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Onde Não Existem Exemplos

Apesar de saber que esse trabalho não precisa de um título, ou que ele não
condiz com as normas da ABNT, não me sentiria bem fazendo ele se não
dando um nome a ele e usando minha fonte favorita para fazer isso.
Encarecidamente peço desculpas por isso, talvez não devesse escrever
assim em um trabalho para a faculdade, mas se não fosse, eu não escreveria
de forma alguma.
Pensei em várias formas de começar a escrever sobre algo que nunca
compartilhei com ninguém. Apesar de já ter contado histórias sobre a minha
vida para pouquíssimas pessoas, jamais contei de forma sensível e de forma
a expor como me sentia quanto a isso e como esses fatos continuados me
fizeram chegar onde estou. Portanto, não há outra forma de me expressar
sem ser com a sinceridade e o conforto que não me faça fugir dessa tarefa.
Apesar de saber como as pessoas me veem e tiram sua primeira opinião, não
sou nada do que cogitam nos primeiros segundos em que conversamos,
talvez eu quisesse ser essa pessoa que não enfrentou tudo o que enfrentou,
ou que teve uma vida fácil até chegar onde está hoje. Contar tudo isso
definitivamente não é uma tarefa fácil, porque meu corpo optou por apagar
vários momentos da minha vida, para que não me lembrasse
constantemente de tudo o que aconteceu, o que me faz não saber com
nenhuma precisão quando ocorreram alguns dos fatos, mas assistindo ao
filme eu sentia muito do que eles passaram e em alguns momentos eu me
lembrava de algumas coisas há muito esquecidas. Enfim.
Nasci e cresci em um dos piores bairros da cidade, apelidado como “bang”,
foi onde vi de perto o pior do ser humano, mas era novo demais para
enxergar a maldade ao meu redor. Passei minha infância na casa da minha
avó materna, pois, meu pai sempre estava de plantão ou vendendo drogas
e minha mãe estava ocupada demais trabalhando para sustentar eu e meu
irmão. Então convivi diariamente com pessoas traficando, roubando e
usando drogas nas ruas onde brincava. Muitos dos que cresceram comigo
foram presos e outros, depois que fiquei mais velho, descobri que foram
mortos, mas mal consigo me lembrar de seus nomes ou fisionomias, eles se
tornaram vultos na minha memória.
Quando tinha cerca de 6 anos, me mudei de lá, fui morar em outro bairro
bem longe desse mundo, mas ainda continuava sozinho, minha mãe e meu
pai sempre ocupados com suas tarefas e meu irmão, 9 anos mais velho,
buscando compromissos que o fizessem ficar longe de casa o máximo
possível, sendo assim, ganhei uma babá como companhia, ela passava o dia
cuidando da casa e de mim, mas é curioso pensar que a única pessoa que
brincava comigo quando pequeno, era uma idosa paga para fazer isso.
Durante esses anos me lembro de me esconder debaixo da cama com a
minha mãe, porque estávamos devendo meses de aluguel e quase sendo
despejados. Apesar de pequeno, já pensava comigo, “será que vou ter que ir
morar debaixo da ponte?”. Era algo inexplicável para mim, porque eu tinha
dois país que sempre estavam trabalhando, e por isso nunca estavam
presentes, mas ainda não tinha dinheiro para manter uma casa e isso se
seguiu por anos, até que nos mudamos para uma das casas da minha avó
paterna.
Não demorou muito até que meu pai foi preso pela primeira vez. Eu sai da
escola e tive que ir para minha avó materna, não conseguia entender, mas
sabia que algo estava errado, todos estavam inquietos e tentando esconder
a notícia de mim, até que minha mãe me contou, mas eu não entendia o
que isso significava. Tivemos que ir morar com a minha avó paterna, e ela
definitivamente era a bruxa má dos contos de fada, aquela pessoa falsa e
que vive por um status no qual somente ela se importa de verdade. Me
lembro de algumas vezes, antes de morarmos juntos, em que íamos levar
comida escondidos para minha tia que morou lá antes de nós.
Nessa época eu estudava no Colégio Municipal, mas meus dois primos
estudavam no Colégio Pelicano, sendo assim, minha tia decidiu me colocar
no mesmo colégio que eles e ao mesmo tempo que isso foi bom para mim,
também me fez sofrer muito. Havia acabado de perder meu pai, que mesmo
não sendo presente, fazia falta, havia perdido meu lar e ainda estava prestes
a me mudar para um lugar onde não conhecia ninguém.
Ganhei uma bolsa por meus primos estudarem lá, mas cheguei em uma
escola onde não conhecia ninguém e todos cresceram juntos, levei um
tempo até conseguir me enturmar, mas durante esse processo jamais vou
esquecer da pergunta: “e o que seu pai faz?”. Eu não sabia como responder,
aquelas pessoas jamais passaram pelo que passei, mas me ensinaram a
mentir, então dizia que ele trabalhava no SAMU e fazia muitos plantões, por
isso não viam ele. Porém, como diz o ditado, mentira tem perna curta, e não
tardou muito até todos ali saberem que eu não tinha dinheiro para estar lá
e que meu pai era um traficante que estava preso.

Depois de quatro anos meu pai tinha voltado para casa, mas sinceramente,
mal me lembro dele comigo durante minha vida inteira. Apesar da
promessa de que jamais faria algo errado de novo, ele continuava sendo a
mesma pessoa de sempre, até me lembro de uma briga entre ele e minha
mãe, onde ele queria bater nela e eu entrei para o meio, a partir daquele
momento eu comecei a questionar os exemplos que tinha ao meu redor.
Me sentia tão sozinho passando por aqueles problemas, que comecei a
acreditar que o problema estava em mim, comecei a desenvolver um severo
caso de ansiedade, comia tudo o que via pela frente, até me tornar gordo e
ter problemas no estômago, passei um mês internado, porque meu esôfago
se encheu de feridas a ponto de tudo o que eu ingerisse voltasse e eu não
conseguisse mais me alimentar de nada.
Quando tive alta, me encaminharam para um psiquiatra, eu não gostava de
ser gordo, na verdade isso se tornou mais um motivo para atrair olhares e
comentários indesejados, então comecei a fazer tratamento e durante
quatro anos tomei remédios que deveriam me acalmar, ganhei duas altas
médicas, mas nada disso resolveu os meus problemas, por anos me
dediquei para ser o melhor da escola, pensando que isso resolveria o
problema, infelizmente era inocente demais para enxergar que naquela
idade, o problema jamais ia se resolver.
Ao passar do tempo meus primos estavam se formando e com isso eu fui
perdendo os descontos da minha bolsa, porém, ao acaso do destino, entrei
para o time de basquete da escola e mantive alguns descontos na
mensalidade, isso não evitou a dívida, mas freou aquele problema.
Com 14 anos meu pai foi preso novamente, logo após minha mãe e ele se
separarem. Dessa vez não tinha como esconderem de mim, meu pai
continuava estranho como sempre e eu sentia isso toda vez que via ele.
Então, voltei ao ponto da pergunta: “onde está seu pai?”, e novamente eu
mentia descaradamente, mas não adiantava, todos os pais dos meus
amigos sabiam e isso os fazia afastá-los um pouco de mim.
Me dediquei ao esporte como a última esperança, pois, via minha família
ruindo, meus estudos indo por água abaixo, só restava eu manter minha
média de notas altas e mergulhar de cabeça em algo que me afastasse da
realidade. Foi assim que comecei a melhor terapia da minha vida, onde
aprendi que somente eu era capaz de mudar aquele cenário caótico,
bastasse eu querer e me esforçar, também foi onde me isolei do mundo,
porque entre as linhas da quadra, nada do lado de fora importa, era como se
eu mergulhasse em outro mundo, que me dava fôlego o suficiente para
continuar.
Porém, em algum momento tinha que voltar para a superfície, então
enxergava todos os problemas novamente. Nesse momento já não existia
mais auto estima, me sentia mal comigo mesmo, ouvia as reclamações de
problemas e enxergava as dificuldades. Não me lembro de ter pedido para
ser o homem da casa desde criança, mas algumas escolhas durante a vida
não são feitas por nós. Isso me custou várias tentativas de suicídio, onde a
única coisa que passava na minha cabeça vendo os vários problemas
financeiros e familiares era: “por que eu nasci?”. Me perguntei isso todo os
dias durante anos e anos da minha vida, acreditava que eu ter nascido era a
causa para minha mãe ter continuado com meu pai, para meu irmão não
ter condição de fazer o curso que ele gostaria, para minha tia se endividar
até quase falir e para todos os outros problemas que me cercavam.
Aos 16 anos, no primeiro ano do ensino médio, tive que mudar de escola,
pois, cortaram a bolsa de atleta e eu estava endividado demais para
conseguir continuar lá. Foi quando me mudei para o Pio XII, durante o ano
senti que tinha uma capacidade diferente, acima da média, mas nessa
mesma época foi quando dei os primeiros vacilos. Queria ter condições de
bancar meus estudos, de comprar roupas novas, de poder comer o que
quisesse, porém, não tinha emprego, então foi quando quase me envolvi
com as drogas, e apesar de ter desistido desse caminho, passei um ano me
envolvendo com criminosos. Isso me lembrava meu pai e decidi que não
queria trilhar esse caminho.
Nesse mesmo ano ele foi solto, novamente. Dessa vez ele tinha passado
menos tempo, mas foi transferido para várias cidades, porque ele não era
mais só um traficante, ele tinha uma fama nesse mundo já. Mais uma vez
veio a promessa, de que não faria nada de errado mais e por incrível que
pareça, até o presente momento ele não aparenta estar envolvido mais com
isso. Infelizmente foram mais de 16 anos da minha vida que ele perdeu.
Então, ao final do meu primeiro ano, já estava devendo várias mensalidades
na escola, sendo assim, mais uma vez eu deveria sair, foi quando me mudei
para o David Campista, mais uma vez, uma nova escola onde não conhecia
ninguém. Todos me julgavam achando que eu tinha dinheiro, por eu me
destacar nas matérias, ter um maior conhecimento sobre várias coisas e ter
estudado em escola particular. Passei a vida convivendo com isso, mas já
tinha 17 anos e não queria mais ter que ficar me explicando para todo
mundo, então me fechava e continuava me dedicando ao esporte, onde
meus amigos se importavam comigo e eu não era só um garoto pobre com
o pai criminoso. Conheci pessoas que passaram por situações parecidas,
mas até mesmo algumas delas achavam que eu rico e por isso, não
gostavam de mim.
Nessa mesma época, as únicas coisas que eu tinha, eram o esporte e eu
mesmo. Lá estava o mesmo ciclo de sempre e a mesma pergunta, mas eu
já estava mais velho, tinha aprendido a esconder tudo o que sentia, então
ninguém conseguia perceber se eu estava bem ou não. Em determinado
momento nosso corpo cansa de sofrer, cansa de se mutilar e cansa de fingir,
foi quando me olhei no espelho e percebi que não enxergava nenhum herói
em quem me espelhar, não existia nenhuma figura ao meu redor que
pudesse seguir para chegar onde eu sonhava, nesse momento me dei conta
de que não tinha sobrado ninguém ao meu lado, que só eu poderia ser meu
exemplo, percebi que vivi uma vida onde paguei o preço pelo erro dos outros
e que sofria por isso, mas enquanto sofria, ninguém intervia para cessar essa
dor.
Lembro que quando namorei pela primeira vez, levei vários meses até ter
coragem de contar o que havia acontecido com meu pai e porque ele não
estava mais em casa. Tinha tanto medo do julgamento das pessoas, que
simplesmente não conseguia falar o que havia acontecido, me sentia
deslocado perto de todo mundo, porque meu maior receio era que
descobrissem que eu não tinha nada, nem dinheiro e nem ninguém.
Me destaquei como atleta e aluno, para tentar compensar a visão ruim com
a qual as pessoas se dirigiam a mim, graças a isso mudei a perspectiva como
enxergava o mundo. Ninguém nunca me deu nada, nem sequer uma
chance, então por que esperar que me dessem agora?
Pensando assim comecei a me dedicar completamente a coisas que me
levassem até meu sonho, então aos 17 já tinha uma organização sem fins
lucrativos, já fazia parte de uma instituição internacional, contava com vários
cursos diferentes, estudava diariamente e me dedicava a ser um atleta de
alta performance. Me preparei a vida toda para ser mais do que todos ao
meu redor, não para ser melhor, mas para me proteger, para que me vissem
pelas grandezas que conquistei e não pelos erros das outras pessoas que me
criaram.
Infelizmente, não me preparei para cair, então no terceiro ano do ensino
médio queria fazer as universidades mais caras do Brasil, acreditando que
conseguiria me destacar e ganhar uma bolsa. Acordava as 4:30 da manhã
para começar a estudar, me dediquei um ano a isso, mas descobri que não
adiantaria eu ter a bolsa da melhor faculdade, porque eu não teria onde
morar e não teria condições para me virar. Isso me fez mudar de planos, tive
que ficar em Poços e escolher um curso que fosse mais semelhante ao que
eu queria.
No começo de 2020, me deparei com aquela velha pergunta, exatamente
após perceber que a vida financeira da minha família estava mal de novo e
que não teria como pagar a faculdade, voltei a ter severas crises de
ansiedade, voltei a pensar em suicídio e a me machucar para esquecer da
dor que existia dentro de mim. Me fizeram acreditar a vida toda que eu era
um erro, que tudo o que aconteceu era graças a minha presença. Não
precisavam verbalizar isso, era visível que quando me aproximava ou
contava meus sonhos a minha família se esquivava com aquele olhar
dizendo que eu jamais poderia chegar lá. Alguns dos meus familiares se
distanciaram tanto, que muitos nem sabiam o que eu fazia da vida, o que eu
gostava, ou o que conversar comigo. Era como um animal exótico, um
garoto que veio da onde eles vieram, mas sem pai e endividado, dizendo que
iria ganhar milhões fazendo o que ama e que seria livre para viver.
Me senti muito mal esse ano, apesar das muitas coisas boas que
aconteceram. Conquistei meu certificado, hoje sou um dos assessores de
investimentos mais jovem e um dos mais competentes, sou CMO de uma
organização sem fins lucrativos e que é considerada um unicórnio em
potencial, fiz palestras e treinamentos para pessoas do Brasil todo, muitas
delas bem mais velhas que eu e dei a minha primeira palestra internacional.
Mesmo assim, durante esse ano senti um vazio muito grande e um medo
que me impedia de dormir, comer e até viver. A disciplina de Mentoring foi
uma das coisas que me ajudou a mudar isso, a enxergar determinadas
situações com uma nova perspectiva, me fez lembrar do quanto era
importante ser feliz e forte para passar pelas situações da vida, além de me
fazer sentir em casa, sentir que durante aquelas duas aulas, não existia
problema capaz de me derrubar. Foi assim que voltei a acreditar no
potencial do meu sonho, vendo as coisas de forma diferente, tentando
enxergar as soluções dos problemas, tentando ser positivo, mesmo quando
o mundo inteiro parecia estar contra mim e principalmente, lembrando de
sempre ser feliz e aproveitar o nosso tempo, tão escasso, de vida.
Nunca havia escrito minha história, nunca tive coragem de colocar no papel
tudo pelo que já passei. Enquanto escrevia tudo isso, me lembrava de
momentos e pessoas que se foram, me permiti chorar por elas, me permiti
chorar por mim, coisa que nunca me deixo fazer. Meu maior sonho não é
apenas ser livre, ter dinheiro suficiente para não me preocupar por gerações
ou criar um legado jovem de muito sucesso. Meu maior sonho e maior
motivação, é poder palestrar e mostrar para pessoas que passaram por
coisas como eu, ou até piores, que eles também podem sonhar, que eles
também podem conquistar tudo o que quiserem, que não importa o
tamanho do problema na sua frente, basta você ser resiliente, porque é
impossível alguém ganhar de uma pessoa que não desiste. Aprendi durante
a vida que não importa se faltam exemplos ao seu redor, ou se faltam
pessoas em quem se apoiar, ao se olhar no espelho, o maior exemplo que
você deve ter é você mesmo e o único suporte que você precisa, é você.
Obrigado por essa oportunidade de contar sobre momentos tão únicos da
minha vida.

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