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Copyright©2020 Sammy Britto

Todos os direitos reservados.

É proibida a reprodução total ou parcial de qualquer parte do livro — tangíveis ou


intangíveis. Os personagens, eventos, situações e lugares são de completa
imaginação da autora. Qualquer semelhança com pessoas, locais e situações
reais são mera coincidência.
PLÁGIO É CRIME, Lei N° 9.610/98.

Texto: Sammy Britto


Capa: Sammy Britto

1ª Edição

Título: Vendida ao Tráfico

Autora: Sammy Britto


brittosammy@gmail.com
“Perante um obstáculo, a linha
mais curta entre dois pontos pode ser
a curva”.
Bertolt Brecht
ÍNDICE
♟ PRÓLOGO
♟ VULNERABILIDADE
♟ INDECISÃO
♟ INTERESSE
♟ DÚVIDA
♟ ABANDONO
♟ PRAZER
♟ SURPRESA
♟ HUMILHAÇÃO
♟ APEGO
♟ VAZIO
♟ DECEPÇÃO
♟ CARÊNCIA
♟ MÁGOA
♟ CORAGEM
♟ DESEJO
♟ CIÚMES
♟ CULPA
♟ DOR
♟ DESESPERO
♟ ARREPENDIMENTO
♟ TRISTEZA
♟ AMOR
♟ AUTOCONFIANÇA
♟ AFLIÇÃO
♟ ACEITAÇÃO
♟ PREOCUPAÇÃO
♟ INTOLERÂNCIA
♟ REALIZAÇÃO
♟ TENSÃO
♟ VINGANÇA
♟ MEDO
♟ PAZ
♟ EPÍLOGO
♟ EPÍLOGO
♟ BÔNUS
♟ BÔNUS
♟ AGRADECIMENTOS
♟ REDES SOCIAIS
PRÓLOGO

Todos já foram crianças um dia. Todos já foram pequenos e


indefesos que precisam da ajuda de alguém. Todos têm a mesma
oportunidade, que é o direito de distinção e, todos, têm o livre árbitro
de escolher o que será quando crescer; seja para o bem ou para o
mal. Tudo está na base de uma escolha, de uma separação, das
vontades e, talvez, até mesmo de um sonho.
As pessoas têm o poder sobre si para escolherem o que
querem, para distinguir as possibilidades que serão viáveis a ela.
Estudar ou trabalhar? Ficar ou ir? Fácil ou difícil? Tentar ou
continuar no erro? É uma incógnita. Não dá para adivinhar. O pobre
tem menos oportunidades, é na base do esforço. Há escolhas, no
entanto, são limitadas.
Medos, sonhos, pessoas, vontades, opressões... palavras tão
pequenas, mas que sustentam tantos significados. São conceitos
que machucam, destrói, mas que também nos levam a ter
esperança e vontade de se reerguer.
Não compreendo o porquê de irem pelo lado difícil, pelo
errado, em meio ao complicado e em terra que não lhes asseguram
em nada.
Há uma fase na vida que todos temos que passar pelas
escolhas difíceis, para determinarmos qual lado seguir e, muitas das
vezes, a escolha é errada.
Sempre acreditei que tudo era a base do trabalho duro,
suado e conquistado arduamente. Quando eu via homens e
mulheres fumando diversos tipos de drogas pelas ruas, dispostos a
tudo para suprir o vício consecutivamente, eu já logo pensava: "por
que eles não arrumam um trabalho?", ou "por que escolheram essa
vida?".
Porque as soluções fáceis são sempre as mais procuradas.
Quando homens e mulheres passam por necessidades,
depois de algum tempo sem arrumar emprego, quando as tentativas
são sempre falhas, no tempo em que o desespero está batendo na
porta sem cessar, as conclusões dessas pessoas é a prostituição e
o roubo, se afundar nas drogas ou em um mundo sem controle;
as medidas do desespero.
Posso até estar errada ou me precipitando em minhas
palavras, com a visão limitada... mas isso é o que vejo onde moro.
Por que as pessoas não tentam um pouco mais? Insistem?
Não sabemos a dificuldade do outro, não tenho o direito de
julgar, mas... por quê?
Eu me questionava sobre aquelas pessoas, as olhava
diferente, tentando entender o porquê da desistência e a entrega
fácil que alguns tinham ao vício, a intolerância, ao ódio. Até chegar o
dia, em que passei pela pele de cada uma delas.
Paguei a minha língua.
E é como dizem: você só sabe o que o outro passa,
quando estiver no lugar dele.
1
VULNERABILIDADE
CAMILLA FERRAZ
Quinta-feira, 1 de março de 2018

Ouço o velho despertador tocar.


Sinto a necessidade de manter os meus olhos fechados por
mais tempo, mas preciso me por de pé, agora.
Ainda com um olho aberto e o outro fechado, procuro pelo
Bruno, logo vendo-o juntinho da minha mãe, abraçado com o seu
ursinho preferido — o único presente do seu pai.
Após desligar o barulhento despertador, calço os meus
chinelos e vou até o banheiro, onde escovo os meus dentes e tomo
um banho frio. Me visto com o uniforme da escola, penteio os meus
cabelos em um rabo de cavalo e vou de encontro ao Bruno.
— Ei, bom dia! — sussurro em seu ouvido, fazendo cocegas
em seus pés.
Bruno resmunga, vira para o outro lado e finge voltar a
dormir.
— Ei, preguicinha. Você precisa ir à escola.
Encaminho o meu olhar para o relógio e concentro
novamente a minha atenção no Bruno.
— Vamos!
Seguro-o em meu colo e o auxílio em todos os processos
matinais. Ele continua murmurando, porém, acaba obedecendo.
— Mamãe, estou com fome — prendo a respiração, assim
que o ouço.
Bruno está perto dos seus quatro anos, embora ainda seja
praticamente um bebê, atropelando em muitas palavras, consegue
dizer perfeitamente o que pensa ou o que quer.
Observo por um tempo os seus traços ingênuos, buscando
uma forma de lhe responder, mas é evidente que não consigo dar
uma resposta. Mordo a lateral dos meus lábios, procurando
qualquer ponto que possa ser uma distração na estreita cozinha.
Por um instante, o cômodo me parece ainda menor, sufocando-me.
Não vou encontrar uma solução tentando esquecer ou
evitando a situação que estou. Preciso seguir, mesmo que isso me
machuque.
Calço as minhas sapatilhas surradas e entro no quarto, beijo
a testa da minha mãe e apanho a bolsa do Bruno e a minha. Noto
que a alça está a ponto de rasgar — faço uma nota metal para pedir
emprestado linha e agulha de costura para a dona Maria.
Minutos depois, estou em frente a escolinha em que o Bruno
estuda. Algumas mães e pais estão diante do portão, crianças com
expressões sonolentas e o Bruno, olhando para mim, sorrindo.
Analisando cada ponto do seu rosto, penso no quanto gostaria que
toda está situação que estamos vivendo não tivesse força para
atingi-lo, que nada pudesse tocá-lo.
A sua pele negra reluz, combinando com os muitos cachos
em sua cabeça.
— Desculpa — ele não compreende, apesar disso, continua
sorrindo.
Solto a sua mão, beijo o seu rosto e deixo-o entrar. Observo
os seus cabelos balançarem enquanto corre para dentro. Antes que
eu possa sair, vou até à professora.
— Oi — cumprimento constrangida.
— Você está bem? — sua voz chega aos meus ouvidos em
um tom preocupado.
— Não tenho nada em casa hoje... — encaro os meus pés,
voltando para os seus olhos em seguida.
— Não se preocupe com ele.
Desvio os meus olhos para a calçada, em uma forma de
esconder as lágrimas que querem sair. Fito o asfalto gasto, tentando
suavizar as emoções que estão me abatendo.
— Obrigada — agradeço com os olhos ainda baixos. —
Tenho que ir.
Me sinto humilhada a cada vez que sinto que estou perdendo
o controle, quando não posso nem mesmo alimentar o meu próprio
filho. Parece que estou correndo para o nada.
Seguro firme as alças da minha mochila.
— Vai ficar tudo bem! — ela pressiona o meu ombro, em um
sinal de conforto.
Aceno em resposta, não conseguindo encontrar a minha voz.
Elisângela é o nome da professora. Ela é compreensiva e
gosta do Bruno. Esta é a segunda vez que peço ajuda, pois,
realmente, não tenho nada.
Muitas vezes passo o dia inteiro tomando água, uma forma
de economizar comida para que o Bruno e a minha mãe tenham o
que comer. Entretanto, hoje eu não tenho o que economizar. Nestes
momentos, tenho que recorrer a alguém, engolir a vergonha, a
humilhação e, simplesmente, pedir.
A sensação de saber que sou um ponto de apoio, mas que
ninguém é o meu, é desesperador, uma vez que tudo acaba em
mim.
Sou uma garota de dezoito anos, em seu último ano escolar.
Moradora do Complexo do Alemão, localizado na Zona da
Leopoldina, em um dos estados mais perigosos do Brasil. Não enfio
o meu nariz onde não devo e me mantenho sempre centrada. Está é
a primeira coisa que digo a mim mesma quando acordo pela manhã;
haja como se ninguém pudesse te ver.
Tento passar despercebida e manter os meus olhos somente
em meu caminho, visto que, um olhar mal-intencionado pode ser
algo irreversível no lugar onde moro. Um único olhar pode ser
considerado uma afronta para alguns e isso pode tornar situações
pequenas em grandes confusões. Assim como agora, ando
rapidamente em direção ao colégio, dirigindo olhares somente para
o asfalto e tudo em minha linha reta.
Troco de calçada e analiso a movimentação ao meu redor,
logo me deparando com o meu reflexo no vidro de um carro
estacionado.
Não sou magra. Sou grande em alguns lugares, tenho um
traseiro nada pequeno e seios proporcionais. Tenho estrias, celulites
e algumas cicatrizes, mas eu gosto. Gosto de saber que se não
tivesse, não seria eu.
Se sentir inferior é um sentimento que te engole lentamente,
ele vai tomando espaço, até que quando você tem ciência sobre o
que está acontecendo, ele já tomou boa parte da sua alto-estima, da
sua vontade de viver e de se sentir importante. Confesso que, desde
pequena, alimentaram este sentimento, por sorte tenho uma mãe
que me ensinou a amar as minhas imperfeições, em razão de que,
são elas que me tornam única.
Minha mãe é um ponto crucial na forma que consigo me ver.
Muitas vezes ela me fez olhar para o espelho e enxergar quem
realmente é esta garota. Quando penso, parece até uma cena de
algum filme bonito, mas esta é a minha mãe. Ela me ajudou a
construir quem sou. Ela me ensinou a acreditar, a me manter firme,
mesmo que todos me dissessem ao contrário.
Quando pequena, sofri alguns tipos de ofensas e escutei
coisas horríveis. Me sentia deslocada, triste e inferior, apesar disso,
minha mãe sorria acolhedora, me cobria de amor e elogios e, por
fim, repetia o processo em me levar ao espelho. Ela olhava em
meus olhos, abraçava os meus ombros e falava. As palavras fluíam,
eram leves e fazia o meu coração ser consolado.
Amo a minha mãe por me mostrar que pobreza não é
significado de má educação e ignorância.
Passo pelos guardas do Complexo, equipados com fuzis e
munições de porte pesado. Eles olham de um lado a outro, não
perdendo nenhum movimento. Sinto quando o olhar de um deles
pesa em mim, mas trato de desviar. Um novo grupo surge em meu
campo de visão, alguns menores armados que comem e riem de
algo na padaria da dona Rosa, que é localizada na esquina do
colégio.
Observo quando alguns deles se movem para me analisar,
mas desviam rapidamente. Noto quando um moreno pega um objeto
retangular, levando-o em seus lábios. Um rádio.
Depressa, me afasto, vendo que acabei de quebrar a minha
maior regra. Não ouso voltar o meu olhar para as minhas costas,
mas me torno confusa ao perceber que o menor tinha pegado o seu
equipamento após me ver.
Sou uma ameaça ou estou ficando paranoica?
Contorno um grupo de garotos e atravesso novamente a rua.
Muitos adolescentes estão perambulando ao redor do
colégio, alguns entram direto para a sala, outros estão de papo no
portão. A inspetora grita para que eles entrem e, assim, é mais um
dia normal na escola. Em alguns pontos dá para sentir o odor da
maconha, o cheiro da droga sendo tragada por alguns garotos ao
canto, próximos a um poste de fiação elétrica.
Entro pelos portões sem olhar para ninguém, subo alguns
degraus, cumprimento algumas pessoas que conheço dando um
rápido oi e me dirijo para a sala, encontrando a Gabriela — uma
garota que não é a minha amiga, apesar disso, fazemos companhia
uma para a outra. Não sei o porquê de não a considerar, mas prefiro
manter desta forma, pelo menos sei que não vou me decepcionar
caso ela saia da minha vida.
Às aulas passaram rapidamente. Gráficos, equações e
mapas é tudo o que está em minha cabeça. Tento gravar pelo
menos metade do que o professor falou, ou vou ter grandes
problemas em algumas semanas com as atividades que estão por
vir.
Me despeço da Gabriela, guardo os meus materiais em
minha mochila e espero que a movimentação se torne regular para
que eu possa sair.
Após estar do lado de fora, me atento a regularidade da
situação a minha volta. Garotos que normalmente não têm o que
fazer, desfilam com o carro dos seus pais à frente da escola,
certamente para se mostrarem para algumas garotas — eles
conseguem a atenção de algumas. Notando o movimento, reparo
quando algumas meninas começam a se estranhar. Encaro o meu
convite para andar mais rápido. Algumas das pessoas que estão
pela rua incentivam uma possível briga, grupinhos começam a se
formar em volta das meninas — quem estava indo embora, está
voltando para observar de perto a discussão.
Desvio de algumas pessoas e carros que buzinam para que
os grupinhos saíam da rua. Estou virando novamente, só para me
certificar que posso mudar de calçada, até que, de repente, sinto um
arrepio involuntário se espalhar pelo meu corpo. A sensação
repentina é estranha, um incômodo. Sinto minhas veias pulsarem
mais fortes, meu coração acelerar e as minhas mãos começarem a
ficar escorregadias.
Passo os meus olhos por toda parte, indo de um lado a outro,
mas está cheio, não tem como saber o motivo da minha recente
reação. Não é de hoje que tenho a sensação de estar sendo
seguida, se eu disser que não estou com medo, é mentira.
Dou um passo à frente e espero que outro carro passe, até
que visualizo o relance de uma figura alta e forte atrás de uma
grande moto estacionada do outro lado da rua. Por conta da
quantidade de pessoas que estão por todos os lados, acabo não
conseguindo avistar o indivíduo, mesmo tentando forçar a minha
visão.
É coisa da sua cabeça, Camilla.

Deve ser meio-dia, já que, sinto o cheiro da comida sendo


feita.
Respiro fundo mais uma vez.
— Camilla! — me viro automaticamente ao ouvir o meu
nome. — Minha mãe disse para você passar mais tarde lá em casa.
Reparo no Izac segurando a sua bicicleta ao lado de dois
garotos.
— Ah! Beleza! — tento não transparecer a empolgação que
está se espalhando por mim. — Obrigada, Izac!
Sempre que pode, dona Maria, mãe da Fernanda, convida a
minha família para jantar em sua casa e, praticamente, em todas as
vezes o Izac quem dá o recado.
— De nada.
Um sorriso se espalha pelos meus lábios. Por algum motivo,
penso em minha mãe, talvez ela se sinta bem para ir comigo até lá.
Antes de completar os meus sete anos, minha mãe descobriu
estar sofrendo de um câncer no pulmão. A doença resultou na
queda dos seus cabelos, perda de peso e dores intermináveis,
assim como idas e vindas ao hospital consecutivamente. Lembro
que na época, papai ficou desesperado. Ele trabalhava de auxiliar
de pedreiro e o dinheiro que ganhava não supria as necessidades
de casa, muito menos as medicações, consultas e transporte.
Em um dia normal de trabalho, a dona da obra, sabendo da
dificuldade que estávamos passando, ofereceu ajuda. Ela
trabalhava na área da limpeza em um hospital que trata
especificamente do câncer, com isso, ela conseguiu uma vaga para
a minha mãe.
Um tempo depois, meu pai se tornou um homem frio, brigava
por qualquer coisa e vivia na rua. Seus olhos não eram mais gentis,
principalmente com a minha mãe. Alguns meses se passou, e ele
morreu.
Ainda sendo uma criança, tive como prioridade a doença da
minha mãe, fiz e faço o que posso para ajudá-la. Lembro-me de ter
auxiliado em um curto tempo em um supermercado próximo de
casa, mas por conta das crises me dispensaram. Distribuí panfletos
na rua em época de eleição e segurei bandeiras em postos de
gasolina e agências de carros. Trabalhei algumas vezes na feira,
limpando as frutas, porém fui dispensada também, pois estavam se
mudando para outro estado.
Não tenho avós ou avôs, tios, nem primos... simplesmente,
não tenho. Minha mãe não fala sobre isso e eu não forço, pois se
em todo este tempo ninguém apareceu, não espero que vão fazer
isso agora. Por todo este tempo, tivemos que nos virar. Agradeço a
vida da família da Fernanda, não sei como estaríamos sem eles...
Meu colégio é fora do Complexo, nada tão longe, somente
algumas poucas ruas para subir. Entro na viela e avisto a minha
casa, a sensação boa que tenho quando a vejo é inexplicável. Ainda
mais inexplicável é ver a minha mãe sentada na calçada em uma
cadeira velha, com os olhos fechados, sentindo o sol de meio-dia.
A alcanço e beijo o seu rosto quente, fazendo-a sorrir ainda
com os seus olhos fechados.
— Como foi a escola?
— Normal.

Faz algumas horas que estou na casa da Fernanda. Minha


mãe alegou estar cansada e disse que não viria, o Bruno acabou
dormindo, então decidi vir sozinha. Quando cheguei, dona Maria
estava fazendo o jantar. Comi lentamente, tentando não esquecer o
gosto daquela comida. Os sabores e a sensação de que ainda há
pessoas que se importam, que tem empatia e sensibilidade com a
dificuldade do outro, tornou a refeição ainda mais saborosa.
— Não sei mais o que fazer... — repito pela terceira vez.
Depois de comermos, fomos para à frente da sua casa, onde
nós nos sentamos na viga de concreto. As lágrimas descem pelo
meu rosto livremente, manchando a minha pele. Passo as minhas
mãos sobre elas, mas é em vão. Tento sempre me manter forte,
mas quando a primeira lágrima escorre, não consigo controlar as
outras. São como memórias, onde uma puxa as outras e, logo
vários assuntos se cruzam aleatoriamente.
— Minha mãe está fazendo alguns salgados para entregar
nesta semana e eu vou receber logo, talvez eu possa te ajudar e...
— Você não entende, não posso depender de você! Como
vai conseguir fazer aquele curso se sempre está me ajudando?
Você tem que guardar!
— Tenho uma vida inteira para fazer esse curso! Não
consegue ver a diferença?!
— Só consigo ver que você está perdendo tempo... — tento
fazer com que ela veja aonde quero chegar. — Qualificação é o que
o mercado de trabalho quer, estou atrapalhando você!
— Garota, você é burra!
— Só estou pensando no seu futuro.
— Lembra quando você tinha quatorze anos? — faço círculos
em minha perna, enquanto tento não chorar. — Meu irmão implicava
com você e eu pensava que era ao contrário.
— Lembro disso... — sinto um pequeno sorriso se formar em
meus lábios.
— Estava indo te bater. De verdade — ela puxa alguns fios
do seu cabelo. — Mas veio um carro desgovernado, sendo dirigido
por um bêbado e me acertou.
As lembranças se movem por minha cabeça como flashes,
onde muitas imagens ilustram o que a Fernanda quer dizer.
— Perdi muito sangue e ninguém era compatível. Adivinha
quem apareceu pedindo para fazer um teste?
— Fiz o que qualquer pessoa faria.
— Ah! Me poupe, Camilla! Você salvou a minha vida! — ela
perfura os meus olhos com os seus, extremamente séria. — Estava
indo até lá para te arrebentar! Você só tinha quatorze anos, foi ao
postinho sozinha e ficou igual uma doida pedindo para que furassem
a sua veia.
— Sua mãe estava desesperada, ela gritava por ajuda...
— Muitos ouviram ela gritando, nem por isso alguém se
prontificou a fazer um teste — seus olhos encaram a luz do poste
que falha uma vez ou outra. — Não sei o porquê, mas você estava
lá. E, enquanto eu puder, vou te ajudar... mesmo você negando.
Ela parece tão sincera que nada que eu possa dizer pode ser
suficiente.
— Obrigada — deito a minha cabeça em seu ombro.
— Depois que fiquei melhor, a minha mãe deu uma surra no
Izac.
— Merecido! Ele jogava ovos na minha casa.
— Eu acho que ele gostava de você.
— Seu irmão é estranho, isso sim! Ele poderia levar os ovos
para eu comer, não para enfeitar as janelas e a porta.
— Não posso negar que o menino é criativo, ele soube como
chamar a sua atenção, do jeito errado, mas chamou.
— Lembra quando o Lucas da rua dois estava vendendo
pães de mel e o Izac pensou que ele estivesse dando em cima da
gente?
— Lógico que eu lembro! O Izac quebrou dois dentes do
menino com uma vassoura.
— Sua mãe o fez vender por um mês os pães de mel do
Lucas e pagar o dentista.
O que eram lágrimas de tristeza, se tornaram lágrimas de
histórias engraçadas.
— Fernanda, tenho que ir — depois de um tempo em
silêncio, acabo dizendo.
— Peraí, vou chamar o Izac para levar você.
— Não precisa, vou bem rápido.
— Camilla...
— Não precisa. Obrigada pelas coisas, Bruno vai gostar de
comer miojo — dou uma risadinha ao pensar nele.
Macarrão instantâneo é uma das comidas preferidas dele.
Um tempo depois do jantar, Fernanda encheu uma sacola
plástica com alguns mantimentos e me entregou. Esta é uma atitude
bondosa e frequente, evitando que a minha família não despenque
de vez.
— Quando eu receber, vou buscar ele para tomar sorvete.
— Ele vai ficar muito feliz — a abraço e agradeço novamente.
— Se cuida.
— Você também.
Estou observando o céu, quando viro a esquina. É rápido,
quando sinto os meus cabelos sendo puxados pelo vento, enquanto
os meus ouvidos são preenchidos pelo som alto de uma moto
potente.
Viro em direção ao som.
Os pelos dos meus braços se arrepiam em instantes. Como
em câmera lenta, vejo quando o homem pilotando a moto me
encara, com o seu capacete espelhado virado em minha direção.
Por um momento, me vejo paralisada, somente... olhando.
Não consigo desviar, mesmo colocando toda força que tem em mim.
A ocasião é indizível, parece ter algo que me prenda a qualquer
coisa que se resuma a ele.
Ele retorna com o seu olhar para frente, então some por entre
as ruas e vielas.
Algumas pessoas param para olhá-lo também.
Pisco várias vezes procurando sair do meu transe.
Era ele.
Marcos Henrique.
2
INDECISÃO
CAMILLA FERRAZ
Sábado, 10 de março de 2018

— Bruno, qual sabor você vai querer? — Fernanda pergunta a ele.


Os seus cachos balançam em um sinal de empolgação. Ele
parece estar indeciso na escolha do sorvete.
— Vamos, lá você escolhe! — ela o pega em seu colo,
apontando para o freezer.
— E você? Qual vai querer? — ela se volta para mim.
— Não precisa.
Em resposta, ela revira os olhos.
Hoje é sábado, geralmente a Fernanda está trabalhando,
mas a sua chefe, Yohana, lhe deu um dia de folga pela correria dos
dias anteriores.
Enquanto a minha amiga está fazendo o pedido, observo o
Bruno sorrindo e pulando. Encaro a realidade. Talvez o Baianinho
estivesse errado quando pensou que eu pudesse dar um futuro
melhor para ele.
Batuco as minhas unhas na mesa de plástico com o logotipo
de uma marca de cerveja, até que ouço a voz do Bruno, me
entregando um copo de açaí com leite condensado e paçoca, meu
preferido. Deixo o copo em cima da mesa e o ajudo a se sentar na
cadeira ao meu lado.
— Não precisava... — anuncio assim que a vejo se sentar em
minha frente.
— Não vou responder isso.
Ela se mexe na cadeira e observa o movimento das pessoas
ao redor.
— Obrigada.
— De nada — ela dá uma colherada no seu cupuaçu com
sorvete. — Está gostoso?
Encaminho o meu olhar para o menino sentado ao meu lado
com a boca cheia. Ele levanta um dedinho em sinal de aprovação.
Nós rimos.
Ver a alegria do Bruno me traz tanta felicidade que nem em
anos de estudos eu poderia provar o quanto os seus sorrisos são
gratificantes para mim. Vê-lo sorrir é uma forma de saber que
mesmo que tudo esteja desmoronando, existe algo, ou alguém, por
quem sorrir.
Estamos comendo e conversando entre risos e assuntos
aleatórios, até que um grupo de cinco vapores entram. Como de
costume estão armados e sem camisa.
O menino ao meu lado aparenta estar em seu mundo
particular com o seu sorvete, mas a mulher em minha frente está me
olhando, parecendo nervosa.
Reparo quando eles passam os olhos por todo o
estabelecimento, em um sinal claro que estão procurando por algo.
Volto a olhar para a minha amiga, ela parece cética.
— O que foi? — questiono.
Antes que ela possa responder, sinto a presença dos vapores
ao redor da nossa mesa. Um deles puxa uma cadeira e se senta ao
meu lado, por instinto, ponho o Bruno em meu colo. O garoto que
não deve ter mais que dezoito anos percebe, mas não fala nada. Ele
passa os seus olhos em mim, logo dirigindo-se para a Fernanda.
— Quantos anos você tem? Não adianta mentir — ele
pergunta com um olhar presunçoso.
Caso alguém minta ele vai fazer o que? Pedir os
documentos?
Fernanda olha para ele desconfiada, devo estar com o
mesmo semblante.
— Vinte e três.
— E você? — solto a respiração que nem mesmo sabia que
estava segurando.
Tenho vontade de mentir, mas acabo falando a verdade.
— Dezoito.
— Beleza, o recado é para você! — a cadeira de plástico
estrala com o seu movimento brusco, quando se vira
completamente para mim.
— Recado? — o espanto em meus olhos deve ser mais que
evidente.
— Amanhã, na quadra, as vinte e duas horas — ele ignora a
minha aflição. — O chefe vai escolher uma fiel. Todas as minas do
Morro, de dezoito a vinte e um, tem que estar lá.
Ignoro o acelerar do meu coração.
— E quem não quiser ir? — pergunto baixo, quase em um
sussurro.
— Você não vai querer descobrir — seu olhar malicioso tem
alguns indícios de maldade.
— Continuo querendo saber — tento parecer firme.
Os vapores em nossa volta riem, como se fosse a piada mais
engraçada. Deve ser mesmo.
— O nosso dever é avisar, não dar explicações. A gente se
vê lá.
Eles jogam informações como bombas e esperam que eu
concorde?
Encaro as costas do vapor, até que o outro sinaliza uma faca
no pescoço.
— Quem não for, morre! — ele parece ser sincero, diferente
do outro, que esbanja ironia.
— Ele vai matar todas que não quiserem ir? Isso é um
massacre! — Fernanda intervém.
Será possível ele sentir falta de alguma garota lá?
— Se preocupe com a sua vida. O seu está fora de reta! — o
porta-voz principal responde, não deixando que a sua face
debochada desapareça.
— Quem decide se estou dentro ou fora, sou eu. E, para você
falar para alguém cuidar da própria vida, você tem que ter
autonomia sobre a sua, algo que podemos ver que você não têm.
Me levanto, sei que isso pode virar uma briga feia. Aperto o
Bruno em meus braços e puxo a Fernanda para o meu lado. O
vapor que antes estava com um sorriso irônico no rosto, agora está
a ponto de explodir a cabeça da Fernanda.
Não são todos que conseguem perceber que não estão no
comando e que não passam de uma peça descartável em um jogo.
Este vapor quer ter algo que não está ao seu alcance. Ele é da
mesma marca que os bandidos que roubam celular, que pensam
serem grandes.
Poder é algo que poucos possuem, soberba e ganância é
uma das coisas que podem criar está ilusão. Este vapor
visivelmente é um deles e a Fernanda não deixaria que eles se
posicionassem sobre ela. Tenho orgulho da mulher que ela é.
Entretanto, as vezes é necessário deixar que as pessoas acreditem
no que pensam ser verdade.
— Eu só não calo a sua boca, porque... — outro vapor
esbarra em seu ombro com os olhos arregalados.
Ele acena para o homem, logo virando-se para mim.
— Está avisada, ruiva.
Ele encara uma última vez a minha amiga com grandes olhos
raivosos, logo saindo, sendo seguido pelos seus colegas. Assim que
os vejo virarem a esquina, volto-me para a Fernanda.
— Você está doida?
— O Izac tinha comentado sobre isso, não pensei que fosse
verdade — ela muda de assunto.
— Você não pode confrontar esses caras! Faltou pouco para
ele enfiar uma bala na sua cabeça!
— Não estou acreditando que ele vai matar pessoas só por
não quererem participar do “concurso” dele — ela continua
inconformada, fazendo aspas com os dedos.
Ela não consegue ver que poderia estar morta.
— Você tem que tomar cuidado!
— A única coisa que consigo pensar no momento, é que tem
um homem querendo submeter mulheres a ele com ameaças!
Ok.
Isso é bem preocupante também.
— Não que seja uma dificuldade para algumas... mas é
errado! — ela continua.
Lentamente o significado da raiva da Fernanda está entrando
em minha cabeça.
Sou uma dessas garotas que deve estar lá.
— Você está me ouvindo? — ela fala mais alto, fazendo-me
concentrar toda a minha atenção em suas palavras.
— Quantas garotas que moram aqui estão entre essa faixa
etária? Centenas, Fernanda! — entendo a sua preocupação, ainda
assim, não acredito que eu possa ser a escolhida.
— Ainda penso que você devia olhar para o lado racional da
situação.
— E estou...
— Não está! Ele é um traficante, prepotente, que quer
escolher uma mulher como um pedaço de carne! — posso visualizar
a pele negra da Fernanda se tornar avermelhada.
— Entendo isso e não gosto — sento-me novamente, vendo-
a fazer o mesmo.
Não vejo nexo neste evento. Devo estar deixando escapar
algum detalhe, pois não há clareza no que acabamos de ouvir. Por
que um traficante quer fazer um “concurso” para escolher uma
mulher? Ele pode ter uma pessoa, sem precisar expor ninguém.
Nada se encaixa em minha cabeça e o que parece, na
cabeça da Fernanda também não.
Ele pode ter qualquer mulher que quiser — sem muito
esforço e por vontade própria de ambas as partes —, tenho certeza
de que há muitas mulheres de diversas idades, tipos e
personalidades que não iriam se opor a isso. Não iriam se importar
com o fato dele ser um fora da lei, um babaca arrogante e, que,
ainda possa suprir todas as suas necessidades sem ter
exclusividade.
Não seria mais fácil conhecer alguém e, talvez, até mesmo se
apaixonar? Certamente, seria mais produtivo e feliz.
— Sabemos o que acontece, nós já vimos isso e estamos
vendo o tempo todo — ela parece estar controlando e escolhendo
as suas palavras.
— Entendo isso.
— Nós ainda podemos escolher.
— Preciso enfrentar e, depois, posso ter um resultado —
tento passar para a Fernanda o que realmente estou sentindo. —
Fazemos planos que são somente planos. Não é porque quero, ou
não quero, que vá acontecer. Isso depende de muitas coisas.
— Olhe para o que vivemos. Ele é um deles! Mancha é um
traficante como qualquer outro. Ele vai te machucar!
— Ele não vai me escolher. Estou nervosa, confesso, mas é
improvável de eu ser a escolhida. Nós estamos falando sobre
situações incertas.
— Mesmo que você não faça parte, prepare o seu
psicológico. Não são todos que conseguem lidar. Estar em uma
circunstância que você não tem escolha, nem mesmo de fugir, pode
acarretar quadros ainda piores — entendo a sua preocupação. —
Para alguns isso parece divertido, mas eles não sabem o que é
viver um relacionamento onde dor é o único sentimento.
Ela respira fundo.
As palavras da Fernanda têm um embasamento. Ela
vivenciou o que está dizendo. Sua preocupação é verdadeira, uma
vez que, as situações horríveis que passou tornaram-na uma mulher
forte, independente e que não aceita nem mesmo uma pequena
frase ofensiva como daqueles vapores. Não importa quem fale, ela
não vai se calar.
— Você sabe de algo que não sei? — questiono.
— Você não acha tudo muito estranho? Eu já o vi e ele não
parece em nada com algum traficante que já tenha passado por aqui
— ela fala baixo. — Ele é estranho e complexo. Chegou de repente
e espalhou vapores por todos os cantos. Ele é desconfiado e parece
que vigia a todos, como se os errados fossemos nós.
Paro para pensar por um instante.
Houve um tempo que, havia crianças, jovens e adultos no
tráfico, aparentemente tudo normal — algo que não devia ser —, até
que aconteceu uma guerra, passou em todos os canais que há na
TV.
Todos que estavam no comando faleceram. Muitas crianças e
jovens morreram.
O choro angustiante das famílias mexeu com o coração de
muitos que assistiram ao terror daqueles dias. A quantidade absurda
de pessoas que morreram ficou para a história de um lugar
extremamente perigoso, acrescentando em sua fama.
O tráfico foi derrubado, os que não morreram foram levados
presos, pequenos ou iniciantes. Alguns, talvez, tenham fugido, nada
que tenha rendido em conversa.
A polícia em conjunto com o exército, teve como objetivo —
pelo menos era o que as pessoas comentavam —, desarticular
quadrilhas, controlar o território e acabar com o tráfico na região.
Realmente, até então, o objetivo foi concretizado. O estranho foi ver
que as drogas eram passadas com mais frequência. Enquanto os
moradores sentiam-se seguros por ver a polícia por perto, outros
viam o quanto os homens da lei acobertavam o fluxo de drogas e
armas, e ainda mais árduo do que antes.
Sucedeu todos os tipos de especulações possíveis. O terror e
o medo eram constantes nos rostos daquelas pessoas.
Não muito tempo depois, os muitos policiais que rondavam o
lugar, foram embora da mesma forma em que chegaram, de
repente. A parte bizarra foi o modo silencioso em que sumiram.
Da mesma forma que ocorreu com os policiais, aconteceu
com ele. De repente.
Dias seguintes, após o sumiço dos agentes, o Morro foi
alertado que as terras foram passadas para um novo comando.
Mancha foi silencioso, ardiloso e esperto, não fez com que
fosse visível a violência para os moradores, nem chamou a atenção
da mídia, somente deixou que as pessoas pensassem o que
quisessem. Ele é uma figura desconhecida, ninguém sabe do que
ele é capaz, até que chegue aonde ele deseja. Ele não tem um
manual ou instruções para serem seguidas. Mancha ou Marcos,
simplesmente faz o que quer.
— Realmente, é muito estranho — concordo com a
Fernanda, depois de um tempo em silêncio.
— Ele é quieto, não tem como a gente saber o que ele
planeja. Então, do nada, ele aparece com... isso! — ela faz uma
cara de nojo.
Muitos que passaram por aqui, faziam questão de espalhar
seus planos, fazer com que as pessoas estivessem cientes de tudo.
Não é assim com o Marcos. Como a Fernanda disse, ele é quieto,
ele não gosta de chamar atenção, até agora.
— Não há como fugir, é algo que tem que acontecer —
confesso.
— Vou com você — aceno, querendo dar um ponto final a
esta conversa.
— Quero mais, mãe! — aqueles olhos em um tom incrível de
castanho, olham-me pidões.
Sinto o meu rosto ficar quente de vergonha.
— Vai querer um sabor diferente? — ela oferece.
Tento interferir, pois sinto que estou abusando da sua boa
vontade. Gostaria que tudo pudesse ser diferente e poder ajudar a
Fernanda a conquistar os seus sonhos, ao invés de estar sempre
gastando com a minha família.
Bruno olha-me sem graça, ainda assim, sorri para ela.
— Morango.
— Vou pegar! — ela se levanta e vai em direção ao balcão.
Bruno não é do tipo desobediente, que se joga no chão e faz
uma cena. Não sei se ele consegue entender a nossa situação ou é
algo da sua personalidade. Porém, me dói saber que ele é privado
de muitas coisas simples da vida. Fernanda até tenta dar-lhe um
pouco de emoção, mas sei que ele sente falta e observa outras
crianças.
Pego um pouco do meu açaí já derretido e vago por um
momento.
Este traficante de quem estamos falando, nada mais é do que
uma figura que está conseguindo consumir os meus pensamentos.
Obviamente, ele não tem conhecimento da minha existência, mas
estou aqui, pensando nele. Há um motivo desconhecido por trás de
tudo isso, porém chega a ser incontrolável. Confesso que o Marcos
se tornou a minha curiosidade constante.
Por meio do celular da Fernanda, procurei por ele nas redes
sociais, mas não encontrei nada. Não fiquei surpresa, ele parece ser
isolado e gosta da sua privacidade. Sua fama, assim como de
qualquer traficante, não é das melhores. Há muitas especulações
sobre ele, mas nada que possa ser confirmado, até porque ele é
silencioso e muito discreto.
Não sei como essa curiosidade teve início, muito menos
como ela continuou a crescer, mas sei que não consigo parar.
Depois de toda a conversa que tive com a Fernanda, com a minha
mãe e qualquer situação que tenha presenciado, não teve sucesso
ao colidir com a atração inquietante que estou tendo por ele.
— Está pensando no “evento”? — Fernanda tira-me dos
meus devaneios.
— Hum... sim — minto.
— Você não está pensando na ideia, né?
— Que ideia?
— Ser a fiel dele?!
— Não — digo rápido.
— Tem certeza?
— E se ele puder me ajudar? — falo em voz alta, mesmo
sabendo que a pergunta é para mim.
Ansiedade começa a ser espalhada rapidamente por cada
célula do meu corpo.
Ouço a sua respiração profunda, sei que ela não sabe o que
responder.
— Pense em tudo antes de se decidir. Você sabe; uma vez
mulher de traficante...
— ... sempre mulher de traficante — concluo a sua frase.
Já ouvi muitas histórias, já vi algumas coisas e,
particularmente, somente me faz querer estar ainda mais longe
desse tipo de vida. Mulheres sendo agredidas física e
psicologicamente, sendo forçadas a fazer coisas e a se submeter a
uma vida de dor e humilhação. Tenho um exemplo, sendo a minha
amiga, que faz questão de me explicar detalhadamente os “contras”
e a falta dos “prós” de uma relação em que dor e submissão fazem
parte do cotidiano.
Não sei se isso acontece em todos os casos, até o momento,
não conheci nada diferente, mas se tiver que passar por isso para
dar uma vida melhor para a minha mãe e o Bruno, assim vou fazer.
3
INTERESSE
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 11 de março de 2018

As estrelas estão brilhantes em meio ao céu limpo. A lua cintilante


prende a atenção de todos que tem a sensibilidade de conceder um
pouco do seu tempo para admirá-la. O deslumbre do mar ao longe,
os bondinhos atravessando a diversidade de casas e as luzes que
se encontram, vindo de diversas direções, partilham da mesma
beleza.
A visão é incrível.
Perco o tempo quando estou observando este lugar, sentindo
o ar fresco, enquanto os meus cabelos balançam suavemente.
Reparo no relógio pela milésima vez. São oito horas e trinta
minutos.
Bruno está assistindo um desenho animado aleatório com a
minha mãe, totalmente concentrado nos personagens coloridos.
Ainda os analisando, me deparo com os meus pensamentos e
sentidos se movendo em zigue-zague. Os pontos de luz se
misturam com as sombras, tornando o momento ainda mais real, em
uma forma de mostrar que o tempo se avança.
Sinto que os meus pensamentos estão tomando um rumo
perigoso.
— Camilla?
— Hum? — viro-me em direção a voz da minha mãe.
— O que está te aborrecendo? — espreito os meus olhos
para o menino ao seu lado.
— Só estou pensativa.
— E?
— E... estou tentando me decidir sobre algo — decido não
dizer o que realmente estou pensando.
— Quais das opções quando você pensa, acalma o seu
coração? — encaro o teto com vestígios de mofo.
Por um instante, imagino a minha vida sendo a escolhida do
Marcos. Penso na ideia das coisas que podem acontecer, como:
não ver a minha família passando fome, poder acreditar que o Bruno
terá a chance de cursar um ensino melhor, não pedir dinheiro
emprestado para pagar a condução para levar a minha mãe ao
hospital, pois o dinheiro do Bolsa Família não foi o suficiente... meus
pensamentos se aprofundam, formando ainda mais motivos, até que
imagino a outra situação: ser rejeitada e voltar para as minhas
dificuldades diárias.
Sei que somente estou vendo a parte boa que criei, sendo
que a realidade é outra, apesar disso, meu coração se alivia ao
pensar na primeira opção. Meu inconsciente tenta me avisar que
não posso construir um castelo sem estrutura, para que depois um
indivíduo metido a príncipe venha e destrua tudo.
— Estou preocupada... sei que vai chamar a atenção dele.
Rapidamente os meus olhos vão de encontro a minha mãe.
— Você é radiante — seus dedos finos mechem em seu
vestido gasto. — É impossível não reparar em você.
Não cheguei a contar sobre o evento que terá hoje, mas o
que parece, é que as notícias já vieram até ela.
— Como está se sentindo? — minha voz é preocupada.
— Me sinto bem — seus olhos desviam dos meus. — Sei o
porquê de não querer me contar. Não fico feliz por ser...
— Um traficante?
— Sem amor.
— Não tenho escolha, mãe.
— Gostaria que tivesse todas as escolhas.
— Eu sei — minha voz falha.
— Me desculpa — a encaro chocada.
Me levanto e vou até ela, abraço os seus ombros e descanso
o meu queixo em sua cabeça.
— A senhora não tem que me pedir desculpas por nada —
sussurro. — Amo você.
As pessoas falam muito, eu penso muito. Muitas das vezes
criamos a imagem de outra pessoa através do que escutamos.
Mancha está sendo esta pessoa.
Muitos dizem o quanto ele é ignorante e controlador,
principalmente famílias que tem vapores e integrantes no tráfico. Por
manterem uma ligação direta com ele, sabem melhor sobre a sua
personalidade e o seu jeito em tratar as pessoas. Levo como
exemplo alguns moradores, antigos donos e homens que pensam
ter poder por carregar armas e correntes falsas em seus pescoços.
Homens que submetem mulheres a lavar, passar, cozinhar e
esquentar as suas camas, enquanto eles têm a última palavra.
Não fui criada para apanhar de homem algum. Todos sabem
que mulher de traficante apanha, sim. Perdi a conta de quantas
vezes presenciei muitas das garotas do Complexo sendo
entretenimento para os moradores. Agressões físicas e
psicológicas, derivadas de inúmeras palavras ofensivas, insultos e
xingamentos para que todos pudessem ouvir.
Não quero isso para mim. Não quero ser tratada como um
objeto.
Não acredito em príncipes, mas não é por isso que tenho que
ganhar um ogro.
Era este o ponto em que a Fernanda queria que eu
pensasse. Somos testemunhas da violência e sofrimento que muitos
e muitas passam, vemos diariamente o quanto isso parece
aumentar, por isso, tenho que me preparar psicologicamente para o
que venha acontecer, pois, além de não ter escolha, não vou aceitar
que me façam presa.
— Só peço que você nunca mude, seja sempre você mesma.
— Não tenho o porquê mudar.
Ela fica em silêncio.
Sei exatamente sobre o que ela quer dizer. Não a culpo.
Mudanças são normais, mas mudar o que sou para agradar alguém,
é um ponto crucial para uma caída de cabeça em um precipício.

Faz alguns minutos que estou encarando a minha gaveta.


Minhas roupas são de doações e algumas outras peças foram a
Fernanda quem me presenteou. Mesmo não sabendo o que vestir,
vejo que não tenho muitas opções para escolher.
Encontro um short preto — ele está desbotado, mas em
comparação com os outros é o melhor. Procuro por uma blusa e
visualizo uma regata branca. Ela tem um babado fofo nas pontas e
botões em frente aos seios. A peça foi um presente do Izac, como
um pedido de desculpas da sua mãe, pelas vergonhas que ele já me
fez passar.
Minutos antes, tinha tomado um banho, estava somente
enrolando com o que vestir. Penteio os meus cabelos molhados e
observo a simplicidade que estou no espelho.
Estou confortável, isso que importa.
Calço as minhas sapatilhas de sempre e respiro fundo.
Seja você mesma.
Minha mãe olha-me culpada, como se ela quem estivesse me
mandando para isso. Gostaria que ela entendesse que ela foi uma
vítima da vida e que estou lutando para que a nossa situação mude.
— Tenho que ir... — ela permanece quieta.
— Mãe... vai aonde? — Bruno me olha curioso.
— Vou dar uma saidinha, mas já volto. Tá?
— Uhum.
Dou um beijo nele e outro em minha mãe.
— Vá com Deus — encaro os seus olhos preocupados.
— Amém.


Meu coração está acelerado, sinto até mesmo a pulsação em
meus ouvidos. Minhas mãos estão tremendo levemente em conjunto
com os meus joelhos.
As pessoas que estão perambulando pela rua olham-me de
relance, outras não disfarçam. Me incomoda, mas sei o porquê
desta atenção. Todos do Morro sabem o que está para acontecer
esta noite, não é novidade para ninguém que haveria garotas de
todos os lados.
Continuo o meu caminho tentando não me importar com a
atenção que estou recebendo.
Mesmo de longe, reconheço a Fernanda parada na esquina
da sua casa. Seus cabelos cacheados estão soltos, bem definidos.
Está usando um vestido amarelo e sandálias. Ela não precisa de
muito para estar bonita, ela já é incrivelmente perceptível.
— Você fica linda de amarelo — digo quando estou perto o
suficiente para que ela ouça.
— Obrigada. Você também está linda...
Estar lidando com o desconhecido é assustador. Tento não
criar expectativas ou fazer com que a minha ansiedade triplique.
Basicamente, estou em uma batalha entre precisar e fugir. Não
parecer interesseira, mas disfarçar o desespero de uma vida com
portas fechadas. De querer, no entanto, saber que a imaginação é
poderosa demais para criar uma ilusão.
— Camilla?! — ouço a Fernanda praticamente gritar.
— O que foi?
— Está onde, garota?
— Aqui — a palavra óbvio está gritando em minha testa.
— Engraçadinha você.
— O que foi? — pergunto novamente.
— Não quero te assustar, mas quando estava voltando do
trabalho um vapor veio me comunicar novamente sobre hoje...
Continuo a encará-la, tentando encontrar a parte em que ia
me assustar.
— Ele não perguntou de mim, ele mandou passar o recado
para você.
— Por que para mim? — volto atrás em minhas palavras.
— Não sei. Desta vez foi outro vapor, por isso achei estranho.
— É, é estranho mesmo.
Estamos caminhando em silêncio há alguns minutos.
Fernanda com os seus pensamentos e eu com os meus. Ter uma
mente hiper pensante as vezes pode ser um problema.
Algumas garotas passam por nós muito bem arrumadas,
radiantes e extremamente confiantes. Duas delas estão andando
em passos lentos, próximas a mim. É inevitável não ouvir a
conversa das duas.
— Hoje eu vi a Josi por aqui, Carol...
— Mas ela é da Maré!
— Sim, tenho certeza de que o mandado do Mancha vazou,
deve ter mais garotas das outras comunidades.
— Muito injusto, já tem gente demais aqui.
Fernanda ao meu lado arregala os olhos, balançando a sua
cabeça.
— ... não importa, ele vai me escolher — a garota, vulgo
Carol, fala animada não contendo alguns gritinhos.
— Que pena que ainda tenho quatorze — olho perplexa para
ela.
A menina realmente parece estar triste ao constatar o fato.
— Já consigo me imaginar em cima da moto dele — Carol
continua empolgada, não se importando com a tristeza da amiga.
— Nunca vi ninguém em cima daquela moto, a não ser ele
mesmo.
— Vou ser a primeira — ela finaliza confiante.
As garotas estão tão concentradas com a conversa, que não
percebem que estamos logo atrás.
— Aperta o passo, Camilla — Fernanda sussurra ao meu
lado.
Sei bem sobre a moto em que ela estava falando, o som
parece ecoar em meus ouvidos somente com a menção dela.
— Você está preparada para qualquer coisa que possa
acontecer? — minha amiga pergunta.
— Não quero ser uma aproveitadora e muito menos quero
que isso seja uma desculpa para a decisão que tomei — observo
que estamos perto da entrada da quadra. — Desde quando soube
deste evento, estou em conflito com os meus valores. Tenho medo,
mas estou preparada para o que venha acontecer.
Algumas dessas meninas são movidas pela fama, ao desafio
de estar com uma pessoa importante e com os bolsos cheios. As
drogas são um atrativo, a ilusão do poder faz com que os seus
cérebros pequenos cresçam com a ideia de serem superiores, que o
dinheiro tudo pode comprar e que nada pode atingi-las por estar
com um cara grande. A imaginação cria e a necessidade faz parecer
real.
Não estou tão longe delas. Elas procuram luxo, eu procuro
dinheiro — sendo praticamente a mesma coisa. Meus motivos são
nobres, mas ainda não estou em posição de julgamento. O dinheiro
em que procuro é sujo e isso me faz um deles.
— Vou estar com você — ela olha-me complacente.
— Obrigada.

Estava tão absorta que acabo não percebendo a voz alta dos
mc cantando através das grandes caixas de som. A este ponto não
consigo ao menos ouvir a voz da Fernanda. O chão vibra sob os
meus pés, assim como nos meus ouvidos.
Nunca tinha vindo em uma festa como está e, estando aqui,
talvez eu não queira pisar em uma nunca mais. Não é exatamente
ruim, mas não é algo que me faz ter a vontade de querer voltar.
Fernanda olha para todos os lados, como se fosse a minha
guarda-costas — tento esconder um sorriso.
A batida é forte, as janelas das casas próximas à quadra se
movem ao som do funk. O ritmo é fácil de acompanhar, posso até
ouvir muitas pessoas cantando.
Em frente à entrada, muitos carros e motos estão
estacionados. Há uma grande quantidade de pessoas espalhadas e
acredito que este número dobrará em poucas horas. Dá para se
contar nos dedos as pessoas que não estão consumindo algum tipo
de bebida ou droga, não devia ser, mais é algo absurdamente
normal. Consigo até mesmo arriscar que logo estarão embriagados
e sem uma linha de pensamento coerente, não conseguindo
aproveitar ou se divertir.
Fernanda faz um sinal para que entremos, então a sigo.
Se antes pensava que estava cheio, agora não sei o que
pensar. Uma grande quantidade de fumaça está se espalhando pelo
ar, o cheiro de bebida está me deixando tonta. Há pessoas se
esfregando para todos os lados, assim como outras que estão em
grupos somente dançando.
Minha amiga tenta falar alguma coisa, mas não consigo
entendê-la. Continuamos paradas somente observando o
movimento, esperando o inevitável.
Fernanda é do tipo que gosta do lugar em que estamos, se
não estivéssemos nesta situação, certamente ela estaria descendo
e rebolando até o chão, no entanto, ela parece não se importar com
o que está a sua volta, mas preocupada com a falta de importância
que as pessoas estão dando para este momento.
— Você viu o que eu vi? — Fernanda olha-me intrigada,
gritando em meu ouvido.
— O que você viu? — grito de volta.
— Tem vapores rodeando a gente — ela balança o dedo ao
nosso redor, tentando apontar para as pessoas.
Sigo a sua observação, constatando que realmente há
vapores a nossa volta como se estivessem nos vigiando. Começo a
analisar se eles estão de olho em todas as garotas com as idades
especuladas, ou se estão pairando sobre a gente. Percebo que a
Fernanda está certa.
— Será que fizemos algo de errado? — pergunto.
Percebemos quando o som parou. Alguns começam a vaiar,
mas outros gritam eufóricos, pois sabem o que está por vir.
A iluminação não é das melhores, mas em uma grande
estrutura de madeira improvisada uma fonte de luz branca parou,
clareando todos os detalhes do palco. Sobre a estrutura há uma
diversidade de mesas e cadeiras, contendo uma grande quantidade
de bebidas, havendo homens e algumas poucas mulheres sentadas
em volta.
— Ali é o grandão da Rocinha? — Fernanda fala ao meu
lado, confusa. — Que filho da puta inteligente.
Não entendo.
— Esse cara é egoísta. Ele não gosta que vão para o
território dele, então ele não pisa no espaço dos outros. Não sei o
que o Mancha fez, mas ele está aqui.
Quando penso em responder, uma voz risonha ecoa por um
microfone. Encaro a figura no centro do palco. O rapaz tem uma
estrutura mediana, moreno, roupas que parecem de marca e o
cabelo descolorido, assim como o seu bigode fino.
— Iaê, caralho! — o cara que não deve ter menos que vinte
anos grita. — A lei do Morro é a lei do dono dele. Então, meus
parças, que comece o show!
Muitos gritos explodem, assim como a grande quantidade de
palavras obscenas. Meu coração instantaneamente acelera. Talvez
eu tivesse pensado que estava preparada, mas acabo de perceber
que não estou. Respiro e inspiro em uma atividade consecutiva,
mas parece que o meu coração leva como incentivo para querer sair
pulando do meu peito.
— É o seguinte, o palco não tem espaço para todas, então de
vinte em vinte vocês sobem, beleza? — ele não espera uma
resposta.
Há cinco vapores na escada que leva até o palco, mas ao
escutar as palavras do moreno, eles dão espaço.
— Não serei a primeira — digo nervosa.
— Finge que não escutou — os seus lábios se abrem em um
sorriso acolhedor.
As pessoas tropeçam umas nas outras. Puxões de cabelo e
xingamentos rolam solto.
— Vamos nos encostar na parede!
Assim que escuto a Fernanda, tento caminhar em direção a
parede mais próxima, logo puxando-a para perto de mim.
— Pior que liquidação de fim de ano — Fernanda massageia
o seu coração.
Ao conseguir nos proteger, foi possível ver o quanto as
pessoas estão conseguindo se machucar para tentar subir as
escadas. É assustador.
— Já deu vinte! — o rapaz grita no microfone, movimentando
os braços.
Os vapores empurram todas que ainda tentam subir,
bloqueando a passagem. O cara fala alguma coisa para as garotas
em cima do palco. Rapidamente, todas se organizam uma do lado
da outra, como em uma exposição. As vinte garotas se mantêm em
silêncio e atentas.
Acho que vou vomitar.
De repente, saindo de uma porta, Marcos surge. Seus olhos
são escuros, sua postura reta e, músculos, muitos músculos,
grandes e... meu Deus. Que homem é esse?!
— Nem aqui, nem na China que ele é um zé droguinha —
não consigo focar em qualquer outra coisa, ele está puxando
inconscientemente toda a minha atenção.
Marcos move os seus olhos em todas as garotas, logo
dirigindo em torno de todo o espaço. Não tendo controle sobre os
meus atos, acabo me abaixando.
— O que você está fazendo, sua louca? — Fernanda se
abaixa ao meu lado.
— Eu não sei!
Me levanto em tempo de ver o Marcos falando com um vapor,
os dois olham para o lugar onde estávamos antes de toda a
bagunça começar.
Fernanda ao meu lado me encara incrédula.
Voltamos a nossa atenção para o palco, até que um par de
olhos negros se voltam para a direção em que estamos.
Puta que pariu.
Estamos longe o suficiente para que ele não consiga nos
reconhecer, se caso ele já conheça. No entanto, pelo seu olhar, sei
que não sou tão desconhecida como pensei.
Me viro para a Fernanda procurando me libertar da sua
atenção, mas sinto quando alguém passa a mão na minha bunda.
Giro automaticamente, em cento e oitenta graus, somente para ver
um homem sorrindo malicioso.
— Te achei, ruivinha — ele agarra o meu pulso. — Vamos!
— Solta a minha amiga!
Vejo quando um vapor vem em nossa direção, tirando as
mãos do homem do meu pulso violentamente.
— Babalu, segura ele! — outro vapor aparece, segurando o
homem de antes. — O chefe não vai gostar nada disso.
— Ele não é daqui, Coringa! — Babalu grita, analisando a
figura que está segurando.
— Leva ele para a boca três. Ele não deve ter vindo sozinho.
Chame outros para ir com você! — Babalu acena, saindo com o
homem.
— Obrigada — ele continua me segurando. — Já pode me
soltar! — falo assim que vejo o Babalu arrastando o homem que
grita e se agita para ser solto.
Pela primeira vez, a atenção do Coringa veio em minha
direção.
— Você vem comigo!
— Deixa a minha amiga! — Fernanda grita novamente.
Coringa rapidamente faz uma vistoria em Fernanda. Ele sorri
para ela, puxando-me em direção as escadas, ignorando os nossos
protestos.
— Por que está me puxando? — tento parecer calma.
— Não me faça perguntas.
Escuto a Fernanda gritando atrás de mim, seguindo-nos.
Percebo que estamos chamando atenção. Minha regra está sendo
quebrada. Tento não olhar para os lados, pois parece que todos
estão querendo saber o porquê de eu estar sendo praticamente
rebocada por um traficante, enquanto uma garota grita
histericamente atrás.
— Deixem-na passar! — Coringa manda, assim que
chegamos aos seguranças da escada.
— JÁ TÊM VINTE! ESSA VAGABUNDA TEM QUE
ESPERAR! — sinto os meus cabelos sendo puxados.
Antes que eu possa gritar, minha cintura é segurada por
grandes mãos, fazendo-me colidir com um corpo duro e forte.
Meu corpo gela.
— Pensou que ia fugir, gatinha? — se antes os meus
pensamentos estavam sendo consumidos lentamente por ele, não
sei o que poderá acontecer depois de ouvir a sua voz raivosa
sussurrando em meu ouvido.
Suas mãos apertam os meus quadris, até que sinto um vazio,
assim que o seu toque não está mais em mim. Meus olhos
procuram pelos seus, mas sinto que o homem que me puxou, não é
o mesmo que está me analisando friamente.
Ele fala algo baixo para um dos vapores da escada. Não
consigo acompanhar o que está acontecendo, pois, logo o
anunciante da noite está ao meu lado, informando-me para que me
mantenha em silêncio e ao lado da última garota da fila.
Ouço a voz de muitas garotas me xingando, as que estão no
palco olham-me enojadas.
— Certo. Agora, podemos começar! — o rapaz anuncia em
seu microfone.
Confesso que, não consigo manter uma linha de raciocínio ao
mesmo tempo que o garoto continua falando no microfone, pois a
minha atenção está voltada totalmente para o que acabou de
acontecer e para aquele homem que age como se nada tivesse
ocorrido.
Respiro fundo e tento não olhar para frente. Saber que todos
estão focando em nossa direção e, que, estão mais confusos do que
eu, deixa-me extremamente nervosa e ansiosa.
Quero sair daqui, logo.
Fecho os meus olhos por alguns segundos, até que decido
observar as garotas que estão ao meu lado. Tem loiras, morenas,
ruivas, gordas, magras, baixas e altas, uma variedade de mulheres
com características e personalidades diferentes, querendo um único
homem. É horrível este pensamento, mas estou no mesmo barco,
não tenho o direito de opinar.
Respiro fundo novamente e conto até dez.
Todas estão com as suas melhores roupas, calçados de
marca, confiantes e acredito que as suas roupas as fazem ficar
ainda mais seguras neste momento.
Me avalio disfarçadamente.
Posso não estar bem vestida ou ter a melhor aparência, mas
sei que a minha mãe teve um grande trabalho para que eu pudesse
me aceitar como sou, não posso ceder para as minhas
inseguranças internas e a um pedaço de pano bonito.
Levanto o meu olhar e encaro todas aquelas pessoas,
procurando pela Fernanda. Não há encontro, mas vejo um grupo de
garotos fazendo gestos com as mãos enquanto falam entre si.
— Olhos em mim — a sua voz ativa as sensações mais
estranhas pelo meu corpo.
Ele sempre está com raiva?
O olhar de ódio em que ele está mirando, está me deixando
extremamente desconfortável. Sinto os meus pés suarem dentro
das sapatilhas, assim como um formigamento completamente
estranho, desde o meu pescoço, até lugares que jamais pensei em
sentir. Sei que estou em frente a um traficante e que devo ter medo,
mas a sensação de estar com ele é diferente.
Não consigo compreender se a minha mente está querendo
me alto-sabotar ou se o meu coração está querendo pertencer a
alguém.
Meu corpo é do contra. Mesmo que os olhos dele estejam me
deixando confusa, o meu corpo está lutando com as sensações. Ele
parece querer entender cada sentimento que se passa em meus
olhos, assim como em minha alma. Entretanto, a fúria e a
intensidade que inspira a ira em seu comportamento, faz com que
eu queira me afastar.
— Não tire os seus olhos de mim — ele parece ainda mais
nervoso.
Não consigo encontrar uma razão, ou motivo para entender o
porquê deste homem estar perdendo tempo comigo, enquanto há
garotas praticamente nos seus pés.
Ele me dá um último olhar até que comece a apaziguar entre
elas.
— Você é só mais uma puta, garota. Não se sinta tão
especial por ele te dar uma atençãozinha a mais! — a loira ao meu
lado murmura, sorrindo como se não tivesse me falado nada.
Ignoro, o espírito de barraqueira deixo para a Fernanda.
Marcos caminha lentamente em torno das garotas,
analisando cada detalhe. Algumas pendem de um pé para o outro,
enrolando os seus cabelos com os dedos, mordendo os lábios ou
tentando falar com ele.
Ele parece um predador analisando o seu alimento. A força e
a cólera emanam do seu corpo, no instante em que ele dá passos
calculados.
Ele para diante de uma morena. Seus cabelos são pretos e
brilhantes. Sua roupa apertada e curta mostra um piercing em seu
umbigo. A cor das suas roupas são chamativas, sendo um tomara-
que-caia em animal print rosa e um short coberto por manchas e
rasgos propositais — volto a minha atenção para o meu short.
Diferente do dela, o meu não é proposital, mas talvez eu esteja na
moda e nem sabia. Quero rir do meu pensamento.
Ele passa para outra garota, olhando-a minuciosamente.
Seus cabelos são cacheados, com uma fita prendendo-os, seu
vestido verde limão é bonito, porém transparente. Não sei se ela
chegou a perceber, ou esta é a sua real intenção.
— Mancha, eu... — a menina tenta falar.
Ele sinaliza para que ela fique em silêncio.
O modo em que ele está analisando estas garotas está me
incomodando, não só por elas estarem sendo avaliadas como um
objeto, mas por quem elas estão sendo analisadas. Por algum
motivo estranho, não estou gostando dele olhando para elas.
Ele continua com a sua vistoria. Em algumas ele foi rápido,
em outras olhava um pouco mais, até que chegou em uma loira
platinada, com grandes peitos e olhos verdes. Nunca vi está mulher.
Não é que eu conheça todas que estão por aqui, mas é
inevitável não esbarrar com algumas, na escola e nas ruas. Até
mesmo algumas garotas de outros Complexos é possível
reconhecer, mas esta mulher, com certeza, nunca esteve aqui.
Ela parece submissa ao seu redor, mas uma mulher sempre
terá intuição e a minha não está apontando nada bom para ela.
A loira parece empolgada com os olhos dele sobre ela, pois
sabe que um certo interesse despertou. Embora ela esteja eufórica,
Mancha não tem reação nenhuma, parece até que os seus olhos se
tornam ainda mais sombrios ao analisá-la. Talvez ele também tenha
percebido que ela possui uma energia ruim.
Enquanto tento fugir da visão do Marcos, os meus olhos
deslizam pelo espaço, desde o teto, até as mesas onde há pessoas
se divertindo com o “concurso”. O homem em que a Fernanda citou
a momentos atrás parece estar concentrado em algo que não está
aqui em cima. Continuo a minha vistoria, até que os meus olhos
param em um homem sentado próximo de mim. Nos seus olhos tem
malícia, assim como em seu sorriso.
Ele me analisa atentamente, fazendo um sinal com as mãos
enquanto pisca. Desvio o meu olhar rapidamente, constrangida. Por
instinto, me encolho em meu lugar, querendo que um buraco se
abra e me engula.
Ouço um rosnado. Marcos se move rápido até o homem
sentado, agarrando o seu pescoço. Ele fala baixo, cuspindo
palavras que ninguém consegue ouvir, mas o homem está ouvindo
tudinho, pois os seus olhos amedrontados estão prestes a derramar
lágrimas. O traficante cai da cadeira, tentando fugir, mas um dos
vapores o pega e o leva para longe.
Os músculos das grandes costas do Marcos tremem, se
virando para me encarar com os mesmos olhos raivosos.
Nunca fiz nada para ele e tudo o que recebo é ignorância e
uma fúria sem sentido, penso nas pessoas que dão motivos para ele
— certamente devem estar mortas.
A loira de antes olha-me enigmática.
Dou um passo para trás, mas sinto que a minha bunda bate
em algo duro, fazendo-me ficar petrificada em meu lugar.
— Não ouse dar mais um passo — o meu corpo treme.
A sua grande estrutura se move ao meu redor, se
materializando completamente em minha frente.
Meu peito sobe e desce ruidosamente. Sinto que vou ter um
ataque.
Seus olhos não me deixam por um segundo. Ele desvia e
desce um pouco, ficando na atura do meu ouvido. Seu nariz passa
lentamente pelos meus cabelos, até que a sua voz invade a minha
cabeça.
— Que não haja uma próxima vez, mas se você ficar de
charminho para cima dos meus mandantes, eu te mato!
Sei quem ele é, ainda assim, não posso deixar que ele
mande em mim, porque se eu deixar, ele vai me quebrar e tudo no
que acredito não será nada.
— Se houver uma próxima vez, pode ter certeza de que vou
verificar se você está olhando.
Observo quando as suas mãos se fecham em punho ao lado
do seu corpo, é visível que ele não estava esperando por isso.
— Não me importo, desde que você esteja sobre mim.
Eu não poderia ser menos virgem?
Confesso que as suas palavras atingem um ponto que não
pensei em ultrapassar, não agora. Será que ele pensa que sou
experiente? Porque o máximo que vi de um pênis está nos livros de
biologia.
— Te deixei assustada? — a raiva contida em sua voz abala
o meu corpo. — Não fique, tudo acontece no seu tempo.
Ele agarra a minha bunda, apertando-a, me fazendo analisar
a sua frase de duplo sentido.
— O que você sente quando eu te toco? — ele se distancia.
— Nada — minto.
— Eu não te tocaria se eu não visse a permissão em seus
olhos — ele me prende em seu olhar. — Se ainda não estiver, vou
fazer sentir.
Ele sabe que estou mentindo.
Encaro qualquer ponto que possa me livrar do seu olhar, até
que acabo me debatendo com os olhares odiosos das outras
garotas, fazendo com que me volte para ele novamente.
— Ande, atrás de você tem uma porta, entre nela e fique lá.
Não estou pedindo.
— Vou sair por onde eu quiser.
— Eu não ligo para a sua revolta! Vai para a merda daquela
porta ou vou levá-la! — seu tom raivoso invade o meu sistema em
um aviso.
— Podemos ver que o chefe fez a sua escolha... — o moreno
fala no microfone.
No mesmo instante, Marcos vai até ele e fala algo em seu
ouvido. O semblante do garoto é de confusão. Ele não questiona o
Mancha.
— Vai continuar parada aí, porra?!
Mantenho o seu olhar, até que começo a dar passos para
trás. Me viro e seguro a maçaneta. Assim que abro a porta, dou um
último olhar para o palco, mas ele continua lá, como se estivesse
averiguando se vou entrar. É quando os meus pés pisam dentro do
quarto escuro que posso ouvir a escolha que ele fez.
— Garotas, podemos ver que uma foi expulsa e a outra foi a
escolhida — mais xingamentos ecoa pela quadra. — Obrigado pela
participação de cada uma, mas a escolhida é você, loira! — ele
aponta para a mulher platinada.
As palavras começam a martelar em minha cabeça, assim
como o seu olhar em mim.
Eu sou a expulsa.
4
DÚVIDA
CAMILLA FERRAZ
Ainda, domingo – 11 de março de 2018

Tenho que confessar que, ele me fez de boba na frente de muita


gente e, o pior, é que acreditei.
Ainda estou dentro do quarto em que ele me mandou ficar.
Não há janelas ou portas, ou qualquer coisa que sirva para fugir.
Grades de cervejas e outras bebidas estão espalhadas ao
lado de cadeiras empilhadas e uma mesa. No teto há uma única
lâmpada que me ajuda a identificar os objetos — a luz é amarelada
e fraca, mas, ainda assim, me auxiliou na visualização de algumas
manchas de sangue no chão.
Não é uma boa hora para sentir medo.
Quando entrei, pude constatar que qualquer som que venha
de fora não consegue entrar nesta sala e, após ver o sangue no
chão, posso afirmar que estou bem ferrada.
Procuro qualquer espaço na porta que possa me ajudar a ver
o que está acontecendo do outro lado, mas até mesmo a fechadura
é diferente.
Onde estava com a cabeça quando entrei aqui? Como não
percebi isso?
Não me importo com o que ele pensa que está fazendo, mas
vou sair. Não vou continuar aqui, até porque não sei quando ele vai
voltar, se voltar. Certamente, há pessoas para todos os lados, ele
deve estar bem longe com a sua escolhida e não vai me perceber.
Somente fui um entretenimento, uma forma de deixar o seu evento
mais divertido. Foi uma boa jogada fazer de idiota a garota pobre.
Giro a maçaneta. Enquanto abro a porta, me espanto ao
observar o completo silêncio, a quadra que se encontra vazia, os
grandes portões que estão fechados e a confusão que se passa em
minha cabeça. Tinha mais de quinhentas pessoas por aqui... como
está vazio? Por quanto tempo fiquei dentro deste quarto?
— Pensei que fosse ficar a noite toda aí dentro — meus olhos
se arregalam, meu coração acelera.
Encaro a figura sentada no meio do palco improvisado, em
sua frente tem uma garrafa de alguma bebida que não consigo
identificar e um copo em sua mão. Seu olhar está longe, mas é
perceptível que ele está ciente sobre tudo a sua volta.
— Você sabia que eu ia sair? — pergunto, ainda segurando a
maçaneta fortemente.
— Você não segue o que eu mando, certamente sairia — ele
me analisa.
— Não te devo obediência.
Ele bebe o líquido marrom, sem esboçar nenhuma reação.
— Você me deve muita coisa, garota.
— Você está cometendo um erro.
— Eu não erro — o som arrogante que sai dos seus lábios
ecoa pelo espaço vazio.
— Além de não errar, é presunçoso — confronto o perigo.
— Além de desobediente fala o que pensa, gostei — ele dá
uma risada falsa.
— O que você quer comigo? — tento fugir do seu joguinho.
— Não é o que eu quero, é o que vou fazer com você.
É errado ficar excitada em um momento em que eu devia
estar com medo?
— Por onde pretende começar? — levanto uma sobrancelha.
— Correndo atrás da sua fiel, ou percebendo que você não passa
de um cara idiota, que pensa que pode submeter garotinhas?
Ele permanece em silêncio por alguns instantes.
— Não preciso correr. Por que eu correria atrás de alguém
que está em minha frente? — ele toma mais um gole da sua bebida.
Ele ignora a outra parte do meu argumento.
— Vou embora — começo a caminhar em direção a escada.
— Boa sorte — ele levanta o copo, como se fosse brindar um
grande acontecimento.
Me viro, observando que ele não se moveu um centímetro.
Certamente, daria mais uma diversão a ele, tentando sair por um
lugar que não há saída.
— Me deixe sair!
— Por que deixaria? — ele se levanta.
Fico muda, vendo-o se mover como um rei, achando ser
superior. Seus olhos duros parece queimar, observando cada
pequeno movimento do meu corpo.
— Vou fazer você gritar, chorar, implorar, mesmo assim, não
vai conseguir se afastar. Sabe por que, gatinha? — ele fica em
minha frente.
— Não — sussurro.
— Porque você é minha.
Sinto o cheiro do seu perfume, sua expressão ávida e os
seus músculos duros e grandes como muros em minha frente. Ele
parece achar que a sua pequena frase foi suficiente para solucionar
todas as dúvidas do mundo, mas somente teve uma reação
defensiva crescendo em mim.
— Eu serei sua se um dia eu permitir.
Raiva passa por seus olhos rapidamente, logo uma máscara
fria se apossa do seu rosto.
— Belas palavras para uma garota do Morro.
— O Morro tem um padrão? — me atrevo a sussurrar bem
perto do seu rosto.
As suas mãos agarram os meus quadris, me puxando para
ele. Faíscas explodem quando a sua pele encosta na minha,
deixando-me mole ao seu redor. Não posso ceder, ele pode realizar
tudo o que está dizendo, mas não consigo me negar as sensações
em que ele está me causando.
— Você não tem padrões, isso me irrita.
— Posso saber o porquê? — tento me soltar, mas os seus
braços são como barras de ferro ao meu redor.
— Tem perguntas que não precisam ser respondidas.
Seu rosto desce em meus cabelos lentamente, indo até o
meu pescoço. Seus lábios beijam a minha pele, até subir para a
minha boca.
Não é a primeira vez em que beijo um cara, mas sentir a
boca do Marcos contra a minha, enquanto as nossas línguas travam
um duelo, realmente, não estava preparada. Seu beijo tem posse,
assim como as suas palavras anteriores. Uma de suas mãos agarra
os meus cabelos, puxando-me ainda mais para ele. Ele demonstra
necessidade. Por alguma razão, sinto que também preciso.
A fantasia do momento termina quando encaro os seus olhos
furiosos. Ele não me solta, mas o seu olhar ainda está em minha
boca.
— Isso não vai acontecer novamente — ele não parece
arrependido do que fez.
— Ainda bem que quem me beijou foi você!
— Porra! — ele rosna, indo para longe de mim.
— Devia me deixar ir embora, agora.
— Não, caralho!
Percebo que ele está tentando se manter longe, mas não
passa de tentativas.
— Qual é o seu problema? — grito de volta.
Ele olha-me intrigado, não deixando a fúria sair deles.
— Vamos — ele diz, de repente.
Sua grande mão agarra o meu pulso, levando-me em direção
ao portão. Não tenho como me soltar, ele é mais forte do que eu e,
não posso negar, quero descobrir mais sobre ele.
Mancha abre o portão e me leva até a sua moto. Sobe e me
encara.
— Sobe!
— Não devia ser eu a sentar aí — me lembro da sua
escolhida.
— Sobe, agora! — a autoridade em sua voz veio carregada
de ira.
Se eu correr, ele vai me pegar. Se eu for com ele, ele vai me
pegar. Ele vai me levar de qualquer forma, é só uma questão de
poupar tempo. Então, decido subir.
Embora não tenha medo dele, ele não é alguém que devo
brincar e vim sabendo sobre as consequências caso ele me
escolhesse. Sei que ele não é gentil, muito menos educado, mas
nunca foi uma surpresa. A parte confusa é: por que ainda estou me
sentindo atraída por ele?
Mesmo querendo tocá-lo, seguro nas laterais da moto. Seu
humor é oscilante, não posso confiar, mas, assim que os meus
pensamentos se tornam lentos, percebo as suas mãos segurando
as minhas coxas.
— Se segure em mim.
Ponho as minhas mãos lentamente em sua cintura. Os seus
músculos se tencionam, logo pondo a moto em movimento.
Passamos por muitas ruas. Comércios estão fechados,
somente alguns bares e algumas poucas pessoas sentadas em
suas calçadas. Um pequeno grupo de garotas bem arrumadas estão
próximas a uma viela, certamente estavam na quadra. O som da
moto do Marcos é um dos sons em que essas garotas mais
perseguem, não me assusto quando se viram em nossa direção.
Por instinto, enterro a minha cabeça nas suas costas, querendo não
chamar mais atenção do que eu já tenho chamado.
Alguns minutos depois, estamos em frente a uma casa. Não
me lembro de ter passado por aqui, mas por algum motivo, sei que
de agora em diante vou ter muitas lembranças sobre ela. A casa é
simples, não tem reboco, portão de ferro e um monte de areia para
construção na frente.
— Chegamos no castelo, princesa. Desce!
Não espero que ele de uma segunda ordem, somente desço.
— Seria legal se esse castelo tivesse um príncipe — observo
quando ele abre o portão.
— Acredita em príncipes? — seu olhar zomba de mim.
Reviro os olhos.
— Ou está esperando por um? — ele parece querer mostrar
que a minha realidade é outra.
— Você chega a ser patético!
Gostaria de saber em que momento comecei a enfrentar o
Marcos e, até quando, ele vai deixar que isso aconteça.
— A sua inocência me encanta, ou a forma em que finge ser
inocente — ele assume a sua faixada fria.
Não sei o que ele pretende com essas palavras, mas não vou
perguntar, sei que não vou ter a resposta que quero.
— Entra!
Caminho para dentro e o Marcos entra com a sua moto, logo
atrás de mim. Ele a guarda em um canto, abrindo a porta em
seguida. Sigo-o ouvindo o som das chaves trancando o objeto que
me prende com ele. Está escuro, mas, em instantes, as luzes são
acesas e, então, vejo-o olhando-me intensamente. Não querendo
encará-lo, procuro qualquer outra coisa que possa me distrair, é
quando percebo o luxo da pequena casa. Realmente, Marcos
consegue se superar.
— Não sei quais são os seus planos ou o que está fazendo
aqui. Não me importo com você ou com qualquer coisa que tenha
conexão com você, mas quero que saiba que tudo o que eu fizer, vai
ficar entre nós — engulo em seco, enquanto o Marcos continua
falando friamente. — A partir de hoje, você é a minha amante, vou
estar de olho em você vinte e quatro horas, tudo o que fizer, vou
saber.
— Você tem certeza de que pegou a garota certa? —
questiono confusa.
— Eu não erro, Camilla — meu corpo tenciona ao ouvir o
meu nome sair pelos seus lábios.
Não me lembro de ter falado para ele como me chamo.
— Como sabe o meu nome? — pergunto desconfiada.
— Conheço bem o seu tipo — ele muda de assunto.
— Que tipo?! Você nem me conhece!
— Carinha de inocente, manipuladora, gananciosa... o que
você já fez para conseguir o que quer? — ele me analisa
maliciosamente.
— Quero sair daqui! — não consigo acreditar no que estou
ouvindo.
— Você não vai! — seus olhos são sombrios.
— Por que você fala com tanta certeza sobre mim?
— Por que ainda insiste neste joguinho? — ele é totalmente
irônico.
— Porque diferente de você, eu erro, mas não minto.
Minhas palavras o atinge de alguma forma, mas rapidamente
ele trata de esconder.
— Você está começando a se tornar interessante.
A cada segundo, meu coração parece perder uma batida e se
em algum instante pensei que ele pudesse ser diferente, este
pensamento está começando a me julgar.
— Se estiver interessado em saber, sempre me defendi
sozinha, não tive um pai para me proteger, mas tenho uma mãe que
nunca me disse para esperar por ela para resolver os meus
problemas, mas que sempre enfatizou que sou capaz de me
responsabilizar e me posicionar diante de tudo que quiser me fazer
me sentir fraca — observo as suas reações enquanto continuo a
falar. — Você não me causa medo, não consegue me inferiorizar ou
me desestabilizar. Se pensa que sou um brinquedo, só tenho pena,
pela sua falta de empatia e amor-próprio. Dá para perceber que isso
você não têm.
Assim como existem pessoas boas, também tem as ruins, e
essa parte ruim levou o meu pai. Não é fácil falar sobre ele, mas
achei necessário dizer que sou uma garota independente e que
sempre me protegi.
Vejo quando os seus olhos parecem divertidos e irônicos.
— Desde quando você não tem pai? — o seu tom é
arrogante.
— De tudo que falei, você só lembra desta parte?
— Só estou fazendo uma pergunta.
— Meu pai morreu quando eu estava perto de completar oito
anos — as vezes precisamos dizer o que as pessoas querem ouvir,
para que assim tenhamos as nossas próprias respostas.
— Sua mãe que te contou?
— Contou o que?
— Que o seu pai tinha morrido.
— Policiais foram até a minha casa e disseram — não sei
aonde ele quer chegar com este questionário.
— Sua família velou o corpo?
— Para que tantas perguntas?...
— Me responde!
— Não! Eu ouvi os policiais dizendo para a minha mãe que
era melhor eu não ter esta lembrança do meu pai, então eles
enterraram.
— Você sabe o motivo dele ter morrido?
— Disseram para a minha mãe que foi bala perdida —
desconfio do seu interesse no meu pai.
Marcos puxa do seu bolso um celular, digita algo rapidamente
não se importando em me explicar o que está acontecendo.
— Você sabe de algo?
— Não.
— Certo. Você conseguiu o que queria. Posso ir embora?
— Eu te levo — ele concorda rapidamente.
Ele guarda o celular e abre a porta. Logo estamos em sua
moto indo em direção a minha casa. Não preciso em nenhum
momento dizer para qual direção ele deve ir. Foi rápido, frio e
confuso. Quando percebo, já estou em frete a minha casa, eu
descendo da sua moto, enquanto ele analisa o lugar onde moro. Ele
parece surpreso.
— Não se esqueça do que eu disse, o que acontece entre
nós, fica entre nós.
— Não existe nós — aponto entre ele e eu.
— É o que você diz. Me obedeça, pelo menos uma vez —
suas palavras saem frias e calculadas.
Vou até à porta e a abro, a porta range e parece que as
dobradiças vão cair a qualquer momento. Quando a fecho em
minhas costas, ouço o som da sua moto se distanciando.
Por alguma razão, sinto que esta não será a última vez em
que vejo o Marcos por aqui.
5

ABANDONO
CAMILLA FERRAZ
Segunda-feira, 12 de março de 2018

A casa estava em silêncio quando cheguei. Todos estavam


dormindo e pela posição que encontrei a minha mãe, arrisco dizer
que ela me esperou, mas o cansaço a venceu. Me senti culpada
enquanto a ajudava a se deitar.
Durante a madrugada tentei assimilar as situações. Busquei
entender o porquê de estar curiosa em saber mais sobre ele e as
sensações que gritaram pelo meu corpo, principalmente quando ele
me beijou. Não consegui dormir, somente pensando.
Não posso mostrar fraqueza, muito menos ser submissa a
ele. Não posso mudar para agradá-lo, não posso me tonar algo que
eu não sou para que ele mantenha a sua postura de alfa. Estou
arriscando a minha vida, mas já sabia que isso iria acontecer caso
ele me escolhesse — mesmo que não tenha sido diretamente.
Faz alguns minutos em que cheguei da escola, e já estou
saindo para buscar o Bruno. Passo por algumas ruas e observo as
pessoas por toda parte, algumas delas não conseguem disfarçar e
acabam olhando. Não fui a escolhida, mas a expulsa, de uma forma
indireta estou recebendo uma atenção nada desejada.
Continuo andando até que avisto o colégio do Bruno. Sigo me
aproximando até que os meus olhos se deparam com o Marcos
agachado, falando com um menino que conheço bem, meu filho.
Tenho que ir ao cardiologista, a forma em que esse homem
consegue acelerar o meu coração em segundos pode ser caso de
médico.
Começo a suar frio ao vê-lo com o meu filho, não sei do que
ele é capaz, muito menos o que está planejando com essa
perseguição.
— Mãe! — Bruno grita ao me ver.
Marcos que até então estava de costas, se vira para
encontrar a pessoa em que o Bruno está chamando. Ele não parece
surpreso ao me ver, pelo contrário, o seu olhar é sarcástico.
— Mãe? — Marcos diz irônico, se levantando. — Você é uma
caixinha de surpresas, garota.
Não respondo, apenas pego o Bruno em meu colo e procuro
pelos responsáveis que deixaram ele sair sem que houvesse
alguém da família. Não demoro a ver uma professora com o olhar
baixo, ela parece culpada. Automaticamente sei o que aconteceu.
Me volto para o traficante em minha frente.
— Quem é o pai dele? — ele me analisa.
— Não tenho papai — Bruno responde por mim, antes que eu
possa entender o que ele acabou de perguntar.
Marcos se volta para o Bruno, logo indo para mim.
— Não vou perguntar de novo.
— Ele já respondeu.
— Se eu tiver que procurar respostas sozinho, será pior — o
tom ameaçador que ele usa arrepia todos os pelos do meu corpo.
Venho me questionando sobre quando eu teria uma conversa
com o Bruno sobre a sua história, mas acredito que ele é muito
pequeno para entender que a vida tinha sido cruel com ele.
Observo o Bruno em meu colo que parece aéreo a nossa
conversa.
— Não vou falar sobre isso aqui — ele me olha intrigado.
— Você se lembra do caminho da casa de ontem?
— Acho que sim.
— Não podemos ser vistos juntos. Estou te esperando lá. Se
em dez minutos você não aparecer, irei te buscar — ele não dá
espaço para que eu fale algo, somente sobe em sua moto e vai
embora.
— Ele tem uma motoca grandona, mãe — ele sinaliza com os
seus bracinhos.
Seria mentira se eu dissesse que as suas palavras não me
machucaram, mas, pensando bem, ontem ele somente me levou em
sua moto porque era de madrugada e as ruas estavam quase
vazias. Sentir que sou uma vergonha para ele causa um sentimento
horrível em mim. Sinto que devia dar um perdido nele, mas ainda
não sei do que ele é capaz.
Antes que eu pudesse começar a andar, o meu braço é
puxado gentilmente. Vejo a professora de antes.
— Me desculpe. Ele... ele...
— Eu sei.
— Fiquei no portão, não sai de perto dele, mas não pude
impedir que ele falasse com o menino.
— Está tudo bem, nem eu sei se posso impedir que ele faça
algo — a minha voz soa triste. — Obrigada.
Não me importo com o que ele possa fazer comigo, mas
quando penso no menino em meu colo, sinto um instinto de
proteção e raiva, não posso deixar que ninguém toque nele. Ele é o
meu filho.
Enquanto ando, tento lembrar as ruas em que passamos
ontem, até que vejo a sua moto em frente à casa. Me aproximo e
constato que o portão está aberto.
— É a casa de quem, mãe? — Bruno pergunta, um sorriso se
abrindo em seu rosto.
— Estou gostando da sua obediência — me assusto ao ouvir
a sua voz atrás de mim.
— Não se engane — entro em sua casa.
A ironia em seus olhos têm um impacto com a determinação
dos meus.
— Mancha! — uma voz masculina chama no portão, fazendo
o Marcos ir até lá.
— Quero descer, mãe!
— Bruno, pelo amor de Deus, não mexe em nada! —
sussurro o colocando no chão.
Marcos não demora, voltando com várias sacolas em suas
mãos.
Bruno se senta no sofá e eu o ajudo a tirar a sua mochila de
suas costas. Ele abre a bolsa e puxa de dentro o seu caderno e
alguns lápis. Ele parece bem confortável na casa do Marcos, não só
no ambiente, mas na presença dele também. Observo quando ele
entra em seu mundo particular da pintura.
— Vai comer! — Marcos manda, me entregando as sacolas.
Demoro alguns segundos para absorver a sua atitude, mas
fico indecisa e desconfiada. Isso não é bem a cara de um traficante,
ou é?
— Fica tranquila, é só comida — sua feição é séria.
— Você ainda não me deu motivos para confiar — sou
sincera.
— Garota esperta — vejo-o jogar as chaves em cima de uma
mesa ao canto. — Não tenho motivos para colocar algo em sua
comida. É um desperdício.
— Suas palavras não me convenceram.
— Eu sei que está com fome.
— Vai me forçar a comer?
— Certamente.
Vejo que ele está falando a verdade. Abro as sacolas e
hambúrgueres, batatas fritas e refrigerante preenchem a minha
visão. É incontrolável, minha boca saliva.
— Vai ficar só olhando?
Não respondo.
Pego um dos hambúrgueres e dou uma mordida, preciso me
certificar antes de dar para o Bruno. O gosto de todos os
ingredientes juntos me faz quase gemer.
— Vem cá, Bruno — ele se equilibra no sofá me fazendo rir.
— Senta aqui no chão.
Conheço o Bruno, sei que vai sujar tudo. Ele se senta. Ponho
no meio das suas pernas um hambúrguer e batatas.
— Você tem um copo? — viro-me para o Marcos.
Não tenho uma resposta, mas ele se dirige para um outro
cômodo, voltando com um copo. Abro o refrigerante e despejo,
entregando para o meu filho.
Me perco na imagem do Bruno, até que ouço o som da TV.
— Está na hora de você me dar algumas respostas — ele
deixa o controle da televisão em cima do sofá.
Vejo-o se move até a cozinha, senta-se e me olha.
— Quem é o pai dele?
Me sento e coloco o restante das sacolas na mesa.
— Primeiro o meu pai, agora sobre o pai do Bruno. Por que
quer tanto saber? — devolvo com outra pergunta.
— Não me provoca — ele se encosta na cadeira, queimando
a minha pele com os seus olhos.
— O pai dele não está vivo — digo simples.
— Você está enrolando.
— Você aparece do nada, exige coisas e quer que eu
exponha a minha vida como se eu devesse isso a você? — tento
não me alterar.
— Se você não devesse, não estaria aqui.
Ele não vai me deixar sair caso não tenha as suas perguntas
respondidas.
— A quase quatro anos, encontrei o Bruno em uma viela. Ele
era recém-nascido... — parece que a cada palavra, as lembranças
daquela noite se tornam presentes em minha mente. — ... eu vi uma
mulher deixando algo lá, então eu me aproximei.
"Lembro quando a mulher deixou um pequeno pacote no
chão e falou alguma coisa que não consegui ouvir. Ela não se
importou em olhar para os lados para saber se havia alguém
observando o seu ato.
Movida pela curiosidade e algum instinto que eu ainda não
sabia que tinha, me aproximei. Me recordo que com passos
vacilantes eu me movi, até que constatei que ali tinha uma criança.
Peguei aquele menino em meus braços e chorei. Chorei
muito. Aninhei o Bruno próximo ao meu coração, fazendo com que
ele sentisse o bater acelerado dele".
— Jurei naquele dia que nunca iria abandoná-lo.
— Encontraram está mulher? — a sua voz irritada me faz
olhá-lo.
— Está mulher era a vó do Bruno, e ela foi morta pelo pai
dele.
"Baianinho estava preso quando o seu filho nasceu. Quando
recebeu a sua soltura, procurou por ele, mas soube que a sua
mulher estava com outro e a avó do menino tinha o abandonado a
mandado da sua filha — pelo menos, foi o que a tia da mulher disse
pelo Complexo.
Mãe e filha foram mortas pelo mesmo homem, a mãe do
Bruno sumiu, que nem mesmo as suas cinzas foram encontradas,
enquanto a sua avó foi morta para que todos vissem".
— Eu tinha quinze anos, quando ele bateu em minha porta
procurando pelo menino. Lembro que ele chorou. Para um cara de
sangue-frio, não imaginei que ele ainda conseguisse chorar — o
examino, ele presta atenção em cada palavra que digo.
— Baianinho? O antigo dono? — seu olhar intrigado me
atinge.
— Sim — respondo algo que certamente ele já sabe, pela
forma em que ele transmitiu a sua pergunta.
— Ele não criou o Bruno? — outra pergunta que ele já sabe a
resposta.
— Baianinho não queria que o Bruno tivesse a mesma vida
que ele, então me pediu para ficar com o menino, mas há este
ponto, mesmo que ele não pedisse, eu iria ficar com ele.
"Baianinho não era presente na vida do Bruno, por opção
dele. Ele não queria que o menino se apegasse, pois a sua vida era
oscilante. Um tempo depois, talvez ele já estivesse prevendo o que
estava por vir, passou a guarda do menino para mim, sendo que, eu
teria a sua guarda legalmente somente depois dos meus dezoito
anos.
Logicamente, recusaram. No entanto, o que não falta em
nosso mundo são pessoas corruptas e foi uma delas que cedeu a
guarda do menino para mim. Sendo que, assim que eu atingisse a
maior idade, automaticamente seria legalmente tutora do Bruno.
Não passou muito tempo, quando houve um ataque
inesperado no Morro. Os ataques duraram alguns meses, entre
traficantes, a polícia e o exército. Muitos foram mortos de ambas as
partes, no qual resultou na queda e o falecimento do Baianinho".
— Mesmo não tendo condições de criá-lo? — me espanto
com a sua pergunta.
— Por que quer tanto saber sobre ele?
— Você não deve fazer perguntas.
— Eu respondi todas as suas!
— Devo agradecer? — ele é arrogante.
Reviro os meus olhos.
— Para uma garota certinha, você é bem fora da lei — ele se
mexe em sua cadeira, se aproximando de mim.
— Para um cara que não erra, você é bem idiota.
— Quero ver até quando a sua língua será afiada.
Me levanto e vou até o Bruno, querendo respirar
tranquilamente fora do seu radar. Quando me aproximo, meu
menino está comendo as batatinhas olhando para a TV. Me agacho
e limpo o seu rosto.
— Vamos embora?
Bruno educadamente se levanta e guarda as suas coisas
dentro da bolsa.
— Posso levar? — ele mostra o hambúrguer que parecia
estar escondido.
Meu coração aperta.
— Pode — o som da voz grave do Marcos ressoa.
Ele me entrega novamente as sacolas.
— Você vai comer mais desses — ele fala sério para o Bruno.
— Obrigada — sigo para a porta.
— Eu quero te ver amanhã, de noite.
— Suas perguntas não foram todas respondidas?
— Sim, mas tenho outras e estás não poderão ser
respondidas naturalmente — encaro-o confusa.
Marcos se aproxima lentamente e segura o meu maxilar.
— Você vai me responder gemendo, Camilla.
6
PRAZER
CAMILLA FERRAZ
Terça-feira, 13 de março de 2018

Marcos não deixou espaço para que eu pensasse em outra coisa


ontem. É óbvio que isso iria acontecer, não é surpresa alguma, mas
para uma garota virgem...
O pensamento de me entregar a ele é perturbador, pois devia
estar fugindo, criando situações para isso não acontecer, mas a
parte que me intriga é que eu estou querendo.
As suas palavras não conversam com a intensidade dos seus
olhos.
São mais de vinte e duas horas, e ainda não tive a coragem
de sair de casa. Mesmo que a ideia me agrade, a insegurança de
ser virgem é ainda maior. É estranho, completamente inacreditável a
forma em que estou cedendo.
Nunca me apaixonei, minha vida sempre foi muito corrida
para pensar em relacionamentos. A doença da minha mãe e o
Bruno são grandes responsabilidades, e um namorado querendo
atenção não seria algo que eu pudesse pensar no momento.
Tudo está acontecendo rápido e sou nova nisso, não sei o
que pensar ou fazer. Sinto que devia estar pensando em ir para
longe, mas o real motivo está na minha curiosidade em descobrir o
porquê do Marcos está no meu pé.
Neste momento, não devia estar em casa, mas na casa dele.
No decorrer do dia, tentei apagar as suas palavras da minha
cabeça, mas foi o suficiente lembrar sobre a sua real escolha.
Enquanto ele se infiltra em cada pensamento meu, ele deve estar
com ela.
Vejo o Bruno e a minha mãe dormindo na cama ao lado. Me
levanto e vou até à cozinha, abro o armário e pego um copo,
enchendo-o de água. Estou colocando o copo vazio na pia, quando
ouço batidas na porta. Sinto que, realmente, as dobradiças não irão
aguentar caso a pessoa continue batendo.
Vou até à janela do quarto, e por um buraco no vidro, reparo
em um Marcos transtornado. Se antes não havia gentileza, não sei o
que esperar agora. Volto para a cozinha e destranco a porta, vendo
a sua figura fria em minha frente.
— Está me testando, Camilla?
— Não — sussurro.
— Acho que te dei muita liberdade, você está crescendo as
asinhas muito rápido.
— O que você quer que eu faça? Nunca tive problemas
com... — analiso o seu rosto. — Homens. Em nenhum momento tive
que lidar com pessoas querendo mandar em mim, logicamente
estou na defensiva.
Noto quando o seu peito sobe e desce rapidamente.
— Tenho que te colocar para jogo, então.
Sigo olhando-o tentando absorver a sua frase de duplo
sentido.
— Coloca alguma coisa em cima dessa porra curta e vamos!
— sinto as minhas bochechas ficarem quentes.
Estou com uma camisola branca que, certamente, foi de uma
menina de quinze anos, mas não estou no direito de escolher.
Usava somente durante a noite e não pensei que receberia visitas
ou subestimei o Marcos.
Constrangida, corri até o quarto. Vesti uma saia jeans, uma
blusa verde e sutiã.
— Aonde vai, Camilla? — minha mãe se senta.
— Não se preocupe, estarei aqui amanhã cedo para a aula —
tento mudar de assunto, mas sei que ela sabe para onde estou indo.
— Tome cuidado!
Beijo o seu rosto em resposta e vou até o Marcos.
— O que aconteceu com a sua escolhida? — pergunto, assim
que tranco a porta.
— Você não precisa saber sobre ela — ele diz simples,
subindo em sua moto.
Sinto uma fisgada em meu coração.
Idiota está escrito bem grande em minha testa. Por que
continuo acreditando que ele possa ser diferente?
— Eu já vim até aqui, não me faça ir ao limite — puxo todo o
ar que posso e subo.
— Hoje você vai fazer algumas das coisas em que citei.
Espero receber cinco estrelas — Marcos devia vir com um
dicionário, porque as coisas que ele fala não faz o menor sentido
para mim.
Como deduzi, as ruas por onde ele entra estão vazias, pois
grande parte das pessoas ficam nas ruas principais. Esta sua
atitude me fez ter certeza sobre o que ele pensa em relação a mim.
Minutos depois, estamos na mesma casa. Ele deixa a moto
em frente e abre o portão — acredito que não há pessoas que
tenham coragem de roubar o dono do Morro.
Reparo quando ele abre a porta e me espera. Tento
tranquilizar a minha respiração para que eu consiga ir para dentro,
mas a reação é totalmente contrária.
— Boa garota — o congelante tom da sua voz ecoa pelo
cômodo ainda escuro.
Minha insegurança está tão evidente?
Ouço um leve som e as luzes se acendem. Meus olhos se
debatem com o seu rosto e uma palpitação cresce em meu peito. A
porta é trancada.
— Antes que eu esteja dentro de você, quero que entenda
algumas coisas — na medida em que sinto a sua aproximação, meu
corpo se torna quente. — Não sabia que tem uma parte em mim
extremamente ciumenta e eu não estou sabendo como controlar. A
falta de controle me deixa irado.
Sua mão segura a minha jugular.
— O que faz você pensar que estou aqui para me entregar?
— ponho a minha mão em cima da sua. — Você já tem alguém para
isso.
— Não se faça de tímida. Se você não quisesse... já teria
falado.
Minhas pernas tremem.
— Não esteja na linha de visão de nenhum filho da puta. Sei
que ameaçar você não vai me levar a nada, mas mesmo que seja
inocente, vou caçar eles e quando encontrar, vou fazer com que não
se lembrem do próprio nome. Até porque, mortos não falam — ele
sabe que me importo mais com as pessoas do que comigo.
O tom possessivo em suas palavras atingem o meu
subconsciente como um tapa.
— Eu não sei nem o porquê de estar aqui. Você me expulsou!
Você disse que me quer como amante, mas eu não quero ser uma!
— sua outra mão me puxa para ele.
— Se você não quer um título, tudo bem. Não vou te obrigar
a ser, mas você continuará comigo. Não tem fuga, Camilla!
— Vamos fazer um acordo. Eu não vou te cobrar, nem
questionar, mas você tem que fazer o mesmo.
— Não tem acordo — ele zomba das minhas palavras.
— Por que me expulsou para depois não me deixar ir?
— Não sei.
Os seus braços se apertam ao meu redor, logo a sua boca
está na minha. Seus lábios são fortes contra os meus, como se
quisessem tirar tudo de mim.
— Meu primeiro erro foi pensar que iria conseguir ficar sem te
beijar.
— Erre novamente — me permito, por um instante, acreditar
que ele possa ser bom.
— Foda-se.
Não precisei de uma segunda frase para que ele me ataca-
se, com fome.
Marcos não é transparente como eu, suas ações são na base
da adivinhação. A cada palavra que sai da sua boca é uma surpresa
e um susto, assim como as suas atitudes incompreensíveis.
O efeito da sua pele contra a minha é algo incomum, irreal.
Suas mãos tiram as roupas do meu corpo com agilidade, não se
esquecendo de passar os seus dedos em cada tecido de pele, em
pontos estratégicos que não sabia que poderiam causar tantas
sensações. Marcos segura os meus cabelos com força, arrancando
de mim tudo o que lhe impede de me tocar. É como se ele temesse
que eu fugisse ou que tudo pudesse ser um sonho.
Seus toques são quentes, imprevisíveis e, literalmente,
excitantes.
Após o meu sutiã ser retirado, sinto a minha face esquentar,
mas ele não parece perceber, pois o seu rosto está no meu
pescoço, descendo no topo dos meus seios, até que a sua língua
está em um dos bicos, o chupando. Forte e frenético. Mancha suga
o meu peito como se fosse algo que só teria uma vez. Suas sucções
fortes arrancam de mim leves gemidos incapazes de serem
segurados. A sensação de ter a sua língua quente em mim, faz com
que os meus olhos fiquem fixos em seus movimentos, para que eles
não virem em sua órbita.
Vejo quando os meus seios, antes brancos, se tornam
avermelhados com as suas sucções.
Ele quer me marcar.
— Quando você estiver na minha cama, nunca pense em me
dizer não — ele assopra em meu mamilo. — Seus gemidos são
todos meus.
Ele desce para a minha barriga, beijando cada centímetro da
minha pele. Minha saia cai em meus pés, logo sinto um beijo em
cima da minha calcinha — totalmente molhada.
A minha calcinha é rasgada e a sua boca invade a minha
boceta. Instantaneamente, jogo a minha cabeça para trás, não
conseguindo controlar a nova sensação em meu corpo. Uma de
suas mãos segura firme o meu quadril, enquanto a outra puxa uma
das minhas pernas para o seu grande ombro, fazendo com que os
seus movimentos se tornem mais profundos e ágeis dentro de mim.
Sinto até mesmo a minha boca seca de tantos gemidos que não
estou conseguindo segurar.
Seus dedos habilidosos entram em contato com o meu
centro, levando-me ainda mais perto de algo totalmente
desconhecido por mim.
Vejo quando um sorriso zombeteiro aponta em seu rosto,
mas fecho os meus olhos ao sentir os seus dedos em um ponto
estratégico em minha boceta. Sua boca trabalha com os seus
dedos, levando-me a loucura. Até que ele atinge um ponto,
causando um leve incômodo. Rapidamente, tiro a minha perna do
seu ombro e fecho as minhas pernas. Os olhos do Marcos estão
ainda mais escuros, sua língua lambe os seus lábios e, então, a
confusão começa a surgir.
— Vai me dizer o que foi, agora?
— Sou virgem — digo rápido.
O poder da linguagem corporal é incrível, mas tentar
compreender o porquê do Marcos está ficando com raiva, é
totalmente devastador.
— Não começa a mentir.
— Não estou — rebato.
Acredito que fui sincera o suficiente para que ele confie em
mim, pois os seus braços me agarram de encontro ao seu peito,
carregando-me para o outro cômodo. Minhas costas caem de
encontro a algo macio, enquanto os meus olhos procuram por ele,
assim que sinto falta do seu toque. Vejo-o tirando as suas roupas,
até que não reste nada. Ele sobe na cama e permanece em cima de
mim. Observo quando rasga a embalagem da camisinha com
praticidade e pressa — que estava em uma gaveta ao lado —,
pondo em seu longo pênis em seguida. Ele é enorme.
Após sair da minha boca que sou virgem, Marcos não disse
nenhuma palavra, apenas se manteve em silêncio, até que tivesse o
meu sangue em seu pênis.
Meus pelos se arrepiam, os dedos dos meus pés se
contorcem e tudo parece explodir. A intensidade dos movimentos do
Marcos é impressionável. Seus olhos não saem de mim por um
momento, como se estivessem gravando cada pedaço do meu
corpo. Mãos que me apalpam em todos os lugares e a sua pele
quente roçando contra a minha. Sensações me enchem de algo
desconhecido e tudo o que quero, é não pensar no que pode
acontecer, assim que tudo acabar.
Marcos entrou em mim lentamente, tomando intensidade aos
poucos. A dor foi inevitável, mas que a minha mente tratou de
mascarar e sentir outras sensações que o seu membro grosso está
me proporcionando.
Com força, um prazer incontrolável me domina. Minha boca
abre e fecha a cada investida curta e forte que ele lança contra mim,
fazendo com que as minhas mãos e unhas se agarrem aos seus
ombros e costas, logo indo para os lençóis, apertando-os forte.
Fecho os meus olhos, não conseguindo mantê-los abertos.
— Olhe para mim! — sua voz grossa é arrogante e
autoritária.
Estamos trocando algo invisível, mas que tem uma grande
força. Sei que não há amor, no entanto, está sendo melhor que o
esperado. Seus movimentos indo e voltando, esvaziando e me
enchendo, faz com que uma dor prazerosa se instale lentamente.
Ele está sendo calmo, mesmo que eu consiga ver a tensão em seus
músculos. O roçar de peles, torna o êxtase ainda maior. Sentir a sua
pele de encontro a minha é algo que eu não quero que pare. É
arrebatador sentir tudo o que está acontecendo.
Marcos espalha beijos pelo meu rosto, pescoço e seios. Sinto
algumas vezes o seu nariz cheirar os meus cabelos, enterrando em
seguida na curva do meu pescoço. Ouço o som da respiração
profunda dele, com a fricção dos nossos corpos em atrito com a
cama, enquanto os meus gemidos se espalham pelo quarto.
Seus dedos entram em contato com um ponto em meu corpo
que me faz instantaneamente gritar, esfregando-o freneticamente.
Sua boca novamente vai de encontro aos meus seios.
A minha libertação vem forte e intensa, sendo acompanhada
por ele, no mesmo tempo em que gemo alto. Puxo ar para os meus
pulmões lentamente. Seus braços fortes pousam um a cada lado do
meu rosto, fazendo com que me torne presa em seu corpo. Seus
olhos duros chocam-se com os meus e logo a sua voz soa.
— Não sei o que está fazendo, mas quero que saiba que...
Ele dá outra entocada, fazendo com que um leve gemido
escape pelos meus lábios.
— O que?
— Sou egoísta, não sei dividir.
— Não há como me dividir.
Ele busca o significado das minhas palavras, mas trato de
mudar de assunto.
— Quero te perguntar uma coisa.
— Você sempre quer.
— Você sente vergonha de mim?
Ele desvia os seus olhos dos meus.
— Não é vergonha, mas é melhor você pensar que sim.
7
SURPRESA
CAMILLA FERRAZ
Quarta-feira, 14 de março de 2018

Faz alguns minutos que percebi o celular do Marcos em cima das


suas roupas no chão. Me levanto cautelosa, não querendo acordá-
lo. Vou até o aparelho e vejo as horas, colocando-o no mesmo lugar.
O meu corpo está dolorido, principalmente a parte em que o
Marcos fez o seu trabalho prazeroso. Mesmo estando com uma dor
sútil, sinto falta dele dentro de mim.
Deitado de barriga para cima, com o braço tapando os seus
olhos, Marcos dorme serenamente. Sua respiração é calma, mas
ele aparenta ter um sono leve. Se eu for silenciosa, talvez ele não
perceba que estou indo embora.
Sinto-me cansada, pois somente cochilei por alguns minutos.
Me movo pelo cômodo atrás das minhas roupas, tentando não
tropeçar em nada. Visto as peças rapidamente e volto a olhar para
ele. Observo-o minuciosamente, não perdendo nenhum detalhe. As
janelas de vidro faz possível a minha vistoria em seu corpo, dando-
me a visão até mesmo do lençol manchado.
Ele é totalmente musculoso, seus braços e pernas parecem
de um lutador porte grande de MMA. Seu maxilar firme coberto por
pelos escuros me faz recordar de onde a sua boca estava ontem.
Sua barriga não é totalmente definida, mas é forte. Muitas tatuagens
e algumas cicatrizes estão espalhadas por sua pele, algumas são
profundas, deixando-me curiosa.
Minha pele começa a formigar.
Seus cabelos estão bagunçados, suas pernas afastadas e
um grande pênis duro, bem no centro — mordo os meus lábios. Não
pensei que ele pudesse ser delicado, principalmente depois de ver a
raiva em seus olhos, após eu dizer que era virgem. Ele é bem mais
que um fora da lei. Marcos pode ser imprevisível.
Antes, tive medo, até mesmo insegurança, mas quando os
seus olhos se perderam nos meus, quando a sua pele estava contra
a minha e a sua boca em todos os lugares, percebi que o Marcos
não estava somente declarando a sua posse, mas me fazendo
acreditar, mesmo que sem palavras, que eu podia confiar nele.
A cada observação que faço, tenho a certeza de que o meu
rosto se torna enrubescido. Meu olhar desce da sua boca carnuda e
rosada até chegar em seu pênis, grande e grosso. Virei uma
pervertida em instantes.
Mancha não parece um traficante, ele está mais para um
advogado ou algo que participe do meio de empresários,
empreendedores ou algo do tipo. No entanto, o cara é um completo
marginal.
Mesmo achando que não, uma insegurança se forma em
minha cabeça: será que era só isso que ele queria comigo? —
balanço a minha cabeça, como se isso tivesse o poder de apagar os
meus pensamentos.
Faço um coque em meus cabelos e levo o meu olhar uma
última vez para ele.
Abro a porta e deixo as chaves que usei para abri-la no
mesmo lugar. O portão está aberto e a moto está como ele deixou
ontem.
O celular do Marcos marcava cinco horas, consigo chegar em
casa e ir para a escola se eu for rápida. Perdi um ano da escola. A
um tempo atrás, minha mãe teve algumas crises consecutivas e
precisei dar total atenção a ela. Então, procuro sempre estar
presente, pois quero me formar ainda este ano.
O céu não está totalmente claro, mas o calor já é absurdo.
Grande maioria dos comércios estão fechados e não há muitas
pessoas pelas ruas. Desço rapidamente, até porque não é seguro.
Minutos depois, abro a porta da minha casa e vou
diretamente tomar um banho. Me visto, penteio os meus cabelos e
acordo o Bruno. Faço todos os processos normalmente.
Quando sai, minha mãe ainda estava dormindo. Não quis
acordá-la, somente tentei fazer o mínimo de barulho que eu
pudesse.
Bruno, nesta manhã, está manhoso. Geralmente, ele é
falante, mas o meu pequeno está quieto e sonolento. Pego ele em
meu colo e levo-o para a escolinha, pois, provavelmente, hoje não
vamos ter o jantar, será melhor se ele comer algo por lá.

Estamos na quinta aula e avisaram que será a última. O


professor está falando sobre os cromossomos XY, enquanto estou
anotando algumas tarefas da lousa.
— Vou escolher duplas para que vocês se aprofundem neste
assunto de procriação — ele faz uma piada sem graça.
Muitos da sala começam a reclamar por não poderem
escolher a sua dupla e dizem quais são as pessoas com quem não
querem trabalhar.
— Silêncio! Não adianta reclamarem, vou escolher da mesma
forma.
O professor pega a lista de chamada em sua mesa e para em
frente a lousa, exatamente o lugar onde eu estava escrevendo.
— Quero o trabalho escrito nas normas ABNT. O trabalho
deve conter explicações sobre os genes, cromossomos e uma parte
particular, onde pode ser anotado um comentário sobre a atividade
— ele continua. — O trabalho é para o dia vinte e três de março,
uma semana para criarem está atividade. Muito fácil, não é
mesmo?! — novamente a sala começa a reclamar. — Ok! Ok!
Vamos para as duplas — ele abre a pasta com os nossos nomes e
começa a criar as duplas. — Amanda Silva e Isabella Daiany.
Bianca Alves e João Vitor. Caio Moreira e Gabriela Siqueira. Camilla
Ferraz e Davi Nunes...
Procuro o Davi com os olhos, vendo que os seus também
estão em mim. Ele sorri. Aceno em resposta.
Estou ferrada.
Davi é um garoto bonito, isso eu não posso negar. Ele é alto,
seus cabelos castanhos são baixos e tem um sorriso interessante.
Termino de escrever as anotações da lousa, no mesmo
tempo em que o professor termina de fazer as duplas. Guardo os
meus materiais e vejo o Davi em minha frente.
— Me passa o seu número, assim dá para combinarmos
sobre o trabalho — ele se senta.
— Não tenho celular.
— Sério? — ele me olha incrédulo.
— Sim!
— Pode ser pelo Facebook.
— Também não tenho.
Ele sorri, parecendo não acreditar.
— Você é misteriosa ou está fugindo? — ele diz brincalhão.
Ouço o sinal tocar. Me levanto, vendo-o fazer o mesmo.
— Talvez a primeira — digo entrando em sua brincadeira.
— Você sabe onde é a casa da dona Cida?
— A que vende bolo no pote?
— Ela mesma.
— Não sei onde é a casa dela, mas sei que é perto do
campinho.
Descemos as escadas e paramos em frente à entrada do
colégio.
— A gente combina um dia e você vai na minha casa, eu te
espero no campinho ou depois da escola...
— Vemos isso depois. Eu também não tenho computador,
mas posso fazer manuscrito.
— Eu tenho, se você conseguir escrever, posso formatar
depois.
— Ah, fechado!
— A gente se vê amanhã! — ele beija o meu rosto, me
deixando surpresa.
Isso normalmente não acontece e nunca aconteceu. Espero
que ele veja isso somente como um trabalho de biologia teórica, que
não precisa usar a prática.
Sigo o caminho da minha casa e aperto as alças da minha
mochila na minha cintura. Passo pelas ruas que são mais que
familiares, até que estou na entrada do Complexo, a minha surpresa
foi ver o Marcos falando com alguns vapores. Não tenho certeza se
ele quer que eu fale com ele, mas decido rapidamente fingir que não
o vi. Observo quando a sua escolhida está descendo com uma
garota ao seu lado. A loira não demora a agarrar o seu pescoço, em
pendurando-se nele como um chaveiro.
Meu coração aperta.
— Camilla! — pisco algumas vezes, tentando desviar da
visão dos dois.
Me viro em direção a voz que me chamou, vendo o Davi
correndo até mim.
— Ei, esqueci de te entregar — ele me entrega dois livros. —
Como você é misteriosa e não está por dentro da tecnologia, leve os
livros, vai ajudar com a pesquisa.
— Ah! Obrigada, Davi! — agradeço, sensibilizada pela sua
gentileza.
Ele sorri.
— Vou indo, ainda preciso trabalhar.
— Obrigada!
Volto para o meu caminho, até que sinto o impacto dos olhos
negros do Marcos em mim. Sua postura está ereta e ele parece
respirar rapidamente. A loira ainda continua ao seu lado, sorrindo
maliciosa, mas dá para perceber que ele não está se importando
com a presença dela.
Continuo a andar, mas desta vez atravesso a rua. Não sabia
que ao ver com outra mulher poderia me afetar desta forma.
Para me distrair, decido ir diretamente buscar o Bruno,
mesmo que não seja o horário normal. Realmente, sou muito
ingênua. O que eu estava esperando? Flores? — nada que eu já
não sabia, mas que a minha mente adora fantasiar. Talvez eu tenha
criado algo que ele não pode me dar, até porque, segunda opção
não tem direitos.
Vou atravessando as ruas, desviando das pessoas, até
chegar ao colégio que o Bruno estuda. Me aproximo e toco a
campainha, noto quando o porteiro abre o portão.
— Oi! Sou a mãe do Bruno Ferraz, da turma da professora
Elisângela. Vim buscá-lo!
— Só um instante.
Ele fecha o portão, sendo aberto alguns instantes depois pela
professora Elisângela, segurando o Bruno em seu colo.
— Procurei algum número para te chamar, mas não
encontrei. Observei ele muito quietinho e percebi que ele está com
febre — ela o me entrega, que se aconchega em meu pescoço.
— Tem algum lugar doendo? — sussurro para o Bruno.
— Aqui! — ele aponta para a garganta.
— Obrigada por ficar com ele.
— Leve ele até o postinho, a está hora deve estar vazio.
— Vou fazer isso — agradeço novamente e caminho em
direção ao posto de saúde.
— Está doendo muito? — pergunto preocupada.
Ele confirma com a sua cabeça.
O postinho não é tão longe, somente três ruas depois da
escolinha. Sigo andando e falando com o Bruno, tentando não
mencionar em nenhum momento o médico, pois sei que ele ficará
agitado se souber para onde vamos.
Olho para os lados antes de atravessar, até que reparo em
uma moto familiar — ele só pode estar me seguindo. Antes que eu
possa estar do outro lado, sua moto preta para, logo o Marcos está
pairando sobre mim.
— Que porra você pensa que está fazendo?
— Oi, pai! — meu corpo congela.
Bruno se levanta do meu pescoço e sorri para o Marcos.
Tenho que levá-lo para o médico, pois ele está começando a
delirar.
Marcos parece estar paralisado, assim como eu.
Bruno nunca teve uma presença masculina para auxiliá-lo em
muitas questões, somente eu e minha mãe esteve ao seu lado.
Talvez, a visão dos pais levando e buscando os seus filhos no
colégio esteja crescendo a carência por um pai. Não o culpo,
também sinto a falta de uma presença paterna, mas a minha mãe
com o tempo, ocupou este lugar. No entanto, há uma diferença,
desde que o meu pai morreu, não vi a minha mãe perto de outro
homem, diferente de mim, que tenho o Marcos aparecendo
constantemente. Sua cabecinha inocente deve estar criando a ideia
ou um desejo que ele está tendo.
— Me desculpa, ele está doente — observo-o, ele não parece
ter falado isso sem querer. — Vou levá-lo ao postinho.
Ele encara o menino em meus braços com uma mistura de
sentimentos que não consigo identificar, mas não demora para que
a habitual raiva que ele sente, domine todo o seu rosto.
Marcos pigarreia.
— Quero você hoje à noite.
— Não posso.
Preciso estar de olho no Bruno e começar a fazer as
atividades da escola, além disso, Mancha tem que entender que não
estou disponível para ele, como ele pensa que estou.
— Você não pode me negar!
— Você disse para nunca dizer não em sua cama, estamos
na rua, eu posso te dizer não — digo ao pensar na loira.
— Você está me testando — sua fúria está controlada, mas
sei que ele não estaria se o Bruno não estivesse aqui.
— Depois você reclama, tenho que levá-lo ao médico.
— Vou te esperar na minha casa, leve o Bruno.
— Não vou deixar a minha mãe — sou firme em minha
decisão. — Já cometi o erro de fazer isso ontem.
Ele respira fundo, passando os seus dedos por seus cabelos,
sinalizando o seu nervosismo. Percebe-se que ele não está
acostumado a receber um não. Mancha deve ter sido um garoto
mimado, que teve tudo o que deseja nas mãos.
— Vou estar de olho em você!
— Não precisa, sei me cuidar.
— Não disse que não sabe.
— Então é o que?
— Estou de olho em tudo que é relacionado a você,
principalmente nos filhos da puta que você conversa — sua irritação
está alcançando graus ainda mais altos.
— Ah! Então, você se importa? — sou irônica.
— Eu te avisei!
— Você vai ver ele perto de mim outras vezes — não tenho a
intensão de provocá-lo.
Suas mãos se fecham e seu maxilar tenciona.
— Espero que não esteja dolorida — ele muda de assunto,
deixando-me confusa. — Toda a raiva em que você está me fazendo
passar, vou descontar na sua boceta.
Tampo os ouvidos do Bruno.
— Ainda não fui duro com você.
— Sua ameaça não me parece ruim...
— Não é o que ela parece, é o que ela vai causar em você —
suas palavras são frias. — Bruno?
Meu filho ergue a sua cabeça novamente, olhando atento
para o Marcos.
— Pode continuar me chamando de pai.
Meu olhar chocado não tem forças contra o seu,
extremamente decidido.

Estou sentada em uma cadeira de plástico esperando o


Bruno ser atendido. Tem três crianças em sua frente, mas as
consultas estão sendo rápidas — até demais.
A conversa em que tive com o Marcos há alguns minutos,
estão pairando sobre os meus pensamentos, principalmente a parte
em que ele simplesmente declara que o Bruno pode o chamar de
pai. Ele está ultrapassando rapidamente alguns pontos em que se
demoram até mesmo anos para ser conquistado, e ele está fazendo
isso parecer fácil.
Não sei se o Bruno associou a ideia de que o Marcos fez uma
promessa — que nenhuma presença masculina tinha feito —, a uma
figura paterna ou se ele está aceitando a ideia de que a
aproximação do Marcos seja um desejo que ele tinha e na
cabecinha dele, está começando a ser realizado. Ainda acredito que
o Bruno não esteja preparado para entender a sua adoção e as
demais coisas que estão acontecendo.
— Bruno Ferraz! — uma senhora chama dentro de um dos
consultórios.
Vou até à sala e fecho a porta atrás de mim, me sento com o
Bruno em meu colo, ouvindo as perguntas da médica.
Bruno me olha com medo, apertando a minha mão. A médica
pediu para que eu o colocasse em uma maca, para que ela pudesse
examiná-lo. Ela perguntava carinhosamente onde ele sente dor.
— Parece ser uma simples inflamação na garganta. Vou
passar um remedinho e você vai conseguir pegar na farmácia ao
lado.
Após pegar a receita, agradeço e vou até à farmácia. Pego o
remédio gratuito e vou para casa. Quando chego, minha mãe está
preocupada — esta é a parte ruim de não ter um celular. Explico
toda a situação para ela, tentando deixá-la calma.
Levo o Bruno para um banho e dou o seu remédio. Ligo a
televisão e deixo a minha mãe olhando-o. Me movo para a cozinha
e pego no congelador as últimas salsichas no freezer. Faço arroz e
a salsicha com molho. Está é a última coisa que temos. Chamo a
minha mãe e o Bruno. Sentamos ao redor da pequena mesa e
comemos.
Percebo que o remédio deixou o Bruno sonolento. Os
remédios fortes da minha mãe também causam este efeito nela,
então, peço para que ela vá dormir com ele, enquanto limpo a casa.
Lavo algumas roupas, as louças na pia, limpo o chão e
guardo algumas coisas que estão fora do seu lugar. Quando
termino, tomo um banho e uso os livros que o Davi me emprestou.
Faço algumas anotações para que eu possa estruturar o trabalho e
copio algumas partes importantes do livro. Algumas horas depois,
Bruno está em meus pés brincando, enquanto continuo lendo.

São dezenove horas, estamos os três deitados na mesma


cama, assistindo um programa aleatório, até que ouço batidas na
porta. Penso que possa ser o Marcos, mas deixei claro que não iria
para a casa dele.
Ando até a janela e constato que estou errada, estou sempre
subestimando este homem. Observo a minha mãe que está me
olhando e vou até à porta, com o Bruno ao meu lado, parecendo
ansioso.
— Eu disse que não vou! — digo, assim que o vejo parado
em minha porta.
— Não recebo ordens — ele me olha de cima a baixo. — Não
vai me deixar entrar?
— Não.
— Pai! — sinto as pequenas mãos do Bruno agarrarem a
minha perna.
Sinto que o meu coração para de funcionar por alguns
instantes. Bruno é pequeno e inocente demais para entender o que
está acontecendo, mas ele não devia ter tanta confiança em um
desconhecido.
— Ele não é o seu pai, Bruno! — minhas palavras saem
firmes.
Não posso deixar que ele continue nesta ilusão, se o Marcos
desaparecer ou se cansar do que quer que ele esteja fazendo, não
sei como vou reagir diante do Bruno. Não vou saber como explicar.
— Isso não é algo que você possa escolher, Camilla.
— Mas é algo que posso evitar.
— Não exatamente.
Respiro fundo.
— O que você quer? — pergunto cansada.
— Neste momento, quero entrar.
Dou espaço com o Bruno ainda grudado em mim.
— Sinta-se à vontade — o sarcasmo escorre pelos meus
lábios.
Como se fosse o dono, ele entra e se senta. Fecho a porta e
reviro os olhos. Ele pode ser um cara extremamente difícil, folgado e
autoritário. Minha mãe aparece, olhando para o Marcos assustada,
logo encarando-me. Ela não deve estar entendendo o porquê de um
traficante estar sentado em nossa mesa.
— Esse é o Marcos, mãe — digo, depois de um tempo.
— É o meu pai, vó! — meu menino fala animado.
O que o Marcos está fazendo?!
— O seu pai? — minha mãe devolve a resposta, incrédula.
— Ele está acreditando nesta ideia — murmuro.
— Dona Joana... — viro para o Marcos rapidamente. Não me
lembro de ter mencionado o nome da minha mãe em algum
momento com ele. — Sei que não causo uma boa impressão, não
que eu me importe com isso, mas se o Bruno quer que eu seja um
pai para ele, não me importo em ser.
— Você vai machucar o meu neto! — ela não se altera, mas
as suas palavras são duras.
— Sei definir e redefinir, se necessário, as pessoas que vou
machucar. E, pode acreditar, o Bruno não é um deles — ele pega o
seu celular. — Bruno, vem cá!
Marcos é rude. As suas palavras são usadas de uma forma
que não haja questionamentos, ele diz como se não precisasse se
explicar ou da opinião de ninguém. Ele fala o que quer, quando quer
e não se importa com o que isso pode causar.
Confortável com o chamado do Mancha, Bruno vai alegre até
ele.
— Qual o sabor de pizza que você gosta? — ele está
comprando o meu filho?
Bruno não sabe o que responder, então me olha, como se eu
pudesse traduzir.
— Ele nunca comeu pizza.
Assim que respondo, parece até que fomos congelados no
tempo. Marcos se mantém quieto, porém, vejo quando uma
máscara sombria toma toda a extensão do seu rosto. As veias dos
seus braços ficam visíveis com a força dos seus músculos tensos.
Ele continua parado por alguns instantes, respirando fundo, até que
observo ele se levantar e olhar para mim, seriamente. Ele desvia da
minha mãe, movendo-se diretamente para a geladeira antiga. Ele
abre a geladeira e os armários. A cada constatação de algo que
está em sua cabeça, um xingamento ecoa pela nossa pequena
cozinha.
— Filho da puta! — ele xinga novamente.
Sua atitude é estranha e, pela primeira vez, me causa medo.
Ele não parece estar pensando direito. Suas mãos são fortes de
encontro aos móveis antigos, abrindo e fechando as portas
rudemente.
— O que ele está fazendo, Camilla? — minha mãe pergunta
ao meu lado, nervosa.
Consigo sair do meu transe e observo o tom nervoso das
palavras da minha mãe.
— Minha mãe não pode ficar nervosa. Por favor, pare! —
grito.
Ao me ouvir, ele para. Marcos olha para mim e tudo o que
vejo é raiva. Suas narinas estão dilatando rapidamente, enquanto
uma veia em sua testa ameaça saltar. Ele parece um touro, prestes
a atacar alguém.
— Precisava ter certeza — ele é simples com as suas
palavras, não dando espaço para questionamentos. — Escolhe o
que você quiser e a senhora também! — ele aponta para a minha
mãe.
Ele empurra os seus cabelos para trás, respirando fundo,
tentando se acalmar. O que ele fala não combina com as suas
atitudes e a sua repentina alteração.
— Não vou aceitar nada seu! — a mulher ao meu lado é
decidida.
— A senhora não está em posição de escolha.
— Não fale assim com a minha mãe.
Como se nada tivesse acontecido, ele se senta novamente e
pega o seu celular.
— Vamos jantar pizza. Escolhe logo, Camilla! — seus olhos
têm um aviso encoberto.
— Se faz tanta questão, escolha você! — respondo,
orgulhosa.
— A senhora não vai se pronunciar? — mesmo ele se
negando, ele parece se importar com o que queremos.
Sério que ele está nervoso por causa de uma pizza?
— Não estou fazendo um favor, estou fazendo porque quero
— a sinceridade é visível e a forma em que ele não se importa com
o que falam dele, também é perceptível.
— Se não é um favor, com certeza quer algo em troca —
minha mãe se pronuncia, desconfiada.
— Não divido, muito menos troco o que é meu — sua cabeça
vira em minha direção.
Finjo que não entendi.
Marcos dá um ponto final na rápida conversa e digita algo em
seu celular. Ele não parece constrangido com nada que aconteceu
ou se sentiu ofendido com as acusações da minha mãe. Por outro
lado, minha mãe está confusa, sei o que ela deve estar pensando.
Marcos não parece e não tem atitudes de um traficante.
Observo quando ela puxa a cadeira e se senta em frente a
ele. Ela parece determinada.
— Criei a minha filha sozinha e tentei ser uma boa mãe.
Ensinei tudo o que pude, fiz o que pude. Não criei a Camilla para
depender de homem algum, mas sempre quis que ela pudesse
conhecer um homem bom, com valores e que cuidasse dela. Quero
que a Camilla tenha amor em sua vida... — minha mãe fala como se
eu não estivesse aqui.
— Não sou um homem bom, mesmo que eu tente ser. Não
tenho os valores que a senhora gostaria que este suposto homem
tenha. Não trabalho seis vezes por semana para no final do mês
receber um salário-mínimo honestamente. Não sou decente ou
digno da sua filha, mas eu cumpro com as minhas promessas.
Sigo sem reação.
O meu coração acelerado e o turbilhão de sentimentos que
estão se tornando uma bola em meu estômago, não estão
colaborando com as sensações relacionadas ao Marcos. Ele está
cavando um espaço na minha vida, muito rápido.
— ... mas não posso oferecer exclusividade.
— Você não pode oferecer isso a ela, mas você quer
exclusividade? — o orgulho emana do meu corpo.
Minha mãe é incrível!
— Espero que a senhora entenda que vou fazer de tudo pela
sua filha.
— Isso não me parece justo — ela volta para o outro assunto.
— Não é o que é justo, é o que eu quero.
— Você é muito prepotente!
— A senhora não é a primeira que me fala isso — sua voz é
irônica.
Minha mãe ia rebater, mas ele se levanta e vai até à porta.
Ele demora alguns minutos, voltando com três caixas e um
refrigerante em suas mãos. Ele deixa em cima da mesa e pega o
Bruno em seu colo. Ele não se importa, ele somente faz. Marcos
não dá importância para o que pensam dele, para o que falam ou
para o que é certo ou errado, ele somente vai e faz o que bem
entende. Como neste momento, é perceptível o cuidado em que ele
tem com o Bruno e a forma em que ele dá relevância para o que ele
quer.
Paro por alguns segundos para pensar sobre isso. Marcos
não é assim somente com o Bruno, mas assim que ele foi
anunciado como o novo dono do lugar, nenhuma criança esteve no
tráfico, nem mesmo perto de algum vapor.
— Senta — ele puxa uma cadeira e posiciona ao seu lado,
apontando para mim.
Dona Joana encara este homem mandão como se ele fosse
a coisa mais entranha desse mundo. Mancha não é o tipo de
homem que a minha mãe esperava que fosse.
— Gostaria de continuar com a nossa conversa, mas estou
com fome. E, não querendo ser invasivo — ele não está ligando
nenhum pouco para isso. — Sei que vocês também estão.
Não poderia dizer que ele está errado. Procuro os olhos da
minha mãe e silenciosamente, sinalizo para que ela coma. Vou até o
armário e pego alguns pratos, copos e talheres, posicionando em
cima da mesa. Abro as caixas e vejo uma pizza de frango com
catupiri, portuguesa e uma doce. No mesmo instante, olho para o
Bruno.
— Olha, formiguinha. Chocolate! — seu sorriso com
pequenos dentinhos cresce.
Instintivamente, sorrio para o Marcos em agradecimento.
Fazer o meu filho feliz, é igual a me fazer feliz. Ele em resposta, fica
parado, somente me analisando. Parece que toda a conversa e a
minha incredulidade sumiu e tudo o que aconteceu a momentos
atrás, foi substituído pela imagem em que estou vendo agora.
Nós nos servimos e comemos. Bruno sorria a todo momento,
não parecendo o menino doentinho de mais cedo, talvez a presença
do Marcos esteja tendo efeitos mais que inusitados, que não estão
deixando somente eu abalada.
Minha mãe continua séria, não perdendo um movimento do
Marcos, enquanto ele parece interessado somente em sua comida e
nas palavras contorcidas do menino em seu colo. Ele não sorri ou
tenta manter uma conversa, ele somente come, ouve e parece estar
satisfeito com isso.
— A quanto tempo não tem comida nesta casa? — ele diz,
ainda com os seus olhos em sua pizza.
Continuamos em silêncio.
— Estou esperando...
— Desde que o meu pai morreu vem sendo difícil.
Ele sobe os seus olhos para a minha mãe.
— Entendo a sua preocupação.
O olhar da minha mãe, se pudesse, estaria o fritando, mas
após ouvi-lo, percebeu que isso era um ponto final para o seu olhar
acusador. Mancha não parece ser do tipo que desiste fácil e a minha
mãe está conseguindo entender isso.
Quando todos estão satisfeitos, levo os utensílios sujos para
a pia e começo a lavar. Uma forma de tentar me distrair e não
pensar no homem que está logo atrás de mim, mas não funciona,
pois sinto a sua presença em minhas costas.
— Espero que toda está conversa tenha feito você entender
que não estou brincando. Estou parecendo um cara compreensivo,
mas posso virar este céu em inferno em segundos.
— O que seria o céu para você? — tento esconder os
arrepios que a sua voz me causa e as sensações de perigo.
— Vou te mostrar em outro momento — sinto o seu nariz
cheirar os meus cabelos e pescoço. — Bruno parece melhor,
amanhã você não terá uma desculpa.
— Você não sabe o quanto posso ser criativa.
— Você pode usar ela, mas não para se negar a mim — algo
duro cutuca a minha bunda. — A sua família não está sozinha. Eu
protejo a sua casa.
Ele se distancia.
— Não se preocupe, não vou machucar a sua filha — me viro
em tempo de vê-lo sussurrar algo que somente a minha mãe pode
escutar.
Ela parece surpresa.
Ele se volta para mim, olhando-me por alguns segundos. Me
sinto queimando, talvez ficando levemente excitada. Marcos se
despede do Bruno e vai embora. Deixando-me aqui, totalmente sem
chão.
8
HUMILHAÇÃO
CAMILLA FERRAZ
Sexta-feira, 30 de março de 2018

Se passaram alguns dias e durante esse tempo, não vi o Mancha.


Após o dia em que nos vimos em minha casa, ele simplesmente
desapareceu. Com o seu sumiço, Gizele, a eleita à fiel, está em sua
posição de mulher do dono do Morro, recebendo bajulações e
colocando pessoas abaixo dos seus pés.
Com a ausência do Marcos, Gizele está se achando no
direito de comandar, de fazer e falar o que quer, sem pensar que
pode haver uma consequência, pois o seu namorado — ou seja lá o
que eles sejam — é quem comanda o chão em que estamos
pisando e ela, como a sua mulher, está mais do que em seu direito.
Neste tempo, minha mãe teve uma recaída, mas depois de
algumas medicações, seu estado se manteve instável. Acredito que
os acontecimentos recentes tenham afetado o seu emocional,
causando estresse e agravando a sua saúde.
Somente se passou algumas poucas semanas, mas foi
possível perceber as mudanças que houve em minha vida.
Ultimamente venho recebendo uma atenção indesejada e
que está enfurecendo a mulher do Marcos. O fato de eu ter sido a
expulsa causou estranhamento e curiosidade em muitas pessoas.
Não sendo o bastante, viram quando o Mancha me levou em sua
moto, rendendo em mais conversas. Embora consiga entender o
porquê da sua raiva, tenho plena consciência de que não tenho
culpa, porém as pessoas não seguem o meu raciocínio, não sabem
o que realmente acontece.
Ouço frases ofensivas, xingamentos, palavras maldosas,
olhares odiosos, mas não passam disso. Já tentaram me bater, mas
não conseguiram tocar em um fio do meu cabelo, pois sempre vejo
o Coringa próximo da minha casa ou para onde eu vá, ele está por
perto.
Neste período, aconteceu algumas coisas que tem acalmado
as minhas preocupações, uma delas ocorreu no dia seguinte em
que o Marcos veio à minha casa. Coringa me entregou uma caixa
enorme e uma quantidade absurda em dinheiro.
Coringa não é assustador como o Marcos, ele parece ser
calmo e centrado, mas a cicatriz em seu rosto é o símbolo de que
algo nada bom aconteceu com ele. O vapor parece receber ordens
e as segue religiosamente, não disfarçando que está me vigiando.
Ele somente faz o que lhe é mandando e se mantem quieto. Coringa
se encaixa perfeitamente como amigo do Mancha, eles não gostam
de atenção, muito menos bajulações. Os dois estão sempre
concentrados e ligados a tudo ao redor, como se estivessem
esperando por algo.
Quando o Coringa me entregou a caixa de papelão, pensei
em diversas coisas e situações para que ele estivesse fazendo isso.
Não tinha dúvidas que era mais uma das ações inusitadas do
Marcos. Lembro-me que a caixa era pesada, fiquei com medo de
levá-la para dentro. Contudo, após o dia em que dei a minha
virgindade para aquele homem, soube que as coisas iriam mudar.
Reparei no quanto os vizinhos me olhavam curiosos, loucos
para saber o que estava acontecendo em minha casa, mas eu não
podia dar mais para que eles falassem.
"— O que é isso? — Bruno me rodeava ao ver a caixa que eu
empurrava para dentro com dificuldade.
— Eu não sei, meu amor.
— O que é isso, filha? — mamãe faz a mesma pergunta que
o Bruno, após sair do quarto.
— O Coringa que entregou — encaro a caixa. — Ele também
me deu dinheiro.
— Você não pode aceitar! E se ele vier te cobrar? Devolva,
Camilla!
Penso que o comentário da minha mãe tem fundamento,
então decido devolvê-lo.
— Abre, mãe! — Bruno tentava puxar com as suas pequenas
mãozinhas as abas da caixa de papelão, mas ele não tinha forças
para abri-la.
O afastei carinhosamente e tomei o seu lugar, abrindo-a.
Estava preparada para o que viesse do Marcos, mas não pensei
que receberia uma caixa repleta de comida".
Naquele dia eu chorei, muito. Não sabia dizer exatamente o
motivo das minhas lágrimas, mas não tive controle sobre elas,
somente deixei com que caíssem.
Marcos é uma caixa de surpresas, mas é aquela caixa sem
avisos. Nunca vou saber se ela será boa ou ruim.
Respiro fundo e encaro a minha realidade.
Hoje é sexta-feira, exatamente cinco horas da manhã.
Me visto para mais um dia de aula. Calça jeans gasta,
sapatilhas e a camisa do uniforme. Faço um coque em meus
cabelos e vou atrás do Bruno, como em todas as manhãs. Embora
os procedimentos tenham sido normais, há uma diferença. Pela
primeira vez, em muito tempo, os meus armários estão cheios e o
Bruno pode escolher o que quer comer.
Depois de alimentados, ponho os pequenos sapatos no
Bruno, penduro as nossas mochilas em meus ombros e saio.
Bruno é um pequeno rapazinho falante, não deixando que o
silêncio permaneça por muito tempo. Ele fala sobre os seus amigos,
sobre o que irá fazer na escolinha, contando tudo detalhadamente.
Suas histórias alegres me deixam aérea, fazendo com que o
caminho se torne ainda menor. Ele continua falando e fazendo
gestos, até que percebo que estamos próximos.
Atravesso a rua e dobro a esquina. Geralmente há muitos
vapores em frente aos comércios, mas pude reconhecer
perfeitamente o dono daquelas tatuagens negras. Meu corpo reage
rapidamente, me deixando frustrada com o poder que ele tem sobre
mim. Ele está de costas e ao seu lado está o Coringa.
O meu coração acelera, meus pensamentos se embolam e a
voz do Bruno some por um tempo. A sensação que tenho depois de
tudo o que aconteceu é completamente estranha. Gostei de vê-lo,
mas me sinto uma idiota por isso. Troquei uma intimidade que
jamais pensei em ter com ele ou com ninguém. As portas da minha
casa foram abertas para ele, além disso, deixou que o meu filho
nutrisse sentimentos pela imagem que ele criou. Depois de tudo,
some e me mostra onde definitivamente é o meu lugar.
Balanço a minha cabeça tentando focar nas palavras do
Bruno, mas é em vão. Volto novamente o meu olhar para onde ele
está, percebendo que um entre aqueles cinco homens não me é
estranho.
Com esforço, começo a andar, mas não demora muito para
que eu escute uma voz conhecida me chamando. Me viro e constato
que estava certa. Os cinco homens me encaram, mas há um entre
eles que não parece estar feliz em me ver, pelo menos é o que ele
está fazendo parecer. Finjo que não o vi e reparo na pessoa em que
me chamou. É instantâneo o sorriso que brota em meus lábios ao
vê-lo.
O rapaz loiro, alto e magro é muito bonito e um dos meus
amigos mais antigos. Pedro é encantador, já estudamos juntos e os
nossos pais eram amigos, mas depois de um tempo, ele se tornou
órfão e, então nunca mais o vi. Analisando com quem ele está é
notável que ele não fez uma boa escolha. Contudo, quem sou eu
para dizer algo?
Continuo sorrindo até que ele esteja em minha frente. Assim
como eu, ele sorri e me abraça apertado.
— Senti a tua falta, ruiva.
— Eu também, Pê.
Escuto uma voz xingar.
Disfarçadamente, reparo no homem ao fundo. Agora, ele está
diretamente virado para nós, parecendo estar prestes a nos atacar.
Questiono-me se as atitudes do Mancha são verdadeiras ou se ele
está fazendo um teatro.
Reviro os meus olhos, dirigindo a minha atenção para o
Pedro.
— Tudo suave? — ele analisa-me de cima a baixo.
— Sim e você?
— Estou daquele jeito — dou uma risada sem graça, pois não
sei o que significa exatamente.
Vou respondê-lo, quando vejo o Coringa se aproximando
rapidamente. Ele está prestes a correr, quando volto a olhar para o
Marcos. Ele está em um estado nítido de ira.
— Você tem um minuto para se afastar dela ou não vou
poder fazer nada pelo seu pescoço — pela primeira vez, vejo que o
Coringa está nervoso.
— O que eu fiz? — Pedro questiona confuso.
— Não é o que fez, é o que vão fazer, se você não for para a
porra do lugar onde você estava!
— Só estou falando com a minha amiga, cara. Não estou
fazendo nada demais!
— Vai para o seu lugar!
— Vai, Pedro! Foi muito bom te ver — lembro do aviso que o
Marcos me deu.
Não quero que ele se machuque, principalmente por minha
culpa.
— Você parece ter um imã para problemas! — Coringa
murmura e sai de encontro ao grupinho de traficantes.
Tento não ficar chocada com as suas palavras, mas é
embaraçoso receber um ataque como esse, sendo que somente
estava falando com um amigo que não vejo a muito tempo.
Eu ia me virar para poder seguir o meu caminho por outra
rua, quando os meus olhos pousam nele mais uma vez. Ele não
olha para mim como antes, mas o seu maxilar está travado,
despejando ordens para os homens ao seu redor.
É olhando para ele que me lembro de algo.
Nenhum se certificou se eu estava indo embora, muito menos
perceberam que estou indo em direção a eles, mas quando chego
perto o suficiente, todos os cinco me encaram. Coringa balança a
sua cabeça em um sinal claro de que sou o que ele disse a minutos
antes, enquanto a minha atenção é dirigida diretamente para o
Marcos.
Bruno chama-o de pai, sorrindo. Ele não perde a postura,
mas a sua feição muda quando ele o escuta. Fico em silêncio e
puxo o dinheiro do meu bolso traseiro, as notas que o Coringa tinha
me entregado.
— Eu não preciso disso — abro as mãos do Coringa, mas
continuo olhando-o. — Não quero o seu dinheiro!
Ele não deu o dinheiro em minha mão e não seria das minhas
mãos que ele receberia as notas de volta. Sei o quanto preciso, mas
ele não pode achar que isso permite o controle da minha vida ou
seja a sua moeda de chantagem. Sei que fui ousada e que estou
desafiando um bandido, mas quero que ele veja que não me importo
e muito menos me submeto a dinheiro algum. Quero que ele
entenda que eu sei dos meus valores e que nada e nem ninguém irá
me comprar.

Horas mais tarde, Marcos me mostrou a sua outra face,


causada pela consequência dos meus atos. Ele disse algumas
vezes que estava me avisando, mas achei que somente eram
palavras. Não sei o que aconteceu para que ele sumisse ou o
porquê me escolheu para sustentar as suas oscilações de humor,
mas entendi que o bandido tinha assumido o seu lugar.
Estava indo devolver os livros para o Davi quando eles me
viram.
Um grupo de vapores e mulheres estavam no boteco do seu
Joaquim e o Marcos era um dos que estavam lá. Ele parecia estar
de passagem, ainda assim, estava lá. Tentei passar despercebida,
mas como em todas as vezes, não funciona. Mancha veio em minha
direção como um touro ao ver o vermelho e a sua mulher veio logo
atrás.
Ele encontrou o momento de me mostrar o que realmente
sou, ela viu a oportunidade que tanto queria de me humilhar.
Mancha me parou e, neste momento, me faz ser o entretenimento
para tudo o que sempre tentei fugir.
— Objetos são comprados, usados e descartados — ele fala
duramente, com a Gizele ao seu lado. — Eu comprei e paguei à
vista, mas no fundo sabe que o sofrimento será a prazo.
Continuo parada, vendo-o falar, enquanto a sua escolhida
sorri cinicamente.
— Você sabe quem eu sempre quis e sabe nitidamente quem
é somente mais uma — Marcos continua, não se importando com as
lágrimas que transbordam em meus olhos. — Vou te destruir e no
final, vai perceber que ninguém vai chorar por você, porque na
verdade nunca ninguém te amou.
— Ela entendeu, bebê. Vamos! — Gizele gargalha, se
sentindo satisfeita com o que está vendo. — Ela sabe que é
somente mais uma vadia que conseguiu chamar a sua atenção, mas
eu te perdoo.
— Ela não entendeu, ainda — ele diz, olhando-me.
— Entendi, sim! — enxugo as lágrimas que descem sem
parar.
— Não, ela não entendeu! — ele é firme.
— Não importa se entendeu ou não. Ela ficando longe me
deixa satisfeita.
Encaro a Gizele friamente, tentando engolir a minha fraqueza
exposta.
— Se quer ficar realmente satisfeita, trate de manter o
seu bebê longe de mim, pois não sou eu que o procuro.
Ela olha-o de relance, talvez tentando constar se estou
dizendo a verdade, mas a raiva que ele está emanando deve ter
sido a resposta que ela queria.
— Você sabe o que acontece, garota. Se presa pelos seus
cabelos e a sua vida, fique longe!
— Estou longe, sempre estive.
— Esteja mais! — os gritos histéricos da Gizele estão
fazendo com que as pessoas se aproximem e tentem arrancar um
pedaço da conversa.
Sinto que não tenho mais nada para falar e que a crise
histérica desta mulher pode piorar, então prefiro ignorar ela e o
Marcos, que parece ter perdido a língua e o movimento dos seus
olhos, pois estão atentos em cada reação minha.
— Obrigada por entrar em minha vida, principalmente por
magoar o meu filho — digo sarcástica, ignorando as frases e
xingamentos da Gizele.
Desvio do Marcos e sigo andando, mas não em tempo de
perder os xingamentos sendo desferidos no rosto da Gizele.
9

APEGO
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 1 de abril de 2018

Hoje é páscoa, uma das minhas datas preferidas depois do Natal.


Ainda é cedo, mas já estou de pé, pois preciso deixar algumas
coisas organizadas antes de irmos para a escola do Bruno.
A escolinha do Bruno preparou uma pequena festa para
comemorar a data. Meu pequeno está ansioso por isso, pergunta a
cada um minuto se está na hora de ir. Pelo que estava escrito em
sua agenda, teria até mesmo um teatro com as crianças, muitos
doces e música.
Meu filho, neste tempo, vem me perguntando sobre o
Marcos, mas como eu previa, ainda não sei como dizer o que está
acontecendo. Sinto por isso, mas como dizer a ele que pela
segunda vez, ele perdeu alguém que tinha grande influência em sua
vida, no caso do Marcos, por pouco tempo, mas que acredito ter
causado um estrago ainda maior.
Termino de organizar a casa e pego o recheio para o bolo
que deixei pronto na geladeira. Na agenda estava escrito que cada
criança devia levar um prato, então, ontem à noite, fiz um bolo de
chocolate e o recheio de brigadeiro, para que hoje eu pudesse
somente montar.
Após finalizar com granulado, deixo o bolo na geladeira e
lavo o que sujei.
— Bruno! Vai tomar banho! — grito da cozinha.
Ao me ouvir, ele corre para o banheiro, tirando as suas
roupas depressa. Minha mãe ri, vendo a sua ansiedade.
Marcos mesmo depois de ter me humilhado e deixado que
aquela mulher falasse o que quisesse, continuou mandando comida
e dinheiro. Ele não apareceu e, sinceramente, não quero vê-lo.
Mancha continuou mandando o Coringa aqui, que para a minha
surpresa, começou a me olhar com pena.
Gostaria de saber o porquê de ele continuar fazendo isso,
mas enquanto não sei, continuo a aceitar as caixas de comida, pois
não sou somente eu que preciso. O dinheiro deixo guardado, pois o
Coringa não o recebia de volta e eu não estava com paciência,
muito menos vontade de olhar para o Marcos. Porém, hoje é um dia
especial e achei que o Mancha devia isso para o Bruno.
Ontem, pela manhã, dei uma quantia para a Fernanda
comprar uma roupa bonita para o Bruno e a outra parte pedi que
comprasse o sapato que ela estava namorando a muito tempo, mas
faltava dinheiro. De imediato, ela não quis aceitar, mas insisti.
Quando escureceu, Fernanda bateu em minha porta,
trazendo bermudas, blusas e um par de tênis. Bruno quando viu,
quis usar no mesmo instante, mas o convencemos a usar hoje.
Fernanda, por outro lado, estava mais contida, mas o brilho em seus
olhos transbordavam ao me mostrar o sapato rosa. Foi ali, naquele
momento, que percebi que este dinheiro que ele sempre manda
pode não só me ajudar, mas trazer alegria para a vida de muita
gente.
Termino de dar o banho no Bruno e o visto. Arrumo os seus
cabelos, deixando-os volumosos e com vários cachinhos. Ele está
ainda mais feliz, se possível.
Estou sentada na cama junto com ele, esperando a minha
mãe terminar o seu banho, para que eu possa ir. Enquanto espero,
observo o Bruno quietinho, como se não quisesse que nada
acontecesse com a sua roupa nova.
Minutos depois, estamos todos prontos. Estou segurando o
bolo e a minha mãe segura a mão do Bruno. Caminhamos em
passos lentos para acompanhar a dona Joana e o Bruno parece
entender, pois olha para todos os lados e diz quando ela pode
atravessar ou desviar de algo.
— Boa tarde, Francisco! — cumprimento o porteiro da escola,
assim que entramos.
As paredes estão decoradas com desenhos de coelhos e
cenouras, Bruno ao lado da minha mãe aponta o desenho que ele
fez, fazendo-a rir.
Vejo a mesa com as comidas e bebidas e levo o bolo até lá,
voltando em seguida para junto da minha mãe e o meu filho.
Procuramos um lugar para nos sentar. Logo a professora leva o
Bruno, para que ele possa participar do teatro.
Minha mãe comenta sobre a decoração e a alegria das
crianças, até que sinto alguém se sentar ao meu lado. Por alguma
razão, meu corpo reage vergonhosamente, então, sem me virar, sei
quem está na cadeira ao lado. Minha mãe percebe e se vira. Não
contei para ela as coisas que ele me disse e nem pretendo, mas é
difícil fingir que está tudo bem depois de tudo.
— O que você está fazendo aqui? — tento não me alterar.
— Fiquei lisonjeado com o seu comportamento, mas não vou
abandonar o Bruno — ele fala simples, não me olhando. — Nem
você.
— Você não merece ele! — a revolta enche as minhas
palavras.
— Não discordo, mas vou ficar — ele diz convicto.
Minha mãe, por alguma razão, fica quieta. Percebo até que
finge não estar vendo o que está acontecendo.
— Como você pode ser tão cretino? — digo desacreditada.
— Essa, realmente, é uma palavra nova. Você nunca me
chamou de cretino — ele diz sério, mas não há vestígios de raiva ou
qualquer derivado.
— Quando você exige, tenho que acatar com o que quer,
mas quando falo seriamente sobre algo, você zomba como se não
fosse nada!
— Você acata alguma das minhas exigências?
— Não!
— Então, você respondeu a sua pergunta.
Vejo que não tem conversa e que ele não entende o que fez.
Então, decido ignorá-lo.
Não é difícil de perceber que tem pessoas observando o
Marcos ao meu lado e sei que isso pode gerar uma enxurrada de
ofensas ainda piores, se caso a Gizele souber.
Não demora muito para que o pequeno teatro comece. As
crianças aparecem com os seus rostos pintados e orelhinhas de
coelho. Risadas e flashes se espalham pelo pátio enquanto as
crianças tentam seguir o que a professora diz.
— Não vai tirar nenhuma foto do Bruno? — ele diz de
repente, depois de alguns minutos em silêncio.
— Qual é o seu problema? — questiono, percebendo que
não consigo ignorá-lo.
— Não tem nenhum problema — ele é extremamente sério.
Aplausos explodem por todos os lados, tirando o meu foco do
Marcos. As crianças pulam e gritam por seus pais, recebendo uma
cestinha de doces e um ovo de chocolate.
Bruno correndo em minha direção, mas o seu sorriso cresce
ao ver o Marcos. Ele grita por ele e pula em seus braços.
Meu coração despenca.
Marcos o pega, segura-o em seus grandes braços e
realmente parece ser o seu pai. O olhar dele muda, mesmo que os
seus músculos continuem tensos. Ele gosta do Bruno, isso eu não
posso negar.
Depois dos comes e bebes, fomos embora. Marcos foi para
um lado e nós para o outro. Nada surpreendente.
Após chegar em casa, parece que tudo desmorona em minha
cabeça e, então, percebo o quanto estou ferida e machucada com
tudo o que vem acontecendo. Pareço estar anestesiada, pois já
sabia que isso viria a acontecer, mas estava me negando a
acreditar.
O dia foi substituído pelas nuvens escuras e a lua. A tarde
passou rápido e, depois de um banho, Bruno e mamãe foram
dormir. E eu, continuo acordada, pensando em mil e uma coisas que
não vão me ajudar em nada.
Me levanto e vou até a cozinha, encho um copo com água e
bebo, até que um grito para em minha garganta. Como um
fantasma, Marcos está sentando na cadeira da minha cozinha. Seus
olhos são escuros, porém, brilhantes.
— Como você entrou aqui? — digo nervosa, tentando não
falar alto.
— O mínimo que eu tenho que ter, é a chave da casa da
minha mulher — Marcos soa brando, não se importando com a
minha cara de chocada.
— Você pegou a chave da casa errada — sibilo.
— Não é o que acabou de acontecer. Estou dentro, não
estou?! Então é a casa certa — seu tom irônico não me atinge
— Você é muito cara de pau!
— Por que exatamente, gatinha? — olho de relance para
aquele brutamonte que está chegando perto.
— Você me irrita! Você aparece, age como se fosse o dono
de tudo, pensa que pode estar à frente até mesmo do Bruno.
Depois, some e volta ameaçando os meus amigos e a mim! E ainda
tem a coragem de fingir que nada aconteceu!
— Não vejo desta forma.
— Eu não me importo com quem você seja ou com o que
faça comigo, mas ele é o meu filho. Você não pode agir desta forma!
Ele não é descartável, Marcos! Ele é uma criança que está se
afeiçoando a você, enquanto você brinca de casinha e humilha a
mãe dele!
— Eu não sou o que você pensa — pela primeira vez, Marcos
parece estar calmo.
— Não sei se me importo com isso também.
Ele não me responde, mas me encurrala em seus braços e a
porta da geladeira. Bruno tem medo do escuro, então sempre deixo
a luz do banheiro acesa, e por causa desta luz, consigo visualizar o
olhar atento do Marcos em mim.
Ele é rápido, até que eu perceba que os seus lábios estão
contra os meus. Eles sugam qualquer questionário que eu tenha
para fazer. Arrancam de mim pensamentos e qualquer requisito de
uma possível negação.
Me sinto extremamente idiota ao ceder.
Ele não me merece.
— Eu adoro isso — abro os meus olhos, assim que a sua
boca desce para o meu pescoço.
— Você adora me usar!
— Você quem está se diminuindo, pois eu nunca disse isso.
— Suas atitudes não precisam de palavras.
— Isso é o suficiente para você?
Por alguns segundos acabo não entendendo, mas quando os
seus dedos sobem o meu vestido e entram em minha calcinha, é
quando eu não consigo lembrar nem mesmo qual é a primeira letra
do meu nome.
Seus dedos são experientes. Eles se movem pelo meu
clitóris, indo até a entrada e voltando. Sua boca desce do meu
pescoço até os meus seios, onde ele abaixou o vestido e chupa o
bico, deixando-o ainda mais vermelho.
— Você me deixou viciado, garota.
Ele suga forte os meus seios, usando dois dedos dentro de
mim, deixando-me, se possível, ainda mais molhada.
— Cala a boca — sussurro, não querendo que ninguém
acorde, muito menos ouvir as suas mentiras.
A sua mão agarra o meu pescoço, pressionando-o
levemente, mas sei que ele pode fazer mais. Tampo a minha boca
para não gemer alto, enquanto as minhas pernas se abrem para que
ele tenha mais acesso. Percebendo o que fiz, aprofunda ainda mais
os seus dedos, alcançando um ponto extremamente prazeroso.
Ele aumenta o movimento do seu toque em mim, enviando
sensações e arrepios para todos os lados. A minha cabeça rola para
trás. Respiro fundo e tento normalizar a minha pulsação acelerada.
Ele me segura firme, com toques duros e ágeis, até que gozo em
seus dedos.
— Não se afaste de mim ou pense que vou abandonar o
Bruno. Não deixaria que ele me chamasse de pai, para depois
abandoná-lo — ele fala baixo entre os meus seios. — Pare de achar
que pode fugir de mim.
— Nunca fugi, mas não quero ser o seu brinquedo!
— Brinquedos não falam, Camilla. E você fala até demais! —
ele puxa os seus dedos da minha calcinha e os coloca em sua
boca.
Seus olhos gritam luxuria e fome. Ele agarra os meus
quadris, deixando nossos rostos próximos.
— Gostaria que fosse diferente, mas a vida não é justa. Eu te
encontrei e não vou deixar que saia da minha vida. Já perdi uma
vez, não vou deixar que aconteça novamente — com estas
palavras, ele se afasta e vai embora, enquanto continuo respirando
profundamente.
Pisco várias vezes, até que consigo encontrar o meu
raciocínio.
O que ele está fazendo comigo?
Balanço a minha cabeça, até que visualizo em cima da mesa
algo laminado. Me aproximo e constato que se trata de cinco ovos
de Páscoa e um cartão.
"Estava errado quando pensei que não podia errar".

10
VAZIO
MARCOS HENRIQUE
Domingo, 18 de março de 2018
Dizem que a vingança é para os fracos e que é um prato que se
come frio. Talvez, em algum momento da minha vida, tenha
acreditado em alguma destas frases ou tentei.
Nunca fui especialista em sentir afeto, remorso ou culpa. Fui
ensinado a ser frio, articuloso e ter medo de um homem viciado em
dinheiro e poder. O erro dele, foi ter me ensinado a ser tudo aquilo
que um dia ele temeu.
Minha mãe, uma prostituta, me ensinou a ser vigilante,
criterioso e perspicaz. Por outro lado, o homem que me criou tinha
certeza de que eu poderia ser um fantoche, o seu banco particular
ou o seu fundo de garantia. Saulo, preferiu acreditar no papel, do
que em uma criança que cresce e tem os seus próprios
pensamentos e pontos de vista.
Minha maior característica é o crime. Roubei e matei alguns
dos maiores corruptos e integrantes de lavagem de dinheiro, crimes
encobertos e documentação falsa. Construí a minha carreira em
cima de tudo que abomino e estou em meio a mais um dos meus
casos, ou terminando um deles.
Meu pai foi a minha maior inspiração, foi ele que me fez
acreditar que homens como ele não devem viver, muito menos
procriar. A sua ganância foi o meu maior ponto de incentivo, pois
assim como ele, eu sempre quero mais. Fui ensinado a não sentir
dor, pena ou me sensibilizar por algo. Todos tem que estar, onde
foram colocados para estar.
Meu pai dizia que o mundo é dos espertos e isso o dava o
direito de tirar dos outros. Minha mãe, sendo uma mulher que
vendia o seu corpo para viver, me dizia que, não podíamos interferir
no que já está definido. Se uma pessoa é rica, nunca seu posto será
tomado. Se é pobre, não há nada que poderá tirá-lo da pobreza.
Quando pequeno, pensava que era um pensamento egoísta,
mas quando cresci, percebi que para o pobre falta oportunidade,
para o rico falta humildade. Minha mãe nunca teve a oportunidade
de crescer, então ela achava que sempre e para todos, seria desta
forma. Já o meu pai, não foi privado de ensinamentos, mas sim, de
caráter.
Meu avô era um homem bom, minha avó nem tanto.
Meu pai engravidou uma prostituta e quando soube, pagou
para que ela abortasse. Meu avô descobriu e tirou a mulher da
prostituição e pediu para que ela continuasse com a gravidez. A
empresa italiana do meu avô precisava de um herdeiro, mas este
não seria o meu pai.
Tudo o que meu avô construiu, é meu. Sua empresa
bilionária, é minha.
Meu avô apostou tudo em mim quando eu ainda estava no
ventre da minha mãe. Meu pai não aceitou e me criou como se ele
fosse o dono de tudo, enquanto eu era o seu caixa de dinheiro. Ele
pensou que estava trapaceando o meu avô, mas estava enganando
a si mesmo. Até que um dia a raiva o cegou, a sua ambição e o
desejo pelo dinheiro foram capazes de matar o próprio pai. Minha
avó horrorizada com o monstro que criou, morreu de infarto. E eu, já
estando com dezenove anos, fiz a minha primeira vítima, sendo o
meu progenitor.
Quando ele morreu, descobri as muitas coisas que ele fez
para as pessoas. Tudo para suprir a sua necessidade de poder. Ele
machucou, matou, humilhou e tomou tudo de mais valioso. E foi
através dele, a minha inspiração, que eu resolvi devolver para os
que não tinham nada, a esperança de ter oportunidades.
Me formei na faculdade, mestrado e doutorado. Todos com
honra. Para alguns, estou no auge da vida, sendo um homem de
vinte e seis anos, conhecido pela sua profissão e por ser herdeiro de
uma multinacional, mas foi pela minha vontade de crescer, que
acabei sendo descuidado e deixando que a única coisa boa que
tinha em mim, fosse arrancada e torturada sem que eu pudesse
fazer nada.
Em todo este tempo, eu fui o homem que queriam que eu
fosse, mas quando descobri onde era o meu lugar, nada pode me
segurar. Sendo um acusador, logicamente, viriam atrás de mim, mas
eu não tinha nada, não tinha o porquê temer. Até que uma mulher
apareceu grávida e eu era o pai.
É por ela está missão, é por ela que a minha vingança tem
que continuar de pé.
O dinheiro molda o caráter de muitos, o papel com valor
transgressivo semeia a ambição, a vaidade e a ilusão do poder. O
dinheiro cria soluções, mas te apunha-la sem culpa. O engano te
leva a loucura, mas a realidade nunca se esconde da verdade por
muito tempo.

DANIEL MATARAZZO FILHO


Idade: Quarenta e cinco anos.
Estado Civil: Casado.
Filhos: Três.
Profissão: Gerente Corporativo.

— O filho da puta nem pensa nos filhos — encaro a ficha de


um dos integrantes da quadrilha do Tiago. — Se ele não pensa, não
vai ser eu que vou pensar.
Encaro a ficha em minhas mãos. A foto 3x4 no canto
esquerdo do papel mostra um homem sério, com olhos duros e um
terno caro. Daniel Matarazzo é uma grande peça para uma das
maiores empresas do Brasil. Um homem bem-sucedido, influente e
um bom entendedor sobre finanças.
Uma boa fachada, tenho que admitir.
Em cima da minha mesa tem um envelope cheio de provas
contra esse cara: fotos, documentos, anotações, pesquisas e folhas
e mais folhas contando detalhadamente todos os crimes encobertos
pela sua profissão. E, claro. Tenho copias suficientes para passar a
minha vida o acusando.
Passo os meus olhos pela lista de acusações que fiz questão
de pautar.

- Assédio Sexual;
- Assédio Moral;
- Homicídio Qualificado;
- Crime Unissubsistente e Plurissubsistente;
- Crime Profissional;
- Porte de Armas e Drogas.

Há uma grande quantidade de crimes listados, contendo


um melhor do que o outro. Continuo lendo, até que os meus olhos
encontram o motivo da sua morte.
Formação de quadrilha.
Parece simples, mas dentro desta frase tem uma grande
quantidade de crimes absurdamente complexos e... caralho, não
vejo a hora de vê-lo pagando pelos seus crimes.
Tiago é o dono de uma vasta rede de crimes encobertos,
havendo vários homens responsáveis por cada cabeça. Daniel é o
responsável e o cabeça de uma facção de tráfico de crianças e
adolescentes, contrabando de armas e drogas e uma rede de
vendas ilícitas com sede no Rio de Janeiro.
Além de todos os seus crimes, ele tem uma parceria secreta
com alguns comandantes e agentes que deviam estar do lado da lei.
Juízes, policiais, prefeitos, senadores... que facilitam a transação
das infrações.
Daniel Matarazzo é a minha ponte para que eu chegue até o
ninho. Alguns dos homens do Tiago são peças descartáveis que já
estão adubando a terra, mas nenhum deles é como o Matarazzo.
Quando um grande cai, é sinal de que muitos outros vão cair.
Constato o horário no relógio em meu pulso, ponho o
envelope em minha mochila e saio do quarto de hotel alugado.

Dois seguranças estão na entrada. Visualizo somente uma


arma para cada um. Há um carro preto blindado bem à frente do
edifício.
Ele já está no prédio.
Encaro o meu relógio novamente.
Hora da troca.
Corro até a outra rua, viro a esquina, dando a volta até os
fundos. Noto três câmeras, duas em direção das ruas e a outra
diretamente para o portão dos fundos. Me encosto na parede e vejo
as minhas roupas escuras se camuflando com a parede, junto com
a máscara que tampa todo o meu rosto. Lentamente, vou até a
primeira câmera, fazendo com que ela não detecte movimento
algum.
Por conta da proteção que à envolta do aparelho, enfio a
minha lâmina na lente, logo indo para as outras. Depois de me
certificar que eliminei as câmeras, me encosto no muro, somente
esperando. Não demora muito para que um segurança apareça.
Seus olhos vão de encontro aos aparelhos, descobrindo
rapidamente o porquê da falha no sistema. Vejo quando a sua mão
vai de encontro ao rádio em seu quadril, mas antes que ele possa
fazer outro movimento, seguro firme o seu pescoço,
estrategicamente, vendo-o desmaiar.
Dou um giro de cento e oitenta graus, me certificando que
tudo se encontra da mesma forma em que planejei. Faz três meses
que estou planejando este caso e, se tudo sair como pensei, esta
será a última linha para chegar até o Thiago.
Eles serão o meu passe livre para conseguir alcançar mais
desse tipinho deles.
Depois de amarrar os braços e pernas do segurança, vendar
os seus olhos e amordaçá-lo, jogo-o em meus ombros, deixando-o
atrás da caçamba de lixo. Somente os coletores e seguranças tem
acesso a está área, mas os coletores somente vem pela manhã e os
seguranças não chegaram a tempo.
A cozinha, lavanderia, área dos funcionários e
estacionamento são todos subterrâneos, uma passagem fácil. O
horário permite um menor trafego de pessoas, deixando os
corredores livres.
Sigo em alerta, sempre olhando ao meu redor, até que chego
as escadas de emergência. O prédio contém quatro elevadores e
três escadas. Três elevadores para os clientes do hotel, um para os
funcionários, assim como uma escada para os clientes — caso
prefiram —, uma para os funcionários e outra de emergência. Sei
que há duas câmeras por aqui, mas por falta de manutenção não
estão funcionando. Continuo a subir até chegar ao meu andar.
Quarto 102.
Este quarto é responsável pelas reuniões e jogos de azar. Os
preferidos do Matarazzo. Ele sempre chega antes, inteligente, mas
não tanto.
Chego ao andar e pela fresta da porta reparo no corredor
vazio, vozes femininas enchem o espaço. Conto três prostitutas de
luxo, as preferidas do Daniel e dos outros em que participam das
suas reuniões. Sei o nome de cada uma, endereço, horários,
família, se duvidar até mesmo o dia em que o primeiro dente de leite
caiu. Gosto de detalhes.
Observo o meu relógio e vejo que as mulheres são pontuais.
Uma delas passa o cartão no quarto 102 e, então todas entram.
No canto a direita há uma câmera e um sensor de
movimentos, assim como em frente aos elevadores e escadas de
acesso livre aos clientes e funcionários. Certamente, eles sabem
quem entram e quem saí deste andar.
Meu relógio vibra em meu pulso, me avisando sobre a troca
de turno dos seguranças que cuidam das câmeras. Porém, em um
minutos, as imagens vão começar a se repetir.
Constato o horário mais uma vez.
Saio das escadas em tempo de ver o Coringa, empurrando
um carrinho com champanhe, comidas finas e drogas. Aceno para
ele e empurro a mochila por entre o vão no carrinho, que é fechado
por uma grande toalha. Faço um sinal para que ele fique na linha de
frente do olho mágico, enquanto vou para debaixo do carrinho,
ajustando a toalha em seguida.
— Serviço de quarto — Coringa fala ao mesmo tempo que
bate na porta.
Demora alguns minutos até que a porta seja aberta, logo
sinto o carrinho em movimento.
— Pode deixar próximo a mesa — ouço a voz do segurança.
— As três damas e os quatro homens estão bem
acomodados? Desejam mais alguma coisa? — Coringa pergunta.
Sete pessoas.
— Não, mas o José chegará em meia hora, talvez ele queira
algo.
— Providenciaremos o que lhe é desejado, é somente
preciso que nos chame.
Silêncio.
— Senhor? Senhor? Tem algo errado?
Ao abrir a porta, Coringa iria injetar uma substância no
segurança e pela sua voz, deu certo. Ouço o homem tossir,
balbuciando palavras sem sentido. Passos se aproximam.
— O que aconteceu, Paulo? — Daniel se aproxima.
Paulo é o segurança com mais tempo de trabalho na lista de
empregados do Daniel, certamente, ele iria se preocupar. O cara
sabe de todos os seus podres.
Chegou o momento.
Levanto a tolha, podendo ver os seus pés bem onde eu quero
que eles estejam. Tiro a máscara, pois quero ser o último que eles
vão ver.
Em um movimento rápido, saio do meu esconderijo e aponto
a minha arma para a cabeça do Daniel, segurando-o pelo pescoço.
Coringa solta o segurança morto no chão e levanta duas armas em
direções opostas. As prostitutas gritam, mas se calam com uma das
armas apontada para elas. Os homens que estavam pelo quarto
sacam as suas armas e direcionam em nossas cabeças.
— Joguem todas as armas em nossa direção ou ele morre!
— falo calmo.
— Filho da puta, desgraçado. Como me achou? — Daniel
grita.
— Você não está no direito de falar alto, muitos menos
questionar — chuto as suas pernas. — De joelhos, agora! —
continuo apontando a minha arma para ele. — Todos!
Depois de ver as armas perto o suficiente para que eu possa
vê-las e longe o suficiente para que o Daniel não possa pegá-las,
observo todos ajoelhados.
— Te deixamos para morrer e você aparece tempos depois,
matando centenas dos nossos! Devíamos ter arrancado a
sua cabeça! — Fábio se pronuncia entre um dos ajoelhados.
— Realmente, foi um erro. Nunca deixem um trabalho pela
metade — digo atento em todos os seus movimentos. — Vai,
Coringa! Estou de olho.
Ele assente e solta as armas, pegando as cordas em minha
mochila. Ele amarra todos, colocando capuzes pretos nas mulheres,
jogando-as no outro cômodo. Elas somente estão aqui por
necessidades, não tem o que eu quero.
As prostitutas são do mesmo lugar em que a minha mãe
trabalhava, Luzia, a chefe, ficará feliz quando souber o que as suas
funcionárias vão dizer e, logicamente, fará com que fiquem em
silêncio.
— Coloque as correntes no Daniel — mando, vendo o
Coringa fazer.
Quando todos estão bem presos, pego todas as armas e as
jogo em cima da mesa. Analiso todas, vendo as que fazem mais
estrago em curta distância.
— Vocês nunca iriam imaginar que seriam mortos pelas
próprias armas...
Pego um silenciador e encaixo em uma das armas, aponto
para os dois magnatas que não me servem de nada, mas que se
encaixam em meu trabalho de tirar o que foi roubado dos que
precisam.
— Oscar e Matias. Dois homens instáveis, geladeiras cheias,
mulheres que ostentam joias que são mais caras que quatro anos
de trabalho honesto. Contas bancárias que eram entupidas de
dinheiro arrancado de pessoas que dão o sangue todos os dias...
— Como assim eram? Quem é esse zé ninguém, Daniel? —
Oscar não deixa que a sua boa educação e linguagem impecável
seja danificada com palavrões, mesmo que eu saiba que ele está a
ponto de me xingar.
— Que horas são, Coringa?
— Duas horas da manhã, chefe.
— A essa hora, todo o seu dinheiro já foi transferido.
Confesso que gostaria de ver a cara da sua mulher quando notar
que amanhã os cartões não vão passar.
— Isso é mentira! Você não pode transferir sem a minha
autorização! — ele está extremamente nervoso.
— Se você soubesse de todas as coisas que posso fazer,
você estaria chorando, agora.
Assinto para o Coringa.
Vejo quando os dois corpos enfeitam o chão, com um tiro na
cabeça de cada um. Agora, são três.
— Somente sobraram os dois — puxo uma das cadeiras e
me sento. — Não adianta olhar para a lareira, Fábio. O quarto foi
limpo, as suas armas e câmeras escondidas foram todas retiradas.
Pela primeira vez, vejo o pânico em seus olhos. Ele pareceu
entender que não sou somente um homem buscando vingança.
— Você está muito quieto, Daniel. Não quer me dizer sobre a
noite em que mataram a minha família?
— Vai se foder, seu desgraçado! Não vou dizer nada!
— Por quê? Você acha que não tem nada a perder? Garanto
que dinheiro você não tem mais... e filhos? — Daniel me olha com
raiva. — Talvez, eu pense nos seus filhos. Vou te dar a chance de
fazer o que nunca fez, cuidar deles. Agora me diz, onde está o
Tiago?
— Quem é Tiago?
Tivemos que rir.
— É claro que você não vai lembrar! Quer morrer com uma
honra que nunca teve?
Vejo que há algumas facas e estiletes na mesa, pego três.
Vou até o Daniel e analiso o seu terno caro. Ele parece querer ler os
meus pensamentos, enquanto pego uma das facas longas e cravo
em seu braço, atravessando e se alojando em sua coluna. Ele grita,
entre xingamentos e palavras chulas que não me agregam em nada.
Com dois canivetes, abro os seus antebraços e cravo uma
em cada mão. Ignoro os seus gritos sôfregos e volto ao meu bate
papo com o Fábio, que está prestes a deixar que os seus olhos
pulem na sua poça de suor.
— A sua filha está onde mesmo, Fábio? Em Miami,
estudando medicina?
— Desgraçado, a minha filha, não!
— Então, comece a falar!
— Ninguém sabe onde ele está! A última vez que...
— Não, caralho! — Daniel interfere.
— Se você não se importa com os seus filhos, eu me importo!
— Isso mesmo, Fábio. Prossiga...
— A última vez que falamos com ele, estava em um
submarino. Isso é tudo — ele parece me dizer a verdade, mas ainda
falta algo. — Por favor, deixe algo para a minha filha. Ela trabalha
e...
— Eu sei que ela trabalha e sei que ela não quer o seu
dinheiro sujo. Diferente dos seus em, Daniel? Todo ano uma Ferrari.
— Todos subestimamos você, devíamos ter te matado! —
Daniel parece firme, mesmo que a dor do seu ferimento esteja
ficando insuportável.
— Está é a segunda vez que você deixa explicito o
arrependimento de não ter me matado, mas estou aqui. Agora, por
que mandar a própria mulher para morrer? — digo tentando
encaixar a última peça que falta.
— A mulher é gostosa, sabe como seduzir um homem como
ninguém. E, o disfarce parece não ter funcionado, ou você não
estaria perguntando por ela.
Trago ar para os meus pulmões e penso naquela noite.
Aquela em que me atormenta assim que fecho os meus olhos, que
me faz reviver a cena várias e várias vezes, diferente de quando
estou com ela, quando parece que tudo some.
"— Papai! — ouço a Olivia me chamar.
Tento me mover e responder o seu chamado, mas percebo
que estou amarrado por correntes fechadas com cadeados,
enquanto a minha boca está tapada para que eu não possa gritar.
— Olha só quem acordou, a florzinha justiceira! — uma voz
macabra ecoa pelo galpão, alavancando uma onda de risadas.
Observo que estou sendo vigiado, tento aguçar a minha
visão, dando de cara com dezenas de homens. Reconheço alguns
dos rostos que coloquei na cadeia.
— Você achou mesmo que iria me ferrar, filho da puta! — sua
risada irônica soa. — Literalmente uma puta... — ele olha de cima a
baixo para a Marcela, minha mãe. — Que bela puta.
Tento me soltar, me debatendo contra o chão, mas não
funciona. Os risos se intensificam.
— Hoje você vai pagar pela merda que fez! Maldita a hora
que você pisou no meu caminho! — meus cabelos são puxados na
direção da minha mãe. — Estou com pressa, vai João!
João, primeiro.
Ao comando do Tiago, João vai até a minha mãe, cravando
uma faca em seu pescoço. Ela grita e as suas lágrimas descem de
dor.
— Ela vai perder sangue bem rapidinho, prometo — Tiago
sussurra.
Meus pulmões buscam ar ligeiramente, sufocando os gritos
estridentes que não consigo soltar. Me sinto furioso, com raiva e
desesperado. Estou imobilizado, não consigo fazer nada, a não ser
olhar.
— Sua mãe está sangrando como uma porca no abate —
Tiago ainda continua falando. — Afonso, vá para a outra.
Afonso, segundo.
Minha menina chora ao fundo, vendo a sua avó morrendo
lentamente.
Não posso salvá-las, não posso salvá-las...
Outro homem aparece em minha visão, desta vez, alojando
três balas no corpo da mãe da minha filha. Um próximo ao pescoço,
outro em sua perna e por último, em seu coração.
— Está gostando? Porque, olha. Isso tudo é demais! — ele
parece empolgado. — Sei que você não gostava muito dela, mas
olha a sua filha. Olha como os olhinhos dela estão escorrendo
lágrimas, enquanto vê a mãe morrer.
— Daniel, a garota!
Daniel, terceiro.
No momento em que cita a minha filha, minhas lágrimas
escorrem pelo meu rosto machucado.
— Papai! Papai! — Olivia grita pelo meu nome, chorando
desesperadamente.
Seus pequenos olhos gritam por socorro. Gritam por mim.
Meu corpo está coberto por grossas correntes, tornando o
meu corpo impossibilitado para qualquer movimento. Em minha
boca há um emaranhado de panos, fazendo com que meus gritos
sejam sufocados. Lágrimas descem desenfreadamente. A minha
pequena menina está sendo queimada, gritando por mim, enquanto
eu somente posso vê-la.
Minha mãe, junto com a Rafaela, estão mortas em um canto.
Os seus órgãos e sangue se espalham por todo o chão. Não tenho
mais nada. Somente dor.
Minha filha continua a chorar, sendo queimada viva.
Soluçando, gritando, me implorando por ajuda. Minhas lágrimas de
desespero descem freneticamente, expressando toda dor que rasga
o meu peito por não ter conseguido proteger a minha menina.
Meus gritos estão sendo sufocados, assim como o meu
coração.
Sinto quando novamente rasgam a minha pele, os sons de
risos e gritos desesperados se espalham pela minha visão turva.
Meu sangue mancha a minha pele, mas não consigo sentir a dor
física, a não ser a dor de ter a visão da minha vida sendo queimada
naquele fogo.
Minha menininha... seu vestido rosa de laços já tinha se
desfeito nas chamas... seus cabelos não eram mais como antes...
seus gritos ficando fracos...
O cheiro de carne humana queimada é agoniante e saber
que aquele humano é uma bebê, a minha bebê, faz-me um louco
preso, desolado e angustiado.
Eu falhei.
Eu não à protegi.
As gargalhadas dos homens ecoam pelo galpão com o cheiro
de morte. Contemplando o meu sofrimento.
— Até que a sua filha se adaptou bem ao fogo — Tiago bate
palmas.
Soluço por entre os panos que tampa a minha boca.
Minha menininha.
— Garota, vem aqui! — estou com os olhos fechados,
tentando não ver os três corpos sem vida à minha frente.
De repente, a minha perna é rasgada, seguidamente de
vários cortes em lugares estratégicos do meu corpo. Seria hipocrisia
da minha parte dizer que não dói, mas nada é tão dolorido como a
dor em meu peito. Nenhuma dor será maior do que ver a minha filha
sendo queimada viva.
Abro os olhos ainda turvos das lágrimas, mas consigo ver
uma cabeleira ruiva.
Você é a quarta, ruiva.
— Espero que tenha uma boa morte, bem lenta — vejo o
Tiago se afastar, se despedindo com vários chutes em meu
abdômen. — Deixe ele aí, esse filho da puta vai morrer logo.
Ouço os passos se distanciando, com a visão e o cheiro de
morte.
Sinto a dor dos cortes profundos em meu peito, ombros,
pulsos e pernas. Estrategicamente.
Eu vi a morte.
Eu senti a morte.
Até que tudo se apagou".
— Chefe, dez minutos! — Coringa me tira do transe.
— Espero que estejam com trajes apropriados, pois o lugar
para onde vão é quente!
Pego a mesma arma e atiro incansavelmente, até que o
Fábio esteja totalmente desfigurado, enquanto o sangue pinta as
paredes e o chão.
— E, quanto a você... — vejo os olhos assustados do Daniel.
— Jogue mais lenha na lareira, Coringa.
Assim que vejo o fogo alto, pego o Daniel e o jogo dentro da
lareira.
— AHHH! NÃO! NÃO! — ele grita, se agita e chora.
Eu não consigo sentir nada.
— Você poderia morrer de vários jeitos, mas escolheu o pior
deles. Você queimou a minha filha e, é o pai dela que hoje queima
você.
Observo por alguns segundos a sua pele se desfazendo.
Coloco o protetor de ferro da lareira para que ele fique preso e não
tenha a chance de fugir.
— Deixe eles, aqui! A mídia não vai demorar e o Tiago vai
saber que estou esperando por ele — falo para o Coringa, logo
saímos, pelo mesmo lugar onde entrei.
11
DECEPÇÃO
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 8 de abril de 2018

Hoje tem baile na rua cinco.


Os convites estão rolando no Facebook e WhatsApp.
"Homens tragam as bebidas e mulheres as amigas..." — pelo
menos foi o que a Fernanda me disse.
Fernanda, normalmente, comenta sobre as festas do Morro,
até porque, ela gosta de frequentar. Ela chegou a me chamar
algumas vezes, mas não é algo que me agrade e, após ver como é,
não me sinto confortável em ir. Porém, hoje cedo, Coringa me
entregou sacolas com logotipos de algumas marcas famosas e um
mandado inusitado.
Coringa não me explicou o que era tudo aquilo, mas tratou de
dizer que o Marcos quer a minha presença no baile de hoje.
Logicamente, eu não iria, mas com o passar do dia, decidi ir.
Fernanda vai estar lá e vou ficar confortável com a sua presença.
Talvez, eu consiga me divertir.
Nas sacolas tinha algumas roupas, calçados e um celular.
Acredito que ele tenha entendido o porquê de eu não ter tirado fotos
do Bruno na festinha da escola.
Não posso negar que fiquei empolgada com o celular. Nunca
tive um e como sempre, era a Fernanda que me emprestava o seu
quando queria ver algo.
Após analisar minuciosamente o celular, fui dar uma olhada
nas roupas. Todas eram de marca, porém, as blusas eram
totalmente fechadas, sem um decote ou pelo menos um corte mais
baixo. A palavra certa seria: discreta.
É notável o quanto o Marcos pode ser ciumento, mas até
mesmo com as minhas roupas ele se incomoda?
Vejo que horas são e começo a me arrumar. Tomo um banho
frio e hidrato o meu corpo. Olho para as roupas que o Marcos me
mandou e decido não as usar. Mancha está acostumado a ter tudo o
quer, pensa que pode ditar a vida das pessoas. Sinto em lhe
informar que nas minhas roupas, eu que mando.
Me visto e me sinto bem com o que vejo no espelho. Tenho
um vestido verde que não é curto, mas que tem um decote baixo.
Ele mostra a curva dos meus seios e combina com os meus
cabelos. Comprei em um brechó a muito tempo e me sinto linda
quando uso ele.
Penteio os meus cabelos e passo um gloss que a Fernanda
me deu. Calço a minha única rasteirinha que é branca e estou
pronta. Me despeço do Bruno e da minha mãe e vou em direção à
rua cinco.
A noite está quente, pessoas estão por todos os lados,
crianças correm pelas ruas e alguns indivíduos como eu, indo em
direção ao baile.
O caminho foi rápido e, logo estou no meio de um mar de
pessoas que bebem, fumam e dançam. Os gritos ocupam todo o
espaço em uma disputa com o som alto das diversas músicas.
Caminho por entre as pessoas, até que vejo o Izac.
— Você viu a sua irmã? — pergunto, olhando para os lados.
— Ela está na frente da casa do Ednaldo! — ele grita em
resposta.
— Obrigada!
Me viro e continuo a andar. Homens armados e alguns
distribuidores de drogas estão por toda parte. Não prendo o meu
olhar em nada ao meu redor, até que um dos vapores me encara,
gritando algo em seu rádio. Certamente, agora, Marcos sabe que
estou aqui.
O típico e habitual ritmo do funk está alto e agoniante. Uma
superlotação de pessoas se locomove de um lado para o outro,
dançando e curtindo as bebidas, drogas e uma pegação sem limites.
Ando por entre elas a procura da casa do Ednaldo, mas com tantas
pessoas, fica difícil de encontrar. Carros estão parados na rua,
assim como muitas motos, deixando o caminho ainda mais
complicado. Tento parecer invisível enquanto ando, o que parece
não estar dando certo, pois sinto o peso dos olhares sobre mim.
Sinto um leve puxão no meu pulso e me viro em tempo de ver
o Coringa. Seus olhos estão atentos e imersos em todo o
movimento ao redor.
— O chefe está te chamando! — ele não precisa de mais
palavras para me fazer entender que o Marcos não está muito feliz.
Ele pede que eu o acompanhe, até que estramos em uma
casa vazia. Coringa está ao meu lado, prestando atenção no
movimento. Talvez ele pense que eu vá fugir. Coringa me leva até
uma sala, nunca tocando em mim, somente me acompanhando de
perto. Ele abre a porta e espera que eu entre, fechando-a em
minhas costas.
— Parece que você gosta de chamar atenção... — sua voz
fria preenche a sala, deixando-me novamente frustrada com o poder
que ele tem sobre mim.
— É o que parece — falo como se fosse algo normal, mesmo
que o efeito seja contrário.
— Ah! Então, você gosta? — ele se levanta do sofá,
segurando uma lata de cerveja.
— Você que me mandou vir, não sei por que está nervoso.
— O que aconteceu com as roupas que te mandei? — ele
analisa os meus seios expostos pelo vestido.
— Estão da mesma forma em que vieram — aliso os fios do
meu cabelo. — Era só isso?
Não tenho a intenção de provocá-lo, mas acredito ser
necessário defender a liberdade de poder me vestir, da forma em
que eu bem entender.
— Você não vai sair de perto de mim! — ele exclama furioso.
— O meu nome é Camilla, não Gizele. A sua mulher, está
mostrando tudo lá fora, enquanto você está aqui, me questionando
sobre moda — sou direta.
Quando o Coringa estava me trazendo, pude ver a Gizele no
meio de vários homens e mulheres em frente à casa. Ela estava,
literalmente, sem racionalidade.
— Não me importo se ela estiver pelada na frente de todos,
vou continuar olhando para você, para os seus peitos saindo dessa
porra de vestido!
Ele toma um gole da sua bebida e se move para mais perto
de mim. Não tenho nem metade dos peitos da Gizele, ainda assim,
ele prefere estar aqui, implicando comigo.
— Você está esquecendo quem sou?
— Não esqueço, mas não acho justo você querer mandar até
nas minhas roupas!
Mancha ri ironicamente.
— Nada é justo, Camilla — ele desce o olhar para as minhas
pernas, até que estão em meus seios novamente.
— Para você, tudo tem que ser complicado, cheio de
controvérsias... você quer coisas de mim, que eu não posso pedir de
volta! Você quer atenção, respeito, quer que todos façam o que você
manda — observo os seus olhos escuros, atentos a cada palavra
que digo. — Não consigo ter controle sobre o meu corpo quando
estou com você, mas não é por isso, que vou deixar que me faça
ser somente mais uma que obedece a todos os seus mandados.
Marcos parece pensar sobre o que eu disse. Ele dá outro
gole na sua cerveja, permanecendo quieto, ainda me olhando.
— Isso vai acabar — ele diz simples.
Não sei exatamente o que ele quer dizer, mas várias
hipóteses passeiam pela minha cabeça.
— Enquanto não acaba, vou procurar alguém. Talvez eu
descubra qual é a sensação que você sente, quando está com a
Gizele, mas pensando em mim.
Confesso para ele o que sinto, naturalmente. Ainda não sei
se estou apaixonada, mas não posso negar as sensações e os
pensamentos que tenho, onde ele sempre está.
— Se você ousar deixar que alguém te toque, que não seja
eu, você pode esperar as notícias... — ele segura o meu maxilar. —
... porque eu vou matar.
Respiro rapidamente, constatando a verdade em seus olhos.
— ... não mato inocentes... — ele fala bem próximo. — Mas
faço qualquer coisa por você.
Ele desce a sua mão e deixa um tapa estralado em minha
bunda, saindo pelo lugar em que entrei. Fecho os meus olhos e
tento regularizar a minha respiração.
Ele soube como jogar, pois eu não colocaria a vida das
pessoas em risco. No entanto, posso me divertir, dançar e fingir que
ele não existe ou pelo menos tentar.
Minutos depois, estou me movendo ao som da música, junto
com a Fernanda. As pessoas parecem ter multiplicado e o espaço
diminuído. Não ingeri nenhum tipo de bebida ou qualquer coisa do
tipo, mas por alguns instantes, esqueci de onde estava e somente
foquei no momento. Até que vejo o Davi e, puta que pariu, ele está
perto, até demais.
— Ei! Não sabia que frequentava os bailes — ele grita, para
que eu possa ouvi-lo.
— Não frequento — dou uma risadinha sem graça.
Mesmo que sejamos da mesma sala, nunca nos falamos,
desde quando entrou na escola no início do ano. Ele sempre está
com a turma dele e eu quieta no meu canto, mas depois do trabalho
em que fizemos juntos, ele está se aproximando.
— Está gostando? — ele parece interessado.
— Não é ruim.
— Se você se importa com esse menino. Saia de perto dele,
agora! — Fernanda sussurra em meu ouvido.
Me viro em sua direção tentando entender o que aconteceu.
Ela não diz nada, mas aponta disfarçadamente para um grupo e não
demoro a perceber quem está no meio. Marcos está reto, suas
pernas estão separadas e os braços cruzados em seu peito. Mesmo
estando longe e muitas pessoas em minha linha de visão, consigo
visualizar perfeitamente para onde ele está olhando. Entretanto, é
rápido, quando sinto a mão do Davi em meu maxilar, puxando os
meus olhos para ele.
— Você precisa sair daqui! — digo rápido.
— Por quê? — ele responde confuso, se aproximando da
minha boca.
— Davi, não! — grito, nervosa. — Você precisa ir embora!
Volto a olhar o lugar onde o Marcos estava parado, mas não
o encontro. Encaro a Fernanda que está ao meu lado, parecendo
entender o que está acontecendo. Olhamos para o Davi e
empurramos ele para que vá embora, mas não conseguimos ser
rápidas o bastante.
— Eu te avisei! — Marcos não me olha, mas fala
audivelmente.
Mancha agarra no pescoço do Davi e o levanta. O menino
está ficando roxo e as suas mãos se agitam em torno do Marcos,
tentando se soltar.
— Solta ele! — grito, puxando a sua camisa. — Ele não fez
nada!
— Eu sei quem é você, sei da porra dos seus pensamentos e
o que pretendia fazer com ela — ele rosna ameaçadoramente.
Continuo o puxando, mas é vão. Ele não se move, muito
menos reage aos meus gritos. Noto que o Marcos diz algo baixo,
sendo impossível que as pessoas ao redor consigam ouvir, mas
tenho certeza de que o Davi entendeu, pois, assim que o Mancha
termina, um líquido desce por suas calças. Davi urina
vergonhosamente em suas roupas, ao mesmo tempo em que o
Marcos o joga no chão.
— Não fale com ela, não olhe para ela. E, nunca, envolva o
nome dela nas merdas que você faz! — a fúria em suas palavras,
estremece até mesmo o meu corpo.
Mesmo não entendendo o que ele está dizendo, me abaixo e
tento ajudá-lo. No entanto, Marcos me puxa e me segura, não
deixando que eu me mova.
— Isso não foi nada, Camilla — sinto as suas mãos
segurarem os meus quadris. — Ele estava te apostando por uma
garrafa de uísque.
Meus movimentos perdem força em seus braços.
— Como soube disso? — minhas mãos vão para a minha
boca, tampando a minha incredulidade.
— Você achou mesmo que ia até a casa dele, sem que eu
soubesse? — me lembro do dia em que fui fazer o trabalho da
escola. — Para uma garota inteligente, você é muito inocente.
Percebo que o Davi continua no chão, tremendo. Ele não
tenta se explicar ou ao menos levantar os seus olhos.
— Por que ele faria isso? — falo baixo, não conseguindo
acreditar.
— Gizele queria te humilhar — ele não dá mais detalhes. —
Vai para casa!
Sinto que pela primeira vez, vou fazer algo que o Marcos
mandou.
Fui vítima de muitas situações, de pessoas que se disseram
ser os meus amigos, indivíduos que me negou ajuda, mas nunca
pensei que seria uma aposta. Sinto vontade de chorar, mas não
consigo. Não sei definir o sentimento que está esmagando o meu
coração, somente sei o quanto quero chegar em casa.
Não sei o que o Marcos vai fazer com o Davi, muito menos
com a Gizele, apenas quero esquecer estas pessoas e dar mais
valor a quem realmente me ama e que se importa comigo.
Quando chego em casa, todos então dormindo. Tomo um
banho e lavo o meu corpo e a minha alma. Derramo algumas
lágrimas, até que percebo que nenhum deles merecem as gotas que
rolam pelo meu rosto.
Ainda enrolada na toalha, vou até a cozinha. Onde vejo o
celular em cima da mesa com a tela acesa. Me dirijo até ele e
constato que há uma mensagem de um número desconhecido.
+ 55 (21) 0000-0000: "Eu te escolhi".
12
CARÊNCIA
CAMILLA FERRAZ
Segunda-feira, 9 de abril de 2018

São exatamente vinte e uma horas e estou sentada na calçada da minha casa.
Hoje está ainda mais quente que o normal, sendo assim, decidi vir para fora. Os
meus pensamentos estão agitados e o silêncio da minha casa está tornando-os
ainda mais constantes.
Hoje não fui a escola, senti que não estava preparada para
encarar as pessoas. Mesmo que eu não tenha reparado em quem
estava observando a briga de ontem, sei que estão comentando e
não estou a fim de escutar pessoas deduzindo sobre a minha vida
ou o que tenha acontecido.
A lua está brilhante e os mosquitos estão se aglomerando em
torno dos pontos de luz da rua sem saída. Perdi a conta de quantos
tive que matá-los e o quanto as minhas pernas estão coçando.
A luz da casa de alguns vizinhos estão acesas, dá até para
se ouvir o som das televisões ligadas. Seu Antônio está
ouvindo fundo de quintal e há um casalzinho novo se pegando na
frente da casa da dona Meire.
Encaro novamente o poste à minha frente e viajo por alguns
instantes. Penso em todas as coisas que aconteceram depois que o
Marcos entrou em minha vida, no quanto fui invisível e, agora, não
passo de uma foda — isso é uma das coisas em que tenho que
escutar.
Continuo aérea, até que vejo uma silhueta familiar surgindo
entre as casas. O corpo alto e grande está inclinado, sendo um
aviso silencioso que algo está errado. Me levanto e vou em direção
a ele.
Mancha segura o seu tórax, estando com a coluna curvada. A
sua postura arrogante ainda está lá, situando todo o seu poder. Me
sinto instantaneamente preocupada. Uma parte em mim diz que eu
não devia, mas a mensagem em que recebi ontem, pode ter
causado um efeito na forma em que eu o via.
Se ele me escolheu, o que ele está fazendo com a Gizele?
Por que me humilha e deixa que ela não só me envergonhe, mas as
outras pessoas também?
Quando estou perto o suficiente, constato que ele está
estranho. Assustada, procuro a causa da dor em sua feição.
— O que aconteceu, Marcos? — tremo ao ver as suas mãos
e roupas cheias de sangue.
Sua respiração é profunda, seus olhos transbordam raiva e
tudo nele grita uma misto de sentimentos baseados em ira e fúria.
— Vamos para casa — ele agarra a minha cintura e me puxa
para onde tinha entrado segundos atrás.
— Minha família...
— Eles não estão sozinhos.
Estou confusa, mas decido ir com ele.
— Espera, tenho que trancar a porta — ele não gosta da
minha resposta, mas me solto e corro.
Vamos para casa.
Suas palavras martelam em minha cabeça, enquanto vou em
direção a porta. Não entendi o que significa, mas, talvez, a perca de
sangue esteja afetando alguma parte do seu raciocínio.
Fugindo dos meus pensamentos, entro em casa e procuro
por uma bolsa. Assim que a encontro, jogo algumas coisas dentro,
constato que os dois estão dormindo e tranco a porta.
— Você só não ia fechar a porta? — seu olhar é furioso.
Ignoro.
— Quando eu falar com você, me responda!
Sinto vontade de respondê-lo no mesmo tom, mas acabo
escolhendo outras palavras.
— Vou precisar de algumas coisas — ele me puxa
novamente para os seus braços.
O que está acontecendo com ele?!
Mesmo com toda esta irritação, ele parece estar necessitado,
querendo me tocar e ver que estou realmente ao seu lado. Noto que
ele está me levando por um caminho diferente. Não digo nada,
apenas deixo que ele me guie, para sei lá onde.
Durante o percurso, percebo que as suas roupas estão se
ensopando ainda mais rápido. Embora o Marcos esteja com um
ferimento notavelmente grave, ele não transparece como a
momentos antes. Ele não diz nada, nem mesmo uma reclamação.
Ao seu pedido, pressiono o seu abdômen, tentando estancar
o sangue, enquanto ele pilota a moto. Não sei como ele está
conseguindo fazer isso, mas é inegável o quanto ele é forte.
Em instantes, chegamos a um local. A casa é estilo a outra.
Desço e espero que ele faça o mesmo. Ele abre o portão e leva a
moto para dentro. Sigo-o, ouvindo a porta ser trancada. Ele se senta
em um sofá de couro, arrancando a sua blusa e a jogando no chão.
— O que aconteceu com você? — repito preocupada.
— Levei um tiro, caralho!
— Quero saber o que aconteceu, não o tipo do ferimento.
— Fui atrás de um cara... — sua resposta é vaga.
— Encontrou ele?
— Sim — suas respostas são curtas.
— E quem era esse cara?
— Não começa, Camilla.
Ignoro a sua arrogância e me abaixo, na altura do seu
ferimento. Analiso o seu peitoral cheio de sangue e me preocupo
com a quantidade que está saindo.
— Você não vai para o hospital? Isso está muito feio!
Ele não responde.
Respirei fundo.
Marcos está se saindo melhor que uma criança mimada.
— Vai tomar um banho. Vou cuidar de você — tento uma
outra vez.
Tenho uma certa noção de como cuidar de um ferimento,
observo a forma em que os médicos cuidam da minha mãe, mas
não sei se vou ser capaz de tirar uma bala do corpo de alguém.
O olhar que o Marcos lança em mim não é do tipo que estou
acostumada, pelo contrário, não sei definir. Nunca recebi este tipo
de olhar dele. Não tem frieza, ignorância, cólera ou qualquer coisa
do tipo. É simplesmente diferente.
Noto que ele se levanta e entra em um corredor, sem falar
nada.
Após um tempo, Marcos aparece limpo. Ele se senta ao meu
lado, ainda quieto e sem me olhar. Mesmo sem nenhuma palavra,
entendo o seu recado.
Quando o Mancha começou a mandar dinheiro pelo Coringa,
não pensei em usá-lo, mas com o tempo, se tornou necessário.
Iniciei a compra de medicamentos e alguns outros materiais.
Geralmente, minha mãe precisa trocar os curativos, então, pensei
ser mais que preciso ter objetos como estes.
Antes de sair de casa, coloquei algumas gases e
esparadrapos, remédios e coisas que podem o ajudar. Pego a bolsa
que estava no chão e a abro. Mancha encara confuso os objetos
que tiro da bolsa, mas não se pronuncia.
— Você sabe o que está fazendo? — ouço a sua voz grossa,
assim que pego todas as coisas e me aproximo dele.
— Não.
Ele balança a cabeça.
— Melhor eu, do que ficar com dor — digo.
Me posiciono em sua frente, analisando todo o seu corpo. Ele
está sentado, com as pernas afastadas e os lábios entreabertos.
Seus músculos estão duros e o sangue está começando a manchar
a sua pele novamente.
Me sinto egoísta por encarar os seus lábios por um tempo,
querendo beijá-lo.
Me agacho em sua frente e examino o ferimento mais uma
vez. Não sei o que fazer, mas esta bala precisa ser retirada. Afasto
a ideia de que posso atingir alguma veia importante do seu corpo ou
algum órgão.
— Vai doer... — não olho para ele enquanto aviso.
Mancha sustenta o peso dos meus olhos.
— Pegue o meu celular, está em cima da mesa — me levanto
e pego.
Entrego em suas mãos, vendo-o discar números aleatórios e
chamar pelo Coringa. Talvez ele pensou que eu não sou capaz de
tirar uma bala do seu corpo. Não discordo.
— Não quero você aqui quando ele chegar.
— Por quê?
— Camilla... só fica no quarto — ele parece cansado.
Assinto, mesmo não entendendo, como sempre.
Não demora até que escuto o nome do Marcos ser chamado.
Ele tenta se levantar, mas, pela primeira vez, a dor assume o
controle da sua feição. Rapidamente vou até a porta, abrindo-a.
Coringa me olha, assente e entra.
— O que aconteceu? — ele pergunta, visualizando o sangue
descendo.
— Fui atrás dele.
— Falei para você não ir sozinho, caralho. Você sabe que
eles estão sempre com as suas babás! — ouço, não
compreendendo uma palavra.
— Vai para o quarto, Camilla! — Marcos manda.
— Mas eu...
— Não vou mandar de novo.
Não querendo mais problemas, decido sair.
— Tem algumas coisas ali que você pode usar — aponto
para os materiais que trouxe.
— Eu mandei você falar com ele? — Mancha respira
pesadamente.
— Calma, cara! Ela só está tentando ajudar — Coringa diz
em minha defesa.
— Estou vendo a sua cara de pau de olhar para a minha
mulher — ele tenta se levantar mais uma vez.
— Você está ficando sem controle, irmão!
— Não se mexe ou vai piorar — aviso, vendo como ele está
ficando nervoso.
— Vai piorar se você não for para a porra daquele quarto!
Notando que a sua ignorância pode crescer altos níveis, me
viro e saio em direção ao corredor. Sei o quanto ele pode ser
desiquilibrado e com a dor, isso pode piorar.
— Quantos desta vez? — consigo escutar através da porta.
— Quatro.
— Conseguiu pegar o João? — Coringa fala baixo, mas abro
a porta e escuto pela brecha.
— Sim. Ele abaixou a guarda com a perca do filho. Já estava
me esperando.
— Conseguiu encontrar o outro? — Coringa parece mexer
em algo.
— Não, mas para ele querer ela... deve estar sabendo sobre
algo — reconheço o tom raivoso. — Reforce as entradas, ele está
conseguindo se infiltrar. Tem um filho da puta dando passagem.
— Estou desconfiado de um.
— Tenha provas e pegue-o — ele parece falar entredentes.
O silêncio paira, até que ouço o Coringa novamente.
— Você está perdendo o controle. Estão começando a notar
ela! — Coringa parece nervoso. — Se você quer ela, vai ter que
fazer mais!
— A garota está sofrendo!
— Eles vão fazê-la sofrer mais se tiverem certeza de que
você está se importando. Você quer que tudo se repita? — Coringa
força.
Minha cabeça vira um nó, com esse bate e volta de assuntos
que não estou fazendo ideia do que seja. Talvez, porque eu não
devia estar ouvindo, mas a curiosidade, a vontade de saber mais
sobre ele, é maior.
— Ainda não consigo acreditar que... logo ela! Porra!
— Você começou, agora termine.
— Você sabe que...
— Sei, mas você vai ter que dar um jeito.
Decido que é melhor não escutar mais. Não estou
entendendo, muito menos vou conseguir tirar algo sobre isso do
Marcos, mas de alguma forma me atinge, deixando-me atordoada.
Antes, já tinha consciência do quanto ele é misterioso, mas,
agora, parece que sou a agulha dentro do palheiro.
Quando estou prestes a fechar a porta, ainda consigo escutar
o Coringa.
— Se quiser continuar, tenha foco, porque a Gizele não é
mais uma distração.
Sinto os meus pés enraizarem no chão.
Me afasto da porta ainda aérea com o que ouvi. Algumas
coisas começam a se encaixar, mas outras dúvidas começaram a
surgir. Nunca pensei em ouvir o nome da Gizele e a palavra
distração na mesma frase.
Me sento na cama e encaro o teto.
Tão branco.
Limpo.
Os meus pensamentos estão travando uma batalha em
minha cabeça e tudo o que quero, é uma solução para todos estes
acontecimentos e dúvidas. Balanço a minha cabeça como se isso
pudesse me ajudar a apagar a imagem desta mulher. Não sinto algo
bom em relação a ela, mesmo que eu somente pense.
O quarto está quente, sinto os meus cabelos começarem a
grudar em minha nuca. Com isso, faço um coque apertado em uma
tentativa de diminuir a sensação agoniante no meu corpo.
Buscando uma distração, observo o quarto, procurando
pontos para analisar. Uma atitude visível de tédio. Noto o
acabamento das paredes, a ausência de móveis, a janela, até que
me deparo com uma porta. Talvez seja um banheiro.
Pensando em lavar o rosto, vou até a porta, mas a surpresa
me atinge quando encontro o interruptor e a luz brilha em direção a
objetos que não tem nada a ver com as peças de um banheiro.
Inconscientemente, levo as minhas mãos até a minha boca,
não acreditando no que estou vendo.
Passo os meus olhos pelas paredes sem reboco que estão
sendo decoradas com diversos tipos de papéis e fotos, jornais
e post-it. Me certifico de olhar para trás, pois sei que não devo estar
aqui. Quando me sinto segura de continuar, volto a minha atenção
novamente para o pequeno quarto.
Meus olhos viajam por todos os cantos, analisando o espaço
detalhadamente. Busco por uma linha de raciocínio para poder
entender o que a pessoa que fez isso pretende e quais são os seus
motivos.
Uma mesa com diversos papéis jogados está no centro,
assim como na parede acima. Vou até ela e pego um deles,
percebendo que se trata de um documentário. Enquanto leio,
examino as imagens.
A data é de dois anos atrás.
"Homens foram encontrados mortos próximo ao teleférico do
Alemão, Rio de Janeiro. A polícia não tem pistas, mas seguem a
procura do causador de tamanha frieza".
Continuo olhando os outros documentários e noto que
praticamente todos são do mesmo período, havendo distinção
somente nos meses. Encaro as pilhas de fotos espalhadas e sinto
vontade de vomitar.
Por que o Marcos guarda este tipo de coisa?!
Nas fotos tem pessoas mortas, muitas pessoas mortas.
Tripas, sangue, órgãos... é horrível! Pego uma das fotos e vejo que
há uma descrição no verso.
Tenente Ramalho, MORTO.
Pego outra foto.
Dr. Frederico Carvalho, MORTO.
Jair Vasconcelos, MORTO.
Henrique Fonseca, PENDENTE.
Encaro a pilha de imagens e respiro fundo. Todos parecem
ser importantes, com boas profissões e contas bancárias gordas.
Ele matou todas essas pessoas?!
Continuo olhando e noto que são poucas as fotos que estão
como pendentes, diria até que noventa porcento dos que estão nas
pilhas, já estão mortos.
Deixo as imagens onde encontrei e sigo para o painel grande,
com mais fotos e ligações. Setas feitas em caneta vermelha estão
para todos os lados, assim como mais jornais com as mesmas
datas.
Reparo em um tabuleiro de xadrez ao canto. Em cada peça
tem um rosto e em cada casa, um nome. Sessenta e quatro
homens.
Algumas das peças estão caídas e as imagens riscadas.
Ouço o Marcos gritar alguns xingamentos e volto
rapidamente para as setas. Talvez, Coringa esteja terminando,
tenho que ser mais rápida se quero descobrir algo sobre o passado
dele.
Sigo cada linha vermelha, lendo os documentários e vendo
mais e mais fotos que para mim, não tem sentido algum.
"De acordo com o Dr. Marcos Henrique Valentini, Tiago
Castellanos está sendo preso por um longa fixa de crimes, sendo
um deles assassinato e envolvimento com tráfico de drogas e
pessoas..."
Dr. Marcos Henrique Valentini?!
Procuro pela data e comparo com os outros jornais, sendo
este o mais antigo.
"Duas mulheres e uma criança foram encontradas
carbonizadas em uma área isolada em uma cidade nobre do Rio de
Janeiro..."
"Julho de 2016, cem policiais foram encontrados mortos. A
polícia procura a causa de tantas mortes. Suas famílias protestam
por justiça..."
"Polícia acredita que um Serial Killer esteja à solta na Zona
da Leopoldina, Rio de Janeiro, sendo acrescentado mais vinte e
cinco homens, entre eles, advogados e um Deputado Federal..."
"O Juiz Antônio Alencar foi morto está tarde com quatro tiros
na cabeça. Provas foram misteriosamente apresentadas, afirmando
que o falecido Juiz era um dos mandantes e sócios de uma facção
criminosa..."
Pego o jornal e encaro o homem na imagem.
Mancha.
Levo as mãos em minha boca, evitando um possível grito.
Meu corpo está tremendo, o meu coração se agita em meu peito.
Deixo o jornal no mesmo lugar e volto a minha atenção para
as outras imagens. Mais pessoas mortas. Passo os meus olhos
pelos diversos homens riscados, até que paro em um. Lágrimas
inundam os meus olhos imediatamente.
Ao lado do homem, tem uma outra foto sendo apontada por
uma flecha.
Sinto que as minhas pernas começam a vacilar.
Sou eu.
A flecha aponta para mim.
Puxo a foto e reconheço o colégio em que estudo atrás. Ele
estava me seguindo, realmente. Volto para a outra figura e,
rapidamente, reconheço o meu pai. Ele não é o mesmo homem que
conheci quando pequena, ainda assim, me lembro, principalmente,
dos seus cabelos ruivos, iguais aos meus.
A surpresa realmente não foi essa. A palavra certa seria
decepção.
Mulheres estão a sua volta e um círculo vermelho marca o
seu estado, MORTO.
Marcos matou o meu pai, matou alguém que já estava morto.
A cada vítima, atrás da imagem, se encontra uma data e a
minha surpresa é ainda maior por ver que o Marcos matou o meu
pai há dois meses. Dois meses.
Quem era o meu pai?!
Passo a minha mão em meu rosto tentando acabar com
qualquer rastro de lágrimas, que nem mesmo percebi que estava
derramando. Pego a minha foto e vejo o que ele escreveu sobre
mim.
Em meu rosto tem um círculo em azul, INOCENTE.
No mesmo instante, ouço-o esbravejar.
Tento absorver mais das imagens, procurando entender o
que ele está fazendo, ocupando um posto que não combina com
ele.
Continuo olhando até que me deparo com a imagem da loira.

GIZELE SOUZA CASTELLANOS


Idade: Vinte e quatro anos.
Estado Civil: Casada.
Filhos: -
Profissão: Acompanhante.

Ouço a voz do Marcos novamente.


Hora de sair.
Desligo a luz e fecho a porta.
Saio do quarto e me deparo com o pequeno corredor, onde
tem três portas. Umas delas era a que eu estava dentro. Vou em
silêncio até a outra porta e entro. Assim que estou dentro, vejo que
acertei o banheiro.
Espero que o Marcos nunca descubra que estive na sala do
crime.
Tento normalizar a minha respiração e não demonstrar que
estive chorando. Se o Mancha teve coragem de matar todas
aquelas pessoas, ele não hesitará em me matar, assim como ele já
disse.
Vou até a pia e encho as minhas mãos de água, lavando o
meu rosto e pescoço. Deixo que a água gelada leve as minhas
aflições e os acontecimentos recentes que não estão se encaixando
em minha cabeça. Tenho que me mostrar calma ou o Marcos logo
terá conhecimento do que eu tinha visto.
Fico em silêncio por alguns instantes e penso no que devo
fazer. Com o meu silêncio, percebo que nenhum som está vindo da
sala. Constato que talvez o Coringa tenha terminado.
Abro a porta e vou em direção a sala, mas como diz o
Coringa, estou sempre atraindo problemas e, logo vejo que ele
ainda está lá.
Ele não está conseguindo tirar a bala. O sangue está se
espalhando e o Coringa está ficando nervoso. Percebo pelo modo
em que braveja.
— Filho da puta! — Marcos rosna entredentes.
Mancha segura uma garrafa de vodca, soltando a sua cartilha
de palavras que eu nunca ousaria dizer.
— Logo a minha mãe, Marcos?!
— Xingo quem eu quiser, porra! — "bem a cara dele mesmo".
— Mancha... — analiso o seu rosto lívido.
— É um caralho mesmo! Eu mandei você ficar lá! — ele
aponta para o corredor.
Acredito que todo o líquido alcoólico que ele está
consumindo, está afetando a sua cabeça, pois as suas palavras
estão saindo arrastadas e confusas.
— Kaique! Ela está me deixando louco, cara! Louco! — se
não estivéssemos em um momento sério, eu estaria rindo.
— Cala a boca, Marcos! — Coringa responde autoritário.
— Não está conseguindo tirar? — ignoro-o e aponto para o
ferimento.
— Minhas mãos são grandes, não consigo segurar essa
porra — ele mostra uma pinça.
Puxo ar para os meus pulmões fortemente.
— Deixe eu tentar.
— Você não vai saber fazer isso! — Marcos fala algo
coerente.
— Quer ir para o hospital?
— Não, porra!
— Então, sou a sua única opção.
Marcos olha para o buraco da bala em seu abdômen e
parece pensar, mas assente.
— Me passa a pinça, Coringa — peço.
Mesmo estando bêbado, ele parece me observar
atentamente, como se quisesse memorizar cada detalhe. Por um
instante, ele dá a impressão de estar calmo.
— Não olhe para ela, caralho! — ouço ele esbravejar.
— Vai se foder, Marcos!
Tento não prestar atenção no repentino ataque do Marcos e
as respostas arrogantes do Coringa. O temperamento dos dois não
me ajudam em nada.
— Tem como parar? Eu nunca fiz isso!
Os dois se calam.
Limpo o local e consigo ver onde a bala está alojada. Pego a
pinça e a puxo.
— PORRA!
— De nada.
Respiro e inspiro.
Não consigo acreditar no que acabei de fazer.
Observo o buraco que ficou e não sei o que fazer com isso.
— Deixa que eu termino — Coringa se aproxima.
Me levanto e vejo-o costurar a pele do Marcos, enquanto ele
se mantem emburrado.
Ele costura, limpa e faz um curativo. Até poderia dar um
remédio para ele, mas não fará efeito com o tanto de álcool que tem
em seu organismo.
— Vou indo — Coringa se pronuncia.
— Depois vamos ter uma conversinha — o olhar lançado a
Coringa me fez tremer.
— Não tem conversa, cara. Vai dormir!
A forma em que o Coringa responde o Marcos, me causa
estranhamento. Ele não tem medo, muito menos deixa que os
olhares furiosos do Marcos tenham efeito sobre ele. Coringa
simplesmente responde e não se importa.
Assim que ele vai embora, penso no que devo fazer. Esta
noite está sendo demais para a minha cabeça, mas depois que o
Marcos entrou em minha vida, nada tem sido normal.
Pego as coisas que eu trouxe de casa e vou até ele. Me
sento ao seu lado e limpo todo o sangue pelo seu abdômen, que
neste momento já está seco.
Após terminar, recolho os objetos sujos e vou até a cozinha.
Busco por uma sacola plástica, quando encontro, despejo tudo
dentro e jogo no lixo. Volto para a sala e guardo os materiais que
restou na bolsa.
Enquanto me movimento, sinto o peso dos seus olhos em
mim. Ele não diz nada, mas continua observando cada passo.
— Você entrou no quarto errado, gatinha — desta vez, me
viro, me deparando diretamente com o seu rosto sério.
Por um momento, perco os movimentos das minhas pernas.
— Que bom que encontrou o certo — ironia transborda por
suas palavras. — Nunca mais entre lá.
Continuo muda.
— E mais uma coisa — ele consegue se levantar. — Nunca
se esqueça que é minha.
— Você é um idiota.
— Sei disso — ele desliza os seus olhos pelas minhas
pernas. — Você disse que ia cuidar de mim...
O homem em minha frente parece estar carente de atenção e
a bebida deve ter liberado está parte em que ele esconde.
Realmente, este não é o Mancha que conheço.
— É o que estou fazendo.
— Você nem tirou a roupa — meus olhos se arregalaram.
— Cuidados não se baseiam em sexo, Marcos — digo na
esperança que ele entenda. — Posso cuidar de você somente te
olhando.
Ele me parece confuso.
Não posso afirmar, mas este homem não teve nada que
pudesse ser igualado com amor, afeto ou qualquer sentimento do
tipo. Mesmo ele pensando que consegue esconder tudo atrás da
sua frieza e arrogância, sei que ele não chegou a ter nem metade
do que tive em minha vida, mesmo sendo privada dos privilégios
materiais.
— Você está com fome? — mudo de assunto.
— Sim.
Preciso fugir por um momento.
— Ah... Camilla? — ouço-o me chamar.
Me viro e vejo que ele está me encarando de cima a baixo.
— Eu também cuido de você.

Estou lavando as folhas de alface, distraidamente, quando a


sua voz grossa me assusta.
— Gosto de tomate — ainda concentrada no que estou
fazendo, paro e analiso o que ouvi.
O tom de voz que ele usou não é autoritária, um mandado ou
uma exigência. Ele somente disse algo normal, em um tom brando.
Talvez eu devesse ser menos flexível em relação as coisas que ele
fala, mas simplesmente faço, sem pensar.
Mesmo que eu responda e que sempre me mantenha firme
com as minhas opiniões, tenho consciência de que acabo sendo e
fazendo o que ele quer. Não sei explicar ou bloquear o que sinto,
mas sei ou pelo menos acredito que sei, que ele mesmo com muitos
segredos e com tudo o que vi, Marcos não parece um homem ruim.
Ele poderia ter deixado que a Gizele concluísse o seu plano
de me envergonhar. Ele poderia fingir que não sabia das situações
que se encontravam na minha casa. Ele não deixaria que um
menino de três anos se afeiçoasse a ele e, muito menos, me daria
abertura para respondê-lo sem deixar um hematoma em meu rosto.
Tem algo nele que me faz acreditar, que me faz voltar atrás.
Não consigo fazer o mesmo com ele, quando diz palavras
maldosas ou quando tem atitudes que me machucam. Ele nunca me
disse desculpas ou me mostrou estar arrependido, mas sigo
acreditando em uma esperança. Assim como ele apareceu de
repente, uma mudança também pode vir, de repente.
Penso na Gizele sendo uma distração, no homem na foto
com a descrição de morto, no Marcos sendo um advogado... e no
quanto ainda tenho que descobrir. Não posso perguntar para ele,
por que sei que ele não vai me responder. Será perca de tempo
questioná-lo.
Pisco algumas vezes, tentando esquecer por hora dos
acontecimentos recentes.
Vou até a geladeira e pego alguns tomates, lavando-os em
seguida. Corto-os em fatias e os ponho junto com a alface.
Enquanto o macarrão cozinha, faço o molho. Também tinha achado
maracujá em meio as verduras e frutas na parte inferior da geladeira
e fiz um suco.
Após tudo pronto, me viro com dois pratos brancos em
minhas mãos e, levo novamente um susto ao perceber que o
Mancha está escorado na porta, me olhando. Aperto os pratos em
meu peito com medo de deixá-los cair.
Seus olhos estão direcionados para a minha barriga. Olho
para ela também. Constato que não tem nada demais. Volto a
encará-lo, notando que ele está congelado nesta parte do meu
corpo.
O momento se quebra rapidamente, os seus olhos se tornam
frios e as dúvidas se apossam novamente dos meus pensamentos.
Não me importando ou tentando não me importar, volto para
o que estava fazendo antes dele aparecer.
Posiciono os pratos, um na frente do outro, junto aos copos.
O macarrão ainda dentro da panela, está no centro, com a jarra de
suco natural e a tigela com a salada. Finalizo com os talheres e me
sento, esperando que ele faça o mesmo.
Não tenho certeza se coloco o seu prato, mas ao perceber o
seu olhar, entendo o que devo fazer. Ponho a comida e posiciono
em sua frente, enquanto isso, ele enche o seu copo com suco e
observo ele fazer o mesmo com o meu.
Como a minha comida lutando com a vontade de perguntar
sobre as coisas que vi, sobre o que ouvi e o que ele quer com tudo
isso.
— O que está te incomodando? — me assusto com a sua
pergunta.
— Nada.
Ele solta os seus talheres no prato e prende os seus olhos
em mim, me mostrando claramente que não engoliu a minha
resposta.
— O que está te incomodando, Camilla? — ele questiona
novamente, levantando as suas sobrancelhas em uma conotação
muda de impaciência.
— Você sabe o que eu vi! Meu pai e... — um soluço
inesperado interrompe as minhas palavras.
— Ele não era um pai! Não chore por ele — seus olhos
irradiam raiva pelo homem em que acreditei estar morto há anos. —
Você não precisa saber disso, pelo menos não agora.
— E quando vou saber? Ele era o meu pai, mereço saber! —
tento não me alterar.
— Ele não merece ser chamado assim! Eu sei o que aquele
filho da puta era, mas eu não quero que você saiba agora — ele
acredita ter posto um ponto final na conversa.
— Mas eu tenho direito de saber!
— Você tem, mas este não é o momento — ele insiste.
— E quando este momento chegará?!
— Não era para você ter entrado lá... — ele desvia do
assunto.
— Mas eu entrei e não posso simplesmente apagar tudo o
que vi!
Suas mãos somem por entre os seus cabelos, mostrando-me
que está começando a se estressar. Ele olha para o prato e logo me
encara.
— Você não vai saber! Você viu demais e não vou correr um
novo risco. Fui claro? — seu olhar escuro faz com que o meu corpo
se arrepie. — Você vai saber no momento certo, até lá, se conforme
com o que você tem.
— Marcos...
— Eu sei, Camilla. Eu sei que para você é confuso, mas
quanto menos souber, melhor.
Fico muda. Não tenho mais o que dizer. Lutar contra ele não
é uma opção, sei que será uma perca de tempo confrontá-lo.
Respiro fundo e limpo as minhas lágrimas ainda sob o seu
olhar. Perco a vontade de comer, mas é um desperdício e sei como
isso me fez falta por muitos dias, então, volto a comer.
Nós comemos em silêncio, Marcos repetiu o seu prato duas
vezes e, por algum motivo, me agradou ver que ele gostou.
Após terminar, lavo os pratos e vou ao banheiro.
Mancha está quieto, somente me observa. Perguntei se ainda
estava com dor e ele somente disse um simples não. Qualquer
movimento que eu faça, ele está ali, analisando. Seu olhar é
enigmático e avaliativo. Confesso que está me incomodando o seu
silêncio, mas ao mesmo tempo gosto dos seus olhos em mim, pois
sei que de alguma forma, é somente eu e ele. Sem aquelas pessoas
nos olhando e inventando situações que não existem ou
simplesmente aquela mulher que ele escolheu como sua. A
distração.
— Ouvi o que o Coringa disse — tento quebrar o silêncio.
— O que você ouviu? — ele ainda parece calmo.
— A Gizele é uma distração.
— Você acredita no que escutou?
— Não sei — sou sincera.
Ele parece pensar, mudando o foco dos seus olhos para um
ponto fixo.
— Por que você não foi atrás dela quando recebeu um tiro?
Ele se mantem em silêncio.
— Me responde, Marcos! Por que você faz isso comigo?
— POR QUE EU PRECISO! — ele grita, virando em minha
direção. — Você não vai entender agora, não adianta me perguntar
coisas que não vou poder responder!
Fecho os meus olhos por um momento e respiro calmamente.
— Não sei o que você esconde. Não sei o porquê de um
advogado estar neste lugar, fazendo parte de distribuição de drogas
e incentivando o tráfico. Eu não sei o que você planeja, mas pelo
menos seja sincero comigo.
— Posso ter errado, mas nunca menti para você.
Ele se levanta e some pelo corredor.
Me sento no sofá e encaro a TV.
Depois de um curto tempo, ele aparece, se senta ao meu
lado, segura a cabeça com as mãos e se mantem assim por alguns
minutos.
— Está sentindo alguma coisa? — pergunto.
Lembro-me do líquido em que ele estava ingerindo, mas que
parece ter sumido.
— Estou.
Penso em fazer outra pergunta, mas ele toma a frente.
— Quem é você? — ele questiona ainda com a sua cabeça
entre as suas mãos.
— Como? — respondo com uma outra pergunta.
Observo-o confusa, procurando os meus olhos.
— Quem é você? Por que você é assim? — ele parece mais
desorientado do que eu. — Você me pergunta por que estou
fazendo isso com você, mas você não tem ideia do que está
fazendo comigo!
Desta vez não respondo.
— Você é inocente, você... — ele parece estar atordoado.
— Isso tem a ver com as coisas daquele quarto?
— Esqueça o que você viu.
— Não quero entrar em uma discussão, mas não tem como
esquecer.
— Para o seu bem, esqueça — ele parece chateado.
— Não sei o que te falaram sobre mim, não sei os motivos
para você estar aqui, não sei por que eu continuo insistindo... talvez,
eu só não esperava... — gostar. Não consigo dizer a última palavra.
Ele parece entender o que eu quis dizer, mas não se
pronuncia. Ele apenas me olha, colando os seus lábios nos meus.
Sinto quando as suas mãos se espalham pelo meu corpo,
distribuindo sensações e calor para muitas regiões. Ele aperta os
meus quadris e os meus cabelos, me puxando para ele.
— Você está machucado — digo, quando consigo encontrar
ar.
— Não me importo.
Antes que eu possa dizer outra frase, sua boca está na minha
novamente, levando com ele qualquer linha de raciocínio. Sua mão
aperta os meus seios ainda por cima das minhas roupas, mas não
demora muito até que ele as arranque e coloque a sua boca,
fazendo-me gemer.
— Sobe em mim — ele se senta, me auxiliando.
Tiro a sua camisa e ele puxa o meu short, junto com a minha
calcinha. Ele parece com pressa e fome, mas o ferimento em seu
abdômen impossibilita algumas de suas ações, então, eu o ajudo a
tirar as suas calças, tendo a visão do seu pau duro, forte e
extremamente pronto.
— Senta — ele diz autoritário.
Suas mãos me agarram e eu me sento em suas pernas,
totalmente aberta e molhada.
— No meu rosto, Camilla — tento esconder a minha cara de
espanto e constrangimento. — Eu já vi tudo, já provei... não precisa
ficar com vergonha. Agora, vem!
Sinto que a minha boceta se torna ainda mais molhada.
Me movo em sua direção. Suas mãos impacientes me puxam
de encontro ao seu rosto, me dando a sensação da sua língua me
chupando, lambendo e me fazendo gritar. Ele segura a minha
bunda, fazendo-me firme em sua boca. Inconscientemente, percebo
que estou movimentando os meus quadris, em um vai e vem nos
seus lábios. Ele move a sua língua habilidosa em meu clitóris,
mordendo e chupando, enquanto seguro os seus cabelos.
Percebendo a frequência dos meus gemidos, ele introduz
dois dedos, fazendo o meu orgasmo mais fácil e rápido.
— Marcos! — seu nome ecoa pela sala, fazendo-me segurar
no sofá.
Respiro rápido, vendo-o me olhar.
— Agora você vai sentar, onde estava pensando...
Ainda com as pernas tremulas, mas com o pensamento e o
corpo pedindo mais, me movo até os seus quadris. Ele desliza a
camisinha pelo seu cumprimento, onde me sendo.
Desço lentamente, deixando com que mais gemidos se
espalhem pelo cômodo. Seu pau longo parece crescer ainda mais
dentro de mim, fazendo possível sentir até mesmo a grossa ponta
em meu útero.
— Segure em mim e sente com força.
As minhas bochechas coram, mas já estou sentada nele,
constrangimento não cabe neste momento.
Suas mãos sobem pelas laterais do meu corpo, até que uma
para em meu pescoço e a outra segura um dos meus seios. Meus
movimentos começam lentos, mas com as sensações e o prazer
crescente, acabo tornando a fricção em uma atividade rápida e
curta, fazendo com que ele não saia completamente.
Encaro os seus olhos que, também, não me deixam.
Observando desde os meus seios balançando, até o seu pau
entrando e saindo de mim. Noto que a sua respiração está ficando
irregular e acredito que a minha não deve estar diferente.
Ele aperta o meu pescoço, me auxiliando nos movimentos.
— Goza — sua voz sai firme, porém, baixa.
No mesmo instante, meus músculos apertam o seu pênis,
fazendo os seus movimentos ainda mais duros. Minhas pernas
tremem e a minha cabeça despenca em sua direção, sentindo-o
participar do mesmo prazer.
Assim que percebo que estou em cima do lugar em que ele
levou o tiro, me levanto, mas ele trata de me segurar.
— Não.
— Mas você está ferido.
— Já disse que não me importo. Só fique quieta.
13
MÁGOA
CAMILLA FERRAZ
Terça-feira, 10 de abril de 2018

Noite passada ele me abraçou. Me segurou em seus braços como


se pudesse me proteger do mundo. Ele ficou em silêncio, mas pude
senti-lo em cada centímetro do meu corpo. A calma na sua
respiração, as tensões sumirem dos seus músculos e a
tranquilidade nos seus movimentos. Suas atitudes expressivas
foram estranhas, mas gostei de sentir o seu cuidado silencioso.
Acordo com a sua cabeça na curva do meu pescoço,
enquanto as suas mãos me apertam. Acaricio os seus cabelos e,
pela primeira vez, percebo que ele está sereno, em um sono
profundo.
Sei que ele não merece, mas ele precisava deste momento.
Ele precisa de mim.
Ele matou pessoas, muitas pessoas. Machucou, feriu,
torturou, mas com tudo o que vi, ouvi e as atitudes que observei,
consigo entender que ele tem um motivo. E, preciso saber quais são
eles.
Ele é algo em minha vida que nem em meus pensamentos
mais profundos, seria capaz de imaginá-lo. Ele começou errado e
não sei se vai terminar da mesma forma, mas esta situação tomou
um rumo diferente, um caminho que não pensei que pudesse existir.
Ele conseguiu.
Me apaixonei por um assassino.
Percebo tarde demais que os meus sentimentos estão
descontrolados, ansiosos e eufóricos. Não tenho como parar este
sentimento e não sei como ele começou a acontecer. Estudos
comprovam que você pode se apaixonar em quatro minutos. No
meu caso, foram dias, ainda assim, rápido demais para conseguir
lidar com tantos sentimentos e uma pessoa extremamente difícil.
Me levanto e vou até o banheiro. Faço o que preciso e volto
para o quarto, percebendo que ele não está na cama, onde
terminamos o que teve início no sofá ontem.
Constato as horas e decido ir embora. Não consegui acordar
em tempo de ir para a escola, ainda assim, tenho o Bruno e a minha
mãe em casa que precisam de mim.
Procuro as minhas roupas e a bolsa que trouxe, me visto e
penduro a bolsa em meus ombros. Tento dar um jeito em meus
cabelos, mas parece não dar muito certo.
Assim que saio, vejo a porta que guarda a sala secreta. Sinto
vontade de voltar e procurar por respostas, mas acabo decidindo
não entrar em problemas. É o mais sensato a se fazer, depois de
uma noite incrível.
Procuro pelo Marcos, constatando que ele não está em
nenhum dos cômodos, então, vou de encontro a porta, mas a
decepção me surpreende assim que a abro.
Talvez fosse melhor não ter saído do quarto.
Marcos está no portão com a Gizele agarrada em seu
pescoço. Ele está de costas para mim, bloqueando a entrada. Noto
que diferente de poucos minutos trás, ele não está tão calmo.
Ele não quer que ela entre.
Continuo estática em meu lugar, somente observando os
efeitos que a imagem em minha frente está me causando.
Permaneço parada, até que noto os olhos da Gizele em mim. Eles
tem um misto de emoções que atravessam os meus. Raiva, inveja,
ira, ciúmes, mas depois de todos eles, veio a ironia, acompanhada
de um inusitado beijo. Ela segura firme a nuca do Marcos,
pressionando o seu rosto contra o dele.
A mesma boca que me beijou ontem.
— Quero repetir a nossa noite, bebê. Sinto a sua falta — ela
diz manhosa.
Noto que o Marcos vai responder, mas ela trata de tomar a
sua fala.
— Não precisa dizer o quanto gostou, só apareça na minha
cama novamente — o seu intuito de me atingir é realizado com
sucesso.
— Vai se foder, Gizele! — as mãos que me tocaram em todos
os lugares, empurra a Gizele para longe.
Aperto a minha bolsa em meu ombro, respiro fundo e passo
por eles, não me importando com o empurrão que dei. Gizele ri em
minhas costas, gritando coisas que não me interesso em prestar
atenção.
Distração.
Que merda de distração é esta?!
Sinto o meu coração doer, os meus sentimentos querem
gritar. Quero correr, fugir, fazer um monte de perguntas... mas
decido somente ir. Ele deixou claro que não pode me dar
exclusividade e, eu que sou a intrusa aqui.
Ouço quando o meu nome é dito em uma voz profunda, mas
não me importo. Não, agora.
Começo andando, mas quando percebo, estou correndo o
mais rápido que posso. Lágrimas ameaçam cair, mas me mantenho
firme. Ela não vai conseguir arrancar uma lágrima de mim.
Não vou chorar, não vou.
Fernanda me disse que hoje estaria de folga e, querendo um
tempo, corro para a sua casa, onde sei que ela poderá me ajudar.
Preciso conversar, desabafar, preciso contar o que anda
acontecendo e a Fernanda é a pessoa certa para isso.
Entro por vielas e ruas. Uma senhora está pintando o seu
cabelo de preto em sua calçada, havendo mais tinta em sua testa do
que em seus cabelos. Homens de moto passam vendendo gás e
vapores tomam as suas posições em frente aos comércios.
Dobro a esquina e avisto a casa laranja da Fernanda.
— Não era para você estar na escola? — Fernanda fala,
assim que abre o portão.
— Sim.
Deve estar estampado em meu rosto o que estou sentindo,
pois a Fernanda me abraça, me confortando. Ela sabe que algo não
está certo. Ela me puxa para dentro, me levando até a cozinha,
onde a sua mãe está preparando o café.
— Bom dia! — falo sem graça por estar a essa hora em sua
casa.
O horário que as pessoas não querem ver ninguém.
— Bom dia, filha! — dona Maria sorri para mim, beijando o
meu rosto.
— Bom dia! — ouço a voz do Izac.
— Vou lá para cima, mãe. Quando estiver pronto, me chama!
Dona Maria rapidamente me olha preocupada, ela também
sabe que não estou bem, até porque não é normal eu aparecer
neste horário.
— Sua mãe está bem?
— Está sim, dona Maria. Ela está melhorando — ela parece
aliviada, mas ainda posso perceber que não está totalmente
convencida. — Vou fazer uma visita para ela qualquer dia desses.
— Vá sim, ela vai gostar muito — sorrio.
Subimos para a laje e me sento em um bloco, vendo a
Fernanda fazer o mesmo. Não espero que me pergunte ou me
questione sobre qualquer coisa, somente despejo tudo o que vem
acontecendo, não me esquecendo de nenhum detalhe. Conto desde
a minha primeira vez, até os acontecimentos recentes. Logo me
sinto aliviada, somente em compartilhar algo que era somente meu.
— Gizele? Uma distração? — Fernanda parece chocada. —
Você escutou certo?
— Claro que sim! Até cheguei a questionar ele sobre isso e
ele não negou.
— Esse cara é ainda pior do que pensei!
— Ele é um advogado conhecido, respeitado... o que ele está
fazendo aqui?
— Qual é o sobrenome dele mesmo? — Fernanda me
pergunta, abrindo o Google em seu celular.
— Valentini.
Ela digita e desliza o seu dedo na tela rapidamente.
— Não tem nada sobre Marcos Henrique Valentini, Doutor
Marcos Henrique Valentini, fodão do Complexo do Alemão Valentini,
ou Mancha matador escroto Valentini — ela diz, tentando várias
combinações. — Ele é tão poderoso a ponto de apagar o seu nome
da internet?
— Não sei, mas eu vi. Eu vi ele nos jornais e em um monte
de matérias.
— Não estou duvidando de você, estou chocada com a
influência deste cara. Sempre achei ele misterioso, estranho,
egocêntrico, mas um advogado? Esse cara é completamente louco
ou inteligente!
— Por que acha ele tão inteligente? — questiono.
— Estamos em um espaço fechado, quem domina este lugar,
tem conhecimento sobre os que entram e os que saem. Ele pode
fazer com que aconteça coisas que somente ele vai poder lidar.
Mídia, polícia, nada entra sem a permissão dele. Se entrar sem ser
convidado, é chumbo grosso.
— Você acredita que eu possa fazer parte dos planos dele?
— Ele chegou a três meses e no terceiro mês, ele inventou
aquele "evento" que não consigo engolir até hoje.
— Tem algum palpite?
— Não. Mas sei que ele está te protegendo ou não teria o
porquê daquela vaca ser uma distração.
— Proteção...
Penso nas vezes em que ele esteve me seguindo, nos seus
avisos e em suas atitudes.
— Uma coisa é certa, ele quer você!
— Me quer, deixando que a Gizele me humilhe?
— Talvez este seja o plano — faço uma cara interrogativa. —
Ele precisa que alguém acredite que você é um brinquedo.
— Ele está se saindo muito bem...
— Talvez, não. Caso contrário, o Coringa não teria dito que
ela não é mais uma distração.
Marcos não é um simples morador que tem uma grande força
nas decisões do Complexo. Ele não está aqui pelo dinheiro ou
drogas.
— Você é brilhante, Fernanda. Sou lenta demais para
entender coisas complexas.
— Sempre estarei aqui para tentar clarear os seus
pensamentos — ela segura o riso.
Ela me abraça e escutamos a dona Maria chamando.
Descemos sentindo o cheio de café fresquinho, que está se
espalhando por todos os cantos da casa. Nos sentamos e
começamos a comer. Fernanda não toca mais no assunto em que
estávamos conversando e isso me faz ficar agradecida.
— Que milagre é esse Izac? Limpando o tênis sem a mãe
brigar que o seu chulé está impregnando na casa — ela diz,
passando manteiga no pão.
— Vai a merda, Fernanda!
— Quem é a garota? — ela insiste.
— Pode nem limpar mais a porra do tênis — ele resmunga.
— A porra do tênis pode até ser limpo, mas sem uma briga
antes, não.
— Hoje é o aniversário do Rogerinho, a Laura vai estar lá.
— Se não matar de amor, mata com o cheiro podre do seu pé
— ele murmura em resposta.
Tento prender o riso.
— Eu vou, vamos? — ela fala sobre a festa, depois de um
tempo em silêncio.
— Não fui convidada.
— E você acha que todos que vão estar lá são convidados?
É um baile com um pretexto.
Fico quieta, pensando sobre ir ou não. Não sei se é uma boa
ideia, da última vez as coisas tomaram um rumo nada bom.
— Pega o dinheiro que ele te deu e vamos comprar algumas
roupas para você. Mostre para ele que você está bem e para a vaca
da Gizele também.
Sei que não preciso provar nada a ninguém, mas as
palavras da Fernanda me agradou. Talvez eu precise disso.
Faz alguns dias que o Marcos vem me mandando dinheiro.
Como ele não aceita devolução, decidi doar para a igreja e para o
hospital que a mamãe faz tratamento, mas ainda tenho um pouco
guardado.
Depois do café da manhã e de estar me sentindo bem com a
conversa que tivemos, saímos para a minha casa. Assim que
chegamos lá, constato que a minha mãe está bem e me certifico se
posso sair. Minha mãe fica feliz com a minha empolgação e me
assegura que tudo ficará bem.
Tomo um banho e procuro pelo dinheiro, partindo para fora do
Morro.
Minutos depois, estamos chegando a última rua para o
asfalto, quando um dos mandantes olha para mim e, ao mesmo
tempo, pega o seu rádio. Certamente, está comunicando o Mancha
que estou saindo.
Esperamos o ônibus no ponto. Descemos no centro, onde se
concentra grande parte das lojas. Entrei em uma após a outra, me
sentindo excitada com toda aquela experiência que nunca tive.
Compramos várias coisas para mim, Bruno, minha mãe, Fernanda,
até o Izac saiu ganhando.
Se todos estiveram nos meus dias ruins, logicamente devem
estar nos meus dias bons.
Paramos em uma lanchonete e pedimos salgados com suco
natural. Comemos, rimos, relembramos histórias, até que decidimos
voltar. Pegamos o ônibus, que desta vez demorou alguns minutos,
mas que fez o trajeto rápido.
Ao chegar na entrada do Complexo, meu sangue gela em
minhas veias, mas trato de manter a calma.
Marcos, Coringa, o Pedro e mais um vapor estão na entrada.
Eles parecem não nos ver e agradeço por isso, mas ouço a voz do
Pedro nos gritar e sei que isso não será bom.
Sinto o peso do olhar do Marcos em minha direção, não ouso
retribuir a mesma atenção. Sei que ele vai perder o controle e, se eu
olhar, será pior.
Noto quando o Pedro se aproxima depressa, sorrindo
abertamente.
— Caralho, Fernanda! Não sabia que ainda morava aqui —
ele diz abraçando ela.
— E eu vou para onde, zé galinha? — Fernanda o chama
pelo seu apelido.
Pedro roubava galinhas quando era pequeno, até a Gabriela
foi uma das suas vítimas. Ela chorou muito quando soube que a
Larissa virou canja.
— Você não esquece nada em, Fernanda? — ele diz rindo.
— Uma das minhas qualidades — ela revira os olhos.
Dou risada, enquanto eles continuam se zoando.
— Não estou achando nada engraçado — o momento de
risos cessou. — Desenrola o motivo da graça, para eu rir também.
O deboche escorre por suas palavras.
Ouvir a sua voz grossa, forte e potente faz o meu cérebro e o
resto do meu corpo reagir instantaneamente. A sua presença
dominante acerta o sinalizador de perigo em nossos
subconscientes.
— Foi mal, chefe. Só vim falar com as gatas aqui — "gatas
não, Pedro. Gatas, não".
O rosto do Marcos se torna vermelho, raiva pura se instala
sobre as suas feições.
— Não! — aviso, olhando-o.
Sei o que ele está pensando e não é bom. Seus olhos
perfuram os meus e a ira triplica.
— Você está protegendo ele?
Puxo todo o ar que posso para os meus pulmões.
— Está não é a questão, Marcos... — rapidamente formulo
algo para dizer, mas sou interrompida por uma Fernanda nada
contente.
— A gente se conhece a tempos, Mancha. Se estamos rindo,
o motivo é nosso. Logicamente, você não vai entender! — o espírito
de barraqueira da Fernanda está em download.
Naquele momento, desejei não ter saído de casa, nem
mesmo da minha cama.
Até o momento, não encontrei um Marcos compreensível e
saber que a Fernanda está afrontando um homem como ele, não
me faz ter segurança no que pode acontecer. Sei do que o Marcos é
capaz e, também, que o Pedro e a Fernanda não são nada para ele.
Assim como eu.
Estou convencida de que o Marcos já passou por muitos más
lençóis, pois não consigo acreditar que ele simplesmente nasceu
desta forma. Pude ver o que ele fez. As imagens e fotos, ele em
algumas delas... não posso deixar que ele machuque os meus
amigos, pessoas que eu me importo.
Observo a Fernanda confrontar ele, não se lembrando de
tudo o que conversamos mais cedo. Sei que ela não vai abaixar a
guarda e o Marcos também não.
Dirijo o meu olhar para ele, analisando cada reação ao
escutá-la.
É neste instante, que me surpreendo em como consigo ler as
expressões, os movimentos e, até mesmo, os possíveis
pensamentos do Marcos. A forma em que me olha, o modo em que
a veia em sua fronte se intensifica quando está com raiva, quando
os seus punhos se fecham em um aviso silencioso que está no
limite, ou, até mesmo, quando os seus dedos se perdem em seus
cabelos, enquanto busca paciência.
Como pude me apegar tanto, ao ponto de entender coisas
em apenas um olhar?! Me pergunto quando tudo isso começou a
acontecer, pois, realmente, não sei.
Seus olhos estão firmes em mim. Seu peito forte coberto por
uma polo preta, sobe e desce, sinalizando a fúria contida em seu
corpo. Embora o Mancha seja um homem sem paciência e com uma
grande habilidade em torna-se um touro raivoso em segundos,
ainda assim, ele tem um amplo controle.
Confesso que isso me deixa perturbada. Quando está perto
de mim, aparenta sempre estar na borda, seja para qualquer
situação. Sempre com raiva, irado, furioso, confuso... parece até
que, somente ao meu lado ele demonstra algum tipo de sentimento,
mesmo que este seja o pior que ele tenha.
Tenho percebido que, ultimamente, ele tem se mostrado
alguém diferente, com um temperamento que não pode ser mudado,
mas que está se descobrindo. Falo isso por estar observando as
suas ações, por ver que ele está descobrindo sentimentos que estão
longe de ser relacionados com violência, intimidação e hostilidade.
Marcos é um quebra-cabeça e estou com o dever de resolver este
problema.
— Quem é você? — o modo em que ele diz, entende-se
como uma forma de mostrar quem é que manda, pois ele sabe
quem é ela.
— Não importa — ela responde.
Fernanda, com a sua personalidade forte, me salvou muitas
vezes. Por crescer sendo uma garota tímida, acabei tendo muitas
dificuldades. As pessoas viam uma forma de poder me atingir,
achavam que eu não teria reação. Minha mãe percebeu isso e a
Fernanda também.
Minha mãe me ensinou a ser gentil, mas saber como me
impor. E, a Fernanda, era os meus braços, quando me posicionava
e as pessoas não aceitavam e partiam para a agressão.
Vejo quando o Marcos vai para cima da Fernanda e ela não
se move. Ela não vai fugir, somente vai esperar que ele caia em sua
provocação. Coringa e eu fomos rápidos. Enquanto ele tenta
segurar o Marcos, gritando para que os outros vapores venham nos
ajudar, a Fernanda continua calma, somente esperando o impacto.
Curiosos começam a aparecer. Muitos falam alto, outros
somente cochicham, pude visualizar até mesmo algumas pessoas
em suas janelas observando a cena.
— Me solta, caralho! — ele rosna furioso.
Mesmo com quatro homens o segurando, Marcos parece
ainda mais difícil e relutante.
Dois dos homens vão ao chão, desferindo socos bruscos e
rápidos, jogando-os longe. Vejo-o ir fazer o mesmo com os outros,
mas o medo em seus rostos faz com que o soltem rapidamente,
para que não sejam os próximos com vergões no rosto.
Fernanda, após vê-lo solto, arregala os olhos, pois sabe que
o Marcos não medirá esforços para colocar ordem em seu ambiente
e manter o respeito que todos devem ter.
Ele se aproxima da Fernanda.
— Você deve ter respeito, garota!
— Eu respeito quem eu quero e você não é um deles!
Observando, parece até palavras de uma mulher mimada,
mas, não. Fernanda, assim como eu, já foi muito judiada. Respeito
para ela é algo que poucos merecem, principalmente, para um
homem como o Marcos. Ela lutou muito para estruturar a sua saúde
mental, não será o Mancha que irá conseguir desestabilizá-la.
Fernanda foi abusada pelo próprio pai e o amigo dele. Os
dois a ameaçou e fizeram ela assumir um relacionamento com o
Geraldo, o amigo, para que ninguém desconfiasse que o seu pai
estava no meio. Isso durou dois anos, até que o Izac e a sua mãe
descobriram e avisaram o comando antigo. Os dois foram mortos
brutalmente.
Não sei o que ela passou, mas não há dúvidas sobre a sua
força. Ela não vai ceder.
Todos já se encontram atentos, enquanto o dono do Morro
monstra, pela primeira vez, quem realmente é quem manda.
Crianças que brincavam a minutos atrás, agora nos
observam atentos, assim como os adultos, animados para
compartilhar o que o dono está fazendo. Pude visualizar um jovem
com o celular em mãos, mas um dos comparsas do Mancha joga o
objeto no chão, partindo-o em vários pedaços.
O aviso foi dado aos demais.
Não posso medir força com ele, mas tenho que fazer algo.
Não posso deixar que ele machuque a Fernanda.
— Você não tem o direito de usar as pessoas desta forma.
Você sangra como qualquer outro, isso te faz igual e não melhor! —
ela continua falando, não se importando com a plateia.
Noto que o Marcos olha para o Pedro enigmático, talvez
esperando por uma reação ou qualquer outra coisa, mas ele não faz
nada.
Mancha diz algo baixo que nem mesmo a Fernanda
consegue ouvir.
— Você é um filho da puta, que...
Marcos é o fogo e a Fernanda jogou a gasolina quando falou
da mãe dele.
Sua cabeça se vira em direção a ela, elevando a sua mão
direita, indo de encontro ao rosto da minha amiga. Antes que ele
possa atingir o seu alvo, jogo-me na frente da Fernanda, levando o
tapa estralado.
Sinto o impacto da sua grossa mão em contato com o meu
rosto, fazendo com que o meu corpo se impulsione para trás. Antes
que ele possa fazer qualquer movimento, aperto os meus braços ao
seu redor, afundando o meu rosto em seu peito.
— Marcos! Por favor, não! Por favor... — falo rapidamente,
sentindo a dor ardente em meu rosto, abraçando-o forte, tentando
afastá-lo da Fernanda.
Com os meus olhos fechados, sentindo as gotas finas
descerem pelo meu rosto, aperto os meus braços em torno da sua
cintura. Enterro o meu rosto em seu peito para que ele não veja o
meu estado, repetindo as mesmas palavras.
Para a minha surpresa, sinto quando os seus braços fortes
apertam as minhas costas. Seu peito desce e sobe fortemente. Me
assusto com a sua reação carinhosa.
Suas mãos sobem, até que pegam o meu rosto, fazendo o
meu olhar cair de encontro ao seu. Ele analisa o meu rosto, parando
em um ponto fixo em minha face. O lugar onde o tapa foi desferido.
— Caralho! — ele parece nervoso com o que fez.
Seus dedos passam pelo lugar, mantenho os meus olhos em
suas reações. E, sendo sincera, estou gostando de ver a
preocupação em seus olhos.
— Não precisa ser assim. Você pode conseguir respeito, mas
não desta forma — tento.
Ouvindo as minhas palavras, fez a máscara fria tomar o seu
rosto. Ele parece ter ciência de que estamos sendo observados.
— Acabou o show, caralho! Bora! Circulando! — ele grita,
fazendo todos andarem como baratas tontas entorno uma das
outras. — Não é a primeira vez que vou te dizer isso, mas gostaria
que tudo fosse diferente.
As oscilações de humor do Marcos me incomoda, mas a
cada uma delas, eu percebo a dificuldade que ele tem em lidar com
os sentimentos. Gostaria de poder ajudá-lo em relação a isso.
— Certo — a única coisa que sai.
Voltando a olhar para a Fernanda, que aparenta estar
chocada com tudo, me aproximo e agarro em sua mão.
— Você está bem? — pergunto preocupada.
— Você está bem? — ela devolve a pergunta.
— Sim.
— Vamos sair daqui! — ela diz rapidamente, focando os seus
olhos somente em mim.
— Vamos.
Depressa, me viro, lembrando do Pedro. Assim que o
encontro, percebo a frieza em sua feição e nos seus movimentos. A
sensação que corre pelo meu corpo não é das melhores.
— Gustavo! Leva o Pedro para a boca três — Marcos manda.
— O que você vai fazer com ele? — pergunto vacilante.
— Se preocupe com algo que lhe diz respeito.
— Vamos, Camilla! Não vale apena! — Fernanda me chama,
puxando o meu braço.
Parece que a coragem da Fernanda foi para o ralo, pois não
ousa ao menos olhá-lo. Talvez alguns traumas tenham voltado.
Torço que não.
Mexer com o Marcos não é a mesma coisa que me defender
das garotinhas invejosas da escola. Não há um jeito de me proteger
dele.
Querendo fugir, me viro em direção ao asfalto, onde vamos
pegar o ônibus para ir novamente para o centro ou qualquer outro
lugar. Não vou ficar aqui. Ele precisa entender que não manda nas
minhas roupas, para onde vou e, que, muito menos, pode ameaçar
os meus amigos e continuar acreditando que ficará tudo bem.
Minha maior riqueza são as pessoas, não posso
simplesmente deixar que ele as machuque para que o seu ego se
mantenha intacto. Marcos pode até precisar de mim, querer me
proteger ou seja lá qual for os seus planos... ele ainda é um homem
arrogante, perigoso e que não pode tratar quem eu amo desta
forma. Muito mesmo a garota que não me deixou passar fome.
Talvez ele não tenha prioridades em sua vida, mas eu tenho e
espero que ele respeite.
— Para onde você vai? — ele pergunta, assim que me vê
indo em direção contrária.
— Para um lugar que não lhe diz respeito.
14
CORAGEM
CAMILLA FERRAZ
Ainda, terça-feira – 10 de abril de 2018

Sinto o meu rosto arder e, certamente, deve estar vermelho. Não me


importo em passar vergonha, somente quero sair daqui. Não quero
ir para casa após toda aquela cena. Marcos deu motivos novamente
para que falem de mim.
Descemos sendo acompanhadas por muitos olhares, mas
tratamos de ignorar. Fernanda insistiu que voltássemos e que
devíamos passar algo no meu rosto, mas me mantive firme com a
minha decisão.
Sabendo que em meu bolso traseiro ainda contém uma
quantidade em dinheiro, ligo para a minha mãe, pedindo para que
ela peça para o Matheus — o filho da vizinha de quinze anos, que
trabalhava como mototáxi —, traga o Bruno até onde estou.
Dias atrás, comprei um celular para a minha mãe. O fato de
eu estar longe ou acontecer algo com o Bruno e não ter um modo
de comunicação, me fez fazer está compra.
Paramos mais uma vez no ponto de ônibus e esperamos o
Bruno.
— Ele é pior do que pensei! — Fernanda sussurra mais uma
vez, para que outras pessoas que também esperam o ônibus não
ouçam.
— Você pagou para ver! — respondo.
Não estou defendendo o Marcos, mas ele já se mostrou
capaz de fazer coisas piores, que vão além de um tapa e palavras
ofensivas.
— Você acha que ele iria me matar? — sua pergunta faz com
que meu coração aperte.
— Não. Não acho. Porque ele iria ter que me matar também.
— Ele já mostrou se importar com você, logicamente não vai
te matar.
— Exatamente por isso que ele não iria te matar, porque eu
amo você. Machucar alguém que eu me importo, é igual a me ferir.
E ele sabe disso.
É invejável a força da Fernanda, mas sinto que de alguma
forma, Marcos conseguiu o seu medo.
— Não se menospreze, Fernanda. Muito menos deixe que o
seu passado queira tomar o controle. Você construiu os muros, não
de espaço para que ele entre — observo os seus olhos que estão
lacrimejando. — Você ensinou algo para ele hoje. Lealdade,
determinação e coragem. O Coringa também percebeu isso...
Ela me encara, não sabendo sobre o que estou dizendo.
— Você é incrível, ele seria um idiota se não te percebesse.
— Do que você está falando? — ela está confusa.
— Você vai saber...
Dirijo os meus olhos para a avenida, ouvindo as buzinas e
sentindo o cheiro de gasolina, enquanto noto os meus pensamentos
tomando forma.
Não passa muito tempo, até que eu veja a moto amarela
chamativa do Matheus, com um pequeno menino em sua frente,
com a cabeça cheia de cachinhos negros, rindo para o vento.
Meus lábios se abrem em um sorriso.
— Bruno não perde uma — ela ri.
— Ele adora uma moto.
— Mamãe! — Bruno me chama, estendendo os bracinhos
para mim.
A primeira vez que escutei o Bruno me chamar de mãe, foi
uma avalanche de confusão. Eu só tinha quinze anos, não sabia
nada sobre bebês, muito menos condições para criá-lo, mas por
alguma razão, soube que era o certo. Hoje é tão natural, como se eu
o tivesse gerado, esperado por nove meses e dado à luz a criança
mais incrível.
Sinto que no meu coração ele foi gerado, que o amor foi
construído e tudo o que sinto, é que o Bruno é o meu filho. Não
importa quem o esperou por meses ou o homem que o ajudou a ser
concebido. O Bruno é meu e ninguém pode dizer ao contrário.
Estendo as sacolas de compras para a Fernanda, pegando o
Bruno em meus braços. Procuro o dinheiro em meu bolso para
pagar o Matheus, mas ele ao ver a minha intenção, se recusa a
aceitar.
— Que isso, Camilla. Não precisa, não. Você ajuda muito a
gente — ele diz negando a minha mão estendida com o dinheiro.
— É o seu trabalho, Matheus. Aceite! — insisto.
— Não quero.
Assinto.
— Posso te pedir um favor? Você pode levar estas sacolas
para a minha casa? — peço.
— Claro — entrego e agradeço.
— Tchau, carinha! — ele muda de assunto.
— Tchau, carinha — Bruno tenta imitá-lo, fazendo um joinha
com os pequenos dedinhos.
— Então, obrigada! — agradeço.
— Precisando, estamos aí! — ele diz indo embora.
— Mamãe, dodói? — ele passa as mãozinhas em meu rosto.
— Eu caí, mas estou bem — respondo-o, colocando toda a
confiança em minhas palavras.
— Iaê, Bruno? Não fala mais comigo? — Fernanda reclama
ao meu lado, ganhando a atenção do pequeno em meus braços.
Matheus se mudou com a sua família para a casa ao lado da
minha faz algumas semanas. Seus pais estavam desempregados e
com o seguro-desemprego compraram a pequena casa.
Com três filhos e sem dinheiro, os pais do Matheus, Sérgio e
Vânia, acabaram que passando por uma situação semelhantes à
minha, mas eu estava lá, e estou, não iria deixar que passassem
pelo mesmo que eu.
Fernanda tem um primo que é dono de uma pequena
empresa anônima de mototáxi, ele somente contrata meninos de
quatorze a dezenove anos. Ele diz que este é um modo de tirar os
jovens do tráfico e das drogas, fazendo-os pegar o gosto pelo
trabalhar e dar valor ao seu suor.
Felizmente, Matheus é um menino esforçado, com uma
grande sede de aprender. Desta forma, rapidamente, desenvolveu a
habilidade de pilotar motos, até mesmo carros ele já está sabendo
como dirigir, simplesmente com a sua força de vontade.
— Mamãe, ônibus! — ele aponta para o grande veículo.
— Nós vamos para onde garota? — Fernanda me pergunta
confusa.
— Vamos levar o Bruno para passear.
Entramos no ônibus, pago as nossas passagens e passo o
Bruno por debaixo da catraca, onde a Fernanda o pegou do outro
lado. Sentamos no fundo e nos arrependemos no mesmo instante.
Sentamos bem em cima dos pneus, Fernanda a todo momento
reclama que os seus peitos estão doendo e do porquê de tantas
lombadas, enquanto o Bruno se diverte pulando.
— Mamãe! Girafa! Leão! — Bruno fala empolgado,
apontando para os grandes animais de plástico espalhados pela
grama.
Estamos em um parque, há um pequeno lago com alguns
patinhos que deixam o Bruno totalmente fascinado. Brinquedos
estão por toda parte, assim como quiosques com diversas
variedades de alimentos.
Coloco o Bruno na parte de cima do escorregador, enquanto
a Fernanda espera por ele na parte de baixo. Seus sorrisos
animados nos contagia, deixando-me feliz por vê-lo bem. Fizemos
este mesmo processo algumas vezes, até ele dizer que queria ir
para o outro brinquedo.
— Boa tarde! — ouço uma voz grossa atrás de mim.
Sinto quando a Fernanda me dá um leve chute.
Estava abaixada vendo o Bruno passar por dentro de um
túnel na cor verde, quando me viro, encarando um trio de homens
nos olhando. Fernanda responde, enquanto eu somente sorrio,
continuando com a minha atenção em Bruno, que já está na fila
para o outro brinquedo.
Noto quando um deles me analisa com um certo interesse,
mas não tenho certeza. O homem é bonito, alto, corpo atlético e
cabelos escuros. Totalmente diferente do Marcos, com os seus
grandes músculos e estrutura firme.
Não compare.
Não pense nele Marcos.
Você está com raiva dele.
Os três estão somente de shorts, com garrafas de água nas
mãos. Aqui é um bom lugar para caminhar e, certamente, eles
estavam fazendo isso.
— Difícil encontrar uma ruiva por aqui... — o moreno bonito
se pronuncia.
— Tem uma bem ali — aponto para uma mulher que está
acompanhada de duas crianças, também ruivas.
Sinto vontade de rir da cara que ele está fazendo, mas não
quero constrangê-lo, ainda mais. Seus amigos ao seu lado riem, não
se importando.
— Eu sou o Lucas, ele é o Gabriel e o cara das ruivas é o
Samuel — o loiro se apresenta e aos seus amigos, mas seus olhos
se dirigem para a Fernanda.
Será que é um sinal? Encontrar três homens com nomes
bíblicos?
— Eu sou a Fernanda e essa é a minha amiga, Camilla —
Fernanda toma a frente, porque sabe que eu não iria me apresentar.
Olho para trás e vejo que o Bruno não está conseguindo se
sentar no balanço. Não me importo em deixar os garotos lá,
somente vou até o Bruno, ajudando-o.
— Você é babá? — ouço novamente aquela voz.
— Por quê? — respondo não entendendo.
— O menino — ele sinaliza para o Bruno, que parece não
gostar da sua presença.
— Só por que ele é negro?
— Não... não — ele coça a cabeça.
— É meu filho — ajudo o Bruno a se movimentar no balanço.
— Caramba, não dou uma dentro — o cara está
completamente constrangido. — Me desculpa... eu só...
— Tudo bem, você não foi o primeiro a fazer está pergunta e
nem será o último.
— Mas... então, você é casada? — ele pergunta como se
estive pisando em ovos.
— Não.
— Mãe solteira?
— Sim.
Ele olha para o relógio em seu pulso e vira-se para trás. Vejo
quando os seus amigos retribuem o olhar.
— Você se incomoda em me passar o seu número? Prometo
que para fins profissionais e com um começo diferente — ele sorri
sincero.
Não sei quais são as suas intenções, mas eu gostaria de uma
nova amizade. Não que eu esteja insatisfeita com as minhas, não
custa nada conhecer gente nova. Ele me parece arrependido e uma
boa pessoa.
Passo o meu número de bom-grado e sou surpreendida com
um beijo em minha bochecha, logo vendo-o ir embora e a Fernanda
vindo em minha direção.
— Ele pediu o meu número — digo, assim que ela está em
minha frente.
— Você deu? — ela arregala os olhos.
— Sim.
— E se o Marcos souber?
— Ele não vai, eu acho.
— Você sabe que ele vai descobrir...
— Talvez ele seja um colecionador de números, ou daquele
tipo de cara que gosta de ver os status das garotas no WhatsApp.
— A sua inocência é incrível!
— Nossa, Fernanda... — falo em um tom ofendido.
— Você está ferrada! — ignoro.
— E você? — mudo de assunto.
— Eu nada, estou fora!
— Você sabe que vai aparecer um cara e que ele vai te fazer
muito feliz, né? Mas antes, você vai ter que deixar ele entrar no
seu coraçãozinho.
— Enquanto ele não aparece, meu coraçãozinho vai
continuar fechado.
Voltamos a nossa atenção para o Bruno, ajudando-o em
alguns brinquedos, entre risos e fotos para recordar.
Estávamos tão concentradas com a felicidade do Bruno, que
não nos demos conta que já tinha escurecido, somente caímos em
si, quando o Bruno reclamou, dizendo que estava com fome.
Próximo de onde estamos, há um quiosque. Nos
aproximamos e eu analiso a placa onde está todos os produtos
comercializados. Após pedirmos cachorro-quente com Coca-Cola,
sentamos em uma mesa de madeira e aguardamos.
— Bruno gastou todas as suas energias hoje — Fernanda diz
ao meu lado, vendo-o dormir em meu colo.
— É verdade.
— Ainda quer ir ao aniversário do Rogerinho? — Fernanda
me lembra.
— Você vai?
— Se você for, eu vou.
Fico em silêncio, pensando se é uma boa ideia.
— Confesso que depois de tudo o que aconteceu hoje cedo,
estou um pouco receosa, mas é exatamente por isso que eu quero
ir. Não posso deixar que o medo interfira no que eu gosto — ela
parece pensar. — Se eu não for, em outra vez também direi que
não. Porque o medo já terá uma outra proporção.
— Então, eu vou.
Após descer do ônibus, vamos em direção ao Complexo,
enquanto eu e a Fernanda revezamos o Bruno. Ele está pesado e
estando em duas, é mais fácil de levá-lo.
Vejo quando alguns vapores se comunicam, no mesmo
tempo em que nos observa.
— Ele sabe que chegamos...
— Como?
— Os vapores já avisaram.
— Eles sempre fazem isso?
— Sim.
— Quando me falaram que ele era controlador, não sabia que
era ao extremo.
— É exatamente isso o que ele quer, deixar que as pessoas
falem.
Após chegarmos em minha casa, entrego o lanche que
trouxemos para a minha mãe e a Fernanda me espera enquanto eu
dou um banho no Bruno e tomo o meu.
— Estou indo para a festa do Rogerinho. Qualquer coisa, me
ligue, meu celular está ligado — falo preocupada.
— Ligo, sim! — ela me garante.
Beijo o seu rosto e me despeço do Bruno, saindo em direção
da casa da Fernanda.
— Não sei como esta noite vai terminar, mas espero que
tenha um final melhor do que como começou — Fernanda diz,
enquanto subimos.
— Vamos fazer com que isso aconteça.

Normalmente não há festas pelo Complexo em dias da


semana, mas estamos aqui, indo para uma em plena terça-feira.
Estou usando um vestido curto, na cor creme, que deixam os
meus ombros nus. Ele se aperta em meu corpo, mas é confortável.
Em meus pés estão um par de saltos, simples e que são fáceis de
andar. Para finalizar, soltei os meus cabelos e passei gloss em meus
lábios.
Esta é a primeira vez que me arrumo, pra valer. Não pensava
que uma roupa nova poderia trazer tantos benefícios. Me sinto linda,
até mesmo segura.
Ando em direção à rua treze, ergo a minha cabeça. Não me
importo com quem esteja me olhando ou o que estejam falando. A
mudança não veio por conhecer o Marcos, é uma adaptação da
minha personalidade. Passei anos me escondendo, me sentindo
pequena.
Ergo a minha mão e seguro os dedos da Fernanda. Ela sorri.
— Estou com você.
Somos jovens, temos opiniões diferentes, jeitos distintos,
passados tristes, mas não podemos parar. Nossos medos são
apenas palavras, se não deixarmos que eles criem raízes.
Reparo nas pessoas, nos comerciantes e nas crianças
correndo pela rua. Senhoras tomando café na porta de casa, muitos
mexendo no celular, outros indo para a mesma direção que eu.
Chegamos à rua doze e podemos ouvir a batida potente das
músicas. Há uma variação de gêneros musicais, que até me anima,
pois sei a letra de algumas.
Fernanda cantarola baixo um sertanejo universitário, ainda
segurando a minha mão. Dobramos a esquina e avistamos as
dezenas de pessoas na rua. Certamente, a casa pequena do
Rogerinho não suporta a quantidade de indivíduos que estão por
aqui.
Há três paredões com caixas enormes de som, tornando a
comunicação limitada e a movimentação também, pois ocupam
bastante espaço.
Meus olhos varrem cada canto, sei que estou procurando por
ele, mas insisto em dizer para mim mesma que somente estou
observando o lugar. Fernanda parece fazer o mesmo, segurando em
sua outra mão o presente que trouxe para o Rogerinho.
— Amar é tão sagrado pra quem sabe amar... — canto, ao
ouvir a voz do Ferrugem saindo alto pelas caixas de som.
Fernanda continua a letra, tornando um dueto desafinado.
Noto que estamos chamando atenção, olhares maliciosos
queimam as nossas peles. Em outra situação, talvez eu estivesse
envergonhada, mas simplesmente disfarço e finjo não ver.
Meus olhos encontram um pequeno grupo de homens
bebendo e fumando, não me lembro de ter visto alguns deles por
aqui, mas fico atenta assim que me deparo com a loira platinada no
meio.
— O Marcos é liberal com ela, né? — Fernanda grita em meu
ouvido.
Distancio o meu olhar do grupo e volto a me concentrar na
Fernanda. Não a respondo, pois ela sabe qual é a minha resposta.
O cheiro da maconha está forte, fazendo-me acreditar que
não ficarei por muito tempo neste lugar. Sei que vai ficar pior com o
decorrer da noite.
— Rogerinho! — minha amiga o chama, abraçando-o.
Rogerinho é primo por parte de mãe da Fernanda, sendo um
dos seus parentes favoritos.
— Iaê, morena! — ele responde devolvendo o seu abraço. —
E você ruiva, não vai me parabenizar?
O felicito e o abraço. Não somos próximos, mas viver com a
Fernanda é estar sendo apresentada a uma pessoa diferente
diariamente.
Ela estende o pacote prateado e o entrega.
— Obrigado! — ele mostra um grande sorriso, com dentes
extremamente brancos.
O primo da Fernanda oferece uma batida com morangos e
aceitamos. O sabor doce com o álcool é maravilhoso quando bate
em minha língua.
Minutos depois, estamos em um grupo, onde os parentes e
os amigos do Izac estão. Minha amiga parece estar vivendo o
momento, dançando com as suas primas. Eu me balanço, tento
alguns passos, mas nada que chegue perto do que elas sabem
fazer.
Rimos, gritamos, esquecemos das pessoas, dos olhares, das
vozes, de tudo. Somente é a música e a gente. A bebida trouxe uma
coragem que estava guardada, porque, certamente, se não fosse o
álcool atravessando a minha corrente sanguínea, não estaria
fazendo nada disso.
Estou fazendo um coque em meus cabelos, quando noto a
Fernanda imóvel, olhando para algo que está além de mim. Mesmo
sem me virar, sei de quem se trata.
Sinto um formigamento se espalhar pela minha nuca,
descendo lentamente por cada fração de pele. Meu coração está
entrando em uma maratona.
— Ele não vai fazer nada — puxo ela para perto, tentando
passar confiança.
— Você desdenha da capacidade deste homem, Camilla.
— Não estamos fazendo nada de errado!
— Não sabemos o que é certo e o que é errado para ele! — o
pânico está tomando o seu rosto.
— Eu sei o que é certo e errado para mim, e isso não é
errado — a firmeza em minhas palavras parecem ter acalmado uma
parte do seu medo.
— Ele parece que vai estourar.
— Ignora ele.
Ela assente e para de olhar.
Fecho os meus olhos e me detenho em somente cantar e
entrar cada vez mais na playlist de músicas aleatórias, mesmo que
ainda esteja sentindo as diversas sensações inquietantes pelo meu
corpo.
— Estou te observando a um tempo. Você é incrível, ruiva —
o homem em minhas costas segura a minha cintura, roçando em
mim sem permissão.
Abro os meus olhos e me viro, tentando fugir do seu toque
desagradável. Em instantes, seus lábios se prendem nos meus, não
me dando chances de conseguir me afastar. Ele me agarra e me
prende em seus braços, forçando acesso. O empurro e forço os
meus braços contra ele, mas é rápido. Não dá tempo de alguém me
ajudar, pois tiros explodem por todos os lados.
O som se repete algumas vezes, sendo suficiente para que
todos circulem depressa. O homem que estava me segurando,
correu por entre as pessoas, sumindo da minha visão. Permaneço
inerte em meu lugar, somente ouvindo os disparos em câmera lenta,
até que sou puxada por mãos fortes, tirando-me da estagnação.
Constato que a Fernanda tenta me alcançar, mas o Marcos não
permite. Olhando-me profundamente.
Suas mãos seguram o meu rosto, fazendo com que a minha
atenção foque somente nele. Sinto que as lágrimas querem descer,
mas as seguro.
— Porra, Camilla! — pisco algumas vezes, mas não consigo
dizer nenhuma palavra. — Coringa leva a amiga dela!
— Eu vou com ela — consigo encontrar a minha voz. — O
Morro está sendo invadido...
— Invasão? — seu olhar parece me acusar de louca.
— Foi você? — minha voz soa incrédula.
Balanço a minha cabeça, não conseguindo entender.
— Não consegue ver o que a sua teimosia faz, caralho?
— Não vou ficar presa em seu domínio, Marcos.
— A questão não é essa, garota! Ele poderia ter te estuprado
e os seus amigos não iam poder fazer nada! — a sua ira invade
lentamente os meus pensamentos.
Ele passa as suas mãos nervosas em seu cabelo.
— De novo ela, Macha? — a voz irritante da Gizele nos
interrompe. — Eu te avisei, vadia!
— Seus avisos não têm embasamento, Gizele — ele diz não
a olhando.
— Vai chegar um dia que você não estará olhando... — a
energia das suas palavras são extremamente ruins, deixando o meu
corpo em alerta.
— Como você consegue ser tão estúpida a ponto de me
enfrentar?
— Estou defendendo o que é meu!
Assim que o som da sua voz chega aos meus ouvidos, sinto
vontade de vomitar. Ela é completamente sega e descontrolada.
— Você não está defendendo nada — me atrevo a dizer.
Ela se concentra em mim, deboche e ódio transbordam pelos
seus olhos.
— Já foram dois, quero ver até quando você vai aguentar —
sua voz carregada, semeia a dúvida e a preocupação.
Me volto para o Marcos querendo saber sobre o que ela está
dizendo, mas ele está concentrando toda a sua raiva nela. Se ele
tivesse algum poder, Gizele já teria virado pó.
— Vai para a sua casa! — o som feroz parece atingir o
mínimo de senso que esta mulher possa ter.
— Vem comigo? — ela incorpora a menina inocente.
— Vai para a droga da sua casa!
Procuro o ar, vendo-a obedecer.
Dou as costas para o Marcos, procurando a Fernanda, mas
percebo que as pessoas que estavam por aqui a minutos atrás,
desapareceram. Ainda tem pessoas que correm para várias
direções, enquanto outras pulam muros e fogem de uma possível,
porém, falsa, invasão.
— Está pensando que vai para onde?
— Vou embora.
— Claro que vai.
Ele me segura de repente e me carrega até a sua moto, onde
sou colocada em posição contrária. Marcos me encara fixamente,
não se importando que alguém possa nos ver. Ele sobe e posiciona
as minhas pernas em cima das suas, fazendo visível a minha
calcinha exposta por as minha pernas abertas. Mancha segura as
minhas coxas e as apertam.
— Como foi beijar outro cara? — ele parece interessado na
minha resposta.
— Fui forçada, Marcos — estou cética.
— É este o ponto da minha pergunta. Nunca vou te forçar a
algo que você não queira. Mesmo que eu seja controlador, vou
colocar as suas necessidades acima das minhas.
Sinto o seu toque onde aquele desconhecido tinha posto as
suas mãos, ele me aperta como se quisesse apagar o que aquele
homem fez.
A sua confissão faz com que uma batia do meu coração
falhe. Geralmente, ele usa as suas palavras como códigos e eu
tenho o trabalho de adivinhar, mas desta vez, ele se esforçou para
dizer algo que eu pudesse entender, sem questionamentos.
A sinceridade em seus olhos me deixam muda. Este não
parece o mesmo Marcos que conheci.
— Esta noite você é minha, como será em todos os dias da
sua vida.
Ele liga a moto e cola o seu corpo no meu. Por instinto,
posiciono a minha cabeça em seu pescoço, sentindo o seu cheiro e
repetindo as suas palavra possessivas em minha cabeça.
Não sei até quando vai durar, mas vou aproveitar cada
segundo. Posso estar cavando a minha própria cova, mas vou
arriscar.

Sinto o vento bater em meu rosto e cabelos, fazendo-os


dançar no ar. Meu corpo está quente em contato com o seu peitoral
rígido, enquanto ouço os seus batimentos acelerados. Consigo
sentir os seus músculos tensos e as suas coxas grossas onde estou
sentada. Seus braços esculpidos encostando nos meus ombros, ao
mesmo tempo que pilota a grande moto com agilidade.
Pela ausência de movimentação nas ruas, considero a ideia
de que já são mais de uma hora da manhã.
Com a adrenalina e os múltiplos sentimentos que estão me
rodeando, grudo os meus seios em seu corpo, querendo ainda mais
contato, se possível. Ele parece sentir a minha necessidade.
Estando em seus braços, não consigo pensar em qualquer
coisa que não seja ele, no quanto sinto a sua falta e como gostaria
de fugir nas vezes que o Marcos bonzinho dá espaço para o
Mancha malvado. Ainda assim, sei que ele nunca vai me deixar.
Fugir é algo que não é possível.
Mesmo o querendo, sei que tudo pode mudar em instantes.
Ainda não confio a ponto de saber que, ao amanhecer, ele
continuará sendo o mesmo homem que me diz palavras aprazíveis,
enquanto cuida do meu corpo. Em nenhuma das vezes ele me
negou prazer, pelo contrário, ele se importou com o que eu pudesse
sentir.
Nesta madrugada, quero sentir todas as emoções e
sensações, quero ele por inteiro. E, uma das minhas maiores
certezas, é que o Marcos vai realizar o meu desejo facilmente, com
maestria. Vou me aproveitar do álcool que corre pelo meu
organismo e fazer tudo o que sentir vontade.
Reparo que estamos indo por um caminho diferente. Pelo
que parece, ele tem casas por todos os lados, não deveria esperar
menos.
É obvio que ele não me levaria para a casa onde eu poderia
procurar por mais respostas.
Ele me leva para o outro lado do Complexo, onde não estou
acostumada a frequentar. Está é a parte mais alta do Morro, não só
de território, mas, também, de classes sociais. Por ser um bairro que
abriga uma grande quantidade de favelas, muitos acreditam que
todos os moradores são pobres, mas é um engano. Há uma parte
que acomoda indivíduos ainda mais ricos que famosos da TV, mas
não posso dizer que o dinheiro é limpo. Neste lado, há uma grande
concentração de vapores, onde só entram os permitidos e, assim
como tem uma lei para quem entra e quem sai, também há para os
moradores.
Essa deve ser a verdadeira casa dele.
Sobrados estão em maior quantidade, com extensos portões
de ferro. A rua é calçada com paralelepípedos e todas as luzes
estão impecáveis, não havendo um único poste com falhas. Parece
até um condomínio de luxo, só que na favela.
Esqueço das moradias e me concentro no Marcos. Ele ainda
não falou nada, mas o seu corpo rígido me diz exatamente o que ele
quer. Aperto as suas costas, voltando para os seus quadris, abrindo
ainda mais as minhas pernas ao seu redor.
— Porra, Camilla! — ele xinga entredentes.
Levo as minhas mãos para baixo, encontrando algo
extremamente grande.
Mordo os meus lábios.
Encosto a minha cabeça novamente em seu pescoço,
deixando beijos por toda a extensão da sua pele. Pouso uma das
minhas mãos em sua barriga, enquanto a outra passeia por sua
protuberância rígida. Seguro firme o seu monstruoso pau, vendo o
seu peito subir e descer rapidamente. Continuo com os meus
movimentos, até que sinto o zíper do seu jeans. Abro o material,
colocando a minha mão em contato direto com o seu longo pênis.
Deslizo os meus dedos pela cabeça grossa, sentindo-o
pegajoso, dando-me acesso para mais movimentos. Pressiono o
seu pau, escorregando a minha mão da ponta, até as bolas,
tornando a atividade cada vez mais rápida e resistente.
— Caralho! Vou causar um acidente, Camilla! — ele diminui a
velocidade.
Sei que ele não vai deixar que isso aconteça, então, continuo.
Intensifico as minhas ações, deixando ele ciente de que não vou
parar.
A adrenalina e a necessidade por alívio, me trouxe a coragem
que me faltava, deixando-me ainda mais animada com as reações e
o descontrole dele.
Circulo o meu indicador em sua glande, sentindo um líquido
sair, facilitando ainda mais os meus movimentos. Sinto as veias e o
quanto está ficando duro a cada investida. Ele xinga novamente,
seguido de quase um gemido rouco. Ele solta uma das suas mãos
da direção e a leva até a minha, apertando fortemente os meus
dedos em torno do seu membro.
— Você vai ter que fazer mais que passar a mão, gatinha.
— E o que devo fazer? — uso o tom de voz mais inocente.
— Chupar o meu pau, até as bolas — minha boceta se
contrai, vergonhosamente.
Suas palavras sujas causam efeitos capazes de conseguir
revirar os meus olhos em somente ouvi-las. Meu coração já não
sabe comandar o momento de estar calmo ou agitado. Ele tem
conhecimento sobre onde são os lugares que mais gosto de ser
tocada, as palavras que me excitam e em como o seu olhar
consegue me levar a lugares inimagináveis.
Meus sentidos se aguçavam, reconhecendo o único homem
que teve acesso ao meu corpo e ao meu coração.
Percebendo que o Marcos pode, realmente, se distrair e
causar um acidente, posiciono o seu pau dentro das suas calças e a
fecho. Ponho as minhas mãos em volta dos seus quadris e sorrio ao
saber que, Mancha está no mesmo barco que eu, se entregando ao
inevitável.
Não demora muito para que ele pare em frente a um sobrado.
Diferente dos outros, a casa é totalmente fechada, com câmeras e
muita segurança. Literalmente uma muralha. Ele desce e me puxa,
deixando-me em pé ao seu lado.
— Toma a chave, abre o portão — ele manda, entregando-
me o molho de chaves.
Demoro um pouco para descobrir qual é chave que abre o
portão, mas acabo achando. Após o portão estar aberto, Mancha
entra com a sua moto, estacionando ao lado de dois carros de luxo,
que nunca o vi dirigindo.
Não me importo, não conheço sobre carros e isso não muda
nada, a não ser um questionamento interno, mas nada que me
incomode.
Assim que a moto está em seu lugar, Marcos se vira,
olhando-me com fome. Ele se move rapidamente em minha direção,
com passadas duras e árduas. Quando está suficientemente perto,
ele tira as chaves da minha mão e vai ao portão, trancando-o.
Ele volta e abre a porta de vidro escuro, espera que eu passe
e acende as luzes, dando-me a visão de uma casa que nem em
meus sonhos mais criativos poderia imaginá-la.
O que este homem está fazendo aqui?!
Sua respiração é acelerada, ainda não se pronunciando.
Ele me analisa minuciosamente, enquanto continuo imóvel
esperando a sua reação ou uma chuvas de palavras que podem me
ferir, como também me surpreender.
— Você estava falando sério quando me mandou aquela
mensagem? — me recordo de quando ele me mandou o celular.
— Por que eu mandaria se não fosse? — suas sobrancelhas
contrastam com o seu olhar calmo.
— Por que você escolheu ela naquele dia? — deixo que as
palavras fluam, sem que eu possa pegá-las e me arrepender.
— Você sabe a resposta.
Sei que o que vou dizer irá irritá-lo, mas não vou ser mais
intimidada pela mulher que ele escolheu, mesmo sendo uma
distração ou qualquer outra coisa. Poderíamos estar na sua cama
ou até mesmo neste chão, dando continuidade para o que
começamos em sua moto. Entretanto, preciso ter um
posicionamento diante das situações que estão surgindo, enquanto
estou somente esperando que aconteçam, sem fazer nada.
— Enquanto você me esconder, vou ser solteira. Não vou me
importar com os seus ataques de fúria, muito menos me rebaixar
aquela mulher — seus olhos estão se tornando frios. — Não sei o
que ela quis dizer com segunda vez, mas eu tenho um filho e uma
mãe...
Ele dá um passo em minha direção, me dando a visão do seu
nariz puxando ar fortemente.
— Não sei quem é você, mas analisando bem... não sei nada
sobre você, ainda assim, conseguiu me fazer gostar, mas se você
quer um relacionamento aberto, terá que ser para ambos.
— Você acha mesmo que vou deixar alguém tocar em você?
— A minha necessidade no momento, é ser a sua mulher, e
só eu. Mas se você prefere ter duas, eu decido que vou ter quantos
eu quiser — a veia em sua têmpora está prestes a saltar, em
contraste com o seu rosto vermelho. — Você disse que colocará as
minhas necessidades acima das suas, espero que tenha entendido,
pois quando você decidiu vir atrás de mim, eu não estava sozinha.
Você pegou o pacote inteiro. Agora, cuide do que você assumiu
como responsabilidade.
15
DESEJO
CAMILLA FERRAZ
Quarta-feira, 11 de abril de 2018

— Você não é solteira — o som que me alcança é pacífico.


De tudo o que falei, ele escolhe uma mínima parte para
responder, ignorando todo o resto. Não sei se é uma forma de não
render o assunto ou se ele simplesmente decide argumentar com o
que lhe interessa. Talvez tenha a ver com aquele quarto e as
diversas coisas que ainda não posso saber.
— Eu sou — deixo que o silêncio paire, antes que eu possa
continuar. — Você está vendo esta mão? — mostro a minha mão
direita para ele. — Você está vendo alguma aliança aqui? Porque eu
não estou.
Dou alguns passos para trás, mas sou puxada bruscamente,
fazendo com que o meu corpo colida com o seu, me mostrando
como o seu pênis está duro ao encostar em minha barriga.
Suas mãos agarram a minha e a leva até a sua grande
armação, fazendo-me apertá-lo. Sua ampla barba arranha o meu
rosto, ampliando os arrepios por todo o meu corpo, enquanto ele
fala baixo em meu ouvido.
— Não preciso de aliança para marcar você — seus olhos
perfuram os meus. — Mas já que você quer tanto...
— Você vai me dar uma aliança? — pergunto chocada.
Não imaginei que ele cederia, muito menos aceitasse tão
facilmente.
— Não — Marcos sorri cínico.
Seu sorriso debochado some em instantes, assumindo os
seus comuns olhos furiosos. Fico em alerta.
— Nunca mais me provoque — seus dedos grossos se
perdem em meus cabelos.
Suas mãos tocam todas as partes possíveis que o meu
vestido concede acesso, acendendo o fogo em meu corpo. Nós
somos como o frio e o calor, em equilíbrio. E, nestes momentos,
quando parece que o mundo para de existir, esta combinação
aparenta ser ainda mais certa.
— O que eu faço com você?! — ele parece pensar em voz
alta.
Ele desce o seu rosto para o meu pescoço, segurando firme
os meus cabelos.
— Não sei, mas já pensei no que fazer com você — não
tenho como saber a sua reação, mas vou continuar. — Senta!
Atrás dele há um sofá de couro preto, aparentemente,
confortável e caro. Até mesmo os seus móveis condiz com a sua
personalidade. Marcos continua irredutível, parecendo não querer
me soltar. Consigo o empurrar, caindo com as suas coxas afastadas
e as costas largas batendo contra o couro.
— Que porra você vai fazer? — ele diz, querendo se levantar.
— Fica aí! — peço, olhando-o. — Hoje é o último dia que
você vai me usar, mas vai ser do meu jeito.
— Te usar? — ele debocha.
— Não quero nada pela metade, Marcos. Se você me
escolher como amante, me escondendo, terei você e outro homem
— não é verdade, mas preciso deixar claro o que quero.
Ele precisa acreditar que sou doida o suficiente para fazer o
que disse.
Assim que as palavras saem da minha boca, Marcos levanta-
se, puxando-me. Realmente, estou tentando apagar o fogo com
gasolina.
Ele procura a minha boca, não perdendo tempo em me
mostrar a quem pertenço. Seus lábios são duros, sua língua se
move em sintonia com a minha, enquanto meu corpo cola ainda
mais no seu. Meu sangue queima embaixo da minha pele. O desejo
toma de conta de cada célula, arrancando os meus pensamentos e
qualquer requisito de sensatez. Seus beijos vão descendo, dando-
me oportunidade para respirar.
Ponho as mãos em seu peito e tento empurrá-lo novamente,
me sentando de pernas abertas em cima do seu pênis. O meu
vestido sobe, se aninhando em minha cintura, dando a visão da
minha calcinha encharcada para ele. Ele tenta me beijar, mas viro o
meu rosto, deixando-o nervoso.
Pego as pontas do meu vestido e o retiro, fazendo com que
os meus seios saltem em seu rosto. Jogo o tecido longe, focando
em seus olhos famintos em mim.
— Porra... — acredito que o seu vocabulário está diminuindo,
com a quantidade de xingamento que ele está usando.
— Não era isso o que você queria? — agarro os seus
cabelos, aproximado o meu rosto do seu.
— Não.
— Não?
— Não existe queria, Camilla.
Seus olhos são profundos, prendendo a minha atenção. No
segundo seguinte, ele segura os meus seios e os chupam. Seguro
em suas coxas, apoiando-me, deixando-me ainda mais inclinada
para ele, dando total acesso. Enquanto a sua boca está trabalhando
em meus peitos, as suas mãos estão pelo meu corpo, parando nos
meus longos cabelos, mais uma vez.
Ele morde, chupa, suga, ele realmente está me mamando.
Minha cabeça se inclina para todos os lados, em confirmação do
prazer que está me tomando rapidamente.
Gemo, sem dar conta que os sons saem frenéticos e
necessitados. Marcos passa os seus braços por minha cintura e
lança-me de encontro ao sofá, sufocando os meus gemidos com a
sua boca. Ouço-o abrir a sua calça, sem parar de me beijar. Ele
retira tudo, me fazendo sentir o quanto está duro e difícil.
— Não — falo, de repente.
— Não? — o seu tom é confuso.
Embora o Marcos me segure firme, consigo escorregar por
entre os seus braços, me posicionando em cima dele.
— Não foi você que disse... — ponho as minhas mãos em
seu peito, onde seu coração bate frenético. — ... que queria ser
chupado?
Seu maxilar trava.
Ainda o olhando, retiro a minha calcinha e desço, parando no
meio das suas pernas, levando a minha boca até a cabeça rosada.
Sugando e lambendo toda a sua extensão. Não sei exatamente o
que fazer, mas vou tentar do modo que acredito ser certo, ou pelo
menos acho.
Continuo com leves movimentos, até que sinto a necessidade
de avançar. Seguro o seu pau e desço com a minha boca, levando
até onde consigo. Movimento a minha cabeça para cima e para
baixo, com os meus olhos fixos nos seus.
Marcos parece se segurar, com uma das suas mãos
fechadas em punho nos meus cabelos, enquanto a outra segura a
base do seu pênis, fazendo-me mamá-lo com força. Chupo as suas
bolas, assim como ele tinha citado antes, apreciando a sensação de
estar fazendo algo que queria, muito.
— Caralho, Camilla! Que boca gostosa! — ouço-o gemer
rouco.
Antes que eu possa ter uma nova reação, Mancha me puxa
paro o seu largo peito, possuindo a minha boca ferozmente,
enquanto ele me coloca por baixo.
— Abra as pernas — ele comanda.
Não espero que ele mande outra vez, vendo-o se abaixar e ir
de encontro ao meu centro, extremamente molhado. Meu coração
bate impaciente com o que ele vai fazer.
Ele suga mais uma vez os meus seios, espalhando beijos por
entre eles, fazendo o seu caminho para baixo. Ele passa por minha
barriga, não demorando a encontrar o que quer. Marcos me olha
maliciosamente, me fazendo ver a sua língua passar lentamente por
minha boceta molhada, somente para ele.
— Gostosa.
Ele continua com a sua vistoria, sugando os meus lábios, até
que encontra o meu clítoris, chupando vigorosamente. Ouço os
meus gemidos ecoarem, se tornando cada vez mais sôfregos e
desesperados. Sua barba desliza por entre as minhas coxas e
virilha, fazendo-me ainda mais louca.
Meu corpo treme a cada sensação, sinto que vou desmoronar
a qualquer momento. Mesmo que os meus olhos lutem para ser
fechados, não consigo desviar a minha atenção dos seus
movimentos. Ele é extremante sexy, principalmente no meio das
minhas pernas, com os seus cabelos bagunçados e o seu olhar
faminto.
Puxo-o para ainda mais perto, quando sinto o orgasmo se
formando rapidamente, até que ele introduz dois dedos, em uma
atividade consecutiva, em um vai e vem gostoso, deixando-me
totalmente impossibilitada.
É rápido e duro. Gozo em sua boca gritando, ao mesmo
tempo que ele pressiona o seu rosto no meu centro, tomando tudo
de mim. Tento normalizar a minha respiração, mas o Marcos ainda
continua me sugando, intensificando o prazer incontrolável dentro
de mim.
— Passaria dias, somente te chupando — acho que gozei
novamente com a sua voz extremamente rouca.
Ao olhá-lo se levantar sobre mim, percebo que esqueci como
se fala, então continuo a buscar o ar, ou pelo menos tento.
— Vou dar o que você precisa. Vou te mostrar que o que
você quer, tem em casa!
Marcos me arrasta para baixo, deixando as minhas pernas
abertas e expostas para ele. Minhas coxas são seguradas
grosseiramente, sendo um modo de me manter no lugar, no centro
do sofá. Até que de repente, ele entra em mim, fazendo com que as
minhas costas se arqueiem em sua direção. Ele investe em mim
com entocadas curtas e profundas, com extrema velocidade.
Arranho as suas costas e prendo os meus dedos nos seus
músculos.
Ele parece furioso, arrogante, me mostrando quem é o único
homem que esteve dentro de mim. Seus braços passam por de
baixo das minhas costas, levando-me de encontro a sua boca, onde
ele morde e suga a minha língua. Ele é preciso, ágil e rápido, tirando
o meu fôlego.
Ele rosna, dizendo palavras sujas em meu ouvido. Perdi a
conta de quantas vezes ele disse que sou gostosa e o quanto ele
adora o meu corpo. Ao contrário dele, somente consigo gemer,
aleatória a tudo, somente sentindo.
— Fica de quatro! — ele manda, saindo de mim, dando
somente tempo de me virar para que ele entre com tudo.
Sinto quando o primeiro tapa é dado em minha nádega direta,
ecoando pela sala. Após o primeiro, ele não parou mais, seguido por
vários outros, ao mesmo tempo que entoca com força.
Sei que ele está provando o seu controle, mas ao contrário
do que pensei, não sinto dor, somente me impulsiona a cada vez
mais ao prazer.
Ele continua com os seus movimentos rápidos, me olha e se
permite soltar sons baixos e roucos, levando-me ainda mais a
borda. Seus dedos habilidosos esfregam o meu clitóris, com
movimentos circulares e frenéticos. O meu corpo se torna mole, sem
forças, liberando um segundo orgasmo.
Ele não para, até que jatos da sua liberação me preenche,
explodindo em uma mistura quente e pegajosa.
Respiro fundo.
Mancha descansa a sua testa em minhas costas, ainda
dentro de mim.
— Você nunca mais irá ver aquele cara. Ele já está morto —
sua voz sai abafada.
Agradeço mentalmente por ele ter vindo me socorrer, não por
usar a violência contra a violência.
No grupo em que estava, somente a Fernanda e seu irmão
são próximos de mim, mas o Marcos disse que ninguém iria me
ajudar. Penso se tem a ver com o homem poder estar armado ou
ser um dos amigos da Gizele.
— Qual é o seu nível de amizade com o irmão da sua amiga?
— ele pergunta de repente.
— Não é o momento para você ter as suas crises de ciúmes,
Marcos.
Por que todas as vezes que estamos em um momento bom,
ele tem que estragar?
Ele fica em silêncio, mas é quebrado, quando as suas mãos
me viram em seus braços, fazendo os nossos olhares entrarem em
uma conexão instantânea.
— O único que tem coisas escondias é você — me aproveito
do seu silêncio. — Não estrague o momento, com coisas que você
sabe que não existem.
— Ainda continuo sendo um traficante, gatinha. É perigoso
usar este tom comigo.
— Você não vai me machucar.
— Mas você sabe que eu posso — ele me encara.
— Mas não vai.
16
CIÚMES
CAMILLA FERRAZ
Sexta-feira, 11 de maio de 2018

Hoje faz exatamente um mês que aquela noite aconteceu. Um mês, que o Marcos
ainda continua com aquela mulher. Parece até que nenhuma das minhas palavras
tiveram força suficiente naquele dia. Posso até afirmar que ele mudou, o seu jeito
está diferente, principalmente comigo, ainda assim, ele continua com ela.
Se isso me machuca? Com certeza. Mas o que posso fazer?
Dar um gelo nele? — quando pensei, me pareceu bom. E, foi o que
fiz, mas como ignorar alguém que sumiu?
Está é a segunda vez que ele some, da primeira, ele
apareceu com duas balas alojadas em seu corpo. Não sei como ele
vai aparecer agora.
Embora ele tenha sumido duas vezes, já estou conseguindo
me acostumar. É mais que evidente a sua obsessão por esse
segredo. Não tenho coragem de questioná-lo, mas passo grande
parte do meu tempo pensando e me preocupando com o que ele
está fazendo.
Termino de beber a minha água e vejo o celular vibrando em
cima da mesa. Desbloqueio a tela e noto uma nova mensagem com
o número desconhecido.
"Boa tarde, ruiva. Espero não estar incomodando. Tudo bem
por aí? — Samuel".
Encaro o celular sem acreditar. Um mês depois, ele me
manda mensagem.
— Mãe! — ouço o Bruno me chamar.
"Boa tarde! Por aqui tudo normal e por aí? — antes de clicar
em enviar, penso se devo realmente fazer isso, mas acabo
mandando".
— Oi! — grito de volta.
— Estou com fome!
Guardo o remédio para cólica e vou até o Bruno. Noto que já
passou das treze horas e me sinto culpada, pois ele deve estar
realmente com fome.
Está cólica tem me deixado totalmente inválida, fazendo-me
querer somente a minha cama. Quero ficar enroladinha no meu
edredom e dormir, dormir muito. Porém, não será possível. No
domingo, será o Dia das Mães e a escolinha do Bruno está
organizando uma festinha.
A professora tinha nos comunicado sobre um ensaio antes da
comemoração. Ela pediu para que nós levássemos as crianças na
parte da tarde. Entretanto, estou extremamente atrapalhada que até
o almoço acabei esquecendo.
Está dor contínua vem me atormentando a alguns dias, estou
atrasada e parece que este mês vou sofrer um pouquinho. Minha
menstruação não é regulada, mas nunca senti algo como isso.
— Bruno, mamãe vai fazer o almoço. Você espera um
pouquinho? — peço.
Bruno sorri, vindo ao meu encontro.
— Mamãe, dodói? — pego ele no colo e beijo todo o seu
rosto.
— Não — minto, fazendo uma careta.
— Vovó disse que é feio mentir — dou risada com a carinha
que ele faz.
— Já estou melhor.
— Estou com fome — ele reclama novamente.
— Vamos fazer um trato. Primeiro você toma banho,
enquanto a mamãe faz alguma coisa para a gente comer, certo? —
pergunto.
— Certo.
Levo ele até o banheiro, tiro a sua roupa e o coloco embaixo
do chuveiro. Dou um banho rápido nele, somente para amenizar o
calor, pois já tinha dado banho nele mais cedo.
Mamãe teve um bom avanço em sua saúde e até mesmo foi
ao verdurão com a dona Vânia, mãe do Matheus. Com a sua
ausência, tenho que me virar para fazer algumas coisas ao mesmo
tempo.
Enrolo o Bruno em sua toalha verde com touca de bichinho e
orelhinhas, enxugando-o. Após ver que ele está quase seco, o
enrolo totalmente, segurando-o em meu colo, indo do banheiro para
o quarto. Quando ponho os meus pés no cômodo, escuto quando
batem na porta.
— Fique aqui, já volto! — aviso-o, colocando-o no chão.
Me viro e vou até a porta, abrindo-a.
— Estou com fome — Marcos fala, com olhos extremamente
famintos.
— Eu também, mamãe! — sinto que vou perder o meu juízo.
Bruno aparece atrás de mim no mesmo instante. Observo
que a touca com as orelhinhas está caindo em seus olhos,
deixando-o irritado.
— Você some e quando volta me fala isso? — digo com
raiva.
— Só me convida para entrar! — abro espaço e ele entra.
Embora eu devesse estar me esgoelando, questionando e
colocando ele para fora, penso no porquê tenho comida em casa e
quem é responsável por isso.
— Papai, o Henrique falou que eu não tenho papai! — Bruno
despeja a sua frustração.
Há uns dias, Bruno me contou sobre um coleguinha que
estava sendo maldoso com ele. Isso mexeu muito com o meu
menino, ou não teria o feito guardar e contar para o Marcos assim
que o viu.
— E o que você respondeu? — Marcos prende a sua tenção
no Bruno.
— Eu disse que tenho dois — ele mostra com os dedinhos.
— Dois? — ele se vira para mim.
Faço cara de paisagem, não entendendo o que o Bruno está
dizendo.
— Papai — ele aponta para o Marcos. — E o papai Vitor.
Sinto o meu queixo cair de surpresa. Bruno nunca mencionou
o Vitor desta forma.
Vitor é um belo homem, mas é casado. Bruno não entende
isso, mas ele sabe que o Vitor cuida da sua avó e que sempre lhe
dá balas quando o vê. Assim como o Marcos, Vitor é um homem
que vem nos ajudando e o fato dele gostar do Bruno, do modo
carinhoso que o trata, torna a carência do meu filho ainda mais
cheia de expectativas.
— Quem é Vitor? — Mancha dirige o seu olhar para mim.
— Ninguém — respondo depressa, mesmo sabendo que ele
vai insistir. — Vou trocar o Bruno, já volto.
— Papai, Vitor, não? — ele parece confuso.
— Filho, o Vitor, não! — falo baixinho em seu ouvido. — Ele
já tem uma namorada.
— Já? — ele questiona triste.
— Já, meu amor.
Pelo seu rostinho, Bruno entendeu o que eu quis dizer. Pelo
menos espero que tenha.
Pego as suas roupinhas na cômoda e visto-o com o uniforme
da escola e os seus sapatos novos.
— Cabelo, mãe! — ele aponta.
— Vou pegar o creme — aviso, indo até o banheiro.
Vou em direção do banheiro, mas antes que eu possa voltar
ao quarto, Marcos me encurrala contra o azulejo frio.
— Quem é o caralho do Vitor? — ele não me parece nada
calmo.
— Não existe nenhum Vitor.
— Você mente muito mal.
— Não me esqueci das coisas que te disse a um mês, um
mês, Marcos! — tento ser o mais sincera possível, mesmo que eu
esteja me enganando.
Minhas palavras não têm firmeza. Desde que entendi que o
amo, não consigo olhar ou pensar em qualquer outro homem. Todos
parecem tão sem graça, abertos demais, desesperados talvez. A
verdade é que ninguém é como ele.
As suas mãos apertam os meus cabelos em seu punho,
fazendo com que a minha cabeça se incline de encontro ao seu
rosto.
— Estou perdendo a minha paciência!
— Entendo.
— Ainda posso te machucar, Camilla.
— Você está me ameaçando? — debocho descaradamente.
Seu corpo cola ao meu em instantes. É rápido os efeitos do
seu toque em mim.
Meus olhos se fecham por um momento, lutando para que a
vontade de me entregar a ele não me vença.
— Não estou te ameaçando, estou avisando.
— Mamãe...
— Me solta — peço, saindo do seu aperto.
Vou até a cozinha respirando fundo, tentando colocar os
meus pensamentos no lugar. Abro a geladeira e pego algumas
salsichas. Decido fazer um lanche rápido. Não estou com cabeça
para fazer algo elaborado.
Separo os ingredientes para fazer o cachorro-quente.
Começo a organizar algumas coisas enquanto as salsichas ficam
prontas.
Sinto a presença do Marcos em minhas costas e o Bruno
tenta manter uma conversa com ele. Fico surpresa quando vou
pegar os pães em cima da mesa e vejo o Marcos penteando os
cachinhos do Bruno — com a minha fuga do banheiro, acabei
esquecendo do creme que fui pegar, mas o Marcos tomou a frente.
Bruno parece animado, contando sobre a escola e coisas que
nem mesmo eu consigo entender. Acredito que ele está
aproveitando este contato que nunca teve.
— Eu sou o seu pai, Bruno. Não tem um segundo, sou só eu
— sua voz é firme, mas em um tom compreensivo.
Bruno o observa com olhos brilhantes, balançando a cabeça
em afirmação.
Volto a minha atenção para o que estou fazendo, observando
que somente falta montar. Depois de pronto, pego o refrigerante na
geladeira e ponho em cima da mesa junto com os lanches.
Me sento junto com os dois na mesa e comemos ao som da
voz do Bruno que fala sem parar. Reparo nas mãozinhas agitadas
dele, se sujando de maionese. Até que sinto algo me incomodar.
Meu estômago começa a revirar e um enjoo forte me atinge.
Tento disfarçar e volto a comer, mas novamente o incomodo volta e
eu já não tenho mais controle para segurar. Corro para o banheiro
onde vomito todo o meu almoço.
— O que você tem? — Marcos vem até mim, percebendo que
não fechei a porta.
Não consigo responder, somente vomito ainda mais. Mancha
vendo o meu estado, segura os meus cabelos, passando as mãos
em minhas costas com preocupação.
Quando me sinto bem para ficar de pé, limpo o meu rosto,
escovo os meus dentes e elimino toda a sujeita do vaso. Jogo água
várias vezes em meu rosto, tentando aliviar toda tensão, mas
parece que está vindo novamente.
Não demora muito para que eu volte para o vaso, de novo e
de novo, até que me sinto totalmente vazia.
— Que porra, Camilla! Você tem que ir ao médico! — ele
parece agoniado.
— Não precisa, estou bem.
Após o meu estômago aceitar que não tem mais nada para
jogar no vaso, volto para a cozinha, colocando o que sujamos na pia
para lavar depois. Levo o Bruno ao banheiro para ele escovar os
seus dentinhos, fazendo o mesmo com os meus mais uma vez.
Mancha somente nos observa sem dizer uma palavra. Não
me importo. Vou até o quarto, onde troco a minha blusa e arrumo os
meus cabelos em um rabo de cavalo.
— Você vai sair assim? — a sua preocupação está
conseguindo me atingir.
— Camilla, cheguei! — minha mãe diz, entrando.
— Oi, dona Joana — Mancha cumprimenta a minha mãe,
fazendo-a se assustar.
— Oi — ela responde relutante.
Mamãe me olha desconfiada, mas não se pronuncia, apenas
deixa as suas sacolas em cima da mesa e beija o Bruno, que em
instantes já está em seus braços.
— A senhora conhece algum Vitor, dona Joana? — Marcos
só pode estar brincando.
— Acho que não — ela para por alguns segundos, parecendo
pensar em algo. — O meu médio se chama Vitor.
— Médico, é? — ele olha para mim.
— É. Um bom rapaz, com um ótimo coração e tem uma
família linda — encaro a minha mãe aflita, mas ela não parece
perceber. — Por quê?
— Nada não.
Sei das coisas que ele pode fazer quando se sente
ameaçado. Não quero ver o Marcos indo atrás do Vitor, até porque
ele não vai ter uma conversa amigável, ele vai para machucar.
Marcos se manteve quieto, mas depois de um tempo abriu a
porta e se foi, sem dizer uma palavra.
Ele consegue ser extremamente irritante.
Noto que o Bruno sujou a sua roupa e o troco. Constato que
horas são e vou em direção a escola dele. Muitas mães já deixaram
os seus filhos e o meu menino fica feliz ao ver os seus amiguinhos.
Converso rapidamente com a professora sobre o horário em que
devo vir buscá-lo e vou embora.
Faço o caminho de volta, até que ouço uma voz conhecida
me chamar. Olho para trás e me deparo com a Fernanda correndo
em minha direção, ela parece eufórica. Paro na calçada e espero
que ela esteja perto o suficiente para que me conte o que está lhe
deixando agitada.
— ...a Yohana me deixou entrar mais tarde hoje! — ela
explica, citando a sua patroa. — Mas não é isso que quero te contar.
Ela me deixa apreensiva.
— O que foi?
— Gizele está espalhando no Morro que está grávida.
Sinto que as minhas pernas vão me deixar, a estrutura do
meu corpo está ameaçando desmoronar. Meus olhos perdem o foco
por alguns segundos, até que consigo estabelecer o meu raciocínio
lógico. Fernanda, em minha frente, continua falando sem perceber
que não estou conseguindo ouvir nada.
— Fernanda! — chamo a sua atenção.
Ela parece perceber que não estou acompanhando o
assunto.
— Repete o que você falou.
— Hoje, pela manhã, o Izac comentou sobre o herdeiro do
Marcos e quando fui ao mercadinho, ouvi duas meninas falando a
mesma coisa.
É óbvio que ela pensaria em algo para tentar prendê-lo. Ela
conseguiu o que queria. Se a sua ideia é me humilhar e me afastar
do Marcos, seu plano teve sucesso.
— Acredito que mais da metade do Morro já sabe —
Fernanda continua.
— É algo que ia acontecer de qualquer jeito — penso nas
suas ameaças.
Gizele mostrou querer o Mancha de qualquer forma, desde o
início. Não é uma ideia muito inteligente, engravidar para segurar
um homem. Ela vai conseguir atingir um ponto.
— Ouvi a Emily dizer que ela está de um mês.
— Será que ele sabe? — penso nos acontecimentos de um
mês atrás, quando ele foi baleado.
— Com certeza.
Em meu peito, meu coração se quebra em vários pedacinhos,
meus olhos transbordam e tudo o que posso fazer se baseia em
querer estar longe do Marcos. Longe das suas mentiras, segredos e
as suas palavras rudes e codificadas.
17
CULPA
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 13 de maio de 2018

Acordo ainda pior do que nos dias anteriores. As cólicas diminuíram, mas o que
está realmente me incomodando são os enjoos constantes. Entretanto, não posso
ficar em casa. Hoje é Dia das Mães e tenho que levar o Bruno até a sua escola
para a apresentação.
Engulo o remédio com água e vou para o banheiro, onde
tomo um banho rápido e frio. Assim que termino, visto as minhas
roupas e arrumo os meus cabelos.
Minha mãe já deu um banho no Bruno e tomou o seu, sendo
que somente estão esperando por mim. Respiro fundo e busco não
deixar que os meus pensamentos assumam o controle.
Vem sendo uma batalha dominar a imagem do Marcos em
minha cabeça, principalmente quando o relaciono ao fato de que ele
será pai. E o pai do filho da Gizele, a mulher que mostrou ser pobre
de espírito, alma e coração. Até tento pensar em outras coisas, mas
ele simplesmente se infiltrou e não a nada que possa tirá-lo.
Todas as lágrimas que consegui segurar, se derramaram em
meu travesseiro durante a noite. Sufoquei os meus soluços, quis
apagá-lo da minha cabeça, mas é impossível. Não consigo acreditar
que caí direitinho no seu jogo, em como ele conseguiu o que queria
e no quanto as suas palavras foram sempre uma mentira.
Posso culpá-lo por muitas coisas, mas ele foi direto quando
disse que não poderia me dar exclusividade. Ele não mentiu quando
falou que iria cuidar de mim ou quando insistiu que é o pai do Bruno.
Ele dosou as suas mentiras e verdades em um equilíbrio agoniante,
onde não posso culpá-lo sem defendê-lo, ou o defender sem o
acusar.
Vou até o quarto e passo perfume, calço os meus pés e,
novamente, permaneço dizendo a mim mesma que tenho que
esquecer o Marcos e tudo relacionado a ele.
Após olhar no relógio e constatar que já passa das duas
horas da tarde, pego na mão do Bruno e espero que a minha mãe
tranque a porta.
— Mamãe?
— Oi? — respondo encaminhando a minha atenção para
baixo.
— Por que eu não sou assim? — ele aponta para o meu
braço.
— Assim como?
— Assim ô! — ele usa o seu pequeno dedo para mostrar o
meu braço novamente, logo mostrando o seu.
Fico por alguns segundos tentando entender se está é uma
pergunta que de qualquer forma ele iria fazer, ou se alguém apontou
está diferença.
Ainda o olhando, me abaixo e fito os seus olhos castanhos.
— Porque a mamãe não teve a sorte de ser bonita como
você.
Passo os meus dedos em sua pele negra, até subir as suas
bochechas redondas, acariciando-as.
— Eu acho você bonita.
— É mesmo? Pois, eu te acho incrível!
— O que é incrível?
— Incrível é uma pessoa deste jeitinho, como você — subo
as minhas mãos para os seus cabelos. — Bonito por fora, por
dentro, gentil, educado...
— Ahhh...
— Por que você me perguntou isso?
— Nada não.
— Tem certeza?
Ele não usa palavras, mas balbucia algo como resposta.
Mesmo não acreditando no que ele disse, deixo passar, mas vou
insistir neste assunto mais tarde.
Andamos pelas ruas, sempre procurando pela sombra, pois o
sol está derretendo até mesmo o asfalto. Continuamos
atravessando as ruas, minha mãe cumprimentando algumas
pessoas, Bruno tagarelando, até que faltando uma esquina para
podermos chegar à escola, visualizo a figura da última pessoa que
gostaria de ver.
A mulher loira, com três garotas ao seu lado, ri
escandalosamente.
Gizele está sentada em uma das mesas de madeira na
pizzaria que é lanchonete durante o dia. Ela parece feliz e aparenta
querer demonstrar isso para todos. A observo balançar os seus
cabelos em um movimento estravagante e petulante. Ela se mostra
superior, vejo até que uma das suas amigas fica sem graça com
algo que ela diz, mas a Gizele não parece notar.
Desvio o meu olhar, vendo que demorei ao analisá-la. Assim
que decido ignorá-la, ouço a sua voz irritante me chamando em um
coral de risos e ironia.
— O Morro vai ter um herdeiro, vadiazinha! — as suas mãos
pousam em sua barriga. — Adivinha quem é o pai?
— Parabéns, Gizele! — parabenizo sem ânimo. — Você
conseguiu o que queria.
— Eu sempre consigo, garota!
Ouço o escárnio nas vozes risonhas ao fundo, enquanto a
minha atenção continua na Gizele, que, neste momento, desce os
seus olhos para o Bruno e a minha mãe com nojo.
— Você pode ser a marmita que ele come quando quer, mas
a mulher dele sou eu! É para mim que ele corre todos os dias. E,
sou eu quem vai ser a mãe do filho dele! — ela ironiza. — Os seus
dias de putinha dele, acabou!
— Já falei sobre isso uma vez, não tenho problema nenhum
em repetir.
Me posiciono diretamente em sua linha de visão, fazendo
com que ela possa visualizar perfeitamente os meus olhos e todos
os sentimentos que estão passando por eles.
— O homem que você está falando, é o mesmo que vem
atrás de mim. Se você está se fazendo de surda ou está querendo
bater no mesmo ponto, aconselho você a fazer melhor, pois o que
quer que você esteja fazendo, não está sendo o suficiente —
minhas palavras conseguem atingi-la, visto que, sua postura
desmorona lentamente. — Você acha que sou eu que fico atrás
dele? Tenho pena de você por não conseguir ver o que está em sua
frente.
Noto que ela está prestes a rebater, mas acaba engolindo as
suas palavras. Ela deve saber que não vou deixar que fale,
enquanto me mantenho em silêncio. Antes que possa voltar ao meu
caminho, me viro mais uma vez, segurando o seu olhar raivoso.
— Nunca mais dirija este olhar para a minha família, até
porque a pessoa que merece o nojo em seus olhos, é você. Não me
importo com o que você diz sobre mim, mas sobre eles... — aponto
para os dois que somente me olham. — ... você engole! Você não
tem família, é somente uma desesperada.
Respiro e inspiro forte, controlando a minha ira.
Não me arrependo por nenhuma das palavras que usei, pelo
contrário. Me arrependo por não ter colocado ela em seu lugar
antes, mesmo correndo o risco de ser surpreendida em minha casa.
As risadas cessaram, mas não demora para que os gritos
histéricos e xingamentos extremamente altos se espalhem pelo ar,
no mesmo instante que dou as costas a ela.
Assim que me viro, tenho o deslumbre do Bruno mostrando a
língua para todos os que estão atrás de mim, mas assim que vê que
estou o observando, ele disfarça.
Muitas pessoas que andavam pela rua pararam para
observar a "amante" e a fiel do dono do Morro em uma troca de
farpas. Reparo que estou sendo um entretenimento mais uma vez e,
pior, em uma discussão onde o principal alvo é um homem. Brigar
por um cara está na lista das situações que mais repudio. E, olha
onde estou, em um bate e volta sobre o Marcos.
Virei notícia quando o Marcos fez a sua cena em escolher
uma mulher. As pessoas me viam como a recalcada e a amante de
bandido. Cheguei a escutar que sou o lanchinho de muitos, da
mesma forma que acabei de ouvir.
Em todo este tempo, colecionei algumas ameaças, palavras
que jamais penso em usar em meu vocabulário e os olhares, este
com certeza foi um dos piores. O olhar de desprezo, pena, desdém,
indiferença... me fez ver sobre até onde as pessoas vão pela inveja.
Não inveja de mim, mas inveja da situação. O dinheiro,
reconhecimento e a ilusão do poder podem alavancar sentimentos
como estes, capaz de pensar que tem o direito de pisar, humilhar e
causar dor.
Neste instante, percebo que mesmo me posicionando diante
da afronta da Gizele, sairia sendo somente a amante revoltada e
que, o meu lugar sempre será de uma simples garota que foi usada
por um homem poderoso.
O que aprendi e o que tenho usado diariamente, é o poder de
ignorar. E, deste modo, usufruo desta habilidade.
Meu estômago dá um leve sinal de vida, fazendo com que a
minha cabeça gire por um momento. Continuo andando, tentando
controlar todos os sintomas infundados que estou sentindo.
Viramos a esquina e conseguimos avistar a escola, onde
entramos.
Corações, flores e cartazes estão espalhados por toda parte.
Assim como na Páscoa, há uma grande quantidade de decoração,
com direito a lembrancinhas e comes e bebes.
Alguns minutos depois, a professora chama todos os alunos
para que eles fiquem na frente do pequeno palco improvisado. Ela
entrega para cada um, uma cestinha e um cartão.
Observo quando uma outra docente segura o microfone para
um menino, logo formando uma sequência de crianças dizendo
coisas fofas para os seus pais. Vejo cada homenagem com lágrimas
descendo por meu rosto. Noto que não sou a única, muitos pais
estão emocionados.
— Mamãezinha do meu coração, você me dá carinho, me
chama de amorzinho... é a menina mais incrível! Te amo — a voz do
Bruno, literalmente, me fez soluçar.
Assim que eles terminam de homenagear os seus pais e de
cantarem uma música que me fez chorar ainda mais, Bruno corre
para os meus braços, sorrindo, entregando a cesta e o cartão que
ele mesmo fez.
Após o término da festa, fomos embora, ouvindo o meu filho
cantarolando animado.

Acordo com o som irritante de algo tocando.


Após chegarmos do evento na escola do Bruno, me joguei
em minha cama e dormi, até que a Fernanda decide me ligar
desesperadamente.
Vejo que na tela de bloqueio mostra cinco chamadas
perdidas da Fernanda, uma mensagem do Samuel, três ligações do
Marcos e duas mensagem reclamando por eu não o ter atendido.
Atendo a Fernanda e finjo não ver as outras notificações.
Com a mesma roupa que usei mais cedo, vou até a casa da
minha amiga. Fernanda citou sobre estar preocupada e que queria
me ver, até porque, não vem sendo fácil lidar com um homem
extremamente arrogante e a sua fiel que adora me afrontar.
Ao ouvi-la decidi que era uma boa ideia conversar.
Não passa muito tempo, até que eu esteja sentada em sua
cama, ouvindo como foi o seu dia. Fernanda conta sobre a sua
chefe, as vendas da semana... enquanto eu tento controlar a ânsia
de vomito. Aguentei o quanto pude, até que corri para o banheiro
mais próximo.
Após tomar o remédio pela manhã, todos os sintomas
cessaram, mas parece que não durou por muito tempo.
— O que aconteceu? — Fernanda vem até mim.
— Meu Deus, minha filha! — a voz da dona Maria ecoa pelos
meus ouvidos.
Não há a possibilidade de uma resposta no momento. Coloco
tudo para fora, até que me sinto segura para levantar. Vou até a pia
e me limpo.
— Desculpa, tia! — ofego constrangida.
— Desculpar o que? Vem logo, sente aqui! — me sento no
sofá.
Puxo todo o ar que posso para os meus pulmões, até que
consigo voltar ao normal.
— Levanta, Camilla! — Fernanda me olha estranha, pegando
em meu braço.
— Por quê? — questiono confusa.
— Só se levanta e vamos! — ela insiste.
— Deixa a menina em paz, Fernanda! — dona Maria sai em
minha defesa.
— Sei o que eu estou fazendo!
— Eu vou, tia! Obrigada!
Fernanda olha-me desconfiada, me guiando pelas ruas, até
que chegamos ao asfalto.
Pelo caminho vi que o Coringa estava falando com alguns
homens, mas quando me viu, tratou de disfarçar, pegando em
seguida o seu celular. O cumprimentei rapidamente, sem muitos
detalhes, pois tenho certeza de que o Marcos viria atrás de mim.
Continuamos a andar, até que a Fernanda entra em uma
farmácia, fazendo-me acompanhá-la.
— O que estamos fazendo aqui? — pergunto.
— Comprar uma coisa — ela diz simples, olhando para os
produtos nas prateleiras.
Encaro as suas mãos em tempo de ver três caixas com
testes de gravidez.
— Quem está achando que está grávida?
— Quem está achando sou eu, mas a grávida é você!
Todas as noites com o Marcos passam pelos meus olhos.
Usamos camisinha...
Miro na Fernanda descrente.
— Não pode ser, Fernanda. Eu não posso estar grávida!
Acredito que seja intoxicação alimentar.
A cena de um mês atrás se apossa das minhas lembranças.
O dia em que o álcool impulsionou a minha coragem.
Tento dizer para mim mesma que é somente um engano, mas
sei que estou criando uma mentira. Sigo remotamente a Fernanda
até o caixa, onde reconheço uma das amigas da Gizele. Fernanda
não se importa com o olhar que está recebendo, ela somente
entrega as caixas e o dinheiro.
A garota do caixa parece afobada, colocando os produtos na
sacola, fazendo-me acreditar que ela está se contendo para correr e
dizer para a sua amiga.
— O que vou falar para o Nicolas, Camilla? — o tom
dramático da Fernanda consegue chamar a atenção da garota.
— Você tem que dizer a verdade! — tento parecer
preocupada, entrando em seu teatro.
A amiga da Gizele presta atenção em tudo, não sabendo
disfarçar. Ela entrega a sacola e saímos de lá correndo.
— Não estou grávida, Fernanda! — choramingo alto,
esperando os minutos que a embalagem pede.
— Cala a boca.
Observo-a balançar as suas pernas, fitando a minha aflição.
— Acho que deu o tempo — ela vai de encontro ao banheiro,
comigo em seu encalço.
Ela para e aponta para o potinho com os três palitos.
— Tem que aparecer duas listras.
Após ela explicar, vou até os três palitinhos e os analiso.
— Estou grávida
Sinto que as gotas salgadas começam a cair.
— Vai ficar tudo bem.
— E, se...
— Pare de criar coisas que ainda nem aconteceu!
Balando a minha cabeça em concordância. Ela está certa.
Quando me sento na cama da Fernanda, sinto que tudo
parou. Até mesmo os meus pensamentos se calaram. Estou
carregando uma vida e não sei qual será a reação do pai dele.
Fernanda se senta ao meu lado e tenta me dizer coisas que possam
me acalmar, mas somos interrompidas por gritos do lado de fora.
— Aparece, vagabunda! — reconheço a voz da Gizele. —
Quero ver a sua cara aqui fora!
— Ela descobriu, Fernanda! — afirmo o inevitável.
— Aquela garota tinha que abrir o bedelho!
Descemos as escadas e fomos para frente da casa, onde
podemos visualizar a Gizele, totalmente desiquilibrada.
— Você vai tirar essa porra! — ela grita escandalosamente.
— Se você não tirar, eu mesma vou arrancar de você!
Minhas mãos pousam instintivamente em minha barriga.
— Vai fazer barraco na porta de outro, sua oferecida! — dona
Maria aparece, com uma vassoura em sua mão. — Fica na rua
contando vantagem com o que é dos outros, vai trabalhar!
— Cala a boca, velha nojenta!
— Você não falou da minha mãe, vagabunda! Você não falou!
— Fernanda vai para cima da Gizele.
A loira não estava preparada para o impacto das mãos da
Fernanda.
— Respeita a mãe dos outros!
— Vadia! — Gizele grita.
Ela levanta a sua mão para revidar, mas a presença dele a
impede.
— Que porra que está acontecendo aqui?! — Marcos carrega
duas metralhadoras, uma atravessada em suas costas e outra em
suas mãos.
Nunca o vi com armas e tenho que dizer que isso me
assustou.
Eu sabia que uma hora ou outra, ele estaria vindo atrás de
mim. Fico feliz que tenha acontecido agora, ou não saberia o que
fazer.
— Amor, ela quer acabar com a gente, ela quer que eu perca
o nosso bebê! — ela chora falsamente.
Ela não se importa com a atenção que está recebendo,
principalmente das mesmas pessoas que viram e ouviram o show
que ela acabou de dar.
— Que bebê, porra? Transei com você uma vez e foi com
camisinha! — Marcos grita raivosamente, deixando a Gizele sem
graça.
Sinto que os meus movimentos estão impossibilitados para
qualquer ação. Confusão e um misto de sensações estão pairando
sobre mim, em uma paralisação total. Meu corpo está em choque e
os meus olhos continuam focados no Marcos. Meus pés estão
colados no chão, arruinando qualquer comando para que se
movam. Não tenho uma definição para os batimentos acelerados do
meu coração, somente sinto que a minha pele treme, durante o meu
olhar demorado em toda a cena que se passa em minha frente.
Um pequeno grupo de pessoas estão à nossa volta,
absorvendo todos os falatórios agressivos e o teatro que a Gizele
está fazendo. E, a cada minuto, parece crescer o número de
curiosos.
Dona Maria está com a sua vassoura ao meu lado, olhando
para a Gizele como se fosse um rato, esperando qualquer
movimento dela para que use o objeto em suas mãos.
Encaro a mulher desprezível a alguns pés de distância.
Como ela ousa exigir que eu tire o meu filho, que acabei de
saber que cresce dentro de mim?!
Gizele usou as suas ameaças como se pudesse realmente
fazer algo. Sem hesitação. De forma que, não reste dúvidas em
relação a sua personalidade desprezível e cruel.
— Mancha, amor, passamos uma noite incrível juntos — é
nítido o desespero em suas palavras. — Eu não consegui, mas você
gozou! Estou grávida!
Minha boca se abre lentamente, com as palavras baixas que
ela utiliza.
— Só há uma mulher que tenho o prazer de fazê-la gozar,
Gizele. E ela não é você.
A loira consegue transmitir o impacto que as palavras do
Marcos lhe causam, fazendo com que todos consigam ver e se
chocar com as revelações e o posto de mulher do dono cair. A
aflição em seus olhos estão me causando nojo, ela está se
mostrando ainda mais suja e repugnante. Suas atitudes e as
palavras que ela usa somente aperfeiçoam a sua imagem e,
definitivamente, abriu os olhos daqueles que a achavam uma mulher
poderosa.
Me sinto horrível por sentir tantas coisas ruins por uma
pessoa, mas sei que se ela estivesse em meu lugar, talvez eu nem
estivesse viva.
— Por favor, acredite em mim! — ela implora.
— Eu queria informações e você me deu, literalmente — dá
para sentir a repulsa em sua voz. — Para realizar está minha...
ação, precisei estar bêbado, pois não tive coragem para fazer
lúcido. Ainda assim, não seria burro de não usar camisinha.
Meu estômago se contorce.
Ainda observando toda a situação, percebo quando a Gizele
inconformada com tudo o que ouviu, se volta em minha direção,
com olhos enraivecidos. Sinto que poderia morrer em instantes se
ela pudesse soltar fogo pelos olhos.
Ela se move rápido em minha direção, pronta para me marcar
com as suas mãos, mas antes que ela possa realizar o que está
pensando, Marcos a puxa pelos cabelos, jogando-a no chão
bruscamente.
A loira grita, se debatendo contra o chão. Ela se agita e
cospe xingamentos e palavras extremamente baixas. Com os seus
movimentos nervosos e inquietos, os seus cabelos param nas mãos
do Marcos, tornando a sua vergonha ainda maior.
— Que porra! — vejo-o usar a sua cartilha de xingamentos,
jogando os fios falsos no chão.
— Puta que pariu! Até o cabelo é falso — Fernanda debocha
chocada ao meu lado.
— Vou acabar com você, Camilla! Vagabunda! Vou arrancar
está merdinha de você! Esse bebê era para ser meu! — seus gritos
se espalham, dando uma nova notícia para o Complexo.
Devia ter adivinhado que a sua amiga não perderia tempo em
notificá-la. E, principalmente, que não é segredo para ninguém a
forma que a Fernanda me protege e que os testes eram para mim.
Meus olhos assustados se movem para o homem grande que
se vira lentamente para mim. Prendo a minha respiração, esperando
a sua reação.
O modo lento que ele se move, faz com que os meus
pensamentos se dirijam para a Gizele. Neste momento, penso em
sua mentira e no porquê de ela espalhar logo agora. Ela tem as
suas cartas escondidas, assim como em um jogo, onde o ditador
das regras é o Marcos.
— Que bebê, Camilla?
Sinto que a minha voz some ou eu tenha me esquecido como
se faz.
Os olhos do Mancha se tornam quentes, assim como o seu
maxilar trava em segundos. As veias em seu corpo saltam, me
encarando, procurando respostas.
Não era para ele descobrir desta forma.
— Caralho! O que ela está falando?! — ele se exalta,
fazendo-me pular em meu lugar.
— Estou grávida — sussurro a única coisa que me vem à
cabeça.
Não é algo que posso negar. Marcos sabe de tudo antes de
qualquer pessoa e não seria diferente em relação ao seu filho. Ele
teria entendimento sobre ele a qualquer momento.
A minha raiva por esta mulher tomou proporções ainda
maiores. Ela me tirou a oportunidade de contar sobre algo puro e
inocente, que não tem nada a ver com ela ou a sua rivalidade e
inveja. Não faz ao menos uma hora que descobri sobre esta vida,
não tive tempo de absorver a notícia e pensar no que fazer. Ela me
tirou uma escolha e me privou de algumas reações.
— Grávida? — ele questiona baixo.
— Bebê, tenho certeza de que não é seu!... — antes que ela
termine a sua frase odiosa, Marcos a interrompe.
Noto um olhar irônico começar a se formar, seguido de um
sorriso cínico. Vejo-o se transformar lentamente, sua feição se
tornando dura e seus olhos assassinos. Raiva, fúria e ódio andam
lado a lado.
— A sua ilusão tomou proporções que fugiram do controle...
você foi descuidada e acreditou em um poder falso — o seu tom de
voz é sombrio.
— Não, Mancha! Por favor!... — a voz desesperada da
mulher ao chão se intensifica.
— Você acreditou mesmo que iria entrar no meu lugar e eu
não saberia? — ele continua a observá-la. — A sua falsa inocência
me enoja.
Ela grita, implorando para que ele tenha misericórdia.
— Você foi burra, garota! — ele continua. — Somente vou te
dar um nome: Tiago.
Reparo na mulher que empalidece lentamente, sufocando os
gritos de antes. Seu aspecto se torna receoso, enquanto os seus
olhos gritam de medo.
Gizele se cala, mas os seus olhos parecem pedir socorro. Ela
se arrasta vagarosamente para trás, tomando distância do homem
sombrio a sua frente.
Neste momento, eu já não estou me importando em entender
nada, somente cravo os meus olhos ainda mais nas situações e em
tudo o que estou ouvindo.
As pessoas ao redor observam tudo abismados. Talvez por
verem uma das faces do Marcos e por entenderem que tudo não
passou de uma farsa. Sei que o Mancha não hesitaria em tirar a
vida de alguém, principalmente se este indivíduo se meter em seu
caminho. Para todos que estão testemunhando o ocorrido é visível o
perigo em somente olhá-lo, penso no quanto deve estar pior para a
Gizele, sendo o alvo da sua raiva.
O nome que o Marcos proferiu é familiar. Busco em minhas
memórias onde vi ou ouvi este nome, até que me recordo do quarto
que nunca devia ter entrado.
— Não! Não! Eu me apaixonei por você!
— Se apaixonou? — pela primeira vez, ouço-o gargalhar,
mas não tem humor no som.
— Você é hipócrita, Gizele! O jogo sempre foi meu, você é
somente uma das peças — ele dá alguns passos se aproximando
dela. — Não foi o suficiente ter matado a minha filha?
Filha?!
Levo as minhas mãos até a minha boca, abafando a surpresa
repentina.
— Ele não vai descansar, enquanto você não estiver morto!
— Gizele soa aflita. — Era para você ter ficado comigo! Nós
poderíamos fugir e ser felizes!
— Você é completamente desequilibrada.
— Fui mandada para ser sua, mas descobri que você já tinha
alguém. Uma putinha sem graça, com um pirralho nas costas — ao
ouvi-la mencionar o Bruno, sinto o meu sangue fluir rapidamente,
deixando-me atenta para as suas provocações.
A sua humilhação some, assim como as suas palavras
piedosas. Seus olhos se assumiram frios e abastecidos de cólera.
— Eu te vi, Gizele. Eu vi você rindo, enquanto a minha filha
estava sendo queimada... a ruiva é loira? — ele a analisa no chão.
— Está aqui levando informações para o seu dono? — não
esperando a sua resposta, ele continua. — Hoje você vai mandar
recado para o inferno.
Pisco algumas vezes e encaro a Fernanda de rabo de olho.
Ela está ainda mais abismada do que eu. A conversa entre os dois
parece atingir um ponto que não entendemos, como se estivessem
falando em outro idioma.
— Não estou mentindo quando digo que me apaixonei. No
início, fiquei revoltada por não me querer, mas, depois, percebi
quem era que estava me atrapalhando — meus olhos se abrem
chocados. — Achou que eu seria realmente uma distração? Ele já
sabe!
Preciso de um tradutor para todo este bate e volta, assim
como os curiosos.
Ainda fitando cada sutil movimento, reparo nele se
aproximando dela, desferindo um soco violento em seu rosto,
fazendo com que todos ouçam o audível estralo do seu nariz sendo
quebrado.
— Você podia ter somente me ferido, mas ousou rir, debochar
e insistir em machucar as pessoas que são importantes para mim.
Isso não é amor, Gizele. Isso é a sua cabeça de mimada achando
que pode conseguir o que quer, com o que nunca esteve ao seu
alcance.
Sem mais palavras, Marcos pega a metralhadora e atira por
diversas vezes no corpo da mulher no chão, até que o seu corpo
seja banhado totalmente em sangue. Ele não tira o dedo do gatilho
até estar satisfeito.
Foi rápido. Gizele não teve a chance de fazer um único
movimento, somente recebeu todas as balas em seu corpo, até que
estivesse estirada no asfalto, com o seu corpo sem vida.
Meus ouvidos absorvem o som consecutivo dos tiros, se
repetindo várias e várias vezes mesmo que já tenha cessado.
Minhas mãos ainda estão em minha boca, enquanto os meus olhos
ameaçam saltar. O horror dos acontecimentos enche a minha
cabeça.
— Nunca ameace a minha mulher — Mancha termina. —
Joguem o corpo dela na caçamba! Logo o marido dela vem pegar.
Os homens obedecem ao Marcos rapidamente, pegando o
corpo desfigurado.
Sei que ela foi alguém de extrema falta de caráter, mas nunca
pensei que a sua vida acabaria desta forma. Ela foi levada como se
o seu corpo não passasse de um saco de merda. Mesmo sendo
vítima da sua personalidade horrível, não me sinto bem ao ver o
modo cruel que foi o seu fim.
— O que ainda estão fazendo aqui?! — Mancha grita,
apontando a sua arma para o céu, atirando várias vezes.
Ao som dos tiros, as pessoas correm aos tropeços para todos
os lados, levando com eles mais novidades. Ainda continuo
paralisada, sem nenhuma reação, tentando lidar com tudo o que vi e
ouvi. Até que as imagens do corpo coberto de sangue da Gizele
invadem os meus pensamentos, fazendo o meu estômago revirar.
Corro o mais rápido que posso, até chegar ao banheiro, despejando
tudo no vaso sanitário.
Respiro e inspiro.
— Abre essa porta! — Marcos bate violentamente na porta
sanfonada.
Puxo ar para os meus pulmões ainda mais forte.
Não consigo lidar com a violência que acabei de testemunhar.
Isso não pode ser real.
— Se você quebrar a porta, você vai dar outra! — Fernanda
reclama irritada.
— Dou a porta que você quiser, caralho! — ele rosna,
quebrando a porta ao meio.
Estou me lavando quando vejo a porta de plástico se
despedaçar aos meus pés, notando os passos duros do Marcos
vindo ao meu encontro. Consigo ver os seus olhos expressivos,
transparecendo um alívio que não consigo entender de onde vem.
Seu corpo está firme e reto, com as armas atravessadas pelo seu
corpo, com muitas manchas de sangue por suas roupas e pele.
— Me desculpa... amor.
Sinto os batimentos frenéticos do meu coração em meus
ouvidos, fazendo com que as minhas veias se agitem por debaixo
da minha pele. Por alguns segundos, meus olhos decidem não se
mover, travando até mesmo as minhas cordas vocais.
Somente foi preciso uma pequena frase para que todos os
meus movimentos e sentidos se tornem imobilizados.
Ainda olhando-o, tento acreditar no que acabei de escutar.
Desculpa não é uma das palavras que participam do
vocabulário do Marcos, muito menos chamar alguém de amor. Fito
cada traço do seu rosto, buscando qualquer vestígio de que as suas
palavras são falsas, mas somente consigo identificar um misto de
sentimentos que há uma grande intensidade e força. Há sinceridade
em seu olhar.
— Não há nada bom em mim... nunca fui afetuoso ou santo.
Vou continuar sendo eu, o mesmo homem que você conhece —
Marcos dá início as suas falas enigmáticas, mas está expondo os
seus sentimentos de forma clara. — Embora não seja o que você
mereça, te prometo fidelidade e que sempre irei te proteger.
Solto o ar que estava segurando, pondo a minha mão sobre a
pia, em uma forma de buscar equilíbrio.
— Não te escolhi para ser uma peça, te escolhi como rainha
— ele cita o xadrez. — Todos os outros foram peões, de forma que,
mesmo não sabendo, estavam protegendo você.
Lembro-me da palavra que o Coringa usou. Distração
— O papel é o preço. Dinheiro é a solução, mas a ruína.
Engulo em seco, tentando ligar os pontos de todas as
informações que foram jogadas. Pisco algumas vezes,
concentrando o meu olhar na sua presença que toma todo o
espaço. Observo a porta plastificada em pedaços, sendo parte do
cenário dramático em que nos encontramos, logo voltando para ele.
Seu peito largo e musculoso sobe e desce rapidamente, com
os seus olhos ainda focados em mim, até que eles descem e param
em minha barriga.
Um sorriso quase inexistente se forma em seus lábios.
— Por que está me dizendo isso agora? — minha voz sai
baixa, quase em um sussurro.
— Pensei que você era um deles... porque o seu pai era —
ele parece relutante em dizer a última parte.
O pequeno banheiro me parece ainda menor com a tensão
repentina que se instala. Sinto-me sufocada com a quantidade de
informações que estão sendo expostas, ainda assim, quero saber
sobre tudo. Talvez, hoje, as minhas dúvidas tenham respostas.
— Não quero ficar no escuro novamente.
Reparo quando os seus dedos somem por entre o seu
cabelo. O seu gesto é uma comunicação direta, onde ele expressa a
sua irritação, mas confesso que esse movimento é quente e muito
sexy.
— Fernanda! — ouço-o gritar, dando-me um leve susto.
Em instantes, vejo-a apontar na entrada do banheiro, me
encarando assustada. Seus olhos passam por toda a extensão do
meu corpo, se certificando de que estou bem.
— Onde fica o seu quarto? — ele exige.
Fernanda parece assustada com o seu tom, mas ergue o seu
queixo, disfarçando o desconforto de estar em sua presença. Ela
transmite um sinal, como se estivesse perguntando se está tudo
bem.
— A Camilla sabe onde é — ela diz, após eu responder ao
seu sinal.
— Está esperando o que, Camilla?
Ao som da sua voz, me movo com cuidado para não pisar
nos pedaços de plástico, me encaminhando para as escadas de
madeira, onde se encontra os três quartos da casa.
Penso na dona Maria, pois estou em sua casa, enquanto o
Marcos a faz de cenário para toda está situação.
Ando pelo corredor sentindo a presença forte do Mancha em
minhas costas. Entro no quarto da Fernanda, sendo seguida por ele.
Após eu estar dentro, ele a tranca, deixando-nos isolados de todo o
mundo.
Por um momento, sinto quando um arrepio frio rasteja pela
minha pele. Talvez o fato de estar com ele, descobrir que estou
carregando um bebê, que uma mulher foi morta em minha frente e,
que, estou prestes a saber a verdade, esteja me causando
sensações desconhecidas ou simplesmente a minha pressão está
baixando.
— Senta! — ele manda.
Me sento, ainda observando-o.
— Me diga a verdade — peço, não aguentando mais esperar.
Ele move as suas mãos para os seus cabelos novamente,
dando passos duros de um lado para o outro em minha frente.
— Seu pai foi um dos homens que matou a minha família, há
quase três anos... — ele parece aéreo. — Afonso...
— Meu pai morreu quando eu era pequena. Isso é
impossível! — tento parecer convincente, mas as imagens daquele
quarto tomam o controle dos meus pensamentos.
Tento me levantar, mas os seus braços fortes me fazem
sentar novamente.
— O seu pai não estava morto. Não até alguns meses atrás...
— o som das suas palavras saem com desprezo.
Minhas mãos começaram a tremer.
— A polícia foi até a minha casa, disseram que ele tinha
morrido de bala perdida...
— Vocês o velaram? — ele levanta as suas sobrancelhas
grossas.
Reparo no homem à minha frente, procurando argumentos
para defender o que foi me dito por anos, mas algo está martelando
em minha cabeça, me impulsionando a acreditar que ele está me
dizendo a verdade.
Minha vida está se tornando em uma mentira lentamente.
— Não — minha voz falha.
— Como você foi inocente... — Marcos balança a sua cabeça
de um lado para o outro.
Abaixo a minha cabeça em uma forma de esconder o meu
constrangimento e as lágrimas que começam a se formar.
— O seu pai tinha um caráter duvidoso. Sozinho ele era
somente um homem, mas com as pessoas certas, ele poderia ser
muito mais... — ele puxa uma cadeira e se senta em minha frente.
— Você tinha um tio, irmão do seu pai. Um homem ganancioso,
viciado e cruel. Foi ele quem procurou o seu pai, dando a ele tudo o
que desejava...
— Como nunca fiquei sabendo sobre ele? — levanto as
minhas mãos até o meu rosto, sufocando todas as reações.
— Há pessoas com poder suficiente para serem apagados.
Alberto somente deixava se aproximar quem ele queria.
Respiro lentamente, procurando absorver todas as
informações.
— Você o matou?
Ele não responde, mas sei a resposta.
— Ele não merecia viver. Você não tem noção de quantas
famílias ele destruiu... — ele se encosta na cadeira. — Sou um
advogado criminalista. Tinha uma mãe e uma filha. Não vivia junto
com a mãe da Olivia, mas ela era uma pessoa boa.
Seus olhos parecem vazios.
— O homem que você chama de pai, era um dos homens da
gangue do Tiago. Todos trabalhavam para o Tiago...
— Quem é Tiago?
— O meu trabalho se baseava em incriminar, recolher provas
e colocar homens corruptos nas grades. Juízes, policiais, influentes
no governo... muitos foram presos por mim. Destruí os seus planos,
as suas vidas financeiras e o luxo, até que se juntaram e criaram
uma vingança, onde mataram a minha família — alcanço uma
lágrima que desce por meu rosto. — Tiago é o principal. O chefe da
quadrilha. O presidente das transações ilícitas no país.
Penso no quanto está sendo difícil para ele se expor desta
forma e no quanto as lembranças devem o machucar. Reviver o
passado nunca foi algo fácil, não consigo imaginar como está sendo
para ele. Me lembro rapidamente dos jornais e as figuras coladas
nas paredes.
— Sinto muito — digo sincera.
— Não sinta — seus olhos se fecham por um momento. — ...
a alguns anos atrás, o acusei e venci. Apresentei todas as provas
possíveis, mas ele não era um simples homem que lavava dinheiro.
Ele era a porta para que muitos outros caíssem — ele continua
falando, sem me olhar. — Ele se juntou com todos os casos que
acusei. Ao todo foram sessenta e quatro homens.
Sinto que gotas descem em grande quantidade pelo meu
rosto, enquanto a minha mente trabalha em imaginar tudo o que ele
está falando. A crueldade humana não é um segredo, mas é
surpreendente a forma que ela cresce.
— Eles as mataram...
Eu somente consigo escutar. Dizer uma palavra neste
momento é impossível, não há uma forma de mudar o seu passado,
dizer que eu entendo ou tentar falar uma frase positiva. O julguei
sendo um homem prepotente e quando pequeno, um menino
mimado, mas a verdade foi pior do que qualquer imaginação.
— ... nas noites, consigo ouvi-la chorar, me chamando,
enquanto era queimada — ele se levanta, escondendo o seu rosto
de mim. — As minhas tatuagens escondem os cortes profundos que
eles fizeram. Eles me deixaram para morrer, mas o Kaique me
salvou. Ele era gari — observo quando os músculos das suas
costas se tencionam. — Eles me deixaram em um galpão, onde
guardavam os caminhões de lixo... Coringa me achou, costurou a
minha pele e se tornou o meu irmão.
O vejo se virar, ficando de frente para a janela.
Fecho os meus olhos por alguns segundos.
O seu silêncio permanece por alguns minutos, pensei até que
ele não iria falar mais nada, até porque ele excedeu a quantidade de
palavras que ele usa por dia. Não o ouvi falar sobre a sua vida,
muito menos de forma detalhada.
Tudo está sendo demais para digerir, mas não posso ser
egoísta e me esquecer de todos os sentimentos que ele passou por
cima, para poder me deixar informada e solucionar todas as minhas
dúvidas. Ele estava se abrindo, revelando um homem que eu não
conhecia.
Não estava preparada para tanto.
— Foi uma mulher... ela era ruiva — sua voz raivosa me
desperta dos meus pensamentos. — Seu pai me disse que era
você... essa mulher riu da minha filha, enquanto estava sendo
queimada. E, foi ela quem cortou a minha carne.
Suas costas se movem rapidamente, evidenciado a sua
respiração nervosa.
— Gizele nem sempre foi loira...
Sem que ele possa me impedir, me levanto e vou até ele,
abraçando as suas costas. Afundo o meu rosto em seus músculos,
sentindo o seu cheio e deixando que as minhas lágrimas molhem a
sua camisa. Desta forma, tento mostrar todo o meu sentimento e o
quanto sinto por tudo que aconteceu.
— Eu contei cada um dos homens, para que eu não
esquecesse de nenhum deles. O seu pai foi o número dois...
— Por que ele fez isso? — um soluço escapa.
— Dinheiro.
— Dinheiro? — questiono.
— Ele me vendeu você.
Ele se afasta de mim, olhando-me nos olhos.
Sinto que as minhas pernas falham, mas o Marcos me
segura.
— Eu quero saber — insisto, vendo que ele se calou.
Ele me olha relutante.
— Tiago e Alberto prendiam o seu pai com drogas, pagava os
seus serviços com Anfetamina e Crack. Após saber que eu estava
te procurando, eles expulsaram o seu pai — Marcos me examina, se
assegurando que pode continuar. — O encontrei desesperado,
louco por dinheiro. Seu pai te vendeu para suprir o vício — ele
abaixa a sua cabeça, como se estivesse em uma disputa com ele
mesmo. — Mandei te observarem por algum tempo, mas seu
relatório não batia com nada do que eles me disseram.
Sinto os seus braços me apertarem de encontro ao seu peito,
como se quisesse me guardar de todas as coisas que ele está me
dizendo.
— Todos que matei disseram que você era a mulher que
estava presente naquele lugar. Tudo para proteger a Gizele, até que
ela estivesse pronta para se infiltrar no meu espaço — ele continua.
— Desconfiei que havia algo errado. Foi quando mandei fazerem
aquela porra para você ser obrigada a ir.
Minhas mãos se apertam em torno da sua camisa manchada,
ainda conseguindo ficar surpresa com tudo o que foram capazes de
fazer.
— Eu sabia quem era a Gizele, mas você continuava sendo a
filha daquele filho da puta. Não podia confiar — ele me olha
preocupado. — Achei que você estava com eles, até que a sua boca
sem filtro me disse o que precisava ouvir.
Sem saber o que dizer, aperto-o ainda mais, desfrutando dos
seus olhares e o seu toque quente, que me conforta.
— Foi naquele momento que eu soube que nunca mais te
deixaria.
Ainda tentando assimilar todas as notícias recentes, observo
os minutos se passando, enquanto o Marcos continua em silêncio.
Ele também parece estar colocando os seus pensamentos em
ordem.
Seus braços estão flexionados para trás, suas grossas
pernas estão abertas em um estilo militar e os seus olhos estão em
mim, analisando-me avidamente. Reparo em cada movimento seu,
até que os seus olhos descem de encontro a minha barriga. Esse
deve ser o momento que ele surta por saber que estou grávida.
Mantenho a minha postura reta, esperando por alguma
reação sua, mas ele continua quieto. Sei que ele deve estar
assuntado tanto quanto eu, mas a culpa foi nossa por não
percebermos que não estávamos usando qualquer proteção.
Entretanto, a culpa se inclina ainda mais para o meu lado. Fui burra
por não me opor a transar sem camisinha.
— Até que a aliança ficou boa — Mancha quebra o silêncio.
Olho para ele confusa.
— Que aliança? — questiono, sem entender.
— Uma aliança não se garante nada, Camilla. É somente um
objeto, que tem um significado, mas que pode ser perdido, roubado
e esquecido, mas um filho... esse pedaço de mim que você está
carregando é para sempre.
— Você sabia? — sussurro incrédula.
— Sabia que iria acontecer, mas não agora — sinto a
sinceridade em suas palavras.
Concentro toda a minha atenção no homem sério a minha
frente.
— Você praticamente planejou um filho sem mim! — o acuso.
Não sei qual sentimento tem a capacidade de me definir
neste momento.
— Não tem como fazer um filho sozinho — ele sorri.
ELE SORRI.
Esfrego os meus olhos, tentando absorver as suas atitudes.
— Você está feliz? — pergunto depois de alguns minutos.
Preciso ouvir dele.
— O que você acha? — ele rebate com uma nova pergunta.
— Eu não sei de mais nada.
Abaixo a minha cabeça, encarando o piso branco, mas as
suas mãos seguram o meu rosto, fazendo-me olhar diretamente em
seus olhos.
— Desde que coloquei os meus olhos em você, soube que eu
tinha me encontrado. Espero que entenda que não há chances de
fugir. Você não está sozinha. Nunca esteve. Eu sempre estive aqui e
sempre vou estar — não tenho tempo de lhe responder, pois quando
consigo encontrar as palavras, a sua boca invade a minha,
arrancando todos os meus pensamentos coerentes.
18
DOR
CAMILLA FERRAZ
Segunda-feira, 21 de maio de 2018

O relógio sinaliza dez horas da manhã.


A consulta da minha mãe está marcada para as treze horas.
O hospital não é perto e para que possamos chegar a tempo, temos
que sair mais cedo.
No dia anterior, perguntei para dona Maria se ela podia pegar
o Bruno na escola e ficar com ele por um curto tempo, até que a
minha mãe fizesse todos os procedimentos necessários. Desta
forma, posso sair tranquila por saber que ele será bem cuidado.
As notícias no Complexo foram atualizadas com sucesso.
Tudo o que foi dito naquela noite foi espalhado em dose dupla. Ver a
minha vida sendo passada de boca em boca não é algo que foge do
constrangimento, humilhação e raiva.
Muitos curiosos que estavam por lá, ouviram tudo o que foi
dito, desde as confissões, até a morte da Gizele. Ainda assim, uma
parte dessas pessoas continuam a me acusar, me
responsabilizando pela morte dela.
Tenho vários motivos para estar chateada, mas o que mais
me leva ao limite, é o modo que eles usam as suas palavras para
atingir o bebê que está crescendo dentro de mim. O golpe da
barriga é a frase mais simples que alguns dizem, enquanto outros
acreditam que nem estou grávida. É angustiante ouvir tudo. Mas
não posso calá-los.
Constato que tranquei a porta e o pequeno portão de ferro.
Envolvo o meu braço com o da minha mãe, segurando a sua bolsa
com a outra mão.
Consigo ver a tristeza nos olhos dela, em suas feições.
Nenhuma mãe se alegra com a dor do seu filho. Ver e ouvir o que as
pessoas estão dizendo, não está sendo fácil para ela.
Envio uma mensagem para a dona Maria, reforçando o
pedido que fiz a ela sobre o Bruno, enquanto caminhamos para fora
do Morro.
Como de costume, observo quando alguns
dos funcionários do Marcos usam os seus equipamentos para
comunicar a minha saída. Não cheguei a avisá-lo, pois sei que
fariam isso por mim.
O meu celular vibra em meu bolso traseiro, mas já sabendo
de quem se trata, somente desligo e volto a caminhar em direção ao
ponto de ônibus. Sei que ele vai ficar irritado, mas preciso do meu
tempo. Aconteceu muitas coisas e uma semana não foi o suficiente
para que todos os meus pensamentos conseguissem encontrar a
organização. Foram muitas informações e muitas sensações. Não
estou o ignorando, mas estabelecendo um tempo, até que eu
consiga lidar com tudo.
— Camilla! — estando na esquina, literalmente na entrada do
Morro, ouço me chamarem.
Não reconheço o dono da voz. Me viro e procuro pela pessoa
que me chamou. Meus olhos se deparam com um garoto sem
camisa, cabelo descolorido e uma arma que atravessa o seu peito.
Merda.
— O chefe está na linha! — ele me avisa ofegante.
Não é novidade que ele daria um jeito para me encontrar.
Tentando evitar futuros problemas, mesmo sabendo que já
estou em um, pego o rádio que o menor está estendendo e espero
que ele fale.
— Está indo para onde? — ouço a sua voz rouca.
— Tenho que falar cada passo que eu dou para você?
— Não me provoca, porra! — ele soa irritado.
— Estou atrasada, tenho que ir — falo rapidamente.
— Camilla, caralho! — ouço-o gritar do outro lado.
Coloco o aparelho nas mãos do menino novamente, vendo a
sua cara de espanto.
Me afasto dele e corro com a minha mãe para o ponto, por
sorte o ônibus passou rápido.
Entendo o quanto foi difícil para ele compartilhar sobre a sua
vida, compreendendo o que ele está fazendo, mas não posso parar
a minha vida pelas suas pendências do passado. O tráfico moldou o
homem que ele é hoje. Sei que ele está desconfiado, não sabendo
como agir ao meu redor, até porque, ele estava acostumado a ter
atitudes que lhe foram ensinados. Mas ele me conheceu. Sexo é só
uma parte e amor não tem espaço para ignorância.
Acredito em sua mudança, mas eu tenho certeza da minha.
Algumas horas e minutos depois, chegamos ao hospital.
— Boa tarde! — cumprimento a recepcionista, entregando os
documentos da minha mãe, recebendo em troca uma ficha.
Embora eles marquem os horários, ao estar no hospital é por
ordem de chegada. E, em nossa frente, tem onze pessoas. Vendo
que vai demorar. Levo a minha mãe para fora, onde nós nos
sentamos em alguns bancos de concreto pintados de branco. O sol
bate de leve em nossos rostos, mas o calmo vento não deixa que o
calor domine.
Reparo no lenço florido que ela usa em sua cabeça, nos seus
olhos fechados e na sua respiração calma.
— Mãe?
— O que aconteceu? — ela pergunta, se virando para mim.
— Faz algumas noites que estou pensando sobre isso...
— É sobre o Marcos? — ela me interrompe.
— Não sei se as notícias já vieram até a senhora, mas... —
desvio os meus olhos dos seus.
— Eu sei — ela sussurra.
— Sabe? — pergunto confusa.
Talvez tudo o que eu tenha ouvido no passar dos anos não
tenha sido o suficiente.
— Ele me garantiu que cuidaria de você.
— Quando isso? — viro o meu corpo em sua direção.
— Você tinha saído... estava eu e o Bruno em casa — ela
mexe na barra da sua blusa. — Ele trouxe o jantar, se sentou com a
gente e agiu como se fossemos próximos. Ele não falou muito, mas
disse as palavras certas em todo momento.
A encaro ainda mais confusa, mas deixo que ela prossiga.
— Quando ele foi em nossa casa pela primeira vez, ele
sussurrou que iria voltar. E, ele voltou. Ele olha para o Bruno com
carinho, o protege. Assim como ele me assegurou que faria o
mesmo com você.
Meu coração está agitado em meu peito.
— Quando o Baianinho estava vivo, mesmo sabendo da
nossa situação, ele não teve a sensibilidade ou a capacidade de
suprir nem mesmo as necessidades do próprio filho, que ele dizia
tanto amar. Ele nunca nos ajudou — ela me faz refletir em suas
palavras. — E o Marcos, mesmo não tendo a obrigação, ele nos deu
o que comer, o que vestir e se tornou o que o Baianinho nunca foi
para o Bruno, um pai.
Meu cérebro parece parar por um momento.
Não é eu que devia estar contando sobre as notícias
recentes?!
— Ele é um traficante, agora. Sendo a sua mãe, nunca quis
nada daquele lugar para você. Quando soube que estava grávida,
passei várias noites imaginando ver você formada, casada com um
bom homem ou se fosse uma mulher, não importava. Eu somente
sonhava em ver você feliz.
Respiro fundo, deixando com que lágrimas escorram
livremente por meu rosto.
Minha mãe consegue cavar fundo em meu coração.
— Você pode até negar, mas você o ama. Ama os cuidados
dele, as palavras dele, mesmo sendo um carinho diferente. Entenda
que ele está aprendendo e você está em posição de ensinar. Você
tornou o amor atraente para ele, e ele quer mais.
— Ele gosta da atenção, não de mim — a interrompo.
— Sempre amei a sua inocente, mas a Fernanda tem razão.
Você consegue ser lenta além do compreensível — ela deixa um
sorriso escapar, enxugando as minhas lágrimas. — Não se
preocupe, você vai descobrir como tudo funciona.
Não questiono a minha mãe.
Dona Joana colocou uma nova coisa para ser pensada em
minha cabeça, deixando-me ainda mais confusa. Deixo que o
silêncio aquiete os meus sentimentos, até que eu encontre coragem
para dizer a outra coisa que está me incomodando.
— Tem algo que ainda preciso contar.
A observo ficar atenta, esperando pelo que vou falar.
— Papai estava vivo — digo de uma vez, não sabendo outra
forma para poder contar.
Espero por alguma reação sua, mas ela não esboça nem
mesmo surpresa.
— Estava? — ela pergunta, parecendo não se importar.
— A senhora sabia?
— Sim — olhei-a assustada.
A resposta não poderia ser outra, pois a sua postura e feição
não diz ao contrário.
— O seu pai quis ir embora — ela volta os seus olhos para
baixo. — Antes de conhecer o seu pai, trabalhava em um
mercadinho no Complexo e via ele todos os dias. Não sabia na
época, mas na rua de trás tinha uma boca e, sempre, no mesmo
horário, ele ia buscar drogas — ela parece estar envergonhada. —
Nós trocávamos olhares, até que fiquei apaixonada. Um tempo
depois, ele me pediu em namoro, eu engravidei e a gente foi morar
juntos.
Me atento em cada informação, pois esta é a primeira vez
que a minha mãe fala sobre isso.
— Quando ele descobriu que eu estava com câncer, achou
que era muito para lidar — seus dedos capturam uma lágrima que
desce. — Ele até conseguiu a vaga para mim neste hospital, mas
ele disse que após isso iria sumir. Na mesma época, o irmão do seu
pai apareceu. Alberto comprava a lealdade do Afonso com drogas
pesadas. Afonso não estava mais contente em brincar de casinha,
essas são as palavras que ele usou. O seu irmão forjou a sua morte,
mas ele morreu definitivamente para mim naquele dia.
Minha visão fica turva. Estou horroriza.
Como ele foi capaz?!
— Sinto muito, Camilla — ela sussurra. — Sinto muito por
não ter dito antes. Não queria que você sofresse — ela levanta os
seus olhos para mim. — Você sempre foi forte, minha menina...
você não teve tempo de ser criança. Amadureceu tão rápido... —
minha mãe funga, limpando as suas lágrimas. — E, é por isso que
acredito no Marcos. Ele pode te dar uma vida. Chegou o momento
de você ser cuidada, pois você já cuidou demais.
— O Marcos quem matou o meu pai.
— Não tem como matar alguém que já está morto — ela diz
simples.
A confissão que fiz não parece ter surtido efeito algum, minha
mãe parece estar decidida. Marcos mais uma vez venceu.
— Há mais uma coisa.
Ela assente, como se me dissesse que está preparada para
ouvir.
— Meu pai me vendeu para o Marcos.
— Ele o que? — seu rosto empalidece rapidamente,
deixando-me preocupada.
— A senhora está bem? — me aproximo dela.
— Ele te vendeu?! — ela sussurra como se para si mesma.
Ela repete várias e várias vezes, derramando ainda mais
lágrimas. Começo a me desesperar e a me sentir culpada. Não
devia ter dito isso.
Olho para todos os lados, buscando ajuda, mas não encontro
ninguém. Até que um grupo de enfermeiros que estão voltando do
almoço se faz presente em minha visão. Grito e peço ajuda, logo
eles estão ao meu redor.
Um dos enfermeiros traz uma cadeira de rodas, auxiliando-a
em todos os processos. Tento acompanhá-los, mas eles entram em
um corredor que somente tem acesso para pessoas autorizadas. Me
encosto em uma pilastra, vendo as pessoas me olharem com pena.
Fecho os meus olhos e deixo que as lágrimas desçam.
— Vai ficar tudo bem, Camilla! — reconheço a voz do Dr.
Vitor, enquanto segura o meu ombro em um gesto acolhedor.
Sem pensar, me viro e afundo a minha cabeça em seu peito,
abraçando-o apertado. Coloco em seu abraço toda dor, frustração,
tristeza e sensações que não consigo identificar.
Sinto quando as suas mãos seguram as minhas costas,
confortando-me.
— Então, você é o Vitor?...
Meus olhos se fecham com força, os movimentos sutis das
mãos do médico cessam.
Sua voz é algo fixo em minha cabeça, é impossível não a
reconhecer.
Ainda de frente para o médico, tento firmar a minha
paciência, pois sei que o Marcos está prestes a roubá-la de mim.
Não consigo acreditar que ele veio até aqui. Entretanto, este é um
tipo de ação que combina com ele. Marcos é o sinônimo de
inesperado. Ele consegue ser surpreendente e assustador ao
mesmo tempo.
Puxo algumas respirações e dou alguns passos para trás, no
mesmo instante que as minhas mãos se movem até o meu rosto,
secando o rastro das lágrimas. Assim que me viro, posso visualizar
o olhar raivoso e a sua postura firme, que logo descem para o meu
rosto.
— O que ele fez com você? — ele me questiona, parecendo
preocupado.
Sinto o seu olhar me examinando, se voltando para o homem
atrás de mim, assumindo a sua postura de assassino em instantes.
— O que você fez? — ele dá um passo à frente, mas sou
rápida, me posicionando em seu campo de visão.
— Ele não fez nada, Marcos!
— Por que está chorando? — ele não parece estar
convencido.
Não sei exatamente o que falar. Estou chorando por muitos
motivos e grande parte deles o envolve.
Quando a Fernanda me avisou para preparar o meu
psicológico pensei estar certa do que estava fazendo, mas vendo no
que estou metida, percebo que devia ter cuidado do meu coração
também.
— Eu fiz uma pergunta! — o seu tom é irritado, olhando de
mim para o médico.
Marcos altera a sua voz, fazendo com que as pessoas que
estão ao nosso redor se dediquem a observar o que está
acontecendo. Os recepcionistas nos olham desconfiados,
esperando qualquer movimento para chamar os seguranças. Talvez
não seja somente a voz alta do Marcos, mas ele por si só, está
conseguindo chamar toda a atenção. O seu alto e musculoso corpo,
prende os olhos de muitas pessoas que estão por aqui. A sua
postura, os seus olhos quentes e todas as suas expressões são
atraentes, até demais.
— Depois falamos sobre isso — carrego em minhas palavras
e no meu olhar toda a paciência que ainda tenho.
Ele não me parece satisfeito com a resposta, mas consegue
acatar.
— Me desculpe Dr. Vitor, ele não teve a intensão de te acusar
— peço constrangida.
— Você sabe que eu tive a intensão — ele segura o meu
olhar.
— Você poderia ser um pouco educado, Marcos. Nem todos
são culpados — tento fazer uma referência, mas consigo deixá-lo
ainda mais irritado.
— Desculpe interromper, mas tenho alguns pacientes — me
viro para ficar de frente para ele novamente. — Vou cuidar da sua
mãe, Camilla. Fique tranquila.
— Obrigada — ele me olha com pena, sumindo por entre os
corredores.
— Você está passando dos limites, Marcos — caminho para
fora, não me importando em olhá-lo.
Me sento no mesmo banco que estava sentada com a minha
mãe, abaixo a minha cabeça e respiro calmamente.
— O que significa limites para você? — abro os meus olhos,
vendo a sua sombra sobre mim.
Não respondo. Permaneço com os meus olhos no chão, até
que o vejo se agachar em minha frente, colocando os seus braços
em cada lado do meu corpo. Ele me prende com os seus braços e
olhos, fazendo com que a minha atenção esteja totalmente nele.
— Estou esperando...
— Eu não consigo mais — sussurro.
— O que? — visualizo o seu peito descer e subir
rapidamente.
— Tentei te compreender, busquei não interferir nos seus
segredos, senti a dor da sua perda, mas não consigo encontrar um
motivo para você continuar a ser assim. Eu fiz o que pude, Marcos.
Eu amei você, me entreguei, cuidei...
Está não é a primeira vez que digo estas palavras, mas desta
vez, parece que surtiu algum efeito, pois o seu corpo fica quente e o
modo que ele me observa é diferente.
— Eu também cuido de você — seus olhos parecem estar
conhecendo um novo sentimento, o desespero.
— Não quero o seu dinheiro! Sou grata por tudo o que fez,
mas o que você quer, não posso te dar. Não vou aceitar que você
me quebre.
Seus braços flexionam com força, apertando a estrutura de
pedra.
— Você não vai me deixar.
— Você faz tudo o que abomino em uma pessoa — noto que
as minhas palavras foram como um tapa em seu rosto. — Você não
sente, não se comove, não tem remorso... você aprendeu a
machucar, mas quem decidi praticar o que lhe foi ensinado, é você!
Ele me escuta sem dizer uma única palavra, mas os seus
olhos conseguem expressar mais do que eu estava esperando.
— Você não pensou quando quis ferir a Fernanda. Ameaçou
as pessoas com quem me importo, com a desculpa de que era para
me manter ao seu lado. Eu sempre olhei somente para você, não
precisava me expor ou machucar ninguém.
As lágrimas transbordam pelos meus olhos, deixando
evidente a minha fraqueza.
— Sei o que fez com o Samuel.
— Como? — ele me olha surpreso.
— Tenho um celular, vejo as redes sociais das pessoas.
Alguns dias atrás, desconfiei do sumiço do homem que
conheci no parque. Procurei por ele em algumas redes, até que
descobri o que tinha acontecido. Em um vídeo ele explicou que tinha
sido assaltado e que a violência resultou em algumas costelas
quebradas e alguns pontos em seu rosto, mas que não tinha sido
levado nada.
— A violência dos seus atos me atinge, as suas palavras me
ferem e a forma que trata as pessoas como se fossem nada, é o
motivo de eu estar saindo da sua vida.
— Eu não aceito! — ele segura as laterais do meu corpo. —
Nós temos filhos, Camilla!
— Eu tenho filhos.
— Nós vamos nos casar! Você não pode sair!
— O que?
Casamento também é uma parte do seu jogo?
— Eu encontrei você, não vou deixar que saia da minha vida.
Eu lutei por você!
Ele não olha para mim, mas sinto o seu aperto. Seu rosto
está vermelho, enquanto uma veia salta da sua testa, mostrando-me
a sua irritação.
Não achei que tudo iria terminar em um pedido de casamento
ou uma exigência. Mais um motivo para ele entender que as coisas
não funcionam da forma que ele quer.
Seguro o seu rosto e faço com que ele olhe para mim.
— Mesmo sendo uma exigência, a minha reposta é não —
ele respira fundo, sentindo a sinceridade no que falo. — Você um
dia disse que não poderia me dar exclusividade, hoje sou eu que
estou dispensando este rótulo que você criou.
— Você sabe o porquê de eu ter dito isso. Sabe quais foram
os motivos!
— Eu sei. E são eles que estão dando um ponto final ao que
quer que tivemos.
— Você sabe que isso não vai acontecer — observo os seus
olhos se tornarem sombrios.
— Não vou deixar que os meus filhos tenham o seu exemplo.
— Você não vai tirá-los de mim!
— Então, mude.
Ainda segurando o seu rosto, noto que ele não esboça
nenhuma reação.
Me sinto aliviada por estar me opondo as suas exigências, de
forma que, ele veja que eu não estou em seu controle. Marcos se
tornou um traficante, mas as suas atitudes não se igualam.
— Você aprendeu que erra como qualquer outra pessoa,
agora aprenda que não é impossível mudar.
— Você está confiante que irá conseguir fugir de mim? — ele
fala baixo.
— Eu não vou fugir — ele está atento a cada frase. — Quero
que você sinta o que é me olhar e não poder me tocar, quero que
saiba que reciprocidade precisa de duas pessoas e que não estou
mais disponível para você.
Solto as suas mãos dos meus quadris e me levanto.
— Eu te pedi desculpa — ele está de pé, pairando sobre
mim.
— Desculpa é somente uma palavra. Faça mais, quem sabe
eu acredite?
Compreendo a dificuldade que ele teve ao soltar está palavra,
mas se ele quiser estar ao meu lado, o mínimo que ele tem que
saber é quando está errado. Marcos precisa aprender a outra parte
que lhe foi privada.
O amor machuca, mas a falta dele fere ainda mais.
— Não sou uma das peças do seu jogo.
Me movo em direção ao centro médico, mas sinto o meu
braço sendo puxado. Não é uma surpresa saber que ele não
aceitaria de bom grado.
— Vou deixar que acredite no que está fazendo, mas você
ainda vai voltar.
— O seu orgulho não vai deixar que me procure por alguns
dias, mas você não vai aguentar. Você experimentou algo que não
foi lhe dado. Esse amor que você acredita não ter, será o mesmo
que fará você bater em minha porta.
19
DESESPERO
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 29 de julho de 2018

Deslizo o meu vestido, até que caia no chão. Me movo até o


espelho e desço os meus olhos, posicionando-os em minha barriga.
Os três meses de gestação estão me proporcionando
sensações extremas, oscilações desgastantes e uma saudade que
não conhece os meus limites.
Nestes dois meses, tenho me dedicado ainda mais a minha
mãe, a minha gravidez e ao Bruno. A saúde da minha mãe debilitou-
se após saber o que o meu pai tinha feito. As diversas informações
tornaram os seus dias difíceis e o meu também.
O medo de perdê-la é algo constante. Todos os dias sou
lembrada de aproveitar os nossos momentos como se fossem os
últimos. A dor que esses pensamentos me trazem é inexplicável,
mas é algo que não está em meu controle.
Minhas mãos escorregam em meu ventre avantajado.
— Você é muito amada, minha menina.
Ainda alisando a minha barriga, subo o meu olhar para os
meus olhos.
Minha menina decidiu se mostrar presente antes de
completar os quatro meses.
O espelho consegue refletir todos os meus sentimentos. Ele
me mostra as verdades da minha alma e corpo, detalhando tudo o
que tento fingir.
Faz sessenta dias que não o vejo.
As palavras que usei a meses atrás surtiu efeito, pois assim
como em outras vezes, ele sumiu. Não sei se fugir é uma forma dele
esquecer as suas responsabilidades ou se está realmente
trabalhando em algo.
Penso nele todos os dias, até porque estou carregando uma
parte dele em mim, mas ele tem que aprender. Marcos precisa
saber que o mundo é muito maior do que as suas vontades.
Respiro fundo e entro no banho.
Nos primeiros dias eu chorei. No décimo, chorei menos do
que no primeiro. No décimo quinto, voltei para o hospital com a
minha mãe. No vigésimo, tentei criar coragem para conversar com o
Bruno, mas para a minha surpresa, Marcos somente sumiu para
mim, pois ele arranja um jeito de falar com ele na escola. No
quinquagésimo dia, Coringa me contou que o Mancha estava no
hospital, enquanto descobria que seria pai de uma menina.
Ele não desistiu dos filhos, mas está esperando por mim. Não
consigo imaginar qual será a sua reação quando descobrir que não
estarei o procurando.
Ouço a Fernanda gritar algo com o Izac, trazendo-me para a
realidade.
Mamãe, eu e o Bruno estamos desde cedo na casa da dona
Maria. Fernanda está lá fora, terminando de ajustar algumas coisas
que estavam fora do lugar.
Hoje é o aniversário do Coringa.
Não sei qual é o nome certo para o tipo de relacionamento
que eles estão tendo, mas não foi surpresa para ninguém quando
ela apareceu contando sobre ele. Os olhares que ele lançava sobre
ela eram claros, porém o medo não a deixava sentir. Até que ele
conquistou a sua confiança.
O homem perto da Fernanda, está longe de ser o Coringa
quieto e frio que faz o que o Marcos manda. Dona Maria parece feliz
com o relacionamento deles e todos ao redor também. Ele está
fazendo-a feliz, a protege, escuta ela desabafar sobre a Yohana,
atentamente, como se fosse o assunto mais interessante. Ele está
conseguindo quebrar os seus muros.
Termino de me lavar, me seco e ponho uma roupa leve.
Penteio os meus cabelos, deixando-os soltos, logo indo até o varal,
onde estendo a toalha molhada.
Mamãe está conversando com a dona Maria na cozinha,
onde estão terminando de fritar os salgados. Bruno corre atrás de
um balão em volta da mesa que a Fernanda está terminando de
colocar alguns doces.
— Precisa de ajuda? — ofereço, assim que me aproximo.
— Pega os pastéis lá na cozinha, por favor? — ela diz
arrumando a vela do time que o Coringa torce.
A festa é surpresa, sendo somente para algumas pessoas —
acredito que seja menos de vinte. Fernanda está empolgada.
Estamos desde cedo enrolando doces, fazendo salgados e
arrumando a decoração.
Vou até a cozinha e pego a bandeja com os pastéis e outra
com mini cachorros-quentes. Ponho em cima da mesa e a minha
amiga as posiciona em cada lado do bolo, que ela mesma fez.
Minutos depois, está tudo pronto. Os convidados chegaram, a
vela está acessa e as luzes apagadas.
— Vou abrir o portão — Fernanda sussurra, após visualizar
uma mensagem em seu celular.
Vemos ela se mover até o corredor que leva ao portão, logo
nos deparamos com ele. A típica música de parabéns e palmas se
espalham. Não sei definir exatamente qual é a reação dele, mas os
seus olhos brilham em uma intensidade inexplicável. Ele se vira e
abraça a Fernanda, mas são interrompidos por um Bruno saltitante
que abraça os dois, com a sua bexiga em mãos. Tento chamá-lo,
mas ele desce do colo da Fernanda, indo para o lado oposto.
O meu coração dispara.
— Pai!
Meus olhos se prendem na figura que sai do corredor. Ele se
abaixa e pega o Bruno em seu colo, falando algo que não consigo
ouvir.
Marcos parece lívido, cansado e com olheiras profundas. Sua
barba está ainda maior e os seus olhos estão sem vida. A sua feição
é penosa.
Sinto o olhar da Fernanda em mim, como se não entendesse
o que ele está fazendo aqui, mas sei quem o chamou.
Assim que me viro para ele, encaro o Bruno em advertência.
A sensação de formigamento se expande pelo meu corpo,
deixando-me nervosa. Subo o meu olhar e encontro os dele. Não sei
como ainda sou capaz de reagir vergonhosamente a ele.
Ele desce os seus olhos pelo meu corpo, até que pousa em
meu ventre. Marcos sustenta o seu olhar, piscando algumas vezes
se atentando ao menino falante em seu colo.
Sugo o ar em minha volta e vou de encontro ao Coringa.
— Parabéns! — o parabenizo, abraçando-o.
Ele me aperta com lágrimas em seus olhos me agradecendo.
Fernanda está sorrindo, vendo todos o felicitarem. Ela tenta
me dizer algo, mas a tranquilizo. Não vou deixar que ninguém
estrague este momento. Pego uma coxinha e espero que a Lorena,
prima da Fernanda, encha o meu copo com refrigerante.
— Obrigada! — agradeço.
Me encaminho até onde a minha mãe está sentada. Embora
ela esteja fraca, insistiu para que viéssemos e sinto que ela está
bem em estar no meio destas pessoas.
Entrego um prato com alguns salgados a ela.
— A senhora quer suco ou refrigerante? — pergunto.
— Quero que você observe o que ele está fazendo com o seu
filho — ela diz baixo.
Me viro a procura do Bruno.
— Faz mais de vinte minutos que ele está segurando o balão
para o Bruno comer — vejo-o sentado no chão, com o Bruno no
meio das suas pernas.
— Não estou vendo nada demais, mãe — digo querendo
entendê-la.
— O Bruno explicou para ele que não podia deixar no chão
porque ia voar e o Mancha está segurando para não vê-lo triste.
Reparo no menino sentado ao chão. Ele segura o prato,
dividindo o que está dentro com o Mancha.
— Um dia eu disse para que você não mudasse o que é para
agradar ninguém... — continuo a observar os dois. — Você mudou.
E ele também.
— O que a senhora quer dizer? — me sento ao seu lado,
pousando a minha mão em minha barriga.
— Você ofereceu amor, mas não foi o suficiente. Você deu a
ele a dor. Veja o resultado — observo a minha mãe. — Ele está
dando o que você pediu. Ele não está te dando um tempo, mas
acatando a sua vontade.
— Isso é orgulho, mãe.
— Também — ela se vira para mim. — Ele não consegue
aceitar a rejeição, muito menos lidar com os sentimentos dele. Até
que chegará um dia que ele não vai aguentar mais.
— Ele conseguiu por dois meses, vai aguentar, sim.
Minha mãe sorri.
— Quero suco — ela dá um final a nossa conversa.
Me levanto e vou até a cozinha. Encho um copo e entrego a
minha mãe.
Converso com algumas pessoas, como alguns doces, encho
o copo do Bruno, até que sinto vontade de ir ao banheiro. Me
levanto e entro dentro da casa. Abro a porta do banheiro, mas
quando vou fechá-la, alguém segura o meu braço.
Minha pele queima no lugar onde ele está segurando.
— Até quando você irá continuar com isso? — seus braços
me aprisionam de encontro a parede fria.
Sua voz é um conjunto de sentimentos intensos, que
transbordam em um tom grave.
— Nos seus olhos ainda há arrogância, não é desta forma
que você irá conseguir.
O seu peito sobe e desce. Analiso o seu desespero.
Sinto o seu perfume me inebriar. Minhas mãos teimam com a
vontade de querer tocá-lo.
— Você não pode se afastar de mim, já se passaram dois
meses!
— Você pode ditar o que quiser, mas quando falar sobre mim,
saiba que não está tratando dos seus negócios.
Observo quando ele respira com força, puxando os seus
cabelos para trás.
— Olhe o que você está fazendo comigo! — ele não se
altera, mas o seu rosto vem de encontro ao meu. — Eu não tenho
nada, Camilla! E quando penso que estou, você tira isso de mim!
— A suas atitudes fizeram com que você perdesse — sinto a
sua mão pousar em meu ventre. — Entenda a não colocar a culpa
nas pessoas quando a responsabilidade é sua.
— Você está me quebrando.
— Você não foi o único que teve o privilégio de sentir isso.
— Não tire eles de mim — sinto a sua pressão em minha
pele.
— Você é um bom pai, Marcos. Só não aprendeu como tratar
a mãe deles.
— O que você quer de mim? — sua voz é derrotada.
— Quero que você pense. Você é um cara inteligente, vai
conseguir descobrir sozinho.
Os seus olhos são confusos, com ondas extremas de
irritação.
— Tudo o que fiz foi por você.
— Não. Você fez por vingança.
— Eu não esperava gostar — ele abaixa a sua cabeça. —
Vim parar aqui por três motivos. Você, a minha irmã e o lugar.
Encaro as suas costas inclinadas para baixo.
Não pensei que poderia haver mais confissões.
— Antes de qualquer ação, busco informações que possam
favorecer os meus planos, acrescentar em minha visão e um modo
de acusar. Eu pesquisei sobre todos, menos você... — ele encontra
os meus olhos. — Foi fácil descobrir que você não era a ruiva que
me feriu, mas ainda era filha dele. Te achei um alvo fácil.
Examino cada palavra que ele diz, tentando encaixar
algumas partes que ainda faltavam.
— Coloquei as duas no mesmo espaço, onde poderia matar
os dois coelhos, mas dias antes eu te vi. Não consegui parar de
pensar em você.
— Sabia que estavam me seguindo — confesso.
— Seu histórico foi uma surpresa para mim. Deixei que
fizessem o meu trabalho, sem a minha supervisão, até que eu te vi e
me interessei em saber mais. O meu interesse em você me fez
descobrir que tinha um filho, um mãe doente e uma vida dura. O seu
pai foi bem específico quando disse que viviam bem.
— Ele não é o meu pai — sussurro.
Ele assente, deixando que um sorriso de lado apareça.
— Só tive a certeza de tudo, quando me disse que o seu pai
estava morto a anos.
Ele fica em silêncio.
— ... e a sua irmã? — pergunto.
— O nome dela é Gabriela.
Assim que escuto o nome, minha feição intrigada invade a
sua visão.
— Sim. A sua amiga da escola.
— Mas... como?
— Quando tinha nove anos, meu pai engravidou outra
prostituta, mas ele não disse a ninguém com medo de ter mais um
para mandar no seu dinheiro. Até que, já adulto, a dona do lugar
que o meu pai gostava de frequentar, me disse sobre o
envolvimento dos dois.
— Como descobriu que é a Gabriela?
— Meu pai a jogou na rua quando nasceu. Roubei várias
filmagens e por anos a procurei. Até que descobri esse lugar e, por
coincidência, você também estava aqui.
Encaro-o chocada.
— Entende qual foi o exemplo de família que tive? — ele se
aproxima, ainda mais.
— Entendo o que você pode ter se escolher dar um fim ao
seu passado.
— Tiraram tudo de mim, Camilla.
— Será tirado ainda mais, se você não focar no seu
presente.
20
ARREPENDIMENTO
MARCOS HENRIQUE
Sábado, 4 de agosto de 2018

Até conhecer a Olivia, o único tipo de carinho que conheci foi o da


minha mãe. Ela não podia demonstrar ou usar palavras afetuosas
comigo — as ordens do meu pai foram explicitas em relação a isso.
Ela me ensinou a demonstrar com gestos. Não dizia que me
amava, mas em todas as noites o biscoito que eu mais gostava
estava embaixo da minha cama.
Achei que isso seria o suficiente com ela, mas percebi que se
trata de algo ainda maior.
Ouço o barulho da chuva.
Tem sido um inferno passar os meus dias sem ela. Nunca
pensei ser tão dependente de alguém. É inquietante a forma que
não posso tocá-la, ouvi-la e sentir o seu cheiro.
Me sinto humilhado e, totalmente, rendido.
Ela tem sido os meus sentimentos mais profundos, a causa
do meu ciúme e das melhores sensações que tenho tido em todos
esses meses.
Camilla é alguém que nunca conseguirei decifrar. A forma
que me olha, as suas ações, o modo que consegue elevar os meus
sentidos... eu a quero mais que tudo.
Tenho o prazer de saber que pertenço a ela e que ela
pertence a mim — mesmo se negando. Ela é o meu início e o meu
fim, a mãe dos meus filhos e a única mulher que desejei.
Por ela usarei terno e gravata por quantas vezes for
necessário.
Fui criado sabendo que seria o dono de muito dinheiro, nem
por isso senti felicidade. Entrei no crime, continuei me sentindo
vazio. Engatei uma vingança sanguinária e no meio de tanto caos, a
encontrei.
Nada me fara desistir.
Ela me deu algo que nunca tive e estou sedento por mais.
Sei o que ela está esperando de mim, mas não posso me
esquecer de tudo só porque as minha atitudes não condizem com o
que sou. Sei que posso me controlar, mas o meu caráter não está
apto para uma transformação.
Não me arrependo de nada, pois se não tivesse feito, não
saberia sobre a sua existência. Caso deixasse ela livre, eles teriam
a matado, assim como a minha irmã.
Camilla não entende o quanto uma pessoa é capaz de ser
cruel. Não me arrependo, mas sinto culpa por não a deixar saber
sobre o que sinto. Por não ter pensado nela.
Fui construído em uma base desestruturada e o resultado
certamente não seria dos melhores, porém o erro foi meu, por não
seguir um caminho diferente.
Mesmo com um histórico repleto de ações que me
condenam, ela ainda continua aqui. Ela me deu coisas que jamais
pensei em receber. Ela me deu um filho e está prestes a me dar
outro.
Está mulher me salvou.
Me sento na cama e encaro as paredes brancas.
Não vou conseguir passar por mais um dia sem ela.
Visto uma camisa às pressas. Pego as minha chaves e corro
para fora. Sinto a minha visão se embaçar enquanto piloto. Minha
roupa está completamente molhada, mas não me importo, induzo a
moto a ir ainda mais rápido. Passo por ruas e vielas, até que
visualizo a sua casa. Meu cabelo está grudado em minha testa e as
minhas roupas estão pesadas com a água. Não sei quando
começou, mas sinto lágrimas quentes em meus olhos, simbolizando
a angústia, aflição e todos os dias que passei pensando em perdê-
la.
Estaciono a moto na frente da sua casa e abro o portão. Bato
diversas vezes em sua porta, rápido e preciso. Pelo fato de a chuva
estar forte, não consigo ouvir o que acontece do lado de dentro, mas
não demora para que uma figura ruiva apareça.
— Não aguento mais.
— O que você está fazendo aqui? — ela me olha de cima a
baixo.
— Preciso de você.
Ela balbucia palavras que não consigo entender.
— Me ensine... me ensine a ser um homem bom.
— Você está totalmente molhado — ela continua mudando de
assunto.
— Camilla! Eu amo você! — pego a sua cintura e a puxo,
fazendo com que ela entenda o que realmente está acontecendo.
Encaro os seus olhos, notando a intensidade do resultado da
minha frase. Pela primeira vez, sinto que estas palavras são
verdadeiras e que fazem sentido para mim.
As gotas grossas da chuva começam a molhá-la, mas ela
parece não se importar.
— Repete.
— Amo você — as palavras são fáceis. — Entendo que fui
errado, mas não posso te...
— Cala a boca, Marcos — ela manda, colando a sua boca na
minha.
Todos os beijos foram bons, mas esse é o meu preferido. Ela
se agarra em mim com necessidade e força, partilhando da mesma
falta que ela me faz. Camilla se segura em minha camisa molhada,
ao mesmo tempo que movo a minha mão por seus cabelos, até que
cheguem aos seus quadris, onde cravo as minhas mãos. Minhas
lágrimas se misturam com as suas.
— Pai! — após ouvir a voz do Bruno, nos distanciamos, mas
não deixo que ela vá para longe.
Ele agarra em minha perna, pedindo colo. O pego e a Camilla
reclama que ele pegará um resfriado por ter saído na chuva.
Bruno é aquela parte inusitada do meu plano. Não imaginei
encontrar uma criança e que ela se tornaria o meu filho. Ele me
cativou com a sua inocência, educação e o modo carinhoso
ensinado por sua mãe. Ele não foi gerado por mim e pela Camilla,
mas sei que, na primeira vez que o vi, me senti pai novamente. Ele
preencheu a parte vazia que havia em mim. Camilla me deu algo a
mais por quem lutar.
— Fecha a porta — ela sussurra.
Após fechá-la, dirijo os meus olhos para o quarto, onde vejo a
dona Joana dormindo. Sinto pela vida dela. Sofreu praticamente a
vida toda com uma doença, enquanto teve a má sorte de conhecer e
se envolver com um homem cruel que as deixaram na miséria.
Não sou o melhor para dizer algo, mas todos estamos no
mesmo barco.
Tiro a minha camisa e jogo em um canto, ao mesmo tempo
em que observo cada movimento que ela faz.
A garota tem somente dezoito anos, mas porta uma força que
não consigo definir em palavras. Ela conseguiu criar uma criança,
cuidar da sua mãe doente e ainda lutou contra as dificuldades que
muitos teriam desistido em minutos.
Não a mereço, mas sou egoísta demais para que ela possa
sair da minha vida.
Ela troca a roupa do Bruno, logo puxando algo para ela.
Pensei que estaria vendo o seu corpo, mas ela vai até o banheiro,
voltando com um vestido azul.
— Pegue — ela me entrega uma toalha.
Minha bermuda jeans está pesada, então decido tirá-la,
ficando somente com uma cueca box preta.
Vejo que a Camilla abriu uma porta nos fundos, vou até ela,
notando que está colocando as roupas molhadas no varal, onde há
uma cobertura. Pego a minha camisa e a bermuda, torço de
qualquer jeito, pendurando do lado das suas roupas.
Sinto o peso do seu olhar em mim. Ela desce pelos meus
ombros, peito, até que se deparam com o meu pênis coberto. Dou
um passo em sua direção.
— Não.
— Eu sei — penso em sua mãe e no meu filho, mas sei que
se ela me desse a oportunidade, estaria somente pensando em me
afundar em seu corpo.
Me viro com a toalha em minhas mãos, secando os meus
cabelos.
— Quero ficar igual ao meu pai, mãe!
Noto que as suas bochechas ficam rosadas.
— Você vai dormir aqui? — ele me encara com grandes olhos
pidões.
— Sim! — Camilla levanta uma sobrancelha para mim. —
Sim?
Ela não diz nada, mas vai até o quarto.
— Vem me ajudar, Marcos! — ela diz baixo.
Minutos depois, em sua cozinha, tem dois coxões forrados
com três travesseiros e um Bruno alegre só de cueca no centro.
— Dorme com ele, vou ficar com a minha mãe — ela diz.
— Não. Dorme aqui — a minha necessidade torna a minha
voz humilhante.
Ela parece pensar por alguns segundos, mas não demora
para que venha em minha direção, deitando-se do outro lado do
Bruno.
— Vai ser assim todos os dias, pai? — observo os olhos da
Camilla em mim.
— Pergunte a sua mãe — volto a pergunta para saber a sua
reação.
Ela abre e fecha a boca várias vezes não sabendo o que
dizer.
— Temos que descobrir — enfim ela diz.
Passando-se um tempo, reparo que o Bruno dormiu em meu
peito. Ele respira tranquilamente, diferente da sua mãe, que ainda
está acordada.
— No que você está pensando? — pergunto.
— Se estou fazendo a escolha certa...
Por um minuto, me sinto nervoso e aflito.
— Não posso mudar a minha personalidade, Camilla. Esse
sou eu... — me viro para poder olhá-la melhor. — Eu te encontrei
assim e é desta forma que eu te quero.
Ela retribui o meu olhar. Interpreto como um prossiga.
— Te prometo ser um bom pai e o melhor para você, mas tem
que me aceitar como sou — com a minha mão livre, puxo-a para
mais perto. — Agora, temos uma família. Preciso que confie em
mim.
— Você acredita que consegue sustentar a sua promessa? —
ela sussurra.
— Eu acredito nessa criança que me chama de pai, na
menina que está crescendo dentro de você... e na mãe dos dois. O
meu passado ainda virá, mas sempre tenha a certeza de que é você
que quero e sempre quis.
Ela passa as mãos por sua barriga, como se estivesse
pensando em minhas palavras.
— Não tive a intensão de te machucar.
— Não importa.
Aperto a sua cintura, fazendo com que ela olhe para mim.
— Não temos que relembrar o que nos machuca. Com
intensão ou sem, aconteceu. Vamos deixar isso onde deve ficar, no
passado. Cumpra com o que está dizendo e vamos conseguir seguir
bem.
Meu coração acelera.
— Isso é um sim? — questiono.
— Sim, Marcos.
21
TRISTEZA
CAMILLA FERRAZ
Sábado, 11 de agosto de 2018

Uma semana, exatamente uma semana.


Não sei o que pensar ou falar. Não tenho forças para
responder a ninguém — a verdade é que, não quero responder.
Anseio pelo silêncio, pela calmaria. Quero ficar isolada, sentir
a minha dor sozinha.
Pessoas me dizem que sentem muito ou que ela está em um
lugar melhor. Sou grata pelas pessoas que tentam me ajudar, mas
nada pode amenizar o que estou sentindo.
Somente doí. Muito.
A sua ausência está se tornando desesperadora.
As religiões podem dizer muitas coisas: céu, inferno, luz,
renascer novamente ou simplesmente pó, como se vivêssemos uma
ilusão. No entanto, tenho certeza de que a minha mãe é real. A
minha vida não é um sonho e o sentimento devastador que estou
sentindo, também não.
Mesmo não podendo vê-la, sei que ela estará sempre
comigo. Em todos os momentos. Nos meus pensamentos, atitudes e
nas lições diárias. Ela não teve a chance de conhecer a minha
menina, de sair desde lugar... ela sempre disse o quanto sou
privada de privilégios, enquanto os seus sonhos estavam
escondidos, onde ninguém poderia tocá-los.
Posso sentir o seu abraço quentinho, ouvir os seus
conselhos, os seus doces olhos em mim, mesmo sendo somente
nas minhas memórias. Em cada canto da nossa pequena casa
consigo imaginá-la. Ela continua sendo o centro do meu mundo.
Ainda não consigo lidar e entender.
Ela ainda tinha tanto para viver...
A parte mais difícil foi vê-la dentro do caixão. Quando percebi
que ela não iria mais voltar. Toda a cena se passou lentamente, até
mesmo o meu choro se calou. As reações não tinham sentido para
mim, a não ser olhar para aquele pedaço de madeira.
Ela não iria mais me chamar ou perceber quando estava
triste quando ninguém mais sabia. Minha mãe não verá o Bruno
crescer e receber os mesmos conselhos que eu.
Não tivemos luxo, mas o que partilhamos não é algo que
pode ser comprado ou substituído. Eu perdi a minha mãe e não há
ninguém que possa me consolar.
Em todo o tempo me questionei se fiz a coisa certa, se tinha
dado o meu melhor, se fui uma boa filha. Me pergunto se poderia ter
feito mais.
Sei que uma morte rápida é um modo de aplacar o
sofrimento. Estar em uma cama, sendo dependente de outras
pessoas, portando dores e frustrações não é fácil para a pessoa em
si, muito menos para os que estão ao redor. Tenho o conhecimento
deste fato. Mas aquela mulher é a minha mãe. E a minha mãe é
única.
A perdi a uma semana e sinto que já se faz anos. Saber que
nunca mais irei escutar a sua voz é torturante. A dor me consume a
cada segundo. É como se cortassem a minha pele lentamente e não
houvesse nada e ninguém que possa me ajudar. Somente consigo
sentir.
É um turbilhão de pensamentos inquietantes que me levam
ao passado e me jogam em uma realidade onde não há como voltar.
Nós sempre pensamos que estamos fazendo o suficiente, até que
você perde, então percebe que poderia ter feito mais.
Não tenho mais lágrimas para derramar. Não consigo comer
ou dormir. Me levanto por motivos importantes, mas luto contra a
vontade de me isolar.
Alguns dias depois, Bruno ficou doente ao saber dos
ocorridos. Não poderia mentir para ele e ocultar o que havia
acontecido, pois de alguma forma ele iria saber. Achei melhor falar
antes que ele me perguntasse ou que ele soubesse pela boca dos
outros.
Se não está sendo fácil para mim, penso em como está
sendo processado todas as informações em sua cabeça. Ele é uma
criança, criado por sua avó, vendo-a todos os dias, até que de
repente ela some, para sempre.
Me ajeito na cama de hospital, onde posso puxá-lo para mim.
Não consigo dormir, mas tenho a necessidade de senti-lo
perto, uma forma de saber que ele está aqui. Passo as mãos por
seus cabelos, vendo-o ressonar tranquilamente.
Com a perca, notei ainda mais a importância do Bruno em
minha vida, pois assim como a minha mãe é para mim, eu sou para
ele. Tento ocultar a minha dor para que não reflita nele.
Levanto os meus olhos e encaro o Marcos sentado em uma
cadeira de plástico. Ele está atento aos meus movimentos,
respeitando o meu silêncio. Ele está cumprindo com o que disse.
Suas emoções estão sendo transmitidas com clareza. Ele faz
questão de me mostrar o que está sentindo. Tudo o que não está
relacionado a mim, tem permanecido da forma em que sempre foi.
Entendo que ele não pode confiar, pois em seu mundo, isso pode
acarretar a morte. E, hoje, não é somente ele. Sou eu e dois filhos.
Marcos se mantem ao meu lado em todo tempo. Os seus
olhos preocupados estão sempre sobre mim, até mesmo para ir ao
banheiro ele me acompanha, mas obviamente reclamo, ele fica
nervoso, mas me espera na porta.
É notório a diferença das suas ações. Bruno parece estar em
um sonho quando está com ele, sem dizer o modo que ele perde as
horas enquanto admira a nossa menina crescer. Marcos irradia
cuidado e proteção e, neste momento, ele nos fechou, de forma
que, ninguém possa entrar. Ele mostrou se importar, não deixando
que comentários e pessoas interrompessem o nosso momento.
Não sei quantas vezes serei capaz de me apaixonar por ele.
Ainda segurando o seu olhar, penso no que ainda temos para
viver. Na família em que estamos formando. Percebo que o medo de
o perder também está me atingindo.
— O que foi? — ele pergunta do outro lado da sala.
— Não é nada — exclamo, de forma que os meus
pensamentos entendam que é o momento de parar.
Observo quando ele se encosta na cadeira desconfortável.
— Não estou convencido — sua resposta me impulsiona a
dizer a verdade.
— Perdi a minha mãe, Marcos. Tenho medo de estar sozinha
— confesso.
— Prometi a sua mãe que cuidaria de você — suas palavras
saem firmes.
— As coisas nem sempre são como pensamos. Você está
com uma arma em suas costas, ela pode te defender, como tirar a
sua vida...
— Entendo o seu ponto, mas fique tranquila. Não vou morrer.
— Você está sendo presunçoso — deixo que um breve
sorriso escape, lembrando da palavra que mais usei para defini-lo.
— Já tive várias oportunidades para morrer, mas estou aqui
— ele se levanta. — A morte não irá me levar. Muito menos agora
que te encontrei.
Me sento, vendo-o se aproximar.
— Não estou brincando quando digo que não irei te deixar.
Visualizo os seus olhos perto dos meus.
— A sua mudança me assusta, mas gosto de ouvi-lo — falo
baixo.
— Tudo está sendo novo para mim — ele segura o meu
maxilar. — Você me deixou viciado.
Sei que o Marcos está descobrindo sobre as coisas boas de
sentir. Ele usa poucas palavras, mas sabe exatamente o que quer
dizer. Assim como um dia a minha mãe disse. Compreendendo que
somos difíceis, no entanto, o que nos move é o amor. Marcos não
mudaria se este sentimento não existisse. Não sou eu, é o que
sentimos.
Aperto a minha cabeça em seu peito, sentindo as suas mãos
descendo por meus cabelos e ombros.
Marcos tornou-se uma curiosidade até mesmo para a minha
mãe. Ele a conquistou. Mesmo ainda crendo nas suas atitudes
cruéis, foi ela quem deu o primeiro passo. Minha mãe sempre
conseguiu ver além de mim. Talvez ela soubesse que sempre foi
ele, mesmo quando eu ainda estava me negando a acreditar. Dona
Joana observou atentamente cada demonstração, desde as boas,
até as ruins, dando a sua conclusão a uma semana atrás. Suas
palavras não foram para que eu parasse para analisar o Bruno com
ele, mas para ver o seu caráter sendo exposto quando ninguém
estava olhando.
Marcos não é do tipo que faz as coisas por impulso, ele faz
porque quer. Ele não faz para agradar, mas porque pensa ser o
certo. Ele não decidiu ser alguém na vida do Bruno para se
aproximar de mim, ele simplesmente se posicionou no lugar que
queria estar. Marcos não mudou por mim, ele mudou porque
entendeu que o amor dói, mas transforma e vicia.
— Mamãe — ouço o Bruno sussurrar. — Quero bolinho.
— Mamãe vai comprar — respondo me afastando do Marcos.
— Fica com ele, eu vou — ele diz decidido.
Qualquer coisa que o Bruno tenha pedido no curto tempo que
estamos aqui, foi atendido por ele. Até mesmo quando sentiu medo
das injeções, ele segurou a sua mão e o reconfortou.
— Não saia daqui — ele diz sério, antes de sair.
Assinto, não entrando em detalhes.
Minutos depois, ouço quando batem na porta, mas não dá
tempo de abri-la, pois rapidamente vejo a Fernanda entrando por
ela. Ela avisou-me que viria mais cedo, mas acredito que o trajeto
até o hospital tenha tido alguns imprevistos. Fernanda e a sua
família são os únicos a terem acesso a minha bolha particular.
Após cumprimentá-la, sento-me ao lado do Bruno, vendo-a
fazer o mesmo. Deslizo as minhas mãos por minha barriga,
deixando que as lágrimas caiam. Penso que talvez eu estivesse
tentando segurá-las para que o Marcos não tenha um ataque de
preocupação, pois é o que ele está tendo ultimamente.
Os braços da Fernanda me cercam, em um abraço
acolhedor.
— Não sei o que você está sentindo neste exato momento e
nem o que se passa no seu coração, mas posso imaginar — ela
puxa os meus cabelos para trás. — Sei que todos tem os seus
momentos difíceis e que com você não é diferente, mas está tudo
bem em não ser forte o tempo todo.
Levo uma das minhas mãos até o meu rosto, enxugando as
gotas grossas que descem sem parar.
— Chorar não é sinal de fraqueza e você vai passar por isso,
assim como passou antes, desde pequena — ela diz me apertando
mais forte. — Sei que algumas vezes é difícil de aguentar tudo
sozinha, mas lembre-se: você não está sozinha. Tem muitas
pessoas ao seu redor, basta você olhar para perceber.
Sinto quando pequenas mãos seguram o meu pescoço,
enquanto um rosto quente aperta o meu.
— Você tem os seus filhos, amigos... e o pai deles — ela
puxa o Bruno para o seu colo, de forma que consiga abraçar nós
dois. — Você é forte para passar por isso. Não subestime a sua
capacidade, muitos menos deixe que lutas assombrem o seu
coração.
Ninguém poderá substituir a minha mãe, mas tenho certeza
de que terei com quem contar.
Passo os meus dedos novamente por minhas lágrimas,
descendo os meus olhos para o meu filho que me encara choroso.
Beijo o seu rosto e sussurro em seu ouvido que está tudo bem.
— Você é importante, Camilla. A sua mãe se orgulha de você.
22
AMOR
CAMILLA FERRAZ
Sábado, 20 de outubro de 2018

O seu melhor dia, pode ser as vinte e quatro horas mais tristes da
vida de outra pessoa.
A minha vida após a partida da minha mãe teve um grau de
distinção gritante, pois existe a parte em que fui feliz com ela e a
outra, em que sou feliz e que pratico o que me foi ensinado por ela.
A minha mãe viajou em paz, mas somente pude perceber
quando as minhas lágrimas deram espaço para os meus
pensamentos coerentes. Ela repetiu várias vezes para que eu
pudesse entender. Dona Joana não dava arrodeio quando precisava
dizer algo.
"Nunca a deixarei. Em seu coração, pensamentos e alma, eu
estou. Não se deixe entristecer com a minha partida, pois um dia
nos encontraremos. Viva intensamente, seguindo o que pude lhe
ensinar".
A dor por não tê-la perto, ainda está presente, mas não farei
jus as suas palavras se eu deixar que o sofrimento me engula. Tudo
o que fez foi para me ver feliz e vou seguir desta forma.
Tento controlar as minhas mãos que estão tremendo.
Hoje estou me casando com um traficante.
Mesmo que a simplicidade esteja por toda parte, ainda não
parece ser a minha realidade.
Fui criada na pobreza, onde nem mesmo a comida era algo
frequente na mesa. Não tenho vergonha, muito menos me sinto mal
em lembrar. Sou feliz pela criação que tive e por saber que tudo foi
conquistado. A filha única de uma viúva, não foi mimada. Não teve
as melhores roupas, o celular do ano ou os privilégios que qualquer
um pensou que teve. Nenhuma vida é fácil, não seria diferente com
a minha.
Os meus dias eram monótonos, as mesmas preocupações,
medos e aflições, até que ele chegou. Marcos intensificou as
mudanças, transformou as minhas páginas e trouxe alívio para as
minhas esperanças. Nunca me faltou amor, acredito que este tenha
sido o motivo, pois quando o nosso coração está cheio, precisamos
compartilhar.
Não tínhamos um nome para chamar o nosso
relacionamento, até hoje.
Nestes dois meses, Marcos demonstrou mais do que um dia
fui capaz de imaginar. Tudo aconteceu de forma rápida, porém
foram do melhor modo.
As noites são as mais quentes, onde os nossos corpos se
aquecem com a paixão inquietante das nossas vontades. Em nossa
cama todo o passado, arrogância e insatisfação são meras palavras
inexistentes. Lá, somente há eu e ele. Nenhum sonho chegou a
alcançar a realidade.
Há exatamente um mês, ele me pediu em casamento
novamente. Marcos não se ajoelhou, fez um discurso bonito e
estendeu um anel. Esse não seria ele caso fizesse. O homem para
quem estou andando, me olhou com intensidade, segurou o meu
rosto e pediu. Ele não foi exigente. Marcos simplesmente saboreou
a espera pelo meu sim, enquanto deixava que a sua pele quente e o
coração acelerado me tocassem.
Este homem não está em um padrão.
Jurei nunca me envolver com um homem fora da lei. Prometi
a mim mesma que jamais me deixaria levar pelo tráfico, até que sou
surpreendida ao ser vendida para ele.
Marcos aprendeu sozinho as lições mais duras e, tudo,
porque não usou pretextos, mas porque assumiu a culpa e o erro.
As minhas necessidades se tornaram as suas. E, assim como ele,
me deixei ser vencida.
Por um segundo, desvio o meu olhar para tudo o que está em
minha volta.
Rosas brancas, girassóis e lírios estão em alguns pontos,
assim como alguns tecidos da mesma cor, em volta das cadeiras
metálicas em dourado.
Tenho certeza de que tudo não foi feito por qualquer equipe
de decoração, pois tudo o que está por aqui reflete os meus gostos.
A escolha das cores, das flores, o vestido... o botão de rosa no
termo dele. Tudo se relaciona com as minhas preferências. Sei que
as mãos da Fernanda esteve por aqui, mas a participação dele foi
fundamental para que tudo funcionasse.
Observo as pessoas que estão presentes e constato que são
poucas, porém não há convidados melhores para este dia. Sorrio,
pois sou uma mulher de muita sorte.
Do meu lado direito se encontra a Fernanda, com a sua mãe
e irmão. Dona Maria está chorando ao me ver entrar, enquanto a
Fernanda sorri amplamente. O meu filho está sentado ao lado do
Izac, balançando os seus pezinhos, ao mesmo tempo que segura o
seu terno fofo, sorrindo orgulhoso. Retribuo o sorriso com lágrimas
em meus olhos. Do outro lado se encontra a minha vizinha, Vânia, e
a sua família. E no centro está ele, pairando sobre mim com o seu
olhar.
Marcos preparou tudo. Tudo.
Estou aflita, nervosa, talvez em choque.
Eu estou me casando.
A nossa pequena Joana balança em meu ventre como se
sentisse os meus sentimentos ou ela simplesmente saiba que o seu
pai está perto, pois tem sido assim, desde que ela mexeu pela
primeira vez.
Firmo os meus olhos nele, não conseguindo tirar o meu foco
do seu corpo, sendo coberto por algo tão formal. Nunca imaginei vê-
lo de terno. Seus músculos fortes estão sendo valorizados pelo
tecido grosso, ressaltando o homem imponente que ele é. Confesso
que estou extremamente excitada com a visão que estou tendo e
algo me diz que ele sabe.
As tatuagens fogem da sua roupa, tornando-o ainda mais
quente. Seus cabelos estão alinhados perfeitamente para trás. Sua
postura é sólida e ereta, enquanto as suas mãos se mantem em
suas costas. Subo o meu olhar e me deparo com os seus olhos,
escuros e intensos.
Ele está gostando do que vê.
Quebro a distância entre nós, prostrando-me a sua frente.
— Obrigado, Kaique! — ele agradece quando o seu amigo
me entrega a ele.
Minutos atrás, Coringa pediu para que pudesse me levar até
o Marcos. O seu pedido foi honesto, de forma que a única resposta
certa seria um sim. Até, então, eu entraria sozinha, mas a minha
felicidade se tornou completa ao saber que ele se prontificou de boa
vontade, com um sorriso no rosto.
Ainda estava sendo difícil para o Marcos lidar com o gênero
masculino perto de mim, mas senti a sua confiança ao ver o seu
amigo ao meu lado.
— Cuida dela, cara — Coringa avisa, indo para o lado da
Fernanda.
Sorrio para ele em agradecimento.
Marcos até tentou ser discreto, mas as suas mãos quebraram
o protocolo ao segurar em minha cintura, levando-me para mais
junto dele, pousando uma delas em minha barriga, onde nossa filha
está se movimentando freneticamente.
Entendo que é a sua aliança.
Ao decorrer da cerimônia, notei que o Marcos estava
impaciente ao meu lado. Ele pediu algumas vezes para o padre se
apressar, até que ele pode fazer o que estava o deixando nervoso.
Ele prende o seu olhar com o meu, até que vejo a sua mão puxar do
seu bolso um papel dobrado.
— Está é a primeira vez que irei me expor para tantas
pessoas e, certamente, a última. O meu orgulho não me deixa
mostrar tanto, mas estou aprendendo... — ele diz, nunca desviando
os seus olhos dos meus. — Fiz os meus votos, amor.
Marcos chegou a me contar como seria o nosso casamento,
mas pelo que me disse, seria somente no civil. Até que me deparei
com mais uma das suas surpresas. Claramente, se soubesse,
também teria feito os meus. Porém, a verdade é que não estava
acreditando que ele realmente preparou algo para me dizer,
enquanto temos pessoas ao redor para escutá-lo.
Meu coração almeja sair do meu peito, mas tento tranquilizá-
lo, atentando-me aos movimentos e a tudo o que o Marcos tem a
me dizer.
— O nosso início foi errado — ele começa olhando para o
papel. — Planejei tudo nos mínimos detalhes para que não
houvesse imprevistos, mas nenhum destes detalhes me preparou
para quando pousei os meus olhos em você. Não achei que poderia
me sentir um louco em somente te olhar — ele levanta os seus
olhos em minha direção por alguns segundos, voltando para o
papel. — Sinto que não tenho controle sobre todas estas
descobertas — ele dá uma pausa. — Fui o seu pior pesadelo por
um tempo, fiz você sofrer, mas prometo me desculpar pelo resto das
nossas vidas.
A suas palavras são sinceras e intensas. Acabo deixando que
as lágrimas desçam pelo meu rosto.
— Peço que me aceite do jeito que sou, com os meus
defeitos e as minhas mínimas qualidades. Vou fazer o meu melhor
para que a nossa família seja feliz e que eles tentam como base
honestidade e amor — neste momento, ele encara o Bruno, me
fazendo derramar ainda mais lágrimas. — Eu sou o seu pai de
acordo com a lei... e o coração — levo as minhas mãos até a minha
boca, em uma reação instantânea. — O Bruno era a outra parte que
faltava em mim...
Assim como eu, as pessoas choram ao ouvi-lo.
— Te prometo fidelidade e algo que eu nunca havia dito a
ninguém... — ele prende os meus olhos. — O meu amor por você
não tem tamanho, virgulas ou pontos. Eu quero você para amar,
respeitar e proteger, para sempre.
O meu coração falha uma batida.
Não aguentando mais a distância, passo os meus braços em
torno do seu pescoço, moldando-me ao seu corpo. Sinto quando ele
me corresponde, apertando-me de encontro ao seu peito.
Choro em seu pescoço, até que eu tenha forças para
responder.
— Eu também te amo, Marcos.
— Repete — ele sussurra em meu ouvido.
— Eu amo você.
Ouço palmas ecoarem ao nosso redor, oficializando a nossa
união.
— Não posso te dar uma lua de mel, não agora. Mas
podemos repetir todos os atos e posições que você desejar na
nossa cama — ele diz baixo, roçando a sua barba em meu rosto.
— Eu aceito.
Algumas horas depois, estou na cozinha bebendo água,
observando o anel cintilante em meu dedo. Eu realmente estou
casada.
No momento em que estive naquele palco, não pensei que
meses depois estaria me casando com o homem misterioso que
surgiu de repente. Ele ainda consegue me deixar atordoada, ainda
assim encontrei uma alegria que não acreditei existir ao seu lado.
Mais cedo, ele avisou-me sobre pegar tudo o que quisesse
levar para a minha nova casa. Somente embalei os objetos de
importância e valor sentimental. Ele insistiu para que eu me
mudasse assim que a minha mãe faleceu, mas não estava
preparada para deixar o lugar.
Marcos cuidou dos mínimos detalhes, mas o que mais me
tocou, foi o modo em que ele preparou um quarto somente para o
Bruno. A decoração e cada objeto parece ter sido escolhido por ele
— arrisco, mesmo não tendo o ouvido dizer sobre isso.
As paredes são na cor verde, com papel de parede, onde há
vários bichinhos. Tem brinquedos por toda parte, uma cama branca,
um pequeno guarda-roupa e uma mesinha com cadeiras coloridas
no centro.
Joana também teve o privilégio de ter um quarto somente
para ela, onde alguns moveis e decorações já estavam
posicionados.
Não preciso dizer o quanto chorei ao ver o que ele fez, mas
sei o quanto ele está disposto a ser pai. Ele amou o Bruno, assim
como eu o amei. Ele não somente acolheu as minhas necessidades,
como abraçou as do Bruno e o da Joana. Ele tornou possível a
nossa família.
Não sei se odeio o meu pai por me vender ou se agradeço.
23
AUTOCONFIANÇA
CAMILLA FERRAZ
Sábado, 3 de novembro de 2018

Os meus pés se contorcem de encontro a cama confortável.


Sinto que as minhas pernas estão se abrindo cada vez mais,
enquanto mãos grandes atravessam pelo meu corpo, deixando cada
célula aquecida com o seu toque. Ele sobe pela lateral das minhas
pernas, até que a pressão se torne firme em minha bunda. Abro os
meus olhos e encaro as costas largas e musculosas dele. Sua
cabeça está inclinada para baixo, ao mesmo tempo que observo os
seus dedos afastar a minha calcinha. Ele respira fundo, fazendo
com que os seus ombros se tornem tensos. Marcos morde os seus
lábios.
Respiro fundo.
— Bom dia, esposa — ele fala baixo, sem me olhar.
Minha barriga de sete meses está dificultando a visão
completa dele, principalmente quando enterra a sua cabeça no meio
das minhas pernas, de modo que, consigo somente visualizar os
seus cabelos, que são agarrados pela minha mão
instantaneamente.
Um gemido sútil escapa dos meus lábios, minhas costas se
arqueiam, empurrando a sua boca para ir ainda mais fundo em mim.
Sua língua sobe e desce por todo o caminho, sugando o meu clitóris
avidamente, voltando para a entrada.
Minha respiração está se intensificando a cada vez em que a
sua boca chupa e lambe todo o caminho molhado da minha boceta.
Noto quando uma das suas mãos deixam um rastro de fogo em
minha pele. Ele desliza os seus dedos pelos meus lábios molhados,
massageando e circulando o meu ponto de prazer, que auxiliam em
suas sucções.
— Fique aí, Marcos. Não pare — indico em gemidos.
Escuto ele rir baixo, mas acaba acatando o meu pedido
choroso.
Seus dedos são rápidos, na mesma medida que os seus
lábios. O orgasmo está se formando rapidamente em meu
organismo, me levando a morder o lençol para que o meu filho no
outro quarto não escute.
— Marcos...
Ele sente quando estou a ponto de gozar em sua boca, indo
ainda mais duro. É rápido quando ele se afasta, fazendo com que os
meus olhos fitem-no chocada.
Reparo quando fica de joelhos na cama, com os seus
cabelos bagunçados e os lábios vermelhos. Seus olhos estão fixos
em mim, o seu peito sobe e desce rapidamente, ao mesmo tempo
em que eu admiro as suas tatuagens e o monstro duro no meio das
suas pernas. Marcos agarra as minhas pernas, abrindo-as,
enquanto dos meus lábios um gemido forte preenche o ar com a sua
invasão. Ouço-o geme ao me sentir pressionar o seu grosso pau.
— Isso, Camilla. Me engole com essa boceta gulosa — ele
prende os seus braços ao meu redor, tirando completamente e
empurrando.
Em uma das consultas o Marcos teve como prioridade saber
sobre a Joana, mas, também, sobre o sexo. A resposta da médica é
o resultado dos seus movimentos lentos, porém ágeis e excitantes
dentro de mim.
Seus quadris rolam de encontro ao meu centro avidamente. A
fricção da sua cabeça larga em meu interior, está conseguindo
elevar o meu prazer há um nível em que os meus hormônios
controlem todo o meu sistema.
Não saindo de mim, ele fica em pé diante da cama, onde os
seus movimento possam ser ainda mais precisos. Minhas pernas
estão sendo seguradas pelas suas grandes mãos e os seus olhos
se encontram em meus seios, que balançam com o movimento do
seu corpo colidindo com o meu.
Minha boca está seca com os gemidos desenfreados.
Observo os seus cabelos caírem pela sua testa, o seu peito
largo se contraindo e os seus olhos quentes. Ouço o seu gemido
rouco a cada vez que o seu pau encontra o meu ponto de prazer.
Sei que ele está prestes a gozar, mas o seu orgulho não permite
que ele tenha a sua liberação primeiro. Sei que estou certa quando
vejo os seus dedos irem até o meu clitóris, onde ele esfrega com
maestria.
— Goza para mim — ele prende os seus olhos em minha
boca.
Fecho os meus olhos por alguns segundos, sentindo que o
meu corpo está se quebrando.
— Aperta o meu pau — ele rosna.
Seus movimentos se tornam curtos. Ele pousa a sua mão
onde a nossa filha está, enquanto a outra continua a segurar a
minha coxa que está tremendo com os efeitos do nosso prazer.
Ouço o som rouco que sai pelos seus lábios, preenchendo-
me com a sua porra.
— Mulher gostosa do caralho — vejo-o respirar fundo.
Ele segura a base do seu pênis, deslizando pelo meu clitóris
lentamente.
Procuro por ar.
— Você tem ideia do quanto consegue me afetar? — ele diz
baixo. — Nunca quis me casar e, olhe para mim, desejando estar
todos os dias da minha vida deste jeito com você.
Sorrio.
Ele se afasta, deixando o meu coração gritando em meu
peito.
Ainda deitada encaro o anel em meu dedo.
Mais um dia sendo casada com o Marcos.
Casada.
Está palavra ainda me assusta e muito. Não pensei estar
casada aos meus dezoito anos, muito pessoas que ele seria um
traficante. Confesso que uma vida a dois não é tão ruim, uma vida a
dois com o Marcos está sendo melhor que o esperado.
Todos os dias ele me mostra uma parte escondida, um
homem que nunca pensei em conhecer. Este Marcos dorme
enrolado ao meu corpo e se levanta durante a madrugada para ver
se o Bruno está bem. Ele pensa que estou dormindo, mas sei que
ele está me olhando, as vezes sussurrando coisas para a Joana.
Embora tenha tido um ótimo começo de dia, sei que ele pode
estar sendo ameaçado. Há dois dias, recebi um convite e estou
apreensiva em relação ao que o Marcos irá pensar.
Me levanto e vou ao banheiro do corredor.

Corto a carne no prato do Bruno e encaro o relógio


rapidamente. São dezenove horas e trinta minutos. O horário em
que o Marcos chega todos os dias.
Como se estivesse adivinhando, ouço quando a porta é
aberta, passando por ela o homem que é capaz de conseguir
acelerar o meu coração em segundos. Logo os seus lábios urgentes
estão nos meus, não se importando com o Bruno que deve estar
nos olhando.
Assim como ele veio, também se foi, rapidamente, me
deixando embasbacada com a sua atitude.
Ele é urgente em suas atitudes, sempre me surpreendendo e,
morando juntos, as novidades são ainda maiores e frequentes.
Todos os dias os seus lábios grudam-se nos meus, assim como o
seu corpo. Está virando um vício. A ligação, os arrepios, as
vontades e desejos são coisas que me fazem querê-lo ainda mais.
São sentimentos devastadores que fazem com que eu me torne
mais sedenta por ele.
— Credo, mamãe — ouço o Bruno reclamar, fazendo-me rir.
— Volte a comer — mando, ainda rindo. — Bruno coma os
brócolis ou não tem sobremesa.
Sei que é errado usar a chantagem ao meu favor, mas em
alguns momentos é mais que necessário.
— Bolo de cenoura?! — ele grita animado.
— Talvez...
Marcos cumprimenta o Bruno e reforça o que eu acabei de
falar.
Pelo canto dos olhos observo ele indo para a sala, onde
escuto o barulho de chaves. Todos os dias é assim. Ele chega, me
beija loucamente e conversa com o Bruno, depois caminha até a
sala, onde tem um compartimento secreto atrás do painel da TV,
sendo o deposito das armas e dinheiro.
Não me agrada, mas ele explicou que não é seguro manter a
casa sem algum tipo de armamento. O seu posto e profissão não
são seguros e os equipamentos longe, pode deixá-lo em
desvantagem.
Desvio o meu olhar e continuo a ajudar o Bruno, até que o
vejo se sentar em minha frente. Parecendo saber que algo está
errado, ele se inclina na cadeira como se estivesse esperando.
Tento disfarçar o meu nervosismo, mas sinto que ele não está
comprando. Não sei como esconder algo, principalmente dele.
— Fala, Camilla — ele rosna.
Marcos gosta de me ter ao seu alcance, de saber onde estou
e o que estou fazendo — isso não me incomoda, a não ser quando
ele quer interferir em algo que eu gosto.
Gosto de saber que ele pensa em mim tanto quanto eu
penso. Quando a sua necessidade por mim é tanta, que ele para de
fazer qualquer coisa para vir me encontrar. E, talvez, saber que eu
não estou totalmente disponível, pode assustá-lo.
— Recebi uma proposta — digo firme, não me submetendo
ao seu olhar.
— Não — ele rosna.
— Você nem sabe o que é! — mantenho a calma.
— Não — ele repete.
O seu maxilar é firme.
— Seja qual for o seus motivos para não querer me ouvir, não
vou deixar que isso passe — sei que ele ainda esconde coisas de
mim e que não será exposto. Sei também dos perigos, mas não
posso me tornar um móvel dentro da minha casa. — A diretora da
escolinha do Bruno me chamou para ajudá-la com algumas turmas
por uma semana, podendo até me efetivar após me formar. E eu
aceitei.
É real a minha vontade de poder estudar, trabalhar, ter uma
profissão. Senti por anos que não iria passar de sonhos, até que o
conheci — e pensei que poderia ser um monte de besteiras. Nunca
cheguei a comentar sobre isso com ele, não sei se é medo ou
vergonha. Ele é um homem formado e importante. Já eu não tenho
nada.
Sei que ele não irá se opor ou ser um obstáculo nos meus
sonhos, pois ele vem se esforçando em nos fazer feliz. Porém, a
algo que está lhe perturbando e sei que enquanto isso não passar,
nossas vidas não poderão seguir tranquilamente.
Noto que ele está ficando vermelho e as suas mãos seguram
forte a mesa.
— Você o que?! — ele não se altera, mas a sua voz é
potente.
— Foi o que você ouviu — solto de uma vez.
Vejo que o Bruno terminou o seu jantar, então o levo para o
seu quarto para que ele não escute uma briga que sei que irá
acontecer. Embora ainda seja oito horas, sei que o dia foi cansativo
para ele e certamente em poucos minuto dormirá.
— Vamos escovar os dentinhos — falo entrando no banheiro.
— E o bolo, mãe? — seus olhos se voltam para mim.
— Você quer assistir enquanto come? — pergunto.
Ele balança a cabeça.
Deixo-o em seu quarto e vou a cozinha, onde o Marcos não
está. Ponho um pedaço em um prato e suco em um copo.
— A senhora vai ser minha professora? — Bruno pergunta,
de repente.
— Vou — falo decidida.
— Vamos ver se você vai — ouço a voz raivosa em minhas
costas.
— Daqui a pouco a gente conversa, Marcos — não me
estresso.
Nossa primeira D.R. depois de duas semanas de casados.
Ligo a televisão e procuro um canal que o Bruno goste.
Passo pelo Marcos e atravesso o corredor, indo em direção da
cozinha. Reparo pelo canto do olho que ele está encostado no
batente da porta, me observando.
— Vai continuar me ignorando? — ele não suporta ser
ignorado.
Continuo em silêncio.
— Que porra, Camilla.
Ouço os seus passos, até que sinto as suas mãos em mim,
fazendo com que eu colida com os seus músculos duros.
— Eu te dou tudo. Nada falta nessa casa. O que é que você
quer naquela porra? — ele sobe a sua mão até o meu pescoço em
um aperto frouxo.
— Você não me deu independência — sua mão em meu
quadril se intensifica.
— Você está querendo ver o que lá? — me irrito.
Viro em seus braços mostrando a ele o quanto estou
chateada com a sua insinuação.
— Quero trabalhar, fazer algo, estou sempre sozinha aqui.
Além disso, são crianças. Crianças! — repito para que ele possa
entender. — Eu tenho uma vida e quero usá-la!
Ele não suaviza o olhar, muito menos as suas mãos em mim.
— Se eu souber que algum filho da puta está te rodeando, eu
tiro você de lá. Entendeu? — vejo-o ceder. — E mais uma coisa,
nunca tome uma decisão sem mim! Nós somos casados, decidimos
as coisas juntos.
— Quando você irá começar a decidir as coisas comigo? —
sussurro.
— Tudo tem o seu tempo, Camilla. E o seu vai chegar. Só
preciso saber que quando você sair por aquela porta sem mim, não
vai ter um filho da puta querendo te matar — sinto a sua
honestidade.
Sei do que está falando, mas também tenho conhecimento
sobre o seu ciúmes. Ele quer me proteger, mas quer estar sobre
mim a todo momento.
— Quando vai confiar em mim? — sinto a sua mão em meu
rosto.
— Eu confio — seus olhos são profundos. — Mas eu não
suporto quando eles te olham e ainda mais quando está longe e
sinto que não posso te proteger.
Analiso as suas feições.
Ele não está feliz em ceder.
— Você terá que aprender a lidar, assim como eu aprendi a
conviver com as suas admiradoras. Você não pode arrancar os
olhos das pessoas, Marcos — vejo o seu peito descer e subir
rapidamente. Sei que ele deve estar pensando em homens me
olhando. — Saiba que eu me casei com você, temos dois filhos e
não tenho vontade de retribuir nenhum olhar, a não ser o seu.
Minhas palavras parecem não ter sido suficientes.
— Sobe essas escadas, se deite naquela porra de cama... —
ele desce a sua mão até a minha calcinha. — ...porque eu vou te
chupar até você perder o controle das pernas.
Não tive consciência do que estava acontecendo, até
perceber que estava subindo as escadas. Abro a porta do quarto do
Bruno, vedo-o dormindo. Ligo o abajur de estrelinhas ao seu lado e
desligo a televisão. Fecho a porta e me deparo com o Marcos à
minha espera.
Em segundos, sua boca está na minha e as minhas pernas
rodeando os seus quadris. Pouso as minhas mãos em seu pescoço,
sentindo as suas pressionando a minha bunda.
— Fecha a porta — ele comanda.
Em um momento estou em seus braços, no outro me
encontro na cama, vendo as suas mãos urgentes arrancarem todas
as peças que o impeçam de me ver.
— Caralho! — Marcos xinga, olhando-me minuciosamente.
Suas mãos descem até a minha barriga, sentindo a sua filha
em meu ventre, indo ainda mais baixo.
A sua boca e dedos estão me fazendo querer gritar. Sua boca
me suga forte, sabendo exatamente em que lugar deve ficar. Sua
língua desliza por entre os meus lábios, até que chegue ao meu
clitóris, onde ele prende em sua boca.
Meus olhos rolam em minha cabeça, enquanto os meus
dedos dos pés se contraem.
A cada sexo oral, ele parece entender mais sobre o meu
corpo e onde deve permanecer. Sua boca entende como decifrar
cada ponto, elevando o meu prazer ao máximo. Ele toca nos lugares
certos, fazendo-me vir rápido.
— Marcos...
— Na minha boca, Camilla...
Sua voz rouca entre as minhas pernas é o final das minhas
forças. Gozo loucamente, enquanto ele ainda trabalha com os seus
dedos e língua em minha boceta.
— Você vai sentir o que é um homem furioso — suas mãos
mudam a minha posição, colocando-me de quatro. — Se não
estivesse grávida, não iria escapar de uns tapas, garota.
24
AFLIÇÃO
CAMILLA FERRAZ
Domingo, 4 de novembro de 2018

Abro os meus olhos, assim que ouço a porta ser fechada.


Minhas mãos vão de encontro ao lado vazio da cama, ainda
quente.
Estou acordada faz alguns minutos, pego o meu celular ao
lado da cama. Três horas e cinco minutos da manhã.
Ele se esforçou para não me acordar, mas senti a sua
inquietação durante a noite. Sei que algo está o incomodando e
envolve todas aquelas imagens e nomes da sala que encontrei a
algum tempo.
Me levanto e puxo o lençol, envolvendo-o em meu corpo.
Lentamente, atravesso o corredor e paro na escada, onde consigo
visualizar ele escolhendo algumas armas no lugar onde ele as
esconde.
Me mantenho quieta.
Vejo-o carregar as armas e encher os seus bolsos de
munição, espalhando facas e alguns outros objetos que não consigo
identificar pelo seu corpo. Em seu peito tem um colete que logo é
coberto por uma camisa grossa e escura. Noto que os seus
músculos estão tensos, de forma que, o tecido em seu corpo luta
contra a vontade de se desfazer.
Ele posiciona o painel no lugar e infiltra os seus dedos nos
fios escuros do seu cabelo.
Observo atentamente os seus movimentos.
Ele abre a porta e a fecha. O silêncio, em segundos, se torna
inquietante.
Desço alguns degraus e me sento. Aperto o tecido branco ao
meu redor, abaixo a minha cabeça e oro.
Acredito que ele tenha aceitado o modo em que o destino
trabalha em sua vida, mas a crueldade das ações não está nem
perto de conseguir o seu perdão. A dor que ele sentiu está em sua
pele e memória. Sinto que estamos perto do fim ou do recomeço.
Mas isso não me garante que estaremos junto. A vingança é
traiçoeira, não se sabe exatamente o lado certo que terá salvação.
Continuo pedindo para que Deus esteja com ele a todo
momento e que o traga para casa. A cada pensamento sinto que
uma lágrima escorre, mas sei que estou sendo ouvida.
Não sei por quanto tempo fico sentada nos degraus da
escada, mas sei que foi bastante quando sinto a luz do sol se
infiltrar pela janela da sala.
Vou até o meu quarto e uso o banheiro, visto uma roupa leve
e arrumo o quarto. Tento me distrair, mas a imagem do Marcos é a
única que consigo ver. A preocupação está tomando proporções a
cada minuto, assim como os chutes da Joana em minha barriga,
que parece sentir o meu nervosismo.
Bruno acorda e lhe dou o café da manhã.
Ontem, pela manhã, Fernanda me enviou uma mensagem,
nos convidando para almoçar em sua casa. Pensei que o Marcos
viria com a gente, mas pelo que posso ver, será somente eu e o
Bruno.
Eu e Fernanda decidimos que uma vez por mês vamos fazer
um almoço ou jantar em família, onde o Marcos e o Coringa possam
se sentir mais acolhidos e que este evento possa se tornar uma
tradição. Hoje será o nosso primeiro almoço, onde o Marcos não
estará.
Meu coração se encolhe em meu peito.
Enquanto o Bruno está brincando, arrumo a casa. Quando
termino, levo-o para tomar um banho, logo fazendo o mesmo.

Deixo a travessa com a salada de maionese que trouxe em


cima da mesa.
— Coringa também não virá? — pergunto, vendo a Fernanda
voltar a lavar as verduras.
— Ele mandou uma mensagem — ela parece preocupada. —
Ele vai tentar vir.
Passo as minhas mãos em minha barriga.
— Ele vai voltar, Camilla — levanto a minha cabeça. — Os
dois vão.
Assinto.
Estendo a toalha sobre a mesa e ajudo a Fernanda a colocar
os pratos e panelas em cima. Enquanto arrumamos, o silêncio
permanece em conjunto com os pensamentos. Cada uma centrada
no seu. Sei que ela não quer transparecer para que eu não fique
nervosa, mas o modo em que ela pega o seu celular a cada um
minuto, me mostra o contrário.
— Posso comer? — Izac entra com o Bruno o seguindo.
Fernanda não responde, pois está checando o seu celular
mais uma vez.
— Pode sim — falo.
Ele se senta e o Bruno vai para a outra cadeira. Pego um
prato e pergunto para ele o que quer comer, enquanto o Izac está
pegando o arroz. Dona Maria aparece, se sentando junto a nós.
Bruno após me perguntar onde está o seu pai, se manteve
quieto, apenas comendo. Fernanda continua com o seu celular em
suas mãos, até que, de repente, ela se levanta indo para fora. Todos
paramos para olhá-la, até que, minutos depois, vemos o Coringa e o
Marcos entrando. Os seus olhos estão firmes em mim. Percebo que
ele está com outra roupa e um ferimento leve em sua testa.
Não quero saber o que aconteceu.
Meu coração parece quebrar a cada vez que vejo o resultado
da sua vingança.
Ele vem em minha direção. Ele sabe que estou prestes a
chorar.
Sua mão arrasta uma cadeira para o meu lado, pegando o
Bruno e o colocando em seu colo. Meu menino se agarra a ele,
enterrando a sua cabeça em seu pescoço. Uma lágrima escorre,
mas ele a pega com os seus lábios.
— Estou aqui — ele sussurra.
Meus dedos vão para o seu rosto.
— Estou com medo.
Antes tinha medo do que poderia acontecer quando estivesse
com ele. Hoje, sinto medo dele não voltar para mim.
— Sempre vou voltar — sua mão segura a minha barriga.
Marcos se tornou o meu alicerce, o meu lugar seguro. Os
meus sentimentos estão totalmente entregues a ele, assim como
vejo os seus na forma em que ele me olha.
— Eu te amo — digo próximo aos seus lábios.
— Eu também te amo — em meus lábios desliza um sorriso,
que é tomado pela sua boca.
— Sei que nesta casa está tendo muito amor, mas já chega
né, gente? Está bom! — Izac interrompe com um alface espetado
em seu garfo.
Fernanda bate em sua cabeça e se senta ao lado do Coringa.

Despejo xampu em minhas mãos e lavo os meus cabelos.


Deixo que a água desça pelos meus olhos fechados,
enquanto retiro o produto.
Mesmo que o dia não tenha começado bem, sinto que se
dissolveu levemente. Está tarde teve um grande significado para
todos nós. Naquela mesa havia histórias cruzadas, onde cada um
teve muitas dores: o sofrimento de uma mãe, a superação, rejeição,
perca, o amor sendo praticado... todos temos algo para contar, mas
ali, estava a paz, a união. A nossa família.
O amor se tornou a nossa oportunidade.
— Falei para me esperar — meus lábios se curvam com a
pressão em minhas costas.
— Você sabe que logo não podemos fazer mais isso —
continuo de costas, provocando-o.
— Estou pensando nisso a cada minuto.
Ele desliza os seus dedos pelos meus seios, até que se
encontra com o meu ventre, onde Joana está chutando.
— Espero que ela continue assim, quando os garotos
começarem a se aproximar — me viro em seus braços.
— Sinto que não será ela quem vai te dar trabalho — desço
as minhas mãos pelo seu peito.
— Quem será? — seu corpo impulsiona o meu para trás.
Mordo os meus lábios, movendo os meus olhos para baixo.
— Você terá que me ajudar a subir... — digo assim que fico
diante do seu pau.
Cravo os meus olhos nos seus, tocando as suas coxas
grossas, até que chegue ao lugar que estou ansiando. Minha boca
saliva ao encarar o seu pênis.
— Continue olhando para mim — seus dedos se prendem em
meus cabelos.
Sorrio ao ver a necessidade em sua voz.
Minha língua traça desde as suas bolas, até a cabeça rosa do
seu pau.
Vejo o seu maxilar travar.
Com a minha mão livre, encaminho até o meu clitóris,
obedecendo-o. Desço a minha boca pelo seu comprimento, sentindo
a pressão dos seus dedos. Minha mão agarra a base do seu pênis,
ao mesmo tempo que a outra trabalha com movimentos duros em
minha boceta.
— Me chupa com força, Camilla — ele apoia a sua testa no
azulejo, fazendo com que a água caia em suas costas, derramando
em meus braços.
Sinto vontade de rir, mas acabo fazendo como ele disse;
sugando-o e lambendo todo o caminho, me tornando ainda mais
molhada com o seu olhar quente em mim. Seus quadris emburram
em minha boca e mão. Sinto-o puxar o seu pau da minha boca,
substituindo a minha mão pela sua.
— Lembra quando você esteve me provocando com aquele
sorvete?... — ele rosna, fazendo-me olhar os seus movimentos. —
Este é o momento para você usar a sua língua em minhas bolas.
Deixo um sorriso escapar.
— Não tire! — ele manda quando me vê distanciando os
meus dedos da minha boceta.
— O que você vai fazer por mim? — sugo os seus dedos que
trabalham em seu pênis, até os seus testículos.
— O que você quiser — o seu olhar permanece nos meus.
Prendo os seus testículos em minha boca, chupando-os.
— Porra!
Continuo com a minha língua, indo até a grossa cabeça.
Meus movimentos se tornam duros a cada sucção. Sei que ele está
perto.
— Você sabe onde eu quero.
— Safada... — ele segura a minha cabeça, aumentando o
ritmo. — ... e minha.
Seu pau entra cada vez mais duro, até que o sinto gozar.
O seu peito sobe e desce rapidamente, me puxando para ele.
— Vai para o quarto. Quero ver esses peitos no meu rosto,
enquanto você estiver se sentando em mim.
Meus olhos queimam com as suas palavras sujas.
— ... estou te esperando.
25
ACEITAÇÃO
CAMILLA FERRAZ
Segunda-feira, 5 de novembro de 2018

Faltam alguns minutos para a saída e, amei estar aqui. Sei que foi
somente o meu primeiro dia — onde pude notar a personalidade das
muitas crianças; algumas nada fáceis de lidar, outras são
extremamente carinhosas, mas entendo que, com paciência dá
certo.
Bruno parece enciumado. Ele não está acostumado a dividir
a sua mãe com outras crianças, mas é bom que ele entenda a
importância de compartilhar, pois logo vamos ter uma garotinha. E,
certamente, não será somente a minha atenção que ela irá querer.
Fiz alguns desenhos, brinquei de casinha e dirigi alguns
carrinhos, instrui todos na hora do lanche e contei histórias para
dormirem. A cada vez que ouvi um: tia, meus olhos brilhavam. A
experiência foi encantadora, principalmente por saber que os pais
dessas crianças confiam em mim para cuidar delas.
Olhando para elas, penso na minha mãe. Ela fez o que pode
para me ver na escola, mesmo não tendo condições de pagar um
curso ou qualquer coisa que pudesse me ajudar nesta questão,
ainda assim, tentava me ajudar com as atividades. Algumas vezes,
quando era trabalho em grupo, eu tinha que fazer sozinha ou
conversar com o professor, pois não tinha dinheiro para os
equipamentos necessários da pesquisa e todos sabiam.
Minha mãe sempre me dizia que iria ficar tudo bem e,
realmente, ficava. Sinto falta da sua positividade, das suas palavras
doces e do quanto conseguia acalmar o meu coração. Ela sempre
me abraçada e dizia as coisas certas.
— Tchau, tia! Amanhã a senhora vai estar aqui, né? — ouço
um menininho falar, enquanto a sua mãe acena para ele.
— Tchau, Luan! Vou estar, sim.
— Oi, Camilla! Vai trabalhar aqui? — ouço uma voz
conhecida em minhas costas.
— Oi, Fabio! Sim, mas é temporário — respondo.
Fabio é o pai de duas crianças. Sei que ele é um dos homens
que trabalha para o Marcos, ainda assim, não deixa de ser um bom
pai e que presa pela sua família. Algumas vezes, quando estava
esperando o Bruno no portão, ele ou a sua esposa puxavam
conversa.
— Não fala com a minha mãe, meu pai não gosta! — me viro
chocada.
Bruno nunca foi um criança ciumenta, mas sei exatamente de
onde está vindo isso.
— Bruno! — o repreendo. — Peça desculpas!
Ele não me parece arrependido.
— Eu vou contar para o meu pai! — o pai do aluno ri com a
atitude ciumenta e irritada do meu filho.
— Ele está chamando o Mancha de pai? — Fabio pergunta,
ainda rindo do rosto emburrado do menino que está agarrando a
minha perna.
— Sim.
Mesmo que muitos saibam sobre o meu antigo
relacionamento com o Marcos, o nosso casamento ainda é um
segredo. Eles sabem até chegar no assunto Gizele, depois disso,
somente a nossa família tem ciência sobre tudo. Mas, agora, uma
outra parte será compartilhada, pelo simples fato de o Bruno chamá-
lo de pai, a minha barriga enorme e a aliança reluzente em meu
dedo.
— Amor, senta ali. A mamãe já está indo — sinalizo o lugar
para ele, onde momentos atrás pedi para que ele me esperasse.
— Não, meu pai vai vir me buscar — olho para ele
espantada.
— Quando que ele falou isso? — pergunto, não me
importando com o Fabio que observa a nossa conversa.
— Hoje — ele diz simples.
Deve ter sido quando ele saiu pela manhã.
Me despeço dos filhos do Fabio e entro para pegar as minhas
coisas. Falo com algumas professoras, agradeço novamente pelo
trabalho e vou embora com o Bruno segurando a minha mão.
— Bruno! — quando estamos prestes a virar a esquina, ouço
a voz grossa do Marcos.
— Pai! — Bruno grita, se soltando.
A cada vez que o Bruno o chama de pai parece que algo
acende em seus olhos. Eles brilham, como se em todas as vezes
fosse a primeira. Observo quando algumas pessoas param para
analisar a cena. Bruno corre para os seus braços, sendo acolhido
em seu peito. Ele se move em minha direção, examinando-me,
quando está perto o suficiente, sou puxada e os seus lábios colam
nos meus.
— Tinha um homem falando com a minha mãe — puta que
pariu.
Noto que a sua feição muda.
— Que homem, Camilla?
— Era só o pai de um aluno me pedindo informações, Marcos
— tento me manter tranquila.
— Que informações? — ele continua.
— Estava em uma escola para crianças, Marcos. É normal
que os pais tenham perguntas a fazer sobre os seus filhos — dou as
costas a ele.
— Camilla... — o meu nome em sua boca não sai nada gentil,
muito pelo contrário.
Sorrio, logo disfarçando.
— O que?
— Não me provoca.
— Não estou.
Vejo-o respirar fundo.
Ele sabe que é viável a minha resposta, pois ele é o tipo de
pai que pergunta sobre os seus filhos e ainda quer saber cada
detalhe. Joana nem mesmo nasceu e já é alvo das suas perguntas
para a médica — talvez o advogado dentro dele tenha mais
influência do que pensei.
— Não ensine essas coisas para o Bruno — reclamo.
— Ele é o meu filho também!
— Não estou te privando de ensiná-lo, mas colocar ele para
me vigiar, já é demais!
— Não disse nada a ele — ele segura o meu olhar.
Mudo os meus olhos de direção.
— Você pode até não ter dito, mas sabe que é um exemplo
para ele.
Bruno parece entender que estamos falando dele.
— Vamos almoçar — ouço-o se pronunciar depois de alguns
segundos.
Me pergunto sobre a capacidade do Marcos em ser aleatório.
Ele consegue ir do irritado, até chamar para um almoço.
— Nós vamos errar, mas precisamos dar o nosso melhor
para que isso não aconteça — sinto que ele entende aonde quero
chegar.
— Quando te conheci, falei sobre este sentimento que não
consigo controlar.
— Eu entendo, também sinto ciúmes — confesso. — Mas
nem por isso influencio o Bruno a vigiar você.
Noto que há curiosos tentando ouvir a nossa conversa.
— Vamos embora — Marcos puxa a minha mochila do meu
ombro, colocando no seu. — Entra no carro.
— Vamos para fora do Complexo? — pergunto, pois ele
sempre está com a sua moto.
— Sim — ele abre a porta traseira, posicionando o Bruno em
uma cadeirinha.
Mesmo sem entender, abro a porta e entro, vendo-o se sentar
ao meu lado. Ainda olhando-o acabo me esquecendo do cinto, mas
ele percebe. Mancha puxa a faixa roçando em meus seios,
prendendo-o ao meu redor.

Observo o restaurante luxuoso em que estamos. Me sinto


descolada, mas o Marcos e o Bruno parecem estar confortáveis em
relação a isso. Dinheiro parece gritar em todos os cantos, ao mesmo
tempo em que as pessoas nos encaram.
— Não fale o meu nome em nenhum momento, me chame de
amor — ouço-o dizer em meu ouvido.
Vou questioná-lo, mas o garçom chega com os nossos
pedidos.
Encaro o pedaço de carne e alguns legumes no meu prato.
Marcos não parece um traficante, mas este espaço combina
perfeitamente com ele. A sua estrutura arrogante é a junção do
terno que o senhor está usando ao lado e a mulher que o
acompanha. Eu, literalmente, não tenho nada deste lugar.
— Por que nos trouxe aqui? — continuo observando o prato.
— Você é a mulher de um homem rico. Quero que tenha
todas as experiências possíveis — sua mão segura a minha.
— Não sei ser como aquela mulher — aponto para o casal ao
lado.
A loira esbanja elegância e exibe um colar de pedras que
reluz no espelho a sua frente. O seu vestido é sofisticado e deve ser
a última moda em algum lugar do mundo.
— Não quero que seja.
— Eu...
— Eu não me importo com nada ao nosso redor, a não ser
quem está nesta mesa — levanto os meus olhos para ele. — Você
merece mais do que qualquer pessoas estar aqui.
Meu coração vibra com as suas palavras.
— Pare de se comparar. Você tem mais dinheiro do que
todas estas pessoas juntas — analiso cada frase que sai pelos seus
lábios. — Deixem que elas pensem no que quiserem.
Seus dedos descem por meus cabelos.
— É seu dinheiro!
— Quando me disse sim, tudo o que era meu, se tornou
nosso.
Balanço a minha cabeça.
— Eu não tenho nada — meus olhos se enchem.
Pode parecer fácil estar em uma cadeira de um restaurante
caro, onde tem um prato a sua frente com uma comida que vale
mais de quinhentos reais. Não fui criada desta forma. Há um tempo,
estava passando fome, procurando uma solução para isso. Hoje
estou em um dos lugares mais caros do Rio de Janeiro. Sei que
estou me menosprezando, mas não faz parte da minha realidade.
— Eu vou te dar tudo, assim como você me deu.
Desvio o meu olhar, mas a sua mão no meu maxilar me faz
encará-lo novamente.
— Me sinto inferior — confesso em um sussurro.
— Essas pessoas não têm metade da sua humildade, do seu
caráter e coração. Elas não sabem o que é amar — ele consegue
me tocar profundamente. — Está mulher ao lado, está com o
homem a sua frente pelo dinheiro e ele está com ela por causa dos
seus peitos, que ele mesmo pagou.
— Você nem os conhece — o repreendo, mas ele me dá um
sorriso de lado, como se me dissesse que estou errada.
— Você é tudo para mim, garota.
26
PREOCUPAÇÃO
CAMILLA FERRAZ
Sexta-feira, 23 de novembro de 2018

Enquanto leio as questões da última prova, reparo na Gabriela ao


meu lado.
Após saber sobre ela, tratei de me distanciar. Marcos não
conversa sobre as ocorrências do seu passado, mas sei que está
tentando nos excluir desta parte da sua vida — quanto mais se sabe
do assunto, mais perigoso se torna. Sei que ele não está preparado
para contar e eu não vou interferir e acabar estragando um
momento importante para os dois.
Ela tentou se aproximar, mostrou-se interessada na minha
gravidez, mas evitei a sua presença. Espero que um dia ela possa
entender.
Observando-a sei que será uma grande tia. Joana terá muitas
pessoas em sua vida, assim como o Bruno. Ela é espirituosa e
falante, os seus olhos são bondosos e ela sempre está tentando
ajudar as pessoas. Ao contrário de mim, ela é comunicativa e
agitada, contando sobre a sua vida e as histórias mais engraçadas.
Marco a resposta da última questão.
Minha barriga está enorme e as minhas costas doem. Me
levanto, guardo as minhas coisas e vou até o professor.
— Obrigado — ele agradece, assim que empilha a minha
prova com as outras. — Nos vemos na formatura.
Sorrio.
Com o seu comentário, me sinto confiante ao pensar que
posso passar direto.
Desço as escadas observando o silêncio e a tranquilidade
dos corredores que geralmente estão lotados de alunos e assuntos
aleatórios.
Os resultados sairão semana que vem e a formatura será no
meio de dezembro. Em todos esses dias sem a minha mãe, este é o
evento que eu mais queria que ela estivesse, pois sei o quanto ela
esperou por isso.
Aceno para a inspetora e vou em direção a esquina, mas
somente dou alguns passos até ver o Coringa dentro de um carro.
Ele buzina e pede para que eu entre.
— Marcos mandou vir te buscar — ouço-o enquanto prendo o
cinto.
— Obrigada. Por que ele não veio? — não querendo ser mal
agradecida, mas geralmente ele faz pessoalmente este tipo de
coisa.
— Estamos tendo alguns problemas que somente ele pode
resolver — noto o seu desconforto ao falar sobre isso.
— Envolve as saídas dele de madrugada?
Sua resposta é o silêncio.
— Tome cuidado — sua voz ecoa pelo carro, assim que
chegamos à escola do Bruno.
— Por que está me dizendo isso? — sinto os indícios de
preocupação rastejarem pela minha voz.
— Não estamos seguros.
Deslizo as minhas mãos até a minha barriga.
— Vou estar do lado de fora.
Balanço a minha cabeça.
Tomo algumas respirações antes de entrar na escola. Sei que
algo estava para acontecer, mas entender que agora é real, me
susta e eleva a minha preocupação ao medo.
Cumprimento o porteiro e algumas crianças que estão
saindo. Por não ter com quem deixar o Bruno, fiz um acordo com a
diretora para que ele fique nos dois turnos até que eu termine o
ensino médio.
Caminho até um pequeno corredor de armários, onde
encontro um que a escola me disponibilizou. Abro a porta de
madeira e quando vou direcionar a minha mochila para dentro, vejo
que tem um pequeno pedaço de papel dobrado.
Deslizo a minha bolsa para o chão e pego o papel.
"O meu nome é caos, nas minhas veias existe vingança e
nas minhas mãos... sangue".
Meus olhos seguram as letras, de modo que, não consigo
desviar.
Solto a respiração, encaminhando a minha visão para todos
os lados.
Eles estão aqui.
Puxo a mochila para os meus ombros e procuro o Bruno.
Quando o encontro, seguro firme a sua mão. Ele parece sonolento e
não busca entender o porquê de estarmos indo embora.
— Elisângela, tenho que ir — minha voz sai nervosa. —
Preciso resolver um problema...
— Tudo bem, fico no seu lugar — sinto a sua compreensão.
— Me desculpa.
— Não precisa se desculpar.
Agradeço novamente e corro para fora, onde encontro o carro
do Coringa. Abro a porta e me sento, colocando o Bruno em meu
colo.
— Encontrei isso no meu armário — entrego o papel para ele.
Vejo-o ler rapidamente.
— Coloca o cinto — ele manda, arrancando o carro com
pressa. — Filho da puta!
Suas mãos apertam o volante.
— Fernanda também está no radar deles — seus olhos
passeiam pelas ruas. — Ligue para ela, mande-a vir embora. Vou
esperar na entrada.
— A chefe dela não vai aceitar. Ela vai perder o emprego.
— Prefiro a vida dela do que a porra de um emprego. Liga! —
puxo o meu celular da bolsa.
Reparo que o Bruno dormiu. Ajeito-o em meu colo e procuro
o nome da Fernanda.
— Alô?
— Ei, está ocupada? — tento não ser totalmente direta.
— Mais ou menos, por quê? — ela fala baixo do outro lado.
— Você...
— Não enrola, Camilla! — Coringa diz nervoso.
— O Coringa está aí?
— Você precisa vir embora — respondo rápido.
— Por quê?
Coringa puxa o celular da minha mão.
— Estão nos cercando, vem embora! — ouço ela falar algo
que não consigo entender. — Vou te esperar na entrada.
Vejo-o parar o carro em frente a uma casa estranha.
— Marcos está lá dentro — suas palavras são apressadas.
Aceno em concordância, bato a porta do carro e caminho
para dentro da casa. As paredes estão no bloco, fazendo com que o
ambiente seja ainda mais escuro. Não tem janelas ou qualquer
iluminação, é somente um vão com uma porta.
Alguns vapores estão ao redor, posso reconhecer o porta voz
do evento em que conheci o Marcos. Seus olhos são baixos na
medida em que entro. Passo pela porta e me deparo com o Mancha
de costas. Ele está segurando algumas armas, gritando
furiosamente — reparo nas paredes revestidas por armamentos,
munições e equipamentos de alta tecnologia.
— Estou com os meus olhos em todos os lugares — suas
mãos agarram o pescoço do homem.
— Pai...
Volto o meu olhar para baixo, onde vejo o Bruno observar o
Marcos.
Suas mãos soltam o homem que corre para fora.
— O que você está fazendo aqui? — ele se aproxima, não se
importando com o traficante que foi embora.
— Colocaram um bilhete no meu armário, na escola do
Bruno. Coringa me trouxe até aqui — explico.
Sua mão some pelos seus cabelos, seus olhos deslizando
minuciosamente por mim. Ele pega o Bruno dos meus braços e me
leva para fora. Sinto que a minha respiração está em uma contínua
agitação.
— Estão infiltrando pessoas no Complexo — ele abre a porta
de um carro que está estacionado do outro lado da rua. — Entende
por que eu te disse não?
Vejo-o prender o meu cinto, ajudando o Bruno em seguida.
Ele abre a porta do outro lado e se senta, discando algo em seu
celular.
— Preciso que fique em casa, tranque todas as portas e não
saia — sua atenção continua na tela do aparelho. — O que você
encontrou é um aviso.
— Você identificou eles?
— Um homem burro sempre canta vitória antes de saber os
resultados — os seus olhos me consomem.
Ele sabe.
27
INTOLERÂNCIA
CAMILLA FERRAZ
Sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Vejo o meu reflexo no espelho e penso em tudo o que mudou.


Juguei tantas pessoas e, hoje, sei o significado do desespero.
Abandonei as minhas vontades para poder me submeter a alguém,
até que tudo mudou mais uma vez. Este é o reflexo de uma pessoa
que se encontrou.
Por alguns segundos, posso conseguir sentir a minha mãe,
quando me levava até o espelho do banheiro. Ela me ensinou a
compartilhar amor, não julgamentos. Fiz ao contrário, até que
entendi o que era estar vivendo as situações das outras pessoas.
Jurei nunca me relacionar com um traficante ou me aproximar
de um — nenhum dos meus critérios foi capaz de evitar o meu
casamento com um deles. Eu via as pessoas e me questionava do
porquê de estarem na rua, até que me deparei com o desemprego.
A prostituição e a ganância se tornaram um dos meus motivos mais
odiosos, então entendi que estava passando fome e precisava fazer
algo.
Pisco algumas vezes.
Quando precisamos passar por alguma situação, não há
nada e nem ninguém que possa evitar.
Desço os meus olhos pelo vestido azul escuro.
Amanhã será a minha formatura.
— Você está linda, gatinha — levanto a minha cabeça
rapidamente, vendo o Marcos em minhas costas.
O seu rosto é sério, enquanto me analisa. Minhas bochechas
se aquecem.
— Com tudo o que fazemos, você ainda consegue corar com
um elogio — sinto os seus dedos por meus cabelos. — ...
impressionante.
— Deve ser por que... nunca escutei você falar isso...
— Alguém está me ensinando a saber como me expressar —
ouço-o falar em meu ouvido.
Um sorriso me escapa.
— É esse! — aponto para o vestido.
— Certo — ele ajuda-me a tirá-lo.
Tentei convencê-lo de que tinha desistido da formatura, pois
com os avisos e o bilhete que encontrei, deixou-me resistente sobre
sair. "Vou estar com você" — foi a única coisa que ele respondeu,
antes de dizer que estávamos indo comprar um vestido.
Entrego a peça escolhida para a vendedora e caminhamos
para o caixa.
— Oi, Camilla! — viro-me de encontro a voz feminina.
— Oi! — encontro os olhos escuros da Gabriela, iguais aos
do Marcos. — Veio comprar o seu vestido?
— Sim! Ganhei um vale presente na empresa que trabalho —
o seu sorriso é enorme.
Desço os meus olhos pelo seu uniforme do McDonald's, logo
dirigindo-os para o meu marido. Marcos entrega o dinheiro para a
atendente com cara de paisagem.
— Ah! Que legal! — digo sorrindo, ainda observando o
homem atrás de mim.
— Desculpe, senhora, mas vamos fechar — uma mulher fala
para a Gabriela, me entregando a sacola.
— Ainda são três horas — intervenho.
— Vamos fechar mais cedo — dirijo os meus olhos pela loja,
onde há algumas pessoas analisando as roupas.
— Você já avisou para as outras pessoas ou somente para
ela? — noto que uma outra mulher entra, sem ser parada.
— A sua loja é para clientes brancos? — Gabriela questiona.
— Oh... lógico que não! Nós apoiamos as pessoas da sua
cor.
A mulher parece nervosa.
— Somente... somente, não temos roupas do seu tamanho —
ela tenta desconversar.
— Quem é o dono? — Marcos fala pela primeira vez, com a
sua voz nada agradável.
— Ela não está.
— Acho melhor você fazer ela vir aqui, agora.
— Não podemos fazer isso — uma outra atendente
interrompe. — Sou a gerente, posso tratar o seu caso.
— O seu posto não está tratando o meu caso. Chame a dona
deste lugar — vejo que a sua respiração está se tornando rápida,
ele está se controlando.
— Tudo bem, posso ir em outra loja — Gabriela fala baixo.
— Está resolvido — a intitulada gerente diz. Ela observa a
sacola em minha mão. — Volte sempre.
— Não se mova, Gabriela — falo.
— Você! — Marcos chama uma vendedora que tenta
disfarçar. — Pegue o telefone e ligue para a dona deste lugar!
Ela parece relutante, principalmente ao ser atingida pelos
olhares das outras atendentes. Sei que o Marcos a chamou pelo seu
evidente olhar medroso, ela é nova aqui, certamente está comendo
nas mãos das outras.
Vemos ela pegar o celular e discar, mas antes que a pessoa
do outro lado atenda, uma figura alta e loira atravessa a porta de
vidro. Seus saltos dão a ela uma estrutura elegante, ao mesmo
tempo que os seus óculos escuros são tirados do seu rosto.
Noto o seu olhar sobre o Marcos. Seus lábios rasgam em um
sorriso cheio de dentes. A minha sobrancelha se inclina.
Mancha encara a menina com o telefone na mão, que olha
fixamente para a loira.
— Posso ajudá-lo? — ela se aproxima dele.
— Sim — ele se vira para ela, sorrindo sugestivo. — Artigo
20, Lei n° 7.716/89.
Ela sorri, tentando entendê-lo.
— Por motivos explícitos de racismo, todas as suas lojas
serão fechadas.
Observo os olhos da mulher murcharem, assim como o seu
sorriso.
— Podemos ir ao meu escritório...
— Pegue o seu produto e venda novamente. Você vai
precisar de um bom advogado — Marcos puxa a sacola das minhas
mãos, deixando-a na bancada do caixa. — Vamos conseguir outro
— ele fala a última parte para mim.
— Podemos conversar, verá que foi um mal-entendido! — o
olhar da loira encontra os olhos da sua funcionária, furiosamente.
— A única palavra que aceito sair da sua boca, é um pedido
de desculpas para ela.
Pela primeira vez, seus olhos se dirigem para a Gabriela.
Eles examinam a irmã do Marcos minuciosamente, até que um
sorriso falso aparece em seu rosto.
— Me desculpe pelo transtorno, mas podemos resolver esse
pequeno mal-entendido, tenho certeza de que não passou disso.
— Você poderia ter feito melhor — Mancha segura os meus
quadris. — Use a criatividade para um novo negócio, você vai
precisar...
Ele me leva até a saída, esperando a Gabriela fazer o
mesmo. Na entrada tem uma placa com a palavra open e no
verso close, ele vira a placa. Realmente, a loja fechou cedo.
— Você está bem? — pergunto preocupada.
— Já presenciei este tipo de comportamento, mas desta vez,
estou me sentindo feliz — seus olhos estão envergonhados,
sorrindo para o homem atrás de mim. — Obrigada.
Ele somente assente.
— Tem outra loja ali! — aponto para a outra parte do
shopping. — Vamos.
Pego na mão da Gabriela e entramos na loja. Diferente da
outra, há uma diversidade de atendentes, todas bem educadas e
gentis. Marcos se sentou em uma das poltronas e está nos
esperando. Sei que o seu aviso para aquela mulher é real, ele não
deixará o assunto somente nas palavras, principalmente quando
observei os seus dedos rápidos em seu celular.
— Sua barriga ficou linda neste vestido — Gabriela comenta
ao me ver em um vestido branco.
— Estou encantada — sinto a Joana se mover. — Ela
também gostou...
Pego a sua mão e a levo até a minha barriga.
— Ela é forte — ouço-a rir.
— Marcos está apavorado com os garotos e ela nem nasceu.
— A preocupação dele não é sem razão — ela move as suas
sobrancelhas.
Talvez ser uma pessoa preocupada, está no sangue dele.
— Olha esse! — vejo uma peça na cor salmão. —
Experimenta!
Entrego o cabide em sua mão.
— Como ficou? — ela pergunta, assim que sai do provador.
— Uau! Você está linda!
— Obrigada — ela se vira para o espelho, sorrindo. — Com
certeza é esse!
Tiramos os vestidos e entregamos para a vendedora.
— Obrigada, mais uma vez — o seu olhar viaja de mim, até o
Marcos. — Tenho que correr, o meu horário de almoço acabou.
— A gente se vê amanhã! — aceno, vendo-a se distanciar.
Sinto a pressão dos dedos do Marcos em minha cintura.
— Quer comer alguma coisa?
— Quando vai dizer a ela? — mudo de assunto.
Ele fica em silêncio, me fazendo acreditar que não terei uma
resposta, até que consigo ouvi-lo.
— Quando todos estiverem seguros.
28
REALIZAÇÃO
CAMILLA FERRAZ
Sábado, 15 de dezembro de 2018

— Camilla Ferraz Valentini.


Ouço o meu coração pulsar em meus ouvidos. Os meus
saltos baixos clicam pelo chão, enquanto tento me manter
equilibrada até o palco. A peça azul que está cobrindo o meu
vestido branco simboliza a primeira parte de um sonho. Estou me
formando.
Para alguns é somente um evento sem muita importância,
para o mercado de trabalho é o mínimo que uma pessoa precisa ter,
para mim... significa realização.
Observo as fileiras de cadeiras com alguns formandos.
Infelizmente o número de alunos é menor que o esperado. Muitos
desistiram pelo caminho ou não tiveram condições de sustentar os
valores.
Sinto o peso dos olhares em mim enquanto caminho até o
professor. A emoção no rosto das pessoas é impagável. Imagino a
sensação boa que devem estar sentindo.
— Parabéns — ouço-o dizer.
Ele estende o canudo para mim ao mesmo tempo que o
fotógrafo captura a nossa imagem.
— Obrigada.
Me junto aos outros ex-alunos. Meus olhos deslizam pelas
famílias que presenciam este momento importante na vida dos seus
filhos. Noto que alguns estão chorando, outros tentam disfarçar.
Continuo observando, até que, os meus olhos paralisam nele.
Ele não está sentado como os outros, mas segura o Bruno
em seus braços ao lado da Fernanda e o Coringa no fundo do salão.
Meus lábios se abrem em um sorriso.
Olhando para todas essas pessoas, me lembro de ter
pensado nas meninas que desistiram da escola por descobrirem a
gravidez. Sendo sincera, não conseguia entender o número de
garotas que engravidaram cedo, até que parei para entender que
sou uma delas. Sinto que tive a minha cota de julgamentos.
Volto a minha atenção para o fundo, constatando a alegria da
Fernanda. Ela não consegue controlar os seus movimentos, pois
está pulando freneticamente.
Assim que todos os alunos são chamados, ouvimos algumas
palavras dos professores e a diretora da escola. Um vídeo foi
passado e se encerrou com palmas e gritos.
Depois de alguns cumprimentos, vou de encontro a minha
família. Certamente a minha maquiagem deve estar borrada com a
quantidade de lágrimas que derramei, mas não dou muita atenção a
este detalhe. Continuo pedindo licença para as pessoas até chegar
ao Marcos.
O seu olhar é orgulhoso. Ele não sorri, mas consigo entender
que está feliz por mim. Sua feição é leve quando me puxa para o
seu peito, deixando um rápido beijo em meus lábios. Fernanda me
prende em um abraço forte, compartilhando da mesma alegria. Vejo
que ela também está chorando.
— Estou muito feliz por você — ela sussurra em meu ouvido.
— Você é responsável por grande parte desta felicidade —
ela me aperta.
Coringa me parabeniza, lançando um rápido olhar para o
Marcos.
— Vamos — ele sinaliza para a porta.
Assinto, entregando o canudo para o Bruno.
Fernanda se senta na parte de trás do carro comigo, depois
de entregar a beca que eu estava usando para os homens
responsáveis pela formatura. O trajeto para casa é silencioso. Os
dois homens sentados na frente estão atentos a tudo em nossa
volta, se comunicando por códigos e olhares. Sei que estamos sob
os olhos dos inimigos dele, de modo que, consigo sentir a sua
inquietação ao visualizar algo que somente ele consegue identificar.
— Ponto treze, suspeita confirmada — uma voz arrastada
ecoa em meus ouvidos.
Observo o Coringa encarar o Mancha.
— Pegue todos — Marcos responde no rádio.
— O que foi confirmado? — Fernanda questiona.
Ela não tem resposta.
Os seus olhos encontram os meus. Faço um sinal negativo
com a cabeça.
— Fique com a Camilla, Fernanda — Marcos comunica,
assim que avisto a rua que se encontra a nossa casa.
Ele me encara através do espelho. Fernanda me ajuda a
descer do carro, logo auxiliando o Bruno. Meus olhos se voltam para
ele mais uma vez.
— Eu volto — ele murmura.
— Eu sei — respondo, mesmo não tendo confiança nas
minhas palavras.
No xadrez não há chances de haver dois vencedores, um tem
que perder.
Sinto que o tabuleiro está rachando e as peças diminuindo, o
jogo está sendo fechado. Alguém está prestes a dar o xeque-mate.
Fecho os meus olhos por alguns segundos. Quando me sinto
segura para abri-los, vejo-o me observando pelo retrovisor. Sei que
os meus olhos transmitem dor, pois é o que estou sentindo.
— Entra — ouço-o.
Uma lágrima desce pelo meu rosto enquanto me viro. Meu
coração bate com mais força em meu peito, na medida em que
visualizo o carro virar em direção a outra rua.
É incrível como um sentimento muda tudo, o modo em que
uma vingança destrói ou em como o amor cura. O amor que eu sinto
por ele foi capaz de sarar feridas e abrir sentimentos que eu nem ao
menos sabia que existia. É um mar de sensações que somente ele
entende como navegar, e saber que ele me ama da mesma forma,
se torna ainda mais intenso e inexplicável.
Tranco a porta e vejo a Fernanda no celular, não querendo
ser invasiva, passo direto para a cozinha, mas os meus pés se fixam
no chão com os repetidos sons. Bruno corre para os meus braços e
observo a Fernanda olhar de um lado a outro assustada, com o seu
celular ainda em sua orelha.
— Não estamos seguras aqui — suas palavras são rápidas.
— Por quê?
— Um X9 espalhou a localização da sua casa — vejo-a
guardar o celular. — Precisamos sair daqui, agora!
— Para onde vamos? — minha voz sai tremula.
Ela me puxa para fora, pegando o Bruno em seu colo. Chuto
os saltos dos meus pés, calçando os chinelos que costumo deixar
ao lado da porta.
Mais tiros ecoam pelo Complexo.
Os meus olhos correm ao nosso redor, observando qualquer
movimento. Tento andar o mais rápido que posso, mas as minhas
pernas inchadas me impossibilitam de ser ágil. Bruno me olha com
medo enquanto a Fernanda o aperta em seus braços. Os sons se
tornam frenéticos, fazendo com que as pessoas que estão nas ruas,
corram em todas as direções.
— Não vamos conseguir chegar na localização que o Coringa
mandou! — Fernanda grita, tentando sobressair o som dos tiros.
Mais pessoas aparecem em nosso campo de visão,
deixando-me tonta. Gritos se misturam, crianças correm de encontro
aos seus pais, chorando assustadas.
Tudo acontece rápido. Há segundos, estávamos andando, de
repente me vejo procurando ar freneticamente pelos movimentos
bruscos que as minhas pernas fazem.
— A escola! — grito.
Os donos dos comércios fecham as portas rapidamente,
deixando as pessoas gritando do lado de fora para que possam
entrar. Janelas balançam com a força das explosões, cachorros
latem por todos os lados, de forma que, se misturem com o choro
sofrido das diversas pessoas.
A escola que o Bruno estuda é o estabelecimento mais
próximo e que acredito ser seguro. Pouso as minhas mãos na minha
barriga, beirando os muros das casas, fugindo dos carros e motos
que estão em alta velocidade. Enquanto tento ser rápida, oro para
que o nervoso não tome conta do meu corpo ou pode afetar a minha
gravidez.
Atravessamos a rua depressa indo de encontro ao portão da
escola. Vejo quando um dos porteiros está prestes a fechá-lo, mas a
Fernanda se joga em sua frente, esperando que eu entre para logo
trancá-lo. Após estar do lado de dentro, o alívio toma o controle do
meu sistema.
Por haver muros altos, pensei ser um lugar seguro, mas
estando dentro, percebo que as paredes não vão aguentar o
impacto. As vibrações do chão e o barulho forte dos tiros são
assustadores.
Quando consigo normalizar a minha respiração, reparo nas
muitas pessoas que estão por aqui. Algumas estão encolhidas pelos
cantos, abraçados com as suas crianças. Nos seus rostos é gritante
o medo e o pânico. Acredito que não estou diferente.
Vendo o meu estado, o senhor me traz um copo d'água.
Precisei da ajuda da Fernanda para bebê-la, pois as minhas mãos
tremulas não deixaram que o líquido ficasse quieto dentro do copo.
Meus seios sobem e descem rapidamente, espelhando os
movimentos do meu coração.
Este cenário não é novo para mim, mas, antes, eu não estava
sendo perseguida, não estava grávida ou era casada com um dos
traficantes causadores desta guerra.
O medo de perdê-lo grita em meu peito.
Fernanda me puxa para um canto, ajudando-me a sentar.
Bruno ainda chora em seu colo, enterrando a cabeça em seu
pescoço. Ela passa um dos seus braços ao meu redor, fazendo com
que nos encolhêssemos de encontro a parede. Sinto quando
lágrimas pingam em meu braço. Volto a minha atenção para cima,
onde encaro o líquido transparente descer pelo seu rosto. Aperto a
minha cabeça em seu peito, pois não há palavras para este
momento.
Os sonos estão se tornando ainda mais fortes a cada
segundo. As pessoas tampam os seus ouvidos e choram baixo,
agarrando uns aos outros.
Meus pensamentos estão no meu marido, no homem que
está realizando o seu plano. Posso ouvir as peças se movendo
enquanto os pontos são anotados.
Meus lábios tremem em sintonia com os meus joelhos.
Respiro fundo e por alguns instantes, imagino estar em uma
situação diferente. Saber que ele está lá fora me preocupa.
Entender que tem a possibilidade de ele não voltar, intensifica todos
esses sentimentos.
Os sons parecem estar cada vez mais perto e eu não sou a
única a perceber. Noto quando a Fernanda pega o seu celular e
digita algo rapidamente, logo guardando-o.
— Eles usaram a sua formatura para distrair o Mancha —
ouço-a murmurar. — Estavam esperando por ele.
— O Coringa que falou? — continuo olhando para o chão.
— Há alguns dias, vem chegando uma grande quantidade de
armas e munições, mas não era do Marcos — a encaro sem
entender. — O X9 que eu citei, estava transportando para um
esconderijo no Complexo.
— Como ele conseguiu entrar?
— O Davi deixou — me lembro do menino que estudava
comigo e, após o incidente na festa, ele sumiu. — ... mas o Mancha
sabia. O Davi não está trabalhando sozinho, tem outro por traz que
o Coringa não quis falar.
Levanto a minha cabeça para olhá-la.
— O Marcos foi pego de surpresa, ele não terá chances... —
sinto que os meus olhos turvam com as lágrimas.
— Pelo contrário. O seu marido é mais esperto que todos
eles juntos.
29

TENSÃO
MARCOS HENRIQUE
Ainda, sábado – 15 de dezembro de 2018

Observo as ruas cheias através da janela escura do carro.


— Eu prometo — ouço a Fernanda murmurar algo do outro
lado do celular. — Vou até lá... fique com a Camilla, vou cuidar da
sua família...
Coringa abre a janela com o aparelho em seu ouvido.
— Dirija! — mando, assim que vejo um homem caído.
— Filho da puta!
Seguro o volante enquanto abro a porta.
— Segue o plano — grito, após ver as suas mãos assumirem
o controle.
Espero até que os seus pés assumam os pedais para que eu
salte. Minhas costas colidem com o chão, mas me levanto
rapidamente, indo de encontro ao homem. Observo que é um dos
meus.
— Eles estão de farda, chefe — ele tosse algumas vezes.
Vejo um ferimento em suas costelas. Ajudo-o a se levantar,
levando-o até uma das bocas.
— Consegue se virar? — pergunto.
— Sim.
Sei que não irá demorar para que o Complexo esteja em
todos os canais. Helicópteros sobrevoarão sobre nós e a notícia
será o clichê de sempre; a lei contra o tráfico.
Há anos estou morto para a mídia, acredito que será uma
surpresa ao constatarem que o advogado que colocou vários atrás
das grades está na mira da polícia. Tiago foi esperto ao usar o
uniforme do time falso, para os outros eles serão os mocinhos,
enquanto eu serei o novo procurado. Por pouco tempo.
Ouço tiros de metralhadora vindo da entrada.
— Os homens não para de chegar, chefe! — uma voz soa no
rádio.
Puxo o objeto que estava preso em minha calça.
— Não fique na linha de frente, eles vão meter bala! Mande
as pessoas para dentro e subam nas lajes! — grito de volta.
Corro para a rua onde escondi todas as armas e munições
que estavam infiltrando no meu território. Acreditaram estar
prevenidos, mas a verdade é que me fizeram um favor. Não há
chances de entrarem sem que sejam percebidos. Eles me
entregaram os seus brinquedos de bandeja, sem frete. Não me
surpreendi ao constar que um X9 estava fazendo mapas para o
inimigo. Quando todas as munições acabarem, eles vão procurar
por mais, é neste momento que a mídia terá que ver os corruptos
que eles chamam de lei.
As pessoas correm desesperadas procurando por abrigo.
Minha pele soa sob o sol quente enquanto atravesso as
vielas.
— Chame o Felipe, eles estão em muitos! — grito em meu
celular.
— O grandão está aqui! — Coringa fala do outro lado. — O
filho da puta derrubou cinco viaturas.
— Mande ele para o leste!
Entro na casa e noto os homens se equipando. As armas de
alta tecnologia, oferecidas pelo inimigo, estão nas mãos dos meus
subordinados.
Encho os meus bolsos de munição, destravo algumas armas
e protejo o meu peito com um colete. Atravesso duas metralhadoras
pelos meus ombros, enganchando no cós da minha calça mais duas
Remington 870. Escondo uma Gerber LMF II Infantry Knife em meu
colete, junto com algumas bombas.
Observo que muitos estão aparecendo para buscar mais
armas. Preciso ser mais rápido, posso ter mais equipamentos, mas
ele tem pessoas.
— A coisa está feia lá embaixo — ouço um dos vapores falar,
alimentando um revólver. — Um cara desobedeceu a sua ordem e
foi na linha de frente... metralharam o corpo dele.
É visível a falta de um planejamento, pois ele está seguro
com a quantidade e a repercussão que está gerando.
— Vão por cima. Eles não conhecem as mudanças —
sinalizo para que vão pelo telhado. — Você conhece o ponto de
troca, vai por lá, o X9 não conhece a brecha.
Não espero por uma resposta, pego uma outra arma e corro
pelas vielas, cortando caminho.
Tiago não irá dar o seu corpo para salvar os seus, muito pelo
contrário, ele usará todos como o seu escudo, até que chegue a
mim. Não é à toa que ele mandou uma garota de vinte e quatro
anos para apaziguar e enviar os assuntos que condiziam a ele.
Gizele foi a sua escada para me alcançar. Sacrificou a própria
mulher pelo poder.
Quando tracei lugares para executar os meus planos,
encontrei a minha irmã. A sua moradia se tornou o ambiente
perfeito, até que alguns dias depois, me deparei com o pai da
Camilla — que resultou na mesma atitude, sacrificando a filha para
salvar a própria pele.
Observei por alguns dias o lugar antes de tomá-lo, ainda
estava indeciso, até que fui surpreendido pela ruiva em seu
uniforme da escola. O meu interesse por ela foi instantâneo, mas
descobri que se tratava da filha de um dos homens que matei. Era
ela a mulher que foi vendida para mim.
Com os dias, a minha raiva crescia pela forma em que estava
me deixando se envolver pela filha do inimigo. Os sentimentos me
irritavam, enfureciam-me. Criei todo um cenário para que a mulher
que estive querendo e a falsa ruiva que rasgou a minha pele e riu
das lágrimas da minha filha, pudessem estar no mesmo lugar. Então
me deparei com uma inocente e os meus planos sofreram
mudanças, pois quando pisei nesta parte do Rio de Janeiro,
descobri que estava tendo uma fraqueza.
Pensei muitas vezes em desistir, mas uma vingança nunca
acaba enquanto um lado não vence. Minha família nunca estará
segura se este homem continuar vivo.
Enquanto estive naquele deposito, sentindo o sangue se
espalhando ao meu redor, analisei os seus movimentos e atitudes,
mesmo estando quase apagado. Tiago não suja as suas mãos, a
não ser que não tenha ninguém para fazer isso por ele. A sua
influência moveu as pessoas para realizar os seus comandos. Um
homem que se intitula poderoso não está apto a responder pelos
seus crimes, pois sempre terá alguém para culpar.
Subo rapidamente por uma escada de ferro, pisando nos
telhados. As casas construídas uma ao lado da outra, praticamente
grudadas, facilita os meus movimentos, de modo ágil e rápido. Pulo
de um casa a outra, correndo pelas lajes.
Observo quando indivíduos armados que não reconheço
passam pelas ruas estreitas abaixo. Puxo uma das metralhadoras e
direciono para os homens. Vejo quando as suas cabeças explodem
e o sangue desce pelas paredes. Um deles consegue se esconder.
Me abaixo tentando visualizá-lo, mas uma onda de tiros soam, todos
vindo em minha direção. Salto para a casa a frente, atirando em
qualquer um que reconheço como sendo inimigo.
Me abaixo em uma fileira de blocos, alimentando as minhas
armas enquanto bombardeiam o Complexo. Ouço vidros se
quebrarem e pessoas gritando. Introduzo outro pente, observando
que estão tentando me atingir em um único ponto.
Ainda abaixado, vejo a destruição. A fumaça cobrindo a
entrada e as viaturas fechando todas as saídas.
O meu plano inicial era embasado em deixá-lo sozinho, sem
proteção, mas subestimei o poder de um manipulador. Destruí um
após o outro, desde as suas peças mais confiáveis, até os mais
baixos. Ainda assim, conseguiu trazer mais do seu tipo.
Os meus subordinados estão morrendo, pintando as vielas
com os seus sangues. O número do meu lado está diminuindo,
preciso achá-lo rápido ou mais pessoas vão morrer.
Após reabastecer, miro nos homens abaixo, distribuindo tiros
em lugares que sei que não irão me causar mais problemas. Aponto
para várias direções, me aproveitando da visão.
— Estou aqui, porra! — ouço a voz do Felipe pelo rádio.
— Tem muitos deles aí? — grito.
— As viaturas pararam de chegar! Temos tempo até eles
perceberem que precisam de reforço!
Caralho.
Dei provas e motivos suficientes para ele apodrecer na
cadeia, ainda assim passaram pano em cima das suas ações
imundas. Apoiando-o em suas transgressões.
— Pega as correntes com o gancho, coloca os explosivos e
enfia na areia. Eles devem estar vindo pela quadra! — mando. — Se
tiver gente por perto, manda vazar, porque vai explodir tudo.
— Beleza.
— Mata eles! — empurro o rádio para o meu bolso.
Continuo correndo pelas casas, atirando e matando, tentando
ao máximo desviar dos tiros, mas em um dos saltos, um filho da
puta me acertou, atravessando a minha coxa esquerda.
— Caralho!
Observo algumas roupas secando na varanda da casa, puxo
uma das peças e a rasgo. Analiso o buraco que o tiro fez e arrasto a
bala para fora. Estanco o sangue e firmo com a blusa que rasguei.
Pego o rádio rapidamente na linha do Coringa.
— Fala, chefe.
— Fui atingido.
— É grave?
— Não sei. Tem rastro dele?
— O Bola matou um deles e pegou o rádio. O cara está perto
da boca dois — ele ainda não se afastou completamente do seu
bando.
— Ele não está sozinho. Jogue três bombas, juntas —
explico, observando o movimento.
Encaro todos os pontos de acesso que posso chegar até la.
— Quebre os cavalos, ameace o rei!
30
VINGANÇA
MARCOS HENRIQUE
Ainda, sábado – 15 de dezembro de 2018

Não demora muito para que eu ouça os altos sons.


— Manda quinze pelo ponto de troca. Dentro da casa tem
bombas rápidas, joguem nos carros.
Pressiono o tecido contra o ferimento. Me levanto, arrasto os
meus olhos ao meu redor e sigo me apoiando nas paredes. Puxo
uma outra blusa e dou um nó firme entorno da minha coxa. Sinto a
estrutura de blocos vibrar aos meus pés, ao mesmo tempo em que
uma onda de repetidas explosões se espalham.
— Conseguiu atingir todos? — falo baixo, vendo um deles
passando na outra laje.
— Faltam vinte carros.
— Jogue as fumaças e termine com os carros. Não quero
que eles tenham para onde correr!
Noto que os tiros estão diminuindo, certamente a munição
está acabando.
— Beleza!
Aponto a minha arma para o homem na outra laje e atiro,
vendo-o cair. Mais homens uniformizados aparecem em minha
visão, sendo os meus alvos. Mesmo com dor, continuo correndo e
saltando pelas casas, atirando e fugindo das balas que estão vindo
em minha direção. Desço na esquina da boca dois.
Meus olhos se prendem na visão. Sinto a raiva crescer,
fazendo com que o zumbido em meus ouvidos aumentem.
Homens mortos estão em pilhas, jogados por todos os lados.
O sangue escorre pelo chão, sendo misturados aos equipamentos e
distintivos. Pessoas choram em suas janelas pedindo a Deus que o
fim esteja próximo.
Sinto o cheiro de fumaça e gasolina.
— Entrem! — grito para as pessoas.
O rádio em minhas mãos está chiando.
— Ele fugiu! — rosno para o Coringa. — Só consigo ver
gente morta!
— Ele ainda está aí! — sua voz tenta sobressair os tiros.
Vejo pelo canto dos meus olhos algo se mover. Os
movimentos são rápidos, até que, de repente, o som de um novo tiro
invade os meus ouvidos. O meu braço queima.
Filho da puta.
— Então, é aqui que você se esconde... — meus olhos se
levantam para o homem que está saindo de debaixo de alguns
corpos.
— Gostou? — minha voz é seca.
— Subestimei você... — vejo que uma pessoa está se
movendo atrás de mim. — ... mas não é tão esperto como dizem.
Achei incrível o seu trabalho com os corpos, mas ainda continua
sendo o mesmo homem que somente olha... e não pode fazer nada.
— Você está confiante quanto a isso?
— Não é confiança, são fatos.
Observo os seus dedos firmes entorno do gatilho.
Ele não tem munição ou não estaria conversando.
— Seus fatos estão equivocados.
— Você destruiu os meus planos! — ele me olha com raiva.
— A florzinha ficou agitada?! — debocho, sentindo a raiva me
corroer por dentro.
— Mas olha para você... virou homem, agora? — ele sorri
malicioso. — Entendo que as mulheres têm algo que mexe com as
nossas cabeças... a sua parece ser bem... tentadora.
Sinto o meu sangue ferver ao ouvi-lo mencionar a minha
mulher.
— Está incomodado em me ver com algo que você nunca
teve? — suas feições mudam. — Quando muito se comenta, é
porque incomoda.
Sutilmente, observo quando ele sinaliza para o homem atrás
de mim. Puxo as duas armas que estavam no cós da minha calça,
mirando em seus dois braços, logo me virando para acertar a
cabeça do outro.
Os seus olhos azuis cintilam raiva e fúria.
As suas ideias são perversas, sendo o início das suas ações.
A crueldade muita das vezes possui mais seguidores que um
indivíduo com boas intenções. O poder é o imã para os olhos dos
soberbos e das almas sem valores.
Com os braços feridos ele se move em minha direção. Vejo
que uma faca estava vindo para o meu peito, mas desvio, fazendo
com que a sua mão torça e o objeto atinja o seu antebraço. Chuto
as suas pernas, notando que a faca está novamente em sua mão.
Imobilizo os seus movimentos, tomando a lâmina, mas sinto uma
dor aguda em meu ombro, onde um filho da puta acabou de me
acertar.
Puxo a arma de um morto ao meu lado e atiro até que vejo-o
cair. Tiago usa a minha distração ao seu favor, distribuindo socos
em meu abdômen. Assim que consigo me levantar, arranco a faca
do meu ombro.
— Não consegue se garantir sozinho né, garotão? Sempre
tem que ter uma babá — gargalho ironicamente.
Ele se levanta, dando alguns passos.
Mirei no seu sarcasmo, acertei o seu orgulho.
O seu sangue desce pelo seu corpo, manchando o seu
emblema falso. Toda a ira em seus olhos é reciproco.
Reparo que em um movimento rápido, ele alcança uma arma
em suas costas, fixando em minha cabeça.
— Jogue todas as suas armas no chão!
— Por que precisa das minhas armas, sendo que está
apontando uma para a minha cabeça? — a ironia escorre pelos
meus lábios. — Você não tem mais ninguém...
Aponto para os homens no chão.
— Onde era mesmo o esconderijo do seu contrabando? —
carrego a minha arma.
Ele me responde com o silêncio.
— Acabou, Tiago. O seu barco afundou — a bala atinge a
sua barriga.
O objeto vazio desliza pelas suas mãos, enquanto vão até o
ferimento. Atiro na sua perna, fazendo-o se ajoelhar.
— Me responda, onde estão os seus seguidores?
— Vai se foder, filho da puta!
— Onde estão as suas armas? — me aproximo.
— Devia ter me assegurado que estava morto! — sua voz me
faz rir.
— Onde está o seu dinheiro? Ele comprou a sua liberdade e
muitas pessoas — atiro na sua outra perna. — Ele pode te salvar?
Ele grita.
Vou até um fardado morto e arranco o rádio da sua mão.
— Fale para eles se render — rosno.
— Não! — o ódio cresce em seu tom.
— Uma pena... — puxo a lâmina em que escondi no meu
colete.
Encaixo a faca no ferimento da sua perna.
— Tente outra resposta — afundo ainda mais a faca, vendo a
ponta sair do outro lado.
Viro o objeto em sua perna enquanto levo o rádio até a sua
boca.
— Seus incompetentes! — ele grita no aparelho.
Balanço a minha cabeça. Ele não cederá facilmente. Retiro a
faca e cravo em seu pênis.
— Você grita como uma mocinha... — ele tenta segurar o
meu pescoço, mas o acerto com um soco. — Rendam-se.
— Eu posso morrer, mas eles irão continuar! Vão matar
todos, até a sua putinha ruiva.
— Qual a coisa que você mais ama no mundo? — minha
mão pressiona o seu pescoço.
Um sorriso vermelho surge em sua boca.
— Eu não amo nada.
Finjo estar pensando.
— Como é o nome dele mesmo?... Nathan? — seus olhos
saltam.
Xeque-mate.
— Todos foram uma distração, não é mesmo? Um casamento
falso, pessoas compradas, enquanto você cuidava do seu
namorado...
Escuto a minha gargalhada ao ver os seus olhos furiosos.
— Tentou pagar de hétero, falando até mesmo da minha
mulher... mas não funcionou.
Aproximo novamente o rádio.
— Acabou — ele fala com dificuldade.
— Chefe, mas...
— RENDAM-SE!
Rio sarcasticamente, desligando o rádio.
— O meu nome é justiça e o meu sobrenome é lei — solto o
seu pescoço.
Pego o meu celular e ligo para o Coringa, sendo atendido no
terceiro toque.
— Os filho da puta estão fugindo — ele parece ofegante.
— Leve-os para a praça, amarre todos eles e os coloquem de
joelhos! — desligo.
— Ele virá atrás de você!
— Estarei preparado quando vier — chuto o seu rosto. —
Mas espero que ele seja mais esperto que você e se mantenha
longe.
Cubro-o de socos e chutes, lembrando das lágrimas da
minha filha. Os seus olhos estão inchados, tornando-o
irreconhecível. Retiro a faca do seu pênis e deslizo-a por seus
ombros e pernas.
— Se não me matou, não irá matar você também, não é
mesmo?
Ele continua em silêncio.
Desfaço o nó que está segurando o meu ferimento e amarro
os seus braços e pernas com o tecido manchado de sangue. Arrasto
o seu corpo pelo chão, ao mesmo tempo em que subo as ruas
lentamente.
Os tiros cessaram, a correria de momentos atrás não existe
mais. As pessoas nos olham espantados e correm para longe de
mim. Não tiro a razão deles.
Após subir o Morro, deixando o rastro do sangue do Tiago
pelas ruas, me deparo com a praça, onde há centenas de homens
ajoelhados.
— Veja, Tiago, o que você causou — não olho para ele.
Dou alguns passos em direção ao Coringa, após encontrá-lo.
— Acende a fogueira.
Todos iriam vê-lo queimar.
Coringa e alguns outros homens ajudam a acender a fogueira
de dois metros. O fogo queima a madeira, estralando cada pedaço.
— Espero que se habitue ao fogo.
Jogo o seu corpo machucado no chão, observando o seu
repentino alvoroço.
Sinto o cheiro do seu medo.
— Espero que goste.
Coringa segura a sua cabeça e eu alcanço os seus pés, logo
vendo as chamas consumirem o seu corpo.
— VEJAM! — grito para todos os ajoelhados e as pessoas
que estão ao redor. — Isso é o resultado de um homem que não
sente. Isso era o que vocês estavam seguindo... o dinheiro que
vocês tiram dos inocentes os transformaram em alvos. A vida cobra
e, hoje, eu sou o homem que faz colheita.
Me viro para o Coringa.
— Atire em todos.
Ele não espera.
— ATIRAR! — Coringa grita.
Em segundos, todos os ajoelhados estão mortos, dando fim a
tudo o que um dia eu lutei para vingar.
31
MEDO
CAMILLA FERRAZ
Ainda, sábado – 15 de dezembro de 2018

Tiros são ouvidos freneticamente.


Ouço o som choroso do meu filho ao meu lado, enquanto a
Fernanda tenta acalmá-lo. Ele soluça alto, fazendo com que as
lágrimas desçam pelo meu rosto. As explosões ecoam sem
intervalos de encontro ao chão, impactando a estrutura ao nosso
redor. São visíveis as rachaduras que estão se alargando
constantemente, podendo ser visto a situação do lado de fora. O
medo de um desmoronamento faz a minha carne tremer.
As pessoas tentam ser silenciosas para que não percebam
que há pessoas se escondendo aqui, mas, assim como o Bruno, há
uma grande quantidade de crianças que choram.
Distancio o meu olhar do Bruno e observo as pessoas, até que
me deparo com uma criança sozinha do outro lado. A menina não
deve ter mais que dez anos.
— Já volto — me levanto com dificuldade.
Me aproximo da garota com passos rápidos.
Peço para que ela se levante e se mova até a Fernanda. Ela
me abraça e chora, sem dizer uma palavra.
— Vai ficar tudo bem — deslizo os meus dedos pelos seus
cabelos, tentando ser confiante.
Insisto para que ela corra para o outro lado, pois a poeira está
se espalhando. Tomo algumas respirações fundas no instante em
que vejo a menina correr para o lugar que indiquei, logo ouço um
alto som de encontro a escola.
Pedras voam para todas as direções. O portão de ferro cai ao
chão, sendo soterrado pelos escombros. Com a força, acabo
caindo, arranhando os meus cotovelos e pernas. Seguro a minha
barriga fortemente, mas sinto quando um líquido desce pelas
minhas pernas.
Meu Deus!
Noto que os meus braços estão sendo puxados por uma
Fernanda aflita.
O desespero das pessoas aumentam.
— Minha bolsa estourou — o som que saí pelos meus lábios
é lento.
Vejo os olhos da minha amiga se tornarem em grandes bolas.
— E, agora? — sua cabeça se move de um lado a outro.
— Consigo aguentar por mais alguns minutos.
O Bruno chora com um leve ferimento na testa. Ele pede para
que eu o pegue, mas a minha recente situação me impede.
— Precisamos ir para um hospital, sua cabeça está
sangrando — ela diz nervosa. — Não está doendo?
— Minha preocupação é outra — seguro a minha barriga
como se estivesse segurando a Joana. — Estou sentindo as
contrações.
A poeira está abaixando, fazendo com que a minha visão
seja ampla. Passo os meus dedos pelo meu rosto, sentindo o líquido
vermelho. Levanto os meus olhos para a Fernanda, mas a minha
visão é puxada para outra figura atrás dela.
Pedro.
— Pedro! — grito.
Em instantes, sinto o peso do seu olhar em mim. Ele sorri,
mas não é como antes. Os seus olhos são sombrios e furiosos.
Observo que está vestido com um uniforme da polícia, com armas e
equipamentos de porte pesado, assim que a fumaça de poeira se
dissolve no ar.
Meu coração acelera, enquanto as minhas pernas tremem.
Ele está do outro lado.
— Que prazer revê-las — a ironia em sua voz ecoa pelos
meus ouvidos.
— O que você está fazendo? — Fernanda questiona.
— Pergunta errada...
Ele se aproxima, fazendo o meu rosto virar com o tapa.
— Filho da puta! — Fernanda vai para cima, mas percebe
que tem uma criança em seu colo.
— Espero por isso a muito tempo, prima — sinto os meus
cabelos sendo puxados pelas suas mãos.
— Você é louco! — grito.
— Não encoste nela! — Pedro rosna, assim que a Fernanda
tenta me puxar para o seu lado.
— Você não manda em mim! — ela insiste, mas outro homem
fardado a segura. — Me solta!
— Sua cabeça está a prêmio... — o tom sarcástico se
derrama pelas suas palavras.
— Deixe ela Pedro!
— Este não é o meu nome, vadia! — ele se vira para ela.
Não encontro uma resposta razoável para o que está
acontecendo. Era para ser um dia importante em minha vida e está
sendo desastroso. Meu rosto se contorce ao sentir outra contração.
— Antes de morrer, me chame de Nathan — ele se volta para
mim.
— Por que você está fazendo isso? — meus cabelos são
puxados novamente.
— O seu marido é o homem que matou o meu pai, o seu tio.
Vagabunda — ele me encara com nojo. — Você é o início da justiça.
— Isso não tem sentido.
— Meu pai trabalhava para o Tiago, assim como o seu pai —
a cada frase, sinto a sua acusação. — Vivi nessa merda de lugar
desde pequeno, até o meu nome foi trocado para não virem atrás de
mim.
— Sempre fomos amigos...
— Não entendo como um homem tão inteligente quis você,
uma garota... burra — ouço a Fernanda gritar, mas estou presa nas
suas palavras.
— Se a questão é QI, o seu nível não existe, idiota! — ouço a
Fernanda novamente.
Ele somente ri ainda mais.
— Espero que morra lentamente — os seus olhos se fundem
com os meus, descendo para a minha barriga. — Serei o único a
restar em nossa família.
— Não tenho culpa do que aconteceu com você!
— Ele se apaixonou por você, isso já te torna culpada.
— Sinto muito por tudo o que aconteceu, mas não consigo
entender o porquê de estar com tanta raiva de mim, sendo que
sempre te considerei!
— É uma troca, não posso deixar que ele saia com algo que
ama — mordo os meus lábios com a dor. — Ninguém pensou que
ele pudesse se tornar o dono de uma favela, apagar o seu passado
e ter a força de matar tantas pessoas e, ainda assim, se apaixonar.
— As pessoas mudam — sinto que atinjo o meu alvo quando
os seus lábios se contorcem. — Sinto por ter se tornado isso.
Ele desfere outro tapa em meu rosto.
Pedro não se importa com as pessoas ao nosso redor. Suas
palavras são diretas e com um alvo único, ele não dá relevância
para os demais.
Vejo que mais homens surgem em meio aos destroços, indo
em direção as pessoas. Gritos se espalham enquanto são puxadas
para fora. Um homem tenta resistir, mas acaba levando um tiro,
fazendo com que o sangue desça por seu peito. O homem cai morto
no chão, alavancando ainda mais vozes exaltadas e chorosas.
Cruzo as minhas pernas.
Pedro sorri ao ver o morto no chão.
— Logo será você.
As confissões do Pedro formigam em minha pele, mas saber
que a minha filha está prestes a nascer, acelera todos os meus
sentimentos e as sensações pelo meu corpo. A intensidade das
dores aumentam a cada segundo, fazendo com que eu consiga
esquecer do formigamento em meu rosto e o meu couro cabeludo
dolorido.
— Mapeei todas as entradas e saídas, todos os pontos
importantes — ele conta como se tivesse feito um grande plano. —
A favela vai queimar!
— Você se diz tão esperto, mas esqueceu de perceber que
trouxe os seus para morrer — sinto o suor se misturar com o sangue
em minha cabeça. — Ele estava esperando, a sua surpresa não deu
certo.
Examino os seus olhos se tornarem escuros de raiva.
Os sons altos das bombas e tiros cessaram.
Silêncio.
— Está escutando? Este é o som do Mancha sendo morto —
ele ri sarcástico, sendo acompanhado pelos outros.
— Um homem burro sempre canta vitória sem saber os
resultados — as palavras do Marcos invadem a minha cabeça.
Ele sempre soube.
Ele fez com que todos seguissem o seu plano
inconscientemente.
Matar todos, até que sobrasse um. Ir para um lugar onde ele
pudesse ter eficiência e que despistasse a mídia — podendo
permitir quem entra e quem sai. Pesquisou sobre a vida de cada
um, até que tudo se acabasse na morte do principal, lentamente.
A frieza dos fatos me assusta.
O meu corpo treme.
Um som baixo soa entre nós.
— RENDAM-SE!
A feição do homem a minha frente se torna lívida.
— NÃO!
Ele aperta o aparelho em sua mão, estralando a outra em
meu rosto, até tentei desviar, mas as dores estão se tornando
constantes e os movimentos são limitados. Os seus olhos se abrem
em raiva, as suas narinas acompanham o mesmo movimento. Ele
parece descontrolado.
Sinto os meus joelhos enfraquecerem. Abaixo os meus olhos,
vendo a quantidade de água que está no chão. O meu coração se
aperta, ao mesmo tempo em que descruzo as minhas pernas.
Ela vai nascer.
Em instantes, uma onda de tiros ecoam, mas cessam
rapidamente.
— Vamos embora, nem era para você estar aqui! — ouço
uma voz conhecida, pisando nos escombros.
Levo a minha visão até a voz, me deparando em seguida
com o Davi.
— Eu preciso vê-la morrer! — Pedro grita para ele.
— Tiago foi morto, Nathan! Se não sairmos daqui, nós
seremos os próximos!
— Preciso acabar com o que ele começou!
Davi movimenta a sua cabeça para os lados, parecendo
assustado.
— Você não vai conseguir nada enquanto estiver no território
dele! — ele insiste.
O som de uma explosão soa.
— CARALHO!
— Vou me mandar, cara! — o homem que está segurando a
Fernanda se manifesta.
— Covardes! Todos covardes!
Respiro fundo, olhando para a Fernanda.
Assim que o homem ameaça sair, o som de um tiro chia em
meus ouvidos, atingindo a cabeça do policial. Os meus olhos se
abrem em choque.
Após algumas das pessoas que se refugiavam na escola
perceberem que o Pedro se distraiu, se levantam e correm para
fora. Fernanda continua parada com o Bruno.
Engulo um gemido de dor.
Joana poderia ter esperado só mais um pouquinho.
Reparo pelo canto dos meus olhos que a Fernanda disfarça
ao mexer em seu celular.
Pedro está desiquilibrado e não se importa quando vou até a
Fernanda lentamente.
— Vamos sair desta favela, será a minha oportunidade
quando ele vier a sua procura — ele parece ter criado o plano
perfeito em sua cabeça.
Ele está em uma vingança solitária.
— Vem — Fernanda sussurra me puxando para trás.
— Coloquem elas no carro, Davi!
— Tente se abaixar — Fernanda fala mais uma vez.
Faço o que ela diz sem contestar.
— O pequeno peão indefeso... — a voz do Marcos soa.
Todos o procuram, mas somente a sua voz se faz presente.
Vejo quando um objeto cai.
— Para quem conhece o jogo, você não é nada... — o peão
do xadrez está nas mãos do Pedro.
Aperto as mãos da Fernanda.
— Tampe os olhos do Bruno — falo baixo.
Assim que solto as palavras, noto uma nuvem branca se
instalar por todo o espaço. Pedro grita, se misturando com as vozes
dos seus comparsas.
Ouço alguns tiros em conjunto com os sons de coisas caindo,
até que a fumaça cessa, dando-me a visão do Pedro sendo
bombardeado incansavelmente. Os tiros atravessam o seu corpo.
Deslizo os meus olhos pelo chão. Todos mortos.
Marcos está comendo a sua vingança em pratos quentes,
pois além de realizar o seu plano, conseguiu concluí-lo com vida.
Uma contração mais forte faz com que eu sente e abra as
minhas pernas. O suor está descendo pelo meu rosto, até deslizar
entre os meus seios.
— Não vai dar tempo de chegar ao hospital — respiro fundo.
Fecho os meus olhos por alguns segundos, até que me
deparo com o Marcos. Os seus braços, pernas e rosto estão
cobertos de sangue, mas os seus olhos transmitem alívio. Sei que
tudo o que aconteceu é errado, mas são consequências. As vezes o
dia do juízo vem mais cedo do que pensamos, para todos aqueles
homens, hoje foi o último dia.
Bruno se senta ao meu lado enquanto pousa a sua cabeça
em cima da minha barriga. Fernanda se posiciona em minhas
costas dando-me a visão completa dele. Os seus passos são
rápidos assim que entende o que está acontecendo.
— Desculpa — ele se ajoelha ao meu lado, deslizando a
minha cabeça para o seu peito.
— Você está bem? — murmuro baixo.
Ele não me reponde, mas sinto as suas mãos alisarem o meu
rosto.
— Desculpa — ele continua.
Respiro fundo mais uma vez.
— Acabou, Marcos — prendo os seus olhos com os meus. —
Chega de matar pessoas.
Sinto os seus dedos passearem pelos meus cabelos e rosto
delicadamente.
— Estamos colocando uma vida no mundo, neste momento.
Nossos filhos vão seguir o seu exemplo, ensine-os a resolver os
seus problemas sem usar a violência.
Minhas mãos apertam a sua camisa com outra contração.
— Quantos inocentes perderam as suas vidas hoje?...
— Eu sou somente um dos planetas que querem um pouco
da sua atenção. Você é o meu sol e eu preciso de você para
conseguir viver — as dores se distraem com as suas palavras. —
Vou ser o meu melhor, mas não posso prometer o que não vou
cumprir.
— Tente...
— Eu escolho te proteger.
32
PAZ
CAMILLA FERRAZ
Ainda, sábado – 15 de dezembro de 2018

Ouço as pessoas falando ao meu redor, mas estou concentrada na


dor. Me dizem para respirar fundo, ficar calma e respirar fundo
novamente.
Abro os meus olhos e vejo o desespero no rosto do Marcos.
Ele parece não saber o que fazer. Prendo a sua blusa com mais
força entre os meus dedos.
— Você vai ter que fazer isso — sussurro, sentindo os dedos
da Fernanda em minha testa.
Observo as suas roupas ensanguentadas e o que sobrou da
escola — agradeço a Deus por ser sábado e não haver todas
aquelas crianças neste lugar —, subo o meu olhar para o céu, onde
a fumaça escura se mistura com as nuvens.
— O que eu faço? — ele joga as suas armas para o lado.
Suas mãos deslizam por seus cabelos, arrastando uma das
suas pernas. Ele faz uma careta e se agacha em minha frente. Abro
as minhas pernas.
— Tira — sinalizo para a minha calcinha.
Ele me olha estranho, mas parece entender. Processar
informações está sendo uma tarefa difícil neste momento, não
posso julgá-lo.
— Meu Deus, nunca pensei em dizer isso... — Fernanda se
pronuncia atrás de mim. — ... você tem que fazer força.
— E se ela estiver na posição errada? — minha voz sai
chorosa.
— Não está — ouço o Marcos dizer, olhando para baixo. —
Chame uma ambulância, qualquer coisa, Coringa!
Não consigo ver se o Coringa fez o que ele mandou, pois
estou totalmente centrada em empurrar a Joana para fora. A alguns
segundos atrás, Coringa tinha levado o Bruno para distraí-lo. Ele
pensou que eu estava morrendo.
— Puta que pariu!
— Você consegue — ouço a minha amiga mais uma vez.
Marcos segura os meus joelhos, ele parece assustado.
— Ah! — grito, empurrando mais uma vez.
— Respira, Marcos — vejo-o empalidecer.
Minhas lágrimas se misturam com o suor, grudando os meus
cabelos em meu rosto. Seguro as laterais da minha barriga e
empurro mais uma vez.
— Desculpa, desculpa — ele fala baixo a cada grito que eu
dou.
Fecho os meus olhos como se isso pudesse me ajudar. Abro
novamente e aperto a mão do Marcos que está em minha perna. A
dor agoniante se espalha, fazendo com que o meu cérebro entenda
que está doendo cinco vezes mais.
— Só mais um pouco — ele está desesperado, repetindo
frases que eu não entendo. — ... caralho!
Puxo o ar em minha volta e empurro, sentindo que a Joana
saiu. Marcos segura a cabeça da nossa filha delicadamente,
puxando o seu pequeno corpo para fora.
Deixo que as minhas mãos caiam ao meu lado, enquanto
tomo respirações profundas. Marcos parece fascinado, ao mesmo
tempo em que os nossos ouvidos se enchem com o choro da
menina em seus braços.
Encaro os seus olhos brilhando, a sua feição se tornando
suave e a nossa menina se acalmando ao ouvi-lo. Sorrio ao assistir
a cena.
O meu coração ansioso bate rapidamente em meu peito,
ecoando em minha cabeça e ouvidos. Deixo as minhas pernas
caírem, tentando normalizar os meus batimentos.
— Ela é ruiva — ele passa as suas mãos por sua cabeça,
tentando limpar o sangue.
Ele a segura com carinho, com todo cuidado, analisando os
seus traços lentamente. Me perco em sua imagem, tentando ler o
que se passa em sua cabeça. Marcos não sorri, mas a sua feição
calma consegue transmitir o que ele está sentindo.

Minutos depois de colocar a Joana no mundo, Coringa veio


dirigindo uma ambulância e nos levou para o hospital mais próximo.
Ele alegou que estavam se negando a entrarem no Complexo,
então, ele foi até o posto e pegou a ambulância.
Ouço a porta abrir, vendo o Marcos passar por ela cheio de
curativos e contusões, mandando uma das enfermeiras deixá-lo em
paz.
— Este quarto está ocupado — a enfermeira tenta.
— Eu sei — ele se aproxima, olhando para o bebê mamando
em meu seio.
— Vou chamar os seguranças!
— Não precisa — intervenho.
— Ele está sendo inconveniente!
— Ele somente quer estar perto da filha — explico.
Ela nos encara irritada, mas se retira do quarto. Volto a minha
atenção para ele, sentindo os seus olhos em mim.
— Se eu te perdesse... — sua voz morre.
— ... não vai.
— Eu falhei. Não consegui te proteger — seus olhos dessem
para a nossa menina.
— Você consegue chegar no momento certo, sempre.
Ele puxa a cadeira de plástico e se senta ao meu lado.
— Você está bem? — reparo em seu corpo coberto de uma
mistura de esparadrapos e fitas.
— Não me importo.
— Eu me importo — respondo.
— ...minha perna está doendo, mas estou bem — ele parece
indeciso sobre as suas palavras.
— Tudo o que você sente tem relevância para mim — encaro
os seus olhos.
Ele se levanta, arrastando a sua perna até mim. Suas mãos
me alcançam, deslizando pelos meus cabelos e braços.
— Eu amo você.
Meus lábios se abrem em um sorriso, mas some ao sentir a
sua boca na minha. Ele tem o cuidado de me beijar enquanto o
nosso bebê está em meus braços.
— Obrigada — ele sussurra.
— Qual é o motivo?
— São vários.
— Tenho tempo.
Vejo os seus dentes perfeitamente alinhados.
— Tenho uma vida para te agradecer, mas quero que saiba
que a minha maior gratidão é por você ter me ensinado a amar.
— O mérito é seu. Nós só aprendemos algo quando temos o
interesse — deslizo os meus dedos por seu rosto. — Você é um
bom aluno.
— Você também... — seus olhos são maliciosos sobre o meu
rosto quente.
Somos interrompidos quando a porta se abre, dando espaço
a um menino saltitante e uma Fernanda brigando com a outra
enfermeira, Coringa vem atrás pedindo para a profissional a ignorar.
— Pode entrar somente de duas pessoas!
— Minha senhora, se aqui dentro tem seis, é porque pode
seis — ela responde, fechando a porta.
— Ela só está fazendo o trabalho dela, Fernanda! — vejo
alguns band-aid pelos seus braços e joelhos.
— Pai! — Bruno o chama com os braços.
Marcos o segura em seus braços, beijando o seu rosto.
Guardo o meu seio e mostro a Joana para ele, observando as suas
reações.
— Sua irmã, filho — digo.
— Pensa em um casal para ter filho bonito... — Fernanda
pega a Joana dos meus braços, se sentando na cadeira em que o
Marcos estava sentado a segundos atrás.
— Parabéns — Coringa fala baixo, cumprimentando o
Mancha e acenando para mim.
— Obrigada.
Peço para o Marcos deixar o Bruno ao meu lado na cama,
onde ele me enche de beijos e aperta o meu pescoço com os seus
braços.
— Tudo isso é saudade? — retribuo o seu carinho.
Por alguns segundos, permito que o tempo pare para que eu
possa assistir as pessoas que estão ao meu redor e sentir todas as
sensações possíveis. É inexplicável, mas consigo me aprofundar em
cada detalhe. O meu coração transborda em alegria.
No próximo mês, completarei dezenove anos. E, jamais,
pensei que tudo pudesse mudar em um ano. Foram tantas
situações, sentimentos e muito para recordar.
— Marcos, o Pedro disse que era primo da Camilla... —
entendo que ela não está aguentando a curiosidade.
Minha bolha afetuosa é quebrada ao ter que pensar no que
passamos a algumas horas atrás. Sei que não foi a intensão da
Fernanda estragar o momento, mas, assim como ela, também quero
saber o que aconteceu.
Ele se move para o final da cama e se senta. Noto que ele
não está confortável em falar abertamente sobre isso, mas ele
encara os meus olhos, desviando para o Coringa.
— O nome dele era Nathan. Ele era filho do tio da Camilla e o
namorado do Tiago — Coringa quem fala.
— Camilla tem um tio? — sua testa se franze com a
informação.
— Tinha — Marcos responde. — O tio da Camilla trabalhava
para o Tiago a muito tempo e a vida de corrupção era perigosa,
então ele mandou o filho para o Complexo, onde ele foi criado por
uma família que foi paga para isso.
— Ele cresceu e foi atrás do pai, foi quando conheceu o
Tiago — Coringa continua. — Ele entrou no Complexo com o nome
em que o seu pai escolheu como disfarce, pensando que seria
somente mais um vapor.
— Mas o Marcos já sabia quem ele era... — falo baixo,
olhando para ele.
— Não se começa o jogo sem conhecer as peças e o seu
concorrente.
— Foi ele quem deu a ideia de colocar uma peruca ruiva na
Gizele — Coringa se senta na outra cadeira.
— Por que a família do meu pai não gostava de mim, sendo
que eu nem ao menos sabia da existência deles? — meus olhos se
enchem.
— Quando uma pessoa não é capaz de assumir os seus
erros, ele culpa outra pessoa — Marcos sinaliza para o Coringa. —
Kaique descobriu que o seu pai tinha traído o irmão.
— A história é longa, Camilla. Tudo começou entre o seu pai
e o irmão dele, depois o seu tio conheceu um homem com influência
e destruiu a sua casa e jogou você em uma vingança — ele me
explica do outro lado da sala. — O seu tio infiltrou o seu pai nos
negócios dele e o viciou em drogas. E, quando teve oportunidade, te
culpou por tudo e o seu pai permitiu.
— Tudo isso não importa mais, eles tiveram o que mereciam
— Marcos intervém. — Nós somos uma família agora.
Minha vida após conhecer o Marcos não tem uma palavra
definida, mas entendo que o amor é a base e a nossa família o
centro.
Beijo a cabeça do meu filho que dorme em meu peito.
O que começa errado, pode haver a oportunidade de ter um
fim certo. Não acontece em todos os casos, mas no meu, foi
surpreendente. Não há limites ou desculpas para quem anseia por
algo. O que faz a sua batalha justificável é a força de vontade de
querer recomeçar.
O mundo pode te obrigar a seguir um padrão ou um perfil,
mas quem dita os seus passos é o que você acredita. Sua opinião é
valiosa para alguém. O amor é para todas e, acredite, ele
transforma.
Ninguém pode viver a sua história.
EPÍLOGO
CAMILLA FERRAZ
DOZE ANOS DEPOIS

Homenagear pessoas é uma forma em que encontramos para nos


lembrar delas. Saber que tivemos a honra de ser escolhidos para
conhecer essas pessoas. E esse foi o jeito em que encontrei para
agradecer a minha mãe por tudo o que fez em minha vida.
Quando descobri que estava grávida de uma menina, não
consegui pensar em qualquer outro nome.
Joana é o nosso início após a guerra, ela trouxe paz, sossego
e o recomeço que eu e o Marcos precisávamos. Dois anos depois,
veio a nossa princesa Olivia e para fechar a fábrica, nasceu o
Miguel, o nosso anjo.
Bruno, Joana, Olivia e Miguel são as nossas melhores
escolhas. Bruno não nasceu da minha barriga, mas ele nasceu da
melhor maneira possível, que foi o meu coração.
Sinto que o Bruno nasceu de mim e foi ele que começou a
dar sentido em toda a minha vida. Cuidar, dar amor, carinho, corrigir
os seus erros e ficar feliz com o seu sucesso, somente confirma o
quanto devo ser agradecida por encontrá-lo naquele dia. Porque
não foi eu que o salvei, foi ele quem me salvou.
Desde quando ele teve conhecimento do certo e o errado,
expliquei para ele tudo o que devia saber, de como ele veio parar
em minha vida e do quanto sou grata por isso. Este é um assunto
delicado e a minha escolha foi ser honesta acima de qualquer coisa,
pois eu sou a mãe dele e somente isso basta.
Joana tem doze anos e é a minha cópia: ruiva, com
pequenas sardas em seu nariz e muito sapeca. Joana tem um jeito
específico, assim como o da minha mãe. Ela é doce, calma e vê o
lado bom de todas as coisas, é feliz e sabe como guardar um
segredo. Totalmente diferente do Bruno, que sempre está em minha
cola junto com o seu pai.
Olivia é a princesinha do papai com os seus dez anos. Não
preciso dizer que foi ele que colocou este nome nela. Olivia parece
que nasceu para ter este nome. Minha princesinha é gentil e
genuína, consegue qualquer coisa que queira e faz com que
qualquer pessoa se derreta com os seus olhos. Olivia, diferente da
Joana, é significativamente parecida com o Marcos. Morena,
cabelos escuros e uma inteligência admirável.
E, com cinco anos, temos o nosso caçulinha, Miguel.
Pequeno, esperto e encantador. Miguel foi o único a dizer mamãe
primeiro que papai. E, também, o único a pedir uma cobra com três
anos. Ele nos mostra desde muito pequeno o quanto gosta de
animais e o quanto leva jeito com eles. Marcos, para o meu alívio e
preocupação, negou a cobra, mas ofereceu um cachorro, o xodó de
todas as crianças aqui de casa, o Xerox — o Xerox é um vira-lata
que o Marcos adotou, o seu nome é derivado de uma circunstância
natural, sendo que todos os seus filhotes se parecem com ele.
Marcos. Meu marido, companheiro, amante e pai dos meus
filhos. Marcos continua sendo o Mancha, cruel e frio, assassino e
rédea curta, mas não importa o que ele é, ninguém imagina o
quanto o Marcos mudou sendo pai. Pai de três crianças e um
adolescente.
A paciência que ele tem com todos é incrível de se ver. Se
uma das suas meninas chora, é mais comovente as caras e bocas
que ele faz, do que as lágrimas das duas.
Ele cumpriu com o que tinha dito, ele sempre cumpriu com as
suas promessas. Ele não deixou em momento algum que eu fosse
embora. Ele me manteve em sua vida acima de qualquer coisa. Me
comprou, mas ele mesmo me devolveu.
Marcos transformou a menina em mulher. Uma mulher forte,
decidida e amada. Aquele Marcos me prometeu que com o tempo
conseguiria conquistar qualquer coisa que eu desejasse. E assim foi
feito.
Um ano depois que a Olivia nasceu, comecei a minha
faculdade. Marcos não me impediu em momento algum de
conquistar essa minha vontade, porém ele sempre esteve lá para
me levar ou buscar, de olho em qualquer pessoa que estivesse em
minha volta. Não posso dizer que não rolou nenhuma briga, mas no
final, nos acertávamos como sempre. Sei que se isso não
acontecesse, não seria ele.
Me formei em enfermagem, mas descobri que a minha
vocação é ser mãe. Não desisti da minha profissão, mas quis esse
tempo com os meus filhos. Eles estão crescendo rápido e não estou
conseguindo acompanhar todas as fases. E, por livre e espontânea
vontade, preferi ainda não trabalhar na área, até que me sinta
segura em saber que tive todas as experiências possíveis com os
meus filhos.
Hoje é o batizado do segundo filho da Fernanda. Minha
melhor amiga casou-se com o Coringa e com ele teve dois filhos,
Cauê de onze anos e a pequena Melissa de cinco meses.
— Miguel, filho. Não vamos levar o Xerox! — falo pela
terceira vez.
— Mas, mãe. Ele também é convidado.
— Miguel, não.
No mesmo instante, Marcos surge no final da escada.
Pode ter passado alguns anos, mas o Marcos continua sendo
o homem imponente que me causa arrepios somente em me olhar.
Suas íris hipnotizantes atravessam todo o meu corpo, até que
param em meu decote. Seus olhos ficam por algum tempo presos a
esta parte do meu corpo, até que sobem novamente, mostrando-me
a sua repentina irritação.
Após as três gravidez, meu corpo já não é como antes, meus
quadris estão largos e meus seios maiores, algumas estrias e
celulites, minha barriguinha mais avantajada, mas ele o aprecia
ainda mais que antes, apaixonado por cada detalhe do meu corpo.
Pelo menos é isso o que ele diz em todas as vezes que reclamo. Ele
é incrível quando a minha autoestima não está legal. Ele me faz se
sentir a mulher mais gostosa do mundo.
— Pai, posso levar o...
— Não — Miguel silenciou-se conformado.
O encaro enigmática.
— Entregue o sapato da sua irmã, Olivia! Se ela te bater eu
vou deixar! — grito do meu quarto, escutando a Joana reclamando.
Joana é uma menina extremamente calma, mas sinto que ela
tem uma parte da Fernanda, o lado em que não tem medo de partir
para cima.
Estou finalizando a minha maquiagem com o rímel, quando
sinto mãos grandes e fortes apertarem os meus quadris. Tento não
me distrair ou, certamente, enfiarei o rímel no meu olho.
— Não dá tempo de uma rapidinha? — vejo pelo espelho
quando um sorriso zombeteiro cruza os seus lábios, descendo para
o meu pescoço.
— Estamos atrasados, Marcos — quase uma hora de atraso.
— Eu sei a intenção da sua rapidinha, não vou deixar que rasgue o
meu vestido.
— Porra.
— Olha a boca, não quero que os meus filhos aprendam isso.
— Nossos filhos.
— Não quero do mesmo jeito.
— Está difícil hoje em, Camilla — o tom irritado da sua voz se
intensifica.
— Guarda toda essa irritação para mais tarde, quando tiver
só nós dois.
— Gostei disso — ele vira-me, colando a sua boca na minha.
— Aí, credo. Mas que coisa, a gente está pela casa viu? —
ouço a Joana ao fundo, me fazendo rir.
— Sim, mocinha. Eu sei — Marcos responde. — Você não
tem uma blusa ou qualquer outra coisa para tampar os seus peitos?
— Não, não tenho — encaro o meu reflexo mais uma vez. —
Terminei, vamos.
Ele não responde, mas consigo ver a fumaça imaginaria em
sua cabeça.
— Pega as crianças, vou chamar o Bruno.
Silêncio.
Vou em direção ao quarto do Bruno e bato na porta. Não
obtendo respostas, entro. Bruno está deitado em sua cama, com
fones em seus ouvidos. Lágrimas descem por seus olhos que estão
vermelhos. O celular está em suas mãos, mas quando se dá conta
da minha presença, o esconde rapidamente.
— Por que você ainda não está arrumado? — questiono
desconfiada.
— Não estou a fim de ir, mãe — ele não me olha.
— Me dá esse celular! — por algum motivo me irrito.
— Qual é mãe? E o lance da privacidade? — ele diz ainda
não me olhando.
— Que lance o que menino? Cadê o celular? Ainda não está
em minha mão!
Relutantemente ele me entrega. Analiso o que ele está vendo
e tento não chorar.
— Não mostra para o meu pai ou ele vai matar quem fez isso
— ele funga.
O celular me mostra a sua foto recém tirada. Fazia alguns
minutos que ele postou em uma rede social, mas abaixo da
publicação os comentários ofensivos são gritantes. Uma junção de
palavras horríveis, que me atingiu fortemente.
Meu filho está sendo vítima de racismo em baixo do meu
nariz e eu não sabia. Há dez comentários da mesma pessoa. Todos
relacionados ao estilo do seu cabelo, a cor da sua pele e os seus
traços.
— Vem cá — o chamo.
Me sento ao seu lado e enxugo as suas lágrimas. Abraço o
meu filho apertado, como se eu pudesse tirar da sua cabeça tudo o
que leu.
— Levanta — mando.
— Por quê?
— Me obedeça! — o meu tom é carinhoso.
Ele se levanta, esperando que eu diga algo.
— Vá até o espelho — vejo-o ir.
Ele para em frente ao espelho do guarda-roupa e encara a
minha imagem logo atrás dele, questionando-me silenciosamente.
Observo os seus traços, os seus olhos e o volume dos seus cabelos
cacheados.
— O que você está vendo? — pergunto.
— Isso é besteira, mãe.
— Olhe para o espelho e me diz o que você está vendo!
— Eu, mãe. Estou me vendo.
— Olhe direito, Bruno.
— Mãe... — ele parece cansado.
— Vou perguntar pela última vez. Olhe para esse espelho e
me responda. O que você está vendo?
— É só o meu reflexo!
— Então me explica o porquê de eu não estar vendo somente
o seu reflexo.
Ele dá uma risadinha como se eu estivesse fazendo uma
brincadeira, mas o meu rosto continua sério.
— Quando você vê os seus olhos vermelhos de tanto chorar
através deste espelho, o que você sente?
O seu sorriso some.
— Eu te criei para ser diferente. A sua cor e os seus traços é
a extensão do que você é. Eu sinto orgulho da sua origem. Agora
me diz, o que você sente?
Encaro a sua imagem através do espelho, somente
observando a sua reação confusa.
— Eu consigo te ver além da sua cor, do seu sangue, do seu
cabelo, dos seus olhos... O que você está vendo? — repito com
calma, quase em um sussurro.
Os seus olhos se tornam tristes.
— Eu vejo um garoto preto — seus olhos descem para o
chão.
— Você não está se vendo com os seus olhos. Você só está
repetindo o que os outros te dizem.
— Eu gosto do que eu vejo, mãe. Eu gosto do meu cabelo,
da minha cor...
— Continue a gostar, o que eles dizem não importa.
— Se eu fosse da sua cor, não estaria passando por isso...
— Eu te amo como você é, e a minha cor não define o que eu
penso sobre você. Muito menos se iguala ao seu caráter.
Os seus olhos encontram os meus, firmes.
— Eu gosto do que estou vendo — fixo os meus olhos nele.
— É isso que eu quero que pense quando ver ou ouvir algo. Não
posso acabar com todas essas pessoas que julgam ser certos pelo
motivo infundado da cor, mas posso te mostrar o quanto é lindo,
gentil, educado, importante e acima de tudo, o quanto você é
amado.
Noto que lágrimas descem por seu rosto na medida em que
falo.
— Eu gosto de você assim, os seus irmãos e o seu pai
gostam. Todos te amamos do seu jeito. Não posso me esquecer da
Fernanda, ela me mataria se eu não a incluísse nessa lista —
abraço as suas costas. — ... mas você tem que praticar isso, pois
você tem que amar a si mesmo primeiro. Você tem que se aceitar
assim e nada irá te afetar novamente.
Ele se vira, me abraçando.
— Até parece um negão desse...
— Se meu pai te pegar falando de negão de novo...
— Estou ouvindo — nós dois nos viramos para a porta, onde
o Marcos está escorado no batente, com seus músculos
tensionados.
— Agora ele sabe — sorrio. — Eu te amo. Agora lava esse
rosto e vamos. A Fernanda vai ficar chateada se você não for.
Abraço o Bruno novamente e saio do quarto.
— Ah, Bruno. Apaga o comentário. Tenho certeza de que
esse caso já está sendo resolvido — aviso.
Tenho a completa consciência de que as coisas não
funcionam com violência, mas estamos falando sobre o filho do
Marcos. Então, certamente, terá violência.
— Mamãe te ama, você é um gato.
Bruno entende o que quero dizer.
Bruno passou por muitas situações comigo e uma delas foi
no meio da guerra. Ele sabe de tudo. Especificamos como pais que
é errado matar e roubar, ensinando sempre o certo. Adotamos o
ensino de sempre falar a verdade, pois mentiras somente atrai mais
mentiras e não é isso o que queremos que aconteça.
— Tenho orgulho de você — Marcos me puxa para ele, assim
que fecho a porta.
— Você acha que estamos sendo bons pais? — questiono
preocupada.
— Em doze anos, somente temos reclamações do Xerox.
Então... sim.
Passo os meus braços por seu pescoço enquanto sorrio.
— Ainda vamos conversar sobre esses negões — os seus
olhos são duros.
— Tenho certeza que sim.
— Você tem certeza, absoluta, que não dá tempo de...
— Não, Marcos.
— Não custava insistir — ele suga os meus lábios,
mordendo-os.
— De novo? — Joana grita.
— Estou começando a achar que você gosta, Joana. Só
aparece nessas horas — tento não rir da cara de ofendida que ela
faz.
— O senhor não disse isso, pai — ela posiciona os braços na
cintura.
— Eu disse, sim.
— Isso é um absurdo — ela fala chocada, se virando.
Xerox aparece correndo com um sutiã na boca, enquanto o
Miguel vem atrás dele.
— Esse é o meu sutiã novo? — encaro o cachorro que
balança o tecido de um lado para o outro.
— Caiu do varal, mãe! — Miguel se defende antes que eu
possa dizer algo.
— Mas eu ainda nem tinha lavado, Miguel! — ele me olha
sem graça.
Meu menino tem mania de pegar qualquer coisa para o Xerox
brincar.
Duas horas e meia de atraso.
Me viro para o Marcos que está com cara de paisagem,
tentando não rir das cenas dos nossos filhos.
— Eu te amo — falo convicta de que o Marcos é o meu para
sempre.
— Eu também te amo, gatinha.
Não tive escolhas, mas quando tive a opção de fugir, eu
resolvi ficar. Por incrível que pareça, consegui acertar. Não me
arrependo, pelo contrário, sou grata. Ele me deu uma vida, filhos,
moradia, um futuro e amor.
Fui vendida ao tráfico, mas não sabia que a minha
experiência seria tão turbulenta. Fui surpreendida do começo ao fim.
Mas no final, a minha recompensa foi maior do que eu merecia.
Eu amei e fui amada, então valeu apena.
EPÍLOGO

MARCOS HENRIQUE
SETE ANOS DEPOIS

O mundo é feito de idas e vindas.


Ao longo dos anos, me habituei a raiva e o ódio. Deixei que
os sentimentos me consumissem ao ponto de não conseguir lidar
com a parte boa de sentir. Tudo se manteve da forma em que
desejei, até que a encontrei.
Fui considerado um ótimo aluno, que aprende rápido e que
conseguiu cumprir com os seus deveres, mas o verdadeiro ensino
não me foi dado nas salas de aula. Você somente percebe que tem
muito a aprender quando se dá conta que não sabe de nada.
— Pai?
— Oi? — respondo, me virando para a Olivia.
Observando os seus olhos, penso no quanto cresceram.
Olivia completou dezessete anos a um mês e, embora seja
parecida fisicamente comigo, sua personalidade é idêntica à da sua
mãe. Ela é calma, centrada e extremamente decidida. Diferente da
Joana. A ruiva de dezenove anos é comunicativa e estressada. As
minhas duas meninas trocaram os seus jeitos com o decorrer dos
anos. Pensamos que a calma seria a Joana, mas a Olivia nos
surpreendeu com a sua suavidade. As duas se completam, mesmo
sendo totalmente opostas. Miguel com doze anos é o meio termo
das suas irmãs. E o Bruno. Meu garoto com vinte e dois anos, está
me orgulhando com as suas escolhas.
— Está é a segunda rua errada que o senhor entra — ela me
avisa.
Ouço todos rirem.
— A idade está chegando... — Joana fala no banco de trás.
— A sua mãe não reclama... — seguro a perna da mulher ao
meu lado.
— Não tenho nada a ver com os seus cabelos brancos — ela
ri.
— Tem, sim — Miguel deixa o seu celular para responder a
sua mãe.
Ela faz cara de paisagem.
Viro na rua certa e continuo a ouvir a conversa dos meus três
filhos no banco de trás.
Estaciono na vaga do estabelecimento que irá acontecer a
formatura. Espero todos saírem e seguro a cintura da Camilla.
— Fernanda está chegando, vamos esperá-la aqui — Camilla
diz, após ver uma mensagem em seu celular.
Não demora muito até que dois carros estacionem um ao
lado do outro. Fernanda desce saltitante com os seus filhos e o
Coringa, esperando a Gabriela e o seu marido do outro lado.
Todos estão aqui para parabenizar o meu filho. Hoje o Bruno
está se formando no curso de direto. O meu filho mais velho será
um juiz.
O orgulho se espalha pelo meu peito em ver a minha família
unida e andando pelo caminho certo.
Joana está em seu segundo semestre do curso de medicina,
assim como a sua mãe, ela quer seguir a área da saúde. Olivia
terminou o ensino médio recentemente, mas está se preparando
para cursar estatística e o Miguel, não tem jeito, o menino será
veterinário.
Cada um decidiu o que pretende fazer, não influenciei em
suas escolhas, mas abri as portas para que pudessem voar
livremente. Não só com os meus filhos, mas a Camilla, junto com a
minha irmã e a Fernanda, abriram uma ONG onde o objetivo está
em introduzir os jovens ao ensino, dando a eles oportunidades e a
escolha de decidirem o que querem seguir.
O meu orgulho e amor por esta mulher vem crescido
diariamente. A sua pureza, honestidade e caráter vem me deixando
ainda mais apaixonado.
Entramos todos juntos e nos sentamos na mesma mesa.
Ainda moramos no Complexo do Alemão. Tivemos a
oportunidade de estar em outro lugar, mas acredito que o nosso lar
é a nossa família e a criação dos nossos filhos é o que os levam a
fazer boas escolhas.
Eles são o que eles querem ser.
Meus filhos não foram mimados, mas ensinados a conquistar
o que desejam. A buscar o que lhes interessam de forma justa e
digna. Embora eu tenha ajudado com alguns valores, a
responsabilidade é deles. Eu sigo conforme o que eles merecem.
Camilla e eu fomos criamos de formas diferentes, mas os
nossos quatro filhos conhecem o amor. Passamos o conhecimento
necessário para que se tonem grandes mulheres e homens,
independentes e que lutem e corram atrás dos seus sonhos.
Deslizo os meus dedos pelos cabelos ruivos da minha
esposa.
— Eu amo você, garota.
Ela sorri, apertando a minha mão sob a mesa.
— Eu também te amo — ela sussurra.
As luzes do palco se acendem. Alunos caminham por um
tapete longo.
Os professores dedicam um tempo para falarem sobre as
suas turmas, até que começam a chamar os alunos. O orador de
cada sala faz o seu discurso.
Observamos que cada aluno teve um tempo para agradecer
e falar sobre a sua trajetória no curso, ficamos atentos quando o
Bruno segura o microfone.
O meu menino se tornou um homem.
— Cresci em um ambiente onde o dinheiro não teve valor.
Minha mãe e a minha avó foram o meu início, fizeram o possível
para que eu me tornasse um homem bom, gentil e honesto. Meu pai
chegou e completou a minha criação. Minha avó não está entre nós,
mas o meu pai e a minha mãe transformou e cumpriu com os seus
deveres de nos ensinar, não somente a mim, mas aos meus três
irmãos, que a maior importância está na família, em amar e ser justo
— todos da mesa choram com as suas palavras. — Me orgulho dos
meus pais, irmãos, tios e primos, porque são eles que fizeram o
menino abandonado se tornar o Bruno Ferraz Valentini.
— EU SOU A TIA DELE! — Fernanda grita, fazendo com que
todos se virem para nós.
— Mãe! — Cauê a repreende.
Mesmo que não seja o momento, nos levantamos e o
aplaudimos, impulsionando as outras pessoas a fazerem o mesmo.
Ali, naquele palco, não é somente um menino se formando.
Mas é um homem negro se posicionando diante da sociedade. É o
meu filho se mostrando presente.
Ao decorrer das nossas vidas, trinta e dois sentimentos se
concretizaram em nossa história. Matei os sessenta e quatro
homens mais importantes do tráfico no Rio de Janeiro e concluí a
minha vingança.
Fui ensinado a amar e ensinei que amassem, então valeu
apena.
BÔNUS
KAIQUE TAVARES – CORINGA

Tudo na vida tem um preço, o meu, foi crescer sem família.


Ninguém me ensinou a andar de bicicleta, me olhou com
afeto ou me surpreendeu com um bolo em meu aniversário. Não tive
proteção, olhares preocupados ou, até mesmo, uma bronca por ser
descuidado.
Cresci em um orfanato no Rio de Janeiro, havendo como
explicação uma única frase: os pais não o quiseram. Para uma
criança, não teve grandes efeitos no momento, até que eu cresci.
Enquanto os números iam crescendo, a raiva, a revolta e a
tristeza me acompanhavam. Tentaram um psicólogo e alguns
psiquiatras, mas eu não estava doente, era somente um
adolescente que não sabia lidar com a rejeição e a carência.
Vi alguns dos meus colegas sendo adotados, outros indo
embora, enquanto eu continuava esperando. Não sei exatamente o
que eu estava esperando, mas alimentava este sentimento
fervorosamente.
Mesmo sendo um garoto problemático, sempre gostei de
estudar. Desta forma, estando em meu último ano do ensino médio,
me escrevi para um curso de direito pelo Enem. E, para a minha
surpresa, passei.
Neste mesmo ano, era o tempo limite para estar no orfanato.
Ao mesmo tempo que recebi uma grande notícia, logo a emoção foi
arrancada pela realidade das circunstâncias da minha vida.
Fui parar nas ruas. A desilusão e os tombos constantes me
desmotivaram, levando-me a experimentar drogas e a roubar para
poder comer. Naqueles dias, culpei aqueles que me colocaram no
mundo, chorei por tirarem de mim a única oportunidade que tive e,
então, abracei a solidão e os meus sonhos fracassados.
As noites na rua, era um dia de alerta. A cicatriz em meu
rosto é a lembrança desta parte da minha vida. O mundo de
oportunidades que muitos pregavam, não teve o mesmo resultado
comigo. Até que, pela primeira vez, alguém enxergou algo que nem
mesmo eu sabia que tinha.
Em um dia qualquer, um homem me ofereceu um emprego,
não recusei. Trabalhei por três anos de gari e, a cada dia que
passava, acreditava ser parecido com todo aquele lixo.
O dinheiro que conseguia de forma honesta, era usado para
pagar diárias em motéis vagabundos e comida, mas, até aí, era
melhor do que as ruas.
Há mais ou menos três anos, estava levando o último
caminhão de lixo para a garagem. Observei que algumas grades
estavam cortadas formando uma passagem — fazia um tempos que
estávamos tendo problemas com bandidos que invadiam e
roubavam peças dos carros, achei que seria mais um deles.
Me lembro de ter estacionado o veículo e ido de encontro ao
galpão, onde eram guardados os equipamentos. Enquanto me
aproximava, pude sentir um odor forte de algo sendo queimado.
Para uma pessoa que trabalhava com o lixo, o cheiro já não era
mais algo que me incomodava, mas aquele era diferente.
Peguei uma barra de ferro que estava jogada pelo chão e fui
de encontro a entrada, vendo que o alto portão estava aberto.
O odor estava ainda mais forte a cada passo. Fiquei em
silêncio por alguns instantes para me assegurar que não havia
nenhum movimento, até que constatei que podia entrar.
Nada do que pensei me preparou para a cena que vi.
Fumaça estava por toda parte, assim como grandes poças de
sangue pelo chão. Contei três corpos e um pequeno em uma
fogueira que estava perdendo força.
Soltei a barra de ferro e tirei a minha blusa, amarrando-a em
meu rosto, sendo uma forma de evitar o cheiro. Me movi até os
corpos e tentei reparar nos batimentos, mas as duas mulheres
estavam mortas.
Caminhei com dificuldade, pois a fumaça estava
incomodando os meus olhos, mas fui até o outro corpo, vendo que
era um homem. Observei que ele tinha uma grande quantidade de
cortes pelo corpo e as grossas corretes deviam estar fazendo
muitos hematomas. Me abaixei e tentei procurar algum sinal de vida,
logo fiquei surpreso, pois mesmo com grande parte do seu sangue
no chão, o homem ainda estava respirando.
Tentei puxá-lo, mas ele era muito pesado para que eu fizesse
sozinho. Forçando a minha visão, vi um macaco e foi com ele que
consegui movê-lo.
Com a cena brutal que pude observar, não tive certeza se
podia levá-lo para um hospital. Então, fui para uma outra garagem,
pois sei que levantaria suspeitas caso o levasse para o lugar onde
durmo.
Fiz tudo o que pude. Cortei as correntes, estanquei o sangue,
costurei e limpei. Por algum motivo desconhecido, senti que devia
fazer algo. Naquele momento não tive certeza, mas quando vi o seu
rosto machado por lágrimas, soube que ele devia ter uma nova
chance.
O escondi em um quarto abandonado, enquanto ele não
acordava, até que, em uma noite, ele estava sentado na cama
improvisada com uma feição assassina.
— Quem é você? — ele se levantou, parecendo não sentir
nada.
— Eu sou o cara que salvou você — o respondi, não me
intimidando.
— Devia ter me deixado morrer — ele ainda me olha
desconfiado.
— Você devia dizer obrigado.
O diálogo foi curto, ele não me agradeceu... mas foi ele quem
mudou a minha vida.

— Coringa! Corre lá na treze, o Mancha está com problemas


com a ruiva de novo!
Desde que o conheci, não vi está outra face do Marcos,
aquela que ele sente ciúmes até do vento quando se trata desta
garota. Ela é o imã que consegue atrair as cordas da ausência de
paciência do Mancha.
Pego algumas armas e as escondo pelo meu corpo. Estar
vivendo em um lugar onde está coberto por interesses pessoais de
pessoas desviadas e de ameaças constantes, requer um cuidado
dobrado.
Não demoro a encontrá-lo, sendo que estava em uma boca
próximo da treze. Ele está com raiva e parece querer quebrar o
pescoço de alguém. Me movo por entre as pessoas rapidamente,
não me importando em estar empurrando um ou outro.
— Porra, Camilla! — ouço a voz do Marcos soar furiosa. —
Coringa leva a amiga dela!
Assinto e puxo a morena.
Ela se agita em meus braços, gritando para que eu a solte,
mas somente a aperto mais, levando-a para longe.
— Se acalma, garota. Ele não vai fazer nada com ela — digo,
após soltá-la.
— Como você tem tanta certeza? Vocês são todos uns
grandes merdas, que pensam que mulher é somente para sexo e
fazer o que vocês querem!
Uau! Gostei.
A forma que a mulher em minha frente se posiciona, me
causa um interesse instantâneo.
— Porque ele gosta dela — digo simples, respondendo
somente a sua pergunta.
— Não é porque ele diz gostar, que vai me assegurar que ele
não vai machucá-la! — ele continua, desta vez falando mais baixo.
Suas palavras, por mais simples que sejam, me deixa
intrigado.
— O que aconteceu com você para não acreditar que duas
pessoas podem se gostar? — pergunto, analisando cada detalhe do
seu rosto.
Observo os seus olhos, os traços dos seus lábios, os seus
cabelos e a energia que emana do seu corpo. Ela não é como
ninguém que já tenha visto. A garota é simplesmente um diamante
bruto.
— Não foi isso o que eu falei — sinto que ela está se
acalmando.
— Mas é isso que estou te perguntando — insisto.
— Não vou te falar nada sobre mim.
— Espero que volte atrás, pois estou interessando em saber
cada detalhe.
A sombra de algo passa por seus olhos, de forma que, não
consigo identificar.
— Você sente medo?
Ela para de tentar estralar os dedos, em um ato ansioso.
— Preciso ir embora!
— Espera!
Ela se move para poder ir embora, mas seguro o seu braço.
— Não sei do que você tem medo, mas vou esperar que me
diga. Não vou insistir neste momento para que me fale, mas vou
insistir em você.
— Já disse uma vez, mas vou repetir. Fique longe!
Não é a primeira vez que tento aproximação. Quando o
Marcos inventou de fazer aquele “evento”, fui responsável de afastá-
la da Camilla, assim como hoje.
Tenho que confessar que a forma que ela se apega a sua
amiga me causa ciúmes, pois queria estar perto, gostaria que ela
me desse liberdade para poder entrar, mas o que parece é que ela
se fechou, com muros altos. Sorte dela que sei escalar.
— Você sabe que isso não será possível. Você pode me pedir
qualquer coisa, menos me afastar.
É estranho para mim a forma que me humilho por sua
atenção. A vezes sinto que é o garoto carente que está implorando
por ela, por outro lado, está é a desculpa que o meu cérebro dá, ao
se negar ao meu coração necessitado.
Nunca me apaixonei ou acreditei que pudesse acontecer.
Definitivamente, não é algo que estava sendo previsto. Não sei se é
amor, mas não paro de pensar nela aberta, em todos os sentidos.
— Por que você não desiste? É mais fácil!
— Porque eu aprendi a amar os processos, não os finais.
BÔNUS
FERNANDA CAROLINA

Ouço me chamarem no portão.


A voz não me é estranha, mas me nego a acreditar que seja
a pessoa em que a minha cabeça acredita ser. Continuo
caminhando até que constato que estou certa.
— O que você está fazendo aqui?
— Vim falar com você.
— A Camilla sabe que você está aqui? — analiso a sua
feição.
— Não.
— É melhor você ir embora.
— Espera!
— Não tenho nada para falar com você — lembro-me do dia
em que ele tentou me bater.
— Mas eu tenho.
Observo a dureza em seus olhos e as suas mãos, virando a
metralhadora para as suas costas. Fecho o portão e me sento na
viga de concreto.
— Pode falar.
— O meu nome é Marcos Henrique Valentini, tenho vinte e
seis anos e sou advogado. Fui pai de uma menina e filho de uma
prostituta e nunca, em toda a minha vida, toquei em uma mulher
para feri-la — vejo-o se sentar do outro lado, não compreendendo
as suas palavras. — Não usufruo do dinheiro das pessoas e não me
alegro com a morte dos que não merecem...
— Por que está me dizendo isso?
— Eu já matei muitas pessoas e construí a felicidade de
muitas delas — ele continua, não me respondendo. — Não me
arrependo dos meus atos, mas me sinto culpado por tudo o que fere
a Camilla.
— Você está se sentindo culpado por tentar me bater?
— Eu não machuco mulheres, muito menos inocentes. Não
confio nas pessoas, estava tentando proteger a Camilla.
— Você está fazendo isso por ela ou por você?
— Estou aqui porque me sinto culpado por descumprir uma
promessa.
— Isso é um pedido de desculpas? — levanto os meus olhos
para ele.
— Não me obrigue a falar algo que não fui ensinado, mas
entenda que estou aqui para dizer que não irá acontecer
novamente.
Somos o reflexo dos nossos pais, do nosso caráter e
personalidade. Fazemos conforme o que é nos ensinado, seguimos
da forma em que nos dizem e tornamos padrões o que eles querem.
Sempre pensei que tinha algo de errado com ele, com as suas
atitudes e falas bem elaboradas, mas a verdade é que todos temos
problemas e que cada um lida de uma forma.
— Eu perdoo você.
Ele abaixa os seus olhos e acena.
— Não sei se o perdão está em seu vocabulário, mas a vida
é curta para guardar sentimentos que não nos levam para frente. Eu
te perdoo pela sua atitude e por ser bom para a minha amiga.
— Não estou sabendo lidar com os meus sentimentos, mas a
Camilla é tudo o que tenho.
— Conhecimento é para a vida toda, Marcos. Você ainda tem
muito a aprender.

Após a visita do Marcos, estive pensativa por todo o tempo.


Fui hipócrita em dizer que a vida é curta, pois não estou vivendo a
minha. Todos os dias enfrento ônibus lotados e um trabalho
desgastante. Faço o meu melhor, mas sei que não estou fazendo o
que gosto.
O meu passado me fez bloquear grande parte das minhas
emoções e sonhos. Transformei as minhas vontades em meros
pensamentos e isso se tornou a minha vida. O que fizeram comigo
foi cruel. O homem que devia me proteger, acobertou um dos piores
crimes. Ele quebrou uma adolescente, uma menina cheia de
sonhos.
A morte não apaga as lembranças.
O som do meu coração sendo quebrado em conjunto com as
minhas lágrimas ainda pode ser ouvido na escuridão da noite. A
liberdade foi tirada de mim. O brilho inocente dos meus olhos foram
arrancados. A minha alma se despedaçou.
O mundo não sabe da sua dor, mas você consegue sentir
como se ele não fosse conseguir suportar o seu sofrimento.
A hipocrisia das minhas palavras está em não viver o que eu
quero, pois as lembranças ainda me atormentam, mas ele me fez
ver que o seu amor pela Camilla foi capaz de ultrapassar a sua
personalidade para poder se desculpar.
Nós nos subestimamos e inferiorizamos os nossos
sentimentos, até que percebemos que são eles que fazem dar
sentido aos nossos dias e a nossa felicidade.
Marcos é um homem tão sofrido quanto eu. Ele encontrou o
seu caminho ao lado dela, não é à toa que ele não aceita que ela se
afaste.
Meus lábios se abrem em um sorriso.
Tenho que correr, oportunidades são rápidas e a minha está
me esperando.
Abro o portão e caminho por entre as ruas até que o avisto.
Meus olhos brilham ao vê-lo. Passo a minha língua por entre os
meus lábios e corro até ele, me jogando em seus braços. Ele não
me abraça de imediato, mas não demora para que eu sinta os seus
braços ao meu redor. Afundo a minha cabeça em seu pescoço e o
abraço ainda mais apertado, fazendo com que ele entenda o que
estou sentindo em somente me tocar.
Os muros em que criei não foram para que se mantivessem
longe, mas para que eu não me apegasse ao ponto de entregar a
minha confiança e ser quebrada mais uma vez.
Coringa soube escalar, lentamente, tendo o cuidado de me
fazer entender as suas intenções. Ele teve a sensibilidade ao me
esperar, sem forçar as minhas barreiras e emoções.
— Espero que esteja pronta, pois eu quero te amar — ele
sussurra.
— Não me sinto preparada, mas eu quero. Quero ser amada
e... amar você.
Distancio a minha cabeça do seu pescoço e encaro os seus
olhos.
— Não me decepcione, não sei se sou capaz de...
— Não tenho a intensão de viver algo passageiro. Quero te
fazer feliz.
Posiciono as minhas mãos em seu rosto e me aproximo.
— Me ensine, não sei como fazer...
— Vamos aprender juntos.
Ele sorri, olhando para os meus lábios.
— Quero te beijar.
— Não pense, faça.
Não é rápido. Ele desliza os seus lábios nos meus, de forma
que, eu consiga sentir a sua calmaria em nosso beijo. A sintonia
transforma as sensações do meu corpo em esperança. Ele dá vida
ao meu interior, aquecendo a minha alma e coração.
— Não sei o que aconteceu com você, mas estou disposto a
reconstruir a sua confiança. A dor faz parte da vida, mas se tiver ao
meu alcance, farei com que todas as suas experiências sejam
boas...
— A sua sinceridade me encanta.
— A vida é dura, Fernanda, mas somos nós que decidimos
se devemos continuar.
As suas palavras transbordam em meu coração, deixando os
meus olhos sentirem o mesmo.
As lágrimas descem livremente.
Sempre haverá uma pessoa, se ela ainda não chegou, é
porque está procurando o caminho para encontrá-los. Coringa me
encontrou de modo inesperado, mas estou feliz que ele esteja aqui,
pois sei que as suas palavras são verdadeiras e as suas promessas
também.
— Sou grata por você saber escalar — deixo que um sorriso
escape.
— Para um bom aventureiro, o perigo é mais que atraente.
AGRADECIMENTOS
2017, ano em que comecei está história. Muitas revisões, trechos
apagados, frases refeitas... tudo para que pudesse haver uma
junção entre o real e a ficção. Vendida ao Tráfico não é somente um
romance para quem soube apreciar os detalhes. A fantasia é um
ponto importante, mas a realidade foi o meu alvo.
A vida é dura, mas são as pessoas que podem torná-la
suportável. São elas e as situações que nos impulsionam a sentir e
a viver. Os sentimentos elevam o nosso nível de aprendizagem e
conhecimento, são eles que nos trazem felicidade e emoção.
Sou imensamente grata aos meus leitores do Wattpad e aos
novos que irão surgir, pois foram capazes de estabelecer
sentimentos incríveis e emoções maravilhosas.
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