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~ 2023 ~
Copyright © 2023 - Mônica Cristina
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 1
Claire
O quarto é minúsculo, mas tem sido meu lugar no último ano, pode
ser que Zack ter mudado de vida tenha me incentivado, eu não sei, mas o
que me movia já não me move mais, as coisas não são como eu pensei que
seriam.
A vida de merda que eu tinha me fez quem eu sou e sempre achei
que não chegaria aos trinta anos. Eu não estava preparado para sobreviver,
mas tenho sobrevivido e, agora, tudo que antes parecia não importar,
começa a fazer sentido.
Nunca tinha ficado tanto tempo no mesmo emprego, o velho é um
homem bom, generoso comigo, teve paciência e acho que ele também tem
um pouco a ver com as coisas que estão mudando em mim.
Gosto da loja, se pudesse mudaria muitas coisas, mas gosto do
trabalho, estranhamente gosto até da vida pacata, mesmo com alguns
olhares tortos e um certo medo travestido de respeito com que as pessoas
me olham quando caminho.
Eu sou um Brow e todo mundo conhece nossa fama pela cidade.
Zack conseguiu mudar totalmente a dele, fez amigos, tem esposa, uma
garotinha linda, é estranho vê-lo sendo pai, rico, importante, um nome que
orgulha a cidade, talvez por isso eu não fique tão à vontade com ele como
antes.
Demorei para contar do trabalho e de onde moro, aposto que ele
achou que eu estava preso, agora a ideia de cadeia me rouba as forças, evito
brigas e não tomo um gole tem alguns dias.
O frio está diminuindo, talvez uma cerveja em uma noite de verão,
eu não sei, peguei um pouco de nojo, mas ninguém precisa saber disso, em
especial Abby Coleman, aquela princesinha republicana com quem meu
primo se casou não teria papas na língua e cairia na risada, acho que manter
esse meu jeito afasta as pessoas e eu quero exatamente isso.
Eu sei o que é desejar ter o que nunca vai receber, sei o que é ser
rejeitado, sei na pele, nas marcas que meu corpo guardou de uma vida de
abandono, sei disso com cicatrizes.
Atiro-me na cama e fecho os olhos sem querer me lembrar do
passado, mas é difícil esquecer, ele era ruim e pronto, não era a bebida, era
ruim sem ela, minha mãe não era melhor, os Brow nunca prestaram, o pai
do Zack era igual, morreram todos, mas até essa libertação, ficamos nas
mãos daqueles imbecis.
Eu sempre penso no Zack chegando para ficar, me lembro de olhar
para ele e pensar o que aquele pobre coitado tinha feito para o mundo para
acabar justamente ao meu lado no inferno.
Enquanto consegui, eu o protegi, mas depois, se eu ficasse, eu
mataria aquele verme, eu não queria aquele peso, eu não queria ser o
assassino do meu pai, a bebida estava fazendo isso, mas eu não conseguia
mais esperar.
Devia ter levado o Zack comigo ainda pequeno, teria poupado o
garoto de toda a violência que ele aguentou depois de mim, mas eu não iria
muito longe com ele, era só um adolescente e ele uma criança.
A vida não foi gentil comigo, eu caçava guerra, era só o que eu
conhecia, confusão, parece que era viciado em confusão, não tinha mais o
canalha do meu pai me machucando, ameaçando, fazendo terrorismo e a
vida não tinha sentido nenhum, então eu procurava.
Eu nunca soube falar com as pessoas, eu nunca tive paciência, eu
guerreava e, uma boa parte da vida, passei preso por isso. Na cadeia, eu
estava em casa, eu conhecia os caras, os códigos, mas nem por isso era
pacífico. A vida nunca foi pacífica para mim.
Agora é diferente, ver, mesmo que não tão de perto, o Zack
conseguindo uma história boa, me fez pensar que talvez, eu tenha uma
chance, não que eu possa ser um pai, um marido e nem seria capaz de ser
esse babaca meloso que diz coisas fofas e chama a mulher de meu amor, eu
não sei fazer isso, dá vergonha até de pensar, mas ficar fora da cadeia, ter
um trabalho e não ser o inimigo número um da cidade já é uma boa coisa.
Apago com alguma dificuldade, quando acordo e me sento na cama,
passa das sete da manhã, eu me estico. O quartinho é pequeno, mas tem
uma boa luz e o sol entra pela janela toda manhã.
Depois de um banho para despertar, pego a moto e vou tomar café
no John, o lugar parece um portal, de manhã, pacífico, com família e
homens de bem tomando café da manhã antes do trabalho. À noite, a boca
do inferno com todo tipo de escória da região, eu frequento os dois horários.
É, eu também não sou um anjo.
Ele me serve uma xícara de café e duas panquecas, sempre prefiro o
balcão às mesas onde vejo as famílias comendo.
John já foi um imbecil como eu e andamos juntos uns anos atrás,
mas ele se acertou com uma vadia dessas que estão dispostas a tudo por
dinheiro e agora é um dono de bar sem muito escrúpulo, mas com
estabilidade.
O xerife Parker está em uma das mesas com o filho pré-adolescente,
pai e filho comendo e conversando, pai e filho, eu nem sei como é isso,
acho que o meu pai nunca deu um sorriso que não fosse puro sarcasmo,
nunca me olhou nos olhos e nunca pensou em mim como gente, nem
pensou no Zack assim, eu nem sei como o Zack pode ser tão bom com
aquela garotinha, talvez o jeito seja fazer tudo oposto, porque amor, isso
não aprendemos.
— Bom dia, Jared! – O xerife me cumprimenta, a prefeita chega
com o marido, ela é uma demagoga que fica comendo nos lugares simples
da região para demonstrar parceria com a cidade, sorri e acena, é mãe de
um jovem canalha. À noite é ele que frequenta esse lugar achando que
pode tudo por ser filho da prefeita. Desde que não fique no meu caminho,
eu não ligo, o garoto é tão inconsequente que não dura muito. Eu já vi
muitos como ele, eu conheço o final da história, é doloroso, mas é problema
deles, que se danem todos.
— Jared, quando vai ver seu primo? – O xerife me pergunta depois
de pagar a conta.
— Não sei, essa semana talvez. Algum problema?
— Não, o Carl estava pensando em fazer umas aulas com a Abby,
eu pensei que podia dar uma carona a ele.
— Pode ser... – Olho para o garoto, não custa. – Mas vou de moto. –
O menino se anima todo.
— Deixa, eu levo. – O garoto murcha, eu rio, sinto pena, mas acho
que isso é cuidar do filho.
— Posso ir de caminhonete, eu sei, não confia em motos.
— Tudo bem, quando der para levá-lo avisa. Zack nunca vem à
cidade.
— Ele prefere mandar o Sam, se puder evitar, aqueles dois não
saem mesmo.
— Aquela garotinha vai acabar obrigando os dois a conviverem
mais na cidade! – O xerife toca meu ombro. – vejo você por aí!
Ele me deixa e John fica rindo com cara de cínico enquanto finge
limpar o balcão.
— Está rindo do quê, seu babaca?
— Jared, você é amigo do xerife! – Ele agora ri mais abertamente. –
A última vez que eu te vi com um xerife ele estava te algemando.
— Babaca, a última vez que eu te vi estava tirando dinheiro de uma
vadia e não sustentando ela.
— Você pega pesado! – Ele ri mais ainda. – Um dia, quando estiver
caidinho por uma mulher, eu vou rir muito.
— Tenho que ir. – Eu deixo o dinheiro no balcão. – Comida ruim,
preços altos, garçonetes péssimas.
— Elas gostam mais dos clientes da noite! – Ele brinca e eu deixo o
estabelecimento e volto para minha moto, a loja fica perto, mas não é
grande coisa. A cidade é tão pequena que, em dez minutos, você cruza de
uma ponta a outra, são os mesmos rostos, as mesmas pessoas, os mesmos
encrenqueiros, os rabugentos, os fofoqueiros, tudo igual, sempre igual.
O mais estranho é que eu quase posso me sentir parte disso, o que
sempre olhei com indiferença e até preconceito, tem aos poucos me feito
repensar. Lewis é um bom exemplo, o velho é generoso comigo, amistoso,
não liga para o jeito que eu falo, me aceitou tão bem que eu simplesmente
fui ficando, ficando e agora a loja fica praticamente em minhas mãos.
Quando coloco a mão no bolso para pegar as chaves e abrir a loja,
Mike está no portão se despedindo do marido, o casal se beija e Danny
entra no carro depois de me acenar e sorrir.
Eu pensei muita bobagem sobre eles, fui muito preconceituoso no
começo, admito que tinha vergonha até de cumprimentar, mas esse casal me
surpreendeu, foram tão legais comigo que eu acabei me sentindo um
imbecil, e hoje posso dizer que somos amigos.
Se meus velhos amigos me vissem conversando com eles, até indo
jantar na casa deles, eu nem sei, seria um desastre, mas aquela gente sumiu
da minha vida no minuto que eu deixei de ser briguento, drogado e bêbado.
— Bom dia, Jared! – Mike me cumprimenta e aceno respondendo
seu bom dia, depois entro na loja, acendo as luzes e começo a organizar as
coisas, o primeiro cliente entra antes mesmo de terminar de organizar.
Material novo para pesca, um conjunto completo, e promete trazer
os amigos que vêm para uma pescaria no fim da semana. Lewis chega
quase ao meio-dia, está velho, cansado, só trabalha mesmo por diversão, eu
acho. A loja tem uns quarenta anos na cidade, vem gente de todos os
lugares comprar com ele e, talvez por isso, ele mantenha o negócio.
— Quase não venho! – Ele diz se acomodando em uma cadeira atrás
do balcão. – Vai almoçar, depois a gente conversa um pouco.
— Olá, rapazes! – Mike entra na loja com um prato coberto com um
paninho bordado. – Trouxe um pedaço do empadão que eu fiz ontem para
vocês, aqueci.
— Mike, sabe que a senhora Lewis está com ciúme? – O velho
Lewis brinca.
— Ela acha que quero conquistar o senhor pelo estômago? – Ele diz
tirando o pano de cima do prato e o cheiro se espalha.
— Acha e vou dizer: o Danny que se cuide. – Lewis brinca pegando
um garfo na gaveta do canto e cortando um pedaço. – Divino! – Ele sorri
fechando os olhos.
— Vou dizer ao Danny que ele tem concorrência. – Mike brinca
antes de nos deixar e dividimos a torta sem constrangimentos.
Lewis me conta sobre como a esposa sempre o recebe com pratos
quentes e a mesa posta, da vida que dividem há cinquenta anos e a
felicidade que é viverem juntos, mesmo sem nunca terem tido filhos, eu não
sei se consigo me imaginar nessa vida, mas deve ser extraordinário ter
alguém.
— Está na hora de achar uma mulher, Jared, dar tempero à vida.
— Minha vida já teve muito tempero, Lewis.
— Não estou falando de pimenta, Jared, estou falando de ervas
finas, de perfumar a vida, de ter alguém para contar do seu dia e ter para
onde ir na noite de Natal.
— Fui visitar meu primo no Natal! – Ele ri.
— Ele conseguiu e não era assim tão diferente de você. Pense nisso.
– Nego, eu não quero problemas, eu sozinho já sou problema suficiente.
— Vou pegar uma caixa lá nos fundos, vendi todas as iscas e aquela
rede que tínhamos de mostruário.
— Pode fugir das minhas palavras, mas não da vida! Lembre-se
disso! – Ele fala mais algo enquanto eu deixo a frente da loja e finjo não
ouvir. O homem é bom, mas de vez em quando fica assim, me atirando
pragas.
— O senhor viu aquela caixa de flechas? – Pergunto remexendo na
bagunça que é o estoque.
— Vi, mas foi há semanas, eu sou velho, não me lembro onde. – Ele
me faz rir, é mesmo um velho teimoso que está o tempo todo tentando me
fazer virar gente, até que tem feito um bom trabalho, eu não sou grande
coisa, mas já fui muito pior.
Capítulo 3
Claire
Pela manhã o bar é tão diferente... Até perto das cinco da tarde, o
lugar é calmo, oferece refeições e atende aos trabalhadores e famílias da
região e eu me sinto segura trabalhando.
O problema é que quando a noite chega, traz com ela rostos pouco
amigáveis, John aumenta o volume da música, serve muita bebida e libera a
mesa de bilhar que fica nos fundos do salão e o ambiente muda tanto que
parece outro lugar.
Eu preciso ser forte e aguentar algumas semanas, juntar algum
dinheiro para sair da pensão e, aí com sorte, quem sabe, eu consiga
trabalhar apenas um período e, nesse caso, trabalharia de dia e não
precisaria estar no meio de tudo isso.
Jared me salvou na primeira noite de trabalho, mas eu não acho que
terei a mesma sorte hoje, eu não acho que terei algum tipo de sorte pelo
resto da vida.
Seria tão mais fácil simplesmente desistir, eu queria ter coragem de
dizer não a tudo isso e me deixar levar pela dor, acontece que fiz uma
promessa a minha mãe: eu tentaria ser feliz e desistir não é uma opção.
A cidade é tranquila, generosa, as pessoas parecem solícitas e gentis
nas ruas, mas escolhi ou caí de paraquedas nos dois piores lugares: a pensão
que não é grande mas concentra tudo que não presta e o bar do John onde
parece que vem gente de todos os lugares procurar diversão da pior
qualidade.
Durmo muito pouco, como porque John é generoso e não pago a
comida, ainda que não tenha muito tempo livre, ele me deixa parar para
fazer três refeições e isso é todo descanso que tenho o dia todo, das sete da
manhã até quase dez da noite, eu não me importaria se não tivesse que
enfrentar esses caras.
No primeiro olhar, eu pensei que Jared era como eles, mas ele
mostrou que não é, ou não é mais, tem qualquer coisa de homem-problema
em seus olhos, no jeito como se comporta, mas é superficial, no fundo, ele
foi a melhor pessoa que encontrei em muito tempo.
Perto das seis da tarde, o bar já está cheio de homens bebendo,
assistindo a um jogo na televisão e ouvindo música alta, ao mesmo tempo
que gritam e se provocam, mas eles não se contentam com apenas isso, eles
querem a atenção das três garçonetes. Sarah e Pamela parecem bem
acostumadas, elas não demonstram qualquer incômodo e acho até que lidam
bem com eles, conseguem frear os abusos, mas cada um desses rostos, cada
vez que falam comigo, só no que penso é naquilo que vivi, na razão de ter
fugido de Atlanta, na dor que ainda está em meu corpo e que marca minha
pele escondida por maquiagem e coberta por medo.
Meu estômago embrulha a cada piada, cada aproximação e, talvez,
eu simplesmente não aguente, mas sem os dois períodos de trabalho, não
consigo pagar o quarto adiantado e, sem isso, não tenho teto para
sobreviver.
— Duas cervejas, gata, e se quiser, pode pegar uma para você
também! – Um jovem diz tentando me abraçar, eu me afasto em um
sobressalto.
— Aiden, ela está com medo de você. – O jovem que está com ele
ri. – Ele é filho da prefeita, se eu fosse você, não corria assim, ele pode te
arrumar uns presentinhos.
Eu não fico para ouvir mais, vou ao balcão pedir as bebidas, John
me coloca as cervejas na bandeja.
— Não consegue dar um sorriso, parecer mais animada? Os caras só
estão brincando.
Eu não respondo, se ele quiser um sorriso vai ter que arrumar outra
pessoa, para mim não dá para sorrir, eu mal consigo parar de tremer.
Levo as bebidas até a mesa de bilhar, me desvio de um outro cara
que não se importa em abraçar Pamela que vem passando logo depois de
mim, ele diz algo a ela e coloca uma nota em seu decote.
Jared entra no bar, é uma sensação tão estranha... No instante em
que o vejo cruzar a porta, uma coisa boa nasce em meu peito, eu não sinto
nada assim tem dias, é parecido com paz, ou talvez segurança.
Cruzamos o olhar, mas ele mal move a cabeça em um cumprimento,
se acomoda no balcão e eu vou anotar mais pedidos. Aiden fica me
chamando todo tempo, pede uma nova bebida a cada cinco minutos, acho
que só para me fazer ficar perto dele. Demora como se estivesse pensando
no que vai pedir, mas no fim, pede sempre mais uma ou duas cervejas e fico
pensando que essa arrogância toda é por ser filho da prefeita, ele deve achar
que pode tudo na cidade e, talvez, possa e isso só me apavora, a sensação de
segurança com a entrada de Jared vai embora.
— Não pode mandar a Pamela servir a mesa do Aiden? – Jared
pergunta a John quando me encosto no balcão para mais um pedido, está tão
incomodado quanto eu.
— Ele quer que a garota nova o atenda.
— E tem que fazer o que ele quer? – Jared insiste e eu sinto tanta
gratidão e, ao mesmo tempo, tanto medo de acabar perdendo o emprego que
nem sei o que fazer.
— É meu melhor cliente. Gasta muito.
— É um babaca! E estou começando a achar que está gastando o
dinheiro dos nossos impostos. Um idiota que vai acabar bem encrencado. –
Ele diz encarando Aiden que desvia os olhos notando Jared. Parece que as
pessoas tem medo dele na cidade.
— Um babaca que gasta muito e, se o dinheiro dos meus impostos
vai voltar um pouco, eu não me importo. – John entrega um prato com um
sanduíche e uma água tônica ao Jared. – Não estamos aqui para proteger
donzelas, não é mesmo, Claire? – Ele me alerta.
Eu me afasto, sem escolha, continuo a servir, mas todo tempo
olhando para confirmar se Jared ainda está no balcão. O susto da noite
passada ainda deixa minhas pernas bambas e fico rezando para ele ficar até
o bar fechar.
Aiden e sua turma vão embora fazendo algazarra na rua. Os outros
clientes começam a sair, as mesas começam a serem limpas, é um alivio,
Jared continua no balcão. Com ele, apenas John e um homem bêbado
dormindo com o rosto no balcão.
John paga pelo dia, eu guardo o dinheiro no bolso aliviada por,
finalmente, poder ir embora. Jared se levanta e deixa o bar um instante
antes de mim, aceno para as meninas depois de agradecer John, ele abana a
mão em uma resposta desinteressada enquanto conta o seu dinheiro. Pamela
sai primeiro que eu, Sarah fica ainda arrumando o cabelo e passando batom,
eu corro com esperança de alcançar Jared e, para minha surpresa, ele está de
pé na porta, com os braços cruzados, claramente a minha espera.
— Ficou me esperando? – Ele dá de ombros indiferente, eu não
devia ter perguntado, mas começamos a caminhar, lado a lado.
— Cuidado com Aiden. Ele acha que pode tudo. – Meu olhar não
esconde o medo, eu não sei como evitar, só sumindo da cidade, talvez eu
deva mesmo ir de uma vez.
— Sempre tem gente achando que pode tudo. Gente com algum tipo
de poder que acha que pode te destruir e ainda rir de você, gente que não se
importa com a dor. – Meus olhos marejam, tenho medo de me entregar às
lágrimas e nunca mais parar de chorar, mas eu tento esconder as lágrimas.
— Uma hora ele descobre que as leis são para todos. Os pais não
são ruins, só mimaram o garoto demais. – Eu não respondo ao seu
comentário, acho que isso é mais do que ser mimado, isso é sobre caráter e
sinto que esse filho da prefeita não tem nenhum.
Sinto outra onda de medo, medo de tudo se repetir, medo de ser
culpa minha. Talvez eu esteja passando a mensagem errada, quem sabe tem
algo no meu jeito que faz os homens acharem que podem tudo?
Esfrego meus braços em uma onda de frio que vem da alma, fecho
melhor a jaqueta sonhando com noites de verão, ainda que eu ache que o
frio que sinto não tem nada a ver com a estação do ano.
Jared parece perceber, às vezes acho que ele se pergunta o que há de
errado comigo, deve morrer de pena da louca dramática que cruzou seu
caminho e chora sem grandes motivos, que é incapaz de se defender de um
imbecil.
Estamos chegando à pensão, queria que fosse mais longe, eu
poderia andar a noite toda só para não me despedir dele e me sentir sozinha
outra vez.
— Você tem folga no domingo, não é?
— Infelizmente, John disse que aos domingos, ele contrata outras
pessoas e todas as garçonetes tem folga. O dinheiro seria bom, tentei
insistir, mas ele disse não.
— Ainda bem, vai acabar se matando, fica em pé o dia todo...
— Eu me sento para fazer as refeições! – Ele ri achando que não é o
bastante. – Vou para os fundos do bar, sento nos degraus e fico olhando a
floresta. É tão bonito... a cidade toda é cercada por mata.
— Espero que fique só apreciando, não entre na mata, é mais
perigoso do que parece. – Balanço a cabeça afirmando, bem que podia me
perder para sempre embrenhada na mata, longe de tudo que é gente ruim.
Aliso meu peito como se fizesse um carinho em meu coração, ele está
ferido, quebrado, esmagado pela vida, parece que nunca mais vou ser feliz.
– Ei! – Jared toca meu braço, logo se afasta, parece sentir meu desespero. –
O que acha de me ajudar no domingo? – Sente um arrependimento no
instante em que diz, dá para ver que foi um impulso de pena da minha
situação, mas que se dane, ele convidou e, seja o que for, é melhor do que
ficar naquele quarto trancada e com medo.
— Ajudo com certeza! – Eu o deixo em má situação, agora ele não
pode mais recusar e sinto vergonha de me humilhar tanto só para estar perto
de um quase-estranho que do nada se transformou na única coisa que tenho
na vida.
— Tenho umas coisas para arrumar no trabalho, a loja e a casa são
vizinhas do Mike, pode conhecer o marido dele e ficar por lá, assim não
fica sozinha.
— Obrigada, Jared! – Digo do fundo do meu coração e meu
agradecimento faz seus olhos brilharem, às vezes acho que o coração dele
também é quebrado, que ele também não tem ninguém e que como eu, ele
não conhece muitas coisas boas da vida.
Entramos juntos na pensão, acenamos nas portas dos quartos e
entramos quase ao mesmo tempo, então a solidão e o medo. Tranco tudo,
tomo banho, me encolho na cama, as pernas cansadas, os olhos pesados... o
bom da exaustão é que ela mata a insônia e, por umas horas, eu apenas
apago, mas acordo de madrugada e mesmo com a luz acesa porque não me
atrevo a dormir no escuro, o ambiente me oprime e voltar a dormir é difícil.
Jared está na porta da pensão, na calçada, e eu sei que está me
esperando e eu não sei o que isso quer dizer, mas aquece meu coração,
muda o sentimento do dia, é estranho e muito bom, queria abraçá-lo e
agradecer, queria mesmo era chorar e apenas sorrio, ele ajeita a jaqueta e
começamos a caminhar lado a lado.
Ele toma seu café em uma das mesas, dessa vez conversa com Mike
e o xerife que toma café com o filho, depois se despede com um leve aceno
de cabeça, mas, ao anoitecer, está de volta, fica no balcão, come, bebe
algumas tônicas e sai uns minutos antes de mim, me espera e me
acompanha até a pensão, nos despedimos e nos separamos, assim os dias
vão correndo, uma semana inteira disso.
O dia que ele não aparecer, eu não sei como vou me sentir, não
devia me deixar envolver assim, Jared não parece o tipo disposto a um
envolvimento e eu não tenho qualquer condição emocional de me envolver
com alguém, eu nem sei se me permitiria ser tocada de novo depois do que
me aconteceu, meu corpo ainda tem marcas, as do rosto praticamente
desapareceram e eu já não preciso carregar na maquiagem, mas mesmo que
meu corpo não tivesse marcas, meu coração tem e elas doem demais.
Despedimo-nos mais uma vez na porta do quarto, enquanto alguém
está no meio de uma briga no andar de cima, aceno com vontade de pedir a
ele para entrar um pouco, ficar conversando o resto da noite, acho que eu
confiaria nele para isso.
Acho que se ele tentasse me beijar eu permitiria, talvez gostasse,
talvez memórias me atingissem em cheio e a dor se espalhasse, melhor não
pensar nisso, só seguir em frente com o que se parece com uma simples
amizade, pelo menos para ele.
No fundo, mesmo sem querer admitir, acho que ele só sente mesmo
pena, meu medo é tão visível que ele deve ficar com dó de mim, Jared nem
conversa muito no caminho, não diz nada de si mesmo, do passado, o que
faz, onde trabalha. Vou conhecer seu trabalho no domingo, mas nem sei o
que vamos conversar, ele é quieto e fica medindo palavras, mas já o vi dizer
umas coisas com John, uma linguagem mais masculina e meio pesada, acho
que é por isso que ele fala pouco, não quer ser desrespeitoso comigo e isso
é bonito da parte dele.
Os gritos no andar de cima continuam, eu fico com medo, não tem
como não ficar, não tem como não pensar nas coisas que vivi, brigas,
homens grosseiros, tudo que me cerca parece gatilho para me lembrar de
tudo.
Só não fico mais apavorada porque sei que duas portas depois da
minha tem a porta dele e sinto que, se precisar, ele me ajuda. Acho que
nunca conheci alguém mais gentil que ele. Mesmo ele fingindo que não é.
Jared está me esperando pela manhã, eu sorrio e acho que só ele
ainda me faz sorrir, mesmo que ele raramente devolva o sorriso e sempre
pareça incomodado e arrependido de me esperar, mas seguimos lado a lado.
Ele toma seu café, vai trabalhar e fico atendendo as mesas e servindo as
pessoas esperançosa pelo dia de amanhã, quando vamos ter umas horas
livres juntos e vou conhecer seu trabalho.
— Claire, aproveita para almoçar agora que o bar está tranquilo. –
John me pede perto da uma da tarde, eu obedeço agradecida, a fome já
estava gritando.
Sirvo-me de uma fatia de torta de frango e um copo de suco, saio
pelos fundos e me sento nos degraus da escada. Como a torta e tomo o suco
respirando o ar frio da tarde, ao menos não está nevando, eu nunca gostei
muito de neve, gosto dos dias quentes e ensolarados.
— Oi. – Aiden aparece na minha frente não sei vindo de onde. Olho
em volta e me dou conta que não tem ninguém por perto. – Assustei você?
– Ele sorri e sinto medo, vejo em seus olhos o mesmo que vi nos olhos
daquele monstro e isso me apavora a ponto de me deixar fraca.
— Tenho que voltar ao trabalho. – Dou as costas a ele, mas sua mão
aperta meu braço me impedindo de caminhar, ele me puxa para perto dele.
— Não se preocupe. É só dizer ao John que estava comigo e nada
vai te acontecer, John sabe quem eu sou. Você também deveria saber, tem
muitas vantagens ficando perto de mim...
— Solte-me! Está me machucando... – Sinto o braço formigar pelo
aperto e meu coração acelera de medo, um medo descomunal. Meus olhos
marejam, as pernas fraquejam e o que vejo é o corpo daquele monstro
ordinário sobre mim, as coisas que ele fez, a dor que eu senti naquele dia
está toda de volta.
— Não adianta olhar em volta. Ninguém se intromete no que faço.
— Deixe-me! – Junto forças para falar mais alto, mesmo assim, ele
não se intimida.
— Ando pensando em te visitar na pensão. O que acha?
— Eu não quero sua visita. Não vou receber você. – Seus olhos
cintilam de raiva.
— Posso criar um grande problema para você, melhor ser boazinha.
Quando nos conhecermos melhor, vai gostar de mim. – Impossível, eu o
empurro com toda força que tenho e depois corro para dentro me trancando
no banheiro dos fundos no meio de uma crise de choro.
— Claire! Anda logo! Isso aqui está cheio de gente! – John esmurra
a porta e me assusto.
O que eu vou fazer? Não posso ficar aqui, não posso lidar com isso
mais uma vez. Onde quer que eu vá eu vou acabar num buraco como esse.
Não importa o quanto eu fuja, parece que essa coisa vai me perseguir. Penso
em Jared enquanto lavo o rosto para conter as lágrimas e ele é a única coisa
boa e, se partir, perco isso.
— Claire! – Destranco a porta e corro para pegar meu avental e
voltar a servir, Sarah e Pamela me olham torto, demorei demais, eu queria
contar, mas quem se importa? Pelo visto, o filho da prefeita pode mesmo
tudo nessa cidade.
Aiden retorna ao anoitecer, me obriga a atendê-lo, faz suas piadas, ri
com seus amigos, mas está bebendo tanto que acaba por me esquecer, e isso
é bom.
Descubro que nas noites de sábado o bar fecha mais cedo porque
todo mundo vai para um clube dançar e beber. Fico feliz quando uma hora
depois as pessoas começam a pagar a conta e sair.
Jared também deixa o bar, não devia, mas gosto do friozinho que
fica na barriga de ansiedade sem saber se ele está ou não me esperando na
porta.
A leve felicidade me deixa quando penso que, como todos os
outros, ele deve ter ido ao clube encontrar garotas, beber e dançar. Não que
consiga imaginá-lo fazendo essas coisas, mas isso não quer dizer que não
faz.
— Seu dinheiro, Claire. Até segunda-feira e nada de passar da hora
do almoço. As garotas não tem que trabalhar por você. – John nem imagina
o que aconteceu e, melhor assim, ele nunca ficaria do meu lado.
— Desculpe... – Digo em despedida.
Empurro a porta e ele está lá. Meu coração salta e sinto medo de ele
perceber isso, mas a verdade é que tem um sentimento nascendo e eu não
faço ideia de como lidar com ele, mas contar a ele não é uma boa ideia e
finjo que nada mudou. Domo meu coração e sorrio.
— Pensei que estava no clube como todo mundo.
— Nem pensar! Só se me amarrassem e, mesmo assim, lutaria
muito. – Começamos a caminhar. – Por que? Você quer ir até lá? – Ele não
parece gostar de fazer a pergunta.
— Não. De jeito nenhum. – Sua expressão se tranquiliza, será que
ele ficaria chateado se eu fosse? Será que se ofereceria para ir comigo?
Vamos caminhando em silencio até que eu me lembro de Aiden e sua
promessa de me procurar em meu quarto. Ele bebeu tanto essa noite, será
que acabaria indo atrás de mim? – Amanhã é domingo. Ainda posso ir com
você?
— Convidei, então sim. – Ele responde de um jeito meio duro, Jared
não consegue ser muito delicado.
— Jared, todo dia quando a gente chega e nos separamos na porta
dos quartos, você fica lá? Não sai até de manhã? – Ele me olha confuso.
Desvio os olhos, envergonhada da pergunta.
— Sim. – Ele responde simplesmente. Se Aiden for até lá, aquele
recepcionista velho e dorminhoco não vai impedi-lo de subir e aposto que
vai adorar dar o número do meu quarto para ele. – Está com medo, Claire?
Alguém te incomodou no seu quarto?
— Não. Ninguém foi lá. – Ainda. Completo mentalmente. Engulo a
vontade de chorar. – É só que às vezes parece ter brigas e eu...
— Meu sono é leve. Se precisar, é só bater.
— Não sei por que faz isso. – Digo curiosa para entender por que
ele é tão bom comigo. — Mesmo assim, obrigada.
— Também não sei. Só não consigo evitar. – Não sei que tipo de
resposta é essa, mas acho que não abre espaço para ilusões românticas. No
fundo, ele nem mesmo sabe por que me ajuda, então, com certeza, não é
nada demais.
Chegamos à porta do quarto. Não quero me despedir, adoraria
arrumar uma desculpa para prendê-lo comigo mais tempo e eu já não sei
mais se é apenas por essa sensação de segurança. Tudo é tão confuso, eu
queria tanto ter alguém para me abrir.
— Obrigada, Jared. Boa noite.
— Nove horas está bom amanhã? Se quiser dormir um pouco mais
eu posso...
— Não. – Eu o interrompo apressada. – Nove está ótimo. – Quanto
mais cedo estiver com ele melhor, quanto mais cedo estiver fora desse
lugar, menos agonia.
— Certo. Eu... Eu bato. – Ele diz e depois só abre a porta e entra.
Faço o mesmo. Sento-me na cama. Aiden me vem à mente. Corro para a
porta, é tão velha e só posso pensar que um chute a abriria. Encosto uma
cadeira.
Capítulo 7
Jared
Eu não sei que tipo de força me moveu, dizer sim a ele é assustador
e, ao mesmo tempo, eu quero, eu sinto que esse pode ser o primeiro passo
para encontrar a felicidade que prometi a minha mãe, um jeito de mudar
meu destino.
Jared se afasta um pouco, ele está totalmente constrangido, eu não
sei como duas pessoas como nós podem dar certo, travados, cheios de
traumas, com dores que não são fáceis de serem esquecidas, mesmo assim,
tentando.
Não sei sobre ele, sobre o que dói nele, de onde vem, imagino que
do passado, mas como e por que, ele não disse. Talvez, como eu, ele não
consiga dizer.
— Jared, sobre ficar... eu quero, mas... eu não sei se estou pronta
para... você sabe, uma vida juntos... – Como vou dizer a ele que tenho medo
de dormir com ele, de fazer sexo porque eu não sei nada disso além de
violência e a ideia de me sentir perto do que senti naquele dia me
desmancha a alma.
— Não estou esperando que fique no meu quarto, Claire,
começamos agora, eu sei que não é... que é mais... recatada? Essa palavra é
ofensiva? Não sou bom com essas novidades de feminismo.
— Está tudo bem. – Digo sem saber como continuar.
— Você fica no quarto menor, me ajuda na loja, ajuda cuidando das
coisas aqui, tem tanta coisa para fazer na casa, vamos construindo as coisas
juntos e, quando acontecer... está nas suas mãos. – Isso é algo com que
posso lidar, tempo, confiança, acho que consigo superar. Quando ele me
toca, quando me beija, eu não sinto nada além de amor, prazer e mesmo
desejo, sinto medo de avançar e outras coisas invadirem minha mente e
decepcionar Jared está fora dos meus planos.
— Vou poder cuidar das coisas aqui e te ajudar na loja?
— Sim, mas claro, eu não quero que pense que isso está... você
sabe, que é um tipo de negócio.
— Entendi, quero isso, vou ficar feliz em ajudá-lo a fazer a loja
crescer e também deixar essa casa como ela merece. É tão perfeita, eu
imagino a decoração de Natal.
— Decoração de Natal? – Ele faz uma careta, depois corre os olhos
pelos ambientes. – Quem sabe? Parece bom...
— Obrigada! – Eu me precipito em sua direção, ele não se move
quando descanso minhas mãos em seu peito. – Você é o melhor homem que
já conheci, Jared, não foi nada difícil gostar de você. – Dizer isso parece ter
o efeito contrário, sua expressão fica pesada, ele tira minhas mãos do seu
peito, se afasta me dando as costas, anda até a janela e fico pensando o que
foi que fiz de errado.
— Não sou um homem bom!
— Claro que é! – Fico indignada com suas palavras, como ele pode
pensar diferente?
— Não, eu não sou! – Ele grita me assustando, quando se volta, a
expressão está pesada e cheia de dor. – Nada bom, nem um pouco, se espera
um cara bom, se está me confundindo com... um tipo... um tipo de príncipe
encantado só porque ajudei você, então está com o cara errado e isso nunca
vai dar certo. – Eu não sei o que dizer, eu não sei por que ele está dizendo
essas coisas, não sei como agir, mas só o que vejo é sua bondade, seus
medos e dores, mas antes de tudo isso, sua generosidade.
— O que vejo é um homem bom, eu não poderia gostar de um
homem diferente disso e nunca fez nada para eu duvidar disso.
— Não sabe o que está dizendo! – Ele cospe as palavras com nojo
delas.
— Jared...
— A começar por esconder quem eu sou, já mostra que não sou tão
bom assim. – Ele leva as mãos à cintura, depois começa a andar pela sala,
meu coração se aperta, sinto medo de perdê-lo, medo que ele não me queira
mais em sua vida e, pior, medo da dor dele ser tão grande que ele não
consiga retornar dela, não consiga um espaço para mim.
— Conte-me, deixe-me decidir. – Jared me olha espantado.
— Quer ouvir? Eu te conto. – Ele transfere um pouco para mim sua
fúria, como se já pudesse prever meu afastamento e repulsa, como se
blindasse dessa resposta negativa. – Sou filho de um desastre, aqueles
dois... aquilo não foi um encontro, aquilo foi um desastre. Minha mãe era
uma bêbada, que não via nada além de si mesma, e meu pai... ele... ele
sempre foi um canalha. Quer saber quem eu sou? Pois eu te digo: eu sou o
cara que sonhou matar o próprio pai tantas vezes que teve que fugir para
não colocar o sonho em prática.
Não é fácil ouvir isso, mas, é claro que ele tem que ter motivos, eu
sabia que vinha de uma família disfuncional, mas isso não o torna um
homem ruim.
— Jared, é normal, sua família era difícil.
— Eufemismo. Eles eram o próprio inferno! Meu pai não era só um
canalha, ele era um canalha sádico, ele tinha a “porra” de um chicote
pendurado na porta da cabana, um chicote que era todo meu. – Engulo a dor
de suas palavras e o espanto. – Nem era a pior parte. – Ele ri amargo.
— Eu sinto muito.
— A pior parte era o cano da espingarda na minha testa e o quanto
eu rezava para ele disparar de uma vez. – Ele responde me ignorando. – O
pior era o cigarro apagado na pele e a ferida que nunca cicatrizava e a fome,
e dormir noites e noites na floresta, caçar minha própria comida como a
merda de um selvagem.
— Jared...
— Quando o Zack chegou... não que ele conhecesse uma vida
melhor que a minha, mas aquele pequeno... aqueles olhos assustados e
cheios de medo... eu não queria que nada de ruim acontecesse a ele e sabe o
que isso significava? O dobro de surras, o dobro de chicotes nas minhas
costas. Eu tentei aguentar por nós dois, mas eu ia matar aquele verme, eu
sabia como, eu tinha tudo planejado, entende? Não tinha nada que eu queria
mais do que mandar aquele verme para o inferno e eu fui embora, eu deixei
o Zack para trás, eu não suportava.
— Você também era criança, jovem... era demais para um garoto. –
Eu tento defendê-lo, mostrar o que ele não consegue enxergar.
— Dezessete anos, depois disso, depois que subi na moto e parti...
eu tinha que beber, eu tinha que me drogar, e eu tinha que quebrar homens e
arrumar encrenca, porque eu precisava colocar para fora o ódio que eu
carregava, a culpa. Sabe quantas vezes eu fui preso?
— Não! – Eu nem fazia ideia de que ele tinha sido preso.
— Nem eu, incontáveis vezes: arruaça, agressão, dívidas, posse de
drogas, eu nem sei como não me tornei um viciado, acho que era porque eu
gostava mais de vender do que de comprar. – É tudo um espanto, mas ainda
consigo ver um homem perdido e com medo, um jovem assustado.
— Você mudou. – Eu digo a ele.
— Não contente em acabar com a minha vida, eu voltei quando o
maldito morreu e carreguei o Zack para o mesmo buraco que eu estava. Ele
nunca teve talento, o cara sempre foi bom, é coisa de alma, ele me seguia
feito um cachorro perdido, éramos uma matilha, mas eu era o alfa, eu era a
encrenca, por onde íamos eu estragava tudo, as pessoas tinham medo.
Eu assisti isso, vi o medo nos olhos daqueles homens que tentaram
me machucar quando o conheci, também via quando ele entrava no bar do
John, um tipo de respeito misturado a medo que não deixava ninguém
ultrapassar a linha.
— O que mais podia ser depois de tudo que viveu?
— Zack finalmente me deixou, eu sabia que aconteceria e fiquei
com raiva, eu tentei convencê-lo tantas vezes... que bom que nunca
consegui. Mas foi quando ele conheceu Abby que eu entendi, estava no
modo como ele olhava para ela, nem era porque ele tinha dado certo na
vida, dinheiro, estabilidade, era o jeito que ele olhava para ela.
— Que bom, ele está feliz com a família que construiu e você foi
bom com ele na infância.
— Até deixá-lo para trás apanhando no meu lugar. – Ele fala cheio
de mágoas de si mesmo.
— Já falou com ele sobre isso? Talvez o Zack não te veja do jeito
que você acha, devia falar com ele.
— Claire, eu não quero me redimir de nada! – Jared não está
dizendo a verdade, ele se culpa, mas se protege e eu não sei como ajudar
quando eu nem mesmo consigo falar sobre as minhas dores.
— Tudo bem!
— É isso, esse é o cara que te chamou para morar com ele, vê? É
isso que te espera, um ex--presidiário. É bom que saiba, assim pode
escolher, mas eu sei o que vai dizer.
— Sabe?
— Depois de tudo que passou nessa cidade, terminar morando com
alguém como eu? Não, você vai querer ir embora o quanto antes e eu
entendo.
— Entende? – Eu queria que ele não entendesse, que tivesse
disposto a lutar, mas talvez ele simplesmente não consiga, quem sabe,
juntos, eu possa ajudá-lo e ele possa me ajudar.
— O que você quer que eu diga, Claire? – Seu tom é duro, cheio de
mágoas do passado o tomando, Jared acha que não merece nada além do
que ele tem e está tão errado, ele merece amor, ele merece uma vida feliz e
se eu puder dar isso a ele, contribuir para sua felicidade, então eu vou fazer.
Ando até ele, outra vez toco seu peito, ele não se move, não me
afasta como fez antes, tem uma cicatriz no queixo, outra no braço, as
marcas da sua dor estão espalhadas pelo corpo, diferente de mim, as minhas
estão apenas na alma, as dele podem ser vistas.
— Quero que, mesmo sendo quem é, mesmo achando que não
merece, quero que me peça para ficar, que seu coração diga que não pode
me ver partir, mas eu sei que não pode, sei que não consegue e eu entendo,
estou aqui, Jared, me convidou para ficar, é isso que vou fazer. Eu não
tenho medo de você e, por mais que duvide, eu ainda acho que é um homem
bom, o melhor que conheço e não pode mudar isso, então eu vou ficar e
provar que estou certa. A menos que me mande embora.
— Mandar você embora? Impossível! – Ele diz chocado com a
possibilidade e isso me faz sorrir, me dá um pouco de esperança, eu não
quero ir a lugar nenhum e agora menos ainda. Eu me importo com Jared e
vou mostrar a ele que podemos dar certo.
Eu me estico e beijo seus lábios, primeiro ele não reage, mas depois
sua boca toma a minha e o beijo fica quente, denso, cheio de paixão, mas é
Jared a nos afastar, acho que posso entender, eu disse que não estava pronta
e ele não vai ultrapassar barreiras.
— Foi bom falar. – Ele explica passando os dedos por meus
cabelos. – Você não faz ideia da mulher especial que é. – Seu rosto fica
vermelho. – Mas passou tanta coisa que eu acho que precisa descansar,
Claire, vou levar sua mala para o quarto.
Eu o sigo pela escada, vamos até o quarto menor e cheio de caixas e
coisas que não pertencem a ninguém, ele faz uma careta.
— Melhor eu dormir aqui e você...
— Não! – Eu o paro. – Quero ficar aqui, dou um jeito depois, não
tenho pressa. – Ele concorda, quem sabe em breve, se as coisas forem bem,
eu nem precise ficar aqui, estamos construindo algo.
— Tudo bem, a casa toda do seu jeito, ok? – Balanço a cabeça
afirmando. – Ele deixa a mala no chão, o saquinho com remédios ao lado da
cama e vem até mim. – Boa noite, Claire. Vejo você de manhã, mas se
precisar...
— Sei onde te encontrar. – Digo ansiosa. Ele concorda, dá meia-
volta. – Jared...
— Sim.
— Queria falar com a Abby amanhã, ela foi incrível comigo.
— Vamos até lá, vou te apresentar ao meu primo. – Ele promete e
gosto da ideia, sorrio enquanto ele deixa o quarto fechando a porta e eu me
sento na cama tentando assimilar tudo que disse.
Jared viveu uma vida de dor e abandono, sinto que é bem mais forte
do que imagina. Minha cabeça está pesada, meu corpo todo dolorido,
vivemos momentos carregados de emoção, parece que meu corpo está
sentindo, então, apenas me encolho na cama, não penso em abrir a mala,
mudar de roupa, só em fechar meus olhos e dormir pela primeira vez em
semanas, segura, sem qualquer medo.
— Mamãe, eu vou cumprir o que prometi, eu vou ser feliz.
Capítulo 15
Jared
Tem uma leveza que toma meu corpo e minha alma que eu mal
consigo explicar, é mais do que tê-la comigo, é ter Claire aqui sabendo
quem eu sou e, ainda assim, me escolhendo. As pessoas não me escolhem,
elas têm medo, respeito, mas não sou o cara escolhido por ninguém.
Eu me deito depois de um banho, não preguei os olhos noite
passada, não abri a loja hoje, primeiro fui atrás dela, depois atrás do xerife,
então fiquei feito um idiota olhando Claire dormir, sorte ela não ter se
assustado quando acordou e me viu lá, admirando seu sono, cheio de raiva,
medo.
Jamais pensei sentir medo de perder alguém, mas tenho medo de
perder Claire e medo do que esse medo pode causar, eu não quero fazer
nada errado, quero que ela se sinta feliz, que continue a gostar de mim e que
esse sentimento algum dia seja o mesmo sentimento que mantém Abby e
Zack juntos.
Fecho os olhos, eu me abri, disse como me sentia e quem eu era,
mas Claire não me contou o que guarda em sua alma, a dor que é maior do
que tudo que Aiden fez a ela, eu queria saber.
Sinto que tem a ver com relacionamento, talvez um tipo de ex-
namorado agressivo, um cara que a abandonou, por isso ela tem bloqueios.
Na verdade, é tolice especular, o que quer que seja, o tempo vai ser meu
cúmplice, e ela vai confiar em mim e se abrir.
Por agora, o que importa é a certeza de que, tudo que disse a ela não
mudou seus sentimentos por mim. Claire me vê para além da casca, isso é
especial.
Penso nela dormindo no quarto ao lado, podia estar aqui na cama
comigo, podíamos ser um casal, somos, na verdade, foi o que propus. Eu
não faço ideia de como ser isso, namorado, eu não sou gentil, ao menos não
sei ser sem que isso me cause uma certa angústia.
Custo a pegar no sono. Penso nela, nas conversas que tivemos, no
seu estado de saúde, no seu estado emocional, penso em Zack e no que ela
me disse sobre ter uma conversa com ele, penso no futuro, se vamos mesmo
ter uma chance e se eu posso ser como meu primo, como os casais que vejo
por aí, construindo família, criando história, raízes.
Quando desço pela manhã, sinto o cheiro de café fresco, ela está na
cozinha, se volta ao me ver, lança um sorriso que logo enrubesce seu rosto.
— Pensei em preparar um café, não tinha muita coisa, mas eu
esquentei a pizza de ontem.
— Não sei onde conseguiu o café, mas realmente estava precisando.
— Mike me emprestou. – claro, os dois acabaram por se tornarem
amigos. Ela me entrega uma caneca com o café fresco.
— Obrigado. – Ela pega a sua, eu me encosto na pia, Claire fica de
pé me olhando e bebericando seu café. – Você não deveria estar
descansando?
— Estou ótima. – Claire dá um novo sorriso. – Dormi tão bem, eu
apaguei.
— Que bom, acho que podemos passar no mercado e comprar umas
coisas, assim não precisa pedir nada ao Mike, depois abro a loja.
— Pode ser. Eu posso ir com você?
— Com certeza, é você que vai dizer o que precisamos. Coisas para
comer, limpeza... Podemos ir?
— Podemos. – Ela se anima, seguimos de carro até o mercado mais
próximo, Claire compra tudo de que precisamos, depois eu a deixo em casa,
isso é tão diferente, é tão família, eu nem sei como lidar com tudo isso. Será
que tinha que, talvez, beijá-la, ou vamos agir como amigos até que ela se
sinta pronta? Como vou saber quando está pronta? Isso não tem chance de
dar certo, realmente não tem.
Deixo Claire cuidando de tudo e vou abrir a loja, passo a manhã
toda ocupado e, quando chego para almoçar, o cheiro da comida está se
espalhando por toda a casa e é difícil não me acostumar com esse cuidado
todo.
— Cozinhei! – Ela diz animada. – Jared, estar aqui me faz tão bem,
eu nem sei como agradecer. – Eu bem que sei, mas não vou dizer, desvio
meus olhos, com medo de ser traído por eles, destampo as panelas, está
tudo muito apetitoso.
— Parece muito bom. – Digo mudando de assunto, almoçamos
juntos, ela segue comigo para a loja logo depois, me ajuda organizando um
pouco o meu balcão.
— É o que chamamos de toque feminino? – Pergunto surpreso em
como ela consegue deixar tudo muito melhor.
— Acho que sim. – Claire sorri se encostando no balcão, a loja está
vazia e ficamos nos olhando sem dizer nada.
— Depois quero falar sobre as encomendas pela internet. – Digo só
para puxar assunto.
— Claro, vou pesquisar. – Ela suspira.
— Vamos jantar no Zack hoje, pode ser? Vai conhecer a minha
sobrinha Mary.
— Será bom. – Os olhos dela brilham, ela gosta do plano, eu é que
não sei como é que vou agir com ela ao meu lado, em especial porque Sam
é um boca-aberta inconveniente que vai me fazer querer socá-lo em cinco
minutos. – Vai contar a eles?
— O que?
— Sobre nós! – Ela responde surpresa com a pergunta.
— Ah! Sim... é que eu meio que falei que está morando aqui, então
acho que eles já sabem.
— Quer que eu fique aqui ou vou embora? Da loja, eu digo, estou te
atrapalhando?
— Está vazia! – Dou de ombros. – Tenho que preparar uma
encomenda grande que um fazendeiro pediu para amanhã cedo, mas é só.
Pode andar por aí, aprender um pouco, quer? – Ela balança a cabeça
animada e eu mostro com mais detalhes a loja e os materiais, ela gosta de
aprender, se interessa, preciso parar para atender dois clientes que entram ao
mesmo tempo, depois retomo a aula e chegamos ao balcão outra vez,
mostro o caixa e a maquininha de cobrança, ela não tem dificuldade em
aprender.
— Você é muito inteligente, Claire, eu levei uns dias para aprender,
ficava atrapalhado, é que o Lewis teve paciência, ele foi muito generoso
comigo a vida toda.
— Agora está aposentado, aproveitando a vida. Uma pena eles não
terem tido filhos. Quer dizer, é bom para você, porque acabou conseguindo
comprar a loja, mas é estranho pensar que a história deles simplesmente
termina quando eles se forem, filhos são como marcas pela eternidade.
Eu não sei o que dizer, eu nem acho que quero entrar nesse assunto,
não me imagino no lugar de um pai, não sei nada sobre isso, só o que
conheço é dor e revolta.
— Pode ser... – Dou uma resposta genérica. – Está bem? Alguma
dor? – Ela nega. – Precisamos tirar aquelas bagunças do seu quarto,
podemos...
— Está tudo bem. – Ela diz me cortando.
— Falta pouco para fechar, se quiser ir se arrumar, eu chego logo,
eles jantam cedo por conta da Mary. A pirralha dorme cedo, para poder
acordar com as galinhas e passar mais tempo aprontando.
— Você fica feliz quando fala dela. – Ela me surpreende, eu não sei
se fico, eu nunca pensei sobre isso. – Gosta de crianças?
— Não tenho o menor jeito e menos ainda paciência, mas a
garotinha é bonitinha e o Zack é um pai muito bom para ela.
— Vou me arrumar um pouco. – Claire toca o rosto como se só
agora lembrasse da marca. Não digo nada, está bonita do mesmo jeito, mas
quero que essas marcas saiam de uma vez, porque assim eu não tenho que
me lembrar que aquele infeliz morreu antes de ter a lição que merecia.
— Vou começar a arrumar as coisas aqui e já te encontro. – Ela me
deixa, nem um único beijo o dia todo, nem um único toque íntimo, estou
fazendo tudo errado, não é preciso ser inteligente para saber.
Depois de fechar a loja, volto para casa, escuto os sons vindos do
seu quarto, eu não estou sozinho, ela vive aqui comigo, somos um casal e
eu nem mesmo sei me comportar. Trouxe sua mala para dentro, a convenci
de ficar e agora não sei como fazê-la me amar, não sei como mostrar o que
sinto, eu não quero uma colega de casa, alguém para dividir tarefas.
Ligo o chuveiro pensando nisso, nunca tive na minha vida uma
mulher nem mesmo parecida com ela. As mulheres com quem me envolvi
sempre foram como eu, encontros em boates, bares, nas esquinas do mundo,
em gangues de arruaceiros, gente como eu, sem futuro, sem passado, sem
qualquer interesse duradouro. Com esse tipo de mulher eu sei lidar, mas
com alguém como Claire, delicada, linda, doce, generosa e toda...
perfeitinha, com ela eu não sei nem como agir.
Encontramo-nos na sala, a cada hora que passa eu me sinto mais
distante dela, mais constrangido. Em uma semana mal vamos nos falar, sou
eu que estou tornando as coisas assim, frias, e aposto que ela não faz ideia
de como agir comigo.
— Podemos ir. – Ela avisa. – Estou ansiosa para conhecer a Mary. –
Eu aponto a porta me tornando quase um mudo.
— Que tal a moto? Pode ser? – Ela apenas concorda movendo a
cabeça, eu sei que ela gosta e assim ficamos mais perto. Claire me envolve
a cintura quando nos acomodamos, ligo o motor e partimos.
Leva uns vinte minutos de estrada, Zack adora viver assim distante
da cidade, minha casa fica na entrada da floresta também, mas a alguns
quilômetros de distância da dele.
A propriedade está bem cuidada, iluminada, a oficina é uma
sensação, a escola de artes marciais da Abby também está bonita.
— Olha aquela cabana, que graça! – Claire se encanta pela casa do
Sam e eu espero que ele esteja lá, porque o garoto tem uma língua enorme.
Zack abre a porta, o velho cachorro vem nos receber estabanado,
Mary vem correndo logo atrás dele. Na porta, Zack e Abby de mãos dadas,
como é que ele faz isso de um jeito tão natural? Ele não era assim.
Afago o cachorro e Claire também alisa seus pelos, mas é com
Mary que ela se encanta, ajoelha para conhecer a pequena que eu aposto
que vai dizer alguma coisa imprópria porque puxou ao tio Sam.
— Você é muito linda, Mary.
— E você é a moça que o tio Jared está apaixonado? Papai está com
medo de ele fazer merda! – Claire ergue uma sobrancelha, eu engulo em
seco, bem-feito para mim, fui eu que ensinei a palavra, tudo que não presta
ela aprendeu comigo.
— Não tínhamos combinado que não seria a garota que fala coisas
feias na escola? – pergunto a ela.
— Sim, mas eu não falo não, tio Jared. – Ela explica, Claire se
levanta e seguimos os dois ao encontro de Zack e Abby enquanto Mary fica
pelo jardim brincando com o cachorro.
Abby a abraça assim que se aproximam, parece que elas criaram
uma conexão, vejo uma tristeza atravessar os olhos de Abby quando toca
seu rosto notando a marca.
— Vou fazer de você uma campeã, vai aprender a se defender,
Claire.
— Vai acertar em cheio o Jared quando ele aprontar alguma. – Sam
diz surgindo ao lado da esposa.
— Esse é o Sam, ele é como...
— Um bebezão adotado pelo casal, idade mental da Mary. – Eu
aviso e Sam parece simplesmente ignorar porque ele realmente não liga.
— Não vai me apresentar sua... – Zack não termina.
— Pode dizer namorada, Zack, não é palavrão. – Sam comunica.
— Ele foi convidado para jantar também? – Eu pergunto e Claire
me olha assustada.
— Não ligue, são como irmãos que se implicam. – Zack avisa. –
Disputam o meu amor. – Ele ri apertando a mão de Claire. – Seja bem-
vinda.
— Olha como ele é educado! – Resmungo irritado por não ser capaz
de agir como ele. Passo por todos entrando na casa, Judy está colocando
uma travessa sobre a mesa. – Oi Judy. Controle seu homem.
— Controle você! – Ela responde vindo conhecer Claire, Abby faz
as apresentações.
— A Judy é esposa do Sam, também está grávida. Judy, essa é a
namorada do Jared. – A apalavra namorada sai tão emoldurada que podia
ser pendurada na parede, eu caí em uma armadilha, já devia saber.
— Que casal lindo! – Judy nos sorri, faz um sinal como se pedisse
para nos juntarmos, mas é claro que eu finjo não notar. Se eu não abrir os
olhos, saio daqui com uma aliança no dedo.
— O jantar está quase pronto. – Abby avisa nos deixando para ir à
cozinha, Judy faz as honras e conversa com Claire.
— Enquanto elas conversam, vem ver uma moto nova que chegou
hoje na oficina. – Zack me convida e, claro que eu não caio nessa, mas a
ideia de fugir uns minutos me agrada.
— Já volto, Claire. – Ela nem me escuta no meio de algo sobre
bebês que conversa com Judy.
Seguimos para a oficina, outra vez penso no que Claire me disse, eu
nunca esclareci com Zack como me sentia, eu disse que tive que partir, que
voltei para buscá-lo, mas eu nunca disse que me sentia culpado.
— Eu podia passar horas inteiras imaginando de que maneira eu iria
matá-lo. – Zack me olha surpreso quando entramos na oficina que mais
parece um salão de beleza de tão limpo e organizado. Zack é a vergonha dos
mecânicos do mundo.
— Jared, eu sei, por que está falando disso agora? Já passou. – Ele
se acomoda em um sofá de couro preto, eu me sento numa poltrona, isso
está mesmo mais para salão do que oficina, esse negócio de famosos é um
saco, ele tem uma geladeira de marca de energético repleta de latinhas, café,
quadros nas paredes, que negócio mais engraçado.
— Isso aqui podia ser um centro cirúrgico. – Digo sem resistir. –
Essas celebridades que você recebe estão te deixando meio fresco.
— Ufa! Ainda é o Jared de sempre... Eu confesso que estava
começando a achar que tinha mudado. – Zack sorri, mas o riso morre. –
Aquilo é passado, ele se foi, nós vencemos, acabou, esquece.
— Fico pensando que te deixar foi errado, se eu tivesse aguentado
um pouco mais...
— Teria pego perpétua ou pena de morte por matar seu pai, e eu
teria ficado sozinho. – Ele me lembra.
— Estraguei sua vida quando fui embora e estraguei de novo
quando voltei e te levei comigo para o buraco.
— Está se dando muita importância, Jared! – Ele diz firme. Zack me
olha nos olhos, uma das poucas pessoas que me encara de frente, que não
tem medo de mim. – Eu estraguei minha vida sozinho, ou melhor, aquele
infeliz estragou as nossas vidas, mas não para sempre. Eu o segui porque
era minha família, era tudo que eu tinha e, que bom que voltou, eu estava
tonto, apavorado, aquele homem parecia ser a minha única ligação com o
mundo, ele era tudo que eu tinha e estava morto, eu só conhecia aquilo que
vivi sozinho com ele e, quando você voltou, eu respirei, eu agradeci não ser
sozinho, acho que eu não sei ser sozinho.
— Eu queria dizer, queria me desculpar. – Zack sorri, se ajeita outra
vez no sofá, me olha sem dizer nada por um instante.
— Que mulher poderosa! – Ele diz me fazendo querer sumir,
porque ele está certo, isso é a Claire me fazendo desejar ser melhor.
— Estão falando da X? – Sam entra na sala, se joga no chão ao lado
do sofá.
— Não, estamos falando da Claire. – Zack avisa.
— Ah! Jared está namorando! – Ele diz como se precisasse dizer em
voz alta para fazer sentido. – Está apaixonado?
— Sam, quem convidou você para a conversa?
— Ninguém, mas você tem planos de pegar conselhos amorosos
com o Zack? Porque ele não é nada bom nisso, se eu não tivesse ajudado...
— Quer falar sobre esse namoro? – Zack me pergunta.
— Sei lá, ela não está pronta, vocês entendem, para... transar.
— Ah! Decidiram esperar um pouco.
— Ela tem algum tipo de... trauma, não sei, ela não se abriu e tô
esperando. Não é fácil. Quer dizer, não vai ser fácil, eu fico evitando, mas é
difícil, a mulher é gata, acredita que morro de medo dela me pegar
olhando... você sabe...
— Para os peitos dela? São namorados, normal olhar peitos, bunda,
pernas... discretamente. Ela vai se sentir desejada, mulheres gostam disso. –
Sam explica se achando muito sabido. – Ela tem seios bonitos.
— Eu vou matar esse seu garoto! – Aviso ao Zack.
— O que? Você já viu, aposto que já olhou para a Judy também. Ela
está com uns peitões agora, eu digo a ela que está mais linda do que nunca,
em alguns meses, quando a barriga crescer muito, vai afetar a autoestima
dela, então eu sei que vou ter que elogiar muito.
— Ele não para! – Digo sem acreditar. Sam se senta.
— Sério, vou parar de brincar. – Ele assume um ar compenetrado. –
Se a Claire tem algum trauma e eu sei que tem, fui expulso da conversa
delas, então é sério. – Ele avisa. – Você precisa... você sabe, dar sinais,
mostrar seu interesse, os beijos, os carinhos, os elogios, tudo isso vai
deixando a Claire mais confiante.
— Ouviu quando eu disse que ela quer esperar?
— Espera! – Zack para de rir da situação e me olha. – Você sabe
que pode e deve beijar, trocar carinho, essas coisas sem terminar em sexo?
— Ela dorme em um quarto e eu no outro, hoje... bom, não rolou
nenhum contato.
— Mas aí você não mora com a namorada, mora com a sua irmã! –
Sam diz indignado. – Vocês são péssimos! Zack, temos que ajudá-lo.
— Cala a boca, Sam! – Eu digo com raiva porque ele tem razão.
Suspiro decidido a aceitar que, ao menos, o pirralho sabe ser um cara
normal, ele pode mesmo ajudar. – Vá em frente, dê conselhos!
— Beijo de bom dia, coisas como... “você está linda”, “ gosto
do jeito como prende os cabelos”, “ fica linda de vestido”, “senti sua
falta”... essa é boa para usar quando faz pouco tempo que se viram,
ela vai achar que não aguenta ficar longe dela.
— Eu não vou dizer essas coisas. Beijo de bom dia? Tipo, eu a
encontro na cozinha e vou até ela e dou um beijo? Sem razão? Só...
— Exatamente! – Zack concorda. – Você quer beijá-la, não é? Você
gosta do beijo.
— Claro, mas que merda, eu tô namorando a garota, o que acham
que eu sinto?
— Amor! – Sam só falta aplaudir.
— Foi redundante, garoto, cala a boca!
— É para eu ficar quieto ou dar conselhos?
— Deixa o Sam falar! – Zack pede, desconfio que adorando essa
situação vexatória.
— Eu vi vocês chegando, nem para pegar na mão da moça,
pareciam dois colegas, tem que demonstrar mais. A Claire vai pensar que
não gosta dela. – Ele declara e acho que já deve estar pensando.
— Honestamente, eu não sei se consigo, ela chegou na minha porta
com a mala, estava pronta para ir embora, eu sequestrei a mala dela, eu
coloquei para dentro e pensei em nunca mais deixá-la sair, foi difícil pedir
para ela ficar. Não sou bom com isso.
— Os Brow tem um jeito peculiar de convidar garotas para ficar,
também sequestrei a mochila da Abby. – Ele se lembra saudoso.
— Compra um presentinho para ela, diz que passou em frente à loja
e lembrou dela, garotas adoram isso.
Eu e Zack nos olhamos, é preciso admitir que na teoria o garoto não
é de todo mal, na prática também, já que conquistou a mulher que ama e
está feliz.
— Filme! – Ele parece comemorar pela lembrança. – Você a
convida para ver um filme na sala, apaga a luz, ficam abraçadinhos no sofá,
trocam uns beijos, ela vai ganhando confiança, intimidade, assim ela vai se
sentir pronta e superar o que ela precisa superar. Infalível, o filme vai ser
hoje, se a gente jantar cedo e você for embora, ganha uns pontos essa noite
mesmo. Ah! E vai segurar na mão dela quando estiverem saindo, demonstra
comprometimento, intimidade, é como... como cachorros marcando
território com xixi.
— Chega! – Eu fico de pé. – O garoto está comparando a Claire
com um poste! – Digo indignado, eles se erguem também. – Eu não vou sair
segurando a mão dela com vocês dois rindo de mim.
— Ei! – Zack toca meu ombro. – Eu sei como é, eu me sentia... ,
travado, eu não conseguia colocar em palavras, eu precisava demonstrar e
era um inferno, mas eu queria a Abby na minha vida e eu... eu me deixei
livre, não estou dizendo que é fácil, mas se você a ama...
— Amor? Não... eu... eu não sei... isso, vamos voltar, ela está lá
sozinha com as duas, vai...
— Amar é a melhor coisa do mundo. – Sam garante. – Não é
vergonha, é bonito, pode dizer, ninguém vai rir.
— Não vai parecer mais fraco. – Zack continua. – Quer saber?
Quando eu admiti que amava Abby e faria qualquer coisa por nós, por
nossa história, eu passei a me sentir invencível.
— Pessoal! – Mary vem correndo para minha salvação. – A comida
vai... esqueci o que era para falar. Espera, vou lá correndo.
— Não precisa, amorzinho! – Zack ergue a filha no colo. – Estamos
indo todos.
Quando entramos, estão as três com cara de choro, eu e eles nos
olhamos. Parece que a conversa aqui também foi íntima.
— Estão chorando? – Zack pergunta.
“Cebola”, Abby diz ao mesmo tempo que Judy apenas admite com
um simples, “Sim” , enquanto Claire apenas deixa seus olhos vagando pela
sala. Isso diz tudo sobre a personalidade das três.
— Todos para a mesa de jantar. – Abby indica evitando a conversa.
O jantar é bom, Claire se dá bem com as duas, elas riem juntas,
parecem tão íntimas que trocam olhares cheios de significados e parece que
todas entendem.
Olho para Claire sentada ao meu lado e, em um impulso, toco sua
coxa, é mais um tipo de carinho, dura um minuto, mas eu sinto que ela
reage de um jeito bom.
Quando nos despedimos, eu seguro sua mão e caminhamos em
direção à moto, eu posso sentir o riso de Sam e Zack nas minhas costas,
mas estranhamente, segurar a mão dela tem um poder maior sobre mim. O
riso deles perde a importância.
Capítulo 16
Claire
Acordo bem cedo, não estou em seus braços como achei que seria.
Jared dorme tranquilo espalhado pela cama e sorrio me lembrando da noite
perfeita, sinto até um pouco de vergonha. Soltei-me de um jeito que nem
imaginava.
Somos namorados, moro aqui, vamos viver juntos, nunca pensei
que podia acontecer comigo. Ele me entende, me aceita, sabe do que me
aconteceu e não fez nenhum julgamento negativo, sua história também não
é fácil, eu sei mesmo ele não dizendo. Entendo isso, se não gosto de falar da
minha dor entendo que ele não queira me falar da dele.
Sinto ele se mover na cama, tatear o espaço entre nós, me
procurando, e me lembro que disse que me caçaria se eu tivesse ido embora.
Acho que ele faria isso.
Sem abrir os olhos, ele me encontra e me puxa para ele. Meu corpo
se cola ao dele de um jeito que faz meu sangue ferver e nem sabia que só
com um toque como aquele eu podia ficar desejando mais.
Seu rosto afunda em meu pescoço e ele desce os lábios por minhas
costas e aquilo é incrível e só quero que seja assim toda manhã. Sua mão
espalma em minha cintura e desce por minha coxa e meu corpo desperta
para ele. Viro-me e, só então, ele abre os olhos.
— Toda perfeitinha! – Jared diz antes de cobrir meu corpo com o
seu e nós dois voltarmos para aquele lugar alucinante em que estivemos
ontem. Depois ficamos quietos nos braços um do outro e posso ficar assim
para sempre.
— Bom dia. – Eu digo sorrindo, não sei como vou parar de sorrir.
— Isso vai ser mesmo um problema. – Ele diz comigo deitada em
seu peito.
— O que? – Pergunto preocupada, estava tão feliz.
— Sair da cama e trabalhar, viver. – Eu me sinto aliviada e ele me
abraça mais quando percebe que me assustou. – É toda perfeitinha. Agora
precisa ser forte e me empurrar da cama.
Nego me abraçando a ele. Fico de olhos fechados, sentido seus
braços me envolvendo e só consigo ficar feliz. Depois me lembro que ele
tem uma loja para cuidar e preciso ser forte e deixar a cama.
— Você venceu. Eu vou levantar e tomar banho.
Beijo seu peito e corro para o banheiro antes que desista. Saio
enrolada numa toalha porque minhas roupas ainda estão no outro quarto, ele
sorri deitado ainda. Sorrio de volta, um tanto tímida.
A gente se gosta e essas coisas vão desaparecer com o tempo. Ele
vai para o chuveiro e deixo o quarto apressada com vergonha de assisti-lo
sair nu do banheiro.
Vou me vestir pensando em mudar minhas coisas para o seu quarto,
cuidar dele, da casa... eu sei que mulheres hoje querem muito mais do que
isso, não ligo se vou parecer uma boba antiquada, mas no fundo, o que eu
quero é exatamente isso, ser a sua esposa, cuidar das nossas coisas, dar a ela
o sentido de lar que nunca teve e ser feliz.
Eu o sinto me envolver pelas costas e beijar meu pescoço quando
chega à cozinha, meu corpo inteiro se arrepia, é uma sensação tão nova que
meu coração descompassa.
— Vamos sair e tomar café em algum lugar, vem. – Ele diz me
puxando, não me quer na cozinha e eu aceito. Sigo Jared para o carro, sua
mão presa a minha, um sorriso querendo explodir em seu rosto.
— Não queria ir no John! – Aviso, ele me olha espantado.
— Nunca mais piso naquele lugar! – Ele conta espantado com meu
pedido. – Aquele não é lugar para minha... namorada. – A palavra sai
forçada e eu rio, é estranho como gosto até disso nele, sua dificuldade em
expressar sentimentos.
Tudo é tão pertinho que vamos de caminhonete e, em cinco
minutos, estamos em um café. Pedimos a refeição completa: bacon, ovos,
café, suco, panquecas, e me dou conta que estou faminta, não tanto quanto
ele, Jared devora o café da manhã me deixando surpresa.
— Dirige? – Ele me pergunta quando deixamos o café.
— Sim, minha mãe me obrigou a tirar a habilitação. – Estávamos
sem dinheiro na época, mas ela fez questão, mamãe estava sempre me
impulsionando. Ela ficaria feliz por mim agora.
— Ótimo! – Jared me joga a chave da caminhonete e dá a volta indo
se colocar ao lado do passageiro.
— Jared! – Eu entro surpresa, ele coloca o cinto e indica o volante.
– Eu?
— Gosto da moto, você sabe, uso muito pouco a caminhonete,
então, ela vai ficar com você.
— É sério?
— Pode querer ir até a Abby, pode precisar fazer compras ou sei lá,
qualquer coisa que queira. Se eu precisar da caminhonete para alguma
entrega, você me empresta.
— Ou posso fazer a entrega para você!
— Ah! Não quer me emprestar seu carro! – Ele brinca me fazendo
gargalhar, quanto tempo eu não me sentia assim tão feliz? – Quando tiver
uma entrega, eu prefiro que fique na loja, você sabe, sou uma velho
machista sem solução, não quero que carregue peso.
— Ótimo! – Dou de ombros, eu realmente gosto disso. – Não
chamo algo assim de machismo, chamo de gentileza.
Em casa, quando estaciono, ele está risonho, salta, dá a volta, me
beija os lábios e acena se afastando sem tirar os olhos de mim, andando de
costas.
— Vai tropeçar, seu bobo! – Rio meio encantada.
— Não consigo tirar os olhos de você! – Ele dá de ombros. – Tenho
que abrir a loja.
— Seria bom! – Lewis está na porta, Jared se volta envergonhado
por ser pego sendo um fofo romântico. – Quero comprar uma vara nova.
Bom dia! – Jared caminha para ele e entro em casa rindo, sem
resistir, vou direto para o telefone, eu preciso contar a Abby.
— Alô, está ocupada?
— Aconteceu! – Ela declara e torço o nariz.
— Como sabe?
— Está me ligando e a voz está boa, então só podia ser uma coisa
boa. Conte-me tudo, como foi? Quem deu o primeiro passo?
— Eu fiz um jantar especial para comemorar um mês de namoro e
tudo foi acontecendo.
— Como se sentiu? – Ela pergunta porque, como eu, ela sabe como
esse momento é complicado, Abby viveu a mesma coisa que eu.
— Tão feliz, nada existia na minha mente além dele, Abby, eu amo
o Jared, eu vivi... eu me senti tão feliz, eu me senti tão livre, ele foi tão
carinhoso, paciente, tudo aconteceu com tanto cuidado e tão lentamente.
— Eu quero muito acreditar nesse cara que me descreve, mas o
Jared que eu conheço é tão diferente.
— Não é, sabe, Abby, o Jared que você conheceu era alguém
marcado que precisava se firmar na rebeldia para se proteger, o Jared é esse
cara que ele é comigo, gentil, preocupado, generoso.
— Sei que sim, porque Zack é como ele, nós somos todos meio
parecidos e o amor nos transformou.
— Acho que sim. Meu coração... eu não sei, ele estava quebrado e
agora tudo parece novo. Estou feliz, hoje mais do que qualquer outro dia da
minha vida.
— Parabéns, Claire. – Abby diz honestamente, eu sinto isso e Jared
me deu mais do que um pedaço de felicidade, ele me deu uma vida
completa. – Mary, não pode, calce os sapatos, o papai já está na oficina e
você vai com a mamãe para a aula.
— Vou te deixar trabalhar, Abby, mas espero vocês no domingo.
— Com certeza. – Ela diz antes de desligar e suspiro tão feliz que
meu corpo parece cheio de energia.
Jared vem almoçar, aqueço as sobras do nosso jantar de aniversário
de um mês, depois vamos nos sentar no balanço da varanda, a primavera
está chegando, os dias já não são mais tão frios e a paisagem está mudando.
Gosto de observar as árvores da floresta mudando de cor.
— Acha que vamos ficar bem velhinhos? – Pergunto a ele que me
beija antes de responder.
— Espero que sim. Não estou com pressa de morrer.
— Pensei em nós dois velhinhos sentados aqui olhando a vida dos
outros.
— Que fofoqueira!
Encosto-me nele e penso se tem lugar para filhos nessa vida perfeita
que criei na minha mente. No passado, eu só queria morrer logo e acabar
com a minha dor e, agora, quero ter tempo para envelhecer ao lado dele.
— Só nós dois nessa casinha bem velhinhos. – Ele diz e o “só nós
dois” deixa claro que seus planos não vão além disso. Posso viver assim, ao
menos por enquanto, ser só nós dois não é ruim, mas talvez, algum dia seja
pouco.
— Um cuidando do outro.
Ele me beija. Um beijo carinhoso de quem gosta da ideia. Adoro
ficar em seus braços, mas Jared tem que abrir a loja e eu fico pela casa
cuidando das coisas, pensando se transfiro mesmo minhas coisas para o seu
quarto ou não, é assustador a ideia de estar indo rápido demais,
pressionando, não vou até a loja, acho que é bom dar espaço a ele.
Nos três dias que se seguem é assim. Noites românticas, manhãs
perfeitas e o dia todo sem vê-lo. Fico pensando se Jared não vai acabar se
cansando, se ele não espera que, talvez, eu encontre um trabalho que não
seja ajudá-lo, ele é um homem do mundo, será que é isso que espera de uma
história? Uma esposa do tipo do lar que cozinha, limpa e o ajuda com o
trabalho na sua loja?
Minhas coisas ainda estão no quarto menor, mesmo que durma
todas as noites em seus braços e acorde com ele me puxando e se
encaixando em mim, fazendo meu coração descompassar logo cedo.
Talvez não seja como ele pensou, talvez eu esteja fazendo tudo
errado ou ele sente falta de andar por aí, tomar uma cerveja no bar e falar
com pessoas. Não sei e não vou perguntar porque não aguento pensar na
resposta.
Viro-me para deixar o quarto e, quando olho nossa cama, eu penso
em como eu o amo e o quanto é perfeito quando estamos ali. O que sinto
por ele é amor. Um amor que nunca vai acabar.
Coloco a mesa para o jantar quando começa a anoitecer. Escuto a
porta da frente abrir e meu coração dispara, e acho que nem em mil anos
vou me acostumar que sou namorada dele.
Meu sorriso se desfaz quando vejo seu rosto abatido e até um pouco
triste. Ele se encosta no batente da porta e fica me olhando.
— Preciso dizer porque isso está me sufocando. – Ele começa e
acho que vai terminar tudo, minhas pernas formigam de nervoso. Prendo a
respiração com medo de ter uma crise humilhante de choro e implorar para
ficar. – Não precisa ficar comigo se não quiser, não vou mandar você sair da
casa.
Aquilo é pior que um tapa no rosto, sinto tudo em mim enfraquecer
e junto vem uma revolta dolorida.
— Acha que estou com você por conta do teto que me oferece? –
Nossa, como magoa quando sai em palavras claras.
— Não sei, fica o dia todo enfiada aqui, não sai nem na varanda, só
para não ter que ir até a loja. Não levou suas coisas para o nosso quarto,
prefere ficar sozinha do que ir até a loja me fazer companhia, eu não sei.
— É isso que pensa de mim? Que tipo de mulher se deita com um
homem que não quer só por um teto? Não precisa dizer, eu sei. – Ele se
choca com minhas palavras, olhos arregalados sem reação. Cedo ou tarde o
que me aconteceu teria um peso. – Eu fugi como uma covarde depois do
que me aconteceu e me recusei a denunciar e eu sei que sou só isso. Uma
covarde, mas não a ponto de me entregar a você para não ficar na rua.
— Não disse que era covarde, não te comparei com nada, não teve
culpa naquilo, foi forte e seguiu em frente. Aguentou firme. Não é isso...
— Eu não sei o que você quer, eu não sei ser uma namorada. Eu
tenho medo de ficar o tempo todo atrás de você como uma sombra e um dia
me mandar embora como está fazendo agora. – Liberto meus medos de uma
só vez.
— Não estou. Desculpe, entendeu errado. – Meu coração está
dilacerado.
— Não precisa se desculpar. É melhor eu ir embora. Não é a casa,
podia ser naquela pensão ou na rua eu ainda iria querer ficar com você. –
Tento passar por ele, mas Jared me envolve, me impede de me afastar, sua
voz soa urgente.
— Eu disse que faria tolices, que explodiria na hora errada e disse
que podia lidar com isso, mas está me deixando. Não entende que estou
com medo de perder você? Que tenho ciúme e fico o dia todo esperando
que vá lá ficar um pouquinho comigo? Eu quero a mulher que cuida de
mim, quero suas roupas misturadas as minhas no armário, e você indo lá
porque sentiu saudade, quero essa vida simples e feliz, envelhecer na
varanda ao seu lado.
Fico olhando para ele e, no fundo, ele parece assustado também,
com medo como eu.
— Jared!
— Eu nunca tinha feito planos até a manhã que peguei minha moto
e fui buscar você para mim. Até voltar triste e te ver na varanda. Foi uma
droga de vida até você chegar e nada parecido com a vida de uma pessoa
comum, e depois que chegou e ficou e comecei a fazer planos eu... eu não
estou acostumado a ser feliz e eu sempre acho que tem algo errado.
— Está bravo por que queria que eu ficasse mais tempo com você?
Eu só quero ficar perto. Quero a vida simples que descreveu, mas tive medo
que me achasse uma dependente boba que não tem sonhos, que sentisse
saudade da vida livre que tinha antes.
— Livre? Eu nunca fui livre, eu sempre fui um cara solitário, não
tenho saudade de nada antes de você. Não vou deixar de gostar de você
nunca, é toda perfeitinha. Não pode ir embora na primeira tolice que faço,
tem que tentar mais.
— Não quero ir embora, quero ficar com você o tempo todo. Fico
aqui sentada olhando para a parede me segurando para não ir lá te
atrapalhar e ser grudenta, mas eu... Jared, depender de você em tudo... até
financeiramente, eu não sei, fico me sentindo um estorvo, não sabia o que
queria e eu não tinha coragem de perguntar.
Ele me abraça. Sinto seu coração batendo tão rápido quanto o meu,
me encosto em seu peito, aliviada por ele ter tanto medo quando eu. Molho
sua camisa com minhas lágrimas.
— Fiz você chorar. Não queria isso.
— Namorar é muito difícil, não sei o que tenho que fazer.
— Tem que ficar o tempo todo perto de mim. assim vai dar certo. —
Ele afasta meus cabelos, sorri secando minhas lágrimas. - E me desculpar,
você é meu coração, Claire. Eu não tinha um até chegar na minha vida. –
Não é verdade, mas ele nunca vai acreditar, beijo seus lábios.
— Homem de lata. – Brinco tentando sorrir.
— Sim. Mas agora tenho um coração e ele é você.
— Eu sou o leão covarde, mas me deu um pouco da sua
coragem.
— Uma boa troca. Seu coração por minha coragem. Vê como assim
pode dar certo? Como assim ficamos os dois inteiros?
— Eu posso ficar bem grudenta. – Aviso sorrindo no meio das
lágrimas.
— E pode começar agora. – Ele me ergue no colo e me carrega pela
escada.
— O que está fazendo? Nem jantou, deve estar com fome.
— Só tenho fome de estar com você, Claire! – Ele diz antes de me
beijar longamente. Quando me coloca na cama, seus olhos são profundos, o
riso se desfaz.
— Nossa casa, Claire, nosso quarto, nossa loja. O dinheiro fica na
gaveta da cozinha, para nossas compras, roupas, passeios, futuro. Nosso
futuro, Claire, os dois velhinhos na varanda.
— Quero isso! – Suas palavras me emocionam, meus olhos
marejam, mas dessa vez, de amor.
Capítulo 19
Jared
A água quente dói tanto minhas costas que preciso prender bem a
boca para não gritar. Não demoro nadinha no chuveiro, me seco só um
pouco, olho as costas pelo espelho e fica todo dia pior, acho que isso vai
piorar e piorar até eu morrer.
Não lembro direito de como foi, só que ele chegou bêbado, me
chacoalhou, gritou e me acertou duas vezes com a corrente e, na segunda,
eu apaguei, e quando acordei estavam me levando embora e ele tinha
morrido numa briga ou sei lá o que e eu nem liguei.
Visto a roupa e aquilo é muito ruim, gruda e me machuca. Não
consigo dormir de dor e medo, eu fico sentado no escuro toda noite
esperando quando alguma coisa ruim vai acontecer e todo dia é igual, não
acontece nadinha.
Mas eles não vão me enganar, eu não vou confiar e acreditar, eu sei
que eles vão me machucar qualquer hora, e vão me mandar fazer coisas que
não quero e me odiar como todo mundo.
Mesmo que nada ruim acontece eu sei que um dia vai acontecer.
Calço meu tênis novo e ele é bem bonito e macio e não era de ninguém
antes. Nem era velho. É novinho igual as roupas que eu tenho. Tudo
novinho.
Acho que eles estão acreditando que tenho dezesseis anos. Criança
sofre muito, mas eu não sofro aqui. Ainda não... como, jogo videogame,
assisto tevê enquanto eles ficam de namorinho e depois fico no quarto
quieto esperando coisas ruins.
A comida dela tem um cheiro muito bom e tem todo dia comida e
posso comer quanto eu quiser e mesmo assim eu sei muito bem que logo
isso muda, eles querem enganar a mulher do abrigo, fingir que são bons,
mas eu vou embora que eu sei, eles vão me mandar quando enjoarem de me
ter aqui e, quando eu chegar lá, vou fugir. Um mês foi o que ela disse,
depois eu vou embora.
Já faz cinco dias que estou aqui. Todo dia igual, se não fosse essa
dor nas costas que não para nunca até que não era muito ruim. Fico de pé e
a camiseta gruda nas costas porque tem sangue e está aberto.
Desço para comer, a mesa está posta e os dois estão de risinho um
para o outro. Eles me sorriem, eu não sorrio de volta. Querem só me
enganar.
De noite é mais uma vez igual, sono e só uns cochilos, nada da
porta abrir, nada de coisa ruim e acordo de novo e tomo café.
— Vou andar lá fora. – Aviso só para mostrar bem que eu faço o que
eu quero.
— Toma cuidado e não vai longe. – Jared avisa. Ergo meu queixo,
não acredito nada nessa história que ele é meu pai. Minha mãe falava
sempre que meu pai era um cara briguento, bêbado, que só andava de moto
por aí arrumando briga, ele não é nada disso.
— Tenho dezesseis anos, não sou criancinha não. Eu faço o que eu
quiser. – Bato a porta e ninguém diz nada. Não param de fingir e, às vezes,
penso se é fingimento mesmo. E se for verdade? Não sei se tem gente assim
que nem eles.
Um menino entra numa casa no fim da rua, ele tem uma bola e
decido olhar um pouco e ver como é. E se ele for normal? Não for ruim, e
se tem gente legal de verdade e eles não estiverem mentindo?
Tem um monte de madeira na lateral da casa, tudo empilhada para a
lareira, da para subir e olhar pela janela. Eu quero subir, mas no meio do
caminho fico fraco e mole porque minhas costas doem muito, escorrego e,
quando caio, espalho a madeira.
— Olha o que fez, seu moleque! – Um homem me põe de pé me
chacoalhando o braço e dói tudo em mim.
— Me larga, velho nojento.
— Do que me chamou, moleque estúpido? – Ele me balança e acho
que vai me machucar.
— Ei! Larga ele! – Jared surge muito bravo, o homem fica com
medo dele e me solta na hora. Está sem cor e agora sim, parece o Jared que
minha mãe falou, um homem que todos têm medo.
— Olha o que ele fez? – O homem aponta as madeiras espalhadas
para explicar e está tremendo.
— Ele errou, mas não pode tratá-lo assim, nunca mais toque nele! –
Jared exige e ele fica quieto. — Sabe onde moro, se ele fizer algo errado, vá
me chamar, é comigo que você trata. Comigo! – O homem dá uns passos
para trás assustado.
— Perdi a cabeça. É só um garoto. Desculpe.
— Não tem problema. Ele bagunçou, ele arruma.
Olho aquele monte de madeira pesada e meu coração acelera.
Nunca vou conseguir.
— É muito pesado. – Aviso pensando que vou morrer fazendo isso
com essa dor nas costas, eles vão ver o sangue na camisa e aí sim eu vou
me ferrar de vez, essa merda de gente que quer que eu faça tudo o tempo
todo.
— Você bagunçou, você arruma. Não tem dezesseis anos? Crie
músculos. – Ele fica bem bravo, me dá um pouco de medo. – Quando
acabar, vá para casa e fique longe daquele videogame.
Jared me dá as costas e fico sozinho porque o homem entra na casa
quase correndo. Começo a fazer o que mandou, cada vez que tento, minhas
costas doem e parece que abre mais ainda a ferida. Sinto frio, fico mole, e
vou tentando, é melhor obedecer porque se ele me bater eu acho que não
aguento. Um dia vou embora de todos os lugares e vou ficar sozinho.
O garoto com a bola se aproxima. Está me vendo suar e carregar as
madeiras empilhando quase morrendo.
— Precisa de ajuda? – Balanço a cabeça admitindo que sim e ele
começa a ajudar. – Seu pai é igual ao meu, coisa chata isso. Você está bem?
Parece que está passando mal.
— Não estou me sentindo bem não. – Conto com vontade de
vomitar.
— Quer que eu termine para você? – Ele é bem legal e nego, não
quero irritar o Jared. Terminamos juntos, tenho que agradecer, ele foi legal.
— Obrigado. Vou indo. – Aviso meio tonto. – Sou o Benjamin.
— Michel, eu passo lá na sua casa para brincar quando não estiver
de castigo. Ele falou que você tem videogame, podemos jogar, eu também
tenho um.
— Pode ser.
Jared me mandou ficar longe do jogo. Capaz de dar o jogo para uma
criança.
Vou para casa, entro e fecho a porta sem bater. Vou direto deitar,
nem sei onde eles estão e nem quero pensar. Só me deito e fecho os olhos
de tanta dor, choro porque a dor está maior que todos os dias e são muitos e
muitos dias que minhas costas doem, desde que aquele maldito morreu.
Sinto tanto frio e tanto medo que queria chamar Jared e Claire, mas
eu fiz coisas feias demais e eles vão mandar eu me danar, isso sim. Não
consigo sair da cama e quando me chamarem para comer e eu não for, eles
vão brigar comigo.
Jared brigou feio comigo porque xinguei a mulher dele que ele
adora tanto, mas ele me defendeu quando aquele homem quis me machucar.
Acho que ele pensa que só ele que pode, porque é meu pai.
Será que isso é verdade? Não sei de nada. Só da dor nas costas e da
umidade que tem e acho que está sangrando de novo e nunca mais vou
conseguir tomar banho.
Quero dormir, vomitar, não sei como vai ser. Meus olhos fecham e
deixo a morte vir. Não aguento mais e que se dane. Tento me mexer e solto
um grito de dor. Tampo a boca com medo deles terem ouvido.
Eu não queria ficar chorando tanto, mas dói muito, a cabeça, as
costas e esse frio todo e só consigo mesmo ficar chorando sem parar, com o
rosto enfiado no travesseiro porque nem posso me deitar de outro jeito.
Capítulo 23
Claire
Lavo o rosto para não deixar vestígios de que tive uma crise de
choro, respiro fundo encarando o espelho quando escuto a porta abrir.
“Força, Claire, não se deixe levar pelo medo. É só um garotinho
assustado”.
— Claire! – Escuto a voz de Jared e deixo o banheiro. Sorrio
quando os vejo de pé no meio da sala um ao lado do outro, são parecidos e
gosto de olhar para Benjamin e pensar em Jared aos oito anos, cada vez que
faço algo especial para esse garotinho, é como acariciar o garotinho que
Jared foi e que foi privado de qualquer espécie de afeto, eu acho que ele
sente o mesmo. ─ Chegamos.
— Estão com fome? – Pergunto fingindo que nada aconteceu.
Assisto Benjamin olhar para o chão e depois para o lugar onde o telefone
ficava, não tem mais nenhum vestígio do ataque que deu, apaguei tudo
como se isso fosse capaz de mudar os acontecimentos.
— Desculpe, Claire. Você não é burra, nem idiota, nem estúpida... –
Ele para pensando na lista de coisas de que já me chamou e decido
interrompê-lo antes que ele chegue no vadia.
— Tudo certo, Benjamin, entendi, está desculpado. – Tento ampliar
o sorriso para provar que o perdoei, ele não faz ideia do que sou capaz de
perdoar vindo dele, eu o amo, mais do que ele pode, ao menos,
dimensionar.
— O Jared agora vai me chamar de Ben, pode chamar se quiser. –
Que grande avanço, parece que os dois deram muitos passos nesses
momentos juntos, meu coração transborda esperança.
— Posso? Nossa, vou gostar muito. Ben é carinhoso. Gostei. Vamos
almoçar, Ben?
— Não vai falar para ela, Jared? – Ele incentiva.
— Quer que eu conte a novidade? – Jared pergunta a ele que nesse
momento está um tanto corado pela timidez, ele confirma apenas com a
cabeça.
— É melhor.
— Claire, nós não somos bons nesse negócio de contar dias,
então decidimos que não vamos mais contar os dias. O Ben vai ficar aqui,
ele gosta muito do quarto dele e de casas pequenas.
Eu não queria chorar, mas saber que ele nos aceita, mesmo com
tudo que ainda falta ser transformado nessa relação, me emociona. Meus
olhos marejam e eu queria parecer natural, mas não consigo esconder isso e
umas lágrimas caem.
Benjamin olha para Jared surpreso.
—Eu disse que podia ser que ela chorasse um pouco, ela queria
muito que você ficasse.
— Muito. Estou muito feliz. – Seco as lágrimas, dou uns passos
para ele, queria abraçar Benjamin, beijar as bochechas rosas de ansiedade,
mas tenho medo de ser empurrada e paro no caminho. – Obrigada,
Benjamin, que bom que gosta daqui.
— Esqueceu que agora é Ben? – Ele me corrige.
— Verdade! Ben... Durante a semana vamos comprar umas coisas
novas para o seu quarto, agora que vai ficar com ele temos que comprar
mais coisas de menino... Rapaz, eu sei que não é um menino. – Apresso-me
com medo de ele ter outra crise.
— Eu não ligo não. – Aquilo sim é espantoso e troco um olhar com
Jared tão surpreso que nem consigo esconder, ele dá de ombros.
O resto do dia, sinto Benjamin ansioso. Ele faz lição, come, anda
atrás de mim como sempre, mas sinto uma leve agonia e acho que a vinda
da assistente social é a razão disso, não são palavras que vão convencer
uma criança cheia de medos e mágoas de que as coisas vão ficar bem, são
atitudes e tempo, ele tem direito de duvidar, a vida não ofereceu nada a ele
que não lhe fosse tomado, ele foi esmagado, maltratado e ferido, ele tem
medo e muito pouca fé nas pessoas e, um dia, mesmo que leve tempo,
vamos fazê-lo entender que, ao menos nessa casa, o amor vai reinar.
Depois do jantar e de jogar um pouco de videogame, ele adormece
ou finge dormir. Jared o carrega no colo cobrimos, ajeitamos, desejamos
boa noite, beijo seu rostinho lindo e vamos os dois para cama.
— Como ele virou Ben?
— Achei que era um jeito de nos aproximarmos, ele gostou, sinto
que quer nos contar que é uma criança. Ele está feliz aqui, ganhando
confiança, com medo de ir embora e isso agora é o novo problema, agora
que quer ficar, ele está tão assustado quanto antes.
— Vamos conseguir. – Eu me encolho em seus braços, com a
cabeça em seu peito enquanto seus dedos correm suaves por meu braço.
Jared também mudou muito desde que nos conhecemos, antes, qualquer
demonstração de afeto, qualquer tipo de carinho era treinado. Agora, ele faz
sem se dar conta, não percebe o quanto é carinhoso comigo, o quanto está
sempre me envolvendo, beijando, acariciando e nem sempre tem a ver com
sexo, mas eu não digo nada, prefiro não alertá-lo, gosto que as coisas
estejam mudando com naturalidade, Benjamin nos uniu de um modo que
nem imagina.
— Desculpe ter deixado você sozinha, mas achei que ele precisava
de um pouco de ar, quando me sentia como ele, sair me fazia bem.
— Foi bom. No fundo eu precisava ter uma crise de choro. Quero
tanto que ele seja feliz que meu coração dói quando ele tem uma crise como
a de hoje.
— Nunca poderia lidar com ele se não tivesse você. – Jared
confessa me emocionando.
— Faz isso melhor que eu, entende o Ben.
— Claire, é a sua força que me dá energia, é saber que está comigo.
Que suporta sem raiva, você podia ser um problema, sabe disso, muitas
mulheres não aceitariam isso. Ainda mais quando ele, às vezes, te trata com
tanto rancor.
— Benjamin gosta de mim. – Sei disso e me enche de coisas boas
no coração. – Acho que ele gosta de mim como se eu fosse a mãe dele.
Acho que gosta tanto que machuca e, por isso, ele tem esses ataques. Ben
não sabe reconhecer esse sentimento, está perdido e assustado, as palavras
dele contra mim não me machucam, é a dor dele que me fere.
— Toda perfeitinha! – Ele beija meus cabelos e suspiro me sentindo
leve, parece que, finalmente, temos uma chance de fazer Ben feliz.
— Os olhos dele dizem isso, ele é como você, fala com o olhar.
— Amo você, Claire, e o jeito que ama nossa família. – Quando ele
diz família, a vida se completa. É o que somos, uma família.
— Isso sim faz tudo valer a pena, quando diz essas coisas bonitas.
Nossa família, temos uma, eu, você e o Ben.
— Um número exato. – Ele diz e bem que eu queria tornar essa
família um número par, queria um bebê, a ideia até me emociona, mas se
ele não pensa nisso, eu aceito, depois foi tudo rápido com a gente, não
fizemos como os outros, namorar, noivar e casar, fomos logo viver junto e
aprender com a convivência, então, veio o Ben e estamos lutando ainda por
ele, um bebê seria algo novo e talvez só complicasse. Mas algum dia vamos
falar sobre isso e sei que ele vai gostar da ideia, Jared gosta de crianças e de
ser pai, ele não sabe disso, mas eu vejo.
— Ela não pode levá-lo, não é? – Assusta-me um pouco pensar na
assistente social.
— Não. Não sei, acha que pode? Devíamos ter procurado um
advogado para saber disso, agora que disse, eu não sei, talvez eu possa
procurar alguém para confirmar. Ele é meu filho biológico, eles me
procuraram, ela disse que eu é que iria querer devolvê-lo, mas acho que vou
procurar um advogado.
— É bom. Não consigo nem pensar em ficar sem ele.
— Não vamos. – Jared me abraça, sinto que se assusta com a
hipótese.
— Melhor a gente dormir, meu medo é ele ter uma crise quando a
assistente chegar, não sei, xingar, fugir... ela pode achar que estamos
fazendo mal a ele.
— Prometi que ele não ia a lugar nenhum, espero que ele acredite.
Assim que me arrumo em seus braços, escuto choro, aguço os
ouvidos, mas então o grito de Benjamin chega até nós e ficamos de pé em
um salto.
— Claire, Jared... Não quero! Jared! – Quando entramos no quarto
ele está se debatendo na cama no meio de um pesadelo, acendo a luz e ele
se senta chorando.
— Foi um sonho, Ben. – Jared avisa quando, confuso, ele corre para
seu colo. – Está tudo bem.
— Pensei que eu estava lá de novo. – Ele soluça. – Não quero
voltar, aquela mulher me arrastou para lá de novo, eu pedi para ficar.
— Está tudo bem, está no seu quarto, você sonhou. – Acaricio seus
cabelos enquanto Jared o mantém em seu colo, ele se esconde no ombro do
pai assustado como nunca o vi.
— Não tenho dezesseis, eu tenho só oito anos, não quero ir. É
verdade, não estou mentindo, eu juro.
— Tudo bem, gostamos de menino de oito, a Claire adora, que bom
que tem só oito. – Os olhos de Jared são de alívio e dor, como os meus, ele,
finalmente, admitiu e isso é sinal de confiança e também desespero.
— Adoro crianças. Não chora, Ben. Foi apenas um sonho ruim. ─
Meu coração está partido de ver ser desespero.
— Desculpa que eu menti antes, mas agora é de verdade: eu tenho
oito.
— Pronto, tudo bem. Vou te colocar na cama e...
— Não, não, não, Jared eu não quero, ela vai me levar embora. – O
modo como ele se agarra a Jared me comove.
— Leva ele para nossa cama. – Jared aceita a ideia e vamos para
nosso quarto. Ben soluça assustado. – Deita ele aqui. – Peço apontando
nossa cama.
Benjamin se deita em nossa cama chorando como o garotinho que é.
Pego um copo de água e estendo para ele. Precisamos acalmá-lo para ele
entender que foi apenas um sonho e que seu medo de ir é que causou o
pesadelo.
— Toma, Ben. Um pouquinho de água para se acalmar.
— Eu tenho oito anos. – Ele diz com os olhos inchados de tanto
chorar e soluçando enquanto tenta tomar uns goles de água. Jared está de
pé, olhando sem saber como agir.
Eu só conheço um jeito de acalmar alguém, enchendo de carinho e
cuidados e, a menos que Benjamin me empurre para longe, é isso que vou
fazer, ele tem oito anos, acaba de admitir isso e agora posso cuidar de um
garotinho.
Afasto seus cabelos, seco suas lágrimas, o desespero vai cedendo
lugar à surpresa. Sinto dor no coração de ver o rosto inchado e vermelho de
tanto chorar, os suspiros profundos da calma chegando aos poucos.
— Está melhor?
— Acho que estou com muita febre.
— Só está nervoso, não tem febre. – Toco sua testa entre os
carinhos e cuidados, ele tornou nossas mãos o seu termômetro particular.
— Vê, Jared. – Ele sempre precisa de uma segunda opinião. Jared
se junta a nós no mesmo segundo, acho que estava apenas à espera de um
pedido. Toca a testa de Ben e acaricia seu rosto abatido.
— Não tem febre.
— Minha cabeça está doendo. – A voz manhosa é um convite que
aceito pegando Ben no colo. Ele já não é mais tão magrinho e sinto a
diferença.
— É porque chorou. Quando se acalmar vai passar. – Abraço Ben.
Ele se encosta em mim. Que dia difícil... – Que bom que tem oito anos e
assim eu posso pegar você no colo, eu gosto muito disso! – Conto beijando
seu rostinho manhoso.
— Foi um sonho ruim, Ben. Só isso. Tem medo daquele abrigo? Foi
lá que se machucou? – Jared pergunta.
— Não. Lá eu só fiquei quieto, tem meninos grandes lá. Tenho
medo deles. Eu não tenho quarto só meu e nem poltrona. – As relações que
faz com espaço, tudo que viveu antes, tudo que nota de diferença agora, a
vida dele foi uma sucessão de dores.
— Aqui você tem e vai continuar tendo, não vai embora.
Jared avisa a ele, Benjamin não parece nada confiante, acho que só
mesmo depois que Amanda fizer sua visita, ele vai conseguir se acalmar.
Sinto ainda mais medo de como vai se comportar na presença dela.
— Na loja tem telefone, vai lá e liga para ela, fala que não é para ela
vir aqui.
— Ben, eu não posso fazer isso, ela precisa vir aqui ver você. Ela
precisa saber como você está, se está bem.
— Fala que eu estou, mas não conta que eu quebrei o telefone, nem
que eu xinguei.
— Mesmo assim ela vem. – Aviso a ele que começa a ficar nervoso
de novo.
— Que mulher chata! – Ele reclama e acabo sorrindo assim como
Jared.
— Vamos dormir?
— Eu não estou com sono, melhor não dormir, assim não chega
nunca amanhã.
— Melhor dormir aqui do meu lado e, se sonhar de novo, é só me
chamar. – Eu me deito ao lado dele, Jared se acomoda ao meu lado. Ele
olha de um para o outro.
— Vou dormir aqui também?
— Sim. – Cubro Benjamim, beijo sua testa. ─ Que lindo! Estou
achando muito bom você dormir aqui.
— Está? Acha também, Jared?
— Acho. Eu estou feliz, agora temos que dormir, amanhã vai
trabalhar comigo.
— Eu? Lá na loja?
— Sim. Depois do almoço. – Sei o que Jared planeja, quando
Amanda chegar, Ben vai ter uma crise, é melhor que não esteja aqui.
— Então eu vou dormir. – Benjamin fecha os olhos, ficamos os dois
olhando sua pequena luta para pegar no sono, até que sua expressão relaxa,
ele para de se mover e adormece lentamente.
— Vou ficar com ele na loja, quando ela chegar você me chama,
quem sabe evitamos um drama. Não sei o que ela pode pensar se ele tiver
uma crise.
— Está certo. Que dia longo. – Movo-me e ele me abraça, suspiro
fechando os olhos. – Acha que ele vai dormir até amanhã?
— Vamos torcer. Agora tenta dormir também. Amanhã vamos
precisar de forças.
Abro os olhos, beijo seus lábios. Ele me faz um carinho no rosto,
me beija mais uma vez.
— Nem vai ter você me puxando pela manhã.
— Uma grande perda para a humanidade. – Ele brinca e, no fundo,
eu até acho que é mesmo, ao menos é uma grande perda para mim, mas vale
a pena quando sinto Benjamin ressonar tranquilo ao meu lado.
— Boa noite, amor. – Ele sorri de olhos fechados.
— Boa noite.
Capítulo 27
Claire
Agora eu tenho que me acostumar a falar pai e mãe, achei bom isso,
Jared falou que é meu pai mesmo. Coitado, ele não sabia que tinha eu e eu
não sabia que tinha ele. Isso foi ruim, mas eu pareço ele, meu cabelo é
igual, meus olhos são iguais, eu fico bravo igual, vou ficar alto e ter loja
igual, fazer tudo igual.
E tenho uma mãe bem bonita, que faz carinho até se não tenho
febre. Escovo os dentes que nem ela mandou, eu quero ser bonzinho para ir
ao parque. Depois que termino, vou olhar meu dinheiro, está no mesmo
lugar que deixei, vou guardar até o dia de ir ao parque e comprar um
algodão doce bem grande e uma coisa para minha mãe de presente. Se der o
dinheiro, vou ao tiro ao alvo e ganho um urso para ela. Desço correndo as
escadas.
— Não corre, Ben. – Ela grita da cozinha e vou bem sem correr o
resto da escada. Os dois estão na cozinha. – Senta para tomar café.
— Mãe, é hoje que vamos ver esse negócio de escola?
— Sim, depois do café. ─ Os olhos dela ficam cheios de lágrimas
de novo.
Estou com um pouco de medo, e se as crianças rirem de mim?
Nunca fui numa escola. Se a professora brigar comigo?
Meu pai faz um carinho no meu cabelo e beija minha mãe antes de
ir para o trabalho, depois minha mãe olha para mim, acho que é hora de ir.
— Vamos só conhecer a escola, falar com a diretora, não vai ficar
lá. Tudo bem?
— Acho que agora eu tenho pai e mãe, então é capaz de ninguém rir
de mim.
— Claro que ninguém vai rir de você, Ben, vai ter amigos como o
Michael.
— Você acha? – Ela sorri enquanto vamos andando para porta.
— Tenho certeza, e vai trazê-los para brincar aqui e vai brincar na
casa deles.
Entro no carro sem acreditar muito, acho que ela pode estar
enganada, não sei se alguma mãe vai deixar eu ir, eu faço coisas feias, xingo
e brigo.
— Põe o cinto. – Obedeço, minha mãe dirige bem, até esse carro
grande que eles têm.
— Esse carro aqui é meu também?
— Claro. É nosso, somos uma família, Ben, tudo é seu também.
— É porque sou filho dos dois, vocês não têm filhos e, por isso, sou
de vocês. Só nós três, a casa é pequena, não é mãe? – Ela me olha com os
olhos cheios de lágrimas. – Você quer chorar de novo? De feliz?
— Agora que tenho você e seu pai só choro de feliz.
— É porque a gente gosta muito de você e você gosta de meninos
de oito anos. – Será que vão pensar que tenho dezesseis na escola? – Mãe,
você fala que tenho oito anos?
— Falo.
Ela para na porta da escola, é grande e fico um pouco com medo.
— Acho que eu estou com um pouco de febre, mãe. Podemos voltar
algum dia, depois de hoje.
Minha mãe acha bem engraçado, ela solta seu cinto, sorri e toca
minha testa, me abraça.
— Está bem. Nada de febre.
Ela desce e faço o mesmo, eu fico perto dela, bem pertinho mesmo,
querendo sempre voltar.
— Importa-se se eu segurar sua mão? – Ela pergunta e eu gosto, até
quero sorrir, mas é melhor não ficar sorrindo ainda, vai que a escola é ruim
e fico de risinho.
— Pode mãe, as mães podem.
A gente anda por um corredor e uma moça sorri e fala com a minha
mãe um pouco, mas não presto atenção só fico olhando em volta.
— Vamos, Ben. Conhecer a escola? – A moça convida.
— É Benjamin. – Nem conheço ela, como que ela fica me
chamando de Ben? É só minha mãe e meu pai que me chamam assim.
Chegamos numa quadra, têm umas crianças jogando, elas parecem
que gostam de brincar, ninguém anda sozinho, sempre tem amigos e depois
olhamos umas salas e corredores, e aí chegamos à sala da diretora.
Ela é uma senhora e manda a gente se sentar. Eu me sento, mas
ainda fico segurando a mão da minha mãe, as duas ficam conversando sobre
a escola, que horas que vou estudar e quando que eu começo e só fico
quieto.
— Quer perguntar alguma coisa, Benjamin?
— A professora pode brigar?
— Não, mas se fizer algo errado ela chama seus pais aqui e conta
para eles.
— Só fofoca mesmo, nada de brigar? – As duas ficam rindo e a
diretora diz que sim. Depois dá um papel para minha mãe com as coisas que
preciso comprar.
Deixamos a escola, entro no carro e aperto o cinto, minha mãe me
olha.
— E, então, quer tentar?
— Quero. Mas não vai me esquecer aqui não? Eu não sei ir embora
sozinho.
— Ben... – Ela fica bem me olhando. – Você é meu filho, nunca vou
esquecer você, nem seu pai vai.
— Ele pode me buscar um dia?
— Muitos dias, eu fico na loja e ele te busca.
— E nunca mais vou trabalhar com meu pai? – Eu gostei muito de
trabalhar na loja.
— Vai. Aos sábados, se fizer as lições e tirar boas notas.
— E se eu não tirar boas notas? Devia ter perguntado para aquela
diretora.
— Vai estudar mais e ficar sem videogame.
— Só isso? – Isso é burrice, se eu faço coisas feias eles nem
brigam? – Oh mãe, isso não é só um pouco burro?
— Não, isso é amor. – Ela para na frente do mercado. – Vamos
comprar umas coisas.
— Como que é isso que você falou?
— Amor? – Balanço a cabeça em um sim.
— Nunca passa, sempre vou amar você e seu pai. Se fizer algo
errado, eu vou ficar triste, mas vou continuar te amando do mesmo jeito. Se
pedir desculpas, eu desculpo.
— Sempre?
— Sempre. Agora vamos às compras.
Ela me deixa empurrar o carrinho e diz que posso pedir qualquer
coisa, mas eu ainda tenho um pouco de vergonha de pedir coisas. Toda hora
ela pergunta, quer isso, quer aquilo, ela se preocupa muito.
Acaba que ela leva sorvete e chocolate. Quando chegamos em casa
está perto da hora do almoço.
— Pode chamar seu pai?
— Eu vou, eu vou contar tudo para ele.
Entro na loja, minha mãe me mandou, então eu posso entrar. Fico
bem quieto enquanto meu pai fala com um moço e espero o moço ir embora
e ele atender o outro que tem uns rapazes com ele e, quando sai todo
mundo, meu pai se aproxima.
— Minha mãe chamou para almoçar.
— Vamos lá.
— Pai, sabia que fui à escola e vou começar minhas aulas? Amanhã
não, tem coisas para comprar. Como que faz isso agora?
— Eu compro.
— Tá bom. – Entramos em casa, minha mãe já está arrumando as
coisas do almoço, ela cuida de tudo. Depois fico estudando um pouco com
ela. Meu pai fica sozinho na loja, acho que ele fica com saudade.
— Ficou perfeito! Sua professora vai gostar tanto! ─ Ela sempre
adora minhas lições, porque eu faço tudo bem certinho, gosto mais dos
números, mas ela diz que tenho que chamar de matemática.
— Já está ficando de noite, não vai fazer o jantar hoje?
— Não, vamos comer hambúrguer.
— Eu gosto. – Ela me dá um beijo na testa.
— Então vai se arrumar. Toma banho e penteia esse cabelo. Eu
devia cortar um pouco.
— Não, mãe, meu cabelo é igual do meu pai.
A gente come hambúrguer numa lanchonete, os três juntos, é bom,
eles toda hora olham para mim, depois vamos para o carro. Nunca chega em
casa.
— Errou o caminho, pai? Está demorando.
— É um caminho diferente. – Quando vejo o parque está bem na
nossa frente, será que ele lembra que queria vir um dia? O carro para.
— A gente parou bem no parque.
— Vamos?
— Eu vou agora? – Eles já vão me levar? Não acredito. – No
parque?
— Sim. Nós vamos, melhor irmos logo, tem muitas coisas para
fazer.
Minha mãe diz e descemos, fico feliz, sinto um pouco de vontade de
chorar, como minha mãe quando chora de felicidade. Acho que eu sei um
pouco como é agora.
— Ishi, pai, não trouxe meu dinheiro.
— Não precisa dele, Ben. – Meu pai me paga todas as coisas, que
adianta eu ter dinheiro? – O que quer fazer primeiro?
— Quero fazer tudo. – Eu conto a eles. Olho para os dois, gosto
muito deles, muito mesmo, mas não sei se gostam de abraços e essas coisas,
então não falo nada.
Vou na roda gigante, vou com meu pai e minha mãe, mas ela não
gosta muito, depois fico esperando numa fila para ir na montanha russa, só
com meu pai, minha mãe tem medo, meu pai é bem corajoso, ele nem grita
de medo.
— Que legal, podemos ir de novo? – Ele deixa e vamos mais uma
vez. Enquanto a gente espera na fila, minha mãe fica sentada no banco
acenando. – Pai, me empresta cinco dólares? Pago quando chegar em casa.
— O que quer?
— Ganhar um urso para minha mãe, é coisa de menina e ela vai
gostar.
— Certo, depois vamos ver isso. – Ele me dá cinco dólares.
A gente fica lá no tiro ao alvo e gasto todos os meus dólares, mas
não acerto. Meu pai compra umas fichas e ele mesmo joga. Loguinho ele
ganha.
— Ganhou, pai! – O homem dá um urso para ele e ele me entrega.
Minha mãe está batendo palmas de feliz e estendo para ela. Ganho um
abraço e um beijo.
— Obrigada, Ben. É lindo!
— De nada. Agora a gente pode comer algodão doce?
Eles fazem todas as coisas que eu gosto, ficamos um tempão.
— Podemos achar maçã do amor? – Minha mãe pede, mas é tarde e
acho que o homem já foi porque não achamos ele nunca e ficamos andando
o parque todo.
— Acho que ele já foi? – Ela fica triste quando meu pai diz isso. –
Mas vamos procurar mais. – Voltamos a caminhar. Então, eu vejo o homem
chegando no portão. Já indo embora, mas não quero mais ficar andando.
— Ali, pai. Moço, espera! – Vou correndo buscar ele. Meu pai
compra logo quatro, de tanto que andamos atrás do homem da maçã do
amor.
— Não sabia que gostava tanto disso. – Meu pai diz de mãos dadas
com ela enquanto a gente vai para o carro.
— Nem eu, amor, me deu uma vontade...
— Já comeu duas, mãe. – Ela sorri, meu pai segura a outra e não
como a minha, acho melhor guardar para ela. Parece que ela quer todas as
maçãs do amor do mundo todo.
Fico com sono no carro, foi muito legal, nunca tinha passeado, foi a
primeira vez, achei muito bom.
— Com sono, Ben? – Olho meu pai pelo retrovisor, afirmo só com a
cabeça, estou até com preguiça de falar. Fico só pensando o que mais eu
gostei e não sei direito.
Durmo bem rápido, minha mãe me cobre, meu pai fica de pé na
porta olhando, nem ligo para nada, só durmo e de manhã quando eu desço
meu pai já até foi trabalhar.
— Dormi bastante. Foi muita coisa que eu fiz ontem.
— Foi mesmo. Deixei você dormir bastante porque amanhã vai sair
cedo para a escola, como combinamos.
— A gente vai comprar as coisas da escola?
─Assim que tomar seu café. – Ela diz sorrindo. – E hoje não tem
lição, hoje vai só brincar.
— Posso ir na loja pagar meu pai? Ele me emprestou dinheiro e
esqueci.
— Vai lá. Não demora. – Eu vou correndo, meu pai está arrumando
as coisas.
— Pequeno duende, acordou.
— Sim, vim te pagar. – Estendo seu dinheiro, ele me sorri. – Eu
esqueci ontem. Desculpe, pai.
— É seu, Ben, o passeio ontem foi um presente. Gostou?
— Muito, o melhor dia de todos. Um dia a gente vai de novo?
— Vamos, e já achamos logo o homem da maçã do amor, sua mãe
fez a gente andar feito loucos, né?
— Foi mesmo. Andamos muito, fiquei com medo de nunca achar
aquele homem e andar para sempre.
— Sabe, pequeno duende, eu também pensei.
— Pode me levar na escola amanhã? Para aprender onde que é,
minha mãe já sabe, mas é bom os dois saberem, se um esquecer o outro
lembra.
— Ninguém vai esquecer, mas vou te levar sim.
— Tenho que ir comprar meu material com a minha mãe. Ela me
mandou não demorar.
— Então vai lá. – Ele só toca meu ombro, não fica abraçando toda
hora como a minha mãe.
Quando é hora de ir para escola eu não quero mais ir. Meu pai entra
no carro e fico olhando para minha mãe com vontade de ficar com ela. Ela
acena, manda um beijo e partimos.
Nem converso no caminho, aperto a mochila com medo, tento
prestar atenção no caminho para voltar sozinho, mas é um pouco longe e
toda hora meu pai muda de rua.
Ele estaciona, tem crianças chegando, umas de carro, outras
caminhando, algumas com adultos, outras sozinhas.
— Ben, eu ou a sua mãe estaremos aqui quando sair, não vai ficar
sozinho nunca mais. Lembra que disse que quero ser um bom pai?
— Lembro.
— Esse é o dinheiro do almoço. Aqui está o telefone da loja e o de
casa. – Ele me entrega um papel. – Na escola a diretora também tem, sua
mãe deu para ela, mesmo assim, fica com isso, só para não ter medo. Se
tiver medo, liga e venho na hora.
— Eu vou, se eu não gostar não vou mais nunca!
— Acho que vai gostar. Boa sorte.
Eu ando em direção à porta, a moça de antes vem me ajudar, ela é
boazinha, me leva em direção a minha sala. Na porta, eu vejo só meninos e
meninas do meu tamanho entrando.
— A senhora Thompson está chegando, pode se acomodar numa
das mesas.
Fico bem corajoso e entro, sento numa mesa que está vazia. O
menino do meu lado me acena, dá um sorriso e aceno de volta, é melhor,
não posso ficar xingando. Depois uma mulher entra, ela é um pouco velha,
mas parece boa, me manda ir até ela e vou com vergonha.
— Classe, este é Benjamin Brow. – Brow? Eu tenho o nome igual
do meu pai agora? Nem sabia disso. – Ele é novo e vamos ser bem gentis
com ele.
— Obrigado, senhora. – Minha mãe vai ficar feliz que falei
obrigado.
— Pode se sentar, Benjamin.
Abrimos os livros e ela fica explicando umas coisas que já sei e
depois fazemos lição e até ajudo o menino do meu lado. Ele chama Ron e
ficamos amigos, almoçamos juntos e voltamos para nossa sala e ele é muito
legal.
— Esse sinal é de ir para casa? – Pergunto quando todo mundo
começa a sair, ele faz que sim.
— É. Quer ficar mais? – Ron pergunta rindo.
— Eu não, minha mãe deve estar querendo me ver.
─Pede para ela deixar você ir lá na minha casa no sábado, daí
podemos brincar. Você tem videogame?
— Tenho, e fui no parque outro dia com meu pai e minha mãe.
— O parque é legal, quer ir lá em casa? – A gente vai andando
juntos para a saída e vou ficando com um pouco de medo de não ter
ninguém.
— Tenho que pedir para meus pais, depois eu te falo.
— Tchau, Benjamin, minha mãe está ali. – A mãe dele sorri.
— Pode me chamar de Ben se quiser.
— Tá bom. Tchau, Ben. – Olho para os lados e vejo minha mãe,
meu coração já estava batendo forte.
— Que ansiosa que eu estava! – Ela me abraça e me dá um beijo. –
Quero saber tudo.
— Eu tenho um amigo, ele me chamou para ir na casa dele, eu
posso ir?
— Você quer? – Faço que sim. – Então, vamos ver, primeiro preciso
conhecer a mãe dele, saber onde mora e se ela pode recebê-lo, depois eu
deixo.
— Tudo bem. Não aprendi nada hoje, só tinha coisa que eu já sabia.
— É, talvez eu tenha ido longe demais com você. Quem manda ser
tão esperto?
— Sabia que eu chamo Brow? A senhora Thompson que falou.
— Sim, Benjamin Brow, como seu pai, estamos resolvendo isso
melhor. – Acho bom isso.
— Sobrou dinheiro do almoço.
— Então guarda, não estava querendo juntar dinheiro para um jogo
novo?
— Estava, mas eu decidi esperar o Natal. Acha que papai Noel
existe?
— Acho. – Entramos no carro, coloco o cinto. – Ele me deu você e
seu pai, só posso achar que sim.
— Vamos para casa agora?
— Antes vamos ao mercado, quero comprar morangos.
— Mais? Não comprou ontem.
— Comi todos, Ben, não consigo parar de comer morangos. –
Minha mãe anda muito estranha, e gostando muito de coisas vermelhas.
Capítulo 30
Jared
Capítulo 33
Claire
Meu pai vem me buscar logo cedinho, ainda bem que ele veio, eu
nem dormi de preocupação. Meus tios são legais, mas eu gosto mesmo da
minha casa com meus pais e agora minha irmã bem bonitinha.
— A gente vai pegar as duas e voltar para casa? – Pergunto sentado
ao lado dele no carro. Ele faz que sim. – Veio só me buscar para te ajudar?
— Isso. Achei que estava querendo ficar com a sua mãe e a sua
irmã.
— Eu estava. Você ficou preocupado comigo? Lá no hospital? –
Pergunto para ele.
— Claro que fiquei, Ben, pensando se tinha comido, dormido. É
meu filho igual Angel, mas eu falei com seu tio Zack duas vezes só para ter
certeza que meu filho estava bem.
— Verdade. – Meu pai para o carro no estacionamento do hospital.
– Pai, sabia que eu disse para minha mãe que eu a amo? – Ele sorri, tira o
cinto e me olha.
— Que bom que disse, ela me contou.
— Foi mesmo. Eu amo você também. – Digo para ele, se não ele
vai pensar que amo só minha mãe.
— É bom ouvir isso. Também amo você, Ben. – Ele me abraça,
nem estava esperando. Eu gosto mesmo assim, depois ele me faz carinho no
cabelo. – Vamos pegar as meninas?
— Vamos. – Descemos, minha mãe já está toda prontinha sentada
numa cadeira de rodas com Angel no colo. Toda enroladinha numa coberta
rosa.
— Que saudade! – Minha diz logo que me vê, ela tem sempre muita
saudade minha. Eu já abraço ela. Porque eu sei que ela sempre quer abraços
meus, olho o rostinho da Angel, os olhinhos estão fechados. Passo a mão
bem devagarzinho na cabeça dela.
— Pode beija ela? – Pergunto. Minha mãe faz que sim e beijo sua
cabeça. – Acho que ela está com calor, mãe. Nem dá para ver ela direito. –
Meu pai beija minha mãe, pega a bolsa com as coisas delas.
— Ela é bebê, Ben. Precisa ficar enroladinha assim. – Minha mãe
explica, mas gosto mais dela sem todas as cobertas, para poder ver ela
direitinho.
— Deixa eu pegar ela?
— Em casa. – Ajudo meu pai a arrumar todo mundo no carro, só
minha mãe que carrega ela, eu também queria, mas no carro eu que vou do
lado dela presa no cestinho no banco de trás e mamãe na frente. Quando
chegamos vamos direto para o quarto, minha mãe me dá ela no colo na
hora. Ainda bem, acho que ela me queria um pouco, eu sou irmão dela. –
Tem sempre que segurar a cabecinha, Ben.
Nossa... será que a cabeça é solta? Eu seguro como ela falou.
Coitada da menina. Meu pai chega no quarto trazendo umas coisas para
minha mãe.
— Ben, vou ajudar sua mãe com o banho e fica com a sua irmã.
Mas sentado, tudo bem? – Meu pai pede.
— Eu sei, se não a cabeça dela cai. – Meu pai me olha achando
engraçado.
— Um tanto drástico, eu diria.
Fico sozinho com Angel, ela só de olho fechado.
— Sabia que eu sou seu irmão, Angel? Minha mãe e meu pai que
disseram. Eu gosto de você. Ajudo minha mãe e tudo. Você tem um monte
de cabelo. Eu que escolhi seu nome. Angel, é bem bonito e todo mundo vai
gostar de você. Todo mundo que gosta de mim me chama de Ben, você
também pode me chamar.
Ela abre os olhos só um minutinho, depois já fecha.
— Você só dorme. Quando crescer a gente vai ter o mesmo quarto,
eu deixei. E deixo você sentar na poltrona, e a gente tem tios e primos. —
De novo ela abre os olhos e depois fecha. — E vai ter a Mary para brincar,
mas não vou deixar a minha mãe ficar toda hora com ela no colo, não se
preocupa.
Minha mãe volta para o quarto, ela anda bem devagar e o meu pai a
ajuda a se acomodar na cama.
— Vamos colocar a Angel no berço? – Meu pai convida.
— Acho que ela quer ficar comigo.
— É que eu queria abraçar você um pouco Ben, fiquei um tempo
longe.
Entrego minha irmã para meu pai e vou ficar perto da minha mãe,
ela fica me fazendo carinho no cabelo enquanto meu pai fica andando pelo
quarto com a Angel no colo. Ele nem coloca ela na cama.
Eles me deixam dormir com eles e acho que é bom, mas só hoje,
porque a Angel acabou de chegar e todo mundo que ficar perto dela.
De manhã, tenho que ir na escola, não gosto mais de escola, gosto
de ficar em casa cuidando da minha irmã, mas eu vou, para aprender mais
coisas e contar que minha irmã nasceu. Todo mundo vem visitar ela, a Mary
adora, o Samuel é muito pequeno e a Carol também, mas eles vão ser
amigos e logo minha mãe fica boa e anda para lá e para cá.
Tinha me esquecido como que ela era sem barriga, bem mais bonita.
Angel dorme demais e mama toda hora e, por isso, ela fica no quarto dos
meus pais, ele quer aumentar a casa, construir mais um quarto, porque ele
acha que eu preciso de um espaço só meu e eu fico pensando em como ele
se preocupa comigo, eu não sabia que podia ser assim.
A minha outra mãe falava coisas feias dele, mas ele não é nada do
jeito que ela falava, ele é bom e muito amoroso, engraçado, ele me chama
de pequeno duende, mesmo que eu tenha nove anos, só vou crescer com
dezesseis, mas vai demorar muito.
Tenho um monte de amigos na escola, eles vêm brincar na minha
casa e eu vou às vezes na deles, mas sempre fico com saudade, só na casa
do meu tio que eu não fico com muita saudade, porque o tio Zack me ensina
muitas coisas sobre motos, ele disse que eu posso trabalhar com ele e a tia
Abby me ensina a lutar. Sei alguns golpes, mas só pode usar para o bem,
nada de bater em ninguém na escola, mas eu não vou trabalhar com meu tio
e nem ser um ninja como a minha tia, eu vou cuidar da loja do meu pai
quando ele ficar velho.
Ele acha que já está ficando velho, mas eu acho que não, a gente vai
na floresta às vezes e pescamos, ficamos só os dois e conversamos, ele me
conta coisas e me ensina a me virar na floresta, onde conseguir comida e
água, ele diz que é importante e eu aprendo tudo, mas vou mesmo é cuidar
da loja quando crescer.
Ele é muito meu amigo, o melhor amigo do mundo. Nunca mais
falei coisas feias, nunca mais fiquei com medo, vamos ao parque sempre,
fazemos tantas coisas legais e eu fico ganhando algum dinheiro, fico
pensando em comprar um presente para minha irmã, ela é tão bonitinha e
sempre sorri para mim.
— Oi, pai! – Digo entrando na loja e caminhando até ele, meu pai
afaga meus cabelos.
— Chegou! Como foi na escola?
— Tudo bem, eu aprendi muita coisa nova, pai, e adivinha! Eu
joguei basquete e o professor falou que eu vou ser bem alto, ele disse que
eu posso jogar alguma coisa.
— Puxa! Parabéns! Eu vou assistir todos os seus jogos.
— Pai, você é tão legal! – Eu fico só imaginando meu pai feliz me
vendo jogar, eu vou jogar sim e ganhar uns troféus. – Tenho que ir para
casa, só vim avisar que cheguei, minha mãe quer terminar o jantar e vou
cuidar da Angel.
— Muito bom, eu logo estou em casa. – Ele me sorri antes que eu
volte correndo para perto da minha mãe. Minha vida é feliz, eu não sabia
que podia ser assim, agora eu nem ligo para as marcas que ficaram da surra
daquele homem, meu pai também tem e ele diz que chamam cicatrizes.
Eu tenho, minha mãe tem e meu pai também, mas a Angel não tem
nenhuma e eu acho que nunca vai ter, porque vamos cuidar dela. O meu pai
disse que é assim que somos, que cuidamos uns dos outros, e Angel tem
muita gente para cuidar dela e eu vou ser o mais cuidadoso e dos meus
primos também, sou o mais velho, vou cuidar da família.
Minha mãe coloca Angel no meu colo e fico na minha poltrona
ensinando Angel a jogar vídeo game, feliz, eu pensei que eles nunca
ficariam comigo, mas filhos não vão embora e pais são bons, os meus são
os melhores.
Capítulo 35
Jared
Fim