Você está na página 1de 480

Table of Contents

Chloé Wallerand
Ficha Técnica
Dedicatória
Prólogo
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Agradecimentos
Prólogo

A maioria das pessoas com uma vida complicada


ambiciona apenas uma coisa: ter uma vida simples.
Não é o meu caso. Adoro complicações, sem as quais não
seria quem sou hoje. Também não sou daquelas que culpam
o mundo inteiro, nem me pergunto porquê a mim. Há coisas
que aconte­cem sem que nada possa ser feito para as
mudar. Não se escolhe a família, nem se pode alterar os
acontecimentos que ocorreram antes de nascermos,
portanto, para quê irritar-se? Porquê lasti­mar-se, em vez de,
simplesmente, aprender a viver com aquilo que não temos
poder para alterar?
Remoer o passado, imaginar como poderia ter sido se... é
uma perda de tempo incomensurável. Aceitar, adaptar-se, é
essa a cha­ve. A chave para uma vida feliz, apesar das
complicações. Foi esse o caminho que decidi seguir, desde
sempre.
Não julgo quem não pensa da mesma forma que eu: na
verda­de, não nasci iluminada. Não posso afirmar que o meu
raciocínio é o mais correto. Mas estou convencida de que as
pessoas seriam mais felizes se deixassem de olhar para o
passado e de querer ter uma existência pacata a todo o
custo. Vai-se a ver, sou uma com­pleta masoquista, não sei...
No entanto, não mudaria o meu quo­tidiano por nada no
mundo, porque não fui realmente talhada para uma vida
sem problemas. E este novo ano letivo na universi­dade vai,
uma vez mais, comprová-lo...
Capítulo 1

— Está na hora! — berra a minha mãe da cozinha.


Essas palavras deixam-me tão animada quanto ansiosa,
sem que nenhuma das emoções consiga levar a melhor
sobre a outra.
Inspiro profundamente e exalo até que os meus pulmões
fi­quem vazios. Com o último saco na mão, percorro o quarto
com o olhar, para verificar se não me esqueci de nada.
Tenho um aperto no coração. Vou sentir falta desta casa
im­perfeita, mas acolhedora. Vou sentir falta da minha mãe,
também ela imperfeita e acolhedora. E dos meus amigos.
Estamos todos a seguir caminhos diferentes e sei já que a
nossa amizade é coisa do passado.
Saio do quarto, fecho-o atrás de mim com saudade e saio
de casa. O ar fresco acaricia-me o rosto, levando consigo
um pouco da minha angústia. Está a começar um belo dia
de setembro. Tudo parece favorável à minha partida,
mesmo os deuses.
Vou ter com a mãe ao carro e coloco o saco aos meus
pés. Ela olha para mim, com os grandes olhos azuis
carregados de emo­ção, antes de ligar o motor.
Não sigo para Columbia, como o meu pai teria desejado
quan­do eu era apenas um feto no ventre da minha mãe.
Vou para a Universidade do Michigan. Não por causa das
classificações, não, mas por falta de meios. A minha mãe é
uma ex-toxicodependente, demasiado endividada para
poder pagar os estudos dos meus so­nhos. Mas não lhe
quero mal por isso, sei como a vida pode ser difícil. Por isso,
não importa quantas vezes aqueceu cristais para inalar os
vapores. O que interessa é que está aqui hoje, limpa e
saudável.
Depois de várias horas de estrada, durante as quais não
se ca­lou, enquanto eu observava a paisagem que desfilava
diante dos meus olhos, finalmente estaciona no parque da
faculdade.
— Olha como é lindo! — exclama.
Tem razão. A cidade universitária é linda. O relvado
fresco e verdejante devia receber um prémio da Câmara;
está perfeita­mente aparado, sem um único buraco. As
árvores foram bem po­dadas e magníficas plantas
trepadeiras cobrem edifícios gigantes­cos, bem como as
arcadas de pedra de um encanto datado. As tor­res e as
grandes janelas assemelham-se às das casas de campo dos
nobres do Renascimento.
Desaperto o cinto de segurança e abro a porta, já a
minha mãe está na rua. Passam muitos alunos, com sacos e
malas nas mãos, provavelmente à procura do novo quarto
para o próximo ano. Mal posso esperar por ver o meu,
esperando que me saia uma colega de quarto simpática.
— A receção é aqui!
A mãe aponta para uma mesa, com cinco pessoas
sentadas por trás, à sombra de uma tenda.
Na verdade, ela parece muito mais excitada do que eu.
Se ir para a faculdade não fosse sinónimo de deixá-la
sozinha, eu pro­vavelmente pularia de alegria. Afinal, sempre
sonhei com isto. Só que ela começou a consumir drogas
devido à solidão causada pela morte do meu pai, antes de
eu nascer. Desde então, nunca teve ninguém para além de
mim. Não há nenhum irmão ou irmã, nem sogros, e mesmo
os pais dela morreram há muito. Embora sem­pre tenha feito
o seu papel, assumi ser meu dever apoiá-la. Somos eu e ela
contra o resto do mundo, desde o primeiro dia. Agora, não
sei como as coisas vão evoluir e sinto um nó no estômago.
Ela é forte, repito para mim mesma. Muito mais forte que
qualquer pessoa.
Um sorriso surge-me nos lábios, ao recordar a sua
atitude de lutadora pela minha felicidade e pela dela, qual
leoa enfurecida. Se, em tempos, fui apenas um filhote de
leão que se deixava cui­dar, rapidamente aprendi a mostrar
os dentes para apoiar e pro­teger os meus, à semelhança da
minha mãe.
Um pouco mais tranquila, chegamos à receção. Uma
ruiva na casa dos trinta sorri-me calorosamente.
— Curso, apelido e nome próprio?
— Letras. Lopez, Avalone.
Ela vasculha numa caixa de metal cheia de ficheiros e,
depois de encontrar o meu nome, entrega-me um mapa da
cidade uni­versitária e um monte de chaves. O seu peso na
minha mão está repleto de mudanças.
— Quarto 307, bem-vinda à universidade.
Um arrepio agradável percorre-me a espinha e sorrio
educada­mente para a minha interlocutora, antes de me
voltar para a mi­nha mãe, que me olha com orgulho.
Depois de ir buscar as minhas coisas ao carro, partimos
em busca do meu quarto. Entramos num grande edifício de
pedra nua e subimos ao terceiro andar. Percorremos o
corredor, com cuidado para não esbarrar em nenhum
estudante — todos tam­bém carregados como burros —, e
chegamos ao quarto 307.
Seremos sempre a minha mãe e eu contra o resto do
mundo, repito para mim mesma, com o coração a
tamborilar-me no peito.
Inspiro profundamente, meto a chave na fechadura e
abro a porta. Só tenho tempo de dar dois passos dentro do
quarto, e uma rapariga salta-me ao pescoço, fazendo com
que os meus sacos e malas vão parar ao chão. Fico
especada perante este contacto sú­bito — não sou
particularmente tátil com estranhos — e conto os segundos
antes de ela me libertar.
Finalmente, a rapariga afasta-se alguns passos e vejo-lhe
o sorriso, que se parece estranhamente com o do Gato
Risonho da Alice no País das Maravilhas.
— Lamento — desculpa-se, enquanto apanha as minhas
coisas e as coloca em cima de uma das camas. — Já há dois
anos que levo com colegas de quarto completamente
passadas ou francamente duvidosas, e como tu pareces
bastante normal... fico muito feliz e aliviada.
Ao vê-la embaraçada, solto umas risadinhas, para não
prolon­gar o seu constrangimento.
Em seguida, lanço um olhar furtivo à minha mãe, que me
ace­na com a cabeça, num entendimento mudo. Não
mostrava, mas também estava preocupada com quem iria
eu partilhar o quarto, o que podia transformar-se num
desastre. No entanto, o sorriso que tenho na frente desfaz
os meus medos. A rapariga parece um pouco arrebatada,
mas não maldosa.
— Chamo-me Lola — apresenta-se, estendendo a
mãozinha.
Aperto-a calorosamente.
— Avalone. E esta é a minha mãe, Claire.
A Lola cumprimenta-a com o mesmo sorriso
deslumbrante, mostrando os dentes todos, e a mãe retribui,
antes de colocar os meus últimos sacos em cima da cama.
Quando me abraça, sinto novamente um aperto no coração,
e percebo que ela quer despa­char isto rapidamente, para
me impedir de pensar e de me preocupar.
— Mãe, liga-me ao mais pequeno problema...
— Até prova em contrário, sou eu a mãe!
Rio sem alegria. Ela coloca as mãos nas minhas
bochechas e beija-me a testa, antes de passar os polegares
por cima dos meus olhos, como costuma fazer.
— Vou sentir a tua falta. Vou sentir falta do teu magnífico
olhar...
— Também eu, mamã.
Recua um passo, olhando para mim para se certificar de
que fico bem, e eu aproveito para fazer o mesmo,
memorizando uma última vez os traços do seu rosto cheio
de carinho.
Pega na carteira, despede-se da Lola e desaparece com
um grande sorriso.
— Adeus, fofinha. Falamos mais tarde, adoro-te!
Abro a boca, mas as palavras morrem na ponta dos meus
lábi­os, quando a porta se fecha atrás dela.
Amanhã de manhã, quando acordar, haverá mais de
trezentos quilómetros entre nós, ou seja, cinco horas de
carro... e eu não te­nho carro.
Lentamente, viro-me para a Lola, que observa cada
movimen­to meu com curiosidade.
— Tens carro? — pergunto.
Ela confirma vigorosamente com a cabeça, sem deixar o
sorriso.
— Para o caso de a minha mãe ter algum problema e eu
ter de ir ter com ela urgentemente, no Indiana, emprestas-
mo?
— E na hipótese de eu ficar com o coração partido por
um par­vo, tu comes gelado comigo a ver o Never Forget? 1
Medimo-nos em silêncio, como se estivéssemos a tentar
ver, através uma da outra, o que poderia dar uma amizade
entre nós. Um sorriso baila-me nos lábios, mas dissimulo-o.
Em vez dele, inclino a cabeça para o lado.
— Só se tu permitires que eu te dê uns pontapés no rabo,
no dia seguinte.
— Só se tu permitires que eu te acompanhe para
socorrer a tua mãe.
Cerro os olhos para manter um ar sério, mas a resposta
dela satisfaz-me plenamente. A Lola dá-me a entender que
tenho to­das as cartas na mão e que, se eu aceitar, pode
nascer entre nós uma bela amizade. Então, deixo o seu
sorriso contaminar-me e aceno com a cabeça, selando o
nosso pacto.
O silêncio que se segue permite-me observar o espaço. O
quar­to não é muito espaçoso, mas é simpático. As duas
camas estão encostadas em paredes opostas e há duas
secretárias voltadas para a porta de entrada. Aos cantos,
ficam os armários para guar­darmos as roupas. Os chuveiros
coletivos não me fazem salivar de desejo; no entanto, para
meu alívio, o quarto tem instalação sani­tária privativa.
Viro-me para a Lola, que se sentou na cama dela e me
examina com os seus grandes olhos amendoados enquanto
gesticula, como se estivesse a fazer um grande esforço para
evitar bombardear-me com perguntas. Algo me diz que vai
explodir a qualquer segundo e, então, atiro-me para cima do
meu colchão de molas e sorrio-lhe em sinal de cooperação.
Ela salta bruscamente da cama e vem sentar-se na
minha, ao meu lado.
— De onde és?
Contenho-me, para não rir do seu entusiasmo.
— Venho de Madison, e tu?
— Washington!
Diz-se dos habitantes de Washington que «trabalho» é a
única palavra que têm na boca. Se for o caso, não tenho
qualquer pro­blema com isso, uma vez que estou aqui para
passar de ano e de­pois obter o meu diploma, evitando todos
os obstáculos.
A Lola e eu conversamos, enquanto desembalo as
minhas coi­sas. Está no terceiro ano de Sociologia e gostaria
de ser professo­ra. Os pais continuam juntos após vinte e
cinco anos de casamen­to e tem um irmão mais velho. É
uma rapariga animada que me faz rir muito. É também
muito sedutora. O cabelo castanho pelos ombros fica-lhe
mesmo bem. As sardas por baixo dos olhos e no nariz
parecem estrelas no céu. É pequena e tem umas mãos real­‐
mente minúsculas, que a tornam adorável.
Depois de conversar durante uma boa hora sobre a sua
vida e as suas historiazinhas mais atípicas, a Lola propõe-se
mostrar-me a cidade universitária.
— A melhor coisa neste sítio é o café — diz-me, quando
entra­mos na cafetaria. — Tenho a certeza de que nunca
bebeste ne­nhum tão bom. E há que convir, ainda não
disseste quase nada sobre ti! O que fazem os teus pais?
— A minha mãe é secretária e caixa.
A Lola pede dois cafés, depois vira-se para mim.
— E o teu pai?
— Já morreu.
Ela para de repente e olha para mim com tristeza, como
era de esperar nela.
— Pelo olho de Odin2, Ava... Sou excessivamente curiosa,
desculpa.
Estava prestes a dizer-lhe que não tem problema, mas,
em vez disso, franzo a testa e olho-a fixamente. Quando me
dou realmen­te conta do que ela acabou de dizer, arregalo
os olhos e o meu co­ração acelera. Ia explodir de riso, de
surpresa e de alegria, se não me contivesse.
— Pelo olho de Odin?
Sem perceber a esperança que nasce em mim, a Lola
desvia o olhar e ri, nervosa, desconfortável.
— Fui criada por pais que acreditam nos deuses nórdicos.
Abana a mão a dizer para esquecer, mas um sorriso
baila-me nos lábios. Esta descoberta agrada-me muito e sou
envolvida por uma sensação de bem-estar.
Bebemos o café e saímos, para nos sentarmos na relva.
— Não acho que Odin tenha nada que ver com isso.
Talvez as Nornas3...
— Não dizes mal. A menos que os deuses tivessem
apanhado o teu pai de ponta, são necessariamente as No...
A última palavra morre-lhe nos lábios. A boca abre-se-lhe
tan­to, ao olhar para mim, que tenho medo de que deixe cair
o queixo. Aperto os lábios para me impedir de rir.
— T... tu também, és...?
Sorrio com ternura, antes de tomar um gole da minha
bebida quente.
— Cresci a ouvir as façanhas de Thor4 e as peripécias de
Loki5.
Desta vez, tenho de passar a mão por baixo do queixo
dela, para lhe fechar a boca. Mas compreendo a sua
surpresa. Nos Es­tados Unidos, a percentagem de pagãos é
inferior a 0,1% e eis que a minha colega de quarto partilha a
mesma religião que eu.
A Lola leva alguns segundos a acabar de engolir a pílula.
— Fomos feitas para nos encontrarmos! — conclui,
animada.
Não sei se os deuses ou as Nornas têm algo que ver com
o nos­so encontro, mas estou mesmo muito feliz por
conhecê-la. O meu dedo mindinho diz-me que nos vamos
dar bem. E o facto de par­tilhar a minha religião é como ter
um pedaço de casa aqui, nesta nova cidade.
O tempo está magnífico e uma brisa agradável faz mexer
as fo­lhas das árvores.
Aproveitamos os últimos raios de sol, ainda no mesmo
lugar de há uma hora.
Sinto-me bem, muito bem mesmo, e a Lola já preenche a
soli­dão que eu tinha medo de sentir depois de a minha mãe
se ir em­bora. Se esta rapariga não existisse, tinha de ser
inventada.
— Juro — ri-se. — Eles passaram-se e eu até pensei que o
cora­ção da minha avó se ia abaixo e o raio de Thor se ia
abater sobre mim! Achavam que eu iria lavar a honra da
família, depois do que o meu irmão fez, mas não!
De todas as pessoas de quem me falou, o irmão foi
aquele que ela menos mencionou, como se fosse um
assunto tabu.
— O que é que o teu irmão fez?
A Lola engasga-se com o café, o que atiça ainda mais a
minha curiosidade; mas desvio o olhar, para ela não se
sentir inquirida e forçada a responder à minha pergunta.
— Digamos que ele não fez o que os meus pais
esperavam dele.
— Estão a falar de mim? — pergunta uma voz rouca atrás
de nós.
Voltamo-nos as duas em sobressalto: um rapaz parecido
com a Lola como duas gotas de água está de pé junto a nós.
Cabelos castanhos, sardas, traços vincados mas afáveis,
e uma musculatura impressionante. O irmão dela é
incrivelmente boni­to! Se eu não tivesse um mínimo de
controlo sobre o meu corpo, estaria a babar-me, como
provavelmente sucede com todas as ra­parigas da
universidade.
Os meus olhos deslizam pelo blusão de couro preto até
aos de­dos tatuados de runas6, sinal de que também partilha
as minhas crenças, como a irmã.
— Prazer! Sou o Set. E tu, quem és?
— Avalone.
Levanto o rosto e cruzo o seu olhar cheio de malícia, mas
ele fica subitamente desconcertado, sem, contudo, desviar
o olhar. O rosto dele perde a cor e um medo primário parece
dominá-lo.
Gostaria de dizer que a sua reação me surpreende, mas
não é o caso. Os raros pagãos que conheci interpretam o
meu olhar como um mau presságio. Exceto a minha mãe. E
a minha colega de quarto, obviamente.
A Lola estala os dedos e o irmão volta à realidade. Olha
para a irmã, sacode a cabeça e depois centra a atenção em
mim. Olha-me fixamente, mas eu desvio o olhar, insultando
mentalmente os meus deuses, que me adornaram com
estes reflexos alaranjados nas íris.
— Desculpa — torna ele. — Não costumo deparar-me
com uma beleza tão... desestabilizadora.
Mal me contenho de levantar os olhos para o alto,
enquanto a Lola não para quieta e agita-se em todas as
direções, visivelmente tensa.
— Gostei muito de te ter conhecido, Avalone. Bom dia
para ambas!
Passa diante de nós e afasta-se em direção à rua, com
um pas­so seguro e determinado, ainda que um pouco
apressado. Os olhares convergem para ele, provavelmente
pelo seu físico, mas o que me interessa é a inscrição branca
gravada nas costas do seu blusão de couro. Não consigo lê-
la, mas percebo a caveira que tem desenhada por baixo,
com um Vegvisir7 gravado na fronte, sím­bolo da nossa
religião.
— «Os Filhos do Diabo».
Desvio os olhos das costas do Set e passo a observar a
minha nova amiga.
— É isso que está escrito no blusão — retoma ela.
Olha fixamente para a relva, que remexe com os dedos,
mergu­lhada num profundo desconforto.
— Ele faz parte de um gangue. Ias sabê-lo rapidamente,
de qualquer maneira, portanto é melhor ser eu a dizer-to.
Arregalo os olhos e retenho a respiração, antes de pensar
que estou a aumentar o mal-estar da Lola. Obrigo-me a
acalmar-me, mas a minha expressão permanece tensa.
Um gangue nesta universidade, a sério? Embora o Set
ostente muitas tatuagens e uma musculatura a condizer,
não parece capaz de fazer monstruosidades.
Sacudo a cabeça antes de sorrir para a Lola, para que
saiba que não tem de se sentir incomodada. No entanto, por
trás do sorriso, a minha garganta aperta-se, quando penso
na possibilidade de serem temíveis criminosos.
— Tens namorado? — pergunta a Lola, para mudar
rapidamen­te de assunto.
A minha resposta é não.
— Como assim?
Encolho os ombros e olho para longe.
— Não quero meter-me numa relação. Além de que, há
que ad­mitir, os pretendentes não se acotovelam à minha
volta! — gracejo.
A Lola desata a rir e bate com a palma da mão na testa,
como se tivesse encontrado a peça que faltava no quebra-
cabeças da mi­nha vida.
— Eles têm medo de ti!
Arqueio as sobrancelhas, em sinal de total
incompreensão, e a minha nova amiga fica como que
siderada.
— Não, mas tu já te viste bem, Avalone? A beleza pagã
personi­ficada! E por todos os deuses, és boa demais!
Dizer que não tenho consciência da minha beleza seria
mentir, mesmo que não seja do agrado de toda a gente.
Sei que tenho bons genes. A minha longa cabeleira de
um lou­ro polar é ondulada, os meus olhos são verdes e
passam para um castanho tão claro junto das pupilas que
parecem ter reflexos ala­ranjados. Faço duas covinhas nas
bochechas quando sorrio e, apesar do meu regime
alimentar, tenho formas, provavelmente graças ao desporto
que não devia praticar.
— No entanto, o que mais deve assustá-los é o teu olhar
— pros­segue a Lola.
Franze os olhos para observar os meus e debato-me para
não os afastar, à espera que ela tire as mesmas conclusões
que as ou­tras pessoas.
— É tão bonito, mas com um brilho que lhe dá uma
dureza pouco vulgar... Um olhar de matadora!
E quando sorri para mim, não parece assustada, como se
não tivesse reconhecido o mau presságio que os pagãos
veem nos re­flexos alaranjados das minhas íris. As chamas
do Ragnarok.8
— A seleção de cheerleaders começa amanhã, se
estiveres interessada.
O alívio que senti um segundo antes desapareceu, para
dar lu­gar à resignação. A Lola, perspicaz, deita-se de bruços
e observa-me intensamente.
— Avalone Lopez, abre-te comigo. Se ainda não confias
em mim, eis o meio de chantagem que te ofereço: eu comi
em segre­do os macacos do meu nariz, até aos dezassete
anos.
O riso que escapa ruidosamente da minha garganta
desenca­deia o dela. Ao apercebermo-nos de que alguns
olhares se estão a voltar para nós, a minha colega de quarto
fica aflita, apavorada com o facto de alguém poder ter
ouvido a sua revelação. Parece aliviada quando cada qual
volta aos seus assuntos, sem a menor zombaria.
— Então, o que dizes? Uma verdade por outra?
— A minha não é tão engraçada — aviso-a.
Ela desdenha do meu comentário com um vago aceno de
mão e diz-me que não se deve discriminar as emoções. E é
precisa­mente esta observação que me convence a confiar
nela, porque as suas réplicas hilariantes afastam qualquer
esboço de tensão.
— Tenho um problema cardíaco que me impede de
praticar desporto.
Normalmente, teria parado por aqui. Mas a Lola dá-me
vonta­de de lhe contar tudo. Afinal, devo-lhe isso, depois da
sua revela­ção sobre os seus prazeres gastronómicos
especialmente duvidosos.
— A minha mãe tomava metanfetaminas quando era
jovem. Depois conheceu o meu pai. Deixou as drogas e
engravidou; mas ele morreu antes de eu nascer e ela recaiu.
Consumiu, comigo já na barriga dela. Foi só uma vez. No
entanto, foi o suficiente para eu nascer com uma
malformação, que resultou em insuficiência cardíaca. A
minha mãe está limpa há muito tempo, nunca lhe irei
atribuir as culpas. Fez tudo por mim, estou-lhe eternamente
grata.
Os olhos da Lola brilham com as lágrimas, mas, pela
primeira vez, não desvio o olhar. Porque não vejo piedade
nem julgamento no dela, só compreensão.
— Lamento sinceramente, Avalone. Não deve ser fácil no
dia a dia.
A esta rapariga, é fácil fazer confidências. Nunca me
tinha en­tregado tão depressa a uma pessoa e, verdade seja
dita, sabe bem. Sinto-me mais leve e, portanto, já não temo
o momento de lhe confessar tudo sobre a minha doença,
que é uma espada de Dâmocles sobre a minha cabeça.
Aproveitamos o sol por mais meia hora, depois voltamos
para o quarto, num ambiente agradável e com as maçãs do
rosto ligei­ramente avermelhadas.
— O que vais fazer nestes três dias antes do início do
ano?
— Não sei, devo ir para a biblioteca, para me preparar
para as aulas — respondi, sentando-me na cama.
— És uma marrona? — pergunta, surpreendida.
— Digamos que prefiro estar preparada por antecipação
do que atrasar-me nas matérias.
Perante o ar malicioso que brilha nos seus olhos, aponto-
lhe um dedo ameaçador.
— Nem penses, não vou fazer os teus trabalhos!
Ela levanta as mãos em sinal de inocência, contudo o
olhar atraiçoa-a e provoca-me um sorriso. Sei que vai tentar
de novo, mas, para já, atravessa-lhe o espírito uma ideia
completamente diferente.
— Que tal sairmos hoje à noite? Podes beber, apesar dos
teus problemas cardíacos?
— Tenho de evitar os shots, mas posso beber! — minto,
não sem escrúpulos.
A Lola inicia uma espécie de dança da alegria, ao mesmo
tem­po que enumera os nomes dos bares de Ann Arbor.
Como ainda não conheço a cidade, tem todo o tempo para
pensar no nosso destino, que acaba por manter em
segredo, para dar um toque de mistério.
O seu comportamento muda completamente quando
olha para o relógio. Temos apenas duas horas para nos
prepararmos e co­mermos, o que lhe parece inconcebível.
Então, transforma-se num verdadeiro furacão. Sem
preâmbulo, pega no seu necessaire e arrasta-me para os
chuveiros comunitários, quase esbarrando com os
estudantes com que nos cruzamos.
Sob o jato de água, a minha vizinha de cabina e nova
colega de quarto surpreende-me, a cantar com enorme
projeção de voz.
Quem diria que um corpo tão pequeno podia lançar
vocalizos tão poderosos?
E ainda por cima, canta lindamente!
De volta ao quarto, torna-o num campo de batalha. As
roupas voam pela sala, sempre acompanhadas pelos
grunhidos de frus­tração da Lola. Por fim, encontra um lindo
vestidinho vermelho e questiona-me com o olhar. Faço uma
cara de aprovação e recebo em troca um sorriso gigantesco.
Por meu lado, vasculho o meu armário — sem o esvaziar
— e opto pela minha saia curta de cetim preto e um top
bege com mangas évasé. A minha parceira aprova a
escolha, levantando os dois polegares, e, como duas
crianças excitadíssimas, vestimo-nos.
Com um toque de maquilhagem, sapatos de salto e
bolsas na mão, avançamos para a cantina para comer. Mal
nos sentámos no meio dos alunos já ali presentes, um tipo
caminha direito a nós, com cara de grande urgência.
O seu rosto duro, combinado com os punhos que apoia
na nos­sa mesa e o blusão de couro preto que traz vestido,
faz-me instin­tivamente recuar.
Um Filho do Diabo em fúria.
— Viste o teu irmão? — atira à Lola, como a mandar vir.
Apercebe-se da minha presença e, depois de um relance,
fixa o olhar no meu. A sua reação é imediata: fica
visivelmente pálido e engole em seco, pregado ao chão.
Por todos os deuses, este também é pagão?
— Não — responde ela, irritada. — Desde esta tarde, não,
Sean.
As palavras da Lola devolvem o Filho do Diabo à
realidade e ele vira o rosto, como se eu lhe tivesse dado
uma estalada. A raiva volta-lhe depressa e o punho abate-se
violentamente sobre a mesa, fazendo-me dar um salto.
Depois de atrair todos os olhares sobre nós, sai tão
depressa como chegou. E que surpresa desco­brir um
Vegvisir a adornar a testa da caveira do seu blusão de
couro!
— Todos os membros do gangue são pagãos? —
pergunto.
— Sim. Afinal, quem seria suficientemente louco para se
juntar a um gangue, se não tivesse a ética do Asatru9?
«Força, coragem, honra, prazer, pragmatismo.»
— O que fazem eles ao certo?
A pergunta sai-me dos lábios sem que tivesse sido
pensada. Será que quero realmente saber as atividades de
um gangue cujos membros pertencem à universidade?
A Lola brinca com a comida, pensativa.
— Não sei ao certo, nunca perguntei. No entanto, as
pessoas dizem que estão envolvidos em drogas e armas.
Enfim, tráfico ilegal.
— Mas se toda a gente sabe, como podem continuar com
os seus negócios?
— Toda a gente os conhece, nesta cidade. Estão bem
relaciona­dos a alto nível; os polícias fecham os olhos e os
que não são cor­rompidos não têm provas para os deter.
Não digo mais nada, demasiado alheada para alinhar
duas palavras.
Um gangue com atividades ilegais na minha
universidade... E se matarem pessoas?
Este simples pensamento deixa-me nauseada e arrepia-
me. Mas agarro-me à ideia de que o Set parecia muito
simpático, até fixar longamente os olhos em mim.
Devem ter um líder com muitos contactos. Senão, como
é que simples estudantes se iam safar de todos os crimes e
delitos?
Só quando chegamos ao jipe da Lola, estacionado no
parque da universidade, é que o ambiente alivia e
recuperamos a excita­ção provocada pela saída noturna.
Percorremos as ruas de Ann Arbor, lançadas e com I Write
Sins Not Tragedies, dos Panic! at the Disco, aos berros no
habitáculo.
Após uns dez minutos de karaoke desenfreado, a Lola
estacio­na o carro diante de um prédio que não deixa
adivinhar nada do seu interior. Batemos com as portas do
carro e a minha colega de quarto estende a mão para o
prédio, num gesto teatral.
— Aqui tens o Degenerate Bar!

1 Filme de 1991 para televisão, do realizador Joseph


Sargent, um drama sobre um sobrevivente do campo de
concentração de Auschwitz, que confronta os negacionistas
do Holocausto em tribunal. (N. da T.)
2 Na mitologia nórdica, Odin é o principal deus. Pai de
tudo, é um dos três deuses criadores do Universo (os outros
dois são seus irmãos). «Pelo olho de Odin» refere-se ao olho
que ele sacrificou e deitou ao poço de Mímir para adquirir
sabedoria infinita.
3 Na mitologia nórdica, as Nornas estão encarregadas de
tecer o destino de todos, homens e deuses. As três Nornas
mais importantes são Urd, Verdandi e Skuld. Os seus nomes
podem ser traduzidos como Passado, Presente e Futuro,
respetivamente.
4Thor, filho de Odin, é o deus do Trovão. É conhecido
pela sua força lendária e pelo seu martelo Mjollnir. É inimigo
dos gigantes e protetor dos homens e dos deuses.
5Apesar de ser, por natureza, um gigante, espécie
inimiga dos deuses, Loki foi acolhido em Asgard por Odin,
com quem fez um pacto de sangue, tornando-se seu irmão
de sangue. Deus da Malícia e da Discórdia, Loki coloca os
deuses, com frequência, em apuros. Tão depressa é seu
inimigo como seu aliado.
6 As runas são símbolos mágicos que permitem conexões
espirituais, divinatórias e curativas. Também serviram de
alfabeto para os povos germânicos.
7O Vegvisir é um símbolo protetor, uma bússola mágica
que serve de guia ao seu portador, evitando que se desvie
ou perca de vista o seu destino.
8 Na mitologia nórdica, o Ragnarok é o fim dos mundos
proféticos, uma sucessão de eventos que levaria ao fim do
universo. Começará com um inverno de três anos sem sol,
depois haverá uma grande batalha na planície de Vigrid,
onde os deuses e os gigantes liderados por Loki se
defrontarão. A terra dos homens será engolida pela água, a
maior parte das divindades e dos gigantes morrerá e os
nove mundos arderão em chamas. Os deuses regressados
do mundo dos mortos, entre os quais Baldur, filho de Odin,
voltarão a reinar e a humanidade renascerá de um casal de
humanos que escapou às chamas.
9Asatru é uma reconstrução moderna de antigas crenças
escandinavas relacionadas com a mitologia nórdica. Este
termo pode ser traduzido como «fé no Aesir». O Aesir é o
panteão nórdico dos principais deuses, chefiados por Odin,
que vivem em Asgard, longe do Midgard, o reino dos
mortais.
Capítulo 2

De braço dado, empurramos as portas insonorizadas do


bar. E então, começa a degeneração.
A música e os gritos dos foliões atingem-me com força,
ao ponto de parar com a surpresa. Jogos de luz rodam por
todos os cantos do espaço, banhando os ocupantes em
luminosidade para, em seguida, os mergulhar na escuridão.
Os flashes acompanham o ritmo frenético da música pop,
capazes de enviar qualquer epi­lético imediatamente para o
hospital.
Tenho de dar alguns segundos aos meus sentidos para se
habi­tuarem ao ambiente, antes de entrar no recinto, sob os
olhares impassíveis dos dois seguranças. No centro da sala
e rodeado por uma multidão já compacta, estende-se um
balcão de cerca de vin­te metros; em volta, há mesas
dispersas pelo espaço.
Sem me largar nem por um segundo, a Lola abre
caminho à cotovelada até ao bar, onde chama um barman.
Este rasga um largo sorriso quando a vê e avança para nós,
de shakers na mão.
— Lola! Há quanto tempo!
Dão um abraço caloroso por cima do balcão e a minha
parceira puxa-me, para me apresentar ao amigo.
— Liam, esta é a Avalone, a minha nova colega de
quarto.
Ele mostra-me um sorriso deslumbrante e dá-me um
aperto de mão; e, enquanto prepara os seus coquetéis,
trocamos algumas palavras de circunstância. É difícil fazer
mais com uma música tão alta.
Sentadas nos bancos altos em frente do bar, o Liam
poisa duas bebidas à nossa frente, «oferta da casa».
Agradecemos, brinda­mos e bebemos o delicioso néctar. Não
sei dizer do que é feito, porque tenho pouca experiência de
álcool, mas, uma coisa é certa, é delicioso. Nunca tinha
bebido nada tão bom.
O ambiente tem tudo do que eu gosto. Há risos, dança e
can­ções acompanhadas em coro. Circula no bar uma
energia festiva, que não poupa ninguém. Os lastros
emocionais foram deixados do outro lado das portas à prova
de som, proporcionando uma noite fora do tempo.
Distendidos, provocadores, namoradeiros. A Lola e eu
somos apanhadas pelo frenesim. Damos largas aos pul­‐
mões, entre cantar e rir, em parte graças ao Liam e às suas
piadas, tão parvas como hilariantes. Tento ignorar os
olhares sensuais que me dirige, como se não fosse nada
comigo, até que a minha nova amiga traz o assunto para
cima da mesa e tenta empurrar-me para os braços dele,
quando nos vira as costas.
— Não estou aqui para arranjar namoro. Quero focar-me
nos estudos, não tenho tempo para ter um rapaz nas mãos.
A Lola olha para mim, estupefacta, e levanta os olhos
para o alto, divertida.
— Mas estás na universidade! Tens de te divertir. São os
nossos últimos anos antes do trabalho e das
responsabilidades! É a nossa última oportunidade de
desfrutar a vida, antes de sermos adultas!
Não dá tempo para lhe responder, porque se gera uma
agita­ção inexplicável na pista de dança. Os gritos ecoam no
bar, os fo­liões agrupam-se, para testemunhar o que parece
ser uma briga.
— É um Filho do Diabo! — declara um rapaz, ao mesmo
tempo que ergue a sua cerveja.
Outros juntam-se a ele num brinde e as bestas aplaudem
os desordeiros.
Desesperada, viro-me para a Lola, mas ela passa como
uma rajada de vento na minha frente e corre para a
multidão, preocu­pada com o irmão.
Que grande merda!
Salto da cadeira e acotovelo umas quantas pessoas,
mergu­lhando também eu na mole humana. Na ponta dos
pés, procuro uma cabeça castanha, que tenho dificuldade
em localizar. Os jo­gos de luz não ajudam: a multidão fica
intermitentemente mergu­lhada na escuridão. Um guincho
escapa da minha boca quando me esmagam um dedo do
pé, mas cerro os dentes e vou em fren­te. Quase perco o
equilíbrio por duas vezes e, finalmente, vejo a Lola à minha
frente. Dou mais umas cotoveladas para chegar até ela e
agarro-lhe o braço, aliviada. Mas ela não me presta a mais
pequena atenção. Está imóvel perante a cena que se
desenrola di­ante de nós.
Não é o Set que está a lutar, mas, pelo blusão de couro,
é um Filho do Diabo.
Debruçado sobre um tipo que tenta permanecer
consciente, levanta o punho e derruba-o com tanta violência
que me assusto, com os olhos esbugalhados de horror. O
som do impacto ecoa no meu crânio e deixa-me
maldisposta. No entanto, a luta está longe de terminar.
Apesar de o sangue já correr no chão, o Filho do Dia­bo volta
a levantar o braço. Não lhe vejo o rosto e, no entanto, sinto
o seu ódio, sufocante, devastador. Expressa-o com mais
uma murraça. Ouve-se um estalejar sinistro e, desta feita, o
seu rival perde a consciência. Mas o membro do gangue
continua a bater-lhe sem cessar. Ataca o adversário, ou
melhor, a vítima, como se quisesse acabar com ele. E é o
risco que se corre, se nin­guém o travar.
— Ele vai matá-lo! — exclama a Lola, horrorizada.
Olha em redor e procura alguém que possa intervir. Os
assis­tentes calaram-se, só restam gritos de pânico, olhares
aflitos e horrorizados. Alguns fogem, mas ninguém parece
disposto a in­tervir para salvar o pobre tipo das mãos deste
doente mental. Até os seguranças permanecem a um canto,
a assistir à carnificina.
— É preciso encontrar os Diabos para o pararem ou ele
mata-o! — grita-me a Lola, de lágrimas nos olhos.
Os dentes a voar antes de ressaltarem no chão acabam
por me convencer. Sem pensar, atiro-me para a frente,
quando o braço do Filho do Diabo se levanta pela enésima
vez.
— PARA, PORRA! — berro, completamente transtornada
com a situação.
Agarro a sua mão em voo e puxo-a para trás com todas
as mi­nhas forças, a fim de evitar que cause mais danos.
Ouço a Lola gritar de terror, quando o motard se liberta
vio­lentamente do meu punho e se endireita a uma
velocidade vertigi­nosa, revelando ter mais uma cabeça de
altura do que eu. Antes mesmo de perceber que ele se virou
para mim, olho horrorizada para o seu punho, a elevar-se
por cima da minha cara.
Por todos os deuses...
Vou levar.
Vai doer.
Provavelmente, vou ficar KO, caída sem sentidos.
O seu arcaboiço, imponente e intimidatório, deixa-me
parali­sada, para não falar do olhar, assustador como um
buraco negro. Toda a ira dos nove mundos10 se refugiou nas
suas íris, e é tão as­sustador que eu provavelmente teria
feito chichi pelas pernas abaixo, se tivesse bebido mais um
copo. Mas não, não levo ne­nhum murro.
O Diabo estaca completamente, quando percebe que sou
ape­nas uma rapariga frágil, que ficaria incrivelmente mal se
o seu punho chegasse ao rosto dela. Punho esse que fica
suspenso no ar, enquanto o seu olhar furibundo, de louco
furioso, passa, lenta­mente, para um verde penetrante.
Não suspiro de alívio. Não consigo é absorver o ar,
perante ta­manha beleza. Um nariz direito por cima de lábios
carnudos e sensuais, como de quem faz beicinho. A
virilidade acentuada pelo queixo quadrado. Cabelos negros
revoltos, com alguns fios caídos sobre a testa. As tatuagens
cobrem quase todos os centímetros da sua pele bronzeada,
à exceção do rosto. É alto, forte, poderoso e exala uma aura
bestial e antipática. Perigosa.
A sua hostilidade diminui quando, com a cabeça
ligeiramente inclinada para o lado, mergulha no meu olhar.
Onde os amigos dele se assustaram com o que viam, ele
parece fascinado.
Observa-me, escrutina-me, como se quisesse saber o
segredo dos deuses e a resposta estivesse nas minhas íris.
O contacto quebra-se quando um tipo pula sobre ele e o
atinge nas costelas. Mas o Filho do Diabo nem pestaneja,
parece que não sentiu nada. Ainda os olhos verdes estão
assestados em mim, vejo-os voltar a ficar negros e a
carregar-se de uma raiva indomá­vel. Antes de se voltar para
o seu novo adversário, de músculos tensos, vejo surgir nele
um sorriso sádico, de arrepiar. E não sou a única a
empalidecer. O outro engole em seco, com grande difi­‐
culdade, e dá um passo atrás, lamentando o golpe que
acabou de desferir no Filho do Diabo. Mas é demasiado
tarde. Este enfia o punho na barriga da nova vítima,
cortando-lhe completamente a respiração.
Uma mão poderosa puxa-me bruscamente para trás,
para evi­tar que eu leve um murro perdido, e dou por mim
pressionada contra o peito de Set, o irmão da Lola. Avalia
minuciosamente o meu rosto, para se certificar de que não
tenho nada, com uma cal­ma desestabilizadora. O medo que
o fiz sentir à tarde parece ter sido varrido pelo alívio de me
ver ilesa. No entanto, isso dura pouco. E agora fica furioso.
— Porra, mas o que é que te deu? Passaste-te?
Pensava eu que o Set não parecia ser membro de um
gangue, mas estava enganada. As suas feições tensas
transformam-lhe completamente o rosto e tornam-no
assustador, perigoso.
Solto-me do seu braço. Não me agrada nada o tom que
usa co­migo e percebo a presença de outro Filho do Diabo ao
seu lado. Tem a cabeça rapada e tatuagens que sobem pelo
pescoço e nuca, estendendo-se até ao cimo da cabeça. Tem
até outras nas têmpo­ras e no canto do olho direito. Não
precisa de se irritar para pare­cer aterrorizador. Por trás da
sua aparente calma, esconde-se pro­vavelmente uma
tempestade mortal.
Quando um barulho perturbador chega até nós, os dois
Filhos do Diabo voltam a cara para o seu companheiro, que
não cessa de golpear a segunda vítima, já inconsciente,
também ela. Soltam uma série de palavrões e intervêm
rapidamente, mas com maior lentidão no que diz respeito
ao da cabeça rapada. Afastam sem cerimónia as poucas
pessoas que estão no seu caminho, para che­garem ao
coração da luta, agarram o companheiro pelos braços e
forçam-no a recuar, fazendo uso de todas as suas forças
para o conseguir.
O louco furioso desembaraça-se violentamente dos seus
dois amigos e a estranha impressão de que é capaz de
também os es­murrar deixa-me zonza. Não me questiono
sobre se vou vomitar, mas quando vou vomitar. Porque,
mais um murro, e o meu estô­mago entrega os pontos.
O Set segura o rosto do amigo com ambas as mãos, para
con­centrar a sua atenção e acalmá-lo, mas o brigão solta-
se, cerrando e afrouxando os punhos, fora de si. O Set não
baixa os braços. Re­pete a operação e acaba por conseguir o
que quer. Depois, diz-lhe algo que só o outro ouve. Este
contrai furiosamente as maxilas, mas parece resignado a
não insistir. Dirige uma última olhadela antipática às suas
vítimas, depois os seus olhos fixam-se em mim. O verde das
suas íris continua escondido por trás do negrume da sua
alma e, no entanto, o seu olhar trespassa-me. Franze a
testa, desdenhosamente, e tenho a certeza de que li nele:
«Não te voltes a aproximar de mim, sua cabra!» Em
seguida, dá meia-volta e sai do bar pela porta dos fundos,
que abre com um chuto poderoso.
O Set e o outro membro dos Filhos do Diabo levantam
sem ce­rimónia os dois feridos, que cambaleiam
perigosamente, quando voltam a si. Dignam-se mesmo a
deixá-los descansar encostados a eles até recuperarem o
equilíbrio.
— Saiam e nunca mais ponham aqui os pés! — diz o Set,
com uma voz gélida.
Os dois homens saem do bar sem pronunciar palavra,
desfigurados.
Os foliões voltam aos poucos aos seus lugares, como se
nada tivesse acabado de acontecer, mas a Lola e eu não
nos movemos. Os nossos olhos estão fitos nos dentes
espalhados pelo chão e nas muitas manchas de sangue. A
mão trémula dela aperta a minha e sussurra-me, ainda em
choque:
— Apresento-te Clarke Taylor. O melhor amigo do meu
irmão.
Por falar no irmão, este caminha perigosamente na nossa
dire­ção, depois agarra-nos firmemente pelos braços e puxa-
nos para a saída, como duas miúdas pequenas que têm de
ser punidas pela sua inconsciência.
— Mas o que estás tu a fazer? — protesta a Lola.
O Set não responde e arrasta-nos para fora do bar,
através da porta que Clarke atravessou segundos antes.
— Voltem para a residência. Esta noite não promete nada
de bom.
— Ah não, era o que faltava! — recusa a Lola, abanando
a cabe­ça. — Se queres que nos vamos embora, tens de nos
dar mais explicações!
O Set suspira, mas os braços cruzados da irmã são sem
apelo.
— O líder de um gangue perdeu o controlo dos seus
homens e preparam-se para vir provocar-nos no nosso
território.
A minha colega de quarto arregala os olhos e os braços
caem-lhe sem força ao longo do corpo, num sinal claro de
capitulação. Quanto a mim, apercebo-me que Ann Arbor é
um campo de jogos para os gangues.
— Isso significa que aqueles dois homens...
O Set confirma com a cabeça.
— ... Não tinham o direito de estar aqui. O Clarke fez-lhes
pas­sar a vontade de voltar, armados em fortes. Agora, vão-
se embora para casa! Há outros de que ainda não tratámos.
Após estas explicações, o Set vira-se e vai-se embora. A
Lola e eu olhamos uma para a outra ansiosamente, antes de
nos dirigir­mos para o carro, sem protestar. Não temos o
menor desejo de nos vermos apanhadas no meio de um
acerto de contas entre dois gangues.
Abro a porta do passageiro, quando um baque surdo nos
as­susta. O Set acaba de encostar o Clarke contra a grade
metálica de uma garagem, enquanto o Diabo de cabeça
rapada trata das unhas, parecendo totalmente alheado da
situação.
— O Carter não pode saber o que aconteceu, ou estamos
todos mortos! — berra o Set.
O Clarke agarra o melhor amigo pela gola do blusão de
couro e inverte as posições. Faço uma careta ao ouvir o
choque das costas do Set contra o gradeamento. Mas isso
não é nada, comparado com o punho do Clarke a abater-se
sobre o seu rosto.
A Lola vacila e desvia o olhar, antes de correr para o
carro. Imito-a rapidamente, disposta a confortá-la. Mas,
inesperada­mente, ela não parece triste. Apenas cansada,
cansada de se preo­cupar pelo irmão. Deixo-me ficar em
silêncio e ela explode num riso nervoso.
— Tenho realmente de te ensinar as regras desta cidade!
Pri­meiro, se vires o Clarke a lutar, foge. Quando está neste
estado, pode bater num cachorrinho bebé, para não falar
das balas perdi­das que podes apanhar. Em segundo lugar,
nunca intervenhas. Se houvesse uma palavra mais forte do
que nunca, eu usava-a, por­que garanto-te que esta noite
tiveste uma sorte fenomenal.
Suspira de alívio, sendo óbvio que sentiu muito medo por
mim.
— Resumindo, se vires o Clarke, vai para o mais longe
que pu­deres. Porque se o meu irmão e os Diabos não
estiverem por per­to, não haverá ninguém para o travar, e
então...
A frase transforma-se num gritinho agudo de angústia,
ao imaginar o que pode acontecer. Não tenho
absolutamente nada a dizer, chocada com tanto ódio. Não
pensava que um corpo aguen­tasse tanto.
Ouço as suas palavras e acredito nela. O Clarke Taylor,
com o seu olhar furibundo, é inegavelmente uma pessoa
perigosa. É incontrolável e visivelmente muito forte, para
ter subjugado sozi­nho dois homens quase tão grandes como
ele.
Não demoramos muito a chegar à cidade universitária e
daí ao nosso quarto. Uma vez terminada a higiene noturna,
deitamo-nos nas respetivas camas e a Lola começa a rir,
mais baixo desta vez. Volto a cabeça para ela, sem
entender.
— Tu és completamente marada, não consigo cair em
mim! Tu paraste o Clarke Taylor no meio de uma cena de
pancadaria! Nin­guém, fora os membros do gangue, jamais
ousou intervir.
Olho para o teto e faço uma careta. Revejo o seu punho
pode­roso bem na frente da minha cara. Pensei seriamente
que ia levar com ele.
— O que fazem eles na vida, fora do gangue?
— Estão todos aqui na universidade, mas é raro vê-los
nas au­las. As suas atividades ocupam-lhes o tempo todo.
Penso de novo no Clarke e nesse ódio que o parasita.
Deve ser um buraco sem fundo, uma fonte infinita.
— O que se passou com ele que o tornou assim tão
colérico?
Pelos olhos que se ensombram, adivinho que a Lola sabe
de quem estou a falar. E ela conhece a resposta para a
minha pergunta.
— Os pais foram baleados à sua frente. Tinha catorze
anos.
O coração aperta-se no meu peito antes de cair para o
fundo do estômago, pesado como uma pedra. Abro a boca,
mas não saem palavras. Quem consegue assassinar os pais
diante dos fi­lhos? Não entendo como se pode ser tão
desumano. Mas, agora, percebo que o negrume dos olhos
do Clarke é legítimo. Eu nunca me levantaria, se
testemunhasse o assassínio da minha mãe. Este simples
pensamento dá-me volta à cabeça.
— Há tanta raiva nele que é o membro mais violento dos
Filhos do Diabo — prossegue a Lola. — É incontrolável. Se
pensas que a cena de pancadaria desta noite foi violenta,
felizmente não o viste há alguns dias, quando mandou três
tipos para o hospital. Todos os Diabos estavam lá e, no
entanto, pensei que nunca mais iriam ser capazes de o
segurar.
Engulo em seco, a custo, e a minha voz não passa de um
sus­surro, quando digo:
— E continua à solta...
— Graças ao Carter, o líder. Se todos têm medo do que
os Fi­lhos do Diabo possam fazer fisicamente, devem-no ao
Carter. Vemo-lo muito raramente, fica atrás da secretária a
preparar to­dos os tipos de golpes. Dá ordens e os seus
homens executam-nas. É um tipo na casa dos cinquenta
anos e é milionário; pouca gente consegue enfrentá-lo.
Exceto talvez os próprios Filhos do Diabo. Parece que o líder
tem especialmente em conta a opinião do Jesse, aquele de
cabeça rapada, apesar de o Clarke ser o afi­lhado, o seu
braço direito.
Endireito-me na cama e viro-me para a Lola para
esclarecer algo que não percebo e que me irrita.
— Porque é que eles fazem isto? Não percebo o que
ficam a ganhar!
Ela encolhe os ombros, dividida.
— Eles dariam a vida para se salvarem uns aos outros.
São uma família. Quando o Clarke quase foi expulso do
gangue devido às suas explosões de violência incontrolável,
os Diabos juntaram-se com o Carter para que mudasse de
ideias. Mas, na minha opinião, o líder não pretendia
realmente mandá-lo embora; não pode prescindir do Clarke,
nem que seja apenas pela sua reputação. Parece que é
muito solicitado pelos outros gangues.
Pergunto então à Lola se ela é chegada ao irmão. Quando
ad­mite que se dá bem com ele, mas que não saem juntos,
fico mais sossegada. Não quero proximidade com os Filhos
do Diabo, porque é evidente que lidar com eles não me
trará nada de bom. Po­dem nem ser os maiores cabrões do
universo, mas continuam a ser violentos e os seus negócios
ilegais. São delinquentes, crimi­nosos, e eu não quero ver-
me de maneira nenhuma associada a eles, direta ou
indiretamente.

10 Na mitologia nórdica, existem nove mundos apoiados


pela Yggdrasil, a Árvore do Mundo. Asgard é o mundo dos
deuses Aesir; Alfheim, o mundo dos elfos da luz; Vanaheim,
o mundo dos deuses Vanes; Muspellheim, o mundo do fogo
e do magma; Midgard, o mundo dos homens; Jotunheim, o
mundo dos gigantes; Svartalfheim, o mundo dos elfos
escuros; Niflheim, o mundo da névoa e do gelo; e Helheim,
o mundo dos mortos.
Capítulo 3

Os três dias antes do início das aulas passaram a uma


veloci­dade incrível. Não tive tempo para ficar entediada. Fui
estudar para a biblioteca e passei o resto do tempo com a
Lola. Gosto imenso dela. Nunca pensei conseguir relacionar-
me tão rapida­mente com uma pessoa, e a sua presença
nesta nova etapa da mi­nha vida tranquiliza-me. Fala sem
parar. É um pouco amalucada, mas dentro do razoável —
quer dizer, é uma coisa a confirmar. Não é a aluna mais
estudiosa do mundo, mas tem boa cabeça, apesar do seu
arzinho de «passo o tempo a divertir-me, coisas sé­rias não
são para mim». Mas do que mais gosto nela é a sinceri­dade
e a espontaneidade.
Hoje, depois de atirar a minha almofada à minha parceira
para que desligasse o seu infernal despertador e se
levantasse da cama, acordo de bom humor, disposta a
procurar as minhas salas de aula.
Saímos do quarto, na conversa, e atravessamos a cidade
uni­versitária rumo aos anfiteatros. A Lola acompanha-me
até à sala, como faria qualquer namorado que se preze,
para evitar que eu ande por aí às voltas e me perca. Uma
vez chegadas, beija-me na cara e parte para a sua primeira
aula do dia, bocejando desabrida­mente. Como estou cerca
de quinze minutos adiantada, decido ir à cafetaria, para
ingerir uma boa dose de cafeína. Entro na enor­me sala e
dirijo-me ao balcão, onde peço um café de tamanho gi­‐
gante. Pego no copo, agradeço à empregada e avanço para
a saída. Bebo um gole pelo caminho, que, evidentemente,
me queima as papilas gustativas, bochechas, palato e
garganta. Definitivamente, nunca vou aprender com os
meus erros... Pensava eu que nada podia ser pior do que
essa sensação, quase caio quando alguém me atinge
violentamente. Uma mão agarra-me no último instante, mas
o mal já está feito: uma dor aguda no meu ombro, tão for­te
que parece que bati contra uma parede.
— Se o meu ombro estiver deslocado, apresento queixa
contra o ginásio onde fazes musculação, sua besta!
De lábios cerrados, olho para o dono da mão e vejo o Set,
de testa franzida e olhar ameaçador. Acresce a esta visão
assustadora um olho negro, agora acastanhado, causado
pelo seu maravilhoso amigo, uns dias atrás. No entanto, o
seu rosto muda drasticamen­te quando me reconhece, como
se ser amiga da irmã me desse privilégios.
— Avalone.
— Set.
Ao lado, está outro Filho do Diabo, e...
— A besta em questão é o Clarke — informa-me o Set,
com um sorriso malandro.
Que grande merda...
Insultei nada mais do que o tipo que mandou homens
para o hospital a murro e não se mostra feliz por voltar a
ver-me. A olha­dela que me lança está longe de ser calorosa,
bem pelo contrário.
Será que é incapaz de relaxar por dois segundos? Eu não
lhe matei a mãe\
Engulo em seco e enfrento a cortina de negrume do seu
olhar, que parece nunca o abandonar. Como consegue viver
com a me­mória do assassínio dos pais na cabeça? Será que
os ouve em so­nhos a gritar, pouco antes de perderem a
vida? Revê os seus ros­tos aterrorizados e suplicantes? Que
tipo de pensamentos sombri­os o mantêm acordado à noite?
Esta curiosidade doentia toma conta de mim e leva-me
até à minha própria mãe. Sobreviveria ela à minha morte ou
a sua alma ficaria tão danificada como a do Clarke?
O clarear de garganta do Set devolve-me à realidade.
Afasto imediatamente os olhos do atormentado, para me
concentrar no irmão da Lola.
— Apresento-te o Clarke — diz, apontando para a pessoa
em questão. — E este é o Tucker.
Faço mentalmente a lista de todos os Filhos do Diabo.
Set, irmão da Lola. Sean, que quase partiu a nossa mesa
ao meio. Clarke, o violento incontrolável. Jesse, o indiferente
de ca­beça rapada. E agora Tucker. Mas quantos são eles ao
certo?
Sorrio educadamente para o Tucker, que é um pouco
mais pe­queno que os seus dois amigos. Loiro, de olhos
castanhos, os ca­belos longos quase o fariam parecer um
surfista se não tivesse a pele coberta de tatuagens. Como
todos os Diabos que já conheci, é incrivelmente bonito,
como que saído diretamente de uma revis­ta. A testosterona
libertada por estes três enche a cafetaria.
— Pessoal, esta é a Avalone, a mais querida das amigas
da mi­nha irmã.
O Tucker sorri desajeitadamente, antes de arregalar os
olhos de repente.
— Espera! Foste tu que agarraste o Clarke na outra
noite?
Sentindo-me um animal selvagem preso entre os faróis
de um carro, aceno lentamente com a cabeça. O Tucker
solta uma garga­lhada franca e contagiante e dá uma
palmada no ombro do Clarke.
— Chiça, que ela é tesa!
A esta distância do acontecimento, o Set parece mais
relaxado e ri por seu turno, mas a voz do Clarke silencia
todos.
— Foi um gesto suicida e completamente estúpido.
Apesar de que um bom par de murros lhe teria posto as
ideias no sítio. Ela que trate da vida dela, em vez de armar
em salvadora de meia-tigela!
Ranjo os dentes e dirijo-lhe um olhar furibundo.
Que voz tão bonita, profunda e vibrante ao mesmo
tempo: po­deria ter sensibilizado a minha alma, se não fosse
usada em tal discurso.
— Não sei se és um animal porque Mercúrio está
retrógrado, mas não tens de quê, Clarke, foi um prazer ter
impedido que aca­basses na prisão por assassínio...
O Set e o Tucker olham para mim com os olhos
esbugalhados, antes de rebentarem à gargalhada,
incontroláveis. O Clarke já é diferente. Com um olhar
assassino e de punhos cerrados, passa entre os amigos,
devagar, sadicamente, para me enfrentar.
Ganha-me por uma cabeça — e eu estou de saltos altos.
Aproxi­ma a boca do meu ouvido e, com uma voz glacial, diz-
me:
— Sofres de a síndrome de necessidade de
reconhecimento? Não vou repetir uma terceira vez, Beleza.
Não te intrometas nos nossos assuntos ou podes
arrepender-te...
Um calafrio percorre todo o meu corpo e decido não
responder nada, desta vez, mesmo que isso me obrigue a
morder a língua para me travar. Mas isso não significa que
baixe os olhos e desate a correr para longe dele quando me
volta a encarar. Em vez disso, ponho um ar descontraído,
para esconder a raiva que ferve dentro de mim.
Como se eu fosse um simples inseto que lhe apareceu na
fren­te, o Clarke pousa uma mão no meu ombro e afasta-me
para o lado sem cerimónia, antes de retomar o seu
caminho.
A surpresa deixa-me pasmada por longos segundos,
antes de a raiva tomar conta de mim.
Que convencido!
Nunca ninguém me faltou ao respeito desta forma.
De punhos cerrados, viro-me para os restantes Filhos do
Dia­bo, que continuam divertidíssimos, e fuzilo-os com o
olhar, antes de me encaminhar para a saída.
— Bom dia para ti! — lança-me o Tucker, com um sorriso
na voz.
Levanto o dedo médio acima da cabeça e viro para o
corredor, proferindo um monte de palavrões capazes de
empalidecer um carroceiro.
Entro no anfiteatro sem aliviar a cólera e, pela segunda
vez em meia hora, esbarro em alguém. Solto um grunhido,
entre o quei­xoso e o agressivo, o que provoca o riso na
pessoa que tenho pela frente.
— Acordámos viradas para o lado errado?
Ergo os olhos para o rapaz que me sorri afetuosamente e
a mi­nha raiva evapora-se graças ao seu óbvio bom humor.
Mas não diz nada por longos segundos, hipnotizado pelo
meu olhar.
Odin Todo-Poderoso, não me digas...
— Sou o Jackson — apresenta-se, estendendo a mão.
— Avalone. Desculpa, não te vi.
Afasta o meu pedido de desculpas com um sorriso.
— Não tem problema. Foi um despertar difícil?
Precipitamo-nos para a sala, para arranjar lugar.
— Na verdade, não, até estava de bom humor.
— Então, o que foi?
— Uma besta que não sabe ser grato nem respeitoso.
Sentamo-nos lado a lado, na quinta fila. Nem muito perto
do professor, para evitar os seus perdigotos, nem
demasiado longe, para não correr o risco de não ouvir nada,
de acordo com o sábio conselho da Lola.
— Ah, é melhor habituares-te a isso, há muitas bestas
nesta universidade.
Solto um longo suspiro, provocando uma gargalhada do
Jackson, e o professor entra. Todas as conversas param e os
Filhos do Diabo são imediatamente expulsos da minha
mente, pela excita­ção da minha primeira aula.
É meio-dia quando termina. Saio da sala com o Jackson e
vejo imediatamente a Lola, a cerca de vinte metros de
distância, que parece estar à minha procura. Aceno com os
braços, sem sucesso, e o Jackson acaba mesmo por me
ajudar. Perco a esperança e pego no meu telemóvel, para
ligar à minha colega de quarto.
— Estava precisamente à tua procura! — confessa-me,
ao atender.
— E eu estava precisamente a acenar exuberantemente
para ti!
Vejo-a a esforçar a vista em todas as direções, acabando
a olhar para o lado oposto ao da minha localização.
— Bem! Só tens de gritar «esquilo» e eu guio-me pelo
som da tua voz.
— Nem pensar!
— Oh! Vá lá, sempre sonhei fazer isso!
Mal termina a frase, os seus olhos encontram os meus.
Desliga e trota na minha direção, a fazer beicinho. Consolo-
a, prometen­do pagar uma consulta de oftalmologista, e, em
seguida, apresen­to-a ao Jackson. Sem mais nem para quê,
agarra-o pelo braço e arrasta-o em direção à cantina,
atordoando-o com questões de­masiado privadas para um
primeiro encontro.
Por meu lado, sigo atrás deles e apanho as informações
no ar.
É
O Jackson está a repetir o primeiro ano de faculdade. É
de Chelsea, a cidade vizinha, onde mora com os pais. É filho
único, mas adorava ter um irmão ou irmã. Tem uma
namorada há três anos, a Aurora, com quem teve relações
sexuais após três sema­nas de namoro — sim, a Lola
perguntou mesmo isto. A Aurora está no segundo ano da
Universidade do Missouri, pelo que só se veem nas férias.
Mas acreditam no amor que os une e desejo-lhes
felicidades.
Sentados à volta de uma mesa, com a comida à nossa
frente, o Jackson graceja sobre o meu humor assassino
desta manhã e a minha parceira questiona-me com os
olhos.
— O Clarke — rosno.
— Ui! Voltaste a cruzar-te com ele?
Confirmo com a cabeça e acrescento que estava com o
irmão dela e o Tucker.
— Conhecem os Diabos? — pergunta o Jackson,
surpreendido.
— O Set é o meu irmão mais velho — responde a Lola,
com a boca cheia. — E tu?
Ele observa-a por alguns segundos, detetando facilmente
as parecenças, e depois uma emoção estranha atravessa-
lhe o olhar.
— O Clarke era o meu melhor amigo de infância.
O queixo cai-me e olho para o Jackson, incrédula, por
longos segundos.
Como pode alguém tão simpático como ele ter sido
amigo de alguém tão irritante e violento como o Clarke?
Acabo a fazer sinal com os olhos para a Lola, que está de
boca escancarada, dando-nos uma ofuscante visão da sua
comida meio mastigada. Ela repara e engole tudo de uma
vez.
— O que aconteceu?
— Os pais dele foram mortos e ele mudou.
Dou por mim a pensar como seria o Clarke antes daquele
acontecimento dramático. Que sonhos tinha esse menino
inocente?
— Acreditas em Odin? — pergunta a minha amiga, de
olhos a brilhar.
Observo o Jackson, adivinhando já a sua resposta, e ele
olha para a rapariga, fazendo rapidamente a ligação. Todos
os Diabos acreditam em Odin, e como o Set é irmão dela, há
grande proba­bilidade de partilhar a mesma religião.
— Tu também? — pergunta-lhe ele.
A Lola responde com um sorriso; então, o Jackson vira-se
para mim e volta a mergulhar nos meus olhos.
— Tu também — afirma.
Pisco-lhe um olho e a minha parceira suspira de alívio.
— Parece que as Nornas nos reuniram.
Tanto quanto sabe, somos os únicos pagãos desta
universida­de, ou, pelo menos, os únicos verdadeiros
pagãos, para não falar dos Filhos do Diabo. Com a fama do
gangue, alguns proclama­ram-se pagãos para se
aproximarem deles, e outros abraçaram o Asatru com o
mesmo propósito. Uns impostores!, troça o Jackson.
E conta-nos que a mãe dele conheceu a do Clarke numa
re­constituição histórica viking. Tornaram-se amigas muito
rapida­mente e os filhos seguiram-lhes o exemplo,
independentemente dos cinco anos de idade que os
separavam.
Depois de debater os estereótipos pejorativos que colam
à pele dos crentes nórdicos, o Jackson propõe-nos um serão
na fraterni­dade Delta Beta Phi, a que pertence um amigo
que está no segun­do ano. Aceitamos sem hesitar,
esperando que a noite termine melhor do que a anterior, e
separamo-nos, para voltar às aulas.
***
São vinte e duas horas quando eu e a minha colega de
quarto saímos rumo à noite.
Depois de me contar todos os tipos de cenários
inventados so­bre o amor da sua vida que irá possivelmente
encontrar nesta fes­ta, a Lola põe os altifalantes do jipe no
máximo. Chegamos rapi­damente à enorme sede da
fraternidade, com o nome orgulhosa­mente inscrito na
fachada.
Estacionamos numa passadeira para peões de uma rua
adja­cente e dirigimo-nos para a casa, cantando a plenos
pulmões Old Town Road, do rapper Lil Nas X. De repente,
chega até nós a música da festa. Cruzamos cerca de vinte
estudantes no alpendre, todos de copo na mão, e entramos
no grande salão da casa, com uma esplêndida escadaria de
madeira que leva ao primeiro andar.
A fraternidade está cheia de jovens já bastante bêbedos,
apesar de ser cedo, e deixo-me inebriar pela
despreocupação reinante. O meu corpo começa a balançar
ao ritmo da música, com a bainha do meu vestido hippie-
chic voltejando em torno das minhas co­xas. Avançamos
para o salão, onde grandes mesas suportam inú­meras
garrafas de diversos tipos de álcool.
— Os copos vermelhos dizem que não tens nada contra
um en­contro de uma só noite e os azuis significam que
estás à procura de um relacionamento estável — explica-me
a Lola.
— E os brancos?
Ela faz beicinho, mas acaba por me confessar:
— Os brancos significam que não queres nenhum dos
outros.
— Perfeito!
Agarro num de cor branca, sob o olhar estupefacto da
Lola, que já tem um copo azul nas mãos. Enquanto ela opta
por um vodca Red Bull, eu decido-me por um vodca com
sumo de maçã, uma mistura bastante menos perigosa para
o meu coração.
Estamos prestes a brindar, quando o Jackson vem ao
nosso encontro e nos abraça efusivamente.
— Que bom terem vindo! Apresento-vos o Daniel, o meu
amigo que vive nesta magnífica casa.
Sinto a Lola um pouco tensa ao meu lado e vejo-a corar.
Tenho a certeza de que já vê o Daniel como o amor da
sua vida. Levo o meu copo aos lábios para evitar rir,
enquanto o Jack­son nos apresenta. Por fim, enchem os
copos — branco para o Jackson, azul para o Daniel — e
brindamos os quatro, assinalando o início da noitada.
Dançamos ao som de músicas variadas e os copos
sucedem-se num ambiente de riso e alegria. Uma coisa é
certa, os meus com­panheiros sabem divertir-se.
O recém-conhecido é muito afetuoso e sorridente,
especial­mente para a minha amiga. Parece enfeitiçado
pelos seus olhos de corça, nada provocadores. Então eu,
acidentalmente, empurro a Lola de encontro ao Daniel e ela
agarra-se teatralmente ao pesco­ço dele, antes de me
mandar uma discreta piscadela de olho. Sol­to um riso
franco, acompanhada pelo Jackson, e ficamos a vê-los
dançar juntos, especulando sobre as hipóteses de um
relaciona­mento bem-sucedido entre aqueles dois. À
primeira vista, tudo parece muito simples para a Lola. Tem
uma grande facilidade em relacionar-se, é impressionante.
Invejo-a por isso. Eu não tenho tanta facilidade em deixar-
me ir. Não tenho nenhuma, na verda­de. Sempre que tento
soltar-me, a realidade atinge-me com toda a força. E é
exatamente o que está a acontecer agora. O meu cora­ção
está a acelerar, devido ao álcool que ingeri e à dança.
Ganha um ritmo que não consegue suportar.
— Vou apanhar ar e já volto.
— Vou contigo — diz a minha parceira, dando-me o
braço.
Esgueiramo-nos entre os estudantes e chegamos
rapidamente aos degraus de acesso à casa, para meu
grande alívio.
— Estás bem?
Olho para Lola, enquanto me sento nos degraus. Uma
ruga de preocupação atravessa-lhe a testa.
— Só tenho de recuperar o fôlego.
Fecho os olhos, atiro a cabeça para trás e respiro suave,
mas profundamente. Tenho de baixar o meu ritmo cardíaco.
— Vou buscar água.
Passam alguns segundos e a Lola reaparece. Senta-se ao
meu lado e passa-me um copo, que esvazio de uma só vez.
Quando noto que é azul, deito um olhar de crítica à minha
amiga, que bate as pestanas inocentemente, fazendo-me
desatar a rir.
A nossa atenção é agora atraída para seis
resplandecentes Harley-Davidson, que estacionam em
frente da fraternidade. Reco­nheço os motards pelos blusões
de couro e fico imediatamente tensa, preparada para ver a
besta do Clarke Taylor.
Ouvem-se sussurros em redor e metade dos estudantes
con­vertem-se em admiradores, exibindo-se perante o
gangue.
Os Filhos do Diabo descem das motas e avançam na
nossa di­reção, ignorando todos em redor e rindo ou
metendo-se uns com os outros. Recuso-me a idolatrá-los, no
entanto, a sua beleza e masculinidade deixam-me sem voz.
Só o louco furioso não parti­lha o mesmo estado de espírito.
Os seus músculos tensos e as ma­xilas cerradas parecem
esculpidos em mármore, como se não fos­se capaz de os
relaxar. O Clarke exibe essa postura agressiva como uma
segunda pele.
Ao subir o primeiro degrau, os motards parecem lembrar-
se de que devem parecer durões, porque os seus sorrisos
crispam-se e ficam com um ar de certo modo cruel, mas
falso. Pelo menos, assim espero.
Os seus olhares acabam por pousar na Lola e em mim,
quando chegam perto de nós, uns curiosos, outros
afetuosos e o último fechado.
Dos seis Filhos do Diabo que aqui estão, apenas um me é
desconhecido.
— Como vão as meninas? — pergunta o Tucker.
— Estávamos bem até ver a cara do meu irmão —
responde a Lola, com ironia.
O Set avança para ela, com ar malicioso, e despenteia-a,
pro­vocando insultos da parte dela. Ela reage, mas ele só
para quando lhe apetece.
— Diabos de merda! — protesta, irritada, enquanto ajeita
o cabelo.
— Não nos vamos armar em babysitters o resto da
noite... — lança o Clarke, com desprezo. — Está no ir!
A raiva que senti no início do dia regressa e não consigo
evitar gritar para a Lola:
— Porra, não tem nada que ver com Mercúrio! Não é
possível o movimento de um só planeta tornar alguém
numa besta deste calibre!
A minha amiga, a quem contei o meu desentendimento
da ma­nhã com o Clarke, olha para mim horrorizada. O
visado para bruscamente e, depois de alguns segundos de
tensão, vira-se len­tamente para mim, com os punhos tão
cerrados que os dedos fi­cam brancos. Antes que o Clarke
possa fazer qualquer movimen­to, os Filhos do Diabo
colocam-se entre nós, alertados pela raiva do seu irmão de
gangue, exceto aquele que ainda não conheço. Esse olha
para mim divertido, visivelmente ao corrente dos insul­tos
que eu lancei ao seu amigo.
— Calma, Clarke — tranquiliza-o o Set.
O badboy afasta os olhos de mim e olha para o amigo
com o maior desprezo.
— Não lhe vou tocar! — afirma, irritado.
Os amigos acham que ele é perfeitamente capaz disso, o
que não é tranquilizador. O Jesse põe a mão no ombro dele
e faz-lhe sinal para entrar na vivenda. O Clarke abre o
punho e deita-me um olhar furibundo, negro como as
trevas.
— Tem cuidado!
Estas palavras ameaçadoras dão-me um nó no
estômago.
Ele vira-se e entra na casa, seguido por alguns dos Filhos
do Diabo. O olhar que o Set me lança é um aviso repleto de
subentendidos.
— Se queres evitar problemas, cala a boca à frente dele.
Um sorriso forçado é a minha única resposta e o Set
compre­ende isso perfeitamente. Suspira, pessimista, e,
depois de um últi­mo olhar, entra na moradia com os outros.
Dou comigo sozinha, diante da cara de desagrado da
Lola.
— Não me vou ajoelhar diante dessa besta! — aviso.
Levanto-me e estendo a mão para ajudá-la a fazer o
mesmo. Como o irmão, ela suspira, depois levanta-se.
Num estalar de dedos, muda de cena e atira-se ao meu
pesco­ço, para me contar que está loucamente apaixonada
pelo Daniel.
Capítulo 4

Voltamos para o salão e vamos ter com o Jackson e o


Daniel, cujos olhos estão um pouco mais injetados do que
há uns minu­tos. A Lola decide recuperar o atraso, servindo-
se de outro copo, mas, para mim, já chega. Troco o meu
copo azul por um branco e vou para a zona da cozinha.
Hesito por um instante, ao perceber que os Filhos do Diabo
estão por perto, mas recomponho-me ra­pidamente e
contorno-os para aceder à torneira e encher o meu copo de
água.
— Sabes que o álcool é à borla?
Volto-me para o meu interlocutor, o Sean, que parece
muito mais simpático do que da vez em que quase partiu a
nossa mesa ao meio, na cafetaria. As meninas gravitam em
torno do gangue e alguns membros já escolheram as suas
presas. A não ser que seja o contrário.
— Merda! Tenho posto uma nota de cinco dólares na
gaveta a cada copo que bebo.
O Sean e vários Diabos partem-se a rir.
— Gosto muito desta chavala — declara aquele cujo
nome não conheço.
Forço um leve sorriso e vejo o Sean fazer uma mistura de
bebi­das num copo que me estende.
— Prova isto!
Pego no copo, mergulho os lábios nele e finjo beber um
gole.
— Nada mau, obrigada!
Responde-me com um aceno de cabeça e saio da cozinha
para me juntar aos meus amigos, livrando-me do coquetel
do Sean pelo caminho. Sentamo-nos os quatro no sofá, com
uns desco­nhecidos que nos propõem entrar num jogo
etilizado.
Passo na minha vez, mas testemunho a derrota
esmagadora do trio. Uma coisa é certa, não é a Lola que vai
a guiar para casa.
Depois de cerca de trinta minutos de jogo, sinto o
coração vol­tar a uma aceleração intensa. Tinha conseguido
acalmar-me, mas o fumo constante de cigarro na sala não
ajuda. Um suor frio percorre-me a espinha e o pânico vem
acrescentar-se à equação. A minha mãe matava-me, se
soubesse por onde ando.
Levanto-me com a carteira na mão, aviso a minha
parceira de que já volto, atravesso a sala para chegar à
escadaria que leva ao andar de cima. Sinto a cabeça pesada
e a respiração agitada. Debato-me para atravessar a
multidão e é um alívio quando a minha mão se agarra ao
corrimão. Com esforço, subo degrau após de­grau,
cambaleando. Volto a sentir suores frios, mas chego ao pa­‐
tamar e entro sem problema na casa de banho. Tranco-me,
com as mãos a tremer, e tiro os medicamentos da bolsa.
Coloco os comprimidos na ponta da língua, depois ligo a
torneira para en­goli-los com água.
Com as mãos no lavatório para apoiar o corpo, olho-me
ao es­pelho. A minha pele está assustadoramente pálida.
Dou alguns passos para trás e volto-me para abrir a janela
de par em par e deixar o ar entrar. Por fim, deixo-me
deslizar ao longo da parede até me sentar no chão e
começo os meus exercícios de respiração, para forçar o
coração a ter batimentos corretos.
Não sei há quantos minutos isto dura, mas, se não quiser
preo­cupar a Lola, tenho de voltar para o pé dela
rapidamente. As mãos ainda me tremem, sinto-me
aflitivamente fraca, mas ponho-me de pé. Bebo uns goles
de água, depois saio da casa de ba­nho, mas embato contra
alguém. Felizmente, segura-me pelos ombros e impede-me
de cair.
— Desculpa!
Levanto os olhos e dou de caras com o Clarke. Mas não
tenho forças para refilar. A sua expressão é indecifrável e a
rapariga agarrada ao seu braço deita-me um olhar
furibundo.
— Vê lá o que fazes — desdenha, danado. — Parece que
estás à beira de um coma itílico. Devias ir para casa da
mamã, já se faz tarde para ti.
Sem sequer me perguntar de onde vem essa maldade
gratuita, lanço um olhar de desdém em resposta ao desafio
que brilha nas pupilas dos seus olhos.
— Diz-se «etílico» e não «itílico» — replico. — Tu é que
devias ir embora, para estudar. Mas enfim, felizmente és
bonito.
Belisco-lhe a bochecha por pura provocação, depois
contorno-os para lhes dar acesso à casa de banho, para
tratarem dos seus assuntos. Desço os degraus, febril, e vou
ter com a Lola, que se agita na pista de dança. Quando me
vê, arregala os olhos e atira-se para os meus braços,
completamente bêbada. Não volto a tirar os olhos dela nem
por um segundo.
— Ava, não sabes como estou feliz por te ter conhecido,
não po­dia ter desejado uma melhor parceira de quarto!
Agarra a minha cara com as mãos.
— Tu és um raio de sol!
Solto uma gargalhada e beijo-a no rosto. Então, a música
23 de Miley Cyrus sai das colunas de som e a Lola grita de
alegria, antes de me arrastar para a pista de dança. Perante
a sua excitação, es­queço até o meu mal-estar e o meu
coração demasiado fraco.
— I’m in the club, high on purp with some shades on,
tatted up, mini skirt, with my J’s on! — berramos em coro
com todos os estudantes.
Dois desconhecidos vêm ter connosco e dançam
connosco. Ver a Lola pisar os pés do seu acompanhante e
assistir às suas trapalhices faz-me rir. O meu par faz-me
fazer piruetas, mas a minha doença lembra-se de mim.
Perco o equilíbrio, entorno o copo de água e tenho
dificuldade em recuperar a estabilidade. Ouço o co­ração
martelar nos ouvidos e afasto-me do meu parceiro, vacilan­‐
te. Empurro algumas pessoas para chegar à mesa das
bebidas e apoiar-me nela. Não peço nada, mas um
estudante enfia-me um copo de álcool na mão.
Verifico o conteúdo. Não sou suicida, pelo contrário.
Quero vi­ver, enquanto a minha doença não me matar.
Porque é isso que ela vai fazer, com ou sem álcool. Dito isto,
não sou completamen­te estúpida. Já bebi bastante esta
noite e não quero ultrapassar os meus limites, o que me
levaria à morte certa. Estou prestes a pou­sar o copo,
quando o meu olhar cruza com o do Clarke, que afasta a
multidão e caminha direito a mim a passos largos, numa
aproxi­mação perigosa. Pergunto-me o que posso eu ter feito
desta vez para o perturbar e nada me vem à cabeça, exceto
talvez chamar burra à amiguinha.
— Como vês, não estou na melhor forma, por isso volta
ama­nhã para o despique verbal.
Tento esconder-me, mas o Clarke arranca-me o copo de
álcool da mão e bebe-o de um trago. Esmaga o copo vazio
na mão, antes de o atirar para o chão com raiva.
— Talvez estivesses em melhor forma se não bebesses,
grandessíssima imbecil! — lança-me, cheio de desprezo.
Antes que eu possa responder, pega-me na mão e coloca
um objeto longo e redondo nela. Olho para o frasco cor de
laranja com o meu nome, que é tão vital para mim como o
meu próprio coração.
Os meus comprimidos... de que obviamente me esqueci
na casa de banho.
— Vai procurar a Lola, e saiam! O Set leva-as de volta.
Este lu­gar não é para uma doente cardíaca.
Não tenho tempo para o fuzilar com o olhar, porque ele
já vai longe. Mas tem razão. É demasiado para mim. Nunca
brinquei tanto com o fogo. A culpa invade-me quando
imagino a minha mãe, de olhos inchados do choro, em
frente do meu caixão. Mas é inevitável. Vai ser algo que ela
terá de enfrentar, mais cedo ou mais tarde. Sou egoísta por
querer desfrutar da minha curta vida? Se ficasse sempre
sossegadinha, a minha mãe podia ter-me mais alguns
meses ou até anos ao seu lado, mas o que teria eu experi­‐
mentado ou realizado? Que experiências teria eu ensaiado?
— A POLÍCIA VEM AÍ! — berra um rapaz.
O coração salta-me no peito. Num segundo, a casa torna-
se um verdadeiro campo de batalha. Os estudantes
começam a cor­rer em todas as direções, em pânico. Partem-
se objetos, há gente que cai ao chão e é espezinhada. Fico
no centro da sala, com um nó no estômago, e volto-me à
procura da Lola, rezando para que os deuses não revelem o
seu corpo esmagado pela multidão em pânico.
Se o meu coração não tinha ainda tido a sua quota de
emoções, agora está garantido. Sou violentamente
empurrada e perco o equilíbrio. Vejo o chão aproximar-se
perigosamente de mim, quando, de repente, uns braços
fortes me envolvem e me puxam contra um corpo rijo. Olho
para cima e vejo o Clarke.
— Temos de sair daqui — diz-me, com um olhar
penetrante e voz grave.
— Não sem a Lola...
— O Set trata dela.
Agarra-me pelos ombros, para garantir que me equilibro,
de­pois pega-me na mão. O contacto com a sua pele quente
provoca-me um arrepio agradável e só agora percebo como
estou fria, de­vido ao meu estado de fraqueza. Ele olha para
mim, surpreendido com a frescura da minha pele, e eu
encolho os ombros. Mas o seu olhar de desaprovação prova-
me que não se deixa enganar. Aper­ta a minha mão com
força e caminha para a saída.
No meio do caos, tenho dificuldade em orientar-me.
Tenho de depositar toda a confiança neste tipo misterioso, o
que não é nada fácil. De repente, agarra-me contra o peito e
dá meia-volta, levan­do com um encontrão que me estava
destinado. Levanto a cara e observo-o com os olhos
esbugalhados.
— Mercúrio deve estar mesmo retrógrado para te fazer
tão lunático...
— Cala a boca ou deixo-te já aqui!
Pega na minha mão e abre caminho no meio do tumulto.
Chegamos à entrada sem mais empurrões, mas a polícia
já aqui está e prende todos os que lhe passam à mão. O
excesso de emoções ameaça fazer-me apagar, mas o Clarke
não me dá tem­po: temos de chegar à sua Harley-Davidson.
Descemos os degraus à pressa e preparamo-nos para
atraves­sar a rua, quando a mão de um polícia agarra o
ombro do Filho do Diabo.
— Onde vais com essa pressa toda, Taylor?
O tempo parece parar e o ambiente fica carregado de
eletrici­dade. O Clarke não parece apreciar realmente que
toquem nele sem autorização. Ouço-o ranger os dentes com
tanta força que sinto um calafrio subir-me pela espinha. Dou
um passo para trás, ao pressentir o perigo, mas o punho
dele segura-me com força.
O Diabo vira lentamente o rosto para o polícia, com uma
so­brancelha levantada. O seu olhar fixa-se na mão pousada
no seu ombro, depois na outra que acaricia a arma de
serviço, ainda enfi­ada no cinto do uniforme. Por fim, olha
diretamente para os olhos do tipo.
— Não tens nada a ver com isso, Bill.
O meu olhar oscila entre os dois homens, que parecem
ter um passivo desgraçado, e, silenciosamente, rezo aos
deuses para que isto não degenere. O meu coração não
suporta mais nada esta noite.
— Espero que não tenhas sido tu a fornecer as drogas
para a festa.
— Tem dó... — ironiza o Clarke. — Não me ponhas ao
nível de um vulgar dealer.
Com um murro seco no braço estendido do polícia, o
motard liberta-se das suas garras.
— É apenas uma questão de tempo até eu vos apanhar,
Taylor. Fiquem atentos.
Provocador, o Clarke avança para ele, levando-me a
reboque.
— Dizem que a esperança faz viver, mas os anos
passam. Esta­rás reformado sem ter feito nada da vida, a
perderes o teu tempo a perseguir-nos, sem nunca teres
conseguido entalar-nos.
O ódio do polícia cresce mais e o Clarke dirige-lhe um
olhar malévolo. Posto isso, retoma o seu caminho,
arrastando-me atrás dele. Mas não contava com a
tenacidade raivosa do Bill, que deita a mão ao meu pulso,
num aperto doloroso, e me puxa sem cerimónia.
— Cuidado com quem sais, miúda. Seria uma pena caíres
com eles.
O seu tom ameaçador e a dor que me causa fazem-me
ver as coisas de forma diferente. Até agora, eu entendia o
seu comporta­mento em relação ao Clarke. Afinal, um é
delinquente e o outro faz parte das forças da ordem. Mas
parece que o seu objetivo de deitar a mão ao gangue lhe
subiu à cabeça e o fez perder toda a objetividade e
racionalidade.
— Larga-a.
A voz do Diabo é glacial. Mete-se entre mim e o Bill,
maior do que nunca, e, movido pela raiva, estende o braço.
O punho entra à bruta em contacto com o peito do polícia,
forçando-o a dar um passo para trás.
Odin Todo-Poderoso, ele vai acabar na prisão, por agredir
um elemento das forças de segurança pública!
Os dois homens olham um para o outro como cães de
faiança e o Clarke diz finalmente:
— O Carter manda-te cumprimentos. Diz que anseia pelo
novo ano, para frustrar todos os teus planos.
Sem cerimónia, ajeita-lhe a gola do blusão. Um gesto
carrega­do de ameaças, tudo nele transpira perigo. A
expressão facial, a voz, a atitude. O Clarke é perigoso e o
Bill sabe disso. Mas, acima de tudo, está protegido pelo seu
estatuto de Filho do Diabo. Por isso mostra-se tão confiante.
Engulo em seco, a custo, enquanto roda na minha
direção e me agarra pelo braço com firmeza. Atravessa a
rua a passos lar­gos, obrigando-me a acompanhar o ritmo.
Monta na sua Harley, intimando-me a fazer o mesmo,
com um grunhido impaciente. Faço-o e não me deixa
hesitar. Agarra-me pelos pulsos, depois põe os meus braços
em torno da sua cintura. Sem mais demora, liga a ignição,
levanta o descanso com um pontapé seco e sai lançado
pelas ruas de Ann Arbor. A velocidade apanha-me
desprevenida, é a primeira vez que monto uma má­quina
destas. Agarro-me firmemente a ele e encolho a cabeça no
meio dos ombros para me proteger do vento.
A minha proximidade do Filho do Diabo é perturbadora.
Os abdominais duros como aço recordam-me a sua força e a
violên­cia que pode revelar.
Quando os meus braços começam a tremer de fraqueza,
abranda. Entramos tranquilamente na cidade universitária
e, de­pois de estacionados, desmontamos. Sem uma palavra,
o Clarke caminha até à residência.
— Posso ir para casa sozinha.
— Acredites ou não, a esta hora a universidade mete
medo. E não convém que acabes como um hámster,
estendida nas escadas.
Lanço um olhar furioso às suas costas, mas tenho de
constatar que um sorriso me treme nos lábios. Gosto de
humor negro, ape­sar de não haver o mais pequeno vestígio
de divertimento na voz dele.
Chegado ao fundo das escadas, o Clarke põe-se de lado
para me deixar passar e segue bem colado aos meus
passos. Apesar da tremura nas pernas, não reduzo a
velocidade, recusando-me a dar ao Diabo um vislumbre do
meu estado de saúde. Subimos as es­cadas em silêncio e,
frente à porta do 307, encosta-se à parede en­quanto
procuro as chaves na bolsa.
— É por isso que estás pálida, não é?
Interrompo-me e levanto o rosto para ele. A sua voz é
surpreendentemente calma e os olhos examinam-me.
— Tu não estás bêbeda. Estás doente.
Afasto as suas palavras com um vago gesto da mão.
— Nada de alarmante.
— Não faças de mim parvo! — responde, irritado. —
Pesquisei na Internet, antes de te entregar os
medicamentos. Tens uma in­suficiência cardíaca o que, bem
pelo contrário, é muito alarmante.
Esta intrusão na minha privacidade desagrada-me, e não
é pouco. Ele, que me mandou meter-me na minha vida, teve
a lata de bisbilhotar a minha.
— Foi para me atacares melhor que fizeste isso? Que raio
de problema tens tu contra mim?
Só percebo que levantei a voz quando a surpresa se
estampa no rosto dele. Inclina a cabeça para o lado e olha-
me como a uma criaturinha curiosa. Pela primeira vez, não é
hostil e isso é desestabilizador.
— Como assim?
— Insultas-me, desrespeitas-me, humilhas-me. Tem de
haver uma razão para isso. Não vais com a minha cara, o
meu cheiro ofende as tuas narinas, ou há algum passivo?
Matei a tua formiga de estimação quando tinha três anos?
O Clarke pisca os olhos sem uma palavra, com um ar
quase divertido.
— Porra, são os meus olhos! Assustaram os teus amigos,
mas a ti provocam-te raiva!
Surpreendido, o Diabo vai para me responder, quando a
porta do meu quarto se abre e uma Lola em pânico me pula
ao pescoço.
Com ela, não vou morrer de paragem cardíaca, mas de
golpe de coelho. A sério, tenho dores nas cervicais desde
que nos conhe­cemos. Ainda bem que a adoro.
— Ava! Fiquei tão assustada!
Abraço-a e garanto-lhe que está tudo bem; então, larga-
me e dirige ao Clarke um olhar desconfiado. Está prestes a
repreendê-lo por uma razão que desconheço, mas ele
antecipa-se:
— Vigia-a! A tua amiga não pode beber álcool nenhum.
— O que estás para aí a dizer? Pode, dentro de limites
razoáveis.
O pânico toma conta de mim. De costas para a Lola, faço
sinal ao Clarke para se calar, para mudar de assunto; no
entanto, ele ignora-me olimpicamente.
— Não. Ela não pode mesmo beber nem uma gota de
álcool — declara, com frieza.
Filho da mãe!
Os meus braços caem sem força ao longo do corpo e
uma raiva surda cresce dentro de mim.
Pela primeira vez na minha vida, desejo que os reflexos
alaran­jados dos meus olhos sejam realmente as chamas do
Ragnarok, para que este cabrão arda.
Francamente irritada, silvo entredentes:
— Já tu, nunca aprendeste espírito de equipa nos
escuteiros!
Dirige-me um olhar indecifrável, antes de ir embora sem
mais uma palavra. Siderada, sigo-o com o olhar e apercebo-
me do ar perdido, e talvez até um pouco ferido, da Lola.
A culpa invade-me. Detesto o Clarke. Acaba de me
colocar numa situação que eu teria preferido evitar. Uma
situação que eu poderia ter evitado, se não tivesse mentido
à Lola.
— Porque me mentiste? — pergunta-me ela, com voz
meiga.
Olho para ela, arrependida, e faço sinal com a cabeça
para ir­mos para o quarto. Sentamo-nos as duas na minha
cama.
— Nunca tive uma vida normal, com as minhas consultas
mé­dicas de três em três dias. «Ava, não podes dançar»;
«Ava, não podes pôr sal na comida e muito menos beber
Coca-Cola»; «Ava, não corras!»; «Ava, não podes dormir na
casa da tua amiga, por­que nunca se sabe...»; «Ava, nada de
álcool e, especialmente, nada de cigarros!» Sempre senti
que tinha um papel secundário na minha própria vida e que
a doença ocupava o centro das aten­ções. Há algum tempo,
decidi substituí-la, tirando-a dos holofotes de vez em
quando, para finalmente assumir o controlo do meu destino
e decidir por mim mesma.
A Lola olha-me com um sorriso terno e compreensivo.
— Não sou tua mãe, não vou impedir-te de te divertires.
É a tua vida, são as tuas escolhas. Por outro lado, se
abusares, vou cha­mar-te a atenção. E agora que já sei disto,
vou ficar de olho em ti, para o caso de não te sentires bem.
O que é que... hum... devo fa­zer, se um dia tu...?
Abano a cabeça.
— Garanto-te que não tens de fazer nada do género.
Ela pega nas minhas mãos e põe um ar sério, que eu não
lhe conhecia.
— Ava, sou tua amiga. Quero que estes anos aqui
passados se­jam os melhores da tua vida, mantendo-te viva,
para que um dia possas contá-los aos teus filhos.
Sorrio para esconder o meu desconforto. Não tenho
coragem de lhe dizer que não vou durar tempo suficiente
para ter filhos.
— Se um dia as coisas não correrem bem, precisas de
telefonar ao meu médico. Está disponível vinte e quatro
horas por dia. Ele dirá o que fazer, com base nos meus
sintomas.
— Dá-me o número dele.
Desbloqueio o meu telemóvel e partilho o cartão de
visita do médico com a Lola. Regista-o cuidadosamente,
com uma ruga de concentração entre as sobrancelhas,
depois estica-se na minha cama e arrasta-me com ela.
— Desculpa ter saído sem ti. Com aquele pânico todo,
perdi-te de vista e encontrei o Set. Ele disse-me que o
Clarke andava à tua procura e te traria de volta para casa.
Pelo menos, aquele pânico curou-lhe a bebedeira num
ápice.
— Por uma vez, estou-lhe grata. Sem ele, teria passado
uma noite desgraçada na esquadra!
Capítulo 5

— Aqui fala o reitor McLaguen. Os alunos devem reunir-


se obrigatoriamente nas bancadas do estádio de futebol.
Não será tolerada nenhuma ausência. Peguem nas vossas
coisas e saiam imediatamente das salas de aula!
Os altifalantes guincham, depois o silêncio regressa ao
anfiteatro.
O Jackson e eu olhamos um para o outro, perplexos.
O que há de tão importante a dizer-nos, para
interromperem as aulas todas?
De repente, todos se agitam e arrumam os pertences,
antes de saírem da sala. Os estudantes inundam o relvado e
os corredores, seguindo na mesma direção, a passos lentos.
Parece incrível, mas é verdade, a Lola consegue encontrar-
nos no meio da multidão. Tal como nós, está totalmente a
leste do que se passa, alegando que é a primeira vez que
tal coisa acontece.
Entramos no campo e subimos para as bancadas, onde
me ins­talo entre os meus dois amigos. Somos milhares de
pessoas, sen­tadas à espera de qualquer informação,
especulando sobre o tema.
Os murmúrios recomeçam, quando o reitor McLaguen
entra no campo, acompanhado por Bill, o polícia que me
topou com o Clarke na sexta-feira à noite.
— Oh que grande merda... — sussurro.
A Lola olha para mim, com um sorriso divertido.
— És muito malcriada para rapariga, gosto disso.
— Quem sai aos seus... — respondo. — Culpa da minha
mãe.
Ela desata a rir, enquanto eu não consigo tirar os olhos
do rei­tor da Universidade, que leva um microfone à boca. Já
faço uma ideia sobre o motivo desta reunião, e o Bill não
está ali por acaso. Não augura nada de bom para os Filhos
do Diabo, mas tenho o cuidado de não falar sobre isso à
Lola. Vai entender sozinha, den­tro de poucos segundos.
— Silêncio, por favor!
Todas as vozes se calam, sem exceção, seguramente não
por respeito, mas por curiosidade.
— Foram organizados os primeiros convívios estudantis
do ano e tiveram lugar este fim de semana. Como
provavelmente sabem, houve uma grande circulação de
drogas e penso que vale a pena recordar-vos de que são
ilegais. Qualquer pessoa na posse de nar­cóticos ou que
distribua drogas na cidade universitária será ex­pulsa da
universidade, ficará com registo criminal e receberá uma
advertência, ou mesmo uma passagem atrás das grades.
Seria, portanto, estúpido qualquer de vós estar ligado ao
consumo ou à comercialização de drogas.
O reitor fixa um ponto da arquibancada e poria a mão no
fogo em como é onde estão os Filhos do Diabo. Embora o
McLaguen esteja ciente das atividades do gangue, é a
presença do Bill que representa uma ameaça mais explícita.
Percebi claramente que este polícia está determinado a
fazer o que for preciso para deter os Filhos do Diabo; e
tenho a certeza de que esta fantochada tem como único
propósito assustar os estudantes, para que denunci­em o
gangue.
O Bill, de farda de serviço e arma em evidência, pega por
sua vez no microfone.
— Vou enumerar uma lista de nomes. As pessoas
nomeadas te­rão de se dirigir ao gabinete da direção, no
final deste encontro.
Não usa nenhum papel. Sabe a lista de cor e os nomes
que pro­fere não me surpreendem minimamente.
— Clarke Taylor... Set Collins... Jesse Mason... Tucker
Ross... Sean Olson... Justin Coldwell... e Avalone Lopez.
À enunciação do meu nome, engasgo-me ruidosamente,
atraindo muitos olhares para mim. Sobre a discrição,
estamos conversados!
Sinto os olhares estupefactos dos meus amigos, mas não
so­mos os únicos a ficar surpreendidos. Os sussurros
multiplicam-se velozmente, alimentando os rumores.
Por esta não estava de todo à espera...
— Porque é que ele te convoca com os Diabos? —
pergunta a Lola, preocupada.
Se o Bill pensa fazer-me falar, está muito enganado. Não
sei nada sobre os Filhos do Diabo e, mesmo que soubesse,
os seus métodos não me fariam falar.
— Aquele polícia viu-me voltar para casa com o Clarke na
sex­ta-feira à noite. Ameaçou-o e disse-me para ter cuidado
com quem me dava. Ele quer destruir os Diabos e, para
isso, quer-se servir de mim — respondo-lhe, de olhos fitos
no cabrão.
Eu, que tinha planeado andar na linha, sem desvios até
obter o diploma, acabo de ficar bem lixada. Sinto que este
Bill não me vai largar facilmente. Azar o dele, odeio que me
passem rasteiras, so­bretudo quando tenho objetivos a
alcançar.
— Podem voltar para as aulas — conclui o reitor.
Os alunos levantam-se e as arquibancadas esvaziam-se
gradu­almente. O Jackson e eu levantamo-nos, mas a Lola
não se move um milímetro, mordendo o lábio com
nervosismo.
— Não te preocupes. Ele não tem provas contra o teu
irmão e eu não vou deixar que ele me use. Quero que arda
nas chamas do Ragnarok!
Estendo-lhe a mão com um sorriso convicto e ela agarra-
a, um pouco mais tranquila. No entanto, sinto que há ainda
qualquer coisa que a incomoda. Sabendo-a muito
expressiva, se não me conta nada, é porque precisa de
tempo.
Por isso, saímos das bancadas em silêncio.
— O gabinete do reitor fica no segundo andar — informa-
me a Lola, apontando para o enorme edifício de pedra que
se estende à nossa frente. — Vou contigo, se quiseres...
— Não te preocupes, vai para as aulas. Conto-te tudo na
cantina!
A minha amiga sorri, sem conseguir esconder aquele
olhar quase envergonhado que lhe congela as feições.
Despede-se com um aceno de mão e volta para as aulas.
Despeço-me do Jackson e entro no prédio indicado pela
minha parceira. Subo os dois andares, com falta de ar, e
apresento-me à secretária, que me olha fixamente, a
imaginar que disparate pode ter feito uma menina como eu.
— Sente-se, o senhor reitor já a chama.
Aceno com a cabeça e dirijo-me para as cadeiras, mas a
porta do gabinete abre-se e saem os seis membros dos
Filhos do Diabo. O Clarke olha-me sem expressão e o Set
faz-me um sinal encorajador com a cabeça. Sorrio
delicadamente, demasiado irritada para me mostrar
calorosa, e o reitor surge à porta.
— Ah, menina Lopez! Entre.
Desvio-me dos rapazes e entro no luxuoso gabinete,
enfren­tando novamente o Bill. Fitamo-nos mutuamente, até
que o reitor se junta a nós e se senta atrás da secretária.
— Por favor, sente-se.
Deixo-me cair numa das duas poltronas de couro,
esperando pacientemente, para ver como contam fazer-me
chibar.
— Menina Lopez, o Bill Terner, que aqui está hoje, viu-a
re­gressar à residência com o Clarke Taylor, na sexta-feira à
noite. Ora, acho que conhece os passatempos desse rapaz,
ou estou errado?
Esboço um sorriso divertido e cruzo as pernas
descontraidamente.
— Senhor reitor, com todo o respeito que lhe é devido,
não compreendo a minha presença aqui...
O McLaguen arqueia as sobrancelhas, surpreendido com
a mi­nha resposta, mas o Bill parece contrariado. Tanto
melhor, eu também estou.
— O senhor convoca-me porque o Clarke Taylor me
trouxe para a cidade universitária depois de uma festa? Se é
isso que quer saber, não me dou pessoalmente com os
Filhos do Diabo.
— Então porque é que ele lhe deu boleia?
— Simplesmente porque eu não tinha transporte.
O Bill continua em silêncio, mas põe um ar danado. Vou
conti­nuar a jogar o jogo dele um pouco mais, antes de me
despedir.
— De todos os estudantes que estiveram presentes
naquela fes­ta, a menina escolheu o Clarke. Porquê?
— A Lola Collins, com quem divido quarto na residência,
é irmã do Set Collins, nada que não saibam. Bill Terner e a
sua bri­gada causaram o pânico no meio do convívio. Perdi a
Lola de vis­ta. Foi o Set quem a trouxe de volta, mas, como
ela se recusava a sair sem mim, o Clarke garantiu que
tratava de me encontrar e me trazia de volta. Não há nada
de ilegal nisso, parece-me, certo?
Os dois homens examinam-me, sem proferir uma
palavra. É o sinal que esperava para partir.
— Esta palhaçada já vai longa. Está na hora de me ir
embora.
Levanto-me da cadeira e preparo-me para sair do
gabinete, quando o Bill abre a boca e me manda sentar,
num tom que não devia usar. Volto-me lentamente para ele,
com um olhar danado que me crispa o rosto.
— O senhor não tem nenhum poder sobre mim nesta
universi­dade! Não estou certa de que os seus superiores
venham a ficar satisfeitos por saber que organizou um
interrogatório oficioso fora da esquadra, sem qualquer razão
válida. Se quiser fazer-me mais perguntas, convoque-me
como deve ser. Se continuar a in­sistir, contrato um
advogado e apresento queixa por abuso de au­toridade e
assédio. Agora vou-me embora, se o senhor reitor me
permitir, porque só ele tem autoridade para me pedir para
per­manecer no seu gabinete! Fui suficientemente clara ou
preciso de citar alguns artigos da Constituição dos Estados
Unidos, para lhe ensinar o seu trabalho?
O Bill endireita-se, ruidosamente ofegante, crispado, a
ferver de raiva. Mas sabe que tenho razão. Ouvem-se
aplausos atrás de mim e, quando me viro, está na moldura
da porta um homem de meia-idade, de cabelos loiros
dourados, a bater palmas, com ar impressionado. Atrás
dele, os Filhos do Diabo estão divertidos com o espetáculo
que acabei de dar.
— Bill, Bill, Bill... O que é que podemos nós fazer contigo?
Aquele ar maquiavélico, aquela segurança na voz... Olho
fixa­mente para o homem, perturbada.
Não passou da porta e já sinto a força bruta e a
superioridade que exala, tão poderosas que o ar se rarefaz
na sala. Recuo um passo quando ele entra, num
incontrolável reflexo de sobrevivência.
— Vim cá para te pôr no teu lugar, mas esta menina fê-lo
mara­vilhosamente. É impressionante.
Desvia o olhar do seu interlocutor para o mergulhar em
mim. Os olhos refletem uma inteligência fora do comum e
desestabilizadora. De repente, tenho a impressão de estar
nua diante deste quinquagenário, e não é nada agradável.
Pisca-me um olho, antes de voltar a atenção para o polícia.
De repente, sinto que vou ter uma reação vagai, quando
a evi­dência me atinge com toda a força.
Deuses Todo-Poderosos, este homem que tenho à minha
fren­te é Carter, o líder dos Filhos do Diabo!
Avança até à secretária do reitor, tão imponente que
todos pa­recemos minúsculos a seu lado. A musculatura é
tão desenvolvida como a dos seus homens, o fato feito por
medida assenta perfeita­mente nos ombros quadrados e
sólidos. Acrescenta-se a isso um encanto natural, que deve
fazer render os próprios deuses.
Pega numa pasta e rasga-a em duas, depois em quatro.
Antes de deixar cair os papéis para o chão, vejo o meu
nome escrito a preto e branco.
Esta pasta continha as informações pessoais que tive de
for­necer para a minha inscrição na universidade!
O reitor está furioso com a provocação do Carter, mas
não diz nada. Tem medo dele, é óbvio. Temos os três.
— Avalone, é melhor ires ter com os teus amigos.
Pisco os olhos, surpreendida e apavorada, pelo líder se
dirigir a mim pelo nome próprio. Mas não estico a corda e
saio do gabi­nete sem olhar para ninguém.
Quando chego ao corredor, encosto-me à parede para
recupe­rar o ar, sem fôlego. Não consigo acreditar naquela
figuraça. Nun­ca conheci ninguém tão imponente. É
sufocante, estonteante.
— Usar uma jovem para nos deitar abaixo, mesmo vindo
de ti, é lamentável.
Os meus músculos ficam todos tensos, ao ouvir de novo
a voz do Carter. Não fecharam a porta atrás de mim.
— Só manténs o teu emprego porque frustrar os teus
planos se tornou a minha atividade favorita — continua. —
Podia fazer com que fosses demitido com um telefonema.
— Não tens o chefe da polícia debaixo da tua pata! —
lança o Bill, com desprezo.
O Carter explode numa gargalhada, que é tudo menos
amigável.
— O chefe da polícia? Meu caro Bill, tenho amigos
colocados muito acima dele. O chefe da polícia não é nada.
Tu não és nada.
— Hei de acabar por te apanhar.
— Talvez. Mas se isso acontecer, reza para que me
mandem para a prisão mais segura do país, porque não
conto demorar-me por lá. Nem os meus homens.
A impunibilidade do Carter, um criminoso, faz-me
estremecer de horror. A impotência da polícia perante
pessoas destas faz-me tremer de medo.
Saio dali, para fugir o mais depressa possível deste
gangue e vou a descer os últimos degraus quando uns
dedos se fecham no meu pulso. Uma mão sobre a minha
boca abafa o meu grito e sou abruptamente puxada para
um canto, longe de olhares indiscre­tos. Pressionam-me
contra uma parede e dou com o Clarke diante de mim.
O coração bate com tanta força contra o meu peito que o
Filho do Diabo deve ouvi-lo, mas sinto um verdadeiro alívio
por ser confrontada por ele e não pelo Carter.
As mãos dele na parede, de ambos os lados da minha
cabeça, não me deixam escapatória. Separam-nos alguns
centímetros, até lhe consigo sentir o cheiro. Frescura
combinada com sabores mais quentes, de noites estreladas
de verão. Não é inebriante, é... enfeitiçante.
— O que contaste ao parvalhão do polícia? — pergunta,
em voz baixa, mas não menos perigosa.
Irritada, meto-lhe as mãos no peito para o empurrar para
trás, mas ele não recua um centímetro.
— Que não te conheço pessoalmente e que me levaste
ao quar­to por causa das preocupações da Lola. Satisfeito?
Agora, recua!
Não responde nada e também não se move, examinando
os meus olhos com as suas íris verdes semelhantes às
minhas, como se a detetar nelas uma possível mentira.
— Bom.
Afasta-se por fim e dá meia-volta, permitindo que eu
recupere um ritmo cardíaco mais ou menos normal. No
entanto, uma ideia vem-me ao espírito.
Se o Filho do Diabo tem algum problema comigo, preciso
de saber. Quem sabe o que ele ou o gangue seriam capazes
de me fazer?
— No outro dia, não respondeste à minha pergunta!
O Clarke para de repente. Fica tanto tempo parado que
perco a esperança de ter uma resposta. De costas para
mim, responde finalmente:
— A tua cara é linda, o teu cheiro é agradável, não
mataste a minha formiga de estimação e o teu olhar não me
enfurece. Não tenho nenhum problema contigo, Avalone,
exceto quando me insultas.
Abro a boca e fecho-a novamente, surpreendida por ele
se lem­brar de todas as possibilidades que formulei, uns dias
atrás.
— E como prova, não foi por causa da preocupação da
Lola que eu te dei boleia.
Sem olhar para trás, segue caminho, deixando-me
completa­mente parva. Não sei porque me disse aquilo, nem
o que significa. Nunca fui muito faladora, mas ele está
noutro patamar. O Clarke Taylor é um verdadeiro mistério.
Junto-me, finalmente, à Lola, ao Jackson e ao Daniel no
refei­tório. Estão ansiosos pela minha chegada, ou melhor, o
que lhes interessa é a fofoca. Sento-me à mesa e a Lola
empurra um prato de comida na minha direção.
— Então? O que é que queriam de ti?
— Informações sobre os Diabos. Pensavam que eu tinha
rela­ções com eles, porque o Clarke me trouxe de volta a
casa, depois do convívio. Disse-lhes que não os conhecia
pessoalmente. O Bill insistiu e apareceu o Carter.
Ficam dois de queixo caído e o Daniel tem um arrepio.
Estou praticamente no mesmo estado que ele, mas escondo
bem o meu jogo.
— O Carter foi lá? — pergunta a Lola, de boca aberta. —
Ele nunca se desloca por ninharias!
— Os Diabos devem ter-lhe dito que eu também fui
convocada. Ele deve ter ficado preocupado sobre se eu
ajudaria o Bill a encur­ralá-los, uma vez que és irmã do Set e
minha colega de quarto.
Ela encolhe os ombros, depois concentra-se na comida, o
mes­mo olhar envergonhado e talvez até culpado de há
pouco.
***
A campainha anuncia o fim do dia de aulas. O Jackson e
eu guardamos as nossas coisas, antes de sairmos da sala. O
belo rel­vado verde chama por mim. Sonho em deitar-me
nele e desfrutar dos últimos dias quentes do ano, mas surge
um obstáculo colossal no meu caminho. O Clarke está
descontraidamente encostado a uma das colunas das
arcadas que sustentam o teto da galeria aberta. Gostaria de
pensar que é uma coincidência, que só tenho de o
contornar, no entanto parece estar à espera de alguém.
Neste caso, esse alguém sou eu... Olha para mim,
impenetrável, antes de reparar no Jackson. As suas feições
endurecem instantaneamente e a atmosfera fica carregada
de eletricidade, quando os dois anti­gos amigos se olham
fixamente.
O meu colega é o primeiro a desviar o olhar, abalado por
esta troca de olhares silenciosa.
— Vou andando.
Abraça-me e desaparece rapidamente, deixando-me
sozinha com o Diabo, que aproveita para reduzir a distância
entre nós.
— O Carter quer ver-te.
Não é só a imagem do homem, que revejo mentalmente,
que me assusta. É também a sensação de que o oxigénio
sai da sala na sua presença. A garganta fica aos nós, todos
os meus sentidos fi­cam em alerta.
— Porquê?
— Não sei mais nada. Pediu-me para te vir buscar.
Engulo em seco, a custo, e cruzo os braços para ganhar
estrutura.
— Ele que me mande um e-mail\ Não devo nada ao teu
chefe, deixem-me em paz!
O Clarke ri na minha cara, o que tem o condão de me
provocar cólera, em vez de medo.
— Ele veio aqui ter há bocado para garantir que não ias
ter pro­blemas. Portanto, agora vais ter com ele! — ordena-
me, com secura.
— Podes ir meter o dedo no cu, Clarke. Não vou contigo a
lugar nenhum!
Dou meia-volta, determinada a colocar o máximo de
distância possível entre mim e ele, mas a sua mão fecha-se
no meu pulso e força-me a encará-lo. Liberto-me
bruscamente, fuzilando-o com o olhar.
— Bom. Ou vens comigo a bem, ou uso a força. E
acredita, por mais que berres por socorro, ninguém te vai
ajudar.
Olho em volta e os alunos estão metidos nas suas vidas.
Viri­am ajudar-me, se necessário? Claro que não! Ninguém
levantou um dedinho quando o Clarke espancou dois tipos,
há alguns dias. Ameaçá-lo com ir à polícia só o faria
desmanchar-se a rir. Vimos bem a eficácia das forças da
ordem. Portanto, sou obrigada a ape­lar à sua humanidade.
— Clarke, por favor... — suspiro.
— Eu sou membro de um gangue, não o bibliotecário
local a quem tentas sacar mais uns dias de prazo.
A minha mão não para quieta. Silvo entredentes:
— Preferia quando não falavas.
Ele encolhe os ombros e volta-se, esperando que eu
tome a ini­ciativa de o seguir. A ideia de fugir nem me passa
pela cabeça. Não andaria nem cinquenta metros, antes de
me ficar como um hámster.
— Ele não me vai matar, ao menos?
O Clarke vira-se para mim, surpreendido, e quando
percebe que a minha pergunta não podia ser mais a sério,
desata a rir. É tão inesperado que me assusto. Ele desata a
rir! Uma verdadeira gargalhada! Daquelas que varrem o
mau-humor e o olhar furibundo.
Odin Todo-Poderoso, não o achava capaz disso!
Tenta em vão travar o sorriso que lhe baila nos lábios.
Um ver­dadeiro sorriso, que revela uma dentição perfeita e
lhe faz brilhar os olhos. Estou assombrada.
— Não te preocupes. Ele não te vai tocar.
Fico mais uns instantes espantada com a nova faceta
que des­cubro nele, antes de voltar à realidade.
— Prometes?
Acaba-se o sorriso bonito e o Clarke fica novamente
sério.
— Sim, Avalone.
Sem ter verdadeiramente escolha, a sinceridade da
resposta do Clarke tem, pelo menos, o mérito de me aliviar.
Com um suspiro, sigo-lhe os passos até à sua Harley.
Sob o olhar dos estudantes mais curiosos, monto atrás
do Dia­bo e ponho os braços à volta da sua cintura.
Saímos da cidade universitária, depois do centro da
cidade, e penetramos em bairros luxuosos. Contra vontade,
registo a via­gem, para o caso de ter de fugir. O nó no
estômago não me larga, mas não pretendo mostrar ao
Carter que estou com medo.
O Clarke abranda diante de um enorme portão preto, que
se abre automaticamente, revelando uma colina arborizada.
Não vejo casa nenhuma, apenas um acesso de cimento,
emoldurado por um belo alinhamento de árvores, podadas
com perfeição, que cria um cenário magnífico.
Passados alguns minutos entre planície e floresta, o
terreno passa a uma zona aplanada. A primeira coisa que
vejo é uma be­líssima fonte de mármore claro, cuspindo
água com um som cal­mante. Por trás dela, estende-se uma
alameda que leva a um al­pendre com colunas gigantescas e
a uma enorme moradia de pe­dra clara. A mim, que nunca
nadei em dinheiro, a riqueza do Cár­ter deixa-me banzada. A
propriedade é impressionante e, estra­nhamente, acolhedora
também. Tudo é delicado e harmonioso. Sim, é um lugar
repousante.
O Clarke estaciona em cima do cascalho e desmontamos.
— Estás pronta?
Aceno com a cabeça, sem pronunciar uma palavra. Ele
avança e contorna a fonte, sem lhe prestar a menor
atenção, como se fos­se apenas uma bugiganga. Eu não
consigo. Fico petrificada diante da magnificência desta
escultura de mais de três metros de altura. Os pormenores
técnicos são precisos. Tenho diante de mim, em tamanho
natural, Odin, o pai de todos os deuses, montado no seu
cavalo de oito patas, Sleipnir11. Sem pensar, subo até ao
bordo da fonte, para melhor observar o meu deus. Tem um
olho cego, fei­ções marcadas pela idade avançada e pela
guerra, e a barba tão bem esculpida no mármore que
parece ter fios a esvoaçar com a brisa. Segura firmemente
numa mão a sua lança Gungnir12, que nunca falha o alvo
antes de voltar à mão do lançador. As inúme­ras placas da
armadura são afiadas e o corpo parece mover-se, como se o
cavalo galopasse e os seus quadris acompanhassem o
movimento.
— É Odin. O principal deus do panteão nórdico.
Não respondo ao Clarke, por trás de mim. Não lhe darei o
pra­zer de confessar que partilhamos a mesma religião. No
entanto, não posso negar o meu fascínio por esta escultura.
Ele é o meu deus, na sua melhor representação. Só posso
reverenciar o traba­lho de pedra.
Num esforço sobre-humano, desvio os olhos de Odin e
desço da fonte, sob o olhar perscrutador do Clarke; depois
volto a segui-lo de perto e, desta vez, até aos degraus do
alpendre. O mármore sob os meus pés é tão brilhante que
me vejo refletida nele.
O Diabo não bate, limita-se a abrir a porta blindada,
como se estivesse em casa. Entramos num gigantesco átrio.
A mudança de cenário é impressionante. Aqui, é tudo em
negro, desde o chão de granito ao mobiliário, passando por
uma secção de parede feita de lajes de ardósia.
Acabamentos e algumas peças em ouro rosa introduzem
matizes, nomeadamente o imponente lustre de cristal
suspenso no meio da sala, que reflete a luz numa explosão
de bri­lhos. Uma abertura em forma de arco deixa ver um
salão intermi­nável, maravilhosamente decorado, onde a
opulência é omnipre­sente. O preto e o ouro rosa continuam
a ser as duas cores predo­minantes, mas não tenho tempo
para contemplar esta magnífica divisão. Ouvem-se passos a
aproximar-se e um membro do gangue aparece, o dos
cabelos loiros e olhos quase amarelos.
— Fico feliz por finalmente conhecer a mulher que
mandou o Bill calar a boca e saiu de forma fulgurante. Sou o
Justin.
Aperto-lhe a mão, com um sorriso afetuoso.
O que fazer, as energias desta casa acalmam-me...
— O que fizeste que te dá direito a um encontro com o
grande líder?
— Venho vender-lhe bolachas, para ganhar o meu
distintivo de pioneira nos escuteiros.
O Justin solta uma gargalhada franca e o Clarke ergue os
olhos para o alto, com uma ponta de diversão.
Olha, hoje deixa-se relaxar!
Retomo rapidamente um ar sério, quando ressoam novos
pas­sos. O Carter faz a sua aparição, bem como esta minha
desagradá­vel sensação de falta de ar. O teto alto permite-
me não sufocar, por mais que eu deseje loucamente cavar
daqui para fora.
— Avalone! Obrigado por teres vindo. E se fôssemos ao
meu escritório, para falarmos de bolachinhas?
Mordo o interior das bochechas para me manter séria,
diverti­da por perceber que ele ouviu a minha resposta à
pergunta do Justin.
O sorriso que me dirige deixa-me rugas nos cantos dos
olhos, mas não me deixo enganar pelo seu olhar
benevolente. Por trás das feições subitamente meigas e dos
cabelos semi-longos ao estilo do Brad Pitt, esconde-se o
líder do gangue que prometeu a um polícia escapar da
prisão se lá o metessem.
— Presumo que não tenha um botão de pânico para me
forne­cer, antes de o acompanhar...
O Justin engasga-se, ao tentar conter outra explosão de
riso, e o Clarke dá-lhe uma palmada nas costas capaz de lhe
fazer saltar um pulmão. Por seu turno, o Carter observa-me
fascinado, com os olhos azuis a brilhar.
— Prometo que não estás em perigo e que vais sair daqui
inteira.
Bem, enfim, se não fosse assim, ele certamente não me
avisa­va. Entretanto, as suas pernas começam a andar e sigo
o Carter por um gigantesco corredor, à direita.
Outro lustre, tão sublime como o primeiro, ilumina uma
série de obras de Bansky emolduradas na parede — não o
faz por me­nos — e uma fonte interior ocupa o fundo do
corredor. É uma ver­dadeira cascata que cai de mais de
cinco metros de altura. Este homem é demasiado rico e não
sabe o que fazer ao dinheiro!
Empurra uma grande porta, a última antes da fonte, e
entra­mos no escritório, iluminado por luz natural, graças às
três jane­las altas envidraçadas que proporcionam uma
magnífica vista da vegetação exuberante do rancho. Uma
floresta. Estamos no meio de uma floresta selvagem. E este
escritório lembra-me o de Dumbledore do Harry Potter. Não
há um único espaço vazio nas pare­des, mas está tudo
perfeitamente arrumado. Apetece-me explorar cada
recanto. Como se escondessem os segredos da Yggdrasil13.
O Carter fecha a porta atrás de mim e aponta-me um
cadeirão de couro em frente da sua secretária de carvalho.
Sento-me em silêncio, questionando-me se a minha voz
seria projetada até à entrada, se gritasse por socorro.
Mesmo que fosse, não me parece que o Clarke e o Justin
acorressem.
Concentro-me no rosto do grande líder, quando se senta
do outro lado da mesa.
— Porque é que todos os membros do seu gangue
acreditam nos deuses nórdicos? O senhor é uma espécie de
versão pagã das Testemunhas de Jeová?
Um sorriso divertido baila-lhe nos lábios, mas evita a
minha pergunta.
— Suponho que te perguntas o que estás aqui a fazer...
— Correto.
Ele endireita-se e cruza os dedos sobre o computador
fechado, examinando-me como se eu fosse um animal do
circo. Apesar do meu crescente mal-estar, permaneço
imóvel no meu lugar.
— Preciso da tua ajuda.
Arqueio as sobrancelhas, surpresa, e faz-se silêncio.
Contenho-me para não desatar a rir e deixo-o continuar,
curiosa sobre o que um homem como ele pode esperar de
mim.
— Os meus homens têm de fazer uma entrega, só que,
como pudeste constatar, a polícia anda em cima de nós. O
que espero de ti, se concordares, claro, é que faças uma
denúncia na esqua­dra da polícia, dando-lhes um endereço
errado.
Por um segundo, acredito que há uma câmara escondida
e es­pero que seja isso, do fundo do coração. Infelizmente, o
silêncio do Carter aguarda uma resposta.
Por todos os deuses! Como pode ele sequer acalentar a
espe­rança de que eu aceite tal coisa?
— Não.
Ele inclina-se ligeiramente sobre a secretária, cerrando
os olhos.
— Sem a tua ajuda, o irmão da tua amiga, o Clarke e
todos os outros correm o risco de ser presos.
Levanto-me tão abruptamente que a cadeira cai para
trás. Todo o meu corpo treme com uma raiva desenfreada.
— Isso não é problema meu!
O Carter é tão detestável como o Bill.
E dizer que teve a lata de repreender o polícia pelo seu
com­portamento, quando pretendia ele próprio usar-me!
Tenho uma vida para viver, estudos para completar, está
fora de questão que me impeçam de o fazer por me
colocarem atrás das grades, quando se aperceberem da
minha colaboração delituosa!
O Carter não mexe uma pestana e fala novamente num
tom demasiado calmo para a situação:
— Tens a certeza? Quando a Lola souber que podias ter
safado o irmão da prisão, mas recusaste, pode levar-te
terrivelmente a mal.
Engulo a saliva e ele encolhe os ombros com um ar
dececiona­do, como se eu tivesse baixado na sua
consideração.
— Ela vai entender! — respondo, categoricamente.
— Não disse o contrário. Mas como podes continuar a
dar-te com uma pessoa que nada fez, quando podia ter
ajudado o teu ir­mão? E quando o boato se espalhar na
cidade universitária e to­dos te odiarem, te insultarem e te
cuspirem em cima, por partici­pares na queda dos seus
ídolos, como vais prosseguir os estudos?
O Carter reclina-se na cadeira com um sorriso vitorioso,
como se eu já tivesse concordado em ajudá-lo. E só por isso,
apetece-me deixá-lo de mãos a abanar.
— Ninguém vai dar pelo teu delito e, mesmo que deem,
há muitos anos que mantenho os meus homens livres,
apesar de te­rem feito muito pior do que uma simples falsa
declaração. Não arriscas nada com a polícia, Avalone.
Prometo-to eu.
Pela minha cabeça, desfilam todos os cenários
imagináveis. Imagino a minha mãe no lugar do Set, e ser a
Lola, apesar da nos­sa amizade, a não fazer nada para a
ajudar. Eu entendia. Mas uma parte de mim nunca deixaria
de lhe levar a mal. Quanto a ser detestada por alguns
estudantes, estou-me realmente nas tintas. Dito isto,
multiplicado por várias dezenas de milhares, a questão
muda de figura. A crueldade humana não carece de mais
provas.
Como prosseguir os estudos sendo a inimiga número um
da universidade?
— Está bem.
Continuo imobilizada, hirta, com o olhar cravado no do
Carter, mas, por dentro, é bem diferente.
Andar na linha, sem desvios até obter o diploma? Já era;
es­tou a enterrar-me em alhadas, isso é que sim!
Um esgar satisfeito aparece-lhe no rosto.
O Carter torna-se a primeira pessoa que odeio nesta
cidade. Este líder de gangue, que está disposto a arriscar a
vida dos seus homens por dinheiro e que me manipula para
alcançar os seus fins.
— Os meus homens vão estar na Knolson Street, mas
vais dizer ao Bill que vai ser no W. Stadium Boulevard,
passado o Pioneer Woods Park, esta noite, às dezanove
horas.
Fervo de raiva contra ele, mas também contra mim
mesma, por ter sido enrolada com tanta facilidade. Mas
penso na Lola, que adora o irmão e teme por ele todos os
dias. Penso nos Filhos do Diabo, que estão sob o domínio de
um filho da mãe de primei­ra. E também penso nos estudos
que tenho de concluir, a única coisa que me é dado
concretizar antes de morrer.
— Depois disso, esqueçam-me.

11Sleipnir foi gerado por Loki, quando ele foi


metamorfoseado em égua. Considerado o cavalo mais veloz
da Terra, ele é capaz de atravessar terra, mar e ar.
12 A Gungnir é um dos tesouros dos deuses, forjada por
três anões a pedido de Loki. Este queria redimir-se junto dos
deuses, por ter cortado o cabelo da deusa Sif, mulher de
Thor.
13Yggdrasil é a Árvore do Mundo, sobre a qual repousam
os nove mundos da mitologia nórdica. É um enorme freixo
com três raízes.
Capítulo 6

Saio do escritório sem olhar para o dono da casa. O meu


cora­ção bate acelerado. Não aguento mais ver esta casa ou
sentir o seu cheiro. Quero que me deixem fora destas
histórias de uma vez por todas!
Atravesso o corredor a passos largos, com os saltos a
ressoar no mármore, e desemboco no átrio de entrada. O
Clarke para de falar com o Justin, que se vira para mim,
ansioso.
— Deixo-te na esquadra? — propõe.
Rebento num riso estridente e cheio de aversão.
— Dizer que acreditei em ti quando te armaste em
inocente! Tens problemas comigo quando te insulto? Fica a
saber que não vai passar um dia sem que eu te trate como
um filho da mãe de primeira!
Lanço-lhe o olhar mais odioso possível, saúdo o Justin
com o dedo médio e saio da casa, ainda mais furiosa.
O Clarke segue-me em silêncio e montamos na sua mota,
sem trocar uma palavra. Ponho os braços em torno da sua
cintura, a custo. Já não suporto vê-lo nem tocar-lhe.
Arrancamos e o peso que tenho no estômago faz-me
sentir como se estivesse a caminhar para o cadafalso. Não
consigo acre­ditar que me pedem para prestar um falso
testemunho e que me estão a envolver nas suas atividades
ilícitas. Nunca na vida pensei fazer uma coisa destas, mas
estou presa numa ratoeira. E é a pri­meira vez em muito
tempo que me apetece chorar nos braços da minha mãe.
O motard para a poucos quarteirões da esquadra, para
não correr o risco de eu ser vista com ele. Desço da Harley e
saio sem olhar para ele. Gozou comigo à grande e tenho-o
atravessado na garganta. Nunca devia tê-lo seguido depois
das aulas.
Chegada em frente do prédio, inspiro profundamente
para me acalmar. O meu olhar furioso desaparece, as
tremuras também. Entro nas instalações com uma falsa
determinação de destruir os Filhos do Diabo. E se alguma
emoção me trair, o inspetor vai de­duzir ser por medo de
represálias.
Vou à secretaria e peço para falar com o Bill, que não
demora a aparecer. Depois de lhe dizer que tenho
informações que podem interessá-lo, olha para mim por uns
longos segundos, depois faz-me sinal para segui-lo em
passo de corrida.
Entramos numa sala de interrogatórios, onde há apenas
uma mesa e duas cadeiras. Sento-me na frente do polícia.
Ele não diz nada por muito tempo, limita-se a olhar
fixamente para mim. De­cido tomar a palavra, para sair
daqui o mais depressa possível.
— Sei onde vai ser a próxima entrega dos Filhos do
Diabo.
O polícia não responde. No meio do silêncio, examina-me
me­ticulosamente. Está à espera do mais pequeno sinal que
me possa trair, mas não deixo transparecer nada. Cabeça
fria, corajosa e boa mentirosa. Como o meu pai, que era um
belo ponto, segundo a minha mãe.
— Qual é a sua fonte?
— O próprio Carter. Ouvi-o dizê-lo aos seus homens,
depois do episódio desta manhã.
Volta o silêncio. O Bill pega no telemóvel, que traz ligado
ao ouvido, sem desviar de mim o olhar suspeitoso.
— Cassie, traga-me o detetor de mentiras.
Desliga e o meu coração falha um batimento. Sou
invadida por uma onda de pânico, quando junto as palavras
que ele acabou de dizer.
Detetor. De. Mentiras.
Bato as pestanas para esconder o suor frio que me
percorre a espinha. Estou completamente lixada e vou
enterrar os Filhos do Diabo. É exatamente isso que eu acho.
A minha respiração acelera, mas faço tudo o que posso
para não o demonstrar ao olhar perscrutador do Bill. O
pânico apode­ra-se de mim, dá-me a volta ao estômago e ao
cérebro.
Por Loki, estou metida num pesadelo!
O tempo passa a um ritmo terrivelmente lento. Olho
fixamente para as minhas mãos, que tremem
impercetivelmente. Tento en­contrar um plano B, mas
nenhuma solução parece tirar-me desta trapalhada e salvar
os Filhos do Diabo. Acabei de confessar um crime à polícia.
Nunca me deixarão sair daqui sem uma respos­ta... Se me
calo, sou considerada cúmplice e não abro caminho para o
gangue fazer a entrega... Mas se falo, fico longe de suspei­‐
tas e só terei de avisar os rapazes para cancelarem tudo.
A tal Cassie entra com um equipamento muito
tecnológico. Sorri para mim, depois coloca o material na
minha frente. Uma vez operacional — o que significa que a
minha frequência cardíaca e respiratória, temperatura
corporal e pressão arterial estão a ser medidas por fios
ligados à máquina —, o Bill endireita-se.
Agora tudo acontece em câmara lenta na minha cabeça.
Abro e fecho os olhos várias vezes e tento controlar a
respiração. A voz do polícia chega até mim num eco
desagradável.
— Muito bem. Comecemos. Apresente-se.
— Chamo-me Avalone Lopez. Tenho dezanove anos e
estudo na Universidade do Michigan, no departamento de
Letras.
Ele observa o monitor, depois olha para mim novamente.
Nes­te momento, sonho em ter uma crise, para parar este
interrogató­rio. Não posso mentir. Não tenho escolha a não
ser acatar ordens.
— Conhece os Filhos do Diabo?
— Pessoalmente, não, como lhe disse.
Olha novamente para o monitor, depois volta a atenção
para mim.
— Sabe onde vai ser a próxima entrega do gangue dos
Filhos do Diabo?
O meu coração comprime-se dolorosamente, novo suor
frio toma conta de mim e abafo um gritinho desesperado.
— Sim.
Ele olha para o monitor e endireita-se, subitamente
interessa­do, como se tivesse achado que lhe tinha mentido
até aqui. Agora, tem a certeza de que não. Estou a entregar
os Filhos do Diabo à polícia, numa bandeja de prata. Se não
conseguir preveni-los, nunca me perdoarei.
— Onde vai ser? — pergunta, impaciente.
Os segundos passam e não consigo responder.
O plano do Carter sai-lhe pela culatra e eu estou na
primeira fila. Sou apenas um peão neste xadrez e, no
entanto, a culpa invade-me. Não gosto destes tipos, mas
isso não significa que os quei­ra ver atrás das grades. Os
seus atos são odiosos a ponto de os tornar realmente
perigosos? Não tenho essa certeza.
O rosto do polícia deforma-se com o ódio, bate o punho
violen­tamente na mesa e eu assusto-me.
-ONDE VAI SER?
Eu devia dizer W. Stadium Boulevard, mas não é esse o
ponto de encontro dos Filhos do Diabo.
Fecho os olhos e deixo de respirar.
— Knolson Street.
Engulo as lágrimas que ameaçam correr. Recuso-me a
perder a esperança.
— A que horas? — pergunta, com voz de poucos amigos.
— Dezanove horas.
O polícia examina a máquina uma última vez e, em
seguida, berra para a Cassie preparar a equipa de
intervenção. Caminha decididamente para a porta, na qual
bate com a palma da mão, e grita:
— VAMOS APANHAR OS FILHOS DA PUTA!
Desaparece, mas a sua voz ecoa atrás dele.
— Nate, solta a Lopez às dezanove horas, nem um
segundo an­tes! Ela não pode fazer nenhum telefonema!
Entra na sala o homem que presumo ser o Nate. Ensaia
algu­mas banalidades, a que não respondo, e desliga os
cabos da má­quina, para me libertar. Quando me pede o
telemóvel, peço para ligar à minha colega de quarto, para a
avisar deste imprevisto. Ele recusa, gentil, mas
categoricamente. Insisto, mencionando a mi­nha doença e a
necessidade de tomar a medicação, mas ele pro­mete trazer-
ma dentro de meia hora. A inevitabilidade mergulha-me
num inelutável torpor. O Nate fala comigo, mas eu não o
con­sigo ouvir. Sorri para mim, mas nem consigo distinguir
as suas características faciais.
Os rapazes estão a correr direitos para uma armadilha e
não posso avisá-los. Nunca, mas mesmo nunca, a culpa me
abandona­rá. Acabei de revogar a liberdade deles e mandei
seis homens para a cadeia por um grande período de
tempo. Acabo de privar seis famílias de um dos seus
membros e a minha amiga do seu ir­mão mais velho.
O fio dos meus pensamentos negros para abruptamente,
quan­do a porta se abre e entra o Nate. O meu relógio marca
dezanove horas em ponto. Dá-se um clique em mim: pode
não ser tarde de­mais; os Diabos ainda estão provavelmente
livres.
O agente entrega-me finalmente o meu telemóvel.
— Pode ir.
Pego na minha bolsa e saio da sala a correr como nunca
corri. Fora da esquadra, ligo para a Lola e vou parar à caixa
de correio.
— QUE MERDA! — berro. — Lola, liga-me o mais depressa
pos­sível, é urgente!
Apanho um táxi e entro a toda a pressa.
— Para a universidade, por favor.
O motorista confirma com a cabeça e percorre as ruas da
cidade.
Bato com o pé no chão e peço para ele andar mais
depressa. Revolvo os dedos nervosamente e telefono à Lola
uma dúzia de vezes. Sem sucesso.
Se ao menos eu tivesse o número do Carter ou do Clarke!
Então, rezo às Nornas para que deitem abaixo uma
árvore no caminho dos Filhos do Diabo e impeçam, assim,
que eles se cor­ram direitos para a armadilha.
Cerca de dez minutos depois, saio do táxi e corro para o
meu quarto. Subo os degraus a três e três, à beira do
colapso. Meto as chaves na fechadura e abro a porta,
rezando para encontrar a Lola na cama, mas encontro outra
coisa totalmente diferente, na minha.
O Clarke está deitado, com os braços atrás da cabeça.
A minha bolsa cai ao chão e um suspiro de alívio escapa-
se dos meus lábios. A minha acalmia dura pouco, o pânico
volta tão de­pressa como se foi. Os outros estão certamente
a ser apanhados!
— Clarke, houve um problema!
Arqueia as sobrancelhas, mas não move uma pestana.
Olha-me com uma indiferença execrável.
— Passei por um detetor de mentiras, tive de dizer a
verdade! Eles sabem onde é a entrega e já foram encurralá-
los!
Enfio os dedos no cabelo e puxo-o nervosamente. O
badboy não reage, continua impassível.
— ESTÁS A OUVIR O QUE TE DIGO? — berro.
Não há resposta.
Pego numa almofada e preparo-me para lha atirar à
cabeça para o fazer reagir, mas acabo por suspender o
gesto. Com o cére­bro a ferver, olho para o Clarke.
Tudo se torna perfeitamente claro na minha mente. O
pânico desaparece e dá lugar a uma raiva que apenas
espera a sua confir­mação para explodir.
— Espera aí... Não me digas que... Não, vocês não iam
ousar fazer-me isso...
A almofada cai aos meus pés. Dou dois passos para trás
e sin­to-me manipulada. Traída.
— Não me digas que vocês sabiam que eu ia passar pelo
detetor de mentiras... Não me digas que me manipularam!
Deram-me uma morada que eu pensava que era verdadeira,
para atraírem o Bill... e ficarem com campo livre noutro
lugar, comigo a achar que vos estava a mandar para a
cadeia?
Continua sem reação. Nem um franzir de testa. Só esse
olhar impenetrável, vazio de emoções.
— VOCÊS SERVIRAM-SE DE MIM!
Já sem esperar qualquer reação da parte dele, recuo de
surpre­sa quando salta da minha cama. Num passo, ergue-se
sobre mim, com toda a sua altura.
E nem vamos falar da largura...
— Sim, foste usada e manipulada. Graças a isso, ainda
estamos livres, e não vou pedir desculpa, podes crer. Segue
com a tua vida!
O seu tom desdenhoso e antipático faz-me perder toda a
medi­da. A minha mão dispara na direção da cara dele; no
entanto, an­tes que entre em contacto com a sua pele, o
Clarke interceta o meu punho. O verde dos seus olhos
desaparece e fica apenas um negrume que absorve a luz.
— Que nunca mais te passe pela cabeça tocar-me sem
minha autorização — ameaça, com voz surda.
Aperta mais o meu pulso, o suficiente para eliminar
qualquer possibilidade de fuga, mas sem me magoar. A
nossa proximidade e a nossa raiva mútua eletrizam o
ambiente, tornam-no sufocan­te, e o bafo dele na minha cara
não me ajuda a respirar melhor.
— O Carter dá uma festa em casa dele amanhã à noite.
Estás convidada e podes ir acompanhada.
Um riso nervoso rompe a barreira dos meus lábios.
Era só o que me faltava ouvir destes tipos!
— Diz ao teu chefe que se vá foder!
O Clarke solta-me o braço e vai para a porta.
— Diz-lho tu, não sou a merda de um pombo-correio.
— Talvez mais um luluzinho obediente, não?
O Clarke estaca. Um alarme estridente soa na minha
mente, quando ele se volta lentamente para mim, com um
sorriso malicioso.
— Não vou entrar neste tipo de futilidades. Virá o dia em
que vais acabar por chorar todas as lágrimas do teu corpo e
eu vou de­liciar-me com isso.
Capítulo 7

Como posso eliminar os Filhos do Diabo da minha mente,


se alguns estudantes apontam para mim e sussurram
quando me cruzo com eles? Posso agradecer ao Bill por me
associar ao gan­gue em frente de toda a universidade.
Grande cretino!
— Ava, estás a ouvir?
Olho para o Daniel, desolada.
— Estava embrenhada nos meus pensamentos. O que
estavas a dizer?
Estamos deitados na relva, o sol do meio-dia bate com
muita força, mas faz-me sentir bem. A minha pele já está
bronzeada, não arrisco queimaduras solares.
— Estava a perguntar se tens desporto esta tarde?
— Sim, tenho atletismo com o Jack, dentro de uma hora.
— Bestial! Então, vamos estar os três juntos.
Fala-se no diabo e o Jackson aparece com a Lola, que
tinha ido procurar. Ela voltou a não conseguir encontrar-nos
e não deixa­mos passar a oportunidade de a provocar com
isso.
Fiel a si mesma, a minha amiga não perde tempo para
namo­riscar o Daniel, que não podia ser mais recetivo.
Quanto mais os vejo falar, mais percebo que estão
definitivamente próximos. Tal­vez ele seja realmente feito
para ela, afinal. Se ela estiver feliz, eu também estou. E este
rapaz parece ser boa gente. É atencioso com os outros,
curioso, interessante e muito engraçado. Ele tem sem­pre
uma palavra para pôr o pessoal a rir.
— A propósito, vocês vão ver-nos no recrutamento para a
equi­pa de futebol, no final da tarde?
O Jackson e o Daniel querem entrar para a equipa de
futebol americano da universidade e, a acreditar nos elogios
que tecem um ao outro, são bastante bons.
— Claro — concorda a Lola. — Vamos ser a vossa claque!
O Daniel pisca-lhe o olho e puxa o maço de tabaco.
Recuo por reflexo, quando acende um cigarro. Fumar está-
me estritamente vedado, quer passiva quer ativamente.
— Se eu for selecionado — diz o Daniel —, deito fora este
maço no segundo a seguir.
— Se és capaz de parar para praticar desporto, porque
não pa­ras pela tua saúde? — pergunta a Lola.
— «O homem ideal não fuma, não bebe, não se droga,
não in­sulta, não é racista, mas não existe.» Uma das
citações mais ver­dadeiras que vi no Twitter.
A resposta faz-nos rir, mas ele franze os olhos, pensativo.
— Tens razão. Se consigo parar para praticar desporto,
posso parar pela minha saúde. E como hoje estou cheio de
boa vontade, anuncio-vos que este cigarro foi o último.
Levanta-se perante o nosso olhar cético e dirige-se para
o cai­xote do lixo. Em seguida, rasga o maço por cima, pega
nos cigar­ros e desfá-los com os dedos. Por último, deita fora
a embalagem e senta-se ao nosso lado, como se não fosse
nada.
Enquanto a Lola e eu olhamos para ele de boca aberta, o
Jack­son não fica surpreendido.
Este tipo não é realmente difícil de convencer!
— Eu sei o que estão a pensar. Sou o melhor alvo que
pode existir para os vendedores de porta-a-porta. E têm
razão. Sou sempre enganado!
Partimo-nos a rir, mas há melhor. O Daniel admite ter
feito uma assinatura, depois de passar meia hora ao
telefone numa dessas vendas diretas. Desde então, recebe
mensalmente isco para peixes de água salgada. Primeiro,
ele odeia pesca. E, em se­gundo, o mar mais próximo fica a
nove horas de automóvel!
Depois de enfiar os meus calções de algodão, a camisola
sem mangas e uns ténis, saio do vestiário feminino e entro
na pista de atletismo. Alguns alunos já estão a fazer
aquecimento, incluindo o Jackson e o Daniel. Preparo-me
para me juntar a eles, quando a profe me chama.
— Avalone Lopez?
Confirmo com a cabeça e percorro os metros que nos
separam.
— O teu médico enviou-me uma dispensa. Como sabes, a
tua insuficiência cardíaca é instável e não te permite
praticar despor­to. Em compensação, ele aconselha que
faças marcha e muscula­ção leve, desde que não excedas o
teu limiar de dispneia. Portan­to, vais fazer o aquecimento
com os outros, sem correr, é claro. Depois, vou deixar-te
gerir a alternância de marcha-musculação leve. Ficas com a
Emily. Ela está a recuperar de uma rotura no tendão de
Aquiles.
Aponta para a rapariga em questão, que me sorri e
caminha timidamente na minha direção, quando a
professora se afasta.
— És tu a Avalone? — pergunta, corada de vergonha.
Esta Emily parece ser a doçura feita gente. O seu corpo
frágil e a voz amável parecem tão delicados que só se pode
ser terno com ela. À exceção da Lola, que é um verdadeiro
bulldozer. Acho que ela conseguiria dar cabo da Emily.
— Sim. Emily, certo?
Ela acena com a cabeça, sorrimos uma para a outra e
começa­mos a fazer o aquecimento.
— Como te aleijaste?
— Estava a jogar à apanhada com o meu irmão mais
novo. Mu­dei de repente de direção e o meu tendão foi-se
abaixo. Fiz uma cirurgia e estou a retomar a atividade física
aos poucos. E tu? O que te impede de praticar desporto?
— Tenho insuficiência cardíaca.
Não digo mais e ela não faz perguntas. O seu olhar
afetuoso é diferente da pena que costumo receber nestas
circunstâncias. Fico-lhe bastante grata por isso.
Depois de cerca de vinte minutos de aquecimento, o
Daniel e o Jackson vêm ter comigo a trote.
— Não vens correr?
— Não, estou dispensada.
Estampa-se nos seus rostos uma total incompreensão. É
ver­dade que tive muitas oportunidades de falar com eles
sobre o meu problema de saúde, mas não o fiz. E ainda há
pouco, agi como se fosse para a pista, correr ao lado deles.
— Porquê?
— RAPAZES! — berra a profe, do outro lado do campo. —
TO­DOS A CORRER!
É a isto que se chama ser «salva pelo gongo». Os meus
amigos olham-me fixamente, mas acabam por acatar a
ordem. Vão-se embora a correr, deitando-me olhares
curiosos.
— Eles não sabem? — pergunta a Emily.
Digo que não.
— Mas não são teus amigos?
— Sim. Mas quando as pessoas descobrem que estás
doente, sem se aperceberem, agem de forma diferente. Não
me apetece ser aquela que estão sempre a apaparicar.
***
Depois de duas horas de musculação leve, mal tenho
tempo para mudar de roupa antes de me juntar à Lola na
tribuna do campo de futebol, para assistir ao
selecionamento.
Aguardamos a chegada dos rapazes, ansiosas por saber
como se vão portar.
Passaram alguns minutos e os participantes na prova de
sele­ção entram em campo, vestidos com as cores da equipa
da nossa universidade: o Michigan Wolverines. O treinador e
o capitão fe­cham o cortejo.
Só há três vagas para cerca de trinta rapazes que agora
tentam a sua sorte. Espero que os nossos dois amigos
sejam selecionados, apesar de as possibilidades serem
pequenas.
Depois de um aquecimento em que todos os jogadores
são ob­servados ao microscópio pelo treinador e pelo
quarterback, co­meçam os treinos: corrida, velocidade,
placagem, passe lateral, intercetação... Vemos os rapazes
suar ao sol e correr em todos os sentidos.
— FORÇA, JACKSON! — berro.
— FORÇA, DANIEL! — berra a Lola.
Levamos muito a sério o nosso papel de claque.
— Oi! Não foste tu que foste convocada com os Diabos
pelo polícia?
A Lola e eu voltamo-nos e damos de caras com uma
rapariga com um corpo perfeitamente trabalhado,
acompanhada por duas amigas que não escondem o
desprezo que eu lhes inspiro.
Pisco os olhos, mas não respondo. A Lola tinha-me
avisado de que as raparigas podiam ser umas verdadeiras
cabras com a con­corrência, no que tocava aos gangues. O
que elas não entendem é que eu não sou uma rival.
— Porque o Clarke te deu boleia na festa, certo?

É
É muito assustador ver-se assim exposta, por uma coisa
tão simples.
Como não me vão largar facilmente, aceno com um ar
cansado.
— Simples conselho de amiga: não te iludas. És apenas
mais uma entre muitas. Vulgar. Banal. Sem nada de
excecional ou invejável.
Depois de aceitar o facto de que ainda estamos num
parque de recreio, sorrio da maneira mais hipócrita, pronta
para retorquir, mas a Lola rosna-lhe:
— Por isso é que ela foi convidada para a festa privada
do Cár­ter e tu não...
Os três rostos à nossa frente ficam desconcertados e a
minha amiga rapidamente percebe o seu erro, aflita. Se eu
esperava que os rumores sobre mim e o gangue parassem,
agora toda a espe­rança ruiu. Mas não a levo a mal. Não foi
para me prejudicar, pelo contrário.
Sem mais conversa, as raparigas dão meia-volta e
raspam-se dali, roídas de ciúmes.
— Desculpa, não penso antes de falar! Perdão, perdão,
perdão!
A preocupação na cara dela faz-me rir. Passo uma mão
tran­quilizadora sobre o seu braço e garanto que não lhe
levo a mal. Ela respira aliviada e, pelo canto do olho, vejo-a
tomar coragem. Vai finalmente fazer-me a pergunta que lhe
queima os lábios des­de ontem à noite.
— Tens a certeza de que não queres ir à festa do Carter?
Esperava tudo, menos isto. Quando lhe contei o meu fim
de dia de ontem, ela ficou ainda mais irritada do que eu
com o gan­gue. Explodiu, depois usou um vocabulário rico e
variado de in­sultos. Pensei que nunca mais se ia acalmar.
— Por que raio havia eu de lá pôr os pés? — rosno.
— Bem, para começar, pelo evento em si. Parece que as
festas organizadas pelo Carter são as mais refinadas, ao
contrário das da fraternidade. Sabes, vestidos bonitos,
champanhe em belas ta­ças... Um pouco como uma gala de
caridade.
Cala-se durante tanto tempo que, se não mexesse
nervosamen­te os dedos, julgaria que era o seu único
argumento.
— Na verdade, é por mim que te estou a pressionar a
reconsi­derar a tua decisão. Eu sei, é egoísta. Mas eu quero
ir. Antes de o meu irmão se juntar ao gangue, éramos muito
próximos. Hoje, por querer tanto manter-me longe das suas
atividades ilícitas, afastei-me dele. Entendo, mas gostava de
perceber o universo em que ele se move, apenas por uma
noite, para ter a certeza de que está bem.
Imaginar-me a participar nessa festa deixa-me doente.
No en­tanto, não consigo ignorar a preocupação da Lola.
Como ela, es­tou disposta a fazer qualquer coisa pelas
pessoas que amo. Por­tanto, se sou a única que lhe pode dar
acesso à serenidade que procura, também estou disposta a
ficar perto do Carter e dos seus esbirros por algumas horas.
— Eles fornecem as belas taças de champanhe, mas não
os ves­tidos bonitos. Espero que encontremos o que
precisamos nos nos­sos armários.
A Lola levanta os olhos para mim, incrédula. No segundo
se­guinte, uma lágrima solitária corre-lhe pela cara — uma
verdadei­ra drama queen! — e salta-me literalmente para o
colo, para me abraçar.
— Arrumar, lavar, trabalhos de casa: diz-me o que
precisas e eu sou o teu homem!
— Ah, não te preocupes. Espero até ter algo muito pior
para te fazer pagar a dívida.
Rimos com satisfação e, após sinceros agradecimentos
da sua parte, retomamos o nosso papel de claque, para os
últimos minu­tos do selecionamento.
Encharcados e sem fôlego, ao apito do treinador, os
jogadores retiram os capacetes e juntam-se à sua volta.
— Saíram-se bastante bem. Infelizmente, como sabem,
apenas três vão ser selecionados. Há lugar apenas para os
melhores.
A Lola e eu prendemos a respiração e cruzamos os
dedos.
— O primeiro a juntar-se à nossa equipa é o Jackson
Simons.
Saltamos e gritamos de alegria.
Simultaneamente feroz e iluminado de intensa felicidade,
o Jackson levanta o polegar para o Daniel e depois aponta
para nós, como se dissesse: «Bem vos disse!»
— O segundo é o Tom Riley.
A pessoa em questão grita vitória, causando em nós
duas uma tensão pouco altruísta. Só resta um lugar e o
Daniel começa a fi­car agitado.
— O último lugar é para o Daniel West.
Os nossos gritos redobram de força, damos pulos em
homena­gem aos vitoriosos.
— Obrigado aos outros por terem vindo. Tentem a vossa
sorte novamente no próximo ano. Para quem foi
selecionado, os treinos são obrigatórios, bem como boas
notas nas aulas, caso contrário perdem o lugar. A
temporada está quase a começar. O primeiro treino terá
lugar amanhã, às sete. Não são tolerados atrasos e não
queremos mandriões em campo!
Após alguns acertos, o treinador e o capitão abandonam
o rel­vado, dando autorização para que os jogadores
dispersem. A Lola e eu descemos os degraus da tribuna,
depois entramos no campo e pulamos nos braços dos
nossos amigos. Apesar de não parti­lharmos a sua paixão por
este desporto, eles estão tão felizes que isso nos aquece o
coração. Damos-lhes os parabéns e acompanha­mos o seu
júbilo até ao balneário. Depois despedimo-nos e re­‐
gressamos rapidamente ao nosso quarto, para nos
prepararmos para a noite.
Com o material de duche na mão, vamos para a casa de
banho coletiva e encontramos a Emily.
— Ah! Lola, esta é a Emily! Conheci-a na aula de
desporto, ela também está dispensada.
A Lola, simpática e fiel a si mesma, sorri para a rapariga,
antes de a crivar de perguntas. A Emily deita-me um olhar
de pânico, mas tranquilizo-a com uma piscadela de olho.
Fico surpreendida por saber que está no primeiro ano de
Le­tras, como o Jack e eu. Os pais moram na região, no
entanto, ela preferiu ficar na residência universitária, para
estar mais perto da biblioteca e evitar deslocações.
A Lola propõe-lhe jantar connosco, mas a Emily dirige-me
um olhar inseguro. Ou não quer impor-se, ou não se atreve
a recusar.
— Gostávamos que jantasses connosco, mas percebemos
se já tiveres planos, não tenhas problemas... — sossego-a.
— Não tenho nada planeado. Eu... hã... não quero
incomodar.
A Lola passa-lhe o braço por cima dos ombros e leva-a
para dentro da casa de banho; eu sigo-as.
— Não nos incomodas nada, pareces ser uma miúda
incrível, Em. Posso chamar-te Em? A Ava e eu temos dois
amigos, o Jack­son e o Daniel. Duas raparigas, dois rapazes,
estás a ver o que quero dizer? Estamos em igualdade
numérica e, francamente, isso não é bom! Precisamos de ti
para reforçar as nossas fileiras! Girl power e essa coisa
toda!
Um sorriso passa pelos lábios da Em, que concorda
finalmente em juntar-se a nós para jantar. Contudo, parece
aliviada quando a Lola corre para uma cabina de duche,
excitada com a festa que se aproxima. A minha animação é
falsa, mas não quero fazê-la sen­tir-se culpada. Apesar de a
minha parceira me ter deixado curio­sa, não sei o que nos
espera esta noite e já temo o pior.
Virá o dia em que vais acabar por chorar todas as
lágrimas do teu corpo e eu vou deliciar-me com isso.
***
De volta ao nosso quarto, observo a minha imagem no
espe­lho, com este vestido curto que nunca me atrevi a usar.
Achava-o demasiado bonito, sensual e imponente.
Reverenciai. Precisava de uma ocasião especial para o
vestir. Esta é a noite certa. Neste vestido de cetim azul-
petróleo, sinto-me valorizada. Digna do res­peito dos
maiores.
As finas alças de cetim cruzam-se nas minhas costas
nuas e, depois de atadas pela Lola, oferecem uma visão
deslumbrante da curvatura da minha cintura. Com sapatos
de salto alto da mesma cor, as minhas pernas nunca foram
tão compridas.
— Estás magnífica — admira a Lola. — Vais deixá-lo
louco.
Estas últimas palavras ficam suspensas no ar. Olho para
o seu reflexo no espelho e topo o sorriso malicioso.
Mas de quem está ela a falar...? Ah, pelo olho de Odin!
Volto-me, de olhos arregalados.
— Lola Collins! Eu odeio-o, estás a ouvir-me? O que sinto
é unicamente vontade de estrangulá-lo!
— Isso não impede que o aches lindo de morrer!
— São todos lindos de morrer! — digo, em minha defesa.
— Mas o Clarke tem mais qualquer coisa. E não me
desmintas!
Viro-lhe as costas e enfio furiosamente os objetos
pessoais na minha bolsa amarelo mostarda.
Qual mais qualquer coisa? Sim, o Clarke é pior do que os
ou­tros. Mentiroso, manipulador, violento, antipático, e por aí
fora!
Vou até à porta e, com um olhar furibundo, abro-a de par
em par, para obrigar a minha parceira a sair.
Com um vestido branco de alças finas e delicadas — em
con­traste com a sua personalidade —, está resplandecente.
Faz olhinhos de uma forma muito sugestiva e passa por
mim. Em retaliação, dou-lhe uma palmada no rabo. Desata
a rir, com o mérito de me descontrair.
Saímos da residência para nos juntarmos ao Jackson e à
Emily no restaurante próximo. Contra todas as expectativas,
ela veio mesmo e ouve atentamente o discurso do Jack.
Chegamos e eles recebem-nos com grandes olhares de
espanto.
— Por Odin, meninas! Vocês estão incríveis!
— Magníficas — sussurra a Emily.
Agradeço e a Lola imita uma vénia. Sentamo-nos e um
empre­gado vem recolher o nosso pedido. Assim que somos
servidos das bebidas, o Jackson ataca.
— Porque estás dispensada das aulas de desporto?
As minhas amigas dirigem-me sorrisos bondosos e sente-
se uma ponta de constrangimento. Falar sobre a minha
doença é um tema de desmancha-prazeres, mas não posso
escapar-lhe mais.
— Tenho uma insuficiência cardíaca.
O véu de piedade que cobre o seu olhar faz-me desviar o
meu.
— Avalone... Não sei o que dizer, eu... lamento muito.
— Não lamentes, vivo muito bem com ela.
E sorrio para o certificar de que está tudo bem, mas
instala-se um ambiente estranho. Os segundos sucedem-se
com uma lenti­dão assustadora. Os deuses sejam louvados,
graças à Lola, o riso regressa rapidamente e o ambiente
desanuvia.
— A propósito — começa o Jackson, animado —, a minha
namo­rada só vai começar as aulas dentro de duas semanas.
E vem visi­tar-me daqui a dias, vão adorá-la!
Os seus olhos brilham quando fala dela, é enternecedor.
Essa Aurora parece ser uma rapariga incrível. Fá-lo feliz e
um homem bom. É o que ele diz, embora eu tenha
dificuldade em imaginá-lo mau.
— E tu, Em, tens namorado? — pergunta a Lola.
— Não, eu... quero concentrar-me nos meus estudos.
O vermelho que lhe cora as faces torna-a ainda mais
adorável.
— Oh, tenho impressão de que conheço mais alguém
assim — diz a Lola, voltando-se para mim, com um sorriso
digno do Gato Risonho, da Alice no País das Maravilhas.
Levanto os olhos para o alto.
— O quê? Tu também, Ava? — espanta-se o Jackson.
— Os estudos são primordiais para mim. Vou ter muito
tempo para me apaixonar mais tarde — minto.
Como vou morrer jovem, é difícil entender as minhas
escolhas. Para quê perder anos a estudar, em vez de os
aproveitar? A res­posta é simples: a doença tornou o meu
dia-a-dia anormal, por isso, só quero é viver sem pensar no
tempo que me resta. Quero uma meta, um objetivo. Algo
para realizar antes de bater as botas.
— Nunca te vou entender! — exclama a Lola, que se
encosta ao espaldar da cadeira. — «Primordiais». Parece
que estou a ouvir o meu pai a falar sobre o bom
funcionamento do seu trânsito intestinal!
Desatamos a rir, a Emily também, apesar de mais
discreta. Não há dúvida de que é muito mais bem-
comportada do que nós três juntos. A não ser que seja por
timidez e medo de chamar a atenção.
Quando percebe que temos todos os olhos postos em
nós, cora e enfia a cabeça nos ombros para desaparecer.
Tento tranquiliza-la com um sorriso, mas quando parece à
beira da síncope, dou um chuto debaixo da mesa aos meus
dois amigos, que imediatamente se calam.
Inclino-me para ela e sussurro-lhe ao ouvido:
— Nunca deixes de viver por causa dos outros. Mesmo
que os seus olhares sejam assustadores, não matam. Só te
conseguem magoar se tu deixares.
Os olhos começam a brilhar-lhe e, impercetivelmente,
levanta o queixo, relaxa os ombros e acena com a cabeça,
agradecida.
Capítulo 8

Louvados sejam os deuses, tenho uma muito boa


memória e lembro-me do caminho para a casa do Carter.
Isso evita-nos envi­ar uma mensagem aos rapazes. Disse ao
Clarke que não vinha, não quero dar-lhe a satisfação de lhe
pedir a morada.
A Lola sobe a grande alameda de árvores alinhadas em
silên­cio, antes de estacionar ao lado dos outros carros e
motas.
Uma vez fora do jipe, os mármores de Odin e Sleipnir
provo­cam um assobio impressionado à minha colega de
quarto.
— Da próxima vez que ele te utilizar, roubamos-lhe a
estátua.
Arqueio uma sobrancelha e rasgo um sorriso, enquanto
ela desvia os olhos de cima do nosso deus.
— Estou a brincar. Sou demasiado jovem para morrer.
Rio-me sem alegria e pergunto-me se o Carter seria
capaz de nos matar se roubássemos a fonte. Graças à sua
relação com o Set, a Lola está provavelmente imunizada,
mas eu não. E viver em permanência com um olho aberto,
francamente não é a minha atividade favorita.
Recomeçamos a andar, em silêncio. A minha amiga dá
voltas sobre si mesma, para captar bem o ambiente,
subjugada. Na por­ta da frente, em vez de tocar, vira-se para
mim com o ar mais sério.
— Avalone Lopez, estamos aqui para nos divertirmos,
mas co­nheço esse teu feitiozinho de merda. Nada de
lançares olhares as­sassinos, relaxa a testa para não correres
o risco de ficar com rugas e sorri!
Perante as ordens desta pequena tirana, claro que só
posso fi­car com uma expressão divertida. Agradeço
interiormente à Lola por nunca me olhar fixamente. Ela
associa a dureza dos meus re­flexos alaranjados a um olhar
assassino. Não é glorioso, mas é muito melhor do que o
mau presságio que os pagãos me atribuem.
Satisfeita, toca à campainha e treme de impaciência,
enquanto eu me esforço por engolir em seco. A porta abre-
se e uma mulher, já longe da juventude, que parece ser
uma empregada, cumpri­menta-nos com um grande sorriso
e um brilho intenso no olhar; depois afasta-se, para nos
deixar entrar.
A pressão de estar aqui abate-se de forma tão brutal
sobre mim que perco a educação. Não consigo saudar a
senhora, que não parece, obviamente, preocupada com
isso.
Os segundos sucedem-se e a Lola dá-me uma
cotovelada, para me obrigar a reagir. Foi ela que me
arrastou até aqui, mas agora não tem coragem para dar o
primeiro passo. Parece ler os meus pensamentos, no olhar
enfadado que lhe dirijo, e deita-me a lín­gua para fora.
Respondo com um beliscão e, de ombros direitos e cabeça
erguida, entro no enorme átrio.
Não posso dar o ar de ser uma presa fácil.
O arco na parede deixa ter uma panorâmica do que se
passa no salão. Quase setenta convidados apresentam-se
nos trinques. As camisas imaculadas dos homens
contrastam com as tatuagens e ares de badboys, e as
poucas mulheres presentes envergam belos vestidos de
noite. No entanto, muitos não se sentem à vontade, no meio
de tanta riqueza: ombros tensos, caretas, urticária... Seis
músicos tocam música clássica num canto do salão e
empregados carregados de bandejas com taças de
champanhe e acepipes refi­nados servem os convidados.
— Pelo bardo de Odin... — sussurra a Lola.
A sua reação deve-se à opulência ou ao facto de todos os
olhares estarem virados para nós?
Não gosto nada de me ver no centro das atenções, mas
esse in­cómodo é rapidamente substituído por outro, quando
me cruzo com o olhar do Clarke. A desagradável surpresa
de me ver aqui provoca-lhe um franzir de testa e uma
contração das maxilas.
Tranquiliza-te, menino bonito. Eu também não queria
estar aqui.
Contra todas as expectativas, os olhos dele deslizam pelo
meu corpo e não hesito em fazer o mesmo com o dele. Fico
espantada por vê-lo de calças cinzento-escuras de corte
direito. Uma T-shirt branca lisa e justa põe em evidência os
músculos poderosos, que se salientam a cada movimento. É
uma variação do blusão de couro e roupas escuras, mesmo
que elas o tornem incrivelmente sexy, tenho de admitir.
Sem falar no cabelo negro revolto e aquele olhar...
— Avalone! — exclama o Carter.
De braços estendidos e um sorriso rasgado, o boss dos
Filhos do Diabo atravessa a sala para vir ter connosco.
As palavras da minha amiga vêm-me à mente — relaxa a
testa e levanta os cantos dos lábios —, mas não consigo.
Olho para o Carter com todo o desprezo que me inspira.
— Não pensei que viesses — prossegue, vitorioso.
— Só os parvos é que não mudam de ideias, certo?
A Lola retém um grito assustado, enquanto o Tucker,
morto de riso, se coloca ao lado do líder.
— Adoro esta chavala. Tem audácia!
A minha atenção não se desvia do Carter, que sustém o
meu olhar com um sorriso tenso, tão admirativo quanto
irritado.
Os outros Filhos do Diabo — à exceção do Clarke —
avançam para nós, com a confiança de pessoas que reinam
supremas sobre o seu território.
— É realmente uma qualidade — responde o Carter, com
os olhos ainda fixados em mim. — Resta esperar que Odin
não lhe corte a língua, para lhe dar sabedoria.
— Se Odin me cortasse a língua pelas minhas palavras,
não imagino o que Tyr14 lhe cortaria por conta da justiça.
Os Filhos do Diabo ficam petrificados atrás do Carter e
olham para mim, estupefactos. A Lola obviamente não
avisou o irmão de que eu partilhava as crenças deles.
Surpresa, bando de parvalhões!
O Carter olha fixamente para mim. Uma emoção que não
con­sigo decifrar brilha nas suas íris, de forma muito intensa.
— Devia ter suspeitado. Só uma pagã podia ser tão
ousada, sem medo de retaliação.
— As minhas crenças não me fazem ser quem sou.
— Mas não ficaria surpreendido de ver o sangue de Thor
ferver nas tuas veias. Por favor, entrem e sejam bem-
vindas.
Dito isto, dá meia-volta e desaparece entre os
convidados.
Com o corpo ainda quente deste despique, entro na sala
ao lado da Lola e do Tucker, que também deixou o blusão de
couro no armário, para vir à festa.
— Então, o que as fez mudar de ideias?
— Álcool grátis sem restrições — responde a Lola.
O Tucker ri, enquanto o Set, o Jesse, o Sean e o Justin se
jun­tam a nós com grandes sorrisos, parecendo felizes por
nos verem. Mas eu não retribuo. Todos me usaram e não me
esqueço disso.
— A sério, Ava, podias ter vindo com qualquer pessoa e
esco­lhes a minha maninha? — brinca o Set.
Não sabia que tínhamos passado aos diminutivos.
— Cala a boca, mano. Só porque não estás de blusão de
couro não significa que sejas um tipo mais porreiro!
— Concordo — intervém o Justin —, o blusão não é tudo.
Tu és porreira, o teu irmão é porreiro, mas... ele tem o
blusão. Um raio de um pormenor não negligenciável.
Os Diabos aprovam com gargalhadas e, com um beicinho
tris­te, a Lola murmura:
— Tem alguma razão.
— Se usar o blusão é sinónimo de manipulação, acredita,
é me­lhor não o ter! — sussurro-lhe.
Surpreendida pelo meu ressentimento, levanta o rosto
para mim e perde imediatamente o bom humor. E isso
porque sou uma desmancha-prazeres. Se era para ser
antipática, melhor fora ter ficado na residência. Estou aqui
por ela, não quero fazê-la sen­tir-se culpada. E já que estou
aqui, é melhor aproveitar e divertir-me um pouco.
— Não têm o blusão enfiado, meus caros. Devemos
concluir que, por esta noite, estamos todos em pé de
igualdade?
Pisco o olho à Lola, que imediatamente recupera o seu
lindo sorriso.
— Os nossos blusões não estão cá, mas a reputação cola-
se-nos à pele — responde o Clarke, em tom de desafio.
Sua Excelência digna-se finalmente ajuntar-se a nós...
A sua presença eriça-me os cabelos e apaga
imediatamente as minhas boas intenções. Não consigo
mostrar-me amável com al­guém tão... Clarke.
— Reputação que desconheço, visto que acabei de
chegar. E o que vi de vocês não me dá vontade de conviver
com os lendários Filhos do Diabo de Ann Arbor.
Em resposta à minha provocação, um lampejo de raiva
atra­vessa-lhe as íris antes de desaparecer, como se tivesse
consciência de ser culpado.
— E no entanto, aqui estás tu — argumenta ainda, com
voz grave.
Luto contra o seu enfeitiçador olhar de esmeralda e
respondo com uma voz que espero seja firme:
— Acredita, não foi por vocês que vim cá!
As feições dele endurecem e uma pequena parte de mim
arre­pende-se de não ter baixado armas. Estou cansada de
batalhar e levar com as retaliações.
Numa tentativa de aliviar o ambiente, o Tucker coloca a
sua pata grande no meu ombro, com um sorriso pateta no
rosto.
— Acho que vais ter oportunidade de formar a tua
própria opi­nião. Somos uns grandes cretinos e um bocado
bruscos, mas não somos más pessoas. Bem, não muito más.
As suas palavras não deviam tranquilizar-me, mas o seu
ar um bocado tolo e olhar afetuoso relaxam-me. É verdade
que, quando os vejo na faculdade, parecem ameaçadores,
perigosos e invencí­veis, mas basta sorrirem para se
tornarem nuns grandes ursinhos de pelúcia.
— Quem são estas pessoas? — pergunta a Lola,
abarcando todo o espaço com o olhar.
— Aliados. São membros de outros gangues que têm
acordos connosco.
— E porque é que o Carter insistiu em que estivéssemos
pre­sentes numa festa entre aliados? — pergunto,
desestabilizada.
A questão que levanto e o meu súbito nervosismo parece
atin­gir os Filhos do Diabo de uma forma estranha. Não têm
resposta para isto, mas partilham a minha impressão de que
algo pouco claro se está a preparar. E tudo leva a crer que
não gostam de ser deixados à margem.
O som de um talher a bater numa taça de champanhe
atrai os nossos olhos para o Carter, que solicita a atenção
dos convidados. Não precisa de pedir duas vezes: a música
para, assim como as conversas, e todos se voltam
pacientemente para o anfitrião.
— Como as nossas duas últimas convidadas finalmente
chega­ram, já posso revelar-vos que estão sob minha
proteção.
Com o braço estendido na nossa direção, o Carter orienta
to­dos os olhos perscrutadores para a Lola e para mim.
Paralisada de apreensão, sinto o peso de uma capa de
chumbo pousar de repente sobre nós.
Este filho da mãe tem alguma tramoia na cabeça...
— Avalone Lopez e Lola Collins ajudaram-nos num caso e
vol­tarão a intervir nos nossos negócios. Se lhes fizerem
alguma coisa de mal, por mais insignificante que seja, a
trégua será quebrada e rolarão cabeças. Agora que as
ameaças foram feitas, podem des­frutar da noite e do
champanhe!
O meu coração bate furiosamente. E constato que a festa
reto­mou o seu curso, sem mais cerimónias.
A minha raiva abafa de tal modo o ambiente que só
tenho o Carter na mira. O sorriso presunçoso que arvora
quando se apro­xima de nós dá-me vontade de o fazer
engoli-lo, o que significaria dar-lhe uma bofetada
fenomenal, não fosse ele líder de um gangue e se a
violência não me repugnasse tanto.
— Voltarão a intervir? — fulmino-o. — A Virgem Maria
visitou-o durante a noite?
— Ninguém me visitou, Avalone.
As mãos tremem-me de raiva e dou um passo na sua
direção.
— Não vou fazer mais nada para si, pensei que tinha sido
clara!
— Ficaria muito surpreendido. Fizeste uma denúncia que
não deu em nada e vais precisar de mim para manter
afastados todos aqueles que ficam muito mais alto do que o
Bill.
Por todos os deuses, ele tinha tudo previsto desde o
início!
Quanto mais procuro uma saída, mais me perco. Estou já
pro­vavelmente lívida. É um regresso desastroso à estaca
zero. Se me recusar a ajudar o Carter, a polícia irá farejar à
minha casa. E se eu falar com a polícia, vou incriminar o
irmão da Lola e os Filhos do Diabo, e posso pôr uma cruz no
meu diploma universitário.
— O senhor não tem o direito de me chantagear, depois
do que eu fiz por vocês todos! — lanço, com desprezo.
— Vais depressa aprender que tenho todos os direitos
nesta ci­dade, filha de Yggdrasil.
O líder dos Filhos do Diabo dá meia-volta e vai-se
embora, en­quanto a Lola se agarra ao meu braço como a
uma tábua de salva­ção. De uma assentada, percebo que é
ela a amiga em pânico e eu sou a que mantém a calma,
pelo menos na aparência. É que circu­lam na minha mente
uma dúzia de cenários, cada um mais sórdi­do do que os
anteriores.
O que vai ele pedir-nos? Para transportar droga? Para
rou­bar armas? Para matar alguém?
— Estamos lixadas, não estamos? — sussurra-me a Lola,
com uma voz aterrada.
Não devíamos ter vindo até cá, estamos tramadas. Bem,
na re­alidade, eu é que estou. Porque o Carter não sente
É
necessidade nem vontade de ter a Lola perto de si. É só
para me pressionar. Ele espera que eu lhe peça o favor de a
deixar fora de tudo, em troca da minha cooperação, senão,
porque teria demorado tanto tempo a atraí-la para as suas
malhas?
Um rol de palavrões faz-me voltar à realidade. O Set e o
Clarke seguem o líder, ambos realmente contrariados.
— Foda-se! Desculpa... — diz o Sean, completamente
perdido.
À beira das lágrimas, suplicante, a Lola vira-se para ele.
— O que podemos fazer?
Ele suspira e a raiva cresce dentro de mim. Odeio
testemunhar este tipo de cenas. Ela só queria ter a certeza
de que o irmão esta­va bem e ei-la arrastada para uma porra
de uma baita confusão. A injustiça da situação revolta-me.
— Os manos estão a tentar fazê-lo mudar de ideias. É a
única coisa que podemos fazer.
Observo o Set e o Clarke, que confrontam o boss
nervosamen­te; mas perante o ar danado deste último,
percebe-se bem que ele não aprecia que os seus homens
desafiem as suas decisões.
— Quais são as probabilidades de ele mudar de ideias? —
pergunto.
— Quase zero — confessa o Sean, com fatalismo.
Sem pensar mais, deixo a Lola e vou ter com o Carter, o
Clarke e o Set. Sei o que tenho de fazer, não tenho escolha.
Se eu estiver certa e puder manter a minha amiga fora
disto, não hesitarei. Re­cuso-me a deixar que a sua chama se
apague, já que a minha vaci­la perigosamente desde o meu
nascimento. A minha vida já está arrumada, mas a dela é
promissora.
— A tua decisão é uma boa merda, velhote! Tens a
certeza de que continuas a ter a cabeça entre os ombros? —
diz o afilhado, irritado.
— Não te esqueças de com quem estás a falar, Clarke.
Festa ou não, faço-te engolir a minha arma se me levares a
isso!
Chegada junto deles, meto-me entre o Clarke e o Set,
para en­frentar o quinquagenário.
— A Lola não lhe interessa. Está à espera que eu lhe
peça para a deixar fora de tudo isto a troco da minha
colaboração, certo?
Os olhos do Carter brilham intensamente,
impressionados.
— Tens razão. Ela não tem o brilho pagão que paira nos
teus olhos.
Ignoro a sua observação ridícula.
— Ela fica longe de vocês e de mim, e eu concordo em
ajudá-lo até que a polícia deixe de ser um problema para
mim. Se recusar a minha oferta, enfrentarei sozinha a
justiça e você pode virar-se do avesso, que não vai
conseguir nada do meu lado.
Quando ele dá um passo na minha direção, sinto as
paredes fecharem-se à minha volta. A sua aura autoritária é
como um po­der sobrenatural que desce sobre nós e nos
subjuga. A impressão de que ainda temos algum vestígio de
controlo da situação é uma mera ilusão. Estamos apenas a
trilhar o caminho que o Carter tra­çou para nós.
— Certo.
O desespero abate-se sobre mim, quando ele se afasta.
Que as Nornas ouçam a minha prece e façam o Carter
ser atro­pelado por um autocarro. Mas ele é demasiado
esperto para isso. Ele é demasiado inteligente para mim. E
eu acabo simplesmente de cair na sua rede, como uma
garotinha ingénua.
Duas mãos nos meus ombros fazem-me rodar e dou por
mim de frente para o Set, o mais sério que é possível.
— Não precisas de fazer isso.
Estou perdida nos meus pensamentos, que giram em
torno dos últimos acontecimentos. Foi a mim que o Bill
surpreendeu com o Clarke, e foi a forma como me opus ao
polícia que atraiu o líder do gangue. Foi o que desencadeou
isto tudo. Não posso vol­tar atrás, mas posso evitar danos
colaterais.
— Preciso, sim. Claro que sim.
O Set franze a testa, incapaz de entender os meus
motivos, e passa nervosamente as mãos pelo cabelo,
estupefacto, envergo­nhado, aliviado e, sobretudo, grato.
— Porra... Fico a dever-te esta, Avalone. Nada te vai
acontecer, juro pelo Draupnir15!
Nada do que diz me atinge. Estou transtornada com a
revira­volta que a minha vida acaba de levar. Estou num
estado de cons­ciência alterado, onde apenas o bater do
coração soa nos meus ouvidos.
O Set junta-se à irmã e ao gangue para os pôr a par dos
últi­mos desenvolvimentos. Dou comigo sozinha em frente
ao Clarke, cujos punhos tremem de tão cerrados.
— Nunca devias ter feito uma coisa destas!
Fui eu que acabei de me enredar nesta história e é ele
que está zangado? Meus deuses, que mais irá acontecer
esta noite!
— Ele tinha planeado tudo desde o início, eu não tive
escolha!
O facto de a minha voz estar abatida não impede o Diabo
de rir sardonicamente.
— Isso é típico de um líder, Avalone. Ele faz-te acreditar
que não tens escapatória para obter tudo o que quer de ti!
Recuso-me a pensar nestas palavras, com receio de
perceber que me resignei demasiado depressa a esta
situação.
— Muitas coisas, muitas pessoas estão em jogo nas
maquina­ções do Carter — exclamo. — E não sou de fazer
sacrifícios. Agora, pelo menos, todos estão seguros.
O desprezo e a estupidez que inspiro nele são flagrantes,
não o esconde.
— Ninguém está seguro. Um gangue acaba sempre por
ser des­truído, Avalone. Juntando-te a nós, apenas deste um
tiro no teu próprio pé. Resta-te aprender a viver como se
todos os dias fos­sem o último que passas em liberdade.
Bem-vinda ao mundo dos gangues, Beleza...
Desaparece, deixando-me a avaliar sozinha os meus
erros. Este mundo incerto e perigoso, cujas regras não
conheço, para o qual tenho uma porta de entrada, mas
nenhuma de saída, fora dos termos estabelecidos no nosso
acordo. A minha decisão tem um sabor irrevogável e
francamente desagradável. Passo do esta­tuto de simples
estudante para o de criminosa. Não era assim que eu
imaginava a minha integração nesta universidade e até me
ar­rependo de ter deixado Madison, que era tão tranquila,
comparativamente.
— Champanhe? — pergunta-me um empregado.
Pego em duas taças, uma das quais esvazio de um trago
antes de voltar a colocá-la na bandeja. Preparo-me para
engolir a se­gunda, para descomprimir o mais depressa
possível antes de ex­plodir, mas a Lola atira-se a mim, ainda
a tremer.
— Ava, não bebas...
Não olho para ela. Observo os convidados, que parecem
estar a dar-se maravilhosamente, enquanto o mundo se
desmorona de­baixo dos meus pés. Nada corre bem.
— Disseste que não me ias impedir de me divertir.
— Pois foi. Mas não acho que estejas a beber por
diversão. Não devias ter feito esse acordo com o Carter, é
uma loucura!
O meu instinto protetor desperta, quando vejo lágrimas a
cor­rerem-lhe pelas faces. A Lola assumiu um lugar imenso
no meu dia-a-dia, na minha vida. Sinto necessidade de a
proteger, da mesma forma que fiz com a minha mãe. Abafo,
pois, os meus pensamentos sombrios e sorrio-lhe com amor.
— Tu tomas conta de mim, para que eu não morra de
paragem cardíaca por conta do álcool. Eu tomo conta de ti,
para que não tenhas de te meter em atividades ilícitas. Os
teus pais não iam aguentar uma segunda vez — provoco-a.
Ela tenta sorrir, mas é um lamentável fracasso.
— É a mim que ele quer, Lola. Não tenho escolha. Tu
tens. Está fora de questão que te arraste para tudo isto.
Acho que, mais que nunca, vou precisar de alguém normal
do meu lado. E se descon­tarmos a tua loucura, estás quase
lá.
Desta vez, desata a rir, com um riso que me aquece o
coração, antes de ficar ainda mais triste.
— A culpa é toda minha, Avalone! Conheceste os Filhos
do Dia­bo porque partilhas o quarto comigo! Fizeste uma
denúncia falsa para que eu não perdesse o meu irmão. E
nem querias vir esta noite! Sem mim na tua vida, não terias
estes problemas todos!
Então era isso, o seu olhar comprometido de há alguns
dias... A Lola acha-se culpada porque é irmã do Set!
Enxugo suavemente as suas lágrimas e coloco as mãos
nas bo­chechas dela, para lhe captar o olhar.
— Tu não és responsável pelas ações dos outros, Lola. Só
o Cár­ter é culpado, estás a ouvir? E afinal, depois de longos
anos de té­dio mortal, podemos finalmente dizer que vou
viver coisas extraordinárias!
Ela funga e limpa os olhos vermelhos do choro.
— Promete que não me matas durante o sono, mesmo
que o Carter te peça.
A gargalhada que soltamos liberta a tensão e abraço-a
para a consolar uma última vez.
— A sério, promete que me contas tudo. Se isto for longe
de­mais, farei de tudo para te libertar desse Carter — diz,
com nojo. — E vamos roubar a maldita fonte.
— Prometo, Lola.
Ela acena com a cabeça, tranquilizada, depois dá-me o
braço, pronta a enfrentar o que vier.
— Agora que estamos aqui, vamos aproveitar a casa e o
cham­panhe daquele cabrão.
Determinada, a Lola leva-me para o terraço, mas o
Tucker mete-se entre nós duas e coloca os braços à volta
dos nossos ombros.
— Tira o braço de cima da minha irmã ou faço-te lamber
o pó! — intervém o Set, incomodado.
O Tucker acata a ordem e levanta a mão em sinal de
inocência.
— Não te preocupes, não lhe toco... A não ser que ela me
peça — acrescenta, com um sorriso perverso nos lábios.
— Vai sonhando, Tucker! — responde-lhe a minha amiga,
mos­trando-lhe o dedo médio.
— Nenhuma rapariga foi alguma vez capaz de resistir ao
meu charme!
O Tucker geme de dor e solta-me do seu abraço, quando
a Lola lhe pisa violentamente o pé. Leva uma boa dose de
troça dos ami­gos e aproveitamos para zarpar dali, rumo ao
jardim.
Depois de atravessarmos as janelas altas envidraçadas,
cruza­mos um magnífico terraço de pedra, descemos alguns
degraus emoldurados por duas fontes embutidas nas
paredes baixas, de­pois viramos à direita até um caminho
feito de ripas de madeira e iluminado por acolhedoras luzes.
Vamos dar a um novo terraço, circular, de madeira, com
sofás para exterior e uma mesa de cen­tro, perto de uma
grande piscina.
O cenário é incrível, digno de um conto de fadas.
Pena que seja um mau remake da história da Casinha de
Cho­colate, do Hansel e da Gretei...
Sentamo-nos nos sofás, rapidamente acompanhadas
pelos Fi­lhos do Diabo, que pousam três garrafas de álcool na
mesa baixa, enquanto o Jesse começa a enrolar um charro.
Agora que corro o risco de estar perto deles com muito
mais frequência do que queria, miro-os um a um, sem
conseguir ficar descansada. Todos trocaram o blusão de
couro por fatos elegantes e há que admitir que lhes ficam a
matar. Embora eu ache que al­gumas raparigas deviam
manter uma certa dignidade, entendo porque lhes caem
todas aos pés. Nunca estive rodeada de tantos rapazes tão
belos. Têm uns músculos impressionantes e uma for­ça que
deve dissuadir qualquer pessoa sã de espírito. Soquei o
tronco do Clarke várias vezes e é um verdadeiro bulldozer.
Aliás, fico aliviada por não o ter pela frente. Só os deuses
sabem onde estará.
Sinto o olhar da Lola em mim, viro a cara para ela e vejo
os olhos brilhando de lágrimas. Desconsertada, franzo a
testa. Tal­vez tivesse parecido tranquilizada depois da nossa
conversa para evitar preocupar-me? Retribuo com um
sorriso sincero e ela de­volve-mo. Quanto a parecer
descontraída, é apenas ilusão. É-me difícil não culpar os
rapazes, mas eles não estavam obviamente cientes do que
o Carter estava a cozinhar. Repito-o incessante­mente dentro
da minha cabeça, até o interiorizar.
Eles não têm culpa.
O Justin coloca uma grande coluna de som na mesa e
liga-a ao telemóvel. Sai de lá uma canção dos Seven Deadly
Sins, famosa banda heavy metal da nossa geração, em total
contradição com o ambiente chique e afetado do interior.
Vejo a Lola mover-se ao ritmo da música, mas tudo sai do
con­trolo quando o irmão a põe a dançar. Estoiram
gargalhadas, des­pejam-se copos de álcool, as provocações
são bem-humoradas.
Uma contrafesta era obviamente aquilo de que os Filhos
do Diabo estavam a precisar. Sem a pressão dos olhares dos
estudan­tes nem a tensão que advém da presença de outros
gangues, os tipos parecem diferentes, sem exibições
parvas. Perdem o ar duro, com a liberdade de serem eles
próprios.
— Ora bem, pode-se dizer que vamos deixar de nos
cruzar inadvertidamente! — brinca o Jesse.
Sem que o controle, um sorriso baila-me nos lábios. O
humor negro foi sempre o meu combustível, desde a
infância. Mas o Dia­bo de cabeça rapada volta a pôr um tom
sério.
— O Carter... Não é um gajo mau nem maldoso, pelo
contrário. Simplesmente, desatina com facilidade.
A vontade de rir passa-me, quando ouço este nome que
só me traz más recordações. Deito-lhe um olhar furibundo.
— Mete desatinar nisso! — lanço, com desprezo.
O Jesse põe um ar ofendido e passa-me o charro em sinal
de paz.
— Tem tabaco?
Abana a cabeça.
— Cem por cento biológico.
Pego nele e dou uma passa. O fumo entra nos meus
pulmões e sai numa nuvem branca. Não é a primeira vez
que fumo canábis, embora devesse ser. E afinal, é a nicotina
que me faz mal. Um belo dia, tomei coragem e, um pouco
assustada, provei. Sei que não devia, mas estou cansada de
me privar e, até prova em con­trário, ainda estou viva. No
entanto, evito um consumo abusivo. Os meus pulmões
estão já muito fragilizados, consequência direta da minha
insuficiência cardíaca, por isso tenho de poupá-los.
Quando uma aparência de calma me invade, o Carter
entra no jardim e cada um dos meus músculos dói de tal
modo que volto a ficar tensa.
— Avalone, podes chegar aqui?
A sua voz é estranhamente suave. Não é uma ordem, é
mesmo uma pergunta. Olho para ele por alguns segundos,
desconcertada, e faço um esforço sobre-humano para ir ter
com ele, não vá preci­sar de ser informada de alguma coisa
importante.
O Carter estende-me um envelope, que abro com uma
descon­fiança que raia o grotesco. Contém um maço de
notas como nun­ca vi. De olhos arregalados, espeto-lhe o
envelope no peito. Não quero tocar nem por mais um
segundo nesse dinheiro sujo.
O Carter sorri ligeiramente, divertido com a minha
reação.
— Dois mil dólares pelo teu testemunho. Serás paga por
cada ajuda que nos deres. Se achares pouco, podemos
discutir isso.
Coloco os dedos nas pálpebras fechadas, siderada, mas
acima de tudo cansada. Ele força-me a ajudá-los e quer
fazer passar isso por um trabalho remunerado?
— Eu não quero o seu dinheiro sujo.
O Carter guarda as suas economias clandestinas no bolso
in­terno do casaco do fato, nem minimamente chateado.
— O dinheiro é teu. Vens ter comigo quando estiveres
pronta para o receber. O Clarke encarrega-se de te avisar de
cada missão que eu te reserve.
Recuo um passo, para colocar novamente o máximo de
distân­cia entre mim e ele.
— Muito bem.
— Claro que serás convocada para algumas das nossas
reu­niões. Iremos buscar-te quando chegar a altura. Se
precisares de um carro, podemos discutir isso também, mas
acho que a tua res­posta vai ser negativa.
Dá meia-volta e regressa ao salão, para junto dos seus
convi­dados. Quanto a mim, fico parada como uma tola e
tento integrar os acontecimentos da noite.
O que é que não bate bem neste tipo?
Obriga-me a ajudá-los, mas quer pagar-me e até se
propõe oferecer-me um carro?
Sou a funcionário do mês ou o quê?
— Ele é um filho da mãe... — comenta o Sean.
Volto-me para ele, com uma sobrancelha levantada. É
mani­festamente sincero no que acabou de dizer, então
porque trabalha para ele? O Carter recrutou-os da mesma
forma que a mim?
— ... mas somos uma família e ele fará sempre de tudo
para nos safar de alhadas. Vais ver que podes contar com
ele, mais do que com qualquer outra pessoa.
Os Filhos do Diabo mostram total concordância com o
Sean.
Olho fixamente para eles, incapaz de compreender a
lealdade que têm a este homem. Não é só admiração. Estou
convencida de que o amam como a um pai. O que é, sem
dúvida, a razão mais louca.
Assim que me sento no sofá, o Clarke aparece. O
ambiente é tão festivo e os Filhos do Diabo estão tão
relaxados que sou a úni­ca que se apercebe de algo invulgar.
A testa está menos franzida, o queixo menos contraído do
que de costume e os músculos um pouco mais relaxados. É
impercetível, mas tão improvável que não me passa
despercebido.
De cerveja na mão, o seu olhar cruza o meu e não o
larga, quando se senta entre o Sean e o Justin e leva o
gargalo do que está a beber aos lábios. Mas há outra coisa
que me chama a aten­ção: as mãos. Ou melhor, os dedos
magoados e a sangrar.
Voltou a andar à pancada. E pelos lenhos na pele, deve
ter sido violento. Engulo em seco, maldisposta. Odeio
violência, exceto nos filmes. Ver alguém levar murros na
vida real perturba-me profundamente e provoca-me um
mal-estar que custa a passar.
A raiva cresce dentro de mim, ao pensar no mal que o
Clarke acabou de fazer a alguém; mas a memória dos pais
assassinados sobrepõe-se, e a raiva e o nojo diminuem
ligeiramente. Afasto o comentário mordaz que se forma na
parte de trás da minha gar­ganta, para evitar aumentar o
azedume que ele já me guarda. Olho para o lado e despejo
a taça de champanhe, como forma de travar as questões
que se levantam no meu espírito. Sinto o seu olhar
insistente, mas ignoro-o e agarro o charro que o Jesse me
entrega. Estou prestes a dar uma passa, quando me é
arrancado das mãos pelo afilhado do Carter, que volta a
instalar-se no seu sofá, impassível.
Que raio de problema é o dele, afinal?
O meu cérebro constrói mentalmente um muito variado
voca­bulário de insultos, mas não solto nenhum. Em vez
disso, ponho um ar de pânico e chamo a atenção de todos
para as suas feridas.
— Odin Todo-Poderoso! O que aconteceu às tuas mãos?
Assim que digo isto, o Clarke fulmina-me com o olhar,
agora que a atenção dos Diabos está toda centrada nos
seus ferimentos. Ponho um sorriso malicioso e a piscadela
de olho que lhe envio tem o mérito de lhe redobrar a raiva.
— Foda-se, Clarke! Não me digas que te atiraste outra
vez ao Anjo! — sugere o Set, danado. — Se o Carter
descobre, vai sair-te caro!
— Quando é que aprendes a controlar-te? — prossegue o
Jesse. — Não vamos conseguir safar-te eternamente!
Vitoriosa, acomodo-me no sofá e ouço os Diabos darem-
lhe uma ensaboadela. Eles não estão nada satisfeitos, e é
dizer pouco.
— Calem a boca, está bem? O filho da puta do Anjo está
bem! Impedi dois bêbados de entrarem sorrateiramente na
festa.
— Para afastar dois bêbados, não é preciso parti-los
todos! — exclamo, com má-vontade.
— Virá o dia em que metas o nariz na porra da tua vida?
Abro a boca para o informar de que farei isso no dia em
que ele deixar de se intrometer na minha, mas a Lola corta-
me a palavra.
— Quem é o Anjo?
Cai um silêncio absoluto sobre o terraço, seguido de
grande tensão nos ombros dos rapazes. A Lola aventurou-se
por um cam­po minado, o que desperta a minha curiosidade.
É um Sean de olhar duro e implacável que responde:
— No dia em que ele deixe de fazer parte dos Pais do
Demónio e deixe de ter imunidade, vai ter alguém que lhe
fará a folha...
Dá uma palmada fraterna no ombro do Clarke, que faz
um es­gar e põe um ar sonhador. A sua impaciência e a
atmosfera estra­nha e pesada que se instalou fazem-me
sentir um calafrio.
— O Anjo é aquele dos cabelos brancos? — pergunta a
Lola.
— Sim — rosna o irmão. — É um cabrão filho da puta.
Ficarei a ver o Clarke matá-lo. Por mais que implore aos
deuses, não vou mexer uma palha.
Todos os Diabos, sem exceção, põem caras danadas,
marcadas pelo ódio. Mesmo o Jesse, que tem geralmente
um ar de quero-lá-saber.
— O que é que ele vos fez?
Endireito-me impercetivelmente e agradeço
silenciosamente à Lola por satisfazer a minha curiosidade
doentia.
— Ele era dos nossos. Era um de nós, um mano dos
nossos. Mas, numa missão com o Clarke, trocou de clã.
Deixou o nosso afilhado ser baleado e juntou-se aos nossos
inimigos da época, os Pais do Demónio.
Olho para o mencionado, com o coração a bater
desalmada­mente. Ele olha para um ponto invisível lá longe,
à sua frente, com o queixo contraído e os punhos cerrados
com ódio. Já não é o seu desejo de violência que me
escandaliza, mas o que fez o Anjo. Odeio mais os traidores
do que os violentos, e como os Dia­bos têm fé nos deuses
nórdicos, o Anjo também deve acreditar neles. Ora a honra
é primordial para nós e aquele tipo injuriou-a.
— Entretanto, o Carter fez um acordo com os Pais do
Demónio. O Anjo, agora, é intocável.
Absortos em pensamentos sombrios, a raiva emana de
todos os poros e envolve-nos numa bolha sufocante, à beira
do insuportável.
— No entanto — termina o Justin —, ele não será
intocável por toda a vida. E, nesse momento, será apenas
uma memória antiga. Hela16 ficará encantada por receber
um traidor como ele no seu mundo.
As suas palavras são claras como água. Vão matá-lo. O
Clarke vai matá-lo, está só à espera disso. Mas mesmo que
o Anjo o me­reça, matar alguém a sangue-frio é uma coisa
abominável. E sa­ber que o Clarke é capaz disso dá-me um
medo indomável.
Levanto-me de um salto, perante os seus olhares
surpreendi­dos e interrogadores. Sinto-me subitamente
insegura com eles. Salva pelo gongo, o meu telemóvel
começa a tocar. As minhas mãos põem-se a procurá-lo
precipitadamente e afasto-me dos ra­pazes o mais depressa
possível, atendendo sem sequer olhar para o nome que
aparece no ecrã.
— Ava! Como está tudo, querida?
Mal consigo disfarçar o som desesperado que me
provoca o so­luço que me invade, ao ouvir a voz da minha
mãe. Quero implo­rar-lhe que me venha buscar e me tire
daqui, mas o medo de que o Carter a persiga sobrepõe-se.
Com a garganta apertada, contorno a casa num passo
vacilante.
— Excelente! E contigo, mãe? Está tudo bem?
A minha voz soa suave e calma, domino perfeitamente o
meu tom. Ser doente é saber mentir aos entes queridos,
para aliviar a sua dor.
— Sim, meu doce. Conta, como está tudo a correr? Foste
à con­sulta no sábado?
A consulta com o meu novo médico do hospital, que
correu bem.
— Porque me estás a fazer essa pergunta, se recebeste
hoje o relatório do médico?
Ouvi-la rir aquece-me o coração. Faz-me imensamente
bem e, só o som da sua voz, afasta todos os meus medos e
ansiedades. Neste instante, desapareceu a premeditação de
assassínio, não há mais gangues, não há mais manipulações
e ameaças disfarçadas.
— Fala-me sobre a universidade!
A felicidade percebe-se no meu tom quando lhe
respondo:
— É bestial! As aulas são interessantes; a Lola, a minha
colega de quarto, é uma joia, e já fizemos muitos amigos!
Estou nas nuvens...
É mesmo assim. Bem, até me lembrar do lugar onde me
encontro.
O coração comprime-se e levanto os olhos para o alto,
para conter as lágrimas.
— Fico feliz por ti! E como te sentes? Está a tomar a
medicação como deve ser? Não bebes nem fumas, espero?
— Sim, não te preocupes.
Se ela soubesse...
— Perfeito, perfeito. Liga-me se tiveres o mais pequeno
proble­ma. Não te chateio mais. Boa noite para ti, querida!
— Adoro-te, mamã.
— Eu também.
Desligo e guardo o telemóvel no bolso, com dificuldade.
Sinto falta dela. Claro, ouço-a dia sim, dia não ao telefone.
Está muito preocupada com a minha saúde e, na minha
primeira noite nesta cidade, ligou-me com a voz trémula.
Pediu desculpa por ter saído tão à pressa e não ter ficado
mais tempo. Queria deixar-me em paz, para que eu pudesse
conhecer a minha colega de quarto, sem que me desse
realmente conta de que ela voltava para casa e eu ficava
cá.
Pulo ao ouvir um ramo de árvore partir-se atrás de mim e
re­cuo alguns passos, assustada. Não percebi que me afastei
tanto da festa. A angústia que me assalta é a prova de que
não pertenço a este lugar, nem a esta casa, nem a este
gangue.
O Clarke surge no meio da escuridão. As sombras que
dançam no seu rosto provocam um quadro assustador. No
entanto, ergo o queixo, para não lhe dar parte de fraca.
Neste universo, temo que revelar os medos incite os outros
a esmagarem-nos sem o menor escrúpulo.
— O que se passa contigo?
— Nada.
— Não me mintas, Avalone.
Está a poucos metros de mim e, no entanto, topo
perfeitamen­te o seu olhar penetrante, que me desestabiliza
mais do que devia.
— Ah, não sei, dou por mim ligada às atividades de um
gangue, cujos membros não têm nenhum problema com o
assassínio. Pre­ciso de descrever-te a luta monumental que
se trava na minha cabeça?
— O Anjo merece! — exclama, encolerizado.
Dou um passo para trás, apavorada com o seu ódio,
enquanto a testa dele se franze. Não parece gostar do meu
sobressalto e maldigo-me por perder o controlo do meu
corpo.
Perturbado, avança para mim.
— Tens medo de mim?
Sim, tenho. Dele, da violência, do seu universo.
Não respondo. Respiro com dificuldade e olho fixamente
para ele.
— Viste-nos? — pergunta, irritado. — Acreditas
seriamente que seríamos capazes de fazer mal a uma
pessoa inocente ou a uma mulher?
— Não vos conheço — declaro, num tom gelado.
— Então, vê se nos conheces, antes de nos rotulares de
monstros!
No fundo, sinto que não são monstros; no entanto, o meu
cor­po reage em contradição e recuo de novo, para
desagrado do Clar­ke. Mas, por mais surpreendente que seja,
estende-me gentilmen­te a mão e deixa que decida agarrá-la
ou não.
— Nós não somos os maus da fita. Seríamos incapazes
de te maltratar, mesmo que fôssemos ameaçados com uma
arma. Anda connosco e vê com os teus próprios olhos,
Avalone.
Pela minha mente, passam as memórias que lhes dizem
res­peito. No Degenerate Bar, na cidade universitária, na
fraternida­de, no gabinete do reitor. Só presenciei uma cena
de violência, e foi para afugentar membros de gangues que
não deviam estar ali. Se houvesse assassínios, todos
fugiriam da universidade como da peste. Não é o caso. No
entanto, os Diabos não podiam ter sido mais claros sobre o
Anjo.
— Queres mesmo ver o Anjo morto?
— Sim. No entanto, entre querer e fazer, vai todo um
mundo.
Não sei se ele se refere à imunidade do Pai do Demónio
ou à sua capacidade de matar um tipo, mas prefiro manter-
me na ilusão.
O seu olhar perturbado faz-me querer confiar no Clarke
Tay­lor, apesar do lado sombrio da sua personalidade.
Não digo nada durante muito tempo; acabo por avançar
lenta­mente e agarrar a mão dele. Eu, que pensava que a
coragem me tinha abandonado para o resto da noite, afinal
devo acreditar que ainda tenho alguma em stock. E isso não
é o mais desconcertante. Não. O mais desconcertante é a
onda de calor que percorre o meu corpo ao meu contacto
com ele...

14 Na mitologia nórdica, Tyr é um deus guerreiro, o deus


do céu, mas também da justiça.
15 O Draupnir é o anel de Odin, feito por dois irmãos
anões. É uma fonte infinita de riqueza: a cada nove noites,
desmultiplica-se em mais oito anéis.
16 Hela é a deusa da morte, na mitologia nórdica.
Governa o Helheim, o mundo dos mortos. Aqui, os Filhos do
Diabo mostram a convicção de que a traição do Anjo lhe
fechará as portas do Valhalla (o lugar onde se reúnem os
bravos guerreiros que morreram em combate).
Capítulo 9

Em silêncio, contornamos a casa. O Clarke aperta-me a


mão, como se esperasse que um dos meus saltos se afunde
num buraco e eu perca o equilíbrio.
Chegados ao campo de visão dos Diabos, quebra-se
abrupta­mente o contacto entre nós. Levanto os olhos para o
alto. E para apagar o formigueiro que fica na pele onde ele
me tocou, limpo a mão no vestido. É a vez de ele olhar para
o alto.
Sento-me no sofá, com o Clarke em frente, e faço tudo o
que posso para evitar o seu olhar. O calor e o formigueiro
que senti quando me tocou não significam nada.
— De qualquer forma — começa o Sean —, a partir de
agora, te­mos de estar de olho em ti, pagãzinha.
— Não te preocupes. Nada te vai acontecer — acrescenta
o Set, com um olhar tranquilizador. — Tens a nossa palavra.
Arvoro um sorriso tenso. Disse ao Clarke que os ia
conhecer, mas não sou mágica. Não consigo sentir-me à-
vontade numa sim­ples questão de segundos.
— Podíamos dar-lhe o blusão!
Mal as palavras saem da boca do Tucker, já está a levar
uma palmada na nuca do afilhado do Carter.
— Nem pensar! Ela ficaria ainda mais em perigo, sua
besta!
O Tucker encolhe os ombros.
— O blusão mostrava que é um de nós. Ninguém se
atreve a atacar um dos nossos, somos demasiado temidos.
— Recordo-te que, para a bófia, ela foi denunciar-nos. Se
a vi­rem com o blusão, vão perceber que fez uma falsa
declaração e ficará também na mira deles — continua o
Clarke. — Pensa um bo­cadinho, porra!
— Que os nossos aliados saibam que ela está sob a
nossa prote­ção é uma coisa — reforça o Justin mas os
nossos inimigos é outra história. Persegui-la-iam para
chegar até nós. O blusão não é decididamente uma opção
para ela.
Os rapazes concordam, com um aceno grave de cabeça.
— Vamos falar com o Carter sobre como tratar da sua
segurança.
A seriedade do grupo atinge-me duramente e todos os
meus medos desaparecem como num passe de mágica.
Eles nunca me irão magoar. Para eles, não sou uma inimiga.
Pelo contrário. Que­rem proteger-me, como se eu fosse um
deles.
Sem arma e sem blusão, sorridentes e descontraídos,
não são diferentes da Lola e de mim. Não são os maléficos,
violadores, sá­dicos e assassinos que se pode imaginar,
quando se ouve a pala­vra «gangue». É certo que são jovens
com atividades extracurri­culares pouco recomendáveis, mas
protegem-se mutuamente. A Lola tinha razão. São uma
família, que leva a sério a segurança dos seus membros.
O sorriso que estava a nascer nos meus lábios
desaparece quando três homens aparecem no jardim, um
dos quais tem os cabelos brancos.
O Anjo.
Se começassem a cair raios, não ficaria surpreendida,
pois a eletricidade crepita no ar. Os Filhos do Diabo ficam
instantanea­mente tensos, mas a minha atenção foca-se no
misterioso tipo à minha frente. O Clarke olha fixamente para
o recém-chegado e põe-se em pé. O Clarke, cujo ódio lhe
emana de todos os poros e nos envolve numa nova
atmosfera sufocante de morte. O Clarke, cujos dedos ficam
brancos de apertar o braço do sofá. O Clarke, cujos dedos
destroem o plástico com um ruído sinistro.
— Boa noite, meninas, fazemos questão de nos
apresentarmos. Eu sou o Anjo e estes são o Tyler e o Peter.
As ondas negativas contaminam-me. Os sorrisos dos Pais
do Demónio enojam-me. É evidente que vêm provocar.
Sabem que, se os Diabos tentarem seja o que for, serão
punidos pelo Carter. Mas o Clarke parece estar-se
completamente nas tintas, ao fazer questão de se levantar.
Os deuses sejam louvados, a mão do Set faz-lhe pressão no
ombro e, contra todas as expectativas, as íris negras do
Clarke mergulham nas minhas. Eu, que nunca consegui
decifrar nada nos seus olhos, vejo agora uma emoção
destrutiva que, em vez de me assustar, me aflige. O Diabo
abstém-se de par­tir tudo à sua passagem, num esforço
sobre-humano. Percebo a luta interior nos seus olhos e isso
provoca-me algo inexprimível.
Ele controla-se para não me assustar?
— Os Pais do Demónio organizaram uma pós-festa na sua
sede. São bem-vindas — prossegue o Anjo, simulando uma
vénia grotesca.
Troco um olhar com a Lola e isso basta para me levantar
com o sorriso mais radiante que consigo e estender a mão
ao recém-chegado.
— Avalone Lopez — apresento-me.
Encantado, segura-me na mão e coloca os lábios nela,
depois procede da mesma forma com a Lola.
Sinto a raiva do Clarke ainda mais violenta e tenho de
escon­der um frémito.
— Obrigada pelo convite — agradece a minha amiga,
com um risinho.
Se seis pares de olhos pudessem matar, já estaríamos as
duas enterradas bem fundo, porque juro pelos deuses que
sinto os olhares assassinos dos Filhos do Diabo nas minhas
costas. Ouço-os levantar-se, perigosamente, e as suas
sombras, que se proje­tam atrás do Anjo, são monstruosas.
Mas este não liga e, quando ele nos propõe que troquemos
o grupo pela sua companhia, a Lola e eu desatamos numa
gargalhada franca incontrolável.
Enquanto os Diabos não movem um pelo, na mais total
incom­preensão, o Anjo junta-se à nossa risada, um pouco
desconfortável.
Finalmente, cruza o olhar com o meu e dá um passo para
trás, em choque.
— Gostas do que vês? — ronrono-lhe.
— Na verdade, não — sussurra, hipnotizado pelos efeitos
alaranjados.
— Tanto melhor.
Sem tentar entender o ódio que me anima, pego no copo
que a Lola me passa e derramo o conteúdo na cabeça do Pai
do Demónio.
Passada a estupefação, as suas feições cobrem-se de
raiva. Ful­mina-me com o olhar.
— Já devias estar a arder nas chamas do Ragnarok pelo
que ou­saste fazer-lhes! — lanço-lhe, com desprezo.
À menção do fim dos mundos, uma certa palidez tinge-
lhe o rosto, como se temesse que as chamas em questão
saíssem dos meus olhos para o incendiar. Contudo, assume
um ar ameaçador:
— Vou meter uma bala entre os olhos dos teus queridos
amigos antes de cuidar de t...
Pouso-lhe a mão no ombro, para o prender, e mando o
meu joelho com força contra os seus genitais. O corpo
dobra-se ao meio e um grunhido surdo escapa da garganta.
Alguns Filhos do Diabo soltam palavrões queixosos, como
se a dor do Anjo fosse contagiosa; e outros, como Tucker,
gozam aber­tamente com ele ou fingem-se impressionados.
— Eu vou... dar cabo de ti... grande... puta — declara o
Anjo.
— Os rapazes talvez não possam tocar em ti, mas eu não
recebi ordem nenhuma.
O Pai do Demónio endireita-se bruscamente e dá um
murro violento na minha bolsa, que cai ao chão e deixa
espalhar o conteúdo.
O Clarke e os Diabos avançam, prontos a intervir, mas o
Anjo topa os meus medicamentos com uma curiosidade
maldosa. Bai­xa-se e pega no frasco laranja que me mantém
viva.
— Isto parece-me importante.
Sem que eu esperasse, atira-o para a água, no meio da
piscina.
— NÃO! — berro.
A Lola corre para a beira da piscina, tão em pânico como
eu, e o Clarke agarra o Anjo pela garganta, cortando-lhe
liminarmente a respiração.
— Parem!
Todos viramos a cara para um tipo que sai da penumbra
do jardim, mas o Diabo não larga a presa, pelo contrário. O
Anjo, todo vermelho, começa a ficar azul. Debate-se
inutilmente. Nin­guém conseguirá parar o aperto do Clarke a
não ser ele próprio.
Nenhum de nós se move ou fala. Os Filhos do Diabo não
gos­tam de ver este tipo da idade do Carter. Dão-me a
entender que é o líder dos Pais do Demónio. E o Clarke está
a atacar o seu ho­mem, apesar dos tratados de paz.
— Clarke! — intervém de novo o líder.
Mas o badboy não parece obedecer a ninguém, está-se
nas tin­tas para os acordos. Vai implodir, se não fizer
imediatamente uma escolha: largar o Anjo ou esmurrá-lo
até que fique inconsciente.
— Clarke!
Desta vez, é a voz do Carter que ressoa no ar. A mão do
seu ho­mem larga o Anjo, que cai no chão, a tossir.
No recorte da janela alta envidraçada, o líder permanece
imó­vel, de rosto impassível, tal como o seu aliado. O meu
coração quase não bate, temo pelo Clarke. Os dois líderes
viram-no atirar-se ao Anjo, mas terão testemunhado o que
aconteceu antes?
Dou um passo na direção do Carter, para chamar a sua
atenção.
— A culpa é minha. Eu provoquei o Anjo.
Ele acena impercetivelmente com a cabeça, antes de se
con­centrar no visado.
— Vai buscar os medicamentos dela — ordena, com uma
voz gélida.
Sustenho a respiração, espantado pelo Carter ousar dar
uma ordem a um tipo que já não é do seu gangue. O Anjo
exibe um olhar de ódio, mas ainda submisso para o Carter,
que parece ser um deus indiscutível no meio. O líder dos
Pais do Demónio cruza os braços sobre o peito, ainda
perfeitamente calmo, mas o meu coração dispara, ao
pensar que pode quebrar a trégua com os Fi­lhos do Diabo.
— Se apanharam água, trato de ti depois de deixar o
Clarke acertar contas. Se sobrar alguma coisa de ti... — É,
afinal, o que tem a dizer.
De olhos arregalados, não quero acreditar que ele apoie
a deci­são do Carter, que pode custar a vida a um dos seus
homens.
O Anjo contrai as maxilas, levanta-se e avança, tenso,
para a piscina. O frasco flutua à superfície, mas não está
acessível a par­tir da borda.
O Pai do Demónio hesita por alguns segundos.
Finalmente, salta para dentro de água, totalmente vestido.
Sabe que os dois líderes não lhe dão escolha. Nada em
direção ao meu frasco e sai, todo encharcado.
Sem dizer uma palavra, atira o frasco, que cai aos meus
pés.
— Apanha-o e entrega-lho — ordena o Carter.
Irritado e humilhado, o Anjo aproxima-se de mim, pega
no frasco e coloca-o na palma da minha mão.
— Sobretudo, não te esqueças de pedir desculpa —
acrescenta o líder dele.
Com as pálpebras fechadas, ele suspira, exasperado, e
eu sin­to-me terrivelmente culpada. Se soubesse que isto ia
ganhar tais proporções, ter-me-ia abstido.
— Desculpa.
— Entrou água? — pergunta-me o líder.
Levanto o frasco à altura dos olhos e vejo umas gotas a
pingar lá dentro. Engulo em seco, a custo.
— Não — minto.
O Anjo, que tinha os olhos colados nos meus
comprimidos, fita-me de repente. Ele sabe que eu menti.
Uma coisa é despejar-lhe um copo pela cabeça abaixo ou
dar-lhe uma joelhada bem co­locada, outra é contribuir para
a sua morte prematura. Sem dei­xar transparecer nada, dá
meia-volta; mas a voz firme do Carter fá-lo estacar.
— Não vou repetir uma terceira vez que elas têm a
minha imu­nidade. Tu não lhes tocas, com ou sem joelhada
nos tomates.
O Anjo acena com a cabeça, sem dizer nada.
— Perfeito — diz o líder dele. — Saiam os três desta casa.
Anjo, trato de ti amanhã.
— Não! — exclamo. — Eu provoquei-o, sou responsável.
Penso que já foi suficientemente punido.
Mais uma vez atraio olhares curiosos e, depois de alguns
inter­mináveis segundos, o líder dos Pais do Demónio faz um
gesto para que os seus homens saiam.
Tal como apareceram, os quatro desaparecem. Cinco,
com o Carter. E a culpa invade-me.
Mesmo que o Anjo seja um cabrão pelo que fez no
passado, eu não me devia ter intrometido nas suas
histórias. Odeio a traição e, por isso, fico louca de raiva ao
vê-lo pavonear-se à frente dos ra­pazes. Mas fui eu a
primeira a atacá-lo, esta noite. Apenas se de­fendeu e vai
pagar por isso.
— Foi... deleitável — goza o Tucker.
Volto-me para os Filhos do Diabo, que estão aliviados
pela for­ma como a cena terminou. O Jesse deixa-se cair no
sofá e relaxa instantaneamente.
— Vamos fazer alguma coisa de ti, V! — atira.
— V?
— V, de vil. Foi cruel, a encenaçãozinha que montaram
as duas quando foram ter com eles.
A Lola ri, num misto de orgulho e alívio, e o ambiente
serena. Enfim... até o olhar do Set me interrogar.
— Para que são os medicamentos?
Por esta não esperava eu.
Pensei que o Clarke lhes tivesse contado, no meio de
uma conversa.
Intensamente observada pelo gangue, até pelo Clarke
que já conhece a resposta, deixo-me cair no sofá.
— Tenho um problema cardíaco.
Não se ouve som nenhum, como se os nove mundos
tivessem acabado de deixar de viver.
De repente, o Justin atira-se a mim, ou melhor, ao meu
frasco de remédios, e volta-o repetidamente nas mãos, em
pânico. Gra­ças aos deuses, as pílulas absorveram as gotas
de água.
— Tens a certeza de que não apanharam água? —
pergunta, preocupado.
A minha mão direita toca no ombro dele, enquanto a
esquerda me aperta o coração, que bate como um tambor.
— Assustaste-me!
Todos se desmancham a rir, mas, quando vi aquele
monte de músculos atirar-se para cima de mim, temi
seriamente pela mi­nha vida.
Os olhares preocupados vão gradualmente
descomprimindo, até que a Lola rompe novamente numa
gargalhada, perante a in­compreensão geral.
— Se vocês tivessem visto as vossas caras, quando
pensaram que íamos sair com aqueles parvalhões!
A discreta piscadela de olho que me dirige é inequívoca:
está a desviar a conversa, para me livrar do meu
constrangimento e, verdade seja dita, quanto mais penso na
reviravolta dos aconteci­mentos, mais vontade tenho de rir.
Aliás, todos acompanham a nossa alegria, mesmo o Clarke,
que vira o rosto com um sorriso nos cantos dos lábios.
— Vocês são frescas! — ri o Sean.
Num mau presságio, o Clarke e o Set trocam um olhar
como aquele que a Lola e eu partilhámos, depois pulam do
sofá e sal­tam sobre nós. Sou erguida do chão,
provavelmente como a mi­nha parceira, que solta uns
gritinhos, e aqui estou, ao ombro do Clarke, de cabeça para
baixo, como um vulgar saco de batatas.
Os dois melhores amigos vão direitos para a piscina.
— Ah não, não, não, isso não! — exclamo, meio divertida,
meio em pânico.
A Lola e eu gritamos e debatemo-nos, então o Set atira-
se para dentro da piscina, incentivado pelos rapazes. O
Clarke prepara-se para o seguir, mas eu grito:
— O meu coração vai parar!
O badboy estaca e ninguém mais fala nem respira.
Pousa-me delicadamente em terra firme, de testa
franzida pela preocupação.
— A sério?
— Tão a sério como o teu comportamento é amável.
Empurro-o com todas as minhas forças, mas agarra-se ao
meu braço e faz-me perder o equilíbrio. Na queda, puxa-me
contra o peito e caímos os dois à piscina, submersos por
uma água demasi­ado quente para que a temperatura seja
natural.
Quando volto à superfície, o Diabo dirige-me um sorriso
vitorioso.
— Devias ter cuidado.
Entendo o seu aviso quando levo com o tsunami de um
feno­menal mergulho, causado pelo Justin, o Tucker, o Sean e
o Jesse, que saltam em simultâneo.
Passo as mãos pelos olhos, para remover o excesso de
água e vejo a Lola a debater-se com o vestido, que se
levanta por causa dos redemoinhos. Olho para o meu e
descubro que estou com as nádegas à mostra. Faço um
beicinho irritado, mas debato-me lado a lado com ela. Rimos
com vontade.
Acabo por ir até à beira da piscina para tirar os sapatos,
que pouso na relva.
— O Carter não vai ficar nada satisfeito — adverte o
Justin.
— Que se lixe — responde o Set.
Assisto ao mergulho que o Jesse prega à minha amiga,
ele que tem um aspeto assustador. Não há dúvida de que o
Clarke é o mais perigoso, devido à violência dos seus
punhos e ao seu olhar. Mas se não os conhecesse, teria
jurado que era o Jesse que devia ser o mais temido. O seu
crânio não tem um milímetro de cabelo e está coberto de
tatuagens bastante assustadoras. E, no entanto, a minha
amiga vem à tona e insulta-o. Ele responde com uma
gargalhada afetuosa.
Eles só são perigosos para pessoas hostis. Bem, o Clarke
é pe­rigoso para qualquer um que olhe para ele de lado.
Contra todas as expectativas, este último vinga a Lola e
o Jesse engole uns pirolitos. Estão a lutar por diversão, mas
com uma for­ça fenomenal. A Lola afasta-se para evitar os
golpes e vem assistir ao espetáculo para perto mim, de
costas contra a borda da piscina.
— São umas pessoas fantásticas, apesar das aparências
— co­menta, pensativa.
Sorrio e vejo os rapazes a lutar todos juntos, no meio da
garga­lhada geral. O Clarke, o Set e o Justin contra o Tucker,
o Sean e o Jesse. É um bocado assustador, mas bonito de
ver. Porque eles adoram-se, e esse amor transparece nos
seus sorrisos, provoca­ções e insultos. Percebe-se que vão
sempre proteger-se uns aos outros, aconteça o que
acontecer. São irmãos e ninguém lhes pode tirar isso.
Contra minha vontade, os meus olhos pousam sobre o
Clarke. Fios de cabelo caem-lhe na testa e, quando sacode a
cabeça para limpar a vista, o sorriso torna-se brilhante. Este
espetáculo vai sempre surpreender-me e fascinar-me. É tão
raro que se torna precioso.
A T-shirt branca transparente colada à pele revela os
peitorais salientes e os abdominais de aço, sem mencionar
os músculos dos braços que incham quando levanta o Sean
por cima da cabeça e o atira para longe.
A Lola toca-me com um dedo.
— Para de te babar!
Olho para a minha amiga e bato as pestanas
inocentemente. Desta vez, estava efetivamente a babar-me.
Aproveito a desatenção dos rapazes para sair da piscina,
afas­tando a água com os braços. Percorro o relvado, vou até
ao terra­ço e pego na minha bolsa, que ficou ao pé do sofá.
Abro o frasco de comprimidos, coloco um na ponta da língua
e engulo-o sem água. Quando me viro, vejo o Clarke no
meio da piscina, imóvel, a olhar intensamente para mim,
com os cabelos negros a pingar-lhe para a cara.
Quando a Lola volta para o meio da piscina, para lutar
com o irmão, o badboy aproxima-se da beira.
Como que atraída por um íman, avanço para ele, sento-
me na borda e mergulho as pernas na água.
— Estás bem?
— Não estou a morrer, Clarke.
Ainda não.
Quando tento salpicá-lo com o pé, agarra-me o tornozelo
e eletriza-me com o gesto. Os seus dedos em torno da
minha pele pro­vocam um insidioso calor no meu corpo,
muito suave. Isso sur­preende-me e preocupa-me, mas o seu
olhar perdido no meu si­lencia as minhas dúvidas interiores.
Esta noite, sinto finalmente que ele não me detesta,
ainda que tenha o meu tornozelo preso na sua mão.
— Lamento ter-me assustado há bocado.
Ele sacode a cabeça e o seu olhar recai sobre onde as
nossas peles se tocam. Com o seu polegar, desenha um
círculo na minha pele. Apesar de ser jovem, o meu coração
já cansado falha um ba­timento, e o Clarke solta-me
gentilmente o pé, que regressa à água.
— Estamos habituados a ser temidos pelo nosso
trabalho. Mui­tas vezes, temos dificuldade em fugir dessa
imagem de criminoso.
— Então, Ava? O blusão dá-nos um ar mais porreiro? —
per­gunta o Tucker.
Sorrio, enternecida, e respondo:
— Pelo contrário... Acho-vos mais porreiros sem ele.
— Ou, então, não nos conheceste suficientemente bem
para formares uma opinião — atira-me o Jesse, defensor do
blusão a todo o preço.
Não tenho tempo para reagir, porque a voz do Carter
ressoa do outro lado do jardim.
— Ao meu escritório! Já!
A raiva que emana da voz dele provoca-me uma careta,
e não sou a única.
Ainda acrescenta, furioso:
— E entrem pelo jardim!
Reina um silêncio total por alguns segundos. Ninguém se
atre­ve a falar ou a fazer o menor movimento, com medo de
atrair ain­da mais fúria.
— Eu bem disse... — resmunga o Justin.
Caminha para os degraus um bocado agitado e fico a ver
a pis­cina esvaziar-se. Depois tiro os pés da água e levanto-
me. De sa­patos e bolsa na mão, vamos pingando enquanto
atravessamos o jardim. A Lola e eu rimos como duas
garotinhas repreendidas pe­los pais, enquanto os rapazes se
provocam uns aos outros. Afinal, ninguém parece realmente
preocupado com o que nos espera.
Damos a volta à casa e, depois de o Set abrir uma janela
alta envidraçada, entramos no escritório, à vez. Aqui
estamos os oito, em fila, diante do Carter, sentado à
secretária, à espera que nos dê cabo da cabeça. Com uma
cara dura, o boss olha fixamente para nós com o seu ar de
superioridade, mas não sinto um pingo de medo ou
apreensão. Os rapazes destruíram todas as minhas dúvidas,
com a sua despreocupação.
— Por todos os deuses, dão-se conta da imagem que
fazem pas­sar de nós?
— Ele está à espera de resposta? — pergunta o Tucker.
— Acho que não, é uma pergunta retórica — responde o
Justin, com um encolher de ombros.
Aperto os lábios para conter o riso, enquanto o Carter
lhes ber­ra que calem a boca, fora de si. As suas feições
estão contraídas, os olhos disparam raios e os lábios
formam uma linha reta muito fina.
— Os temíveis Filhos do Diabo atiram-se à piscina
durante uma festa da Aliança, cuja principal preocupação é
os tratados de paz! — enfurece-se o Carter, batendo com o
punho na secretária.
A autoridade que emana dele faz-me dobrar as costas.
Nin­guém se atreve a olhá-lo nos olhos, exceto o Clarke, é
claro.
— Vocês têm sorte de ninguém vos ter visto! Vão para
casa an­tes que alguém se aperceba de que o meu gangue
parece uma merda de uma colónia de férias!
Sem mais demoras, damos meia-volta para a janela alta
envi­draçada e a Lola é a primeira a pôr os pés na rua.
— Clarke e Avalone. Fiquem.
Estaco; e o bloco de gelo por trás de mim encaixa-se com
tanta força nas minhas costas que, por um segundo, temo
que não des­colemos. Graças aos deuses, ele teve o reflexo
de me segurar pelos ombros. Enfadada, viro-me para o
Clarke e noto uma ponta de diversão nos seus olhos.
— Da próxima vez, apresento queixa contra o teu ginásio
onde fazes musculação... sua besta.
— Podes sempre tentar, Beleza.
Com algo próximo de uma cumplicidade, voltamos ao
meio da sala, para enfrentar o Carter.
— Estás a tomar medicação porquê?
«Não tem nada a ver com isso!» certamente não o
satisfará. Tenho o personagem bem estudado, por isso
seguro o seu olhar, mas coopero.
— Tenho uma insuficiência cardíaca.
Passado o espanto para uma espécie de desolação, o
Carter en­direita-se e cruza os dedos sobre a secretária.
— Devias ter-me contado. Podia ter-te pedido um serviço
que exigisse esforço físico ou demasiada pressão sobre o
teu coração. E acredites ou não, não contrato pessoas para
as mandar para o matadouro. Quero que me mantenhas ao
corrente, se o diagnósti­co evoluir.
— Acho que não lhe devo nada, mas o Carter Brown
consegue sempre o que quer, não é?
Ele deita-me um olhar fulo, mesmo muito irritado.
— Exatamente. Se não me deres a tua ficha clínica, vou
busca-la diretamente ao teu médico.
Uma bola de raiva nasce na minha garganta e olhamo-
nos fi­xamente. Quando percebe que não vou baixar os
olhos, volta a atenção para o Clarke.
— Quanto a ti, o Anjo continua a ser intocável. Agradecia
que continuasses a conter a tua raiva em relação a ele. O
nosso acordo com os Pais do Demónio é muito valioso, mas
não é eterno. Um pouco mais de paciência. Um dia, vais
poder dar-lhe o troco que merece.
O meu estômago retorce-se de uma maneira pouco
agradável. Não devia surpreender-me que o Carter incentive
essa vingança, mas mesmo assim! Se o Clarke tocar no Anjo
com a sua permis­são, todos sabemos o que resultará.
— Como é que ainda tem autoridade sobre o Anjo, na
presença do líder dele? — pergunto.
O espanto estampa-se no rosto do Carter, no entanto não
é uma implicação minha, apenas curiosidade.
— A Aliança só existe por minha causa. Não só o meu
gangue é reconhecido como o mais poderoso do tratado,
como, sem mim, os gangues estariam em guerra e davam
cabo dos negócios uns dos outros. Não tenho plena
autoridade sobre eles, mas tenho in­fluência, e sou o único
que decide se um gangue entra ou é excluí­do da nossa
aliança. Continuas a não querer o teu dinheiro?
— Claro.
Controla-se para não olhar para o ar e reclina-se na
cadeira.
— Esses medicamentos podem...
— Não — atalho. — Vou morrer. Amanhã, daqui a um
mês, da­qui a um ano ou quinze, vou morrer. É... instável.
O Clarke fica tenso ao meu lado e sinto que nem ele nem
o Carter respiram. Cai um silêncio de chumbo sobre a sala e
eu dano-me comigo mesma.
— Agora que já sabe, vai deixar esta pobre doente em
paz, lon­ge de si e do seu gangue, para que ela possa
repousar sem sobre­carga emocional? — digo, tentando o
tudo por tudo.
O seu olhar percorre lenta e minuciosamente o meu
corpo, mas sem perversidade ou algo que se aproxime
disso, é apenas uma observação clínica, como um médico
faria.
— A piedade não faz o meu género. Hás de descansar na
tua cama de hospital.
Deito-lhe um olhar furibundo, ao qual ele responde com
um sorriso desprovido de emoção.
— Faz a ti mesma as perguntas certas, Avalone.
— O que quer isso dizer?
O seu olhar torna-se tão intenso que me sinto como se
estives­se nua. Gesticulo, desconfortável.
— Porque concordaste em ajudar-nos sem te debateres?
— Porque me ameaçou! — lanço-lhe com desprezo e os
meus punhos tremem de raiva.
— Balelas!
Abro a boca para protestar, mas fecho-a imediatamente,
trava­da pelo dedo do Carter que me aponta o caminho para
a janela alta envidraçada.
Furiosa, saio do escritório, com o Clarke colado aos meus
cal­canhares. Abano a cabeça várias vezes para evitar que
as palavras do outro penetrem no meu cérebro, e chegamos
ao estacionamen­to em silêncio. O carro da Lola já aqui não
está, mas há uma mota, além da do Clarke.
— Ainda cá está outro Diabo?
— O Set deve ter levado a irmã de carro. Volto cá depois
com ele, para vir buscar a sua Harley.
***
Chegados à cidade universitária, o Clarke acompanha-me
em silêncio até à residência. Não sei o que o está a pôr tão
tenso, mas está zangado e a aparência de cumplicidade que
partilhámos desapareceu.
No corredor do terceiro andar, passamos pelo Set que,
contra todas as expectativas, me abraça. Fico imóvel,
surpreendida por este contacto, depois abraço-o com um
sorriso nos lábios.
— Obrigado mais uma vez pelo que estás a fazer pela
Lola. Não podia imaginar melhor amiga para a minha
irmãzinha. Nem sabia sequer que podia existir uma pessoa
como tu.
Separo-me dele e descarto os seus agradecimentos.
— Não tens nada que me agradecer, é normal.
— Acredites ou não, não é nada normal. Ninguém se teria
ven­dido a um boss para salvar a sua nova companheira. Ela
é minha irmã e, no entanto, essa solução — o teu sacrifício
— não me pas­sou pela cabeça nem por um segundo.
Pergunto-me se não devia calar-me e faço uma careta, o
que o faz soltar um riso franco.
Agradeço aos rapazes por esta noite, especialmente ao
Clarke por me trazer de volta, e depois de receber dele um
olhar tão frio como o Niflheim17, vou para o meu quarto.
— Até breve, adorável Diabazinha — brinca o Set.
Levanto o dedo médio por cima da cabeça e ouço-o a rir
nas minhas costas, o que tem o dom de me arrancar um
sorriso.
Encontro a Lola de pijama, deitada na cama, a olhar para
o teto, mergulhada nos seus pensamentos. Apresso-me a
fazer a hi­giene noturna e vou para a minha.
— Eles sabem fazer contrafestas — sussurra ela, com um
ar satisfeito.
Rio-me. De diversão, de frustração, de raiva. Esta noite
foi rica em emoções e, apesar de todas as chatices que me
aconteceram, estou feliz por ter estado com os rapazes. Não
são como pensava, devo admitir que gosto deles.
Penso nas palavras do Carter e na sua pergunta: sei a
resposta.
Porque concordei em ajudá-los sem me debater? A Lola
tem uma vida inteira pela frente. Eu vou morrer e...
Sacudo a cabeça para evitar que surjam pensamentos
mais profundos. No entanto, o silêncio não me ajuda a
mantê-los afas­tados. Aceitei, sem me debater, pelo futuro
da Lola; mas também porque não quero morrer sem ter
vivido. Quando fiquei trancada na sala de interrogatório,
depois do meu falso testemunho, quan­do pensei que tinha
entregado os rapazes à polícia, senti emoções demasiado
fortes, muito mais fortes do que as que experimentei até
então. Naquele momento, mais que nunca, tomei
consciência de que estava viva. Dolorosamente, é verdade,
mas tomei consci­ência disso.
A Lola muda de posição e vira-se de bruços. Olha para
mim, com a cabeça apoiada nas palmas das mãos.
— O que é que o Carter queria?
— Converseta sobre doença cardíaca e lembrar ao Clarke
que o Anjo é intocável.
— Hum.
Apaga a luz, mergulhando-nos na escuridão, mas sei que
ainda tem coisas para me dizer, e fico à espera.
— Sabes — retoma. — Eu acho que o Clarke fica muito
estranho quando estás por perto. E tu também. Vocês têm
um dom incrível para passar da troca de insultos a
devorarem-se com os olhos.
Puxo a almofada debaixo da minha cabeça para a atirar à
cara da Lola, que a agarra em voo e desata a rir.
— Só dizes disparates!
— És assim tão ceguinha? Gostas dele, Avalone! E, com
toda a franqueza, acho que ele também gosta de ti. Caso
contrário, porquê saltar constantemente do amor ao ódio?
Amor? Não há amor nenhum! Com ele, sinto-me numa
mon­tanha-russa. Ele alterna entre o seu lado de besta
quadrada e o de tipo porreiro.
Levanto-me, furiosa, e recupero a minha almofada, antes
de voltar para a cama, não sem voltar as costas à Lola.
— Não há amor nenhum, mal nos suportamos.
— Ora, pois. Agora, vai haver um tempo morto, mas
quando os Diabos voltarem, aposto em como se vão
aproximar.
Volto-me no colchão e deito um olhar confundido à Lola.
— Quando voltarem?
— Eles partem amanhã para o Texas. O Clarke não te
contou?
É preciso terem lata! O Carter liga-me às suas atividades,
mas não me avisa da partida deles.
Devo, pois, esperar sossegadamente que me apareçam
de im­proviso para uma nova missão?

17Niflheim é um dos nove mundos da mitologia nórdica.


É um reino caótico, de gelo e geada.
Capítulo 10

Hoje, acordei consciente de que não veria o Clarke nem


ne­nhum dos Filhos do Diabo. Uma semana sem ajudar o
Carter a cometer delitos deixa-me radiante. Parecendo que
não, é um alí­vio para mim.
A Lola e eu fomos ter com o Daniel e o Jackson à
cafetaria, após o primeiro treino deles, e conhecemos o
Wyatt, o running back da equipa, que nos elogiou a exibição
de claque no dia do selecionamento. Aparentemente, ele e o
resto da equipa estavam junto ao campo e só nos ouviram a
nós. Incitou-nos a voltarmos a fazer o mesmo dentro de
uma semana, no primeiro jogo da temporada.
Quanto ao Daniel e à Lola, não pararam de trocar olhares
lân­guidos. É só uma questão de tempo até que se
entendam os dois.
Neste momento, estou numa aula e o Jackson está que
não se aguenta. Aurora, a sua namorada, chega hoje. O
meu relógio mar­ca 15I159 e os seus pertences já estão
guardados na mochila. Tro­co um olhar divertido com a
Emily, quando a campainha toca e o nosso amigo dá um
pulo. Desce os degraus tão rapidamente que temos
dificuldade em segui-lo. É o primeiro aluno a abrir as por­tas
do anfiteatro e, a cerca de dez metros de nós, aparece uma
ra­pariga encantadora, que o aguarda com um grande
sorriso e uma mala aos pés.
Quando os dois enamorados se encontram, beijam-se
apaixo­nadamente, como se nada importasse para além
deles. Separam-se, finalmente, sem fôlego, e o Jackson
transmite todo o seu amor por ela num poderoso beijo na
testa.
Invejo as pessoas apaixonadas. Nunca amei um rapaz,
sempre me privei disso para poupar ao feliz contemplado a
minha doença. Assim, arranjo desculpas para mim mesma.
Este ano, é «as aulas são a minha prioridade». No ano
passado, foi «um bom cur­rículo para entrar na melhor
faculdade», embora soubesse muito bem que apenas as
universidades públicas estariam ao meu al­cance financeiro.
Depois de algumas demonstrações de ternura, o Jack e a
Auro­ra juntam-se a nós de mãos dadas.
— Meninas, esta é a Aurora. Coração, estas são a
Avalone e a Emily.
— Já ouvimos muito falar sobre ti — cumprimento-a, com
um grande sorriso afetuoso.
— Eu também, o Jack adora-te!
Absorvidos um com o outro, os amantes não veem o
Wyatt aparecer, ao longe. Chegado ao pé de nós, o running
back executa um passo de dança, que resulta na perfeição.
— Vamos dar uma festa no lago Whitmore com a malta
da equipa. Vocês aparecem?
O Jackson e a Aurora aceitam o convite, enquanto a
Emily me deita uma olhadela. Prefere esperar pela minha
resposta, antes de se pronunciar.
— Sim, vamos! — respondo por nós as três.
Incluo a Lola no lote, escusado seria dizer.
O Wyatt sorri, feliz com a nossa presença, e o Jackson
aprovei­ta a oportunidade para o apresentar à namorada.
— Até que enfim que te vejo! Mal posso esperar para te
conhe­cer melhor! Para já, tenho aulas, mas fico à vossa
espera esta noi­te. Vai haver churrasco. Há lá tudo o que é
preciso, basta levarem os vossos corpos.
Vemos o atleta afastar-se e cumprimentar todos pelo
caminho. Depois de algumas palavras com a recém-
chegada, a Emily e eu deixamos o casalinho e vamos para
os nossos respetivos quartos.
Entro e a Lola está deitada no chão, em estrela, a olhar
para o teto. Rio-me desta palhaça, que tem sempre uma
palavra ou um comportamento que fazem rir.
— Mas o que estás tu a fazer no chão, bela morena?
— Não sei. Está fresco e eu estou com calor.
Pouso as coisas em cima da minha cama, antes de me
deitar ao lado da minha amiga.
— O Daniel.
Ela vira um rosto surpreendido para mim.
— Sabias?
— Vê-se como o nariz no meio da cara, Lo.
Ela ri e coloca as mãos sobre os olhos, com o cérebro em
ebulição.
— Gosto imenso dele, mas vai entrar para a equipa de
futebol! E se ele muda? E se lhe sobe à cabeça?
— Se, se, se... Com tantos «ses», não vais a lado
nenhum. Dei­xa-te ir e depois vês. Não tens nada a perder.
Olha, vais gostar de saber que estamos convidadas pelo
Wyatt para uma festa no lago Whitmore. Os tipos da equipa
vão estar lá, por isso...
A minha amiga endireita-se bruscamente, como se eu
tivesse acabado de lhe abrir uma porta para o Asgard18.
— O Daniel vai lá estar!
Começo a preocupar-me, porque ela deixa de respirar.
Tenho de estalar os dedos diante da cara dela, para a
chamar de volta à realidade.
— As festas à beira do lago são as mais românticas.
Desmancho-me a rir. Definitivamente, ela não perde
uma!
— Sim. E temos encontro marcado para as vinte horas.
A Lola sorri com todos os dentes e levanta-se à pressa.
Pega na toalha e no gel de banho.
— Não demoro! — diz, a cantarolar.
Sai e bate com a porta.
Escancaro a boca num bocejo e decido descer à cafetaria
para tomar um café. É uma bebida sistematicamente
desaconselhada para pessoas com insuficiência cardíaca,
porque há um risco, de­monstrado por estudos
experimentais em cães, mas nada confir­mado em humanos.
Por isso, só bebo em caso de força maior.
Vou nas calmas e saio com o copo de café na mão,
quando jul­go que estou a alucinar. Pestanejo repetidamente,
mas é mesmo verdade, tenho o Anjo bem aqui à minha
frente. E o olhar que me lança é pouco tranquilizador. Mas
está no seu dia de sorte, dormi tão mal ontem à noite que
não tenho forças para brigar.
— O que queres?
— Com os Diabos ausentes, estou encarregado de cuidar
de ti.
Acho que é uma piada e desato a rir. Depois lembro-me
de que, neste meio, as piadas não são habituais.
Que grande merda...
— Ironia do destino! O tipo que traiu os Filhos do Diabo
deve velar por mim! Notícia de última hora: eu não preciso
de acompanhante!
O Anjo parece partilhar a minha opinião, no entanto, não
deve ter escolha. Nem eu.
Cruzo os braços.
— Porque continuas a gravitar em torno dos Filhos do
Diabo, se mudaste de campo?

É
— É o meu castigo por tê-los traído. Mudei de gangue,
mas o Carter vai sempre ter poder sobre mim. Como tem
sobre todos, o filho da mãe.
Sacode a cabeça.
— Ouve, não sei porque não lhe disseste que o teu
medicamen­to tinha apanhado água, mas fiquei a dever-te
uma. Portanto, acredita, não estou aqui para te causar
problemas. Recebi ordens, não tenho escolha: ou aceitas, ou
ligas para o teu chefe, a dizer que não precisas de mim;
mas ambos sabemos que, depois de to­mar uma decisão, ele
não volta atrás.
Tem razão. O Carter não vai revogar a ordem e eu não
quero brigar com ninguém, hoje. Mas também não tenciono
deixar isto passar sem dizer nada.
— E quais são as suas ordens? Não parece que eu esteja
especi­almente em perigo.
Ele encolhe os ombros e passa a mão pelo cabelo, com
uma certa lassidão.
— Ficar à coca, para garantir que nada te aconteça.
Passa-me o teu telemóvel.
Franzo a testa, desconfiada.
Se também decide deitá-lo à água...
— Vou gravar o meu número, para o caso de teres
problemas — explica, dada a minha relutância.
Hesito uns segundos, mas quero chegar ao meu quarto o
mais depressa possível e, portanto, acabo por ceder e
entrego-lhe o ob­jeto dos seus desejos.
— Se também puderes gravar o do Carter, era bom. — O
Anjo confirma com a cabeça e tecla no ecrã.
— Avisa-me quando tiveres saídas previstas, para eu
ficar pela zona.
— Ainda não tenho nada planeado — minto.
Devolve-me o telemóvel e retoma o seu caminho, após
breves saudações.
Não perco um segundo a ligar para o Carter.
— Avalone!
Como sabe que sou eu? Como conseguiu o meu número?
Abano a cabeça para me concentrar no que é mais
importante.
— Mas que porra vem a ser esta com o Anjo?
— É para tua proteção.
— Eu não preciso disso! E a sério, o tonto do Anjo?
Por mais que me sinta culpada por colocá-lo em apuros,
isso não apaga o que ele fez no passado.
— O Anjo é muito bom no que faz. É ele quem melhor
pode cumprir essa função.
Solto uma gargalhada nervosa.
— Pois, é verdade, ele nunca traiu os seus!
— Tenho de desligar, falamos disso numa próxima vez.
— O temível Carter Brown foge, em vez de dar respostas!
Tem consciência de que está apenas a adiar o inevitável?
Estou a co­meçar a ficar farta das suas manigâncias!
Desliga-me o telefone na cara e uma enxurrada de
insultos sai das profundezas da minha alma. Eu, que estava
feliz por não ter uma missão às costas, terei de passar os
próximos dias a brincar às escondidas.
Depois de um bom duche relaxante, algumas explicações
à Lola e a preparação para a noite que nos espera,
encontramo-nos com a Emily no estacionamento e
partimos. Não é preciso mais do que boa música para
despertar as folionas que há em nós. Até a Emily está
relaxada e a apreciar este momento.
Ao fim de quinze minutos, chegamos ao lago.
Estacionamos no parque de terra batida e saímos do carro
ao mesmo tempo que chega o Jackson. Estaciona ao nosso
lado, depois sai com a Auro­ra e o Daniel. Este coloca o
braço por cima dos ombros da Lola e beija-lhe a têmpora.
— Vou ficar por cá um pouco mais do que o planeado —
declara a Aurora.
Até o Jackson fica surpreendido, mas não tarda a sorrir
como um palerma.
— Quanto tempo?
Ela olha para todos nós rapidamente, com um sorriso
brilhan­te, depois concentra-se no namorado.
— Eu diria que seis anos...
O rosto do Jackson ilumina-se como nunca o vi antes.
— Mentira? Vens para cá estudar?
— Sim.
Ele solta um grito vitorioso e abraça a namorada. Sorrio,
en­cantada pelo nosso amigo e feliz por acolher a Aurora no
nosso grupo. O Jackson solta-a e beija-a ternamente, com os
olhos a brilhar de felicidade.
— Estamos em absoluta superioridade numérica,
meninas! — exclama a Lola. — Acabaram as intermináveis
conversas sobre futebol!
Os rapazes protestam e a Aurora ri e afirma que está
radiante por ser útil ao género feminino. Depois disso, a Lola
não lhe dá nem um centímetro e disseca a sua vida pessoal,
a caminho do lago.
Duas dezenas de estudantes aparecem à beira da água.
Vestem a camisola da equipa com as cores da universidade.
Há uma fo­gueira acesa, muitas geleiras com diferentes
bebidas, sai música de um altifalante e dois rapazes tratam
do churrasco.
O Wyatt vem ter connosco, com o grande sorriso
afetuoso que o caracteriza.
— Estávamos só à vossa espera!
O Jackson e o Daniel cumprimentam o seu running back,
que põe os braços à volta do meu pescoço e do pescoço da
Emily, que cora imediatamente, e leva-nos até ao pé dos
outros. Depois de algumas apresentações, a Emily e eu
vamos buscar uma limonada à geleira, enquanto os
rapazes, a Lola e a Aurora optam por uma cerveja.
O meu telemóvel vibra no bolso de trás e, oh espanto,
recebo uma mensagem do Anjo!
Caraças, como conseguiu o meu número? Guardou o dele
no meu telemóvel, mas eu não lhe dei o meu.
[O carro da Lola não está aqui.
Onde estás?]
[Estás a ficar paranoico! Vai para casa, estou
bem.]
Guardo o aparelho no bolso, mas ele vibra logo de
seguida e solto um grunhido de genuína irritação.
[Avalone, recebi ordens.
Por favor, onde estás?]
Deve estar realmente desesperado, para usar frases
educadas. E eu não sou uma cabra. Não gosto que me lixem
a vida, portanto não faço isso aos outros.
[Lago Whitmore.
Não te venhas armar em desmancha-prazeres.]
O capitão da equipa para a música e chama a nossa
atenção.
— Sabemos que os nossos anos na universidade vão ser
os me­lhores das nossas vidas, mas também serão os
últimos anos em que nos podemos realmente deixar andar,
antes de sermos sobre­carregados com responsabilidades.
Esta noite, temos um pequeno evento noturno. Amanhã,
começa o projeto X! No entanto, a re­gra é sempre a mesma:
não quero ver uma única garrafa cheia no final da noite!
Crescem gritos de aprovação e brindamos, no meio de
um bom ambiente. O quarterback dirige-se para o pé de nós
e vai receben­do abraços dos colegas de equipa pelo
caminho. Olha fixamente para as minhas pernas e o sorriso
nos seus lábios apaga o meu.
— Não fomos apresentados — diz, dirigindo-se às
raparigas. — Chamo-me Logan.
O Daniel encarrega-se das apresentações, mas esta
besta deste jogador de futebol é incapaz de nos olhar nos
olhos. Gala-nos abertamente e passa do decote às pernas,
sem se preocupar com o nosso mal-estar.
O Jack, que não aprecia que olhem assim para a
namorada, pigarreia, e um estranho aparece em nosso
socorro. Fala ao ouvi­do do capitão e o Logan confirma com a
cabeça, antes de olhar para mim.
— O dever chama-me. Espero conhecer-te melhor, ao
longo da noite!
Não respondo e ele recua com um sorriso arrogante,
depois passa a língua pelo lábio inferior e faz meia-volta.
A cabeça da Lola surge por cima do meu ombro. Sussurra
ao meu ouvido:
— Afinal, com o teu olhar assassino, o teu lugar é com os
Filhos do Diabo.
Desato-me a rir e preparo-me para me voltar para ela,
quando uma dor de invulgar violência no peito me tira o
fôlego. Preocu­pada, abro a bolsa em busca do
medicamento. Mas não o tenho comigo. O stresse invade-
me, quando percebo que o deixei no quarto. Trinco o interior
das bochechas, com dificuldade em res­pirar e a sentir-me
fraca. A dor intensifica-se e o pânico redobra, quando me
dou conta de que não o tomei o dia todo.
Nem um único comprimido. É uma bomba!
Sinto o sangue fugir-me do rosto. A respiração acelera e
fica mais sacudida. Agarro no braço da Lola e afasto-a uns
metros. Quando olho para ela, assusto-a.
— Estás terrivelmente pálida!
— Esqueci-me de tomar a medicação hoje e... não tenho
os comprimidos comigo.
O medo instala-se no seu rosto, começa a ficar em
pânico e as minhas mãos tremem.
— Okay, voltamos para a residência. Já.
Avança para o carro, mas agarro-lhe o braço, para
obrigá-la a parar.
— Não, fica! O Anjo está por perto, leva-me lá e volto
depois. Aproveita.
— Isso está fora de questão! Não te vou deixar neste
estado, muito menos com esse burgesso!
Retoma a marcha, mas eu travo-a. Recuso-me a ser a
colega que a impede de se encontrar com aquele por quem
está apaixonada.
— Estou bem — insisto. — Só tenho de tomar o
medicamento. E, quando voltar, quero ver-te a ti e ao Daniel
mais perto do que nunca!
Ela olha fixamente para mim, hesitante, depois aponta
um dedo ameaçador.
— Liga-me quando estiveres no quarto ou se tiveres
algum problema!
— Prometido.
Beijo-a, depois afasto-me da minha amiga e do fogo de
campo. Permaneci calma e serena na frente da Lola, mas,
uma vez fora do ângulo de visão de todos, permito-me
mostrar tudo no rosto.
Durante alguns anos, tive tendências agorafóbicas. Não é
o medo de multidões, como a maioria das pessoas pensa,
mas o medo de não poder fugir se algo der para o torto.
Tenho a maior vergonha do mundo de poder ter um ataque
de pânico na presen­ça de testemunhas. Porque quando
tenho um, não é apenas a dor, mas também o medo de
morrer que me põem num estado lasti­mável. É-me
insuportável ser vista assim despojada, tão fraca e
aterrorizada por algo inelutável. Não quero ver o olhar
curioso do outro, onde se lê a incompreensão e a piedade,
ao mesmo tempo que me sinto a partir.
Tenho frequentemente palpitações e faltas de ar que
podem ser violentas, mas este tipo de sintomas não augura
nada de bom. Pego no telemóvel, com as mãos a tremerem
e o peito a doer, e ligo o número do Anjo, que atende sem
se fazer rogado.
— Está tudo bem?
— Preciso que tu...
A minha cabeça gira de tal modo que tenho de me
agachar, para recuperar alguma aparência de equilíbrio.
— Vem buscar-me, e depressa! Esqueci-me da
medicação.
Segue-se um longo silêncio, depois solta um palavrão.
— Estou no estacionamento!
Ele desliga e eu endireito-me, cambaleante. Avanço para
o parque de terra batida, com a respiração cada vez mais
curta. O Anjo já está à minha espera no exterior do seu
carro e corre na minha direção, com as feições deformadas
pela preocupação.
— Está tudo bem?
Pergunta parva.
— Não. Temos de ir.
Ele abre-me a porta do lado do passageiro, depois corre
para a dele. Dá à chave e arranca na mecha. As dores são
persistentes, estou a começar a ficar seriamente com medo.
— É grave se te esqueceres da medicação por uma
noite?
— Não.
— Então, porque pareces estar a entregar a alma ao
criador?
— Porque não tomo nenhum comprimido desde ontem à
noite. Esqueci-me.
O Anjo acelera bruscamente. Ultrapassa outros carros,
que nos buzinam. Concentro-me na minha respiração, como
o médico me ensinou. De olhos fechados, inspiro e expiro
pausadamente, para me acalmar. Para um doente cardíaco,
a ansiedade não é de todo amiga.
— O que tens exatamente?
— Insuficiência cardíaca.
Solta um palavrão e acelera ainda mais.
— Quantos comprimidos falhaste?
— Oito.
— Foda-se, tinhas de esquecer-te deles quando estás sob
a mi­nha proteção! É o cúmulo da ironia! Queres que me
limpem o sebo?
Numa explosão de raiva, exclamo:
— Só pensas em ti, como quando traíste os Filhos do
Diabo!
O Pai do Demónio olha fixamente para mim, de
sobrancelhas arqueadas, depois desvia o olhar.
Bem, se ainda me consigo irritar, é bom sinal...
— Não vou falar sobre isso contigo, especialmente
quando o teu coração se pode ir abaixo a qualquer
momento e o teu olhar está tão assustador. Mas, para tua
informação, nunca desejei a morte do Clarke. O combinado
era que a bala não atingisse ne­nhum órgão vital. Era apenas
para desviar a atenção, para eu po­der fugir com os Pais do
Demónio.
— É isso que murmuras à tua consciência, à noite, para
conse­guires dormir?
— Tu não percebes! O Carter nunca me deixaria sair, sem
um ato de traição!
Não tenho forças para lhe responder, porque me sinto
mais fraca de segundo para segundo. Uma dor perfura-me o
peito e abafo um grito que me traz lágrimas aos olhos.
O Anjo acelera cada vez mais e chegamos rapidamente à
resi­dência. Desço do carro, dobrada ao meio, e vou com
dificuldade até às escadas, com o Pai do Demónio colado
aos calcanhares.
Junto dos degraus, ele levanta-me e carrega-me contra o
peito, subindo dois a dois. Se ele ainda não tinha entendido
que a situa­ção era grave, as lágrimas de dor e medo a
escorrerem pelo meu rosto convenceram-no.
A minha respiração está ofegante e o peito dói-me cada
vez mais. Sinto-me sufocar e tenho a sensação de que estou
a morrer. Era para o hospital que eu devia ter pedido para
ele me levar. Tal­vez agora já seja demasiado tarde...
— Vamos lá, coragem, mais uns passos!
Os meus pensamentos não são muito variados, neste
momen­to. Giram em torno da minha mãe e da morte. Nunca
me tinha esquecido de tomar os comprimidos, até hoje, e se
eu morrer por causa disso, juro que ponho a deusa da morte
tão louca que me vai mandar de volta para o mundo dos
vivos!
Hoje, cada dia é um bónus para mim. Eu devia mostrar-
me grata, mas não quero morrer. Aceitei a minha doença e
o facto de que ia bater as botas muito mais cedo do que os
outros. Acho que é essa a razão pela qual quero tanto viver.
Porque aceitar não é resignar-se.
— Qual é o número?
— Trezentos e sete.
O Anjo pousa-me cuidadosamente em cima das minhas
pernas de plasticina e apoia-me. Estou exausta, a visão
turva-se.
Vasculha a minha bolsa, encontra as chaves e abre a
porta. En­tretanto, o oxigénio rarefaz-se nos meus pulmões.
Põe o telemó­vel em alta-voz, mas não entendo o que está a
dizer nem com quem está a falar. Estou gradualmente a
desligar-me da realidade.
O primeiro passo que dou no quarto é fatal. As pernas
cedem sob o peso do corpo e bato no chão com violência.
Fica tudo esborratado em meu redor. O meu coração está a
ir-se abaixo, sin­to-o no mais profundo do meu ser. Os
pensamentos ficam confu­sos, mas uma voz alcança-me
num eco.
— Vou pô-lo em contacto com o médico dela, não
desligue.
Ajoelhado à minha frente, apavorado, o Anjo ordena-me
que mantenha os olhos abertos. Infelizmente, as minhas
pálpebras estão a ficar demasiado pesadas.
— Que Eir19 venha em teu socorro...
— Não quero morrer — digo, num murmúrio.
Sinto as lágrimas nas bochechas e um medo avassalador
den­tro de mim. O Anjo não olha para mim com pena, mas
com culpa e tristeza. Segura com força uma das minhas
mãos na dele.
— Não te conheço, mas com um olhar como o teu, não é
certa­mente um simples coração que vai deitar-te abaixo!
Tens de lutar, Avalone!
Agito as pálpebras. Cada respiração torna-se uma tortura
e re­cuso-me a resistir mais.
— Está? Ela apagou-se! Está a ficar inconsciente! Ela
esqueceu-se da medicação o dia todo!
— Tenha calma, senhor. De quem está a falar?
— De Avalone Lopez!
Um silêncio de morte cai sobre o quarto e depois:
— Hospital! IMEDIATAMENTE!

18 Asgard é um dos nove mundos da mitologia nórdica. É


a residência dos deuses Aesir dos quais Odin faz parte.
19 Eir é uma divindade menor. É serva de Frigga, mulher
de Odin, e é conhecida pelos seus dons de curandeira.
Capítulo 11

Um sinal sonoro incessante. Um travesseiro confortável.


O sol através das cortinas.
— Posso enviar-lhe uma ambulância, mas o tempo é
decisivo. Pode levá-la ao hospital?
— Sim, estamos a caminho.
— É imperativo vigiar-lhe o pulso...
Um sinal sonoro incessante. Uma sensação
desconfortável em todo o corpo. Uma dor intensa no peito.
Tenho de piscar várias vezes as pálpebras para ficar com
uma visão nítida, mas a luz cega-me. Após alguns segundos
de adapta­ção, olho em redor. É tudo de um branco
imaculado. Estou num quarto de hospital, mas não estou
sozinha.
A Lola está diante da janela e o Anjo, aborrecido, folheia
uma revista do outro lado do quarto.
— Quanto tempo dormi?
Voltam-se para mim em sobressalto. Um sorriso ilumina o
rosto do Anjo e a Lola desmancha-se em lágrimas, em
silêncio, devastada.
— Vinte e quatro horas — sussurra o Pai do Demónio. — E
o teu despertar foi agitado. Eles puseram-te a xonar com
ansiolíticos e dormiste mais dois dias.
Solto um suspiro de frustração. Acordar e saber que
acabaste de perder vários dias de uma vida curta é
enfurecedor e doloroso.
— Pregaste-nos um belo susto — retoma o Anjo, com um
meio sorriso.
Aproxima-se de mim.
Curiosamente, a sua presença incomoda-me menos do
que há três dias. O facto de ele me ter salvado a vida pode
ter que ver com isso... Estou-lhe grata, apesar de estar
apenas a cumprir ordens.
— Não me disseste que estavas tão mal! — grita-me a
Lola, chateada.
A culpa dá um nó nas minhas entranhas.
— Estou viva, Lola.
— VIVA? — berra, com as bochechas banhadas de
lágrimas. — Fui ter com o Anjo à rua e, quando chegámos
ao hospital, tu esta­vas morta! O TEU CORAÇÃO PAROU DE
BATER!
O sangue gela-me nas veias. Fiz uma paragem cardíaca
há muito tempo, mas é sempre assustador, especialmente
porque os médicos têm cada vez menos possibilidades de
me reanimar.
Os ombros da Lola são abanados por soluços
incontroláveis.
— Foram os mais longos e horríveis noventa e três
segundos da minha vida!
Olho para Lola com toda a desolação que me habita, mas
ela fecha os olhos e morde o lábio até fazer sangue. O Anjo,
com o braço por cima dos ombros dela, a confortá-la, faz-
me vislumbrar a cena de há três dias: eu, na maca; os
médicos e enfermeiros à volta do meu corpo, a tentar
reanimar-me no parque de estacio­namento do hospital; a
Lola a berrar de pânico e a chorar de tris­teza; o Anjo a
abraçá-la, para a acalmar; o seu olhar aterrado, pousado
sobre o meu corpo sem vida. Então, lembro-me da Nora, a
minha antiga melhor amiga, que cortou os laços comigo
para não estar por perto quando eu morresse.
É a minha vez de fechar os olhos. De mãos trémulas,
retiro os tubos que me entram nas narinas, enquanto a Lola
e o Anjo ficam atónitos, em pânico.
— Mas o que é que te deu?
— Respiro sem dificuldade.
Endireito-me com cuidado. Sinto-me muito fraca e tenho
uma dor atroz no peito, provavelmente por causa da
massagem cardíaca.
— Avisaram a minha mãe?
O medo de que ela tenha sido informada do meu
internamento deixa-me maldisposta.
— Não. Proibiste-nos de o fazer quando te estavas a ir
abaixo.
Graças aos deuses, mesmo quando estou mais para lá
que para cá, continuo clarividente. A minha mãe não pode
saber disto. En­louquecia de tristeza e mandava-me de volta
para casa.
Uma enfermeira entra no quarto, seguida de perto pelo
meu novo médico. Ambos sorriem, felizes por me verem no
mundo dos vivos.
— Como te sentes, Avalone? — pergunta o homem de
bata branca.
— Não muito mal, aguenta-se.
Percorre os resultados das minhas análises e sei de
antemão que vai dar direito a um relato completo que me
entediará de morte. Antes de começar, pede às visitas que
saiam do quarto, mas autorizo-o a falar na presença deles.
Estão ao meu lado há três dias, devo-lhes pelo menos
isso.
— As paredes dos teus ventrículos tornaram-se muito
mais rí­gidas, desde os últimos exames. Como sabes, o teu
coração já não consegue garantir um fluxo sanguíneo
suficiente para cobrir as necessidades de oxigénio do teu
corpo. Fizemos-te análises ao sangue e... encontrámos
vestígios de álcool e canábis. Recordo que estas duas
substâncias não devem apenas ser evitadas. São
estritamente proibidas. Como o sal, a partir de agora.
Portanto, nada de carnes frias, queijo ou pão. Nada de
enlatados nem pra­tos congelados. Quanto ao tratamento,
vais começar um novo. Não me vou pôr com rodeios,
Avalone. És frequentadora assídua de hospitais desde muito
jovem. Mas desta vez, tens mesmo de seguir as restrições
que apontamos ou a próxima vez será fatal. Já é um milagre
ainda estares viva.
A Lola leva as mãos à boca, chocada com as palavras do
médi­co, e novas lágrimas rolam-lhe pela cara. Não me
atrevo a olhar para o Anjo. Aliás, não me atrevo a olhar para
os dois. Nunca quis que ouvissem estas últimas palavras.
Quando as pessoas sabem que estás assim tão mal, tudo
muda. A sua atitude, o olhar e às vezes até te veem já
morta.
Quanto às palavras do médico, não me afetam, como
sempre. O discurso é assustador, de facto, mas ouço estas
palavras há anos e ainda aqui estou! Só a dor me aterroriza.
É a única coisa que tenho por verdadeira. Assim, até me
juntar ao mundo de Hela20, seguirei o meu regime: não vou
fumar, não vou beber, mas vai ficar por aí.
— Quanto à tua paragem cardíaca, não ficaste com
nenhum dano cerebral, graças à capacidade de reação dos
teus amigos. Em compensação, podes vir a ter problemas
de memória e de aten­ção. Podes também sentir
irritabilidade, nervosismo e, claro, uma fadiga intensa, mas
isso vai passar nos próximos dias ou semanas.
— Quando posso sair?
O médico sorri.
— Daqui a catorze dias.
Endireito-me bruscamente e solto um palavrão. Uma
pontada aguda atravessa o meu peito.
É
— É impossível, tenho aulas para assistir!
— Temos de te dar medicação intravenosa durante pelo
menos uma semana. Descansa e reavaliaremos o teu caso
dentro de sete dias.
Quero protestar, mas o médico já saiu do quarto,
enquanto a enfermeira permanece para me examinar.
Resmungo e deixo-me cair na almofada, desesperada.
— A sua pressão arterial está baixa, mas, na sua
condição, é normal.
Sorri, pede para a Lola e o Anjo não ficarem muito
tempo, para me deixarem descansar, e eclipsa-se.
— Não percebi tudo, mas já não contas comigo para
consentir que bebas ou fumes depois disto! — choraminga a
Lola.
— Eh... está tudo bem, okay?
— ESTÁ TUDO BEM? — berra o Anjo, preocupado como se
fôs­semos amigos.
Franzo a testa de surpresa, a Lola toma a situação em
mãos e expulsa-o sem cerimónia. Volta para o pé de mim,
tremendo da cabeça aos pés.
— Lo... — murmuro. — Eu estou bem.
— Acredito em ti. Porque tu também acreditas nisso com
toda a força. Mas não é verdade, Avalone. Tu estavas morta.
O teu co­ração deixou de bater!
***
Esta foi a semana mais longa da minha vida.
Uma semana deitada, sem fazer nada.
Uma semana a olhar para o teto ou a ver séries
românticas na televisão, com histórias improváveis.
Uma semana a fazer análises e tratamentos.
Uma semana à espera de apenas uma coisa: sair deste
maldito hospital.
O Anjo veio ver-me três vezes, para saber notícias.
Suspeito que sente simpatia por mim e, por mais
surpreendente que pare­ça, acho que gosto dele. Escondeu-
se atrás do Carter, alegando que ele o tinha enviado para
saber de mim, mas quando recebeu uma chamada do seu
boss, na terceira visita, descobri a marosca.
A Lola e a Emily vieram pelo menos umas dez ou onze
vezes. Quanto ao Jack, ao Daniel e à Aurora, tentaram, mas
o médico negou-lhes acesso.
— Demasiadas visitas, não é bom — informou-me. —
Descanso, Lopez!
Quando os meus amigos saíam, a minha máscara
desfazia-se e afundava-me nos meus pensamentos
sombrios. O meu coração voltou a parar de bater. E como
me avisou o médico, a ansiedade não me poupou nos
últimos dias. Em várias ocasiões, quase pedi à minha mãe
que viesse ter comigo, para chorar nos seus braços. Mas
mantive-me firme e ela não deu por nada. Durante a minha
ausência de setenta e duas horas, a Lola teve a inteligência
de usar o meu telemóvel para responder às mensagens da
minha mãe. Quando ela tentou ligar-me, a minha colega de
quarto disse que eu estava na biblioteca, a pesquisar para
um trabalho compli­cado. Pela primeira vez na vida, mantive
a minha mãe no desco­nhecimento do estado da minha
saúde. E a culpa que sinto é um verdadeiro veneno.
A qualquer momento, vou ter alta. Espero sair hoje.
Sinto-me bem e ficar aqui só me faz desejar que o coração
me pare de vez.
Endireito-me bruscamente, quando a porta do quarto se
abre e entra o meu médico e... o Carter.
O que é que ele está aqui afazer?
Não ouvi falar dele nos últimos dias, mas sei que o Anjo o
avi­sou da minha hospitalização no estabelecimento mais
chato dos nove mundos.
— Já podes sair — comunica-me o Carter, com uma
piscadela de olho.
— Desde que vás para casa do senhor Brown, enquanto
recupe­ras — especifica o médico.
Nem pensar!
— Entregar-me a um criminoso perigoso que não me
grama?
Os lábios do Carter afastam-se, mas fecham-se
imediatamen­te, e os olhos do médico saltam-lhe das
órbitas.
— Estou a brincar. Tudo bem!
O homem da bata branca solta umas risadinhas, pouco à
von­tade, e, depois de um olhar furibundo da parte do
Carter, saem do quarto, para me dar privacidade para me
vestir.
Em apenas um minuto, saio com o saco ao ombro. Vou
ter com eles à receção, determinada a cumprir as
formalidades de saída.
Assino os papéis, sem a menor hesitação.
— Vens todas as sextas-feiras às dezoito horas. Vamos
acompa­nhar-te de perto, Avalone.
Agradeço ao médico, depois ao líder dos Filhos do Diabo
e saio do hospital. Um SUV preto da Mercedes aguarda-nos
no estacio­namento e o Carter abre a porta do passageiro,
para se certificar de que entro sem dificuldade.
Levanta os olhos para cima, quando eu finjo uma vénia
pro­funda e entro obedientemente. Aguardo pacientemente
que ele dê a volta ao carro, para se instalar ao volante.
— Pensei que não ias aceitar a minha proposta.
Se eu tivesse recusado, teria de ficar no hospital. Ora,
isso era impensável.
— Quer dizer chantagem? Eu não estava a falar a sério,
não vou consigo.
O Carter mal arrancou e trava de repente, quase atirando
co­migo pelo para-brisas.
Olhamos um para o outro com um ar desaprovador, eu
pela sua forma de conduzir e ele pela minha teimosia.
— Tens tudo o que precisas para resolver as tuas
necessidades clínicas em minha casa, Avalone. Na
residência, não tens nada.
— Não preciso de nada para além da minha cama e dos
meus remédios.
Agito o meu saco de papel kraft diante do nariz dele.
A perder a paciência, alisa a gravata azul-celeste para
recupe­rar a calma, mas, na minha opinião, tem tudo menos
vontade de continuar a ser cortês.
— Estás-me a dar cabo da paciência, rapariguinha,
sabes?
— Fico feliz por ouvir isso. É mútuo, neste caso.
Ele esfrega a testa e liga outra vez o carro.
— Muito bem. Mas um dos rapazes vai levar-te às
consultas.
— Não, eu sou...
— É a minha última palavra.
Não protesto. Afinal, aguento-me menos mal. Sempre
posso fazer algumas concessões! Bem sei, não tenho
alternativa senão fazer concessões. Ou aceito ou tenho a
certeza de que o Carter é capaz de me trancar em sua casa
contra minha vontade. Além dis­so, preciso da ajuda dele.
Nem acredito no que estou prestes a fa­zer, mas não vejo
como safar-me de outra forma.
— Tenho uma coisa para lhe pedir.
Ele não responde, olha para a rua.
— Preciso que intercete as faturas do hospital, porque, se
fo­rem parar às mãos da minha mãe, estou feita.
— A tua mãe não vai receber fatura nenhuma.
— Porquê?
— Porque já estão pagas.
Olho para ele com tanta surpresa que fica vexado.
— Não sou nenhum monstro! Conheço a tua situação
financei­ra e sei quantos empregos a tua mãe engata uns
nos outros. Não podes pagar um internamento hospitalar
nem consultas semanais.
Ele foi ao ponto de indagar sobre a minha mãe! Não sei
se devo ficar grata pela sua caridade, ou desconfiar por lhe
estar em dívida.
Opto pela desconfiança e cruzo os braços. Guardo o
medo para mais tarde.
— O que espera de mim em troca?
— Nada mais do que já esperava de ti.
Mantenho-me cética, mas não insisto, para que ele não
mude de ideias. Murmuro um fraco «obrigada», ao qual ele
reage com um aceno de cabeça. O resto da viagem é feito
em silêncio.
Normalmente, se só eu estivesse envolvida nisto, nunca
teria aceitado o dinheiro dele. O meu orgulho sofre um
golpe, e não é pequeno, mas mais uma conta e a minha
mãe afogar-se-ia para sempre em dívidas. Não posso impor-
lhe um novo fardo, que tem um duplo significado para ela.
Além da dor de me ver morrer, ela toma cada nova fatura
de hospital como uma punição, por ter usado drogas
quando estava grávida.
O Carter para no estacionamento da cidade universitária
e eu saio do carro para apanhar ar fresco. Nem é preciso
dizer, estou com um humor maravilhoso, graças ao meu
regresso.
Depois de bater com a porta, meto a cabeça pela janela
aberta.
— Porquê esta caridade?
O Carter solta um longo suspiro.
— Não acreditas que eu posso ser boa pessoa, pois não?
Muito bem. No hospital ou morta, não tens nenhuma
utilidade para mim, Avalone.
Ponho a mão no peito e finjo ficar magoada.
— Senhor Brown, o senhor é cativante.
— Eu sei, dizem-mo com frequência.
O motor ruge e eu dou um salto para trás,
imediatamente an­tes de ele arrancar na mecha.
Deveria rever seriamente a sua forma de conduzir!
Vou a assobiar para a residência, mas poupo o fôlego na
subi­da dos três andares. Chego ao meu patamar em mais
tempo do que o normal. Entro no quarto e preparo-me para
levar com a Lola nos braços, o que não falha. Assim que dou
um passo dentro de portas, ela abraça-me o pescoço.
— Não sabia que vinhas hoje para casa! Como te sentes?
Desprende-se de mim, para me observar por todos os
ângulos.
— Estou bem, Lo. Como há quatro horas, quando me
fizeste a mesma pergunta — provoco-a.
— Tenho medo, Avalone.
Os olhos dela enchem-se de lágrimas, como sempre que
falá­mos sobre a minha saúde nos últimos dias, e abraço-a.
Culpo-me terrivelmente por fazê-la passar por isto, acho
que nunca esque­cerei esse medo nos seus olhos. Nem ela.
A minha paragem car­díaca traumatizou-a.
— Sinto muito. Estou muito melhor, juro.
Sentamo-nos na minha cama, para conversar e recuperar
o tempo perdido, embora a minha colega de quarto me
mantivesse informada de todas as fofocas por SMS.
Não tem visto muito o Daniel, esta semana. Ele tem
estado muito ocupado com o futebol e ela comigo. A
mudança da Aurora correu bem. Ela e o Jackson estão mais
felizes do que nunca. Quanto à Emily, sente-se
especialmente confortável ao pé da Au­rora. Parece ter
encontrado a personalidade que melhor se adapta à sua.
— Estavam sempre a pedir-me notícias tuas. Sentimos
muito a tua falta.
Foi do seu entusiasmo e alegria de viver que mais senti
falta.
— Quanto aos Diabos, a sua viagem prolongou-se. O Anjo
ga­rantiu-me que estavam todos bem, mas souberam do teu
interna­mento no hospital. Se o Carter não os tivesse
ameaçado, tinham voltado. Eles não te conhecem muito
bem, mas já te têm em mui­to boa conta.
A preocupação deles não me afeta. O que me capta a
atenção é que o meu estado de saúde não é confidencial
para os Filhos do Diabo, e odeio isso.
Por Odin, eles sabem que o meu coração parou de bater
por simples cansaço!
— Não é assim tão grave, Ava...
— É!
Ponho as mãos na cara e rosno de raiva.
— Quando as pessoas percebem a gravidade da minha
doença, veem uma ampulheta por cima da minha cabeça!
Olham para mim e agem de forma diferente. Só quero ser
normal aos olhos dos outros.
— Tu és pagã, Ava, nunca vais ser normal aos olhos dos
outros.
O tempo suspende-se por um segundo e desato a rir, o
que é um bálsamo para o meu coração.
Cúmplice, a Lola afasta uma madeixa de cabelo do meu
rosto.
— Os Diabos não vão olhar para ti de forma diferente,
acredita. Todos têm os seus pontos fortes e fracos e, por
mais surpreenden­te que possa parecer, aceitam-nos sem
tecer juízos de valor.
A minha cara manifesta a dúvida que me ocupa, quando
al­guém bate à porta. A Lola sobressalta-se, antes de se
levantar, animada, para ir abrir.
— Já sabemos que a nossa leoa está de volta! — exclama
o Jackson.
O Daniel, a Aurora e a Emily vêm com ele, de sacos nas
mãos e sorrisos no rosto. Ponho-me em pé de um salto,
mais do que feliz por vê-los, e abraço-os. É bom estar de
volta!
— Leoa? — questiono o Jackson.
— É a alcunha que te pôs o Logan.
Franzo os olhos, sem entender a situação.
— O capitão da equipa. Parece que lhe deitaste um olhar
furi­bundo na festa e ele ficou determinado a levar-te para a
cama. Uma leoa. São palavras suas.
Os meus amigos riem à gargalhada, mas eu passo-me. É
o tipo de comportamento mais repulsivo. Esse gajo está a
sonhar se acha que vai tocar-me, se não for com um bastão.
— Como te sentes? — pergunta-me a Emily, preocupada.
— Muito melhor.
Sorri, tranquilizada, e vejo os meus amigos sentarem-se
no chão. Tiram dos sacos saladas de massa, ovos cozidos,
fatias frias de piza, bem como cervejas e sumo de frutas.
— Perdeste o primeiro jogo da época! — repreende-me o
Daniel.
Atira-me a garrafa de sumo, que apanho no ar, e vejo no
rótulo que é 100% natural.
— Pensaste em mim.
Pisco-lhe o olho, ao que me responde com um sorriso
malicioso.
— Já morreste uma vez, não deves tentar o diabo...
Não se ouve nem mais um pio. Todos ficam chocados
com o seu comentário e a Lola, louca de raiva, dá-lhe uma
palmada na nuca.
— Imbecil!
As minhas gargalhadas quebram a tensão.
— Ela está a rir! — exclama o Daniel, com as mãos
erguidas em sinal de inocência.
Senti tanto a falta da companhia deles que me apetece
provo­cá-los. Então, levo a mão ao peito e simulo um grito de
dor. O si­lêncio volta a sentir-se, então sobe um burburinho
na sala. Todos se levantam, com os rostos apavorados, e
correm para mim. Al­guns soltam palavrões, outros gritam
de pânico. O Jackson já está de joelhos e passa-me os
comprimidos. A Aurora tira-lhe a garra­fa de água das mãos
para abri-la, pálida. A Emily corre com uma garrafa de água,
enquanto a Lola se precipita para o telemóvel. Mas quando
o Daniel troca os pés à saída da casa de banho, com um
pano húmido nas mãos, e cai por cima do Jackson, não
consi­go mais aguentar-me. Desato a rir, debaixo dos seus
narizes.
Suspendem todos os seus movimentos, sem
compreenderem, então o Jackson afasta o Daniel e deita-me
um olhar furibundo.
— Estás a abusar!
Suspiram de alívio quando percebem que era apenas
uma pro­vocação, e o Daniel desata a rir.
— Esta rapariga é genial!
— Avalone, garanto-te que, se nos fizeres outra partida
como esta — começa a Lola —, faço o teu coração ir-se
abaixo de vez e, acredita em mim, ninguém vai conseguir
reanimá-lo, estás a ou­vir-me?
As suas narinas tremem de raiva e desato a rir, seguida
por to­dos, desta vez.

20 Na mitologia nórdica, Hela é a deusa da morte, que


governa o Helheim, o mundo dos mortos.
Capítulo 12

Só tenho aulas às dez da manhã de hoje, o que me


permitiu uma boa e longa noite de sono, depois de os meus
amigos saírem, ontem depois do jantar.
Sinto-me em forma e animada para, finalmente, fazer
algo construtivo, depois de mais de uma semana de
letargia.
Quando chego à minha sala de aula, o Jackson está a
conver­sar com a Lola, que fica consternada ao ver-me aqui.
— Avalone Lopez, porque não estás na cama a sonhar
com um transplante de coração?
Aperto os lábios, para conter o riso. O Jackson, por seu
lado, ainda parece ter problemas com este tipo de humor e
quase se engasga.
Penso uns segundos em responder honestamente à Lola,
infor­mando-a de que não sou elegível para transplante do
coração. A doença cardíaca danificou-me os rins, que não
são devidamente irrigados e já não filtram o sangue
adequadamente. Além disso, encheu-me os pulmões de
líquido. E, portanto, devido a este esta­do geral bastante
deplorável, não posso ser transplantada, sob pena de não
resistir à intervenção. Mas, em vez disso, respondo:
— Porque estou em grande forma e quero recuperar o
atraso!
— Ava, tens de descansar — insiste o Jackson.
— Vocês não me vão fazer mudar de ideias — digo,
categoricamente.
Sorrio-lhes e entro no anfiteatro. Sento-me e o Jackson
não tarda ajuntar-se a mim.
— Teimosa e suicida — atira-me, com um sorriso.
Rio e dou-lhe uma cotovelada suave nas costelas.
Finalmente, ele começa a adaptar-se ao humor negro...
A psicóloga que a minha mãe me obrigou a consultar na
infân­cia dizia que a minha ironia servia para enfrentar a
minha patolo­gia, para a tornar mais suportável, para
relativizar. A minha mãe pensava que eu ia encontrar outra
saída menos sórdida quando crescesse, mas não. O humor
negro vai bem comigo e dá-me alívio.
***
Depois do almoço com os meus amigos, volto para o
quarto com a Lola, que insistiu em que a acompanhasse
para ir buscar os calções de ginástica. Pensei que ia perder
um pulmão naquelas malditas escadas, e cá estou a
recuperar, deitada na cama, en­quanto a morena muda de
roupa na casa de banho.
Acho que a digestão me está a cansar. As pálpebras
fecham-se, apesar de lhes dar luta. Os segundos passam e
vou gradualmente adormecendo, quando ouço a Lola a sair
da casa de banho.
— Estou a descansar um bocadinho — murmuro, meia a
dor­mir. — Espera por mim...
Sinto umas mãos removerem-me suavemente os
sapatos, de­pois ser coberta com um lençol.
— Dorme bem.
Uns lábios pousam na minha testa e, antes de apagar,
um últi­mo pensamento atravessa-me o espírito: a Lola não
tem despor­to, hoje.
***
O sol tira-me do sono. Pisco os olhos, com o cérebro
enevoado, e vejo o meu telemóvel. É meio-dia e um quarto.
Franzo a testa, desorientada. Quando vim para aqui com a
Lola, para buscar os calções dela, passava das catorze
horas. Levanto-me em sobressalto.
Dormi quase vinte e quatro horas? Por todos os deuses,
tenho mesmo de aprender a ouvir o meu corpo! Ou a Lola...
Com sede, arrasto a minha carcaça até à casa de banho,
para beber um copo de água e aproveitar para escovar os
dentes. Um duche também não seria de desprezar.
Preparo-me para ir à sala de banho coletiva, quando a
porta do quarto se abre e entra a Lola, vitoriosa.
— Quem é que tinha razão?
Inclino-me e sento-me na minha cama, onde ela se junta
a mim. Pergunta-me como me sinto e, já aliviada, informa-
me:
— O Carter mandou cá uma enfermeira, que injetou a tua
me­dicação por via intravenosa, enquanto dormias.
Vendo o meu ar aterrorizado, despacha-se a acrescentar:
— Liguei para o teu médico, a confirmar a identidade da
enfer­meira, por quem me tomas?
Solto um longo suspiro de alívio, seguido de uma
risadinha, e a Lola prega-me um beijo sonoro na cara.
— Estás a planear descansar esta tarde ou ir às aulas?
— Vou descansar um pouco mais.
Ela acena com a cabeça, tranquilizada.
— Há festa hoje à noite na fraternidade, mas se quiseres
que eu fique a fazer-te companhia, faço-o com prazer.
— Estás a gozar! Vou convosco!
Põe um olhar severo e abana a cabeça da esquerda para
a direita.
— Lo, acabo de passar vinte e quatro horas a dormir,
depois de dez dias no hospital. Preciso de apanhar ar fresco!
Vou beber água, não vou fumar nem dançar. Palavra de
escuteiro!
A minha amiga olha-me fixamente, com um ar hesitante,
mas vejo nos olhos dela que cede. Por uma questão de
princípio, acrescenta que vai pensar sobre isso e eu já estou
a tremer de impaciência.
— Tenho de voltar para as aulas — diz-me. — Toma,
trouxe-te comida.
Abro o saco de plástico que ela me passa, para
inspecionar o conteúdo, determinada a seguir a minha
dieta, mas vejo o meu nome escrito na tampa da caixa.
— A cozinheira veio ter comigo, no refeitório.
Aparentemente, o Carter deu-lhe a lista de ingredientes que
não podes comer.
Nada mau, fazer parte dos Diabos, hein?
Manda-me um beijo de longe e sai do quarto. Encolho os
om­bros, depois devoro a comida, morta de fome.
***
O resto do dia passa tão devagar como uma tarde no
hospital. Depois de um bom duche e de ter tomado a
medicação, debruço-me sobre os textos das aulas que a
Emily me deixou ontem; no entanto, a concentração não
está lá. Qualquer coisinha me distrai e não consigo reter a
informação.
Às sete da tarde, a Lola regressa, com a Aurora, para
meu alívio.
— Estás pronta para a diversão?
— Mais que nunca!
A minha parceira vai para o chuveiro, enquanto a Aurora
e eu nos preparamos para a noite.
— Estou tão feliz por cá estar!
— Como conheceste o Jackson? — pergunto, curiosa.
Ela senta-se na minha cama, com um sorriso beatífico,
en­quanto busca memórias antigas.
— Cheguei a Chelsea em dois mil e doze. Era nova no
colégio e, por difícil que seja acreditar, o Jackson era um
grande filho da mãe. Fazia parte de um grupo de gente
muito mais velha do que ele, estudantes do ensino
secundário. Eram inseparáveis, mas vi­olentos. Influenciado
por eles, andava sempre à luta na escola e era detestável.
Olho para ela, de olhos arregalados.
Não acredito nisto! O Jackson, um parvalhão? Então ele
não estava a exagerar?
— Para minha desgraça — continua —, no ano seguinte
fiquei na turma dele. Contra todas as expectativas, parecia
que tinha mu­dado. Sentámo-nos ao lado um do outro em
Matemática e, a cada aula, falávamos um pouco mais.
Continuava a ter o mesmo grupo de amigos, no entanto, ia-
se separando deles, como se finalmente estivesse a pensar
por si próprio. Tornámo-nos rapidamente inse­paráveis. Mas
quando chegámos ao secundário, ele afastou-se de mim
sem motivo aparente. Não falou comigo durante seis meses.
Uma noite, encontrei-me com ele numa festa. Estava
acompanha­do do seu melhor amigo — faz uma careta. —
Começámos a falar sobre o nosso afastamento, e ele
acabou por beijar-me. Semana após semana, foi mudando,
até se tornar naquilo que é hoje.
Não acredito. Não imagino mesmo Jackson como um
badboy, parece irreal.
A Aurora ri da minha expressão.
— É difícil de conceber, hein?
Com os olhos muito abertos, confirmo.
— Quem era o melhor amigo dele? — pergunto, apesar
de saber a resposta.
— O Clarke Taylor, o maior dos filhos da mãe. Estive
algumas vezes com ele, no início do meu relacionamento
com o Jackson. Depois, ele e o Clarke tornaram-se muito
diferentes e deixaram de se dar um com o outro. O Jackson
teve muita dificuldade em lidar com esse afastamento.
Conheciam-se há tanto tempo... Hoje, ele faz parte de um
gangue.
— Bem sei — confesso. — Conheço-o um pouco. É o
melhor ami­go do irmão da Lola.
A Aurora deixa cair o queixo.
— Continua o mesmo filho da mãe? — pergunta, com
algum ressentimento.
Como responder a isto? O Clarke é um mistério
demasiado grande para dar uma resposta aceitável em
poucas palavras.
— Não sei, não o conheço suficientemente bem, mas a
sua re­putação precede-o.
— Aconselho-te a ficares longe dele. É uma bomba-
relógio. Acaba por magoar todos aqueles que o rodeiam.
Engulo a saliva com dificuldade.
Uma bomba-relógio. Uma metáfora cheia de significado,
que já me foi aplicada.
A Lola não tarda a regressar do duche. Todas bem
arreadas, vamos ter com a Emily e o Jackson ao parque de
estacionamento e seguimos para a fraternidade. A boa
música no carro já nos pre­para o ambiente e, quando
chegamos ao nosso destino, estamos prontos para nos
divertirmos.
Entramos na casa, mas o cheiro forte de tabaco dispara
um alerta na minha mente. Uma nuvem de fumo flutua na
sala prin­cipal e brilham dezenas de brasinhas por todo o
lado. Não preciso de dizer uma palavra para que a Lola me
tire abruptamente da casa, para o ar livre.
Ficamos na varanda, sem ter acesso à festa. Seria brincar
de­masiado com o fogo. Desta vez, não dá mesmo. Já me
vejo voltar para o quarto, com o rabo entre as pernas.
Os nossos amigos vêm ter connosco com um ar
desolado, sem saber o que dizer, e então aparecem o
Wyatt, o Logan e alguns ou­tros membros da equipa de
futebol.
— Avalone! Há muito que não te vemos — diz o Wyatt,
abraçan­do-me. — Lamento aquilo da tua tia, as minhas
condolências.
Eu não tenho tia nenhuma...
A Lola aproxima-se, envergonhada e em pânico, e eu
arqueio uma sobrancelha, interrogadora.
— Sei que não querias que eu falasse sobre isso, mas
saíste do lago tão à pressa, daquela vez, que lhes contei da
morte da tua tia.
Contenho o riso e tento soar convincente, depois aceno
com gratidão.
O Logan avança na minha direção e, ato reflexo, dou um
passo para trás. Mas ele não parece perceber isso e
aproxima-se um pouco mais. O seu olhar ferrado no meu é
quase repulsivo e não acredito por um segundo no seu
sorrisinho tímido.
— O que queres beber? — pergunta.
Faz-me sinal para entrarmos na vivenda, mas eu não
esboço o menor passo.
— Nada, obrigada.
O Logan ri.
— Adoro o teu sentido de humor!
— Não é uma piada.
Ele arqueia as sobrancelhas, surpreendido.
— Ah, já percebi. Preferes charros!
Cruzo os braços e fito-o com ar duro.
Para ele, uma pessoa que não bebe nem fuma não
existe?
— Também não.
O quarterback recua, com um olhar desdenhoso. Mede-
me da cabeça aos pés, com um ar doentio.
— Bem, e se fôssemos fumar um cigarro? — tenta ainda.
Sempre fui muito expressiva em relação ao que sinto
pelas pessoas. Sabem logo se gosto delas ou não, mas o
Logan parece não perceber que não me agrada a sua
presença, nem esta conversa.
A não ser que ache que é um jogo...
— Não. Não bebo, nem fumo — explico-lhe, com a pouca
paci­ência que me resta.
— Espera! Qual é o estudante que não bebe nem fuma?
Está a começar a bulir seriamente com o meu sistema
nervoso. Como diria a Lola, que continua a conversar com
os outros, lan­ço-lhe um verdadeiro olhar assassino.
— Eu, obviamente.
Mas o Logan não o entende dessa forma. Fecha os dedos
no meu pulso e puxa-me para dentro de casa. Surpreendida,
desequilibro-me e sou obrigada a colocar um pé à frente do
outro para não cair. Retomado o equilíbrio, cravo os
calcanhares no chão para o parar, mas é demasiado forte
para mim e estou em cima de umas andas. O aperto no
pulso dói. Por mais que me debata e berre para me largar,
dou por mim no meio da sala, exposta à fumarada de
cigarro. Num reflexo, sustenho a respiração, mas per­co o
fôlego. Sou forçada a inspirar bruscamente, quando o ar me
falta, e sou vencida pelo medo. Tive uma paragem cardíaca
há poucos dias: não posso dar-me ao luxo de continuar aqui
mais tempo.
— Larga-me!
Ele volta-se para mim sem me libertar. Deve adorar ver-
me a debater-me, porque arvora um sorriso desprezível.
Quando ele está suficientemente perto de mim para lhe
sentir a respiração e ver as profundezas dos seus olhos,
percebo que já está muito bêbado.
— Meu, o que estás a fazer? — intervém o Wyatt.
O running back corre direito a nós, mas o Logan empurra-
o violentamente. O Wyatt levanta as mãos em sinal de paz e
olha seriamente para o capitão. Percebe que ele vai causar
problemas, esta noite.
— Solta-a, Logan. Ela foi clara, não quer a tua
companhia!
O Wyatt, sempre tão gentil, está agora tenso como um
arco e prestes a lutar com o amigo — se é que o são. Mas
quanto mais respiro, mais o pânico me domina. Estou a
perder as forças e puxo o braço.
— Estás a magoar-me! — digo, enervada.
— Faz um esforço e bebe!
O Logan passa-me um copo de álcool, ao qual dou um
golpe violento. O copo cai ao chão e o líquido espalha-se por
toda a par­te. Ele fica ainda mais danado. Enquanto o Wyatt
tenta resolver o conflito a bem, olho em redor
desesperadamente, à procura dos meus amigos, que
entram no salão, aflitos por me verem ali.
Solto um gemido de dor, quando Logan torce o meu
pulso, en­quanto grita com o Wyatt. Estou prestes a levantar
a perna para aplicar o meu salto em cima do pé dele,
quando uma voz grave e cheia de ódio ressoa no ar. Uma
voz que me dá vontade de chorar de alegria.
— LARGA-A!
A minha cabeça volta-se instantaneamente para o Clarke
e os Filhos do Diabo, sempre lindos, fortes e temidos. Não
consigo es­conder o sorriso, enquanto um silêncio de morte
se abate sobre a casa. Nunca estive tão feliz por vê-los,
tanto que estaria disposta a beijá-los.
Em contraste, o rosto do Clarke é frio, fechado e
ameaçador. As maxilas contraídas, os punhos cerrados e os
olhos cheios de raiva não se afastam do Logan,
prometendo-lhe mil sofrimentos.
O alívio dá lugar à angústia. A angústia de ver jorrar
sangue. A angústia de ver o Clarke esmagar o capitão da
equipa de futebol até o pôr KO. Afinal, talvez não devessem
ter chegado naquele instante.
O Logan não me larga e olha fixamente para o afilhado
do Cár­ter, com um ar de desafio. Puxo o braço novamente,
mas não con­sigo libertar-me. Ele é suicida ou quê?
— A partir de agora — grita o Clarke para a assistência
—, quem quiser fumar, é lá fora! Se eu vir alguma besta
acender um cigarro ou um charro aqui dentro, mando-o para
o hospital!
Instantaneamente, os estudantes apagam os cigarros e,
a um simples aceno do Jesse, alguns abrem as janelas de
par em par, para deixar o ar entrar e o fumo sair. O meu
coração, que batia furiosamente, abranda
impercetivelmente, mas o pior não pas­sou. Os foliões
pararam as suas atividades e assistem à cena com medo. Já
ninguém fala, já não se ouve um som. O Clarke move-se
com uma lentidão ameaçadora, na nossa direção.
— O que é que tu não entendes? Ela não quer o que lhe
pro­pões. E eu disse-te para a largares!
O verde das suas íris desapareceu, para dar lugar ao
negro. Os punhos só querem uma coisa: esmagar a nova
vítima.
Os meus amigos estão de olhos pregados em nós. O
Jackson e o Daniel esboçam um passo na nossa direção,
mas sabem que não se podem atravessar no caminho do
Clarke. Determinada a que a cena não degenere, aproveito
a atenção do Logan sobre o Diabo para me libertar das suas
garras, o que me vale um olhar furibun­do do capitão.
Entretanto, o Clarke continua a aproximar-se e sa­boreia
cada passo que o conduz à violência. Então, barro-lhe o ca­‐
minho. Ele estaca e desvia finalmente os olhos do Logan,
para me prestar atenção. As suas íris, negras de ódio,
sondam-me, para verificar se nada me aconteceu. Quando
um dos seus punhos se ergue à altura do meu rosto, tremo.
Mas os dedos soltam-se e, de­pois de uma pausa que marca
a sua hesitação, ajeita uma mecha de cabelo atrás da
minha orelha. E a realidade bate-me com toda a força.
Por mais surpreendente que possa ser... acho que mal
podia esperar que ele voltasse.
No segundo seguinte, os punhos do Clarke voltam a
cerrar-se. Então, suplico-lhe com os olhos. Imploro que
desista e não lute, mas o Wyatt vem ter connosco e quebra
a ligação que eu estava a estabelecer com ele, deixando-o
ainda mais nervoso.
Clarke volta-se para o running back. É bastante maior do
que ele em tamanho, mas também em volume, e está
pronto a desferir o primeiro golpe, isso é óbvio para todos.
A Lola disse-me que, quando o Clarke luta, é melhor
fugir, porque destrói tudo o que aparece no seu caminho. E
muitas pes­soas inocentes estão precisamente no seu
caminho.
— Sai-me da frente!
A voz do Clarke gela-me o sangue.
— Não adianta lutar — argumenta o Wyatt,
corajosamente. — O Logan é um parvalhão, mas sobretudo
está bêbado. Vais matá-lo.
O Filho do Diabo agarra o running back pela gola do
casaco e todos prendem a respiração. O Wyatt não
pestaneja. O Clarke não lhe bate. Como se ambos se
respeitassem demasiado para cruzar um ponto sem retorno.
— DEIXA-0 VIR, QUE EU PARTO-O TODO! — berra o
Logan, que, apesar das palavras, se mantém afastado.
— CALA A BOCA! — grita-lhe o Wyatt, sem tirar os olhos
do Clarke.
O motard arvora um sorriso sádico, quando desvia a cara
para o capitão. Em pura provocação, este último tenta um
movimento na minha direção; no entanto, é rapidamente
parado pelo Clarke que já está junto a mim, determinado a
deixar explodir a sua vio­lência. Prepara-se para me
contornar, mas seguro-o pelo braço. Capto mais uma vez a
escuridão dos seus olhos. Baixa-os para as minhas mãos
trémulas, depois volta a pousá-los em mim.
— Clarke, por favor...
Os Diabos seguem a cena divertidos e pegam no pacote
de ba­tatas fritas do Tucker, como se estivessem a comer
pipocas diante de um bom filme. Estes idiotas não
tencionam intervir para acal­mar a situação?
Eles não percebem que está rapidamente para acontecer
um acidente?
— Estás a proteger a tua namorada, Taylor? — zomba o
Logan.
Desta vez, não tenho qualquer impacto sobre o Clarke,
que fa­cilmente se liberta dos meus dedos e me passa ao
lado. Quando me viro para assistir horrorizada ao que vai
acontecer, o Jesse passa por mim e pousa a mão no ombro
do amigo. Sussurra-lhe algo ao ouvido e declara:
— Vá, vem... Não vale a pena.
O Jesse pisca-me o olho. No entanto, permaneço em
alerta, ainda não convencida de que ele tenha conseguido
acalmar o Clarke. Mas, contra todas as expectativas, o
badboy finalmente vira-se para mim, encara-me durante
alguns segundos e, relutan­temente, afasta-se do Logan, de
punhos ainda cerrados por uma raiva contida.
— Grande puta! — atira-me o Logan.
O Clarke faz rapidamente meia-volta, com o rosto
deformado pela raiva, mas os Filhos do Diabo já estão em
cima dele para o travarem, enquanto ele se debate
violentamente.
Um barulho surdo chama a atenção de todos para o
Logan, que cai pesadamente no chão. O nariz quebrado
cobre-lhe a cara de sangue, enquanto um Jesse louco de
raiva se atira para cima dele.
— A QUEM ESTÁS TU A CHAMAR PUTA? — berra-lhe.
Levo a mão à boca, chocada com a violência do murro,
mas es­pecialmente com o gesto do Jesse. Ele que parece
estar sempre no gozo e sem entusiasmo por nada...
Um sorriso de satisfação treme nos meus lábios e deixo-o
ras­gar-se sem escrúpulos. Ao contrário do Clarke, que teria
esmurra­do o Logan até dez pessoas o afastarem à força, o
Jesse sabe con­ter-se e só lhe bate uma vez. Exatamente o
que era preciso para o quarterback recuperar da bebedeira.
Alguns jogadores de futebol dão um passo na sua
direção, mais para dar o ar do que por coragem de facto,
mas acabam por desistir, porque os Filhos do Diabo estão à
espera deles.
— Levem o vosso capitão, ou pomo-los a todos na rua —
amea­ça o Jesse.
Já não tem nada o ar de não-te-rales. A sua mensagem é
tão assustadora como o seu físico. Se não tivesse saído em
minha de­fesa, teria tanto medo dele como os outros
presentes.
Os estudantes trocam olhares preocupados entre si,
antes de olharem insistentemente para os jogadores. Rezam
para que aca­tem a ordem, para evitar uma carnificina. Têm
medo.
— Vamos lá, vamos tirá-lo daqui — ordena o Wyatt.
Dá uma palmada no ombro do Derek, que não se move e
olha com um ar danado para o Jesse.
— Esta é a nossa fraternidade.
— Financiada pelo Carter! — diz o Sean, danado. — Não
vamos repetir.
Tiro os olhos do Derek, para avaliar a credibilidade do
gangue. Só preciso de um segundo para perceber que é
melhor para o jo­gador de futebol pôr-se a andar. Não há
vestígios dos simpáticos Diabos com quem convivi à beira
da piscina. São apenas corpos extremamente tensos que
emitem más ondas sufocantes, com fei­ções marcadas pela
raiva. Não há um menos nervoso do que os outros, sentem-
se todos envolvidos.
Os deuses sejam louvados, o Derek acaba por acatar a
ordem e vai ter com o seu quarterback, agora meio
entorpecido. O Daniel e o Jackson ajudam a erguê-lo. Pegam
nele e tiram-no de casa, debaixo dos olhares de toda a
gente. O ambiente fica em ponto morto, os estudantes
continuam especados, como se esperassem que as coisas
voltassem a degenerar. Depois, de repente, a festa retoma o
seu curso. O Tucker atravessa os metros que nos sepa­ram
com preocupação e, contra o que esperava, abraça-me e
res­pira aliviado.
— Como estás?
Desprende-me e examina-me cuidadosamente.
— Bem, está tudo bem.
— Tens de descansar — aconselha-me o Jesse, que chega
ao pé de nós.
— Já dormi que baste — respondo com um leve sorriso,
ainda abalada pelos acontecimentos. — Obrigada por...
Deixo as palavras em suspenso, incapaz de encontrar
outras para terminar a frase.
— Nós dissemos-te. Apoiamo-nos uns aos outros, V.
Esta alcunha dá-me sempre vontade de rir e o meu
coração acalma-se. Pensava que os Filhos do Diabo só me
iriam dar pro­blemas, mas provavelmente acabaram de
salvar a minha vida.
O Wyatt junta-se a nós, preocupado.
— Lamento imenso aquilo do Logan. Se dependesse de
mim, já o tinha expulsado da equipa, das festas e da
universidade.
Portanto, não são amigos. O running back suporta a
presença do capitão apenas porque não tem escolha.
Garanto-lhe que está tudo bem, mas os dois Diabos
continuam tensos, protetores. Ponho um ar envergonhado
para o Wyatt, que dá meia-volta, e procuro o Clarke, mas
arrependo-me instantane­amente. Está a beijar uma rapariga
na boca, apoiado contra a pa­rede, com uma mão no cabelo
dela e outra nas nádegas.
A minha garganta dá um nó, o que aumenta a minha
raiva, apesar de dissimular as emoções na frente dos dois
rapazes que me fazem companhia.
Acompanho-os sem pressa, quando me levam para junto
do resto do gangue. Obrigo-me a ficar a menos de um metro
de dis­tância do Clarke e da sua nova conquista.
— Não devias estar na cama, Lopez? — atira-me o Sean,
com um grande sorriso.
— Vou acabar por odiá-la, se continuam a falar-me dela!
O Sean ri e o Set passa um dedo debaixo do meu queixo,
para me chamar a atenção. Olha para mim preocupado.
— Como estás, Deusa?
Cansada da pergunta, pego-lhe na mão e ponho-a no
meu pei­to, para que sinta o bater do meu coração.
Concentra-se por al­guns segundos, para se certificar de que
está a funcionar correta­mente, e arvora um sorriso largo e
atraente.
— Se querias que te apalpasse as mamas, bastava teres
pedido.
Engasgo-me, antes de lhe bater no ombro, no meio das
garga­lhadas dele e dos Filhos do Diabo.
O Justin puxa-me para si e parece-me ver o Clarke a
franzir a testa, enquanto a sua acompanhante lhe devora o
pescoço. Que cretino!
— Vais ter de me explicar o que significa essa
algaraviada mé­dica, que não percebi nada dos resultados
das tuas análises.
Olho para ele e é a minha vez de franzir a testa.
— Tu viste os resultados das minhas análises?
— Ah, pois! Quis ser médico, antes de me tornar um
criminoso. Tens de perceber que a proximidade com o
Tucker amolece o meu cérebro. Diz cá, estiveste com a Hela
nos poucos segundos em que deixaste de respirar?
A pergunta apaga imediatamente a fúria que estava a
nascer dentro de mim. Respondo negativamente e ele
parece dececiona­do, o que me faz sorrir. Quando entrega
uma nota a um Tucker com ar vitorioso, percebo que
apostaram sobre o meu possível en­contro com a deusa da
Morte e solto uma enorme gargalhada, sa­cudindo a cabeça.
Decido juntar-me ao Jackson e ao Daniel, que entraram
na casa, e interceto uma conversa entre o Clarke e a Lola.
— Não há necessidade de usar punhos quando sabes
apontar aos tomates! — diz a minha colega de quarto.
— Uma mulher que visa os tomates, é de esperar. Uma
mulher que manda um murro direto, não.
Vai dizer isso ao Anjo.
Vou ter com os meus amigos e recebo o abraço da Emily,
que me pergunta como me sinto. O Daniel e o Jackson
pedem descul­pa pelo comportamento do capitão. Parecem
chocados, mas eu não estou nem um bocadinho. O Logan é
um arruaceiro e isso vê-se à légua.
A Lola junta-se a nós, com um grande sorriso travesso e
uma ideia a bailar-lhe na cabeça.
— Emily, verdade ou consequência?
A nossa amiga responde timidamente «verdade».
— Se pudesses engatar alguém nesta sala, quem
escolhias?
A Emily fica vermelha como um pimentão e olha para o
chão. E admite baixinho:
— O Sean Olson.
Após uma pausa de grande surpresa, desmanchamo-nos
a rir. Nunca pensámos que a nossa amiga, tão discreta e
doce, pudesse sentir-se atraída por um Filho do Diabo. Mas,
obviamente, com o seu cabelo castanho encaracolado,
maçãs do rosto altas e queixo quadrado, o Sean é
inegavelmente um tipo magnífico.
Implicamos gentilmente com a Emily e até conseguimos
fazê-la rir. Depois, com uma segunda intenção em mente,
volto-me para o Daniel.
— Verdade ou consequência?
— Consequência!
Sorrio, satisfeita.
— Oferece um copo à rapariga de quem mais gostas
nesta festa.
Sinto a Lola instantaneamente tensa. Quanto ao Daniel,
sorri­dente, passa ao lado da minha colega de quarto.
O queixo cai-me, em total incompreensão.
Recupero a esperança quando ele para atrás dela, que
perma­nece impassível e se recusa a virar-se para descobrir
quem é a fe­liz eleita.
Ele passa o copo diante dos olhos da Lola e coloca os
lábios na sua face. O rosto da bela morena ilumina-se e a
minha tensão di­minui. Ela ronrona e pega no copo,
enquanto o Daniel lhe passa os braços em torno da cintura.
— Verdade ou consequência? — pergunta-lhe ele.
— Consequência!
— Que tal saíres para apanhar um pouco de ar fresco
comigo?
A Lola irradia felicidade, o Daniel pega-lhe na mão e
desapare­cem juntos, perante os nossos olhares divertidos.
— Já não era sem tempo — declara o Jackson.
— Chegaram as pizas! — grita um rapaz.
Os estudantes soltam exclamações de alegria e correm
para as mesas onde quatro tipos colocam cerca de quinze
caixas de piza. Evola-se um cheiro sublime. A minha barriga
rosna ferozmente, mas vêm-me à mente as palavras do
médico. A minha dieta é ri­gorosa: sem sal, sem queijo.
Portanto, não posso comer nada.
— Vou à luta — informa-nos o Jackson.
Caminha até à comida e vai acotovelando os outros para
che­gar ao Graal. Manobra subtilmente, para desviar os
outros e tem mesmo de dar provas de elasticidade. Por fim,
volta com um pra­to cheio de fatias de piza.
— Sirvam-se.
As raparigas atiram-se ao prato, enquanto eu desvio o
olhar, chateada por não poder comer.
Uma meia hora depois, o Daniel e a Lola voltam de mãos
da­das e, chegados ao pé de nós, beijam-se ternamente,
para se certi­ficarem de que os vemos.
Gritamos de alegria e o Jackson dá uma palmada
amigável no ombro do amigo.
— Cuida bem dela, amigo.
— Não te preocupes, é o que tenciono fazer.
A Lola está tão feliz que ilumina a sala. Nunca a vi assim
e es­tou quase a soltar uma lágrima. Percebendo isso, dou-
me conta de que é por andar demasiado com ela que fico
assim sentimental.
Os meus olhos batem no Set, que olha fixamente para o
Daniel com ar ameaçador, ou mesmo assassino.
Que grande merda!
Caminha na direção dele, mas bloqueio-lhe a passagem.
Olha furiosamente para mim.
— A tua cara linda não me vai segurar. Deixa-me passar,
Avalone.
Abano a cabeça negativamente. Tivemos suficientes
emoções fortes para uma noite.
— Set, ele é um tipo às direitas.
Mergulha o olhar no meu. As suas feições estão tensas,
mas ouve-me. Portanto, nem todos os Diabos são como o
Clarke Taylor.
— Não o julgues por algo que ele provavelmente nunca
vai fa­zer, ou seja, magoar a Lola.
— E se o fizer? Pelo olho de Odin, eu...
Ponho uma mão tranquilizadora no seu ombro.
— Nesse caso, a tua irmã fica triste por uns tempos, mas
recu­pera em seguida. Eu estarei lá para a apoiar e tu
também. É assim a vida, não há nada que possas fazer em
relação a isso.
Olha fixamente para a irmã, com medo nos olhos, depois
con­centra-se em mim e suspira.
A sua preocupação é comovente, ele só quer o melhor
para a Lola. Dirijo-lhe um sorriso temo, que se transforma
em careta, quando aclaro a garganta. Engulo em seco
repetidamente, tusso, mas nada ajuda. Algo está a irritar os
meus pulmões e me impede de respirar convenientemente.
Tusso novamente e o meu corpo dobra-se ao meio, o que
preocupa o Set. Põe a mão no meu om­bro, com um olhar
grave.
— Ainda há fumo. Vem, vamos apanhar ar fresco.
Em resposta, pigarreio e os meus pés saem do chão. Dou
por mim nos braços dele, a sufocar, enquanto ele atravessa
a sala com um passo rápido. Vejo os meus amigos a
seguirem-nos e os olhos dos Filhos do Diabo sobre nós.
Abano a cabeça várias vezes e o Set percebe
imediatamente: não quero ser vista neste estado. Or­dena-
lhes que não saiam e depois tira-me de dentro de casa. O ar
fresco e limpo entra-me à bruta nos pulmões, para afastar o
ar poluído pelo tabaco, causando-me um novo ataque de
tosse seca, ainda mais doloroso.
Enrosco-me contra o seu peito, num estado de intensa
ansie­dade. O que mais detesto na minha doença é quando
fico sem ar. A sensação de sufoco é a pior coisa que eu já
senti. Quando falta o ar, percebemos realmente o papel que
ele desempenha e só pen­samos numa coisa: no próprio ar.
Tentamos a todo o custo arran­jar ar para pôr fim à provação.
Mas como pensar com discerni­mento, quando o cérebro
parece estar a arder?
Depois de ordenar a todos os estudantes para saírem do
jar­dim, o Set coloca-me gentilmente sobre a relva e ajoelha-
se ao meu lado, verdadeiramente preocupado. Mas eu estou
ainda mais. Por causa da minha doença, sou propensa a
fazer edemas pulmonares. Teria de colher com muita
frequência líquido dos meus pulmões, se não existissem
tratamentos preventivos. Uma vez que o meu coração já
não bombeia o sangue adequadamente, este é propenso a
estagnar nos vasos do pulmão. E quando a pres­são arterial
se torna aí demasiado elevada, há uma fuga de líquido para
os alvéolos pulmonares. Se a minha convulsão não passar
nos próximos minutos, é melhor voltar para o hospital. E
prova­velmente não voltarei a sair, desta vez.
Com as mãos trémulas, esvazio a minha bolsa no chão e
pego no telemóvel, mas falta-me o ar incessantemente.
Quando o Set percebe o que quero fazer, pega no meu
telemóvel e vai aos meus contactos. Digita «Dr», ao mesmo
tempo que me questiona com os olhos. Aceno com a
cabeça. Envolve-me nos seus braços, pres­siona as minhas
costas contra o seu peito e liga para o meu médi­co, que
atende ao primeiro toque.
— Avalone? Estás bem?
— Não — responde o Set, por cima da minha tosse.
A minha garganta arde, os meus olhos brilham com
lágrimas que acabam por rolar cara abaixo. Sem os braços
do Set, que me segura contra ele, teria caído no chão, de
bruços.
— Ela inalou fumo de cigarro passivamente. Está a tossir
há um bom minuto sem conseguir parar. Devo levá-la para o
hospital?
— Se ela se conseguir acalmar rapidamente, não. Vou
tentar uma coisa. Ela está a ouvir-me?
O Set diz-lhe que está em alta voz.
— Avalone, dei-te os medicamentos necessários para
prevenir o edema pulmonar. Não tens líquido nos pulmões,
só estás ansio­sa devido à paragem cardíaca. É só
ansiedade.
Ouço as suas palavras, mas isso não altera o meu
quadro. O Set aperta-me com mais força, sinto as suas
mãos tremerem con­tra mim.
— Estás a cuspir sangue ou um líquido espumoso? —
pergunta o médico.
O Set responde que não, por mim.
— O teu rosto e as tuas mãos estão azuis?
O Diabo coloca uma mão gentil no meu rosto para o ver
me­lhor e vejo o seu olhar profundamente perturbado.
Observa a cor da minha pele, depois levanta-me a mão à
altura dos olhos.
— Não — responde.
Volta a abraçar-me e dá-me um beijo no alto da cabeça.
— Sentes dores no tórax?
Abano a cabeça negativamente e o Set traduz a minha
resposta para o médico. Este respira aliviado, como se não
estivesse seguro das suas afirmações anteriores. Há que
admitir que, no meu caso, tudo é possível.
Aos poucos, e graças ao médico, percebo que, para além
da tosse, não tenho os sintomas de edema pulmonar.
— É só ansiedade, Avalone. Não morreste há duas
semanas e não vais morrer hoje, está a ouvir-me?
— Sim...
A minha voz surpreende-me tanto como ao Set e ao
médico. Volto a tossir, depois outra vez, com a garganta
irritada. Tusso uma terceira vez e, finalmente, consigo fazer
o que parece ser uma inalação normal, mas sibilante.
— Conseguiste acalmar-te e os sintomas estão a diminuir.
Se fosse um edema, permaneciam. Nesse caso, não teria
hesitado em mandar-te para o hospital. Está tudo bem,
Avalone.
O Set solta-me suavemente e eu deixo-me cair de gatas,
para recuperar o fôlego. Inspiro dolorosamente e expiro
suavemente. As minhas últimas lágrimas caem na erva,
mas o meu corpo ainda treme.
Não é um edema.
Estou viva.
O Set agradece ao médico, confirma que estou melhor e
desli­ga. Deito-me de costas, a olhar para as estrelas. Estou
completa­mente esgotada.
— Estás melhor, Beleza divinal?
— Sim. Obrigada...
Ele deixa-se cair de costas ao meu lado, afetado pelo que
aca­bou de ver e ouvir.
— Isto acontece-te com frequência?
Volto-me para ele. Não sei se a pergunta é sobre o
edema pul­monar, a incapacidade de respirar ou outras
preocupações com consequências da minha doença.
— Algumas coisas são mais frequentes do que outras.
Ele suspira e passa uma mão ainda trémula pela barba
que desponta.
— Nunca conheci ninguém com uma doença destas e
que seja tão forte como tu... Sem a intervenção do Anjo na
casa do Carter, nunca teria suspeitado de que tinhas
insuficiência cardíaca.
Perante a ideia de que, aos seus olhos, doença e força
podem coexistir, desvio o olhar e sorrio, pensativa.
— Em miúda, pensei que lutar contra a minha doença me
tor­naria uma guerreira e me abriria as portas do Valhalla21
quando chegasse o fim. Ao perceber que não seria o caso,
decidi passar a usar uma coroa de plástico. Quando caía,
punia-me. E assim, for­cei-me a manter a cabeça erguida,
estivesse eu em casa ou no hos­pital, fosse uma guerreira ou
uma simples sobrevivente efémera.
— Porra! Não contes isto ao Tucker, que ele vai chorar
como um bebé...
Desmancho-me a rir e o Set abre um braço para me
puxar para ele, num gesto reconfortante, como se fosse a
coisa mais natural do mundo.
— A minha vénia, Majestade.
Sorrio por longos segundos, aproveitando este momento
de calma na sua companhia. A Lola tinha razão. As
fraquezas não os afastam, pelo contrário.
— Porque te juntaste aos Filhos do Diabo? A tua irmã
disse-me que os teus pais te tinham reservado um futuro
completamente diferente, mas acho que havia soluções
muito menos radicais para os fazer entender que aspiravas
a outra coisa.
O Set solta uma gargalhada franca, que me contagia.
Sacode a cabeça sem perder o sorriso.
— Estava no segundo ano. Eu e os meus pais não
falávamos há vários meses, porque lhes tinha confessado
que não queria o fa­moso futuro que tinham planeado para
mim. Cortaram-me a me­sada. Pensaram que concordaria
em fazer o que queriam pelo seu dinheiro, mas isso estava
fora de questão. Precisava de um em­prego para pagar o
quarto na residência universitária, e o Clarke apareceu no
momento certo. Conheci-o no Degenerate Bar. Esta­va a
lutar com dois tipos, que deixou bem desfigurados; então,
apareceram outros seis. Ele é muito forte, mas contra seis
ho­mens munidos de barras de ferro, ia necessariamente
ficar todo partido. Aí, juntei-me a ele na luta, sem hesitar.
Não nos saímos muito mal, mas ele nem me agradeceu, o
camelo. Tinha um ar frio e olhou-me com desprezo, como se
quisesse arrear em mim também. E foi o que fez.
Arregalo os olhos e o Set ri, antes de esclarecer:
— Como já viste, o Clarke odeia que se intrometam nos
seus assuntos. Acredites ou não, com a direita que me
mandou, perce­bi que o gajo era completamente maluco e
achei-o imediatamente simpático. Ele saiu sem dizer uma
palavra, mas alguns dias de­pois veio ter comigo e propôs-
me que fosse falar com o Carter. No início, eu fi-lo pelo
dinheiro, depois descobri uma verdadeira fa­mília nos Filhos
do Diabo, quando a biológica me tinha virado as costas.
Neste gangue, aceitamo-nos como somos, com as nossas
qualidades e os nossos defeitos. Ninguém nos tenta mudar,
nem mesmo o Carter. Pelo contrário, ensina-nos a fazer das
nossas fra­quezas uma força. Nunca me senti tão no meu
lugar como com os Filhos do Diabo.

21 Valhalla é o lugar que recebe os bravos guerreiros


mortos em batalha, escolhidos pelas Valquírias de Odin no
campo de batalha. Os Einherjar (habitantes do Valhalla)
bebem e banqueteiam-se à noite à mesa de Odin e lutam
entre si durante o dia, em antecipação do Ragnarok. Nesse
dia fatídico, vão engrossar as fileiras dos deuses e lutar
contra os seus inimigos. Para os homens que aderem a esta
religião, é um propósito e uma honra alcançar o Valhalla
após a morte.
Capítulo 13

Um clarear de garganta chama a atenção para o canto


do jar­dim onde o Clarke está encostado à parede, de braços
cruzados. Dada a postura, certamente não acabou de
chegar e espero, do fundo do coração, que não me tenha
visto ficar sem ar, apesar de as palavras do Set sobre as
fraquezas me terem tranquilizado.
— Volta para dentro. Eu cuido dela.
O Set acena com a cabeça e beija-me a testa; então,
endireito-me, para permitir que ele se levante.
— E deixa o Daniel em paz — relembro-lhe.
— Dou-te a minha palavra!
Pisca-me um olho antes de desaparecer, levando o meu
sorriso com ele.
De mãos nos bolsos, o Clarke caminha até mim e senta-
se no lugar ocupado pelo Set segundos antes.
Nunca sei como lidar com ele, o que é frustrante. Vai do
8 ao 80. Tem um humor imprevisível, é um tipo impossível
de definir.
— Não estás com a tua namorada? — pergunto, para
quebrar o silêncio.
— Não é minha namorada.
Segue-se um longo silêncio, mas compreendo
perfeitamente as palavras que ele não diz. Não namora
ninguém. Não está interes­sado em relacionamentos sérios.
Olha para a frente, sem mostrar o menor interesse em
mim.
Porque está ele aqui, se isso o aborrece?
— Devias voltar lá para dentro — proponho.
Vira o rosto para mim, de olhos franzidos.
— Para suportar as tentativas de abordagem de pessoas
mais ridículas umas que as outras? Não, obrigado. Ainda
prefiro ficar contigo.
Não sei como interpretar isto, mas desato-me a rir,
divertida ou cansada, ainda não sei, e esboça-se um sorriso
nos cantos dos lábios do Clarke. Ainda assim, compreendo-
o. Detestaria ser o centro das atenções pela imagem que
transmito e não pela do que realmente sou. Não suporto
hipocrisia e pessoas interesseiras.
— Não acreditas no amor?
Se fica surpreendido com a pergunta, não o deixa
transparecer.
— Só acredito no que vejo.
— No entanto, acreditas nos deuses.
— Acredito neles, sem os venerar.
A revelação apanha-me de surpresa. Gostaria de lhe
perguntar se perdeu a confiança neles quando os pais
morreram, mas parece-me deslocado, por isso mantenho-
me em silêncio e deixo-o continuar.
— Como acredito no amor sem ter fé nele. Penso que é
mal de­finido. Aquilo a que hoje chamamos amor é apenas
uma ilusão, uma mentira sedimentada e mantida para
evitarmos a solidão.
Deito-lhe um olhar cheio de espanto. Não fazia a menor
ideia de que, em querendo, o Clarke pudesse ser eloquente.
Perco-me nos seus olhos hipnóticos, capazes de dizerem
mil coisas se ele os deixar expressarem-se.
— Então, para ti, o amor que vemos hoje não é o mesmo
que deve ter sido originalmente?
Acena e eu abano a cabeça, discordando dele.
— O amor vai muito para lá de um simples passatempo.
É real. Olha para o Jackson e a Aurora, ou...
O Clarke ri, desdenhoso.
— Se o Jackson e a Aurora se separassem, levaria apenas
algu­mas semanas até recuperarem do rompimento.
Conheceriam ou­tras pessoas e apaixonar-se-iam
novamente. É isso, para ti, o amor? Substituível? Efémero?
Abro a boca, mas as palavras não me vêm. Há amores
que nunca morrem, no entanto, são raros. E se o Clarke
tivesse razão? E se o amor que se extingue ao longo do
tempo fosse, na verdade, apenas um vago eco do que devia
ser?
— Então, o amor devia ser eterno? Se amanhã uma das
duas pessoas morrer, a outra teria de definhar de tristeza?
Ser incapaz de se recompor e viver sem ela? — pergunto.
— Calculo que sim. Mas está em vias de extinção, por
isso não contes muito com ele.
Instantaneamente, ponho uma cara fechada.
— Eu não quero amor, muito menos um amor assim.
O Clarke ergue uma sobrancelha, dubitativo, mas o meu
ar sé­rio acaba por convencê-lo.
— Porquê, se acreditas nele? E não me dês a versão de
duas li­nhas, para mudares de assunto. Quero a verdadeira
razão.
Perturbada com a mudança de rumo da conversa,
levanto-me sob o seu olhar curioso e passo-lhe ao lado.
— O que é que...
— Não te mexas. Preciso de me encostar a qualquer
coisa.
Sento-me na relva e apoio-me nas suas costas, estico as
pernas e cruzo-as. E verdade que ter uma parede atrás de
mim me alivia, mas faço-o principalmente para escapar ao
seu olhar perscrutador.
— Os estudos são demasiado importantes para que me
queira distrair com uma mentira sedimentada e mantida
para evitarmos a solidão, como dizes.
— Pedi-te a verdadeira versão, Avalone. Não aquela que
distri­buis aos teus amigos.
Mordo o interior da bochecha e pergunto-me porque hei
de confiar nele. Não somos amigos e discutir este tipo de
assunto em que tem ideias tão firmes não me parece uma
boa ideia.
A Aurora tinha escolhido uma frase para descrever o
Clarke, e é exatamente a mesma que minha ex-melhor
amiga usou quando a minha doença se tornou demasiado
dura para ela suportar. «Amo-te tanto que não quero estar
por perto quando tu explodi­res», disse-me a Nora.
— Então?
— Eu sou uma bomba-relógio.
Não lhe vejo a cara, mas o silêncio que se segue não
deixa mui­ta margem para a imaginação. Tem
provavelmente a testa franzi­da e uma expressão
indecifrável.
Hesito em continuar, mas, agora que comecei, posso
muito bem acabar com isto rapidamente.
— Não morrerei de velhice. Tanto posso aguentar alguns
anos, se continuar a ser abençoada pelos deuses, como
posso morrer amanhã. E vou deixar todos os que me amam
para trás.
Sinto o Clarke tenso atrás das minhas costas. Passo os
dedos pela erva, nervosa.
— Mas mereces ser feliz.
— Não se for em detrimento de outros. Amor verdadeiro
ou não.
Dou um pulo, quando o Clarke de repente se levanta e se
volta para mim, com os olhos negros de raiva.
— És uma idiota.
— Desculpa?
— És uma idiota! — repete, irritado. — Vais-te privar do
que queres porque há uma possibilidade de morreres
amanhã? Vou-te ensinar uma coisa, Avalone. Qualquer um
pode morrer de um dia para o outro e abandonar os seus
entes queridos. A vida é assim!
Sei que se está a referir à morte dos pais, mas os seus
insultos e o tom levam-me aos arames. Furiosa e impulsiva,
ponho-me em pé de um salto.
— Sim, qualquer um pode morrer de um dia para o outro.
Mas, para mim, não é apenas um risco, é uma fatalidade!
Estou a mor­rer! Já nem devia estar viva!
Os seus olhos ficam ainda mais escuros... se possível.
— ENTÃO, APROVEITA!
— COMO?
Abate-se sobre nós um silêncio, durante o qual nos
olhamos fixamente, ambos com falta de ar. Passo as mãos
trémulas sobre o rosto.
— Desde que nasci, ando de hospital em hospital, de
consulta médica em consulta médica, de restrição em
restrição e de trata­mento em tratamento, com cada vez
mais hipóteses de morrer no dia seguinte. Tenho de ter
cuidado com o que como, o que bebo, onde estou, porque
um simples fumozinho me impede de respi­rar. Não posso
correr, tenho de pensar em tomar a medicação o tempo
todo e, se me esquecer, o meu coração para de bater! Por­‐
tanto, Clarke, concordo contigo. Qualquer um pode deixar-
nos de um dia para o outro. Mas, no meu caso, é inevitável.
É
É por isso que tiro proveito dos meus amigos e quebro as
restrições médi­cas, para ter experiências que todos contam
ter. No entanto, não arrastarei nenhum homem na minha
queda, mesmo que, como dizes, ele recupere depois!
Inspiro profundamente, para recuperar o fôlego,
enquanto o Clarke me examina sem dizer nada. Ora aí tens.
— Vou voltar lá para dentro.
Volto-me, mas o Diabo volta a falar.
— E o fumo?
Exausta, fecho os olhos para evitar que as lágrimas
caiam. Não posso voltar para dentro de casa. Mesmo que já
ninguém esteja a fumar, o ar tem dificuldade em renovar-se.
— Não devias ter vindo. Devias ter ficado a descansar.
Ouço-o atrás de mim e viro-me lentamente para ele.
— Levo-te de volta para a universidade.
A sua voz suave tem o mérito de me persuadir. Aceno
com a cabeça e puxo do telemóvel, para avisar a Lola de
que vou embora.
Quando levanto o nariz do ecrã, o Clarke desapareceu.
Suspiro e vou ter com ele à sua mota, já com o motor
ligado. Sento-me na Harley, passo os braços em torno da
sua cintura, mas quando se prepara para arrancar, o
telemóvel dele toca. Rosna de descon­tentamento e atende.
— Que é?
Faz uma pausa.
— Não, estou com a Avalone. Vou levá-la para a cidade
universitária.
Novo silêncio.
— Vou a seguir, agora não posso.
Antes de desligar, vejo o nome do Carter no ecrã.
— Algum problema? — pergunto.
— Outro parvalhão que não respeitou os termos do
tratado.
Danado, acelera bruscamente e corre pelas ruas da
cidade.
Tenho todo o caminho para me lembrar do dia em que vi
o Clarke fazer um tipo perder a vontade de voltar ao
território dos Filhos do Diabo. Não foi só sangue a esguichar.
Houve dentes a saltar, também. E sinto que é exatamente
isso que vai acontecer esta noite. Pode ser ainda pior, tanto
mais que não pôde esmurrar o Logan.
Quando chegamos à residência, descemos da mota e
ponho-me na frente dele.
— Já pensaste em usar palavras em vez de força?
Sem olhar para mim, passa ao meu lado e caminha em
direção ao prédio de pedra.
— A comunicação não é a minha praia.
— A sério! Se não me dissesses, nunca teria adivinhado!
Ao pé das escadas, o Clarke deixa-me passar à frente
dele. Os primeiros degraus são uma brincadeira, mas os que
se seguem tornam-se uma tortura. A minha respiração é
curta e sibilante, as pernas todas trémulas. Cada pé que
levanto parece pesar cada vez mais.
— Precisas de ajuda?
— Não, de todo.
Agarro-me ao corrimão e a minha velocidade diminui
conside­ravelmente. Sou forçada a fazer micropausas para
fazer desapare­cer os pontos negros que surgem diante dos
meus olhos.
O Clarke suspira atrás de mim e o seu tom suaviza-se.
— Deixa-me ajudar-te, Avalone.
— Sei subir uma escada!
— Não duvido, mas... Olha, que se lixe!
Põe-me as mãos na cintura, faz-me girar na frente dele e,
numa fração de segundo, estou em cima do ombro dele.
Solto um palavrão, mas não fico por aí. Não tendo forças
para me debater, um fluxo interminável de insultos solta-se
dos meus lábios, sob o ar de gozo do Clarke.
Porque, além do mais, tem a lata de se rir!
Quando me pousa diante da minha porta, sopro no meu
cabelo para o afastar da cara e, assim, poder fuzilá-lo com
os olhos.
— O que é que não joga bem contigo? Alguma vez te
passa pela cabeça levar em conta os meus desejos?
— Não. Nunca quando eles vão contra o que é melhor
para ti.
Siderada, rio nervosamente.
— Ah! Tu sabes o que é melhor para mim? Estou a
sonhar! Tu és realmente...
— Tem cuidado com o que vais dizer — corta. — Uma
boca tão bonita não deve pronunciar essas insanidades de
que guardas o segredo.
Inclina a cabeça para o lado e os olhos dele pousam
lentamen­te nos meus lábios. Passa um segundo, depois
dois. Abro a boca, mas fecho-a imediatamente, incapaz de
me lembrar do motivo para a minha raiva.
— Boa noite, Avalone.
Dá meia-volta, permitindo que o meu cérebro se liberte
da pri­são de neblina em que acabava de ser apanhado.
— Vai e não voltes!
O seu riso ecoa em resposta e, irritada, pego nas chaves,
para abrir a porta do quarto. A minha mente está a ferver e
os meus pensamentos entrechocam-se, tornando qualquer
esforço de re­flexão incompreensível.
Vou para fechar a porta atrás de mim, quando um pé se
atra­vessa na soleira e me impede de o fazer. Este sapato
não pertence ao Clarke. Surpreendida, deixo a porta abrir-se
ao recém-chegado que a empurra.
De olhar vítreo e forte cheiro a álcool, o estudante que
tenho diante de mim está mesmo muito bêbado. O seu
estado de embri­aguez e a ausência de qualquer outra
pessoa no corredor não me tranquilizam.
— Queres alguma coisa?
Os seus olhos cheios de desejo percorrem-me de alto a
baixo e dão-me calafrios nas costas. Penso em encontrar um
objeto à mão que me possa ajudar a afastá-lo, se
necessário, mas ele entra de rompante no quarto, forçando-
me a dar um salto para trás.
Os batimentos do meu coração disparam.
— Vai-te embora!
O meu tom é seco e tento esconder o medo, mas recuo,
em res­posta a cada passo dele. Rapidamente, dou por mim
encurralada contra a minha secretária.
Acabei de sair do hospital e a ideia de voltar por violação
cau­sa-me náuseas. Não sobrevivi para isso.
O meu cérebro volta a funcionar, analisa a situação e
pensa em soluções para me tirar desta alhada, mas o rapaz
cola o seu corpo contra o meu e todos os meus
pensamentos coerentes se volatilizam.
— Desaparece!
O meu punho dispara um murro no queixo dele. Uma dor
agu­da nos dedos provoca-me uma careta de sofrimento.
Infelizmente, o tipo nem recuou com o impacto. Solta uma
gargalhada malé­vola, antes de me dirigir um olhar
determinado, que acentua o meu pânico, como se ainda
fosse possível.
De repente, a boca dele cola-se ao meu pescoço e as
mãos per­correm o meu corpo. Sinto um forte sentimento de
repulsa. Tento lutar e afastá-lo, mas quanto mais gesticulo,
mais ele aumenta o peso do seu corpo em cima de mim. As
lágrimas começam a jun­tar-se nos cantos dos meus olhos e
acabam por me turvar a visão. A mão dele pousa na minha
virilha e eu berro de terror e peço ajuda. Numa esperança
vã, tento mordê-lo. Ele empurra-me tão violentamente
contra a parede que a minha respiração fica corta­da
durante intermináveis segundos.
— Por favor... Para com isso...
Mas ele volta ao ataque. Toca-me, acaricia-me, beija-me
o cor­po, transgredindo o meu direito de propriedade. Viola o
meu cor­po e contamina a minha alma.
Prepara-se para meter a mão dentro dos meus calções e
reúno as últimas forças para cravar o meu calcanhar no pé
dele. Solta um palavrão e alivia a pressão.
— Nunca devias ter feito isso!
Dá-me uma bofetada tão forte que a minha orelha
assobia e vejo estrelas a dançar diante dos olhos. Choro,
gemo de dor e im­ploro. Ele cola a boca à minha. As minhas
pernas vão-se abaixo, mas ele segura-me contra o seu
corpo. Não tenho mais forças para lutar, não tenho mais
forças para gritar. Tenho de o deixar continuar. Deixo-o
agarrar o meu cabelo e puxá-lo para trás. Dei­xo a língua
dele sentir o gosto da minha pele. Sinto-me vazia. Já não
ouço, já não penso, já não respiro, já não vivo. Sinto a alma
abandonar o meu corpo, o meu espírito voar para algo
menos cruel.
Os meus joelhos entram em contacto repentino com o
chão, seguidos das minhas mãos. Levo longos segundos
para perceber que já não sinto o corpo do tipo no meu. Ele
já não tem as mãos, a boca ou a língua na minha pele.
E o Clarke está aqui.
Espalma o meu agressor contra a parede, antes de
aplicar to­das as suas forças num murro. O sangue jorra do
nariz do estu­dante e a cabeça cai mole para o lado, de olhos
fechados.
— Vou fazer-te perderes a vontade de quereres pôr as
mãos em cima dela!
A voz sai-lhe diretamente do abismo de Helheim22,
glacial e sinistra, e promete o mesmo que esse mundo: o
fim. Não há volta a dar.
O Clarke agarra na cara do tipo com a sua grande mão e
esmaga-lhe o crânio contra a parede, em seguida, encadeia
murros, cada um mais violento do que o anterior.
Olho para a cena como se não estivesse ali, como se um
véu me separasse da realidade. Os ruídos chegam-me em
eco. Não consigo mexer-me, nem falar, quanto mais parar
as lágrimas.
O chão está coberto de sangue. O Clarke segura o corpo
in­consciente do estudante e espanca-o. Atinge-o cada vez
com mais força. Ele é destrutivo, a sua necessidade de
aniquilar sente-se em cada um dos seus uppercuts.
O meu pensamento recomeça a funcionar e soa um
alarme no meu cérebro.
— Clarke... — suplico, entre soluços.
Ele não me ouve, não para. O rosto do rapaz está
irreconhecí­vel, totalmente ensanguentado e inchado.
— Clarke!
A minha voz não o faz parar, mas a situação está a
tornar-se urgente. Não sei onde encontro forças, mas berro:
— CLARKE, VAIS MATÁ-LO!
Ele larga o corpo, que jaz no chão no seu próprio sangue.
Ago­ra, volta-se bruscamente para mim, com o olhar
dominado pelo ódio.

Í Ê
— PROÍBO-TE DE DEFENDÊ-LO!
— É CONTIGO QUE ESTOU PREOCUPADA!
O soluço incontrolável que me escapa abala todo o meu
corpo.
— Não quero que vás para a cadeia...
O olhar do Clarke suaviza-se imediatamente e, pela
primeira vez na minha vida, consigo decifrá-lo. Ele sente
uma forte culpabilidade.
— Fica aqui e não abras a porta a ninguém.
Abano a cabeça e afundo-me mais em lágrimas.
— Suplico-te, não me deixes! Não me deixes, não me
deixes, não me deixes...
Num segundo, o Clarke está em cima de mim e levanta-
me do chão para me deitar suavemente na minha cama.
Pega no meu rosto com umas mãos tão frescas e macias
como uma carícia, sem me quererem mal. Os seus olhos
verdes traem a preocupação.
— Prometo voltar, Avalone. Vou tirá-lo daqui do quarto e
volto para te vir buscar, okay?
As suas palavras acalmam os meus soluços e consigo
acenar com a cabeça. O seu olhar permanece imerso no
meu, hesita em deixar-me sozinha, mas acaba por se
afastar de mim, rosnando. Agarra no tipo com incrível
facilidade, pega nas minhas chaves e sai do quarto, tendo o
cuidado de fechar a porta atrás de si.
O quarto mergulha no silêncio e as tremuras do meu
corpo redobram.
Os meus olhos pousam na quantidade impressionante de
san­gue no chão e na parede, e pulo da cama, a correr para
a casa de banho. Encho uma bacia com água e eis-me a
limpar os tacos de madeira, usando todos os panos que
encontro. Esfrego como uma louca, de vez em quando
passo a mão sobre partes do meu corpo, para apagar os
vestígios do abuso. Mas nada ajuda, a sensação persiste.
Apetece-me berrar e queimar a minha pele, para deixar de
sentir as mãos e a língua daquele estranho em mim. Esfrego
os braços e o pescoço. Esfrego as coxas até as deixar
vermelhas, en­quanto mergulho o pano na bacia para o
lavar. Um par de mãos feridas pousa nas minhas, para
interromper os meus movimentos rápidos e repetitivos e,
quando olho para cima, vejo o Clarke. Não sei por quanto
tempo nos olhamos fixamente, mas ele acaba por me tirar
das mãos uma T-shirt, antes de a atirar para dentro da bacia
e levar tudo para a casa de banho. Estou a esfregar as últi­‐
mas manchas de sangue do chão com o meu pijama, e a
voz do Diabo sobre o meu ombro sobressalta-me.
— Eu trato disso mais tarde.
Levanta-me do chão, vira-me de frente para ele e
certifica-se de que me aguento de pé.
Aterrorizada, completamente esparvoada e em choque,
atiro-me para os braços dele. Surpreendido, demora algum
tempo a apertar-me contra si, mas ao fazê-lo, o meu
batimento cardíaco diminui, apesar das minhas inesgotáveis
lágrimas.
— Acabou. Nunca mais volta a acontecer, prometo.
Sinto a raiva na sua voz, as mãos a tremerem-lhe de
contenção quando as coloca nas minhas faces, para me
observar.
— Ele magoou-te?
Não respondo, porque a minha atenção é atraída para a
sua mão em carne viva. Entro imediatamente em atividade.
Seco as lágrimas e descolo-me dele.
— É preciso desinfetar.
— Está tudo bem, não te preocupes.

É
— É preciso desinfetar. São só cinco minutos — insisto,
com voz trémula.
Viro-lhe as costas com a intenção de ir à casa de banho
buscar a caixa de primeiros socorros, mas ele trava-me o
passo e agarra-me no queixo, para mergulhar o olhar bem
fundo no meu.
A raiva dele abala-me. Ela volteia no abismo das suas
pupilas dilatadas e engole todas as outras emoções, para
ficar com o mo­nopólio. Fico submergida.
— Eu devia ir atrás dele e matá-lo pelo que ousou fazer-
te! — lança, entredentes.
O Diabo puxa-me contra o seu peito e desliza a mão pela
mi­nha cabeça, para agarrar a minha cabeleira desgrenhada,
como se isso lhe acalmasse a raiva. Percebo agora que ele
precisa de mim tanto quanto eu preciso dele.
Impregnamo-nos daquilo que o outro possui e que nos
falta, na esperança de nos acalmarmos.
Passa um bocado e o Clarke afasta-se de mim e vasculha
os quatro cantos do meu quarto.
— Vais dormir na minha casa.
Não discuto. Vejo-o preparar o meu saco. Não tenho a
menor vontade de ficar aqui sozinha. Sinto-me tão fraca e
vazia que temo novamente pelo meu coração. Esta noite
não o poupou. Os acontecimentos recentes fizeram-no bater
demasiado depressa. O Clarke parece partilhar as minhas
preocupações, pois coloca o saco de ginástica ao ombro e
levanta-me como se eu não tivesse peso. Saio do quarto nos
braços dele e continuo apertada contra o seu peito, mesmo
quando monta na mota.
Durante toda a viagem, não vejo nada além da sua T-
shirt, não cheiro nada além do seu cheiro, e não toco em
nada além do seu corpo. O calor do seu corpo tem o efeito
de me envolver numa bo­lha protetora, que apaga a
sensação das mãos do estudante em cima de mim. Sinto-
me em segurança com ele, muito mais do que com qualquer
outra pessoa. Porque ele é o Clarke Taylor. Ele é forte,
poderoso e ninguém o ataca.
Até pode ser uma bola de raiva em estado puro, mas
acalma-me. Embalada pelo bater do seu coração, consigo
secar as lágrimas.
É doloroso e ainda tenho dificuldade em pôr os
pensamentos em ordem, no entanto apercebo-me da sorte
que tive. O Clarke ouviu o meu grito de socorro. Outras não
tiveram a mesma felici­dade. Outras ainda nem gritaram,
vítimas de manipulação ou chantagem emocional.
Apesar desta sorte, fico maldisposta por me sentir
desvalida. Vítima de agressão sexual ou violação, os danos
psicológicos são reais.
O Filho do Diabo para a mota em frente da entrada de
um belo prédio. Prepara-se para carregar-me ao colo, mas
ponho fim ao meu momento de fraqueza. Murmuro que
estou bem e ele fica a ver-me desmontar da sua Harley. Por
uma vez, aceita a minha es­colha. No entanto, espera que eu
caia para o lado a qualquer ins­tante e segue-me de perto.
Atravessamos um átrio espaçoso e o Clarke conduz-me
ao pri­meiro andar. Abre uma porta, que dá para uma
magnífica sala de estar, muito grande. Visivelmente, há
grandes vantagens em fazer parte de um gangue.
A Lola já me tinha informado de que ele morava com o
Set e o Tucker, pelo que não me surpreende o número de
quartos. Em compensação, está tudo bem arrumado e
impecavelmente limpo.
Sigo o Clarke até um quarto. É tão limpo como a sala de
estar, mas noto imediatamente que não tem nenhuns
objetos pessoais. Nem fotos, nem objetos que indiquem que
uma determinada pes­soa dorme aqui. As paredes brancas
contrastam com a estrutura da cama de casal e os lençóis
pretos. Há uma porta, também pre­ta, provavelmente para
uma casa de banho, em frente ao guarda-roupa.
— Há toalhas lavadas na gaveta — indica-me.
Aponta para a dita porta.
Aceno com a cabeça e depois de um último olhar que o
certifi­ca de que estou bem, pousa o saco em cima da cama,
antes de sair do quarto.
Em piloto automático, pego nos meus haveres e entro
numa esplêndida casa de banho em mármore preto. Não
vejo o meu re­flexo no espelho comprido por medo do que lá
possa descobrir. Em vez disso, apresso-me a tirar a roupa,
para entrar no chuveiro.
A água quente a escorrer pelo meu corpo faz-me imenso
bem, mas fica vermelha do sangue que tenho em cima da
pele. Coloco as mãos contra a parede e fecho os olhos.
Aguardo longos minu­tos, para ter certeza de que, quando os
abrir novamente, todos os vestígios de hemoglobina terão
desaparecido.
Por fim, lavo o corpo e o cabelo com produtos
masculinos, em embalagens já encetadas. Olhando de
relance para o lavatório, percebe-se que o quarto não está
desocupado. Escova de dentes, pasta de dentes, máquina
de barbear e toalha no toalheiro.
Depois de esfregada, seca e com os dentes lavados, visto
uns calções de algodão e uma camisa sem mangas.
Saio da casa de banho, depois do quarto, e atravesso o
corre­dor, hesitante. Entro na sala de estar, onde o Clarke
está de frente para uma janela panorâmica, com o
telemóvel colado à orelha.
— Ela está bem. Demorou uns minutinhos a voltar a
colocar a coroa na cabeça.
Estaco com a surpresa. Ele obviamente ouviu o que eu
disse ao Set, no jardim da fraternidade.
Ele suspira e tira qualquer coisa da parte de trás das
calças de ganga, que coloca em cima do aparador.
Horrorizada, dou um passo atrás ao reconhecer o objeto.
Um revólver. Eles têm armas, porra!
— Não, ligo ao Carter amanhã. Acho que ela já teve uma
noite merdosa que baste.
Faz uma pausa, enquanto o Set responde.
— Quero que se lixe se o Carter não gosta! De qualquer
forma, ela nunca aceitaria dormir em casa dele!
Tem razão.
— Sim, achei mesmo que o ia matar. Vai lá limpar todos
os ves­tígios de sangue do quarto dela. Não precisa de
reviver este pesa­delo amanhã.
O Clarke desliga e, depois de passar a mão pela cara,
volta-se. O seu olhar imediatamente pousa sobre mim. A
boca descai-lhe e a testa franze-se, quando os seus olhos
descem para as minhas pernas nuas. As suas expressões
faciais talvez sejam impercetíveis para muitos, mas, a mim,
fazem-me corar.
Ele clareia a garganta e olha diretamente para os meus
olhos.
— Não pudeste comer piza na festa. Tens fome?
Digo que não com a cabeça. O que se passou entretanto
tirou-me o apetite. Por outro lado, achava que ele estava
muito ocupa­do a beijar a estudante para se dar conta de
que eu não tinha co­mido nada.
— Certo. Então, dorme bem. Se precisares de alguma
coisa, es­tarei aqui.
— Descansa-me lá, não vou encontrar roupa interior ou
secre­ções vaginais provenientes de excitação sexual nos
teus lençóis?
Arregala os olhos de surpresa e depois desata num riso
que faz vibrar a minha alma. É verdade, ela continua cá,
não me abando­nou depois da agressão e até consigo sorrir
das suas saídas hilariantes.
— Não há qualquer risco, não vem cá nenhuma rapariga.
Ponho um ar cético.
— Não sou do género de ficar abraçado depois de as
foder, Ava­lone. Assim, poupo-me a ter de pô-las na rua e
levar com os insultos.
Levanto os olhos para o teto.
— Que cavalheiro!
— O cavalheiro, por surpreendente que te pareça,
concede-te a sua cama. A não ser que prefiras o sofá...
Levanto as mãos em sinal de inocência e dou um passo
atrás.
— Se dependesse de mim, ficava no sofá, mas o meu
médico proibiu-mo explicitamente — minto.
Encolho os ombros em resposta ao seu ar dubitativo.
— Uma questão de grau de inclinação, ou algo assim...
Contém o sorriso, mas os olhos brilham-lhe de diversão.
De­pois de lhe desejar boa noite, atravesso o corredor. Antes
de desa­parecer da sua vista, volto-me uma última vez na
sua direção e o que vejo faz-me estacar.
Com a cabeça inclinada para o lado, o Clarke tem os
olhos fi­xos nas minhas nádegas. Quando percebe que
acabou de ser apa­nhado em flagrante, endireita-se e
encolhe os ombros.
— Esses calções são ridiculamente pequenos.
— Tu é que os escolheste — lembro-lhe.
Esboça um sorriso e eu olho para o alto, antes de ir para
o quarto, grata por ele me deixar dormir cá.
Depois de engolir os medicamentos, desligo a luz e deito-
me. Agora, tenho a certeza de que é o quarto dele. Os
lençóis estão im­pregnados com o seu cheiro.
***
Acordo assustada, com a cara banhada em lágrimas, sem
con­seguir respirar. Tremo toda. Imagens do meu agressor
ainda vol­tejam na minha cabeça. Ele estava ali, no meu
pesadelo, e o Clar­ke não vinha em meu socorro. Eu gritava e
lutava, sem sucesso.
Levo algum tempo a lembrar-me de que estou no quarto
do Clarke. Fraca e a sufocar, vejo a minha bolsa na mesa de
cabecei­ra, mas, quando tento agarrá-la, deixo-a a cair no
chão com es­trondo. Endireito-me e saio da cama para a
apanhar. As pernas vão-se abaixo e são braços fortes que
me seguram. Os do Clarke, que eu rejeito. Recuso-me a
deixar que alguém me veja novamen­te neste estado. Mas o
Filho do Diabo aperta-me com mais força e não tenho forças
para me debater. Deixo-o carregar comigo e pôr-me de volta
na cama, com o cérebro enevoado pela falta de oxigénio.
— Eu...
— Está tudo bem — sussurra-me.
Aconchegada contra o seu tronco quente e nu, vejo a sua
mão abrir-se diante dos meus olhos, a revelar o remédio de
que eu es­tava à procura segundos antes. Agarro-o
imediatamente, coloco-o na ponta da língua e engulo-o. O
efeito do Xanax não demora muito a fazer-se sentir.
O ar chega-me aos pulmões com um som sibilante
desagradá­vel ao ouvido. Começa um ataque de tosse
incontrolável, firme­mente agarrada contra o Clarke, que me
envolve nos braços, como se quisesse proteger-me da
minha própria ansiedade.
Aos poucos, recupero a calma e respiro
convenientemente. De repente, tomo consciência da sua
pele nua contra a minha, toda arrepiada. Uma doce tortura
que descubro pela primeira vez. O calor do seu corpo
atravessa a minha camisa e põe-me a pele a ferver. Cada
respiração sua intensifica a pressão do seu tronco contra as
minhas costas, e o seu hálito...
— Devias tentar voltar a adormecer — sussurra, com o
nariz no meu cabelo.
O seu bafo na minha orelha causa-me um frémito que eu
teria escondido, se não estivesse meia drogada. Mas sinto o
Clarke a sorrir, sinal de que não lhe passou despercebido.
Mete-me debaixo dos lençóis e a sua pele deixa a minha,
pro­vocando uma sensação de ausência, de privação.
Levanta-se e prepara-se para ir embora, mas a minha mão
agarra-lhe o pulso. Vira-se para mim, surpreendido.
— Dorme comigo...
Arrependo-me imediatamente das minhas palavras e,
quando vejo o Filho do Diabo tenso como um arco, dava
tudo para engoli-las.
O Clarke olha-me durante longos segundos e não consigo
se­quer decifrar a sua expressão no meio da obscuridade.
Sem res­ponder, dá meia-volta e dirige-se para a porta.
Fecho os olhos com um suspiro, sem forças para me insultar.
Quando a porta bate, descubro, para meu espanto, que não
saiu. O meu batimen­to cardíaco acelera, enquanto a sua
mão continua espalmada con­tra a madeira. Hesita, eu sei, e
posso até imaginar-lhe os múscu­los tensos, dos quadris até
ao pescoço. Lentamente, volta-se para mim e dá-me uma
visão incrível do seu tronco e das sombras que nele
dançam.
Uma vez tomada a decisão, não há volta a dar. O Diabo
avança para a cama e contorna-a para se deitar. Inspira
profundamente, de um modo que me enlouquece os
sentidos, passa o braço por baixo do meu corpo, voltado
para ele, e puxa-me para si. Quando a minha cabeça
assenta na depressão do seu ombro e repouso a minha mão
no seu peito nu, ele contrai-se.
Instala-se um silêncio pesado, durante o qual não me
atrevo a mexer-me nem sequer a respirar. Agora, rosna-me
de irritação e volta-me para o outro lado. Os seus braços
envolvem-me a cintu­ra e puxa as minhas costas contra o
seu peito. Nesta posição, a sua respiração faz-se sobre o
meu pescoço, provocando novo fré­mito... e sinto o Clarke a
sorrir contra a minha pele.

22 Helheim é o mundo dos mortos, governado pela deusa


Hela.
Capítulo 14

Há dez minutos que estou acordada e não me mexo nem


um milímetro, para refletir sobre os acontecimentos de
ontem. O Clarke já saiu há muito. O seu lugar está frio e não
faço ideia de quanto tempo passei nos seus braços. Esperou
que eu adormeces­se para sair ou dormiu comigo?
Desta vez, tenho forças para me insultar mentalmente
por im­plorar a sua presença, ontem à noite. Ele é
provavelmente o rapaz mais bonito que já conheci e
confesso sentir algumas coisas, quando ele não se arma na
maior besta dos nove mundos. Mas continua a ser uma
pessoa violenta, com atividades ilegais, não namora e eu
não quero um namorado. Então, o que estou eu a fazer?
Solto um longo suspiro, afasto os lençóis e saio da cama.
O sol já vai alto, o que não surpreende, já que é quase meio-
dia.
Entro na casa de banho para refrescar o rosto antes de
vestir roupas limpas, escolhidas ontem à pressa pelo Clarke.
Com um passo pouco seguro, saio do quarto e atravesso
o cor­redor. A voz do Tucker chega aos meus ouvidos e
relaxa-me. Não vou ter de enfrentar o Clarke no imediato.
Vou poder ignorá-lo e concentrar-me exclusivamente nos
rapazes.
Entro na sala e abrem-se sorrisos nos lábios do Set e do
Tuc­ker, quando me veem. Estão de tronco nu, sentados em
frente do pequeno-almoço, e não há vestígios do Clarke, o
que, estranha­mente, me dececiona.
Caraças, são cá umas estampas!
— Se precisas de algo que te tranquilize, apesar da noite
de merda que passaste, continuas resplandecente —
declara o Set. — Diria mesmo absolutamente divinal.
Sacudo a cabeça, divertida, mas os sorrisos dos rapazes
desva­necem-se demasiado depressa. Perscrutam o meu
olhar, para ve­rificarem se a minha alma está intacta.
— Prefiro quando vocês se armam em durões, em vez de
em ir­mãos mais velhos preocupados. Portanto, parem com
isso, bando de parvos, estou bem!
Partem-se a rir e provocam-me com o meu mau feitio. O
Tucker faz sinal para eu me juntar a eles. Sento-me, diante
da mesa posta.
— Sumo de laranja? — oferece o Set, de garrafa na mão.
— Sim, por favor. O Clarke não está cá?
— Não, foi à casa do Carter.
A conversa telefónica entre o Clarke e o Set na noite
passada vem-me ao espírito. Vai provavelmente ter
problemas por me tra­zer para casa em vez de para a do
Chefe.
— Vai ter chatices? — O Set sorri maliciosamente, o
Tucker faz olhinhos e eu aperto os olhos, desconfiada. —
Não sei o que que­rem insinuar, mas não é nada que valha a
pena.
— Não te preocupes. Não será a fúria do Carter que
afetará o Clarke.
Confirmo com a cabeça, preparo uma torrada e eis senão
quando a porta da rua abre-se à chegada do Jesse e do
Justin. En­quanto o loiro me belisca a bochecha antes de
trincar o meu pão, para me irritar, o da cabeça rapada
passa-me os braços pelo pes­coço e aperta-me com ternura.
Por mais que eu odeie o Carter, tenho de admitir que
aprecio os rapazes e a familiaridade que se instalou entre
nós.
— Como vais, V?
O Jesse larga-me e dá a volta à mesa, para ficar com o
Justin na minha frente e examinar-me melhor. Não sei o que
leem no meu rosto, mas estão preocupados e emana deles
alguma raiva, mesmo que tentem escondê-la.
— Não esperem respostas da parte dela; a chavala
obviamente não gosta que se preocupem com ela — diz o
Set, provocador.
O Justin inclina-se sobre a mesa, para colocar a sua pata
pesa­da na minha cabeça e espalhar o meu cabelo. Protesto
e tento afastá-lo.
— Não me surpreende, vindo da leoa!
Fico desconcertada e os rapazes riem. Desato a dizer
palavrões de fazer os deuses corarem, o que aumenta a sua
hilaridade.
A besta do capitão é francamente detestável!
Quando o riso para, o Jesse e o Justin puxam cadeiras e
sen­tam-se à mesa.
— Então, onde dormiste? — pergunta o Justin.
A faca cai-me ruidosamente no prato e o Set e o Tucker
arvo­ram grandes sorrisos. Então é isso... Juro pela Yggdrasil
que se eles abrem...
— No quarto do Clarke — responde o Tucker.
— Com o Clarke — diz o Set, para maior precisão.
Fulmino-os com o olhar.
— O Clarke não ficou no sofá? — pergunta o Justin, para
se cer­tificar de que entendeu a situação.
— Ninguém ficou no sofá! — confirma o Tucker. — Ele
saiu do quarto dele há um par de horas, deixando atrás de
si uma bela adormecida!
O Justin solta um palavrão e o Tucker estende-lhe a mão,
vitorioso.
— Deves-me cinquenta dólares, irmão!
O Justin resmunga por trás da barba, enfia os dedos no
bolso de trás das calças de ganga e entrega várias notas ao
Tucker.
Estuporados!
Preparo-me para esclarecer a situação, mas o telemóvel
do Set toca. O nome do Clarke aparece no ecrã. Atende e
põe o aparelho no ouvido, enquanto os Filhos do Diabo
gritam parvoeiras de pro­vocação ao Clarke sobre a noite
passada comigo. Se eu pudesse desaparecer, não hesitaria
um segundo. Em vez disso, afundo-me na cadeira, para
passar despercebida no meio da hilaridade geral. O Set
parece entender o que o amigo lhe diz, já que responde:
— Okay, vamos a caminho.
Desliga e diz:
— O Carter quer ver-te. Prepara-te e vamos!
Pelo menos, tem o mérito de parar com a tagarelice dos
rapazes.
Resignada, suspiro e levanto-me da mesa com a minha
tosta; agora dirijo-me para o quarto do Diabo. Engulo a
comida, lavo os dentes e, depois de arrumar as minhas
coisas no saco, vou ter com o Set à porta da entrada.
— Devias vir morar connosco, daríamos boas
gargalhadas! — sugere o Tucker.
— Achas mesmo que ela quer ver a tua fronha logo pela
ma­nhã? — reage o Justin.
— Toda a gente quer ver a minha fronha logo pela
manhã! Sou um grande Filho do Diabo! E o mais sexy!
Levanto os olhos para o alto, divertida, e saio do
apartamento com o Set. A porta ainda não se fechou atrás
de nós e ouço o Jesse responder:
— Se tu és o mais sexy, podes explicar-me porque é que
ela passou a noite com o Clarke?
O Tucker solta um palavrão, o Set desata-se a rir e eu
engasgo-me com a minha própria saliva. Quando o irmão da
Lola abre a boca, dirijo-lhe um olhar ameaçador que retira
qualquer desejo de continuar por esse caminho, e foco a
minha irritação no Cár­ter, para pensar noutra coisa.
Começo a estar farta das suas chamadas-surpresa. Não
estou ao seu dispor!
***
Diante da fonte de Odin, estão estacionadas as motas do
Clar­ke e do Sean, os dois ausentes do pequeno-almoço.
Entramos em casa, depois no salão, e três pares de olhos
fixam-se em mim. Um segundo depois, são apenas dois: o
Clarke desvia o dele, de rosto fechado. Pensava que
tínhamos passado um nível na nossa rela­ção, fosse ele qual
fosse, mas estava errada. Voltámos à estaca zero.
— Avalone.
O Carter levanta-se do cadeirão e, à parte a ligeira
preocupa­ção estampada na testa, parece ter envelhecido
durante a noite, o que me recorda a missão que tinha
atribuído ao seu afilhado, an­tes de sairmos da fraternidade.
— Fico feliz por estares bem.
Aceno por cortesia e deixo-o prosseguir.
— Vais mudar-te para cá até que a cidade universitária se
torne mais segura.
Definitivamente, ele não perde uma! Gostava de um dia
me surpreender com as ideias que passam pela cabeça
deste tipo, mas acho que já nada vindo dele me consegue
surpreender.
Cruzo os braços.
— Não.
O Carter fica tenso e o seu rosto endurece. Não sei o que
lhe aconteceu durante a noite, mas hoje parece não estar
com paciência.
— Não era uma pergunta. Não estás em segurança na
residência.
— Não menos do que as outras. Hospedem a Lola. Nesse
caso, hospedem todas as potenciais vítimas da
universidade!
Ele faz um gesto cansado com a mão.
— Se essa for a condição para aceitares, a Lola também
vem.
— Não! Não me vou mudar para cá! Nenhum lugar é
realmente seguro e a cidade universitária não será menos
perigosa dentro de um mês!
— O que é que eu disse? — intervém o Clarke.
Sentado no cadeirão preto, desvia o olhar quando
encontra o meu.
Por Odin, mas qual é o problema dele? Partilhámos uma
cama, não alianças de casamento!
O Carter olha fixamente para mim, impaciente, mas não
vou mudar de ideias. Já estou envolvida nas suas atividades
contra minha vontade, não ficarei certamente debaixo do
teto de quem me obriga a ajudá-los.
— Ouça, agradeço por se preocupar com a minha
segurança, mas quero viver normalmente. Há estudantes
bêbados em toda a parte. Qualquer mulher, qualquer
homem pode ser agredido a qualquer momento, é assim
mesmo. No entanto, está fora de questão mudar o meu
quotidiano por causa do medo.
O Carter suspira e passa nervosamente as mãos pelo
rosto. Como líder de gangue, não devem ser muitas as
vezes em que leva uma nega; mas eu já aceitei demasiadas
coisas, cabe-lhe agora fa­zer um esforço.
— Muito bem. Então, concede-me um favor: aparece com
os Filhos do Diabo, deixa que todos saibam que, se o menor
mal te acontecer, os culpados irão pagar por isso.
Fico perplexa com o seu pedido.
Será que se esqueceu do primeiro serviço que fiz para
ele? É que eu não!
— E o Bill? E o falso testemunho?
— Não te preocupes, vou tratar disso.
Insegura, deito um olhar aos rapazes, que acenam com a
cabe­ça para me encorajarem a confiar nele. Afinal, desde a
denúncia falsa, o Bill não procurou entrar em contacto
comigo, como o Cár­ter me prometeu, se eu ficasse do lado
dele.
Bem, pronto, se ele o diz, acho que só tenho de acreditar
nele...
Aceito o seu pedido e, para minha grande surpresa, ele
acena um agradecimento com a cabeça. O cansaço que lhe
marca as fei­ções deixa-me curiosa, mas recuso-me a sentir
um pingo de preo­cupação por este homem.
— Preciso de que atravessem a fronteira canadiana —
retoma o Carter, demorando o olhar sobre cada um de nós.
— Avalone, vais acompanhar a malta ao nosso fornecedor.
Cá está, os Diabos ainda mal estão de regresso à cidade
e re­começa tudo. Então, mas eles nunca têm férias?
— Posso saber o que vamos buscar?
— Armas. A fronteira não é problema, tenho autorizações
para todas elas. Partem às catorze horas. Clarke e Avalone,
vão no SUV. Set e Sean, nas Harleys.
O Carter cruza o arco para ir a um armário na entrada e
puxa um blusão de couro preto. Regressa e entrega-mo.
— Vais ter de o usar diante dos fornecedores. É teu, a
partir de agora.
Pego no blusão e vejo, em letras brancas, «Os Filhos do
Dia­bo» por cima da famosa caveira e do Vegvisir. Parece
perfeita­mente do meu tamanho. Ao meu lado, o Clarke está
tenso, como sempre que o Carter me inclui no gangue. Já
percebi que ele não quer que eu seja um deles e, apesar de
eu também não querer, o comportamento dele irrita-me.
Não tenho peste e não pretendo semear a discórdia!
— Troquem números de telefone com a Avalone e levem-
na à residência antes da partida. Deixa a tua mota aqui,
Clarke.
O Carter sai da sala sem mais uma palavra e os rapazes
pegam nos telemóveis.
Depois de partilharmos os nossos números, o Clarke faz-
me sinal para o seguir. Percorremos o longo corredor das
obras de arte e paramos na porta em frente do escritório do
Carter. O Clar­ke abre um armário suspenso na parede, pega
num porta-chaves com o logótipo da Mercedes e volta para
trás.
Numa garagem gigantesca em que não tinha reparado,
espraia-se diante dos meus olhos uma série de carros
esplêndidos. Mercedes, BMW, Bentley, Audi, Porsche... Cada
um mais espeta­cular do que os outros.
Entramos no SUV e o Clarke liga o motor. Quando se
aproxi­ma da porta da garagem, esta abre-se
automaticamente.
Saímos, por fim, do rancho e, quanto mais andamos,
mais me pergunto se o Carter me mentiu.
— Só vamos buscar armas legalmente? — pergunto-lhe,
com ceticismo.
— Sim.
— Posso confiar em ti?
Ele franze a testa, antes de mergulhar o olhar no meu.
— Sim.
Sinto-me tranquilizada. Está fora de questão voltar a
envolver-me em planos ardilosos e criminosos. No entanto,
não entendo porque o Carter quer que eu vá. A minha
presença não há de fazer baixar o preço das armas.
— Vamos a Leamington. Fica a uma hora e meia de carro.
Os homens do fornecedor estão armados e bastante
nervosos, por­tanto se puderes evitar contradizê-los, era
simpático.
— Não sou suicida e sei portar-me convenientemente.
Instala-se um longo silêncio.
Irritada com a pergunta que lhe quero fazer desde que
saímos da mansão, viro-me para ele, determinada a obter
respostas.
— Porque te importa tanto que o Carter me misture nos
vossos negócios?
— Nunca disse que me importava.
— No entanto, importas-te, não é?
Ele tira os olhos da estrada para me olhar com dureza.
— Sim. Não é trabalho para raparigas.
Escapa-me uma gargalhada nervosa.
— Não é um trabalho, de todo. O que vocês fazem é
ilegal, por­tanto, homem ou mulher, é a mesma coisa!
Ele para abruptamente o carro no estacionamento da
universi­dade e eu quase salto do meu assento.
— Ah, sim? Se as coisas correrem mal, sentes-te capaz
de puxar o gatilho de uma arma e tirar a vida a alguém?
Tens razão, eu não devia ter dito que não é um trabalho
para raparigas. Simplesmen­te, não é um trabalho para ti.
O seu tom desdenhoso potência a minha raiva. Parece
que te­nho de ser agredida por terceiros para ter direito ao
lado simpáti­co do Clarke.
— Tu nem me conheces!
— Diz-me que estou errado!
Fervo de raiva.
— Não, não estás errado. Desculpa ter humanidade e não
ser capaz de matar alguém!
O Clarke ri na minha cara. Está a bulir seriamente com o
meu sistema.
— Portanto, calculo que já mataste alguém?
Não sei porque lho perguntei. Não quero ouvir a resposta.
— Sempre que não tive escolha, sim.
Estas palavras não têm o efeito de um banho de água
fria. São um tsunami que me bate na cara. Um baque
daqueles que nos fa­zem ir abaixo, antes de tirarem o fôlego
e pararem o coração. A verdade é tão violenta que não faço
ideia de como me comportar. Engulo a saliva com
dificuldade, o que não escapa ao Clarke. Faz um esgar,
como se estivesse orgulhoso de si mesmo.
Por Hela, ele já matou!
— Temos sempre escolha! — lanço-lhe, com ódio.
O seu olhar reflete a ingenuidade que lê em mim, mas
não me julga minimamente. Tem só um ar nostálgico, de um
passado que já não lhe pertence.
— Gostava que mantivesses a tua inocência, Avalone.
Infeliz­mente, neste ambiente, não dá. Nem sempre temos
escolha. Não quando uma arma nos é apontada ou a algum
dos nossos amigos. Nesse momento, tens uma fração de
segundo para decidires ma­tar, a fim de permaneceres vivo
ou salvares os que contam para ti.
Ele tem razão, sei disso. Mesmo assim, não consigo
admitir em voz alta que, por vezes, tirar a vida possa ser
necessário. Parece-me totalmente insano, não quero
acreditar. Até me lembrar de que ele se movimenta num
universo de gangues: matar ou ser morto.
— Todos vocês já...?
O Clarke suspira, com a cabeça apoiada no encosto do
assento.
— Não, nem todos. Esse tipo de responsabilidade recai
sobre mim, na maioria das vezes. O Carter deve pensar que
sou o único sem consciência.
— É ridículo... Tu tens consciência!
Ele ri ironicamente, de lábios cerrados.
— Podes fazer qualquer um acreditar no que quiseres,
mas eu sei que a tua consciência está lá. Eu vi-a ontem à
noite. E se esse tipo de tarefa te cabe, é porque o Carter
sabe que não hesitarás em salvar aqueles que amas,
mesmo que isso signifique sacrificar a tua alma. Mais uma
prova de que tens consciência.
Saio do carro sem esperar resposta e vou para o meu
quarto. A Lola pula-me ao pescoço. Tenho direito não só a
um olhar preocupado e a uma inspeção minuciosa para se
certificar de que não estou ferida, mas também a lágrimas
de culpa e raiva, numa mis­tura explosiva. A Lola está
imensamente perturbada: insulta o meu agressor, depois a
si própria, por estar ausente; chora por mim e pelo que
passei. Quando me pergunta se eu quero falar so­bre isso,
abano a cabeça e a minha garganta dá um nó. Graças ao
Clarke e ao Set, não há vestígios do que aconteceu no
quarto, mas a memória é muito recente no meu espírito.
Limpo uma lágrima solitária no rosto e acabo por trazer o
Daniel à conversa, para mu­dar de assunto o mais depressa
possível. O rosto da Lola ilumina-se, como eu queria. A sua
felicidade afasta o negrume dos meus pensamentos.
— Ele é tão querido! Mandou-me uma mensagem ontem
à noi­te, para ter certeza de que eu tinha voltado bem para
casa.
Sonhador, o espírito da Lola perde-se na distância de
uma for­ma que eu pensava só ser possível em filmes. Mas
não. A minha amiga está a anos-luz de distância de mim e
da cidade universitá­ria. Já se imagina provavelmente casada
e com muitos filhos, por­tanto, sento-me na minha cama e
espero pacientemente.
— E tu? Dormiste na casa dos rapazes?
O seu regresso abrupto ao tema provoca-me um
sobressalto. Aceno com a cabeça.
— O Clarke deu-me o quarto dele. Depois, tive um
pesadelo e ele dormiu comigo.
O sono da Lola é tão pesado que ela nunca me ouve
quando acordo a meio da noite, com falta de oxigénio. Já
ouviu das boas do meu médico, não quero que se preocupe
mais com a minha doença e se sinta culpada por dormir
tranquilamente, quando eu às vezes sufoco, com ataques
de pânico.
Perante os seus olhos arregalados e queixo caído,
prossigo:
— Mas depressa voltou tudo ao normal. Pegámo-nos há
menos de uma hora.
— Espera! Ele deixou-te ficar na cama dele? E depois foi
ter contigo a meio da noite?
Aceno novamente com a cabeça, pensativa.
A proximidade que tive com o Clarke deu-me
completamente a volta à cabeça. Mentia se dissesse que
não gostei de adormecer nos seus braços; mas, com ele,
quando sinto que estou a dar um passo à frente, dou dez
para trás, horas depois. Receio que nunca nos tornemos
amigos.
— Odin Todo-Poderoso! Não consigo acreditar nos meus
ouvi­dos! Sabes que ele nunca dormiu a noite toda com uma
rapariga?
É verdade que isso me deixa feliz, mas acho que não
quer dizer grande coisa. A prova é que rapidamente voltou a
ser detestável.
Informo a Lola da minha expedição planeada para esta
tarde e, antes que ela faça um grande drama, confio-lhe
uma missão.
— És boa a investigar?
— Recusei um lugar no FBI, porquê?
— Preciso que encontres todas as informações que
possas obter sobre o Carter. O que faz exatamente na vida e
o que é dito sobre ele. Com tudo o que faço por ele, quero
saber com quem estou a lidar.
Ela confirma com a cabeça, determinada e animada;
agora murmura algo sobre o tempo que leva a fazer um
trabalho de qualidade, enquanto eu arrumo o saco de
viagem. Acabo de correr o fecho-éclair, quando batem à
porta e o Clarke aparece.
— Pronta?
Coloco o saco ao ombro em resposta, despeço-me da
Lola e saímos do quarto, a caminho do Mercedes. Penso no
que poderia ter feito esta tarde, se o Carter não me tivesse
dado ordens como aos seus cães fiéis. Hesito em voltar para
trás, antes de ver nova­mente os olhos da Lola rasos de
lágrimas quando o Carter a agar­rou na sua rede. Por fim,
reflito sobre a minha falta de resistência ao Carter e as
minhas motivações.
Chegamos ao carro e o Set e o Sean estão à nossa
espera nas motas.
— Pronta para o teu primeiro assalto? — pergunta o
Sean.
O meu rosto deve estar atónito, porque os dois Diabos
desa­tam a rir e um sorriso aflora no do Clarke.
— AH, AH, AH! Muito engraçado! Loki caiu da cadeira
com essa gracinha.
O Clarke enfia-se no Mercedes, levando-me a fazer o
mesmo, e saímos do estacionamento, seguidos pelas duas
Harley-Davidson. O silêncio é pesado entre nós, sinto que a
viagem vai ser longa. Sei que o Diabo não é muito falador,
mas podia fazer um esforço para tornar esta missão mais
agradável.
— Tens tanta vontade de preencher o silêncio que o
sinto. É muito chato.
Paro de gesticular e, com os lábios cerrados para conter
o riso, volto lentamente o rosto para ele.
— Estás a falar a sério?
Revira os olhos, como única resposta, e conecta o
telemóvel ao carro. Reconheço a música que sai das
colunas, fico paralisada por um momento com a surpresa e
apresso-me a instalar-me con­fortavelmente. Tiro os sapatos,
para cruzar os pés no assento, e canto a letra de I Dont
Want This Night to End, em coro com Luke Bryan. O Clarke
parece espantado por eu conhecer este can­tor; eu também
nunca pensei que ele ouvisse este tipo de música e fico
agradavelmente surpreendida. Em suma, talvez a viagem
seja agradável.
Quando o refrão começa, quase esqueço a presença do
moto­rista, de tanto gostar desta música. Vejo os edifícios
passarem e movo-me no meu lugar ao ritmo da melodia.
Os meus olhos são atraídos para ele quando abre a
janela do seu lado. O cabelo preto esvoaça ao vento.
Mantém uma mão no volante e despe o blusão de couro,
ficando com um polo branco de manga curta que revela a
sua pele tatuada, os músculos e os antebraços sulcados de
veias. Esqueço a letra da canção.
— Tens baba no canto dos lábios.
Sou arrancada do meu estado de contemplação, pelo
Diabo e pelo seu sorriso zombeteiro.
— Não és assim tão irresistível — minto, com uma cara
amigável.
Põe a língua sobre os lábios carnudos e sensuais, para
hume­decê-los. Este simples espetáculo faz os meus
batimentos cardía­cos dispararem e uma onda de calor
percorre-me o corpo.
Ver-me desorientada gera nele um ar de orgulho. E pisca-
me um olho.
— Não és o meu estilo — digo, de má-fé.
Afundo-me no meu assento e vejo o horizonte passar,
irritada com o efeito dele em mim.
— Estás a mentir a ti mesma, estás consciente disso?
— És sempre tão seguro de ti?
— Sei que tens bom gosto, só isso.
Siderada, desato-me a rir e levanto os olhos para o alto.
Na autoestrada, o Set aparece à nossa esquerda e dá
uma pal­mada provocadora no Clarke, através da janela
aberta.
— Filho da mãe!
O Set ri e acelera para se colocar à nossa frente, mas o
Clarke põe prego a fundo. Fico colada ao assento, quando
ele o ultrapas­sa e mostra o dedo do meio. Acelera ainda
mais, levando o carro a mais de 200 km/h. O Sean passa ao
meu lado, pisca-me o olho, ultrapassa-nos e põe-se mesmo
à nossa frente. Ziguezagueia peri­gosamente, mas parece
ter feito isso a vida toda.
— SOBE O SOM! — grita o Set.
O Clarke põe o volume no máximo e Don’t Stop Me Now,
dos Queen, sai aos gritos pelos altifalantes. Adoro esta
música. Os ci­entistas provaram que é, mundialmente, a
canção que põe as pes­soas mais felizes.
O Set ganha velocidade para se juntar ao Sean. A música
está tão alta que os dois motards a ouvem, mesmo à nossa
frente. Canto o início da música e, quando o ritmo muda,
fico espantada ao ouvir o Clarke juntar-se a mim.
— I’m burning through the sky, yeah, two hundred
degrees that’s why they call me Mister Fahrenheit, I’m
travelling at the speed of light, I wanna make a supersonic
man out of you — can­tamos em coro.
Acho que nunca o vi tão relaxado e a desfrutar de um
momen­to tão banal como este. Combina perfeitamente com
ele, devia fazê-lo com mais frequência.
Olha-me com um sorriso que não tenta esconder como
de cos­tume e, claro, até os seus dentes são perfeitos.
Mete outra mudança e acelera, forçando os motards a
afasta­rem-se para nos pôr a par, o Set do lado dele e o Sean
do meu. Eles fazem uns SSS e aceleram, antes de voltarem
a pôr-se ao nosso lado. Estão a divertir-se na estrada e eu
sorrio. O ambiente está excelente e eu divirto-me imenso, o
que me prova uma vez mais que os Filhos do Diabo não são
apenas perigosos.
O Clarke passa-me o telemóvel quando a música dos
Queen termina.
— Impressiona-me.
Não preciso de pensar. Pego no aparelho e seleciono uma
fai­xa. Ele faz um ar conquistado quando reconhece Knockin’
On Heavens Door, dos Guns N’ Roses.
— Era o que eu dizia, tens bom gosto.
Sacudo a cabeça, divertida, e vejo o seu sorriso rasgar-
se.
Façam com que mantenha este bom humor o tempo
todo, oro em silêncio.
O Set agita a mão na direção da primeira saída e
deixamos a autoestrada.
Paramos num posto de gasolina e aproveito para ir à
casa de banho. Depois de esvaziar a bexiga, estou prestes a
voltar para o carro, mas rapidamente mudo de ideias. Encho
os braços com bo­los, doces e bebidas. Escolho para todos
os gostos, apesar de não ter direito a nenhum deles.
Adiciono uns biscoitos simples e uma garrafa de água às
minhas compras. Pago, saio do edifício e junto-me aos
rapazes, que me esperam, encostados ao Mercedes, rindo
não sei de quê.
— Decidiste ganhar o concurso de quem solta o último
suspiro mais depressa? — pergunta o Sean.
Solto uma gargalhada franca, sob o olhar desaprovador
do Clarke, e informo-os que é para eles.
Após a passagem do Set e do Sean, fico visivelmente
menos carregada. O Clarke encarrega-se do resto e enfia
tudo no banco traseiro do carro. Com os rapazes nos
assentos e os motores liga­dos, fazemo-nos de novo à
estrada. A música está novamente alta e o Clarke bate o
ritmo no volante. Volto-me para pegar na garra­fa de água,
bebo uns goles, e o Clarke estende a mão, para se hi­dratar,
por sua vez. Passo-lhe a garrafa e pergunto:
— Batatas fritas, doces ou bolos?
— Doces.
Pego no saco e troco-o com a garrafa. Agradece-me com
uma piscadela de olho que me aquece as bochechas.
Passamos rapidamente a fronteira canadiana e
chegamos a Leamington. Saindo do centro da cidade,
seguimos longos minutos por uma estrada de terra batida
que acaba num armazém gigan­tesco. «Arinson Arms», lê-se
na frontaria, em letras garrafais.
O Clarke estaciona e os rapazes param as motas a
poucos me­tros da única porta. O local está deserto e fica
longe de tudo. Co­meço a ficar um pouco preocupada,
porque, se as coisas derem para o torto, ninguém vai
aparecer para nos ajudar.
— Estás pronta? — pergunta-me o Clarke, sério.
Engulo em seco, a custo, e aceno com a cabeça.
— Veste o blusão — ordena, antes de sair do Mercedes.
Saio e bato com a porta. Enfio os braços nas mangas e
visto o blusão dos Filhos do Diabo que, aliás, tem um corte
perfeito. Uma maravilha.
— A mais radiosa dos Diabos! — elogia-me o Set.
Imito uma vénia e agradeço-lhe.
Avançamos para a entrada do armazém. O Clarke bate
seis ve­zes distintamente no metal e a porta abre-se
revelando um ho­mem armado até aos dentes. Olha-nos
fixamente, mas o afilhado do Carter dá-lhe uma palmada
nas costas capaz de arrancar um pulmão.
— Sempre caloroso! — ironiza o badboy.
Rodeia o colosso e entra, como se estivesse em casa.
E foi ele que me pediu para me portar bem?
O Set e o Sean empurram-me, para que acompanhe o
movi­mento, e cá estamos dentro do gigantesco armazém,
cheio de cai­xas de madeira nas centenas de prateleiras. Um
número incalcu­lável de homens mantém-se em grande
atividade, incluindo al­guns encarregados de fazer ronda,
mais armados do que os mer­cenários do The
Expendables23. Os meus olhos perdem-se na imensidão do
arsenal que este lugar contém. Este Arinson não é um
pequeno vendedor do mercado de domingo. Construiu um
verdadeiro império.
Concentro-me em seis homens equipados com
metralhadoras, que se movem na nossa direção.
— Os pagãos! — exclama o tipo do meio, afastando os
braços.
— Pitt.
O Clarke dirige-se a ele e nós imitamo-lo.
— Quem é esta?
O tal Pitt olha fixamente para mim. Deve andar pela casa
dos trinta anos, não mais, e não me inspira nada de bom,
com o dedo no gatilho e um olhar que me despe.
— Uma nova recruta.
O Clarke permanece fiel a si mesmo, impassível e pouco
falador.
— Foda-se! Nada mal, a Diaba! Qual de vocês a anda a
comer?
Controlo-me violentamente para não responder, apesar
de não me faltar vontade.
Não os contradizer, foi a única regra que o Clarke me
passou, e eu pretendo cumpri-la. Devo admitir que as armas
em prontidão me ajudam a ficar calada.
— Nenhum de nós — responde o Set, com um tom firme.
— Então, podemos engatá-la nós!
Arqueio uma sobrancelha e o Clarke aperta os punhos.
— Pegamos no que temos a levar e pomo-nos a andar, a
menos que queiras oferecer-nos um chazinho? — declara,
friamente.
— Vamos, mano, deixa-ma por uma hora!
As lembranças do dia anterior ressurgem e impõem-se-
me do­lorosamente, mas o nervosismo do badboy traz-me de
volta à rea­lidade. Incapaz de se conter, ele avança um
passo ameaçador na direção do Pitt.
— Ah, afinal é a tua miúda, Taylor!
O Pitt ri, o que não ajuda o afilhado do Carter a acalmar-
se. Quero regressar inteira, mas, se não fizer nada, o Clarke
vai agir, e todos sabemos que ele não dialoga.
— És tão mau a arranjar companhia que tens de te dirigir
a uma mulher através de um intermediário?
O Pitt perde rapidamente o sorriso, mas continuo:
— Ninguém aqui decide por mim com quem passo a
próxima hora. Pergunta-me diretamente e terás a tua
resposta!
O seu sorriso renasce, quando me pergunta:
— Vamos passar a próxima hora juntos, querida?
— Não. Agora dá-nos aquilo que viemos buscar.
Mal terminei a frase, ele puxa-me contra si, com as mãos
nas minhas nádegas. No segundo seguinte, o Set puxa-me
para trás e o Clarke manda um murro no rosto do Pitt, que
se estatela no chão. A minha respiração para, quando os
seus companheiros as­sestam as armas sobre nós.
Rapidamente, cada homem armado neste armazém aponta
para nós. Todos os funcionários param de trabalhar, para
observarem a cena. Não se ouve nenhum barulho.
Instintivamente recuo, enquanto uma onda de pânico me
do­mina. Na minha vida, nunca tive uma arma apontada,
mas hoje tenho umas cem, e o calafrio aterrador que
atravessa a minha es­pinha é tão intenso que tenho de
juntar todas as minhas forças nas pernas, para que não
cedam.
— Filho da puta, vou dar cabo de ti! — lança o Pitt com
despre­zo, com o nariz e a boca a sangrarem.
O Clarke saca da arma e cola-a à têmpora do outro.
Entretan­to, um tipo aponta a sua ao crânio do Diabo, a
quem isso não pa­rece aquecer nem arrefecer. O Set reage e
aponta a sua arma àquele que está a pôr em risco a vida do
seu melhor amigo, e as­sim por diante. Perante a magnitude
da situação, parece que es­tou num filme.
Por todos os deuses, como é que isto pôde escalar tão
rapida­mente?
O Clarke engatilha a arma, quebrando o silêncio e, de
repente, soa uma série de cliques. Todos seguem o exemplo
do Filho do Diabo. É apenas uma demonstração de força e
de egos, aquilo a que se assiste, e eu aplaudo.
— Vocês, homens, têm jeito para criar problemas onde
eles não existem! «Se a não-violência é a lei da
humanidade, o futuro per­tence às mulheres.» Para os
incultos, a frase é do Gandhi, que, aliás, era um pervertido
polimorfo. Isso deve dizer-te muito, Pitt, não?
Danado, pega na arma e espeta o cano na minha testa.
O meu coração falha um batimento, mas não me sinto
apavorada. Nin­guém vai morrer hoje, eu sei, portanto,
apesar de o metal frio do revólver na minha pele me ser
insuportável, a raiva e a impulsivi­dade tomam conta de
mim.
— Dispara e assinas a tua sentença de morte! No
segundo em que o estrondo soar, o Clarke mete-te uma bala
e caímos todos como um dominó! — lanço-lhe, com
desprezo. — É mesmo isso que pretendes? Perder a vida por
uma demonstração de força, quando a única coisa grande
que tens é a tua arma?
— Tu, querida, tens a língua demasiado afiada.
— E tu, sua besta, em termos de bagagem neuronal,
viajas com pouco peso.
O silêncio é perturbado por passos na outra extremidade
do armazém.
— BAIXEM AS ARMAS, BANDO DE BESTAS! — berra um
homem.
Tão depressa como nos foram apontadas, os homens
baixam as armas e eu posso, finalmente, respirar
decentemente. Quero pôr a mão onde o revólver tocou na
minha pele, para aquecê-la, mas não o faço. Em vez disso,
observo a aproximação do recém-chegado, que avança a
passos largos. E pela ordem que deu, é ele o Sr. Arinson.
Não parece satisfeito.
Chegado perto de nós, pega na arma de um dos seus
homens e aponta-a ao Pitt, que imediatamente baixa os
olhos e fica com um ar muito menos afoito.
— A rapariga que acabas de desrespeitar está sob a
proteção do Carter Brown, grandessíssimo animal! Pede-lhe
desculpas!
O Pitt olha para mim com um sorriso perverso, que me
dá vómitos.
— Desculpa.
Dou um salto quando o líder lhe dá uma coronhada no
queixo. O sangue jorra-lhe da boca.
— SEM ESSE TEU SORRISO DE PEDÓFILO! — berra.
O Pitt leva a mão ao lábio, já muito inchado, e faz uma
careta de dor.
Olha para mim, quase envergonhado, e, mesmo não
gostando de violência, tiro alguma satisfação disto.
— Peço desculpas.
— Agora, desaparece!
O Pitt sai, sem hesitar.
Os Filhos do Diabo guardaram as armas e o Arinson
volta-se para os seus homens, furioso.
— Voltem ao trabalho e tragam a carga que é para eles!
Os empregados retomam as suas atividades sem vacilar.
É a isto que se chama «fazer-se respeitar».
O líder passa nervosamente as mãos pelo cabelo,
desagradado, como se não gostasse de ser violento. Mas,
acima de tudo, detesta que os seus homens se portem mal
com os clientes. Solta um pa­lavrão, vem ter connosco e,
quando os seus olhos encontram os meus, toda a sua raiva
desaparece. Não é o mesmo homem que pôs o Pitt na
ordem. O seu olhar é doce e tem um sorriso tímido nos
lábios.
— Sinto muito, Avalone, isto nunca devia ter acontecido.
— Sabe o meu nome? — pergunto, surpreendida.
As rugas que surgem nos cantos dos olhos quando sorri
um pouco mais dão-lhe um olhar inofensivo.
— Sim. O Carter avisou-me de que virias. Foi por isso que
deci­di estar nesta transação. Deixar uma rapariga com
estas bestas não é boa ideia. Infelizmente, o Carter avisou-
me já tarde e não consegui chegar mais cedo.
É impressionante, o contraste entre o que tenho à minha
fren­te e o estado em que ele estava há alguns segundos.
Sinto que não estou a ver o mesmo personagem.
Os homens trazem-nos grandes caixas de madeira e o Sr.
Arin­son faz-lhes sinal para que as abram, para os Filhos do
Diabo ve­rificarem o conteúdo.
Entretanto, o cinquentão chega-se perto de mim e, num
acor­do silencioso, afastamo-nos sob o olhar do gangue.
— Fico contente por conhecer-te. O Carter falou-me
muito de ti.
Apanhada desprevenida, arqueio as sobrancelhas.
— Lamento, mas, dadas as nossas trocas de opinião
pouco cor­teses, não imagino o que ele lhe possa ter dito.
Ele solta um riso franco, alegre e contagiante.
— O Carter e eu somos velhos amigos. Ele contou-me da
tua chegada e da tua teimosia.
Faço uma careta, que diverte o homem cujo nome está
escrito em letras garrafais neste armazém.
— Não se pode dizer que nos damos bem, ele e eu...
— Dá tempo ao tempo. Ele não é má pessoa.
Gostaria de lhe atirar à cara que uma boa pessoa nunca
força­ria outra a prestar-lhe serviços ilegais sob coação, mas
o seu olhar é tão afável que não quero ter este tipo de
conversa com ele.
As caixas parecem estar corretas, porque os homens as
tiram do armazém e as levam para o Mercedes, para as
carregarem. Va­mos para o estacionamento de terra batida
com os Filhos do Diabo.
— A fronteira está a ser rigorosamente controlada devido
a um problema técnico com as câmaras. Não vão para casa
esta noite. Esperem antes até amanhã, para que este
incidente seja resolvido.
Os Diabos aquiescem e, de repente, sinto-me a cair de
uma al­tura de dez andares. O meu sangue dá apenas uma
volta pelas mi­nhas veias. Não é verdade...
Tento manter a calma, enquanto os rapazes voltam para
as motas.
— Mike Arinson — apresenta-se o chefe, estendendo a
mão. — Adorei conhecer-te, Avalone.
Sorrio educadamente e aperto-lhe a mão, incapaz de
fazer me­lhor, dado o meu estado de nervos.
O Clarke entra no carro e eu imito-o, furiosa. O badboy
arran­ca e saímos do estacionamento, deixando para trás o
Pitt e o Sr. Arinson. O meu corpo treme de raiva. Não falo
durante longos minutos, até que não consigo controlar-me
mais. Volto-me furio­samente para o Clarke.
— Deixa-me adivinhar: o deus que vocês veneram em
particu­lar é Loki? Não passas de um mentiroso rematado!
Perante a sua falta de reação, continuo:
— Disseste que podia confiar em ti! Ora, o Mike
aconselhou-nos a não atravessar a fronteira esta noite; mas,
se as armas fos­sem legais, não deveriam ser um problema,
quer a alfândega este­ja estritamente controlada ou não!
— És perspicaz.
Se ele não estivesse a guiar e não tivesse a minha vida
nas suas mãos, já o teria agarrado pelo pescoço.
— Tenho um cérebro, Clarke, e uso-o! O que há nessas
caixas cujo conteúdo eu não vi?
— Armas ilegais e notas falsas.
Fico tão horrorizada que a minha cara deve ter ficado
distorcida.
— VOCÊS ESTÃO A GOZAR COMIGO? PENSEI QUE PODIA
CONFIAR EM TI!
— Nunca te aconselharam a não confiar num criminoso?
— res­ponde, irritado.
Estou fora de mim. A raiva domina-me, sinto-me
terrivelmen­te traída. Pensei que podia contar com ele,
especialmente depois da noite que passámos ontem, mas
sou demasiado ingénua.
— Porque é que o Carter quis que eu vos acompanhasse?
— Não sei.
— PORQUÊ? — berro.
— NÃO SEI! — berra-me ele, por sua vez.
As mãos apertam o volante com tanta força que os dedos
ficam brancos.
Fito-o por alguns segundos, pronta a gritar-lhe uma
enxurrada de insultos, mas desisto e acomodo-me bem
encostada ao meu assento, de braços cruzados, para
esconder a tremura das minhas mãos.
A sua presença é-me insuportável. Não consigo acreditar
que me mentiu. Que todos me mentiram. Os Filhos do Diabo
não são honestos comigo, nunca foram.

23 The Expendables [os Descartáveis, em tradução


literal] é o nome de uma unidade mercenária da série de
filmes que em Portugal recebeu o título Os Mercenários. (N.
da T.)
Capítulo 15

O trajeto é passado em completo silêncio. Andámos


cerca de vinte minutos para chegar a um motel. Deixamos o
carro no esta­cionamento deserto e os rapazes desmontam
das suas motas. Vou para abrir a porta, mas o Clarke fala.
— Ter-te-ias recusado a vir se te tivéssemos dito a
verdade.
Volto-me para ele, exaurida por este universo doentio.
Faço o jogo do Carter, mas, se eu quisesse, só teria de ir à
polícia e de­nunciá-los. Não tinha nenhuma obrigação,
apenas algumas amea­ças que não me teriam custado a
vida, mas ajudei-os com aquele falso testemunho. Fi-lo pela
Lola e pelo meu futuro, mas também por eles, porque não
queria que pagassem por causa de um líder inconsciente.
Concordei em ajudar os Filhos do Diabo a evitar confrontar-
me com a polícia, que acabaria por extrair de mim in­‐
formações, novamente por eles e pelo seu futuro. É assim
que me agradecem?
— Claro — respondo, exausta. — Se colocam em risco a
vossa liberdade, é uma opção vossa. Mas tu privaste-me da
minha pos­sibilidade de escolha.
— Recebemos ordens, Avalone.
A voz dele é tão fraca como a minha, mas ele não
entende a minha posição.
— Perguntei-te se podia confiar em ti e tu mentiste-me.
Usa­ram-me, mais uma vez. Vocês manipulam-me para
alcançarem os vossos fins e agora colocam-me numa
situação horrível, porque não tenho anos pela frente para
sacrificar na prisão.
Sem esperar por uma resposta, saio do carro e o Set e o
Sean juntam-se a nós. Um deles atira uma chave ao Clarke.
— Temos sorte. São os últimos quartos. Deixamos-vos o
segundo.
Não consigo imaginar nada pior. Eu, que, neste
momento, o detesto como nunca detestei ninguém, vou ter
de passar a noite com o Clarke.
Pego na minha saca e dirigimo-nos para as escadas. Não
pro­nuncio uma palavra, demasiado dececionada para dizer
o que quer que seja. Uma vez no andar dos quartos,
paramos frente às portas 213 e 214. O Clarke mete a chave
na fechadura e abre a porta. Tem apenas uma cama. O Set
e o Sean olham lá para den­tro e gracejam.
— Cama de casal! — constata o Set.
— Vocês vão ter de voltar a dormir juntos! — acrescenta
o Sean.
Com um rosto indecifrável, o braço direito do Carter dá
uma palmada na nuca dos seus irmãos no crime, que
desatam à gargalhada.
Como se atrevem a ver alguma coisa divertida nesta
situação? Mesmo que a fronteira não esteja tão controlada
ama­nhã, continuará a haver riscos.
— Estás bem, Ava? — pergunta-me o Set, perante a
minha frie­za e o meu olhar assassino.
— Eu, que acabei por acreditar que vocês eram boas
pessoas, enganei-me à grande. Vocês não têm nada que se
aproveite, vocês não são melhores do que o Anjo. Ele, pelo
menos, tem o mérito de vos ter apunhalado pela frente.
Entro no quarto e, depois de atirar a saca para cima da
cama, tranco-me na casa de banho, com falta de ar. Ouço
os rapazes a falar, mas não suficientemente alto para
perceber o conteúdo das conversas.
Abro a torneira, passo água pela cara e pouso as mãos
no lava­tório, de cabeça baixa. Encontro-me imobilizada no
Canadá, com pessoas que agem como se fossem meus
amigos, mas que me usam sem o menor escrúpulo.
Quando o meu telemóvel toca do outro lado da porta,
corro para ele. Ignoro o Clarke, que está a despir o blusão
de couro e tiro o aparelho da minha bolsa, a tempo de
atender a chamada da minha mãe.
— Avalone Lopez, podes dizer-me o que se passa na tua
cabeça?
Fico instantaneamente tensa. A voz dela é a calma antes
da tempestade, conheço-a bem. Então, penso no que pode
ela ter para me censurar.
— Não posso acreditar que não me avisaste! Desde
quando és tão irresponsável?
— Do que estás a falar? — pergunto finalmente,
completamente às aranhas.
— DA TUA PARAGEM CARDÍACA!
Afasto o telemóvel do ouvido, para evitar furar o
tímpano.
Odin Todo-Poderoso! Como é que ela soube?
— Mãe, está tudo bem. Só não te quis preocupar.
— PORRA, AVALONE, O TEU CORAÇÃO PAROU!
Faço uma careta e, apressadamente, baixo o volume do
som.
— Volta para casa!
Se eu escutasse o meu coração neste momento, diria
que sim, sem a menor hesitação, porque me sinto
manipulada. No entanto, os meus estudos são primordiais,
não posso dar-me ao luxo de deixar Ann Arbor.
— Não! Tenho consultas diárias com o médico e um novo
trata­mento. Por isso, relaxa, estou a ter cuidado. E não
posso falar agora, mamã, ligo-te amanhã.
— Por todos os deuses, Ava, que o trovão de Thor te
fustigue se ousares desligar-me a chamada na cara!
Contudo, é o que faço e bloqueio o telemóvel.
A única pessoa que poderia ter sido um bálsamo para o
meu coração não está atualmente capaz de o fazer. Passo
as mãos pelo rosto, hesitando entre desancar o Clarke, ou
chorar e aninhar-me debaixo dos lençóis. Desde que entrei
para a universidade, deixei de ter controlo sobre a minha
vida e detesto isso.
Tiro o meu blusão de couro com gestos bruscos, antes de
me sentar na cama.
— Ela não sabia? — pergunta o Clarke.
Não respondo, nem olho para ele. Ele não merece nada
de mim.
— Devias ter-lhe dito.
Luto para não o fuzilar com os olhos. A indiferença é a
melhor vingança de que sou capaz neste momento, mas
vejo-o a aproxi­mar-se de mim pelo canto do olho.
— Vá, levanta-te.
Teimo em não lhe dar confiança. Depois do que fizeram,
ele acha mesmo que pode dar-me ordens?
— Levanta-te! Depois de teres sido agredida, o Carter
pediu-me para te ensinar duas ou três técnicas de defesa.
Ponho um sorriso amarelo. São os Filhos do Diabo que me
co­locam em perigo, e têm pretensões de homens altruístas,
benevo­lentes e protetores.
— Posso estar aqui presa contigo, mas não quero falar-te
nem ver-te; portanto, desaparece, não vou envolver-me em
nenhuma atividade contigo.
— Como se eu te desse escolha, Beleza.
Num segundo, as mãos do Clarke agarram-me os braços.
O meu rabo sai da cama e estou de pé contra minha
vontade. Liber­to-me das suas mãos e deito-lhe um olhar
furibundo.
— Não te armes em criancinha! — exclama, a perder a
paciên­cia. — É para tua segurança.
— Ora, isso é ridículo. Eu não posso fazer nada contra um
ta­manhão como tu!
— Podes ganhar tempo e fugir, portanto não é ridículo.
Desato-me a rir e cruzo os braços.
— Sim, é. Tenho um problema cardíaco, recordo-te. Não
posso correr!
Ele não presta atenção ao meu comentário, agarra a
minha mão direita e levanta-a entre nós.
— A cunha externa da mão é muito eficaz ao nível do
pescoço, nuca e costelas. Usa a palma da mão para acertar
no queixo, num movimento rápido de baixo para cima. As
áreas vulneráveis são os joelhos, o queixo, as orelhas, o
pescoço e os olhos.
Em simultâneo com as explicações, o Clarke mostra-me
as di­ferentes técnicas, conduzindo a minha mão para os
lugares onde bater, sem prestar atenção ao olhar mal-
humorado que insisto em manter.
— Se fores agarrada pelo pulso, puxa o braço até onde o
pole­gar e os dedos do adversário se encontram: é a zona
onde a ade­rência é mais fraca em termos de força. Vá lá,
tenta libertar-te.
O aperto que faz é potente, mas indolor. Parece
impossível, mas o Clarke encoraja-me com um pequeno
aceno de cabeça. Faço como me disse e tento sair do seu
controlo, puxando o braço até à zona onde o aperto é mais
fraco. Mas nada a fazer, os seus dedos permanecem firmes.
Começo a agitar-me em todas as dire­ções, seriamente
irritada com este exercício estúpido.
— Estás a apertar muito!
— Não estás a fazer esforço nenhum. Concentra-te.
Não tenho tempo para protestar, porque a porta do
quarto abre-se e surgem o Set e o Sean. Pelo seu olhar
divertido, pensam que nos apanharam em flagrante.
— Parem com as vossas ideias parvas! — atira-lhes o
Clarke. — Só estou a ensiná-la a defender-se. Sean, faz tu.
Solta-me e afasta-se de mim, rapidamente substituído
por um Sean determinado.
— Se me magoares, mato-te — ameaço, nada serena.
— Eu sei como colocar um ombro de novo no lugar —
provoca-me.
Como o Clarke, agarra-me o pulso.
Sem pensar, levanto rapidamente o joelho até à altura
das suas partes íntimas, o que provoca um movimento de
recuo e o relaxa­mento do aperto. Sigo as instruções do
Clarke, puxo o meu braço e consigo libertar-me das suas
garras à primeira.
Os espectadores soltam gargalhadas e gozam
abertamente com o amigo.
— Coisa frouxa!
O orgulho sobrepõe-se gradualmente à minha raiva,
estou contente comigo mesma. Não tenho muita força, mas
não me fal­ta imaginação e, graças a ela, passei no exercício
com distinção.
Vingativo, o Sean atira-se ao meu cabelo. Observo o seu
rosto branco, quando ele julgava que lhe ia bater, e não
posso deixar de rir também.
— E se fôssemos comer antes de o Sean ser aterrorizado
pela Ava? — propõe o Set.
— Cala a boca, filho da mãe, estava a ver-me castrado!
Os rapazes riem ainda mais. Depois de enfiarmos os
blusões, saímos do quarto.
Deixamos as motas no estacionamento e vamos todos
para o carro.
— Que isto fique claro, continuo a não vos perdoar!
— Ah, para! — riposta o Sean. — Sabes bem que não te
quería­mos mentir. E ser rancorosa não combina bem
contigo, Lopez.
Põe uma cara triste e um olhar suplicante que me abre
um sorriso.
Para eles, nada é grave. Um depoimento falso?
Brincadeira de crianças. Ser ameaçado por uma centena de
homens? Rotina. Atravessar a fronteira com coisas ilegais no
porta-bagagens? Uma atividade de lazer. Encaram a
situação com tanta ligeireza que, neste momento, já nem
temo a fronteira. A confiança deles é tão intensa que me
contagia.
Mesmo assim, dou-lhe um murro nas costelas, irritada
por ser tão fraca e não ser capaz de manter uma cara feia
por mais tem­po. Em troca, ele põe o braço por cima dos
meus ombros e puxa-me contra ele com ar cúmplice,
enquanto o Clarke conduz.
— Onde vamos jantar?
— Ao Poppy’s! — respondem em coro.
— A melhor piza do Canadá! — acrescenta o Set,
entusiasmado.
Estão tão felizes que parecem três crianças a quem
deram bi­lhetes para a Disneylândia. Com o meu estômago a
gritar de fome, ficaria tão empolgada como eles por
desfrutar de uma boa piza; mas, infelizmente, tenho que
cumprir a minha dieta, para me manter viva, até dar um
pontapé no cu do Carter.
Chegamos rapidamente ao lugar e, assim que entramos
na pizaria, um cheiro maravilhoso faz gemer a minha
barriga.
Neste restaurante, não existem paredes a separar as
zonas de refeições e da cozinha, o que nos permite ver ao
vivo a preparação de pizas e diferentes pratos. Adoro o
conceito.
— Os Filhos do Diabo!
Um homem na casa dos sessenta anos, de avental,
recebe-nos com um grande sorriso. Concluo que conhece os
meus compa­nheiros de negócios ilegais.
— Envelheceste, meu — diz o Clarke.
— Grande filho da mãe! Tu não mudaste! O que vos traz
por cá?
— Negócios.
— Ah! Mas o que vejo eu aqui?
O Poppy observa-me sem tirar o sorriso, ligeiramente
surpre­endido por me ver na companhia dos rapazes.
— Apresento-te a Avalone — diz o Set.
— O que é que uma rapariga como tu faz no meio de uns
bruta­montes como estes?
— Pergunto-me o mesmo, frequentemente — digo com
ironia, o que me vale uma cotovelada do Sean.
O dono do restaurante irrompe numa gargalhada franca,
mui­to agradável ao ouvido, e depois deseja-me boa sorte.
— Vá, sentem-se, que eu já lá vou.
Acatamos a ordem e, depois de uma breve chamada
para a Lola, a explicar que vamos passar a noite no Canadá,
o Poppy vem tomar nota do nosso pedido. Piza para os
rapazes e um prato de lasanha caseira, sem queijo nem sal,
para mim. Afinal, não é mau de todo.
— Ele sabe das vossas atividades? — pergunto, depois de
o Poppy voltar para a zona da cozinha.
— Sabe tudo. Consta que era membro de um dos
gangues mais poderosos da América do Norte, quando era
novo; nunca des­mentiu nem confirmou essas alegações —
explica-me o Sean.
Olho fixamente para o personagem, estupefacta e
curiosa. De barriga saliente e sorriso permanente, não
parece ter feito parte de um gangue. No entanto, já percebi
que, neste meio, as aparên­cias iludem.
— Porque é que ele não fala sobre isso?
— Ele é muito misterioso — informa-me o Set. —
Ninguém sabe como ocupa os tempos livres. Mas, segundo
os rumores, é melhor não ir atrás dele. As pessoas que se
meteram com ele terão acor­dado no hospital, sem qualquer
memória do sucedido.
Abismada, vejo o cozinheiro voltar com três cervejas de
litro e uma garrafa de água. Não quero acreditar, tem um ar
tão inofensivo!
Sacudo a cabeça para parar de olhar fixamente para ele
e agra­deço as nossas bebidas. O Set serve-me um copo de
água e apro­veito para tomar a minha medicação, sob os
olhares discretos de cada um dos rapazes.
— Não se preocupem, não tenciono dar o último suspiro
ao vosso pé. Francamente, não são as últimas pessoas que
quero ver antes de bater as botas.
O Set e o Sean desmancham-se a rir, antes de porem um
ar ofendido. Começam a protestar e a gabar a sua incrível
presença junto aos doentes no seu leito de morte, enquanto
o Clarke per­manece impassível.
Acotovelo-o nas costelas.
— Relaxa.
Olha-me com dureza.
— Não estou habituado a rir deste tipo de assuntos.
— Vais acabar por te acostumar.
Mando-lhe um falso sorriso rasgado e arranco-lhe uma
risadi­nha franca.
— Só se não formos presos amanhã na fronteira —
argumenta, como se nada fosse.
Congelo instantaneamente, com a boca muito aberta e
as so­brancelhas arqueadas. Essa frase deita-me por terra.
O Clarke devolve o sorriso falso que lhe mandei há
segundos, antes de precisar:
— É uma piada.
Afinal, não gosto assim tanto de humor negro. Não gosto
mes­mo nada.
***
Passaram cerca de quinze minutos e o Poppy traz-nos os
nos­sos pratos. Atiramo-nos a eles como esfomeados. Os
rapazes ti­nham razão, é mais do que delicioso, é um deleite.
Em apenas dez minutos, não há uma migalha no prato
deles, enquanto eu me de­bato para terminar o meu, para
gáudio dos que ficam com o resto. Agora, o Set entesa-se e
aponta com a cabeça na direção da entra­da. Volto-me e
vejo dois homens, da idade dos Diabos, entrarem no
restaurante do Poppy. Também usam blusões de couro
pretos, o que trai a sua pertença a um gangue. Quando os
olhos deles en­contram os nossos, ficam tensos e vêm para
nós com manifesta agressividade.
— O que estão vocês a fazer aqui? — pergunta um deles,
enfure­cido. — Não é o vosso território!
O convívio com os Diabos fez-me entender que respeitar
o ter­ritório dos outros é fundamental e, no entanto, estamos
visivel­mente no deles.
— Não te diz respeito, Ducon — lança o Clarke, com
desprezo.
— Não têm nada que vir para aqui!
Clarke levanta-se, provocador.
Odin Todo-Poderoso! Ele nunca perde uma oportunidade
de lutar. A este nível, é já um problema psiquiátrico. Ele
deveria pensar seriamente em procurar um especialista!
— Não quero brigas cá em casa ou vou ter de os pôr a
todos na rua! — exclama o Poppy.
O Clarke não lhe dá ouvidos e aproxima-se dos dois
homens. Rezo para que isto não degenere, porque, se os
rumores sobre o Poppy são verdadeiros, não tenho o menor
desejo de assistir à carnificina.
— Aqui, não somos Filhos do Diabo, somos apenas quatro
ami­gos que querem comer — intervém o Set. — Portanto,
não estamos a transgredir nenhuma regra.
— Então, porque estás a usar o teu blusão, filho da mãe?
Pi­rem-se daqui!
O Clarke agarra o tipo pelo colarinho e, sem pensar no
meu gesto, mando-lhe um pedaço de pão, que lhe acerta na
nuca.
— Oh meus, já imaginaram se todos agissem como
vocês? Só porque usam um blusão de couro não significa
que tenham o di­reito de passar os vossos
descontentamentos e desentendimentos a todos em redor!
As pessoas vieram aqui para comer e certamen­te não para
ver cinco bestas ao murro. Dá para respeitar isso? São
capazes de respeitar o Poppy, que trabalha o dia inteiro
para sa­tisfazer os clientes?
O tipo olha-me orgulhosamente, de braços cruzados.
Já estou farta disto. Sinto-me a mãe a discutir com os
filhos.
— Agora vamos terminar o jantar tranquilamente, e
vocês — digo aos recém-chegados — vão arranjar uma
mesa do outro lado do restaurante. E como detesto terminar
conversas com sabor a ranço, o Carter Brown paga a conta
de todos os presentes!
Com um sorriso no rosto, o Poppy aplaude-me e, no
segundo seguinte, todos os clientes soltam gritos de
aprovação.
Os dois homens dos gangues adversários olham
fixamente para mim, dando pela minha existência apenas
desde que abri a boca. Sem uma palavra, seguem os seus
caminhos e vejo, escrito a branco, nas suas costas: «Os
Ceifeiros da Morte».
Encho bem os pulmões, antes de voltar ao meu lugar no
ban­co. O Clarke junta-se a nós.
— Da próxima vez que me atirares um pedaço de pão,
faço-te comer o teu novo blusão de couro.
— Podemos terminar a nossa refeição tranquilamente?
De nada.
— Não é assim que funciona.
Cruzo os braços e olho para ele com dureza.
— E porque não?
— Temos de ser respeitados.
— Ah! E não conseguem ser respeitados se não partirem
quei­xos? És ridículo, Clarke.
Um lampejo de raiva passa pelos seus olhos, mas não
desarmo.
— Tens realmente muita sorte em seres rapariga.
Com um ar provocador, aproximo o meu rosto do dele,
para articular:
— Ri-dí-cu-lo.
— Não lhe falta garra, é preciso admitir — comenta o
Sean, à gargalhada.
O Clarke, que não está para graças, fulmina-o com o
olhar e levanta-se, marcando o fim da nossa refeição.
— Põe todas as despesas na conta dos Filhos do Diabo —
decla­ra o Clarke ao Poppy. — O Carter faz-te uma
transferência.
O proprietário acena, divertido, sob o agradecimento
geral dos clientes.
— Mantenham essa chavala por perto, vão precisar dela!
O Clarke, sempre com um humor assassino, deita um
olhar maligno ao dono do restaurante, que o ignora para me
lançar o sorriso mais gentil de todos os tempos, que eu
retribuo.
Sem mais delongas, dirigimo-nos para a saída. Mas
quando os rapazes já passaram a porta, alguém me segura
pelo pulso. O loiro dos Ceifeiros da Morte deposita algo na
palma da minha mão.
— Se quiseres mudar de gangue, liga-nos. Oferecemos-te
muito mais do que os Filhos do Diabo.
Na minha mão, deparo-me com um pedaço de papel em
que está escrito um número de telemóvel seguido do seu
primeiro nome: Troy.
Vai-se embora e, quando me viro para a saída, o Clarke
conti­nua ali, a segurar-me a porta, com os olhos cheios de
ódio.
A provocação dos Ceifeiros da Morte não passou
despercebi­da!
— O que é que ele queria?
— Nada de interessante.
Franze a testa, descontente, mas não diz mais nada.
Explicar-lhe o que o Troy queria de mim seria mandar
lenha para a fogueira, algo que não quero, por isso vamos
para o carro, em silêncio.
Capítulo 16

Junto aos quartos do motel, o Clarke diz aos rapazes que


le­vantamos ferro às nove da manhã.
— Evitem arrancar a cabeça um ao outro — desafia o
Set.
— Ou foder. Queremos dormir e as paredes parecem ser
bas­tante finas — conclui o Sean.
Escandalizada, olho para eles furiosa.
— Há tampões auriculares na cómoda — responde o
Clarke.
Engasgo-me com o riso dos Diabos. Prefiro entrar no
quarto, antes que a conversa derrape ainda mais.
— Durmam bem — declara ainda o Sean, num tom cheio
de subentendidos.
Chego à cama, sento-me e tiro o blusão, descalço os
sapatos, enquanto os meus pensamentos flutuam para o
Clarke.
Não é um homem de muitas falas e os seus olhos, na
maioria das vezes, não traem nenhuma emoção. À parte
gritarmos um com o outro, nunca conversámos realmente.
Não sei nada sobre ele e ele não sabe nada sobre mim,
então porque me atrai? É físi­co, mas vai para além disso.
Transpira segurança e eu gosto do seu lado autoconfiante. O
Clarke sabe que agrada, que é terrivel­mente bonito e que
tem todas as raparigas a seus pés. Também sabe que todos
o respeitam por medo e, no entanto, embora este­ja
nervoso, nunca atacou ninguém gratuitamente e nunca
despre­zou ninguém. Já me mentiu várias vezes e tenho
certeza de que voltará a fazê-lo se o Carter mandar, mas,
apesar disso, sinto-me confiante ao pé dele.
— Vai tomar banho, eu vou a seguir.
Olho para ele de uma forma bizarra, perturbada com os
meus pensamentos, aceno com a cabeça e entro na casa de
banho. Uma vez despida, entro no chuveiro e deixo os
músculos relaxarem, depois deste dia cheio de emoções.
Sinto que, com os Filhos do Diabo, não há um minuto de
tréguas. No entanto, é nestes mo­mentos intensos que tenho
mais consciência da minha existência.
Fico alguns minutos debaixo do jato de água bem
quente, lavo-me e saio da cabina de duche. Enrolo uma
toalha no corpo, pro­curo a minha bolsa, mas não a vejo.
Deixei-a na cama.
Entreabro a porta e meto a cabeça. O Clarke está
sentado no colchão, em frente da televisão. Olha-me
diretamente nos olhos, antes de desviar o olhar para as
minhas clavículas e depois para o rego do meu peito. O meu
corpo traidor reage prontamente e as faces coram. Por
surpreendente que pareça, estou convencida de ver desejo
nas suas íris, o qual desaparece instantaneamente em prol
de uma expressão indecifrável.
— Podes passar-me a minha bolsa, por favor? — articulo,
com dificuldade.
Franze os olhos e diz:
— Não.
— Obriga... Espera, o quê?
— Não.
Os olhos brilham-lhe de diversão, ao contrário dos meus.
A minha toalha é tão pequena que mal esconde as minhas
partes íntimas. Não posso sair daqui assim despida.
— Clarke!
— Tens pernas?
— Só tenho uma toalha! — suplico.
Ele encolhe os ombros e eu ranjo os dentes, irritada.
Entro furiosamente no quarto, sob o olhar
desestabilizador do badboy. Pego na minha bolsa, antes de
desaparecer rapidamente, e bato com a porta com tanta
força que ela treme nas dobradiças.
Nunca vou entender o comportamento dele. Este tipo
devia vir com instruções ou um manual de diagnóstico e
estatística de per­turbações mentais.
Depois de lavar os dentes com a escova fornecida pelo
motel, procuro o meu pijama, mas claro, não o trouxe. Não
esperava dormir fora, mas fico feliz por encontrar umas
cuecas limpas na minha bolsa. Infelizmente, vou ter de
dormir com a roupa que trazia vestida, o que reforça a
minha irritação em relação ao Clar­ke. Se ele me tivesse
informado do conteúdo das caixas, eu teria previsto uma
muda de roupa.
— Se eu estiver com um humor desgraçado amanhã,
porque passei a noite enfiada nuns jeans mais apertados do
que o inter­valo entre as tuas mudanças de humor, a culpa
vai ser tua e só tua!
Atiro o meu saco para os pés da cama e sento-me nela,
de cos­tas voltadas para o Diabo. Levo logo com um lenço de
papel na cabeça. Permaneço imobilizada por uns segundos,
até o afastar da minha cara. Viro-me para ele, pronta a
pegar-lhe fogo, mas nada me sai da boca.
O Clarke está de tronco nu.
Nunca vi um corpo tão bonito, músculos tão bem
desenhados, para não falar das tatuagens, que vejo pela
primeira vez à luz, e tudo combina na perfeição. Tem um
relógio quebrado, no peitoral direito, e os ponteiros indicam
as 9I147. Está rodeado por uma densa floresta queimada,
que se estende pelas suas costelas, habi­tada por um lobo
solitário no topo de uma rocha, numa noite estrelada.
O lobo deveria significar a família, porque pertence a
uma ma­tilha, mas este uiva para a lua, sozinho, enquanto o
seu lar e os seus congéneres estão a ser queimados. E, no
entanto, as estrelas continuam a brilhar no céu, porque
mesmo quando ocorre uma atrocidade, a Terra não para de
girar. Somos os únicos a sofrer o impacto.
«Diabo» está tatuado na clavícula; diferentes runas,
formadas por hastes entrelaçadas de rosas com espinhos e
inúmeros outros desenhos cobrem toda a parte superior do
corpo, à exceção do rosto. Mas o que mais me chama a
atenção está pintado no peito. Dois invólucros de revólver
têm gravadas as letras «J. T.» e «W. T.» Pergunto-me se não
serão as iniciais dos pais, mortos a tiro.
A ideia aperta-me o coração.
— A minha T-shirt: vai servir-te de camisa de noite.
O Clarke tira-me da minha contemplação e forço-me a
desviar o olhar do seu corpo. E apercebo-me, pelo atirar do
pano à minha cabeça, que não está para brincadeiras.
— Obrigada.
Pisca-me o olho e vai para a casa de banho, revelando-
me uma série de novas tatuagens nas suas costas, incluindo
os diferentes mundos do Yggdrasil, uns por baixo dos
outros, ao longo da colu­na vertebral.
A porta fecha-se atrás dele, espero ouvir a água a correr
para tirar as calças de ganga, depois a camisa, e vestir a
sua T-shirt preta, que me chega até ao meio das coxas.
Debato-me para não pensar no facto de estar a respirar o
seu cheiro.
Passaram cinco minutos e o Clarke aparece na ombreira
da porta em calças de treino cinzentas, de cabelos
molhados a escor­rerem-lhe pelo corpo.
Deuses Todo-Poderosos!
Tudo nele é proporcional e bem desenvolvido. Os ombros
são largos e esquadriados e os trapézios avolumam-se. Os
braços fa­zem mais do dobro dos meus e consigo ver daqui
as veias que per­correm os antebraços. Os peitorais parecem
duros como aço, os abdominais ressaltam naturalmente e,
finalmente, a cereja no cimo do bolo: tem uma cintura de
Apoio, formando um V que co­meça nos seus quadris e
desce por baixo do fato de treino.
O Clarke olha para mim, com uma sobrancelha erguida.
Perce­bo que o galei abertamente e volto imediatamente a
mim.
— Dá-te vontade de rir, hein!
Atiro-lhe uma almofada para o fazer engolir a sua
arrogância, mas ele apanha-a antes de lhe acertar na
cabeça. Devolve-a e eu evito-a no último segundo.
— Sim, dá.
O seu olhar é suave, o que me agrada mais do que devia.
Os meus olhos, ansiosos por verem todas as suas
tatuagens, deparam-se com um esgar, depois com o seu
corpo e perco-me na ex­ploração. Acompanho a curva dos
seus músculos, o...
— Estás outra vez a babar-te, Avalone.
Pego na almofada e volto a atirá-la, mas, desta vez,
apanha com ela em cheio na cara. A almofada cai ao chão,
seguem-se uns segundos de silêncio e o olhar do Clarke
transforma-se, para me dardejar.
Que grande merda...
Levanto-me apressadamente da cama e corro para a
porta, com o Clarke nos calcanhares. Saio do quarto, mas
sei de ante­mão que estou lixada. Daqui a poucos segundos,
não terei fôlego e estarei a deitar os pulmões pela boca.
— Sinto muito! — E rio. — Mas, se continuares a
perseguir-me, morro!
— Só tens de parar a correria.
Ao ouvir-lhe a voz, percebo que está perigosamente
próximo de mim e acelero.
— Instinto de sobrevivência!
Descolo do chão, solto um grito e dou por mim de cabeça
para baixo sobre o ombro dele. Rio-me tanto que me dói o
estômago. Para não falar do estado da minha respiração.
— Pousa-me!
Luto, mas ele é demasiado forte. Faz o caminho de
regresso, vitorioso.
— Desculpa. Pensei que ias apanhar a almofada! Não
tenho culpa que, pela primeira vez, tenha sido sorte de
principiante!
— Estás-te a enterrar, Beleza!
A porta ao lado abre-se e mostra as cabeças do Set e do
Sean. Paramos e contemplamo-los como se tivéssemos
acabado de ser apanhados no meio de uma asneira. Deste
ângulo — de cabeça para baixo — os dois amigos parecem
ainda mais maciços.
De sobrancelhas arqueadas, desatam à gargalhada,
devido ao espetáculo que lhes é oferecido.
— Ajudem-me... — suplico-lhes.
Os rapazes esboçam um passo na nossa direção, mas o
olhar do Clarke dissuade-os de me darem a mão.
— Vocês não se querem meter nisto.
— Boa sorte! — lastima-se o Set.
Os dois Diabos voltam para onde vieram e o Clarke entra
no nosso quarto. Bate com a porta e atira-me para cima da
cama. Pega nas duas almofadas e aproxima-se de mim, com
um sorriso sádico no seu belo rosto. E esmaga a almofada
na minha cabeça.
Luto, rindo loucamente.
— Para de te debateres, vais ficar esgotada! — ri o
Clarke.
Dá-me uns segundos de descanso, para recuperar o
fôlego, an­tes de me esmagar a segunda almofada na cara.
Faço entrar as minhas pernas na luta e tento empurrá-lo
para longe, mas o Clar­ke desiste das almofadas. Consegue
agarrar os meus pulsos com grande facilidade e mantém-
nos de cada lado da minha cabeça. Quando pressiona a
bacia contra a minha, as minhas pernas abrem-se para o
acomodar.
É neste exato momento que percebemos a posição em
que nos encontramos. De repente, tomo consciência de
todos os lugares em que os nossos corpos se tocam. Os
nossos sorrisos desvanecem-se pouco a pouco e as nossas
respirações, já encurtadas pelo esforço, tornam-se erráticas,
acelerando o bater do meu coração. O olhar ardente do
Clarke imerso no meu causa-me um surto de febre. O tempo
parece durar uma eternidade, como se tudo tives­se parado
à nossa volta. Os seus olhos, agora negros, cravam-se na
minha boca, expressando um desejo feroz ao qual o meu
corpo responde. Estou à sua mercê. Pode fazer-me o que
quiser, não consigo recusar-lhe nada.
Bruscamente, arranca tudo de novo, quando o Clarke
esmaga os seus lábios contra os meus e uma bola de calor
implode no meu baixo-ventre. Respondo instantaneamente
ao seu beijo, ge­mendo, ardendo de desejo. Não tem nada
de meigo. É selvagem, violento, cheio de urgência. Ele quer-
me e eu quero-o.
Aqui.
Agora.
Já.
Já não tenho mais fôlego quando a língua dele encontra a
mi­nha. Beijamo-nos até retomar o fôlego, de cabeça
perdida. Ele en­laça os dedos por cima da minha cabeça e,
quando morde o meu lábio inferior, escapa-me um gemido,
reforçando a urgência que sentimos. As minhas pernas
enrolam-se na sua cintura e os seus lábios deixam os meus
para devorarem o meu pescoço, mordê-lo, lambê-lo. As
palmas das minhas mãos percorrem o corpo dele, os seus
dedos agarram-se com força às minhas ancas. Arqueio-me
contra ele, suspiro de prazer e o Clarke rosna contra a
minha pele.
O meu cérebro está num caos total, o meu coração
prestes a explodir. Nunca pensei que existisse um tipo
assim. Os seus ges­tos são seguros e tão excitantes que não
vou aguentar por muito tempo. Os seus beijos, as suas
carícias, a sua firmeza, tudo nele é feito para me seduzir.
Quando a sua mão repousa na minha face e o seu
polegar pas­sa no meu lábio, beijo-o e enrolo a língua em
torno do seu dedo. O seu corpo fica mais pesado sobre o
meu, como se estivesse a perder o pé, e o olhar que me
dirige incendeia o meu ser. As nos­sas respirações caóticas
misturam-se e o seu potente desejo, cra­vado em mim,
ameaça tirar-me os sentidos.
Mas eis que os seus lábios deixam abruptamente os
meus. Ele salta para trás. Sinto imediatamente a falta da
firmeza das suas mãos no meu corpo, quando se põe de pé
em frente da cama, encarando-me, perturbado. A sua
respiração está tão acelerada como a minha. Desvia o olhar
e passa nervosamente as mãos pelo cabelo.
— Não podemos fazer isto.
A sua voz é suave, mas firme. Franzo a testa, perdida.
— Porquê?
— Não podemos fazer isto! — repete, elevando a voz.
Desta vez, está verdadeiramente irritado. As suas feições
cris­pam-se e os punhos estão cerrados. Toda a magia que
nos rodea­va há poucos segundos desapareceu num estalar
de dedos. Nunca me senti tão desorientada em toda a
minha vida.
O Clarke anda em círculos, como um leão na jaula, louco
de raiva. Finalmente, enfia rapidamente os sapatos e vai
para a porta.
— Dorme, amanhã saímos cedo.
Sai do quarto e deixa-me na ignorância.
Fico sozinha, frustrada e numa total incompreensão.
Sento-me na cama, a pensar na fonte do seu
aborrecimento, mas não en­contro nada. Se eu fosse o
problema, nunca teria visto desejo nos seus olhos. Ele
queria-me tanto como eu a ele, eu sei disso!
Rosno de descontentamento e levanto-me para apagar a
luz; meto-me dentro dos lençóis, perturbada com o que
acabou de acontecer. Uma coisa é certa, o Clarke Taylor faz
o meu coração bater mais depressa. Mas o Diabo é perigoso
para as raparigas. Acaba de mo provar mais uma vez.
***
Um barulho surdo acorda-me. As minhas pálpebras
abrem-se sobre o lugar vazio ao meu lado. O Clarke ainda
não voltou. Endi­reito-me e esfrego os olhos, antes de me
sobressaltar com uma nova pancada vinda do exterior. E
mais outra.
O despertador mostra 5I139, resmungo com quem faz
um tal desacato. Relutantemente, saio da cama e dirijo-me
à janela para abrir as cortinas.
O meu coração salta um batimento perante a cena em
baixo: no estacionamento do motel, o Clarke está a
esmurrar um tipo. Apesar de tudo o que aconteceu, ainda
consigo ficar chocada. A sua violência é fenomenal e sem
limites. É-lhe intrínseca e as on­das que emite são
reconhecíveis entre mil.
Ele esquiva-se de um soco e atinge o tipo, que cai para
trás. O Diabo põe-se por cima dele e esmurra-o sem parar,
mas a vítima não se move. Está KO, ou talvez mesmo
morta.
Eu devia, por uma vez, deixar o Clarke enfrentar as suas
res­ponsabilidades, mas não posso ficar parada sem fazer
nada. Seria falta de assistência a pessoa em perigo e a
culpa nunca me deixa­ria. Se a pessoa está viva, tenho de
parar isto a tempo.
Gostava de poder dizer que é só por causa desta vítima
que saio do quarto e corro escada abaixo, mas é também
por ele. Es­tou convencida de que merece uma vida muito
melhor do que a de um recluso responsável por homicídio.
Portanto, enquanto eu cá estiver, vou impedi-lo de
atravessar esse ponto de não retorno.
Quando o Clarke levanta o braço para esmurrar o tipo, eu
se­guro-o antes do embate, como na noite em que nos
encontrámos, no Degenerate Bar.
— Para, suplico-te...
O Filho do Diabo vira-se para mim num ápice, com os
olhos negros de raiva e injetados de sangue. Num reflexo,
levanto as mãos em frente da cara, para me proteger o
melhor possível do que me espera, uma vez que o seu
punho fechado já vem na mi­nha direção.
Desta vez, surpreendi-o mais do que quando nos
conhecemos. Vou provar o famoso murro do Clarke Taylor e
vou ter dificuldade em recuperar dele.
Mas, mais uma vez, o choque e a dor não vêm. Só me
apercebo de que fechei os olhos, quando os abro
novamente.
O seu punho está suspenso, assustadoramente perto do
meu rosto. O Clarke vai-se abaixo. Não há mais um pingo de
ódio nos seus olhos, reconhece-me. E eu volto a respirar,
com o corpo a tremer.
-Eu...
Não continua a frase, a culpa assalta-o. Num acesso de
raiva, volta-se e bate violentamente na parede. As falanges
estalam e co­meçam imediatamente a sangrar.
— GRANDE MERDA! — berra.
Vira-se e caminha na minha direção com determinação.
Uma vez perto de mim, agarra-me no pulso e puxa-me
contra ele. Fico espalmada contra o seu peito, rodeada pelos
seus braços fortes.
— Desculpa... — sussurra nos meus cabelos.
Os seus dedos afundam-se entre as madeixas e agarram-
nas.
Saboreio como uma bênção o seu regresso à realidade e
acal­mo-o.
— Desculpa — repete baixinho.
— Não te preocupes.
Abraça-me com tanta força que ouço o seu coração bater
furiosamente.
— Achei que...
— Não fizeste nada de mal, Clarke — tranquilizo-o. —
Não me bateste, estou bem.
Todos dizem que o Clarke não tem autocontrolo, mas isso
não é verdade. A primeira vez que segurei o seu braço no
Degenerate Bar, ele virou-se tão depressa como o seu
punho se levantou. Não queria acreditar que ele não me
tinha batido. E esta noite, foi ain­da mais rápido. Desta vez,
tive a certeza de que ia levar, mas, uma vez mais, o seu
punho parou. Uma pessoa sem autocontrolo teria batido
sem ser capaz de se conter, independentemente de quem
estivesse à sua frente. Mas não o Clarke. Sei que o
problema dele não vem daí. Acho que ele tem tanta raiva
dentro dele que sente necessidade de atirá-la fora antes
que se afogue nela e, por isso, agarra a primeira
oportunidade para lutar que lhe surge. Não en­controu outra
forma de escoar esse ódio que o consome.
Solta o meu corpo e dou um passo para trás. Sei que me
quer examinar, para ter a certeza de que estou bem; mas
sou incapaz de sustentar o seu olhar, depois do que
partilhámos e da sua re­jeição. Assim, vou ter com a sua
vítima, deitada no chão, e quase choro de alívio quando lhe
sinto o pulso.
— É preciso chamar uma ambulância.
— Já vem a caminho.
Incrédula, volto o rosto para o Clarke.
— Estava ao telefone com o Carter quando me deparei
com esta besta, que me insultou.
Então, o Carter sabia como isto ia acabar. Uma morte por
um insulto. Os deuses sejam louvados, graças a ele, a ajuda
não deve demorar.
Gostaria de encetar um longo monólogo, em que
explicaria ao Clarke que não pode continuar assim, mas as
minhas palavras cairiam no vazio. Ele faz isto
provavelmente há anos e não vai mudar como por magia.
— Vem, vamos para o quarto — diz-me, com uma voz
hesitante.
Abano a cabeça negativamente.
— Vai, que eu vou ter contigo quando a ambulância
chegar.
— O Carter já deve ter pirateado as câmaras de
vigilância, para apagar o meu ataque. Se estiveres no local
quando o socorro che­gar, vão fazer-te perguntas.
Tem razão. Provavelmente, a polícia também está a
caminho; mas não posso abandonar o tipo aqui.
— Ele pode não resistir aos ferimentos, tenho de cuidar
dele.
— A vida dele não está em perigo, Avalone. Eu sei onde
bater.
Fito alternadamente o Diabo e a vítima, dividida. Posso
confi­ar no Clarke? Ele provou-me que não, mas, com a sua
experiência em lutas, deve saber o que faz.
O Clarke estende-me a mão, com um olhar quase
suplicante, e fico completamente às avessas. Ele quer que
eu volte com ele, cer­tificar-se de que não fujo depois de
testemunhar isto e que estou do seu lado. Mesmo tendo
consciência de que o seu comporta­mento é nefasto.
— Nunca vou deixar de te travar, Clarke.
Resmunga com desagrado, mas confirma com a cabeça,
mes­mo assim. Então, percorro a distância que nos separa e
dou-lhe a mão para irmos para as escadas.
Sinto o seu olhar em mim. Faço todos os esforços do
mundo para não prestar atenção. Só quando percebo que
ele não está a andar bem a direito é que me volto para ele.
Os seus olhos raiados são a prova de que não foi a raiva e a
violência que os puseram assim.
— Estás bêbado.
Deita-me um olhar furibundo, sem motivo nenhum,
confir­mando as minhas palavras.
— Ficas mais bonito quando sorris — suspiro.
Involuntariamente, um sorriso devastador afixa-se nos
seus lábios e eletriza o meu corpo todo. Mesmo bêbado,
este tipo tem a presença de um deus. Só tenho um desejo:
voltar a beijá-lo. Pare­ce tão forte e, no entanto, pela
primeira vez, todas as suas emo­ções são legíveis no seu
rosto. Não é o Clarke indecifrável e ines­crutável que
É
conheço. É óbvio que, quando está neste estado, fica
emocionalmente mais frágil. Todos o poderiam atingir com
pala­vras e ações. Um Clarke Taylor bêbado é muito mais
perigoso do que um Clarke Taylor sóbrio. Seria capaz de
incendiar o mundo. E, no entanto, dá-me vontade de cuidar
dele, de abafar momenta­neamente as suas mágoas.
Preparo-me para puxá-lo pelo braço para voltarmos para
o quarto, mas a sua mão nas minhas costas pressiona-me
contra o seu peito. Perco o fôlego e, provavelmente, até o
coração. Afogo-me na profundidade negra das suas íris.
Desejo.
Frustração.
Raiva.
Quase desfaleço quando os seus lábios beijam os meus.
Em contraste com o beijo que trocámos no início da noite,
este é re­signado, mas apaixonado. Consome-nos. É como se
ele quisesse lembrar-se do meu gosto para sempre. Já tinha
perdido o fôlego no olhar dele, agora perco a alma neste
beijo. Definitivamente, o Clarke leva-me tudo, para me
deixar apenas a falta dos seus lábios.
Ainda não recuperei o fôlego, ele afasta os cabelos da
minha orelha e murmura com voz grave:
— Nunca vais ter ninguém que te beije como eu te beijo,
Avalone.
Pensava que já me tinha roubado tudo, estava errada.
Acabou de me levar a razão. Porque a partir de agora, eu
quero o Clarke Taylor.
Afasta-se de mim, para meu pesar, mas sou incapaz de
dizer o que quer que seja ou de fazer qualquer gesto. É a
vez dele me pu­xar para o quarto. Empurra a porta com o pé
e, no meio do espa­ço, olha para baixo, para os nossos dedos
entrelaçados, por lon­gos segundos. Sei que não tem
vontade de quebrar este contacto, tal como eu, mas,
mesmo assim, é o que faz, antes de se virar. Não emite uma
palavra, enquanto tira a T-shirt. Observo a sua mão direita,
muito aleijada, e aproveito a oportunidade para me ocupar
e silenciar os meus pensamentos. Vou à casa de banho
molhar uma toalha e, quando volto para o quarto, o Clarke
está sentado na cama. Ajoelho-me diante dele e agarro
gentilmente a palma da mão dele dentro da minha. Não diz
nada e deixa-me atuar, mas o seu olhar em mim
enlouquece-me. Aplico a toalha sobre as feridas, para limpá-
las e ele nem pestaneja.
Concluo que não posso fazer melhor com o pouco que
tenho e levo a roupa suja de sangue para a casa de banho,
enquanto o Clarke desliza para debaixo dos lençóis. De
regresso ao quarto, apago a luz e deito-me do meu lado da
cama, de costas para ele, muito perturbada com a forma
como ele me faz sentir. O meu cé­rebro vai explodir, se os
meus pensamentos continuarem a disparar em todos os
sentidos. Mas tudo se acalma em mim quando os seus
braços envolvem a minha cintura e me puxam contra ele. O
seu gesto tem o efeito de uma deliciosa tortura, que não
recuso. Adoro sentir o seu peito contra as minhas costas,
adoro a sua res­piração no meu pescoço e adoro os seus
lábios pousados no meu ombro.
— Nunca poderei ser quem tu queres que eu seja, mas
também nunca poderemos ser amigos. Portanto, nunca
mais me apresen­tes tipo nenhum, se quiseres que ele fique
com os dentes todos.
Diz isto e os seus dedos cravam-se na minha pele, e os
seus braços aumentam o aperto em torno do meu corpo,
para me pro­var que, faça eu o que fizer, encontre eu quem
encontrar, o seu território está marcado.
Capítulo 17

Sou retirada do sono por um triiim insuportável: o


desperta­dor. O Diabo rosna, descontente. Levo alguns
segundos a sentir a sua pele quente sob a minha. Abro os
olhos abruptamente e fica­mos os dois tensos, em
simultâneo. Metade do meu corpo está deitado sobre o dele,
a minha cabeça repousa no seu peito, os seus braços
abraçam-me com força e as suas mãos estão enfiadas
dentro da minha T-shirt, que está, aliás, muito subida.
— De que estás à espera para te mexeres? — resmunga
entredentes.
— Era preciso que me largasses primeiro.
Paira um silêncio pesado no quarto, mas quando os seus
dedos acariciam a minha anca, o meu coração falha um
batimento. Li­berta-me logo de seguida e deixo-me cair de
costas ao lado dele. Estende o braço para desligar o alarme
e endireito-me para me sentar na beira da cama.
O despertar é difícil e, para além de estar totalmente
perdida, a história da fronteira volta-me à memória e entro
em pânico.
— Vai correr tudo bem, não te preocupes.
Viro-me para o Clarke. Os seus dois braços poderosos
cruza­dos atrás da cabeça destacam um monte de músculos,
veias e ta­tuagens. Aceno com a cabeça, à laia de resposta.
Mas como pode ele ter a certeza? A menos que o Carter seja
o génio do Aladino e transforme a mercadoria ilegal em
pistolas de água e notas de Monopólio, nada está garantido.
Pego na minha bolsa e tranco-me na casa de banho para
uma toalete rápida. Água na cara, dentes lavados, troca de
roupa... Ato a minha trunfa em rabo-de-cavalo no alto da
cabeça e solto al­guns fios rebeldes. E saio, ansiosa.
— Muito obrigada — digo ao Clarke, devolvendo-lhe a T-
shirt.
Pisca-me o olho e guarda o que lhe pertence.
Os cabelos revoltos e a voz rouca ao acordar tornam-no
ainda mais sexy do que o normal. Se está de ressaca, não
deixa transparecer.
Tranca-se, por sua vez, na casa de banho e sai pronto em
pou­cos minutos, a tempo de abrir a porta a quem acaba de
bater.
O Sean e o Set entram com sacos de padaria nas mãos.
— Pequeno-almoço — proclama o Set, que se senta na
cadeira, enquanto o Sean se instala na cama. — E então,
andaram à turra ou deram umas quecas?
São inacreditáveis, estes dois, nunca perdem uma!
— Andámos às turras.
Cá está novamente o impassível e frio Clarke.
Definitivamen­te, prefiro-o com os copos...
— Onde te esmurraste? — pergunta o Sean.
Com a testa franzida, aponta para a mão aleijada do meu
com­panheiro de quarto.
Olha para mim, horrorizado, e procura ferimentos no meu
cor­po. O badboy, que seguiu o olhar do amigo, fita-o com
um olhar sinistro.
O ambiente fica subitamente pesado e carregado de
eletricidade.
— Grandessíssimo cabrão! — explode o Clarke. —
Achavas mes­mo que lhe tinha batido?
Sem me dar tempo de dizer uma única palavra para
esclarecer a situação, agarra-o pelo colarinho e levanta-o da
cama. A des­confiança do Sean persiste e também se
encoleriza.
— Espero que não tenhas dado um murro na Lopez!
Á
— ESTÁS A GOZAR COMIGO?
Abana violentamente o amigo, ambos loucos de raiva.
— CONTIGO NUNCA SE SABE O QUE ESPERAR!
Antes mesmo de o Clarke levantar o braço, o Set e eu
coloca­mo-nos entre eles, para os separar. Ponho as mãos no
peito do Sean e obrigo-o a recuar, atraindo a sua atenção
sobre mim.
— Ele não me tocou!
— ERA GAJO PARA ISSO!
Com um movimento do ombro, o Clarke liberta-se do seu
me­lhor amigo e manda o punho ao queixo do Sean, que
solta pala­vrões, depois de cuspir sangue.
O golpe não foi tão poderoso como aquilo a que o Clarke
nos acostumou e, apesar da raiva óbvia, sei que ele não
teve prazer em bater no amigo. Fê-lo para o obrigar a repor
as ideias na ordem e para lhe lembrar que deve respeito ao
afilhado do Carter. E mes­mo não gostando do uso de
violência, tenho a certeza de que ficou por aquele único
golpe. Todos temos.
Põe-se a andar em círculos no quarto, cerrando e
afrouxando os punhos para se acalmar.
— Pegámos um com o outro e eu saí para apanhar ar
fresco. Bati num tipo, na rua. O próximo que achar que eu
era capaz de agredir fisicamente a Avalone, dou cabo dele.
E tu — diz ao Sean — vai arder na porra das chamas do
Ragnarok, seu filho da mãe!
É a primeira vez que o ouço aludir à religião, e é num
insulto. Passo as mãos pelo rosto, desapontada. O dia não
podia ter come­çado pior.
O Set e o Sean encolhem os ombros, como se o que
acabou de se passar já não importasse. Pegam nos brioches
e dão-me um. Olho para o queixo vermelho do Sean, que faz
caretas de dor en­quanto mastiga o pequeno-almoço.
— Vá, vamos embora — ordena o afilhado do Carter.
Num ambiente pesado, recolhemos os nossos pertences
e saí­mos do quarto.
No estacionamento, os rapazes tiram os blusões de couro
e o Clarke faz-me sinal para os imitar. Não discuto, percebo
que é para evitar chamar a atenção sobre nós, na fronteira.
Escondemo-los no carro, debaixo do banco do passageiro, e,
quando o Set e o Sean param junto das suas motas,
preparo-me para entrar no au­tomóvel, mas o Clarke trava-
me.
— Vais com o Set.
Franzo a testa, sem entender.
— É alguma piada?
Volto-me para o Set, que me entrega um capacete e fico
atónita.
Se o Clarke não me deixar ir no carro, com ele e a carga
ilegal, é porque não deve ser prudente.
O meu ritmo cardíaco acelera, abro os braços e olho para
ele, assustada e irritada.
— Bem sabia que a fronteira não era segura!
Disse-me que não havia perigo, mas sabia que, quando
chegas­se a hora, assumiria o risco sozinho.
— Vou contigo.
O Diabo endireita-se e fica muito mais alto do que eu.
— Como disseste, não tens anos para sacrificar na prisão.
— Mas se for contigo, há menos possibilidades de o carro
ser controlado!
Um tipo tatuado, com um olhar gelado, num carro de
luxo, atrairá os funcionários da alfândega. Na companhia de
uma loira com ar frágil, isso pode apaziguar as suspeitas
dos agentes.
— Está fora de questão. Salta para a mota do Set,
Avalone!
— Não vou mudar de ideias!
Cruzo os braços para provar a minha determinação, mas
não tenho credibilidade, nem impacto na decisão dele.
— Então fica aqui, porque neste carro não entras.
O Clarke está irritado, impaciente e zangado, mas eu
também estou.
— Não é isso que é fazer parte dos Filhos do Diabo?
Correr ris­cos em conjunto?
Ele franze os olhos, num olhar indecifrável.
— Eu escolhi fazer parte, apesar dos riscos inerentes. Tu
não tiveste escolha.
— Continuas a privar-me do meu livre-arbítrio, Clarke!
Ontem, mentiste-me sobre o conteúdo das caixas e, agora,
proíbes-me de te acompanhar!
Passo nervosamente as mãos pela cara.
— Eu podia ter apanhado um táxi e ido imediatamente
para casa, quando descobri o que estava no carro; ou podia
ter chama­do a polícia, para vos denunciar. Mas continuo
aqui, convosco. Tenho a minha quota de responsabilidade e
não há razões que justifiquem correres os riscos sozinho!
Por uma fração de segundo, os seus olhos cintilam com
um brilho que não reconheço, mas refaz-se muito
rapidamente e, sem uma palavra, entra no carro, tranca as
portas e recusa-me o acesso.
Fecho os olhos e suspiro. Sinto-me mesmo mal. O motor
do Mercedes ruge e o Set passa a mão pelo meu braço.
Resignada, viro-me para ele e pego no capacete que me
estende.
Fazem isto para me proteger, eu sei, mas não podem ter
de mim só o que lhes agrada. Em algum momento, vão ter
de me aceitar por inteiro ou deixar-me ir embora.
A viagem até à fronteira parece interminável, mas,
chegados à fila dos condutores, à espera de passar a
alfândega, o meu coração dispara. O stresse é insuportável.
Vamos à frente do SUV e da mercadoria, com alguns carros
a separar-nos. Não me sinto nada bem, estou apavorada e o
Set sente isso.
— Vai correr tudo bem. Está longe de ser a primeira vez
que fa­zemos este tipo de coisas.
Coloca a mão sobre a minha e aperto-a, para me
tranquilizar.
— Eh lá, não dês cabo dos meus dedos também! — ri-se.
— Desculpa.
A nossa vez está a chegar rapidamente. Finjo estar
perfeita­mente confortável, quando chegamos perto dos dois
funcionários aduaneiros. Nem olham para nós, mas o meu
coração falha um batimento quando um deles anuncia:
— Controlo de identidade. Encoste ao lado.
Se formos controlados, o Clarke tem uma boa
possibilidade de passar. Mantenho uma aparência
descontraída, para evitar dar aos agentes motivos para
desconfiarem.
O Set e o Sean acenam com a cabeça e dirigem-se para
a faixa das vistorias. Descemos das motas e tiramos os
capacetes, en­quanto um funcionário da alfândega se
encaminha na nossa direção.
— Documentos de identidade, por favor.
A minha bolsa está no carro, não os tenho comigo.
Contudo, enquanto o Sean puxa de um passaporte, o Set
apresenta dois, en­tre eles o meu.
Deixo os rapazes trocarem banalidades com o homem e
procu­ro o SUV com os olhos, cada vez mais preocupada. As
minhas mãos estão suadas e a minha respiração instável.
Este stresse intenso corrói-me por dentro e está a um
passo de me fazer passar. Aperta-me as entranhas e dá-me
vontade de me atirar para debaixo de um autocarro, só para
pensar noutra coisa.
— O que foram fazer ao Canadá?
— Temos um amigo que mora na fronteira. Foi o
aniversário dele.
O carro do Clarke chega junto dos polícias. Fico sem
respira­ção, não consigo desviar os olhos, apesar de parecer
suspeito. Tem de passar sem ser controlado, caso contrário,
ganha uma passagem de ida para a prisão.
Tenho a sensação de que Midgard começa a tremer
debaixo dos meus pés, quando o SUV é parado pelos
funcionários da al­fândega. O meu estômago torce-se
violentamente, a náusea sobe. Desta vez, é toda a Yggdrasil
que treme, quando o Clarke se dirige para a faixa de
emergência, para uma inspeção do veículo.
Conhecendo-me, devo estar pálida como a morte. A ver
pelas formigas que me sobem pelos membros, está
rapidamente a apro­ximar-se uma crise. O ar está a tornar-se
escasso nos meus pul­mões, um nó enorme forma-se na
minha barriga. Os meus pensa­mentos disparam em todas
as direções e volto-me para os rapazes.
— Não me sinto nada bem.
Três pares de olhos convergem para mim e, pelo seu ar
de pre­ocupação, não devo estar com grande aspeto. Graças
ao olhar do Set, que se detém um segundo atrás de mim,
entendo que o SUV está a poucos metros de nós. Então,
deixo-me cair no chão, mago­ando-me um pouco por todo o
lado, para fingir estar doente. Só espero que os rapazes
aproveitem a oportunidade para safar o Clarke.
O Set e Sean precipitam-se para mim, mas eu mantenho
os olhos fechados.
— O que é que ela tem? — pergunta o funcionário
aduaneiro.
— Insuficiência cardíaca!
Os Filhos do Diabo soltam palavrões e tentam acordar-
me, ter­rivelmente preocupados. Gostava de lhes poder dizer
que não es­tou tão mal como pareço, mas, pela liberdade do
Clarke, mantenho-me calada.
— Temos de a levar para o hospital imediatamente!
Ouço o Set levantar-se e dar alguns passos apressados.
— EH! TU AÍ — berra.
Aguardo alguns segundos, e oiço-o:
— Podes levá-la ao hospital?
Não ouço a resposta, mas o Set regressa.
— Temos de a levar para o carro, ajude-nos! — ordena ao
funci­onário da alfândega.
Sou levantada do chão. Abre-se uma porta e deito-me no
ban­co de trás. Reconheço imediatamente o cheiro do carro
e do condutor.
Se tivesse as pálpebras abertas, teria vertido lágrimas de
alívio.
— Precisam que os acompanhemos?
— Não, obrigado. Vamos nas motas atrás do carro —
responde o Sean.
A porta bate, o Mercedes arranca na mecha e o Clarke
bate no volante.
— PORRA! — berra.
O meu plano funcionou, reagiram como eu esperava.
O peso no meu peito dissipa-se instantaneamente, mas a
adre­nalina ainda me corre nas veias. Sinto-me viva. O único
problema é que os três acham que eu preciso de ir para o
hospital.
Abro os olhos e, com voz fraca, anúncio:
— Eu tinha-te dito que queria vir no carro...
O Clarke vira-se, com grande alívio no olhar. Mas o medo
e a preocupação persistem e estampam-se-lhe na testa.
— Vamos para o hospital, aguenta!
Volta a concentrar-se na estrada e acelera, com os dedos
fe­chados sobre o volante. Endireito-me e solto uma
risadinha. Ele olha-me pelo retrovisor.
— Se calhar exagerei um pouco. Não preciso de médico
ne­nhum, na verdade...
— O quê?
— Não me senti bem, mas não ao ponto de perder a
consciên­cia. Deu-me a ideia de fazer um pouco de teatro,
esperando que o Set aproveitasse a oportunidade para te
pedir para me levares ao hospital, desviando assim a
atenção dos funcionários da alfânde­ga para o controlo do
automóvel. E... funcionou.
Ele olha para mim, totalmente desnorteado, enquanto eu
sor­rio, vitoriosa.
— NUNCA MAIS ME FAÇAS ISTO! — berra.
Dá um grande murro no volante, antes de recuperar
gradual­mente a compostura. Olha-me fixamente através do
retrovisor. Não desfaço o sorriso, apesar de fraco.
— Tens a certeza de que não precisas de ir às urgências?
Não pareces bem, Avalone.
— Dois mil por cento certa. Só preciso dormir um pouco.
Depois de todo o stresse ter saído do meu corpo, sinto-
me bem, como se estivesse anestesiada. Fecho as
pálpebras, demasia­do pesadas, e apoio a cabeça contra a
janela.
— A Avalone está bem.
— O quê? — exclama a voz do Set, através dos
altifalantes do automóvel.
— Ela não precisa ir ao hospital. Exagerou para me salvar
o coiro.
— Por Odin! Eu a achar que tinha o mérito todo e fui
apenas um peão no plano dela!
***
Uma cama confortável, mesmo confortável.
Lençóis macios... de seda.
Um cheiro floral e a algodão.
Piares de pássaros trazidos por uma brisa ligeira.
De repente, abro as pálpebras, consciente de que não
estou nem no meu quarto nem na casa do Clarke.
Varro o quarto com os olhos. É mais do que espaçoso: é
pelo menos o quádruplo do meu na residência. Os móveis
de madeira maciça parecem novos e transpiram dinheiro.
Molduras de gesso adornam as paredes imaculadas e
cortinas brancas ondulam sob uma brisa suave que entra
por uma das janelas altas envidraça­das, entreaberta. Tem
uma magnífica lareira de mármore, com runas esculpidas e,
em frente dela, uma chaise-longue rosa-malva, acolchoada,
da mesma cor da cabeceira que sobe até ao teto — que, na
verdade, é tão alto que eu só posso estar em casa do Cár­‐
ter. Tenho montes de almofadas atrás das costas, cada uma
mais macia que a outra.
Este quarto é de luxo incontestável, mas não é
desprovido de alma. É tão caloroso e acolhedor que, por um
segundo, pergunto-me se não devia ter aceitado a proposta
do líder para ficar a viver debaixo do seu teto.
Mas, de repente, volto a ver tudo para trás. As mentiras,
a fronteira e o carro do Clarke parado pelos funcionários da
alfândega.
Salto da cama, atravesso o quarto e abro de rompante a
porta, que dá para um corredor da mansão que ainda nunca
utilizei. Percorro-o e guio-me pelas vozes dos Filhos do
Diabo, que me chegam aos ouvidos. Uma vez na entrada,
passo o arco que leva ao salão.
Todos os olhos se voltam para mim, mas eu ignoro-os.
Vou di­reta ao Clarke e sai-me uma estalada sem eu querer.
Desta vez, não a trava. Sabe que a merece, mesmo que o
queixo se contraia em desaprovação.
— Não passas de um mentiroso!
Não espero resposta e volto-me para o Carter. Aproximo-
me dele com uma determinação alimentada por uma raiva
explosiva.
— E você... Fique feliz por me meter medo, senão era o
meu punho que lhe enfiava pela boca dentro,
grandessíssimo filho da mãe!
Carter fita-me com severidade, mas eu não me importo.
Estou com demasiada raiva para avaliar a magnitude das
minhas pala­vras — que ele merece, diga-se de passagem.
— É assim que protege os seus homens? O Clarke quase
foi apanhado na alfândega! A esta hora, já estaria preso!
Você é ape­nas um...
— Vais-te acalmar e vais ouvir-me, Avalone.
A sua voz calma corta-me o ímpeto. O Carter endireita-se
com uma confiança que me irrita. Como se tivesse
explicações racio­nais que pudessem mudar a minha visão
das coisas!
— Não havia nada de ilegal naquele carro. Nem notas
falsas, nem armas de contrabando, nem coisa nenhuma. As
caixas esta­vam vazias.
Fico impassível, impenetrável. Sinto-me incapaz de
distinguir o verdadeiro do falso, tantas voltas o gangue me
dá.
— Foi um teste que tu passaste à brava — continua o
Carter. — Não correste risco nenhum em momento nenhum.
Sou muito mais cauteloso do que pensas.
Percorro as caras dos Diabos em busca de confirmação,
mas todos evitam o meu olhar, exceto o Clarke, que o
sustenta com firmeza.
Não pode ser...
Uma gargalhada nervosa escapa-me da boca. Cerro os
punhos com tanta força que as unhas se cravam nas palmas
das minhas mãos.
— Então, se entendi corretamente, disse-me a verdade
sobre a nossa segurança desde o início, e depois fez-me
acreditar o con­trário, quando estávamos lá, para ver a
minha reação e as deci­sões que eu tomaria?
Miro os rapazes um a um, mas, novamente, eles não
olham para mim, à exceção do Clarke, que não demonstra
emoção nem arrependimento.
A raiva que senti há alguns segundos não tem nada que
ver com a que sinto agora. Gozaram comigo, mais uma vez,
multipli­cando manipulações, mais uma vez, para
conseguirem de mim o que queriam. Sinto-me ultrajada,
humilhada e utilizada.
— Você é um líder respeitado e temido, percebo isso. Mas
os seus modos de atuar não têm nada de venerável.
Ninguém se atreve a afrontá-lo, mas eu estou-me nas
tintas!
Antes mesmo de pensar no meu gesto, a minha mão
prega uma violenta estalada na face do Carter. A cabeça
dele gira com o impacto e todos prendem a respiração.
Sinto que toquei no Mjollnir24, o lendário martelo de Thor.
Quando o rosto do Carter volta a olhar para mim, vejo o
seu olhar ameaçador, que promete mil sofrimentos aos seus
inimigos. Mas se eu fosse um deles, não veria aquele brilho
maravilhado nas suas meninas dos olhos.
— Fico feliz por ser aquela que tem a coragem de tentar
pôr as suas ideias no lugar. Gaba-se de defender a
segurança dos seus homens e da sua prudência. Mas não
pensou na crise que eu po­dia ter tido sob tamanha pressão.
Além disso, os seus esquemas e testes não funcionam
comigo. Se alguém tem de prestar provas aqui, é o senhor.
Eu funciono à base de boas relações e de confi­ança, coisas
que o senhor constantemente desrespeita. O respeito
funciona nos dois sentidos, Carter. Se quer o meu, comece
por me dar o seu. Protegi-o várias vezes e sei o suficiente
sobre si para o prejudicar. No seu lugar, pensaria duas vezes
nas suas próximas ações. Agora, peço-lhes o favor de irem
todos atirar-se às chamas do Ragnarok!
Saio da sala a tremer, volto ao quarto para ir buscar a
minha bolsa e o blusão de couro, antes de voltar a percorrer
o corredor. Em seguida, passo pela sala de estar e atiro o
blusão à cara do Carter. Sem perder o ímpeto, dirijo-me
para a porta da frente e abro-a.
— V...
Furiosa, viro-me para o Jesse, que tem todos os
arrependi­mentos dos nove mundos nos olhos. Mas a culpa
dele não me afe­ta. É muito fácil pedir desculpas depois de
agir conscientemente.
— V de «vil»? Não achas que vocês merecem essa
alcunha mui­to mais do que eu?
Olho para eles com nojo, antes de sair pela porta.
E dizer que o Clarke, o Set e o Sean pareciam
sinceramente arrependidos por supostamente me terem
mentido... Mesmo en­tão, estavam a mentir. Foi tudo
planeado desde o início. O Carter tinha orquestrado tudo,
desde as palavras do Mike, aconselhan­do-nos a atravessar a
fronteira no dia seguinte, até aos funcioná­rios da alfândega,
a quem deve ter pago para nos pararem.
Mas, desta vez, acabou. Não vou acreditar mais em
nenhumas palavras que saiam das suas bocas. Não sou
inimiga deles, mas nunca pensaram em ter-me como amiga.
Não há confiança nem respeito.
Desço os degraus do alpendre, até à estrada de acesso à
pro­priedade, fervendo de ódio para com os Filhos do Diabo,
todos eles.
— Avalone.
O Clarke agarra-me pelo pulso e força-me a olhá-lo de
frente, mas o seu toque é-me insuportável. Liberto-me das
suas garras e ele rosna de descontentamento.
— Eu não podia dizer a verdade. Tiveste de passar por
este tes­te, para sabermos se podíamos realmente contar
contigo!
— SABIAS MUITO BEM QUE EU NÃO VOS TERIA DEIXADO
FICAR MAL!-berro.
Pela primeira vez em muito tempo, uma lágrima corre-
me pela cara. Limpo-a furiosamente com as costas da mão
e recupero a calma. No entanto, a raiva continua a agitar-se
sob a superfície.
— Desde o nosso primeiro encontro, tudo em mim vos
provou que podem confiar em mim, ao contrário de vocês.
Decidiste brincar comigo. Vocês todos decidiram brincar
comigo, quando só vos tenho ajudado!
Sacudo a cabeça, muito mais do que desapontada, e
recuo uns passos.
— Acabou. Esqueçam que eu existo. Não quero voltar a
ver-vos. Sei o que valho e vocês não merecem nada de
mim.
— Estamos todos cientes disso — murmura.
Afasto-me, incapaz de olhar mais para ele. Vem-me à
mente uma imagem do que partilhámos ontem, quando me
meto de novo ao caminho e aperto os dentes. Imagino-me,
em criança, com a minha coroa de plástico no alto da
cabeça. Inspiro profun­damente e ergo o queixo, para que
ela não caia.
Uma vez fora do rancho, ligo para a Lola, a pedir que me
ve­nha buscar. Chega muito depressa, provavelmente não
tirou o pé do acelerador, e fico-lhe grata por isso.
Enfio-me no carro e peço-lhe para fugir daqui o mais
depressa possível, o que ela faz.
— O que aconteceu? — pergunta-me com voz suave.
Conto-lhe a história na íntegra.
A minha amiga fica fora de si. Amaldiçoa os rapazes e
implora para que eu não me continue a dar com eles.
Passam alguns se­gundos e, depois de recuperar o fôlego,
desvia a conversa para os beijos que troquei com o Clarke.
— O que é que o impede? O Clarke sempre fez o que
queria. Então, porque se corta contigo? — questiona-me, de
testa franzida.
— Não sei, mas já não importa.
Nunca devíamos ter-nos beijado e não vai voltar a
acontecer, porque foi ele quem mais me magoou em toda
esta história. Eu, Avalone Lopez, não quero nenhuma
relação com homens, estou demasiado concentrada nos
meus estudos.
***
Sentada na relva na companhia de pessoas saudáveis,
ouço a Aurora e a Emily explicarem os passos que deram
para partilha­rem um quarto no mesmo andar que a Lola e
eu. Um minuto an­tes, o Jackson aconselhava-me a ficar
longe do Clarke — viu-me ontem a entrar no SUV com os
três Filhos do Diabo. E só pude dar-lhe razão.
Quando vejo a Aurora e a Lola nos braços dos respetivos
na­morados, não posso deixar de pensar no meu último
relaciona­mento, que foi há dois anos. Para o meu ex,
éramos o casal perfei­to do secundário; mas eu via as coisas
de maneira diferente. Ele era meigo e muito atencioso, no
entanto, achava que eu era uma boneca de porcelana,
demasiado frágil até para carregar a própria pasta e muito
doente para andar mais de dez minutos. Foi sufo­cante. Por
mais que eu lhe explicasse, um dia percebia, mas no
seguinte voltava ao mesmo. Até em pleno ato sexual,
recusava-se a deixar-me tomar a iniciativa, para evitar
qualquer risco. Deixei-o após cinco meses de
relacionamento.
— Há uma nova droga a circular nas universidades.
Volto à realidade e olho alternadamente para o Daniel e
para o Jackson.
— A Demónia. Desenvolve as capacidades físicas, como
se ti­véssemos superpoderes! O Logan usou-a na semana
passada. A sua força duplicou. Disse-me que sentia as
coisas mais intensa­mente, mas que a ressaca não era
francamente nada agradável. São os Pais do Demónio que a
comercializam.
Troco um olhar com a Lola. Estamos ambas a pensar no
Anjo, de quem não temos notícias desde a minha estada no
hospital. Espero que esteja bem.
Os meus amigos preparam-se para ir à fraternidade, mas
de­clino o convite, prefiro estudar e descansar. Levantamo-
nos e sa­cudo o rabo.
— Avalone.
Gelo da cabeça aos pés.
— Porra! — protesto. — As Nornas realmente apanharam-
me de ponta, não é possível!
Eu, que queria escapar à noitada especialmente para
evitar en­contrá-lo, e eis que me aparece na universidade.
Concentro-me para não deixar a raiva dominar-me e
volto-me lentamente para o Clarke. Com as mãos nos
bolsos, desvia o olhar, o que atesta o seu constrangimento,
e, no entanto, exala su­perioridade e carisma.
— Podemos falar cinco minutos?
Vir aqui, diante dos meus amigos e especialmente diante
do Jackson, para falar, deve ter exigido um esforço terrível.
Tem a cara fechada, mas não é nada, comparado com a que
põe quando o jovem se interpõe entre nós.
— Deixa-a em paz, Taylor!
Tudo na atitude do Clarke expressa o desprezo que sente
pelo seu ex-melhor amigo. Não há um único traço de um
rasto de afe­to, como se a relação deles nunca tivesse
existido.
— Não és certamente tu que me vens dar ordens — lança
o Clar­ke, com desprezo.
— Deixa-a em paz! — repete o Jackson.
Um metro atrás dele, o Clarke supera-o em tamanho e
largura. Considera-o como se fosse um zero à esquerda, um
incapaz.
— Mas quem te achas tu? Ela tem compromissos com os
Filhos do Diabo, como tu já tiveste. Azar o teu, já usei o meu
joker para salvar o teu cuzinho de merda e não tenho outro
para a esplendo­rosa menina.
Uma dupla verdade acaba de vir à tona e arrepia-nos a
todos. Não poupa ninguém.
Os olhos dos meus amigos passam sucessivamente do
Jackson para mim. Ninguém fala.
O Jackson não fica satisfeito por o Clarke ter exposto o
seu se­gredo, mas parece ainda mais chocado com o meu
envolvimento no gangue. Olha para mim, confuso e
visivelmente desapontado.
Faz o que eu digo, não faças o que eu faço!
Abano a cabeça, antes de voltar a concentrar-me no Filho
do Diabo.
— Não estava a brincar quando disse que tinha acabado,
Clarke.
— Ouviste? — diz o Jackson. — Vai-te embora, ou juro
sobre o Draupnir que...
O olhar do Clarke ensombra-se e a pouca paciência que
lhe restava desapareceu.
— Estou-me nas tintas para termos crescido juntos,
Jackson, não te metas comigo!
O Jackson avança para ele, mas o Daniel intervém e
puxa-o para trás, sabendo muito bem que ele não chegaria
para o Filho do Diabo. Mas o Jack está transtornado com o
Clarke. Abre os braços, provocador.
— Vá, estou à tua espera! — grita.
Em resposta ao olhar suplicante do Daniel, meto-me no
cami­nho do badboy, mas ele coloca a mão no meu ombro e
afasta-me para o lado com uma facilidade que me deixa
surpreendida.
O Daniel não perde a esperança e faz o colega de equipa
recu­ar. Solta palavrões e ordena-lhe que se acalme, mas o
Jackson afasta-o com agressividade.
Estamos todos atordoados com o comportamento do
nosso amigo. Caraças, o que é que lhe deu?
— NÃO FOSTE CAPAZ DE PROTEGER OS TEUS PAIS! ELA
TAMBÉM VAI MORRER AO TEU LADO, FILHO DE UMA PUTA!
Fico congelada. Tal como a Lola, a Aurora, a Emily e o
Daniel. O próprio tempo congela.
Apesar do arrependimento que imediatamente se abate
sobre o Jackson, é tarde demais. Nenhuma dor transparece
no olhar do Diabo, que está vazio, sem alma. A apreensão
dá-me nós nas en­tranhas, temo pelo que vá acontecer.
Gradualmente, os lábios do Clarke arrepanham-se. O
sadismo do seu sorriso sobe-lhe até aos olhos.
Baixo os olhos e fecho as pálpebras, resignada. Não o
consigo segurar depois disto, seria hipócrita da minha parte.
Se eu esti­vesse no lugar dele, se tivesse visto os meus pais
serem mortos diante dos meus olhos, saltava em cima do
Jackson, com desejos de o matar. Não posso acreditar que
ele ousou dizer aquilo. Não só foi buscar o pior dia da vida
do Clarke, como também insultou a mãe. E não me
intrometo quando o punho do Diabo embate no queixo do
Jackson, que fica estendido no chão, perante os gritos
horrorizados das raparigas.
— A puta, como tu dizes, ia-te buscar à escola e limpava-
te o rabo, quando ainda andavas de fraldas. Fala novamente
dos meus pais e mato-te!
Depois desse único golpe, o Clarke dá meia-volta. Passa
por mim e vai para o estacionamento com um passo
apressado, pres­tes a implodir.
Volto-me para o Jackson, que leva os dedos ao lábio
rebentado e faz uma careta.
— És mesmo imbecil! — diz-lhe a Aurora.
— Ele está a usar a Avalone!
— PARA! Isso é apenas uma desculpa! Tu próprio a usas
para expressar a tua raiva em relação ao Clarke, pelo que
ele te fez no passado!
O Jackson abre a boca para protestar, mas muda de
ideias no último momento. Deita-me um olhar lamentoso.
Suspiro, ultrapassada pelos acontecimentos.
— Sim, os Filhos do Diabo usam-me. No entanto, nestes
dois últimos minutos, tu caíste muito mais baixo do que
eles. Não por me teres usado para exteriorizares a tua raiva
em relação a ele, mas porque usaste o pior dia da vida dele
para o atingir. Quando o Clarke ataca alguém, pelo menos
tem o mérito de vencer sem ter de recorrer às fraquezas do
outro. Vira a página, Jackson. Por­que o que acabámos de
ver, não és tu. Vales mais do que isso. Pelo menos, espero
que sim.
Sem olhar para trás, vou ter com o Clarke, que chegou
ao pé da mota. Passa nervosamente as mãos pelo cabelo e
bate com violên­cia no poste com o punho. Um barulho surdo
ecoa nos arredores. Acelero o passo para o alcançar, mas, a
dois metros dele, o Diabo volta-se, com o rosto transtornado
por um ódio profundo e há muito abafado.
— Não te aproximes!
Estaco, com o coração a bater a toda a força. Detesto-o
por to­das as suas mentiras, mas agora, sinto-me muito mal
por ele. O Jackson não tinha o direito de usar os pais
falecidos contra ele, é desumano.
O Clarke anda para um lado e para o outro, diante da sua
Harley. Aperta e abre os punhos, contrai as maxilas
repetidamente. Solta palavrões, incapaz de desarmar a
bomba que o Jackson lhe pôs nas mãos.
A sua maior ferida foi reaberta e não faço ideia do que
fazer para o aliviar.
— Clarke...
— O QUE É?
Volta-se abruptamente para mim, com uma emoção
destrutiva desenhada no rosto, mergulhado numa grande
confusão. Avança para mim com uma determinação sádica
que dispara um alerta no meu cérebro; estaca e vai-se
abaixo; recua, hesita; antes de re­tomar as idas e vindas,
mais nervoso do que nunca.
As minhas mãos começam a tremer. Nunca o vi neste
estado, não posso deixá-lo assim. Ele está a sofrer e é
demasiado perigoso para quem se cruze no seu caminho.
Avanço para ele, mas Clarke recua e berra para que não
tente aproximar-me.
O coração sangra no meu peito, quando percebo que não
me está a rejeitar, simplesmente tem medo de ser violento
comigo. O ódio tomou conta dele e a única pessoa à sua
frente sou eu. Por isso, acredita que, apesar de
normalmente se dominar, desta vez é diferente. As emoções
são demasiado poderosas e pode explodir a qualquer
momento. E ele tem medo de que isso aconteça quando eu
estiver perto dele.
— Tu estás no controlo — tento eu, com o lábio a tremer.
— NÃO SABES NADA!
Continuo a avançar, incapaz de o abandonar.
— Para, Avalone...
A sua voz quebrada parte-me o coração, mas engulo as
lágri­mas. Só dois simples metros nos separam e, se ele
parar de recu­ar, posso chegar-me a ele em três passos.
— A tua raiva é mais intensa do que o normal, mas
provém da mesma fonte. Tu sabes controlá-la, Clarke.
Ele não responde. No entanto, o seu rosto interdito é
prova de que me ouve.
Dou lentamente mais um passo. O Clarke não recua, os
seus punhos tremem da tensão. Com uma respiração
ruidosa, todo o seu corpo reage a cada movimento meu.
— PORRA, VAI PARA CASA!
Nem pestanejo. Começo a segunda passada e distingo
clara­mente as suas íris; as suas emoções atingem-me e

É
tiram-me o fô­lego. Nunca vi um olhar tão torturado. É uma
porta aberta para a sua alma supliciada, desnaturada, que
já não consegue animar este corpo de forma saudável.
O Clarke rosna e, quando se prepara para recuar, não lhe
dou tempo. Atiro-me contra ele e envolvo os meus braços
em torno do seu pescoço. Ele fecha-se instantaneamente no
meu corpo e, de repente, inala uma lufada de ar.
O meu coração bate forte contra o dele. Aperto-o ainda
mais e rezo para aliviar os seus tormentos.
— Tu não és culpado, Clarke.
Ele vacila, mas não me solta, pelo contrário.
Fecho as pálpebras, dilacerada pela sua dor, a pontos de
respi­rar mal.
— Tu não és culpado — sussurro. — Tu não és culpado.
Inspiro junto ao seu pescoço, absorvo o seu cheiro e
coloco os meus lábios na sua pele, provocando-lhe um
arrepio.
A minha raiva contra ele parece ter desaparecido com a
espe­rança de atenuar a sua dor. Não sei há quanto tempo
estamos abraçados um contra o outro, mas, aos poucos,
sinto os seus mús­culos relaxarem e a respiração tornar-se
mais regular. No entan­to, tenho medo de largá-lo. Medo de
não o ter aliviado realmente e medo de descobrir que sinto
falta dos seus braços.
— Os gangues não são instituições de caridade, Avalone.
Se o líder não te der o seu consentimento, não podes sair
dele.
De repente, volto à realidade e fico tensa. A raiva
reaparece a tal velocidade que me faz sentir como se nunca
me tivesse abandonado.
— Eu não faço parte dos Filhos do Diabo e nunca serei
um de vocês! — respondo com uma voz glacial.
— Era preciso teres pensado nisso antes de vestires o
blusão.
O Clarke solta-me, os braços caem-me sem força ao
longo do corpo e, depois de montar na sua mota, arranca na
mecha e sai do estacionamento da universidade.

24 O Mjollnir é a derradeira arma dos deuses, a mais


formidável, oferecida a Thor por dois irmãos anões, a pedido
de Loki, para expiar as suas faltas. O martelo pode quebrar
montanhas sem nunca ser danificado, nunca erra o alvo e
volta sempre à mão do lançador. É a melhor proteção contra
os inimigos dos deuses.
Capítulo 18

Passou mais de uma semana desde o incidente entre o


Clarke e o Jackson, no relvado da universidade. Passou mais
de uma se­mana sem que tenha visto os Filhos do Diabo nem
recebido qual­quer missão. Apesar de isso me deixar muito
animada, dou por mim frequentemente a olhar para o céu, à
espera de que uma or­dem me caia em cima.
Pelo que já vi, o Carter não é de desistir e está-se
completa­mente nas tintas para aquilo que eu desejo.
O tempo passa com uma lentidão pesada. Não vejo o
Jackson há vários dias, demasiado irritada para lhe falar;
mas, na quinta-feira à noite, percebi que sentia falta do meu
amigo. Depois de uma mensagem, encontrámo-nos para
conversar. Ele pediu des­culpas, antes de me explicar como
quase entrou para os Filhos do Diabo.
Quando o Clarke se juntou ao gangue, o Jackson quis
segui-lo. Pensou que isso fortaleceria a amizade deles, que
estava seria­mente abalada. No entanto, não havia conversa
possível. Não era maior de idade e o Carter não queria ouvir
falar de um «estudante liceal quase do secundário». Na
altura, o Clarke prometeu ao Jackson que, quando entrasse
para a faculdade, o apresentaria ao Carter. Durante quase
quatro anos, os dois amigos não tiveram um único contacto,
o que irritou o Jackson. Entrou para a facul­dade no ano
passado e o Clarke cumpriu a sua promessa, embora se
tivessem tornado dois estranhos: apresentou-o ao Carter. O
lí­der dos Filhos do Diabo sabia que o Jackson não tinha lugar
no seu gangue, que sairia depressa, mas concordou,
contando as ho­ras até ele desistir.
Dezasseis horas.
Nesse momento, o Carter não permitiu que o Jackson
saísse e culpou o Clarke pela situação, para tirar aos seus
homens o im­pulso de lhe apresentarem meninos da mamã.
O Clarke teve de pagar pelo seu erro e o líder fez dele um
exemplo. O Jackson não sabe o que o seu ex-melhor amigo
teve de fazer para convencer o Carter, mas foi à custa do
seu ego e honorabilidade. A partir daí, o ressentimento
instalou-se entre os dois rapazes, até chegar à rai­va, da
parte do Jackson.
Estas confissões tornaram o meu ódio pelo Carter ainda
maior. Então o homem não tem qualquer respeito pelos
outros? Qual o sentido de fazer do Clarke um exemplo, em
vez de simplesmente mandar o Jackson embora? Eu sei que
juntar-se a um gangue não é uma decisão a ser tomada de
ânimo leve, mas, caraças, aos de­zoito anos, ainda somos
miúdos! O Jackson meteu aquela na ca­beça, mas não mediu
a consequência lógica dos acontecimentos.
Um pouco de indulgência não caía mal, Carter...
Continuo a pensar nisto, deitada na cama, a estudar para
as aulas. A Lola está no restaurante com o Daniel e
aproveito ao má­ximo ter o quarto silencioso, até que o
telemóvel toca. É o Set.
Oh, que grande merda, vai recomeçar tudo!
Olho para o ecrã sem me mover, esperando que a
chamada caia no voicemail. Não conto com a sua
perseverança: insiste na chamada. Estou prestes a pôr no
silêncio, mas de repente penso na Lola. E se ela estiver com
algum problema?
Atiro-me para o telemóvel e atendo antes que seja tarde.
— Ava, ouve-me com atenção!
A voz dele gela-me o sangue e acelera os meus
batimentos car­díacos. Ele fala depressa, com falta de ar e,
por trás dele, ouvem-se palavrões, seguidos de grunhidos
de dor.
Endireito-me, atenta.
— O Tucker deve estar a chegar aí. Vai-te buscar para te
levar ao apartamento. Precisamos mesmo de ti para isto,
portanto, por favor, não nos deixes.
Depois das suas palavras de súplica, desliga e deixa-me
ansio­sa. Levanto-me da cama à pressa, sem pensar um
segundo em re­cusar. Algo de mau aconteceu e, se eu não
for, só as Nornas sabe­rão o que pode acontecer.
Saio apressadamente do quarto, desço os degraus a dois
a dois e, quando chego ao estacionamento, o Tucker e a sua
Harley tra­vam à minha frente. Monto atrás dele e arranca
na mecha.
Cruzamos perigosamente as ruas de Ann Arbor. O Tucker
pas­sa sinais vermelhos, ziguezagueia entre carros e só para
quando chegamos ao apartamento dos rapazes. Ponho os
pés no chão e ele atira-me as chaves, com o rosto marcado
pela urgência.
— Sobe! O Set está quase a chegar.
Afasta-se tão depressa como apareceu, sem me dar
nenhuma explicação. Estou a começar a ficar seriamente
em pânico. Entro no prédio e subo ao apartamento, na
esperança de perceber o mo­tivo da minha vinda.
Só que não está ninguém em casa e não há nenhum
indício.
Juro aos deuses que, se é mais outro teste ou
manipulação, meto fogo ao rancho!
Vou para a sala e sento-me no sofá. Os minutos parecem
durar uma eternidade e, de repente, ouço bater à porta.
Levanto-me à pressa e deixo entrar o Set e o Justin.
Carregam o corpo inconsci­ente do Clarke, que deixa um
rasto de sangue atrás de si.
O meu coração dá um salto e fico paralisada, em choque.
Só consigo afastar-me o suficiente para permitir que os
rapazes en­trem. Viram para o corredor e desaparecem. Só
quando ouço o estrondo de um Diabo a bater numa parede
é que recupero o con­trolo dos meus membros. Corro para o
quarto e dou com o Clarke deitado na cama.
— O que aconteceu?
— Levou um tiro e perdeu muito sangue.
Odin Todo-Poderoso...
O Justin não para de andar às voltas, terrivelmente
preocupa­do. O Set segura-me pelos ombros, para se
certificar de que com­preendo as palavras que vão sair dos
seus lábios.
— Vem aí um tipo tratá-lo. Nós temos de voltar. Abre-lhe
a porta, quando tocar.
Pestanejo e os rapazes já saíram, sem me dizerem para
onde nem porquê. Estou petrificada, sem a menor ideia do
que posso fazer, mas sei que, se o Clarke não for assistido
rapidamente, pode morrer.
Com as mãos trémulas de medo, volto para o pé dele,
ainda in­consciente. O seu rosto está pálido, quase
translúcido, como se já não houvesse vida nele. Quando
coloco a mão na sua pele e perce­bo que está a arder, corro
para a casa de banho, molho uma toa­lha, volto e
humedeço-lhe a testa. A sua respiração acalma-me e parece
ter parado de sangrar. Para ter a certeza, puxo delicada­‐
mente a T-shirt esburacada, perfurada pela bala.
Tenho um forte ímpeto de repulsa. Ponho a mão sobre a
boca antes de recuar, cambaleante, sem conseguir desviar
o olhar da­quela visão de massacre.
Tem várias compressas pousadas na ferida, mas parecem
to­das tão ensopadas no líquido escarlate... para não falar no
sangue seco na pele, com as impressões de mãos e dedos.
Graças aos deuses, durante as minhas inúmeras
passagens pelo hospital, ouvi dizer que não devemos retirar
as compressas, ainda que tenhamos de acrescentar outras
em cima. O impacto foi no abdómen, o que me dissuade de
fazer compressão. O sangue já não sai, mas sabe-se lá que
órgãos a bala poderia atingir se se deslocasse, como
resultado da pressão sobre a ferida.
Por todos os deuses, ele devia estar era no hospital!
— Merda, Clarke, não morras...
Vê-lo neste estado perturba-me. Ele que costuma ser tão
forte e imponente, afinal não é invencível. E descubro-o de
uma forma cruel.
Puxo o lençol por cima do corpo dele para que não tenha
frio. A minha impotência ameaça fazer-me implodir. Eis que
os meus olhos veem uma tesoura em cima da cómoda.
Inspiro de repente, aliviada por finalmente poder fazer
qualquer coisa por ele, e pego nela.
Sem hesitar, enfio o bico na palma da minha mão.
Assobio de dor, ranjo os dentes e corto três centímetros da
minha pele.
Rio-me de nervosismo e ajoelho-me ao lado do Clarke, à
pro­cura de um espaço em que a sua pele esteja virgem,
sem tatua­gens. No interior dos seus pulsos, vejo alguns
centímetros. Mer­gulho o dedo mindinho no meu sangue e
começo a desenhar runas sobrepostas, poderosos símbolos
mágicos da minha religião.
Fehu e Uruz, para a cura.
Quando ponho o dedo na sua pele para traçar uma Fehu,
reci­to o Galdarbók25:
— «Eu tenho o poder de ajudar-te na doença,
preocupação e dor. Mas já pensaste alguma vez no fim?
Estás entregue a ti mes­mo e, no entanto, fazes parte de um
todo.»
Levanto a mão trémula. A Fehu já está.
Mergulho novamente o dedo mindinho na palma da mão
para o cobrir de vermelho, com a intenção de sobrepor uma
Uruz à Fehu, e declamo:
— «Eu sou a Runa dos Curandeiros, curo feridas e dores.
Sou a origem de tudo, o tempo original. Se me
compreenderes, saberás o sentido da vida.»
Com a primeira runa sobreposta desenhada, inspiro
profunda­mente e passo para o outro pulso.
Thurisaz e Ehlaz, para uma proteção poderosa.
Reproduzo a Thurisaz na sua pele e pronuncio
distintamente:
— «Eu sou a força instintiva e ataco para defender. O
poder da tempestade está dentro de ti. Sente-o, para
descobrires as tuas forças.»
Sobreponho uma Ehlaz e recito:
— «Eu sou a cana, dou-te resistência. Podes curvar-te sob
o vento da tempestade, que não serás quebrado.»
Termino a minha segunda runa sobreposta e deixo-me
cair sentada, com o coração um pouco mais leve. No
entanto, não te­nho tempo para respirar, porque alguém
está a bater frenetica­mente na porta da rua. Pulo da cama e
corro o mais depressa pos­sível, para abri-la a um tipo de
uns trinta anos, também tatuado da cabeça aos pés.
— Avalone, certo?
Confirmo com a cabeça e ele entra, carregado com duas
malas.
— Sou o Ethan.
Sem mais demora, atravessa o corredor e entra no
quarto do Clarke. Coloca a bagagem ao pé da cama e abre-a
rapidamente, revelando muitos instrumentos cirúrgicos,
consciente da urgência da situação.
— Deixei desinfetante na caixa de farmácia da casa de
banho principal. Traz-mo!
Atravesso o apartamento a correr. Quando volto para o
quarto com o recipiente, o Ethan está a usar luvas
esterilizadas. O Clarke acordou e geme de dor. Tem grandes
olheiras desenhadas sob os olhos e gotas de suor na testa.
Vê-me e deixa-se ir abaixo, comigo à beira de chorar de
alívio.
— O que é que ela está aqui a fazer?
A voz é seca, mas como fico feliz por ouvi-la!
— Também gosto de te ver, bonitão.
— Tira-a daqui, não quero que ela assista a isto!
— Cala a boca, preciso dela.
O Clarke resmunga e apoia a cabeça na cama, com o
rosto des­figurado pela dor.
— Despeja a garrafa sobre a ferida — ordena-me o Ethan.
Tiro a tampa sem discutir e aproximo-me da cama. O
buraco no abdómen do Diabo revolve-me o estômago. Olho
para o lado e mordo os lábios.
— Toma, morde isto.
O Ethan atira uma toalha ao Clarke, que a põe na boca, e
faz-me sinal para avançar. Inspiro profundamente e, com a
mão tré­mula, despejo o desinfetante na ferida. Ele ronca de
dor e quase parte os dentes no tecido.
O Ethan pega numa pinça e num afastador cirúrgico, e
aproxi­ma-se do paciente. Com um dos instrumentos, abre a
ferida do sofredor, que solta urros, enquanto, com o outro,
procura no meio da carne. O badboy bate com o punho no
colchão, antes de retirar furiosamente o pano da boca.
— Não imaginas o desejo que me dás de te enfiar um
murro no queixo!
— Estou a tentar salvar-te a vida, meu filho da mãe!
O pseudo-médico — rezo para que não seja veterinário —
move o instrumento dentro da ferida e o Clarke não para de
soltar pala­vrões. O meu coração bate tão depressa que
temo que rebente. Assisto a esta cena horrível sem poder
fazer nada para lhe aliviar a dor.
— Tira-me a porra dessa bala, filho da puta!
Sento-me ao lado do ferido, cujo rosto fica ainda mais
pertur­bador. Tem uma cor doentia e a dor marcada em cada
um dos músculos tensos da cara.
Ethan mergulha a pinça um pouco mais fundo, em busca
do projétil. A nova queixa do Clarke, não consigo evitar
pegar-lhe na mão, para partilhar uma parte ínfima do seu
tormento. O olhar que me dirige perde intensidade, está
vazio, sem brilho. As pálpe­bras fecham-se e a cabeça cai
para o lado, na cama.
— Ele perdeu a consciência! — exclamo, em pânico.
— Não faz mal. É melhor para ele estar ausente durante
a ex­tração. A bala não atingiu nenhum órgão vital, mas a
dor não é menor por isso.
Passam uns segundos e o Ethan mostra o chumbo na
ponta da pinça.
— A grande cabra!
Arregalo os olhos e acho que o objeto do crime não é tão
pe­queno como isso.
Deuses Todo-Poderosos, deve doer como o diabo!
O Ethan coloca a bala e a ferramenta sobre uma toalha;
em se­guida, pega em qualquer coisa para fechar a ferida e,
finalmente, desinfeta os instrumentos.
Feito isso, não se ouve mais barulho nenhum. Só a nossa
res­piração quebra o silêncio, enquanto observo os gestos
precisos e técnicos do eventual veterinário.
Em cinco minutos, a pele fica fechada com quatro pontos
de sutura. Um peso imenso escapa do peito de ambos.
— Ele vai safar-se. Vai precisar de ser acompanhado de
perto.
O Ethan derrama os últimos centilitros de desinfetante na
feri­da tratada e deixa-se cair no chão, com as costas
encostadas à cama.
— Esta besta mete-se sempre em situações parvas —
goza.
Parece cansado, mas, agora que a emergência passou,
está muito mais sorridente.
Junto-me a ele e sento-me ao seu lado.
— Não é a primeira vez?
— Ah, longe disso! É pelo menos a terceira bala que
extraio dele, mas, na maior parte das vezes, só tenho
costurado facadas e outras porcarias do género.
Solto um pequeno grito agudo de terror, que o diverte.
— Fazer parte de um gangue não é isento de riscos. Mas
é ver­dade que o Clarke é quem mais apanha.
— Porquê?
— Porque se sacrifica pela família.
Abro a boca para responder, mas não sai nada. O Clarke
é pro­tetor, pude constatá-lo muitas vezes e só comigo; no
entanto, não pensava que fosse ao ponto de apanhar com
uma bala no lugar dos seus amigos.
O Ethan vasculha no saco e retira uma loção
desinfetante. Dou um pulo quando me agarra na mão; mas
quando percebo o que quer fazer, mando-lhe um sorriso
grato.
— Runas sobrepostas, foi uma boa ideia.
Os olhos saltam-me das órbitas. É estatisticamente
impossível e, no entanto, ele reconheceu os símbolos nos
braços do Clarke.
— Tu és...
— Pagão? Como todos os outros, obviamente, incluindo
tu.
Começo a interrogar-me seriamente sobre esta questão.
Por­que é que Ann Arbor está cheia de neopagãos? O Carter
faz lava­gens ao cérebro ou é tão obcecado pela religião que
só recruta pa­gãos nórdicos?
— Como acabaste a ajudar os Filhos do Diabo? —
pergunta o Ethan.
Ele levanta-se e guarda o material.
— Provavelmente, estava no lugar errado à hora errada.
Ele desata a rir.
— Um pouco como todos nós.
Em seguida, embebe compressas com um fluido e
segura-as com uma ligadura, sobre a ferida suturada do
Clarke.
— É uma mistura de poderosos agentes cicatrizantes,
que pro­move a reparação dos tecidos. Tenho de deixar o
curativo descan­sar pelo menos uma hora, antes de pôr
outro limpo. Vá, vamos tomar uma bebida, para aliviar todo
este stresse.
Olho uma última vez para o Diabo. Continua
inconsciente, mas o seu peito ergue-se ao ritmo da
respiração. Sigo o Ethan até à sala de estar. Sento-me no
sofá, enquanto ele se dirige para o bar.
— Não te vou oferecer álcool. O Carter enviou-me os teus
rela­tórios médicos, quando foste hospitalizada. Espero que
isso não te incomode.
Vem sentar-se no cadeirão à minha frente, entrega-me
um copo de água e fica com o do uísque. Abano a cabeça
como única resposta e engulo um longo gole. Mais um ou
menos um a estar na posse da minha ficha médica, já nem
quero saber.
— Porque tratas membros de gangues?
— Eu era cirurgião do exército, mas tive um acidente. O
tendão do meu braço rasgou-se. Uma vez curado, a mão
ficou trémula, o que pôs fim à minha carreira, e aqui estou...
— Sinto muito...
— Não tem problema. Não acho que as coisas aconteçam
por acaso, assim como não acho que a tua integração nos
Filhos do Diabo seja uma coincidência. Cada um tem o lugar
que deve ter. Tu tens certamente grandes feitos para
realizar... como devolver um pouco de humanidade a estas
bestas.
Pisca-me o olho e rasga-se um sorriso nos meus lábios.
De re­pente, a porta da rua abre-se e entram todos os
Diabos, exceto o Carter. O líder nunca está presente quando
as coisas correm mal.
— Como está o campeão? — pergunta o Tucker,
preocupado.
— Está bem. Acordou antes de voltar a perder a
consciência. Precisa de descanso.
Os Diabos desaparecem no corredor, apenas para verem
por si mesmos que o coração do Clarke ainda bate.
Regressam rapida­mente com caras de enterro. Não
parecem em forma, estão todos acabrunhados.
— Obrigado, Beleza divinal — declara o Set, com um
sorrisinho hesitante.
Da última vez que os vi, disse-lhes para irem arder nas
chamas do Ragnarok, e uma parte de mim ainda pensa
assim, por isso mantenho uma certa frieza.
— O que aconteceu?
— Aquele filho da mãe levou uma bala por mim! — conta
o Set, irritado.
A sua culpa é intensa. Esfrega nervosamente a cara,
ofegando. A sua dor é palpável e tortura-lhe o espírito.
Provando assim que eles não precisam de mim para lhes
transmitir um pouco de hu­manidade. Ponho o ressentimento
de parte e estendo a mão para agarrar a dele.
— O Clarke está bem — tranquilizo-o, com um tom de
voz suave.
Ele olha para mim com surpresa, antes de sorrir com
gratidão e desolação. Abre a boca para me dizer algo, mas é
interrompido pelo toque do telemóvel. Atende e adivinho
que é o Carter do ou­tro lado da linha. O Set dá-lhe
novidades do Clarke e o Ethan con­firma que ele precisa de
repouso para se curar, o que obviamente não é fácil, pois,
de acordo com o Justin, o afilhado do Carter vai pôr-se a pé
já amanhã de manhã.
O Set termina a chamada e suspira de exaustão.
— Quem vai impedi-lo de sair? — pergunta o Jesse. — Eu
já dei para isso da última vez e levei um murro no queixo!
Como resposta à pergunta, todos os olhos se voltam para
mim.
Que grande merda!
— Não estão a falar a sério!?!
— Para nós é um risco! Mas a ti, o Clarke não te vai tocar.
E tu és capaz de o convencer.
O Tucker tem razão. No entanto, sinceramente, não
quero en­cará-lo novamente. Cruzo os braços em sinal de
desaprovação, mas ninguém tenta sequer encontrar outra
solução. Olho para eles um a um, hesitante, e finalmente
suspiro.
— Okay. Mas não vos prometo nada!
O Justin puxa-me contra ele, para me beijar na têmpora.
— Tu és a maior.
— Vocês querem dizer-me que estes cinquenta quilos vão
con­seguir convencer o Clarke? — pergunta o Ethan, cético.
— O meu ego sobredimensionado vai sofrer um golpe,
mas essa chavala é muito mais dotada do que nós — atesta
o Tucker.
***
Passa uma hora e o Ethan está de regresso à sala de
estar, de­pois de examinar o Clarke. Está acordado e já não
corre perigo de vida. Cumprimentamos e agradecemos ao
cirurgião, que tem de se ir embora, e dirigimo-nos para o
quarto do ferido. Os rapazes entram e eu fico na ombreira
da porta, de braços cruzados.
O Clarke, sentado na cama, está a vestir uma T-shirt.
Assobia de dor a cada movimento.
Caraças, tantas vezes que quis que ele saísse da minha
vida, desejando não voltar a ouvi-lo, nem a vê-lo; só quando
o vi in­consciente e ferido entendi que não era verdade.
Nunca, como na­quele momento, quis tanto que ele falasse
comigo, fosse aos gritos ou para me mentir. O que quisesse,
desde que acordasse. Agora que já passou, temo o
momento em que abra a boca.
— Tens de ficar na cama — tenta o Set.
Como se esperava, ele põe um ar de gozo, mas furioso.
— Lopez! — aponta o Sean.
Não sei porque é que os rapazes acham que o Clarke me
vai dar ouvidos, mas pelo menos vou tentar.
Aceno com a cabeça e o Set dá-me uma palmada no
ombro, à laia de encorajamento, e os Diabos saem do
quarto. Uma vez sozi­nha com o Clarke, aproximo-me e
sento-me ao lado dele.
— Como te sentes?
— Se estás cá para me convencer a ficar na cama, estás
a perder o teu tempo, Lopez.
Parece estar com um humor de merda, mas está vivo. E
isso não tem preço. O rosto recuperou a cor, parece ter
menos dor do que quando tinha a bala alojada nele. Ponho a
mão na dele e para todos os movimentos.
— Só te perguntei como estás.
Os seus olhos mergulham nos meus e, sem entender
como chegámos aqui, os nossos dedos entrelaçam-se. A
minha respira­ção para sob a carícia do seu olhar.
— Estou bem.
— Podias ter-te ficado nesta.
Saber que ele faz parte de um gangue, testemunhar as
suas brigas ou vê-lo apontar uma arma a traficantes de
armas é uma coisa; mas encontrá-lo com um ferimento de
bala... A mortalida­de deste mundo é muito real e agora
tenho plena consciência disso.
— Estou vivo.
— Até quando?
Encara-me sem responder, com a boca entreaberta e a
testa ligeiramente franzida. Levanto-me e quebro o contacto
das nos­sas mãos.
— Por favor, descansa.
Faz um riso amarelo.
— Eu sabia...
— Sou como tu, Clarke! Doente ou não, recuso-me a ficar
presa na cama. Percebo como te sentes, melhor que
ninguém; mas quanto mais depressa descansares, mais
depressa estarás outra vez a pé.
— Estou bem! — irrita-se.
— Se amanhã eu tiver uma crise, gostarias que
abrandasse, não é?
— Não te dava escolha.
— Pois, eu também não.
Determinada, saio do quarto a passos largos. Atravesso o
cor­redor e entro na sala, sob o olhar dos rapazes.
— Convenceste-o?
— Deem-me trinta segundos.
Abro o bar, pego numa garrafa e num copo, e volto para
o quarto do Clarke. Ele olha para o uísque com
desconfiança.
— Fica na cama, ou esvazio a garrafa...
Ele ri, sem me dar crédito. É esse o problema: ele
subestima-me com demasiada frequência.
— Não farias isso.
— Queres apostar?
Ele olha fixamente para mim, de repente menos seguro
de si. Abro a garrafa e atiro a rolha para o chão, dando-lhe
uma última oportunidade de me levar a sério. Mas ele tem
um olhar de desa­fio estampado no rosto.
Se ele acha que não o faço, está enganado. Só espero
que ceda antes que eu beba demasiado.
Sem tirar os olhos dele, ponho o gargalo nos lábios. Os
rapazes aparecem à porta e ficam à nora.
— Tu és louca! — engasga-se o Justin, em pânico.
Todos avançam na minha direção, mas eu paro-os com
um olhar furibundo, antes de voltar a minha atenção para o
ferido. A raiva cresce nele e, quando engulo o primeiro gole,
ele levanta-se de repente. O líquido queima-me a traqueia e
pica-me nos olhos. Preparo-me para novo gole, quando o
Clarke me ordena que pare, louco de raiva.
Afasto a garrafa dos lábios e olho-o com dureza.
— Vais descansar até estares recuperado?
— Sim! — responde, exasperado.
— Obrigada.
Pouso a garrafa ruidosamente na cómoda e passo pelos
Dia­bos, ao sair do quarto. Agarro um braço aleatoriamente e
arrasto um deles atrás de mim. Atravesso o corredor,
empurro uma porta e entro numa casa de banho. Um pouco
angustiada, volto-me para o Diabo e descubro que é o
Tucker. Ele vai dar conta do recado.
Já passei dos limites várias vezes, mas ainda estou viva.
Este gole provavelmente não me vai matar, mas as coisas
estão dife­rentes. Tive uma paragem cardíaca há pouco
tempo e estou com medo. Aterroriza-me a ideia de morrer
mesmo e de perder experi­ências incríveis. Pela primeira vez
na vida, o meu dia-a-dia é tre­pidante e, mesmo que me doa
admitir, depois do que me fizeram, devo-o aos Filhos do
Diabo. Não estou pronta para vê-la acabar já. Ainda quero
viver.
O mais seriamente possível, anuncio-lhe:
— Tenho de vomitar antes que o álcool que engoli seja
absorvi­do pelo meu metabolismo. E tu vais ajudar-me.
O Tucker fica à toa e recua um passo, engasgado. Agarro-
o pe­los ombros e insisto:
— Tenho muito pouco reflexo de náusea, por isso vais
colocar os dedos bem no fundo da minha garganta, Tucker.
O Filho do Diabo engole em seco e baloiça a cabeça
negativamente.
— A nossa amizade não vai sobreviver a isto.
— Tanto melhor, não somos amigos.
— Claro que somos! — exclama.
— Então põe a porra dos dedos na minha garganta!
Um pouco pálido, o Tucker levanta a mão à altura da
minha cara. Não respira e pergunto-me se não será ele que
vai acabar a vomitar. Mas eu preciso realmente dele para
isto. Mesmo que só tenha bebido uma pequena quantidade
de álcool, prefiro deitar tudo fora.
— Não são dedos o que costumo enfiar na garganta de
uma chavala.
— Tucker!
— Está bem!
Tenta recompor-se, coloca uma mão no meu pescoço,
para im­pedir que o mexa e eu abro a boca. Quando os
dedos entram na cavidade bucal, o Diabo vira o rosto, faz
caretas e fecha os olhos.
Enfia-os para o fundo, tocando no meu palato e na
língua, mas em vez de querer vomitar, só tenho um reflexo
de rejeição, acom­panhado de um barulho da garganta que o
Tucker ecoa... mas mais potente.
Quase dobrado ao meio, de boca escancarada, ele
parece pres­tes a mandar fora o jantar. Rio, mas tenho um
novo reflexo de re­jeição que acentua os ruídos de refluxo
emitidos pelo Tucker.
— Mas que raio se passa aqui?
Fico perdida de riso quando vejo o Jesse, que observa
esta cena improvável.
O pobre do Tucker é tomado por convulsões. O corpo
produz os sons característicos de vómitos, sem que
realmente deite nada fora. Tira os dedos da minha boca,
curva-se e continua os inter­mináveis ruídos da garganta. De
cada vez, penso que vai vomitar, mas não. O meu riso
torna-se tão forte que me dá dores de estô­mago, e o Jesse
começa também a rir. Com isso, não consigo re­cuperar o
fôlego e torna-se doloroso.
Acaba por passar o braço na minha cintura e puxar as
minhas costas contra o seu peito.
— Queres vomitar?
Aceno com a cabeça, de lágrimas nos olhos, incapaz de
me acalmar.
O Jesse enfia dois dedos na minha garganta, mas a
minha risa­da complica a manobra. Engasgo-me,
aumentando a hilaridade do Jesse e o mal-estar do Tucker.
Mexo-me tanto que o Diabo de cabeça rapada tem de me
segu­rar firmemente contra ele. Toca num lugar que eu nem
achava al­cançável, mas nada ajuda, não tenho o menor
reflexo para refluxo.
— Por Freia26, V, tu deves fazer uns broches do caraças!
Esta besta provoca-me outro ataque de riso e eu sufoco.
Pro­duz-me um novo som da garganta que acaba com o
Tucker. Atira-se para a sanita e vomita as tripas todas.
O Jesse puxa-nos para o corredor e bate com a porta,
para nos poupar ao cheiro. Deslizamos contra a parede até
ao chão, inca­pazes de recuperar o fôlego de tanto rirmos.
— Mas o que é que se passa?
Viramos a cara para o corredor e damos com o resto da
malta a observar-nos com estranheza.
— Não sabia que ele tinha um estômago tão sensível —
confesso entre risos. — Pedi-lhe que me fizesse vomitar e...
Os sons de regurgitação do outro lado da porta terminam
as explicações por mim. Todos riem, exceto o Clarke, que
olha fixa­mente para mim nos braços do Jesse. Levanto-lhe
uma sobrance­lha e ele fulmina-me com o olhar. No entanto,
os olhos perderam intensidade e a dor está patente mesmo
na sua postura.
25 O Galdarbók, La Voix des 24 Runes, é composto por
três livros explicativos do uso das Runas e seu poder
energético, escritos por Galdar Sechador.
26 Freia é a deusa da fertilidade, beleza e sexualidade.
Vive em Asgard, mas nasceu em Vanaheim, o mundo dos
deuses Vanes.
Capítulo 19

Percebendo que não vamos conseguir recuperar alguma


sere­nidade, enquanto o Tucker estiver a vomitar, decidimos
ir para a sala de estar. O Sean ajuda-me a pôr de pé e eu
faço o mesmo ao Jesse. Respiro fundo, para acalmar as
últimas risadas, e sacudo a cabeça, ainda divertida com a
situação.
— Tenho de voltar para a residência. Tenho de tomar a
medicação.
O Set tira os meus comprimidos de uma gaveta da
cozinha.
— O Carter passou-nos estes. Ele quer que os tenhamos
aqui, em caso de emergência.
Aliviada, abro os diferentes frascos e o Filho do Diabo
enche um copo de água, que me passa. Engulo três
comprimidos e bebo tudo de um trago.
— Pela cabeça de Mímir27, sabes que és completamente
passa­da? — pergunta o Sean.
— Vocês pediram para tratar do assunto, está feito.
O Clarke deita-me um olhar furibundo, a que respondo
com uma piscadela de olho.
— Esta rapariga vai dar comigo em louco! — rosna.
— Louco de amor, sim... — declara o Sean.
— Cala a boca, filho da puta!
Todos riem e, entretanto, o Tucker volta para junto de
nós. Passou água pela cara e lavou os dentes. O seu
regresso é pontua­do por piadas e provocações, enquanto eu
lhe faço um beicinho triste.
— Detesto-te!
— Isso não é verdade — respondo.
— Não é verdade, mas é quase!
Divertida, levanto os olhos para o alto e dirijo-me para o
sofá, antes de me imobilizar, palpitando um inconveniente
de maior magnitude.
Desconfiada, volto-me para o Tucker.
— O mais pequeno barulho da garganta causa-te este
efeito?
— Se está a perguntar se o Tucker pode ser chupado, a
resposta é não! — informa-me o Justin.
— Também não é bem assim! — responde o visado.
Arregalo os olhos e todos se desmancham a rir, menos o
Tuc­ker, que parece genuinamente irritado com a verdade do
facto.
— Porra, malta, temos de voltar! — exclama o Set, com
os olhos fitos no telemóvel.
Não precisa de dizer mais nada, os Filhos do Diabo
levantam-se de imediato. Voltam a vestir os blusões e
agarram nas chaves, com o rosto novamente duro. O Clarke
levanta-se instintivamen­te, mas aponto-lhe um dedo
acusador.
— Temos um acordo!
Não dissimula o desejo de me liquidar. Observa os
amigos prontos a sair, solta um palavrão e senta-se no sofá.
— Ava, conto contigo para o manteres ocupado —
graceja o Set.
Pisca-me o olho, cheio de insinuações, e os Filhos do
Diabo saem do apartamento, que fica brutalmente deserto e
silencioso. Nem tive tempo de dizer para terem cuidado.
— O que se passa?
O Clarke permanece em silêncio por tanto tempo que
duvido que me responda. Acaba por falar, com um olhar
sério e os olhos fixos no vazio.
— Um gangue rival quer tomar conta do nosso território.
Vai acabar mal. O Carter não perdoa este tipo de coisas.
— Clarke, eu não falo a vossa língua. O que é que isso
significa?
— Ou eles decidem sair da cidade e, se o Carter for
clemente, fica por isso mesmo, ou não saem e...
Não continua. Engulo a saliva ruidosamente.
— O que acontece, se eles não saírem?
Ele suspira e finalmente pousa os olhos em mim.
— Eles dispararam, Avalone. É a guerra. Temos de os pôr
daqui para fora... E se, para isso, formos forçados a matá-los
até ao últi­mo, fá-lo-emos.
Fico atónita e o ambiente torna-se demasiado pesado
para mim. Sinto pairar uma sombra que me dá um suor frio.
Matar um gangue inteiro? Isso causará um monte de
mortes, e quem garante que os Filhos do Diabo não deixam
também lá o coiro?
Sacudo a cabeça e, por uma loucura qualquer, respondo:
— Eu posso ajudar. Vocês sabem lutar, mas eu sei falar e
con­vencer. Podemos evitar esta guerra!
A expressão dele é de confusão.
— Está fora de questão.
— Clarke, eu...
— Eu disse que não! — exclama, furioso.
Levanta-se e vai até ao balcão, onde assenta as mãos
espalma­das, com os braços estendidos. A sua decisão é
definitiva, mas penso que é importante recordá-lo dos
riscos.
Levanto-me, por meu turno, e caminho em direção a ele.
— Então, para ti, a única solução possível é a violência?
Clarke, vocês podem morrer! O Set pode morrer! O Sean, o
Justin, o Jes­se, o Tucker...
— Eles conhecem os riscos — atalha.
Vira-se para mim, com um olhar duro.
Depois de levar com uma bala para salvar o Set, atreve-
se a dizer-me uma coisa destas? São os seus amigos, a sua
família, a sua própria vida!
Então ele não tem nem sombra de instinto de
sobrevivência?
É assim tão impossível para ele privilegiar a discussão
sobre a barbárie?
Até o Carter criou uma aliança com os outros gangues,
porque sabe que a violência não é resposta para tudo! E
agora sei que é com ele que tenho de falar para evitar uma
guerra territorial.
— Dirias a mesma coisa se eu também estivesse em
perigo?
O seu rosto fica desconcertado por meio segundo, antes
de vol­tar a mostrar-se impassível.
— Não. Contigo é diferente. Tu não escolheste ser um de
nós.
— E se for uma decisão minha?
Ele começa a articular uma palavra, mas muda de ideias.
Olha para mim, confundido.
— Sabes a resposta — acaba por dizer.
Aproxima-se de mim num passo lento e terrivelmente
perigo­so para o meu coração.
— Se tivesses escolhido ser um de nós, deixaria
colocares-te em perigo, porque estarias ciente dos riscos?
Analisa a situação.
A sua proximidade, parado a poucos centímetros de mim,
im­pede-me de analisar seja o que for.
— Não escolheste ser um de nós, mas queres negociar
com um gangue inimigo, com pleno conhecimento dos
factos. Desta vez, a decisão é tua. E porque isso te colocaria
em perigo é que to impeço.
O meu coração bate acelerado. Engulo em seco, quando
o olhar do Clarke pousa sobre os meus lábios. Humedece os
dele, deixando a minha respiração pesada. Então alguém
bate à porta, assusto-me, e o Diabo afasta-se para ir abrir.
Solto um longo sus­piro de frustração.
— Façam as malas, vou levar-vos para casa do Carter!
São or­dens dele.
Reconheço a voz do Anjo e fico muito assustada.
Corro para a entrada, preocupada com a ideia de os dois
ho­mens se enfrentarem. Afinal, o Clarke está menos tenso
do que o habitual, neste tipo de situação. Talvez a bala
tenha alguma coisa que ver com isso. Recuperou a cor, mas
continua demasiado pálido.
Concentro-me nas palavras que o Anjo acabou de
pronunciar e franzo a testa.
— O quê? Mas porquê?
— Se eles souberem que tu existes, ficas em perigo —
explica-me o Pai do Demónio. — O Carter quer que fiques
em casa dele por alguns dias. E desta vez, não tens escolha,
Avalone. Desculpa...
Por «eles», o Anjo provavelmente deve referir-se ao
gangue rival que tenta tomar o território dos Filhos do
Diabo. Posso ser teimosa e odiar o Carter, mas tenho
instinto de sobrevivência. Conto com as explicações do líder
para me ajudar a decidir se cedo ou não às suas exigências.
Entretanto, aceno com a cabeça. Uma vez em sua casa e
conhecendo melhor a situação, logo decido.
O Clarke olha fixamente para mim, esperando que eu
proteste, mas eu encolho os ombros. Ele resmunga de
descontentamento, antes de desaparecer no corredor.
Aproveito para saber novida­des do Anjo. Passam alguns
minutos e o Diabo regressa, com um saco de ginástica na
mão. Deixamos o apartamento, num ambien­te carregado de
eletricidade. O Pai do Demónio dirige-se para o lugar do
condutor do SUV Mercedes do Carter, mas o Clarke agarra-o
pelo braço.
— Quem conduz sou eu.
O Anjo franze a testa.
— O meu chefe deu-me instruções para vos vir buscar e
levar de volta.
As feições do Clarke endurecem à medida que se
aproxima do seu inimigo.
— Tu já não és um de nós. Não vais conduzir este carro
comigo aqui.
— Tu estás ferido!
— Dez pontos para a casa de Slytherin! 28 — intervenho.
Os dois rostos voltam-se para mim e, enquanto o Anjo
põe um sorriso divertido, Clarke fuzila-me com os olhos. De
qualquer ma­neira, ele não pode pôr-se ao volante, quando
acabou de levar um tiro.
— Posso ser eu a conduzir, sabem? — anúncio, numa
proposta.
Ambos olham para mim com desconfiança e atingem o
meu ego.
— Dá-me as chaves! — ordeno ao Anjo.
— Estás a falar a sério? Este bebé desenfreado tem mais
de seiscentos cavalos debaixo do capo! Ao menos, tens a
carta de condução contigo?
Tiro-lhe as chaves das mãos e sento-me ao volante. O
Clarke dá a volta ao carro e instala-se no banco da frente; o
Anjo suspira e vai para o banco de trás.
Ligo a ignição e, depois de soltar o travão de mão,
pressiono o acelerador, antes de travar bruscamente,
evitando por pouco o veículo estacionado à nossa frente.
— Merda! Não era esta a marcha atrás...
Os dois homens olham-me horrorizados, com as mãos
nos pu­xadores das portas, prontos a fugir, e deixo escapar
uma risadinha.
— Estava só a brincar!
Eles não gostaram obviamente da graça.
Meto a marcha-atrás e viro o volante para sair dali, antes
de me fazer à estrada a toda velocidade.
— Abranda! — grita o Anjo.
— Mas que desmancha-prazeres me saíste!
— Abranda! — ordena o Clarke.
Acelero ainda mais e rio como uma louca.
Após alguns minutos em que os rapazes pensaram que
iam morrer, entramos na mansão e vamos até ao salão. O
proprietário está lá, acompanhado por uma mulher
esplendorosa, da sua ida­de, que eu nunca tinha visto antes.
Com cabelos castanhos com­pridos, um vestido que se lhe
molda às formas e sapatos de salto, é espetacular. Levanta-
se quando chegamos e o Clarke beija-a na têmpora, o que
me causa um efeito estranho. Ela responde-lhe com um
sorriso afetuoso e o seu olhar curioso volta-se agora para
mim. O Carter aproxima-se e põe uma mão à volta da anca
dela.
— Avalone, apresento-te a minha esposa, a Kate.
Gostaria de esconder a surpresa, mas vai para lá das
minhas forças, o que parece divertir a Kate, a quem digo:
— Esfregue a pálpebra esquerda se o Carter a estiver a
manter aqui contra sua vontade e eu tiro-a de cá.
O Anjo engasga-se de riso, a mulher solta uma
gargalhada franca, enquanto o Clarke e o Carter levantam
os olhos para o alto.
Olho com atenção para o boss dos Filhos do Diabo e
ponho as mãos nas ancas com ar severo.
— Ela sabe quem o senhor é? Falou-lhe das suas
inclinações francamente questionáveis?
— Sim.
— Tem a certeza? Ela sabe tudo? — pergunto, cética.
— Tudo.
Ele não está nada chateado ou irritado com as minhas
insinua­ções. Pelo contrário, a situação diverte-o muito.
— Incrível...
— Já chega? Acabaste?
— Sim, bem, não. Ela parece sã de espírito, é isso que é
incrí­vel. Na verdade, o senhor também parece equilibrado.
Vai-se a ver e as aparências são realmente enganadoras.
Diagnostiquei-lhe uma sociopatia no site
teste_de_personalidade.com, devia pensar em consultar um
especialista.
O Anjo é assaltado por um ataque de tosse e o Clarke,
fiel a si mesmo, aproveita a oportunidade para lhe dar uma
palmada nas costas, capaz de arrancar os dois pulmões.
— És uma grande chata — constata o Carter.
Imito uma pequena vénia e sorrio para a Kate.
— Prazer em conhecê-la.
— O prazer é meu — ri-se. — A tua presença nesta casa
vai ser refrescante!
O Carter faz-me sinal para me sentar no sofá. Decido
fazer o que me pede e os outros imitam-me.
O líder arqueia uma sobrancelha para o Anjo, que se
sentou ao meu lado.
— Tu vais esperar sossegadamente lá fora.
O Pai do Demónio não discute. Embora o Carter ainda o
obri­gue a prestar-lhe serviços, para o punir, a sua traição
priva-o de qualquer direito de participar neste tipo de
conversas.
O Anjo sai pela porta alta envidraçada e o Carter senta-
se à minha frente.
— Como devem ter sido informados, os Reis da Lei estão
a ten­tar desapossar-nos do nosso território. O Clarke levou
uma bala. Não posso deixar passar isso em claro, portanto,
até que o assun­to fique resolvido, tu vais ficar aqui. Se
souberem da tua existên­cia, irão atacar-te para chegarem
até nós. Está fora de questão vermo-nos nessa situação. Só
este rancho é seguro.
— Se eles não sabem de mim, porque tenho de me
esconder?
— Os rumores correm depressa, Avalone. Os teus amigos
sa­bem que és um de nós. Centenas de estudantes viram os
Filhos do Diabo defender-te e toda a universidade te viu com
eles. É apenas uma questão de tempo até que os Reis da Lei
descubram quem tu és.
Engulo em seco e imagino loucos furiosos a montarem
uma armadilha aos Filhos do Diabo usando-me como isco.
— Quanto tempo vai durar isso?
— Se não capitularem dentro de quarenta e oito horas,
seremos obrigados a pôr as cartas na mesa. Em quatro dias,
no máximo, esta história fica resolvida e podes voltar para a
cidade universitária.
Bem, passarei as próximas noites aqui, não porque o
Carter me ordene, mas porque não quero permitir que os
Reis da Lei atinjam os Filhos do Diabo à minha custa.
Constato que a minha necessidade de os proteger é muito
mais importante do que podia ter imaginado. Apesar de
todas as merdas que fizeram comigo, não posso negar o
meu apego a estes rapazes. É algo que escapa ao meu
controlo.
O que estou prestes a perguntar ao Carter
provavelmente vai levar uma nega, mas quem não tenta
não ganha nada.
Olho para o líder com ar determinado.
— Aceito, com uma condição.
O Carter faz sinal para que continue, enquanto o Clarke
se en­direita abruptamente e me encara com a esperança de
que eu não me atreva. Ele ainda não me conhece
suficientemente bem.
— O objetivo é que os seus homens permaneçam vivos e
que o território se mantenha intacto, estamos de acordo?
O Carter confirma com a cabeça e o interesse brilha-lhe
nos olhos.
— Se o que quer são essas duas coisas, deixe-me falar
com os Reis da Lei.
O rosto do Clarke fecha-se, mas ignoro-o. A Kate está
mais do que surpreendida e o Carter examina-me
meticulosamente. Prossigo.
— Não sozinha, é evidente, seria suicídio. Organize uma
nego­ciação. Os Filhos do Diabo estarão lá, ao meu lado,
caso as coisas corram mal. Serei o vosso porta-voz. Não sei
usar um revólver nem lutar, mas sou boa com as palavras.
Sei convencer. Basta ex­plicar-me em detalhe quem são, o
que querem ao certo, os seus pontos fracos e...
— Isso é ridículo! — corta o Clarke.
É
— É exequível — aceita o Carter.
Endireito-me, de sobrancelhas arqueadas, e o Filho do
Diabo fica atónito.
— Não me digas que estás a falar a sério — arrisca,
enervado.
— Estou mesmo a falar a sério.
O Clarke levanta-se abruptamente, ignora a dor que o
gesto despertou no seu abdómen e contrai as maxilas;
caminha até à janela, onde permanece encostado, de
músculos tensos. Ignora o Anjo, a poucos metros dele, e
olha para o horizonte.
— Amanhã, informo-te de tudo o que precisas de saber.
Por todos os deuses, o Carter confia em mim ao ponto de
colo­car nas minhas mãos a sua cidade e a segurança dos
seus homens!
Abro a boca, atordoada, e arvoro um sorriso. Fico feliz por
me tornar útil e, estranhamente, não tenho medo. Estou até
animada.
— Bem. Quais são as suas condições para a minha
mudança? Não quero cair numa armadilha.
— Até que o assunto esteja resolvido, dormes cá. Vais às
aulas com um segurança. Se não voltares para casa logo
após as aulas, avisas-me e serás escoltada. Nada de saídas
às escondidas. E não tentes dar a volta ao teu guarda-
costas, caso contrário retiro-te da negociação.
— Percebido.
O Carter sorri, satisfeito. É a primeira vez que
conseguimos chegar a um acordo. Ele parece-me muito
mais simpático, de repente.
— Tenho de passar no meu quarto. Não tenho nada
comigo.
O líder faz sinal ao Anjo para voltar a entrar na sala. O
Pai do Demónio abre a porta alta envidraçada e contorna o
Clarke, em guarda, não vá o afilhado do Carter decidir soltar
a raiva sobre ele.
— Leva a Avalone à residência. E, Clarke, antes que digas
o que quer que seja, ficas aqui a recuperar. Não é
negociável.
De frente para o jardim, o interlocutor não responde nem
move uma pestana.
Saio da mansão com o Anjo. Ele respira aliviado quando
lhe passo as chaves do carro e saímos do rancho.
— Nunca esperaria que o Carter te desse o seu aval —
confessa. — És corajosa.
Como é que ele...?
— Sei fazer leitura labial.
Está tudo explicado.
— Não é coragem. Quero impedir que os Filhos do Diabo
sejam mortos. Espero que funcione.
— O Carter é a pessoa mais difícil de convencer. Se ele te
deu ouvidos e consentiu, é porque deve ver em ti algo
surpreendente. Esperemos só que ele não queira largar as
chamas do teu olhar sobre os nove mundos.
Desato-me a rir e abano a cabeça.
— É mesmo isso que vês em mim?
Ele tira os olhos da estrada para me observar, com
aquele medo que parece invadi-lo sempre que me olha nos
olhos.
— Avalone, nas tuas íris... vejo dançar as chamas do
Ragnarok, não tenho dúvida!
— Como podem ser supersticiosos, vocês, pagãos...
Ele permanece em silêncio, perdido em pensamentos, e
eu evado-me para os meus.
— Porque traíste os Filhos do Diabo?
A minha pergunta trá-lo de volta à realidade e apanha-o
de surpresa. Hesita em responder, simplesmente por não
saber como formular os seus pensamentos.
— Tomei muitas decisões erradas na minha vida. Eu
estava com os Filhos do Diabo, mas queria sempre mais.
Sabia que, com eles, o Clarke continuaria a ser o afilhado do
Carter. Então, os Pais do Demónio ofereceram-me melhor.
Muito melhor do que o que o Carter poderia oferecer-me. E
eu aceitei sem hesitar. Na­quela noite, traí os meus irmãos e
deixei o Clarke levar um tiro.
— Estás arrependido?
— Sim e não. Sim, porque me voltei contra aqueles que
me abriram os braços e perdi a sua amizade para sempre; e
não, por­que consegui o que queria nos Pais do Demónio: o
poder de afi­lhado. Depois, os dois gangues trabalham de
forma muito dife­rente. Sinto-me mais em casa com os Pais
do Demónio. Não car­rego com as noções de sacrifício e
honra que os Filhos do Diabo cultivam.
Aceno com a cabeça, absorta na sinceridade do Anjo.
Não é fá­cil admitir estas coisas.
Chegada ao meu quarto na cidade universitária, a Lola
ainda não voltou do restaurante com o Daniel. Pego no
telemóvel, um pouco preocupada, e vejo uma mensagem
dela.
[Não esperes por mim, durmo na fraternidade.
Liga-me se tiveres algum problema. Xoxo.]
Arrumo o portátil e preparo as minhas coisas. Levo
comigo tudo o que me ocorre, antes de me lembrar que
posso sempre passar por aqui amanhã, depois das aulas.
No caminho de volta ao carro, não nos cruzamos nem
com um gato, o que não é surpreendente, dada a hora
tardia. Atribuo a minha falta de sono à adrenalina, depois
desta noite emocionante.
— É o teu gangue que comercializa a Demónia?
O Anjo estreita os olhos, antes de franzir a testa e abanar
a cabeça.
— Ah não, não, não! Sei onde queres chegar, mas vai
sonhando!
Não tenho tempo para lhe responder, já ele se está a
meter no veículo. Entro também, coloco o saco aos pés e,
quando me viro para ele, retoma a conversa:
— Primeiro, se eu te desse o que queres, o Clarke
esfolava-me vivo. Depois, o Carter cortava o que sobrasse,
com a ajuda de to­dos os Filhos do Diabo. Segundo, tens uma
doença cardíaca e a Demónia é mesmo aquilo que deves
tomar se quiseres esticar o pernil. Terceiro, tens uma
negociação para conduzir, e isso dava cabo de tudo, porque
ia pôr-te nas nuvens. Quarto, o Clarke matava-me!
Aperto os lábios para conter o riso.
— Nunca disse que queria. Mas voltaremos a falar sobre
o as­sunto depois da negociação.
— Tu estás-te nas tintas para mim? Ouviste o primeiro,
segun­do e quarto?
— Sim. É por isso que voltaremos a falar no assunto.
Ele tem razão em todos os pontos e eu não pretendo
consumir Demónia. Só que tenho para mim mesma que, se
eu estiver numa situação extrema, em que os comprimidos
já não resolvem nada, ela pode muito bem salvar-me a vida.
Dado o mundo em que me movo, não tenho ilusões.
Cercada pelos Filhos do Diabo, sinto-me segura; mas, ao ver
o Clarke ferido, percebi que não é invencível. Um dia, a
Demónia pode fazer a diferença.
Depois de agradecer ao Anjo, entro em casa, recebida
pelo Carter. Continua de fato completo, às três da manhã, e
pergunto-me mesmo se dormirá com ele.
— Vem, vou levar-te ao teu quarto.
Viramos pelo corredor à esquerda, o que não leva ao seu
escri­tório, e caminhamos longos metros para chegar à sala
cor de mal­va. Da última vez, não reparei na porta da casa
de banho. Hoje, está aberta de par em par, com uma
banheira de canto e uma ca­bina de duche. Por todos os
deuses!
Não mostro, mas mal posso esperar para desfrutar de
todo este luxo.
— Se precisares de alguma coisa, a Maria, a empregada,
ocupa o quarto ao lado da cozinha. O Clarke está no quarto
aqui em frente e eu durmo na outra ponta da casa. Fica à
vontade.
Sorri educadamente e desaparece. Pouso a minha mala
na cama e meto-me na casa de banho, para aproveitar
plenamente a banheira com jatos de massagem. Com a pele
das mãos já enruga­da, lavo-me, passo-me por água e seco-
me. Enfio uma camisa e calças de seda a fazer de pijama, e
saio do quarto. A mansão está silenciosa, apenas a luz da
cozinha está acesa, do outro lado do átrio.
Bato à porta do Clarke, antes de entrar. Está deitado na
cama, com os olhos fixos no teto, com as mãos atrás da
cabeça, como se estivesse à minha espera.
Tento não pensar na força dos seus músculos, nas veias
que percorrem os seus antebraços, nos seus lábios carnudos
e na ca­beleira negra desordenada em que sonho passar os
dedos.
— Como te sentes?
— Nunca devias ter feito aquela proposta ao Carter.
Não olha para mim e continua com os olhos colados no
teto. Vou até à cama e sento-me a seu lado, esperando que
não me repudie.
Põe finalmente os olhos em mim, eu perco-me por longos
segundos...
— Vai correr tudo bem.
Ele ri amargamente e rompe o contacto visual. Contudo,
per­manece relativamente calmo.
Preciso do seu apoio, para esta intervenção. Sinto
necessidade de ele me entender, de me ajudar, de me dar
conselhos e de me tranquilizar, porque sei que nada disto é
isento de riscos. Só que nunca poderei ficar com eles
enquanto tiver consciência de que a sua vida é apenas
sangue e morte e que eles não fazem nada para resolver
isso.
— Tu não te apercebes do perigo.
— Claro que sim — suspiro. — Mas recuso-me a vê-los
morrer um a um. Portanto, se acho que posso impedir isso,
faço-o.
O Clarke endireita-se, de novo irritado. A calma durou
pouco. Esqueceu, obviamente, que levou um tiro, porque
põe-se a andar às voltas. Obcecado pela sua fúria, tem os
ombros a crispar-se de dor, sem sequer se aperceber.
— Deita-te, por favor.
Vira-se para mim com tanta brusquidão que deveria
berrar, aflito. Mas não. A raiva abafa-lhe todos os sentidos.
— Basta uma fração de segundo para seres morta. Vai
haver uma dúzia de tipos armados da cabeça aos pés e, se
eu respeitar o nosso acordo, nem estarei lá para te
proteger!
— Os rapazes vão estar lá... O Anjo pode apoiar-nos
também.
Solta um riso nervoso e levanto-me para ficarmos frente
a frente.
— Sei que o detestas, mas seria mais outro homem ao
nosso lado! Vai correr tudo bem...
— Tu confias nele? Ele já nos traiu uma vez, recordo-te!
Não me atrevo a dizer-lhe que sim, que confio no Anjo.
Mas ele entende isso pelo meu silêncio. Estarrecido, não
sabe o que dizer. Acima de tudo, acho que é obrigado a
engolir a pílula. Fe­cha as pálpebras e belisca a cana do
nariz.
— Nunca devias ter vindo para esta universidade. Tinha
sido melhor ficares em casa.
O seu tom é duro e as palavras magoam-me, mas não
pestane­jo e engulo a minha dor.
— É mesmo isso que tu pensas?
— Claro que sim! O Carter integra-te num mundo que
não é para ti! A tua benevolência e ingenuidade levarão à
tua perda.
Recomeça com as idas e vindas pelo quarto, passando
nervo­samente as mãos pelo rosto, depois pelo cabelo.
— Ouve — retoma, com voz calma, mas cortante. — Tu
mereces mais do que preocupar-te ou pores-te em perigo
por nossa causa. Vai para casa e nunca mais voltes, ouves-
me?
As suas palavras ressoam na minha mente e ferem-me
ainda mais, embora eu saiba que ele está a dizer isto a
pensar no meu próprio bem. Mesmo assim, não irei embora.
Nunca os abando­narei. O Carter quis introduzir-me nos seus
negócios? Pois, vão ter de lidar com a minha teimosia e
determinação.
Caminho lentamente em direção ao Clarke e paro a
poucos metros dele.
— Não me importo se me voltares a repudiar mais uma
vez e outra e outra: não vou fugir. Vais ter de confiar em
mim.
Dirige-me um olhar perturbado e começa a caminhar
perigo­samente na minha direção, a passos largos,
quebrando a distância de segurança que eu tinha
estabelecido entre nós. Instintivamente, recuo, mas ele
continua a aproximar-se. Vejo-me rapidamente encurralada
contra a parede, mas ele não para até a sua mão di­reita
pousar ao lado da minha cabeça.
O meu coração bate furiosamente. Esta proximidade
enlouquece-me. O rosto dele está muito perto do meu e
perco-me nas suas íris. Desejo-o como nunca desejei
nenhum homem, e isso as­susta-me. Aterroriza-me.
Põe uma madeixa do meu cabelo para trás da minha
orelha e causa-me um frémito que não escondo. O tempo
parece parar, quando o seu olhar desce sobre os meus
lábios. Um olhar cheio de luxúria, mas também de
proibições que ele impõe a si mesmo.
— Devias voltar para o teu quarto, antes que eu perca
total­mente o controlo — murmura.
Gostava que ele se deixasse ir, mas não assim. Não
quando tem dúvidas e se reprime.
Ponho-me em bicos dos pés para lhe dar um beijo na
boche­cha. Ele vacila.
— Espero que um dia consigas libertar-te de todas as
correntes que te mantêm prisioneiro.
O seu tronco imobiliza-se e prende a respiração. Ponho as
mãos nele para o obrigar a recuar alguns passos e me
libertar. Sem olhar para trás, saio do quarto e fecho a porta
atrás de mim. E fico sozinha no meio deste gigantesco
corredor.
Recupero o fôlego e encosto-me à parede. O Clarke não
devia agradar-me. Não a este ponto. E, no entanto, é o que
se vê. Nem sei dizer porquê. Não é que tivéssemos
partilhado momentos magníficos. Não falamos durante
horas sem dar por o tempo pas­sar, não rimos por tudo e por
nada. Aliás, adoro o seu silêncio e ainda mais os seus
sorrisos, tão raros.
O cansaço abate-se brutalmente sobre mim, escancaro a
boca num bocejo, atravesso o corredor para ir à cozinha e
surpreende-me encontrar uma mulher de avental. Foi a
mesma que me abriu a porta, na receção do Carter aos
membros do tratado. Deve ser a Maria.
— Precisas de alguma coisa, minha linda? Uma tisana?
— Não quero dar-lhe trabalho.
Afasta as minhas palavras com a mão e propõe que me
sente na ilha — o que aceito —, antes de se atarefar,
assobiando baixi­nho. Tem rugas, mas parece transbordar de
energia, mesmo a meio da noite.
Liga a chaleira elétrica e tira a loiça, depois o açúcar.
Coloca tudo na minha frente, com os meus agradecimentos,
e despeja água quente na minha chávena.
— O que é que te corre mal, minha querida?
— Os meus sentimentos estão provavelmente a conduzir-
me para um amor impossível — respondo, perdida nos
pensamentos.
A Maria senta-se ao meu lado e coloca a mão sobre a
minha, para me reconfortar.
— No amor, não há impossíveis. Sê paciente, às vezes
indife­rente, e o impossível torna-se possível. É uma frase
que li na In­ternet, de um jovem com o pseudónimo de
Maxalexis.
Olho para ela, com a testa ligeiramente franzida, e
pondero as suas palavras.
— Tu tens uma beleza rara e o teu coração é puro. O
Clarke não vai conseguir lutar por muito mais tempo.
Fico parada, atordoada. Como sabe ela do Clarke?
Ri do meu olhar intrigado.
— As paredes têm ouvidos.
Desato-me a rir, de boca fechada.
Levo a chávena aos lábios e bebo uns goles, enquanto a
Maria volta ao trabalho. A sua presença é tranquilizadora,
nesta gigan­tesca mansão, inanimada a esta hora. Quando
termino a minha bebida quente, lavo a loiça e coloco tudo
no escorredor.
— Obrigada pelo chá e pelos conselhos. Boa noite para
si!
— Boa noite para ti também, Avalone.
Sorrio-lhe e dirijo-me para a saída, imaginando o que
poderia ter levado esta senhora de idade a trabalhar para
um líder de gangue.
Ainda não passei a porta e algo cai ao chão atrás de
mim.
— Por Odin, a velhice não me ajuda nada!
Fico paralisada e, lentamente, viro-me para a Maria.
Não é possível... neste ponto, tem de ser
necessariamente uma conspiração!
— Como é que toda a gente que rodeia o Carter acredita
em Odin? Ele converte todos ao seu redor ou seleciona-os
pela religião?
Ela arvora um sorriso travesso.
— Ninguém tem a resposta, senão ele.
Franzo a testa, intrigada.
— Nunca ninguém lhe perguntou?
— Pois, tu também não lhe perguntaste... Acho que todos
pre­ferimos acreditar que foram os deuses que nos uniram
por um bom motivo. É essa a magia da ignorância.
27 Na mitologia nórdica, Mímir é o deus da sabedoria.
Decapitado pelos deuses Vanes após a guerra entre estes e
os deuses Aesir, Odin ressuscitou a sua cabeça, para manter
o acesso ao seu conhecimento.
28 Uma das quatro casas mágicas da escola de feitiçaria
de Hogwarts, na saga de Harry Potter, de J. K. Rowling. (N.
da T.)
Capítulo 20

A Maria acordou-me pela manhã, para tomar o pequeno-


al­moço com a Kate, e o Carter passou de corrida. A situação
é bas­tante estranha, mas aprecio verdadeiramente esta
mulher. É mui­to delicada e tem a sabedoria de um
antepassado. O que me im­pressionou foi a sua capacidade
para descortinar o bem em cada pessoa, mesmo em
cabrões do piorio. É advogada, especializada em direito
comercial e societário. Adora o seu trabalho e passa a maior
parte do tempo em viagens de negócios. Gostava de ter tido
filhos, infelizmente a esterilidade frustrou-lhe os planos. É
por isso que, quando está presente, é muito dedicada aos
Filhos do Diabo.
O Jesse vem-me buscar, para me levar para a
universidade. Até participa das minhas aulas, para grande
satisfação dos outros alunos do primeiro ano. Eu que achava
que não ia apreciar ter um guarda-costas, passei uma
manhã incrível a rir.
Os deuses sejam louvados, quando os rapazes saíram
ontem à noite, foi apenas um falso alarme. Voltaram
depressa, para dormir.
O Jesse deixou-me há dez minutos, altura em que o
Tucker e o Sean o substituíram. Estão a vigiar a cerca de
vinte metros de mim e das minhas amigas. Sorrateiramente,
observam tudo em redor.
Não vejo o Clarke desde ontem. Quando saí do rancho,
esta manhã, o Ethan estava a chegar para lhe mudar o
penso. Pensan­do nisso, pego no telemóvel, para enviar uma
mensagem ao doentinho.
[Que tal correu
a consulta médica privada?]
Pouso o aparelho, que vibra imediatamente. Um sorriso
flores­ce nos meus lábios.
[Muito bem. O Ethan disse que
já posso sair da cama.]
[Mentiroso.]
[Aliás também deixou
uma garrafa de álcool para ti,
para o caso de eu tentar fugir
esta porra deste pardieiro.
PS: Acabei de a emborcar agora mesmo.]
Com os olhos arregalados, dígito a minha resposta.
[Ainda só é meio-dia...]
[Não posso permitir este tipo de táticas de
pressão.]
[Eh! Fizemos um acordo!]
[Obrigado por me lembrares do meu infortúnio.]
Contenho o riso e mando-lhe um coração sorridente.
— Podemos saber o que te põe tão esfusiante? —
pergunta-me a Aurora.
As minhas amigas fazem uma pausa na conversa e
observam-me as três com curiosidade.
— Ninguém me põe esfusiante. Estava apenas a falar
com o Clarke. Teve... um problema, ontem à noite. Estava só
a saber no­vidades dele.
— O que estás a esconder-nos? — pergunta a Lola. — Fui
ao nos­so quarto antes da aula e tu não estavas lá!
— E um membro dos Filhos do Diabo esteve na nossa
aula toda a manhã — acrescenta a Emily.
As minhas três amigas exibem sorrisos triunfantes,
sabendo muito bem que me desmascararam, e sou
obrigada a satisfazer a sua curiosidade.
— Muito bem... — suspiro. — Mas prometam que não
falam dis­to a ninguém! A ninguém! Nem mesmo ao Daniel e
ao Jackson!
— Prometido! — respondem em coro.
Olho para elas por uns segundos, hesitante, e, de
seguida, or­deno na minha cabeça as informações que lhes
posso revelar e as que tenho de manter em segredo.
— Vou ficar em casa do Carter nos próximos dias.
As raparigas deixam cair o queixo, mas eu continuo.
— Houve um pequeno problema com um gangue, por
isso vou dormir no rancho, por precaução.
A Lola faz uma bola do saco plástico que trazia a salada.
— Ava, tens de deixar os Filhos do Diabo!
— Não é assim tão simples...
— Ai é, sim, vais ver!
Põe-se em pé de um salto e caminha decididamente em
dire­ção ao Tucker e ao Sean. Apanho-a facilmente.
— Lo, para!
Ela volta-se para mim, furiosa com a terra inteira.
— Eles precisam da minha ajuda e eu tenho um plano!
Ela olha fixamente para mim e cruza os braços.
— Que plano?
Faço uma careta. Ela não vai gostar da resposta, mas eu
confio nela.
— É uma guerra de territórios. Propus ao Carter ser o seu
por­ta-voz, para negociar um tratado de paz com o gangue
adversário.
Começa por ficar atónita, depois a fúria gela-lhe o belo
rosto. Agarra-me pelos ombros e sacode-me em todas as
direções.
— Pela Yggdrasil! Pelos nove mundos! Por todos os
deuses! Pela porra da Bifrost29 e pela puta da Hela!
Afasto-a devagarinho, antes de pegar no seu rosto, para
a acalmar.
— Quero evitar violência. Não me vai acontecer nada, os
rapa­zes vão estar presentes. Talvez consiga parar isto que
está a acon­tecer e, ao mesmo tempo, evitar que o teu irmão
se magoe.
Sei que estou a ser manipuladora, ao falar sobre a
segurança do Set, mas essa negociação é muito importante
para mim e não é a Lola que se vai meter no meu caminho.
Ela não diz nada e apenas me fita. Lê nos meus olhos a
deter­minação e a teimosia, por isso suspira e acena com a
cabeça.
— Está bem.
Sorrio e levo-a de volta para o pé das raparigas, para
acabar­mos de comer tranquilamente.
Quando me dirijo com a Emily para o anfiteatro, para a
nossa próxima aula, a assistente do reitor informa-nos que
foi cancela­da. A proposta do Jackson de irmos para o Lago
Whitmore rapi­damente cai por terra, quando o Sean
aparece e me recorda das minhas obrigações: preparar-me
para a negociação. Declino o passeio com os meus amigos,
e saio com o Diabo, de volta para o rancho.
Uma vez estacionados, entramos na mansão.
— Sabes que não és obrigada...
Olho para o Sean, sem entender onde quer chegar. Para
na mi­nha frente, com um ar sério.
— ... a tratar da negociação. Ainda vais a tempo de
desistir.
Sorrio-lhe com ternura e passo-lhe a mão pelo braço, em
sinal de afeição.
— Prefiro saber-vos vivos.
— Lopez! Terá vossa excelência por acaso alguma
simpatia pe­los Filhos do Diabo?
Rio-me do seu olhar derretido, que tenta esconder,
provocan­do-me.
— Devo admitir, gosto muito de vocês. Dito isto, a minha
repu­tação sofreria um grande abalo, portanto, guarda
segredo.
— Mmmh... Oh, vou chorar — diz uma voz atrás de mim,
que eu reconheceria entre milhares.
Volto-me para o Clarke, com o seu sorriso zombeteiro.
Miro-o atentamente, para detetar fadiga ou dor, mas o
afilhado do Carter parece novamente invencível.
— Pois é, Clarke, as pessoas têm um coração. Posso
explicar-te o que significa ter um, se quiseres.
Ele leva as mãos ao peito e finge um olhar ferido. É a vez
de o Ethan aparecer na entrada, com um grande sorriso nos
lábios.
— Gostaste do meu humor? — pergunta.
A conversa que tive com o Clarke através de mensagens
vem-me à mente.
— Se estás a falar sobre a garrafa que deixaste no meu
quarto, muito!
— É nestes momentos que tenho pena de ser gay. Não
me im­portaria nada de te saltar para cima, se fosse capaz
de ficar teso diante de uma chavala.
Engasgo-me, bruscamente. Não por ficar de repente a
saber que o Ethan é gay, mas porque ele admite que, se
não fosse, gos­taria de me saltar para cima.
O Ethan e o Sean riem da minha expressão. O Clarke não
acha graça. O seu rosto é inexpressivo, como se assistisse a
uma con­versa que não lhe interessasse. No entanto, depois
de o conhecer­mos, percebemos que é outra coisa
completamente diferente: está fulo.
— Ah! Desculpa, mano, és tu que a andas a comer? —
pergunta o cirurgião.
O badboy fulmina-o.
— Ninguém me fode! — intervenho.
— És virgem? — pergunta o Ethan.
— Pois, na verdade, não! Nenhum de vós terá a honra de
me tirar a virgindade. Nem a venderia por uns milhares de
dólares!
Ao lançar essa insinuação de que seriam capazes de
vender a minha castidade, o Clarke deita-me um olhar
pouco cómodo.
— Como foi? — pergunta o Sean.
Os olhos saltam-me das órbitas. Não sou especialmente
pudi­ca, mas é uma questão pessoal. E não pouco! Pergunto-
me se está realmente à espera de resposta, mas a sua
expressão confirma-me que está muito a sério.
Por Freia...
— Digamos que não foi tão doloroso como eu pensava,
até que percebi que ele se tinha enganado no bur...
O Ethan e o Sean desatam a rir e eu amaldiçoo-me por
ser tão ingénua.
— Estavas a gozar comigo, certo?
O Sean confirma com a cabeça, entre duas fortes
gargalhadas, mas o Ethan dobra-se ao meio, sem conseguir
recuperar o fôlego. O Clarke vira a cara para longe e aperta
os lábios para conter o riso, com os olhos ainda atónitos de
surpresa.
— Como foi isso?
— Cala a boca, nunca mais me apanhas noutra!
As piadas secas redobram e eu deixo-me ficar imóvel,
feita parva, à espera que acabem de assimilar que a minha
primeira vez foi catastrófica.
É a chegada do Carter, com o seu eterno fato completo,
que põe fim às provocações dos rapazes. Quando nos
pergunta o mo­tivo de tanta boa disposição, exclamamos em
uníssono:
— Nada!
Olha-nos fixamente, desconfiado, e eu inclino a cabeça,
morta de vergonha.
— Bem, então podemos começar.
Aliviada, sigo o Carter até ao salão, onde me sento num
sofá, tal como os rapazes. A diversão ficou bem lá para trás.
Agora co­meçam as coisas sérias. O boss fica de pé, à nossa
frente.
— Os Reis da Lei vêm de São Paulo, Brasil.
Abstraio-me de tudo ao meu redor e ouço com atenção.
— São compostos por nove membros. São superiores a
nós quantitativamente, e é por isso que o Ethan, os Pais do
Demónio e os Anjos Negros estarão presentes, ao teu lado.
Assim, haverá vinte e um tipos a cobrir-te, mas os nossos
dois aliados ficarão no exterior e só terão ordem de intervir
se um dos Filhos do Diabo disser a senha. Para isso, terão
todos auriculares. Se os nossos confederados entrarem,
Avalone, tu sais o mais depressa possível,
independentemente do que esteja a acontecer.
Então é para isto que servem aqueles acordos. Os Filhos
do Di­abo são poucos, o Carter não precisa de mais homens
para os seus negócios. Em compensação, quando as coisas
se complicam, re­corre à Aliança.
— Voltando aos Reis da Lei, eles cobiçam o nosso
território por uma história com raízes no passado. Os seus
antepassados migra­ram para cá, mas tiveram de fugir do
Michigan por razões judici­ais. Agora, o líder, Lucas, decidiu
que estava na hora de voltarem para Ann Arbor. Aceitam,
apesar de tudo, uma reunião. Sou eu quem vai determinar o
local do encontro, no último minuto, para que não tenham
oportunidade de organizar uma emboscada. Des­locam-se
de mota. Se aparecerem de carro, vocês piram-se o mais
depressa possível. Quando te virem, não te vão levar a
sério. Ar­ranja qualquer coisa para te impores e fá-los mudar
rapidamente de opinião. O inglês deles não é perfeito. A
barreira linguística não deve constituir um obstáculo à
negociação. Tens de usar pala­vras simples e de captar toda
a sua atenção, porque, se eles perde­rem a paciência,
desatam aos tiros. Soube que o seu fornecedor de armas é o
Mike Arinson. Podes fazer bluff e dizer-lhe que o Mike está
do nosso lado e que seria lamentável se o virassem con­tra
eles.
Uma chamada interrompe-o e solta um palavrão, quando
des­cobre o autor da chamada.
— Já venho.
Atende e sai da sala, enquanto eu suspiro e me aninho
contra as costas do sofá. Pode ser mais complicado do que
eu pensava. Não imaginava que estivessem tão pouco
abertos a dialogar. Não formam obviamente um gangue tão
moderno como o do Carter. São... primitivos.
— Ainda podes mudar de ideias — sussurra-me o Clarke.
Olho para ele, com uma cara séria.
— Não, não posso. E não quero.
— Vai correr tudo bem, mano — sossega-o o Ethan.
O Clarke prepara-se para vociferar, quando o Carter
reaparece.
— Tenho de sair. Retomaremos isto mais tarde.
Pega no casaco do fato, pousado no cadeirão preto, e
desapare­ce. O Sean e o Ethan levantam-se atrás dele e,
depois de nos dese­jarem uma boa tarde, saem de casa. Fico
sozinha com o Clarke.
Sentado a um metro de distância de mim, vira a cara na
minha direção.
— Nada vai mudar a tua opinião?
— Nada.
Passa nervosamente as mãos pelo cabelo, um gesto que
faz muitas vezes quando uma situação não lhe agrada e não
tem con­trolo sobre ela.
— Esta merda vai dar comigo em doido.
Levanta-se sem gemer de dor e sai para o jardim pela
porta alta envidraçada do salão. Vou dar com ele, em frente
da piscina, com um cigarro na boca.
— Não vamos ter a mesma discussão de ontem à noite,
Clarke.
Gostaria que a minha voz fosse tranquilizadora, mas trai
o aborrecimento e a perda de paciência.
Ele vira-se para mim, zangado.
— Sim! Enquanto não tiveres deixado este pardieiro de
merda para a negociação, farei tudo o que estiver ao meu
alcance para te fazer mudar de ideias!
— É tarde demais, os outros contam comigo!
— Mas tu não medes os riscos! Ao menor erro, estás
morta! Eles são imprevisíveis!
— Não vou cometer nenhum erro.
O Diabo ferve de raiva e dá uma passa profunda no
cigarro. Contudo, estou determinada. Não vou mudar de
opinião, ele vai ter de se adaptar à ideia.
— Vou no teu lugar.
— O quê? Não! Nem pensar! Eu sou o elemento de
surpresa, Clarke, eles não esperam confrontar-se com uma
mulher. Vou conseguir e tens de acreditar um pouco mais
nas minhas capacidades!
Ele olha para mim com tanta raiva que, há alguns dias,
eu teria dado um passo atrás. Hoje, aguento e defronto-o.
— Não é em ti que eu não acredito, é neles que eu não
confio. Tu és uma inconsciente!
— Se achas que não estou morta de medo...
A minha voz cede e a expressão dele suaviza-se. Com a
testa ligeiramente franzida e a boca entreaberta, o Clarke
aproxima-se de mim e, para meu espanto, abraça-me.
Instantaneamente, as minhas dúvidas desaparecem, para
dar lugar a uma sensação de bem-estar. Ele tem um dom
impressionante para me pôr os ner­vos em franja à
velocidade da luz, mas também para me acalmar e me fazer
sentir segura.
Contra o seu corpo quente, o coração dá saltos dentro do
meu peito. Pergunto-me se estou sentimentalmente
interessada nele. Devia afastar-me imediatamente, para não
cair ainda mais sob o seu encanto destruidor, só que isso é
impossível. Sinto-me atraída por ele como um íman, embora
esteja consciente de que vai cau­sar a minha perda.
Ele desliza os dedos pelo meu cabelo e aperta o abraço.
Fecho os olhos e entrego-me à sensação reconfortante do
seu corpo. Mas depois larga-me sem mais.
— Espera aqui por mim!
Entra em casa e desaparece; passa pouco tempo, e
regressa com a sua pistola. Mostra-ma e recuo uns passos,
perdendo pro­vavelmente toda a cor do rosto.
— Ah, não!
— Sim. Tens de saber usá-la, para o caso de...
— Clarke, eu...
Interrompe-me, colocando a arma na minha mão.
Esta porcaria pesa que se farta!
Sem me dar tempo para me livrar dela, o Clarke
posiciona-se atrás de mim e estica os meus braços para a
frente. Eis-me arma­da com um revólver, mirando não sei o
quê. As suas mãos agar­ram as minhas e orientam o calibre
para um vaso pousado sobre a mesa exterior. No entanto,
não consigo pensar em nada que não seja o seu tronco
poderoso colado a mim, o calor que o seu corpo emite e a
sua respiração contra a pele sensível do meu pescoço.
— Retiramos a trava de segurança — sussurra no meu
ouvido.
Não estou tão focada como devia para este tipo de lição.
Orienta o meu polegar para um pino que eu aciono e, de
re­pente, a ideia de disparar, com a cabeça ocupada a
imaginar o Clarke a encostar-me a uma parede e a beijar-me
selvaticamente, parece-me muito descabida.
— Miramos... e disparamos.
Aplica pressão no meu dedo indicador, que
imediatamente puxa o gatilho, e uma bala escapa-se com
um estrondo tão pode­roso e ensurdecedor que sinto o meu
cérebro a estourar. No mes­mo segundo, o vaso localizado a
cerca de vinte metros de distân­cia explode em mil pedaços
e saltam cacos para todo o lado nas imediações.
O meu coração bate violentamente, as mãos começam a
tre­mer, os ouvidos apitam sem parar e o meu olhar
permanece fixa­do no lugar onde o objeto decorativo estava,
alguns segundos antes.
Com gestos suaves, o Clarke recupera a arma e os meus
braços caem sem força ao longo do corpo. Não consigo
mexer-me, choca­da. Não tenho nem uma gota de adrenalina
dentro de mim, estou apavorada com o poder e a
perigosidade de uma arma de fogo.
— Detesto isto — sai-me, num só fôlego.
O Diabo põe as mãos nas minhas ancas. Os dedos
afundam-se na minha carne, trazendo-me gradualmente de
volta à realidade. Estou novamente consciente da sua
presença atrás de mim. Quando os seus lábios afloram a
minha orelha, inspiro brusca­mente, antes de prender a
respiração. Uma onda de calor passa sob a minha pele, o
meu coração bate demasiado depressa e já não tem nada
que ver com a arma. Os seus dentes mordiscam o meu
lóbulo e ameaçam acabar comigo. Sinto-me febril e as mi­‐
nhas pernas estão demasiado moles para me apoiar nelas.
A respiração de Clarke torna-se acelerada. Ele tenta
controlar-se, inalando profundamente no meu pescoço, o
que não parece ter o efeito desejado. Os seus dedos
afundam-se um pouco mais e os seus lábios começam a
devorar a minha garganta, eletrizando o meu corpo.
Ofegante, arqueio as costas para trás.
— Porra, Avalone...
Um som surdo escapa-lhe da boca, põe as mãos nos
meus qua­dris e faz-me girar para me pôr de frente para si.
O seu olhar ar­dente de desejo tira-me o fôlego. No entanto,
o seu sorriso malici­oso levanta-me uma suspeita.
De repente, o Clarke empurra-me. Perco o equilíbrio e
vejo-me dentro de água. A surpresa e a temperatura mais
fria da piscina têm, pelo menos, o mérito de pôr de novo as
minhas ideias no lugar.
Bato os pés e, quando volto à superfície, deito um olhar
furi­bundo ao Clarke.
— Filho da mãe!
— Desculpa. Tinha de acalmar os teus ardores.
Arqueio as sobrancelhas, escandalizada, enquanto a
diversão se manifesta nos lábios dele.
— Os meus ardores? Tu é que estás todo apertado dentro
das calças, não eu!
Ele olha para as virilhas e põe um ar chateado.
— Pois... Bem, vá, sai da água.
Estende-me a mão, que fito com desconfiança. Vai
mesmo aju­dar-me a subir ou vai soltar-me logo a seguir,
para que eu caia de novo à água?
— Não confias em mim?
— Não é uma questão de confiança. Só gostava de saber
se já satisfizeste o teu desejo de me provocar ou ainda não.
O seu ar alegre dá lugar a uma grande seriedade.
— Se te estendo a mão, acredita, não é para te largar.
Não sei se é o seu olhar intenso ou as suas palavras, mas
o meu coração acelera. Sem hesitar mais, agarro a sua mão
e o Clarke puxa-me para fora da piscina.
No entanto, não esqueço que, se estou encharcada da
cabeça aos pés, a ele o devo. Se não tivesse sido suturado,
empurrava-o eu.
— Vou vingar-me.
— Mal posso esperar!
O seu sorriso arrogante dá-me vontade de lho fazer
engolir de muitas maneiras, mas o telemóvel dele toca e
corta-me as fantasi­as. Atende sem tirar os olhos de mim,
enquanto eu me debato com os meus sapatos encharcados.
— O quê?
Faz uma pausa e a diversão desaparece do seu rosto.
Endurece abruptamente. Já não penso nas minhas roupas
encharcadas ou na carícia dos seus lábios no meu pescoço.
Algo não está a correr bem e, dada a situação, já espero o
pior.
— Vou imediatamente.
Nervoso, desliga e anuncia:
— O Set está metido numa alhada.
Dá meia-volta, sem a menor explicação. Para os Filhos do
Dia­bo o chamarem a pedir ajuda, sabendo que ele está
ferido, deve ser urgente. A ideia de estarem numa má
situação ou mesmo em perigo de morte dá-me um nó
doloroso no estômago.
— Clarke!
Ele vira-se para mim, apressado e preocupado.
— Ava, é o Set...
— Eu sei. Trá-lo de volta. Trá-los a todos de volta. Mas
volta também tu. E de preferência sem ser a sangrar.
Um sorriso aparece-lhe ao canto dos lábios. Abre a boca
para dizer qualquer coisa, antes de mudar de ideias. Em vez
disso, pis­ca-me o olho e desaparece dentro de casa.
Terrivelmente preocupada, peço a Thor, o mais poderoso
dos deuses guerreiros, que os traga de volta em segurança.
Depois, o Carter imporá uma negociação e eu deixarei de
me sentir impotente.
Solto um longo suspiro e as minhas pernas conduzem-me
aos cacos de vidro e bronze, últimos vestígios do vaso.
Agacho-me para apanhar os pedaços maiores e corto um
dedo.
— Merda! — sai-me.
Pressiono a ferida para estancar o sangue e volto para
dentro de casa, espalhando gotas pelo caminho. Preparo-me
para tirar os sapatos encharcados, quando a Maria aparece
no arco da parede, carregada de sacos de compras.
— Pela barba de Odin! Avalone, está tudo bem?
Olha para o meu dedo ensanguentado e deixa cair as
compras, que se espalham pelo chão. Atravessa o salão a
correr para vir ter comigo, com uma ruga de preocupação
na testa.
— Não se preocupe, é apenas um pequeno golpe.
Ela agarra-me na mão, sem medo de se sujar e examina
a ferida.
— Precisas de levar pontos.
— Não, garanto-lhe, está tudo bem!
— Entra!
Agarra-me delicadamente pelo braço e puxa-me para
dentro de casa, sem se preocupar com o rasto de água que
deixo atrás de mim. Leva-me para a cozinha e faz-me sentar
numa das cadeiras altas em frente da ilha. Envolve o meu
dedo num pano limpo e sai. Volta, coloca compressas,
adesivo e desinfetante em cima da superfície de mármore, e
cobre os meus ombros com um cobertor.
— O que aconteceu?
Retira delicadamente o pano de cima da ferida, para a
inspecionar.
— Parti o vaso lá de fora.
— As Três Graças de Bacará?
Fico hirta e engulo em seco. Se o vaso tinha nome, era
porque merecia ser nomeado.
E isso não é boa notícia para mim...
— Era muito caro, não era?
A Maria ri, enquanto me limpa o dedo.
— Mais caro do que imaginas. Os antiquários esfolavam-
te, se soubessem. No entanto, o Carter não te vai
massacrar. Para ele, é apenas decorativo. Vai mesmo haver
alguém que vai ficar muito contente: o Clarke achava aquilo
horrível.
Cabrão! Usou-me para fazer desaparecer uma peça que
não era do seu agrado!
— Mandei uma mensagem ao Ethan. Não deve demorar
a chegar.
— Garanto que não preciso de levar pontos.
— Não digas disparates, Avalone. Sabes, estou habituada
a ver as feridas dos rapazes, sei reconhecer as que
precisam de pontos.
Estou convencida do contrário. Só preciso de um penso.
O po­bre do Ethan vai certamente deslocar-se para nada...
No entanto, a Maria parece intransigente nesta questão.
Lança-me um sorriso tranquilizador, enrola uma
compressa em torno do meu dedo e fixa-a com adesivo.
— Vai vestir roupa quente, antes que te constipes.
Passa a mão pelas minhas costas, para me encorajar a
mexer-me, o que faço depois de lhe agradecer.
Vou para o meu quarto, deixo cair a roupa no chão e
corro para o chuveiro, tomando cuidado para não meter o
meu curativo improvisado debaixo de água. Lavar o cabelo
com uma mão não é tarefa fácil, mas, vinte minutos depois,
eis-me seca e com roupa limpa.
Espero pelo Ethan, sozinha com os meus pensamentos e
os meus receios. Vou ver o telemóvel várias vezes:
nenhuma notícia do Clarke nem de qualquer outro Filho do
Diabo. Esta expectativa, mantida na ignorância,
enlouquece-me. Ando pelo quarto e imploro às Nornas que
os mantenham vivos.
— Suplico, de corpo e alma, a benevolência das Nornas
— sussurro.
Já se passaram quarenta minutos desde que o Clarke
deixou a mansão e o ecrã do meu portátil permanece
desligado. Dou meia-volta para retomar as minhas idas e
vindas no sentido oposto.
— Suplico, de corpo e alma, a proteção de Mjollnir, o
martelo de Thor.
O meu telemóvel vibra, em cima da cama. Atiro-me a ele
tão apressadamente que o meu dedo me dá uma dor
lancinante, ao entrar em contacto com o colchão. Afinal, era
apenas uma notifi­cação no e-mail.
— GRRRRR!
— O que é que te põe nesse estado?
Volto-me para o Ethan, encostado à ombreira da porta,
com um sorriso no rosto.
— Sabes se os rapazes estão bem?
— Sim, estão bem!
Suspiro aliviada e sacudo a cabeça, enquanto solto uma
risadinha.
Caraças, para que estive aqui a cultivar uma úlcera?
Claro que estão bem, não é um gangue brasileiro que vai
derrotar os lendários Filhos do Diabo!
— Tiveste notícias deles?
— Não, nenhuma. Mas conheço-os. Estão bem.
Sinto que me cai um pedaço de chumbo no estômago.
Por todos os deuses, um gangue brasileiro pode
perfeitamen­te derrotar os lendários Filhos do Diabo!
— Se te vissem neste estado, isso afetaria os seus egos.
Vamos a isto, vem cá, vamos examinar o teu dedo, isso vai
ocupar-te a cabeça.
— Deslocaste-te à toa, não preciso de ser suturada. A
Maria exagerou.
Deve estar habituado, porque encolhe os ombros. Entra
no quarto e ajoelha-se à minha frente, para retirar as
compressas.
— Realmente, tens aqui uma naifada feia — ironiza.
Põe um foco de luz na testa e afasta suavemente os
bordos da minha ferida, para verificar se não houve nenhum
pedaço de vi­dro que se tivesse alojado ali. Abre o saco e tira
um desinfetante para limpar o corte. Fá-lo com o mesmo
cuidado com que extraiu a bala do abdómen do Clarke.
Arde, mas aguenta-se. Desenrola um penso e põe um
pedaço sobre a minha ferida. Está prestes a cortá-lo,
quando as vozes dos Diabos chegam aos meus ouvidos.
Levanto-me bruscamente e uma dor no dedo faz-me soltar
um grito.
Olho para o cirurgião, que está com ar chateado.
— És maluca, quase te amputei o dedo!
A ponta da tesoura entrou na ferida, mas o alívio é tão
intenso que não consigo deixar de rir. Queria ir ver se estão
todos bem, mas o Ethan deita-me um olhar autoritário.
Sento-me e tremelico de impaciência.
Limpa o sangue que voltou a correr e começa a cortar o
adesi­vo, enquanto eu só penso nos meus amigos.
Meus amigos? Não, não são.
Os Diabos aparecem na entrada do meu quarto, com o
Clarke à frente. Quando vê o Ethan, os olhos abrem-se de
pasmo, tal como os dos seus irmãos.
— O que é que se passa?
— Abriu-se. Tive de a costurar — mente.
O Ethan tapa a ferida. Escrutino os Filhos do Diabo. Estão
to­dos cá, sem ferimentos aparentes. Um peso imenso
escapa do meu peito, solto um longo suspiro de alívio, que
dava para fazer tremer os móveis. Estes tipos fazem-me
suar as estopinhas.
— Tu és completamente louco! — irrita-se o Clarke, que
acredi­ta absolutamente na mentira.
— Recordo-te que não devo exercer medicina. Não tenho
aces­so a anestésicos, portanto, sim, costurei-a a frio.
— Devias tê-la levado para o hospital! — censura o
Justin.
O Ethan revira os olhos.
— Relaxa, foi só uma piada! A Avalone não precisou de
pontos.
Os rapazes expressam o alívio de várias maneiras. Uns
desa­tam a rir, outros suspiram ou fecham as pálpebras.
— O que aconteceu? — pergunto, sem aguentar mais.
O Clarke enfia nervosamente as mãos no seu cabelo
revolto.
— Os cabrões dos Reis da Lei não nos largam!
— Armaram-nos uma emboscada e só desapareceram
depois de uns tiros, quando o Clarke chegou — explica-me o
Set.
Do mal o menos. No entanto, torna-se urgente pôr termo
às hostilidades, antes que ocorra uma tragédia.
— Acabei! — informa-me o Ethan.
Levanto-me e agradeço-lhe. Ele pisca-me o olho e guarda
as suas coisas.
— O Tucker devia seguir o teu exemplo — diz o cirurgião.
— Ain­da tenho os ouvidos aos apitos, por causa dos seus
gritos de ago­nia no nosso último frente-a-frente.
Os rapazes desatam a rir à gargalhada, metendo-se com
o visado.
— Berras como uma chavala! — atira-lhe o Set.
— Eu estava bêbado! É mil vezes mais doloroso do que
quando se está sóbrio — defende-se o Tucker.
O Ethan põe um sorriso de orelha a orelha. Adora
provocá-lo com isso, depois do tratamento.
— Já cozi o Clarke nove vezes estando ele bêbado. E ele
nunca gritou!
— O Clarke é outro campeonato! Ele vive anestesiado
pela raiva!
Os comentários cruzam-se em todas as direções, mas o
Tucker não se deixa picar. É o que tem de simpático e, por
isso, os rapa­zes andam sempre a dar em cima dele.
— Por falar em Clarke — atalha o Ethan —, levanta lá a T-
shirt, para ver se não infetou.
Acalmam-se todos e aguardam pacientemente o veredito
do médico, que arranca o curativo da ferida suturada. Eu
faço uma careta, mas os Diabos nem pestanejam,
permanecendo atentos. O Ethan apalpa a pele em volta da
ferida e acena com a cabeça, sa­tisfeito, antes de aplicar um
novo penso.
Os meus olhos aproveitam para passear sobre os
abdominais do motard e o que vejo está muito longe de ser
desagradável.
— Mais um pouco de repouso e vai ficar tudo bem.
Clarke esboça um tique ao ouvir a palavra «repouso» e o
cirur­gião informa-nos de que voltará amanhã.
Acompanhamo-lo à saí­da. Depois das saudações e
agradecimentos, os rapazes vão para o jardim. Eu travo o
passo ao Clarke.
Com as mãos na anca, deito-lhe um olhar severo, que o
deixa desconfiado.
— O vaso... As Três Graças.
Aperta os lábios para controlar a diversão, mas falha
misera­velmente. Perante o meu olhar dececionado, desata
a rir. Tento manter a seriedade o melhor que posso, mas
aquele som conse­gue apagar a raiva mais poderosa dos
nove mundos.
— Quanto custa?
— Queres pagá-lo?
— Se eu puder, sim.
— Bem, vais ter de vender todos os teus órgãos no
mercado ne­gro. Da última vez que foi avaliado, estava em
mais de cento e dez mil dólares.
As mãos caem-me sem força ao longo do corpo e fico
transtornada.
— Relaxa, era apenas uma mera bugiganga...
— Uma bugiganga? Clarke, aquilo vale mais do que tu e
eu juntos!
— Estás quase a ofender-me. Se soubesses quanto
algumas pessoas estão dispostas a pagar para me ter no
seu gangue, revias a tua apreciação em alta.
Coloca o braço por cima dos meus ombros, num gesto
natural, e leva-me para o jardim.
O Sean, o Jesse e o Tucker jogam futebol no relvado; o
Set e o Clarke conversam um pouco mais longe, sem camisa
e com uma cerveja na mão. Eu fico à conversa com o Justin
nos sofás ao ar livre. Já sabia que ele tinha ido viver com a
mãe para Ypsilanti e que o pai morava na Pensilvânia com a
irmã mais nova. Foi na al­tura do divórcio que a mãe teve
uma grande oportunidade em Ann Arbor e, como a
Universidade do Michigan era uma das es­colhas do Justin,
veio com ela. O pai e a irmã vêm vê-los várias vezes por
ano. Os pais mantiveram um bom relacionamento, por isso
esses são momentos muito ansiados. A mãe está ciente das
suas atividades, mas o resto da família não sabe de nada.
— Como é que ela reagiu quando soube?
Vai procurar às memórias e sorri.
— Ficou fula. Proibiu-me, mas claro que eu não obedeci.
Não era uma pessoa fácil, naquela época. Era jovem e
parvo. Reagi mal ao divórcio dos meus pais e ainda pior ao
afastamento do meu pai e da minha irmã. Quando percebeu
que os Filhos do Dia­bo me obrigavam a ser responsável e
me permitiam expulsar a minha raiva, acabou por me deixar

É
em paz. É claro que fica sem­pre morta de preocupação, mas
como já não moro com ela, não assiste às minhas incursões
noturnas e aos meus regressos por vezes ensanguentados.
Especulo sobre qual seria a reação da minha mãe, se
soubesse das minhas atividades dominicais. Ao contrário do
Justin, ela proibir-me-ia formalmente de voltar a ver estes
rapazes, indepen­dentemente dos aspetos positivos de se
pertencer aos Filhos do Diabo que alguém pudesse sugerir.
— Tu fazes-me lembrar muito a minha irmã.
Leva a cerveja aos lábios e afunda-se no sofá. Os seus
olhos, de um castanho-claro quase amarelo, enchem-me de
ternura.
— Tal como tu, ela é determinada e sabe o que quer. Não
é de rodeios e vai direta ao assunto. Não deixa que a pisem
e está sem­pre alegre. Tenho a certeza de que a ias adorar.
Ela é fantástica.
Aquece-me o coração ouvi-lo falar assim da irmã. Os
olhos bri­lham-lhe e não consegue deixar de sorrir. No
entanto, também sinto a sua dor. Ter sido separado dela e
deixar de partilhar o seu quotidiano ainda hoje o afeta.
Tanto quanto me lembro, nunca quis ter irmãos, por
causa da minha doença. Ouvi que baste o choro da minha
mãe, em segre­do, à noite, para pôr a hipótese de fazer
outra pessoa passar por isso. Uma criança deve crescer com
inocência e acreditar que tudo é possível. Ter-me como irmã,
não a deixaria ser assim.
— Então e tu? De onde és? És muito reservada para
chavala.
O Set e o Clarke vêm ter connosco e sentam-se nas
cadeiras, logo seguidos pelo Sean, o Tucker e o Jesse.
— De Madison, Indiana.
Ninguém fala, esperam pacientemente que eu continue.
— Vivia com a minha mãe. O meu pai morreu antes de
eu nascer.
— Foi a tua mãe que te criou sozinha, então? — pergunta
o Set.
Confirmo.
— Ela conseguiu dar conta de tudo? Incluindo os teus
proble­mas cardíacos? — pergunta o Tucker, espantado.
Um sorriso de orgulho surge nos meus lábios, quando
penso na força da minha mãe.
— Sim. Ela é espetacular.
— Como foste nascer com essa doença? É uma
malformação ou algo assim? — pergunta o Sean.
— A minha mãe tomou drogas quando era jovem. Parou
quan­do conheceu o meu pai e, infelizmente, quando ele
morreu, teve uma recaída. Uma única recaída, que resultou
num defeito car­díaco no feto. Fiz uma cirurgia, algumas
semanas depois de ter nascido, para reparar o coração,
mas, anos depois, diagnostica­ram-me a insuficiência
cardíaca.
A atmosfera torna-se estranha, todos mergulhados nos
seus pensamentos. A perna do Justin começa aos saltinhos,
deixando-me nervosa. É o Set quem finalmente quebra o
silêncio.
— Culpas a tua mãe?
— Claro que não! Ela tinha um histórico de drogas,
estava grá­vida, o marido morreu, deixando-a sozinha...
Tentou refugiar-se naquilo que conhecia. Sim, cometeu um
erro, mas é humana. Nunca lhe levei a mal por isso e nunca
o farei.
O ambiente esfria com estas revelações, então prossigo:
— Portanto, pelo que já entendi, para pertencer aos
Filhos do Diabo, é essencial ter uma particularidade. O
Tucker tem um ego enorme, o Sean é mais teimoso que a
conta, o Set é o maior taga­rela que o Midgard já viu, o Jesse
tem alma de não-te-rales, o Justin precisa de ansiolíticos e o
Clarke é... o Clarke. Era preciso ter uma doença para
competir.
Uma explosão geral de risos e protestos sobe tão
poderosa­mente no ar que não entendo nada do que dizem,
mas vale a pena ver os seus sorrisos. Apenas o Clarke está
ao telemóvel, e ignora-nos.
A conversa dispara em todas as direções, para chegar a
um as­sunto perigoso.
— O cabrão não vai comer a minha irmã! — enfurece-se
o Set, franzindo a testa.
É terreno minado. Mesmo assim, isso não trava os
rapazes. Têm um prazer maldoso em enfurecer o Set com o
namoro da Lola.
— Ai vai sim, mano... Ele come-a e ela adora! — provoca
o Sean.
— Cala a boca! — protesta o irmão protetor.
Vira-se para mim e espera que eu apoie as suas
palavras. Le­vanto as mãos em sinal de paz.
— Não me metas ao barulho.
— O que diz tudo! — exclama o Jesse, divertido.
Não largam o Set, que reage como um louco. É hilariante.
— É um gajo morto!
— A Lola tem vinte e um anos! — intervenho, para
acalmá-lo. — A idade de consentimento é dezasseis e a
média da primeira rela­ção sexual nos Estados Unidos é de
dezassete anos!
Manda-me um olhar furioso, antes de terminar a sua
cerveja de uma assentada.
Bem, não devia ter dito isto...
— O Daniel é boa pessoa e estão felizes juntos!
Perante os seus ares céticos, continuo:
— Já percebi que vocês têm uma infinidade de
conquistas, para darem umas rapidinhas, mas ainda devem
ser capazes de conce­ber a ideia de que há pessoas que
desejam mais.
Confirmam com a cabeça, sem grande convicção.
— Ajudem-me cá, vocês já tiveram namoradas?
— Não desde a faculdade — confessa o Tucker. —
Preferimos curtir. Sem compromissos.
— Ficaste com o coração partido, confessa.
Olha-me com um sorriso encantador.
— Ninguém parte o coração ao Tucker Ross, minha
querida. Estava a ficar sério demais para o meu gosto, só
isso.
— Assustou-se e enganou-a, para depois passar a saltar
em cima de tudo o que mexe — explica o Justin, a rir.
Dou uma palmada na nuca do Tucker.
— Grandessíssimo imbecil!
Os rapazes riem, exceto o Clarke, que continua
impassível. Não sei o que tem. Mesmo que muitas vezes
não tenha expressão, nunca ficou assim durante uma
conversa banal com os seus me­lhores amigos.
— Então e tu? A maioria dos rapazes fazem-se a ti, mas
tu não lhes prestas a menor atenção — atira-me o Justin.
Espera lá, que parvoeira é esta?!
— Estás a dizer disparates...
— Não estou nada! Ainda és mais cega do que a avó do
Tucker.
— Não te metas com a minha avó!
Desato a rir.
— Se gostas de raparigas, nós não nos importamos —
intervém o Sean. — Sempre sonhei entrar num trio com
duas lésbicas.
— Isso foi o que fizeste na semana passada — murmura
o Jesse.
— Bem sei — responde o visado, com um sorriso
perverso nos lábios.
Desmancho-me a rir com gosto. Estes rapazes não têm
remédio.
— Não sou lésbica. O meu último namorado tratava-me
como se eu fosse de porcelana. Foi um tormento. Um dia,
desmaiei em frente a ele e, quando acordei e vi o medo
estampado nos seus olhos, percebi que não queria voltar a
fazê-lo passar por isso. Des­de aí, não quero mais
relacionamentos.
— Agora, és tu a imbecil — atira-me o Set.
— Estou melhor sozinha.
Encolho os ombros, saio do sofá e ponho-me a levantar a
mesa, para não ter de aprofundar o assunto. Entro em casa
e vou à cozinha deitar as garrafas vazias no caixote do lixo.
— Isso é apenas uma desculpa.
Volto-me em sobressalto e vejo o Clarke abrir o frigorífico
e tirar outra cerveja. Interrogo-o com o olhar. Ele tira a
carica, an­tes de se dignar a dirigir-me a sua atenção.
— Tens medo de começar um relacionamento sem
poderes ter­miná-lo. O teu problema é que gostas de
controlar. Contudo, não tens nenhum ascendente sobre o
teu coração e isso aterroriza-te. Preferiste separar-te porque
ele te impedia de viver, mas não foi só por isso. Na verdade,
foste tu própria quem quis acabar acima de tudo, e não a
tua morte. Tudo isso para manteres o controlo.
Siderada, olho fixamente para ele e vou para protestar,
mas a campainha da rua toca e tira-me o tapete debaixo
dos pés.
— É para mim.
Sai da cozinha sem me deixar abrir a boca e fico
especada, ain­da atordoada com as suas palavras.
Como se atreve a pretender saber o que eu...?
E se ele tiver razão?
Um barulho surdo atrai a minha atenção na direção do
corre­dor. O que vejo bloqueia-me a respiração. Uma fulana
acaba de encostar o Clarke contra a parede e devora-lhe o
pescoço enquan­to geme.
Uma dor toma conta do meu peito, tão aguda que sinto
como se estivesse a ser esfaqueada no coração. Os olhos do
Clarke, mer­gulhados nos meus, forçam-me a ficar
impassível e não ajudam ao meu estado emocional. Sempre
a olhar-me intensamente, o corpo começa gradualmente a
corresponder ao desejo da rapari­ga. A sua respiração
acelera, o seu olhar chispa e, quando agarra no cabelo da
parceira para aproximar a sua boca da dele, quebra o nosso
contacto visual para a devorar. Desaparecem do meu cam­‐
po de visão e oiço a porta do quarto dele bater, ao mesmo
tempo que recupero a respiração.
À dor, juntam-se a raiva e o ciúme, numa mistura
explosiva. Ele, que beijou o meu pescoço de corpo e alma
há algumas horas e se proibiu de ir mais longe... Nada disto
faz o menor sentido!
Caraças, e então, porque fiquei tão afetada?
— Perseverança e indiferença, e o impossível torna-se
possível. A voz da Maria chega até mim, vinda não sei de
onde.
Rio-me sem alegria. Nem sei o que espero do Clarke. É
atraen­te, é verdade, e temos uma química que não pode ser
contestada; mas para além do físico, agrada-me
mentalmente? Seguramente que não, neste momento. Não
depois do que acabei de ver.
Espero encontrar a Maria escondida num canto da sala,
por isso volto-me. Nenhum vestígio dela.
Estou a ficar maluca!
Sacudo a cabeça, inspiro profundamente e saio da
cozinha para ir ter com os rapazes. Apetece-me refugiar-me
na minha cama, mas está fora de questão ouvir o Clarke e a
sua conquista a gemerem de prazer.
Atravesso o deque de madeira, vou até aos sofás ao ar
livre e sento-me entre o Justin e o Sean.
— Onde está o Clarke? — pergunta o Set.
— No quarto dele, com uma bela morena — respondo,
impassível.
O silêncio abate-se sobre nós, todos os olhos convergem
para mim, como se todos soubessem o que eu sinto no
fundo do meu coração.
— Que filho da puta! — insulta o seu melhor amigo.
O Justin põe o braço por cima dos meus ombros e puxa-
me contra ele.
Perdida nos meus pensamentos, não reajo ao comentário
do Set nem ao gesto reconfortante do Justin.
Talvez, afinal, o Clarke só queira um relacionamento
carnal comigo, mas impede-se porque agora sou um dos
seus e não quer complicar as coisas. Esta perspetiva deixa-
me ainda mais melancólica.

29 Na mitologia nórdica, a Bifrost é a ponte de arco-íris


que liga Asgard ao mundo dos homens. É guardada pelo
deus Heimdall.
Capítulo 21

Sair do rancho a pé não foi uma boa ideia. Não


ponderámos o regresso. Sei que os rapazes já deviam ter
voltado para casa há muito tempo, mas eles estão
obviamente cientes de que o Clarke não me deixa
indiferente, já que me propuseram passar o final da tarde
longe do rancho, o que foi uma ideia espetacular. Não pen­‐
sei no Clarke até agora, ao caminhar por esta alameda
interminá­vel. As pernas dos Diabos doem e todos me
odeiam momentanea­mente por sugerir deixarem as motas.
Em minha defesa, eles também não ponderaram o regresso.
— Estou a sonhar ou ganhaste vinte quilos desde há
cinco mi­nutos? — provoca-me o Sean.
— Pela décima vez, só tens de me pôr no chão!
— Será que o filme de terror te queimou os neurónios,
para te esqueceres da tua doença e do esforço que esta
subida desmedi­damente longa exige?
Não respondo, consciente de que tem razão. Gesticulo
para me posicionar melhor nas costas dele. Há uns bons
quinze minutos que subimos sem parar e estou
surpreendida por não o ver tom­bar debaixo de mim. Ele
nem treme e ainda parece capaz de me carregar por mais
umas horas.
Viro-me para os rapazes atrás de nós, com um grande
sorriso. Estendo a mão para eles. Não percebem
imediatamente, mas aca­bam rapidamente a fazer caretas e
a soltar palavrões.
— Pois é, ganhei! Saquem das notas!
Uma, duas, três... Quatro notas de cinquenta dólares vão
pa­rar à palma da minha mão. Vitoriosa, pisco-lhes o olho, a
gozar com eles, antes de voltar a atenção para o Sean.
— Livro-te da tua dívida, porque me estás a carregar.
— Eu é que devia receber um dólar teu por cada quilo
que pe­sas... Decididamente, ficava rico!
Assim que termina a frase, debruço-me, mergulho a
minha mão no bolso das suas calças de ganga e roubo uma
nota de cin­quenta dólares.
— Pimbas!
— És dura a negociar, Lopez.
Sorrio para ele com todos os dentes e prego-lhe um beijo
na bochecha.
— Nunca mais deixo que a V aposte connosco.
— Se me tivesses dado ouvidos — lembro ao Jesse —, eu
não ti­nha apostado! Disse-te que o Justin ia ser quem mais
espingardava, mas todos vocês apostaram no Tucker. Não
podia deixar pas­sar uma oportunidade destas!
Pelo sorriso que me manda, percebo que sabia muito
bem quem iria suportar menos a tensão. Só queria que eu
apostasse com eles. Deito-lhe a língua de fora e o Sean
pousa-me em frente da piscina.
— Oh! Já? Passou tão depressa!
Cinco pares de olhos enfadados convergem na minha
direção e os Filhos do Diabo lançam-se sobre mim, para me
fazerem arre­pender das minhas palavras. Defendo-me o
melhor que posso, mas em resultado da paródia, o meu
cabelo deve estar um novelo de nós e tenho dificuldade em
recuperar o fôlego.
Sento-me de lado no sofá e estendo as pernas por cima
do Tuc­ker, que se diverte a massajar-me o tornozelo,
continuando a par­ticipar ativamente na conversa.
— Desculpa? — pergunto ao Jesse, completamente
aparvalha­da. — Tu deixaste a tua namorada no dia do baile
de finalistas, porque não sabias dançar slow?
Confirma com um ar envergonhado e desmancho-me a
rir com os rapazes.
Ponho-me em pé de um salto, planto-me à sua frente e
estendo-lhe uma mão, que ele olha horrorizado, como se
pertencesse a um Jotun30.
— V, eu sou motard... não sou bailarino.
— Jesse, agarra esta mão, não tens escolha!
Ainda ele não tinha esboçado o menor movimento e já
uma música suave sai de um telemóvel. Faço por não rir e
animo o Jesse, que acaba por suspirar e acata a ordem sem
discutir.
— Se um de vocês falar sobre isto a alguém, eu mato-o!
— ameaça.
Afasto-o alguns metros, para aproveitar o espaço ao
nosso dis­por. Ele olha fixamente para mim, de braços
esvoaçantes, sem sa­ber o que fazer, o que aumenta o riso
dos rapazes. Perante o seu olhar desconfiado e irritado,
apresso-me a colocar as mãos dele na minha cintura, antes
que mude de ideias, e ponho as minhas em torno do seu
pescoço.
— E agora, o que é que se faz?
— Estou a deixar-te desconfortável, Jesse Mason? —
provoco-o.
— Cala a boca e responde!
— Tu és mesmo uma lástima, mano!
O Jesse alfineta o Tucker com um olhar furibundo e as
piadas multiplicam-se. É como estar no meio do recreio de
uma escola.
— Temos de nos mexer para trás e para a frente, ao
ritmo da música, ao mesmo tempo que rodamos lentamente
sobre nós mesmos.
Ele segue as minhas instruções, guio-o com moderação e
eis-nos a dançar um slow, ou melhor, algo que devia ser um
slow, mas que não se parece com nada. A hilaridade dos
Diabos é tão contagiante que sou incapaz de manter a
seriedade por mais tem­po, e o Jesse perde a paciência.
Agarra na minha mão e faz-me rodopiar. Tropeço no seu pé
e vacilo. Graças aos seus bons refle­xos, agarra-me e
encosta-me contra o peito; no entanto, a queda é inevitável.
Ele deixa-se cair para trás, para aparar o choque e, as­sim,
me proteger do impacto.
— Fiz bem em deixá-la antes do baile, não podes dizer o
contrário!
Nos seus braços, levanto a cabeça e dou com os olhos no
seu sorriso zombeteiro. As seis gargalhadas que explodem
no ar são tão poderosas que acordaríamos todo o bairro, se
não estivésse­mos empoleirados no topo de uma colina.
— Estão muito divertidos.
A nossa alegria desaparece. Volto o rosto para o Clarke,
encos­tado ao corrimão de madeira, de braços cruzados.
O seu olhar descontente oscila entre mim e o Jesse. Não
gosta de me ver nos braços do amigo, o que é o cúmulo da
lata.
Volto a minha atenção para o meu salvador, que levanta
os olhos para o alto com o ar de quem passou por uma
humilhação pública.
Desmancho-me a rir e dou-lhe um beijo na bochecha;
levanto-me e estendo a mão para o ajudar a pôr-se em pé.
— Onde está a tua miúda? — pergunta o Jesse friamente
ao Clarke.
Tem o cabelo molhado; a imagem dele e da parceira no
duche apresenta-se na minha mente. O meu coração
aperta-se e olho para longe.
— Acabou de sair.
O ambiente é pesado, os rapazes estão sinceramente
ressenti­dos com o afilhado.
O silêncio é rapidamente substituído pelos nossos
telemóveis a tocar. Quando pensava que ia ver uma
mensagem do Carter, o re­metente é o Tucker. Partilhou
connosco o vídeo da minha dança com o Jesse, seguida da
nossa queda.
— Tu não te atreveste... — balbucia o Jesse.
— Sim! É o mais belo meio de pressão.
O Diabo da cabeça rapada avança em direção ao do ego
sobredimensionado. Começam a lutar e a mesa de centro
quase tomba. Os deuses sejam louvados, afastam-se no
meio da confusão. In­sultam-se um ao outro e riem. Os
golpes trocados assustam-me, enquanto os intervenientes
nem parecem sentir dor. Envolvidos na diversão, vão em
direção à piscina sem se aperceberem. Obser­vamo-los, na
esperança de os ver cair à água, mas a chegada do Carter
ao jardim faz com que a brincadeira cesse.
— Digo à Maria para contar convosco para jantar?
— Não, temos de voltar — recusa o Set.
Os rapazes levantam-se e abraçam-me carinhosamente
ou bei­jam-me na testa.
— Não hesites em ligar, se precisares de ar fresco —
disponibiliza-se o Set, piscando-me um olho.
Agradeço-lhe com um sorriso e os Diabos desaparecem
tão de­pressa, com o Clarke no seu encalço, que a calma me
parece estranha.
— Como está o teu dedo? — pergunta o Carter.
Como é que ele consegue estar a par de tudo? É
assustador!
— Muito melhor do que o seu vaso — faço uma careta. —
Desculpe.
— Foi só um caqueireco.
— Se o diz...
Vamos para o salão e deparamo-nos com uma cena
surpreen­dente. No átrio, o Jesse liberta-se das garras do
Clarke, mas este agarra-o pelo colarinho da T-shirt e cola-o à
parede. Não ouvimos o que dizem. O Jesse perdeu
completamente o seu ar de não-te-rales e responde com
raiva ao Clarke, empurrando-o para longe e murmurando
algo que parece acertar em cheio no alvo. Põe um dedo
acusador no peito do afilhado do Carter e lança-lhe palavras
de desprezo. Depois, dá a volta e sai.
O Clarke cerra nervosamente os punhos, antes de ficar
impas­sível, quando nos vê. O líder levanta uma sobrancelha
questionadora para o seu homem e eu esboço um sorriso
provocador. Será que o motard sentiu ciúmes do que viu no
jardim?
— Para a mesa! — exclama a Maria.
Passa pela frente dele e coloca uma travessa sobre a
mesa, se­guida de perto pela Kate, que me cumprimenta
efusivamente.
Eis-me sentada em frente de Clarke, com o Carter e a
esposa de ambos os lados da longa mesa de mármore. A
atmosfera mu­dou completamente. O mais desconcertante é
que eu sou a única que se sente desconfortável e se
contorce na cadeira, enquanto a Maria nos serve vitela com
legumes.
— O que fizeste ao dedo? — preocupa-se a Kate.
— Não é nada, o Ethan pôs-me... um penso.
— Dói?
— Confesso que me arrependi de não ter ido ao hospital
para um pouco de anestesia local — brinco.
Divertida, ela pega nos talheres para cortar a carne.
— Gostava de ter a tua coragem...
A sua seriedade provoca-me um franzir de testa.
Pergunto-me se ela entendeu bem que eu estava a brincar.
— ... por participares na negociação — concluiu.
Oh! Quase me tinha esquecido disso...
— Não há nada de corajoso nisso, é apenas teimosia.
— Talvez. Mas a tua obstinação leva-te a protegeres
aqueles com quem te importas. Isso torna-te corajosa e
forte.
Lança-me um sorriso gentil e engole uma garfada.
— É mas é um grande disparate — comenta o Clarke,
com o co­tovelo apoiado na mesa, de olhos postos no prato.
O seu tom eriça-me os cabelos. A Kate inclina-se para a
frente, de olhos semicerrados.
— A Avalone é a única pessoa que me parece ser tão
teimosa como tu. Se achas que ela é estúpida, tu não és
menos. Para mim, o termo «disparate» não é adequado aos
Diabos, mesmo que vos­sos comportamentos possam
revelar-se por vezes perigosos. São fiéis a vocês mesmos e
ninguém mudará os vossos princípios e va­lores. É isso que
vos torna íntegros, fortes e autoconfiantes. Pes­soas com
que se pode sempre contar.
Com um rosto impassível, o Clarke não reage. O Carter,
por seu lado, gira o vinho tinto no copo, pensativo.
— Para mim — começa —, a teimosia é uma qualidade,
desde que não cegue e bloqueie a reflexão.
— Quando a teimosia cega, é para proteger de uma
verdade muito difícil de confessar — responde o afilhado.
O Carter pensa nas palavras do Clarke, mas já nada faz
sentido para mim.
— A verdade virá ao de cima, aconteça o que acontecer.
É ape­nas uma questão de tempo. E quanto mais a
ignorarmos, mais da­nos causará.
Olho para a Kate, que encolhe os ombros, tão perdida
como eu.
— Bem, isto é apenas a minha opinião — prossegue o
líder. — Avalone, amanhã de manhã vou dar-te um ficheiro
sobre os Reis da Lei. Terás o dia todo para estudá-lo e
passarás o dia seguinte comigo. A negociação terá lugar
dentro de três dias.
Aceno com a cabeça e noto que o olhar do Clarke
escurece, pe­rante estas palavras.

30 Na mitologia nórdica, um Jotun é um gigante de


Jotunheim. São os inimigos figadais dos deuses.
Capítulo 22

Quando acordei esta manhã, planeava ir para a


universidade. Mas, quando o Carter me entregou o ficheiro
dos Reis da Lei, in­teriorizei realmente que a negociação vai
ter lugar depois de ama­nhã. Então, pedi ao Set que me
levasse para o seu apartamento, para ficar sossegada o dia
todo, a inteirar-me dos documentos. Deixou-me cá há cinco
minutos, antes de sair para uma aula, e estou no sofá, com
o ficheiro aberto à minha frente. Contém uma foto de cada
membro dos Reis da Lei, juntamente com os seus an­‐
tecedentes criminais, bem como informações sobre eles:
origem, família, acontecimentos marcantes do seu passado
e atividades presentes. Pergunto-me como é que o Carter
conseguiu acesso a todos estes dados pessoais. Mais uma
pergunta para a qual não terei resposta. O meu pensamento
deriva para as palavras da Ma­ria sobre a religião de todos
os Filhos do Diabo: a magia da igno­rância permite-nos
esperar que seja um truque dos deuses. Abano a cabeça
para afugentar estas reflexões e, assim, me concentrar na
minha tarefa.
Lucas, o líder. Elias, o afilhado. Adrian, criado por um pai
cri­minoso. Cayton, órfão, tal como Gabriel. Samuel, que
perdeu os pais com poucos dias de intervalo, o pai de
cancro e a mãe suici­dou-se pouco depois. Thiago, também
órfão. O pai de Henzo es­pancou a mãe até à morte, e Isaq,
que vem de uma excêntrica fa­mília burguesa. Tudo isto
promete ser interessante.
Pego na página sobre o Lucas e leio-a uma dúzia de
vezes, re­petindo em voz alta a informação mais relevante,
para a memori­zar. Este tipo experimentou, sem dúvida, uma
das piores dores que podem existir: o parto da esposa
correu mal, teve de escolher entre salvar o bebé ou a sua
alma gémea. Devia insultar-me por sentir compaixão por
ele, mas teria compaixão por qualquer pes­soa que passasse
por isto.
Neste momento, ninguém me pode distrair, nem mesmo
o Clarke. Estou absorvida por estas folhas e pelas histórias
que elas contam, como se estivesse a devorar um romance
dos mais viciantes.
***
— Porra, deixei-a neste sítio, esta manhã, e ela não se
mexeu um milímetro!
Pulo à chegada do Set, do Sean, do Tucker, do Justin e do
Jes­se, que gozam comigo. Solto um suspiro profundo e tento
acalmar os meus batimentos cardíacos. Estava tão focada
que não os ouvi entrar.
Atiro uma almofada ao Set, que leva com ela na cabeça.
Mostra-me o dedo médio, em troca.
— Que horas são?
— Duas da tarde.
Apre... Não me mexo deste sofá há seis horas, nem
sequer para esticar as pernas. E agora que já não tenho o
nariz enfiado nos documentos, sinto dores no rabo e nos
rins.
Levanto-me e estico os membros com uma careta. O
Tucker entrega-me uma limonada.
— Faz uma pausa, senão o teu cérebro explode.
Tem razão, preciso realmente de me dar uma trégua.
Abro a lata e bebo alguns goles, mas não consigo deixar de
pensar nos Reis da Lei. Há qualquer coisa que não bate
certo, algo que nos escapa. Porque quereriam eles deixar
São Paulo por uma simples história do passado, quando
todos os seus parentes residem lá? Além disso, os Estados
Unidos estão muito mais atentos ao crime do que o Brasil.
Não há coerência.
— Ava, estás a ouvir-me?
Olho para o Justin, com um beicinho de pedido de
desculpas.
— Para de pensar nisso por dez minutos, vai-te pôr louca!
Sento-me ao lado dele no bar e ponho a cara nas mãos.
— Há algo que não entendo. O Lucas tem a filha e os pais
no Brasil, além do túmulo do amor da sua vida. O Elias tem
a mulher grávida e toda a família. Todos eles têm parentes
que deixavam para trás por um território que os
antecessores ocuparam quando nem sequer tinham
nascido?!
— Quem te disse que não vieram viver o sonho
americano com a sua árvore genealógica?
— De acordo com as informações do Carter, eles mal
puderam dar-se ao luxo de ficar os nove num único
apartamento fora da cidade. Seria impossível terem trazido
as famílias. Não faz sentido desperdiçar dinheiro a pagar
uma renda de casa nos Estados Uni­dos, em vez de poupar
para tratar os entes queridos doentes ou o parto da mulher!
— Não é que eu duvide da tua capacidade de raciocínio,
mas faltam apenas algumas horas para a negociação.
Deves concen­trar-te nas instruções do Carter — aconselha o
Sean.
Encaro-o por um momento sem dizer nada e suspiro,
resigna­da. Tem razão. Estão demasiadas coisas em jogo,
para eu me di­vertir a conduzir a minha investigaçãozinha,
que não leva a lado nenhum.
O Sean passa a mão pelo meu braço e vai para a
cozinha. Re­cusa a minha oferta para o ajudar e ordena-me
que respire.
— O Clarke ameaça incendiar o rancho, se tiver de ficar
lá pre­so por muito tempo — informa o Justin, focado no seu
telemóvel.
Levanto os olhos para o alto, irritada com a alusão ao
Filho do Diabo.
Evitei-o esta manhã, demasiado magoada pelo que ele
ence­nou ontem, mesmo debaixo do meu nariz.
— Ele devia submeter-se a uma verdadeira terapia de
controlo da raiva — murmuro entredentes, de mau humor.
O Set sorri, compassivo, mas, antes mesmo que ele fale,
sei de antemão que vai defender o seu melhor amigo.
— Ele tem as suas razões para odiar o mundo inteiro.
— Já sei disso — suspiro.
— Sabes também que ele é imprevisível. O Clarke age
sem que ninguém entenda os seus motivos. Nem nós o
entendemos sempre.
— Isso não vos cansa?
Uma pessoa como ele deve ser complicada de seguir e
apoiar. Nunca saber o que esperar de alguém e ter de
encaixar as suas re­ações, é esgotante.
— Todos nós temos os nossos lados maus — constata o
Jesse. — Mas uma coisa é garantida, o Clarke é de uma
lealdade a toda a prova.
— Apanhou um tiro por mim — lembra o Set.
— Por mim também — intervém o Justin.
— E duas facadas por mim — acrescenta o Tucker.
— E um murro com soqueira por mim — ri-se o Sean. — É
um gajo fabuloso!
Cheios de sorrisos, recordam memórias antigas e, apesar
de tudo isto me horrorizar, não consigo impedir-me de sorrir
tam­bém. O Clarke tem muitos defeitos — demasiados,
mesmo —, mas tenho de admitir que tem qualidades
notáveis.
Depois de uma boa refeição num ambiente excelente, os
Dia­bos saem do apartamento e voltam para a universidade.
Fiquei surpreendida ao saber, por um comentário do Tucker,
num mo­mento de mau humor, que os rapazes não
conhecem nada do pas­sado do Jesse nem as razões pelas
quais não mantém contacto com a família. Mesmo o Sean,
que já estava no gangue quando o Diabo de cabeça rapada
foi integrado, não sabe de nada. Parece que o Jesse se
diverte com manter o mistério em seu redor.
Com o cérebro repousado, engulo a medicação e viro as
pági­nas do ficheiro para voltar a mergulhar nelas.
***
Passaram várias horas e paro de andar de um lado para o
ou­tro, porque a porta da frente se abre e o Jesse aparece
para me es­coltar de volta para o rancho.
— Eu tinha razão! O território de Ann Arbor não lhes
interessa!
Agarro-o pela mão e levo-o até ao computador, pousado
em cima do balcão. E aponto para os números.
— O Brasil está em plena crise económica!
Concentrado no que aparece no ecrã, o Jesse franze os
olhos.
— Os Reis da Lei lidam com outros países, o que lhes
arruína os negócios, por causa do colapso económico do
Brasil! Não só o real perdeu quarenta por cento do seu valor
num mês, como tam­bém os câmbios estão a subir
drasticamente! Vamos dar um exemplo: eles compram as
armas no Canadá, ao nosso estimado Mike Arinson. Quanto
custa cada revólver? Mil dólares em mé­dia? Para os Reis da
Lei, são mais de sete mil e oitocentos reais, sem contar os
juros do câmbio. Eles perdem uma percentagem
considerável de dinheiro, a viver no Brasil, quando
negoceiam com o estrangeiro!
Com a testa ligeiramente franzida, o Jesse processa as
minhas palavras na sua mente, antes de cair em si. A minha
pesquisa faz sentido.
— Eles não abandonaram a família por uma história do
passa­do... — sussurra. — Eles vêm instalar-se aqui para
satisfazerem as suas necessidades!
Confirmo com a cabeça.
— Temos de falar nisto ao Carter!
— De maneira nenhuma! — exclamo, horrorizada. — Se
eu tiver razão, eles não vão voltar para o Brasil e o Carter
vai declarar-lhes guerra. Por outro lado, tenho de encontrar-
lhes outro território que corresponda às suas expectativas.
Esperava que o Jesse se recusasse a guardar segredo,
mas a falta de resposta é uma oportunidade que me
oferece. Sem des­perdiçá-la, subo para a cadeira alta e abro
o Google Maps, para ficar com as diferentes cidades dos
Estados Unidos na minha frente.
— Eles vão buscar as armas ao Mike e negoceiam
sobretudo com norte-americanos, portanto... É obrigatório
encontrar-lhes um território num país cuja moeda seja o
dólar.
— Arranjar-lhes território perto do Michigan pode causar-
nos problemas no futuro e, se eles mantiverem as famílias
no Brasil, não convém mandá-los para demasiado longe.
— Foi por isso que pensei no Panamá, na América
Central. Eles usam o dólar e...
O Jesse começa a andar de um lado para o outro,
duvidando do nosso plano, enquanto uma bola de stresse
cresce de segundo para segundo na minha barriga. Se fosse
apenas uma questão de território, seria mais fácil. A
verdade complica muito a situação.
— Não é assim que as coisas funcionam, Avalone. Eles
vieram até aqui, nunca sairão de livre vontade, só por lhes
falares do Pa­namá como do Eldorado, que, por sinal, está a
transbordar de gangues! Porquê curvar-se perante nós,
quando vão ter de lutar para se estabelecerem no outro
lugar?
Levanto-me, exasperada. Não temos muito tempo antes
da ne­gociação e nunca estive envolvida em atividades tão
stressantes na minha vida.
— E então? Matamo-los? Ou deixamo-los tomar conta da
vossa cidade? Não temos escolha! E é por isso que há
conversações. Posso encontrar as palavras certas, eu vou
encontrar as palavras certas!
O Jesse rosna e passa as mãos pela cara, tão nervoso
como eu.
— Se tiveres uma solução melhor, sou totalmente a
favor.
— Tens de falar com o Carter sobre isso!
— Sabes muito bem que ele vai decidir matá-los.
— Se calhar, é a nossa única saída, Avalone.
Cruzo os braços, numa recusa categórica. Não aceitarei
este radicalismo, que não resolve, certamente, a questão.
— Vou encontrar uma verdadeira solução.
O Jesse estaca, para me olhar fixamente por longos
segundos. Está a avaliar as minhas capacidades e a
confiança que pode de­positar em mim.
Vê-lo tão envolvido, tão expressivo, é surpreendente.
Adoça a dureza do seu físico.
— Está bem. Mas não podes errar, V. Se não chegares a
nenhu­ma conclusão, prevenimos o Carter.
Confirmo com a cabeça, determinada.
— Vou conseguir, prometo-te.
Não tenho interesse nenhum em dar com os burros na
água, sei disso. Mas tenho confiança em mim, agora. A
verdade pode complicar a situação, mas pelo menos torna
os Reis da Lei huma­nos. Eles não são capazes de sustentar
as suas famílias. Vou-lhes possibilitar fazê-lo sem que
nenhum perca a vida numa guerra inútil.
O Jesse e eu deixamo-nos cair no sofá, em simultâneo,
cansa­dos desta história.
— Posso fazer-te uma pergunta? — hesito.
O Diabo acena com a cabeça.
— Porque é que nenhum dos rapazes conhece o teu
passado?
O seu sorriso deslumbra-me. Compreendo, pela sua
expressão, que, se o seu passado é um mistério, não é
porque seja demasiado doloroso para ele falar disso, mas
sim porque simplesmente se diverte a guardar segredo.
Puxa-me contra ele, abraça-me e apoia o queixo no meu
cocuruto.
— Se eu te contar, promete-me sobre o Draupnir que vais
pro­vocar os rapazes sem nunca lhes revelares nada.
Desato-me a rir e acedo ao pedido. Ele coloca os pés
sobre a mesa de centro e partilha a sua história comigo.
— Antes de me juntar aos Filhos do Diabo, eu era um
pequeno dealer de canábis. Uma noite, fui perseguido pela
polícia. Já tinha sido detido várias vezes e a Jenna tinha
ameaçado matar-me se eu voltasse...
***
De volta ao rancho, deixo-me cair na cama, exausta. O
que aprendi hoje não me poupou. Entre a verdadeira razão
da presen­ça dos Reis da Lei em Ann Arbor e o passado do
Jesse, estou toda virada do avesso. Ainda consigo ver uma
lágrima solitária a escor­rer pela sua face. Não era uma
lágrima de tristeza, era de alegria. Lembrou-se do que tinha
percorrido e daquilo em que se tornou graças ao Carter.
Está-lhe eternamente grato, o que o torna, pro­vavelmente,
o Filho do Diabo mais leal.
Agora entendo melhor o comportamento do Carter, ou,
pelo menos, sei um pouco mais sobre como ele recruta os
seus ho­mens. Deu-lhes muito: um futuro ao Jesse, uma nova
família ao Clarke, capacidade de gestão da raiva ao Justin...
Uma vida a mim.
No final de contas, não sou muito diferente deles. Eu
precisava da magia dos Filhos do Diabo para ser
plenamente eu mesma.
O Clarke aparece na ombreira da minha porta e encosta-
se a ela, de braços cruzados.
— Agora baldas-te à universidade?
Endireito-me e olho para ele com um ar desconfiado.
Como é que ele sabe? Tomei essa decisão quando já estava
a caminho da faculdade com o Set.
— A Lola estava preocupada, tu não atendias o
telemóvel.
Merda! Esqueci-me completamente de lhe dizer que não
ia às aulas e fiquei tão absorvida no que estava a ler que
nem olhei para o telemóvel o dia todo.
— Fiquei...
— No apartamento, eu sei. Liguei para o Set.
— Tive de me preparar para a negociação — justifico.
— Porque não fizeste isso aqui?
Arqueio uma sobrancelha. Ele está a fazer-me esta
pergunta, a sério?
— Não conheço o teu programa, Clarke. Ontem passaste
a tar­de a comer uma miúda e eu não quis correr o risco de
me descon­centrar com os gemidos.
A mansão é enorme, podia ter ido para um quarto
suficiente­mente longe dele para não ser incomodada; mas
não seriam os gemidos em si que me teriam incomodado.
Saber o Clarke com outra é que eu queria evitar a todo o
custo.
O badboy acena com a cabeça. Impassível, não diz nada
e dei­xa-se ficar no mesmo sítio. Olhamos fixamente um
para o outro até que ele fala.
— O encontro vai ter lugar num armazém abandonado
fora da cidade. Depois de amanhã, às catorze horas.
Vai para se afastar pelo corredor, mas confesso-lhe:
— Encontrei algo sobre os Reis da Lei.
Ele estaca e volta-se para mim, de testa franzida. Entra
no meu quarto, inquisidor.
— Eles não querem saber do vosso território, tenho a
certeza. Querem é sair do seu país, porque o real brasileiro
está desvalori­zado e como eles negociam com o
estrangeiro...
De cara dura, o Clarke faz-me sinal para continuar.
— Ninguém sabe, exceto o Jesse. Ele disse-me para
contar ao Carter, mas, se ele descobrir, vai pensar que a
única maneira de se livrar deles é matá-los... Então, pensei
que eles se poderiam instalar no Panamá. O dólar é usado lá
e não ficam muito longe da família. O Jesse acha que eles
vão recusar e... não deixa de ter razão. Não estou em
condições de lhes arranjar um território dis­ponível. Passei
horas a pesquisar, mas, infelizmente, não é o tipo de
informação que apareça assim na Internet.
De pé, imóvel a um metro de mim, parece pesar os prós
e con­tras. Deve informar o líder? Analisa as nossas
possibilidades de êxito sem passar por um massacre. Acaba
por dizer:
— Tu e o Carter estão no mesmo lado, Avalone. Vai
informá-lo rapidamente, porque ele é capaz de encontrar
esse tipo de infor­mação. E para o Dia D, se queres que os
Reis da Lei te ouçam, não lhes vais falar sobre o Panamá.
Bom, não como tema princi­pal. Fá-los entender que não são
bem-vindos aqui, que lutaremos e que alguns, se não todos,
morrerão. E então, ninguém sustenta­rá as suas famílias.
Assim que entenderem isso, oferece-lhes o Pa­namá como
saída de emergência. Se apresentares as coisas por esta
ordem, eles vêm comer-te à mão.
Pestanejo várias vezes, surpreendida por ele ter um
raciocínio tão impecável. Tem razão e acaba de me oferecer
o procedimento a seguir, numa bandeja de prata. Só tenho
de expor as coisas pela ordem adequada.
— Obrigada — murmuro, impressionada.
Estava tão stressada que não conseguia pensar tão
eficazmente como ele, com simplicidade. No que diz
respeito ao Carter, penso que não tenho escolha. Vou avisá-
lo logo pela manhã, ou esta noi­te, se ele mostrar a ponta do
nariz.
O Clarke pisca-me o olho e, desta vez, sai do meu quarto.
Com pressa, tiro os documentos da bolsa e volto ao
trabalho, pensando em quais as informações a usar. A Maria
põe a impres­sora à minha disposição, para que eu possa
montar um dossiê inabalável sobre os Reis da Lei, e até me
traz uma bandeja com a refeição.
Não faço ideia de que horas são quando o boss bate à
minha porta. Por outro lado, sinto que o meu cérebro está a
ficar saturado.
— Como te sentes?
A sua voz é suave e o olhar benevolente.
Desde a história que o Jesse me contou, a minha visão do
Cár­ter mudou, pelo menos um pouco. Ele salvou-o.
Ofereceu-lhe uma nova vida, um novo começo, e permitiu-
lhe descobrir quem era realmente, sem a sombra
ameaçadora da Jenna e da pobreza.
— Ansiosa.
Sorri para mim, com ternura.
— Isso é normal. Mas tens de confiar em ti e em mim. Eu
nun­ca te teria deixado liderar esta negociação se não
estivesse seguro de nós dois.
— O que o faz pensar que sou capaz disto?
Ele senta-se na cama, ao meu lado.
— Eu conheço mais sobre ti do que pensas, Avalone. Essa
ener­gia que vibra em ti, eu tinha-a na tua idade. Esse brilho
nos teus olhos... é a prova da tua determinação em mover
montanhas por aqueles que amas. Estas chamas...
Sacode a cabeça.
— ... Infelizmente, perdi esse brilho, que em ti é intenso.
Nunca o deixes apagar-se. É ele que te vai fazer
empreenderes grandes coisas. Ainda não sabes, mas és
fascinante para as pessoas que se cruzam no teu caminho.
Levanta-se e dirige-se para a porta, quando as minhas
respon­sabilidades me voltam à mente.
— Espere!
Vira-se na minha direção, com uma sobrancelha
levantada.
Decido depositar toda a confiança neste homem e seguir
o conselho do Clarke. Desfio-lhe tudo o que descobri sobre a
crise económica do Brasil.
Ouve-me religiosamente e acena por vezes com a
cabeça. Quando apresento as minhas conclusões, um leve
sorriso orla-lhe os lábios.
— É tudo?
Franzo a testa, intrigada.
— Como é tudo?
— Expuseste um problema e a sua causa. Onde está a
solução?
Ranjo os dentes, frustrada por não a ter encontrado.
— Cabe-lhe a si dar-ma. O senhor é o génio, o
especialista em xadrez!
Ele enfia as mãos nos bolsos e olha de cima para mim.
— Qual é a tua solução, Avalone?
A ideia de o dececionar, depois do seu discurso, dá-me
um nó no estômago.
— Só cheguei a um princípio de solução.
— Sou todo ouvidos.
Nervosa, hesito em acatar a ordem. Não conheço nada
do uni­verso deles, vai-se rir de mim e do meu raciocínio. No
entanto, o benevolente aceno de cabeça que me lança
como sinal de encora­jamento impele-me a começar.
— Panamá. Depois de demonstrar-lhes por a + b que
nunca vão ganhar esta guerra, podemos propor-lhes o
Panamá como saída de emergência.
— Em que te baseaste?
— No seu modo de vida. Mudar das favelas para Ann
Arbor? Eles não durariam quarenta e oito horas aqui sem
serem apanha­dos pela polícia. Por outro lado, as regras com
as quais cresceram são iguais no Panamá. A taxa de
criminalidade é inferior à dos vi­zinhos a sul, o que pode
corresponder à evolução a que aspiram. Se se saírem bem,
em poucos meses as famílias podem juntar-se a eles, para
levarem uma existência menos receosa e, assim, acredi­tar
no futuro. O Panamá é uma espécie de mundo intermédio.
Debruço-me sobre a mesa de cabeceira, pego no dossiê
que montei e entrego-o ao Carter. Agarra-o, percorrendo
com os olhos os números e as diferentes características das
cidades que destaquei.
Aperto nervosamente os dedos com a horrível impressão
de estar perante um júri que deve ser convencido de que
estou à al­tura da tarefa. Estou a pensar nos pontos que
poderia ter desen­volvido e na paginação que favoreceria um
pouco mais a atenção.
O Carter levanta a cabeça, impassível, e põe o meu
trabalho debaixo do braço. Finalmente, a satisfação ilumina
as suas íris.
— Colón. Anotei dois territórios disponíveis. Terão de
afirmar a sua autoridade junto dos seus pares. Dito isto, se
lhes oferecer­mos algumas dezenas de milhares de dólares,
não deverá ser difícil.
Olho fixamente para ele.
— Já sabia. E já tinha escolhido o Panamá.
— Com efeito.
— Porque não me disse nada? — exclamo,
completamente ultrapassada.
— Queria que tu chegasses a essa conclusão por ti
mesma. Es­pero que os meus homens possam sempre contar
comigo. No en­tanto, não tenho ilusões. Não sabemos o que
o amanhã nos reser­va. Nunca te impeças de pensar,
Avalone. Se intuíres alguma coi­sa, vai até ao fim da tua
investigação. E se tiveres dificuldades, pede ajuda.
Aceno com a cabeça, contemplativa. O Carter é um
estupor em muitos aspetos, mas não está aqui para nos
mandar ao fundo, muito pelo contrário. Obriga-nos a dar o
melhor de nós.
— Está disposto a oferecer dinheiro aos Reis da Lei?
— A vida dos meus homens não tem preço. Venceremos
a guer­ra se tiver de ser, mas não estou disposto a sacrificar
nenhum dos meus.
Agora exibe um ar determinado.
— Acrescentarei ao teu dossiê os elementos que recolhi
pelo meu lado. Fizeste um ótimo trabalho, Avalone. Agora
descansa. Espera-nos um longo dia, amanhã. E para de uma
vez por todas de me veres como um monstro! Só não me
procuraste para falar do teu achado, porque pensaste que
eu os teria exterminado até ao último.
Ponho um sorriso culpado e digo:
— «Ele saca uma faca? Tu sacas uma arma. Ele manda
um dos teus homens para o hospital? Tu mandas os seus
para a morgue.» Afinal, Os Intocáveis é um filme do seu
tempo. Temia que tivesse feito das palavras do Malone o
seu mantra.
— Não me dê ideias, miúda.
O líder pisca-me o olho e sai do meu quarto, a sorrir.
Capítulo 23

Jesse, aos 17 anos.

Como muitas vezes estive na zona, conheço-a como a


palma da minha mão, mesmo à noite, e certamente melhor
do que o polícia que me vem no encalço.
E pensar que ele me está a dar cabo do meu único
momento de sossego... O que não muda são a lua e as
estrelas que me acompanham.
Viro para um beco, subo a pequena cerca com agilidade
e ater­ro no bairro dos ricos. Odeio este sítio, essas pessoas
superprote­gidas, que vivem com palas nos olhos e nunca se
deram conta das casas degradadas a dois quarteirões das
suas fabulosas mansões.
Quando percebo que baratinei o meu perseguidor, paro
de cor­rer e sorrio, vitorioso, com falta de ar. Não é esta
noite que vou levar pela medida grande, graças aos deuses.
O meu sorriso desaparece quando um carro de patrulha
de re­pente se materializa do nada, à minha frente.
Que grande merda!
Dou meia-volta e retomo a minha corrida desenfreada na
dire­ção oposta. Travo bruscamente a poucos passos de
distância de dois outros polícias. Estou cercado.
Solto palavrões interiormente, estou mesmo pronto a
implo­rar-lhes, até que vejo a minha saída: um imponente
portão preto e dourado, à minha esquerda. Arrisco-me a
ficar mais lixado ain­da, mas não tenho escolha. É melhor do
que enfrentar a Jenna. Os agentes nunca se atreverão a
entrar em propriedade privada. Tomo balanço e galgo o
portão. Finalmente, aterro do outro lado, em segurança.
Encaro os quatro polícias e mostro-lhes os dois dedos
médios, acompanhados de um sorriso provocador.
— Vamos ver quem tem mais paciência agora! —
provoco-os. — Entretanto, vou dar uma volta e, quem sabe,
encontrar outra saída.
Estou prestes a voltar-lhes as costas, quando o som
característico de uma porta a abrir soa algures no alto.
Surpreendido, ins­peciono as árvores com os olhos e
descubro uma espécie de torre de controlo com vidros
foscos. Um homem armado até aos dentes está em cima de
uma balaustrada e acena-me com a cabeça.
Deuses Todo-Poderosos, onde é que me vim enfiar?
Os polícias desculpam-se do incómodo e pedem que abra
o portão para me prenderem, mas o gajo não reage, como
se fossem invisíveis.
Qual cereja no topo do bolo, um Maserati sobe a rua e
para mesmo em frente dos portões, obrigando a polícia a
afastar-se.
O meu corpo volta a ficar em estado de alerta.
Definitivamen­te, não tenho a mais pequena hipótese. O
proprietário vai abrir o portão e eu vou acabar na esquadra.
Um dos polícias aproxima-se do vidro rebaixado do
condutor.
— Desculpe, senhor Brown. Um jovem escalou o seu
muro en­quanto estava a ser perseguido. Vamos retirá-lo da
sua propriedade.
Brown? Como Carter Brown? O tipo mais poderoso da
cidade e boss dos Filhos do Diabo? Grandessíssima porra!
Vou é levar com uma bala entre os olhos!
Os pés firmam-se no chão, prontos para dar um impulso
que me permita pirar-me muito rapidamente.
— Não é preciso — responde o bilionário. — O Jesse
Mason tem encontro marcado comigo. Pedi-lhe para escalar
o portão, se eu chegasse atrasado.
Atordoado, esqueço-me de correr.
Como é que ele sabe o meu nome e porque me encobre?
— Desculpe, senhor Brown, temos de o prender.
— Já lhes disse que não. Este rapaz está sob a minha
proteção.
A autoridade exalada por este homem é lendária, mas
verda­deira. Não gostava de o ter como inimigo.
O portão abre-se, o polícia murmura algo para si mesmo,
com um ar furioso, e o boss dos Filhos do Diabo avança o
Maserati até ao pé de mim.
— Entra!
Não me faço rogado. Pisco o olho aos polícias, com um
grande sorriso, e enfio-me no luxuoso carro. O condutor
arranca e subi­mos uma alameda interminável, sem trocar
uma única palavra.
Mas que porra vem a ser esta? Não que reclame de ele
me ter salvo o coiro, mas porquê?
Entramos numa garagem cheia de automóveis, cada um
mais caro do que o anterior. Estou entre o atordoado e o
enojado. Estes ricaços nunca estão satisfeitos.
Saímos do carro, subimos três degraus e o Sr. Brown abre
uma porta que dá para o corredor de uma esplêndida
mansão.
Oh porra, o cota não se poupa mesmo!
Entramos no escritório, ele senta-se no seu cadeirão e
faz-me sinal para me sentar à frente dele. Faço-o e
abstenho-me de dei­xar os olhos vaguearem sobre os
objetos que poderiam desapare­cer sem que ele se
apercebesse.
Observa-me durante um bom bocado, comigo sempre a
olhar fixamente para ele. Sou eu quem quebra o silêncio.
— Como me conhece?
— Ando a estudar-te há várias semanas.
Fico atónito, atordoado.
— O senhor anda a estudar-me?
Para atestar a sua afirmação, o Sr. Brown retira da gaveta
uma pasta que tem o meu nome escrito. Coloca-a na minha
frente, aberta, e vejo a minha certidão de nascimento, a
minha ficha mé­dica, os meus relatórios escolares — do
ensino básico ao secundá­rio —, o meu registo criminal e
uma ficha assustadora, com várias informações a meu
respeito.
Levanto-me tão bruscamente que a cadeira cai para trás.
— Isso é ilegal!
O boss dos Filhos do Diabo permanece impassível.
— Entrar em propriedade privada sem ser convidado
também é.
— Com o único propósito de salvar a minha pele! O
senhor reú­ne dados sobre mim como um psicopata de
merda!
Um sorriso surge no rosto do bilionário. Ele parece tão à-
vontade, tão confiante, que me deixa perplexo. É um
homem muito perturbador.
— Estás à procura de trabalho, Jesse.
Não é uma pergunta, mas abano a cabeça
negativamente.
— Não, senhor Brown.
— Trata-me por Carter. E eu sei que estás. No entanto,
não queres a minha ajuda, porque sou rico e, portanto, não
merecedor de interesse, na tua opinião.
— Exatamente.
Aguento o olhar do homem, que parece estar-se nas
tintas para o que eu penso. Ele é do tipo que fala e é
ouvido, e não o contrário.
— Já ouviste falar dos Filhos do Diabo.
Não reajo, continua a não ser uma pergunta.
— Proponho que faças parte deles, serás remunerado.
Desato-me a rir e abano a cabeça. A situação é
inconcebível.
— O que lhe diz que posso estar à altura?
— Em criança, costumavas caçar com o teu pai e sabes
usar uma arma. As tuas capacidades físicas são muito boas
e estás lon­ge de ser uma besta, ainda que te comportes
como tal. Tens uma vida de merda, mas entendes de
respeito e lealdade.
— E o que lhe diz que vou aceitar?
— Terás uma Harley-Davidson, a possibilidade de viver
num apartamento luxuoso com três irmãos e um salário de
trinta mil dólares por mês. O regresso aos estudos será
obrigatório e por minha conta, mas isso não deve ser um
problema para ti, uma vez que nunca quiseste tornar-te um
vulgar dealer. Portanto, terás aulas como todos os
estudantes e, à margem, trabalhas para mim.
Não respondo nada, aparvalhado.
Não é só pelo dinheiro que ele me oferece, é por toda a
situa­ção. Retomar os estudos, já nem punha a hipótese. E
viver longe da Jenna é apenas um sonho. Um sonho agora
ao meu alcance.
A realidade acaba por me acordar. Tento afugentar a
minha deceção da melhor forma possível, sacudindo a
cabeça.
— Não posso entrar na Universidade do Michigan por
causa dos meus antecedentes criminais...
— ...que serão imediatamente apagados, no preciso
momento em que saíres daqui.
Arregalo os olhos, pasmado.
Pensaria que se tratava de uma aldrabice, se nunca
tivesse ou­vido falar deste homem. Mas é claro que os Filhos
do Diabo têm tudo o que querem.
Posto isto, será que quero juntar-me a um gangue?
Traba­lhar em equipa? Arriscar a vida?
— Mas só se eu concordar em tornar-me um dos seus —
replico, longe de ser ingénuo.
— Não há «se» nenhum. Quer aceites ou não a minha
propos­ta, os teus antecedentes criminais vão desaparecer e
os teus estu­dos serão um encargo da minha inteira
responsabilidade.
Franzo a testa, mergulhado numa total incompreensão.
Não faz sentido nenhum...
— Porque faria uma coisa dessas?
— A falta de dinheiro não te deve impedir de alcançares
os teus sonhos. Vales muito mais do que passares os dias a
vender merda debaixo das pontes. Não estou a dizer que o
que eu te proponho é moralmente mais correto, mas com o
que te ofereço em troca, po­des voltar a estudar e afastares-
te da Jenna. O que te proponho é uma nova existência,
Jesse. Um recomeço diferente. Para seres melhor. Para seres
mais feliz.
Estas palavras fazem o meu coração bater de uma forma
muito diferente do que nos últimos anos.
Olho fixamente para o brilho nos seus olhos. Este
homem, que eu nunca vi, aparece como um Robin Hood e
apresenta-me numa bandeja de ouro maciço a oportunidade
de uma vida.
— Onde está a armadilha?
— Não há. Por outro lado, deves saber que os Filhos do
Diabo não são uma associação. Se aceitares, terás
responsabilidades às quais não podes escapar. No entanto,
se, depois de evoluíres con­nosco, decidires que é tempo de
parar, de passar para outra coisa, não te impedirei.
— Está a dizer-me que se trata de um contrato a prazo,
que me impede de desistir durante alguns anos?
O Carter confirma com a cabeça e cruza os dedos em
cima da mesa.
— Por enquanto, só te conheço através de palavras
escritas em papel. Integrar-te nos Filhos do Diabo implica
partilhar informa­ções estritamente confidenciais.
Compreendes que não posso cor­rer o risco de introduzir
alguém no meu gangue, informá-lo sobre os nossos
negócios e deixá-lo sair imediatamente, quando podia ir à
polícia.
De facto, parece-me lógico. O Carter está a precaver-se.
— Eu autorizo que um membro nos deixe, se confiar nele
— prossegue. — E a confiança vem com tempo, a
experiência e as provas dadas.
— E se eu me der conta de que não estou talhado para
isto?
— De todos os homens que escolhi, nenhum quis deixar
os Fi­lhos do Diabo por muitos anos. Se foram embora, foi
porque esta­va na hora de seguirem o seu caminho com uma
nova visão de si mesmos e do mundo. Nunca me enganei
sobre as pessoas que re­crutei. E não me vou enganar
contigo, Jesse.
— Eu aceito.
As palavras saíram da minha boca sozinhas, mas não me
arre­pendo. Não acreditando no que ouvia, solto uma
gargalhada e afundo-me no cadeirão. Já consigo imaginar
como poderá ser a minha vida futura.
Com a maior das calmas, o Carter acena com a cabeça.
— Muito bem, rapaz, estás pronto a conhecer o teu novo
lar?
— Sempre estive.
Com um sorriso satisfeito, o Carter abre uma gaveta e
pega numa folha de papel que coloca no bolso interior do
fato. A deter­minação ressoa em cada um dos nossos
passos, quando chegamos à garagem.
***
O Carter para o carro em frente da minha casa. A
angústia atinge-me violentamente, ao ponto de me tirar o
fôlego. Estive demasiado ocupado a sonhar acordado, para
notar que estávamos no meu bairro miserável.
— Pensei que íamos para o apartamento! — exclamo, em
pânico.
— Tens de ir buscar as tuas coisas.
Ele sai do veículo, mas eu não me mexo, paralisado.
Sei o que me está reservado lá dentro e achava que
nunca mais teria de passar por isso, a partir do momento
em que aceitei a proposta do Carter.
O boss dos Filhos do Diabo dá a volta ao carro e abre-me
a porta. Estava convencido de que ia ver aborrecimento nos
seus olhos. Afinal, um ricaço não abre a porta a um
maltrapilho como eu. No entanto, leio nele respeito e uma
determinação inabalável, que me dão forças para enfrentar
os acontecimentos que aí vêm.
Saio do Maserati, respirando o ar nauseabundo do beco.
— A Jenna nunca vai aceitar que eu saia de casa.
— Não lhe vamos pedir autorização.
Dá meia-volta e caminha em direção à porta da frente.
Sigo-o, com o estômago e a garganta aos nós.
Não só tenho medo de enfrentar aquela que assombra os
meus pesadelos, mas também que o Carter mude de ideias
quando des­cobrir que, diante dela, sou apenas um covarde.
Soma-se a isso o constrangimento de lhe revelar aquilo que
me serve de habitação. Eu e a minha «família» fazemos
parte da população mais pobre do Estado.
Com a mão trémula, meto a chave na fechadura e abro a
porta. Ainda mal pus um pé dentro de casa quando sou
puxado para a frente e violentamente colado contra a
parede, com o rosto da Jenna, desfigurado pela raiva, a
poucos centímetros do meu.
— GRANDESSÍSSIMO ANIMAL! EU DEVIA TER DADO CABO
DE TI NO SEGUNDO EM QUE TE VI! A POLÍCIA CONTI­NUA À
TUA PROCURA! SERÁ QUE NUNCA MAIS ME VAIS DEIXAR EM
PAZ?
Como sempre, fico petrificado. Paralisado, não reajo nem
res­pondo nada.
O meu pai, com os olhos velados de tristeza, surge no
meu campo de visão. Ele nunca levantou a mão para mim,
mas nunca interveio quando ela o fazia.
O soco que recebo no estômago corta-me a respiração,
embora o meu corpo tenha ficado hirto. Quando a Jenna
está prestes a es­murrar-me novamente, o cano de uma
arma encosta-se na sua têmpora. Ela fica parada,
horrorizada. O seu rosto fica atónito e a raiva desaparece.
Perdeu a confiança e a superioridade em que apoiava o seu
reinado de terror.
— Boa noite — cumprimenta o Carter.
Ela levanta as mãos em sinal de inocência e todos os
seus membros começam a tremer. Nem se atreve a voltar-
se para o dono da arma e sinto uma satisfação sórdida.
Quem me dera vê-la mijar-se, como tantas vezes me
aconteceu.
— O seu medo é legítimo — prossegue o Carter. —
Afaste-se do seu filho e eu afasto a minha nove milímetros.
Ela acata a ordem e recua um passo, depois outro.
O Carter baixa a arma, como prometido; então, a Jenna
atre­ve-se a encará-lo.
— Senhor Brown? — engasga-se. — Se o meu filho lhe
causou problemas, a culpa é dele. Não é minha. Nem do
meu marido.
O Carter passa a ombreira da porta danificada. A forma
como olha para a minha mãe é incrivelmente dura. A prova
está em que ela engole a saliva com dificuldade e baixa os
olhos.
— O seu filho não me fez mal nenhum, pelo contrário. Ele
está agora a trabalhar para mim e também vai viver num
apartamento que me pertence.
A Jenna arranca uma gargalhada nervosa. Recuo
instintivamente.
— Ai isso é que não vai! O Jesse não sai desta casa.
O Carter tira o telemóvel do bolso do fato e tecla nele por
uns instantes. Volta o ecrã para a minha progenitora e
mostra fotos dela a bater-me violentamente. Ela arregala os
olhos, tal como o meu pai e eu.
Como é que as obteve?
— Se a senhora não der o seu aval, os serviços sociais
estarão cá amanhã, acompanhados pela polícia. Acabará
por perder a guar­da do seu filho e vai para a cadeia. Ou
então...
O líder dos Filhos do Diabo saca da folha que tinha
retirado da gaveta da secretária.
— ... assina-me este documento de emancipação, em
que se de­clara que eu serei o único tutor legal do Jesse até
que ele atinja a maioridade.
Os meus olhos ficam esbugalhados, não consigo
acreditar. Nem os meus pais, aliás.
O Carter não só está disposto a tornar-se meu tutor pelos
pró­ximos três meses, como, ainda por cima, tem uma classe
do cara­ças, o filho da mãe!
— Vai arrumar as tuas coisas! — ordena-me.
Não respondo, apresso-me a fazer o que diz. Corro para o
meu quarto horroroso e cheio de mofo, de cinco metros
quadrados, abro os meus dois sacos de ginástica e arrumo
os poucos perten­ces que tenho.
Quando saio, o Carter já não está presente. A Jenna e o
meu pai estão sentados no sofá. A minha progenitora olha-
me com ressentimento.
— Estás feliz? Conseguiste o que querias?
Apesar de tudo o que ela me fez, ainda me consigo sentir
cul­pado. Como sempre, ela manipula-me. Desta vez, não
me deixarei enganar novamente. Chega de ter medo.
— Porra, foi mesmo!
Saio de casa sem olhar para trás e vou ter com o Carter
ao automóvel.
Fico parado por uns segundos, respirando aquele horrível
cheiro a lixo e mijo pela última vez, então rasga-se um
sorriso sin­cero nos meus lábios e o Carter Brown torna-se o
meu messias.
Corro para o habitáculo do carro e atiro os sacos para o
banco de trás.
— A Jenna assinou?
— Não tinha opção. Espero que não me leves a mal por
ter sido tão radical.
Abano a cabeça, demasiado feliz para levar a mal o que
quer que fosse.
— Muito obrigado, Carter, do fundo do coração.
Ele sorri para mim, também com sinceridade, e arranca.
Saí­mos desta pobreza que sempre odiei, até mais do que
aos própri­os ricos. Abro a janela, gozo a sensação do ar no
meu cabelo e sol­to um grito de alegria que ecoa na noite.
Uma ideia fútil atravessa-me o espírito, mas reforça essa
ideia de mudança que faz o meu coração bater de uma
maneira total­mente nova: vou rapar a cabeça.
***
O Carter estaciona num bairro chique, em frente de um
prédio de um estilo detestável, recém-recuperado. Saímos
do carro, com os sacos nas mãos, e entramos no átrio.
O meu novo empregador bate a uma porta que se abre
dentro de segundos. É o Sean. Reconheço-o, já me cruzei
com ele várias vezes.
E dizer que o desprezava...
Arvora um largo sorriso, quando os seus olhos pousam
em mim.
— O Carter conseguiu deitar-te a mão? Bem-vindo ao
grupo, mano!
Dá-me um abraço caloroso.
Não digo nada, mas é o dia mais feliz da minha vida.
Como disse o boss, é um recomeço para mim.
O Sean pega nos meus sacos e faz-me sinal para entrar.
— Vais adorar os gémeos. Enfim, desde que não sejas
apanha­do no meio dos seus permanentes acertos de
contas...
Desaparece no corredor, mas não o sigo. Em vez disso,
volto-me para o Carter.
— Juro-lhe sobre o Draupnir que não se vai arrepender de
me contratar. Serei um dos seus homens até morrer.
— Não importa o que aconteça, nunca me vou
arrepender. Tu vais ser alguém, Jesse Mason.
Capítulo 24

O Carter dedicou-me o dia. Doze horas intensivas. Pensei


que ia ser mais meigo. Grande erro, o meu. Mostrou-se mais
autoritá­rio do que nunca. Não tive direito à menor falha.
O primeiro passo foi rever todas as informações sobre os
Reis da Lei que eu tinha integrado ontem à noite. Se não
manifestasse ter decorado até a pontuação dos seus
antecedentes criminais, o Carter forçava-me a reler tudo. A
origem de cada um, as características das suas famílias, os
elementos do seu presente e do seu passado não têm já
segredos para mim. Colón também não. O Carter ensinou-
me tudo o que eu precisava saber sobre a cidade, bem
como os pontos fortes e fracos dos gangues em redor.
Agora, vem a segunda etapa: captar a atenção do
público sem nunca a perder. Quem teria imaginado que o
Carter era um pro­fessor de oratória tão talentoso e
escrupuloso? Fizemos uma lista de palavras impactantes,
para usar durante a negociação. Corri­giu o timbre da minha
voz, para obter uma tonalidade intrigante para o ouvido. A
minha postura também foi escrutinada. Tenho de exalar
confiança e serenidade apenas com os ombros. Traba­lhámos
o meu olhar, para desenvolver o meu magnetismo. O Cár­ter
assegurou-me que, seguindo os seus conselhos, os Reis da
Lei se lembrariam da cor das minhas íris para o resto das
suas vidas. Para completar esta segunda lição, tratámos da
minha diferença, para que ela não jogue contra nós, porque
é uma faca de dois gu­mes. Pode afastar os Reis da Lei ou
intrigá-los.
A terceira etapa, e a mais perigosa: um curso de tiro.
Tentei evitá-lo, mas o Carter foi inflexível. Se eu não souber
usar uma arma antes da negociação, não participo. Os meus
ouvidos ainda estão a zumbir e só acertei no alvo quatro
vezes... numa centena de tentativas! O líder concluiu esta
sessão com uma deixa de um filme: «Nunca se sabe, num
mal-entendido, pode funcionar»31; que rebati com uma
citação do filme Tudo Bons Rapazes: «Tanto quanto me
lembro, nunca quis ser um gangster». Contudo, devo
admitir que, na verdade, não me empenhei nada naquilo.
Segurar uma arma não me atrai minimamente.
Foi um dia enriquecedor. O Carter é o tipo de homem
com quem se aprende muito. O seu cérebro encerra uma
enorme vari­edade de conhecimentos, que está disposto a
partilhar, se o inter­locutor estiver com vontade de os
receber. O seu pensamento fura os códigos, tem uma
perspetiva sobre a vida e a sociedade que pode irritar ou,
pelo contrário, impressionar. Por mais surpreen­dente que
seja, passei um momento excelente e espero secreta­mente
repeti-lo.
***
O despertar foi difícil, não dormi muito. Preferi reler pela
enésima vez as fichas que fiz, depois tive dificuldade em
adormecer. Também não consegui engolir nada desde o
meio-dia de ontem, apesar da insistência da Maria e do
Carter. Estou demasiado ner­vosa e pergunto-me
constantemente no que me meti. A sério, quem é que se ia
oferecer para negociar com criminosos? Estra­nhamente,
não temo pela minha vida. Estou mais apreensiva com as
dos Filhos do Diabo. Se eu falhar e lhes acontecer algum
desas­tre, nunca me vou perdoar.
Um Jesse em pânico entra pelo meu quarto. Agarra-me
pelos ombros e olha para os meus olhos.
— Diz-me que encontraste uma solução!
Sorrio para o sossegar.
— O Carter já...
— Na verdade, não importa nada! Vou dizer-lhe tudo,
para fi­cares segura no rancho!
E este não teme por eles, mas por mim.
Vira-se para ir ter com o chefe e eu seguro-o pelo pulso.
— Alto e para o baile!
Tem as feições crispadas e os punhos abrem e fecham.
— O Clarke disse-me...
— E desde quando é que o Clarke tem sido um símbolo
de luci­dez? — atalha.
— Não é, exceto no que diz respeito à minha segurança,
mas não é essa a questão.
Põe um ar de dúvida, mas sabe que tenho razão.
— Por Odin, em que te estamos a meter? — interroga-se.
Agarra o meu rosto com as mãos e beija-me a testa,
como se fosse a última vez, antes de dar meia-volta.
— Jesse! Vais deixar-me contar-te uma coisa, sim?
Ele vira-se para mim e, finalmente, posso dizer-lhe:
— O Carter está ao corrente. E encontrou-lhes um
território, no Panamá.
A incredulidade paralisa-o, mas o rosto enche-se de
orgulho. Atira-se a mim, eu descolo do chão e giro no ar na
ponta dos seus braços. Por último, abraça-me até quase me
quebrar os ossos.
— Tu és um génio!
— O mérito não é todo meu, mas aceito o elogio!
***
Ao meio-dia, o salão está cheio de Filhos do Diabo, Pais
do De­mónio e Anjos Negros, com os respetivos blusões de
couro enfia­dos. O Ethan também está presente.
O Carter foi muito claro. Os dois gangues aliados
intervêm apenas à fórmula mágica: «Chega de conversa!»
Permanecerão escondidos atrás do armazém, armados até
aos dentes com me­tralhadoras e granadas. Se as coisas
correrem mal e entrarem em cena, os Reis da Lei não terão
hipóteses. Nenhum deles sobreviverá.
Os Filhos do Diabo e o Ethan só têm autorização para
levar duas pistolas e três carregadores adicionais por
homem.
Sinto que estou num filme e tenho a sensação de que o
enredo evolui sem mim. Abano a cabeça para me recompor
e concentro-me nas palavras do Carter.
— Se houver um disparo, não importa de que lado, não
dão quartel. Matem-nos todos. Agora, equipem-se!
Os três gangues levantam-se em simultâneo e avançam
para a mesa, onde está pousada uma quantidade incrível de
armas, cada uma mais perigosa do que a outra.
Fico parada em pé, imóvel, e aguardo as próximas
instruções, quando o meu telemóvel vibra, anunciando uma
ligação da Lola. Atendo.
— Não tenho tempo para falar agora — aviso-a.
— O Carter — diz ela à pressa. — Não fazes a mais
pequena ideia do que eu fui encontrar!
Por essas simples palavras, percebo que fez a pesquisa
que lhe pedi. E as informações que reuniu parecem-me
interessantes.
— Estou a ouvir.
— Ele foi adotado pela família Arinson, após a morte dos
pais. Mike Arinson, o fornecedor de armas dos Filhos do
Diabo, é ir­mão adotivo do Carter! E isso não é a coisa mais
louca. Fundaram juntos a Arinson Arms, depois o Carter
abandonou o navio de re­pente, sem motivo aparente.
O meu olhar repousa imediatamente sobre a pessoa em
causa, que dá as últimas ordens.
— Tens a certeza?
— Dois mil por cento de certeza!
— Obrigada, Lola. Ligo-te mais tarde.
Desligo e coloco o telemóvel no bolso, sem desviar o
olhar do Carter, desconfiada.
Esse laço familiar, mesmo que não biológico, explica
porque o Carter contou ao Mike a meu respeito, antes de
irmos a Leamington. Mas porquê escondê-la, quando essa
informação poderia pe­sar na balança, na negociação com os
Reis da Lei? E pior, porquê fingir ser um bluff pretextar que
o Mike está do nosso lado, se não envolve mentira
nenhuma?
Todas as minhas perguntas terminam quando o Clarke se
diri­ge para mim. Dá a volta e puxa a parte de trás das
minhas calças de ganga, para enfiar uma arma no cós.
— Só por precaução — informa-me.
— Vamos embora, já! — ordena-nos o Carter.
— Ava, tu vens na mota comigo — ordena o Set.
— Deixa, eu levo-a — contesta o Clarke.
O melhor amigo acena com a cabeça e sai de casa,
escoltado pelos outros. Olho severamente para o ferido,
com as mãos nas ancas.
— Tu não vens, ainda não estás curado!
Num gesto inesperado, gentil e que me causa arrepios, o
Clar­ke passa uma madeixa do meu cabelo para trás da
minha orelha.
— Não é negociável, Avalone. Está fora de questão eu
ficar aqui à tua espera, sem saber se ainda respiras. Tu não
me impediste de sair quando o Set estava na merda, e
agora é a tua vida que está em jogo. Nada no mundo vai
fazer-me mudar de opinião, nem mesmo os deuses!
Volto a sentir a nuvem de borboletas na barriga, mas não
é de todo o momento certo. A sua presença tranquiliza-me
mais do que eu gostaria de admitir, por isso concordo, tal
como o Carter, que lhe permite acompanhar-nos. O Clarke
veste o blusão de cou­ro, antes de pegar nas duas últimas
armas que esperam por ele sobre a mesa. A mão do badboy
desliza sobre a minha e os dedos entrelaçam-se nos meus.
— Não te esqueças do que te disse ontem — atira o
Carter. — Vais conseguir, estás pronta. Só mesmo tu podes
assumir este pa­pel, Avalone. E... estou orgulhoso de ti.
As suas palavras provocam-me um efeito indescritível
que se repercute na minha pele. É sempre bom ouvir este
tipo de pala­vras gratificantes e, quando vêm de um líder de
gangue respeita­do, com quem estava em constante
confronto há não muito tem­po, é uma honra.
Faço um aceno de gratidão, então o Clarke e eu saímos
do sa­lão e, em seguida, da mansão. Os rapazes já estão a
descer a ala­meda nas suas motas e desaparecem
rapidamente entre as árvores.
O Clarke prepara-se para galgar os degraus da varanda,
mas eu paro e seguro-o pelas mãos entrelaçadas. Ele vira-
se para mim, confundido.
— Que se passa?
Fujo do seu olhar, incapaz de o enfrentar. No entanto, os
de­dos que coloca sob o meu queixo forçam-me a encará-lo.
O seu rosto é meigo e aberto.
— Tenho medo — confesso.
No seu rosto, rasga-se um sorriso que me aquece o
coração.
— Isso tranquiliza-me. Começava a perguntar-me se não
esta­rias completamente maluca. Não vais morrer, juro.
Sacudo a cabeça.
— Promete-me que vocês não vão morrer.
As sobrancelhas tremem-lhe e os olhos ficam em fogo
quando olha para mim, como se visse através da minha
carne, músculos e ossos, como se visse a minha alma. Os
seus dedos afundam-se no meu cabelo e os lábios cortam-
me a respiração. O meu coração salta, as minhas pernas
deixam de ser capazes de me sustentar. Graças aos deuses,
o braço do Clarke em torno da minha cintura segura-me
lindamente.
Respondo ao beijo com uma gentil carícia da minha
língua na dele e o Clarke rosna de aprovação. Envolvemo-
nos numa dança sensual, com as mãos a explorarem-se
mutuamente, lenta e deli­ciosamente. Separamo-nos sem
fôlego, mas não nos afastamos um do outro.
— Porque fizeste isso?
O Clarke passa o polegar sobre o meu lábio inferior e
mergulha um olhar perturbado no meu.
— Por alguns segundos, consegui libertar-me das
correntes que me mantêm prisioneiro.
Desprende-se de mim, desce os degraus da varanda e
monta na mota.
As minhas palavras que fixou e o seu encantador sorriso
fazem-me derreter. No entanto, recuso-me a ser enganada.
Há se­tenta e duas horas, estava ele a rebolar na cama com
outra.
— Ou não tinhas mais ninguém à mão para beijar —
troço.
— Ciumenta, Beleza?
Se o seu encantador sorriso me fez derreter, o que dizer
da provocante piscadela de olho?
— Só estou preocupada em saber se vou apanhar
mononucleo­se, sua besta!
Ele levanta os olhos para o alto e colo-me a ele, aliviada
por tê-lo perto de mim.
Passamos uns bons trinta minutos na estrada, antes de
chegar a um grande armazém, no meio de outros
abandonados. Um ver­dadeiro cemitério lúgubre e
esverdeado, desprovido de vida.
Como estamos intencionalmente adiantados, os Reis da
Leis ainda não estão cá.
Desmontamos todos com poucos segundos de intervalo e
eu avanço silenciosamente para a porta de metal que o
Clarke abre com um rangido mais do que desagradável.
Agarra a minha mão com força e arrasta-me atrás dele.
A pressão está no auge. Não posso deixar de me
perguntar se sairemos todos daqui vivos.
No meio do espaço gigantesco, há apenas uma mesa
redonda e quatro cadeiras. Estarei sentada numa delas, de
frente para o Lu­cas e o Elias, o afilhado do Reis da Lei.
Os três gangues verificam as armas e conversam sem se
mistu­rarem, enquanto o Clarke afasta uma madeixa do meu
rosto, para colocar um auricular. Esconde-o com o meu
cabelo e o Anjo jun­ta-se a nós, com o seu já colocado.
— Funcionam? — pergunto.
Deve estar a ouvir a minha voz e o eco no seu ouvido,
visto que diz que sim com a cabeça.
O Set e o Sean aproximam-se, por sua vez, com sorrisos
reconfortantes.
— Está tudo bem?
Confirmo com a cabeça, no entanto, as palmas das
minhas mãos estão suadas, a barriga está num feixe, o
coração bate acele­rado e a respiração é curta. Tenho de me
acalmar, para não ter as tonturas associadas à minha
doença e ao stresse.
— Estarei atrás de ti a todo o instante e o Sean estará
sentado ao teu lado, na segunda cadeira — tranquiliza-me o
Clarke.
À
Às 13h55, os Pais do Demónio e os Anjos Negros saem
pela porta dos fundos, com as metralhadoras já nas mãos. O
Justin ca­minha até à pequena janela que dá para o exterior,
enquanto eu enfio a minha T-shirt preta e o blusão de couro.
— Estás perfeita — tranquiliza-me o Set. — Se não
estiverem dispostos a ajoelhar-se diante da tua eloquência,
faço-o eu por uma razão completamente diferente.
Faz-me olhinhos e eu dou uma gargalhada, que tem o
mérito de me relaxar.
— Só me faltava ter a braguilha aberta... Lá arruinava as
seis horas que passei a ouvir lições do Carter sobre carisma.
Ele aperta os lábios, divertido, e abraça-me para me
acalmar. Deixa-me desfrutar deste abraço o mais possível,
mas ouvem-se os ruídos de motores ao longe. Os Filhos do
Diabo posicionam-se imediatamente na defensiva.
Se o coração me pudesse saltar do peito, era agora. Em
vez dis­so, falha uma batida ou duas, antes de voltar a bater
freneticamente.
O Justin, ainda em frente da janela, anuncia que vêm
realmen­te nas motas. Não há carros no horizonte.
Está na hora. As coisas sérias começam agora...
Afasto-me do Set, enquanto o Clarke me dirige um olhar
inter­rogativo. Está à espera que lhe dê luz verde.
Inspiro profundamente e fecho as pálpebras. Quando
expiro, as minhas mãos deixaram de tremer. Abstraio-me de
todos os ruídos que me cercam, para me concentrar no meu
objetivo.
Eu consigo fazer isto, eu tenho de fazer isto, eu vou fazer
isto.
Inspiro profundamente e, quando expiro, a adrenalina
começa a correr-me nas veias, substituindo lentamente o
medo e a dúvi­da, para me armar de coragem e de uma
determinação inabalável.
Só mesmo tu podes assumir este papel, Avalone. Estou
orgu­lhosa de ti.
Inspiro profundamente e, quando exalo novamente,
estou tão confiante que não sinto já o menor peso sobre os
ombros.
Transformada, abro os olhos e viro-me para o Clarke.
Com um sorriso calculado, deixo-o saber que estou mais
pronta do que nunca e vou para o pé da mesa. Sento-me
como previsto ao lado do Sean, na cadeira de frente para a
porta. Os Filhos do Diabo e o Ethan colocam-se atrás de nós,
imponentes e tensos, com as ar­mas ao alcance da mão.
O som da paragem dos motores e os segundos que se
seguem fortalecem a minha determinação. Endireito-me,
abro os ombros e levanto o queixo.
Regra número um do Carter: postura bem direita, cabeça
erguida.
Quando a porta se abre com o mesmo rangido
desagradável, estou perfeitamente serena, como se tivesse
feito isto a vida toda.
O Lucas entra primeiro, seguido pelo Elias e o Henzo, só
de­pois os outros. De músculos tensos, examinam o local,
permitin­do-nos observá-los. Usam blusões com a efígie do
seu gangue e exalam arrogância. O ambiente não os
impressiona, parecem se­guros de si mesmos em todas as
circunstâncias. No auge da vida, são fortes e duros,
variando entre os vinte e três anos do Cayton e do Isaq, e os
vinte e nove anos do Lucas.
O olhar do boss pousa finalmente em mim. Perde o
sorriso de soberba. A raiva dos nove mundos refugia-se nas
suas íris, no en­tanto, não por machismo. São os seus
valores a falar. Os Reis da Lei não matam nem mulheres
nem crianças. A minha presença atrapalha o seu plano de
recurso: eliminar os Filhos do Diabo. E, de repente, entendo
porque, apesar da minha falta de experiên­cia, o Carter
confiou em mim. Sou um trunfo, a sua arma secreta. O seu
seguro de vida.
— Mas que porra vem a ser esta?
Os seus olhos oscilam entre mim e os meus
companheiros. Não entende o motivo da minha presença
aqui, nem os seus ho­mens, alguns dos quais cospem para o
chão, de descontentamen­to. Ninguém pronuncia uma
palavra. Deixo passar alguns segun­dos, antes de me
levantar.
— Lucas.
Chamo a sua atenção, mas passo de imediato para o
afilhado.
— Elias.
Dirijo-me aos seus membros, um a um, saudando-os
pelos no­mes próprios. Sei exatamente quem são, enquanto
eles nem sa­bem a nossa identidade. Estou imediatamente
numa posição de força e, pelo olhar que o Lucas me deita,
ele está consciente disso. Espera que eu o apresente aos
meus, mas não o faço. Vou manter esta vantagem.
— Porra, onde está o vosso líder? — vocifera.
Olham fixamente para os rapazes, sem me ligarem
nenhuma, só que sou eu quem lidera a dança, hoje.
Respondo:
— O Carter? Está ocupado. Não tem tempo para este tipo
de assuntos.
Olhares de frustração e impaciência dirigem-se para
mim, mas não expresso medo nem inferioridade.
— QUERO VÊ-LO! — grita o Lucas, batendo com o punho
na mesa.
Miro as minhas unhas, desinteressadamente.
— Se ele vier até cá, não será para falar. Vão ter de se
contentar comigo, senhores.
O Henzo esboça um gesto com a mão, para pegar na sua
arma, mas antes que toque nela, aviso-o:
— Aconselho-te a deixá-la onde está. Estão catorze tipos
estaci­onados atrás do edifício, prontos para intervir ao
menor proble­ma. Então, sim, provavelmente conseguirão
matar alguns dos nossos, mas nenhum de vocês sairá daqui
vivo. A escolha é vossa.
Olho para ele e pestanejo com um ritmo rotineiro. Manter
os olhos bem abertos denunciaria a minha desconfiança,
mostraria que estou alerta, atenta, e iria contra a regra
número dois: manter um contacto visual confiante.
Os Reis da Lei transformam-se em cães raivosos e o
Lucas faz sinal ao seu homem para não tocar na arma.
— Pensei que estávamos aqui para negociar! — protesta
o chefe, com um olhar assassino.
Regra número três: impor o ritmo da discussão. Deixo
passar alguns segundos, antes de reagir:
— É verdade. Não estamos aqui para matá-los. Por outro
lado, tomámos as nossas precauções e tínhamos razão.
Lanço um olhar intenso ao Henzo e, em seguida, aponto
ao Lucas a cadeira à minha frente.
— Se quiseres fazer o favor de te sentares.
Ele puxa-a com uma calma fingida e ocupa o seu lugar.
Tem o rosto fechado e os maxilares contraídos. Sou eu quem
dá as cartas e ele não gosta disso.
— Vocês causaram-nos alguns pequenos inconvenientes
desde a vossa chegada. Têm uma última oportunidade de
deixar a cida­de antes de ripostarmos. Não faz sentido que a
tua Lylia fique órfã aos sete anos.
Uma explosão de raiva intensa atravessa as suas íris.
Deixo de lhe prestar atenção e olho para o afilhado, Elias.
— Ou que a tua mulher grávida, Catarina, fique sozinha a
criar esse bebé.
Olho nos olhos do Samuel.
— Ou que a tua avó fique sem ninguém para a apoiar.
Perder o filho, a nora, agora o neto... Que tragédia!
Regra número quatro: envolver todos os membros do
gangue na conversa, sob o risco de alguns se sentirem
excluídos. Por ou­tras palavras, a violência moral não deve
fazer qualquer discriminação.
O punho do Lucas cai sobre a mesa.
— ACHAS QUE ESTÁS NUMA POSIÇÃO DE FORÇA? —
vocifera.
— ESTOU NUMA POSIÇÃO DE FORÇA! — berro-lhe e
ponho-me em pé.
E para sustentar um pouco mais esta verdade, domino-o
de cima, de toda a minha altura, enquanto ele está
afundado na sua cadeira.
Não se ouve mais barulho nenhum, o sangue pulsa-me
nas veias.
Neste preciso momento, acabo de tomar o meu lugar
neste mundo de violência e rivalidades. Não me sinto uma
intrusa, nem uma menina a precisar de proteção.
— Estamos no nosso território, onde desenvolvemos uma
ali­ança com nada menos que sete outros gangues, que
engrossarão as nossas fileiras a nosso pedido. Temos os
polícias desta cidade na mão e meios financeiros que vocês
nunca terão, nem nos vos­sos sonhos mais loucos. O nosso
líder, Carter Brown, também co­nhecido como Carter
Arinson, é irmão de Mike Arinson, nosso fornecedor de
armas, vosso fornecedor de armas, que lutará nesta guerra
ao nosso lado.
O Lucas endireita-se instantaneamente e sinto os Filhos
do Di­abo tensos atrás de mim.
Eles estavam, portanto, cientes do relacionamento
familiar do Carter e do Mike.
— Quantos homens trabalham para ele? — pergunto.
— Cerca de trezentos — responde o Clarke.
Olho para o Lucas intensamente. Não tenho um ar
zombeteiro ou vitorioso, meramente realista, e quero fazê-lo
ouvir a razão.
— Desejas ver os teus morrerem numa guerra onde não
têm a menor hipótese?
Os seus homens olham-me fixamente, cheios de raiva; o
Lucas permanece em silêncio. Sabe que está perdido, só
não quer abdi­car com muita facilidade. Então, sento-me na
minha cadeira e viro a cara para o Jesse, que puxa o dossiê
que o Carter preparou e que trazia escondido debaixo do
seu blusão de couro. Entrega-mo e eu faço-o deslizar até
debaixo do nariz do líder dos Reis da Lei que, apesar do ódio
evidente que sente por mim, fica curioso.
— Eu sei porque estão cá. O valor da vossa moeda caiu
drasti­camente, as taxas de câmbio estão a subir
exponencialmente e os vossos cofres deixaram de se
encher. Nada a ver com essa história de antigo território.
Se os Diabos — além do Clarke e do Jesse — ficam
surpreendi­dos com esta revelação, não o demonstram.
O Lucas pega no ficheiro e vira lentamente as páginas,
en­quanto toma conhecimento das informações que recolhi
sobre Colón e os seus benefícios. São cerca de trinta folhas
que só o po­dem levar a aceitar este compromisso.
Olha para mim e debruça-se sobre a mesa.
— Tu tens jeito!
— Vimos de dois mundos diametralmente opostos. Vocês
co­nhecem as favelas, onde reina uma profusão de gangues.
O Esta­do brasileiro perdeu força, os assassínios são moeda
corrente. Os traficantes de droga comercializam em plena
luz do dia e a polícia é ineficaz, perdeu toda a autoridade.
Aqui, as regras são diferen­tes. À primeira prova
incriminatória, se vocês não tiverem um re­pertório de
aliados muito bem colocados, a polícia manda-os para trás
das grades e a prisão tornar-se-á o vosso novo lar. Como em
toda a parte, o dinheiro dá poder. A questão é: quanto
podem vo­cês pagar para comprar o primeiro polícia que vos
deite a mão, se se der o caso de ele se deixar corromper?
Se não sabem, vários milhares de dólares não seriam
suficientes. Todos os meses, têm de oferecer uma quantia
generosa a cada instituição que deva fe­char os olhos aos
vossos negócios. Posso dizer-te que não vão pas­sar aqui
quinze dias antes de a polícia de Ann Arbor lhes bater à
porta. Já no Panamá, as regras são as mesmas que vocês
conhe­cem, mas mais vantajosas: têm o dólar como moeda,
uma taxa de criminalidade 23% mais pequena, acesso
direto ao Canal do Pa­namá e a mercadorias ilegais...
Dou-lhe tempo para absorver esta informação e inclino-
me na sua direção.
— Que tal apanharmos ar fresco durante uns minutos?
Ele tem de compreender quem eu sou realmente, mas
não pos­so dar-me ao luxo de me abrir diante dos seus
homens. Ele preci­sa de sinceridade, algo que eu só posso
dar-lhe cara a cara.
Olhos nos olhos, o Lucas estende a mão para a porta,
como si­nal de que me segue. Levanto-me, mas o Clarke
segura-me firme­mente pelo braço. O badboy lança-me um
olhar severo, dissua­dindo-me de continuar, mas eu ordeno
aos Filhos do Diabo:
— Se não voltar dentro de cinco minutos, matem todos!
Dito isto, não me enterrem com eles, hein?
Regra número cinco: navegar entre a seriedade e o
humor.
Solto-me das garras do Clarke e caminho em direção à
saída, seguida pelo Lucas. Este para no umbral e lança um
olhar autori­tário aos seus homens.
— Nada de parvoeiras, entendido?
Eles confirmam com a cabeça e eis-nos ao ar livre.
Caminha­mos por alguns segundos pela estrada de terra
batida e viro-me para o líder dos Reis da Lei.
Este é o momento decisivo. Por isso, faço o que sei fazer
me­lhor: mostrar humanidade. Prego o meu olhar no seu,
para que possa ler em mim; aproximo-me o suficiente para
que ele se sinta num estado de superioridade, devido ao
seu tamanho e força. O discurso que fiz no armazém irritou
o seu ego de líder de gangue, mas tem de entender que não
estou aqui para o humilhar.
— Sem a minha insistência junto do Carter, vocês já
estariam enterrados seis metros abaixo do chão. Vislumbrei
a questão hu­mana por detrás da vossa afronta e não sou a
única que lhe é sen­sível. Não queremos um massacre nem
perda de vidas, do nosso lado ou do vosso. Ninguém deve
morrer, quando há tantas solu­ções que podemos encarar.
Podemos viver todos, Lucas. Derra­mar sangue não lhes dará
território, nem solução para o vosso problema.
Com as mãos enfiadas nos bolsos, ele levanta o rosto em
dire­ção ao sol.
— Um bom boss não foge às dificuldades.
— Mas um bom boss sabe tomar as decisões certas para
manter os seus homens vivos. Não te estou a pedir que
fujas, estou a pe­dir-te que vivas.
Regra número seis: não ser simpático até ganhar o
respeito do outro.
A forma como ele me olha não podia ser mais humana.
— Permanecer vivo, mas voltar para Brasília sem poder
ali­mentar os nossos, não é a decisão certa.
— Concordo contigo. Foi por isso que pesquisei o Panamá
e o Carter encontrou um território para vocês, em Colón. Ele
está dis­posto a oferecer-lhes cento e cinquenta mil dólares
para firmarem a vossa autoridade, desenvolverem novos
negócios, voltarem a ter as vossas famílias junto de vocês e
pagar os seus cuidados médi­cos. Oferece-lhes os meios
para acreditarem no futuro, Lucas.
Os seus olhos estão semicerrados e cheios de questões.
— Porque devo confiar em ti?
— Porque estou aqui a conversar contigo, quando podia
estar em segurança no rancho. Porque sou apenas uma
jovem de deza­nove anos, mal saída do ninho da família, que
se inicia no mundo dos gangues, mas odeia a violência e
pensa que cada vida conta. Porque corri o risco de ser morta
pelos meus, pelos teus e pela minha consciência. É a tua
vez de apostar em confiar em mim, nos teus e na tua
consciência.
Ele fita-me intensamente, tentando intercetar no meu
rosto a menor expressão que me trairia. Mas não vai
encontrar nada, porque estou a ser apenas honesta e
transparente.
— Então? Temos acordo?
Ele olha-me por mais um momento e, por fim, confirma
com a cabeça. A tensão escapa-se dos meus ombros e não
consigo es­conder a minha alegria. A máscara de
superioridade e confiança que eu tinha montado com o
Carter desapareceu completamente. Agora devo parecer
uma miudinha que acabou de pintar o dese­nho sem sair dos
riscos.
A minha alegria parece ser contagiante, quando o Lucas
me estende a mão, com um sorriso sincero. Fazemos um
toque de pu­nhos amigável, onde é flagrante o respeito
mútuo.
Tiro do bolso interior do meu blusão de couro o maior
envelo­pe com notas que já vi e entrego-o ao Lucas.
— Estão aí setecentas e cinquenta notas de cem dólares,
ou seja, setenta e cinco mil dólares. Vão receber outro tanto
na fron­teira, amanhã de manhã. Vão ser parados para uma
inspeção e saem com um segundo envelope.
Ele verifica o conteúdo, antes de soltar uma risadinha
incrédu­la. Também ele nunca teve tanto dinheiro nas mãos.
— Devo admitir que não te falta garra. Gosto de ti.
Pisco-lhe um olho e voltamos para o armazém. Por uma
fração de segundo, digo a mim mesma que foi demasiado
fácil, que tal­vez seja uma armadilha, para eu baixar a
guarda. Só que quero confiar na humanidade e afasto esses
pensamentos negativos.
De regresso ao pé dos seus, o Lucas pega no ficheiro que
conti­nua em cima da mesa.
— Vamos embora!
Os seus homens franzem a testa, alguns surpreendidos,
outros irritados; no entanto, o olhar autoritário do boss fá-
los obedecer.
O Lucas deixa-os passar à sua frente, como se esperasse
resis­tência da parte de algum deles, e, uma vez todos
obedientemente na rua, vira-se para mim.
— Obrigado... — começa e fica suspenso.
— Avalone.
Ele acena com a cabeça e faz um esgar. Deita um olhar
arro­gante para os Diabos, como líder que representa ser. Sai
do arma­zém e a porta fecha-se atrás dele.
Cada segundo que passa é marcado por um batimento
do meu coração, num silêncio de chumbo.
— Pelo olho de Odin, o que é que tu lhe disseste? —
pergunta-me o Set, impressionado.
Volto-me para ele e os olhares orgulhosos dos meus
amigos permitem-me perceber o que acabei de conseguir.
A descarga de adrenalina deixa-me exausta, como se
tivesse corrido uma maratona.
— Fiz com que ele entendesse que a entreajuda seria
mais benéfica.
— Ava, sobre o Carter e o Mike... — começa o Sean.
— Não se cansem — corto. — Estou acostumada às
vossas men­tiras, portanto o que me escondem não deve ser
pior...
Nem estou com raiva. Estou apenas aliviada por tudo ter
aca­bado. Só quero uma coisa: voltar para a residência na
universida­de e ficar na cama por uns dias.
Vou até à porta e saio do armazém. Tenho de esperar
vários segundos para que a minha visão se ajuste à
diferença da luz e ver os Reis da Lei a trinta metros de
distância, perto das suas motas; mas os gritos do Lucas
chegam até mim muito antes.
Discute com o Henzo, em espanhol32. As aulas que tive
no se­cundário permitem-me entender as principais linhas do
discurso do líder.
«Estávamos desesperados. Precipitámo-nos sem saber
por onde caminhar.» A não ser que seja: «sem saber onde
púnhamos os pés. Tomei uma decisão. Vais respeitá-la.
Monta na porra da tua mota e vamos embora desta
cidade!»
Com os punhos cerrados e o rosto distorcido pelo ódio, o
Hen­zo monta a mota e arranca. Com a sensação de que
algo horrível vai acontecer a tomar conta de mim, a
adrenalina volta a subir no meu corpo a alta velocidade.
— Fujam sem mim! — grita-lhes o Henzo.
Acelera e fulmina-me com um olhar de nojo.
Saca da arma.
Mira.
Puxa o gatilho.
De repente, nasce no meu abdómen uma dor tremenda
que me tira o fôlego.
Cambaleio para trás e a minha mente é obscurecida por
um peso lancinante, que me faz perder todas as forças. As
minhas mãos trémulas vão automaticamente para a área de
impacto e os meus olhos deparam-se com sangue. Muito
sangue.
O Henzo foge na mota e ouço berros. Os Reis da Lei
correm na minha direção, enquanto eu vacilo. As minhas
pernas vão-se abaixo e o Clarke segura-me. Os seus lábios
movem-se, mas não consigo ouvir nada. O seu rosto está
pálido como a morte e o ver­de desapareceu das suas íris,
para deixar apenas escuridão.
A minha visão turva-se, mas as palavras do Ethan
atravessam a névoa da minha audição.
— LEVEM-NA LÁ PARA DENTRO!
O Clarke ergue-me e eis-me novamente no armazém.
Ordena aos Anjos Negros que persigam o Henzo, pousa-me
no chão e o cirurgião aparece por cima de mim. A onda
glacial que se espalha por todos os meus membros faz-me
estremecer.
— Tragam o meu saco!!!
Está apavorado, mas não posso tranquilizá-lo. Não
consigo fa­lar, vai para lá das minhas forças. Cada respiração
é uma tortura, cada segundo que passa, uma agonia.
— Ela está a perder demasiado sangue, está com uma
grande hemorragia!
O Ethan rasga a minha T-shirt e pressiona a ferida. Se
pudes­se, berraria de dor para esvaziar os pulmões. Tento
libertar-me dele, pois a dor é intensa, só que não consigo
mexer-me.
— Fica connosco, sobretudo não adormeças!
Tudo no seu tom e feições trai a urgência da situação. O
Tuc­ker ajoelha-se e mantém o ponto de compressão,
enquanto o Ethan vasculha apressadamente na mala. O
Anjo deixa-se cair ao meu lado, branco como um lençol.
— Vocês estão mortos.
A voz grave do Clarke atrai o meu olhar sobre ele.
Aproxima-se perigosamente do Lucas e do seu gangue, que
recuam no hangar. Não fugiram, ficaram. Mas o Clarke
transpira de vontade de ma­tar. Saca da arma.
Imediatamente, os Reis da Lei reagem, mas o Lucas berra-
lhes que baixem as armas. Isto sem contar com a rea­ção
dos Diabos e dos Pais do Demónio. Se se ouvir um tiro,
have­rá quinze mortes, ou mesmo mais.
Não posso deixá-los estragar o que acabei de conseguir.
— Clarke...
Não sei se sussurrei ou gritei. Em compensação, a dor é
fulgu­rante. O afilhado do Carter volta-se bruscamente para
mim, com o olhar cheio de uma multiplicidade de emoções,
onde o ódio e o medo predominam.
— Baixem a merda das armas, porra! — grita o Anjo.
Os Pais do Demónio obedecem ao afilhado. Apenas os
Reis da Lei e os Filhos do Diabo persistem em se defrontar.
— Foi por todos vocês que a Avalone assumiu estes
riscos hoje, que se colocou em perigo! E vocês querem
votar ao desprezo o que ela acabou de conseguir? Querem
matar-se uns aos outros, enquanto ela se desfaz em
sangue?
O Lucas ordena segunda vez aos seus homens que
deponham as armas. Os Filhos do Diabo não tardam a
seguir-lhes o exemplo.
O punho do Sean afunda-se na parede, o Set tem o rosto
es­condido nas palmas das mãos e o Justin cai numa cadeira,
com os olhos cravados nas mãos do Ethan, manchadas com
o meu san­gue. O Tucker e o Jesse estão ao meu lado, com
as feições distor­cidas por um medo intenso, como se um
membro da família fosse morrer.
É isso que eu sou? Um membro da família deles?
Sinto uma lágrima escorrer pelo meu rosto. O ar tem
cada vez mais dificuldade em encontrar o caminho para os
meus pulmões.
— Eu... consegui — balbucio para o Jesse. — Salvei... as
vossas vidas, devem-me... essa. Então... portem-se... bem.
O Diabo da cabeça rapada ri com uma careta de
desânimo e o Sean aproxima-se, com os olhos tão brilhantes
que uma lágrima pode cair deles a qualquer instante.
— TIRA A PORRA DA BALA DE DENTRO DELA! — berra o
Clarke ao Ethan.
— Não posso! É preciso levá-la para o hospital!
A oração que o Tucker sussurra aos deuses acalma-me e
estre­meço quando o Justin atira com a mesa, que bate
contra a parede.
Como se a alma estivesse a deixar o meu corpo, a dor
desapa­rece gradualmente, para dar lugar a uma sensação
de bem-estar e de plenitude. A minha visão turva-se e os
olhos fecham-se, sem que eu consiga lutar por mais tempo.
Sinto as mãos do Jesse a segurar-me suavemente no rosto,
como último contacto.
— V, fica connosco, não adormeças, tens de aguentar-
te...
— Avalone!
— Oh! Beleza, acorda, por favor...
— NÃO, NÃO, NÃO, NÃO!
Não lutei com armas, mas com palavras. Isso faz de
mim uma guerreira? Será que Odin me vai enviar as suas
Valquírias33 para me levar aos portões do Valhalla? Eu, que
estava destinada a morrer de paragem cardíaca, podia
muito bem fazer um esforço para conseguir uma reviravolta
espetacular.

31 Réplica da comédia Barracas na Neve.


32 Sic. (N. da T.)
33 Na mitologia nórdica, as Valquírias são as guerreiras

de Odin, cujo papel é sobrevoar os campos de batalha e


apontar os guerreiros caídos que deverão ser levados para o
Valhalla.
Capítulo 25

Ele mira.
Atira.
Sangue.
Muito sangue.
E uma dor insuportável.
Endireito-me bruscamente, enjoada, e a dor dos meus
sonhos torna-se realidade. Soltei um gritinho de animal
desesperado. Sinto que todos os meus órgãos foram
trocados de lugar e que não devia estar viva.
Com dores, deito-me com uma careta. Os meus olhos
recaem sobre as ligaduras que envolvem o meu abdómen.
Deuses Todo-Poderosos... O Henzo quis matar-me!
Obviamente, falhou.
Com a mão trémula, apalpo a pele em volta da ferida e
conte­nho um gemido. Silvo entredentes e pisco as
pálpebras, para en­golir as lágrimas.
O meu cérebro está envolto num nevoeiro de que tenho
difi­culdade em emergir. Estou confusa e luto para me
conectar com a realidade.
Os meus olhos seguem os fios ligados ao meu corpo até
ao equipamento médico que regista a minha frequência
cardíaca e observo o ambiente. Não estou no hospital. Estou
no meu quarto em casa do Carter, e o Sean e o Justin estão
a dormir em poltro­nas ao lado da minha cama. A sua
presença à beira da cama tran­quiliza-me e provoca-me um
sorriso de ternura. Coitados, devem estar todos doridos... A
posição deles não é nada agradável.
Com a língua pastosa, retiro a cânula de oxigénio do
nariz e os diferentes fios que permitem monitorizar as
minhas funções vi­tais. Rasgo a fita que cobre o cateter da
minha perfusão e retiro a agulha da veia. Quando me liberto
dolorosamente dos lençóis, paro por um momento. Dou-me
conta de que estou vestida com uma camisa ampla e
descontraída, e que cheiro a gel de banho.
Por todos os deuses, se ousaram despir-me e lavar-me,
eu mato-os!
Assim que coloco os pés no chão, a cabeça começa a
girar. As recordações aproveitam para me dominar, e fico
toda mareada.
O Henzo disparou em cima de mim e, pelas palavras do
Ethan, eu devo ter-me passado novamente.
Vá-se lá saber porquê, os deuses estão a esforçar-se para
te dar um segundo alento, digo a mim mesma.
Terrivelmente fraca, permaneço sentada por alguns
segundos, para reunir as poucas forças que me restam.
Respiro fundo e le­vanto-me com um palavrão provocado
pela dor.
Com a mão sobre a cómoda para manter o equilíbrio,
recupero o fôlego. Uma gota de suor desce-me pela coluna
vertebral.
Com um passo verdadeiramente ridículo, caminho para a
por­ta, sem fazer barulho, para evitar acordar os rapazes.
Viro para o corredor e apoio-me contra a parede. Pela
primeira vez, amaldi­çoo esta mansão por ser tão grande.
Demoro uns minutos intermináveis a chegar à cozinha,
sem me cruzar com ninguém. Por fim, desisto de estender o
braço para tirar um copo do armário. Em vez disso, lavo a
chávena dei­xada no lava-loiça e encho-a com água. Cheia
de sede, esvazio-a de uma só vez e encho-a de novo.
Fico petrificada quando percebo que não faço ideia do
que aconteceu quando perdi a consciência. O Clarke
explodiu e foi atrás dos Reis da Lei? Atacaram-se
mutuamente?
— Ava?
Volto-me bruscamente, ignorando a dor no meu
abdómen e dou de caras com um Set espantado por me ver
aqui. Um grande sorriso ilumina-lhe o rosto, mas não tenho
tempo para grandes efusões emotivas.
— Os rapazes estão bem? Diz-me que estão todos vivos!
— Como te sentes? O que estás a fazer a pé? Tens de
descansar!
Agarro a T-shirt dele com os punhos e abano-a, no limite
da minha paciência.
— Set, eles estão bem?
Divertido, ele agarra-me pelos ombros, para me
imobilizar.
— Sim. Mais ninguém ficou ferido.
Solto um suspiro profundo e o resto da malta surge à
entrada da cozinha. Ora felizes, ora aliviados, ora mesmo
preocupados, nenhum sabe que emoção fazer prevalecer.
— Mas o que estás tu a fazer levantada?! — ruge o
Clarke, louco de raiva.
Os seus olhos esbugalham-se ao ver as costas da minha
mão, que, por sinal, está a pingar sangue.
— Tu paraste a perfusão!
Inquietação. Acabaram todos por optar pela inquietação
e ei-los a olhar fixamente para mim, com severidade.
— Estava com sede. Muita, muita sede.
O riso nervoso do Ethan atrai olhares de desaprovação
para si e, quando a risada fica incontrolável, todos o imitam,
para aliviar a tensão. Exceto o Clarke.
— Porra, pregaste-nos um susto de todo o tamanho!
— Mesmo acabada de sair da cama, com um buraco no
estôma­go, continuas a ser uma criatura das mais tesudas.
Divertida, finjo uma vénia um tanto vacilante.
— Encantada por ser um prazer para os teus olhos,
Collins.
O Ethan vem ter comigo e trata de limpar e desinfetar a
minha mão.
— Mas que porra vem a ser esta? Porque é que o quarto
da Avalone está vazio? — grita o Carter Arinson, do corredor.
Entra na cozinha e fica siderado quando me vê. Como os
Fi­lhos do Diabo antes dele, olha-me fixamente, com
severidade, mas um vislumbre de alívio brilha nos seus
olhos.
— Estava com sede.
Ele arqueia as sobrancelhas.
— Porque não pediste aos rapazes?
— Estavam com um ar muito descansado nas suas
poltronas.
O Sean e o Justin massajam a nuca e fazem uma careta,
en­quanto um sorriso se esboça nos lábios do líder.
— Fico feliz por te termos novamente entre nós.
— Quanto tempo dormi?
— É melhor não saberes — responde o Tucker. — Tivemos
mão pesada na morfina.
Que grande merda...
Já me estou a imaginar afogada numa tonelada de
trabalhos, para recuperar o atraso das aulas. O Clarke
parece ler a minha mente, porque levanta os olhos para o
alto.
— Avalone, posso falar contigo no meu escritório? —
pede o Carter.
Concordo. Já cálculo qual o assunto de que me quer falar
e, para dizer a verdade, não lhe quero mal. Os seus laços
familiares são problema dele, embora eu ache que era
importante para a ne­gociação eu ter tido conhecimento
deles.
O Ethan aproxima-se para me ajudar a deslocar-me; no
entan­to, instintivamente, afasto-o. Habituei-me a mostrar-
me forte em todas as circunstâncias. Dito isto, e pensando
em quanto tempo demorei para chegar aqui, mudo de
ideias e aceito de bom grado a sua ajuda. Há momentos em
que temos de saber deixar-nos ir. Este é um deles.
Os rapazes afastam-se e seguimos o Carter até ao
escritório. Sento-me na cadeira à sua frente, com o apoio do
Ethan, que nos deixa sós.
Um vislumbre de inquietação brilha nos olhos do líder
dos Fi­lhos do Diabo. É quando me lembro do que ele disse
na outra noi­te durante o jantar.
A verdade virá ao de cima, aconteça o que acontecer. É
ape­nas uma questão de tempo. E quanto mais a
ignorarmos, mais danos causará.
Durante um longo pedaço de tempo, o Carter não diz
nada e chego mesmo a pensar que nenhuma palavra lhe irá
passar pelos lábios. Suspira.
— Quero falar-te sobre os laços que partilho com o Mike.
Aceno com a cabeça. Por mais curiosa que esteja, sinto-
me como uma intrusa no seu passado. Se eu não tivesse
descoberto a verdade pelos meus meios, ele nunca me iria
informar.
— Éramos inseparáveis desde a mais tenra infância. As
nossas famílias conheciam-se como se fossem uma só. Eu
tinha nove anos quando os meus pais morreram num
acidente de automóvel. Foi quando os do Mike me
adotaram. Posteriormente, o Mike e eu construímos a
Arinson Arms juntos. Após alguns anos, as nos­sas visões
sobre o futuro da empresa divergiram. Fui ator e teste­‐
munha das brigas que se multiplicaram entre nós. Preferi
aban­donar o navio, para preservar o nosso relacionamento,
e criei os Filhos do Diabo.
A escolha do Carter foi humilde, o que é respeitável da
parte dele. Mas esta informação é apenas uma introdução.
O mais im­portante é o que vem a seguir.
— Porque me escondeu isso? Porquê escondê-lo dos
outros gangues, quando isso o colocaria num pedestal?
Fico estupefacta com a tristeza que lhe atravessa o olhar.
Não achava que um homem como o Carter pudesse
mostrar-se tão vulnerável, ao ponto de me arrepender da
minha pergunta. Ta­manha tristeza leva inevitavelmente a
uma história terrível, que eu não tenho certeza de querer
ouvir.
— A mulher do Mike engravidou. Só que, naquela época,
ele cometeu um erro terrível: enganou os Irmãos de Sangue,
o gan­gue mais poderoso e sanguinário dos Estados Unidos.
Por vingan­ça, decidiram tirar a vida ao seu filho, ainda por
nascer. Conse­guimos fugir os três, mas... na precipitação,
um acidente de auto­móvel tirou a vida à mulher e,
consequentemente, ao bebé.
Prendo a respiração e luto para não imaginar o horror da
cena.
— Tentámos salvá-los...
A voz treme-lhe tanto que sinto falta do Carter Brown
impassí­vel. Nunca desejarei uma tragédia destas, nem
mesmo ao meu pior inimigo. As mãos do Carter agarram-se
à mesa, solta um sus­piro profundo e acalma-se.
— Os Irmãos de Sangue poderiam ter ficado satisfeitos
com o infortúnio do Mike, mas a sua sede de sangue era
enorme. Orgu­lhosamente, anunciaram que, a partir de
então, todos os recém-nascidos da família Arinson lhes
pertenceriam.
Um silêncio sufocante abate-se sobre nós. Se eu não
estivesse petrificada com esta história horrível, sacudiria a
cabeça para a tirar da minha mente para sempre.
— Na época, eu queria ter filhos — continua o Carter. —
O Mike e eu decidimos que era mais sensato afastarmo-nos
e esconder­mos o nosso parentesco, para proteger os meus
futuros descen­dentes. Então conheci a Kate, que é estéril. E
carregávamos esse segredo há tanto tempo, que preferimos
guardá-lo só para nós.
A culpa por ter confessado aos Reis da Lei que o Carter
era um Arinson teve em mim o efeito de uma estalada
violenta.
Por todos os deuses...
— Tenho a maior... — balbucio.
O Carter abana a cabeça, com um leve sorriso no rosto.
— Não precisas de lamentar, Avalone. A culpa é minha.
Eu de­via ter-te confidenciado isso, como fiz com os Filhos do
Diabo. Afinal, tu provaste várias vezes que és digna de ser
um membro pleno do meu gangue.
Estas palavras ter-me-iam feito querer vomitar, há
algumas semanas, mas, hoje, emocionam-me e sinto-me
orgulhosa delas, o que me assusta ainda mais. Porque algo
me diz que os Irmãos de Sangue não são coisa do passado.
Fugir não vai resultar indefi­nidamente, um confronto — que
não desejo minimamente — há de ter lugar, mais dia menos
dia.
— Posso perguntar-te como obtiveste essa informação?
— per­gunta, preocupado que outros a descubram.
— Pela Lola, a meu pedido. Ela é daquelas pessoas
nascidas para entrar para o FBI. Não faço ideia de como a
obteve. Mas pode confiar nela. Ela guarda segredo disso.
— Eu sei. Agora, vai descansar.
Digo que sim com a cabeça e levanto-me devagar. Antes
de cruzar a porta, o Carter chama-me.
— Eu disse que, depois da negociação, podias voltar para
a re­sidência... No entanto, com o Henzo a monte, não é
seguro, per­cebes isso?
Confirmo com a cabeça. Vi a morte demasiado perto,
para re­cusar a sua segurança, e a sua presença já não me é
tão insuportá­vel ou sequer desagradável.
— Mas não vai chatear a Lola, estamos de acordo quanto
a isso?
A diversão baila-lhe nos lábios.
— Continuas a achar que sou um monstro, hein?
Arqueio uma sobrancelha.
— O senhor não é intrinsecamente mau, Carter Arinson.
Retiro a sociopatia do seu diagnóstico. Mas continua a ser
um monstro.
Ele leva as mãos ao coração e finge ter sido ferido,
recebendo da minha parte uma explosão de riso sincera.
Sacode a cabeça com jovialidade, visivelmente feliz por as
nossas relações terem melhorado.
— Fizeste um trabalho excelente, Avalone. Salvaste
muitas vi­das, podes estar orgulhosa de ti mesma. Por outro
lado, tenta não levar com uma bala da próxima vez.
Aponta-me a porta, depois de eu me oferecer, com ar
bem sé­rio, para lhe marcar uma consulta com um
psiquiatra.
O Ethan vem imediatamente ao meu encontro, para me
ajudar a ir para o quarto.
Tenho um sorriso parvo estampado na cara, quando
caminha­mos pelo corredor. Lutar incessantemente com o
Carter é esgotante. Estar de boas relações com ele não é
tão complicado, quan­do ele não rivaliza com o Clarke pelo
trono do rei dos filhos da mãe.
— Sabia que era apenas uma questão de tempo até o
Carter te mostrar o ser humano respeitável que dorme
dentro dele.
— A vida é uma cabra. E muda os homens; fortalece-os
para os proteger, ocultando as suas qualidades. O Carter é
um exemplo disso.
O Ethan concorda com a cabeça e chegamos ao meu
quarto.
— A partir de agora, venho examinar-te duas vezes por
dia. Quase morreste, tiveste sorte!
Passo a mão pelo seu braço, agradecida.
— Foi graças a ti. Obrigada.
— Na verdade, não foi. A bala atingiu a aorta e estavas a
esvair-te em sangue. Estanquei o sangramento, mas
tiveram de te trans­portar para uma clínica privada. Um dos
médicos devia-me um favor e não notificou a polícia. Foi ele
que te salvou.
A inconsciência sempre me provocou calafrios. Estamos
num lugar familiar, com as pessoas que amamos, e, no
momento se­guinte, o nosso corpo viaja e passa por coisas
das quais não temos qualquer memória.
— Era o que eu estava a dizer. Sem ti, já estaria morta,
por esta altura. Agradeço-te infinitamente.
Ele recusa os meus agradecimentos, com um rosto duro.
— Não estás a perceber, Avalone. Com a tua doença, não
te po­des dar ao luxo de depender de um cirurgião de mão
instável, sem acesso a nenhuma tecnologia médica. Já
tenho grande dificuldade em tratar adequadamente os
rapazes, quando são gravemente fe­ridos. Então, tu, és uma
missão impossível. Com um coração como o teu, precisas de
esterilização, rapidez e precisão, equipa­mentos e
tratamentos. Não te posso oferecer nada disso... Se eu tocar
em ti quando estiveres em estado crítico, mato-te, Avalone.
Coloco as mãos nos seus ombros e sorrio ternamente.
— Obrigada.
— Caraças, entendes o que te estou a dizer?
— Obrigada por seres um bom cirurgião, consciente das
suas fraquezas, capaz de se adaptar e encontrar soluções.
Soubeste logo que não me podias tratar, ouvi-te bem. E
encontraste alguém que podia. Sem ti, eu não estaria aqui,
Ethan. Por isso, muito obrigada.
— Oh...
Tomo-o nos braços e recebo aquele abraço reconfortante.
Sempre acreditei que ia morrer de insuficiência cardíaca e
preparei-me para isso durante muito tempo. O Henzo foi um
aconteci­mento inesperado, insuportável para mim. Não
passei mais de dez anos da minha vida a aceitar que a
minha doença vai acabar comigo, para vir alguém tomar
uma iniciativa destas.
O Ethan deve sentir a minha angústia, já que o seu
abraço vai além da mera cortesia.
— O que aconteceu ao Lucas e ao seu gangue? —
pergunto, separando-me dele.
— Pensei que o Clarke os ia matar. Os Filhos do Diabo
começa­ram a passar-se com a quantidade de sangue que
estavas a per­der, não te conto a carnificina. Então, havia
que escolher: vingar-se ou salvar-te. A decisão foi tomada
rapidamente. O Lucas insis­tiu em esperar pelo fim da tua
operação, antes de sair do país. Transmitiu-me as suas mais
profundas desculpas e agradecimen­tos pela tua gentil
intervenção. Neste momento, já devem estar no Panamá.
Um largo sorriso rasga-se nos meus lábios. Fico feliz por
ter terminado em bem. O Lucas não hesitou muito, antes de
escolher a não-violência. Merece felicidade e serenidade
para os seus entes queridos.
— O Clarke talvez se mostre distante.
Franzo a testa e inclino a cabeça para o lado, convidando
o Ethan a continuar.
— Ele culpa-se e sabes como ele reage aos seus
tormentos.
Afasta-se.
Rio-me sem alegria nenhuma. É manifestação de
deceção e cansaço. Já temos o Henzo a dar-nos chatices,
não me apetece en­frentar um Clarke perdido nas suas
emoções.
— Vou-me embora. Liga-me, se tiveres o mais pequeno
problema.
O Ethan agradece às Nornas por me manterem viva,
beija a minha testa e vai-se embora.
Penso no calor dos meus lençóis para passar outra noite,
mas tenho uma vertigem. Passo a mão pela testa e sinto a
presença do Clarke. Caminha na minha direção, de olhar
grave, enquanto a minha visão se turva. As pernas cedem
brutalmente sob o meu peso, os seus braços seguram-me.
Agarra-me contra o peito e olha-me fixamente, preocupado.
— Parece que é a tua vez de ficares na cama, Beleza.
Sorrio, no meio da bruma, e tudo desaparece à minha
volta.
***
O meu estômago, gritando de fome, tira-me do sono.
Antes de me conseguir endireitar, tenho de, mais uma vez,
retirar os fios do meu corpo e a cânula que me traz o
oxigénio. Não sei quem os repôs, mas são provavelmente os
instrumentos médicos que mais odeio no mundo.
Apanho o telemóvel na mesa de cabeceira e vejo as
chamadas perdidas, bem como as mensagens recebidas
desde a negociação. A Lola é a principal remetente. Avisa-
me de que está ao corrente da minha situação e que
pretende matar os Filhos do Diabo. Os meus amigos
também sabem o que se passa, graças à minha que­rida
colega de quarto, que armou um escândalo quando o Set a
informou do que se tinha passado. Digo a todos que ainda
não bati as botas e garanto-lhes que me estou a portar
bem.
Endireito-me e faço uma careta de dor, mas é menos
aguda do que no meu anterior estado de consciência. Não
sei exatamente quantos dias passaram desde a negociação
e prefiro ficar na ignorância.
Levanto-me da cama e saio do quarto na obscuridade da
noite, para ir buscar comida. A casa está mergulhada numa
calma abso­luta. Entro na cozinha, em busca de qualquer
coisa que possa ser comestível.
Passos abafados anunciam a chegada de uma pessoa.
— Como te sentes?
Tiro o nariz de dentro do frigorífico e olho para o Clarke,
en­costado na ombreira da porta. Luto com todas as minhas
forças para não fixar o seu peito nu, muito menos as calças
de treino que traz descidas pelas ancas; mas só o facto de
saber isso me deixa subitamente com calor.
Por todos os deuses, uma criatura assim não devia
existir, é desumano!
— Estou capaz de correr uma maratona — respondo. — O
que vem absolutamente a propósito, já que, depois de ter
obtido o dis­tintivo de negociadora, foco-me agora no de
atleta.
Faz um esgar. O meu coração entra em pânico, quando
ele se move na minha direção. Dou um passo atrás,
pedindo-lhe silenci­osamente para não se aproximar.
Estou demasiado frágil, física e mentalmente, para agir
corre­tamente e não sei o que faria se ele ficasse demasiado
perto de mim.
Mas o Clarke Taylor está-se completamente nas tintas
para o que eu quero. Continua a reduzir a distância entre
nós e sou for­çada a colocar a mão no seu peito nu para o
deter. O calor da sua pele aquece-me a palma da mão, o
meu braço e o meu corpo todo. Não posso sustentar o seu
olhar sem o desejar, por isso mantenho os meus olhos
colados à minha mão, que ainda não se moveu do peito
dele.
— Clarke, eu...
Incapaz de formar uma frase, quebro todos os contactos
e rodeio-o para voltar ao frigorífico. Tiro os ingredientes
necessários para preparar uma sanduíche e coloco tudo na
ilha, diante do Clarke, que me observa sem dizer uma
palavra. Estou a arrumar tudo, quando a voz dele me
provoca um sobressalto.
— Não vai voltar a acontecer.
Atrevo-me a olhar na sua direção e a encarar o seu rosto
fechado.
— O quê?
— Pores-te em perigo por nós. Acabou.
Os seus belos olhos verdes estão apagados, a culpa
transpira de todos os seus poros e acrescenta uma fenda na
sua alma. Ele culpa-se muito mais do que eu poderia
imaginar, muito mais do que o Ethan me conseguiu
transmitir.
— A culpa não foi tua — murmuro.
— Sim, foi. Prometi-te que nada te iria acontecer.
O seu tom é firme e duro. Estou cansada deste muro que
ele está sempre a erguer entre nós. Preencho o espaço
entre nós e co­loco as mãos nas suas faces, para captar o
seu olhar, mas ele fecha as pálpebras ao meu toque e
respira com dificuldade.
— Tu prometeste que eu não ia morrer. Cumpriste a tua
palavra.
Os seus dedos fecham-se em torno dos meus pulsos e
afastam-me.
— Acredita, essa promessa valeu muito mais do que eu
poderia dizer em voz alta.
— Não dá para salvares toda a gente, o tempo todo... —
murmuro.
— Diz o roto ao nu!
Ri nervosamente e dá um passo para trás, dececionado
consigo mesmo.
— Mesmo assim, a ti, eu deveria ter-te salvo. Ver-te
esvair em sangue...
Contrai os maxilares com força e passa as mãos pelo
cabelo, com os olhos fixos em mim. Pergunto-me se a sua
reação não terá a ver com a morte dos pais. Eles também
sangraram até à morte diante dele...
— Clarke, eu...
Ele dá meia-volta e sai da cozinha, dando um murro no
pote das colheres, que se escaqueira contra a parede.
Capítulo 26

Às onze horas em ponto, o Ethan entra pelo meu quarto,


para me mudar o penso. Após um exame minucioso à minha
ferida su­turada, anuncia-me que vou recuperar.
— Dentro de mais ou menos uma semana, tiro-te os
pontos. Escapaste dos dias mais dolorosos graças à morfina
— informa, com ar de gozo.
Ponho um ar de dúvida. Mas é verdade que alternar entre
um sono profundo e um estado de confusão é preferível ao
sofrimen­to. Posso agradecer ao Tucker, que batalhou para
que o Ethan me drogasse dias a fio, para me poupar à
agonia.
— O Clarke vai ficar feliz, vou tirar os dele, agora de
manhã.
Amaldiçoo-me por pensar com deceção na sua saída da
man­são, em vez de me regozijar com a sua recuperação. O
Ethan faz-me novo curativo e olha para mim com um sorriso
casual.
— Pelo que sei, ele continua a passar aqui dia e noite. Os
outros saem para percorrer a cidade, em busca do Henzo.
Dá-me um beijo na testa, ordena que descanse e sai do
quarto para ir ter com o Diabo. Deito-me na cama e olho
para o teto. Esta casa vai pôr-me louca. Apesar do meu
estado à beira da in­consciência, nos últimos dias, e do
tempo que não vi passar, pre­ciso de apanhar ar, e
rapidamente!
Passados cerca de vinte minutos, quando o Ethan deixa o
ran­cho, enfio uma roupa e vou até ao quarto do Clarke.
Entro sem bater e dou com o badboy a sair da casa de
banho. Examina-me com uma sobrancelha levantada,
provavelmente à procura de si­nais de dor.
— Já não aguento esta casa, preciso de ir dar uma volta.
Levanta a outra sobrancelha.
— Por favor...
— Tens de descansar.
— Não vou falar em voz alta dos dias que passei a
dormir, dro­gada com morfina, porque é revoltante. Por outro
lado, sabes tão bem como eu que a negociação remete já
para uma era passada! Nem me surpreenderei se me
deparar com carros voadores lá fora!
Ele revira os olhos e tenta esconder a diversão que lhe
causa o meu flagrante exagero; mas a verdade é que me
portei razoavel­mente bem e, ainda por cima, contra minha
vontade!
Sem uma palavra, vai até à cómoda, tira uma T-shirt e
veste-a. Arvoro um largo sorriso quando ele se agasalha
com um camisolão, deixando o blusão de couro de lado,
para evitar chamar a atenção do Henzo. Agarra na arma que
está sobre a mesa de cabe­ceira, verifica se está carregada
e, em seguida, enfia-a no cós das calças de ganga.
Vem ter comigo, dá-me a mão e saímos de casa, para
minha enorme felicidade. Ajuda-me a montar a mota e toma
o seu lugar. Envolvo-lhe a cintura com os meus braços, sem
me colar muito a ele, para não correr o risco de me magoar.
Nunca fiquei tão feliz ao ouvir um rugido do motor.
Deixamos o rancho e saímos da cidade. Não sei para
onde va­mos, mas não quero nem saber. Estou livre e viva, é
só o que importa.
Entramos na autoestrada. O Clarke conduz depressa,
mas não tenho medo. Não com ele. Não posso deixar de
sorrir. Sinto-me tão bem que ele o percebe e me pisca o
olho através do espelho retrovisor. Acelera ainda mais e
ultrapassa mais carros, que nos buzinam.
Quando o vento fica demasiado forte, apoio a face contra
a sua omoplata e vejo a paisagem desfilar. É simples e
ainda por cima linda. Vejo um javali na orla da vegetação e
emito um gritinho de admiração.
Passada uma hora, o Diabo deixa a autoestrada, para se
abas­tecer num posto de gasolina. Põe os pés no chão,
ajuda-me a des­cer e pergunta-me como me sinto.
Tranquilizo-o, dizendo que es­tou bem. Pega na mangueira
da bomba e mete-a dentro do tanque da mota.
— Enche. Volto já.
Beija-me os lábios e avança em direção à loja. Sem
palavras, vejo-o afastar-se. Acho mesmo que o meu cérebro
se desligou. Quando ele se apercebe da sua atitude, para e
fica especado por longos segundos, provavelmente ainda
mais surpreendido do que eu. Acaba por se virar
ligeiramente na minha direção e olha fixa­mente para mim,
com a testa franzida, como se fosse eu que lhe tivesse
roubado um beijo. Faz um esgar digno do seu encanto de­‐
vastador e retoma o seu caminho como se nada fosse.
— Este tipo tem mais lata do que o homem que escreveu
um livro sobre o prazer sexual das mulheres!
Não pensei que estivesse a falar suficientemente alto
para ele me ouvir, mas a sua gargalhada ecoou por todo o
estacionamento.
Levo os dedos aos lábios, sentindo ainda o calor dos
dele, e não consigo evitar que se abram num sorriso.
Animada, pressiono o gatilho da bomba para meter a
gasolina, mas parece bloqueado. Tento com as duas mãos,
mas nada acon­tece, o gatilho não recua sequer um
milímetro.
Debato-me com a pistola da mangueira e solto palavrões
como um carroceiro.
— O que é que estás a fazer?
Volto-me para o Clarke, de regresso com uns bombons,
diver­tido com a minha luta tenaz.
— Está estragada!
Ele põe a mão em cima da minha e acrescenta a sua
força à que eu estou a imprimir. A bomba engata e o
combustível enche o tanque.
Arregalo os olhos, enquanto os seus mostram gozo.
— Não tens o mérito todo. Eu fiz o mais difícil, só isso —
justifi­co-me.
Passa uma hora e meia e paramos no estacionamento da
Flo­resta Nacional de Huron-Manistee. Não me apercebo que
o Clar­ke desmonta da Harley, nem que me agarra pelos
quadris para me pôr no chão. Estou maravilhada com a
beleza da paisagem. A vegetação estende-se diante de nós,
densa e majestosa. Infinita. Sinto-me ridiculamente
pequena e fraca perante ela. Insignificante.
O Clarke entrelaça os nossos dedos, como se esse
simples ges­to fosse perfeitamente habitual entre nós, e
corremos quase até à orla da floresta. Abrandamos, ao
aventurar-nos pelo mato, para evitarmos ficar presos
nalguma raiz mais grossa do que o meu braço. Quanto mais
avançamos por entre as árvores, mais os ves­tígios do
homem desaparecem e mais surpreendente é o cenário.
Há vegetação até perder de vista, sequoias altas e
rochas co­bertas de musgo. O canto dos pássaros e o som de
um riacho. Não sei para onde virar a cabeça. Olho em redor
e sorrio como uma criança na primeira noite de Yule.34 O sol
penetra em alguns pon­tos a barreira da folhagem e dá
brilho às sombras. Para completar o quadro, uma brisa
acaricia os nossos rostos, num sinal de boas-vindas. Não
tenho palavras para descrever o que vejo. Estou
apaixonada.
Avançamos pela floresta. A poucos metros de nós, perto
de um tronco, aparece um coelho bravo. Agarro o braço do
Diabo, para pará-lo. Ele segue com o olhar o dedo que
aponto para o animal e solta uma risadinha zombeteira, que
provoca a fuga do mamífero.
Malvado!
Para castigo, dou-lhe uma cotovelada nas costas. Desta
vez, posso tratá-lo mal sem receio de uma resposta e
acrescento uns insultos. Estar ferida não tem apenas
desvantagens.
— É o lugar mais bonito que já vi. Como o descobriste?
— Costumava vir cá com os meus pais, quando era
miúdo. Não mudou nada.
Fico estupefacta com a revelação. Nunca pensei que ele
parti­lhasse essa informação, muito menos me levasse a um
lugar tão simbólico para ele.
— Compreendo que não queiras falar sobre a morte
deles, ou sobre como te sentes com a sua perda, mas, se
um dia quiseres contar-me histórias da tua infância, ficarei
encantada.
— Sempre pensei que partilhar as minhas memórias
seria como deixá-las partir e esquecê-las.
A resposta corta-me o fôlego. Não esperava confidências
da parte dele. Mas imagino muito bem como ele se sente.
Guardar para si mesmo aquelas histórias, através das quais
ainda vê os rostos dos pais, equivale a mantê-las
prisioneiras no seu corpo. Ele teme que, no segundo em que
abra a boca, elas escapem pelo ar, para nunca mais
voltarem para ele.
— Ou então, partilhar memórias pode significar contar
com vá­rios cérebros para as preservar.
O sorriso que ilumina o seu rosto quase me faz tropeçar.
Nun­ca vi uma dentição tão perfeita, lábios tão sedutores e
uma covi­nha no queixo tão irresistível.
Ele puxa-me contra ele, coloca o braço por cima dos
meus om­bros e brinca com uma madeixa do meu cabelo.
— Fala-me de ti — peço.
— Então, o meu nome é Clarke.
— Merda, pensava que o teu nome era Taylor...
Ele levanta os olhos para o alto, sereno como nunca o vi,
e sor­rio, feliz por vê-lo apaziguado. Este lugar parece fazer-
lhe muito bem. Esta versão do Clarke faz-me muito bem.
— Nasci em Chelsea, no Michigan. Vivi lá até aos catorze
anos. Quando os meus pais morreram, fui morar com a
minha tia para Ann Arbor. Uma vez na faculdade, arranjei
um quarto na residên­cia universitária, até que, um dia, duas
bestas me irritaram. Lutá­mos até ficarmos desfigurados;
então um cota de fatinho comple­to separou-nos.
Apresentou-me os seus dois homens, o Sean e o Jesse,
enquanto outros quatro me seguravam.
Arregalo os olhos, apesar de não estar minimamente
surpreen­dida. Todos eles integraram os Filhos do Diabo de
uma forma bizarra.
— O Carter propôs-me fazer parte do seu gangue.
Recusei e fui-me embora, a insultá-los. Mas não contava
com a sua tenacidade. Não me largaram a garupa. Tivemos
de andar à porrada umas dez ou onze vezes, antes de eu
aceitar.
Perante o meu ar siderado, explica:
— Ter amigos nunca esteve nos meus planos, desde que
perdi os meus pais. Então, quando eles me vendiam os
Filhos do Diabo como uma família, esmurrava-os.
Solta uma risadinha que me aquece o coração e a alma.
— Os parvalhões não entendiam porque é que lhes batia
sem­pre que ouvia essa palavra sair das suas bocas.
Achavam que eu era um doente mental e ressentiam-se por
o Carter lhes ordenar que insistissem. A pior frase que o
Sean podia ter-me dito, em de­sespero, foi: «Tu és pagão,
mano. Não digas que tens medo do pe­rigo! Odin não deixa
os nossos morrerem com um tiro.» Palavras que não só
eram totalmente estúpidas, como...
Não continua, não precisa. Entendo perfeitamente. Os
pais eram pagãos e morreram com um tiro na cabeça.
— Naquela época — continua o Clarke —, havia uns
gémeos e mais dois outros tipos no gangue. Estavam no
último ano, só os conheci durante um ano. Depois apareceu
o Set, que me ajudou numa luta. Detestei que o fizesse,
mas o Carter quis conhecê-lo. No ano seguinte, foi a vez do
Tucker e do Justin se juntarem ao gangue. A besta do Tucker
tinha provocado um grupo de boxeurs profissionais. O pior é
que ele estava convencido de que podia ga­nhar. O Justin
tentou chamá-lo à razão, sem êxito. Rebentou uma cena de
pancadaria. O Carter já nos tinha alertado, ao Set e a mim,
e aproveitámos a oportunidade para observar as capacida­‐
des de ambos. Apesar de tudo, saíram-se bem. Entre eles, já
for­mavam uma equipa muito boa...
Quando o Clarke faz uma pausa, sigo o seu olhar e
esqueço tudo, até mesmo a respiração. O lago Michigan
estende-se diante dos nossos olhos. Nenhuma vibração
perturba a sua superfície.
Sem preâmbulo, corro para a margem, arrastando o
Diabo atrás de mim. Só paro quando os nossos sapatos
ficam alagados. Largo a mão dele para saltitar na água
gelada, como quando era criança. Por não ter um coração
saudável, nunca pude nadar, que era o que me apetecia,
mas a imaginação compensava essa limita­ção. Julgo até
saber as sensações que o mergulho proporciona.
A dor dentro do meu abdómen faz-se lembrada. Paro de
me agitar em todas as direções, mas não deixo transparecer
nada. Olho para o Clarke, que me observa, com um
sorrisinho nos lábios.
Vou ter com ele e voltamos para terra firme. Sentamo-
nos no chão e fecho as pálpebras para aproveitar os raios
de sol na cara.
— O que gostarias de fazer na vida? — pergunto.
— Nunca encontrei nada de que gostasse, exceto os
Filhos do Diabo.
Olho para ele. As suas madeixas negras voam com a
brisa e a luminosidade, dando brilho aos seus olhos verdes,
torna-o irresis­tível, de uma forma perigosa.
— E tu?
Sorrio, fitando o horizonte.
— Há muitas coisas que gostaria de fazer.
Se tivesse toda a minha vida pela frente...
— Por exemplo?
— Na verdade, não sei. Gosto de aprender. Devoradora
de li­vros será um emprego?
— Nunca te vi com um livro na mão.
Assumo um ar falsamente acusatório.
— Talvez porque a sua organização criminosa me roube o
tem­po livre, senhor Taylor!
Pela primeira vez, sinto que estou a encarar o verdadeiro
Clar­ke, aquele que não tem correntes a prendê-lo. O seu
sorriso é ras­gado e sincero, os seus olhos não têm véu nem
escuridão. O Clar­ke da floresta de Huron-Manistee não é o
afilhado dos Filhos do Diabo.
— Pois bem, se aceitasses o nosso dinheiro sujo, podias
com­prar uma infinidade de manuais. Também lês romances?
— É raro, mas não insignificante.
— Deixa-me adivinhar...
Curiosa, observo-o a pensar.
— Não gostas de violência, mas os thrillers podem
proporcio­nar raciocínios interessantes. Não és do género
que devora fanta­sia ou ficção científica. És demasiado terra-
a-terra para te permi­tires sonhar. O mesmo para o romance.
A menos que...
Faz estalar a língua no palato e pousa os olhos em mim.
— Tiveste necessariamente de ler bons e velhos clássicos
de grande colorido. O que nos leva a Shakespeare e... Jane
Austen.
Se eu tivesse um diário, acusá-lo-ia de o ter lido em
vários mo­mentos. É assustador e calmante não ter de falar
para ser compreendida.
— Orgulho e Preconceito, incontornável!
Põe um ar vitorioso, perante o meu ar impressionado.
— Diz lá o que tens a censurar no livro.
— O que te leva a pensar que lhe censuro alguma coisa?
— Vejo-o nos teus olhos, Clarke, portanto desembucha!
Ele olha para os meus lábios e humedece os seus. O ar
fica mais pesado, um segundo de tensão crepita entre nós,
antes de o Clarke se recuperar.
— Nenhum suspense, enredo chato, clássico em demasia
e to­talmente previsível. Uma chavala mais inteligente do
que as ou­tras, tremendamente impertinente, encontra um
tipo sexy, pouco antes de perceber que é uma besta mal-
fodida. Reviravolta na si­tuação: ele é o homem perfeito,
vamos casar. Fim da história.
Encaro-o, embasbacada.
— Acabaste de arruinar uma obra-prima literária em
cinco mí­seros segundos! És um narrador deplorável, espero
que tenhas consciência disso!
Faz um esgar e dá-me um encontrão de mansinho com o
om­bro. Decido deitar-me de costas. Através das pálpebras
fechadas, sinto algo a obstruir os raios solares e então um
corpo estende-se por cima de mim.
Este corpo que se molda perfeitamente ao meu, este
cheiro que desperta todos os meus sentidos... Abro os olhos
para o Clarke.
O seu nariz quase toca no meu e a sua respiração
acaricia os meus lábios, tornando os batimentos do meu
coração ridicula­mente aleatórios. Engulo em seco, tento
encontrar uma razão que o leve a portar-se assim, mas não
consigo encontrar resposta.
— A história está muito bem escrita — murmuro. — As
persona­gens são pitorescas e têm caráter.
A minha respiração torna-se irregular. Todo o meu ser me
ber­ra para lhe tocar, o beijar, o amar. Quero-o, a ele e aos
seus lados bons, a ele e aos seus lados maus. Quero o
Clarke Taylor da flo­resta de Huron-Manistee, com o seu riso
e ligeireza, mas também o Clarke Taylor dos Filhos do Diabo,
de rosto impassível e olhar furibundo.
— A Elizabeth rejeita os códigos. Faz pouco da sociedade
fecha­da do seu tempo e das convenções sociais. Não hesita
em julgar todos com desenvoltura. É muito cativante.
O olhar dele arde de desejo, que se esforça por controlar,
e desce sobre a minha boca. O ar deixa definitivamente de
entrar nos meus pulmões e o meu coração falha um
batimento, enquan­to a sua língua segue o contorno do meu
lábio inferior. Tenho de me forçar para conter um suspiro de
êxtase, mas em breve deixo de ter forças para tal. A língua
é substituída pelos seus lábios car­nudos percorrendo o meu
queixo. Solto um gemido e os músculos do Clarke contraem-
se em resposta. Os seus dentes afloram a mi­nha orelha e eu
arqueio contra ele.
— O Set estava enganado. Tu és a criatura mais tesuda,
portan­to evita soltar um som tão bonito, se queres manter a
roupa no corpo.
Prepara-se para se levantar, mas eu retenho-o. O seu
olhar atormentado mergulha no meu. Neste contacto,
partilha comigo a frustração e a contenção.
-Avalone, eu...
— Só te peço que me beijes, nada mais.
Qualquer coisa cede nele. Mergulha na minha boca, para
me dar o beijo de que só ele tem o segredo. Na minha
mente e no meu corpo, é o caos. Nesse momento, nada
mais faz sentido, ex­ceto nós. Deleito-me e impregno-me
dele. Agarro tudo o que me oferece, para tentar satisfazer-
me até à próxima vez.
Finalmente separamo-nos, sem fôlego, e o Clarke
levanta-se imediatamente, para recuperar o controlo. Já
sinto a ausência do calor do seu corpo, no entanto sorrio,
incapaz de agir de outra forma. De pé na minha frente, ele
passa os dedos no cabelo.
— Não me estás a facilitar as coisas, assim...
— Tu é que começaste.
Ele estende uma mão para me ajudar a levantar, o que
aceito, tentando recuperar uma respiração correta e uma
frequência car­díaca razoável.
Este tipo vai acabar por dar cabo de mim.
Num silêncio necessário para recuperarmos os sentidos,
volta­mos a internar-nos na floresta. Como eu, o Clarke sente
essa ób­via falta de contacto. Brinca com os meus dedos,
aflora a minha clavícula, para em seguida pôr uma madeixa
de cabelo atrás da minha orelha; passa o braço à volta dos
meus ombros e puxa-me contra si.
— Lês com frequência? — pergunto.
— Nunca.
— Então, porquê Orgulho e Preconceito?
— Era o livro favorito da minha mãe. Não li, mas obrigou-
me a ver a adaptação cinematográfica com ela.
Mal tem tempo de terminar a sua explicação quando o
telemóvel toca. Para, a fim de atender.
— Como vai a minha Maria preferida?
Ele adora a Maria, sei disso, mas nunca o ouvi dirigir-se a
ela desta maneira. Este momento longe da mansão e da
pressão que ela envolve é tão benéfico para ele como para
mim.
— Sim, saímos para apanhar ar. Dás-nos cobertura, se for
necessário?
Faz uma pausa, para deixá-la responder.
— Okay, perfeito. Estaremos aí às sete e meia. Se ele
chegar primeiro, conto contigo para nos salvares a pele.
Desliga e retomamos a nossa caminhada, de mãos
dadas.
— Como eram os teus pais? — arrisco perguntar.
O Clarke deita-me um olhar eloquente.
— Um segundo cérebro para salvar as memórias, hein?
Assumo um ar falsamente inocente, que lhe arranca um
sorri­so. Inspira e olha para longe. A boca abre-se e volta a
fechar-se. Por fim, arranca:
— A minha mãe tinha cabelos longos e pretos e uns
grandes olhos verdes. As sardas estavam semeadas por
todo o seu rosto.
Era alta e magra. Era uma mulher com energia para dar
e vender. Era também doce, compreensiva e nunca se
enervava. O meu pai era o oposto. Loiro com íris castanhas,
era facilmente irritável, mas ela tinha um dom
impressionante para o acalmar. Eram lou­camente
apaixonados um pelo outro. Eram uns pais amorosos.
O sorriso desvanece-se, o rosto torna-se sério até mais
não. Para e observa a paisagem com uma certa desolação.
— Menti. Este lugar mudou. Tudo é mais...
— Pequeno?
Com as mãos enfiadas nos bolsos e o queixo contraído,
pousa os olhos em mim.
— Sim. É como se as lembranças daqueles dias fossem
falsas, erróneas.
A fúria cresce sob a superfície. Estas imagens
assemelham-se, visivelmente, a uma tortura para ele.
— Fecha os olhos e ajoelha-te — ordeno.
Olha fixamente para mim, desconfiado.
— Será o momento de esclarecer que o sadomasoquismo
não é a minha cena? — hesita.
Desmancho-me a rir e sacudo a cabeça, para voltar a
ficar séria.
— Confia em mim.
Ele suspira e cumpre. Com as pálpebras fechadas, coloca
um joelho no chão, depois o outro. Sento-me à sua frente e
sussurro-lhe que abra as pálpebras. Ele acata a ordem e
redescobre o lugar da sua infância, do mesmo ângulo de
quando era criança. Obser­va o ambiente, familiariza-se com
o seu passado. O deslumbra­mento brilha, por trás da
máscara de impassibilidade.
— Foste tu que mudaste, Clarke, não foi o lugar. O tempo
não te poupou, cresceste. No entanto, algumas coisas
permanecem intactas, como o amor que sentes pelos teus
pais. E se um dia esta floresta desaparecer, não lhes
apagará a memória. Nada porá em causa o facto de terem
estado aqui há alguns anos, contigo. Tu és a prova das
vivências deles. Do seu amor.
Ele olha-me com uma intensidade significativa, como se,
sem darmos por isso, tivéssemos acabado de ultrapassar
uma etapa.
— Como te sentes? — pergunta-me.
— Perfeitamente. Este passeio era exatamente aquilo de
que eu precisava.
Pela primeira vez, conversamos. Estamos realmente a
conver­sar. Revelamos um ao outro os nossos sonhos e as
esperanças frustradas de crianças. Conto-lhe como parti o
braço aos nove anos, ele enumera os acidentes que lhe
abriram a arcada supraciliar. Rio-me até doer o estômago e
as bochechas. O Clarke, por seu lado, sorri sem limites. Não
é um esgar, não. É um verdadeiro sorriso, que revela a sua
dentição.
Após mais uma hora de passeio, voltamos para trás, para
ir ter com a Harley. O sol já vai bastante adiantado no céu, o
tempo voou a um ritmo impressionante. Andámos
quilómetros sem dar por eles, conversando sobre tudo e
sobre nada, como amigos de longa data. Amigos de longa
data que se desejam mais do que o razoável.
Passei um dia excelente. Não me apetece voltar para
casa, mas todas as coisas boas têm um fim. Só me
preocupa que, chegados à mansão, o Clarke volte a
distanciar-se e a enfiar a sua carapaça. Começo a conhecê-
lo, sei que, quando estivermos rodeados pelos outros,
haverá um fosso entre nós dois, como se esta tarde nunca
tivesse existido. No entanto, para mim, está fora de questão
fingir que não descobri esta faceta dele.
Com a mota estacionada diante da fonte de Odin, o
Clarke agarra na minha mão e corremos para a mansão.
Ouvimos o carro do Carter a subir a alameda, mas se ele
perceber que nos aliámos na transgressão, corremos o risco
de ser severamente repreendidos.
A Maria abre a porta, em pânico.
— Entrem depressa!
Corremos para a cozinha, onde nos sentamos nas
cadeiras al­tas em frente da ilha. Esperam-nos uma cerveja e
uma limonada.
A Maria junta-se a nós, com um olhar severo. Não
consegui­mos deixar de rir.
— Qual é a graça?
A voz do Carter chega até nós e a Maria, de repente,
enfia o na­riz dentro do frigorífico. O líder entra na cozinha,
de bom humor.
— Estava a contar-lhes uma história sobre a minha mãe
— minto.
O Clarke bebe um gole de cerveja e pisca-me o olho
discretamente.
— Conseguiste descansar? — pergunta-me o líder dos
Diabos.
— Sim, ainda estava a precisar muito disso.
— Perfeito.
Sorri, satisfeito, e sai.
A Maria fecha o frigorífico com força e aponta um dedo
amea­çador para nós.
— Se voltam a fazer uma coisa destas, mato-vos! Dito
isto, se voltarem a precisar de alguém que vos dê
cobertura, não hesitem.
O Clarke e eu trocamos um olhar cúmplice. Esta mulher é
sublime.
— Espero que se tenham divertido, pelo menos.
— Muito — respondemos em coro.
A Maria está tão feliz como se tivesse acabado de
apanhar dois adolescentes no meio de uma sessão de
beijos, mas o seu sorriso congela quando põe os olhos sobre
o Clarke. Alertada, dirijo a mi­nha atenção para o visado, que
perdeu a alegria e o verde das suas íris. Ele olha para a
minha camisola distraidamente e contrai o queixo com
força. Olho para as minhas roupas.
Sangue. De repente, levanto-me da cadeira e cambaleio.
— Já volto.
Saio da cozinha a correr e vou para o meu quarto. Entro
na casa de banho e tiro a roupa, que atiro para o chão,
numa bola. O meu penso já não está limpo, o que despertou
a culpa do Clarke.
Descolo-o com raiva. O sangue escorre da minha ferida:
saltou um ponto.
Dou um salto, quando vejo o reflexo do Clarke no
espelho. Está atrás de mim, com os olhos fixos na ferida. A
sua expressão fechada tem o efeito de uma facada.
— Não é nada, é só um pouco de sangue.
— O Ethan está a chegar.
O tom de voz dele acaba comigo.
Com as mãos trémulas, limpo o líquido vermelho com
com­pressas, mas ele continua a escorrer.
— Não é preciso, não é nada.
— Dá para ver que é! — lança-me, com desprezo.
Pego numa toalha e pressiono-a contra a ferida e volto-
me para ele, com ar implorativo.
— Eu não devia ter concordado em deixar-te sair —
prossegue.
— Não me arrependo. Passei um excelente dia e, se
tivesse oportunidade de voltar atrás, não hesitaria um
segundo.
— Já eu lamento imenso.
E com esta, vai-se embora. O Clarke da floresta de
Huron-Ma­nistee desapareceu, manifesta e inapelavelmente.
Retenho as lá­grimas e levanto a cabeça, como se ainda
tivesse sobre ela a coroa da minha infância.
Saio da casa de banho e sento-me na cama, à espera do
Ethan, que chega, passados uns quinze minutos, com ar
zangado.
— Prescrevi-te descanso! Tens sorte de eu estar por
perto!
Não sei se aguento uma lição de moral depois deste
regresso brutal à realidade. Graças aos deuses, o Ethan
parece perceber o meu estado emocional, pois fica por aí.
Atira o saco para os meus pés e ajoelha-se. Retira a
toalha do meu abdómen e franze a testa enquanto examina
a ferida.
— Saltou um ponto, tens de ser cosida. Nada de
assustador, desde que não infete. Se tivermos cuidado, o
hospital não deve fazer muitas perguntas.
Abano a cabeça negativamente.
— Faz tu e acaba-se com isto.
— Não tenho nada para anestesiar localmente, pequena
guerreira.
— Isso não é problema.
Levanta o rosto intrigado na minha direção.
— Não tenho anestésico — repete, para se certificar de
que uso a mesma linguagem que ele.
— Entendi.
Ele acha que perdi a cabeça. Só que está fora de questão
eu pôr os pés no hospital. Sempre que lá entro, não sei se
vou sair. As minhas consultas semanais já são
suficientemente penosas, é me­lhor não dar ao meu médico
mais uma oportunidade para me internar.
— Vais sentir absolutamente tudo. Tenho de limpar a tua
ferida com uma loção à base de álcool, e para o ponto de...
— Eu sei, Ethan — atalho. — Faz o que tens a fazer.
Ele fixa-me longamente, para me dar tempo para pensar,
mas a minha decisão está tomada. Conformado, acena com
a cabeça.
Tira do saco os instrumentos de que necessita e
esteriliza-os. Deita-me uma última olhadela, para se
certificar de que eu dou o meu consentimento, e deito-me,
em resposta.
Relutante, enfia umas luvas de látex e lança-se ao
trabalho. Desinfeta a área com um produto que deve ter os
mesmos ingre­dientes ativos que o ácido, de tal modo me
faz doer. Silvo entredentes.
— Reivindico com todo o meu ser a força do Megingjord35
— murmuro.
Olho para o lado, sem saber se consigo suportar a dor e
a visão do sangue em simultâneo.
Sinto absolutamente tudo e parece uma tortura.
Como é que o Clarke conseguiu suportar a extração de
uma bala?
Tenho a sensação de que a agulha sobe até à minha
alma, para a mutilar. No entanto, não pestanejo, não rosno,
permaneço im­passível. Porque o mais pequeno sopro que se
escape dos meus lábios pode desencadear uma torrente
interminável de palavrões.
Sinto uma gota de suor a deslizar pela minha coluna
vertebral. Com as pálpebras fechadas, cerro os dentes
quase a quebrá-los. Quando a agulha sai, inspiro
bruscamente uma golfada de ar, aliviada.
— Aguentas? — pergunta o Ethan, aflito.
Aceno com a cabeça, com os lábios cerrados, e ele
continua. Volta a cravar a agulha na minha carne,
arrancando-me uma ros­nadela de agonia, e puxa o fio.
Com um movimento preciso, o cirurgião dá um nó.
Repete o gesto e, finalmente, o ponto fica concluído.
Desinfeta e seca a minha pele, e faz um penso novo.
Embora a minha ferida esteja a doer-me por demais e a
pele esteja arrepanhada, estou aliviada por ter terminado o
procedi­mento. Foi curto, mas intenso. A película de suor na
minha pele atesta isso mesmo. Esgotei o que consigo
aguentar por hoje.
— Desta vez, é melhor que descanses! — ordena-me o
Ethan, enquanto arruma as suas coisas. — Eu sei que é
difícil, mas quan­to mais me deres ouvidos, mais depressa
vais estar a pé.
Suspiro, com o moral a zeros.
Esta tarde foi excecional. Custa-me digerir que se tenha
evaporado.
— De qualquer forma, o Clarke vai recusar-se a levar-me
seja onde for, depois disto, e vai proibir aos outros.
O Ethan endireita-se e envolve-me com um olhar terno.
— Liga-me e eu levo-te daqui para fora, mas só para
irmos be­ber um copo na varanda.
Sorrio, grata, e ele beija-me na testa.
— Obrigada.
— É um prazer, princesa. Volto amanhã de manhã.
Sai do meu quarto e fecha a porta atrás de si. Fico
deitada a olhar para o teto. Nunca teria imaginado o meu
primeiro ano de universidade desta forma e, apesar de não
me arrepender de nada, é duro...
34
O Yule é um festival pagão, celebrado durante o
solstício de inverno. É pontuado pela troca de presentes.
35
O Megingjord é o cinturão que potência o poder de
Thor. Confere-lhe a força necessária para levantar o martelo
Mjollnir.
Capítulo 27

Saio da casa de banho, lavada e um pouco mais


relaxada. Sen­to-me na cama, retenho uma careta e tiro o
computador da mesa de cabeceira, para ver os meus e-
mails. Um punhado de anúnci­os, os novos horários das
aulas para a próxima semana, links que a Lola me enviou...
Curiosa, clico no primeiro. Redireciona-me para uma
página da web. Percorro as linhas que se sucedem, até me
deparar com um nome que me é demasiado familiar.
Carter Brown Arinson nasceu a 1 de novembro de 1969
em Midland, no Michigan. Em 1993, criou a Arinson Arms
com Mike Arinson e vendeu as suas ações ao seu sócio em
2007. Pou­co depois, lançou-se no negócio de obras de arte
e pedras precio­sas, o que o projetou, em 2011, para a
posição de maior fortuna do Estado.
Clico no segundo link, que me leva a informações sobre o
irmão.
Mike Arinson nasceu em 12 de dezembro de 1969 em Mi­‐
dland, no Michigan. Criou a sua empresa de armamento em
1993, em colaboração com...»
Pulo os parágrafos seguintes e debruço-me sobre a
história do casamento.
«Casou com Claire Torrens em 1998, que deu à luz o seu
pri­meiro filho, em 2000. A 7 de setembro do mesmo ano,
poucos meses após o nascimento da criança, a mulher e a
filha de Mike Arinson morreram num acidente de
automóvel.»
Franzo a testa, intrigada. O Carter disse-me que o irmão
adoti­vo estava à espera de um menino, que nunca veio ao
mundo.
Porque é que este site afirma o contrário?
Recosto-me nas almofadas e faço correr a página diante
dos meus olhos, concentrada. Apresenta montes de
informações, a atestar que o Mike não tem privacidade
nenhuma. Os seus maio­res contratos, a morada da sua casa
principal, o seu destino favo­rito, o seu registo criminal...
Por todos os deuses, onde é que a Lola foi encontrar tudo
isto?
Suspendo a leitura enviesada numa imagem que me
chama a atenção. Tenho-a aqui, diante dos meus olhos, mas
não consigo analisá-la. É como se a visse sem a ver, como
se...
O meu cérebro volta a conectar-se e o coração petrifica-
se mo­mentaneamente. Tenho a sensação de que um
autocarro está a passar por cima de mim. Primeiro, andando
para a frente. De­pois, em marcha atrás.
O Mike está nesta foto, com um bebé nos braços, ao lado
do Carter, que sorri orgulhosamente para a câmara.
Tiro os olhos do ecrã, com a respiração entrecortada.
Casou com Claire Torrens em 1998, que deu à luz uma
meni­na em 2000.
Esta frase roda em contínuo na minha cabeça. Acelera os
bati­mentos do meu coração e mergulha-me num mal-estar
intenso.
Não é possível... Eu... Não!
De repente, novamente de pé, tenho os membros todos
a tre­mer e as faces inundadas de lágrimas. Coloco a mão no
peito, tão comprimido que sinto que estou a ficar sem ar.
Completamente alterada, pego no computador e abro a
porta do quarto de rompante.
Atravesso o corredor num estado de consciência
completa­mente alterado, passando por vezes
perigosamente perto das pa­redes. Sinto as pernas pesadas
e o meu coração berra para eu dar meia-volta, mas deixei
de ter controlo sobre o meu corpo. Chego ao átrio e paro
debaixo do arco, deparando-me com todos os Dia­bos, mais
o Ethan e o Carter, no salão.
Os olhos convergem na minha direção. Demoram apenas
um segundo a descobrir as lágrimas na minha cara. Como
um só ho­mem, precipitam-se para mim, mas eu paro-os
com a palma da mão estendida entre nós.
A minha respiração está caótica e o peito dorido. Sinto-
me ter­rivelmente mal e não tem nada que ver com a minha
doença.
— Está tudo bem? — pergunta o Carter, com a testa
franzida de preocupação.
O Ethan, o Justin e o Sean preparam-se para vir ter
comigo, mas o riso que se escapa da minha garganta
detém-os uma vez mais. É um riso sinistro que nem eu
reconheço. Todos olham fi­xamente para mim, no entanto,
concentro-me apenas no Carter, que está preocupado com o
meu estado, mas mantém uma dis­tância de segurança.
Tudo aquilo em que sempre acreditei... Tudo o que me
conta­ram... Tudo o que tomei como verdade sem nunca
questionar as afirmações...
O ódio dos nove mundos escapa-se por todos os meus
poros e agita-se furiosamente nas minhas veias, pilhando o
pouco de bom senso que me restava.
— ALGUÉM ME PODE EXPLICAR PORQUE ESTOU AQUI, EM
BEBÉ, NOS BRAÇOS DO MIKE, AO SEU LADO?
Viro o ecrã do meu computador, para lhes revelar a
fotografia. Uma foto onde me reconheço, graças aos álbuns
da minha mãe. Uma foto onde o meu cobertor de quando
nasci me envolve e fica pendurado nos braços do Mike
Arinson.
A compressão do coração no meu peito dá-me vontade
de vo­mitar. Uma imensidade de pensamentos colide na
minha mente e perturba a minha visão com lágrimas, que
limpo, enfurecida, en­quanto aguardo por uma resposta.
O Carter foi-se abaixo e está lívido de morte. Apenas os
olhos brilham. Como parece ter perdido a fala, aproveito a
oportunida­de para descobrir até que ponto os Filhos do
Diabo me manipula­ram. Olho para os rapazes um a um. Pela
primeira vez, o Clarke não sustenta o meu olhar. Desvia os
olhos e fecha as pálpebras por uns segundos. O Tucker
passa as mãos pelo rosto tenso e o Set enfia as suas no
cabelo. O Justin deixa-se cair no sofá, en­quanto o Sean vira
as costas para mim, incapaz de me confrontar; o Jesse e o
Ethan encaram-me, com a palavra «culpado» escrita na
testa. O Carter vai para abrir a boca, mas muda
imediatamente de ideias.
Ninguém me responde, a atmosfera torna-se irrespirável.
Su­foco um pouco mais a cada segundo.
— Porque estou nesta foto? — pergunto uma segunda
vez, com uma voz gélida.
Neste momento, o Carter Brown Arinson já não é aquele
bilionário imponente e respeitado. É o mais vulnerável de
todos e pa­rece estar prestes a quebrar tão facilmente como
porcelana.
— Avalone, lamento...
Olha-me com uma dor infinita, mas o simples facto de
estar no mesmo espaço que ele torna-se insuportável para
mim. As pala­vras que acaba por proferir matam-me:
— O Mike é teu pai. Eu sou teu padrinho.
A minha boca abre-se desmedidamente. A dor no peito é
uma tortura, tudo é apenas caos na minha mente.
— O MEU PAI MORREU!
Quando o Carter tenta dar um passo na minha direção eu
berro-lhe que não se aproxime.
— Para vos proteger dos Irmãos de Sangue, tivemos de
simular a morte da tua mãe e a tua. Não tivemos escolha!
Cada uma das suas palavras leva-me à minha perdição.
Sacudo a cabeça para apagá-las da minha memória, mas
ressoam em mim como uma porra de um eco incessante.
O Mike é teu pai. Eu sou teu padrinho.
O Mike é teu pai. Eu sou teu padrinho.
O Mike é teu pai. Eu sou teu padrinho.
Nada silencia a sua voz na minha mente.
O computador escapa-se das minhas mãos e quebra-se
no chão.
Ele enganou os Irmãos de Sangue, o gangue mais
poderoso e sanguinário dos Estados Unidos. Que
orgulhosamente anuncia­ram que, a partir de então, todos os
recém-nascidos da família Arinson lhes pertenceriam.
Levo a mão à ferida, convencida de estar a perder muito
san­gue, para sentir tamanho desconforto. Mas não. O Ethan
tratou-me. Só há as minhas lágrimas a atestar a minha dor.
— A minha mãe... Ela... Ela acredita que o Mike está
morto?
O Carter parece ter envelhecido dez anos, quando
responde com uma negativa.
— Ela esteve ao corrente do nosso plano desde o
primeiro dia.
A lâmina imaginária que se espeta no meu peito tira-me
o fôlego.
Não é possível... Ela não. Ela nunca seria capaz de fazer
isso comigo. Ouvi-a falar-me do meu falecido pai, vi-a chorar
a sua morte à noite, quando pensava que eu estava a
dormir. Ela implo­rou a Frigga para extinguir o seu amor pelo
marido e, assim, su­perar melhor a sua ausência.
Fui assim tão ingénua?
Um soluço escapa dos meus lábios. Agarro a barriga,
pronta para vomitar as entranhas a qualquer segundo. Mas
o ódio incha dentro de mim e torna-se devastador. Endireito-
me para olhar fixamente os Filhos do Diabo.
— E vocês? Estavam ao corrente disto desde o início, não
estavam?
— Sim — responde o Clarke, impassível.
Uma nova gargalhada se apodera de mim e acentua a
minha dor.
São cúmplices do Carter. E acabam de me partir o
coração. E, no entanto, eu já sabia que não podia confiar
neles. Provaram isso repetidamente. E, desta vez,
assestaram-me o golpe final.
— Eram as ordens do Carter, certo? Não tinham escolha.
Desmancho-me a rir como louca, expulsando nessas
explosões incontroláveis todas as emoções devastadoras
que me dominam.
— Vocês são excelentes atores. Sinceramente! Merecem
um Oscar. Muito engenhosos a fazerem-me acreditar que
entrei nos Fi­lhos do Diabo porque estava no lugar errado à
hora errada. Mas esse era, cálculo, o teu plano — digo
virada para o Carter.
Então, a extensão das suas manigâncias impõe-se no
meu es­pírito. A realidade manda às malvas a última
esperança de con­trolo que eu pensava ter sobre a minha
vida.
— Os polícias... Os polícias não se deslocam para um
simples convívio estudantil. Pelo menos, não em tão grande
número. O Bill quer encurralar-te a todo o custo, mas
conhece-te bem. Ele devia saber que não ia encontrar nada
de comprometedor naque­la festa, da qual o Clarke me
trouxe de volta. A menos que...
Quanto mais palavras saem da minha boca, mais eu
levanto a voz.
— Tu não aproveitaste a pressão que o Bill exerceu sobre
mim para me atrair para ti, tu criaste essa pressão! Tu
enviaste os polí­cias à fraternidade para que o Clarke me
acompanhasse, na pre­sença do Bill e, assim, me ligasse a
vocês!
Grito de desespero, o reflexo perfeito da minha alma.
— Não houve nada de sincero nisto tudo. Eu não tenho
ne­nhum controlo sobre a minha vida desde que entrei para
a uni­versidade. Tudo foi planeado, eu era o objetivo de um
plano que vai para lá da compreensão: trazer a princesa
Arinson de volta ao redil, custe o que custar!
O Carter, com o rosto distorcido pela dor, dá um passo na
mi­nha direção. O vaso que atiro ao chão dissuade-o de
avançar um centímetro mais. Então, levanta as mãos e fala
comigo gentilmente.
— Tu tiveste sempre escolha, Avalone. Tu mantiveste o
controlo.
A minha voz fica mais quebrada do que o vaso a nossos
pés.
— Escolha?! Salvar o irmão da Lola e os outros,
apresentando um falso testemunho, ou voltar à minha vida
diária e deixar os polícias metê-los na cadeia, perdendo a
minha amiga e arruinan­do a minha vida social de uma
assentada?
As lágrimas redobram e soluço.
— TU MANIPULASTE-ME REPETIDAMENTE, UMA VEZ E
OUTRA E OUTRA! ENVIASTE-ME AO CANADÁ PARA CONHE­‐
CER A PORRA DO MEU PAI, CÁRTER!
O berro que se escapa da minha garganta está carregado
de dor, o meu coração está dilacerado e, se eu não quisesse
manter alguma aparência de dignidade, ter-me-ia atirado
para o chão. Mas esta diabólica coroa invisível não sai da
minha cabeça.
— Ele próprio também me fez acreditar que a fronteira
era pe­rigosa... Ele também me testou e participou desses
subterfúgios.
Relembro tudo o que passámos quando eu era criança. A
mi­nha mãe, que enfrentava a minha doença sozinha e se
virava do avesso para pagar os meus cuidados médicos. As
noites sem dor­mir, que ela encadeava umas nas outras por
causa dos seus qua­tro empregos, que me garantiam três
refeições por dia. Os ho­mens que ela nunca deixou entrar
no seu coração e todo o amor que ela me deu, para
compensar o de um defunto. O meu pai pode não ter
morrido e eu tenho um padrinho. Mas os Arinsons
abandonaram-nos pouco depois de eu nascer. Reentrarem
na mi­nha vida através da manipulação e da mentira foi a
pior coisa que podiam ter feito, com ou sem Irmãos de
Sangue.
Sem uma palavra, dou meia-volta e corro para o meu
quarto. Atiro-me imediatamente às minhas coisas, que
coloco à balda no meu saco de ginástica. Quero fugir deste
rancho o mais depressa possível. De telemóvel contra o
ouvido, chamo um táxi, enquanto retiro os meus produtos
da casa de banho. Sem controlar os meus gestos e com um
nível de consciência muito baixo, o espelho esti­lhaça-se no
chão quando o arranco da parede.
Com o saco ao ombro, saio do quarto e quase atropelo o
Clar­ke. Tenho de cerrar os punhos até fazer sangrar as
palmas das mi­nhas mãos para não o atacar.
— És a última pessoa que eu quero ver! — lanço-lhe, com
desprezo.
— Fica.
Atiro a cabeça para trás para explodir num riso cheio de
raiva.
— Desfruta do espetáculo! Tiveste o que querias!
Ele franze a testa, perdido.
Tento contorná-lo, mas bloqueia-me o meu caminho. As
mi­nhas lágrimas tornam-se maiores e as tremuras do meu
corpo são já insuportáveis.
— Nunca quis que chorasses...
— Ai é? «Virá o dia em que vais acabar por chorar todas
as lá­grimas do teu corpo e eu vou deliciar-me com isso.»
Clarke Taylor dixit.
O seu corpo congela por completo e a culpa invade-lhe o
olhar. Só que nada mais importa. Os meus olhos avistam a
arma que ele me deu antes da negociação e que
permaneceu sossegadamente em cima da minha cómoda.
Pego e tiro-a da segurança. Aponto para o Clarke que nem
pestaneja. Mas eu também não. A minha mão está firme a
agarrar na arma, não treme.
— Vais deixar-me passar. Não estou com paciência.
— Não nos competia a nós revelar-te a tua identidade.
— Não quero saber de nada, não tens porra de desculpa
nenhuma!
A tristeza foi devorada pelo ódio que me consome. Neste
mo­mento, não sei do que sou capaz.
— O Carter ordenou-te que me detivesses, certo?
Continuo a ser a missão a cumprir?
— É verdade. No início, eras apenas uma missão —
admite, sem a menor emoção na voz.
Estas foram as palavras que fizeram transbordar o copo.
Enfio o cano da arma no peito dele para o fazer recuar. Nada
nele mani­festa o mais ínfimo sinal de medo. Sabe que não
vou disparar, mas acata a ordem para me conceder o
controlo de que preciso para não perder a cabeça, se é que
ainda não aconteceu.
Chegamos ao átrio, sem tirar os olhos um do outro.
— Porra, Ava, uma arma torna-te diabolicamente sexy,
mas é perig...
Não deixo o Set terminar a frase. Miro à parede e puxo o
gati­lho. Por não sei que energia adormecida em mim, nem
recuo com a força do coice, enquanto a laje de ardósia
explode em mil pedaços.
Volto o rosto para o Carter e envio-lhe um sorriso digno
de uma psicopata.
— Uma Arinson na alma, viste isto?
A porta da frente abre-se e a Maria lança um grito agudo
pe­rante a arma apontada, desta vez para o Carter.
— Diz-me, Maria. Estiveste lá a mudar-me as fraldas, não
estiveste?
Nos olhos dela, que se enchem de lágrimas, percebo que
tenho razão. Todas as pessoas com quem lidei de perto nos
últimos tem­pos me mentiram. Não houve ninguém honesto
comigo. Pensei que tinha o coração totalmente em
frangalhos, mas ainda havia obviamente um pedaço intacto,
que acaba de se juntar aos outros.
A humilhação invade-me. Ombreei com pessoas que
realmen­te amei, enquanto elas... viram em mim apenas
uma missão a cumprir. E isso é o pior de tudo.
Mantenho a cabeça erguida, apesar da vergonha que
toma conta de mim. O meu braço baixa-se com a arma, que
coloco no aparador do átrio.
— Digam ao meu querido pai que ele sempre esteve
morto para mim e assim permanecerá. Quanto à minha
mãe, ela já não existe aos meus olhos.
Caminho em direção à porta até o Carter, desesperado,
recu­perar a palavra.
— Nenhum de nós quis isso e...
A voz estrangula-se e novas lágrimas correm pelo meu
rosto.
— Tu estavas aqui, na minha cidade... Eu não fazia ideia
de como te...
— No segundo em que me contaste dos Irmãos de
Sangue, eu sabia que essa história não era uma coisa do
passado e que um dia, tu e o Mike teriam de enfrentá-los. Tu
és a prova de que os monstros nunca desistem. Eles virão
atrás do primogénito dos Arinson. Eles virão atrás de mim. E
a culpa será vossa. Vocês já me mataram.
Dito isto, saio pela porta e quanto mais degraus desço,
mais acelero, e mais as minhas lágrimas me turvam a visão.
O meu corpo contém um oceano de emoções
incontroláveis, que se agitam em todas as direções e
competem para dominar-se uns aos outros.
Os rapazes berram, e chamam-me. Soa um burburinho
no átrio, como se estivessem a lutar contra alguém para me
deterem, e então eu corro ainda mais depressa. Desço a
alameda sem fim e rezo para que ninguém me apanhe. A
minha respiração curta e o coração a bater acelerado
forçam-me a abrandar. Paro para recu­perar o fôlego.
— V...
Volto-me em sobressalto e é o Jesse. O seu rosto está
dilacera­do de dor e culpa, mas recuso-me a dar crédito a
esta falsa since­ridade. Não depois do que fizeram comigo.
— Deixa-me. Deixem-me em paz de uma vez por todas!
Vocês não precisam fingir que...
— Eu sei o que tu achas — corta. — E não te posso
culpar. Mas eu amo-te. Todos te amamos sinceramente.
Como podia ser de outra forma?
Sacudo a cabeça, recusando deixar-me amolecer,
porque, se lhe der ouvidos, acabo por acreditar nele.
Ninguém me vai partir mais o coração. Com as costas da
mão, enxugo as lágrimas e tento controlar as tremuras da
minha voz.
— Nunca poderemos ser amigos, por mais sinceros que
possam estar a ser. Vocês estão escravizados pelo Carter, e
tu em especial. Ele salvou-te a vida, ele deu-te novas
oportunidades e tu sentes-te demasiado endividado para
que possamos criar um relaciona­mento saudável. Porque o
Carter terá sempre um ascendente so­bre ti. Ele vai dar-te
ordens a meu respeito e tu obedecerás sem sequer te
interrogares se essa ordem me pode causar dano, como
fizeste até agora.
Jurava ver bem fundo nos seus olhos o seu coração a
partir-se, o que acentua o meu mal-estar e o meu medo de
ainda acreditar neles. Volto-lhe as costas e fujo, deixando-o
ali plantado.
— AVALONE!
Olho por cima do ombro. O Justin, o Tucker e o Set
aparecem, mas são travados pelo Jesse.
— O Henzo anda à solta... — implora o Tucker.
Ouço alguém a debater-se atrás de mim.
— Ela precisa de tempo — diz o Set.
— Porra, é a Ava! Não podemos deixá-la ir!
Acelero o passo. Odeio-os ainda mais por continuarem o
seu joguinho doentio e só quando entro no táxi é que
respiro um pou­co melhor.
Esta cidade deixa-me enjoada. Oprime-me, não consigo
vê-la mais.
— Para a rodoviária, por favor.
Toda a minha vida é uma mentira pegada. Todos em
quem eu acreditava, todos em quem eu estava convencida
que podia confi­ar cegamente, só me mentiram... A minha
mãe, o Clarke, os Fi­lhos do Diabo, o Ethan e a Maria...
Ninguém decidiu ser sincero.
Sou filha do Mike Arinson. Conheci-o e gostei dele.
Por todos os deuses, gostei dele!
Como é que a minha mãe conseguiu mentir-me
descarada­mente durante tantos anos? Se o Mike realmente
nos abandonou para nos proteger, a minha mãe pode nunca
se ter drogado. Nesse caso, de onde vem a minha doença
cardíaca? Duvido de tudo, agora. A minha mãe fez da minha
vida uma mentira, todos contri­buíram para isso e não vai
melhorar, porque o gangue mais pode­roso dos Estados
Unidos terá um prazer desgraçado em me ma­tar, se
descobrir que ainda estou viva.
Já não tenho em quem confiar, já não tenho identidade. E
quando pensava que a minha crença nos deuses era
definitiva, sou rapidamente apanhada pela realidade. A
minha mãe sempre me disse que a sua fé no Yggdrasil
vinha da família do meu pai. Eu orgulhosamente acreditei
em Odin, para prestar homenagem a esse homem que
partiu cedo demais...
***
Passaram quinze minutos e o motorista deixa-me na
rodoviá­ria. Entrego-lhe uma nota e saio do carro, esvaziada.
As lágrimas finalmente pararam.
Aqui estou eu, pronta para sair apressadamente de Ann
Arbor e das suas perigosas cumplicidades. Já é noite há
muito tempo, não faço ideia de que horas são. Perdi
completamente a noção do tempo.
Avanço para a bilheteira com um passo pesado.
— Destino? — pergunta a funcionária da bilheteira.
— O próximo autocarro a sair.
— Alabama. Vinte e sete dólares.
Com gestos automáticos, dou-lhe o dinheiro em troca do
bilhe­te. A mulher olha fixamente para mim e hesita em
perguntar-me se estou bem, mas não o faz.
— Partida dentro de dez minutos.
Agradeço e viro-me para entrar no autocarro. As portas já
es­tão abertas, entro. Avanço pelo corredor, atordoada, sem
prestar atenção aos passageiros já instalados. Sento-me
num banco livre, longe de toda a gente, com esta vontade
de me emparedar no si­lêncio. Atiro o meu saco para o
assento ao lado, para ter a certeza de que fico sozinha, e
tiro a minha medicação. Engulo os compri­midos, guardo-os
e ponho os auscultadores nos ouvidos. Quando encosto a
cabeça contra o vidro da janela, é Feel, de Robbie Williams,
a primeira música que me embala.
O autocarro fecha as portas e arranca, deixando o meu
coração na beira da estrada. A lágrima solitária que me rola
pelo rosto é a última coisa que sinto antes de adormecer.

Continua...
Agradecimentos

O primeiro volume não termina com o último capítulo.


Termi­na agora, com os meus agradecimentos, porque há
muitas pesso­as sem as quais eu não estaria aqui, a escrever
esta página.
É o sonho de uma menina tornado realidade. Um sonho
que eu achava inatingível. Um sonho que realizei graças a
muitas pes­soas fantásticas, a quem sou eternamente grata.
Agradeço de todo o coração à minha editora, Caroline,
que me deu uma nova casa. A sua paciência, a capacidade
de me ouvir e o seu conhecimento tornaram o trabalho
editorial imensamente agradável e enriquecedor. Ainda
consigo ouvi-la a sussurrar-me... repetição. Ou a perguntar-
me, no nosso primeiro contacto telefó­nico: «Gostas de piza
de ananás?» Apesar da minha resposta ne­gativa a esta
pergunta crucial, ela aceitou-me na sua família! E é isso que
Plumes du Web é. Uma família.
Gostaria também de agradecer à Geny, pelo seu fabuloso
tra­balho. Graças a ela, a minha escrita melhorou
consideravelmente e particípios passados e advérbios
tornaram-se os meus inimigos.
Passo à Jenn, que um dia entrou de escantilhão nas
minhas mensagens privadas, para me dar uma notícia
maravilhosa: a edi­tora Plumes du Web queria entrar em
contacto comigo. Posteriormente, conheci a Océane. Ambas
me receberam com uma gentile­za que me aquece o coração
até hoje. Senti-me compreendida e legítima. Senti que tinha
o meu lugar junto delas. Obrigada por tudo, meninas. Eu
não saberia ter pedido nada melhor.
Obrigada a Sam, que foi capaz de identificar a minha
comuni­dade, de modo a incluí-la em cada um dos seus
posts. Afinal, não se deixa o bebé num canto. (Dirty
Dancing).
Quero aplaudir de pé a Anaís, a minha melhor amiga
desde sempre, que me fez descobrir a plataforma Wattpad
há alguns anos. Sem ela, não existiríamos. Sim, podes
colher alguns louros, belezura.
Um agradecimento gigantesco ao meu pai, por
acompanhar, dia após dia, os números da minha expansão
no Wattpad. Obriga­da pelo teu envolvimento e apoio.
Obrigada por tudo, amo-te muito.
Muitos e muitos beijos de amor para as minhas fabulosas
ami­gas Laila, Marie e Lizzie, que me apoiaram e
acreditaram em mim. Obrigada por serem como são.
E, finalmente, uma boa parte da minha gratidão vai
direta para a minha comunidade do Wattpad, que soube
amar os Filhos do Diabo, e a mim. O seu lugar no meu
coração é imbatível, nun­ca esquecemos de onde viemos.
Guardo carinhosamente as nos­sas memórias, tal como a
família que criámos. Obrigada por tudo o que me deram:
amor, risos, apoio, amizade, lágrimas de alegria e gratidão.
E lembrem-se que, não importa quantos anos passe­mos
longe do Carter e dos Filhos do Diabo, a porta deles estará
sempre aberta para nós. Seremos uma família para sempre.
Diabos, um dia...

Você também pode gostar