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Haja naturalmente
Ⅰ
Se me perguntassem a alguns anos atrás o que era a felicidade, eu ficaria calada. A
resposta para essa pergunta nem nunca passara, mesmo que rapidamente, pelos meus
pensamentos. Ouvi, certa vez, nas aulas de filosofia, a definição de felicidade pela
perspectiva de vários estudiosos diferentes. Como em “A Ética dos Prazeres”, de Epicuro,
que dizia que a felicidade da vida humana se pautava em alcançar a Eudaimonia, se
equilibrando para ficar no meio da corda entre os prazeres e ódios que guiam a vida na terra.
Tinham outros também, mas o ponto em comum entre todos é que, para mim, eles se
completavam.
Assim, da minha perspectiva torta, nenhum deles estava certo, mas nenhum estava
errado. A única questão é que nada do que eles diziam se adequava à minha realidade, de
modo tão tosco que refleti por muito tempo sobre isso.
Óbvio que eu poderia dar uma resposta curta e simples para isso. Lá no meu primeiro
ano do Ensino Médio eu poderia ter dito que só alcançaria a felicidade quando ficasse rica e,
ainda, quando três belos, lindos - e caros - veículos estampassem a fachada da minha bela,
linda - e cara - mansão.
Analisando melhor, atualmente eu ainda não sei o que responder o que a felicidade é.
No início dos meus 18, tudo o que eu tenho são 6 reais e um sonho. Porém, pasmem, os 6
reais serão, ainda hoje, gastos na passagem do ônibus, o que me deixa apenas com o sonho
disponível.
Todavia, aparentemente, quando me entregaram esse papel escrito em maiúsculo e em
vermelho, para piorar, a palavra “felicidade”, acho que pegaram meus sonhos, amassaram
eles bem forte, e jogaram na lixeira. Simples, sem mais nem menos.
A algumas horas atrás saí de casa preparada para várias coisas, só não estava
preparada para uma entrevista de emprego feita em uma dinâmica de grupo. Agora eu estava
a alguns passos de comer meu fígado de desespero. Daria um belo prato de restaurante;
fígado acompanhado de suor de palma da mão. Minha boca chegava até a salivar.
– Alexandre, pode começar. Você vai revelar pra gente qual sua palavra e começar
com a história. Lembrando que vocês têm até, no máximo, 1 minuto. Ok, galera?
Alexandre era um sujeito baixinho, de beleza mediana. Ele usava óculos e parecia ser
bem nerd, daqueles que passam o dia todo em jogos eletrônicos e nunca tiveram o primeiro
beijo. Mas, em contrapartida, ele tinha uma ótima desenvoltura, falava bem e tinha uma boa
postura.
Imediatamente fiquei com raiva dele, afinal ele parecia ter boas chances de roubar
minha vaga. Ele soltou um pigarro e mostrou a palavra dele: bicicleta.
Meu cérebro deu outro nó e minha barriga apertou mais um pouco devido ao
nervosismo.
– Era uma vez um garoto que tinha uma bicicleta azul – inicia – Ele gostava bastante
dela, pois tinha ganhado de presente dos seus pais. Só que ele saia bastante com a bicicleta, e
por confiar bastante nas pessoas, não deixava ela presa no cadeado. Ele acabou indo passear
no parque da cidade e deixou ela encostada em uma árvore. Só que, quando ele voltou, a
bicicleta não estava mais lá.
“Ótimo. Ele falou algo simples. Não vai ser tão complicado assim”. Eu pensava,
tentando me acalmar.
A próxima era uma garota que eu não havia gravado o nome. Logo, ela também
mostrou sua palavra: Zebra.
– Ele saiu perguntando pras pessoas se eles tinham visto a tal bicicleta. Ninguém tinha
visto. Até que uma mulher com uma blusa estampado em preto e branco, com listras iguais às
de uma zebra…
Foi aí que se tornou nítido que eu já não conseguia entender mais nada. A leve dor de
barriga havia piorado infinitamente. Eu estava, de verdade, quase morrendo. Por que, dentre
todas as pessoas, isso foi acontecer logo comigo?
Uma expressão de desespero mudo tomou rapidamente o meu rosto. Estava sem saber
o que fazer. De repente Fabiana anunciou que a terceira entrevistada deveria continuar. Eu
não sabia nem em que parte aquela menina que eu não sabia o nome tinha parado. A única
solução viável naquele momento seria fingir um desmaio.
Eu tinha menos de um minuto para decidir o que fazer.
Fiz a coisa menos esquisita que imaginei: atendi meu celular que se encontrava
desligado.
– Oi, mãe! Nossa, você me ligou várias vezes. Aconteceu alguma coisa? Ele tá
passando mal? Mesmo? Já to indo, até.
Pude sentir o olhar de todos me queimando, mas minha barriga doía demais para me
importar. Um arrepio frio e gelado transpassava pelo meu corpo cada vez que eu respirava.
Com todo resto de dignidade que juntei, me levantei da cadeira desfazendo a rodinha
anteriormente formada e me desculpei, explicando toda a situação “preocupante” e
“verídica”. Desfilando –e com isso quero dizer “trocando as pernas” – até a saída, lembrei
que ainda não sabia algo importante:
– Eu te avisei, Isabela. Eu te disse! Não escuta sua mãe, isso que dá – Dona Maria
reclama.
– Desculpa, mãe. Eu sabia que não devia ter comido aquele monte de doce. Mas eu
tava nervosa, só um chocolate me salvaria.
– Você e esse vício em bombom, não sei como foi passar mal só agora – ela bufa –
pelo menos fica de lição pra você aprender – reviro os olhos disfarçadamente, para que ela
não perceba e fique ainda mais chateada.
– Me desculpa, sério. Não foi de propósito. Eu tava muito nervosa, também. Foi
minha primeira entrevista, você sabe.
- Eu sei, Isa. Mas você tem que ter consciência também, né? De doce tinha maçã na
geladeira. E além disso passou a manhã toda nesse telefone. Desse jeito como ce iria ir bem,
hein? – minha mãe tinha uma estranha mania de colocar a culpa de todas as minhas
enfermidades em uma telinha de menos de 7 polegadas.
“Minha enxaqueca atacou, acho que não vou conseguir estudar. Tem algum remédio?"
“Se você não passasse tanto tempo deitada mexendo nesse celular não precisaria de remédio”
E então fazia uma carranca que costumava me dar nos nervos.
Talvez minha falta de confiança em mim mesma tenha se estendido e passado a fazer
parte dela, e ela, sem nem ter percebido, passou a criar diversas desculpas que justificassem
meu fracasso acadêmico, e agora também profissional. Eu não a culpava; depois de 4
reprovações no vestibular de medicina eu também desacreditava da minha própria
capacidade.
Eu sempre agradeceria infinitamente Dona Maria, tanto por me dar apoio emocional,
quanto por ter possibilitado que eu, em todo esse tempo, não tivesse que ter procurado um
emprego para ajudá-la a pagar as contas e a sustentar a casa, mesmo que nós fôssemos pobres
e morássemos na periferia.
Mas, infelizmente, eu não poderia passar minha vida toda dependendo de algo tão
incerto e distante quanto minha aprovação me parecia. Era isso que havia me motivado a
procurar um emprego na área de administração, cuja qual eu havia feito um curso tecnológico
a alguns anos, e que, caso eu não passasse dessa vez, me ajudaria a pagar algum outro curso
em outra área qualquer. No fundo eu sabia que eu tinha fugido daquela empresa apenas
porque continuar naquela seleção significava que eu havia desistido do meu sonho.
– Não se preocupe, mãe. Se as portas não se abrirem pra mim, vou arrebentá-las com
um chute – Eu disse sorrindo e simulando um chute desengonçado no ar. Nós rimos com isso.
No fundo eu sabia que ela me amaria, mesmo se antes do meu nome não constasse a
denominação de “doutora”.
De qualquer forma, amanhã sairia minha nota e eu saberia, também, se meu nome
constava na lista de aprovados.
Eu rezava para que sim.
CAPÍTULO DOIS
Ele disse “miau”
Acordei me sentindo diferente, com um misto de emoções confusas demais para que
eu conseguisse decifrar. Não eram nem 9 da manhã quando peguei meu celular para checar
minhas últimas mensagens. Nada demais. Apenas notificações impertinentes, 3 chamadas
perdidas marcadas como spam, e duas mensagens de Bia.
Eu cresci com muitas amizades. Não posso dizer que eu era a pessoa mais sociável do
mundo, mas costumavam gostar de mim. Só que depois do Ensino Médio bastante coisa
pareceu mudar, o que fez com que eu me afastasse da maioria dos meus amigos. Não era
intencional, mas cada um acabou tomando um rumo tão diferente que às vezes a ideia de que
já houve uma convivência diária com eles parecia absurda demais para ser levada em
consideração. A única que eu realmente mantive contato por todos esses anos era Bia, e já
havia um par de anos que nós éramos melhores amigas.
“To né, Bia. Tô a ponto de surtar, quero saber logo como eu me saí! - respondo
“Não sei, de vdd amg. Depende. Se eu estiver bem, mais tarde eu vou.”
“Okay Isa, mas me conta mesmo tá. E eu tava brincando, quero saber sim da
sua nota."
“Ce sabe que eu to aqui pra vc, né gata? Hoje a gente vai comemorar sua aprovação,
tenho certezaaaaa.
“Aliás, o gatinho do Gabriel vai tá lá. Ele ta todo apaixonadinho em você, dá uma
chance”
As vezes eu não conseguia acompanhar as mil mensagens da loira. Ela se empolgava muito
fácil e com frequência ficava perdida nos assuntos.
– Aí está você! – exclamei – meu Deus como você é lindinho. Vem cá, neném. Psiu
gatinho, psiu psiu – tento me aproximar dele, que imediatamente rosna e me mostra os dentes
afiados em tom ameaçador. Fofo.
– Você é meio bravinho – rosnei de volta pra ele, de brincadeira. Se ele pudesse falar,
com certeza me chamaria de esquisita. Geralmente eu era mais madura, porém quando se
tratava de animais minha postura ia embora completamente.
Era apenas um filhotinho. Ele tinha a pelagem preta, que se arrepiou inteira no
momento que me viu. Os olhos azuis clarinho davam um charme, mas eu sabia que mudariam
de tom quando o gatinho atingisse certa idade.
Notei que uma das patinhas estava machucada, e meu coração amoleceu quase que
imediatamente. Tive certeza que o levaria pra casa. E foi o que eu fiz.
Catei o bichano da rua, mesmo com toda a insistência dele em querer continuar no
meio daquela mata horrenda, confirmada pelos mais novos arranhões na minha mão, que
agora faziam companhia pro esfolão adquirido na minha degradante queda. Voltei mais
rápido dessa vez. Estava machucada, descabelada e capenga, porém estava feliz.
Logo que entro em casa sou recebida não com preocupação, entretanto com críticas:
– Foi pra guerra e não me avisou, Isabela? – sério. Nenhum tom de preocupação.
Me encosto na porta, mantendo o gato atrás de mim. Minha mãe nunca perdia a
oportunidade de dizer como os odiava. Imagina quando ela ver que eu trouxe um preto pra
dentro de casa. Meu braço chegava a se arrepiar de medo.
– Mãe! Pelo amor de Deus. Você não vai nem perguntar se eu to bem antes? –
pergunto indignada.
– Me carregou 9 meses na barriga pra me tratar assim – eu insisto, o que faz ela rir.
Nossa relação era assim, meio que um “entre tapas e beijos”. Eu gostava – na verdade… eu
tenho algo a falar.
– Como você é grossa, dona Maria – esbravejo – Então, continuando… – sem dizer
mais nada estendo os meus braços na frente do meu corpo, enquanto agarro o gato com
ambas as mãos.
– Jesus, Maria e José. O que esse bicho tá fazendo aqui, filha? – A expressão dela
muda pra uma nada agradável – rua. Agora. Você sabe como eu odeio esses animais, não
quero nem ver na minha frente. Minha pele até coça. Tira, anda.
– Mas mãe, olha como ele é fofinho – brinco com as patinhas dele, com todo cuidado
do mundo, fazendo uma descer e a outra subir repetidamente – e a patinha dele tá machucada,
não posso deixar ele na rua assim. E olha, tá combinando comigo – mostro minha palma
ralada – ela fecha ainda mais a expressão – só até ele ficar bem, por favorzinho.
– Eu não vou cuidar – ela responde, categoricamente – veterinário custa caro, ração é
cara. E eu não quero a casa fedendo com a sujeira desse bicho.
– Eu vou pagar, eu juro. Nem que eu tenha que vender meus órgãos no mercado negro
– minha mãe parecia determinada e prestes a apelar comigo. Quase cogitei desistir, até que
apelei pro lado emocional – Quando você sai pra trabalhar eu fico sozinha o dia todo! É
muito solitário passar o dia sem uma companhia. Você nem vai ver. Vai ser como se ele não
existisse.
Ela cedeu. Pouco tempo depois constatei que era uma fêmea.
– Você vai ser a Sisi! – de novo um miadinho agudo. Vou encarar como se ela tivesse
gostado.