Este documento é uma dedicatória e introdução de um livro de ficção. A autora agradece aos leitores e familiares que apoiaram seu trabalho e tornaram possível a publicação do livro. Ela também reflete sobre como superou um trauma do passado e encontrou o amor e felicidade com sua família atual.
Este documento é uma dedicatória e introdução de um livro de ficção. A autora agradece aos leitores e familiares que apoiaram seu trabalho e tornaram possível a publicação do livro. Ela também reflete sobre como superou um trauma do passado e encontrou o amor e felicidade com sua família atual.
Este documento é uma dedicatória e introdução de um livro de ficção. A autora agradece aos leitores e familiares que apoiaram seu trabalho e tornaram possível a publicação do livro. Ela também reflete sobre como superou um trauma do passado e encontrou o amor e felicidade com sua família atual.
Para todos os meus leitores, que deram visibilidade para a história
de Isabella, mostrando que o assunto tratado aqui não merece ser colocado para baixo do pano. Vocês são demais! Em especial, Mércia, Gaby e Andreza. Para a minha família em geral. Para Heloísa e Mirela, que reconheceram o meu trabalho e tornaram um sonho realidade. E por último... para mim. Que finalmente escrevo aqui, nesse conto, palavras que vão me libertar de certa forma. Lembro-me que uma vez, perguntei para a minha mãe; ‘‘se eu não me chamasse Wanessa, qual nome eu teria?’’ e ela respondeu-me: Rebeca. Eu queria muito ter tido a coragem que Rebeca teve fora das linhas que aqui escrevo. O futuro pode ser algo doloroso para quem sofre com a ansiedade. A gente não sabe o que nos aguarda, e com isso, sofremos com a incerteza e a curiosidade do amanhã. Às vezes, questiono-me, o nosso futuro está escrito? Ou as ações do cotidiano que determinam o nosso futuro? Como o tal efeito borboleta. Não dizendo que eu tive que ser vítima de violência sexual para merecer tudo o que tenho hoje. Mas, paro e penso. Como seria a minha vida se naquele fático dia, eu colocasse um fim em toda a minha dor e no meu sofrimento? Como seria a minha vida caso eu o denunciasse? Como seria a minha vida se eu resolvesse abortar o meu filho? Eu teria um futuro diferente? Ou será que toda a nossa vida está escrita num livro, e apenas vamos vivendo os capítulos? De qualquer forma, eu acredito que nenhum sofrimento é eterno. Deus é misericordioso com todos nós. E eu acreditei durante anos, que estava destinada ao sofrimento, mas Ele mostrou-me que escreve certo por linhas tortas. Eu venci. Mas quantas mulheres resolvem colocar um ponto final em suas histórias, sem esperar o ato de misericórdia? Cansadas de ouvir o som do trovão? De ter seu corpo molhado por gotas grossas e gélida da grande tempestade? Cansadas do julgamento antes do trânsito em julgado. Quantas mulheres? Machucadas. Amarradas. Enterradas. Um verdadeiro ponto final. Uma dessas mulheres, poderia ter sido eu. Eu fui amarrada e jogada num poço escuro e inacabável. Durante um tempo, acreditei que aquele era o meu fim. Eu não conseguia mais abrir os meus olhos e enxergar a luz no fim do túnel. Eu não conseguia mais ouvir o som do canto dos pássaros e tampouco enxergar um sol através das nuvens carregadas da constante tempestade. Eu só queria desistir de tudo. Não. Uma violência sexual não é algo que se esquece em um mês. Não é mimimi. Não é um exagero. É algo doloroso e que deixa cicatrizes profundas. Nem todo mundo consegue superar um trauma e seguir em frente. Porque você sempre irá se lembrar. Quando um desconhecido oferece um abraço, e você recua porque não gosta de toques estranhos pelo seu corpo. Quando você está andando na rua sozinha e olha um homem caminhando em sua direção. Quando você se sente bem ao usar uma roupa, mas resolve tirar para não chamar atenção. Quando você deixa de sair e se divertir porque ainda sente medo. São pequenas coisas que ainda estão lá. Porque o trauma ainda está lá. É como um osso quebrado... ele nunca mais voltará a ser o mesmo. Mas, em toda a minha trajetória, eu descobri que não devemos aceitar o ‘‘fundo do poço’’, mas sim escalar tijolinho por tijolinho até alcançar o jardim ensolarado que nos espera lá fora. Eles adoram quando a gente desiste... mas tenho algo mais interessante para dizer. Resistir é bem melhor que desistir. — Mamãe? — escuto a voz baixinha e manhosa. Abro as minhas pálpebras lentamente e enxergo Maria Rita em minha frente. Ela está dentro de um vestido vermelho, rodado e cheio de purpurina. Na cabeça, ela usa um gorro de Natal. Observo um sorriso travesso em seus lábios e concluo que ela andou aprontando. — Oi, meu amor — respondo e ergo meus braços, para a pegar no colo. Ela está exalando um cheiro delicioso de bebê, e não me limito em beijar suas bochechas gordinhas. — Posso comer sovete com o Lucas? — Mas, amor... é sete horas da manhã. — Mas é Natal, mamãe — ela responde e eu ergo as sobrancelhas. — Você não disse que seria boazinha com a Maria Rita? — Mas a Maria Rita é um bebezinho e não pode comer sorvete no café da manhã. E não adianta seu irmão tentar colocar minhocas na sua cabecinha, está bom? Ela cruza os braços e faz beicinho. O mesmo gênio forte de Sebastian. A garotinha de cabelos castanhos, e olhos azuis pula do meu colo, abraçando Sebastian que está dormindo ao meu lado. — Papai? — ela abraça o pai, da mesma forma que fez comigo minutos atrás. É uma forma quase infalível de tentar me subornar. — Oi, minha princesa — ele abre um sorriso bobo e desliza os dedos pela bochecha de Maria, que está sorrindo com seus dentinhos curtos. Suas bochechas estão vermelhas e eu adoro apertar, morder e beijar muito. — Posso comer sovete? — Claro que pode — diz bobo e a aperta nos braços. Sim. Sebastian não consegue dizer ‘‘não’’. Nem parece que um dia fez uma cartilha e descreveu a alimentação dos três filhos mais velhos. Hoje em dia, ele faz todos os gostos das crianças e eu sempre fico como a chata da história. Mas já conversamos sobre frear os pedidos, até porque eu não quero que os nossos filhos fiquem mimados. — Eba! — ela pula em cima de Sebastian e o beija no rosto. — Por isso que eu amo você, papaizinho. — E a minha palavra não vale de nada? — pergunto com o semblante fechado. — É Natal! — eles dizem juntos. Eu ergo os braços e me rendo ao tal espírito natalino. É o dia do ‘‘sim’’ por aqui, então, as crianças vão aproveitar para pedir tudo para Sebastian. Na verdade, esse é o primeiro Natal que vamos passar juntos, em família, sem compromissos de última hora. Os cinco últimos sempre tiveram um imprevisto. Sebastian viajando, eu de plantão no hospital, Sebastian preso em alguma audiência de emergência ou qualquer outro compromisso que fez do nosso dia um verdadeiro desafio. Eu sigo para o banheiro e escovo os dentes, olhando o meu reflexo no espelho e relembrando da noite especial que tive ontem com Sebastian. E acabo sorrindo sozinha. Sempre é especial. Eu nunca imaginei que encontraria o amor da minha vida em um homem. Mas ele é perfeito. Carinhoso, amoroso e prestativo. Um excelente pai. E um excelente juiz. O meu meritíssimo. — Bom dia, dra. Guimarães — ele desliza suas mãos por minha cintura e beija suavemente o meu rosto. — Acordei sentindo algumas dores e gostaria de ser examinado outra vez. Eu acho que preciso de um retorno. — É mesmo, excelentíssimo juiz? — viro-me e o envolvo num abraço. — E eu gostaria de saber qual será a minha pena por ter sido uma doutora muito má ontem. — A sua sentença será permanecer todos os dias dentro do meu coração. É uma prisão perpétua. Para sempre. Eu abro um sorriso e beijo os lábios dele suavemente. Ele puxa a minha blusa pela cabeça e desliza seus lábios para o meu pescoço. Eu arfo e fecho as minhas pálpebras. — Nós temos dez minutos antes que as crianças comecem a gritar por nós — ele diz em meu ouvido e me guia para o box do banheiro. — E antes de Clarisse colocar fogo na casa ao tentar preparar outros biscoitos de chocolate. Eu abro um sorrisinho de lado e observo o meu marido em minha frente. Seus olhos azuis, sua barba por fazer e seu semblante tão expressivo. Repleto de felicidade e realização. É o mesmo semblante que carrego em meu rosto. Realizada e feliz. A minha família é perfeita. Ainda bem que eu não desisti. Eu resisti. Após o banho, eu coloco uma calça jeans, uma blusa básica e ajeito a minha bolsa para trabalhar. Com todos os meus acessórios. Jaleco, máscara, estetoscópio, aparelho de pressão, de glicemia e alguns pirulitos para os meus pacientes bem- comportados. Falta apenas um ano para a minha formatura e estou completamente ansiosa. Comecei o internato e fico na pediatria, mas, como é um ‘‘estágio’’, acabo tendo contato com todas as áreas do hospital. Helder diz que é uma forma de saber se é realmente essa área que quero seguir para a residência médica. Sebastian está logo atrás, vestindo um dos seus ternos, e separando a sua toga com alguns papéis num canto. Eu paro durante alguns minutos e o observo. Ele também me observa em silêncio. E logo se aproxima, buscando algo no bolso da calça social. — Leve isso com você — ele me entrega uma caixinha de band-aid. — A caixinha de band-aid? — ergo a sobrancelha. — Algo me diz que você pode precisar curar a ferida de alguém. Ele despeja um beijo em meus lábios e segura em minhas mãos, guiando-me até a sala de jantar. De longe, escuto um barulho gigantesco e percebo que Jéssica está por aqui. Como sempre, vestida em alguma fantasia típica. Desde que se tornou mãe, ela entregou-se de vez à maternidade. Então, sempre se fantasia em datas festivas. Carnaval, ela fantasiou-se de fofão. Dia do Trabalhador, ela escolheu uma fantasia de flanelinha. Dia da Independência, ela fantasiou-se com a bandeira do Brasil. Páscoa, ela fantasiou-se de ovo. E bom, Natal, ela está fantasiada de... peru? — O peruzão de Natal chegou — ela diz animada e começa a dançar. As crianças a acompanham. Lucas está fantasiado de boneco de neve. Eric está fantasiado de Papai Noel e os três filhos deles estão fantasiados de enfeites da árvore de Natal. — Sou um peru assado e delicioso. Ho-ho-ho. Peruzão de Natal! Eu tento segurar o sorriso, mas começo a gargalhar. — Jéssica... é oito horas da manhã — reclamo. — Que bagunça é essa? — É Véspera de Natal — ela explica. — Esse peru ficará estragado de um dia para o outro — Sebastian debocha e segura Maria Rita nos braços, que está toda suja de sorvete. —Você comeu quanto de sorvete? — Só o potinho, papai. — Dois litros de sorvete, Maria Rita? — brando zangada e ela abre um sorrisinho. — Você está toda suja. — Mamãe, deixa de ser chata — Lucas corre para os meus braços e me beija no rosto. — Foi só um potinho de sorvete. — Não acoberta ela, mocinho — o abraço forte e ele vai pular nos braços de Sebastian. Não demora para os filhos de Jéssica também passarem correndo por mim, em direção de Sebastian, que se tornou o queridinho das crianças. E eu adoro ver a evolução dele como ser humano. De alguém frio e calculista, ele se tornou uma pessoa maleável e amorosa com todos ao redor. Alguém que procura entender e conversar antes de julgar. Até mesmo com os trigêmeos. Ele vive dizendo que eu fui o motivo de mudança dele, mas não é verdade. Sebastian sempre foi um ótimo homem, mas esteve com os olhos cobertos durante algum tempo, descontando a causa da cegueira em pessoas inocentes. E mesmo arrependido atualmente, ele busca se redimir constantemente. — Cadê os trigêmeos? — pergunto para Jéssica que está sambando no meio da sala de jantar. — Clarisse está na cozinha, preparando biscoitos de chocolate para você — ela diz e come uma uva. — Clara está no celular e Christian ainda está dormindo. Ele ficou jogando até tarde no vídeo game. — Sorte que Sebastian estava ocupado demais, ou então, teria jogado esse vídeo game na piscina — pisco e também pego uma uva. — Ocupado demais sussurrando as súmulas do STF no seu ouvidinho, safada? — ela abre um sorriso sínico e me dá um beliscão. — Quando você vai ter outro bebê? — Outro bebê? — olho ao redor e vejo que tudo está um caos. Os três filhos de Jéssica são param quietos, e tudo piora quando eles se juntam com Lucas e Maria Rita. — Não acha que já está bom? Temos oito crianças aqui. — Eu não sou mais criança, mãe — Clara chega toda dengosa e me envolve num abraço apertado. — Você está bem? A minha garotinha agora é adolescente. E eu pude acompanhar todas as novas descobertas de pertinho. A primeira menstruação, o primeiro sutiã, as cólicas, as crises de TPM, o primeiro beijo e todos os segredos adolescentes que as minhas filhas fazem questão de compartilhar comigo. E ela continua meiga, o contrário de Clarisse, que é alguém explosiva e difícil de lidar. Mas eu consigo contornar bem a situação. — Estou bem, meu amor — toco os cabelos dourados e macios dela. Seus olhos brilham ao me ver e ela expressa tanto amor comigo, que chega a ser indescritível. Christian é mais apegado com Sebastian, até porque ele é homem, e de acordo com ele, não pode conversar assuntos masculinos comigo, somente com o pai. Mas eu sempre converso com ele sobre diversos assuntos e o mimo bastante. — Você está melhor da TPM? — Eu sim, mas Clarisse está sofrendo bastante — ela diz e nega com a cabeça. — Além de estar sentindo muita cólica, também está com raiva porque não acerta fazer biscoitos de chocolate para você. — Para mim? — Lembra da vez que você falou que comia biscoitos de chocolate no Natal quando era criança? — eu concordo com a cabeça. — Ela quer reproduzir algumas receitas que lembrem a sua infância. Eu abro um sorriso largo e Jéssica também. Clarisse faz o possível para me agradar sempre. Ela é uma filha excelente, assim como os irmãos. Entretanto, dos cinco, ela é a mais apegada comigo. Lucas, Maria Rita e Christian são mais apegados com Sebastian. — Você ainda é uma criança sim — digo para Clara que revira os olhos. — E não adianta revirar os olhos. Deixa o seu pai saber que você está cheia dos contatinhos. — Clarinha?! — Jéssica está atônita. — Cadê aquela princesa linda que adorava vestidos de princesa? — Ah, tia — as bochechas dela ficam vermelhas. — A gente cresce e começa a arranjar uns três namoradinhos de uma vez, né? — Só três? — Jéssica balança a cabeça negativamente. — Você precisa de no mínimo sete. Teoria da Branca de Neve. Clara gargalha e eu também. Deixo as duas conversando e sigo para a cozinha. Um cheiro de queimado está tomando conta do ambiente e de longe observo a frustação no semblante de Clarisse. Eu me aproximo com cuidado e apoio os meus cotovelos no balcão de mármore da cozinha, observando seus cabelos dourados enrolados num coque e o avental todo sujo de trigo. — Você está bem? — eu pergunto e a pego de surpresa. Seu rosto está vermelho, assim como os seus olhos azuis. — Não estou — ela diz num tom amargo e joga a bandeja com biscoitos em cima do balcão. — Quebrou. Eu não sou boa em nada que faço. — Claro que você é boa, Clarisse — a conforto. — Tudo é treinamento. Você é ótima tocando piando, é ótima atirando no stand com o seu pai, é uma ótima aluna e uma ótima filha. Você é o meu orgulho. Ela larga a bandeja com biscoitos e me envolve num abraço apertado, deixando que suas lágrimas molhem a minha blusa. Eu afago os seus cabelos e deslizo minha mão por suas costas. Porque ela é a minha filha e nunca estarei indisponível para a consolar e a motivar em tudo que ela faz. — Obrigada, mamãe — ela funga e me aperta em seus braços. Ouvir essa palavra de seus lábios é algo raro e tornou-se um gesto muito especial para mim. — Eu só queria fazer algo de bom para você. É o primeiro Natal que vamos passar juntas e quero ser uma boa filha. Eu não posso falhar. — Você é uma ótima filha e não pode se cobrar tanto. Olha, o que acha de a gente cozinhar juntas amanhã? Eu te ajudo com a receita dos biscoitos de chocolate. — Tudo bem — ela concorda com a cabeça e se afasta, limpando as lágrimas com o dorso da mão. Clarisse é uma adolescente que sofre diariamente com a mudança repentina de humor. Ela não se considera suficiente e procura sempre ser a melhor em tudo que faz. Ela vive se cobrando e isso é algo péssimo. Eu converso muito com ela e Sebastian também, inclusive, ela começou a frequentar o psicólogo. Eu sei que a fase adolescente é a mais difícil de todas, mas não abandonarei a minha pequena em um desses obstáculos da vida dela. É comum ter depressão, ansiedade ou cobranças excessivas. Vivemos numa época em que as pessoas têm um ‘‘modelo’’ para seguir. A sociedade exige a perfeição. — Não ficou tão ruim — Sebastian surge do nada e coloca um biscoito dentro da boca. Maria Rita também pega um e não mede esforços para comer. — Pai! — ela cruza os braços e fica emburrada. — Eles estão feios. — Estão feios, realmente — Sebastian é sincero e eu sento uma cotovelada nele. — Mas são biscoitos feios e gostosos. Clarisse desaba no choro e eu a consolo num outro abraço, praguejando por Sebastian ser tão inconveniente. Ele dá de ombros e eu movimento os lábios dizendo que ela está de TPM. — Mulheres são difíceis de lidar — ele sussurra no ouvido de Maria Rita que concorda. — Por isso que você é um macaquinho ambulante, não é? — Sou um macaquinho — Maria Rita diz e imita um macaco com a boca. Ela acaba arrancando um sorriso de Clarisse, que desfaz o nosso abraço e vai apertar as bochechas da irmã. — Vamos acordar o macaquinho mais velho da casa — digo e as meninas concordam. Então seguimos para o quarto de Christian. Quando abro a porta, Clarisse e Maria pulam em cima do irmão, que resmunga e tenta empurrar as duas. Sebastian vai fazer cócegas nos pés de Christian enquanto eu faço cócegas na barriga dele. As meninas o seguram na cama e não demora para ele começar a gargalhar. — Eu estou pelado! — ele grita e gargalha ao mesmo tempo. — Para de fazer cócegas... minha asma vai atacar. — Que desculpa velha, hein? — Clarisse coloca as mãos na cintura. — E todo mundo já viu a minhoquinha e sua bunda pálida. — Dedinho de anão! — Maria diz após Clarisse sussurrar em seu ouvido. — Clarisse! — Christian protesta com raiva e puxa o cobertor. — Não puxou para mim — Sebastian sussurra e eu arregalo os olhos. Percebo que as crianças não escutaram e fico mais aliviada. Eu estreito o olhar para Sebastian que encolhe os ombros e vai saindo de fininho do quarto de Christian. Ele tornou-se desbocado e insensível. — Vamos deixar o irmão de vocês tomar banho e descer para o café da manhã em família — decreto e as meninas concordam. — Quero você lá embaixo em dez minutos, Christian. — Mas mãe... — ele protesta. — Mas nada! É Véspera de Natal e nós vamos tomar café da manhã em família, inclusive, Jéssica está vestida de peru lá embaixo e não vai embora até que a gente faça o desjejum juntos. — Não se esqueça de colocar sua fantasia de gnomo — Clarisse o lembra, e ele revira os olhos, bufando em seguida. — Você sabe que a Jéssica é paranoica e tenho certeza de que não quer a ouvir resmungar durante toda a manhã, não é? Ele se joga na cama e eu acabo soltando uma risadinha. Desço com as meninas e vejo que todos já estão reunidos para tomar o café da manhã. Inclusive, Luísa e TJ também ocupam seus respectivos lugares na mesa. Raquel está de férias, então aproveitou para viajar até o Rio Grande do Sul, visitando seus avós. — É bom que Sebastian aproveite seus últimos dias com o título de melhor juiz do país — Jéssica diz. — Logo eu ocuparei esse lugar. Ela pisca e Sebastian faz uma careta. Em pensar que um dia Jéssica temeu Sebastian de uma forma indescritível. Eu também já o temi muito, mas percebi que ele é alguém muito divertido por trás da máscara de homem sério e impassível. Fora de casa, ele é um homem totalmente diferente. É alguém que não admite brincadeiras e que faz jus ao título que conquistou ao passar do tempo. Um dos melhores juízes do Brasil, reconhecido, aclamado e respeitado. — Esse peru já está estragado — ele comenta em meu ouvido e eu abro um sorriso. — Que delírio. Nós esperamos Christian descer e só então realizamos o desjejum em família. O banquete está maravilhoso e farto. E eu me sinto extremamente grata e feliz. Nunca imaginei ter uma família assim. Não é perfeita, mas é minha, e eu conquistei sozinha. Lucas também está feliz como nunca, porque Deus colocou um pai amoroso em sua vida, e irmãos que o adoram. Hoje em dia, é uma dádiva ter uma família unida e um lar edificado. Sebastian e eu trabalhamos diariamente para manter a nossa família assim... unida e feliz. Passamos por diversas dificuldades juntos, mas não desistimos, porque lutamos por algo em comum. Não é verdade quando dizem que uma vítima de violência sexual é incapaz de formar uma família. Que somos pessoas incapazes de ser amadas. É difícil, mas não é impossível. Nós só vivemos uma vez e devemos aproveitar o máximo possível e colocar as inquietações internas para fora. O sofrimento eterno não é um veredito a ser aceito. Depois do café da manhã, eu beijo e abraço os meus filhos e sigo para a garagem com Sebastian, seguindo assim até o hospital. TJ quem está dirigindo e eu aproveito para observar a paisagem janela afora. O Rio de Janeiro está lindo como sempre e o sol que aquece a minha pele me faz perceber que estou mais viva que nunca. Nós chegamos rápido até o destino. Durante o caminho, fiquei admirada com a decoração de Natal de alguns prédios e lojas do Rio de Janeiro. Todos estão ansiosos e felizes pela data. Eu também estou, mas ao mesmo tempo, sinto-me triste pelas diversas mulheres que estão convivendo com algum trauma. Só consigo me lembrar das datas comemorativas que se passaram após Wagner me marcar. E de como minha maior vontade era morrer. Enquanto ele estava bem, feliz e comemorando. Então, não penso no Natal com boas recordações. Mas prometi que iria jogar todas essas lembranças no lixo e criar lembranças saudáveis. Com a minha família, com os meus filhos e com todo o amor diário que eu recebo. Estou perdida em meus pensamentos e não percebo quando TJ estaciona na garagem do hospital. Sebastian aperta a minha coxa com delicadeza e só assim saio do transe. — Bom serviço, amor — Sebastian sussurra e despeja um beijo casto em meus lábios. Eu abro um sorriso e deslizo meus dedos por sua barba. — Eu te amo. — Eu também amo você, Bash — digo e pego a minha bolsa, despedindo-me de TJ e saindo do carro. Eu entro no hospital e sigo direto para a ala de internos. Cumprimento alguns amigos, inclusive, amigos homens, e percebo que a minha aversão ao contato masculino melhorou bastante. Foram anos e anos de terapia para conseguir abraçar uma presença masculina sem surtar. Agora, sinto-me feliz ao finalmente entender que nem todo homem irá me machucar. Visto o meu jaleco e sigo até a sala de reuniões, onde alguns internos e residentes estão reunidos, aguardando o aval do coordenador. Fico cabisbaixa ao ver que não fui recrutada para a pediatria. — Isabella Guimarães, você ficará com o dr. Pedro de Alencar na ala feminina — o coordenador do internato diz e eu concordo com a cabeça, mesmo que contragosto. Dr. Pedro de Alencar é clínico geral e obstetra. Fiquei alguns dias ao lado dele, mas foi apenas no acompanhamento, e hoje, colocarei meus conhecimentos em prática. Ele é um bom homem. Sessenta anos, muito inteligente e um ótimo profissional. Eu caminho ao lado dele até a ala feminina, enquanto a gente conversa sobre qualquer assunto. E durante a manhã eu atendo algumas mulheres, realizando o pré-natal e consultas de rotina, sempre com o acompanhamento do Dr. Pedro. Durante o almoço, converso um pouco com as crianças e com Sebastian, e com alguns amigos da faculdade. E volto as quinze para continuar com os atendimentos. O estágio é até às dezessete horas e eu aproveito o tempo livre de atendimento para fazer alguns relatórios. O computador apita bem na hora que eu termino o segundo relatório de atendimento, indicando que há uma nova paciente. Então a chamo até o consultório, preparando o receituário e a ficha de triagem. Espero por tudo. Por uma mulher grávida de nove meses, por uma mulher reclamando de fortes dores de cólica e até mesmo por uma mulher desejando encaminhamentos para fazer alguns exames de rotina. Mas não espero pelo o que está por vir. Pela porta, atravessa uma menina baixa, de olhos assustados e cabelos desgrenhados. Ela veste um moletom folgado e uma calça jeans também folgada, fazendo o possível para cobrir o seu corpo. Arisca, com medo e transbordando pavor através do olhar. A mesma figura que eu vislumbrei no espelho do meu quarto anos atrás. Logo após a violência sexual que sofri. Olho na ficha... quatorze anos. A idade das minhas filhas. E olhando para o seu rosto magro e pálido, só consigo pensar no pior. Porque uma vítima é plenamente capaz de reconhecer outra. — Boa noite — eu cumprimento com um sorriso. — Rebeca Silva? Ela continua em pé, olhando fixamente para o dr. Pedro de Alencar, que está entretido com um livro de Stephen King. E eu reconheço bem esse olhar. O pavor de estar numa presença masculina num lugar tão minúsculo e abafado. A vejo esfregar as mãos de um jeito nervoso e intercalar seu olhar entre a figura rechonchuda do doutor e a minha figura. Eu comprimo os lábios e engulo o seco. — Tem... tem como ele sair da sala? — ela pergunta baixinho, de um jeito ingênuo e receoso. Sua voz é doce, como a voz de uma criança. Afinal de contas, ela é uma criança. — Por favor. Eu concordo com a cabeça, percebendo que o dr. Pedro está sorrindo demais ao ler o livro, completamente alheio à paciente em sua frente. Eu o cutuco no braço e ele ergue seu olhar gentil para mim. Tento dizer alguma coisa através do olhar, mas parece que isso só funciona com Sebastian. Ele sempre consegue decifrar o que quero dizer através do olhar. — Pode buscar alguns receituários, dr. Pedro? — indago e ele balança a cabeça. — Só tenho dois aqui, e também preciso de papel carbono. — Claro, dra. Guimarães — ele se põe de pé e vejo que Rebeca se encolhe no canto da sala. — Preciso mesmo tomar um café. O dr. Pedro deixa-me sozinha com Rebeca, e só então a garota parece esvaziar seus pulmões. Ela puxa a cadeira e se senta em minha frente, observando a pequena sala ao redor. Ainda não sei como abordá-la, porque é a primeira vez que recebo uma paciente do tipo. Evito o máximo possível a ala feminina, porque é o meu maior pesadelo lidar com vítimas de violência sexual. Eu não sei se tenho psicológico para isso. Mas vamos lá. Eu sobrevivi e também posso fazer outra pessoa sobreviver. É a minha profissão e eu preciso ajudar e salvar vidas. Não posso amarelar agora. — Isso é um bip? — ela pergunta tímida, apontando para um oxímetro digital. — Bip? De Grey’s Anatomy, né? Minha filha Clara adora essa série — abro um sorriso de lado. — Mas não, Rebeca, esse é um oxímetro digital e serve para medir seus batimentos cardíacos. Eu ergo minha mão e ela me oferece seu dedo indicador. — Viu? Ele está medindo seus batimentos cardíacos — ela abre um sorriso e fica encantada com o objeto. — Que estão ótimos, por sinal. — É... estão sim — ela diz tímida e recolhe sua mão, a colocando dentro do bolso do moletom. — Você já tem filhos? — Ah, tenho sim. Três meninas e dois meninos. Tenho gêmeas da sua idade. A Clarisse e a Clara. A menorzinha é a Maria Rita, que tem quase cinco anos. — Você parece ser uma boa mãe — ela diz e abaixa a cabeça. — Rebeca, como eu posso te ajudar? — pergunto calma e percebo que ela fica trêmula de repente. Seus olhos se enchem de lágrimas e ela desliza os dedos pelos olhos, limpando as lágrimas que teimam cair. — Ei, está tudo bem. Eu estou aqui para te ajudar. Só me conta o que está acontecendo, Rebeca. Ela solta um soluço doído, tremendo os lábios e desce seu olhar para o chão. — Promete guardar segredo? — ela pergunta com a voz embargada e eu balanço a cabeça. Por dentro, o meu coração está batendo forte e minhas mãos estão geladas como nunca. — Eu acho que estou grávida. É o ápice para mim. Eu encosto minhas costas na cadeira e solto um suspiro pesado, relembrando de coisas que prometi esquecer para sempre. Lembranças dolorosas de uma Isabella machucada, cheia de cicatrizes e perdida. Logo após descobrir que eu carregava um fruto de uma violência em meu ventre. Quatorze anos. Violentada. Grávida. E por um momento, minha maior vontade é de sair correndo dessa sala de consulta, porém, não posso abandonar a minha paciente. Eu preciso ser profissional nesse momento. Eu preciso resistir e ajudar essa garotinha. Preciso ajudá-la da forma que eu não fui ajudada. — E por que você acha que está grávida? — Estou sentindo ânsia de vômito e comprei dois testes de farmácia... acabou que deu positivo. E... eu não sei o que fazer — ela começa a chorar de forma copiosa e eu seguro firme em sua mão. — Eu moro com a minha irmã e ela não pode saber disso de forma alguma. Ela não vai acreditar em mim. Ela não vai acreditar em mim. — Ela vai acreditar sim, Rebeca — garanto. — Você não está sozinha. Relembro das vezes que vomitei no banheiro da escola. Do teste de farmácia que fiz num banheiro sujo de um barzinho. Da minha barriga aparecendo. Do medo. Do pavor. De se sentir sozinha. De quando contei para mamãe e fui taxada de vadia. Relembro de tudo. Medo. Medo. Medo. Os mesmos sentimentos que Rebeca está sentindo. E eu só queria que alguém me abraçasse e sussurrasse em meu ouvido que tudo acabaria bem. Eu só queria me sentir acolhida por alguém. Mas não. Fui marcada, violentada, ferida e abandonada com o meu filho. Empurrada pela minha própria família no fundo do poço. Mas consegui me reerguer. Sozinha. — Tudo começou quando eu tinha treze anos... ele... ele é um amigo da família — ela sussurra olhando para os próprios dedos. — Tem trinta e sete anos, duas filhas e uma esposa. Ele parece alguém tão inofensivo. Mas... ele fez isso comigo. Meus olhos se enchem de lágrimas, mas engulo o choro que está instalado em minha garganta, ainda segurando firme nas mãos de Rebeca. — Ele quem tirou a minha virgindade, e eu juro para você que não quis nada disso, mas, ele me drogou e eu só lembro-me de pedir para ele parar diversas vezes, mas ele não me escutou, foi em vão — ela conta e eu só consigo sentir ódio. — Por que ele fez isso comigo, Isabella? Ela ergue seu olhar e só consigo enxergar tristeza e angústia. Um olhar repleto de dor. Um olhar tão familiar para mim. E sem mais delongas, levanto da cadeira e me agacho ao lado de Rebeca, segurando em suas mãos e olhando firme dentro dos seus olhos. Quatorze anos apenas. Cheia de feridas e quebrada como nunca. Quantas crianças, adolescentes e adultas precisam passar por esse inferno? Quantas mulheres precisam morrer? Por que ninguém fala sobre a violência sexual? E mais um questionamento... por que a culpa sempre é da vítima? — Eu sei pelo que você está passando, Rebeca — digo firme. Mas por dentro, estou desmoronando. Só consigo pensar em minhas filhas e no perigo que nos cerca nessa maldita sociedade. — Não... você não sabe — ela diz num tom alto e começa a chorar. — Minha irmã não vai acreditar em mim. A culpa sempre será minha. Não sei o que fiz de errado, mas está doendo tanto. Dói muito, Isabella. — Sshh... eu também sou uma vítima, Rebeca — digo baixinho e ela ergue seus olhos para mim. — Anos atrás. Dezessete anos. No banco de trás de uma viatura. Por um policial. Hoje o meu filho tem nove anos. Ela para e me observa de forma atônita. Como se fosse algo raro nesse mundo. Mas não, Rebeca, eu sou mais comum do que você imagina. É a triste realidade de nós, mulheres, e infelizmente, não há nada que a gente possa fazer a respeito. Até porque, sempre terá alguém para nos culpar por algo que não fizemos. — E o que eu faço agora? — ela pergunta um pouco mais calma, olhando dentro dos meus olhos. Seu olhar é tão doloroso que me machuca. Mas eu resisto firme, porque eu vou ajudar Rebeca. Vou ajudar da mesma forma que eu quis ser ajudada há anos atrás. — Você vai denunciar — digo firme. — Eu não posso... ninguém acreditará em mim — ela eleva o tom de voz e começa a entrar em desespero. — Todos vão achar que estou mentindo. E minha irmã irá me crucificar para sempre por essa atitude. Será um caos em minha família, Isabella. — Às vezes, nós precisamos bancar a heroína para salvar outras pessoas em apuros, por mais que isso nos traga riscos e feridas. Ele pode estar fazendo outras vítimas, Rebeca. Até mesmo as filhas dele podem ser vítimas. E você pode denunciar e o deter de uma vez por todas. E irei repetir... você não está sozinha. — E como vou provar que ele fez isso comigo? — Qual foi a última vez que ele fez isso com você? — Ontem — ela diz espremendo os olhos, tentando reprimir uma lembrança dolorosa. — E hoje, eu precisei buscar ajuda. Eu não aguento mais. — Temos provas o suficiente. Agora, eu irei contatar a polícia e nós vamos colocar esse cafajeste atrás das grades, está bom? Você veio sozinha? — Sim, estou sozinha. Mas eu não quero ir sozinha até a delegacia, eu não quero ter uma presença masculina perto de mim. Me ajuda, Isabella, por favor. Ser a esposa de um juiz influente tem seus privilégios. — Eu vou com você — digo certa. — Não vou soltar a sua mão em momento algum. Eu estou aqui. E vou ajudar com tudo que for preciso, Rebeca. Inclusive, eu e o meu marido temos uma ONG para vítimas de violência sexual, com uma advogada incrível, assistência médica e psicológica. Você tem um lugar para te acolher. Ela solta um soluço e concorda com a cabeça. — Fique aqui um tempinho enquanto eu chamo a polícia. — T-tudo bem. Eu saio da sala de consulta e pego o meu celular, ligando para a polícia e fazendo o possível para não desabar. Por dentro, o meu castelo está cheio de rachaduras, porque é a primeira vez que tenho contato com uma vítima de violência sexual, e relembrar todas as dificuldades que passei para conseguir me reerguer é doloroso demais. Após ligar para a polícia, eu peço que uma enfermeira vá ficar com Rebeca e sigo para o banheiro feminino, me sentando em cima da tampa de um vaso sanitário e chorando como um bebê. Eu choro e soluço. Véspera de Natal e, eu estou com uma paciente de quatorze anos, grávida e vítima de violência sexual. Onde está a merda da magia natalina? Como se fosse um farejador telepático dos meus pensamentos, vejo na tela do celular que Sebastian está me ligando. — Oi, Bash — fungo e limpo as lágrimas do meu rosto com o dorso da minha mão. — Você já está em casa? — Oi, amor... acabei de chegar em casa. Está tudo bem? — Aconteceu, amor — digo e solto um suspiro pesado. — E ela tem a idade das meninas. Só quatorze anos, Bash. Ela está grávida. Toda machucada. Merda. Ele fica em silêncio durante alguns segundos. — E você agarrou essa oportunidade da vida? — Oportunidade? — De ajudar alguém da forma que você gostaria de ter sido ajudada, Isabella. — Sim — digo de forma inaudível. — Então dê o seu melhor, amor. — Por que isso acontece, Bash? Por que tantas mulheres são machucadas? — Eu sempre tenho respostas para tudo, amor. Mas não tenho respostas para isso. Só... acontece. Infelizmente, existem muitas mentes doentes por aí, e não podemos fazer nada para impedir que casos como esses aconteçam, mas podemos ajudar. Segurar na mão dessas mulheres e apoiá-las. Ajudando no processo de reconstrução. Você conseguiu, então elas também podem conseguir. — Você é incrível, Sebastian Guimarães — digo e solto um soluço. — Você também é. — Como as crianças estão? — Bagunçando com a tia Jéssica. Clarisse está pesquisando receitas de biscoitos de chocolate na internet, Clara está terminando de montar a árvore de Natal com Christian, e Lucas está comendo besteiras com Maria Rita e os três porquinhos. Sebastian chama os filhos de Jéssica de ‘‘os três porquinhos’’, porque eles são elétricos e sempre estão juntos. O mais velho é o Enzo, que tem sete anos, seguido por Caio, que tem seis anos e Lavínia, de quatro anos. É quase impossível conversar com eles, porque estão sempre bagunçando e correndo para cima e para baixo sem parar. — Amanhã eu irei cozinhar com Clarisse. Hoje, vendo essa menina, só consegui pensar nas nossas filhas. Você sabe que elas correm perigo, né? Nenhuma mulher está a salvo do perigo nesse mundo. — E por isso nós estamos aqui. E não só as meninas, Isabella. Os meninos também são alvo desse tipo de violência. Estamos aqui para proteger e conversar sempre com os nossos filhos. Eu solto um suspiro e deslizo os dedos por minha testa, que está banhada em suor. Toda essa situação me deixou nervosa demais, mas, conversando com Sebastian, consigo ficar mais calma. — Uma merda de Véspera de Natal, né? — Não diga isso. O Papai Noel não é o culpado. Você não pode perder a sua Fé, Isabella. Já fomos testados diversas vezes e tudo deu certo no final. Lembra? Nenhum sofrimento é eterno. — É só uma tempestade passageira — concluo. — Isso — escuto uma gargalhada no fundo. — Diz ‘‘oi, mamãe’’. — Oi, mamãe — Maria diz e eu abro um sorriso. — Eu te amo, mamãe. — A mamãe também ama você, abelhinha linda. Ama você e os seus irmãos. Vocês foram o melhor presente que Deus pôde me dar nessa vida. — E eu? — Sebastian pergunta indignado. — Não fui um presente? — Você foi o ato de misericórdia, Bash. — Eu te amo, Isabella — ele diz. — Muito. Você é perfeita. Agora eu quero que você lute pela sua paciente e faça o possível para ajudar ela. — Eu vou fazer, Sebastian. Preciso desligar. — Beijos. Vou cuidar dos nossos monstrinhos. E então desligo. Sigo para a pia do banheiro, lavo o meu rosto e prendo os meus cabelos num rabo de cavalo. Olho o meu reflexo no espelho e abro um sorriso. Eu consegui. Eu resisti, persistir e venci. O caminho é árduo, doloroso e cheio de obstáculos, mas não é o fim. Vítimas de violência sexual percorrem por uma maratona até a vitória. Mas eu digo, como uma vítima, que a violência sexual não é o fim de tudo. Estamos propensas a sofrer algo do tipo, e ninguém está imune. Não podemos ser livres e tampouco ser quem somos de verdade. Sempre andar com cautela, usar roupas compridas, não passar em becos escuros de madrugada, não aceitar carona de desconhecidos, não aceitar bebidas em festas, não beber demais e andar sempre com medo e receio. Essa é a realidade que poucos conseguem enxergar. Meu celular apita e recebo uma fotografia. Toda a minha família unida. Meus filhos, meus sobrinhos, minha irmã, meu cunhado, Luísa e até mesmo TJ, além do meu meritíssimo. Todos segurando uma placa bem grande escrito: ‘‘Bella, você consegue! Nós amamos você. ’’ Sim, eu consigo!
Eu volto para a sala de consulta após um tempo e logo
recebo a informação que a polícia está aguardando Rebeca na saída da ala feminina. Ela segura firme em minha mão e leva uma surpresa ao ver que todos as funcionárias do hospital estão paradas no corredor. Todas as mulheres. Enfermeiras, médicas, maqueiras, farmacêuticas, técnicas e até mesmo as mulheres responsáveis pela limpeza. Cerca de quarenta mulheres. Altas, baixas, magras, gordas, negras, brancas, morenas, loiras, ruivas. Mulheres. Porque juntas, nós somos indestrutíveis. — Elas vieram emanar boas energias e dizer que você não está sozinha — digo baixinho no ouvido dela e ela abre um sorriso, segurando firme a minha mão. Vejo lágrimas caindo pelo semblante sereno dela. — Obrigada — ela sussurra. E lá na entrada, duas agentes da polícia civil estão nos aguardando. Sem homens. Sem qualquer presença que vá incomodar Rebeca. Por enquanto, ela está traumatizada, mas logo ela irá superar esse trauma. Eu faço questão de ajudá-la. — Eu me chamo Mara, e essa ao meu lado é a Sandra — as agentes se apresentam solícitas. — Vamos levar você até a delegacia. A delegada está esperando por nós. — Só mulheres? — ela pergunta meio receosa. — Expulsamos todos os homens da delegacia só para receber você, Rebeca — Mara diz sorrindo e Rebeca também sorri. Ela está mais calma e visivelmente mais confortável, então seguimos para a delegacia numa conversa animada sobre séries, filmes e músicas. Como tenho três adolescentes em casa, eu soube contornar uma boa conversa com Rebeca. Conversei com ela como se ela fosse a minha filha, e no final, deu tudo certo. Fico ao lado dela durante todo o processo, como ela é menor, a irmã dela foi contatada e uma assistente social também. A irmã ficou incrédula no começo, mas logo desmoronou, desculpando-se com Rebeca por negligenciar ela durante um ano. Sei que ela não fez por mal, mas acontece em algumas famílias. Às vezes, uma vítima está ao nosso lado, mas não somos capazes de identificar e perceber os gestos e atitudes. Rebeca prestou depoimento e fez o exame de corpo de delito. Quatorze anos e grávida de dois meses do agressor. E depois, ficou reservada numa sala, aguardando o resultado de outros exames de sangue. Enquanto a irmã resolve a parte burocrática, eu me sento ao lado da garota e fico em silêncio. Ela analisa os exames da ultrassonografia, observando as imagens embaçadas com certa curiosidade. — O que eu faço com ele? — ela pergunta e mostra-me os exames. Lembro-me dos mesmos exames que fiz quando descobri que um bebezinho habitava o meu ventre. Tão miúdo, mas tão guerreiro. Eu lembro de sentir medo, angústia e aflição, mas também senti amor por aquele pequeno ser. Porque ele nunca teve culpa de absolutamente nada e eu escolhi amá-lo. Foi a minha escola. Destarte, a escolha de cada um é singular e não posso comparar a minha dor com a dor da pessoa ao meu lado. — Você quer ter esse bebê? — Eu não sei — ela diz num tom melancólico. — E se eu não for capaz de amá-lo? Deve ser difícil criar um filho sozinha. Como você conseguiu amar o seu filho? — Ele nunca foi filho do meu agressor, porque pessoas ruins não são capazes de colocar anjos no mundo. Deus o enviou para mim. E toda vez que eu me sentia sozinha, eu gostava de acariciar a minha barriga e sentir o meu bebê chutar. Mas são escolhas, Rebeca. Você tem uma escolha. Provavelmente, por você ser jovem, eles vão aconselhar que você faça o aborto, mas saiba que você tem uma escolha. E ela deve ser respeitada. — Eu não quero ter o fruto de uma agressão dentro de mim. — Só você compreende a sua dor. Mas pensa bem, para você não se arrepender mais na frente, tudo bem? — Eu vou pensar — ela diz e enrola os cabelos num rabo de cavalo. — Obrigada por tudo. Apesar de estar cheia de feridas, você conseguiu cicatrizar algumas. Eu então me lembro de algo que está guardado dentro do meu bolso e busco a caixinha com cuidado. A caixinha mágica de band-aid de Sebastian. Pego um band-aid, abro e coloco de forma delicada no braço de Rebeca, que abre um sorriso contagiante. — Fique com a caixinha para você — entrego. — Sempre que doer, coloque um em qualquer lugar do seu corpo. De acordo com o meu esposo, esses band-aid podem curar de fora para dentro. E aqui está o meu cartão da ONG, para você me ligar sempre que precisar. — Obrigada — ela diz gentilmente. — Fique bem, Rebeca — digo, quando a assistente social adentra na sala junto da irmã mais velha de Rebeca. — Preciso ir agora. Em seus olhos, enxergo gratidão e percebo que é tudo que preciso para sentir a espírito natalino em meu coração. Olhos ainda dolorosos, mas esperançosos. Nunca será demais fazer o bem para alguém. O meu marido me busca no hospital às dezenove horas. Ele está dentro de roupas casuais, com os cabelos bem penteados e exalando o seu perfume delicioso. Seus olhos azuis brilham ao me ver e ele mal consegue controlar o sorriso largo em seus lábios. Sem mais delongas, eu corro e busco abrigo dentro dos seus braços quentes e fortes. Um dos meus lugares preferidos. Eu deslizo meus dedos por seu pescoço, alcançando a sua nuca, e despejo um beijo casto em seus lábios. Não satisfeito, Sebastian segura firme em minha cintura e ataca a minha boca com um beijo feroz e repleto de desejo. Tudo entre nós dois é intenso. Do beijo ao sexo. É como se a nossa alma estivesse conectada sempre. E eu adoro isso. Adoro saber que tenho alguém ao meu lado que me valoriza, me ama e faz o possível para que eu seja a mulher mais feliz do mundo. — Como você está? — ele indaga, deslizando seus dedos pelo meu rosto até alcançar os meus lábios. — Melhor. — Eu soube através de alguns contatos que o agressor da sua paciente foi detido agora pouco numa prisão em flagrante. O rapaz já foi preso antes por violência sexual e assédio. Parece que foram dez vítimas até então. — Todas menores? — Sim — Sebastian diz e entrelaça os nossos dedos, guiando-me até o banco do passageiro da sua BMW x6. — Todas elas menores de quinze anos, inclusive, ele aliciava as próprias filhas. Alguns exames estão sendo feitos, mas o importante agora é que ele está preso. Eu fico em silêncio, porque o assunto é forte demais para que eu possa digerir. É como levar um soco forte no estômago. Dói. Eu engulo o choro e cruzo os braços, lembrando-me das várias vidas que Wagner tirou precocemente. Eu tento por um momento entender e compreender a mente de alguém assim. — Está tudo bem, Bella? — ele pergunta e eu concordo com a cabeça. — Só achei que quisesse saber a respeito. — Fez bem em falar. Meu estômago dói e tudo que mais desejo é dormir e esquecer esse dia terrível. E mesmo péssima, com dor de cabeça e um mal-estar, eu faço o possível para afastar esses sentimentos pelo bem dos meus filhos. Então, coloco um sorriso nos lábios e busco engolir o seco. Não consigo ficar feliz em saber que diversas pessoas estão passando por problemas do tipo nesse exato momento. Não consigo sentir a magia natalina sabendo que Rebeca passará o Natal com sequelas gravíssimas de um abuso sexual. Não consigo ficar quieta em saber que a justiça do país é falha, principalmente conosco, mulheres. Quando chegamos em casa, sou recebida por diversos abraços e beijos dos meus filhos e dos meus sobrinhos. É o bastante para que a dor se afaste um pouco. Mas, ao ver minhas meninas, só consigo pensar em Rebeca. — Você está bem, mamãe? — Lucas indaga no momento que deixo meu jaleco na área da lavanderia. Ele veio atrás de mim, com o olhar preocupado e os ombros encolhidos. Meu filho conhece as minhas dores melhor que ninguém, porque ele também foi uma vítima de Wagner. Observo o meu garoto e sinto os meus olhos cheios de lágrimas; seus cabelos castanhos, seus olhos curiosos e sua personalidade formada. Alguém íntegro, bondoso e amoroso. Completamente diferente do homem que um dia me concedeu o maior bem eu já tive em minha vida. Lucas é um presente de Deus, e escolher tê-lo foi a melhor decisão que já tomei em minha vida. Sem mais delongas, abraço o meu pequeno e deixo que algumas lágrimas deslizem pelo meu rosto. Minha mente está sobrecarregada e todo o episódio de hoje me abalou psicologicamente. — Está tudo bem, filho — fungo. — A senhora pode conversar comigo sempre... — ele envolve seus braços em minha cintura e me abraça forte. — Eu amo a senhora, mamãe. — Também amo muito você — digo com a voz embargada. — Vem ver a nossa ceia — ele me puxa pelo braço. — Está tudo muito lindo. A tia Jéssica fez pudim, o seu doce preferido, e eu ajudei o papai a fazer uma torta de bacalhau. Lucas me guia até a sala de jantar e fico maravilhada ao ver o banquete disposto em nossa mesa. Há uma variedade de comidas e nós fizemos questão de chamar os funcionários da mansão para a ceia. Alguns não têm família, então combinei com Sebastian de fazer desse dia especial para todos. — Eu adorei — digo com um sorriso nos lábios. Pego Lavínia — filha mais nova de Jéssica — nos braços e sigo até a sala de estar, onde todos estão arrumados e eufóricos para abrir os presentes. Maria Rita está brincando com algumas bonecas e eu não me limito em despejar um beijinho em suas bochechas gordinhas. Estou esgotada, cansada e estressada, mas preciso ser forte e colocar um sorriso no rosto. Porque quando se é mãe... torna-se necessário blindar a mente e ser forte quase sempre. Eu não quero que os meus filhos me enxerguem como alguém fraca e frágil. — Mãe, pode me ajudar com os biscoitos agora? — Clarisse surge com um sorriso e eu balanço a cabeça positivamente. — Só preciso tomar um banho — beijo sua testa e sigo para o quarto. Eu retiro a minha roupa, abro o registro e deixo a água morna cair sobre os meus ombros. Por um momento fico aérea, relembrando do dia de hoje e pensando em como Rebeca está. Oras, hoje é véspera de Natal e com certeza ela passará a noite no hospital, fazendo alguns exames e em observação. Por que ela não pode ter um Natal descente em família? Por que esse mostrou precisou tocar nela? Sem perceber, começo a trazer acontecimentos do passado para o presente e relembro do dia em que Wagner foi preso. Mas e se ele não estivesse sido preso? Quantas mulheres seriam vítimas dele até então? Trinta e três mulheres. Wagner estuprou e matou trinta e três mulheres. — Isabella? — ouço a voz de Sebastian e saio dos meus devaneios. — Oi? — viro-me o pego parado na porta do banheiro. — Vai demorar muito ainda? Desligo o registro e pego o roupão. — O que aconteceu? — Sebastian pega uma toalha para enxugar os meus cabelos no momento que envolvo o roupão em meu corpo molhado. — Você está bem? — Essa situação de hoje mexeu um pouco comigo — solto um suspiro. — É mais comum do que você imagina, Isabella — Sebastian também solta um suspiro. — A violência contra a mulher acontece em todo o mundo e a cada segundo. Existem várias Rebecas por aí e algumas não têm a coragem que a sua paciente teve. No fórum, nós temos que lidar com diversos casos do tipo e beira o absurdo o quão nojento isso pode ser. Revoltante e angustiante. — Como você quer que eu fique feliz nesse Natal sabendo dessa informação? Sabendo que uma mulher como eu pode estar sozinha lá fora após sofrer um abuso sexual, ou em cárcere, ou até mesmo sofrendo violência doméstica pelas mãos do marido — começo a chorar. — Não tem como ficar feliz. Sebastian abraça o meu tronco e despeja um beijo casto em meu rosto. Ele não diz nada, mas consigo captar diversas coisas através do seu olhar. Eu demoro para me recompor, mas quando consigo, termino de enxugar o meu corpo e coloco uma roupa qualquer. Desanimada e triste, apesar de ter tudo que sempre almejei em minha vida; a minha família, os meus filhos, o meu marido e o meu emprego. Mesmo com tudo, ainda há um vazio aqui dentro. Saio do quarto e sou recebida com diversos abraços dos meus filhos, beijo cada um deles e abraço os filhos de Jéssica. Ela está feliz. Por um momento, questiono-me como Jéssica consegue ser tão feliz e radiante mesmo após passar por algo traumatizante e que marca para sempre. Como ela consegue ser feliz ao saber que o que aconteceu com ela também acontece lá fora? Às vezes, diante dos nossos olhos. Eu sigo para a cozinha, onde Clarisse me espera e lavo as minhas mãos para que a gente possa assar os biscoitos de chocolate. Reservo os ingredientes e a observo pegar os recipientes para fazer a massa. Clarisse dosa os ingredientes na batedeira enquanto eu corto os pedaços de chocolate. Enquanto a gente cozinha juntas, conversamos sobre coisas aleatórias e só então percebo o brilho que minha filha guarda dentro de si. O mesmo brilho que eu guardava em meu interior antes de Wagner surgir em minha vida. Alegre, bondosa e ingênua. E durante uns minutos, olhando para a minha filha, fiz uma promessa interna de jamais deixar alguém machucá-la. Sei que é algo um pouco impossível, porque Clarisse é uma adolescente e eu nunca vou prendê-la dentro de uma gaiola como um passarinho. Ela, como qualquer outra garota, viverá suas diversas fases intensamente. Irá chorar por um garoto, irá ficar surpresa com as mudanças em seu corpo, irá ficar nervosa com a sua aparência, irá ficar quieta por contas das dores de cólicas e também passará por coisas ruins que toda garota passa; como o assédio, a sexualização precoce e o machismo. E quando se é mãe de menina, nossa mente vira um turbilhão e a preocupação é constante tratando-se do bem-estar da minha filha. Eu não quero que Clarisse, Clara ou Maria Rita passem pelo mesmo que eu passei. Eu não quero ser uma péssima mãe – como a minha foi – para as minhas filhas. Então, prometo proteger a minha garotinha, da forma que estiver ao meu alcance. Sei que Sebastian também fará o possível e impossível por nossos filhos, porque a nossa família é tão importante para ele quanto para mim. — O que foi, mamãe? — ela me olha com seus olhos brilhantes e curiosos. — Faz quase meia hora que você está me olhando. — Nada — aproximo e a envolvo num abraço caloroso. — Eu só quero dizer que eu sempre estarei aqui para você e seus irmãos, ok? Eu não tive uma boa mãe e às vezes tinha receio de contar alguns assuntos femininos e a minha mãe brigar comigo. Eu não sou esse tipo de mãe, Clarisse. Tudo que você quiser conversar... saiba que eu serei sua melhor amiga para te ouvir. Promete nunca esconder nada da sua mãe? — Prometo — ela abre um sorriso e meu coração se esquenta. O forno apita e nós vamos retirar os nossos biscoitos de chocolate. — Que cheirinho gostoso — Clarinha chega com Maria nos braços. — Não quebrou dessa vez — Clarisse diz animada. — Estão parecidos com o que eu comia quando era criança, filha — olho para Clarisse e abro um sorriso. — Obrigada. Ela abre um sorriso satisfeito e me ajuda a levar os biscoitos de chocolate para a nossa mesa. Através do relógio de parede, vejo que são quase dez horas da noite. Sebastian, Eric, TJ, Luísa e Jéssica estão tomando vinho e conversando num canto, enquanto as crianças estão brincando na sala de jogos. Clara e Clarisse seguem para a sala de jogos e eu pego a minha gorduchinha nos braços, também pegando uma taça de vinho e conversando com a minha família. Meia noite, nós observamos alguns fogos em Copacabana e seguimos para a nossa ceia. As crianças estavam reclamando de fome e mal conseguiram esperar a oração. Nós convidamos o restante dos funcionários e todos nós jantamos juntos. Maria Rita comeu o pudim todo e Clarisse foi elogiada pelos biscoitos de chocolate. Eu fiquei feliz e orgulhei-me da família que conquistei até aqui. Dinheiro, status e emprego não chegam perto da sensação de ter um porto seguro em casa. Um lugar que você pode voltar após um dia turbulento. E eu sei que encontrei o meu lugar. Foi difícil, mas eu encontrei o meu porto seguro. Nós abrimos os presentes, ficamos juntinhos e lá pelas duas da manhã cada qual foi para o seu canto. As crianças estão capotadas e eu estou extremamente cansada, tanto psicologicamente como fisicamente. Rodei na cama por horas até conseguir pegar no sono. E quando peguei, acabei sonhando com Wagner. O dia em que ele fez mais uma vítima, anos atrás, no banco traseiro de uma viatura da polícia militar de São Paulo. E após anos, eu revivi aquele dia em minha memória. Seu toque, seus olhos e o meu desespero em tentar sair de suas mãos. A dor, o sufoco e o meu corpo suado. Eu revivi tudo em minha mente. Acordei com o corpo suado e a respiração ofegante, peguei em meus pulsos e suspirei em alívio ao ver que estou livre das algemas. Eu começo a chorar sem perceber e levanto-me da cama para não acordar Sebastian. Pego um livro velho e sigo para a sala de estar. O sol está nascendo lá fora e ilumina o jardim da mansão com seus pequenos e fracos raios solares. Encho meu copo com café e sigo até a varanda, sentando-me em uma cadeira e olhando em silêncio o nascer do sol. Abro o livro velho e retiro de lá a única fotografia que me restou de Wagner. Depois do ocorrido, diversas fotografias e vídeos foram expostos na internet para ganhar repercussão, mas Sebastian solicitou que o rosto de Wagner fosse tarjado de todas as notícias. Passaram-se anos e muita gente já se esqueceu do assassino em série que matou mais de trinta mulheres em São Paulo. Mas eu não me esqueci dele. Seus cabelos escuros, seus olhos inexpressivos e a expressão maldosa em seu semblante. Sempre que tenho algum pesadelo com ele, seu rosto fica embaçado e às vezes não consigo lembrar bem da sua feição. Eu busco essa fotografia e o observo durante alguns minutos. Eu tento adivinhar o que se passa pela cabeça de um homem como ele. Mas infelizmente não consigo. É tanta maldade e perversão que me dá náuseas. Sou interrompida dos meus desvaneios com a chegada de Jéssica. Seu rosto está amassado e seus cachos nas alturas. Ela está envolta por um cobertor e também segura uma xícara de café nas mãos. — Também não consegue dormir? — eu pergunto e ela assente. — Está vendo essa fotografia outra vez? — ela puxa a foto da minha mão e faz uma careta. — Bicho feio... virou churrasquinho do capeta. — Jéssica! — a repreendo. — Joga isso no lixo... você está fazendo a mesma coisa que eu fiz durante anos — ela balança os cachos e olha para o horizonte. — Se apegando a memórias ruins para poder se martirizar. — Não estou fazendo isso. — E por que você quer relembrar dele, Isabella? Eu olho para a fotografia e abro um sorriso fraco. — Só quero relembrar que ele fez o possível para me destruir e não conseguiu. Wagner me faz pensar no quão forte eu fui e continuo sendo. Ele me faz relembrar que apesar das dificuldades, há sempre como continuar seguindo em frente. — Você é como sol — ela aponta para os raios solares fraquinhos. — Pode ser fraca em determinado momento, mas é poderoso, grandioso e capaz de ficar forte em questão de segundos. Jogue a fotografia no lixo. Eu concordo com a cabeça e amasso a fotografia de Wagner em minhas mãos. Jéssica me envolve em um abraço e ri satisfeita. — Vamos pegar um sol? — ela pede manhosa e eu concordo. Umas dez horas da manhã, nós arrumamos as crianças e seguimos para a praia em frente à mansão. Lá é deserto e os seguranças vão ficar por perto. Sebastian, Eric e TJ optaram por ir depois, porque estavam jogando bola no campinho com os meninos. Então, buscando fazer uma manhã das meninas, seguiu para a praia somente eu, Jéssica, Luísa, Clara, Clarisse, Maria Rita e Lavínia. O sol está maravilhoso e eu coloquei um biquíni confortável. Ainda sinto receio de usar biquíni, mas já melhorei bastante a minha timidez e medo. Nós levamos água, refrigerante e Jéssica não se esqueceu das suas cervejas. As meninas foram correndo para a água do mar e eu aproveitei para ajudar Maria com seus castelos de areia. Retirei apenas a minha blusa e enchi todo mundo de protetor solar. — Mamãe, bota protetor solar no meu castelinho também — Maria diz após eu encher suas bochechas de protetor. — Engraçadinha — aperto seu nariz e busco meu celular dentro da bolsa. Acabo vendo que há uma mensagem nova de um número desconhecido. XXX — Eu decidi ter o bebê. E mesmo sem querer... abro um sorriso feliz ao saber da decisão dela.
Estou pegando um sol no momento que alguém me cutuca.
Eu retiro meus óculos escuros do rosto e viro-me para encarar a segurança me observando com um sorriso. Dalila, a minha companheira de todos os momentos. Sebastian contratou mais mulheres após ver que eu me sinto mais confortável na presença de mulheres. — Sra. Guimarães? — busco a minha blusa e visto pela cabeça. — Uma senhora e um homem desejam vê-la. Eles estão na calçada e a mulher afirmou que só vai embora se falar com a senhora. Devo chamar reforços? Estico o meu pescoço e enxergo por cima do ombro a avó paterna de Lucas para no calçadão. Sim, a mãe de Wagner faz questão de participar da vida de Lucas até então. Ela sempre o visita, manda presentes e gostar de acompanhar o crescimento do neto. E sendo sincera, não vou impedir qualquer contato ou carinho por parte dela. Dona Jaciara não tem culpa do monstro que Wagner se transformou. Esqueci completamente que ela está no Rio de Janeiro e pediu para visitar Lucas. Agora que ele está grandinho, eu expliquei que dona Jaciara é uma amiga minha que me ajudou a criá-lo quando ele ainda era um bebê, assim como a vovó Amália. Ele compreendeu e se aproximou bastante de dona Jaciara ao ponto de chamá-la de vovó. Ele mesmo diz que tem várias ‘‘avós’’. Chegando lá, sinto meu corpo arrepiado ao ver Lorenzo ao lado de dona Jaciara. Faz anos que não o vejo e só soube das notícias que ele está empenhado em seu serviço como investigador na polícia civil. Ele já prendeu diversos estupradores e está investigando diversos casos do tipo da delegacia da mulher. Ele também se arrependeu, mas suas características físicas iguais às de Wagner me assombram de certa forma. — Oi, dona Jaciara — a cumprimento com um aperto de mão. Seus olhos estão cansados e ela está tão abatida. — Desculpa deixar a senhora esperando, sei que combinamos de a senhora ver o Lucas hoje, mas acabei esquecendo. — Tudo bem — ela diz baixinho. — Trouxe o presente de Natal dele. Esse aqui é Lorenzo. Ele é irmão do... você sabe. O meu marido está muito doente e não pôde vir visitar o neto. — Sem problemas — abro um sorriso fraco. — Olá, Lorenzo. Eu sou Isabella, mãe do Lucas. — Sei quem você é — ele diz e estende sua mão. Fico receosa, mas aperto sua mão e cruzo os meus braços. — Bom ver você, sra. Guimarães. — Veio conhecer o seu sobrinho? — busco as chaves da mansão dentro do bolso do meu short. — Ele está enorme... e tão inteligente. — Finalmente vim o conhecer... espero que não seja um problema. — Não é — viro-me para Dalila. — Só vou avisar Jéssica e nós vamos para a mansão. Lucas está jogando futebol com o pai e vai adorar ver vocês. Eles me aguardam enquanto eu aviso Jéssica e logo nós seguimos para a mansão com a companhia de dois seguranças. Fui conversando com dona Jaciara e contando as novidades, enquanto Lorenzo continuou em silêncio e apenas me escutou. Assim como Wagner, ele é calado e enigmático. Mas sei que são diferentes. Lorenzo ajudou na investigação de Wagner e através dele nós conseguimos localizar a cabana em que Wagner escondeu diversos corpos. Ele entregou o celular de Wagner e também prestou depoimento. Quando nós chegamos em casa, guiei os dois até o campinho de futebol e Lucas veio correndo para os braços de dona Jaciara. Ela deu os presentes dele e os dois ficaram conversando por minutos próximo da piscina. Lorenzo também conversou com o sobrinho e Lucas ficou feliz ao saber que ganhou um novo tio. Ele adora qualquer pessoa que surge em sua frente, assim como eu, Lucas é uma criança amorosa e acolhedora. — Oi, Lorenzo — Sebastian o cumprimenta com um aperto de mão. — Está gostando do clima quente do Rio de Janeiro? — Estou — Lorenzo aperta a mão de Sebastian. — O garoto é enorme. — E muito esperto — Sebastian me abraça por trás. — Ele é um bom rapaz e consequentemente será um bom homem. — Nós estamos trabalhando para que isso aconteça — eu digo. — Independente do que aconteceu, saiba que você e sua madrasta, são bem-vindos em minha casa. Lucas ainda é neto dela e também é o seu sobrinho. — Eu sei — ele diz com um olhar triste. — Quero me desculpar com você, Isabella. Sei que já se passaram anos e anos, mas eu nunca tive coragem de confrontá-la e me desculpar. Eu tenho uma parcela de culpa, sempre passei a mão na cabeça do meu irmão e procurei o proteger de tudo. — Você não tem culpa, Lorenzo — aperto as mãos de Sebastian. — O único culpado foi Wagner. Ele desenhou e seguiu o próprio destino. Você apenas fez o seu papel de irmão e o protegeu. — Estou tentando reverter isso — ele diz em um tom baixo. — E está fazendo um ótimo trabalho — Sebastian intervém. — Prendeu diversos criminosos e está trabalhando com ótimas operações em São Paulo. Você está dando a justiça que mulheres como Isabella merecem, e honrado a imagem do seu sobrinho. — Mas ainda assim eu gostaria de me redimir de alguma outra forma com vocês — ele diz e coloca as mãos dentro do bolso da calça jeans. — O que posso fazer por você Isabella? Eu pondero alguns segundos e uma luz se acende dentro da minha cabeça. Lembro-me de Rebeca e acredito que o seu bebê irá precisar de algum suporte durante algum tempo. Ela é adolescente, não trabalha e precisa de alguém para ajudá-la da mesma forma que eu precisei. E Lorenzo pode ser a ‘‘Jéssica’’ na vida de Rebeca. — Sei de algo que você pode fazer — digo com um sorriso. MESES DEPOIS...
— Eu me chamo Rebeca, tenho quinze anos e estou grávida
de nove meses — ela diz e solta um suspiro. — E meu Deus... como esse bebê pesa, hein? Algumas meninas da roda de conversa gargalham e eu volto a observar o seu rostinho de menina. Seus olhos continuam brilhando, ela está bem cuidada e sua barriga está enorme. Nem parece que ela entrou em meu consultório meses atrás com um semblante triste, abatido e aparentemente perdida. Mas agora, vejo que Rebeca conquistou algo que nem toda vítima de violência sexual consegue conquistar; paz de espírito. Ela está em paz. — Fui vítima de violência sexual durante algum tempo e acabei engravidando aos quatorzes anos do meu agressor. Ele está preso e a polícia descobriu que ele molestou e estuprou algumas outras meninas. Fiquei triste ao saber que duas delas cometeram suicídio — Rebeca comenta e desliza a mão pela barriga. — Nem todo mundo consegue aguentar essa dor, né? Eu cheguei à beira de acabar com o meu sofrimento, mas Isabella surgiu em minha vida. Ela foi o meu último suspiro quando eu pensei que estava morrendo afogada. Se hoje eu estou aqui... é por causa dela. Eu só quero dizer que, sei lá, às vezes acontece coisas ruins com pessoas boas e às vezes parece que essa dor é insuportável... mas passa. Acreditem se quiser, mas uma dor não dura para sempre e nós precisamos lutar e trabalhar para que essa dor diminua ou cesse de vez. Não adianta se isolar, ficar triste ou chorar. Seja o próprio dentista da sua vida e arranque esse dente dolorido de dentro de você. Eu abro um sorriso cheio de orgulho e sinto meus olhos cheios de lágrimas. Olho para as mulheres ao redor do círculo e percebo que a violência não escolhe uma pessoa específica para se propagar. Altas, baixas, magras, gordinhas, idosas, crianças, negras e brancas. Todas nós somos vítimas todos os dias dessa violência. — O nome da minha filha será Isabella — Rebeca diz ao deslizar a mão pela barriga outra vez. — Quero que ela seja forte da mesma forma que Isabella foi e da mesma forma que todas nós temos que ser todos os dias. Não podemos deixar a violência vencer, não podemos abaixar a cabeça e ser pisadas por nossos agressores. É isso que eles querem, eles querem tirar o nosso brilho e destruir a nossa vida. Vocês vão acatar as ordens de um monstro? — Não — uma senhora diz. — Não podemos abaixar a cabeça. — Lutar — outra diz. — E persistir na luta — eu digo por fim. — E acima de tudo... viver — Rebeca ergue seus olhos para mim e abre um sorriso. — É só um túnel... logo você enxergará uma luz lá no final, e acreditem se quiser, o que nos espera do lado de fora é lindo demais! Todas batem palmas para Rebeca e eu não me limito em chorar. Orgulhosa e feliz em saber que diversas mulheres estão lutando. E persistindo. Da mesma forma que eu persisti. Na saída do bate-papo da ONG para vítimas de violência sexual, eu observei Lorenzo e Rebeca conversando. Ele está sendo um bom amigo e ajudou emocionalmente e financeiramente Rebeca. Como a família Ribeiro tem algumas casas no Rio de Janeiro, Lorenzo conseguiu uma casa para Rebeca e a bebê. Nada sentimental ou sexual, ele prometeu-me que ajudaria ela e que seria apenas um bom amigo e está cumprindo com a sua promessa. Ele está ajudando uma vítima. — Rebeca está com a barriga imensa — Bash comenta quando adentro no carro e despejo um beijo em seus lábios. — Ela já escolheu o nome? — Isabella — respondo com um sorriso. — Hmmm — ele geme e puxa a minha nuca para intensificar o nosso beijo. — Poderia ser você com uma barriga de nove meses, né? — Que nojo, papai — ouço a voz de Maria Rita e viro-me para enxergar a minha garotinha no bebê conforto. — Não pode beijar não! — Por que não? — toco a sua mãozinha. — Fica doente se beijar — Maria explica. — O papai disse isso. Eu viro para Sebastian e estreito o meu olhar. — Eu ainda não engoli o fato que Clara está namorando — roda a chave da ignição. — Então decretei que Maria Rita não irá namorar. — Sebastian... —toco sua mão e ele encolhe os ombros. — É uma fase e você não pode privar a sua filha de conhecer novas coisas. Nossos filhos todos vão crescer e passar por todas essas fases. É divertido, não é? — Não é divertido ver um marmanjo beijando a minha filha, Isabella — ele bufa e fecha o semblante. — Mas prometo não enforcar o garoto. — Meu meritíssimo... — curvo-me e despejo um beijinho em seu rosto. — Você não pode julgar o garoto sem conhecê-lo. — Desculpe — murmura. — A minha intuição não falha. — Sua intuição nunca irá falhar tratando-se das suas filhas. — Pois é. — Eu te amo, Bash — digo e olho pelo retrovisor para Maria, que está entretida com um desenho no tablet. — Obrigada por tudo. — Obrigado você, Bella — ele abre um sorriso e traz seus olhos azuis para os meus. Mesmo após anos, sinto um emaranhado de emoções e diversas borboletas no estômago. É surreal quando você encontra sua alma gêmea em alguém. — Por não ter desistido de mim, da nossa família e por ter me ensinado que o amor é capaz de curar qualquer ferida. Eu amo você. E essa é a minha história. Essa é a forma que eu tenho para dizer que você consegue. E que vale a pena resistir.