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Mônica Cristina

~ 2023 ~
Copyright © 2023 - Mônica Cristina

Corações Quebrados (Jared & Claire) – Mônica Cristina


1ª Edição

Capa: Raphael Viana


Revisão: Elaine Nazareth
Diagramação Digital: VM Diagramações

Esta é uma obra de ficção. Seu intuito é entreter as pessoas. Nomes,


personagens, lugares e acontecimentos descritos são produtos da
imaginação da autora. Qualquer semelhança com nomes, datas e
acontecimentos reais é mera coincidência.
Esta obra segue as regras da Nova Ortografia da Língua Portuguesa.
Todos os direitos reservados.
São proibidos o armazenamento e/ou a reprodução de qualquer parte dessa
obra, através de quaisquer meios — tangível ou intangível — sem o
consentimento escrito da autora.
Criado no Brasil.
A violação dos direitos autorais é crime estabelecido na lei n°. 9.610/98 e
punido pelo artigo 184 do Código Penal.
Sumário

Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Capítulo 32
Capítulo 33
Capítulo 34
Capítulo 35
Capítulo 1
Claire

As ruas de Atlanta estão como sempre agitadas. Seis e quinze e o


céu já começa a ganhar tons noturnos. Meu ônibus se aproxima e, depois de
caminhar pelo corredor apertado, eu me acomodo no último banco.
Olho pela janela acompanhando a pressa comum das pessoas em
direção as suas casas. Encosto-me no vidro do ônibus e minha mente
mergulha nos problemas que me cercam.
Amanhã interno minha mãe para a cirurgia, minha última esperança
de vencer o câncer. Vencemos uma vez quando eu era criança, meu pai não
aguentou a pressão e nos deixou, mas mamãe foi forte e venceu a doença,
eu tinha doze anos e me lembro da sua força de passar por tudo isso sozinha
enquanto criava uma filha. Acho que naquele tempo eu não tinha ideia do
que realmente ela estava enfrentando, mas agora sei e sei que ela é a mulher
mais forte que eu conheço.
A doença está de volta, esperou treze anos para retornar. Esperou
que eu tivesse idade o bastante para cuidar dela ou tentar. Ela não pode nem
sonhar que acabo de perder o emprego e que estamos prestes a ser
despejadas.
Tive que fazer escolhas. Remédios caros, exames, cirurgia e boa
alimentação ou pagar o aluguel. Que escolha eu tinha? O senhorio até que
foi paciente, mas ele precisa do dinheiro e não tenho escolha senão
desocupar o imóvel em cinco dias.
Agora, sem emprego, não tenho ideia de como conseguir outro
lugar para viver com ela. Pedi três dias de folga para cuidar da minha mãe
no hospital e achar um lugar para vivermos, meu chefe preferiu me demitir.
Tento fechar os olhos e relaxar um pouco, mas não tenho como
fazer isso, simplesmente não consigo, não sei como contar a ela, não sei
como resolver nossos problemas, falimos, eu fiz isso, fracassei, ela
enfrentou a separação, a doença e tudo isso enquanto me criava e
continuamos bem, mas eu não consegui cuidar dela e manter o aluguel em
dia, não consegui manter a droga de um emprego.
O ônibus me deixa a dois quarteirões de casa e caminho com
passos lentos, não é fácil enfrentar meu fracasso.
Quando entro na pequena casa que cresci, sinto meu peito apertar.
Vai ser um grande baque para ela saber que teremos que deixar esse lugar.
— Que bom que chegou! – Minha mãe se ergue. Pálida, abatida,
com um lenço na cabeça agora totalmente lisa. Perder os cabelos por conta
da quimioterapia nem foi a pior parte do tratamento, não era a primeira vez
e ela soube lidar com isso. Abraçamo-nos, desde sempre ela me recebe com
um longo abraço, é sempre o melhor abraço do mundo.
— Como se sente? – Pergunto tocando o rosto enrugado e sofrido
enquanto escancaro um sorriso falso que ela sabe reconhecer, mas não diz
nada para não me magoar.
— Muito bem. Passei o dia assistindo televisão e lendo um pouco.
Comi a sopa que me deixou e estava ótima. – Ela mostra seu lado resiliente.
— Que bom. Sabe que temos que chegar cedo ao hospital e que
precisa estar em jejum, então, que tal mais um pratinho de sopa agora e
depois cama?
— Se comer comigo aceito. – Ela diz com um sorriso verdadeiro e a
seguro pela mão para irmos juntas para a cozinha, mamãe se acomoda
enquanto aqueço a sopa e tomamos juntas falando sobre futilidades
propositadamente, eu sei que, como eu, ela está tensa com a cirurgia e fingir
um pouco de normalidade parece uma boa tática de sobrevivência.
Ela vai para cama, eu fico pela casa, sem sono, sem forças, com
uma vontade louca de chorar feito um bebê, eu me sinto sozinha, com
medo, com vergonha, perdida e cansada.
Vamos ter que deixar Atlanta. Uma cidade um pouco menor talvez
seja mais barato viver. Um quarto de pensão em qualquer lugar próximo a
um trabalho onde possa ganhar algum dinheiro e recomeçar.
Sem escolha, vou para cama, é como ter pregos no colchão, me viro
de um lado para outro e custo a adormecer. São tantos os medos que nem
sei qual deles me aflige mais. Um rápido olhar para dentro de mim e
constato que perder a única pessoa que tenho é o pior deles.
Um táxi nos leva ao Grady Memorial Hospital. Quando
caminhamos em direção a recepção, meu coração está a mil, mas finjo
tranquilidade e otimismo.
Assino os papéis da internação, entrego o cheque com todo dinheiro
que tenho na vida, o dinheiro que juntei com muito trabalho e vendendo o
pouco que tínhamos, o carro, um colar que foi da minha avó e todas as
economias de uma vida, mas que se dane, se conseguirmos superar isso,
então valeu a pena.
Minha mãe fica confortável no quarto de pré-cirurgia e eu vou ao
encontro do médico que me recebe convidando-me a sentar com um sorriso
genuíno que me enche de esperança.
— Já vi que sua mãe está pronta. A cirurgia será daqui a duas horas,
nossa equipe está se preparando. Sabe que é nosso último recurso. – Pensar
que acreditei no sorriso de recepção... mas agora a expressão é séria e o tom
grave em sua voz me apavora. — Os exames estão ruins, Claire. A
Quimioterapia não teve o efeito esperado, eu realmente não tenho certeza
sobre o que vou encontrar quando abrir sua mãe e quero que fique
preparada para o pior.
Balanço a cabeça em uma afirmação sem coragem de perguntar o
que isso realmente quer dizer, fico de pé desejando sair o mais rápido
possível, como se longe dele eu pudesse fugir da realidade.
— Obrigada por tudo, doutor. – Corro para junto dela, encontro
minha mãe com os olhos perdidos olhando o céu pela grande janela. Sento-
me na beira da cama e seguro sua mão.
— Fiz tudo que pude, mas não te deixei viver como merecia, não é?
– Ela diz amargurada.
— Que tolice está dizendo! Fui e sou muito feliz. – Meus olhos
marejam com sua preocupação.
— Não. Passou seus dias em torno de uma mãe doente. Tudo que
tem feito é trabalhar e cuidar de mim. – Ela aperta minha mão com força e
eu deixo a primeira lágrima cair.
— Vai ficar boa. Não é um peso, mãe. Pelo contrário, é a minha
força. – Digo com convicção.
— Não temos certeza de que eu vou ficar boa e precisa ficar
preparada. – Nego, eu não quero essa conversa.
— Mãe, eu não quero falar sobre isso.
— Precisamos. – Ela aperta minha mão. ─ Não pode fugir disso,
precisa pensar em você, construir uma vida. Quem sabe um namorado? –
Ela sorri por entre as suas lágrimas e balanço a cabeça negando outra vez
enquanto um sorriso tolo escapa por entre as lágrimas.
— Mãe, eu sei o que pensa, vinte e cinco anos e nada de namorar,
mas agora é hora de pensar na sua saúde, cuidar dela é a minha prioridade,
ainda tenho muito tempo para pensar nisso.
— Sabe, filha, seu pai foi fraco quando nos deixou. Isso não quer
dizer que não tem um bom homem por aí para dividir a vida com você.
— Não gosto do tom dessa conversa, mãe. Logo vai para o centro
cirúrgico, não faça isso.
— Prometa que vai lutar por sua felicidade. – Ela me pede.
— Mãe...
— Prometa. – Ela insiste, é urgente para ela, seus olhos imploram
por uma promessa e junto minhas forças.
— Eu prometo. – Abraço minha mãe, choramos juntas, e a
enfermeira interrompe nosso momento, pronta para levá-la. Sinto uma
urgência, uma dor que me domina, aperto sua mão e preciso de toda força
que há em mim para libertar sua mão e desviar meus olhos, tento de todos
os modos decorar seus traços, guardar o calor de sua mão, a umidade de sua
face coberta de lágrimas.
Sem saber como esperar, eu deixo o quarto, desço a recepção em
busca de um pouco de ar, o hospital parece me oprimir e o movimento do
saguão me faz esquecer um pouco o desespero.
Dois policiais chegam trazendo um senhor com um machucado na
testa. Eles encaminham o doente e conversam um pouco na recepção, um
deles me observa de um jeito ostensivo, mas talvez seja minha expressão de
desespero que deve estar preocupando a todos e decido voltar para o centro
cirúrgico à espera de notícias.
— Claire. – O médico se aproxima com uma expressão grave que
faz minhas pernas perderem as forças e meu coração bate tão acelerado que
penso que, talvez, eu simplesmente não suporte ouvir o que ele tem a me
dizer. – Sinto muito. Abrimos com alguma esperança, mas está tudo
tomado. Alguns pontos em estado avançado demais para qualquer coisa.
Ela estava muito fraca, teve uma parada cardíaca.
— Minha mãe...
— Não, mas ela tem pouco tempo. Não sei dizer se ela vai acordar.
Se sobreviver a essa noite, eu não acho que tenha mais do que umas
semanas. Sinto muito. Pode ficar com ela agora. – Ele aperta meu ombro,
fica um minuto diante de mim enquanto eu tento domar minha dor. Ele
parece não saber mais o que dizer e eu também não sei como agir, tento
focar no momento presente.
— Eu... Obrigada, doutor. – Não sei por que agradeço. Mas também
não encontro outra coisa para dizer e, então, uma enfermeira me
acompanha.
Tão frágil, pequena, debilitada, ao mesmo tempo, toda a força da
minha vida, toda a coragem e esperança que tenho. Como pude prometer a
ela ser feliz? Eu nem sei se consigo respirar sem ela, minha vida toda está
entrelaçada a dela.
Seguro sua mão, beijo sua testa e fico olhando o rosto cansado, as
máquinas apitando, a vida que já foi forte e feliz, corajosa e encantadora,
agora soa como artificial.
— Precisa acordar, mamãe! – Peço a ela. – Não sei o que fazer
sozinha. – No fim, eu acabei completamente ligada e dependente dela,
passamos tanto tempo juntas que eu não vi o mundo, eu nunca saí do seu
lado, da nossa pequena e perfeita rotina, talvez tenha sido nosso erro, o
mundo lá fora me apavora, eu não estou preparada para ele, simplesmente
não estou.
É uma longa noite, as enfermeiras e médicos entram e saem, me
olham penalizados, mas me deixam ficar e ela continua a dormir seu sono
artificial, enquanto passo quase o tempo todo segurando sua mão. Acho que
eu nem poderia passar tanto tempo assim na UTI, devo causar pena a todos
eles.
O dia amanhece sem qualquer mudança em seu quadro, as minhas
esperanças vão se esvaindo, minha mente está tão atordoada que eu mal
consigo organizar minhas ideias e analisar a situação, eu só consigo assistir
as horas passando tão assustadoramente lentas que eu nem sei o que
significa.
— Está aqui a noite toda. Sabe que estamos monitorando tudo. Pode
dar uma volta, comer, respirar um pouco lá fora. Não precisa ficar o tempo
todo aqui. – A enfermeira segura minha mão. O que posso fazer? Onde
posso ir? – Se ela acordar vai precisar de você forte para cuidar dela.
— Eu vou tomar um copo de suco lá embaixo e volto! – Aviso à
enfermeira, beijo minha mãe, seu rosto e sua testa, me prolongo olhando
para ela e depois eu a deixo.
Quando chego ao saguão, eu não sei de novo o que fazer, perdida,
cansada, esgotada de tantas maneiras que meu raciocínio está lento.
— Precisa de ajuda? – Um homem me pergunta, usa um uniforme
de policia e me lembro de ser o mesmo homem a me olhar no dia anterior,
balanço a cabeça negando. – Tem certeza? Está doente?
— Não, minha mãe está, eu estava com ela, sabe onde fica a
lanchonete?
— Eu te acompanho. – O homem segura meu braço, Gordman, é o
que está escrito no uniforme. Ele me leva até a lanchonete, pede um café
para mim, eu tinha planos de um suco, mas atordoada com eu estou, aceito
o café, ele descansa a mão nas minhas costas, eu nem sei se gosto dessa
aproximação, mas não quero pensar, apenas tomo o café e, quando tento
pagar, ele não permite.
— Obrigada! Senhor... Gordman.
— Tudo bem! – Ele sorri gentil, acho que é gentileza, estou tão
esgotada e ele é um policial e um tanto mais velho, é claro que é gentileza e
relaxo um pouco. – Que acha de uma carona?
— Estou voltando ao quarto, mas agradeço. – Digo só me afastando
dele, passo por outro policial, mas ele apenas me sorri e eu pego o caminho
em direção ao elevador.
Quando me aproximo, vejo pelo vidro médicos e enfermeiros
agitados no quarto. Tento me aproximar e sou impedida por uma
enfermeira. Fico assistindo a luta dos médicos pela vidraça e, então, um
deles faz um sinal negativo, ergue os braços e, em seguida, tira as luvas.
— Não! – Grito colada ao vidro enquanto minha vida parece se
esvaziar.
Capítulo 2
Jared

O quarto é minúsculo, mas tem sido meu lugar no último ano, pode
ser que Zack ter mudado de vida tenha me incentivado, eu não sei, mas o
que me movia já não me move mais, as coisas não são como eu pensei que
seriam.
A vida de merda que eu tinha me fez quem eu sou e sempre achei
que não chegaria aos trinta anos. Eu não estava preparado para sobreviver,
mas tenho sobrevivido e, agora, tudo que antes parecia não importar,
começa a fazer sentido.
Nunca tinha ficado tanto tempo no mesmo emprego, o velho é um
homem bom, generoso comigo, teve paciência e acho que ele também tem
um pouco a ver com as coisas que estão mudando em mim.
Gosto da loja, se pudesse mudaria muitas coisas, mas gosto do
trabalho, estranhamente gosto até da vida pacata, mesmo com alguns
olhares tortos e um certo medo travestido de respeito com que as pessoas
me olham quando caminho.
Eu sou um Brow e todo mundo conhece nossa fama pela cidade.
Zack conseguiu mudar totalmente a dele, fez amigos, tem esposa, uma
garotinha linda, é estranho vê-lo sendo pai, rico, importante, um nome que
orgulha a cidade, talvez por isso eu não fique tão à vontade com ele como
antes.
Demorei para contar do trabalho e de onde moro, aposto que ele
achou que eu estava preso, agora a ideia de cadeia me rouba as forças, evito
brigas e não tomo um gole tem alguns dias.
O frio está diminuindo, talvez uma cerveja em uma noite de verão,
eu não sei, peguei um pouco de nojo, mas ninguém precisa saber disso, em
especial Abby Coleman, aquela princesinha republicana com quem meu
primo se casou não teria papas na língua e cairia na risada, acho que manter
esse meu jeito afasta as pessoas e eu quero exatamente isso.
Eu sei o que é desejar ter o que nunca vai receber, sei o que é ser
rejeitado, sei na pele, nas marcas que meu corpo guardou de uma vida de
abandono, sei disso com cicatrizes.
Atiro-me na cama e fecho os olhos sem querer me lembrar do
passado, mas é difícil esquecer, ele era ruim e pronto, não era a bebida, era
ruim sem ela, minha mãe não era melhor, os Brow nunca prestaram, o pai
do Zack era igual, morreram todos, mas até essa libertação, ficamos nas
mãos daqueles imbecis.
Eu sempre penso no Zack chegando para ficar, me lembro de olhar
para ele e pensar o que aquele pobre coitado tinha feito para o mundo para
acabar justamente ao meu lado no inferno.
Enquanto consegui, eu o protegi, mas depois, se eu ficasse, eu
mataria aquele verme, eu não queria aquele peso, eu não queria ser o
assassino do meu pai, a bebida estava fazendo isso, mas eu não conseguia
mais esperar.
Devia ter levado o Zack comigo ainda pequeno, teria poupado o
garoto de toda a violência que ele aguentou depois de mim, mas eu não iria
muito longe com ele, era só um adolescente e ele uma criança.
A vida não foi gentil comigo, eu caçava guerra, era só o que eu
conhecia, confusão, parece que era viciado em confusão, não tinha mais o
canalha do meu pai me machucando, ameaçando, fazendo terrorismo e a
vida não tinha sentido nenhum, então eu procurava.
Eu nunca soube falar com as pessoas, eu nunca tive paciência, eu
guerreava e, uma boa parte da vida, passei preso por isso. Na cadeia, eu
estava em casa, eu conhecia os caras, os códigos, mas nem por isso era
pacífico. A vida nunca foi pacífica para mim.
Agora é diferente, ver, mesmo que não tão de perto, o Zack
conseguindo uma história boa, me fez pensar que talvez, eu tenha uma
chance, não que eu possa ser um pai, um marido e nem seria capaz de ser
esse babaca meloso que diz coisas fofas e chama a mulher de meu amor, eu
não sei fazer isso, dá vergonha até de pensar, mas ficar fora da cadeia, ter
um trabalho e não ser o inimigo número um da cidade já é uma boa coisa.
Apago com alguma dificuldade, quando acordo e me sento na cama,
passa das sete da manhã, eu me estico. O quartinho é pequeno, mas tem
uma boa luz e o sol entra pela janela toda manhã.
Depois de um banho para despertar, pego a moto e vou tomar café
no John, o lugar parece um portal, de manhã, pacífico, com família e
homens de bem tomando café da manhã antes do trabalho. À noite, a boca
do inferno com todo tipo de escória da região, eu frequento os dois horários.
É, eu também não sou um anjo.
Ele me serve uma xícara de café e duas panquecas, sempre prefiro o
balcão às mesas onde vejo as famílias comendo.
John já foi um imbecil como eu e andamos juntos uns anos atrás,
mas ele se acertou com uma vadia dessas que estão dispostas a tudo por
dinheiro e agora é um dono de bar sem muito escrúpulo, mas com
estabilidade.
O xerife Parker está em uma das mesas com o filho pré-adolescente,
pai e filho comendo e conversando, pai e filho, eu nem sei como é isso,
acho que o meu pai nunca deu um sorriso que não fosse puro sarcasmo,
nunca me olhou nos olhos e nunca pensou em mim como gente, nem
pensou no Zack assim, eu nem sei como o Zack pode ser tão bom com
aquela garotinha, talvez o jeito seja fazer tudo oposto, porque amor, isso
não aprendemos.
— Bom dia, Jared! – O xerife me cumprimenta, a prefeita chega
com o marido, ela é uma demagoga que fica comendo nos lugares simples
da região para demonstrar parceria com a cidade, sorri e acena, é mãe de
um jovem canalha. À noite é ele que frequenta esse lugar achando que
pode tudo por ser filho da prefeita. Desde que não fique no meu caminho,
eu não ligo, o garoto é tão inconsequente que não dura muito. Eu já vi
muitos como ele, eu conheço o final da história, é doloroso, mas é problema
deles, que se danem todos.
— Jared, quando vai ver seu primo? – O xerife me pergunta depois
de pagar a conta.
— Não sei, essa semana talvez. Algum problema?
— Não, o Carl estava pensando em fazer umas aulas com a Abby,
eu pensei que podia dar uma carona a ele.
— Pode ser... – Olho para o garoto, não custa. – Mas vou de moto. –
O menino se anima todo.
— Deixa, eu levo. – O garoto murcha, eu rio, sinto pena, mas acho
que isso é cuidar do filho.
— Posso ir de caminhonete, eu sei, não confia em motos.
— Tudo bem, quando der para levá-lo avisa. Zack nunca vem à
cidade.
— Ele prefere mandar o Sam, se puder evitar, aqueles dois não
saem mesmo.
— Aquela garotinha vai acabar obrigando os dois a conviverem
mais na cidade! – O xerife toca meu ombro. – vejo você por aí!
Ele me deixa e John fica rindo com cara de cínico enquanto finge
limpar o balcão.
— Está rindo do quê, seu babaca?
— Jared, você é amigo do xerife! – Ele agora ri mais abertamente. –
A última vez que eu te vi com um xerife ele estava te algemando.
— Babaca, a última vez que eu te vi estava tirando dinheiro de uma
vadia e não sustentando ela.
— Você pega pesado! – Ele ri mais ainda. – Um dia, quando estiver
caidinho por uma mulher, eu vou rir muito.
— Tenho que ir. – Eu deixo o dinheiro no balcão. – Comida ruim,
preços altos, garçonetes péssimas.
— Elas gostam mais dos clientes da noite! – Ele brinca e eu deixo o
estabelecimento e volto para minha moto, a loja fica perto, mas não é
grande coisa. A cidade é tão pequena que, em dez minutos, você cruza de
uma ponta a outra, são os mesmos rostos, as mesmas pessoas, os mesmos
encrenqueiros, os rabugentos, os fofoqueiros, tudo igual, sempre igual.
O mais estranho é que eu quase posso me sentir parte disso, o que
sempre olhei com indiferença e até preconceito, tem aos poucos me feito
repensar. Lewis é um bom exemplo, o velho é generoso comigo, amistoso,
não liga para o jeito que eu falo, me aceitou tão bem que eu simplesmente
fui ficando, ficando e agora a loja fica praticamente em minhas mãos.
Quando coloco a mão no bolso para pegar as chaves e abrir a loja,
Mike está no portão se despedindo do marido, o casal se beija e Danny
entra no carro depois de me acenar e sorrir.
Eu pensei muita bobagem sobre eles, fui muito preconceituoso no
começo, admito que tinha vergonha até de cumprimentar, mas esse casal me
surpreendeu, foram tão legais comigo que eu acabei me sentindo um
imbecil, e hoje posso dizer que somos amigos.
Se meus velhos amigos me vissem conversando com eles, até indo
jantar na casa deles, eu nem sei, seria um desastre, mas aquela gente sumiu
da minha vida no minuto que eu deixei de ser briguento, drogado e bêbado.
— Bom dia, Jared! – Mike me cumprimenta e aceno respondendo
seu bom dia, depois entro na loja, acendo as luzes e começo a organizar as
coisas, o primeiro cliente entra antes mesmo de terminar de organizar.
Material novo para pesca, um conjunto completo, e promete trazer
os amigos que vêm para uma pescaria no fim da semana. Lewis chega
quase ao meio-dia, está velho, cansado, só trabalha mesmo por diversão, eu
acho. A loja tem uns quarenta anos na cidade, vem gente de todos os
lugares comprar com ele e, talvez por isso, ele mantenha o negócio.
— Quase não venho! – Ele diz se acomodando em uma cadeira atrás
do balcão. – Vai almoçar, depois a gente conversa um pouco.
— Olá, rapazes! – Mike entra na loja com um prato coberto com um
paninho bordado. – Trouxe um pedaço do empadão que eu fiz ontem para
vocês, aqueci.
— Mike, sabe que a senhora Lewis está com ciúme? – O velho
Lewis brinca.
— Ela acha que quero conquistar o senhor pelo estômago? – Ele diz
tirando o pano de cima do prato e o cheiro se espalha.
— Acha e vou dizer: o Danny que se cuide. – Lewis brinca pegando
um garfo na gaveta do canto e cortando um pedaço. – Divino! – Ele sorri
fechando os olhos.
— Vou dizer ao Danny que ele tem concorrência. – Mike brinca
antes de nos deixar e dividimos a torta sem constrangimentos.
Lewis me conta sobre como a esposa sempre o recebe com pratos
quentes e a mesa posta, da vida que dividem há cinquenta anos e a
felicidade que é viverem juntos, mesmo sem nunca terem tido filhos, eu não
sei se consigo me imaginar nessa vida, mas deve ser extraordinário ter
alguém.
— Está na hora de achar uma mulher, Jared, dar tempero à vida.
— Minha vida já teve muito tempero, Lewis.
— Não estou falando de pimenta, Jared, estou falando de ervas
finas, de perfumar a vida, de ter alguém para contar do seu dia e ter para
onde ir na noite de Natal.
— Fui visitar meu primo no Natal! – Ele ri.
— Ele conseguiu e não era assim tão diferente de você. Pense nisso.
– Nego, eu não quero problemas, eu sozinho já sou problema suficiente.
— Vou pegar uma caixa lá nos fundos, vendi todas as iscas e aquela
rede que tínhamos de mostruário.
— Pode fugir das minhas palavras, mas não da vida! Lembre-se
disso! – Ele fala mais algo enquanto eu deixo a frente da loja e finjo não
ouvir. O homem é bom, mas de vez em quando fica assim, me atirando
pragas.
— O senhor viu aquela caixa de flechas? – Pergunto remexendo na
bagunça que é o estoque.
— Vi, mas foi há semanas, eu sou velho, não me lembro onde. – Ele
me faz rir, é mesmo um velho teimoso que está o tempo todo tentando me
fazer virar gente, até que tem feito um bom trabalho, eu não sou grande
coisa, mas já fui muito pior.
Capítulo 3
Claire

Meu corpo perde as forças enquanto assisto ao enfermeiro cobrir o


rosto de minha mãe enquanto o médico diz qualquer coisa que eu não
consigo ouvir, a voz fica presa na garganta, a dor parece me dilacerar, é
assim que eu me sinto, desfalecendo. Fecho os olhos para não ver o médico
caminhar em minha direção.
— Sinto muito! Ela teve duas paradas cardíacas. Não resistiu.
Ele toca meu ombro em uma tentativa de apoiar minha dor, um
pedido de desculpas mudo, ele não podia fazer nada, ninguém podia, ela
lutou o quanto pode, mas cansou, seu corpo esgotou as forças, eu sabia, ela
também, fingimos não ver o que estava chegando, era doloroso demais
admitir.
Sem ter mais nada a dizer, o médico me deixa apoiada por uma
enfermeira que está consternada e segura meu corpo enquanto os olhos
gentis parecem capazes de compreender a profundidade da minha dor.
— Sente-se um pouco. – Ela me leva a uma cadeira, alguém me
entrega um comprimido para engolir, um copo de água e depois fico um
momento sozinha, sem saber como sentir, desesperada por um colo para
uma crise de choro e um abraço compreensivo, mas a pessoa do colo, o
abraço protetor, não existe mais.
Minha mãe está morta, eu a perdi, não restou nada. Caminhei ao seu
lado para dentro desse lugar e vou sair sozinha. Sozinha para sempre. O que
eu faço?
Fico de pé juntando tudo que tenho de forças e penso em dar a
minha mãe um funeral digno. Ela teve uma vida cheia de luta e coragem,
enfrentou tudo por mim é o mínimo que posso oferecer antes de mergulhar
na tristeza.
Eu deixo o corredor, não consigo voltar ao quarto e me despedir,
não agora que tudo que resta é seu corpo frio, então vou à recepção, eu
nunca me preparei para isso, eu nem mesmo sei o que devo fazer.
— Por favor, eu... – Controlo o choro. Minha cabeça parece em
outro lugar e não sei bem o que estou fazendo. – Eu acabo de perder minha
mãe, não sei o que tenho que fazer. – Dizer em voz alta torna tudo real, a
dor volta a esmagar meu peito e o choro retorna de modo compulsivo para
desespero da recepcionista.
— Sinto muito, senhorita. – Ela me olha consternada. – Tem uma
casa funerária a meio quarteirão. Eles podem cuidar de tudo. Vou ver se
acho um cartão. – Enquanto ela vasculha sua gaveta, o policial que me
socorreu não tem muito tempo se aproxima.
— Ouvi a conversa. Sinto muito. Posso acompanhá-la à casa
funerária. – Ele diz tocando meu ombro, olho para ele tão perdida.
— Eu... Eu... Agradeço, mas posso...
— Senhorita... Pode pedir a um parente se não está em condições. –
A recepcionista me avisa.
— Não tenho parentes. Somos apenas eu e ela. – Eu nem sei por
que fico me explicando, o homem continua com a mão em meu ombro.
— Vamos. Acompanho você, vim deixar outro paciente e te
encontrei de novo, deve ser algum sinal, eu te levo. – O policial diz tocando
meu cotovelo e apenas o sigo.
— Obrigada, policial Gordman. – A viatura está na frente do
hospital, um policial fardado como ele encostado do lado de fora, mas ele
faz um sinal para o homem e segue comigo a pé até a funerária, não
falamos no caminho, ele também não solta meu braço, talvez tenha medo
que eu desabe no chão, adoraria fazer exatamente isso.
— Se precisar de qualquer coisa, conte comigo. – O homem me dá
as costas e entro sozinha.
Eu jamais pensei que seria assim esse momento, no meio da dor,
você precisa tomar decisões, pensar em dinheiro, escolher caixão, é
doloroso e injusto, mas me dissocio do sentimento por um momento e tomo
decisões mecânicas, em meia hora, tudo está resolvido. Hora marcada, tudo
organizado e eu posso ir para casa e ter uma crise de choro, eles vão cuidar
do resto.
A casa é como um túnel do tempo e mergulho em lembranças a
cada passo, queria dormir, mas não consigo, não consigo comer, pensar, só
chorar, por horas, sem ninguém para acolher minha dor, a solidão viria, eu
sabia.
Sinto um medo tolo do silêncio, deixo as luzes todas acesas durante
a noite, a televisão ligada em uma altura infernal que teria irritado mamãe e
isso parece ser a única companhia que vou ter de agora em diante. Pela
manhã, como se eu fosse um zumbi, deixo a casa para enterrar minha mãe,
uns poucos vizinhos, uma senhora que ela conheceu também fazendo
tratamento, uma enfermeira com quem fez amizade e eu, mesmo assim, é
tudo triste e bonito.
Eles me desejam sorte, me pedem para ser forte, prometem que em
algum momento, vou me sentir melhor, a enfermeira diz que preciso dormir,
que estou esgotada e que isso não faz bem, posso passar mal, perder os
sentidos.
Digo que vou tentar dormir mais tarde, meu vizinho e a esposa me
acompanham para casa, os dois ainda falando sobre os perigos da falta de
sono como se eu não tivesse acabado de enterrar minha vida toda.
— Desatenção, perda de memória, reflexos... É um perigo ficar
assim sem dormir. – O homem diz quando estaciona na nossa rua. – Se
cuida, Claire.
— Está bem. – Digo caminhando para casa sem dizer mais nada, eu
não sei o que dizer, não quero falar com ninguém, eu levei minha mãe para
uma cirurgia e ela nunca mais retornou. Eu quis tanto que ela melhorasse,
eu sonhei tanto que ainda teríamos uma vida juntas, ela queria que eu me
casasse e tivesse filhos, mas eu nem tinha tempo para conhecer alguém,
agora preciso tomar decisões e elas só dizem respeito a mim, mamãe não
existe mais, não além da minha alma e memória.
Parece que não sou mais eu, parece que a cerimônia não aconteceu,
que eu não me despedi como devia, fiquei chorando o tempo todo, não disse
nada relevante ou bonito, deixei uma flor sobre seu caixão, sem palavras, só
minha dor.
A casa me oprime, um pouco dela em cada canto, uma sensação de
falta de ar e desespero que parece que vai aumentando a cada hora. Eu me
deito, mas o ar falta e, com a sensação de estar morrendo, eu prefiro me
sentar, de novo luzes acesas, televisão alta, café, tento comer, mas não
consigo, o dia termina e a noite parece ser mais dolorosa, será que algum
dia diminui?
Prometi a ela ser feliz, como é que fui fazer uma promessa dessas?
Eu mal consigo respirar? A segunda noite em claro, pela manhã, eu
simplesmente não suporto e deixo a casa, andar até esgotar minhas forças é
o meu plano.
Tivemos um Natal bonito, um pouco silencioso, é verdade, sem
luxos por falta de dinheiro, ela teve dor e fomos para cama cedo, mas pela
manhã, comemos juntas rabanadas e chocolate quente, depois ela ficou
assistindo filmes de Natal e isso a deixou mais leve, me fez uma trança nos
cabelos, passamos o dia todo juntas e o Ano Novo foi a mesma coisa, só
que assistimos a um show na televisão, fizemos contagem regressiva e
promessas, tolas e vazias promessas de um novo e mais feliz ano.
Fecho o casaco sentindo frio, minhas pernas começam a doer de
tanto andar e decido voltar para casa. A mente está tão cansada que eu me
esforço para caminhar, tento focar nas ruas, nas pessoas e nos carros, eu não
quero ser assim fraca e me render, eu prometi a ela e preciso arrumar forças
para cumprir minha promessa e encontrar algum jeito de ser feliz.
— Calma, Claire! – Uma voz diz quando tropeço me apoiando em
uma parede, sinto uma mão em meu braço, ergo os olhos e não reconheço o
rosto no começo, mas depois me lembro do policial que me ajudou mais de
uma vez. – Aonde está indo assim? – Ele pergunta usando roupas comuns.
— Para casa. Desculpe. Eu não o vi.
— Vou te acompanhar. – Nego com um movimento de cabeça. –
Vai acabar debaixo de um carro se continuar assim. Não custa nada e vamos
conversando. – Ele dá um sorriso que eu não correspondo, eu só continuo a
andar sem vontade de discutir para tentar impedi-lo. Sua mão fica no meu
cotovelo, depois descansa nas minhas costas e eu nem acho que esteja
andando de algum modo desajeitado a ponto de ele temer que eu caia,
respiro ficando mais firme, não quero parecer uma louca desgovernada.
Mamãe odiaria assistir a esse comportamento.
— Eu moro ali naquela casa de esquina, estou bem. – Aviso ao
homem me desvencilhando de seu toque.
— Mais uns metros, eu te acompanho até lá. O frio está terminando,
não acha? Era para estar mais gelado nessa época do ano, são essas
mudanças climáticas.
— Gosto mais do verão. – Digo por dizer.
— Eu também, quando estou de folga como hoje, dou longos
passeios pela cidade, mas no verão é melhor, eu te vi caminhando e achei
que estava distraída, a vida parece estar sempre nos aproximando esses dias.
— Obrigada. – Digo parando no portão, o homem com alguns fios
de cabelos brancos e um rosto redondo de olhos estranhamente brilhantes
me sorri largamente. É como se não enxergasse a minha dor, sorrir assim é
quase um desrespeito. – É aqui. O senhor foi generoso e tenho que entrar,
bom dia.
— Boa tarde, já passa das duas. – Eu me surpreendo com o tanto
que caminhei, levo a mão à testa como se me desse conta do quanto estou
agindo feito uma maluca, minha mãe não sentiria nenhum orgulho disso. –
Pode me oferecer um copo de água? – Ele me pede olhando em direção à
porta e penso que preferiria simplesmente dizer não, mas o homem é um
policial e foi gentil comigo meia dúzia de vezes, acho que tudo bem
oferecer um copo de água.
— Claro. Eu volto em um minuto. – Dou as costas a ele e entro,
deixo a porta aberta para o homem não pensar que sou mal-educada e sigo
para a cozinha decidida a dar um jeito de dormir um pouco e esfriar a
cabeça.
— É uma casinha confortável! – Eu dou um salto de susto quando o
vejo na cozinha e me encosto na pia enquanto ele se aproxima e o jeito
gentil e solícito simplesmente parece ter desaparecido. – Gostei da indireta.
— Que indireta? A sua água... o senhor espera na sala, eu...
— Água! – Ele ri. – A gente sabe que não tem água nenhuma não é
gostosa? – Ele me agarra, se cola a mim e primeiro eu demoro para
entender, depois começo a me debater.
— Me solta! – Tento me libertar, chutando e empurrando. – Me
larga. Vou gritar!
— Grita! Será bom chamar a vizinhança. Quando mostrar os dois
quilos de drogas que encontrei aqui e for presa, será bom termos
testemunhas.
— Drogas? – Meus olhos se arregalam, ele ri enquanto continua a
me puxar e me agarrar e eu luto ainda mais quando me dou conta de que o
homem está me levando para sala.
— Você quer, eu sei, quer faz tempo, deixou a porta aberta, queria
que entrasse e agora vem com joguinho? Acha que vou ser feito de idiota?
Se lutar eu te coloco na cadeia.
— Me larga, socorro! – Grito com todas as minhas forças. Prefiro
passar o resto da vida na cadeia por um crime que não cometi a servir a
esses monstros. – Soc... – Ele tampa minha boca, aperta com força me
roubando o ar. A arma vem para minha testa, sinto o cano frio da pistola
encostada em mim e seus olhos cheios de lascívia me encaram firmes
— Cala a maldita boca, sua vadia! Está querendo isso desde cedo!
Pare de fingir que não. Trouxe-me até aqui para isso. – Sinto a mente perder
um pouco o foco com o ar faltando e ele me liberta ainda com a arma na
minha cabeça, tento afastar seu corpo do meu e recebo um tapa no rosto, a
mão tão pesada que perco as forças e caio sobre o sofá.
Tudo parece acontecer em câmera lenta, minhas roupas sendo
arrancadas, a força física dele, a dor física, seus gritos e ordens que eu não
obedeço, mas não faz diferença, eu continuo a lutar, é uma batalha perdida,
mas durante todo o tempo, eu resisto, morrer seria um prêmio e a arma não
me assusta, mas também não me salva.
— Denuncie e as drogas vêm parar em sua gaveta. Vamos ver como
se explica. – Ele avisa fechando a calça e saindo da minha casa não sei bem
quanto tempo depois de ter entrado, talvez mil anos, foi o quanto durou a
dor e o horror.
Meu corpo todo treme, os dentes batem e não sinto frio, sinto dores,
revolta, vergonha, horror e paralisia. Quero me mover, quero chorar e só
consigo ficar imóvel e paralisada e, outra vez, o tempo corre lento e vazio,
as luzes do ambiente vão mudando até ser só breu e, finalmente, eu me
movo indo para o chuveiro e as lágrimas me dominam.
Eu provoquei isso, estava tão atordoada que deixei acontecer. É
minha culpa, ele pensou mesmo que eu estava dando espaço, que eu queria,
eu fiz isso comigo.
Quando as lágrimas secam já sem forças, com o corpo ardendo de
tanto esfregar, eu deixo o banheiro, me visto e começo a fechar a casa,
guardar coisas, arrumar uma mala, vou embora, esse lugar foi maculado, eu
não podia mesmo pagar e agora tudo aqui está sujo e manchado, só quero
sumir para o mais longe que puder, para longe de qualquer lembrança.
Levo uma foto de minha mãe quando ainda era jovem e saudável.
Além disso, só roupas e alguns documentos.
— Senhor Riggs, estou partindo. – Entrego as chaves ao senhorio
que foi tão generoso nos deixando ficar quando eu já não podia pagar o
aluguel. – Minha mãe faleceu.
— Meu Deus! Sinto muito, Claire, eu não sabia. – Ele me empurra
as chaves de volta. – Fique mais um tempo. Posso esperar até que se...
— Não. Obrigada por tudo. Prometo voltar um dia para acertar tudo
que devo ao senhor.
— Não me deve nada. Para onde vai?
— Para longe. — É tudo que sei, mesmo que nenhum lugar seja
longe o bastante das memórias que vou carregar, da dor que parece que vai
me consumir, minha vida acabou.
— Claire, está com problemas com alguém? Seu rosto...
— Caí no banho. Estava atordoada e... Não é nada. Obrigada.
O homem não parece acreditar, eu aceno sem saber mais o que dizer
e arrasto minha mala para longe. Pego um ônibus até a rodoviária e, antes
das oito da manhã, já estou pronta para desaparecer no mundo enquanto
pego a fila para comprar uma passagem.
— Para onde, senhorita? – A moça do guichê me pergunta.
— Qual o próximo ônibus a sair? Não importa muito o lugar. – Ela
me olha com mais atenção, parece sentir a minha dor, sabe que estou
fugindo, qualquer um pode ver, pega uma passagem e me entrega.
— Boa sorte! Portão oito, o ônibus sai em cinco minutos.
— Está ótimo. – Estendo as notas, recebo o ticket.
Eu me apresso para não perder o ônibus, me acomodo no banco ao
lado da janela e, pontualmente, o ônibus dá partida deixando Atlanta e,
quem dera minha dor ficasse aqui, mas ela segue comigo. Vai ser noite
quando chegar, vou ter que arrumar um lugar para dormir, um emprego,
uma vida.
Adormeço pela primeira vez desde que minha mãe me deixou e
acordo em um sobressalto pouco tempo depois, me acomodo no banco,
respiro fundo e sei que vai levar tempo até conseguir dormir decentemente.
É estranho porque eu não quero conseguir dormir, não quero um emprego,
uma casa, uma vida, eu quero que tudo acabe logo, para esquecer.
O ônibus para na pequena rodoviária. Tem meia dúzia de pessoas
caminhando por lá. Pego minha mala e começo a caminhar.
Vou me perdendo em ruas pequenas e tranquilas até que vejo a placa
anunciando uma pensão. O ambiente não parece dos melhores. Não posso
pagar por nada melhor que aquilo. Esbarro em um homem que saía pela
porta.
— Olha por onde anda! – A voz grave me faz erguer o olhar.
Pretendia me desculpar, mas ele não para, apenas monta em uma moto e se
afasta sem me dar atenção.
Não pode ser pior que dormir na calçada, digo quando caminho para
a recepção. Um homem velho com ares de tédio e expressão fechada está
sentado atrás de um balcão.
— Vinte dólares por dia. Não aceito prostituição nem drogas. E o
cara que te arrebentou não é bem-vindo. Tem que pagar adiantado.
Não tento me explicar, eu nem conseguiria. Só puxo a nota de vinte
e entrego a ele, o homem pega uma chave.
— Paga por dia ou vai embora. – Ele me entrega a chave. –
Segundo andar. Terceira porta à direita.
— Obrigada. – Arrasto a mala até o quarto escada acima. Abro a
porta e só tem uma cama, uma cômoda com um aparelho de TV que deve
ser da década de cinquenta, e um pequeno armário.
Tranco a porta assim que deixo a mala ao lado da cama, os lençóis
parecem limpos. Abro a porta do pequeno banheiro, é tão minúsculo que
não vejo como uma pessoa possa, por exemplo, trocar de roupa ali.
Só queria ser capaz de dormir e não pensar, mas isso é impossível.
As imagens do ataque que sofri jamais vão deixar a minha retina, mesmo
assim eu me deito e fecho os olhos enrolada em uma coberta sem nem ao
menos tirar os sapatos.
Capítulo 4
Jared

— Vai ser um bom negócio, Jared. – O senhor Lewis me diz pela


décima vez no dia. – Paro meu trabalho e decido prestar atenção nele. –
Escute. Estou velho. Preciso de descanso e você é bom nisso, entende tudo
de material de caça. Explica o funcionamento das coisas como ninguém.
Precisa parar num canto também. Sossegar. Quanto tempo faz que o Zack
sossegou?
— Alguns anos. – Meu primo e a única família que por muito
tempo esteve comigo no pior do mundo que tivemos, agora é um pai
exemplar, marido apaixonado e dono de uma oficina de sucesso. O cara que
vivia comigo na vida doida e que depois acabou seguindo esse caminho de
paz, que eu acho que me inspirou a parar também.
— Você fica com a loja. Paga todo mês uma parcela, em dois ou três
anos a loja é sua. Merece isso, Jared. As pessoas já não te olham como
antes.
Eu não acho que mereça, fiz muita merda na vida, mas ele tem
razão, durante muito tempo as pessoas se encolhiam quando os Brow
chegavam. Zack mudou totalmente o olhar das pessoas e hoje já não é todo
mundo que me olha com medo, é claro que ninguém arrisca começar um
problema comigo, mas a verdade é que eu também já sou alguém que evita
encrenca.
— Lewis, essa coisa de ser dono da loja...
— Você já é. Venho uma vez ou duas na semana. Se não aceitar vou
fechar a loja e todo mundo perde. Eu, você, a cidade.
— Como serão esses pagamentos? – Pergunto pensando se não vou
acabar me enfiando em uma dívida que não consiga pagar e não quero
acabar tendo que pedir dinheiro ao Zack.
— Vinte por cento dos lucros todo mês. Se não lucra, não paga, quer
dizer, é um grande negócio.
Fico olhando para ele. Seria um bom jeito de parar, uma
responsabilidade que me daria, uma vez na vida, um rumo. Estou cheio de
andar de um lado para outro, nasci e cresci sem lugar no mundo, perdido e
me metendo em encrencas.
— Feito. – Arrisco me enchendo de coragem, ele sorri vitorioso.
Estende-me a mão que aperto meio tenso. Que ninguém fique sabendo que
Jared Brow está com medo.
— Meu advogado vai cuidar das coisas. Virei todos os dias nas
próximas duas semanas para acertarmos tudo e você cuidar da casa. Ajeitar
nosso estoque que está todo jogado lá e se mudar.
— Mudar? – Morar na pequena casa ao lado seria muito bom, tem
uma porta que liga a loja, fica perto da floresta e não é nenhuma mansão
luxuosa, dois quartos, mas bem cuidada, mais do que eu já sonhei em toda a
minha vida, na verdade, é mentira, eu nunca nem sonhei com algo assim.
— Não acha que chega de morar naquele ninho de ratos que é
aquela pensão horrível? E a casa faz parte da loja. Não posso alugar ou
vender para um estranho com essa porta de ligação, então ela entra no
negócio.
— Isso é verdade. Não gostaria de um estranho com acesso à loja. –
Pondero.
— Ótimo! Durante anos eu fui empilhando tudo lá. Você arruma e
eu cuido da loja por uns dias. Em duas semanas me aposento e a loja é sua.
— A senhora Lewis concorda com isso?
— Ela que me deu a ideia, não quer mais que eu trabalhe e te acha
um homem bom, além de adorar o seu primo e a esposa.
— Acha-me um homem bom? – Minha gargalhada se mistura a
dele, se meus velhos amigos me vissem sendo confundido com a droga de
um homem bom, eu nem sei se quero esse tipo de fama. — Negócio
fechado. O que vai fazer com sua aposentadoria?
— Não tivemos filhos. Então, eu e minha Jane vamos sair por aí.
Viajar. Conhecer os lugares que sonhamos uma vida toda. Criar galinhas.
Sei lá. Agora ela decide tudo.
— Boa sorte com isso de deixar uma mulher decidir tudo. – Brinco
no meio de uma careta.
— Vou ao escritório do meu advogado. Você fecha.
Ele deixa a loja e me encosto no balcão. Não é uma loja grande, mas
é única na região. Vem gente de cidades vizinhas comprar material de caça
e pesca. Fazendeiros, esportistas, caçadores de ocasião. Pode dar certo.
Não vai mudar mesmo nada. Só o fato que em breve vou deixar
aquela pensão barulhenta e suja.
Depois de fechar, vou direto para o bar do John, é um pardieiro
quando anoitece, mas parece que é onde eu me sinto em casa, mesmo não
bebendo mais e tentando não me meter em encrencas, esse é o tipo de lugar
que conheço, que sei me virar.
Assim que entro, eu vejo uma nova garçonete. A mulher anota um
pedido em uma das mesas e acho que é bonita demais para esse buraco. Vai
dar merda.
Talvez ela goste desses canalhas idiotas e suas piadas, é o único
jeito de uma mulher bonita como essa ficar trabalhando aqui por mais que
umas horas. Sento-me no balcão, John passa um pano sujo na madeira
velha a minha frente.
— Uma tônica. – Peço olhando o rosto lindo e assustado que anota
pedidos com dedos trêmulos.
— Começou hoje. Gostosa demais, não acha? Chegou ontem à noite
na cidade. Viu a placa. Não sei se vai ficar. Não leva jeito e parece que está
diante de zumbis de tanto medo que tem desses caras.
Abro a garrafa e dou um longo gole dando de ombros. Não tenho
nada com isso nem quero ter. Não é obrigada a ficar, se não gosta do
emprego que vá embora.
A mulher caminha até o balcão e entrega o papel com os pedidos
para John.
— Tudo bem, Claire? – Ele pergunta.
— Sim, senhor. – Sinto vontade de rir de ouvir alguém chamar
aquele tipo de senhor. John entrega uma bandeja com bebidas para ela.
— Mesa nove.
Olho para seu rosto maquiado e, ao mesmo tempo, triste. Ela encara
a bandeja evitando todos os olhares e isso inclui o meu. No fundo sinto um
pouco de pena da moça. Acho que nunca vi uma mulher tão bonita assim,
não parece se encaixar nesse lugar, não parece ser feita para essa vida.
— Anda! Aqueles dois estão loucos por problemas. Serve de uma
vez. – Ela obedece a John erguendo a bandeja e acompanho quando segue
para a tal mesa nove. Dois babacas completamente bêbados fazem piada
quando ela se aproxima. Não escuto o que dizem, nem é preciso. Sou Jared
Brow, eu já fui um desses babacas. Ela coloca a bandeja sobre a mesa e
começa a retirar copos e garrafas e, então, um deles tenta tocar nela. Eu a
vejo se afastar rápido e sair com olhos marejados.
— Devia colocar esses lixos para fora, John.
— Jared, esses lixos me dão lucro, ela se acostuma. Com o tempo
vai adorar receber uns trocados nos peitos. – Ele ri despreocupado, agora
lavando copos.
— Me vê um hambúrguer. – Decido comer logo e ir embora. Meia
hora depois a comida chega, não consigo não prestar atenção na moça.
Claire, um nome bonito para um rosto perfeito e uma voz suave.
Definitivamente ela não serve para esse lixo de lugar que John administra,
ao menos na parte da noite.
Não queria ser idiota, mas eu sei que vai acabar mal com aqueles
bêbados e não consigo dar as costas e deixar ela ali no meio de problemas,
então eu enrolo pedindo outra tônica.
Eles pedem bebida mais duas vezes. Mais duas vezes tentam tocar
nela e mais duas vezes ela se afasta apressada e com lágrimas. Depois John
decide fechar.
O bar fecha às nove, toda noite, nada fica aberto depois disso. É
uma pequena e quase pacata cidade. Depois das nove, só a loja de
conveniência dentro do posto de gasolina onde a maioria vai comprar
bebida quando sai daqui, fica aberta.
Estico umas notas para John quando ele diz a ela para ir para casa.
— Aqui está, Claire, seu pagamento. Amanhã abro às sete. Quer
mesmo os dois períodos?
— Sim, senhor. Eu preciso.
— Com apenas uma folga por semana não vai aguentar dois turnos.
– Eu presto atenção na conversa enquanto finjo procurar algo nos bolsos,
isso é bem ridículo, mas não consigo evitar.
— Eu consigo, senhor. – Ela se apressa e depois tira o avental, pega
o dinheiro e caminha para a porta.
Aceno para John e deixo o lugar em seguida. Os bêbados deixam o
lugar logo depois dela e antes de mim. Conheço aqueles dois. São dois
covardes que trabalham numa fazenda a uns quilômetros daqui. Quando
aparecem é só para criar problemas.
Eu deveria ir para minha cama, deveria esquecer isso. Acontece que
sinto pena e acabo esquecendo a moto e caminhando atrás dos dois. Meio
quarteirão e vejo Claire apressada caminhando mais à frente.
— Espera a gente, gata! – Um deles diz achando tudo muito
engraçado e rindo com o amigo.
— Quem sabe a gente continua nosso papo em outro lugar? – O
outro continua e os dois chegam perto demais. Não pretendia me intrometer,
só ia mesmo seguir de longe. Acontece que não vou assistir uma garota ser
molestada sem fazer nada.
— Não toca em mim! – Ela empurra o homem. Claro que mesmo
bêbados são dois e ela não pode dar conta. – Solte-me! – Ela exige quando,
para se equilibrar, o homem segura em seu braço.
— Ela mandou soltar! – Digo puxando um deles pelo colarinho. Os
olhos da garota estão cheios de pavor.
— Ei, cara! Quem você pensa que... Brow! – Os dois mudam de
expressão, dá para ver o medo. Pior do que tudo que eu já fiz na vida é tudo
que acham que fiz. A valentia vai embora no mesmo segundo, nem sempre
é ruim ter má fama.
— Exato. Agora saiam e fiquem longe da moça. – Os dois trocam
um olhar decidindo se vale a pena entrar nessa briga.
— A gente vai nessa. Não sabíamos que era sua namorada. – Eles
seguem tropeçando e só depois que viram a esquina me volto para olhar
para ela.
Seu rosto está coberto por lágrimas, eu não sei lidar com isso e,
definitivamente, não estou disposto a aprender, mas sinto qualquer coisa
que deve ser pena a me dominar, ela parece alguém prestes a afundar, dá
para ver em seus olhos que está perdida e muito assustada.
— Eles já foram e não vão mais importuná-la.
— Obrigada, nem sei como agradecer. – Ela tenta lidar com suas
lágrimas, mas parece bem complicado contê-las.
— Minha moto está no bar. – Aponto o bar no fim da rua. — Te dou
uma carona para casa. Onde mora?
— Na mesma pensão que você. – Ela conta para meu espanto. —
Cheguei ontem, tropecei em você na porta.
Nem notei que tropecei em alguém, não fico olhando muito para
nada a minha volta. Faço um movimento com a cabeça indicando o
caminho e nos colocamos a andar. A lanchonete está fechada quando
paramos e pego a moto. Subo e faço de novo sinal, ela fica imóvel.
Está com medo de mim, acabei de salvar a garota. Por que ela acha
que vou fazer mal a ela?
— Olha eu estou indo. Vem ou fica? – Ela olha a escuridão e o
silêncio a nossa volta e monta na moto, se segura em mim e gosto de senti-
la me tocar. Eu não costumo colocar garotas em minha garupa, mas devo
admitir que é bom e eu não devia estar pensando nisso, a moça parece mais
um bicho assustado do que gente e eu não tenho tempo para isso.
São dois minutos até a porta da pensão. Assim que estaciono, ela
desce feito um relâmpago, dá para ver o alívio, acho que ponderou qual o
maior perigo e resolveu arriscar, dá para ver que está feliz por ter arriscado
a coisa certa.
— Obrigada, senhor... Brow?
— Jared, Jared Brow. – Conto a ela.
— Claire. Obrigada por me socorrer. – Dou de ombros quando
caminhamos para porta. Não quero que pareça que fiz algo importante, nem
quero que ela pense que vou fazer de novo, porque eu não vou.
O velho dorme diante de uma TV no balcão da recepção. Alguém
grita e uma porta bate em algum lugar. Claire dá um pequeno salto de susto.
De onde essa garota vem, afinal? Não parece nada acostumada com um
lugar como esse.
Subimos as escadas juntos. Ela para diante de uma porta, duas antes
da minha, me olha e de novo não sei o que dizer.
— Acha que aqueles caras vão estar lá amanhã?
— Não vão te incomodar mais. – Não quero amizade. Já fiz a boa
ação do século, passo por ela e vou para minha porta, ela abre a dela e,
então, acabou. Estou no meu quarto e não tenho nada que ver mais com a
vizinha de corredor.
Ela que siga sua vida e aprenda a se defender de encrencas. Tiro a
bota e me deito. Acho que ela não dura uma semana no bar do John e é
melhor eu achar outro lugar para fazer minhas refeições.
Fico pensando o que aconteceu para uma garota como ela parar num
lugar como aquele. Não é da minha conta e não tenho que pensar nela. Isso
é um grande erro.
É uma péssima noite de sono. Pela manhã, quando desço para
começar meu dia, Claire está acertando a diária com aquele velho idiota e
mal-educado.
— Bom dia. – Ela me diz e pisco duas vezes antes de responder.
Nunca falo com ninguém naquele lugar e sempre achei por bem não fazer
amizade, eu já tenho me esforçado bastante em parecer decente, agora ficar
por aí cumprimentando pessoas parece suburbano demais.
— Bom dia. – Respondo abrindo a porta da frente, ela passa logo
depois de mim. É tão cedo, vai ser um dia longo o dela.
Nunca vou a pé, tenho a caminhonete que peguei com Zack que fica
quase sempre estacionada na porta da loja para carregar coisas e fazer
entregas. No dia a dia, ando com a moto para ir e vir, mas estou feito um
idiota indo a pé só para andar ao lado de uma quase-estranha assustada, eu
sou mesmo um grande de um otário.
— Tomo café da manhã no John todos os dias. – Aviso para o caso
de ela achar estranho eu estar seguindo a seu lado. Ela não diz nada, só
assente com um movimento básico de cabeça.
As ruas são arborizadas e tranquilas. Só os homens de bem
caminham essa hora. Lixos como os que atacaram Claire ontem, estão
estendidos em sofás imundos por aí enfrentando a ressaca. Sei disso porque
fui um deles por muito tempo. Por tempo demais até.
— Pode conseguir outro lugar para trabalhar. ─ Não resisto ao
conselho e me sinto um imbecil fazendo isso.
— Não me importo. – Acho que se importa, mas quer acreditar que
não.
— Não é um bom ambiente. Vai ter sempre um idiota.
Ela não me olha, só continua a caminhar, silenciosa e triste. Sei um
pouco como é isso. Sentir-se vazio e solitário, eu me acostumei com isso.
Uma vida toda disso ajuda a se acostumar.
Capítulo 5
Jared

— Só quero que acabe logo. Eu não me importo com droga


nenhuma e não perca tempo se importando também. Não valho isso.
Que coisa triste de se dizer. Tão bonita, jovem e sem uma gota de
vontade de viver. Sinto raiva dela, raiva da covardia, eu sei bem o que é
uma vida de merda e nem por isso estou aqui esperando a morte, nem
quando era aquele menino infeliz que vivia sob a força da violência eu
pensava em algo assim.
— A estrada não fica longe, é bem movimentada e tem sempre um
idiota acima da velocidade. Pare no meio e espere, logo um carro acaba
com sua espera. – Ela me olha de olhos arregalados. – Por que aguenta
aquele lugar se não se importa com nada?
— Eu sei o que vai dizer. Tanta gente lutando e tendo esperança e
eu me entregando, tantos problemas maiores que o meu. Estou cansada, só
isso.
Eu não sei o que dizer a ela, talvez ela tenha direito de se sentir
cansada, um rosto bonito não é sinônimo de vida fácil. Abby é linda e
conheceu o próprio demônio, talvez ela tenha uma história assim e eu fico
aqui julgando, justo eu que sempre detestei isso.
Chegamos ao bar, ela se despede com um aceno indo para trás do
balcão colocar o avental enquanto eu me acomodo em uma mesa no lugar
ainda quase vazio.
Por que estou em uma mesa e não no balcão como todas as manhãs?
É bem simples, estou aqui com a única e estúpida intensão de ser atendido
por ela.
Pela manhã são só trabalhadores e gente comum em busca de um
café e, quem sabe, umas panquecas. Munida de um bloco de notas e
expressão de cansaço, Claire se aproxima.
— Quer fazer seu pedido? – Sou a primeira pessoa que ela vem
atender e me sinto um tanto especial, é a coisa mais ridícula do mundo, eu
me prometo ser a última vez que venho aqui.
— Café e panquecas.
Ela anota e se afasta. Na mesa ao lado da minha, Mike sorri
quando ela se aproxima, sempre risonho e gentil, mais risonho e mais gentil
do que o necessário, embora isso pareça meio idiota já que o negócio dele é
outro.
Ela se aproxima dele e sorri meia dúzia de vezes só enquanto ele faz
o pedido. Sinto alguma irritação e quando se afasta ainda está sorrindo, para
quem não queria nem viver, está bem animada. Volta com os pedidos, deixa
primeiro o dele e depois se aproxima de mim.
— Aqui está. – Ela diz e, quando olho seu rosto suave e bonito sem
aquele ar grave, sinto raiva.
— Está se iludindo! – Ela me olha surpresa. – Mike! – Aponto com
o olhar.
— Oh! Não, eu sei. Não eu... Ele só... – Claire fica vermelha e
tímida. – Fazia tempo que ninguém era gentil e foi só. – Ela se explica me
causando ainda mais irritação, muito mais porque eu não tenho realmente
nada com isso e estou bancando o... eu nem quero pensar.
Chega dessa garota, decido enquanto como, eu não estou me
reconhecendo. Daqui a pouco me torno Zack, sendo feito de bobo por
aquelas duas que ele ama mais que a si mesmo.
Caminho direto para o trabalho, abro a loja e, logo de início, dois
clientes me roubam toda a atenção. A arrumação vai acabar ficando para
domingo que a loja não abre. Lewis não está cumprindo com o prometido
de vir todos os dias, mas eu entendo, ele está mesmo cansado e eu fico
perambulando pela vida o domingo todo, posso vir e começar a arrumação.
— Tio Jared, chegamos! – Mary surge acompanhada do pai, usa um
vestido amarelo e sapatos pretos, os cabelos presos em um rabo de cavalo
com lacinhos, parece uma boneca e acho que meu primo gosta da ideia.
— Olá! – Zack se encosta no balcão. – Já que não aparece, viemos
dar um “oi”.
— Oi! – Respondo simplesmente.
— Vim comprar material de pesca, quero ensinar ao Sam.
— Aquele molenga não sabe nem pescar? Zack, quando foi que
adotou o cara? Já está casado e ainda parece uma criança.
— O meu tio Sam é muito legal! – Mary o defende e faço careta.
— Está com ciúme do Sam? – Zack me provoca.
— Vai se fod...
— Olha a boca! – Ele me interrompe. – Quer que ela se torne a
garota de boca suja do colégio? Você sabe com que tipo de gente elas
andam, é isso que quer para ela?
— O material de pesca fica na terceira prateleira! – Aviso no meio
de uma careta ainda mais irritada. Ele ri, aposto que ele não liga para essa
coisa de palavrão e não acha mesmo nada demais a menina dizer um ou
outro de vez em quando, só quer mesmo me irritar com isso.
— Ajuda o papai a escolher umas iscas, amorzinho? – É nojento,
amorzinho é muito meloso, esse não é o meu primo.
— Essa garota anda por aí parecendo uma menina e você ainda fica
dizendo coisas assim, eu não sei o que ela vai se tornar.
— Ela não anda parecendo uma menina, Jared, ela é uma menina! –
Zack ri, Mary acha graça também e vem me pedir colo, eu a pego e coloco
sobre o balcão, ajeito a saia. Ela fica de saia por aí, alguém devia ensinar a
não mostrar as calcinhas, isso sim.
— Tio, eu sou menina. Você esqueceu?
— Não dá para esquecer. Cadê sua mãe?
— Cortando uns narizes por aí! – Zack gargalha junto comigo.
— Que tal ir jantar lá em casa hoje, Jared?
— Não posso, tenho compromisso. – Zack deixa a fileira de
material de pesca e vem até mim, Mary se distrai com a calculadora sobre o
balcão.
— Compromisso? Você está esquisito... tem mulher envolvida? –
Minha expressão de ofendido parece ter o efeito contrário. – Tem! Eu não
acredito. Quem? De onde? Bonita? Legal? Decente?
— Vai... que merda, eu nem sei praguejar sem palavrão! – Reclamo.
— Merda é palavrão, tio Jared, você sabe sim.
— Bom dia, os Brow reunidos! – Lewis, entra vindo pelos fundos. –
Veio cumprimentar o novo dono da loja? – Que velho fofoqueiro! Zack
deixa o queixo cair. – Ele não contou? Uma novidade dessas e ele não disse
nada? – Lewis pega Mary no colo. – Vamos deixá-los conversando, Mary,
vou te mostrar as armas.
— Os anzóis, mostre os anzóis. – Zack pede e Lewis ergue uma
sobrancelha se dando conta e sorri.
— Claro, nada de armas, já basta as espadas da mamãe. – Ele brinca
com uma nota de ironia.
Mary vai agarrada ao pescoço do velho contando sobre as espadas
de sua mãe enquanto Zack me olha com os braços cruzados e um ar de
ofendido que não tem o menor motivo.
— Não é grande coisa, o velho queria vender ou fechar, é meu
emprego, então eu fiquei com a loja, vou pagando aos poucos e vou morar
aqui na casinha lateral.
— Não é grande coisa? Cara, é gigante, você vai ficar para sempre
na cidade, e se está comprando uma loja significa que está pensando em
acalmar.
— Por isso não contei, eu não quero sermão!
— Estou feliz, por todos nós, vai ficar por perto. – Ele está mesmo e
eu não sei por que não fico à vontade com elogios e esse tipo de
aproximação, eu não sou bom com sentimentos, ele também não era, mas
agora parece mais fácil para ele, então acho que pensa que é fácil para todo
mundo. – Estou orgulhoso da gente, somos os Brow, entende? Sempre
fomos encrenca, medo, mas agora... isso é grande, não acha?
— Não acho nada demais, é só um trabalho, ainda sou eu.
— Ok, então vai jantar lá em casa, vamos comemorar.
— Outro dia, hoje eu não posso. – Odeio admitir, mas eu não vou
porque quero jantar no John, e quero fazer isso porque ela vai estar lá e eu
deveria deixar de ser estúpido e procurar encrenca.
— Quando quiser me contar sobre ela...
— Não seja idiota, não tem ninguém. Acha que vou cair nas garras
de uma nervosinha como a sua princesinha republicana?
— Honestamente, acho que não, vocês se matariam, mas as
mulheres não são todas perfeitas como a Abby. – Ele provoca. – Talvez uma
moça mais... não sei, qual seu tipo de mulher?
— As vivas, agora arruma o que fazer e me deixa trabalhar, tenho
que pagar a loja.
— Ok, vou escolher umas iscas, ainda tenho que pagar? – Ele me
provoca.
— Pode apostar que sim.
— Se precisar de ajuda... você sabe, mudança, organizar a casa,
essas coisas... e quero ser convidado para jantar, quem sabe uma festa de
boas-vindas?
— Está passando mal? Quer ir para um hospital? Prefere que eu
ligue para a Abby?
Ele fica rindo de mim enquanto se afasta, se junta à Mary e Lewis,
depois retorna com alguns materiais, paga e a pequena vem me beijar a
bochecha em despedida. Ser pai é das coisas mais loucas que eu já vi meu
primo fazer, depois de tudo que vivemos, ter coragem de criar uma criança
é mesmo uma loucura.
— Se demorar a aparecer eu volto! – Zack grita da porta antes de
sair e sei que volta, ele não larga do meu pé, agora que virou um homem de
bem, ficou um chato irritante.
Capítulo 6
Claire

Pela manhã o bar é tão diferente... Até perto das cinco da tarde, o
lugar é calmo, oferece refeições e atende aos trabalhadores e famílias da
região e eu me sinto segura trabalhando.
O problema é que quando a noite chega, traz com ela rostos pouco
amigáveis, John aumenta o volume da música, serve muita bebida e libera a
mesa de bilhar que fica nos fundos do salão e o ambiente muda tanto que
parece outro lugar.
Eu preciso ser forte e aguentar algumas semanas, juntar algum
dinheiro para sair da pensão e, aí com sorte, quem sabe, eu consiga
trabalhar apenas um período e, nesse caso, trabalharia de dia e não
precisaria estar no meio de tudo isso.
Jared me salvou na primeira noite de trabalho, mas eu não acho que
terei a mesma sorte hoje, eu não acho que terei algum tipo de sorte pelo
resto da vida.
Seria tão mais fácil simplesmente desistir, eu queria ter coragem de
dizer não a tudo isso e me deixar levar pela dor, acontece que fiz uma
promessa a minha mãe: eu tentaria ser feliz e desistir não é uma opção.
A cidade é tranquila, generosa, as pessoas parecem solícitas e gentis
nas ruas, mas escolhi ou caí de paraquedas nos dois piores lugares: a pensão
que não é grande mas concentra tudo que não presta e o bar do John onde
parece que vem gente de todos os lugares procurar diversão da pior
qualidade.
Durmo muito pouco, como porque John é generoso e não pago a
comida, ainda que não tenha muito tempo livre, ele me deixa parar para
fazer três refeições e isso é todo descanso que tenho o dia todo, das sete da
manhã até quase dez da noite, eu não me importaria se não tivesse que
enfrentar esses caras.
No primeiro olhar, eu pensei que Jared era como eles, mas ele
mostrou que não é, ou não é mais, tem qualquer coisa de homem-problema
em seus olhos, no jeito como se comporta, mas é superficial, no fundo, ele
foi a melhor pessoa que encontrei em muito tempo.
Perto das seis da tarde, o bar já está cheio de homens bebendo,
assistindo a um jogo na televisão e ouvindo música alta, ao mesmo tempo
que gritam e se provocam, mas eles não se contentam com apenas isso, eles
querem a atenção das três garçonetes. Sarah e Pamela parecem bem
acostumadas, elas não demonstram qualquer incômodo e acho até que lidam
bem com eles, conseguem frear os abusos, mas cada um desses rostos, cada
vez que falam comigo, só no que penso é naquilo que vivi, na razão de ter
fugido de Atlanta, na dor que ainda está em meu corpo e que marca minha
pele escondida por maquiagem e coberta por medo.
Meu estômago embrulha a cada piada, cada aproximação e, talvez,
eu simplesmente não aguente, mas sem os dois períodos de trabalho, não
consigo pagar o quarto adiantado e, sem isso, não tenho teto para
sobreviver.
— Duas cervejas, gata, e se quiser, pode pegar uma para você
também! – Um jovem diz tentando me abraçar, eu me afasto em um
sobressalto.
— Aiden, ela está com medo de você. – O jovem que está com ele
ri. – Ele é filho da prefeita, se eu fosse você, não corria assim, ele pode te
arrumar uns presentinhos.
Eu não fico para ouvir mais, vou ao balcão pedir as bebidas, John
me coloca as cervejas na bandeja.
— Não consegue dar um sorriso, parecer mais animada? Os caras só
estão brincando.
Eu não respondo, se ele quiser um sorriso vai ter que arrumar outra
pessoa, para mim não dá para sorrir, eu mal consigo parar de tremer.
Levo as bebidas até a mesa de bilhar, me desvio de um outro cara
que não se importa em abraçar Pamela que vem passando logo depois de
mim, ele diz algo a ela e coloca uma nota em seu decote.
Jared entra no bar, é uma sensação tão estranha... No instante em
que o vejo cruzar a porta, uma coisa boa nasce em meu peito, eu não sinto
nada assim tem dias, é parecido com paz, ou talvez segurança.
Cruzamos o olhar, mas ele mal move a cabeça em um cumprimento,
se acomoda no balcão e eu vou anotar mais pedidos. Aiden fica me
chamando todo tempo, pede uma nova bebida a cada cinco minutos, acho
que só para me fazer ficar perto dele. Demora como se estivesse pensando
no que vai pedir, mas no fim, pede sempre mais uma ou duas cervejas e fico
pensando que essa arrogância toda é por ser filho da prefeita, ele deve achar
que pode tudo na cidade e, talvez, possa e isso só me apavora, a sensação de
segurança com a entrada de Jared vai embora.
— Não pode mandar a Pamela servir a mesa do Aiden? – Jared
pergunta a John quando me encosto no balcão para mais um pedido, está tão
incomodado quanto eu.
— Ele quer que a garota nova o atenda.
— E tem que fazer o que ele quer? – Jared insiste e eu sinto tanta
gratidão e, ao mesmo tempo, tanto medo de acabar perdendo o emprego que
nem sei o que fazer.
— É meu melhor cliente. Gasta muito.
— É um babaca! E estou começando a achar que está gastando o
dinheiro dos nossos impostos. Um idiota que vai acabar bem encrencado. –
Ele diz encarando Aiden que desvia os olhos notando Jared. Parece que as
pessoas tem medo dele na cidade.
— Um babaca que gasta muito e, se o dinheiro dos meus impostos
vai voltar um pouco, eu não me importo. – John entrega um prato com um
sanduíche e uma água tônica ao Jared. – Não estamos aqui para proteger
donzelas, não é mesmo, Claire? – Ele me alerta.
Eu me afasto, sem escolha, continuo a servir, mas todo tempo
olhando para confirmar se Jared ainda está no balcão. O susto da noite
passada ainda deixa minhas pernas bambas e fico rezando para ele ficar até
o bar fechar.
Aiden e sua turma vão embora fazendo algazarra na rua. Os outros
clientes começam a sair, as mesas começam a serem limpas, é um alivio,
Jared continua no balcão. Com ele, apenas John e um homem bêbado
dormindo com o rosto no balcão.
John paga pelo dia, eu guardo o dinheiro no bolso aliviada por,
finalmente, poder ir embora. Jared se levanta e deixa o bar um instante
antes de mim, aceno para as meninas depois de agradecer John, ele abana a
mão em uma resposta desinteressada enquanto conta o seu dinheiro. Pamela
sai primeiro que eu, Sarah fica ainda arrumando o cabelo e passando batom,
eu corro com esperança de alcançar Jared e, para minha surpresa, ele está de
pé na porta, com os braços cruzados, claramente a minha espera.
— Ficou me esperando? – Ele dá de ombros indiferente, eu não
devia ter perguntado, mas começamos a caminhar, lado a lado.
— Cuidado com Aiden. Ele acha que pode tudo. – Meu olhar não
esconde o medo, eu não sei como evitar, só sumindo da cidade, talvez eu
deva mesmo ir de uma vez.
— Sempre tem gente achando que pode tudo. Gente com algum tipo
de poder que acha que pode te destruir e ainda rir de você, gente que não se
importa com a dor. – Meus olhos marejam, tenho medo de me entregar às
lágrimas e nunca mais parar de chorar, mas eu tento esconder as lágrimas.
— Uma hora ele descobre que as leis são para todos. Os pais não
são ruins, só mimaram o garoto demais. – Eu não respondo ao seu
comentário, acho que isso é mais do que ser mimado, isso é sobre caráter e
sinto que esse filho da prefeita não tem nenhum.
Sinto outra onda de medo, medo de tudo se repetir, medo de ser
culpa minha. Talvez eu esteja passando a mensagem errada, quem sabe tem
algo no meu jeito que faz os homens acharem que podem tudo?
Esfrego meus braços em uma onda de frio que vem da alma, fecho
melhor a jaqueta sonhando com noites de verão, ainda que eu ache que o
frio que sinto não tem nada a ver com a estação do ano.
Jared parece perceber, às vezes acho que ele se pergunta o que há de
errado comigo, deve morrer de pena da louca dramática que cruzou seu
caminho e chora sem grandes motivos, que é incapaz de se defender de um
imbecil.
Estamos chegando à pensão, queria que fosse mais longe, eu
poderia andar a noite toda só para não me despedir dele e me sentir sozinha
outra vez.
— Você tem folga no domingo, não é?
— Infelizmente, John disse que aos domingos, ele contrata outras
pessoas e todas as garçonetes tem folga. O dinheiro seria bom, tentei
insistir, mas ele disse não.
— Ainda bem, vai acabar se matando, fica em pé o dia todo...
— Eu me sento para fazer as refeições! – Ele ri achando que não é o
bastante. – Vou para os fundos do bar, sento nos degraus e fico olhando a
floresta. É tão bonito... a cidade toda é cercada por mata.
— Espero que fique só apreciando, não entre na mata, é mais
perigoso do que parece. – Balanço a cabeça afirmando, bem que podia me
perder para sempre embrenhada na mata, longe de tudo que é gente ruim.
Aliso meu peito como se fizesse um carinho em meu coração, ele está
ferido, quebrado, esmagado pela vida, parece que nunca mais vou ser feliz.
– Ei! – Jared toca meu braço, logo se afasta, parece sentir meu desespero. –
O que acha de me ajudar no domingo? – Sente um arrependimento no
instante em que diz, dá para ver que foi um impulso de pena da minha
situação, mas que se dane, ele convidou e, seja o que for, é melhor do que
ficar naquele quarto trancada e com medo.
— Ajudo com certeza! – Eu o deixo em má situação, agora ele não
pode mais recusar e sinto vergonha de me humilhar tanto só para estar perto
de um quase-estranho que do nada se transformou na única coisa que tenho
na vida.
— Tenho umas coisas para arrumar no trabalho, a loja e a casa são
vizinhas do Mike, pode conhecer o marido dele e ficar por lá, assim não
fica sozinha.
— Obrigada, Jared! – Digo do fundo do meu coração e meu
agradecimento faz seus olhos brilharem, às vezes acho que o coração dele
também é quebrado, que ele também não tem ninguém e que como eu, ele
não conhece muitas coisas boas da vida.
Entramos juntos na pensão, acenamos nas portas dos quartos e
entramos quase ao mesmo tempo, então a solidão e o medo. Tranco tudo,
tomo banho, me encolho na cama, as pernas cansadas, os olhos pesados... o
bom da exaustão é que ela mata a insônia e, por umas horas, eu apenas
apago, mas acordo de madrugada e mesmo com a luz acesa porque não me
atrevo a dormir no escuro, o ambiente me oprime e voltar a dormir é difícil.
Jared está na porta da pensão, na calçada, e eu sei que está me
esperando e eu não sei o que isso quer dizer, mas aquece meu coração,
muda o sentimento do dia, é estranho e muito bom, queria abraçá-lo e
agradecer, queria mesmo era chorar e apenas sorrio, ele ajeita a jaqueta e
começamos a caminhar lado a lado.
Ele toma seu café em uma das mesas, dessa vez conversa com Mike
e o xerife que toma café com o filho, depois se despede com um leve aceno
de cabeça, mas, ao anoitecer, está de volta, fica no balcão, come, bebe
algumas tônicas e sai uns minutos antes de mim, me espera e me
acompanha até a pensão, nos despedimos e nos separamos, assim os dias
vão correndo, uma semana inteira disso.
O dia que ele não aparecer, eu não sei como vou me sentir, não
devia me deixar envolver assim, Jared não parece o tipo disposto a um
envolvimento e eu não tenho qualquer condição emocional de me envolver
com alguém, eu nem sei se me permitiria ser tocada de novo depois do que
me aconteceu, meu corpo ainda tem marcas, as do rosto praticamente
desapareceram e eu já não preciso carregar na maquiagem, mas mesmo que
meu corpo não tivesse marcas, meu coração tem e elas doem demais.
Despedimo-nos mais uma vez na porta do quarto, enquanto alguém
está no meio de uma briga no andar de cima, aceno com vontade de pedir a
ele para entrar um pouco, ficar conversando o resto da noite, acho que eu
confiaria nele para isso.
Acho que se ele tentasse me beijar eu permitiria, talvez gostasse,
talvez memórias me atingissem em cheio e a dor se espalhasse, melhor não
pensar nisso, só seguir em frente com o que se parece com uma simples
amizade, pelo menos para ele.
No fundo, mesmo sem querer admitir, acho que ele só sente mesmo
pena, meu medo é tão visível que ele deve ficar com dó de mim, Jared nem
conversa muito no caminho, não diz nada de si mesmo, do passado, o que
faz, onde trabalha. Vou conhecer seu trabalho no domingo, mas nem sei o
que vamos conversar, ele é quieto e fica medindo palavras, mas já o vi dizer
umas coisas com John, uma linguagem mais masculina e meio pesada, acho
que é por isso que ele fala pouco, não quer ser desrespeitoso comigo e isso
é bonito da parte dele.
Os gritos no andar de cima continuam, eu fico com medo, não tem
como não ficar, não tem como não pensar nas coisas que vivi, brigas,
homens grosseiros, tudo que me cerca parece gatilho para me lembrar de
tudo.
Só não fico mais apavorada porque sei que duas portas depois da
minha tem a porta dele e sinto que, se precisar, ele me ajuda. Acho que
nunca conheci alguém mais gentil que ele. Mesmo ele fingindo que não é.
Jared está me esperando pela manhã, eu sorrio e acho que só ele
ainda me faz sorrir, mesmo que ele raramente devolva o sorriso e sempre
pareça incomodado e arrependido de me esperar, mas seguimos lado a lado.
Ele toma seu café, vai trabalhar e fico atendendo as mesas e servindo as
pessoas esperançosa pelo dia de amanhã, quando vamos ter umas horas
livres juntos e vou conhecer seu trabalho.
— Claire, aproveita para almoçar agora que o bar está tranquilo. –
John me pede perto da uma da tarde, eu obedeço agradecida, a fome já
estava gritando.
Sirvo-me de uma fatia de torta de frango e um copo de suco, saio
pelos fundos e me sento nos degraus da escada. Como a torta e tomo o suco
respirando o ar frio da tarde, ao menos não está nevando, eu nunca gostei
muito de neve, gosto dos dias quentes e ensolarados.
— Oi. – Aiden aparece na minha frente não sei vindo de onde. Olho
em volta e me dou conta que não tem ninguém por perto. – Assustei você?
– Ele sorri e sinto medo, vejo em seus olhos o mesmo que vi nos olhos
daquele monstro e isso me apavora a ponto de me deixar fraca.
— Tenho que voltar ao trabalho. – Dou as costas a ele, mas sua mão
aperta meu braço me impedindo de caminhar, ele me puxa para perto dele.
— Não se preocupe. É só dizer ao John que estava comigo e nada
vai te acontecer, John sabe quem eu sou. Você também deveria saber, tem
muitas vantagens ficando perto de mim...
— Solte-me! Está me machucando... – Sinto o braço formigar pelo
aperto e meu coração acelera de medo, um medo descomunal. Meus olhos
marejam, as pernas fraquejam e o que vejo é o corpo daquele monstro
ordinário sobre mim, as coisas que ele fez, a dor que eu senti naquele dia
está toda de volta.
— Não adianta olhar em volta. Ninguém se intromete no que faço.
— Deixe-me! – Junto forças para falar mais alto, mesmo assim, ele
não se intimida.
— Ando pensando em te visitar na pensão. O que acha?
— Eu não quero sua visita. Não vou receber você. – Seus olhos
cintilam de raiva.
— Posso criar um grande problema para você, melhor ser boazinha.
Quando nos conhecermos melhor, vai gostar de mim. – Impossível, eu o
empurro com toda força que tenho e depois corro para dentro me trancando
no banheiro dos fundos no meio de uma crise de choro.
— Claire! Anda logo! Isso aqui está cheio de gente! – John esmurra
a porta e me assusto.
O que eu vou fazer? Não posso ficar aqui, não posso lidar com isso
mais uma vez. Onde quer que eu vá eu vou acabar num buraco como esse.
Não importa o quanto eu fuja, parece que essa coisa vai me perseguir. Penso
em Jared enquanto lavo o rosto para conter as lágrimas e ele é a única coisa
boa e, se partir, perco isso.
— Claire! – Destranco a porta e corro para pegar meu avental e
voltar a servir, Sarah e Pamela me olham torto, demorei demais, eu queria
contar, mas quem se importa? Pelo visto, o filho da prefeita pode mesmo
tudo nessa cidade.
Aiden retorna ao anoitecer, me obriga a atendê-lo, faz suas piadas, ri
com seus amigos, mas está bebendo tanto que acaba por me esquecer, e isso
é bom.
Descubro que nas noites de sábado o bar fecha mais cedo porque
todo mundo vai para um clube dançar e beber. Fico feliz quando uma hora
depois as pessoas começam a pagar a conta e sair.
Jared também deixa o bar, não devia, mas gosto do friozinho que
fica na barriga de ansiedade sem saber se ele está ou não me esperando na
porta.
A leve felicidade me deixa quando penso que, como todos os
outros, ele deve ter ido ao clube encontrar garotas, beber e dançar. Não que
consiga imaginá-lo fazendo essas coisas, mas isso não quer dizer que não
faz.
— Seu dinheiro, Claire. Até segunda-feira e nada de passar da hora
do almoço. As garotas não tem que trabalhar por você. – John nem imagina
o que aconteceu e, melhor assim, ele nunca ficaria do meu lado.
— Desculpe... – Digo em despedida.
Empurro a porta e ele está lá. Meu coração salta e sinto medo de ele
perceber isso, mas a verdade é que tem um sentimento nascendo e eu não
faço ideia de como lidar com ele, mas contar a ele não é uma boa ideia e
finjo que nada mudou. Domo meu coração e sorrio.
— Pensei que estava no clube como todo mundo.
— Nem pensar! Só se me amarrassem e, mesmo assim, lutaria
muito. – Começamos a caminhar. – Por que? Você quer ir até lá? – Ele não
parece gostar de fazer a pergunta.
— Não. De jeito nenhum. – Sua expressão se tranquiliza, será que
ele ficaria chateado se eu fosse? Será que se ofereceria para ir comigo?
Vamos caminhando em silencio até que eu me lembro de Aiden e sua
promessa de me procurar em meu quarto. Ele bebeu tanto essa noite, será
que acabaria indo atrás de mim? – Amanhã é domingo. Ainda posso ir com
você?
— Convidei, então sim. – Ele responde de um jeito meio duro, Jared
não consegue ser muito delicado.
— Jared, todo dia quando a gente chega e nos separamos na porta
dos quartos, você fica lá? Não sai até de manhã? – Ele me olha confuso.
Desvio os olhos, envergonhada da pergunta.
— Sim. – Ele responde simplesmente. Se Aiden for até lá, aquele
recepcionista velho e dorminhoco não vai impedi-lo de subir e aposto que
vai adorar dar o número do meu quarto para ele. – Está com medo, Claire?
Alguém te incomodou no seu quarto?
— Não. Ninguém foi lá. – Ainda. Completo mentalmente. Engulo a
vontade de chorar. – É só que às vezes parece ter brigas e eu...
— Meu sono é leve. Se precisar, é só bater.
— Não sei por que faz isso. – Digo curiosa para entender por que
ele é tão bom comigo. — Mesmo assim, obrigada.
— Também não sei. Só não consigo evitar. – Não sei que tipo de
resposta é essa, mas acho que não abre espaço para ilusões românticas. No
fundo, ele nem mesmo sabe por que me ajuda, então, com certeza, não é
nada demais.
Chegamos à porta do quarto. Não quero me despedir, adoraria
arrumar uma desculpa para prendê-lo comigo mais tempo e eu já não sei
mais se é apenas por essa sensação de segurança. Tudo é tão confuso, eu
queria tanto ter alguém para me abrir.
— Obrigada, Jared. Boa noite.
— Nove horas está bom amanhã? Se quiser dormir um pouco mais
eu posso...
— Não. – Eu o interrompo apressada. – Nove está ótimo. – Quanto
mais cedo estiver com ele melhor, quanto mais cedo estiver fora desse
lugar, menos agonia.
— Certo. Eu... Eu bato. – Ele diz e depois só abre a porta e entra.
Faço o mesmo. Sento-me na cama. Aiden me vem à mente. Corro para a
porta, é tão velha e só posso pensar que um chute a abriria. Encosto uma
cadeira.
Capítulo 7
Jared

Visto uma camiseta limpa, a barba está feita e tento me convencer


que foi porque precisava, afinal estava por fazer há alguns dias. Não é nada
demais, é só um domingo, Claire vai comigo porque não tem nada para
fazer, isso não é nenhum tipo de encontro.
São dez para as nove e eu me sento na cama encarando as botas, o
que, afinal, estou fazendo? No fundo eu não faço ideia, mas não posso dizer
que é por caridade, pena ou amizade, no fundo, eu sei que não é isso.
O problema é que Claire não é o tipo de mulher que se envolve com
alguém como eu. Nunca soube nada de gentileza e essas frescuras, não tem
como eu ser diferente e acho que ela iria querer um cara delicado, que diz
baboseiras românticas, isso não serve para mim.
Eu nem sei por que é que estou aqui pensando essas coisas, fico de
pé afastando esses pensamentos, a partir de agora, vou pensar melhor antes
de falar merda e fazer burrice. Nunca mais vou convidar e isso vai aos
poucos se dissipando.
Tenho que parar de levar e buscar no trabalho como se fosse um
namoradinho, já sei que tem gente comentando, logo se espalha a notícia e a
garota vai chutar meu traseiro e rir de mim. Pensar que eu chamava a Abby
de princesinha... Abby é como eu, durona, Claire, sim, é uma princesinha.
Bato na porta dividido entre o arrependimento pelo convite e a
ansiedade do encontro, escuto um barulho dentro do quarto e ela abre a
porta.
— Bom dia. – Ela cumprimenta toda sem graça. – Acho a porta
velha e fraca, então, por garantia, eu pensei que encostar uma cadeira...
— Faria você quebrar uma perna tentando abrir. – Eu completo e a
vejo murchar um pouco. – Deve ajudar. – Conserto apressado e ficamos nos
olhando um longo momento, fico sem saber o que mais dizer, ela está bem
bonita, os cabelos soltos, o rosto sem tanta maquiagem... é tão bonita, não
precisava caprichar tanto na maquiagem com esse rosto suave, mas que
merda sei eu dessas coisas de mulher? — Importa-se de irmos de moto?
— Não. Eu adorei andar de moto. – Sorrio com sua animação.
Ela me abraça quando subimos na moto, tenho que admitir que é
das melhores coisas da vida. Acho bom a caminhonete que eu tanto insisti
para pegar com o Zack ter acabado esquecida na frente da loja. Não demora
mais do que cinco minutos, uma pena, podia ser um pouco mais longe, mas
a verdade é que mais longe que isso seria fora dos limites da cidade, quase
como Zack que mora quase em outra cidade.
— É aqui que trabalha? – Dá para ver seu olhar de encantamento
com a vizinhança.
— Sim. Depois te trago para conhecer. O que vou fazer é organizar
o estoque que está ali. – Aponto a casa ao lado e os olhos dela brilham. –
Gosta?
— Muito! É tão linda! Uma pena ser apenas um depósito, merecia
uma família, me lembra minha casinha de bonecas quando eu era bem
pequena.
— Eu vou...
— Claire? – Mike surge em sua varanda e me interrompe acenando
animado. – O que faz aqui?
— Oi, Mike, Jared tem umas coisas para fazer e vim...
— Ajudar? Que bom, quero que conheça minha casa e estão
convidados para o almoço. – Ele a puxa pela mão, Claire me olha sem saber
direito o que fazer. – A gente te chama quando a comida estiver pronta.
— Na verdade, eu vim ajudá-lo! – Claire para Mike que revira os
olhos como se finalmente entendesse algo.
— Claro, estou sendo invasivo e atrapalhando o... trabalho de vocês,
mas vem só conhecer meu marido, daqui a pouco você volta. Jared, diz para
ela.
Eu acho que é bom ela conhecer pessoas e o Danny tem um ótimo
emprego em um prédio comercial, talvez ele possa arrumar coisa melhor
para ela.
— Vai, Claire, vou estar aqui na casa. – Digo dando as costas a eles
e entrando, escuto seus passos seguindo com Mike.
Convido a garota para ficar comigo e ela passa o tempo todo com
Mike? Fecho a caixa um tanto irritado, já faz quase uma hora que eles
saíram juntos.
Que bela bagunça está esse lugar... Só de flechas já achei duas
caixas que poderiam estar na loja. Lewis tem um estoque de respeito e vai
me dar trabalho tirar tudo e deixar a casa habitável.
— Jared! — Ela se anuncia entrando na sala quando estou abrindo
uma caixa, seus olhos correm pelo ambiente. — Que lindo! – Claire não
consegue esconder o encantamento, toca os móveis, pula caixas estica o
pescoço para olhar em direção à cozinha, se encanta até com o corrimão da
escada que leva para o segundo andar.
— Gostou? – Não sei por que a opinião dela é tão importante, mas
espero ansioso.
—Muito! Tão perfeitinha, parece um sonho.
Ela, sim, é perfeitinha, delicada, linda, tão suave que nem parece
gente. A verdade é que eu nunca convivi com ninguém assim, gente como
ela sempre me olhou com superioridade, com descaso. Meu coração reage,
me assusta sentir o que sinto, não é apenas vontade de beijá-la, eu já senti
vontade de beijar muitas mulheres, com ela é sempre um pouco mais do que
isso.
— Mike está terminando o almoço, marcou meio-dia. Vai continuar
depois do almoço?
— Sim, mas se não quiser ficar eu posso...
— Eu quero. – Ela me corta. – Posso ajudar?
— Pode ajudar, mas não precisa carregar peso.
— O que é tudo isso?
— Estoque da loja. Quero dar uma geral, ver o que tem, tirar tudo
da casa e levar para a loja, vou organizar as prateleiras e o resto vai para o
sótão.
— Material de pesca? – Ela pergunta erguendo um anzol.
— Também. O que acha de abrir as caixas e ir separando os
materiais enquanto vou levando tudo para a loja?
— Claro! – Ela se anima. Passa um pouco do meio-dia quando
deixamos tudo para ir à casa de Mike. Eu odeio essa coisa de “boa
vizinhança”, eu não gosto da falsidade de ficar jogando conversa fora e me
preocupando em como eu me comporto, se mastigo ou não de boca aberta,
se como rápido demais, mas também não quero envergonhar Claire e eu já
fui um grande idiota pensando coisas sobre Mike e Danny.
Não entendo bem as escolhas deles, eu não sou perfeito e já fui
cheio de preconceito, eu conheço o inferno, e lá, isso é um prato cheio para
humilhação, mas o jeito simpático do Mike e a paciência do Danny me
fizeram ser menos ridículo, isso e o sabão que Abby me passou quando fiz
uma piada idiota sobre eles.
Danny fica me perguntando sobre a loja, as finanças, se eu não
gostaria de fazer um seguro, me faz pensar se eu levo mesmo jeito para ser
um dono de negócio, talvez eu precise de conselhos do Zack.
Claire se oferece para ajudar com a louça, mas eles recusam e
voltamos para o trabalho levando sanduíches e suco que Mike preparou
para comermos no meio da tarde. Eu tenho que admitir que o cara é um
bom amigo.
São tantas caixas que começo a deixar algumas no quarto menor e,
no fim da tarde, mesmo parando muitas vezes para mostrar e explicar tudo a
ela, limpamos a sala e a cozinha. Não tem mais nada espalhado, o que não
foi para o sótão está no quarto pequeno e a casa fica até um pouco maior.
— Gosta muito do seu trabalho, faz tempo que tem esse emprego?
— Pouco mais de um ano... Eu estive por aqui há uns anos atrás, é a
minha região, nasci e cresci por essas bandas, pela floresta, pela cidade,
essa e umas em torno, então o velho Lewis sabia da minha paixão por caça
e pesca e me contratou, mas eu acabei de comprar a loja!
Os olhos dela se arregalam, ela sorri genuinamente feliz por mim.
— Que coisa boa! – Claire me faz pensar em como é linda sorrindo
e como um simples sorriso dela causa coisas em mim. É bizarro um sorriso
fazer meu coração se encher de sentimentos que nem conheço – Boa sorte.
Parabéns!
— Não é grande coisa. Vou demorar um tempo para terminar de
pagar.
— Está diminuindo sua vitória. Não devia fazer isso. – Ela está
certa, mas eu sempre faço isso, é difícil acreditar que posso dar certo, isso
não é coisa para os Brow, não é essa nossa fama. Somos o erro, o deslize,
somos a curva do rio, é assim que me sinto, foi isso que aquele velho
maldito nos ensinou a ser.
— Acho que por hoje chega. Continuo no próximo domingo. – Ela
deve estar cansada, com fome e amanhã vai estar enfiada naquele buraco
que o John chama de empreendimento.
— Estou bem, se quiser podemos continuar.
— Não. Amanhã trabalhamos. – Ela não gosta de se lembrar e
penso que amanhã, se tiver chance, vou ver com o Danny se arruma uma
chance melhor para ela.
— O que vai acontecer com a casa quando acabar? – Ela me
pergunta.
— Ela entrou no negócio junto com a loja e vou morar aqui. –
Coloco a última caixa que fechei sobre as outras e, quando olho para Claire,
ela está secando lágrimas. – Está chorando?
— Não. – Ela nega sem conseguir esconder as lágrimas, o que torna
ridículo eu perguntar e mais ainda ela negar. Reformulo a pergunta.
— Por que está chorando?
— Eu não estou chorando. – Dou uns passos em sua direção. – Eu...
Vai deixar a pensão?
— Vou. – Ela está chorando por minha causa? Por que vou me
mudar? – Mas ainda vou comer todos os dias no John. Então, eu vou estar
por perto e te acompanhar à noite. – Eu não tinha jurado que ia segurar a
porra da boca e não fazer mais convites e promessas?
Isso não diminui suas lágrimas e não sei como lidar com isso. Eu
não lido com sentimentos, eu fujo deles, meu negócio é o real, o concreto, o
resto eu quero distância, só dá problema, só fere e eu não quero sentir nada
disso, mas quando ela chora, mesmo sem saber o que fazer ou como me
sentir, meu coração se aperta, quero protegê-la.
— Eu fico feliz que vai deixar aquele inferno, não pense que não
fico. – Ela garante lutando para domar suas lágrimas.
— Claire, é só... Quem se importa onde moro ou deixo de morar?
— Eu me importo. – Ela garante de modo honesto. O modo como
me olha tão delicada, assim diante de mim dizendo que se importa.
Chorando porque vou para longe dela. Ninguém nunca se importou.
Não estava em meus planos, mas então, quando me dou conta,
minhas mãos estão em sua cintura e ela ergue o olhar e seus lábios são tão
perfeitos que só consigo cobri-los com os meus e Claire aceita.
Começa voraz. Como que cheio de um desejo contido que me
domina e torna tudo urgente, mas depois um mundo de sentimentos ainda
mais profundos se apresenta dentro de mim e o beijo fica doce, terno.
Eu me entrego, mesmo não querendo. Não posso controlar quando
suas mãos delicadas estão espalmadas em meu peito. Quando ela participa
do beijo tão entregue quanto eu.
Seus lábios são macios. O modo como fala, anda, sorri, tudo nela é
perfeito e delicado, como um cristal fino que precisa de proteção e cuidado,
o tipo de coisa que eu não sei fazer, eu sou bruto, a vida me fez assim,
quebrar seu coração é quase uma certeza.
Claire se afasta no minuto que tomo consciência do que estamos
fazendo e do quanto isso é uma grande estupidez, seus olhos estão
confusos, ela parece assustada, talvez arrependida, ou só... com tanto medo
quanto eu.
— Não te convidei para vir aqui pensando em me dar bem!
— Eu sei... – Ela me diz tímida. Quero beijá-la de novo, mais do
que isso, quero beijá-la para sempre.
— Melhor a gente ir. Já vai anoitecer. — Toco seu braço
convidando, ela afasta o braço rápido. Qualquer coisa em seu olhar me
chama atenção. – Machuquei você? Desculpe.
— Não. Eu... – Sem saber mentir ela olha para o chão.
— Posso ver o seu braço, Claire, se machucou?
— Eu bati. Não tem nada. – Ela corre os olhos pela sala, vai até sua
bolsa e pega colocando sobre o ombro. – Podemos ir. – Finge um sorriso,
mas ela não é mesmo boa nisso.
— Bateu? Aqui me ajudando?
—Não. – Ela não vai me mostrar, então eu tomo a iniciativa. Com
os olhos fixo nela, eu afasto o casaco, o braço está roxo, é a marca de uma
mão grande prendendo seu braço, ela está falando com um especialista, eu
vivi a infância toda assim marcado, posso reconhecer todos os tipos de
agressões e dissertar sobre cada uma delas, da intensidade da dor ao tempo
de recuperação.
— Quem fez isso?
— Ninguém. – Odeio sua mentira, sinto a raiva me tomar como
fazia tempo eu não sentia, jurava que tinha domado essa fúria que mora em
mim, mas ela renasce das cinzas e me toma.
—Não minta. Quem fez isso? – Sinto meu sangue ferver de raiva. –
Alguém apertou seu braço. Quem fez isso?
— Aiden. — Ela confessa, mas eu já sabia, só ele seria idiota o
bastante, só ele se acha acima da lei. — Eu estava nos fundos do bar na
hora do almoço ontem e ele apareceu, eu quis me afastar sem ouvi-lo e ele
parece não ser capaz de ouvir um não, apertou meu braço para me impedir
de me afastar, mas foi só isso.
— Só isso? Isso não vai ficar assim. – Aviso querendo reviver os
velhos tempos em que os Brow metiam tanto medo nas pessoas que um
idiota como esse acabaria com o nariz quebrado só por pensar em me
desafiar.
— Está tudo bem, daqui a pouco some. Não precisa se meter em
problemas por mim.
— Preciso. Deanna vai dar um jeito naquele traste ou eu vou. – Não
escondo minha irritação. – Por isso não quer que me mude? Está com medo
dele?
— Também por isso, ele disse que vai no meu quarto, e porque
gosto de ficar perto de você.
Será que ela não pode ser menos honesta? Isso me deixa bem
nervoso. Eu decido não registrar o que ela acaba de confessar. Ninguém
gosta de ficar perto de mim.
— Aiden é problema meu agora. Vem, precisa comer e dormir. –
Ela me segue silenciosa.
Subimos na moto e, de novo, é aquela sensação boa dos braços de
Claire em torno de mim. Dou partida em direção à pensão e penso em como
posso ir embora e deixá-la naquele lugar. Nunca vou conseguir fazer isso e
não sei como fui me enrolar assim de uma hora para outra.
Capítulo 8
Claire

Minha boca ainda parece guardar a sensação do beijo, enquanto eu


envolvo sua cintura e encosto-me em suas costas sentindo o vento a me
acolher no começo da noite fria na garupa de sua moto, fico recapitulando
os acontecimentos.
Não planejamos, eu sei que ele não me convidou para conhecer sua
casa nova na intenção de me beijar. No funcho acho até que está um pouco
arrependido.
Jared não parece ser o tipo de homem que se envolve
romanticamente, ele não sabe direito como agir, fica constrangido. Eu não
sei muito dele, mas sinto que ele também tem seus traumas.
Quando senti que seria beijada por ele, eu não pensei em nada,
quando sua boca tocou a minha e senti suas mãos me envolvendo, foi bom,
eu não associei a coisa alguma, eu só me deixei sentir e gostar, mas em
algum momento, as imagens do que me aconteceu tomaram minha
mente. Afastamo-nos, não foi nada brusco ou ofensivo, eu nem queria que
ele ficasse se explicando sobre suas intenções. No fundo, eu ainda não faço
a menor ideia do que tudo isso significa, mas eu sei que se alguém pode me
ajudar a superar tudo aquilo, se existe ainda alguma chance de viver uma
história de amor sem ficar cheia de gatilhos com o passado, só pode ser com
ele, mas Jared não quer isso, dá para sentir que ele não tem qualquer
interesse nisso.
No fundo, acho que ele só vê uma moça bonita, um corpo, traços,
aparência... isso o atraiu e nos beijamos, foi apenas isso que aquele monstro
viu, minha aparência, e foi isso que ele quis para si e tomou, talvez eu não
seja muito mais do que isso.
Acho que eu poderia aceitar que ele quisesse apenas estar comigo
porque se sente atraído, talvez eu pudesse gostar por nós dois, o que mais
eu tenho? Não sou nada além disso, de qualquer modo, na maior parte das
vezes eu me sinto tola, indefesa, até meio estúpida, foi por tudo isso que eu
achei que aquele homem estava sendo gentil, eu confiei nele e deixei que
ele encontrasse um modo de me machucar, eu mandei a mensagem errada.
Jared tem sido a única razão de continuar de pé, não fosse a espera
por uns momentos com ele, acho que já teria sucumbido. Agora que sei que
ele vai embora, vai se mudar para aquela casa bonita e viver a vida dele,
sinto que vamos nos afastar e, depois, quando eu for só uma conhecida que
cruza seu caminho de vez em quando, eu não sei como vou encontrar um
jeito de ser feliz e atender ao último desejo da minha mãe.
Ele estaciona a moto em frente à pensão, descemos e Jared me
aponta um pequeno restaurante na esquina.
— Vamos lá comer alguma coisa, foi um dia longo, deve estar
faminta e não vai no John para jantar, e eu também não estou querendo ir
até lá. – Eu o sigo, tem uns casais, umas famílias, poucas pessoas no lugar,
mas nos acomodamos em uma mesa perto da janela. Não tem nada para ver,
só uma rua vazia em um lugar pacato e silencioso.
— O que quer? – Ele me pergunta.
— Um sanduíche de frango e um refrigerante. – Escolho achando
aquele momento quase como um encontro. Nós dois sentados juntos
comendo.
— Para mim um de carne e um refrigerante também. – Ele pede a
garçonete que se afasta nos deixando sozinho. – Ajudou-me muito hoje.
Obrigado.
— Gostei muito. Sua casa é bem bonita e pertinho da floresta. Acha
que posso andar um pouco por lá? – Sempre quis fazer um passeio pela
mata, ir a algum rio de água fresca, ouvir os pássaros.
— Nem pense nisso! – Ele se alarma um pouco. – É sério. Tem
animais grandes lá e, de vez em quando, gente pouco confiável.
— Acha-me fraca e indefesa... – Fico triste de não poder desmentir
isso. É o que sou.
— Acho. – Ele diz de modo natural, mas parece se arrepender, acho
que sente pena. – Mas não tem nada errado nisso. É seu jeito e tudo bem.
— Queria ser diferente. Forte e corajosa. Sou atrapalhada e tola.
— Não tem nada errado com você, Claire. – Dois homens deixam
uma mesa e seguem para a saída me olhando discretamente, Jared percebe.
– Vê como não tem nada errado com você? Não se pode olhar para você
uma vez só, é muito bonita.
Às vezes acho isso quase uma ofensa. Ser bonita fez aquele homem
me machucar e fez Aiden querer fazer o mesmo, mas também faz Jared
estar aqui. Ao menos eu acho que é isso e, de algum modo, é um alento.
Seus olhos azuis me fitam e meu coração sai do ritmo. Sempre
penso se ele sabe disso, se escuta as batidas frenéticas.
— Onde está sua família? – Ele me pergunta quando a comida
chega.
— Não tenho! – Conto a ele. – Quando minha mãe teve câncer da
primeira vez, meu pai se mandou, nunca mais soube dele, ficamos só nós
duas, lutamos juntas e vencemos daquela vez, mas não da segunda, ela se
foi tem alguns dias, apenas alguns dias, ainda toma meus pensamentos o
tempo todo, ainda fico me perguntando o que ela diria, o que espera que eu
faça, mas é só silêncio e solidão.
— Sinto muito! – Ele parece bem honesto ao dizer, acho que sente.
— Não tem parentes?
— Devo ter, todo mundo tem, mas eu não sei deles, nunca soube,
então não, não tem mais ninguém, sou apenas eu. – Ele mastiga sem me
olhar muito, mas eu sei que está prestando atenção. – E você? Onde está sua
família?
— Tenho um primo que mora em uma propriedade nos limites da
cidade, Zack, a esposa e a filha, Mary.
— Você tem uma sobrinha? – Eu acho que ele deve ter uma família
bonita, da para ver que ele fala deles com carinho.
— Sim, pequena. – Ele faz um movimento mostrando a altura,
como se não fizesse ideia da idade, mas pelo que mostra, é bem pequena. –
Zack é como um irmão, os pais dele morreram cedo, ele veio morar
comigo, aí... bom, é isso, não tem nada de bonito na nossa história.
— Tem sim, você tem uma família, sobrinha, uma vida boa, loja,
casa, estabilidade. – Jared ri, um riso talvez amargo, eu não entendo.
— Eu não sou quem você pensa, esse cara que descreveu... não,
definitivamente, não sou eu. Não sabe nada sobre mim, não é essa a minha
história. – Ele não está exatamente bravo comigo, mas talvez bravo com o
próprio passado.
— Acho que eu não entendo, por que não me conta sua história?
— Eu já disse, não tem nada de bonito nela, você não vai gostar.
— Eu não vou julgar você! – Ele nega. Dá um longo suspiro e toma
o resto do seu refrigerante deixando o copo vazio sobre a mesa.
— Esquece, eu não tenho nada para contar sobre mim. – É tudo que
ele está disposto a dizer. Eu dou outra mordida no sanduiche que,
deliberadamente, como lentamente prolongando nossa permanência aqui.
— Tá bom, como é o seu trabalho? Você que decide as compras,
vende pela internet também?
— Eu faço tudo por lá, mas essa coisa de internet não é comigo.
— Podia aprender, pode entregar no país todo, teria muito mais
clientes. – Ele entorta a boca e faz uma careta engraçada. – Não é difícil
aprender, eu não vi sua loja, mas posso te ajudar a colocar as coisas para
vender...
— Se quiser ir lá no próximo domingo, eu juro que a primeira coisa
que faço é te mostrar a loja. Deixei você trabalhar e nem mostrei nada.
— Eu vou. – Eu me animo com a ideia. – E posso te ajudar um
pouco com a casa. Quando se muda? – Olho para o copo com medo de
mostrar meu desconforto com a ideia dele partindo.
— Não decidi ainda.
— O sanduíche estava ótimo, obrigada. O dia todo foi especial. –
Ele sorri chamando a garçonete, eu coloco a mão no bolso, ele nega com
uma expressão quase ofendida.
— Nem pensar. Eu pago. – Não discuto, parece ser importante para
ele.
— Você é tão cavalheiro! – Digo quando nos erguemos para ir
embora e sua gargalhada espalhafatosa se espalha chamando atenção de
todos. Eu não entendo, realmente o acho muito gentil e educado, um
cavalheiro sempre me tratando com respeito e preocupação.
O clima muda no instante em que entramos na pensão, meu coração
dispara e agora não é exatamente por estar com ele, mas por pensar na
solidão, na ideia de que aquele mimado pode aparecer na minha porta, que
o porteiro nunca o impediria de subir e até daria o número do meu quarto.
Sinto um vazio tomar meu peito, uma angústia inexplicável,
ansiedade, gatilho, eu não sei, mas a ideia toma tanta força em minha mente
que eu não consigo evitar chorar.
— Está chorando, Claire? – Jared me pergunta e nego. A chave
treme um pouco na minha mão. – Por que sempre nega se estou vendo as
lágrimas? – Por que pergunta se pode ver? Eu penso, mas não falo, só seco
as lágrimas quando ele se aproxima de mim e ficamos frente a frente.
— Obrigada pelo dia. Gostei muito. – A voz sai trêmula e
embargada, o sorriso é falso e torto, só quero mesmo desviar do assunto.
— Está com medo dele? – Alguém bate uma porta em algum outro
andar e salto de susto. Ele continua a me olhar agora com os braços
cruzados no peito.
— Ouviu a porta? Ninguém se move para saber o que está
acontecendo. Se ele tentar entrar...
Jared sabe que tenho razão porque fica mudo me encarando. Aiden
pode entrar, fazer o que quiser e sair e ninguém vai se mover porque esse
lugar é uma droga e ninguém se importa com o que acontece com quem
vive aqui.
— Confia em mim? – Jared me pergunta secando uma lágrima que
corre por meu rosto, gosto de sentir seu toque. Ele é a única pessoa que eu
confio e afirmo com um movimento de cabeça. – Fica no meu quarto essa
noite e amanhã vou acabar com isso do Aiden te ameaçar.
Ficar com ele e não ter medo uma noite toda parece um sonho. Eu o
acompanho, seu quarto é igual ao meu, só com mais coisas espalhadas. Não
sei bem como agir, não quero pensar em nada ruim, eu confio nele, no
respeito que tem por mim, e sei que ele não vai fazer nada que eu não
queira, mas é difícil lidar com as lembranças, acho que, talvez, seja assim
para sempre.
— Obrigada, Jared, tem muito tempo que eu não durmo direito.
— Bem, essa noite pode dormir tranquila. – Ele tenta sorrir, não
costuma sorrir muito e posso sentir que também está constrangido. – Fica
com a cama, eu me ajeito aqui no chão.
— Podemos dormir os dois na cama. Eu vim porque confio em
você. Se vai dormir no chão, então eu vou para meu quarto.
Ele ergue uma sobrancelha achando divertido meu tom decidido,
normalmente eu nunca reajo. Eu sorrio para ele. Desde a morte da minha
mãe, Jared é o único a me fazer feliz, ainda que superficialmente, já que os
problemas estão sempre roubando a minha esperança e me mandando direto
para o inferno do medo.
— Tudo bem! – Um tanto confuso, ele tira a jaqueta e a bota, ajeita
os travesseiros um do lado do outro. Embora seja uma cama de casal, não é
das maiores, eu também tiro o sapato e a jaqueta quente, nos deitamos de
jeans, isso é um pouco sua forma de me mostrar que estou segura e fico
agradecida, mais do que algum dia ele vai entender.
Ele está a uns centímetros de mim. Só o que sinto é meu coração
saltando feliz e esperançoso.
— Não se coloca em problemas por mim. Não precisa.
— Está tudo bem. Não precisa ter medo de nada.
— Gosto muito de ficar perto de você. – Ele ergue a mão e toca meu
rosto e só quero que me beije. Acho que me aproximo um pouco ou ele faz
isso e, quando percebo, seus lábios tocam os meus. Toco seu rosto, ele é
bonito, mas o que tem por dentro é mais valioso.
Quando percebe que não estou com medo e não me afastei, ele me
beija de verdade. Um longo beijo. Depois outro, só beijos e meus dedos em
seus cabelos e sua mão no meu pescoço e meu coração pulando loucamente.
— Gosto quando me beija. – Conto a ele que dá um meio-sorriso.
— Acontece que amanhã vai para aquele trabalho horrível. Então é
melhor dormir.
— Você também. A diferença é que seu trabalho é legal, ao menos
você gosta.
Jared me beija mais uma vez, não quero dormir. Quero ficar
olhando para ele, mas envergonhada, eu apenas aceito que é hora de dormir.
— Sai de lá e procura outra coisa.
— Preciso do dinheiro. Um dia eu me acostumo ou consigo coisa
melhor.
— Vai conseguir, agora tente dormir.
— Boa noite. – Eu digo sem me afastar.
— Boa noite, Claire. – Fecho meus olhos e fico sentindo sua
presença ao meu lado. Nunca mais vou me sentir tão bem como agora, sinto
saudade dessa noite antes mesmo de ela acabar.
Acordo com ele apertando o botão de um despertador. Fico
envergonhada, mas ainda assim, gosto de estar ao seu lado. Não sei direito
como me comportar, nunca passei por algo assim, não que eu saiba me
comportar em outros momentos, mas acordar ao lado dele está no topo da
lista das coisas que me confundem.
— Foi uma noite perfeita. Obrigada. – Acho que tenho que dizer.
— Sem problemas. Não precisa agradecer. – Jared não lida bem
com elogios, ele fica constrangido, eu me sento enquanto ele já está de pé.
— Vai tomar café no John? – Pergunto calçando os sapatos
enquanto ele abre as janelas.
— Tenho umas coisas para fazer e não dá tempo, mas te
acompanho, vou naquela direção.
Não discuto, coloco a jaqueta e sigo para a porta, vou passar no meu
quarto e me arrumar rápido, assim não o atraso ainda mais. Como todos os
dias, ele me espera na porta da pensão, vou sentir tanto sua falta quando se
mudar.
Vamos caminhando lado a lado e só consigo pensar que estamos
juntos desde domingo de manhã e ainda acho que é pouco tempo.
Quero ficar o tempo todo e nem ligo dele não sentir o que sinto. Eu
sei que ele me acha bonita e sente pena. Quem, afinal, sentiria mais do que
isso? Mas estou apaixonada e queria ter alguém para falar disso.
Só pode ser paixão, amor... é algum sentimento especial, eu sei que
sim, mesmo que ele nunca vá sentir, é algo que está nascendo forte, algo
que é maior do que gratidão ou segurança.
No meio do caminho noto seus olhos fixos do outro lado da rua e,
então, eu vejo Aiden caminhando com seus pais.
Jared apressa o passo e fico assustada, com medo do que ele vai
fazer. Eu devia ter ficado de boca fechada.
— Jared...
— Fica aí! – Ele usa um tom duro que jamais usou comigo, me
assusta e paraliso.
Sem dizer nada, ele se aproxima da pequena família e acerta um
soco em Aiden que quase vai ao chão. Ele leva uma mão à boca, mas antes
que possa pensar em reagir, recebe outro soco.
— Larga meu filho! – A prefeita grita assustada, nunca quis que
Jared arrumasse problemas por minha causa. Corro para tentar fazer
qualquer coisa. – Selvagem, larga ele! – Ela grita quando Jared acerta mais
um. O homem a seu lado tenta segurar Jared, um policial se aproxima.
— Chega, Jared! – Ele diz e, junto com o pai de Aiden, afastam
Jared. Não consigo me mover, algumas pessoas param para olhar a cena.
— O que foi isso? Parker, eu exijo que faça algo! – A prefeita cobra
enquanto seu marido ajuda ao filho. O policial solta Jared. – Esse
selvagem...
— Selvagem? – Jared grita. – Selvagem é seu filho! Um idiota que
acha que pode tudo. Quer ir ao distrito policial? Vamos todos! Quero ver o
que a justiça acha do que ele vem fazendo com Claire.
— Calma, Jared. – Eu me aproximo dele. Se algo acontecer a ele
nunca mais me perdoo.
— Calma? Até quando essa cidade vai fingir que esse idiota não é
um problema? Ele ameaça Claire. Ela está com o braço machucado. Ele fez
isso, ameaça ir ao quarto dela. Acha que pode tudo, é assim que quer
governar a cidade? – Jared olha para a prefeita que agora está
completamente constrangida. Aiden não nega. Seu silêncio entrega a
verdade e vejo a decepção nos olhos dos pais.
— Aiden... – Deanna encara o filho.
— Se chegar perto dela mais uma vez eu acabo com você! – Jared
ameaça.
— Que vergonha! – A prefeita lamenta correndo os olhos pela
população que a cerca assistindo a tudo. – Se desculpe agora mesmo.
— Eu... Desculpe, Jared. – Ele diz num fio de voz e com olhos
cheios de uma raiva que me assusta ainda mais.
— Não me fez nada, seu idiota. Tem que se desculpar com ela e
ficar longe. – Jared exige.
— Ele vai ficar. Vá para casa agora mesmo, Aiden. Conversamos
quando eu chegar.
— Sim, mãe. – Ele começa a andar.
— Aiden! – Ela chama. – Depois de pedir desculpas à moça. ─ Seus
olhos encontram os meus. Sinto nojo daquele ser desprezível.
— Desculpe, Claire. – Ele apressa o passo e some no meio da
multidão.
— Se ele importuná-la mais uma vez...
— Não vai, Jared. Sinto muito. Nós erramos com ele, mas as coisas
vão mudar. Desculpe... – O homem diz muito firme.
— Ok! Acabou! Todo mundo circulando! – O policial pede. Toca
meu braço e o uniforme me lembra coisas ruins. Dou um pulo para trás que
faz todos me olharem.
— Está bem? – Ele me pergunta. – Eu sou o Xerife Parker. Não se
preocupe. Vou manter os olhos abertos.
— Vou deixar a Claire no trabalho. – Jared avisa apertando a mão
do xerife que, com certeza, é seu amigo.
— Certo. Qualquer coisa fala comigo. As coisas estão indo bem
para você. Não estraga tudo.
Afastamo-nos, ele anda tão rápido que quase preciso correr para
alcançá-lo, está furioso e sinto que a culpa é um pouco minha, é sempre
minha. Chegamos à frente da lanchonete.
— Obrigada, Jared, mas, por favor, não arruma problema por mim.
Eu sei que sente pena, que eu sou fraca, que me acha uma mulher bonita e
frágil e que...
— O que? Então acha que isso é por pena e porque é uma mulher
bonita?
— Acho! – Confesso encarando o chão porque seus olhos de
indignação me machucam. – Não tem problema. Não me importo que só faz
isso porque me acha uma garota bonita. Você é diferente!
— Você se escuta? É sério! Quando diz esse monte de tolices se
escuta? Acha que isso tudo é porque você é bonita? Quer saber? Faça como
quiser. Trabalhe nessa espelunca o quanto quiser. Faça sempre como quiser
e, se tudo isso é por sua aparência, não vai demorar a achar outro que te
ajude porque é bonita.
Ele me dá as costas e simplesmente vai embora furioso. Quero
correr atrás dele, mas minhas pernas não respondem, eu o machuquei e o
perdi.
Capítulo 9
Jared

Aiden é um canalha e a verdade é que eu gostei de arrebentar aquele


nariz empinado. No fundo, esse arruaceiro briguento ainda está vivo dentro
de mim e eu o reencontrei com alegria porque aquele imbecil merecia,
talvez seja essa a única diferença, pela primeira vez, eu fiz o certo, eu bati
em alguém que merecia apanhar e acho até que foi pouco.
Só não esperava pela dureza das palavras dela, achar que eu só fiz
porque me interesso por sua aparência, me reduz a um canalha como o
Aiden, também a torna nada além de um rosto bonito em um corpo perfeito,
e ela é isso, mas é tantas outras coisas.
Claire é frágil e delicada, mas não cuido dela por pena. Eu faço isso
porque... Não sei por que faço isso, não descobri e agora não importa mais.
Acabou e acho que foi bem a tempo. Nunca esteve nos meus planos me
envolver com ninguém.
Beijar Claire foi um erro, um grande erro que não vai mais se
repetir, eu não vou deixar. Não gosto de ser comparado a Aiden. No fundo
foi isso que fez. Como se tudo fosse pequeno e mesquinho. Eu não sou
assim, não mais, eu quero sossego, bater no Aiden trouxe o passado de
volta, pensar que gostei de fazer é algo que me perturba e descobrir que,
depois de tudo, ela diminui a mim e a ela, é de me deixar furioso.
Eu sigo para o meu compromisso, encontrar Lewis e o advogado,
assinar o contrato, é isso, isso sim é o que importa e eu não deveria estar tão
irritado, agora que tomei minha decisão. Deveria estar feliz, mas não estou
e quando entro no escritório a revolta ainda me domina.
— Bom dia, Brow. Joshua deve estar chegando. Sabe como tudo
ficou sem importância para ele. Horários então... perderam todo valor. Vai
lendo o contrato. – O advogado me estica uns papéis que pego meio sem
ânimo. Acho que, no fundo, eu pensei em dividir com ela essa alegria, mas
não tinha que ter pensado.
Começo a ler o texto enfadonho em linguagem jurídica e fico
pensando como se suporta anos de faculdade lendo essas chatices. O mundo
seria melhor com menos advogados e contratos. Ele faz um comentário ou
outro e só passo os olhos pelo papel. Confio em Lewis, ele foi das poucas
pessoas que me deu uma chance e sou grato e, por isso, minha parte será
cumprida e não duvido que ele faça o mesmo.
— Desculpem o atraso! – Lewis entra na sala de modo
intempestivo. – Jared... Lee... Tudo bem por aqui?
— Sim. Fomos adiantando as coisas. Leu sua cópia, Joshua? – O
advogado o questiona.
— Sim. Está tudo certo. Jared? – Ele me pergunta enquanto encaro
os papeis sem conseguir me concentrar, parece que só consigo pensar
mesmo nela.
— Tudo bem para mim. – Digo dando de ombros.
— Então vamos assinar logo isso que eu e minha garota vamos
pegar a estrada no fim da tarde.
— Você anda um velho muito doido. – O advogado brinca me
estendendo a caneta. – Assine as duas vias.
Faço o que me pede. Um momento estranho na vida de um Brow.
Os Brow não compram coisas, eu nunca comprei. Cresci vestindo roupas
velhas e usadas, lixos que as pessoas dispensavam, comendo quase sempre
os bichos que a floresta me fornecia. Cresci caminhando de cabeça baixa
para não olhar vitrines. Não ver tornava as coisas menos doloridas.
Agora eu tenho uma casa e uma loja, mas não tenho ninguém com
quem dividir isso. Penso nos olhos suaves de Claire que não tem nada como
eu. Afasto os pensamentos, eu tomei minha decisão.
— Pronto? – Lewis pergunta.
—Sim. Joshua Lewis acaba de vender a loja e a casa para Jared
Brow, os dois fizeram um ótimo negócio se me permitem.
Apertamos as mãos e fico de pé louco para ir embora daquele lugar.
Não tenho jeito para aquilo.
— Se é só isso, eu vou indo. Obrigado, Lewis. – O velho dá
tapinhas em meu ombro. Sorri amistoso e eu me livro da camaradagem, eu
não lido bem com afetos, de nenhum tipo.
— Sabe que a cidade toda está falando de você? – Lewis me
pergunta e já esperava por isso, suspiro um tanto cansado, no fim é sempre
meu nome no meio de problemas. Nem sei se isso não vai prejudicar os
negócios, capaz de ninguém mais entrar na loja. – Todo mundo
comemorando que alguém finalmente acertou aquele mimado e prepotente
filho da Deanna.
— Isso é sério? Deu uma lição em Aiden? – O advogado questiona.
— O garoto se acha dono do mundo e foi justo mexer com a
namorada do Brow. Adivinha se não levou uma boa lição. É o que estão
dizendo por aí. – Lewis comenta. – Por isso atrasei, parei umas cinco vezes
para ouvir a mesma história. Todo mundo grato porque Deanna, finalmente,
terá que abrir os olhos. Os pais de mocinhas de família estão aliviados.
Fico tão surpreso que permaneço calado. Só registro a parte em que
Claire virou minha namorada, não esperava ter apoio da cidade. Isso nunca
aconteceu com um Brow. Nós não resolvemos problemas, nós somos o
problema.
— Eu tenho que ir. Bom dia para vocês.
Deixo o escritório e, quando caminho de volta para a pensão, sinto
olhares sobre mim. Apresso o passo, é isso que consigo cuidando de Claire:
ser o centro das atenções e ainda ouvir que tenho interesse nisso.
Juntar minhas coisas não leva mais que vinte minutos. Não tem
nada que não caiba em uma mochila, eu já demorei demais para deixar essa
pensão, estava aqui por ela, agora o melhor é ir para longe e ela que faça
como quiser. É linda e, se acha que é só isso, com certeza outro vai cuidar
dela, mas sem Aiden em seu caminho. Ela não precisa de cuidados, Claire é
inteligente e capaz, não precisa de ninguém.
Que se dane se a casa não está pronta. Tem um colchão e isso é tudo
que preciso. Largo tudo jogado no meio da bagunça das coisas que vão para
loja e, então, eu sigo para o trabalho.
Metade da cidade decide fazer compras de material de caça e aquilo
é mesmo estranho. Todo mundo gentil e atencioso, alguns até agradecem
pelo soco em Aiden. Nem desconfiava que ele era assim um problema,
talvez porque sempre fui eu o problema, ou porque convivi a vida toda com
gente como ele e nunca o vi como nada além de um mimado, mas parece
que ele criou um bando de inimigos.
No meio da tarde, já me sinto um tanto arrependido de ter deixado a
pensão e Claire sozinha. Ela tem medo daquele lugar e eu fui embora e nem
mesmo avisei.
Claire não é meu problema. Penso enquanto guardo algumas notas
na caixa registradora. Claire não é problema, é delicada, solitária e perdida.
Os olhos assustados, vez por outra, tomam minha mente e, quando o
dia começa a terminar, tenho vontade de pegar minhas coisas e voltar para a
pensão.
— Não vai fazer isso, Jared! – Digo em voz alta.
— Fazer o que? – Parker surge na loja e sabia que ele viria saber se
pretendo deixar Aiden vivo.
— Eu? Nada. Estava só pensando. – Ele passeia pela loja em seu
uniforme de xerife. Depois se encosta no balcão. É uma inusitada amizade,
os Brow agora são amigos da lei, eu podia rir disso não fosse um dia
estranho e eu não estivesse pensando o tempo todo nela. – Pensando em
caçar?
— Não. Embora eu acho que virei à loja qualquer dia com o meu
filho. Quero levá-lo para pescar um dia desse.
— Ele vai gostar. – Digo tranquilo. – Não vou criar problema com o
filho da prefeita. Já dei meu recado. Ele fica longe, eu fico longe.
— Deanna conversou comigo, ela acha que vai dar jeito no garoto.
Eu duvido, eles nunca fazem nada, de qualquer modo, vou ficar de olho. Só
vim mesmo tranquilizar você e dizer que Claire pode dar queixa se quiser.
Na verdade, seria bom.
— Procura ela e fala diretamente, Xerife. – Não escondo minha
irritação e ele ergue a sobrancelha, sente que tem algo errado, mas não
pergunta.
— Ela teve medo de mim. Não sei se reparou, mas ela me olhou
com tanto medo que só quis deixá-la ir logo.
— Acho que pode ter sido impressão sua. Por que ela teria medo de
você?
— Pensei que você pudesse me dizer.
— Não. O que vi foi ela assustada com tudo. Está sugerindo que
Claire é uma criminosa fugindo da lei? – É quase uma piada, ele revira os
olhos enquanto nega.
— Você está certo, acho que ela é nova na cidade e se preocupou
com você. Aiden sabe como deixar garotas assustadas. Estranho é que
depois do que aconteceu, descobri um monte de histórias sobre ele. Coisas
que as pessoas não diziam. Vandalismo, agressão, abusos...
— Tome providências então.
— É o que estou tentando fazer, mas alguém tem que procurar a
justiça, no momento ele está em casa quietinho. Não tenho nada para acusá-
lo. – Ele suspira. – Eu tenho que ir, boa sorte com seu novo negócio, você é
o rei da cidade, agora todo mundo te ama. Cuidado, está perdendo a fama
de mau.
O xerife me deixa rindo, parece que eu mando a mensagem errada
para todo mundo, nunca quis ser o mocinho da história, eu não tenho talento
para isso, aliás, que horror! Se o Zack fica sabendo, estou encrencado, ele
vai me provocar com isso por dias.
— Alguém em casa? – Foi só falar nele... torço o nariz, Zack está
entrando junto com Abby e riem quando faço careta. – Sim, eu já sei de
tudo, herói. Quer dizer, quase tudo.
— Saiu da oficina para vir atrás de fofoca?
— Claro que sim. – Ele se senta no balcão, eu dou a volta e me
sento ao seu lado, Abby fica de pé, nos olhando de frente com os braços
cruzados e intimidadores. – Sam veio comprar umas coisas por aqui, voltou
com a novidade.
— Que novidade? – Pergunto interessado em saber o que ele sabe.
— Que você bateu no filho da prefeita, até aí, tudo bem, é o Jared
de sempre, mas.... – Ele faz suspense. – Foi um ato heroico, estava
defendendo a honra da sua namorada.
— Eu não tenho namorada nenhuma, que absurdo, acreditaram
nisso? – Finjo-me de ofendido.
— Claire, garçonete na espelunca do bar do John, que mora com
você na pensão. – Abby passa o resto da notícia e fico chocado em como
essa cidade sabe tudo que acontece na vida das pessoas.
— Deixaram a filha de vocês sozinha em casa para vir atrás de uma
fofoca? Que tipo de pais são vocês?
— Ela está com o tio Sam! – Zack avisa. – Ficamos preocupados.
— E tristes. Eu não acredito que escondeu da gente sua garota,
Jared, quem é você? Que tipo de vida dupla é essa? Um herói salvador de
mocinhas indefesas, um príncipe republicano!
— Sua esposa está se divertindo as minhas custas, Zack. – Aviso ao
meu primo na intenção de que ele tome uma atitude.
— Pode apostar que ela está! – Ele se diverte também.
— Que tal tirá-la da minha loja? Temos muitas armas por aqui e ela
é um risco à sociedade.
— Minha loja... um príncipe republicano e comerciante respeitável
da cidade, varrendo os vilões que ousam invadir a pacífica...
— Cala a boca, Abby! – Eu digo ficando bravo, mas mereço,
perturbei Abby o quanto eu pude, mas hoje não é um bom dia. – Assinei o
contrato! – Conto a eles que sorriem orgulhosos, estão mesmo felizes.
— Parabéns, você merece. – Zack aperta meu ombro.
— Todo mundo sabe que eu não mereço, só dei sorte mesmo! –
Digo sem qualquer fé em mim e me lembro de Claire e, talvez, eu não seja
muito diferente dela.
— O que a Claire acha? – Abby me pergunta.
— Não importa mais! – Aviso aos dois que trocam olhares. – Eu e
ela... sei lá. Já saí da pensão, trouxe minhas coisas para casa. Aqui é meu
endereço e ela não faz parte da minha vida.
— Brigaram? – Abby pergunta, mas seus olhos deixam claro que
ela tem certeza que sim.
— Chamem assim se quiserem! – Eu digo sem ânimo para mais
explicações.
— Bom, eu vou comprar aquelas coisas de que precisamos, Zack,
assim deixo você e o seu primo conversando, volto mais tarde, me espera
aqui.
— Claro! – Zack sorri para a esposa e eles vivem trocando esses
olhares cheios de significados. Eu odeio como se entendem bem sem
precisar de palavras. Ela deixa a loja e ele me olha cruzando os braços no
peito.
— Não vou me meter em encrenca se está preocupado com isso,
não vai ter que pagar minha fiança nunca mais.
— Pagar sua fiança seria o menor dos meus problemas. – Zack diz
despreocupado. – Cara, você merece ser feliz. Talvez ela precise que você
diga como se sente, não é bom em dizer e eu nem consigo te imaginar
demonstrando.
— Pensei que quebrar o nariz do Aiden fosse um bom sinal! – Zack
deixa o queixo cair, de algum modo, eu acho que acabo de fazer uma
confissão.
— Era esmagador sentir o que sinto pela Abby e não saber o que
fazer, como agir, eu não falava de sentimentos e eu demonstrava de um jeito
bem torto, mas ela era como eu, então compreendia, mas as mulheres são
diferentes. Abby precisava de palavras e, quando eu disse as palavras...
simplesmente somos felizes.
— Está achando que eu vou virar um babaca derretido feito você?
Que vou deixar uma mulher mandar na minha vida? Mesmo ela que é toda
perfeitinha e delicada? – Os olhos dele se arregalam. – O que?
— Eu sei lá, é você? Cara... você está apaixonado! Perfeitinha e
delicada? Se ouviu? Trocando socos na rua para defender uma perfeitinha e
delicada?
— Será que a sua mulher demora? – Salto do balcão, ele ri.
— Vai ter que dar um jeito nisso, Jared, eu quero que seja feliz e, se
tem uma mulher que pode te dar isso, vou ter que me intrometer e te
ensinar.
— Você? Cala a boca, você é feito do mesmo material que eu,
somos ogros, mas você arrumou uma ogra igual a você, então se deu bem.
— Já você parece que arrumou uma perfei...
— Se falar isso para a Abby... eu nem sei, agora desce daí e me
ajuda com o estoque, tem muita caixa para organizar, vai ficar esperando
sua mulher, então, ao invés de ficar falando merda, ajuda trabalhando.
— Ok, perfeitinha... – Ele ri saltando do balcão. – Cadê as caixas?
Capítulo 10
Claire

Jared acaba de arrumar briga com o filho da prefeita da cidade por


minha causa e eu o magoei. De algum jeito, fiz parecer que o comparava a
Aiden. Partiu sem olhar para trás, magoado e talvez ofendido, a única
pessoa que tenho, ou pensei ter, me deixou, eu devia saber que estragaria
tudo.
John não está nada feliz e me olha um tanto irritado enquanto
coloco o avental tentando não me derreter em lágrimas. Eu imaginei que ele
ficaria furioso, mas pelo modo como ele está me encarando, acho que perdi
meu emprego.
Anoto alguns pedidos, eu queria me importar com meu emprego,
mas no momento, só consigo pensar em Jared e em como eu o magoei, só
consigo pensar em Aiden e em como tudo que aconteceu vai deixá-lo
revoltado. Queria acreditar que ele vai ficar longe, mas tenho certeza que
ele vai vir com tudo para cima de mim louco por vingança na primeira
oportunidade.
Aiden não é o tipo que se guia por nada que não seja sua vontade,
ele foi contrariado, apanhou em público, teve que se desculpar, seus pais
sabem quem ele é e, claro que eu vou ser o alvo da sua revolta.
— Você não consegue melhorar essa sua cara de choro? Os clientes
têm mesmo que começar o dia com você parecendo uma pobre sofredora? –
John pergunta sem qualquer paciência e eu me espanto, mas não sei o que
responder e só me mantenho calada enquanto ele vai enchendo a bandeja
com meus pedidos.
Levo os pedidos às mesas, tento sorrir ao entregar alguns, mas eu
não tenho qualquer vontade de sorrir e me sinto ferida por fingir uma coisa
que não sou.
Parece que a minha vida é mesmo uma sucessão de fracassos, deve
estar na minha testa, porque todo mundo se sente muito à vontade para me
machucar e, talvez, mesmo Jared tenha essa impressão, ele não me deu a
menor chance, o primeiro deslize, me jogou fora como todo mundo faz.
Eu o magoei, mas ele também me magoou. Eu devia procurá-lo, me
desculpar, tentar consertar as coisas com ele, nem que seja por gratidão, o
difícil vai ser juntar coragem, não sei se consigo.
O tempo vai correndo, eu vou ficando mais e mais tensa, tentando
secar lágrimas, mas parece que é impossível esconder o que sinto. Estou
esgotada, cansada de lutar, cansada de me dar mal, de ser tratada feito lixo,
usada, machucada, eu não sei por que eu continuo, eu não devia continuar,
eu devia só desistir, atirar esse avental longe e caminhar por aí até tudo
acabar, só andar, andar, e andar, até meu corpo esgotar as forças.
— Abby Coleman! – Pamela diz quando uma mulher entra sozinha.
– Ela é especialista em artes marciais, toda sexy, não acha? – A mulher é
mesmo bonita, corre os olhos pelo bar antes de se sentar em uma mesa. –
Pavio curto, é o que dizem, então, ela é sua! – Pamela me dá um leve
empurrão e eu me aproximo.
Adoraria ser assim, forte, cheia de presença, dá para ver que ela tem
fibra, mas eu não consigo me ver assim.
— Bem-vinda. – Digo com os olhos marejados, odeio não estar
conseguindo me controlar hoje, pensar que acordei feliz ao lado dele.
Nunca mais vai acontecer. Ela me olha e dá um sorriso que vai morrendo ao
notar minha expressão de tristeza. – Já quer fazer o pedido?
— Um prato de esperança com um copo de coragem! – Ela diz em
um meio-sorriso que só me faz deixar mais abatida, é tudo que não tenho
no momento, isso me causa mais vontade de chorar. – Seja o que for, é só
uma fase. – Ela insiste e tento sorrir fazendo uma careta de desespero. –
Vejamos... panquecas e um café.
— Claro! – Digo me virando e indo ao balcão. Entrego o pedido,
John está ainda mais irritado, dois homens conversam com ele no balcão, eu
me afasto um pouco enquanto espero o pedido, o bar está bem vazio, mas
logo vai começar a encher desse tipo e, aí o que está ruim vai piorar muito,
e eu nem imagino como os amigos do Aiden vão se comportar, ou pior, o
próprio Aiden que ainda pode aparecer aqui.
Ele empurra o prato com as panquecas em minha direção, enche a
caneca com café e eu me afasto levando o pedido.
— Obrigada! – A mulher me sorri. – Abby, e você?
— Claire... espero que goste. – Digo antes de me afastar.
— Claire! – John me chama, eu me aproximo já preparada para ser
demitida, não sou idiota, está na testa dele, no modo como ele parece muito
mais irritado por ter trazido problemas a ele do que preocupado com meus
sentimentos. – Você está fora! – Ele diz me esticando um envelope. – Estou
pagando a semana pela minha amizade com o Jared.
— John, foi um dia ruim, mas eu...
— A mãe do Aiden o proibiu de chegar perto de você, então se você
trabalha aqui, ele não virá, e se ele não vem, os amigos também não vêm,
perco meu melhor cliente, sinto muito. – Eu não insisto, é tolice discutir, a
decisão dele está tomada, seria insustentável de qualquer modo, o homem
me odeia.
Pego o envelope e tiro o avental, deixo sobre o balcão. No fim, eu
sempre odiei esse lugar e agora o que tenho que fazer é pegar o dinheiro,
minhas malas, e ir para a rodoviária o quanto antes, é isso.
Tentar outra cidade, Jared era o que me segurava aqui, ele não me
quer por perto, então eu não tenho nada a fazer.
Deixo o bar, uma sensação terrível de solidão me invade, é quase
uma dor física, e penso em minha mãe, que éramos tudo uma para outra e
agora eu não tenho nada além de vazio.
— Claire! Claire! Espera! – Eu me volto e Abby está correndo ao
meu encontro. – Eu vi que foi demitida. – Balanço a cabeça afirmando. –
Sinto muito.
— Tudo bem, não foi sua culpa nem nada, o John estava bravo
comigo, eu te atendi direitinho.
— Eu sei! – Ela segura minha mão, parece que quer me dizer algo,
tem qualquer coisa de carinhoso em seu olhar. – Abby Coleman Brow.
Meu queixo cai com a coincidência. Parente do Jared, tento sorrir,
mas de novo eu não consigo.
— Ele me disse que tinha... é a esposa do primo? Tem uma filhinha,
não é?
— Sim, Jared contou? É tão engraçado imaginá-lo assim... Ele falou
da família?
— Quase nada, mas falou sim.
— Podemos conversar? – Ela me pede e dou de ombros. É tarde, ele
não é mais alguém próximo de mim, mas por que eu não conversaria com
ela?
— Eu moro em uma pensão, não é longe, mas o lugar não é grande
coisa, podemos ir até lá.
— Não se preocupe com o lugar, eu já morei em buracos que nem
acreditaria. – Ela ri me indicando o carro. – Pode ser no meu carro?
— Pode. – Eu me acomodo ao seu lado, indico o caminho e ela
dirige. – Tenho uma história difícil, Claire, então, eu meio que entendo.
— Jared falou de mim?
— Não! Mas descobrimos e fomos saber mais detalhes, aí sim ele se
abriu um pouco, não muito, o jeito Jared de ser. – Ela diz e acho que eu sei
como é. No fundo, eu não sei muito do passado dele, o que não muda nada
quem ele é, mas deve ser algo que machuque e, por isso, ele é calado sobre
isso, meio durão, coração quebrado como o meu.
— A história com o filho da prefeita já rodou a cidade. – Digo
pronta para mais lágrimas. – É ali! – Aponto a pensão, ela estaciona. –
Conheci o Jared aqui, quer dizer, foi no John, mas eu já o tinha visto aqui.
— Coincidências! – Ela pisca sorrindo antes de deixarmos o carro e,
até estarmos no meu quarto, não conversamos, aposto que ela está surpresa
com o ambiente ruim. – Até que não é tão ruim! – Abby ri quando entramos
e eu indico a cama já que não tem outro lugar para sentar.
— É péssimo! – Aviso, envergonhada da minha situação.
— Já morei no inferno, Claire, isso aqui é só um lugar barato. –
Olho para ela surpresa, ela é altiva, tem elegância, como pode ter morado
no inferno? – Morei em um reformatório.
— Você? – Pergunto surpresa, ela sorri, cruza as pernas, eu me
acomodo ao seu lado.
— Mas a gente não vai falar disso hoje. Eu vim procurar você,
Claire, te conhecer, Jared... bem, eu pensei que era alguém especial, para ele
agir como tem agido.
— Eu o magoei. – Digo em meio a um suspiro. As lágrimas ainda
correm. – Ele me salvou do Aiden, ele tem sido... ele cuida de mim e eu
pensei que ele só estava fazendo isso por causa da minha aparência,
entende? – Ela nega. – Eu sei que vai parecer que eu sou convencida, não é
isso, mas eu achei que ele estava interessado na minha aparência, os
homens... mulher bonita... Eu pensei... eu nem sei se pensei, mas foi o que
disse a ele e isso o ofendeu.
— Um ogro sensível! – Ela ri. – Desculpe, temos nossos métodos
de convivência, eu e ele, gosto do Jared, em especial desse Jared que ele
está se tornando, se isso o magoou é porque tem sentimento envolvido.
— Eu não sei, mas agora é tarde de todo modo. Perdi o emprego,
Jared se afastou e eu tenho medo do Aiden vir atrás de mim, ele virá, eu sei,
então, o melhor é partir.
— Tem que aprender a se defender, Claire, vai ser minha aluna, vou
te ensinar a quebrar um braço, um nariz, quem sabe as duas pernas, um
idiota é sempre um idiota e você pode vencer qualquer um.
— Eu não posso não, você é forte, mas eu...
— Não é força é jeito, o golpe certo, mas fortalecer esses músculos
também não é ruim.
— Se eu fosse forte como você, ninguém me machucaria! – Que
pena que não sou, que pena que não fui forte naquele dia.
— Já me machucaram muito, Claire. – Ela me olha nos olhos e
posso ver, está lá, está ainda lá em seus olhos, talvez uma dor parecida com
a minha. – Eu tive que aprender a me defender, eu tive que lutar para
sobreviver e nem sempre eu quis. Na verdade, na maior parte das vezes, eu
não queria sobreviver, mas eu sobrevivia, então, um dia eu só... fiquei de pé
e lutei por mim. Com muito esforço, eu deixei pessoas entrarem na minha
vida e elas me mudaram, agora eu quero viver, quero loucamente viver,
tenho minha filha e um bebê aqui. – Ela toca a barriga.
— Está grávida! – Sorrio, Jared vai ter outro sobrinho, ele vai
gostar, não fala, mas eu sei que vai. – Parabéns!
— Minha Mary vai ganhar um irmãozinho! – Ela se emociona. –
Vê, é preciso uma pitada de esperança.
— Estou cansada! – Confesso, Abby me faz sentir capaz de me
abrir, talvez por ter uma história de dor que eu posso ver em seus olhos,
quem sabe isso me aproxima dela e eu queria tanto contar a alguém. Talvez,
se eu contasse a ela, a dor diminuísse, essa coisa ruim dentro de mim que
não me deixa esquecer o que me aconteceu melhorasse. – Abby...
— Eu sei que não tem qualquer razão para confiar em mim, mas se
me contar, eu prometo que nunca conto a ninguém, seja o que for.
— Aconteceram coisas comigo... eu fui ingênua, burra, a culpa é
minha, mas...
— Claire! – Ela aperta minhas mãos, é tão inteligente e rápida que
simplesmente entende. Vejo em seus olhos. – Não é sua culpa. – A dor
transborda, finalmente, o choro vem com tanta força, mal consigo respirar.
As palavras vão sendo expulsas e eu mal consigo controlar, vou contando
tudo, desde a dor de perder minha mãe, às vezes em que aquele monstro
cruzou o meu caminho e como eu devo ter dado sinais, e depois ele na
minha casa, ele me atacando, sinto suas mãos apertarem mais as minhas
enquanto ela chora sem conseguir conter e eu soluço, me entrego, sinto tudo
aquilo reviver, sinto a vida me esmagar e, ao mesmo tempo, vai me
libertando. Ela me abraça.
— Eu fui tão burra, mas eu lutei até o último segundo, eu não me
entreguei, mesmo com a arma eu preferia morrer, mas eu não morri, eu fugi
e acabei aqui.
— Não foi burra, está tudo bem, lutou, e mesmo que não tivesse
lutado, você não tinha como vencer, era um policial, natural confiar nele. –
Ela segura meu rosto, não chora mais. Talvez eu tenha trazido suas próprias
dores, eu não devia ter feito isso, ela está grávida. – Escute, não é sua culpa!
— Parece que isso está sempre se repetindo. Conheci o Jared me
salvando de dois bêbados com a mesma intenção, depois o Aiden, eu não
consigo, é culpa minha tem algo errado comigo.
— Não tem! – Ela diz de modo duro, até me assusta. – Nunca mais
repita isso. Não é sua culpa.
Eu abraço Abby, saber que ela acredita nisso me faz, ao menos,
cogitar ser verdade, queria acreditar.
— Claire, eu me culpei por anos, levou tempo, mas eu entendi, não
é sua culpa, seu corpo é sagrado, ninguém tem direito de violá-lo, e não tem
a ver com sinais, não é você, são eles. Culpa deles.
— Eu fico pensando que... eu não sei, acho que por isso eu
pensei que o Jared só estava... que eu sou só minha aparência.
— A gente se machuca tanto, eu sei que não importa muito o que eu
diga, que isso é uma construção sua e que leva tempo, mas tenho certeza
que é mais do que sua aparência e que Jared viu isso. Acredite, aquele
homem nunca faria o que fez só porque você é linda e você é. Jared viu que
é mais do que isso, você mexeu com o coração dele.
— Eu não me sinto muito capaz de mexer com o coração de
ninguém agora, por isso parece quase impossível que ele sinta qualquer
coisa que não seja pena, eu disse isso a ele, que ele devia estar com pena de
mim.
— Tem muitas coisas que não sabe sobre ele, sobre quem ele é e
tudo que já viveu, não sou eu que vou contar, mas quem sabe não dá uma
chance a ele, é muito difícil para ele, entende? Ele é fechado, ferido, tem
uma casca.
— Eu não sei, ele está bravo. – Abby suspira.
— Tenho que ir, você está bem? – Afirmo contando uma grande
mentira. – Ótimo, então não tire conclusões, de um jeito bem difícil eu
aprendi que conversar resolve um monte de coisas.
— Abby, o Jared tem sorte de ter você.
— Tem mesmo! – Ela sorri. – E agora você também tem. Dê-me um
papel e uma caneta, vou anotar meu endereço e telefone. Quero que vá me
visitar, que acha de ir até lá em casa amanhã?
Adoraria, mas eu nem mesmo sei se ainda vou estar na cidade
amanhã.
— Vou tentar. – Digo ficando de pé junto com ela que me abraça
mais uma vez.
— Escute, não está mais sozinha, preciso que vá me ver, quero
conversar melhor, quem sabe eu te conto mais da minha vida, vamos ver um
emprego para você, conheço bastante gente, o Zack também e o Jared... ele
não vai se abrir com facilidade, mas se gosta mesmo dele como vejo em
seus olhos, então... eu sei que vocês têm uma chance, não perde isso, o
amor salvou a minha vida.
— Prometo que vou tentar me desculpar com ele antes de fazer
algo. – Digo com uma ponta de esperança, ela me abraça.
— Ótimo! Adorei te conhecer e tenho uma certa esperança de, quem
sabe, sermos família? – Abby é meio sonhadora... família? Eu nem sei o
que responder e apenas sorrio recebendo seu afeto e, quando ela me deixa,
eu me sento na cama, as lágrimas se foram, um pouco do vazio em meu
peito também, queria acreditar nela, acreditar que eu não tive culpa, mas eu
não sei se consigo.
Capítulo 11
Jared

Zack me ajuda a colocar muita coisa da loja em ordem, não


conversamos muito sobre mim, ele me conhece, sabe que eu não tenho
muito talento para desabafar e respeita isso.
— Abby está grávida. – Ele diz limpando as mãos, cansado da
ajuda, eu o encaro surpreso. Mary é uma garotinha linda, amada, generosa,
mas ela não foi planejada e eu nunca pensei que eles teriam outro filho, meu
primo está mesmo mudado, amar Abby o transformou em outra pessoa.
— Você está maluco? Como é isso? Outro bebê? Zack, você e a
Abby... é sério, filhos? Eu não acredito.
— É só me dar os parabéns, Jared! Nós queremos.
— Vocês escolheram isso? Planejaram mais um filho?
— Sim, queremos que seja um menino, mas vamos amar se for
outra menina. Você não faz ideia, primo, realmente não faz ideia.
— O que eu não faço ideia? – Pergunto me encostando na pia da
cozinha.
— Ter um filho, o jeito como você ama, como ele te ama de volta...
— Está de brincadeira? Ainda tenho as marcas do amor do meu pai,
você também! – Eu o lembro.
— Eu sei, mas não é assim, aquilo era doença, ele não prestava,
nossos pais não prestavam, mas nós somos diferentes. Eu e você. – Nego. –
Eu sei que não quer acreditar, mas você é sim diferente dele, olha para você,
essa casa, a loja, sua vida mudou. As pessoas da cidade te respeitam agora.
— Parabéns se estão felizes, eu também estou, mas se quer me
convencer a ser como você... eu não consigo.
— É muito mais parecido comigo do que com ele, Jared, mas não se
dá chance, fica se diminuindo e eu sei o que é isso, eu demorei para
aprender. Abby me ajudou e fico aqui pensando se não está perdendo
alguém importante só para confirmar que é do jeito que acha que é.
— Eu sei quem eu sou, e eu não sou alguém... – Paro de falar, a
verdade é que eu não sei mais como eu sou, eu penso nela o tempo todo e,
se eu for olhar para dentro de mim, se não fugir dos sentimentos, eu quero a
vida dele, eu quero a rotina, a companhia e a segurança que ele construiu
com Abby, quero viver isso com Claire.
— Não tem certeza, não é mesmo? Cara, não deixa as coisas boas
escaparem só porque acha que não merece, ele queria que a gente
acreditasse nisso, ele nos espancou, humilhou, e tudo porque ele queria que
a gente achasse que não era nada, ele não era nada, ele não podia aceitar
que não era nada e...
— Ah! Você vai dar uma de psicólogo agora? É sério? – Meu riso o
irrita e ele segue para a sala, afasta umas coisas de cima da poltrona e se
senta.
— Você é inacreditável!
Abby entra sem bater, sorri indo direto para perto do marido, os dois
trocam um beijo.
— Demorou! – Eu comento. – Aposto que a sua filha está com
saudade, que tal levar seu irmão para casa?
— Ele não quer ouvir verdades, é isso? – Abby pergunta a Zack.
— Como sempre! – Zack responde como se eu não estivesse
presente.
— Ainda tem muita coisa para ser feita aqui. – Ela diz correndo os
olhos pela casa. – Quando se muda?
— Já me mudei. – Conto a ela que me olha com olhos arregalados.
– O que? Sabe que eu não ligo para essas bobagens, um colchão é o
bastante para mim.
— Claire não sabe disso, não é?
— Não tenho que avisar à Claire dos meus passos, não somos nada
um do outro.
— É, não são. – Abby suspira. – Está com medo de se apaixonar?
Ou melhor, está com medo de admitir que está apaixonado?
— O que eu fiz para merecer vocês dois? Já está anoitecendo, a
filha de vocês...
— Mary está ótima, nem vai sentir nossa falta.
— Mas o bebê aí dentro deve estar querendo... comer, dormir... –
Abby sorri no mesmo instante, se senta tocando a barriga, uma mulher
muito mais leve e feliz do que aquela que eu conheci.
— Ele está bem. – Ela diz prendendo sua mão à mão de Zack. Em
outros tempos, ele não suportaria esse contato na minha frente, olho para as
mãos dos dois, ainda me surpreendo com Zack.
— É isso, não é? Tem vergonha de mostrar que está mudando, medo
de assumir seus sentimentos por ela e viver momentos assim em público. –
Abby está certa, eu nunca poderia baixar a guarda a esse ponto. – Sei como
é. Foi difícil e eu quase perdi o Zack porque também relutava, como ele. –
Os dois trocam um olhar cúmplice.
— É mais fácil do que pensa, depois que se permite...
— Zack, não adianta, eu sei o que quero e eu não quero me meter
mais nessa confusão. – Minto muito mais a mim mesmo do que a eles. Os
dois sabem, outro olhar cúmplice e agora um sorriso.
— Vai acabar perdendo a Claire e seria uma pena, ela precisa de
você e é uma garota tão doce.
— Como sabe disso, Abby?
— Estive com ela no bar do John, aquele lixo de lugar.
— Esteve com ela? Foi procurar a Claire? Até onde vocês dois são
capazes de ir para se meterem na minha vida? – Pergunto indignado, nem
quero pensar no que podem ter falado as duas.
— Não falamos nada demais, eu não disse que você a ama.
— Nossa... muito obrigado! Seria uma grande mentira se tivesse
dito! – Ela ri, Zack deixa essa mulher fazer o que quer e ela é esperta
demais, sabe como me enrolar. – Já que você a conheceu e gostou tanto
dela, por que não arruma um emprego para ela? Claire merece coisa melhor
que o bar.
— Soube de uma loja de material de caça que parece que está sob
nova direção e precisando de uma ajudante. – Zack me provoca e eu não
acredito em como esses dois estão em franca campanha.
— Estou falando sério! – Reclamo.
— Ela gosta de você e você dela, por que não para de lutar contra e
fica com ela? – Abby me questiona.
— Não sabe o que está dizendo. – Irrito-me só de pensar nas coisas
que ela acha de mim. – Claire tem uma opinião bem formada sobre mim.
Ela acha que tudo que fiz por ela foi apenas porque ela é bonita e eu sinto
pena.
— E não é isso? – Abby não tem nada com isso, não sei por que fica
querendo saber de tudo. – É o que, então?
— Eu não sei, só não consigo evitar. Não conseguia. Agora chega.
Se ela pensa isso de mim, então o melhor a fazer é ficar longe. Devia
ensinar sua nova amiga a parar de se diminuir.
— Deixar que só você faça isso. Porque você também é assim. –
Casal de psicólogos, e o pior é que eles têm razão, odeio admitir, mas sou
assim e a vida me ensinou que é a pura verdade.
— Claire se acha fraca, covarde, ela é delicada e sensível e isso é
diferente de fraqueza e covardia. — Eu desabafo, tem tantas coisas presas
dentro de mim e esses dois me pressionando torna tudo pior. – O xerife
Parker achou que ela teve medo dele. Quem poderia ter medo do xerife? Ela
só estava assustada por conta da briga.
— Não duvido que ela teve medo dele. Imagino como deve ser
difícil para ela ficar diante de um policial depois do que aconteceu com... –
Abby perde a cor, se cala no mesmo instante.
Um alerta dispara dentro de mim, o silêncio abrupto de Abby, sua
leve palidez, ela sabe de algo e esse algo faz toda diferença.
— O que eu não sei? – Pergunto e ela dá de ombros. – Abby, o que
eu não sei?
— Algo que devia saber, mas não posso e não quero contar. – Ela
deixa claro que não vai me contar e eu a conheço, ninguém vai obrigar
Abby Coleman a dizer o que não quer.
— Abby... – Zack tenta, mas ela faz um movimento negativo com a
cabeça. – Certo, é melhor irmos para casa, se o Jared achar que precisa
procurar a Claire, ele vai fazer isso. – Agora que quero que fiquem, eles
decidem ir embora.
Eu não insisto e apenas os acompanho até a porta. Abby me abraça,
ela não é muito disso, é estranho, mas deve ser esse negócio de hormônios
de gravidez. Aperto a mão de Zack, os dois dão as mãos.
— Não seja um teimoso com a sua felicidade, Jared, eu fui por tanto
tempo.
— Vou pensar.
— Se demorar demais vai perder a Claire. – Abby alerta e eu os
assisto irem embora, fecho a porta e me atiro na poltrona. Esse lugar não
tem o menor sentido para mim, eu sempre me virei com tão pouco, porque
fico fingindo que quero tudo isso?
Claire daria sentido a esse lugar, mas está naquele lugar horrível,
naquele emprego que odeia. O que Abby sabe? Por que ela achou que fazia
sentido Claire sentir medo de um policial? Tantas coisas para pensar, mas
uma em especial precisa ser compreendida.
O que sinto por ela, afinal? Gosto dela perto de mim, da sua doçura,
da voz, do cheiro, do beijo, de como ela é carinhosa e delicada, toda gentil
comigo. Penso nela até quando estou com ela. Penso nela o tempo todo e a
única coisa boa que aconteceu comigo, eu quis dividir com ela. Assinei o
contrato pensando nela.
Encosto-me na cadeira e fecho os olhos, não posso ser irresponsável
e ter qualquer atitude impensada. Ou a trago para minha vida ou deixo que
siga seu caminho.
Gostei de dividir a cama com ela, de acordar com ela pertinho.
Gosto de cuidar dela e posso fazer isso. ela não ia precisar daquela droga de
emprego. Tenho uma casa grande demais para mim e irritantemente
silenciosa, mas significaria ser o tipo que namora? Só a ideia já me deixa
constrangido, como se demonstrar a ela e ao mundo fosse me fazer mais
fraco, e a fraqueza esmaga, eu sei o que o mundo faz com os fracos, eu senti
na pele.
Zack não é fraco, ele é como eu, viveu as mesmas coisas, Abby
também, eu não os acho fracos, o mundo não os olha como se fossem fracos
e eles simplesmente conseguem ser uma família, pode acontecer comigo.
Se tem alguém capaz de me fazer, ao menos, ter coragem de tentar,
é a Claire. Foi no primeiro instante, eu bati os olhos nela e parece que ela
tomou conta de mim, invadiu minha vida, se tornou o centro de tudo. Como
é que uma coisa assim acontece tão rápido com um duro como eu?
— Eu me apaixonei por ela... – Digo em voz alta para ouvir as
palavras e parece simples e honesto.
Consulto as horas, meia-noite, tanto tempo sentado pensando feito
um maluco. É tarde, ela saiu sozinha do trabalho, eu não estava lá a sua
espera, deve ter ficado magoada e agora está dormindo, como eu posso ser
sempre tão estúpido?
Claire combina com essa casa, eu a imaginei vivendo aqui mil vezes
quando estávamos organizando tudo. Por que não posso tentar? O que tem
de errado em me dar essa chance?
A cidade me aceita agora, encontrei alguém especial e incrível que
gosta de mim.
— Você não sabe se ela gosta de você. – Corrijo meus pensamentos,
só tem um jeito de descobrir o que pode acontecer: tentando. Amanhã
quando amanhecer, vou estar na porta da pensão esperando por Claire e,
quem sabe se ela puder perdoar esse ogro explosivo que ficou magoado à
toa, ela pode vir comigo e nem precisa voltar àquele bar.
Dormir é um inferno, demoro a pegar no sono, desperto com o sol e
pego a caminhonete para ir atrás dela. Quando chego na pensão, o velho
está cochilando em frente à televisão. Abre os olhos e se arruma na cadeira.
— Quer o quarto de volta?
— Não. Vim ver a Claire.
— Saiu faz pouco tempo, levou a mala. – Engulo em seco, minha
cabeça bagunça, ela não pode ter feito isso, Claire simplesmente foi
embora? Talvez tenha ido para o trabalho e depois... eu tenho que acreditar
que ela está no John, que as malas têm alguma outra razão. Enquanto dirijo
para o John, eu ligo para Abby, preciso saber o que afinal ela sabe.
— Abby! – Digo quando ela atende. – Preciso saber o que sabe,
Claire deixou a pensão com a mala, eu não sei... estou indo para o John,
mas tenho medo que ela não tenha ido trabalhar.
— Droga! Ela não foi trabalhar, ela foi demitida ontem! – Abby me
avisa e breco perdendo as forças. Eu fui estúpido e a perdi, é assim que as
coisas são para mim, mas isso nem é a pior parte, eu sei que ela está
sofrendo e sozinha, sei que precisa de mim e eu a deixei, deixei em um
momento difícil, fiz o que fizeram comigo a vida toda, dei as costas a ela. –
Tente a rodoviária, eu a convidei para vir aqui, quem sabe ela está vindo, se
chegar te ligo, mas Jared, não desista.
— Não vou, eu vou até em casa deixar a caminhonete e pegar a
moto, vou descobrir em que ônibus ela embarcou e caçá-la e só volto com
ela ou...
— Ei, não diga tolices, tem sua loja, sua casa, você...
— Depois falamos, Abby. – Desligo acelerando para casa, Claire
não vai me abandonar como eu fiz com ela, eu não vou deixar.
Capítulo 12
Claire

Abby é uma mulher incrível, veio me procurar, apoia um


relacionamento meu com Jared, está até torcendo, eu me encolho na cama
pensativa, acho que ele ficou magoado demais.
Não sei o que ele espera de mim, mas talvez o que eu fiz tenha sido
um tipo de gota d’água.
Vou esperar que chegue do trabalho. Se estiver tudo bem, ele vai até
o John, vai saber que eu não trabalho mais lá e depois virá para a pensão, eu
me desculpo e decido depois o que fazer. Quem sabe ele vai saber antes,
pode ser que Abby conte que fui mandada embora, ou deixe que ele
descubra sozinho. No fim, eu não sei, mas vou esperar, qualquer decisão
tomada assim por impulso, sem uma despedida, seria uma coisa triste,
acabar com qualquer chance por covardia é dar as costas à felicidade e eu
fiz uma promessa a minha mãe.
As horas correm, eu vou até sua porta, bato algumas vezes, ele não
responde, e desço para tentar alguma informação. O velho está cochilando
mais uma vez, desperta quando encosto no balcão.
— O senhor viu se o Jared já chegou? Sabe se ele passou por aqui e
saiu?
— Ele foi embora, levou tudo, pegou a caminhonete e foi embora.
— Embora? Ele... ele entregou a chave do quarto? Como assim
ele....
— Moça, ele se foi, ninguém fica tempo demais aqui. – O homem
desvia os olhos, se concentra na televisão e me afasto voltando para o
quarto. Enquanto eu fico como uma boba tentando salvar nós dois,
desesperada por nos dar uma chance, ele simplesmente desiste, põe um fim
em tudo sem qualquer esforço, sem qualquer dificuldade.
Eu tenho que fazer o mesmo, deixar esse lugar, essa cidade,
começar mais uma vez, é isso, eu não tenho nada aqui que não seja
problema. Aiden vai acabar vindo atrás de mim, vai me machucar como as
pessoas sempre acham que podem fazer.
Começo a colocar o pouco que tenho na mala, preciso aproveitar o
dinheiro que ainda tenho, dá para pagar uma passagem de ônibus, pagar um
quarto barato em alguma outra cidade.
Passa das oito, mas deve ter algum ônibus saindo, é melhor ir ainda
hoje e economizar uma diária.
Estranhamente eu não choro, talvez esteja magoada, com raiva,
triste também, mas acho que as lágrimas secaram, estou cansada demais, a
vida esgotou minhas forças, mas eu não tenho que desistir. Jared podia ser
um lindo presente, uma história bonita, dois corações feridos se curando, eu
sei que o dele também dói, mas ele não quis e eu tenho que aceitar.
Fecho a mala, tranco o quarto e desço, o velho não me dá muita
atenção quando entrego a chave, mesmo assim, agradeço o espaço e puxo
minha mala pela rua em direção a rodoviária. É errado partir sem nem ao
menos agradecer Jared, sem me despedir, é errado desistir. Abby não disse
muito, mas deu a entender que ele tem dificuldade de expressar sentimentos
e que eu tinha que lutar, não quero lutar, estou cansada, mas vou me
despedir.
A cidade é tão tranquila que pouco mais de oito da noite faz o lugar
parecer madrugada. Atlanta era tão movimentada, pensei que podia gostar
de um lugar assim tranquilo, mas o que sinto é medo. Aiden conseguiu,
apagou a beleza desse lugar para mim.
Um carro breca quase em cima de mim subindo na calçada quando
estou distraída, eu dou um salto para trás me livrando de um atropelamento,
minha mala fica caída enquanto tento recobrar a calma. Aiden salta do carro
e caminha para mim, os faróis altos me ofuscam a visão, mas sinto sua
fúria.
— Sabia que não ia demorar e daria de cara com você sem aquele
seu guarda-costas! – Ele fala baixo se aproximando, o rosto ainda marcado
pelos socos que levou de Jared.
— Se chegar perto eu grito. – Minha voz denuncia o medo que tento
esconder fingindo ser capaz de enfrentá-lo.
— Já me ferrou bastante, não pode piorar mais. Acabei de quebrar o
bar do John, encontrar você é só a cereja do bolo. – Ele tropeça nas próprias
pernas completamente bêbado. Tento correr e ele me segura, eu o empurro,
ele cambaleia, mas ainda me mantém presa a ele. Sinto sua mão pesada
acertar meu rosto me atordoando, tento devolver com o braço livre, mas não
tem a força necessária para me libertar. – Não vai mesmo fugir.
— Me solta! Socorro! – Eu grito e isso o perturba, os olhos faíscam
e recebo um novo tapa, meu cérebro registra a dor, mas reajo tentando me
libertar me debatendo feito louca, acertando Aiden. Com braços e pernas
desajeitados, estranhamente penso em Abby e na sua promessa de me
ensinar a me defender, um homem não faria algo assim com ela.
Ele tenta me puxar para dentro do carro, mas terá que me matar para
isso.
— Vadia teimosa! Não vou deixar barato o que me fez.
— Socorro! – Grito de novo sentindo seus braços me prenderem e
ele me acerta mais uma vez. Acabo caindo com o tranco, meu ombro bate
na guia assim como a cabeça. Fico zonza com o golpe, tudo gira um pouco
e uma buzina alucinada o assusta. Aiden corre para o carro, luzes de casas
se acendem, escuto passos, um estranho desce do carro e se ajoelha ao meu
lado.
O carro de Aiden parte em alta velocidade, acabo cercada por meia
dúzia de estranhos.
—Meu Deus! O que foi que aquele infeliz fez com você? – Uma
mulher me ajuda a me sentar, sinto uma dor atravessar meu corpo, o ombro
dói tanto que mal consigo mover o braço.
— Estou bem. Ele queria me enfiar no carro. – Uma crise de choro
me domina, um homem traz minha mala até mim, a moça me ajuda a ficar
de pé. Eu ainda choro desconsoladamente, parece que nunca mais vai
acabar.
— Que susto, o covarde fugiu feito um louco, vai acabar dando de
cara com um poste. Garoto doente. – O homem diz um tanto furioso. –
Parece que a lição que o Jared deu nele não adiantou de nada.
— Estava completamente bêbado, se estivesse sóbrio eu não teria
conseguido me defender. – Digo aliviada.
— Quer ir ao hospital? – Estão todos seriamente preocupados, eu
sinto uma mistura de vergonha e raiva, além, é claro, de uma dor que eu
nem consigo explicar.
— Não. Só quero me deitar um pouco. – O homem me indica seu
carro, um outro leva minha mala até lá, a moça me ajuda a chegar no carro
e eu me acomodo sem nem ao menos saber quem é. – Moro na pensão...
fica....
— Eu sei onde fica, levo você. – O homem diz e balbucio um
obrigado para as pessoas que cercam o carro. Ele me leva até a pensão,
coloca minha mala na portaria enquanto o homem me olha surpreso pelo
meu rápido retorno. Agradeço ao estranho que me deixa e, sem dizer nada,
o velho porteiro me entrega a chave e estendo uma nota a ele pagando a
diária. Com uma dor que parece atravessar minha alma, eu arrasto a mala
até o quarto, vou direto para a cama, tomo um copo de água e me deito, mas
dói demais e resolvo me sentar, a dor se concentra no ombro, mas tenho
arranhões pelos braços e pernas. Fecho meus olhos, a cabeça lateja, se
tivesse ao menos um comprimido para dor...
Não consigo dormir, não consigo nem mesmo ir ao chuveiro tomar
um banho e limpar os machucados, se tivesse algum dinheiro sobrando, eu
iria a um médico, o ombro dói tanto e a dor desce pelo braço latejando de
um jeito que só pode estar quebrado.
Engulo a dor física junto com a dor da alma. Eu sabia que Aiden
não me deixaria em paz, ele me culpa pelo que aconteceu a ele, pela surra
que levou, pela repressão da mãe.
Uma lágrima corre por meu rosto, como é que pode alguém estar
sempre vivendo as mesmas coisas? O que tem em mim que faz os homens
acharem que eu não mereço respeito?
Jared é tão diferente de todos, desde o primeiro instante foi gentil,
generoso, protetor, eu me sentia segura, cheguei a pensar que ele podia me
amar, ou que eu podia amar por nós dois, um pedacinho de mim ainda acha
que pode amar pelos dois.
Talvez as pessoas achem que é cedo para pensar na palavra amor,
mas é assim que sinto, eu o amo, mesmo sabendo que ele se ofendeu por
muito pouco, mesmo sentindo que desistiu fácil demais de mim, eu ainda
acho que tudo que sinto é amor.
Não vou embora sem olhar para ele mais uma vez, me desculpar por
tê-lo ofendido. Levar os olhos claros e cheios de suas dores comigo, eu não
sei o que a vida fez com ele, mas sei que não foi nada fácil, assim como eu,
a vida o marcou.
Fico lutando com lágrimas e dor pela noite toda, um vazio e uma
tristeza se misturando ao latejar irritante do braço e o ombro que dói até
para respirar.
Obrigo-me a me despir e tomar um banho no fim da noite, demoro
uma eternidade para vestir algo limpo, os braços arranhados, a cabeça
doendo, mas por sorte, não tive nenhum ferimento grave, podia ter morrido,
mas acho que o ombro amorteceu a batida da cabeça na calçada, o ombro
pegou bem na quina, se fosse a cabeça... nem gosto de me lembrar da fúria
dele, do jeito como me olhou cheio de raiva, aquele garoto não vai ser nada
além de problemas, não vai viver muito se continuar bebendo e dirigindo.
Olho para o quarto pela última vez, já devia ter partido, se ele não
tivesse me machucado, eu estaria em um ônibus ou, talvez, em alguma
outra cidade, estaria sofrendo ainda mais, porque Jared já estaria fora da
minha vida, mas não vai durar muito, antes que o dia termine, ele será
passado. Ainda não sei por que ele se ofendeu tanto com o que disse.
Sou fraca, tímida, complicada e cheia de problemas. Por que ele
sentiria algo além de pena? Desço com dificuldade, vou caminhar até a loja,
falar com ele, explicar tudo e me despedir. Se partir sem dizer adeus nunca
vou me perdoar, devo muito a ele e quero agradecer.
Prendo o choro para não borrar a maquiagem, mais uma vez tenho
que esconder marcas de alguém que fere meu corpo como se eu não fosse
nada. Sete da manhã e eu toda maquiada para esconder agressões. Quando
via essas coisas na tevê ficava inconformada. Agora eu entendo a vergonha
e o medo, o quanto você se sente um lixo. Mordo o lábio para ver se com
isso não choro. É difícil.
A loja está fechada quando chego, tinha esperança de encontra-lo
trabalhando e não ter que ir até sua porta.
Sem escolha, caminho pela calçada até sua porta, coloco a mala na
varanda com uma dor que me esgota, está tudo silencioso. Bato com
delicadeza, o coração descompassado enquanto eu tento domar as lágrimas
tentando fazer parecer que não é nada demais. Tudo em mim treme de medo
de como vou ser recebida.
Não tenho nenhuma resposta e meu coração sai do ritmo quando
penso que não vou vê-lo. Bato mais uma vez, de novo nada e, então, escuto
a moto, ele está chegando. Uma lágrima escorre e seco rápido com medo de
borrar a maldita maquiagem e ele me ver toda machucada.
Fico de pé na varanda torcendo os dedos quando ele desce da moto
sem tirar os olhos de mim e sobe os degraus que nos separam. A primeira
coisa que ele vê é minha mala, sinto algo o atingir e mordo de novo os
lábios.
— Desculpe vir assim, eu queria me desculpar. É a última pessoa
que queria magoar no mundo, me desculpe. – Eu tinha um discurso todo
organizado em mente, mas vê-lo me deixa tensa e sem palavras.
— Tudo bem. Não estou magoado. – Ele diz sério, os olhos de mim
para minha mala. Não está magoado, e por que estaria? Não sou assim
importante para isso.
— Não está? – Ando tão angustiada e frágil que tudo magoa um
pouco, ele saiu da minha vida por nada? Nem mesmo está magoado com
minhas palavras, apenas quis se afastar.
— Queria que eu estivesse? Disse que não queria me magoar e fica
triste quando digo que não estou? – Ele parece genuinamente confuso.
— É que... – Melhor não esconder como me sinto, é uma despedida,
afinal, vou sair da sua vida e não vou deixar nada por dizer, eu já tenho
fantasmas demais a me perseguir, não vou carregar mais esse, o fantasma
das coisas não-ditas. – Se não está é porque talvez não se importe.
— Ah... Isso, entendi. Pediu-me desculpas, desculpei. Tudo bem, sei
que não queria me ferir e... – Ele se cala.
— Nunca. Você fez muito por mim, mais do que um dia sonhei que
alguém faria. – Ele continua inquieto. – Eu queria dizer que não penso essas
coisas que disse, mas no fundo eu penso, só crio problemas, então eu acho
que minha aparência ajuda, e como estou sempre precisando de você, toda
cheia de problemas, acho mesmo que sente pena. Não quero te deixar
bravo.
— Entra. – Ele convida. Abre a porta que está só encostada. – Que
mala é essa?
— Minha. – Ele ergue a mala, sinto que não compreende bem, leva
para dentro e paro no meio da sala. Ele andou trabalhando aqui, está quase
toda organizada. – Eu... vou embora, Jared, as coisas... Eu... tenho medo
daquela pensão... O John me demitiu.
— Eu sei. Fui tomar café. – Não me ver, no fundo eu sabia. Fico
parada sem saber como agir, o braço doendo, a cabeça vazia, acho que já
dissemos tudo, ele não está magoado, eu não tenho mais nada a dizer a não
ser confessar que o amo. Não vou fazer isso, então acabou. – É mentira. –
Jared me surpreende. Caminha em minha direção tão decidido, que fico sem
entender. – Fui ver você. Não vou te deixar ir embora.
Suas mãos seguram meu rosto, nem tenho tempo de pensar direito
no que está acontecendo quando, do nada, seus lábios cobrem os meus num
beijo tão intenso que parece fazer uma confissão.
Só consigo aproveitar cada segundo enquanto me entrego aos seus
lábios com minha alma rendida. Suas mãos que seguravam meu rosto
descem gentis por meu pescoço e, então, ele toca meus ombros e a dor
destrói o momento quando me afasto engolindo um gemido.
— O que foi? – Jared me pergunta preocupado.
— Nada. ─ Digo rápido, ele me olha sério, começo a tremer um
pouco sem saber o que dizer. Encaro o chão, ele vai brigar com Aiden e se
colocar em problemas por minha causa, estou cansada de ser um problema,
eu simplesmente não sei o que dizer. Meus olhos encontram os dele, queria
que ele pudesse ler neles tudo que aconteceu, ontem e antes, acho que eu
simplesmente nunca vou conseguir contar.
— Claire... – Ele ergue meu queixo e encaro seus olhos atentos. – O
que é isso? – Ele toca meu rosto.
— Maquiagem. – Não é realmente uma mentira.
— Por baixo da maquiagem. O que aconteceu? – Seu tom é severo e
não tenho mais como negar.
— Eu estava indo embora ontem à noite, na verdade, estava vindo
aqui me despedir e o Aiden me encontrou. Ele queria que eu entrasse no
carro e comecei a tentar escapar, ele me machucou, eu caí, bati o ombro e
está doendo muito. Gritei por socorro, umas pessoas me ajudaram e ele
fugiu, quer dizer, eu não acho que fugiu, ele só foi embora, na verdade, eu
caí e, por isso, tantas dores.
Tem tanta raiva em seu olhar que me assusta. Ele quer falar, mas
parece que a voz está presa em sua fúria e sinto como se ele fosse explodir.
— Eu sinto muito. – Digo a ele e é como se a fúria finalmente
explodisse.
— Para de se culpar! Sente muito? Claro que sente, está machucada,
fugindo da cidade como se isso fosse o velho oeste. Ele bateu em você!
Tentou... – Fico ali olhando para ele com olhos assustados. – Não é sua
culpa. – Seu tom ameniza. – Não entende isso? A culpa é dele, minha que te
deixei sozinha e sabia o que ele faria, do xerife, da prefeita, não sua.
Jared volta até mim, passa a mão por meu rosto tentando tirar a
maquiagem de um jeito delicado, sei como está feio e sinto vergonha.
— Desculpe ter ficado tão chateado com o que me disse, desculpe
ter te deixado quando mais precisava de mim. – Ele me beija de novo, dessa
vez com tanto cuidado. – Onde dói?
— Meu ombro, bati na quina da calçada. Não estou conseguindo
erguer o braço. Vai passar, eu acho. – Digo já sem muita certeza.
— Deviam ter te levado ao médico. – Ele resmunga preocupado.
— Tentaram me convencer.
— Dormiu? Comeu?
Nego sem forças para continuar amenizando as coisas. Não
consegui comer, não consegui dormir, estou aqui, perto dele, um Jared
gentil outra vez, preocupado, eu sinto as forças me deixando, como se
pudesse simplesmente fraquejar, porque ele pode cuidar de tudo.
— Vou te dar um comprimido e vai se deitar um pouco.
— É que não consigo me deitar.
— Dou um jeito, arrumo uns travesseiros. – Jared não me dá chance
de discutir, me ajuda a seguir em direção à escada, me apoia até a cama. –
Deite-se e não pense mais. Eu vou sair...
— Trabalhar? – Ele me ajuda a sentar, é um alívio, a dor parece
diminuir.
— Depois, antes eu vou...
—Por favor, não vai procurar ele. – Seguro sua mão como se assim
pudesse impedi-lo de sair. – Se acontecer alguma coisa com você...
— Tudo bem. Não vou procurá-lo, vou falar com o Xerife, isso tem
que acabar, você vai fazer uma denúncia formal, vamos achar quem te
ajudou para servir de testemunha, mas ele vai ter que pagar por isso. Agora,
deite-se um pouco.
— Não consigo. – Ele ajeita os travesseiros.
— Tente agora. — Eu me acomodo sentada com as costas encostada
nos travesseiros. – Melhor?
— Muito! – Admito respirando aliviada, ele se acomoda ao meu
lado, sentado na beira da cama, os olhos mais tranquilos, eu nem acredito
que estou aqui, mesmo com medo do que ele pode fazer, estou feliz.
— Dorme um pouco e, quando acordar, eu vou estar de volta e levar
você ao médico. – Meio sem jeito, ele toca meu rosto, afasta meus cabelos,
dá para ver sua preocupação, sinto vergonha.
— Daqui a pouco passa, não precisa de médico. Promete que não
vai atrás dele? O Aiden estava bêbado.
— Não arruma desculpa para ele. – Jared fica de pé, está bravo mais
uma vez. – Volto logo.
Ele me deixa, saindo do quarto apressado. Eu suspiro, fecho os
olhos. Ele disse que não vai me deixar ir embora, Abby disse que podia me
ajudar a conseguir um trabalho, posso voltar para a pensão, mas meu ombro
precisa se curar rápido, não tenho dinheiro para pagar o quarto por muitos
dias e não vou pedir a ele.
Eu adormeço tentando criar um jeito de ficar na cidade e viver esse
sentimento e, quando abro os olhos, ele está me olhando.
— Dormi muito? – Pergunto me ajeitando, mordo o lábio para
afastar a dor.
— Umas horas. – Jared está diferente, parece me observar de um
jeito novo, tem algo em seus olhos, meu coração se aperta, talvez ele tenha
pensado melhor, ou quem sabe, não resistiu, foi encontrar o Aiden e acabou
encrencado.
— Jared...
— Aiden está morto! – Ele me conta com a expressão vazia, eu nem
sei o que sentir, Jared se acomoda ao meu lado na cama, suspira, afasta
meus cabelos mais uma vez, me olha de um jeito compenetrado. – Se
arrebentou em um racha na estrada. O carro capotou três vezes, estava fora
de si, quebrou o bar do John, encontrou você pelo caminho, depois arrumou
uma briga na estrada, começou uma disputa boba e fim, terminou como
acho que todo mundo sabia que terminaria.
Fico calada investigando meus sentimentos, penso em sua mãe e
sinto pena dela, uma mãe nunca devia passar por isso.
— Que coisa horrível! – Digo sem saber o que mais dizer.
— Sim, fui procurar o xerife e ele estava às voltas com tudo que
aconteceu. Chega de esperar. – Ele muda de assunto. – Está na hora de ir ao
hospital ver esse ombro. – Com todo cuidado ele me põe de pé.
— Podemos não contar. Ele está morto, por que a prefeita precisa
passar por isso? Não muda nada. – Peço a ele, seus olhos são cheios de algo
bom.
— Você tem um coração bom. Vamos descer.
Ele me ajuda a descer, passo pela minha mala, o dono da pensão vai
achar que estou fazendo algum tipo de piada, voltar pela terceira vez em
algumas poucas horas.
— Minha mala. – Eu peço quando ele me ajudava a sentar no banco
e prendia meu cinto.
— Depois falamos disso, está pálida de dor. Odeio que aquele
infeliz tenha morrido! Como vê, eu não tenho um coração bom.
Ele bate a porta e pega o volante, fico em silêncio durante o
percurso, primeiro porque dói, depois porque eu não sei direito o que sentir.
— Jared, eu não tenho como pagar uma consulta. – Odeio dizer isso
a ele, mas não posso gastar o que tenho com médicos e exames, preciso
sobreviver até ter um emprego de novo.
Jared me ajuda a andar até a recepção, depois até a sala da médica,
ela faz um rápido exame depois que conto o que aconteceu. Sem querer
diagnosticar, me manda para o Raio-X, é tudo rápido, cidade pequena,
clínica vazia, quando retorno com o exame ela fica uns minutos olhando
para a radiografia.
— Vou colocar seu ombro no lugar Claire, vai doer muito e depois a
dor vai embora. Não tem nada quebrado, só ombro fora do lugar.
— Tudo bem, eu aguento. – Digo sem qualquer certeza, Jared se
posiciona ao meu lado, seus olhos me dão força.
— Estou aqui, eu ajudo. – Ele diz me fazendo sorrir, sempre tão
generoso. Aperto sua mão, me concentro em seus olhos e a médica se
posiciona.
É um único e rápido movimento, uma dor de me fazer perder as
forças e, no segundo seguinte, parece que tudo passou, é inacreditável.
— Parece milagre. Quase não dói mais.
— O que só prova que devia ter vindo direto para o hospital e não
teria sofrido tanto. – Jared se condena por demorar a me trazer, eu aperto
sua mão ainda presa a minha.
— Obrigada! – Digo a ele com o coração cheio de perguntas, o que
vem a seguir? Aonde estamos indo? Eu fico na cidade e depois o que?
Estamos juntos, não estamos? Queria poder perguntar, mas eu não tenho
coragem, então eu me deixo ser guiada por ele, primeiro até a recepção,
onde ele paga a conta, depois até o carro, onde me acomodo fechando os
olhos e me encostando no banco. Ele dirige e eu apenas aceito.
Capítulo 13
Jared

Ombro fora do lugar, eu imagino a dor que sentiu. Estaciono na


porta de casa, ela passou todo caminho em silêncio, não sei direito como
pedir que fique comigo, só sei que não vou deixar que entre num ônibus e
suma da minha vida. Ela não pode fazer isso, chegar, me confundir todo e
depois ir embora.
— Está se sentindo bem? – Ela me dá um meio-sorriso enquanto
balança a cabeça em uma afirmação. – Quer ajuda para entrar? – Aponto
minha casa, ela nega, acho que não está entendendo nada.
— O braço quase sarou.
— Que bom. – Sorrio. – Eu já te encontro, vou só dar uma olhada
na loja, dois minutos. – Minto interessado em ligar para Abby antes que ela
venha bater em minha porta. Claire deixa o carro e faço o mesmo. – A porta
está só encostada. – Aviso me afastando em direção à loja, o que é uma
bobagem, se eu fosse mesmo à loja, entraria pela porta de acesso dentro de
casa. Pego o telefone no bolso, ligo e Abby atende ansiosa.
— Cadê ela? Como ela está? Ficou internada? Não acredito que
aquele canalha morreu sem tomar uma boa surra.
— Calma. Ela está bem, deslocou o ombro, mas já está no lugar.
Deve ter doido.
— Dói muito, mas passa rápido. – Se alguém sabe algo sobre isso é
ela, Abby Coleman entende de dor. - Onde ela está? Vou convidá-la para
ficar aqui. Assim eu cuido dela.
— Abby... – Escuto a voz de Zack ao fundo. – Acho que o Jared
quer fazer isso.
— Ela vai ficar na minha casa. – Aviso feliz por não estar diante
deles agora, dificilmente eu sustentaria o olhar.
— Por um tempo, para sempre? Como vai ser isso? – Agora é a voz
do Sam e eu não acredito que eles estão transformando isso em um show.
— Eu não sei, nem falei com ela ainda, isso não é da conta de
vocês. – Respondo meio irritado. – Eu vou...
— Está tudo bem, Jared, no seu tempo. Abby e Sam vão esperar
bem bonzinhos vocês decidirem suas vidas. – Zack me comunica.
— Quanta generosidade... estou sem palavras. – Desdenho -
Obrigado. Por favor, se puder pedir para serem só um pouco mais
generosos, me deem um tempo e nenhum convite para recebê-la ajudaria.
— Pode deixar, Jared. – Sam se intromete outra vez. Acho que
pensa que sou Abby e Zack onde ele pode se intrometer em absolutamente
tudo. —Vamos deixar Claire sem teto, ou ela fica com você ou ela dorme
ao relento.
— Abby! Eu só queria mesmo avisar você, se quiser vir visitá-la,
seria uma boa coisa.
— Nós vamos! – Ela diz desligando e retorno para casa, Claire está
de pé na varanda.
— Por que não entrou?
Abro apressado e ela entra. Está tudo ainda uma bagunça, não tenho
a menor ideia do que dizer a ela e ainda seguro o saco de papel com os
remédios que comprei quando deixamos o hospital.
— Está com fome? – Pergunto e, então, me lembro que não tenho
nada a oferecer. – Eu posso sair e comprar qualquer coisa ou telefonar. Não
tenho nada, nem água gelada. Não liguei a geladeira, eu só peguei minhas
coisas e joguei por aí.
— Estava com pressa de deixar a pensão. – Ela constata, não é uma
crítica, é só ela sendo honesta e consciente, foi exatamente assim.
— Eu estava... Bravo na hora. Não pensei direito. – Isso nunca vai
dar certo, eu não sei me expressar, eu não consigo dizer o que ela precisa
ouvir.
— Eu entendi, além do mais, tem uma casa, não precisava mesmo
ficar lá.
Estamos os dois de pé no meio da sala e não sei o que fazer ou
dizer. Não sei como convencê-la a ficar. Seus olhos passeiam pelo ambiente
e repousam sobre sua mala. Tenho medo que diga que quer ir embora.
— Quer um comprimido? Acho que não devia ficar de pé tanto
tempo.
— Eu estou bem. O comprimido é só para o caso de ter dor e não
tenho nenhuma no momento. Gastou tanto comigo hoje. – Seu rosto fica
corado, eu sinto uma onda de afeto diferente. Um carinho sem explicação,
esse sentimento por ela me muda, mas o problema é que essa mudança me
assusta, Zack mudou, ele era como eu e mudou, eu tenho que tentar.
— Bobagem... que bom que está sem dor. Vou pedir uma pizza.
Gosta de queijo? – Mudo de assunto rapidamente, evitando que ela diga que
está pronta para ir embora.
— Qualquer coisa. – Ela diz sem saber como se comportar, não é
nada fácil para nenhum dos dois, mas podemos aprender. Se ela disser que
fica aprendemos.
Ligo e faço o pedido. Posso comprar coisas no mercado para
cozinhar em casa como as famílias fazem, se ela aceitar, podemos escrever
uma história diferente os dois. Diferente do meu passado, diferente dos
meus planos para o futuro.
— Pronto. Vinte minutos. – O que faço com esse tempo? – Vamos
na cozinha? Vou lavar uns pratos e preparar a mesa.
Ela me acompanha. Será que gosta de como as coisas são por aqui?
Ela pode mudar o que quiser se ficar, eu lavo pratos me achando ridículo,
eu não faço esse tipo de coisa, eu não sou... doméstico, eu só... existo, na
minha vida rústica, vazia, sem modos, esse é Jared Brow, todo Brow é
assim, ou era até Zack dar o primeiro passo e agora parece que tudo está de
pernas para o ar.
— Não sei onde fica nada.
Claire limpa a mesa e coloca os pratos. Eu fico olhando um tanto
desnorteado, esse clima doméstico é algo que desconheço, eu nunca vivi
nada disso, mas a verdade e, ao menos posso admitir para mim, eu sempre
quis isso. Quis aquilo que via no cinema, quis o que só podia olhar pelo
lado de fora das janelas, sempre pelo lado de fora.
—Acha que tem tudo que uma casa precisa? – Pergunto a ela. Claire
passeia seus olhos pela cozinha com um doce sorriso.
─Tenho certeza que sim, é como a cozinha de uma avó. Não tive
uma, mas acho que é assim.
— É o único ambiente que está limpo.
— Ou perto disso. – Ela corrige deixando claro que não está limpo
o bastante. Coloca os cabelos atrás da orelha e a marca no rosto fica mais
evidente. Sinto tanta raiva de ter permitido que acontecesse, se não tivesse
sido um otário, eu teria ficado por perto. – Mas não vai ser difícil você
ajeitar tudo, tenho certeza. – Ela me sorri, então se acomoda em uma das
cadeiras e eu me sento diante dela, tanto que quero dizer e simplesmente
não consigo.
— Chegou. – Agradeço a comida ter vindo tão rápido. Caminho
para a porta. Preciso arrumar um jeito de dizer a ela que eu a quero aqui.
Claire toma a frente quando volto e nos serve. Abro o refrigerante,
sirvo dois copos, ficamos trocando olhares na pequena e acolhedora
cozinha, com um monte de coisas entre nós, e eu devia ter ao menos beijado
Claire mais uma vez. Não dou nada a ela, nenhuma direção, ela não sabe o
que está acontecendo e isso é culpa minha.
— Está bom. Gosto de massa, aprendi a fazer com a minha mãe.
Uma das coisas ruins da pensão é não poder cozinhar. Assumi a cozinha
quando minha mãe ficou realmente doente.
— Gosta de cozinhar?
— Sim, embora nos últimos tempos eu tinha me especializado em
comida de doente, mesmo assim era relaxante.
— Não quer um remédio mesmo? Não fique com dor. – Pergunto
notando certa dificuldade dela em mover o braço.
— Estou bem, a doutora operou um tipo de milagre, doeu muito na
hora e depois apenas passou.
Ela toca o rosto, eu a fiz lembrar. Sou mesmo um grande idiota.
— Está linda, Claire. Isso some. – Ela desvia os olhos, fica corada,
eu não sou bom mesmo em dizer coisas assim e acabo fazendo com que o
foco vá direto para o rosto machucado. – Mais? – Aponto a pizza querendo
desesperadamente mudar de assunto.
— Não. Obrigada. Estava ótimo.
Ela encara o relógio de parede da cozinha. São oito da noite, sua
expressão de espanto me acende um alerta, está mais que na hora de falar
com ela e eu simplesmente não faço ideia de como pedir que fique aqui.
— Nossa! Não sabia que era tão tarde, aquelas horas de sono me
deixaram confusa. Pode me levar de volta à pensão? – Ela fica de pé se
apressando para a sala, eu a sigo com o coração agitado, não sei como
posso me sentir assim, eu achava que essas coisas não aconteciam com
alguém como eu, não sei como falar, mas não vou deixá-la ir, então, eu
preciso achar uma maneira.
— Eu me arrependi de ter deixado você lá sem nenhum aviso, eu
não queria isso. Estava bravo com tudo, mas não com você, realmente. –
Ela se volta, ficamos frente a frente, estou nervoso, visivelmente nervoso,
enrolado em sentimentos que eu não devia sentir, com medo, com raiva,
assustado, isso é a coisa mais maluca do mundo.
— Podia ter ficado bravo comigo, deveria, eu agi mal com você. Saí
dizendo coisas tolas uns minutos depois de ter batido no Aiden para me
proteger. – Ela arruma uma desculpa para o meu comportamento estúpido,
mas eu não mereço.
— Para te proteger eu devia ter ficado perto. Bati no Aiden para me
vingar. – Ela não responde. – Abby me disse que você... que você... ela deu
a entender que tem motivos para... para agir daquele jeito. Na verdade, ela
não disse nada, mas pela expressão do rosto dela e pelo modo como correu
de uma conversa... Estou aqui, eu posso ouvir qualquer coisa. – Aviso na
esperança de que ela se abra e me ajude a entender o que, afinal, está
acontecendo.
— Não consigo falar disso ainda. Trava em mim e não sai, ainda
mais com você. – Ela confessa com os olhos marejados, perdidos pela sala
sem forças para me encarar.
— Por que comigo é mais difícil? – Arrisco perguntar.
— Porque gosto de você. As coisas que me aconteceram... é difícil,
mas eu pensei que nunca poderia gostar de alguém. Acontece que conheci
você e me apaixonei. – Fico olhando para sua honestidade crua e corajosa,
sem acreditar que é mesmo de mim que ela está falando. – Pensei que podia
gostar por nós dois. Foi isso que tentei dizer naquela hora. É por isso que é
tão difícil falar sobre o que me aconteceu, me importo com o que pensa
sobre mim.
Ela seca uma lágrima e olha mais uma vez para sua mala.
— Para de olhar para a mala, você não vai a lugar nenhum. Não vai
ficar na pensão, não vai entrar num ônibus e se perder de mim. Vai ficar
aqui comigo. Nessa casa.
Eu a surpreendi, ela me olha completamente confusa. Fica claro que
não tinha a mais leve ideia das minhas intenções. Sou bom em esconder
tudo que é sentimento. Preciso pôr em palavras e isso é realmente difícil.
— Eu também me apaixonei por você, Claire, não sei nada sobre
isso, não sei como se comportam pessoas que se gostam, eu só quero que
fique aqui e me ajude a viver isso. Não estava nos meus planos, tem coisas
no meu passado... eu também não sei como se sentiria e também me
importo com o que pensa de mim, mas estou arriscando tudo pedindo que
fique e me ajude a ser capaz de falar disso e, quem sabe... juntos, eu não sei,
só... fica.
Caminho para ela, Claire não foge quando eu a envolvo pela
cintura, ela não corre apavorada com meu pedido que mais parece uma
exigência. Fica me olhando como se estivesse a me analisar, como se
estivesse digerindo minhas palavras e toco seu rosto.
— Ser sua namorada? – Sorrio, ela é tão delicada e perfeitinha, em
outros tempos eu estaria me engasgando com a palavra namorada, talvez até
mesmo fugindo para as montanhas.
— É um jeito de chamar isso. – Digo sem esconder que isso me
deixa constrangido. — Pode ser namorada, eu não ligo a mínima para o
nome disso. Desde que fique.
— Isso é sério? Quer que more aqui com você?
— Esse é o plano. Aceita? Não sei mais como pedir.
— Aceitei lá no começo, da primeira vez que disse, só estava sem
acreditar. – Ela sorri e beijo Claire, um beijo de alívio.
Capítulo 14
Claire

Eu não sei que tipo de força me moveu, dizer sim a ele é assustador
e, ao mesmo tempo, eu quero, eu sinto que esse pode ser o primeiro passo
para encontrar a felicidade que prometi a minha mãe, um jeito de mudar
meu destino.
Jared se afasta um pouco, ele está totalmente constrangido, eu não
sei como duas pessoas como nós podem dar certo, travados, cheios de
traumas, com dores que não são fáceis de serem esquecidas, mesmo assim,
tentando.
Não sei sobre ele, sobre o que dói nele, de onde vem, imagino que
do passado, mas como e por que, ele não disse. Talvez, como eu, ele não
consiga dizer.
— Jared, sobre ficar... eu quero, mas... eu não sei se estou pronta
para... você sabe, uma vida juntos... – Como vou dizer a ele que tenho medo
de dormir com ele, de fazer sexo porque eu não sei nada disso além de
violência e a ideia de me sentir perto do que senti naquele dia me
desmancha a alma.
— Não estou esperando que fique no meu quarto, Claire,
começamos agora, eu sei que não é... que é mais... recatada? Essa palavra é
ofensiva? Não sou bom com essas novidades de feminismo.
— Está tudo bem. – Digo sem saber como continuar.
— Você fica no quarto menor, me ajuda na loja, ajuda cuidando das
coisas aqui, tem tanta coisa para fazer na casa, vamos construindo as coisas
juntos e, quando acontecer... está nas suas mãos. – Isso é algo com que
posso lidar, tempo, confiança, acho que consigo superar. Quando ele me
toca, quando me beija, eu não sinto nada além de amor, prazer e mesmo
desejo, sinto medo de avançar e outras coisas invadirem minha mente e
decepcionar Jared está fora dos meus planos.
— Vou poder cuidar das coisas aqui e te ajudar na loja?
— Sim, mas claro, eu não quero que pense que isso está... você
sabe, que é um tipo de negócio.
— Entendi, quero isso, vou ficar feliz em ajudá-lo a fazer a loja
crescer e também deixar essa casa como ela merece. É tão perfeita, eu
imagino a decoração de Natal.
— Decoração de Natal? – Ele faz uma careta, depois corre os olhos
pelos ambientes. – Quem sabe? Parece bom...
— Obrigada! – Eu me precipito em sua direção, ele não se move
quando descanso minhas mãos em seu peito. – Você é o melhor homem que
já conheci, Jared, não foi nada difícil gostar de você. – Dizer isso parece ter
o efeito contrário, sua expressão fica pesada, ele tira minhas mãos do seu
peito, se afasta me dando as costas, anda até a janela e fico pensando o que
foi que fiz de errado.
— Não sou um homem bom!
— Claro que é! – Fico indignada com suas palavras, como ele pode
pensar diferente?
— Não, eu não sou! – Ele grita me assustando, quando se volta, a
expressão está pesada e cheia de dor. – Nada bom, nem um pouco, se espera
um cara bom, se está me confundindo com... um tipo... um tipo de príncipe
encantado só porque ajudei você, então está com o cara errado e isso nunca
vai dar certo. – Eu não sei o que dizer, eu não sei por que ele está dizendo
essas coisas, não sei como agir, mas só o que vejo é sua bondade, seus
medos e dores, mas antes de tudo isso, sua generosidade.
— O que vejo é um homem bom, eu não poderia gostar de um
homem diferente disso e nunca fez nada para eu duvidar disso.
— Não sabe o que está dizendo! – Ele cospe as palavras com nojo
delas.
— Jared...
— A começar por esconder quem eu sou, já mostra que não sou tão
bom assim. – Ele leva as mãos à cintura, depois começa a andar pela sala,
meu coração se aperta, sinto medo de perdê-lo, medo que ele não me queira
mais em sua vida e, pior, medo da dor dele ser tão grande que ele não
consiga retornar dela, não consiga um espaço para mim.
— Conte-me, deixe-me decidir. – Jared me olha espantado.
— Quer ouvir? Eu te conto. – Ele transfere um pouco para mim sua
fúria, como se já pudesse prever meu afastamento e repulsa, como se
blindasse dessa resposta negativa. – Sou filho de um desastre, aqueles
dois... aquilo não foi um encontro, aquilo foi um desastre. Minha mãe era
uma bêbada, que não via nada além de si mesma, e meu pai... ele... ele
sempre foi um canalha. Quer saber quem eu sou? Pois eu te digo: eu sou o
cara que sonhou matar o próprio pai tantas vezes que teve que fugir para
não colocar o sonho em prática.
Não é fácil ouvir isso, mas, é claro que ele tem que ter motivos, eu
sabia que vinha de uma família disfuncional, mas isso não o torna um
homem ruim.
— Jared, é normal, sua família era difícil.
— Eufemismo. Eles eram o próprio inferno! Meu pai não era só um
canalha, ele era um canalha sádico, ele tinha a “porra” de um chicote
pendurado na porta da cabana, um chicote que era todo meu. – Engulo a dor
de suas palavras e o espanto. – Nem era a pior parte. – Ele ri amargo.
— Eu sinto muito.
— A pior parte era o cano da espingarda na minha testa e o quanto
eu rezava para ele disparar de uma vez. – Ele responde me ignorando. – O
pior era o cigarro apagado na pele e a ferida que nunca cicatrizava e a fome,
e dormir noites e noites na floresta, caçar minha própria comida como a
merda de um selvagem.
— Jared...
— Quando o Zack chegou... não que ele conhecesse uma vida
melhor que a minha, mas aquele pequeno... aqueles olhos assustados e
cheios de medo... eu não queria que nada de ruim acontecesse a ele e sabe o
que isso significava? O dobro de surras, o dobro de chicotes nas minhas
costas. Eu tentei aguentar por nós dois, mas eu ia matar aquele verme, eu
sabia como, eu tinha tudo planejado, entende? Não tinha nada que eu queria
mais do que mandar aquele verme para o inferno e eu fui embora, eu deixei
o Zack para trás, eu não suportava.
— Você também era criança, jovem... era demais para um garoto. –
Eu tento defendê-lo, mostrar o que ele não consegue enxergar.
— Dezessete anos, depois disso, depois que subi na moto e parti...
eu tinha que beber, eu tinha que me drogar, e eu tinha que quebrar homens e
arrumar encrenca, porque eu precisava colocar para fora o ódio que eu
carregava, a culpa. Sabe quantas vezes eu fui preso?
— Não! – Eu nem fazia ideia de que ele tinha sido preso.
— Nem eu, incontáveis vezes: arruaça, agressão, dívidas, posse de
drogas, eu nem sei como não me tornei um viciado, acho que era porque eu
gostava mais de vender do que de comprar. – É tudo um espanto, mas ainda
consigo ver um homem perdido e com medo, um jovem assustado.
— Você mudou. – Eu digo a ele.
— Não contente em acabar com a minha vida, eu voltei quando o
maldito morreu e carreguei o Zack para o mesmo buraco que eu estava. Ele
nunca teve talento, o cara sempre foi bom, é coisa de alma, ele me seguia
feito um cachorro perdido, éramos uma matilha, mas eu era o alfa, eu era a
encrenca, por onde íamos eu estragava tudo, as pessoas tinham medo.
Eu assisti isso, vi o medo nos olhos daqueles homens que tentaram
me machucar quando o conheci, também via quando ele entrava no bar do
John, um tipo de respeito misturado a medo que não deixava ninguém
ultrapassar a linha.
— O que mais podia ser depois de tudo que viveu?
— Zack finalmente me deixou, eu sabia que aconteceria e fiquei
com raiva, eu tentei convencê-lo tantas vezes... que bom que nunca
consegui. Mas foi quando ele conheceu Abby que eu entendi, estava no
modo como ele olhava para ela, nem era porque ele tinha dado certo na
vida, dinheiro, estabilidade, era o jeito que ele olhava para ela.
— Que bom, ele está feliz com a família que construiu e você foi
bom com ele na infância.
— Até deixá-lo para trás apanhando no meu lugar. – Ele fala cheio
de mágoas de si mesmo.
— Já falou com ele sobre isso? Talvez o Zack não te veja do jeito
que você acha, devia falar com ele.
— Claire, eu não quero me redimir de nada! – Jared não está
dizendo a verdade, ele se culpa, mas se protege e eu não sei como ajudar
quando eu nem mesmo consigo falar sobre as minhas dores.
— Tudo bem!
— É isso, esse é o cara que te chamou para morar com ele, vê? É
isso que te espera, um ex--presidiário. É bom que saiba, assim pode
escolher, mas eu sei o que vai dizer.
— Sabe?
— Depois de tudo que passou nessa cidade, terminar morando com
alguém como eu? Não, você vai querer ir embora o quanto antes e eu
entendo.
— Entende? – Eu queria que ele não entendesse, que tivesse
disposto a lutar, mas talvez ele simplesmente não consiga, quem sabe,
juntos, eu possa ajudá-lo e ele possa me ajudar.
— O que você quer que eu diga, Claire? – Seu tom é duro, cheio de
mágoas do passado o tomando, Jared acha que não merece nada além do
que ele tem e está tão errado, ele merece amor, ele merece uma vida feliz e
se eu puder dar isso a ele, contribuir para sua felicidade, então eu vou fazer.
Ando até ele, outra vez toco seu peito, ele não se move, não me
afasta como fez antes, tem uma cicatriz no queixo, outra no braço, as
marcas da sua dor estão espalhadas pelo corpo, diferente de mim, as minhas
estão apenas na alma, as dele podem ser vistas.
— Quero que, mesmo sendo quem é, mesmo achando que não
merece, quero que me peça para ficar, que seu coração diga que não pode
me ver partir, mas eu sei que não pode, sei que não consegue e eu entendo,
estou aqui, Jared, me convidou para ficar, é isso que vou fazer. Eu não
tenho medo de você e, por mais que duvide, eu ainda acho que é um homem
bom, o melhor que conheço e não pode mudar isso, então eu vou ficar e
provar que estou certa. A menos que me mande embora.
— Mandar você embora? Impossível! – Ele diz chocado com a
possibilidade e isso me faz sorrir, me dá um pouco de esperança, eu não
quero ir a lugar nenhum e agora menos ainda. Eu me importo com Jared e
vou mostrar a ele que podemos dar certo.
Eu me estico e beijo seus lábios, primeiro ele não reage, mas depois
sua boca toma a minha e o beijo fica quente, denso, cheio de paixão, mas é
Jared a nos afastar, acho que posso entender, eu disse que não estava pronta
e ele não vai ultrapassar barreiras.
— Foi bom falar. – Ele explica passando os dedos por meus
cabelos. – Você não faz ideia da mulher especial que é. – Seu rosto fica
vermelho. – Mas passou tanta coisa que eu acho que precisa descansar,
Claire, vou levar sua mala para o quarto.
Eu o sigo pela escada, vamos até o quarto menor e cheio de caixas e
coisas que não pertencem a ninguém, ele faz uma careta.
— Melhor eu dormir aqui e você...
— Não! – Eu o paro. – Quero ficar aqui, dou um jeito depois, não
tenho pressa. – Ele concorda, quem sabe em breve, se as coisas forem bem,
eu nem precise ficar aqui, estamos construindo algo.
— Tudo bem, a casa toda do seu jeito, ok? – Balanço a cabeça
afirmando. – Ele deixa a mala no chão, o saquinho com remédios ao lado da
cama e vem até mim. – Boa noite, Claire. Vejo você de manhã, mas se
precisar...
— Sei onde te encontrar. – Digo ansiosa. Ele concorda, dá meia-
volta. – Jared...
— Sim.
— Queria falar com a Abby amanhã, ela foi incrível comigo.
— Vamos até lá, vou te apresentar ao meu primo. – Ele promete e
gosto da ideia, sorrio enquanto ele deixa o quarto fechando a porta e eu me
sento na cama tentando assimilar tudo que disse.
Jared viveu uma vida de dor e abandono, sinto que é bem mais forte
do que imagina. Minha cabeça está pesada, meu corpo todo dolorido,
vivemos momentos carregados de emoção, parece que meu corpo está
sentindo, então, apenas me encolho na cama, não penso em abrir a mala,
mudar de roupa, só em fechar meus olhos e dormir pela primeira vez em
semanas, segura, sem qualquer medo.
— Mamãe, eu vou cumprir o que prometi, eu vou ser feliz.
Capítulo 15
Jared

Tem uma leveza que toma meu corpo e minha alma que eu mal
consigo explicar, é mais do que tê-la comigo, é ter Claire aqui sabendo
quem eu sou e, ainda assim, me escolhendo. As pessoas não me escolhem,
elas têm medo, respeito, mas não sou o cara escolhido por ninguém.
Eu me deito depois de um banho, não preguei os olhos noite
passada, não abri a loja hoje, primeiro fui atrás dela, depois atrás do xerife,
então fiquei feito um idiota olhando Claire dormir, sorte ela não ter se
assustado quando acordou e me viu lá, admirando seu sono, cheio de raiva,
medo.
Jamais pensei sentir medo de perder alguém, mas tenho medo de
perder Claire e medo do que esse medo pode causar, eu não quero fazer
nada errado, quero que ela se sinta feliz, que continue a gostar de mim e que
esse sentimento algum dia seja o mesmo sentimento que mantém Abby e
Zack juntos.
Fecho os olhos, eu me abri, disse como me sentia e quem eu era,
mas Claire não me contou o que guarda em sua alma, a dor que é maior do
que tudo que Aiden fez a ela, eu queria saber.
Sinto que tem a ver com relacionamento, talvez um tipo de ex-
namorado agressivo, um cara que a abandonou, por isso ela tem bloqueios.
Na verdade, é tolice especular, o que quer que seja, o tempo vai ser meu
cúmplice, e ela vai confiar em mim e se abrir.
Por agora, o que importa é a certeza de que, tudo que disse a ela não
mudou seus sentimentos por mim. Claire me vê para além da casca, isso é
especial.
Penso nela dormindo no quarto ao lado, podia estar aqui na cama
comigo, podíamos ser um casal, somos, na verdade, foi o que propus. Eu
não faço ideia de como ser isso, namorado, eu não sou gentil, ao menos não
sei ser sem que isso me cause uma certa angústia.
Custo a pegar no sono. Penso nela, nas conversas que tivemos, no
seu estado de saúde, no seu estado emocional, penso em Zack e no que ela
me disse sobre ter uma conversa com ele, penso no futuro, se vamos mesmo
ter uma chance e se eu posso ser como meu primo, como os casais que vejo
por aí, construindo família, criando história, raízes.
Quando desço pela manhã, sinto o cheiro de café fresco, ela está na
cozinha, se volta ao me ver, lança um sorriso que logo enrubesce seu rosto.
— Pensei em preparar um café, não tinha muita coisa, mas eu
esquentei a pizza de ontem.
— Não sei onde conseguiu o café, mas realmente estava precisando.
— Mike me emprestou. – claro, os dois acabaram por se tornarem
amigos. Ela me entrega uma caneca com o café fresco.
— Obrigado. – Ela pega a sua, eu me encosto na pia, Claire fica de
pé me olhando e bebericando seu café. – Você não deveria estar
descansando?
— Estou ótima. – Claire dá um novo sorriso. – Dormi tão bem, eu
apaguei.
— Que bom, acho que podemos passar no mercado e comprar umas
coisas, assim não precisa pedir nada ao Mike, depois abro a loja.
— Pode ser. Eu posso ir com você?
— Com certeza, é você que vai dizer o que precisamos. Coisas para
comer, limpeza... Podemos ir?
— Podemos. – Ela se anima, seguimos de carro até o mercado mais
próximo, Claire compra tudo de que precisamos, depois eu a deixo em casa,
isso é tão diferente, é tão família, eu nem sei como lidar com tudo isso. Será
que tinha que, talvez, beijá-la, ou vamos agir como amigos até que ela se
sinta pronta? Como vou saber quando está pronta? Isso não tem chance de
dar certo, realmente não tem.
Deixo Claire cuidando de tudo e vou abrir a loja, passo a manhã
toda ocupado e, quando chego para almoçar, o cheiro da comida está se
espalhando por toda a casa e é difícil não me acostumar com esse cuidado
todo.
— Cozinhei! – Ela diz animada. – Jared, estar aqui me faz tão bem,
eu nem sei como agradecer. – Eu bem que sei, mas não vou dizer, desvio
meus olhos, com medo de ser traído por eles, destampo as panelas, está
tudo muito apetitoso.
— Parece muito bom. – Digo mudando de assunto, almoçamos
juntos, ela segue comigo para a loja logo depois, me ajuda organizando um
pouco o meu balcão.
— É o que chamamos de toque feminino? – Pergunto surpreso em
como ela consegue deixar tudo muito melhor.
— Acho que sim. – Claire sorri se encostando no balcão, a loja está
vazia e ficamos nos olhando sem dizer nada.
— Depois quero falar sobre as encomendas pela internet. – Digo só
para puxar assunto.
— Claro, vou pesquisar. – Ela suspira.
— Vamos jantar no Zack hoje, pode ser? Vai conhecer a minha
sobrinha Mary.
— Será bom. – Os olhos dela brilham, ela gosta do plano, eu é que
não sei como é que vou agir com ela ao meu lado, em especial porque Sam
é um boca-aberta inconveniente que vai me fazer querer socá-lo em cinco
minutos. – Vai contar a eles?
— O que?
— Sobre nós! – Ela responde surpresa com a pergunta.
— Ah! Sim... é que eu meio que falei que está morando aqui, então
acho que eles já sabem.
— Quer que eu fique aqui ou vou embora? Da loja, eu digo, estou te
atrapalhando?
— Está vazia! – Dou de ombros. – Tenho que preparar uma
encomenda grande que um fazendeiro pediu para amanhã cedo, mas é só.
Pode andar por aí, aprender um pouco, quer? – Ela balança a cabeça
animada e eu mostro com mais detalhes a loja e os materiais, ela gosta de
aprender, se interessa, preciso parar para atender dois clientes que entram ao
mesmo tempo, depois retomo a aula e chegamos ao balcão outra vez,
mostro o caixa e a maquininha de cobrança, ela não tem dificuldade em
aprender.
— Você é muito inteligente, Claire, eu levei uns dias para aprender,
ficava atrapalhado, é que o Lewis teve paciência, ele foi muito generoso
comigo a vida toda.
— Agora está aposentado, aproveitando a vida. Uma pena eles não
terem tido filhos. Quer dizer, é bom para você, porque acabou conseguindo
comprar a loja, mas é estranho pensar que a história deles simplesmente
termina quando eles se forem, filhos são como marcas pela eternidade.
Eu não sei o que dizer, eu nem acho que quero entrar nesse assunto,
não me imagino no lugar de um pai, não sei nada sobre isso, só o que
conheço é dor e revolta.
— Pode ser... – Dou uma resposta genérica. – Está bem? Alguma
dor? – Ela nega. – Precisamos tirar aquelas bagunças do seu quarto,
podemos...
— Está tudo bem. – Ela diz me cortando.
— Falta pouco para fechar, se quiser ir se arrumar, eu chego logo,
eles jantam cedo por conta da Mary. A pirralha dorme cedo, para poder
acordar com as galinhas e passar mais tempo aprontando.
— Você fica feliz quando fala dela. – Ela me surpreende, eu não sei
se fico, eu nunca pensei sobre isso. – Gosta de crianças?
— Não tenho o menor jeito e menos ainda paciência, mas a
garotinha é bonitinha e o Zack é um pai muito bom para ela.
— Vou me arrumar um pouco. – Claire toca o rosto como se só
agora lembrasse da marca. Não digo nada, está bonita do mesmo jeito, mas
quero que essas marcas saiam de uma vez, porque assim eu não tenho que
me lembrar que aquele infeliz morreu antes de ter a lição que merecia.
— Vou começar a arrumar as coisas aqui e já te encontro. – Ela me
deixa, nem um único beijo o dia todo, nem um único toque íntimo, estou
fazendo tudo errado, não é preciso ser inteligente para saber.
Depois de fechar a loja, volto para casa, escuto os sons vindos do
seu quarto, eu não estou sozinho, ela vive aqui comigo, somos um casal e
eu nem mesmo sei me comportar. Trouxe sua mala para dentro, a convenci
de ficar e agora não sei como fazê-la me amar, não sei como mostrar o que
sinto, eu não quero uma colega de casa, alguém para dividir tarefas.
Ligo o chuveiro pensando nisso, nunca tive na minha vida uma
mulher nem mesmo parecida com ela. As mulheres com quem me envolvi
sempre foram como eu, encontros em boates, bares, nas esquinas do mundo,
em gangues de arruaceiros, gente como eu, sem futuro, sem passado, sem
qualquer interesse duradouro. Com esse tipo de mulher eu sei lidar, mas
com alguém como Claire, delicada, linda, doce, generosa e toda...
perfeitinha, com ela eu não sei nem como agir.
Encontramo-nos na sala, a cada hora que passa eu me sinto mais
distante dela, mais constrangido. Em uma semana mal vamos nos falar, sou
eu que estou tornando as coisas assim, frias, e aposto que ela não faz ideia
de como agir comigo.
— Podemos ir. – Ela avisa. – Estou ansiosa para conhecer a Mary. –
Eu aponto a porta me tornando quase um mudo.
— Que tal a moto? Pode ser? – Ela apenas concorda movendo a
cabeça, eu sei que ela gosta e assim ficamos mais perto. Claire me envolve
a cintura quando nos acomodamos, ligo o motor e partimos.
Leva uns vinte minutos de estrada, Zack adora viver assim distante
da cidade, minha casa fica na entrada da floresta também, mas a alguns
quilômetros de distância da dele.
A propriedade está bem cuidada, iluminada, a oficina é uma
sensação, a escola de artes marciais da Abby também está bonita.
— Olha aquela cabana, que graça! – Claire se encanta pela casa do
Sam e eu espero que ele esteja lá, porque o garoto tem uma língua enorme.
Zack abre a porta, o velho cachorro vem nos receber estabanado,
Mary vem correndo logo atrás dele. Na porta, Zack e Abby de mãos dadas,
como é que ele faz isso de um jeito tão natural? Ele não era assim.
Afago o cachorro e Claire também alisa seus pelos, mas é com
Mary que ela se encanta, ajoelha para conhecer a pequena que eu aposto
que vai dizer alguma coisa imprópria porque puxou ao tio Sam.
— Você é muito linda, Mary.
— E você é a moça que o tio Jared está apaixonado? Papai está com
medo de ele fazer merda! – Claire ergue uma sobrancelha, eu engulo em
seco, bem-feito para mim, fui eu que ensinei a palavra, tudo que não presta
ela aprendeu comigo.
— Não tínhamos combinado que não seria a garota que fala coisas
feias na escola? – pergunto a ela.
— Sim, mas eu não falo não, tio Jared. – Ela explica, Claire se
levanta e seguimos os dois ao encontro de Zack e Abby enquanto Mary fica
pelo jardim brincando com o cachorro.
Abby a abraça assim que se aproximam, parece que elas criaram
uma conexão, vejo uma tristeza atravessar os olhos de Abby quando toca
seu rosto notando a marca.
— Vou fazer de você uma campeã, vai aprender a se defender,
Claire.
— Vai acertar em cheio o Jared quando ele aprontar alguma. – Sam
diz surgindo ao lado da esposa.
— Esse é o Sam, ele é como...
— Um bebezão adotado pelo casal, idade mental da Mary. – Eu
aviso e Sam parece simplesmente ignorar porque ele realmente não liga.
— Não vai me apresentar sua... – Zack não termina.
— Pode dizer namorada, Zack, não é palavrão. – Sam comunica.
— Ele foi convidado para jantar também? – Eu pergunto e Claire
me olha assustada.
— Não ligue, são como irmãos que se implicam. – Zack avisa. –
Disputam o meu amor. – Ele ri apertando a mão de Claire. – Seja bem-
vinda.
— Olha como ele é educado! – Resmungo irritado por não ser capaz
de agir como ele. Passo por todos entrando na casa, Judy está colocando
uma travessa sobre a mesa. – Oi Judy. Controle seu homem.
— Controle você! – Ela responde vindo conhecer Claire, Abby faz
as apresentações.
— A Judy é esposa do Sam, também está grávida. Judy, essa é a
namorada do Jared. – A apalavra namorada sai tão emoldurada que podia
ser pendurada na parede, eu caí em uma armadilha, já devia saber.
— Que casal lindo! – Judy nos sorri, faz um sinal como se pedisse
para nos juntarmos, mas é claro que eu finjo não notar. Se eu não abrir os
olhos, saio daqui com uma aliança no dedo.
— O jantar está quase pronto. – Abby avisa nos deixando para ir à
cozinha, Judy faz as honras e conversa com Claire.
— Enquanto elas conversam, vem ver uma moto nova que chegou
hoje na oficina. – Zack me convida e, claro que eu não caio nessa, mas a
ideia de fugir uns minutos me agrada.
— Já volto, Claire. – Ela nem me escuta no meio de algo sobre
bebês que conversa com Judy.
Seguimos para a oficina, outra vez penso no que Claire me disse, eu
nunca esclareci com Zack como me sentia, eu disse que tive que partir, que
voltei para buscá-lo, mas eu nunca disse que me sentia culpado.
— Eu podia passar horas inteiras imaginando de que maneira eu iria
matá-lo. – Zack me olha surpreso quando entramos na oficina que mais
parece um salão de beleza de tão limpo e organizado. Zack é a vergonha dos
mecânicos do mundo.
— Jared, eu sei, por que está falando disso agora? Já passou. – Ele
se acomoda em um sofá de couro preto, eu me sento numa poltrona, isso
está mesmo mais para salão do que oficina, esse negócio de famosos é um
saco, ele tem uma geladeira de marca de energético repleta de latinhas, café,
quadros nas paredes, que negócio mais engraçado.
— Isso aqui podia ser um centro cirúrgico. – Digo sem resistir. –
Essas celebridades que você recebe estão te deixando meio fresco.
— Ufa! Ainda é o Jared de sempre... Eu confesso que estava
começando a achar que tinha mudado. – Zack sorri, mas o riso morre. –
Aquilo é passado, ele se foi, nós vencemos, acabou, esquece.
— Fico pensando que te deixar foi errado, se eu tivesse aguentado
um pouco mais...
— Teria pego perpétua ou pena de morte por matar seu pai, e eu
teria ficado sozinho. – Ele me lembra.
— Estraguei sua vida quando fui embora e estraguei de novo
quando voltei e te levei comigo para o buraco.
— Está se dando muita importância, Jared! – Ele diz firme. Zack me
olha nos olhos, uma das poucas pessoas que me encara de frente, que não
tem medo de mim. – Eu estraguei minha vida sozinho, ou melhor, aquele
infeliz estragou as nossas vidas, mas não para sempre. Eu o segui porque
era minha família, era tudo que eu tinha e, que bom que voltou, eu estava
tonto, apavorado, aquele homem parecia ser a minha única ligação com o
mundo, ele era tudo que eu tinha e estava morto, eu só conhecia aquilo que
vivi sozinho com ele e, quando você voltou, eu respirei, eu agradeci não ser
sozinho, acho que eu não sei ser sozinho.
— Eu queria dizer, queria me desculpar. – Zack sorri, se ajeita outra
vez no sofá, me olha sem dizer nada por um instante.
— Que mulher poderosa! – Ele diz me fazendo querer sumir,
porque ele está certo, isso é a Claire me fazendo desejar ser melhor.
— Estão falando da X? – Sam entra na sala, se joga no chão ao lado
do sofá.
— Não, estamos falando da Claire. – Zack avisa.
— Ah! Jared está namorando! – Ele diz como se precisasse dizer em
voz alta para fazer sentido. – Está apaixonado?
— Sam, quem convidou você para a conversa?
— Ninguém, mas você tem planos de pegar conselhos amorosos
com o Zack? Porque ele não é nada bom nisso, se eu não tivesse ajudado...
— Quer falar sobre esse namoro? – Zack me pergunta.
— Sei lá, ela não está pronta, vocês entendem, para... transar.
— Ah! Decidiram esperar um pouco.
— Ela tem algum tipo de... trauma, não sei, ela não se abriu e tô
esperando. Não é fácil. Quer dizer, não vai ser fácil, eu fico evitando, mas é
difícil, a mulher é gata, acredita que morro de medo dela me pegar
olhando... você sabe...
— Para os peitos dela? São namorados, normal olhar peitos, bunda,
pernas... discretamente. Ela vai se sentir desejada, mulheres gostam disso. –
Sam explica se achando muito sabido. – Ela tem seios bonitos.
— Eu vou matar esse seu garoto! – Aviso ao Zack.
— O que? Você já viu, aposto que já olhou para a Judy também. Ela
está com uns peitões agora, eu digo a ela que está mais linda do que nunca,
em alguns meses, quando a barriga crescer muito, vai afetar a autoestima
dela, então eu sei que vou ter que elogiar muito.
— Ele não para! – Digo sem acreditar. Sam se senta.
— Sério, vou parar de brincar. – Ele assume um ar compenetrado. –
Se a Claire tem algum trauma e eu sei que tem, fui expulso da conversa
delas, então é sério. – Ele avisa. – Você precisa... você sabe, dar sinais,
mostrar seu interesse, os beijos, os carinhos, os elogios, tudo isso vai
deixando a Claire mais confiante.
— Ouviu quando eu disse que ela quer esperar?
— Espera! – Zack para de rir da situação e me olha. – Você sabe
que pode e deve beijar, trocar carinho, essas coisas sem terminar em sexo?
— Ela dorme em um quarto e eu no outro, hoje... bom, não rolou
nenhum contato.
— Mas aí você não mora com a namorada, mora com a sua irmã! –
Sam diz indignado. – Vocês são péssimos! Zack, temos que ajudá-lo.
— Cala a boca, Sam! – Eu digo com raiva porque ele tem razão.
Suspiro decidido a aceitar que, ao menos, o pirralho sabe ser um cara
normal, ele pode mesmo ajudar. – Vá em frente, dê conselhos!
— Beijo de bom dia, coisas como... “você está linda”, “ gosto
do jeito como prende os cabelos”, “ fica linda de vestido”, “senti sua
falta”... essa é boa para usar quando faz pouco tempo que se viram,
ela vai achar que não aguenta ficar longe dela.
— Eu não vou dizer essas coisas. Beijo de bom dia? Tipo, eu a
encontro na cozinha e vou até ela e dou um beijo? Sem razão? Só...
— Exatamente! – Zack concorda. – Você quer beijá-la, não é? Você
gosta do beijo.
— Claro, mas que merda, eu tô namorando a garota, o que acham
que eu sinto?
— Amor! – Sam só falta aplaudir.
— Foi redundante, garoto, cala a boca!
— É para eu ficar quieto ou dar conselhos?
— Deixa o Sam falar! – Zack pede, desconfio que adorando essa
situação vexatória.
— Eu vi vocês chegando, nem para pegar na mão da moça,
pareciam dois colegas, tem que demonstrar mais. A Claire vai pensar que
não gosta dela. – Ele declara e acho que já deve estar pensando.
— Honestamente, eu não sei se consigo, ela chegou na minha porta
com a mala, estava pronta para ir embora, eu sequestrei a mala dela, eu
coloquei para dentro e pensei em nunca mais deixá-la sair, foi difícil pedir
para ela ficar. Não sou bom com isso.
— Os Brow tem um jeito peculiar de convidar garotas para ficar,
também sequestrei a mochila da Abby. – Ele se lembra saudoso.
— Compra um presentinho para ela, diz que passou em frente à loja
e lembrou dela, garotas adoram isso.
Eu e Zack nos olhamos, é preciso admitir que na teoria o garoto não
é de todo mal, na prática também, já que conquistou a mulher que ama e
está feliz.
— Filme! – Ele parece comemorar pela lembrança. – Você a
convida para ver um filme na sala, apaga a luz, ficam abraçadinhos no sofá,
trocam uns beijos, ela vai ganhando confiança, intimidade, assim ela vai se
sentir pronta e superar o que ela precisa superar. Infalível, o filme vai ser
hoje, se a gente jantar cedo e você for embora, ganha uns pontos essa noite
mesmo. Ah! E vai segurar na mão dela quando estiverem saindo, demonstra
comprometimento, intimidade, é como... como cachorros marcando
território com xixi.
— Chega! – Eu fico de pé. – O garoto está comparando a Claire
com um poste! – Digo indignado, eles se erguem também. – Eu não vou sair
segurando a mão dela com vocês dois rindo de mim.
— Ei! – Zack toca meu ombro. – Eu sei como é, eu me sentia... ,
travado, eu não conseguia colocar em palavras, eu precisava demonstrar e
era um inferno, mas eu queria a Abby na minha vida e eu... eu me deixei
livre, não estou dizendo que é fácil, mas se você a ama...
— Amor? Não... eu... eu não sei... isso, vamos voltar, ela está lá
sozinha com as duas, vai...
— Amar é a melhor coisa do mundo. – Sam garante. – Não é
vergonha, é bonito, pode dizer, ninguém vai rir.
— Não vai parecer mais fraco. – Zack continua. – Quer saber?
Quando eu admiti que amava Abby e faria qualquer coisa por nós, por
nossa história, eu passei a me sentir invencível.
— Pessoal! – Mary vem correndo para minha salvação. – A comida
vai... esqueci o que era para falar. Espera, vou lá correndo.
— Não precisa, amorzinho! – Zack ergue a filha no colo. – Estamos
indo todos.
Quando entramos, estão as três com cara de choro, eu e eles nos
olhamos. Parece que a conversa aqui também foi íntima.
— Estão chorando? – Zack pergunta.
“Cebola”, Abby diz ao mesmo tempo que Judy apenas admite com
um simples, “Sim” , enquanto Claire apenas deixa seus olhos vagando pela
sala. Isso diz tudo sobre a personalidade das três.
— Todos para a mesa de jantar. – Abby indica evitando a conversa.
O jantar é bom, Claire se dá bem com as duas, elas riem juntas,
parecem tão íntimas que trocam olhares cheios de significados e parece que
todas entendem.
Olho para Claire sentada ao meu lado e, em um impulso, toco sua
coxa, é mais um tipo de carinho, dura um minuto, mas eu sinto que ela
reage de um jeito bom.
Quando nos despedimos, eu seguro sua mão e caminhamos em
direção à moto, eu posso sentir o riso de Sam e Zack nas minhas costas,
mas estranhamente, segurar a mão dela tem um poder maior sobre mim. O
riso deles perde a importância.
Capítulo 16
Claire

Abby tinha se mostrado uma pessoa muito firme e generosa no


nosso primeiro encontro, mas eu não esperava uma recepção tão carinhosa
de todos. Mary é a garotinha mais fofa e especial que eu já conheci, esperta,
alegre e desinibida.
Judy também foi simpática, tivemos momentos especiais reunidas
as três, algo que eu não esperava, acho que nunca tive amigas assim, passei
tanto tempo envolvida em cuidar da minha mãe que minhas amizades eram,
de modo geral, superficiais, mas senti que elas querem mais do que trocar
gentilezas e falas sobre amabilidades.
A história de vida da Abby me rendeu lágrimas e um sentimento de
intimidade, agora sabemos das dores uma da outra, e pude sentir que ela me
entende, isso parece que tira um peso das minhas costas.
Foi intenso, ao mesmo tempo leve, alegre, comida boa, conversa
agradável, gente feliz, eu precisava dessa sensação. Judy acha que devo me
abrir com Jared, que ele pode entender, nem sei se me importo com o fato
de ele entender ou não, eu não me aprofundei nisso, o que me barra são as
palavras, contar a ele, me abrir antes mesmo de pensar sobre a resposta dele
a tudo isso, falar me trava.
Talvez ela esteja mesmo certa, ele fica confuso em como lidar
comigo, porque ele não sabe o que me bloqueia, embora tenha sido perfeito,
também me fez pensar, eu não quero ser a colega que divide a casa com ele
e, quando ele mal se aproxima, é assim que me sinto, mas o que posso
esperar dele se não digo o que me bloqueia?
Agora que ele se abriu, que contou sobre a sua própria vida, eu sei
que Jared é um homem com muitas marcas, com medo de rejeição, eu nem
consigo imaginar ser tratado por um pai como ele foi, as marcas em seu
corpo, anos e anos de abuso físico e emocional, prisão, tanta violência e,
ainda assim, ele pode ter esse olhar cheio de carinho, pedindo por algo que
quero oferecer a ele, mas não sei como.
Jared anseia por uma vida como a do primo, eu senti isso, vi como
ele tinha um olhar atento à relação do casal, ao modo como eles cuidam da
pequena Mary. Ele quer isso e eu quero isso, mas eu não sei como dizer e
acho que ele nunca vai dizer, porque Jared não consegue, está cheio de suas
marcas, seus traumas.
Somos dois corações quebrados tentando juntar cacos e construir
algo, alguém terá que ser forte, alguém terá que tomar a frente e penso que
eu posso juntar forças para isso, eu sei que sim, porque eu estou no controle
dos meus sentimentos. Eu já sei o que sinto por ele, eu já sei com certeza a
vida que quero, eu sei o que me mata por dentro e posso lidar com isso.
Abby disse que Zack foi mais forte, que ele a conquistou e mostrou
força e não deixou que ela fugisse, que ele estava lá nas horas ruins, quem
sabe eu posso fazer esse papel?
Quando ele segura minha mão na frente de todos na hora de sair,
essa certeza fica tão mais clara, eu posso lutar por nós dois, quebrar as
barreiras, eu posso ser a pessoa que abre os caminhos, um dia, quem sabe, a
gente ride tudo isso.
O vento sopra gelado enquanto ele guia a moto para casa, ainda não
me sinto em casa, mas eu sei que um dia posso me sentir, pensei que devia
ficar um tempo e depois encontrar um lugar, deixar Jared livre, mas agora
sinto que não precisa ser assim, que não precisa ser um arranjo e podemos
dar certo.
Talvez ele nunca faça uma declaração de amor com palavras, mas
ele demonstra no modo como age comigo, ele tenta ser gentil, ele cuida do
que diz para não ser grosseiro, ele veio de um mundo muito diferente, mas
está tentando se adaptar a uma nova vida, ele não quer mais ser quem era,
não quer mais deixar a raiva guiar seus passos e está se dando muito bem
nisso, acho que ele é esse homem, não aquele que me contou ser, aquele era
apenas fruto da dor.
Jared estaciona na frente da casa, pega minha mão mais uma vez
para andar uns passos para dentro, acho que Zack deve ter digo alguma
coisa para ele e eu estou gostando disso.
— Ainda é cedo, pensei em assistir um filme, o que acha? – Ele me
pergunta quando entramos na sala.
— Acho ótimo, não estou com nada de sono. – Eu aviso animada
com a possibilidade de passar mais tempo com ele. – Mary é tão linda! –
Conto tirando o casaco e pendurando ao lado do dele.
— Zack está indo bem com essa coisa de ser pai, eu nunca pensei,
mas quer saber, acho mais estranho ainda a Abby.
— Ela me contou a história dela. – Digo me sentando no sofá
enquanto ele está de pé, ligando a televisão com o controle remoto.
— Contou? – Ele me olha surpreso. – Acho que ela gosta de você,
Abby odeia falar sobre tudo aquilo.
— Um trauma terrível. – Digo quando ele se senta ao meu lado, é
um alívio, achei que ele sentaria na poltrona.
— Gostou de conhecê-los? – Ele pergunta e me viro para ficarmos
de frente um para o outro. Jared toca meus cabelos, depois se afasta, ele
simplesmente não sabe como agir.
— Sim. Sinto que posso ser amiga delas e o Zack, dá para ver como
ele gosta de você.
— Somos irmãos, é assim que me sinto. Falei com ele. – Jared
conta sem conseguir sustentar meu olhar. Ele brinca com meus dedos que
descansam sobre seu joelho. – Só... falei sobre o passado, Zack não se
sente... ele não se importa, quer dizer, ele se importa, claro, mas não com
algo que eu tenha feito, ele superou tudo isso e eu tenho que fazer o mesmo.
— Que bom que conseguiu se abrir. – Digo com vergonha de não
ter feito o mesmo, incentivei Jared a se abrir, mas calo sobre algo que afeta
nós dois.
— Não é fácil, mas depois dá um alívio.
— Sim. Com certeza. – Agora sou eu a desviar os olhos.
— Se tiver algo que quiser me contar... – Ele deixa no ar. Eu olho
para ele, tenho tanto a dizer, mas é tão difícil, protelar parece a melhor
escolha, mas não quero fazer isso.
— Jared... eu vivi coisas que foram dolorosas, eu nem sei se
consigo falar sobre isso com você.
— Eu sei, perdeu a mãe e, pelo que entendi, eram próximas,
imagino que a doença dela...
— Não é sobre a minha mãe. Eu nunca me senti culpada ou
envergonhada sobre isso, eu fiz tudo que podia e muito mais, não carrego
arrependimentos sobre isso, é sobre mim, sobre como eu sou uma idiota, fui
burra, inconsequente.
— Ei! – Ele segura meu rosto entre suas mãos me obrigando a olhar
para ele. – Sabe quantas vezes eu fui burro e inconsequente? Olha tudo que
me aconteceu por causa disso. Tudo bem, eu não vou julgar você se é esse o
seu medo.
— Não é, quer dizer, não é o principal, é que eu nem sei como
contar.
— Estou aqui, não precisa dizer nada se não quiser. – Ele é
generoso comigo, mais do que mereço, eu o deixo no escuro, me aproximo
beijando seus lábios, um beijo leve, eu quis tanto sentir o seu beijo de novo,
mas Jared está tão distante, meus dedos correm por seu rosto, sua expressão
suaviza no mesmo instante.
— Você é especial, Jared, de um jeito que eu nem sei se
compreende.
— Não, eu não sou, estou longe disso. – Ele me garante.
— Minha mãe se internou para uma cirurgia. – Tomo fôlego para
tentar me abrir com ele. – Nossa vida financeira estava um desastre, eu
estava completamente falida, gastei todo dinheiro que consegui juntar
pagando a cirurgia. Estava atordoada e com medo, o médico abriu, fechou,
não havia nada a ser feito, no processo, ela piorou muito.
— Sinto muito. – Ele diz de modo genuíno.
— Sei que sim. – Suspiro olhando para sua mão presa a minha. – Eu
parecia um zumbi, andava, falava, mas eu nem sabia direito o que estava
fazendo. Um policial cruzou meu caminho algumas vezes nesse período,
nessas horas de confusão, foi gentil, um homem com uniforme da lei, o que
se espera senão confiança e proteção?
— Claire... – Ele se cala, acho que é um homem inteligente e eu
poderia simplesmente parar e ele entenderia, mas sinto que devo continuar.
— Enterrei minha mãe, fiquei tão atordoada, foi tão doloroso, eu
não tinha nada, não tinha dinheiro, precisava entregar a casa... Eu saí pelas
ruas de Atlanta caminhando, esgotei minhas forças e, quando estava
voltando, o encontrei mais uma vez, agora eu nem sei quanto desses
encontros foram mesmo coincidência.
Ele aperta minha mão, leva até os lábios, beija como um tipo de
aviso que está tudo bem, que está comigo.
— O homem me acompanhou até em casa, estava sem o uniforme,
de folga, eu não gostei, mas não achei problema. Na porta de casa, ele disse
que queria água, não o convidei para entrar, estava incomodada, mas fui tão
idiota, achei que era falta de educação fechar a porta na cara dele. – Uma
onda de raiva e dor me toma, odeio me lembrar, odeio como tudo retorna. –
Quando me dei conta, ele estava de pé, na minha cozinha.
— Canalha! – A voz dele soa cheia de rancor, ódio puro, suas mãos
esfriam mesmo presas as minhas, seu rosto perde a cor e deixo de olhar para
ele porque sinto uma agonia me dominar.
— Jared, eu tentei lutar, mas ele estava armado, eu não consegui me
defender. Quis tanto morrer, mas não morri! – Meus soluços o atingem em
cheio, ele me abraça, eu choro enquanto ele se mantém em silêncio, talvez
apenas digerindo tudo que contei, a dor parece que me toma quase como
que naquele dia, mas os braços dele em torno de mim apagam um pouco do
sofrimento.
— Denunciou o monstro? – Nego com um movimento de cabeça
porque eu não consigo falar. – Podemos fazer se quiser, eu vou com você
até Atlanta, se cruzar com ele eu posso...
— Não! – Digo me afastando. – Jared, eu não quero fazer nada, eu
quero esquecer, eu não posso passar por isso de novo, olhar para ele.
— Tudo bem! Tudo bem. Qual o nome dele...
— Você não vai fazer nada, eu não sei o nome dele, eu só vi o
sobrenome preso à roupa e eu não quero que você acabe preso de novo, eu
não quero que me defenda, eu quero você aqui comigo.
— Eu não consigo! – Ele se levanta, anda pela sala. Esfrega os
cabelos, trava os punhos, lida com a sua revolta. – Maldito! Ele não pode se
safar, você tem que ir até lá.
Abraço os joelhos, escondo o rosto arrependida de ter contado, eu
não quero fazer nada, eu só quero esquecer. Meus soluços se tornam
incontroláveis até que sinto Jared me envolver em seus braços, ele me
aperta de encontro a seu peito, é acolhedor.
— Desculpe, desculpe... Eu não tenho que te dizer o que fazer, eu
sei o que está sentindo, eu nunca tive forças para denunciar meu pai. Está
tudo bem, não precisa chorar, você não teve culpa, estava sozinha, tinha
vivido um momento doloroso, confiou em um policial, qualquer um
confiaria. Está tudo bem.
Suas palavras me confortam, ele acredita em mim, não me
culpa, ninguém me culpa, Judy disse, Abby disse e, agora ele, todos
entendem enquanto eu fico me ferindo, tentando achar uma maneira de
voltar no tempo e fazer diferente, mas eu não podia saber, eu não tinha
como evitar, eles estão certos.
A dor vai sendo aplacada, as lágrimas vão diminuindo e um vazio
bom vai se instalando em meu peito. Até que, finalmente, não há mais nada
além de esgotamento e vazio.
Ele continua a me envolver em seus braços, até que finalmente
encontro forças para me afastar e procurar seus olhos, tem dor neles, a
mesma que a minha, ele também sofreu violência, ainda que de modo
diferente, Jared sabe como me sinto ou, ao menos, imagina.
Seus dedos correm por meu rosto de modo suave, agora secando a
pele marcada por lágrimas que já se foram. Eu respiro fundo, fecho os olhos
aproveitando seu toque, nada do que vivi se parece com isso, quando ele me
toca o que sinto é bem diferente, eu não tenho medo de estar com ele.
— Estou bem, foi bom contar. – Explico a ele. – Eu não te confundo
com aquele monstro.
— Sei que não.
— Gosto quando me toca, eu sei que em breve tudo isso vai passar,
confio em você, Jared.
— Não temos pressa de nada, Claire, vamos aprendendo, eu não sou
bom com essa coisa toda de ter um relacionamento, parece que estou
distante, mas é falta de jeito.
— Tudo bem! – Digo voltando para seus braços. – Acho que eu não
quero mais voltar a falar naquilo, só esquecer.
— Certo, não toco mais no assunto, a menos que você queira, e vai
ser sempre do seu jeito.
— Obrigada.
— Quer deitar-se? Isso foi...
— Não! Quero ficar aqui, assistir ao filme como combinamos. –
Odeio a ideia de ficar longe dele. Jared me envolve em seu abraço, muda de
canal e um filme começa, tento me concentrar na televisão, mas é
complicado estando assim em seus braços, sentindo sua respiração, seu
cheiro. Mesmo assim, eu não me movo, por duas horas, ficamos abraçados
na sala, em silêncio, fingindo assistir a um filme, mas eu sei que nenhum
dos dois está prestando atenção, quando os créditos começam a subir, não
há mais desculpas e eu me afasto.
— Hora de dormir! – Ele diz num meio-sorriso.
— Sim. Amanhã eu pensei em mexer um pouco nas coisas aqui,
colocar mais em ordem, o que acha?
— Que é boa nisso, vai ficar perfeito. – Eu o abraço, é um tipo de
abraço de gratidão e, quando me afasto um pouco, ele me beija, um beijo
carinhoso, prolongado, um modo de estabelecer um pouco mais de
intimidade, mas é o primeiro a se afastar e ficar de pé. – Boa noite! Eu vou
trancar tudo e me deitar, te vejo no café da manhã.
Sem escolha, eu me despeço e vou para cama. Para minha total
surpresa, o sono vem com facilidade, eu adormeço em uma noite tranquila.
Pela manhã, desperto leve, eu não fazia ideia que contar a ele me faria tão
bem.
Quando Jared caminha até mim pela manhã e me cumprimenta com
um beijo nos lábios de bom dia, eu finjo normalidade, contar tudo fez bem a
ele também, acho que agora ele entende meus medos e vai saber lidar com
ele.
Nos dias que se seguem, uma rotina simples se instala, eu faço café
da manhã para nós dois, fico ajeitando coisas na casa, ganhando espaço, me
acostumando com o ambiente, criando confiança, depois que almoçamos, e
sempre sou eu que cozinho, fico durante a tarde com ele na loja, aprendo
sobre tudo, o ajudo com as contas da loja, ele não gosta dessa parte. Depois
vou um pouco antes para casa, preparo nosso jantar, me arrumo um pouco e
o espero. Ele chega, me beija, sobe para um banho, jantamos e ficamos na
sala, assistindo a filmes, trocando beijos, nunca passa disso, mesmo que
meu corpo pareça ansiar por mais, ele não se permite avançar.
No domingo, ficamos na casa de Abby. Mary é realmente uma
criança linda, Jared adora motos e, às vezes, eles ficam horas na oficina. Ao
anoitecer, voltamos os dois para casa e uma nova semana começa.
As coisas que vivi quase não tomam mais a minha mente e, quando
acontece, é porque estou sozinha. Nos braços dele, tudo que penso é no
quanto quero ir além, me deixar sentir seu calor, seu toque, me libertar das
amarras, amanhecer em seus braços, dormir em seu peito.
Abby acha que eu preciso dar sinais, que Jared tem muitos defeitos,
embora eu não enxergue nenhum deles, ela acha que ele tem, mas que
jamais vai ultrapassar barreiras que eu criei. Ele vai respeitar isso e, se eu
não mostrar, nunca vai saber, são quatro semanas vivendo em sua casa,
aprendendo a me sentir parte dele, dona da nossa história, sua namorada,
está na hora de mostrar, é só arrumar coragem.
Capítulo 17
Jared

Ainda tenho arrepios só de pensar no que aconteceu a ela, ainda


tenho vontade de esmagar aquele maldito, mas afasto os pensamentos, não
quero que ela se magoe, as coisas estão acontecendo, eu posso ver nos olhos
dela como está mais feliz, mais leve e mais confiante.
Claire tem uma doçura natural, um jeito delicado de me olhar, sorrir
e eu sempre me surpreendo com o jeito como ela se esforça para cuidar da
casa, me ajudar no trabalho, cozinhar... fico pensando se é isso que ela quer,
se está feliz. Ainda vamos poder falar sobre isso, mas sinto que tudo entre
nós é ainda muito frágil.
Eu tenho medo de levantar qualquer assunto que a faça se sentir
indesejada, deixo que ela faça o que quer, mesmo que às vezes eu tenha
medo de ser o jeito que ela achou de pagar pela moradia, espero que não
seja realmente isso, mas quando tiver chance, vou dizer a ela.
O problema é que não sei fazer rodeios, não sei ser delicado, sou
direito e isso pode acabar magoando Claire, estamos avançando, algum dia,
e eu realmente não sei quando, tudo vai mudar.
Lidar com o que sinto é um inferno, eu a desejo, saber que ela
dorme sozinha no quarto ao lado do meu, me despedir todas as noites e ir
para cama sozinho é uma luta, mas jamais vou avançar, ela disse que não
me compara ao monstro e, no que depender de mim, nunca vai acontecer.
— Sozinho? – Zack pergunta entrando na loja no finalzinho da
tarde.
— Sim, Claire não veio aqui hoje o dia todo. – Aviso me dando
conta que ela está em casa e sempre vem depois do almoço comigo. Ficou
em casa dizendo que vinha depois e não veio.
— Está criando coisas na cabeça? – Ele diz encostando no balcão.
Balanço a cabeça negando.
— Mas é estranho, ela sempre vem.
— Como vocês estão?
— Bem, na verdade... estamos estacionados. – Zack ri. – Não é
engraçado.
— É um pouco, eu não consigo te ver assim, entende. Esse não é
você.
— Ajuda muito quando diz isso! – Reclamo.
— Eu sempre achei que nada nem ninguém poderia intimidar Jared
Brow, mas ela te deixa perdidinho.
— Sim, ela me deixa. Você sabe o que aconteceu com ela? – Travo
os pulsos imediatamente.
— Cara, você precisa manter o controle.
— Eu sei, mas você me conhece, sabe quem eu sou, não fazer nada
me esmaga.
— É o que ela precisa no momento, se algum dia, ela decidir que
quer fazer outra coisa, você apoia, mas acabar atrás das grades por causa
dessa história, só vai destruir Claire por completo, vai aniquilar as chances
de ela superar.
— Eu já entendi isso. – Aviso revirando os olhos, Zack sempre foi a
voz da razão na minha cabeça, é sempre o ponto de equilíbrio, mas agora
ele está realmente em uma sensatez irritante. – Como está a Abby?
— Menino! – Os olhos dele cintilam e agora sei o que veio fazer
aqui. – Vamos ter um menino!
— Uau! Isso é incrível, que bom! – Apertamos as mãos, ele está
mesmo radiante.
— Ele já tem um nome?
— Não, estamos trabalhando nisso, foi tão emocionante... Ela está
na casa de uma bordadeira, uma senhora que a ajudou com as roupinhas da
Mary, está lá olhando roupinhas e fazendo encomendas.
— E o pirralho, já sabe o que vai ser?
— Sam e Judy decidiram pela surpresa. Eu não suportaria esperar,
mas eles querem assim! – Zack dá de ombros. – E você?
— O que?
— Filhos, pedido de casamento, essas coisas.
— Não vai rolar, está maluco? Filho? Eu... depois de tudo... de
todas aquelas coisas, uma criança... não, de jeito nenhum.
— Calma, tudo bem, se não quer... mas talvez devesse conversar
com a Claire, talvez ela queira.
— Nós nunca nem... você sabe, transamos, já quer que eu diga a ela
que seria uma péssima ideia ter filhos?
— Abby acha que estão prontos, que está sendo muito... eu não
lembro o termo que ela usou, mas ela acha que se você der sinais... você
sabe, sedução.
— Eu... – É tão difícil falar disso, coço a cabeça, olho em torno, a
loja está vazia, Claire não veio, Zack é como um irmão e eu não tenho mais
ninguém para falar sobre isso.
— Jared, se não falar comigo, eu não consigo ajudar.
— Eu nunca estive com alguém como ela. Você sabe, delicada,
inexperiente... Sempre foi... Pauleira! – Ele diz depois de um suspiro.
— Está com medo de não saber agir com paciência e cuidado com
ela?
— Cara, eu acho que eu não sei fazer isso. Uma coisa é falar umas
sacanagens no ouvido da mulher e outra é ser... todo... todo... Ah! Sei lá! –
Ele ri, mas logo se controla.
— Você vai saber sim, porque está apaixonado por ela, não precisa
dizer a ela, mas mostre, quando chegar a hora, você deixa o seu coração
guiar.
— Tá falando sério? Quando eu digo que não te reconheço mais...
Zack, sou eu, o Jared! Deixar o coração guiar?
— Tá bom, peguei pesado! – Ele reconhece. – Pense nela, no prazer
dela, pense... faz tudo que quer e sabe fazer, só que bem devagar.
— Certo, posso tentar desse jeito. – Digo um tanto intimidado com
a ideia.
— Tenho que ir, Claire quer que a gente almoce aqui na sua casa
domingo, não era sem tempo convidar a família.
— Ela me disse, está empolgada para receber vocês. Eu estou
parecendo um idiota patético como esses homens de classe média
suburbanos, não estou?
— Está! – Zack responde com honestidade, depois aperta minha
mão. – Tenho que ir. Jared, não tem nada demais nisso, eu não sei você, mas
quando a gente vivia aquela vida infernal, ou depois, quando andávamos
por aí ridicularizando essas pessoas, as pessoas comuns, essas em que nos
tornamos, no fundo, eu os invejava e agora posso ser como eles, eu sou
como eles e você também.
Sim, no fundo, mesmo que eu não fosse capaz de admitir nem para
mim mesmo, eu queria um pouco daquilo, dos carros de família, dos
almoços de domingo, do cotidiano de trabalhadores comuns e, agora, eu sou
um deles, não devia me envergonhar.
— Vejo você domingo! – Ele me deixa sozinho e passo o finalzinho
do dia pensando em tudo que ele disse.
Volto para casa depois de fechar a loja, Claire vem da cozinha me
receber e eu fico surpreso com o vestido bonito e os cabelos escovados, o
cheiro da comida está divino e a mesa foi posta com capricho, tem até um
arranjo de flores.
— Está tudo bem? Não apareceu e está tudo... bonito, você também,
está linda.
— É que faz um mês que pediu para namorar comigo. – O rosto
dela fica vermelho e eu só consigo pensar em como fica perfeita, mesmo
que eu não me lembre de ter feito realmente um pedido, foi mais uma
confirmação, mas eu devia ter feito, então, podemos comemorar como se
tivesse feito.
— Eu devia... – Olho em torno, não pensei em nada, devia ter
preparado alguma coisa. – Devia ter comprado um presente.
— Não! – Ela diz com a mão em meu peito. – Está aqui comigo, só
quis... fazer algo especial, mas não precisa se preocupar com nada disso,
tenho tudo só de estarmos juntos aqui.
Queria ser capaz de dizer coisas assim, mas não sei como, então eu
me curvo para beijá-la. O beijo ganha intensidade, mas ela me afasta com
delicadeza.
— Fiz um jantar especial, a Judy me ensinou uma receita antiga da
família dela.
— Legal! Vou tomar um banho antes, o que acha? Dá tempo?
— Claro. – Ela está tão bonita, parece que vou ter uma noite de cão
controlando meus desejos. Não demoro a retornar, depois de tudo, não
quero fazê-la me esperar. A comida está servida, uma carne bonita com
legumes e um caldo como entrada, ela caprichou.
A mesa está toda enfeitada, eu nem sei como me comportar com
tanto cuidado e arrumação, mas tento usar o guardanapo e mastigar de boca
fechada, elogio tanto que acho que ultrapasso os limites, ela ri achando
graça dos meus esforços.
Eu a ajudo a lavar os pratos, depois de todo esforço, é o mínimo, ela
tem mania de deixar sempre tudo arrumadinho e foi bom descobrir que não
é a única, parece que Zack tem o mesmo problema: louças não podem ficar
secando sozinhas, elas têm que sair da pia para o armário e não é nada
demais ajudar.
— Quer ouvir música? – Tento algo diferente de sentar no sofá e ver
TV, ela se esforçou, eu posso me esforçar também.
— Parece bom... – Ela diz indo até a janela, fica olhando a noite
ainda fria de fim de inverno, eu coloco uma música romântica, vou até ela,
Claire me sorri.
— Foi perfeito! – Digo atordoado com sua beleza, essa noite ela
está simplesmente deslumbrante.
— Obrigada, Jared, por tudo, por esse mês inesquecível.
— Gosto de... de tudo! – Cara idiota que não sabe dizer uma coisa
bonita. Eu resolvo mostrar, meus lábios procuram os dela, Claire
corresponde, suas mãos percorrem meu peito num caminho de fogo,
mergulham em meus cabelos e eu quero mais do que beijos. É difícil me
manter firme e distante, meu corpo precisa dela. — Confia em mim, não é?
Não vamos fazer nada até se sentir pronta. - Só quero ter Claire comigo.
— Eu estou pronta. – Ela diz com firmeza, seus olhos a me
encararem, não parece ter medo, tampouco dúvida, me pega de surpresa, me
faz estremecer, demoro a compreender.
— Você quer? Claire, não pode fazer nada que não queira. – Deixo
claro que ela não tem que fazer nada que não esteja pronta.
— Só tenho medo de não saber como fazer, eu nunca... você
entende? – Isso só torna o que aquele monstro fez ainda pior, mas domino
meu asco por ele rapidamente, não quero que nenhuma lembrança invada
sua mente agora, é bom saber que ela tem essas inseguranças, que são tão
parecidas com as minhas.
— Eu também tenho medo de não saber como fazer, nunca estive
com alguém assim especial. – Admito e isso parece causar um tipo de
tranquilidade que fica vívida em seus olhos, ela gosta de ouvir. - Vamos só
deixar as coisas irem acontecendo.
Ela sempre presta tanta atenção em mim, os olhos são tão limpos e
honestos. Claire sempre diz tudo que sente e gosto disso, não sei ser assim.
Um dia aprendo.
— Quando fico perto de você as coisas ficam mais fáceis.
— Vou ficar perto, Claire. – Meus dedos correm por suas costas,
sobem em direção ao seu rosto, eu a deixei uma vez e ela acabou ferida. –
Eu fui atrás de você, voltei pronto para te caçar e estava na minha porta, na
varanda e eu soube que não te deixaria ir embora, eu queria você para mim.
— Você me tem. Quando estou com você, me sinto segura e
confiante.
— Ver você feliz é tudo que eu quero.
Os olhos dela marejam enquanto um sorriso se forma. Ela não teme
meu excesso, confia em mim, é a garota mais perfeita que já vi. Nunca vou
me acostumar que é minha.
Não espero mais, deixo que as coisas aconteçam. Dei a ela as
garantias que ela merece. As certezas que precisa e, agora, só quero
confirmar isso com minhas atitudes.
Eu a levo pela mão em direção à escada, meu coração
descompassado de um jeito que me faz sentir um menino, como se fosse a
primeira vez também para mim, como se tudo que vivi antes estivesse
apagado.
Claire também parece estar tensa, mas não a ponto de me repelir,
como eu, acho que ela sente que é impossível resistir, eu olho em seus
olhos, nos lindos olhos que me roubaram a dor, os olhos que preenchem
meus dias e me lembro de Zack dizendo para deixar o coração falar, e quero
isso, agora faz sentido.
Procuro ser cuidadoso de um modo que nunca pensei que pudesse
ser. Eu me preocupo com ela, com seu corpo e suas emoções e gosto de
fazer isso. Beijá-la com cuidado, não ter pressa em descobrir sua pele
delicada. Deixar que vá se acostumando e se soltando.
Sem pressa e como se nada mais existisse, vou descobrindo Claire e
deixando que faça o mesmo comigo. Quando nos deitamos e não tem mais
nada entre minha pele e a dela, eu sei que ela está bem.
Seus olhos me mostram isso e gosto deles presos aos meus. A
garota tímida sai de cena um pouco e sinto sua curiosidade e interesse, e
isso é incrível e me faz vivo.
— Toda perfeitinha. – Ela sorri, volto a beijá-la, tocar sua pele,
deslizar meus dedos pela maciez do seu corpo, aspirar seu perfume e sentir
o seu sabor. Ela deixa escapar gemidos e isso me acende a ponto de não
poder mais esperar. Nunca pensei que o desejo de uma mulher fosse mexer
desse modo comigo.
— Eu quero ser sua, Jared. Estou pronta, não tenho medo. – Sua
confissão é tudo que preciso para, finalmente, me sentir livre, então eu
deixo acontecer, sem pressa, aos poucos, sentindo seu olhar, ela afunda os
dedos em meus cabelos, depois suas mãos descem por minhas costas e
gosto de suas mãos em mim. Gosto de cada parte dela que conheci.
Tudo fica intenso de um modo que nunca aconteceu antes, me sinto
parte dela, como se fôssemos um só e tudo isso é tão novo para mim quanto
para ela.
Vai muito além do que meu corpo quer. Claire me deu isso e, talvez,
nem desconfie, é meu coração, minha alma envolvida nesse instante.
— Jared. – Meu nome sai dos seus lábios antes deles beijarem
minha pele e me sinto importante pela primeira vez, sou eu, é a mim que ela
deseja, sou eu que a faz feliz, não é um corpo, não é uma aventura, ela se
importa, ela me quer. Eu a amo e um dia vou dizer.
É meu último pensamento claro antes de tudo me abandonar e só
restarem as reações do meu corpo.
Depois é só um silêncio acolhedor, a calmaria depois da tempestade.
Mesmo assim, ainda quero estar ali, com ela em meus braços, com seus
olhos presos aos meus.
Claire toca meu rosto com seus dedos delicados, ela é toda
feminina.
— Está bem? – Ela tampa meus lábios com os dedos. Sorri de
modo tranquilo.
— Foi tão lindo, eu estou bem. – Ela cora. Algum pensamento
produz isso e sei que vai dizer. – Nada relacionado a dor. Senti um monte de
coisas que nem sabia que existia.
Beijo seus lábios de leve. Deito-me trazendo-a para mim.
— Eu também. Então estamos quites. Nunca mais me deito nessa
cama sem você! – Aviso a ela assistindo o cintilar de seus olhos.
— Esse vai ser nosso quarto? Quer dizer... Vou ficar sempre aqui?
Nessa cama com você? – Às vezes ela é tão delicada e doce que quero
beijá-la para sempre.
— O plano é esse, a menos que brigue comigo e me mande para o
sofá.
— Nunca! – Ela sorri.
— Bom saber. Quando eu fizer uma tolice tem que me dizer, talvez
eu faça algumas. – Meus dedos correm por sua pele enquanto ela desenha
meu rosto com dedos delicados.
— Com outra mulher você quer dizer? – Os olhos ficam tristes, me
faz sorrir. Essa é a única tolice que ela não precisa se preocupar.
— Nunca, Claire. Isso eu posso prometer sem medo, nunca vai
acontecer, mas eu não sei mostrar sentimentos, eu fico irritado e explodo na
hora errada. Essas coisas.
— Isso eu posso lidar. Jared, posso contar para a Abby e a Judy?
— Deve, e rápido, acho que as duas querem me roubar você.
— Não podem, ninguém pode. Não quero mais ninguém nunca.
Quero cuidar de você.
— Eu não preciso ser cuidado, Claire. – Não gosto muito disso, de
parecer que preciso de mimos e cuidados, acho que eu nem sei lidar com
isso.
— Só pode cuidar de mim se me deixar cuidar de você. – Ela avisa
se aconchegando em meus braços.
— O que quer dizer com cuidar de mim?
— O que garotas apaixonadas fazem: cuidar do seu coração, estar
ao seu lado e te fazer sorrir nos dias que estiver triste, uma sopa se estiver
doente, atenção, te ouvir, ser... você sabe, sua parceira.
— Certo, não parece ruim. – Digo fazendo Claire rir.
— Amanhã vou acordar assim, abraçada com você. Pensar que eu
quase fui embora.
— Não gosto nem de pensar. Eu teria que caçar você e faria, pode
apostar.
Ela fica surpresa, mas não me restaria uma alternativa senão caçar
Claire, eu me apaixonei e sei que nunca mais vou sentir isso por ninguém.
Capítulo 18
Claire

Acordo bem cedo, não estou em seus braços como achei que seria.
Jared dorme tranquilo espalhado pela cama e sorrio me lembrando da noite
perfeita, sinto até um pouco de vergonha. Soltei-me de um jeito que nem
imaginava.
Somos namorados, moro aqui, vamos viver juntos, nunca pensei
que podia acontecer comigo. Ele me entende, me aceita, sabe do que me
aconteceu e não fez nenhum julgamento negativo, sua história também não
é fácil, eu sei mesmo ele não dizendo. Entendo isso, se não gosto de falar da
minha dor entendo que ele não queira me falar da dele.
Sinto ele se mover na cama, tatear o espaço entre nós, me
procurando, e me lembro que disse que me caçaria se eu tivesse ido embora.
Acho que ele faria isso.
Sem abrir os olhos, ele me encontra e me puxa para ele. Meu corpo
se cola ao dele de um jeito que faz meu sangue ferver e nem sabia que só
com um toque como aquele eu podia ficar desejando mais.
Seu rosto afunda em meu pescoço e ele desce os lábios por minhas
costas e aquilo é incrível e só quero que seja assim toda manhã. Sua mão
espalma em minha cintura e desce por minha coxa e meu corpo desperta
para ele. Viro-me e, só então, ele abre os olhos.
— Toda perfeitinha! – Jared diz antes de cobrir meu corpo com o
seu e nós dois voltarmos para aquele lugar alucinante em que estivemos
ontem. Depois ficamos quietos nos braços um do outro e posso ficar assim
para sempre.
— Bom dia. – Eu digo sorrindo, não sei como vou parar de sorrir.
— Isso vai ser mesmo um problema. – Ele diz comigo deitada em
seu peito.
— O que? – Pergunto preocupada, estava tão feliz.
— Sair da cama e trabalhar, viver. – Eu me sinto aliviada e ele me
abraça mais quando percebe que me assustou. – É toda perfeitinha. Agora
precisa ser forte e me empurrar da cama.
Nego me abraçando a ele. Fico de olhos fechados, sentido seus
braços me envolvendo e só consigo ficar feliz. Depois me lembro que ele
tem uma loja para cuidar e preciso ser forte e deixar a cama.
— Você venceu. Eu vou levantar e tomar banho.
Beijo seu peito e corro para o banheiro antes que desista. Saio
enrolada numa toalha porque minhas roupas ainda estão no outro quarto, ele
sorri deitado ainda. Sorrio de volta, um tanto tímida.
A gente se gosta e essas coisas vão desaparecer com o tempo. Ele
vai para o chuveiro e deixo o quarto apressada com vergonha de assisti-lo
sair nu do banheiro.
Vou me vestir pensando em mudar minhas coisas para o seu quarto,
cuidar dele, da casa... eu sei que mulheres hoje querem muito mais do que
isso, não ligo se vou parecer uma boba antiquada, mas no fundo, o que eu
quero é exatamente isso, ser a sua esposa, cuidar das nossas coisas, dar a ela
o sentido de lar que nunca teve e ser feliz.
Eu o sinto me envolver pelas costas e beijar meu pescoço quando
chega à cozinha, meu corpo inteiro se arrepia, é uma sensação tão nova que
meu coração descompassa.
— Vamos sair e tomar café em algum lugar, vem. – Ele diz me
puxando, não me quer na cozinha e eu aceito. Sigo Jared para o carro, sua
mão presa a minha, um sorriso querendo explodir em seu rosto.
— Não queria ir no John! – Aviso, ele me olha espantado.
— Nunca mais piso naquele lugar! – Ele conta espantado com meu
pedido. – Aquele não é lugar para minha... namorada. – A palavra sai
forçada e eu rio, é estranho como gosto até disso nele, sua dificuldade em
expressar sentimentos.
Tudo é tão pertinho que vamos de caminhonete e, em cinco
minutos, estamos em um café. Pedimos a refeição completa: bacon, ovos,
café, suco, panquecas, e me dou conta que estou faminta, não tanto quanto
ele, Jared devora o café da manhã me deixando surpresa.
— Dirige? – Ele me pergunta quando deixamos o café.
— Sim, minha mãe me obrigou a tirar a habilitação. – Estávamos
sem dinheiro na época, mas ela fez questão, mamãe estava sempre me
impulsionando. Ela ficaria feliz por mim agora.
— Ótimo! – Jared me joga a chave da caminhonete e dá a volta indo
se colocar ao lado do passageiro.
— Jared! – Eu entro surpresa, ele coloca o cinto e indica o volante.
– Eu?
— Gosto da moto, você sabe, uso muito pouco a caminhonete,
então, ela vai ficar com você.
— É sério?
— Pode querer ir até a Abby, pode precisar fazer compras ou sei lá,
qualquer coisa que queira. Se eu precisar da caminhonete para alguma
entrega, você me empresta.
— Ou posso fazer a entrega para você!
— Ah! Não quer me emprestar seu carro! – Ele brinca me fazendo
gargalhar, quanto tempo eu não me sentia assim tão feliz? – Quando tiver
uma entrega, eu prefiro que fique na loja, você sabe, sou uma velho
machista sem solução, não quero que carregue peso.
— Ótimo! – Dou de ombros, eu realmente gosto disso. – Não
chamo algo assim de machismo, chamo de gentileza.
Em casa, quando estaciono, ele está risonho, salta, dá a volta, me
beija os lábios e acena se afastando sem tirar os olhos de mim, andando de
costas.
— Vai tropeçar, seu bobo! – Rio meio encantada.
— Não consigo tirar os olhos de você! – Ele dá de ombros. – Tenho
que abrir a loja.
— Seria bom! – Lewis está na porta, Jared se volta envergonhado
por ser pego sendo um fofo romântico. – Quero comprar uma vara nova.
Bom dia! – Jared caminha para ele e entro em casa rindo, sem
resistir, vou direto para o telefone, eu preciso contar a Abby.
— Alô, está ocupada?
— Aconteceu! – Ela declara e torço o nariz.
— Como sabe?
— Está me ligando e a voz está boa, então só podia ser uma coisa
boa. Conte-me tudo, como foi? Quem deu o primeiro passo?
— Eu fiz um jantar especial para comemorar um mês de namoro e
tudo foi acontecendo.
— Como se sentiu? – Ela pergunta porque, como eu, ela sabe como
esse momento é complicado, Abby viveu a mesma coisa que eu.
— Tão feliz, nada existia na minha mente além dele, Abby, eu amo
o Jared, eu vivi... eu me senti tão feliz, eu me senti tão livre, ele foi tão
carinhoso, paciente, tudo aconteceu com tanto cuidado e tão lentamente.
— Eu quero muito acreditar nesse cara que me descreve, mas o
Jared que eu conheço é tão diferente.
— Não é, sabe, Abby, o Jared que você conheceu era alguém
marcado que precisava se firmar na rebeldia para se proteger, o Jared é esse
cara que ele é comigo, gentil, preocupado, generoso.
— Sei que sim, porque Zack é como ele, nós somos todos meio
parecidos e o amor nos transformou.
— Acho que sim. Meu coração... eu não sei, ele estava quebrado e
agora tudo parece novo. Estou feliz, hoje mais do que qualquer outro dia da
minha vida.
— Parabéns, Claire. – Abby diz honestamente, eu sinto isso e Jared
me deu mais do que um pedaço de felicidade, ele me deu uma vida
completa. – Mary, não pode, calce os sapatos, o papai já está na oficina e
você vai com a mamãe para a aula.
— Vou te deixar trabalhar, Abby, mas espero vocês no domingo.
— Com certeza. – Ela diz antes de desligar e suspiro tão feliz que
meu corpo parece cheio de energia.
Jared vem almoçar, aqueço as sobras do nosso jantar de aniversário
de um mês, depois vamos nos sentar no balanço da varanda, a primavera
está chegando, os dias já não são mais tão frios e a paisagem está mudando.
Gosto de observar as árvores da floresta mudando de cor.
— Acha que vamos ficar bem velhinhos? – Pergunto a ele que me
beija antes de responder.
— Espero que sim. Não estou com pressa de morrer.
— Pensei em nós dois velhinhos sentados aqui olhando a vida dos
outros.
— Que fofoqueira!
Encosto-me nele e penso se tem lugar para filhos nessa vida perfeita
que criei na minha mente. No passado, eu só queria morrer logo e acabar
com a minha dor e, agora, quero ter tempo para envelhecer ao lado dele.
— Só nós dois nessa casinha bem velhinhos. – Ele diz e o “só nós
dois” deixa claro que seus planos não vão além disso. Posso viver assim, ao
menos por enquanto, ser só nós dois não é ruim, mas talvez, algum dia seja
pouco.
— Um cuidando do outro.
Ele me beija. Um beijo carinhoso de quem gosta da ideia. Adoro
ficar em seus braços, mas Jared tem que abrir a loja e eu fico pela casa
cuidando das coisas, pensando se transfiro mesmo minhas coisas para o seu
quarto ou não, é assustador a ideia de estar indo rápido demais,
pressionando, não vou até a loja, acho que é bom dar espaço a ele.
Nos três dias que se seguem é assim. Noites românticas, manhãs
perfeitas e o dia todo sem vê-lo. Fico pensando se Jared não vai acabar se
cansando, se ele não espera que, talvez, eu encontre um trabalho que não
seja ajudá-lo, ele é um homem do mundo, será que é isso que espera de uma
história? Uma esposa do tipo do lar que cozinha, limpa e o ajuda com o
trabalho na sua loja?
Minhas coisas ainda estão no quarto menor, mesmo que durma
todas as noites em seus braços e acorde com ele me puxando e se
encaixando em mim, fazendo meu coração descompassar logo cedo.
Talvez não seja como ele pensou, talvez eu esteja fazendo tudo
errado ou ele sente falta de andar por aí, tomar uma cerveja no bar e falar
com pessoas. Não sei e não vou perguntar porque não aguento pensar na
resposta.
Viro-me para deixar o quarto e, quando olho nossa cama, eu penso
em como eu o amo e o quanto é perfeito quando estamos ali. O que sinto
por ele é amor. Um amor que nunca vai acabar.
Coloco a mesa para o jantar quando começa a anoitecer. Escuto a
porta da frente abrir e meu coração dispara, e acho que nem em mil anos
vou me acostumar que sou namorada dele.
Meu sorriso se desfaz quando vejo seu rosto abatido e até um pouco
triste. Ele se encosta no batente da porta e fica me olhando.
— Preciso dizer porque isso está me sufocando. – Ele começa e
acho que vai terminar tudo, minhas pernas formigam de nervoso. Prendo a
respiração com medo de ter uma crise humilhante de choro e implorar para
ficar. – Não precisa ficar comigo se não quiser, não vou mandar você sair da
casa.
Aquilo é pior que um tapa no rosto, sinto tudo em mim enfraquecer
e junto vem uma revolta dolorida.
— Acha que estou com você por conta do teto que me oferece? –
Nossa, como magoa quando sai em palavras claras.
— Não sei, fica o dia todo enfiada aqui, não sai nem na varanda, só
para não ter que ir até a loja. Não levou suas coisas para o nosso quarto,
prefere ficar sozinha do que ir até a loja me fazer companhia, eu não sei.
— É isso que pensa de mim? Que tipo de mulher se deita com um
homem que não quer só por um teto? Não precisa dizer, eu sei. – Ele se
choca com minhas palavras, olhos arregalados sem reação. Cedo ou tarde o
que me aconteceu teria um peso. – Eu fugi como uma covarde depois do
que me aconteceu e me recusei a denunciar e eu sei que sou só isso. Uma
covarde, mas não a ponto de me entregar a você para não ficar na rua.
— Não disse que era covarde, não te comparei com nada, não teve
culpa naquilo, foi forte e seguiu em frente. Aguentou firme. Não é isso...
— Eu não sei o que você quer, eu não sei ser uma namorada. Eu
tenho medo de ficar o tempo todo atrás de você como uma sombra e um dia
me mandar embora como está fazendo agora. – Liberto meus medos de uma
só vez.
— Não estou. Desculpe, entendeu errado. – Meu coração está
dilacerado.
— Não precisa se desculpar. É melhor eu ir embora. Não é a casa,
podia ser naquela pensão ou na rua eu ainda iria querer ficar com você. –
Tento passar por ele, mas Jared me envolve, me impede de me afastar, sua
voz soa urgente.
— Eu disse que faria tolices, que explodiria na hora errada e disse
que podia lidar com isso, mas está me deixando. Não entende que estou
com medo de perder você? Que tenho ciúme e fico o dia todo esperando
que vá lá ficar um pouquinho comigo? Eu quero a mulher que cuida de
mim, quero suas roupas misturadas as minhas no armário, e você indo lá
porque sentiu saudade, quero essa vida simples e feliz, envelhecer na
varanda ao seu lado.
Fico olhando para ele e, no fundo, ele parece assustado também,
com medo como eu.
— Jared!
— Eu nunca tinha feito planos até a manhã que peguei minha moto
e fui buscar você para mim. Até voltar triste e te ver na varanda. Foi uma
droga de vida até você chegar e nada parecido com a vida de uma pessoa
comum, e depois que chegou e ficou e comecei a fazer planos eu... eu não
estou acostumado a ser feliz e eu sempre acho que tem algo errado.
— Está bravo por que queria que eu ficasse mais tempo com você?
Eu só quero ficar perto. Quero a vida simples que descreveu, mas tive medo
que me achasse uma dependente boba que não tem sonhos, que sentisse
saudade da vida livre que tinha antes.
— Livre? Eu nunca fui livre, eu sempre fui um cara solitário, não
tenho saudade de nada antes de você. Não vou deixar de gostar de você
nunca, é toda perfeitinha. Não pode ir embora na primeira tolice que faço,
tem que tentar mais.
— Não quero ir embora, quero ficar com você o tempo todo. Fico
aqui sentada olhando para a parede me segurando para não ir lá te
atrapalhar e ser grudenta, mas eu... Jared, depender de você em tudo... até
financeiramente, eu não sei, fico me sentindo um estorvo, não sabia o que
queria e eu não tinha coragem de perguntar.
Ele me abraça. Sinto seu coração batendo tão rápido quanto o meu,
me encosto em seu peito, aliviada por ele ter tanto medo quando eu. Molho
sua camisa com minhas lágrimas.
— Fiz você chorar. Não queria isso.
— Namorar é muito difícil, não sei o que tenho que fazer.
— Tem que ficar o tempo todo perto de mim. assim vai dar certo. —
Ele afasta meus cabelos, sorri secando minhas lágrimas. - E me desculpar,
você é meu coração, Claire. Eu não tinha um até chegar na minha vida. –
Não é verdade, mas ele nunca vai acreditar, beijo seus lábios.
— Homem de lata. – Brinco tentando sorrir.
— Sim. Mas agora tenho um coração e ele é você.
— Eu sou o leão covarde, mas me deu um pouco da sua
coragem.
— Uma boa troca. Seu coração por minha coragem. Vê como assim
pode dar certo? Como assim ficamos os dois inteiros?
— Eu posso ficar bem grudenta. – Aviso sorrindo no meio das
lágrimas.
— E pode começar agora. – Ele me ergue no colo e me carrega pela
escada.
— O que está fazendo? Nem jantou, deve estar com fome.
— Só tenho fome de estar com você, Claire! – Ele diz antes de me
beijar longamente. Quando me coloca na cama, seus olhos são profundos, o
riso se desfaz.
— Nossa casa, Claire, nosso quarto, nossa loja. O dinheiro fica na
gaveta da cozinha, para nossas compras, roupas, passeios, futuro. Nosso
futuro, Claire, os dois velhinhos na varanda.
— Quero isso! – Suas palavras me emocionam, meus olhos
marejam, mas dessa vez, de amor.
Capítulo 19
Jared

Depois que tivemos nossa única briga, quando eu explodi feito um


idiota e falei uma grande bobagem, nossa vida simplesmente se acertou,
tudo parece ter se encaixado e eu me sinto tão inteiro e feliz que ainda tenho
um certo receio. Isso de ser feliz não parece ser coisa de um Brow.
— Obrigado, Jared. Seus materiais são os melhores, vale a pena
dirigir alguns quilômetros por essas flechas. – Jeff me diz depois de pagar.
— São as que eu usava para caçar. – Aviso entregando a ele um
pacote com duas dúzias de flechas.
— Bom trabalho, volto mês que vem, indiquei você para um monte
de gente. – Ele parte e a sineta toca quando passa pela porta de vidro.
Guardo o dinheiro no caixa e fecho a registradora quando a sineta toca
novamente e, dessa vez, é ela com seu sorriso lindo e um copo de café
fresco. Toda tarde ela me traz um.
— Oi. – Claire caminha até onde estou. Beija-me antes de me
entregar o copo e se encostar no balcão.
— Estava precisando de um.
— Eu sei. A gente tem manias, já reparou? Criamos uma rotina.
— Gosta disso? Não acha chato? – Ela nega. Passo meu braço por
sua cintura, ela apoia as mãos em meu peito. O rosto corado e sei que está
pensando em algo que a deixa tímida.
— Gosto de tudo que estamos construindo. A começar pelo jeito
que me puxa para você de manhã. Adoro quando faz isso.
— Uhm, então é você que foge de mim só para eu te caçar pela
manhã?
—Não. Eu acabo mesmo lá na pontinha da cama. Podia voltar
sozinha, mas gosto que me puxe.
Beijo seu pescoço. Ela se contorce e me empurra arrepiada.
— Jared! Pode chegar alguém.
— O sino toca nos avisando. – Meus lábios voltam para seu pescoço
e sobem até encontrar seus lábios e, então, eu a beijo e o sino realmente
toca nos avisando, eu me afasto antes que seja tarde.
—Vejo você em casa. Minha carne vai queimar. – Ela me beija
rápido e corre para casa. — Boa tarde, xerife. – Ela cumprimenta Parker
entrando.
— Parker... – Ele me estende a mão, depois de cumprimentá-lo
meus olhos vão para a mulher a seu lado. Nunca a vi na cidade, e não
parece ter vindo com ele porque entrou depois, quando Claire já havia
saído. – Senhora, posso ajudar?
— Ela está comigo, Jared. – O xerife me avisa em um ar solene que
me deixa em alerta. – Essa é a senhora Sanders, ela é assistente social. – O
que uma assistente social faz aqui?
Acho que desde minha infância eu não me encontro com uma e, se
me lembro, nenhuma delas fez muito por mim ou por Zack, elas vinham e
iam sem resolver coisa alguma, notificações é o que faziam e nada mais.
— Como vai, senhora Sanders? – Cumprimento sem saber como
agir.
— Então o senhor é Jared Brow?
— Sim. A senhora precisa de algo da loja? ─ Tento adivinhar já que
não me ocorre nada além disso.
— Não, Jared, ela veio falar com você.
— Comigo? Algo errado com o Zack? Mary está bem? – Meu
coração descompassa, só pode ser isso para o xerife estar com essa
expressão fechada e solene a me olhar como se estivesse esperando algum
tipo de reação exagerada minha.
— Jared, conheceu uma mulher chamada Jennifer Wilson?
Busco na memória pelo nome e, apesar de não me parecer estranho,
ele não se liga a nenhum rosto em especial.
— Honestamente, o nome não me parece estranho, mas acho que...
Não tenho certeza.
— Você já esteve em Gainesville? – Ela continua a me interrogar.
— Sim. Morei lá uns meses com meu primo, isso foi há quase dez
anos, sei lá, um pouco menos, um pouco mais, eu era meio... inconsequente
na época.
— Exato. – A mulher troca um olhar significativo com o Xerife.
— Espera, acho que me lembro. Jen era como todo mundo a
chamava. – Ela era uma garota doida, fomos doidos juntos por um curto
período, ninguém que tivesse juízo se aproximava de mim, e ela não tinha
nenhum.
— Vocês dois tiveram um envolvimento? – Isso não parece ser o
tipo de pergunta que se faça, coço a cabeça achando estranho. O que será
que Jen aprontou e por que eu teria algo a ver com isso?
— Bom. Nós saímos umas vezes, depois eu deixei a cidade e nunca
mais voltei.
— Senhor Brow, Jennifer Wilson teve um filho seu. – Meu coração
para por um momento, fico surpreso e mudo, nunca soube disso. – O garoto
está com oito anos. Ela morreu há três anos, ele ficou com o padrasto, o
homem morreu faz duas semanas. O garoto está num abrigo.
— Isso é... Eu nunca... Não sabia. Ela tinha como me encontrar.
Tem certeza? – Parece loucura, Jen podia ter me encontrado, tínhamos
tantos amigos em comum, como é que ela tem um filho meu e não me
conta?
— Sim, foi o que ela disse para todos, incluindo o garoto, claro que
só um exame confirmaria. – Eu não acho que ela mentiria sobre isso, não
tinha qualquer razão para inventar que tinha um filho meu, pelo contrário,
isso é o tipo de coisa que qualquer mulher faria questão de esconder, ao
menos naquele tempo. - Estivemos a sua procura. Há umas semanas o
senhor comprou a loja e a casa e foi através desse registro que o
encontramos.
— Um filho?
— O menino se chama Benjamin, é um garoto muito difícil.
Realmente problemático.
É claro que é ou não seria um Brow. Fico olhando para ela sem
saber o que, afinal, ela quer dizer, o que tenho que fazer e, no meio de tudo
isso, penso em Claire e em como vou dizer a ela que tenho um filho e que
ele está sozinho agora.
— Jared, ele precisa de você agora. Pelo que o xerife me disse você
é um bom homem com uma vida estável. Então acho que está pronto para
criar seu filho, seu histórico não é dos melhores, o senhor esteve na prisão,
mas o xerife garantiu que está mudado. Eu também andei conversando com
pessoas da região e agora que estou aqui, diante do senhor... parece que
ficar com ele.... é a melhor opção para o Benjamin.
— Ele sabe que eu existo?
— Ainda não. Achamos que era tolice dar esperanças ao garoto até
termos certeza. Sabe apenas que o nome do pai é Jared Brow.
— O que eu tenho que fazer? Como eu tenho que agir agora, eu não
esperava por isso. – Eu mal consigo respirar, minha mente está trabalhando
incessante, eu não posso ser um pai, eu odeio meu pai, eu odeio tudo que
vivi com ele, eu nunca vou ser capaz de educar um garoto, eu não quero que
ele me odeie, eu não quero repetir o que aquele monstro fez comigo. Zack
conseguiu, mas eu não sei se consigo. Claire vai ficar chocada, vai pensar
que eu a enganei, vai me deixar, éramos nós dois, só nós dois envelhecendo
na varanda, eu podia lidar com isso, mas com um filho, um garoto-
problema...
— Jared, você consegue! – O xerife diz como se estivesse lendo
meus pensamentos.
— É um menino difícil, como já disse. Fechado, mal-educado, não
deixa ninguém chegar muito perto, fica o tempo todo isolado no abrigo,
então o senhor terá que ser acompanhado um tempo, para ver se ele se
adapta. Pode recusar, entregar o garoto ao estado e ele permanece no abrigo
até, quem sabe, encontrar uma família disposta, mas com os problemas que
causa e a idade, acho difícil.
— Você quer que eu fique com ele, mas podem querer me tirar o
garoto? – Como assim eu tenho um filho e eles podem me tirar ele?
— Não, senhor. O senhor é que pode querer devolvê-lo. Como eu
disse... ele é difícil, vamos acompanhar o caso de perto e, caso... o senhor
entende, se não conseguir, ele retorna.
— Se eu for buscá-lo não vou devolver. Se é meu filho é comigo
que vai ficar. – Até eu me surpreendo com minhas palavras, mas é isso, eu
não posso ignorar que ele existe e nem deixá-lo nas mãos do estado, esse
mesmo estado que jamais fez qualquer coisa por mim.
— O xerife me disse que o senhor tem uma esposa. Acha que ela
vai reagir bem? Estamos falando de uma criança beirando a delinquência.
Nunca o vi, mas já me sinto ofendido de ela chamá-lo assim, e isso
me irrita. É muito fácil dar um rótulo a uma criança-problema e decidir que
ele não tem jeito, foi assim comigo. Eu não tinha jeito e todo mundo
desistiu.
— Não vou abrir mão dele. Posso lidar com uma criança-problema!
E não pode chamá-lo de delinquente, ele tem... oito anos? – Ela afirma.
Não respondo sobre Claire, não sei o que vai ser, se ela vai me
odiar, se vai tentar, se vai me deixar. Só sei que chega de Brows jogados
como lixo, não vou fazer com ele o que fizeram comigo.
— Claro que queremos que a criança fique com a família. O
processo não é complicado, ele é seu filho e está num abrigo temporário. O
que preciso é apenas de uns dois dias para preparar os papéis e liberar o
senhor para trazer seu filho.
— Dois dias? Ele fica num abrigo mais dois dias? – O que está
acontecendo comigo? Eu nem conheço o garoto.
— Ele não está sendo maltratado.
— Senhora, eu já estive nesses lugares. Que acha de me deixar
buscá-lo amanhã? – Arrisco tudo. Não sei como preparar Claire para isso,
nem mesmo entendo bem o que estão me dizendo. Eu tenho um filho? Um
garoto meu. Fico pensando em como era sua mãe e por que ela não me
disse sobre ele.
— Jared é um homem sério. Eu posso atestar que ele não vai brincar
sobre isso. – Eu nunca vou me acostumar a ser defendido pelo xerife, é a
coisa mais doida da minha vida estar do lado da lei.
— Estou voltando para o abrigo agora, vou organizar as coisas.
Acho que.... Quem sabe o senhor vai até lá e vê seu filho e, então, se tudo
estiver bem, o senhor pode trazê-lo.
— É sábado. Acha que pode me entregar ele, não vai me mandar
voltar numa segunda-feira?
— Quando se trata de crianças tudo funciona vinte e quatro horas.
Ela me entrega um papel onde tem os dados do meu filho e o
endereço do abrigo onde ele está a minha espera mesmo que não saiba
disso. Pego o papel, a mulher e Parker deixam a loja e fico olhando aquela
folha que muda toda minha vida sem saber que passo dar a seguir.
Passo a hora seguinte pensando no que dizer à Claire. Ela disse mais
cedo que nossa vida juntos era perfeita e penso se está pronta para um
garoto-problema. Se não vai se sentir enganada. Talvez com ciúme.
Fecho a loja de modo lento, amanhã preciso sair cedo, então preciso
falar com Claire ainda hoje, não posso adiar. Quando entro em casa, ela
caprichava na mesa do jantar.
Seu sorriso quando me vê machuca um pouco. Vou estragar tudo, eu
sempre estrago tudo. Um filho, eu tenho um filho, eu nunca pensei em ter
um filho nem mesmo com Claire.
— Ficou perfeita! – Ela diz e acho que é sobre a carne que ela
correu para salvar mais cedo.
— Que bom. – Digo meio sem saber como agir. – Eu vou tomar um
banho, me espera? – Tento sorrir, ela está tão feliz que só afirma sem se dar
conta que as coisas estão afundando. Não me demoro no banho, vou tentar
salvar seu jantar especial. Tenho medo que, depois de contar, ela perca o
apetite e, se for apenas isso, já tenho que me dar por satisfeito.
Quando a encontro, ela está tirando a carne do forno e noto como se
arrumou. Vestido rodado e cabelos arrumados. Espero que coloque a carne
na mesa e então eu a abraço.
— Está linda! – Eu digo a ela. Beijo seus lábios. – E perfumada.
— E você triste desde que entrou. – É tolice achar que ela não
percebeu. Faço um carinho no rosto suave de traços delicados.
— Estou é com fome. O cheiro dessa comida estava chegando na
loja.
— Que bom... – Nós nos sentamos, ela me serve e depois coloca
comida em seu prato.
— Você se supera a cada dia. – Elogio na tentativa de distraí-la do
olhar preocupado que me lança a cada instante.
— Hoje é um dia especial. – Ela sorri. – Não esperava por nada
disso quando cheguei nessa cidade. Você mudou minha vida, todos os dias
se tornaram especiais para mim depois disso.
— E você me deu um motivo para fazer minha vida dar certo.
— Eu nem queria viver, me devolveu isso. Então está ganhando. –
Ela se move e me beija.
Jantamos conversando sobre nosso dia, oculto a última visita, ela
me conta sobre como ficou um tempo conversando com Abby e que o bebê
já está mexendo e Judy também tem novidades, é bom para tentar distrair
minha mente, mas a imagem nebulosa de um garoto-problema não deixa
minha mente um só instante.
— Mike e Danny nos convidaram para uma festinha no fim de
semana, mas se não quiser ir, não precisamos. – Ela me avisa.
— Pode ser, é bom para você ir se sentindo mais em casa na cidade.
— Eu gosto da cidade, você me faz sentir segura.
É bom me sentir seu porto seguro, espero que isso não mude.
Terminamos o jantar e fico sem direção brincando com os talheres tentando
formar um discurso, sem saber como implorar para Claire não me deixar.
— Que acha de irmos para sala e me dizer por que está tão
angustiado?
— Tem mesmo algo que preciso contar e não sei como. – Claire
demonstra alguma preocupação ficando de pé.
— Deixou de gostar de mim? – Seguro sua mão, afasto seus
cabelos.
— Longe disso. Gosto mais do que gostava mais cedo. ─ Seu
sorriso doce me acalma um pouco.
— Então acho que está tudo bem.
Espero que esteja certa. Seguimos para o sofá e eu me acomodo ao
seu lado, encaro os olhos escuros e agora tão preocupados quanto os meus.
— Morei em muitos lugares, nunca saí da Geórgia, mas estive por
aí. Há quase dez anos eu estive numa cidade e lá eu conheci alguém. Jen,
não fomos nada, não me apaixonei, não foi um caso, namoro ou qualquer
coisa do tipo. Foi só...
— Físico. – Ela completa atenta e um tanto preocupada.
— Isso. Jen era o oposto de você. Andava com o pior tipo de gente,
eu inclusive. Não falo muito, mas acho que sabe que não me orgulho muito
do meu passado.
— Não importa quem você era. Importa quem você é e você é um
homem especial.
— Que bom que pensa assim... Jen morreu.
— E está triste porque descobriu isso?
— Não, não sei, não é sobre isso, ela... – Olho para Claire ansiosa e
confusa sem saber onde estamos indo. – Claire, eu tenho um filho. Um
garoto de oito anos que está num abrigo. O xerife deixou a loja há pouco
com uma assistente social, o garoto se chama Benjamin, está sozinho, a mãe
morreu há três anos e um padrasto o criou até esses dias, mas também
morreu e eles me procuraram.
— Um filho? Um garotinho de oito anos? – Claire sorri com olhos
brilhantes. Isso é estranho, diferente de tudo que esperei.
— Sim.
— E vamos buscá-lo agora? – Sua animação me amedronta, acho
que ela não entendeu realmente.
— Você quer? Entende o que disse? Não enganei você, eu realmente
não tinha ideia, mas não posso deixá-lo...
— Claro que não pode. É seu, precisa de você e de amor e
podemos... Você pode e, se me deixar, é claro, eu vou ajudar a cuidar dele. –
Ela está feliz, ansiosa, animada, é inacreditável.
— Não está brava? Não me odeia?
— Odiar você? Como eu poderia? Não nascemos no dia que nos
conhecemos, tem coisas que aconteceram antes, boas como um garotinho e
ruins como... você sabe.
— A assistente social o chamou de delinquente.
— Tudo bem. Talvez ele só precise de amor e segurança. – Nem
isso parece abalar suas convicções.
— Vai ficar do meu lado e me ajudar com isso? Não quer me
deixar? Não pensa em como isso muda tudo? – Não quero enganá-la, quero
que Claire compreenda exatamente o que está acontecendo.
— Vou ficar do seu lado, isso muda tudo mesmo e não quer dizer
que seja ruim e não posso deixar você. Não consigo ficar longe. – Ela vem
para meus braços, se encosta em mim. – Um garotinho... Gosto do nome,
Benjamin. Será que ele me deixa, com o tempo, é claro, ser como uma
mãe?
— Como pode ser assim? Toda perfeitinha? – Abraço Claire e sinto
que podemos fazer dar certo.
— Ele pode ficar no quartinho menor. Por que não me disse logo
que ficou sabendo? Já podia ter arrumado um monte de coisas. O jantar
teria sido mais emocionante ainda.
— Claire... – Ela me abraça, beijo seus lábios, sinto seu carinho. ─
Fiquei de ir ao abrigo amanhã.
—Se vamos buscá-lo amanhã, temos que ter a casa pronta. Não
temos nada de menino, um brinquedo, nada especial para recebê-lo. – Sua
mente parece trabalhar freneticamente, sua ansiedade visível me assusta e
conforta.
— Não fica muito animada, não é um bebê, é um garoto de oito
anos, ela o chamou de delinquente. Temos que estar prontos para o pior.
— O pior é você deixar uma desconhecida chamar seu filho assim.
Podemos comprar um videogame?
Acho que ela não consegue se acalmar, eu achei que estava me
enfiando no pior problema da minha vida, mas Claire está feliz.
— Temos que matriculá-lo na escola. Ajude-me a arrumar umas
coisas no quarto dele?
— Podemos.
— Tem duas caixas da loja lá, vamos tirar e trocar os lençóis e
acho que posso preparar um doce ou compramos um sorvete quando
estivermos voltando.
— E se ele for terrível e nos odiar? Eu sei o mundo de coisas que
ele pode fazer.
— Para de pensar coisas ruins, vem, vamos arrumar as coisas. – Ela
me puxa pela mão, quando chega na porta do quarto para um tanto
apreensiva. – Estou atropelando tudo, nem sei se me quer perto nesse
momento. Prefere ir sozinho?
— Tudo que eu quero é que esteja comigo nessa hora. Só assim
acho que posso passar por isso, eu não sou bom em mostrar sentimentos, eu
ainda nem sei se estou feliz.
— Se me quer perto é onde vou estar e se não está feliz, é bom
começar a ficar porque crianças são espertas e sentem isso.
— Obrigado! – Eu a envolvo. Um alívio sem fim me invade, eu não
sei de onde vem tanta sorte, mas não vou estragar isso.
Capítulo 20
Claire

Acordo muito cedo, ansiosa para o encontro, feliz com a ideia de


termos uma criança conosco, com medo de ser rejeitada, um mundo de
emoções.
Vai dar certo, mesmo que seja difícil no começo. Posso ser paciente
e Jared também, ainda que seja um garotinho difícil, vamos apaziguar seu
coração, juntos, podemos fazer isso e é apenas uma criança, uma criança
que precisa do pai e, se surgiu em nossas vidas, é porque podemos amá-lo e
fazê-lo feliz.
Fico pensando como vai ser para ele, o que ele pensa do pai, se acha
que foi abandonado ou se sabe que o pai nunca soube de sua existência.
O que quer que nos aguarde vou estar pronta. Eu quero construir
uma família. No fundo, é como se um sonho estivesse se realizando,
envelhecermos sozinhos na varanda não seria ruim, mas se podemos
envelhecer enquanto assistimos nossos netos brincar no quintal, então pode
ser muito melhor.
Jared achou que eu ficaria brava, com ciúme de uma criança? De
algo que aconteceu há nove anos? De jeito nenhum. Estou feliz, vou fazer
essa família feliz.
Sorrio sem abrir os olhos e, então, sinto o puxão de Jared e o sorriso
se amplia quando estou em seus braços, encaixada em seu corpo como se
tivesse sido moldada para ele. Adoro a sensação de ser dele, de ser a
primeira coisa que ele pensa quando desperta toda manhã.
Seus lábios percorrem meu pescoço e vão descendo por meu corpo
e tomando minha consciência e, então, eu me vejo entregue e feliz.
Depois de um rápido café da manhã, vou para o quarto de
Benjamin, olho da porta para decidir o que fazer. Tem uma cama, uma
cômoda e um guarda-roupa.
Trocamos os lençóis por outros limpos, temos toalhas e cobertas no
armário, uma luminária ao lado da cama. Talvez ele goste de ler antes de
dormir ou tenha medo do escuro, aproveito para limpar os móveis, abrir a
janela para entrar um pouco de ar, cuido de deixar o chão brilhando, pode
parecer bobagem, mas encontrar um ambiente limpo a sua espera, vai
mostrar a ele que é bem-vindo.
Uma hora depois está tudo cheirando a limpo e arrumado. Com o
tempo ele pode espalhar brinquedos e materiais escolares, pregar pôster nas
paredes e todas as coisas que um garoto gosta.
Coloco meu melhor vestido e um salto baixo, quero causar uma boa
impressão para a assistente social e, principalmente, Benjamin.
—Está pronta? – Ele me pergunta quando chego à sala e apenas
balanço a cabeça em uma afirmação. – Que bom. Eu não estou.
Partimos um tanto inseguros, com rádio ligado baixinho tocando
baladas românticas e o vento suave vai me tranquilizando ao longo do
caminho, são duas horas até o abrigo.
— Talvez eles queiram falar com você, Claire, para saber o que
acha disso. – Ele comenta um tanto inseguro.
— Vou dizer a verdade. Que estou amando tudo isso. – Digo cheia
de convicção.
— Queria isso? Quer dizer, nunca falamos de ser mais do que nós
dois, então eu não sei.
— Tudo estava completamente perfeito e parecia que bastava, mas
no minuto que me disse, eu me senti pronta, agora sinto como se ele fosse
meu. Não somos mais apenas nós dois, agora somos nós três. – Eu não
consigo evitar sentir tudo isso, mesmo que seja tão pouco tempo juntos,
mesmo que eu seja apenas a namorada, falamos em envelhecer, então não
estou atropelando nada, foi o que a vida nos deu e temos que agradecer,
porque uma criança é sempre um presente.
— Eu sinto um pouco de medo. Na idade dele eu era um pequeno
monstrinho, da porta de casa para fora era briguento, de boca suja e, meu
Deus, fiz tanta coisa errada... – Ele aperta o volante, está com medo de
repetir o passado, mas agora, na figura do pai, isso é tão óbvio e, ao mesmo
tempo tão impossível, ninguém melhor do que ele para saber que nunca
seria capaz de repetir os erros do pai.
— Disse da porta para fora. Como era em casa?
— Um animal acuado. Meu pai era... Não gosto de falar. Eu só
suportava, por isso era tão arredio e um tantinho perverso.
Sei que seu passado é trágico, cada coisa que escapa do seu passado
preenche meu coração com mais amor por ele, Jared sofreu muito, mas não
consigo imaginá-lo perverso, talvez zangado, magoado, mas ruim ele não
era, não de verdade.
— Não era perverso coisa nenhuma. Só tinha medo e raiva e, se
Benjamin for assim, tudo bem. Porque ele pode se tornar como você e
vencer tudo isso.
— Você é só esperança. – Jared constata sem conseguir se
contaminar, parece que vai ser difícil para os dois.
— Estou melhor então. Antes eu era só medo.
Ele caça minha mão e beija meus dedos. Paramos para almoçar
perto do abrigo, devíamos ter vindo mais cedo, mas eu quis deixar tudo
perfeito para receber o pequeno Benjamin.
Terminamos o percurso em silêncio. Cada um com seus
pensamentos, ao mesmo tempo tão próximos, como se palavras não fossem
necessárias.
Descemos na frente do abrigo e ele para um longo momento na
porta, acho que buscando coragem, depois repousa uma mão em minhas
costas me guiando para dentro.
É uma construção antiga, com um pátio grande e algumas crianças
zanzando por ele. O lugar é limpo, grande, mas triste e frio. Uma mulher se
aproxima com o andar apressado.
— Bom dia. – Ela nos cumprimenta estendendo a mão. ─ O que
desejam?
— Vim ver Amanda Sanders. É sobre...
— Benjamin, ela me avisou, podem vir comigo. Ela o espera. – A
senhora nos aponta um corredor lateral. Ando olhando as crianças e, então,
paro de andar quando eu o vejo.
Simplesmente sei que é ele. Mesmo sentado num canto, entediado e
com os cotovelos sobre os joelhos olhando para o chão, é um pequeno
Jared. Sorrio para a imagem e meu coração salta, posso amar esse
garotinho, posso amá-lo mais do que tudo.
— Claire... – Jared chama minha atenção quando os dois se dão
conta que parei de andar.
— É ele. – Aviso com um sorriso molhado de lágrimas. Aquela
criança toma meu coração, Jared acompanha meu olhar. O garoto ainda
perdido em pensamentos uns metros de nós alheio a minha fascinação.
— Como sabe? – Jared me pergunta com a mão em meu ombro.
— Como ela sabe não tenho ideia, mas aquele é Benjamin. Ele
nunca se mistura com os outros, nunca fala com ninguém, a menos que seja
para xingar. Nesse caso, ele é bem articulado.
Jared paralisa ao meu lado, nós dois encarando o garoto sem saber o
que fazer.
— Meu filho! – A voz dele sai estrangulada como um murmúrio ou
um espasmo. – Ele...
— Se parece com você. Podemos ir até lá?
— Amanda os espera, senhora. Melhor falarem com ela primeiro.
A mulher nos coloca em movimento até a sala de Amanda Sanders.
Jared está calado, tonto, os olhos perdidos, meio emocionado e estou feliz
de estar com ele. Seguro sua mão e sorrio dando forças ao homem fechado
e bom que acaba de ganhar um filho.
A sala está vazia. A mulher nos aponta cadeiras diante da mesa.
— Ela está a caminho, teve que resolver um caso longe, mas não
demora.
Ficamos sozinhos, os dois sentados à espera da mulher que vai
definir nosso futuro.
— Ele é lindo. Cabelos claros como os seus. Não vi os olhos, mas
parece um pequeno Jared.
— Claire, não fica feliz assim, me dá medo. Ele pode odiar você e,
se for assim, se ele te maltratar, eu não...
— Precisa me prometer que ele é sua prioridade, não eu. Benjamin é
o que importa, ele é só um garotinho e posso aguentar o tranco. Tem que
fazer o certo, antes de qualquer coisa. – Se ele me amar acima do filho,
então não me serve, eu não posso amar um homem que não tem o próprio
filho como a coisa mais importante de sua vida.
— Não sei.
— Acha-me fraca. – Isso é um pouco decepcionante e, ao mesmo
tempo, a mais pura verdade.
— Sim. Não! – Ele corrige rapidamente. - Acho você frágil, prometi
ficar perto, cuidar de você, te proteger.
— Jared. – Aperto sua mão, eu me estico um pouco e beijo seus
lábios. – Quer me proteger de um garotinho assustado? Prometa que ele é
prioridade.
— Prometo.
— Assim fico tranquila. Estou do seu lado e isso é sério. Vamos
fazer isso juntos. Não importa o quão difícil seja, nem quanto tempo
demore, vamos fazer dar certo.
— Desculpe a demora. – Amanda entra apressada. – Fui atender um
chamado urgente. Entre paredes todo tipo de sordidez se esconde sem que
ninguém saiba. – Ela suspira e se senta. O rosto fechado, os olhos cansados,
deve ver muita coisa. – Você é?
— Claire.
— A namorada do senhor Brow, ele me disse. Tudo bem?
— Muito melhor agora. – Sorrio e ela ergue uma sobrancelha
surpresa. Jared parece concordar com ela. – Uma criança chegando é
sempre motivo de felicidade, não importa a circunstância, nem a criança.
— Não sei nesse caso, talvez se arrependa bem rápido. Benjamin é
um...
— Menino. Não gosto que diga outra coisa. Sei que insinuou que é
um delinquente, mas a senhora não sabe. Nem pode rotular um garoto assim
e nos assustar.
— Que bom que ele já tem alguém para defendê-lo. – Ela não
parece ficar brava com meu desabafo. – Isso é mesmo raro. Os garotos que
chegam aqui normalmente são abandonados pelos pais, então quando uma
futura mãe já chega aqui disposta a defender alguém que nem conhece isso,
é surpreendente.
— Ele vai ter amor e dedicação. Não importa quanto custe, tenho
certeza de que vai dar certo.
— Eu conversei com algumas pessoas da cidade de vocês. O xerife
e a prefeita me garantiram se tratar de uma família séria. Conversei com o
Benjamin quando cheguei aqui. Claro que só ouvi impropérios. – Ela revira
os olhos irritada. - Disse a ele que, em um mês, vou procurá-los e que se,
nesse caso, as coisas não tiverem dado certo, ele volta para cá.
— Apenas um mês? – Jared questiona. – Não acha um prazo muito
curto?
— Isso foi apenas para tranquilizá-lo um pouco, se dissesse mais ele
ficaria assustado, então até lá, vocês têm tempo de conquistá-lo, caso
contrário o que posso dizer é que se não der certo, podemos pedir ajuda
profissional.
— Não vão tirá-lo do pai? Porque isso seria criminoso.
— De um bom pai não. Se cuidarem bem dele não tem risco.
— Podemos ir? Ele já arrumou as coisas dele? ─ Daryl encurta a
conversa incapaz de levar o assunto mais profundamente.
— Está pronto. Nada contente, mas pronto, ele chegou aqui com
duas mudas de roupas e só. Pelo que investiguei da vizinhança, o garoto
teve dias difíceis. A mãe morreu há uns anos, ele ficou com o padrasto, por
alguma razão o homem não o devolveu à justiça, não procurou o pai
biológico, e nem por isso o tratava bem. Eles tinham se mudado para uma
pensão naquela semana. Um dia antes da morte do homem, a polícia
recebeu uma denúncia de violência doméstica. No dia seguinte ele se meteu
em uma briga e acabou morto. Ele não queria o garoto, mas nunca
renunciou a ele.
Ouvimos o relato mudos. Aquilo é duro de ouvir, assustador, é só
um menino, mas já sabemos que sofreu. Isso explica sua dificuldade de se
colocar em sociedade e o medo que deve estar.
— Vou levá-los até ele. Desejo sorte e paciência, estamos aqui para
qualquer emergência.
Ficamos de pé e caminhamos para o pátio. Sinto a tensão de Jared,
eu ainda estou mais feliz que nervosa.
— Benjamin! – Amanda o chama de um modo severo, não gosto
nada daquilo, mas entendo que, de outro modo, aquelas crianças todas
fariam uma rebelião e tomariam o lugar. A ideia me faz sorri e prendo o riso
com medo de me acharem mais maluca do que já acham. – Benjamin! – Ela
repete o chamado, ele escutou da primeira vez, apenas preferiu ignorar.
No segundo chamado, ele se põe de pé. Seus olhos se encontram
com os do pai. Fico olhando de um para o outro achando aquilo
emocionante, eles se encaram de modo profundo, tentando talvez se
reconhecerem. As mesmas expressões, os mesmos medos. pai e filho se
olhando pela primeira vez.
Eu lutando para não cair no choro porque isso sim deixaria o garoto
confuso. Jared está mudo, mas eu posso sentir emoção em seus olhos, é seu
filho, uma parte dele que está no mundo há oito anos, mas ele nunca soube,
uma criança com seu sangue, que viveu dores que ele conhece, mas não
pode impedir, Jared está perplexo e luta para esconder isso.
— Benjamin, estes são Jared e Claire. Está pronto?
Ele está tão magrinho, com olheiras, um pouco sujo, o que é
estranho, já que aquele lugar devia cuidar e proteger as crianças. As roupas
estão velhas, grandes demais para ele.
— Oi, Benjamin. Estou feliz de conhecê-lo. Tudo bem? – Tento
uma aproximação já que Jared parece incapaz de dizer qualquer coisa.
— Porra nenhuma! – Ele me desafia com olhos cheios de revolta.
Não fico ofendida, não é um conto de fadas com abraços emocionados e
gratidão, mas a vida já me mostrou que não tem nada de conto de fadas. –
Tenho mesmo que ir com eles?
— Falamos sobre isso. Tem sim.
— Falou que é só um mês e depois eu volto? – Não acho que ele
queira ficar ali, só quer mesmo nos provocar.
— Eles sabem.
— Benjamin, você é bem-vindo, eu o teria procurado antes se
soubesse. – Jared diz a ele que dá de ombros desviando os olhos, talvez
com medo de deixar que alguma emoção escape.
— Dane-se. Não me importo. – Jared aperta a mão de Amanda se
despedindo. Entrelaça seus dedos aos meus e sinto como sua mão está fria.
— Vamos? – Benjamin nos acompanha sem um aceno para
Amanda. Ele não se importa com ela, parece não se importar com nada.
Chegamos à caminhonete.
— Que merda de carro feio! – Ele reclama. – São pobres?
— Somos felizes. – Eu digo abrindo a porta e ele se senta nada
contente. – E você também vai ser.
— Vou parar em algum lugar e você compra umas roupas decentes
para ele. Somos pobres, mas não estamos passando fome a ponto de não
poder comprar umas mudas de roupas.
Jared comunica em tom firme e ele fica calado. O silêncio reina na
estrada, ele com o rosto colado na vidraça, eu e Jared trocando olhares vez
por outra, um incentivando e apoiando o outro, então, paramos numa loja de
departamento já chegando na cidade.
— Vou fazer o que me pediu e comprar um videogame enquanto
escolhem umas roupas. – Jared diz baixinho enquanto ele se distraía
olhando umas vitrines de tênis.
— Perfeito! – Acho que meus olhos até brilham com a ideia de
fazer compras com um garotinho. Beijo Jared que nunca gostou de
demonstrações de afeto públicas, mas está tão atordoado que nem mesmo
fica constrangido, então eu me aproximo de Benjamin. – Vamos entrar aqui.
─ Ele me olha confuso. – Sim, precisa de um tênis, um jeans e umas
camisetas. Tem uma blusa quente?
— Cuida da sua vida. – É sua resposta defensiva.
— E uma blusa quente. – Uma moça nos atende, estranha a
desigualdade entre nós. Acho que pensa que estou fazendo algum tipo de
caridade, ignora Benjamin e me mostra os tênis como se fossem para mim.
– Mostre a ele, moça. Benjamin é que está fazendo compras.
Ela fica constrangida, mas faz o que peço e não demora nada para
ele escolher. Os olhos estavam fixos num par em especial. Ele experimenta
e depois vamos para as roupas. De novo deixo que escolha e ele parece
surpreso mais uma vez. Não demoramos mais que meia hora, ele não diz
mais que três ou quatro palavras.
Quando encontramos com Jared e uma sacola do departamento de
eletrônicos, Benjamin fica curioso, não pergunta. Volta silencioso para o
carro carregando pessoalmente suas sacolas com algumas peças de roupas
que compramos. Fica sentado ereto, não se encosta, não fala, não olha para
os lados. Tem medo, um medo bem claro que ele esconde em agressão e
indiferença.
— Chegamos. – Aviso quando Jared estaciona. Ele também está
bem calado. O clima está tenso, não sou tola a ponto de achar que seria
diferente no primeiro momento, mas é muito mais tenso do que imaginei.
Ele entra na casa e para no meio da sala, corre os olhos pelo
ambiente cheio de desdém, eu sei que vivia em um lugar muito pior, mas
ele quer nos atingir.
— Um monte de casas grandonas em volta e vocês tinham que
morar bem nessa de pobre, são pobres mesmo. Não vou ficar aqui porra
nenhuma.
— Benjamin, essa é sua casa agora. Temos um quarto para você. –
Jared avisa e ele faz careta.
— Logo vai ter seus brinquedos e vai ser bom.
— Brinquedos! Que tipo de estúpida você é? Não sou criança para
ter brinquedos. Tenho dezesseis anos!
— É bem baixinho para dezesseis... – Pela primeira vez vejo Jared
sorrir. – É um duende?
— E você está rindo de que? Aquela vadia mentiu só para se livrar
de mim, não sou criança merda nenhuma.
— Tudo bem, Duende. Vamos ver seu quarto, quem sabe gosta? –
Jared convida e ele sobe as escadas tenso.
— Aquele é nosso quarto, Benjamin, se precisar nos encontrar. Esse
é o seu. – Abro a porta, ele olha tudo de má vontade.
— Uma merda! – Comunica cruzando os braços no peito.
— Aquele é o banheiro. – Mostro ignorando seu comentário. –
Tome um banho e desça para comer.
— Faço o que eu quiser. Não manda em mim. – Ele me desafia.
— Então, fique com fome e sujo. – Jared avisa me puxando pela
mão, descemos os dois e, quando chegamos na cozinha, ele se senta um
tanto tenso.
— É só uma defesa dele, não estou arrependida. Fica calmo. – Ele
me olha fundo nos olhos tentando descobrir se estou falando a verdade.
— Nem sei como vou contar ao Zack! – Ele passa as mãos pelos
cabelos.
— Seu irmão vai amar a ideia, quem sabe Benjamin não vai treinar
com a Abby e canalizar um pouco a raiva? Vamos pensar nisso, agora vou
preparar um jantar especial, e você vai dar uma olhada na loja, o que acha?
— Eu não sei, vou só me sentar na sala e esperar, não quero te
deixar sozinha com ele.
— Jared, ele tem oito anos! – Rio indo até ele só para beijar seus
lábios, ele continua não sendo muito bom em demonstrar afeto, como pode
estranhar o pequeno agindo assim? – Está tudo bem.
— Você é bem perfeitinha! – Ele diz correndo os dedos por meus
cabelos. Parece querer dizer algo, mas cala.
Vou servir o jantar mesmo achando cedo, são seis da tarde, mas
depois ele pode tentar dormir e, quem sabe, amanhã as coisas se acalmam.
Benjamin desce uns minutos depois, não é a coisa mais limpa que já
vi, mas veste as roupas novas e o tênis. Refreio meu desejo de fazer um
carinho e um elogio.
— Gostou da água? – Pergunto tentando puxar assunto.
— Tanto faz. – Ele se senta na poltrona ao lado da lareira e fica
mudo.
— Vou tomar um banho e já desço para jantar. – Jared me beija de
leve. – Vai ficar bem? – Sussurra.
— Claro. É só um garotinho. – Ele meneia a cabeça discordando um
pouco, mas me deixa sozinha com Benjamin que continua a me ignorar.
Fico ansiosa para saber dele, para criar laços, para ser mãe, mas
sinto que não vai ser fácil. Um tempo depois me lembro da escola.
— Logo vai para escola aqui perto. Acho que será bom fazer
amigos.
— Acha que só porque é a vadia dele pode mandar em mim? Quero
que você morra. – Fico surpresa com a agressividade, não sinto raiva, só
pena, e isso me parte o coração, então vejo Jared parado na escada, os olhos
cintilando de raiva, medo e tantas coisas que me assustam.
— Você prometeu. Tem que fazer o que é certo. – Peço angustiada
com a possibilidade de Jared não perdoar o filho pelo modo como me trata.
— Claire, eu amo você. – Ele diz assim, simples, parado, do nada,
os olhos assustados como os de Benjamin, um garotinho perdido e, ao
mesmo tempo, um homem angustiado. – Amo você e não posso te perder.
Um desabafo. Não tem violinos, velas e flores, mas é a coisa mais
romântica que já vivi. Eu não estou em seus braços, não estamos brindando,
não foi planejado, é cru e real, como ele, como a história que escrevemos e,
por isso, é perfeito.
— Eu também te amo, não vai me perder. – Meus olhos marejam e
enquanto ele termina de descer as escadas, eu vou até ele. – Vamos fazer o
que é certo. Não vai me perder.
— Nós não vamos perder. – Jared me envolve em seus braços e
agora sim eu posso enfrentar tudo. Ele me ama e tem medo de me perder e
isso me deixa forte como nunca pensei que podia ser.
— Não, meu amor. Nós não vamos perder. Estou bem. – Garanto
antes de sentir seus lábios sobre os meus. Esquecemos um pouco o
garotinho na sala, esquecemos um pouco todo o resto, nos amamos, isso é
forte e o beijo demonstra o quanto.
— Se me deixar...
— Já disse, isso não vai acontecer.
— Por que é toda perfeitinha? – Ele dá um meio sorriso mais
confiante.
— Porque eu te amo e você me ama também. Agora vamos jantar e
falamos sobre o resto mais tarde.
— Venha para a mesa, Benjamin. – Jared convida de modo duro. O
garoto obedece confuso, acho que não entendeu o que acaba de acontecer,
ou talvez apenas nunca tenha visto uma cena de carinho. De todo modo, vai
ter que se acostumar com amor e cuidado, porque é isso que vai ter aqui.
Capítulo 21
Jared

Eu não esperava por um Brow muito diferente de mim, mas não


estava pronto para uma cópia exata de mim. É como me ver através de uma
máquina do tempo. Sou eu aos oito anos, cheio de mágoa, ódio e vergonha.
Sou eu numa fúria sem fim me corroendo por dentro. Quero tirar
isso dele, jogar fora e, de algum modo, salvar o menino que vive em mim e
que como ele ainda tem medo de sentir.
Quero que ele entenda que eu o amo, mas dizer não vai ser o
bastante, é preciso que o tempo mostre. Sei o que ele precisa, o que espera,
sei dos seus sonhos, mas não sei como dar a ele.
Como posso fazê-lo entender que esse ódio todo um dia vai embora
se ele deixar? Que ele vai encontrar com ela, que ela vai olhar para ele e
tudo vai mudar num segundo e ele vai querer ser melhor do que é. Foi
assim comigo, será assim com ele, preciso acreditar nisso.
Benjamin come de cabeça baixa, devorando o prato de comida
como se não comesse há semanas. Está magro, pálido e abatido, tem
olheiras profundas, parece que não dorme há meses.
Pelo que entendi, a vida com o imbecil que o criou não foi diferente
da minha com meu pai e, como se não bastasse, ele terminou num abrigo e
eu sei quanto de ódio e maus tratos um garoto sofre num lugar desses.
Ele nunca relaxa. Está sempre com o corpo ereto, os músculos
tensos, os olhos assustados e alerta, a espera de uma agressão, pronto para o
perigo. Não vai acontecer e um dia ele vai relaxar.
— Mais? – Claire me pergunta com aquele jeitinho delicado dela.
Os olhos ainda estão brilhando e não acho que vai ser fácil para Benjamin
convencê-la a desistir dele.
—Não. Obrigado. – Procuro ser o mais educado que posso, será
com exemplos que ele vai aprender a ser educado com ela. Eu disse que a
amo, se tivesse me programado, jamais diria, mas quando meu filho a
chama de vadia e sua única preocupação é que eu não me revolte com ele,
eu só consegui contar a ela o quanto eu a amo. Eu tinha que dizer e depois
que disse eu só consegui pensar em como fui um tolo por não dizer antes,
eu não esperava por olhos tão felizes. Claire é transparente, no fundo, acho
que eu já sabia que ela me amava, mas ouvir moveu coisas em mim e me
fez mais forte.
— Quer mais, Benjamin? – Claire pergunta e ele estende o prato
mudo. Ela o serve de mais comida e ficamos os dois ali, olhando sua fome
sem fim ser saciada. Quando termina o prato, parece sonolento. — Já que
terminamos, vamos ao sorvete.
Claire arruma três taças com sorvete e capricha na cobertura para
ele. Benjamin parece surpreso, me lembro de todas as vezes que quis algo
como isso e não pude ter, me lembro de todas as lanchonetes que vi pelas
vitrines com suas famílias felizes tomando sorvetes e rindo.
Sempre achei que sorvetes combinam com sorrisos. Ela estende a
ele que aceita em silêncio, três bolas de sorvete e muita cobertura
desaparecem antes que terminemos nossa humilde e discreta taça.
— Um pouco de televisão? – Claire convida e me levanto. – Vem,
Benjamin. – Ela o chama e ele se senta na poltrona silencioso. Os olhos
pesam e ele mal presta atenção em nada. – Quando tiver sono é só ir para
seu quarto, Benjamin.
— Não tem chave, não confio em vocês. – Tão bom quanto eu
sempre fui, perspicaz cuidando o máximo que pode de si mesmo, deve ficar
feliz por não ter um garotinho ainda menor que ele para cuidar, eu tinha o
Zack, tinha que cuidar de nós dois.
— Arraste um móvel e tranque com ele, se quiser. – Aviso sem
olhar para ele, se for mole demais, Benjamin vai se sentir livre para fazer
todo tipo de malcriação.
— Quero uma chave agora! – Ele exige decidido a me provocar.
— Amanhã é domingo e a loja não abre. Pensei em ajudar você com
os acertos que quer no jardim e na cozinha. – Eu o ignoro de propósito.
— Será bom. Que acha de...
— Não me ignorem! Eu quero uma chave!
— Não, e isso é tudo! – Digo firme. – Quer ir dormir, vá. Não quer,
fique aí até criar raízes.
Subo com Claire ao meu lado, ela está tensa, assim que encosto a
porta do quarto escuto a porta ao lado bater num estrondo. Ele veio, é um
começo.
— E se ele tentar fugir? – Ela me pergunta assustada.
— Não vai. É só um garoto, tem medo, no fundo é o que quer,
planeja isso com riqueza de detalhes, mas não vai a lugar nenhum. Eu não
fui até ser um adulto, até não ter outro jeito senão... você sabe.
Ela me abraça, suspira e tenho medo de que no meio do caminho se
canse.
— Arrependida?
— Não. Com medo. Jared, eu não sei cuidar dele, alimentar,
conviver e não me apegar. Eu preciso que seja por inteiro. Posso amar seu
filho?
Ela é sempre espantosa. Perfeita. Tem tanto amor dentro dela que
poderia dividir com dez dele e ainda o faria se sentir amado e único.
— Quando diz amar...
— Como mãe dele. Com todo meu coração. Se não for desse jeito,
se não estiver livre para isso, não sei como lidar com ele, eu vou amar
Benjamin e não quero que você algum dia...
—Amo você. Toda você. Queria ter dito antes, mas não sabia como
e quando achei que ele tinha ido longe demais eu disse e, agora, mesmo
depois de tudo, quer ser a mãe dele. Amo você, amo nós dois, claro que eu
quero que seja a mãe dele.
— Eu te amo e, se quer saber, achei bem romântico! – Ela diz me
puxando pela mão em direção à cama. – Acho que pode dizer de novo, bem
baixinho no meu ouvido, o que acha? – Ela questiona enquanto vai
desabotoando o vestido, sim, eu posso repetir mil vezes e ainda não será o
bastante.
Amo Claire com lentidão, mostrando a ela a cada beijo que minha
vida não faz sentido sem ela, que meu amor é maior do que qualquer
dificuldade no caminho, que ela é meu norte, talvez ela jamais entenda o
quanto me mudou, mas se eu puder mostrar, então eu farei isso.
Penso em Benjamin antes de pegar no sono e espero que ele consiga
descansar. Tateio pela cama em busca de Claire, pela manhã. É sempre
minha primeira preocupação antes mesmo de abrir os olhos. Quando a
encontro eu a trago para meus braços.
— Bom dia, meu amor. – Suas palavras fazem estrago em meu
coração e abro os olhos em busca de mais alguém no quarto. É estranho ser
eu o seu amor.
— Bom dia. – Digo beijando seu pescoço. Então ela salta da cama.
– Aonde vai?
— Alimentar nosso dragãozinho. – Claire me diz com um largo
sorriso que parece descabido depois do modo como ela foi tratada pelo seu
dragãozinho.
— Sério? Vai me largar aqui? Vou me arrepender no primeiro dia? –
Ela volta para meus braços rindo.
— Se visse sua cara... – Claire diz enquanto vou beijando sua pele e
nos livrando da camisola transparente.
— Que cara? ─ Pergunto mergulhado em desejo.
— De sofrimento, seu grande chantagista! – Ela suspira antes de
seus dedos correrem por minhas costas num rastro de fogo.
Quando descemos, Benjamin está na sala, sentado na poltrona, na
mesma posição da noite anterior. Silencioso e olhando para o nada.
— Bom dia, Benjamin. Dormiu bem? – Claire pergunta.
— Não é da sua conta.
— Café, rapazes? – Claire convida. Benjamin não recusa e se senta
em silêncio. Devora uma tigela de cereal e come torradas. Vou ter que
trabalhar em dobro para alimentar esse saco sem fundo e gosto de pensar
nisso.
— Amanhã vou te levar para conhecer sua escola. – Claire avisa
quando ele comia tranquilo.
— Eu já disse que é uma vadia bem estúpida se acha mesmo que
vou para uma porra de uma escola.
— Saia agora da mesa! – Grito. Não queria fazer isso, gritar com ele
e deixar Claire assustada, mas ele não pode continuar tratando-a assim. –
Vamos, saia! – Ele me olha assustado. – Não pode gritar e maltratar quem te
alimenta. Só vai voltar a comer nessa casa quando se desculpar com ela. É
isso ou vá conseguir sua comida!
Benjamin deixa a mesa e meu coração dói de pena e remorso, não
queria fazer isso. Claire segura minha mão, mostra mais uma vez o quanto é
perfeita me apoiando.
— Está tudo bem. Não precisa se preocupar tanto comigo, ele vai
mudar. Nós vamos ajudá-lo.
— Eu sei, mas ele precisa ver que não somos dois tolos, que ele não
pode dizer e fazer o que quer. Ele precisa de limites. Isso também é um jeito
de cuidar.
Ela me sorri, beija meus lábios carinhosa.
— Você tem razão. Ele volta, não se preocupe, temos seu estômago
do nosso lado. – Eu tive que aprender a conseguir minha própria comida,
assim aprendi a caçar e pescar, espero que ele seja menos esperto e que
escolha se desculpar, opção que eu não tinha.
— Espero que sim. Só quero que ele confie e respeite.
— Ele vai. Tudo vai ficar bem. – Eu beijo seus lábios, nunca
conseguiria não fosse ela estar ao meu lado. – Te amo. E amo nosso
dragãozinho malcriado.
Tomo um gole do café sem a menor fome. Então, ele surge na porta
da cozinha. Encara o chão e sinto vontade de abraçá-lo, dizer que não
precisa sentir medo, que nunca vamos abandoná-lo.
— Desculpe te chamar de vadia, Claire. – Ele diz num fio de voz, se
rendeu tão rápido que começo a ter esperanças.
— Está tudo bem. Eu desculpo. – Claire tem aquele tom de voz
suave, os olhos brilham de alegria por um simples e, talvez, falso pedido de
desculpas, mas de qualquer modo é um grande passo.
— Venha comer, Benjamin. Sente-se. – Aponto a cadeira ainda
caída no chão de quando ele se ergueu assustado. Benjamin coloca a cadeira
de pé, se senta e continua a comer olhando apenas para o prato e nada além
dele.
Ainda tem olheiras profundas e penso se não dorme direito de medo
e tudo que pode ter sofrido na mão daquele monstro que roubou meu filho
tanto tempo, me enche de uma angústia que acho que nunca vai passar.
Quando ele termina o café, não se move, não nos olha, odeio como
ele está sempre esperando a briga, a agressão, como está alerta e
desesperado. Eu deixo a mesa para pegar a sacola com o videogame,
estendo a ele com Claire no meio de um sorriso do tipo, “primeiro presente
do nosso filho”, ela é tão incrível.
— É seu, pode instalar na sala e jogar. – Ele pega a caixa sem saber
o que dizer, abre com olhos arregalados, talvez jamais tenha recebido algo
assim, eu não sei como Jen o tratou, mas ela era louca, insana, não consigo
imaginá-la sendo uma boa mãe.
— Jared, instala para ele. – Claire pede e eu o acompanho até a sala,
ele tira apressado da caixa, me entrega ainda incrédulo e levo uma meia
hora instalando o jogo, depois entrego o controle a ele e o deixo sozinho
para ajudar Claire nas coisas que ela quer fazer.
— Tenho que ficar preso aqui? – Benjamin me pergunta surgindo no
quintal.
— É livre para andar por aí. Só não vá na floresta, a menos que
queira ser devorado, nesse caso, fique à vontade.
Ele não parece se animar com a perspectiva e volta para o
videogame, parece um garoto mais interessado em ar e aventuras, como eu
era, duvido que o jogo prenda sua atenção por mais que um ou dois dias,
mas se ele melhorar, se eu puder confiar nele, compro uma bicicleta, uma
bola, posso instalar uma cesta de basquete, eu sempre achei incrível as
casas em que pais e filhos jogavam basquete no quintal.
Zack tem uma para jogar de vez em quando com o Sam, torço o
nariz pensando que ainda tenho que contar a eles, era para estarmos lá, é
domingo e sempre nos reunimos aos domingos, mas achei melhor nem
cogitar a ideia. Se esse pequeno maltratar a Mary eu nem sei.
Uma coisa de cada vez. Penso voltando ao trabalho. Claire me
chama para o almoço, quando me acomodo, Benjamin já está em seu lugar,
ela nos serve e ele começa o trabalho de devorar a comida, eu não sei se é o
tempero dela, mas o garoto é mesmo um dragão.
Quando termina, volta para sala, eu ajudo Claire com a louça.
— Zack e Abby estão vindo aqui. – Ela me avisa. – Abby ligou
perguntando se não íamos e eu pedi que viessem, não é o tipo de coisa que
se conta por telefone, vão deixar a Mary com o Sam.
— É bom que eles saibam, quem sabe podem ajudar. – Digo até
feliz por poder dividir com meu primo esse problema. Como eu, Zack viveu
aquele inferno, sabe entender o garoto e Abby também, ela tem lidado com
crianças difíceis nos últimos anos.
Benjamin escuta o som do carro se aproximando, parece mais tenso
que o normal, me olha pedindo por respostas.
— Meu primo e a esposa. Pode ficar aqui na sala se quiser, vamos
conversar na cozinha. – Ele não responde, mas não se move e fecho a porta
da sala e Claire recebe Abby e Zack no quintal e os três entram pela
cozinha.
— Vocês estão bem? – Abby parece preocupada, olhando para
Claire a espera de algum sinal. Claire me olha como um incentivo.
— Temos... eu... eu tenho um filho! – Os dois não parecem
compreender, Abby sorri olhando para a barriga dela e depois a de Claire.
— Não! – Claire corrige seus pensamentos. – Eu não estou grávida.
— Jared...
— Zack, não é nada disso! – Corto o que quer que ele pense em
dizer. – Se lembra da Jen?
— Sim! – Ele responde tranquilo.
— Ela teve um filho meu.
— Isso... isso foi há... sei lá, uma década?
— Ele tem oito anos. – Conto ao casal e Abby se senta em uma
cadeira com a mão sobre a barriga. – Ela morreu, tem um tempo, ele estava
sendo criado por um tipo de padrasto que também morreu e me
encontraram.
— Jared, isso é... é incrível! Onde ele está? Você... é claro que vai
ficar com ele, parabéns! Abby, Mary tem um priminho! – Zack está
exultante.
— Escuta! – Eu peço me livrando do abraço. – Senta. – Convido,
nos sentamos todos em torno da mesa. – Não é simples. Ele está na sala. Fui
buscá-lo ontem. – Os dois se olham. – O garoto é o demônio!
— Sendo seu filho não esperava menos! – Abby brinca.
— Não estão entendendo! – Eu insisto. – Ele... ele é revoltado, acho
que... você vai olhar para ele e reconhecer. – Zack sorri de um jeito meio
triste. – É, eu sei, é a história se repetindo.
— Cara, eu nem sei o que te dizer. Na verdade, eu sei, digo que se é
a história se repetindo, então é hora de mudar o final.
— Acho que não sei como.
— Queríamos tão pouco. Você sabe o que ele quer e o que ele
precisa, então dê a ele, eu sei que é difícil, mas... é sério que tem um filho?
– Zack ri feliz como Claire, incapaz de compreender a dimensão do que
está acontecendo. Eu não tenho apenas um filho, eu tenho uma cópia minha
aos oito anos.
— Podemos conhecê-lo? – Abby também está animada, olha para
Claire. – Como você está com tudo isso?
— Feliz, eu posso amar o Benjamim.
— Benjamin? – Os dois dizem juntos. – Roubaram o nome do nosso
filho! – Abby completa rindo enquanto olha para Zack. – Vamos ter que
escolher outro nome.
— Ah! Vão mesmo, porque já temos o nosso Benjamin. – Claire diz
orgulhosa, Abby e ela se dão as mãos sobre a mesa. – Ele é lindo, igual ao
Jared, mesmas expressões, vai ficar impressionada.
— Ele é difícil e eu tenho medo de como vai tratar você e, pior,
como vai tratar a Mary.
— Mary sabe se virar. – Abby avisa se levantando com a ajuda de
Zack. – Ela convive com crianças difíceis. Vamos, quero conhecer esse
pequeno.
— Admita, Jared, ouvir um papai muda o mundo de lugar, não é? –
Zack pergunta feliz como se fosse seu próprio filho.
— Não sei, ele não me chama de pai.
— Chama do que?
— Acho que de nada até agora. – Os dois olham para Claire.
— E você?
—Ah! Ele tem me chamado carinhosamente de vadia! – Ela ri
enquanto eles se olham espantados. – Mas não uma vadia qualquer, a vadia
do Jared! – Seu riso me assusta, que mulher incrível ela é.
— Acho que agora estão entendendo do que eu estou falando. –
Explico a eles.
Quando chegamos juntos à sala, ele está sentado, não se mexe, não
diz nada, mas olha para todos esperando por nossa reação.
— Benjamin, quero que conheça meu primo Zack e sua esposa
Abby.
— Como vai, Benjamin?
— Como você está vendo! – Ele responde ao Zack ficando de pé em
posição de alerta e Zack, como eu, sabe reconhecer.
— Então parece muito bem. – Abby avisa. – Eu dou aulas para
crianças, ensino artes marciais, pode ir conhecer a academia qualquer dia
desses.
— Eu não sou criança, está cega? Tenho dezesseis anos! – Ele grita.
— É bem baixinho para dezesseis, é um duende? – Abby
simplesmente repete minhas falas e me faz pensar que nos implicamos
porque somos parecidos. Benjamin abre a boca para dizer algo, mas olha
para Zack cruzando os braços em tom desafiador e desiste.
Mexer com a esposa grávida do meu primo não é nunca uma boa
escolha e Benjamin percebe.
Sem escolha, ele volta a se sentar ereto, firme, bravo e bonito,
mesmo magrinho, com olheiras e os cabelos precisando de um corte,
Benjamin é uma criança bonita, menor até mesmo para oito anos, frágil,
triste, comove meu coração e sinto a mão de Zack em meu ombro, como se
ele pudesse ler meus pensamentos.
— Bom, temos que ir. Foi um prazer, Benjamin! – Zack diz dando
as costas ao garoto e seguimos todos para o lado de fora da casa. – Jared,
ele... ele está doente?
— Acho que fraco, está comendo bem, entre uma ofensa e outra,
devora tudo que Claire cozinha. – Os olhos de Zack estão tão tristes quanto
os meus. – Eu não sabia, eu nunca nem mesmo... eu teria... eu o teria
abandonado. – Eu admito envergonhado de quem fui.
— Cara, não é hora para pensar nisso.
— Sabe que eu teria feito, se ela me dissesse... acho que por isso ela
nunca pensou em me procurar, eu era um canalha, teria...
— O que você era não importa mais, você é um bom homem agora.
Sempre foi, mas agora....
— Claire, eu sei que quer que acredite nisso, mas eu não era grande
coisa.
— Claire está certa, importa quem você é agora e vai ser um ótimo
pai. Já o abraçou? Porque não é bom em abraços, mas talvez seja hora de
aprender. – Abby diz com lugar de fala, ela também teve que aprender.
— Acho que ele me chutaria a canela se eu tentasse. – Acabo por
rir, ele realmente é igual a mim.
— Esperamos vocês no próximo domingo e, acredite, o Sam... eu
nem sei, ele vai rir muito de você. No fim, é pai primeiro que todos nós,
tem o filho mais velho. – Zack me abraça e depois me solta. – Conte
comigo, está bem?
— E comigo! – Abby diz dando um tapa em meu ombro. – Parei
com as aulas por enquanto, mas assim que retornar, quero o Benjamin lá,
ele vai precisar extravasar essa raiva e eu sei como ajudá-lo.
— Por que acha que ele fica dizendo que tem dezesseis anos? –
Pergunto a ela.
— Porque quer se proteger, porque ele acha que crianças sofrem,
porque pensa que, se for adulto, ninguém vai machucá-lo. Diga-me quanto
sonhou em crescer logo e acabar com a droga que era tudo aquilo? – Ela me
pergunta e eu me lembro de achar que crescer seria como milagre, que
simplesmente tudo acabaria.
— É, eu sei, mas eu vou fazê-lo gostar de ser criança de novo, ou
finalmente, ele não fala nada, mas acho que nunca foi bom para ele, a vida
dele... meu filho está esgotado. – Dizer meu filho é um tipo de novidade
que faz meu corpo todo reagir, eu procuro imediatamente a mão de Claire
enquanto o casal diante de mim sorri, acho que todos eles alcançam a
mudança que é para mim dizer, meu filho.
— Cara, eu tô tão feliz por você! – Zack ri. – Me chama se precisar,
Mary vai amar a ideia, domingo esperamos vocês. – Eles nos deixam, foi
rápido, acho que os dois sabem que precisamos de tempo agora, beijo a mão
de Claire presa a minha.
— Obrigado por isso. – Digo enquanto assistimos o carro se afastar.
– Eu não sabia como contar a ele. Acho que os dois ainda não entenderam
realmente, mas foi bom falar.
— É um choque, mas sabe que pode contar com eles. Nós podemos.
Agora vamos voltar para dentro e descansar, amanhã nossa nova vida
realmente começa. A rotina vai ajudar, meu amor.
— Não me chamou de meu amor na frente deles. – Comento
enquanto seguimos para dentro.
— Queria?
— Acho que sim, a cara do Zack seria impagável.
— Vou deixar para quando o Sam estiver junto. – Agora eu faço
uma careta e ela ri, entramos e me sento na sala, ela vem para meus braços,
colocamos em um filme leve, Benjamin fica imóvel no sofá, reto, pescoço
duro, olhar perdido, pálido, abatido, irritado, e só queria poder abraçá-lo, eu
que sempre odiei qualquer expressão de carinho, sonho agora com um
abraço do meu filho.
Capítulo 22
Benjamin

A água quente dói tanto minhas costas que preciso prender bem a
boca para não gritar. Não demoro nadinha no chuveiro, me seco só um
pouco, olho as costas pelo espelho e fica todo dia pior, acho que isso vai
piorar e piorar até eu morrer.
Não lembro direito de como foi, só que ele chegou bêbado, me
chacoalhou, gritou e me acertou duas vezes com a corrente e, na segunda,
eu apaguei, e quando acordei estavam me levando embora e ele tinha
morrido numa briga ou sei lá o que e eu nem liguei.
Visto a roupa e aquilo é muito ruim, gruda e me machuca. Não
consigo dormir de dor e medo, eu fico sentado no escuro toda noite
esperando quando alguma coisa ruim vai acontecer e todo dia é igual, não
acontece nadinha.
Mas eles não vão me enganar, eu não vou confiar e acreditar, eu sei
que eles vão me machucar qualquer hora, e vão me mandar fazer coisas que
não quero e me odiar como todo mundo.
Mesmo que nada ruim acontece eu sei que um dia vai acontecer.
Calço meu tênis novo e ele é bem bonito e macio e não era de ninguém
antes. Nem era velho. É novinho igual as roupas que eu tenho. Tudo
novinho.
Acho que eles estão acreditando que tenho dezesseis anos. Criança
sofre muito, mas eu não sofro aqui. Ainda não... como, jogo videogame,
assisto tevê enquanto eles ficam de namorinho e depois fico no quarto
quieto esperando coisas ruins.
A comida dela tem um cheiro muito bom e tem todo dia comida e
posso comer quanto eu quiser e mesmo assim eu sei muito bem que logo
isso muda, eles querem enganar a mulher do abrigo, fingir que são bons,
mas eu vou embora que eu sei, eles vão me mandar quando enjoarem de me
ter aqui e, quando eu chegar lá, vou fugir. Um mês foi o que ela disse,
depois eu vou embora.
Já faz cinco dias que estou aqui. Todo dia igual, se não fosse essa
dor nas costas que não para nunca até que não era muito ruim. Fico de pé e
a camiseta gruda nas costas porque tem sangue e está aberto.
Desço para comer, a mesa está posta e os dois estão de risinho um
para o outro. Eles me sorriem, eu não sorrio de volta. Querem só me
enganar.
De noite é mais uma vez igual, sono e só uns cochilos, nada da
porta abrir, nada de coisa ruim e acordo de novo e tomo café.
— Vou andar lá fora. – Aviso só para mostrar bem que eu faço o que
eu quero.
— Toma cuidado e não vai longe. – Jared avisa. Ergo meu queixo,
não acredito nada nessa história que ele é meu pai. Minha mãe falava
sempre que meu pai era um cara briguento, bêbado, que só andava de moto
por aí arrumando briga, ele não é nada disso.
— Tenho dezesseis anos, não sou criancinha não. Eu faço o que eu
quiser. – Bato a porta e ninguém diz nada. Não param de fingir e, às vezes,
penso se é fingimento mesmo. E se for verdade? Não sei se tem gente assim
que nem eles.
Um menino entra numa casa no fim da rua, ele tem uma bola e
decido olhar um pouco e ver como é. E se ele for normal? Não for ruim, e
se tem gente legal de verdade e eles não estiverem mentindo?
Tem um monte de madeira na lateral da casa, tudo empilhada para a
lareira, da para subir e olhar pela janela. Eu quero subir, mas no meio do
caminho fico fraco e mole porque minhas costas doem muito, escorrego e,
quando caio, espalho a madeira.
— Olha o que fez, seu moleque! – Um homem me põe de pé me
chacoalhando o braço e dói tudo em mim.
— Me larga, velho nojento.
— Do que me chamou, moleque estúpido? – Ele me balança e acho
que vai me machucar.
— Ei! Larga ele! – Jared surge muito bravo, o homem fica com
medo dele e me solta na hora. Está sem cor e agora sim, parece o Jared que
minha mãe falou, um homem que todos têm medo.
— Olha o que ele fez? – O homem aponta as madeiras espalhadas
para explicar e está tremendo.
— Ele errou, mas não pode tratá-lo assim, nunca mais toque nele! –
Jared exige e ele fica quieto. — Sabe onde moro, se ele fizer algo errado, vá
me chamar, é comigo que você trata. Comigo! – O homem dá uns passos
para trás assustado.
— Perdi a cabeça. É só um garoto. Desculpe.
— Não tem problema. Ele bagunçou, ele arruma.
Olho aquele monte de madeira pesada e meu coração acelera.
Nunca vou conseguir.
— É muito pesado. – Aviso pensando que vou morrer fazendo isso
com essa dor nas costas, eles vão ver o sangue na camisa e aí sim eu vou
me ferrar de vez, essa merda de gente que quer que eu faça tudo o tempo
todo.
— Você bagunçou, você arruma. Não tem dezesseis anos? Crie
músculos. – Ele fica bem bravo, me dá um pouco de medo. – Quando
acabar, vá para casa e fique longe daquele videogame.
Jared me dá as costas e fico sozinho porque o homem entra na casa
quase correndo. Começo a fazer o que mandou, cada vez que tento, minhas
costas doem e parece que abre mais ainda a ferida. Sinto frio, fico mole, e
vou tentando, é melhor obedecer porque se ele me bater eu acho que não
aguento. Um dia vou embora de todos os lugares e vou ficar sozinho.
O garoto com a bola se aproxima. Está me vendo suar e carregar as
madeiras empilhando quase morrendo.
— Precisa de ajuda? – Balanço a cabeça admitindo que sim e ele
começa a ajudar. – Seu pai é igual ao meu, coisa chata isso. Você está bem?
Parece que está passando mal.
— Não estou me sentindo bem não. – Conto com vontade de
vomitar.
— Quer que eu termine para você? – Ele é bem legal e nego, não
quero irritar o Jared. Terminamos juntos, tenho que agradecer, ele foi legal.
— Obrigado. Vou indo. – Aviso meio tonto. – Sou o Benjamin.
— Michel, eu passo lá na sua casa para brincar quando não estiver
de castigo. Ele falou que você tem videogame, podemos jogar, eu também
tenho um.
— Pode ser.
Jared me mandou ficar longe do jogo. Capaz de dar o jogo para uma
criança.
Vou para casa, entro e fecho a porta sem bater. Vou direto deitar,
nem sei onde eles estão e nem quero pensar. Só me deito e fecho os olhos
de tanta dor, choro porque a dor está maior que todos os dias e são muitos e
muitos dias que minhas costas doem, desde que aquele maldito morreu.
Sinto tanto frio e tanto medo que queria chamar Jared e Claire, mas
eu fiz coisas feias demais e eles vão mandar eu me danar, isso sim. Não
consigo sair da cama e quando me chamarem para comer e eu não for, eles
vão brigar comigo.
Jared brigou feio comigo porque xinguei a mulher dele que ele
adora tanto, mas ele me defendeu quando aquele homem quis me machucar.
Acho que ele pensa que só ele que pode, porque é meu pai.
Será que isso é verdade? Não sei de nada. Só da dor nas costas e da
umidade que tem e acho que está sangrando de novo e nunca mais vou
conseguir tomar banho.
Quero dormir, vomitar, não sei como vai ser. Meus olhos fecham e
deixo a morte vir. Não aguento mais e que se dane. Tento me mexer e solto
um grito de dor. Tampo a boca com medo deles terem ouvido.
Eu não queria ficar chorando tanto, mas dói muito, a cabeça, as
costas e esse frio todo e só consigo mesmo ficar chorando sem parar, com o
rosto enfiado no travesseiro porque nem posso me deitar de outro jeito.
Capítulo 23
Claire

— Vim te buscar para o almoço. – Conto chegando à loja, Jared tem


olhos preocupados. – O que foi?
— Fui dar uma olhada para saber onde ele estava e Benjamin estava
encrencado com um vizinho. Espalhou a madeira do homem toda.
— Ele vai melhorar. Cadê ele agora? Ainda não foi para casa. – Eu
me preocupo.
— Mandei-o arrumar tudo, devia ter exigido um pedido de
desculpas, mas quando cheguei o palhaço estava chacoalhando o Benjamin
e me controlei para não socar o homem, não quero que ele pense que
violência é um caminho.
— Que orgulho! – Sorrio, Jared tem sido muito paciente e gosto de
ver o quanto quer que dê certo. Ele ama o filho, eu sei que ama, mesmo sem
conseguir mostrar. Nenhum de nós consegue com ele tão arredio, mas
vamos encontrar uma maneira.
— É como me ver aos oito anos. Fico pensando que alguém podia,
ao menos, ter tentado comigo, eu tento fazer o que queria que tivessem
feito. É só isso.
— Vai ser o bastante, tenho certeza. Fiz uma comida reforçada,
legumes, carne. Estou preocupada, ele está fraquinho, não acha?
—Acho que ele não dorme. Aquele rosto abatido é de sono e
cansaço. Talvez tenha medo de nós. Pensei em dar uma chave do quarto
para ele. Quem sabe fica mais confiante?
— Fico com medo dele se trancar lá. De todo modo seria um voto
de confiança. Podemos só devolver a chave na fechadura e deixar que ele
decida.
— Pode ser.
Um cliente chega e fico no balcão enquanto Jared o atende, demora
um pouco, mas o homem faz uma compra grande. Quando ele deixa a loja,
Jared me abraça.
— Ao menos os negócios vão bem. – Ele brinca e me encosto nele.
— Isso é muito bom, já preciso voltar ao mercado. – Nosso pequeno
dragão é insaciável, mesmo assim, ainda pálido, fraco e com olheiras, talvez
precise de mais do que boa comida, quem sabe uma consulta médica.
— Vamos almoçar, ele já deve ter voltado. Não sei como se virou,
mas se não colocar freios, daqui a pouco a cidade o odeia e não quero isso.
Sei como é andar de cabeça baixa e ver as pessoas saindo de perto.
Quando passamos pela porta de vidro ele vira a placa avisando que
está fechado e adoro a tranquilidade dessa cidade que não precisa de chaves
e grades.
Abro a porta e entro seguida por Jared. Sinto o cheiro da comida
guardada no forno e acho que Benjamin vai gostar, ele sempre gosta, não
diz nada, mas come tudo que coloco no prato.
— Vou colocar a mesa e...
— Shiu! – Jared me pede silêncio e aguçamos os ouvidos, então
escuto o choro claro de Benjamin no andar de cima. Trocamos um olhar
assustado antes de subir as escadas correndo.
Quando entro ele está deitado na cama, o rosto enfiado no
travesseiro numa crise de choro que me assusta. Ajoelho-me a seu lado.
— Benjamin, o que aconteceu? – Coloco a mão em suas costas para
acalmá-lo e ele grita me assustando, me afasto num salto. – O que foi?
Onde dói? – Toco sua testa, está queimando de febre. – Jared, ele está com
febre.
— Deixa eu ver uma coisa, Claire. – Jared se aproxima, ergue a
jaqueta junto com a blusa por baixo e tenho que tampar a boca para não
gritar. Está sangrando e muito machucado, de um modo que nunca vi.
Completamente infeccionado.
Meu coração para um segundo, depois retoma seu trabalho em
saltos descompassados. Isso é muito grave. Os olhos de Jared revelam sua
dor. Sinto pena dos dois, de como tudo é difícil para eles.
— Meu Deus, ele precisa de médico. É grave, a febre... – Calo-me
com medo de assustá-lo. ─ Todo esse tempo... – Não consigo não chorar
junto com ele. Quero tanto fazê-lo feliz e isso fica tão claro nesse momento
que meu coração dói. – Benjamin, o Jared vai pegar você no colo, tente
aguentar. Vamos ao hospital.
— Não vou tocar nas suas costas, Benjamin. – Jared avisa erguendo
o garoto com cuidado, ele é tão fraquinho que não sinto qualquer esforço
em Jared ao fazer isso, apesar de ser um garoto de oito anos.
Quando descemos, eu sigo na frente para abrir a caminhonete. Jared
tem dificuldade para colocá-lo lá dentro. Ele encosta a cabeça no banco da
frente. Chora silencioso sem nos dirigir um único olhar.
— Não tenha medo, vai ficar tudo bem. – Aviso quando Jared dá
partida e me atrevo a alisar seus cabelos, é o mais perto de um carinho que
já fiz nele.
— Eu não tenho medo de porra nenhuma! – Ele grita chorando e
apenas ignoramos. Não é hora para repreendê-lo.
Somos levados diretamente para sala do médico, quando Jared
coloca Benjamin sentado na maca, eu reconheço a médica que me atendeu
quando Aiden me machucou, parece que foi numa outra vida.
— O que aconteceu? – Ela se aproxima. Benjamin mantém os olhos
nos próprios pés.
— Vou tirar sua blusa, Benjamin, vai doer um pouco, aguenta. –
Jared diz antes de tirar a blusa e vejo a camiseta ir desgrudando da pele e
me sinto fraca. Os olhos da médica se espantam um pouco, acho que ela
não esperava por isso.
— Nossa! – Ela se aproxima com luvas e um olhar assombrado. –
Está muito infeccionado, isso tem semanas. Deite-o na maca, vamos limpar,
fazer curativos e dar antibióticos. A febre é um problema, significa que a
infecção está grande, ele vai ficar aqui até a febre ceder.
Ela nos deixa um momento, acaricio os cabelos de Benjamin, ele
está silencioso, não recua e acho que é apenas porque está fraco demais
para isso.
— Está sentindo alguma dor além das costas? Tem mais algum
machucado? Benjamin, precisa contar tudo para a doutora.
— Minha cabeça e frio. Quero colocar a blusa.
— Vamos falar com ela. – Jared avisa a ele que fecha os olhos. –
Foi um cinto?
— Corrente. – Sinto-me esmagada ao ver a dor cruzar os olhos de
Jared, quantas vezes ele sentiu essa dor? Quantas vezes ficou assim ferido e
não havia ninguém para ajudar? Ele não devia ter que assistir ao seu filho
vivendo o mesmo. Não é nada justo.
Uns minutos depois a médica retorna com um enfermeiro. Eles
limpam o local, colocam Benjamin no soro com medicação, fecham a ferida
e o tempo todo ele nem mesmo resmunga. Fica firme aguentando a dor.
— Doutora, ele diz que está com dor de cabeça e sente frio.
— Senhor, a dor de cabeça e o frio são efeitos da febre e infecção.
Ele vai para a enfermaria e até amanhã tudo isso deve melhorar.
Enfermeiros fazem a transferência, com o soro ligado e a
medicação, Benjamin adormece. Jared se posiciona ao lado da cama sem
arredar pé. Sinto que ele está sofrendo mais do que deveria, sente culpa.
Jared sempre sente culpa, e brigou com Benjamin mais cedo,
mandou-o arrumar a bagunça que fez e, talvez isso, tenha mesmo piorado as
coisas, mas ele não sabia.
— Amor, eu vou procurar a doutora. Não demoro.
Ele assente sem tirar os olhos do garoto dormindo de lado com soro
no braço e um rosto pálido. Os exames de sangue devem ter chegado e
quero saber como Benjamin está.
Encontro a doutora caminhando ao lado do xerife Parker.
— É ela, xerife.
— A Claire? Estamos falando de Jared Brow? – O xerife pergunta e
paro sem entender o que se passa. – A doutora está errada, se o garoto
chegou machucado, não foi ele. – Os dois me olham e sinto que mereço
uma explicação.
— O que está acontecendo? – Pergunto ao xerife.
— A doutora me chamou, Claire, ela achou que era muita
coincidência atender você vítima de agressão e depois o Benjamin, e os dois
trazidos pelo Jared.
— Claro. Jared é a pessoa mais especial que conheço, ele não tem
nada com isso, doutora. Quem me machucou, eu já disse, foi o Aiden,
Parker pode confirmar e, quanto ao Benjamin, ele chegou para nós há
poucos dias. Antes disso, não sabíamos da sua existência. – Não queria ficar
brava, mas ele está sofrendo tanto, ser confundido com o agressor do
próprio filho depois de tudo que viveu é algo que não merecia.
— Desculpe, Claire, é minha obrigação avisar à polícia se tenho
desconfiança.
— Agradeço, é bom saber que ele está bem assistido. Benjamin é
arredio, revoltado, não nos deixa aproximar. Estava fraco, pálido, achamos
que não dormia bem porque tinha medo de nós, que com o tempo as coisas
melhorariam.
— Entendo, aquele machucado deve ter feito a vida dele um inferno
todos esses dias. – Não ajuda saber disso, pelo contrário, só faz doer mais
em mim.
— Eu e Jared devíamos tem pensado em trazê-lo a um médico
quando chegou, ele é magro demais, fraco, achei que boa alimentação seria
o bastante.
— Quando ele se recuperar vai ser. Ele está anêmico, precisa
mesmo de boa alimentação. Descanso, e claro, carinho. Os medicamentos
estão fazendo efeito, amanhã ele vai para casa e vou receitar, além dos
antibióticos, umas vitaminas, para ajudar no processo de recuperação.
— Que bom, doutora, obrigada.
— Já que está tudo esclarecido, eu vou voltar ao trabalho, nem vou
dizer ao Jared que estive aqui, já sabemos como isso vai afetá-lo. – Ele me
olha e concordo, já está mais culpado do que deveria e saber que de novo
desconfiaram dele só vai feri-lo mais.
— Obrigada, Parker. – Ele acena e parte.
— Desculpe mais uma vez. Podem ficar com o Benjamin e vou
mandar servir uma sopa para ele. Vamos ver como reage à alimentação.
Volto para perto de Jared, explico sobre a anemia e escondo a visita
do xerife.
— A febre acho que baixou, ele está fresco. – Ele conta
tocando sua testa.
— A doutora disse que vamos embora amanhã, lá a gente cuida
dele. Talvez isso seja um jeito de nos aproximarmos.
— Não queria que fosse assim, não devia tê-lo mandado recolher
toda aquela madeira...
— Não é sua culpa. Não machucou o Benjamin, erramos quando
não nos demos conta de como ele estava, mas somos inexperientes. – Tento
aplacar um pouco sua culpa, mas sei que é inútil.
— Teoricamente eu sei disso, mesmo assim não é fácil.
— Vamos passar a noite aqui. Não quer ir comer e respirar um
pouco?
— Não. Quero que ele veja que não está sozinho quando acordar, eu
sei que ele pensa que vamos largá-lo aqui. Vai ficar surpreso quando
descobrir que não.
A enfermeira entra com uma bandeja. Deixa numa mesa e acho que
tenho que acordá-lo. Sinto pena, nem sei quando foi que esse garotinho teve
uma noite de sono tranquila, se é que algum dia teve.
— Benjamin... – Toco seu ombro, o sono é leve e ele acorda
assustado. Olha-nos e, como Jared disse, fica surpreso. – Precisa comer um
pouquinho, o Jared vai sentar você.
Jared o ajuda. Claro que ele podia fazer sozinho, mas quero unir
logo esses dois e acho que, de algum jeito, essa aproximação funciona.
Benjamin olha para a bandeja a sua frente e depois para o braço
preso ao soro, não gosta de ter uma agulha enfiada no braço e seus olhos
não escondem isso, mas nenhuma criança gosta.
— Não consigo com isso.
— Vou dar na sua boca. – Benjamin parece ter ouvido algo absurdo
só pelo modo espantado com que me olha.
Começo a alimentá-lo, a sopa não é grande coisa, posso fazer
melhor quando chegarmos em casa, mas ele não se importa, engole
colherada após colherada sem acreditar que estou dando comida em sua
boca, mesmo sabendo que ele poderia usar a outra mão, no fundo, acho que
ele está encantado com a situação.
— Estou com febre? – Ele pergunta e Jared toca sua testa.
— Não. Está doendo?
— Agora não.
— Vou morrer logo?
— Claro que não, esse remédio na veia vai fazer você melhor bem
rápido. – Digo apressada e domando a vontade de rir do seu drama.
Depois da sopa, ele come a gelatina, nada lhe tira o apetite. Então,
ele olha para a cama e depois para Jared, não precisa de ajuda, mas sinto
que quer ser ajudado. Jared se precipita sem esperar um pedido e o ajuda a
se deitar.
— Vamos ficar aqui e de manhã vamos para casa. Não se preocupe,
pode dormir.
— Estou com sono. – Ele fecha os olhos e apaga na mesma hora.
Ficamos os dois sentados em duas cadeiras ao lado da cama assistindo as
horas passarem, uma enfermeira entrar algumas vezes, medir febre e trocar
o soro, trazer mais uma refeição que dou em sua boca e sinto que ele nem
mesmo registra porque está assonado e confuso.
A febre volta forte na madrugada. Benjamin choraminga dormindo,
abre os olhos vê o pai ali, os dois se encaram um longo momento. Quando
vão se reconhecer como pai e filho? Ver Jared acalma Benjamin que
adormece novamente.
A doutora vem logo cedo, ele toma leite e come biscoitos, fica tenso
quando a vê.
— Como se sente, Benjamin?
— Não te interessa! – Ele responde para espanto geral.
— Que garotinho educado! – Ela reage.
— Garotinho porra nenhuma, tenho dezesseis anos.
Ela me olha e sinto que agora entende perfeitamente porque não
descobrimos antes que estava ferido.
— Ele pode ir para casa. Esta é a receita dos antibióticos, dê nos
horários certos, limpe e feche o curativo à noite para ele dormir tranquilo.
Mantenha aberto durante o dia, seco e respirando para ajudar na
cicatrização. Vão ficar algumas marcas, mas ele vai crescer e elas não serão
grande coisa.
— E a febre? – Jared pergunta preocupado.
— Se subir muito voltem, mas não deve ser um problema. Boa
alimentação e descanso por uns dias. – A enfermeira retira o soro enquanto
conversamos, ele não tem qualquer reação, parece querer mostrar que é
forte.
— Obrigado, doutora. Vamos cuidar de tudo e quando voltamos? –
Jared aperta sua mão.
— Uma semana. Quero ter certeza de que está cicatrizando.
Ela nos deixa, a enfermeira faz o mesmo, pego a roupa de
Benjamin, me aproximo dele, ele se retrai me olhando tenso e só entrego as
roupas. Benjamin se veste sozinho.
— Consegue andar?
— Não sou nenhum fraquinho não! – Ele esbraveja, para minha
surpresa Jared ri.
— É o tipo de resposta que eu daria. – Benjamin vai caminhando na
frente, eu e Jared o seguimos e, no carro, ele se senta ereto, agora entendo
por que parecia sempre ter aquela postura de nunca relaxar. Como fomos
desatentos...
— Para na farmácia no caminho. Aproveita que vai comprar os
remédios e compra material para eu fazer os curativos.
Jared concorda, Benjamin mudo no banco de trás. Quando
chegamos, ele se senta em sua poltrona, acho que não quer ficar sozinho e
entendo seu medo.
— Daqui a pouco é hora do almoço, vou cuidar da comida. –
Saímos correndo, a comida ficou no forno, deve ter estragado tudo, melhor
fazer algo fresco, Benjamin não pode comer nada que faça mal, já passou
por maus bocados.
— Vou dar uma olhada nessas últimas caixas da loja. – Jared se
senta no sofá com as últimas caixas que precisam ser organizadas, acho que
Benjamin adoraria conhecer a loja, ajudar ao pai. Quem sabe os dois se
aproximariam.
— Você disse para eu ficar longe do videogame. – Benjamin lembra
Jared. Ao menos é obediente, pena que não tem nada de respeito nisso, é
apenas medo.
— Vá em frente, pode jogar.
Michael vem nos ver no meio da tarde, é um pouco mais velho que
Benjamin, os dois se conheceram juntando a lenha, o garoto é simpático e
educado. Imagino que seja um pouco sozinho também.
— Benjamin dormiu no sofá. Eu vou para casa. – O garoto avisa
invadindo a cozinha. – Tenho lições para terminar.
— Volte quando quiser. – Sorrio para o garoto, talvez uma amizade
ajude Benjamin a se adaptar e, quem sabe, até se anime a frequentar a
escola.
— Eu volto. – Ele gosta da ideia.
— Quero muito que Benjamin vá para a escola, mas ele odeia a
ideia e estamos dando um tempo, quem sabe depois que melhorar e sabendo
que já vai ter um amigo, ele se anime um pouco.
— Deve ser porque ele não sabe ler. – O garoto conta com
tranquilidade para meu total espanto.
— Não? Ele te disse?
— Percebi quando jogamos, ele não sabe ler o que o jogo pede, tive
que ler para ele. Acho que, por isso que ele não quer ir, já é grande e nem
sabe ler.
— Tenho certeza de que deve ser isso, mas ele é pequeno ainda,
logo vai estar lendo muito bem.
O garoto vai embora, eu vou até Jared mexendo nas caixas e indo e
vindo da loja, com a porta aberta, podemos ouvir a sineta e ele não está
querendo muito trabalhar com Benjamin doente.
— Precisa de alguma coisa? – Ele me pergunta quando me
aproximo.
— Sim. Caderno e lápis. Descobri que Benjamin não sabe ler, eu
vou ensiná-lo aqui uns dias antes de mandá-lo à escola.
— Por isso esse pavor de ir à escola. Quando penso em tudo que
passou sinto uma raiva de não saber. Não precisava ter sido assim. Ele
nunca vai esquecer tudo isso. – Jared desabafa angustiado, é difícil e não sei
se temos como fazê-lo esquecer, mas podemos garantir que nunca mais se
repita.
Eu o abraço. Foi um dia longo estamos os dois cansados e essa
desesperança é aceitável.
— Não vamos perder, não é? – Ele tenta sorrir. – Benjamin vai
gostar de ter aulas com você.
— Acho que vai fazer um escândalo, vamos ver. Se ele estiver bem
amanhã começamos.
Fico sozinha com Benjamin, coloco a mesa do almoço e arrumo seu
quarto. Ele se mantém na sala, sonolento por conta dos remédios, mas firme
em sua poltrona.
Jared me entrega a sacola com o que pedi, não deixo que Benjamin
veja, uma coisa de cada vez. Almoçamos em silêncio, o pequeno cheio de
fome, mas lutando com o sono, ele passa a tarde toda na poltrona, tenta
jogar, mas desiste, cochila vez por outra assistindo a desenhos enquanto eu
cuido da casa e preparo algumas aulas. Jared vem da loja cedo, o jantar já
está pronto, preciso convencer esse garoto a comer e ir para cama, ele tem
que se deitar um pouco.
— Acho que podemos jantar. O Benjamin precisa comer bem e
dormir cedo.
— Eu durmo a hora que eu quiser.
— E fiz uma sopa de legumes com carne. Eu sei que não é o prato
preferido de nenhum dos dois, mas...
— Está ótimo, vamos adorar. – Jared me acompanha e Benjamin
entra na cozinha logo depois. No momento, decidimos ignorar seus ataques.
— Estou com febre. – Ele comunica solene. Toco sua testa, está
fresco, os remédios fortes não permitem que a febre suba.
— Não tem febre, Benjamin. Está muito bem.
Mais uma vez ele come como se fosse sua última refeição e penso
que deve ter passado muita fome. Depois, ele volta para sua poltrona, não
entendo por que ele gosta tanto daquele lugar, mas ele se encolhe ali todo
torto porque não consegue se encostar e adormece.
— Está cansado, mas acho que não quer ficar sozinho. – Jared
sussurra.
— Coloca ele na cama, mas não o acorda, coitadinho, precisa
descansar.
— Eh! coração mole! – Ele brinca me beijando. – Tadinho, tão
educadinho, trata você com tanto carinho, sempre com elogios. – Jared ri.
— Eu realmente não me importo. Parece estranho, mas eu sei que é
tudo da boca para fora, no fundo é só um garotinho com muito medo.
Jared o carrega para cama, toca sua testa para ter certeza da
temperatura, eu troco seus curativos, ele acorda, abre os olhos quando estou
fechando com ataduras, mas volta a fechá-los e sinto que, de algum modo,
ele começa a confiar em nós. Beijo seus cabelos e deixamos o quarto.
Deixar o quarto não é bem a palavra. A noite toda vejo Jared
caminhar de um quarto para outro, preocupado e atento, a cada volta
pergunto sobre Benjamin.
Não sei como vai trabalhar, Jared é um pai cuidadoso e nem sei se
compreende isso, seus instintos são sempre o de proteger e ele faz isso
como ninguém. Quando Benjamin acorda, estamos os dois de pé olhando
para ele.
— Melhor? – Ele não parece estranhar nossa presença em seu
quarto logo cedo.
— Estou com febre, eu acho.
— Vê para mim, Jared. – Peço porque gosto dos dois perto e Jared
toca sua testa, pescoço, afaga os cabelos, ele não reclama.
— Está sem febre. Vamos descer e tomar café.
Quando terminamos o café da manhã, pego o caderno, ele se põe de
pé assustado.
— Não quero ir, não posso, estou com muita dor, febre, não
aguento, vão rir de mim, não quero que riam, não vou. – Ele não xinga,
grita, só pede e chora. E parece tanto um garotinho que quero abraçá-lo.
— Sente-se, Benjamin. Vamos estudar em casa, eu vou ser sua
professora.
Ele se espanta. Olha de mim para Jared que apenas confirma.
Benjamin obedece. Depois de me despedir de Jared que vai trabalhar, me
sento com Benjamin e ele está atento.
— Vamos estudar todas as manhãs. Vou te ensinar a ler, escrever e
fazer contas.
— Sabe tudo isso?
— Sei. Posso ensiná-lo?
— Não conheço as coisas, eu não sei de nada. Nunca fui à escola. –
Ele conta em um surto de honestidade que eu estranho.
— Então é por isso que estamos aqui. Que tal aprender a escrever
seu nome, Benjamin?
Os olhos brilham, não sei muito como começar, mas o que importa
é que de algum jeito ele vai aprender e depois frequentar a escola. Benjamin
se mostra um aluno aplicado, atencioso e a cada movimento que o lápis faz,
cada elogio que recebe de mim seu esforço em não sorrir se torna maior.
Nem vejo a hora passar dividida em ensiná-lo e preparar uma
refeição.
— Claire, eu fiz mais um. Vem ver se ficou bom. – Cada vez que ele
escreve seu nome ele me chama. Largo tudo, já escreveu uma folha inteira.
— Muito bom, cada vez melhor!
— Está escrito Benjamin. – Ele me comunica como se não tivesse
sido eu a ensiná-lo.
— Sim. Agora vamos ver se consegue sem olhar o modelo? – Viro a
folha, ele encara o papel em branco muito atento. Morde a língua quando
aperta o lápis com força e com o tempo será mais fácil. Assisto as letras
irem se juntando com todo cuidado até que ele finaliza com um n perfeito e
os olhos brilham.
— Acertei?
— Muito bom. Sua letra é muito bonita. – O almoço fica pronto,
Jared já deve estar chegando. – Agora guarda e vamos almoçar, depois pode
jogar videogame.
— Eu gosto de ficar fazendo lição. Não quero ficar jogando não.
— Tudo bem.
Coloco a mesa do almoço com ele me observando, vez por outra
olha para porta e algo me diz que espera por Jared, que abre a porta
apressado.
— O cheiro me guiou.
Ele me envolve, afasta meus cabelos, me beija de leve. Seu rosto
está mais calmo, sinto que nos ver faz bem a ele.
— Eu e o Benjamin ficamos estudando muito. O almoço é simples.
— Acostumei-me com você indo lá toda hora. Achei estranho que
não foi.
— Acho que isso se chama saudade. – Ele não consegue dizer que
sentiu saudade, mas o que importa é que sentiu e gosto de saber.
— Aprendi a escrever meu nome. – Benjamin comunica orgulhoso.
— Já? No primeiro dia?
— Quer ver? – Benjamin deixa a cozinha para buscar a lição.
— Andou atrás de mim a manhã toda. Não consegui fazer nada
direito. – Meu sorriso é tão grande que Jared se levanta e vem me beijar.
— Por isso está toda feliz?
— Aqui. – Benjamin estende o caderno a ele.
— Claire, não pode fazer para ele.
— Não foi ela não. Fui eu. Está escrito Benjamin.
— Você? Mas isso está muito bom. Parabéns! Tem uma letra muito
bonita!
O orgulho se estampa eu seu rosto, Benjamin vai guardar o caderno
e se acomoda para comer. Nessa hora esquece tudo, come atento ao prato,
repete como de costume. Depois continua conosco.
— Acho que estou com febre. – Ele parece mesmo cansado e talvez
esteja.
— Só um pouquinho, mas é porque já é hora do remédio. – Eu
comunico depois de tocar sua testa.
Ele aceita o remédio sem reclamar, o rosto está tão suave que tenho
medo de perder isso. Sei que ainda não é perfeito, mas pode ser, são passos
largos esses, um dia ele vai ser meu filho, sinto isso quando vejo seus olhos
brilhantes porque agora sabe escrever seu nome.
Capítulo 24
Jared

Abro a porta da sala no fim do dia e escuto a conversa dos dois na


cozinha. Benjamin está mais calmo nos últimos três dias. Desde que chegou
do hospital e começou as aulas, parece mais confiante.
Talvez a revolta estivesse na dor intensa que devia sentir. Agora
com o ferimento cicatrizando, ele está tentando, ainda tem suas respostas
grosseiras, normalmente nem se dá conta.
— Ficou perfeito. Agora vou colocar a mesa para o jantar, acho que
chega por hoje. Fez muitas lições.
— Boa noite! – Cumprimento e Claire abre um largo sorriso, não
me recebe nunca de modo diferente, sempre com um sorriso e Benjamin
não sabe, mas para mim isso também é novo e, como ele, eu também estou
aprendendo.
— Oi amor! – Não me acostumo, meu coração sempre acelera
quando ela fala assim e ainda preciso lidar com a sensação estranha de
parecer fraco e idiota quando ela me chama de amor, mas no fundo, eu
gosto, porque me lembra que ela se importa e me ama. – Com fome?
— Não. Acho que é cedo ainda. – Sento-me ao lado de Benjamin.
Todos os dias faço questão de olhar seu caderno para ver sua alegria ao
receber elogios, passei minha infância caçando um elogio que nunca veio. –
Muita lição?
— Uhm! Olha essa. – Ele me mostra o caderno. – Um monte de
coisas escritas, quer que eu leia? Estou aprendendo, Claire disse que
amanhã vamos numa livraria comprar um livro, um meu mesmo, não dos
outros.
— Boa ideia. Deixe-me ver isso. – Folheio o caderno, a letra
caprichada e fico pensando se ele fez mais alguma coisa além de escrever. –
Nossa, como você é esperto. Cada lição bem-feita...
— A Claire falou isso também. – Ele estufa o peito.
— E o videogame? A Claire te põe para estudar o dia todo e não
consegue nem brincar?
— Eu gosto mais de escrever e ler.
— Que bom. Você é muito inteligente. Parabéns! – Ele me olha
espantado, talvez, assim como eu, elogios não têm feito parte de sua vida.
Sabemos pouco dele, Benjamin não fala nada, mas pelo que vemos, dá para
entender o quanto foi difícil.
— Acho que agora pode ir tomar banho e, depois, vamos fazer seu
curativo e vai jantar, está com fome? – Claire pergunta se aproximando.
—Sim, sua comida tem cheiro bom. – Ele elogia Claire, a primeira
vez que vemos ele fazer algo assim e me encho de esperança.
— Obrigada. – Ela sorri para ele e vejo o quanto se controla para
não pegá-lo no colo e enchê-lo de carinho, Benjamin não sabe o que está
perdendo.
— Acho que eu estou com febre. – Ele diz a ela. Medir sua febre é o
que fazemos a cada dez minutos e não entendo que medo é esse dele de ter
febre.
— Deixe-me ver. – Toco sua testa, seu pescoço. Meu filho, os
mesmos olhos tristes e ansiosos, é como um portal para o passado, tem
tanto que quero oferecer a ele. – Não tenho certeza... O que acha, Claire?
— Vamos ver... – Ela faz o mesmo que eu, termina com um afago
no cabelo que o confunde um pouco e ele se retrai. – Está muito bem.
—Eu vou tomar banho. – Escuto seus passos escada acima. Puxo
Claire para meus braços, ela acaba no meu colo.
— Nem foi ficar comigo um minutinho. – Reclamo com algum
ciúme.
— Eu sei, desde que ele chegou não fui mais. É que não quero
deixá-lo e, agora que está estudando, ele anda atrás de mim o dia todo. Vou
sentir falta disso quando ele for para escola.
— Não sei como vamos convencê-lo, mas se ele não for, vamos ter
problemas com a assistente social.
— Por enquanto estamos indo bem. Não quero assustá-lo. Deixe
que aprenda comigo um pouco mais, para não se sentir inferior aos garotos
quando for. Ele é tão dedicado que em um mês vai estar ótimo!
— Você que manda! – Ela passa os braços por meus ombros e me
beija.
— Amanhã deixo ele jogando um pouco e vou te ver.
— Vou tomar um banho. Está linda, sabia? Adoro quando usa esses
vestidos. É tão perfeitinha. – Elogio propositadamente, eu nunca me lembro
de dizer coisas assim a ela e Claire merece tanto, é tão especial, me faz feliz
de um jeito que eu jamais pensei que poderia existir.
— Gosto quando me chama assim.
— Bom saber. – Beijo seu pescoço e ela deixa meu colo.
— Vai lá que vou desligar o forno e colocar a mesa.
Quando desço, Claire está preparando as coisas para o curativo de
Benjamin, me sento no sofá e sinto pena quando ele se dobra obediente para
o tratamento. Ele se esforça para não chorar ou reclamar, mas imagino que
aquilo não seja nada fácil para ele.
Não bastava tudo que temos em comum, ele, assim como eu, vai
carregar suas marcas, as mesmas que eu, parece até uma piada do destino,
uma brincadeira de mal gosto.
— Está muito bom, Benjamin. Sarando direitinho.
— Nem dói mais. – Ele diz quando ela fecha com gaze e
esparadrapo.
— Pronto! Agora o jantar.
Jantamos conversando, eu e ela. Benjamin com a cara enfiada no
prato nunca vê nada além da comida nessa hora. Acho que ainda age como
se a comida fosse acabar. Sei também como é isso, sei tudo sobre ele, eu
sou ele adulto.
— Abby está nos esperando domingo. – Claire me lembra.
Benjamin olha um momento para nós e sei que está pensando onde
ele fica nessa história.
— Disse que vão uns garotos que ela dá aula, assim o Benjamin não
será a única cria... O Único rapaz. – Ela se corrige com medo de um
escândalo.
— Eu vou se você quiser. – Ele se apressa.
— Claro que vai, vamos todos. – Aviso com esperança de ele
começar a se soltar um pouco. – Vai conhecer o resto da família.
Depois é o de sempre: ele vai para o sofá, finge dormir e eu o
coloco na cama, Claire beija sua testa e, como ele finge dormir, não pode se
esquivar. Desejamos boa noite que ele não responde porque está fingindo e
vamos para cama.
— Senti saudade. – Ela diz quando nos deitamos. – Tenho vontade
de ficar lá na loja, mas ele quer aprender e aprender, e eu acho que estou
completamente apaixonada por ele.
— Nossa, que medo! – Brinco com ela. – Ainda bem que é de um
garotinho que estamos falando.
— Eu te amo. Sempre vou amar. Isso não muda, não passa, amor
assim nunca acaba.
— É só isso que me importa. – Ela me sorri, linda e perfeita. E eu a
amo mais que qualquer coisa. – Amo você. Agora tenho que aproveitar
enquanto está aqui pertinho, depois corre de mim que eu sei.
— Corro nada. Você que é todo espaçoso. Eu já disse e, no fundo,
eu bem que adoro, assim de manhã você me puxa para você. Às vezes
acordo e fico só esperando.
— Perfeitinha! – Digo em seu ouvido enquanto minhas mãos
correm por seu corpo e sinto-o reagir de imediato, é assim conosco, não
precisamos de muito, qualquer toque nos acorda e, então, é só nossos
corpos respondendo, nos procuramos, atendemos aos nossos desejos e
nunca pensei que poderia ser assim tão completo. Claire superou o passado
doloroso, eu consigo, ao menos na cama, mostrar a ela o quanto a amo e
somos felizes.
— Jared! – Meu nome em seus lábios no meio do seu desejo por
mim só me faz queimar. É como ser dono de suas emoções, me faz sentir
importante.
— Claire! – Sinto seu corpo arquejar, sou viciado nela, na pele, no
sabor, em cada parte dela.
Depois é aquela sensação de paz, voltamos para a terra de modo
lento, entre beijos, com seus dedos tocando em mim, me mostrando que me
ama e isso me enche de mais amor.
— Nunca é igual. – Ela diz em meus braços. – É sempre melhor e
melhor.
— Amo você. – Beijo seu pescoço, me enrolo nela e adormecemos.
Pela manhã, como de costume, caço Claire pela cama e, quando a puxo para
mim, ela sorri mesmo antes de abrir os olhos. Como posso ser eu o dono de
toda essa felicidade? – Bom dia. – Digo com o rosto mergulhado em seu
pescoço.
Ela se cola a mim, sempre entregue, minha e perfeita. Sair da cama
é todo dia mais difícil. Não quero deixá-la, antes de Claire, cama era só um
lugar onde descansava meu corpo por umas horas e depois corria dela
irritado, como se ali eu me sentisse doente e sozinho. Agora não, agora é
meu melhor momento.
— Vem, amor. Nosso garotinho é faminto e não gosto de descer e
vê-lo sentadinho na sala solitário. – Ela convida quando estamos prontos
para descer.
— Nosso, não é? – Digo envolvendo Claire mais uma vez e
impedindo que abra a porta do quarto. – Adoro como gosta dele e, pronto,
sem medo, sem dúvidas.
— Porque você me enche de certezas.
Descemos e lá está Benjamin. Ele fica de pé quando nos vê, posso
jurar que os olhos brilham.
— Estou com febre, Jared.
— Quero ver.
Toco sua testa. Ele fica atento esperando a resposta.
— Muita febre? Acha que vou morrer logo?
— Claro que não. Acordou faz tempo?
— Sim. – Sinto que ficou ansioso. Talvez ficar sozinho tenha criado
isso.
— Vamos tomar café?
Depois do café, enquanto me despeço de Claire para abrir a loja, ele
corre para buscar o caderno e fico pensando o quanto sentia falta de ter
estudos, eu ia quando queria, quando não estava machucado demais, ia para
acabar arrumando uma briga, para ser diminuído por professores que me
achavam burro, teimoso e incapaz, não era diferente com Zack.
— Depois vou te ver.
— Espero você.
A manhã corre rápido. Com o fim de semana se aproximando, a loja
sempre tem mais movimento, todos querendo comprar material para pesca e
caça no fim de semana.
Almoço em casa como todo dia. Depois volto para loja. Claire
chega no fim da tarde, meia hora antes de fechar.
— Oi! – Ela sorri, me beija e passa os olhos pela loja.
— Nem pensar. – Aviso sabendo que ela já procura algo para
limpar. – Cuido disso amanhã. Foi comprar um livro?
— Não, deixei para amanhã. Assim aproveito para fazer tudo que
preciso. Podemos levá-lo ao cinema no domingo? Na volta da casa do Zack.
Nunca o levamos a lugar nenhum.
— Já disse que manda em tudo! – Ela sorri, um senhor entra para
mais compras, ela me olha e faço sinal para atendê-lo. Quero realmente que
ela aprenda, quero que Benjamin aprenda também, que seja o negócio da
família.
Quando ficamos sozinhos de novo, eu fecho a loja.
— Benjamin ficou bem?
— Disse que vinha um pouco aqui, que ele podia vir nos encontrar
se quisesse, ele ficou jogando videogame.
— Vamos. – Convido depois de conferir que está tudo fechado.
Quando entramos, ele se põe de pé. Os olhos vermelhos e cheios de
lágrimas. O rosto até pálido.
— Estou com muita febre. Olha, Claire. – Ele puxa sua mão, faz
com que toque sua testa, solta a dela e pega a minha. – Vê, Jared. Acho que
eu vou morrer, estou com muita febre, muita mesmo.
— Não está, Benjamin, está ótimo, se ficou com medo, era só ter
ido nos encontrar. Eu disse que podia.
— Sua burra! Não fiquei com medo merda nenhuma. Não tenho
droga de medo nenhum! – Ele chora. – Sou grande já. Não um bebê
medroso!
Ele corre escada acima. Eu e Claire trocamos um olhar, os dois sem
reação. Foi tolice pensar que esse tipo de atitude tinha acabado, ele ainda
tem muito que vencer.
— Ao menos sabemos que ele não gosta de ficar sozinho. – Digo a
ela tentando amenizar sua expressão de desespero.
— Não sei o que me deixa mais passada, os ataques dele ou a sua
calma diante disso. Sempre fica tão tranquilo.
— Conheço seus medos, só não sei como fazer parar.
— O tempo, amor... Só o tempo. Vou cuidar de tirar o jantar, ele
desce para comer. – Ela suspira calma também, não que a gente esteja
aceitando tudo isso, apenas estamos sendo pacientes.
— É o que espero, nenhum dos dois vai buscá-lo, ele vai ter que vir
sozinho.
— Ele vem, comer é algo que ele simplesmente não resiste, acho até
que já engordou um pouquinho.
Quando nos sentamos apenas os dois para jantar, sinto pena, é
preciso muita força de vontade para não correr para buscá-lo. Escuto seus
passos na escada e me preparo para o caso de mais um ataque.
— Desculpe, Claire. Desculpe, Jared. – Ele diz abatido, sinto pena,
mas além da pena, sinto a surpresa, está aí algo que eu não contava, um
formal pedido de desculpas. — Eu risquei todo caderno, me arrependi e
queria arrumar, mas usei a caneta e não consigo.
— Ainda bem que temos outro caderno. Está tudo bem. – Só então
ele ergue o olhar também surpreso por Claire não brigar com ele.
— Sente-se, Benjamin. – Digo e ele olha para seu lugar com prato e
copo, se senta em silêncio.
— Eu estou com febre agora. Não sei se consigo comer. Não fiz
curativo antes do jantar.
— Vou fazer depois do jantar. – Claire diz quando toco sua testa só
para tranquilizá-lo, ele se arruma na cadeira ansioso e envergonhado.
— Sem febre. Benjamin, já foi ao cinema? – Ele me olha surpreso.
Nega. – Vamos no domingo.
— Eu vou também?
— Sim. Vai escolher o filme.
— Não acho essa casa muito pequena não. Antes eu achava.
— Que bom. Acho que se acostumou. – Claire sorri. Pensa em
acariciá-lo, chega a erguer a mão, mas desiste com medo de ser recusada.
No domingo pela manhã, Benjamin desce vestindo calça jeans, os
tênis novos, uma camiseta que nunca tinha usado e a jaqueta. Eu e Claire
trocamos um olhar. Parece ser seu jeito de nos lembrar que prometemos
passear com ele.
Deixamos a casa logo depois do café da manhã, eu não consigo
disfarçar muito bem a preocupação com seu comportamento na casa de
Zack, não quero que ele seja grosseiro com Mary. A pequena é tão amorosa
e gentil, não vai entender se o primo foi desrespeitoso, ao mesmo tempo,
tenho esperança de que essa aproximação o ajude a mudar de atitude, a se
libertar um pouco.
No caminho, enquanto dirijo, eu o assisto encostar-se no banco e
relaxar, é uma coisa tola, mas me emociona, ele ficava o tempo todo
protegendo as costas feridas enquanto eu achava que estava apenas em
alerta, passou noites e noites em claro, com dor e eu não sabia, eu não sabia
nada do meu filho.
Sam é o primeiro a nos receber, vem da cabana com um sorriso
debochado no rosto, Claire ri da minha careta.
— Cadê ele? – Pergunta enfiando a cabeça pela janela do carro,
assusta um pouco Benjamin. – Você é o cara de dezesseis anos? – Pergunta
a Benjamin que o olha com desdém.
— Podemos apenas chegar? – Peço deixando o carro. Sam abre a
porta para Benjamin, os dois se olham um momento.
— Sou o seu tio Sam. – O garoto não parece muito animado. – Você
se parece com seu pai. Mary deu mais sorte e se parece com a mãe. –
Benjamin não sabe como reagir ao falante Sam. – Moro ali na cabana,
depois vamos lá ver minha casa, e podemos jogar um pouco de basquete, de
modo geral, meu conselho é: proteja suas orelhas, a Abby tem espadas.
Benjamin dá um passo em minha direção e, a ideia de que ele busca
em mim proteção, me provoca uma sensação incrível de importância e meu
amor por ele se expande.
— Benjamin, Abby nunca vai usar as espadas para isso! – Claire o
tranquiliza. – Você vai gostar de conhecer a academia.
— Tio Jared! – Mary corre em minha direção, abre os braços me
pedindo colo, essa pequena devia ser filha do Sam, os dois são parecidos,
falantes, animados e leves e fico pensando o quanto traumas podem mudar
as pessoas, talvez Abby e Zack fossem assim se a vida não os tivesse
marcado tanto e, quem sabe, eles não seriam exatamente iguais à Mary, não
fosse esses traumas?
Benjamin olha para ela curioso, beijo seu rostinho e a coloco no
chão, ela sorri para o primo.
— Benjamin, essa é a sua prima Mary.
— Oi! Eu tenho brinquedos.
— Problema seu! – Benjamin diz se afastando um pouco dela.
— Ele é adulto, Mary, mas o tio Jared brinca com você, o que acha?
– Ela me olha torto, eu não sou o tio Jared que brinca com ela e nós dois
sabemos disso.
— Chegaram! Como se sente, Benjamin? As costas melhoraram? –
Zack pergunta ao garoto agora surpreso por alguém perguntar sobre sua
saúde.
Um clima bem confuso. Mary achando estranho esse novo tio
disposto a brincar com ela, Benjamin achando estranho alguém perguntar
por sua saúde e com medo de perder as orelhas, um típico domingo em
família.
— Tô legal! – Benjamin responde ao tio, estranhamente, ele parece
ter algum tipo de respeito, talvez medo do Zack, o que também é
engraçado, já que eu sou o cara mal da família.
— Mary, mostra a academia para o Benjamin. – Abby pede à
pequena, eu não deixaria o Benjamin sozinho com Mary e espadas, mas
acho que, se ela está pedindo, deve ter suas razões.
— Tenho que ir com essa pirralha? – Benjamin pergunta ofendido.
— Eu tenho espadas também, seu babaca! – Mary responde para
espanto geral, Zack e Abby se olham, depois olham para Sam.
— Nem pensar, eu sou o tio que brinca de bonecas com ela, ele que
é o tio malvadão, ela aprendeu com ele. – Sam me aponta.
— Você é tão babaca, Sam, eu nunca ensinei Mary a chamar
ninguém assim. – Reclamo.
— É que ela não é surda, Jared! – Sam responde rindo. – Vou com
as crianças até a academia. Corrigindo, vou com uma criança e um rapaz de
dezesseis anos com tamanho de oito.
— Eu quero ir embora, não vou ficar andando com esse babaca não!
– Benjamin se revolta e, de novo, os olhos de todos recaem sobre mim.
— Ah! Não! Dessa vez sou inocente, ele já chegou assim.
— DNA! – Abby avisa rindo. – Vamos, Mary e Benjamin, os dois
comigo agora. – O tom duro de Abby não deixa espaço, Mary segue na
frente sorrindo, Benjamin vai se arrastando irritado.
— A cara do pai! – Sam suspira me provocando. Zack me puxa para
dentro antes que eu o ataque e Claire vai com Sam até a cabana ver Judy.
Reunimo-nos todos na hora do almoço, Benjamin chega suado com
Abby e Mary, eu podia jurar que vi um sorriso no caminho da academia
para a casa, mas como não tenho como provar, fico à espera do que ele vai
dizer.
— Fala, tia Abby, conta para eles. – Benjamin pede assim que eles
entram.
— Vocês têm um ninja em casa. – Abby conta mais animada do que
o necessário só para o agradar. Essa nem é a parte mais importante, agora
ela é a tia Abby e eu sou o Jared e a pobre da Claire ainda é quase sempre a
vadia. Parece que o problema somos nós.
— Ela disse que quando o bebê dela nascer... ela está grávida, por
isso que tem essa barriga, aí se eu quiser....
— Se os seus pais permitirem! – Ela conserta só para ele saber
quem somos.
— Eu vou poder treinar. – Ele completa.
— O que acha, Jared? – Zack pergunta.
— Claro! – Dou de ombros.
— Claro que o meu primo e a Claire vão deixar se o Benjamin
estiver se comportando, não é Jared? – Ah! Boa jogada, um sistema de
troca, ele se comporta e tem algo que quer, Zack é bem esperto.
— Isso!
— Ela tem uma katana, uma sai, tem muitas, eu esqueci o nome das
outras. – Ele conta ignorando todo o resto.
— Zack, que tal chamar a Judy e o Sam enquanto tiro o almoço?
— Eu ajudo! – Claire e Abby se afastam, Zack também e sobramos
eu, Benjamin e Mary.
— Tio, o grandão está lá fora comendo um osso bem gostosinho,
sabia que ele foi na floresta sozinho? Meu cachorro é o melhor do mundo.
— Com certeza. – Digo achando graça no jeito como ela usa as
mãos para falar, então Mary afasta os cabelos.
— Benjamin, quer conhecer o meu cachorro?
— Quero! – Os dois se afastam, ele até deixa Mary passar primeiro
pela porta, parece que temos um futuro cavalheiro entre nós. Eu os vejo
correndo no jardim, algum dia ele vai estar feliz, brincando e sendo feliz, e
eu vou estar exatamente aqui assistindo.
É um dia muito bom, partimos no começo da tarde, direto para o
cinema, que Benjamin ama, os olhos brilham o tempo todo enquanto come
pipoca e assiste a um filme de heróis. Voltamos para casa ao anoitecer, ele
vai direto para o chuveiro, retorna para fazer curativo e comemos pizza,
então ele se encolhe na poltrona e, dessa vez, não finge dormir,
simplesmente adormece e eu o coloco na cama.
Os xingamentos vão diminuindo a cada dia, os ataques de raiva
também. Ele ama os livros que comprou, ainda que leia com dificuldade, dá
para ver que está mesmo interessado em aprender.
As costas se curam, não resta nada além de marcas, como as
minhas, agora são apenas lembranças do passado e espero que, como eu, ele
seja capaz de vencer isso. Desejo que uma Claire esteja por aí crescendo
linda e se preparando para encontrar meu garotinho um dia e fazê-lo feliz
como eu sou.
Ele não me chama de pai, nem sei se um dia vai chamar, não falo
sobre isso nem mesmo com Claire, não quero criar expectativas. Além
disso, se ele disser pai, quero que diga mãe. Sinto que não quero nada que
não possa dividir com ela.
Um mês se passa, logo a assistente social deve vir, tenho medo que
ele queira ir embora, que diga que não está feliz. Benjamin é osso duro de
roer e me dá medo de, por pura marra, ele nos diga não.
Não está na escola ainda, isso pode ser um problema, mas sei que
não está pronto, que tem medo de ser ridicularizado e acho que a vida já fez
isso o bastante.
Benjamin ainda sente que está com febre o tempo todo, não se pode
elogiar muito a pequena Mary, ele logo nos lembra que ela é muito pequena
e não tem muita graça.
— O Michael falou que vai passar um filme do Capitão América no
cinema.
— Quer ir ver? – Pergunto enquanto ajudo Claire com a louça na
cozinha.
— Eu? Já me levou duas vezes. Vai me levar de novo? – Não que
ame a ideia, duas horas sentado naquela sala escura sem poder me mexer e
respirando ar-condicionado não é o melhor dos mundos para mim, mas ele e
Claire adoram.
— Sempre que quiser, Benjamin.
— Pode ser... Eu vou com vocês então, para não irem sozinhos. – O
garoto nunca se rende.
— Obrigado... – Agradeço evitando rir.
— Agora eu vou ler meu livro um pouco, depois tenho que fazer
minha lição de casa.
— Claire sempre te enchendo de lição. Mais problemas?
— Sim, e tem você lá, e a sua loja. – Nossa loja, eu penso em dizer,
mas não digo. Penso que deveria começar a levá-lo comigo às vezes, mas
ainda não confio em Benjamin, ele tem seus momentos de rebeldia e ali
pode ter coisas perigosas para um garotinho num ataque de fúria.
— Já vamos ficar com você na sala. – Claire avisa ao pequeno que
corre para seus livros e ficamos sozinhos. Ela deixa a louça de lado e me
sorri.
— Agora que ele vai ler um pouco e hoje é domingo, que tal
ficarmos na varanda um pouco?
— Jared, você tem boas ideias. Adoro aquele balanço. Parece casa
de filme com final feliz.
— Sei... aqueles romances bem açucarados. – Faço careta.
— Isso. Ainda bem que Benjamin é um garotinho, já pensou se
fosse uma garotinha e você tivesse que ir ao cinema assistir esses
romances?
— Um garotinho está ótimo! A conta certa. – Brinco beijando
Claire e a puxando pela mão. – Ei, pequeno duende, vamos ficar na
varanda, se quiser pode vir ler perto.
Nem chegamos à porta e lá está ele nos seguindo, não fica um
minuto sozinho.
Capítulo 25
Benjamin

Gosto da mão de Claire na minha testa para ver se eu tenho febre, é


sempre quentinha. A do Jared às vezes é quentinha e, às vezes, é gelada,
mas eu gosto também.
Eles parecem até que se preocupam comigo. Claire me ensina um
monte de coisas todos os dias e gosto de ficar na cozinha com ela, vendo ela
fazer as coisas de comer enquanto estudo.
Toda vez que olho para ela, Claire parece que sabe, daí ela olha para
mim e sorri, ela sempre sorri. Acho que gosta muito de fazer isso, eu não
sorrio de volta, não gosto de ficar de risinho. Quando quero sorrir fecho
bem a boca, não vou deixar eles pensarem que estou feliz e depois acontece
alguma coisa ruim e fico com cara de bobo.
Eles não fazem nada de ruim comigo, não me xingam, não me
mandam fazer coisas que não quero, me levam no cinema e compraram até
umas coisas para mim.
Aqui tem comida toda hora e banho quentinho, minha cama é
sempre arrumadinha e com cheiro bom. Claire e Jared ficam sempre de
beijos, namorando toda hora, ele não bebe, não briga com ela e nem
comigo.
Mesmo assim, às vezes eu tenho um pouco de medo. Queria voltar
para aquele abrigo e depois fugir, mas agora eu só queria ficar aqui mesmo
e nunca mais ir embora.
Já faz um mês e acho que eles não sabem ainda. Quando aquela
mulher vier ela vai me levar. Eu falei que tinha dezesseis e eles pensam que
sou grande.
Queria dizer que tenho oito, mas daí vão brigar que eu menti e, não
sei não, se vão desculpar como quando eu xingo. Não gosto de xingar, mas
quando fico nervoso eu faço isso, tenho medo de eles descobrirem a minha
mentira, e fico nervoso quando acho que vão saber.
Eu me encosto na cadeira, olho para Claire, ela me sorri e volto a
olhar para o caderno. Minhas costas sararam, não faço mais curativo e
posso encostar em qualquer coisa que não dói.
Durmo de tudo que é jeito e não dói nadinha. Queria perguntar se o
Jared é mesmo meu pai. Não pergunto, será que a Claire é minha mãe? Se
for, eu tenho pai e mãe.
Meu pai era muito ruim, não gosto de lembrar. Ele me machucava
sempre, e tinha aquele monte de amigos que também era ruins e ficavam
me xingando e ele só ria de mim.
Fico triste quando lembro, fico com medo de ir embora e acontecer
um monte de coisa ruim de novo. Eu devia ter contado que tenho oito anos,
mas com dezesseis, acho que eles não vão me fazer ficar, eles pensam que
eu já sei me cuidar sozinho, eu fui muito burro.
— Acho que eu estou com febre, Claire. – Ela vem rapidinho ver,
toca minha testa e depois o pescoço, daí já fico mais calmo.
— Está bem fresquinho, agora que suas costas sararam acho que
não tem perigo de ter febre.
— Pode ser que eu tenha sim. É melhor olhar sempre. – Se eu
estivesse doente, eles me deixariam ficar, quando ela vê se eu tenho febre,
eu penso que é bom, sua mão me acalma.
— Você tem razão. Com fome? – Sempre fico com fome porque a
comida dela tem um cheiro bom, então eu balanço a cabeça em um sim. – O
Jared já está chegando. Vamos guardar os cadernos?
— Depois eu termino? – Eu não sabia que estudar era assim legal,
eu gosto das lições.
— Sim.
— É nesse domingo que a gente vai ver o filme do Capitão
América?
— Sim e, depois do cinema, vamos comer hambúrguer.
Eu gosto muito de cinema, fecho meu caderno e pego meu lápis.
Queria mesmo era ir a um parque de diversão. Quando vim para cá, eu vi
um na estrada, com roda gigante e tudo, deve ter algodão doce e muitas
coisas legais, mas parque é coisa de criança. Eles pensam que eu tenho
dezesseis anos, acho que nunca que vão me levar.
O telefone toca, acho até estranho, ele nunca toca. Claire também
acha porque ela faz uma cara estranha antes de atender.
— Sim. – Eu fico prestando atenção na conversa. – Sou eu mesma.
Ele está na loja. Como vai a senhora? – Jared chega e fica de pé esperando.
– Amanhã? Claro, vamos estar aqui. Pode vir, eu aviso ao Jared. Obrigada.
Claire desliga bem devagarinho, parece até preocupada. Olha para
Jared que fica esperando ela dizer quem era.
— Um mês. – Ela diz e me alarmo. – Era a assistente social.
Amanda disse que vem amanhã.
Não quero ir embora. Por que eles são bons comigo e depois deixam
ela vir e me levar embora? Eu gosto de casas bem pequenas agora, não
quero ir.
—Não é um mês nada! – Grito bem alto, os dois me olham. – Você
é muito burra! Muito burra! – Não quero chorar, mas não consigo segurar
porque minha garganta arde e meu peito fica apertado. – Nem sabe contar.
Aquela mulher é burra também! Liga para ela, sua idiota, fala que ela
contou errado. – Pego o telefone, balanço para eles que não se mexem só
me olhando. – Liga! Liga logo! Só passou um pouco de dia! Liga! – Grito
bem alto, minha cabeça dói. Atiro o telefone no chão. – Não passou tudo
isso de dias, sua estúpida. Os dois são muito burros, odeio vocês.
Claire segura meus braços e me olha daquele jeito dela que eu
gosto, que não é de brava.
— Está tudo bem, Benjamin. Erramos os dias. Você não vai embora.
– Ela me diz e eu quero acreditar. – Você conta os dias agora. Se nunca for
um mês tudo bem, você fica, tem seu quarto, essa é sua casa, não precisa ir.
Não consigo parar de chorar, ainda quero terminar de quebrar o
telefone, ainda quero gritar, mas ela me olha com olhos de Claire e fico
arrependido de ter xingado e gritado com ela e com o Jared.
— Está tudo bem. Tem um quarto de rapaz. Com as suas coisas, não
queremos que vá. – Então, por que ela deixou aquela mulher vir? Olho para
o telefone todo quebrado no chão. Agora não dá mais para ligar para ela, eu
estraguei tudo. Claire segura meus braços e eu choro, não consigo parar de
chorar.
— Vem comigo, Benjamin. Esqueci umas coisas na loja e preciso da
sua ajuda. Já voltamos, Claire. – Jared toca meu ombro e eu o acompanho,
vamos pela porta da frente e damos a volta pelo lado de fora e entramos na
loja.
Tento secar minhas lágrimas. Estou muito nervoso e eu não quero
mais chorar toda hora, nem ficar assim com o peito doendo e a garganta
ardendo.
— Pode pegar aquelas varas de pescar para mim, Benjamin? – Pego
na hora e levo para ele enquanto vou secando as lágrimas. – Um dia desses
vamos pescar. Por enquanto não, anda cada dia mais frio. Quando o verão
chegar.
Eu bem que queria. Gosto muito dessa loja. Tem muitas coisas
legais.
— Agora eu gosto de casas pequenas. – Conto a ele. Acho que ele
deve estar um pouco triste, eu sempre faço coisas assim que deixam os dois
tristes.
— Que bom. Então agora você é como eu e a Claire. – Ele é legal,
não parece bravo comigo e eu consigo parar de chorar.
— Eu sou. – Concordo.
— Seu quarto é muito bom. Acho que até um menininho gostaria
dele. O que acha?
— Acho que sim. Até se tivesse oito anos. – Eu digo a ele por que
eu tenho oito e gosto, mas ele nem sabe disso.
— É, acho que sim. – Ele se senta no balcão, me puxa para me
sentar com ele e ficamos nós dois sentados, lado a lado no balcão da loja,
balançando os pés.
— Eu fiquei um pouco bravo. – Ele viu tudo, viu como fiquei bravo
e briguei com a Claire. Ele deve me achar muito idiota e chato, sinto
vontade de chorar de novo, acho que devo estar morrendo de febre agora.
— Eu sei, e sei o que vai fazer. Vai chegar em casa e pedir
desculpas, ela vai desculpar, mas é pena que vai fazer de novo. – Ele suspira
um pouco triste e preocupado que eu sempre faço as mesmas coisas todas as
vezes.
— Acha que um dia ela não vai mais desculpar? – Fico com muito
medo disso. – Nem você? – E se eles me mandarem embora, ou pararem de
fazer essas coisas boas? Tenho medo, medo de ir embora, medo das coisas
ficarem ruins. – Acho que eu estou com febre. Pode ver?
Jared me olha nos olhos, está um pouco triste, então ele não vê
minha febre. Ele me faz um carinho no cabelo. Eu gosto, não tenho medo,
antes eu tinha.
Eu me encosto nele, ele não me empurra, me deixa ficar e continua
fazendo carinho no meu cabelo. Estou cansado e quando ele faz carinho no
meu cabelo, meu coração fica apertado de novo, começo a chorar e eu nem
sei o porquê.
Só fico chorando enquanto ele me faz carinho e gosto de ficar perto
dele. Quero que ele seja meu pai de verdade, eu me pareço com ele, meu
cabelo é igual, meus olhos, minha mãe disse, todo mundo diz isso, só pode
ser verdade.
— Claire não é burra. Ela me ensina um monte de coisas, não tem
culpa de não saber contar os dias, coitada... – Fico triste de ter brigado com
ela. Sinto um pouco de vergonha. Claire é boa, sorri muito para mim e eu
quebrei o telefone e disse muitas coisas erradas.
— Vamos só parar de contar os dias. Você gosta de casas pequenas e
do seu quarto.
— É melhor, assim ninguém erra mais as contas. – Eu engano Jared.
Eles acreditaram que contaram tudo errado, eu não quero ir embora e não
quero que aquela mulher venha me buscar, ela disse um mês, vou fingir que
nunca chega um mês.
— Sabe, Ben, eu gosto de meninos de oito anos. A Claire adora,
porque ela ama crianças.
— São fraquinhos. Acontecem coisas ruins. – Todo mundo pode
bater, machucar, mandar em tudo, crianças sofrem muito, menos a Mary
que ela tem muitas coisas boas na vida dela.
— Só até encontrarem pessoas que gostam de crianças de oito anos.
Quando acham, aí essas pessoas cuidam bem direitinho. Se eu encontrasse
um, eu cuidaria e a Claire também.
Eu sou muito burro, não devia ter dito nada de dezesseis anos.
Agora como que eu faço? Ele ainda me faz carinho e fico encostado nele.
Se ele soubesse que tenho oito anos, cuidaria bem direitinho, vai ver eles
vão me mandar embora e procurar uma criança, casados gostam de ter
crianças, Zack e Abby têm, Sam e Judy vão ter logo, logo.
— A Claire vai te desculpar, Ben. – Ele diz me apertando um pouco
enquanto continuo encostado nele, é bem tranquilo.
— Ninguém nunca me chamou de Ben. – É um apelido de menino,
eu acho uma coisa boa ter um apelido.
— É que Benjamin é muito comprido. – Ele explica rindo.
— Eu gosto. Pode chamar e a Claire também pode. – Acho que eles
gostam de mim. Jared deve mesmo ser o meu pai, agora eu estou
acreditando muito nisso.
— Está pronto para voltar para casa, Ben? – Ele se afasta para me
olhar, ainda está um pouco triste, mas pelo menos não está brigando. Jared é
grandão e minhas costas já estão boas, não vou ficar todo machucado de
novo.
— Você nunca me bate! – Os olhos dele cintilam.
— Nunca, nunca, Ben. Eu prometo. – Eu acredito nele, me sinto tão
bem, eles nunca vão me machucar, nem quando eu quebro o telefone, nem
nada.
— Podemos contar para Claire que a gente não vai mais ficar
contando dias?
— Podemos, mas acho que ela pode chorar um pouquinho. Ela
queria muito que você ficasse.
Será que ela vai até chorar? Eu não sei não, acho que ninguém chora
de feliz de ficar perto de mim.
— Jared, eu quebrei o telefone. Como que vamos ligar para aquela
mulher e dizer que não vamos mais contar os dias? Ela nem precisa vir
aqui.
— Ben... Não vamos ligar para ela. Amanda virá e, quando ela
chegar, eu vou dizer a ela que você nunca mais vai embora. O que acha
disso?
— Pode ser. Assim ela nem precisa mais ficar vindo, ligando, a
gente nem tem mais telefone.
Boa ideia, eu vou ficar no meu quarto quando ela chegar, não quero
falar com ela e nem ir embora. Agora só estou com medo de xingar muito e
eles mudarem de ideia. Aquela mulher é esperta, ela vai tentar convencer os
dois, eu sei disso, tenho certeza.
— Vamos comer, pequeno duende? Antes que esse seu estômago
comece a roncar? – Jared salta do balcão e depois me coloca no chão, ele é
muito forte, de noite, ele me leva no colo até meu quarto, me coloca na
cama, ajeita minhas cobertas, me dá boa noite, a Claire sempre me dá um
beijo e eu fico de olhos fechados e eles vão embora e depois eu durmo.
Jared aperta meu nariz, ele pensa que eu sou um duende.
Ele é engraçado. Eu até quero dar risada, mas é melhor não.
Capítulo 26
Claire

Lavo o rosto para não deixar vestígios de que tive uma crise de
choro, respiro fundo encarando o espelho quando escuto a porta abrir.
“Força, Claire, não se deixe levar pelo medo. É só um garotinho
assustado”.
— Claire! – Escuto a voz de Jared e deixo o banheiro. Sorrio
quando os vejo de pé no meio da sala um ao lado do outro, são parecidos e
gosto de olhar para Benjamin e pensar em Jared aos oito anos, cada vez que
faço algo especial para esse garotinho, é como acariciar o garotinho que
Jared foi e que foi privado de qualquer espécie de afeto, eu acho que ele
sente o mesmo. ─ Chegamos.
— Estão com fome? – Pergunto fingindo que nada aconteceu.
Assisto Benjamin olhar para o chão e depois para o lugar onde o telefone
ficava, não tem mais nenhum vestígio do ataque que deu, apaguei tudo
como se isso fosse capaz de mudar os acontecimentos.
— Desculpe, Claire. Você não é burra, nem idiota, nem estúpida... –
Ele para pensando na lista de coisas de que já me chamou e decido
interrompê-lo antes que ele chegue no vadia.
— Tudo certo, Benjamin, entendi, está desculpado. – Tento ampliar
o sorriso para provar que o perdoei, ele não faz ideia do que sou capaz de
perdoar vindo dele, eu o amo, mais do que ele pode, ao menos,
dimensionar.
— O Jared agora vai me chamar de Ben, pode chamar se quiser. –
Que grande avanço, parece que os dois deram muitos passos nesses
momentos juntos, meu coração transborda esperança.
— Posso? Nossa, vou gostar muito. Ben é carinhoso. Gostei. Vamos
almoçar, Ben?
— Não vai falar para ela, Jared? – Ele incentiva.
— Quer que eu conte a novidade? – Jared pergunta a ele que nesse
momento está um tanto corado pela timidez, ele confirma apenas com a
cabeça.
— É melhor.
— Claire, nós não somos bons nesse negócio de contar dias,
então decidimos que não vamos mais contar os dias. O Ben vai ficar aqui,
ele gosta muito do quarto dele e de casas pequenas.
Eu não queria chorar, mas saber que ele nos aceita, mesmo com
tudo que ainda falta ser transformado nessa relação, me emociona. Meus
olhos marejam e eu queria parecer natural, mas não consigo esconder isso e
umas lágrimas caem.
Benjamin olha para Jared surpreso.
—Eu disse que podia ser que ela chorasse um pouco, ela queria
muito que você ficasse.
— Muito. Estou muito feliz. – Seco as lágrimas, dou uns passos
para ele, queria abraçar Benjamin, beijar as bochechas rosas de ansiedade,
mas tenho medo de ser empurrada e paro no caminho. – Obrigada,
Benjamin, que bom que gosta daqui.
— Esqueceu que agora é Ben? – Ele me corrige.
— Verdade! Ben... Durante a semana vamos comprar umas coisas
novas para o seu quarto, agora que vai ficar com ele temos que comprar
mais coisas de menino... Rapaz, eu sei que não é um menino. – Apresso-me
com medo de ele ter outra crise.
— Eu não ligo não. – Aquilo sim é espantoso e troco um olhar com
Jared tão surpreso que nem consigo esconder, ele dá de ombros.
O resto do dia, sinto Benjamin ansioso. Ele faz lição, come, anda
atrás de mim como sempre, mas sinto uma leve agonia e acho que a vinda
da assistente social é a razão disso, não são palavras que vão convencer
uma criança cheia de medos e mágoas de que as coisas vão ficar bem, são
atitudes e tempo, ele tem direito de duvidar, a vida não ofereceu nada a ele
que não lhe fosse tomado, ele foi esmagado, maltratado e ferido, ele tem
medo e muito pouca fé nas pessoas e, um dia, mesmo que leve tempo,
vamos fazê-lo entender que, ao menos nessa casa, o amor vai reinar.
Depois do jantar e de jogar um pouco de videogame, ele adormece
ou finge dormir. Jared o carrega no colo cobrimos, ajeitamos, desejamos
boa noite, beijo seu rostinho lindo e vamos os dois para cama.
— Como ele virou Ben?
— Achei que era um jeito de nos aproximarmos, ele gostou, sinto
que quer nos contar que é uma criança. Ele está feliz aqui, ganhando
confiança, com medo de ir embora e isso agora é o novo problema, agora
que quer ficar, ele está tão assustado quanto antes.
— Vamos conseguir. – Eu me encolho em seus braços, com a
cabeça em seu peito enquanto seus dedos correm suaves por meu braço.
Jared também mudou muito desde que nos conhecemos, antes, qualquer
demonstração de afeto, qualquer tipo de carinho era treinado. Agora, ele faz
sem se dar conta, não percebe o quanto é carinhoso comigo, o quanto está
sempre me envolvendo, beijando, acariciando e nem sempre tem a ver com
sexo, mas eu não digo nada, prefiro não alertá-lo, gosto que as coisas
estejam mudando com naturalidade, Benjamin nos uniu de um modo que
nem imagina.
— Desculpe ter deixado você sozinha, mas achei que ele precisava
de um pouco de ar, quando me sentia como ele, sair me fazia bem.
— Foi bom. No fundo eu precisava ter uma crise de choro. Quero
tanto que ele seja feliz que meu coração dói quando ele tem uma crise como
a de hoje.
— Nunca poderia lidar com ele se não tivesse você. – Jared
confessa me emocionando.
— Faz isso melhor que eu, entende o Ben.
— Claire, é a sua força que me dá energia, é saber que está comigo.
Que suporta sem raiva, você podia ser um problema, sabe disso, muitas
mulheres não aceitariam isso. Ainda mais quando ele, às vezes, te trata com
tanto rancor.
— Benjamin gosta de mim. – Sei disso e me enche de coisas boas
no coração. – Acho que ele gosta de mim como se eu fosse a mãe dele.
Acho que gosta tanto que machuca e, por isso, ele tem esses ataques. Ben
não sabe reconhecer esse sentimento, está perdido e assustado, as palavras
dele contra mim não me machucam, é a dor dele que me fere.
— Toda perfeitinha! – Ele beija meus cabelos e suspiro me sentindo
leve, parece que, finalmente, temos uma chance de fazer Ben feliz.
— Os olhos dele dizem isso, ele é como você, fala com o olhar.
— Amo você, Claire, e o jeito que ama nossa família. – Quando ele
diz família, a vida se completa. É o que somos, uma família.
— Isso sim faz tudo valer a pena, quando diz essas coisas bonitas.
Nossa família, temos uma, eu, você e o Ben.
— Um número exato. – Ele diz e bem que eu queria tornar essa
família um número par, queria um bebê, a ideia até me emociona, mas se
ele não pensa nisso, eu aceito, depois foi tudo rápido com a gente, não
fizemos como os outros, namorar, noivar e casar, fomos logo viver junto e
aprender com a convivência, então, veio o Ben e estamos lutando ainda por
ele, um bebê seria algo novo e talvez só complicasse. Mas algum dia vamos
falar sobre isso e sei que ele vai gostar da ideia, Jared gosta de crianças e de
ser pai, ele não sabe disso, mas eu vejo.
— Ela não pode levá-lo, não é? – Assusta-me um pouco pensar na
assistente social.
— Não. Não sei, acha que pode? Devíamos ter procurado um
advogado para saber disso, agora que disse, eu não sei, talvez eu possa
procurar alguém para confirmar. Ele é meu filho biológico, eles me
procuraram, ela disse que eu é que iria querer devolvê-lo, mas acho que vou
procurar um advogado.
— É bom. Não consigo nem pensar em ficar sem ele.
— Não vamos. – Jared me abraça, sinto que se assusta com a
hipótese.
— Melhor a gente dormir, meu medo é ele ter uma crise quando a
assistente chegar, não sei, xingar, fugir... ela pode achar que estamos
fazendo mal a ele.
— Prometi que ele não ia a lugar nenhum, espero que ele acredite.
Assim que me arrumo em seus braços, escuto choro, aguço os
ouvidos, mas então o grito de Benjamin chega até nós e ficamos de pé em
um salto.
— Claire, Jared... Não quero! Jared! – Quando entramos no quarto
ele está se debatendo na cama no meio de um pesadelo, acendo a luz e ele
se senta chorando.
— Foi um sonho, Ben. – Jared avisa quando, confuso, ele corre para
seu colo. – Está tudo bem.
— Pensei que eu estava lá de novo. – Ele soluça. – Não quero
voltar, aquela mulher me arrastou para lá de novo, eu pedi para ficar.
— Está tudo bem, está no seu quarto, você sonhou. – Acaricio seus
cabelos enquanto Jared o mantém em seu colo, ele se esconde no ombro do
pai assustado como nunca o vi.
— Não tenho dezesseis, eu tenho só oito anos, não quero ir. É
verdade, não estou mentindo, eu juro.
— Tudo bem, gostamos de menino de oito, a Claire adora, que bom
que tem só oito. – Os olhos de Jared são de alívio e dor, como os meus, ele,
finalmente, admitiu e isso é sinal de confiança e também desespero.
— Adoro crianças. Não chora, Ben. Foi apenas um sonho ruim. ─
Meu coração está partido de ver ser desespero.
— Desculpa que eu menti antes, mas agora é de verdade: eu tenho
oito.
— Pronto, tudo bem. Vou te colocar na cama e...
— Não, não, não, Jared eu não quero, ela vai me levar embora. – O
modo como ele se agarra a Jared me comove.
— Leva ele para nossa cama. – Jared aceita a ideia e vamos para
nosso quarto. Ben soluça assustado. – Deita ele aqui. – Peço apontando
nossa cama.
Benjamin se deita em nossa cama chorando como o garotinho que é.
Pego um copo de água e estendo para ele. Precisamos acalmá-lo para ele
entender que foi apenas um sonho e que seu medo de ir é que causou o
pesadelo.
— Toma, Ben. Um pouquinho de água para se acalmar.
— Eu tenho oito anos. – Ele diz com os olhos inchados de tanto
chorar e soluçando enquanto tenta tomar uns goles de água. Jared está de
pé, olhando sem saber como agir.
Eu só conheço um jeito de acalmar alguém, enchendo de carinho e
cuidados e, a menos que Benjamin me empurre para longe, é isso que vou
fazer, ele tem oito anos, acaba de admitir isso e agora posso cuidar de um
garotinho.
Afasto seus cabelos, seco suas lágrimas, o desespero vai cedendo
lugar à surpresa. Sinto dor no coração de ver o rosto inchado e vermelho de
tanto chorar, os suspiros profundos da calma chegando aos poucos.
— Está melhor?
— Acho que estou com muita febre.
— Só está nervoso, não tem febre. – Toco sua testa entre os
carinhos e cuidados, ele tornou nossas mãos o seu termômetro particular.
— Vê, Jared. – Ele sempre precisa de uma segunda opinião. Jared
se junta a nós no mesmo segundo, acho que estava apenas à espera de um
pedido. Toca a testa de Ben e acaricia seu rosto abatido.
— Não tem febre.
— Minha cabeça está doendo. – A voz manhosa é um convite que
aceito pegando Ben no colo. Ele já não é mais tão magrinho e sinto a
diferença.
— É porque chorou. Quando se acalmar vai passar. – Abraço Ben.
Ele se encosta em mim. Que dia difícil... – Que bom que tem oito anos e
assim eu posso pegar você no colo, eu gosto muito disso! – Conto beijando
seu rostinho manhoso.
— Foi um sonho ruim, Ben. Só isso. Tem medo daquele abrigo? Foi
lá que se machucou? – Jared pergunta.
— Não. Lá eu só fiquei quieto, tem meninos grandes lá. Tenho
medo deles. Eu não tenho quarto só meu e nem poltrona. – As relações que
faz com espaço, tudo que viveu antes, tudo que nota de diferença agora, a
vida dele foi uma sucessão de dores.
— Aqui você tem e vai continuar tendo, não vai embora.
Jared avisa a ele, Benjamin não parece nada confiante, acho que só
mesmo depois que Amanda fizer sua visita, ele vai conseguir se acalmar.
Sinto ainda mais medo de como vai se comportar na presença dela.
— Na loja tem telefone, vai lá e liga para ela, fala que não é para ela
vir aqui.
— Ben, eu não posso fazer isso, ela precisa vir aqui ver você. Ela
precisa saber como você está, se está bem.
— Fala que eu estou, mas não conta que eu quebrei o telefone, nem
que eu xinguei.
— Mesmo assim ela vem. – Aviso a ele que começa a ficar nervoso
de novo.
— Que mulher chata! – Ele reclama e acabo sorrindo assim como
Jared.
— Vamos dormir?
— Eu não estou com sono, melhor não dormir, assim não chega
nunca amanhã.
— Melhor dormir aqui do meu lado e, se sonhar de novo, é só me
chamar. – Eu me deito ao lado dele, Jared se acomoda ao meu lado. Ele
olha de um para o outro.
— Vou dormir aqui também?
— Sim. – Cubro Benjamim, beijo sua testa. ─ Que lindo! Estou
achando muito bom você dormir aqui.
— Está? Acha também, Jared?
— Acho. Eu estou feliz, agora temos que dormir, amanhã vai
trabalhar comigo.
— Eu? Lá na loja?
— Sim. Depois do almoço. – Sei o que Jared planeja, quando
Amanda chegar, Ben vai ter uma crise, é melhor que não esteja aqui.
— Então eu vou dormir. – Benjamin fecha os olhos, ficamos os dois
olhando sua pequena luta para pegar no sono, até que sua expressão relaxa,
ele para de se mover e adormece lentamente.
— Vou ficar com ele na loja, quando ela chegar você me chama,
quem sabe evitamos um drama. Não sei o que ela pode pensar se ele tiver
uma crise.
— Está certo. Que dia longo. – Movo-me e ele me abraça, suspiro
fechando os olhos. – Acha que ele vai dormir até amanhã?
— Vamos torcer. Agora tenta dormir também. Amanhã vamos
precisar de forças.
Abro os olhos, beijo seus lábios. Ele me faz um carinho no rosto,
me beija mais uma vez.
— Nem vai ter você me puxando pela manhã.
— Uma grande perda para a humanidade. – Ele brinca e, no fundo,
eu até acho que é mesmo, ao menos é uma grande perda para mim, mas vale
a pena quando sinto Benjamin ressonar tranquilo ao meu lado.
— Boa noite, amor. – Ele sorri de olhos fechados.
— Boa noite.
Capítulo 27
Claire

Sou a primeira a acordar, sorrio quando olho para os dois lados e me


sinto um tanto esmagada. Como podem ser tão parecidos esses dois,
espalhados no sono e tão retraídos fora dele?
Queria sair sem acordá-los, mas é impossível, então fico esperando
que acordem. Não demora e Jared abre os olhos. Ergue o pescoço apressado
para procurar por Ben, ficamos abraçados olhando o garotinho dormir, em
silêncio.
Benjamin abre os olhos, a princípio ele estranha o lugar, depois
parece que se lembra do que aconteceu.
— Tive um sonho ruim e dormi aqui. – Ele nos conta sem se mover,
sinto que está adorando ter dormido conosco, Ben sente falta de ser criança
e algo me diz que um menino manhoso e infantil vai surgir nos próximos
dias.
— Foi. – Afago seus cabelos e ele simplesmente não se esquiva.
— Vou trabalhar na loja de tarde.
— Vai.
— Eu preciso fazer bem rápido minha lição, e quando aquela
mulher chegar aqui, Claire, você diz que a gente não está.
Jared me olha, faz um movimento de cabeça me pedindo para não
falar nada e apenas concordo.
— Sabe o que eu pensei? Bem agora? – Ele avisa com a mente
trabalhando agitada. – O meu tio Zack falou que eu posso ir lá aprender a
consertar motos, brincar com a Mary, treinar com a katana, fazer várias
coisas. Ele que disse, então, você pode me levar lá agora, Jared, é bem
rapidinho e aí, de noite, depois que você fechar a loja, vai lá me buscar e eu
venho para dormir aqui porque eu tenho quarto, mas eu posso dormir aqui
nessa cama de novo também, se quiser. Mas você me busca, o tio Zack sabe
dirigir, ele pode me trazer se preferir, mas bem de noite. O que vocês
acham?
— Acho uma pena que você tenha tido essa ideia justo hoje que a
Abby tem consulta e o Zack vai levá-la para ver como está o bebê. –
Invento me sentindo bem rápida, ele suspira.
— Vamos sair dessa cama e começar o dia, alguém disse que tinha
que correr com a lição para poder trabalhar na loja.
— Fui eu! – Ben, deixa a cama apressado, corre para seu quarto e eu
e Jared trocamos um olhar alarmado.
— Ele está empenhado! – Ele suspira. – Você foi rápida!
— Obrigada! – Jared me puxa para seus braços, eu me encaixo e
ganho um beijo no pescoço. – Pensei que não teríamos nosso momento
despertar hoje.
— Pensou errado! – Eu me viro para ele, Jared me sorri e afasta
meus cabelos. – Às vezes tenho medo de te perder.
— E por que você me perderia?
— Porque estamos nessa encrenca toda com o Ben, sei lá, medo.
— Jared, eu realmente amo você e mesmo que tudo tenha sido
rápido e sem muita conversa, eu sei onde estou pisando, sei o que eu quero
e estou feliz, eu nem acho que a palavra feliz é o bastante, estou realizada. –
Sinto seu alívio, não que eu não tenha medo também, acho que é natural um
pouco de insegurança em relacionamentos, talvez faça até bem para que a
gente esteja sempre buscando o melhor, mas ele nem imagina o quanto está
seguro sobre isso.
Preparamos o café da manhã juntos, depois ele vai para o trabalho e
Benjamin se acomoda na mesa da cozinha com os cadernos e livros que
fomos juntando esses dias todos em que estudamos.
— Vou começar a fazer a lição, se não der tempo eu posso terminar
depois do trabalho, Claire?
— Claro que sim. – eu me acomodo ao seu lado, afasto seus cabelos
dos olhos, precisa cortar, quem sabe amanhã o pai o leva enquanto fico um
pouco na loja.
— O Michael não sabe fazer essas contas novas que me ensinou, ele
disse que não aprendeu ainda na escola.
— Puxa! Como você é esperto! – Talvez por falta de conhecimento,
eu esteja me adiantando um pouco, mas ele é tão rápido, em especial nas
ciências exatas, ainda não lê bem e escreve com dificuldade, mas ama
números e aprende sempre de primeira.
— Claire, você é uma boa professora.
— Eu... obrigada! – Feito uma boba, eu me emociono com o meu
primeiro elogio, ele nunca diz coisas assim, vejo que me olha com carinho,
lutando para não sorrir, queria muito um sorriso, um abraço espontâneo,
mas tenho que admitir que dormir a noite toda com ele pertinho foi bom e
matei a vontade de cuidar dele como a criança que ele é.
Passo algumas lições, decido ensinar algo sobre escrita e leitura,
porque isso exige mais dele e assim não fica pensando bobagens sobre a
visita da assistente social, depois começo a preparar o almoço enquanto ele
vai se esforçando ao meu lado.
— Que tal guardar os cadernos e lavar as mãos? Já vou servir o
almoço.
— Tá, assim eu vou com o Jared trabalhar de uma vez. – Ele se
apressa, agora que está nos dando uma chance, penso que está na hora de
dar a ele algumas tarefas: levar o lixo, colocar a mesa, fazer a cama, quero
que Ben seja uma criança feliz e comum.
Jared entra pela cozinha, ansioso como eu, estamos prontos para
uma rebelião, mas se tem que acontecer essa visita, que seja logo hoje.
Acabar com isso de uma vez para tentarmos superar os traumas do nosso
pequeno.
No almoço, todos fingindo normalidade, Ben comendo
concentrado e nós dois conversando sobre tolices.
— Quer um sorvete? – Ofereço ao fim da refeição.
— Posso ir tomando sorvete no trabalho? – Ele pergunta.
— Pode. – Jared responde por mim. – Também quero. O meu sem
calda.
— O meu com calda, por que eu tenho oito anos, vocês lembram
que eu falei isso? – Ben decide confirmar.
— Lembramos. Muita calda então, crianças gostam de calda.
— E eu sou criança ainda.
Sirvo duas taças de sorvete. Beijo Jared, faço um carinho em
Benjamin e entrego a eles o sorvete. Queria ver como esses dois vão se
comportar na loja sozinhos.
— Vamos? – Jared convida com a taça na mão, ele afirma com um
sorriso, meu coração se aperta de emoção.
— Que sorriso lindo! – O sorriso desaparece no mesmo instante e,
quando os dois me deixam, eu me acho maluca por querer chorar por um
simples sorriso.
Fico tentando me ocupar para passar o tempo enquanto espero a
assistente social, me convenço de que ela não pode fazer nada para nos tirar
Benjamin, ele tem amor, espaço, comida, cuidados, mais do que já teve na
vida e está com o pai biológico, então, não há razão para temer, mas quando
ela bate na porta, meu coração acelera e preciso domar meus nervos para
abrir com um sorriso leve no rosto.
— Boa tarde! – Ela cumprimenta educada.
— Boa tarde. Por favor, entre.
Dou espaço para ela passar, depois encosto a porta e aponto o sofá,
ela agradece e se senta na poltrona discretamente correndo os olhos pela
casa, é seu trabalho, eu entendo, mas é um tanto intimidador.
— O Senhor Brow não está? Onde está Benjamin?
— Eles estão na loja. Jared levou Benjamin com ele agora à tarde,
fique a vontade. Vou buscá-los.
— Obrigada. – Dou uns passos para longe, paro pensando que não
vou ter outra chance de ficar sozinha com ela.
— Amanda... Benjamin está um pouco assustado, ele está com
medo de ter que ir embora. É um bom menino, mas talvez ele não se
comporte como um enquanto estiver aqui.
— Senhora, eu realmente conheço esse garoto, ele ficou um tempo
no abrigo.
— Não acho que o conheça, o que conhece é um garoto assustado,
ferido e cheio de dor, nenhum de vocês descobriu isso. Enquanto vou
buscá-lo talvez queira dar uma olhada na avaliação que a médica da cidade
fez nele. Vai encontrar seus contatos no fim da folha caso queira confirmar.
Entrego os papeis e dou as costas a ela, não gosto do modo como
ela simplesmente considera meu pequeno como apenas um problema.
Quando entro na loja, Benjamin está arrumando uma estante,
completamente distraído.
— Oi, meninos.
— Ela chegou? – Jared pergunta. Benjamin larga seu trabalho, sinto
a tensão começar a surgir. – Certo. Ben, está na hora de irmos falar com a
assistente social.
— Não quero ir. – O medo agora não se revela em raiva, mas em
uma expressão manhosa e olhos marejados.
— Eu sei, mesmo assim temos que ir. – Jared é firme com ele.
— Acho que estou com febre.
— Não está. – Aviso tocando sua testa e ele não sente nenhum
alívio com a notícia.
— Vamos todos. – Jared usa um tom quase duro, sinto que isso não
traz medo a Benjamin, pelo contrário, traz confiança.
Quando entramos em casa, Amanda folheava o relatório da médica,
ela fecha a pasta e se levanta. Ben, por sua vez, segura minha mão e a de
Jared.
— Boa tarde... – Ela tenta sorrir, não recebe nada em troca e se
senta. – Como vão as coisas, senhor Brow?
— Muito bem como pode ver. – Os dedinhos de Benjamin apertam
minha mão e estão frios.
— Essa poltrona é minha. Não pode se sentar aí.
— Benjamin, está feliz aqui? – Ela pergunta ignorando seu aviso
sobre seu lugar favorito.
— Eu moro aqui. Não quero ir embora.
— Por que não me mostra sua casa?
— Pode ser. Eu gosto de casas assim. Bem pequenas, tenho meu
quarto, não vou morar naquele lugar de novo. – Ele sai andando na frente,
ela o segue. – Já viu a sala e essa é a cozinha. Agora tem lá em cima.
— Me mostra? – Amanda insiste e num revirar de olhos ele
obedece, está indo muito bem, até paro de tremer.
—Vem, todo mundo. – Convida claramente com medo de ficar
sozinho com ela.
Subimos todos, ele vai na frente, mostra nosso quarto. Ainda bem
que tive um ataque de limpeza e está tudo impecável.
— Esse é o quarto da Claire e do Jared. – Ben não passa dois
segundos ali, quer que acabe logo. – Esse é o meu. Pronto, acabou, pode ir
embora. – Um verdadeiro príncipe da educação e eu, ao invés de sentir
vergonha, quero rir, porque realmente estava à espera de gritos e
xingamentos.
— Gosta do seu quarto? – Ela não se move após ser dispensada e
ele torce a boca em uma careta irritada, eu comemorei cedo demais.
— Você é burra? Eu disse que gosto de casa pequena.
— Está gostando da escola? – Ela ignora a grosseria e entra em
assunto delicado. Jared se adianta em responder.
— Ele ainda não está indo à escola. Vamos descer? – Jared convida,
a mulher aceita nada contente. – Ainda precisa perguntar mais alguma coisa
ao Benjamin?
— Não. – Ela caminha para a porta, mas se volta um momento. –
Benjamin, gosta do seus pais?
Ben olha para mim, depois para Jared, fica pensativo um momento e
meu coração acelera.
— Não vou embora daqui. – Ele sai pela tangente.
— Já disse que não vai a lugar nenhum, Ben. Amanda está de saída.
Jared assusta só com sua firmeza e está claro que, como Ben, ele
também já perdeu a paciência, a mulher um tanto constrangida deixa o
quarto.
— Pode ficar brincando aqui no quarto, Ben. – Aviso fechando a
porta e descendo com Amanda e Jared.
— Senhor Brow, ele precisa frequentar a escola. – Seu tom de
crítica irrita a nós dois.
— Não sabia que tinha um filho, não fui comunicado de nenhum
modo, ele chegou aqui machucado, fraco e doente, de todos os modos, não
sabia ler, escrever, tinha ódio do mundo e medo de tudo. Não podia enfiá-lo
numa escola para ser motivo de riso dos colegas, para sofrer mais
humilhações, para acabar mais revoltado e estigmatizado como o garoto-
problema. Ele vai para escola, quando estiver pronto, ele vai.
— Benjamin avançou muito, está aprendendo comigo, logo vai estar
pronto. – Eu completo para tranquilizá-la. – Já está lendo e escrevendo um
pouco.
— Ótimo. Achei, na verdade, que encontraria vocês dois loucos
para se livrarem dele.
— É nosso filho, senhora, não abandonamos um filho só porque ele
tem problemas.
— Acho que agora é conosco, ele é meu filho, esta é sua casa e não
acho que seja mais um problema do estado. Quando foi, ele passou dias
sendo ignorado e chamado de delinquente enquanto tinha as costas abertas
por feridas infeccionadas, agora é só um menino, meu filho. Tenha um bom
dia. – Jared abre a porta em um convite pouco educado, tal pai, tal filho.
Amanda finalmente percebe que não está no controle, que nós estamos, ela
me estende a mão e depois para Jared que aperta sem muita vontade.
— Vocês podem providenciar a documentação, ele é seu filho e
precisa do seu nome e da sinalização do juiz, um advogado pode resolver
tudo, terão minha aprovação. - Sinto um alívio percorrer meu corpo, a
mulher deixa a casa sem mais conversa.
— Acabou, não é? Ela não vai mais voltar.
— Não. Mas vamos conversar com um advogado para resolver tudo
rápido.
— Até que ele foi bem. Achei que ele começaria com algo como
vadia estúpida.
Capítulo 28
Jared

— Ela já foi embora? – Ben surge na curva da escada. Olha-nos por


entre as grades e parece tão pequeno e assustado, é tão eu aos oito anos.
Pela primeira vez quero ouvi-lo me chamar de pai.
A constatação me causa um reboliço por dentro. Engulo em seco,
talvez ele nunca diga. Já tem oito anos, nunca teve um bom pai e
possivelmente não quer ter de novo a experiência de ter um pai.
— Vem, Ben. Ela já foi. – Claire o convida e ele termina de descer.
— Ela é muito chata, Claire, eu não vou ser legal com ela. Se ela
voltar, vou mandar embora na hora.
— Ela não vai voltar, Ben. – Ele me olha nos olhos, demora um
momento me encarando e não sei no que está pensando.
— É. Você mandou-a embora, fiquei vendo escondido. Eu vou ter
que ir à escola? Vão ficar rindo de mim?
— Acho que ninguém vai rir, é um menino muito inteligente.
Ele sorri para Claire. Depois olha pela janela. Volta até mim.
— Não terminei meu trabalho, é melhor a gente terminar, Jared.
Ainda é de dia.
— Claire, vamos voltar para loja. – Digo a ela, não escondo que
estou um tanto orgulhoso de ele gostar de ir até lá comigo. Eu não tinha
nada, nunca pensei ser dono de um negócio, ter um filho, mas agora, a ideia
de que sou um comerciante e que um dia meu negócio será do meu filho me
enche de um orgulho quase indisfarçável.
— Vou fazer uma comida bem gostosa para quando chegarem. – Ela
me beija, depois afaga Ben, de novo ele não se esquiva.
Entramos os dois na loja, ele corre para a estante que arrumava, não
que precisasse de uma arrumação, mas ele se sentia importante e gosto
disso.
— Eu vou vir sempre?
— Ainda é criança, então tem que estudar e brincar, mas sempre
que der você vem. – Não quero que ele tenha mais responsabilidades do que
precisa, Benjamin tem que aprender muitas coisas e uma delas é ser criança,
coisa que nunca foi.
— Eu trabalho bem direito, não acha?
— Acho. – Um cliente chega e me distraio atendendo, quando
termino ele prestava toda atenção do mundo.
— Boa semana, Jared. Gostei de ver seu filho treinando para
assumir seu lugar. Tchau, garoto.
Benjamin não responde, mas olha para mim e fico pensando se
devia conversar com ele sobre isso. É a segunda vez que ouvir que é meu
filho o surpreende um pouco.
Queria dizer algo, penso num discurso sobre eu nunca ter sabido
dele, mas trava tudo e apenas continuo meu trabalho. O dia termina, Ben
desarrumou três estantes, mas está muito orgulhoso.
— Agora temos que ir para casa.
— É porque a Claire fica sozinha e é muito perigoso, ela é uma
moça.
Rio da ideia. O termo moça é bem divertido e gosto de pensar nele
sendo um cara legal que trata uma moça bem.
— Antes preciso te pagar. Vem aqui. – Ele se aproxima. – Trabalhou
muito bem. Então aqui está. – Estendo cinco dólares a ele, Benjamin olha o
dinheiro muito surpreso. – Pegue. É pelo seu trabalho.
— Meu? Para eu fazer o que eu quiser?
— Sim. – Ele pega e coloca no bolso, fico curioso pensando no que
ele pretende fazer com o dinheiro. – Agora você precisa dizer obrigado.
— Mas foi você que quis me dar, eu não pedi nada. – É difícil não
rir, Benjamin é engraçado e essa é mais uma das coisas que eu diria.
— Eu sei, você está certo, mesmo assim tem que dizer obrigado,
isso é ser educado e as pessoas tratam muito bem meninos educados.
— Obrigado, Jared.
— De nada. Mereceu, fez um ótimo trabalho. – Olho para minhas
estantes todas em desordem.
Fecho a loja e vamos juntos para casa, o cheiro da comida chega na
porta. Claire cozinha muito bem e, quando entro, ela surge de vestido, com
um sorriso no rosto e me sinto num filme, coisas assim não acontecem
comigo.
— Boa noite, rapazes. – Ela sorri.
— Eu sou criança, Claire. Esqueceu?
— Não. É um menininho muito lindo. E que precisa tomar banho
para jantar.
— Eu vou.
Benjamin some escada acima, correndo feito crianças comuns, leve,
menino, cheio de vida. Abraço Claire.
— Acha que ele entende que é meu filho?
— Não. Acho que ele está confuso e deveria dizer a ele, mas sei que
está relutante. – Ela descansa uma mão em meu peito, compreensiva e
carinhosa, a mulher incrível que revirou minha vida. Parece que foi há mil
anos que eu a vi no bar do John, assustada e solitária, ainda assim, linda e
gentil.
— Eu quero dizer, só não consigo.
— Aos poucos isso também se resolve. Com fome?
— A fome sempre surge quando chego em casa.
Ela me beija. Acaricio seu rosto, tão linda. Sinto saudade dela, foi
uma noite difícil.
— Estou com saudade, Claire.
— Vê como você também vai mudando, já consegue admitir que
tem saudade. – Ela suspira. – Também estou com saudade. – Ela diz se
encostando em mim.
— Então vamos correr com tudo. Volto logo. – Eu me apresso para
o chuveiro.
Benjamin se senta à mesa, Claire nos serve e depois se arruma ao
meu lado.
— Tenho dinheiro Claire, o Jared me pagou. Eu fiz a conta. Se eu
trabalhar todo dia e ganhar cinco dólares por dia, em um mês que tem trinta
dias, eu vou ter cento e cinquenta dólares.
— Sério? E o que vai fazer com o dinheiro?
— Comprar um jogo novo para o videogame.
─Entendo. – Claire me olha pedindo apoio. – Sabe que não pode
trabalhar todo dia, não é? Crianças não podem trabalhar.
— Eu trabalhava antes, meu pai me obrigava, mas não ganhava
nada. – Sinto o ódio me dominar.
— Ele não era seu pai! – Digo irritado. – Era um canalha, apenas
isso. – Ben se espanta, mas não a ponto de sentir medo de mim.
— Era mesmo, não chorei quando ele morreu, não liguei.
O clima fica tenso, nós dois abatidos com o assunto que trouxemos
à tona em um simples jantar que devia ser leve e feliz.
— Tem um jeito de conseguir o dinheiro sem ter que trabalhar. –
Claire retoma o assunto. Ben se interessa. – Indo à escola, se for à escola,
vai ganhar uma mesada para o almoço, pode economizar e juntar o dinheiro
ou pode apenas esperar o Natal.
— Natal? – É claro que ele não faz ideia do que isso realmente
significa, mal posso esperar para dar a ele um Natal de verdade, uma manhã
inesquecível, é isso que vou fazer, aquilo que sonhei a infância toda e
jamais tive.
— Sim, crianças ganham presentes no Natal.
— Eu sou criança. Tenho oito anos ainda vou ter oito no Natal.
— Mas o Natal está longe, a mesada seria uma boa ideia. – Eu
incentivo pensando que ele precisa mesmo ir à escola.
— Acha isso, Jared?
Gosto que minha opinião seja importante para ele.
— Acho. Devia ir conhecer a escola com a Claire, quem sabe
gosta, já sabe ler e escrever e faz ótimas contas.
— Vou ver. – Depois disso, ele mergulha no prato como de costume.
Então vamos para sala, ligo a tevê, no fundo eu queria mesmo era
um tempo com Claire, mas a visita de Amanda e o medo que ele teve o
deixam ansioso e Ben fica olhando para televisão com cara de quem nunca
mais vai dormir.
— Acho que temos que ir todos dormir.
— Eu acho melhor não. – Ele se apressa, a última noite passou
conosco depois de um pesadelo. Quanto mais próximo de nós, mais infantil
ele fica, como se a confiança o fizesse regredir um pouco, às vezes parece
querer ser apenas um bebê.
— Acho que devíamos ficar um pouco lá no quarto do Ben, é um
quarto bem legal, quem vem comigo? – Convido.
— Eu vou. – Claire fica de pé.
— Então eu vou também.
Subimos e, depois de escovar os dentes, ele se deita. Claire o cobre
e me sento a seu lado, Claire conosco. Sinto um pouco de pena de deixá-lo
quando sei que ele quer ficar conosco, mas tenho medo de dar a ele tudo
que quer e estragá-lo. Ele não pode dormir conosco todas as noites.
— Eu acho que aquela mulher vai voltar aqui, acho que ela enganou
vocês. Trancou bem a porta?
— Sim. Ninguém vai tirar você daqui, Ben, essa é a sua casa.
— Você viu que ela disse pais? E o homem que foi na loja também?
– Ele diz daquele jeitinho ansioso.
—Porque é isso que somos, Ben. Seus pais. – Claire explica com a
facilidade que seu amor proporciona.
— Por que vocês não têm crianças e aí ficam comigo?
— Não. Tem gente que não tem criança e não fica com nenhuma.
Você é nosso filho porque amamos você. – Claire tem tanta força, tanta
certeza, ela é inspiradora.
— Os dois são meus pais? Você e o Jared? – Claire troca um olhar
comigo, acho que espera autorização, talvez tenha medo de eu me ofender,
não posso ser um pai se ela não for uma mãe.
— Sim, Ben. – Respondo por ela. – Eu sou seu pai, Claire é a sua
mãe.
— Mesmo? Sempre, como a Mary é do Zack e da Abby? Bem de
verdade?
— Isso.
— E eu até chamo de pai e mãe? – Ele tem os olhos esperançosos,
me dou conta que era isso que queria o tempo todo.
— Só se quiser chamar. – Não quero forçá-lo a nada, tudo tem que
ser natural para ele.
— Por isso que ela não pode me levar? Nem ninguém?
— Exato.
— É. Eu sou criança e por isso que tenho que ter pai, não tenho
dezesseis, só oito mesmo.
— Que tal dormir, pequeno duende, amanhã tem que estudar com a
Claire e conhecer a escola.
— Boa noite. – Claire beija sua testa, ele sorri, faço um afago, devia
dar um beijo como Claire, mas sempre me sinto meio ridículo.
Deixamos o quarto, o abajur aceso e a porta aberta. Claire tem um
sorriso gigante quando nos deitamos.
— Acho que vou me derreter se ele disser mãe. Obrigada.
— Por que está me agradecendo? – Pergunto quando a envolvo.
— Porque está me dando seu filho. Isso é muito especial, mais
importante que qualquer coisa.
— Mais do que amar você? – Pergunto com os lábios correndo por
seu pescoço enquanto sinto seu perfume.
— Que bobo! Isso é exatamente porque me ama.
— Quanta segurança.
— Não ama? – Sinto que ela fica confusa, se assusta um pouco,
beijo seus lábios.
— Muito, sem você nem sei onde estaria.
— Então me mostra, acho que agora me deixou um pouco na
dúvida.
— Tudo bem. Posso fazer isso. – Meus lábios cobrem os dela,
minhas mãos percorrem seu corpo, tudo nela me enche de paixão, o cheiro,
o gosto. A camisola some num segundo, assim como minhas roupas, então
nada mais importa. Só meu corpo misturado ao dela.
— Um dia e morri de saudade de ser sua. – Ela diz quando meus
lábios descem por seu pescoço, saboreando a pele, ela suspira, eu provoco
isso, essa certeza me enche de mais desejo por ela.
— Te amo. Cada parte sua. – Ela geme e faço o mesmo e, então,
sinto-a forçar seu corpo contra o meu me pedindo mais e dou a ela tudo
que tenho, Claire é parte de mim e nesses momentos isso se torna
grandioso.
Sabemos como nos tocar, como agradar, os beijos são profundos e
contam de sentimentos que não conhecia até cruzar com ela, até ela dar vida
ao que antes era só respirar e esperar.
Um mundo de emoções se sucede, desde a urgência sem fim até a
calmaria lânguida de descansar com ela em meus braços.
— A gente não dormiu nada, agora me deu um soninho. – Ela diz
deitada em meu peito.
— Não pode dormir assim, Claire.
— Por que não? Durmo sempre.
— Eu sei, mas hoje vamos nos vestir, o Ben pode vir aqui. Ele está
com medo e vou deixar a porta aberta.
Claire ergue a cabeça e tem um sorriso tão limpo no rosto que fico
zonzo.
— Isso é coisa de casal que tem filho, nosso filho.
— É. E você é mesmo muito perfeitinha. E fico querendo deixar a
porta fechada e começar tudo de novo.
— Não vou reclamar nadinha. – Beijo seus lábios, mas ela se afasta.
– Mentira. Não quero que meu filho tenha medo. – Ela sai dos meus braços.
Pega a camisola e me atira minha bermuda
Vestidos e com a porta aberta, adormecemos. Sinto uma mão
pequena me tocar.
— Jared, Jared! – Abro os olhos. Ben está de pé me olhando.
— Tudo bem? Está com medo?
— Eu não sou nenhum... – Ele se cala, acho que lembra que é
criança. – Sou. Eu não consigo dormir, estou pensando uma coisa toda hora,
toda hora.
— Certo. Vamos descer os dois para Claire dormir e me conta.
Sento com ele no sofá e adoro a ideia de ter me vestido, teria sido
assustador.
— O que tem pensado?
— O meu pai... que não era meu pai, ele ficava me batendo e
xingando e nem ligava para mim. Será que se eu te chamar de pai você vai
ficar igual ele? Só fazendo essas coisas ruins? – Nem consigo descrever
como isso me afeta, mas a dor é quase física, eu sei tão bem como ele se
sente.
— Meu pai era como aquele homem, Ben, sei como é. Ele me
machucava, batia, xingava, eu era muito triste e muito bravo, como você.
Eu sei como é isso.
— É triste e dá medo. – Não sei reconhecer o que vejo em seus
olhos, tristeza, abatimento, talvez ansiedade, é complicado, minha visão
está nublada pela minha própria dor.
— Muito medo, Ben. Nunca vou fazer isso com você, quero ser um
bom pai, um que cuida e ama, nunca vou machucar você, nunca. Como eu
queria que tivesse sido comigo.
— Vai ser sempre bonzinho como agora? – Ele precisa de
confirmação e, ainda assim, acho que vai ter dúvidas por um tempo.
— Sempre. – Prometo com todo meu coração, essa é, talvez, a única
verdade e certeza da minha vida, eu serei sempre bom para o meu filho.
— Quando fico bem bravo e você chega perto, eu não fico mais. –
Eu amo meu filho, isso é tão real e tão novo.
— Vai ser sempre assim, mas só vai me chamar de pai se quiser e
quando quiser.
— Você quer? – Ele me pergunta.
— Quero. – Respondo com sinceridade, é tudo que eu quero, Ben
me olha nos olhos, está com sono e manhoso, faço um carinho em seu rosto.
— Posso deitar aqui um pouquinho, pai?
— Pode. – Digo com a voz embargada. Esse é um dos momentos
em que a vida gira cento e oitenta graus. Pai. Isso é grande e ele não tem
ideia do que me provoca, da vontade que sinto de ser melhor.
Benjamin se deita com a cabeça em meu colo, acaricio seus cabelos,
seus olhos encontram os meus e me dou conta de como é pequeno, ainda dá
tempo, ainda posso ter seu amor.
— Pai, um dia você me leva no parque?
— Quer ir num parque?
— É meu sonho. Com roda gigante e montanha-russa. Algodão
doce. – Ele me pede e eu podia ir agora mesmo, só por esses olhos
brilhantes.
— Vamos fazer isso.
— É? – Ele sorri. Queria que Claire estivesse aqui.
— Sim. Não sabia que tinha você, Ben. Não queria que essas coisas
tivessem acontecido, queria ter cuidado de você desde bebê. Gostaria muito
de ter tido você sempre comigo. Sinto muito.
— Eu também queria. – Ele fecha os olhos. Vou esperar que pegue
no sono e depois colocá-lo na cama. Fecho os olhos ainda afagando seus
cabelos, repassando nossa conversa e meu passado.
— Pai, pai. – A voz me desperta e demoro um segundo para
entender o que aconteceu. Claire está de pé com os olhos marejados, é dia e
me dou conta que dormi sentado. – A gente veio conversar uma coisa e
dormimos, mãe.
As lágrimas de Claire correm grossas por seu rosto, eu sabia que
seria assim, eu quase chorei, teria chorado não fosse a vergonha.
— Chamou-me de mãe? – Ela pergunta sem tentar esconder o
choro.
— Desculpa... eu não chamo mais. – Ben diz assustado com suas
lágrimas, ela o surpreende abraçando Ben, envolve tanto o garoto que ele
mal consegue respirar.
— Eu gostei, quero que me chame de mãe o tempo todo, estou
chorando de feliz.
— De feliz? Nunca vi gente que chora de feliz. – Ele se liberta
ajeitando a roupa e os cabelos esmagados pela nova mãe.
— Eu choro. – Ela diz beijando seu rosto. – Obrigada. Amo você.
— Eu sei, mãe. – Ele responde orgulhoso, e um tanto cansado do
abraço que não acaba nunca, vamos ver quanto de amor ele pode aguentar,
rio dos dois. – Pronto, mãe. – Ela o solta rindo e chorando também.
— É meu filho. – Ela insiste.
— E do meu pai.
— E do seu pai.
— Sabia que nós vamos num parque? Você vai também.
— Num parque, e eu vou também? Que bom.
— Quando a gente for, eu vou gastar meu dinheiro lá, está embaixo
do meu travesseiro. Espera. Eu vou ver se ainda está lá. – Ele sai correndo
escada acima.
— Aproveita e escova os dentes. – Claire grita e do nada ganha ares
de mãe.
— Ele me acordou, queria conversar sobre se eu iria maltratá-lo se
me chamasse de pai, depois se deitou no meu colo e acabei dormindo
também.
— Ele disse pai? Ficou emocionado? Não acredito que perdi essa.
Quando forem fugir tem que me convidar.
— Prometo. É que disse que estava com sono.
— Quando vamos levá-lo no parque? Por que parque?
— Ele me pediu, quase o calcei e levei na hora, disse que era seu
sonho. Vamos fazer surpresa. Vou fechar a loja mais cedo e a gente diz que
vai jantar fora. Comer hambúrgueres.
— Você é um pai que faz surpresas e ainda diz que eu que sou
perfeitinha? Você que é perfeitinho.
— Não, Claire, perfeitinho não é legal. – Brinco e ela me beija.
—Tudo bem. É meu amor e isso basta. Estou ansiosa. Vai se
arrumar que vou fazer um café bem forte para você. Deve estar quebrado de
ter dormido aqui.
— Sim, senhora. – Beijo Claire, depois fico de pé e subo, preciso de
um banho. No fim, estou tão ansioso quanto Claire. Quero ver a carinha
dele em um parque de diversões.
Capítulo 29
Benjamin

Agora eu tenho que me acostumar a falar pai e mãe, achei bom isso,
Jared falou que é meu pai mesmo. Coitado, ele não sabia que tinha eu e eu
não sabia que tinha ele. Isso foi ruim, mas eu pareço ele, meu cabelo é
igual, meus olhos são iguais, eu fico bravo igual, vou ficar alto e ter loja
igual, fazer tudo igual.
E tenho uma mãe bem bonita, que faz carinho até se não tenho
febre. Escovo os dentes que nem ela mandou, eu quero ser bonzinho para ir
ao parque. Depois que termino, vou olhar meu dinheiro, está no mesmo
lugar que deixei, vou guardar até o dia de ir ao parque e comprar um
algodão doce bem grande e uma coisa para minha mãe de presente. Se der o
dinheiro, vou ao tiro ao alvo e ganho um urso para ela. Desço correndo as
escadas.
— Não corre, Ben. – Ela grita da cozinha e vou bem sem correr o
resto da escada. Os dois estão na cozinha. – Senta para tomar café.
— Mãe, é hoje que vamos ver esse negócio de escola?
— Sim, depois do café. ─ Os olhos dela ficam cheios de lágrimas
de novo.
Estou com um pouco de medo, e se as crianças rirem de mim?
Nunca fui numa escola. Se a professora brigar comigo?
Meu pai faz um carinho no meu cabelo e beija minha mãe antes de
ir para o trabalho, depois minha mãe olha para mim, acho que é hora de ir.
— Vamos só conhecer a escola, falar com a diretora, não vai ficar
lá. Tudo bem?
— Acho que agora eu tenho pai e mãe, então é capaz de ninguém rir
de mim.
— Claro que ninguém vai rir de você, Ben, vai ter amigos como o
Michael.
— Você acha? – Ela sorri enquanto vamos andando para porta.
— Tenho certeza, e vai trazê-los para brincar aqui e vai brincar na
casa deles.
Entro no carro sem acreditar muito, acho que ela pode estar
enganada, não sei se alguma mãe vai deixar eu ir, eu faço coisas feias, xingo
e brigo.
— Põe o cinto. – Obedeço, minha mãe dirige bem, até esse carro
grande que eles têm.
— Esse carro aqui é meu também?
— Claro. É nosso, somos uma família, Ben, tudo é seu também.
— É porque sou filho dos dois, vocês não têm filhos e, por isso, sou
de vocês. Só nós três, a casa é pequena, não é mãe? – Ela me olha com os
olhos cheios de lágrimas. – Você quer chorar de novo? De feliz?
— Agora que tenho você e seu pai só choro de feliz.
— É porque a gente gosta muito de você e você gosta de meninos
de oito anos. – Será que vão pensar que tenho dezesseis na escola? – Mãe,
você fala que tenho oito anos?
— Falo.
Ela para na porta da escola, é grande e fico um pouco com medo.
— Acho que eu estou com um pouco de febre, mãe. Podemos voltar
algum dia, depois de hoje.
Minha mãe acha bem engraçado, ela solta seu cinto, sorri e toca
minha testa, me abraça.
— Está bem. Nada de febre.
Ela desce e faço o mesmo, eu fico perto dela, bem pertinho mesmo,
querendo sempre voltar.
— Importa-se se eu segurar sua mão? – Ela pergunta e eu gosto, até
quero sorrir, mas é melhor não ficar sorrindo ainda, vai que a escola é ruim
e fico de risinho.
— Pode mãe, as mães podem.
A gente anda por um corredor e uma moça sorri e fala com a minha
mãe um pouco, mas não presto atenção só fico olhando em volta.
— Vamos, Ben. Conhecer a escola? – A moça convida.
— É Benjamin. – Nem conheço ela, como que ela fica me
chamando de Ben? É só minha mãe e meu pai que me chamam assim.
Chegamos numa quadra, têm umas crianças jogando, elas parecem
que gostam de brincar, ninguém anda sozinho, sempre tem amigos e depois
olhamos umas salas e corredores, e aí chegamos à sala da diretora.
Ela é uma senhora e manda a gente se sentar. Eu me sento, mas
ainda fico segurando a mão da minha mãe, as duas ficam conversando sobre
a escola, que horas que vou estudar e quando que eu começo e só fico
quieto.
— Quer perguntar alguma coisa, Benjamin?
— A professora pode brigar?
— Não, mas se fizer algo errado ela chama seus pais aqui e conta
para eles.
— Só fofoca mesmo, nada de brigar? – As duas ficam rindo e a
diretora diz que sim. Depois dá um papel para minha mãe com as coisas que
preciso comprar.
Deixamos a escola, entro no carro e aperto o cinto, minha mãe me
olha.
— E, então, quer tentar?
— Quero. Mas não vai me esquecer aqui não? Eu não sei ir embora
sozinho.
— Ben... – Ela fica bem me olhando. – Você é meu filho, nunca vou
esquecer você, nem seu pai vai.
— Ele pode me buscar um dia?
— Muitos dias, eu fico na loja e ele te busca.
— E nunca mais vou trabalhar com meu pai? – Eu gostei muito de
trabalhar na loja.
— Vai. Aos sábados, se fizer as lições e tirar boas notas.
— E se eu não tirar boas notas? Devia ter perguntado para aquela
diretora.
— Vai estudar mais e ficar sem videogame.
— Só isso? – Isso é burrice, se eu faço coisas feias eles nem
brigam? – Oh mãe, isso não é só um pouco burro?
— Não, isso é amor. – Ela para na frente do mercado. – Vamos
comprar umas coisas.
— Como que é isso que você falou?
— Amor? – Balanço a cabeça em um sim.
— Nunca passa, sempre vou amar você e seu pai. Se fizer algo
errado, eu vou ficar triste, mas vou continuar te amando do mesmo jeito. Se
pedir desculpas, eu desculpo.
— Sempre?
— Sempre. Agora vamos às compras.
Ela me deixa empurrar o carrinho e diz que posso pedir qualquer
coisa, mas eu ainda tenho um pouco de vergonha de pedir coisas. Toda hora
ela pergunta, quer isso, quer aquilo, ela se preocupa muito.
Acaba que ela leva sorvete e chocolate. Quando chegamos em casa
está perto da hora do almoço.
— Pode chamar seu pai?
— Eu vou, eu vou contar tudo para ele.
Entro na loja, minha mãe me mandou, então eu posso entrar. Fico
bem quieto enquanto meu pai fala com um moço e espero o moço ir embora
e ele atender o outro que tem uns rapazes com ele e, quando sai todo
mundo, meu pai se aproxima.
— Minha mãe chamou para almoçar.
— Vamos lá.
— Pai, sabia que fui à escola e vou começar minhas aulas? Amanhã
não, tem coisas para comprar. Como que faz isso agora?
— Eu compro.
— Tá bom. – Entramos em casa, minha mãe já está arrumando as
coisas do almoço, ela cuida de tudo. Depois fico estudando um pouco com
ela. Meu pai fica sozinho na loja, acho que ele fica com saudade.
— Ficou perfeito! Sua professora vai gostar tanto! ─ Ela sempre
adora minhas lições, porque eu faço tudo bem certinho, gosto mais dos
números, mas ela diz que tenho que chamar de matemática.
— Já está ficando de noite, não vai fazer o jantar hoje?
— Não, vamos comer hambúrguer.
— Eu gosto. – Ela me dá um beijo na testa.
— Então vai se arrumar. Toma banho e penteia esse cabelo. Eu
devia cortar um pouco.
— Não, mãe, meu cabelo é igual do meu pai.
A gente come hambúrguer numa lanchonete, os três juntos, é bom,
eles toda hora olham para mim, depois vamos para o carro. Nunca chega em
casa.
— Errou o caminho, pai? Está demorando.
— É um caminho diferente. – Quando vejo o parque está bem na
nossa frente, será que ele lembra que queria vir um dia? O carro para.
— A gente parou bem no parque.
— Vamos?
— Eu vou agora? – Eles já vão me levar? Não acredito. – No
parque?
— Sim. Nós vamos, melhor irmos logo, tem muitas coisas para
fazer.
Minha mãe diz e descemos, fico feliz, sinto um pouco de vontade de
chorar, como minha mãe quando chora de felicidade. Acho que eu sei um
pouco como é agora.
— Ishi, pai, não trouxe meu dinheiro.
— Não precisa dele, Ben. – Meu pai me paga todas as coisas, que
adianta eu ter dinheiro? – O que quer fazer primeiro?
— Quero fazer tudo. – Eu conto a eles. Olho para os dois, gosto
muito deles, muito mesmo, mas não sei se gostam de abraços e essas coisas,
então não falo nada.
Vou na roda gigante, vou com meu pai e minha mãe, mas ela não
gosta muito, depois fico esperando numa fila para ir na montanha russa, só
com meu pai, minha mãe tem medo, meu pai é bem corajoso, ele nem grita
de medo.
— Que legal, podemos ir de novo? – Ele deixa e vamos mais uma
vez. Enquanto a gente espera na fila, minha mãe fica sentada no banco
acenando. – Pai, me empresta cinco dólares? Pago quando chegar em casa.
— O que quer?
— Ganhar um urso para minha mãe, é coisa de menina e ela vai
gostar.
— Certo, depois vamos ver isso. – Ele me dá cinco dólares.
A gente fica lá no tiro ao alvo e gasto todos os meus dólares, mas
não acerto. Meu pai compra umas fichas e ele mesmo joga. Loguinho ele
ganha.
— Ganhou, pai! – O homem dá um urso para ele e ele me entrega.
Minha mãe está batendo palmas de feliz e estendo para ela. Ganho um
abraço e um beijo.
— Obrigada, Ben. É lindo!
— De nada. Agora a gente pode comer algodão doce?
Eles fazem todas as coisas que eu gosto, ficamos um tempão.
— Podemos achar maçã do amor? – Minha mãe pede, mas é tarde e
acho que o homem já foi porque não achamos ele nunca e ficamos andando
o parque todo.
— Acho que ele já foi? – Ela fica triste quando meu pai diz isso. –
Mas vamos procurar mais. – Voltamos a caminhar. Então, eu vejo o homem
chegando no portão. Já indo embora, mas não quero mais ficar andando.
— Ali, pai. Moço, espera! – Vou correndo buscar ele. Meu pai
compra logo quatro, de tanto que andamos atrás do homem da maçã do
amor.
— Não sabia que gostava tanto disso. – Meu pai diz de mãos dadas
com ela enquanto a gente vai para o carro.
— Nem eu, amor, me deu uma vontade...
— Já comeu duas, mãe. – Ela sorri, meu pai segura a outra e não
como a minha, acho melhor guardar para ela. Parece que ela quer todas as
maçãs do amor do mundo todo.
Fico com sono no carro, foi muito legal, nunca tinha passeado, foi a
primeira vez, achei muito bom.
— Com sono, Ben? – Olho meu pai pelo retrovisor, afirmo só com a
cabeça, estou até com preguiça de falar. Fico só pensando o que mais eu
gostei e não sei direito.
Durmo bem rápido, minha mãe me cobre, meu pai fica de pé na
porta olhando, nem ligo para nada, só durmo e de manhã quando eu desço
meu pai já até foi trabalhar.
— Dormi bastante. Foi muita coisa que eu fiz ontem.
— Foi mesmo. Deixei você dormir bastante porque amanhã vai sair
cedo para a escola, como combinamos.
— A gente vai comprar as coisas da escola?
─Assim que tomar seu café. – Ela diz sorrindo. – E hoje não tem
lição, hoje vai só brincar.
— Posso ir na loja pagar meu pai? Ele me emprestou dinheiro e
esqueci.
— Vai lá. Não demora. – Eu vou correndo, meu pai está arrumando
as coisas.
— Pequeno duende, acordou.
— Sim, vim te pagar. – Estendo seu dinheiro, ele me sorri. – Eu
esqueci ontem. Desculpe, pai.
— É seu, Ben, o passeio ontem foi um presente. Gostou?
— Muito, o melhor dia de todos. Um dia a gente vai de novo?
— Vamos, e já achamos logo o homem da maçã do amor, sua mãe
fez a gente andar feito loucos, né?
— Foi mesmo. Andamos muito, fiquei com medo de nunca achar
aquele homem e andar para sempre.
— Sabe, pequeno duende, eu também pensei.
— Pode me levar na escola amanhã? Para aprender onde que é,
minha mãe já sabe, mas é bom os dois saberem, se um esquecer o outro
lembra.
— Ninguém vai esquecer, mas vou te levar sim.
— Tenho que ir comprar meu material com a minha mãe. Ela me
mandou não demorar.
— Então vai lá. – Ele só toca meu ombro, não fica abraçando toda
hora como a minha mãe.
Quando é hora de ir para escola eu não quero mais ir. Meu pai entra
no carro e fico olhando para minha mãe com vontade de ficar com ela. Ela
acena, manda um beijo e partimos.
Nem converso no caminho, aperto a mochila com medo, tento
prestar atenção no caminho para voltar sozinho, mas é um pouco longe e
toda hora meu pai muda de rua.
Ele estaciona, tem crianças chegando, umas de carro, outras
caminhando, algumas com adultos, outras sozinhas.
— Ben, eu ou a sua mãe estaremos aqui quando sair, não vai ficar
sozinho nunca mais. Lembra que disse que quero ser um bom pai?
— Lembro.
— Esse é o dinheiro do almoço. Aqui está o telefone da loja e o de
casa. – Ele me entrega um papel. – Na escola a diretora também tem, sua
mãe deu para ela, mesmo assim, fica com isso, só para não ter medo. Se
tiver medo, liga e venho na hora.
— Eu vou, se eu não gostar não vou mais nunca!
— Acho que vai gostar. Boa sorte.
Eu ando em direção à porta, a moça de antes vem me ajudar, ela é
boazinha, me leva em direção a minha sala. Na porta, eu vejo só meninos e
meninas do meu tamanho entrando.
— A senhora Thompson está chegando, pode se acomodar numa
das mesas.
Fico bem corajoso e entro, sento numa mesa que está vazia. O
menino do meu lado me acena, dá um sorriso e aceno de volta, é melhor,
não posso ficar xingando. Depois uma mulher entra, ela é um pouco velha,
mas parece boa, me manda ir até ela e vou com vergonha.
— Classe, este é Benjamin Brow. – Brow? Eu tenho o nome igual
do meu pai agora? Nem sabia disso. – Ele é novo e vamos ser bem gentis
com ele.
— Obrigado, senhora. – Minha mãe vai ficar feliz que falei
obrigado.
— Pode se sentar, Benjamin.
Abrimos os livros e ela fica explicando umas coisas que já sei e
depois fazemos lição e até ajudo o menino do meu lado. Ele chama Ron e
ficamos amigos, almoçamos juntos e voltamos para nossa sala e ele é muito
legal.
— Esse sinal é de ir para casa? – Pergunto quando todo mundo
começa a sair, ele faz que sim.
— É. Quer ficar mais? – Ron pergunta rindo.
— Eu não, minha mãe deve estar querendo me ver.
─Pede para ela deixar você ir lá na minha casa no sábado, daí
podemos brincar. Você tem videogame?
— Tenho, e fui no parque outro dia com meu pai e minha mãe.
— O parque é legal, quer ir lá em casa? – A gente vai andando
juntos para a saída e vou ficando com um pouco de medo de não ter
ninguém.
— Tenho que pedir para meus pais, depois eu te falo.
— Tchau, Benjamin, minha mãe está ali. – A mãe dele sorri.
— Pode me chamar de Ben se quiser.
— Tá bom. Tchau, Ben. – Olho para os lados e vejo minha mãe,
meu coração já estava batendo forte.
— Que ansiosa que eu estava! – Ela me abraça e me dá um beijo. –
Quero saber tudo.
— Eu tenho um amigo, ele me chamou para ir na casa dele, eu
posso ir?
— Você quer? – Faço que sim. – Então, vamos ver, primeiro preciso
conhecer a mãe dele, saber onde mora e se ela pode recebê-lo, depois eu
deixo.
— Tudo bem. Não aprendi nada hoje, só tinha coisa que eu já sabia.
— É, talvez eu tenha ido longe demais com você. Quem manda ser
tão esperto?
— Sabia que eu chamo Brow? A senhora Thompson que falou.
— Sim, Benjamin Brow, como seu pai, estamos resolvendo isso
melhor. – Acho bom isso.
— Sobrou dinheiro do almoço.
— Então guarda, não estava querendo juntar dinheiro para um jogo
novo?
— Estava, mas eu decidi esperar o Natal. Acha que papai Noel
existe?
— Acho. – Entramos no carro, coloco o cinto. – Ele me deu você e
seu pai, só posso achar que sim.
— Vamos para casa agora?
— Antes vamos ao mercado, quero comprar morangos.
— Mais? Não comprou ontem.
— Comi todos, Ben, não consigo parar de comer morangos. –
Minha mãe anda muito estranha, e gostando muito de coisas vermelhas.
Capítulo 30
Jared

As coisas estão caminhando de um modo tão perfeito que me


pergunto se isso é um tipo de sonho, se mereço realmente o tão famoso final
feliz. Benjamin está se acostumando com a escola, uma primeira semana
tranquila.
Claro que ele ainda teme ser esquecido na escola, quando vê a mim
ou a mãe na porta, abre um sorriso de alívio, contabiliza amigos, já são
quatro, três meninos e uma menina, sem contar Michael, o primeiro amigo
que fez aqui no bairro, mas é um pouco mais velho que ele, então está se
dando muito melhor com os garotos da escola.
Fazendo planos para ir brincar na casa deles... eu não gosto disso,
estou relutante, mas Claire acha que temos que deixar, um garoto como ele,
que viveu tantas coisas ruins, sabe reconhecer o perigo e acho que passar
umas horas na casa de algum coleguinha não é assim tão arriscado.
Acho que me tornei um pai tenso, apavorado que qualquer tipo de
maldade o encontre mais uma vez, eu não sei o que faria se alguém se
atrevesse a ferir meu filho outra vez.
O carro do Zack estaciona na frente de casa, hoje somos nós a
recebê-los, um domingo em família, na minha casa, com minha garota e
meu filho, isso é quase como uma piada do destino, se me contassem há
dois anos, eu diria que é algum tipo de alucinação.
A barriga de Abby está grande, meu sobrinho não deve demorar a
chegar, loucura tudo que vivi enquanto essa criança se formava no ventre da
mãe: conheci Claire, ficamos juntos e Ben chegou em nossas vidas. Agora,
quando a criança está prestes a nascer, eu sou outro cara.
Depois dos cumprimentos, eu e Zack nos dirigimos ao jardim, para
acender a churrasqueira enquanto as garotas ficam na cozinha preparando o
acompanhamento e Mary na sala, aprende a jogar videogame com o primo
Ben. Ele tem um pouco de ciúme, dá para ver no instante em que Claire se
dobra para cumprimentar a sobrinha, o pequeno só faltou se atirar no meio
delas.
Eu entendo, depois de tudo que ele viveu, morre de medo de perder
a mãe, Claire é tão apaixonada por ele que acaba por enchê-lo de tantos
afagos e mimos, o pequeno fica com mais medo ainda de perder seu amor.
— Ele está tão bem, nem dá para acreditar. – Zack comenta abrindo
um refrigerante, eu o imito e brindamos. – Estamos mesmo tomando
refrigerante e fazendo churrasco com nossas famílias em pleno domingo? –
Ele faz uma expressão engraçada, torço o nariz, mas depois dou de ombros,
eu conheci o inferno, sei dar valor ao paraíso.
— Nós nos tornamos as ovelhas. – Brinco tomando um gole do
refrigerante.
— E gostamos disso! – Ele continua. – O próximo será lá em casa e
pode ser que o Samuel já esteja participando.
— Samuel, eu ainda não sei se gosto desse nome!
— Roubou o nome do meu filho, não pode reclamar. – Ele avisa
começando a colocar alguns hambúrgueres e salsichas na churrasqueira. –
Preciso dizer que estou bem ansioso! Abby está cansada, já não consegue
dormir direito e, acredite, ela tem muita mobilidade.
— Ela é ninja!
— Conte-me, como estão as coisas com o advogado?
— Ele me telefonou ontem, está tudo encaminhado, ele vai ser
oficialmente um Brow até o fim do mês.
— Isso é bom. – Zack se senta e eu faço o mesmo me acomodando
na cadeira em frente a sua.
— Vá em frente, o que quer dizer, está com ares de quem tem uma
coisa para dizer.
— Eu nunca pensei no futuro até ter a Abby e a Mary, mas depois
que a minha filha nasceu... cara, como eu me preocupo com tudo, seus
estudos, o futuro, dinheiro.
— Não te falta dinheiro, Zack.
— Não, felizmente já consegui guardar o bastante para a faculdade
dela, agora começo a pensar na faculdade dele.
— Uau! Nunca tinha pensado nisso.
— Ganho muito dinheiro com o meu trabalho, isso é um fato, mas
se eu parar de trabalhar, se eu... se algo me acontecer, Abby não ganharia o
bastante para manter os meninos em uma vida segura. Claro que ela não
teria medo de lutar e eu sei que daria conta e teria nossos bens, casa,
oficina, a minha marca, ela estaria em uma boa situação, se administrar
tudo, daria um jeito.
— Então você não tem com que se preocupar.
— Jared, estamos falando de você.
— Claire sabe tudo da loja, se algo me acontecer...
— Ela não é legalmente sua esposa, não é legalmente a mãe do
Benjamin, entende que se algo acontecer a você... – Ele não precisa
continuar, eu compreendo o que quer dizer. Benjamin poderia até voltar a
um abrigo, herdaria a loja, mas precisaria de um tutor até ter idade. Coço a
cabeça, me encosto na cadeira com olhos cheios de preocupação. Nunca
tinha pensado no futuro dessa maneira. Ninguém é realmente imortal, não
estou livre de alguma fatalidade.
— Eu sempre pensei que testamento fosse coisa de gente bilionária.
— Não estamos falando de testamento, idiota! – Zack fica bravo. –
Estamos falando de casamento!
— Só porque você fez aquele papel ridículo de pé enquanto ela
vestia aquela roupa toda... você sabe, Abby... eu não posso fazer aquilo.
Todo mundo me olhando, enquanto fico dizendo coisas... íntimas, está
maluco!
— Primeiro, não precisa ser assim. – ela ficaria linda usando um
vestido branco, com um buquê nas mãos, aposto que adoraria, Ben com
certeza ficaria orgulhoso e, no fim, eu estaria protegendo os dois. – Pode ser
algo íntimo, até mesmo só vocês dois, assinar uns papeis. – Amo Claire,
protegê-los é importante, mas eu faria pelo motivo certo, porque eu a amo e
quero passar o resto da vida com ela, envelhecer na varanda, enquanto
nosso filho cresce e encontra seu próprio caminho.
— Sou mesmo um idiota! – Digo a Zack. – Cara, eu passei toda a
vida fingindo que não ligava para o que pensam de mim, mas era medo de
não ser aprovado, então eu...
— Adotou a postura do durão que não liga.
—É, porque, afinal, ninguém nunca ligou muito para os Brow.
— Mas agora... – Ele me incentiva.
— Agora eu descobri que realmente não me importo com o que
pensam e as únicas opiniões que valem a pena são da minha família, então,
que se dane, eu posso ser ridículo ou... sei lá, ficar em um altar enfiado em
um terno.
— Agora sim! – Zack comemora. – Só precisa pedir e...
— Pedir? Não... pedir dá espaço para recusa, Claire pode dizer não.
— Olha o idiota aí de novo! Ela te ama, vai dizer sim. Não pode
simplesmente carregá-la para frente de um juiz e obrigá-la a assinar os
papéis.
— Tem certeza? – Brinco tomando mais um gole da minha bebida.
— Claire é uma mulher especial e acho que ela tem o direito de ter
seu nome oficialmente como mãe do Benjamin. Se vocês se casarem, os
documentos dele podem sair com o nome dela.
— Isso, sim, seria perfeito, já posso ver a emoção dela, vai chorar,
Claire chora quando está muito feliz. – Ele cruza os braços.
— Eu sempre pensei que apenas uma mulher como ela para
conquistar você. Uma mulher como a Abby nunca o encantaria, você
precisa cuidar, precisa ser o protetor, era assim comigo, me protegia, não
admite, mas você é assim.
— É, eu sou um cara legal, afinal.
— Nem fala mais palavrão.
— Deixei esse legado para a Mary e o Ben.
— Muito engraçado. – Ele resmunga. Os meninos vêm para o
jardim brincar, Benjamin corre em minha direção.
— Pai, eu e a Mary vamos caçar um tesouro, o Sam ensinou essa
brincadeira para ela.
— Tudo bem, boa sorte. Por falar em Sam...
— Na fazenda do pai da Judy, volta amanhã. Duas grávidas em
casa, você não está entendendo o que isso significa! – Zack ri. – Às vezes
eu e o Sam só... nos olhamos e tentamos não chorar.
— Um bebê... deve ser uma loucura.
— Vai descobrir. – Ele sentencia e nego, Zack ri.
— Pai! – Benjamin chama minha atenção. – O tesouro, vocês têm
que esconder um tesouro.
— Ah! Certo, então vão para dentro e voltem em dez minutos, eu
vou esconder.
— Dessa vez a gente vai achar! – Mary puxa Ben para dentro.
— O que e onde eu escondo?
— Não esconde nada! – Zack ri. – Eles vão cansar de procurar, mas
enquanto procuram... é uma paz.
— É sério? Isso é maldade!
— Ninguém é perfeito! – Zack se defende. Os dois cansam de
procurar antes do almoço, depois eu e Zack ficamos com a louça enquanto
Abby descansa no sofá conversando com Claire e nos juntamos a elas no
começo da tarde.
Claire vai para cozinha fazer pipoca para as crianças, os dois
sentados no chão assistindo a um desenho já que Ben gentilmente ofereceu
sua poltrona à tia que precisa se acomodar por causa da barriga e a poltrona
é perfeita.
O som estridente de uma panela caindo nos chama atenção, sou o
primeiro a chegar à cozinha, Claire está pálida, a boca sem cor, as mãos
trêmulas, eu a apoio, enquanto Zack e as crianças chegam em seguida.
— Claire, o que foi? Está se sentindo...
— Estou bem! – Ela diz com as mãos frias e os olhos vazios. –
Foi... uma distração.
— Está branca feito cera! – Zack constata. – Não foi distração.
— É, eu também acho, o que você sentiu? – Pergunto enquanto
Zack recolhe a panela do chão e Ben a observa com olhos arregalados de
preocupação.
— Ela está bem. – Abby finalmente chega à cozinha. – Por que não
leva a Claire para descansar no quarto um pouco? Vai ser bom. – As duas se
olham em uma linguagem que desconheço, mas sei que trocam uma
mensagem silenciosa. Benjamin corre para perto da mãe, Mary parece se
convencer que tudo está bem e volta para sala.
— Eu estou bem, vou fazer a pipoca...
— Não precisa, Claire, a Abby precisa descansar e vamos para casa.
– Zack sente que está na hora de ir.
— Gente, é sério, eu estou....
— Jared, leva a Claire para descansar, sim? Nós estamos de saída,
eu preciso colocar meus pés para cima antes que esse bebê nasça na sua
cozinha.
Seguimos para sala, Claire se acomoda no sofá enquanto eu
acompanho a família até a porta, Benjamin fica ao seu lado, segurando sua
mão, ela acena para todos e Mary corre para beijar a bochecha da tia e eu os
assisto partir com a sensação que algo está errado, bem errado.
Eu retorno à sala, Claire está ainda pálida, segurando a mão de
Benjamin com olhos cheios de preocupação. Eu a amo de um jeito que não
consigo mais colocar em palavras, Zack está certo, somos uma família e me
casar com ela é a coisa certa a fazer, certo e verdadeiro, é assim que mostro
a todos que amo minha mulher.
— Quer casar comigo? – Pergunto de pé, ainda na porta, os olhos
dela cintilam, a ideia de que Claire pode estar doente me apavora tanto, ela
é a coisa mais especial da minha vida.
— Jared! – Sua palidez parece aumentar um pouco, eu não preparei
nada, não tenho anel, palavras bonitas ou champanhe, só tenho meu coração
me dizendo que precisamos ficar juntos para sempre.
—Amo você, casa comigo.
— Sim! – Ela ri, chora, e continua um tanto pálida, de mãos dadas
com Benjamin.
— Você não é casado com a minha mãe? – Ele pergunta parecendo
ofendido. – E ela dorme com você e ficam se beijando toda hora? – Eu me
ajoelho diante dela, seguro sua mão livre, ela toca meu rosto com tanta
emoção. Claire me ama, está estampado em seu rosto. – Mãe, isso não é
certo.
— Seu pai está consertando isso, Ben. – Claire responde com os
olhos em mim.
— Eu acho bom casar mesmo. - Benjamin diz inconformado. –
Melhor você ficar no meu quarto até se casar e nada de ficar aos beijos toda
hora. – Finalmente ele ganha nossa atenção, olhamos os dois para ela. – Eu
sei cuidar da minha mãe!
— Está bravo comigo, filho? – Ele amolece um pouco, mas então,
olha para Claire e acho que o amor por ela fala mais alto.
— Não, mas estou cuidando da minha mãe, tem que casar para ficar
morando na mesma casa e dormindo na mesma cama.
— Seu pai é um bom marido, Ben, estou muito feliz. – Claire me
olha. – Não preciso de um papel para ser sua, Jared, mas eu quero me casar
com você, porque eu te amo.
Beijo sua mão, depois seus lábios. Devia ter feito algo especial, ela
merecia, mas eu não sei fazer nada assim.
— Algo simples, o que acha? Só nossa família, depois um almoço.
— Sim, sim, sim, sempre sim para você.
— E agora vamos levar minha mãe para deitar, ela está cansada.
Olha, a cor dela voltou, pai, acho que ela queria casar com você. – Nós dois
rimos, eu ajudo Claire a ficar de pé, pode ter sido apenas uma queda de
pressão, mas seja como for, todo cuidado é pouco, quem sabe vamos ao
médico amanhã. – Quer dormir no meu quarto, mãe?
— Nada disso! – Eu me apresso. – Ela fica comigo, preciso cuidar
dela.
— Eu também preciso.
— Ficamos os três! – Ela diz resolvendo a pendenga, o pequeno
bem que gosta. Acabo de pedir minha mulher em casamento e esse pequeno
vai roubar metade da cama e uma noite que prometia, mas ainda assim, eu
consigo ser o cara mais sortudo e feliz do mundo. É estranho, os Brow não
eram felizes e, agora, parece que todo dia a vida nos presenteia, como se
estivesse a nos vingar pelos anos de dor e sofrimento, valeu a pena esperar,
valeu a pena viver.
Capítulo 31
Claire

Jared e Ben dormem espalhados na cama, sorrio pensando em como


são parecidos, eu não podia ser mais feliz, e não podia estar mais assustada,
ele me ama, me pediu em casamento do jeito mais inusitado e perfeito que
podia acontecer, no exato instante em que me dava conta de que posso estar
grávida. Foi perfeito, lindo, doce, a cara dele, sem cenas programadas, tudo
natural.
Acontece que um filho, mais um filho, não está em seus planos,
filhos nunca estiveram em seus planos, ele não escolheu ter o Benjamin,
apenas aconteceu e agora outra vez, apenas está acontecendo.
Eu, no fundo, não imaginei que tinha esse risco, eu comecei com as
injeções na semana que me mudei para cá, quando entendi que viveríamos
como um casal. Abby me levou ao seu médico e eu escolhi a injeção para
não me esquecer, bastava uma por mês e tudo certo.
Quando o Ben chegou, tudo foi tão desesperador, corrido, eu não
queria deixá-lo um só segundo, me envolvi, mergulhei de cabeça e,
simplesmente, esqueci de ir à farmácia tomar.
O médico disse que era eficaz, que eu teria que ficar uns meses sem
tomar se resolvesse engravidar e, na primeira vez que eu me esqueço...
Talvez eu esteja enganada, ele disse que eu podia ter enjoos,
tonturas, até disse que podíamos trocar por comprimidos se meu corpo não
se adaptasse, posso estar sendo uma idiota perdendo o sono cheia de medo
no dia mais feliz da minha vida e não ser nada, mas tem uma coisa dentro
de mim, um sinal, um aviso que deixa claro que eu estou grávida, é como se
pudesse ouvir o meu corpo e ele está gritando.
Eu não tenho medo de Jared me deixar, ou me odiar, ele ama o
filho, tem bem claro dentro de si o senso de responsabilidade de pai. Vai
amar e proteger essa criança também, mas não planejamos, éramos nós três
e estava perfeito, Benjamin ainda tem tanto que evoluir, eu não faço ideia
de como ele vai reagir, mal se acostumou com a nova realidade e agora essa
grande mudança.
Volto para a cama. Seja como for, sem uma certeza não há nada a
ser feito, durmo e acordo de meia em meia hora, com sobressaltos de medo
e sonhos confusos, vez por outra Jared abre os olhos, me abraça sentindo
minha agitação. Amanhece e fico grata. Preciso desabafar sobre isso.
Saio da cama com cuidado, tomo banho e desço sem fazer barulho,
ligo a cafeteira e coloco a mesa para o café, bato um bolo com a esperança
do trabalho me distrair a mente, até que fique sozinha e possa falar sobre
isso com Jared.
Sento-me olhando o bolo assar no forno, a mente criando situações
dramáticas de abandono e gritos. Seco uma lágrima, nem sabia que estava
chorando, respiro fundo controlando a angústia.
Escuto os passos pesados de Benjamin correndo pelas escadas e
disfarço as lágrimas.
— Bom dia, mãe, eu não vou na escola hoje.
— E posso saber por que? – Ele me aponta.
— Você vai ficar sozinha aqui? Doente e tudo?
— Não estou doente e você não pode faltar a aula.
— Oh! Pai! – Ele grita cruzando os braços com ar zangado. Jared
chega correndo, seu alívio ao nos ver bem é engraçado. – Ela quer que eu
vou na escola e quem vai cuidar dela?
— Que susto! – Jared suspira vindo até mim, seus olhos me
analisam, ele sabe que tive uma péssima noite de sono. Como Benjamin,
também está preocupado, mas não vai deixar que o garotinho perceba.
— Estou ótima. Inclusive vou deixar o Ben na escola e fazer umas
compras, resolver umas coisas que preciso na rua.
— Ouviu, filho, ela está bem, melhor ir à escola.
— Agora, que acham de um café da manhã com bolo quentinho?
Acordei cedo e muito animada, até coloquei um bolo para assar, isso é coisa
de gente doente? – Os dois balançam a cabeça negando e têm as mesmas
expressões.
Será que meu bebê vai se parecer com eles? Será que existe um
bebê? Vou descobrir, não tem outra escolha, eu preciso saber.
O café da manhã é leve e tranquilo, eu e Jared nos esforçando para
que ele não fique assustado e, quando eu o levo para a escola, depois de nos
despedirmos do pai, ele fica o caminho todo me olhando ainda tenso.
— Mãe, se você ficar doente fala para o meu pai vir me buscar e eu
cuido de você.
— É muito bom saber que eu tenho um filho assim cuidadoso! –
Aliso seu rosto, beijo a bochecha agora rosada, ele está bem, ganhando
peso, tomando as vitaminas, saudável e feliz, eu não quero estragar nada
disso.
Escolho a farmácia mais distante de casa para comprar o teste, tem
um misto de ansiedade e medo.
Só consigo pensar em Abby e dirijo para sua casa, não quero estar
sozinha nesse momento e ela é mais do que minha cunhada, somos amigas,
Abby me entende.
Zack vai até a porta da oficina quando estaciono, acena com um
sorriso enigmático.
— Vim ver a Abby, saber se ela precisa de algo, esse bebê está
prestes a nascer.
— Ela está lá dentro. – Ele aponta a casa enquanto eu lido com o
cachorro animado e grandalhão me recebendo com lambidas que só faltam
me derrubar.
— Você também está grávida! – É o que ela diz assim que me vê
cruzar a porta e sinto o ar faltar um instante. – Não desmaia que eu não
tenho força e nem rapidez para chegar até você e impedir a queda. – Ela ri
me convidando com a mão, eu me sento ao seu lado no sofá.
— Abby, eu trouxe um teste para fazer aqui. – Digo segurando suas
mãos entre as minhas. – Estou nervosa demais para viver isso sozinha.
— Sei como é! – Ela diz em um sorriso de compreensão.
— Eu me esqueci da injeção mês passado, esse mês eu... faz
quarenta dias que não tomo.
— Claire, pode ter engravidado até tomando, acontece, nada é cem
por cento garantido a não ser o celibato.
— Está me dizendo isso para eu não me sentir culpada?
— Sim! – Ela ri. – Seu medo é o Jared ou você não queria mesmo?
— Quero, sempre quis, eu aceitei que, por enquanto, seríamos
apenas nós três e, juro que ficaria feliz se fosse assim para sempre, mas
pensava que em alguns anos, com o Benjamin mais adaptado, nossa vida
mais tranquila, ele pudesse querer um bebê.
— Jared vai ficar feliz, logo depois de ficar apavorado, tem
cicatrizes que gritam, Claire, as dele vão gritar, mas ele vai silenciá-las e
adorar.
— E o Ben? Talvez as dele não silenciem, ele tem ciúme da Mary,
imagina a ideia de um bebê?
— Benjamin precisa entender que é amado e que nada vai mudar,
então, como o pai, ele vai amar a ideia, viu como ele foi protetor ontem?
Ele vai ser mais ainda agora.
— De qualquer modo! – Digo a caixinha da bolsa. – Pode não ser, o
melhor é descobrir.
— Banheiro! – Ela ponta e eu olho para ela tentando roubar um
pouco da sua força. – Essa família resolveu crescer de uma só vez.
— Volto em três minutos! – Digo olhando as instruções. Volto com
o bastonete uns minutos depois e me sento outra vez ao lado dela. – Como é
bom ter você comigo. – Digo encarando o teste.
Os risquinhos me enchem de medo e amor, ao mesmo tempo, de
modo completo e intenso, quase perco o ar, me apoio em Abby, ela me
aperta a mão, meu rosto coberto por lágrimas.
— Calma. Jared vai, talvez, se assustar um pouco, mas logo passa,
vocês se amam, têm uma família linda que se ama e tudo vai dar certo.
— Você tem razão. Eu vou... Como conto uma coisa dessas? – Rio e
choro ao mesmo tempo, ela está como eu, com lágrimas nos olhos e um
sorriso no rosto. Eu nunca pensei que ficaria tão inteira e tão feliz, eu me
sinto forte e frágil e meio maluca, tudo ao mesmo tempo.
—De uma vez, se ficar guardando vai tornar tudo mais difícil, além
disso, não é só sobre você, então tem que contar logo.
— Melhor contar agora, não acha? Antes do Ben chegar da escola?
– Penso no meu garotinho, ele nem ficou confiante o bastante e já vem mais
mudanças. Outras lágrimas escorrem.
— Primeiro para de chorar, ele vai ficar assustado se sair pensando
tolices antes mesmo de falar se já chegar chorando.
Concordo, só não consigo me controlar. Abby me serve chá, tomo
uns goles me acalmando, lavo o rosto e a abraço pronta para dirigir para
casa, ela me aperta as mãos, promete guardar segredo até Jared contar ao
primo e me despeço cheia de coragem.
Assim que entro em casa, ele vem da loja saber como estou, ficou
preocupado com o meu mal-estar de ontem, não conversamos pela manhã
para não preocupar Benjamin.
— Oi, vim saber se está bem, tem algo te preocupando, não dormiu
bem essa noite e passou mal ontem, quer ir ao médico? Podemos aproveitar
que o Ben está na escola.
Paro diante dele, encaro Jared de modo firme, é melhor dizer de
uma vez.
— Eu amo você. Amo o Ben e essa família que construímos, ou
estamos começando a construir. As coisas se... Eu não tinha planos, não foi
de propósito, não planejei, me descuidei, sinto muito, mas pode dar certo,
está dando certo com o Ben então pode dar certo com esse também, basta a
gente querer, a gente se amar. Podemos...
— Do que está falando? – Ele me pergunta e suspiro, tomo ar nos
pulmões, solto lentamente juntando coragem, sou forte, posso vencer esse
momento.
— Jared, eu estou grávida.
Um silêncio sepulcral recai sobre nós dois, vejo quando fica um
tanto pálido e tenso e seus olhos escurecem um pouco e não sei se é medo
ou raiva.
— Grávida? Um bebê? Eu não... Isso é... Achei que seria só... O
Benjamin foi algo que não esperava, você é boa com ele, conserta as coisas,
mas eu? Acho que não sei fazer isso assim, isso tudo é novo e confuso
demais. Acho que preciso de um pouco de ar. – Ele toca a maçaneta da
porta na intenção de sair, uma força que nem sabia ter me domina. Não vou
aceitar que fuja assustado.
— Não se atreva a sair por essa porta. Não se atreva a rejeitar meu
filho. Seu filho.
Ele para no mesmo momento, respira fundo e solta a maçaneta. Se
vira e me olha com olhos arregalados.
— Eu não... Eu não estou fazendo isso. Nunca faria isso, eu sei
como é isso, o que acontece quando... Foi o que fizeram comigo, com o
Benjamin, mas eu... Isso tudo é grande e assustador. Um bebê... – Jared
parece se quebrar um pouco, se senta no chão atordoado, parece ser atirado
ao passado, eu usei a palavra rejeição e isso trouxe tudo de volta. Sigo até
ele, me ajoelho a seu lado, abraço Jared numa crise de choro que não
esperava.
— Não se parece em nada com seu pai, amo você, tem sido a
melhor coisa da minha vida, cuida e protege nosso filho e vai fazer o
mesmo com esse. – Choro enquanto nos abraçamos, aos poucos ele começa
a se acalmar.
— Desculpe, Claire, quero esse filho, desculpe se fiz parecer que
não, eu amo você, sinto muito.
— Vamos fazer dar certo. Eu sei que sim. Não se desculpe. – Ele me
envolve apertado, me sinto como seu porto seguro, me deixa confiante.
— Meu Deus! Como pude pensar em te deixar falando sozinha
quando... Não estava indo embora ou coisa parecida, só pretendia dar uma
volta e respirar.
— Sei disso. – Ele se acalma. Afasta meus cabelos e encara meu
rosto.
— Desculpe. Vamos cuidar desse bebê, vamos amar como amamos
o Benjamin, desculpe dizer essas coisas todas.
— Você não disse realmente nada. Só ficou gaguejando. – Ele me
beija os lábios de leve, agora sorrindo.
— Linda. Toda perfeitinha. Que bom que não consegui me articular,
porque a cabeça foi longe. Eu passei por coisas... Meu pai era um homem
ruim. Era algo arraigado nele, a maldade, a vontade de machucar, infringir
dor, você já viu as marcas. Não posso detalhar, mas foi assustador, só queria
sumir, mas estava sempre voltando porque não tinha para onde ir. Um dia
fiquei maior e mais forte que ele, me dar conta disso me deixou cheio de
ódio, e tive que fugir do que eu poderia fazer.
— Está tudo bem. Não podemos viver do passado, não precisamos,
as coisas ruins... Vamos só esquecer.
— Vamos. – Seus lábios procuram os meus em um beijo cheio do
nosso amor.
— Como Ben vai reagir?
— Vamos descobrir hoje à noite, depois do jantar. – Ele anuncia
agora me deixando assustada.
— Já? – Não sei se estou pronta, foi um dia tão tenso e assustador.
— Quanto antes melhor, não vamos deixar nada para depois, ele vai
ter que enfrentar isso assim como nós.
— Não tem almoço. – Aviso e ele ri, seca seu rosto e depois o meu.
— Vem, vou te pagar um almoço. – Brinca me colocando de pé. Eu
respiro fundo, os dois com cara de choro, ele é um homem em
transformação, o Jared que conheci jamais teria uma crise de choro diante
de mim, mas ele se sente seguro agora, chorar também parece ter limpado
um pouco seu coração das mágoas do passado e nós dois sabemos que elas
são dolorosas e reais, mas podem ser vencidas, pelos nossos filhos, elas
podem e vão.
Capítulo 32
Benjamin

Meu pai e minha mãe me buscando juntos na escola? Acho muito


legal e meio esquisito. Dou tchau para o Ron quando entro no carro. Agora
minha mãe vai me pedir um abraço e um beijo.
— Como foi a aula? Cadê meu beijo e abraço? – Sabia! Eu a abraço
e beijo, meu pai não pede nada, ele nunca pede, daria se ele pedisse, mas
não sei se ele quer que eu o abrace e beije ele, então só me sento.
— Foi tudo bem hoje, por que os dois estão aqui? – Pergunto
achando que eles estão com caras estranhas e eu não fiz nada de errado.
— Nada, seu pai quis vir comigo. A gente sentiu saudade.
— Tá bom. – Arrumo-me no banco achando legal isso. Passamos
em frente a uma sorveteria, tem garotos que saíram da escola lá, tomando
sorvete com as mães ou sozinhos. – Vocês viram ali que tem gente que sai
da escola e vai tomar sorvetes? Deve ser legal.
— O que acha, amor? Será que é legal? – Minha mãe pergunta. Meu
pai para o carro, sorri para ela.
— Só tem um jeito de saber. – Ele retorna com o carro e para na
porta. Eles fazem as coisas que eu quero sempre. A gente desce, eu tomo
sorvete de chocolate, minha mãe de morango e meu pai de nada que ele não
quer e fica só bebendo água.
— Minha mãe gosta de tudo vermelho agora. Toda hora quer
morangos, essas coisas.
— Bem observado, pequeno duende. – Meu pai dá um beijo nela
sorrindo. Nunca vi ele beijar ela no meio da rua, os dois ficam de risinho,
mãos dadas, muito estranhos. – Quer mais um? – Ele pergunta para ela
afastando seus cabelos e beijando ela de novo.
— Querer eu quero, mas não aguento.
— E você, pequeno duende? – Ele é engraçado me chamando assim
porque eu enganei os dois fingindo que tinha dezesseis anos e eles
acreditaram.
— Eu aguento.
— Então mais um para o pequeno duende comilão. – Tomo outro
sorvete, peço de morango e minha mãe come um pouco comigo. Depois
vamos para casa, já é quase de noite, tenho lição para fazer, mas fico perto
deles, eu gosto de ficar com eles só perto, conversando. Os dois trocam um
olhar e ela faz que sim com a cabeça. Meu pai me olha bem sério.
— Fiz alguma coisa? –Eu pergunto preocupado. Não me lembro de
nada errado.
— Não, Ben. Quero contar uma coisa boa que aconteceu. – Ainda
bem que é coisa boa, porque minha mãe ficou doente e agora eles estão
estranhos, eu não queria que ela morresse.
— O que?
— A Claire está grávida, vamos ter um bebê. – Fico nervoso, muito
mesmo, meu coração bate rápido, dói muito e acho que eu posso até estar
morrendo.
Eles vão ter um bebê para eles e vou ter que ir embora. Ele vai
morar no meu quarto e não vou ter mais pai, nem mãe, nem poltrona e cama
e mais nada. Fico com raiva, meus olhos e minha garganta ardem, não sei o
que fazer, prendo o choro.
— Não gosto mais de casas pequenas, não quero mais morar aqui.
Quero ir embora. Não quero nunca olhar na cara desse filho de vocês.
Odeio ele, odeio. Ele vai ser burro, não vai saber fazer nada, nem aprender
nada de escola e não sabe falar, nem andar e vocês são burros de querer ele,
burros! – Grito com os dois. Depois corro para o quarto.
Tranco a porta e choro deitado na cama que logo vai ser desse bebê
idiota, a tia Abby já vai ter um bebê e a Judy também, não precisava de
mais um.
— Ben... Abre a porta. – Meu pai pede. Fico sentado na cama
chorando, não vou abrir para eles me mandarem embora. Por que me
deixaram ficar se depois iam ter outro bebê e me mandar embora? – Abre a
porta, Ben. Agora mesmo!
— Vai embora, Jared. Não vou abrir merda nenhuma. – Nunca mais
vou chamar ninguém de pai. Nunca mais! Eu não quero ter que voltar para
aquele abrigo, não quero mais de ter que fazer coisas ruins.
— Ben, essa porta não vai me impedir de entrar. Abre! – Meu pai
diz bem bravo, acho que ele vai entrar aqui e me bater. Fico com medo,
xinguei o filhinho deles, fiz a Claire chorar, ele vai me machucar. Corro
para janela, empurro um móvel e subo na janela, passo para o outro lado e
vou caminhando bem devagarinho. Meu pai parou de bater na porta, já que
ele vai conseguir entrar, ando mais rápido, as lágrimas não me deixam ver
as coisas direito e me penduro me arrastando bastante e, quando penso que
está perto do chão, eu pulo. Eu caio machucando o joelho.
— Machucou? – Fico de pé, meu pai está na minha frente de braços
cruzados, tenho medo dele agora, não sei o que fazer, meu joelho está
ralado e sangrando, arde e tento secar as lágrimas. – Onde pensa que vai?
— Vou achar uma casa grande para morar. – Tento limpar a calça
toda rasgada, ele que me deu e gostava muito dela.
— Não! Você vai entrar agora mesmo, é uma criança e não pode
andar por aí. – Fico calado, não quero ir mesmo em lugar nenhum. Quero
ficar com eles para sempre, fico olhando para o chão sem saber o que fazer.
– Entra, Benjamin. Nunca mais faça isso ou tranco sua janela para sempre.
Você tem lição para fazer.
— Nunca mais vou naquela escola estúpida. – Eu disse que tinha
pai e mãe, agora todo mundo vai rir de mim que não tenho mais. – Quero
que essa porra toda se dane!
— Eu não. Eu quero que essa porra toda dê certo, porque tenho dois
filhos para criar. Um deles, inclusive, anda precisando lavar a boca suja.
Entra!
Não me mexo, não sei o que fazer, não sei como agir. Ele se
aproxima de mim e penso que vai me arrastar para dentro, me puxar, mas
ele me pega no colo e gosto, sou um pouco grande, mas gosto e não consigo
mais não chorar, me encosto em seu ombro de deixo o choro vir com tudo.
— Machuquei meu joelho.
— Eu sei, sua mãe vai cuidar disso. – Ele me coloca na poltrona que
agora vai ser do filhinho deles, minha mãe está chorando e fico com
vergonha, não gosto de fazer isso com ela, mas eu sou assim, faço coisas
feias.
— Vou passar um remédio e já vai ficar bom. – Ela corre para
buscar a caixinha de remédios, depois se ajoelha ao meu lado, passa um
algodão com remédio, arde, mas ela vai assoprando e chorando. – Está
ardendo, filho? – Ela tem uma voz boa e gosto que fala comigo assim de
pertinho sem gritar e fico calmo quando ela faz assim comigo.
— Quando assopra não dói.
— Queria assoprar para sempre, Ben, para nunca nada doer, mas
não posso. Às vezes dói um pouco, às vezes muito. – Ela para e me olha
chorando, eu e ela chorando. – Mas sempre, sempre mesmo e, isso eu juro,
sempre passa, qualquer dor sempre passa. O tempo cura tudo.
Não vai passar ir embora, vai doer para sempre. Soluço junto com
ela, meu pai abraça minha mãe, ele quer cuidar dela porque fiz ela chorar e
ele agora se preocupa com o filhinho dele na barriga dela.
— Sabe. filho, esse bebê que tenho aqui dentro, ele é seu irmão, e
você não sabe ainda, mas ama muito ele. E ele vai ser muito feliz e
inteligente, porque ele tem você e você vai cuidar dele e ficar sempre perto.
Ela fica de pé abraçada com Jared, eu não sei o que fazer e fico
olhando para eles.
— Jared, não o deixe fugir, não o deixe sozinho, tenho medo, se ele
tentar de novo, eu não sei o que eu faço.
— Calma, ele não vai fazer isso, não fica nervosa assim, não é bom.
– Ela está pálida e com medo de eu ir embora.
— Está doente, Claire? – Pergunto com medo de ela morrer.
— Eu não sou Claire! – Ela grita comigo pela primeira vez e fico
tão triste. – Sou sua mãe. Sua mãe! – Fico assustado, não quero que ela fale
assim comigo, me dói. Ela é sempre boa.
— Ele sabe, Claire, calma, está tornando as coisas piores. – Jared
fala bem calminho com ela.
— Então toma conta dele, não deixa mais ele fazer isso. – Ela está
mesmo muito nervosa, soluçando de tanto chorar.
— Ele não vai fazer mais. Benjamin vai sentar aqui perto e fazer a
lição dele, você vai ficar olhando para ele. Está tudo bem, acabou. Vai,
Benjamin, fazer sua lição.
Obedeço. Eu me sento com meus cadernos tentando não chorar, ela
fica sentada com meu pai me olhando, todo mundo para de chorar.
Fecho o caderno depois de terminar, deve estar tudo errado, porque
eu nem consigo prestar atenção. Não sei nada como fazer as coisas agora,
não é mais igual a antes que eu mostrava o caderno e ela dizia que estava
tudo lindo, fico olhando o caderno fechado na mesa com vontade de chorar
de novo.
— Desculpa ter gritado, filho. – Minha mãe diz e olho para ela. –
Fiquei com muito medo de fugir de mim. Desculpa. – Faço que sim com a
cabeça, eu desculpo mesmo, ela é muito boa.
— Fez a lição, Benjamin? – Jared pergunta.
— Não vai mais me chamar de Ben?
— Não vai mais me chamar de pai? – Ele pergunta muito sério.
— Vou, pai. – Eu gosto mais de chamar de pai e mãe, eu quero
chamar e quero que seja tudo como antes.
— Que bom, Ben.
— Posso tomar um banho? – Pergunto porque agora eles que sabem
o que eu tenho que fazer.
— Vai sim, filho, um bem quentinho, deixa a água cair bastante para
te acalmar um pouco, não precisa correr. Se arder seu joelho é só me
chamar. – Ela é tão carinhosa comigo, queria abraçar ela e pedir desculpa,
mas só me viro e vou tomar banho. Arde muito meu joelho e me lembro
quando minhas costas doíam no banho.
Quando desço, os dois estão no mesmo lugar. Eu me aproximo.
— Onde eu vou dormir?
— Na sua cama, Ben. – Meu pai me diz agora sem voz de bravo.
— Só por enquanto?
— Não. Sempre.
— Porque o filhinho de vocês vai dormir com vocês? – É bom
dormir com eles, então eu acho que o bebê vai querer e eles vão deixar
todos os dias.
— Não, porque é seu quarto, que vai dividir com seu irmão quando
ele nascer, cada um na sua cama no quarto dos filhos. – Acho que pode ser
verdade, Ron tem um irmão, tem gente que tem mais de um filho.
— Ele vai ser meu irmão? – Pergunto sem saber direito.
— Senta aqui com a gente e pergunta tudo que quer saber. – Meu
pai convida me dando um espaço no meio deles. Logo que sento, minha
mãe já me faz carinho, eu deixo, porque gosto disso.
— Ele vai ser meu irmão como a Mary e o Samuel que não nasceu?
— Isso mesmo.
— E vou ter minha poltrona ainda, não vai ser dele?
— É sua, filho, ele vai ter as coisas dele. – Minha mãe responde
ajeitando meus cabelos molhados.
— E nunca vou embora? De jeito nenhum? – Essa é a pergunta mais
importante de todas.
— Claro que não. É nosso filho. Nunca vai embora.
— Pai, vai dizer para ele que sou seu irmão? – Até ele me faz um
carinho e já quero chorar de novo. – Ele vai acreditar?
— Claro que vai. Amamos você, Ben. Eu e a Claire, sua mãe,
amamos você. – Ele diz olhando bem para mim, querendo que eu acredite e
lembro tudo que minha mãe falou do amor.
— Desses que não acaba, como minha mãe falou?
— Desse tipo. – Ela me beija a testa. – Vem no meu colo um
pouquinho. Quero abraçar você.
Vou bem rápido, ela me abraça, parece até a Mary no colo que é
pequenininha, mas eu não ligo, sou criança também.
— Eu sou criança também, vocês lembram que não tenho
dezesseis? – Eles sorriem concordando, minha mãe me beija e não fico mais
com medo, fico bem. Encosto-me nela. – Xinguei tudo de novo, faço coisas
feias.
— Estava assustado, não tem problema, e faz coisas lindas também.
— Fiquei com medo de ir embora. – Conto para eles, minha mãe me
abraça bastante. – Meu pai não pede abraço. – Eu comento, é verdade, ele
nunca me pede abraço.
Ele olha para ela, depois me tira do colo dela e me abraça, fico
sentado no colo dele, bem pertinho.
— Lembra-se quando disse que era como você quando eu era
criança? – Ele me pergunta e faço que sim. – Não sei essas coisas de
abraçar, tem que me pedir, ou me abraçar. Desculpe, filho, eu vou tentar
fazer mais isso e você também. Pode ser assim?
— Pode. Você fica pensando que ninguém quer seu abraço?
— Fico. – Ele é igual a mim, porque eu também fico pensando
todas essas coisas.
— Eu também. Por isso que a gente tem cabelo igual. – Eu pareço
muito com o meu pai e acho que meu irmão ou irmã vai parecer com a
minha mãe, não tem problema isso.
— É por isso mesmo.
— Fiz minha mãe chorar hoje. – Suspiro um pouco triste pela
besteira que fiz, mas foi porque eu pensei que ia embora.
— Eu também fiz, Ben. Quando ela me contou do nosso bebê.
— Pensou que ela não ia mais gostar de você? – Meu pai sorri para
ela. Os dois se beijam.
— Mais ou menos isso, mas pedi desculpas e ela me desculpou.
— Desculpa, mãe, não vou fazer mais isso, vou cuidar do meu
irmão direitinho, ele não vai ser burro nem chato não. Você passa remédio
de novo no meu joelho?
— Passo. – Ela sorri fazendo carinho no meu rosto, bem cuidadosa
como ela sempre é.
— E assopra?
— Assopro, agora vamos jantar e dormir que amanhã tem aula?
— Posso apagar minha lição e fazer de novo, ficou feia.
— Pode. Amo você, Ben, nunca vai sair de perto de mim. – Ela me
promete e eu acho que quando eu for grande eu vou sim, para ir à faculdade
e namorar, depois casar, mas eu não conto para ela, porque minha mãe pode
até chorar de novo.
Acredito neles, são mesmo meus pais, vou falar para Ron que agora
eu também vou ter irmão, e para a Mary. Acho que todo mundo tem irmão,
eu me esqueci disso, se tivesse lembrado eu não ia chorar.
Eu conserto a lição, depois coloco tudo dentro da mochila para levar
para a escola, não estou mais chorando, agora meu coração não está mais
doendo.
— Jantar? – Minha mãe pergunta e faço que sim. Vamos os três para
cozinha e ninguém mais chorando. Depois de comer, vamos para o meu
quarto, é até grande, acho que cabe uma caminha pequena para meu irmão
ou irmã, eu queria irmão, minha mãe me cobre e os dois se sentam na beira
da cama.
— Pai, se for uma menina será que a gente não pode arrumar mais
um, mas menino? Por que só vou ter uma menina de irmã? Já tenho prima
menina.
— Ouvi bem? Está querendo mais um? – Ele ri.
— É.
— Quem sabe? Vamos esperar para ver se quer mesmo. Ter irmão
dá muito trabalho.
— Eu consigo amar três crianças lindas! – Minha mãe conta, acho
que ela consegue amar muitas pessoas, ela é muito boa. – Melhor você
dormir. – Ela se dobra e me beija, quando ela ficar um pouco gorda como a
tia Abby e a Judy, eu vou fazer todas as coisas para ela. – Dorme bem,
filho, te amo.
— Também, mãe. – Olho para o meu pai. – Você quer me dar um
abraço de boa noite? – Pergunto e ele me abraça apertado. Vou pedir sempre
abraço para ele.
— Boa noite, pequeno duende.
.

Capítulo 33
Claire

Samuel nasce em uma manhã de domingo, um bebê lindo, com os


olhos iguais aos do pai e do tio, Mary se torna uma irmã muito cuidadosa,
passa suas horas a olhar para a carinha do bebê com um sorriso que não
desgruda do seu rosto, já Benjamin está, ao que me parece, fazendo algum
tipo de curso para ser irmão. Ele passa todo tempo enchendo Abby de
perguntas muito pertinentes sobre trocar fraldas, alimentar bebês e o sono,
parece muito disposto a ser um irmão presente.
Carol, a filha de Judy e Sam chega com mais barulho, num sábado à
noite, de súbito, fazendo Zack dirigir alucinado pela cidade em direção à
maternidade como foi quando Mary nasceu, na hora do parto, depois de
Sam desmaiar e recobrar os sentidos a tempo de vê-la chegar, tudo se
acalmou.
Nossa família cresce de maneira vertiginosa, assim como minha
barriga. É bom ver como Jared e Ben se dividem cheio de atenções e
cuidados, mas como Benjamin não consegue esquecer que o seu pai dorme
com sua mãe sem um casamento formal, decidimos não esperar o bebê
nascer e marcamos a data para uma manhã de sábado em nossa casa, com o
juiz de paz, Zack, Abby e as crianças, Sam, Judy e Carol, como convidados,
mais ninguém, apenas um almoço encomendado na cidade e um bolo para
servirmos como sobremesa.
Uso um vestido branco, confortável, bonito e sandálias baixas, o
buquê é natural, flores do nosso jardim e algumas da casa de Abby, ela
totalmente recuperada do parto e já dando suas aulas, me ajuda com tudo,
arrumação da casa, enfeites, buquê e até o vestido.
Zack e Jared saíram para comprar uma camisa bonita para Jared,
Benjamin achou que a ocasião merecia uma roupa adequada e parece que
será o único a usar terno. Eu tenho que fingir que acho natural um garoto,
de agora nove anos, usando terno e gravata em uma manhã de sábado, mas
ele está orgulhoso de si, com os cabelos cortados e, se pudesse, faria até
mesmo a barba.
Judy me ajuda com uma maquiagem leve, pintei as unhas de branco
e calço as sandálias ansiosa e subitamente nervosa, eu não achei que ficaria
assim nervosa, mas é inevitável.
Arrumamos tudo no pequeno espaço no fundo da casa, com o bolo
na sala e uma mesa longa para nos reunirmos para comer. É a segunda festa
que fazemos em nossa casa, a primeira foi no Natal, algo que me
surpreendeu.
Jared ficou realmente maluco, minha casa estava tão iluminada que,
provavelmente, poderia ser vista da lua sem ajuda de telescópios. Havia
tantos enfeites e presentes que eu achei que se demorasse mais uma semana
iríamos falir, ele queria dar ao filho o Natal dos sonhos e foi o que fez.
Um jantar especial, presentes sob uma linda árvore, luzes de natal,
perfume de biscoitos de gengibre que fiz questão de aprender a receita e
assar para compartilhar do seu encantamento e, para surpresa de todos,
contratou um Papai Noel profissional que chegou no meio da noite fazendo
barulho de propósito enquanto fingia sair da lareira e acordou Benjamin.
Ficamos escondidos na escada assistindo ao nosso garotinho viver a
experiência mais incrível de sua vida, uma interação com o próprio Papai
Noel.
O garoto nunca mais vai tirar notas baixas e nem dizer coisas feias
depois da conversa com o Papai Noel. Até hoje fingimos duvidar do
encontro que ele fez questão de contar assim que acordamos pela manhã,
nos mostrou pegadas de neve e até migalhas dos biscoitos que ofereceu ao
bom velhinho enquanto conversavam na sala, ao lado da árvore.
Abriu muitos presentes enquanto a casa cheirava a rabanadas e
chocolate quente com muito marshmallow, meu pequeno menino, que agora
nos lembra a todo instante que tem nove anos e que nove anos ainda é
criança, teve um Natal incrível e meu grande menino que agora será pai
pela segunda vez também teve, finalmente, o seu Natal dos sonhos, com
olhos brilhantes e direito a rasgar alguns papeis de presente ansioso e feliz.
Depois das festas, nossa rotina voltou para os eixos e o casamento
voltou a ser pauta, não precisamos de muito tempo para organizar e, como
falta apenas um mês para a chegada da nossa menininha, o casamento se
torna apenas o prenúncio de dias de muito amor e felicidade.
Benjamin entra no quarto enfiado em seu terno ajeitando o nó da
gravata que foi dado por Abby, já que ela tem um passado onde os homens
que a cercavam usavam gravatas, eu nunca achei que precisaria aprender a
fazer algo assim.
— Está na hora de ir para o seu casamento, mãe, você está muito
bonita.
— Obrigada, você também! – Eu digo o fazendo sorrir. – Pronto
para me acompanhar até o papai?
— Sim, a Mary está lá na ponta da escada, ela gostou de ser dama
de honra.
— Aposto que sim. – Dou a mão a ele depois de segurar o buquê e
descemos juntos com Benjamin mais atrapalhando do que ajudando a
descer os degraus. Mary está linda dentro de um vestidinho rosa com laços
de fita e flores nos cabelos.
— Prontos? – Eu questiono os dois ao fim da escada, eles balançam
a cabeça afirmando. – Então você vai caminhando na minha frente, Mary, e
o Ben vai comigo.
Começamos a caminhar atravessando minha pequena casa em
direção ao jardim, eu gosto de casas pequenas, gosto da vida simples, gosto
de um marido e dois filhos, eu gosto de me perder em afazeres de mãe e
esposa, eu encontrei a felicidade que prometi a minha mãe, mas que um dia
achei que seria impossível cumprir tal promessa.
A felicidade é simples, foi sorte dar de cara com ela, não precisei de
uma mansão, nem carros de luxo, ou empregos glamorosos, não precisei de
mais do que um homem incrível para amar, dois filhos e pessoas especiais a
me cercar, eu sou feliz e hoje, essa felicidade se confirma.
A mão de Ben a segurar a minha é a prova disso, meu pequeno
ergue os olhos emocionado quando chegamos ao jardim, me sorri enquanto
Mary cruza a pequena distância até seus pais a nossa espera ao lado do juiz
de paz e lá está ele, meu amor, me surpreendendo dentro de um terno com
gravata e tudo, me fazendo sorrir e me emocionar ao mesmo tempo.
—Eu estou igualzinho ao meu pai! – Ben sussurra ao meu lado e
agora entendo o mistério todo, é importante para ele estar dentro de um
terno, Jared é um homem simples, de hábitos comuns, que nunca gostou de
aparecer, que gosta de se sentir livre e agora está enfiado em um terno, com
o pescoço preso a uma gravata, me mostrando que me ama a ponto de fazer
concessões e isso é o amor, concessões.
Uma lágrima corre por meu rosto quando ele sorri balbuciando um
elogio emocionado ao me ver com flores nas mãos em um vestido branco,
eu e nossos filhos, prontos para dizer sim a ele, sim a esse amor que tem
bases firmes e reais, amor nascido da dor, da insegurança, amor nascido da
desesperança, dois corações quebrados que se encontraram e se colaram,
dois corações tão partidos que precisaram se juntar e formar um só coração
e, assim, encontrar uma chance de prosseguir.
— Você está linda! – Ele diz beijando minha mão.
— Você está incrível! Lindo! – Seu rosto fica vermelho de
vergonha, mas ele me sorri e nos voltamos para o juiz que não se demora
em um longo discurso, apenas fala algumas palavras sobre amor, fidelidade
e companheirismo, o que conhecemos com a nossa própria vida e
prometemos mais uma vez, diante de quem amamos, amor, fidelidade,
companheirismo e esperança.
Ele desliza uma aliança em meu dedo, suas mãos tremem um pouco,
seus olhos, no entanto, sorriem. Eu sorrio de volta com meu coração, minha
alma e toda a esperança de uma vida feliz, ele beija minha mão, meus lábios
e, para minha surpresa, minha barriga, na frente de todos, sem qualquer
constrangimento, não somos mais os mesmos, somos melhores.
O almoço é cheio de riso, de um Benjamin orgulho e preocupado
com seu terno, com Jared já sem paletó e gravata, com as mangas da camisa
dobradas, em uma casa aquecida por uma lareira enquanto a neve se foi,
mas ainda deixou domingos frios e nublados, mas meu coração está quente,
um sol brilha em meu peito, eu consegui, eu sou feliz.
É uma tarde comum, eu encaro o espelho olhando a barriga, Abby
diz que às vezes sente falta dos bebês na barriga, mas eu não acho que vá
sentir falta da barriga, diferente dela, eu senti muito o peso e o incômodo
para me mover e dormir, não sou uma atleta e fez toda diferença pés
inchados e noites em claro, mas a qualquer momento isso vai mudar. Eu
caminho para descer as escadas.
— Espera, mãe, eu que te ajudo. – Ben surge apressado, é como ter
uma sombra, o dia todo ele me segue, não sai de perto quando está em casa
e me deixa mil avisos antes de ir à escola todas as manhãs.
Jared passa o tempo todo indo e vindo da loja, Abby e Judy se
revezam vindo sempre me visitar. Não me falta apoio.
O berço está montado ao lado da nossa cama, coisa que deixa
Benjamin muito chateado, ele acha que o bebê devia morar direto com ele,
porque se acha muito capaz de cuidar dele sozinho.
— Devagar, mãe, um degrau de cada vez. – Ele diz me ajudando a
descer. Como se eu fosse capaz de mais do que isso. – Não devia ter subido,
meu pai falou para não ficar subindo e descendo, você faz isso quando fica
sozinha?
— Juro que não, Ben, só subi porque estava aqui. – É mentira, às
vezes quando estou sozinha subo e fico namorando as roupas da bebê e
sentindo seu cheirinho. Arrumando e desarrumando suas gavetas.
— Meu pai disse que hoje não é para cozinhar. Ele vai pedir uma
comida para a gente.
— Eu sei, filho, é para a mamãe descansar bastante. – Eu me
acomodo no sofá. – Cansei!
São quase cinco da tarde, logo Jared chega e, como não tenho nada
para fazer senão esperar, me encosto no sofá, sinto algo diferente. Uma
pequena dor que faz meu coração disparar. Procuro ignorar, nada de entrar
em pânico, Jared logo chega e tudo vai dar certo. A dor começou pela
manhã, mas tão discreta que eu achei que não era nada demais, com espaços
tão distantes entre uma e outra, mas agora veio com vontade.
—Ben, você sabe que não pode ficar sozinho quando o bebê nascer
e que eu tenho que dormir uma noite no hospital?
— Sei. Vou ficar com o tio Zack e a tia Abby, e a Mary que só quer
saber do Samuel.
A dor volta mais uma vez, aperto a mão de Ben sem conseguir
disfarçar. Ele arregala os olhos assustado.
— Estou bem, filho. – Aviso, mas ele não acredita muito. – Sua
mochila está pronta para ficar na casa da Abby? Uma muda de roupa, e o
material?
— Sim. – Os olhos marejam, mesmo que finja estar bem, ele
percebe. – É agora? Eu estou com medo, mãe.
— Medo de quê, filho? Vai ser tudo tranquilo. A mamãe vai até o
hospital com o papai, sua irmãzinha nasce, eu passo uma noite lá e volto
para cuidarmos dela.
— Você pode morrer, acontece. – Ele me abraça e meu coração se
aperta com medo e, ao mesmo tempo, com pena de ter que deixá-lo
assustado. – Não quero perder você, mãe.
— Não vai. Vamos ser fortes, nós dois vamos, depois tudo vai ficar
bem. Prometo.
Acaricio seus cabelos enquanto ele se debruça sobre mim chorando.
Mais uma contração me domina e, então, ele sente, se afasta de mim. Os
olhos cheios de medo. Meus olhos marejam ao notar seu medo, a dor perde
a importância.
— Mãe... – Ele diz angustiado. É assim que as coisas são, quando
sentimos medo é esse o nome que chamamos, foi assim toda minha vida até
perdê-la. Acaricio seu rosto, acalmo meu filho como ela fez comigo tantas
vezes. – Deixa eu ir com você, mãe, por favor, não quero ficar com
ninguém.
Ele me abraça chorando copiosamente, não achei que seria fácil,
mas não esperava tanto medo.
— Ben... Olha para mim. – Ele obedece. Sorrio por entre as
lágrimas. – Amo você, mais do que tudo e todos, é meu filho, vai ser um
irmão incrível, mas agora eu preciso que seja forte. Pode fazer isso? É
importante.
— Tenho medo de ir para o hospital e não voltar nunca mais. Tenho
medo de ficar sozinho, sem você, sem meu pai, sem minha irmãzinha.
— Nunca, filho, nunca vai ficar sozinho. Amo você, o papai te ama
e a sua irmãzinha também.
— Mãe, eu amo você.
— Também te amo. – Não esperava por uma declaração como essa
e choro assim como ele. Abraço Ben e choramos por um longo momento
cheio de intimidade e amor.
— Eu posso ir junto? – Ele soluça, não posso simplesmente dar as
costas a ele. Não consigo.
—Pode. Agora tem que me ajudar. Tudo bem?
— Sim. O que eu faço?
— Vai lá em cima, pega suas coisas e a mala da sua irmã. É a
primeira coisa. – Ele obedece, dois segundos depois, está de volta. – Que
rápido! - Tento sorrir, o sorriso se desfaz numa careta de dor. – Agora vai
avisar o papai enquanto ligo para a Abby. Quando o bebê nascer, você vai
ter que vir embora com ela e me esperar na casa dos seus tios. Tudo bem? –
Ele entorta os lábios em um sim mal-humorado. Tenta secar as lágrimas. –
Então vai chamar o papai.
Benjamin corre porta afora como um raio, vai matar o pai do
coração. Telefono para Abby
— Vai nascer?
— Vai nascer. – Respondo bem no meio de uma contração.
— Ai, meu Deus! Que coisa mais linda!
— Estou indo para o hospital com o Jared e o Ben, espero você lá
para ficar com o Benjamin e depois levá-lo com você, mas deixa o bebê
nascer e ele ver a carinha dela antes?
— Acha que vou conseguir sair de lá antes de ver minha
menininha? Boa sorte, fica calma, já estou indo.
Desligo quando a porta se abre num estrondo. Jared está pálido,
quase sem ar, desesperado.
— Calma, amor. Estou bem. – Jared olha para Benjamin.
— Eu disse quase nascendo. – Benjamin se explica secando o rosto
cheio de lágrimas.
— Pensei que ela estivesse saindo no meio da sala! – Ele conta em
um misto de desespero e alívio. - O que eu faço, Claire? – Jared pergunta
me abraçando. – Dói?
— Não. Ai! – Uma contração inesperada me desmente. – Ajude-me
a ir para o carro, Ben carrega as nossas coisas e a Abby vai nos encontrar lá.
— Tudo bem, fica calma. Eu sei o que fazer. – Agora que disse
parece fácil, penso rindo, só de estar perto dele já sinto tudo se acalmar.
Eu fico de pé com ele me apoiando, Ben abre a porta, vai na frente
abrindo o carro, guarda as coisas, fecha a porta todo frenético em me ajudar
enquanto Jared só me ampara.
— Fica calma, Claire, vai sair tudo bem, vai ver. Amo você. – Jared
diz o tempo todo. Então me ajuda a sentar, me obriga a prender o cinto, Ben
já no carro secando lágrimas. – Vai ficar tudo bem, filho, todos nós vamos
ficar bem. Sua irmã está chegando.
Ainda bem que nada é longe demais nessa cidade e ele estaciona na
frente do hospital e Jared me ajuda a descer, um enfermeiro se aproxima
com uma cadeira de rodas, me sento e ele começa a me empurrar em
direção aos corredores do hospital.
— Espera, moço. – Peço chamando Ben, abraço forte meu pequeno.
– Fica bem bonzinho com a sua tia, não chora e não precisa ter medo, logo
vai lá ver sua irmã. Eu te amo.
— Também, mãe. Tchau, pai. – Ele chora tanto que sinto vontade de
levá-lo comigo. – Abby chega pouco antes da porta do corredor se fechar,
ainda consigo acenar feliz por saber que meu menino não está mais sozinho.
O médico me examina, decide me levar para a sala de parto, Jared é
orientado a se preparar e logo entra na sala com avental e olhos assustados,
segura minha mão.
— Eu não sei o que devo fazer, definitivamente.
— Ficar calmo, continuar segurando minha mão e apenas estar
comigo.
— Amo você, Claire. Estou aqui e vamos fazer isso juntos.
As dores vêm com força, o trabalho de parto é longo, me sinto
esgotar mais de uma vez, mas então o choro da minha filha me enche de
paz quando a dor desaparece e é substituída por um amor sem fim.
Minha menininha me arranca lágrimas, minhas como era de se
esperar, e do pai, para minha surpresa, é a segunda vez que o vejo chorar.
Eles a colocam sobre meu corpo e posso beijá-la, apertar seus dedinhos,
investigá-la.
— Uma garotinha linda, amor! Cheia de cabelos. Olha que anjinho!
— Linda como a mãe. – Jared beija a filha, acaricia a pequena ainda
um tanto suja pelo parto, depois ela é tirada de nós. – Te amo. Obrigado.
Deu-me uma família que nunca sonhei ter, nossa pequena sem nome e
Benjamin, mesmo ele veio do seu amor, te amo mais hoje que qualquer
outro dia.
— Você é romântico, Jared, não admite, mas é.
— Boba! – Ele me beija. Seca minha testa, minhas lágrimas. – Tão
corajosa.
— Não tive escolha, meu amor. Ela tinha que sair.
Depois dos procedimentos, sou levada para um quarto, Jared vai
tirar a roupa de hospital, falar com o médico e buscar Benjamim. Meu
garotinho entra quando estou acomodada. Os olhos vermelhos de tanto
chorar.
— Mãe! – Ele me abraça aos soluços, fico acalmando Benjamin,
apenas abraçada com ele.
— Pronto, estou bem, não precisa mais chorar. – Ele seca as
lágrimas, me olha mais tranquilo.
— Pai, eu não quero mais um irmão não, dá muito nervoso.
— Sabia que tinha que pensar melhor sobre isso. – Jared diz
afagando seus cabelos.
— Onde que ela está? Já vou ter que ir embora, a enfermeira disse
um minutinho só.
— Ela vem daqui a pouco. Sente-se aqui com a mamãe. – Ele se
acomoda ao meu lado, segura minha mão o tempo todo, então a porta se
abre e minha menina entra nos braços da enfermeira.
— Aqui está a garotinha. Vou deixá-los um momento e depois
venho ensinar a amamentá-la. ─ Meus olhos se dividem entre encarar meu
filho e minha filha, as reações dele, o modo como fica emocionado e
ansioso.
— Eu seguro ela, mãe, me dá aqui, você está cansada. – Ben fica tão
desesperado que me emociona, Jared o ajuda, então o pequeno irmão mais
velho fica perdido em encantamento. – Quanto cabelo!
— Agora não tem mais jeito filho, tem que escolher o nome. – Jared
diz a ele. Ben encara a irmã um longo momento. Passou todos esses meses
inseguro e dividido entre mil nomes, demos a ele a tarefa de escolher o
nome da irmã para que ele pudesse se envolver mais com a chegada da
irmã.
— Angel, ela parece um anjo, o nome dela é Angel.
— Que nome bonito. Está certo disso? – Ele balança a cabeça em
uma afirmação firme. — Eu gosto, o que acha, papai? – Pergunto a Jared,
ele está encantado, os olhos perdidos em Angel no colo de Ben.
— Muito bonito. Angel. É esse o nome do nosso anjinho.
— É bonito mesmo, ninguém vai rir desse nome. – Ben não parece
ver nada além dela. – Mãe, me deixa ficar aqui com ela? Não quero ir
embora não.
— Filho, não pode ficar, só o papai que pode.
— Isso é errado.— É só essa noite. – A enfermeira volta para sala
acabando com nossa festa particular.
— Essa menininha precisa mamar.
— O nome da minha irmã é Angel. – Benjamin corrige a
enfermeira.
— Que nome bonito. Quem escolheu?
— Eu que sou irmão dela. Não é, mãe? Somos irmãos.
— Parabéns pela linda irmã, mas agora precisa ir, amanhã sua mãe
volta para casa.
— Pai, posso faltar na escola? Para esperar vocês? Fala para o tio
Zack que você deixa.
— Vamos entregar sua irmã para a sua mãe, dar um beijo na mamãe
e vamos conversar lá fora.
Ben me entrega a irmã com a ajuda do pai, me beija e se despede da
irmã com carinho e longamente. Lembro-me dos primeiros dias depois de
saber da gravidez, do medo de perder seu lugar, e agora todo esse amor.
— Tchau, Angel, acho que ela vai querer ficar comigo, pai, e se ela
chorar?
— Ela vai ser forte e aguentar só essa noite. Você também vai.
Podia pedir a Jared para ir para casa com ele, eu ficaria bem por
uma noite, mas não quero tirar dele esse momento, sei como ele precisa se
sentir importante e, ficar cuidado de mim e da filha, o faz se sentir assim.
Fico com a enfermeira e minha filha, ela me ensina como devo
fazer, me ajuda no primeiro momento e, quando Jared retorna, minha
garotinha suga meu seio faminta.
Jared fica imóvel encarando aquele momento. Seu amor é tão vivo e
forte que quase posso tocá-lo, minha vida toda passa por meus olhos nesse
momento e me dou conta do quanto sou feliz, e todas as coisas ruins que
passei são engolidas pela felicidade de estar aqui, com meu bebê, diante do
pai mais presente e apaixonado que a vida podia me dar.
— Amo você, Jared Brow. Olha aqui a prova desse amor.
Ele se aproxima, beija a cabeça da filha, depois meus lábios.
— Também te amo e amo essa pequena, amo nosso anjinho e o
lindo nome que o irmão escolheu.
Capítulo 34
Benjamin

Meu pai vem me buscar logo cedinho, ainda bem que ele veio, eu
nem dormi de preocupação. Meus tios são legais, mas eu gosto mesmo da
minha casa com meus pais e agora minha irmã bem bonitinha.
— A gente vai pegar as duas e voltar para casa? – Pergunto sentado
ao lado dele no carro. Ele faz que sim. – Veio só me buscar para te ajudar?
— Isso. Achei que estava querendo ficar com a sua mãe e a sua
irmã.
— Eu estava. Você ficou preocupado comigo? Lá no hospital? –
Pergunto para ele.
— Claro que fiquei, Ben, pensando se tinha comido, dormido. É
meu filho igual Angel, mas eu falei com seu tio Zack duas vezes só para ter
certeza que meu filho estava bem.
— Verdade. – Meu pai para o carro no estacionamento do hospital.
– Pai, sabia que eu disse para minha mãe que eu a amo? – Ele sorri, tira o
cinto e me olha.
— Que bom que disse, ela me contou.
— Foi mesmo. Eu amo você também. – Digo para ele, se não ele
vai pensar que amo só minha mãe.
— É bom ouvir isso. Também amo você, Ben. – Ele me abraça,
nem estava esperando. Eu gosto mesmo assim, depois ele me faz carinho no
cabelo. – Vamos pegar as meninas?
— Vamos. – Descemos, minha mãe já está toda prontinha sentada
numa cadeira de rodas com Angel no colo. Toda enroladinha numa coberta
rosa.
— Que saudade! – Minha diz logo que me vê, ela tem sempre muita
saudade minha. Eu já abraço ela. Porque eu sei que ela sempre quer abraços
meus, olho o rostinho da Angel, os olhinhos estão fechados. Passo a mão
bem devagarzinho na cabeça dela.
— Pode beija ela? – Pergunto. Minha mãe faz que sim e beijo sua
cabeça. – Acho que ela está com calor, mãe. Nem dá para ver ela direito. –
Meu pai beija minha mãe, pega a bolsa com as coisas delas.
— Ela é bebê, Ben. Precisa ficar enroladinha assim. – Minha mãe
explica, mas gosto mais dela sem todas as cobertas, para poder ver ela
direitinho.
— Deixa eu pegar ela?
— Em casa. – Ajudo meu pai a arrumar todo mundo no carro, só
minha mãe que carrega ela, eu também queria, mas no carro eu que vou do
lado dela presa no cestinho no banco de trás e mamãe na frente. Quando
chegamos vamos direto para o quarto, minha mãe me dá ela no colo na
hora. Ainda bem, acho que ela me queria um pouco, eu sou irmão dela. –
Tem sempre que segurar a cabecinha, Ben.
Nossa... será que a cabeça é solta? Eu seguro como ela falou.
Coitada da menina. Meu pai chega no quarto trazendo umas coisas para
minha mãe.
— Ben, vou ajudar sua mãe com o banho e fica com a sua irmã.
Mas sentado, tudo bem? – Meu pai pede.
— Eu sei, se não a cabeça dela cai. – Meu pai me olha achando
engraçado.
— Um tanto drástico, eu diria.
Fico sozinho com Angel, ela só de olho fechado.
— Sabia que eu sou seu irmão, Angel? Minha mãe e meu pai que
disseram. Eu gosto de você. Ajudo minha mãe e tudo. Você tem um monte
de cabelo. Eu que escolhi seu nome. Angel, é bem bonito e todo mundo vai
gostar de você. Todo mundo que gosta de mim me chama de Ben, você
também pode me chamar.
Ela abre os olhos só um minutinho, depois já fecha.
— Você só dorme. Quando crescer a gente vai ter o mesmo quarto,
eu deixei. E deixo você sentar na poltrona, e a gente tem tios e primos. —
De novo ela abre os olhos e depois fecha. — E vai ter a Mary para brincar,
mas não vou deixar a minha mãe ficar toda hora com ela no colo, não se
preocupa.
Minha mãe volta para o quarto, ela anda bem devagar e o meu pai a
ajuda a se acomodar na cama.
— Vamos colocar a Angel no berço? – Meu pai convida.
— Acho que ela quer ficar comigo.
— É que eu queria abraçar você um pouco Ben, fiquei um tempo
longe.
Entrego minha irmã para meu pai e vou ficar perto da minha mãe,
ela fica me fazendo carinho no cabelo enquanto meu pai fica andando pelo
quarto com a Angel no colo. Ele nem coloca ela na cama.
Eles me deixam dormir com eles e acho que é bom, mas só hoje,
porque a Angel acabou de chegar e todo mundo que ficar perto dela.
De manhã, tenho que ir na escola, não gosto mais de escola, gosto
de ficar em casa cuidando da minha irmã, mas eu vou, para aprender mais
coisas e contar que minha irmã nasceu. Todo mundo vem visitar ela, a Mary
adora, o Samuel é muito pequeno e a Carol também, mas eles vão ser
amigos e logo minha mãe fica boa e anda para lá e para cá.
Tinha me esquecido como que ela era sem barriga, bem mais bonita.
Angel dorme demais e mama toda hora e, por isso, ela fica no quarto dos
meus pais, ele quer aumentar a casa, construir mais um quarto, porque ele
acha que eu preciso de um espaço só meu e eu fico pensando em como ele
se preocupa comigo, eu não sabia que podia ser assim.
A minha outra mãe falava coisas feias dele, mas ele não é nada do
jeito que ela falava, ele é bom e muito amoroso, engraçado, ele me chama
de pequeno duende, mesmo que eu tenha nove anos, só vou crescer com
dezesseis, mas vai demorar muito.
Tenho um monte de amigos na escola, eles vêm brincar na minha
casa e eu vou às vezes na deles, mas sempre fico com saudade, só na casa
do meu tio que eu não fico com muita saudade, porque o tio Zack me ensina
muitas coisas sobre motos, ele disse que eu posso trabalhar com ele e a tia
Abby me ensina a lutar. Sei alguns golpes, mas só pode usar para o bem,
nada de bater em ninguém na escola, mas eu não vou trabalhar com meu tio
e nem ser um ninja como a minha tia, eu vou cuidar da loja do meu pai
quando ele ficar velho.
Ele acha que já está ficando velho, mas eu acho que não, a gente vai
na floresta às vezes e pescamos, ficamos só os dois e conversamos, ele me
conta coisas e me ensina a me virar na floresta, onde conseguir comida e
água, ele diz que é importante e eu aprendo tudo, mas vou mesmo é cuidar
da loja quando crescer.
Ele é muito meu amigo, o melhor amigo do mundo. Nunca mais
falei coisas feias, nunca mais fiquei com medo, vamos ao parque sempre,
fazemos tantas coisas legais e eu fico ganhando algum dinheiro, fico
pensando em comprar um presente para minha irmã, ela é tão bonitinha e
sempre sorri para mim.
— Oi, pai! – Digo entrando na loja e caminhando até ele, meu pai
afaga meus cabelos.
— Chegou! Como foi na escola?
— Tudo bem, eu aprendi muita coisa nova, pai, e adivinha! Eu
joguei basquete e o professor falou que eu vou ser bem alto, ele disse que
eu posso jogar alguma coisa.
— Puxa! Parabéns! Eu vou assistir todos os seus jogos.
— Pai, você é tão legal! – Eu fico só imaginando meu pai feliz me
vendo jogar, eu vou jogar sim e ganhar uns troféus. – Tenho que ir para
casa, só vim avisar que cheguei, minha mãe quer terminar o jantar e vou
cuidar da Angel.
— Muito bom, eu logo estou em casa. – Ele me sorri antes que eu
volte correndo para perto da minha mãe. Minha vida é feliz, eu não sabia
que podia ser assim, agora eu nem ligo para as marcas que ficaram da surra
daquele homem, meu pai também tem e ele diz que chamam cicatrizes.
Eu tenho, minha mãe tem e meu pai também, mas a Angel não tem
nenhuma e eu acho que nunca vai ter, porque vamos cuidar dela. O meu pai
disse que é assim que somos, que cuidamos uns dos outros, e Angel tem
muita gente para cuidar dela e eu vou ser o mais cuidadoso e dos meus
primos também, sou o mais velho, vou cuidar da família.
Minha mãe coloca Angel no meu colo e fico na minha poltrona
ensinando Angel a jogar vídeo game, feliz, eu pensei que eles nunca
ficariam comigo, mas filhos não vão embora e pais são bons, os meus são
os melhores.
Capítulo 35
Jared

— Acha que eu mudei muito? – Pergunto a Zack enquanto


assistimos as crianças brincando no seu imenso jardim.
— Cara, você está falando sério? – Zack me pergunta rindo. –
Mudou completamente.
— Sei lá, eu só... eu não tenho medo de ficar maluco e cair naquela
vida, mas eu não sei se realmente sou diferente.
— Você é o que devia ser se a vida não tivesse nos dado aquela
infância. Perdeu aquele sarcasmo, perdeu a ironia um tanto arrogante, você
parou de culpar o mundo pela droga do nosso passado.
— É, ninguém tem culpa. – Suspiro. – O único culpado está morto.
— Foi tarde! – Zack faz careta. – Ainda pensa nele?
— Às vezes, quando os meninos fazem algo e preciso ser um pai
um pouco mais rigoroso, eu sempre tenho medo de me parecer com ele.
— Cicatrizes. – Zack diz depois de um instante pensando. – Samuel
se aproximou de uma moto que estava com o escapamento quente, eu disse
que não era para chegar perto, mas ele se aproximou, eu gritei, foi
devastador, Samuel se assustou, chorou e eu... eu me vi naquele lugar, por
sorte o Sam estava comigo, foi um instante de caos em que ele me
convenceu de que eu estava protegendo meu filho.
— Nunca gritei com eles, embora a Angel esteja longe de ser o anjo
que o nome sugere. – Zack ri no meio de suas lembranças dolorosas. –
Pediu desculpas a ele?
— Sim, não foi gritar, foi vê-lo com medo, medo de mim, Sam jura
que ele só se assustou com o grito, que não teve medo.
— Você sabe que não mete medo em ninguém, sempre foi um bebê
chorão, sempre foi um fracote!
— Aí está o Jared de sempre! – Rimos juntos. – Como pode ser
assim? Eu nunca quis filhos e agora eu sou completamente rendido por eles.
— Dois, temos dois filhos! – Ele me olha balançando a cabeça em
uma afirmação. – Podia ser pior, podíamos ser o Sam, quatro? O cara é
maluco!
— Ele é bom nisso, Judy está adorando a família grande.
— Sente falta dele na cabana?
— Não! É como... é como ver o filho crescer e ganhar asas, ele tem
uma casa linda, quatro crianças, um bom trabalho, eu me orgulho de quem o
Sam se tornou. — Você meio que aprendeu a ser pai com o Sam, sendo o
pai dele, você e a Abby, mas eu...
— Cara, se lembra do Ben quando chegou? O garoto era um Brow
completo, revolta, boca suja, desconfiança e cicatrizes, mas você fez um
trabalho lindo de pai com ele, rápido e certeiro e hoje ele é o melhor de
todos nós.
— Ele é, mas foi a Claire, tê-la ao meu lado, você sabe como é, tem
a Abby. Claire era... não, ainda é a minha força, minha certeza, Claire me
mudou. Bati os olhos nela e eu não era mais o mesmo.
— Foi exatamente assim, sejamos honestos, você se rendeu mais
rápido que eu.
— O que? Claro que não, você sempre foi o cachorrinho da Abby.
— Olha quem fala! Pelo amor de Deus, Claire manda em você.
— Manda! – Admito dando de ombros. – E eu gosto! – Zack ri,
nossos sorrisos se ampliam olhando as crianças. Samuel e Angel agora com
quatro anos, Ben começando a se tornar um rapazinho.
— Ben está se tornando um adolescente.
— Claire disse que ele já é um adolescente. – Faço uma careta. –
Ontem ele disse que tem uma menina na escola muito bonita. Eu não sabia
o que dizer, então eu disse para ele ser gentil. – Zack ri.
— Parece um bom conselho.
— O melhor que eu tinha na hora, esperava que você me ajudasse
nisso.
— Tá maluco? Eu ouvia conselhos do Sam, não sei o que dizer.
— Estamos ferrados!
— A melhor parte é você com a boca limpinha, nem entre nós diz
palavrões.
— Idiota! – Ele ri.
— O que estão fazendo? – Claire se acomoda ao meu lado, passo
meu braço por seu ombro, ela se encosta em mim.
— Assistindo as crianças brincarem.
— A cara de tédio de Benjamin entretendo os pequenos. – Nós
olhamos para o irmão mais velho dividido entre brincar com os irmãos e
mexer no celular que acaba de ganhar.
— Um rapazinho! – Abby se acomoda no colo de Zack, a
princesinha republicana que implicava comigo e eu com ela, a mulher cheia
de dor que tinha desespero nos olhos agora é sorriso e leveza.
— Amo domingos! – Ela suspira.
— Nada melhor que um domingo de sol, eles brincam, brincam,
brincam e depois dormem! – Claire suspira longamente.
— Olha! A mamãe mais feliz e dedicada do mundo se revelando! –
Abby provoca. – Como a Judy consegue? Ela é minha heroína, mas ela jura
que agora chega, porque a pobre tem cinco crianças para cuidar, todo
mundo concorda que o Sam é a criança que nos dá mais trabalho?
— Nem sei como ele ainda mantém as orelhas! – Zack comenta.
— Mamãe! – Mary chega correndo. – O Samuel quer treinar, posso
dar uma aula para ele?
— Amanhã, querida, hoje é domingo! – Ela faz bico. – Não vai ficar
sozinha na academia, se lembra que é a regra?
— Sim.
— Lembra-se por que temos essa regra?
— Porque eu amo as espadas e estou sempre querendo... treinar.
— Sim! – Mary é tão boa quanto a mãe, tem talento e, se pudesse,
passaria o dia treinando, mas, por sorte, é obediente.
— Que tal uma taça de sorvete? – Claire convida e Mary sorri,
porque talvez tenha uma coisa que ela goste mais do que as espadas e essa
coisa é uma taça de sorvete com muita cobertura, como Zack e eu
sonhávamos. Eles têm tudo que a vida nos tirou, eles serão protegidos de
toda a dor que a vida infringiu a nós. Abby e Claire, tanta dor em comum,
somos todos frutos de dor, é incrível como simplesmente a vida resolveu
mudar, não era sem tempo.
— Gente, vai rolar sorvete! – Mary sai gritando para as outras
crianças.
— Vai rolar? – Zack faz careta. – Ela está usando gírias? Minha...
minha garotinha está crescendo?
— Sim, Zack, ela está e nós vamos aproveitar cada segundo da sua
infância e uma boa taça de sorvete.
Depois do sorvete e com muito custo, eu convenço meus meninos a
irem para casa. É fim do domingo, hora de jantarmos hambúrgueres e
depois irmos para casa, tomar banho, assistir a um programa juntos. Angel
dormindo no tapete, Ben cochilando na sua velha poltrona e eu e Claire
cheios do nosso amor, esperando a chance de um tempo sozinhos quando
ainda se parece com a primeira vez, quando ainda me sinto presenteado
com a mulher mais especial e perfeita comigo.
Como de costume e confirmando nossa rotina, lá estão eles
cochilando no meio do programa, eu e Claire nos olhamos.
— Tem algo mais perfeito do que filhos saudáveis em um domingo
à noite?
— Sabe, senhora Brow, eu posso pensar em algo tão bom quanto
isso.
— Tô acordado! Não fiquem de namoro! – Benjamin resmunga sem
abrir os olhos, torcemos o nariz, depois sorrimos.
— Acho que chega por hoje! – Eu digo ficando de pé. – Vamos lá,
rapazinho, que tal ficar acordado na sua cama?
— Só mais um pouco, pai! – Ele resmunga abrindo um dos olhos.
— Amanhã tem aula, filho, e depois treino, sábado vocês vão ter um
jogo importante! – Claire sempre sabe como convencê-lo, ele fica de pé no
mesmo instante e eu sinto falta de carregá-lo pelas escadas fingindo dormir.
Pego Angel no colo, ela sim dormindo feito uma pedra, cansada
depois de correr o dia todo com os primos e o grande cachorro.
Construímos mais um quarto, levou quase dois anos, ficou pronto
há seis meses, no andar de baixo, uma sala e no andar de cima o quarto para
Angel, todo pintado de rosa, com prateleiras de ursos, bonecas e livros
infantis. Eu queria ser o tipo de pai que lê para sua garotinha, mas ela
sempre dorme no chão da sala, assistindo a televisão. Somos mais visuais,
talvez seja isso, não importa, é perfeito do mesmo jeito.
Depois de beijar minha anjinha e apagar a luz, passo no quarto de
Ben, ele está deitado, guarda o celular na gaveta ao lado da cama, me sorri.
— Mary disse que eu não sou mais criança!
— Eu acho que é! – Digo me sentando ao lado da cama.
— Não tenho mais medo de crescer, pai. – Afasto seus cabelos, ele
ainda faz questão de ter a mesma aparência que a minha.
— Que bom, está ansioso para crescer, pequeno duende?
— Não, mas eu sei que estou crescendo e isso não muda nada, não
é? Você e minha mãe, minha irmã... tudo igual, por isso eu não ligo.
— Ótimo! É isso, nada muda e, que bom, porque nós vamos sempre
estar aqui, para você, sempre.
— Eu te amo, pai, mas agora vou dormir, temos um jogo importante
no sábado e a Lindsey disse que vai assistir ao jogo.
— Ok! Eu sei... a garota bonita, mas.... nada de pressa para crescer.
Você pode estar pronto, mas eu não. – Beijo seus cabelos, ele se ajeita na
cama.
— Boa noite!
Claire está no nosso quarto, deslizando creme hidratante nas lindas
pernas, ergo uma sobrancelha compreendendo o convite.
— Crianças dormindo! – Eu aviso desabotoando a camisa e atirando
os sapatos para longe. – Parece que minha esposa tem planos.
— Ah! Eu tenho! – Ela me conta com olhos cheios de paixão e me
misturo a ela, me confundo entre seus beijos, me perco nos seus braços e
sou o homem que sempre quis ser e que nunca achei que podia me tornar,
eu sonhei com essa vida, entre uma prisão e outra, entre um gole e outro,
nos instantes de lucidez. Eu ousei sonhar e, depois quando Zack conseguiu
e quis, eu me esforcei, e ela chegou e, então, o sol nasceu pela primeira vez.
Finalmente o sol, um brilhante sol que fez a vida clara, os sonhos possíveis
e curou as feridas, um sol que colou o coração quebrado, ainda restaram as
cicatrizes, mas elas são agora uma boa lembrança, elas tornam cada instante
como esse perfeito, porque eu sei o quanto valem, eu sei que o amor cura.

Fim

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