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São Paulo, 23 de outubro de 2023.

Carta endereçada para:

Gilberto Pereira da Silveira,

Eu tenho escrito e reescrito, desistido e insistindo nessa carta a um bom tempo, às vezes, acho
que estou sendo muito clara nas minhas palavras, e por vezes sinto que só estou entulhando
sentimentos neste papel.

Agora, sinto que posso expressar e detalhar brevemente, claro, tudo que tenho vivido e
absorvido em 26 anos de idade.

Durante alguns desses passados anos, eu senti um vazio, uma grande falta, senti falta da sua
presença na minha vida, falta do seu abraço, falta do seu colo, falta de conselhos, falta da sua
defesa, falta de esperá-lo voltar do trabalho, falta até de broncas e correções nas vezes em que
errava. Mas percebi que nunca foi saudade, nunca senti saudade do senhor, nunca senti
saudade de reviver nenhum momento contigo, porque nós só podemos sentir saudades de
algo que já vivemos e o senhor mais do que ninguém sabe que não vivemos nada disso, não
vivemos nada.

Somos completamente dois estranhos com o mesmo sangue.

Durante esses anos me questionei por várias vezes o motivo de não merecer ser amada por um
pai, o que de tão ruim eu poderia ter feito em outra vida (não sei se o senhor acredita nisso) ou
nesta vida sendo apenas um bebê e uma criança que não pude ter e receber o amor e uma
presença paterna ao meu lado, me questionei ao universo e a Deus o porquê da falta de uma
pessoa tão importante na minha vida, mas ao longo dos anos eu mudei o questionamento e
comecei a questionar a Deus e para o universo o que eu tinha feito de tão ruim para merecer
um “pai” como o senhor, eu blasfemava e dizia que isso era um grande castigo na minha vida.

Junto com estes questionamentos senti raiva, ódio, rancor, angústias, tristezas e uma grande
sede de vingança. Senti tudo isso apenas por me parecer com o senhor, por ter puxado seu
nariz, sua boca, o formato dos olhos, o formado dos pés, sentia ódio das pessoas me olhando,
lembrando e perguntado do senhor. Sentia ódio do senhor quando eu fazia algo e minha mãe
falava: “Nossa, mas você é o seu pai todinho.” Eu queria que o mundo acabasse nestes
momentos. Cheguei até a culpar minha mãe por ter lhe conhecido, por ter sido apaixonada
pelo senhor, por ter confiado a vida a alguém como o senhor, por ter confiado no senhor e ter
engravidado de mim. Eu falei para ela: “Mãe, era só a senhora ter prestado atenção no
histórico, ele não amou, não cuidou, não era e nunca foi um bom pai para a Gabriela (sua
primeira filha) por que comigo seria diferente? Por que ele cuidaria de nós? Da nossa família?
De mim?.” Dito e feito, o senhor não o fez. E, todos esses sentimentos ruins ficaram mais fortes
na minha alma quando soube que o senhor engravidou minha mãe de propósito e a deixou
sozinha no hospital para me ter.

O senhor fez tudo errado, tudo ao contrário, fez nossas vidas virarem de cabeça para baixo, fez
das nossas vidas por muitos anos um grande inferno. Esse ódio todo que senti não me trouxe
paz, não me trouxe sua presença na minha vida, não me fez nada bem. Com o tempo eu ganhei
um novo modo de pensar nisso tudo, mas acredite, não foi fácil chegar a esta conclusão.
Analisando com calma o senhor só me deu apenas o mesmo que recebeu dos seus pais. Sei
que teve uma infância muito humilde com os seus outros irmão, seu pai também não te deu
amor, vocês só receberam maus tratos, ignorância e sofrimento até o último dia de vida dele,
logo, quando o senhor virou adulto e se deparou com responsabilidades e com uma família, fez
igual e pior. Claro que, essa historinha triste não serve de justificativa para ter feito tantas
escolhas erradas na sua vida.

Mas eu vou te contar como é ser um filho amado pelos pais...

A minha mãe é a melhor pessoa que existe nesta terra, após o senhor nos deixar, ela virou o
meu pai, se manteve em dois papeis, por vezes meiga e amorosa como mãe e por vezes,
enérgica e durona como um pai. Sem contar o meu irmão que é o grande exemplo de homem
na minha vida. Ele que me ajudava nas tarefas e trabalhos de escola, ele que comprava meu
material escolar, ele que ia ao mercado comprar meus lanchinhos para levar para o recreio da
escola, ele que comparecia nas reuniões de pais e mestres, ele que lia os bilhetes na minha
agenda, ele que preparava minha mamadeira, ele que me levava para passear no shopping, ele
que apagava a luz e me colocava para dormir, ele que me esperava na porta de casa quando eu
descia da perua escolar, ele que sabia o desenho e meus brinquedos favoritos. Ele fez o que o
senhor não fez. Ele, o Danilo, meu irmão, que o senhor nunca aceitou ou respeitou quando foi
casado com a minha mãe, ele fez um excelente papel de pai e ele é um homem infinitamente
melhor que o senhor.

O senhor deve estar se perguntando: “E sua mãe?” Ah, a minha mãe, por muitos anos nos
manteve trabalhando em dois ou mais empregos, sem folga, sem férias, sem parar mesmo
estando algumas vezes doente. Ela sustentou a mim e ao meu irmão com muito esforço e
dignidade. Quando ela saia de casa eu ainda estava dormindo e quando ela voltava para casa
eu já estava dormindo, também trabalhava fora aos fins de semana e nas madrugadas adentro
ainda cuidava da casa. Por vezes, eu acordava e a encontrava no tanque lavando roupa ou
limpando a cozinha chorando. Tudo o que estava ao alcance da minha mãe ela me deu e me
proporcionou. Eu estudei em ótimos colégios, tive roupas e sapatos de ótima qualidade, boa
comida, bons brinquedos, boas companhias, uma ótima infância, eu fui uma criança muito
amada por todos que estiveram e estão ao meu redor, eu fui e sou muito feliz apesar dos
problemas passados. Problemas esses que o Senhor me causou. O senhor me causou
problemas quando me deixava no sofá toda arrumada te esperando me buscar para passarmos
o fim de semana juntos, me causou problemas quando me negou convênio médico, me causou
problemas quando se negou a pagar a pensão alimentícia, me causou problemas quando
mentiu que estava com câncer em fase terminal, me causou problemas ao parar de ligar e ter
interesse, me causou problemas quando nos deixou morando de aluguel enquanto o senhor
ficava no apartamento que era de direito da minha mãe, me causou problema quando se
mudou para o Paraná e se relacionou com a Rosana deixando-a me ofender e ofender minha
mãe por diversas vezes, me causou problemas ao me procurar o ano passado querendo ficar
de bem esquecendo de tudo o que me fez passar ao longo desses anos. Problemas estes
físicos, psicológicos e emocionais.

O senhor se saiu muito bem me dando os exemplos do que eu não quero ser e do que eu não
quero para a minha família. Eu sinto muito se o senhor nunca foi amado verdadeiramente, se
nunca teve um lar feliz e nunca teve uma família unida e em paz. Porém, quando o senhor teve
a oportunidade de ter isto, o senhor foi perverso e desalmado. Aceite e viva seus próximos
anos de vida com os resultados das suas escolhas.

Como lhe disse antes, eu já senti falta de um pai na minha vida, de uma figura paterna, mas eu
nunca senti saudades sua, porque eu nunca tive o senhor na minha vida. Saiba que só o senhor
perde com isto. O senhor perdeu quando não me viu aprender a andar, perdeu quando não me
viu no primeiro dia de aula na pré-escola, perdeu ao não me ensinar a andar de bicicleta,
perdeu em não ver meus desenhos e pinturas pendurados na parede do meu quarto, perdeu
quando não viu meus joelhos ralados depois de brincar no parque, perdeu quando não me viu
aprender a ler e escrever, perdeu ao nunca ouvir o som das minhas gargalhadas e dos meus
choros, perdeu ao nunca me colocar para dormir no seu colo, perdeu ao não me ver crescer,
perdeu ao não me dar conselhos quando aprontei na escola ou quando me apaixonei pela
primeira vez, perdeu quando dei meu primeiro beijo, perdeu quando comecei a sair sozinha,
perdeu meu primeiro dia de emprego e me ver conquistando meu primeiro salário, perdeu ao
não me ver entrar na faculdade e quando não estava ao meu lado me vendo se formar, o
senhor perdeu ao não me ver se tornar uma mulher. O senhor perdeu todos os anos da minha
vida.

Ao ler isto, perceba que, o senhor não sabe nada sobre mim, não sabe qual é meu prato
predileto e das comidas que eu detesto, não sabe quais alergias eu tenho ou quais remédios
me dar se um dia eu ficar doente, não sabe das minhas manias, do meu Hobbie e qual é o meu
esporte preferido, não conhece meu gosto musical, não sabe dos meus medos e do que eu
acho engraçado, não sabe com o que eu trabalho, não sabe quais são os meus sonhos, o
senhor não sabe e nunca quis saber nada sobre mim.

Aprendi com isso tudo, ou melhor, com a falta disso tudo que sua ausência não me fez mal,
assim foi bem melhor para mim, me tornei o que sou hoje, me deu tudo o que tenho, me fez
amadurecer mais rápido, a amar mais e sempre valorizar todo e qualquer ato que minha mãe e
meu irmão fizeram e têm feito por mim, a definir claramente o que eu quero e o que eu não
quero dentro de um relacionamento e dentro do meu lar.

Todos os valores, princípios, ética e ensinamentos que passarei para os meus futuros filhos
serão todos o que aprendi com a amor e afeto da minha mãe e do meu irmão, minha família!

Hoje, ao enviar essa carta para o senhor, e por favor, recorde-se desta data, eu me liberto de
qualquer sentimento gerado pelo nosso sangue. O senhor não é meu pai, não é meu exemplo,
o senhor não é meu amigo. Eu quero que o senhor continue fora da minha vida!

Hoje deixo sua alma livre dos meus sentimentos de raiva, de tristeza, de desgosto, de
vergonha, de pena e de quaisquer outros sentimentos ruins que já assombraram o meu
coração. Que o senhor conduza sua vida da forma que achar mais coerente, e que minha
inexistência continue em sua mente e em seu coração. Também quero que saiba que lhe
desejo o bem e uma longa vida.

Com as minhas sinceras palavras,

Bruna Pereira da Silveira.

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