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Universidade Federal do Rio Grande do Sul

Instituto de Letras
Departamento de Línguas Clássicas e Vernáculas
Profª Magali Lopes Endruweit – Leitura e Produção de Texto
em Língua Portuguesa I

Nome: Victória Campão Fraga Sacramento


Turma: B
Texto: Emoção forte

A primeira vez que assisti Planeta 51


Quando eu era pequena, eu queria só ter que me preocupar com o tema de casa que a professora
do 5º ano do fundamental pedia para fazer.
Os 12 anos pode ser uma época conturbada: é um período estranho entre ser uma criança e se
tornar um adolescente. Meu pai dizia que eu estava numa fase “aborrescente” sempre que eu
implicava com algo quando eu tinha 12 anos.
Isso me irritava de uma maneira que hoje eu tenho vontade de rir.
Os 12 anos pode ser uma fase bem boba: eu comecei a parar de brincar de boneca nessa época
porque todas as minhas amigas pararam de brincar, mas eu fazia questão de manter todas as minhas
bonecas bem-vestidas e expostas na prateleira de madeira que eu tinha no meu quarto. Eu tinha medo
de que meus brinquedos fossem como o Toy Story e ganhassem vida quando eu não estava por perto.
A ideia de decepcioná-los quebrava o meu coração.
Mas essas preocupações eventualmente tiveram que ficar de lado. Hoje eu penso sobre como
teria sido bom se eu tivesse brincado de boneca por mais tempo, mas não foi bem assim que as coisas
aconteceram nos meus 12 anos.
Quando eu tinha 12 anos minha mãe tentou suicídio.
Eu lembro de chegar em casa depois de visitar minha vó no domingo e lembro do meu pai
abrindo a porta e da forma como a voz dele vacilou, dos seus olhos arregalados quando ele olhou
para a minha irmã mais velha e disse: “Vão para a cozinha.” Eu lembro de como a minha irmã me
puxou pelo braço, obedecendo a ordem como qualquer criança assustada obedeceria. O aperto foi tão
forte que eu lembro de como o meu braço ardeu em dor e vermelhidão.
Hoje eu gostaria que essa cena catastrófica tivesse acabado ali, que eu não tivesse sido exposta a
nada mais além da cara assustada do meu pai me pedindo para ficar longe. Mas ele era um só, e a
minha mãe era um peso morto.
Então ele pediu a nossa ajuda para colocá-la no carro.
Eu lembro muito bem da minha mãe jogada no banco da frente, da voz engasgada do meu pai
pedindo para a minha irmã segurar a cabeça da minha mãe do banco de trás porque ela estava tão
mole que ficava batendo contra o vidro. Eu lembro de me encolher ali do lado da minha irmã,
sentada sem o meu cinto de segurança afivelado, e eu lembro que depois eu pedi desculpas ao meu
pai por isso.
Naquela noite, enquanto meu pai acompanhava minha mãe no hospital, minha irmã montou uma
cama pra mim ao lado da dela e botou um DVD para tocar na TV. O nome da animação era Planeta
51 – uma história boba sobre um astronauta que pousa em um planeta distante e se vê cercado de
alienígenas verdes e que se sente deslocado porque ninguém entendia ele.
É bobo, mas enquanto eu assistia o desenho, sentada frente à TV, com os olhos grudados e
ignorando a minha irmã da mesma forma como ela ignorava todas as minhas indagações, eu me
sentia igual àquele astronauta.
Existem muitas coisas que a gente não está preparado para viver quando temos 12 anos.
Eu certamente era velha demais para me entreter com aquele tipo de filme, mas situações
extremas às vezes nos fazem querer regredir até receber o colo da mãe e a certeza de que tudo vai
ficar bem. Eu não tinha o colo e o conforto da minha mãe naquele momento, mas eu me senti
abraçada por um vazio reconfortante: talvez fosse bom mesmo eu não saber de nada, talvez eu não
acharia o enredo do astronauta e dos alienígenas tão interessante se eu entendesse a situação.
A minha mãe voltou para casa no dia seguinte, com um sorriso de quem prefere fingir que nada
aconteceu. E é isso que ela tende a fazer até hoje: fingir que nada aconteceu. Foi assim na primeira
vez, na segunda e na terceira vez também.
Minha mãe tem um jeito muito peculiar de encarar a vida: na cabeça dela, tudo é diferente. As
filhas são incríveis, sempre tiram nota alta e são o maior tesouro dela. Na cabeça dela, a gente faz
isso porque é como respirar: temos o dom natural de dar o nosso melhor em tudo o que fazemos.
Minha mãe não entende que tanto eu quanto a minha irmã estamos constantemente tentando ser
as melhores filhas que ela poderia ter para que assim ela pense melhor antes de tentar nos deixar de
novo.
Minha mãe não gosta de falar sobre isso. Depois que acontece, ela gira uma chavezinha no
cérebro e age como se nada tivesse acontecido. Eu acho que é cômodo para ela assim: não precisar
falar sobre essas coisas escandalosas. Para ela, é melhor falar sobre como eu e minha irmã temos um
futuro brilhante pela frente.
Minha mãe sempre diz aos outros que ela cria suas filhas para o mundo. Mas ela não entende
que eu e minha irmã só conseguimos voar até onde ela nos permite. Ela não entende que seu amor e
seu carinho nos apertam como uma coleira: ali para nos manter seguras, mas também para nos
manter por perto.
Eu nunca falei isso para a minha mãe, mas às vezes eu penso sobre como seria se ela não
dependesse tanto da gente. Às vezes eu penso sobre como teria sido melhor se o nosso pai tivesse
ficado: às vezes eu tenho raiva dele por ter nos deixado sozinhas com ela. Foi muito fácil ele dizer
que se sentia pressionado, foi muito fácil para ele pedir o divórcio e se mudar para um outro lugar.
Eu e minha irmã não tivemos essa escolha.
Aos 14 anos eu estava encarregada de pagar minha mensalidade escolar, porque minha mãe não
tinha capacidade para tanto. Meu pai mandava o dinheiro e eu cuidava do boleto. Ele achava melhor
assim. Eu odiava ter que me preocupar com isso enquanto as minhas amigas viviam realidades bem
diferentes. Aos 17 anos eu e minha irmã começamos a dividir as contas de casa porque minha mãe
não conseguia guardar o salário dela por mais de uma semana.
Aos poucos eu acho que me acostumei com a ideia de que talvez a minha mãe não fosse aquela
que todos dizem ter. E por muito tempo eu me culpei por isso: por que eu não era o suficiente?
Eu nunca fumei nada. Esperei até os meus 18 anos para experimentar qualquer tipo de bebida
alcóolica. Nunca tirei uma nota menor que 8 na escola. Estudei para passar na Federal porque minha
mãe adora esbanjar títulos. Sempre tentei ser a filha simpática e amigável que ela adora mostrar aos
outros.
Mas, ainda assim...
Quando eu tinha 12 anos minha mãe tentou suicídio. Não foi a única vez, mas foi a primeira e a
que mais me marcou. Hoje eu penso que talvez a pergunta não seja “por que eu não sou suficiente?”
e sim: “será que sou eu o problema?”
Conforme eu fui ficando mais velha e a situação se repetia, entendi que não adianta você querer
ajudar alguém se esse alguém não quer ser ajudado. E não adianta você gastar a sua vida toda
tentando atingir as expectativas de alguém quando esse alguém muda as regras do jogo conforme
você joga.
Eu ainda não consigo pensar sobre a animação Planeta 51 sem que um calafrio percorra o meu
corpo. Não consegui confirmar minha teoria sobre Toy Story porque logo meus brinquedos se
tornaram coisas banais demais no meu mundinho agitado. Ainda preciso de muita terapia para
estancar a culpa que me transborda porque às vezes eu simplesmente não me sinto o suficiente. Eu
ainda tenho um longo caminho a percorrer com aquela menina de 12 anos que não conseguia
entender por que a mãe faria uma coisa dessas.
E eu ainda preciso desesperadamente parar de acreditar que nenhuma relação, amigável ou
amorosa, seja válida de ser criada porque a vida sempre vai me decepcionar com as pessoas.
A verdade é que essa história parece ter tido um começo: lá naquele domingo, quando eu voltei
para casa depois de visitar minha vó. Mas a sensação que fica é que talvez eu demore muito tempo
para conseguir fechar a página desse livro. Eu nunca sei o que vai acontecer, mas a sensação de que
algo vai acontecer está sempre ali, me rondando quando não consigo dormir, quando ela se tranca no
quarto e quando eu fico muito tempo fora de casa. É quase como viver com medo, de certa forma.
Mas um medo que a gente aprende a conviver, que faz parte da rotina.
Quem sabe, num futuro próximo, eu consiga fazer que nem o astronauta do Planeta 51 e tomar
coragem para me lançar no foguete que me leva a um lugar onde eu sei que todas essas coisas não
vão mais me amedrontar.

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