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Caros leitores dessa carta que eu ainda me nego a escrever;

Quando foi me passada a tarefa de escrever uma carta aberta sobre Bullying me foi bem tentadora a
possibilidade de dar pra essa tal carta uma visão passiva e superficial do tema, sem, de forma
alguma, me incluir. Foi bem tentadora a possibilidade de me fechar novamente dentro de mim e não
deixar que ninguém soubesse sobre como eu me senti, talvez por saber que seria quase insuportável
a dor que me voltaria, ou talvez também, por pelo menos uma vez e ficticiamente, eu poder apagar
tudo isso. Tão tentadora foi, que eu me deixei ser tentada, mas lendo o texto que eu mesma havia
escrito me pareceu tão raso e sem fundamento e isso se deu pois o fundamento que eu tinha e
precisava para isso era o que eu mais escondia e me negava a trazer de alguma forma para minha
realidade novamente. Mas bom como pode ser notado sem muita dificuldade eu me rendi a mim
mesma.

Me lembro perfeitamente do meu primeiro dia em uma escola, foi em fevereiro de 2009, lembro até
do lugar que estava no pátio da escola. Minha mãe tinha me dado umas moedas e eu comprei meus
chicletes favoritos, era o melhor dia da minha vida, aquele dia foi fantástico mas a partir dali as
coisas não seriam tão doces assim. Eu não me lembro da data ou dia em que começou, não me
lembro de quando ir pra escola passou do meu maior sonho e melhor parte da minha semana para
meu maior pesadelo, eu não sei o que aconteceu nem sei te dizer o que eu fiz de errado, só sei que
começaram. Os dois últimos anos foram os piores, mas talvez alguns de vocês se perguntem “E você
não falou com ninguém?” “Não falou com a diretora?” “Seus pais não sabiam?”, respondendo suas
possíveis perguntas eu pedi sim ajuda, mas quando eu não ouvia um “Ignora que passa” eu ouvia um
“Mas você deveria não deveria ser assim também...” “E se tirássemos isso ou mudássemos aquilo?”.
Nesses anos, eu ouvi coisas péssimas sobre tudo em mim, sobre minha aparência e meu jeito de ser.
As coisas ficaram tão constantes que eu tinha apenas uma amiga em toda escola, uma única pessoa
que olhava pra mim e me via como pessoa antes de qualquer outra coisa. Não eram somente
apelidos, tiveram dias de colocarem coisas em minha cadeira pra eu me sujar, e eu? Eu sempre ia
chorando para a diretora e era sempre a mesma resposta “Ignora que passa” surpreendentemente
nunca passou por completo. Gorda era um dos melhores apelidos que me davam, eu nunca tinha
grupos pra trabalho, diversas “brincadeiras” que eu nunca achei graça, grupos em redes socias para
falar de mim, post direcionados para mim, ameaçavam me bater as vezes... como já disse, foram
anos difíceis.

Se passaram anos desde aquilo, mas sabe o que nunca foi embora? Nunca foi embora tudo
que disseram, nem o sentimento de culpa, eu nunca entendi o que eu tinha feito pra merecer aquilo
tudo, nunca mais olhei pra mim mesma da mesma forma, nem coloquei uma roupa e me senti
bonita. A capacidade de olhar pra mim e ver coisas boas se foi, e eu não consigo fazer com que ela
volte. Tentei várias formas de acabar com esse sentimento de ódio por mim mesma, a que eu vi mais
eficiência foi acabar com o que me machucava, eu mesma. Várias vezes eu pegava facas e sentia um
desejo quase incontrolável de enfia-las no peito, olhava carros em movimento e eu só queria estar
parada na frente deles, era minha chance de acabar com esses sentimentos todos. Olhar no espelho
pra mim é muito doloroso, ver algo que eu odeio e que eu nunca vou poder mudar, eu mesma, meus
olhos perderam a capacidade de amar qualquer detalhe em mim e todos os dias são uma luta
constante pra ensina-los a ver de novo. Eu me perdi e ainda tento, numa busca enlouquecedora, me
encontrar de novo. Foram anos ouvindo como eu era péssima e horrível e que ninguém nunca ia
gostar de mim e hoje eu não consigo não acreditar nisso.

Mas sabe o que realmente dói? Eu chegar em casa e ouvir meu irmão contando como
chamam ele na escola, como ele quase não tem amigos e que tudo que aconteceu comigo está
acontecendo com ele anos depois. Me disseram uma vez que nós seres humanos aprendemos com
nossos erros mas eu não vi isso, batemos em nosso peito nos chamando de seres racionais e
pensantes, usamos a palavra humanidade pra justificar atos piedosos e misericordiosos, mas eu te
pergunto, onde está nossa “humanidade” quando vemos atitudes tão cruéis como o bullying
acontecendo e tapamos nossos olhos? E não venham me dizer que é por não saber das
consequências e que é só uma brincadeira de criança, porque brincadeira de criança não tira vida de
ninguém. Quantos adolescentes com vidas inteiras pela frente não desistem de viver pelo bullying?
Quantas e quantas lágrimas de pessoas inocentes foram derramas por elas simplesmente não se
encaixarem num padrão surreal e inalcançável de beleza? Quantas crianças brilhantes não se
ofuscam pra não serem alvos? Vocês já pensarem sobre como nós, enquanto sociedade, esperamos
que as pessoas sejam como bonecas e bonecos? Esperamos que saiam todos de um molde e que
sejam perfeitos em tudo, mas se alguém tem um mínimo traço fora disso é bombardeado por ódio e
por nosso lado mais cruel.

“Eu queria sair disso, eu implorei de todos modos. Eventualmente eu fiz, eu falhei, mas eu não me
importava. Eu estava fora e isso é tudo o que eu queria.“ Foi o que disse Daniel em sua carta de
suicídio cometido aos 13 anos e sabe de quem é a culpa pela vida que ele não viveu? De todos nós
que abaixamos a cabeça e não fazemos nada. Até quando crianças vão morrer por descaso e
omissão? Sei que não sou a primeira e provavelmente não serei a última suplicar um pouco de
humanidade a “humanidade”, mas com todo desespero que tenho dentro de mim peço ajuda, não a
mim, mas a todas nossas crianças que tem suas vozes caladas e suas vidas brilhantes sugadas por
puro egoísmo e ignorância.

Pra finalizar deixo aqui a vocês um trecho da carta de Diego Gonzaléz de 11 anos que em 14 de
outubro de 2015 em Madri cometeu suicídio;

“Digo isso porque eu não aguento mais ir ao colégio e não há outra maneira para não ir. Por favor
espero que algum dia vocês possam me odiar um pouquinho menos. Peço que vocês não se separem,
mamãe e papai, pois somente vendo-os juntos e felizes eu também serei feliz. Eu sentirei saudades e
espero que um dia possamos voltar a nos ver no céu. Bom, me despeço para sempre.
Assinado Diego.
Ah, uma coisa, espero que você encontre um emprego bem rápido Tata.”

Desesperadamente,

Larissa Borges

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