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1ª edição, São Paulo

Copyright @2018 por Ariane Fonseca

Capa: Ariane Fonseca


Foto: FXQuadro / Shutterstock
Revisão: Barbara Pinheiro
Diagramação digital: Ariane Fonseca

Esta obra segue as regras do Novo Acordo Ortográfico.

Esta é uma obra de ficção. Qualquer semelhança com nomes, datas e


acontecimentos reais é mera coincidência.

Todos os direitos reservados.

É proibido o armazenamento e/ou reprodução de qualquer parte desta obra


através de quaisquer meios sem o consentimento da autora.

A violação autoral é crime, previsto na lei nº 9.610/98, com aplicação legal


pelo artigo 184 do Código Penal.
Dedico esta obra a todos os casais apaixonados.
Capítulo 1

Maria Eduarda

Meus olhos se fixam na bolsa de soro e no líquido que cai devagar por
ela.

Gota por gota.

Pela. Última. Vez.

Seco as mãos suadas na calça jeans e tento disfarçar a emoção, mas a


garganta fecha e não consigo controlar o choro.

— Está tudo bem, Madu? — a enfermeira pergunta, preocupada.

— Tudo ótimo. Não poderia estar melhor — respondo, com um


sorriso sincero, deixando as lágrimas lavarem tudo que passei nos últimos
meses.

Nem acredito que acabou!

Parece que foi ontem que estava em casa com vovó e senti uma
fisgada no seio. O que, aparentemente, era só uma coceira e um desconforto,
se tornou um nódulo maligno que mudou toda minha vida.

Se eu tivesse levado a sério os primeiros sintomas… Se tivesse


realizado os exames preventivos… Os “se” sempre me atormentam.

Um tempo maior do que gostaria depois dessa dor, fui diagnosticada


com câncer de mama grau três. O estágio avançado da doença também
atingiu os gânglios linfáticos das axilas e me levou a uma mastectomia total
com esvaziamento axilar. Fiquei sem os dois seios em uma medida
preventiva contra a reincidência, depois do exame de rastreamento dos genes
BRCA1 e BRCA2. Sim, aquele mesmo feito por Angelina Jolie.
Nunca imaginei passar por isso aos 22 anos. Mais uma para a triste
estatística de jovens brasileiras com a doença, número que cresce anualmente.

Hoje, no último dia da quimioterapia, só consigo olhar para trás,


agradecida, por ainda estar viva. Pela nova chance que ganhei de fazer
diferente.

Seria hipócrita se dissesse que sempre acordo com um sorriso no


rosto, grata a Deus por essa chance. Há muitos dias difíceis, dos quais a
vontade de desistir de tudo é maior do que a de lutar.

Nunca vou me esquecer da sensação ao olhar no espelho pela primeira


vez, depois da retirada das mamas. Eu me senti horrível, toda roxa e
costurada. Ver o local — antes cobiçado pelos homens — vazio, me fez
chorar por semanas seguidas. A gota d’água foi raspar meu lindo cabelo
vermelho. A garganta seca só de lembrar.

Além da aparência totalmente fragilizada, o tratamento me deixou


muito mal nos primeiros meses após a cirurgia, até afastando-me do trabalho,
temporariamente. A chamada quimioterapia vermelha, mais agressiva, causou
sonolência exagerada, náuseas, vômitos e dores de cabeças insuportáveis.

Ficar longe dos meus amigos e de algo para ocupar a mente, vendo o
desespero da vovó a cada vinda ao médico, quase me levou à depressão.

Quase.

Durante uma noite estrelada de setembro sonhei com meus pais. Eu


tinha poucas lembranças deles, pois morreram em um acidente no meu
aniversário de oito anos. No sonho, mamãe, uma ruiva alta como eu,
acariciava meus cabelos e me dava um beijo na bochecha. Eu estava largada
em uma cama de hospital, sem reação. Papai me descobriu e segurou minha
mão. Eles sorriram e me incentivaram a levantar. A primeira reação foi
reclamar que não conseguia, mas ambos insistiram e continuaram oferecendo
apoio. Com uma voz doce, ela disse para não me entregar. Era apenas um
obstáculo que devia ser superado.

Depois desse dia, tento ser mais otimista. Busco ver as coisas pelo
lado positivo e a enxergar o copo meio cheio. Não é sempre uma tarefa fácil,
ainda tenho problemas sérios de autoestima, mas sigo em frente, vivendo um
dia de cada vez.

A troca do tratamento para a quimioterapia branca, com


medicamentos menos agressivos, foi providencial para essa nova fase.
Consegui voltar para a lanchonete e o ânimo se restabeleceu.

— Último dia, hein, Madu! — Doutora Lúcia se aproxima da poltrona


e me tira dos devaneios.

— Nem acredito que já se passaram oito meses.

— O tratamento foi ótimo, seus exames estão excelentes — ela


explica e suspiro fundo, aliviada. Realmente acabou! — Agora vamos
aguardar sua vaga para a reconstrução da mama.

— Será que vai demorar muito ainda, doutora?

— Apesar de uma lei federal garantir a cirurgia no SUS, inclusive, no


mesmo dia da retirada da mama, nos casos que são possíveis, ainda temos um
cenário precário. Faltam cirurgiões plásticos e mastologistas especializados
no procedimento pela rede pública e, muitas vezes, não há disponibilidade de
materiais.

— Entendo. — Abaixo a cabeça e suspiro, tentando afastar o


pessimismo que está sempre à espreita, esperando uma oportunidade para se
manifestar.

— Não desanime, Madu. O hospital se programa para fazer um


mutirão em breve, você está na lista de espera.

Respiro fundo e decido pela esperança. Um dia de cada vez. O


importante é que estou curada. Só isso já é motivo suficiente para
comemorar.

***

Caminho saltitante pela Avenida Paulista, cantarolando com o volume


do fone de ouvido no máximo.

Não tenho mais o tempo que passou


Mas tenho muito tempo
Temos todo o tempo do mundo

É, Legião, eu tenho. Tenho todo tempo do mundo!

Percebo olhares curiosos para mim e sorrio ainda mais. Devem me


achar uma louca: careca, um lenço colorido na cabeça e uma blusa com
desafio lógico. Adoro essas camisetas!

Tenho vontade de abraçar todas as pessoas e dizer: estou curada!

— Boa tarde, senhor João! — cumprimento o dono da banca de jornal


que fica na esquina do trabalho.

— Boa tarde, Madu! — Escuto sua voz ao longe e viro-me para


acenar, visivelmente feliz.

Entro na lanchonete ainda pulando e dou de cara com Batista, o dono.

— Menina, o que você está fazendo aqui? Não é dia de


quimioterapia? — Arqueia a sobrancelha e fecha a cara.

— Estou ótima! Pronta para uma maratona. Estou curada, senhor


Batista! — digo animada e sou correspondida com um abraço apertado.

— Que bom, menina. Que bom.


Esse homem foi como um pai para mim, ajudando a vovó com
remédios e me liberando do trabalho diversas vezes sem descontar um
centavo do meu salário. Se faz de durão, vive na correria, mas sei que no
fundo realmente se preocupa.

— Se tá boa pra maratona, tá boa para servir uns PFs. Vai trabalhar!
— Dá um tapa no meu ombro e me empurra para frente.

— Com prazer!

O que pode parecer banal e chato para muitas pessoas, é minha


salvação. Claro que não quero ser garçonete para sempre, contudo, ocupar a
mente trabalhando é a melhor coisa do mundo. Agora que estou curada,
posso voltar à faculdade e, em breve, seguirei novos rumos.

— O que você está fazendo aqui, Maria Eduarda Souza?

— Falou o nome completo. Devo sair correndo? — Encaro minha


amiga, divertida, tentando desfazer sua carranca.

— Liguei pra sua vó querendo saber da última quimio, crente de que


estaria dormindo, ela me disse que tinha vindo pra cá. Não tem juízo, Madu?

— Estou feliz, radiante… não queria passar o dia dormindo. Me sinto


ótima, Rebeca.

— Sério, amiga? Por favor, não abusa. Tá?

— Fica tranquila, nunca me senti tão bem.

Ela ainda me olha com dúvida, mas decide acreditar e me abraça


apertado. Quase sufocando.

— Estou tão feliz por você…

— Eu também…
— Ah, menina, me esqueci de falar! Se eu te contar, você não
acredita... — Rebeca me solta bruscamente, olhando para um ponto fixo atrás
de mim.

— O quê?

— O gostosão tatuado voltou.

— Quem? — pergunto, confusa, rindo da cara de sem vergonha que


ela faz.

— O cara bonitão, que vinha aqui ano passado e ficava te comendo


com os olhos.

— O que pedia sempre ovo frito no almoço?

— O próprio! Senhor Jesus, está ainda mais gostoso. Olha ali, Madu,
está te encarando.

— Com certeza não está olhando pra mim, Rebeca. Não força!

— Claro que está. Disfarça e olha pra você ver.

— Não vou olhar. — Reviro os olhos e pego uma comanda para


montar o prato.

— Ele chegou aqui faz uns vinte minutos, quase entrando no balcão.
Tenho certeza de que estava te procurando.

— Chega, Rebeca. Não faz isso, por favor.

— Amiga, eu não estou fazendo nada. Juro! Apenas constato um fato.


Ele não para de secá-la.

Viro para pegar macarrão à bolonhesa, pedido 101, e não resisto à


vontade de comprovar a tese de Rebeca.

Nossa! Ele, realmente, está mais bonito do que no ano passado.

Mais músculos, mais tatuagens, mais barba por fazer… Parece um


bad boy de longe.

Solto um suspiro involuntário e o vejo sorrindo. Para mim.

Olho para os lados, a fim de constatar que não tem ninguém por perto,
e ele sorri ainda mais.

Sinto minhas bochechas brancas corarem e saio do seu campo de


visão, como um flash.

— Não falei! — Rebeca afirma, triunfante, parada na minha frente.

— Provavelmente ele está rindo deste lenço exagerado. — Mexo, sem


graça, no tecido verde militar com estampa de Star Wars, que cai na lateral do
meu pescoço.

— O gostosão ficou um tempão sumido da lanchonete, desde a época


da sua cirurgia. Hoje que está voltando. Parece até um presente do destino…

— Presente do destino? — questiono, fazendo careta. — Tá de


brincadeira, né, Rebeca?

— Estou dizendo! Eu percebo esses olhares dele faz tempo.

— Como assim?

— Desde quando você namorava o traste, o gostosão ficava babando


em você. Era só Renan chegar perto que ele fechava a cara e voltava a comer.

Renan. Tenho vontade de chorar só de lembrar o que ele me fez.


Não. Agora não. Hoje não.
Capítulo 2

Matheus

Como pode ser tão linda?

Senti falta desse sorriso largo e espontâneo, enaltecendo as sardinhas


da sua pele branca. Mesmo depois de tantos meses sem a ver, é como se o
tempo estivesse parado.

Noto-a corar, me encarando, e não resisto a retribuir o sorriso. O que


será que aconteceu com ela? Os longos fios ruivos do seu cabelo agora dão
lugar a um lenço. Parece um pouco abatida também. Espero que esteja bem
de saúde.

Sua timidez a deixa encantadora.

Caralho! Não queria mais nutrir essa atração. A garota é


comprometida. Nem sabe quem sou. Mas é mais forte do que eu. Sempre foi.

Eu já teria chegado nela se não fosse o merdinha do namorado.


Mesmo vendo como se sentia feliz na presença dele, nunca fui com a cara do
idiota. Ele me parece um aproveitador barato, daqueles que abandona o barco
na primeira dificuldade. Falando no diabo, onde será que ele está? Não o vi
desde que cheguei.

Por mais que eu não diga isso em voz alta, um dos motivos que me
levaram a aceitar o intercâmbio na Europa foi tirá-la da cabeça. Eu tento
fingir para mim mesmo que foi para me especializar em novas técnicas de
tatuagem, aumentar minha bagagem profissional, porém, as mãos suadas e o
coração acelerado pelo simples fato de vê-la parada aqui, entregam tudo.

Isso e o fato de estar a quilômetros de distância não me impedir de


lembrar-me de cada detalhe do seu rosto, do seu corpo. Estou fodido. Um
baita marmanjo, com pinta de bad boy, de quatro por uma garota que nem
fala comigo.

Reparo novamente nela, encostada no balcão da lanchonete, enquanto


conversa com sua amiga. Está exaltada, como se discutisse algo sério. Parece
até um pouco tonta. Será que está passando mal? Acho que vai...

Merda!

Saio correndo da mesa, derrubando a cadeira de qualquer jeito, ao


perceber que ela está caindo. Chego a tempo de não permitir que sua cabeça
bata com força no chão.

— Ei, Maria Eduarda, fala comigo! — Toco seu rosto, tentando


acordá-la. — Você está bem?

— Como você sabe o nome dela? — A amiga me olha, confusa, mas


em seguida se vira desesperada para a garota estirada ao nosso lado. —
Madu! Madu! Acorda, amiga!

Verifico seu pulso e constato que os batimentos cardíacos estão mais


fracos. O que ela tem? O que está acontecendo?

— Precisamos levá-la ao médico, agora! — digo, preocupado. —


Meu carro está aqui no estacionamento.

— O que está acontecendo aqui, Rebeca? — O dono do


estabelecimento aparece na porta, sério, no entanto, sai correndo ao ver Maria
Eduarda caída.

— Ela desmaiou do nada, não devia ter vindo trabalhar. A quimio a


deixa muito debilitada.

Quimio? De quimioterapia? Meu coração se aperta e seguro firme a


mão de Madu, ao ouvir a explicação da amiga. Não pode ser. Não com ela. É
tão jovem, sempre foi saudável.
Tento avisar que vou ao hospital, mas o senhor nem me deixa falar.
Carrega-a no colo, apressado, e sai pela porta dando ordens a vários
funcionários.

— Eu vou com vocês.

— Não precisa, rapaz. Eu já cuidei dela várias vezes, só precisa


descansar. Pode terminar seu almoço.

Como se eu ainda estivesse com fome. Minha cabeça não para de


pensar na maldita palavra: quimio. Não pode ser. Não consigo acreditar
nisso. O lenço. O rosto abatido.

Não!

— Vai ficar tudo bem, Madu é forte. — Rebeca para ao meu lado,
chamando minha atenção.

— Ela está doente? — Engulo seco, com dificuldade de processar o


que está por vir.

Não recebo resposta. A amiga abaixa a cabeça, como se ponderasse se


deve me dizer algo ou não.

— Por favor. Eu preciso saber se ela está bem. O que está


acontecendo? É grave? Já está em tratamento? — Começo a soltar uma
pergunta atrás da outra, nervoso.

— Madu teve câncer. — Ouço um sussurro.

— Câncer? — Passo a mão no rosto, tentando me acalmar. — Onde?


Como assim, teve? Já foi curado?

— O nódulo foi no seio, agora o tratamento acabou. Ela passou mal


hoje porque está debilitada com a última sessão de quimioterapia. A culpa é
minha. Fui falar do idiota. Deixei minha amiga nervosa. — Rebeca começa a
chorar e se encosta ao balcão. — Não devia tê-la lembrado do traste do ex-
namorado.

Ex? No momento que ela mais precisou, ele virou as costas? Não
estava enganado. É um merda de um homem.

— Quando Madu ficou doente?

— Faz uns oito meses.

— Justo na época que fui viajar, porra — bufo. — Lembro que antes
de ir, ela parecia muito feliz com o namorado.

— E estava... até descobrir a doença e Renan sumir do mapa.

— Filho da puta. — Deixo escapar o ódio que sinto do indivíduo.


Maria Eduarda não merecia isso.

— É um filho da puta mesmo, desgraçado. Ela ficou péssima, quase


caiu em depressão. Foi muita coisa uma atrás da outra. Meses difíceis.

— Estava na Europa, fazendo intercâmbio. Se eu soubesse... Se eu


desconfiasse que ela estava doente, jamais teria ido.

— Mas você nem a conhece... — Rebeca arqueia a sobrancelha. —


Deixaria de ir viajar por causa de uma pessoa que nem conversa direito?

— Eu a conheço muito bem.

— De onde? Desde quando?

Fico em silêncio por uns segundos. Droga! Falei demais.

— Deixa pra lá... — desconverso. — Vou deixar meu número com


você, pode me avisar sobre o estado de saúde dela? Por favor?
— Tá — a garota responde, ainda me encarando, confusa.

Não é hora para lembranças. A única coisa que preciso é ter certeza de
que Madu está bem.
Capítulo 3

Maria Eduarda

Desço do metrô e sigo meu caminho habitual de todos os dias. O


humor bem diferente de anteontem, quando o tratamento, enfim, acabou. As
pessoas passam por mim na Paulista sem sequer notarem minha presença.
Senhor João da banca cumprimenta, mas correspondo com um sorriso fraco.

Ficar em casa depois do desmaio só trouxe lembranças que eu queria


muito apagar da memória.

Seu beijo. Seu toque. Seu sorriso travesso. As fugidas do senhor


Batista para dar uns amassos nos fundos.

O momento que me deixou.

Um dia depois do meu diagnóstico de câncer de mama.

— Desculpa, eu não consigo lidar com isso.

Não esqueço essas palavras. Se era demais para ele, imagina para
mim? Em pensar que fazíamos planos de uma vida juntos…

Renan não foi embora porque não sabia lidar com a doença, foi
porque não sabia lidar com minha aparência. Tenho certeza disso.

Eu era tão linda.

Seios pequenos e redondos, combinando com meu corpo esguio.


Cabelos ruivos ondulados na altura da cintura.

Agora não tenho seios, estou inchada feito um baiacu e sem cabelo.

Não tem como ser sensual e atrair os homens desse jeito.


Balanço a cabeça, tentando não ir para esse lado negro, e entro na
lanchonete. Trabalhar é o que posso fazer de melhor neste momento.

— Madu, amiga! — Rebeca pula no meu pescoço, assim que chego


ao balcão. — Que bom que está melhor!

— Estou sim, fica tranquila.

— Desculpa por tocar na…

— Ei, tudo bem. Vamos seguir em frente, tá bom? — Tento passar


confiança no sorriso.

— Tá.

Deixo minha bolsa no armário e sigo para conferir as comandas. Sirvo


cinco cafés, três pães na chapa, um pingado e um pedaço de bolo. Vejo pelo
canto de olho Rebeca me encarar a cada passo que dou.

— O que foi? — Paro do seu lado, com a mão na cintura.

— Quero te falar uma coisa… Estou com medo de se chatear


novamente.

— Então, não fale.

— Mas você precisa saber…

— Conta, Rebeca. Conta! Você não se aguenta mesmo — bufo.

— O Matheus veio falar comigo, depois que você saiu desmaiada no


carro do senhor Batista.

— Quem é Matheus?
— O gostosão tatuado… O nome dele é Matheus.

Ah!

— E?

— Ele ficou superpreocupado, veio aqui correndo logo que caiu no


chão. Queria te levar para o hospital, só que o senhor Batista nem deixou o
garoto falar e te colocou no carro dele. — Sorrio ao imaginar meu chefe
durão preocupado. — O gostosão quis saber o que você tinha, o que tinha
acontecido… Me encheu de perguntas. Estava tão nervosa que acabei
soltando mais do que devia. Contei do câncer. Falei do… você sabe.

— Que merda, Rebeca! — digo, brava, jogando o prato que lavava na


pia, com força.

— Eu sei, não tinha o direito…

— Não tinha mesmo, não é a sua vida pra se intrometer.

— Desculpa… — ela pede, de cabeça baixa, secando uma lágrima.

Não quero brigar com ela, é minha única amiga. Mas qual o problema
de fechar essa boca?

Não digo nada, massageio a testa para a dor de cabeça não se instalar.
Ficamos longos segundos em silêncio.

— Matheus disse que estava fazendo um intercâmbio, por isso, ficou


tanto tempo sem aparecer.

— Legal — falo, sem animação.

— Ele admitiu que se soubesse que você passava por tudo isso, não
tinha ido.
— O quê? — Encaro-a, incrédula. — O cara nem me conhece.

— Pois é. Fiz o mesmo comentário. Apesar de fofo, achei estranho.


Ele disse que te conhece bem.

— Como? De onde? Eu me lembraria de um ser humano daqueles…

— O abençoado não quis contar. Fiquei morrendo de curiosidade. —


Rebeca encosta na beirada da pia, virando-se para mim. — Matheus deixou o
número do telefone dele comigo e anotou o meu. Mandou umas vinte
mensagens. Ontem, ainda passou aqui para saber se estava melhor, expliquei
da folga para descansar.

— Por que nunca conversou comigo?

— Sei lá. Acho que o… você sabe… o impediu de se aproximar.


Sabia que você era comprometida. Quando falei que tinham terminado, seus
olhos brilharam de excitação. Tenho certeza de que o gostosão é afim de você
mesmo, sua sortuda!

— Você sempre vê o que quer ver, Rebeca. — Dou de ombros, com a


mania de cupido da minha amiga. — Imagina que um cara daqueles ia se
interessar por mim assim.

— Maria Eduarda, você é linda. Continua linda.

— Rebeca… — Reviro os olhos.

— Rebeca nada. Você é a mesma, Madu. A mesma!

Como não quero brigar, ignoro a vontade de retrucar e volto ao


trabalho. A manhã só está começando e ainda tenho muito café para servir.
Tento focar nas atividades e ignorar as mãos suadas que entregam minha
ansiedade.

De onde ele me conhece?


Droga! Não preciso disso agora.
Capítulo 4

Matheus

Ajeito os óculos de grau no rosto e seguro firme contra o peito meu


caderno de desenho e o lanche da manhã. Aperto o passo para tentar passar
despercebido pelo grupinho de garotos populares da escola. Eles estão
encostados na única parede que separa as salas de aula do pátio.

Talvez seja melhor ficar aqui de novo. Posso comer em um cantinho


qualquer. Estatisticamente falando, seria o sensato. A probabilidade de
nenhum dos oito me notar, mesmo com a variante de estarem empolgados
falando de algo banal, é baixa.

Bem baixa.

Infiltro-me entre garotas com tiaras extravagantes, mas não tem jeito.
É claro que um magrelo, mais alto do que a média para seis anos, seria
notado. Suspiro baixo, e ajeito os óculos novamente.

— Onde pensa que vai, quatro olhos? — Álvaro, duas séries acima da
minha, segura meu ombro.

— V... v... vou no pátio.

Péssima hora para gagueira.

— Acho que você vai gostar de ficar aqui com a gente. — Um


segundo aparece me puxando pela gola da blusa e me joga contra parede,
deixando o caderno cair no chão.

Ahh, não!

— Estou morrendo de fome, dá esse saco aqui.


Ofereço o pacote rapidamente e abaixo a cabeça, evitando contato.
Só quero recuperar meus desenhos e sair daqui o quanto antes.

Eles gargalham da minha covardia.

— Que merda é essa, quatro olhos? — Álvaro reclama, cuspindo o


lanche natural de peito de peru com pasta de cenoura, feito por minha mãe.
— Que nojo!

— É... é...

— É... é... é... Fala direito, seu idiota. Já disse para trazer comida
decente. Sua mãe não presta pra nada, igual a você?

Não. Se. Atreva.

Fecho o punho e, em um impulso de raiva, parto para cima de


Álvaro. Mesmo sabendo que vou apanhar feio. Ele facilmente sobe em cima
de mim e tira meus óculos, jogando-o com força no chão.

— Vai! Vai! Vai! — O coro de idiotas canta ao fundo, incentivando a


briga.

Tenho dificuldade para enxergar, mas vejo um vulto vermelho


aparecer no meu campo de visão.

— Sai de cima do menino — uma voz brava e infantil fala, cutucando


o ombro de Álvaro.

— Vai brincar de boneca, sua sardenta.

— Sai — repete, enfática. — Ou vou contar pra minha mãe que você
rouba o lanche dele todos os dias e ainda bate nele.

Sinto as mãos se afrouxarem da minha blusa e ele gargalhar virando


seu corpo para a garota.
— Quem você pensa que é para me desafiar, menina? Tem o quê?
Seis anos também? — desdenha.

— Eu penso que sou filha da nova diretora. A que assumiu hoje e é


bem brava.

Os outros meninos param de rir e ficam em silêncio. Álvaro me


aperta mais uma vez contra o chão, mas sai de cima, bufando.

Ninguém fala mais nada. Vão embora reclamando baixo e me deixam


jogado ali.

A cabelo de fogo se aproxima, com o resto do que sobrou dos óculos.

— Você está bem? — Segura minha mão e me ajuda a levantar,


entregando o objeto.

— S... Sim... Ob... Obrigado.

— De nada. — Sorri justo no momento que coloco a armação


quebrada no rosto.

Meu Deus!

Mesmo desfocada, posso ver bem as sardinhas e o cabelo vermelho.

Ela é linda.

***

Mesmo sabendo que Madu já está melhor, por intermédio de Rebeca,


fico aliviado ao vê-la trabalhando e distribuindo seus lindos sorrisos no
balcão. Caminho devagar até onde está, decidido a puxar assunto desta vez.

Eu não sou mais o menino tímido dos seis anos. O que ficou
apaixonado por ela desde o momento que colocou os óculos e a viu sorrindo.
Agora que sei que não é mais comprometida, posso contar quem sou. Talvez
possa até dizer o que sinto. O que sempre senti e não tive coragem de dizer,
até agora.

— Um PF de ovo frito, por favor.

— Um minuto, senhor — ela pede, sem encarar o dono da voz,


enquanto pega um saco de laranja debaixo da pia. — Pode se sentar aqui no
balcão ou nas mes...

Quando se levanta, quase derruba as frutas no chão ao perceber que


sou eu. Tão linda quando fica sem graça.

— Pode se sentar aqui no balcão ou nas mesas, que levo pra você —
repete, tentando esconder o nervosismo.

Estou deixando-a nervosa? Isso pode ser um bom sinal.

— Vou ficar aqui no balcão hoje — respondo, sorrindo, e ela me


encara.

— Tá.

Percebo que Madu tenta continuar seu trabalho, mas está incomodada
com meu olhar acompanhando cada movimento seu. O que parece uma
eternidade depois, finaliza o suco e arruma meu prato.

— Bom apetite! — Ela coloca o almoço no mármore gelado, evitando


contato visual. Devo estar sendo bem intimidante.

— Publicação — digo, convicto.

— Como? — Encara-me sem entender e sorrio novamente.

— A charada da sua camiseta. É publicação.


Ela olha para a própria blusa e sorri com minha perspicácia.

Camiseta, acetona, macaco, abacaxi, mágico...?

A) Cavalo
B) Abacate
C) Publicação

— Está seguindo uma sequência numérica da letra C. — Aponto para


o tecido. — Camiseta tem o C na primeira letra, acetona na segunda, macaco
na terceira, abacaxi na quarta, mágico na quinta e a próxima deve ter na
sexta.

— Garoto esperto!

— Você não sabia? Não venho aqui por causa do melhor ovo frito da
cidade, meu passatempo preferido é desvendar os desafios lógicos das suas
roupas. — Pisco e Madu quase se engasga.

— Sei... — Tenta disfarçar que ficou mexida.

— Quantas dessa você tem? Uma para cada dia do ano?

— Quase isso. — Dá de ombros, recolhendo os pratos, já vazios,


deixados no balcão.

— Você está bem? — Mudo de assunto.

Ela para, repentinamente, e mexe no pano de prato em cima da pia,


como se estivesse decepcionada por perguntar da doença.

— Sim, obrigada.

— Fiquei com dó do chão. Você deu um susto nele, coitado. Parecia


até os tempos de escola de novo.
Maria Eduarda me encara, incrédula. Não sei se é por causa da
brincadeira, ou se caiu a ficha de quem sou.

— Tempos de escola? — Arqueia a sobrancelha, gargalhando. — E,


como assim, em vez de se preocupar comigo, está com dó do chão sujo da
lanchonete?

Que som mais gostoso de se ouvir.

— Você não se lembra de mim, né, cabelo de fogo?

Silêncio.

Ela para de sorrir e me olha por longos segundos, tentando assimilar.

Eu sou a única pessoa que a chama de cabelo de fogo. Quer dizer,


pelo menos era. Depois que me defendeu dos garotos populares, nos
tornamos amigos inseparáveis até os oito anos. Sentávamos lado a lado na
sala de aula, fazíamos todos os trabalhos juntos, dividíamos o lanche...

Nossos caminhos só se distanciaram por causa da morte dos pais dela,


em um acidente. Madu veio morar na capital com a avó e perdemos contato.

— M... Mat?

— Eu mesmo.

— Mas... como? Nossa! — Balança a cabeça, atordoada. — Você está


muito diferente.

— Graças a Deus, né? Imagina ser um nerd magricela com cara de


bebê chorão pra sempre?

Ela ri, e volta a me encarar. Olha para todas as tatuagens e morde o


canto da boca.
Caralho!

Não faz isso.

Correspondo o olhar, firme, sentindo cada parte do meu corpo desejar


se aproximar mais.

Realmente, estou bem diferente na aparência. Faz tempo que não uso
mais óculos e comecei a ganhar músculos ainda na adolescência.

— Eu nunca ia adivinhar que era você... nunca! — Ela pisca e corta o


clima, abaixando a cabeça.

— Você acredita que eu desconfiei que era a minha cabelo de fogo...


é... quer dizer... a cabelo de fogo, desde o primeiro dia que a vi aqui? —
corrijo, sem graça.

— Sério? Eu também fiquei bem diferente.

Nossa! E como ficou. Ainda mais linda.

— Mas seus olhos e essas sardinhas não tem como confundir. Eu ouvi
chamarem seu nome e tive certeza. Era impossível existirem duas Maria
Eduarda assim.

— Por que nunca falou comigo esse tempo todo?

— Sei lá... Eu achei que você nem lembraria mais. A gente era muito
criança.

— É claro que me lembraria, Mat.

Madu sempre foi importante para mim, porém, talvez eu não tenha
sido tão marcante na vida dela. Quando a vi com namorado também,
confesso, fiquei desmotivado de puxar assunto.
— O que você tem feito da vida agora?

— Sou tatuador.

— Sério? — Encare-me, desconfiada. — E nossos professores


juravam que você seria o próximo Nobel da Física.

— Pois é. — Rimos juntos. — No fim, a minha paixão por desenhar


falou mais alto.

— Fico muito feliz por você, seus desenhos eram lindos desde os seis
anos.

— Eu amo o que faço. Não poderia ter escolhido melhor.

Passamos a próxima hora relembrando o passado e contando as


novidades desses anos todos. Parece até que estamos em um universo
paralelo, onde o tempo não passou e ainda somos os mesmos.

— Preciso ir, infelizmente. O dever me chama — digo, ao olhar no


relógio, e perceber que já extrapolei na hora. Tenho cliente daqui a pouco.

— E eu preciso trabalhar. Se o senhor Batista me pega de papo furado


no meio de expediente, corta minha cabeça.

— Você quer continuar essa conversa mais tarde? Quem sabe sair
um…

— Mat, vamos deixar assim como está. Tudo bem?

— Por ora, tudo bem — respondo, olhando-a com carinho. —


Amanhã é outro dia. Estarei por aqui para comer o melhor ovo frito.

— E desvendar mais uma charada.


— Claro! E desvendar mais uma charada.

— Até! — Ela acena quando me levanto.

Sigo em direção ao caixa, sorrindo, como se tivesse ganhado na


loteria.

E talvez eu realmente tenha.


Capítulo 5

Maria Eduarda

Sirvo duas omeletes, cantarolando baixinho, com um sorriso


estampado no rosto para cada cliente que entra na lanchonete. Ando,
especialmente, feliz nos últimos tempos. O passarinho verde tem nome e
sobrenome. Um gostosão tatuado!

Volto ao balcão e olho discretamente para o relógio. Ainda faltam


alguns minutos.

— Confessa que você está ansiosa. — Levo um susto com Rebeca


parada atrás de mim.

— Puta merda, menina! Quer me matar do coração?

— Não muda de assunto. Confessa, vai! — pede, divertida, colocando


pratos na pia.

— Pode ser que sim.

— Aham, sei.

— Sabe o quê? Não tem nada para saber…

— Você está gostando dele, Madu.

— Gostando de quem? Do Matheus?

— O próprio! Pensa que eu não percebo, mas fica toda hora olhando
no relógio. Quando ele chega, seus olhos brilham, amiga. Não tem problema
assumir, é óbvio que ele também está interessado. Não viria aqui três meses
seguidos, todo santo dia, caso contrário. Pode inundar a Avenida Paulista, ele
vem de barco.

— Engraçadinha! — Sorrio da sua tentativa de cupido. — Não tem


nada a ver, somos amigos.

— Desde quando amigos beijam na boca? — bufa, estressada.

— Aquilo não pode ser considerado um beijooooo. — Gesticulo com


as mãos, tentando convencer a mim mesma.

Pois é, não resisti. Além de vir almoçar na lanchonete todos os dias,


sempre que pode, Matheus me acompanha até em casa depois do trabalho.
Ele insistiu tanto na carona que não tive como dizer não.

Nas despedidas, rolaram uns dois beijinhos castos. Ok. Uns vinte,
nesses três meses.

Mas nunca passamos desse ponto. Apenas selinhos carinhosos


mesmo. Isso não tem nada demais, né? Eu não aceitei ainda sair com ele, fora
isso. Não quero criar expectativas. Nem em mim nem nele. Embora,
confesso, acredito que já estou evitando o inevitável.

— Quantas vezes ele te convidou pra sair?

— Praticamente, todos os dias que nos vimos.

— Você acha que isso é atitude de amigo, mesmo os com benefícios?

— Não, mas…

— Madu, ele já sabe de tudo. Continuou aqui do mesmo jeito. Do que


você tem tanto medo? Ele quer você!

É verdade, ele sabe de tudo.

Temos conversado sobre muitas coisas. Matheus sempre senta no


cantinho do balcão, perto da pia, e nunca fiquei tão feliz em ser a responsável
pela louça.

Confirmei a ele que tive câncer de mama, e contei sobre a cirurgia.


Deixei claro que ainda não fiz a reconstrução da mama. Mat não pareceu se
importar nem um pouco. Pelo contrário, fez piada, como sempre, para desviar
o foco da doença.

Gosto mais dele cada vez que faz isso.

Gosto dele? Ah, merda. Eu gosto.

Será que Matheus também se sente interessado dessa forma? Como


pode me achar atraente assim? Apesar de o cabelo ter começado a crescer,
estou longe do ideal feminino. Ainda mais para um homem tão atraente como
ele.

— Eu sei o que você está pensando, não faz isso Madu.

— Não tem como, Rebeca. Não tem motivo para ele estar interessado.

— Madu, eu vou repetir pela milésima vez, você é linda. L.i.n.d.a!


Precisa que desenhe?

— Mas…

— Dá uma chance para o garoto. Pensa nisso. — Fico em silêncio. —


Aproveita a oportunidade agora.

Rebeca me dá um cutucão no braço e olho para frente, vendo-o entrar


sorridente na lanchonete.

Deus, como é bonito!


Capítulo 6

Matheus

Não sei se estou começando a imaginar coisas, mas sinto que Madu
me olha de um jeito diferente de uns tempos para cá.

Com desejo.

Caralho! Isso está tornando tudo mais difícil.

Tive que fazer uma força sobre-humana para não invadir sua boca
com ânsia todas as vinte e duas vezes que nos despedimos com um selinho,
após deixá-la em sua casa.

Quem está contando?

Eu queria mais. Ah! Eu queria muito mais do que este simples toque.

— Boa tarde! — digo, animadamente, e me aproximo do balcão,


reparando na sua camiseta do dia com um símbolo do Pi. — Adorei o look.

— Gostou do meu penteado calopsita também? — pergunta e eu


gargalho.

Desde que o seu cabelo voltou a crescer, ela vive reclamando dos fios
rebeldes. Não usa mais os lenços estampados, o corte está no tamanho
Joãozinho.

— Calopsita, o pássaro?

— O topete desgrenhado não está igualzinho? A diferença é que o


meu tem uns cachos.

— Está linda! — afirmo a encarando e ela cora, o peito subindo e


descendo discretamente.

— Vou preparar seu ovo frito — desconversa e se vira, pegando um


prato.

Sempre a elogio, no entanto, Maria Eduarda parece ter um bloqueio


com minhas palavras.

Preciso fazê-la começar a acreditar.

Como?

Sento no meu lugar de sempre e embalo nas piadas e em nossas


conversas triviais. Um terreno seguro que deixa Madu confortável. Conto
sobre uma bela Fênix que tatuei agora de manhã, contudo, percebo-a distante.

— Você está me ouvindo, calopsita? — Seus olhos encontram os


meus, e ela sorri.

Um sorriso amplo. Diferente.

— Eu aceito sair com você — diz de uma vez e fico estático,


devolvendo a intensidade do seu olhar.

— Sair… tipo, fora daqui? — questiono, com a voz falha,


visivelmente nervoso.

— Sim.

Fico em silêncio por um minuto. Tentando entender o que há por trás


deste passo.

Será que ela, enfim, dará uma chance a nós?

Quase não consigo acreditar. Provavelmente, estou fazendo cara de


bobo apaixonado.
Mas que se foda! É exatamente isso que sou.

Um muito apaixonado por essas sardinhas e sorriso fácil.

— Você não sabe como esperei para ouvir isso. — Pego sua mão e
cruzamos nossos dedos por cima do mármore gelado. É tão gostoso sentir sua
pele.

— Quero ver se sabe cozinhar mesmo — ela desafia, desdenhando.

— Será o melhor jantar da sua vida! — digo, convencido, dando uma


piscadinha.

E o da minha também.
Capítulo 7

Maria Eduarda

Ajeito o vestido tubinho vinho, que demorei horas para escolher, e


aproveito para secar as mãos suadas. Nervosismo é pouco para o que estou
sentindo. É a primeira vez que tenho um encontro depois de muito tempo.

Apesar de ter recuperado meu peso normal e os cabelos já terem


voltado a crescer, o principal ainda me incomoda. Não tenho condições de
ficar nua na frente desse homem lindo, sem os seios. Ele vai ficar com nojo
de mim. Como Renan.

Para com isso, Maria Eduarda.

Matheus não é Renan. Ele já provou nos últimos meses que gosta de
você.

Respiro fundo e toco a campainha. Foi difícil convencê-lo de que


poderia vir sozinha e encontrá-lo aqui. O cara não cansa de ser um sonho de
consumo.

— Boa noite! — cumprimenta, com um sorriso estampando o rosto,


assim que abre a porta.

— Boa noite!

— Você está… — Engole em seco, me devorando com os olhos. —


Está linda, Madu!

— Obrigada — respondo, tímida, encarando os pés.

Ele está divinamente maravilhoso de blusa social azul-escuro dobrada


no braço. Nunca o vi tão formal. Seu perfume invade cada canto do meu
corpo.
Respira. Respira.

Matheus segura minha mão para entrar e o seu toque me deixa


inebriada. Ele mostra o pequeno apartamento e fico encantada com o cuidado
que teve para preparar o nosso jantar. Está incrível!

— Você fez isso também? — Aponto para a mesa, questionando a


decoração.

Pequenas velas aromáticas estão dispostas em uma toalha preta,


destacando os guardanapos de pano laranja. Há uma linda rosa da mesma cor,
dentro de um vaso de cristal.

Cabelo de fogo. Ele pensou em cada detalhe.

Meu Deus! Meu coração não para de acelerar.

— Não — confessa, fazendo careta. — Tive a ajuda da minha irmã.

— Nossa, graças a Deus! Eu estava começando a achar que você tinha


saído de um conto de fadas — admito e ele gargalha, empurrando uma
cadeira para que eu possa sentar.

— Vim resgatar minha donzela! — Entra na brincadeira e nos


encaramos por um segundo.

Merda! Estou completamente apaixonada por ele.

— Espero que você goste de ravióli de carne com molho de nozes.

— Hummm… parece delicioso!

Matheus dá uma piscadinha para mim e some na cozinha. Levo meu


foco para a vela no centro da mesa e sorrio sozinha. Acho que nunca estive
em um jantar tão romântico, com alguém tão incrível.
O gostosão tatuado logo volta, segurando vinho em uma mão e o
refratário na outra.

— O cheiro está bom! — elogio e ele sorri de lado.

— Espero que o gosto também.

Matheus se senta e me serve primeiro. Parece nervoso. Ainda bem,


porque também estou. E muito! Dou a primeira garfada e ele fica me
olhando, apreensivo. Faço suspense porque percebo que está preocupado se
vou gostar ou não.

— E aí?

— E aí o quê? — provoco.

— Está bom?

— Deixa eu ver… — Como mais uma vez, bem devagar, para torturá-
lo. O coitado nem se mexe direito. — É o ravióli mais gostoso que já comi na
vida!

Ele relaxa e sorrio com sua preocupação. Se Mat já era uma criança
incrível, inteligente e adorável, se tornou um adulto ainda melhor.

Cara de bad boy, coração de ouro.

Jantamos, conversando sobre as aventuras no intercâmbio que ele fez


e meus planos para voltar à faculdade. Ele nunca pergunta sobre a doença, e
fico infinitamente grata por isso. Duas horas se passam, sem ao menos
perceber. A sobremesa, uma magnífica torta de limão, fecha a noite com
chave de ouro.

— Você cozinha, eu lavo. — Retiro os pratos e saio apressada para o


outro cômodo.
— Não, nada de lavar louça essa hora. — Matheus me agarra por trás,
segurando forte minha cintura, e solto um suspiro baixo.

— Me deixa colocar ali na pia, então? — Tento desviar do seu braço


firme.

— Tá, tudo bem.

Ele me ajuda e levamos as louças para a cozinha. Estou começando a


ficar nervosa de novo. E agora, o que acontece? Assim que terminamos,
Matheus segura minha mão e vamos em silêncio para a sala. Minha cabeça
não para de pedir que eu saia correndo, que a partir daqui não tem volta.

Calma, Madu.

— Vamos assistir a um filme? Não quero te levar embora ainda.

— Só se você me deixar escolher. — Sento no sofá, ligando a TV.

— Romance? — Ele faz uma careta engraçada, sentando ao meu lado.

— Que romance o quê? Gosto de uma boa ação.

— Ahhh, mulher. Assim você me deixa louco.

Assusto com sua declaração repentina, e sincera, deixando escapar um


suspiro alto demais desta vez. Matheus encara meus lábios, e não consigo
desviar o olhar dos seus. Ele se aproxima e acaricia meu rosto, devagar, com
a mão. Instintivamente fecho os olhos, apenas aproveitando seu toque.

— Sempre fui apaixonado nessas sardinhas.

Ouço sua respiração pesada se aproximando cada vez mais e deixando


meu coração tamborilar desesperado no peito. Nossas bocas se tocam de um
jeito delicado, me permitindo sentir aos poucos seu gosto suave misturado
com o limão da sobremesa.

Delicioso.

O lento, entretanto, logo se torna desesperado. Pela primeira vez


permito que passe de um simples selinho.

Matheus intensifica o beijo, reivindicando minha boca com desejo, e


o recebo de prontidão. Quando dou por mim, já estou sentada em seu colo,
entrelaçando-o com uma perna de cada lado.

Suas mãos estão percorrendo minhas curvas e as minhas buscam


equilíbrio nos seus ombros. Isso está indo rápido demais, mas faz tanto tempo
que não tenho esses sentimentos…

Permito-me sentir por um instante.

Envolvida em seus braços, só caio em mim na hora que o percebo


tentando levantar meu vestido.

— O que você está fazendo?

— Desculpa, Madu. — Fica sem graça e tenta se recompor. — Eu


só… É que... Eu quero você há tanto tempo que não consegui me controlar.
Desculpa.

Cubro os seios, um reflexo de proteção. Ele não pode me ver nua.

Jamais.

Tento sair do seu colo, contudo, Matheus segura firme minha cintura.

— É por causa deles? — Coloca suas mãos por cima das minhas, que
ainda cobrem a parte mais frágil do corpo. — Você é linda, a mulher mais
linda que já vi.
— Você não sabe o que está falando. — Faço esforço para sair, mas
agora Matheus segura meu queixo, fazendo-me encará-lo.

— Entende de uma vez por todas, Madu. Eu te quero de qualquer


forma.

Meu coração para de bater, fico perplexa na sua frente, sentindo meus
olhos se encherem de lágrimas. Eu também o quero, só que não podemos nos
enganar.

— É um sutiã. Eu não tenho nada — falo tão baixo que quase não me
escuto.

— Eu sei, Madu. E não me importo nenhum pouco com isso.

Volto a me calar. Matheus sobe as mãos delicadamente e começa a


me acariciar. Rosto, pescoço, braço. Desce para a cintura e me aperta.

Suspiro.

Sem desviar por nenhum segundo o olhar, vejo-o tirar meu vestido e
me deixar apenas de calcinha e sutiã, sentada no seu colo. Ele passa sua mão
quente nas minhas costas e para no fecho da peça. Encara-me com carinho,
pedindo permissão, e travo uma batalha árdua entre razão e emoção.

Eu não deveria… mas quero tanto.

— Eu amo você, Madu — diz e minha garganta seca, a emoção


voltando com tudo. — Amo desde que éramos crianças.

Não consigo responder que também estou apaixonada, todo meu


corpo trava.

— Agora, confesso, muito mais do que antes. Deixa-me amar você?

É uma pergunta tão simples, entretanto, ao mesmo tempo, tão


complexa. Eu sei que ele não é igual Renan. Sei também que tenho o direito
de amar e ser amada. Preciso superar esse medo.

Sem pensar muito, concordo acenando a cabeça e ele dá o sorriso


mais lindo que já vi em toda minha vida. Sela nossos lábios em um beijo
doce e molhado, tirando devagar o sutiã. A peça passa pelo meu braço
deixando arrepios com seu toque. O medo querendo me dominar de novo.

Calma! Ele é diferente.

Quando estou completamente exposta na sua frente, é inevitável a


vergonha e o receio do que pode acontecer. Abaixo a cabeça e encaro a
cicatriz diagonal que rasga meu peito.

A prova do câncer.

— Eu sei que… — começo a dizer, mas sou interrompida.

— Shhhhhhhh!

Matheus segura a minha nuca e deixa beijos quentes no meu pescoço.


Mordisca a orelha e desce com os lábios macios pelos ombros. Suas mãos
passam para as costas e me empurram mais próximo dele.

— Eu quero você com todas as suas cicatrizes, Madu. — Beija a


ponta do corte, na altura da axila. — Eu quero seus dias felizes e os dias
tristes. Quero seus defeitos, suas manias. — Continua o beijo, seguindo toda
a linha da cirurgia. — Não tenha medo! Eu escolheria a sua tempestade ao
invés do sol de qualquer outra pessoa.

Lágrimas caem desesperadamente pelo meu rosto.

O soluço é tão alto que Matheus me abraça forte, afagando meu


cabelo curto. Encosto a cabeça no seu ombro e me permito chorar.
Capítulo 8

Matheus

Odeio ver Madu tão triste e perdida. Não combina com a luz que
erradia dela.

Seguro seu rosto delicadamente e enxugo as lágrimas com o polegar.


Encaro-a, emocionado. Essa mulher é, sem dúvida, a mais incrível que eu já
conheci. Não estou sendo hipócrita nem falso. De verdade, os seios são a
última coisa que me importam.

— Eu quero ser sua — ela sussurra, com a voz rouca.

Respiro fundo, tentando controlar meus sentimentos.

Acaricio sua bochecha e me aproximo, colando nossas testas.

— Minha cabelo de fogo... Quis tanto ouvir isso. Há muito tempo.

Madu busca meus lábios e inicia um beijo carinhoso. Tento manter o


ritmo lento para não a assustar, mas é quase impossível quando começa a se
mexer freneticamente no meu colo e a mordiscar meu pescoço. Um vai e vem
que deixa meu pau latejando.

Caralho!

— Assim eu não consigo me controlar — tento avisar, ofegante, e sou


surpreendido com mãos ávidas tirando minha camiseta.

Ela quer. Me quer.

Viro-a de repente, de costas no sofá, ouvindo um gritinho abafado por


sua risada gostosa. Tiro minha calça em segundos e fico por cima. Começo
mordendo sua orelha e desço deixando um rastro de beijo molhado no
pescoço, nos ombros e na marca da cirurgia.

Demoro-me um pouco mais nesse último.

Beijo um lado, depois calmamente beijo o outro.

— Você é linda... — sussurro em sua pele.

Aperto firme sua cintura enquanto volto para minha trilha de carícias.
Madu se contorce toda. Sorrio com sua reação ao meu toque.

— Ahhh... Mat! — Arranha minhas costas quando afasto sua calcinha


e penetro-a com o dedo.

Afundo uma, duas, três vezes e saboreio seu gosto sedento.

— Deliciosa! Como imaginei que seria.

Sem avisar, arranco a peça íntima de uma vez e inclino minha cabeça
entre suas pernas. Roço meus lábios no seu clitóris e apalpo a sua bunda
gostosa, até deixá-la inchada para mim.
Quando ouço seus gemidos e suspiros incompreensíveis, ataco-a com
minha língua, chupando com gosto. Quero sentir tudo dessa mulher.

— Oh... Meu Deus! — Madu grita, quando chega lá.

Pego uma camisinha do bolso da calça no chão e aproveito seu êxtase


para me perder nela. É maravilhoso ver suas reações nesse ângulo. Minha
sardentinha morde os lábios e agarra a beirada do sofá. Quando puxo suas
pernas para cima e fico mais ereto, consigo senti-la bem fundo. Tão apertada,
tão quente.

Não vou mais aguentar.

— Você é muito gostosa... — elogio e ela geme com meu ritmo mais
frenético.
— Mat... vou...

— Vamos, meu amor. Vamos!


Capítulo 9

Maria Eduarda

Acordo com os raios de sol perpassando a cortina da sala. Olho para


baixo e estou nua, encolhida de conchinha nos braços de Matheus. Lembro-
me da nossa noite e sorrio feito boba. Completamente apaixonada.

O que foi aquilo? Gente! Suspiro só de pensar.

Viro-me de frente para ele, devagar, evitando acordá-lo, e toco seu


cabelo bagunçado. É um lindo homem. Por dentro e por fora.

— Bom dia — diz, com uma voz rouca, ainda de olhos fechados.

— Bom dia, gostosão tatuado.

— O quê? — questiona, gargalhando.

— É o apelido que Rebeca e eu demos a você desde o ano passado.

— Bom saber que me acha gostosão. — Ele segura minha cintura e


me joga para debaixo do seu corpo.

— O Ministério da Saúde adverte que me pegar desse jeito logo cedo


não é bom para o coração.

— Não é?

— Com certeza não. Sente como está parecendo uma bateria de


escola de samba. — Coloco suas mãos no meu peito e ele sorri.

— Sardentinha linda.

O clima gostoso ia começar novamente, com seus lábios bem


próximos do meu rosto, mas somos interrompidos pelo toque do meu celular.
Droga! Levanto rapidamente e procuro o aparelho dentro da bolsa.

É do hospital, estranho.

— Alô? — falo, na defensiva.

— Malu, é a doutora Lúcia. Tudo bem?

— Tudo bem. Aconteceu alguma coisa?

— Tenho uma ótima notícia.

Menos mal. Mas o que seria?

— Qual?

— Você entrou no próximo mutirão para reconstrução da mama.

Fico em silêncio, encarando Matheus, que devolve o olhar,


preocupado.

— Madu?

— Oi, sim. Desculpa, doutora Lúcia. — Passo as mãos no cabelo


curto, não acreditando na reviravolta da minha vida em um único dia. — Isso
é sério?

— Muito sério! Já vai ser semana que vem.

— Semana que vem?

— Isso mesmo. Segunda você vem aqui no hospital para que eu possa
explicar direitinho e arrumar a papelada.

— Tá. Obrigada, doutora.


Desligo o celular, ainda meio aérea, interiorizando o que isso
significa. Terei seios de novo. Seios!

— O que houve, amor? — Matheus se aproxima, nervoso.

— Vou fazer a cirurgia.

— Outra cirurgia? Por quê? O que houve?

— Da reconstrução.

— Sério? Que notícia maravilhosa, Madu. — Beija minha bochecha e


me abraça.

— Eu ainda não estou acreditando. Devo ser um sonho… Costuma


demorar tanto.

— Não é sonho, Madu! Não faz diferença nenhuma pra mim, mas
fico feliz por você. Sei como quer.

— Agradeço muito que tenha me aceitado como sou, porém, sinto que
falta uma parte de mim. Eu quero muito, embora não seja a mesma coisa
mais.

— Como assim, não é a mesma coisa?

— Ficarei sem o mamilo e a aréola. A reconstrução só preenche o


volume dos seios.

Matheus fica pensativo, com o olhar perdido.

— Tudo bem?

— Tudo — responde, secamente. — Está com fome?


Balanço a cabeça e pego meu vestido jogado no chão.

Não entendo sua mudança brusca de comportamento, contudo, opto


por não ficar neurótica. Ele já provou que me quer e isso basta.
Capítulo 10

Matheus

Desde que Madu me contou sobre a cirurgia, não consigo tirar da


cabeça uma ideia que pode ajudá-la a recuperar a autoestima. Ainda não
contei nada por medo de criar esperanças em algo que não vai ficar bom ou
dar certo, mas farei de tudo para conseguir.

Abro mais uma página no computador, a vigésima quinta só na última


hora, e encontro outra notícia sobre estúdios de tatuagem que fazem desenho
do mamilo em mulheres mastectomizadas. A técnica em 3D traz um resultado
incrível. Parece de verdade.

No link atual, há um vídeo no Youtube mostrando como é feito o


processo e, o melhor, constata a alegria de quem recebe. Tenho certeza de
que minha sardentinha ficará muito feliz.

Não perco tempo e ligo para o estúdio descrito na matéria. Menos de


vinte minutos depois, estou com passagem comprada para Curitiba e uma
sessão marcada para aprender tudo que eu puder sobre a técnica.

Quero fazê-la se sentir completa novamente. Mesmo que para mim


esteja ótimo assim, sei que ela não está satisfeita com sua aparência.

***

Tive que contar a Rebeca meus planos para conseguir o contato da


doutora Lúcia. Agora que tenho o conhecimento, preciso saber se é seguro
para Madu realizar esse procedimento. Enquanto aguardo na sala de espera,
revejo na tela do celular os testes que ando fazendo. Quase lá!

— Matheus? — a médica chama, minutos depois.

— Doutora Lúcia, muito obrigado por me receber. Sei que seu tempo
é corrido. — Levanto-me e a cumprimento.

— Se o assunto é a doce Maria Eduarda, estou mais do que feliz em


ajudar. Ela está bem?

— Sim, está se recuperando muito bem. Ainda sente um pouco de


dor, mas é normal, né?

— É sim — explica, caminhando até sua sala. — Os primeiros dias


após a cirurgia são os mais doloridos.

— O que vim conversar com a doutora é sobre uma ideia que tive
para ajudar Madu a recuperar sua autoestima. Ela ficou um pouco
incomodada com os seios sem o mamilo e a aréola.

— Sim, muitas mulheres não se acostumam com isso.

— Então... — Sento na cadeira e passo as mãos pelo cabelo ralo. —


Eu sou tatuador. Pesquisei na internet sobre redesenho do mamilo e descobri
dezenas de estúdios pelo mundo que fazem esse trabalho com mulheres que
passaram pelo câncer. Eu queria saber se no caso da Madu é seguro. Se pode
ser feito com ela também.

— Matheus, que gesto mais lindo! — Doutora Lúcia me encara,


emocionada. — Maria Eduarda é uma garota de sorte.

— Na verdade, o sortudo sou eu — admito, orgulhoso.

Tenho a melhor namorada do mundo. A mais linda. A mais


inteligente. A mais divertida.

— Essa técnica está sendo muito usada por mulheres


mastectomizadas. É mais acessível e fica bem parecido com o real. Está
tirando muitas pacientes da depressão. Você não faz ideia de como o seio é
importante para nós.
— Eu estou pesquisando melhor sobre a técnica e venho testando
desde então. Só preciso ter mesmo a confirmação que é seguro para ela.

— É sim, Maria Eduarda ficará muito feliz. Você só precisa aguardar


alguns meses para a cicatrização completa.

— Ok, acho que aguento esperar um pouco, apesar da ansiedade. —


Sorrio, sem graça.

— Parabéns pela iniciativa. Você fará a diferença para sempre na vida


dela.

É o que mais quero.

Venho para casa, confiante, e volto a me concentrar na missão desde a


visita no estúdio em Curitiba. Aliso a pele artificial à minha frente e atento-
me às cores e sombras para dar a impressão de relevo no desenho.

Precisa ficar perfeito.

Agora é só esperar para ver o sorriso estampado no rosto da Madu.


Capítulo 11

Maria Eduarda

— Aonde você está me levando?

— É surpresa, oras. Sossegue aí! — Matheus brinca, tampando meus


olhos com as duas mãos.

Desde que fiz a reconstrução da mama, há seis meses, me sinto


completa. Completa de corpo e alma, com o melhor namorado do mundo. É
verdade que ele anda misterioso demais, mas, ainda assim, maravilhoso.

— Chegamos?

— Estamos chegando, senhora impaciência! — Sorrio com sua voz


fazendo coceguinhas no meu pescoço desnudo.

Ouço o barulho de uma porta se abrindo e de um burburinho ao


fundo. O que será que ele está aprontando?

Matheus me direciona no que parece uma casa. Estamos fazendo


ziguezague pelos cômodos.

— Espero que você goste — sussurra no meu ouvido, assim que para
e libera minha visão.

Pisco os olhos para enxergar direito. Estou em um lugar que não


conheço. Parece um estúdio de tatuagem, porém, não é o dele. Na minha
frente várias mulheres estão sentadas em cadeiras. Rebeca acena do fundo,
secando uma lágrima.

Não estou entendendo.

Reparo mais uma vez e vejo algo diferente nessas mulheres. Muitas
estão com lenços, ou o cabelo curto como o meu. Na parede, um banner
chama minha atenção.

Fico. Sem. Ar.

Não.

Não pode ser.

— O… o que é isso, Matheus? — pergunto, tremendo, e apontando


para a parede.

Projeto Madu
Redesenho de mamilo para mulheres mastectomizadas

— Quando você disse que as mulheres após a cirurgia ficam sem o


mamilo, tive uma ideia. E se eu ajudasse com o que sei fazer de melhor?
Comecei a pesquisar e a treinar. Doutora Lúcia sabe de tudo, confirmei com
ela se era possível, se não tinha problema. Só foi preciso esperar esses dias
por causa da recuperação da cirurgia de reconstrução. No início, ia fazer
somente em você, contudo, percebi durante a pesquisa que há milhares de
mulheres que também podiam se sentir mais felizes.

— Matheus… — Não tenho palavras para descrever o orgulho e a


emoção que estou sentindo.

É a coisa mais linda que alguém já fez por mim. Pulo em seus braços,
agradecida por existir.

— Conversei com amigos tatuadores e um deles liberou o estúdio.


Aqui é de fácil acesso e grande. Teremos uma sala exclusiva para esse fim.
Conseguimos a adesão de seis profissionais e vamos atender gratuitamente
uma vez por semana. Hoje é o primeiro dia.

— Eu… eu nem sei o que dizer.


— Vamos lá inaugurar o projeto? — pergunta, com seu sorriso mais
lindo.

Pego sua mão estendida e o sigo até uma poltrona. Outras cinco
mulheres também vão para a sala e se sentam. Parecem ansiosas e nervosas,
como eu. Os tatuadores tomam seus lugares e começam a obra de arte.

Matheus, claro, está comigo. Seu olhar concentrado me faz suspirar.


Deus, como o amo! Ele sorri por um minuto, piscando para mim, e logo volta
a desenhar. Dói bastante, mas é suportável. Depois de tudo que passei com o
câncer, essa dor é um alento.

Duas horas depois, o último retoque é dado. Estou ansiosa para ver o
resultado. Como Matheus pediu, não fiquei olhando. Ele quer que seja uma
surpresa. É o mínimo que posso fazer depois de tudo. Seguimos até o
cantinho da sala com um grande espelho na parede.

Levanto a blusa e sinto meu coração parar de bater.

O choro novamente me toma.

A garganta seca.

Passo as mãos nos seios e contorno os traços da tatuagem. Parece de


verdade. Tem até efeito de profundidade. Para melhorar o aspecto da cicatriz,
agora meu peito possui também uma linda rosa de cada lado.

— Ficou perfeito! — agradeço, encarando-o com a vista embaçada.

— Eu te amo, Madu.

— Eu também. — Seco suas lágrimas e o beijo ternamente. — Eu


também amo você.
Conheça outras obras da autora:
www.autoraarianefonseca.com.br

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