanto a decisão de ficarmos juntos.
Bernardo precisava de certezas e não de inseguranças geradas por roupas ou
calcinhas.
— A saia está ótima — disse a mim mesma, disposta a encerrar o
assunto e encarar o jantar. E o que viria depois.
Só para não parecer tão à vontade, escolhi um par de tênis
confortáveis. E para não deixar claro o quanto me preparei para aquela noite,
optei por uma maquiagem discreta e básica. Hesitei outra vez na prateleira
dos perfumes. Qual deveria usar? Não podia borrifar em minha pele algo
forte, afinal de contas, era para fingir que não esperava pela conclusão.
— Você é tão idiota, Laura! — murmurei, no entanto, deixei de lado
tais fragrâncias.
Cheguei a pegar o frasco do meu perfume favorito, infantil e nada
adequado para o que eu queria que acontecesse. Com um suspiro pesaroso,
abandonei a ideia. Sobraram as lavandas. Não era o tipo de fragrância que
arrancava elogios, mas se eu queria não deixar clara a minha pretensão,
aquela era a melhor escolha.
Borrifei um pouco nos pontos estratégicos. No entanto, eu não podia
ser tão casual. Havia um objetivo por trás da aparência despretensiosa. A
calcinha escolhida poderia atestar tal verdade, logo… tomei coragem e
borrifei um pouco mais no espaço entre os seios, na nuca e… fechei os olhos
para não morrer de vergonha, abri as pernas e coloquei um pouco na
calcinha.
— Agora você conseguiu o seu atestado de louca — resmunguei ao
devolver o frasco a prateleira.
— Por que louca? — Bruna perguntou da porta do closet.
— Bruna!
Minha voz assustada possuía um tom a mais do que o necessário. No
mesmo instante meu rosto esquentou com violência e minhas orelhas
arderam.
— O que faz aqui?
— Mamãe mandou eu te chamar. Você está atrasada.
Observei com atenção o rosto da minha irmã, em busca da
confirmação sobre o que ela viu. Mas Bruna não dava indício de que assistiu
à minha atitude insana e vexatória.
— Estou?
Conferi o relógio de pulso e me dei conta de que sim, estava
atrasada.
Se a ideia era não demonstrar ansiedade para o que poderia
acontecer, ou que me preparei para isso, eu falharia com aquele atraso.
— Você está bem?
Ela fez uma careta estranha, no entanto, eu tinha consciência de que
eu era a estranha ali.
— Estou sim — menti. — Vamos.
Bruna me acompanhou pelo corredor sem dizer uma palavra, de
fones de ouvidos, absorta em seu próprio mundo. Porém, abatida pela
interrupção da minha irmã em um momento tão… delicado, eu agia como se
estivesse encurralada. Olhava para ela a cada segundo em busca de
informações, corava todas as vezes que imaginava a cena com Bruna ao
fundo e me desanimava como se este fato acendesse uma placa luminosa no
fundo da sala para evidenciar o quanto eu era ridícula.
Quando chegamos à mesa, eu não tinha mais energia para nada. Toda
a cena que fantasiei desapareceu da minha mente. Eu nem sequer olhei para
Bernardo, sentado em seu lugar habitual, com medo de que ele risse da
minha cara e fizesse piada com toda a minha preparação. Quando eu me
tornei tão infantil?
— Vai sair, Laurinha? — Minha mãe quis saber antes mesmo de eu
sentar e me refugiar atrás do copo de água.
— Não. Por quê?
Meu rosto esquentou de forma tamanha que precisei engolir a bebida
em um único gole como tentativa de apagar as provas contra mim.
— Eu te achei bonita — ela completou sem de fato prestar atenção
em mim. Mas o meu problema estava na Bruna.
— Arrumada demais para o meu gosto — minha irmã comentou, já
se servindo de uma porção generosa de carne.
— Arrumada? — tentei, de forma desesperada, desfazer aquela
confusão. — Uma saia simples e uma blusa básica é arrumada?
— Pra você… sim — Bruna provocou com a boca cheia.
Ouvi a risadinha de Bernardo, o que me enfureceu um pouco mais,
porém, me constrangeu em uma porcentagem maior. Encarei minha irmã
como se pudesse matá-la só com o olhar, sem encontrar palavras que
corrigissem as dela sem puxar para mim a imagem de adolescente. Bruna,
alheia a minha vergonha, fez gracinha, desdenhando de mim.
— Mãe!
Foi só o que consegui dizer, rendida por completo a frustração.
— Bruna, nada de celular na mesa
E isso foi o que minha mãe encontrou como forma de salvar a minha
honra. Eu, realmente, não precisava de inimigos.
— Eu te achei linda, Laura — Bernardo disse, baixinho, sem querer
chamar atenção das duas que travavam uma conversa repetida e cansativa
sobre a permissão do uso de celular à mesa.
Sem graça, mal consegui olhar para Bernardo, que me encarava sem
medo. Lindo como o diabo. Ele nem precisava de roupa especial ou de
longas horas em frente a um espelho para conseguir de mim a permissão
para fazer o que bem quisesse. Engoli o suspiro que ameaçou escapar pelos
meus lábios e fingi interesse pela comida.
— Uma saia simples e uma blusa básica — repeti, me esforçando ao
máximo para parecer casual. — Vocês fazem tempestade em um copo
d’água.
— A saia simples e a blusa básica que na garota linda ficaram
majestosas — gracejou, obrigando-me a encará-lo.
Como Bernardo conseguia aquilo? Minutos antes, eu me sentia
ridícula por ter pensado em cada detalhe para aquela noite e ter sido
desmascarada por minha irmã adolescente, exposta como um palhaço no
meio da praça. Mas, bastou que Bernardo me elogiasse e direcionasse para
mim o seu olhar quente, para que eu tivesse a certeza de que faria tudo outra
vez. Dez vezes repetidas se houvesse a oportunidade.
— Sabrina deu notícias? — Minha mãe estourou minha bolha ao
fazer com que Bernardo lhe desse atenção.
Foi o jantar mais longo já servido naquela casa. De tempos em
tempos eu precisava me lembrar de não sacudir as pernas, de não buscar em
Bernardo algum sinal, de não alertar minha mãe sobre minha intenção, e o
mais importante, de desencorajar Bruna.
Bernardo tinha aquele encanto que fazia com que todos ao seu redor
se rendessem ao seu charme. Com Bruna não foi diferente. Ela adorava o
rapaz! Conversava sobre as mais diversas bobagens como se os dois
fizessem parte do mesmo universo. E, para piorar a minha ansiedade,
Bernardo dava atenção a Bruna como se não tivesse pressa, como se nada
mais importante aguardasse por ele quando mais ninguém estivesse olhando.
Meu rosto voltou a esquentar devido aos meus pensamentos. Eu não
queria parecer tão garantida para ele, ao mesmo tempo, não pensava em
outra opção. Não havia motivos para me fazer de recatada quando cada
célula do meu corpo entrava em ebulição apenas com a expectativa de ter as
mãos de Bernardo outra vez em mim.
Contrariando todos esses apelos, eu me mantinha inerte, sem ação, na
espera de que ele fosse o primeiro a se manifestar, a buscar pelo meu afeto.
Uma imensa descarga de confusão que me eletrizava e cansava na mesma
proporção.
— Com licença, meus jovens. Vocês possuem toda disposição para
uma longa noite de conversa, mas eu não — minha mãe levantou, abatida.
— Está tudo bem, mamãe? — Bruna perguntou, tão atenta quanto eu.
— Sim, tudo ótimo! Mas eu preciso descansar. Foi a recomendação
do médico, então, se não se importam, vou para o meu quarto. A novela
começa em alguns minutos.
— Ah, a novela — minha irmã provocou.
— Exato, a novela. E não me censure. Você gosta tanto quanto eu.
— Adoro! — Bruna levantou também, os fones de ouvidos postos no
lugar e o celular na mão. — Por isso vou subir com a senhora só para
garantir o seu descanso.
Elas riram e entrelaçaram os braços. Enquanto se afastavam, imersas
naquele relacionamento que me dava orgulho, ficamos em silêncio, até que
este ganhou força, transformou-se em atmosfera, conduziu a eletricidade que
nos cercava quando sozinhos. E de repente, eu não era mais aquela garota
corajosa.
Bernardo encostou no espaldar da cadeira e manteve os olhos fixos
em mim. Apesar da maneira como meu corpo reagia, como passou a exigir
com mais força que eu diminuísse a distância que me impedia de tê-lo, eu
nada fiz.
— Vamos conversar? — ele disse com aquela voz modificada, mais
rouca, baixa, coberta de promessas invisíveis que acariciavam minha pele
com a mais crua luxúria. Respirei fundo. Imitei Bernardo na posição e cruzei
as mãos sobre as pernas.
— Vamos. Sobre o que quer conversar?
Um sorriso preguiçoso e leviano brincou nos lábios repletos de
pecado. Os olhos de Bernardo viraram brasas quando conferiram minha coxa
exposta.
— Não aqui.
— Não?
Engoli com dificuldade enquanto o assistia girar a cabeça sem pressa
em sua negativa, para em seguida umedecer o lábio inferior.
— Onde?
— Você conhece a minha Ala?
— N-Não. — Clareei a garganta para firmar a voz. — Não.
— Posso te convidar para um drink?
— Um drink?
O sorriso dele se ampliou, os olhos se estreitaram e a mão buscou a
minha, sobre a coxa, quando ele se inclinou na minha direção. A ponta do
dedo roçou minha pele, um gesto inocente para olhares desavisados, mas
ousado para o meu.
— De que forma você quer que eu diga que quero te beijar, Laura?
Foi a minha vez de sorrir. Aliás, eu nem consegui impedir o sorriso
de esticar meus lábios.
— E eu preciso ir a sua Ala para ganhar um beijo seu? — provoquei.
Bernardo se aproximou, o rosto tão próximo ao meu que roubou
minha capacidade de me manter naquela brincadeira.
— De que forma você quer que eu diga… — Os lábios roçaram os
meus, subiram por meu rosto e alcançaram minha orelha. — Que quero te
beijar na minha cama, Laura? — sussurrou no tom certo para atiçar minha
libido. Um suspiro escapou de mim quando, no mesmo compasso da voz,
houve o toque descarado da mão, a mão toda, em minha coxa.
— Bernardo… — gemi o nome ao ter o lóbulo da orelha capturado.
— Vamos — suplicou, ainda baixo, ainda com o tom que arrepiava a
minha pele e reverberava entre as minhas pernas.
— Vamos.
Ele levantou, a mão na minha, os dedos entrelaçados aos meus, e me
conduziu pela casa. Em silêncio. A cada passo na direção do espaço onde
não seríamos interrompidos, meu batimento cardíaco ganhava uma nova
velocidade. Um misto de sentimentos digladiavam dentro de mim. Euforia,
desejo, medo, insegurança… Cada um lutava para garantir o seu espaço,
porém nenhum deles vencia aquele que imperava em cada pensamento: a
paixão.
Enquanto Bernardo caminhava decidido e me levava para o seu
mundo, eu o olhava com devoção e me certificava de que nenhuma incerteza
quanto a gente, me impediria de ser dele naquela noite.
Subimos as escadas e paramos de frente a imensa porta dupla que
dava início à ala de Bernardo naquela casa. Ele a abriu e aguardou que eu
entrasse. As luzes acenderam quando dei o primeiro passo. Diante de mim
estava uma sala ampla com janelas imensas dos dois lados que davam a
impressão de que o chão se aventurava no espaço. Moderna, arrumada,
impecável, passava a ideia de que ninguém vivia ali. Por um momento, ao
pensar em Bernardo sozinho naquela ala, a tristeza roubou um pouco do
brilho daquele primeiro encontro.
A porta se fechou atrás de mim e o som das teclas chamou a minha
atenção. Bernardo acionava a tranca e nos isolava do lado de dentro. Alheio
ao incômodo que insistia em me atingir, ele se aproximou sem pressa e me
tomou pela cintura, colando nossos corpos. No mesmo instante uma música
suave preencheu o ambiente. Voltei a observar a sala, surpresa.
— Como você fez isso?
— Isso o quê?
Bernardo me conduziu em uma dança lenta, sensual, ao mesmo
tempo que explorava meu pescoço com os lábios. Eu me perdi na carícia,
envolvida com aquela porção de mim que ansiava por ele. Até que ele exigiu
meus olhos em busca da resposta.
— Isso o quê? — repetiu.
Eu queria mudar o foco da minha pergunta para “como você fez isso
com meu corpo? Com minha sanidade, minhas vontades, meus pudores?”,
mas, antes que eu me sentisse ousada ao ponto de tornar real as minhas
indagações, eu me ouvi dizer:
— A música.
— Ah! — ele pareceu surpreso com a pergunta, olhou para um ponto
distante da sala e sorriu. — É a Bete.
— Bete?
Parei de dançar assustada com a possibilidade de mais alguém estar
ali com a gente.
— Quem é Bete?
Bernardo percebeu a minha confusão, sorriu daquela forma que só
ele tinha, que me seduzia e irritava ao mesmo tempo e me puxou na sua
direção, se apossou das minhas costas, cintura, nuca… e me beijou com
volúpia. Eu queria dizer que tive força para impedi-lo e exigir que me
respondesse, mas bastou que sua língua buscasse meu sabor para que meu
corpo cedesse, entregue, quente e molhado por ele… para ele.
Devolvi o beijo com a mesma intensidade e acompanhei seus passos
quando ele me conduziu para o interior do ambiente até que nos
chocássemos contra o sofá. Envolvida, sem qualquer controle das minhas
ações, subi a coxa pela perna dele e a enlacei, aberta, sedenta de vontades
indescritíveis. Bernardo me agarrou pelos quadris, me prendeu na ereção
pronta sob a bermuda e alimentou minha libido quando apalpou minha coxa
e deslizou os dedos por minha bunda até encontrar a calcinha.
— Laura! — Ele gemeu meu nome com tanto tesão que arrepiou
minha pele.
Com uma necessidade crescente e volumosa em meu íntimo passei as
mãos por dentro da camisa dele e arranhei a pele ao me deparar com
músculos definidos e deliciosos. Porém, antes que eu pudesse dar vazão a
toda a minha vontade, Bernardo segurou minhas mãos e se afastou.
— Ainda não — ele disse, a voz arfante, as veias do pescoço
sobressaltadas, como se ele precisasse de toda a força para me impedir de
continuar.
— O que foi?
— Vai soar estranho, mas… nós precisamos conversar.
Minha mente demorou o que me pareceu uma eternidade para
entender o que acontecia ali. Com o corpo em chamas, assisti Bernardo se
afastar, os olhos fixos nos meus, um rastro de tristeza que acelerou meu
pulso.
— Nós precisamos conversar, Laura — ele repetiu, de repente mais
controlado, decidido.
Sem opção, respirei fundo enquanto a percepção do quadro caía
sobre mim. Bernardo me queria, nada que ele dissesse anularia este fato,
mas, talvez não como eu o queria. E o meu querer ia além da atração sexual.
Eu o valorizava por tentar esclarecer tudo antes, para que não houvesse a
necessidade de lágrimas e cobranças, contudo, era impossível evitar a dor.
Magoada e envergonhada, eu me tranquei dentro de mim. Ainda que
entendesse o lado dele, eu precisava me defender da dor real que me atingia.
Com os olhos úmidos, assisti Bernardo buscar as palavras certas. O silêncio
que estendia cada vez mais o buraco que ameaçava engolir meu coração.
— Desculpe — ele disse com uma careta hesitante, como se de
repente, se desse conta de que não deveríamos iniciar aquela conversa. —
Eu… estou louco por você, Laura — confessou, porém, não de uma forma
boa e sim, como se estar louco por mim fosse algo inconcebível.
Para provar a minha linha de raciocínio, Bernardo ergueu a mão na
direção do meu rosto e, impedindo-se de continuar, se afastou. Perdido em
sua confusão, enfiou as mãos no cabelo, fechou os olhos, respirou fundo e
recobrou a compostura.
— Vou direto ao assunto, certo?
Concordei, incerta se deveria ficar para ouvir o que ele diria. Travei
uma luta contra as lágrimas que se avolumavam e ameaçavam cair durante
os segundos eternos que ele permaneceu calado, os olhos fixos em mim, sem
saber como ser direto.
— Você ama o Vicente.
A afirmação me pegou de surpresa. Em nenhum momento cogitei
aquela hipótese. Nem sequer pensei no Vicente, ainda que ele continuasse
sendo uma ameaça, desde que nos beijamos pela manhã, no carro dele, na
garagem do prédio onde trabalhávamos. Tudo o que vivi naquele dia tinha o
foco em Bernardo, em nós dois, no que vivemos e no que queríamos viver.
Sem força para manter minhas barreiras suspensas, as lágrimas
desceram pelo meu rosto e deram a Bernardo a resposta errada. Eu vi a
maneira como o ar encheu os pulmões dele e a forma como ele o colocou
para fora, expulsando junto a esperança. Bernardo, desiludido, ameaçou se
afastar outra vez. Novas lágrimas escorreram pelo meu rosto à medida que
eu me dava conta do que acontecia. Do quanto fui boba em cogitar a
inexistência do amor dele por mim e também, da imensidão do meu.
Por isso agi, impulsionada pela emoção, com o amor transbordando
em mim junto com meu choro, de repente transformado, de pura felicidade.
Avancei sobre Bernardo, abraçando-o pelas costas, firme, disposta a lutar
por ele, por nós.
— Eu amo você — revelei sem medo. — Você, Bernardo Quaresma.
O homem mais incrível que já conheci, o único que pulou meu muro e me
sacudiu até que nada em mim tivesse controle. É você quem eu amo,
Bernardo. Acredite em mim.
— Porra, Laura! — ele rosnou ao se virar na minha direção e se
apossar de mim. — Eu te amo!
O beijo que nos uniu tinha força, mágica, poder. Liberou o universo
uma descarga de energia capaz de reconstruir as galáxias e criou ao nosso
redor uma fortaleza, segura, perfeita, que nos escondia do mundo e nos
fundia em um só.
Então, quando Bernardo me forçou para cima, cruzei as pernas em
sua cintura e não perguntei para onde ele me levaria, porque não importava,
desde que ele não deixasse de me beijar nunca mais.
“Você me olhou você sorriu
A você se derreteu
E se atirou, me envolveu, me brincou
Conferiu o que era seu”
Samba de volta - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 43
LAURA

Não houve tempo para me preparar. Quando Bernardo entrou no quarto,


comigo no colo, os lábios grudados aos meus, as mãos indecentes em minha
bunda, a ereção roçando entre as minhas pernas, eu não pensava em nada
diferente de ser dele.
— Bete, luz intimista — ele rosnou ainda em meus lábios e o quarto
ganhou uma iluminação âmbar, concentrada, quase tão sedutora quanto o
homem que não me abandonava.
— Bete? — perguntei com a voz fraca, quase incapaz de pensar.
A música que tocava na sala preencheu o quarto, desta vez com
toques que vibravam no meu corpo, atiçavam minhas terminações nervosas.
Ele me deitou na cama sem desgrudar de mim. Imediatamente, puxei
a camisa que cobria aquele corpo maravilhoso até que esta desaparecesse das
minhas vistas. Bernardo era lindo de uma forma indecente. O peitoral bem
definido, sem pelos, com músculos firmes, me fez querer lambê-lo.
Mesmo com as roupas, nos agarrávamos com sofreguidão, nos
esfregando com desejo, nos explorando com luxúria. Bernardo me consumia
com os lábios, me atiçava com a língua e me enlouquecia com as mãos que
conseguiam estar em todos os lugares ao mesmo tempo.
Ele mordeu meu lábio, arrastou os dentes pelo pescoço, lambeu
minha pele e me incendiou quando passeou a mão por minhas coxas, se
afundou em minha bunda e avançou sob a calcinha. Com a saia arruinada,
enroscada acima dos quadris, eu tinha Bernardo e o seu desejo se esfregando
entre minhas pernas e, ao mesmo tempo, dedos ágeis que invadiam minha
calcinha por trás e me tocavam da forma mais íntima e carnal possível. Gemi
alto, entregue, com o corpo todo na mesma sintonia, pulsando, trêmulo.
— Que delícia! — ele rosnou ao deslizar a ponta dos dedos por
minha entrada e conferir minha excitação.
Contudo, enquanto eu me desfazia, choramingava e me perdia com
tamanho desejo que corria em minhas veias, Bernardo se dedicava a me
enlouquecer, me levar ao limite. Ele afastou minha blusa pelo decote e
libertou um seio. Sem me dar um segundo de lucidez, abocanhou o monte e
o chupou. Os lábios pressionavam o bico em uma sucção deliciosa que
refletia em outro ponto, um mais sensível, pronto para fazer com que um
tsunami de prazer devastasse meu corpo.
Meu Deus, eu vou… não… ainda não… eu…, lutei contra a vontade
de me libertar, me contorcer e abraçar o orgasmo. Não sei dizer se Bernardo
percebeu meu estado, se meu corpo dava tantos sinais, só sei que assim que
iniciei o processo de frear meu instinto, ele se afastou, não para me
controlar, mas para me desgraçar de vez.
Com a língua no bico do meu seio em uma brincadeira infernal, a
mão quente se alojou em minha barriga, suspendeu ainda mais a saia e me
exibiu. Ele me mantinha como bem queria, com o corpo parcialmente sobre
o meu, minha perna presa embaixo da dele, a outra sem condições de negar
qualquer comando, eu me vi incendiar, torturada por um fogo lento, que
descia sem pressa até encontrar a barreira da minha calcinha. A língua
demoníaca mantinha meu seio em seu cárcere, me aquecia, enviava
mensagens devastadoras para o outro ponto, o que aguardava em um pulsar
incessante, os dedos que avançavam na sua direção.
— Bernar…
O nome desapareceu dos meus lábios quando os dedos me
invadiram. Bernardo avançou entre minhas pernas, firme, ciente de cada
ponto que reclamava a sua atenção, pressionou minha carne, esfregou,
exigiu. E, no instante em que dois dedos se fecharam no botão que detonaria
todas as bombas instaladas dentro de mim, os lábios se apossaram do meu
seio e uma explosão de proporções catastróficas assumiu o controle do meu
corpo.
Gritei, me contorci, cativa de dedos e lábios. Virei pó, vento,
partículas soltas, atiradas ao ar pela explosão. Flutuei na deliciosa sensação
de línguas que experimentavam minha pele, cada pedaço, cada terminação
nervosa, e, quando a mesma força que me impulsionou, me puxou para
baixo, saboreei a sensação que se desprendia do meu íntimo, solta, em queda
livre, até que meu corpo repousasse de volta à cama, ao quarto, a Bernardo.
Com pequenos espasmos voltei a sentir o que acontecia ao meu
redor. Bernardo depositava pequenos beijos por meu busto, subia por meu
pescoço até encontrar meus lábios. Ele me beijou com calma, fazendo com
que meu retorno fosse o mais confortável possível.
Sorri, agradecida.
Os dedos não estavam mais entre minhas pernas. A mão, antes cheia
de sabedoria e experiência, repousava na minha barriga com carícias
delicadas. Ele salpicou dois beijos lentos em meus lábios e se afastou. Abri
os olhos e o encarei. Havia fogo nas íris azuladas de Bernardo. Tão lindo!
Tão meu.
Sem querer me conter, ou parar, avancei sobre ele outra vez, busquei
os lábios e inverti nossa posição. Bernardo, de costas no colchão, aceitou
meu corpo sobre o dele quando o montei sem pudor e arranquei a blusa que
me limitava. Ele arfou ao pousar os olhos em mim. A devoção me incendiou.
Deliciada, admirei o abdômen digno de capa de romance erótico, passei
minhas unhas pelos gomos, deslizei os dedos até que estes roçassem o limite
da bermuda. Ele estremeceu. Algo se manifestou dentro de mim.
Abismada, saudei o desejo e me inclinei sobre o homem que me
apresentava um mundo diferente. Bernardo me beijou com ardor e gemeu
quando reiniciei os movimentos, me esfregando sobre a ereção gritante.
Livre do peso do próprio corpo, ele me explorou com mais vontade,
atrevendo-se a me tocar em pontos sensíveis, me apalpar, divertir-se com
meus seios.
Estimulada, desci a mão até encontrar a ereção e sorri quando o
acariciei por cima da bermuda e o vi morder o lábio inferior para conter um
gemido. Manipulei o pau, apertando-o, me esfregando como podia, até que
Bernardo, afoito, ergueu o corpo e inverteu outra vez nossas posições.
Pairando sobre mim, ele puxou a minha calcinha para baixo, sem se importar
com a saia embolada em minha cintura. Em seguida, retirou a própria
bermuda juntamente com a cueca e voltou a se posicionar entre minhas
pernas.
Colados, pele com pele, minha mente se perdia outra vez,
ensandecida com o desejo que parecia nunca acabar ou acalmar. Ele se
esfregava em mim, a ereção se insinuando em minha entrada, os lábios ora
em um seio, ora em outro, em alguns momentos com beijos delicados, em
outros com mordidas que mandavam mensagens eróticas para pontos
diversos.
Bernardo estendeu a mão acima da minha cabeça e em seguida levou
uma embalagem de camisinha à boca. Aquele era o momento em que ou eu
sentiria a pressão de não haver mais volta, ou sentiria a pressão do meu
ventre pela ansiedade, mas o que aconteceu foi que minha mente congelou
naquela imagem. Não havia nada mais sexy, cru, carnal, do que assistir
aquele homem magnífico abrir uma embalagem de camisinha no dente. A
imagem colou na minha tela mental e acionou o botão de combustão,
iniciando uma corrida desenfreada pelo meu corpo.
Quando pensei que nada mais serviria como estímulo em meu desejo,
tudo ganhou maior potência ao acompanhá-lo vestir o pau, e que pau, com
uma habilidade invejável. Eu não precisava de mais nada. Abri as pernas e o
envolvi em meus braços, desejosa do contato do corpo dele no meu, mas
Bernardo tinha outros planos. Ele me beijou, acariciou e sem que eu
esperasse por isso, me ergueu, me posicionou sentada sobre seu colo e me
deu liberdade para agir no meu tempo.
E quem precisava de tempo?
Sob as carícias quentes das mãos mágicas de Bernardo, fechei os
olhos e me entreguei a deliciosa sensação de ser preenchida. O gemido
emitido por ele reverberou nos meus pontos mais sensíveis. Afundei o corpo,
recebi Bernardo até não existir mais espaço em mim. E então, envolvidos no
mais ardente e profano desejo, nos conectamos em um beijo devasso, regido
pela incontrolável volúpia.
Gememos juntos quando, saturados pelo prazer que se avolumou em
nossos íntimos, começamos a nossa dança, a princípio com rebolados curtos
que alcançavam a ponta dos fios desencapados e enviavam choques que se
estendiam desde minhas paredes úmidas e escapavam por meus poros.
Então, como o mar pacífico que se agita por uma leve mudança dos
ventos, tudo mudou. Atingidos pela tempestade, libertamos nossos corpos e
nos deixamos conduzir pelo instinto puro, as vontades aprisionadas, as ondas
de prazer que nos erguiam e afundavam em sua dança sedutora. Nossos
corpos se chocavam, as mãos exploravam os lábios se buscavam. Tão fundo,
tão entregue, isolados em um mundo invisível, só nosso, atingidos pela
tempestade que ameaçava nos levar para um lugar desconhecido, ao nirvana.
E desse jeito, exaurida, no limite, explodi no melhor e mais profundo
orgasmo, na entrega mais real, pura e verdadeira que já me permiti vivenciar.
Cada célula em mim vibrou, se chocou e se dissolveu. Eu era tempestade,
me transformei em vendaval e me tornei calmaria nos braços de Bernardo,
certa de que nunca mais seria a mesma.
Sorri. Eu nunca mais precisaria ser a mesma.

Deitada no peito dele, eu saboreava o silêncio carregado de


lembranças. Bernardo acariciava minhas costas em uma cena clichê de casal
após o ato. Ri sozinha e me encolhi ao me perguntar se não era aquilo que eu
vivia, um clichê, um conto de fadas onde a mocinha enfrenta o dragão e leva
o príncipe para casa? Sim, aquela era a minha história. Meu doce e delicioso
romance de banca.
— Compartilhe a piada — ele pediu com a voz rouca, quase
sonolenta.
— Não.
— Que egoísta.
— Eu sou. Nunca te disse que eu era uma boa moça.
— Graças a Deus.
Bernardo depositou um beijo casto no meu cabelo e retornou a
carícia.
— É estranho não saber como agir? — eu perguntei após uma nova
pausa para pensamentos desconexos.
— Por quê?
— Nós dois, aqui… — levantei o rosto e o encarei.
— O que tem de estranho nisso?
— Tudo.
Ele sorriu, deitou a cabeça e encarou o teto.
— Tem razão, é muito estranho — admitiu. — Estamos namorando?
Mordi o lábio para evitar o sorriso que ameaçava dominar não apenas
minha boca, mas invadir todo o meu corpo com alegria tamanha ao ponto de
levantar e dançar sobre a cama.
— Isso importa? — provoquei.
— Muito.
— Por quê?
— Como posso pedir em casamento uma mulher que me quer apenas
para sexo?
— Que bobo!
Explodi em uma risada relaxante. Bernardo também riu, mas me
abraçou e girou nossos corpos, pairando acima de mim.
— Eu falei sério — ele afirmou sem perder o humor.
— Sobre namorarmos?
— Você não quer? — ele ajustou meu cabelo e salpicou beijinhos em
meus lábios.
— Não tenho outra opção. Se eu não aceitar, você vai dizer que eu só
te quero para sexo.
— Hum!
Ele fez uma carinha linda de cachorro perdido.
— Então somos namorados?
— Somos.
Ele me beijou outra vez, cheio de carinho e me fez rir.
— Agora que somos namorados, quer casar comigo?
— Não!
Brinquei, deliciada com a leveza da nossa relação.
— Sério?
Encarei Bernardo e comecei a achar aquilo estranho. Ele não falava
sério, certo?
— Deixe de ser bobo.
— Bobo por querer me casar com você?
Levei mais alguns segundos buscando a verdade por trás da
intensidade daquele olhar. Uma sensação estranha se avolumou em meu
estômago.
— Nós transamos uma vez — comentei, espantada por termos aquela
conversa.
— E quantas vezes precisamos transar para você aceitar?
— Você está falando sério?
Sentei na cama, completamente assustada. Bernardo sentou ao meu
lado, todo o clima de antes transformado.
— Não faça drama — ele disse sério. — Eu não vejo motivos para
evitarmos o óbvio.
— E eu começo a me preocupar com a sua saúde mental.
— Laura!
Nós nos encaramos, chocados.
— Você está falando sério? — perguntei outra vez.
— Estou. Case comigo.
— Não!
— Puta merda! Você sabe ser broxante — ele resmungou. — Eu te
amo, Laura.
— E eu te amo, mas não vamos casar.
— Nunca?
— Não agora e nem em um futuro próximo.
— Por quê?
— Meu Deus, Bernardo! Você é mesmo louco!
Avancei sobre ele e o empurrei de costas na cama. Mordisquei o
queixo, beijei o rosto e busquei os lábios sérios em uma carranca
contrariada.
— Ei! Eu te amo!
— Eu também.
Ele relaxou, os braços se fecharam ao meu redor e o beijo ganhou um
tom mais sensual.
— E eu quero aproveitar cada momento. Cada etapa que precisamos
viver — sussurrei, o corpo aceso à medida que eu me movimentava sem
pressa sobre ele. — Quero namorar você. Te amar e te odiar todas as vezes
necessárias para amadurecer esse amor.
— Jura?
— Juro.
— Certo — ele concordou por fim, às mãos em minha bunda, a ereção
despontando e cutucando meu ventre. — Certo — repetiu antes de me puxar
para um beijo envolvente e recomeçar de onde paramos.
“Por céus e mares eu andei
Vi um poeta e vi um rei
Na esperança de saber o que é o amor”
O velho e a flor - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 44
LAURA

O relógio em meu pulso movia seus ponteiros, torturadores presentes, com


seus machados afiados, em um canto, como uma lembrança nada sutil do
que me esperava. Eu quis fugir daquilo antes que se transformasse em um
problema maior, mas Bernardo não deixou, não com correntes que me
aprisionavam, mas com atitudes persuasivas que me mantiveram cativa das
suas vontades até que não restasse mais nada que não fosse encarar a santa
inquisição, vulgo, minha mãe.
— Desfaça essa cara — ele resmungou antes de abrir a porta que nos
dava acesso ao espaço em comum das alas.
— Que cara?
— Essa.
Seu polegar outra vez retirou meu lábio inferior dos meus dentes.
— Você não é mais nenhuma criança, Laura.
— É da minha mãe que estamos falando.
— Sara sabe que você já é uma mulher.
Ele ergueu uma sobrancelha, o que deixava a situação mais
constrangedora.
Em uma situação normal eu rebateria, agiria com teimosia, contudo,
encarar minha mãe exigia de mim toda a minha força.
— Eu te disse que nos atrasaríamos — reclamei, outra vez
conferindo meus fios molhados que denunciavam minha noite. — Se eu
fosse para meu quarto mais cedo eu…
Bernardo me calou com um beijo. Não qualquer beijo, mas aquele
beijo que só ele tinha, que amolecia minhas pernas, confundia meus
pensamentos e me fazia enxergar um mundo mais… possível. Tão positivo e
bonito que nenhum dos problemas pareciam de fato uma ameaça. Para
potencializar seu efeito, ele me imprensou contra a porta, juntou nossos
corpos, aqueceu minha pele com suas mãos mágicas, os dedos por baixo da
minha saia, em minha bunda e… Ah, Deus! Qual era mesmo o problema?
— Tem certeza de que preferia sair sem me acordar? — ele ronronou
em meus lábios.
— Eu não disse que preferia. Eu…
A boca tomou a minha com posse, a língua como uma serpente
encantadora que me escravizava à medida que me experimentava, as mãos
mais ousadas, mais possessivas, o corpo todo colado ao meu como se não
suportasse a distância. Não, eu não me perdoaria se fosse embora sem o
acordar, pensei nisso quando enfiei meus dedos pelos fios penteados e prendi
minha perna no quadril que se esfregava em mim sem pressa, manhoso.
— Bernardo…
— Você não imagina o que faz comigo quando geme meu nome.
Ele mordiscou meu queixo, invadiu minha calcinha e conferiu minha
umidade.
— Ah, Laura!
— Eu acho que nós…
— Também acho.
Ele me levou até o sofá, o máximo de espaço permitido por tamanha
urgência. Contudo, não há alegria que dure para sempre, assim minha mãe
sempre me disse. No instante em que Bernardo arrancou a camisa e se deitou
sobre mim, uma voz feminina preencheu o ambiente.
— Tarefa do dia: Sair para o trabalho.
Frustrado, Bernardo ergueu o rosto para o teto e eu o imitei.
— Isso foi a Alexa? — perguntei ao tentar me lembrar de ter visto o
aparelho em algum local daquela ala.
— Não. Foi a Bete. Obrigado, Bete! — respondeu esta última parte
com a frustração evidenciada. — Lembre-me de desligá-la da próxima vez
que eu estiver com visita — resmungou já de pé, com a camisa na mão.
— Desculpe, não encontrei esta função — a voz falou de algum
lugar.
— Bete?
— É. Bete. Por favor, me lembre de demiti-la.
— Desculpe, não encontrei esta função — Bete repetiu, me fazendo
gargalhar.
— Nem sempre a tecnologia está a nosso favor — eu comentei,
provocante, sem qualquer vontade de levantar daquele sofá. Bernardo me
deu um olhar quente, tão cheio de vontade quanto eu.
— Não está. Por mais que isso me incomode, precisamos trabalhar,
Laura.
— Verdade.
Eu me pus de pé no mesmo instante, de repente, de volta a toda a
ansiedade anterior. Conferi o relógio como uma masoquista, ciente de que
meu atraso não apenas me traria complicações no trabalho como também em
casa. Àquela altura Bruna já estava pronta para a escola e minha mãe
enlouquecida por não me encontrar em meu quarto.
— Droga! Eu deveria pelo menos ter buscado roupas. Chamaria
menos atenção — resmunguei. Bernardo revirou os olhos.
— Você faz com que eu me sinta um aliciador de meninas ingênuas.
— Você é um sedutor de garotas desavisadas, tem quase o mesmo
peso.
— Eu sou o seduzido aqui.
Ele me abraçou por trás enquanto andávamos na direção da porta,
envolveu minha cintura e mordiscou minha orelha.
— Eu sou o rapaz desavisado — sussurrou.
— Até parece — provoquei.
— Sou o que se apaixonou primeiro — ele passou para o meu lado,
segurou minha mão e abriu a porta.
— Não estamos em uma competição, até porque, seria desleal. Você
tentou me seduzir. Nada digno para o seu currículo de príncipe encantado.
Bernardo levou a mão ao peito, como se eu o tivesse acertado com
uma flecha, e fingiu dor.
— E você devolveu o feitiço, nobre senhorita. Tornei-me seu súdito
— brincou quando alcançou o último degrau da escada, e, pegando-me de
surpresa, me puxou para seus braços. — Case-se comigo — sussurrou, os
lábios próximos aos meus.
— Não.
Dei um longo e provocante sorriso. Ele me beijou mais uma vez,
derretendo-me, até que um pigarro indiscreto atraiu a nossa atenção. Nós nos
separamos de imediato. Eu assustada, tão corada que minhas orelhas
queimavam, ele, relaxado, como se nada naquela cena estivesse errado. Na
outra extremidade Bruna nos encarava com os braços cruzados e olhos
estreitos.
— Bom dia, Bruna — Bernardo disse, tranquilo, leve como alguém
que acredita não ter transgredido nenhuma lei.
— Ora, de fato um bom dia, não? — Minha irmã rebateu, os olhos
fixos em mim. — Mamãe está preocupada. Você deixou o celular no quarto,
sua cama estava intocável e nenhum segurança sabia dizer nada sobre o seu
“sumiço” — ela fez aspas com os dedos em uma atitude provocativa.
— Eu… bom… eu estava…
— Comigo — Bernardo revelou sem qualquer abalo, e, para
completar, me puxou para seus braços e depositou um beijo casto no meu
ombro. — Ela estava comigo, Bruna.
Minha irmã revirou os olhos e entortou a boca.
— Isso todo mundo consegue deduzir. Basta olhar para vocês, ou
melhor, olhar para Laura com a mesma roupa de ontem, só que toda…
desmazelada — alfinetou com uma careta de reprovação.
— Desmazelada? — Preocupada, levei uma mão ao cabelo e outra à
saia para desamassá-la. — Eu…
— Ela está atrasada, Bruna —- Bernardo assumiu mais uma vez a
conversa. — E você também. Por favor, peça para Carlos te levar à escola e
eu cuidarei para que Laura não se atrase mais, certo?
— Se você diz.
Minha irmã me deu um olhar desconfiado, mas desistiu de me
atormentar e nos deixou em paz. Respirei fundo, os batimentos pulsando em
minha garganta, as mãos suadas. Bernardo não me deu tempo para
reorganizar os pensamentos, ele me segurou pela mão e me fez cruzar todo o
espaço comum, cumprimentamos alguns empregados que nos olharam com
surpresa e em seguida subimos as escadas que me levavam até a minha ala.
Assim que abrimos as portas e entramos, ouvi a voz da minha mãe.
— Tem certeza de que ela não está na sala dela? — ela dizia.
— Ah, droga! — gemi, completamente desconfortável com aquela
situação. — É melhor você ficar aqui —- alertei Bernardo ao interromper a
sua marcha.
— Não! — ele rebateu como se eu tivesse dito o pior de todos os
absurdos.
— Mas…
— Laura, não — ele repetiu firme, as pupilas dilatadas quase que
tomando todo o azul das íris hipnotizantes, a mão na minha nuca. — Não.
— Droga!
— Laura?
Minha mãe chamou do quarto. Fechei os olhos ao reconhecer os
passos apressados e me preparei para o embate. Lábios calmos e doces
tocaram os meus antes de eu precisar encarar minha mãe, e, como mágica,
eu me acalmei. Um pouco, mas teve efeito.
— Laurinha? Eu… oh! — ela demonstrou surpresa como eu imaginei
que seria.
— Bom dia, mãe — minha voz baixa, quase dominada pela
vergonha, me impedia de ir além disso.
— Bom dia, Sara.
Bernardo mantinha-se da mesma forma, sem qualquer abalo ou
medo, quem dirá vergonha. Não, ele tratava tudo da forma como eu deveria
tratar, mas não conseguia.
— Eu liguei para você — ela começou, os olhos fixos nos meus,
aguardavam por qualquer indício de problema. Meu rosto esquentou.
Bernardo fechou os dedos nos meus e se aproximou o máximo permitido
para me apoiar.
— Eu esqueci o celular no quarto. Desculpe.
— Onde você estava?
Minha mãe conferia meu corpo, a roupa da noite anterior amarrotada.
Eu não escaparia da sua avaliação, até mesmo meu cabelo molhado e solto.
Depois ela observou Bernardo em toda a sua beleza e perfeição, as roupas
trocadas e alinhadas, o cabelo levemente bagunçado pela nossa tentativa
falha de burlar as regras. Então ela compreendeu. Esse foi o momento mais
vergonhoso daquela manhã.
Dona Sara sabia que eu não era mais virgem. Ela soube quando eu
dei aquele passo com Vicente, mas depois disso, como não vivi nenhuma
nova história de amor, guardei para mim as aventuras sem compromisso. Por
isso minha inabilidade no assunto. Como eu poderia dizer: mãe, eu descobri
que amo o Bernardo e agora dormimos juntos? Claro que eu não diria nada
parecido com isso.
Podia ser infantilidade, uma falsa e hipócrita moralidade, ainda
assim, era a minha mãe, a mulher que me deu colo para meus choros por
causa de um relacionamento desastroso, a mesma que se tornou minha
amiga, para quem eu dizia tudo. Não, não havia como justificar odiar
Bernardo, querer distância da família em um dia e no outro dormir com ele.
— Comigo, Sara — Bernardo respondeu ao se dar conta de que eu
não conseguiria responder.
— Oh! — ela disse, de repente não mais na defensiva, com o rosto
avermelhado assim como o meu. — E vocês estão…
— Namorando? Sim.
— Hum.
Ela voltou a me procurar com os olhos. Eu estava praticamente
escondida atrás de Bernardo, uma atitude vergonhosa para alguém com a
minha idade.
— Laurinha?
— Oi, mãe.
Todos ficaram em silêncio, o que fez minhas orelhas arderem ao
entender que aguardavam por minhas palavras. Engoli com dificuldade.
— Hum… sim, estamos namorando.
— E por que se esconde desse jeito? — ela ralhou. — Se estava
namorando com o Bernardo era só dizer e não nos deixar preocupados.
Bernardo deu uma risadinha baixa e curta que me fez encará-lo com
reprovação. Mas ele não facilitaria para mim, e eu já deveria saber disso.
— Então, Laura, por que se esconde desse jeito? — ele repetiu o que
minha mãe disse, apenas para me deixar mais sem graça.
— Eu… — rosnei a palavra, então me dei conta de que minha atitude
poderia fazer com que minha mãe imaginasse bobagens. Limpei a garganta
para continuar. — Eu não queria contar enquanto a senhora não estivesse
totalmente recuperada — menti.
Bernardo estreitou os olhos ao me encarar.
O que ele queria que eu dissesse? Mãe, não contei antes porque não
existia o antes. Tudo aconteceu ontem. Rápido demais? Oh, mãe, sinto
muito, mas Bernardo é um furacão implacável e… claro que eu não diria
nada disso. Podia ser moralismo hipócrita, mas eu não diria a minha mãe que
tudo começou como uma transa sem compromisso.
— Recuperada? Sei. — Dona Sara passou por mim com aquele jeito
desconfiado. — Como se ninguém tivesse notado o que vocês faziam.
— O que… o que fazíamos? Eu…
Bernardo deu uma risada alta e minha mãe, com o auxílio de Daniela,
desceu as escadas sem nos dar importância.
— Não se esqueçam de avisar ao Fernando que ninguém os
sequestrou — ela resmungou.
— Puta merda — rosnei baixinho. — Ela avisou a todo mundo.
— Ao Fernando — Bernardo ressaltou as minhas costas. — E foi
melhor dessa maneira.
— Por quê?
Como resposta ele enlaçou minha cintura e me puxou para perto.
— Para que ele saiba que não tem nenhuma chance com você.
— Fernando? Meu Deus, Bernardo — foi a minha vez de rir. — Você
não percebe nada mesmo.
Eu me desfiz do enlace e andei na direção do meu quarto. Logo meu
namorado acompanhava meus passos.
— O que você quer dizer com isso?
— Então você acha que o Fernando está interessado em mim? —
provoquei, disposta a me vingar do que ele me fez passar pouco antes.
— Lógico que ele estava interessado em você, Laura. Toda aquela
atenção, cuidado.
Eu dei um sorriso sacana e entrei no quarto, ele me acompanhou.
— Ei, o que faz aqui?
— Como assim? — ele riu ao se jogar na minha cama e abraçar meu
travesseiro. — Tem o cheiro do seu perfume.
— Qual perfume?
— O infantil. Aquele que você usa quando não vai para a empresa.
Parei por alguns segundos, surpresa.
— Como sabe qual perfume eu uso quando não vou para a empresa?
— Eu sinto o seu cheiro, Laura. E é delicioso — revelou sem se
alterar.
— É um perfume infantil!
— Pois é — ele me deu um sorriso escroto. — Dá vontade de te
abraçar e dormir com o nariz enfiado em seu pescoço.
Pensei em muitas coisas para falar, mas não encontrei nada
adequado. Aquela revelação deveria me perturbar, mas ao invés disso, me
deixou mais apaixonada. Ele conhecia meu cheiro. O cheiro do meu perfume
preferido. Ele… revirei os olhos e entrei no closet. Se algum dia eu tive a
chance de resistir a Bernardo, esta evaporou.
“E cada verso meu será pra te dizer
Que eu sei que vou te amar
Por toda a minha vida”
Eu sei que vou te amar - Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 45
BERNARDO

Ao contrário de mim, Fernando não ostentava uma vida de luxo, apesar de


poder. Este ponto nunca me incomodou até aquele momento, quando
estacionei o carro na vaga de visitantes do prédio onde ele morava e me dei
conta do quanto fútil e superficial eu fui. Não que usufruir do dinheiro que
era meu por direito me constrangesse, mas era a forma como eu, até aquele
momento, não olhava para os lados e enxergava as diferenças gritantes ou,
como não me importava com nada além do que existia para mim.
Já Fernando fazia tudo diferente. O cara perfeito, pensei com
remorso. Meu pai o amava como a um filho, via nele o advogado que eu não
fiz questão de ser, se orgulhava da postura dele, a qual eu nunca fiz questão
de imitar, e até repudiava. Fernando vivia bem, mas poderia viver melhor e
eu nunca entendi as suas escolhas. Até Laura mudar tudo em mim.
Por medo de perdê-la, ainda que eu não tivesse isso em mente, todas
as qualidades do meu rival saltavam aos meus olhos. Ele era gentil e
generoso. Eu era gentil, não me diminuiria tanto assim, e até era generoso,
contudo, não como deveria. Fernando vivia na generosidade e quando falo
em generosidade não me refiro a doações financeiras. Se o nosso combate
tivesse apenas essas armas eu ganharia, não por louvor. Ele era atencioso,
cuidadoso, disposto a ajudar, honesto, ou seja, era o príncipe pelo qual
qualquer garota se apaixonaria. O príncipe por quem Laura deveria se
apaixonar.
Mas ela me escolheu e eu não era altruísta ao ponto de abrir mão do
que ela me ofertava só pelo fato de não merecê-la. Então eu tinha Laura, a
amava, e não abriria mão do que queria viver com ela, logo, se esta era a
minha escolha, haveria também a obrigação de me tornar um homem
melhor, de merecê-la. Para tanto, Fernando, por mais que me desagradasse,
tornou-se necessário.
E como não queria que Laura interferisse em minhas decisões, não
avisei a Fernando que o visitaria. Um erro clássico, admito. Eu podia ter
perdido a viagem e não encontrá-lo em casa, ou poderia interrompê-lo em
um momento mais íntimo. Porém não vi outra oportunidade naquele sábado
ensolarado em que Laura acompanhou a mãe a mais uma consulta médica
proveniente do atentado de Vicente. Esse era um dos poucos problemas
existentes em um namoro sob o mesmo teto, era quase impossível agir sem
que Laura soubesse dos meus passos.
Então aproveitei todos os pontos que me favoreciam. Liguei para
meu administrador e solicitei a minha liberação para uma visita sem
justificativa em um dos meus imóveis no mesmo prédio em que Fernando
morava. Jogo sujo, eu sabia, apesar disso, preferi agir de forma a impedi-lo
de alertar Laura, pelo menos até que eu conseguisse expor o que queria. Por
isso, entrar no condomínio e acessar a torre correta não foi nenhum
problema. Este só surgiu quando Fernando abriu a porta e a sua surpresa
chamou a minha atenção.
— Bernardo? — Ele olhou para trás, um tanto quanto preocupado,
agitado de certa forma.
— Desculpe não avisar, mas eu vim inspecionar uma das minhas
unidades que apresentou um problema — inventei de última hora. — E
precisava falar com você. Cheguei em uma hora ruim?
Desconfiado, destravei a tela do celular e conferi se Laura me enviou
alguma mensagem. Eu não deveria. Não era nem justo ter aqueles
pensamentos, mas todos os pecadores viviam com um peso sobre os ombros,
o que gerava o medo, a desconfiança e o ciúmes. Minha mãe dizia que
Satanás espreitava os fracos, colhia seus erros e na hora certa, cobrava seus
favores.
Engoli com dificuldade ao constatar que não havia nada de Laura em
meu celular e conferir a cara de preocupado de Fernando, ainda à frente da
porta, sem me convidar para entrar.
— Não. Na verdade… é que eu…
— Consegui — a voz feminina soou de algum lugar de dentro do
apartamento. Fernando empalideceu ao me encarar e eu, pego pela surpresa,
agi.
— Sabrina?
Chamei sem aguardar pelo convite de Fernando. Passei pelo homem
parado à porta e fui em busca da minha irmã.
No meio da sala, descalça e com a blusa solta por cima da saia,
minha irmã, com o celular em uma mão e uma taça na outra, me encarava
com o mesmo pavor de Fernando. Que porra era aquela?
— Sabrina? — voltei a chamar. — O que faz aqui?
Minha irmã demorou a responder. Ela levou longos segundos com os
olhos fixos em mim, sem mexer um único dedo, depois encarou Fernando
quando a porta se fechou e o diretor jurídico do nosso grupo empresarial
passou por mim, parando a uma distância segura de Sabrina.
Então, como se não houvesse nada a ser explicado ali, ela se
endireitou, assumiu a postura de sempre, cheia de si, colocou a taça sobre a
mesa de centro e sorriu como se eu não a tivesse surpreendido muito à
vontade na casa de um homem que, teoricamente, ela detestava.
— Bernardo? O que faz aqui? — desafiou com aquela voz de
comando.
— Eu perguntei primeiro.
— Que engraçado, não? — Minha irmã cruzou os braços na frente do
peito e me encarou.
— Você não deveria estar em…
— Estava. Voltei hoje cedo e vim conversar com Fernando sobre o
meu processo de divórcio.
— Sei.
Voltei minha atenção para Fernando, que se mantinha calado, atento
a movimentação constrangedora no meio da sua sala. Ele, também à
vontade, aliás, muito à vontade com uma calça de pijama e sem camisa, com
certeza não se parecia em nada com um advogado em reunião com uma
cliente.
— Sua vez agora — ela provocou. — O que faz aqui?
Foi a minha vez de me atrapalhar. De todas as pessoas envolvidas nas
minhas escolhas, minha irmã era a que pior reagiria quando descobrisse o
que eu pretendia fazer. E ela saberia, claro, mas na hora certa. Não antes de
Laura e definitivamente, não antes de eu ter ajustado tudo para que ninguém
conseguisse me impedir de agir.
— Laura sabe que você está de volta?
A pergunta mexeu com Sabrina. Apesar de tudo o que aconteceu e
das mudanças nítidas ocorridas em nós dois, Sabrina ainda lutava contra o
diabinho do ego. Para ela sempre seria difícil se reportar a Laura, ou a
qualquer outra pessoa menos qualificada.
— Saberá quando eu chegar em casa.
Ela buscou os sapatos e sentou no sofá para calçá-los. Observei
Fernando se frustrar ao assistir minha irmã se preparar para ir embora e por
um segundo senti um pequeno incômodo por atrapalhá-los. Mas passou
rápido quando relembrei o motivo da minha visita.
— Agora, Bernardo — ela disse ao se levantar e pegar a bolsa. — Eu
preciso ir. Obrigada, Fernando. Por favor, me mantenha informada em
relação ao meu pedido ao juiz.
— Claro — ele disse, sem graça, o rosto corado e sem olhá-la
diretamente. — Pode deixar.
Em atos suspeitos, eles se despediram. Havia um segredo ali que
ambos acreditavam esconder e eu fingia não perceber. Sabrina era maior de
idade e Fernando… bom, antes aquele olhar apaixonado sobre minha irmã
do que sobre Laura. Estremeci com a ideia. Com certeza o diabo ria às
minhas costas diante dos meus temores.
— Hum — ele disse pouco à vontade. — Do que você precisa?
Coloquei as mãos nos bolsos da calça e andei pela sala um tanto
quanto incomodado por tratar daquele assunto com Fernando usando apenas
uma calça de pijama.
— Laura quer me devolver as ações — fui direto ao ponto.
— Sim, ela quer, mas acima do querer existe a obrigação. As ações
são suas. Seu pai foi claro… — Ergui a mão para impedi-lo de continuar.
— Eu sei o que Laura precisa fazer. A questão não é essa.
— Você não quer as ações. Laura me falou. Sinceramente? Isso é
loucura, Bernardo.
Ele passou por mim, pegou uma camisa básica largada de qualquer
jeito entre as almofadas, o que me obrigou a pensar nele com a minha irmã e
com isso, ter meu estômago revirado.
— Você tem noção do valor dessas ações? — Questionou enquanto
vestia a camisa.
Desviei os olhos, de repente arrependido por ter insistido naquele
encontro. Não pelo assunto, mas por precisar assistir Fernando se vestir
depois de ter feito sabe-se lá o que com a minha irmã.
— Nenhuma pessoa com a sanidade mental em perfeitas condições
abriria mão disso.
— Então eu sou uma pessoa com problemas mentais — afirmei. Ele
deu uma risada irônica e ligou a cafeteira. — São quase meio-dia, Fernando.
— O rapaz procurou pelas horas no celular e ficou surpreso.
— Eu preciso de um café — admitiu. — Então, se veio aqui para
solicitar que convença Laura a não te devolver as ações, você sabe tão bem
quanto eu que não posso fazer isso.
— Teoricamente ela nem precisa me devolver. O testamento é o que
vale e neste as ações são dela.
Ele deu outra risadinha irônica, que me irritou.
— Você subestima seu pai. — Fernando pegou a caneca com café e
sentou à minha frente. — O testamento oficial está com o meu pai e logo
será apresentado ao juiz. Na verdade, Laura quer aguardar pelo divórcio de
Sabrina, mas vamos apresentar ao juiz um pedido de dissolução diante dos
delitos do Vicente.
— Então ainda teremos alguns meses pela frente?
— Eu não contaria com isso. Sabrina é influente o suficiente para
conseguir essa resolução em pouco tempo.
— E levando-se em conta a vontade dela de assumir o cargo… —
resmunguei, aborrecido com a maneira como as coisas aconteciam para me
atrapalhar.
— Verdade.
Desta vez Fernando não deu uma risada irônica, mas abriu um sorriso
apaixonado, o que tinha o mesmo peso em meu aborrecimento.
— Sabrina me contou que você vai deixar o grupo.
— Vou.
— E já sabe o que vai fazer? Vai investir em alguma coisa, ou viajar
pelo mundo?
Foi sutil, no entanto soou em mim como um golpe de espada no meio
do meu peito. Claro que Fernando, e para ser bem honesto, todos os que me
conheciam, acreditariam que eu, livre da obrigação do trabalho, ganharia o
mundo sem nunca mais olhar para trás. Eu merecia aquilo.
— Não — respondi com calma. — Laura quer estudar, trabalhar,
viver como uma pessoa normal.
Ele estreitou os olhos, curioso quanto à informação.
— E eu não iria a nenhum lugar sem ela.
Atento a mim, Fernando abriu um sorriso, tomou mais um gole do
café e encostou no sofá, relaxado.
— Se é dessa forma, esse é mais um motivo para ela devolver essas
ações. Laura pensa que te manter no grupo, fazer com que você se interesse
pelos negócios da família, é a missão deixada pelo Sr. Quaresma.
— Eu sei — respondi de má vontade.
Fernando conhecia tão bem Laura, que atiçava o meu ciúme, ainda
que ele estivesse dormindo com a minha irmã.
— Então, no que posso te ajudar? Sinceramente, até agora não
entendi o que você quer de mim.
— Laura nunca aceitará a minha desistência das ações.
Ele concordou sem nada dizer, os olhos atentos em mim.
— E eu não terei paz se continuar usufruindo disso. — ele se
manteve em silêncio. — Eu poderia vender as ações a Sabrina ou até
mesmo, deixar que ela gerisse tudo por mim, mas Laura tem razão, não
posso dar as costas para o que meu pai lutou para construir.
— E o que você tem em mente?
— Vou fundar uma instituição, ou uma ONG, ainda não sei ao certo.
Fernando se ajeitou no sofá, interessado no que eu dizia.
— Eu quero usar o dinheiro gerado pelas ações para financiar bolsas
de estudos.
— Bolsas de estudos?
— Isso.
Não esperava me explicar sobre aquela decisão, mas pelo visto,
Fernando aguardava por uma justificativa que o motivasse a me ajudar.
— Laura quer ser enfermeira. Esse é o sonho dela. Não é medicina
como muita gente pensa. Ela quer ser enfermeira.
— Hum! Você sabe que agora Laura pode bancar esse sonho, certo?
— Essa é a questão! — Eu anunciei com animação. — Hoje ela
pode, mas antes não conseguia, entende? Laura é a pessoa mais interessada
que eu já conheci. Não, Sabrina também é desse jeito… Enfim, Laura se
esforçou durante anos, abriu mão do sonho dela para ajudar a família. Eu
quero alcançar essas pessoas, Fernando. Quero encontrar as pessoas que
farão diferença na vida se tiverem a oportunidade certa.
Outra vez o silêncio imperou entre a gente e tornou-se incômodo,
pois Fernando me encarava como se tentasse enxergar dentro de mim e nada
dizia, como se a minha ideia fosse a mais absurda de todas as que ele ouviu
até então.
— E no que eu posso te ajudar exatamente?
— Nas questões jurídicas?
— Você é advogado, Bernardo.
— Não sou. Eu tenho diploma porque meu pai fez muita questão.
— Ok! Vamos aos detalhes. Você quer que eu constitua a fundação,
defina o capital social, faça os trâmites jurídicos…
— Você sabe o que fazer.
— E você?
— Eu? Eu vou contratar um administrador, um contador e todos os
funcionários necessários. Vou elaborar o projeto, definir as bases, adquirir
uma sede, estabelecer os custos… essas coisas.
— Hum! Certo. E qual o nome? Eu preciso de um nome para
constituir a empresa.
— Laura Lacerda.
Fernando me encarou com um misto de choque e deleite.
— Você vai criar um problema — ele me alertou com um sorriso
escroto no canto dos lábios.
— Eu sei.
“Com essa luz que veio me habitar
Com esse fogo que faz arder
Me dá medo e vem me encorajar
Fatalmente me fará sofrer”
Escravo da Alegria - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 46
LAURA

A ideia de ir até o Fernando surgiu quando cheguei em casa e não encontrei


Bernardo. Conferi o celular sem mensagens sobre o seu paradeiro, o que me
deu coragem para agir. Claro que eu poderia ter aquela conversa em um dia
de semana em horário comercial, afinal de contas, ninguém desconfiaria se
eu chamasse o diretor jurídico do grupo para uma conversa em minha sala. E
era o que eu faria, sem alertar Bernardo, sem dar qualquer chance a ele de
tentar me dissuadir.
Cheguei em casa com a ideia fixa de que não aguentaria mais um dia
com as ações da empresa, disposta a colocar os pés outra vez na estrada da
minha vida. Fiz a minha parte, cumpri com o que o Sr. Quaresma me pediu
então não havia motivo para continuar com aquela farsa. E a vontade
angustiante de iniciar meus projetos se acentuou no hospital, no convívio
com as enfermeiras, nas conversas e trocas de conhecimento. Eu queria
aquilo. Eu necessitava daquilo.
E é como dizem: a ocasião faz o ladrão. Não encontrar Bernardo em
casa e não ter qualquer noção sobre seu paradeiro foi o que eu precisava para
agir. Deixei minha mãe em casa, chamei Carlos e segui na direção da casa do
Fernando. Se era para fazer aquilo, eu precisava fazer direito. Liguei para
meu amigo quase na porta da casa dele e respirei aliviada quando ele me
contou que poderia me atender.
— Hoje é mesmo um dia atípico — ele comentou assim que abriu a
porta e me deu passagem.
— Por quê?
— Digamos que estou me sentindo como se estivéssemos na empresa
e eu entrando e saindo de reuniões. Aceita uma bebida?
Pisquei, confusa, mas sentei no sofá quando ele o indicou com a
oferta.
— Uma água, por favor.
Fernando caminhou até a cozinha e em pouco tempo retornou com a
minha bebida. Ele sentou no sofá à minha frente e aguardou por mim, e, de
fato, agia como se aquela fosse mais uma reunião em uma longa manhã de
trabalho.
— Aconteceu alguma coisa? — Eu quis saber.
— Por quê?
— Nada. Só achei estranho o seu comentário.
— Ah! É que a família Quaresma ocupa meu tempo até mesmo
quando não estou a trabalho.
— Hum! — Bebi a água e coloquei o copo sobre a mesinha entre os
dois estofados. — Eu não sou uma Quaresma.
Fernando abriu um sorriso cúmplice e relaxou.
— Tem razão. Sobre qual parte do testamento vamos tratar?
— Como sabe que estou aqui por causa do testamento? — ele
ampliou o sorriso.
— Digamos que esse é o assunto do ano.
— Hum! — voltei a murmurar. — Eu quero adiantar o processo. —
Fui direto ao ponto.
— Qual parte do processo?
— Todo o processo. — Fernando mordeu as bochechas, pensativo.
— Sabrina ainda não conseguiu o divórcio.
— Eu não me importo — explodi. — Eu não me importo, Fernando.
Levantei do sofá e caminhei pela sala como se aquela necessidade de
repente não tivesse mais qualquer controle.
— Quero fazer logo essa transição, devolver o cargo a Sabrina e…
e… seguir com meus planos.
— Ok, Laura! Você pode devolver o cargo a Sabrina, não há
qualquer problema quanto a este ponto. Basta comunicar oficialmente o seu
afastamento e a nomeação de Sabrina. O problema são as ações. Meu pai
não entregará o testamento legítimo enquanto não acontecer como o Sr.
Quaresma especificou.
— Ai, meu Deus! — choraminguei. Derrotada, caminhei de volta ao
sofá e me deixei cair. — Por que mesmo eu aceitei essa loucura?
— O que te preocupa tanto?
— Tudo! Sabrina quer assumir o cargo e eu só quero ingressar na
faculdade de enfermagem. As inscrições começam agora, se eu esperar só
vou poder iniciar no próximo semestre. Além disso, Bernardo deixará o
grupo. Ele está irredutível quanto a esta decisão, logo eu falhei.
— Não falhou.
— Falhei! Bernardo não faz ideia do que vai fazer da vida. O Sr.
Quaresma desejava que o filho se encontrasse e eu achei que ele se
encontrou na empresa, mas me enganei. Bastou ter conhecimento da carta
para que ele simplesmente desistisse de tudo.
— Talvez você esteja exigindo demais de si mesma e do Bernardo.
Fernando levantou, pegou o copo sobre a mesinha, foi até a cozinha e
voltou com ele cheio outra vez. Sem que eu tivesse pedido, ele o estendeu
para mim. Eu o aceitei, certa de que ele me via como uma louca histérica.
— Bernardo vai me matar por eu te contar isso — ele disse enquanto
eu sorvia a água como se minha garganta estivesse seca.
— Bernardo?
— Ele esteve aqui um pouco antes de você chegar.
— Bernardo? — repeti, incapaz de compreender o que Bernardo
faria na casa do Fernando em um sábado pela manhã. Em especial porque
eles não eram amigos. Meu namorado nem gostava do meu amigo.
— Na verdade você ligou assim que ele desceu pelo elevador.
— Bernardo?
Fernando deu um sorriso escroto e me olhou com curiosidade.
— Certo. Bernardo estava aqui. E o que ele queria?
— Esse é o ponto. Ele vai me matar por eu te contar, então facilite
para mim.
— Está ficando cada vez mais estranho.
— Acredite, eu também achei isso.
Então Fernando narrou os planos do meu namorado, que, lógico,
aconteceriam tão logo ele colocasse as mãos sobre as ações que ainda
estavam sob a minha proteção. Eu vivi um misto de sentimentos. Medo de
Bernardo fazer aquilo por estar confuso depois de tantos acontecimentos
conflituosos. O cara me pediu em casamento, pelo amor de Deus! Era nítido
que não havia muita razão agindo naquela cabeça.
Também tive raiva por ele não ter conversado comigo, não ter
compartilhado o que planejava, em especial por desejar colocar o meu nome
naquele projeto que era… incrível. E esta era a questão. No meio dos
sentimentos ruins havia uma porção imensa de orgulho, amor, gratidão e…
não sei nomear, mas havia muito disso também.
Porque Bernardo sem as ações que ainda estavam comigo já tinha
dinheiro para viver com luxo até o último dia da sua vida. Em posse da sua
herança, ele podia só tirar o melhor proveito da vida, sem se preocupar com
nada e nem ninguém.
Mas o que ele fez? Quando se viu livre das amarras que aceitou para
agradar ao pai, ainda que sem noção do que faria da vida, ele escolheu ser
mais. Bernardo podia ser tudo: astronauta, vocalista de uma banda de rock
ou até mesmo diretor comercial do grupo Quaresma, no entanto ele não
queria nada disso. Ele não queria nenhuma profissão, não se encontrava em
nada, mas podia tudo. Por isso resolveu ajudar as pessoas que queriam muito
uma profissão, mas não podiam investir em uma formação adequada.
Como não amar esse cara? Como não liberar as lágrimas que se
avolumavam em meus olhos? E só assim meu coração se apaziguou. Aquele
era o encontro de Bernardo com ele mesmo. Porque ele tinha um coração tão
grande, uma mente tão generosa, que não caberia em nenhum lugar,
nenhuma profissão, nenhuma empresa.
— Meu Deus, Bernardo é louco — sussurrei entre o choro e o
sorriso.
— Sinceramente? Acho que em momento algum vi o Bernardo dar
um passo tão certo em toda a minha vida.
Concordei com Fernando, não sem antes derramar outras lágrimas.

— A senhorita está bem?


Carlos perguntou depois de me observar pelo retrovisor e me ver
incapaz de conter as lágrimas. Eu sorri, ciente de que se não lhe desse um
motivo justo ele me atestaria como louca.
— Estou ótima, Carlos.
Limpei as lágrimas com as costas das mãos, ainda que soubesse que
novas continuariam caindo.
— Está tudo certo com a Dona Sara?
— Sim. Minha mãe está ótima. Obrigada por perguntar.
Ele me deu um olhar rápido e estranho enquanto conduzia o carro
pelas ruas sem movimento.
— Você tem filhos? — eu perguntei.
Na verdade queria poder gritar para as pessoas que havia naquele
mundo um homem generoso ao ponto de abrir mão de uma fortuna para que
pessoas como Carlos, como eu, pudessem ter melhores oportunidades. No
entanto, eu nada poderia dizer. Muito havia a ser feito, estudado, analisado.
A ideia ainda no papel precisava de passos pequenos e constantes. Como
conter aquela euforia? Como esperar até que finalmente tivéssemos um
nome, uma cara, uma estrutura?
— Tenho dois rapazes — ele disse com um sorriso discreto e os
olhos atentos à rua. — Um de 15 e outro de 13 anos. Bons garotos.
Estudiosos. — O orgulho na voz do meu motorista alimentou a minha
emoção.
— Que maravilha! O que eles querem fazer, já têm alguma ideia?
— O de 15 quer ser piloto de avião — ele riu em um misto de
orgulho e descrença. — O de 13 disse que quer ser empresário.
— Empresário?
— Crianças, dona Laura. Eles ainda tem tempo para pensar. Eu é que
preciso ter saúde para auxiliá-los até onde posso, não é?
Meu coração inflou. Há alguns meses eu vivia esse desencontro da
vida. Abri mão do meu sonho porque precisava de uma resposta rápida para
ajudar em casa e investir na Bruna. Precisou que um bom homem olhasse
para mim e decidisse que eu merecia uma chance. E então, como se não
bastasse a generosidade do Sr. Quaresma, Bernardo, sem se dar conta disso,
seguia os passos do pai e o ampliava em uma atitude linda e nobre.
Graças a Deus ele não estava ali naquele momento, porque eu me
sentia tão feliz e grata que diria sim caso ele me pedisse em casamento outra
vez. Uma loucura. E, lógico, eu me arrependeria quando entrássemos na
esquina para a nossa casa.
Ri sozinha quando percebi que Carlos diminuía a velocidade.
Estávamos quase no condomínio, não havia trânsito, nada que nos
atrapalhasse. Mas eu só percebi quando já era tarde demais. Carlos
desacelerou e segundos depois um estopim se misturou ao barulho de vidro
se partindo e ao gemido do meu motorista, alvejado por um tiro que o
atingiu sem qualquer chance de defesa.
— Carlos!
Eu gritei, assustada, sem conseguir assimilar a real situação e deitei
no banco de trás por puro reflexo. Atrás de nós estava o carro com os
seguranças, eu sabia disso. Novos disparos, alguns atingiram a lataria do
meu carro e ecoavam do lado de dentro me atirando no verdadeiro inferno.
Não sei mensurar o tempo da ação. Em pânico, o tempo se arrastava
sem que eu tivesse noção do que acontecia. O barulho dos disparos parecia
ensurdecedor e causava eco em meus ouvidos, como se precisasse disso para
me desestabilizar. Em seguida o silêncio se fez. Abri os olhos, congelada no
banco de trás, sem conseguir que meu corpo aceitasse qualquer comando.
Alguém abriu a porta do motorista, puxou Carlos para fora e o largou como
se despejasse o lixo.
— Carlos? — O nome reverberou em mim sem me deixar saber se eu
o falei ou só pensei com desespero, no meu motorista.
Um homem se sentou no lugar onde antes Carlos estava. Usava
capacete, o corpo coberto por roupa de couro preta e luvas nas mãos. Ele deu
partida e arrancou com o carro. Em pânico eu me mantinha quieta, incerta se
aquela pessoa me salvava ou me prendia. E tive essa confirmação ao
constatar a velocidade cada vez maior, as curvas mais acentuadas, a fuga
certa.
Com os olhos fixos na figura ao volante, observei cada movimento,
certa de que precisava agir. Apenas uma pessoa arriscaria tudo, atiraria em
um funcionário da família Quaresma e me sequestraria. Vicente. Engoli o
pavor e, com movimentos lentos, procurei por minha bolsa, conferi o espaço
e minha posição e estudei a possibilidade de abrir a porta e me jogar.
Contudo, eu não previa um plano tão elaborado por parte do meu ex-
noivo. Quando minha mente ganhou consciência o suficiente para buscar a
minha salvação, ele fez uma curva brusca e freou o carro. Meu corpo atingiu
os bancos da frente com força e todo o interior do carro escureceu. Por um
segundo acreditei que a pancada na cabeça causou a sensação de escuridão,
até que Vicente abriu a porta do carro com violência e desceu.
Sem a iluminação adequada, eu vi quando ele arrancou o capacete e
o atirou dentro do carro. Segurei a bolsa com pressa, disposta a esconder
meu celular, mas não houve tempo. Vicente abriu a porta traseira e me puxou
para fora sem preocupação quanto à minha integridade física. Ele puxou a
bolsa da minha mão e me atirou contra a carroceria do carro.
— Como vai, Laura?
Havia ironia em sua voz e, apesar de não enxergar o rosto daquele
que poderia me matar sem qualquer golpe de consciência, eu tive a certeza
de que ele sorria. Tentei olhar ao redor e reconhecer onde estávamos, mas,
exceto por uma abertura do tamanho de um portão, um pouco distante de
onde estávamos, que permitia que a luz invadisse e ofuscasse o lado de fora,
era só escuridão do lado de dentro.
Pulei de susto quando ele atirou meu celular no chão e pisou sobre
ele seguidas vezes, até que a tela se tornasse um mosaico com poucos pontos
de luz.
— Eles vão me encontrar — ameacei. — Eles logo saberão que foi
você e onde eu estou.
— Tem certeza? — ele ainda mantinha a ironia na voz quando se
aproximou de mim e me imprensou contra o carro.
O desespero me fez fechar os olhos e me encolher o máximo
permitido. Vicente segurou meu queixo com força e lambeu meu rosto. Eu
reagi, me debati e o empurrei, mas não havia como contê-lo. Vicente era
mais forte do que eu, mais esperto, sabia como dominar uma pessoa e
incapacitá-la, por isso em pouco tempo tudo o que eu conseguia fazer era
manter minhas mãos entre nossos corpos colados.
— Senti sua falta — ele sussurrou em meu rosto. — Por que você foi
tão burra, Laura?
— Assassino — rosnei. — Eu te odeio! — Ele riu, forçou os dedos
em minha mandíbula e me impediu de falar.
— Gosto quando você fica desse jeitinho, toda nervosinha.
Eu me esforcei, dei o meu melhor para impedi-lo, e ainda assim
Vicente juntou os lábios nos meus e me beijou com posse. O nojo fez meu
estômago se contorcer. Com raiva, mordi a língua dele quando ele ousou
enfiá-la em minha boca.
— Sua…
Um tapa forte atingiu meu rosto e me atirou no chão.
— Sua cadela — ele esbravejou ao me puxar pelo cabelo e colar o
rosto ao meu. — Se é assim que você quer, então será desta forma.
Vicente prendeu minhas mãos com uma algema. Eu lutei, disposta a
morrer. Nada o impediu. Assim que meus braços, voltados para trás, não
tinham mais poder de ação, ele levantou e me puxou para cima com
brusquidão.
— Socorro!
Gritei o mais alto possível, a voz arranhando minha garganta e
ecoando pelo espaço vazio e escuro ao nosso redor. Vicente riu sem me
impedir, mas quando abri a boca para repetir o meu pedido de ajuda, ele
enfiou um pano embebido em algo forte que agiu rápido em mim. Meu
corpo amoleceu, minhas pernas cederam, minha língua ficou dormente.
Antes de eu cair no chão e apagar, ainda ouvi a risada diabólica e tive a
certeza de que ele me mataria.
“É verdade eu reconheço
Eu tantas fiz
Mas agora tanto faz
O perdão pediu seu preço, meu amor
Eu te amo
E Deus é mais”
Samba de volta - Toquinho / Vinícius de Moraes

CAPÍTULO 47
BERNARDO

O alívio me atingiu quando estacionei o carro e não avistei o que Carlos


dirigia. Era melhor que Laura não desconfiasse da minha saída. Fernando
tinha razão, ela não aceitaria que eu fizesse aquilo por ela, usaria diversos
argumentos para me convencer a homenagear meu pai, minha família ou até
mesmo, para não homenagear ninguém, só fazer. No entanto, não tinha
sentido criar uma instituição pensada e inspirada na história dela e colocar o
nome de outra pessoa.
Apesar de reconhecer o quanto minha namorada colocaria resistência
em relação a minha ideia, eu contaria a verdade. Não havia mais espaço para
segredos e mentiras em nosso relacionamento. Se escondi de Laura o que
faria com as ações que ela insistia em me devolver, foi apenas por necessitar
de mais amparo legal, tornar a ideia mais concreta e viável. Então, entrei em
casa decidido a esperar pelo retorno dela e termos aquela conversa. E me
surpreendi com Bruna e Sara na área da piscina, absortas em um jogo de
cartas.
— Laura está em casa? — perguntei a uma das empregadas que
apareceu na sala.
— Não, Sr. Bernardo. Dona Laura saiu com Carlos depois que
deixou a mãe aqui.
— Saiu?
Ela fez uma cara de assustada, sem uma resposta satisfatória para me
dar. Dispensei a mulher com a mão e procurei o contato de Laura no meu
celular. Caixa postal. Tentei mais duas vezes sem obter sucesso. Sem ter
outra fonte de informação, resolvi descobrir através de Sara o paradeiro da
filha.
— Bernardo?! — Bruna me recebeu com festa, como sempre fazia.
— Quer jogar uma mão? Já arranquei muito dinheiro da mamãe.
— Estão apostando?
— Essa criança me convenceu — Sara resmungou. — E veja só,
conseguiu arrancar uma boa quantia de mim.
— Tive uma ótima professora — a filha brincou, toda orgulhosa do
seu feito. — E então, quer perder algum dinheiro para mim?
— Hoje não — eu ri da empolgação dela. — Onde está Laura?
— Eu deveria adivinhar. Vocês dois não se desgrudam mais — Bruna
resmungou, fazendo biquinho. — Antes você me dava mais atenção.
— Isso são modos, menina? — Sara esbravejou.
— Porque eu vou me casar com a sua irmã e não com você — entrei
no joguinho dela.
— Casar? — as duas falaram ao mesmo tempo, o que me fez rir.
— Laura disse não. Eu não sei se isso é reflexo de uma boa educação
ou de uma má.
— Você pediu a Laura em casamento? — Bruna se interessou,
esquecida do jogo. — Sério?
— Pedi. Mas ela não aceitou.
— Ela não aceitou? — Sara perguntou, tão interessada quanto Bruna.
— O que deu nessa menina?
— Juízo — Bruna disse, o corpo empinado em desafio. — Eles mal
começaram a namorar.
— Mas vivem debaixo do mesmo teto —- Sara contestou a filha,
nitidamente desgostosa com a resposta de Laura. Eu sorri. Pelo menos Sara
estava do meu lado.
— Mãe! A senhora é do século passado. Hoje em dia ninguém casa
assim.
— Casa!
Eu e Sara falamos ao mesmo tempo, o que me fez rir.
— Vocês são loucos. Pelo menos Laurinha não enlouqueceu também.
— Você deveria jogar no meu time, Bruna. Eu sou mais legal do que
a Laura — provoquei.
— Você é muito legal. Mas eu ainda sou team Laura.
— Traidora — murmurei com as vistas estreitas para ela. — Onde
está Laura?
— Ela disse que precisava resolver um assunto. Deve estar na
empresa. Eu pensei que você estava no trabalho também —- Sara me
informou. — Sabrina chegou antes de voltarmos para casa, mas já avisou
que agendou uma reunião para hoje.
— Com Laura?
— Eu não sei te dizer, meu filho.
— Certo. É melhor eu falar com Sabrina.
Deixei as duas e fui na direção da ala ocupada por minha irmã. No
caminho tentei ligar para Laura mais algumas vezes, sem sucesso. Encontrei
Sabrina no closet, finalizando a maquiagem para sair.
— Você agendou uma reunião para hoje?
Ela me olhou através do espelho, sem se abalar com a minha
presença.
— Com os gerentes das nossas três concessionárias na cidade. Por
quê?
— E Laura?
Minha irmã estreitou os olhos, terminou de colocar o brinco e se
voltou para mim.
— Laura? Não sei. A reunião faz parte da minha agenda. O que
houve? Você hoje tirou o dia para me inspecionar?
— Não.
Conferi o celular e me frustrei com a ausência de mensagens da
minha namorada.
— Eu só não sei onde ela está — admiti. Sabrina deu um risinho
debochado.
— Vocês estão namorando?
A pergunta fazia sentido uma vez que minha irmã embarcou em uma
sucessão de viagens antes de eu e Laura nos acertarmos. E, como não
possuíamos uma amizade confidente, não conversamos sobre o assunto em
nenhuma das vezes em que nos falamos. No entanto, para Sabrina o assunto
não parecia uma novidade. A pergunta parecia mais uma confirmação de
algo que ela já tinha total ciência.
— Estamos.
— Que bom. Vocês se gostam.
Cruzei os braços na frente do peito e encarei Sabrina, disposto a
descobrir se ela de fato gostava da ideia ou fingia gostar para usar isso de
alguma forma a seu favor.
— E você e Fernando?
Minha irmã levantou da cadeira, pegou a bolsa sobre a mesa no
centro, puxou o ar com força e caminhou para fora do closet.
— Eu estou atrasada, Bernardo. A Laura deve estar com o Fernando
— provocou, o que de fato, teve efeito em mim. Ela riu e eu preferi não
revidar.
Segui Sabrina para fora da ala e voltei a ligar para Laura quando meu
celular vibrou com uma ligação do Fernando. Atendi no primeiro toque.
— Fernando.
— Bernardo. Laura está com você? — A pergunta atraiu toda a
minha atenção.
— Não. Estou tentando falar com ela, mas só dá caixa postal. Você
sabe de alguma coisa?
— Ela esteve aqui depois que você saiu. Veio conversar sobre o
testamento. Pediu para adiantarmos o processo. Eu fiquei de conversar com
o meu pai sobre o assunto e ele me disse que com certeza conseguiremos
resolver o quanto antes. Liguei para Laura algumas vezes porque preciso que
ela assine alguns documentos e nos entregue a carta deixada por seu pai, mas
também não consegui encontrá-la.
— Estranho — murmurei mais para mim do que para Fernando. —
Tem muito tempo que ela saiu?
— Não. Vinte minutos ou trinta.
— Ela já deveria ter chegado — resmunguei. — Ela comentou se
passaria na empresa? Sabrina tem uma reunião agora, então…
— Ela não me disse nada. O celular deve ter descarregado.
— Deve ser isso.
— Quando a encontrar, peça para que me ligue.
— Pedirei.
Desliguei o telefone, mas não tive tempo de raciocinar sobre o
assunto. Do lado oposto da área comum, dois seguranças entravam com
passos enérgicos, pálidos, suados, as armas à mostra. E eu soube que havia
algo de muito errado naquela cena. De repente, o tempo perdeu a velocidade.
Caminhei na direção dos homens com as pernas pesadas, ao mesmo tempo,
os passos deles pareciam lentos, quase inexistentes.
— O que aconteceu? — questionei antes de vencermos a distância.
— Sr. Bernardo — um deles começou. — Recebemos uma ligação
da portaria.
O ar petrificou nos meus pulmões.
— Houve uma troca de tiros — o outro disse.
— Tiros?
Pelo canto dos olhos vi quando uma das empregadas passou com
pressa, as mãos no rosto como em choque. Ela encontrou outra que parou
para ouvi-la e demonstrar a mesma preocupação.
— O que aconteceu? — repeti.
— Um homem em uma moto interceptou o carro antes que eles
chegassem à portaria. Ele alvejou Carlos.
— Carlos? E Laura?
— Houve uma troca de tiros com os seguranças.
— E Laura? — repeti mais alto, o desespero beirando a loucura.
— Nossos homens não puderam fazer nada. Ambos foram atingidos
quando deixaram o carro. Foi tudo muito rápido. O motoqueiro os atingiu
com um fuzil.
— Fuzil? Como alguém se aproxima de moto com um fuzil?
— Já comunicamos à polícia. A ambulância está a caminho…
Eu não ouvi mais nada. Todas as palavras pareciam ecos distantes.
Olhei para a piscina e vi quando a empregada amparava Sara e Bruna corria
na minha direção. Ela me alcançou e me abraçou com força.
— Foi o Vicente, não foi? — disse com a voz chorosa. — A
Laurinha estava no carro? Diz, Bernardo! A Laurinha estava no carro?
Olhei para os homens, constrangidos pela falha e sem as respostas
que eu precisava.
— Eu… eu não sei, Bruna.
Abracei a irmã da minha namorada e me permiti acreditar que Laura
não estava no carro, que Vicente não colocaria as mãos nela e não
precisávamos nos desesperar.
E eu nunca estive tão errado.

LAURA

Primeiro eu senti a dor. Em algum lugar no fundo da minha


consciência houve o reconhecimento do latejar em meu rosto, em seguida
nos meus ombros. Abrir os olhos foi minha última ação. Antes disso eu
relembrei o tiroteio, Carlos atingido e jogado para fora do carro, Vicente
muito próximo, a tentativa do beijo, o tapa e a escuridão.
Ciente de que minhas mãos continuavam algemadas e nas minhas
costas, não me mexi. Apurei os ouvidos, busquei por qualquer sinal dele,
mas só havia o silêncio e um leve cantar de pássaros em algum lugar distante
e abafado. Abri os olhos e encontrei paredes sujas, próximas umas das
outras. Embaixo de mim havia um colchão desforrado e rasgado em alguns
lugares. Era um quarto pequeno, abafado, com fedor de mofo e escuro, mas
não como o lugar onde Vicente parou o carro e me arrancou de dentro dele.
Percorri o local diminuto com os olhos, busquei por qualquer
informação. A porta era velha e descascada e havia apenas uma única janela,
fechada, também antiga, de madeira e dois quadrados pequenos de vidro.
Ambos cobertos com jornais.
Passos próximos à porta me alertaram da presença do Vicente. Fechei
os olhos e fingi estar desacordada. Ele entrou sem cerimônia, sem cuidados,
me alcançou com apenas dois passos e me sacudiu com força.
— Acorde — ordenou, e, sem esperar por mim, me içou e me
colocou sentada diante dele. — Assim está melhor.
Vicente sentou à minha frente. Não vestia mais as roupas de couro.
Usava uma calça jeans rasgada no joelho e uma camisa simples de algodão,
nos pés as tradicionais botas antes tão adoradas por ele. Ele me encarava
com seriedade, concentrado em qualquer movimento que eu fizesse.
— O que você quer? — fui direto ao assunto, naquele lugar, sem
nada que pudesse indicar onde eu estava, sem esperança de ser salva, tudo o
que eu podia fazer era barganhar.
— Quero muitas coisas, Laura, mas você tirou tudo de mim.
— Eu? Eu nada fiz a você, Vicente. Enlouqueceu? Foi você quem
tentou matar a minha mãe.
— Foi uma dose pequena. Não mataria Sara.
— Seu… cretino! Como pôde? — ele abriu um largo sorriso, apoiou
os cotovelos nos joelhos e cruzou as mãos abaixo do queixo.
— Sabrina tem muitos defeitos, mas é a pessoa com as melhores
ideias que conheço.
— Quer dizer que vocês agiram juntos? Ela…
— Ela foi útil, até você interferir nos meus planos. Agora me diga,
Laura, como conseguiu ficar com a fortuna do velho?
— Você está louco — rosnei.
— Estou. Agora é tudo ou nada. Como fez para que o velho deixasse
tudo para você? Eu sempre desconfiei que ele tinha olhos para sua mãe, mas
você… hum hum!
— Você é doente.
— O desgraçado me detestava e você… — ele ergueu a mão e
acariciou meu rosto. Tentei impedi-lo, sem sucesso. — Você nunca superou
me perder, não foi? A ideia era essa? Tramaram uma vingança contra mim?
— Nunca tramei contra ninguém. Eu nem queria essa maldita
herança.
Vicente riu. Gargalhou, sem medo, sem receios, seguro de que
naquele lugar ninguém estranharia qualquer coisa que ele fizesse. E eu temi
pela minha vida. Busquei em minha mente as possíveis saídas, as maneiras
daquela loucura terminar de uma forma boa, e não encontrei. Vicente não
tinha nada a perder. Ele podia pedir dinheiro, mas o conseguiria sem que a
polícia chegasse até mim?
Não, Vicente não me sequestrou por dinheiro e sim por vingança.
Para ele, nada mais sobraria que não fosse se esconder como um rato, aceitar
que perdeu ou fugir para algum lugar onde ele pudesse aplicar um novo
golpe em uma nova mulher carente o suficiente para aceitar todas as suas
mentiras.
Ensandecido, da mesma maneira que explodiu em uma gargalhada,
ele avançou sobre mim, sério, a mão em meu pescoço, firme, forte. Vicente
me empurrou contra a parede, meu corpo desajeitado, torto, dolorido,
gritava por alívio, minhas juntas latejavam, meus ombros ameaçavam soltar
do tronco de tão esticados. As lágrimas desceram sem que eu tivesse
controle sobre elas.
— Eu quero a verdade, sua vadia — ele rosnou em meu rosto. —
Acha que eu não sei o que vocês fazem? Que fugi com o rabo entre as pernas
e deixei tudo para trás? Por que Sabrina aceitou com tanta facilidade o meu
desaparecimento? Por que ela continua trabalhando como se não tivesse
tramado contra você? E o Bernardo? Acha mesmo que eu não sei que agora
ele se lambuza em você, putinha? Fale! — ele gritou na minha cara.
— Eu não tenho nada para falar — gritei de volta e recebi um tapa na
cara que fez o gosto do sangue me assustar.
— Sabe o que eu vou fazer com você, Laura? — Ele apertou meu
pescoço e com a outra mão segurou minha coxa. — Tem noção de tudo o
que eu posso fazer com você? E quando eu acabar, vou cortar seus pedaços e
jogar no lixo. Depois vou pegar a Bruna, vou fazer tudo igual com ela. É o
que você quer? Bruninha está uma delicinha…
E eu cedi. Gostaria de dizer que fui forte, que lutei até o último
segundo, que não dei a Vicente mais armas para atingir a família Quaresma.
Mas não aconteceu desta forma. O pavor se alastrava pelo meu corpo
enquanto meu instinto de sobrevivência me fazia pensar em todas as coisas
horríveis que ele poderia fazer comigo e com a minha irmã.
— Ele enganou a todos — eu disse com pressa. Vicente, interessado,
afrouxou o aperto em meu pescoço. Puxei o ar com força.
— Fale!
— O Sr. Quaresma mentiu para todo mundo. Ele fez um falso
testamento que foi o que você ouviu. Quando vocês saíram, os advogados
me apresentaram uma carta…
Narrei com pressa toda a história. Vicente não me interrompia, mas
também não me libertava do sufoco da sua mão e quando eu contei que
Sabrina só receberia a parte da herança dela se tivesse o divórcio, ele
enlouqueceu.
— Desgraçados!
Ele me empurrou com força, minha cabeça bateu na parede e um
zumbido alcançou meus ouvidos. Com dor, o medo no limite da minha
sanidade, eu só conseguia chorar. Vicente esteve por perto o tempo todo. Ele
conseguiu me pegar, mas poderia ter pego qualquer um. Pensei em Bruna se
estivesse no meu lugar e isso foi o suficiente para me tornar mais forte. Ele
só queria vingança e a conseguiria comigo. Depois disso, todos estariam
livres.
— Filhos da puta! — gritou mais alto e, para o meu alívio, deixou o
quarto.
“Eu sem você
Sou só desamor
Um barco sem mar
Um campo sem flor
Tristeza que vai
Tristeza que vem
Sem você, meu amor
Eu não sou ninguém.”
Samba de prelúdio - Baden Powell / Vinicius de Moraes

CAPÍTULO 48
BERNARDO

Como sempre acontecia comigo, em situações de desespero, eu me


equilibrava. Não por dentro, óbvio. Mas naquele meio, com tantas pessoas
desesperadas, Sara e Bruna precisando de amparo, eu não podia cair. Sabrina
era melhor do que eu em situações que exigiam equilíbrio, mas minha irmã
não estava lá, não atendia minhas ligações, logo, era minha obrigação fazer
com que tudo desse certo.
E desta vez, não desmerecendo todas as outras situações horríveis
que vivemos, era com Laura. Meu ar faltava todas as vezes que me permitia
pensar na situação. Queria me apegar à esperança de ela não estar no carro,
no entanto esta minava a cada segundo. Ninguém conseguia contato com ela,
Laura não aparecia, Carlos estava na sala de cirurgia lutando contra a morte
e os dois seguranças que acompanhavam o carro, infelizmente não
resistiram.
— Sr. Bernardo?
O segurança me chamou baixinho, sem querer alimentar o desespero
dos demais que aguardavam por notícias. Caminhei até ele, os batimentos
acelerados e o corpo trêmulo.
— Conseguiu as imagens?
— Eles estão trazendo. A polícia acabou de entrar no condomínio,
mas estão conversando com os porteiros e os seguranças.
— Ótimo. Acompanhe de perto a entrega das imagens das câmeras
de segurança, por favor.
— Positivo.
O homem saiu e ao fundo vi Fernando se aproximar. Pelo rosto dele,
eu soube que ele estava tão perdido quanto eu.
— Bernardo — ele disse com pressa. — Alguma novidade?
— A polícia acabou de chegar.
— Sim, eu vi a movimentação na guarita. Quase não consegui entrar.
Meu pai foi para o hospital para acompanhar a situação de Carlos e prestar
suporte à família dele. Eu vou precisar representar vocês em relação aos dois
seguranças mortos.
— Obrigado. Que droga! — Olhei para a sala e vi que Bruna e Sara
me encaravam com atenção. —- Cuide das famílias, Fernando. Eles eram
terceirizados, mas isso não pode nos isentar da responsabilidade.
— Com certeza. Faremos o melhor possível. Se concentre agora em
encontrar Laura.
— Ainda não sabemos se Laura estava no carro — informei.
— Não quero minar a esperança de vocês, mas é certo que ela estava.
Do contrário, por qual motivo os seguranças estariam lá?
Encarei Fernando sem me espantar com o pensamento dele. Eu
mesmo tive o mesmo raciocínio, só não queria acreditar, não antes de
eliminar todas as possibilidades. Soltei o ar e levei à mão ao cabelo, sem
saber ao certo o que fazer, como proceder, como me manter de pé.
— O que precisamos saber é quem fez isso — Fernando continuou.
— E precisamos levantar o óbvio. Vicente tinha motivos para agir.
— Eu sei — resmunguei, o corpo todo agindo como se fosse entrar
em colapso. Lutei contra. Eu não podia cair. — Preciso que a polícia acesse
as imagens das ruas para saber para onde eles foram.
— Solicitou a localização do carro?
— Sim. Solicitei na hora. Graças a Deus o veículo estava no nome do
grupo e eu pude responder pelo pedido. Mas eles precisam de um tempo para
localizar.
— Quanto tempo?
— Até meia hora.
Fernando olhou no relógio, conferiu o tempo e soltou um bufar
impaciente.
— Vou lá fora conversar com a polícia. Não podemos esperar até que
eles finalizem para nos posicionar sobre a situação.
— Faça isso. Ficarei aqui com Sara e Bruna. Assim que me passarem
a localização do carro, eu sinalizo.
— Certo. E Sabrina?
— Ela está em uma reunião. Não atende minhas ligações. Por quê?
A frustração me fez ser arredio com Fernando. Laura estava nas
mãos de um psicopata e ele se preocupava com Sabrina, a sua paixão mal
resolvida.
— Trabalharemos com duas hipóteses: sequestro realizado por
alguma quadrilha com a intenção de obter dinheiro, ou, a mais óbvia,
Vicente.
Estremeci mais uma vez ao ouvir o nome do homem que casou com
a minha irmã.
— Em ambos os casos a motivação é dinheiro, mas o Vicente
também tem o desejo de vingança. Sabrina é essencial neste processo.
— Por quê?
Ele olhou para a sala onde alguns empregados se reuniam,
aguardavam por notícias e cuidavam de Sara e Bruna. Então deu as costas
para eles e com a mão em meu ombro me fez acompanhá-lo em direção à
saída.
— Vicente só ligaria para Sabrina. Pense bem — disse baixinho. —
Ele a teve nas mãos por anos. Conseguiu manipulá-la até o último minuto.
Se Vicente quiser garantir alguma quantia, e eu tenho certeza de que ele vai
tentar, é com Sabrina que ele entrará em contato.
Permiti que Fernando me conduzisse até a saída e longe dos olhos de
todos, pude ter aquela conversa sem medo de alertar as pessoas.
— Então Sabrina também está em perigo?
— Não sei, Bernardo.
O olhar direcionado a mim demonstrava preocupação.
— Vocês estão juntos, certo? — Fernando hesitou, mas acabou
confessando. — E você acha que Vicente ainda tem algum poder sobre
Sabrina?
— Sinceramente? Não. Mas Vicente pode não saber disso. Ela é a
única opção para ele conseguir dinheiro sem causar um grande estrago. E
Sabrina se sente em dívida com Laura.
— Merda! Eu nem sei onde é a reunião dela — resmunguei.
— Eu sei.
Nós nos encaramos por um tempo, enquanto a ideia se construía.
— Certo — ele concluiu. — Você cuida da polícia e eu vou atrás da
Sabrina.
— Ótimo.
Fernando deu as costas e começou a se afastar, mas eu ainda
precisava alinhar todos os pontos.
— Fernando? — Ele se voltou na minha direção. — Deixe Vicente
entrar em contato com Sabrina.
— Mas…
— Se ele está com Laura e quer dinheiro, entregue o que ele pedir.
Não coloque Sabrina em perigo. Oriente ela a agir da melhor maneira e a
traga para casa. Não quero me preocupar em impedir o Vicente, apenas em
fazer com que Laura volte. Não importa o que ele peça. Vamos concordar
com tudo.
Ele mordeu as bochechas. A ideia era revoltante até porque Vicente
poderia pedir o impossível e entregar qualquer moeda da nossa herança a ele
chegava a ser doloroso. No entanto, entre tudo o que meu pai construiu e
Laura, não havia outra escolha. Eu precisava de Laura livre. Até porque,
para começar, aquilo aconteceu por causa da gente, da minha família, da
teimosia do meu pai, da carência de Sabrina e da minha incapacidade de dar
valor ao que eu tinha. Laura era a única inocente. Não seria ela a pagar pelos
nossos erros.
— Eu não posso perdê-la — admiti. Ele concordou e, sem dizer mais
nada, foi atrás de Sabrina.

SABRINA
— A questão, Sabrina, é que somos concorrentes. — Jefesson, o
gerente geral de uma das nossas concessionárias, me alertou. — Precisamos
de ações diferenciadas.
— E teremos — eu o apaziguei. — Não estamos discutindo
marketing e sim resultados. Trabalhamos com fabricantes diferentes, logo
temos abordagens distintas, públicos semelhantes e estratégias
administrativas que precisam seguir o mesmo padrão. Como não
finalizaremos as atividades das casas de pneus, precisamos de uma ação em
conjunto.
— Você desistiu mesmo da ideia? — Theodoro, o gerente mais novo
entre os participantes, me questionou. — A nova CEO, Laura Lacerda, vai
seguir a linha do seu pai?
Dentre todos, ele era o que possuía ideias mais inovadoras e tinha
fôlego para o mercado. Quando levantei pela primeira vez a hipótese de
encerramos as atividades das lojas de pneus, ele foi o único que
compreendeu a importância de enxugar o grupo, porém, depois da carta do
meu pai, de tudo o que precisei vivenciar, eu não comungava mais da mesma
ideia.
— Laura e eu pensamos em conjunto. Entendemos que podemos
tornar a linha mais produtiva se fizermos algumas mudanças. Por isso
preciso de vocês.
— Com licença.
A secretária de Jefesson entrou na sala de reuniões e me interrompeu.
— Dona Sabrina, acabei de receber uma ligação do diretor jurídico, o
Sr. Fernando. Ele pediu para a senhora entrar em contato.
— Certo. Obrigada.
Estranhei a ligação do Fernando. Não havia motivo para ele entrar
em contato. Pelo menos não daquela forma, o que me fez pensar de imediato
que o interesse naquela comunicação era profissional e não… enfim. Meu
celular, dentro da bolsa, estava no modo silencioso, conforme eu fazia
sempre que entrava em alguma reunião.
— Com licença — avisei aos participantes antes de buscar pelo
aparelho e me deparar com mais de dez ligações perdidas. Muitas do
Bernardo e as últimas do Fernando. No mesmo instante entendi que algo de
errado aconteceu.
Plena por fora e assustada por dentro, deixei a sala decidida a
retornar as ligações quando meu celular avisou da chegada de outra ligação.
Parei sem acreditar no nome que aparecia na tela do celular. Vicente.
Olhei para trás para me certificar de que ninguém me ouviria, segurei
no guarda corpos à minha frente, necessitada de apoio, e atendi a ligação.
— Vicente? — sussurrei sem acreditar que ele de fato me ligava.
— Oi, meu amor — ele disse com cuidado.
— Meu amor? Como tem coragem…
— Sabrina, por favor, me ouça — pediu com urgência. — Eu sei que
você está com raiva. Eu também estou.
— Você não pode estar com raiva, você me traiu! Usou aquela garota
para me sedar, para envenenar Sara. Como ousa?
— Foi armação, amor.
A voz, cheia de pesar e sofrimento não neutralizou a minha
indignação.
— Você não percebe? Laura sempre quis se vingar de nós dois e ela
conseguiu.
— Não faça isso — rosnei. — Laura não atentaria contra a própria
mãe.
— Ela não, mas Bernardo sim.
Eu não queria pensar naquilo, ainda assim, a maneira como Vincente
falou me impediu de rebater.
— Eles estão juntos, não estão? Você leu a carta que seu pai
supostamente deixou.
— Como sabe disso?
— Eu nunca me afastei. Eles conseguiram me incriminar, mas eu não
podia te deixar sozinha, meu amor. Bernardo conquistou Laura depois de
envenenar Sara e tramar contra mim. Ele neutralizou nós dois.
— Laura vai me devolver minha parte da herança — minha voz fraca
foi o alimento que ele precisava.
— Não, meu amor. Ela vai provar a sua incompetência e te afastar do
grupo. Esse é o plano deles. Laura tentou me fazer te deixar, Sabrina. Ela
usou de todas as artimanhas para me convencer a ficar com ela, e quando me
neguei a te trair, Bernardo utilizou a oportunidade para dar o golpe. Ele sabia
que Laura era doida por mim e que queria vingança, então fez com que
aquela garota… eu nem sei o nome dela, meu amor. Ele pagou um preço alto
para que ela mentisse.
— Isso não é verdade.
— Quem sugeriu que a família se responsabilizasse pela defesa da
garota? Quem pagou um ótimo advogado para garantir que a menina não
sofreria danos maiores?
Olhei para trás outra vez, tão insegura que qualquer pessoa captaria a
minha situação. Eu me afastei um pouco mais, caminhei na direção do carro.
Precisava sair dali. Agir. Impedir que o pior acontecesse.
— Onde você está?
— Escondido como um rato — ele choramingou. — O que mais
posso fazer? Eles te convenceram a bloquear as contas, cancelar os cartões.
Além do mais, a polícia está na minha cola. Eles vão me prender sem me dar
chance de provar essa armação.
— Eu quero te ver, Vicente. Preciso te ver — sussurrei com ímpeto.
— Eu também, meu amor. Mas preciso que me ajude.
— Do que você precisa? Dinheiro? Roupas, comida?
— Você nunca falha, Sabrina — a voz, apesar de sofrida, deixava
transparecer o sorriso. — Preciso de dinheiro, amor. O suficiente para
desaparecer por um tempo e contratar um bom advogado para me defender,
como vocês fizeram com a empregada.
— Tudo bem. Levarei o dinheiro. É melhor você ficar com um dos
meus cartões de débito. Hoje é sábado, não tem como fazer um saque
grande, além do mais, se eu fizer isso, chamarei a atenção da polícia e eles
conseguirão te pegar.
— Tem razão, meu amor. Você é brilhante, Sabrina.
— Eu sou.
Destravei o carro e entrei sem me dar ao trabalho de me despedir dos
gerentes ou justificar minha saída repentina.
— Agora me diga onde você está. Vou comprar algumas roupas e
comida.
— Não precisa. Isso também pode chamar atenção. Traga apenas o
cartão. Tem bastante dinheiro na conta?
— O suficiente, não se preocupe.
— Certo, meu amor. Vou te passar o endereço, mas tome cuidado. O
local não é dos melhores.
Coloquei no GPS o endereço que ele me passou, liguei o carro e
encerrei a ligação. Antes de sair abri a bolsa e verifiquei se o que eu
precisava estava lá. Então fui embora. Vicente precisava de mim e eu era a
única que conseguiria dar um fim naquele problema.
“E por falar em saudade
Onde anda você?”
Onde anda Você - Toquinho / Vinicius de Moraes

CAPÍTULO 49
BERNARDO

Sabrina desapareceu. Quando Fernando chegou ao local da reunião, ela não


estava mais lá. Ninguém sabia dela, o que aconteceu, por que ela abandonou
a reunião logo após receber o recado do nosso diretor jurídico? Com isso,
tínhamos dois grandes problemas.
— Pediu para localizarem o carro? — Dr. Estevão perguntou no
instante em que nos encontrou na delegacia.
— Pedi, mas demora cerca de meia hora para eles entregarem a
informação — resmunguei.
Os trinta minutos que aguardei que a seguradora me fornecesse a
localização do carro em que Laura estava, passaram como trinta anos, e
quando enfim obtive o endereço, a polícia nada encontrou além de um
galpão abandonado no meio do nada, com o nosso carro e o celular de Laura
destruído no chão.
As câmeras de segurança das ruas e prédios por onde o carro passou
não foram de nenhuma utilidade. Antes do galpão não havia mais registro de
imagem deles, pois Vicente foi esperto ao escolher o caminho, passando por
ruas com poucas ou nenhuma câmera. Assim, o que sabíamos era que ele, ou
quem quer que tenha levado Laura, desapareceu após abandonar o carro.
Sem testemunhas, imagens, rastros… nada.
Para piorar a situação, Sabrina também desapareceu e nos obrigou a
aguardar outros amargos trinta minutos para localizar o carro dela. Eu só
pedia a Deus para que pelo menos quando a informação chegasse, que fosse
de alguma utilidade e não nos levasse a um beco sem saída.
Fernando ainda tentava, sem sucesso, entrar em contato com minha
irmã através do celular. Ele deixou tantas mensagens que eu começava a
sentir pena dele, até que me dei conta de que ele também sentia pena de
mim. Éramos dois desgraçados.
— Não dá para confirmar pelas imagens que era o Vicente — Dr.
Estevão confirmou o óbvio. — Mas eu aposto todas as minhas fichas nisso.
O que a delegada disse?
— O mesmo que o senhor — eu falei, visto que Fernando tentava
mais uma vez entrar em contato com Sabrina.
— Mas eles estão trabalhando com esta possibilidade? — confirmei
com a cabeça. — Ótimo. Por qual motivo Sabrina desapareceria se não fosse
o Vicente por trás disso tudo?
— É nisso que estamos apostando — Fernando se incluiu na
conversa. — Desisto. Sabrina não atende.
— Com certeza Vicente ligou para ela — eu repeti o que acreditava.
— Só não sabemos o que ele disse para que minha irmã desaparecesse
assim.
— Ele pediu dinheiro — Fernando afirmou.
— Só que Sabrina não passou em casa. Os bancos estão fechados.
Que valor ela conseguiria sacar sem deixar rastros? — Levantei o assunto.
— Vicente não se contentaria com uma quantia pequena. Ele logo precisaria
de mais.
— Senhores?
A delegada abriu a porta da sala dela e nos chamou. De imediato
seguimos na direção dela.
— Meu pessoal conseguiu um ângulo bom. Confirmamos que a Srta.
Laura estava no carro.
Eu me segurei para não revirar os olhos. Lógico que Laura estava no
carro. Quem mais tinha dúvidas disso?
— Doutora, precisamos da liberação das imagens das ruas próximas
à concessionária onde Sabrina estava. — Dr. Estevão tomou à frente. —
Sabemos que Sabrina saiu no carro dela, mas ainda não conseguimos a
localização com a seguradora. Trabalhando com a hipótese de que Vicente
sequestrou Laura e pediu dinheiro a Sabrina, quanto mais rápido agirmos,
evitamos um problema maior.
A simples ideia do que seria aquele problema fez meu estômago
embrulhar. Fernando puxou o ar com força, o que indicava que ele também
estava no limite.
— Ainda não recebemos a imagem das câmeras de segurança da
concessionária, mas já solicitei as das ruas próximas. O trabalho é delicado e
exige tempo, Dr. Estevão. Não sabemos a direção que ele tomou, logo só
conseguiremos as imagens à medida que conseguirmos traçar o trajeto.
— Compreendo — Dr. Estevão disse, indo contra tudo o que se
avolumava em mim.
Eu não compreendia, até porque falávamos da mulher que eu amava
e da minha irmã, nas mãos de um cara disposto a tudo. Então, por mais que
soubesse que eles faziam o melhor, nada em mim compreendia e aceitava
não sabermos onde elas estavam, não prendermos Vicente e não voltarmos
para casa com aquela situação resolvida, sem chance para novos
acontecimentos.
— Eu sei que é difícil, mas tenham um pouco de paciência.
Precisamos entender o que o Vicente planeja capturando elas duas. Se ele
seguir o padrão, em breve entrará em contato com um de vocês.
— Tudo bem — Fernando resmungou e se afastou. Eu o segui.
— O que vamos fazer?
— O que podemos fazer? — ele rebateu, sem paciência. — Esperar.
Vicente atou nossos pés e mãos. Agora só nos resta esperar que ele faça
contato.
E essa era, de fato, a confirmação de que eu colhia o fruto por ter me
omitido durante tantos anos.

LAURA

Respirei fundo e soltei o ar lentamente em uma tentativa tosca de me


desconectar daquela situação. Presa em um cubículo, sem comida ou água,
com os braços prestes a se soltarem do corpo de tanta dor, não me restava
nada além de buscar alternativas para fazer o tempo passar mais rápido.
— Merda! — resmunguei ao me dar conta de que nada que eu fizesse
melhoraria a minha situação.
Os passos de Vicente do lado de fora, indicavam o quanto ele estava
nervoso. Andava de um lado para o outro. Parava em frente a porta, mas não
entrava, e voltava a caminhar. Ele nada dizia. Não havia outro som naquele
espaço que não fosse o dos passos dele e dos pássaros do lado de fora.
— Ele podia me matar logo — murmurei, cansada daquilo. Com
tanta dor que não restava mais lágrimas para lamentar.
A porta abriu de supetão e me fez encolher na parede. Meus ombros
latejaram, ainda assim, eu não conseguia deixar de encará-lo, de prestar
atenção em cada mínimo detalhe do comportamento dele. Vicente
demonstrava raiva, mas sorria com malícia. Ele andou até mim e agachou à
minha frente.
— Mudança de planos, Laurinha.
A voz débil e o olhar injetado me deixou em alerta.
— Você vai colaborar, não vai?
Eu nada disse, assustada e cansada daquele terror psicológico.
— Vai? — ele gritou.
— O que você quer, Vicente?
— Eu tenho um plano. Você faz tudo o que eu mandar e ninguém se
machuca. Mas… — ele me segurou pelo cabelo e puxou meu rosto para trás.
— Se você me trair, eu te mato. Mato primeiro Sara. Depois levo Bruna para
longe, me divirto com ela e antes de te matar mando o corpo em pedaços
para você.
Fechei os olhos para fugir da imagem horrível que se formava em
minha mente. Se ele me matasse e desaparecesse, teria a sua vingança,
desgraçaria a vida da minha mãe e irmã, machucaria Bernardo e talvez,
quem sabe, deixaria um pouco de trauma em Sabrina. Aquele era o plano
ideal, o único que colocaria um fim naquela situação. Mas Vicente queria
mais, queria tudo, e eu não sabia como impedi-lo.
— O que você quer?
— Eu vou contratar um advogado. Enquanto isso, você fica comigo.
— A essa altura a polícia já sabe o que você fez. Como conseguirá se
safar disso? Eles devem saber que me sequestrou.
— Não se você aparecer comigo. — Eu ri daquele plano sem pé nem
cabeça.
— E o que eu vou dizer? Que foi um engano? Você atirou no Carlos.
— Ninguém conseguirá me incriminar. Eu tomei todo o cuidado.
Imediatamente relembrei a cena. Vicente completamente vestido de
preto, o capacete, o casaco de couro e luvas. Nem eu consegui reconhecê-lo
de imediato. Droga!
— Você é muito inocente, Laura. Sempre foi. A moça honesta e
batalhadora que não percebe a real intenção dos outros. Não vê que todo
mundo te usa? O velho Quaresma te usou para punir os filhos e te comprou
por um valor tão baixo que chega a ser inacreditável. Sabrina te usava como
escudo. A amiga fiel que cuidava para que ninguém a machucasse, mas te
deu um pé na bunda na primeira oportunidade. E Bernardo? Veja só,
Laurinha. Você sempre esteve por lá e ele nunca te notou. Acredita mesmo
que agora ele te ame? Ele quer de você o mesmo que eu quero, mas não tem
coragem para fazer o que eu faço.
— Qual é o seu plano? — rosnei, machucada, triste, ansiosa para me
livrar dele.
— Um advogado vai apresentar a minha defesa. Eu vou contar que
Bernardo armou para mim, que pagou a empregada para me acusar. E sei
que levantarei a dúvida. Hoje em dia temos mensagens fraudulentas,
celulares clonados, tudo para fazer com que questionem o que eles tem até
agora.
— E onde eu entro nisso?
Vicente sorriu e acariciou meu rosto, os dedos roçaram minha pele e
desceram pelo meu pescoço exposto.
— Ah, Laurinha! — sussurrou, próximo demais para me fazer ter
vontade de vomitar. — Você vai voltar e acusar o Bernardo de ter
esquematizado o seu sequestro. Você vai dizer que obteve a confirmação de
Bernardo para me ajudar. Que ele atentou contra você por causa disso. Vai
dizer que fugiu quando o seu sequestrador saiu, mas antes conseguiu ouvir
uma conversa entre ele e Bernardo.
Apesar de acreditar que aquela ideia era horrível e não colaria com a
polícia, doeu em mim precisar fazer aquilo. Eu não podia peitar Vicente e
me negar a fazer como ele ditava. Havia muito em jogo para arriscar. E, se
Vicente conseguiu nos vigiar durante todo aquele tempo sem que ninguém o
prendesse, ele chegaria em minha família mais cedo ou mais tarde. Eu nunca
teria paz. Nunca me sentiria protegida. E Bernardo jamais me perdoaria.
Uma parte de mim dizia que eu podia aceitar toda e qualquer
condição do Vicente. Enganá-lo. E quando encontrasse a oportunidade, o
jogaria na cadeia para nunca mais me preocupar com ele. Na verdade, se eu
não estivesse tão assustada, se não tivesse passado por tudo o que passei até
ali, me encheria de coragem e faria isso sem medo.
Entretanto, se Vicente contrataria um advogado, se nada o ligasse ao
meu sequestro e ao atentado contra Carlos, havia uma grande chance de não
ser como eu imaginava.
Eu podia sair dali e depor contra ele. Acusá-lo. E se não desse certo?
Se Vicente fosse inocentado? Ou, se ele fosse incriminado pelo atentado
contra minha mãe, mas pegasse apenas alguns anos? Pela lei do país, ele
podia recorrer, podia passar anos sem um julgamento, podia ser preso e sair
em poucos anos por bom comportamento. E eu não podia descartar esses
fatos.
Se Vicente contrataria um advogado era porque ele sabia que nada o
impediria de colocar as mãos no dinheiro de Sabrina com o divórcio. Ele
conseguiria. Meu Deus, ele conseguiria!
— Ninguém acreditará nisso, Vicente.
Incapaz de continuar lutando contra, não havia nada em minha voz
que indicasse que eu negaria o que ele me pedia.
— Você vai se empenhar para conseguir. Eu sei que vai. Não estou
nessa sozinho, Laura. Tem gente minha dentro da sua casa, no escritório, por
todos os lados. Nada pode dar errado, ou sua família, a Bruninha, paga por
isso.
— Deixe a Bruna fora disso.
— Deixarei. Claro que deixarei. Como posso fazer algo contra a
minha amada cunhadinha?
— O quê?
— Você fará tudo o que eu pedir. Vai fingir que não sabe nada a
respeito da carta que o velho deixou e não devolverá a herança para os
Quaresmas. Quando meu divórcio sair, vamos nos casar.
— Casar? Enlouqueceu?
Ele abriu um sorriso imenso, cheio de certezas.
— A nossa história poderia virar um filme, Laura. Nós nos amamos
há muito tempo. Você nunca me esqueceu. Após Bernardo e Sabrina se
juntarem para nos destruir, unimos forças e nos apaixonamos outra vez. Não
é lindo?
— Meu Deus — sussurrei, sem forças nem mesmo para apelar. —
Tudo bem.
— Tudo bem? — ele afastou o rosto e me encarou em busca da
certeza que precisava. — Temos um acordo?
— Temos.
— Não tente me enganar, Laura. Eu já disse que…
— Eu sei. Eu sei do que você é capaz. E sei que estou pagando um
preço que não é meu. Eu nunca quis estar nessa família. Não queria a
herança. Não queria minha mãe e minha irmã no meio dessa confusão.
Sabrina é uma cretina com o ego nas nuvens que passa por cima de qualquer
pessoa para ter poder, e Bernardo… Bernardo é um fraco. Ele dança
conforme a música. A irmã disse que ele deveria me conquistar e ele aceitou.
O pai disse que ele não teria a herança e ele aceitou. Acha mesmo que eu
acredito que ele vai chorar a minha ausência? Eu não aguento mais, Vicente.
Não aguento mais esse jogo, esse dinheiro, essa família…
Solucei, de repente com novas lágrimas embaçando minhas vistas.
— Faça como você quiser. Jogue Bernardo na cadeia. Assuma as
empresas. Eu não me importo. Eu só quero que isso acabe.
— Laurinha — ele pronunciou meu nome com devoção.
Então, como se minha fragilidade tivesse peso nas suas decisões,
Vicente acariciou meu rosto e deitou minha cabeça no seu peito, me
confortando.
— Eles te usaram o tempo todo — ele afirmou, desta vez com
carinho.
— Eu sei.
Funguei, ciente de quanto mais tempo eu o fizesse acreditar em mim,
mais rápido aquilo acabaria.
— Eu os odeio, Vicente. Odeio Sabrina!
Ele levantou meu rosto, conferiu se eu falava a verdade e sorriu.
— Eu também — confessou. — Todo esse tempo, Laura, era em
você que eu pensava.
Engoli com dificuldade quando identifiquei o brilho naquele olhar
débil. Vicente acariciou meu rosto e levou os lábios aos meus. Apesar de
toda raiva, da vontade de socá-lo, de gritar por socorro até que não restasse
mais voz, eu o beijei. Precisava convencê-lo, mantê-lo no meu plano. Com
nojo, ouvi o leve gemido emitido pelo meu sequestrador e engoli o ódio
quando ele avançou sobre mim para aprofundar o beijo com uma fome
assustadora.
— Ai! — Gemi minha dor, os ombros no limite da ardência, quase
sem circulação. — Meus braços.
Ele se deu conta da minha condição, mas nada pode fazer. Quando
Vicente acariciou meus braços, um barulho do lado de fora, como reboco
caindo de uma pequena altura, o deixou em alerta. Ele estranhou o ocorrido
e levou o dedo aos lábios exigindo meu silêncio. Concordei, no entanto, era
cedo demais para ele acreditar em mim com veemência. Vicente rasgou um
pedaço do tecido do colchão, sujo, e o enfiou em minha boca. Protestei.
— Shi! — Ele alertou com a mão em meu rosto, quase me impedindo
de respirar. — É para o seu bem, Laurinha — sussurrou. — Não era para
ninguém vir aqui. Fique quieta e tudo acabará logo. — Sem opção, aceitei
que ele fizesse uma mordaça em mim.
Vicente levantou com cuidado, abriu a porta sem fazer ruído. Rezei
para que tudo acabasse de fato, para que fosse a polícia ou qualquer pessoa
que pudesse me tirar daquele inferno. E o que aconteceu quase fez meu
coração parar.
Após o que pareceu um longo tempo de silêncio, ouvi um tiro
próximo de onde eu estava, alguém caiu no chão e em seguida outro tiro.
Depois disso, mais nada.
Novas lágrimas desceram ao me dar conta de que se fosse a polícia,
àquela altura, haveria sons, pessoas falando ou procurando por mim. Vicente
atirou em alguém e, com certeza, esse alguém descobriu o nosso paradeiro e
tentou me ajudar.
Não restava mais nada, eu pensei quando a porta do pequeno quarto
abriu.
“Tem sempre o dia em que a casa cai
Pois vai curtir seu deserto, vai
Mas deixe a lâmpada acesa
Se algum dia a tristeza (quiser entrar)
E uma bebida por perto
Porque você pode estar certo que vai chorar”
Regra três - Toquinho / Vinicius de Moraes

CAPÍTULO 50
SABRINA

Eu precisava ser rápida. Meu celular continuava sinalizando as


ligações perdidas do meu irmão e do Fernando, um forte indício de que em
breve eles procurariam por mim, logo, meu carro e telefone seriam
rastreados e, a depender do que Vicente tivesse aprontado, a polícia estaria
em meu encalço.
Eu não podia deixar isso acontecer.
Dirigi com pressa até o local indicado pelo meu marido. O tempo
corria contra mim. Estacionei em frente ao bar que ele pediu na rua humilde
e quase deserta. Não precisei descer, como pensei que aconteceria. Assim
que eu parei, Vicente apareceu, abriu a porta do carro e entrou.
Ficamos um longo tempo nos encarando. Ele sorria ainda tímido. O
cabelo não tinha mais o brilho saudável de antes. A barba, sem cuidado,
crescida demais. A camisa simples, desleixada indicava o quanto Vicente
precisou abrir mão da sua vaidade para se esconder da polícia. Ele percebeu
a minha avaliação e fez uma careta, envergonhado.
— Estou horrível, não é?
Forcei a emoção para baixo do pano e acariciei o rosto daquele que
me amou por tantos anos.
— Não é fácil, Vicente — eu consegui dizer. — Tudo o que
aconteceu…
— Meu amor… —- ele segurou minha mão para mantê-la em seu
rosto. — Eu juro que Bernardo armou pra mim. Eu ainda tentei alertar Laura
sobre o caso dele com a empregada, mas ela riu da minha cara, como se
soubesse que me destruiria.
— Por isso você a procurou no dia em que Sara foi envenenada?
— Sim. Claro que sim. Até então eu segurava as pontas com as
investidas dela porque queria que você conseguisse o que era seu por direito,
mas quando descobri o que Bernardo tramava, achei melhor alertar Laura e
com isso conquistar a confiança dela. Eu sabia que ela… Ah, meu Deus,
Sabrina — ele sussurrou abatido. — Laura é pior do que eu pensava. Se
antes ela queria o seu dinheiro, hoje ela quer a sua destruição.
— E conseguiu — lamentei.
— Não, meu amor — ele segurou meu rosto com as duas mãos e me
beijou. — Não, Sabrina. Ela não vai conseguir. Eu prometo. Vamos contratar
um excelente advogado e desmascará-los. Eu tenho… eu tenho como provar
que Laura sempre quis nos atingir.
— Como?
— Não importa agora. Você não pode ficar parada aqui. Vamos
chamar atenção demais. Trouxe o cartão?
— Sim.
Abri o porta luvas e peguei o cartão que deixei separado
estrategicamente e o entreguei.
— Anotei a senha atrás.
— Obrigado, meu amor! E o advogado?
— Vou contratar o melhor. Pode ficar despreocupado.
Vicente me beijou outra vez e distribuiu beijos pelo meu rosto com
gratidão, depois ele me abraçou apertado.
— Eu senti tanto medo — admitiu. — Achei que nunca mais te veria.
Que você acreditaria neles e me deixaria para trás.
— Nunca.
Eu o envolvi com meus braços e afundei meu rosto em seu pescoço.
— Eu te amo, Vicente.
— E eu te amo, minha Sabrina. Nós vamos sair dessa. Eu prometo.
Ele ameaçou sair do carro, mas eu o impedi.
— Eu preciso saber como te encontrar — implorei.
Ele acariciou meu rosto e em seguida voltou a me beijar.
— Você não pode — sussurrou como se se afastar de mim fosse um
sacrifício. — Eles vão descobrir, amor. Melhor que você finja que nada sabe.
Por enquanto. Se Bernardo ou Laura desconfiarem que nos encontramos vão
atentar contra você e eu não suportaria.
— Tem razão.
— Eu entro em contato. Todos os dias. Prometo.
— Por favor — implorei.
Ele me beijou mais uma vez e saiu do carro.
Vicente atravessou a rua, mas aguardou que eu saísse. Liguei o carro
e segui na direção indicada pelo GPS. Com a velocidade reduzida, observei
pelo retrovisor o que ele fazia. Vicente aguardou até que eu estivesse
distante e entrou em uma rua estreita um pouco à frente de onde parei o
carro.
Certa do que deveria fazer, estacionei o carro, peguei a bolsa e desci.
Eu sabia o tempo exato que a polícia levaria para obter a informação da
localização do veículo, então não demorei a fazer o caminho de volta a pé.
Antes de virar na rua em que Vicente entrou, observei se seria vista. Ele
caminhava sem desconfiar de nada e virou a direita no final do caminho. Fiz
o percurso o mais rápido possível sem atrair atenção, atenta a tudo. Repeti o
processo quando cheguei no ponto em que ele virou e dei de cara com um
matagal extenso.
Mais à frente Vicente seguia sem olhar para trás. O caminho era mato
de um lado e casas que pareciam abandonadas do outro, por isso aguardei até
que ele não pudesse me ver e assim que Vicente dobrou para o lado oposto,
eu saí em disparada. Parei ao me dar conta de que ele de fato escolheu um
ótimo lugar para se esconder. Longe de tudo, deserto, no meio do nada,
enfurnado no matagal que dava atrás de uma favela ostensiva.
Vicente não seguiu na direção das casas, ele entrou em um caminho
estreito e quase inexistente entre os matos. Tirei os saltos, pois não
conseguiria segui-lo com eles, e os deixei na beira da estrada com a
esperança de que a polícia os localizasse e me devolvesse. Era um Prada,
pelo amor de Deus!
Segui pelo caminho o mais lento que consegui. Vicente, bem mais à
frente, não percebia que eu o seguia. Ou, percebia, e me dava margem para
que pudesse me atacar sem testemunhas. Apesar do risco, continuei. Meu
marido tinha as motivações distorcidas dele, mas eu também tinha as
minhas, e lutaria por elas ainda que custasse a minha vida.
Agachei no meio do mato quando ele saiu para um campo aberto.
Vicente olhou para trás e conferiu o caminho. Prendi a respiração, apesar de
estar a uma distância segura dele. Vi quando voltou a andar e virou ao lado
de uma construção grande e abandonada, cercada de carros retorcidos e
enferrujados. Quando me senti segura, andei até o local em que ele
desapareceu e me dei conta de que daria o maior trabalho encontrá-lo.
Atrás da construção havia um amontoado de casas inacabadas,
carcaças de carros abandonados, pelo chão de terra havia sujeira de todos os
tipos e dos lados, árvores que protegiam o local e o tornava quase que
invisível. Respirei fundo, encostei em uma das paredes cobertas de limo,
protegida, e observei o local com mais atenção. Onde meu marido escolheria
se esconder? Havia mais alguém com ele? De que maneira ele se protegia?
Contei cinco construções inacabadas. Algumas com o térreo quase
pronto, mas com o primeiro andar suspenso como um esqueleto esquecido.
Troquei de lugar, tive uma visão melhor e encontrei, mais ao fundo, quase
afastada de tudo, uma casa de dois andares, também abandonada. Embaixo a
tinta desgastada indicava a existência de uma oficina em um passado
distante. Em cima a construção finalizada não tinha reboco ou pintura, mas
tinha telhado e janelas, ainda que velhos e sujos.
Eu precisava tentar.
Com passos lentos, os nervos por um fio, de olho em tudo ao meu
redor, caminhei sem fazer barulho até a escada quase destruída que dava
acesso ao andar de cima. A porta antiga, estragada pelo tempo e pela chuva,
não oferecia resistência. Testei a maçaneta suja. Trancada. Por que alguém
trancaria a porta de uma casa abandonada no meio do nada?
Peguei a bolsa e retirei de dentro a minha pistola e deixei a bolsa,
junto ao o celular no último degrau. Aquela altura a polícia já tinha o sinal
que precisava e encontraria minha bolsa com facilidade. Testei a arma na
mão, insegura, afinal de contas, nunca precisei sacá-la antes.
Quando papai insistiu para que eu fizesse aulas de tiro, eu o acusei de
ser um brutamontes. Mas ele insistiu, e explicou que com o tempo eu teria
responsabilidades e que, com toda a segurança que tínhamos, eu nunca
precisaria usá-la. Anos depois, eu firmava a mão que tremia de forma
involuntária, ciente de que se eu não a usasse, morreria.
Relembrando as aulas, caminhei com cuidado pelo espaço sem
proteção que me levava à frente da casa, mas não até a janela. Um perigo
real. Encostei na parede e fiquei quieta, ouvidos apurados, para me certificar
de que não faria bobagem. E então eu o ouvi.
— Você é muito inocente, Laura. Sempre foi.
Laura? Vicente ligava para Laura ou… Deus! As ligações de
Bernardo e Fernando… O que Vicente fez? O que eu deveria fazer?
— Qual é o seu plano?
Quase não ouvi a voz de Laura, mas a reconheci mesmo que baixa e
rouca. Ela sofria, não havia dúvidas em relação a isso. Olhei para o espaço à
minha frente e roguei para que logo a polícia aparecesse. Enquanto isso, eu
tinha que garantir que Laura escaparia daquilo e Vicente não fugiria.
— E sei que levantarei a dúvida. Hoje em dia temos mensagens
fraudulentas, celulares clonados, tudo para fazer com que questionem o que
eles tem até agora. — Vicente continuava a falar.
Não havia medo nele e nem cuidados. Ele sabia que escolheu o lugar
certo. Se eu não tivesse me arriscado, se não tivesse agido pela raiva, jamais
conseguiriam encontrá-lo e Laura… Céus, não!
— Ah, Laurinha!
A voz dele ficou mais baixa, eu quase não conseguia ouvi-lo. captei
fragmentos da conversa, do que ele tramava e fiquei horrorizada.
— Mas antes conseguiu ouvir uma conversa entre ele e Bernardo —
finalizou.
Horrorizada, me dei conta de que Vicente agiria contra meu irmão.
Ponderei sobre todos os pontos, de que maneira ele conseguiria fazer aquilo
e tive dúvida, confesso. Eu era testemunha, mas e se Vicente conseguisse me
eliminar? Se ele assustasse Laura ao ponto de obrigá-la a fazer como ele
queria? E caso ele se livrasse de Laura também e conseguisse culpar
Bernardo por tudo?
Fechei os olhos e precisei controlar meu corpo que tremia por inteiro.
Eu não podia fraquejar justo ali, com toda a oportunidade para impedir
Vicente.
— Deixe Bruna fora disso — ouvi Laura dizer com raiva e voltei a
prestar atenção neles.
— Deixarei — ele disse com ironia. — Claro que deixarei. Como
posso fazer algo contra a minha amada cunhadinha?
— O quê?
— Você fará tudo o que eu pedir. Vai fingir que não sabe nada a
respeito da carta que o velho deixou e não devolverá a herança para os
Quaresmas.
— Casar? Enlouqueceu?
Filho da puta!
Por isso Vicente me ligou. Ele precisava que eu desse aquele
primeiro passo, que conseguisse o advogado para que depois disso, virasse o
jogo contra mim. Claro que não acreditei nem por um segundo nele quando
decidi que o encontraria. Eu tinha um plano, ainda que desajustado.
Desde que Vicente desapareceu, passei a levar minha pistola comigo
para todos os lugares. Por isso dispensei os seguranças. Com o pedido de
divórcio, eu me tornava um alvo. Se eu morresse e ele não fosse
incriminado, nada o impediria de colocar as mãos em meu dinheiro. Só não
esperava por aquilo. Pelo plano horroroso dele, desumano, cruel.
Decidida, fiz o caminho de volta. Mas, por descuido, pisei em uma
parte frágil, envelhecida o suficiente para não suportar uma leve passada. O
reboco se desprendeu e se chocou contra o chão. Prendi a respiração, certa
de que naquele espaço, longe de tudo e todos, qualquer barulho chamaria a
atenção do Vicente.
Em alerta, tomei ciência de que precisa rendê-lo até a polícia chegar.
O testemunho de Laura invalidaria todo e qualquer argumento daquele
verme. De frente à porta, me preparei para preparei para surpreendê-lo..
Eu me posicionei, certa de que haveria apenas uma chance. Prendi a
respiração e firmei o pulso. Vicente abriu a porta com receio, um pequeno
espaço que lhe permitiu verificar quem ousava aparecer. Agi por impulso e
dei o primeiro tiro. O som fez meus ouvidos entupirem e meu ombro
protestou por causa do coice, mas nada em mim agia com razão. Assim que
disparei e vi Vicente cair para trás, abri a porta com pressa e entrei com a
arma apontada para ele.
Porém, para a minha surpresa, Vicente também estava armado e,
ainda que atingido no ombro, apontava para mim prestes a dispará-la. Não
sei como tive reflexo. Nada em minha mente correspondia, meu corpo
parecia uma máquina desligada do cérebro. Eu atirei e me joguei no chão, de
imediato recuei e busquei abrigo sem encontrar. O ambiente em que
estávamos era uma pequena sala sem mobília, paredes nuas, descascadas e
lixos pelo chão.
Levantei a arma outra vez e me preparei, os olhos fixos em Vicente,
pronta para disparar todo o cartucho se fosse necessário. Os segundos que
passaram até que eu me desse conta de que ele não se mexia, pareceram uma
eternidade. Com cautela, me arrastei até que meu pé estivesse próximo a
mão dele e empurrei a arma para longe. Vicente não reagiu. Sem baixar a
guarda, levantei e então eu vi o que jamais imaginei que aconteceria. Com
um tiro no rosto, Vicente encarava o teto, sem vida. O chão abaixo dele
coberto com uma poça de sangue fresco.
Levei um tempo encarando a face que um dia acreditei amar.
Lágrimas desceram pelo meu rosto, mas não de tristeza nem de remorso.
Vicente era um risco, uma ameaça que precisava ser extinta. Limpei o rosto
e levantei. Uma porta fechada me fez lembrar de Laura. Caminhei até lá e a
abri.
Encolhida no canto do quarto pequeno, escuro e abafado, Laura me
encarava com pavor. O rosto machucado deixava clara a crueldade do
homem com quem me casei. Amordaçada, com os braços presos atrás do
corpo, Laura chorou de forma ruidosa. Ajoelhei ao seu lado e tirei o trapo
sujo e nojento que Vicente utilizou para amordaçá-la.
— Está tudo bem agora, Laura — eu disse no automático. — Está
tudo bem.
Sem pensar em nenhum dos meus gestos, abracei Laura e a acalentei.
As lágrimas desciam sem esforço, motivadas por tudo, pelo medo, pelo risco
que corri, por tudo o que Vicente roubou de mim.
— Meus braços — ela gemeu baixinho.
Olhei para trás dela e vi que Vicente colocou uma algema para
mantê-la incapacitada.
— Calma.
Levantei com pressa e corri os olhos pelo espaço, sem encontrar nada
que indicasse um lugar onde Vicente guardaria a chave das algemas. Então
voltei à sala, para o corpo inerte, os olhos ainda abertos, um pequeno furo
acima do olho direito. Olhei ao redor outra vez sem encontrar nada. Sem
opção, conferi os bolsos de Vicente e encontrei o meu cartão de débito, um
cigarro de maconha e um chaveiro com algumas chaves. Reconheci a do
meu escritório e uma com a logo da imobiliária que administrava nossos
imóveis.
— Pelo menos agora, você não fica com nada meu — murmurei.
Voltei para o quarto e testei as chaves até que Laura estivesse livre.
Ela gemeu, fraca, quando os braços se moveram para frente.
— Filho da puta — murmurei. — Você está machucada?
— Não — ela sussurrou ainda com dor.
— Meu Celular está lá fora e…
— Polícia! — Alguém gritou do lado de fora.
Nós nos encaramos, tensas, depois sorrimos, certas de que aquele era
o fim que merecíamos. Assim, nos abraçamos e nos mantivemos desta forma
até que os policiais nos cercassem.
“Vivendo momentos felizes,
Amando é que eu vim perceber
Que todos os caminhos do mundo
Me levam de volta a você.”
Oi lá - Toquinho / Vinicius de Moraes

CAPÍTULO 51
LAURA

Sempre gostei de acreditar que, por mais difícil que fosse, independente da
situação, eu tinha controle sobre mim. Eu podia ter medo, raiva, motivação,
mas tudo partia de mim, com a minha consciência, a minha capacidade de
compreender e fazer o melhor possível diante do que eu tinha à minha
disposição. Até mesmo quando Vicente me beijou e me fez concordar com
as loucuras dele, eu sabia que agia por instinto de sobrevivência. Em
nenhum momento eu me desconheci, perdi o meu controle.
Até Sabrina aparecer, a polícia invadir a casa e me levar embora,
antes passando por um Vicente sem vida, ensanguentado no chão. Foi a
partir deste momento que eu perdi todo e qualquer controle sobre mim. Em
choque, não conseguia falar, não controlava meu corpo que não parava de
tremer, não evitava as lágrimas que desciam volumosas e banhavam meu
rosto. Eu não ouvia o que falavam, não correspondia aos pedidos ou
comandos. Não enxergava com exatidão. Então adormeci.
E adormeci.
E adormeci.
E adormeci.
Em algum momento daquele sono profundo, eu tive consciência de
que ministravam medicações que me mantinham desacordada. Recordava
pouco do ocorrido e alucinava com coisas que eu não fazia ideia se eram
reais. Lembro de despertar gritando e adormecer logo em seguida. Da minha
mãe segurando meus ombros doloridos, me empurrando de volta para a
cama. Lembro de pessoas ofuscadas pela claridade que chegavam sem nada
dizer e partiam com o mesmo silêncio.
Por isso quando abri meus olhos e consegui mantê-los abertos, eu
não fazia ideia se ainda dormia ou sonhava. O silêncio estranho só era
quebrado pelo gotejar insistente ao meu lado. Observei o acesso interligado a
uma bolsa de soro e estranhei minha mão, as unhas cortadas, pequenas e a
marca vermelha em meus pulsos.
Voltei a fechar os olhos, as lembranças como um pesadelo a me
aterrorizar. Vicente perto demais, o beijo, a confissão antes de morrer pelas
mãos de Sabrina.
— Sabrina — eu disse, a voz pastosa e rouca. Minha garganta doeu
ao forçá-la.
Lembrei do choro e senti a lágrima escorrer pelo canto dos meus
olhos enquanto eu recordava os braços protetores de Sabrina em mim. O
abraço apertado enquanto a polícia preenchia o espaço do pequeno quarto
em que Vicente me manteve cativa.
— Sabrina — repeti, alarmada ao ver outra vez, em minha mente, o
corpo de Vicente estendido no chão, os olhos abertos, o buraco em seu rosto
indicando o local do tiro.
Como Sabrina escaparia dessa?
— Laura?
A voz dele reverberou em mim como bálsamo. Abri os olhos no
exato instante em que Bernardo colocou a mão sobre a minha.
— Laura?
Ele me encarava com preocupação, os olhos de um azul
reconfortante, atentos a mim como se eu pudesse surtar a qualquer momento.
— Ber… — Limpei a garganta, cada vez mais seca e irritada. —
Bernardo.
Falar exigia a energia que parecia ter desaparecido do meu corpo.
Passei a língua pelos lábios ressecados.
— Está tudo bem — ele sussurrou. — Você está bem, Laura.
— Água — pedi sem aguentar a sede.
Bernardo largou minha mão e eu ouvi a sua movimentação próximo
ao local onde eu estava deitada. O barulho de água derramada no copo me
fez abrir os olhos outra vez.
— Aqui — ele disse de volta para o meu lado. — Beba devagar.
Bernardo me auxiliou com a água. Meus braços não correspondiam
como eu queria. Tudo em mim doía. Bebi o máximo possível e não o
suficiente para aplacar a sede que arranhava minha garganta.
— Sabrina… — eu reagi, preocupada demais para aceitar a fraqueza
que me abatia. — Ela matou…
— Calma. Não se preocupe com nada. Sabrina está bem.
— Ela matou o Vicente — conclui.
Eu queria dizer muitas coisas, pedir para falar com a polícia e dizer
que Sabrina me salvou, que Vicente estava armado, o que ele tramava, tudo
o possível para livrar Sabrina daquilo. Mas eu não conseguia falar mais do
que aquilo.
— Laura — Bernardo suspirou, envolveu minha mão na dele e
sentou com o rosto perto do meu. — Sabrina atirou no Vicente porque ele ia
atirar nela.
Concordei sem conseguir falar. As lágrimas continuaram descendo,
eu não conseguia respirar direito.
— Fique calma, meu amor — ele suplicou.
— Eles vão prender Sabrina? — eu me esforcei para dizer. Bernardo
deu um risinho gentil e limpou o canto dos meus olhos.
— Não. Sabrina tem porte de arma. Ela atirou em legítima defesa. A
investigação conseguirá inocentá-la.
— Certo.
Mas eu continuava chorando, sem controle e sem identificar um
motivo específico.
— Vicente ligou para Sabrina depois de te sequestrar. Ele tentou
enganá-la. Disse que nós tramamos para separá-los. — Bernardo deu um
risinho irônico. — Às vezes eu me pergunto como Vicente acreditou que
conseguiria engabelar Sabrina com essa conversa. Logo Sabrina? Não se
esforce, Laura — ele me impediu de falar quando tentei colaborar com o que
dizia. — Você está fraca, meu amor.
Eu o encarei com um pedido no olhar e Bernardo compreendeu. Ele
sabia que precisava me contar tudo ou eu não teria paz. E assim eu soube
que Sabrina seguiu Vicente sem ter conhecimento do meu sequestro. Ela
queria entregá-lo à polícia e acabar com as incertezas que vivíamos, mas
acabou se deparando comigo.
Bernardo me garantiu que Fernando cuidaria de Sabrina e não
deixaria que a investigação desandasse, permitindo assim que Sabrina
continuasse livre. E então ele me contou sobre o enterro de Vicente.
— Eu fui — ele disse com certo amargor na voz. — A imprensa em
peso estava na porta do cemitério municipal. Sim, deixamos que o governo
cuidasse disso. Vicente não valia o nosso esforço. Eu fui porque queria ter a
certeza de que ele morreu mesmo. — Eu sorri porque não conseguia rir. Os
lábios ressecados esticaram e doeram no processo.-- Vicente é tão rançoso
que pensei em tampar o caixão e derrubar a terra sobre ele. Só para garantir
que não tinha volta.
— Bobo — sussurrei.
O olhar de Bernardo se acendeu com devoção quando ele acariciou
meu rosto.
— É tão bom te ter de volta — ele disse, cheio de emoção.
— É bom estar de volta. — Forcei minha voz a sair.
— Foram três dias terríveis, Laura.
— Três?
Minha garganta protestou quando falei com espanto. Engoli com
dificuldade e aceitei a água que Bernardo voltou a me oferecer.
— Três dias hoje — ele informou. — Você entrou em choque quando
a polícia te encontrou. Os médicos preferiram te acalmar com remédios
porque quando você saiu daquele estado que não correspondia a nada, ficou
agressiva, gritou muitas vezes, se arranhou. Foi horrível.
Eu mal conseguia acreditar nas palavras dele. Três dias? Como eu
consegui me perder por tanto tempo?
— E minha mãe?
— Foi para casa depois de eu insistir muito.
Concordei, controlando minha respiração. Eu não podia surtar.
Precisava voltar ao normal e assumir o controle sobre mim mesma. Três dias
perdida entre o sono e o desespero eram o suficiente. Eu não me permitiria
nem mais uma hora no descontrole.
— Eu te devo um pedido de desculpas — Bernardo falou com certo
receio.
— Por quê?
— Nada disso teria acontecido se não fosse por mim. Quer dizer…
por causa da minha família desajustada. Todos nós falhamos com você,
Laura. Até mesmo meu pai quando te fez esse pedido injusto. E veja o que
aconteceu? Primeiro Sara e agora você em uma cama de hospital. Eu… sinto
tanto.
Meu namorado abaixou a cabeça sobre a cama e escondeu o rosto de
mim, sem desconectar nossas mãos. Acariciei os dedos longos sem saber o
que dizer, se eu conseguisse dizer. Havia uma série de pontos ruins que só
aconteceram porque eu me envolvi com os Quaresma. Mas eu podia culpá-
los? Acho que não.
Sabrina roubou meu noivo e desfez a nossa amizade. Eu me culpava
por ter apresentado Vicente a ela, por ter confiado nele e revelado detalhes
sobre a vida da minha amiga. No final das contas, nós duas fomos usadas por
ele. Vicente era o grande vilão daquela história, não a gente. Fomos todos
manipulados e levados a agir.
Entretanto, se nada disso acontecesse, se o Sr. Quaresma não
percebesse o quanto a filha era enganada, não teria enxergado o que fazia
com Bernardo. Se ele não tivesse me envolvido naquela confusão, eu nunca
olharia Bernardo de outra forma, nunca o amaria e ele jamais pensaria em
mim como alguém possível.
Por isso eu sorri ao soltar minha mão da dele e levar meus dedos aos
fios lisos e sedosos do meu namorado. Quando Bernardo ergueu a cabeça e
me encarou, eu ainda sorria. Ele se aproximou, acariciou meu rosto e se
permitiu ser acalentado.
— Eu te amo — sussurrei. Ele me presenteou com um lindo sorriso,
tímido e apaixonado.
— E eu te amo demais, menina — confessou antes de depositar um
beijo rápido, mas carregado de sentimentos, em meus lábios.

QUINZE DIAS DEPOIS

De volta para casa, mas não para a minha liberdade.


Nos primeiros dias, a culpa era minha. Assustada, com pesadelos
constantes e noites agitadas, demandei mais cuidados do que acreditei que
um dia precisaria. Sabrina sugeriu, mas ninguém precisou insistir para que
eu iniciasse o tratamento com um profissional. A conversa, ainda no
hospital, com a psiquiatra e as poucas consultas com o psicólogo ainda não
tinham qualquer efeito em minha mente.
Bastava eu fechar os olhos para que a cena retornasse, fazendo com
que eu acreditasse que jamais teria fim. E, na maioria do tempo, eu nem
precisava dormir para me assustar. Qualquer barulho suspeito ou a falta de
notícia de alguém que eu amasse já acionava o gatilho e me deixava
desesperada.
As horas pareciam dias, e os dias, anos. Sob a vigília constante da
minha mãe, eu pouco fazia. A desculpa perfeita para devolver a Sabrina o
cargo que ela tanto almejava. Para conter as fofocas, comunicamos que
solicitei um período de afastamento para que pudesse me tratar. Sabrina
assumiria e faria com que todos se sentissem confortáveis com a gestão dela.
Bernardo finalmente indicou quem o substituiria, mas ainda
precisaria de um tempo até que não restasse mais nada que pudesse
complicar aquela transição. Desta forma, os Quaresmas assumiram a vida
que tanto desejavam e eu… eu ainda precisaria de um tempo até conseguir
colocar os pés na rua sem ter uma crise de pânico.
A notícia boa era que Carlos estava ótimo. A bala não comprometeu
nenhum órgão vital, a cirurgia foi um sucesso e o motorista que muitas vezes
tinha a palavra certa para me dar coragem, logo estaria na ativa outra vez.
Menos uma culpa para carregar.
Então, meus dias naquela casa se baseavam em: me adaptar aos
remédios que me ajudariam a vencer os traumas, dormir, fazer qualquer
coisa pela casa que tivesse minha mãe ao meu lado o tempo todo - exigência
dela - e contar os minutos para Bernardo estar de volta. Contudo, apesar de
ter meu namorado apaixonado ao meu lado, eu pouco tinha dele, afinal de
contas, como namorar com a mãe atenta a tudo o que falávamos?
Quinze dias depois e a única mudança era na minha autoconfiança,
porém, ninguém acreditava em mim, e todos continuavam me cercando e me
tratando como a pobre garota frágil que se partiria em mil pedaços se um
copo caísse na cozinha. Ok! Eu ainda me assustava com facilidade. Eu quase
morri! Eu vi Vicente morto. Lógico que os traumas permaneceriam por
muito tempo, mas eu lutava contra eles e estava disposta a vencê-los, então
merecia um voto de confiança.
Por isso, naquele dia, depois de fazer minha mãe acreditar que engoli
o remédio para dormir e aguardar até que a casa mergulhasse no silêncio da
noite, abri a porta do meu quarto decidida a recomeçar a minha vida. Eu
precisava de um monte de coisas para me sentir outra vez no controle,
porém, muitas teriam que esperar e uma, a mais fácil de obter, só precisava
da minha coragem e disposição.
Em silêncio, desci as escadas da minha ala e me deparei com a
imensidão da sala escura. No primeiro instante meus pés travaram, se
recusaram a continuar. Minha mente se dividia entre me encorajar,
desfazendo a ideia do pânico, das imagens projetadas pela sombra e,
principalmente, me garantindo que o espaço não era amplo o suficiente para
eu me assustar.
Mas havia a parte mais difícil, e esta me fazia questionar cada espaço
que meus olhos não alcançavam. As cortinas fechadas, apesar de pouco
conterem as luzes do lado de fora, remetiam ao quarto escuro onde passei
horas sendo submetida às loucuras do Vicente, e, apesar de sufocar com a
ideia do local onde ele me manteve cativa, eram os lugares abertos que me
assustavam mais, como se não houvesse proteção, ou, como se eu me
tornasse um alvo fácil.
Cogitei subir as escadas e me trancafiar no meu quarto outra vez.
Cheguei até mesmo a colocar um pé no degrau. Então lembrei dele, dos
olhos azuis mais bonitos que já conheci, do sorriso bobo e apaixonado, dos
lábios que atiçavam meu desejo sem conseguir satisfazê-los. Eu precisava de
Bernardo. Precisava me aconchegar nos braços dele e sentir que todo o meu
mundo cabia ali. Precisava dos beijos, dos afagos, das declarações. De tudo
o que não pude ter mais, devido aos medos deixados por Vicente.
Respirei fundo, fechei os olhos e dei os primeiros passos. Eu poderia
fazer o caminho todo daquela forma, uma vez que conhecia os móveis e a
disposição, assim como os espaços livres, entretanto não fui capaz. Eu não
conseguia definir o que me assustava mais, enxergar tudo o que havia ao
meu redor, ou o que havia dentro de mim. Meus olhos se encheram de
lágrimas, o pânico me empurrava para trás, de volta para a segurança do meu
quarto. Mordi os lábios, fechei as mãos em punho e dei mais um passo,
imersa no campo aberto e escuro. Depois outro, e mais outro, até que fiz o
caminho todo.
Não sei ao certo quanto tempo levei para chegar ao pé da escada que
me levaria a ala do Bernardo, mas posso dizer com exatidão o quanto de luta
exigiu de mim. Eu me sentia exausta, contudo, feliz. Pelo menos até que
mãos assustadoras seguraram meus ombros e me viraram. Eu gritei com todo
o meu desespero, mas jamais conseguiria alertar alguém, uma vez que as
mesmas mãos me imprensaram na parede e taparam minha boca.
— Laura? — Ele sussurrou, alarmado. — Não grite.
Eu ouvi a voz de Bernardo, identifiquei ser ele, enxerguei seu rosto
ainda que na escuridão, mas minha mente não funcionava direito, por isso,
mesmo sem gritar, hiperventilei, entrei em choque, meu corpo congelou.
— Laura? Calma — ele pediu, de volta ao pesadelo constante que
vivenciamos dia após dia. — Respire. Calma. Respire, amor. Sou eu.
Respire.
A voz baixa, na entonação correta, fez com que meu corpo buscasse
o ar da forma certa, aos poucos. Inspire. Expire. Eu ditava a mim mesma,
conforme meu psicólogo orientou. Os olhos fixos nos de Bernardo que me
acompanhava na respiração, me incentivando. Até que meu corpo destravou
e as lágrimas desceram.
— Calma, amor — ele disse baixinho, me abraçando com cuidado.
— Está tudo bem.
— Não está — choraminguei. — Como vou viver desse jeito?
— Aos poucos. Eu te assustei. Desculpe.
Ele se afastou apenas para buscar por meus olhos e limpar minhas
lágrimas. Assim que meu choro cessou, Bernardo, com meu rosto entre suas
mãos, beijou minha testa, bochechas e finalizou com um beijo delicado nos
meus lábios. Fui fulminada com a mais pura frustração. Há dias aquilo era
tudo o que eu tinha dele.
— O que faz aqui sozinha?
— Eu não sou nenhuma criança, Bernardo — respondi com birra,
ainda que tivesse toda noção do quanto infantil eu parecia. — Posso andar
sozinha pela casa.
Ele deu um risinho baixo e voltou a me abraçar. Desta vez o beijo foi
em meu pescoço, outro quase atrás da minha orelha. E meu corpo já
esperava por mais.
— Pode, mas não faz — ele rebateu com um tom divertido. — O que
queria fazer? Fugir de casa?
— Com certeza. Estou cansada de ser a paciente.
As mãos dele desceram para minha cintura, depois subiram pelas
minhas costas com um carinho um pouco mais ousado.
— Acho que você perdeu a entrada na última à esquerda. Esse lado
aqui só te leva para um lugar.
— Qual?
— Minha cama — sussurrou em meu ouvido de forma atrevida, as
mãos quentes em minhas costas, os dedos ultrapassando a abertura da
camisola. — O que é um problema.
— Por quê?
Minha voz saiu alta, alterada pelo medo de Bernardo me mandar de
volta para o quarto, com a mesma proteção dos outros moradores daquela
casa.
— Eu nunca mais vou deixar você passar uma noite longe de mim.
Ele disse sério, todos os gestos congelados, os olhos fixos nos meus,
como se aguardassem pela minha permissão. Não, pela minha concordância.
Abracei meu namorado com todos os sentimentos que me sufocavam
e soltei o ar quando ele me cercou com seus braços. Fechei os olhos com
força. O medo, a insegurança ainda estavam lá, mas havia algo mais potente,
capaz de me fazer atravessar o inferno sem piscar. O amor. Quando Bernardo
me abraçou com a mesma saudade que eu sentia, foi como se um campo de
força se projetasse ao nosso redor. Eu tinha todas as certezas que precisava e
estas continuariam firmes enquanto ele estivesse ao meu lado.
— Me leve para cama — supliquei, e não precisei dizer mais nada.
Bernardo me carregou, minhas pernas atreladas à sua cintura. A
junção dos nossos lábios aconteceu sem reservas. Havia tanta saudade
naquele beijo, tanta necessidade, tantos sentimentos… tudo misturado ao
sabor único das nossas línguas, na maciez incontestável dos nossos lábios.
Nós nos conectávamos, ligávamos os fios que conduziam o desejo que
atravessava nossos corpos.
Entramos no espaço reservado a meu namorado dentro daquela
imensa mansão, agarrados, envolvidos pela melodia que só existia dentro de
nós, que ditava os passos, os gestos, os anseios.
— Seja bem-vindo de volta, Bernardo! —- Bete o saudou.
— Puta merda, Bete! — Bernardo rosnou ao me atirar sobre o sofá e
arrancar a camisa do pijama que usava.
— Desculpe, não entendi — Bete continuou.
— Desligar — ele disse um pouco mais alto.
Eu ri, sem acreditar naquela relação louca entre meu namorado e sua
assistente virtual.
— Nunca imaginei que seria tão divertido ter uma mulher entre nós
— pirracei quando Bernardo se alojou entre minhas pernas. Ele ergueu o
tronco e me encarou, o olhar divertido e um sorriso malicioso nos lábios que
eu amava.
— Isso é uma ideia ou um pedido?
Belisquei a cintura dele como reprimenda e recebi como resposta o
peso daquele corpo majestoso, a junção das nossas bocas em um beijo mais
visceral, o movimentar dos quadris dele, o sexo desperto, o fogo que me
incendiava sem precisar de combustível. Bernardo era tudo o que eu
precisava e mais um pouco.
A urgência que nos regia tinha o foco nos dias em que pouco tivemos
um do outro, mas se alastrava à medida que tomávamos ciência do que nos
seria tirado caso aquele sequestro terminasse em uma tragédia pior. Por isso
minha pele ardia, implorava pela dele, meus lábios não se cansavam do beijo
exigente, as mãos buscavam em cada detalhe as certezas que precisávamos.
Em algum momento entre ser tocada por mãos afoitas e sugada por
lábios sedentos, minha camisola abandonou meu corpo, minha calcinha
deixou de ser uma barreira. Eu vibrava de forma desconexa. Queria tudo
dele ao mesmo tempo em que sabia que nada seria o suficiente.
Bernardo entrou em mim com volúpia, me preenchendo como se eu
não pudesse encontrar a paz se ele não estivesse em mim. Tudo era tão certo,
tão perfeito, único. Os movimentos ritmados seguiam a mesma paixão que
nossas mãos e bocas, urgentes, afoitos, necessitados. O desejo cru, a essência
mais pura da paixão, a luxúria que nos envolvia e nos jogava no fim, mesmo
que quiséssemos eternizar o momento, as sensações.
Meu corpo retesou quando o orgasmo se espalhou por minhas células
e arrancou de mim um gemido alto, forte, incontível. Minha mente
desconectou, me inundou com o prazer, me ofertou a mais serena paz, a
sensação de plenitude, e, aos poucos, me levou de volta aos braços daquele
que seria meu por tempo indeterminado.
Bernardo me abraçou, o corpo ainda com pequenos espasmos, a
respiração ofegante, tão fundo em mim que me obrigava a envolvê-lo com
pernas e braços e desejar nunca mais deixá-lo. De volta ao controle,
distribuiu pequenos beijos por meu pescoço e busto, até alcançar meus
lábios, onde, enfim, o beijo lento, carinhoso e sedutor, se apresentou.
— Eu pedi para me levar para a cama — provoquei quando ele se
ajeitou ao meu lado e me envolveu com o corpo quente, mantendo-me
segura entre seus braços.
— Pit Stop — sussurrou, a voz ofegante, mas nada sonolenta. — E
eu quis te dar a chance de pensar melhor no meu pedido.
— Pedido?
Ergui o corpo para encará-lo. Bernardo acariciou meu rosto e ajustou
meu cabelo atrás da orelha para que pudéssemos nos ver melhor.
— Qual o sentido disso? — ele disse.
As carícias desceram por minhas costas, a ponta dos dedos subiam e
desciam, me acalmavam e me levavam para um lugar seguro, onde nada
poderia me atingir.
— Nós moramos na mesma casa, Laura — continuou. — E nos
amamos.
— Ah!
Abaixei o rosto e descansei a cabeça no peito dele. O coração
acelerado de Bernardo era a comprovação de que eu precisava para saber
que ele falava sério.
— Moramos na mesma casa, mas é como se morássemos em casas
diferentes.
— Você acha que é desse jeito?
— É desse jeito.
— Pois eu não acho.
— Eu durmo no meu quarto — argumentei, sem encontrar uma
lógica em minha resposta.
— Não mais. Eu te avisei.
E não havia nem um tom que indicasse alguma dúvida em sua
afirmação.
— Se é dessa maneira, não há qualquer sentido em casarmos —
provoquei. — Moramos na mesma casa, vamos dormir todos os dias juntos.
Eu tenho até uma parte das suas ações. Isso já é um casamento.
— Laura…
— Eu já tenho traumas demais, Bernardo.
Ele deu uma risada irritada.
— Puta merda! — protestou. — Você já faz terapia. Ponto para mim.
— Você iniciará um projeto maravilhoso que exigirá toda a sua
atenção. Ponto para mim.
— A sua mãe acha que deveríamos casar. Dois pontos para mim.
— Eu quero fazer faculdade, começar a trabalhar… três pontos para
mim.
— Eu amo você. Amo demais. Quero passar todos os meus dias ao
seu lado, Laura. Dez pontos para mim — ele disse com a certeza de que
nada que eu pudesse dizer superaria aquele argumento.
Revirei os olhos, levantei e sentei sobre os quadris dele.
— Pessoas casadas fazem menos sexo. Vinte pontos para mim.
Bernardo me encarou sem nada dizer. No sofá, com a sala escura,
iluminada pela claridade da rua, ele podia observar cada detalhe do meu
corpo. Mesmo em silêncio, suas mãos alisaram minhas coxas, subiram por
minha cintura, e, de repente, ele ergueu o tronco, me prendeu em seus
braços, enfiou os dedos por dentro do meu cabelo e puxou minha cabeça
para trás.
— Podemos falar sobre isso depois? — ronronou e mordeu meu
queixo empinado.
— Podemos — respondi rendida.
Bernardo arrastou os lábios por meu pescoço, a língua desenhou
minha clavícula e arrepiou minha pele.
— Mas você não ganhou esse jogo. Eu tenho vários argumentos para
te convencer. — A mão quente desceu até a minha bunda e me puxou na
direção da ereção pronta para me receber.
— Isso eu quero ver — provoquei.
“E de te amar assim, muito e amiúde
É que um dia em teu corpo de repente
Hei de morrer de amar mais do que pude.”
Soneto do amor total - Vinicius de Moraes

DOIS ANOS DEPOIS


LAURA

Pouca coisa em minha nova vida me deixava saudosa da época em que eu


não tinha dinheiro e precisava lutar pelo meu espaço. Ser rica tinha grandes
vantagens. Imensas até. Como cursar a melhor universidade particular de
enfermagem, não me preocupar com as mensalidades astronômicas e ter a
certeza de que a influência do sobrenome Quaresma abriria as portas dos
estágios para mim.
O lado ruim, e eu de fato detestava, era estar em eventos que
prestavam algum tipo de satisfação à sociedade. Não por necessidade, afinal
de contas, por que infernos alguém faria questão de dar uma festa de
casamento para mais pessoas do que seria capaz de cumprimentar e ainda
por cima dispensar horas posando para fotógrafos porque as fotos estariam
nos mais diversificados jornais, mais rápido até mesmo do que o final da
festa?
Não. Aquilo definitivamente não era para mim. Dois anos depois de
toda a tragédia que vivenciamos, aquele tipo de publicidade ainda me
apavorava. Todo mundo queria uma imagem, um depoimento, um detalhe
para não permitir que a história morresse. E tudo o que eu mais queria era
que ela morresse, não apenas nas lembranças das pessoas, mas nas minhas.
—- Respire, Laura — Bernardo sussurrou em meu ouvido, a mão em
minha coluna para me passar segurança. — Está tudo bem, amor.
— Podemos sentar agora? — sussurrei de volta quando o flash
estourou a nossa frente.
— Você é a pior madrinha de casamento que eu já tive, Laura! —
Sabrina esbravejou no instante em que o fotógrafo nos desobrigou.
— Eu te avisei que não sei lidar com isso. Você que é teimosa. E nem
pode dizer que só se casa uma vez.
— Comigo ela pode dizer sim — Fernando brincou, abraçando a
esposa por trás, mas quando ele depositou um beijo no ombro de Sabrina
outro flash pipocou perto de mim e tirou minha paciência.
— Eu vou sentar. De preferência na mesa mais distante de vocês —
resmunguei.
— Os lugares são marcados — Sabrina avisou com certo pânico. —
Bernardo, faça sua namorada agir como uma pessoa normal, pelo amor de
Deus.
— Até que horas a madrinha precisa ficar na festa? — eu perguntei
sem me importar com o aborrecimento da minha melhor amiga e cunhada.
— Se você for embora logo, eu juro por tudo que nunca mais falo
com você.
— Agora você está parecendo uma criança, Sabrina — provoquei,
mas sorri.
Apesar de todo o lado ruim por estar exposta daquela forma, eu não
deixaria Sabrina sozinha naquela festa por nada no mundo. O que vivemos
nos devolveu a amizade que um dia Vicente arruinou. Havia entre a gente
uma cumplicidade inacreditável e a lealdade que deveríamos manter na
nossa adolescência. Sabrina mudou, alegro-me em dizer. Mas eu também.
Maduras, sabíamos diferenciar as situações, compreender outras e dessa
maneira seguiamos, juntas e fortes.
— Eu vou fazer você pegar o buquê — ela pirraçou. — Até mesmo
costurei o seu nome e o do Bernardo na barra do meu vestido.
— Oh! — Fingi estar indignada. — Como pôde?
— Se você não sentar no seu lugar e seguir todo o protocolo, eu juro
que dou dez voltas na igreja, até que algum santo decida te obrigar a casar.
— Você não teria coragem.
— E suborno todas as solteiras da festa para que nenhuma tente
pegar o buquê, só você.
— Isso é chantagem pesada.
— Isso é na verdade uma ofensa — Bernardo se manifestou ao meu
lado. — Lembre que o namorado ansioso para casar sou eu.
Fernando riu e alimentaria a brincadeira se o fotógrafo não solicitasse
a presença dos noivos para novas fotos.
— Quantos álbuns ela terá? Cinco? — resmunguei enquanto permitia
que Bernardo me conduzisse para a mesa com maior destaque da recepção.
— Você é broxante, Laura.
— Verdade? Você nunca demonstrou isso.
Meu namorado riu e sentou ao meu lado, onde minha mãe e Bruna
aguardavam por nós. Minha mãe limpou os olhos com um guardanapo e
fungou.
— Chorando, Dona Sara? — brinquei. — Não me diga que é o
mesmo que casar uma filha sua.
— Eu só saberei disso no dia em que vocês dois tomarem jeito e
concretizarem o casamento — ela esbravejou. — Onde já se viu isso?
— No mundo — rebati. Bruna riu e ergueu as mãos, deixando claro
que não se intrometeria.
— A culpa não é minha, Sara — Bernardo fez o que sempre fazia
quando minha mãe iniciava aquela conversa, colocava lenha no fogo. —
Você sabe que se ela disser sim, eu caso hoje mesmo. Já temos até a festa.
— Deus me livre! Meu casamento será pequeno e discreto.
— E isso significa que ela já pensa no nosso casamento. — Meu
namorado levou minha mão aos lábios e beijou meus dedos.
— Isso significa que ainda tenho muita coisa pela frente antes de dar
este passo — provoquei. — Tem a faculdade, depois o estágio, e entrarei em
alguma pós graduação assim que começar a trabalhar. E depois…
Bernardo segurou em meu rosto e me puxou para um beijo
comportado, as duas mãos me mantendo cativa daquela doçura que me
derretia. Então ele deslizou os lábios por meu rosto até alcançar minha
orelha, onde depositou um beijo singelo.
— Dois anos — sussurrou.
— Não. — Eu ri ao receber uma pequena mordida no lóbulo.
— Um ano.
— Tá louco? — Ri um pouco mais, pois Bernardo mordiscou meu
pescoço e me arranhou com a barba por fazer. — Para com isso!
— Laura? — Sabrina me chamou de algum lugar. Afastei Bernardo e
virei na direção da voz dela, que não perdeu tempo. — Pensa rápido.
E Sabrina então atirou o buquê de flores na minha direção. Por
reflexo segurei a peça delicada. Bernardo riu e no mesmo segundo palmas se
espalharam por todo o espaço, as pessoas riam e festejavam a proeza da
minha cunhada, enquanto eu não conseguia encontrar uma reação adequada.
— Um ano, amor — Bernardo voltou a dizer.
— Dois — rosnei para ele, que escancarou o sorriso mais brilhante,
perfeito e encantador que já vi. Capaz de derrubar todas as minhas barreiras.
— Dois — ele repetiu com carinho. — Eu te amo, Laura.
— Eu já não sei se te amo tanto assim.
Com aquele sorriso perfeito, as íris azuis brilhantes como o céu que
pintava meus sonhos, ele juntou nossos lábios e não havia mais nenhuma
barreira em mim. Bernardo não sabia, mas nada me faria mais feliz do que
ser a sua esposa, a mulher que mudou a sua vida, que mereceu o nome da
sua inacreditável fundação, que se tornou uma estrela para guiá-lo até o
caminho que o libertaria.
Ele não sabia, mas até ali eu não aceitava porque o que eu sentia
exigia um espaço maior do que um concordar, mais importante do que uma
aliança e mais significativo e seguro do que nossos nomes em um papel. O
que existia em mim, tão grande que ocupava todos os espaços em que
estivéssemos, não tinha nome, não tinha cor, não tinha um símbolo, não
tinha bordas nem limites.
E, por não haver como descrevê-lo, não encontrar como desenhá-lo,
não enxergar até onde alcançaria, que entendi que para aquela história,
poderíamos começar com um sim.
— Sim — sussurrei com os olhos úmidos. — Vou ao seu lado,
Bernardo, não importa para onde.
Então ele me beijou, como acontece em todo grande conto de fadas,
ainda que às avessas, mais conturbado, com certas implicâncias, mas com
toda a certeza da felicidade. Não com um final feliz. Porque o que existia
dentro de mim não tinha fim, se perpetuaria para todo o sempre e sempre e
sempre…
AGRADECIMENTOS

Um dia eu fechei um livro ao ler a sua última página, o abracei e


agradeci. Havia em meu peito aquela sensação agridoce de saudade e
felicidade, de gratidão por ter encontrado uma história tão encantadora que
nunca mais me deixaria esquecê-la.
Um dia eu escrevi a última página de um livro, encarei a tela do
computador e agradeci. A mesma sensação me preencheu.
Criar histórias é um desafio. Você jamais olhará seu texto e achará
que está bom. Você nunca vai aceitar que o último ponto deve ser o ponto
final. Do mesmo jeito como vocês, leitores, nós também queremos mais,
mas a verdade é que toda história tem seu começo, seu meio e seu fim.
Foram seis meses com Laura e Bernardo. Às vezes eu queria desistir deles,
às vezes eu queria respirar eles. E dessa maneira os dias passaram sem que
eu colocasse o ponto final.
Aqui estou, relutando em encerrar essa história, insegura - eu sempre
estarei insegura - encantada e apaixonada pelo que escrevi. Entrego a vocês,
cuidem dela, acolham e amem como eu amei. Eu confio em vocês. Obrigada
por confiarem em mim.
Mas nada disso seria possível se eu não tivesse, não apenas o apoio,
mas o trabalho incrível das minhas betas. Elas se dedicaram por seis meses
também. Sofreram comigo, surtaram, tornaram esse sonho possível. De
verdade, eu não seria nada sem a junção dos trabalhos delas. Obrigada,
meninas. Vocês são únicas.
Para fechar esse livro eu contei com a paciência do meu pequeno,
meu caçula Davi e do meu marido Adriano. Obrigada por me lembrarem que
meu chão não é de areia e que apesar do medo, eu suporto mais do que sou
capaz de acreditar. Amo vocês!
Preciso escrever essas linhas de gratidão a todos os meus leitores do
grupo FC Tatiana Amaral e Tatiana Amaral Oficial. Vocês não fazem ideia
do que é saber que vocês estão comigo. Obrigada por todos os dias, por
todos os surtos e por nunca me deixarem esquecer o meu propósito, escrever
para encantar.
Obrigada a todos. Amo vocês!

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