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Raquel Pacheco

AUTOBIOGRAFIA

ETERNA
BRUNA SURFISTINHA
Primeira Edição

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Direção Editorial
Projeto Gráfico
Diagramação
Revisão
Por Raquel Pacheco

Fotografias da Capa
Bianca Vilanova

Gráfica

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Sumário
Pag. 10 .............. Doce, sem veneno de escorpião
Pag. 40 .............. Me perder para me encontrar
Pag.109 ............. Prostituição
Pag. 237 ............ Casamento - Dos 20 aos 30
Pag. 250 ............ Bruna x Raquel
Pag. 286 ............ Partidas
Pag. 294 ............ A Umbanda cheira a rosa
Pag. 305 ............ Livre, leve e solta
Pag. 326 ............ Pisando em ovos
Pag. 349 ............ Lutos
Pag. 380 ............ Recomeço e reencontro
Pag. 399 ............ Ressignificando o amor
Pag. 419 ............ Família
Pag. 423 ............ Fama
Pag. 440 ............ Nasce uma mãe

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Dedico este livro à minha família:

Ao Xico,
Noivo, amor da minha vida, meu melhor amigo, pai das minhas
filhas, com quem tenho o prazer de compartilhar meus dias,
que me ajuda a colocar em ordem a bagunça que eu sou,
melhor companhia para qualquer momento, o homem com
quem quero estar ao lado até o fim desta minha jornada.

À Maria & Elis,


Minhas amadas filhas, responsáveis por meu renascimento,
pequenas fortes mulheres que me deram um novo sentido.
Em tão pouco tempo, já me proporcionam uma felicidade que
não cabe em mim. Jamais soltarei as mãos delas. Que sorte a
minha ter sido escolhida para ser mãe dessas meninas risonhas.

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“Tem muita gente que resume a vida dela em três
anos. Raquel está certa de ter orgulho do que
passou, porque foi uma experiência que ajudou a
transformá-la na mulher incrível que ela é hoje.
Ninguém deveria julgar o caminho que o outro
percorre.”
( Xico Santos – Trecho de uma entrevista concedida à jornalista
Marcela Ribeiro publicada no Splash UOL )

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Senti um movimento mais forte. Em poucos segundos, escutei
o chorinho que foi se intensificando, iniciando finalmente o
momento mais lindo da minha vida e a realização do meu maior
sonho: ser mãe. E melhor ainda, em dose dupla.
Ouvi a equipe médica comemorando: “Maria nasceu!”. Sorri.
A emoção tomou conta de mim. Enfim conheceria minhas
filhas após quase 38 semanas de gestação. Apenas comemorei
quando, pouco tempo depois, ouvi: “Elis nasceu!” seguido por
um chorinho tímido, mas que me acalmou. Não consegui mais
segurar as lágrimas, chorei de alívio e felicidade. Olhei para o
Xico, nos abraçamos com força. Nos tornamos mãe e pai juntos.
Levaram Maria e Elis para nosso primeiro encontro. Conhecê-
las foi o momento mais bonito da minha vida. Tão pequeninas,
cabeludas, meigas, perfeitas. Cariocas e virginianas.
Uma enfermeira as colocou em meus braços, segurei com força
e as abracei na medida do possível para não machucar, mas
querendo que sentissem todo meu amor. E Xico nos abraçou.
Elas são nossos pedacinhos, frutos do nosso amor e intensidade.
Nos escolheram para a missão mais linda e difícil.
Durante a gestação, conversamos muito sobre como será a
educação que daremos a elas e fizemos mil planos. Lutaremos
com prazer e garra o quanto for necessário para realizá-los.
Elis nasceu dentro da bolsa intacta, felizmente uma enfermeira
filmou esta cena. Elas foram geradas na mesma placenta, em
bolsas diferentes. Quando conversamos sobre termos filhos,
coincidiu de querermos dois, então comentei que gostaria que a
diferença de idade fosse no máximo de dois anos.
Elas nasceram com a diferença de dois minutos.
Demorou, mas aconteceu, me tornei mãe aos 36 anos.
Xico me permitiu realizar este sonho e construímos nossa família.
Maria e Elis nasceram exatamente no dia que durante a vida,
meu pai também comemorava aniversário: 03 de setembro.

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***
Minha vida é literalmente um livro aberto. Comecei a escrever
esta autobiografia num momento que senti vontade de externar
e me libertar de todas as lembranças ruins para ressignificar
cada uma dentro de mim. E de reviver os melhores momentos
durante 36 anos neste mundão. Mesmo que eu tenha enfrentado
muitas coisas ruins, fiz o possível para manter a leveza de viver
e não desistir de buscar a felicidade onde quer que esteja.
Posso ter perdido o brilho no meu olhar em várias fases, mas
sempre o recuperei. Encontrei força interior até quando
acreditava não ter mais. Dos limões que a vida me deu, fiz
saborosas caipiroskas. E continuarei fazendo.
Nos piores momentos, fui surpreendida com algum fato que
me mostrou o quanto vale a pena continuar nesta jornada e me
fazendo enxergar que, toda a força que habita em mim, me faz
suportar qualquer parada. Nada acontece em vão, estou
juntando as peças que a vida me entrega aos poucos, enquanto
encontro respostas e vou entendendo qual é a minha missão.
Diante toda a bagunça que sou, com todos meus erros, defeitos
e imperfeições, quero me tornar a melhor versão que posso ser
para mim mesma, para as pessoas que amo e para o mundo.
No entanto, não busco a perfeição.
Escrevi este livro com muita coragem, enquanto fazia uma
análise de todos meus passos que me trouxeram até aqui, entre
sorrisos e lágrimas.
“O correr da vida embrulha tudo.
A vida é assim: esquenta e esfria
Aperta e daí afrouxa,
sossega e depois desinquieta.
O que ela quer da gente é coragem.”
( Guimarães Rosa )
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CAPÍTULO 1 – INFÂNCIA
Doce, sem veneno de escorpião

Cheguei neste mundão no dia 28 de outubro de 1984, em


Sorocaba, interior de São Paulo. Sou uma escorpiana com
ascendente em peixes e filha de Oxum. Detalhes que explicam
toda a intensidade que habita em mim.
No plano astral, devem ter me perguntado: “Você quer uma
reencarnação com ou sem emoção?”. Desconfio que eu tenha
respondido com força: “Com toda emoção que for possível,
por favor!”. E fui atendida.
Minha mãe biológica enfrentou uma gravidez indesejada e
decidiu não querer encarar a maternidade. Em algum momento
de desespero ou consciente da decisão, ela resolveu abortar.
O método que usou, desconhecido por mim porque nunca tive
interesse em saber os mínimos detalhes, além de não ter sido
eficaz para atingir o objetivo final, gerou uma complicação na
saúde dela e, por pouco não morreu, enquanto o feto continuou
intacto, lutando pela própria vida, querendo simplesmente
nascer. Esse feto sou eu.
Passado o susto e com a saúde recuperada, resolveu seguir com
a gestação, mas manteve a decisão de não querer ser mãe.
Meus pais adotivos entram na história neste momento, eles já
tinham duas filhas adolescentes e queriam mais uma, mas não
conseguiam mais gerar de maneira biológica. Encontro perfeito.
Fui adotada sem passar pela parte burocrática que a adoção
exige, foi à moda brasileira. Quando recebi alta do hospital, fui
diretamente para os braços dos meus pais adotivos. Ambos são
também de Sorocaba, mas como estavam morando em São
Paulo, foram me buscar. Nunca soube quem é minha mãe
biológica. Certa vez, meu pai me avisou que se eu tivesse
vontade de conhecer minha origem, poderia perguntar à
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vontade e teria todas as respostas, mas era muito criança para
ter esta preocupação e curiosidade. O tempo passou e nunca os
questionei. Na adolescência, mesmo sentindo muita vontade de
ter respostas mais profundas, o medo de cutucar na minha
história era maior que a curiosidade. Uma informação surgiu
sem que eu pedisse, foi quando meu pai disse: “Sua mãe
biológica está mais perto do que imagina!”. Quis questionar
quem era, mas acabei me calando. Cresci com este mistério.
Há lembranças da infância que jamais nos esquecemos, o dia
que soube da minha adoção, é uma delas. Minha mãe me
arrumava para ir à escola, estávamos apenas nós duas no
quarto, de repente ela disse que eu precisava saber de um
segredo, então me contou que sou adotada e que um dia
entenderia melhor sobre isso. “Você não saiu da minha barriga
como suas irmãs” - finalizou a conversa. Lembro que foi um
diálogo muito rápido, ela jogou aquelas palavras que se
tornaram uma confissão e em seguida, saiu do quarto.
Eu não entendi nada, era muita informação para a minha
cabeça de cinco anos. Como eu conseguiria prolongar a
conversa, se não sabia que saíamos da barriga?
Fiquei com a palavra ‘adoção’ na cabeça e em algum momento
resolvi questionar a professora, na verdade, a “tia da escola”.
Ela não questionou o motivo da pergunta e me deu como
resposta que, quando os pais não querem o filho, o abandona
num lugar com outras crianças, onde fica até uma família querer
adotar. Resposta que não me ajudou em nada e foi o suficiente
para iniciar meu sentimento de rejeição. Eu enxergava apenas o
lado ruim, a parte dos pais que abandonam o filho.
Fui uma criança calada, quase não tive voz, era extremamente
quieta e tímida, morria de vergonha quando olhavam para mim,
não queria ser notada. Era considerada muito meiga, os adultos
sempre me elogiavam, comentavam o quanto eu era boazinha.
Adorava dizer a palavra “Obrigada”, mas como não conseguia
pronunciar, então dizia “ôbatata”, algo que fazia todos rirem e
eu não entendia o motivo.
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Enquanto os adultos me consideravam uma criança fofa, eu os
achava muito estranhos e minha sensação era de não me
encaixar neste mundo.
Minhas irmãs já eram pré-adolescentes, durante o período que
moramos juntas, algo que durou poucos anos, elas me davam a
atenção que podiam, não tinham paciência de brincar comigo,
mas eram protetoras e me levavam sempre para passear.
Adorava quando colocavam vinis para que eu ouvisse, ‘A turma
do balão mágico’ era meu preferido, mas amava uma coleção de
disquinhos coloridos, infelizmente não me lembro do nome,
mas era uma história infantil narrada em cada um.
As duas eram extremamente estudiosas. A Ma, minha irmã do
meio, dividia o quarto comigo, ela tinha um cantinho de estudo,
com uma escrivaninha e prateleiras cheias de livros, onde
passava horas do dia e eu ficava a observando. Ela tinha mania
de usar bastante a caneta de marcar texto e, como eu ainda não
sabia ler, não entendia o motivo dela destacar apenas algumas
frases aleatórias, mas achava que as folhas ficavam bonitas com
as marcações em amarelo. Um belo dia, ela não estava em casa,
peguei um dos livros, a caneta de marcar texto, fingi que sabia
ler e comecei a grifar as frases que mereciam estar em amarelo
também, como se estivesse fazendo um grande favor. Quando
minha irmã viu, brigou comigo com toda razão, mas na época,
não entendi o motivo de não ter gostado da minha dedicação e
capricho ao deixar as páginas mais bonitas. Meus pais também
tinham muitos livros, aliás, cresci cercada deles, tínhamos uma
biblioteca em casa. Vendo todos ao meu redor lendo bastante
diariamente, despertou minha vontade de aprender a ler.
Eu não aceitei ouvir a frase: “Você vai aprender no momento
certo!”. Abria um livro, olhava para as palavras e me esforçava
para entender, queria aprender de qualquer maneira. Até que
partiu da minha irmã mais velha, a Tha, em me ensinar um
pouco por dia. Ela cortou pedaços de uma cartolina, em cada
um colocou uma letra e com toda paciência do mundo, foi me
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ensinando as letras, juntando as sílabas e depois formando
palavras. Insatisfeita por não ter a mesma paciência, como já
conhecia todas as letras, comecei a me dedicar por espontânea
vontade, então ficava horas com um livro no colo olhando para
as palavras. Em pouco tempo, aprendi a ler, graças a ajuda de
Tha e minha determinação. Peguei um livro infantil que contava
a história de uma família de sapos, tudo bem que havia mais
figuras do que texto, mas consegui copiar em um caderno todas
as frases. Fiz isso escondida, quieta no meu canto e apenas
sosseguei quando finalizei. Minhas irmãs não estavam em casa,
mas mostrei aos meus pais que ficaram surpresos com o que
viram. A surpresa foi tanta que, no dia seguinte, minha mãe
levou o caderno na escola para mostrar à diretora e minha
professora. Como estava no ano letivo com o início da
alfabetização e, já estava adiantada diante as outras crianças,
meus pais tentaram com que eu avançasse uma série para estar
com uma turma que soubesse ler também, mas não foi possível.
Como nasci em outubro, considerado final de ano, quando
entrei na escolinha, não sei explicar o motivo, mas fiquei com a
diferença de um ano de idade comparando com os meus
coleguinhas, então se avançasse uma série, eu acabaria tendo
dois anos a mais. A diretora da escola achou melhor que eu não
tivesse esta diferença de idade aos demais colegas.
O importante é que descobri pela primeira vez na vida, o
sentimento gostoso que uma conquista nos proporciona.
Como estava adiantada, a professora me pedia para ajudar meus
colegas nos exercícios de alfabetização, me sentia importante,
adorava ajudá-los para que aprendessem logo o que eu já sabia.
Foi o único motivo de orgulho que causei aos meus pais.
Não desmerecendo a ajuda da minha irmã, mas a leitura em si,
sem ser apenas sílabas, ocorreu por meu próprio mérito.
Os livros que mais marcaram minha infância foram: ‘Ou isto ou
aquilo’ (Cecília Meireles) e todos da coleção infantil do
Monteiro Lobato. O ‘Pequeno Príncipe’ que sou apaixonada até
hoje, foi um dos últimos que li enquanto criança.
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Se minhas irmãs não tinham paciência para brincarem comigo,
meus pais tinham menos ainda, aprendi a inventar minhas
próprias brincadeiras. Tive várias bonecas, mas não tinha muita
paciência de brincar com elas, mesmo assim, as considerava
como filhas. Duas eram iguais, ganhei de pessoas diferentes no
meu aniversário, pois era uma das modinhas do momento.
Eram a ‘Moranguinho’, com um cheiro maravilhoso que me
dava vontade de comer, então num belo dia, resolvi mastigar o
cabelo de uma delas achando que tivesse sabor.
As considerava como minhas filhas gêmeas, por isso tinham um
lugar privilegiado na prateleira do quarto. Nunca fui fascinada
por Barbie, embora tivesse algumas e várias roupinhas, também
quase não brincava. No Natal, quando eu tinha 8 anos, insisti
muito para ganhar a mansão dela, prometi que brincaria, mas
acabou se tornando mais um objeto decorativo do meu quarto.
Definitivamente, não consegui gostar de brincar de casinha ou
com bonecas. O que eu gostava mesmo era de jogos que me
fizessem pensar, amava quebra-cabeça e jogo da memória,
passava horas entretida com eles. Ficava indignada quando
ganhava algum quebra-cabeça infantil com poucas peças,
sempre gostei de desafios. Jamais me esqueci de quando um tio
prometeu me dar de presente o quebra-cabeça dos meus
sonhos, não lembro qual era a imagem que as peças formavam,
mas não era infantil e tinha muitas peças, seria o maior que eu
montaria até então. Promessa feita, fiquei na expectativa.
Estou esperando até hoje. A gente cresce e jamais esquece.
Um pouco mais velha, mas ainda criança, eu não largava meu
‘Genius’ e o ‘Pense Bem’ por nada neste mundo. Também
amava ‘Lego’, a versão dos anos 90 era bem mais interessante
que o de hoje em dia.
***
Um fato que marcou minha infância foi quando meu pai sofreu
um acidente na garagem do prédio, ele era muito alto e bateu a
cabeça com força na quina de uma parte mais baixa do teto.
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O impacto foi tão grande que caiu desmaiado no chão e ficou
entre a vida e a morte por mais de um mês no hospital.
Lutou bastante para viver e ficou com sequelas irreparáveis.
Neste período que ficou no hospital, quase não vi minha mãe,
minhas irmãs se revezam para cuidar de mim.
Elas me poupavam até onde conseguiam, mas criança sente
quando os adultos estão mentindo ou escondendo algo.
Eu percebia que tinha algo muito ruim acontecendo, pois todos
os dias as via chorando e sentia toda a apreensão delas. Foi uma
fase muito difícil para nós. A parte boa é que enquanto meu pai
esteve internado, como minhas irmãs não sabiam cozinhar,
nossa principal alimentação era pizza. Todas as noites, pediam
por delivery para jantarmos e colocavam um pedaço na lancheira
para que eu levasse a escola no dia seguinte, o que não era
permitido, pois pizza era um dos alimentos proibidos para que
os pais mandassem como lanchinho, mas sabendo da situação
que enfrentávamos, a diretora me liberou. Adorava quando
algum coleguinha contava para a professora que eu estava com
um pedaço de pizza e a resposta era: “Ela pode trazer!”.
Desde pequena já não gostava de fiscal da vida alheia.
Quando meus pais retornaram para casa após tanto tempo no
hospital, foi uma grande alegria. Me lembro bem do alívio que
senti quando os vi chegando, mesmo com o meu pai bem
debilitado e com dificuldade para andar, fiquei feliz por tê-lo de
volta. Eu já tinha entendimento sobre o significado de morte e,
numa noite, escutei minha irmã mais velha contando para
alguém por telefone que ele havia piorado e estava correndo
risco novamente de morrer. Elas fingiam que estava tudo bem,
vivi minha angústia sozinha.
Os próximos meses continuaram bem difíceis, meu pai
retornou ao hospital algumas vezes e desmaiava quase todos os
dias em casa. Esta situação me causou trauma, até hoje me
desespero se vejo alguém desmaiado, meu coração dispara e,
por mais que eu queira ajudar ou chegar perto, não consigo.
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Fico paralisada sem reação por pensar que a pessoa está morta.
Era assim como eu ficava ao ver meu pai no chão, sempre
achava que estivesse morto. Quando desmaiava, era levada ao
meu quarto, fechavam a porta e, me deixavam lá até que ele
voltasse a reagir. Aqueles minutos eram uma eternidade.
Carrego a fobia de ficar fechada num lugar sem poder sair.
Meu pai parou de desmaiar com o tempo, mas ficou refém de
medicamentos tarja preta, se transformou em outra pessoa.
Precisou se aposentar no auge da carreira como Promotor de
Justiça, entrou em depressão, quando não tomava os remédios
de maneira correta, se tornava agressivo. Tornou-se um homem
fragilizado, mas manteve a dureza no jeito de ser.
Consigo entender que para um pai de família com os sonhos
interrompidos por causa de um acidente, é difícil demais manter
a estrutura emocional, mas durante a infância, não tive esta
mesma compreensão.
Por orientação médica para que ele tivesse uma qualidade de
vida melhor, fomos morar em nossa chácara, em Araçoiaba da
Serra, a aproximadamente 100 km de Sorocaba. Minhas irmãs
que já estavam finalizando o Ensino Médio e, conseguiam se
virar sozinhas, continuaram em São Paulo, eu fui com meus
pais. Para mim, era tudo novidade, quase não íamos à chácara
para passear. Em uma das poucas que fomos, me machuquei na
cerca de arame farpado que separava o nosso terreno com o do
vizinho. Um ferrinho entrou na pele e rasgou meu braço que,
por ser pequeno, a ferida acabou sendo quase nele inteiro.
Sempre quando olho a cicatriz que ficou, lembro do momento
exato que me desesperei ao ver o sangue escorrendo, sem
entender como o braço abriu daquela maneira. A mudança foi
brusca para nós três, da cidade grande e agitada para o meio do
mato, tivemos que nos adaptar à nova vida com uma rotina
completamente diferente.
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Eu tinha um boneco muito grande, não lembro se era
personagem de algum desenho, não era o Fofão porque morria
de medo dele, ele tinha quase o meu tamanho e ficava sentado.
Minhas irmãs já tinham namorados e quando me levavam para
passear, eu presenciava beijos na boca, mesmo não entendendo
exatamente o que era isso, achava interessante e queria fazer
igual, então as imitava beijando o meu boneco. Coloquei na
cabeça que, se eu o tratasse como um menino de verdade, ele se
tornaria um humano. Diariamente o enchia de selinhos,
conversava muito como se pudesse me ouvir, gostava de dar
conselhos para quando deixasse de ser um boneco.
Ele não chegou na chácara no caminhão com a mudança, então
com toda minha ingenuidade, acreditei que tivesse se tornado
um humano e fiquei muito triste por ter me abandonado.
***
Estava na primeira série e comecei a estudar no Objetivo Portal
da Colina, em Sorocaba. Era uma viagem de 45 minutos para ir
e depois para voltar, pelo menos comecei a estudar de manhã,
então tinha o dia inteiro para brincar. As filhas bonecas se
tornaram minhas alunas, nesta época quando me perguntavam
o que eu queria ser quando crescesse, respondia sem pensar
duas vezes que seria professora. Eu dava aula todas as tardes,
ensinava as bonecas sobre todo conteúdo que havia aprendido
na escola e aproveitava para fazer minhas lições de casa
enquanto brincava. E foi sendo esta professora aplicada que me
tornei a melhor aluna da minha turma, tirava apenas dez em
todas as matérias. Meu pai me incentivou ainda mais ao me
presentear com uma lousa branca e várias canetas para escrever
nela. Essa fase de querer ser professora durou apenas quatro
anos. Na chácara, havia muito espaço para brincar, mas tinha
medo quando a noite caia e a escuridão dominava o mato, não
saia para fora de casa de jeito nenhum, apenas se estivesse
acompanhada por um adulto. Meu pai teve uma melhora
considerável na saúde e quando estava muito bem-humorado,
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brincava comigo com peteca, claro que era com as limitações
dele e por pouco tempo, mas eu amava ter este momento com
ele, pena que não era com frequência, mas quando acontecia,
aproveitava e valorizava bastante. Ganhei uma bicicleta e
pedalava nas ruas de terra, a região era bem tranquila, era raro
ver carros passando, então eu tinha liberdade. Vivia caindo e
me machucando, todas cicatrizes nos joelhos são dessa época.
Minha mãe adorava cuidar das plantas e passava horas lendo
livro, sentada embaixo de alguma árvore. Ela se tornou mais
leve com a qualidade de vida, mas não foi o suficiente para nos
aproximarmos. Enquanto vivia no mundinho dela, eu ficava no
meu, e nossa relação continuava da mesma maneira, distantes.
***
Para a minha felicidade, finalmente pude ter cachorros, era um
dos meus sonhos. Adotamos três em momentos diferentes: o
Paco era um lindo vira-lata caramelo, a Luna era uma boxer
amorosa conosco e brava com qualquer estranho e por fim,
Fedra, uma dócil weimaraner cinza. Eram meus melhores
companheiros, como me faziam feliz! Quando Fedra ficou
prenha do Paco, a expectativa para que os filhotes nascessem
era grande demais, todos os dias quando acordava, antes
mesmo de me arrumar para ir à escola, ia visitá-los no canil
porque a presença deles era proibida dentro de casa. Dava ‘bom
dia’ aos três e aproveitava para acompanhar o crescimento da
barriga cheia de filhotes, contava os dias para o nascimento.
Numa certa manhã, quando fui ao canil, me deparei com Fedra
toda suja de uma gosma com sangue, deitada ao lado de vários
montinhos de terra, me aproximei mais e vi que embaixo de um
deles, existia um pequeno rabo para fora da terra. Me agachei,
comecei a mexer, dei um grito e comecei a chorar quando
entendi a cena: os filhotes haviam nascido, mas a Fedra
enterrou todos, cheguei tarde demais, todos estavam mortos,
exceto um que ainda respirava com muita dificuldade, então o
peguei e fui correndo avisar meus pais. Enquanto meu pai foi
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ao canil, coloquei o filhote na mesa, limpei o focinho que estava
cheio de terra e comecei a fazer uma respiração boca a boca,
algo que nunca tinha feito e não sabia fazer, mas tive esperança
de salvar o filhote. Presenciei a última respiração dele e senti o
coração parar, fiquei arrasada por não ter conseguido.
Depois de alguns meses, Fedra ficou novamente prenha, o
receio de que enterrasse os filhotes era grande, então meu pai
contratou um pedreiro para cimentar o canil. Os filhotes
nasceram, sadios e lindos. E eu que jurava que ficaríamos com
todos, logo me decepcionei quando minha mãe começou a
avisar a vizinhança que estávamos doando os filhotes.
Cada vez que alguém ia buscar um, eu chorava após cada
despedida. Quando faltava o último, o qual me apeguei demais
porque ficou mais tempo com a gente, tentei convencer meus
pais para ficarmos com ele. Era um sábado quando um casal foi
buscá-lo, assim que eles apareceram no portão, peguei o filhote
e me tranquei no banheiro, não queria entregá-lo de jeito
nenhum. Com ameaça do meu pai avisando que derrubaria a
porta se eu não a abrisse, resolvi sair. O casal diante meu
desespero, quase desistiu de levar o filhote, disseram que
poderiam voltar outro dia, mas minha mãe me obrigou a
entregá-lo. Não consegui vê-los indo embora, me tranquei em
meu quarto, deitei na cama e chorei até dormir. Quando acordei
já era noite e senti meu corpo estranho, adoeci.
***
Eu tinha muito medo de morar na chácara, não me sentia
segura, qualquer barulho que ouvia enquanto estava deitada
para dormir, já achava que era alguém tentando abrir a janela do
meu quarto. Não era muito comum, mas acontecia de alguém
pular o muro no meio da madrugada para furtar algo que
estivesse no quintal. Numa dessas madrugadas, acordamos com
latidos da Luna, meu pai viu pela janela a movimentação de
duas pessoas correndo e não teve dúvidas, pegou a arma, abriu
a porta e deu alguns tiros para o alto apenas para assustar.
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Devo ter me assustado mais do que os indivíduos.
Nós chamávamos muita atenção da vizinhança, éramos
considerados a família rica da região. Nosso terreno era um dos
maiores, tínhamos dois carros, motorista particular e caseiro.
Araçoiaba da Serra era uma cidade bem pequena, todo mundo
se conhecia, as fofocas rolavam soltas, então logo se espalhou
que éramos os novos moradores e que tínhamos uma condição
muito boa de vida. Por conta disso, meu pai começou a
demonstrar ter medo de sermos assaltados, então qualquer
barulho diferente, me deixava apavorada e tinha pesadelos de
que estavam invadindo a casa. Ainda bem que nada aconteceu.
***
Eu tinha poucos amigos, como era extremamente tímida, sentia
muita dificuldade para fazer amizades. Na hora do recreio, era
comum ficar sozinha, observando as outras crianças brincarem
enquanto eu devorava meu lanche.
Guardo na lembrança, com muito carinho, as minhas quatro
amizades desta fase na infância.
A Rafa foi minha primeira amiga, estudávamos na mesma
turma, ela quem teve a iniciativa de puxar assunto comigo
mesmo sendo tímida também. Era linda, loira, alta, filha de um
alemão muito bravo e rígido. Adorava ir à casa dela após a
escola, assistíamos a novela ‘Carrossel’ enquanto almoçávamos,
fazíamos a lição de casa e depois ficávamos com a tarde livre.
A mãe dela era o oposto do pai, uma mulher doce e que me
tratava extremamente bem. Nós colecionávamos papel de carta,
tínhamos muitos, sempre trocávamos os repetidos e não nos
cansávamos de organizar nossas pastas. Eu era bem caprichosa
com minha coleção, quando ganhava papéis novos, tirava todos
dos envelopes de plástico das pastas-catálogos, dividia por
temas e colocava pacientemente um por um novamente nos
plásticos. Eu e a Rafa éramos confidentes, nos sentíamos pré-
adolescentes no auge dos nossos nove anos, foi com ela que
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comecei a conversar sobre meninos. Gostávamos de passear no
shopping sem nenhum adulto, adorávamos ouvir Bon Jovi e
além dos papéis de carta, começamos a colecionar também em
pastas, páginas de revista com fotos de homens que
considerávamos bonitos. Além do próprio Bon Jovi, tínhamos
várias imagens do Brad Pitt, Tom Cruise, etc.
Nos distanciamos um pouco quando uma nova amizade surgiu
entre nós, a Thaís, que também estudava com a gente. Ela era
filha de mãe solo, que trabalhava demais como professora na
escola onde estudávamos e o pouco que ficava em casa, nunca
tinha tempo para nos dar atenção porque continuava
trabalhando corrigindo provas ou elaborando tarefas para os
alunos. A Thaís tinha uma condição financeira bem diferente da
nossa, então eu e Rafa paramos de ir ao shopping com
frequência, íamos apenas quando nossa nova amiga conseguia ir
conosco, algo que era raro de acontecer. Não demorou muito
tempo para a Thaís começar a disputar a atenção da Rafa
comigo, uma começou a frequentar a casa da outra e não me
chamavam todas as vezes, então comecei a ficar com ciúme, a
amizade estremeceu e nos distanciamos, mas continuei sendo
amiga delas. Quando voltei a morar em São Paulo, eu e a Rafa
conversamos por telefone algumas vezes, a amizade acabou aos
poucos, mas sem brigas, foi de uma maneira natural. Crescemos
e cada uma seguiu um caminho diferente.
Ainda em Araçoiaba, na fase que me distanciei da Rafa, me
aproximei da Maria Fernanda. Os pais dela eram muito jovens,
não tinham nem trinta anos, eram nossos professores de
computação na escola. Super presentes e divertidos, me
tratavam com um carinho inexplicável, pelo menos uma vez
por semana, dormia na casa deles, além da boa companhia e de
me divertir bastante, eu conseguia ouvir ‘Gabriel O Pensador’ e
‘Mamonas Assassinas’ em paz, afinal meus pais me proibiam.
Um dia, enquanto brincávamos com o cachorro no quintal,
Mafê caiu e começou a berrar, me desesperei ao perceber que
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estava com uma perna quebrada. Corri para chamar o pai dela
que estava dentro de casa, éramos apenas nós dois para colocá-
la dentro do carro, enquanto ele a carregava, eu apoiava a perna
dela no meu braço. Foi um acontecimento que nos uniu ainda
mais, pois cuidei dela da maneira que pude, fiquei responsável
por passar todo o conteúdo das aulas porque ela ficou semanas
sem conseguir ir à escola. Perdemos contato na terceira série,
quando os pais foram trabalhar em outra escola e Mafê precisou
acompanhá-los para estudar aproveitando a bolsa.
E por fim, a Manu que foi a primeira amizade que conquistei
por minha iniciativa. Estudávamos na mesma série, mas em
turmas diferentes. A escola inaugurou um prédio novo e
começou a existir uma biblioteca para os alunos, onde comecei
a passar o recreio. No caminho para chegar lá, comecei a notar
a presença de uma menina que sempre estava sentada sozinha
no último degrau da escada, comendo lanche com um olhar
longe e triste. Ela chamou minha atenção, até que um dia
resolvi deixar a timidez de lado e tive coragem de me
aproximar. A Manu era mais tímida do que eu, me sentei ao
lado dela e o silêncio predominou. Como estávamos na semana
de Páscoa, encontrei um bom motivo para puxar assunto, mas
o papo foi bem rápido:
- Já sabe qual ovo de Páscoa você vai ganhar no domingo?
- Não vou ganhar, minha mãe não tem dinheiro para comprar.
O silêncio surgiu novamente, pois eu não sabia como
prosseguir a conversa. A resposta dela me pegou de surpresa,
não fazia parte do roteiro que criei em minha mente antes de
puxar assunto. Ficamos quietas até o sinal tocar para
retornarmos à aula. Fiquei pensando na Manu por algumas
horas e tentei entender como que alguém que estudava numa
escola tão cara, não ganharia ovo de chocolate.
Contei a situação dela aos meus pais durante o almoço e pedi
dinheiro para comprar um ovo para dar de presente.
22
No dia seguinte, passei o recreio todo ao lado dela, trocamos
meia dúzia de palavras, a conversa não fluía de jeito nenhum.
Isso se repetiu por dois dias, até que chegou sexta-feira e
entreguei o ovo de Páscoa para ela, foi a primeira vez que a vi
sorrindo. Minha atitude ajudou a quebrarmos o gelo e
começamos finalmente a conversar, nos tornando
companheiras de recreio e, como ela morava perto da escola,
comecei a frequentar a casa dela. Entendi o olhar triste de
Manu, ela tinha uma infância bem difícil, sem estrutura familiar,
o pai era ausente porque trabalhava em outra cidade e aparecia
pouco em casa e, quando isso acontecia, bebia sem controle
algum e se tornava um homem agressivo, descontando a fúria
na mulher, que era agredida. Presenciei mais de uma vez esta
cena, quando a agressão começava, a mãe dela nos pedia para
que fôssemos ao quarto ou que saíssemos de casa, nós não
sabíamos o que fazer diante a situação, então infelizmente não
conseguíamos evitar e ajudar a mãe.
Certo dia, estava com dinheiro da minha mesada, então quando
estávamos indo para a casa dela, a puxei para dentro da padaria
Real para comprar guloseimas para a gente, deixei que ela
escolhesse o que estivesse com vontade de comer. Paramos em
uma praça e nos entupimos com tantos doces. Foi gostoso vê-la
comer com tanta vontade, repetimos isso uma outra vez.
Nos tornamos muito unidas, desabafávamos sobre nossas vidas,
já tínhamos nossos conflitos internos mesmo ainda sendo
crianças. Nossa única brincadeira era andar de patins na
garagem do prédio onde ela morava, tínhamos conversas de
adolescente, trocávamos conselhos e não papéis de carta.
Até que um dia, fui surpreendida com uma notícia triste demais.
Manu me contou chorando que a mãe avisou que se mudariam
para Ribeirão Preto em menos de uma semana para ficarem
mais perto da família. Não entendi se o pai ia também ou se a
mãe resolveu ir com os filhos para ser acolhida por familiares.
A nossa despedida foi muito triste e rápida, suficiente apenas
23
para um forte abraço e troca de poucas palavras, prometemos
que continuaríamos sendo amigas, ela garantiu que me ligaria
para conversarmos assim que possível, mas se me ligou não
fiquei sabendo e, poucos meses depois, quando fui morar em
São Paulo, mudou o número do telefone dos meus pais, não
existia celular naquela época para facilitar e, nossa amizade
ficou perdida por não termos como nos comunicarmos.
Sonhei várias vezes com a Manu, fiquei preocupada se ela
estava bem, foi o término de amizade mais dolorido para mim.
Estas foram minhas quatro amigas na infância. Além delas,
tive amizade com dois meninos que eram irmãos, moravam em
Sorocaba e alguns finais de semana, iam com os pais para a
chácara deles que ficava bem na frente de onde eu morava, era
apenas atravessar a rua. Eram meus amigos de bagunça e não
para ficar conversando, com a companhia deles me divertia
com brincadeiras consideradas de meninos e, foi com o mais
velho, que tinha dois anos a mais do que eu, que vivi minha
primeira paixão platônica, alimentei este sentimento por mais
de um ano. Ele gostava de brincar comigo, mas não me notava
como menina e eu sabia que era apaixonado por uma garota da
escola. Até que um dia, me convidou para a festa de aniversário
dele que aconteceu no Mc Donald’s do shopping Esplanada,
em Sorocaba. Eu, a criança emocionada, em meu mundo
fantástico de Bob, sonhei acordada e minha imaginação fértil
foi longe demais por acreditar que ele me pediria em namoro
durante a comemoração, afinal demonstrou que fazia questão
da minha presença. Cantamos parabéns e o primeiro pedaço de
bolo foi para a menina que ele gostava e, para o meu azar,
estava bem ao meu lado. Paguei mico porque quando vi o
pratinho indo em minha direção, logo estendi meu braço para
pegá-lo. Obviamente peguei o ar porque meu primeiro crush,
desviou o prato da minha mão e entregou para a menina.
Fiquei sem reação, tive vontade de me enfiar embaixo da mesa
e ficar aguardando ansiosamente o mundo acabar.
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Não consegui esperar chegar em casa para chorar após minha
primeira decepção amorosa, me tranquei no banheiro, a mãe do
menino notou a minha demora e foi atrás de mim, fingi que
estava passando mal para justificar a minha cara de choro.
Jamais daria o gostinho para o menino saber que estava
chorando por causa dele. Não consegui lidar com meus
sentimentos e fui me afastando aos poucos, quando me
chamava no portão para brincarmos, comecei a evitá-lo.
Não fiz questão de me despedir dele quando fui embora.
E por fim, tentei fazer amizade com uma menina que raramente
aparecia com a mãe em Araçoiaba, a casa delas de veraneio
ficava na mesma rua, por pouco não éramos vizinhas.
Elas moravam em São Paulo, num bairro chamado Moema.
Nossos santos não bateram. Um dia, ela bateu no portão
porque queria brincar comigo, deixei entrar, brincamos com os
cachorros, depois tive a péssima ideia de mostrar os desenhos
que estava fazendo de um pinguim. Eu era apaixonada pelo
mundo da papelaria, tinha muitas canetas coloridas, lápis de cor,
réguas e estava numa fase de fazer arte. Criava bloquinhos para
anotações: dobrava o papel sulfite em quatro pedaços, cortava
nas linhas para que os tamanhos ficassem iguais, grampeava a
lateral e, para ilustrar a capa, copiava o desenho de um pinguim
segurando uma fatia de melancia – era personagem de algum
desenho conhecido na época, mas não me lembro do nome.
Comecei a vender estes bloquinhos na escola por cinquenta
centavos e, permitia que quem comprasse, escolhesse a cor da
roupinha do pinguim. Foi assim que nasceu meu lado
empreendedor. Com o sucesso dos bloquinhos, comecei a fazer
agenda telefônica no mesmo estilo, cortava os quadradinhos nas
laterais de cada página para que as letras em ordem alfabética
ficassem visíveis, como as agendas vendidas em papelaria.
Detalhes contados, voltamos para a menina que não era minha
amiga. Mostrei para ela os pinguins que estava finalizando de
pintar. Quando ela viu, a única coisa que me disse foi:
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“Que feios!”, em seguida, pegou uma folha com os pinguins,
virou do outro lado, começou a riscar com uma caneta,
estragando então o meu trabalho. Eu fiquei indignada,
arranquei o papel da mão dela, amassei e a expulsei de dentro
de casa. Ela saiu correndo em direção a um monte gigante de
areia que estava no quintal porque meu pai contratou um
pedreiro para construir uma nova casa no terreno.
A menina subiu no monte e começou a bagunçar, fui atrás dela,
meu pai já começou a gritar pedindo para que saíssemos dali.
Ela chutou um tanto de areia em minha direção, sem pensar
duas vezes, enchi minhas mãos com o máximo de areia que
pude e joguei na cara dela sem dó, os óculos que usava não a
protegeu de sentir grãos nos olhos. Me empurrou e foi embora
chorando, enquanto eu dava risada. E foi assim que acabou
uma amizade que nem começou.
***
Sempre fui uma criança obesa, descontava na comida os
sentimentos que não conseguia lidar, principalmente ansiedade
e frustrações, também era como se eu pudesse preencher meu
vazio interno me entupindo de doces. Era incontrolável minha
vontade de atacar qualquer coisa gostosa que encontrasse na
frente, não tinha limites, tanto que meus pais começaram a
esconder todas as guloseimas de mim. Quando sentia muita
necessidade em me entupir com doce, comecei a comer
colheradas de Nescau e gelatina, ambos em pó e puros, sem
dissolver em nada. Eram opções que não eram escondidas, até
perceberem que estavam acabando rápido demais.
Passei boa parte da infância sofrendo bullyng de outras crianças,
era um inferno conviver com os apelidos e brincadeiras idiotas
na escola. E quanto mais me sentia humilhada, mais buscava
conforto na comida. Não conseguia cortar o mal pela raiz.
Tornou-se um conflito enorme dentro de mim o fato de ser
uma criança obesa e, consequentemente, passei a odiar meu
corpo, mas não conseguia parar de comer compulsivamente.
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Na casa da Rafa tinha piscina, quando estávamos apenas nós
duas, eu não tinha vergonha em ficar com maiô, mas bastava ter
mais alguém que eu sequer entrava na água. Um dia, a mãe dela
notou que tinha algo de estranho, pois eu era a única criança
fora da piscina e estava muito calor, ela insistiu para que eu
entrasse na água. Chorando, pela primeira vez, externei que
odiava meu corpo. Solidária, buscou uma camiseta e me
entregou, pediu para que eu entrasse na piscina a usando por
cima do maiô. Dois meninos ficaram me caçoando dizendo que
não sabiam que baleia usava roupa. Nesse dia, decidi emagrecer
porque não aguentava mais ouvir comentários sobre meu
corpo. Cheguei em casa chorando e pedi ajuda para a minha
mãe que foi muito compreensiva e, alguns dias depois, me
matriculou num grupo chamado ‘Vigilantes do peso’, eu era a
única criança da turma, mas fui muito bem recebida. Era
necessário seguir um plano alimentar e havia meta semanal para
perda de peso. Batia todas as metas e estava emagrecendo
rapidamente, mas me sentia muito triste com esta situação, não
conseguia comemorar. Aos 8 anos, me obriguei a deixar de ser
gorda, com o objetivo de ser aceita e parar de ouvir apelidos
que me machucavam.
Incluí atividades físicas na minha rotina, andava mais de
bicicleta, caminhava ao redor das construções na chácara: era a
casa principal, na frente tinha um espaço onde ficava o poço,
em seguida, a construção que meu pai estava realizando e por
fim, a garagem. Cada volta era uma boa caminhada e, como
meta, determinei dar quinze voltas por dia. Vendo este
empenho, meu pai pediu para os pedreiros construírem uma
pequena quadra na lateral de casa e pendurarem uma cesta de
basquete para que eu brincasse. Comecei a emagrecer sem tanto
sofrimento, descobri o poder da endorfina.
Nesta época, estava na moda os patins Roller, aproveitei para
pedir de presente, imediatamente meu pai foi contra, disse que
eu não levava jeito para patinar e que viveria machucada.
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Insisti por um bom tempo, até que o convenci, mas ele me
disse: “Se você quebrar braço, perna ou a cabeça, não vou te
levar ao hospital porque te avisei que se machucaria!”.
Foi minha mãe que me levou quando quebrei o braço direito.
Fiquei com trauma e nunca mais consegui patinar.
***
Um menino que estudava comigo, convidou todos da nossa
sala, independente se era amigo próximo ou não, para o
churrasco em comemoração do aniversário dele. Lembro até
hoje do convite com a arte do time de futebol São Paulo.
Além das informações de dia, hora e local, pedia para levar
trajes de piscina. Eu não levei propositalmente e fui uma das
primeiras a chegar na festa. A casa parecia de novela, era uma
mansão com quatro andares, quase toda de vidro, tinha
elevador, me senti numa loja chique de móveis. Fui recebida
pela irmã mais velha dele que tinha uns 15 anos, avisou que
meu colega estava terminando de se arrumar e me levou até o
quarto dela. Ela questionou sobre meu maiô, eu disse que havia
esquecido, achei que passaria batido, mas ela fez questão de me
emprestar um, dizendo que eu não poderia deixar de aproveitar
a piscina. Como eu não sabia dizer ‘não’, aceitei e vesti.
Coloquei meu vestido por cima e estava tudo certo. Aos poucos
os outros convidados foram chegando e nos reunimos ao redor
da piscina. O calor estava insuportável e quando me dei conta,
era uma das poucas crianças que não estava brincando na água.
Em uma das laterais, havia um tobogã que parecia ser divertido,
eu nunca tinha descido em um. Para me refrescar e tentar me
enturmar com as crianças, tirei meu vestido, pois o calor estava
maior que a vergonha. Meu plano era sair correndo até o
tobogã e descer o mais rápido possível, pois dentro da água,
ninguém ficaria notando o meu corpo.
O plano deu certo até o momento que caí na piscina, era mais
funda do que imaginei e eu não sabia nadar. Caí e afundei, não
conseguia subir, abri os olhos embaixo da água e, consciente do
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que estava acontecendo, o meu afogamento no caso, me
desesperei e acabou piorando a situação, não conseguia
encostar os pés no chão para dar impulso e subir, também não
sabia como movimentar o corpo ou o que fazer para conseguir
pelo menos colocar a cabeça para fora da água, fechei os olhos.
Senti meu corpo sendo puxado com força para cima, fui salva
por um adulto que me notou embaixo da água. E eu acabei me
tornando uma atração, todos pararam para me ver ser salva.
A mãe do aniversariante achou melhor eu ir embora porque
quando minha ficha caiu, entrei em choque. Ela ligou para a
minha mãe avisando o que havia acontecido e pediu que me
buscasse. Na semana seguinte, estava matriculada na natação.
***
Em boa parte da infância, tive uma saúde bem frágil, ficava
doente com muita facilidade e desde bebê sofria com bronquite
asmática. Não podia correr por muito tempo que logo ficava
com falta de ar, quando tinha crise asmática era apavorante.
Meu pediatra era contra bombinha, então o que me salvava era
fazer inalação em casa com gotas de um remédio que deixavam
minhas mãos trêmulas. Era comum ter que ir ao hospital para
fazer a inalação mais forte que o aparelhinho de casa.
Numa das vezes que fiquei internada, estava muito debilitada
com pneumonia, depois de dois ou três dias no hospital, não
me lembro, recebi a visita do meu pai. Eu mal conseguia me
mexer na cama, estava recebendo soro na veia e com o inalador
no rosto. Ele entrou no quarto e começou a fazer algumas
palhaçadas para mim, eu não achei graça nenhuma, mas ri.
As crises de bronquite pioraram quando nos mudamos para
Araçoiaba, algo que não fazia muito sentido. Passei em todos os
principais médicos de Sorocaba, mas nenhum conseguiu uma
boa solução para o meu caso, não adiantava mudar os
medicamentos. Minha cura aconteceu, mas não foi através de
algum doutor. Uma vizinha comentou com minha mãe sobre
uma benzedeira que morava na região, que já havia curado
29
muitas pessoas e não cobrava nada porque gostava de ajudar
com amor. Fomos atrás dela, nos recebeu muito bem, após
entender meu caso, incorporou um guia espiritual que me
benzeu e pediu para que minha mãe anotasse num papel, o que
precisava comprar para ser colocado no xarope medicinal que
seria preparado pela senhora. Saímos da segunda visita com
uma garrafa grande de vidro transparente cheia de xarope
marrom com algumas coisas mergulhadas. Não me lembro de
nada do que foi colocado, além de muito mel. Segui direitinho o
tratamento, ainda mais porque o sabor era delicioso, todas as
vezes que tomava uma colherada, me sentia muito bem.
Minhas crises foram diminuindo até que pararam. A minha cura
precisou ser espiritual e sou muito grata a essa senhora que me
ajudou. Depois desse acontecimento, meu pai que era médium
e incorporava guias, mas estava afastado desde o acidente,
retornou ao trabalho espiritual. Eu não entendia muito bem o
que significava incorporação, mas como ocorria em casa,
acabava presenciando e participando. Meus pais chamavam o
momento de reunião espiritual, não acontecia com frequência.
Confesso que eu tinha um pouco de medo, pois achava que o
espírito invadisse o corpo do meu pai, afinal a voz, a maneira de
falar e a postura corporal eram totalmente diferentes, então
minha preocupação era que o espírito não fosse mais embora
do corpo dele. Meu pai sempre incorporava os mesmos guias,
um Preto Velho que chegava pedindo café bem forte e que
minha mãe preparava especialmente para ele, e um Caboclo que
eu nunca entendia o que estava dizendo. Um tempo depois, na
pré-adolescência, deixei de participar destas reuniões.
***
Os quatro anos que moramos na chácara, foram muito bons
para nós três, mas individualmente. Cada um vivia num
mundinho próprio, tínhamos nossos momentos em família
principalmente durante as refeições, mas a maior parte do
tempo era como se fosse cada um por si.
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A construção que meu pai investiu no espaço entre a garagem e
o poço, foi um mistério no início. Parecia que nem ele sabia o
que realmente queria fazer ali. Ouvi uma conversa e entendi que
estava construindo uma casa para ele morar ou um canto para
ficar sozinho. Talvez estivessem passando por alguma crise no
casamento, mas como não me contavam o que realmente estava
acontecendo e, nunca fui uma criança questionadora, embora
tivesse muita curiosidade, deixava quieto e fingia que estava
tudo bem, mesmo sabendo que não estava.
A construção foi concluída em dois meses, era grande, quase do
tamanho da casa principal, aos poucos foi deixando do jeito que
queria e ali tornou-se um espaço exclusivamente dele, era uma
mistura de escritório com uma nova moradia. Meu pai começou
a passar quase o dia todo sozinho lá, saia apenas para comer em
casa. Cada vez foi ficando mais distante. Foi uma época que ele
começou a estudar astrologia, até comprou um telescópio para
ver o céu todas as noites. Muitas noites, dormia sozinho na
casa-escritório, aparecia no café-da-manhã, eu só queria
entender o que estava acontecendo. Ele deixava claro que não
queria ser incomodado quando estivesse lá, nós o respeitávamos.
Percebia que minha mãe não estava lidando muito bem com
esta situação, mas não me dizia nada. A ausência do meu pai
não proporcionou aproximação e fortalecimento da relação
entre nós duas, mas por mais que eu sentisse falta de tê-la mais
próxima de mim, já estava me acostumando com a maneira dela
de ser. Foram poucas as vezes que ele me chamou para visitá-lo
no novo lar, mas quando me convidava, eu ia feliz por ter sido
lembrada e por me deixar jogar paciência no computador.
Lembro de quando ele chegou com uma caixa grande em casa,
parecia uma criança com um novo brinquedo, colocou no meio
da sala e abriu devagar com todo o cuidado possível, nos
mostrou o computador como se fosse algo de outro mundo.
Outra lembrança é de quando finalmente chegou telefone em
casa, já tínhamos em São Paulo, mas demorou para este avanço
tecnológico chegar em Araçoiaba. Acompanhava minha mãe até
31
algum dos poucos orelhões disponíveis na cidade para que
conseguisse falar com minhas irmãs, era comum vê-la bem
brava quando as fichas acabavam antes de concluir a conversa
ou quando o “orelhão comia a ficha”, como me dizia.
Minhas irmãs nos visitaram poucas vezes enquanto moramos
na chácara, eram independentes, não moravam mais juntas.
Elas achavam a chácara muito longe e parecia que não faziam
questão de estar com a gente, eu adorava quando iam e tentava
aproveitar ao máximo a presença delas. Eu e minha mãe,
começamos ir à São Paulo com frequência, na fase que meu pai
resolveu se isolar no escritório. Durante nossa ausência, ele não
ficava sozinho na chácara, pois a moça que fazia faxina, dormia
lá para ajudá-lo com algo, caso fosse necessário. Algumas vezes,
minha mãe decidia ir sozinha durante a semana para passar
alguns dias, eu não conseguia acompanhá-la por causa da
escola. Certa vez, ficou quase um mês sem voltar para a
chácara. Eu e meu pai nos virávamos bem sem ela, o motorista
me levava à escola e em outros lugares, o caseiro mantinha a
ordem na chácara e a moça ia diariamente fazer faxina.
No final de um dia, quando estava próximo da hora dela ir
embora, começou uma tempestade digna de filme de terror.
Ela ficou esperando passar, mas escureceu e já estava tarde para
ir embora a pé, meu pai a convenceu para dormir em casa, até aí
tudo bem. Era normal acordar no meio da madrugada com
qualquer barulho diferente ou então para ir ao banheiro, mas
como meu quarto era suíte, não precisava sair dele. Acordei e
por algum motivo, saí do quarto, notei que a televisão da sala
estava ligada, fui até lá achando que meu pai ainda estivesse
acordado, mas não tinha ninguém, inclusive a moça que deveria
estar dormindo em um colchão. A porta do quarto dos meus
pais estava fechada, abri com calma para não o acordar. Com
minha mãe ausente, ele estava dormindo lá para não me deixar
sozinha na casa durante a madrugada. A cena que vi através da
fresta foi meu pai deitado na cama virado para o lado da janela
e a moça deitada virada para a porta, um de costas para o outro.
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Achei bem estranho. Fechei a porta e voltei para meu quarto.
Assim que amanheceu, acordei com a moça na cozinha
preparando o café-da-manhã como se nada tivesse acontecido,
o comportamento do meu pai foi o mesmo. Fiquei calada.
Cresci com este segredo sem comentar com ninguém, nem
mesmo com meu pai. Não sei o que aconteceu naquela
madrugada para a moça precisar dormir com ele no quarto,
talvez tenha sido melhor não saber.
***
A família sempre foi desunida, nunca tivemos um Natal com
todos os parentes juntos. Não tive o tio do pavê. Ainda bem.
Minha mãe só tinha um irmão mais velho, mas quando nasci,
eles já não se falavam mais porque tiveram uma briga feia no
passado. Até os meus 17 anos, quando fugi de casa, eles ainda
não se falavam. Nunca soube o motivo da briga, pois minha
mãe não gostava de lembrar que o irmão existia. Sendo assim,
como nosso contato foi inexistente, não pude considerá-lo
como tio. Meu pai tinha três irmãos e uma irmã. Dois seguiram
também a área de Direito, um era cirurgião dentista e minha tia
era professora. O tio que nunca me deu o quebra-cabeça
morava em Campinas, era juiz e o mais distante de todos, e não
digo isso apenas pela distância entre cidades, era bem ausente.
Os outros moravam em Sorocaba, mas cada um com sua
própria família construída e não tinham o costume de se
reunirem, nunca vi todos meus tios juntos. Tive sete primos no
total, mas nenhum era criança como eu, já estavam adolescentes
ou na fase adulta. Senti falta de crescer brincando com primos.
Minha tia era quem me dava mais atenção, talvez por ser
professora e ter mais jeito com crianças. Gostava de visitá-la,
eram tardes divertidas na companhia dela. E é com ela que
tenho mais lembranças. O irmão mais novo do meu pai,
também Promotor de Justiça, me acolheu durante uma época
que precisei ficar hospedada na casa dele, enquanto meus pais
foram a São Paulo para comprar um apartamento, pois o qual
33
moramos no início da minha infância, ficou para minha irmã do
meio. Era para ter sido apenas uma semana e acabou durando
mais de um mês, ainda bem que meus tios eram legais.
Eles tinham um filho adolescente, a casa era bem grande e me
deixavam à vontade. Adorava visitar o pai da minha tia, um
senhor muito querido que fazia convites de casamento com
caneta de pena. Amava observá-lo fazendo arte na escrita.
***
Acredito que os avós são figuras importantes na vida da gente.
Não tenho lembranças dos meus avós paternos, quando fui
adotada ainda eram vivos, mas ambos morreram antes de eu
completar um ano. Um dia, meu pai me entregou uma caixinha
antiquíssima, quando abri me deparei com um relógio de bolso,
então me contou a história: quando era bebê e estava no colo
do meu avô, ele encostava o relógio no meu ouvido e acreditava
que o barulhinho tic-tac me acalmava porque eu dormia
rapidamente. Quando adoeceu, já sentindo que talvez não
vivesse por mais tanto tempo, entregou o relógio ao meu pai e
pediu para que me desse em algum momento da minha vida.
Tive bastante convivência com os avós maternos, durante a fase
que moramos na chácara, os visitávamos com frequência.
Os dois já eram bem velhinhos e guardo boas lembranças de
ambos. Meu avô tinha 91 anos, era um alemão alto, bem magro,
cheio de rugas, olhos bem azuis e cabelo branquíssimo.
Ele adorava conversar comigo, ficava feliz com a minha
presença, me puxava para nos sentarmos na mesa pequena da
cozinha e começava a me contar histórias. Em questão de
poucos meses, elas começaram a ficar repetidas, me contava
sempre as mesmas, seguindo uma sequência, como se fosse pela
primeira vez. Começava me contando as lembranças que tinha
quando morava na Alemanha com os pais e depois do dia que
chegaram no Brasil de mala e cuia, fugitivos da Guerra Mundial.
Me contava como foi a viagem nos mínimos detalhes, ele era
criança na época, mas o dia da fuga, o marcou demais.
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Um dia, voltando para casa, questionei minha mãe porque vovô
repetia as mesmas histórias, sendo que eu estava cansada de
ouvi-las, pois já sabia todas de cor, mas não tinha coragem de
reclamar com ele. Foi então que me contou sobre a doença
Alzheimer que infelizmente estava se agravando com rapidez.
Ela me deu uma aula didática sobre a doença, nunca mais
reclamei que vovô repetia tanto e, até o último dia que o vi
quando ainda conseguia falar, escutei com carinho como se
estivesse me contando pela primeira vez. Acompanhei a
evolução da doença nele, a cada semana estava mais debilitado,
falava com muita dificuldade até que parou de se comunicar.
Dependia da minha avó para tudo, tornou-se uma criança
novamente, precisava de ajuda para qualquer coisa, quando os
visitamos antes de voltarmos a São Paulo, foi muito triste vê-lo
da maneira que estava, uma estrutura hospitalar foi montada no
meio da sala onde dois enfermeiros se revezavam para cuidar
dele. Já não se lembrava mais de ninguém, nem da minha avó.
Ele morreu poucos meses depois desse dia.
Minha avó era um pouco mais nova, estava com 86 anos, era
bem magra, um pouco mais alta do que eu, cabelos pretos
escondendo todos os fios brancos, adorava me presentear com
frasco de alfazema, sempre que ia à farmácia, comprava para
mim, não sei por qual motivo, colocou na cabeça que eu
gostava tanto. Foi a responsável por me apresentar o melhor
doce de leite da minha vida e do mundo, feito por ela.
Vovó ficava mais de uma hora na frente do fogão, mexendo
com uma colher de pau a panela com leite, açúcar e uma pitada
de bicarbonato de sódio. Doce de leite raiz. Ela dizia que o
segredo era não parar de mexer. Quando chegava no ponto,
então esparramava o doce no mármore, deixava esfriar e
cortava sempre no mesmo formato, em losangos.
Era delicioso, não precisava mastigar porque derretia na boca.
Nunca mais encontrei outro igual, guardo o sabor na memória.
Uma vez tentei fazer, mas não tive paciência para respeitar o
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principal segredo e parei de mexer mais de uma vez. Além de
queimar o fundo, boa parte do doce grudou na panela.
Vovó era ligada no 220, não conseguia ficar parada, descia e
subia as escadas da casa com agilidade, ia ao mercado sozinha,
carregava o peso que fosse, não aceitava ajuda de jeito nenhum.
Sempre estava arrumada, poderíamos visitá-la qualquer hora
que a encontrávamos maquiada, para ela não existia roupa de
ficar em casa, dizia que pijama foi feito apenas para dormir.
Ela era muito carinhosa e amorosa, tinha um amor imenso por
meu avô, eram casados há mais de sessenta anos, passaram a
vida juntos. Era da altura dele quando estava sentado e toda
hora, dava um selinho ou um beijo na testa dele. Não media
esforços para agradá-lo. Quando ele estava no estado bem
crítico, já parando de se movimentar, ela não saia de perto e a
única reclamação era que não aguentava vê-lo daquela maneira,
dizia que se pudesse escolher, preferia morrer antes, não teria
forças para continuar vivendo sem vovô. No entanto, ele
morreu antes. Minha avó, teimosa que era, não quis sair da casa,
dizia que ficaria ali até o fim da vida. Era gigante para ela morar
sozinha, tinha dois andares, minha mãe fez de tudo para
convencê-la a ir morar em um lugar menor. O vazio que meu
avô deixou foi grande demais, a ausência dele era sentida assim
que chegávamos. No fim, vovó não aceitou sair da casa, não
quis saber de contratar alguém para fazer companhia e não quis
ir morar conosco em São Paulo, apenas queria ficar sozinha no
lugar onde passou a vida com o homem que tanto amou.
Este pedido foi atendido por respeito, mas minha mãe ficava
muito preocupada, ligava várias vezes ao dia para saber se
estava bem. Minha avó não queria que a filha se preocupasse,
então fingia que estava ótima, porém a tristeza era cada vez
mais nítida. Ela sempre foi muito lúcida, mas estava começando
a ter sinais de Alzheimer, contava lembranças que tinha com
vovô, de momentos que viveram juntos, mas era incapaz de
dizer o que havia feito de manhã.
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Minha mãe a convenceu de ir morar numa clínica de repouso
para idosos, já que de alguma maneira estaria perto da casa
onde sempre viveu e teria todos os cuidados necessários. Era
um sobrado bem espaçoso, os idosos eram cuidados com muito
amor pela equipe de enfermeiros e acompanhantes, cada idoso
tinha um quarto próprio. Minha avó se adaptou bem, quando
íamos visitá-la estava sempre sorrindo. Ela estava perdendo
cada vez mais a memória, mas não perdia a vaidade, nunca a vi
sem batom. O quarto estava sempre organizado, um porta-
retrato com uma foto dela com vovô não saía do criado-mudo.
Quando a visitávamos, sempre nos mostrava essa foto e
contava com orgulho quem era aquele homem, como se não
soubéssemos. As únicas reclamações eram: ser obrigada a usar
fralda geriátrica e não conseguir mais tomar banho sozinha. Na
última vez que fui visitá-la com minha mãe, ela continuava do
mesmo jeito, a doença não evoluiu com tanta rapidez como
aconteceu com meu avô, e ela nos apresentou uma senhorinha
muito fofa que era vizinha de quarto, falava dela com tanto
carinho como se fossem amigas de infância e tivessem se
reencontrado ali.
***
Passei a maior parte da infância, me sentindo o patinho feio da
família, com a mente sempre inquieta, querendo ser notada por
apenas duas pessoas: meus pais. Sentia uma vontade muito
grande deles me enxergarem, que brincassem comigo ou me
abraçassem quando meu vazio interno se tornava insuportável.
Fui uma criança que chorava bastante, não na frente deles, mas
sozinha no quarto, às vezes nem tinha um motivo específico,
mesmo assim sentia vontade, pois chorar me acalmava.
Eu via pais abraçando os filhos e não entendia por que comigo
não era assim. Me culpava, achando que o problema fosse eu,
como se não fosse uma filha legal para eles. Quando entendi de
fato o que é adoção, comecei a alimentar dentro de mim o
medo de ser abandonada novamente e acabei gerando um
37
sentimento de rejeição muito grande, foi incontrolável. Com a
falta de comunicação que existia entre nós, mais toda
dificuldade que eu tinha em me expressar e externar o que
sentia, carreguei sozinha todos os sentimentos que me faziam
mal. Nunca me faltou nada material, tive todos os brinquedos
que quis, ganhava as roupas que queria, adorava a marca
Pakalolo. Sempre estava bem arrumada, com as melhores
roupas, era uma princesinha.
Fui uma criança cheia de medos e sentia um vazio dentro de
mim que me incomodava demais, doía, mas não conseguia
identificar o motivo. Por mais que eu tentasse, não entendia
como sentia uma dor que não sabia explicar de onde vinha ou
como começava. Várias vezes, me machuquei fisicamente de
propósito porque percebi que, ao sentir dor na minha pele,
amenizava a dor interna, precisava me dar algum motivo para
sentir uma dor real, que eu pudesse ver o machucado.
Eu tinha cinco anos quando comecei a beliscar o meu braço
com força ou puxar meus cabelos quando tinha vontade de
sentir a dor física. Com sete anos, essas duas atitudes deixaram
de surtir o efeito desejado, então comecei a bater na parede
com a palma da mão aberta até começar a doer ou então batia
no meu corpo com o punho fechado, me dava socos que
causavam hematomas. Meus pais jamais souberam disso, nunca
surtei na frente deles, me trancava no quarto porque queria
estar sozinha, era um momento apenas meu.
Por dentro, um turbilhão de sentimentos, por fora era uma
criança calma. A mente sempre inquieta, pensante, me tornaram
uma criança que gostava de estudar, de aprender, era muito
curiosa sobre a vida. Aos sete anos, decidi que não queria mais
ser criança, meu sonho era dormir e acordar adulta. Já estava
cansada da infância, não fazia mais sentido continuar ali, presa a
um momento da vida que eu não via graça e nem sentido.
Acabei amadurecendo antes do que deveria.

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Meus pais e irmãs me amaram da maneira deles, demonstrações
de afeto eram raras, mas isso não era apenas comigo, acontecia
entre eles também. Desde pequena me sentia deslocada, como
se não me encaixasse naquela família, então tinha uma vontade
muito grande de conquistá-los. Puxei esta responsabilidade para
mim e apenas me frustrei.
O que mais quis durante a infância foi conseguir me sentir
incluída na vida dos meus pais e no mundo. Olhava ao meu
redor e tudo era muito estranho.
Cresci sentindo falta de abraços fortes, cafunés, de ouvir que
me amavam. Sentindo falta de ser mais criança.
Não posso afirmar que minha infância foi ruim ou boa, mas
posso dizer que foi bem estranha. No entanto, consegui manter
minha criança interna viva e é isso o que importa.
Olho para as minhas filhas e desejo que tenham uma infância
leve e doce, sem preocupações de gente grande, que vivam os
sonhos infantis, que não cansem de ser crianças, que brinquem
até cansarem, que se sintam protegidas em meus abraços e
nunca duvidem do quanto são amadas.

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CAPÍTULO 2 – ADOLESCÊNCIA
Me perder pra me encontrar
Em janeiro de 1996, cheguei em São Paulo com minha mãe
para iniciarmos uma nova fase, após a temporada que durou
quatro anos no interior. Nos vimos pouco nos últimos dois
meses porque ela ficou acompanhando a evolução da reforma
do novo apartamento, enquanto precisei ficar com meu pai em
Araçoiaba, para concluir a quarta série na escola.
Eu estava empolgada com a mudança de cidade, pois significava
um novo recomeço e desde criança, acredito que novos ciclos
significam uma nova oportunidade para conquistarmos tudo o
que desejamos na vida e ainda não conseguimos realizar. Minha
expectativa era que finalmente nos tornaríamos uma família
mais unida, principalmente porque estaríamos novamente mais
perto das minhas irmãs. Senti muito porque precisamos doar
Paco, Luna e Fedra, algo que nunca aceitei, mas meus pais não
queriam cachorros no apartamento. Não soube do paradeiro
dos meus amigos caninos, quando perguntei com quem
ficariam, tive como resposta apenas: “Eles ficarão bem!”. Não
pude me despedir deles, por um lado foi bom porque me doeria
mais ainda ao vê-los indo embora da chácara e da minha vida,
guardei na lembrança a última vez que brincamos juntos.
Meu pai continuou sozinho na chácara por quase três meses até
encontrar alguém que a comprasse e resolvesse toda a parte
burocrática da venda. Me lembro do dia que chegou em São
Paulo, era um sábado, como o ano letivo havia começado, eu já
tinha uma nova amiga, a Sônia. Tínhamos combinado de irmos
juntas num evento da igreja que ela frequentava com a família,
fui com toda ansiedade do mundo querendo que acabasse logo
para poder estar em casa quando meu pai chegasse, mas ele
acabou chegando antes de mim.

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O reencontro não foi caloroso o quanto imaginei, achei que
encontraria meu pai feliz por estar com a família reunida, afinal
minhas duas irmãs estavam presentes e fazia muito tempo que
ele não tinha um momento com as três filhas juntas. No entanto,
estava com um mau humor que só por Deus, não conseguia
nem se esforçar para entrar no clima de comemoração. Acho
que consegui disfarçar a frustração antes de me isolar no meu
quarto.
Antes de vender a chácara, minha mãe foi passar alguns dias
com ele e fiquei em São Paulo com minha irmã. Nunca vou me
esquecer do domingo que ela me acordou com a notícia da
morte dos integrantes do ‘Mamonas Assassinas’, ela sabia o
quanto eu era fã e que escutava escondida. Chorei tanto nesse
dia, pois o sonho de conhecê-los pessoalmente um dia, foi
interrompido da pior maneira. Considero festa boa aquela que
toca pelo menos uma música deles.
***
Quando me matricularam no Bandeirantes, meus pais já me
avisaram que a adaptação seria bem difícil, por ser considerado
um dos colégios com a educação mais rígida de São Paulo, mas
como até então eu era uma ótima aluna que tirava apenas notas
altas, estavam confiantes que eu manteria a disciplina escolar.
Senti muita diferença logo no primeiro dia, mas adorei a
dinâmica dos professores e a novidade de ter matérias diferentes
que até então nem sabia que existiam, como por exemplo,
biologia e desenho geométrico e, senti falta de Estudos Sociais.
Apesar da dificuldade que enfrentaria, prometi para mim que
faria o possível para manter as boas notas e atender as
expectativas dos meus pais, afinal sempre quando viam meu
boletim, me davam atenção.
***

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No fim do primeiro dia de aula, na hora de ir embora, acabei
me perdendo e parando no andar abaixo do portão de saída, vi
uma escada e quando estava quase descendo, uma menina me
abordou perguntando se eu sabia por onde saia da escola.
Respondi que também queria saber, rimos muito e fomos juntas
procurar o portão. No caminho, começamos a conversar e
descobrimos que estávamos na mesma classe. Além da turma
ser grande, éramos em quase quarenta alunos, a minha timidez
excessiva não me permitiu observar quem eram meus colegas
de classe naquele primeiro dia. Ela era muito simpática, gostei
dela logo de cara, não lembro como descobrimos em tão pouco
tempo neste primeiro encontro que tínhamos algo em comum:
o signo escorpião. Enfim, encontramos o portão e, na hora de
nos despedir, Joana pediu o número do meu telefone.
Estudávamos no período da tarde, era a única opção porque na
parte da manhã eram as turmas do colegial e ainda estávamos
na quinta série. Estranhei chegar em casa já sendo noite,
precisei me adaptar com isso também. Chegando, contei
entusiasmada à minha mãe como havia sido meu primeiro dia
de aula. Meu pai ainda estava em Araçoiaba. Liguei para a Rafa
contando sobre a nova escola, ela me contou também sobre as
novidades na vida dela, tudo era novo para a gente, estávamos
com 11 anos, mas nos sentíamos adolescentes.
Quando desligamos, após poucos minutos, tocou o telefone e
achei que fosse a Rafa querendo me contar algo que havia
esquecido. Atendi e era a Joana, minha nova amiga, ela estava
com uma dúvida na lição de casa e queria minha ajuda.
Aproveitamos para fazer a lição juntas por telefone. Depois
ficamos quase uma hora conversando e nos conhecendo
melhor, além de escorpianas, descobrimos várias afinidades e
gostos parecidos. Joana se tornou minha melhor amiga.
Criamos o hábito de fazermos as lições juntas por telefone
enquanto assistíamos clipes da MTV. No colégio, começamos a
sentar bem próximas durante as aulas e passávamos o recreio
juntas, éramos como carne e unha, confidentes, super parceiras.
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Comecei a frequentar a casa dela, principalmente em época de
prova. Assim como eu, ela era bem estudiosa. Joana era filha
única de pais bem jovens, a mãe dela era exatamente a mãe dos
meus sonhos, lembro que não tinha nem 30 anos e era muito
amiga da filha, me recebia sempre com um forte abraço e fazia
com que eu me sentisse em casa. Admirava muito a relação
entre elas, eram extremamente amigas. Em alguns finais de
semana e principalmente nas férias, íamos para a casa de praia
delas, em Riviera de São Lourenço. Todas estas viagens eram
maravilhosas, me faziam um enorme bem, pois me desligava
completamente dos meus conflitos internos. Nos divertíamos
demais com qualquer coisa, com momentos simples, como um
passeio no shopping ou lendo juntas a revista ‘Capricho’.
Sempre quando voltava para casa, me batia bad, era inevitável.
A Joana era mais do que amiga, a considerava como uma irmã
que a vida me deu e se pudesse, moraria com ela e os pais.
Ao mesmo tempo que tinha esta vontade, me sentia mal por
pensar assim, afinal eu tinha uma família e sabia que era errado
desejar uma outra, então preferia observar meus pais e acreditar
que para sermos uma família feliz era apenas questão de tempo.
No colégio Bandeirantes, as turmas das séries são divididas de
acordo com as notas dos alunos, então na sexta-série eu e Joana
não caímos na mesma sala. Apesar de me esforçar, meu
desempenho despencou, minha média era sete nas notas,
enquanto a dela era oito para cima. Tudo continuou igual,
passávamos o recreio juntas, fazíamos as lições de casa por
telefone, continuei frequentando a casa dela e viajávamos.
Tínhamos o mesmo estilo de nos vestir, gostávamos das
mesmas marcas de roupa, seguíamos todas as modinhas do
momento, éramos patricinhas. Joana era muito comunicativa e
extrovertida, então fez novas amizades com o pessoal da nova
classe, ela tentou me incluir nesta nova turma de amigos, mas
não conseguiu por minha culpa. Eu não sentia ciúmes com o
fato dela ter outros amigos porque nunca me deixou de lado e
43
fiz novas amizades também. Demos o primeiro beijo na mesma
época, mas eu ‘tirei meu BV ( “boca virgem” como
chamávamos ) antes dela, foi quando começamos a frequentar a
matinê que acontecia aos domingos na Krypton, uma baladinha
para pré-adolescentes que ficava na Vila Olímpia, um bairro
chique de São Paulo. Em um desses domingos, foi quando
beijei pela primeira vez, o escolhido foi um menino que não
lembro do rosto quanto menos do nome, ele me puxou e já
começou a me beijar num canto escurinho na lateral da pista de
dança, eu não tive tempo de ver se era bonito ou não, mas pelo
menos o beijo foi bom porque me fez querer mais. Gostei tanto
da experiência que logo me tornei beijoqueira nas matinês.
Ir à Krypton, significava beijar vários e eu não estava nem aí se
isso era certo ou errado. A Joana nunca me julgou por beijar
tantos desconhecidos, ela aguardava o momento de ‘tirar o BV’
com algum menino que fosse especial na vida dela.
Já era 1999 e estávamos na oitava série, nunca mais fomos
colegas de sala, pois meu desempenho foi caindo com o passar
dos anos, reflexo de toda minha bagunça interna e o que estava
acontecendo ao meu redor. Fiz amizade com uma menina que a
Joana não ia com a cara, chegamos numa fase que eu não
gostava da turma de amigas dela e, ela também não apreciava a
minha, mas conseguíamos conciliar isso numa boa, na medida
do possível. Em uma das vezes que fui à casa dessa menina para
fazermos um trabalho escolar, resolvemos passar trotes por
telefone para algumas pessoas da escola. Até que ela sugeriu de
passarmos trote para a Joana, concordei por acreditar que ela
não ficaria chateada quando soubesse que foi uma brincadeira.
Foi a menina que ligou e fiquei ao lado como cúmplice, não me
lembro qual foi o conteúdo da conversa, mas como combinamos
que não comentaríamos sobre nenhum trote, então fiquei quieta
e meu maior erro foi não ter contado e conversado sobre isso
com a Joana. Após alguns dias, ela descobriu de alguma maneira
que não sei como, o fato de eu ter sido participado do trote.
44
Quando cheguei no colégio e fui cumprimentá-la, me empurrou
com pouca força, mas o suficiente para me afastar e, começou a
brigar comigo dizendo que estava sabendo do trote, que eu
tinha a traído, pediu para nunca mais olhar na cara dela e por
fim, disse que jamais me perdoaria. E, como boa escorpiana, ela
cumpriu e nunca me perdoou. Joana não permitiu que eu me
defendesse, me deixou falando sozinha e não quis mais nenhum
tipo de contato comigo. Quando nos encontrávamos na escola,
ela desviava de mim como se nunca tivéssemos sido amigas.
Por um lado, a compreendi por saber que despertei o sentimento
de traição, algo que escorpianos não perdoam, mas nunca
entendi como que nossa amizade acabou por um motivo que
poderíamos ter resolvido de uma outra maneira. Um dia, decidi
ligar para ela porque queria pedir perdão, mas desligou na
minha cara. Nunca mais tentei e tive que saber lidar com a
ausência dela em minha vida. Durante a adolescência, não tive
outra amizade intensa como foi a nossa, no máximo tive
colegas, não consegui mais confiar em outra pessoa tão cedo.
Na oitava série, eu já não tinha mais contato com a Sônia, não
mantemos a amizade quando ela mudou de escola no ano
anterior. Gostava muito dela, mas não me sentia à vontade de
abrir minha vida, não éramos amigas confidentes. Ela e a irmã
nasceram no Brasil, mas os pais e a avó eram coreanos e apenas
conversavam no idioma deles para o meu desespero, afinal não
entendia nada e nem adiantava me esforçar.
Como ela morava a um quarteirão depois de mim, então da
quinta até a sétima série, ia pelo menos duas vezes por semana
na casa dela para almoçar e irmos juntas ao colégio que era bem
perto. Todos na mesa conversavam em coreano, inclusive ela,
enquanto isso, eu comia sem dizer nada, me esforçando a gostar
da comida que era bem tradicional da cultura deles, eles
consumiam apenas produtos coreanos. Aos poucos fui me
acostumando com os sabores exóticos e aprendi a apreciar
alguns pratos. Cada pessoa tinha um lugar fixo para se sentar à
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mesa, a avó sempre ficava ao outro lado da mesa, bem na
minha frente. Após comer, ela dava um gole de água,
bochechava bem e cuspia tudo no copo, eu via os pedacinhos
de comida boiando, com isso nunca me acostumei.
Sônia e a irmã recebiam uma educação bem severa do pai, ele as
agredia com um pedaço de madeira caso desobedecessem a
alguma regra, como por exemplo, se tirassem qualquer nota na
escola que não fosse dez. Na sala, uma bandeira enorme da
Coréia do Sul ficava pendurada no alto, mostrando o orgulho
que tinham da nacionalidade deles. Não faziam questão de falar
português, nem sei se entediam o que eu conversava com as
filhas. Elas eram proibidas de assistir qualquer tipo de conteúdo
brasileiro na televisão, o pai chegava em casa todos os dias com
fitas cassetes de novelas, desenhos, filmes e telejornais coreanos
que alugava numa locadora. Eles mantinham os costumes da
cultura coreana. Era como se o apartamento deles fosse um
pedaço da Coréia do Sul dentro do Brasil.
Me viciei numa bala de café que sempre tinha estoque na casa
deles. Na última vez que nos encontramos, Sônia me deu dois
pacotes. Nós sabíamos que poderia ser nossa despedida, e
acabou sendo mesmo.
Neste período do Ensino Médio, meu relacionamento com
meus pais apenas piorou, eu vivia entre meus ciclos depressivos,
me fechava no meu quarto que era meu mundinho.
Não dependia apenas de mim ter um bom convívio familiar e
como não notava nenhuma mudança por parte deles, fui me
desanimando para realizar as minhas. A vontade de ter uma
família feliz foi ficando para trás e me cansei de tentar conquistá-los.
Nos distanciamos ainda mais, comecei a me sentir como uma
visita e não filha. Continuava carregando meu vazio e os
conflitos internos apenas aumentavam, fingia que estava tudo
bem, mas sei que eles sabiam que não era bem assim. Percebia
que também não estavam bem, afinal cada um vivia no próprio
mundo particular, apenas morávamos no mesmo apartamento.
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Enquanto eu ficava no meu quarto, meu pai passava horas
fechado no escritório entre seus estudos. Ele decidiu aprender
várias coisas ao mesmo tempo, como por exemplo, contratou
um rabino que dava aulas particulares de hebraico. E minha
mãe continuava sendo uma dona de casa exemplar, era a
responsável por manter a organização do apartamento, além de
cozinhar diariamente, aliás, a comida dela era maravilhosa, zero
defeitos. Como meu pai sofria com pressão alta então ela tinha
o cuidado de colocar o mínimo de sal possível na comida,
acostumei meu paladar e até hoje prefiro que a comida seja
menos salgada possível. É difícil alguém entender o meu gosto
peculiar de amar pipoca e batata frita sem sal.
Quando finalizava as atividades domésticas, o lugar preferido
dela era ficar numa poltrona no espaço da biblioteca, um
cantinho da paz onde se entregar à leitura era uma boa fuga. No
início da noite, tinha como hábito beber cerveja preta e, com
apenas uma lata, as bochechas já ficavam rosadas. Minha mãe
não tinha amigas, era muito sozinha, quando saia para passear
era para ir ao shopping Paulista porque dava para ir a pé, eu a
acompanhei em vários passeios. Às vezes, ela me convidava
para fazer algo de diferente, como tomar sorvete no ‘Alaska’ -
melhor sorveteria da minha infância, que ficava no bairro
Paraíso e soube que fechou em 2019, infelizmente. Um dia me
chamou para irmos ao cinema, assistimos ‘Titanic’, não me
lembro de termos assistido outro filme estando juntas. Ela
adorava comprar roupas para nós duas, se havia algo que nunca
me negava era justamente me vestir com roupas de marca, as
dela também eram.
Tivemos uma fase mais leve, que durou um pouco mais de um
ano. Não conseguimos ter uma relação de amizade ou cumplicidade,
a barreira entre nós duas nunca deixou de existir, mas fizemos
companhia uma para outra em alguns momentos. Ela devia se
sentir muito sozinha com o meu pai passando tanto tempo no
escritório, focado nos estudos e em todo mistério que envolvia
a rotina dele.
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Minha mãe era uma mulher muito vaidosa e elegante, gostava
de jóias, de estar bem-vestida, com o cabelo sempre impecável.
E tinha as fases que não tirava a camisola e ficava dias seguidos
sem sair de casa. O estado de espírito dela acompanhava o do
meu pai, mas em algumas épocas que ele estava muito estranho,
ela conseguia manter a autoestima.
Quando comecei a ter dificuldade nos estudos, me obrigou a
estudar com ela. Eu precisava ler os textos da matéria em voz
alta, parágrafo por parágrafo e, em seguida, me bombardeava de
perguntas sobre o conteúdo lido. Essa tática não deu muito certo
porque não tínhamos paciência uma com a outra e, no final das
contas, discutíamos mais do que estudávamos. Voltei a me virar
sozinha com as matérias de humanas e para as de exatas, ela
contratou um professor particular que era extremamente calmo
e paciente, me explicava quantas vezes fossem necessárias. Ele
era muito inteligente, formado em engenharia química, trabalhou
durante anos no Japão onde aproveitou para se especializar em
algo que não me lembro, então voltou ao Brasil e não conseguiu
emprego porque pasmem, o curriculum vitae dele era considerado
bom demais e, por ser um profissional tão qualificado, as
empresas não queriam bancar um salário equivalente ao que ele
merecia. Não era contratado por ser um profissional
maravilhoso. Começou a dar aulas particulares para juntar
dinheiro e ir embora para o exterior, pois ele tinha emprego
garantido na área que buscava, apenas precisava conseguir
chegar lá. Foi meu professor por quase quatro meses e devo
muito a ele, lembro que antes da primeira aula começar, disse
que me ensinaria química de uma maneira que eu me
apaixonaria pela matéria. Bem, não me apaixonei, mas pelo
menos consegui entender as fórmulas e tirar boas notas no
período que ele me ensinou.
***
A ilusão de preencher meu vazio com comida voltou com tudo,
recuperei todos os quilos perdidos e adquiri tantos outros.
48
Tendo mais independência e liberdade para sair de casa sozinha,
inclusive ia e voltava da escola a pé, aproveitava para passar em
uma padaria no meio do caminho ou em alguma loja que
vendesse doces. Todos os dias me entupia de guloseimas no
meu quarto, escondida dos meus pais, eles não precisavam mais
esconder todos os doces de mim, eu fazia meu próprio estoque.
E era assim que eu me proporcionava prazer momentâneo com
uma sensação boa, mas que não durava por muitos minutos e,
quando o efeito passava, surgia um sentimento horrível de
culpa. Prometia que era a última vez, mas no dia seguinte lá
estava eu escolhendo outros doces. Me sentia viciada em
alguma droga pesada. Vivi nesse ciclo por longos meses. Foi
neste período que me tornei bulímica. Após me entupir de
doces, quando a culpa batia fortemente, ao invés de ficar
chorando e me torturando psicologicamente, corria ao banheiro
para colocar tudo para fora. Era uma maneira de me punir e de
acabar com a culpa. Meus pais não desconfiavam ou fingiam
muito bem que não percebiam. Essa fase da bulimia durou por
quase um ano. Coloquei um ponto final de uma maneira
natural, fui diminuindo aos poucos até que parei, mas confesso
que tive recaída em vários outros momentos da minha vida,
inclusive na fase adulta.
***
Voltar a morar em São Paulo e estarmos mais próximos das
minhas irmãs, não significou que estariam mais perto de nós.
A mais velha morava com o marido na Mooca, um bairro
distante. O casamento deles foi no cartório de Araçoiaba, em
uma cerimônia simples. Ela se formou em Direito e estava no
início da carreira de Promotora, seguiu os passos do pai.
Durante a semana, se dedicava ao trabalho e, na maioria dos
finais de semana, ela ia com o marido ao sítio dos pais dele em
Atibaia. Ou seja, raramente nos visitava. Fui algumas vezes ao
sítio com eles, era um lugar muito gostoso, com piscina e
bastante espaço para matar saudade da infância no meio do
49
mato. Eu achava o máximo dormir sozinha em um chalé que
ficava a poucos metros da casa principal, me sentia uma
mocinha independente. O sítio sempre estava cheio de gente
porque a família do meu cunhado era grande, mas antissocial
que era, eu gostava de ficar passeando sozinha durante o dia.
Um dos negócios do sogro da minha irmã era a comercialização
de carne de rã, então no sítio havia uma construção gigante com
todas as fases do crescimento desse animalzinho, eram tanques
grandes desde quando eram girinos. Adorava acompanhar a
evolução e nunca tive coragem de comer carne de rã.
***
Minha irmã do meio continuou morando sozinha no
apartamento onde vivemos parte da minha infância, passou por
um momento bem difícil enquanto morávamos em Araçoiaba e
segurou a barra sozinha. Ela namorava com um moço que eu
adorava, me levavam para vários passeios, ele fazia parte da
nossa família como se fosse nosso irmão. Ele foi viajar sozinho
porque minha irmã estava em semana de prova e decidiu não o
acompanhar. Antes de sair de casa para a viagem, ligou para ela
avisando que já estava indo e fez uma declaração de amor.
Como ela não estava em casa para atendê-lo, ouviu a mensagem
dele na secretária eletrônica - os recados ficavam gravados em
uma pequena fita K7, era uma das coisas mais modernas
daquela época. Ele sofreu um acidente na estrada e morreu no
local. Minha irmã se culpou por não ter ido junto e por não
estar em casa quando ele ligou. Foi muito difícil para todos nós,
ele era muito querido por mim e meus pais, torcíamos para que
se casassem. Depois deste acontecimento, ela demorou para
tomar um novo rumo na vida e eu não julgo.
Aos poucos se recuperou e voltou a estudar. Algum tempo
depois, conheceu um cara com quem começou a se relacionar,
eu e meus pais não gostamos dele quando o conhecemos, mas
eles começaram a namorar. Além dele não trabalhar, começou a
dormir com frequência no apartamento da minha irmã e meu
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pai começou a se incomodar com a situação, principalmente
porque começou a perceber que o genro estava se aproveitando
da minha irmã. Como ela não estava trabalhando e era meu pai
que a bancava, então ele não aceitava que um homem
aproveitasse desse luxo. Para piorar, diante todo o mistério
envolvido sobre esse namorado, nosso pai resolveu investigá-lo
por conta própria e descobriu que além do moço não ser réu-
primário, ainda era envolvido com drogas, como se fosse mula.
Diante todos estes fatos, meu pai surtou, proibiu o namoro
entre eles e o expulsou do apartamento, porém minha irmã
manteve o relacionamento às escondidas. Meu pai começou a
ficar desconfiado com o comportamento estranho dela,
resolveu aparecer no apartamento sem avisar e flagrou os dois
juntos. A briga foi feia e alguns dias depois minha irmã sumiu,
resolveu fugir com o moço. Ficou semanas sem dar notícias,
nossa vida virou um inferno com o sumiço dela porque não
sabíamos se estava viva. Meus pais colocaram um identificador
de chamadas caso ela ligasse, para descobrirem o paradeiro dela.
Não deu outra, um dia ligou e pelo rastreio do número, estava
no litoral. Estava arrependida e pediu para voltar para casa.
Ela perdeu o direito de morar sozinha e foi obrigada a morar
conosco. No meu quarto era uma bicama e ofereci para que
dormisse na parte de baixo, meu pai não deixou. Ela tinha que
dormir num colchão no meio da sala. Fui obrigada a participar
do castigo dado, o tratamento era como se ela precisasse sofrer,
para aprender sentindo dor. Eu sentia empatia e tinha dó dela,
não achava certo como a tratavam, ela errou sim, mas não
merecia passar por humilhação como punição. Sempre quando
eu conseguia, dava atenção, me sentava no colchão e ficava ali,
às vezes quieta, outras vezes puxava assunto. Não queria saber
se levaria bronca do meu pai. Via e sentia o sofrimento dela e
acreditava no quanto estava arrependida. Durante este período
de castigo da minha irmã, meu pai resolveu ir morar sozinho no
apartamento onde ela morava. Pelo que entendi, foi uma
decisão que rolou de repente, sem aviso prévio à minha mãe.
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Numa tarde, ele foi com a justificativa que precisava organizar
algumas coisas, mas a noite caiu e ele não voltou, decidiu que
dormiria lá. A distância de um apartamento para o outro era de
apenas dois quarteirões, não havia desculpa de estar tarde para
voltar andando para casa. O esperamos no dia seguinte para o
café-da-manhã e nada, mas apareceu para o almoço, depois de
comer pegou algumas roupas e voltou ao apartamento. Apenas
disse que precisava ficar um tempo sozinho. No outro dia,
minha mãe não aguentou e resolveu conversar com ele, já que
estava um mistério todo envolvido, ela queria pelo menos uma
explicação, voltou abatida muitas horas depois e com poucas
palavras. Pegou uma lata de cerveja, sentou-se na poltrona e
ficou calada, talvez processando todas as informações que ouviu.
Até que resolveu desabafar um pouco, entre algumas lágrimas,
contou que conversaram bastante e ele passaria uma temporada
sozinho. Ele foi nos visitar poucas vezes, minha mãe que ia
visitá-lo quase todos os dias, às vezes me pedia para levar algo,
eu ia desconfiada e com medo, mas ele sempre me recebeu
bem, apesar de achá-lo estranho demais. Nunca consegui
perguntar o motivo daquilo tudo e foram nestas visitas que
concluí definitivamente que não tínhamos afinidade nenhuma,
mais de uma vez ele quis forçar uma amizade que não existia
entre nós. Um dia me perguntou do nada se eu já tinha
namorado e se era virgem, não entendi o motivo desta pergunta
aleatória e totalmente fora de contexto do que estávamos
conversando. Não tínhamos intimidade para que ele me
perguntasse sobre qualquer coisa que envolvesse minha vida
amorosa ou sexual. Me senti invadida e ofendida. Diante todos
meus conflitos internos e a infelicidade estampada na minha
cara, a única preocupação do meu pai era simplesmente saber se
eu era virgem. Eu tinha 13 anos e sim, ainda era. O meu único
desejo era que minha família fosse normal e unida, e não ter um
namorado. Comecei a achar meu pai estranho, forçando uma
relação que não existia, estava mais carinhoso comigo, mas não
me convencia, era tudo muito sem sentido. Um outro dia, ele
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me deu dinheiro sem que eu pedisse, disse que era para eu ir ao
shopping e comprar algo para mim. Adorei, mas fiquei bem
desconfiada. Comecei a me sentir muito incomodada ao visitá-
lo, então comecei a evitar. Quando minha mãe pedia para eu
levar algo, inventava qualquer desculpa para não ir, comecei a
perceber que também evitava visitá-lo. “Será que ele também
está se comportando de uma maneira estranha com ela? Meu
Deus, o que está acontecendo com meu pai?” - me perguntava.
Enquanto isso, minha irmã continuava de castigo em casa, era
prisioneira do homem que deveria protegê-la, ela não saia nem
para comprar pão. Minha mãe não fazia nada para mudar essa
situação, talvez tivesse medo de tirá-la do castigo e meu pai
descobrir a desobediência. Alguns meses depois, a punição foi
diminuindo e meu pai investiu um tratamento para minha irmã
com um dos melhores psiquiatras da cidade, enquanto sempre
achei que a situação poderia ter sido resolvida também com
amor e acolhimento. Se ele estava disposto a bancar um
tratamento caríssimo, que então tivesse feito isso desde o início,
desnecessário fazer a filha ficar meses em reflexão, aprendendo
na dor. A verdade é que todos tínhamos que fazer análise e
tratamento com psiquiatra, não apenas minha irmã. Queria
muito ter voz para exigir que fizessem terapia de casal ou no
mínimo sessões individuais. Estavam todos errados, estava tudo
errado, inclusive eu, por me calar diante tantos absurdos que
ouvia, via e sentia desde a infância.
Nem sempre quem cala, consente. Uma pessoa calada pode ser
uma pessoa com medo. Não acho certo empurrar a filha para
um psiquiatra cuidar e não dar demonstrações de amor a ela.
Uma pessoa com problemas ou distúrbios psicológicos não se
cura apenas com amor ou apenas com um doutor, mas com o
conjunto desses movimentos externos. Em 1998, minha irmã
conheceu um novo amor que soube da situação que ela estava
enfrentando e, mesmo tendo conhecimento de toda a bagunça,
escolheu ficar com ela, a apoiando e ajudando. Foi tudo muito
53
rápido e intenso entre eles. Ele foi um anjo na vida dela, dava
todo o amor que ela precisava e merecia. Em menos de dois
meses, estavam noivos e foram morar juntos. Em menos de um
ano, casaram-se numa cerimônia linda e emocionante. A festa
foi chique demais e pela primeira vez, vi meus pais e irmãs
realmente felizes e unidos, do jeito que queria que fosse sempre.
Eu peguei o buquê, juro que não foi marmelada.
***
Após quase um ano isolado no outro apartamento, meu pai
voltou a morar conosco, mas depois de alguns meses, resolveu
passar uma nova temporada isolado. Dessa vez, eu gostei da
ideia, pois estar longe dele significava menos brigas entre nós.
Tudo parecia estar fluindo bem, mas foi apenas uma ilusão, os
conflitos externos surgiram e foram apenas piorando. O clima
estava cada vez mais estranho e pesado, voltamos a viver em
nossos mundinhos individuais e paralelos.
Comecei a ter coragem de me posicionar, de dar minha opinião
no que achava errado, deixei de abaixar a cabeça e me calar, mas
isso significou o início da minha rebeldia. A troca de ofensas
tornou-se parte da rotina e a adoção que nunca foi algo bem
resolvido dentro de mim, acabou me causando um sentimento
horrível, não era apenas de rejeição. Em várias brigas, meu pai
jogou a adoção na minha cara: “Eu não deveria ter te adotado”
– ele me dizia aos berros. Não deixava por menos e devolvia:
“E eu não queria ter um pai como você!”. O respondia com
toda a valentia que uma adolescente com 14 anos pode ter, mas
em seguida me trancava no quarto para chorar como criança
porque na verdade tudo o que eu mais queria era tê-lo como
um pai normal e não aquela figura masculina indecifrável e tão
ausente mesmo estando presente. Eu poderia calar a boca do
meu pai me transformando na melhor versão que poderia me
tornar, para que nunca mais gritasse que não deveria ter me
adotado. No entanto, o efeito causado foi exatamente o oposto,
quis dar motivos reais para que ele se arrependesse da adoção.
54
Despertei a fúria no meu pai, pois fui a única que teve audácia
de o confrontar. Eu não tinha medo do que poderia perder ou
do que deixaria de ganhar. Cresci vendo minhas irmãs e mãe
abaixando a cabeça para ele, sem coragem de se defenderem,
engoliam seco as respostas que gostariam de dar ou então não
sabiam como agir diante tanta grosseria ou arrogância. Eu não
as julgava porque também fui assim, até a rebeldia me ajudar a
ter voz e externar tudo o que fui obrigada a engolir.
Meu pai era o dono do dinheiro, era quem bancava toda a
estrutura financeira familiar. Tínhamos tudo do bom e do
melhor graças a ele. Era esse o poder que tinha sobre nós.
Ele não controlava nada, minha mãe podia gastar à vontade o
cartão sem precisar ficar dando satisfação. Era a maneira que
conseguia demonstrar amor à família, nos proporcionando uma
vida boa, digna e confortável. Sabíamos que ao brigar com ele, a
consequência seria sair da zona de conforto, por isso era melhor
abaixar a cabeça e se calar. Quando decidi entrar numa batalha
com ele, eu sabia que estava fazendo uma escolha ali, pois
deixaria de continuar ganhando. E tudo bem. Não eram todos
os dias que rolavam brigas, mas eram intensas, nos agredíamos
verbalmente. Sabíamos muito bem como cutucar os pontos
fracos do outro. Me fazia muito mal brigar com ele, demorava
dias para me recuperar emocionalmente.
***
Com a chegada da rebeldia, um novo ciclo depressivo começou
a surgir com força. Eu dormiria o dia inteiro se deixassem, era
um sacrifício sair da cama e ir à escola ou para qualquer outro
lugar. Meu pai me deu uma trégua, pois começou a passar mais
tempo no outro apartamento do que em casa.
Perdi a vontade de estudar, matava algumas aulas, comecei a
fumar cigarro. O desejo pelo proibido começou a aparecer.
Comecei a furtar dinheiro da carteira da minha mãe. Gostava da
sensação que a adrenalina me causava por conta do medo de ser
pega no flagra fazendo algo que eu sabia o quanto era errado.
55
Minhas notas baixas geraram indignação, comecei a ser
chamada de vagabunda simplesmente pelo fato de não estudar
mais como antes. Diante meus boletins, meu pai me dizia:
“Você nunca será alguém na vida!” e foram tantas vezes que
começou a me convencer. Ouvir que eu era vagabunda, me
causava uma raiva muito grande. Sabia que o melhor que
poderia fazer por todos nós seria voltar ao que eu era antes,
sem me entregar a rebeldia, me calando quando meu pai
provocasse e fingindo que estava tudo bem. As mudanças, no
entanto, não tinham que partir apenas de mim, a transformação
tinha que ser geral. Percebia que quando cometia um erro, eu
recebia muito mais atenção do que fazendo algo de bom, afinal
fazer coisas boas não passavam da minha obrigação como filha.
Me conectei com a minha sombra. Era mentira atrás de mentira,
eu já não aguentava mais aquela realidade, mentia até para mim
mesma, tentando me convencer que tudo ficaria bem, mesmo
sabendo que já estava tudo perdido. Minha vontade de fugir de
casa começou nesta época porque eu olhava ao meu redor e me
perguntava o que estava fazendo ali. Queria que eles me
perguntassem o que estava acontecendo comigo, que me
dessem um abraço, que me enxergassem e tivessem interesse
em me conhecer, pois não sabiam quase nada sobre mim.
Comecei a ter medo de dormir e fazerem algo comigo, pois fui
proibida de dormir com a porta fechada do meu quarto.
Um dia cheguei em casa e me deparei com os meus pais
quebrando todos os meus CDs, eles tinham descoberto mais
um erro meu: deixei de ir à escola, alguns dias antes deste
episódio, para me encontrar com um menino que conheci no
bate-papo do UOL. Eles leram na minha agenda - um diário
onde relatava como eram meus dias - que eu guardava no fundo
da última gaveta da minha escrivaninha. Depois disso, continuei
escrevendo e comecei a guardar a agenda em outro esconderijo.
Sentar comigo e conversar para quê, não é mesmo? Se resolver
o problema acabando com meus CDs enquanto me xingavam
56
com todos os palavrões que conheciam era a melhor solução?
Foi a primeira vez que ouvi a voz da minha mãe em uma briga
porque até então, ficava calada apenas observando. Fiquei
surpresa com a reação que teve, foi um dia de fúria dela.
Vê-los quebrando os CDs é uma cena que nunca me esquecerei,
os dois estavam enfurecidos como se tivessem descoberto que
cometi um crime horrendo, matado alguém. Matei aulas. Como
bem relatei no diário, não fui a escola para poder conhecer o
menino em outro bairro, nem sexo fizemos, demos alguns
beijos apenas e me decepcionei porque o garoto era bem
diferente do que havia imaginado. Fiquei quieta esperando que
os dois terminassem o show, considerando aquilo tudo uma
grande loucura por parte deles, mas por fora estava bem plena.
Confesso que fiquei com medo deles neste dia, por isso preferi
ficar em silêncio, provavelmente eu apanharia dos dois. Por
dentro eu chorava, meus CDs eram muito especiais para mim,
os escutava quase o dia inteiro porque ouvir músicas sempre me
acalmou. Naquela época, não existiam aplicativos com músicas,
então para apreciar nossas bandas preferidas, era apenas
comprando os CDs e os meus eram todos originais. Quando já
estavam quase terminando o momento de fúria, peguei um dos
últimos que ainda estava intacto e, bem escorpiana provocativa
e debochada, o quebrei dando risada. Se eles estavam esperando
que a minha reação seria ter chilique, com gritos ou pedindo
que pelo amor de Deus parassem com aquilo, se enganaram.
Não derramei uma lágrima na frente deles, me desabei de
chorar durante o banho.
Mesmo não me dedicando mais aos estudos, mantive a média e
passei de ano tranquilamente. Quando peguei o resultado da
aprovação, cheguei em casa gritando: “A vagabunda passou de
ano!”. Nas férias, fui surpreendida com uma viagem a Curitiba,
já estava ouvindo meus pais conversando sobre isso, mas achei
que eu não estivesse incluída nela. Para a minha surpresa, me
levaram também, foi nossa primeira e única viagem, de nós três
juntos. Por conta das questões de saúde do meu pai, dele ter
57
dificuldade de caminhar e precisar de uma bengala como apoio,
então nunca havíamos feito uma viagem em família e não
poderíamos ir para muito longe, pois ele não conseguia ficar
tanto tempo sentado. Criei muitas expectativas, mas foi bem
diferente do que imaginei. Eles estavam bem animados e nem
desconfiei que seria excluída dos planos durante a viagem.
Assim que chegamos, me surpreendi com o hotel chique. No
check-in surgiu a primeira surpresa: era um quarto para eles e
outro apenas para mim. Quando me deixaram no quarto, a
segunda surpresa: meu pai me entregou um envelope com
trezentos reais e avisou que eu teria a liberdade de fazer o que
bem quisesse durante o dia pela cidade, mas às 18hs eu deveria
estar no meu quarto e não poderia sair do hotel à noite. Entendi
o recado, agradeci o voto de confiança e obedeci.
Foi uma semana de férias juntos, mas distantes. Conheci todos
os shoppings de Curitiba, fui em pontos turísticos, explorei
todo o bairro onde estávamos e os mais próximos.
Senti falta de companhia durante meus passeios, mas ao mesmo
tempo a sensação de liberdade estava incrível para mim, uma
jovem com 14 anos. O único momento do dia que me
encontrava com meus pais era no café-da-manhã, almoçamos
juntos apenas duas vezes e, enquanto eles saiam todas as noites
para jantar em algum restaurante da cidade, eu estava liberada
para pedir o que quisesse para comer no quarto. Interpretei esta
viagem como uma lua-de-mel após tantos anos de casamento.
Na terceira noite, depois que jantei no meu quarto, resolvi
descer no saguão porque eu vi que tinham uns livros em uma
mesa de centro. Era umas 20hs, a regra dada foi clara: eu não
poderia sair do hotel à noite, mas meu pai não avisou que não
poderia sair do quarto. Assim que saí do elevador, vi no fundo
do saguão, meus pais e uma mulher sentados num sofá bem
grande. Notei que estavam conversando com empolgação e os
três estavam extremamente bem arrumados. Quando me
aproximei, percebi que papai ficou bem sem graça, minha mãe
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ficou muda, mesmo assim fui apresentada àquela mulher: “Essa
é a Raquel, nossa filha caçula!” e “Essa é nossa amiga fulana de
tal”. Amiga? Nunca nem tinha ouvido falar nela, mas tudo bem.
Me sentei na ponta do sofá, percebi que a minha presença
mudou a empolgação da conversa, mas continuaram o papo,
eles estavam esperando uma pessoa buscá-los de carro. Não
fiquei mais do que cinco minutos porque o assunto estava chato
demais para mim e senti que estava os atrapalhando de alguma
maneira, voltei para o quarto. Nunca soube quem era a amiga
ou o que foram fazer naquela noite.
Voltamos a São Paulo com meu pai tendo a ideia de irmos
morar em Curitiba e começou a planejar, ainda bem que
desistiu com o tempo, pois seria apenas mais uma mudança e
para uma cidade fria. Àquela altura do campeonato, sabia que
não importaria em qual apartamento, cidade ou país morássemos,
jamais seríamos uma família feliz.
***
Os sentimentos que carreguei da infância se potencializaram no
auge da adolescência, quando estava perto de completar 15 anos.
O vazio interno era muito maior, parecia que tinha apenas um
buraco dentro de mim, como se eu fosse oca. O sentimento de
rejeição apenas piorava e minha autoestima cada vez mais baixa,
eu me sentia a menina mais feia do mundo, não suportava me
olhar no espelho e ver meu corpo que estava cada vez maior.
Eu não conseguia me aceitar da maneira que era. Tentava
chamar atenção e me incluir nas panelinhas da minha turma
sendo patricinha, usando as marcas que todas as meninas da
escola usavam. Na época surgiu e logo virou tendência entre as
adolescentes a marca Guaraná Brasil, outra marca muito usada
era a Polo Ralph Lauren, além das bolsas da Kipling.
Como não havia uniforme no Bandeirantes, o desfile de moda
era natural e normalizado. Queria estar por dentro das modinhas
mesmo não gostando de algumas. Lembro que do nada virou
59
moda usar corda de violão como pulseira e não era apenas uma,
mas até metade do braço, eu achava aquilo horrível, fora que
puxavam pelos do braço, mas usava. Também me lembro de
um sapato branco com salto grosso e alto, não me lembro do
nome, era feio demais, no entanto, enquanto a modinha existiu,
não saíram dos meus pés. Eu me sentia fútil demais, além de
feia. Acreditava que nenhum menino me notaria.
A falta de diálogos, carinhos, elogios, acolhimento, abraços e
demonstrações de amor, me fizeram tornar uma adolescente
insegura. Já que meu sentimento era de não ser aceita por meus
pais, eu queria então ser aceita na escola, ser acolhida por algum
grupo de adolescentes, mas não consegui me incluir em
nenhum, pois minha timidez não me permitia interagir.
Meu pai investia muito nos meus estudos, fiz por muito tempo
inglês na escola ‘Berlitz’, em Moema. Depois fui estudar na
‘União Cultural’ porque era mais perto de casa. Também fiz
curso de informática assim que ganhei um computador.
Poderíamos ter um péssimo relacionamento, mas ele jamais
deixou de investir em mim. Mesmo que durante as brigas ele
dissesse que eu não seria ninguém na vida, lá no fundo sabia
que valeria a pena investir em mim sim.
***
Chegou 1999, o último ano no Ensino Médio e a pressão
psicológica começou para decidir qual seria minha profissão.
No Bandeirantes, desde o primeiro colegial, as turmas são
divididas entre exatas e humanas, então é obrigatório saber qual
caminho seguiremos. Eu estava totalmente perdida e sem rumo,
teria apenas um ano pela frente para tomar uma das decisões
mais difíceis da vida. Chegou o momento da pergunta “O que
você quer ser quando crescer?” ser levada a sério. Difícil ter 14
anos e já começar a pensar o que queremos ser na vida.
Como minha situação continuava de mal a pior e era nítido que

60
eu estava esgotada emocionalmente, já com indícios fortes de
depressão, meus pais finalmente me enxergaram e decidiram me
colocar na terapia, algo que eu continuava acreditando que eles
também deveriam fazer. Logo nas primeiras sessões, decidi o
que queria de mim no futuro: ser psicóloga.
Na infância, passei por dois momentos curtos com tratamento
psicológico, mas para mim foi indiferente, não consegui ver o
quão bonito é o trabalho. No primeiro acompanhamento, me
lembro que apenas desenhava em folhas de papel em todas as
sessões, foi um trabalho em conjunto com uma fonoaudióloga
porque além de ter dificuldade em me expressar, trocava o L
por R, B por P e tinha dificuldade em falar C e Z, desses
detalhes eu não me lembro tão bem, soube depois quando
minha mãe me contou. Guardo poucos flashes na memória
porque eu tinha apenas quatro anos. E na segunda vez, foi
quando participei do ‘Vigilantes do peso’ em Sorocaba, pois era
obrigatório ter acompanhamento psicológico.
Dessa vez, fiquei encantada com a profissão porque a psicóloga
simplesmente fazia o que eu tanto queria e precisava: era um
adulto que escutava tudo o que eu tinha para dizer e externar,
sem julgamentos, sem brigas, com bons conselhos e por fim,
ainda me dava um forte abraço enquanto me dizia que tudo
ficaria bem. Era tudo o que precisava para acalmar meu
coração. Qual era a dificuldade dos meus pais para terem este
comportamento? Tive que aceitar que preferiam gastar com
sessões de terapias para alguém cuidar de mim. Se com minha
irmã foi assim, comigo não seria diferente. Eu gostava tanto de
ir à psicóloga que faria sessão todos os dias sem reclamar, uma
hora era bem pouco, nem via passar. Ia embora me sentindo
em paz e leve, pelo simples fato de ter alguém que me ouvisse.
Ser psicóloga é saber tocar no mundo do outro com amor e
respeito. É a profissão mais bonita no meu ponto de vista.
***
61
Mais um dia na escola terminava, era a última aula em uma das
matérias que odiava: laboratório de química.
Sempre me posicionava estrategicamente no fundão, o que era
errado porque como tínhamos que ficar em pé ao redor da
bancada e sou baixinha, teoricamente teria que ficar na frente
para ter uma boa visão do que a professora ensinava, mas eu
preferia ficar no fundo mesmo, contando os minutos para ir
embora. Faltavam menos de quinze minutinhos quando o
garoto mais bonito da turma se aproximou de mim e começou
a me provocar. Apesar de ser um moleque bobo, ele era
gatinho, várias meninas pagavam pau para ele. E do nada
resolveu me dar bola. Desconfiada, achei que estivesse
brincando comigo, até que percebi que ele realmente estava
falando sério e tentando me seduzir. Combinamos que quando
a aula acabasse, iriamos embora juntos e no meio do caminho,
encontraríamos algum canto para nos beijarmos. Acabamos
parando numa rua sem saída que ficava exatamente na rua onde
morava com meus pais, a dois quarteirões do condomínio.
Corria um risco muito grande de ser vista, que delícia, queria
essa aventura. Já estava escuro, início da noite, nos escondemos
no fundo da rua, atrás de um carro estacionado. Ele começou a
me beijar, clima pegou fogo, até que tirou da mochila uma
camisinha e eu pedi para que guardasse, não queria transar de
jeito nenhum, além de ainda ser virgem, morria de vergonha do
meu corpo. Então para compensar a falta de sexo, me pediu
para fazer oral, obedeci com muita vontade e curiosidade para
saber como era. Agi no instinto, foi a primeira vez que estava
fazendo aquilo, até então o máximo que tinha feito foi
masturbar alguns meninos que beijei. Eu era bem romântica,
idealizava minha primeira vez com um namorado e não com
qualquer um. Para a minha surpresa, meu colega ficou louco
com o sexo oral que fiz, gemeu, gozou e elogiou dizendo que
tinha sido o melhor que tinham feito nele até aquele momento.
Insegura, perguntei se não tinha sido a primeira vez dele
também, mas me garantiu que não, aliás, não era mais virgem.
62
Fiquei emocionada com o elogio, fez bem para o meu ego e
autoestima, fiquei me sentindo a rainha do oral. Combinamos
que aquele seria nosso segredo e que não contaríamos para
ninguém. Santa ingenuidade minha!
No dia seguinte, chegando na escola, já comecei a sentir olhares
diferentes em minha direção, cochichos com risadinhas, dedos
apontados para mim, um menino do colegial me perguntou
quanto que eu cobrava e demorei para entender o que estava
acontecendo, até que uma menina que eu apenas conhecia de
vista, me abordou e perguntou se era verdade que eu tinha
chupado o Renato. A ficha caiu. Entrei em desespero e,
enquanto o procurava para tirar satisfação, fiquei perturbada
com tantas vozes ao meu redor, risadas, gente me chamando de
puta. Pensei em ir embora, sumir, sair correndo dali, mas decidi
enfrentar por mais que estivesse doendo ouvir tudo aquilo, não
ia dar o gostinho de demonstrar a minha tristeza porque eu
sabia que era isso que todos queriam. Da noite para o dia, me
tornei um bom alvo para os adolescentes brincarem e me
humilharem. Quanto ao Renato, a única coisa que ele conseguiu
me dizer foi que apenas contou para um garoto que era o
melhor amigo dele e não soube me explicar como que a fofoca
espalhou de uma maneira tão rápida.
Aguentei firme, não derramei nenhuma lágrima, nem mesmo
quando entrei na sala e me vi exposta na lousa para quem
quisesse ver: Raquel Puta. Eram risadas de todos os lados, o
que mais me doía era ver quem eu achava que gostava de mim,
rindo também. As últimas brigas com meu pai, que fiquei
calada, apenas ouvindo e fingindo que nenhuma ofensa me
atingia, me prepararam para esta humilhação na escola. No
recreio foi a mesma coisa, fui até a biblioteca pensando que
teria um pouco de paz, mas até lá me seguiram. Quando
finalmente cheguei em casa, me tranquei no quarto e desabei,
todas as lágrimas que segurei durante horas, enfim saíram.
Chorei em posição fetal. Senti raiva de mim por ter confiado no
Renato, senti raiva de várias pessoas que riram de mim.
63
Depois de chorar até a cabeça explodir de tanta dor, me
machuquei de propósito para sentir dor na pele e amenizar a
interna. Nesta época, eu já fumava, então queimei meu braço
com a ponta do cigarro algumas vezes.
Virei a puta da escola, essa fama nunca teve um fim, ainda bem
que faltavam apenas dois meses para acabar o ano letivo e eu
poderia ficar livre daquele povo falso moralista. Aos poucos fui
ficando bem, lidando da melhor maneira possível com a situação,
mas não quis mais contato com ninguém, quando a poeira
abaixou e algumas pessoas tentaram se reaproximar, as ignorei.
Tudo bem passar o recreio sozinha na biblioteca, melhor do
que estar com gente falsa.
A Leide, foi a única colega que me deu apoio neste período, me
ligou várias vezes para saber como eu estava, pois na escola não
tínhamos oportunidade de conversar tranquilamente. Nunca
fomos amigas, mas conversávamos durante algumas aulas.
Em uma comunidade do colégio Bandeirantes no Orkut, fiquei
sabendo que ela morreu em 2004 com leucemia. Senti muito
por não ter tido oportunidade de agradecer por toda força que
me deu naquela época.
***
E no meio do caos na escola e na vida, completei 15 anos e não
quis saber de festa, acho que foi o único ano que não quis
comemorar. Além de não ter quem convidar, estar lutando
contra a depressão e não ter vontade nenhuma para festa, duas
semanas antes do meu aniversário, bem no início do recreio,
Joana entrou na sala com convites da festa dela, entregou para
todos que estavam ao meu redor, menos para mim. Eu não
estava esperando ser convidada, não fazia sentido, já não
éramos mais amigas há alguns meses, mesmo assim doeu
porque lembrei de quando conversávamos sobre a nossa festa
de 15 anos. Como nossos aniversários tinham uma diferença

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de apenas dez dias, então um pouco antes da nossa amizade
acabar, combinamos e planejamos que comemoraríamos juntas
a chegada desta idade tão especial.
Felizmente passei de ano direto, então no começo de dezembro
já estava livre daquela escola onde tive minha estrutura emocional
abalada por vários motivos, mas com força e coragem, consegui
concluir o ensino médio com sucesso.
***

ANO 2000
Meus pais queriam que eu realizasse o colegial também no
Bandeirantes, mas conversei com eles e entenderam que não
seria possível por conta da depressão, era notório que eu não
estava bem para continuar me dedicando aos estudos em um
colégio tão difícil. Já tinha encerrado um ciclo e não conseguiria
dar mais conta do recado onde não me encaixava mais.
Precisava e merecia recomeçar estudando em outro lugar, então
fui matriculada e retornei ao Colégio Maria Imaculada, de
freiras, onde estudei do maternal ao pré-primário, antes de
irmos morar em Araçoiaba. Eu estava empolgada, pensando na
possibilidade de ter novamente amigos e a tranquilidade de
estudar num lugar onde voltaria a me sentir respeitada. O nível
de ensino era também rígido, a média nas provas não era cinco
como estava acostumada, era seis e esse ponto a mais fazia
bastante diferença. E eu achando que estava indo para um
colégio bem mais fácil, me dei mal. A dinâmica dos professores
era completamente diferente, o estilo das provas era outro,
enfim, muitos detalhes que juntos, se tornaram uma mudança
muito brusca. Fora o fato que caí numa turma que não me
identifiquei, não me vi sendo amiga de ninguém ali, sentia que
estava bloqueada para novas amizades, por mais que eu quisesse
e sentisse falta de ter pelo menos uma amiga, tinha muito medo
de confiar em alguém. Achei melhor continuar sozinha por
65
mais um tempo para me recuperar do que havia acontecido no
ano anterior e me poupar de novas decepções. E assim, me
fechei ainda mais em meu mundinho particular.
Como voltei a estudar de manhã, tinha a tarde livre, mais tempo
sozinha. Saia do quarto apenas para o necessário, se dependesse
da minha vontade, não sairia do lugar que me sentia protegida.
Minha irmã começou a ir à academia Competition que era bem
perto da escola e convenceu meus pais a me matricularem
também, me deu um pouco de ânimo essa oportunidade de
começar a cuidar de mim, mas durou pouco. No começo
peguei firme no treino aeróbico, comecei a ver resultado que
não durou por muito tempo porque logo voltei novamente
àquele ciclo de me entupir de doces para preencher meu vazio.
A psicóloga pediu aos meus pais, apoio com algum psiquiatra,
pois o tratamento com ela já não estava sendo mais suficiente,
eu precisava de medicamentos para controlar minha ansiedade
excessiva e a depressão. Então comecei a frequentar o consultório
do mesmo psiquiatra que cuidou da minha irmã, cada consulta
custava R$ 400,00, quinzenalmente levava um cheque do meu
pai no valor de oitocentos reais e sempre tive vontade de rasgar.
Eu odiei o psiquiatra, bem que tentei avisar ao meu pai que ele
estava jogando muito dinheiro fora e que não estava sendo um
investimento que causaria o efeito desejado, mas adiantou avisá-
lo? Claro que não, afinal o psiquiatra tratou e salvou minha
irmã, então deveria acontecer o mesmo comigo. Eu fiz minha
parte em avisar que não seria assim, mas meu pai ignorou, então
paciência, gastou em vão tanto dinheiro. Chegava à consulta
sem um pingo de vontade de dizer nada, diferentemente da
psicóloga, o doutor foi uma das pessoas mais frias que já
conheci e ele conseguiu piorar minha questão emocional. Eu
tentei levar a sério, tentei buscar ajuda nas primeiras sessões,
mas desisti. A sessão durava 45 minutos que eram uma
eternidade, fazia de tudo para enrolar o tempo, ia ao banheiro
mesmo sem vontade, inventava histórias porque não queria me
66
abrir para ele, aliás, eu não confiava em dizer nada sobre mim
porque achava que ele contava tudo aos meus pais. Meu pai
manteve o “tratamento” com esse psiquiatra por seis meses, até
que finalmente percebeu que não estava me fazendo bem,
graças a Deus nunca mais fui obrigada a ver aquele doutor.
Mesmo parando de ir ao consultório, continuei o tratamento
com dois medicamentos em casa, um era para depressão e
outro para ansiedade. Minha mãe controlava e levava os
comprimidos na hora de tomá-los, eu não tinha acesso e nem
sabia onde ficavam guardados, provavelmente ela tinha receio
de que eu tomasse vários compridos de uma vez ou fingisse que
estivesse tomando. Tomei até um dia antes de fugir de casa.
Parar de tomar os remédios foi um alívio, ainda bem que não
me viciei na química deles e não senti falta ao interromper de
uma maneira tão brusca sem ir diminuindo a dosagem.
Reconheço o quanto me fizeram bem com relação a ansiedade,
pois em poucos dias após iniciar o tratamento, parei de sentir
vontade de me entupir com doces, inclusive acabei eliminando
quase doze quilos. Minha mente inquieta se acalmou, mas de tal
maneira que me fazia sentir dopada e esse efeito me
incomodava demais. Eu não me reconhecia, não conseguia
raciocinar direito, não conseguia me concentrar em nada
porque minha mente estava em Nárnia. Era difícil concluir as
linhas de raciocínio. Precisava ler mais de uma vez a mesma
frase para compreender a leitura. Assistia um filme e quando
acabava não lembrava da maior parte, era como se não tivesse
visto nada. Me esforçava para prestar atenção e focar, mas não
conseguia. No início, gostei de estar assim porque me sentia tão
relaxada que me desconectava dos conflitos internos, mas em
pouco tempo comecei a ficar angustiada. A mente agitada me
fazia falta, era como se tivesse perdido um pedaço de mim.
Estava acostumada a conviver com os pensamentos que os
conflitos me causavam, afinal cresci com eles. Em relação à
depressão, não senti nenhuma mudança considerável.
67
***
Foi em 2000 que comecei a me afundar, deixei de acreditar em
todos, em mim, no mundo. Só queria ficar no meu quarto.
Eu não dava mais motivos para meus pais brigarem comigo,
mesmo assim, de vez em quando, resolviam quebrar o silêncio.
Dezembro chegou e a depressão que lidei durante o ano todo,
acabou refletindo no resultado da escola: bombei o primeiro
colegial bonito e direto, sem chance nem de ter recuperação.
Quem me deu a notícia foi a diretora Madre Mercedes, uma
senhora muito fofa que era muito brava e rígida, mas com um
coração enorme. Ela quis saber por que eu não tinha
conseguido me dedicar aos estudos naquele ano já que era uma
aluna muito comportada durante as aulas. Me senti tão à
vontade que nossa conversa durou quase duas horas, ela me fez
tão bem e foi melhor do que todas as consultas que meu pai
investiu com o psiquiatra. Aquela senhora me ouviu sem me
julgar, em alguns momentos percebi os olhos dela cheios de
lágrimas, me deu conselhos e, ao se despedir de mim, me deu
um abraço longo e forte que eu jamais me esqueci. Ela quis
conversar com meus pais. Obviamente, achei que meu pai fosse
me matar, o momento de fúria durou uns três dias até ele ir ao
colégio para conversar com a Madre Mercedes. Depois desta
reunião, ele voltou para casa bem mais calmo e conversou
comigo. Me contou que quando era adolescente, também
repetiu um ano letivo e então não tinha moral para ficar
brigando comigo por causa disso. Prometi que no próximo ano
recompensaria com dedicação e boas notas.
***

ANO 2001
Mais um ano novo, estava com 16 anos e, após passar as férias
saindo de casa apenas para ir à academia em busca da endorfina
perfeita, mais um ano letivo começou. Estava preparada para
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fazer a segunda vez o primeiro colegial. Se meus professores
diziam que eu era uma aluna comportada e aplicada porque
prestava atenção na aula, mal sabiam que apenas olhava em
direção a eles, mas minha mente estava em outro lugar, bem
distante dali. Então todo o conteúdo era novidade como se eu
estivesse fazendo pela primeira vez, na prática nem parecia que
tinha repetido de ano. Fui uma das primeiras a chegar na classe
e já escolhi qual seria minha carteira escolar daquele ano, de
onde estava conseguia ver toda a movimentação no corredor e
quem entrava na sala. A turma era bem mais interessante que a
do ano anterior e isso me animou bastante. Quem se sentou na
minha frente foi a Sil, que se torou a minha melhor amiga
daquele ano. Estava indo tudo muito bem para ser verdade, até
que entrou um grupinho de meninos na sala e não quis acreditar
quando vi um menino que estudou comigo, na mesma sala da
oitava série, no Bandeirantes. Meu coração disparou enquanto
mil coisas passavam pela minha cabeça, não era possível que eu
viveria novamente um pesadelo, tentei ter esperança de que ele
não se lembraria de mim ou então que teria bom senso de não
remexer no meu passado. Ele repetiu o primeiro colegial no
Bandeirantes e, com tantas outras escolas por São Paulo foi
parar bem na minha sala! Inacreditável. E o pior é que era um
dos meninos mais bagunceiros, gostava de aparecer e ser o
centro das atenções de qualquer maneira. Acho que ele tentou
dar uma segurada na fofoca num primeiro momento, mas não
aguentou, causou menos polêmica que no Bandeirantes, mesmo
assim, enfrentei algumas piadinhas e cochichos, mas como não
dei importância, o assunto morreu em pouco tempo.
***
Em abril, nasceu o filho da minha irmã do meio, eu estava
animada com a chegada de um bebê na família, mas antes dele
nascer, comecei a sentir muito ciúmes quando percebi que eu
perderia a pouca atenção que tinha dos meus pais, já que eles
estavam empolgados demais com a chegada do primeiro neto.
69
Uma situação compreensível, mas naquela época, via que
mesmo antes dele nascer, já tinha todo o amor e atenção que
não consegui conquistar dos meus pais em dezesseis anos.
Quando minha irmã chegava em casa, eu não dava muita
importância, ia para o meu quarto porque era melhor do que
ficar me torturando tendo que ouvir dos meus pais que aquele
bebê foi o melhor acontecimento na vida deles, dentre outras
coisas do tipo. Minha irmã ficou chateada comigo com razão e
acabamos discutindo numa das visitas dela. Quando ele nasceu,
fui com meus pais na maternidade, mesmo com o fato de eu e
minha irmã ainda não estarmos nos falando. Nós demoramos
para fazer as pazes, me lembro como se fosse ontem do dia que
ela deixou que eu o carregasse no colo. Me tornei tia babona e
senti muita falta dele quando saí de casa, pelo menos tive tempo
de ouvir me chamando de titia. Atualmente, é um homem com
20 anos, é estranho pensar nisso, pois não o vi crescer, ele tinha
apenas um ano quando nos vimos pela última vez.
***
Construí uma amizade muito bonita com a Sil. Assim como eu,
ela tinha a mente bem aberta, nunca me questionou sobre a
história de eu ter feito sexo oral no garoto da outra escola, até
mesmo porque ela não era mais virgem. Ia para a casa dela com
frequência, saíamos juntas, fumávamos maconha e cigarro,
bebíamos álcool e tudo isso era muito normal, mas meus pais
sabiam apenas do meu vício com nicotina. A mãe dela sabia de
tudo, mas não se importava, era ela quem nos levava nos rolês.
Fomos em uma festa junina e ficamos bêbadas com a mistura
que fizemos de cerveja, quentão e vinho quente. Foi meu
primeiro porre na vida, ainda bem que não fui dormir em casa e
meus pais nunca souberam. Nessa festa, acabei beijando um
amigo lindo dela, fez muito bem para a minha autoestima, tive
que me controlar para não sair de lá e irmos transar em algum
lugar, se eu não fosse mais virgem, não teria pensado duas vezes.

70
Aliás, sabia que desse ano não passaria o momento de perder
minha virgindade, pois estava difícil controlar minha vontade
em iniciar a vida sexual, já estava com 16 anos e os hormônios
bombando dentro de mim. Foi com a Sil que vivi momentos
diferentes que me fizeram sentir mais viva, graças a ela comecei
a descobrir um mundo diferente e, que existia vida fora do meu
quarto. Ela não imagina o quanto me ajudou a ter momentos
divertidos no meio da minha luta contra a depressão.
Ela fazia parte de uma agência de modelos, num belo dia foi
uma das convidadas para participar de uma gravação do
programa ‘É Show’, apresentado por Adriane Galisteu, na
Record. Eu adorava esse programa e como podia levar um
acompanhante, a Sil me convidou. Meus pais me liberaram,
nem acreditei! Nessa época, jamais passaria pela minha cabeça
que um dia estaria no palco de algum programa sendo
entrevistada, então imaginei que seria a primeira e última vez
que viveria esta experiência. O dia da gravação chegou e eu não
me aguentava com tanta ansiedade, parecia uma criança em
passeio escolar. Chegando no estúdio, fomos colocadas para
sentar bem na frente da plateia e nos avisaram que participaríamos
de dois programas, sendo que um gravado e outro ao vivo.
Melhor ainda do que imaginei! Foi a primeira vez que apareci na
televisão, a câmera nos focou várias vezes nos dois programas.
A única coisa que não gostei foi porque antes da gravação
começar, descobri que a reação da plateia era toda ensaiada,
uma voz comandava nossas ações: “quero ver todas dando
risada”, “agora batam palmas”, “levantem-se e dancem com as
mãos para cima”. Além dessa parte ser chata demais, entendi
que não existe espontaneidade nenhuma, nunca mais vi a
animação da plateia com os mesmos olhos. O programa
gravado era especial do Dia dos Pais e foi bastante emocionante
porque a Galisteu fez uma homenagem linda ao pai falecido, a
entrevistada foi a Simony e eu pirei porque ‘A turma do balão
mágico’ fez parte da minha infância. Já no programa ao vivo,
71
não me lembro quem era o entrevistado porque foi alguém que
não conhecia, mas o musical foi o grupo ‘Roupa Nova’. Estava
tão feliz com aquela experiência que, enquanto estávamos no
estúdio, esqueci da vida e queria que o tempo parasse ali. Mal
sabia que, apenas três anos depois, eu estaria tantas vezes em
programas de TV como entrevistada! Inclusive, em 2012,
Galisteu me entrevistou no programa ‘Muito +’, na Band.
Antes do ano acabar, os pais da Sil decidiram mudar de cidade,
isso significou que ela precisou sair da escola, infelizmente.
Perdemos contato quando fugi de casa. Tive notícias dela por
uma amizade em comum que durou mais tempo. Sei que ela
está casada e tem três filhos.
***
Foi em 2001 que vivi minha primeira paixão, até então tinham
sido apenas platônicas e eu nem perdia tempo para ser notada,
mas desta vez me pegou em cheio e por um menino que estava
na mesma classe que eu. Hud era bem popular, engraçado e
tinha uma energia muito boa. O observava bastante durante as
aulas, primeiro morria de vontade de ser amiga dele, depois
percebi que tal vontade se tornou em paixão. Era a última
pessoa que eu pensava antes de dormir. Uma menina da sala
que se sentava perto de mim e que era muito amiga dele,
percebeu meus olhares apaixonados e me perguntou se eu
estava gostando mesmo do Hud ou era coisa da cabeça dela.
Confessei que sim. Ela disse que me ajudaria na missão de
ficarmos juntos e foi o que fez. Conversou com ele e descobriu
que havia um pouco de interesse dele por mim, então ela pediu
meu número de telefone para passar para ele me ligar. Uns dois
dias depois, durante uma aula, ela me mandou um bilhetinho:
“Ele pediu pra te avisar que vai ligar hoje quando chegar em
casa!”. Pra quê? Fui para casa voando, almocei rápido e fiquei
olhando para o telefone esperando que tocasse. Passou uma,
duas horas e nada. Eu nem tinha o número dela para ligar e
72
pedir o dele para resolver logo a situação ligando para ele.
Quando eram umas 15hs e ele ainda não tinha me ligado,
entendi o silêncio, mas na dúvida nem saí de casa. No dia
seguinte, ela comentou que já estava sabendo que o Hud não
tinha me ligado porque ficou com vergonha, mas que pediu
para me avisar que ligaria... E ligou! Quando o telefone tocou,
achei que meu coração fosse sair pela boca. Ficamos mais de
uma hora conversando, nós dois estávamos com vergonha no
início, mas depois começou a fluir bem. Foi um papo bem
gostoso. Não tocamos no assunto de ficarmos juntos, ele me
perguntou se poderia ligar de novo e começamos a conversar
tanto por telefone como por MSN. Na escola, ele começou a
me cumprimentar com beijo no rosto e puxava assunto comigo
pessoalmente. Algumas semanas depois de conversas diárias, a
amiga que se tornou nossa cupida, me convidou para a festa de
aniversário dela que aconteceria no sábado seguinte. A primeira
coisa que pensei foi que seria uma boa oportunidade para eu e
Hud ficarmos e darmos alguns beijos, eu nem tinha roupa para
este grande acontecimento da minha vida. Fui preparadíssima.
A festa foi no salão de festa e teve um momento que a pista de
dança agitou ao som do funk do momento: Bonde do Tigrão.
Como eu estava um pouco solta por causa de bebida, comecei a
dançar no grupinho que se formou e notei que Hud me
observava enquanto eu dançava ‘vou passar cerol na mão, vou
sim, vou sim’, um refrão poético e romântico. Quando parei de
dançar e fui buscar mais bebida, passei ao lado dele de propósito
e foi a melhor coisa que fiz naquele momento: ele me puxou e
demos nosso primeiro beijo. Pena que demoramos para termos
esta atitude, pois meu pai me liberou para ir nesta festa com a
condição de eu ir embora às 23hs e faltava menos de meia hora
quando enfim nos beijamos, mas soubemos aproveitar cada
minuto. Passei o domingo inteiro lembrando dos nossos beijos,
criando mil e uma expectativas, sonhando acordada. Imaginei
que na segunda, assim que nos encontrássemos na escola, ele
fosse me cumprimentar com um selinho, a realidade é que fui
73
ignorada com sucesso. Os fofoqueiros de plantão espalharam
que nos beijamos na festa e Hud teve que ouvir piadinhas por
ter ficado comigo, desenterraram minha fama de puta.
Era um chove não molha, percebia que ele estava a fim de mim,
mas que tinha vergonha ou medo de assumir isso. Não nos
falávamos mais pessoalmente com tanta intensidade.
Combinamos de nos encontrarmos fora da escola algumas
vezes para ficarmos, sempre encontramos algum cantinho para
nos beijarmos, nada além disso. Não demorou muito tempo
para me cansar da situação, já estava começando a sofrer com a
falta de reciprocidade e achei melhor me afastar.
Enquanto isso, paralelamente ao Hud, já fazia alguns meses que
conversava com um menino que conheci no bate-papo do
UOL e tínhamos vontade de nos encontrarmos pessoalmente,
mas ele morava longe de mim e trabalhava durante o dia, então
para conhecê-lo, nossa única opção era que eu faltasse da escola.
E foi isso o que fiz. Marcamos o encontro na pedra que fica
bem na frente do MASP, na avenida Paulista. Eu corria risco de
ser pega no flagra, pois estava bem perto da escola e do prédio
onde morava com meus pais. O encontro com o Edu foi bem
intenso, além de toda afinidade que já tínhamos por conta das
conversas virtuais que duravam mais de duas horas todos os
dias, rolou química. Nos curtimos logo de cara. Ele era bem
tímido também, dois anos mais velho do que eu e era super
esforçado, trabalhava como office boy numa empresa em Moema.
Pela terceira vez esse bairro estava fazendo parte da minha vida
de alguma maneira. Ele era muito carente, começou a trabalhar
cedo para ajudar em casa, morava com os pais e um irmão, mas
tinha um bom relacionamento apenas com a mãe, o pai era
alcóolatra e Edu sofria muito com isso. Tínhamos em comum a
falta de uma família unida e amorosa, então esse detalhe nos
conectou, além dos desabafos diários, conversávamos muito
sobre o conceito familiar que tínhamos e o quanto gostaríamos
de construir uma família quando fôssemos mais velhos.
74
Comecei a faltar da escola pelo menos uma vez por semana
para ficarmos juntos. Em nosso quarto encontro, ele me pediu
em namoro com aliança de compromisso. Ao mesmo tempo
que fiquei feliz, essa atitude me assustou um pouco, pois meu
nível de paixão não era para namorar, ainda estávamos nos
conhecendo, fora o fato de ainda não ter me desapegado do
Hud. Mesmo com esses poréns, resolvi aceitar, acreditei que
valeria a pena arriscar neste relacionamento. E então Edu se
tornou meu primeiro namorado. Resolvi contar aos meus pais
que estava namorando, afinal não poderia mais ficar faltando da
escola para encontrá-lo, precisava que eles aceitassem a novidade
e colaborassem de alguma maneira. Me encheram de perguntas,
acabaram concordando porque sabiam que não adiantava me
proibir. Fiz uma boa propaganda e eles demonstraram interesse
em conhecê-lo. Colocaram algumas regras: poderíamos nos
encontrar apenas aos domingos, das 13hs às 18hs, tínhamos
que ficar na sala e se fôssemos ao meu quarto, não poderíamos
fechar a porta. Liberaram que a gente passeasse no shopping.
Um namoro a moda antiga. Fiz de tudo para obedecer a tais
regras, pois não queria brigas ou que me proibissem de namorar.
Também fui a primeira namorada de Edu, então para nós dois
tudo era novidade. O dia que apresentei Edu aos meus pais foi
bem estranho, estávamos apreensivos e, meu pai foi bem duro
nas perguntas como se o menino estivesse sendo julgado após
cometer algum crime. O silêncio dominava às vezes e eu estava
bem incomodada, tinha vontade de me esconder embaixo da
mesa ou então sair correndo dali. Minha mãe quase não disse
nada, percebi que ela não gostou muito do primeiro genro da
minha parte. Depois do almoço, meu pai nos chamou para
assistirmos televisão, éramos dois adolescentes duros sentados
no sofá, nem as mãos nós demos. Meu pai fez questão de avisar
quando já era quase 18hs, entendemos o recado, desci com o
Edu e fui até o portão para nos despedirmos, mas antes
paramos na escada para darmos alguns beijos e amassos. Pedi
desculpas, falei que pelo jeito não seria fácil, mas ele me
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acalmou dizendo que enfrentaria qualquer coisa para estar
comigo. Quando voltei para casa, tive que ouvir sermão do meu
pai, ele me questionou se era isso mesmo que eu queria,
namorar com um office boy que não me daria futuro algum.
Durante todo meu namoro, a frase que mais ouvi foi esta: “Eu
não pago escola cara para você namorar com esse office boy!”.
Não aguentava ficar calada e brigava com meu pai. Edu
encararia as regras impostas para estar comigo aos domingos,
enquanto eu teria de enfrentar meu pai, mas sempre tive
esperança de que em algum momento conseguiria reverter essa
situação, no mínimo com ele deixando de ter preconceito à
profissão. Ledo engano. Quanto mais o enfrentava, mais ficava
bravo comigo, como se eu estivesse cega por não ver o lado
negativo que, apenas meu pai enxergava por eu namorar com
um office boy. Nunca contei ao Edu sobre meu pai não o aceitar
por conta da profissão, achei que era desnecessário que ficasse
sabendo disso, tinha medo de deixá-lo chateado e morria de
vergonha por ter um pai tão preconceituoso e com uma mente
que parou no século retrasado. Segurei a barra sozinha entre
tantas tretas, não apenas aos domingos após as 18hs.
Em menos de um mês de namoro, já comecei a perceber que
Edu era muito possessivo e ciumento, eu não podia olhar para
outro menino na rua, nem demorar para responder alguma
mensagem no MSN durante nossas conversas diárias, dentre
outras atitudes que começaram a me incomodar. Mas como era
meu primeiro relacionamento, fui passando pano, achando que
agindo assim comigo, era demonstração de amor. Ele acabou
criando uma dependência emocional muito grande sobre mim
e, eu que nem pensava em casamento ainda, fui obrigada a
participar de conversas cheias de planos para um futuro
próximo, afinal, segundo Edu, nos casaríamos e teríamos filhos.
Por um lado, sempre quando brigava com meu pai nesta época,
pensava mesmo na possibilidade de nos casarmos para ir
embora de casa. Meus pais avisaram que viajariam por uma
semana e que eu não poderia ir junto por causa da escola.
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Vi aí uma boa oportunidade de me encontrar com Edu por
mais vezes e até mesmo perdermos a virgindade juntos, pois já
estávamos conversando sobre isso. A Mara, que trabalhava em
casa ajudando minha mãe com a faxina, ficou responsável em
cuidar de mim, mas eu sabia que ela dormia bem cedo. Criei um
plano mirabolante e infalível. Edu aprovou e então colocamos
em prática. Combinamos um horário dele chegar no prédio,
quando faltava pouco tempo, eu já fiquei de plantão perto do
interfone para atender quando tocasse, atendi e liberei a entrada
dele, ele subiu até meu andar e ficou escondido na escada. Em
seguida, avisei Mara que pediria um lanche para jantarmos e
quando chegou a entrega, pedi para que ela descesse para
buscar. Quando eu tinha certeza de que já estava dentro do
elevador, corri até a escada e chamei Edu, então o levei para
dentro do apartamento e o escondi no meu quarto. Comi o
lanche na sala com a Mara para que não desconfiasse de nada e
esperei que ela dormisse. Quando tive certeza de que estava
realmente dormindo, chamei Edu e o levei para o quarto dos
meus pais porque a cama era maior e poderíamos ficar mais à
vontade. E assim tivemos nossa primeira vez que foi uma bela
aventura. Por um lado, foi da maneira que sempre quis: com
um namorado. Já por outro lado, não foi uma experiência como
idealizei. Éramos virgens, estávamos nervosos e não sabíamos
nem por onde começar. Tive crise de risada por mais de uma
vez porque a situação estava muito mais engraçada do que
prazerosa. Ainda bem que tinha aprendido na oitava série, na
aula de Educação Sexual, como colocar camisinha, pelo menos
isso fizemos direitinho. Nossa primeira vez foi desastrosa. Senti
muita dor com a penetração, tive que pedir para ele parar mais
de uma vez, eu estava seca e nem sabia que existia lubrificante
artificial que poderia me ajudar naquele momento, então foi
penetração no seco mesmo. No momento que rompeu o
hímen, senti tanta dor que mordi o travesseiro para não gritar e
acordar a Mara. Ainda bem que não sangrou. Sorte a minha que
ele gozou em menos de um minuto. Fim.
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Pelo menos matamos a curiosidade, não éramos mais virgens,
não senti um pingo de prazer, mas ele foi carinhoso e fofo
comigo. Se sexo era isso, fiquei bem decepcionada. Por isso,
quis repetir para ter uma segunda opinião. Combinamos dois
dias depois de repetirmos o mesmo plano. A segunda experiência
foi menos ruim, mas ainda assim, decepcionante. Nossa química
que era boa, não foi suficiente para sentir o prazer que esperei.
Como me masturbava bastante, conhecia bem a sensação de
um orgasmo, então sabia que estava passando muito longe.
Edu gozou rapidamente de novo, continuamos em busca do
meu orgasmo, mas não aconteceu novamente, infelizmente.
Depois desta segunda vez, comecei a desconfiar que Mara
descobriu o plano, por precaução achei melhor não nos
aventurarmos mais escondidos dentro de casa. Transamos mais
três ou quatro vezes, na escada do prédio, em domingos que
meu pai deu alvará para passearmos no shopping. Nunca gozei.
E nossa vida sexual juntos foi apenas isso.
Meus pais voltaram de viagem e no dia seguinte, fui chamada
para uma conversa. Eles descobriram que levei Edu para o
apartamento, não tocamos no assunto de sexo, mas obviamente
imaginavam que tivesse acontecido. Rolou briga, papai me
chamou de vagabunda e fiquei de castigo: dois domingos sem
poder ver Edu.
Um dia, após o primeiro domingo sem nos encontrarmos, ele
fez surpresa ao me esperar na porta do colégio e querendo me
acompanhar até em casa, no meio do caminho avisei que dali
em diante era melhor eu ir sozinha, pois tinha medo dos meus
pais nos verem juntos e o tempo de o castigo aumentar. Edu
não entendeu minha justificativa e me perguntou: “Você está
com vergonha de andar comigo na rua porque está com
uniforme de colégio de gente rica enquanto estou com uniforme
da empresa que trabalho como office boy?”. Parei de andar,
encostei num murinho, olhei bem no fundo dos olhos dele e só
consegui responder que não queria mais namorar com ele.
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Foi uma reação que eu não esperava de mim. Por todas as
brigas que estava tendo com meu pai para defendê-lo, não
aceitei ouvir que tinha vergonha de andar com ele.
E a reação dele foi pior que a minha: começou a chorar e
ameaçou se jogar na frente de um carro passando na nossa
frente. Fiquei assustada, respirei fundo, pedi que ele tivesse
calma, o abracei dizendo que a vontade de terminar o namoro
já tinha passado e que estava tudo bem. Depois desse dia, não
consegui ser mais a mesma com ele. Já era controlada por meu
pai, não sabia lidar com outra pessoa me controlando.
Eu brochei com o relacionamento e não conseguia mais
disfarçar em nossos encontros dominicais, não sentia mais a
mesma vontade de ter a companhia dele. Ao mesmo tempo, me
culpava muito, pois sabia o quanto seria difícil o nosso ponto
final para ele. Para piorar nossa situação, no primeiro domingo
após o castigo acabar, meu pai que ainda não havia engolido o
fato de eu ter levado Edu para dormir comigo, decidiu que
surtar durante o almoço, seria uma boa maneira de resolver esse
problema. A discussão começou quando meu pai foi direto e
reto ao perguntar para Edu se ele estava satisfeito em ter me
levado para a cama e, se eu engravidasse, como sustentaria a
mim e nosso filho com salário de office boy. O menino ficou
perplexo e sem reação. Comprei a briga e entrei na discussão
sem ser chamada, respondi que fui eu que levei o Edu para a
cama porque a ideia tinha sido minha e, que inclusive partiu de
mim todo o plano para dormirmos juntos e fazermos sexo.
Cometi sincericídio. Meu pai ficou ainda mais nervoso ao me
ouvir e daí em diante foi uma lavação de roupa suja. Ele falou
tudo o que pensava sobre Edu e nosso namoro, mas o menino
continuou apenas ouvindo, sem conseguir se expressar, parecia
que tinha perdido a voz. Sobrou para mim. Como não estava
concordando com nada que me pai dizia, a briga foi feia. Piorou
quando eu disse que estava torcendo para estar grávida e ter um
bom motivo para sair de casa e ficar livre daquela energia ruim.
E meu pai respondeu que eu deveria fazer isso mesmo e que se
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arrependia por ter me adotado. Sentei, fiquei olhando para o
Edu, tentando controlar minhas lágrimas, perguntei se tinha
algo a dizer, ele balançou a cabeça dizendo que não, então pedi
para que fosse embora para que não ficasse mais ouvindo tanta
besteira e que era melhor me deixar sozinha ali. Ele se levantou,
despediu apenas de mim e foi embora. Em seguida, falei para o
meu pai: “Pronto! Conseguiu o que queria! Parabéns!”.
Peguei um cigarro e fui para a janela, fiquei observando Edu
indo embora até sumir da minha vista. Chorei. Acendi outro
cigarro. Fiquei ali por um bom tempo, pensativa, entre lágrimas.
Eu estava cansada de me defender, de defender Edu, de
defender minhas ideias, de ouvir tanta besteira, de não receber
abraços, de me sentir uma adolescente inútil no mundo, por
querer mandar meu pai calar a boca ou ir tomar no cu e não
poder fazer isso, por não saber mais o que fazer. Estava
cansada de tudo, mesmo assim, mantive o namoro e as tretas
com meu pai que foram apenas aumentando.
Dois dias antes do meu aniversário naquele ano, resolvi
terminar definitivamente meu primeiro namoro, pois queria
começar meu novo ciclo sem o peso que o relacionamento se
tornou para mim. Eu queria apenas paz.
Estava triste por ter tomado esta decisão enquanto meu pai só
faltou pular de tanta alegria quando dei a notícia. Edu entendeu
por que sabia o quanto estava sendo difícil para mim. Fiquei
com muito medo dele fazer alguma besteira, então de vez em
quando, puxava assunto no MSN para saber se estava bem.
Em uma noite de 2007, ao acessar o e-mail da Bruna Surfistinha,
me chamou atenção o assunto de uma mensagem: “Oi Kel!”
com K mesmo, da maneira que Edu escrevia. Ele me mandou
um textão, um desabafo bem profundo. Contou que depois do
nosso namoro, demorou para se apaixonar por alguém, estava
namorando há quase três anos e que nunca se esqueceu de mim.
Comentou que ficou com raiva ao saber que eu estava me
prostituindo, que não conseguia me imaginar fazendo sexo com
80
tantos homens. Também contou que chorava todas as vezes
que me via na televisão, mesmo estando ao lado da namorada,
mas que ela sabia sobre nosso passado na adolescência.
Me pediu perdão por não ter feito nada durante as brigas que
presenciou com meu pai, pois ficava com medo de se envolver.
Eu não soube o que responder e achei melhor seguir minha
intuição de não retomar contato. Algo me disse que não
voltarmos a conversar, seria o melhor para nós dois.
***

Ano 2002
Passei de ano direto, sem recuperação, concluí então com
sucesso a segunda vez que realizei o primeiro colegial. Assim
que dei essa boa notícia aos meus pais, aproveitei o gancho para
conversar sobre minha vontade de mudar de escola, pois eu não
havia me adaptado bem, eles concordaram. Se tinha algo que
eles não discutiam comigo era sobre coisas relacionadas a
minha vida escolar. Um detalhe muito importante pesou para a
decisão de querer muito esta mudança, além de realmente não
ter me adaptado: queria recomeçar minha vida longe do Hud.
Após ter colocado um ponto final na minha história com o
Edu, senti que estava balançada novamente quando Hud se
reaproximou de mim, pois ficou sabendo que eu não estava
mais namorando. Fiquei preocupada de cairmos na mesma
turma novamente, de termos um replay e recomeçar a sofrência.
O que eu sentia por ele, nunca senti por Edu. Foi muito ruim
lidar com este sentimento naquela época. O melhor que eu
poderia fazer por mim, era me distanciar completamente.
Nas férias, fui visitar os colégios na região onde morava para
ver qual gostava mais, escolhi o São Luís, onde fui matriculada.
***

81
Estava no ano que finalmente completaria minha maioridade.
Dezoito aninhos chegando, adolescência acabando, então tinha
bons motivos para estar mais calma e focar no meu futuro. No
entanto, acabou sendo o ano que resolvi jogar tudo para o alto.
Começou tudo muito bem, tudo muito lindo, como em todos
os inícios de um novo ano, estava cheia de planos. Novo
colégio, novas amizades, novos ares, mais um recomeço.
Passei a maior parte das férias de janeiro, sozinha em meu
quarto e, todos os pensamentos positivos foram sumindo a
cada reflexão. Quando a ficha caiu que completaria 18 anos e
avaliei minha vida, comecei a ter um sentimento muito ruim e,
o vazio que carregava, ressurgiu com tudo. Olhar para trás e
enxergar como havia sido minha infância e adolescência, me
trouxe reflexões profundas.
Infelizmente, naquela época, eu não tinha maturidade, sabedoria
ou ferramentas suficientes para ressignificar o que já havia
vivido. Poderia ter feito das minhas dores, uma força interna ao
meu favor como consigo fazer hoje, mas em 2002, o sentimento
de ter tido uma vida em vão por nunca ter conseguido ser uma
pessoa feliz, me causou uma revolta muito grande. Tudo poderia
ter sido diferente, mas como não podia voltar ao passado e viver
tudo de uma outra maneira, minha única opção era conseguir
lidar com as consequências e começar a fazer diferente dali em
diante. Também sabia que não dependia apenas de mim.
O sentimento de fracasso que sentia, tinha uma ponta de culpa
dos meus pais. A falta de uma base familiar, começou a pesar.
Além disso tudo, meu pai desistiu de pagar terapia para mim
porque não viu o resultado que desejava, eu não tinha com
quem conversar, cheguei aos 17 anos sem ter amigos.
Quem era Raquel neste mundo? Uma menina que queria ser
feliz e não conseguia, que queria um abraço e não recebia, e o
que mais? Eu não sabia explicar quem era, nem o que queria de
mim. E como pude viver por 17 anos sem sentir o que é a
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felicidade e sem conseguir chegar a algum lugar? Tive uma crise
de existência, eu não soube controlar e me derrubou. Sentia que
não tinha mais força. Não me encaixava naquela família, na
minha vida, no mundo. Não me encaixava nem em mim.
Comecei a viver na minha sombra.
A empolgação de estudar em um novo colégio logo acabou, fui
me arrastando para o primeiro dia de aula, toda bloqueada e
fechada no meu mundo. Gostei bastante da minha turma,
reencontrei com uma menina que estudou comigo no colégio
Bandeirantes e repetiu a oitava série, me fez prometer que eu
não contaria para ninguém que ela já havia repetido de ano, pois
me avisou que lá as pessoas tinham preconceito com isso, acho
que era coisa da cabeça dela, mas guardei o segredo. Percebi que
minha turma era cheia de nerds, até o pessoal do fundão era
silencioso durante as aulas. Os alunos levavam a sério todas as
aulas, fui entender o motivo disso nas primeiras provas, todos
os professores eram exigentes. Um professor perguntou na
primeira aula se já havíamos escolhido uma profissão e quis
ouvir a resposta de todos. A maioria queria ser médico.
Não consegui acompanhar a rigidez de ensino e o resultado do
meu primeiro boletim foi um show de horror, minha nota mais
alta foi 4,5 e meus pais se arrependeram rapidinho de terem me
matriculado lá, comentaram em me colocar em outro colégio,
mas decidiram me dar mais uma chance. E o segundo boletim
acabou sendo como se fosse o primeiro. Meu pai cortou minha
mesada e me proibiu de passear até que as notas melhorassem.
Nunca consegui funcionar sob pressão psicológica. Nosso
relacionamento já não estava dos melhores e, numa tarde
sozinha em casa e sabendo que meus pais demorariam para
voltar, resolvi procurar dinheiro nas gavetas do escritório do
meu pai. Queria muito ter encontrado apenas dinheiro, mas
acabei descobrindo duas coisas que me fizeram arrepender por
ser tão curiosa. No fundo de uma gaveta, encontrei um pacote
bem misterioso, era uma caixinha enrolada com papel kraft.
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Poderia ter fingido que não vi, mas resolvi saber o que era.
Abri com todo cuidado possível para não rasgar a embalagem e
quando abri a caixa me deparei com um aparelho de gravador e
várias fitas pequenas que ora ora, cabiam direitinho nele. Coisa
boa não era porque se fosse, não estaria escondido tão bem.
Meu lado agente-do-FBI-escorpiana entrou em ação. Coloquei
uma fita aleatória para ouvir e reconheci as vozes: era a minha e
do Edu! Comecei a tremer. Troquei de fita. Também era a
gravação de uma conversa nossa. E a terceira também. Resolvi
parar. Não eram apenas as mãos que tremiam naquele momento,
sentia meu corpo todo chacoalhando, além do coração estar
disparado. Eu não sabia o que pensar. Minha vontade era de
jogar na cara deles quando chegassem e exigir explicação do
motivo daquilo. Respirei fundo, esperei o corpo parar de tremer
e me acalmar, decidi que o melhor seria fingir que não tinha
visto, afinal se eles estavam errados por terem gravado conversas
minhas, eu também estava errada por ter mexido nas gavetas.
Em outra gaveta, encontrei um pacotinho quadrado bem
escondido. Estava muito bem embrulhado com papel sulfite e
vários centímetros de durex, não tinha como abrir sem destruir
a embalagem. Fiquei num dilema por alguns segundos. Ainda
estava assustada com o conteúdo das fitas, mas a curiosidade
falou mais alto do que o medo de encontrar algo pior e resolvi
abrir. Me deparei com quatro disquetes de computador. Meu
coração disparou e novamente pensei: “Se fosse coisa boa, não
estaria escondido!”. Corri até meu computador, já tentando
imaginar o que poderia ser. “Será que eles copiaram históricos
de conversas do meu MSN?” - me questionei. Depois de um
século, meu computador ligou e coloquei um dos disquetes.
Fiquei chocada com o que vi. Eram fotos da minha mãe nua,
em posições bem sensuais, com alguns apetrechos que não
entendi o que eram. Somente meses depois, descobri que ela
estava usando acessórios de bondage. Acabei decidindo não ver
até o final, apenas quis saber se os outros disquetes estavam
84
com o mesmo conteúdo. Entendi por que estavam tão bem
embrulhados e escondidos. Peguei um papel sulfite, fiz um
novo embrulho e deixei no mesmo lugar onde achei. Quando
chegaram em casa, foi difícil fingir que estava tudo bem.
Se não bastasse me questionar: “Quem é a Raquel?” e querer
encontrar a resposta, comecei a me perguntar também: “Quem
são meus pais?”. Não nos conhecíamos, alguém precisava nos
apresentar. A falta de diálogo durante 17 anos começou a pesar
ainda mais, nos tornamos estranhos dividindo o mesmo teto.
***
No colégio, me sentava atrás de um garoto, como ele passava a
maior parte do tempo sentado de lado com as costas na parede,
então eu enxergava bem o que estava na mesa dele. Numa aula,
ele deixou o fichário aberto numa das divisórias que tinha alguns
rabiscos e mensagens, algo em especial me chamou atenção:
havia um HUD escrito de uma maneira que se destacava. Pedi o
fichário emprestado para ver mais de perto, não era um nome
comum. Gelei. Com medo, perguntei o que significava Hud.
- Ah, é meu vizinho, moramos no mesmo prédio, ele é um dos
meus melhores amigos. - me respondeu.
Perguntei onde moravam. Era o mesmo condomínio onde
algumas vezes, deixei mimos para o porteiro entregar ao Hud.
Já tinha a resposta, mesmo assim, por via das dúvidas, comentei
que por coincidência, conhecia um menino com o mesmo
nome e detalhei fisicamente o Hud. Meu colega respondeu:
“É ele mesmo, estamos falando da mesma pessoa!!”
Não queria que o mundo fosse tão pequeno assim. Saí do outro
colégio para ficar longe dele e a vida o trouxe novamente para o
meu caminho. Seria um sinal de Deus para ficarmos juntos? Ou
seria a vida brincando com a minha cara? Fui em busca dessa
resposta. Pedi para que meu colega o avisasse que eu gostaria de
voltar a falar com ele. Hud me ligou no mesmo dia.
85
Rimos da coincidência, marcamos um encontro pessoalmente
na mesma semana e voltamos a ficar. Nos encontrávamos pelo
menos duas vezes por semana e a frequência foi aumentando,
sempre eu dava um jeitinho de vê-lo, mesmo que contando
mentiras aos meus pais. A paixão que sentia por ele, retornou
com força, mesmo percebendo que ele não queria nada sério
comigo, notava que estava apaixonado por mim também. Nessa
fase, Hud se tornou minha fuga, estar com ele era meu
momento de paz durante a crise existencial. Era mais do que
beijos gostosos, apenas ele conseguia me fazer rir.
Depois de mais ou menos dois meses que estávamos ficando,
numa bela manhã de uma segunda-feira, o amigo que sentava
na minha frente, me perguntou como estava o grau do meu
envolvimento com Hud, falei que estava apaixonada e que se
dependesse apenas de mim, estaríamos namorando. Então me
disse: “Se você souber o que ele fez no sábado, não vai querer
mais beijar a boca dele, muito menos namorar!”. Gelei.
Quis saber o que havia acontecido, então me contou que no
sábado, eles e mais três amigos foram até um lugar na Rua
Augusta onde havia prostitutas e que Hud saiu com uma delas.
Foi instantâneo, meus olhos começaram a lacrimejar. Peguei
meu celular, fui até o banheiro, chorei um litro e liguei para o
Hud. Quando me atendeu, falei: “Você não podia ter feito isso
comigo!”. Me senti traída mesmo que a gente não namorasse.
Contei o que estava sabendo, ele ficou mudo do outro lado da
linha, acabei desligando o telefone na cara dele. Resolvi dar um
tempo em nossas ficadas, percebi que dali em diante, o
sofrimento viria. O tempo durou pouco, duas semanas no
máximo. Ele me mandava mensagens fofas todos os dias e não
aguentei, acabei relevando o acontecimento e voltamos a ficar.
***
Enquanto isso na escola, mantinha minhas notas bem baixas. Já
estava chegando junho, terminando o primeiro semestre e não
tinha muita esperança de evoluir. Ainda não tinha feito grandes
86
amizades, conversava com um ou outro, mas assim como
minhas notas, nenhuma amizade evoluía. E para piorar, um
professor resolveu fazer uma dinâmica entre os alunos: pediu
para colocarmos nosso nome na parte superior de um papel e
entregar para o coleguinha de trás que precisava definir em uma
palavra ou frase, o que achava do “dono do papel”. E assim, o
papel de cada um, passou obrigatoriamente por todos da turma,
até o momento que o nosso chegou em nossas mãos e então
lemos todas as definições que nos foram dadas.
O professor pediu para que fôssemos sinceros ao extremo.
Lerda que sou, achei que o anonimato fosse garantido, mas
quando todos já estavam com os próprios papéis em mãos,
alguém comentou que era fácil descobrir quem havia escrito o
quê, era apenas seguir a lógica e a sequência das mesas. A pessoa
que começou a escrever de mim, estava sentada na mesa atrás
da minha, então era quem havia me definido na primeira linha,
e assim por diante. O problema é que fui sincera até demais,
tanto para tecer elogios como para criticar. Critiquei poucas
pessoas, umas quatro, mas peguei pesado e elas foram tirar
satisfação comigo. Lembro que para um menino escrevi:
“Moleque demais, infantil e não percebe que ninguém o acha
engraçado” e para uma menina: “Se acha demais, muito
metida”. As pessoas que gostavam deles compraram a briga e
pararam de falar comigo.
***
Enfim, junho chegou, logo estaria de férias. Eu estava
desesperada por estar sem mesada desde o começo do ano,
queria dinheiro para alimentar meus vícios e já pensando em ter
uma quantia para aproveitar as férias, afinal tinha esperança de
passar alguns dias no Guarujá. Queria um montante alto para
não precisar me preocupar com dinheiro por um bom tempo.
Escolhi o pior caminho para conseguir isso. Minha mãe tinha
muitas jóias guardadas, mas ela usava pouco, apenas em
momentos bem especiais. Esperei a oportunidade de ficar
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sozinha em casa e fui até onde ficavam guardadas, analisei todas
as opções, pensei em pegar uma mais simples, mas já que era
para fazer coisa errada, que valesse a pena financeiramente.
Escolhi um conjunto chiquérrimo que meu pai deu de presente
em comemoração ao aniversário de casamento deles, eu sabia
que custava mais de três mil reais porque quando ganhou, ouvi
minha mãe contando por telefone com a minha irmã. Peguei e
levei para o meu quarto. Eu já tinha visto vários anúncios de
lugares que compram ouro e jóias, então decidi que entraria em
contato com algum. Escondi muito bem o conjunto até decidir
o que faria. O peso na consciência dava o ar da (des)graça, mas
a vontade de ter dinheiro era muito maior.
Dois dias depois, fiz a besteira de levar ao colégio porque sabia
que tinha uma loja ali perto que comprava e vendia jóias, resolvi
que passaria lá antes de voltar para casa. Uma colega que se
sentava na mesa ao meu lado, me pediu um livro emprestado
que estava na minha mochila, pedi para ela pegar, mas não
imaginava que além dela encontrar o estojo com o conjunto de
jóias, faria show em voz alta para quem quisesse ouvir. Eu não
sei se minha vontade era de morrer ou de matá-la naquele
momento. Nos tornamos o centro das atenções por alguns
minutos. Ela abriu o estojo e começou a mostrar as jóias para
algumas meninas. Quando me perguntaram por que eu tinha
levado aquilo na escola, comentei que minha irmã queria vender
e pediu minha ajuda para levar num lugar. Tive que dar esta
mesma justificativa à diretora no dia seguinte, pois me chamou
para conversar na sala dela. Não entendi por que levar as jóias
causou tanto burburinho e polêmica. Conversei com a diretora
e o caso me pareceu estar encerrado.
Da escola, fui para a tal loja, os olhos do homem que me
atendeu no balcão até brilharam, ele me ofereceu um valor bem
abaixo do que imaginei, mesmo assim, era muito dinheiro e
acabei aceitando. Não me lembro exatamente o valor que
consegui, mas era quase seiscentos reais. Saí da loja com o
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coração disparado, me sentindo a pior filha do mundo. No
mesmo dia, comecei a fazer vários planos com esse dinheiro,
mas sabia que precisava ter controle porque havia sido a
primeira e última vez que eu fazia algo com essa gravidade.
Não poderia repetir esse erro nunca mais. O sentimento de
culpa já estava grande demais e eu sabia que em algum momento
a conta chegaria, mas não imaginei que seria tão rápido.
No primeiro sábado após ter cometido isso, meus pais iam a
uma festa chique. Eu estava no meu quarto quando ouvi a
movimentação deles se arrumando, até que ouço minha mãe
comentar que não estava encontrando o bendito conjunto.
Ela nunca havia usado e vendi justamente na semana que tinha
intenção de usar. Muito azar. De repente, ela entrou no meu
quarto e perguntou se eu tinha visto, engoli seco e, com a maior
cara de pau do mundo, respondi que não. Então ela disse que
na segunda-feira, perguntaria para a Mara. Eu comecei a me
sentir ainda pior, pensei na possibilidade de a Mara pagar um
preço por minha culpa. Naquela noite, eu não consegui dormir
por conta do arrependimento, queria poder voltar ao tempo,
mas já era tarde demais, a merda já estava feita.
No dia seguinte, minha mãe tocou no assunto várias vezes, pois
estava indignada com o sumiço das jóias, com toda razão.
Fiquei angustiada porque sentia que a bomba estouraria a
qualquer momento, ainda mais se ela culpasse a Mara, algo que
eu não deixaria acontecer. Na segunda-feira, voltei na loja para
saber do conjunto, estava à venda, mas com um valor bem
maior, mais que o dobro do que me pagaram. Fodeu.
Na semana seguinte, a bomba estourou. Minha mãe foi
chamada pela diretora para conversar sobre minhas notas
baixas, eu já estava correndo risco de repetir de ano e, durante a
conversa, aproveitou para falar sobre as jóias. Quando cheguei
em casa, senti que minha mãe estava bem estranha durante o
almoço, à tarde ela me chamou para conversar e contou sobre a
conversa com a diretora. Me perguntou sobre o paradeiro das
jóias e contei. Choramos juntas. Pedi perdão mesmo com a
89
certeza que não adiantaria nada. Ela me disse que não contaria
ao meu pai, pois temia a reação dele.
Mas ela não aguentou guardar o segredo e eu entendo. Uns dois
dias depois após nossa conversa, cheguei em casa após a escola
e entrei pela porta da cozinha como sempre fiz, ela olhou para
mim com um semblante que me causou medo e disse apenas:
“Contei para seu pai!”. Nisso, o vi atravessando a sala vindo em
minha direção. Não tive nem tempo de tirar a mochila das
costas, ele me puxou para um dos sofás, me empurrou e
começou a me bater e xingar com os piores nomes possíveis.
Eu não tinha o que dizer, como me defender, nem nada. Como
reconhecia a gravidade do meu erro, minha única alternativa era
aceitar, sentir a dor dos tapas no meu rosto e ouvir todos os
xingamentos. Meu pai estava incansável, mesmo com as mãos
bem vermelhas por conta da força que estava fazendo e, o rosto
praticamente roxo de tanta raiva que estava sentindo de mim.
Não sei por quanto tempo ficamos ali, foi mais de uma hora.
Quando me dei conta, havia uma plateia na sala, minha mãe e
minhas irmãs, que apenas observavam sem dizer nada, mas
aparentemente apoiando o que estava acontecendo. Quando
notei a presença delas, fiquei com raiva, pois fazia tempo que
não via minha irmã mais velha que, inclusive era minha
madrinha de batismo. Nesse dia, inacreditavelmente estava
como espectadora da sessão de espancamento. Fazia tempo que
não via as duas juntas nos visitando, mas conseguiram um
espaço na agenda para se reunirem, ora ora, que maravilha.
Suportei o que pude, não derramei uma lágrima, não falei um
“ai” que fosse, mas chegou um momento que não estava mais
aguentando porque meu pai cansou de bater com as mãos e
estava me dando cintadas. Não pedi para que ele parasse, mas
que me matasse. “Pode me matar, eu estou cansada, me faça
esse favor” – repeti mais de uma vez. Apanhei por mais um
tempo até que ele cansou, mas avisou que continuaria depois.
Eles se reuniram na cozinha, aproveitei para pegar meu celular
90
no bolso da frente da mochila e fui correndo ao banheiro onde
me tranquei. Precisava falar com o Hud de qualquer jeito, ainda
bem que me atendeu rápido, comecei a falar baixinho: “Apenas
me ouça, Hud. Depois te explico. Fiz merda e estou apanhando
muito do meu pai, não sei o que será de mim, mas quero que
saiba que amo você.” Ele demonstrou muita preocupação,
queria entender o que estava acontecendo, mas quando notou o
meu desespero para desligar logo, pediu para que eu desse
notícia, assim que pudesse. Tirei o volume do celular e escondi
entre os cremes, no fundo do armário da pia. Não tive coragem
de me olhar no espelho, não queria ver as marcas dos tapas.
Saí do banheiro, todos estavam ainda reunidos e conversando
na cozinha, me sentei no sofá, mil coisas passavam na cabeça.
Sabia que nunca mais reconquistaria a confiança deles, o estrago
já estava feito, depois do meu erro e da sessão de espancamento,
eu havia morrido para os meus pais. Acabou ali qualquer chance
de algum dia sermos uma família unida e feliz.
Apanhei em outros momentos após a sessão de tapas e cintadas.
Do nada, era pega de surpresa com alguma agressão do meu
pai, ele ainda não estava satisfeito e eu continuava não podendo
fazer nada. O silêncio dominou, eles pararam de falar comigo,
isso não me incomodou tanto, afinal quase não falavam mesmo.
Tive que seguir uma nova regra: fui proibida de comer com eles
na mesa, primeiro tinha que esperá-los para então fazer meu
prato e ir comer sozinha na cozinha. Se já era controlada antes,
passei a ser vigiada. Tiraram tudo o que puderam de mim de
bens materiais: celular, discman, computador, televisão. Me
tiraram do colégio e me matricularam numa escola pública, isso
também não me afetou, eu estava cansada de conviver entre
patricinhas. O que mais me incomodou foi ter que fazer as
refeições sozinha. Em duas semanas, minhas calças jeans
estavam largas. Ficou muito difícil me encontrar com o Hud,
mas conseguíamos dar um jeitinho de vez em quando. Contei
tudo para ele e, mesmo sabendo dos meus erros, continuou comigo.
91
Numa manhã, meu pai quebrou o silêncio para avisar que eu
teria um compromisso com eles, me entregou um papel com o
endereço anotado, a estação que eu deveria descer e um passe
do metrô. Disse que iam de táxi e que se encontrariam comigo
na porta do lugar. Obedeci. Quando cheguei, me deparei com o
‘Fórum das Varas da Infância e da Juventude’. Gelei. Meus pais
já estavam me esperando, entramos sem dizer nada.
Nos encaminharam até uma sala onde várias mulheres estavam
sentadas e ficamos aguardando a nossa vez de sermos chamados.
Estava bem apreensiva e tendo uma crise de ansiedade. Num
certo momento, passou uma fila indiana de meninos bem novos
que não podiam olhar para o lado onde estávamos, as mulheres
ao nosso redor começaram a chorar, meu pai me cutucou e
disse: “Olha seus novos amigos!”. Naquela época, ainda era
Febem e, no dia que fomos, aqueles meninos seriam julgados.
As mulheres eram as mães e meu pai estava me provocando.
Depois de quase uma hora sentada ali, fui chamada por nome e
sobrenome. Nosso encontro era com uma promotora, meus
pais entraram também na sala dela, falaram o que quiseram, a
doutora fez algumas perguntas e pediu para que eles saíssem,
pois queria conversar apenas comigo. Contei toda a verdade.
Senti que teve empatia por mim, comentou que era muito
amiga da minha irmã mais velha. Depois de me ouvir e fazer
algumas anotações, me olhou bem profundamente e disse que
me daria uma chance, nada aconteceria comigo por ter sido a
primeira vez, mas deixou bem claro que eu não poderia mais
errar daquela maneira, pois outra chance como aquela, não teria
mais. Depois que me acalmou com estas palavras, me deu um
esporro básico com lições de moral, assinei um papel e ela me
liberou. Saí da sala me sentindo tão aliviada e acho que com a
aparência tão plena que, meus pais fizeram uma cara de quem
não gostaram muito da minha reação. Aprendi com meu erro e
sim, precisei passar por todo aquele susto e medo de ser presa.
O relacionamento com meus pais realmente não teve mais jeito
e acabou. Comecei a me sentir mal até mesmo dentro do meu
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quarto, como se eu não pertencesse mais ali. Era o meu
cantinho de paz que, da noite para o dia, se tornou em um
ambiente sombrio e sem sentido. Assim como estava sendo a
minha vida. Meus pais ignoravam a minha presença e, nas
poucas vezes que me olhavam, era com expressão de raiva,
tristeza e frieza. Da mesma maneira que fizeram com a minha
irmã do meio, eles queriam que eu aprendesse com dor. Eles
não imaginavam que a culpa e o arrependimento que eu sentia,
já estava sendo uma boa punição. Me tornei a pior pessoa para
mim mesma, minha pior inimiga. Eu sabia que nunca conseguiria
recuperar o pouco de afeto que recebia deles antes de cometer
o furto ou demoraria anos para que isso acontecesse e,
sinceramente, assim como eles demonstravam que haviam
desistido de mim, eu também preferia desistir deles.
O vazio se tornou mais uma vez insuportável dentro de mim,
mas dessa vez não queria mais me entupir de doce para ter a
sensação de preenchê-lo, nem com comida. Parei de sentir fome.
Eu poderia deixar de ir à escola sem que meus pais soubessem e
aparentemente, nem se importariam. Meu pai me avisou que
dali em diante era comigo porque não esperava mais nada de
mim, deixou claro que desistiu de me ajudar a ser alguém nesta
vida. Mesmo assim, eu ia à escola direitinho, era uma boa
caminhada de 40 minutos, ia tranquila escutando Pânico na
rádio Jovem Pan em um discman antigo e pensando na vida.
Toda segunda-feira, minha mãe me dava um passe do metrô
para dez viagens, exatamente para usar durante a semana para ir
à escola, mas eu vendia para uma pessoa que comprava e
revendia numa banquinha próxima a estação Paraíso, assim eu
tinha um dinheirinho garantido. Além disso, comecei a me
desapegar de algumas coisas minhas para vender na escola,
estojo de canetas, bloquinhos de anotações, cadernos que nunca
tinha usado etc. Um dia, peguei todos os meus livros que já
tinha lido e levei num sebo no caminho da escola, recebi quase
cem reais por eles e assim, fui me virando para ter dinheiro.
93
Senti a diferença de ensino de uma escola pública para as
particulares que estudei, eu estava no segundo colegial com a
sensação de estar repetindo a oitava série, nenhum conteúdo
ensinado era novidade para mim. Não senti diferença entre os
meus colegas, aliás, os achei bem mais legais do que as patricinhas
e boyzinhos que estava acostumada, acabei fazendo amizade
com facilidade, me senti bem mais acolhida do que nos outros
colégios. Ouvi de vários colegas que apesar de eu ter jeito de rica,
era humilde e legal. Quando me perguntavam quem eu era ou
porque estava estudando lá do nada, pois cheguei em agosto, eu
contava a verdade, a história das jóias. Quando peguei o primeiro
boletim, com apenas ‘A’ em todas as matérias, por mais que
meus pais tenham desistido de mim, fiz questão que vissem,
então deixei propositalmente em cima da mesa da cozinha.
Queria que soubessem que, apesar de tudo, eu estava tentando
fazer algo por mim. Num sábado, minha mãe entrou no meu
quarto, me deu uma nota de dez reais e disse: “Vai tomar um
sorvete, saia um pouco daqui de dentro”. Quando a esmola é
demais... Fiquei desconfiada com essa atitude tão fofa e repentina,
mas me arrumei rapidamente e fui. Antes de sair de casa,
perguntei até que horas podia ficar fora de casa e ouvi pela
primeira vez um: “Até quando sentir vontade!”.
O dia estava bonito, fui até a avenida Paulista, comprei uma
casquinha do Mc e me sentei num espaço na área aberta abaixo
do MASP, lá no fundo, bem distante da movimentação na rua.
Foi nesta tarde que comecei a imaginar minha vida longe da
minha família. Antes de voltar para casa, resolvi ir até o prédio
do Hud porque queria vê-lo e sentir o abraço dele, eu ainda não
sabia o que aconteceria comigo, minha única certeza era ir
embora de onde estava, de tudo e de todos, recomeçando
minha vida num novo lugar. O porteiro me avisou que ele não
estava. Nem eu sabia, mas não nos veríamos mais tão cedo.
Naquele dia, teríamos dado nossos últimos beijos.
***
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Os próximos dias foram difíceis e decisivos, minhas reflexões
estavam cada vez mais profundas, a crise existencial e a culpa
não me permitiam ter paz interna. Eu me tornei uma bagunça e
não sabia por onde começar a colocar em ordem, tanto no meu
interior como externamente. Estava esgotada emocionalmente,
entrei numa energia bem negativa, com pensamentos ruins.
Meus pais provavelmente sentiram que eu não estava bem e que
poderia fazer alguma besteira, então à noite, começaram a
trancar as duas portas de acesso ao apartamento e escondiam as
chaves de mim. Desde o episódio das jóias, eles começaram a
trancar a porta do quarto deles e a do escritório, já limitando o
meu espaço, até aí tudo bem, entendia que fazia parte da
punição, mas começar a ser trancada durante a noite me
incomodou demais, mesmo que eu não tivesse intenção de sair.
Era madrugada de uma quinta-feira quando coloquei na cabeça
que já tinha chegado em meu limite existencial e o melhor que
faria por mim, meus pais e talvez o mundo, seria ir embora, me
suicidando. Pensei na possibilidade de pegar a arma do meu pai,
mas além de não saber manusear, fiquei com medo de não
alcançar o objetivo final e continuar viva com alguma sequela.
Todas as janelas tinham rede porque tínhamos uma gata, mas
havia uma parte da janela da sala, na lateral, sem esta proteção.
Embaixo havia um móvel de madeira, que ia de ponta a ponta
da parede, ótimo para ser minha base de apoio. Quando tive
certeza de que meus pais já dormiam, abri esta lateral da janela,
sentei no móvel e fiquei olhando para o céu, acendi um cigarro
e fumei considerando ser o último da minha vida. Me debrucei
o quanto pude, olhei para baixo e fechei bem os olhos com o
pensamento: “É agora ou nunca”. Sentia o vento no meu rosto,
o coração acelerado quase explodindo e começou a passar um
filme da minha vida na cabeça, cenas muito rápidas de vários
momentos aleatórios, tanto bons como ruins, então comecei a
lembrar dos meus sonhos: ser mãe, psicóloga, construir uma
família do jeito que sempre quis, unida e com muito amor.
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Foram segundos que dentro de mim houve um conflito entre o
querer ir embora porque estava cansada da vida e, o querer
continuar viva para realizar todos meus sonhos e ser feliz.
Desde criança, sempre quando me sentia muito sozinha, eu
juntava minhas mãos e ficava fazendo carinho uma na outra e,
depois colocava a mão na região do meu coração e dizia para
mim mesma: “Tudo vai ficar bem!”. Coloquei a mão direita no
coração enquanto decidia se me jogava ou se fechava a janela e
ia dormir. As lágrimas começaram a cair de uma maneira que eu
não conseguia controlar. “É agora, Raquel, se joga!”. - pensei.
Não consegui. Fechei a janela, notei que minha gata estava
sentada ao meu lado, me observando. A carreguei no colo, dei
um abraço forte, me deitei e chorei em posição fetal até dormir.
No dia seguinte, no meio do caminho para a escola, decidi não
ir, aliás, nunca mais voltei, abandonei. Fui a pé até o parque
Ibirapuera, escolhi uma árvore para me aconchegar e passei a
tarde toda admirando o lago enquanto decidia um novo rumo.
Se não consegui cometer suicídio é porque a vontade de existir
era maior do que a de desistir.
Eu tinha consciência que muitas mudanças seriam necessárias
em minha vida e, para chegar aonde queria, dependia apenas de
mim e mais ninguém. Comecei a criar estratégias. Faltava pouco
para completar 18 anos e, o melhor que poderia fazer por mim
e por meus pais, seria sair da casa deles, criar asas e voar para
bem longe dali. O primeiro passo seria mudar de ambiente, ir
morar sozinha em qualquer lugar e recomeçar aos poucos. No
entanto, para conseguir dar este passo, eu precisava de um
emprego para conseguir me manter financeiramente, afinal
havia perdido a oportunidade de morar sozinha e ser bancada
por meu pai até conseguir conquistar minha independência,
como ele fez com minhas irmãs. O plano perfeito estava feito,
era apenas questão de tempo. Assim que conseguisse um
emprego, aguentaria mais alguns meses convivendo com meus
pais, até conseguir juntar uma grana para alugar um canto.
96
Voltei orgulhosa para casa por ter tomado uma boa decisão.
Fui para meu quarto e continuei o planejamento. Lembrei que
já tinha visto na banca um jornal amarelo com apenas anúncios
de empregos e era dele que precisava no dia seguinte, mesmo
sendo sábado. Acordei já pensando no jornal ‘Amarelinho’,
havia uma banca de jornais bem na esquina do prédio, avisei
minha mãe que ia rapidinho até lá e já voltava. Eu nem quis
tomar café-da-manhã tamanha era minha ansiedade para
arrumar um emprego, sentei na escrivaninha do meu quarto e
comecei a analisar os anúncios com calma, já fui eliminando os
quais eu não me encaixava no perfil, principalmente os que
exigiam o Ensino Médio completo ou experiência na área. Ou
seja, sobraram pouquíssimas opções. Percebi que não seria fácil
encontrar algo, mesmo assim não desanimei. Marquei as opções
com exigências que eu conseguia me enquadrar. Uma delas
dizia no anúncio que a entrevista aconteceria na próxima terça-
feira a partir das 14hs. Anotei o endereço, num bairro não
muito longe e conseguiria ir de metrô. Perfeito.
Não sei de onde saiu tanto otimismo em mim, mas na terça-
feira acordei com a certeza de que seria contratada durante a
entrevista. Não poderia me arrumar tanto, afinal eu não queria
que meus pais soubessem que, além de não estar mais
frequentando a escola, estaria indo à uma entrevista de
emprego. Queria que soubessem depois, apenas quando
estivesse contratada. Quando cheguei no lugar, um escritório
num prédio comercial, me deparei com uma concentração de
pessoas, todas aparentemente com mais experiência e mais
velhas do que eu. A entrevista na verdade não existiu da
maneira que imaginei, as pessoas presentes precisavam apenas
preencher um papel com informações pessoais básicas e mais
algumas outras perguntas que envolviam a vaga do emprego:
promotora de produtos. Aquele otimismo todo foi embora,
intuí que jamais seria chamada para aquela vaga. Mais tarde
quando voltei para casa, peguei novamente o jornal e comecei a
buscar novas opções. Nas últimas páginas dele, os anúncios me
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instigaram bastante, eram praticamente iguais: “Moças de 18 a
25 anos, ganhe até R$ 3.000 por semana atendendo executivos”.
Eu era ingênua demais, mas não tanto, sabia muito bem qual
era o objetivo desses anúncios. E ganhar tanto dinheiro fazendo
sexo com executivos era tudo o que queria naquele momento.
Sabia o que era ser prostituta, mas não tinha muitas informações,
era um tema pouco comentado na mídia. Descobri que existe
prostituição graças ao meu pai, pois julgava as mulheres e
rotulava várias como putas, mesmo elas não sendo. Ele já tinha
me chamado de puta algumas vezes, a primeira vez foi quando
aos 14 anos, cheguei em casa com a marca de um chupão no
pescoço, após uma matinê na Krypton. E no dia seguinte, fui
obrigada ir à escola com um casaco de malha com gola alta para
esconder a marca, mesmo num calor de 30 graus.
Eu nunca me importei em ser chamada de puta, nunca me soou
como uma ofensa. Na época que fiquei com fama de puta no
Bandeirantes por causa do sexo oral, o que me incomodou foi o
julgamento, o fato de fazerem comentários humilhantes como
se eu tivesse cometido um crime. Não me ofendi por ter sido
considerada como uma puta, até achei engraçado o exagero.
Não imaginava que o mundo da prostituição fosse tão extenso,
com várias possibilidades e tipos de atendimentos, achava que a
única opção fosse fazer ponto na rua. Todas as descobertas que
fiz foram indo atrás, sozinha com a cara e coragem. Marquei
vários anúncios com esses convites atraindo mulheres, quis
conhecer como eram privês, boates e clínicas de massagem.
Na tarde seguinte, resolvi realizar estas visitas. O primeiro lugar
que conheci foi uma boate em Santana, perdi muito tempo
chegando até lá por ser longe do Paraíso, onde eu morava.
Fui muito bem recebida por uma mulher que se apresentou
como gerente, mas ela não conseguiu disfarçar o susto ao me
ver, me perguntou se eu sabia o que era ali e se eu tinha certeza
que queria conhecer. A maioria das prostitutas estava dormindo,
pois trabalhavam a madrugada inteira e trocavam a noite pelo dia.
98
Conheci a área principal com o bar e o palco onde rolavam os
shows de strip-tease, os quartos e os demais espaços. Além de
achar tudo bem feio e estranho, não consegui me enxergar
trabalhando ali, mesmo a gerente me avisando que fazer shows
não era algo obrigatório. Fiquei muito incomodada com o
cheiro, uma mistura de cigarro com suor e mais algo que não
consegui identificar. Não me senti à vontade e logo percebi uma
energia bem pesada, saí de lá com muita dor de cabeça. Enfim,
odiei e já desconsiderei essa opção. Risquei do papel onde
estavam minhas anotações, todas as outras boates que havia
selecionado. Não foi apenas o ambiente ser feio e o cheiro
horrível que me fizeram desistir de boate, mas levei em conta
também o fato de ter que conquistar o cliente com conversa,
sentando na mesa ou em pé no balcão, eu não levava jeito para
isso, não conseguia me imaginar seduzindo um homem com
papo... Conversar sobre o quê com um homem que nunca vi na
vida, meu Deus? Não teria paciência para isso. A gerente me
explicou que as garotas ganhavam comissão no valor das bebidas
que os clientes delas consumiam e que bebiam com eles. Fazia
muito tempo que eu não bebia, então por não estar acostumada,
não parecia ser uma boa ideia ficar bebendo todas as noites e
passando mal. E por fim, achei que não daria conta de ficar
acordada durante a madrugada toda e dormir durante o dia,
dificilmente conseguiria me adaptar a esse estilo de vida.
De Santana fui parar na Vila Madalena, onde fui conhecer um
privê, mas já cheguei lá preocupada com o horário de voltar
para casa. Também fui recebida com a mesma reação de me
perguntarem se eu sabia o que era ali. Conheci todo o local, a
sala principal, a salinha onde ficavam as garotas, os quartos que
estavam desocupados. Achei o ambiente bem mais agradável
que o da boate, um pouco mais leve também. A gerente me
passou todas as informações de funcionamento, todas as regras
que as garotas tinham que cumprir e consegui me enxergar
trabalhando ali. Ficou faltando conhecer uma clínica de
massagem. Voltei para casa relembrando de todos os detalhes
99
que vi e das conversas que tive com as gerentes dos locais que
conheci. “Será esse mesmo meu destino?” - não parava de me
perguntar isso. E não sabia responder com certeza, mas estava
bastante instigada pelo pouco que conheci. Dormi pensando e
me imaginando naqueles lugares. Acordei decidida a conhecer
mais sobre aquele mundo tão escondido e proibido na sociedade.
E então continuei a missão de explorar a putaria pela cidade.
Como já tinha descartado trabalhar em boate, resolvi focar em
conhecer outros privês, mas antes quis matar minha curiosidade
sobre clínica de massagem. Fui em uma localizada no Brooklin,
quando cheguei até achei que estivesse no número errado, pois
o lugar era lindo, de luxo, até fiquei na dúvida se rolava realmente
prostituição ali porque parecia uma casa de família. Toquei a
campainha com receio de estar cometendo alguma gafe.
Abriram a porta rapidamente e uma moça muito simpática me
pediu para entrar, me ofereceu água e perguntou se eu queria
informações. Havia um book com fotos de todas as mulheres
que trabalhavam na clínica, os homens escolhiam de quem
gostaria de receber a massagem. Nos quartos, no lugar da cama,
era uma maca. A energia do ambiente era bem mais leve e com
um cheiro gostoso de incenso no ambiente. Gostei bastante e
seria uma boa opção para mim, se não fosse o fato de nunca ter
feito massagem em alguém e achar que não teria paciência para
fazer tantas por dia. A principal vantagem de escolher trabalhar
nesta clínica seria que, além do ambiente ser bem aconchegante,
sexo não era obrigatório. A gerente me contou que muitas não
faziam sexo com os clientes, era algo opcional e o cliente
combinava sobre isso, diretamente com a menina no quarto.
A clínica ficava com 50% do valor da massagem que custava
R$ 200,00 e, se acontecesse programa, o valor do cachê ficava
inteiro para a garota, sem precisar dividir. Um detalhe muito
importante é que fazia parte da massagem, a finalização relaxante,
que era masturbar o cliente, algo que não era problema para
mim, afinal masturbei de graça alguns meninos que beijei na
Krypton, então não achei errado em ganhar dinheiro com isso.
100
Em seguida, fui em dois privês próximos da clínica. O primeiro
já desconsiderei logo de cara, pois além do lugar ser horrível,
não gostei da gerente e a primeira coisa que fiquei sabendo era
que o programa custava R$ 40,00, sendo que 50% ficavam para
o cafetão. Comecei a fazer as contas na cabeça, para ganhar três
mil por semana prometidos no anúncio, recebendo R$ 20,00
por atendimento, precisaria então fazer no total 150 programas.
Quase caí para trás. Agradeci e fui embora num piscar de olhos.
Seria abusar demais da boa vontade do meu corpinho.
O outro privê ficava a poucos metros, na rua Michigan, onde
trabalhei durante um período. A casa também parecia ser de
família, era espaçosa e bonita. O programa custava R$ 80,00
sendo que a cafetina também ficava com a metade. Gostei
bastante e marquei um asterisco no papel com minhas
anotações para lembrar que seria uma boa opção. E por fim,
fui conhecer um privê que ficava no Jardins, bairro vizinho de
onde morava com meus pais, era arriscado trabalhar ali tão
perto deles? Demais! Mas quis conhecer mesmo assim. Quando
cheguei, a gerente me atendeu, ela era estranha, mas com um
jeito muito engraçado, parecia que forçava ser séria e rígida.
Pediu para que eu entrasse num quartinho que ficava bem ao
lado da porta de entrada, avisou que estava ocupada, mas que
pediria para alguma das garotas ir conversar comigo para me
dar as informações. Sentei na cama e fiquei aguardando longos
minutos. Comecei a prestar atenção nos gemidos que estavam
acontecendo no quarto acima do qual eu estava. Primeiro foi
uma sequência de sons femininos, pouco tempo depois, ouvi
um gemido masculino bem intenso. Credo, que delícia.
Não tinha muito o que observar ao meu redor, o quarto era
bem pequeno, cabia apenas a cama e tinha um interfone na
parede. Notei também uma pequena caixa de som presa no alto,
de onde saia música ambiente. A porta abriu e entrou uma
morena bem bonita, com traços exóticos, maquiagem e cabelo
impecáveis, voz rouca, era alta e vestia um macacão todo
trabalhado na renda branca, justíssimo que marcava bem o
101
corpo dela. Não pude deixar de notar também que o bico
esquerdo do seio dela estava fugindo pelo decote. Fiquei com
vontade de avisar sobre o bico fujão, mas não sabia como avisar
com delicadeza, também pensei que poderia ser algo proposital
para chamar atenção dos homens. Se apresentou como Carla e
foi extremamente educada comigo, me passou todas as
informações e me disse baixinho: “A gerente daqui é um amor,
mas a dona é muito ruim, humilha a gente. Os clientes são
bons, vale a pena aguentar a dona louca”. Amei a sinceridade.
Carla me observou bastante, viu que eu estava com mochila e
perguntou se ainda estudava. Também notou que eu era bem
novinha, quis saber minha idade, se eu já fazia programas.
Me avisou que se eu trabalhasse lá, não conseguiria continuar
estudando, que seria uma escolha, pois o horário de trabalho
era das 10hs da manhã às 2hs da madrugada de domingo a
domingo, com direito a apenas um dia de folga. Gostei muito
da maneira como me passou as informações, revelando todos
os pontos negativos, mas finalizou dizendo que era possível
ganhar bastante dinheiro. O programa custava R$ 100, mas
a cafetina ficava com sessenta reais. Exploração que chama.
Fui embora de lá diretamente para casa, andando devagar e
processando todas as informações. Já tinha duas boas opções se
realmente resolvesse me prostituir: o privê da Michigan e este
do Jardins. Decidi não visitar os outros lugares.
Guardei este segredo comigo a sete chaves, tudo bem que a
única pessoa com quem conversava era o Hud e, embora não
estivéssemos mais nos encontrando pessoalmente e não sabia se
voltaríamos a ficar, não queria assustá-lo enquanto meu futuro
na prostituição ainda era incerto. Tinha medo da reação dele.
Os dias seguintes foram favoráveis para que eu decidisse meu
futuro e acabasse logo com qualquer dúvida sobre meu destino.
O silêncio em casa ainda era predominante, pelo jeito a punição
duraria por muito tempo, continuava me sentindo uma visita
chata, daquela que não vai embora nunca.

102
Minhas irmãs sumiram novamente, a última vez que as vi foi no
no dia que estavam na plateia durante a sessão de tapas.
Era quase uma hora da manhã, precisei ir até a cozinha para
beber água, meu pai estava assistindo televisão na sala, fingi que
não o vi. Quando eu estava voltando ao quarto, ele me chamou,
até levei um susto: “Precisamos conversar, Raquel!” – me disse.
Quando ele resolvia quebrar o silêncio era ‘eita’ atrás de ‘eita’.
Me apoiei no sofá, respirei fundo e me preparei para ouvir.
Comentou que viu o jornal com anúncios de empregos na
minha escrivaninha, então me questionou sobre isso com um
tom de deboche que sempre fez muito bem. Respondi que
realmente estava procurando um trabalho, não esperava dele
comemoração ou que me apoiasse, mas também não esperava
que reagisse com descaso: “E você acha mesmo que alguém vai
te contratar? Olha para você, Raquel, ninguém vai te querer.
Você precisa terminar os estudos e se cuidar com psiquiatra.”
Senti meu rosto arder de tanta raiva que senti ao ouvir isso.
Sempre me desmerecendo. Para ele, eu apenas seria alguém na
vida se seguisse os passos dele em Direito, assim como fizeram
minhas irmãs. Cresci ouvindo isso: “Você tem duas opções:
estudar Direito na PUC ou estudar Direito no Mackenzie”.
A mais velha estudou na PUC e a do meio no Mackenzie.
Não aguentei ficar calada e respondi em tom de deboche
também: “O senhor quer saber, pai? Estou pensando em
trabalhar numa clínica de massagem, soube que dá para ganhar
bastante dinheiro!”. Testei a reação dele que foi imediata:
- O quê? Você está me dizendo que vai ser puta, Raquel?
- Não. Serei massagista, é diferente.
Para que fui cutucar meu pai àquela hora da manhã?
Eu já estava morrendo de sono e fui obrigada a ouvir sermão de
um pai de família desunida tradicional brasileira.

103
Ouvi tudo, sem dizer nada. Não estava com disposição para
discutir e brigar. Para finalizar, me disse:
- Seu fim será no Emílio Ribas onde é o fim de todas as putas!
- Ok! – respondi
Voltei para o quarto sem saber o que era esse Emílio Ribas e,
como estava sem computador, não pude jogar no Yahoo.
O sono foi embora, mas fechei os olhos e fiquei pensando
sobre aquela conversa. Como eu não podia fechar a porta do
meu quarto para ter privacidade, então prestava atenção aos
movimentos do restante da casa. Quando estava quase
amanhecendo, eu continuava acordada no quarto e meu pai na
sala, ouvi quando minha mãe saiu do quarto deles. Fiquei atenta.
Não demorou muito para eles começarem a conversar baixinho,
levantei da cama e me posicionei na parede que separava o
corredor da sala, dali eles não me viam e eu conseguia ouvi-los.
Perfeito. Meu pai deve ter ficado perplexo com o que ouviu de
mim e, meu OK que encerrou o assunto, deve ter o incomodado.
Ele contou para ela sobre a nossa conversa, que se arrependia
por ter me adotado e que seria melhor seguirem com o plano de
me colocar num colégio interno. Quando ouvi isso, senti
minhas pernas moles, fui descendo com as costas na parede até
me sentar no chão. Abracei as pernas e comecei a chorar. As
vozes deles foram ficando cada vez mais longe, mas eu não
precisava ouvir mais nada, já tinha entendido tudo.
No dia seguinte, acordei sentindo o corpo pesado, sem vontade
de sair da cama. Até pensei em ficar em casa e dizer que não
estava bem para ir à escola, mas estava sem paciência para ficar
ouvindo a voz deles e tudo o que queria era ficar sozinha.
Minha vontade era de dizer que eu havia escutado a conversa
deles no início da manhã e que não se preocupassem. Fui ao
parque Ibirapuera, não senti vontade de conhecer nenhum
outro puteiro, não queria ver ninguém, queria apenas estar
conectada comigo. Passei a tarde encostada olhando para o
104
lago, com a mente cansada e agitada ao mesmo tempo,
pensando em mil coisas. Comprei um cartão telefônico, fui até
um orelhão e liguei para o Hud. Na última vez que nos falamos,
me convidou para ir à uma festa com ele que seria incrível e
deixou claro que fazia questão que eu fosse. Comentei que seria
difícil meus pais me liberarem, mas ele tinha esperança de que
eu conseguiria ir. Pois bem. A festa já seria no sábado daquela
semana. Hud comentou comigo com tanta empolgação, que me
deixou sem jeito de dizer que já era certeza que não poderia ir.
Ouvir ele dizer que estava com muita saudade de mim, acalmou
meu coração em relação às palavras que ouvi do meu pai.
Conversamos mais um pouco e não consegui comentar nada
sobre minhas reais intenções.
Voltei para casa decidida sobre o que seria da minha vida dali
em diante: ir embora da casa dos meus pais no dia seguinte.
Chegamos em nosso limite de convivência. Nos tornamos uma
família exausta. Por que continuaríamos insistindo em um
relacionamento tóxico para todos? Nada mais fazia sentido
continuar morando ali, onde não me encaixava há tanto tempo.
Se queriam me colocar num colégio interno, significava que me
queriam longe e pelo jeito, me pegariam de surpresa novamente.
Já comecei a me despedir da vida que levava ali. Eu tinha um lar
muito confortável, nunca passei fome, tive a oportunidade de
estudar nas melhores escolas, meu pai investiu bastante nos
meus estudos, tive tudo do bom e do melhor materialmente.
Poderia ter esperado a poeira abaixar, ter mais amadurecimento,
realizar mudanças internas e provar a eles o quanto que eu
queria ser alguém nesta vida, tudo seria questão de tempo.
Poderia ter elaborado um plano estratégico para continuar
mantendo aquele padrão de vida sem que precisasse abandonar
a família, apenas pensando em mim, me tornando uma filha
interesseira com intenção de continuar usufruindo de tudo, sem
precisar me preocupar com boletos tão cedo. Ao iniciar a
faculdade de Direito e me tornar uma boa filha, certamente
105
ganharia apartamento e carro, como aconteceu com minhas
irmãs. Seria um plano que demoraria alguns anos, mas era certo.
Poderia tantas coisas ainda ali, mas não queria mais nada deles.
A zona de conforto sempre tem um preço muito alto.
Minha gatinha sentiu a energia de despedida porque grudou em
mim na última noite, não saiu perto de mim. Conversei com ela,
como se pudesse me entender. Ela tinha todo o conforto que
eu não poderia proporcionar, infelizmente não tinha dinheiro
para alugar um canto para mim e levá-la comigo. Dei vários
abraços sentindo muito por ter que deixá-la. Sentei na cama e
relembrei de vários momentos que vivi naquele apartamento
por quase sete anos. Ter mais lembranças ruins que boas, era
um bom motivo para encerrar um ciclo que vivi naquele lugar.
Chorei mais do que dormi, tive uma noite agitada entre lágrimas,
pensamentos, despedidas.
Acordei decidida a ir embora e me tornar prostituta para ter
onde morar e continuar mantendo o padrão de vida que estava
acostumada. Desde que abandonei a escola, para que meus pais
não desconfiassem, saia de casa com a mochila e o fichário em
mãos. Dessa vez não enchi a mochila com livros para fazer
volume, mas com roupas. Coloquei algumas peças íntimas, um
biquini, shorts jeans e duas regatas. Eu não tinha nenhuma
roupa sensual para iniciar minha vida na prostituição. Minhas
calcinhas eram gigantes, de algodão e infantis. Coloquei
também produtos de higiene e por último, guardei meu RG,
pois precisava ter um documento comigo. Guardo até hoje meu
fichário cheio de colagens de nomes de marcas e recortes de
imagens tiradas da revista ‘Capricho’ de galãs da época, a
mochila da Kipling, shorts jeans e a roupa que estava no meu
corpo durante a fuga. Coloquei o CD do ‘Red Hot Chilli
Peppers’ para tocar no discman, sentei na escrivaninha e escrevi
uma carta de despedida. Agradeci as coisas boas que fizeram
por mim durante os 17 anos que convivemos, pedi desculpas
por não ter sido uma boa filha e por ter errado bastante.
106
Comentei sobre o arrependimento por ter vendido as jóias.
Lamentei por ter me tornado um peso para eles e que sabia que
estavam arrependidos por terem me adotado. Disse que não
entendia por que nunca conseguimos ser uma família feliz.
Deixei claro que não era uma carta de despedida de um suicida,
mas de despedida porque minha vida continuaria bem longe
dali e que eu acreditava que seriam mais felizes dessa maneira.
Assinei meu nome embaixo do ‘Adeus’.
Mesmo com toda a dor de despedida, fiz o possível para que a
carta tivesse um tom que não se sentissem culpados com a
minha partida. Eu poderia ter escrito um textão com todos os
motivos que me fizeram tomar a decisão de ir embora, mas
além de não ter tempo para escrever tanto, eu não precisava
jogar nada na cara, pois eu tinha certeza de que sabiam muito
bem onde falharam. Pais sempre sabem ou deveriam saber.
Dobrei a carta. Faltava menos de meia hora para dar o horário
de sair de casa. Aproveitei os últimos minutos com a minha
gata no colo, sentei um pouco no sofá da sala como há muito
tempo não fazia, observei minha mãe que estava preparando o
almoço na cozinha. Ainda havia tempo para rasgar a carta e
desistir. Dei o último abraço na minha gata com tanta força
como se fosse esmagá-la e a enchi de beijos. A porta do quarto
dos meus pais estava com um vão aberto, ouvia o ronco alto
dele, empurrei um pouco para conseguir vê-lo. Fiquei um
pouquinho ali, observando meu pai dormir, me despedi dele
com palavras saindo da minha boca em forma de sussurros para
não o acordar. Deixei a carta em cima da mesa.
Fui até a cozinha, minha mãe estava na pia, de costas para mim.
Me despedi dizendo apenas: “Tchau, mãe! Estou indo!”.
Esperei alguns segundos enquanto a olhava ainda de costas e
sentia meu coração disparado, mas ela me ignorou.
Eu sabia que aquele momento era nossa despedida, ela não.
Abri a porta e fui embora decidida a não mais voltar.
107
Desfecho com o Hud
Lembra da festa que ele tanto queria que eu fosse no sábado?
Pois bem. Chegou o grande dia! Mesmo não morando mais na
casa dos meus pais há dois dias, eu não poderia ir. A gerente do
privê deixou bem claro que as garotas poderiam sair apenas
após às 2hs, quando a casa fechava. Desde quinta, dia da minha
fuga, queria falar com Hud para dar notícias, pedi permissão
para ir à farmácia e aproveitei para ligar de um orelhão. Quando
ouviu minha voz, ficou surpreso, perguntou onde eu estava,
demonstrando preocupação. Já estava sabendo através da
minha mãe sobre a minha fuga. Falei para ele que era uma longa
história para contar naquele momento, mas que não se
preocupasse comigo porque eu estava bem. E então ele me
contou que já sabia o que estava acontecendo e que meus pais
também, mas não entrou em detalhes, ainda bem. Avisei que
não conseguiria ir à festa e senti que ficou bem chateado.
Comentei que ligaria um outro dia com mais calma e nesta
segunda ligação, combinamos de nos encontrarmos pessoalmente
no shopping Higienópolis. Pedi folga num domingo para
encontrá-lo, nem acreditava que depois de tanto tempo, nos
veríamos. Ficamos mais de três horas conversando sentados
num bar dentro do shopping. Contei tudo. Ele reagiu com
muito respeito e sem julgamentos. Demonstrando chateação,
me contou que havia planejado me fazer uma surpresa durante
aquela festa, me pediria em namoro. Nos perdemos.
Mantemos a amizade por mais um tempo, nos encontramos
algumas outras vezes, nunca mais ficamos. E uma curiosidade:
nunca transamos, pois não tivemos oportunidade nem tempo.
Nossa história foi bonita, com sinais de que era para ficarmos
juntos de alguma maneira, mas rolou um grande desencontro:
quando ele quis namorar comigo, me tornei prostituta.
Perdemos contato quando parei de fazer programa, mas estava
casada. Nos distanciamos naturalmente e encerramos nosso
ciclo.
108
CAPÍTULO 3 - Prostituição
Sentindo tristeza e alívio, fechei o portão do prédio onde
morava com meus pais. Estava encerrando ali um ciclo e
iniciando outro, cheia de expectativas e inseguranças.
Olhei em direção a janela da cozinha, onde minha gata gostava
de ficar, para vê-la pela última vez, infelizmente não consegui.
Segui meu rumo em direção ao privê que escolhi dar início à
minha vida como garota de programa. Não ficava muito longe,
andei praticamente uma reta por quase meia hora, sempre
olhando para trás, com medo de que alguém estivesse me
seguindo. Minha sensação era de um passarinho que acabara de
fugir da gaiola, mas eu estava voando já sabendo qual seria meu
destino. E então cheguei no lugar que, no dia que visitei para
conhecer, fui recebida por Carla.
A decisão mais difícil já estava cumprida, consegui fugir de casa,
dali em diante não imaginava o que poderia acontecer comigo.
Toquei a campainha e fui recebida pela gerente que ficou
surpresa com o meu retorno. Me levou até um quarto,
confirmou todas as informações que eu já sabia, pegou meu RG
e quando viu que ainda era menor de idade, fez um semblante
de espanto, fiquei com receio dela me proibir de trabalhar por
conta disso, mas como faltava menos de duas semanas para
completar 18 anos, então me liberou com a condição de
prometer que não comentaria sobre minha idade com nenhum
cliente. Por fim, perguntou se eu tinha roupa para trabalhar,
falei que não, então foi buscar uma sacola com peças que foram
deixadas por garotas que já haviam trabalhado lá. Não eram
roupas, mas pedaços de panos.
Percebi que o próximo passo seria vencer a timidez para
conseguir exibir meu corpo. Até aquele momento, não sabia o
que era ter autoestima, nunca me achei bonita, muito pelo
contrário, sempre me considerei a mais feia em qualquer lugar
que estivesse. A gerente me entregou uma toalha, tomei banho
109
e vesti os paninhos que escolhi: uma saia minúscula e uma
blusinha que deixava boa parte da minha barriga de fora.
Ela riu das minhas calcinhas e me aconselhou a comprar novas
com urgência. Concordei, realmente eram brochantes.
Olhei no espelho e me deparei com minha nova versão.
Observando meu reflexo pela primeira vez naquele lugar, senti
que a Raquel já estava morrendo dentro de mim.
A gerente elogiou meu corpo e afirmou que eu trabalharia
bastante, mas por conta da minha insegurança, achei que ela
estivesse exagerando. Em seguida, me levou para conhecer a
casa inteira. Eram apenas cinco quartos, sendo que três no
andar de cima. Para encerrar a tour no puteiro, conheci a salinha
que ficava abaixo da entrada principal, onde as garotas ficavam
reunidas quando não estavam atendendo clientes.
Era uma sala pequena com dois sofás velhos e sujos, a mesa da
gerente com três telefones que não paravam de tocar, um móvel
antigo embaixo da escada com uma televisão pré-histórica e um
espelho bastante disputado que ficava em uma das paredes.
Num canto, alguns armários de metal para as garotas guardarem
os pertences. Na outra ponta, era a porta de saída para uma
pequena área aberta que servia como fumódromo e corredor
para a cozinha com um cheiro insuportável.
Zero conforto ou luxo.
A gerente me apresentou às garotas, algumas estavam
terminando de almoçar, enquanto outras já se arrumavam para
quando o próximo cliente tocasse a campainha, estarem
prontas. Todas pararam para me olhar, morri de vergonha por
ter sido o centro das atenções. Percebi o olhar perplexo delas,
nem todas responderam o meu “oi”. A Carla sorriu quando me
viu. No geral, senti que não fui muito bem-vinda, me olhavam
como se quisessem entender o que eu estava fazendo ali.

110
A gerente se sentou numa das cadeiras da mesa e me pediu para
sentar também para finalizarmos o meu cadastro. Enquanto
esperava ela terminar de anotar meus dados, uma garota parou
ao meu lado e se apresentou: “Oi, eu sou a Gabi!”
Gostei dela logo de cara. Em seguida, perguntou meu nome.
- Raquel – respondi.
- Não, este é seu nome real. Precisa ter um nome de guerra,
assim como o meu é Gabi. Qual será o seu?
- Ainda não sei.
- Posso te dar uma dica? Você combina com Bruna.
- Gostei! Então resolvido, a partir de agora sou a Bruna!
Eu amei meu nome de guerra, um nome fácil e bem forte.
A gerente me passou as últimas informações: onde ficavam as
camisinhas e as toalhas, como funcionava o pagamento dos
programas, todas as regras e multas em caso de desobediência,
explicou sobre o revezamento para atender os telefones e o que
deveríamos dizer nas ligações. Não era apenas abrir as pernas.
***
A cafetina investia muito em anúncios nos jornais, inventava a
existência de várias garotas para instigar os homens, eram três
números diferentes de telefone para tentar disfarçar que não era
o mesmo local. Estamos falando de 2002, numa época que a
internet era mato e divulgar em jornais era comum. Todos os
anúncios eram falsos, por exemplo, existia um que descrevia
que entre nós, existia uma mestiça linda, ninfeta com seios
fartos e cintura fina. Era a mais procurada e quando os homens
ligavam para marcar programa com ela, quem atendesse tinha
que fingir que era a própria e passar as informações do
programa. Quando algum cliente chegava e pedia para chamar a
tal mestiça, a gerente dizia que ela tinha saído para atendimento
em motel, mas que ele poderia conhecer as outras garotas que
111
estavam à disposição naquele momento. Pronto! Cai no golpe
quem quer. Todos queriam e acabavam escolhendo outra.
A casa começava a funcionar às 10hs, mas precisávamos
começar a atender as ligações às 8hs, então revezávamos este
turno de telemarketing e nem ganhávamos a mais por isso, pelo
contrário, se ninguém atendesse o telefone, todas pagavam
R$ 50,00 de multa, este valor era descontado do nosso
pagamento. A cafetina nos testava todos os dias, ligava
pontualmente para algum número e sem direito a bom dia.
Ela também pedia para que algum conhecido ligasse durante o
dia para saber se as informações eram passadas corretamente.
Não tínhamos liberdade, éramos proibidas de sair durante o dia
sem uma boa justificativa. Se quiséssemos comprar algo
específico na padaria ou em outro lugar, tínhamos que juntar os
pedidos, o dinheiro e entregávamos ao segurança que ia
comprar para a gente. Não existiam aplicativos para pedir
comida, então nos virávamos dessa maneira.
A gerente tinha um coração gigante, bem diferente da cafetina,
então nos liberava algumas saídas desde que fôssemos rápidas
porque ela tinha medo da dona descobrir e acabar sendo punida
também, então tínhamos que ir apenas em lugares bem
próximos e sabíamos que não era para ficarmos passeando.
A cafetina fazia uma compra semanal no mercado para nós,
mas era apenas o básico e não prezava a qualidade das marcas.
Não comprava guloseimas porque não podíamos engordar e a
única carne que comprava era asinha de frango. Nunca comi
tantas asas na vida.
Recebíamos quase todos os dias vendedoras que iam nos visitar
para vender produtos dos mais variados possíveis, as
chamávamos de “tias”. Tinha a tia que vendia roupas com
pouco pano para trabalharmos, uma que vendia apenas sapatos,
outra que levava produtos de beleza, outra apenas lingeries, etc.

112
Cada uma vendia algo específico e não existia concorrência
entre elas. Como iam todas as semanas, então podíamos pagar
aos poucos.
***
Já tinha nome de guerra, um look para o primeiro dia de
trabalho, faltava apenas experiência sexual para me sentir uma
puta completa, no entanto, eu não tinha noção do que fazer no
quarto com um homem que nunca havia visto na vida e que
estaria pagando para que eu desse prazer. Achei que teria tempo
para conversar com a Carla ou a Gabi para pegar dicas.
A campainha tocou, a gerente subiu a escada correndo e todas
as garotas se levantaram e formaram uma fila na frente do
espelho. Algumas ajeitavam a roupa, outras a maquiagem.
E eu perdida, acabei indo na área externa, acendi um cigarro
para aliviar a ansiedade. Dei alguns tragos rápidos e entrei na
fila do espelho, eu não tinha nada de maquiagem, a única vez
que me maquiei na vida foi para ir ao casamento da minha irmã
do meio e ainda assim, fui maquiada no salão por uma
profissional. Não sabia passar lápis nos olhos, nem nada.
Uma menina percebeu que eu estava com a cara limpa e me
ofereceu maquiagem, quando chegou minha vez no espelho,
passei apenas gloss, olhei nos meus olhos e sorri para mim.
Nesse momento, dei vida à Bruna.
Eu menti dizendo que já tinha me prostituído, mas a minha
inexperiência era nítida, só não notava quem não quisesse.
Fui a última a me apresentar ao cliente, observei por um vão na
escada como a menina na minha frente agiu, então entendi
como tinha que ser. Quando ela começou a descer a escada,
respirei fundo e subi sem expectativa nenhuma, queria apenas
sentir na pele como era estar diante um cliente.
Cheguei na frente do primeiro homem que conhecia minha
nova versão e disse tentando ser bem simpática e disfarçando
113
todo meu nervosismo: “Oi, eu sou a Bruna!”. Dei meia volta e
já fui em direção a escada para descer. Simples assim.
Quando estava na metade da escada, a gerente começou a subir
para perguntar ao cliente com quem ele queria fazer programa.
Acabei de me sentar no sofá quando a gerente apareceu, olhou
para mim e disse sorrindo: “Bruna, é você!”.
Eu não estava acreditando que havia sido a escolhida e, da
maneira que as garotas me olhavam, nem elas acreditavam.
A Gabi me perguntou se eu tinha necessaire para levar ao quarto,
respondi que não sabia que precisava, ela então me emprestou o
dela, disse que eu poderia usar o que quisesse. Abri e vi que
além de camisinhas, tinha um óleo para massagem, sabonete
líquido e gel lubrificante que eu não sabia que existia.
Peguei duas toalhas e subi. Quando estava chegando perto do
sofá, o cliente levantou e me acompanhou para levá-lo até o
quarto. Ao mesmo tempo que estava nervosa, sentia uma calma
inexplicável, como se eu já tivesse vivido aquela experiência.
Senti que a Bruna já fazia parte de mim.
Ele me observava de uma maneira que me incomodou, como se
pudesse ler meus pensamentos. No momento de tirar a roupa,
pense numa menina desajeitada com zero sensualidade. Era eu!
O silêncio foi quebrado com a pergunta: “Eu sou seu primeiro
cliente, não sou?”. Confirmei sem conseguir olhar para ele.
E continuou:
- Quantos anos você tem?
- Dezoito!
- Sei que está mentindo, fale a verdade, pode confiar em mim.
- Tenho dezessete, mas meu aniversário é dia 28, daqui a
poucos dias. Por favor, não comente com ninguém que você
sabe disso.
Deitado ao meu lado, ambos nus, ele não sabia se queria
conversar ou transar comigo. Enfiou um dedo em mim, levei

114
um susto, me senti invadida. Assim que tirou, cheirou como se
estivesse realizando um exame. Perguntou o que eu estava
fazendo em um puteiro. Respondi apenas que não me dava
bem com minha família e resolvi sair de casa, então encontrei
ali uma maneira de recomeçar minha vida. Ele ficou pensativo.
Pegou minha mão e colocou no pau, comecei a masturbá-lo.
Pediu para colocar a camisinha e, enquanto fazia isso, me disse:
"Você não nasceu para estar nesta vida de puta!”
Em seguida, abriu as minhas pernas e começou a me penetrar.
Eu não falei nada, não gemi, não chorei. E entendi que fazer
sexo em troca de dinheiro seria mais difícil do que imaginei.
Após gozar, deitou-se novamente ao meu lado e começou a me
dar opiniões, sendo que não pedi. Recebi conselhos morais,
mas ele estava tão preocupado comigo que fez questão de
transar antes. Cidadão do bem.
Me avisou que eu era muito inteligente e nova para estar ali, fez
uma previsão que esse caminho me causaria sofrimento, então
me orientou a dar uma chance à família, afirmou que ainda dava
tempo de mudar de ideia e voltar para casa.
Agradeci os conselhos e avisei que estava decidida a continuar...
O primeiro programa a gente nunca esquece, mas minha
memória é seletiva, não me lembro do rosto desse cliente, assim
como dos outros tantos.
O resultado do primeiro dia na prostituição foi positivo em
vários sentidos, fui a garota que mais atendeu clientes e todos
me elogiaram, fatos que me motivaram. Passei a infância toda
sofrendo bullyng na escola por ser gorda e a adolescência me
sentindo a garota mais feia da turma e, para minha surpresa, me
tornei a prostituta mais desejada do privê.
Ouvir elogios era uma massagem no meu ego. Sabia que os
clientes eram sinceros, afinal ali não era um jogo de conquista.
115
No início da noite, já tinha feito cinco programas e comecei a
ficar sem graça em relação às outras garotas, algumas não
tinham atendido nenhum cliente. Estava longe de ser a mais
bonita do grupo, enquanto minhas colegas eram mulherões, eu
era apenas uma menina, mas era exatamente isso que chamava a
atenção dos homens: a ingenuidade natural e meu corpo de
adolescente. Eu não me destacava pela beleza, mas por ter um
jeito diferente com um certo mistério no ar, era a menina tímida
que estava aprendendo a ser safada na cama, a ninfeta perdida
entre os mulherões.
No final da noite, Laís, a cafetina, apareceu para realizar os
pagamentos do dia anterior. Era a arrogância em pessoa, se
sentia superior somente por ser a dona da casa, mas quem a
bancava, eram as garotas. A gerente contou que Laís se
prostituiu por muitos anos antes de investir em um puteiro
próprio. O marido dela era proibido de entrar, ficava a
esperando na calçada, conversando com o segurança.
Laís pegou a agenda onde a gerente fazia anotações e
administrava os programas durante o dia: horários, os nomes
das garotas que atenderam, se foram pagos com dinheiro ou
cheque. Após analisar o dia, perguntou: “Quem é a Bruna?”.
Eu estava em pé, na área do fumódromo, dei dois passos para
que me visse e então me apresentei. Ela me olhou de baixo para
cima com olhar de julgamento, sem dizer nada, virou para a
gerente e deu uma risadinha que não consegui decifrar.
Em seguida, perguntou: “Gostou de trabalhar aqui, Bruna?”.
Provavelmente, imaginou que eu daria muito dinheiro a ela.
Receberia meu primeiro pagamento apenas no dia seguinte, mas
fiquei a acompanhando pagar minhas colegas. Ela repassava
40% do valor do cachê e descontava R$ 15,00 do montante
total, era a taxa diária para ajudarmos com as despesas para
manter a casa. A garota ficava devendo quando não fazia
nenhum programa no dia, Laís não tinha dó e descontava os
116
quinze reais do próximo pagamento.
Meu primeiro dia foi concluído com sucesso. A adrenalina
abaixou e senti o cansaço físico. Foi no último banho, antes de
dormir, que a ficha caiu que havia conseguido fugir de casa e
estava ali à disposição de homens que nunca tinha visto na vida
e, treinando com cada um, meu poder de sedução após dizer a
frase: “Prazer, eu sou a Bruna!”. Com a agitação e euforia
durante o dia, não fiquei pensando em meus pais, mas embaixo
do chuveiro, fiquei tentando imaginar como estariam.
Todas as garotas moravam no privê, se dividiam entre os
quartos para dormir. A Gabi me chamou para dividir a cama
com ela, pois a garota com quem dividia o quarto, foi embora
para trabalhar em outro lugar, então estava sozinha.
Deitei ao lado dela e ficamos conversando até dormir, me
encheu de perguntas querendo saber quem sou. Aconselhou a
não me importar com os olhares de inveja, pois a reação de
algumas meninas era assim mesmo. Contou que causei espanto
entre as garotas e que rolaram muitos comentários maldosos
enquanto estava atendendo algum cliente, pois a maioria me viu
apenas como uma patricinha rebelde.
Não entenderam o que eu estava fazendo ali, nem como tantos
clientes me escolheram. Elas não conseguiam enxergar
nenhuma qualidade em mim ou motivos para atrair tantos
clientes, me achavam estranha. A Gabi não precisava ter me
contado, pois percebi nos olhares o incômodo que estava
causando. Não queria que se sentissem ameaçadas por mim
pelo fato de estar atendendo vários clientes, esperava que
entendessem o meu lado, estava ali para ganhar dinheiro e,
assim como elas, tinha objetivos e sonhos. Não tinha culpa por
chamar tanta atenção dos homens, não poderia me apresentar
fazendo careta para assustá-los e evitar que me escolhessem.
Nos primeiros dias, percebi que seria impossível ganhar
R$ 3000 por semana, trabalhando naquele lugar. Fui apenas
mais uma iludida com a promessa falsa do anúncio no jornal,
117
então resolvi não ter uma meta financeira para não me frustrar.
Ainda não tinha atendido nenhum executivo, mas já estava me
acostumando com o fato de fazer sexo com homens de todos
os tipos, a diversidade me atraía, fazia parte do desafio.
***
A tão esperada maioridade enfim chegou, infelizmente não
pude comemorar com festa. Como tinha direito a ter uma folga
por semana, escolhi não trabalhar em meu aniversário.
Além de me presentear com descanso, me permiti um dia de
princesa num salão de beleza para cuidar de mim: fiz luzes,
hidratação, limpeza de pele e massagem relaxante.
Aproveitei também para ir à Avenida Paulista e comprei um
novo discman, CDs, caderno, canetas, livros e algumas roupas.
Pela primeira vez estava gastando dinheiro que era fruto do
meu trabalho. Ter conquistado minha independência financeira
foi meu maior presente.
Alguns clientes que já tinham feito programa comigo,
começaram a retornar pedindo para a gerente me chamar.
Para quem chegou na prostituição com zero experiência sexual,
mal sabendo variar posições sexuais, até que eu estava
mandando bem na performance sexual.
Eu não sentia falta da convivência com meus pais, mas sentia
saudade deles. Por mais que nosso relacionamento tenha sido
péssimo, foram pessoas que me adotaram e cuidaram de mim
do jeito deles, então queria que me perdoassem.
Após uma semana muito desgastante tanto fisicamente como
emocionalmente para mim, acabei me arrependendo por estar
fazendo programas, pela primeira vez o cansaço bateu e
comecei a me questionar se queria realmente aquilo para mim.
Tinha consciência pesada por ter agido de maneira errada ao
fugir de casa e me tornar quem meu pai mais temia: puta.

118
O movimento de clientes não foi bom naquela semana, a
campainha tocou menos que o normal, mesmo assim, continuei
batendo recorde de atendimentos, gerando então um maior
desconforto entre as garotas que ainda não me aceitavam. Uma
delas, inclusive, foi embora alegando que eu estava pegando
todos os clientes para mim. A energia estava bem pesada.
Saí da casa dos meus pais para ter liberdade, no entanto, troquei
seis por meia dúzia, afinal não podia sair a hora que bem
quisesse, vivia entre regras e sendo explorada por uma cafetina.
Abandonei a família em busca da paz que não encontraria no
caminho que escolhi. Até que ponto valia a pena me prostituir?
No início da noite de sexta, aproveitei que a gerente me pediu
para ir à farmácia e, enquanto trocava de roupa, tive vontade de
ligar para os meus pais pela primeira vez após a fuga. Parei num
orelhão e foi mais difícil do que imaginei. Comecei a apertar os
números e quando faltava o último, desisti. Respirei fundo e
tentei de novo, também não consegui completar. Na terceira
tentativa fui até o final, mas quando ouvi a voz da minha mãe,
me tremi todinha e não saiu nenhuma palavra da minha boca
quando ela perguntou: “Raquel??? É você?”
Desliguei o telefone na cara dela por falta de coragem.
Voltei ao privê, atendi somente mais um cliente naquela noite e
tive bastante tempo para me preparar psicologicamente.
A gerente se tornou minha amiga, então comentei com ela
sobre minha vontade de conversar com meus pais. Além de ter
me apoiado, prometeu que me liberaria durante o dia por meia
hora para fazer a ligação com calma. No dia seguinte, após o
almoço, saí pronta para a missão. Da mesma maneira que tive
coragem de fugir, precisava ter também para ligar e pedir para
voltar para casa.
Cheguei no orelhão, fumei dois cigarros seguidos pensando no
que falaria. Minha mãe atendeu no segundo toque, me tremi

119
todinha novamente, mas dessa vez consegui dizer:
“Oi, mãe, é a Raquel...”.
- Oi, Raquel... - respondeu com um tom de voz que misturava
surpresa, tristeza e raiva.
- Quero dizer que estou bem, mas estou arrependida.
Silêncio. Ouvi o barulhinho de isqueiro acendendo um cigarro,
aproveitei para acender um para mim também.
- Difícil né, Raquel, você tomou um caminho sem volta. Nós
sabemos onde está e o que está fazendo, encontramos suas
anotações.
Abandonei todos os diários que escrevi desde meus 8 anos,
estavam muito bem escondidos no meu quarto, mas é claro que
meus pais os achariam em algum momento. Até aí tudo bem.
O problema é que esqueci o diário daquele ano e dentro dele,
estava a folha com informações dos puteiros que visitei.
A pressa para ir embora foi tão grande que não me lembrei de
colocá-lo na mochila. Por um lado, pensando bem, se tiveram
interesse em ler todos meus textos, entenderam pelo menos um
pouco sobre minhas atitudes. Inclusive, escrevi quando ouvi a
conversa quanto ao arrependimento por terem me adotado.
Vacilei deixando as evidências, o melhor foi assumir de uma
maneira sutil, sem usar termos diretos, como minha mãe fez,
omitindo qualquer expressão que envolvesse prostituição.
E então respondi:
- Pois é, mãe. Fiz uma escolha errada e nesta semana, bateu o
arrependimento. Estou ligando porque quero pedir para voltar
para casa.
- Acho que isso não será mais possível, mas vou conversar aqui
e te dou uma resposta depois.
- Posso ligar amanhã para saber?
- Pode sim.
120
Minha intuição dizia que meus pais não me aceitariam
novamente, mesmo assim, quis ouvir o “NÃO” da boca dela.
No dia seguinte, liguei novamente e tive a sentença final:
- Conversamos aqui, Raquel. Você fez sua escolha, então
continue nesse caminho. Nós fizemos o que podíamos.
Por mais que estivesse preparada para ouvir uma resposta
negativa, doeu. Não insisti. Agradeci o que fizeram por mim e
me despedi. Desliguei o orelhão sabendo que dali em diante, a
Bruna precisaria estar ainda mais viva dentro de mim, ela que
seria minha força para continuar a vida sem família.
***
O quarto bem ao lado da entrada do privê, era pouco usado e
acabou se tornando meu refúgio nas horas livres. Quando
chegava algum cliente, ouvia a campainha e, como estava ao
lado da sala, então já ia me apresentar. Quando era escolhida, a
gerente me avisava através do interfone: “Bruna, é você!”.
A ideia de passar o tempo livre sozinha foi a melhor coisa que
fiz por mim, assim evitava climão entre as garotas e tinha um
pouco de paz. Montei o que chamava de “Kit de sobrevivência
no puteiro”, era uma bolsa onde carregava o discman, CDs,
caderno, canetas, livro e uma garrafa com água. Ouvindo
música, lendo ou escrevendo, conseguia relaxar a mente.
Aos poucos fui conquistando a confiança das garotas, depois de
mais de um mês, pararam de me julgar tanto, muitas já tinham
ido embora e outras chegaram depois de mim. Acabei me
tornando uma das garotas antigas da casa, mesmo estando há
pouco tempo ali. Percebi que existia uma hierarquia e as
novatas respeitavam. Da época que cheguei, apenas quatro
continuavam comigo: Gabi, Carla, Fernanda e Amanda.

121
A Gabi era a minha melhor amiga, foi quem me acolheu desde
o início e nos tornamos confidentes. Éramos extremamente
diferentes, ela era uma virginiana sistemática, cheia de manias,
muito organizada, não fumava ou bebia, vaidosa ao extremo.
Demonstrava ter preconceito com a prostituição, sempre foi
super mal resolvida, não aceitava viver naquela situação e tudo
o que mais queria era conseguir juntar dinheiro para parar de
fazer programa. Ela não gostava de ser chamada de prostituta,
puta ou garota de programa, se ofendia com qualquer termo.
Era baixinha, marrenta e com um coração enorme.
Tinha um bom relacionamento com os pais e o irmão mais
novo, era a filha que fazia tudo para a família estar bem, boa
parte do dinheiro que ganhava, pagava as despesas para manter
a casa dos pais, num bairro humilde em São Paulo e bem
distante de onde estávamos. Gabi assim como a maioria das
garotas, levava uma vida dupla. A mãe não podia sonhar com a
realidade da filha, era super religiosa e jamais aceitaria.
Quando decidiu se prostituir e morar no privê, contou aos pais
que dividiria apartamento com uma amiga para morar mais
perto do trabalho, uma loja de roupas femininas num shopping
que ficava do outro lado da cidade. Ela realmente trabalhou
nesta loja, mas pediu as contas assim que decidiu se prostituir.
A Carla tinha uma relação péssima com a família, apenas
mantinha contato porque a filha de 5 anos morava com os pais
dela. Ela fazia de tudo pela menina, ligava todos os dias para
conversarem e, após desligar o telefone, chorava de saudade.
Mandava dinheiro para que não faltasse nada. Se culpava
demais por ter se distanciado já que o pai também era ausente,
mas tinha como objetivo guardar dinheiro na prostituição e ir
embora com a filha para outra cidade, bem longe da família.
Os pais de Carla também desconheciam a realidade, achavam
que ela morava com o namorado e estudasse enfermagem, não
sabiam que a faculdade estava trancada. Era bem resolvida na

122
prostituição, mas lutava contra a depressão. Cheirava cocaína
com muita discrição, não era sempre, apenas em algumas fases.
A Fernanda era uma mulher que chamava muita atenção, alta e
corpo maravilhoso, cabelos bem pretos quase até a cintura.
Era a garota mais bonita do privê, na minha opinião.
Amava sambar, tinha uma energia boa, sempre bem humorada.
Um dia, pediu meu caderno emprestado e escreveu várias frases
motivacionais tiradas de trechos de músicas. Espiritualizada, me
deu de presente o livro ‘Violetas na janela’. Me entregou
dizendo que mudou a vida dela quando leu e sentiu que
mudaria a minha também. Ela acertou. Guardo esse livro até
hoje. Quase não falava sobre a vida particular, era bem discreta.
Quando nos tornamos amigas, conversávamos bastante,
tínhamos várias afinidades, talvez por sermos do mesmo signo.
A Amanda era a mais velha em idade e que estava há mais
tempo na prostituição, tinha trinta e tantos anos e se prostituía
desde os dezenove, era bem debochada e séria. Ela não morava
no privê, mas com os pais já idosos que não podiam nem
sonhar que fazia programa, trabalhava num horário especial.
Amanda tinha alguns clientes fixos, ainda bem que podia contar
com eles porque quase não trabalhava. Não se esforçava para
ser simpática, nunca fomos amigas, apenas colegas.
***
Estávamos a duas semanas do Natal e comecei a ficar
desesperada, pois não tinha para onde ir. Consegui um destino
dois dias antes, quando a Cléo, uma garota que estava
trabalhando há poucos dias no privê, me convidou para passar a
noite com ela e alguns amigos. Topei sem pensar duas vezes.
Achei que não teria movimento de clientes por ser 24 de
dezembro, mas o dia foi bem agitado. A cafetina tinha um
pouco de bom senso, o horário de atendimento foi até 18hs.
Eu e Cléo fomos ao mercado para comprar bebidas e seguimos

123
até a casa do amigo dela, onde seria nossa noite natalina.
Ele morava longe, numa comunidade bem conhecida em São
Paulo. Fomos de táxi e no meio do caminho, pediu para que eu
não tivesse medo com o fato de alguns amigos serem bandidos
e garantiu que a noite seria divertida. Quando chegamos, eles já
estavam bêbados. Confesso que senti um pouco de medo e
fiquei irritada por não entender as gírias, mas isso era o de
menos, eles eram realmente divertidos e me respeitaram demais.
Eu não quis entrar em detalhes sobre a vida deles, a única
informação que recebi de Cléo já foi o suficiente. Aquela noite
prometia ser boa, com muita bebida, música alta, nem parecia
ser noite de Natal. Os meninos foram embora antes da meia-
noite, mas continuamos com a festa. Além de mim e Cléo, três
moços e uma menina continuaram presentes. Comecei a passar
mal e me deitei numa rede, me recuperei cochilando por quase
uma hora e acordei renovada.
O efeito da bebida passou, ainda deitada na rede, lembrei que
era o primeiro Natal longe dos meus pais. A bad bateu e não
consegui controlar as lágrimas, chorei que nem criança.
Cléo e um dos meninos, me ouviram chorar e foram conversar
comigo para me acalmar. Estava entre soluços e eles
prometeram que cuidariam de mim. Confiei. Parei de chorar.
Por mais que Natal nunca tenha sido uma data animada em
família, sempre foi apenas uma noite normal com a diferença de
ter presentes e o cuscuz que minha mãe fazia maravilhosamente
bem, fiquei com saudade de estar com meus pais.
Cléo me convenceu a sair da rede e me levou onde todos
estavam sentados, vi que cheiravam cocaína e me ofereceram.
Falei que não queria, mas insistiram dizendo que era apenas um
pouquinho e que eu ia gostar. Um dos meninos fez duas
carreirinhas (pequenas fileiras com pó), com uma me mostrou
como que fazia para cheirar e a outra era minha. Me agachei,
aprendi rapidinho, puxei o pó de uma vez. Eu não imaginava,
mas com essa atitude, dei um passo para cair no fundo do poço.
124
Gostei do efeito, resolvi cheirar mais enquanto bebia e
conversava assuntos aleatórios. Em pouco tempo, minha mente
parecia estar anestesiada, não conseguia pensar em nada,
esqueci das dores internas, da família, de mim, do mundo.
Não sei em qual momento, meu corpo desligou. Acordei
quando eram quase 16hs, não lembrava como fui parar na
cama, minha última lembrança era tentando dançar forró.
Misturei cocaína com vodka e energético, uma bomba para o
coração. Levantei e estava me sentindo meu corpo bem fraco.
Cléo e os meninos estavam bebendo no quintal, minha ressaca
moral estava gritando. Não queria aquele sentimento de tristeza
e sim o da mente anestesiada. Soube que cheirei no total cinco
carreirinhas durante a madrugada. Acordei querendo mais, mas
não tinha. Eles também queriam e como eu tinha consumido o
pó deles, avisei que a próxima rodada era por minha conta.
Peguei todo dinheiro que tinha na carteira, quase oitenta reais, e
entreguei ao menino que se ofereceu para buscar mais.
Viciei muito rápido. Nossa comemoração natalina continuou,
eu nem queria saber se estava sem energia física e espiritual,
apenas pensei: “Vou cheirar apenas mais hoje!”.
Tínhamos que voltar antes da meia-noite ao privê para não
pagarmos multa. Chegamos bem louconas, mas o importante é
que conseguimos. Na manhã seguinte, não sei como consegui
acordar cedo, estava na bad novamente, tinha consciência que
passei as últimas horas me drogando para esquecer da vida, mas
estava de volta ao trabalho. Escondi muito bem os dois
papelotes que sobraram para usar num momento de diversão,
mas no final da tarde me deu vontade e já comecei a me
enganar: “Será uma cheiradinha, apenas para relaxar!”.
Começamos a pensar onde seria nosso destino do Réveillon e
mais uma vez Cléo me levou para uma cilada. Na época, existia
um chat de amizade por meio de SMS na extinta operadora
BCP, onde conheceu e começou a conversar com um moço
que morava na Praia Grande. Ela teve a brilhante ideia de
125
comentar que queria passar a virada do ano com amigas na
praia. Rapidamente, o moço comentou que a mãe estava
alugando um imóvel perto de onde moravam. Cléo perguntou
para mim e a Vanessa, garota que trabalhava com a gente, sobre
o que achávamos da ideia de alugarmos esta casa, pois a estadia
além de estar num valor acessível, ainda dividiríamos entre nós
três, então gastaríamos menos do que planejamos. Fizemos o
depósito no dia seguinte para o moço entregar o dinheiro à mãe
e assim, garantir nosso Réveillon com os pés na areia.
Combinamos com o segurança do privê para que nos levasse e
buscasse de carro. Estava tudo certo, mas algo me dizia que
seria uma furada mesmo Cléo afirmando que poderíamos
confiar, afinal o menino já tinha passado até o endereço.
Às 18hs do dia 31, assim que fechou o privê, lá fomos nós.
Não pegamos muito trânsito na estrada e chegamos um pouco
depois das 20hs no endereço que o moço passou, era uma casa
que estava bem movimentada, achamos estranho, mas
liberamos o segurança para ir embora. Cléo avisou ao amigo
virtual que tínhamos chegado, ele garantiu que estava indo levar
a chave para a gente, ficamos olhando para dentro da casa,
ansiosas, o esperando sair. Passaram quase vinte minutos e nada
dele aparecer, Cléo então ligou para saber se ia demorar muito,
caiu direto na caixa postal e nunca mais conseguiu falar com ele.
Ingênuas, ainda pensamos que a bateria do celular pudesse ter
acabado, então perguntamos por ele a uma mulher que
apareceu no portão, mas nos avisou que não conhecia ninguém
com aquele nome. A ficha caiu. Caímos no conto do vigário.
Estávamos na Praia Grande, mas muito longe da praia, a quase
dez quilômetros de caminhada. Chegamos no hotel que a
mulher do portão nos indicou, mas não tinha mais nenhuma
suíte vaga. Nos indicaram outro que também não tinha mais
nenhum quarto disponível. Começamos a ficar desesperadas.
Até que encontramos um sobrado que não era um hotel, mas
uma hospedagem. Uma placa pendurada no muro avisava sobre
126
a locação de quartos. Vimos um senhor no quintal e o
chamamos, ele foi a nossa salvação. Havia disponível apenas
um quarto minúsculo com uma cama de solteiro e um banheiro
que mal cabia uma pessoa, mas era nossa única opção e
resolvemos ficar.
Fechamos um valor simbólico porque num primeiro momento
ele não quis nos cobrar, pois ficou sensibilizado por nossa
situação. Fizemos questão de pagar, então ele pediu para
darmos o valor que pudéssemos e que não atrapalhasse nossos
planos. Demos então cem reais por duas noites.
O quarto era tão pequeno que mesmo se quiséssemos, não
conseguiríamos ficar por muitas horas ali, era apenas para
dormirmos e espremidas na cama de solteiro.
Tomamos banho, trocamos de roupa, começamos a beber e
cheirar pó para nosso esquenta e fomos relaxadas à praia.
Levamos as garrafas de champanhe que já estavam quentes.
A caminhada realmente foi longa, mas conseguimos chegar a
tempo para os fogos e a virada do ano. Encontramos um
espaço na areia para chamar de nosso, no meio da muvuca.
Eram umas 2hs da manhã quando ouvimos alguns batuques de
longe. A Cléo identificou na hora o que era: “Todos os anos
têm grupos de médiuns que se reúnem para trabalhos
espirituais, vamos para lá!” e nos obrigou a acompanhá-la.
O grupo estava animado, todos vestidos de branco, canções
gostosas de ouvir, senti a energia forte só de chegar perto,
fiquei com vontade de entrar, mas o medo foi maior.
Sentei na areia com a Vanessa, ao lado de fora do grupo,
ficamos apenas observando e percebemos que estava rolando
incorporações. Quando saiu da roda e se encontrou com a
gente, Cléo estava muito estranha, não entrou em detalhes,
apenas disse que tiraram “coisas ruins” dela. Demorou muito
para voltar ao normal, me pediu a chave do quarto onde
estávamos hospedadas a quilômetros dali, alegando que
precisava ir embora porque nós não éramos boas companhias,
127
pois não quisemos limpar nossa energia. Não entreguei a chave
e nem deixei que ficasse sozinha, discutimos porque joguei na
cara que ela me enfiava apenas em ciladas. Nossa comemoração
acabou após esta discussão, ela ficou até o dia seguinte sem
falar comigo. Percebi que alguém tinha que estar bem ali, as três
loucas não dariam certo, então decidi que seria eu. Parei de
beber e cheirar, comecei a tomar água para todos os efeitos
passarem mais rápido. Não consegui ignorar o fato de estarmos
muito longe do lugar onde dormiríamos, com pouco dinheiro e
ainda num clima péssimo. Acabei me tornando quem mais
temia: a tia chata do rolê.
Conseguimos chegar com muito sufoco no quarto, elas
deitaram e dormiram. Resolvi tomar uma dose de vodka com
energético para comemorar a chegada de 2003, embora não
estivesse em minha melhor condição psicológica, sempre iniciei
um novo ano acreditando que seria o melhor da minha vida!
Mesmo com o clima estranho entre nós três, conseguimos
aproveitar a praia antes de retornarmos a São Paulo.
À noite, resolvemos aproveitar um quiosque que estava
animado com música ao vivo, bebemos como se não houvesse
o amanhã, mas houve e perdemos a hora. E assim, iniciamos
nosso ano sendo multadas por não termos respeitado o horário
de chegada no privê.
Vida fácil só se for para a dona do cabaré.
***
Comecei o ano 2003 bem otimista, apesar do Réveillon ter sido
um fiasco, sempre acreditei na energia boa da virada do ano.
O movimento de clientes foi péssimo no dia que voltamos ao
batente, fiz apenas dois programas, pelo menos paguei a dívida
da multa. Início de ano, não é uma boa época para ganhar
dinheiro com prostituição, pois os homens estão em família.

128
A minha sorte é que vários clientes começaram a ir ao privê
com o intuito de me conhecer. Na primeira vez que um moço
chegou e pediu para a gerente me chamar, imaginei que fosse
algum cliente que já me conhecesse, mas quando o encontrei na
sala, não me lembrava dele. Guardei a curiosidade comigo e não
perguntei nada, concluí que algum amigo dele tivesse feito
propaganda de mim. Algumas horas depois, outro apareceu me
querendo logo de cara e achei estranho. Perguntei então como
tinha me descoberto, foi quando soube da existência de um
Fórum virtual de clientes que avaliam as garotas de programa e,
segundo ele, eu estava com apenas avaliações ótimas, não
entendi nada, mas pedi o endereço desse site para conhecer.
Naquela semana, vários homens foram me procurar e eu
precisei ir a lan house para matar curiosidade e saber o que tanto
escreviam sobre mim. Na primeira página do Fórum, apareceu
as alternativas: flats, boates, privês e clínicas de massagem.
Cliquei em privês e apareceu uma lista gigante de opções.
Encontrei rápido o da Alameda Franca, onde trabalhava.
No início de cada post, estava o nome da garota, já vi alguns
com Bruna. Comecei a ler os relatos, me senti maravilhosa com
tantos elogios. Foi assim que me tornei a puta emocionada.
Acompanhei os depoimentos sobre mim durante toda minha
trajetória na prostituição, quando comprei um computador
ficou ainda mais fácil, acessava todos os dias para verificar
como estava meu ibope. Em três anos, minha reputação foi
incrível, os próprios clientes fizeram meu marketing. Os elogios
mais comuns eram relacionados ao meu sexo oral, por ser boa
companhia e me definiam com estilo de namoradinha safada.
A minha fama começou bem antes de aparecer na mídia.
Ao mesmo tempo que foi ótimo ter destaque neste Fórum, por
outro lado, a responsabilidade era grande demais, afinal
precisava manter o padrão de qualidade que os novos clientes
buscavam em mim, adquiri autoconfiança na marra.

129
Não foi apenas a Bruna que fez sucesso. Minha versão
masculina, o Bruninho, também fez. Vários clientes que me
avaliaram no Fórum o conheceram, mas omitiram este detalhe.
A primeira vez que fui Bruno, me surpreendeu. Não sabia que
homens héteros buscam mulheres que realizem este desejo
sexual, pensava que contratassem apenas travestis ou garotos de
programa. O cliente era um moço jovem com no máximo trinta
anos, moreno musculoso, cheio de tatuagens, jeito de safado.
Era a primeira visita dele no privê, então não fui a única que
ficou encantada, todas as garotas ficaram eufóricas. Quando a
gerente desceu e disse “Bruna, é você!”, não consegui esconder
meu sorriso de satisfação. Peguei as toalhas, minha necessaire e
subi empolgada, fantasiando o que faríamos na cama.
Quando chegamos no quarto, me disse: “Quero um consolo!”.
Com toda minha inocência, achei que consolo definisse apenas
dizer palavras bonitas a alguém que estivesse precisando de
conforto. Fiquei parada, olhando para ele, esperando que
começasse o desabafo. Percebeu que não entendi e repetiu:
“Vocês não trabalham com consolo aqui? Vai buscar um
enquanto tomo um banho!”. Fui buscar o tal do consolo.
Desci correndo a escada e avisei as garotas: “Ele me pediu para
vir buscar um consolo, não estou entendendo nada, alguém me
ajuda pelo amor de Deus!”. As meninas caíram na gargalhada.
A Fernanda foi buscar e me entregou uma maleta com vários
pintos de borracha, jamais imaginaria que consolo fosse isso.
Enquanto voltava ao quarto, fui analisando a variedade de
tamanhos e fiquei imaginando qual seria a sensação de ser
penetrada com um consolo. Mostrei as opções ao cliente e ao
escolher o maior de todos, só consegui ter um pensamento:
“Não vai caber em mim”. Peguei uma toalha para tomar banho
e me preparar psicologicamente. Quando menos esperei, o
jovem estava de quatro na cama. Olhei para o pinto na minha
mão, olhei para a bunda dele e a ficha caiu. Entendi o recado.
130
Fingi ter experiência e segui o instinto. O pior que poderia
acontecer seria não fazer certo, ele reclamar e me ensinar.
O Bruno nasceu. Segurei o consolo com força e vontade como
se fosse um pau de verdade, então coloquei camisinha e passei
bastante gel, em seguida, comecei a penetrar devagar para não o
machucar. O moço rebolava de uma maneira gostosa de se ver.
Quando ele deu uma pausa, fiquei fazendo o movimento do
vai-e-vem, enquanto ele se masturbava. O gemido que soltou ao
gozar, foi profundo. Sem dizer nada, apenas com a respiração
ofegante, levantou-se e foi ao banheiro tomar banho, sequer
tocou em meu corpo. Bruno o satisfez. A camisinha estava
intacta e limpíssima, por toda facilidade que existiu durante a
penetração, concluí que não tirei a virgindade dele. Como se
fosse experiente, continuei agindo naturalmente.
A maioria dos clientes que experimentou o Bruno em ação, era
casado ou comprometido com mulher. Me diziam que não
tinham coragem de pedir para a cônjuge realizar esse desejo
sexual por terem medo da reação ou de julgamentos. Um deles
desabafou: “Sugeri que minha noiva fizesse beijo grego em
mim, pois sempre fiz nela, mas a reação que teve foi negativa,
me perguntou se sou gay, então fiquei com medo de pedir para
ser penetrado por um vibrador dela. Desde então saio com
garotas de programa apenas para matar minha vontade de ser
passivo na relação”.
Sempre entendi o lado deles, imaginando o quanto difícil deve
ser para um homem que gosta de papel inverso, estar com
alguém que não aceita realizar esta vontade. E me colocava no
lugar dessas mulheres também, afinal não imaginava que era
normal existir homens héteros que gostam de ser penetrados.
Comecei a gostar da experiência de proporcionar prazer sendo
Bruno, a maioria dos clientes era passivo praticante, mas tirei a
virgindade de muitos. Quando algum comentava ter
curiosidade, eu incentivava a experimentar, então sugeria de
começarmos com fio-terra (penetração com dedo), assim
131
conquistava a confiança. Tive um cliente fixo que era médico,
um dia entramos no assunto e ele me contou que, durante
plantão de madrugada no hospital, era comum aparecer homens
com objetos penetrados, pois não conseguiram tirar sozinhos.
Alguns casos eram resolvidos apenas com cirurgia e quase
nenhum assumia o motivo de estar com algo no ânus, usavam a
velha e boa desculpa de que foi um acidente. O objeto mais
comum era garrafa de vidro, mas ele já tinha visto de tudo,
como por exemplo, um homem com uma Barbie penetrada.
Por duas vezes, mais do que penetrar um consolo, tive que
interpretar e fingir ser homem. Um deles pediu para que eu o
xingasse com voz grossa durante a performance inteira.
Outro me confidenciou que morria de tesão por um amigo e
detalhe: as mulheres dos dois eram muito amigas também.
Ele sabia que o desejo teria de ficar apenas na imaginação,
contou que se masturbou algumas vezes homenageando o
amigo, mas queria fingir que faziam sexo e fui escolhida para
realizar essa fantasia. Foi uma experiência bem interessante.
Em outro privê que trabalhei, realizei um fetiche que também
não sabia que existia: fisting. Ao chegar no quarto, o cliente me
perguntou se já tinha penetrado meu punho em alguém.
Não sabia que isso era possível, fiquei perplexa, mas disfarcei.
- Hoje você vai fazer em mim! – me disse entusiasmado.
Ele foi fofo desde o início, me entregou uma luva cirúrgica, o
tubo de lubrificante e começou uma aulinha teórica com as
coordenadas que eu precisava seguir, era necessário unir bem os
dedos, fazendo um montinho para então penetrar com carinho.
“A parte da subida é chatinha, mas a descida é rápida, você nem
vai perceber que estará com o punho dentro de mim!” – me
alertou. Não senti nojo, além de estar protegida com luva, ele
comentou que fez duchinha (limpeza interna anal) antes de sair
de casa. Me pediu para que não economizasse o lubrificante.

132
Ele ficou de quatro no chão, me posicionei atrás e segui
direitinho todos os passos, me entreguei ao momento com todo
respeito e dedicação. Quando estava com o punho enfim
penetrado, fiz os movimentos em câmera lenta como me pediu,
senti muito calor na mão. Ele gozou enquanto se masturbava.
Confesso que bateu um pouco de desespero ao lembrar da
história dos homens que chegam no hospital com algum objeto
penetrado, foi quando pensei: “E se minha mão não sair e
precisarmos ir ao hospital desse jeito?”. Que morte lenta.
Ele avisou quando acabou. Tirei a mão com calma, a luva estava
limpíssima, sem nenhuma sujeirinha, se eu a mostrasse para
alguém e contasse onde a coloquei, ninguém acreditaria.
Ser garota de programa abriu ainda mais minha mente sobre o
mundo sexual, sabia que sexo é muito mais que oral, anal, papai
e mamãe, de quatro... Mesmo assim, não imaginava que
existiam inúmeras possibilidades, tantos fetiches e uma boa
variedade de posições. Me instigava a oportunidade de viver
experiências diferentes, meu objetivo principal continuou sendo
ganhar dinheiro, mas também queria ter aprendizados para que
a prostituição não fosse uma fase em vão na minha vida.
***
Voltando a janeiro de 2003: foi um mês bem difícil, de vacas
magras, nem os anúncios no jornal estavam dando resultado.
Tudo estava fluindo muito bem para o meu lado, graças ao
sucesso no Fórum. No entanto, por conta do faturamento do
privê ter caído consideravelmente, a cafetina começou a atrasar
nossos pagamentos porque se enrolou com a propina semanal.
Numa noite, a cafetina apareceu com o rabo entre as pernas,
toda mansa, querendo fazer uma reunião com as garotas, a
gerente e o segurança. Ela estava bastante preocupada, nos
contou o que estava acontecendo e avisou que a prioridade era
acertar a dívida com os policiais. Nos pediu paciência e fez
133
várias promessas. Por fim, nos fez prometer que, se por um
acaso, não conseguisse pagar a dívida da propina e policiais
realizassem uma batida no privê, precisávamos negar que era
um puteiro e convencê-los que ali era uma república de
estudantes. Só no mundo fantástico da cafetina que, vestidas
com pedaços de pano e maquiadas, convenceríamos alguém.
Seriamos piada na delegacia.
Foram dias bem tensos. Começamos a receber o pagamento
diário, não no valor total, mas pelo menos uma parte para que
não ficássemos zeradas. Começamos a ameaçar de irmos
embora, apenas não fizemos isso porque sabíamos que agindo
assim, nunca mais veríamos a cor do dinheiro que nos devia.
***
Numa noite, a Fernanda me contou várias histórias de aparições
de espíritos que rolavam naquele privê. A mais assustadora era
de uma garota que foi assassinada sendo estrangulada por um
cliente, num dos quartos que ficava no segundo andar.
Ninguém ouviu nada, o assassino conseguiu fugir sem ser
notado e quando encontraram o corpo dela, foi tarde demais.
Enfim, diziam que o espírito apareceu pedindo ajuda para várias
pessoas e continuava “preso” no quarto onde ocorreu o crime.
Eu nunca vi nada, mas ouvi barulhos diversas vezes,
principalmente durante a madrugada quando todas estavam
dormindo. O mais comum era ouvir sons na escada, como se
alguém estivesse subindo ou descendo correndo, mas não era
ninguém. A situação que me causou mais medo foi quando eu
estava dormindo com a Gabi no quartinho ao lado da entrada,
comecei a ouvir alguns barulhos no quarto que ficava em cima,
eram sons de passos e como se estivessem arrastando a cama
ou algum outro móvel. Não estava conseguindo dormir e como
estava ao lado do interfone, então decidi tocar para saber quem
era a garota que estava lá, ninguém me atendeu e o barulho

134
continuou. Incomodada, resolvi ir pessoalmente pedir para que
maneirassem no barulho, no entanto, quando estava na metade
da escada e já conseguia ter visão do quarto, percebi que estava
com a luz apagada. Dei meia volta e desci correndo, sentindo as
pernas moles, tranquei a porta, deitei ao lado da Gabi, me enfiei
embaixo do edredom mesmo estando calor, mas nada me tirava
dali enquanto não amanhecesse e todas as garotas acordassem.
Era o quarto que a garota morreu, quando a Fernanda contou a
história, me arrepiei e comentei com ela sobre o que ouvi.
Em outro privê, contavam a história de que mais de um cliente,
em dias diferentes, avisou a gerente que havia escolhido uma
mulher com cabelos cacheados bem pretos e vestido vermelho.
Nunca existiu alguma garota com esta descrição.
***
Um cliente me machucou durante o sexo anal, tenho certeza de
que foi proposital, maldade de macho escroto quando a mulher
pede para parar porque está doendo, mas continua porque sente
prazer por saber que está machucando. Por estar acostumada a
fazer anal, sei até quando a dor é normal. Quando senti a
primeira fisgada, pedi para que parasse, mas ele respondeu:
“Já estou quase gozando, aguente um pouco”.
Esse “pouco” foi uma eternidade para mim, eu gemia de dor.
Quando acabou, vi que tinha sangue na camisinha. Ele ignorou.
Decidi não fazer mais anal naquele dia para não me machucar
mais, avisei a gerente e ela compreendeu. Minha preocupação
era por conta de o valor do cachê ser de programa completo,
ou seja, anal era incluso e éramos obrigadas a fazer. O problema
é que até mesmo fazendo vaginal, estava sentindo muita dor.
No dia seguinte, acordei com mais incômodo, não encontrava
posição para me sentar, até para fazer xixi estava sendo um
sofrimento. Não quis ir à farmácia por não saber como explicar
minha situação para indicarem a pomada ideal.

135
Não podia deixar de atender os clientes, então fazia o possível
para satisfazê-los apenas com oral, quando não conseguia, fugia
da posição ‘de quatro’ porque se tornou impossível. Aguentei
esta situação até chegar no meu limite físico de sentir dor, isso
foi no sexto dia, estava também com cólica intestinal por não
estar conseguindo ir ao banheiro, minha barriga estava inchada.
Busquei ajuda com a gerente, ela ligou para a dona pedindo
permissão para minha ida ao médico, autorizou desde que eu
não fosse sozinha.
Sem plano de saúde e no desespero para cuidar logo de mim,
resolvemos ir ao Hospital Jabaquara. Senti na pele a
precariedade do sistema público de saúde. Ficamos mais de 4
horas na fila até chegar na nossa vez, vi muitas pessoas
passando mal e desmaiando no corredor, é desesperador.
Estava torcendo para ser atendida por uma mulher, mas
infelizmente não tive esta sorte. Fui direta e reta, não tinha o
que inventar, então quando o doutor me questionou o que
estava acontecendo, contei que me machuquei fazendo sexo
anal há quase uma semana. Ele me levou numa sala bem grande
com uma maca praticamente ao lado da outra. Pediu para que
eu abaixasse a calcinha para me examinar, morri de vergonha,
fechei os olhos e prendi a respiração como se adiantasse algo ou
me tornasse a mulher invisível. Ainda bem que foi rápido, o
machucado estava muito inflamado, o doutor fez uma limpeza
e passou pomada, além de me receitar medicamentos.
Em quatro dias, já estava ótima, sem mais nenhuma dor.
***
O movimento de clientes no privê estava começando a
melhorar depois do perrengue que durou um pouco mais de um
mês, a cafetina estava pagando aos poucos o valor da dívida
com cada garota. Tudo parecia estar voltando ao normal.
Num domingo, ela resolveu nos visitar, chegou gritando que

136
estava sabendo que havia garotas consumindo drogas lá dentro,
sendo que era extremamente proibido.
- Quero que quem esteja consumindo drogas aqui dentro,
pegue as coisas e suma da minha frente! Não quero saber se não
tem para onde ir!
Olhei para as que consumiam, assim como eu. Olhares de
espanto, ninguém tinha para onde ir, mal tínhamos dinheiro,
todas engoliram seco. Sabíamos que ir embora naquele
momento, significaria renunciar a dívida, dificilmente
receberíamos algo. Eu não tinha filhos, nem família que
dependia financeiramente de mim e já estava cansada dali, não
seria problema ir embora. Resolvi então assumir o BO.
- Toda droga é minha, não se preocupe, estou indo embora!
Ninguém esperava isso de mim, a mais quieta tendo coragem de
assumir algo tão difícil. Calei a boca da dona, acho que ela foi a
que menos esperava esta minha atitude. Fui até meu armário
para pegar minhas coisas, enquanto estava arrumando a
mochila, ouvi a Cléo e a Vanessa assumindo também, o bonde
do Réveillon fracassado estava unido. Mais ninguém assumiu.
Era nítido que o incômodo que causei na dona e na gerente, foi
grande demais. Me despedi de todas as garotas, abracei cada
uma, agradeci e desejei boa sorte. Fiz a Gabi me prometer que
nossa amizade não estava acabando e que continuaríamos a
manter contato. Ela estava bem triste e preocupada comigo,
mas a acalmei dizendo que estava tudo bem. Não consegui
olhar para a cara da gerente ou da dona.
Saímos do privê, já estava escuro, eu estava com um sentimento
de alívio por ter ido embora, entendi que precisava encerrar o
ciclo naquele lugar onde iniciei minha trajetória de prostituta.
Sugeri de pararmos num bar para relaxarmos e pensarmos com
calma sobre qual seria nosso destino dali em diante. Tomei
minha dose praticamente calada, entre meus pensamentos.
137
Eu tinha quase novecentos reais, o suficiente para me manter
durante alguns dias, sem o desespero de procurar um outro
puteiro com pressa e aproveitaria para descansar. Olhei para as
meninas, sabia que não tinham muito dinheiro e não poderiam
me acompanhar neste descanso. Eu não conseguiria pagar
hospedagem num hotel razoável para nós três. A Cléo já tinha
me colocado em duas ciladas seguidas. Elas não eram tão
minhas amigas, tinha um pé atrás com ambas, então não
mereciam tanto sacrifício da minha parte. Em contrapartida,
não tinha coragem de deixá-las sozinhas, sugerindo que cada
uma seguisse por si. Após pensar muito, sugeri de irmos para
algum hotel barato ali nas redondezas, na região da rua Augusta.
Não falei o quanto tinha de dinheiro, mas avisei que pagaria
nossa hospedagem em algum canto naquela noite e, no dia
seguinte, procuraríamos um outro privê para trabalharmos.
Elas concordaram, fomos até um ponto de táxi e pedimos ajuda
ao motorista. Encontramos um lugar que não poderia ser
chamado de hotel, era um pulgueirinho, apenas para quebrar o
galho por uma noite.
No dia seguinte, decidimos trabalhar num privê em Moema, ao
lado do shopping Ibirapuera. Gostamos muito do nosso novo
local de trabalho, um sobrado grande com quartos melhores.
Com menos regras e mais flexibilidade de horário, tínhamos
mais liberdade. O cachê era mais barato, por R$ 80, mas não
éramos obrigadas a fazer sexo anal e ficávamos com 50%, então
acabava sendo o mesmo valor de lucro que estávamos
acostumadas por programa, além disso tudo, nenhuma taxa era
descontada do nosso pagamento.
A rotatividade de garotas era tão grande que não consegui fazer
amizades concretas. A dona era o oposto à cafetina anterior,
respeitava demais todas as garotas que trabalhavam para ela.
Não éramos obrigadas a morar no privê e tínhamos o direito de
ir e vir, claro que sem abusar da boa vontade dela.

138
Eu ia ao shopping todos os dias, foi a fase que mais tomei o
milkshake de Ovomaltine do Bob’s.
O movimento de clientes era maravilhoso, a campainha tocava
o dia inteiro e, como havia uma área com balcão de bar, onde
rolavam uns bons drinks, então era comum irem grupos de
amigos principalmente para happy hour após o trabalho, as noites
eram sempre agitadas. Continuei mantendo a minha
popularidade e mesmo existindo mais concorrência, pois a
quantidade de garotas era maior, eu trabalhava bastante.
Antes de fechar a casa, a cafetina fazia o fechamento do caixa
do dia e já realizava o pagamento para as garotas que estavam
presentes. Nem todas dormiam lá, muitas inclusive eram
casadas e cumpriam apenas o turno diurno.
Tudo era tão perfeito que considerei trabalhar neste privê até
me aposentar na prostituição.
***
A Vanessa não ficou nem um mês, nunca entendi o motivo dela
não trabalhar bem, era bonita e chamava atenção, não notei
como se apresentava aos clientes, talvez o problema estivesse
nesta parte. Infelizmente, ela se entregou para a cocaína de uma
maneira que a atrapalhou, acabou se perdendo. Numa manhã,
se despediu da gente, dizendo que ia trabalhar em outro privê e
nunca mais nos deu notícias.
Uma garota resolveu comemorar o aniversário num bar após
nosso expediente. Enquanto nos arrumávamos para ir, Cléo viu
quando enrolei três notas de cinquenta reais e escondi na lateral
da minha calcinha, pois comentou que já fez muito isso.
Nessa época, eu era muito fraca para bebida, tomava duas ou
três doses de vodka e já ficava bêbada ou passava mal.
Nessa noite, eu passei muito mal no meio da madrugada.
Estava sentada com as meninas na mesa, curtindo a música ao
vivo quando tudo começou a girar ao meu redor, minha pressão

139
caiu e, a aniversariante que estava sentada na minha frente, se
levantou e foi me ajudar dizendo que era melhor irmos ao
banheiro pelo menos para passar água no rosto, mas chegando
lá, eu piorei, mal conseguia ficar em pé, meu coração disparou,
fiquei com medo de desmaiar e comecei a chorar. Ela então foi
pedir ajuda e voltou com Cléo, que mal chegou e me levou até a
privada, comecei a vomitar descontroladamente, sentia meu
corpo cambaleando, mas ela estava me segurando. Mesmo
passando mal, eu estava com o mínimo de consciência, sabia o
que estava acontecendo. Cléo achou que eu estivesse pior e se
aproveitou, quando estava agachada ainda vomitando, senti a
mão dela na lateral da minha cintura num movimento muito
rápido, mas como estava passando muito mal, não tinha como
parar o que estava fazendo para entender o que tinha acabado
de acontecer. Depois de alguns minutos, saímos da cabine e fui
até a pia para me limpar. Ela me perguntou se eu estava melhor,
respondi que sim, então saiu. Fiquei um tempo sozinha no
banheiro para me recuperar e, quando voltei ao normal, lembrei
do movimento que senti na cintura e resolvi conferir. Enfiei
minha mão embaixo da calcinha e não senti nada, entrei na
cabine e abaixei a calça, não vi o dinheiro. Ela realmente puxou
minhas notas. Ainda não conseguia ver maldade, pensei que
pudesse ter tirado o dinheiro dali com a intenção de me ajudar,
talvez preocupada que eu abaixasse a calça para fazer xixi e
perdesse o dinheiro por não lembrar dele. Voltei à mesa e não
toquei no assunto, esperei que ela comentasse algo.
No momento de pagar a comanda, esperei alguma atitude
positiva dela de comentar que meu dinheiro estava com ela.
Ficou quieta e eu, calada. Queria ver até onde ia a palhaçada.
Quando chegou minha vez de pagar, fingi que nada sabia,
coloquei a mão na cintura e disse: “Ué, meu dinheiro não está
mais aqui, não acredito que perdi!”. Cléo foi mais atriz do que
eu, demonstrou preocupação e me puxou até o banheiro para
me ajudar a procurar o dinheiro. Obviamente não encontramos.
140
Ficamos disputando quem contracenava melhor. Resolvi deixar
quieto, não queria brigar com ela. Pedi para a aniversariante
pagar minha comanda, garanti que devolveria assim que
chegássemos ao privê. No caminho de volta, fiquei pensando se
realmente abafaria o caso ou se lutaria para ver meu dinheiro de
volta. Resolvi lutar seguindo minha intuição. A primeira coisa
que pensei é que não poderia sair de perto, para não dar chance
de esconder as notas em algum lugar, precisava encontrar nela.
O primeiro passo do plano, foi comentar em alto e bom som,
dando ênfase ao valor para que todas as garotas ouvissem:
“Não estou acreditando até agora que perdi CENTO E
CINQUENTA REAIS”. Além de mim e Cléo, mais duas
garotas estavam no táxi, era suficiente para serem testemunhas.
Chegando no privê, fiquei apreensiva, mas algo me dizia que eu
estava certa. Quando subimos para o segundo andar onde
ficavam os quartos, sabia que ali era o momento de abordar a
Cléo e fazer com que a máscara dela caísse e meu dinheiro
aparecesse. Resolvi dar uma chance para me contar a verdade,
perguntei se realmente não sabia onde poderia estar meu
dinheiro, ela respondeu que não. Sem pensar duas vezes,
respondi: “Está com você sim! Tenho certeza!”. Peguei a bolsa
que ela tinha levado, fucei inteira, todos os bolsos, no fundo,
dentro da carteira e nada. Até que me deu um estalo e tive
certeza de que estava escondido no corpo dela. Fui para cima
dela, enfiei a mão nos bolsos da saia dela e não achei,
começamos a brigar e, quanto mais ela me empurrava para me
afastar dela, mais força eu tinha para enfrentá-la. Aliás, não sei
de onde saiu tanta força física de mim, acho que foi pela raiva
que estava sentindo. Até que consegui abrir a blusinha dela que
era fechada com botões. Quando bati o olho no sutiã, notei que
tinha um volume diferente, enquanto me protegia com uma
mão dos empurrões dela, com a outra consegui levantar o sutiã
e não deu outra, meu dinheirinho caiu no chão. Sem dizer nada,
ela saiu correndo para o quarto onde dormíamos, corri atrás.
141
Eu ainda não estava satisfeita e explodindo de raiva, a puxei
pelos cabelos e disse: “Tá pensando que vai ficar por isso
mesmo?”. Confesso que perdi a cabeça de tal maneira que
minha vontade era de machucá-la, entre xingamentos, arranquei
o colar do pescoço dela a força. Quando se sentou e fui para
cima, ainda querendo brigar, ela começou a chorar e me pediu
perdão. Peguei as três notas e joguei em cima dela. A última
frase que disse foi: “Pode ficar com esse dinheiro, amanhã vou
trabalhar, ganhar o dobro e você não fará nenhum programa!!”
Praga de puta, Deus escuta.
Nos dois dias seguintes, ela ficou sentada no sofá, se apresentou
aos clientes, mas nenhum a escolheu. Nunca soube qual foi o
destino daquelas três notas, não sei se Cléo guardou para gastar
ou se jogou fora. Pouco me importava, ela morreu para mim.
Nos tornamos inimigas e a energia estava a cada dia mais
pesada, eu me arrepiava sempre quando estava por perto dela,
sentia que era sugada e comecei a ficar com medo, apenas
conseguia dormir com a porta trancada do quarto e ao acordar,
saia quando escutava alguma outra voz que não fosse dela.
Se ela fizesse algo comigo, queria que existisse testemunha.
Depois de duas semanas, não estava mais aguentando ficar
nesta situação, mas ao mesmo tempo não queria sair do privê,
sabia que não seria fácil encontrar um outro lugar para trabalhar
que fosse tão bom. Gostava do ritmo do funcionamento da
casa e já havia conquistado muitos clientes fixos que sempre me
procuravam, não queria perdê-los.
Certa vez, uma garota foi trabalhar no privê por pouco tempo,
apenas para levantar o valor suficiente para pagar o aluguel que
estava atrasado, ela trabalhava por conta própria num flat bem
próximo, mas como estava no início da carreira, ainda não tinha
conquistado uma boa clientela. Foi com ela que conheci o
mundo da prostituição em flats, sem cafetina.

142
Me interessei pela possibilidade de trabalhar sozinha, seria um
grande desafio e a melhor opção para ter minha tão sonhada
liberdade sem precisar parar de me prostituir, fiquei instigada.
Quando nos conhecemos, ela insistiu para que eu abandonasse
a vida no privê, mas na época, estava insegura de arcar com a
despesa tão alta, um aluguel de mil e tantos reais. Por mais que
ganhasse bem, era muito dinheiro para arriscar sem um bom
planejamento. Eu tinha conquistado vários clientes que me
procuravam, mas não tinha contato de nenhum deles para
avisar que meu atendimento começaria a ser num flat.
Ela contou que tinha fotos em vários sites específicos de
anúncios de garotas de programa e que me passaria todos os
contatos, mas como sempre odiei tirar fotos, tudo o que não
queria era ter que ficar fazendo ensaios nus, eu precisava
encontrar uma outra maneira para não precisar disso.
Combinamos que a procuraria quando decidisse ir a um flat.
Como a minha situação com a Cléo estava me incomodando
por estar com medo dela, acreditei que era uma boa opção
alugar um canto para mim, teria minha moradia e continuaria
trabalhando no privê ainda por um tempo, até me sentir segura
para trabalhar por conta própria. Resolvi fazer tal investimento
pensando primeiramente no meu bem-estar, mas já tendo como
plano de levar meus clientes fixos para lá, e para isso, precisaria
começar a avisá-los, passando o número do meu telefone.
Pensei bem e resolvi arriscar, liguei para a garota avisando que
queria ir para o mundo do flat, combinamos um encontro no
dia seguinte para entrar em contato com algum proprietário e
escolher um apartamento para chamar de meu.
E foi assim que fui parar no famoso flat treme-treme, na
Avenida Miruna, em Moema. Era conhecido por este nome
porque a maioria dos moradores era garota de programa.
Não havia burocracia nenhuma, era apenas pagar e pegar a
chave. Os proprietários dos apartamentos sabiam que o
condomínio havia sido dominado por prostitutas, então
143
facilitavam bastante, não exigiam comprovante de renda e o
contrato era bem flexível, a qualquer momento poderia quebrá-
lo sem multa. Fechei por apenas dois meses porque precisava
testar a nova experiência para saber se me adaptaria.
Fiquei tão feliz quando peguei a chave do apartamento, o
significado era muito forte: meu primeiro lar. Aos 18 anos,
conquistei o sonho de morar sozinha. Tudo bem que eu não
conseguia aproveitar meu canto durante o dia porque precisava
trabalhar para mantê-lo com tranquilidade, mas só o fato de
chegar cansada à noite e ter um sofá para relaxar, me fazia sorrir
sempre que entrava nele, era meu refúgio, meu cantinho de paz,
onde suspirava de alívio.
Iniciei meu plano no privê, quando aparecia algum cliente fixo,
o avisava que em breve começaria a atender num flat e pedia
para que anotasse meu número para quando quisesse me ver.
Também fazia isso quando algum cliente me dizia que voltaria
para fazer outro programa comigo. Não perdia nenhuma
oportunidade. E foi dessa maneira, que minha lista de futuros
clientes no flat foi crescendo, esta estratégia me pouparia de
tirar as tais fotos nuas para os sites.
Estava agindo desta maneira há pouco mais de um mês quando
a Gabi me ligou para avisar que a cafetina estava ficando louca
porque soube que muitos clientes estavam indo atrás de mim,
mas quando a gerente avisava que eu não trabalhava mais lá,
iam embora sem querer fechar programa com outra garota.
Então ela pediu para a Gabi entrar em contato comigo para
saber se eu não tinha interesse em voltar a trabalhar lá.
Num primeiro momento, respondi que não queria, mas depois
pensei no fato de receber o valor que a cafetina estava me
devendo e na oportunidade de incluir mais clientes em minha
lista. Alguns dias depois, avisei a Gabi que havia decido
retornar, mas que queria antes conversar com a gerente, pois
apenas voltaria com algumas exigências atendidas. Aproveitei o
144
desespero da cafetina ao me querer de volta. O jogo virou.
Fui conversar com a gerente e, antes mesmo de começar a falar
sobre o que exigiria em troca do meu retorno, ela me contou
que a cafetina tinha liberado qualquer condição.
Foi mais fácil do que imaginei exigir o que queria: não dormiria
no privê, chegaria ao meio-dia, iria embora no máximo às 23hs
e voltaria apenas se recebesse o valor que estava me devendo.
Negócio fechado. Pedi quatro dias para dar tempo de me
despedir do outro privê e descansar aproveitando o
apartamento como ainda não havia feito. Uma jovem
esparramada no sofá assistindo televisão por três dias sem se
preocupar com nada, não quer guerra com ninguém.
A boa puta o privê torna, voltei com a cabeça erguida.
A notícia do meu retorno rapidamente foi parar no Fórum.
A gerente me contou que sempre quando algum cliente foi atrás
de mim e quis ir embora, ela pegou o contato para avisar caso
eu voltasse, então ela ligou para todos para contar a novidade.
Eles foram aparecendo e eu ia os avisando que ficaria no
máximo um mês ali porque começaria a atender no flat.
Meu plano estava saindo do jeito que havia imaginado.
Fiquei um pouco mais de um mês, matei saudade da Gabi e da
Carla, as únicas que continuavam trabalhando, as demais
garotas eram novatas. Quando considerei que já tinha passado
meu número de telefone para uma quantidade boa de clientes,
avisei a gerente sobre minha partida definitiva. A cafetina achou
que estivesse com moral, mal sabia do meu plano infalível.
Era quarta-feira quando pedi as contas. Pensei que havia
conquistado a minha tão sonhada liberdade e queria comemorar
não precisar mais de cafetinas. Pedi para o taxista parar numa
loja de conveniência, comprei uma garrafa de vodka e latas de
energético, fui para casa comemorar sozinha. Brindei meu
momento, acreditando que dali em diante seria tudo diferente.
Somente o fato de não dar mais dinheiro para cafetinas, me
145
proporcionava um enorme alívio. Enquanto bebia ouvindo
música, comecei a pensar quais seriam meus próximos passos,
precisava ter novas metas, não podia cair na zona de conforto.
Anotei no caderno quais eram meus planos e aproveitei para
fazer uma lista das minhas despesas fixas e variáveis para
conseguir me manter no flat sem passar perrengue, afinal
começaria a pagar boletos, então precisava me organizar
financeiramente para dar conta do recado. Desde criança
sempre gostei de fazer listas, algo que colaboraria bastante neste
processo de mudança de adolescente para vida adulta.
Como me tornei dona do meu próprio tempo, seria mais fácil
administrar meus dias, conciliando os programas com outros
compromissos. Comecei anotando meus próximos passos:
- Terminar o ensino médio em supletivo;
- Comprar um computador;
- Mudar para um apartamento de canto para ter mais espaço;
- Ter um cachorro para me fazer companhia
Em seguida, fiz a lista das despesas mensais. Além de aluguel,
luz, gás, também tinha lavanderia, algo mais do que necessário
para manter sempre limpas as toalhas e roupas de cama usadas
com os clientes. Também tive a ideia de sempre ter opções de
bebidas para oferecer a eles sem cobrar nada a mais caso
consumissem: copos de água para que eu não precisasse ficar
lavando louça, latas de refrigerante e cervejas.
Incluí os gastos com camisinhas, gel lubrificante, óleo para
massagem, sabonete líquido, produtos eróticos, lingeries e
roupinhas sensuais. Além disso tudo, também tinha as despesas
pessoais: alimentação, salão de beleza, momentos de lazer etc.
Meu custo de vida seria alto, mas estava otimista que daria tudo
certo. A independência financeira me causava uma sensação tão
boa que não tinha preço. E assim foi minha comemoração
produtiva traçando meu novo ciclo na prostituição.

146
No dia seguinte, fui ao shopping e fiz os investimentos
necessários para iniciar os atendimentos: estoque de toalhas e
jogos de cama, um aparelho de som e fiz a festa na loja da
Imaginarium com objetos de decoração para deixar o
apartamento mais aconchegante. Depois fui em uma sex shop
para comprar opções de consolos e na farmácia para estoque de
camisinhas, lubrificante e sabonete líquido. Por fim, fui em
busca de lavanderia e encontrei uma que embalava as toalhas
individualmente. Voltei ao apartamento e organizei tudo, fiz
faxina e fiquei com um sentimento muito gostoso de vitória.
Era só esperar o celular tocar para atender o primeiro cliente ali.
***
No dia seguinte, resolvi ligar para os meus pais, depois de
tantos meses sem contato, além de querer saber como estavam,
também queria pedir meu histórico escolar para me matricular
no supletivo. Para a minha surpresa, quem atendeu foi meu pai.
Ainda não tínhamos conversado desde que fugi e não estava
preparada emocionalmente para manter este diálogo:
- Oi, pai! Como o senhor está?
- Oi, Raquel, espero que não esteja ligando pedindo para voltar.
– Não se preocupe, não é isso. Quero saber como estão e pedir
meu histórico escolar porque quero finalizar o Ensino Médio.
- Essa é boa! Você querer estudar! Mas vou procurar aqui e
deixo na portaria.
- Tá bom, obrigada! Consigo ir depois de amanhã para buscar.
Posso falar um pouco com minha mãe?
- Ela não pode falar no telefone porque está se recuperando de
uma cirurgia. Você nos causou tantos problemas, que ela
precisou fazer uma cirurgia na cabeça por sua culpa.
- Minha culpa? O que aconteceu com ela???
- Não estou com tempo para ficar de papo furado.
– Entendi. Espero que ela fique bem logo. No domingo,
buscarei meu histórico na portaria. Obrigada, pai! Tchau!
147
Ele desligou a ligação sem se despedir de mim.
Conversar com meu pai me causou uma mistura de
sentimentos, percebi que a vontade de voltar para casa não
existia mais, já havia superado essa questão, poderiam ficar
despreocupados. O que eu queria era apenas que houvesse
nossa reconciliação, imaginava que para conseguirmos isso,
seria necessário termos uma discussão de relação e estava
disposta a qualquer tipo de conversa. Precisávamos conseguir
nos perdoar. Não conseguia entender por que eles não queriam
nada disso. Deixaram de me chamar de filha, mas teoricamente
eu continuava sendo. Na prática, eles deixaram de ser meus
pais, mas não conseguia chamá-los de uma outra maneira.
Fiquei preocupada com minha mãe, como assim cirurgia na
cabeça por que causei muitos problemas? O que ele quis dizer
com isso? Por que quis me culpar? O que estava acontecendo?
Eram várias as perguntas e eu que lutasse para conseguir todas
as respostas.
De qualquer maneira, me senti a pior filha do mundo, se o
objetivo do meu pai era que eu me sentisse assim, estava de
parabéns. Fechei os olhos e, imaginando minha mãe correndo
risco de morte por minha causa, desabei. Meu pai por mais que
gostasse que as filhas aprendessem na dor e não com o amor,
não brincaria com algo tão sério, no caso, com a saúde da
minha mãe. Então só poderia ser verdade!
Como combinado, passei na portaria do prédio onde eles
moravam e perguntei ao porteiro se tinham deixado algo para
mim. Ele respondeu que não. Resolvi deixar quieto, não queria
ter de falar novamente com meu pai para cobrar o histórico.
Provavelmente, não acreditou que eu queria retomar os estudos,
então nem perdeu tempo procurando o documento escolar.
Espero que o porteiro tenha comentado que passei para buscar.
***
148
Chegou domingo, o quarto dia de liberdade no flat e meu
telefone ainda não tinha tocado. Estava tranquila porque minha
reserva financeira era suficiente para me manter por mais de um
mês, mas estava me sentindo inútil e sentindo muita falta dos
dias agitados e movimentados atendendo clientes. Tive uma
crise de ansiedade e quando voltei ao normal, resolvi dar um
passo para trás, buscando outro privê para trabalhar até que
meu telefone começasse a tocar e meu plano desse certo.
Voltaria a trabalhar com cafetão, mas seria por pouco tempo,
pelo menos não estaria entediada em casa, conseguiria controlar
a ansiedade e continuaria ganhando dinheiro.
Lembrei do privê na Rua Michigan, no Brooklin, que visitei
quando ainda morava com meus pais, então fui conversar com
a gerente, aceitei trabalhar no período obrigatório, das 10hs às
22hs, mas deixei claro que não moraria ali. Concordei com as
regras e combinei que voltaria no dia seguinte para trabalhar.
De todas os privês que trabalhei, este foi sem dúvidas o mais
bonito. Fui muito bem recebida, quando cheguei tinham poucas
garotas e, como já existia uma Bruna, precisei trocar meu nome
de guerra, comecei a me apresentar então como Fernanda.
A dona não investia muito em divulgação da casa, então o
movimento de clientes não era tão bom, ficávamos bastante
tempo à toa esperando a campainha tocar.
Trabalhei nesta casa um pouco mais de um mês, mas foi um
lugar muito especial para mim, que me marcou bastante com
alguns acontecimentos. A gerente era muito gente boa,
divertida, bem porra louca, nos tratava com muito carinho,
tinha parado de fazer programa há menos de um ano para
assumir a gerência da casa. Eu desconfiava que ela fosse a dona,
mas por algum motivo não queria assumir este detalhe.
Um dia, me convidou para ir ao Love Story, aceitei sem pensar
duas vezes, seria bom relembrar a fase que frequentei bastante.

149
Quando o atendimento acabou, iniciamos um esquenta
enquanto nos arrumávamos. Estávamos no total em cinco
garotas, chegamos bêbadas no Love Story, a noite era nossa!
Na segunda vez que saí para fumar e tomar um ar, vi o ‘mula’
que vendia drogas e era amigo da Carla. Estava há meses sem
consumir cocaína e não sentia falta, mas quando o vi, bateu
uma vontade forte, infelizmente não consegui resistir e comprei
dois papelotes. Consumi tudo durante a madrugada, dancei e
me diverti demais, como há muito tempo não fazia.
Chegamos no privê quando já eram quase 9hs, estávamos
cansadas demais, a gerente nos liberou três horas de sono da
beleza. Acordei com uma baita ressaca, cabeça explodindo, com
vontade de cheirar pó, mas arrependida por não ter sido forte o
suficiente e fingido que não tinha visto o ‘mula’. Eu não podia
ficar dependente de cocaína àquela altura do campeonato e
estragar todos meus planos. Fomos outras vezes ao Love Story,
mas por sempre já chegar bêbada, não conseguia agir
racionalmente quando encontrava com o ‘mula’ e acabava
comprando tendo sempre o mesmo pensamento fraco:
“Só por hoje, na próxima vez, conseguirei fingir que não o vi”.
Essas madrugadas me faziam bem, eram minha fuga.
Por sorte e força de vontade, conseguia controlar minha
vontade de cheirar pó nas noites que ia dormir no apartamento.
***
Nunca confundi os nomes e me apresentei como Raquel aos
clientes. Já me considerava como Bruna de tal maneira que, na
hora da apresentação, não parava para pensar que tinha um
nome real. No entanto, quando comecei a me apresentar como
Fernanda, surgiu uma crise de identidade com meus nomes de
guerra, foi mais forte do que eu. Comecei a travar no momento
de dizer meu nome ao cliente e acabava me apresentando com
o qual precisei abandonar. A Bruna oficial do privê começou a
ficar brava comigo com toda razão, afinal acontecia dos clientes
150
me escolherem, mas como eu tinha esquecido de me apresentar
como Fernanda, quando a gerente avisava que o cliente queria a
Bruna, a real ia ao encontro dele na sala, em seguida, voltava
avisando que era eu. Era uma situação bem chata, mas por mais
que eu me policiasse e ficasse repetindo na cabeça: “Meu nome
é Fernanda, meu nome é Fernanda...” como se fosse um
mantra, nem sempre saia quando estava na frente do cliente,
não era algo proposital, eu não conseguia não ser a Bruna.
Foi numa dessas confusões que causei sem querer, que a sorte
surgiu e com força. O cliente escolheu a Bruna, quando a real
foi ao encontro dele, ele avisou:
- Não é você, eu quero a Bruna que tem jeito de surfistinha.
E foi assim que nasceu a Surfistinha em minha vida.
***
Em um final de tarde, fui me apresentar ao cliente e me deparei
com um senhor que lembrava meu avô. Torci para que não me
escolhesse porque me causaria desconforto, mas fui a escolhida.
Foi um dos clientes mais gentis que tive, mesmo assim,
confesso que demorei para me sentir à vontade e conseguir
ficar nua para ele, afinal tinha 68 anos, enquanto eu estava com
dezenove. Foi uma experiência muito estranha, não posso dizer
que senti nojo porque a higiene dele era impecável, mas foi
muito difícil ter relação sexual mesmo sendo carinhoso comigo.
Enquanto ele fazia sexo oral em mim, fechei bem os olhos e
imaginei que era outro homem. A diferença de idade mexeu
demais comigo e por mais que tentasse, não conseguia parar de
pensar neste detalhe. Felizmente, concluímos a parte sexual
com sucesso em menos tempo que imaginei. Depois ficamos
conversando, me contou um pouco sobre si: era viúvo,
aposentado e o único filho não morava no Brasil há mais de dez
anos, então se sentia muito sozinho. Perguntou se eu tomava
vinho e me convidou para ir à casa dele para continuarmos a
151
conversa apreciando um bom tinto, comentou que me pagaria o
tempo que fosse necessário por minha companhia, mesmo se
não rolasse sexo. Passei o número do meu telefone para
marcarmos este próximo encontro, ele me mandou um SMS no
mesmo instante para que eu já guardasse o número dele, pois
avisei que em breve deixaria de atender no privê, então
combinamos que o avisaria quando isso acontecesse.
E foi o que fiz, no mesmo dia que comecei a trabalhar
finalmente no flat, o avisei e marcamos nosso vinho à noite.
Como demorei mais de um mês, ficou surpreso com minha
mensagem, pois achou que havia o esquecido.
Quando cheguei no apartamento dele, fui recebida com um
abraço forte como se estivesse com saudade de mim.
Me deixou super a vontade, pude escolher qual estilo de música
queria ouvir, em qual dos sofás queria sentar e os sabores de
pizza que gostaria de comer. Me senti uma princesa.
Foi uma noite gostosa, tivemos muita afinidade, tomamos duas
garrafas de vinho enquanto rolou uma conversa muito
agradável. Sempre gostei de conversar com pessoas mais velhas,
para ouvir histórias e experiências vividas. Estar com ele foi
uma maneira de matar saudade do meu avô, ainda bem que não
rolou sexo. Senti que minha companhia fez bem e percebi o
quanto ele era realmente um homem sozinho e carente.
Fiquei um pouco mais de três horas, na hora de receber o
pagamento, falei que estava sem graça de receber, afinal nosso
encontro foi como se eu estivesse visitando um amigo, avisei
que cobraria apenas uma hora. Ele concordou, preencheu o
cheque e me entregou dobrado, quando cheguei em casa e o
abri para guardar, vi que me pagou por quatro horas. Berrei.
Depois de apenas três dias, ligou me convidando para mais uma
noite de pizza e vinho no apartamento dele. Estava indo tudo
muito bem, até que fui surpreendida durante nossa conversa
com uma proposta. Simplesmente me convidou para ir morar
com ele. Além de não precisar me preocupar com nenhum
152
boleto, investiria nos meus estudos até me formar na faculdade
e ainda me daria uma mesada para que eu gastasse como
quisesse. Me garantiu que o fato de morarmos juntos, não
significaria que nos tornaríamos um casal, assim como, não me
obrigaria a fazer sexo se não quisesse. A única exigência dele era
que eu parasse de fazer programas e me dedicasse nos estudos.
A proposta realmente foi muito interessante num primeiro
momento, mas no meu ponto de vista, só pelo fato de morar
com um homem, sem existir amor e pensando apenas nos
benefícios financeiros que tal relacionamento me permitiria,
continuaria fazendo programa sim, com a diferença de ter um
único cliente e, mais do que isso, morando com ele.
Teria uma boa vida financeira se tivesse aceitado a proposta,
não tinha dúvidas do quanto ele era um senhor com grande
poder aquisitivo e que sentia um carinho especial por mim.
Eu seria a companhia diária que ele tanto sentia falta.
Poderia aproveitar para fazer uma bom pé-de-meia até me
formar na faculdade e ir embora assim que pegasse o diploma.
Poderia tantas coisas com este senhor.
A vida é feita de escolhas. Escolhi continuar sendo prostituta de
vários clientes, mas tendo a liberdade de ir e vir.
O agradeci por ter enxergado meu lado humano e ter a melhor
das intenções ao me convidar para morar com ele. Notei a
tristeza estampada no rosto ao ouvir minha resposta negativa e
as justificativas para não aceitar. Ele pensou que seria uma
proposta irrecusável e o decepcionei. Nunca mais me procurou.
***
Alguns dias antes de ir embora do privê, um casal me escolheu
para acompanhá-los no motel, até então havia feito programas
apenas com homens, seria novidade para mim. Infelizmente,
minha primeira experiência não foi nada prazerosa...
153
Sou muito observadora, enquanto estávamos no carro, percebi
que eles não tinham química nem afinidade, se não fosse pela
aliança que usavam, teria minhas dúvidas se realmente era um
casal. Curiosa que sou, perguntei quanto tempo estavam
casados, ela respondeu: “Há quase um ano!”. Não quis fazer
mais perguntas para não ser invasiva, mas a diferença de idade
entre eles era enorme. Tentei quebrar o gelo até chegarmos no
motel, mas não consegui e preferi imaginar que aquele clima
estranho se transformaria em fogo na cama entre nós duas, pois
ele disse com firmeza: “Ela é safada, adora ficar com mulher,
pelo menos uma vez por semana, passamos em algum puteiro
diferente para escolhermos alguém para participar das nossas
safadezas. Eu sou voyeur, adoro observá-la gozando com outra!”
Até aí estava tudo lindo, um encaixe perfeito, afinal sempre fui
ativa em minhas experiências sexuais com mulher.
Chegamos na suíte e sem perder tempo, fomos tomar banho
juntas enquanto ele ficou do lado de fora apenas nos
observando. Nosso beijo foi gostoso, aparentemente estava
tudo normal, começamos a nos acariciar e o problema começou
quando comecei a lamber os peitos dela, por mais que estivesse
demonstrando estar sentindo prazer, eu que não sou boba, logo
percebi que ela estava fingindo e isso quebrou completamente o
clima. Ainda assim, desci para fazer oral nela, pensado na
possibilidade de estar enganada e a questão ser o fato dela não
sentir tesão nos seios, algo que acontece com muitas mulheres.
Mas quando me agachei para começar o oral, senti muita
resistência por parte dela que, sequer abriu direito as pernas
para colaborar com o momento. Ainda assim, comecei a lamber
a região, imaginando que a qualquer momento, se entregaria.
Para quem adorava ficar com mulher, a atitude dela estava
muito estranha. Comecei a pensar na possibilidade de não ter
gostado de mim. Ela me puxou para cima e me beijou, em
seguida pediu ao marido para pedir bebidas para a gente.
154
Assim que ele saiu do banheiro, me disse num tom bem baixo
como se estivesse me contando um segredo e estava mesmo:
“É tudo mentira, não gosto de mulher e nem gosto dele, me
casei pensando apenas no dinheiro, estou tentando engravidar e
assim que conseguir, vou me separar. Vou fingir que gozei com
você me chupando e se quiser, pode fingir que me chupa.”
Bingo! Minha intuição não falha. Sabia que não eram um casal
de verdade, com sentimentos reais, pelo menos por parte dela.
Fomos ao quarto, esperamos as bebidas chegarem para então
iniciarmos nossa encenação. Ele estava apenas com cueca, a
abraçou e começaram a se beijar, foram para a cama e, em
poucos minutos, comecei a ouvir os gemidos falsos dela.
Não é possível que ele não percebia que existia algo de muito
errado naquela relação e que estava sendo enganado. Ou fingia
que não percebia? Quem enganava mais quem ali?
Me fiz estas perguntas enquanto os observava, mesmo sabendo
que não era da minha conta, só sei que não teria coragem de me
casar sem sentir amor e nem vontade de estar com a pessoa.
Quando chegou o momento de nós duas na cama, foi um show
incrível de atuação. Eu fingia que estava fazendo oral apenas
com a boca aberta, quase sem tocar a língua, enquanto ela se
contorcia inteira, segurando firme minha cabeça, falando
sacanagens entre gemidos. Uma explosão de prazer inexistente.
Depois que proporcionei dois orgasmos falsos, ela pediu para
transarem e eu saí de cena. O único gozo real da noite surgiu de
maneira bem rápida, quando ela saiu de cima dele, olhou para
mim e piscou o olho. Nossa missão estava cumprida.
***
Gostei muito de ter tentado ser a Fernanda durante o período
que trabalhei na Michigan, vivi experiências inusitadas e ainda
recebi o apelido Surfistinha que me marcou na prostituição, o
cliente que assim me definiu, me deu muita sorte.

155
Chegou meu momento de encerrar mais um ciclo e partir.
A ficha caiu que para ir trabalhar nesse privê, o que eu gastava
com táxi era exatamente o meu lucro de um programa. Ou seja,
não fazia sentido algum ter esta despesa quando em Moema,
existia várias opções que eu poderia ir e voltar a pé para casa.
Enquanto ainda trabalhava lá, comecei a receber ligações e
mensagens de clientes, mas avisei para que esperassem mais um
pouco e pedi autorização para enviar mensagem avisando
quando finalmente estivesse atendendo no flat. Para iniciar
meus atendimentos tranquilamente no apartamento, sem ter
crises de ansiedade, precisava fazer um caixa financeiro que
fosse suficiente para pagar adiantado três meses de aluguel.
Para bater esta meta, precisava um pouco mais de mil reais.
Decidi então ir a um privê que eu já tinha ouvido falar e era
bem perto do flat, a caminhada não durava nem dez minutos.
O lugar era conhecido por ficar aberto 24 horas, todos os dias.
Minha intenção era trabalhar por pouco tempo, apenas para
levantar o valor que precisava para ter enfim minha liberdade.
Fui conhecer com a intenção de ficar, já com a mochila e uma
bolsa grande com tudo necessário para não precisar voltar para
casa enquanto não batesse a meta, estava com tanto sangue nos
olhos que, abriria mão de dormir no conforto do meu lar.
Assim que cheguei no privê, senti que não fui bem-vinda, para
variar. Me senti muito mal logo de cara, a gerente era a grosseria
em pessoa, as garotas me encararam, ninguém fez questão de
me receber bem, tive vontade de ir embora, mas não quis dar
este gostinho. Teriam que conviver comigo por alguns dias.
Fui me arrumar, vesti um macacão lindo todo trabalhado na
renda preta, marcava muito bem meu corpo, fiz a melhor make
que sabia fazer e me reuni a elas aguardando a campainha tocar.
Quando apareci bem arrumada, o silêncio dominou o ambiente.
O ritmo era bem puxado, éramos obrigadas a nos apresentar a
todos os clientes, independente do horário. Rolava um turno
durante as madrugadas, eram duas equipes que se revezam.
156
Em dias intercalados, um grupo podia dormir em paz e com
tranquilidade, sem precisar ficar entre cochilos. Nem todas as
madrugadas eram movimentadas com clientes, dependia do dia.
O primeiro cliente que tocou a campainha após minha chegada,
me escolheu. E já nesse primeiro dia, acabei sendo a garota que
mais trabalhou, o que acabou colaborando para que as garotas
me odiassem. Elas não sabiam que, quanto mais eu trabalhasse,
mais rápido atingiria minha meta e ficariam livres de mim.
Por algumas vezes, senti que deveria ir embora, pois não
conseguia dormir bem e tinha pesadelos quase todas as noites.
A energia era muito pesada, quase diariamente, sentia meu
corpo muito fraco, tirava força não sei de onde para trabalhar.
Uma garota em especial, me sugava demais, quando estava por
perto, sentia arrepios horríveis e começava a bocejar
descontroladamente. Mesmo com tantos sinais de que ali não
era o meu lugar, persisti e continuei firme, focada no meu
objetivo. Tive que aguentar indiretas e provocações bestas.
No sexto dia que estava lá, aconteceu um fato que até hoje é
uma incógnita para mim, a única certeza que tenho é que
alguém agiu com maldade para me prejudicar. Pela maneira que
fiquei, acredito até que poderia ter morrido, mas fui abençoada.
A gerente fazia uma garrafa de café no final da noite para
tomarmos durante a madrugada, eu tinha o hábito de sempre
tomar, mesmo quando estava no turno que poderia dormir.
E foi o que fiz na madrugada que, sem saber, acabou sendo o
início da minha despedida forçada deste privê.
Bebi café, fumei um cigarro, subi ao quarto, tomei banho já
sentindo meu corpo bem fraco e muito sono, mas não
desconfiei de nada, achei que fosse apenas extremo cansaço.
Me deitei para dormir. Até aí tudo aparentemente normal.
Me lembro de poucos flashes. Fui acordada pela gerente na
manhã seguinte, abri os olhos com muita dificuldade, minha

157
visão estava horrível, bem embaçada. Não entendia tudo que a
ela me dizia, me forçou a tomar um copo com água e ficou me
perguntando o que estava sentindo. Não conseguia responder
porque não sabia o que estava acontecendo comigo, precisava
fazer força para a voz sair, sentia meu corpo mole de tal
maneira que não conseguia levantar e me sentar. Ela me ajudou
segurando com força minha mão, quando me sentei na beirada
da cama, vi uma poça de vômito no chão, me assustei e
perguntei se era meu, ela respondeu que sim, não me lembro
em qual momento passei mal daquele jeito.
A gerente sabia que eu morava perto dali porque comentei no
dia que cheguei para trabalhar. Lembro que quando comecei a
conseguir pensar e percebi que não tinha força para ficar em pé,
comecei a chorar. Senti ela me abraçando e me dizendo coisas
no meu ouvido que eu não entendia. Até que consegui levantar
me apoiando nela, me ajudou a tomar banho e foi embaixo do
chuveiro que comecei a recuperar um pouco dos meus sentidos
e voltar ao normal. Ela me perguntou novamente se eu sabia o
que estava acontecendo, respondi sem pensar: “Foi o café que
tomei antes de me deitar, tenho certeza de que tinha algo nele!”.
Falei que queria ir para casa, ela pegou minhas coisas que
estavam fáceis e disse que quando melhorasse, era para buscar o
restante ou então que eu voltasse para continuar trabalhando.
Ela chamou um táxi, me ajudou a entrar nele, mas não tenho
lembrança como consegui chegar em casa. Tenho o flash da
cena de quando me deitei na cama. Tive um novo apagão.
Fiquei neste estado que, não sei como posso definir, durante
três dias, sei disso porque quando consegui voltar ao normal,
lembrei que meu turno de dormir no privê foi no sábado, então
foi no domingo quando acordei passando mal, quando olhei no
celular para ver o horário, eram quase 8hs da quarta-feira.
Acordei assustada, com uma sensação muito estranha, como se
meu corpo, principalmente o cérebro, tivesse dado um restart.
158
O susto era por simplesmente estar viva. Sentei na beirada da
cama, demorei para processar onde estava e o que tinha
acontecido. Alguns flashes começaram a surgir. O quarto estava
com um cheiro horrível, olhei para o chão e ao meu lado na
cama, eu estava entre vômitos acumulados e não era pouco, não
sei como tanta coisa saiu de dentro de mim. Tentei resgatar
lembranças de como isso aconteceu, mas concluí que os
vômitos aconteceram comigo dormindo ou sem consciência.
Entrei em desespero porque não sabia por onde começar a
limpar tanta sujeira, resolvi iniciar por mim, fui ao banheiro me
apoiando nas paredes, meu corpo estava extremamente fraco,
consequência normal para quem ficou tanto tempo dormindo,
sem se alimentar, vomitando e desidratada. Pelo menos a minha
visão estava normal.
Cheguei no banheiro, me olhei no espelho, outro susto, não me
reconheci, eu estava acabada, pálida, com o cabelo duro de
tanta sujeira, com olheiras, rosto inchado, olhos sem brilho.
Precisei de alguns minutos para me recompor depois te ter
encarado meu reflexo. Liguei o chuveiro e me sentei no chão,
sentindo a água caindo sobre mim, desabei de tanto chorar, só
queria entender o que estava acontecendo, queria ter
lembranças completas. Como acordei viva se senti meu corpo
morrendo? Foi um momento desesperador, brigando com
minha mente, buscando respostas que não tenho até hoje.
Com os olhos fechados, veio o flash do café, eu me vi na cena
com a xícara na mão. E tal cena surgiu de uma maneira muito
forte na mente, consegui sentir o sabor forte e amargo na boca.
Foi um dos banhos mais longos que tive, estava me sentindo
bem melhor, dei vida ao corpo. Minha mochila estava jogada ao
lado da porta, peguei meu celular que estava sem bateria,
coloquei na tomada e enquanto carregava, notei que com
exceção do quarto, o restante do apartamento estava intacto,
exatamente da maneira que o deixei antes de ir trabalhar no
159
privê, mais um sinal de que, durante os três dias realmente não
saí da cama. Depois de beber uma garrafinha com meio litro de
água, peguei algumas bolachas salgadas e tomei coca-cola.
Estava com medo de sair de casa para ir comer em algum lugar
e passar mal por conta da fraqueza física. Enquanto a bateria do
celular era carregada, comecei a limpar o quarto com calma.
Nos dias seguintes, fiquei quieta em casa, pedindo delivery.
Demorei quase uma semana para voltar ao normal, sentindo o
corpo novamente fortalecido e pronta para recomeçar a vida.
Dei notícias para a gerente e combinamos que, assim que fosse
possível, buscaria o restante das minhas coisas, algumas roupas
que ficaram no varal, um par de sandálias, a necessaire e tinha um
valor para receber dos programas que fiz no último dia.
Nestes dias em casa, aproveitei para refletir bastante, faltou
pouco para conseguir juntar minha meta financeira, mas decidi
que nunca mais trabalharia em privê. Como minha última
experiência foi péssima, entendi como um sinal de que não fazia
mais sentido continuar insistindo num caminho que não me
pertencia mais. Precisava parar de me sabotar e lutar sem medo
por minha tão sonhada independência trabalhando em flat,
minha intuição gritava que eu teria sucesso, era questão de
tempo e ter paciência. Tinha certeza de que era o melhor
caminho para seguir, precisava ter autoconfiança e segurança.
Avisei os clientes que já tinham mandado mensagens, que a
partir da semana seguinte, iniciaria meus atendimentos e, que já
poderiam reservar um horário. O retorno foi rápido demais,
consegui marcar quatro programas, foi uma injeção de ânimo.
Comprei uma agenda para organizar os horários e ter disciplina
para não me esquecer de nenhum programa marcado.
É comum os clientes que frequentam flats, marcarem programa
com antecedência, como se fosse uma consulta médica.
Um dia, acordei decidida a ir ao privê para buscar minhas
coisas, queria propositalmente aparecer de surpresa num
160
horário que eu sabia que o movimento de cliente era fraco,
então a chance de encontrar com todas as garotas reunidas era
grande demais, tudo o que queria. Não avisei nem a gerente
porque se ela comentasse que eu estava indo, provavelmente
algumas garotas poderiam fugir deste encontro comigo.
Saí de casa duas horas antes para ter tempo suficiente e chegar
no privê às 15hs. Me arrumei com vontade, coloquei um
vestido que fazia me sentir linda, me maquiei, fui ao salão e
deixei minhas unhas impecáveis, fiz hidratação e escova.
Fui ao privê pensando no discurso que faria às garotas.
Era uma honra após quase morrer, aparecer viva e plena
naquele lugar. Toquei a campainha com frio na barriga, sabendo
que aquele seria meu momento de glória. A gerente me recebeu
com um sorriso, me abraçou de uma maneira como se estivesse
aliviada ao me ver bem. Fomos para a área onde as garotas
ficavam reunidas, como a campainha era a mesma, estavam em
pé se arrumando por pensarem que fosse um cliente. Queria ter
filmado os semblantes de decepção quando me viram.
Olhei para a garota que sempre me causou arrepios e bocejos,
que muito provavelmente seja a responsável da minha quase
morte. A gerente se sentou no cantinho dela com o caderno de
anotações para acertar o valor que me devia, nosso diálogo foi
maravilhoso para mim, aquela mulher grosseira que me recebeu
no primeiro dia, estava doce no último. As garotas prestaram
atenção no papo e desisti de fazer um discurso, afinal, quem me
desejou mal, viu que eu estava muito bem, obrigada. Já era o
suficiente para sentir o doce veneno de uma escorpiana.
***
Tudo estava se alinhando, o Universo começou a conspirar a
meu favor. Ainda estava longe de atingir minha meta de seis
programas por dia. Havia dias que atendia dois clientes, em
outros um ou nenhum, mas não estava mais desesperada, já
estava aceitando que no início seria assim mesmo. Antes de
chegar o dia de pagar o próximo aluguel, vagou um outro
161
apartamento bem mais bonito do que eu estava, então me
mudei. Alguns dias depois, a Gabi foi me visitar, ela amou meu
novo cantinho, conversa vai, conversa vem, me contou que as
coisas começaram a piorar no privê da Franca e chegou num
ponto que não tinha mais jeito, todas as garotas estavam indo
embora, inclusive ela e a Carla. Então elas queriam saber se
poderiam dividir o apartamento comigo por um tempo até se
adaptarem e cada uma conseguisse alugar o próprio canto.
Mesmo perdendo por um momento minha liberdade e
privacidade, quis ajudá-las e de certa maneira, também me
ajudariam, pois como havia pagado o aluguel há poucos dias,
então combinamos que já dividiríamos o valor que paguei,
assim como as outras despesas. Elas se mudaram de mala e cuia
dois dias depois. O apartamento era pequeno com apenas um
quarto, mas conseguimos dar um jeito de conciliar o
atendimento dos clientes. Enquanto uma usava o quarto com
cliente, as outras saíam do apartamento. A Carla decidiu
começar a trabalhar numa boate, saia de casa às 20hs e voltava
apenas ao amanhecer, dormia na parte da manhã, então eu e
Gabi começávamos a marcar os programas a partir do meio-dia.
Nossa convivência era boa na medida do possível porque cada
uma tinha um jeito bem diferente das outras. Pelo menos
éramos muito amigas e conseguíamos resolver com diálogo os
problemas que surgiam. A Gabi, virginiana sistemática, surtava
com qualquer coisa que saísse fora do eixo da rotina dela.
Como o apartamento não era mais meu, afinal me pagaram a
metade, então era de nós três, por mais que achasse uma chatice
várias atitudes dela, eu não poderia reclamar como gostaria.
A Carla tinha as questões complicadas dela, estava cheirando
cocaína sem controle e trabalhando em boate, começou a beber
demais. Ela acordava e já abria uma lata de cerveja mesmo em
jejum, não fazia as refeições com a gente, nunca estava com
fome. Quando decidia comer, era compulsiva, se trancava no
banheiro em seguida e escutávamos forçando vômito. Eu e
Gabi fazíamos o que podíamos para ajudá-la, ela sabia que não
162
estava sozinha e que não a julgávamos, respeitávamos o
momento que estava enfrentando. Até que ela conheceu um
PM na boate e se apaixonaram de tal maneira que começou a
deixar de ir trabalhar todas as noites para ficarem no
apartamento. Ele era um cara bacana, mas estava na mesma
frequência que a Carla, então não a ajudava na questão
emocional. Além disso, sempre levava cocaína para
consumirem juntos. Eu também acabei cheirando algumas
vezes com eles, mas de uma maneira mais controlada. Apesar
de tudo o que a Carla estava enfrentando, nunca deixou de
cumprir com a responsabilidade de nos ajudar com as despesas
do apartamento, muito menos de enviar dinheiro para a filha e
manter contato ligando todos os dias para conversarem.
Gabi conheceu um moço que trabalhava divulgando garotas de
programa no bate-papo do UOL, numa sala específica que
chamava ‘Vontade de ser puta’ ou algo do tipo. Segundo ele,
mulheres entravam para escrever putaria, mas era comum ter
algumas profissionais do sexo que divulgavam o próprio
trabalho e que o retorno era garantido.
Ele fez um teste de brinde, divulgou meia hora cada uma.
Nossos telefones tocaram várias vezes, a maioria era punheteiro
de plantão, mas tanto eu como Gabi conseguimos marcar um
programa cada uma. Fechamos então um pacote, ele nos
divulgava três vezes por semana por uma hora cada, revezando
os dias. Tivemos um retorno bacana. Os moços que puxavam
papo com ele nem imaginavam que estavam interagindo com
um homem barbudo. Fora isso, a Gabi já tinha uns clientes
fixos do privê e os meus clientes também estavam começando a
me visitar com frequência. Até que um deles, divulgou no
Fórum que havia descoberto meu paradeiro e comentou que eu
estava atendendo num flat em Moema. Depois desta divulgação,
meu telefone começou a tocar para valer. Enfim, meu plano
começou a dar certo! Nas primeiras duas semanas do
bombardeio de clientes querendo marcar programa comigo,
163
consegui conciliar os horários com a Gabi durante as tardes,
mas chegou num ponto que comecei a atrapalhá-la, além de
começar a me sentir desconfortável com o fato de estar
trabalhando muito mais do que ela, também acontecia de
clientes quererem marcar programa no mesmo horário, então
uma tinha que abrir mão para que a outra atendesse.
Chegou num ponto que não estava mais rolando dividirmos o
mesmo espaço. Sentamos para conversar e concluímos que o
melhor para nós duas seria que eu alugasse um apartamento
apenas para mim, enquanto ela continuaria dividindo com a
Carla, pois ainda não conseguiria bancar sozinha.
Então fui para um outro, me senti a cigana do Treme-treme.
***
Não conseguimos ajudar a Carla como gostaríamos, ela não
estava conseguindo enxergar que estava precisando ser cuidada.
O relacionamento com o PM durou pouco tempo, infelizmente
ele se matou com a própria arma, na frente dela. Em uma noite
que estava trabalhando na boate, ele foi atrás dela dizendo que
precisava conversar com urgência, foram para uma rua
próxima, na verdade ele quis se despedir, ela não teve tempo
para impedir o suicídio, o tiro foi fatal. Depois desse
acontecimento, ela se afundou de vez, parou de trabalhar, foi
embora sem avisar, pois sabia que a Gabi não a deixaria partir.
Deixou uma cartinha pedindo desculpas, dizendo que não
queria mais atrapalhar e, que ia buscar tratamento para ficar
bem. Por fim, pediu para não nos preocuparmos, prometeu que
não faria nenhuma besteira, pois precisava continuar viva para
cuidar da filha. Foi um choque para a gente. Depois de quase
um ano, ela ligou para a Gabi contando que estava bem e que
havia decidido se prostituir na Espanha, já estava indo viajar no
dia seguinte. Foi a última vez que tivemos notícia. Carla foi uma
pessoa muito marcante na minha vida, espero que esteja bem.
***
164
Felizmente a Gabi conseguiu dar conta do recado sozinha no
apartamento. Eu estava muito bem, já batendo minha meta
diária de seis programas por dia. Nessa época, vagou um
apartamento de canto que era meu sonho de consumo por ser
bem maior, não foi exatamente qual eu queria, mas mesmo
tendo uma mobília mais antiga, resolvi me mudar.
Um dia, acordei com vontade de ter uma companhia canina e,
coloquei na cabeça que queria uma fêmea da raça poodle. Fui em
todos os pet shops do bairro atrás de um filhote e não
encontrei, mas como já tinha visto anúncios de doações ou
canis de filhotes em jornal, resolvi comprar um para ver se tinha
sorte. Encontrei um anúncio de canil especializado em poodle toy,
era tudo o que queria. Liguei para pedir informações, ficava em
Guarulhos, muito longe, mas mediante o pagamento de uma
taxa, poderiam levar para mim, fechei negócio. Eu nem escolhi
qual filhote que gostaria, apenas exigi que fosse fêmea, então
aceitaria qualquer um que levassem para mim. Saí para comprar
ração, potes, caminha e brinquedos para esperar por minha
parceira. Quando abri a porta e vi aquela bolinha branca, foi
amor à primeira vista, comecei a chamá-la de Tati. Criatividade
zero, mas foi o primeiro nome que surgiu em minha mente.
***
As metas da quantidade de programas diários e a de morar num
apartamento de canto foram concluídas com sucesso.
O próximo plano era comprar um computador, algo que não
seria difícil de conquistar porque um dos meus clientes fixos
tinha uma loja de informática, inclusive já tinha comentado com
ele que, assim que tivesse um cantinho para colocar uma mesa,
o avisaria para comprar um. Ele garantiu que me daria desconto
e facilitaria o pagamento. Pois bem, chegou o momento de mais
uma conquista. Liguei para ele e fizemos um acordo: além de
15% de desconto, combinamos que eu daria R$ 500 de entrada
e o restante parcelaria em três vezes sendo que, quando rolasse
programa, descontaria o valor do meu cachê da parcela.
165
Facinho. Negócio fechado. Comprei também dele aquela mesa
tradicional para colocar o computador que era um trambolho.
Fiquei tão feliz no dia que ele foi levar tudo para mim, estava
ansiosa por este momento. Em 2003, internet ainda era mato,
mas quando finalizava meu trabalho do dia, corria para frente
do computador com a Tati no meu colo e lá ficávamos até o
sono bater. Criei e-mail e MSN para a Bruna. Puta moderna.
***
Chegou o dia que completei 19 anos neste mundão, comemorei
com a Gabi em uma balada conhecida por tocar apenas músicas
dos anos 80, chamava Boogie e ficava na Vila Olímpia. Foi uma
noite deliciosa, nos divertimos e dançamos demais. Estava
precisando me divertir desta maneira, iniciei um novo ciclo da
melhor maneira possível, sem exagerar no álcool e sem drogas.
Depois desta noite, começamos a sair para dançar uma vez por
semana para relaxarmos a mente merecidamente.
***
Dezembro chegou, o cansaço físico e mental bateu com força,
2003 foi um ano tenso e intenso demais. A sensação é que vivi
dez anos em apenas um. A tal da vida fácil estava bem distante
da minha realidade. O saldo final foi positivo considerando que
tive minhas conquistas, que suei literalmente para alcançá-las.
Entre erros e acertos, sobrevivi.
Passei o Natal na casa da Gabi, me policiando para não fazer
nenhum comentário indevido deixando pistas sobre nossas
vidas na prostituição. Inclusive, estávamos morrendo de medo
de que eu deixasse escapar “Gabi” sendo que o nome real dela
é bem diferente. A chamava apenas de “amiga”, mais fácil e
prático. Foi uma noite natalina simples e totalmente diferente
da qual vivi no ano anterior com a Cléo e os amigos dela.
Já o Réveillon, não passamos juntas porque ela viajou com uma
amiga, não pude ir porque não queria deixar a Tati sozinha.
166
Não havia planejado nada e não estava buscando companhia ou
algo para fazer, passaria em casa mesmo numa boa, comemorar
sozinha não seria um problema. Mas tudo mudou quando
chegou o dia 31 e meu telefone tocou no início da noite, atendi
porque se fosse alguém querendo fazer programa, eu estava
disposta a trabalhar. Já tinha feito três programas durante a
tarde, um cliente a mais seria bem-vindo. Era um moço
interessado em fazer programa, mas não naquela noite, ligou
apenas para pegar informações, pois um amigo dele havia
comentado sobre mim e ele ficou curioso. Me disse que ligaria
na próxima semana para marcar um horário. Estávamos nos
despedindo quando ele resolveu perguntar: “E o que você vai
fazer de bom nesta noite de Réveillon? Vai passar onde?”.
Respondi que ficaria sozinha em casa, mas que tinha comprado
uma massa para jantar e uma garrafa de espumante para
estourar e beber na virada. Ele então comentou que também
passaria sozinho em casa porque os pais foram viajar e ele não
foi porque precisaria trabalhar no plantão do dia seguinte, era
recém-formado em medicina. E continuamos a conversa.
O papo acabou fluindo bem, rolou bastante afinidade entre nós,
ele era simpático, tinha uma voz grave, imaginei que fosse um
homem bonito. Nem percebemos o tempo passar, estávamos
conversando há um pouco mais de uma hora. Fiquei bastante
instigada para conhecê-lo, parecia ser uma pessoa interessante,
principalmente porque descobrimos gostos em comum, como
nossa paixão por Charlie Brown Jr, até combinamos que no dia
que ele fosse fazer programa, colocaria CBJ para tocar.
E então ele disse: “Eu estou aqui sozinho, você aí sozinha, nos
demos bem, você não quer vir aqui em casa ou eu vou para
passarmos a virada juntos, conversando pessoalmente,
bebendo, ouvindo música, sem segundas intenções, apenas
como amigos, um fazendo companhia para o outro?”
Fui totalmente pega de surpresa, mas como estava gostando de
conversar com ele, pensei: “Por que não passar o Réveillon com
uma pessoa que nunca vi na vida?”. Aceitei o convite, disse que
167
então ia para a casa dele, mas eu teria que ir embora bem cedo
porque tinha uma cachorra pequena que não poderia ficar
muito tempo sozinha. Me arrumei e fui. Confiei demais nele,
apenas depois que já estava de volta em casa que parei para
pensar o quanto inconsequente fui, imagina se ele fosse um
louco que fizesse algo de ruim comigo?
Bom, quando cheguei na casa dele, me recebeu muito bem,
como se fôssemos amigos há anos, ele pagou meu táxi e me
deixou super a vontade. Era um sobrado bem grande, me levou
para conhecer tudo e notei que realmente morava com os pais.
Pessoalmente, continuou sendo simpático como foi por
telefone, mas me enganei com a voz, ele não era feio, no
entanto não senti atração física, passava longe do perfil de
homem que eu gostava, mas como não estava lá para fazer
sexo, então tudo bem, o importante era que fosse realmente
uma boa companhia e que tivéssemos juntos, uma noite
agradável. Preparamos os drinks e nos sentamos no sofá,
ficamos ouvindo música e conversando, o papo estava fluindo
muito bem, até que ele começou a jogar indiretas de que queria
ficar comigo naquela noite. O problema é que, como o interesse
não era recíproco, o clima ficou estranho. Pelo menos não
forçou nada fisicamente comigo, me respeitou neste ponto.
Ele percebeu que não teria chance nenhuma comigo quando
comentei que estava pensando em ir embora logo após a virada
do ano porque estava preocupada com a minha cachorra.
Daí ele entendeu o recado e deu uma maneirada, mudou de
assunto, mas quando perco o interesse em manter uma
conversa, nada faz com que volte a ser como estava antes.
Preparamos mais um drink e fomos para o jardim assistir o
estouro dos fogos no céu, brindamos, nos abraçamos,
desejamos feliz ano novo. Conversamos mais um pouco e
resolvi ir embora, não conseguiria dormir com ele. Ainda bem
que conseguimos um taxista disponível para me levar para casa.
Ter um Réveillon maravilhoso tornou questão de honra. Ou não
ter uma virada de ano digna seria um karma em minha vida?
168
O blog da Surfistinha
Três dias após o Natal, não acordei bem, não havia nenhum
motivo específico, acho que foi uma mistura de várias situações
que vivi durante o ano que acabaram abalando minha estrutura
emocional. Se pudesse, cancelava todos os programas marcados
e ficaria brincando o dia todo com a Tati, que já estava com no
mínimo o dobro do tamanho que me garantiram que ficaria.
Fui enganada porque a comprei sendo poodle toy, mas
nitidamente não era. Poderia ligar no canil para reclamar,
apenas não fiz isso porque nada mudaria, jamais a trocaria por
outra ou a devolveria. Como o primeiro programa seria às 13hs
e tinha tempo suficiente, então a levei pela primeira vez ao
parque Ibirapuera, foi um passeio maravilhoso para nós duas,
ela brincou com vários cachorros, enquanto eu consegui relaxar
a mente andando descalça na grama e tomando vitamina D,
renovei a energia e quando voltamos para casa, estava mais
disposta. Atendi todos os clientes e o qual me levaria ao swing à
noite, desmarcou, achei ótimo. Às 22hs, já estava liberada e
resolvi me proporcionar um momento diferente. Pedi pizza e
escolhi um filme para assistir. Algo tão simples e que me fez tão
bem, não me lembrava de ter feito isso antes. Quando o filme
acabou, me deitei para dormir. Fiquei lutando em busca do
sono, virava de um lado, do outro, me cobria e sentia calor, me
descobria e sentia frio. A tecnologia não era favorável para
quem tinha insônia, pois não tinha como navegar na internet
através do celular. Já há um tempo, estava com vontade de
escrever, de colocar sentimentos para fora. Quando trabalhava
nos privês, escrevia bastante no caderno, era uma terapia e uma
maneira de passar o tempo. Resolvi então me levantar, ligar o
computador e escrever, queria externar como havia sido 2003
para mim. Colocando tudo para fora por meio de palavras, eu
conseguiria enxergar melhor e analisar todos os acontecimentos
169
ruins. Enquanto o computador ligava com aquela lentidão
normal de antigamente, lembrei dos blogs que, naquela época
era febre, a modinha do momento, já tinha acessado vários com
temas aleatórios e de adolescentes que faziam diários virtuais.
“Por que não ter um blog contando sobre meu dia a dia como
prostituta?” – pensei.
Entrei no Yahoo e busquei: blog de garota de programa.
Queria saber se já existia, adoraria acompanhar a rotina e a vida
de uma prostituta que eu não conhecesse pessoalmente, mas
não encontrei nenhum, então sem pensar duas vezes, decidi
criar um e me tornar pioneira. Lembrei que a maioria que visitei
era no Blogger, no portal Terra. Foi mais fácil do que imaginei
elaborar meu canto virtual, o layout era bem simples, não tinha
muitas opções, mesmo assim, adorei o resultado.
As garotas de programa que anunciavam fotos e detalhes do
atendimento em sites, tinham nome e sobrenome de guerra.
Então eu precisava de um sobrenome, tentei me inspirar para
pensar em algum que combinasse comigo, foi quando me deu
um estalo: Surfistinha!!!
E foi assim que na mesma madrugada avancei duas casas no
jogo da vida na prostituição: me tornei uma puta blogueira e
nasceu a Bruna Surfistinha.
Blog pronto, precisava escrever um texto me apresentando aos
futuros leitores. Era para ter sido um resumo, mas se tornou
um textão. Fui escrevendo o que tinha vontade, contei um
pouco sobre minha infância, a adolescência, como fui parar na
prostituição e como era se prostituir. Percebi que enquanto
escrevia, ia tirando um peso de mim, ficando mais leve. Acabou
sendo um grito de liberdade e uma maneira de gritar para o
mundo: Eiiiii, eu existo! Eu estou aqui!
Meu objetivo com o blog era mostrar meu lado humano, algo
que todas as garotas de programa têm, mas que a sociedade
hipócrita não enxerga. Queria que meus leitores soubessem que
ser prostituta não é apenas abrir as pernas, gemer falsamente
170
para satisfazer homens e ganhar dinheiro fazendo sexo.
Era mais do que isso, bem mais.
Também queria que ao compartilhar meu cotidiano, pudesse
mostrar que quem se prostitui é uma pessoa normal, com dores
e amores, decepções, aprendizados, sonhos, lutas com vitórias e
derrotas. Sabia que não teria o poder de acabar com o
preconceito, mas quem sabe conseguiria amenizá-lo um pouco.
De alguma maneira, queria ser voz de todas as garotas de
programa, levantando uma bandeira contra o preconceito
através dos meus textos diários. Eu estava me dando uma
responsabilidade muito grande, mas estava disposta a encarar a
exposição para conquistar meu objetivo. O que eu não
imaginava e nem estava preparada para isso é que o blog se
tornaria rapidamente um sucesso, fugindo do meu controle e se
transformando em minha principal ferramenta de trabalho.
Finalizei o primeiro texto ao amanhecer, eram quase 7h30 e
nem percebi o tempo passar. Publiquei o primeiro post.
Estava leve, com sono e fui dormir com um sorriso no rosto.
Quando acordei, tomei café-da-manhã lendo meu textão, fiquei
na dúvida se o editava, excluindo algumas partes que estavam
me expondo demais logo de cara ou se excluía tudo e escrevia
um novo texto apenas com uma breve apresentação. Por fim,
resolvi deixar como estava, afinal foi algo espontâneo e natural.
Mandei uma mensagem para a Gabi, pedindo para que fosse em
casa, queria mostrar a novidade. Eu estava empolgada demais!
Quando ela chegou, a levei para frente do computador, pedi
para que se sentasse, enquanto fiquei em pé explicando o que
era e contando qual era o meu objetivo com aquilo.
Expectativa: jurava que ela ia adorar, me incentivar, demonstrar
alguma reação positiva, querer ler o meu texto, dar ideias.
Realidade: não esboçou sequer um sorriso, não teve interesse
em ler e com o semblante sério, simplesmente me perguntou:

171
“Quem vai perder tempo lendo blog de uma garota de
programa, Bruna???”
Ao ouvir isso, fiquei sem reação, minha empolgação foi embora
e a tristeza bateu, senti meus olhos lacrimejarem, mas controlei
bem e disfarcei para que ela não percebesse. Fiquei tão chateada
que apenas consegui dizer:
- Então tá bom, era isso que queria te mostrar, preciso me
arrumar para atender um cliente.
Eu não tinha cliente na parte da manhã, mas não sabia como
pedir para que ela fosse embora.
- Vamos ao shopping mais tarde? Me avise quando estiver com
tempo livre. – ela continuou.
- Acho que hoje não consigo, mas vou ver, qualquer coisa te
aviso.
E não avisei. Hoje enxergo que minha chateação foi excessiva,
mas ela despertou em mim um sentimento que estava
adormecido: o de rejeição e a necessidade de agradar alguém.
Traumas da infância que ela não tinha culpa, mas pelo menos
um pouco de apoio estava esperando. Quando foi embora, fui
tomar banho, pois para mim o melhor lugar para decidir algo
sempre foi embaixo do chuveiro.
Desistir do blog ou persistir? Eis a questão.
Resolvi persistir seguindo minha intuição, sentia que o blog
seria um compromisso diário que me faria bem. Como faltavam
poucos dias para o ano acabar, decidi que começaria a escrever
diariamente a partir do primeiro dia de 2004 para fazer jus a um
diário virtual. Mantive como estava, não acessei nos próximos
dias. Até que no dia 01 de janeiro, fiz o primeiro login já me
sentindo como blogueira e para a minha surpresa, em menos de
uma semana, havia recebido quase trinta visitas, queria saber
como as 27 pessoas o descobriram. Alguém deixou um
comentário que me fez feliz: “Ansioso pelo próximo texto!”
172
Nunca mais comentei sobre o blog com a Gabi, ela também
demonstrou zero interesse para saber algo dele.
Em contrapartida, comentava com quase todos os clientes e
foram eles que me apoiaram, além dos leitores que estava
conquistando a cada dia, sem saber como. A quantidade de
visitas apenas crescia, em menos de um mês já estava batendo a
média de mil diariamente. Comecei também a ganhar clientes
através dele, me ligavam dizendo que tinham encontrado o blog
e queriam mais informações. Alguns foram me conhecer
mesmo sem ver alguma foto minha, pois divulgava apenas o
número do telefone e e-mail. Nem todos perguntavam como eu
era fisicamente, simplesmente os instiguei com meus textos.
Recebia muitos comentários em todos os textos publicados.
Claro que existiam os xingamentos, palavras de ódio e
preconceito, mas a maioria era mensagens de apoio, elogios e
palavras de incentivo. Muitas pessoas duvidavam de mim e
deixavam comentários que me faziam rir: “Tenho certeza que
você não é prostituta porque escreve bem!” e “Você deve ser
um homem fingindo ser mulher!”.
Queria poder voltar ao tempo para responder à pergunta de
quem perderia tempo lendo um blog de garota de programa:
Muitas pessoas, Gabi, na verdade, milhares...
***
Como sou a louca das listas, sempre iniciei um novo ano com a
minha listinha dos desejos. Os principais de 2004 eram:
- Colocar silicone nos seios. Embora os clientes elogiassem e
gostassem dos meus naturais pequeninos, eu não os achava
bonitos, às vezes sentia vergonha e evitava usar decote.
Não queria peitos gigantes e nitidamente falsos, mas com um
volume mais próximo possível do natural;

173
- Fazer supletivo para finalizar o ensino médio;
- Conquistar meu CNH
Novembro e dezembro foram meses que trabalhei demais e
intensamente, aproveitei todas as oportunidades que surgiram,
me entreguei à Bruna. Tinha dias que parecia uma maratona,
atendia um cliente após o outro, sempre reservava uma hora
para almoçar com calma, mas se surgisse algum cliente
querendo aquele horário, eu deixava de almoçar. O resultado
disso foi que consegui guardar uma boa quantia, então
conseguiria investir na realização dos desejos da listinha.
***
Um cliente me chamou para acompanhá-lo num clube de swing,
eu nem sabia o que era isso, ele explicou que rolava troca de
casais, achei bem interessante. Muitos homens contratavam
garota de programa para acompanhá-los por dois motivos: o
valor cobrado de homem sozinho era alto demais, o triplo do
que custava a entrada de um casal. E a chance dele conseguir
fazer sexo era mínima, pois os casais queriam realizar a troca.
Minha primeira visita ao swing causou uma divulgação
maravilhosa no Fórum, graças ao cliente que publicou o relato
de como foi nossa noite, mas modéstia à parte, realmente fui
uma ótima companhia, pois vivi a experiência com tudo que
tive direito: dancei, participei de um show de strip no meio da
pista, beijei várias mulheres, realizei três trocas de casais.
Não tive pudor nem frescura. O cliente pirou comigo porque
comentou que nas experiências anteriores com outras garotas
de programa, todas colocaram regras e não foram liberais.
Aproveitei como se fosse a última vez que estava indo. Após o
relato dele, surgiram vários outros clientes querendo minha
companhia no swing, a maioria nunca tinha ido, mas ficaram
instigados. Conheci os principais clubes de São Paulo, não
imaginava que existissem tantas opções desse entretenimento.

174
Ninguém deveria morrer antes de conhecer um clube de trocas
de casais. Parece uma balada normal, com pista de dança, DJ,
balcão com bebidas, mesas, enfim, a única diferença é que
rolam shows de strip-tease. E na lateral da pista, há uma passagem
que nos leva ao mundo mágico do swing. Cada clube tem suas
peculiaridades, no primeiro que conheci, o Inner, além das
salinhas individuais para no máximo dois casais e as salas
grandes onde sempre cabia mais um casal, também tinha um
labirinto e, em alguns pontos estratégicos, existiam buracos
onde os homens simplesmente colocavam o pau. Levei um
susto quando me deparei com o primeiro. A iluminação era
baixa então vi de longe algo saindo na parede, mas não
consegui identificar o que era, precisei me aproximar para
entender. Quem estava no labirinto não conseguia ver quem era
o dono do pau alheio e o dono dele, também não tinha visão de
quem estava do outro lado. Quem vê pau, não vê coração.
Em swing, rola muito respeito, não é não, sempre. É claro que
sempre tem um ou outro abusado, mas reparei que esses eram
os solteiros. Os casais verdadeiros, respeitam demais. Na época,
fiz amizade com um, eram casados há mais de cinco anos e
frequentavam swing uma vez por semana. Certa noite, conversei
bastante com a mulher, que me contou algo que achei bem
interessante: “O que rola aqui dentro, morre aqui. Lá fora não
comentamos nem entre nós, aqui não sinto ciúmes de vê-lo com
outra mulher, pelo contrário, fico louca de tesão, mas lá fora
não aceito e se eu descobrir que ele saiu com outra mulher, é
traição, nosso casamento acaba na hora.”
O Enigma Club tinha sido inaugurado há pouco tempo na rua
lateral ao flat e eu queria muito conhecer. Na primeira semana
do ano, o movimento de clientes sempre é muito fraco, rolaram
uns programas pingados, acabei aproveitando para descansar e
pesquisar um cirurgião plástico para colocar silicone nos seios,
pois queria realizar a cirurgia entre fevereiro e março. Chegou
sexta-feira, final de noite e eu estava entediada, o celular tocou,
175
atendi com esperança de fechar um programa apenas para
acabar com meu tédio, um homem simpático chamado Gê
queria apenas informações. Como queria muito conhecer o
Enigma fiz uma proposta a ele: “Vamos ao swing hoje? Eu não
te cobro cachê, vamos apenas para nos divertir e beber uns
drinks, como se fosse uma balada normal. Se rolar química com
outro casal, podemos fazer a troca, mas entre nós dois não vai
rolar nada porque não irei a trabalho, apenas quero me divertir
e conhecer esse clube que parece ser bem legal! Topa?”
- Poxa, Bruna, adoraria ir, mas não estou em São Paulo, volto
apenas na próxima semana e te ligo para marcar um programa
ou para irmos nesse swing.
- Combinado! Te espero! Boa noite, Gê!
***
Na esquina onde morava, tinha inaugurado há poucos meses
um flat chique, fui visitar um apartamento no final do ano e
fiquei apaixonada, era a coisa mais linda, com toda a mobília
nova e moderna, fiquei morrendo de vontade de morar ali, mas
o valor do aluguel era alto demais, quase três mil reais,
enquanto eu pagava R$ 1.300,00 no qual estava morando, a
diferença era grande demais. Conseguir morar em um
apartamento de canto foi um objetivo realizado com sucesso, o
espaço era bem maior, porém não me sentia em casa por não
ser o meu estilo, os móveis eram muito antigos e feios, não era
um canto aconchegante, me sentia senhorinha morando ali.
Pensei bem, fiz várias contas e concluí que valeria a pena
investir no flat chique, pois morar num apartamento moderno e
confortável, seria uma boa mudança de ares, um estímulo para
cuidar da vida pessoal também. E atendendo em um espaço
bonito, poderia valorizar e aumentar o meu cachê.
Fui novamente visitar com segundas intenções, o qual tinha
conhecido não estava disponível, mas conheci um que era ainda
melhor, estava recém reformado e eu seria a primeira inquilina.
176
Enfrentei a burocracia para alugar um apartamento, consegui
comprovar minha renda apresentando os últimos extratos
bancários e, no dia seguinte, já recebi a resposta positiva da
imobiliária. Foi o primeiro contrato que assinei na vida, aquele
momento que a gente se sente adulto demais.
A sensação prazerosa que senti, assim que finalizei a
organização das minhas coisas na nova toca, foi indescritível.
Passou um filminho na cabeça de tudo o que vivi no ano
anterior e agora estava ali, morando num lugar maravilhoso.
Como imaginei, os clientes também adoraram meu novo
cantinho de atendimento. Estava indo tudo muito bem para ser
verdade. Em questão de dias, o interfone tocou de manhã, achei
estranho porque não tinha cliente marcado, atendi e uma
mulher se apresentou como proprietária do apartamento, disse
que queria conversar comigo. A recebi no apartamento, ela foi
direta e reta, contou que a imobiliária recebeu uma notificação
da gerência do condomínio dizendo que eu estava recebendo
muitas visitas diárias e que isso estava gerando incômodo entre
funcionários e vizinhos. Ora, ora, quantos fiscais de vida!
- Sou garota de programa e estou atendendo meus clientes aqui
sim, mas não faço bagunça, barulho, nem festas e, como pode
ver, o apartamento está da mesma maneira de quando cheguei,
pode ficar tranquila que sou discreta. – me defendi.
- Você está num prédio de família, é proibido se prostituir aqui.
– Proibido? Não estou fazendo mal a ninguém, atendo meus
clientes um de cada vez e não sou escandalosa, mas tudo bem,
não continuarei aqui, quero paz e não vizinhos cuidando da
minha vida. Como podemos resolver isso?
- Vamos ter que rescindir o contrato. Você tem esse mês que já
está pago e o valor da caução, deixamos como pagamento do
aluguel para o próximo mês, assim você tem tempo suficiente
de encontrar outro lugar para morar e se prostituir, mas peço
que tenha cautela e não traga tantos homens por dia.

177
Problema resolvido. Fui indo em direção à porta para que ela
fosse embora, para mim o assunto estava mais do que
encerrado. Mas para ela não. Pois se sentou no sofá e pediu
para que eu me sentasse também, quando começou a nova
conversa dizendo que é evangélica, entendi tudo. Tomei a
minha cápsula imaginária de paciência, respirei fundo e comecei
a prestar atenção, fingindo que estava concordando com tudo o
que dizia para acabar logo o assunto. Além de dizer que, se
prostituir é pecado porque o corpo não é meu, falou que o
nosso encontro não foi em vão, afinal foi usada para levar as
palavras de Cristo para me livrar daquilo e pediu para que eu
não me preocupasse porque Jesus me salvaria. Por fim, disse
que fazia questão de me levar ao culto com ela. Deus me free.
Agradeci dizendo que eu tinha minha fé no espiritismo. Queria
muito já ser umbandista naquela época, pois minha resposta
teria sido diferente: “Então vamos fazer o seguinte, vou ao seu
culto e depois você vai numa Gira do terreiro que frequento
para ouvir as palavras de Exu!”. Nada mais justo.
A situação de estar há pouco tempo no flat e já ter que pensar
em ir embora me abalou bastante, principalmente porque foi a
primeira vez que senti o preconceito na pele por me prostituir.
Infelizmente, era ainda ingênua e bobinha, pois poderia ter
lutado por meus direitos, contratado um advogado para me
defender judicialmente, alegando que se quisessem me expulsar
do prédio por conta de preconceito, que brigássemos na justiça.
Comecei a atender meus clientes no motel Queens que era o
mais próximo, mas mantive alguns atendimentos no
apartamento. Aumentei minhas idas aos clubes de swing, antes
marcava apenas de quinta a sábado, comecei a ir terça e quarta
também. No final das contas, comecei a gostar da ideia de
atender poucos clientes no flat, sentia que a energia ficava mais
leve, fora o fato da minha moradia se tornar meu canto de paz.
Me fez bem separar ambiente de trabalho com ambiente
pessoal. Há males que realmente vêm para o nosso bem.
178
***
Numa bela noite de calor, me ligaram perguntando se eu estava
disponível para ir ao swing. Respondi que sim. Percebi que o
abençoado estava muito empolgado, comentou que finalmente
me conheceria. Me avisou que em 40 minutos me buscaria para
irmos. Quando entrei no carro, a primeira impressão foi ótima,
era um quarentão charmoso, alto astral, simpático, animado.
Ele estava ansioso por ser a primeira vez num swing, o instiguei
ainda mais, revelando algumas experiências que poderíamos
viver juntos naquela noite. Foi tudo ótimo, nos divertimos,
bebemos, trocamos duas vezes de casal, finalizamos nossa noite
apenas nós dois numa salinha com direito a um casal de voyeur
nos observando na janela. Ele fez questão de me dar carona de
volta para casa. Quando chegamos na frente do prédio, desceu
do carro e abriu a porta para mim, um verdadeiro gentleman, me
abraçou e agradeceu a companhia. Retribuí o agradecimento e
fiquei olhando para ele sem dizer nada, apenas fiquei esperando.
E então ele resolveu quebrar o minuto de silêncio:
- Está tudo bem?
- Está sim, estou apenas com sono.
- E por que está me olhando com essa cara?
- Ah sim, estou esperando me entregar o principal, no caso,
meu cachê. Acho que a noite foi tão boa que você esqueceu do
detalhe que faço programa e estou trabalhando.
Rimos muito. Em seguida, um novo minuto de silêncio, dessa
vez por iniciativa dele.
- Você não sabe quem eu sou, Bruna?
- Não, desculpa, mas sou péssima para guardar fisionomia.
- Eu sou o Gê, te liguei há alguns dias, lembra? Você me fez a
proposta para irmos ao swing, disse que não me cobraria cachê.
- Ah, lembro sim. Mas aquela proposta era para aquela noite e
eu deixei claro que não rolaria sexo entre nós.

179
- Eu não entendi que seria apenas naquela noite. E pensei que
você transou comigo hoje por ter gostado de mim.
- Por que não se identificou no telefone quando me ligou para
que eu soubesse que era você? Não reconheci sua voz, falo com
vários homens por dia.
- Achei que me atendeu já sabendo que era eu, que tivesse
registrado meu número no seu celular porque avisei que te
ligaria novamente quando chegasse em São Paulo. Estou sem
dinheiro aqui para te pagar e não estava preparado para gastar
tanto nesta noite, lá no swing gastei quase R$ 400 com entrada e
bebidas, se soubesse que teria que pagar cachê hoje para você,
nem teria saído de casa, esperaria mais alguns dias.
Depois de ouvir isso, tive certeza de que não receberia nenhum
centavo. Coloquei meu nariz imaginário de palhaça, não falei
mais nada, entrei no prédio. Estava com raiva de mim por ter
feito esta proposta ridícula com um estranho somente porque
estava entediada naquela noite. Estava com raiva dele porque
senti que se aproveitou da minha ingenuidade, percebeu que
não reconheci a voz dele no telefone e pagou de louco.
Essa situação gerou um desgaste emocional tão grande em mim
que cheguei em casa como se tivesse tido o pior dia da minha
vida. Deitei no sofá e desabei, a Tati se deitou ao meu lado e
ficou lambendo minhas lágrimas e, quanto mais lambia, mais
me dava vontade de chorar. Bloqueei o número dele.
***
Os dias passaram, tudo fluindo bem, trabalhando bastante,
quase virando sócia do motel. Encontrei um cirurgião plástico
maravilhoso, marcamos a cirurgia para o início de fevereiro,
gastei menos do que imaginava porque ganhei um bom
desconto ao pagar em dinheiro, realizei a bateria de exames e
estava tudo bem com minha saúde. Estava assustada com o
sucesso do blog, mas muito feliz com o resultado positivo.

180
Decidi que voltaria a alugar um apartamento no Treme-treme,
embora não fosse chique, era um lugar que eu tinha paz
garantida, nenhum vizinho encheria meu saco. Mas resolvi
alugar um outro flat num prédio diferente, apenas para morar.
Valia a pena manter dois espaços para não misturar as energias.
Numa manhã, fui visitar algumas opções e me apaixonei por
um apartamento na Vila Nova Conceição, não ficava tão longe
o trajeto entre um e outro, era um prédio “de família”.
Meu quarto no hospital onde realizaria a cirurgia seria
compartilhado com outras pacientes, então poderia levar apenas
acompanhante do sexo feminino. A Gabi se ofereceu para ir
comigo, mas não quis atrapalhar a rotina de trabalho dela, falei
que conseguiria me virar sozinha, avisaria se precisasse de algo.
Quando cheguei no hospital, eu estava morrendo de medo,
piorou quando o médico começou a fazer várias marcações
com caneta nos meus seios. Escolhi colocar as próteses através
das auréolas, então também tinha medo de perder toda minha
sensibilidade na região. Deitei na maca e chegou o momento da
tão temida anestesia, eu nunca tinha tomado antes e, com toda
minha ingenuidade pensei: “Como estou com medo de não
acordar, então vou fingir que estou dormindo”. O anestesista
aplicou a injeção, fechei os olhos jurando que daria certo meu
plano de fingir. Quando os abri, já estava na sala pós-cirurgia,
com uma enfermeira ao meu lado, perguntando meu nome e a
idade, me disse que a cirurgia havia sido um sucesso, que estava
tudo bem e que ficaria mais um pouco ali antes de ser levada ao
quarto. Me perguntou se eu queria alguma coisa. Respondi que
queria fumar. Ela riu e saiu de perto de mim. Acabei dormindo
novamente e quando acordei, já estavam me levando ao quarto.
Recebi alta no início da noite. A Gabi foi me buscar e ficou
comigo em casa durante uma semana, até que eu tirasse os
pontos da cirurgia. Ela ia atender os clientes no apartamento
dela e depois voltava para o meu. Foram dias que dormi mais
do que qualquer outra coisa, pois os remédios me davam muito
181
sono. Gabi me ajudou demais, lembrava dos horários que eu
precisava tomar os comprimidos, providenciava a alimentação e
lavava meu cabelo porque eu não podia levantar os braços.
No dia que fui ao consultório do cirurgião para tirar os pontos
e ficar liberada do sutiã cirúrgico, fui em seguida ao shopping
para comprar novos sutiãs, com numeração maior e sem bojo,
além de várias blusinhas decotadas. Meus novos seios foram
uma grande realização pessoal, alguns clientes antigos me
disseram que preferiam quando eram pequenos e naturais, mas
quando estamos nos sentindo bem, a única opinião que
importa, é apenas a nossa.
***
Meus dias no flat de luxo terminaram. Aluguei dois
apartamentos: no Treme-Treme para atender meus clientes em
paz e fui morar no qual tinha gostado, na Vila Nova Conceição.
Voltei a trabalhar antes de completar um mês que coloquei
silicone nos seios, me sentia ótima, mas precisava ter cuidados,
como não deixar que os apertassem com força.
Por conta do sucesso do blog e Fórum, aumentei cinquenta
reais o valor do meu cachê, esse aumento fez uma boa diferença
no meu ritmo de trabalho, me permitindo parar de trabalhar aos
finais de semana. A parte da manhã era exclusiva para dar
atenção à Tati. Saia de casa ao meio-dia, pedia para o taxista me
deixar no shopping Ibirapuera, almoçava e ia ao flat para
atender os clientes. Meu horário de expediente era das 13hs às
22hs, com raras exceções marcava algum programa após este
horário. Voltava para casa, passeava com a Tati e se tivesse
swing, conseguia descansar um pouco antes de ir. Resolvi impor
o tempo limite de três horas no clube e não mais até as pessoas
começarem a ir embora. Conseguia acordar às 8hs para ter a
manhã livre e aproveitava para fechar a agenda do dia, como a
procura estava grande, então meus dias eram lotados, já ia ao
flat com os atendimentos definidos. Assim era a minha rotina.
182
Para não atrasar os horários, comecei a controlar a duração de
cada programa de uma maneira sutil, sem precisar ficar olhando
no relógio, colocava um CD para tocar já sabendo em qual
música precisava avisar o cliente que o tempo estava acabando.
Marcava os programas com diferença de 15 minutos entre eles,
tempo suficiente para fumar um cigarro, comer algo rapidinho
caso fosse necessário enganar a fome e me preparar para o
próximo. Felizmente, tive poucos clientes que não apareceram
ou que desmarcaram em cima da hora. Conseguia passar
profissionalismo e a maioria respeitava o horário marcado,
talvez já sabendo que se deixasse de ir, poderia demorar para
conseguirem um outro horário disponível. Sim, em pouco
tempo, consegui chegar neste nível de ter que avisar clientes o
fato de ter horário livre apenas dali a dois ou três dias.
Sem perceber, comecei a empreender. Pena que não pude
contar com a tecnologia avançada, era tudo muito limitado.
Como forma de pagamento, apenas dinheiro ou cheque.
Ainda bem que tive pouca dor de cabeça com cheques, em três
anos, apenas quatro me causaram problema. Um deles não
consegui resolver porque o banco constou como cheque
furtado e o cliente colocou atrás um número inexistente de
telefone, não consegui me lembrar quem me pagou com esse,
pois eu ia ao banco para depositar apenas uma vez por semana,
então já tinha esquecido da cara dos clientes que atendi nos
últimos dias. Os outros três consegui resolver com facilidade.
Um cliente me pagou com moedas, no telefone ao marcar o
programa, contou que era taxista e todo sem graça, perguntou
se eu aceitaria que me pagasse dessa maneira, claro que aceitei,
moedas são dinheiro.
Bem que eu queria que PIX tivesse surgido naquela época e,
adoraria ter tido uma maquininha de cartão, algo que era muito
burocrático, pois apenas pessoas jurídicas conseguiam ter, mas
para abrir uma empresa também era um caminho cheio de
burocracias. Pessoas físicas sofriam para receber pagamentos.
183
***
No final de março, cheguei em casa no final da noite e, após o
passeio com a Tati, liguei o computador para publicar no blog,
digitei a senha e deu erro. Fiz várias tentativas e não consegui
acessar de jeito nenhum. Cliquei em ‘esqueci a senha’, sabendo
que receberia o link por e-mail, mas quando fui me conectar no
hotmail, a senha que era a mesma, também estava inválida.
Entrei na página do blog, algo que não tinha o costume de fazer
porque acessava apenas a área administrativa e me deparei com
um post que não foi escrito por mim. Foi quando a ficha caiu,
algum hacker roubou minha senha e estava se passando por
mim. Pelo menos a pessoa não escreveu besteira querendo me
prejudicar ainda mais, apenas escreveu putaria de uma maneira
que eu jamais faria. Me desesperei ao perceber que não estava
livre de humanos que tinham o desejo de me atrapalhar.
Por sorte, eu tinha um cliente que trabalhava justamente com
internet e desenvolvimento de sites, havia intimidade suficiente
para pedir ajuda a ele e, como era solteiro, poderia fazer isso a
qualquer hora. Imediatamente mandei mensagem explicando o
que estava acontecendo, ele me ligou em seguida, me explicou
como poderia me ajudar e garantiu que tudo ficaria bem
novamente. Eu quase não consegui dormir, estava muito
preocupada, pensando no que o hacker poderia fazer até
conseguirmos resolver o problema. Na manhã seguinte, meu
cliente-amigo começou a agir, entrou em contato com o Yahoo
e com o Terra, conseguimos recuperar as senhas em menos de
dois dias, mas até isso acontecer, publicaram outros textos.
Assim que consegui recuperar os acessos e alterar as senhas,
apaguei os posts do hacker, comuniquei os meus leitores o que
havia acontecido e contei como foram meus últimos dias.
O cliente sugeriu de elaborarmos um blog mais profissional,
que ficasse hospedado num servidor seguro e comentou de
incluirmos fotos sensuais, ele mesmo faria o ensaio fotográfico,
pois fez curso como hobby e investiu em bons equipamentos.
184
Topei na hora. Ele comprou o domínio porque era algo que
apenas pessoas jurídicas também tinham direito, desenvolveu
todo o layout e realizamos o ensaio fotográfico no apartamento
dele. Fechamos um valor mensal para cobrir o custo do
servidor contratado e para que me ajudasse com a parte técnica
sempre que fosse necessário. As fotos por mais simples que
tenham sido, já deram um outro ar ao blog. Não mostrei meu
rosto porque ainda não estava preparada para tal exposição,
mas mostrei bastante do meu corpo, em posições sensuais.
Após duas semanas, inaugurei o meu novo canto virtual.
Para não perder os leitores conquistados, publiquei um post em
tom de despedida do espaço onde tudo começou e finalizei
deixando o link do novo blog. Com as fotos, a repercussão foi
rápida, a quantidade de visitas cresceu, ganhei mais leitores e
clientes. Se meu telefone já tocava bastante, comecei a não dar
mais conta de tantas ligações e mensagens.
Foi um estouro instantâneo! Agradeço ao hacker, pois foi graças
a ele que saí da zona de conforto e, dei um passo gigante na
minha carreira ao ganhar um blog profissional.
***
Sempre fui chocólatra e naquele ano em especial, tendo o meu
cantinho pessoal como moradia, fiquei com vontade de me
proporcionar um domingo tradicional de Páscoa. Encomendei
bacalhoada num restaurante e, mais do que isso, quis me mimar
com ovos de chocolate, muitos ovos. Fui ao mercado e não tive
vergonha nem medo de ser feliz, comprei todos que tive
vontade. Tanto na infância, como adolescência, senti muita falta
de ter uma Páscoa feliz em família.
Busquei minha encomenda na manhã do domingo, comi a
bacoalhada por dois dias e os ovos duraram meses, mas me
proporcionei um domingo gostoso, nem me importei de estar
sozinha. Até a Tati ganhou um ovinho próprio para cachorros.

185
***
Nessa época, eu tinha um cliente que foi muito especial para
mim, foi um dos primeiros que marcou programa, assim que
iniciei definitivamente meu ciclo no flat. Começou a marcar
programa uma vez por semana, estava recém separado e muito
carente, acabamos nos apegando rapidamente, não por causa do
sexo, mas pela companhia, pois conversávamos mais do que
qualquer outra coisa. Enxergou meu lado humano e me tratava
com muito respeito, contei bastante sobre minha vida, eu sabia
muito sobre ele, enfim, confiávamos demais um no outro.
A nossa conexão era forte, parecia ser de outra vida, mas não
tínhamos interesse um no outro, no sentido de querermos viver
um relacionamento. Era algo muito bem resolvido entre nós,
tanto que mantínhamos uma ótima relação entre prostituta e
cliente, me sentia a vontade em cobrar cachê e ele em continuar
marcando programa comigo. Na semana seguinte da Páscoa,
durante nosso programa semanal, ele me disse:
“Quero fazer algo por você, Raquel, qualquer coisa que te faça
feliz para que sempre se lembre de mim. Pode escolher. O que
você quer?”
- Qualquer coisa mesmo? – quis ter certeza.
- Sim, qualquer coisa. Se eu não puder realizar agora, corro atrás
até conseguir.
- Quero que me leve até Sorocaba para visitar minha avó se ela
ainda estiver viva.
- Você pode neste próximo domingo?
- Claro que posso!
Ele me buscou no horário que combinamos de manhã, não
estava acreditando que alguém estava fazendo isso por mim,
ainda mais um cliente. Durante a viagem, compartilhamos
lembranças que tínhamos de nossos avós. Quando chegamos
em Sorocaba, fomos diretamente para a clínica de repouso.

186
Não estava aguentando de ansiedade. Chegamos na clínica, a
dona estava no portão se despedindo de um casal, ela me
reconheceu e ficou muito surpresa, perguntou da minha mãe.
Fomos conversando no caminho do portão até a casa e concluí
que ela não sabia que eu tinha saído da casa dos meus pais, ao
me dizer: “Sempre quando sua mãe vem, pergunto de você, ela
me contou que está estudando muito por isso não consegue vir
também, mas que bom que conseguiu um tempo e veio hoje.
Bom, você sabe que sua avó não está muito bem, nos deu um
susto, mas ela é guerreira, quer viver.”
E quando estávamos subindo a rampa para chegarmos no
terraço da sala, ela soltou: “Sua mãe ficou mais bonita ainda,
hein? A cirurgia que fez para tirar aquelas peles das pálpebras a
transformaram, parece que rejuvenesceu uns vinte anos!!!”.
Na hora que ouvi isso, até paralisei, fiquei sem reação.
A resposta caiu no meu colo de uma maneira muito fácil, sem
que eu precisasse perguntar nada. Ela poderia ter comentado
apenas que minha mãe ficou mais bonita e pronto, obviamente
eu daria um jeitinho de tirar mais informações do motivo para
essa afirmação, mas não precisei. Minha mãe realmente fez
cirurgia, como meu pai me avisou, ele apenas esqueceu de me
contar o principal detalhe: foi um procedimento estético.
Entramos na casa e ela me levou até minha avó que estava
sentada no sofá, ao lado de outra senhora. Estava bem
debilitada, pele e osso, mas com as bochechas coradas e muito
bem cuidada, cheirosa e com batom. Me sentei ao lado,
coloquei minha mão sobre a dela, ela virou para mim e sorriu.
A essência continuava a mesma, me controlei para não a
abraçar e chorar. Vovó estava com Alzheimer num estado já
avançado. Não me reconheceu, mas demonstrou que lembrava
de mim de alguma maneira. A dona estava agachada na nossa
frente e ajudou dizendo: “Ela é a Raquel, sua neta mais nova.
Filha da sua filha que veio te ver na semana passada.”
187
- Ah, sim, é a minha netinha! – respondeu.
Olhou para mim e continuou:
- Você está tão bonita, minha filha!
Falava com dificuldade, mas com a calma que sempre teve.
Em seguida disse para a dona: “Quero ir para o meu quarto
com ela!”. A ajudamos a levantar, meu cliente a segurando de
um lado, eu do outro. Uma enfermeira que estava perto, já
pegou a cadeira de rodas e a colocamos sentada. Chegamos no
quarto que continuava exatamente igual da última vez que fui
quando ainda morava com meus pais. Na cabeceira, o porta-
retrato com a foto dela com meu avô no casamento deles. Um
móvel com as coisinhas dela, alfazema, perfumes, batons e
outros objetos pessoais. Até que notei uma decoração diferente:
um porta-retrato com uma foto do meu sobrinho carregando
um bebê no colo. A dona então comentou: “Sua sobrinha é
linda demais, veio recentemente conhecer a bisa!”.
Em um pouco mais de um ano longe da minha família, me
tornei tia de uma menina e sabia que jamais teria oportunidade
de conhecê-la. A dona saiu do quarto, meu cliente disse:
“Deixarei vocês a sós, aproveite para matar a saudade dela!”.
Não consegui conversar com minha avó como gostaria, não era
possível manter um diálogo, o raciocínio dela não
acompanhava. Me olhava de uma maneira muito carinhosa e
sorria. Ficamos nos olhando por longos minutos. Por duas
vezes ela me perguntou: “Como é o seu nome mesmo?”.
Pegou um dos batons, me entregou e pediu para que eu
passasse nela. Mesmo com todas as questões da saúde frágil,
não deixou de ser vaidosa. Ficamos juntas no quarto por um
pouco mais de meia hora, nosso momento foi interrompido
quando uma enfermeira chegou querendo levá-la para almoçar.
Então fomos até a mesa onde a refeição estava sendo servida.
Ela não conseguia mais se alimentar sozinha, precisava de ajuda,
de alguém que levasse a comida na boca dela com uma colher
188
pequena como se fosse de criança. Perguntei para a enfermeira
que a ajudava se poderia fazer isso e, foi assim que fiz algo por
minha avó pela primeira e última vez: ajudei a se alimentar.
Pode parecer algo bobo, mas para mim, foi importante esse
nosso momento. Queria ter feito mais por ela, muito mais,
queria retribuir todo o carinho que me deu durante minha
infância, então a cada colherada que dei, fui a agradecendo.
Após o almoço, era momento de repouso para todos os idosos.
Assim que minha avó pegou no sono, me agachei ao lado da
cama, agradeci por tudo, dei um beijo na testa e me despedi.
Antes de ir embora, a dona comentou que minha avó não
reconhecia mais ninguém, não lembrava do próprio nome, mas
que todos os dias, falava do meu avô como se ele ainda estive
vivo. Nunca mais fui visitá-la. No ano seguinte, quando liguei
para a clínica em busca de notícias, soube que ela faleceu há três
meses. Pelo menos consegui me despedir dela, não da maneira
como gostaria, mas nosso último encontro foi muito especial.
***
A Gabi decidiu parar de se prostituir, não foi uma notícia que
me surpreendeu, pois desde que nos conhecemos no privê, era
nítido que não gostava e sentia muita vergonha, fazia programas
apenas pelo dinheiro mesmo. Ela não tinha medo apenas que a
família descobrisse, mas que qualquer pessoa, soubesse do
maior segredo dela. No início do ano, se matriculou num curso
de moda para realizar o sonho de ser estilista. A apoiei demais
porque o dom dela era notório, além de ser extremamente
ligada em moda, era muito caprichosa nos desenhos de
figurinos. Enquanto eu comprava revistas para ler as matérias,
ela apenas queria ver as roupas que os artistas estavam usando.
Gabi desenhava um vestido mais lindo do que o outro. Um dia,
a avisei que seria responsável para criar o vestido que eu usaria
em meu casamento. O caminho dela era na moda.
Ela voltou a morar com os pais, começou a trabalhar numa loja
189
de roupas femininas num shopping e o objetivo dela, era
trabalhar para juntar dinheiro enquanto finalizava o curso, para
investir num ateliê. Quando nos encontramos pessoalmente e
ela não estava mais se prostituindo, senti o quanto estava
diferente, parecia uma outra pessoa, leve demais, realizada.
***
Eu não estava preparada para a fama repentina que o blog me
proporcionou, por mais que estivesse aproveitando demais a
oportunidade de ter minha independência financeira de uma
maneira melhor do que imaginei, pois estava ganhando muito
dinheiro e de uma maneira rápida, podendo até inflacionar o
valor do meu cachê se quisesse e, com a certeza de que a
agenda continuaria cheia. Enquanto não quis cobrar a mais para
que homens e mulheres tivessem momentos com a Bruna, eu
como Raquel, estava me cobrando demais, me torturando.
A melhor palavra que me definia era: assustada.
Tudo era novidade para mim, toda a atenção que não tive da
minha família, estava tendo de pessoas que eu nem sabia quem
eram. Bruna Surfistinha se tornou um fenômeno na internet,
estava me tornando a garota de programa mais conhecida do
Brasil. E onde ficava a Raquel, uma menina com 19 anos, no
meio disso tudo?
Me dei conta que iniciei a adolescência com depressão e, estava
finalizando esta fase tão importante da vida, na prostituição.
Sentia como se tivesse pulado esta fase. E alimentar este
sentimento, começou a mexer demais comigo, uma das
consequências disso, é que a solidão começou a me incomodar
e comecei a dar espaço novamente para o vazio que sempre
existiu, mas que nos últimos meses estava o preenchendo com
uma rotina agitada fazendo programas. Estava tapando um
buraco com sexo, dinheiro e fama. Não tinha maturidade
suficiente para saber lidar com tantas coisas acontecendo ao
mesmo tempo e com as mudanças que estavam surgindo.
190
Deveria ter procurado terapia nesta fase para colocar em ordem
a bagunça que estava rolando internamente e ter ajuda para
saber lidar com a fama virtual, pois não estava entendendo o
motivo de estar aumentando cada vez mais. Uma das perguntas
que mais fazia era: “Por que tudo isso está acontecendo
comigo?” e, na sequência, me culpava por estar me
questionando isso, quando deveria apenas agradecer por estar
realizando um objetivo. Queria tanto não depender de cafetão e
ter minha independência financeira e, naquele momento que
havia conquistado tudo isso e mais um pouco, não estava
conseguindo valorizar como deveria. Eu me sabotava demais.
Lembrava das vezes que meu pai me disse que eu não seria
alguém na vida e, agora que estava sendo, não me achava
merecedora. Os conflitos internos mais o fato de não estar
conseguindo lidar com a solidão nem com a fama, se tornaram
um combo perfeito para cair na armadilha de me autodestruir
ao invés de buscar ajuda com terapia. E se não bastasse tudo
isso, o ônus da fama começou a surgir, pois comecei a atrair
pessoas interesseiras e, na minha ânsia de querer ter amigos e
uma vida social normal, fiquei cega e me perdi.
O pior cego é aquele que não quer ver. Descobri o significado
desse dito popular sentindo na pele. Confiei nas pessoas erradas
acreditando que eram pessoas boas que queriam nada mais do
que minha amizade. De repente, me vi cercada por cinco falsos
amigos interesseiros, infelizmente apenas me dei conta disso,
quando já estava no fundo do poço. Quem me procurou e me
incluiu nesta turma foi a Carol, que me conquistou na primeira
conversa que tivemos por telefone, ela era muito simpática,
minha leitora desde o início do blog e garantiu que poderíamos
ganhar dinheiro juntas e sermos muito amigas. Tudo o que
queria. Marcamos uma noite de bebedeira no meu flat, ela levou
duas amigas também garotas de programa e dois amigos gays.
Amei logo de cara meus novos amigos, principalmente os
meninos. Durante o dia, conseguia manter o foco no trabalho.
191
O problema surgiu quando começaram a me convidar para
beber com eles quase todas as noites. Acabei trocando as noites
de swing pela companhia dessa turma animada. Eu estava feliz,
trabalhava bastante durante o dia e tinha amigos que me faziam
relaxar a mente à noite. A cocaína voltou com tudo na minha
vida, não consumia pó há bastante tempo, mas a recaída
quando acontece, vem com força. A mistura que realizava todas
as noites era uma bomba: vodka, maconha e cocaína. Não tinha
como ter um final feliz com isso, mas quem disse que eu estava
preocupada? Queria apenas me divertir com meus amigos.
Numa noite, mostrei para a Carol algumas fotos da Gabi, contei
que era a minha melhor amiga e que só não a convidava para se
divertir com a gente porque além de ser careta e não consumir
nada, morava muito longe. Quando terminou de ver as fotos,
ela me disse: “Que cara de favelada! Você vai ter que se
distanciar dela se quiser ter uma vida de luxo, Bruna.”
Jamais me distanciaria de Gabi. Conversávamos quase todos os
dias, mas omiti dela o que estava acontecendo, não queria que
se preocupasse comigo com o fato de estar cheirando pó.
Os encontros noturnos com minha turma rolavam no flat onde
atendia meus clientes, como fazíamos muito barulho com som
alto e muita conversa, então pelo menos tive o bom senso de
não os levar no qual eu morava. Nem sempre ficávamos a
madrugada toda no apartamento, às vezes era um esquenta para
irmos ao Love Story ou outra balada. Banquei muitos desses
encontros, mas não me importava. Numa das madrugadas que
não saímos do flat, foi quando uma das meninas levou maconha
misturada com cocaína para fumarmos. Era tão forte que todos,
com exceção da Carol, ficaram bem loucos quando o efeito
bateu e foi praticamente imediato porque já estávamos
cheirando pó antes. Acabei tendo uma bad trip, não sei como
começou, acordei no dia seguinte com alguns flashes, a vizinha
da frente me interfonou para saber como eu estava e me relatou
um pouco sobre o que presenciou. O corredor do Treme-treme
192
era grande, seis apartamentos de cada lado. Durante meu surto,
fui ao corredor e comecei a tocar as campainhas, até aí tudo
bem, mas eu dizia aos berros e chorando muito: “Precisamos
nos salvar, eles estão atrás da gente e vão nos matar agora!”.
Segundo a vizinha, repetia esta mesma frase sem parar.
Ninguém conseguia me segurar, eu estava transtornada.
Esse show no corredor não durou muito tempo, no máximo dez
minutos, mas foi o suficiente para assustar quem presenciou.
Me acalmei em relação aos berros, mas continuei chorando
muito e fui levada até a minha cama. Não me lembro de nada
disso. Quando acordei, estava sozinha, não vi meus amigos
indo embora, mas a vizinha me contou que eles foram assim
que ela me levou de volta ao apartamento após o episódio no
corredor. “Foi uma morena alta que disse aos outros que era
melhor te deixar sozinha”. Essa morena era a Carol.
Acordei quando já eram quase 15hs, deixei de atender dois
clientes, na verdade furei porque sequer ouvi o interfone tocar.
Respondi as mensagens deles pedindo desculpas dizendo que
tinha acordado passando muito mal. Com muito sufoco
consegui atender o cliente das 16hs e desmarquei os outros, fui
embora para casa após a conversa com a vizinha. Precisava ver
a Tati, tentar entender o que aconteceu e me recompor, pois
estava me sentindo extremamente fraca e com ressaca moral.
No dia seguinte, depois do passeio com a Tati, fui ao flat para
fazer faxina e arrumar a bagunça que ficou. Encontrei um
pouco de cocaína, cheirei. Consegui atender todos os clientes e
à noite estava novamente reunida com meus cinco amigos.
Com eles, experimentei lança, ácido e ecstasy. Embora soubesse
que precisava me afastar dessa turma o quanto antes porque era
cilada, eu não conseguia. Apesar de tudo, gostava da companhia
deles, dávamos boas risadas e esquecia dos meus conflitos
internos. A certa altura do campeonato, já havia percebido que
as promessas da Carol eram falsas, então não estava mais
esperando nada dela, ela continuava me pedindo dinheiro, cada
193
vez um valor maior e, eu como uma boa trouxa que não sabia
dizer “não”, emprestava. A minha energia estava diminuindo
cada vez mais, acordava todos os dias com ressaca, comecei a
desmarcar vários clientes porque não tinha força e não queria
que a qualidade do meu atendimento caísse, a consequência
disso seria acabar com a minha reputação no Fórum.
Continuava escrevendo e alimentando o blog com textos,
contando sobre o meu dia a dia, obviamente omitindo minhas
noites e vícios. Eu tinha vontade de compartilhar o que estava
acontecendo comigo, poderia ser até um pedido de socorro,
mas tinha medo de perder leitores e destruir a fama virtual,
então fingia que estava tudo bem na minha vida pessoal.
Se eu não conseguia colocar um ponto final nas falsas amizades,
nas noites que me entupia de drogas e bebida, e na situação de
ter me perdido, a vida deu um jeitinho de me mostrar da pior
maneira que eu estava no caminho errado.
Numa noite de sexta-feira, rolaria uma festa chique num
casarão em São Paulo, era aniversário de um amigo da Carol
que eu apenas conhecia por fotos, os convites limitados já
estavam distribuídos, mas ela deu um jeitinho de me incluir na
lista, afinal eu era a Bruna Surfistinha, a garota famosa do blog.
Combinamos o esquenta mais cedo que o horário habitual
porque nos arrumaríamos no flat, um dos meninos faria
maquiagem em nós duas. A festa começaria no final da noite,
mas combinamos que iríamos após às 2hs para chegarmos já no
fervo. Eles chegaram às 20hs como combinamos, logo
iniciamos o esquenta, eu estava louca para cheirar cocaína, tinha
passado o dia todo com vontade, mas estava zerada de pó.
Como estava acordando muito tarde, meu horário de
atendimento diminuiu, comecei a atender às 15hs, que era mais
garantido, pois já tinha cometido deslizes com alguns clientes
por não ter os atendido no horário combinado, um deles
inclusive reclamou no Fórum. Assim que eles chegaram, já
preparamos a primeira rodada de vodka e cocaína. Brindamos.
194
A noite prometia! Estávamos sem limite, aliás, nunca tivemos.
A Carol levou ecstasy para dividirmos antes de irmos para a festa,
quando comentei que nunca tinha experimentado e que estava
com medo de me fazer mal, ela disse que a quantidade seria
pequena para cada um, causaria apenas um efeito leve, então eu
não precisava me preocupar. Confiei mais uma vez.
Quando eram umas 22hs, dei uma segurada na vodka porque já
estava bêbada, mas continuei no pó. Já tinha passado da meia-
noite, estávamos loucos, mas tudo sob controle, o esquenta já
estava acabando. A Carol pegou ecstasy, quando vi o tamanho
duvidei que faria algum efeito, parecia uma balinha inofensiva.
Antes de desistir, ingeri logo com dois golões de vodka.
A bomba estava feita. Achei que o efeito seria imediato e como
não senti nada, então relaxei, continuei bebendo como se não
houvesse o amanhã e realmente quase não houve, por pouco
não rolou um game over para mim.
Enquanto as meninas retocavam a maquiagem no banheiro,
continuei na varanda, até que começou a tocar Charlie Brown Jr
e entrei para dançar na sala. O efeito da balinha bateu
simplesmente do nada e com força. Comecei a sentir meu
coração bater mais forte e foi acelerando cada vez mais, me
sentei no sofá jurando que melhoraria, mas estava piorando.
Senti que estava suando frio e a sensação era que meu coração
explodiria a qualquer momento. Os meninos viram que eu não
estava bem, um deles foi buscar um copo de água, bebi numa
virada só, minha boca estava seca, sem saliva. Eles tentaram me
acalmar, dizendo que o coração disparado era normal.
As vozes ao meu redor foram ficando cada vez mais longe, a
visão foi enfraquecendo, a única coisa que me fazia ter certeza
de estar ainda viva era continuar sentindo o coração bater forte
e acelerado. Meu corpo desligou. Quando acordei, estava no
hospital, com um respirador no rosto, alguns fios presos em
mim e um enfermeiro ao meu lado. Tentei perguntar o que
estava acontecendo, mas não saia voz. Não conseguia controlar
195
o meu corpo. Tive alucinações ou não sei o que pode ter sido,
mas quando estava conseguindo reagir novamente, dando vida
ao corpo, me lembro que tive uma conversa com alguém, era
um homem, não conseguia ver o rosto, apenas parte do corpo
dele, em especial a mão que estava segurando a minha.
Conseguia escutá-lo muito bem, tinha uma voz grave, ouvia as
palavras nitidamente. Ele me disse que por pouco não morri,
pois tive uma overdose. Me questionou se eu tinha noção do
que estava acontecendo comigo e, que a minha sorte era ter
ganhado mais uma chance para continuar vivendo. A última
chance. Em troca dela, tive que prometer que nunca mais usaria
cocaína ou qualquer outra droga ilícita. Se foi um sonho, uma
alucinação, conversa com algum enfermeiro ou qualquer outra
coisa, prometi nunca mais usar. E nunca mais usei.
Tive oportunidades depois disso? Várias! Tive vontade? Muita!
Mas o medo de descumprir a promessa sempre foi maior.
Cuidaram muito bem de mim no hospital, no sábado à noite
estava me sentindo bem melhor, mas não recebi alta, precisei
continuar internada em observação. Conheci uma das
enfermeiras que me socorreu quando cheguei desacordada no
hospital, ela me deu detalhes sobre minha situação de saúde e
contou que fui levada por dois amigos. Perguntei o nome
dessas pessoas que me salvaram. Foi quando soube que a Carol
não foi, ela jamais perderia a festa. Recebi alta no final da tarde
de domingo, teria sido maravilhoso se tivesse ido embora do
hospital acompanhada por alguém que me amasse - da maneira
como este momento foi retratado no filme baseado na minha
vida. No entanto, fui embora sozinha. Cheguei em casa e fui
recebida por minha melhor companhia: a Tati. A carreguei no
colo e abracei com tanta força e amor, quase a esmagando.
O sentimento de saber que sobrevivi e estava de volta no meu
canto de paz, que meus sonhos não foram interrompidos e
tinha novamente uma vida pela frente, foi um alívio gigante!
Chorei tanto tomando banho, mas de gratidão e felicidade!
196
Mandei mensagem para os meninos agradecendo por terem me
levado ao hospital. Contei que estava bem e avisei que resolvi
parar de usar qualquer tipo de droga. O recado foi dado e eles
entenderam. Apenas dei satisfação porque não conseguiria
ignorar o fato de terem me socorrido. Se tivessem me
abandonado no flat, como a Carol fez, a chance de não ter
sobrevivido era grande.
Perdi muito dinheiro, tempo, dignidade, energia e por pouco
não perdi minha vida. Consequências por ter confiado em
pessoas erradas, que nunca foram meus amigos de verdade,
apenas queriam se divertir comigo.
Cada pessoa que consome droga tem seu tempo para chegar ao
fundo do poço, uns demoram mais, outros menos, mas
ninguém sai ileso da dependência química, seja em relação à
saúde, área pessoal ou financeira. Ou tudo isso é destruído ao
mesmo tempo. A conta um dia chega e a gente precisa pagar o
preço. Agradeço por este processo destrutivo ter sido rápido
comigo, pois se minha conta tivesse demorado mais para
chegar, a destruição que me causaria teria sido muito maior.
Não aceito que ninguém fale mal de dependentes químicos
perto de mim, eu os defendo e torço para que consigam se
livrar da dependência enquanto ainda dá tempo, antes da morte.
Quando me tornar psicóloga quero fazer algum trabalho social
com dependentes, eles precisam de alguém que os enxerguem e
que os ajudem sem julgamentos.
O vício não deixa de existir, eu sei que o meu está adormecido
aqui, mas nunca mais vou despertá-lo, não tenho mais motivos
para isso. Tenho amigos que fumam maconha, adoro o cheiro,
eles não me oferecem porque sabem que não posso mais e me
respeitam. Após o susto da segunda quase morte e o retorno
para casa, precisei de alguns dias para me recompor antes de
voltar a trabalhar, desmarquei todos os programas que já tinha
agendado justificando problemas de saúde e desliguei o celular.
197
Eu estava acabada, sem um pingo de autoestima, me olhava no
espelho e não me reconhecia, me sentia a mulher mais feia do
mundo. Foi mais um recomeço na minha vida em todos os
sentidos, incluindo financeiramente, pois precisava resolver o
arrombo que Carol deixou na minha conta bancária.
Na quinta-feira, já estava entediada de ficar em casa, sentindo
falta de um dia agitado com programas, então decidi que já
estava no momento de retomar os atendimentos. Mas como
voltar a ficar nua diante um homem se estava me sentindo a
mulher mais feia do mundo? Estava sem coragem de continuar
cobrando o mesmo valor: “Não tô valendo mais isso!”- pensei.
Fiquei nesse dilema. Fui ao flat porque imaginava que estaria
uma bagunça enorme, precisava deixá-lo em ordem antes de
voltar a marcar os programas. Quando entrei no apartamento,
tive uma sensação horrível, senti falta de ar, a energia estava
pesadíssima. Não consegui ficar lá dentro por muito tempo.
Em poucos minutos, decidi que não poderia mais continuar ali,
era um lugar que não me pertencia mais, pois além da energia
densa, me traria lembranças de uma fase que precisava deixar
no passado. Precisava mudar de ares e como faltavam poucos
dias para virar o mês do pagamento do próximo aluguel, resolvi
abandonar e não esperar. Mandei mensagem para a proprietária
avisando que estava desocupando o apartamento e entrei em
contato com uma diarista e marquei faxina para o dia seguinte.
Tirei apenas o lixo para não deixar vestígios de drogas.
Ainda bem que não tinha muitos pertences, apenas alguns
objetos de decoração, estoque de camisinhas, algumas toalhas e
roupas de cama porque a maior parte estava na lavanderia,
algumas coisas na geladeira e produtos de higiene no banheiro.
Eu adorava aquele apartamento, mas não conseguiria mais ficar
nele. Peguei minhas coisas, tranquei a porta e encerrei um ciclo.
Voltei para casa aliviada ao mesmo tempo me sentindo ainda
mais confusa. Não tinha autoestima e sem um flat para atender.
Sentei no sofá e fiquei pensando em alguma uma solução.
198
Lembrei que uma garota que conheci na Michigan comentou
que trabalhou num privê onde o programa custava R$ 20, mas
mesmo sendo um valor tão baixo, conseguiu juntar uma boa
quantia para investir. Contou que ficava perto do aeroporto de
Congonhas, pesquisei no Yahoo e encontrei o endereço.
“É para lá que vou, pois R$ 20 estou valendo ainda!” – pensei.
Foi uma decisão bem difícil e triste, estava voltando várias casas
no jogo da vida. Precisei engolir meu orgulho e, engavetar
minha meta financeira, sabendo que demoraria muito mais para
atingir meu objetivo ganhando apenas R$ 10 por atendimento.
Era a única solução imediata que encontrei para voltar a
trabalhar sem ter um pingo de autoestima e amor próprio.
***
Cheguei ao ‘vintão’ no dia seguinte da minha decisão, com a
cara e toda coragem que ainda existia em mim. Assim que
entrei, me deparei com uma sala cheia de clientes, até me
assustei, nunca havia visto tantos seres do sexo masculino
dividindo poucos metros quadrados de espaço. A gerente me
levou para a cozinha que, ficava depois da sala principal, onde
estava a aglomeração de machos. Ela me perguntou se eu tinha
certeza mesmo que queria trabalhar lá, respondi que sim e então
me levou para apresentar a casa que era um sobrado antigo.
Tudo era um horror, nada salvava, não existia o mínimo de
conforto. Paredes com a pintura toda descascada e com
infiltrações enormes, quadros aleatórios acho que dos anos 50
com as imagens tão desgastadas que pareciam borrões, os sofás
onde os clientes se sentavam, tinham mais espuma aparente do
que tecido. Subimos a escada de madeira que fazia barulho de
estalo em todos os degraus. No segundo andar, ficavam os
pequenos espaços para fazer sexo, não existia cama, era um
colchão fino de solteiro surrado no chão com lençol que, só
Deus sabe há quanto tempo não era lavado.

199
A maioria dos espaços não tinha janela. Entendi que um dia,
existiram quartos, mas foram divididos em pequenas áreas
separadas por tapumes que ameaçavam cair a qualquer
momento. Havia um único banheiro no final do corredor, que
estava com o chão alagado. Me senti num filme de terror e tive
vontade de sair correndo dali e fugir para as montanhas.
Acabei ficando e encarando essa experiência como um desafio
já que na minha cabeça, continuava o pensamento que nenhum
homem pagaria mais do que vinte reais para mim.
Quando estávamos voltando à cozinha, passamos na sala e um
homem chamou a gerente, perguntou algo com a voz baixa, em
seguida ela me disse: “Ele quer você!”. Olhei para o moço e o
máximo que consegui fazer foi dar um sorrisinho falso, pois
estava assustada com tanta precariedade num mesmo lugar.
E para o meu desespero, ele era o próximo da fila, ou seja, não
tive tempo de fumar um cigarro para refletir o que estava
fazendo com a minha vida. Resolvi encarar aquilo tudo como
uma maneira de me machucar, me castigar. Troquei de roupa,
peguei a necessaire, a gerente me entregou as toalhas que duvidei
estarem limpas. Não sabia o que era pior: ficar sem tomar
banho entre os programas ou usar aquelas toalhas surradas.
Resolvi não tomar banho naquele lugar. Me julgue.
Fui até o cliente e subimos, apenas dois espaços estavam
disponíveis, escolhi o menos ruim. Me senti num cativeiro.
O programa significava uma rapidinha. A gerente me explicou
que os clientes sabiam que por vintão, apenas dava o direito de
gozar uma vez. E o limite de tempo permitido eram quinze
minutinhos, os que tinham ejaculação retardada não poderiam
abusar da boa vontade da garota em troca de vinte reais.
A partir do primeiro programa, criei condições aos clientes:
`1 – Papai e mamãe? Esquece! Jamais me deitaria em qualquer
lençol dali. Como tinha decidido não tomar banho entre os
programas, quanto menos contato físico era melhor. Então ia
para cima do cliente na posição de cavalgar, me encaixava e
200
fazia agachamentos na velocidade 10, apenas meus pés ficavam
em contato com o colchão. Foi a melhor estratégia porque além
da falta de contato físico, os clientes gozavam rapidamente com
esta posição e, por fim, era um exercício maravilhoso para as
pernas. Academia para quê?
2 – Beijo? Esquece! Não beijava nem os clientes do flat.
3 – Anal? Esquece ainda mais! Jamais sentiria dor em troca de
dez contos.
4 – Sexo oral em mim? Também não rolava, pois me obrigaria a
tomar banho depois.
Me tornei puta exigente, mas não chata. Não avisava os clientes
sobre estas regras. Conseguia agir sem precisar dizer nada.
Mesmo não fazendo um programa decente porque o ambiente
e o valor não me permitiam, percebia que os clientes saiam
satisfeitos com o pouco que recebiam de mim.
Quando desci as escadas com o primeiro cliente, soube que
mais dois estavam me aguardando, estavam lá quando cheguei.
E assim, meu primeiro dia de vintão foi nível hard, um
programa atrás do outro, não tive nenhuma pausa. Mesmo
assim, não foi o suficiente para recuperar minha autoestima.
No primeiro dia, atendi 17 clientes, cheguei em casa morta de
cansaço, fui direto para o banho e esfreguei meu corpo várias
vezes até sair toda a sensação de estar suja. Se tivesse banheira,
teria ficado de molho por horas. Voltei no dia seguinte, cheguei
mais cedo e fui embora após atingir vinte atendimentos.
Pelo menos duzentinhos reais por dia, eram garantidos.
No terceiro dia, dois clientes que tinham feito programa comigo
no primeiro dia, voltaram. Quando descia a escada, sempre
havia pelo menos um homem me esperando, não conseguia
chegar na cozinha. Descia com um, subia com outro.
Até que no quarto dia, formou-se uma fila, nunca vou me
esquecer quando estava quase chegando na escada para descer,
a gerente subiu correndo e me disse: “Bruna, nem sei como te
dizer, mas tem uma fila de homens te esperando, melhor você
201
não aparecer mais na sala para a fila não aumentar, vamos fazer
assim, quando o cliente estiver descendo para ir embora, você
me avisa daqui de cima e eu já peço para o próximo subir”.
- Pode chamar o próximo!!! – eu dizia na beirada da escada.
E assim, surgiu a famosa frase do filme Bruna Surfistinha:
“Hoje eu não vou dar, eu vou distribuir!”
Na tarde seguinte, fui surpreendida por um cliente que atendi
no dia anterior. Vou chamá-lo de Bigodinho. Conversamos um
pouco antes de começarmos o programa:
- Que sucesso hein, Bruna! Voltei hoje porque sinto que você
não ficará trabalhando aqui por muito tempo, seu lugar não é
aqui. Então quero aproveitar mais um pouco.
- Pois é! Está bem puxado atender um após o outro, não tenho
tempo nem para fumar um cigarro para relaxar.
- Você fuma? Nem parece! Qual cigarro?
- Marlboro vermelho.
Assunto encerrado. Iniciamos o programa, cumpri minha
missão, ele foi embora dizendo que voltaria no dia seguinte.
No final da tarde, estava atendendo a fila, eu e a gerente naquele
esquema de: “Pode mandar o próximo!”, tudo indo muito bem
na medida do possível, eis que o próximo é o Bigodinho!
- Nossa! Você disse que voltaria amanhã e voltou hoje?
- Vamos ver se tem algum quartinho com janela disponível, se
não tiver, a gente espera vagar.
Não entendi. Por sorte, tinha um com janela e entramos.
Quando comecei a tirar minha roupa, ele avisou que não
precisava e me entregou um pacotinho. Quando abri, vi um
maço de Marlboro e um isqueiro. Não acreditei!
“Voltei apenas para você fumar com calma, prometo ficar
quieto, fume quantos quiser!” - me disse.
Continuei não acreditando que ele havia feito isso por mim.
202
Fiquei tão sem reação que não sabia o que dizer além de
agradecer. Fumei dois cigarros tranquilamente na janela,
enquanto observava aviões chegando ou partindo do aeroporto.
Bigodinho pediu para que eu deixasse o maço e o isqueiro na
necessaire, pois no dia seguinte, gostaria de me ver fumar
novamente, no tempo que sobrasse após o sexo.
Aguentei apenas mais dois dias no vintão, cheguei no meu
limite de cansaço físico e mental, minha autoestima estava
começando a surgir novamente e tirei da cabeça de que valia
apenas vintão. Além disso, meu celular estava cheio de
mensagens e ligações perdidas de homens querendo marcar
programa comigo no flat. Eu havia sumido do mundo.
Ter trabalhado no vintão foi uma experiência e tanto, não tenho
vergonha de contar que cheguei neste ponto, é um lugar que fez
parte da minha trajetória. Foi uma passagem importante para
mim, precisei estar lá para me resgatar e voltar a me valorizar.
O perfil dos homens que frequentam um vintão é obviamente
de um nível social mais baixo, mas não me importei com isso.
O único problema era o local ser precário demais com higiene e
aconchego. Não enfrentei nenhuma situação delicada, muito
pelo contrário, ninguém me desrespeitou. As piores situações
que enfrentei na prostituição, foram com homens ricos.
Ainda bem que não fui descoberta por nenhum cliente que
relatava programas no Fórum, ninguém entenderia por que a
garota que estava famosa com o blog, foi parar no vintão.
No dia seguinte que dei adeus à frase “pode mandar o
próximo!”, fui ao salão para retocar as luzes no cabelo e dar um
trato geral em mim, bem dia de princesa. Voltei para casa me
sentindo gata. Resolvi alugar um outro apartamento no Treme-
Treme para retomar os atendimentos. Na tarde seguinte, fui
resolver isso, missão concluída com sucesso, voltei para casa
caminhando, vi um prédio que chamou minha atenção, na
Avenida Moema, uma travessa da famosa Avenida Ibirapuera.
203
Pelo estilo, percebi que era um flat chique, entrei na recepção
para pedir informações, tinham alguns apartamentos
disponíveis e, como as chaves estavam com o gerente, acabei
aproveitando para conhecê-los. Todos os apartamentos eram
duplex, a suíte ficava em cima e, embaixo havia uma cozinha
americana, lavabo e a sala. Fiquei encantada por um deles,
peguei o contato da imobiliária. Continuei a caminhada me
imaginando morando ali, a diferença de aluguel não era tão
grande. Por quase duzentos reais a mais, eu teria um canto
muito mais bonito e maior, num condomínio com piscina e
academia, e com uma localização bem melhor. Fora a economia
que faria com táxi, pois de um flat ao outro era um trajeto de no
máximo quinze minutos a pé. Perfeito!
Seria ali meu destino para recomeçar minha vida, mais uma vez.
Assim que cheguei em casa, liguei para a imobiliária, avisando
que tinha interesse em alugar o apartamento 108, perguntei o
que precisava. Fiz um seguro fiança, apresentei meus
documentos e fui aprovada, em dois dias fui buscar a chave.
Novamente estava me sentindo realizada, essa nova moradia foi
um presente que dei para mim mesma. A Tati amou a nova
casa, tinha mais espaço para brincar e uma varanda maior para
se refrescar em dias quentes. Chorei de emoção na manhã que
realizei a mudança, quando a ficha caiu e me dei conta que tudo
estava voltando ao normal novamente. Rescindi o contrato do
outro apartamento sem dor de cabeça, tudo deu certo.
O blog estava abandonado, reapareci do nada, sem dar
explicações, apenas anunciei o retorno da Bruna Surfistinha e
avisei que a agenda estava liberada novamente.
Voltei com tudo, consegui recuperar o tempo perdido e tive
novamente o prazer de ver minha agenda lotada de programas.
Comecei a terapia, voltei a cuidar de mim, minha autoestima
estava melhorando, aos poucos fui me resgatando.
Me matriculei numa auto escola próxima para tirar meu CNH,
estava novamente com brilho no olhar e com muita vontade de
viver, nada mais poderia me atrapalhar! Nada!
204
Liguei para a Gabi porque não conversávamos há dias,
simplesmente sumi. Fiz um resumo do que aconteceu comigo e
ela me contou que pediu demissão porque não estava
conseguindo conciliar o ritmo puxado de trabalhar em loja de
shopping com os estudos no curso de moda e, que estava
desesperada para encontrar um outro emprego logo, pois não
conseguia pensar na possibilidade de voltar a fazer programas.
Enquanto a escutava, comecei a pensar como poderia ajudá-la e
tive uma ideia. A convidei para me ajudar a marcar os
programas e organizar minha agenda, atendendo as ligações e
respondendo as mensagens dos clientes, em troca eu pagaria
10% do meu faturamento. Ela topou sem pensar duas vezes.
Combinamos os detalhes, chegamos num acordo comum.
Gabi se tornou minha secretária. Algumas pessoas já tinham
comentado que nossas vozes são parecidas e de fato, se algum
cliente desconfiou não estar falando comigo por telefone, não
comentou nada. Nossa parceria de trabalho foi um sucesso.
Morar com ela foi a melhor coisa que poderia acontecer comigo
naquele momento de vida, não me sentia sozinha, voltei a ter
disciplina e a manter uma rotina de trabalho. Meu horário de
atendimento mudou novamente: das 10hs às 22hs com uma
hora de pausa para almoçar e descansar. Eu ia todas as manhãs
ao Treme-treme e ela ficava em casa atenta ao celular para falar
com os clientes. Comprei outro aparelho para conseguirmos
nos comunicar entre os programas para não termos problemas.
Eu trabalhava despreocupada sabendo que a Tati não ficava
mais tanto tempo sozinha. Quando algum cliente desmarcava o
programa, ela já dava um jeito de encaixar outro no lugar.
Com nossa parceria maravilhosa de trabalho, conseguíamos
bater com facilidade nossa meta de 8 programas por dia.
Quando eu tinha algum compromisso pessoal na parte da
manhã como consulta médica, aula na auto escola ou qualquer
outra coisa, recompensávamos marcando programa até à meia-
noite, então ela conseguia organizar perfeitamente minha vida
pessoal com a profissional, era o meu braço direito.
205
No final da tarde de sexta-feira, Gabi ia para a casa dos pais
para passar o final de semana com eles e voltava no domingo à
noite. Para mim era ótimo porque aproveitava para descansar e
aproveitar meu cantinho de paz com minha própria companhia.
***
Estávamos na segunda quinzena de agosto quando a Gabi me
acordou de uma maneira que me assustou, achei que tivesse
acontecido algo grave. Ela me contou que um jornalista do Rio
de Janeiro entrou em contato querendo me entrevistar para
uma matéria que estava escrevendo sobre garotas de programa
que usavam a internet como ferramenta de trabalho.
- Como assim, Gabi??? Deve ser trote, não é possível!
- Também acho que é, mas e aí? Respondo o quê? Eu disse que
precisava pensar, então ele vai ligar daqui a pouco querendo a
resposta. Avisou que a entrevista será por telefone.
– Então combine com ele, se for trote realmente, a única coisa
que perderei será meu tempo.
Eles marcaram para a manhã do dia seguinte. Quando o horário
combinado estava chegando, comecei a sentir frio na barriga.
Atendi a ligação sem grandes expectativas, ele me tratou super
bem, extremamente educado, começou a me fazer as perguntas,
respondi todas levando a sério, mas com um pé atrás e ainda
pensando na possibilidade de ser um trote. No final, me passou
o endereço do site para que eu conferisse a matéria que já seria
publicada no dia seguinte. E não é que era verdade mesmo?
Pedro Dória é o jornalista que me notou e foi o primeiro a me
entrevistar. A matéria foi publicada no site dele, ‘No mínimo’, o
resultado ficou incrível, li e reli várias vezes para ter certeza que
era algo real. Minha vida se transformou. A repercussão da
entrevista foi imediata, o telefone não parava de tocar, a Gabi
pirou com tantas ligações. Eram homens querendo marcar
programa, alguns curiosos de plantão e outros jornalistas.

206
Em menos de uma hora, Gabi marcou duas entrevistas, uma
para a revista Época e a outra para o programa ‘Superpop’,
apresentado por Luciana Gimenez. Em agosto de 2004, iniciei
meus cinco minutos de fama. Conseguimos conciliar na agenda
a novidade que surgiu da noite para o dia: entrevistas.
Meu blog bombou de visitas, tivemos que mudar de servidor
porque o qual estava hospedado, não deu conta do recado.
No primeiro mês, após a entrevista com o Pedro Dória, recebi
mais de 500 mil visitas, esse número naquela época, era surreal.
Eu e a Gabi começamos rir à toa!
***
Um dia, a senhora que fazia faxina uma vez por semana nos
dois apartamentos, perguntou se eu queria um filhote de gato,
pois a cunhada estava doando os que nasceram da gata que
adotou. Achei interessante, sempre gostei de felinos e sentia
falta da gatinha que tive na adolescência, na casa dos meus pais.
Decidi ficar com um filhote desde que fosse uma fêmea.
E assim, a Duda, minha bolinha de pelos brancos que parecia
um algodãozinho chegou na minha vida. A Tati a adotou como
se fosse filha, não brincavam, mas sempre estavam juntas,
provando que existe amor entre caninos e felinos. Duda era
meu grude, quando eu estava em casa, não saia do meu colo.
***
Após ter passado na avaliação teórica do Detran, fui reprovada
no exame prático. Estava indo tudo muito bem até chegar o
momento da baliza, fiquei tão tensa que deixei o carro morrer
na primeira tentativa, o moço que estava me avaliando, me
acalmou e pediu para que eu tentasse mais uma vez, o carro
morreu novamente. Ele pediu para que eu concluísse o trajeto,
mas me avisou que estava reprovada. Sempre tive pavor com
baliza, suava frio, queria chorar. Apenas consegui tirar meu tão
sonhado CNH na quarta tentativa, eu tentaria até conseguir.

207
Quanto ao plano de concluir o Ensino Médio no supletivo, não
consegui realizar, pois precisava de mais tempo para poder me
dedicar, não queria fazer de qualquer jeito, apenas para concluir.
***
Em 2004, passei o Natal novamente na casa dos pais da Gabi e
o Réveillon, passei com a Tati e a Duda em casa. Depois da
experiência que tive no ano anterior, achei melhor não ter uma
companhia humana aleatória. Criei um momento especial para
mim, encomendei numa pâtisserie uma porção generosa de
massa recheada com nozes estupidamente deliciosa e uma
travessa de tiramissu de sobremesa. E comprei uma garrafa de
Chandon para estourar e beber na virada. Brindei comigo
mesma. Fiz minha própria festinha, ouvindo músicas que me
faziam bem, uma em especial, deixei tocar várias vezes e
marcou demais esta noite: Beautiful, do Snoop Dogg.
Fiz uma retrospectiva do ano que quase morri e que deixei de
ser anônima. Foi o ano que aprendi o que é derrota e vitória, da
maneira mais intensa possível.
***

Ano de 2005
Durante minha comemoração particular no Réveillon, não me
diverti apenas, mas também refleti demais. Definitivamente, eu
estava cansada de me prostituir, os dois anos e alguns meses
foram muito intensos, já tinha vivido experiências das mais
variadas possíveis, fiz coisas que jamais imaginei que fossem
possíveis, caí em todas as armadilhas que surgiram no meu
caminho, já tinha feito sexo suficiente para essa vida e para as
próximas encarnações, matei todas minhas curiosidades, me
entreguei de corpo e alma em todas fases e momentos.
Quem está na chuva, é para se molhar? Pois eu me encharquei.

208
Com 20 anos, já me sentia uma outra pessoa, com mais
maturidade do que aquela menina que fui aos dezessete anos,
medrosa e corajosa ao mesmo tempo, dona de si que escolheu
o próprio destino na prostituição. Sabia que não seria fácil, mas
não imaginava que seria um caminho tão desafiador.
Desde o primeiro dia, quando cheguei no privê, sabia que não
me prostituiria por tanto tempo, imaginei que seriam cinco ou
seis anos, não mais do que isso. Aguentei apenas a metade.
Iniciei 2005 decidida e determinada que seria meu último ano
na prostituição. Aproveitaria o máximo que pudesse aqueles
cinco minutos de fama na mídia e o sucesso no Fórum e do
blog. Seria um ano de despedida, então precisava abusar da boa
vontade do meu corpinho por mais alguns meses.
Comecei a planejar minha vida fora da prostituição e precisei
considerar o fato de que não teria uma fonte de renda por
tempo indeterminado, até resolver o que faria da minha vida.
Precisava parar de me prostituir tendo uma reserva financeira
suficiente para me manter por pelo menos seis meses após
minha aposentadoria. Fiz uma planilha listando todas as
despesas básicas mensais e multipliquei por seis meses para ter
uma ideia da quantia que precisava guardar. Este período
semestral seria o meu limite para decidir qual seria meu novo
destino na vida profissional. Após muitas contas, cheguei a um
valor, então dividi pelo lucro que tinha com cada programa para
descobrir quantos atendimentos precisaria realizar para bater
minha meta financeira. Além do pé-de-meia, também precisei
considerar as despesas que continuariam existindo durante os
próximos meses na prostituição. Precisava seguir a razão, então
resolvi cortar gastos, o primeiro corte foi o aluguel do flat no
Treme-treme. Janeiro foi o último mês que me proporcionei o
privilégio e o prazer de ter o meu cantinho de paz, sem misturar
com a energia dos programas, mas era por um ótimo motivo.
Meu único plano e desejo de 2005 era me aposentar na
prostituição com dignidade, não queria mais nada além disso.
209
O ano estava apenas começando, mas sentia que seria
transformador e que tudo daria certo. Avisei no blog sobre esta
minha decisão, comuniquei que seria o último ano que faria
programas, então pedi para que aproveitassem. O recado foi
dado, sei que muitas pessoas pensaram fosse apenas marketing.
***
No primeiro sábado do ano, fui à Blockbuster para alugar
alguns filmes, passei o final de semana os assistindo em paz.
Um deles em especial, mexeu demais comigo, de tal maneira
que se tornou um dos filmes da minha vida, estou falando do
‘A vida é bela’. Já assisti tantas vezes que perdi as contas, choro
sempre nas mesmas cenas e nunca me cansarei de ver.
Quando coloco algo na cabeça, não sossego enquanto não
consigo realizar, numa tarde fui ao shopping decidida a comprar
o DVD desse filme. Fui em todas as lojas possíveis e não
encontrei, voltei para casa e pesquisei na internet, mas também
não achei para comprar. Comentei no blog tanto sobre o filme,
como por minha busca querendo muito comprá-lo. Pois bem.
Na semana seguinte, se não me engano na quarta-feira, pedi
para a Gabi fechar minha agenda de atendimentos às 17hs e que
desmarcasse os que aconteceriam à noite, pois acordei bem
indisposta, mesmo assim fiz questão de ir ao flat para atender os
clientes que já haviam marcado no período da tarde.
Quando o cliente das 16hs foi embora, eu já não aguentava
mais a dor da cólica menstrual, tudo o que queria era que o
próximo cliente tivesse desistido para que eu pudesse ir para
casa, tomar remédio e dormir. Às 17hs em ponto, o interfone
tocou, me sentei no sofá desesperada sem saber o que fazer.
Para piorar, acabou a bateria do meu celular e tinha esquecido o
carregador em casa, então estava incomunicável com a Gabi há
mais de uma hora. O interfone tocava sem parar e eu estava
paralisada no sofá. Eu tinha duas opções: pedir para o cliente
subir e ser sincera ao avisar que não tinha condições físicas de
fazer sexo por conta da cólica e por fim, pedir que remarcasse.
210
Ou deixar que o interfone continuasse tocando até que o cliente
desistisse e fosse embora. De qualquer maneira, em qualquer
das opções que escolhesse seguir, o cliente ficaria puto comigo.
O interfone parou de tocar após a terceira ou quarta tentativa,
eu continuava imóvel no sofá. Pensei em esperar um tempo
antes de ir para casa para não correr o risco de encontrar com o
cliente, eu não saberia quem ele era, mas poderia acontecer dele
me reconhecer na rua. Levantei do sofá e com esforço, comecei
a organizar o apartamento para deixá-lo em ordem para a
manhã seguinte. Quando estava terminando de limpar o
banheiro, o interfone tocou novamente. Olhei no relógio da
cozinha e eram 17h45, resolvi atender para saber o que era,
jurava que não fosse o cliente, afinal já completaria uma hora
que ele estaria me esperando. E não é que era?
Respirei fundo e pedi para que o porteiro avisasse que poderia
subir. Meu pensamento foi: “Coitado, me esperou tanto tempo,
não posso mandá-lo ir embora agora, me viro com a dor”.
Foi uma daquelas situações que acontecem e que a gente não
consegue explicar, mas quando é para ser, a vida dá um jeitinho
de fazer acontecer, não conseguimos escapar. Quando o cliente
entrou no apartamento, pedi desculpas pelo atraso, não
comentei sobre a dor, apenas que tinha me enrolado com o
tempo. Ele me entregou uma sacolinha e disse: “Tentei
comprar o DVD do filme e também não encontrei, mas vi esse
livro e resolvi trazer para você. Também comprei bombons,
mas acabei comendo enquanto te esperava lá embaixo!”.
O livro chama ‘A vida é bela’ com apenas frases motivacionais.
Achei a atitude muito fofa e me senti mal por tê-lo feito esperar
tanto tempo propositalmente para que fosse embora. Comentei
que achava que desistiria de me esperar, ele disse que estava
indo embora, mas resolveu dar a última chance. O nosso
encontro não foi por acaso, ainda bem que me esperou e que
atendi o interfone. Estava um climão porque apesar dele ter um
jeito engraçado e bem humorado, percebi que estava puto.
211
O dia estava bem quente e ele vestido com terno, então pediu
para tomar banho. Enfim, fomos ao quarto e iniciamos o
programa, estava indo tudo muito bem até que no meio da
performance, sentimos um tranco na cama acompanhado por
um barulhão. O estrado quebrou. Rimos muito da situação.
Depois que cumpri minha missão, deitei ao lado dele que,
estava mais relaxado e já demonstrava ter me perdoado do
atraso, começamos a conversar. Me contou que era a primeira
vez que procurava uma garota de programa, por isso insistiu
tanto em me esperar porque não estava acreditando que,
quando resolveu ter coragem de marcar um programa, não daria
certo. E que comeu os bombons para controlar a ansiedade.
Comentou que era leitor assíduo do meu blog, fez alguns
comentários bem engraçados sobre meus textos e depois
iniciou um breve resumo sobre quem era: tinha 29 anos,
advogado, casado, pai de duas meninas pequenas, morava em
Moema desde bebê. E finalizou me contando uma história
triste, pois havia perdido um irmão há menos de um mês que
não conseguiu vencer o câncer no pulmão, pois quando
descobriu já era tarde demais. Me contou sobre os últimos
meses de vida do irmão, da tentativa de cirurgia, de quando os
médicos chamaram a família para avisar que não tinha mais o
que ser feito a não ser esperar a morte que, infelizmente,
aconteceu um dia antes do Natal. Ouvi tudo atentamente,
percebendo que ele precisava compartilhar isso com alguém
que não fizesse parte da vida dele, externando a dor que estava
sentindo. Depois do desabafo, finalizou me dizendo:
“Não sei por qual motivo te contei tudo isso, me desculpe!
Nunca fui boa de consolar quem perdeu algum ente querido,
não me lembro o que falei para ele, mas o abracei com carinho.
Não rolou mais sexo, encerramos o tempo do programa com a
conversa. O programa não foi com a qualidade que eu exigia de
mim, ele merecia um encontro muito melhor por vários
motivos, principalmente por ter me esperado por tanto tempo.
212
Achei que a realidade acabou sendo bem diferente da
expectativa que teve por mim, tanto para me conhecer
pessoalmente, como por ter sido a primeira vez dele com uma
prostituta. Por conta disso tudo, eu tinha certeza de que não
marcaria outro programa comigo e que não mais nos veríamos.
Nos vimos sim. E muito.
Ele era o João, com quem fiquei casada por dez anos.
***
Cumpri com a decisão de parar de alugar um flat apenas para
atender os clientes, comecei a trabalhar então no qual morava.
Durante os atendimentos, a Gabi ficava quietinha na sala,
ouvindo tudo que estava rolando no quarto: conversas e
gemidos. Quando o cliente ligava ou mandava mensagem para
marcar o programa, ela avisava que eu estava com uma amiga
em casa e perguntava se sentiria incomodado com a presença de
outra pessoa, se respondesse que sim, então ela saia de casa,
mas foram pouquíssimas vezes que isso aconteceu.
O apartamento era um duplex, com a suíte no andar de cima,
formando então um mezanino com um vão que era possível ver
do quarto, uma boa parte da sala e a cozinha. Ficava no
primeiro andar do prédio, na parte dos fundos e não com a
vista para a rua. Embaixo do apartamento, tinha um espaço que
fazia parte do condomínio que, quando fui morar ali, era onde
funcionava o restaurante do flat que também era aberto ao
público, mas no final do ano, acabou sendo alugado para uma
gráfica muito conhecida na região. A visão da varanda, era o
estacionamento da gráfica, um espaço aberto para os carros.
Abaixo da varanda havia uma pequena construção com uma
porta que armazenava uma máquina ou algo do tipo, pois
presenciei várias vezes algum funcionário agachado, mexendo
em algo. Se eu quisesse, poderia sair de casa por ali, me
pendurando e mirando cair em pé nesta construção, pois a
altura da queda era bem pequena e, aparentemente, seria fácil
realizar esta aventura, caso tivesse vontade.
213
Sempre dormíamos com a porta da varanda aberta, caso a Tati
quisesse fazer necessidades no meio da madrugada, deixávamos
apenas a cortina fechada. Numa manhã, quando estava
começando a clarear o dia, acordei com a Tati em pé na parede
baixa do quarto, olhando para a sala, latindo muito. Dei bronca
nela, fechei os olhos para voltar a dormir, mas ela continuou
latindo com mais força. Nunca tinha a visto latir daquela
maneira, parecia que queria dizer algo. E realmente queria.
Me levantei para entender o motivo daqueles latidos, assim que
olhei para baixo, vi um homem de costas, saindo pela cortina,
indo para a varanda. Meu coração disparou, sem pensar em
nada, agarrei a Tati num braço, peguei meu celular em cima do
criado-mudo, acordei com um chacoalhão a Gabi que dormia
ao meu lado na cama e sequer tinha acordado com os latidos,
agarrei a Duda no outro braço e levei todas ao banheiro.
Nem eu acreditei como consegui agir de uma maneira tão
rápida. Liguei na recepção, quando me atenderam, apenas
consegui dizer: “Tem um homem aqui no apartamento, pede
para alguém subir rápido, estamos no banheiro do quarto!”
Para a nossa sorte, havia a chave-mestra que as arrumadeiras
usavam para entrar e limpar os apartamentos. Ouvimos quando
abriram a porta principal e escutamos vozes dos funcionários
que foram nos socorrer, um deles subiu a escada, bateu na porta
e disse que poderíamos sair do banheiro, que estava tudo bem e
que não tinha ninguém além deles. Repeti que tinha certeza de
ter visto alguém saindo pela varanda. Ele me respondeu irônico:
“Você deve ter sonhado, Raquel!".
Ahhh, se tem algo que me tira do sério é quando duvidam de
mim, fazendo me sentir louca. Descemos e fomos na varanda.
Foi quando a Gabi apontou para um ponto do estacionamento
e disse: “Olha, é a sua bolsa, Bruna!”. Eu tremia de nervoso.
Estávamos com pijama, era notório que eram roupas de dormir,
mas não nos importamos. Descemos para buscar a bolsa. Ainda
bem que guardava o dinheiro dos programas em uma gaveta.
214
No entanto, sempre tive o costume de deixar mais ou menos
R$ 150 na carteira que foram levados pelo homem, assim como
levou meu talão de cheques e o cartão do banco.
Bom, o prejuízo poderia ter sido maior. Naquela época, já tinha
me desfeito do PC trambolho e comprado um notebook que
costumava ficar em cima da mesa da sala durante o dia, mas à
noite o deixava no quarto. Se estivesse na mesa, tenho certeza
de que teria o levado. Mas mais do que isso, o que importava
foi o fato dele não ter subido ao quarto e feito algo conosco.
Câmeras de segurança registravam tanto a entrada como a área
do estacionamento, então conseguimos ver as imagens e toda a
ação do sujeito, como estava usando boné, não conseguimos
ver o rosto com nitidez. Nunca soube quem foi. Seria já ônus
da fama? Algum cliente foi mandante deste furto? Ou foi uma
coincidência do acaso pelo simples fato da minha varanda ter
fácil acesso? Será que o meliante voltaria novamente?
A falta dessas respostas gerou um grande medo em nós duas.
Não sabíamos o que fazer. Enquanto tomávamos café, pensei
no João, já estávamos bem íntimos, pois após o primeiro
programa no início do ano, ele já tinha ido outras duas vezes,
ou seja, uma vez por semana. Continuávamos do mesmo jeito:
conversando mais do que fazendo sexo. Ele já tinha me dado
abertura para que o procurasse caso precisasse de qualquer tipo
de ajuda. Mandei mensagem contando o que aconteceu, em
poucos minutos, me ligou e perguntou se eu teria programa às
10hs, falei que não e ele disse que então daria um pulo lá.
Chegou com uma sacolinha e ferramentas, dizendo que a única
solução imediata que havia pensado era colocar um trinco com
corrente na porta da varanda, na parte de dentro. Não era a
melhor segurança possível, mas pelo menos seria difícil alguém
conseguir abrir a porta estando na varanda. E nos fez prometer
que não dormiríamos mais com ela aberta. Ficamos admiradas
com esta atitude dele, ganhou nossos corações. Pedi ajuda para
a pessoa certa. Além do trinco, ele nos acalmou dizendo que se
215
o sujeito tivesse ido com a intenção de me prejudicar realmente,
não havia simplesmente furtado o que estava na carteira, mas
teria aproveitado para cometer algo pior, principalmente ao
perceber que estávamos dormindo. Concordamos.
Nem todos os heróis usam capa. E antes do João, contamos
com a Tati, nossa heroína peluda.
***
Na vida profissional, tudo estava fluindo e dentro das minhas
expectativas. Continuava concedendo entrevistas, para a minha
surpresa, afinal achava que não tinha mais o que ficar falando
sobre minha vida, eram sempre as mesmas perguntas, mas a
mídia continuava interessada em mim. Já não sabia mais se os
clientes marcavam programa, por vontade de fazer sexo comigo
ou por curiosidade de querer saber qual nota receberiam no
blog, após avaliar a performance sexual deles.
***
Estávamos em junho, metade do ano. Eu e João resolvemos
juntar nossas escovas de dentes. Gabi super apoiou nosso
relacionamento e, após uma conversa muito transparente,
decidimos encerrar a parceria de trabalho que durou quase um
ano. Neste período, ela conseguiu fazer um pé-de-meia, algo
que me tranquilizou.
No meio do mês, recebi um e-mail que transformaria meu
futuro após a prostituição, que até então era totalmente incerto.
Há quem diga em coincidências, eu prefiro dizer que a vida é
cheia de detalhes que vão fazendo sentido com o tempo, as
peças vão se encaixando. Pequenas situações da infância,
ganham sentido ou um novo significado quando somos adultos.
Isso vale para qualquer outra fase da vida, basta olharmos para
o passado, sempre haverá pelo menos uma peça se encaixando
em outra. Tudo é uma grande sintonia, uma conexão profunda,
nada acontece por acaso ou em vão. E eu posso provar com
216
vários acontecimentos que rolaram comigo. Vamos voltar na
minha infância, na parte que fiquei hospedada na casa dos meus
tios. Durante minha estadia, peguei para ler um livro do meu
primo, pois me chamou bastante atenção o título: ‘O Guia dos
curiosos’, escrito pelo jornalista Marcelo Duarte.
Lia algumas curiosidades por dia, mas não consegui concluir a
leitura e fiquei com vergonha de pedir emprestado para levar
para casa. Acho que meus tios notaram que eu estava gostando
bastante deste guia, então no meu aniversário daquele ano, me
deram um exemplar de presente. Devorei em pouco tempo.
Mais de dez anos depois, eis que recebo um e-mail assinado por
Marcelo Duarte. Ele comentou que leu no blog sobre minha
vontade de publicar uma biografia e ele, sócio-proprietário de
uma editora, gostaria então de marcar uma reunião comigo.
Quando terminei de ler, fiquei paralisada sem piscar os olhos
por alguns segundos e, reli para ter certeza porque não estava
acreditando que o autor de um dos livros que marcou minha
infância, estava querendo publicar o qual contaria sobre mim.
Respondi formalmente sem demonstrar estar emocionada.
Dois dias depois, nos encontramos numa cafeteria para
conversarmos melhor. Ele já foi com toda a ideia pronta e me
apresentou o projeto que tinha em mente. O desejo de ambas
as partes para a publicação do livro sobre a vida da Bruna
Surfistinha era grande demais, cada um com seus próprios
interesses. Na semana seguinte, nos encontramos novamente,
dessa vez fui até a editora e assinamos o contrato.
Transbordei de felicidade nesse dia. Comentei no blog sobre
minha vontade de publicar o livro sem pretensão alguma, jamais
imaginaria que a oportunidade cairia no meu colo e de uma
maneira tão rápida. A editora queria publicar o livro
rapidamente para aproveitar que eu estava bombando na mídia,
um detalhe que alavancaria ainda mais as vendas, obviamente.
A preocupação era notória sobre a possibilidade de cair no
217
esquecimento da mídia, pois em dois meses já completaria um
ano que eu estava em evidência. O prazo para escrever o livro
era curto demais, um pouco mais de um mês. Eu queria muito
escrever minha própria história, mas não conseguiria conciliar
programas e escrever sobre meus vinte anos em pouco tempo.
Para resolver essa questão, Marcelo sugeriu de contratar alguém
para me ajudar na parte da escrita e construção do livro. Mesmo
não gostando muito dessa ideia, acabei aceitando. Na mesma
semana, fui apresentada ao Jorge Tarquini, o jornalista que me
ajudaria. Nos encontramos várias vezes em casa, ele ia
conduzindo a conversa, como se fosse uma entrevista sutil ou
uma sessão de terapia. Questionava pontos sobre minha
infância, adolescência e prostituição. Todas essas conversas
foram gravadas. Um detalhe muito importante: não me sentia à
vontade em conversar com ele. Não deixei de responder
nenhuma pergunta, mas era um momento bem chato para mim,
quando ele dava o play no gravador, não via a hora do stop.
Ele me tratava bem, sempre com muito respeito, mas quando
não sinto afinidade por alguém, não tem jeito. Mesmo assim,
me esforcei nas respostas, contei situações necessárias e omiti
muitas outras por não conseguir me aprofundar ou externar
meus sentimentos com o Jorge. Depois de quase duas semanas,
finalmente encerramos nossos encontros. Além dos relatos
transcritos se baseando nas gravações das conversas que
tivemos, também existiam trechos escritos por mim que foram
tirados do blog ou então que escrevi especialmente para o livro.
Quando recebi o esqueleto dele, impresso sem capa, foi uma
emoção muito grande, mas ao finalizar minha revisão, rolou
uma bagunça de sentimentos. O resultado dele não ficou
exatamente como eu gostaria, a sensação causada pela
realização de um sonho se misturou com a frustração. Eu não
queria que o foco tivesse sido na prostituição e com tanto apelo
erótico, mas fui obrigada a entender que o livro foi elaborado
para ser extremamente comercial.
218
Pouco importava meus reais sentimentos, o negócio era lucrar
com minha trajetória como prostituta. Algo compreensível até a
página dois. Com o contrato já assinado e toda a pressão
psicológica para autorizar logo a publicação, acabei engolindo
minha frustração e não demonstrei minha insatisfação em
nenhum momento. Foi um dos maiores erros que cometi
comigo, deveria ter aberto a boca para lutar por algo que era do
meu direito, buscando um novo resultado de um livro escrito
sobre mim. Abracei com força minha síndrome de impostora e
fiquei quieta. Ter me calado custou um preço bem alto.
***
Em agosto, me dei conta que havia perdido meu RG, então fui
encarar a fila gigante no ‘Poupatempo’ para fazer uma nova via
do documento. Naquela época, o atendimento era ainda por
ordem de chegada, mesmo assim, considerei que seria mais
rápido. Esperei por quase três horas e quando chegou minha
vez, a moça que me atendeu, após alguns segundos de silêncio
olhando para a minha cara, me disse: “Não vou conseguir
emitir uma nova via porque aqui no sistema consta que você
está desaparecida”. Achei que ela estivesse brincando, mas me
mostrou o monitor do computador e a informação realmente
era verídica. Voltei para casa com medo do que poderia
acontecer e preocupada como resolveria esta situação.
Para a minha sorte, um amigo do João trabalhava na DHPP e
poderia me ajudar dando baixa no sistema. Na mesma semana,
fomos resolver isso e foi mais fácil e rápido do que imaginei.
João me achou, então deixei de ser desaparecida.
***
Tive muita dificuldade em conciliar a vida pessoal com o João e
a profissional, tendo o objetivo de bater minha meta antes de
me despedir da prostituição. Embora ele entendesse meu
trabalho e nunca tenha me exigido que eu realizasse algum tipo

219
de mudança, precisei me adaptar para me sentir mais
confortável com a situação e, demonstrar a ele o respeito que
tinha por nosso relacionamento. O último horário disponível
para atender os clientes era às 17hs, assim eu tinha tempo
suficiente para fazer uma faxina antes do João chegar em casa.
Era uma situação um tanto quanto estranha, mas todos os dias
o avisava quando o apartamento estava liberado. Eu tomava
todos os cuidados possíveis para não deixar nenhum vestígio
dos programas. Limpava bem o banheiro, checava várias vezes
o chão e todos os cantos, se havia algum pentelho perdido.
Esvaziava sempre o lixo, mesmo que as camisinhas usadas
estivessem muito bem enroladas em papel higiênico. Trocava os
travesseiros e roupas da cama por peças que eram apenas
nossas. Escondia o estoque de camisinhas, lubrificante e
apetrechos eróticos. Deixava o apartamento de uma maneira
como se ninguém tivesse passado por ali durante o dia.
A partir do momento que ele entrava no apartamento, desligava
o celular que usava para me comunicar com os clientes.
Nunca precisamos dizer um ao outro que falar sobre meu
trabalho era algo proibido, o silêncio sobre isso era algo muito
natural, como se eu não fizesse programa. Desde que
oficializamos nosso relacionamento, ele deixou de ler meu blog.
Minha performance sexual com os clientes mudou bastante,
não que a qualidade tenha caído, mas não conseguia mais ser a
mesma. Depois de quase três anos, comecei a fazer programa
exclusivamente por causa de dinheiro.
Até que outubro chegou. Ainda estava um pouco longe de
atingir minha meta financeira, mas conseguiria nos próximos
três meses. A vida é feita de escolhas e decidi viver uma nova
vida ao lado do João, abandonando a prostituição mesmo
estando no meu auge e sem concluir o pé-de-meia.
Defini qual seria o último dia que me prostituiria, a data da
minha aposentadoria: 27 de outubro de 2005. Um dia antes do
meu aniversário, quando completaria 21 anos neste mundão.
220
Ainda estávamos na primeira semana do mês quando decidi
isso, contei ao João e a reação dele foi um semblante de alívio.
Avisei os meus clientes fixos e leitores do blog que eles tinham
apenas três semanas para se despedirem da Bruna, muitos
continuaram achando que era uma estratégia de marketing e não
levaram a sério. Em contrapartida, meu telefone bombou de
ligações e mensagens, sem ajuda da Gabi, quase enlouqueci.
O grande dia finalmente chegou, não consegui dormir direito
tamanha era minha ansiedade para colocar um ponto final.
Tive um apagão sobre o último cliente, não me lembro do
nome nem das características físicas, se o visse na rua seria
incapaz de reconhecê-lo. No entanto, me lembro bem de alguns
detalhes significativos. Já tínhamos feito três programas antes e,
logo quando soube que eu pararia, foi um dos primeiros que
entrou em contato querendo ser o último cliente. Vários
tiveram este mesmo desejo, mas o escolhi porque em nossos
outros programas, ele foi muito bacana comigo, rolou muita
afinidade, com mais papo do que sexo. Eu queria que meu
último programa rolasse com alguém que fosse uma companhia
agradável e que não abusasse tanto do meu corpinho.
O cliente fechou três horas de programa e assim como
imaginei, apesar de toda minha ansiedade para que acabasse
logo, me proporcionou uma despedida bem tranquila.
Quando ele foi embora, fechei a porta, me encostei nela e me
sentei no chão, ainda sem acreditar no que estava acontecendo,
chorei aliviada. Ainda entre lágrimas, fiz a faxina mais rápida da
minha vida e apenas conseguia pensar: “Eu consegui, eu
consegui...!”. Foi um dos momentos mais emocionantes que
tive, até então a maior conquista da minha vida.
João chegou e parecia uma cena de novela, ele me deu um
buquê de rosas vermelhas, nos abraçamos bem forte, não sei
qual dos corações estava mais acelerado. Tirei o chip do celular
e entreguei a ele dizendo: “Pronto! Agora eu sou apenas sua!”.

221
O que seria dali em diante em relação à minha vida profissional
ainda era um mistério. A previsão do lançamento do livro
estava prevista para a primeira quinzena de novembro, mas não
estava criando expectativas e nem contando que seria um
sucesso. O importante para mim naquele momento, era o fato
de estar me sentindo realizada pessoalmente.
Era como se a prostituição tivesse sido uma maratona com
vários obstáculos no meio do caminho, consegui pular alguns,
tropecei em outros, recebi o prêmio antes de chegar na final.
Com coragem, consegui superar todos os momentos ruins.
Acabou. Sobrevivi. Adeus.
A aposentadoria foi o presente de aniversário que dei a mim.
***
Tenho bons motivos para não acreditar na fidelidade masculina,
afinal a maioria dos clientes era comprometido. Confesso que
realmente é difícil confiar, mas sei que muitos são avessos
quando o assunto é pagar por sexo. Defendo as garotas de
programa, são os homens que vão atrás delas. Perigosas são
aquelas mulheres que não se prostituem e que gostam de
homens comprometidos, correm atrás deles sabendo que têm
mulher e uma família, mas não se importam com nada disso.
Aprendi que mulher casada precisa se preocupar com as que
gostam de ser amantes e não com as prostitutas.
Os homens sabem separar sexo de amor com uma facilidade
incrível. Para eles, relação sexual para se satisfazer carnalmente,
não é considerado como traição porque é apenas questão de
tesão, não existem sentimentos envolvidos.
A regra é essa, mas vale apenas para eles.
A mulher comprometida não tem este mesmo direito de buscar
sexo casual e, se quebra esta regra, se torna vagabunda, safada,
piranha, puta. E solteira.

222
Não existe um padrão definido de homens que buscam garotas
de programa, tive clientes com uma variedade enorme de
características físicas, status financeiro, raças, religiões, signos,
profissões e personalidades. É difícil ajudar a identificar se o
cônjuge faz parte desse grupo, eles tentam não deixar rastros, se
preocupam com os mínimos detalhes, é mais fácil contar com o
feeling feminino que nunca falha.
Tanto nos privês como no flat, era notório a existência de
horários mais disputados, eu gostava de chamar de horário de
pica: período de almoço entre 11hs e 13hs, no meio da tarde às
15hs e entre 17hs e 18h30, à noite atendia apenas clientes
solteiros, que não moravam com a amada ou que estavam em
São Paulo a trabalho. Alguns atenderam a ligação da mulher na
minha frente, as desculpas eram básicas: trânsito, reunião,
academia, imprevisto no trabalho, happy hour da empresa.
O cliente mais audacioso que conheci, foi um que apelidamos
de padeirinho. Ele era frequentador assíduo do primeiro privê,
ia nos visitar pelo menos uma vez por semana. Morava bem
perto, avisava a mulher que ia na padaria. E de fato ele ia, mas
antes de voltar para casa, chegava no privê agarrado num saco
com pães quentinhos. Padeirinho era um homem prático, ia
direto ao ponto, era apenas uma rapidinha porque não podia
chegar em casa com os pães frios. Era tão rápido que ele não
tirava a roupa, apenas abaixava a calça e a cueca, pedia para que
a garota tirasse a calcinha o mais rápido possível e ficasse de
quatro na cama, ele ficava em pé no chão. Colocava a camisinha
e metia como um coelho, não demorava nem cinco minutos
para ouvirmos o gemido. Levantava a calça, dava a nota de cem
reais, agarrava o saco de pão e ia embora num piscar de olhos.
A maioria dos meus clientes tinha entre 35 e 55 anos.
O mais raro era atender homens entre 20 e 30 anos, pois estes
preferem garotas de programa mais velhas, com mais
experiência, eu era muito novinha para eles. Ainda bem.
223
Tive muitos clientes descendentes de japonês, um detalhe que
me surpreendeu bastante, pois sempre os vi como homens bem
sérios, tímidos e dedicados à família, não imaginava o quanto
gostam de putaria. Não fiz muitos programas com gringos, pois
eles costumam frequentar boates de luxo, os que atendi foram
por indicação de clientes que já tinham feito programa comigo.
Um desses clientes, trabalhava numa multinacional e sempre
que algum funcionário estrangeiro desta mesma empresa, estava
em São Paulo, ele me indicava. Me dei muito bem nestes
encontros porque recebia em dólar e os gringos pagavam rindo,
sempre me davam a mais. Os encontrava no hotel onde se
hospedavam, a conversa não fluía tanto porque embora eu
tenha estudado bastante inglês, sempre tive facilidade em ler e
escrever, mas dificuldade em dialogar. Rolar química também
era algo difícil de acontecer porque eles não se soltam na cama,
não se entregam, não têm atitude. Os homens brasileiros
definitivamente são os melhores na cama.
Na época que o blog bombou, atendi algumas clientes mulheres
que me procuraram, apenas uma era lésbica, as outras foram
porque tinham curiosidade em transar com uma mulher e se
sentiram à vontade para realizar isso comigo, como sempre
deixei claro que sou bissexual, marcaram programa sem medo.
Atendi muitos casais, um em especial foi bem marcante, os dois
tinham uma cumplicidade admirável, super bem resolvidos,
foram muito fofos comigo. Buscavam garotas de programa de
vez em quando e tive a sorte de conhecê-los, além da relação
sexual ter sido boa, a companhia em si deles foi leve e muito
agradável, conversamos bastante, eram meus leitores assíduos.
Comentaram que na semana seguinte, comemorariam dez anos
juntos e ele comentou que não poderia esquecer a data. Marquei
o dia exato e, na parte da manhã, enviei um SMS o avisando
para que não se esquecesse da comemoração.
Um dia estava participando de um programa ao vivo, na rádio
Transamérica FM, os ouvintes podiam enviar mensagens.
224
Os apresentadores selecionavam algumas e liam para mim.
Para a minha surpresa, uma dessas mensagens lidas foi
justamente desse casal contando que tive, segundo eles, a
delicadeza em me preocupar com a comemoração deles.
***
Realizei algumas vezes DP ( dupla-penetração: vaginal e anal ao
mesmo tempo ), foi mais uma coisa que não imaginava que
seria possível. Todas as experiências foram boas, não me
machuquei e rolou muito respeito. Eu que conduzi toda a
dinâmica. Sempre rolou com duplas de amigos, então havia
intimidade entre eles. Nunca aconteceu de um tocar o outro
durante a transa, bem que gostaria de ser voyeur, mas eu que era
o centro das atenções de ambos, em todas as duplas. Era uma
experiência que me causava prazer. Soube que, além da
excitação causada por estarem dividindo a mesma mulher, um
sente os movimentos do pênis do outro internamente e, esse
detalhe é o que torna ainda mais prazeroso para eles.
***
Com muitos clientes, acabei sendo mais terapeuta do que puta.
Isso acontecia com homens carentes que queriam apenas
conversar com alguém que não fizesse parte diretamente da
vida deles. Os desabafos eram simples, nada fora do normal,
eram queixas do casamento, dos filhos, do trabalho ou então
algo sobre si que os incomodavam muito. Alguns desabafavam
questões do próprio corpo, demonstrando falta de autoestima.
Muitos demonstravam insegurança e incômodo com o tamanho
do pênis,.eu tentava ajudá-los explicando que a maioria das
mulheres não se importa com isso e que é melhor “um pequeno
brincalhão a um grandão bobão”. Um desses clientes em
especial, era um jovem garoto com quase trinta anos, chamava
bastante atenção pela beleza e simpatia. Quando abri a porta até
levei um leve susto, fiquei encantada com o sorriso dele.

225
Demonstrou ser inseguro na hora de se despir, demorei para
entender o motivo de permanecer com a cueca, percebi que
precisava respeitar o tempo dele, até que resolveu me
questionar: “Você promete que não vai rir?”.
Eu já tinha visto pintos de diversos formatos, cores, tamanhos
e, por mais que alguns fossem realmente engraçados, jamais
daria risada, ainda mais na frente do cliente. Prometi não rir
enquanto tirava a cueca dele. Ele comentou que percebia a cara
de decepção das mulheres, mas era algo muito mais da cabeça
dele, uma insegurança sem fundamento. O tamanho era normal,
não era grande, mas estava dentro da média dos brasileiros.
Rolou uma boa química entre nós, após o segundo round,
ficamos conversando por bastante tempo sobre tamanho de
pintos. Ele fez mais três programas comigo, na última vez, me
contou que havia quebrado o bloqueio, conseguiu convidar a
moça, por quem era apaixonado, para um jantar romântico.
Encerraram a noite no motel, não sentiu vergonha ao tirar a
cueca e ela não fez cara de espanto. Me agradeceu por ter o
ajudado a aceitar o próprio pau. Missão cumprida com sucesso.
***
Dentre várias histórias absurdas que fiquei sabendo sobre
agressões físicas de clientes em garotas de programa, posso
considerar que fui muito abençoada. Confesso que tinha muito
medo de ter um cliente agressivo, principalmente quando
comecei a ter notoriedade na mídia. Atendendo em flat, me
sentia insegura por não saber para quem estava abrindo a porta.
Tive clientes que estavam armados, a maioria foi discreto, mas
alguns deixaram o revólver sobre o criado-mudo, bem ao lado
da cama. Nunca consegui disfarçar meu semblante de medo,
então era comum me acalmarem: “Sou policial civil” foi o que
mais ouvi. Um cliente contou que sofreu um sequestro
relâmpago e, após este episódio, começou a andar armado.
No privê da Michigan, tive um cliente que me assustou, não sei
o que aconteceu, mas fui protegida e salva por forças maiores.
226
Depois que finalizamos o programa e estávamos nos vestindo,
ele resolveu abrir o jogo: “Gosto de sair com puta para
machucar, sinto prazer em fazer chorar de dor enquanto como
o cu dela. Gosto de gozar vendo a mulher chorar. Te escolhi
para isso, mas quando chegamos aqui no quarto, algo aconteceu
que não tive coragem!”. Nunca me esqueci dessas palavras.
Ele foi bem grosseiro durante o sexo, percebi o quanto era
macho escroto, enquanto fazia oral nele, me fez engasgar de
propósito ao travar minha cabeça. Sinto muito por todas que
conseguiu machucar, que não tiveram a mesma sorte que eu.
***
Alguns programas foram excêntricos, divertidos, lembranças
que sempre vão me fazer rir. Certa manhã, bem no início da
minha jornada na prostituição, um cliente me escolheu e as
meninas disseram rindo: “A Bruna vai conhecer agora o
Polvilho!”. Era comum darmos apelidos aos clientes assíduos.
Polvilho era um homem bem sério, do tipo que a gente olha e
não consegue imaginá-lo na putaria. Era quase um cinquentão,
com poucas palavras, um homem elegante com terno e óculos
que era possível perceber que tinha muitos graus nas lentes.
Quando chegamos no quarto, me contou que gostava de beijo
grego enquanto se masturbava e avisou para não me preocupar,
pois estava com a higiene em dia. Fui tomar banho e quando
voltei ao quarto, Polvilho já estava de quatro a minha espera.
Um homem que não perde tempo com o que quer.
Me posicionei atrás dele e quando abri as nádegas, me deparei
com muito pó branco, mas muito, era uma quantidade tão
grande que tive que assoprar para achar onde estava o
buraquinho-alvo. Enfim, o encontrei e para a minha surpresa,
não tinha nenhum pelinho para contar a história. Nunca vi um
cu tão bem cuidado. Demorei para entender que o apelido era
por causa do talco da marca Granado. Polvilho me escolheu
outras vezes, mas ele gostava de variar as garotas e a intensidade
dos assopros que eram sempre necessários.
227
Tive um cliente que era um senhor com sessenta e poucos anos.
Era um idoso fofo, de tal maneira que eu conseguia imaginá-lo
sendo um avô bem amoroso. Subiu a escada com certa
dificuldade. Não consegui imaginar como abusaria do meu
corpinho entre quatro paredes. Chegando no quarto, o ajudei a
tirar a roupa, estava com uma calça marrom com aquele tecido
mole, me fez lembrar do meu avô, pois tinha algumas também.
Estava presa por um cinto até a metade da barriga. No bolso da
camisa, uma pequena coleção de canetas Bic, tive o cuidado de
tirá-las antes, para que não caíssem no chão. Já estávamos sem
roupa e continuei sem conseguir imaginar como seria nossa
transa. Tal preocupação foi em vão porque não rolou nada, não
foi por falta de tentativas para dar vida ao pinto. Me pediu para
que ficasse deitada, ele ficou ajoelhado ao meu lado, passando o
pênis mole nos meus seios e barriga, enquanto dizia o quanto
eu era gostosa e que ia me pegar de todos os jeitos. O programa
inteiro foi apenas isso. Confesso que chegou num momento
que comecei a me sentir incomodada com a situação, fiquei
entediada ao ficar tanto tempo sentindo o negócio mole sendo
esfregado em mim. O apelidei carinhosamente de Pincelada.
Um outro cliente que me marcou bastante, acredito que tinha
TOC. Foi um dos programas mais cansativos e com um
pequeno detalhe: sem rolar sexo. Quando chegamos no quarto,
ele sugeriu mudarmos a cama de lugar, o ajudei a arrastá-la até a
outra parede, até aí tudo bem, o problema é que ele nunca
ficava satisfeito com o posicionamento da cama e era daquelas
antigas bem pesadas. Se não bastasse isso, o criado-mudo
também começou a incomodá-lo e começamos a mudar de
lugar. Agradeci a Deus pelo armário ser um móvel planejado,
grudado bem firme na parede. Foi uma hora de programa
virando a cama de todas as maneiras possíveis no quarto.
Quando achava que o abençoado estava satisfeito com o
posicionamento dos móveis e subíamos na cama, ele sempre
encontrava um motivo para mudarmos novamente, me dizia
228
coisas do tipo: “Agora estamos muito perto da porta, se alguém
quiser abrir, não vai conseguir”, “Não gostei da janela na nossa
frente”, etc. Ele conseguiu ser o cliente que mais me fez suar e
não foi de prazer. Ainda bem que nunca mais apareceu.
Uma outra situação inusitada que enfrentei foi com um garoto
de 19 anos, ele não era mais virgem, mas parecia ser, além de
ser todo desengonçado na performance sexual, me pediu para
mostrar o que é o clitóris e como é na prática, a posição “frango
assado”. Me senti a professorinha sexual. Quando finalizamos o
programa e ele estava colocando a roupa, notei que a cueca que
estava usando era infantil, tinha vários pequenos desenhos de
carrinho e bolinhas de futebol. Fiquei tão perplexa que não
consegui desviar os meus olhos para outro lugar, não consegui
ser discreta e ele percebeu:
- Essa cueca é feia, né? Foi minha mãe que me deu.
- Não é que seja feia, mas é infantil demais e não combina com
um moço de dezenove anos.
- É verdade. Acho que vou jogá-la fora.
E antes que eu pudesse dizer qualquer outra coisa dando
continuidade nesse diálogo desinteressante, ele simplesmente
tirou a cueca, foi até a janela e a arremessou. Eu dei um grito
que foi mais forte do que eu. Corri para ver onde foi parar e
estava no telhado da casa vizinha, onde continuou pelo menos
até o último dia que trabalhei lá. Me arrependi por ter criticado.
***
Mesmo com a mente bem aberta que me fazia encarar qualquer
tipo de coisa, precisei recusar alguns pedidos de clientes:
O principal deles foi um cliente que me fez lembrar da aula de
história sobre Édipo. Em certo momento, após nosso primeiro
round, ele começou a desabafar, contou que nasceu quando a
mãe tinha 15 anos e, cresceu acostumado a vê-la com lingerie ou
nua, o que acabou gerando um desejo incontrolável que foi
229
apenas aumentando na medida que ele foi envelhecendo.
O pedido dele foi uma proposta que recusei imediatamente,
nenhum dinheiro me faria aceitar, queria muito que ele estivesse
brincando para ver minha reação, mas não, estava falando
muito sério:
- Quero que você ligue para a minha mãe e a convença de fazer
sexo comigo, preciso matar esta vontade, isso me enlouquece.
Eu ri, mas de nervoso. Quando percebi que era algo realmente
sério, conversei, o enchi de perguntas porque eu queria muito
entender, mas não consegui. Me contou que o desejo pela mãe
começou quando tinha 8 anos e, a primeira vez que se
masturbou foi pensando nela, dali em diante, começou a
alimentar este desejo que se tornou uma obsessão. Ele estava
com quase 40 anos, casado, pai, demonstrava ser um homem
bem calmo. Fazia terapia há pouco tempo, mas acreditava que
resolveria esta questão apenas na prática. Garantiu que a mãe
não desconfiava, pois sempre foi discreto. Ele bem que tentou
me convencer, mas nada me faria mudar de ideia, me ofereceu
uma boa recompensa, mil reais para ligar e conversar, mais
cinco mil se conseguisse convencê-la. Não sei se me procurou
novamente porque bloqueei o número dele.
Os outros casos foram suaves, embora fetiches inusitados e que
eu não estava preparada para realizá-los. Um pedido foi para
que eu fizesse chuva negra, que nada mais é do que fazer fezes.
Pediu bem para mim, que não consigo fazer nem com a porta
do banheiro aberta mesmo estando sozinha em casa, que dirá
com alguém me olhando e aguardando ansiosamente o
momento. Expliquei ao cliente sobre minha dificuldade por ter
um cu tímido, mas ele sugeriu que eu tomasse laxante. Piorou.
Realizei duas vezes chuva dourada (xixi) com outros clientes,
foram experiências interessantes e divertidas. Fiz no rosto deles,
enquanto se masturbavam. Um deles abriu a boca, mas não
engoliu o xixi, fez um bochecho e jogou fora em seguida.
230
Também fui incapaz de realizar sado (prazer em fazer ou ver
alguém sentindo dor) ou masoquismo (pessoa que sente prazer
ao sentir dor). É um fetiche bem comum, existem inclusive
mulheres que dominam a arte do sadomasoquismo e, são
focadas exclusivamente a realizar isso, são conhecidas como
Rainhas. Tive oportunidade de conhecer uma que me
entrevistou, ela me surpreendeu por ser uma mulher muito
calma e meiga, mas com muitas histórias interessantes sobre
homens que gostam de ser escravos sexuais, humilhados e
torturados. Sentem prazer apanhando com cinta de couro ou
chicote, sendo pisoteados com saltos finos, sentindo pingos de
cera quente de vela caindo por todo o corpo, amordaçados etc.
Sempre gostei de uma vibe cinquenta tons de cinza, no entanto,
de uma maneira mais leve, com algemas e venda nos olhos, mas
sem me sentir humilhada ou torturando alguém.
Minha única experiência com cliente que pediu para ser
maltratado e machucado por mim, foi um tremendo fiasco.
Não nasci para ser Rainha. Tudo começou quando ele pediu
para que eu colocasse o salto mais fino que pudesse, então se
deitou de bruços no chão bem perto da parede para que eu me
apoiasse nela, enquanto caminhava sobre o corpo dele.
Até aí super fácil. Só que não para quem não tem equilíbrio.
Mesmo encostando as mãos na parede, não sei o que aconteceu
porque foi muito rápido, me desequilibrei e caí com tudo para
trás, com a bunda no chão. Rimos muito, ele brochou.
Tentamos mais uma vez, mas minhas pernas tremiam tanto de
nervoso que a cena acabou sendo mais cômica que prazerosa.
Então meu fetichista desistiu disso. Fomos para a cama e nos
primeiros segundos do sexo, me pediu para que eu desse um
tapa no rosto dele. Dei jurando que ele fosse ao delírio, até que
ouvi: “Bata com mais força!”. Bati. E então foi uma sequência
de “mais forte!” e minha mão cada vez formigando mais.
Mandei muito bem, nota zero. Traumatizei e nunca mais topei.

231
No top 3 dos pedidos mais inusitados, um mesmo cliente fez
dois, ambos recusados com sucesso. O primeiro foi: ele queria
ficar escondido no armário do meu quarto, fingindo ser um
marido sendo traído, enquanto eu fazia sexo com algum cliente.
Ri muito, mas com respeito. Avisei que seria impossível, um
bom motivo era porque ele não caberia no meu armário, além
disso, expliquei que seria falta de respeito com meu cliente.
Acredito que nenhum toparia fazer parte desta fantasia e, eu
não teria coragem de esconder o detalhe de termos um marido
fake no armário. Vai que o moço se entregasse mais do que
devia ao personagem de marido corno e quisesse bater no meu
cliente. Há pouco tempo, descobri que este fetiche é mais
comum do que imaginava e tem um nome: cuckold. A definição
é direta e reta: é o homem que tem prazer de ser corno.
Quando convenci o moço que não rolaria de jeito nenhum, ele
conseguiu pedir algo ainda pior: queria que eu transasse sem
camisinha com alguém. Calma, ainda não acabou. Esse alguém
gozaria dentro de mim e então o moço chegaria em seguida,
para fazer oral em mim enquanto saboreava o gozo do outro.
Mesmo com mente aberta, há limites.
***
Sempre morri de cócegas nos pés, lágrimas caem de tanto rir.
Dito isso, imagine como foram minhas experiências com
podólatras. Descobri sem querer que sinto menos no pé
esquerdo, então sempre pedia ao cliente que focasse nele,
deixando o direito em paz, o máximo que pudesse.
Não imaginava que é tão comum adoradores de pés, os
podólatras deliram de prazer, é gostoso de ver a reação deles.
Não rola sexo com penetração, eles não fazem questão, aliás,
foi com eles que aprendi a masturbar usando meus pés.
Em 2007, apresentei um programa online no site da revista Sexy.
Uma das matérias foi gravar numa baladinha especialmente para
podólatras. João me acompanhou, combinamos que eu não
deixaria que ninguém tocasse em meus pés.
232
Chegamos cedo, quando ainda não estava bombando de
clientes. O combinado entre minha equipe de produção e os
donos do local, foi que não mostraríamos o rosto de ninguém.
Havia poucos clientes, comecei a entrevistar alguns, o objetivo
da matéria era coletar o máximo de informações para explicar
bem sobre o universo da podolatria. Eu tinha uma curiosidade
gigante por este tema, pois sempre quis entender o motivo de
homens sentirem tanto prazer por esta parte do corpo.
Comecei então a perguntar para os entrevistados por que
sentem desejo por pés, mas descobri que não sabem explicar, é
algo indescritível. Apenas sentem e ponto final. E tá tudo certo.
Um deles mostrou com orgulho as fotos na galeria da câmera
profissional que carregava no pescoço, eram apenas pés de
todos os tipos, jeitos, tamanhos, cores, ângulos.
O local era um sobrado, dividido em alguns ambientes, todos
com a luz bem baixa. Algumas mulheres já estavam presentes,
bebendo um bom drink enquanto recebiam massagem nos pés.
Unindo o útil ao agradável. No tempo que estive lá, não
presenciei nenhuma cena com masturbação, não sei se rolava lá.
Já estávamos quase encerrando a gravação quando meu último
entrevistado pediu para dar uns beijinhos nos meus pés.
Acreditando que seria uma boa desculpa, eu o alertei:
“Vixe, eles estão bem sujos porque antes de vir para cá fiquei
andando descalça em casa!”. E para a minha surpresa, ele
respondeu: “Não tem problema, quanto mais sujo, é melhor!”.
***
A prostituição é uma questão muito bem resolvida dentro de
mim. Foi uma experiência que precisei ter vivido em algum
momento, se não fosse no final da adolescência, teria sido em
outra fase. Por isso, arrependimento passa longe e jamais terei
vergonha por ter me prostituído. Faz parte de mim, da minha
história e minhas escolhas. Foram os três anos mais intensos
que vivi, impossível contar minha história sem comentar sobre
meu passado na prostituição. Mesmo se tivesse continuado no
233
anonimato, não esconderia das pessoas mais próximas sobre
esta fase e ainda contaria rindo.
Me aposentei em 2005, há mais de quinze anos, de lá para cá
minha vida seguiu entre recomeços e tentativas de ser feliz de
outras maneiras. Com o passar do tempo, ter sido prostituta vai
ganhando um novo significado, mas o que não muda é a certeza
de que eu não conseguiria fugir dessa experiência nesta vida.
Sempre tive esta intuição, algo me dizendo que tudo bem ter
me prostituído, é coisa de outra vida. É um fato e não uma
mera justificativa para me isentar de algo. A única diferença é
que na outra encarnação, não tive um final feliz, fui assassinada
por outra prostituta. Precisei dar continuidade na prostituição
nesta vida e acredito que consegui colocar um ponto final na
situação que trouxe para ser resolvida de alguma maneira.
Nunca senti falta da prostituição em nenhum sentido: da
adrenalina que me causava, da rotina agitada entre experiências,
da vida sexual intensa ou do dinheiro rápido. Nada faria com
que eu voltasse a me prostituir, o ponto final foi definitivo.
Não teria vergonha em assumir alguma recaída, pelo contrário,
aproveitaria a mídia que isso me proporcionaria. Sei que não
teria a paciência que tive para lidar com algumas situações
específicas, não conseguiria ser a mesma garota de programa
dedicada que fui, não toleraria grosserias de machos escrotos e
não aguentaria mais cheirar sacos fedidos e fingir que está tudo
bem. Minha boa reputação no Fórum não seria mais a mesma.
Eu não seria a prostituta mais desejada dos privês.
Fui puta raiz, quando a internet ainda era mato e a tecnologia
limitada. Se voltasse a me prostituir, a única certeza que tenho é
que aproveitaria muito bem as redes sociais, ideias de estratégias
de marketing não me faltariam. A comunicação com os clientes
no WhatsApp seria maravilhosa, perdia muito tempo esperando
respostas por SMS sem ter noção se já tinham lido minhas
mensagens quando demoravam para responder.
234
Sempre encarei a prostituição como um trabalho e, por muitos
anos, fui a favor da legalização. Quando me perguntavam,
levantava a bandeira do quanto seria incrível e importante ser
uma profissão legalizada. Conseguia enxergar apenas o lado
bom, me baseando em minha experiência nos privês, não
imaginava que estava sendo uma tremenda egoísta.
maneira de pensar mudou quando em 2019, participei de uma
gravação do ‘Quebrando o tabu’ e fui colocada diante três
mulheres totalmente contra a legalização. Como uma boa
escorpiana, é muito difícil mudarem minha opinião, mas elas
conseguiram. Foi quando comecei a ter um novo olhar sobre a
legalização que, prejudicaria e muito, a minoria.
Não fui a única mulher que se prostituiu por vontade própria
que, mesmo tendo outras opções de escolha, resolveu fazer
programas. No entanto, a maior parte se prostitui por falta de
escolha, apenas para ter onde morar, o que comer, sustentar os
filhos. Para elas, é injusto que a prostituição seja considerada
como profissão, quando é apenas questão de sobrevivência.
Não é um trabalho, é uma luta diária.
Desde que comecei a enxergá-las, deixei de ser a favor da
legalização, mantive apenas levantada a bandeira da luta contra
o preconceito aos que se prostituem, independente do gênero.
Durante os três anos que me prostituí, não encontrei onde está
a tal vida fácil. Nunca gostei ou usei a expressão “vender o
corpo”, não consigo ver sentido nesta definição quando o meu
corpo sempre continuou pertencendo a mim, não o vendi.
Prefiro dizer que vendi momentos de prazer comigo.
Levando-se em conta que a maioria das garotas de programa
mantêm uma vida dupla e, tem a prostituição como o maior
segredo delas, imagino a quantidade de pessoas que tem uma
prostituta bem de pertinho, a amam e nem imaginam que se
prostituem. Pode ser a filha, a melhor amiga, a mãe ou qualquer
outra pessoa amada. Até aí tudo bem, o problema é que estas
mesmas pessoas, julgam a mim e todas as prostitutas.
235
Essa minha teoria foi reforçada quando li o e-mail de uma
garota de programa que contou que certa noite, estava jantado
com os pais e por algum motivo, Bruna Surfistinha tornou-se
pauta da conversa porque a mãe leu alguma matéria sobre mim.
Os dois começaram a me atacar, dizendo o quanto é um
absurdo que a mídia me dê espaço, afinal não agrego nenhum
valor à sociedade por ter me prostituído. Dentre tantas coisas,
me chamaram de vagabunda para baixo, enfim, me julgaram o
quanto puderam. A garota me contou o quanto teve vontade de
me defender, mas não quis iniciar uma discussão com os ele
com medo de desconfiarem de algo. “Eles te condenaram e
nem sonham que eu faço programa durante o dia, atendendo
clientes em motel”.
Eles não são os únicos pais que estão nesta situação.
***
Há duas frases extremamente marcantes que estão no filme
Bruna Surfistinha e são com elas que encerro este capítulo:
“Saí da casa dos meus pais para não depender de ninguém, pra
ter a minha vida. Raquel. Meu nome é Raquel...”
“A Bruna nunca teria existido, só a Raquel. Mas a Raquel nunca
concluiria isso, apenas a Bruna...”

236
CAPÍTULO 4 – Casamento
Durante os três anos na prostituição, ao mesmo tempo que
tinha vários homens, não tinha nenhum. Em muitas noites,
senti falta de ter com quem dormir de conchinha e me sentir
protegida. Sabia que relacionamento é muito mais do que isso.
Sentia vontade de ter alguém com quem compartilhar o dia a
dia, com todo bônus e ônus que todas as relações proporcionam.
Aos 20 anos, ainda não havia vivido alguma experiência que eu
pudesse considerar que foi uma história de amor. Meu primeiro
e único namoro até então, foi bem de adolescente. Depois, me
desencontrei do Hud. Eram quase três anos sentindo falta, ao
mesmo tempo, não era prioridade, pois meu foco era minha
independência e conquistar estabilidade financeira. Ainda era
muito jovem e tinha uma vida pela frente. Eu não tinha pressa.
Casamento fazia parte de um plano futuro, imaginava após os
30 anos e idealizava que apenas a morte nos separasse.
Depois que João foi um herói sem capa, instalando a trava de
segurança na porta da varanda, eu e Gabi quisemos retribuir a
generosidade e o convidamos para almoçar com a gente no flat.
Ele foi na semana seguinte, como não sabíamos quanto tempo
duraria o almoço, marcamos programas apenas a partir das 17hs
e, se ele fosse embora em pouco tempo, conseguiríamos
encaixar alguns clientes. Ainda bem que planejamos isso.
João conquistou a nossa amizade durante o almoço, nos
fazendo rir e conversando sobre assuntos aleatórios. Quando
nos demos conta, nós três estávamos no sofá, assistindo ‘Chaves’
e ele cochilou com direito a ronco alto, já se sentindo em casa.
No total foram sete programas com ele. No último, sequer
transamos, ficamos apenas conversando, a cena seria ridícula
caso alguém estivesse nos observando: nós dois pelados na
cama, deitados de bruços, folheando um ‘Almanaque dos anos
80’ que eu tinha comprado recentemente. Foi o sinal que
precisei para perceber que nos tornamos realmente amigos e,
237
que não fazia sentido continuarmos nos encontrando daquela
maneira, não existia mais a relação entre cliente e garota de
programa. Na hora de receber o cachê, fiquei bem sem graça de
pegar as notas na mão dele, mas ele fez questão. Aceitei e em
contrapartida, pedi para que escolhesse entre ser amigo da
Raquel ou continuar visitando a Bruna. As duas ao mesmo
tempo não estava rolando mais. Ele escolheu a Raquel.
João era casado e, embora seja clichê homem dizer que está
passando por uma crise no casamento, para justificar as
escapadinhas em busca de sexo casual, ele me provou que
estava dizendo a verdade. Não havia motivo para mentir para
mim, pois até então não estava rolando nenhum sentimento
entre nós, era realmente apenas amizade. Nos encontramos
algumas vezes para conversarmos pessoalmente, tomamos
alguns cafés em finais da tarde, sempre com muita afinidade.
Nunca demos algum selinho, não havia segundas intenções por
ambas as partes. A paixão começou a surgir de uma maneira
muito natural, fomos nos dando conta que fazíamos bem um
ao outro. Comecei a pensar mais nele, buscava motivos para
sempre puxar assunto. Trocávamos e-mails com textões de
desabafos, nos tornamos cada vez mais cúmplices.
Num sábado, ele me convidou para almoçar num restaurante
bem bacana que ficava a dois quarteirões do flat, mas que eu
ainda não tinha ido. Já estava sentindo borboletas no estômago
por ele, então me arrumei decidida a começar a conquistá-lo.
No restaurante, havia diversas opções de massas deliciosas, mas
quis fazer a fina e comi um prato transbordando de salada para
encher o estômago e não passar vergonha comendo tanta massa.
Detalhe: não como salada. A cada garfada, era quase uma
lágrima escorrendo. Quem nunca pagou de princesa?
Certa manhã, estava com problema na conexão da internet em
casa e precisava atualizar o blog, então fui a um sebo a poucos
metros de casa que tinha uma mini lan house no fundo.
238
Estava concentrada, digitando o texto, quando senti a presença
da chegada de alguém no computador no outro canto da mesa,
mas não parei para olhar. Quando estava indo embora e me
levantei, não acreditei.
- Joãoooo? O que você está fazendo aqui???
Ele também não tinha me visto, se assustou e avisou que não
estava me perseguindo. Rimos.
Num sábado, combinei com uma amiga de irmos ao ‘Love
Story’, ela foi para casa durante a tarde. Estávamos assistindo
um filme quando recebi mensagem do João perguntando se eu
estava ocupada. Ele estava sozinho na bad e o chamei para ir.
Chegou em poucos minutos. Foi ficando, a noite já estava
acabando, percebi que ele não estava conseguindo ir embora.
Perguntei se queria ir ao ‘Love Story’ com a gente e ele quis.
Nos divertimos muito, mas não nos beijamos, nem nada.
Ainda demoramos mais um tanto para nos entregarmos e nos
permitirmos iniciar nossa história, isso aconteceu no início de
junho, após cinco meses que nos conhecemos no fatídico dia
que o fiz esperar por quase uma hora. Demoramos, mas
quando aconteceu, juntamos nossas intensidades e pulamos a
fase de namoro, poucos dias depois, ele mudou de mala e cuia
para morarmos juntos. Não nos casamos no papel ou na igreja,
mas foram detalhes que nunca fizeram diferença para nós.
Nossa história de amor durou exatamente dez anos.
No início, enfrentamos vários obstáculos, foi um grande desafio
para nós dois, eram mais pessoas contras do que a favor do
nosso relacionamento. Precisamos saber lidar com várias
opiniões que nunca pedimos. Era muita gente dando pitaco,
tentando atrapalhar e nos separar, mas apenas nos fortalecemos.
Os pais dele demoraram um pouco mais de um ano para me
aceitarem, mas quando isso aconteceu, me acolheram como se
eu fizesse parte da família há anos. Como eu e João morávamos

239
bem perto da casa deles, então íamos visitá-los no mínimo três
vezes por semana e, aos domingos, passávamos o dia todo com
eles. Chegávamos de manhã, enquanto lia jornal com o pai dele
e comentávamos sobre as notícias absurdas que ocorreram
durante a semana, João com a mãe, preparavam o almoço.
Na primeira vez que fui visitá-los já os conquistei, viram que
não mordo, que sou uma pessoa normal e, meu passado na
prostituição, foi apenas um detalhe. Aliás, nunca me esqueci
dessa primeira visita, chegamos quando a mãe dele estava
começando a preparar o almoço e ofereci ajuda. Eu estava
sentada na mesa da copa, ela então me entregou um pote
redondo com uns dois quilos de camarões pequenos, um
palitinho de dente e pediu para ajudar a limpá-los. Uma boa
ideia para testar a paciência da nora, eu garanto.
A primeira pessoa que conheci da família dele, foi a irmã, que
me recebeu muito bem quando fomos visitá-la. Ela me tratou
com uma naturalidade impressionante, sem julgamentos ou
questionamentos. Assim como, os dois irmãos também me
acolheram. A aprovação dos três abriu caminhos para
chegarmos até os pais. Sempre entendi a preocupação deles, por
isso mesmo respeitei o tempo que precisaram para quererem
me conhecer. Simplesmente do nada, o filho caçula estava
casado com a ex-garota de programa mais conhecida do Brasil.
Compreensível que tenham demorado para digerir esta notícia.
Aos poucos fui conhecendo o restante da família, apenas duas
tias nunca me aceitaram, mas também não fiz questão em
querer conquistá-las. Por dez anos, os pais, irmã, irmãos e
sobrinhos do João foram minha família, guardo boas
lembranças de momentos que vivi com todos.
Dava boas risadas com a mãe dele, uma mulher forte com um
jeitinho engraçado de ser, quem faz o melhor bolo de nozes do
mundo. Não me esqueço que numa tarde, estava sentada na
poltrona da sala, quase cochilando, quando ela comentou que
havia encontrado algumas revistas antigas e guardou para mim.
240
Foi buscá-las e quando me entregou, notei que eram muito mais
do que antigas, olhei nas capas e vi que foram publicadas em
1982, eu ainda não tinha nascido. Fiquei sem graça de avisar
que não tinha interesse em ler matérias tão velhas, mas acabei
me divertindo com as propagandas daquela época.
Em setembro de 2012, infelizmente o pai dele faleceu, deixando
um vazio na casa e em nossas vidas.
Alguns amigos do João se afastaram quando o relacionamento
se tornou notório, aconteceu um filtro entre as amizades.
A ex nos infernizou o quanto pôde, mas nenhum plano deu
certo. Ele passou por cima de tudo para estar comigo, o
preconceito que enfrentou foi enorme, tanto de pessoas
próximas como de desconhecidos, os juízes da internet.
O livro fez mais sucesso do que imaginávamos, o que recebi de
direitos autorais nos primeiros meses, me fez suspirar de alívio
e, minha preocupação em como manteria minha independência
financeira após a prostituição, desapareceu. Resolvi então que
2016 seria um ano sabático. As entrevistas continuaram a todo
vapor, a mídia era totalmente espontânea, não precisava correr
atrás de jornalistas. Saia de casa apenas para cumprir com
compromissos para divulgar o livro, ir ao salão de beleza ou
passear no shopping. Enquanto isso, João saia cedo para
trabalhar e voltava no início da noite. Canceriano e bem caseiro,
saíamos pouco, uma ou duas vezes por semana, jantávamos em
algum restaurante, mas quando ficávamos em casa, era ele quem
dominava a cozinha e maravilhosamente bem, diga-se de
passagem. Não é à toa que no primeiro ano juntos, engordei
facilmente dez quilos. Nos primeiros anos, ele não bebia nada
alcóolico, então não íamos em barzinhos ou baladas. Eu bebia
um drink quando jantávamos fora de casa, não sentia falta de
beber loucamente, de sair para dançar, nem nada.
Estava gostando da nova vida com uma rotina pacata.
Bebíamos vinho de vez em quando e, depois de um tempo, ele
começou a beber uísque, mas a garrafa durava uma eternidade.
241
João tem duas filhas e quando nos conhecemos eram pequenas,
a mais nova tinha quase dois e a outra cinco anos. A cada
quinze dias, passavam os finais de semana com a gente. Aos
sábados, a mais velha sempre pedia para ir ao McDonald’s
porque queria ganhar o brinquedinho do Mc Lanche Feliz.
Depois, fazíamos algum passeio diferente para que brincassem,
fomos várias vezes ao ‘Parque da Xuxa’. Em casa, eram
desenhos na TV e no papel, adorava desenhar e pintar com elas,
minha criança interna agradecia estes momentos. Aos
domingos, quando tinha sol, passávamos a tarde na piscina do
condomínio. Conforme foram crescendo, fomos nos adaptando
às vontades delas.
Em dez anos de casamento, nós não tivemos filhos. E não era
para isso ter acontecido, considerando que não usávamos
nenhum método contraceptivo. Este fato me fez acreditar que
eu não conseguiria realizar o meu sonho da maternidade nesta
vida. Ele sabia do meu desejo de ser mãe, mas engravidar nunca
foi pauta de nossas conversas. Como já era pai, então se sentia
realizado com esta questão pessoal. Enquanto eu, desejava
muito, mas ia adiando meu sonho. “Quem sabe aconteça no
próximo ano.” – sempre pensava com esperança. Quando um
novo ano começava, achava que seria o último que teria para
aproveitar a mídia, acreditando que cairia no esquecimento e,
quando isso acontecesse, poderia exercer meu papel de mãe
com tranquilidade. E assim, dez anos passaram, não engravidei
do João e a mídia não me esqueceu. Em 2008, desconfiei estar
grávida, a menstruação estava bem atrasada e sentia meu corpo
diferente com meus seios bem inchados. Passei um dia inteiro
idealizando e me imaginando sendo mãe. Chorei de emoção.
Mesmo ansiosa, quis esperar mais uma semana para então
comprar o teste na farmácia. Durante todos os dias, minha
imaginação fértil alimentava cada vez mais minha vontade de
me tornar mãe. Os dias passaram, nada de menstruar, o atraso
completaria um mês, pronto, tive certeza de estar grávida.
242
Fiz o teste preparada para o resultado positivo, aguardei os
minutos para comemorar e contar ao João sobre a novidade.
Para a minha decepção, deu negativo e dois dias depois,
menstruei. Fiquei arrasada.
Tivemos filhas pets, além da Tati e Duda que já existiam antes
de conhecê-lo, o convenci de termos mais duas gatas. A Aline
surgiu quando numa manhã com garoa forte, estávamos
chegando na casa dos pais dele e vi um movimento no matinho
do jardim, notei que era um filhote de gato que estava muito
assustado. Quando tentava me aproximar, fugia de mim.
Me mantive determinada a conquistar o pequeno felino, fiquei
mais de meia hora agachada, até que foi se aproximando de
mim aos poucos e consegui pegar no colo. Entrei na casa
comemorando minha conquista, mas João não gostou nada da
ideia, então tirei fotos e publiquei no meu Facebook pessoal em
busca de alguém que quisesse adotar. Em poucos minutos, um
amigo me chamou dizendo que queria, mais tarde levamos o
filhote para ele. Na manhã seguinte, me mandou mensagem
avisando que a gata não parava de miar e o vizinho reclamou do
barulho durante a madrugada, então queria me devolver.
À noite, quando fomos buscá-la, grudou no meu colo e
começou a ronronar alto. Aline nos adotou e João foi obrigado
a aceitar. Já em 2014, por vontade própria, ele fez surpresa ao
adotar um filhote que uma moça estava doando, é a minha Sky.
O nosso relacionamento foi tranquilo. Durante os dez anos,
brigamos poucas vezes, nenhuma briga foi do tipo que ficamos
sem nos falar. João é bem paz e amor, de uma maneira que
chegava a me irritar. O problema é que quando discutíamos, ele
se defendia me atacando. Sem reconhecer que estava errado ou
se reconhecia, guardava para si, encontrando uma maneira que
me fazia sentir estar mais errada que ele. Essa atitude não é
exclusiva do João, a maioria dos homens age dessa maneira.
Enquanto isso, eu nunca consegui guardar alguma insatisfação,
sempre quis resolver na hora, jamais consegui disfarçar e fingir
243
que estava tudo bem. Ele sempre foi carinhoso e brincalhão
com as amigas, eu que lutasse para controlar meus ciúmes.
***
Colhemos e saboreamos juntos todos os frutos que o auge da
fama nos proporcionou. Viajamos bastante, conhecemos vários
países durante a turnê do lançamento do livro traduzido em
outros idiomas. Ele sempre foi um ótimo companheiro de
viagem, nos divertíamos muito, qualquer tempo livre que
tínhamos entre os compromissos profissionais, aproveitávamos
para passearmos pela cidade que estávamos.
Realizamos juntos o sonho de conhecer o Museu do Louvre,
onde passamos uma tarde inteira e mesmo assim, não foi
suficiente para conhecermos tudo. Pirei na sala do Egito, não
queria mais ir embora dali nunca mais. Quando estávamos
diante ao quadro da Monalisa, me arrepiei todinha mesmo
tendo ficado surpresa com o fato de ser tão pequeno.
Conhecemos todos os pontos turísticos de Paris, foi a cidade
que conseguimos aproveitar mais, pois ganhamos um final de
semana de folga dos compromissos da divulgação do livro.
Em Lisboa, nunca vou me esquecer de algumas situações que
nos fizeram rir muito. Tivemos uma manhã livre, aproveitamos
para fechar um passeio turístico, nosso objetivo principal era
experimentarmos o famoso pastel de Belém. Vimos o roteiro
do passeio no mapa e era justamente na região, então fomos
com a expectativa de que em algum momento, pararíamos para
comer pelo menos um pastelzinho. Quando a guia turística nos
avisou que isso não fazia parte do roteiro, demos um jeito.
Uma das paradas do passeio era num museu de carroças, sendo
que estávamos a poucos quarteirões do pastel. Nos olhamos e
sem dizermos nada, antes de entrarmos no museu, resolvemos
fugir do grupo e ir matar nossa vontade. Parecíamos dois
adolescentes em fuga. Nos entupimos de pastel de Belém, cada
um comeu quatro. Missão cumprida com sucesso.
244
Quando estávamos retornando, achando que encontraríamos o
grupo ainda no museu, vimos que o ônibus estava ligado
pronto para partir, saímos correndo que nem dois loucos
acenando e gritando. Tínhamos deixado sacolas com souvenirs e
não poderíamos perdê-las. Quando entramos no ônibus,
levamos bronca da guia por nossa desobediência, com razão.
Uma outra situação cômica aconteceu numa loja de doces
próxima ao hotel, há muitos chocolates que não chegam ao
Brasil, então em todos os países, fomos atrás de guloseimas
diferentes. Enchemos uma cestinha com barras de chocolate.
Na hora de pagar, a moça do caixa percebeu que estávamos
conversando em português e puxou assunto:
- De onde vocês são?
- Do Brasil.
- No Brasil não existe chocolate???
Achamos que ela estivesse brincando, mas não estava.
Nessas de irmos em mercados ou lojas que vende doces,
acabamos nos empolgando em Milão. Era a nossa última noite
antes de retornarmos ao Brasil, então fomos jantar num
restaurante bacana para encerrarmos nossa viagem pela Europa
que durou quase um mês. Pedimos uma garrafa de vinho e
quando acabou, pedimos outra. O resultado é que conseguimos
ficar um pouco bêbados. Voltamos a pé ao hotel, pois não
ficava longe e no meio do caminho, paramos em um mercado.
Tivemos uma pausa na memória. De manhã, acordamos e nos
deparamos com várias sacolas no chão. Lembrávamos da parte
que paramos no mercado, mas não que fizemos praticamente
uma compra do mês. Dentre os produtos, um estoque de
bolinhos da marca Ferrero Rocher e pasmem, comida para cães
e gatos. Fizemos milagre para tudo caber entre os poucos
espaços que restavam nas malas.
Em 2016, no ano anterior, realizamos uma turnê na América
Latina, também por conta da divulgação do livro. A viagem foi
245
bem cansativa, com a agenda lotada de entrevistas, acabamos
ficando em off das notícias do mundo. Quando chegamos no
Brasil e pegamos um táxi no aeroporto, o motorista comentou
sobre o absurdo que estava acontecendo em São Paulo, não
estávamos sabendo de nada, então ele contou que a cidade
estava sofrendo ataques do PCC com direito a toque de
recolher, o comércio não estava funcionando a partir de certo
horário. Já estava anoitecendo quando chegamos em casa, mais
nada no bairro estava aberto, eram poucos carros nas ruas e
quase nenhum pedestre, parecia cena de filme que o mundo
acaba e restam poucos sobreviventes. A nossa geladeira estava
vazia porque a deixamos desligada, não tinha delivery de nada e o
medo era tão grande que não tivemos coragem de ir para a casa
dos pais dele, mesmo sendo bem perto. Não tínhamos noção
da gravidade e na dúvida, resolvemos ficar quietos em casa
comendo alfajor argentino para matarmos a fome.
Quando comecei a me apresentar como DJ no início de 2012,
conhecemos todos os cantos do Brasil. Além de marido,
advogado, empresário e assessor, ele acabou se tornando meu
segurança particular das baladas.
Tivemos nossos momentos de aproveitar a noite paulistana,
principalmente quando abriu uma casa de shows no quarteirão
atrás da rua onde morávamos e íamos a pé. Nesta época, fomos
em shows bem aleatórios: peça musical da Claudia Raia,
Armandinho, Emmerson Nogueira, Pet Shop Boys, Nando
Reis, Jota Quest, etc. Adorávamos peças musicais, fomos em
algumas e por duas vezes no ‘Fantasma da Ópera’. Também
fomos ao show da Madonna no estádio do Morumbi e num
espetáculo do ‘Cirque du Soleil’. Uma curiosidade é que nunca
fomos ao cinema juntos, mas assistimos vários filmes em casa e
maratonamos todas as temporadas da série Lost em menos de
um mês.

246
Em dez anos, apenas em dois momentos ficamos sem nos ver:
a primeira foi quando ele viajou a trabalho para uma cidade no
Sul e ficou dois dias lá e, durante os três meses que fiquei
confinada participando do reality show ‘A Fazenda’.
Como todo bom relacionamento, o nosso foi uma montanha-
russa com dias de luta e dias de glória. Colocando em uma
balança, o saldo foi positivo. Em 2013, não posso dizer que
estávamos em crise porque não brigávamos, mas caímos numa
rotina e nos acomodamos, sem querer nos tornamos dois
amigos morando juntos, o relacionamento perdeu a essência.
Os momentos a dois deixaram de existir. Quando saíamos, era
para irmos ao bar do Júlio, que ficava bem ao lado do prédio
onde morávamos, João ficava com os amigos numa mesa e eu
com minhas amigas em outra, não era um programa de casal.
Desde que nos conhecemos, João já era maçom, então estava
acostumada com o fato de segunda à noite ser sagrada para os
encontros com os irmãos da maçonaria. Como é algo secreto,
nunca soube o que de fato significa fazer parte disso, mas
sempre respeitei. Depois que o pai faleceu, ele e os irmãos se
revezavam para dormir na casa da mãe para não a deixar
sozinha. João dormia às terças e quintas. Nas quartas e sextas,
tínhamos compromisso no terreiro, pois nos tornamos
umbandistas em 2012, ou seja, as noites livres para apenas nós
dois, se tornaram raras. Quando ele estava em casa, começou a
jogar no Xbox, pois viciou num jogo de corrida de carros.
Estes tantos pequenos detalhes mudaram nosso cotidiano,
transformaram nosso relacionamento e a maneira como
lidávamos um com o outro. Fomos nos afastando aos poucos
como casal, cada um começou a viver no próprio mundinho
particular. Eu apenas não me sentia tão sozinha no dia a dia
porque comecei a passar a maior parte do tempo com a Fê,
minha amiga que morava no mesmo prédio. Nesta época, nossa
amizade que existia há alguns anos, se fortaleceu. Ela também
era casada, mas o marido passava bastante tempo fora de casa
247
ou então ficava jogando online a tal corrida de carro com o
João. Ainda bem que tínhamos a companhia uma da outra.
Nessa fase, nós dois estávamos no piloto automático e eu
estava sentindo indícios fortes de depressão, o que me segurava
em pé era a fé e idas ao terreiro, pelo menos estava me
cuidando espiritualmente. Apenas no ano seguinte, em 2014,
que minha ficha começou a cair que nós dois estávamos
infelizes um com o outro e sem mais expectativas com o
relacionamento, ambos empurrando com a barriga, deixando a
vida nos levar. Se tivesse uma amante ou quisesse se separar de
mim, eu entenderia e aceitaria, sequer o questionaria. Olhava
para ele e me perguntava o que estávamos fazendo ainda juntos,
não havia mais paixão nem química. O que sentia era um
carinho muito grande por ele e nossa história, e gratidão por
tantas coisas boas que fez por mim. Me sentia mal por não
querer mais aquela vida de casada e por meus questionamentos,
comecei a me achar a pessoa mais egoísta do mundo por não
estar conseguindo mais gostar do João como antes. Defeitos ou
atitudes que soube lidar bem durante nove anos, estavam me
incomodando demais. Um exemplo é que ele sempre roncou
demais, mas me acostumei e não me importava, no entanto,
nesta fase, o barulho estava me irritando todas as noites.
Me faltava coragem em colocar um ponto final na nossa
história, mesmo sentindo que estávamos sendo injustos, pois
não éramos mais felizes juntos. Acreditava que estivesse tendo
os mesmos sentimentos que eu e que também não tinha
coragem para me avisar que não queria mais. Resolvi parar de
brigar com meus sentimentos e esperar que ele terminasse
nosso relacionamento, mas esse dia nunca chegou e cheguei no
meu limite. Quando a ficha caiu que busquei inconscientemente
uma figura paterna no João para suprir meu vazio, eu pirei.
Buscar um pai-herói no homem que amamos é um dos maiores
erros que podemos cometer dentro de um relacionamento. Ele
sempre teve um jeito muito protetor, me defendia com afinco.
248
Não me cobrava nada, nunca quis mudar meu jeito de ser,
sempre respeitou minhas limitações e dificuldades. O que estava
bom para mim, estava bom para ele. Eu podia pedir qualquer
coisa que ele dava um jeito de fazer acontecer. Durante os anos
que estivemos juntos, me anulei demais e deixei de aproveitar
várias oportunidades ou de correr atrás de alguns objetivos,
pois me entreguei ao relacionamento de tal maneira que esqueci
da importância de cuidar da individualidade. Foi a minha
primeira experiência amorosa após o namoro na adolescência e
não queria errar, quis viver intensamente, mas esqueci de mim.
Não tem quem não goste do João, ele tem um coração gigante e
faz todos rirem por onde passa, é um amigo maravilhoso.
Estive por tantos anos ao lado dele, sei o quanto valoriza as
amizades e está sempre disposto a ajudar. Mantemos vários
amigos em comum. Quando nos separamos, muitos ficaram
chocados com a notícia, alguns queriam entender o que
aconteceu, como se buscassem um motivo grave, pois não
acabou por causa de traição ou com briga. E desde quando
relacionamentos acabam apenas quando acontece algo
realmente ruim? Eu queria muito entender por que há pessoas
que pensam desta maneira. O simples fato de uma pessoa não
estar mais feliz na companhia de outra já é um bom motivo,
não precisa de outro. Precisamos normalizar isso.
Para um relacionamento manter vivo, um não pode buscar a
felicidade no outro, mas os dois precisam estar felizes juntos.
O que vivemos juntos é uma questão muito bem resolvida para
ambos, encerramos nosso ciclo em 2015 com dignidade e respeito,
desejando o bem ao outro.

249
CAPÍTULO 5 – Bruna x Raquel

Depois da prostituição, sempre consegui separar muito bem a


Raquel da Bruna. Tanto para mim, como para as pessoas do
meu convívio, é muito perceptível as nossas diferenças, somos
duas em uma só. Todo mundo tem um alter ego, o meu é
notório e exposto. Sou o oposto do que a maioria imagina
como seja a Bruna Surfistinha.
Não espere que eu chegue nos lugares querendo ser o centro
das atenções, diga-se de passagem, tenho pavor disso. Ou então
que chegarei animando a festa, querendo fazer amizade com
todos ao meu redor. Sei que muitas pessoas me enxergam como
antipática, confundindo o meu jeito de ser de ficar na minha
quando esperavam que eu puxasse uma cadeira para me sentar
ao lado e conversasse como se fôssemos amigos de infância.
Não consigo mais fazer amizade com quem nunca vi na vida.
Já considerei como amigos, pessoas que não conhecia nem há
uma hora, mas depois de quebrar muito a cara, aprendi que
nem todos que mostram ser legais, realmente são. Nem todo
mundo que demonstra querer nosso bem, realmente quer.
Infelizmente, pessoas interesseiras são as que mais existem por
aí, eu já caí no papo de várias, mas quando me dei conta,
mesmo sendo tarde demais, me distanciei. Eram pessoas que
queriam ser amigas da Bruna apenas, queriam estar por perto
especialmente quando eu estava no auge. E a Bruna não precisa
de amigos, ela precisa apenas de mim.
Eu digo que tenho os melhores amigos do mundo porque eles
realmente são, posso contar com eles em todos os momentos.
Tenho alguns que não vejo pessoalmente há muito tempo, mas
a amizade continua firme e forte. É o caso dos amigos: Pati, Eli,
Will, Léo e Jana.

250
Conheci a Pati em 2004, ela era leitora do meu blog e num belo
dia, me mandou uma mensagem muito fofa, eu não conseguiria
deixá-la sem resposta. A nossa amizade começou virtualmente,
somos muito parecidas na maneira de pensar, agir e enxergar a
vida, talvez por sermos escorpianas do dia 28 de outubro. Nos
encontramos pessoalmente poucos meses depois e desde então,
há 17 anos, somos amigas. Neste período, nos encontramos
poucas vezes pessoalmente e, foi em um desses encontros que
ela me apresentou as melhores carolinas de São Paulo, que são
da padaria Letícia. Pati continua sendo minha leitora, mas dos
meus textões no WhatsApp.
Conheci o Eli em 2013, fui ser entrevistada em um programa
no extinto canal Mix TV e ele trabalhava na produção. Foi
amor à primeira vista, trocamos os números de telefone e nunca
mais paramos de conversar. Tenho vontade de guardar o Eli
num potinho. A última vez que nos encontramos foi em 2015
quando fomos na Javali, uma das melhores festas
LGBTQIAP+ que acontece uma vez por mês em São Paulo.
A última vez que encontrei com o Will pessoalmente foi em
2016, quando fui a Curitiba para ser DJ em uma festa. Nos
conhecemos através do Fê e a amizade começou no primeiro
almoço juntos. A mãe dele é a doçura em pessoa, quando dormi
na casa deles, pedi para que me adotassem.
O Léo é a minha amizade mais recente, nos conhecemos em
2019 também através do Fê, numa balada que fomos juntos.
Churrasco na casa dele aos domingos é tudo de bom. Participei
de um momento muito especial, quando ele assumiu a
homossexualidade ao pai, fico emocionada só de lembrar.
Léo é meu amigo-irmão mais novo que a vida me deu, mesmo
eu sendo dez anos mais velha, ele tem uma maturidade que me
impressiona. Aguardo ansiosamente a festa de formatura dele,
quero comemorar como se não houvesse o amanhã.

251
Conheci a Jana em 2012, na Casa de São Lázaro, é minha irmã
no Santo, uma das primeiras amizades que conquistei no
terreiro. Por muito tempo, fomos “vizinhas” na corrente de
médiuns, tínhamos nosso cantinho preferido. Ela foi minha
companhia nos rolês mais aleatórios: festa de funk em Joinville
( fui uma das Djs ), num festival de música, peça de teatro,
evento para vender produtos eróticos, Réveillon na Avenida
Paulista, etc. Temos uma conexão incrível, sentimos quando a
outra não está bem. Ela entende quando preciso ficar em off.
O tempo e a distância não abalam as amizades verdadeiras, pelo
contrário, sempre quando envio ou recebo mensagem de algum
amigo, sinto que nada mudou, conversamos como se
estivéssemos quebrando um silêncio de poucos segundos.
Entre minhas amizades, cobranças ou ciúmes não existem.
Dei alguns exemplos de quem faz parte do meu círculo de
amizades, tenho amigos que converso ou vejo com mais
frequência, mas confio em todos com a mesma intensidade.
Quando considero alguém como amigo, é porque tenho certeza
de que posso contar um segredo e confiar com os olhos
fechados. Esse é um dos detalhes que diferencia amigos de
conhecidos ou colegas. Coloco minha mão no fogo por todos,
compro briga se for preciso e sei que tudo isso é recíproco.
Dizem que os escorpianos são os amigos mais leais e fiéis que
existem e não tenho como negar isso.
***
Sempre quis mostrar as diferenças entre Bruna e Raquel.
Consegui realizar isso da melhor maneira possível, em 2011, um
ano que foi um marco gigantesco em minha trajetória.
No dia 25 de fevereiro, aconteceu a estreia do filme ‘Bruna
Surfistinha’ nos cinemas. Assinei contrato com a produtora em
janeiro de 2006, foram cinco anos intensos de produção e tive o
privilégio de acompanhar os bastidores desde o início.

252
Confiei de olhos fechados em toda a equipe envolvida.
Antes do início da elaboração do roteiro, tive uma reunião na
produtora com o diretor Baldini, ele colheu informações que
não estavam no livro. Foi um bate-papo que durou quase três
horas, contei detalhes importantes como a vontade de ter tido
um irmão, minha paixão platônica na infância pelo garoto que
passava finais de semana em Araçoiaba, sobre o Hud, aventuras
no Love Story, etc. Em outra tarde, a Gabi foi conversar com
ele sobre mim, afinal era a pessoa que me conhecia melhor.
Fiquei surpresa quando vi o resultado da nossa conversa: ganhei
um irmão fictício, mesmo que tenha sido bem diferente como
gostaria de ter tido na realidade, representou a educação
machista. O personagem do Cassio Gabus Mendes chama
Hudson. O nome do meu pai no filme é Otto, como chama o
garoto de Araçoiaba. Sou corinthiana roxa, o Dentinho fez uma
participação especial interpretando um cliente em uma cena,
sendo que na época, ele jogava no Timão.
Quando recebi o roteiro pronto para ser aprovado, me
surpreendi com a complexidade do texto, não imaginava que é
tão bem detalhado: além de todas as falas dos personagens, há a
descrição perfeita de cada situação e avisos ao diretor e editor
sobre as ações que precisam ser realizadas em cada momento.
Por ser tão rico em detalhes, consegui imaginar as cenas. Foram
poucas modificações até chegarmos ao roteiro final, as
mudanças foram simples, mas aprovei desde a primeira versão.
Em comum acordo, não houve exposição dos meus pais, sobre
a história real que envolve a família. Na época, quando as
notícias sobre o filme estavam começando a bombar na mídia,
um advogado contratado por meu pai, entrou em contato
impedindo que eles fossem expostos, mas como não fazia
sentido a inexistência de um núcleo familiar, acabou sendo
ficcional. Um detalhe que me surpreendeu bastante é que a
Clarisse Abujamra, atriz que interpreta minha mãe adotiva, além
da semelhança física, a interpretou perfeitamente.
253
O roteiro é a base de um filme, se for ruim não adianta ter o
melhor elenco do mundo. Os roteiristas conseguiram captar
toda essência da minha trajetória na prostituição. E por falar em
elenco, o período de testes foi longo, não sei precisar o tempo,
mas foram pelo menos três meses. Eu não acompanhei
diretamente, fiquei tendo notícias diárias enquanto os testes
aconteciam. A quantidade foi muito grande de atrizes
disputando o papel para me interpretar, entre desconhecidas e
famosas. Quando os jornalistas me perguntavam quem eu
gostaria que me interpretasse, sempre saí pela tangente para
evitar climão e não desmerecer o trabalho ou desmotivar
alguém. Me coloquei no lugar, pois se estivesse disputando um
papel e a pessoa a ser interpretada, dissesse estar torcendo e
preferindo que fosse “fulana”, confesso que eu me desanimaria.
Ao receber a notícia que a Deborah Secco aceitou o convite do
diretor, não me contive de emoção. Dei pulos de alegria e berrei.
A série ‘Confissões de adolescente’ marcou demais minha pré-
adolescência, assisti todos os episódios. Mesmo não sendo
noveleira, acompanhei alguns trabalhos dela e sempre a admirei.
Demorou para a ficha cair que me interpretaria no filme, isso
apenas aconteceu quando nos conhecemos pessoalmente.
O preparador de elenco, o Sérgio Penna, é um gênio, não tem
como não amar o estilo maravilhoso de trabalho dele. Todo
cuidado e a sensibilidade que ele tem com cada personagem e
todos os atores, é impressionante. O olhar dele transmite paz, é
uma pessoa que a gente tem vontade de estar por perto.
O laboratório da Deborah não foi diretamente comigo, mas
com garotas de programa que ainda se prostituíam na época.
A primeira informação que recebi, foi que nós duas não nos
conheceríamos antes do início das gravações, para que nosso
encontro não interferisse na construção da Bruna. Não gostei,
mas não questionei, entendi e respeitei. No entanto, em uma
terça-feira, a poucos dias para o início das gravações, me
ligaram da produtora, avisando que a Deborah estava em São
Paulo e queria muito me conhecer.
254
Desmarcaria todos os compromissos, caso existisse algum,
jamais perderia a oportunidade. Não consegui dormir na
véspera do nosso encontro, tamanha era minha ansiedade.
Nem tinha roupa para este evento e fui sentindo todas as
borboletas na barriga. Nosso encontro foi bonito, com um
longo e forte abraço, não sei dizer quem estava mais
emocionada. A Deborah é gente como a gente, super humilde.
Precisei segurar as emoções porque minha vontade era de
abraçá-la e não soltar nunca mais. Passamos a tarde conversando
como se fôssemos amigas de infância, o bate-papo foi dividido
em duas partes, primeiramente apenas nós duas e depois com a
presença do Sérgio Penna. Ela demonstrou estar transbordando
de felicidade com o papel, o que me deixou ainda mais
empolgada. Depois nos encontramos nos bastidores das
gravações, mas ela já estava incorporada na Bruna.
Eu não imaginava que as cenas não são gravadas respeitando a
sequência e cronologia dos fatos da história. É a edição que
constrói o filme reunindo e colocando em ordem todos os
fatos. As cenas que duram segundos num filme, podem precisar
de horas para serem realizadas. Um exemplo disso, foi a
gravação da festa chique, quando a Bruna sai toda plena da
concha. Começou às 19hs e foi até o amanhecer, foi cansativo.
O resultado desta cena no filme não dura nem um minuto.
Eu parecia uma boba observando atenta cada momento, me
arrepiando com todos os gritos de “AÇÃO”. A sensação é
indescritível, uma emoção muito grande ver tantas pessoas
envolvidas para a realização de um filme baseado em mim. Mais
de uma vez, tive o pensamento: “Se eu não tivesse tido coragem
de sair da casa dos meus pais para me prostituir e depois de dar
a cara à tapa para a sociedade, nada disso estaria acontecendo...”.
Quando fui gravar minha participação especial como hostess do
restaurante quando Bruna e Hudson foram jantar, foi outro
momento inesquecível, um privilégio contracenar com a Deborah
e o Cássio. Minhas pernas tremiam tanto, achei que não
conseguiria chegar à mesa ou dizer algo, eles me acalmaram.
255
Para a minha sorte, precisamos repetir esta diária. Na primeira
vez, gravamos no restaurante que ficava na loja Daslu, depois
regravamos no Paris 6, em São Paulo, o qual aparece no filme.
A energia das gravações era forte demais, coisa mais linda.
Todo o elenco, sem exceção, me tratou com muito carinho.
O núcleo das garotas de programa ficou perfeito, as atrizes
atuaram com muita entrega aos personagens e sintonia entre
elas. Infelizmente, não tive oportunidade de conhecer a Drica
Moraes, as diárias de filmagem que estive presente não
coincidiram com cenas que ela participava. E quando aconteceu
a pré-estreia no cinema, reunindo todo o elenco, Drica estava
internada no hospital lutando contra a leucemia.
A fase de conseguir patrocinadores foi tensa, as principais
empresas que investem em filmes nacionais, infelizmente não
quiseram associar a prostituição à imagem delas. Na época, este
fato me deixou bem chateada, mas no fim deu tudo certo.
A Deborah se entregou ao papel da Bruna de tal maneira que
consigo me enxergar em todas as fases representadas no filme:
adolescência, auge na prostituição, derrotada no fundo do poço,
empoderada. Enxergar a transformação de adolescente para
mulher, me emociona demais. Perdi a conta de quantas vezes já
assisti ao filme, decorei as falas. Gosto de assistir quando estou
chateada por algo que não deu certo, pois me fortalece relembrar
parte do que enfrentei e ver onde consegui chegar.
No período que ficou em cartaz nos cinemas, mais de 2 milhões
de espectadores foram assistir. Foi exibido duas vezes na Globo
(Super Cine e Corujão) e sempre está passando em canais
fechados, principalmente no Canal Brasil e Telecine.
Faz 10 anos que foi lançado e o fato de ainda continuar sendo
sucesso, me deixa lisonjeada. O resultado superou minhas
expectativas, resumiu bem meus altos e baixos na prostituição,
sem romantização. Todos os detalhes são perfeitos, não
mudaria nada, nem mesmo a parte ficcional da família. A trilha
sonora também é maravilhosa, todas as músicas se encaixam
256
perfeitamente, não acreditei quando soube que uma delas seria
Fake Plastic Trees da banda Radiohead, pois é uma das músicas
que marcou minha adolescência. Ela surge numa cena muito
forte, não aguento segurar as lágrimas: “Meu nome é Raquel.”
Quando a produtora resolvia a parte burocrática para incluir
essa música na trilha, a banda quis assistir o filme antes de
autorizarem. Como já estava editado na época, assistiram pronto.
Por muito tempo, meu pensamento era: “Caralho, eu tenho um
filme baseado em minha vida!” com um sentimento de achar
muito estranho porque sempre achei minha vida muito normal.
De uns tempos para cá, estou enxergando de uma outra
maneira, sem mais estranheza, já entendendo quais são os
motivos que tornam a minha trajetória ser especial e merecer
ser contada em um filme.
***

A FAZENDA 4
Em 2006, um produtor do SBT entrou em contato dizendo que
queria marcar reunião comigo para conversar sobre o projeto
de um programa porque meu nome estava em alta, comentou
que não poderia passar mais informações por telefone, mas
queria saber se eu tinha interesse. Mistérios me atraem.
Marcamos a data e fui matar minha curiosidade. Soube então
que Silvio Santos queria retornar com o reality ‘A casa dos
artistas’ ainda naquele ano e recebi o convite para participar.
Aceitei. Assinei um termo de confidenciabilidade porque a
informação não poderia vazar de jeito nenhum. No fim, o
projeto de retomarem com o reality não foi para a frente.
Cinco anos depois, no final de janeiro, recebi convite para
participar do reality ‘A Fazenda’, também foi algo super discreto
e sigiloso. Na época, eu tinha um empresário, o Gi, que
negociou o valor do cachê e acertou todos os detalhes do
contrato. A edição começaria em julho, então eram quase seis
257
meses para me preparar tranquilamente. A ansiedade tomou
conta de mim por ter tanta certeza do quanto seria uma boa
oportunidade para mostrar quem eu sou, em outras palavras,
quem é a mulher que dá vida à Bruna Surfistinha. Meu principal
objetivo era mostrar meu lado humano e tudo o que queria era
que as pessoas me enxergassem. Além disso, ainda tinha
esperança de me reconciliar com meus pais adotivos, então
pensei na possibilidade deles me assistirem e criei expectativas.
Na tarde que fui à Record para assinar o contrato, já tinham me
avisado que eu não poderia comentar com ninguém sobre o que
estava fazendo lá. Pois bem, cheguei na emissora e antes de
entrar, resolvi fumar um cigarro na calçada, algumas pessoas
estavam por perto, uma moça me reconheceu e qual foi a
primeira coisa que ela disse?
- Oi, Bruna! Que surpresa te ver aqui! O que você veio fazer?
Aqueles segundos de silêncio com um leve bug no cérebro.
Não tinha pensado em nenhuma resposta caso alguém me
perguntasse, sinceramente achei que isso não ocorreria tão cedo.
- Vim dar uma entrevista para o R7! – foi a primeira coisa que
surgiu na cabeça. Respondi gaguejando, mas acho que colou.
Ainda era janeiro e as pessoas ainda não estavam tentando
descobrir quem seriam os participantes da próxima edição.
Iniciamos os preparativos, a organização da produção é
impressionante. Em uma manhã, fui ao hospital para realizar a
bateria de exames. Assim que cheguei, notei que uma área
estava reservada exclusivamente para atender os participantes,
evitando que pacientes comuns não tivessem acesso a nós.
O check-up foi completo para identificar qualquer problema de
saúde, desde os simples aos mais graves. Quem tem HIV ou
alguma outra questão grave, o contrato é rescindido sem multa.
Nesta avaliação de saúde, é o momento que o participante
precisa avisar se faz uso de alguma medicação contínua, não sei
258
exatamente como esta questão é resolvida, mas fiquei sabendo
que a parte burocrática em relação a isso é chatinha porque
precisa checar as informações com o médico pessoal, pois nem
todos os remédios são liberados para o uso durante o reality.
Os participantes não ficam em poder dos medicamentos, é tudo
muito bem controlado pela produção. Quando está no horário
de alguém ser medicado, há um aviso sonoro com a mensagem:
“Fulano, dirija-se à despensa, seu medicamento está disponível”.
Esses momentos não são exibidos na edição da TV, mas por
conta dos avisos, nós ficamos sabendo quais participantes
tomam remédios controlados. Na minha edição, eram poucos.
Na manhã do hospital, há consulta com um nutricionista que
precisa saber tudo sobre nossa alimentação, se somos intolerantes
a algo e o que mais gostamos de comer, então a produção fica
sabendo quais são os principais alimentos consumidos no grupo.
O segundo passo foi marcar uma data para a produção buscar
minhas roupas e produtos - higiene, cremes de beleza e
maquiagens - que eu usaria durante o reality. As exigências são:
não pode nenhuma peça que a marca esteja evidente e tudo o
que queremos levar, precisa caber nas três malas, não pode
exceder a bagagem. Uma é apenas para peças de roupas, outra
para sapatos e uma maletinha que é a necessaire. Precisamos
organizar tudo pensando no desejo de ficar três meses, ou seja,
este período todo com as mesmas peças e produtos. Foi uma
tarefa bem difícil organizar tudo o que levaria. A mala para as
roupas é grande, mas não para quem sempre levou o triplo do
necessário em viagens. Quando comecei a separar as roupas, me
dei conta que a maioria era com a marca evidente, então fiquei
com poucas opções de peças. Precisei comprar quase tudo
novo apenas para levar, priorizei roupas confortáveis, afinal é
uma fazenda e não ficaria usando calças jeans, vestidos de
festas, salto alto etc. Na necessaire, não precisava levar sabonete,
shampoo e outros produtos para o cabelo porque poderíamos
usar à vontade da marca patrocinadora. Se o participante fizesse
259
questão de levar de alguma marca específica, era permitido
desde que tirasse ou escondesse o rótulo. O que não foi o meu
caso, sempre fui desapegada a marcas de produtos para cabelo.
O mesmo valia para produtos de beleza em geral, cremes para o
rosto e o corpo, era só esconder a marca. A minha necessaire foi
praticamente vazia porque não uso produtos de beleza, nunca
fui vaidosa. Levei apenas produtos para higiene bucal, hidratante
para o corpo, escova de cabelo, dois frascos de perfume,
maquiagem básica (base, lápis de olho, rímel, sombra preta e
gloss) e um bronzeador ‘Australian’ que, se eu soubesse que
ninguém mais fosse levar e ainda usariam o meu, teria levado
um estoque, pois o frasco acabou em menos de um mês.
Ainda era março quando a produção foi buscar minha bagagem.
Recebi em casa duas produtoras que levaram as malas de uma
maneira bem discreta, embaladas num tecido preto, afinal
estavam com adesivos do logotipo do programa e do meu nome.
Elas tiraram as medidas do meu corpo para os figurinos que eu
usaria nas festas e o macacão das provas. Ou seja, foram quatro
meses controlando a alimentação para manter o peso e as
medidas, não poderia engordar nem emagrecer e, com minhas
crises de ansiedade, isso foi um grande desafio, mas consegui.
Por fim, a última etapa da pré-produção, foi a gravação das
chamadas para a divulgação do reality e a sessão de fotos que
ocorreram num estúdio fora da Record. Depois disso, houve
uma longa pausa e entraram em contato alguns dias antes da
estreia para combinarmos o dia que me buscariam, foi quando
avisaram que ficaria isolada num hotel antes de ser levada à fazenda.
No sábado, um dia antes de me buscarem, reuni meus amigos
mais próximos e realizei um churrasco no estilo ‘bota-fora’.
Meu sentimento era que ficaria os três meses no reality, minha
intuição me dizia isso, mas para variar, me sabotava e não
acreditava que teria capacidade de chegar na final. Eu dizia ao
João: “Eu sei que serei eliminada na primeira roça que for!”.
Em seguida, intuía que não era isso, que estava falando besteira.
260
No domingo, me buscaram às 10hs, me despedi das minhas
filhas pets com o coração apertado por saber que ficaria muito
tempo longe, por mais que soubesse que João cuidaria muito
bem delas, estava preocupada que sentissem muito minha falta.
Me avisaram que ninguém poderia me acompanhar até o carro,
eu teria que ir sozinha e entrar direto. Não podíamos chamar
atenção das pessoas que estivessem passando na rua, tínhamos
que manter a discrição mais do que nunca, afinal as chamadas
divulgando a estreia da nova temporada já estavam sendo exibidas.
Além disso, as listas com os possíveis participantes estavam
sendo divulgadas, o meu nome estava em todas que vi.
Antes de sair de casa, minha despedida foi intensa. Abracei o
João como se nunca mais fomos nos ver na vida. E abracei a
Tati e a Duda quase as esmagando. Peguei minha bolsa e parti
para viver a experiência mais louca que eu poderia ter na vida:
ser vigiada por 24 horas e conviver com pessoas que não tinha
noção de quem eram. A bolsa era a qual ficaria comigo apenas
durante minha estadia no hotel, com algumas peças de roupas e
produtos de higiene. Era permitido levar livro e cigarro, e
extremamente proibido levar celular e qualquer outro aparelho.
Quando vi que era uma van, achei que os demais participantes
estariam lá dentro e então descobriria quem seriam meus
colegas de confinamento. Ledo engano. Além do motorista,
estava uma mulher responsável para cuidar de mim, se
apresentou dizendo: “Serei sua babá a partir de agora até o
momento que for embora do hotel”. Ela foi extremamente
simpática comigo, fomos conversando quase o trajeto inteiro.
Eu não tinha ideia para onde estava sendo levada, onde ficava o
tal hotel. Obviamente tentei tirar algumas informações da
minha babá, mas ela não podia me dizer nada. Tudo secreto.
Todas as janelas da van estavam com um tecido preto, eu não
conseguia ver nada do lado de fora, assim como ninguém me
via dentro. E o vidro frontal, do motorista, estava totalmente
fora do meu campo de visão. Não sei por quanto tempo fiquei
261
andando na van, mas foi o suficiente para me cansar de ficar
sentada. Quando minha paciência esgotou, perguntei o horário,
mas nem isso a babá pôde me responder. Entendi que o jogo já
havia começado, eu precisava perder a noção do tempo. E perdi.
De repente, a van parou, pensei que fosse mais um semáforo
fechado, mas o motorista disse: “Chegamos, esperem um pouco!”
Uma mulher abriu a porta, entrou rapidamente, segurava um
grande tecido preto e me avisou: “Bruna, preciso te esconder
porque há muitos hóspedes no hotel e ninguém pode te ver!”.
Ela me cobriu inteira com o tecido, sem qualquer buraquinho
para respirar e, não conseguia enxergar nada, nem vultos.
Ouvia muitas vozes ao meu redor, concluí que estava cercada
por pessoas que trabalhavam na produção, alguém segurava
meu braço me direcionando para onde tinha que ir. O trajeto
foi longo, tive vontade de chorar, fiquei desesperada. O fato de
não conseguir respirar direito nem poder ver nada, mexeu com
algum trauma e se tornou um gatilho. Me sentia sufocada, sem
poder sair debaixo daquele pano, a vontade de gritar “Chega!”
foi ficando cada vez mais forte. Comecei a suar frio, meu
coração estava disparado. Por mais que eu soubesse que podia
confiar naquelas pessoas que estavam ao meu redor e me
guiando, foi um momento de muita angústia e adrenalina.
“Bruna, pode parar de andar!”. Obedeci. Ouvi uma porta
fechando atrás de mim, finalmente tiraram o tecido, respirei
fundo antes de abrir os olhos. Estava num quarto grande com a
babá e uma produtora que me avisou: “Você vai ficar aqui por
um tempo, um segurança ficará do lado de fora, na frente da
porta por 24 horas, não tente sair daqui, sua babá cuidará de
você. Boa sorte!”. E saiu antes que eu pudesse perguntar algo.
A babá me levou para conhecer o quarto, na verdade, era um
apartamento. A sala onde estávamos tinha um sofá para quatro
pessoas, mesinha de centro, uma decoração maneira, acredito
que a cortina escondia uma varanda grande. Fomos ao quarto
que ficava bem ao lado, com uma cama apenas para mim, um
262
móvel com televisão e um aparelho de DVD, mas logo fui
avisada: “Você está proibida de assistir TV, poderá ver apenas
os Dvds que estão ali em cima do aparelho”. Eram dois filmes:
o desenho ‘Up - Altas Aventuras’ e ‘PS: Eu te amo’.
Não parei de assistir, revezando entre um e outro, chorei tanto.
E por fim, ela me levou ao banheiro que era lindo e grande,
tinha uma banheira com hidromassagem com espaço para
quatro pessoas, mas seria apenas minha. Meu sonho de princesa.
Era um espaço bem aconchegante, maravilhoso para lua-de-mel.
Depois de me mostrar tudo, a babá avisou que me deixaria
sozinha, mas que me visitaria várias vezes para saber como eu
estava e para levar minhas refeições. Me entregou o cardápio
para escolher o almoço, era uma opção melhor do que a outra.
Escolhi também a bebida e sobremesa. A comida era deliciosa,
me dei bem em todas minhas escolhas, o pudim era para comer
rezando, foi minha sobremesa durante toda estadia, nem quis
experimentar outro doce. Infelizmente, não tinha bebida
alcóolica para relaxar com uns bons drinks na banheira.
Assim que ela me deixou no quarto sozinha, procurei por
câmeras escondidas. “Vai que já estejam me filmando!” - pensei.
Procurei por todos os cantos possíveis e não encontrei nada.
Tentei abrir as cortinas, tanto da sala como do quarto e não
consegui, estavam muito bem presas, espiando nas pequenas
frestas, vi que os vidros estavam cobertos com tecidos pretos.
Eu estava realmente isolada, sem qualquer tipo de contato com
o mundo externo. Concluí que meu quarto ficava bem na frente
da piscina por conta do barulho, eram muitas vozes de crianças
e adultos, e ouvia som da água quando pulavam para entrar.
Fucei a TV para ter certeza que realmente não tinha como
assistir noticiários, mas o único cabo ligado era do aparelho de
DVD. Estar num quarto incrível me proporcionou sensação de
paz, mas quando a solidão batia, rolava um certo desespero.
Ainda bem que pude levar cigarro, senão teria roído todas as
263
unhas durante minhas crises de ansiedade. Passava o tempo
entre assistir filme e ficar na banheira pensando na vida.
A babá foi me visitar várias vezes, tive muita sorte porque ela
foi muito fofa comigo, se preocupava, queria me dar atenção.
Me disse que estava feliz por ter sido escolhida para esta missão
comigo, pois era muito minha fã. Demos boas risadas juntas.
Percebia a preocupação dela por estar me dando mais atenção
do que deveria, foi extremamente profissional e não me passou
nenhuma informação externa. Como era a única pessoa com
quem eu tinha contato, foi inevitável não me apegar a ela.
No dia que cheguei, almocei assistindo UP, quando terminou,
coloquei o PS, acabei dormindo na metade. Não sei quanto
tempo durou meu sono da beleza, mas quando acordei, não
ouvia mais nenhum barulho da piscina, concluí então que era
noite, mas não tinha noção do horário. Fui até a porta para
tentar escutar algo, ouvia vozes masculinas bem de perto, era
do segurança na frente da minha porta conversando com outro.
A conversa estava muito aleatória e não tive paciência para ficar
prestando atenção, então fui aproveitar a banheira. A babá foi
me perguntar o que eu queria comer, comentou que tinha ido
mais cedo, mas eu estava dormindo. Apenas saí da banheira
quando ela voltou com o jantar, consegui relaxar bastante.
Deitei e dei play no filme PS, dormi novamente. Acordei com a
babá levando meu café-da-manhã. Ainda estava com tanto sono
que não sabia se ela tinha aparecido muito cedo ou se eu que
tinha dormido pouco. Então fui até a janela para ouvir sons de
humanos, já tinha barulho na piscina, mas não tanto, concluí
que deveria ser 9hs no máximo. O tempo foi passando entre
assistir os dois filmes, refeições, conversas com a babá, cochilos,
reflexões na banheira, cigarros para controlar a ansiedade.
Recebi a visita de uma psicóloga, ela queria saber como eu
estava emocionalmente e viu que estava tudo sob controle,
apesar da minha ansiedade extrema. Criei expectativa que eu e
os demais participantes seriamos levados à fazenda naquele
264
mesmo dia, pensei nisso porque achei que a psicóloga estava
confirmando se todos estavam bem para sermos liberados do
isolamento, mas me enganei e fiquei ainda mais ansiosa.
Mais um tempão passou, um novo dia chegou, tomei café-da-
manhã e percebi que a babá estava eufórica, mas não comentou
nada comigo. Estava assistindo pela milésima vez o UP quando
duas moças apareceram, uma era produtora e a outra, maquiadora.
Foram me arrumar. Enfim, chegou o dia de irmos à fazenda.
Era inverno, em São Paulo estava bastante frio, então levei uma
roupa bem quente para chegar na fazenda: botas, jeans e um
casaquinho. Ótimo look para encarar 40 graus em Itu. Achei que
a maquiagem fosse derreter no rosto, o calor estava insuportável.
Para sair do quarto e ir embora do hotel, me cobriram com o
tecido preto, mas dessa vez, eu estava mais tranquila. Entrei na
van, me descobriram e fiquei feliz quando vi a babá ao meu
lado, achei não nos encontraríamos mais. O trajeto foi longo e
quando chegamos, ficamos aguardando porque havia uma
sequência para os participantes entrarem, ainda não podíamos
nos ver, o encontro de todos seria apenas dentro da fazenda.
Ficamos bastante tempo esperando, até que uma produtora
abriu a porta da van e avisou: “Bruna, se prepare, você será a
primeira que entrará, a gravação começará em cinco minutos”.
Gelei. Como assim a primeira???
A babá pegou em minha mão e se despediu de mim com
palavras lindas, disse que estava torcendo para me ver na final.
Desci da van, olhei ao redor e vi todas as outras. O calor infernal
típico de Itu fazia contraste com o frio da minha barriga.
Colocaram microfone em mim e me levaram até a frente do
portão. Tinham muitas pessoas trabalhando nos bastidores.
Abaixei a cabeça para me concentrar e fechei os olhos.
Enquanto prestava atenção nas várias vozes ao redor, alguém
gritou com força: “Vamos começar em 5,4,3,2,1... AÇÃO!”.

265
O portão abriu e me vi diante à fazenda, não conseguia pensar
em nada, estava em êxtase, não sabia se ria de desespero ou se
chorava de emoção. Mirei na casa da sede, o caminho para
chegar nela era maior do que imaginei, a fazenda parece ser
menor na televisão. O ruim de ser a primeira a chegar é que não
tem ninguém para nos receber, então fiquei na varanda da sede
sem saber o que fazer. Enquanto outro participante não chegava,
apreciei a vista e senti uma boa energia, estava empolgada e feliz.
Era muito mato para todos os lados, o terreno gigante, não existia
vizinho próximo, a fazenda é isoladíssima da humanidade.
Vi alguns homens com câmeras na lateral da sede, conhecidos
como ninjas, usam roupas pretas e um capuz na cabeça, apenas
é possível ver os olhos deles. Dá um pouco de aflição no início.
Demorou para a segunda pessoa chegar e não me lembro quem
foi, tenho quase certeza que era a modelo Taciane. Até todos os
participantes chegarem, foi uma eternidade. Em um canto da
varanda, estavam todos os pares de galochas e percebi que
tinham nomes escritos em etiquetas, fiquei curiosa e fui ler de
pertinho, consegui ver de poucos: Duda, Dinei, Ana e Valesca.
Iniciamos então a quarta temporada do reality A Fazenda.
A única pessoa que conhecia pessoalmente era a atriz Ana
Markun. Na época, o Tom Cavalcante tinha um programa na
Record e durante um tempo, existiu um quadro que chamava
‘Bruna Cachacinha’, Tom me interpretava e a Ana fazia parte
do elenco que contracenava com ele. Em março daquele ano,
fui convidada para participar da última gravação do quadro, tive
o privilégio de contracenar com o Tom e então conheci a Ana,
foi uma surpresa muito boa reencontrá-la na fazenda. Quanto
aos outros participantes, os conhecia apenas na televisão, com
exceção da Taciane e do Françoise que, por serem modelos,
não eram conhecidos na mídia.
Tive sorte de participar de ‘A Fazenda’ raiz, com o Britto Junior
como apresentador, casinha da roça e participantes conhecidos.
266
Não me lembro em qual momento que o reality perdeu a essência.
Nos primeiros três ou quatro anos após a minha temporada,
assisti com sentimento de nostalgia, me dava muita saudade e
vontade de estar ali novamente, no entanto, após as mudanças
repentinas, perdeu um pouco a graça, mesmo assim continuo
assistindo todos os anos. Como não acompanho a vida dos
artistas de uma maneira intensa, não sei quem são a maioria dos
participantes nas edições, sempre preciso pesquisar no Google.
Não estou os desmerecendo, eu que sou alienada.
Enfim, todos meus colegas de confinamento tinham chegado
na sede, o grupo da minha edição estava formado. Em um
primeiro momento, não me identifiquei com ninguém, mas
estava aí o principal desafio: conviver com pessoas que não
conhecia, com personalidades bem distintas e mundos diferentes.
Levei comigo todas as minhas dificuldades, uma delas é o fato
de não conseguir fazer amizade com facilidade. Demorei para
confiar em alguém e me aproximar querendo conquistar amizade.
Fui bem recebida por todos, mas sei que muitos falavam mal de
mim nas minhas costas. O maior desafio de convivência, sem
dúvidas, foi aguentar o João Kléber, ele consegue ser mais
chato do que é como apresentador. Não consegui engolir o
comportamento dele, sempre muito forçado, não me passava
verdade em nenhum momento. Outro que testou minha
paciência foi o Dinei, que demonstrou ser muito infantil.
O Compadre Washington parecia um senhor rabugento que
reclamava mais do que qualquer outra coisa, mas passei pano
porque estava vivendo o luto de ter perdido recentemente a irmã.
Me senti muito bem acolhida por Ana Markun, ela me deu
muita força e esteve ao meu lado desde o início. A boxeadora
Duda que tinha um jeito de ser brava, mas foi muito doce e
amorosa comigo. A Monique Evans foi uma mãe para mim.
A Valesca Popozuda me surpreendeu demais, foi com quem
mais conversei, tivemos muitas afinidades, ela era minha
principal companhia, principalmente durante as madrugadas.
267
Ficamos realmente sem contato e incomunicável com o mundo
externo, não recebemos informações sobre o que está ocorrendo
fora da fazenda. É um detox forçado de notícias ruins. Durante
a fase de pré-produção, avisamos se queremos receber notícias
da família em caso de mortes. Eu decidi não ficar sabendo, a
maioria escolhe não querer saber sobre falecimentos.
Estar na roça é mais tenso do que imaginei, lá dentro nós não
temos noção quem são os preferidos do público, quem ficará
ou será eliminado do jogo. A primeira vez que encarei a roça foi
com o modelo Françoise, mesmo sabendo que eu era mais
conhecida do que ele, isso não significava nada, estava morrendo
de medo de ser eliminada pelo público. Na segunda vez, fui
com o João Kléber e tive ainda mais medo porque acabaria com
minha autoestima se eu fosse eliminada. E faltando apenas três
semanas para o reality acabar, fui para a roça com o Thiago, daí
eu não tive medo porque tinha certeza de que seria eliminada,
pois imaginei o irmão dele, o Bruno Gagliasso, fazendo uma
forte campanha nas redes sociais para que eu fosse eliminada.
Fui acreditando que o jogo acabaria ali para mim, tanto que até
levei um susto quando Britto anunciou que eu continuaria.
Depois soube que a disputa foi bem acirrada, ele foi eliminado
com 51%, ou seja, permaneci com uma diferença mínima, sou
muito grata pela minha torcida ter conseguido este feito.
A casinha da roça, onde os participantes ficavam desde o
momento que se tornavam os roceiros da semana até a noite de
eliminação, não tinha conforto nenhum, a comida era bem
limitada, mesmo assim, conseguia ser aconchegante, me sentia
morando numa casa bem simples no interior. A casa da sede
parecia ser um estúdio gigante, com ar-condicionado ligado por
24hs, iluminação forte e ouvíamos a movimentação das câmeras
atrás dos espelhos que cercavam todas as paredes. Observando
bem, era possível ver vultos de pessoas e lentes das câmeras.
Amei cuidar dos animais, em especial do Lino, a lhama que me
apeguei. Tenho guardado um tufo de pelos dele de lembrança.
268
Não gostei de cuidar das galinhas porque sentia dó por precisar
tirar os ovos debaixo delas e isso era obrigatório, senão rolava
punição. A reação delas era muito triste, reclamavam de uma
maneira que era nítido que estavam protegendo a cria. Prometi
que nunca mais comeria ovos porque me lembraria do sofrimento
delas, no entanto, não consegui cumprir, não vivo sem omelete.
Gostei de cuidar das cabras apesar de me darem canseira no
momento que precisava prendê-las novamente no espaço delas.
Amei cuidar das ovelhas que são super fofas e dos cavalos.
Na semana que precisei cuidar dos avestruzes, fiquei com medo
de ser atacada por eles. Quando cuidei dos porcos, todos os
dias passei mal com o cheiro ruim e não tinha paciência com a
rebeldia deles. Apenas não cuidei das vacas porque nenhum
fazendeiro me escolheu para ser responsável por elas, mas por
um lado foi ótimo porque era o primeiro sinal que tocava, então
quem cuidava delas, precisava acordar mais cedo que os demais.
Sempre amei andar a cavalo, então ter a oportunidade de cuidar
deles na fazenda foi uma experiência incrível para mim. É uma
terapia dar banho neles e pentear a crina. Eu esquecia da vida.
Em uma manhã, quando finalizei os cuidados, levei a égua à
baia, ela foi para cantinho dela, então levei o cavalo e antes de
fechar o portãozinho e ir embora, tive a brilhante ideia de dar
beijos nele, na lateral da barriga. Fechei os olhos para este
momento romântico, quando terminei de dar mais um beijo,
senti uma dor muito forte nas minhas costas. Foi tão rápido que
não vi nada, a sensação foi de ter rasgado a pele, abri os olhos e
entendi o que aconteceu: o cavalo me mordeu. A dor foi tão
insuportável que eu berrei, a Ana estava por perto e me levou
até a sede. Eu não conseguia ver o machucado, mas fiquei aflita
com a reação das pessoas quando viam. Tive medo de ter sido
grave e precisar ir embora. Não demorou muito para um aviso
sonoro me chamar para ir à despensa. Um médico estava me
esperando, ele examinou o machucado e disse que tive sorte, foi
por pouco que o cavalo não arrancou um pedaço da minha pele.
269
Fiquei com a marca dos dentes e um grande hematoma roxo.
Fui medicada e um dos remédios me derrubou de tanto sono.
O tratamento durou uma semana, parei de sentir dor. Tenho até
hoje a cicatriz como lembrança. Não deixei de cuidar deles, no
dia seguinte, estava na baia como se nada tivesse acontecido,
também não me causou trauma. Entendi que a mordida foi um
ato de defesa, o cavalo não tinha como saber que eu estava
dando beijos, por algum motivo, ele se sentiu ameaçado por mim.
Morar com outras 14 pessoas é uma experiência intensa e tensa,
cheia de perrengues e dificuldades. Imagine que é um único
banheiro para todos usarem, dividir a privada com tantos
homens significa ter que aguentar a sujeira que deixam com
pingos de xixi e pentelhos perdidos no vaso, fora os que não
dão descarga. Teve dias que a situação de higiene estava pior
que banheiro de posto de gasolina na beira de estrada, sem
exagero. Não limpar a própria sujeira, sem pensar no próximo
amiguinho que usará o banheiro, é muito egoísmo. Era péssimo
também quando havia fila para usar. Sofri com prisão de ventre
porque não conseguia relaxar ao imaginar que poderia ter
alguém do lado de fora me esperando sair para usar o banheiro,
então meu intestino travou, funcionava apenas com remédio.
Os alimentos disponíveis eram em uma quantidade limitada,
motivo que causava conflitos com frequência porque nem
todos sabem dividir. Tomar banho com biquini todos os dias é
horrível, assim como, trocar de roupa embaixo do edredom.
Um episódio que me deixou abalada foi a expulsão injusta da
Duda. Numa atividade na piscina, ela empurrou o Thiago para
que saísse de perto dela, não foi tapa ou soco, mesmo assim o
menino fez um show dizendo que tinha sido agredido. Não
adiantou as testemunhas da cena dizerem que passou longe de
ser uma agressão, ela foi expulsa. O pior de tudo é que na
semana que fui fazendeira, Thiago perdeu a paciência com as
cabras e deu um tapa em uma delas. Recebemos um aviso da
270
produção, eu tive que ler para o grupo a mensagem sobre
maltratar animais. Levamos punição, precisamos dormir fora da
sede, na área externa. Thiago agrediu um animal, confessou e
não foi expulso. Não entendi por que passaram pano para ele.
Um bom perrengue era na hora de fumar, éramos em vários
fumantes e como não podíamos aparecer com cigarro, então
existia um espaço próprio para isso: na lateral da sede, havia
uma cadeira desconfortável quase encostada na cerca. Nós não
éramos filmados ali, mas sempre algum ninja estava por perto
para controlar o principal equipamento de filmagem que pegava
toda a área externa da sede. O perrengue estava no detalhe de
que era permitido fumar apenas um de cada vez, sendo que em
vários momentos, tínhamos pouco tempo porque teríamos
alguma atividade ou sabíamos que teríamos de ficar dentro da
sede, então era uma fila de fumantes para poucos minutos livres.
Ficávamos presos na sede quando era necessário montar
alguma estrutura na área externa para as festas, as provas de
fazendeiro ou de outras atividades que aconteciam durante o
dia. A estrutura das festas era a mais demorada, ainda era dia
quando recebíamos o aviso sonoro de que precisávamos entrar
na sede e éramos liberados apenas à noite, quando a festa
começava. Eram muitas horas sem poder sair, ficávamos
entediados, sempre dormíamos e acordávamos apenas com o
aviso de que nossos figurinos estavam disponíveis na despensa.
O momento que tínhamos para nos arrumar para a festa era
muito gostoso, todo mundo feliz. Um roceiro que está se
preparando para beber e dançar, não quer guerra com ninguém.
Além das roupas, a produção também fornecia uma maleta
cheia de maquiagem. Antes de sermos liberados, sempre rolava
drinks para nós brindarmos, era um esquenta rápido.
Esquecíamos que éramos concorrentes e a paz reinava.
A única promessa que fiz ao João era que não beberia nas
festas, ainda bem que ele não levou a sério porque logo na
primeira eu dei PT, passei muito mal, minha pressão caiu.
271
Bebi como se não houvesse o amanhã, mas houve e tive que
cuidar das lhamas morrendo de ressaca. Fiquei bêbada em todas
as festas, mas me divertia demais. Em uma outra, acho que na
terceira, dei PT novamente, passei muito mal em menos de uma
hora, então perdi toda a festa. Apaguei na cama, quando acordei
todos já estavam dormindo, me deu um apagão de memória,
não lembrava o que tinha acontecido. O quarto girava e não
consegui chegar a tempo no banheiro para vomitar, essa foi a
única vez que me arrependi por ter bebido tanto. Eu e a Valesca
éramos as inimigas do fim, íamos embora da pista apenas quando
ouvíamos o aviso sonoro avisando que precisávamos entrar na
sede imediatamente para não sermos punidas. No meio de uma
festa, nós duas resolvemos ir ao banheiro, não sei dizer quem
estava pior, mas estávamos andando uma apoiando na outra,
nos desequilibramos e caímos juntas. Eu estava com um copo
de vidro na mão. Caí com tudo no chão, abri meu cotovelo,
mas não deixei o copo quebrar. Em outra festa, eu estava
descalça e vi cacos de vidro no meio da pista, preocupada em
não cortar meus pés, tive a brilhante ideia de ir à despensa para
pegar a vassoura para colher os pedaços do copo. Estava bem
bêbada e cambaleando, felizmente consegui chegar no destino.
A vassoura ficava no final da despensa, a peguei e quando
estava voltando para a porta, notei um rastro de sangue no
chão, eu pensei: “Nossa, alguém se machucou!”, demorei para
perceber que era eu mesma, meu dedão do pé estava
transbordando de sangue, não sei como, nem em qual
momento, arranquei o tampão dele. Eu sequer senti dor.
No final de outra festa, quando já estávamos no quarto para
dormir, eu acabei causando. Durante o dia, havia conversado
com o Dinei sobre coisas que vivi na prostituição e comentei
que fui Bruno várias vezes, ele demonstrou interesse no assunto
e me fez algumas perguntas. Pois bem, lembrei da conversa
quando estava bêbada, fui até a despensa e peguei um pepino
querendo mostrar ao Dinei como era o Bruno. Ele já estava
deitado na cama e fui brincar, ele achou engraçado, riu, entrou
272
na brincadeira. O Compadre Washington que estava deitado na
cama ao lado, estava rindo demais da situação, então concluí
que por estar achando graça, poderia brincar com ele também.
Foi o que fiz, mas a reação dele foi completamente diferente do
que esperei. Parou de rir na hora, começou a me xingar e dizer
várias besteiras para me ofender. A agressão verbal continuou
no dia seguinte. Não entendi por que ele teve esta atitude de
homem escroto se era apenas me avisar que não estava
gostando da brincadeira, eu simplesmente pararia.
Naquela semana, fomos para a roça, voltei como fazendeira e
ele foi eliminado pelo público. Foi uma ótima resposta que tive.
Todas as festas foram boas, mas a que mais gostei foi a que teve
show ao vivo de uma banda cover de Beatles. Os únicos pontos
negativos eram o fato de acabarem cedo demais, não iam até o
amanhecer como acontece no BBB. E o volume das músicas
era baixo para não atrapalhar a captação de som dos microfones.
Um dos momentos mais felizes foi quando me tornei fazendeira.
Era questão de honra vencer a prova, estava competindo com a
Joana, Compadre Washington e Thiago Gagliasso. O desafio
era montar um quebra-cabeça num painel grande, as peças eram
de madeira e a figura era de produtos da marca Camil.
Para saber a sequência certa das peças, era preciso ir até uma
estrutura grande, no fundo dela estava a imagem completa da
figura, a víamos através de pequenos buracos. Não era possível
ver a imagem inteira de uma vez, cada buraco revelava uma peça.
As peças estavam em um caixote, mas tinham algumas com
figuras que não se encaixavam, eram apenas para atrapalhar.
Passei minha infância montando quebra-cabeça, não me
perdoaria se não ganhasse. Cada jogador tinha o próprio painel
para montar e um ficava ao lado do outro, então conseguíamos
acompanhar como estava o desempenho dos coleguinhas.
Era preciso correr entre o caixote com as peças até o painel
porque tinha uma distância com poucos metros, mas o tempo
era valioso demais para fazer o percurso caminhando.
273
Quando coloquei minha primeira peça no painel, aproveitei
para espiar os demais, vi que a Joana já tinha colocado três, mas
não me preocupei porque percebi que duas estavam no lugar
errado. Fui apenas três vezes conferir na estrutura como era a
imagem, enquanto meus concorrentes foram várias vezes, então
ganhei tempo ao seguir minha intuição. Faltava apenas uma
peça para que eu terminasse, olhei os outros painéis e estava
com uma boa vantagem, mesmo assim, me desesperei para
encontrar a última figura, não poderia comemorar a vitória
antes. Consegui vencer, me tornei fazendeira, morri de orgulho.
Fiquei ainda mais feliz quando ganhei a ‘Prova Final’, o prêmio
nada mais era do que se tornar uma das finalistas. Estávamos na
reta final, faltava apenas uma eliminação. A disputa estava entre
Valesca, Monique, Joana e eu. Cheguei no campo de prova com
sangue nos olhos, determinada a vencer. A prova era da marca
de pilhas Duracell, sorteamos qual imagem que cada uma tinha
que encontrar dentro da grande estrutura. Dentro dela, havia
um labirinto e o espaço era pequeno para passarmos, tínhamos
que nos rastejar. Ao redor da estrutura, na parte interna, tinham
caixotes com as quatro imagens em placas que estavam viradas
ao contrário, tínhamos que virá-las e sendo a nossa imagem,
precisávamos deixá-la virada para frente e espetar um cabinho
num pequeno buraco para fixá-la. O difícil era conseguir fazer
isso com o nervosismo e a mão tremendo. Se a imagem não
fosse a nossa, mantínhamos escondida virada para o outro lado.
Era necessário encontrar sete placas com a nossa imagem, que
estavam espalhadas no percurso. Achei que não fosse conseguir
ganhar porque percebi que estava passando várias vezes no
mesmo lugar, totalmente perdida no labirinto. Assim que as sete
placas com a nossa imagem estivessem viradas, era preciso
encontrar a saída da estrutura e correr até um painel para
encaixar uma pilha gigante e estando tudo certo, aparecia a
palavra: FINALISTA. Vi a Joana saindo, até parei onde estava,
mas faltava alguma placa para ela virar, então continuei focada.
274
Acabei perdendo as contas de quantas já tinha virado e como
não estava encontrando mais nenhuma, resolvi tentar a sorte,
saí da estrutura jurando que tinha ganhado, mas o painel não
acendeu, olhei rapidamente e vi que faltava uma placa, calculei
rapidamente a rota para chegar nela e segui em direção. Quando
saí pela segunda vez e encaixei a pilha, ouvi o Britto dizer:
“Raquel Pacheco é a finalista!”. Não acreditei, dei vários pulos
de alegria mesmo estando podre de cansada e corri em direção
a ele, tropecei num degrau que não vi e quase caí ao vivo.
Fiquei imaginando o João e meus amigos comemorando minha
vitória. Foi um momento muito especial, jamais me esquecerei
da emoção que senti. A última roça foi formada. Infelizmente, a
Valesca foi eliminada do jogo na noite seguinte. Eu, Monique e
Joana nos tornamos finalistas da edição.
Tínhamos mais três longos dias de confinamento até a noite da
final. Na manhã seguinte, participamos ao vivo do programa
‘Hoje em Dia’ e recebemos uma surpresa, a Cris Flores nos
avisou que na despensa tinha um presente para cada uma.
Buscamos as caixas e dentro tinha um objeto com valor
sentimental que algum familiar nos enviou. No meu caso, o
João me mandou um coração de pelúcia que dei de presente
para ele no início do nosso relacionamento e estava com cheiro
do perfume dele. Mais tarde, outra surpresa: recebemos um
almoço especial com uma cartinha. Depois fiquei sabendo que
o João foi até a fazenda para cozinhar para mim, assim como a
Bárbara foi para preparar o almoço da Monique e o da Joana foi
preparado pelo pai. Foi muito emocionante para nós três.
Nossas cartinhas foram escritas no computador, pois quem
escreveu não poderia passar nenhuma informação, então a
produção precisou avaliar antes de as recebermos. No entanto,
o João foi esperto e deixou uma boa indireta, li com sabedoria e
decifrei a mensagem que ele quis me passar na frase que
encerrava a carta: “Chegou até aqui e isso já é o suficiente para
estarmos orgulhosos de você!”. Ao ler isso, entendi que eu não
275
seria a vencedora. Depois, já em casa, perguntei ao João sobre
isso e ele confirmou que realmente foi uma indireta.
Na noite seguinte, aconteceu a última festa com todos os
participantes reunidos novamente. Minha vontade era de jogar
na cara de quem duvidou que eu chegaria na final, mas quis
evitar climão, queria apenas aproveitar a festa, comemorar
bastante e matar saudade da Valesca e da Ana. Os participantes
estavam proibidos de passar qualquer informação e nós,
finalistas, não poderíamos perguntar nada do mundo externo.
Mas dei um jeitinho de questionar a Ana, foi incrível a nossa
conexão porque não precisei dizer nada, nos entendemos
apenas pelo olhar. Ela balançou a cabeça para os lados e fez um
semblante que me respondeu sem palavras. Realmente eu não
seria a vencedora daquela edição. Confirmei a indireta do João e
foi ótimo porque não criei nenhuma expectativa, cheguei plena
na noite da final, já sabendo que não ganharia. Quando o Britto
anunciou que eu fiquei em terceiro lugar, não me surpreendi.
Foi muito emocionante ter chegado à final, embora não tenha
ganhado, foi uma realização pessoal ter conseguido viver uma
experiência tão desafiadora. Me senti vencedora. A torcida da
Monique e a da Joana se tornaram rivais, então rolou uma
guerra entre os fãs delas. A minha torcida ficou de fora dessa
treta, ainda bem. Sou muito grata a todos que votaram para que
eu ganhasse ou que torceram por mim. Minha amiga Pati foi
quem cuidou das minhas redes sociais e liderou os momentos
que precisei de votos.
Além de ter ganhado prêmios importantes dentro do jogo,
como o de fazendeira por uma semana e a garantia de estar na
final, venci três atividades e ganhei uma massagem relaxante
que recebi enquanto estava lá, relaxei tanto que dormi e acordei
babando. Ganhei também uma bicicleta dobrável e um aparelho
de Blu-ray que na época era novidade e chique. Não consegui
ganhar vários prêmios em atividades e provas, mas o único que
276
me frustrei por não ter ganhado foi um frigobar lindo da marca
de energéticos TNT, cheio de latinhas. Nesta prova, eu fazia
dupla com a Monique, era um circuito com alguns desafios,
ganhava o par que finalizasse com menos tempo. Como a
Monique estava sentindo muita dor nos joelhos, ela não pôde
participar diretamente, fiquei responsável para vencermos.
Eu estava indo muito bem até chegar na última etapa que tinha
que se jogar de cima de uma estrutura e cair numa rede elástica.
Morro de medo de altura, um trauma de infância que nunca
superei, quando cheguei na beiradinha para me jogar, olhei para
baixo e simplesmente travei. Me desesperei e senti que minha
pressão caiu. Tentei vencer meu medo pensando no prêmio,
infelizmente não consegui e fracassei na missão.
Decepcionei quem imaginou que me veria fazendo barracos ou
dando em cima de todos os homens. Fui simplesmente eu,
totalmente despida de personagem ou fingindo ser outra pessoa
somente para aparecer mais do que os outros. Se nunca gostei
de ser o centro das atenções, não seria lá dentro que buscaria
isso para mim. Sempre pensei que se fosse para ser a vencedora
da edição, que acontecesse de uma maneira justa, sem perder
minha essência. Levei comigo minhas dificuldades, limitações,
intensidade e sensibilidade, enfim, meu lado humano.
Na última prova que venci e me tornei finalista, mostrei que
não estava ali para brincadeira. Eu queria estar na final,
independente do resultado de onde ficaria no pódio.
Muitas pessoas me perguntam se tinha algo combinado, um
roteiro ou algo do tipo e posso garantir que não há nada disso.
No entanto, o poder que a edição tem é indiscutível. Se a
direção quer que fulano seja o vilão, por exemplo, a edição
consegue convencer o público de que fulano é daquele jeito,
mostrando frases fora do contexto ou apenas momentos que se
encaixam a um vilão. Acredito muito que a direção tem em
todas as edições, um participante favorito para ganhar o prêmio
277
e faz o possível para que isso aconteça convencendo o público
de que tal pessoa merece mais que os demais. E eu digo isso
também como espectadora porque sou viciada em realities.
Alguns assuntos eram proibidos e quando esquecíamos, o aviso
sonoro nos lembrava rapidinho, éramos obrigados a mudar de
tema. Pelo que me lembro, esses assuntos eram: política,
qualquer marca de produto que não fosse patrocinador do reality
(era difícil ter que falar haste flexível no lugar de cotonete), falar
mal de alguma marca patrocinadora e conversar sobre qualquer
programa de outra emissora.
Ter participado de ‘A Fazenda’ foi um marco importante em
minha vida, uma experiência inesquecível. Eu não joguei como
deveria, mas me entreguei demais em todos os momentos.
Mostrei quem é a Raquel, atingi meu objetivo com sucesso.
Voltar ao mundo real foi estranho demais, precisei me readaptar,
a sensação era de ter vivido dentro de uma bolha durante três
meses. Estava morrendo de saudade de todos que faziam parte
da minha vida, das filhas pets, de casa, do meu travesseiro etc.
Não via a hora de voltar para a vida fora da fazenda, mas
quando voltei, estranhei tudo. Ficar tanto tempo no meio do
mato sem ouvir barulhos de cidade grande foi uma maravilha,
então minha audição estava sensível para buzinas e qualquer
outro barulho que não existia na fazenda. Durante dias, ao
acordar, a primeira coisa que fazia era estender o braço para
pegar o microfone no criado-mudo, era um movimento
automático. E por falar nisso, sentia falta de ficar o dia todo
com o cordão pendurado no pescoço e a caixinha das pilhas na
cintura. Voltar a ter notícias sobre o mundo também foi estranho,
foi tão bom ficar três meses em off de tudo. A primeira notícia
que João me deu foi que a Amy Winehouse faleceu poucos dias
depois que começou o reality. Como ele sabia que eu era super
fã (e continuo sendo!), me contou com cautela. Fiquei arrasada.
Aos poucos, retornei à vida normal, pós-fazenda.
2011: filme e ‘A Fazenda’. Bruna X Raquel. Simples assim.
278
ME CHAMA DE BRUNA
Em 2014, três anos após o lançamento do filme, quando não
esperava colher mais nenhum fruto com a história da minha
vida, recebi o convite para ter uma série baseada em mim no
canal Fox. Outro momento de glória. Convite irrecusável,
poucos dias depois, fui ao escritório da Fox para assinar o
contrato. Não sei se estava mais encantada com a reunião ou
com os bonecos do Simpsons espalhados por toda a sala.
Não acompanhei a produção da série, nem o roteiro. Sabia que
seria baseada em minha vida e não seria continuação do filme.
Poderia confiar de olhos fechados na produtora e na Fox, não
tinha motivos para me preocupar. Além disso, estava em uma
fase que não tinha disponibilidade para acompanhar todos os
passos da produção, não poderia me comprometer com algo
que sabia que não conseguiria cumprir. Tinha certeza de que
não me decepcionaria e resolvi que tudo seria uma grande
surpresa para mim também, assistiria como uma espectadora
curiosa e com vontade de maratonar uma boa série.
Minha única curiosidade era saber quem seria a atriz que me
interpretaria. No início, não entendi por que fizeram tanto
mistério e não queriam me contar nada sobre ela, mas depois
compreendi que o objetivo era que este encontro, fosse um
momento especial para nós duas, além de registrarem em vídeo.
Enfim, chegou o dia de conhecê-la. Me arrumei e fui ao local
do encontro, na casa do Tom Rezende, o preparador de elenco,
sem imaginar que estava indo para viver um dos momentos
mais emocionante da minha vida. Conseguiram me surpreender
de tal maneira que nos dias seguintes, continuei sentindo os
sentimentos que despertaram em mim. Chegando na casa do
Tom, o mistério continuou. Me prepararam para conhecer a
atriz: colocaram uma venda nos meus olhos, eu não conseguia
enxergar nada. Me levaram até um ponto onde fiquei parada.
Em seguida, senti uma energia muito forte, tanto que fiquei
279
com calor e senti a presença de alguém muito perto de mim.
Tom então avisou: “Vocês já estão juntas, uma na frente da
outra, as duas estão vendadas, não estão se vendo”. Ele foi nos
conduzindo com o que deveríamos fazer. Demos as mãos, notei
que era mais alta do que eu, começamos a nos conectar, a troca
de energia foi muito forte. Ficamos alguns minutos nos sentindo.
Ouvia a respiração dela bem de perto, como se fosse a minha.
Sem saber quem era, sentia a energia leve, me proporcionando
sensação de paz. O próximo comando foi para colocarmos a
mão na região do coração da outra. O calor aumentou, assim
como nossa conexão. Tive vontade de chorar de emoção.
A sensação foi tão incrível que estou arrepiada neste instante
por relembrar este momento. Senti quando nossos batimentos
cardíacos se igualaram, no mesmo ritmo, como se os dois
tivessem se tornado um só.
Tiraram as vendas dos nossos olhos ao mesmo tempo e fui
apresentada à Maria Bopp, uma menina linda, com os olhos
claros e um olhar de menina, como tive um dia. Tão diferente
de mim e, ao mesmo tempo, tão parecida. Me identifiquei à
primeira vista. Sorrimos quando nos enxergamos. Nossos olhos
lacrimejaram ao mesmo tempo. Estávamos numa sintonia tão
grande que nossas reações aconteceram no mesmo instante,
como se uma fosse o reflexo da outra em um espelho. Perfeito.
Se tivéssemos combinado que deveria ter sido dessa maneira,
não teria dado tão certo. Foi um encontro forte e poderoso.
O Tom pediu para realizarmos uma dinâmica, então nós duas
atuamos juntas em algumas cenas bem improvisadas.
Ela interpretando a Bruna, enquanto eu, a cafetina dela.
Impossível não aprovar a Maria para me interpretar na série, ela
ganhou minha confiança de que faria um trabalho lindo. E fez!
A estreia da primeira temporada de ‘Me chama de Bruna’
aconteceu em dezembro de 2016, no canal Fox Premium.
Em setembro, fui à Buenos Aires e Montevidéu para cumprir
280
com a agenda que a Fox preparou para o lançamento da série.
Foram compromissos com entrevistas e visitei os principais call
centers de operadoras de televisão, que venderiam a série para
clientes. Os funcionários precisavam me conhecer e entender
sobre minha vida, para passarem as informações necessárias aos
clientes. Nessas visitas, eu era acompanhada por pessoas que
trabalhavam na Fox e que estavam responsáveis pela divulgação
da série, então fazíamos uma reunião com a equipe do call center.
Era no formato de palestra, primeiro as representantes da Fox
apresentavam a série, depois eu participava fazendo um resumo
sobre mim e, por fim, respondia perguntas que me faziam, era
importante tirar todas as dúvidas dos funcionários.
E foi em uma dessas reuniões que fui surpreendida da melhor
maneira possível: o primeiro episódio da série foi exibido em
um telão. Eu não estava esperando por isso, assisti entre muitos
sorrisos e lágrimas. Aplaudi de pé o trabalho impecável da
Maria Bopp e de todos envolvidos, que fizeram acontecer a série.
Maria se entregou ao personagem de tal maneira, que não tem
como assistir sem admirar a Bruna.
Assisti a estreia da primeira temporada com o coração acelerado.
Era um episódio por domingo, completando oito, então durante
dois meses, tive um encontro marcado comigo mesma para
chorar e rir com a Bruna. No final de cada um, ficava aquele
gostinho de quero mais. Eu poderia pedir a alguém da produção
para que me enviasse todos os episódios de uma vez? Poderia!
Consegui lidar com a curiosidade e ansiedade, decidi ter a
emoção de viver a mesma sensação todas as noites de domingo.
Assim como todos que acompanharam a primeira temporada,
esperei um ano para maratonar a segunda, que começou em
dezembro. Assistir a estreia, aqueceu meu coração após encarar
2017, um ano tão difícil. O sucesso na América Latina, em
especial na Argentina, Uruguai e Chile, foi imediato desde a
primeira temporada. Recebi muitas mensagens em espanhol de
281
fãs da série que me acharam nas redes sociais. No Brasil,
demorou para ‘Me chama de Bruna’ bombar porque as três
temporadas estavam disponíveis apenas na Fox Play, detalhe
que limitou bastante o acesso. Quando a quarta temporada foi
lançada, a série completa ficou disponível nas plataformas de
streaming: Amazon Prime e Globo Play. E então aos poucos, os
brasileiros começaram a descobrir a existência dela.
São quatro temporadas no total, o lançamento da última foi em
2019, infelizmente, não terá mais continuação, mas acabou
sendo mais do que o esperado e a repercussão está muito boa.
Como sempre, as peças se encaixam em minha vida de uma
maneira inacreditável, um fato interessante ocorreu por conta
da série, uma pessoa que fez parte da minha vida de maneira
indireta no passado, passou a fazer diretamente. Pois bem.
A preparação de Maria a partir da terceira temporada, começou
a ser realizada com a Estrela Straus, atriz e preparadora de
elenco. Quando soube dessa informação, tive certeza de que o
mundo é uma quitinete. Nós estudamos na mesma época no
colégio Bandeirantes, em séries diferentes. O nome dela é forte,
lindo e marcante, então nunca me esqueci que existia uma
Estrela no colégio. Nunca conversamos, não éramos amigas.
No ano seguinte que saí do Bandeirantes, estava assistindo a
TV Cultura e a vi apresentando um programa, lembrei que a
conhecia de vista. Longa pausa. Após 18 anos, eis que Estrela
integra a equipe de profissionais trabalhando na série.
Enviei mensagem e conversamos bastante, prometi que ia ao
Rio de Janeiro, onde a série estava sendo gravada, para passar
alguns dias com ela e Maria, mas infelizmente não consegui
porque foi um período que eu estava num ciclo lutando para a
depressão não me derrubar e quando estou assim, não me
considero uma boa companhia. Elas estavam em outra vibe e
não quis incomodá-las. Um dia, nos encontraremos no Kaeru,
uma doceria que fica na frente do Bandeirantes, para comermos
bolo com café e matarmos saudade da fase que estudamos ali.
282
Algum tempo depois de ter reencontrado Estrela, recebi a
notícia de que a atriz Maitê Proença começaria a fazer parte do
elenco da série. Fiquei bem surpresa por motivos de:
Era 2006, auge do sucesso de ‘O doce veneno do escorpião’, eu
estava sendo convidada para participar de várias feiras literárias.
Pois muito que bem. Estava toda plena e cheia de orgulho
participando da FLIPORTO (Feira literária em Porto de
Galinhas/PE), dando entrevista para um jornalista aqui, outro
ali, até que um fotógrafo que estava tirando fotos de mim, disse:
“Espere um pouco que vou chamar a Maitê Proença para tirar
fotos com você!” Ela estava a poucos metros, o vi indo e fiquei
observando, mas não consegui ouvir o papo. Quando voltou,
ele estava muito sem graça para me contar: “Acho que a Maitê
não gosta de você porque não aceitou vir tirar fotos contigo!!!”.
Eu não soube nem o que dizer, mas tudo bem, vida que segue
no evento. Pausa. Doze anos depois, ela aceitou participar da
série baseada em mim. Achei interessantíssimo este fato.
Sei que sou muito suspeita para dizer isso, mas ‘Me chama de
Bruna’ é sensacional, aborda temas importantes para discutirmos
e refletirmos. O elenco é incrível, um conjunto de gratas
surpresas. Todos os personagens são importantes, não consigo
imaginar a série de outra maneira. A música de abertura ‘Dei
um beijo na boca do medo’ de autoria e cantada por Simone
Mazzer – que interpreta a porreta Samira - é a cereja do bolo.
E não posso deixar de comentar sobre a música ‘Coração
Selvagem’ que começou a fazer parte da minha playlist diária.
“E o meu coração selvagem tem essa pressa de viver”.
O último dia de gravação aconteceu em São Paulo, quando
ligaram me convidando para estar presente, tive a ideia de fazer
surpresa para a Maria, aparecendo no set sem que ela soubesse.
Combinei tudo direitinho com um produtor, horário e local, eu
chegaria durante a pausa do jantar, pois as cenas finais eram
noturnas. Era junho de 2019, estava no auge da bad por conta
283
do fim do relacionamento que pisei em ovos e com a morte da
Tati, mas não perderia a oportunidade de reencontrar a Maria
após tanto tempo, conhecer Estrela e estar presente no
desfecho da série, pois já estava sabendo que seria a última
temporada. Minha amiga Jana, parceira de rolês aleatórios, foi
comigo. Maria ficou muito feliz quando me viu e demos um
abraço com a mesma intensidade do primeiro, de quando nos
conhecemos.

[ Alerta: a seguir contém spoiler ]


Nesta noite da última gravação, acabei sendo surpreendida com
o convite para participar de uma cena com Maria. Como essa
ideia surgiu de repente, sem nenhum planejamento, então não
fui arrumada com uma roupa bonitinha, estava muito frio e
vesti peças bem básicas, além disso tudo, não havia figurino
disponível para mim. Mesmo assim, aceitei participar, nada seria
motivo para recusar a oportunidade. A gravação desta cena
aconteceu na Avenida Paulista e interpretei uma fã da Bruna.
Ela estava se exercitando, correndo na calçada, até que foi
abordada por mim, afinal a reconheci e precisava tirar uma foto.
Como o meu personagem surgiu do nada, não existia fala no
roteiro para mim, então me deram a liberdade de improvisar,
fiquei à vontade para dizer o que bem quisesse durante a cena.
Falei o que senti vontade, algo que eu precisava ouvir naquela
fase cheia de dor que estava enfrentando: “Você é foda!”.
Senti uma emoção muito forte ao dizer isso para a Bruna, tive
que me segurar para não chorar. Acho que mandei bem, foi
uma rápida aparição com um significado enorme para mim.
A série encerra com a Bruna grávida.
A vida imita a arte.

284
PEÇA DE TEATRO

Livros, filme e série. Apenas ficou faltando uma peça teatral, não?
Pois quase teve. Era 2009 quando o Rubens Ewald Filho entrou
em contato querendo conversar comigo sobre um projeto,
então marcamos uma reunião no escritório dele. Como era
cinéfilo e crítico de cinema, imaginei que pudesse ter alguma
relação com o filme ‘Bruna Surfistinha’, não passou por minha
cabeça que poderia ser uma continuação dele, não faria muito
sentido naquele momento, afinal ainda não tinha sido lançado.
Fui à reunião tendo um treco de tanta ansiedade, então soube
que o projeto era uma peça teatral baseada em mim e seria
dirigida por ele. Ewald já tinha em mente como seria a peça,
com mais humor e menos drama. Seria um trabalho incrível.
Em nossa segunda reunião, conheci Ellen Roche, a atriz que me
interpretaria nesta peça teatral.
No fim, o projeto não foi adiante por motivos pessoais dele,
mas me garantiu que me procuraria novamente quando pudesse
retomar. O tempo passou e infelizmente em 2019, ele faleceu.

285
CAPÍTULO 6 – Ganhos e Perdas
Depois de um ano tão especial como foi 2011, tive esperança
de que o seguinte seria uma continuação, nada mais justo que a
maré continuasse boa. A vida profissional fluiu muito bem, a
visibilidade que tive após o lançamento do filme e da minha
participação em ‘A Fazenda’, foi bem maior do que imaginei.
Consegui valorizar meu cachê como DJ e fechar contratações
por todo o Brasil, foi fácil demais. Foi um ano que teria sido
maravilhoso se eu não tivesse enfrentado lutos tão difíceis.
Acredito que a vida não acaba aqui, é eterna, apenas mudamos
de Plano e deixamos de ter um corpo físico. Desencarnamos e
renascemos quantas vezes forem necessárias, até nos tornarmos
espíritos evoluídos para termos o privilégio de não precisarmos
voltar a este Plano que estamos. Bem, eu pelo menos considero
que isso seja um privilégio. Partimos ao Plano Espiritual apenas
no momento que precisamos, após cumprirmos nossa missão.
Acreditando que seja assim, amenizo a minha dor da despedida.
Quando preciso me despedir de alguém, sabendo que não a
verei mais por que desencarnou, tenho certeza de que cumpriu
a missão da maneira mais linda que pôde e precisou seguir a
jornada no astral. Despedidas sempre doem. Precisamos lidar
com a morte de um jeito que nos cause menos dor.
Não importa por quanto tempo eu conheça a pessoa, sofro
com intensidade e a ficha demora para cair que não a verei mais.
Não me esperem em velórios e enterros, fui em apenas três até
hoje para acompanhar quem estava vivendo o relacionamento
comigo, por saber que minha companhia faria diferença.
Por mim, não teria ido em nenhum.
Não sei lidar com corpos em caixão, fico muito impressionada,
passo mal, minha pressão cai, desconfio que seja fobia.
286
Eu não tenho medo de morrer, meu receio é não ter tempo de
realizar todos os sonhos que tenho nesta vida. Desde criança
tenho a sensação de que morrerei jovem, sinto que não chegarei
na fase de ser uma senhorinha.
Em 2012, eu e João enfrentamos cinco lutos, com uma diferença
pequena entre um e outro. O primeiro foi em maio, do irmão
de um amigo, tínhamos o conhecido há pouco tempo, foi uma
morte repentina, ele estava bem, passou mal na academia,
sofreu um AVC, ficou internado, mas não resistiu.
O segundo foi em julho, de um conhecido que morava no
mesmo prédio que nós, então o encontrávamos quase todos os
dias, era muito querido. Ele foi passar uns dias no sítio dele
como sempre fazia, o encontraram morto, disseram que a causa
foi suicídio. O terceiro luto foi no início de agosto, de um
amigo bem presente em nossas vidas há sete anos, também era
nosso vizinho de condomínio. Teve uma complicação grave
após a cirurgia bariátrica e infelizmente, acabou falecendo.
***
Era uma quarta-feira, final de agosto, quando acordei muito
assustada e em prantos, com o coração angustiado, após sonhar
com a minha mãe. Desde que fugi de casa, foi a primeira e
única vez que sonhei com ela. Eu me via nesse sonho de uma
maneira tão intensa, que minha sensação era como se eu
estivesse vivendo realmente a situação. Sentia perfeitamente
minha respiração e todos os movimentos do meu corpo.
Também sentia a vontade de chorar e de falar, sem conseguir.
No sonho, eu entrava na sala do apartamento onde morava
com meus pais, os móveis estavam posicionados da mesma
maneira de quando morava com eles. Apenas a televisão e os
sofás estavam diferentes. A estante gigante, o tapete persa, a
poltrona do meu pai, estavam exatamente no mesmo lugar.
287
Cheguei na sala sem ver o trajeto que me levou até lá, não entrei
por nenhuma porta, pelo meu posicionamento quando o sonho
começou e pude me ver, concluí que saí do corredor que dava
acesso aos quartos, então já estava dentro do apartamento.
Vi minha mãe sentada no tapete, estava de frente para a estante,
cercada por caixas de papelão, nas quais colocava livros e
objetos de decoração. Ela estava de costas para mim.
Eu andava devagar em direção a ela, não queria fazer barulho
para que não me notasse. Sentia vontade de observá-la e foi o
que fiz. Nos minutos que fiquei olhando para ela, lágrimas
começaram a escorrer no meu rosto e pude sentir a emoção que
estava tomando conta de mim. Ficou nítido que no sonho,
também estávamos há muito tempo sem nos encontrar.
Após alguns passos, parei num ponto, a poucos centímetros do
sofá e fiquei paralisada, sem conseguir fazer qualquer tipo de
movimento no meu corpo, isso durou alguns longos segundos.
Quando consegui me movimentar novamente, dei mais dois ou
três passos, parei quando sentiu minha presença. Sim, sentiu.
Juro que não fiz nenhum barulho. Ela virou para mim e pude
ver que chorava muito. Ficamos nos olhando por um tempo,
tentei dizer algo, mas não tinha voz, eu não conseguia.
O mesmo aconteceu com ela, percebi que queria me dizer algo.
Sentia nossos desesperos tentando falar sem termos voz.
Ela começou a se expressar gesticulando as mãos, mas não
entendia nada. Não me aproximei dela. Fechou uma caixa
enquanto ainda me olhava, abriu a boca tentando falar mais
uma vez. Acordei.
Foi um sonho tão real que me assustei quando vi que estava no
meu quarto, com o João ao lado e a Duda no meu travesseiro.
Ele acordou com o barulho do meu choro. Contei todos os
detalhes do sonho com a certeza de que minha mãe queria me
contar algo, mas não conseguiu.
288
João ouviu atentamente e me disse: “Foi apenas um sonho!
Está tudo bem!”. Minha intuição dizia que não estava nada bem
e fiquei brava por ele ter me dito que era apenas um sonho
porque eu sentia que não era.
Passei o dia muito mal, coração apertado, sensação horrível,
não consegui fazer nada, fiquei horas sentada no sofá pensando
no sonho e com vontade de chorar. Contei tudo para a Fê, ela
disse exatamente a mesma coisa que João. Entendi que para
todos que contasse, seria apenas um sonho, ninguém entenderia.
Eu sentia que meu pai tinha morrido. Sentia demais isso!
A intuição estava tão forte que eu não conseguia ser otimista e
pensar diferente. Bem que tentei mudar de ideia. Busquei no
Google o nome inteiro dele para ver se aparecia alguma nota de
falecimento, não encontrei nada. Comentei com o João e ele
tentou me acalmar novamente: “Tá vendo? Não aconteceu
nada. Se ele tivesse morrido, com certeza estaria no Google!”.
No dia seguinte, acordei ainda mais angustiada e comecei a ficar
desesperada porque eu não sabia o que fazer. Liguei para minha
mãe, o telefone tocou e ninguém atendeu. Tentei por mais
algumas vezes e desisti. Até que chegou sexta-feira e eu não
estava aguentando mais, minha angústia estava insuportável.
E eu não tinha ninguém com quem pudesse externar a sensação
péssima que estava sentindo, pois não seria levada a sério, afinal
seria apenas um sonho. De repente, pensei na Lu, uma amiga
que morava no mesmo condomínio e conversávamos bastante
sempre que nos encontrávamos. Ela frequentava há mais de um
ano, a Casa de São Lázaro, um terreiro de umbanda e sempre
comentava comigo sobre esse lugar, inclusive, me convidou
várias vezes para irmos juntas, mas sempre fugi dando desculpas
bem esfarrapadas. Lembrei que ela sempre ia às sextas, então
resolvi mandar uma mensagem perguntando se ia naquela noite,
289
ela respondeu que sim e combinamos de irmos juntas.
A Lu é psicóloga, ouvinte maravilhosa, mas nunca gostou de se
posicionar, sempre deu conselhos certeiros, tomando o máximo
de cuidado para não atrapalhar o livre-arbítrio das amigas.
Então após eu ter contado sobre meu sonho, ela respondeu:
“Que bom que decidiu ir comigo hoje, estou sentindo que será
bom para você!”
Meu pai faleceu na segunda-feira, dia 20 de agosto, o sonho que
tive com minha mãe foi na terça, um dia depois.
Na segunda-feira seguinte, após tantos anos sem falar com
minha mãe, resolvi ligar novamente com a expectativa que me
atendesse dessa vez, eu precisava apenas de uma resposta para
confirmar o que já sabia. Ela me atendeu com a voz bem fraca e
estava falando mole, senti meu coração ainda mais apertado.
Nossa conversa que jamais me esquecerei, foi exatamente assim:
- Oi, mãe! Tudo bem?
- Oi, Raquel! Por pouco você não me pegou acordada, já estou
indo deitar para dormir. Que bom que me ligou, estava mesmo
precisando falar com você.
- Então, mãe, estou ligando porque tive um sonho muito
estranho com a senhora e quero saber...
Ela me interrompeu antes que eu completasse a frase.
- O [nome do meu pai] faleceu na segunda passada. Se é isso o
que quer saber!
- Nossa, mãe! Não acredito... – não consegui dizer mais nada.
- Pois é, Raquel! Ele estava muito doente e não resistiu. Queria
falar mesmo com você, uma advogada vai entrar em contato
para resolver algumas coisas da herança. Pode ser por esse
telefone que está me ligando?

290
- Pode sim, mãe. Eu nem sei o que te falar sobre meu pai.
Estou sem palavras. Espero que a senhora fique bem.
- Está sendo muito difícil, Raquel. Bom, eu preciso dormir.
Quando passar esse momento difícil do luto, te ligo para
conversarmos.
- Me liga sim. Vou ficar esperando. Boa noite!
Desliguei o telefone e desabei. Meu pai morreu, não tivemos
tempo para nos reconciliarmos, para colocarmos os pontos nos
is e nos entendermos. Acabou. Game over.
***
A advogada me procurou na mesma semana, fui ao escritório
dela para resolvermos as questões burocráticas da herança.
Meu pai me deserdou, nunca tive dúvidas que isso aconteceria,
mas minha mãe e irmãs precisavam da minha assinatura em
vários documentos. Se eu quisesse me vingar, seria o meu
momento, poderia dificultar bastante o andamento do processo.
Assinei tudo, sem ler.
Na certidão de óbito, a causa do falecimento é pneumonia.
A tristeza reflete nos pulmões.
***
O pai do João foi uma figura paternal muito importante.
A gente se dava bem, gostava muito de conversar com ele, me
fazia lembrar um pouco do meu, com o jeito sério de ser,
teimoso, personalidade forte, muitas vezes duro com as
palavras e proporcionava o melhor conforto financeiro que
podia à família. Amava ter a casa cheia, era bem festeiro.
Acabou adoecendo com pedras na vesícula. Por conta da
pressão alta, precisou adiar a cirurgia mais de uma vez.

291
Certa manhã, acordei e João estava sentado na beirada da cama,
com a cabeça baixa, chorando. Contou que sonhou com o
irmão que faleceu um pouco antes de nos conhecermos.
No sonho, se encontraram num corredor de hospital, ficaram
surpresos com a presença um do outro. O irmão perguntou o
que João estava fazendo ali, ele respondeu que foi buscar o pai
deles. O irmão então balançou a cabeça e avisou que o pai ia
embora com ele, que tinha ido especialmente para buscá-lo.
Após ter sonhado com minha mãe, João entendeu que há
sonhos que não são simplesmente sonhos.
A cirurgia do pai dele finalmente estava marcada. Ele me pediu
para não comentar com ninguém sobre o sonho que teve.
No sábado anterior à semana da cirurgia, João perguntou ao pai
o que ele estava com vontade de comer, escolheu estrogonofe.
Então no dia seguinte, este desejo foi atendido no almoço.
Bem no dia da cirurgia, uma quarta-feira, nós tínhamos uma
viagem marcada que não poderíamos desmarcar, fomos para
Salvador, onde eu participaria de um evento numa faculdade e
na sexta à noite, seria DJ em uma festa. Estávamos apreensivos,
mas ficamos aliviados quando a irmã dele nos avisou que a
cirurgia já tinha acabado e estava tudo bem, o pai ficaria em
observação, a previsão era que receberia alta já no dia seguinte.
Ficamos tranquilos, mas continuamos atentos.
A irmã continuou nos dando notícias que estavam boas, tudo
sob controle. De uma hora para outra, tudo mudou. Ela nos
avisou que o pai havia sofrido uma parada cardíaca, mas os
médicos conseguiram reanimá-lo. Algumas horas depois, outra
parada, mas novamente conseguiram resolver a situação.
Passou um tempo e a situação estava melhorando.
Na sexta-feira, resolvemos aproveitar a piscina do hotel, o dia
estava lindo, muito calor em Salvador. Eu estava tomando sol,
292
enquanto João se refrescava na piscina, estávamos conversando
quando chegou uma mensagem no celular dele. Era a irmã
avisando que o pai tinha sofrido outra parada cardíaca e que
dessa vez foi fatal. Nós entramos em choque. Voltamos ao
quarto imediatamente, sem conseguirmos dizer nada.
Eu tinha uma entrevista numa rádio em menos de duas horas.
João avisou o contratante sobre o acontecimento e comentou
que eu não teria condições de ser DJ naquela noite, então quis
saber como poderíamos resolver isso. Não tinha como eu
deixar de ir à festa, além de existir um contrato assinado, o
contratante explicou que o burburinho sobre minha presença
na festa estava grande demais, muitas pessoas estavam ansiosas.
Então resolvemos cumprir o contrato e conseguimos adiantar
nossa viagem, mudamos o horário das passagens, voltaríamos
apenas no sábado à noite. Foi a pior apresentação como DJ,
não consegui disfarçar minha tristeza, eu estava tão mal que
tentei beber um drink de vodka para relaxar, mas não desceu.
Cometi vários erros bobos porque não estava conseguindo me
concentrar. Não quis receber as pessoas para tirar foto como
sempre fiz com o maior prazer. Eu queria ir embora logo dali.
Saímos da festa e seguimos direto ao aeroporto, chegamos em
São Paulo bem cedo, fomos para casa apenas para deixar as
malas. Chegamos a tempo para o velório e o enterro.
Nossos pais desencarnaram com a diferença de um mês.
Tivemos sonhos que nos prepararam para enfrentarmos estas
perdas tão doloridas.
Precisamos passar por isso juntos por algum motivo...

293
CAPÍTULO 7 – A Umbanda cheira a rosa

Na noite de sexta-feira, 24 de agosto de 2012, chegamos na


Casa de São Lázaro (CIESL), respiramos fundo e entramos.
Não sabíamos o que aconteceria, como seria, mas estávamos
com o coração aberto para aproveitarmos aquela oportunidade.
Uma coisa eu tinha certeza: a Lu não frequentaria qualquer
lugar e foi por confiar nela que enfim, aceitei conhecer.
Confesso que sempre tive um tanto de medo da umbanda.
Não era preconceito, era receio mesmo, muito pelo fato de
durante minha vida, em momentos diferentes, pessoas terem
comentado sobre minha mediunidade, que eu deveria
desenvolvê-la. Sempre tive muito medo de espíritos, não sei o
que seria de mim se visse algum. Sou aquela que sempre dormiu
com uma luzinha acesa, como se eles não aparecessem com
claridade, é algo totalmente psicológico, eu sei. Também não
durmo de jeito nenhum com os pés para fora da cama, alguém
me fez acreditar que podem ser puxados. Até hoje sou assim,
mesmo sendo umbandista há quase dez anos. Me julgue.
Quando entramos no CIESL, estava lotado de pessoas, nos
posicionamos num lugar que conseguimos observar a corrente
de médiuns, eles estavam iniciando os trabalhos daquela noite.
Comecei a prestar atenção nas canções que estavam cantando,
depois descobri que têm nome, são os Pontos da Umbanda.
Estava me sentindo tão à vontade e em paz que, quando
percebi, estava descalça e balançando o corpo acompanhando o
ritmo dos Pontos. Fechei os olhos e comecei a sentir uma
energia muito forte no meu corpo todo, fiquei fascinada pelo
som dos atabaques que me relaxou de tal maneira que comecei

294
a bocejar descontroladamente. Me senti em casa, minha
sensação era de que eu já conhecia aquele lugar. Quando peguei
a ficha para entrar na fila de atendimento para ser atendida por
algum guia espiritual, meu coração disparou.
Era noite de trabalhos com a linha da Esquerda: Exus, Exus
mirins e Pombogiras. Não senti nenhum pingo de medo, pelo
contrário, estava curiosa para saber de perto quem eles são.
Chegou minha vez de ser atendida. Me levaram até uma sala
com pouca claridade, um guia espiritual ao lado do outro,
muitas vozes que se misturavam, energia forte, comecei a sentir
muito calor. Um médium me posicionou num lugar, olhei para
baixo, vi uma pessoa sentada que me olhou e disse: “Senta, tia!”.
Tia??? Achei engraçado ser chamada assim, mas obedeci.
Eu não sabia o que estava acontecendo, então o guia me avisou
que era um Exu mirim. Ele segurou forte nas minhas mãos,
pediu para que eu falasse meu nome completo, perguntou o
motivo de eu estar ali e como poderia me ajudar.
Pela primeira vez após o sonho com minha mãe, estava diante
alguém que finalmente poderia me ajudar. Antes de começar a
contar, desabei. O guia me abraçou, me acalmou de uma
maneira muito fofa, falava comigo como se fôssemos amigos.
Consegui parar de chorar e comecei a desabafar, o guia me
ouviu dando alguns sorrisinhos que, num primeiro momento,
não consegui interpretá-los, mas depois entendi que ele já sabia
de tudo o que eu estava contando. Parei de falar.
- Acabou de contar tudo, tia?
- Já sim. Agora preciso saber se meu pai morreu.
- Tia, você precisa ligar para a sua mãe, uma precisa ouvir a
outra e só por ela que você vai ter esta resposta.
- Mas você não pode me responder?
- Nem tudo podemos responder, tia. Sei o que está pensando,
295
que eu não quero te ajudar, mas estou te ajudando, se eu
responder sua pergunta, sei que a tia não vai ligar para a mãe e
vocês precisam conversar.
- Entendi. Vou ligar para ela então, mas estou com medo dela
não querer falar comigo ou não me responder.
- Ela quer falar, pode ligar sem medo, tia. Ela está te esperando.
A tia quer falar mais alguma coisa?
- Por hoje é só, vim apenas para conhecer aqui e conversar
sobre este sonho, mas quero voltar para conversar sobre outras
coisas, gostei bastante daqui.
- Vou pedir uma coisa. Quero que a tia venha na segunda aqui
de novo, sem desculpas. A tia precisa estar aqui na segunda.
A tia não vai me ver, não estarei com o cavalo, mas estarei aqui.
- Cavalo????
- Cavalo é como chamamos o aparelho, o corpo físico. Mais
fácil para a tia entender, cavalo é o médium.
- Ah, sim. Entendi. Bom, na segunda vou tentar vir então.
Ele fez alguns elogios, disse o quanto sou forte, me deu outro
abraço e se despediu dizendo: “Até segunda, tia!”.
Antes de me levantar, ele disse ao cambono: “Leve a tia para
bater cabeça no Congá!”. Cambono é o médium que auxilia o
guia espiritual, buscando algo que esteja precisando como, por
exemplo, vela. E faz anotações para que a pessoa assistida não
se esqueça de orientações passadas durante o atendimento.
Levantei e me senti um pouco tonta, como se fosse me
desequilibrar e cair no chão. O Exu mirim começou a rir de
mim e disse: “Eita, tia! Firme essa cabeça!”
“Bater a cabeça no Congá? Firme essa cabeça? Meu Deus do
céu, o que está acontecendo???” – pensei.
O cambono segurou meu braço para me levar ao Congá.
296
Perguntei se machucava bater a cabeça nesse lugar. Ele então
me explicou que bater é maneira de falar, é apenas encostar a
cabeça. E me disse: “Congá é o nosso altar, os guias não pedem
para todo mundo fazer isso, então se sinta privilegiada”.
Nós já estávamos na sala do Congá.
Enquanto esperava o João na área externa, fiquei fumando e
observando tudo, em especial os médiuns. Notei a quantidade
grande de homossexuais. Finalmente encontrei uma religião que
aceita todos, que respeita o direito de sermos quem somos e o
livre-arbítrio de cada um. De todas as religiões que conheci, de
maneira direta ou indireta, a umbanda é a mais acolhedora.
A umbanda é amor.
***
Na segunda-feira, após desligar o telefone com a minha mãe, a
visão escureceu, as pernas amoleceram, me sentei para recuperar
a força e conseguir ir até a varanda para olhar para o céu, como
sempre fiz em momentos de desespero. Minha mente estava
com pensamentos confusos, o meu sentimento era de tanta dor
que achei que não suportaria. Foi então que lembrei do Exu
mirim e, como se pudesse ouvi-lo falar em meu ouvido naquele
momento, lembrei: “Quero que a tia venha aqui na segunda!”
Perguntei ao João se ele poderia me levar e então fomos.
Assim que entrei no terreiro, eu chorava tanto que chamei
atenção. Uma senhora soltou a prancheta que segurava para me
abraçar, ela não sabia o que estava acontecendo dentro de mim,
mas o abraço foi tão forte, tão de mãe, que me acalmou e senti
novamente meus pés no chão. Parei de chorar com a cabeça no
ombro dela. Depois fiquei sabendo que é uma Mãe no Santo, a
Mãe Sônia. Ela não imagina o quanto aquele abraço foi
importante para mim, me deu uma força inexplicável.
297
Nesta noite, muitas coisas começaram a fazer sentido.
Descobri o motivo do Exu mirim ter insistido para que eu fosse
na segunda, pois é o dia que os trabalhos são focados na cura
física e espiritual, chamamos de ‘Gira de Medicina’. Ele sabia
qual resposta receberia da minha mãe, confirmaria o que já sentia.
Eu precisava voltar na segunda para curar minha dor emocional.
Fui atendida por um caboclo, fiquei bem sem graça porque eu
não entendia quase nada do que me dizia, precisei pedir para
ficar repetindo, algumas frases continuei sem entender. Senti
uma força muito grande e calma no coração. Quando ele fez
uma limpeza em mim, senti meu corpo leve. Por fim, me pediu
para colocar um copo com água ao lado da cama antes de dormir.
“Enquanto você descansa, guias vão energizar a água para
ajudarem com a sua cura. Beba tudo assim que acordar!”.
Eu não acreditava nessas coisas. Cheguei em casa morrendo de
sono, efeito do passe e da limpeza que recebi do Caboclo.
Deitei na cama sem colocar o copo com água. Virei para um
lado, para o outro e nada de conseguir dormir mesmo estando
com sono, então pensei no copo, mas estava com preguiça de ir
buscar, resolvi tentar dormir novamente. Não consegui de jeito
nenhum, fiquei lutando contra o sono. Fui à cozinha para
buscar o bendito copo, totalmente descrente. Fechei os olhos e
dormi sem perceber. Ao acordar, bebi a água, senti o gosto
normal, mesmo ainda duvidando, resolvi agradecer aos espíritos
que energizaram, por respeito. Tomei café-da-manhã, banho,
passeei com a Tati e estava me sentindo muito em paz, pensava
no meu pai, mas conseguia controlar as lágrimas. Minha mente
estava relaxada e acabei dormindo quase o dia inteiro, acordei
me sentindo renovada. Na sexta-feira, estávamos de volta ao
terreiro e começou a fazer parte da nossa vida. A partir desta
terceira visita, já comecei a me considerar como umbandista.
298
Demorei, mas achei o meu lugar, encontrei a religião mais
bonita para mim, que eu me senti acolhida. A umbanda é um
divisor de águas em minha vida, que me fez despertar.
Me sentia incomodada por não conseguir me identificar com
nenhuma religião. As quais tive contato diretamente não me
tocaram. Estudei em dois colégios católicos e tive aula de
religião em ambos, mas não consegui me encaixar nas crenças
do catolicismo e nem ter paciência para ler bíblia. Quando não
conseguimos acreditar em algo, forçar a barra é bem pior.
Acredito que ter fé é uma das coisas mais importantes na vida e
não importa onde ela esteja ou como seja, desde que nos faça
apenas bem. Penso que se a pessoa não acredita em nenhuma
religião existente, mas crê que um sapo na beira da lagoa é um
ponto de força e acredita que ele a protege. É a fé dela e não
podemos questionar ou duvidar do poder do sapo.
Nunca julguei os ateus, embora eu acredite demais em Deus
desde criança, não critico quem não acredita na existência Dele.
Nos poucos ateus que já conheci, vi mais verdade do que
muitos religiosos que são falsos moralistas por pregarem ações
bonitas, mas na prática do dia a dia têm atitudes bem opostas.
Fui duas vezes em momentos diferentes da vida, em templos
evangélicos e saí assustada de ambos cultos. Talvez eu não
tenha tido sorte, mas os pastores falaram mais do diabo do que
de Jesus. Não me identifiquei com esta religião por alguns
motivos, os principais são: não consigo acreditar numa religião
que obriga os seguidores a darem dinheiro com a promessa que
terão o que buscam em troca, enquanto muitos pastores moram
em mansão e têm uma vida regada de luxos. A conta não bate.
Não concordo com o fato de tantas coisas simples serem
consideradas como pecados. Eu não me anularia, não deixaria
de fazer o que gosto ou mudaria meu jeito para poder ser aceita
299
numa religião. Acredito que Deus quer nos ver felizes e não
frustrados ou insatisfeitos por sermos obrigados a algo.
Somente conseguimos ajudar o próximo, se estivermos bem
conosco. Acredito que apenas damos aos outros o que
carregamos dentro de nós. Uma pessoa frustrada não consegue
ajudar alguém que está precisando de ânimo, incentivo para
algo, conselhos positivos etc. Uma pessoa amargurada não
consegue dar amor ao próximo. E por aí vai...
Mesmo não aceitando muitas coisas tanto na religião católica
como na evangélica, respeito. Os pontos ruins no meu ponto de
vista não significam que, quem concorda com tudo e siga tais
religiões, esteja no caminho errado. Viva o livre-arbítrio!
Nem todas as pessoas que amo são umbandistas ou seguem
qualquer outra religião. Meu noivo, por exemplo, não tem
nenhuma religião específica, a fé dele está em Deus.
Contei para ele que sou umbandista em uma das nossas
primeiras conversas porque sei bem o tamanho do preconceito
que enfrentamos, há pessoas que se afastam da gente.
Nunca pedirei para que siga a mesma religião que eu, ele respeita
quando canto Pontos e toma banhos de ervas por espontânea
vontade. Umbandista não faz lavagem cerebral, não exigimos
que ninguém nos acompanhem, apenas que nos respeitem.
***
Na terceira visita, conheci o Babalorixá Alexandre Meirelles,
dirigente da Casa de São Lázaro, fiquei encantada com a
humildade e simpatia, qualidades que identifiquei rapidamente
no primeiro contato que foi bem breve, mas suficiente para
admirá-lo. Lembro que eu estava morrendo de vergonha para
abordá-lo principalmente porque notei que eram muitas pessoas
querendo falar com ele. Depois que o conheci, tive ainda mais
300
certeza de estar no caminho certo. A força, energia e sabedoria
que nos transmite, é impressionante. Além de nosso Babá, Pai
no Santo Grande, é mestre no Xamanismo. Ele é uma das
pessoas que mais admiro nesta vida. Sou muito grata por todos
os ensinamentos que me proporciona, direta ou indiretamente.
Cada vez que ia ao terreiro, mais me despertava vontade de
conhecer sobre a umbanda. De visita em visita na assistência
para receber atendimento com algum guia espiritual, fui me
entregando. Quase todos os guias comentavam comigo sobre
minha mediunidade, no quanto seria bom desenvolvê-la e
começar a trabalhar com ela para ajudar outras pessoas, mas
sempre deixaram claro que esta decisão era exclusivamente
minha, que eu sentiria o momento certo.
Meu foco ao buscar ajuda todas as sextas no terreiro, sempre
foi resolver minha questão familiar, eu queria entender quem
foi minha família em minha vida, por quais motivos não me
encaixei nela e obviamente, busquei notícias do meu pai.
***
Após algumas sextas, já estava me sentindo preparada para
entrar na Corrente de médiuns e iniciar o desenvolvimento.
Chegou mais uma sexta-feira, após passar pelo atendimento
com o guia espiritual, eu e João continuamos no terreiro, pois
nos fazia tão bem estarmos lá que aproveitávamos o máximo,
sempre fomos inimigos do fim. Esta foi a nossa última noite
estando na assistência, decidimos entrar na Corrente a partir da
próxima sexta e concretizamos isso. Começamos a frequentar
as quartas-feiras, quando acontece o desenvolvimento.
Os médiuns são divididos em grupos para as aulas que são
realizadas por uma Mãe ou Pai no Santo e, cada um foca em
alguma Linha espiritual. Em 2013, com o retorno após as férias,
301
numa quarta-feira à noite, com todos os médiuns reunidos,
chegou o momento de escolhermos uma turma para iniciarmos
o desenvolvimento. Eu estava na dúvida qual Linha espiritual
escolheria, então decidi seguir minha intuição. Observei bem
para os Pais e Mães no Santo que estavam posicionados no
centro da Corrente. Meu olhar parou em uma Mãe, senti o
coração batendo mais forte, foi ela que minha intuição me
indicou. Eu não sabia o nome dela nem qual Linha de entidades
trabalharia durante as aulas. Quando me aproximei, ela abriu
um sorriso lindo e disse: “Seja bem-vinda! Sou a Mãe Beth,
vamos trabalhar com a Linha dos Ciganos!”.
As aulas eram deliciosas, o amor que Mãe Beth transmitia
quando falava sobre os Ciganos e a Umbanda, me fazia arrepiar.
Ela compartilhava os ensinamentos com prazer e de uma
maneira fácil de entender, mas se fosse necessário, esclarecia
qualquer dúvida com a maior paciência do mundo.
Mãe Beth era uma mulher doce, com uma força impressionante,
empoderada, um coração gigante e acolhedor, protetora e
amorosa, mas muito brava quando necessário. Ela apenas saia
do sério quando tinha algum motivo, sempre com coerência.
Uma das coisas que mais a irritava era a falta de respeito, não
passava pano, sabia se impor de uma maneira dura e leve ao
mesmo tempo, sem ofender, sem agressão verbal ou moral.
Gostei tanto de ter aula com ela que quando já tinha passado
por todas as turmas e foi necessário repetir alguma, a escolhi
novamente. Três anos depois, voltei à turma dos Ciganos.
Infelizmente, Mãe Beth nos deixou em 2017, quando recebi a
notícia do falecimento dela, chorei muito, não quis acreditar.
Eu estava pronta para sair de casa e ir ao velório, mas não
consegui e desisti, certamente passaria mal. Ela faz muita falta,
a saudade é eterna. Demorei para me acostumar com a ausência
302
física dela, foi muito difícil aceitar que nunca mais escutaria a
voz forte dela na abertura das Giras às sextas-feiras, dela sempre
sorrindo para mim quando me encontrava, dos abraços fortes.
Deixou muitos aprendizados e apenas boas lembranças que
guardo com muito carinho. Tínhamos uma conexão muito
grande, ela sabia quando eu não estava bem, não adiantava
disfarçar, era impressionante como me dizia as palavras certas,
mesmo quando eu não contava o que estava acontecendo.
Mãe Beth foi uma das pessoas que mais marcou minha vida.
***
Descobrimos que nas tardes de quarta-feira, tinha Gira aberta a
assistência e, como estávamos indo à noite, resolvemos começar
a ajudar nos trabalhos da tarde e ficávamos direto para a aula.
Eu cambonava o mesmo guia espiritual todas as quartas-feiras,
um Preto Velho, que se tornou meu padrinho na Umbanda
quando me batizei em 2013, na Casa de São Lázaro. Aprendi
muito com meu ‘Dinho’ espiritual, cambonar é uma fonte de
aprendizados. Cambonei durante quatro anos, às quartas e
sextas-feiras, me sentia realizada podendo ajudar desta maneira.
Escutei muitas histórias tristes e outras tantas de superação.
Vi muitas pessoas chegando chorando e sem energia ao
atendimento e, indo embora sorrindo, aliviadas, agradecidas, se
sentindo fortes novamente para continuarem a caminhada.
Foi sendo cambona que recebi um dos principais ensinamentos
da umbanda: não podemos julgar as dores de ninguém.
Não existe dor menor do que a outra. Dor é dor e pronto.
Julgam muito nossa religião, crenças e fé. Muitos dizem que
somos macumbeiros, que trabalhamos com espíritos ruins.
É difícil saber lidar com tantos ignorantes. O mais incrível é que
há várias pessoas que nos julgam, mas na virada do ano estão lá
no mar, pulando sete ondinhas para nossa Mãe Iemanjá.
303
Algumas pessoas sabendo que sou umbandista, já falaram de
Deus comigo como se não acreditássemos Nele. Não apenas
acreditamos como para nós, Ele está acima dos nossos Orixás e
guias espirituais. Na abertura de todas as Giras de trabalho,
além dos Pontos de Umbanda que cantamos, também oramos
um Pai Nosso, fazemos a Oração do Credo e a Oração de São
Franciso, assim como, oramos Ave Maria em vários momentos.
Há sincretismo dos Orixás com os santos da Igreja Católica.
Sou filha de Mamãe Oxum, para os católicos, é a Santa Nossa
Senhora Aparecida. A morada de Oxum é nas cachoeiras.
Nós trabalhamos com Linhas espirituais: Caboclos, Pretos
Velhos, Erês, Ciganos, Malandros, Boiadeiros, Baianos,
Marinheiros, Exus, Pombogiras e Exus Mirins.
São grupos discriminados na sociedade.
A umbanda é caridade de ambas as partes: das entidades e dos
médiuns. Doamos energia e tempo para ajudarmos o próximo e
evoluirmos. Nenhum trabalho realizado é cobrado, o CIESL é
mantido com doações espontâneas, ninguém é obrigado a
colaborar, ajuda quem sentir vontade e com o valor que quiser.
O terreiro é o lugar onde busco e encontro paz, força, amor.
Tenho muito orgulho por ser umbandista. Religião que escolhi
no momento certo, me deu um novo sentido de vida, preencheu
a maior parte do vazio que sentia e acalmou meu coração.
Comecei a trabalhar incorporando guias espirituais apenas em
2017, foi no meu tempo, quando senti que estava preparada.
Sou grata aos guias que me acompanham e trabalham comigo.
A Tríade da Umbanda é: Pretos Velhos (sabedoria e humildade),
Cablocos (força e vitalidade) e Erês (ingenuidade e alegria).
E é tudo isso que nos move.
Mesmo morando no Rio de Janeiro, continuarei fazendo parte
da Corrente da Casa de São Lázaro, não abro mão do lugar
onde iniciei minha jornada espiritual na umbanda.
304
CAPÍTULO 8 – Livre, leve e solta

Iniciei 2015 tendo como única certeza que seria o último ano
casada, já havia decidido isso dentro de mim, era apenas questão
de tempo para ter coragem de conversar com o João e colocar
o ponto final em nosso relacionamento. Eu queria que ele tivesse
esta atitude de terminar, mas percebi que isso nunca aconteceria,
ou pelo menos, não tão cedo. Nosso casamento já tinha acabado
há mais de um ano, quando nos tornamos dois amigos morando
juntos. Era nítido que não éramos mais um casal feliz, há quase
um ano não rolava sexo e, esse era um bom termômetro para
perceber que algo entre nós, estava muito errado. Por fim, ele
estava com quase 40 anos e eu com quase trinta, essa diferença
de idade que nunca nos atrapalhou, começou a pesar porque
nossos planos se tornaram opostos, não estávamos mais
caminhando juntos na mesma direção. Ele estava cada vez mais
caseiro, enquanto eu estava com energia de uma trintona que
queria explorar o mundo. Se nosso relacionamento estivesse
normal, conseguiríamos conciliar nossos objetivos pessoais sem
atrapalhar o outro. Apenas diferença de idade jamais seria um
motivo para que eu quisesse terminar o relacionamento, até
mesmo porque esta diferença existiu desde o início.
Me angustiava notar que, diante todos os fatos notórios que
mostravam que não estávamos bem juntos, João demonstrava
plenitude, demonstrava que para ele estava tudo bem.
Queria ter a calma de um canceriano.
***
Conheci a Fê em dezembro de 2011, tomando sol na piscina do
condomínio onde morávamos. Ela estava conversando com a
Lu, que eu conhecia desde 2005, me sentei na cadeira ao lado
305
delas para conversar e nossa amizade começou. A Fê também
era casada, trabalhava numa agência de eventos, então durante a
semana, nos víamos pouco por conta da rotina dela ser corrida,
mas aos finais de semana nos encontrávamos na piscina.
Em poucos dias, nossas conversas deixaram de ser apenas aos
finais de semana, começamos a conversar diariamente por
Whatsapp e a amizade foi apenas crescendo, mas foi em 2015
que nos tornamos inseparáveis. Ela não estava mais trabalhando
na agência, então passávamos o dia todo juntas. Almoçávamos
em um dos três restaurantes localizados no mesmo quarteirão
e tínhamos o ritual de tomar café e comer brigadeiro no
‘The bagel bakery’, uma cafeteria aconchegante na rua onde
morávamos, chamávamos carinhosamente de “fabriquinha”.
Todo santo dia estávamos lá, embaixo de sol ou chuva.
Ao mesmo tempo que éramos muito diferentes, tínhamos
muitas coisas em comum. A Fê é uma irmã que a vida me deu,
nos tornamos confidentes, nossa amizade sempre foi bonita.
Ela mais do que ninguém, sabia sobre minha vontade em
querer me separar do João. Mesmo ela gostando muito dele,
queria me ver bem, então me deu de presente uma sessão com
um psicólogo que ela tinha certeza de que era muito bom e que
poderia me ajudar com meu principal dilema daquela época.
Marquei a consulta para a mesma semana e realmente me
ajudou a clarear minha mente que estava uma tremenda
bagunça antes de iniciarmos a sessão. Consegui falar tudo o que
estava sentindo em relação ao relacionamento, escutei as
observações dele e não me restava mais dúvidas, eu já havia
encerrado o ciclo do casamento. Por ser ainda início do ano,
João ia trabalhar no escritório, mas voltava cedo para casa
porque o Fórum ainda estava em recesso. Era o auge de verão
de janeiro, então ele ia se refrescar na piscina no final da tarde.
No caminho, vi que me mandou uma mensagem dizendo para
ir à piscina antes de subir para casa. Tudo o que queria era tomar
um longo banho para processar tudo o que foi dito na terapia.
306
Cheguei na área da piscina e quando João me viu, abriu um
sorriso e andou até a borda em minha direção para conversar
comigo. Resolvi sentar numa cadeira para fumar, foi quando ele
me disse: “Estou pensando em comprar um apartamento neste
ano para sairmos do aluguel. Vi hoje um muito legal!”.
Cortou meu coração. Ele não sabia que eu havia acabado de sair
de uma sessão de terapia na qual o foco foi pedir ajuda para
avisá-lo sobre minha decisão de nos separarmos, sem machucá-
lo com palavras e estava querendo ter esta conversa ainda
naquele dia. Engoli seco, fiquei sem reação, segurei a vontade
de chorar, eu não estava preparada para ouvir que ele ainda
tinha planos para realizar comigo. E eu que estava me sentindo
corajosa suficiente para enfrentar nosso término, percebi que
seria mais difícil do que pensei, então abortei a missão.
Imaginei se fosse ao contrário: eu revelando um plano incrível à
dois e ele terminando o relacionamento poucas horas depois.
Já estávamos encarando a crise no relacionamento há tantos
meses, um dia a mais não faria diferença. Como eu não tinha
amante ou alguém me esperando para ficar solteira e viver um
romance comigo, então não estava desesperada para me
separar, conseguiria esperar até encontrar o momento certo.
O importante era não adiar tanto, pois estávamos infelizes juntos.
Tinha a opinião e ajuda de um terapeuta, decidi então buscar o
mesmo do plano espiritual. O recesso do terreiro acabaria após
o carnaval e achei importante ter a opinião dos guias espirituais
com quem sempre conversava e tinha liberdade para falar sobre
qualquer situação da minha vida. E foi o que fiz. Foi quase um
mês de espera para iniciarmos os trabalhos no terreiro e até lá, a
convivência com o João não mudou, a rotina e a maneira de
nos tratarmos continuou exatamente igual, sem evolução.
Conversei com dois guias espirituais e como eles não podem
atrapalhar nosso livre-arbítrio então não estava buscando
respostas como: “Se separe” ou “Continue com ele”.
307
Quando estive diante os guias, desabafei externando os
sentimentos em relação a querer me separar e por fim, pedi
sabedoria e calma no coração para nós dois. Não queria que a
conversa se tornasse uma discussão, não precisávamos brigar.
O fato de sentir que o amor havia acabado, que é a base do
relacionamento, não significava que o odiava, muito pelo
contrário, o que mais queria é que João ficasse bem sem mim.
Em janeiro, eu e a Fê, decidimos sair para dançar sem os
maridos. Em um sábado, pedimos alvará para eles, chamamos a
Linda e mais duas amigas, fomos conhecer a Memphis que
ficava no mesmo bairro. Era uma baladinha dos anos 80 com
show ao vivo, movimento bem tranquilo, sem tantas pessoas.
Lugar perfeito para o que buscávamos: música boa e paz para
dançar sem perturbação de homens nos abordando.
Como imaginamos, a noite foi perfeita, ficamos até o
amanhecer, nos divertimos como adolescentes na primeira
balada da vida. Desde que estava casada, era a primeira vez que
tinha um momento tão maravilhoso apenas com amigas.
Nos fez tão bem que combinamos que iríamos a cada quinze
dias, um sábado sim e outro não. Os maridos nem precisavam
se preocupar e, se desconfiassem de algo, como estávamos bem
perto do condomínio, eles poderiam ir de surpresa para conferir
que estávamos desacompanhadas de outros homens.
João me dava alvará tranquilamente, sem questionar, sem exigir
nada além de tomar cuidado. Ele nem me mandava mensagens
querendo saber se estava tudo bem e quando chegava em casa,
estava roncando no décimo quinto sonho. A Memphis tornou-
se nosso lugar para relaxar a mente e esquecer da vida. Tanto eu
como minhas amigas, precisávamos ter esta fuga da realidade
para não pirarmos, cada uma com seus motivos...
Nessa época, começamos a frequentar também o Bar do Julio
que ficava bem ao lado do condomínio, nas noites que não
tínhamos nenhum compromisso, era nosso refúgio. Em 2017,
soube que o Sr. Julio faleceu. Senti muito.
308
Minha vida profissional estava devagar quase parando, se eu
não estou bem comigo mesma, a energia não flui, não adianta
nem insistir. Mas eu não estava preocupada e nem com vontade
de que algum projeto acontecesse, pois estava sem cabeça para
focar em qualquer coisa. Estava dançando conforme a música.
E a música era lenta.
Chegamos em junho. Mês que eu e João comemorávamos
aniversário do relacionamento no dia 12 e o aniversário dele no
dia 28, então era um mês especial para a gente. Em 2015,
comemoraríamos exatamente 10 anos juntos, um número bem
significativo. Nossa data nunca passou em branco, sempre
saímos para jantar em algum restaurante, mas como fazer isso
sem existir clima nem vontade de comemorar? Não fazia
sentido brindarmos dez anos se estávamos infelizes.
Eu não conseguiria disfarçar e fingir que estava tudo bem.
E não queria estragar a data que sempre foi tão importante para
nós dois, no mínimo, estaria muito impaciente, me conheço.
Passar por esse climão seria injusto, não precisávamos chegar
neste ponto, era questão de respeito. Só cabia a mim evitar que
isso acontecesse porque ele continuava demonstrando que
estava tudo bem, mesmo que estivéssemos ainda mais distantes
um do outro, quase não havendo mais contato. Estávamos cada
vez mais sendo dois amigos morando juntos. Chegamos num
momento muito triste e delicado, o ponto final tinha acontecido,
faltava apenas conversarmos sobre isso. E ele continuava sem
enxergar que estava tudo muito estranho entre nós. Eu já não
conseguia mais dormir direito, as crises de ansiedade pioraram.
Era uma quinta-feira, a poucos dias da nossa data comemorativa,
quando resolvi que chegou o momento da conversa, eu não
tinha mais condições emocionais de adiar e não podia continuar
procrastinando. Acordei com o pensamento: “É hoje ou nunca!
E precisa ser hoje!”. Um pouco antes do horário dele chegar em
casa, acendi uma vela na varanda reforçando meu pedido aos
guias: sabedoria e calma. Em seguida, fui à academia do prédio
309
para relaxar a mente com endorfina e pensar como o abordaria,
criando um roteiro mentalmente para usar as palavras certas
sem machucá-lo. Quando voltei para casa, ele estava na cozinha
preparando o jantar, fui tomar banho e comecei a chorar
desesperada, não sabia o que era pior: chamá-lo para conversar
antes dele terminar de preparar a comida e destruir o jantar ou
deixar para depois de comermos e ser uma conversa bem
indigesta. Quando voltei para a sala, ele me avisou que o jantar
estava quase pronto, então resolvi deixar para conversar depois.
Comemos e continuei sentada no sofá, ele ligou o videogame e
fiquei ali paralisada o observando. Minha mente estava tão
agitada que nem eu estava me aguentando, até que um filme
começou a passar de momentos que vivemos juntos. Não
conseguia parar de observá-lo, ele nem me notava porque
estava concentrado no jogo. Esperei alguma pausa para poder
interrompê-lo sem atrapalhar a corrida de carros, afinal ele
estava ganhando. Não imaginava que estava tendo sorte no jogo
e azar no amor. Depois de quase duas horas, ele desligou o
videogame e me disse que ia tomar banho para dormir. Já era
quase meia-noite, como fiquei paralisada nem vi o tempo voar.
“É agora!” – pensei. Não consegui agir, ele foi para o banho.
Quando ouvi que se deitou na cama, sabia que era minha última
chance, pois não poderia acordá-lo no meio da madrugada para
conversar. Reconheço que faltou bom senso da minha parte
por querer terminar o relacionamento antes dele dormir, mas na
noite seguinte, teríamos terreiro e a conversa teria de ser
novamente adiada, precisava ser realmente naquela noite.
Fui ao quarto respirando fundo para controlar o coração
acelerado, João já estava deitado, então me sentei na cama ao
lado dele e fiquei o observando sem conseguir dizer nada.
Incomodado com meu silêncio, ele perguntou o que estava
acontecendo e eu disse que precisava conversar. Abri a boca e
as palavras que estavam presas na garganta há tanto tempo,
começaram a sair com facilidade, eu nem segui o roteiro que
planejei, fui simplesmente colocando todas as palavras para fora.
310
Antes de anunciar o objetivo da conversa, falei no tanto que o
amei e como estava me sentindo mal por não conseguir mais
amá-lo, comentei o quanto estava triste por termos chegado
naquele ponto, que sentia que ele também estava infeliz
comigo, mas não estava percebendo. Falei que estava sendo
injusto para nós dois continuarmos insistindo num casamento
que já tinha acabado, pois merecíamos ser felizes e, se não
estávamos conseguindo mais juntos, o melhor era que cada um
seguisse a própria vida. Enfim, fui a mais honesta possível para
externar meus sentimentos e comentar sobre tudo o que estava
enxergando de errado e ele não estava conseguindo ver.
João me olhava sem piscar, estava paralisado, cheguei até a
duvidar se estava prestando atenção no que eu dizia por que
não reagia, não concordava nem discordava, não chorava, não
ria, não me dizia nada. Que agonia! Quase dei um chacoalhão
nele para ver se estava acordado. A falta de reação dele me
deixou nervosa, mas enquanto eu falava, sentia muita calma no
coração mesmo estando triste. Finalizei dizendo: “Pensei muito
antes de ter esta conversa, para mim também não está sendo
fácil, mas o melhor que podemos fazer por nós é terminarmos
nosso relacionamento. Sinto muito, João, mas é uma decisão
antiga e somente agora tive coragem de te contar que não quero
mais continuar nesta relação”.
Parei de falar e fiquei quieta querendo ouvir tudo o que ele
tinha a me dizer. Houve um silêncio eterno, ficamos nos
olhando. Coloquei a mão sobre o coração dele, agradeci por
tudo de bom que fez por mim. Ele continuou quieto.
- Não vai dizer nada, João? – perguntei incomodada com o silêncio.
- Não concordo com a sua decisão, mas vou te respeitar. Vou
dormir, de manhã vou para a minha mãe para avisar que morarei
lá durante um período. Depois nós vemos um dia para eu vir
buscar minhas coisas. Não tenho muito o que dizer agora, você
me pegou de surpresa, não estava preparado para essa conversa.
311
Me disse isso e virou para o outro lado, começou a roncar
praticamente em seguida. Voltei para a sala, acendi outra vela
para agradecer por termos tido sabedoria e calma. Fui mais do
que atendida, a calmaria acabou sendo grande demais e estava
orgulhosa por ter conseguido conversar de uma maneira leve e
sendo coerente em meu discurso.
Já estávamos alguns meses separados, contei tudo isso
pessoalmente ao João, desde o dia que cheguei da sessão de
terapia e ele estava na piscina com o plano de comprar um
apartamento até o momento que estava o avisando sobre minha
decisão de nos separarmos. Como tinha passado bastante tempo,
então conseguimos rir enquanto conversávamos sobre nossos
últimos momentos como casal. Ele me contou a versão dele:
enquanto ouvia meu discurso, sentia uma calma muito grande,
tinha muita vontade de falar, mas não conseguia e começou a
sentir muito calor de energia e não entendeu o motivo.
Concluímos que não estávamos sozinhos durante a conversa,
contamos com uma rede de apoio espiritual para que o ponto
final acontecesse da melhor maneira possível para ambos.
***
Na manhã seguinte da conversa, acordei e João não estava mais
em casa, dormi que nem uma pedra e não vi o momento que
ele saiu. Quando peguei o celular, li uma mensagem que me
mandou, um textão super fofo apesar de demonstrar a tristeza
que estava sentindo. Escreveu tudo o que teve vontade de me
falar pessoalmente na noite anterior, mas não conseguiu.
Foi um texto com muito carinho por mim e por tudo que
vivemos juntos. Levei a Tati para passear na rua e quando
voltei, senti um vazio muito grande, uma mistura de
sentimentos: alívio, tristeza, felicidade, gratidão, medo.
Mandei mensagem no grupo que tinha com a Fê e a Elaine,
nossa amiga que também morava no prédio, avisei que tinha
conseguido ter a conversa com João e que precisava me
312
encontrar com elas, então nos reunimos no apartamento da Fê.
Chegando lá, sentei com elas e desabei, desde a conversa, eu
não tinha chorado, apesar de estar com vontade, consegui me
controlar. Conversamos bastante, elas me ajudaram demais, não
somente por ouvirem meu desabafo, mas por terem me feito
sentir acolhida, eu não estava sozinha e tudo ia dar certo.
Passei o dia todo com elas e quando voltei para casa no início
da noite, me bateu bad por lembrar que João não voltaria mais.
A mente humana é algo inexplicável, o que eu mais queria era
me separar, mas estava sentindo uma tristeza como se não
quisesse. Tentei ficar em casa e não consegui, estava me
sentindo incomodada com a falta que a presença dele estava
causando. Mandei mensagem para a Fê avisando que eu não
estava bem e ela pediu para ir dormir no apartamento dela, pois
por ser na cobertura, tinha um quartinho a mais. Peguei
algumas coisas e fui. Ficamos conversando até que o sono
batesse, eu estava com a mente exausta de tanto pensar. A Fê
avisou que eu poderia ficar dormindo lá o tempo que quisesse,
até me sentir bem para voltar a ficar no meu apartamento.
O que ela fez por mim, não tem preço.
Fiquei morando com ela durante alguns dias, ia para casa
apenas para pegar a Tati e levá-la para passear, e deixar comida
para ela e as gatas. Numa noite, João me mandou mensagem
perguntando se poderia ir ao apartamento no dia seguinte para
buscar as coisas dele. Avisei que sim e pedi para que me
avisasse quando estivesse indo e quando já tivesse saído do
apartamento para evitarmos de nos encontrarmos. Assim que
ele me avisou que já estava voltando para a casa da mãe com as
coisas dele, fui ao apartamento. Quando cheguei, senti um
aperto no coração, olhei para a estante da sala e vi alguns
espaços vazios onde estavam pertences dele, mas estranhei que
não levou o videogame. Subi ao quarto e o armário que era dele
estava com as portas abertas, sentei na cama e fiquei olhando
para o espaço vazio, sem mais nenhuma roupa dele.
313
A ficha caiu naquele momento, definitivamente não estávamos
mais juntos e, mesmo se eu quisesse voltar atrás, já era tarde
demais. Me bateu bad, chorei, fechei as portas e voltei para o
apartamento da Fê. Depois disso, nós dois ficamos alguns dias
sem contato, até que chegou o segundo sábado que estávamos
separados e a Fê conseguiu alvará com o marido para irmos à
Memphis. Nós estávamos nos arrumando, me lembro como se
fosse ontem, eu estava terminando de me maquiar na frente de
um espelho grande que ficava na frente da escada, estávamos
bebendo vodka e conversando sobre a possibilidade de eu ficar
com alguém naquela noite, comentei que seria estranho beijar
alguém depois de tantos anos beijando a mesma boca.
Parece que João me ouviu. Alguns minutos depois, chegou
notificação de mensagem dele, pensei em deixar para ler apenas
no dia seguinte, mas fiquei curiosa e resolvi saber o que ele
queria. Quando li, até me sentei. João estava me contando que
estava muito triste e que desde o dia que buscou as coisas dele,
não conseguia sair da cama, pois não tinha vontade de fazer nada.
Todo final de relacionamento, um sempre sofre mais do que
outro. Para mim, estava sendo um momento dolorido, mas não
tinha dúvidas que para ele estava sendo bem mais difícil.
Eu não sabia o que responder, mas jamais conseguiria ignorar e
fingir que não tinha lido, não me lembro exatamente como foi
minha resposta, mas pedi para que tivesse calma.
Nessa noite, não tive vontade de ficar com ninguém, o primeiro
beijo para iniciar a fase de solteira aconteceu apenas no sábado
seguinte, quando fiquei com o baterista da banda que estava
tocando. O show já tinha acabado, ele estava arrumando o
equipamento para ir embora quando o abordei, perguntei se era
solteiro e assim que me respondeu que sim, nos beijamos.
Como ele precisava ir embora por estar de carona com outro
integrante da banda, pediu meu número para conversarmos.
Eu estava há um ano sem fazer sexo e para uma escorpiana,
esse tempo é como se fosse uma vida, estava me sentindo virgem.
314
E quem tirou esta virgindade foi justamente o baterista na
quinta vez que ficamos e fui para a casa dele, mas foi uma
decepção tão grande para mim, nem gosto de lembrar. Coloquei
muita expectativa por estar há tanto tempo sem e me frustrei.
Ele tocava em outra banda e sempre me chamava para assistir.
Acabei sendo fiel porque nesta fase que estávamos ficando, não
quis saber de conhecer outra pessoa. Confesso que fiquei um
pouco envolvida, minhas amigas não entendiam o que vi nele.
Depois do sexo, desencantei e coloquei a fila para andar,
mesmo não existindo contatinhos. Ainda demos alguns beijos
quando ele tocava na Memphis, pois parei de ir atrás dele em
outros lugares. E descobri que na época que estávamos ficando,
ele saía com outras mulheres. Um direito dele, afinal não
tínhamos nenhum compromisso sério, eu que fui trouxa por ter
me apegado logo no primeiro. Apenas parei de dar uns beijos
nele quando nos encontrávamos, pois foi bem babaca comigo.
Num sábado, estava na Memphis com a Fê e mais duas amigas,
ele não estava porque era outra banda que estava tocando.
Sempre ficávamos até o DJ parar de tocar música e as luzes
ficarem acesas. Bem inimigas do fim. Tinha uma fila pequena
no caixa e aproveitei para ir ao banheiro, quando estava saindo
da cabine, vi um homem na frente da pia, ele foi para cima de
mim tentando me empurrar de volta para dentro da cabine,
mesmo bêbada tive força para lutar contra ele. Acabei caindo
no chão e novamente foi para cima de mim, tentado me beijar a
força e colocando todo o peso do corpo dele sobre o meu para
que não conseguisse me levantar. Ele me disse: “Sei que você
quer, Bruninha!”. Eu não queria. Com uma força que não sei de
onde surgiu, consegui me levantar e sair correndo. Fui direto ao
gerente para avisar que quase fui estuprada no banheiro e que
queria que algo fosse feito ao cliente. Minhas amigas viram meu
desespero e foram até a mim para saber o que estava acontecendo.
O gerente não fez nada e infelizmente, o cidadão conseguiu ir
embora. Continuei indo, louca para encontrá-lo e me vingar.
315
No dia seguinte, mandei um áudio para o baterista contando o
ocorrido. A resposta dele era digna ao prêmio de machista do
ano: “Mas também né, Raquel, você sempre está com vestido
curtinho e fica dançando de uma maneira provocante!”.
Depois disso, o bloqueei e não quis mais manter contato, quando
ele tocava na Memphis, fingia que não o conhecia. Ele entrou
em desespero, me achou no Facebook e me mandou várias
mensagens, mas continuei o ignorando com sucesso.
Fiquei com o baterista de outra banda, com o vocalista de outra
e com um guitarrista de uma outra. Brincava dizendo para as
minhas amigas que eu estava montando uma banda particular.
***
No dia seguinte que João me mandou mensagem com um tom
depressivo, acordei morrendo de ressaca, quando melhorei o
cutuquei perguntando como estava se sentindo. Ele não estava
bem, então resolvi visitá-lo na casa da mãe para conversarmos
pessoalmente, eu não conseguiria simplesmente virar as costas e
seguir minha vida quando me sentia culpada por ele estar
daquela maneira. Sentamos e conversamos, tomei o maior
cuidado com palavras para que não se iludisse pensando que
minha visita pudesse ser uma chance de retomar o casamento.
Conversamos por mais de uma hora, ele demonstrou estar
preocupado comigo sobre o que seria de mim sendo que eu não
sabia nem fritar um ovo. Outra preocupação dele era que me
envolvesse com alguém que me machucasse. Rimos quando
percebemos que a mãe dele estava de olho na gente, a cada
cinco minutos ia nos espiar tentando disfarçar com o jeitinho
engraçado dela. Conversamos sobre como ficaria a questão da
minha vida profissional, afinal ele era meu empresário e
advogado. Combinamos que precisava entregar o videogame e
outros pertences que deixou no apartamento, enquanto eu
precisava buscar minhas coisas que estavam lá na casa da mãe
dele, pois tínhamos um quartinho cheio de coisas e desapegos.
316
Combinamos que não deixaríamos de manter contato, afinal
foram dez anos de casamento, a amizade não poderia acabar.
Começamos a almoçar todos os sábados juntos, sempre em
algum restaurante do bairro. Aos poucos ele foi melhorando,
voltando a ser a pessoa animada e brincalhona. Conversávamos
bastante como dois velhos bons amigos, desabafava com ele
sobre as dificuldades que estava tendo no dia a dia, sobre
planos futuros, apenas o poupava de contar sobre outros
homens, no caso, no quanto eu estava aproveitando minha fase
de solteira. No começo de outubro, estávamos almoçando
juntos quando ele me disse: “Preciso te contar uma coisa, quero
que saiba por mim antes que fique sabendo por fofoca”.
Matei a charada na hora, obviamente ele estava namorando ou
saindo com alguém.
- Me conte! Quero saber! – respondi animada já sabendo o que era.
- Estou namorando com uma pessoa que você conhece.
- Amiga minha?
- Não, mas já conversaram no terreiro e você sabe quem é.
Nos próximos segundos, senti um frio na barriga, minha mente
estava acelerada com nomes de mulheres que eu não gostaria
que ele estivesse namorando por motivos de: não gosto delas,
apenas as respeito por serem irmãs no santo.
Comecei a conversar comigo em pensamento: “Meu Deus, será
que é a fulana??? Não pode ser! João não pode estar com ela! E
se for ciclana? Ela fala mal de mim nas minhas costas, vou ter
que contar a ele o que fiquei sabendo. E beltrana??? Vixe!!”
João estava me olhando, acho que não consegui disfarçar que
meus pensamentos estavam longe. Respirei fundo e continuei:
- Quem é João? Acabe com esse mistério agora!
- É a Ana [sobrenome dela]!
- Nossaaaa! Por que não me contou antes? – perguntei aliviada.
Não era fulana, ciclana nem beltrana. Era a Ana.
317
Tivemos pouco contato, mas gosto dela, tem uma energia boa,
além de ser escorpiana e filha de Oxum que nem eu. Aprovei o
romance deles! Fiquei feliz com a notícia, enfim João estava
vivendo uma nova história de amor e eu poderia ficar tranquila.
Ele tirou um peso das minhas costas.
Nossos almoços deixaram de ser todos os sábados, mas pelo
menos uma vez por mês, se não conseguíssemos almoçar,
tomávamos café em alguma doceria. Nos encontrávamos no
terreiro e às vezes ele ia ao bar do Julio para conversar com os
amigos e eu estava lá com as meninas: Fê, Elaine e Els (uma
amiga holandesa que estava morando há pouco tempo no Brasil
e no mesmo condomínio).
***
Não montei minha banda particular, apenas peguei sem me
apegar aos músicos. Depois da frustração sexual que tive com o
primeiro baterista, fiquei um tempo sem vontade de fazer sexo,
estava me poupando para quando tivesse realmente certeza que
seria maravilhoso. Então apenas distribuía beijos nos rolês.
Até que em setembro, estava na área de fumantes na Memphis
e apareceu um moço que chamou minha atenção, fiquei
hipnotizada olhando para ele. Continuei ali o admirando
quando meu momento foi interrompido com duas mulheres
que se aproximaram e puxaram assunto comigo porque me
reconheceram. Me perguntaram o que eu estava fazendo lá,
contei que a Memphis era meu ponto de refúgio nos sábados à
noite. Papo vai, papo vem, o moço se aproximou e perguntou
para elas: “Vou voltar para a pista, vocês vão ficar aqui?”.
Ora, ora, elas o conheciam e eu não poderia perder a
oportunidade, primeiramente perguntei quem era ele.
- É um dos melhores amigos do meu marido – uma respondeu.
- Ele é solteiro?
- É sim, terminou o casamento há pouco tempo e até onde sei
não está ficando com ninguém, pelo menos veio sem companhia.
318
- Hmmm gostei dele. Será que tenho chance?
- Claaaaaro! Vou chamá-lo para te apresentar!
Ela ficou super empolgada com a missão cupido que lhe
entreguei. Fiquei esperando com frio na barriga, me sentindo
bem adolescente. Fomos apresentados e as duas mulheres nos
deixaram à sós. Eu apenas não estava morrendo de vergonha
porque estava sob efeito da vodka. Ele estava sóbrio porque foi
para lá de moto e não poderia beber. Rolou match na hora.
Minha autoestima berrou dentro de mim. Conversamos um
pouco e entramos para aproveitar o show, entre uma música e
outra, aconteceu nosso primeiro beijo, ficamos até ele ir
embora. Pegou meu número e no dia seguinte mandou
mensagem me convidando para nos vermos durante a semana
E foi assim que ele se tornou meu ficante fixo, começamos a
nos encontrar pelo menos duas vezes por semana.
Nossos encontros eram maravilhosos, com muita química e
afinidades, nos divertíamos demais, enfim, ótima companhia em
todos os sentidos. Ele estava com 38 anos, super maduro,
inteligente, trabalhava na empresa do pai, um bom partido.
Em nosso segundo encontro, me contou bastante sobre a vida
e eu já entendi que não poderia me apaixonar... Ele estava
separado há quase três meses, ficou casado por 8 anos, a ex
pediu separação alegando que estava apaixonada por outro e
que iam morar juntos nos Estados Unidos. O conheci no
momento errado: ele estava na fase de negação, não aceitava de
jeito nenhum o fato dela ter feito isso, estava na sofrência nível
hard e ainda tinha muita esperança da ex perceber que fez uma
loucura, se arrepender e pedir para voltar. Em todos nossos
encontros, ele ficava um tempão falando dela, tinha dia que
dizia que a perdoaria e voltaria, em outros dias dizia que não
queria mais vê-la nem pintada de ouro. Meu boy magia estava
bem confuso. Fui a primeira mulher que ele ficou após a
separação, então sobrou para eu fazer o papel de ombro-amigo
e dar conselhos. Para mim tudo bem, afinal ele abriu o jogo
319
antes mesmo que eu tivesse tempo de criar qualquer expectativa
sobre nós. Nos primeiros encontros, eu entendia e respeitava o
momento dele, ouvia os longos desabafos numa boa, mas a
paciência tem limite. Além dos desabafos, ele também me
mostrava as últimas fotos que ela tinha publicado no Instagram
e revezava entre elogios e xingamentos, até aí tudo bem, até que
ela começou a publicar fotos com o novo namorado e meu boy
charmoso pirou, ficava me mostrando fotos do rapaz e fazendo
comentários desnecessários, mas típicos de um homem que foi
traído. Aguentei até onde pude e resolvi parar de ficar com ele.
No nosso último encontro, fomos ao show do Capital Inicial e
do Paralamas do Sucesso. Foi uma noite incrível, mas acabou
sendo nossa despedida. Perdemos contato quando ele começou
a namorar dois anos depois. Ele desistiu da ex que acabou se
casando com o americano que os separou.
Já era início de dezembro e decidi que terminaria o ano sem
querer conhecer outra pessoa, focaria apenas em mim para
iniciar 2016 livre, leve e solta.
***
Fiquei morando no apartamento da Fê por pouco tempo, quase
duas semanas. Ainda não estava preparada para enfrentar a
situação de morar sozinha, mas precisava aprender a lidar com
isso, querendo ou não. Além disso, a Tati e as gatas deveriam
estar sentindo muita falta da minha presença principalmente na
hora de dormir. Então retornei para casa com força e coragem.
Nos primeiros dias foi bem estranho, ficava na bad do nada.
Precisei readaptar minha vida sem o João, mesmo que nos
últimos tempos ainda casados, estivéssemos distantes como
casal, ele ainda fazia tudo para mim, eu não tinha nenhuma
preocupação. Precisei aprender a me virar na cozinha, eu não
comia mais o que sentia vontade, mas não passava fome. Minha
geladeira se tornou de solteira, praticamente vazia. Nessa época,
descobri o poder da tapioca, me tornei tapioqueira. Fácil e
rápido de fazer, matava minha fome, achava uma delícia e se
320
tornou meu jantar de todos os dias, acabei me viciando.
Continuei almoçando com a Fê e a Elaine em algum restaurante
e indo na fabriquinha para comer brigadeiro.
O contrato do aluguel acabaria em dezembro, achei melhor
mudar de apartamento. Vida nova, novos ares. Quis continuar
morando no mesmo condomínio para ficar perto das minhas
amigas. Encontrei um apartamento lindo, recém reformado,
extremamente aconchegante, decoração delicada, enfim, parecia
que estava me esperando. Fechei o contrato diretamente com o
proprietário, aguardei dois dias para resolver a parte burocrática
e não acreditei quando peguei a chave. A primeira vez que
entrei no apartamento oficialmente como a nova moradora, eu
chorei tanto, mas tanto, como há muito tempo não fazia, foi
um choro de felicidade. Havia conseguido tudo o que queria
naquele momento: um cantinho para começar um novo ano e
recomeçar mais uma vez a vida.
Eu já tinha me adaptado a morar apenas com minhas filhas pets,
mas sempre tive a mania de colocar na cabeça que, para
acontecer algo que quero muito, antes preciso fazer determinada
coisa, neste caso, mentalizei que meu novo ciclo começaria
apenas quando me mudasse de apartamento.
Era uma quinta-feira quando me mudei, fiz uma boa faxina para
limpar a energia e busquei a Tati com as gatas, pois eram minha
prioridade. Além delas, peguei apenas algumas roupas e as
coisas do banheiro. À noite, fui ao curso de xamanismo e
umbanda. No dia seguinte, fiz a mudança com calma, usando o
carrinho do condomínio que não era muito grande, então foram
necessárias várias viagens de um apartamento ao outro. Quando
chegava na nova toca, já organizava as coisas que levei nos
lugares para não fazer bagunça. Apenas livros, DVDs e objetos
de decoração, foram várias idas e vindas. Parei às 18hs para me
arrumar e ir ao terreiro. No sábado, continuei a mudança com
roupas, coisas da cozinha e do escritório. Finalizei a primeira
parte. Para o domingo ficaram poucas coisas, que não cabiam
321
no carrinho e não conseguiria mudar sozinha: a televisão da
sala, a mala que usei e ganhei em ‘A Fazenda’, móveis do
escritório e me equipamento de DJ. A Fê estava viajando com o
marido, então quem me ajudou foi a Els. Seria algo muito
rápido, em menos de uma hora terminaríamos facilmente.
Estávamos no apartamento antigo e ela teve a ideia de buscar
um carrinho que ficava no térreo, bem na frente do elevador de
serviço. Pois muito que bem. Estava a esperando voltar e notei
que ela estava demorando muito porque era algo que não levaria
nem cinco minutos. Até que tocou o interfone e estranhei. Era
o porteiro, super nervoso pedindo para que eu descesse porque
uma moradora tinha agredido a Els. Eu me desesperei, nem
fechei a porta do apartamento, saí apertando o botão dos três
elevadores, já com sangue nos olhos para comprar a briga e
pronta para agredir a tal moradora se assim fosse necessário.
Quando cheguei na portaria, Els chorava muito, não conseguia
nem contar o que tinha acontecido. O porteiro contou o que
viu e comentou que teve que separar as duas.
Vendo as imagens da câmera, entendi o que aconteceu e quem
foi a agressora, uma vizinha que morava no mesmo andar que
eu, que vivia brigando e fazendo barraco com o marido.
Presenciei várias vezes as brigas deles e tinha medo, saía até de
perto porque a mulher era quem batia no marido, ele nem
tocava nela, pedia apenas para que parasse. Nenhuma mulher
podia olhar para o abençoado dela, ela virava um bicho e queria
brigar. Uma vez, peguei o elevador com este casal, estava me
olhando no espelho como sempre fiz e ela cismou que eu
estava olhando para o marido, do nada começou a gritar
comigo, me perguntou por que estava o paquerando.
Fé nas malucas. Evitava passar perto deles. Mas enfim, a Els foi
buscar o carrinho, enquanto estava o colocando dentro do
elevador, o casal apareceu, a mulher surtou do nada e grudou
no cabelo da Els a puxando para baixo querendo derrubá-la no
chão, por sorte o porteiro apareceu para separá-las.
322
Quando o nervosismo passou, finalizamos a mudança não mais
com tanta calma porque corríamos o risco de encontrar com a
vizinha louca no meio do caminho. A Els passou o dia comigo,
meu lado agente do FBI entrou em ação, peguei com o porteiro
algumas informações e comecei a investigar o casal, encontrei
as mídias sociais e processos contra os dois. À noite, fomos à
delegacia para fazer BO da agressão. Claro que não deu em nada.
Era para ter sido um dia tranquilo apenas finalizando a mudança
e acabou sendo um domingo com adrenalina.
Morei nesse apartamento durante um ano e foi um lugar muito
especial para mim, me marcou demais e demorei alguns meses
para me desapegar, mesmo que tenha ido para um bem maior e
melhor, acho que deixei um pedacinho meu ali.
***
Eu achava que 2015 havia começado para valer no dia que João
me contou que estava namorando, mas concluí que começou
apenas em dezembro, com minha nova moradia.
Foi um ano que foquei em mim, na busca da minha felicidade,
vivi muito na sombra por conta do curso que aceitei fazer às
quintas, de umbanda e xamanismo, que trabalhava com questões
que mexem na profundidade da nossa alma, mas que colaborou
demais para que eu começasse a entender quem sou eu.
Não foquei no trabalho porque precisei dar um tempo de Bruna
Surfistinha, não conseguiria conciliar tudo. Ainda assim, tive
momentos incríveis: um deles foi em setembro, quando fui
contratada para ser DJ de uma festa em Recife, cidade que amo,
tudo lá é maravilhoso, os lugares, a energia das pessoas, as
praias, o bolo de rolo. Fui com a Fê, mesmo que tenha sido
uma viagem bem rápida, aproveitamos o tempo livre durante o
dia e a festa à noite. Em outubro, ela não pôde me acompanhar
na viagem à Tubarão para onde fui para ser DJ em uma festa.
Aceitei o desafio de ir sozinha e achei importante ter este
323
momento apenas meu, mesmo que tenha sido trabalhando.
Perceber que sou capaz de viajar sozinha, algo que sempre tive
medo, me libertou de monstrinhos que eu mesma criei.
A Deborah Secco estava gravando uma temporada de programas
sobre maternidade, pois estava grávida da filha Maria Flor.
Em cada gravação, ela entrevistava alguém e fiquei lisonjeada
por ter sido uma das convidadas. A Fê me acompanhou nesta
gravação que aconteceu no apartamento da Deborah.
Foi um momento muito especial porque não nos víamos desde
o lançamento do filme e vê-la grávida foi muito emocionante
para mim, como se estivesse me representando.
No final de novembro, fui a Curitiba pela milésima vez, mas
pela primeira estando solteira. Fui para gravar algumas cenas
para o documentário que a Fox estava fazendo sobre mim para
ser exibido antes da estreia da série ‘Me chame de Bruna’.
Aproveitei a viagem para matar saudade do Will e do Fê, que
nesta época ainda morava lá. A gravação foi durante o dia,
então à noite aproveitamos a noite curitibana. Primeiro fomos a
um evento maravilhoso da Heineken e depois fechamos a
madrugada numa balada, acabei me perdendo deles quando
fiquei com um moço que me convenceu a ir ao rolê sertanejo
do outro lado da rua. Chegando lá, achei que estava mais
divertido, esqueci da vida e que meus amigos poderiam estar
preocupados me procurando. No fim, eles me encontraram e
me deram bronca com razão. Dormi na casa do Will.
No dia seguinte, infelizmente precisei voltar a São Paulo.
***
Eu, Fê, Elaine e Els nos tornamos grudes de setembro até o
final do ano, pois éramos vizinhas de prédio. Nossas idas à
Memphis se tornaram todos os sábados. Se quem canta os
males espanta, acredito que quem dança também. Como era
gostoso ter este refúgio para encerrar a semana.

324
Essa fase foi deliciosa e inesquecível, nós quatro estávamos
quase todas as noites juntas, eu dizia que eram a minha equipê
(com circunflexo mesmo). Nós quatro estávamos passando por
uma fase delicada, nos ajudávamos demais, era uma troca muito
boa, podíamos contar uma com a outra em qualquer momento.
Algumas noites durante a semana, nos encontrávamos na casa
da Elaine para bebermos vinho e conversamos sobre a vida.
Sabíamos rir das nossas desgraças.
A Els mesmo sendo holandesa, conversava com a gente em
português, pois queria muito aprender rápido. Ela fala nosso
idioma muito bem, melhor do que muitos brasileiros, inclusive.
Uma outra amiga que foi muito presente em minha vida durante
o ano todo foi a Linda. Nos conhecemos no CIESL em 2013,
na Gira de quarta à tarde, ela também ia trabalhar para ajudar.
Sempre conversávamos quando nos encontrávamos, mas nossa
amizade surgiu quando salvamos um cachorro que estava quase
morrendo na frente do terreiro, resgatamos e levamos no carro
dela ao veterinário, quando teve alta da cirurgia que precisou ser
feita, encontramos um lar cheio de amor. Essa missão nos uniu.
Linda esteve presente em vários rolês de 2015, sempre cuidando
de mim, me dando água quando achava necessário me hidratar
na pista de dança. Temos tantas histórias para contar, daria um
bom livro. Ela sempre foi amiga do João, mas assim como a Fê,
me deu muita força antes e após o fim do nosso relacionamento.
***
Guardo todas as lembranças de 2015 com muito carinho, foi
um ano muito importante para mim. Um marco em minha vida.
Não foi fácil, mas ao mesmo tempo, foi leve.
E o ano não acabou por aí, houve um acontecimento que
deixarei para o próximo capítulo...

325
CAPÍTULO 9 – Pisando em ovos

Era início de noite, sexta-feira, 18 de dezembro, eu estava em


casa sozinha, assistindo um filme e comendo pipoca, não fui ao
terreiro porque entramos em recesso na quarta-feira daquela
semana. O interfone tocou, era a Fê me chamando para irmos à
Memphis mais tarde, não fazia parte dos meus planos sair
naquela noite, pois estava na bad de final de ano e queria ficar
quieta em casa, mas ela insistiu e me convenceu. Confesso que
não estava nem um pouco animada, tanto que nem me arrumei
como de costume, coloquei jeans, uma regata qualquer e fiz uma
make bem básica. Preparei um copo de vodka com energético e
coloquei música para me animar.
Quando chegamos na Memphis, não sabemos o que aconteceu
naquela noite, mas estava mais vazia que o normal, nenhuma
alma viva na pista e apenas duas mesas ocupadas. Ainda não era
meia-noite, enquanto fui buscar uma bebida e tinha esperança
de que as pessoas ainda chegariam, a Fê estava desanimada para
continuarmos lá e sugeriu de irmos ao Wild Horse, uma
baladinha no mesmo estilo que ficava a poucos metros de onde
estávamos. Num primeiro momento, pedi para continuarmos
na Memphis, mas quando meu drink acabou e nada havia
mudado, aceitei irmos para outro lugar.
Pois muito que bem, quando chegamos lá, o espaço estava
cheio, já rolava o show de rock ao vivo e então fomos para a
frente do palco para dançar e curtir nossa noite. Era início da
madrugada, eu já estava um pouco bêbada, curtindo demais o
som da banda, brisando e dançando quando fui abordada por
um jovem rapaz que me perguntou se eu era a Bruna, quando
respondi que sim, ele disse: “Vou buscar o meu amigo que é seu
fã e está com vergonha de vir pedir uma foto”. Saiu e voltou
com o tal amigo. Tiramos foto e eu fiz algo que nunca tinha
326
feito antes com um fã da Bruna, o abracei com força para tirar a
foto, mas senti vontade e agi naturalmente. Senti um frio na
barriga e achei meu então fã bem interessante. Trocamos algumas
palavras, ele se despediu de mim e saiu para voltar aonde estava
com os amigos. Não consegui tirar os olhos dele e o acompanhei
andando de costas para mim, foi quando ele virou de repente,
de uma maneira tão rápida que não consegui disfarçar e ele viu
que o observava. Voltou ao meu encontro, começamos a
conversar e logo nos beijamos. Quebrei com ele uma regra que
sempre carreguei comigo: nunca beijar um fã. Pois o beijei com
vontade. Logo de cara rolou muita química entre nós.
Conversamos um pouco, quis saber detalhes básicos dele antes
de continuar nossa pegação: ele também tinha 31 anos e estava
há poucos meses solteiro, assim como eu. Trabalhava em São
Paulo, mas morava no interior. Fazia bate-volta todos os dias.
Contei que era a primeira vez que estava indo naquela balada e
que não era para estar lá, ele então me contou que também não
era para estar ali, pois naquela noite tinha rolado o evento de
confraternização da empresa onde ele trabalhava e quando
acabou, ele e alguns amigos quiseram continuar bebendo e
foram parar ali. Ou seja, eu já fiquei toda emocionada, achando
que o destino nos colocou no mesmo lugar para nos conhecermos
e ficarmos juntos para sempre. Os nomes parecidos, mesma
idade, gostava de vodka, pronto, achei o homem da minha vida.
Meu pensamento de bêbada foi criativo.
O show acabou, já estava começando a clarear, resolvemos ir
embora. Fomos para a calçada, eu, Fê, Rafael e o amigo dele
que me abordou na pista para pedir a foto. Um carro branco
parou na nossa frente, entramos. Fui dando coordenadas ao
motorista sobre o caminho que tinha que seguir para chegarmos
no prédio. Em poucos minutos, notei que quem dirigia estava
bem louco de bebida, quase bateu o carro ao passar o sinal
aberto, me desesperei, pedi para ele parar imediatamente o
carro, falei para a Fê pegarmos outro táxi.
327
Os meninos começaram a rir e então me contaram que não
estávamos num táxi, o carro era do Rafael e quem dirigia era
um amigo deles, o André, que estava o tempo todo no Wild
Horse, mas eu não tinha o visto e era o menos bêbado para
assumir o volante. Então pedi proteção a Deus e continuamos
no carro mesmo correndo risco de algum acidente.
Chegamos na frente do prédio, a Fê se despediu de todos e
entrou, resolvi convidar o Rafael para subir rapidinho no
apartamento, obviamente cheia de segundas intenções. André e
o outro amigo ficaram no carro enquanto isso. Bebemos a
saideira de vodka e saciamos nossa vontade carnal. Já era mais
de 7hs quando finalizamos o coito, apenas não o convidei para
dormir comigo porque os amigos estavam o esperando no
carro. Anotei o número dele antes de nos despedirmos. Acordei
um pouco depois das 15hs, uma das primeiras coisas que fiz foi
mandar uma mensagem para ele, perguntei se tinha chegado
bem. Ele estava num churrasco na casa de um amigo em Jundiaí.
Conversamos todos os dias dali em diante e combinamos de
nos encontrarmos novamente. Ele ia a São Paulo e voltava ao
interior de fretado todos os dias, assim que chegava na cidade,
ia direto à faculdade. Mesmo tendo uma rotina puxada, ele
nunca deixou de me dar atenção. No final de semana seguinte,
ele foi me visitar e passamos os dois dias intensamente juntos,
com direito a muita vodka, sexo, música e bom papo.
Chamávamos estes momentos de “nossas festinhas”.
Tínhamos muitas coisas em comum no meio de diferenças
gritantes que existiam entre nós. Ele começou a ir todos os
finais de semana para ficar comigo e a cada encontro, meu
sentimento foi ficando mais forte, enquanto eu era apenas uma
companhia divertida para ele. Rafael deixou claro que não
estava preparado para viver um novo relacionamento e eu
deveria ter lidado com nossos encontros da mesma maneira,
sem querer nada sério, apenas sexo casual. No entanto, o que
eu sentia era bem mais forte do que meu lado racional.
328
Comecei a tratá-lo como se já fosse meu namorado. Foi meu
primeiro erro. Me iludi achando que havia reciprocidade quanto
aos sentimentos, pois me dizia que eu o deixava louco, ele ia
embora já planejando nosso próximo final de semana, me
cutucava no WhatsApp quando eu ficava muito tempo sem
mandar mensagem, fazia questão de conversar comigo todas as
noites por telefone, queria saber como havia sido meu dia.
E eu fui ficando cada vez mais emocionada e apaixonada.
Em janeiro de 2016, a Fê se separou e alguns dias depois,
engatou um romance com o André, o amigo que achei ser
taxista. Ele parecia ser gente boa e nós duas nos tornamos
adolescentes bobas e iludidas. Começamos a sair todos juntos,
já que estávamos entre amigos. O carnaval chegou e foi o
primeiro que curti pra valer em toda minha vida, eu e Rafael
fomos para bloquinhos de rua quase todos os dias e não sei
como conseguíamos chegar em casa, nós não tínhamos limites
para bebida, estávamos nesta fase de curtirmos a vida. Juntos,
formamos uma boa dupla. Nós dois não sabíamos cozinhar,
cansamos de viver entre tapiocas, resolvemos nos aventurar no
fogão e dávamos boas risadas com nossas tentativas.
Em março, da noite para o dia, sem que eu tivesse o cobrado e
sem uma oficialização como manda a moda antiga com pedido
de namoro, ele começou finalmente a me tratar como namorada,
mas é aí que começou o problema. Ele que não é bobo, sabia
que eu estava emocionada demais, entregue de corpo e alma,
com uma dependência emocional muito grande por ele.
Em pouco tempo de namoro, Rafael se transformou, começou
a me cobrar mudanças, nada estava bom para ele, tanto em
mim como na minha vida. Reclamou até mesmo da sombra
preta que eu sempre passei para destacar meu olhar e que faz
me sentir poderosa. Pois ele disse que não combinava comigo,
então pediu para que eu não passasse mais. Começamos a
frequentar a academia do condomínio e ele me dava toques do
que eu deveria melhorar no meu corpo, com dicas sutis de
329
exercícios para definir regiões que nem imaginava que faziam
diferença no corpo de um ser humano. Começou a reclamar
quando eu bebia, pois ele resolveu parar de beber, mas
esqueceu de me avisar, talvez fosse mais legal reclamar do que
me incentivar a parar também. Começamos a brigar e no meio
de uma das discussões, ele me disse: “Se você continuar desse
jeito, quando tiver quarenta anos, ninguém vai te querer!”.
Rafael era machista, o típico hétero top que se preocupa com
aparência e status que a sociedade exige para que você seja
interessante. Ter uma boa aparência para o mundo e ter muito
dinheiro eram prioridades. O resto vinha bem depois.
Lidar com esse jeito dele foi o primeiro grande desafio, pois eu
sempre fui o oposto disso tudo, com zero vaidade, sem querer
me encaixar no padrão de beleza e sempre lidei com dinheiro
de uma maneira bem leve, sem me cobrar uma vida chique.
Prioridade para mim sempre foi ficar bem, buscar minha
felicidade onde quer que esteja e ter paz. Começamos então a
entrar em conflito porque ele queria que eu mudasse toda
minha maneira de pensar, ele não aceitava o fato de eu não ser
rica. Começou a fazer planos para que Bruna Surfistinha ficasse
milionária, a colocou num pedestal sem enxergar que por trás
dessa Bruna, existia eu, uma mulher que estava fodida
emocionalmente, de tal maneira que era impossível pensar em
querer ficar rica quando queria apenas ficar bem comigo mesma.
Reconheço a boa intenção dele ao ter este pensamento e vontade
em querer me ajudar para que minha vida profissional e financeira
fosse bem melhor, mas ele não conseguiu tirar isso de mim,
pelo simples fato de eu não querer nada disso naquele momento.
Ele me disse inúmeras vezes que eu precisava saber separar a
vida pessoal da profissional. Concordava em partes, mas ele não
podia ficar me cobrando algo que eu tinha dificuldade em mudar.
Nessa época, eu ainda estava fazendo o curso às quintas, a aula
começava às 20hs sem hora para terminar, com duração de um
ano e havia começado em novembro do ano anterior, antes de
330
conhecê-lo. Era um curso bem complexo, para um grupo
pequeno de médiuns do terreiro e o professor era o nosso Babá
Alexandre Meireles. O conteúdo era uma mistura de umbanda,
xamanismo, cabala, tarô etc. Ninguém continua sendo a
mesma pessoa após a conclusão deste curso, pois mexe demais
com nosso interior e o saber lidar com nossa sombra. Encarei
com toda a minha intensidade, me entreguei de tal maneira que
quis viver aquele ano focada na busca das minhas curas e
evolução espiritual. Por mais que eu tentasse explicar isso ao
Rafael, ele continuava achando que meu foco deveria ser em
busca da riqueza material. Ele não me entendia de jeito nenhum.
Em abril, eu e a Fê estávamos focadas em vender produtos
eróticos e termos sucesso com nossa loja virtual. Em um final
de semana, começando na sexta e indo até domingo à noite,
trabalhamos em nosso stand na ‘Erotika Fair’ em São Paulo, foi
quando oficializamos a inauguração da loja. Aquele momento
era muito especial para nós duas e queríamos a presença de
nossos abençoados. Rafael apareceu no sábado com o amigo-
estagiário-cupido, mas ficou bem pouco comigo, preferiu ficar
passeando pela feira e assistindo shows de strip no andar de
cima, obviamente bem mais interessante do que ficar vendo a
namorada dando entrevistas, tirando fotos com fãs e vendendo
vibradores. No final de semana seguinte, eu e a Fê fomos
vender os produtos eróticos no ‘Mercado Mundo Mix’, era o
dia inteiro de sábado e domingo. Rafael avisou que apareceria
no sábado, de manhã me mandou mensagem dizendo que
aproveitaria para ficar em casa para resolver algumas coisas e
que me encontraria mais tarde, mas foi enrolando o quanto
pôde e não foi. Eu estava sentindo desde as primeiras mensagens
que ele não ia e meu feeling feminino deu o ar da graça, sabia que
tinha algo de errado. Eu e a Fê chegamos em casa às 22hs e
pouco, estávamos podres de cansadas porque ficamos em pé o
dia inteiro e não vendemos nem R$ 100,00 em produtos.
Enquanto organizávamos as coisas para o a manhã seguinte,
331
começamos a beber e ouvir música de sofrência, a bad bateu.
Liguei para o Rafael, ele estava bem estranho, conversamos
pouco, me disse que estava deitado para dormir, não acreditei,
retribuí dizendo que também dormiria, bocejei, desejei boa
noite. Continuei bebendo com a Fê e resolvemos ir à Memphis
sem avisar nossos alecrins dourados, ficaram sabendo depois.
No dia seguinte, fomos trabalhar com ressaca, as vendas foram
fracas novamente, mas não nos desanimamos, pois houve
pouco movimento de visitantes nos dois dias, a culpa não era
nossa. Rafael apareceu à noite porque ele dormia aos domingos
comigo por trabalhar em São Paulo e não precisar viajar cedo.
Perguntei o que ele tinha feito no sábado o dia todo, respondeu
do jeito dele: “Resolvendo minhas coisas”. Então tá. Esperei
que dormisse e fucei o celular dele, encontrei no WhatsApp que
coisas eram essas. Tinha nome e sobrenome. Ele combinou de
encontrar com uma menina que não morava em São Paulo e
que estava passando alguns dias na cidade. Rafael, um cavalheiro
educado, não quis que a moça ficasse sozinha na cidade grande,
então sugeriu para se conhecerem pessoalmente e aproveitarem
para passear. Olha que lindo. O histórico de mensagens trocadas
era grande, mas tive tempo de ler tudo, de vê-lo dizendo que
era solteiro e no quanto estava ansioso para esse encontro deles.
Depois da leitura, entrei no Instagram e vi que ele curtia todas
as fotos dela, deixando alguns comentários fofos, como era
gentleman este meu namorado! Voltei ao WhatsApp e joguei na
busca o nome dela e encontrei uma conversa dele com o André
sobre ela. Papo entre amigos confidentes, Rafael dizia sobre ter
interesse pela moça, como se conheceram, que se encontrariam
no sábado, encaminhou um áudio dela e comentou com o
amigo sobre o sotaque lindo que ela tinha. Meu corpo não
tremia de raiva, chacoalhava. O acordei dizendo que já sabia o
motivo dele não ter aparecido no dia anterior, mas sem dizer
como havia descoberto. O papo deles estava tão maravilhoso
que eu precisava continuar acompanhando. Um dos domingos
após este episódio, ele machucou o pé chutando sem querer a
332
ponta do sofá, inchou na hora, não quis ir ao hospital para ver
se tinha quebrado o dedinho. Passei o dia todo cuidando dele,
quase não saiu do sofá porque não conseguia andar direito.
Fiz tudo o que ele pediu, o dia todo, sem reclamar. No final da
tarde, assistimos um filme com uma música maravilhosa, assim
que acabou, baixei a canção para a nossa playlist e combinamos
que seria a nossa segunda música. A primeira era One do U2.
Durante a semana, sempre que batia saudade, ouvia esta música
nova e viajava em meus pensamentos. Lembrava da conversa
dele com a moça, começava a chorar e pensava em terminar,
mas em seguida agia com o coração, no quanto eu gostava dele,
era um amor intenso que eu ainda não tinha sentido por ninguém,
para mim era novidade. No final de semana seguinte, resolvi
pegar o celular dele para ver se houve continuidade naquela
conversa. Não apenas continuou como vi que ele mandou uma
foto do pé machucado e enfaixado, logo abaixo enviou esta
mensagem: “Estou machucado, vem cuidar de mim!”.
Não parou por aí. O pior foi que ele mandou o link da nossa
segunda música para ela ouvir: “Ouça essa música, que linda!”.
Ela respondia animada a cada mensagem, mas não a julguei
nem fiquei com raiva dela, pois não teve culpa nenhuma, ela
sequer sabia que o alecrim era comprometido. Depois disso,
não aguentei e joguei na cara dele. Ele, como todos os homens
que conheci, pagou de louco e disse que não tinha interesse por
ela, que jamais me trairia. E sobre o sábado que eles combinaram
de se encontrar? Ele confessou que realmente a encontraria, mas
que pensou bem e desistiu. Ele aprendeu com o erro e não
pisou mais na bola? Não! Continuou pagando de solteiro por aí,
que eu tenha visto foi iludiu mais três moças, em momentos
diferentes, nos três anos que estivemos juntos.
Posso ser radical quando o assunto é esse, mas traição para
mim não é apenas consumir o ato, é demonstrar interesse,
desejo sexual e segundas intenções. Traição começa bem antes
de fazer sexo com outra pessoa, começa no jogo de sedução.
Não sei se Rafael fez sexo com outras ou se ficou apenas na
333
parte de trocar mensagens carinhosas e cheias de segundas
intenções. Sempre que o questionei, me garantiu que não
encontrou pessoalmente com nenhuma, tenho minhas dúvidas.
Ele nunca me assumiu totalmente durante nosso relacionamento,
não pude segui-lo nas redes sociais, ele não aceitava minha
solicitação de amizade, a justificativa era simplesmente pelo fato
do ambiente de trabalho dele ser extremamente machista e ele
queria evitar piadinhas. Assumiu estar comigo apenas para
alguns colegas que ficaram sabendo de mim através de fofocas
na empresa que iniciaram a partir do estagiário-cupido. Sempre
respeitei o direito dele de querer discrição, não o expondo nas
minhas redes sociais. Conheci os pais e irmãos dele, todos me
acolheram muito bem. Nos encontramos poucas vezes, queria
ter tido tempo para conversar mais. Na última vez que estive
com eles foi no Natal de 2018, eu e Rafael fomos para a casa
deles, estava indo tudo muito bem, mas quando chegamos lá,
ele ficou mal humorado, ficamos bem pouco no apartamento
dos pais e fomos para o dele que fica no mesmo condomínio.
Fui embora com ele, achei que voltaríamos mais tarde, mas
chegando no apartamento dele, pediu para que eu escolhesse
um filme para assistirmos, foi então que entendi que ele tinha
desistido da noite natalina. Mas como não saí de casa para
passar o Natal assistindo filme, apenas disse: “Ahhh vamos
passar a noite com eles sim! Se não quiser ir, vou sozinha!”.
Ele ficou com bico na cara? Ficou! Mas fomos mesmo assim,
com bico e tudo. De volta ao apartamento dos pais, agitei para
bebermos vinho. Acabamos bebendo todas as garrafas da
pequena adega na estante, comemos, rimos, fizemos a ceia,
bebemos uma garrafa de espumante de saideira e todos nós
estávamos bem alegrinhos, começamos então a dançar ‘Vamos
fugir’ do Skank, repetimos essa música até cansar. Foi uma
noite tão gostosa que o mau humor do Rafael, desapareceu.
Voltamos ao apartamento dele quando já era mais de 4hs da
manhã, estávamos felizes, ele me agradeceu e disse que foi o
melhor Natal na vida dele. Missão cumprida.
334
Ele se declarou: “Você é a mulher da minha vida!”. Foi a
terceira vez que me disse isso, em todas estando bêbado, mas
ok, crianças e bêbados são as pessoas mais sinceras.
Rafael estando sóbrio não se declarava e não demonstrava
sentimentos por mim, nunca me disse um “eu te amo!’ ou
qualquer outra frase com a palavra amor. Certa noite, eu disse
que o amava, foi a primeira e última vez. A resposta dele foi um
silêncio estarrecedor. Bom, pelo menos não respondeu com um
“Ok!”. Mas ele sabia o quanto o amava e passava por cima de
qualquer coisa para continuarmos juntos.
***
Em julho de 2016, ele estava de férias na faculdade e foi passar
uma semana comigo, foram dias maravilhosos, me senti casada
novamente. Estava tão bom que ele acabou ficando o mês
inteiro e não apenas uma semana. Entramos numa rotina tão
leve que não brigamos, pelo contrário, nos unimos. Além das
nossas viagens, estas semanas morando comigo foram nossos
melhores dias. O esperava chegar do trabalho, comíamos
tapioca e descíamos para treinar na academia, em seguida íamos
na sauna, tomávamos banho, jantávamos, assistíamos televisão e
às 23hs já estávamos deitados, mas não dormíamos sem antes
transarmos. Às quartas, ele me levava ao terreiro, às quintas no
curso e às sextas ia ao terreiro comigo por espontânea vontade.
Morando juntos, tínhamos disciplina, não bebíamos durante a
semana, apenas aos sábados e estávamos nos cuidando.
Tudo que é bom, acaba rápido. Quando as férias terminaram,
ele precisou retomar a rotina entre São Paulo e o interior, não
conseguimos manter a paz e tudo desandou novamente.
Relacionamento à distância tem dessas coisas chatas.
Em setembro daquele ano, fomos a Montevidéu, Santiago e
Buenos Aires para divulgar o lançamento da série ‘Me chama de
Bruna’. Fomos para compromissos que a Fox agendou, mas
tivemos tempo livre para passearmos. Eu queria que o tempo
parasse para não voltarmos mais ao Brasil.
335
***
Em dezembro, minha menstruação estava bem atrasada, mesmo
assim não desconfiei estar grávida, achei que fosse uma alteração
hormonal, afinal estava tomando vários tipos de suplementos
para ajudar nos meus treinos de corrida e musculação, eu estava
mais magra do que sempre fui em toda minha vida, resultado
do meu foco em melhorar meu desempenho de tempo nas
corridas. Construir uma família nunca foi pauta de nossas
conversas, aliás, não tínhamos qualquer plano futuro juntos,
nosso relacionamento era viver um dia de cada vez.
Com duas semanas de atraso, resolvi comprar um teste de
farmácia. Me tranquei no banheiro, tremendo de emoção e
morrendo de ansiedade, foram os três minutos mais longos da
minha vida, até que vi os dois tracinhos significando positivo,
eu estava grávida! Comecei a chorar de felicidade, não estava
acreditando que finalmente realizaria meu sonho! Antes de abrir
a porta, me bateu um leve desespero, não imaginava como seria
a reação dele com a notícia. Em questão de segundos, tantos
pensamentos passaram na cabeça, estava num relacionamento
totalmente instável, com uma pessoa que não demonstrava
amor por mim. Não imaginava como seria. Respirei fundo, saí
do banheiro com o teste em mãos. Ele estava deitado na cama,
me olhou, sorri confirmando o resultado positivo, sem dizer
nada. Ele deu um pulo da cama: “Você está grávida????”.
– Estou!!! – respondi esperando alguma reação positiva.
Ele se levantou, colocou as mãos na cabeça e a única coisa que
me disse foi: “Meu Deus, eu não posso ser pai!”. Em seguida,
saiu de casa sem me dizer mais nada. Desesperada, mandei
mensagens, mas ele sequer ficou online no Whatsapp e não
atendia o telefone. Após alguns minutos, voltou para buscar a
carteira e me disse que precisava ficar sozinho para pensar. Não
ficaria sozinha em casa me torturando com meus pensamentos,

336
então fui sentar numa cadeira na beira da piscina, coloquei a
mão na barriga como se pudesse sentir algo e agradeci a Deus.
Chorei de emoção por estar grávida e de tristeza pela reação do
Rafael, não esperava que ele comemorasse, mas não imaginava
que viraria as costas, me deixando sozinha. Voltei para casa
depois de mais de uma hora, ele demorou para retornar, comecei
a ficar angustiada com o silêncio dele. Tudo o que queria era
que quando chegasse, me abraçasse. Precisava de um abraço.
Ele chegou calado sem olhar para mim, após um tempo resolveu
falar comigo, mas brigando e me culpando por estar grávida
como se eu tivesse feito sozinha o filho. Eu não sabia, mas
nesse dia que era para ser lindo, iniciou um ciclo infernal.
No dia seguinte, segunda-feira, Rafael foi trabalhar sem se
despedir de mim, logo cedo fui ao laboratório para fazer exame
de sangue, o resultado saiu apenas no final da tarde, realmente
estava grávida. Mandei o print com o resultado a ele.
Recebi como resposta: “Fodeu! O que vamos fazer agora?”
Entendi que ele soltou minhas mãos e eu que lutasse.
Contei a novidade para minhas amigas, Linda, Renatinha,
Rochelle, Ana Paula e Júlia, recebi apoio e carinho delas.
Infelizmente, nessa época, eu e a Fê não estávamos nos falando
graças ao Rafael. Durante uma briga que joguei as traições na
cara dele, me disse: “Você quer falar sobre traição? Então vou
te contar uma coisa. A sua amiga Fê contou ao André coisas
pessoais sobre você, pediu para que ele não me contasse. Ela te
traiu!”. E me contou tudo o que ela comentou com o André.
Fiquei tão chateada com a Fê que não quis saber de conversar,
não dei chance para ouvir a versão dela, me distanciei quando
deveria ter me distanciado dele.
Detalhe: André contou para Rafael no final de janeiro, guardou
esta informação por vários meses e jogou na minha cara num
momento que ele precisava se defender. Se estivesse preocupado
que minha amiga me traiu, teria me contado no mesmo dia.
337
Comecei a cuidar da gestação sem qualquer apoio do Rafael, eu
estava com 14 semanas. No dia que descobri que estava grávida
de um menino, dei um nome sem consultar o pai: Matheus.
As brigas se tornaram diárias, pois não aceitava o comportamento
do Rafael com a situação, ele estava totalmente indiferente, não
me perguntava nada e quando eu tocava no assunto, explodia
me dizendo coisas absurdas, como por exemplo, que eu havia
destruído a vida dele e todos os planos que ele tinha. Ouvia isso
quase todos os dias e não conseguia ficar calada, respondia aos
berros, surtando. Minha vida se tornou um inferno, o sonho
virou um pesadelo. Não tive estrutura emocional, não consegui
me manter forte para proteger meu filho para que não refletisse
nele toda minha tristeza, mágoa e raiva que eu estava sentindo.
Apenas chorava, não conseguia sorrir. Rafael não se importava
com nada disso. Ele continuou indo passar os finais de semana
comigo, nunca colocou a mão na minha barriga. Era um poço
de frieza na minha frente. Apenas continuei aceitando manter o
relacionamento porque ainda tinha esperança de que um dia, ele
aceitaria o filho que eu estava gerando, mas o tempo foi apenas
passando. E eu me enganando, me iludindo.
Não aguentava mais brigar, nem chorar, ele percebia isso, mas
não me poupava de tanto sofrimento e tortura psicológica. Até
que durante uma das brigas pessoalmente, ele me disse: “Você
não pode ter esse filho, por mim, é a última coisa que te peço!”.
Quando ouvi isso, eu surtei, saí do meu corpo e fui para cima
dele, não lembro o que falei, apenas que tentei bater nele.
Ele segurou com força meus braços para se defender, minha
raiva apenas aumentou e aconteceu uma luta corporal. Não sei
de onde saiu tanta força física em mim. Senti uma raiva que
nunca havia sentido antes. Com apenas uma frase, Rafael
conseguiu acabar comigo, perdi minha força interna, ficando
apenas a física. Depois de alguns minutos, desisti de bater nele,
mas dei alguns socos na cama para aliviar o que estava sentindo.
Após esta briga, mantive minha luta interna, durante o dia,
colocava a mão na barriga e conversava com Matheus.
338
Pedia para que ele fosse forte, dizia que estava lutando por nós
dois e que seria mãe solo se assim fosse necessário, de alguma
maneira tudo daria certo. Fiquei dias seguidos sem força para
sair de casa, me olhava no espelho e não me reconhecia, meu
olhar de tristeza entregava que eu não estava nada bem, a
aparência abatida, pálida, sem vida. Rafael via minha situação e
continuava não se importando, pensava apenas nele, no fato de
não querer ser pai e foda-se se eu queria ser mãe.
Um dia pedi para que ele fosse embora de casa e da minha vida,
me deixando em paz. Ele não foi embora e eu o deixei ficar.
Em outra briga, me avisou que tiraria Matheus de mim na
justiça e que conseguiria provar que eu não tinha condições
emocionais e financeiras para cuidar do meu filho. Uma grande
contradição, afinal ele não queria ser pai, mas teria coragem de
tirar o filho de mim. Já comecei a planejar minha vida como
mãe solo, precisava terminar aquele relacionamento fracassado.
Matheus não teria um pai presente, infelizmente, mas teria uma
mãe que faria tudo por ele. Fui recuperando minha força interna.
Contava com apoio das minhas amigas e do plano espiritual.
Eu sabia que não estava sozinha nesta luta, tudo daria certo.
Não comia carne vermelha há sete anos, mas comecei a sentir
muita vontade, como se meu corpo estivesse pedindo.
No início de uma tarde, estava tomando sol na piscina quando a
Linda me ligou para saber se eu estava bem, ela sabia do inferno
que estava enfrentando. Comentei que estava com vontade de
comer carne, então perguntou se eu já tinha almoçado, como
ainda não, avisou que me buscaria para almoçarmos numa
churrascaria. Fomos. Acho que comi um boi inteiro.
Nem quando comia carne, era com tanta vontade e prazer.
Matheus recebeu muita proteína, senti meu corpo fortalecido.
Linda acalmou meu espírito e aqueceu meu coração. Ela é foda.
Comecei a não me importar mais como Rafael me tratava.
Continuei triste, mas parei de chorar. Matheus precisava de mim.
339
Após alguns dias, comecei a sentir que algo não estava bem, era
uma sensação estranha, com calafrios do nada, comecei a ter
sonhos ruins e acordava assustada, suando frio. Eram sinais que
meu corpo estava querendo me mostrar algo, comecei a sentir
cólicas e o remédio não amenizava a dor. Marquei consulta.
Quando estava a caminho do consultório, me deu uma vontade
muito grande de chorar. A doutora começou a me examinar e
mudou o semblante, não conseguiu disfarçar a preocupação.
Ela não estava conseguindo localizar os batimentos cardíacos
de Matheus na minha barriga. O que ela percebeu e não quis me
contar imediatamente, foi confirmado no ultrassom.
O coração do Matheus não estava mais batendo.
Nesse dia, descobri que existe um sentimento pior que tristeza.
Não sei como chama a dor que senti. Eu queria poder apagar da
memória o que senti e vivi naquela manhã. Impossível descrever.
Eu morri um pouco. E nunca mais consegui ser a mesma.
Mandei mensagem para o Rafael contando o que aconteceu.
Nós não nos encontrávamos durante a semana, mesmo ele
trabalhando em São Paulo, mas neste dia, ele deixou de ir à
faculdade para ficar comigo. Teve um pouco de bom senso.
Pela primeira vez desde a descoberta da gravidez, me abraçou.
Tarde demais, ele conseguiu o que mais queria: não ser pai.
Ele se arrependeu pelo comportamento que teve comigo
durante a gestação, me pediu perdão, chorou, prometeu que
cuidaria de mim e que ficaríamos bem.
Fizemos um trabalho lindo para o Matheus no terreiro com a
energia de Iansã. Sempre que tive oportunidade, pedi notícias
dele aos guias espirituais. Ele sabe o quanto lutei para que tudo
ficasse bem. Mesmo os guias me pedindo para que eu não me
culpasse, não tem como, carrego esta culpa até hoje, eu deveria
ter feito mais para que não refletisse em Matheus, todos os
meus sentimentos ruins. Ainda não consegui me perdoar.
340
Resolvi continuar com o Rafael, pois acreditei que ele mudaria
o comportamento comigo, que finalmente me respeitaria.
Além disso, eu achava que não suportaria encarar o luto sozinha.
Não o perdoei, mas resolvi dar uma chance ao perceber que
estava realmente arrependido. Decidimos mudar de ares, ele
começou a procurar um apartamento maior, que fosse em um
condomínio com uma estrutura melhor e que eu tivesse mais
conforto. Encontrou um na região do Morumbi, fomos visitar
o apartamento e me apaixonei, era a nossa cara. Tudo perfeito.
Ele se responsabilizou por toda parte burocrática e financeira.
Alguns dias depois, nos mudamos.
Era um condomínio grande, com três torres, uma área social
maravilhosa, piscina enorme, academia bem melhor com mais
opções de equipamentos, apartamento lindo e com três quartos,
enfim, um ótimo lugar para recomeçar a vida mais uma vez.
O problema é que não consegui. Estava longe de todas minhas
amigas, continuava passando a semana sozinha e no condomínio
havia muitos bebês, não tinha como não pensar no Matheus.
Me isolei do mundo, não tinha vontade de fazer nada, dei uma
pausa em tudo que envolvia Bruna Surfistinha, então minha
vida profissional parou e, a consequência disso tudo, foi uma
bela depressão que me fez acreditar que nunca mais conseguiria
ficar bem. Eu não quis buscar ajuda profissional com terapia,
pois não tinha vontade de falar com ninguém sobre o que
estava acontecendo comigo. Minhas amigas bem que tentaram
me animar, sempre me chamavam para sair, para estar com elas,
mas eu inventava desculpas para continuar quieta em casa.
Enquanto isso, Rafael entrou numa crise existencial e ficou
deprimido também, então não conseguiu cuidar de mim como
havia prometido e por um bom tempo, não o cobrei por isso,
pois percebia que ele não estava bem. Nos finais de semana
juntos, notava que ele estava pior do que eu, então fazia de tudo
para que ficássemos bem, mas não houve reciprocidade.
Ele começou a passar menos tempo comigo, deixou de ir às
341
sextas para ir ao terreiro e aos sábados começou a chegar cada
vez mais tarde, isso quando ele não desistia e resolvia ficar na
casa dele, no interior de São Paulo. Nossos finais de semana se
tornaram uma caixinha de surpresas, eu não podia mais contar
que estaríamos juntos, era ele quem decidia aos sábados.
Esta atitude começou a gerar cada vez mais crises de ansiedade
em mim. Como sabia que ele queria colocar em ordem o
apartamento dele, então eu tentava entender que a prioridade
era essa e acreditava que quando finalizasse tudo o que queria,
voltaríamos a nos ver aos finais de semana.
Em setembro, ele tirou férias e fomos viajar novamente para
Montevidéu, Santiago e Buenos Aires. Eu quis repetir os
mesmos destinos do ano anterior, mas dessa vez sem
compromissos com a Fox, era apenas para passearmos.
Meu objetivo principal era resgatar nosso relacionamento, nos
reaproximarmos e ficarmos bem. O que ele nunca soube é que
banquei esta viagem, menti e falei que a Fox estava nos
proporcionando tudo como aconteceu em 2016, mas foi com o
valor que recebi de direitos autorais que comprei as passagens,
reservei os hotéis e tudo mais. Foi um presente para nós dois e
eu nunca contei isso para ele. Não me arrependo por ter
investido nesta viagem porque foi maravilhosa, nos fez bem.
Passeamos demais, nos divertimos, conhecemos vários lugares
como o estádio do Boca Junior, Punta Del Este com direito a
um cassino, vinícola, realizamos juntos o sonho conhecer a
neve, em Santiago. Fomos até em uma balada em Montevidéu,
dançamos e bebemos para relembrarmos os velhos tempos.
A única vez que brigamos foi num dia que ele estava com muito
mau humor e me deu patadas desde a hora que acordamos,
estava me tratando com grosseria sem motivo algum, ficamos o
dia inteiro dentro do quarto e eu não estava mais o aguentando
daquele jeito, então saí e fui dar uma volta sozinha para arejar a
cabeça. Ele não gostou e brigamos, mas no dia seguinte,
acordou bem humorado e voltamos a ficar bem.
342
No Réveillon daquele ano, ficamos em São Paulo, em cima da
hora, decidimos comemorar a chegada de 2018 em uma festa
chique que rolou numa mansão no bairro Jardins.
Antes de irmos, fizemos um esquenta em casa, brindamos com
espumante e prometemos que o ano que estava chegando, seria
tudo diferente, fizemos alguns planos. A viagem nos uniu.
A festa foi incrível, estávamos numa conexão muito grande,
felizes, dançamos, bebemos, rimos, fomos inimigos do fim.
Começamos 2018 muito bem, parecia que ele estava disposto
realmente a tratar nosso relacionamento como algo mais sério.
Eu estava empolgada, com muitas expectativas, cheia de planos,
querendo cuidar de mim e retomar a vida profissional com tudo.
No Carnaval, resolvi fazer uma surpresa, reservei um chalé para
nós numa pousada bacana em Socorro, interior de São Paulo,
pois sabia que lá nos divertiríamos com esportes radicais.
Nos presenteei com esta viagem que também foi maravilhosa.
Andamos a cavalo, curtimos a cachoeira que ficava no terreno
da pousada, fizemos caminhada, fomos a um bloquinho de rua,
ficamos na rede do chalé, bebemos muito vinho, tomamos sol
na piscina, comemos muitas comidas boas, relaxamos a mente.
Retornamos a São Paulo e tudo estava tão perfeito que acreditei
que 2018 seria o melhor ano da minha vida.
***
Não conseguimos sustentar a empolgação e os planos que
fizemos no Réveillon. Como queria cuidar de mim, do meu
emocional, comecei a fazer terapia com uma psicóloga que uma
amiga recomendou. Ela é uma profissional incrível, no entanto,
comecei a ficar na bad porque começamos a cutucar em feridas.
Iniciamos a primeira sessão, decidi falar sobre o Matheus
porque queria me livrar da culpa e curar as dores que as atitudes
do Rafael me causaram durante a gestação. Eu não estava
preparada para reviver tudo, acreditava que estava bem para
falar sobre meu filho, mas estava bem enganada.
343
Tive recaída e um novo ciclo depressivo surgiu. Mexer em
dores emocionais que estavam anestesiadas dentro de mim, me
derrubou. Abandonei a terapia após algumas sessões, achei
melhor ficar quieta e me curar sozinha, com o tempo.
Enquanto isso, Rafael se distanciou mais uma vez, estava
estranho, cada vez com menos paciência comigo, me cobrava
uma força interna que eu não sabia de onde tirar. Ficou bravo
porque interrompi o tratamento na terapia, não conseguiu
entender o meu lado. Sempre soube que para ficar bem e sair
do maldito ciclo depressivo dependia exclusivamente de mim,
mas eu queria um apoio dele, que se esforçasse para ser um
pouquinho carinhoso quando estivéssemos juntos.
As únicas coisas que cobrei dele durante todo o relacionamento
foram exatamente o que não podemos cobrar de ninguém:
carinho e amor. Confesso que me tornei uma namorada chata
ao cobrar atitudes que não faziam parte da essência dele, ele me
contou que todas as ex-namoradas o cobravam das mesmas
coisas que eu, o problema não era exclusivamente comigo.
Ele deixou de passar todos os finais de semana comigo, me
dizia que não estava bem e que era melhor ficar sozinho.
Num desses sábados, insisti tanto para que ele fosse me ver,
prometi que cuidaria dele, que respeitaria o silêncio, que não
precisava conversar nem fazer nada, queria apenas estar perto
porque eu estava com saudade, afinal estávamos há quinze dias
sem nos ver. Ele acabou indo e me arrependi amargamente por
ter insistido que fosse. Conseguiu fazer com que me sentisse
um lixo, nada que eu fazia estava bom, apenas reclamou.
E assim fomos indo, entre tantos tapas e poucos beijos.
Eu estava cada vez mais pisando em ovos, tinha medo dele com
tudo, medo de dizer ou fazer algo que ele não gostasse porque
chegou num ponto que qualquer coisa era motivo de briga ou
reclamação no meu ouvido. Quando ia me ver, entrava no
apartamento buscando algum motivo para reclamar, era
impressionante como conseguia me colocar para baixo.
344
Conseguir agradá-lo e receber um elogio dele se tornou questão
de honra. Não era possível que ele não conseguia enxergar as
coisas boas, muito menos enxergar que o comportamento que
estava tendo comigo apenas piorava minha depressão, me fez
acreditar que eu era uma péssima namorada. Após tantos anos,
conseguiu despertar os surtos que eu tinha na infância, de me
machucar para sentir dor na pele. Durante ou após cada
discussão, eu me punia com algum machucado no meu corpo.
Em agosto, estava exausta emocionalmente, não aguentava mais
viver um relacionamento tão tóxico, estávamos nos fazendo
mal, as brigas estavam frequentes, estava tudo errado.
No condomínio, tinha um amplo bosque onde era permitido
deixar os cachorros soltos, eu descia três vezes por dia com a
Tati que a esta altura do campeonato já era uma senhorinha
com 15 anos, mas ainda tinha energia. Rafael que estava há
alguns dias consecutivos bem estranho comigo, me mandou
mensagem dizendo que naquela noite não queria conversar por
telefone. Eu estava pronta para descer com a Tati ao bosque
quando li e levei o celular. Deveria ter aceitado e respeitado o
fato de não querer conversar comigo, mas louca e trouxa que
era, queria saber o motivo. Pois me sentei num banco do
bosque e liguei. Ele não atendeu, insisti até vencê-lo pelo
cansaço. Me atendeu bravo e logo perguntei o que estava
acontecendo. Não me lembro da resposta dele, mas foi o que
precisava ouvir para ter coragem e desistir do relacionamento,
falei que ele estava livre de mim a partir daquele momento e
que era para me esquecer. Rafael apenas concordou e mostrou
uma indiferença que doeu. Eu queria que ele tivesse demonstrado
algum sentimento que não fosse o desprezo, afinal estava
terminando um relacionamento de quase três anos, tínhamos
uma história juntos. Tudo o que não queria era colocar um
ponto final entre nós, ainda tinha esperança de ficarmos bem,
mas não aguentava mais me relacionar com o então homem da
minha vida que se tornou um alecrim dourado.
345
Desliguei o telefone aos prantos, voltei para casa com a Tati me
sentindo derrotada. Me arrependi por ter terminado, eu não
queria, comecei a me xingar e me perguntar como pude fazer
isso, surtei, me machuquei. Rafael sequer me mandou uma
mensagem, entendi que para ele realmente era o nosso fim.
Me perguntava como que conseguia amar tanto uma pessoa que
estava me causando mais lágrimas do que sorrisos.
Eu não queria amá-lo daquele jeito. Comecei a me responsabilizar
por estar vivendo mais uma fase infernal, era culpa minha, eu
deveria ter o tratado apenas como mais um fã, não deveria ter
enviado mensagem no dia seguinte que nos conhecemos para
saber se estava tudo bem, deveria ter desistido de nós na
primeira dor que me causou. Eu que me permiti estar vivendo
aquele relacionamento, mas eu queria muito conseguir ser feliz
com ele. Acreditava que era apenas uma fase que passaria.
No dia seguinte, dei adeus ao pouco que me restava de amor
próprio e mandei várias mensagens dizendo que estava
arrependida, que ele era tudo na minha vida, pedi para
voltarmos e continuarmos, prometi que faria de tudo para
sermos felizes. Ele me deu mais uma chance e continuamos o
namoro, mas não sabia que havia dado mais poder sobre mim e
ele soube usar isso direitinho.
Deveria ter tido força para manter e sustentar o ponto final,
mas preferi me humilhar. No final de semana seguinte, ele não
foi ficar comigo e precisei entender, depois ficamos juntos por
dois consecutivos, até que ele decidiu que precisaria dar um
tempo no relacionamento. Como não aceitei, Rafael deu um
jeitinho para que isso acontecesse, ficou cinco semanas sem
querer me ver. Nos falávamos, ou melhor, brigávamos quase
todos os dias por telefone. Eu que achava que já tinha me
humilhado o suficiente, estava enganada, foi a época que mais
me torturei. Deveria ter aproveitado este tempo para aprender a
viver sem ele, deixando de ter dependência emocional por
quem sabia muito bem brincar com meus sentimentos.
346
Após as cinco semanas, ele me mandou mensagem no sábado
avisando que ia à São Paulo ficar comigo, apareceu quando já
era tarde da noite. Eu estava sentada no sofá, ele chegou pela
porta da área de serviço e eu conseguia vê-lo. Deu atenção para
a gata Filó no meio do caminho e quando chegou na minha
frente, levantei e dei um abraço com força, eu estava morrendo
de saudade e fiquei tão aliviada por estar com ele novamente
que o perdoei por ter me feito sofrer nas últimas semanas.
Seguimos com o relacionamento, mas continuamos do mesmo
jeito, nada mudou. Mesmo infeliz, ainda tinha esperança de que
conseguiríamos virar a chave e sermos felizes juntos.
Descobri que numa noite de sábado entre as cinco semanas, ele
foi a um evento de vinhos com uma amiga que eu nunca tinha
ouvido falar, que surgiu do nada, mas ele me disse que se
conheciam há anos. Além de fotos no tal evento, vi uma foto
dos dois deitados na cama dele, só não pirei mais porque dava
para ver que estavam vestidos. Ele jurou de pés juntos que não
rolou nada entre eles.
Eu estava disposta a cuidar de mim para me livrar da depressão
e curar minhas dores emocionais para ficar bem logo, fizemos
duas constelações familiar juntos e aceitei o convite dele para
realizar o ‘Leader Training’ com o Tadashi, que foi um final de
semana bem intenso e transformador. Sabia onde estavam meus
erros dentro do relacionamento tanto em relação ao Rafael
como comigo, queria parar de depender emocionalmente e
respeitar a maneira de ser dele, deixando de cobrar que fosse
um namorado carinhoso e amoroso. Queria meu amor-próprio
de volta para não me humilhar mais e deixá-lo em paz quando
não quisesse me ver.
Nessa época, eu tinha uma amiga que morava no mesmo
prédio, casada com um geminiano, assim como Rafael. Um dia,
estávamos conversando e ela fez a melhor descrição se referindo
ao marido, mas que definiu muito bem a minha experiência
com uma pessoa com esse signo: “Eu sinto que tenho dois
347
maridos em um só. Ele tem duas personalidades, duas essências,
são homens diferentes. Cada dia está com um humor, como se
fosse bipolar”. Bingo! Eu tive dois namorados em um só.
No final de 2018, Rafael finalmente se formou na faculdade e
foi um alívio muito grande por este dia ter chegado. Ele pensou
em desistir várias vezes porque não aguentava mais, mas não
deixei que fizesse isso. Se fiz algo de bom para ele, foi ter o
apoiado até pegar o diploma. O ajudei com o TCC com o maior
prazer, li e reli várias vezes mesmo sem entender nada.
No meio de tantos choros que me causou, tivemos bons
momentos juntos, era tudo ao extremo. Tivemos finais de
semana maravilhosos, sem brigas, nos divertimos intensamente
e não brigamos. Nossas crianças internas se entendiam bem,
éramos dois moleques quando brincávamos de lutinha, por
exemplo. Aos domingos, tínhamos costume de tomarmos café-
da-manhã em alguma padaria, a nossa preferida era uma na
Faria Lima. Adorávamos passear de carro por São Paulo ou a
pé na Avenida Paulista aos domingos. Foi com ele que aprendi
a amar correr, participamos juntos de algumas corridas de rua.
Tínhamos muitas coisas em comum, o que mais buscamos na
vida não conseguimos encontrar juntos: a paz interna.
Muito do que reclamava de mim, era reflexo de si mesmo, mas
ele nunca esteve preparado para esta conversa. Errei por ter
projetado o homem da minha vida nele, idealizei muito nosso
relacionamento, eu tinha certeza de que a guerra existente entre
nós acabaria em algum momento e que nos tornaríamos o casal
mais feliz do mundo. E foi por acreditar nisso tudo que eu lutei
até onde pude, insistindo em nós dois juntos, me humilhando.
No total, namoramos durante 3 anos e 5 meses, foi muito mais
do que deveríamos. O amor que sentia por ele, me deixou cega.
Passei muito pano acreditando em mudanças. Fui oceano para
o nosso relacionamento, mas Rafael quis apenas molhar os pés.

348
CAPÍTULO 10 – Lutos

Finalmente 2018 acabou, foi um ano bem cansativo, me anulei


completamente, abortei todos meus planos, não aconteceu
nenhuma realização pessoal, quanto menos profissional.
Foi um ano que não vivi, apenas sobrevivi. Retomei minha sex
store virtual, mas estava bem desanimada. Decidi encerrar minha
carreira como DJ, um trabalho que sempre tive prazer.
Com as poucas ideias que tive para alavancar a vida profissional,
não tive o resultado imediato como gostaria e acabei desistindo
antes mesmo de darem certo.
Eu sempre procrastinei, mas em 2018, passei dos limites.
No final de novembro, a Fê me mandou um e-mail lindo,
estávamos sem contato desde julho de 2016, ou seja, há mais de
dois anos. Sempre senti muita falta de conversar com ela, então
respondi o e-mail, reatamos a amizade que na verdade nunca
acabou e combinamos de conversar por telefone porque ela não
estava mais morando em São Paulo, mas em Vitória (ES).
Nossa conversa durou mais de 3 horas, contamos tudo o que
aconteceu em nossas vidas no período que não nos falamos.
Voltar a manter contato com ela foi uma coisa boa que 2018
me proporcionou. O que me manteve em pé naquele ano foi a
minha fé e minhas idas ao terreiro às sextas-feiras, onde me
sentia viva e em paz. Recebi muita ajuda espiritual, muitos
conselhos dos guias espirituais, as coisas ruins que estava
enfrentando eram apenas uma fase e entendia que fazia parte da
minha evolução, precisava passar por tudo aquilo.
Em dezembro, a Lidi, uma nova amiga que a vida me deu
naquele ano e que cambonava meus guias no terreiro, pois eu
trabalhava incorporada todas as sextas, me convidou para ser
madrinha de batismo na umbanda, aceitei com muita felicidade.
349
A noite que aconteceu o batizado na Casa de São Lázaro,
renovou minhas energias. Era o que precisava para encerrar um
ano tão difícil e estranho. No mesmo dia do batismo, na parte
da manhã, peguei a chave do novo apartamento, então foi uma
data significativa. Precisava mudar de ares, me sentia muito
sozinha onde estava morando, longe de todos meus amigos e
em um apartamento gigante para mim. O que adiantava ter uma
churrasqueira na varanda da sala e não conseguir desfrutá-la?
Esta mudança foi uma loucura, em cima da hora, poucos dias
antes do Natal, mas pude contar com ajuda do Rafael que além
de ter procurado e encontrado o novo imóvel, resolveu toda a
parte burocrática para mim. Ter mudado de moradia me fez
bem, precisava estar em um novo lugar para tentar recomeçar
mais uma vez a vida. Eu sabia que não poderia continuar da
mesma maneira, procrastinando e me autossabotando, precisava
reagir antes que me afundasse ainda mais no buraco onde eu
mesma me coloquei. Estava tão feliz no dia da mudança que
não me importei em ter carregado sozinha todas as caixas
quando havia contratado e pago uma pessoa para fazer isso
para mim. A ansiedade estava tão grande que fechei com a
primeira pessoa que respondeu minha mensagem em busca de
um carreto. Na manhã combinada para a mudança, o homem
que contratei me mandou uma mensagem avisando que não
tinha acordado passando bem, mas que iria do mesmo jeito,
apenas se atrasaria um pouco. Até aí tudo bem, mas quando
chegou no apartamento e carregou a primeira caixa que estava
cheia de livros, ou seja, bem pesada, ele começou a ficar com a
respiração ofegante. Na terceira caixa, estava pingando de suor.
Pedi para que ele se sentasse no sofá, dei um copo com água e
falei para que se acalmasse para que a respiração voltasse ao
normal. Então ele me contou que tem pressão alta e naquele dia
estava demais. Era um homem com quase 60 anos e estava bem
acima do peso. Deus me livre ele ter um mal súbito. Eu poderia
ter cancelado o trabalho dele, mas além de estar empolgada e
350
querendo ir embora logo dali, ainda fiquei com dó, se ele
acordou passando mal e ainda assim foi trabalhar com boa
vontade, era porque precisava daquele dinheiro. Combinamos
que eu carregaria as caixas e ele pegaria apenas as coisas leves
que estavam em sacolas, além de ficar segurando a porta do
elevador para mim. Já no novo apartamento com todas as
caixas no meio da sala, mesmo estando podre de cansada, virei
a noite colocando tudo no lugar sentindo a maior satisfação,
afinal estava pronta para começar um novo ciclo. Minha nova
toca era lindinha, bem menor que a outra, mas com três quartos
também, um deles chamei de ‘quartinho da paz’, onde gostava
de ficar deitada lendo livro ou pensando na vida.
Alguns dias antes da mudança, Rafael fez também o ‘Leader
Training’ num final de semana. Uma das regras é que casal não
pode participar no mesmo grupo, tem que ser separados, então
ele foi algumas semanas depois de mim. A penúltima dinâmica
nos leva a um novo despertar para a vida. Cada participante do
‘LT’ fica deitado num colchonete com os olhos vendados e,
nesse momento, alguém muito importante na vida e que não
esteja participando daquele grupo, pode participar sentando-se
ao lado do colchonete onde está a pessoa amada e fazer carinho
para acolhê-la ao despertar. Estas pessoas que vão realizar o
acolhimento são chamadas de madrinhas ou padrinhos.
Rafael não pôde ser meu padrinho quando eu estava participando,
mas fiz questão de ser a madrinha dele, quis acolhê-lo com todo
meu amor e, enquanto ele dormia antes de despertar, prometi
que faria de tudo para sermos felizes dali em diante.
Passamos o Natal na casa dos pais dele e não planejamos nada
em especial para o Réveillon, íamos fazer a ‘nossa festinha’ como
há muito tempo não fazíamos. No final da tarde, decidimos ir à
avenida Paulista para vermos o show de fogos na virada do ano.
Conversando com minha amiga Jana que também estava sem
planos, a convidei e ela topou ir com a gente. Chegamos na
Paulista um pouco antes da meia-noite, estava abarrotada de
351
pessoas, sem condições de ficarmos lá, quase não dava para
escutar o Diogo Nogueira cantando no palco. Esperamos a
virada do ano e voltamos para casa com a Jana.
Iniciei 2019 empolgada, feliz e otimista, acreditando que seria
um ano especial, de transformação, ressignificação e mudanças.
Assim que acordamos no primeiro dia do ano, fiz uma lista
gigante com desejos para o novo ciclo que estava começando e
dividi em três partes: minha vida pessoal que envolvia cuidados
comigo mesma, em especial com a saúde mental (retornar à
terapia, meditação, outros cursos com Tadashi, constelação
familiar, cursos que eu tinha vontade de fazer, finalizar o ensino
médio no supletivo, etc.), a segunda parte eram desejos para a
vida profissional (realizar a última temporada de apresentações
como DJ para me despedir, canal no YouTube, workshop, focar
na loja virtual dos produtos eróticos, etc.) e por fim, desejos
para o relacionamento com Rafael ( parar de brigar por motivos
bobos, ser mais tolerante com os defeitos dele, não cobrar mais
carinho e amor, passearmos mais aos finais de semana, passarmos
as férias dele num resort, investir num negócio próprio juntos.)
Fiz esta lista de uma maneira bem bonitinha, organizada numa
pasta. No final da tarde, o chamei para mostrar o planejamento,
estendi a pasta para que ele pegasse da minha mão e expliquei o
que era. Minha expectativa era que ele ficasse feliz com minha
atitude, me desse ideias e eu já estava preparada para propor de
elaborarmos juntos planos para nós dois. A realidade foi que ele
não pegou a pasta e não demonstrou interesse em ver o conteúdo
da lista, apenas me disse de uma maneira bem seca:
“Quero ver com atitudes!”.
Me frustrei, chorei, fiquei triste por ele não enxergar que eu
estava disposta a fazer minha parte. Comecei o ano não
cumprindo com um dos desejos: parar de brigar por motivos
bobos. Pois brigamos porque não consegui lidar com a
indiferença e joguei na cara dele uma porrada de coisas porque
352
ele sempre foi assim comigo, me cobrava algo e quando eu
realizava a vontade dele, além de não reconhecer meu esforço,
agia com indiferença ou dava um jeito de me colocar para baixo.
Um dos principais problema dele é que tudo tinha que ser da
maneira que ele quisesse. Se não fosse do jeito que ele achava
correto, não aceitava. Ele queria que eu fizesse o planejamento
em uma planilha no Excel com prazos de datas e outros
detalhes, para ele funcionava essa técnica, mas para mim não.
Dois dias depois disso, ele estava tomando banho, fui escovar
meus dentes e continuei no banheiro porque estávamos
conversando, foi quando me contou que estava com o plano de
ir embora do Brasil para buscar uma nova oportunidade de
emprego, disse que a área dele era mais valorizada em outros
países e como estava bem insatisfeito com a vida profissional, já
estava planejando esta viagem. Concordei que seria algo muito
bom para ele e que faria bem, pois desde que o conheci, sempre
reclamou do trabalho e falta de reconhecimento dos chefes.
Ele finalizou o assunto dizendo que estava me contando para
que eu não ficasse sabendo em cima da hora. Como ele estava
falando no singular, sem me incluir em nenhum momento,
entendi que estava excluída e que não fazia parte deste plano.
Mesmo assim, por via das dúvidas e para ter certeza de que não
estava concluindo de maneira errada, perguntei: “E onde fico
nessa história? E nosso relacionamento?”.
- Vou tentar vir ao Brasil a cada seis meses ou menos do que
esse tempo, vamos ver como será.
- Já entendi tudo. - respondi
Ele sabia que morando fora do Brasil, nosso relacionamento
acabaria porque já tínhamos conversado sobre o quanto é difícil
manter um namoro à distância como era o nosso.
Foi o primeiro sinal de que ele já tinha desistido de nós dois.
Depois disso, desandamos mais uma vez e foi a última, ele
sumiu novamente aos finais de semana, pois se encantou com
353
uma terapeuta que realizava grupos para constelação familiar
aos domingos, então começou a ir em todos estes encontros.
Ele poderia ir aos sábados para ficar comigo, como o espaço da
terapeuta era em São Paulo, aproveitava que estava na cidade e
ia constelar no domingo. Sem pedir minha opinião ou
conversar comigo sobre, resolveu fazer da maneira que foi
melhor para ele, se distanciando de mim para se cuidar.
Rafael fez questão de deixar claro que eu estava o atrapalhando.
Começou a dizer que a culpa de não nos vermos mais era
apenas minha, afinal eu não queria acompanhá-lo neste
processo de se cuidar. Nunca entendi como concluiu isso se
sequer conversou comigo antes de decidir se afastar de mim
para mergulhar em constelações.
Todo excesso faz mal, até mesmo com o que acreditamos que
nos faz bem. Não sei se ele sofreu algum tipo de lavagem
cerebral ou se concluiu sozinho que entrar num processo
intenso interno com apenas constelação familiar seria o
suficiente para resolver todos os conflitos internos dele, mas ele
resolveu seguir esse caminho. E realmente não quis o acompanhar
porque achava desnecessário constelar todos os domingos.
Cada um tem um processo interno de cura diferente do outro,
para mim não funciona me jogar de cabeça em qualquer tipo de
tratamento que possa me ajudar emocionalmente. Meu tempo é
lento, tem de ser aos poucos, cutucar numa ferida de cada vez.
Rafael nunca entendeu isso e queria que eu me jogasse com ele
nas constelações, me dizia que tinha certeza de que eu apenas
ficaria bem se fosse dessa maneira. Como não aceitei, me puniu,
já que não queria constelar aos domingos com ele, para quê
querer ficar comigo aos sábados, não é mesmo?
Amo constelação familiar, fiz algumas vezes, me ajudou demais
com minhas questões internas e quero continuar realizando.
Quando constelo algo, levo um tempo para processar as
informações que recebo, sinto os movimentos que acontecem
354
em meu sistema e as mudanças que me causaram internamente.
Acho importante dar uma pausa entre uma constelação e outra,
mas ele preferiu fazer da maneira dele e isso acabou gerando
consequências. Eu percebia que não estava fazendo bem para o
Rafael, mas ele dizia que estava vendo resultados positivos,
então resolvi ficar quieta, pois nunca aceitou minhas opiniões.
Chegou o Carnaval e estranhei que ele quis passar comigo em
São Paulo, me surpreendi com o fato de querer aproveitar
bloquinhos de rua e levei um susto que quis beber vodka.
É a última lembrança boa que vivi com ele.
Nos encontramos pela última vez no início de março quando
fomos ao velório e enterro de um amigo muito querido.
Edu era meu irmão no Santo, quem me recebia com braços
abertos, sorriso longo e me dando um abraço forte todas as
noites que nos encontrávamos no terreiro. Ele era luz, uma das
melhores pessoas que conheci. Sempre tratou o Rafael com um
enorme carinho, os dois tinham uma conexão muito grande.
Edu teve um AVC e nos deixou para brilhar no plano espiritual.
Ficou um buraco na corrente de médiuns do CIESL.
Assim que recebi a triste notícia, contei ao Rafael que fez
questão de ir à São Paulo para ir ao cemitério, então o
acompanhei. O enterro de Edu foi numa sexta, então à noite
Rafael foi comigo ao terreiro e acabou passando o final de
semana comigo, não foi constelar no domingo.
Foi nossa despedida como casal.
***
Bem na noite que recebi a notícia do falecimento de Edu, a
minha gata Aline resolveu me dar um susto. Achava que ela
estivesse acima do peso apenas, mas estava com piometra, uma
infecção gravíssima no útero. Nunca me esquecerei: eu estava
no sofá, processando a notícia que Edu faleceu, chorando
muito, então Aline se aproximou e se deitou em meu colo.

355
Comecei a sentir algo quente na minha perna e quando a
levantei para ver o que estava acontecendo, notei que era uma
secreção saindo da Aline. Ela nunca gostou de ficar no colo,
mas naquela noite, teve esta atitude como se estivesse me
pedindo ajuda. Quando a veterinária a examinou, solicitou a
internação para a realização da cirurgia para a manhã seguinte,
não tínhamos mais tempo a perder. Por bem pouco Aline não
morreu, o útero dela estava quase explodindo com tanta
secreção e se fosse para a corrente sanguínea, seria fatal.
Ainda bem que tive tempo de salvá-la.
***
No dia 09 de maio, Rafael terminou comigo por telefone,
resolveu colocar um ponto final definitivo, não me dando
qualquer tipo de chance para nos cuidarmos juntos, cada um
com a melhor maneira para si. Ele justificou que estava focado
em se cuidar e que não estava conseguindo conciliar com o
relacionamento.
“Está sendo muito difícil para mim, não estou dando conta de
namorar e me cuidar ao mesmo tempo. Você não está bem
também, então aproveite para se cuidar, já te mostrei todo o
caminho de cura”. – me disse.
Com este “todo o caminho de cura” se referiu às benditas
constelações dominicais. Ultimamente, ele estava conseguindo
ser bem chato com esta história. Fora isso, estava parecendo
aqueles coachs irritantes que vomitam frases motivacionais
prontas e decoradas, como se funcionassem para todas as pessoas.
Quando desliguei o telefone, me deu uma sensação de alívio,
mas ao mesmo tempo, me bateu um desespero porque ainda
era muito dependente emocionalmente dele. Não aceitei nosso
término, pela maneira como foi por telefone e não soube lidar
com a justificativa. Jamais terminaria um relacionamento com
alguém que amo pelo simples fato de querer me cuidar.
356
Não consigo ver sentido. Se quero cuidar de mim, quero quem
amo por perto para me ajudar a enfrentar o processo de cura.
O amor ajuda a curar. Ter terminado por este motivo, concluí
que não existia amor dele por mim e que não enxergava o meu.
Seria mais fácil aceitar o término se ele me dissesse que estava
amando uma outra mulher.
Depois de tudo que enfrentamos juntos, não engoli me deixar
para cuidar de si. O sentimento de rejeição surgiu forte dentro
de mim. Ele afirmou que o problema não era eu, então queria
entender por que não quis continuar comigo enquanto se
cuidava. Não consegui acompanhar esta linha de raciocínio dele.
Demorei para superar o fim do nosso namoro, esse ponto final
desencadeou conflitos internos, mexeu demais comigo porque
revivi a mesma situação que enfrentei com meu pai durante toda
a minha infância e boa parte da adolescência, buscava ser aceita
e como não consegui, me senti rejeitada. Ambos não aceitavam
o meu jeito de ser. Da mesma maneira que aconteceu com meu
pai, queria que Rafael me enxergasse por completo e não apenas
visse meus defeitos. Busquei amor incondicional, proteção e
acolhimento dos dois e como não tive, me frustrei, surtei.
Quando notei no início do nosso relacionamento que o
sentimento não era recíproco, conquistá-lo se tornou um
desafio para mim, era questão de honra ser aceita por ele.
Como não consegui conquistar meu pai, transferi isso ao Rafael.
Atraí uma pessoa com um comportamento igual ao do meu pai:
com toda dureza na maneira de agir comigo, incapaz de expressar
sentimentos por meio de palavras, não ser carinhoso, não aceitar
o meu jeito de ser. Além disso tudo, os dois não conseguem
externar o que sentem nem lidar com as próprias emoções,
precisam se isolar quando se sentem sufocados. Não busquei
no Rafael um pai, mas busquei carinho, amor, demonstrações
de afeto que não recebi do meu, enfim que preenchesse esse vazio.

357
Por conta disso tudo, não posso culpar Rafael pelo fracasso que
foi nosso relacionamento. Eu tive minha parcela de culpa. Errei
ao transferir uma missão difícil e que não cabia a ele resolver
esta questão interna em mim, aliás, não cabe a ninguém.
Precisei me relacionar com ele para aprender que o vazio que
meu pai me deixou, ninguém poderá preencher além de mim
mesma, com meu próprio amor.
Precisei aprender isso com um homem que tem comportamento
igual ao que meu pai teve comigo. É sobre aquelas coisas que a
vida nos obriga a aprender de qualquer maneira e atraímos.
Aprendi sobre amor com dor.
***
A minha única filha canina, que era para ser poodle toy e se
transformou num filhote de ovelha, estava com 16 anos e bem
fraquinha, já não era mais a mesma. Nossos passeios na rua
eram bem curtos e demorados porque eu respeitava o ritmo
lento dela. No ano anterior, descobri numa consulta veterinária
que ela estava com nódulos de tumor na cadeia mamária, mas
realizar cirurgia para retirá-los era um risco grande, o coração
dela poderia não aguentar a anestesia. Comecei a sentir que Tati
não viveria por muito mais tempo, então iniciei meu processo
de despedida, sem saber que seria bem antes do que imaginei.
Aos domingos no terreiro, há um trabalho lindo focado aos
cuidados com os animais, podemos levá-los para receberem
passe de algum guia espiritual. Levei a Tati e o guia confirmou
que ela estava em processo de desligamento, mas que estava
lutando para se manter viva porque sabia que eu precisava dela
por perto, ela não queria me deixar. Ouvir isso me abalou
demais, realmente eu estava sem estrutura emocional para me
despedir dela, mas ao mesmo tempo sabia que não podia ser
egoísta e prendê-la perto de mim quando ela precisava
descansar. Foram 16 anos, isso significava que foi minha
companheira durante metade da minha vida até então.
358
Animais domésticos sugam energia do ambiente e dos donos,
os cachorros não transmutam como os gatos. Tati aguentou
muita coisa comigo desde a época da prostituição, foi uma
guerreira. Depois da conversa que tive com ela, quando disse
para que não se preocupasse comigo e que eu a liberava para
partir e descansar, ela regrediu de uma maneira muito rápida.
Em menos de uma semana, ela partiu.
Na sexta-feira, enquanto me preparava para ir ao terreiro, ela
não conseguiu levantar-se da caminha para me acompanhar até
a porta como sempre fazia. Fui com o coração partido e com
medo de chegar em casa e ver que não tive tempo de me despedir.
Quando cheguei, ela não me recebeu, continuava deitada da
mesma maneira. Não se levantou mais. Na manhã seguinte, a
levei no colo até o veterinário, ela sempre odiou ser carregada,
estava totalmente sem força para me mostrar os dentes da
maneira que fazia, ameaçando que me morderia. Estava entregue
aos meus braços pela primeira vez. O veterinário sugeriu
internação, mas já me deixando ciente que não havia chance de
ela receber alta e voltar para casa, mas me deu a opção de não a
internar para que eu estivesse por perto até o último suspiro.
Por mais dolorido que fosse para mim, decidi levá-la para casa
porque queria que sentisse minha presença e que pudéssemos
nos despedir. Ela não estava mais conseguindo levantar para se
alimentar, então o veterinário me ensinou como dar água e
alimento em pasta na boca dela com seringa.
Nesse mesmo sábado, tive um compromisso durante a noite,
pois eu e a Lidi que, se tornou minha assessora no início do
ano, fechamos parceria com uma balada na Rua Augusta para
vendermos produtos eróticos um sábado por mês. Eu não
poderia cancelar por ser trabalho, então com o coração aflito
deixei a Tati em casa, mas meus pensamentos eram apenas dela.
Eu estava tão angustiada que não consegui relaxar, queria que o
tempo passasse rápido para ir embora, mal conseguia sorrir
quando alguém me pedia foto, tomei um copo de vodka com
359
energético e parei nessa única dose, não estava com vontade
nem de beber. Após algumas horas de vendas de produtos
eróticos, eu e Lidi nos permitíamos dançar na pista, mas dessa
vez, fui embora para ficar com a Tati. Chegando em casa, notei
que ela estava com a respiração bem fraca, fazendo esforço para
continuar viva. A coloquei no meu colo e desabei de chorar,
minha intuição já me avisava que seriam as últimas horas.
Não dormi, fiquei conversando com ela que, às vezes com
muito esforço, abria os olhos e me observava, como se quisesse
me dizer algo. Forçava para que se alimentasse com a seringa,
mas ela já não abria mais a boca, estava travada. Quando me dei
conta do horário, já eram quase 9hs da manhã, cheguei em casa
às 3hs e pouco, apenas deixava a Tati sozinha para ir ao banheiro.
Estávamos no chão, no meio da sala, numa das vezes que
levantei, vi que minhas quatro gatas estavam deitadas no sofá,
acordadas e atentas, como se estivessem se despedindo da Tati.
Era início da tarde quando Rafael me mandou uma mensagem
do nada perguntando se eu estava bem. Fazia alguns dias que
não conversávamos, ou melhor, que não brigávamos. Eu estava
decidida a nunca mais falar com ele e ignorar qualquer tentativa
de aproximação, mas não consegui fingir que não tinha lido a
mensagem e o respondi contando a verdade. Não, eu não
estava bem. Tati estava morrendo aos poucos no meu colo.
Quando ele leu, me ligou em seguida. Me disse que estava indo
a São Paulo para ficar comigo e se despedir da Tati. Não queria
vê-lo nunca mais, ao mesmo tempo queria e muito. Ele chegou
em casa no final da tarde, não consegui cumprimentá-lo quando
abri a porta, ele percebeu e sentiu minha frieza, foi direto na Tati.
Ficamos ali, durante algumas horas, num clima bem estranho
porque não éramos mais um casal, eu ainda estava machucada e
na fase de negação do meu luto pelo fim do relacionamento.
Ele tentou puxar assunto para conversarmos sobre nós dois,
mas logo cortei. Comentou que sentiu que eu não estava bem,
por isso me mandou mensagem para saber de mim.
360
A respiração da Tati estava diminuindo cada vez mais, eu e
Rafael nos olhávamos sem dizer nada, nos entendíamos com o
olhar, ele pegou na minha mão e a levou sobre o coração dela,
fizemos uma oração juntos. Eram quase 23hs e sentimos que
faltava pouco para o coração da Tati parar, nos desesperamos
juntos, começamos a chorar, resolvemos levá-la ao ‘Hospital
Veterinário Santana’, estávamos do outro lado da cidade, mas
além de não ter trânsito, ele pisou forte no acelerador.
Fui sentada com a Tati no banco de trás, o silêncio dominava.
Enfim chegamos no hospital, a colocamos deitada numa maca
de metal, assim que a veterinária injetou a agulha com soro e
medicação, Tati começou a ter uma convulsão e fazer um
barulho pela boca, foi um momento desesperador. Me senti a
pessoa mais impotente do mundo, queria tanto fazer algo por
ela naquele momento, ter o poder de dar mais vários anos de vida.
Ela esperou chegarmos ao hospital.
A doutora me avisou que o coração dela já estava parando.
Tati foi embora me olhando com doçura e leveza. Coloquei a
mão sobre o coração dela, senti os batimentos bem fraquinhos.
Não aguentei continuar ali e assistir o último suspiro sem poder
fazer nada. Saí da sala e fui até a pequena área externa que
ficava ao lado, acendi um cigarro e comecei a chorar, em questão
de segundos, menos de um minuto, Rafael apareceu e sem dizer
nada, me abraçou com força e começou a chorar também.
Acredito que ela me esperou sair de perto. Voltei para a sala e
pedi para ficar sozinha para o meu último momento com minha
eterna filha canina. Abaixei as pálpebras dos olhos dela e a
abracei, um filminho sobre nós duas passou em minha mente
desde nosso primeiro dia. Quantas lembranças boas em 16 anos,
lambidas, brincadeiras, passeios, quanto amor envolvido!
Por fim, falei no ouvido dela para que me ouvisse onde quer
que estivesse, agradeci a companhia, por ter ficado comigo por
tantos anos. Pedi perdão por todas as vezes que briguei com ela.
Tati deixou um vazio muito grande em minha vida e em casa.
Ela não gostava de ficar no colo, mas era um grude comigo.
361
No caminho de volta para casa, silêncio total que permaneceu
até chegarmos em casa. Rafael foi solidário com a dor que eu
estava sentindo naquele momento, me abraçou novamente.
Perguntou se podia dormir comigo, eu não tinha forças para
discutir, então deixei sem pensar duas vezes. Fazia apenas duas
semanas que tínhamos terminado e estávamos juntos ali por
conta da Tati. Deitamos na cama, cada um num canto, eu
estava de costas para ele e me assustei quando me abraçou.
Ele começou a me provocar e por um momento, fiquei sem
saber o que fazer. Poderia ter pedido para ele parar, afinal não
estávamos mais namorando, estava sofrendo por causa disso e
com a despedida da Tati, mas fui fraca, ainda existia muita
química entre nós, deixei que continuasse. Acabamos transando
e quando o arrependimento bateu, era tarde demais, tínhamos
feito tudo. Dormimos de conchinha. Expectativas foram criadas.
Acordei acreditando que os últimos acontecimentos poderiam
significar que ele quisesse recomeçar o relacionamento, mas
percebi que não queria isso quando me questionou:
“O que você vai fazer da sua vida de agora em diante? Precisa
se cuidar, ainda mais agora que nosso relacionamento acabou e
a Tati não está mais aqui!”. Fiquei sem saber o que responder.
Em seguida, me perguntou se eu queria que ele ficasse comigo
por mais aquele dia, pois poderia mandar mensagem ao chefe
avisando que não ia trabalhar e faria home office.
Meu lado racional foi mais forte: não, eu não quis que ficasse.
Não faria sentido continuarmos juntos no apartamento, sendo
que estava óbvio que realmente nosso namoro tinha acabado,
além disso, eu estava me sentindo péssima e com ressaca moral
por termos feito sexo.
Foi um remember que se tornou nossa última vez.

362
***
Toda tristeza que estava sentindo apenas não me derrubou
porque estava focada na vida profissional, fazia de tudo para me
manter ocupada durante o dia. A Lidi me ajudava demais, estava
fechando grupos de mulheres para realizarmos meu workshop:
‘Transforme sua vida sexual com Bruna Surfistinha’.
Não deixei de ir ao terreiro às quartas e sextas, era recuperava
minha energia e força para seguir em frente. Retomei minha
vida social, não negava nenhum convite, quando rolava alguma
balada na sexta, ia após o terreiro, passava na toca apenas para
trocar de roupa. A verdade é que evitava ficar em casa, pois
estava insuportável a ausência da Tati. Estar sempre perto dos
amigos, deixava a vida mais leve, me ajudava a lidar com três lutos.
Eu não tinha vontade de conhecer outra pessoa, de me envolver,
quis viver meu luto sozinha, ia para as baladas com o único
objetivo de relaxar a mente, me divertir com meus amigos e
esquecer da vida. Estar solteira após um relacionamento tão
conturbado, era estranho demais. Estava definitivamente
fechada para novos contatinhos. Não conseguia me imaginar
vivendo um novo romance, tinha medo de sofrer novamente,
estava cheia de traumas, precisava ficar solteira por um bom
tempo até me recuperar, até morrer meu amor por Rafael.
***
Em junho, fui com a Lidi ao Rio de Janeiro porque uma marca
me contratou para fazer presença VIP no stand da ‘Sexy Fair’.
O combinado era ficar uma hora disponível para tirar fotos
com quem quisesse, mas a repercussão foi tão grande que
quando acabou o horário combinado, ainda havia uma fila
imensa com pessoas querendo tirar foto comigo, então fiquei
até o fim. Voltei ao hotel podre de cansada, mas feliz demais
com a recepção que tive. Me deu ainda mais ânimo para focar
em meus projetos profissionais.

363
Entre o final da tarde e uma parte da noite, tivemos tempo
livre, então eu e Lidi fomos até Copacabana, fazia mais de um
ano que não ia à praia, estava precisando sentir a energia do mar
e agradecer a Mãe Iemanjá. Depois fomos até um quiosque para
beber, curtir música ao vivo e relaxar antes da Feira erótica.
Apesar dos meus lutos, estava indo tudo muito bem, fluindo de
uma maneira leve. Azar no amor, sorte no jogo. Estava fazendo
terapia para cuidar das minhas dores e ocupando a mente com
trabalho. Novamente estava enxergando o lado bonito da vida.
***
Em julho, estava me arrumando para ir a uma reunião quando
notei que meu celular, que está em modo silencioso eternamente,
estava cheio de ligações perdidas e mensagens não lidas no
WhatsApp. Obviamente alguma coisa tinha acontecido.
Nessa época, estava dando um tempo de acompanhar as
notícias do mundo, fazendo um detox de coisas ruins, ligava a
televisão apenas para assistir filme ou série em algum streaming
ou vídeos de músicas do Youtube. Comecei a ler as mensagens
que recebi no WhatsApp e levei um susto quando vi que vários
jornalistas queriam saber a mesma coisa: qual era a minha
opinião sobre a declaração de Bolsonaro em relação ao filme.
Meu Deus do céu. Coisa boa eu imaginava que não era.
Joguei no Google e logo apareceram várias matérias comentando
sobre o caso. A frase dita por ele foi: “Não posso admitir filmes
como Bruna Surfistinha com dinheiro público”.
Eu não tinha muito o que falar sobre esse assunto, afinal o
filme já tinha sido lançado há muitos anos, ele não tinha como
desfazer. Entendo que quem diz ser cidadão do bem, precisa
pregar um falso moralismo para não chocar, nem decepcionar a
família tradicional brasileira. Enquanto ele citou meu filme como
exemplo de coisa ruim, o orgulho que tenho da minha trajetória
apenas aumentou, só eu sei o que passei até colher meus frutos
e ninguém vai tirar isso de mim.
364
Teria ficado chateada e com vergonha de sair de casa se tivesse
sido criticada por um presidente decente, com um histórico
maravilhoso na política, mas não era o caso. Minha resposta aos
jornalistas foi direta e reta: “Ele deveria cuidar da moral da
própria família”. E esse foi o título de várias matérias publicadas.
Diante esse fato, comecei a ser atacada com intensidade por
‘bolsonaristas’, sofri um bombardeio de mensagens nas minhas
redes sociais. Senti na pele o quanto eles são militantes agressivos
que não descansam e, sentem prazer em xingar e ameaçar vidas
alheias que não concordam com a mesma visão política deles.
Virei alvo e por dias recebi mensagens como: “Você é um lixo
humano”, “É uma vergonha para o país”, “Se eu te encontrar,
acabo com você”, “Que moral você tem pra falar do presidente,
sua puta!”, “Você tem que morrer, vagabunda!” e por aí vai.
Eu fiquei chocada com tanto ódio que esse povo externa. Cada
um oferece o que tem no coração, não é mesmo?
Após ler certas mensagens, curiosa que sou, entrei nos perfis
para ver quem são tais pessoas, afinal para ser hater e juiz da
internet, precisa no mínimo ter moral. Não fiquei abalada com
o conteúdo das mensagens, o que me abalou foi a energia
pesada que veio para cima de mim, consequência de inúmeras
pessoas sentindo ódio por minha existência, me desejando mal
e até mesmo minha morte. Fuçando os perfis, notei semelhanças
entre elas e pasmem, a maioria exaltava na biografia a seguinte
definição: cristão (ou cristã)
Oi??? Lendo isso em quase todos os perfis, me causou um
sentimento muito ruim que sou incapaz de descrever. Como
podem ter coragem de dizer que são cristãos e desejarem tanto
mal a alguém? Nunca entenderei tamanha contradição.
Uma mulher chamou muito minha atenção com a mensagem
que me mandou, foi uma das piores que recebi, além de
palavrões e xingamentos, desejou que eu fosse estuprada e
morta em seguida. Pois muito que bem, fucei o perfil dela para
entender quem era essa ‘bolsominion’ na fila do pão.
365
Foi quando me deparei com uma foto da Marielle Franco e a
legenda estava em tom de deboche o fato de não terem
descoberto quem a assassinou. Parei um pouco para respirar e
processar as informações: como pode uma mulher negra
debochar da morte de outra mulher negra?
Foi então que tive certeza de que o problema não estava em mim.
Os ataques duraram dias, embora tivesse vontade de responder
algumas mensagens, o meu silêncio foi minha melhor resposta.
Nessa época, também descobri que muitas pessoas não sabem o
que é ‘Lei Rouanet’, se baseiam em achismos e criticam sem
fundamento algum, pois deveriam estudar sobre o tema antes
de passarem vergonha escrevendo bobagens na internet.
Quanto ao tanto de energia pesada que sente, precisamos
realizar no terreiro, um trabalho lindo e forte com energia de
exus e pombogiras que me limparam e quebraram todas as
demandas que mandaram para mim. Nessa noite, cheguei na
Casa de São Lázaro praticamente rastejando sem energia.
Após o trabalho com os guias, me senti renovada e levíssima.
Esta situação causada pela declaração do presidente, me
proporcionou muito bônus, o único ônus foi ter sido alvo dos
ataques agressivos.
Foi um período que tive bastante notoriedade na mídia e fora
dela. Muitos artistas globais compraram briga e me mandaram
mensagens fofas, me defendendo. Pessoas me paravam na rua
para comentar o caso, demonstrando repudio ao presidente.
Se encontrei com algum ‘bolsonarista’ que não aguenta minha
existência, nenhum teve coragem de me abordar. E os que me
ameaçaram, dizendo que descobririam onde moro para acabar
comigo, evaporaram. Quem me protege, não dorme.
A Lidi estava pirando com tantas solicitações de entrevistas.
Acabamos filtrando porque para mim, o assunto já estava
encerrado. Uma das melhores entrevistas foi com o Roberto
Cabrini para o ‘Conexão Repórter’ (SBT), o resultado ficou
lindo e especial, pude mostrar meu lado humano, situações do
366
meu cotidiano como correr no parque e meu trabalho no
terreiro. Foi a terceira vez que ele me entrevistou. Repercutiu
tão bem que ainda recebo mensagens de pessoas comentando.
***
Em julho, fui com o Fê em dois eventos maravilhosos: um foi o
‘Miaw MTV’ que aconteceu no Credicard Hall, um lugar que
sempre gostei de ir. O outro foi o show do Sam Smith, conhecia
apenas duas músicas, voltei para casa apaixonada por ele.
***
No início de agosto, recebi mensagem da terapeuta que realiza
constelação familiar sobre uma promoção que estava fazendo,
fechando duas constelações, ganhava uma porcentagem de
desconto. Fechei para fazer com um espaço de tempo entre
uma e outra. Na próxima vez que falei com Rafael, o avisei que
faria e pedi para que não fosse nos dias que eu estaria presente.
Sendo assim, fui ao primeiro domingo do mês, mesmo
morrendo de ressaca e chegando atrasada, cumpri com minha
promessa de não deixar de constelar algumas questões. Assim
que entrei na sala e me sentei numa cadeira, vi Rafael sentado
do outro lado, não acreditei. Tentei ignorar a presença dele, mas
por dentro sentia meu coração acelerado, afinal desde o dia que
a Tati morreu, não nos encontramos mais pessoalmente.
Eu sentia que em alguns momentos, ele ficava me observando.
Por sorte, não participamos juntos do campo da constelação de
ninguém. No intervalo, ele tentou puxar assunto, mas respondi
da maneira mais seca que consegui. No final, me ofereceu
carona e não aceitei. Nessa tarde, constelei mais uma vez meus
pais biológicos. O resultado foi intenso e mexeu comigo.
Fui para casa trocar de roupa e me arrumar para encontrar com
o Fê, meu parceiro dos melhores rolês aleatórios daquele ano.
Fomos ao show da diva Marília Mendonça para curtirmos uma
boa sofrência digna.

367
Balançada com a constelação familiar e mexida por ter estado
perto do Rafael a tarde toda, consegui encerrar o domingo com
uma noite gostosa e divertida. Marília Mendonça é incrivelmente
foda, saí do show me sentindo empoderada.
***
Ainda sem ter superado a ausência da Tati e por toda dor que
nossa despedida me causou, coloquei na cabeça que nunca mais
teria um cachorro nesta vida, nenhum a substituiria e eu não
queria viver novamente o mesmo sofrimento. Já estava decidida
e achei que ninguém me faria mudar de ideia.
Até que uma irmã no Santo, numa bela tarde de domingo, me
abordou no terreiro contando que o casal de labradores dela
estava com alguns filhotes e ela estava doando todos para
pessoas próximas. Me ofereceu um filhote, agradeci, contei
sobre a Tati e não aceitei. Após duas semanas, ela me mandou
mensagem contando que ainda estava com dois filhotes, me
perguntou se realmente não queria adotar um e mandou fotos.
Respondi que pensaria com carinho.
Refleti bastante. Não estava preparada para ter outro cachorro,
mas ao mesmo tempo sentia muita falta de ter uma companhia
canina para agitar meu dia a dia. Sempre achei labradores lindos.
Além de ter lido o livro e assistido o filme ‘Marley e eu’, sabia
que são bagunceiros, cheios de energia e crescem bastante.
Seria um grande desafio cuidar de um. Por que não ter um?
Fiquei dividida entre a razão e o coração. Depois de três dias
pensando, mandei mensagem para a Fabi perguntando se ainda
tinha algum filhote para doar para mim, sendo que minha única
exigência era que fosse do sexo feminino.
E foi assim que Maria Padilha Pacheco, minha filha labradora
furacão, chegou em minha vida. Ela se adaptou muito bem com
as gatas e logo conquistou meu coração mesmo destruindo tudo
que encontrava pela frente.

368
***
No início de outubro, fui convidada para desfilar no Carnaval
2020, na escola de samba Vai-Vai. Seria a segunda vez que
sentiria toda energia incrível que é estar na avenida. Os ensaios
já tinham começado há bastante tempo, mas como o convite
surgiu de repente, então num domingo, eu e Lidi fomos ao
nosso primeiro ensaio. Estávamos animadas e curtindo a noite
em um camarote improvisado. Uma moça da escola me chamou
para me levar até onde estava a bateria da escola, fui achando
que seria apresentada aos componentes dela em uma pausa deles.
Ficamos um pouco ali aguardando o momento da apresentação,
ouvi uma pessoa avisando que Bruna Surfistinha já estava
aguardando e até aí tudo bem, achei normal. Até que fui levada
na frente dos componentes da bateria, eles continuaram tocando
os instrumentos especialmente para mim e se posicionaram de
uma maneira que me tornei o centro deles. Paralisei. A moça
que me levou até lá, ao me ver travada sem me mexer, chegou
perto e me alertou desesperada: “Samba, Bruna!”.
Dei um sorrisinho bem sem graça e avisei que não sabia sambar.
Ela respondeu: “Não tem problema, pode sambar do seu jeito!”.
Que jeito, meu Deus?? Que jeito?? Nas minhas tentativas que
tentei sambar, parecia que estava matando e esmagando uma
barata no chão. A bateria continuava tocando para mim,
comecei a suar frio e se pudesse, cavava um buraco para me
esconder. Eu estava vivendo uma experiência linda, imagino
que muitas pessoas queriam estar ali no meu lugar. Comecei a
chacoalhar o meu corpo nitidamente morrendo de vergonha.
Olhava para a Lidi e ela fazia uma cara fingindo que estava tudo
bem e que eu estava fazendo sucesso.
Quando acabou esse momento, tive vontade de chorar de tanta
vergonha. Não fui mais nos ensaios, acabei desistindo de desfilar.
Naquela noite, percebi que a expectativa que a escola tinha
sobre mim era muito grande e eu não conseguiria corresponder.
Me sabotei.
369
***
Eu e Rafael não nos falávamos mais diariamente, mas ele não
conseguia lidar com meu silêncio e, sempre após alguns dias
que eu estava quieta, ele dava um jeitinho de me cutucar no
WhatsApp. Quando tentávamos ter uma conversa por telefone,
em poucos minutos começávamos a brigar, era impressionante
como não conseguíamos ter uma conversa de adultos. Confesso
que eu tinha uma ponta de culpa para que isso acontecesse.
Embora eu estivesse gostando de estar solteira, ainda estava na
fase de negação do luto. Ele sempre aparecia com mensagem
dizendo que estava com uma ideia muito boa e que queria me
contar por telefone, mas em todas as vezes, me dizia as mesmas
coisas, era repetitivo e chato demais. Eu dizia que estava me
cuidando da minha maneira e como podia, mas ele não ficava
satisfeito, repetia sobre o tal caminho de cura que encontrou.
Eu desisti de fazer a segunda constelação que paguei na
promoção para não o encontrar. Ele interpretou que abandonei
as constelações em si. Precisei contar um segredo para ele: não
existia apenas uma consteladora em São Paulo. Encontrei outra.
Ele sentiu que estava começando a me perder para valer, pois
minha vida estava andando sem ele, então começou a demonstrar
um leve interesse em voltar a namorar comigo, mas segundo
ele, antes disso acontecer, precisávamos nos cuidar para
ficarmos bem e “Então daqui a um tempo, Quel, nós vamos
nos encontrar pessoalmente para conversar e sentir se queremos
voltar o relacionamento”. Quando questionei sobre esse “daqui
a um tempo”, ele disse que não sabia por quanto seria, pois
dependeria do nosso progresso de estarmos bem, poderia ser
um mês, um ano ou dez anos. Continuava não vendo sentido
quanto ao fato de cada um se cuidar e quando estivéssemos
bem, nos avaliarmos como numa entrevista de emprego, para
quem sabe voltarmos a namorar. Não consigo lidar com
incertezas. Cansei de avisá-lo que para mim, não existia essa de
tempo para nos cuidarmos e depois a gente se reencontrava.
370
Ele interpretava esse meu posicionamento do jeito dele, tirava
não sei de onde que não estava me cuidando, que não queria
me cuidar de maneira alguma e que eu não queria ficar bem.
Tudo o que ele dizia, me irritava profundamente, então surtava.
Ele não me queria mais naquele momento como namorada,
mas não me permitia seguir em paz. Continuei pisando em ovos.
Quando ignorava alguma mensagem dele, me preparava para
receber ataques de mensagens no mínimo grosseiras porque ele
sabia muito bem que me provocando, não conseguia ficar quieta.
***
Numa noite de sábado, acabei conhecendo um moço bem
interessante na balada, enquanto dançava na pista com a Linda
e outros amigos, resolvi dar uma chance e ficamos juntos, foi
bacana, gostei dele, mas eu continuava na vibe de não querer me
envolver, queria continuar solteira e ter sexo casual apenas.
Deixei isso bem claro para ele, me disse que também não queria
nada sério, pois estava solteiro há poucos meses após se separar
de um longo relacionamento. E eu acreditei. Ele era quase um
quarentão, com um espírito bem jovem e super influente na
área dele. Ficamos juntos várias vezes, a última vez foi bem no
dia do meu aniversário. Numa noite, ele me chamou para um
happy hour com a equipe de funcionários que trabalhava na
empresa dele, fui me encontrar com eles no barzinho onde
estavam e quando cheguei, a recepção foi calorosa e me
apresentou como “minha namorada”, achei que estivesse
brincando. Sentei na mesa e o papo estava superdescontraído,
leve e gostoso, todos da equipe participavam da conversa, tinha
tudo para ser uma noite gostosa, mas notei algumas falas bem
machistas com uma das funcionárias, isso me incomodou
demais e a defendi. Ele não gostou do fato de eu ter me
intrometido na conversa e ter puxado a orelha dele na frente de
todos, afinal ele era o chefe. O papo continuou até que alguém
puxou assunto sobre o Bolsonaro, todos começamos a falar
mal, com exceção do meu abençoado que o defendeu.
371
Ele assumiu que votou no senhor presidente. Esse detalhe não
foi motivo para pararmos de ficar. No sábado seguinte, fui a um
barzinho com a Linda e a Rochelle, mandei mensagem para ele
ir também. Sempre chamei a Linda de ‘mamis poderosa’ porque
ela é mesmo, a apresentei dessa maneira a ele que sem pensar
disse: “Ah, então você é a minha sogra?”. Eu fingi que não
ouvi, não queria discutir e estragar o rolê, mas meu silêncio
incomodou e do nada, ele olhou bem no fundo dos meus olhos
e me disse: “Ahhh, namora comigo, vai!”. Ri muito, ele ficou
puto e nunca mais tocou no assunto. Ficamos alguns dias sem
nos ver e resolvi comemorar meu aniversário no ‘Quintal do
Espeto’, um bar super gostoso que sempre fui com minhas
amigas, pelo menos duas vezes por mês nos reuníamos lá.
Chamei o abençoado, nosso lance tinha esfriado após não ter
aceitado namorar com ele, mas eu não tinha nenhum outro
contatinho então o convidei, sem obrigação de ficarmos juntos,
mas se rolasse clima, tudo bem. Começou o último show ao
vivo, nós dois fomos na frente do palco e estava indo tudo
muito bem quando a moça que estava ao lado dele, derrubou
sem querer um copo de vidro no chão. Ele colocou a long neck
que estava bebendo num cantinho do palco para ficar com as
mãos livres e pegar os cacos. Em questão de segundos, o
segurança que estava perto, nos abordou de uma maneira bem
grosseira para avisar que não poderia colocar nada sobre o
palco e não quis saber que seria rápido, começou a implicar
com a gente. Entendo que é o trabalho dele e tem que seguir
ordens, mas não precisava ser arrogante. Acabei me exaltando,
reconheço que passei dos limites por estar bêbada e foi
totalmente desnecessário ter comprado uma briga, ainda mais
por um homem que eu nem considerava mais como ficante
fixo, senti que tinha me desencantado. Mas enfim, briguei com
o segurança para defender o abençoado. Depois dessa treta, ele
foi embora sem se despedir de mim. Foi nosso fim.
Demorei um pouco para voltar ao normal após a discussão com
o segurança, quem conseguiu me acalmar foi a Chrisinha.
372
Enquanto ela me acalmava, a Lidi se aproximou e acabamos
brigando, ficamos quase seis meses sem contato. Após o bar,
ainda estenderia minha comemoração em uma balada que fui
algumas vezes com o Fê e o Léo, mas não consegui ir.
O after foi na casa da Linda. Na segunda-feira que foi o dia do
meu aniversário, comemorei com a Jana num rodízio japonês.
E assim, iniciei meu ciclo dos 35 anos.
***
No início de dezembro, a Padilha estava com 4 meses de idade
e com o dobro do tamanho de quando chegou em casa.
A brincadeira dela com as gatas era um pouco agressiva, mas
era nítido que não havia maldade, ela não tinha noção da
própria força e tamanho, era um filhote gigante. A gata Aline
morria de medo e se escondia dentro do armário, a Filó e Sky,
tinham muita agilidade para fugir em qualquer tentativa de
aproximação de Padilha, já a Duda por ser uma senhorinha com
15 anos, um ano mais jovem que a Tati, não tinha mais tanta
energia de fuga e, mais de uma vez, a socorri das brincadeiras da
irmã canina. Padilha não mordia, mas corria atrás das gatas e
quando conseguia pegar, se deitava ao lado e jogava a pata
sobre a gata para prendê-la e a brincadeira era ficar cutucando a
irmã felina dando patadas. Uma vez ela conseguiu capturar a
Filomena desta maneira, eu estava por perto e vi a cena, mas vi
que Filó estava gostando, tanto que numa rápida pausa das
patadas, além de não ter fugido, ainda mudou de posição
colocando a barriga para cima. Outra vez, presenciei a mesma
cena com a Duda, mas percebi que não gostou e o peso da
patada a machucou, pois soltou um miado reclamando. Corri
para salvá-la. Isso aconteceu mais uma vez em um outro dia,
estava por perto e a salvei. Quando saia de casa, deixava a Duda
presa no quarto do escritório com água e comida para ficar
protegida da Padilha até eu voltar. Num sábado, no entanto,
Duda e eu não tivemos a mesma sorte. Estava na cozinha
quando ouvi um miado bem alto e estranho, corri para a sala, vi
373
a Padilha deitada com as duas patas sobre a Dudinha que estava
imóvel, quando a carreguei, senti o corpinho mole.
Me desesperei, vi que estava respirando, então me sentei no
sofá com ela no colo esperando que voltasse ao normal, mas
quando a coloquei no chão, o corpinho dela caiu para o lado,
percebi que não estava tendo força para se sustentar em pé.
Corri para levá-la ao veterinário que ao examiná-la, me avisou
que o coração dela estava batendo bem fraquinho. Injetou soro
com medicação e Duda dormiu, quando o procedimento
acabou, fomos liberadas para voltarmos para casa, comprei um
remédio que o veterinário indicou. Retornaríamos na segunda
de manhã para uma nova consulta. Ele viu que Duda não
conseguia ficar em pé, então a analisou e constatou que as patas
estavam normais, sem machucados externos ou lesões internas.
Eu tinha combinado com duas amigas de irmos num bar, mas
cancelei para ficar com a Duda. Passei o dia com ela no colo,
enrolada numa mantinha porque as vezes sentia o corpinho dela
tremendo e concluí que fosse frio. O veterinário avisou que o
importante era mantê-la hidratada e como ela não ficava em pé,
peguei uma seringa que tinha sobrado de quando comprei para
a Tati, então a cada meia hora no máximo, injetava água na
boca da Duda, ela engolia tudo. Com o passar do tempo,
começou a engolir cada vez com mais dificuldade, até que no
meio da noite, a boca travou, eu não conseguia fazer com que
entrasse nem a pontinha da seringa.
A Linda estava fazendo um churrasco de final de ano no
condomínio onde mora, então ela e nossas amigas em comum,
estavam me mandando mensagem desde o final da tarde
pedindo para que eu fosse, contei sobre a Duda e avisei que não
conseguiria ir. Mas eram quase 23hs e eu não estava aguentando
mais ver a Duda daquela maneira, sentia que estava piorando, a
respiração estava estranha, enfraquecendo. Me desesperei, não
queria acreditar no que estava sentindo, a Duda não poderia
morrer, eu não teria estrutura emocional para aguentar outra
374
despedida e mais um luto. Como a Linda morava a dois
quarteirões de mim, resolvi ir com a Duda até lá. Não fui para
curtir o churrasco, mas para não ficar sozinha em casa, estava
me sentindo mais uma vez impotente, precisava de apoio e
força externa. Bebi uma dose de vodka para relaxar a mente, só
larguei a Duda em momentos que ela foi para outros colos.
Eu estava sentada a observando em meu colo quando começou
a fazer alguns barulhos fortes mostrando estar com dificuldade
em respirar. Os olhos dela estavam bem abertos olhando para
mim, foi quando senti que ela já estava se despedindo. Minha
reação foi abraçá-la com força e comecei a dizer as mesmas
coisas que disse para a Tati, agradeci por todos os momentos
durante os 15 anos que fez parte da minha vida, avisei que
poderia descansar e que não se preocupasse comigo. Desabei de
chorar. Nesse momento, a Rochelle estava ao meu lado e sem
falarmos nada, coloquei a Duda no colo dela e me levantei.
Foi questão de segundos, de sair de perto e dar uns cinco passos
no máximo, senti um aperto no coração, parei de andar, olhei
para trás e vi a Rochelle em pé, chorando e balançando a cabeça
para mim. A Duda tinha acabado de dar o último suspiro, senti
quando isso aconteceu.
Com a Tati, acompanhei durante uma semana a situação dela
piorar, mesmo sendo difícil encarar estes dias, querendo ou não,
pude me preparar para o pior porque eu tinha consciência de
que ela não estava bem. Com a Duda, foi questão de horas,
menos de um dia. Ela estava bem na medida do possível,
levando-se em conta que era uma gata com 15 anos, apresentava
limitações por conta disso, mas não tinha nenhum problema
grave como era o caso da Tati com os nódulos de tumor.
A Duda dormiu no meu travesseiro como sempre fez,
acordamos com tudo normal, entrou naquele estado após a
brincadeira da Padilha, não tive tempo de me preparar para me
despedir dela. Quando ela resolveu que era o momento de
partir e descansar, todos que estavam no churrasco já tinham
375
ido embora, estávamos apenas eu, Linda e Rochelle. Acredito
que esperou o momento certo para partir. Nós levamos o
corpinho dela até uma clínica veterinária 24 horas para resolver
o procedimento da cremação. Eu não conseguia acreditar no
que estava acontecendo. Quando cheguei em casa carregando
apenas a mantinha sem a Duda, me deitei na cama e chorei em
posição fetal. Tinha guardado alguns comprimidos do remédio
para dormir que numa consulta, a psiquiatra me receitou.
A recomendação era que eu tomasse junto com outro remédio
que controlava minha ansiedade e, por não ser forte nem causar
dependência da química com facilidade, poderia tomar todas as
noites, mas eu tomava apenas quando chegava no meu limite de
exaustão mental. Quando parei de chorar, o dia estava clareando,
tomei o remédio e apaguei. Acordei quando eram quase 15hs,
assim que abri os olhos, senti o vazio que Duda deixou, pois ela
não estava no meu travesseiro. Levantei, tomei banho, saí para
passear com a Padilha, eu não a culpei pela morte, entendi que
foi uma fatalidade, ela achava que estava apenas brincando.
Quando voltamos para casa, não estava suportando a ausência
da Duda, então fui até a casa da Renatinha, uma amiga que
morava também no mesmo bairro. Minha ideia era ficar lá o
máximo que pudesse para passar menos tempo em casa.
No dia seguinte era segunda e naquela semana, eu estava com a
agenda cheia de compromissos então ocuparia minha mente.
No final da tarde, resolvi mandar uma mensagem ao Rafael para
avisá-lo sobre a morte da Duda. Conversamos rapidamente por
telefone e ele disse que estava indo a São Paulo porque queria
me ver. Eram quase 20hs quando foi me buscar na casa da
Renatinha, demos uma volta de carro como sempre fazíamos
nos tempos bons de namoro. Paramos na padaria que mais
gostávamos de tomar café da manhã, comprou algumas coisas
para tomarmos um lanche, foi então que entendi que a intenção
dele era ir até o apartamento para me fazer companhia. Não
deixei e por mais que tenha insistido e até feito chantagem
376
emocional, me mantive forte em minha decisão. Não quis
correr o risco de acontecer a mesma coisa de quando a Tati
morreu. Ele ficou chateado, afinal foi a São Paulo apenas para
estar comigo, reconheci a atitude dele e agradeci. Me deixou na
frente do prédio, subi para casa com as coisas do lanche.
Das minhas quatro filhas felinas, a Duda sempre foi a mais
apegada a mim, era meu grudinho. Se eu deixasse, ela passava o
dia todo no meu colo, não se desgrudava de mim quando estava
em casa. A gata mais amorosa e dengosa, só de tocar nela, já
começava a ronronar bem alto, parecia um motorzinho ligado.
Quando chegava em casa, ela me recebia na porta com a Tati e
depois com a Padilha. Eu me agachava e ela se jogava no meu
peito para carregá-la. Sempre foi assim. A falta que ela fazia no
meu travesseiro - por dormir e acordar nele todos os dias – era
tanta que não consegui mais deitar na cama sem ela, comecei a
dormir no sofá da sala ou no qual ficava no quartinho da paz.
Nos três meses que estive longe de casa por estar participando
do reality show ‘A Fazenda’, João me contou que a Duda
dormiu todas as noites na frente da porta de entrada do
apartamento, me esperando chegar. Quando ele ia ao quarto
para dormir, a levava para a cama, mas ela não ficava de jeito
nenhum, logo voltava para continuar na frente da porta.
Na noite que cheguei em casa e a carreguei, me agarrou com
força, não queria mais sair do meu colo, quando a soltava em
algum lugar, ficava miando me olhando, como se estivesse me
pedindo mais. Ela amava ficar posicionada com o corpinho na
vertical e dormir com a cabeça no meu ombro como se fosse
um bebê humano. Acredito que não exista outra gata como a
Duda, que sorte a minha ter tido a companhia dela por 15 anos!

***
377
Faltava pouco para o ano acabar. Eu estava sem contatinhos
por escolha minha, após a tentativa de ter um ficante fixo falhar
porque ele quis namorar. Levando-se em conta que estava há
sete meses solteira, saindo no mínimo duas vezes por semana
para beber com amigos, podendo passar o rodo se assim
quisesse, afinal oportunidades não me faltavam em todos os
rolês e, mesmo diante tudo isso, me relacionei de alguma
maneira com apenas dois moços, significava que eu preferia
estar sozinha. Sem homens, sem probleminhas.
Percebi que não consigo me entregar a alguém enquanto ainda
amo outra. Não sei tapar buracos, estar com uma pessoa para
esquecer outra. Não sei lidar com relacionamentos superficiais.
Estava gostando de encerrar o ano solteira e tinha certeza de
que continuaria assim durante 2020, pois estava fora de cogitação
ter um novo relacionamento tão cedo, quem sabe aos quarenta
anos seria uma boa fase para viver uma nova história de amor.
Comecei a ver mais vantagens ao estar só.
Não é solidão, é liberdade.
Foram quase seis meses vivendo a fase de negação quanto ao
fim do relacionamento com o Rafael, foi difícil aceitar que ele
desistiu de nós no meio do caminho. Sabia que ele também
continuava solteiro e continuava mergulhado nas constelações.
Se fosse para voltarmos, precisaríamos dar um reset em tudo que
vivemos juntos e recomeçarmos do zero. Confesso que às vezes
pensei nesta possibilidade, mas quando lembrava das coisas
ruins, das traições e todos os momentos que ele me fez chorar,
me causava pânico ao imaginar revivendo tudo novamente.
Após a conversa que tivemos e ele me passou uma listinha de
exigências para retomarmos, a ficha caiu do quanto nossa
relação era tóxica para ambos e, entendi finalmente que nunca
conseguiríamos ser felizes juntos. A partir daí, comecei a aceitar
nosso ponto final e virei a chave. Era questão de honra superar,
parar de sofrer por causa dele e resgatar meu amor-próprio.
378
Para 2020, o plano era manter o ritmo de vida que estava tendo:
continuar cuidando de mim da minha maneira e respeitando o
meu tempo, focada no trabalho com Bruna Surfistinha,
trabalhando no terreiro às sextas, mantendo a ‘vidaloka’ com os
amigos em rolês aleatórios na noite paulistana e realizaria os
projetos que estavam engavetados. Simples assim.
O ano de 2019 foi intenso e difícil ao encarar quatro lutos e
despedidas: meu querido Edu, Rafael, Tati e Duda.
No meio de tantas dores, (re)descobri o quanto sou mais forte
do que imagino. Meu coração estava um caco, mas sobrevivi.
Entre trancos e barrancos, tive muitos bons momentos durante
o ano todo e ainda mais certeza do quanto meus amigos são os
melhores do mundo!
Em novembro, o Fê se tornou meu assessor e já tínhamos
alguns trabalhos e compromissos fechados para o próximo ano.
A sorte no jogo continuava com força e fluindo muito bem.
Passei o Natal na casa da Renatinha com a família dela e o
Réveillon no apartamento da Rochelle com parte do nosso
bonde: Linda, Chrisinha, Andréia, Mitti e Thaís.
Inimigas do fim, nossa comemoração acabou um pouco antes
das 8hs, vimos o nascer do sol. Foi uma madrugada deliciosa
com muitas risadas, sorrisos, energia boa demais. Jogamos
‘Banco Imobiliário’, dançamos, bebemos, esquecemos da vida.
Encerrei o ano muito bem acompanhada com amigas que amo,
estava transbordando de felicidade e otimismo, cheia de planos
e vontade de viver!

***

379
CAPÍTULO 11 - Recomeço e reencontro

Comecei o ano 2020 cheia de planos e empolgada pelo que


estava por vir. O Fê fechou trabalhos bem interessantes que
rolariam em momentos diferentes, dentre eles, a participação
em um novo ‘Game Show’ valendo prêmio em dinheiro e que
seria gravado em abril, em Buenos Aires, cidade que tanto amo.
Em maio, faria participação especial num clipe de lançamento
de uma música nova de uma cantora brasileira conceituada,
em agosto seria uma das palestrantes de um grande evento que
aconteceria em uma faculdade, em Belo Horizonte. Ainda
tenho esperança de que aconteçam em 2022, pois não foram
cancelados, apenas adiados e engavetados. Estes compromissos
foram fechados entre novembro e dezembro de 2019, mas em
janeiro, surgiram outros convites especiais.
Eu estava feliz da vida!
Além desses compromissos, já estava me organizando para
realizar vários workshops presenciais, fecharia no mínimo quatro
grupos por mês. Recomeçaria mais uma vez minha sex store
virtual, finalmente iniciaria as gravações para o lançamento do
meu canal no YouTube, publicaria esta autobiografia no segundo
semestre e estava planejando o lançamento num lugar bem
bacana em São Paulo, lançaria dois produtos eróticos com a
marca Bruna Surfistinha e por fim, em outubro me candidataria
a vereadora, pois em dezembro, a convite do PL, me afiliei.
Eu não estava acreditando que tantas coisas boas aconteceriam,
ansiedade tornou-se meu sobrenome. O recomeço da minha
vida profissional estava sendo lindo demais.
Desde 2017 não me sentia tão viva. Minha expectativa era que
2020 seria um ano transformador, talvez o mais especial de toda
minha vida. Morte e renascimento que chama.

380
O primeiro grande momento do ano aconteceu no dia 18 de
janeiro quando participei do evento ‘Festival Verão sem
Censura’ idealizado pela Secretaria de Cultura, na Praça das
Artes, em São Paulo. No início da tarde, apareci no telejornal
SPTV, na Globo, convidando o público para ir ao Festival.
Fiquei lisonjeada por ter sido convidada para fazer parte deste
movimento lindo contra a censura. Eu e Deborah Secco
conversamos sobre o impacto que a censura estava causando na
cultura nacional e obviamente falamos bastante sobre o filme
‘Bruna Surfistinha’ ao responder perguntas de pessoas presentes
na plateia. Foi a segunda vez que nos encontramos em público,
a primeira foi em 2011, na pré-estreia do filme no cinema.
Depois desse bate-papo que durou uma hora, o filme foi exibido
no telão. A entrada era gratuita, mas ganhei um cantinho especial
e a oportunidade de convidar algumas pessoas para estarem
comigo neste camarote improvisado que ficava na lateral do
palco onde também estava o telão. Além do Fê e do boy dele,
meus convidados foram o nosso amigo em comum Léo, meu
amigo Bráz e, para a outra cadeira reservada, fiz questão que
fosse ocupada por alguém que fosse fã, que eu tivesse certeza
de que sentia carinho por mim e que ficaria feliz com meu
convite para participar deste evento comigo. Sendo assim,
convidei a Nanny, uma fã muito especial que me acompanha há
anos e sempre está presente em minhas redes sociais. Ela foi
uma ótima companhia, foi muito gratificante vê-la feliz.
Quando o evento acabou, eu e os meninos fomos mais uma vez
à festa ‘Funfarra’, que é umas das melhores que há na noite
paulistana, aliás, saudade! No meio da madrugada, um dos
organizadores da festa, foi nos buscar no camarote para irmos
ao palco onde estava o DJ. Eu estava mais pra lá do que pra cá,
mas como queria andar um pouco, fui com toda a plenitude que
doses de vodka podem proporcionar. Até aí tudo bem.
Estamos lá, até que tocou alguma música que amo, daquelas
que quando toca no rolê, não conseguimos ficar quietos, pre-ci-
381
sa-mos dançar de qualquer maneira. Pois bem. Comecei a
dançar e fechei os olhos para sentir a música entrando na alma.
Não sei o que aconteceu, mas senti meu corpo num movimento
bem rápido indo para trás, não tive nem tempo de ter algum
tipo de reflexo para amenizar a queda. Demorei alguns segundos
para abrir os olhos, não por não estar conseguindo fazer isso,
mas por vergonha mesmo. Não queria enxergar minha situação
porque quando comecei a dançar, as luzes ficaram mais fortes
no palco para quem estivesse na pista, me visse melhor, olha
que bacana. Estou ali de olhos fechados e senti alguém puxando
meus braços para me levantar. Fui um show à parte.
No palco, letras enormes formavam a palavra ‘Funfarra’. Eu caí
bem em cima do segundo R e quebrou. Destruí a decoração.
Deveria ter ficado quieta no camarote. FIM.
***
No início de fevereiro, fui ao UOL para ser entrevistada por
Dora Figueiredo para o programa dela. Após a gravação, fui
convidada para o ‘CarnaUOL’ que aconteceria a poucos dias,
no dia 08, no Jockey Club de São Paulo. Eu pirei de felicidade
claro ou com certeza? Contei os dias!
Além da minha, ganhei mais duas pulseiras VIPs para o
camarote, então convidei o Léo e como o Fê não poderia ir
porque estaria trabalhando - além de ser meu assessor na época,
é comissário de bordo - pediu ao boy dele que fosse para me
assessorar. Me lembro do quanto acordei empolgada e fiquei
mais ainda quando vi que o dia estava lindo, quente, ensolarado.
Léo foi de manhã para minha toca, pois uma van do UOL nos
buscaria lá, aproveitamos para fazer um esquenta e chegamos
no Jockey preparadíssimos para um dia inteiro de vidaloka.
Desde o início de novembro, não dava uns beijos em alguém,
não estava desesperada, mas se conhecesse alguém bem
interessante nesse dia, homem ou mulher, deixaria rolar.

382
Quando chegamos no camarote, uma moça muito simpática
nos recebeu e avisou que eu teria de dar algumas entrevistas
para jornalistas que estavam presentes, mas depois estaria
liberada para aproveitar os shows. Uma dessas pessoas que me
entrevistou foi o Fefito, um colunista que há muito tempo sou
leitora dos textos dele, então tinha muita vontade de conhecê-
lo, melhor ainda foi sendo entrevistada.
Entrevistas realizadas, estava liberada. O camarote era gigante,
eu não estava prestando atenção nos famosos que estavam
presentes, até mesmo porque sou péssima para reconhecer as
pessoas, então foquei nas comidinhas deliciosas e bebidas
disponíveis. Buchinho cheio, peguei um bom drink, então eu e
Léo fomos procurar um cantinho para chamar de ‘nosso’.
Confesso que tenho um tanto de preguiça de camarote cheio de
famosos porque é muito ego concentrado, um desfile de moda,
gente comportada demais. E eu gosto de beber e dançar sem
ser julgada, gosto de ficar no meio do povo, descer até o chão
chão chão se me der vontade, arrancar as sandálias no primeiro
sinal de pés doloridos e ficar descalça. Não nasci para ser chique.
Levando-se em conta tudo isso, não consegui ficar nem vinte
minutos no camarote, então sugeri ao Léo para descermos até a
pista que estava abarrotada de humanos, acreditei que ninguém
me notaria, lá fomos nós buscar meio metro quadrado para ser
‘nosso’, no meio do povo. Íamos ao camarote apenas para
buscar bebida, ou seja, a cada meia hora mais ou menos.
Dei trabalho ao Léo, pois além de ter sido bastante abordada
para tirar fotos na pista, no início da noite, eu já não estava mais
aguentando meus pés nas sandálias e quis ficar descalça.
Estávamos no Jockey, isso significa que no chão há muito cocô
de cavalos. Embora a organização do evento tenha coberto a
terra com um material emborrachado, existiam vários vãos e
por conta da chuva que caiu no final da tarde, a água transbordou
com pedaços de cocôs, mas não era uma quantidade grande, juro.
Eu morrendo de vontade de arrancar as sandálias de um lado,
383
Léo não me deixando fazer isso do outro. Por fim, ele venceu
após me convencer que meus pés ficariam bem imundos e
fedidos para irmos embora numa van com outras pessoas e
ninguém era obrigado a sentir o cheiro.
Fomos embora quando o último show acabou, era umas 23hs
sendo que quando chegamos não era 13hs, o dia foi melhor do
que imaginamos, aproveitamos demais. Os shows foram
maravilhosos: Banda Eva, Luisa Sonza, Iza, Vintage Culture,
Simone e Simaria, Claudia Leitte etc.
O boy do Fê chegou no meio da tarde, mas estava bem aleatório
no rolê e puto comigo porque tudo o que ele queria era ficar no
camarote. Não entendi o mau humor sendo que ele tem duas
pernas, estava com a pulseira no pulso, sabia o caminho para
chegar ao camarote e não o obrigamos a ficar com a gente na
pista, mas enfim. No meio da tarde, achei bem fofo um moço
que pediu para tirar foto comigo, rolou match e demos alguns
beijos. Do nada, me disse que precisava voltar ao grupo de
amigos porque estava preocupado de se perder deles, mas pediu
o número do meu celular pra gente se falar depois. Achei que
fosse a boa e velha desculpa do nível: “Vou ao banheiro e já
volto” e nunca mais volta. Não julgo porque já fiz muito disso.
Quando cheguei em casa e peguei meu celular, vi que ele me
mandou mensagens. Respondi e ele estava online, começamos a
conversar, já estava na casa dele e assim como eu, queria
continuar bebendo e me convidou para ir ao apartamento dele.
Pois bem, aí vem o grand finale da noite. Pedi o endereço dele e
quando li só não caí para trás porque estava sentada:
Avenida Miruna, 399 – apto X
Sabe o que isso significa? Simplesmente que ele mora no flat
Treme-Treme de Moema! Apenas.
Achei interessante retornar após tantos anos e em uma fase boa
da vida. Assim que cheguei no apartamento dele, contei sobre
esse fato, ele achou engraçado porque nunca tinha ouvido falar
neste apelido do prédio e não sabia que é famoso por ter tantas
384
garotas de programa. Achei que elas não dominassem mais o
flat, mas quando fomos à portaria para buscar a chave da porta
da área da piscina, perguntei ao porteiro se ainda tem garotas de
programa morando lá e ele respondeu com ênfase: “Demaisss!”.
Acabei dormindo com o moço. Nunca imaginei que um dia
teria um date no Treme-Treme. Mundo quitinete que fala.
***
Uma semana antes do Carnaval, fui conhecer o ‘Jack Salon’, um
salão para mulheres e barbearia, incrivelmente aconchegante no
Largo do Arouche, é do meu amigo Rogério e do marido.
Precisava muito transformar meu cabelo, pois há meses não
fazia luzes ou o cortava. Em todos os inícios de novos ciclos da
minha vida, sinto necessidade em mudar o visual, pois é uma
das maneiras de marcar a nova fase. A cabeleireira Sarah me
transformou e voltei para casa explodindo de autoestima.
Papo vai, papo vem com o Rogério, eis que entramos no tema
Carnaval. Então me contou que todos os anos, ele e um grupo
de amigos vão fantasiados exatamente iguais a algum bloquinho.
E naquele ano, fariam uma homenagem à Pabllo Vittar.
Ele perguntou se eu topava ser a musa deles, indo também
fantasiada. Claro que topei, sem pensar duas vezes. Pegamos
minhas medidas para a costureira deles produzir minhas peças,
mesmo em cima da hora, daria tempo.
***
O Carnaval seria o primeiro que aproveitaria os bloquinhos de
rua estando solteira. Livre, leve e solta. Maravilha!
Poderia aproveitar como bem quisesse, se sentisse vontade de
passar o rodo e pegar geral, assim faria. No final de semana
anterior, então pré-carnaval, fui ao bloquinho da Banda Eva
com a Marcela, amiga que conheci em 2014 por intermédio da
Fê, então fui ao apartamento dela que foi o ponto de encontro
com outros amigos para um esquenta. Nos divertimos demais.
385
No sábado de Carnaval, fui cedo ao ‘Jack Salon’, onde os
amigos do Rogério se encontraram para se arrumarem com as
fantasias. Que sorte a minha ter sido musa por um dia de um
grupo com pessoas incríveis e alto astral! Foi inesquecível.
Ficamos até o final do bloquinho ‘Minhoqueens’ onde
homenageamos Plabllo Vittar, depois fomos a um barzinho de
um amigo deles. Eu estava mais do que satisfeita, querendo ir
para toca e descansar porque no dia seguinte, estaria em outro
bloquinho, mas eles não me deixaram ir embora e me chamaram
para acompanhá-los numa festa que é fechada para o público
gay e detalhe: apenas para homens. Logo encontrei uma desculpa
para não ir, mas garantiram que dariam um jeitinho para me
colocarem para dentro da festa mesmo sendo mulher. E não é
que conseguiram?
Só dava eu de mulher. A festa aconteceu num casarão com
vários ambientes: pista de dança, dark room, uma sala com telão
passando pornô gay, sala onde rolava sexo e swing. Dei uma
volta para conhecer e fiquei dançando sozinha na pista porque
meus amigos sumiram no meio do rolê, mas não me importei, o
DJ estava mandando muito bem, fiquei dançando até me
chamarem para irmos embora.
No dia seguinte, fui ao bloquinho ‘Chá da Alice’ com o Fê e o
Léo. Conseguimos subir no trio elétrico e ficamos um tempão
curtindo lá de cima, a sensação é boa demais, adorei observar a
multidão nas ruas, queria ter tirado fotos para registrar, mas
estabanada que sou, ainda mais bêbada, fiquei com medo de
deixar o celular cair então o deixei em segurança no bolso.
A cantora Lu Andrade fez show e cantou ao meu lado, fiquei
emocionada. O grupo Rouge fez parte da minha adolescência.
No dia seguinte, fui com o Fê e outros amigos ao ‘Bloco das
Gloriosas’, que é da Gloria Groove. Fui fantasiada de diabinha,
fazendo dupla com o Gui, um amigo que conheci através do
Rogério. Assim que chegamos no bloquinho, no mesmo
instante, estava rolando uma briga horrível envolvendo um
386
grupo grande de pessoas, então acabamos ficando na rua lateral
que estava vazia e dava para acompanhar o bloco da mesma
maneira, acabamos ficando ali o tempo todo. Estava indo tudo
muito bem, nos divertindo, bebendo e dançando. Lembro que
no final da tarde, antes de começar a escurecer, começou a
chover com força. Bêbada como estava, achei divertido ficar
dançando na chuva e essa foi minha última lembrança.
Vem o editor da vida e fez um corte brusco.
Acordei na minha casa, deitada no sofá do quartinho da paz,
vestida com uma camisola, com a Filó deitada na minha barriga,
um gosto horrível na boca que estava seca sem saliva e meu
celular ao lado. Não entendi nada. Não lembrava do que
aconteceu, por qual motivo acordei em casa, como cheguei ali.
Há anos, desde a prostituição, eu não tinha um apagão assim.
Entrei em desespero. Olhei o horário, era quase 1h da manhã.
Lembrei que estava dançando na chuva, ainda era dia...
Como posso ter acordado em casa?
Peguei o celular e mandei mensagem para o Fê em busca de
respostas:
- Sabe o que aconteceu comigo???
- Você não lembra de nada?
- Apenas que estava dançando na chuva.
- Você deu PT. Caiu desmaiada no chão. Te carregamos, você
abriu os olhos, colocamos sentada numa cadeira, não falava
nada com nada, vomitou horrores, chorava, vomitou até no
Uber. Te levamos em casa e quando se deitou, fomos embora.
Não sei por quantos minutos fiquei processando todas estas
informações antes de dar continuidade na conversa. Me esforcei
o que pude para buscar lembranças em todos os cantos do
cérebro, então lembrei que quando estava dançando, um casal
foi falar comigo e dei alguns goles no copo deles.
Como pude fazer isso? Sempre tomei o maior cuidado para não
387
beber em copos de outras pessoas, principalmente de estranhos.
Acabei perdendo minha dignidade, me senti péssima porque
por mais que eu goste de beber, odeio perder a consciência e o
controle do meu corpo. Pior que ressaca de bebida, é a ressaca
moral e fazia tempo que não sabia o que era isso.
Por sorte o Fê sabia meu endereço e me ajudou a chegar em
casa. Ele me contou que fomos até o apartamento dele para
buscar a minha chave, eu fui andando e não me lembro de nada.
Como pode uma pessoa andar, passar mal da maneira que
aconteceu comigo e não se lembrar de nada???
Eu dormi tão profundamente que acordei totalmente sem sono
e sem sentir nenhum efeito de álcool como se não tivesse
bebido nada. No entanto, a fome estava enorme, acho que
comeria uma pizza inteira.
No dia seguinte, mesmo me sentindo derrotada, fui curtir mais
um bloquinho, pois além de ser o último dia de Carnaval, ainda
tinha prometido ao Rogério que encerraríamos a vidaloka
carnavalesca, juntos no bloco ‘Meu Santo é Pop’. Ele conseguiu
pulseiras de acesso para subirmos no trio elétrico, descemos
algumas vezes para curtirmos na rua, acompanhando o bloco
no chão, na área delimitada pela corrente de seguranças.
Numa dessas vezes, o trio elétrico estava parado e como eu já
não estava mais aguentando meus pés sobre saltos, tive a
brilhante ideia de aproveitar a pequena pausa para arrancar as
sandálias, então sentei toda plena no chão da rua. Levei um
susto quando vi o bombeiro correndo em minha direção e se
agachando ao meu lado. Me perguntou o que eu estava sentindo,
avisei que era apenas dor nos pés por causa do salto.
Já que estava ali, me ajudou a tirar as sandálias. Quando cheguei
em casa, vi que uma pessoa tirou foto desta cena e a publicou
no story do Instagram com a frase: “E a @BsurfistinhaOficial
que bebeu até passar mal??”. Dei graças a Deus por ele não ter
me visto no bloco do dia anterior quando realmente passei mal.
Fiquei imaginando o que ele escreveria se me visse desmaiada...
388
No total, fui em cinco bloquinhos de rua. E assim foi o primeiro
e último carnaval estando solteira, aproveitando como tive
vontade, me senti uma adolescente solta pelo mundo.
Ainda bem que tive tempo de viver esta experiência, de agora
em diante, irei apenas em bloquinhos infantis, mas sei que
aproveitarei intensamente porque não vivi nenhuma experiência
carnavalesca durante minha infância, então minha criança interna
agradecerá por fazer parte destes momentos com minhas filhas.
Os bloquinhos de rua em São Paulo são maravilhosos, vale
muito a pena conhecer e aproveitar o máximo que puder,
existem muitas boas opções. A maioria que conheci é focado
para o público LGBTQIAP+, que eu considero os melhores.
Em 2016, fui com o Rafael ao bloquinho ‘Tô de Bowie’ que é
em homenagem ao cantor David Bowie, foi sensacional.
Queria muito ter ido ao ‘Bloco Bicho Maluco Beleza’ que é com
o Alceu Valença. E queria muito ter conhecido o Carnaval de
Salvador e o de Olinda, mas não sei como é a questão de
segurança, principalmente para ir com crianças. Eu não corro
risco de ir com elas em bloquinhos de rua em São Paulo que
não seja para o público infantil, pois em todos os blocos que
fui, sem exceção, presenciei muitas brigas, arrastões e muitas
pessoas reclamando que tiveram o celular furtado ou roubado.
***
Quando era criança, vivia doente, além da bronquite asmática
que me causava crises, tive muitas intoxicações alimentares e
pegava viroses com facilidade. No entanto, em algum momento,
meu organismo virou a chave e minha saúde tornou-se de ferro.
Acredito que foi com o xarope da benzedeira, em Araçoiaba.
É muito difícil eu ficar doente, mas quando isso acontece, a
virose me derruba de tal maneira que sempre acho que vou
morrer. Ainda bem que não são todos os anos que fico doente.
Existem dois grupos de pessoas: as que têm estoque de
remédios em casa para qualquer coisa que se possa imaginar.
389
Outras pessoas que fazem parte deste grupo, são as que dão um
espirro e já marcam consulta no médico. O outro grupo são das
pessoas opostas: não gostam de tomar remédios e fogem de
médico como diabo foge da cruz.
Faço parte deste segundo grupo. E mais do que isso: abuso da
boa vontade do meu organismo. Odeio tomar remédios, não
sigo a orientação nem de psiquiatra, sempre que precisei tomar
antidepressivos, interrompi o tratamento com poucos dias.
O mesmo acontece com antibióticos, sempre tomei três ou no
máximo quatro dias seguidos, pois ao me sentir melhor e
curada, me dei alta. Sei o quanto isso está errado e faz mal.
Conto nos dedos de uma mão as vezes que fui ao Pronto
Socorro de hospital, foram em casos que senti que meu corpo
estava no limite. Para chegar no ponto de procurar um médico,
é porque realmente estou me sentindo muito mal, bem próxima
da morte. Conheço muito bem meu corpo e organismo.
Nas poucas vezes que procurei ajuda em hospital, só passei
raiva, pois os diagnósticos sempre foram exatamente o mesmo:
“Você está com uma virose!”. Certeza que meus olhos reviram
ao ouvir isso, pois nunca acreditei que quando busquei um
diagnóstico decente, fui obrigada a ouvir o que eu já sabia.
Na primeira segunda-feira após o Carnaval, eu estava me
sentindo normal e muito bem, obrigada. À noite, desci para
correr na esteira da academia do condomínio, voltei para casa,
tomei banho e aí que começou o problema, enquanto secava
meu cabelo comecei a sentir calafrios e minha pressão baixa,
mas achei que fosse fraqueza do corpo por ter corrido durante
uma hora e comido apenas uma barrinha de cereal quando
voltei para casa. Depois do jantar, comecei a assistir um filme e
não estava aguentando ficar acordada, sentia o corpo pesado e
sem energia. Acordei doente no dia seguinte. Fui ao banheiro,
consegui dar comida para a Padilha e as gatas. Somente isso.
Não aguentei ficar em pé por muito mais tempo, estava me
sentindo muito cansada como se tivesse corrido uma maratona,
390
então me deitei novamente com aquele pensamento positivo:
“Vou dormir mais uma horinha e acordarei bem!”. Quando o
alarme tocou, acordei me sentindo pior do que estava, desliguei
e coloquei novamente para mais uma hora de sono. E foi assim
que um dia acabou e não consegui colocar vida no corpo.
Acordei de hora em hora, abria os olhos, no máximo consegui
ir ao banheiro. No dia seguinte, foi a mesma coisa e assim
continuou. Ficava em pé com muita dificuldade e uma sensação
horrível estar com a mente agitada e o corpo não conseguir
acompanhar. Não sentia fome, apenas muita sede principalmente
quando comecei a ter febre alta no segundo dia. Pelo menos
não deixei na mão a Padilha e as gatas, conseguia com muito
esforço dar comida e água, mas não conseguia ficar acordada
para dar atenção. Elas não saíram de perto de mim, abria os
olhos e todas estavam na cama comigo, me fazendo companhia.
Nestes dias, sumi do mundo, não consegui pegar o celular que
descarregou a bateria e não vi. Foram cinco dias sentindo a
morte lentamente. No final de tarde do sábado, levantei com
um pouco de energia recuperada, não tanto, mas o suficiente
para tomar banho e fazer uma tapioca para comer. Foi quando
peguei o celular, coloquei para carregar a bateria e quando ligou,
vi as várias mensagens que recebi de amigos preocupados
comigo durante meu sumiço repentino. Uma das primeiras
mensagens que respondi foi da Renatinha, contei o motivo de
estar sumida, ela estava online e foi a primeira a me responder:
“Nossa, Quel, vamos ao hospital, te busco e vou com você!”.
Eu nem pensei duas vezes, sentia que não estava nada bem,
então fomos. Já estava acontecendo a pandemia, era bem no
início, mas o hospital já estava seguindo o protocolo de
segurança: uso de máscara e proibido acompanhantes.
Entrei e a Renatinha ficou me esperando do lado de fora.
O médico me deu o diagnóstico sem me examinar, apenas
perguntou os meus sintomas: “Sinusite e faringite”. Então tá.
Saí de lá sem entender como que essas duas coisas conseguiram
me derrubar, mas enfim, vida que segue, comprei o antibiótico
391
que o doutor receitou, fui para a casa da Renatinha para comer
um lanche e então segui para a minha toca. Tomei o remédio
direitinho nos primeiros dias, no quinto dia já estava me
sentindo ótima e me dei alta, faltavam mais cinco dias.
Tenho uma leve desconfiança que meu diagnóstico era para ser
Covid-19 porque dois amigos que estavam em bloquinhos
comigo, testaram positivo nesta mesma época.
***
Carnaval passou, recuperei a saúde, tudo lindo. Estava
prontíssima para enfim focar nos projetos profissionais.
Mal sabia que em questão de três ou quatro dias, aconteceria o
boom da pandemia e iniciaríamos a quarentena eterna.
Fui aquela que acreditou que duraria apenas quinze dias e então
tudo voltaria ao normal. O que seriam duas semaninhas em
casa, não é mesmo? Maratonar uma boa série talvez duas,
assistir filmes, aproveitar para organizar alguns focos de
bagunça pelo apartamento. Que maravilha! Os dias passariam
rapidamente desta maneira e logo mais estaria me aglomerando
novamente com meus amigos e trabalhando bastante.
Além disso, com o uso obrigatório de máscara, levaria a Padilha
para passear na rua e iria ao mercado ou à padaria sem ser
reconhecida. Gostei.
As duas semanas acabaram rapidinho como imaginei, mas foi
necessário adiar o fim da quarentena, respirei fundo, estava
tudo certo, afinal o número de mortes estava aumentando de
uma maneira assustadora e, se todos que pudessem ficar
quietinhos em casa, respeitassem ficando em isolamento, o
número de contágios diminuiria até combatermos a pandemia.
Raciocínio simples. Atrapalharia meus planos ficar em casa por
um mês? Demais! E tudo bem, depois eu recompensaria todo o
tempo perdido. O importante era diminuir a quantidade de
mortes e contágios. E fiquei nesta expectativa e esperança
enquanto os números foram apenas aumentando dia após dia.
392
Aumentou também minhas crises de ansiedade que se tornaram
diárias. Todos os trabalhos que estavam agendados durante o
ano e que me fizeram iniciar 2020 bem empolgada, começaram
a ser cancelados e remarcados em novas datas. O tempo passou.
Metade do ano estava chegando e sem perspectivas para acabar
o pesadelo, considerando que a situação estava apenas piorando.
Enquanto aumentava o desgoverno, negacionismo, falta de
empatia e aglomerações, diminuía minha esperança de que algo
de bom aconteceria durante o ano.
Desde o início, respeitei o isolamento, sempre saí de casa apenas
para o que era realmente necessário: ia ao mercado que ficava
no mesmo quarteirão e à padaria na esquina.
Na parte da manhã e à noite, passeava com a Padilha nas ruas.
Levando-se em conta que qualquer virose me derruba, meu
medo de ser contaminada com Covid-19 sempre foi grande
desde o início e continuará sendo enquanto existir e estiver
matando que seja uma pessoa por dia. Quem não enxergou a
gravidade desta pandemia é desumano demais, uma falta de
empatia sem tamanho. Acompanhava as notícias e mesmo me
causando ansiedade, não conseguia ficar em off do mundo e
fingir que nada estava acontecendo ao redor do meu apartamento.
Deixei de fazer tudo o que me fazia bem, abandonei os cuidados
que tinha com meu emocional: suspendi a terapia no primeiro
mês de pandemia porque não consegui manter minhas sessões
por vídeo conferência, descobri que tenho um certo bloqueio.
Parei de praticar corrida que tanto amo, mesmo a academia do
condomínio estando disponível com limite de pessoas.
E desconsiderei a opção de correr usando máscara na rua.
Além disso, estava longe dos meus amigos, das pessoas que
amo, que me fazem bem. O terreiro também estava com as
atividades suspensas desde o início do isolamento. Enfim, sem
cuidado algum, manter a saúde mental foi um grande desafio.
Todos meus chakras foram desalinhados com sucesso.

393
Cheguei num ponto que perdi o foco nos meus projetos porque
não sabia mais quando conseguiria colocá-los em prática. Com
um futuro estava incerto demais, o presente me angustiava.
Não conseguia me concentrar em nada, fui deixando de fazer
tudo que me exigia o mínimo de atenção. Para passar o tempo,
me recorri às Lives como companhia e distração. Assisti todas
que quis: Marília Mendonça, Maiara e Maraísa, Fernando e
Sorocaba, Jorge e Mateus, Luan Santana, Matheus e Kauan,
Skank, Alok, Sandy & Jr., Michel Teló, Ivete Sangalo etc.
A maioria era de sofrência, assisti todas em pé na frente da TV,
dançando, cantando e bebendo vodka com energético. Quando
a Live acabava, estava bêbada sozinha em casa. Comecei o ano
cheia de planos e perdi completamente o rumo em pouco tempo.
Não consegui manter o equilíbrio emocional passando raiva
todos os dias acompanhando as notícias e não vendo mudanças
positivas. Faço parte do grupo de pessoas que não conseguiu
ser good vibes dizendo ‘namastê’ e sentindo muita ‘gratiluz’.
Em junho, comecei a acompanhar a Live diária do Tadashi, às
20hs, para praticar meditação por meia hora ao vivo com o
direcionamento dele. Conseguia relaxar um pouco a mente.
No meio disso tudo, eu e Rafael continuamos mantendo contato
por telefone, não todos os dias, mas as brigas continuavam e
nos tornamos inimigos, as agressões verbais eram intensas.
Comecei a sentir muita raiva dele, mas não conseguia cortar o
mal pela raiz. Ele sabia direitinho como me tirar do sério.
***
Em uma noite qualquer em junho, estava entediada em casa e
pensei: “Tô solteira, não tô fazendo nada, vou baixar o Tinder!”.
Sempre fui curiosíssima para saber como é o famoso aplicativo
do foguinho, mas nunca tive coragem de conhecer quando
estava comprometida mesmo que por mera curiosidade, sem
segundas intenções. Enfim, baixei. Sincronizei com meu perfil
do Facebook e não precisei ter o trabalho de escolher fotos,
mantive as que foram selecionadas automaticamente.
394
Não escrevi texto me apresentando na ‘bio’ do perfil, a intenção
não era conhecer alguém, por isso não tive a preocupação de ter
uma bela definição a meu respeito. Comecei a ver as opções de
moços que apareceram e me senti olhando um cardápio com
humanos. Iniciei então a distribuição de likes, mas não foram
tantos por motivos de: poucos me agradaram. Ou eu que sou
exigente demais. Em menos de meia hora, começou a surgir os
matches, fiquei impressionada como essa troca de likes com
estranhos, massageia o ego. Fiquei por mais de uma hora
esparramada no sofá e sorrindo com cada match concluído.
Comecei a receber mensagens, mas não fluiu uma boa conversa
com ninguém. Em pouco tempo, descobri que não tenho a
menor paciência em interagir virtualmente com homens que
nunca vi na vida. Perguntas como: “O que você faz da vida?”,
“O que você curte?” me deixam com preguiça de responder.
Fora os “E aí?” que recebi.
Nessa primeira noite, dois me reconheceram nas fotos:
“Você parece muito com a Bruna Surfistinha” e o outro me
perguntou: “Tu é a Surfistinha?”. Imaginava que isso aconteceria
e não estava preocupada caso vazasse a informação da minha
presença no aplicativo do fogo. Um moço mandou mensagem
no direct do Instagram: “Bruna, tem alguém se passando por
você no Tinder, fizeram um perfil fake!” – me alertou.
- Sou eu mesma! rsrs – respondi
- Meu Deus! O que está fazendo lá? Você não precisa disso,
pode ter quem quiser!!!
Várias pessoas me disseram isso em momentos diferentes.
Para uma mulher que passou a adolescência sem autoestima e
se sentindo a mais feia do mundo, não é nada mal ouvir isso.
Modéstia a parte, conquistei todos que quis, nunca levei fora.
Sempre tive atitude, demonstrando interesse sutilmente na cara
dura, gosto de jogos de sedução.

395
Minha experiência no Tinder rendeu boas risadas ao ler os
textos dos perfis, a maioria não escreve sobre si, mas como é a
mulher que desejam conhecer. Há muitos homens que fazem
esforço para gostar de mulher. É impressionante as listas de
exigências que vi de vários abençoados. O pior é quando exige
muito e a gente nota que não vai oferecer nada em troca.
Queria muito ter a autoestima dos machos héteros top.
Mantive meu perfil ativo por um tempo, não me conectava
todos os dias, apenas em madrugadas que eu estava entediada.
No fim, muitos puxaram assunto comigo, até tentei conversar
com um ou outro, mas os deixei no vácuo em algum momento.
Acabei sendo reconhecida por vários, mas nenhum desses
acreditou que era realmente eu, acharam que fosse perfil fake e
não consegui convencê-los a mudarem de ideia.
Estive neste aplicativo de relacionamentos numa fase que não
estava com vontade de conhecer alguém, então ficarei devendo
histórias para contar sobre dates. Sigo uma página no Facebook
que as pessoas relatam os piores encontros que já tiveram, dou
muita risada com algumas, sinto muito por outras.
É preciso ter muita sorte ter uma boa história para contar.
Não conseguiria marcar encontro com alguém que conheci
num aplicativo assim, mas por questão de segurança mesmo. As
pessoas na internet podem ser quem quiserem ser e desconfiada
como sou, dificilmente conheceria alguém pessoalmente.
Conheci meu primeiro namorado na sala de bate-papo do
UOL, era um outro tempo, acredito que não existia tanta maldade.
***
Muitas máscaras caíram durante a pandemia, acredito que rolou
um filtro nas amizades de todo mundo. Percebo que precisamos
ficar isolados para nos conhecermos melhor. Acredito que
ninguém sairá dessa loucura toda sendo a mesma pessoa
quando tivemos que nos readaptar, nos reciclar, agir mesmo
estando parados.
396
No entanto, não consigo acreditar naquele papo bonito de que
todos serão melhores. Não consigo ser otimista neste nível, pois
observo que as pessoas que já eram chatas antes da pandemia,
conseguiram se tornar insuportáveis.
O que sempre fomos, se potencializou.
Transbordamos o que sempre carregamos dentro de nós.
Não sei você, mas eu tenho preguiça de militantes extremos que
não descansam. Durante esta fase, eles se procriaram de tal
maneira que estão em todos os lugares, socorro. Tenho até
medo de piscar e surgir um militante dizendo que não posso
fazer isso porque preciso pensar nas pessoas que não têm cílios.
Acho importante e saudável militarmos, precisamos lutar por
aquilo que acreditamos. Sou militante dos movimentos e causas
que levanto a bandeira, que defendo com força, não passo pano
para ninguém, mas descanso um pouquinho.
***
Em maio, o Fê fechou contrato de um ano para que eu
escrevesse um artigo mensal para um site onde garotas de
programa divulgam fotos e informações a clientes interessados.
Meu trabalho era escrever textos direcionados a elas e outros
aos clientes que acessam o site, cada mês era um tema específico
e este foi o único trabalho que me manteve com a mente ocupada
nos primeiros meses da pandemia.
Em agosto, resolvi retomar aos poucos e pude contar com o
apoio do Fê que concordou que já era possível retornarmos aos
compromissos com cautela. O primeiro passo foi marcar um
ensaio fotográfico para renovar minhas fotos de divulgação.
O segundo foi marcar uma Live no Instagram para interagir
com meus seguidores, definimos a data para o final do mês, no
mesmo dia que marcamos o ensaio, assim sairia do isolamento
apenas uma vez, matando dois coelhos com uma cajadada só.

397
Uma empresa o procurou querendo fechar parceria comigo
para divulgar um teste de HIV para ser realizado em casa, então
resolvemos aproveitar a Live para mostrar o produto e fazer
meu teste ao vivo. No kit do produto, contém uma pequena
agulha para furar a ponta do dedo e uma fitinha de papel pra
colocar a gota de sangue, daí é só aguardar 15 minutos para o
resultado aparecer em tracinhos. Simples assim.
O Fê participou comigo dessa Live para me ajudar com as
perguntas que os seguidores enviavam. O resultado dessa
aparição foi superpositivo, fiquei empolgada com os próximos
passos. Na mesma semana, realizei um workshop presencial com
duas mulheres para não ter aglomeração, a Lidi me acompanhou.
Estava tudo fluindo dentro das expectativas e a cada dia, me
sentia melhor, com o emocional equilibrado novamente.
Em setembro, resolvemos voltar a marcar entrevistas presenciais
seguindo o protocolo de segurança. E foi assim que minha vida
pessoal se transformou de uma maneira surpreendente...

398
CAPÍTULO 12 – Ressignificando o amor

Faltava um pouco mais de uma semana para setembro acabar


quando o Fê me avisou que o produtor de Fabiana Escobar,
mais conhecida como Bibi Perigosa, entrou em contato querendo
marcar uma entrevista comigo para o canal dela no Youtube,
aproveitando que estariam de passagem por São Paulo.
Eu topei e a data foi marcada.
Era final da tarde de 28 de setembro, Lidi foi para casa para
fazermos um esquenta, afinal a entrevista com Bibi seria bem
informal e como meu dia não tinha sido um dos melhores,
precisava relaxar antes de irmos. Quando estava terminando de
me arrumar, o produtor de Bibi mandou mensagem avisando
que estavam na estrada, mas tiveram um problema no carro e
perguntou se poderiam remarcar a gravação para a manhã
seguinte. Lidi respondeu que não. Após alguns minutos, ele
avisou que conseguiram arrumar o carro e que manteriam a
entrevista para aquela noite. Perto do horário combinado,
avisou que o carro que iria nos buscar já estava a caminho.
Pois bem. Entramos no carro, cumprimentei o motorista,
estava descalça segurando as sandálias porque colocaria no
meio do caminho e senti que o piso estava bem molhado,
reclamei com o motorista, afinal não estava enxergando que
tipo de líquido era e poderia ser até vômito de passageiro.
Ele explicou que antes tinha um saco de gelo ali, por isso o
molhado em meus pés. E ok, tudo certo, seguimos viagem.
Eu e Lidi não paramos de conversar e o motorista interagiu um
pouquinho com a gente, o achei simpático e fofo.
Chegamos ao destino, carro parou e eu estava preparada para
dizer: “Tchau, moço, obrigada, bom trabalho e boa noite!”
quando... ‘Ei, aonde você está indo motorista?’ – pensei quando
o vi descendo do carro. Nos acompanhou até dentro da casa,
falou na maior intimidade com todos e nunca mais foi embora.
399
Comecei a ser maquiada, observei o motorista e o achei bem
interessante. Senti algo diferente por ele, mas ao mesmo tempo,
o achei muito novinho, concluí que tinha vinte e poucos anos,
deixei para lá. A gravação estava para começar e ele se posicionou
segurando o aparelho que controlava o áudio dos microfones.
Quando o produtor avisou que o carro que iria nos buscar estava
a caminho, obviamente pensei que fosse um motorista de Uber.
Não entendi por que ele não disse algo do tipo: “Um amigo que
trabalha aqui na equipe está indo buscar vocês”.
Mas enfim, quem nos buscou foi Xico. O moço que se tornaria
ainda naquela noite no homem da minha vida.
A gravação acabou e como todos estavam bebendo, então
perguntei se poderia ficar um pouco antes de ir embora.
Várias vezes durante a entrevista com Bibi, olhei para o Xico,
pois não conseguia disfarçar a atração que estava sentindo, não
estava mais me importando ser bem mais novo do que eu.
O que me encantou nele foi o conjunto de qualidades que notei:
educado, simpático, fofo, prestativo, sorriso lindo, um olhar
bem misterioso, estiloso, cheio de tatuagens, todo gostosinho.
Fizemos uma festinha improvisada com som de pagode e bons
drinks. Fiquei conversando com o pessoal e de olho nele.
Comentei com três pessoas sobre estar interessada em Xico e
todas me deram força para me aproximar dele, mas como
estava com vergonha, preferi ficar por perto para ser notada e
ele ter iniciativa. Esperei, esperei e nada. Comentei que precisava
comprar cigarro, Bibi pediu para o Xico ir à loja de conveniência,
resolvi ir junto com a intenção de no meio do caminho, jogar
algumas indiretas, mas para a minha surpresa, uma moça quis ir
também, destruindo meu plano de sedução, fui mesmo assim.
Ele pediu para que me sentasse na frente, obviamente obedeci.
Interagimos com comentários aleatórios durante todo o trajeto.
Voltamos para a festinha, todos já estavam sabendo do meu
interesse, menos Xico, o desatento.
400
Então Bibi deu um jeitinho, colocou um pagode romântico
animado, pediu para que ele me puxasse para dançarmos e
**toquem os tambores** finalmente ele percebeu meu interesse.
Xico se aproximou, começamos a dançar, nos beijamos.
Beijo quente, gostoso, fiquei louca. Um gole no drink aqui, um
beijo ali e não demorou muito para pegar fogo. Não precisamos
dizer nada, nos entendemos pelo olhar, demos as mãos e saímos
como quem não quer nada, mas quer tudo. Subimos para outro
andar, vimos um sofá grande e vazio nos aguardando, a luz da
sala estava apagada e neste momento toca a música ‘Pra fuder’
de Elza Soares: ‘Vejo o próprio fogo, não há força pra deter’.
Brincadeira, mas queria ter tido esta trilha musical.
Estava silêncio, era apenas possível ouvir nossas respirações
fortes. Como dois adolescentes alucinados, nos entregamos no
sofá, era mão aqui, aquilo na mão e uma química inexplicável
entre nossos corpos. Quando voltamos para a outra sala para
nos unirmos novamente com a turma, não havia mais ninguém,
todos tinham ido dormir. Eu queria ir embora, ele não deixou.
Fomos ao quarto, nos deitamos num colchão ao lado da cama
de casal, onde Bibi e Valéria, a assessora, estavam dormindo.
Nos curtimos mais um tanto e, como ele não queria que eu
fosse embora, criei um plano mirabolante na cabeça: o esperaria
dormir, me levantaria sem fazer barulho e pediria o Uber.
Acordei sozinha no colchão e não tinha mais ninguém no
quarto, não acreditei que dormi sem perceber. Quem nunca?
Ele me contou que acordou comigo abraçada e com a cabeça
no ombro dele. Totalmente entregue ao canceriano.
Quando cheguei na cozinha, todos estavam reunidos, tomei
uma xícara de café morrendo de ressaca. Xico estava sentado na
mesa e como não me deu atenção, também não fui até ele.
Indiferença gera indiferença.
Ele, Bibi e Valéria, me deixaram em casa. Eu estava dançando
conforme a música e o ritmo estava lento, então não demonstrei
que tinha adorado ter ficado com ele e dos nossos momentos.
401
Me despedi dele com um beijo no rosto. Assim que cheguei em
casa, me deparei com várias mensagens da Lidi que foi embora
um pouco depois que eu e Xico começamos a ficar, ela sabia
que eu demoraria para ir, então pediu para que ele cuidasse de
mim e me deixasse em casa. Mas eu sumi, fiquei em off do
celular e ela ficou bastante preocupada. Respondi avisando que
tinha chegado em casa, contei que foi maravilhoso e pedi que
desse um jeitinho de descobrir a arroba do Xico no Instagram.
Com a arroba em mãos, fui stalkear para saber mais sobre ele.
Babei em todas as fotos e foi uma chuva de likes.
Era para ter sido apenas uma noite picante no sofá e lá estava
eu mandando uma mensagem no direct. Ele me respondeu
rapidamente, passou o número dele, o chamei no WhatsApp,
começamos a conversar e nosso papo nunca mais acabou.
Eles voltaram ao Rio de Janeiro, nós dois conversávamos todos
os dias, o tempo todo, virávamos as madrugadas juntos online.
Começamos a nos conhecer, fomos descobrindo várias coisas
em comum, em quase tudo, impressionante, de gostos musicais
a como enxergamos a vida. Papo leve, gostoso, que fluía, nem
via a hora passar. Começávamos a conversar no final da noite e
quando menos percebia, estava clareando um novo dia.
Eu estava solteira há um ano e meio, fugindo de relacionamento,
com o coração bloqueado para um novo amor e me apaixonei
em menos de uma semana. Dentro de mim, iniciou uma batalha
entre a razão e o coração. Tudo o que eu não queria naquele
momento, era me apaixonar. Pensei em me afastar um pouco,
seria uma maneira de deixar esfriar tudo o que estava sentindo.
Tudo estava batendo tão perfeitamente que era inacreditável.
Xico é artista, sei que sou suspeita, mas os desenhos realistas
que ele faz são os mais perfeitos que já vi, é extremamente
detalhista. No perfil dele no Instagram, há fotos de algumas
artes que fez, não acreditei quando vi que uma delas é do
desenho ‘Up Altas aventuras’ que marcou minha vida.
402
Vi também uma foto antiga dele segurando uma boneca
surfistinha que é um abridor de garrafas. Talvez fosse um sinal.
Combinamos um replay. Como a irmã dele mora em São Paulo,
ele queria visitá-la porque o marido dela estava internado na
UTI, então planejou a viagem para ficar alguns dias com ela e
um final de semana comigo. Perfeito. Ele teve que antecipar a
viagem por alguns dias, pois infelizmente o cunhado faleceu.
Era 16 de outubro, sexta-feira à noite, quando a campainha
tocou, meu coração disparou, Padilha se agitou e abri a porta.
Xico entrou e me deu um abraço tão gostoso que toda minha
razão foi embora imediatamente. Como passaríamos o final de
semana juntos, minha esperança para me desapaixonar era
torcer para que ele fosse chato e que o sexo fosse péssimo.
Iniciamos nossa vidaloka ao som das bandas e cantores que
gostamos em comum: Tim Maia, Renato Russo, Cazuza,
Charlie Brown Jr, Elis Regina, Alceu Valença, Nando Reis,
Marília Mendonça, Capital Inicial, Projota, Jota Quest etc.
Brindamos o início do nosso replay com vodka e energético.
Nossa madrugada foi deliciosa, queria que o tempo parasse para
que o final de semana não acabasse nunca mais.
Xico passou pelo primeiro teste: minha menstruação resolveu
dar o ar da graça durante o coito. Quando vi que o sujei com
sangue, não quis acreditar, mas a reação dele foi maravilhosa,
simplesmente agiu como a coisa mais normal do mundo.
Ganhou mais alguns pontos comigo.
A Padilha grudou nele de uma maneira como se o conhecesse
há décadas, o adotou como pai em poucas horas de convívio.
No dia seguinte, acordamos tarde e a levamos para passear,
caminhamos por mais de uma hora. São nestes momentos
simples que percebemos o quanto estamos apaixonadas.
No domingo, rolou jogo do Corinthians x Flamengo, sou
corinthiana roxa e ele é flamenguista em um tom de roxo ainda
mais forte. Me deitei com a cabeça no colo dele para assistirmos
403
e torcermos juntos, mas estava me sentindo tão em paz que
acabei dormindo. Ele iria embora no início da manhã de
segunda-feira, mas quando chegou domingo à noite, aquele
momento que o ‘Fantástico’ está acabando, percebemos que
não estávamos preparados para nos despedir, então ele
prolongou o máximo que pôde e ficou comigo até quarta-feira,
dia 21 de outubro, a uma semana para o meu aniversário.
Na quinta-feira, a mãe dele me mandou mensagem, estava
ansiosa para me conhecer porque Xico já tinha comentado
sobre mim, então me convidou para ir jantar no dia seguinte
com ela e a filha. Ele estaria viajando a trabalho com a Bibi para
gravações de um programa no interior de São Paulo, não
poderia estar comigo neste primeiro encontro com elas, mas
pediu para que eu fosse mesmo assim, se quisesse.
Na noite seguinte, fui ao apartamento da irmã dele para
conhecê-las, me receberam muito bem, parecia que já nos
conhecíamos, me senti super à vontade. Talvez eu seja a única
pessoa que conhece a sogra e a cunhada sem o futuro namorado.
As duas são mulheres incríveis, tive muita sorte, me trataram
como se já namorasse com Xico e fizesse parte da família.
Nos demos tão bem que no dia seguinte, fomos passear no
shopping Morumbi e depois fui com elas ao apartamento,
brinquei bastante com meu agora sobrinho que tem seis anos,
assistimos o filme-desenho Angry Birds e cheguei em casa às
21hs, apenas não dormi lá por causa das minhas filhas pets.
Meu aniversário seria na quarta-feira, Xico me convidou para
passar a semana com ele no haras onde a equipe de Bibi estava
hospedada, em São José do Rio Preto, pois ficariam lá até o
domingo seguinte. Aceitei o convite sem pensar duas vezes e
comecei a planejar minha ida, eu conseguiria ir apenas na
quarta-feira e, como a intenção era comemorarmos juntos o
meu aniversário, então conseguiríamos realizar isso. Comprei as
passagens para chegar na quarta e ir embora na sexta.
404
Xico comentou que prepararia algo para comemorarmos meu
aniversário, mas eu quis surpreendê-lo. Combinei com todos da
equipe que faria uma surpresa para ele, o avisaria em cima da
hora que não poderia mais ir, mas apareceria no haras do nada.
Plano combinado nos mínimos detalhes com Bibi e Valéria,
minhas principais cúmplices. Então quando passou da meia-
noite, avisei que infelizmente não conseguiria mais ir. Consegui
ser convincente e ele acreditou, ficou bem chateado. Eu estava
conversando com ele e a Valéria ao mesmo tempo, então ela
me contou qual foi a reação dele após a fake news: ficou abalado,
saiu da mesa onde estava com o pessoal e foi para o quarto.
Fiquei com o coração apertado por saber que ele ficou triste,
mas decidi insistir na surpresa. Continuamos conversando, mas
ele não me contou que ficou tão chateado a ponto de querer se
isolar no quarto, pelo contrário, estava me dando a maior força
para que eu resolvesse o problema que havia surgido e buscou
alguma solução para que eu conseguisse ir então na quinta-feira.
Minha viagem era um pouco antes das 8hs, virei a madrugada
acordada, morrendo de ansiedade, imaginando minha chegada
de surpresa e como seriam nossos dias juntos.
Fui para a rodoviária antes das 7hs e pela primeira vez na vida,
fiz a loucura de encarar oito horas em um ônibus para me
encontrar com alguém. Foi uma prova de amor, afinal jamais
viajaria dessa maneira por qualquer um. Não consegui dormir a
viagem inteira, conversei com minha sogra e contei sobre o
plano, ela adorou e participou dele. Falei com a Valéria para ter
certeza de que estava tudo certo e me garantiu que estavam
fazendo a parte delas, Xico não estava desconfiando de nada.
Bibi teria uma gravação, mas deram um jeito para convencê-lo a
ficar no haras com Rai, que também era meu cúmplice também.
Estava tudo certo, chegou o momento de sumir do Whatsapp
para que ele não desconfiasse de nada, afinal precisava resolver
o problema que surgiu e me ausentar. Cheguei na rodoviária,
avisei Rai que chegaria no haras no máximo em trinta minutos.
Ele estava desesperado porque não tinha conseguido fazer a
405
parte dele do plano que era saírem do haras com o pretexto de
terem que ir ao mercado para comprar coisas para o almoço.
Xico encontrou uma solução para não precisarem ir e Rai não
conseguiu improvisar uma boa desculpa e virar o jogo.
Cheguei no haras e vi os dois a alguns metros de distância,
sentados e almoçando na mesa que ficava na área externa.
Xico estava sentado virado de lado para onde eu estava e torci
para que não notasse minha presença para que o plano desse
certo. Mandei mensagem para dizendo que estava precisando de
ajuda, o deixando preocupado de propósito, me perguntou se
eu queria que ele fosse para São Paulo. Avisei que não seria
necessário e fiquei o enrolando para que ficasse atento no celular.
Dei volta no espaço onde estavam para sair do campo de visão,
precisei me controlar para não rir de nervoso, se isso acontecesse,
certamente me escutaria. Cortei nossa conversa de repente,
avisei que ficaria ocupada novamente. Quando estava bem
perto deles, me posicionei e gritei: “Ei, Xicoooo!”.
Ele jogou o garfo no prato, levantou-se e foi em minha direção
andando rápido quase correndo. Meu plano foi realizado com
sucesso, o surpreendi demais. Nos abraçamos e iniciamos a
comemoração do meu aniversário, o dia estava lindo com sol.
À noite, eles prepararam uma festinha super gostosa para mim,
com direito a bolo, ‘parabéns’, rodinha com violão e cantoria.
Xico me pediu em namoro à moda antiga, me fazendo surpresa.
Não havia um chalé apenas para nós dois para que fosse nosso
ninho de amor, dividimos com mais quatro pessoas, dormimos
num colchão de solteiro na salinha que ficava antes do quarto.
Fomos selva, como dizemos. Não tivemos privacidade, mas
demos nosso jeitinho para termos momentos íntimos.
Eu não sei o que acontece, mas o tempo voa quando estamos
juntos. Piscamos e já era sexta, voltaria para São Paulo no final
da tarde. Ele não precisava ter me pedido para mudar de ideia e
ficar, pois eu não queria ir embora. Mudei minha passagem para
domingo para termos mais tempo juntos.
406
Nossos dias foram maravilhosos, esqueci da vida, fiquei em off
do mundo. Aproveitamos a piscina, andamos bastante a cavalo,
passeamos de moto pela cidade, bebemos, admiramos a lua
cheia, nos curtirmos demais, foi uma lua-de-mel.
Quando chegou domingo, desisti mais uma vez de ir embora.
Como na segunda-feira eles voltariam ao Rio de Janeiro de
carro, então Xico sugeriu que eu fosse com eles, me deixariam
em São Paulo. Fomos visitar a irmã dele, fizemos lanche da
tarde, fui embora para casa e eles seguiram a viagem. Passamos
aquela semana longe porque ele é ator e estava no elenco do
filme ‘O vale dos espíritos’ escrito e dirigido por Bibi, então
precisava cumprir com a agenda de gravações. Foram poucos
dias longe porque no domingo voltou a São Paulo e nunca mais
foi embora. Ainda bem.
Passamos um final de semana no Rio de Janeiro, acompanhei
as últimas gravações do filme, morri de orgulho ao vê-lo
atuando, totalmente entregue ao personagem que interpretou.
Conheci a Rocinha, pois fomos num churrasco na laje da Bibi.
Depois disso, ficamos apenas dois dias longe, fui com o Fê a
Brasília para o evento do lançamento de uma revista de estética
e a São José do Rio Preto para gravar alguns programas na TV
Bandeirantes. Xico ficou em casa com a Padilha e as gatas.
Numa dessas vezes, combinou com o Fê um plano para me
surpreender no aeroporto, me esperou na área de desembarque
com um buquê de rosas, quem via a cena jurava que estávamos
há anos sem nos ver, mas era apenas um dia. Amei a surpresa,
mas fiquei sem graça, pois não sei lidar com tanto romantismo.
Sei que pequei na minha reação e o deixei chateado por ter o
chamado de exagerado. Percebi que precisaria aprender a
receber tantas demonstrações de amor. Eu não sabia o que era
isso, foi a primeira vez que alguém demonstrou sentir tanta
saudade de mim. Ainda não havia conversado com ele sobre o
relacionamento anterior, das dores e traumas que me causou.
407
Mesmo sem saber de nada, desde quando nos conhecemos,
sempre foi muito amoroso e carinhoso comigo, nos primeiros
dias já estava declarando amor e dizendo que sou a mulher da
vida dele, que queria construir uma família comigo e sobre
tantos outros planos. Sempre senti muita verdade nele, o
quanto realmente queria estar ao meu lado e nunca duvidei do
amor dele por mim. Tudo foi recíproco. Foi paixão à primeira
vista e amor no primeiro e único replay. Na primeira semana,
nos considerávamos como namorados, apenas não tínhamos
oficializado ou comentado sobre o assunto, foi muito natural.
Simplesmente aconteceu e nunca conseguimos controlar nossos
sentimentos. Nossas intensidades se juntaram. E estamos aqui.
Xico não sabia que estava curando todas as feridas que o
relacionamento anterior me causou. Eu acreditava que nunca
mais conseguiria amar alguém, mas ele despertou em mim um
amor que eu nunca tinha sentido antes, é um amor maior de
todos que já vivi, um amor diferente. Talvez possam nos julgar
como loucos porque tudo aconteceu muito rápido entre nós.
Nos conhecemos em setembro, oficializamos o namoro em
outubro, ficamos noivos em novembro, engravidei em dezembro.
Ficamos noivos no dia 22 de novembro e o pedido foi tão lindo
quanto a oficialização do namoro. Nós já tínhamos conversado
sobre nos casarmos num futuro breve, mas não imaginei que
nos tornaríamos noivos em menos de um mês de namoro.
Ele escondeu as alianças que eu não sabia que tinha comprado,
então espalhou pelo apartamento vários bilhetes com pistas até
que as encontrasse. Foi me acompanhando e quando cheguei
nelas, me perguntou: “Você aceita passar sua vida inteira ao
meu lado para construirmos nossa família e vivermos nossos
sonhos juntos?”
Eu não aguento o Xico, no melhor sentido que isso possa
significar. Acreditava que nunca mais viveria uma história de
amor por causa do medo de me machucar novamente e o que
estou vivendo com ele, é exatamente tudo o que sempre quis.
408
Amor não é questão de tempo. Por quase dois meses, já que
estávamos na reta final do ano, vivemos intensamente da nossa
maneira, o apartamento tornou-se nosso ninho do amor.
Por conta da pandemia, apenas saíamos de casa para o que era
realmente necessário. Sabíamos que precisávamos dar um rumo
em nossas vidas, então começamos a elaborar nossos planos,
tanto profissionais como pessoais. Esperaríamos 2021 começar
para colocarmos todos em prática. Um dos planos pessoais era
virmos morar no Rio de Janeiro no segundo semestre, assim
teríamos metade do ano para planejarmos com calma esta
mudança, depois começaríamos a tentar engravidar. O Universo
conspirou a nosso favor, em pouco tempo realizamos estes
planos, não foi na mesma ordem que idealizamos, mas foi do
jeito que tinha que ser. Dentre tantas coisas em comum, Xico
também pratica exercícios físicos como terapia e assim como
eu, desde o início da pandemia se tornou sedentário, então
combinamos de retomarmos juntos nossos treinos na academia.
No dia 16 de janeiro, mesmo sendo um sábado, decidimos que
seria um bom dia para dizermos adeus ao sedentarismo e sentir
o prazer da endorfina. No final da tarde, fomos na academia do
condomínio, enquanto ele focou em exercícios de musculação,
fiquei na esteira para desenferrujar o corpo antes de iniciar
meus treinos de corrida. Defini como meta, entre caminhada e
corrida de leve, atingir no mínimo 6km em uma hora, um
quilômetro a cada dez minutos era um bom desafio para quem
estava pesando quase 10kg a mais, graças a ansiedade que o
isolamento me causou. Fiz um aquecimento de 15 minutos
apenas caminhando rápido e então resolvi acelerar um pouco
para começar a correr numa intensidade bem leve. Corri quase
cinco minutos e achei que fosse morrer com falta de ar e
coração acelerado. Tive que diminuir o ritmo para recuperar o
fôlego e então tentei novamente, sem sucesso. A falta de ar
estava pior que na primeira tentativa. Achei muito estranha esta
reação do meu corpo, intuí que não era apenas o fato de estar
há tanto tempo sem exercícios aeróbicos.
409
Minha respiração voltou ao normal rapidamente nas duas vezes,
apenas precisei parar de exigir o esforço que meus pulmões não
estavam a fim. Se fosse algo mais grave, a falta de ar demoraria
para passar, pensar assim me confortava. Xico estava quase
terminando o treino dele, então resolvi fazer abdominais para
não ficar parada. Comecei a fazer e senti um incômodo muito
grande, mas insisti e fiz uma sequência de abdominais na força
do ódio. Voltei para casa frustrada por meu corpo não ter
acompanhado a minha vontade de reiniciar a vida de corrida,
mas resolvi que no dia seguinte tentaria novamente.
Acordamos com um domingo sem sol, cinzento e morrendo de
ressaca, pois viramos a madrugada bebendo e ouvindo música.
Eu estava sem energia e me sentindo estranha, então desisti de
ir à academia. Enquanto Xico passou a tarde assistindo filmes,
fiquei deitada entre cochilos e, num dos momentos que estava
acordada, estava pensando sobre o que aconteceu em relação a
falta de ar. Joguei no Google sobre sintomas do Covid e concluí
que não poderia ser. Continuei refletindo até que me deu um
estalo e minha intuição surgiu com força como sempre.
Eu sabia que minha menstruação estava atrasada, mas isso não
estava me preocupando, era um mero detalhe. Fui tomar banho
para dar vida ao corpo e entre meus pensamentos aleatórios,
pensei do nada: “Vou fazer um teste de farmácia por
desencargo de consciência”. Avisei Xico e ele foi comprar,
decidi fazer na manhã seguinte, mas não aguentei esperar.
O teste era o de encher um potinho com urina e depois colocar
a fita de papel. Fiz tudo certinho, comecei a controlar o tempo
e em menos de um minuto, vi que dois tracinhos estavam
gritando. Apareceram tão rápido que pensei ter feito errado, vi
que tinha passado a marcação da quantidade de urina, jurei que
por conta disso, acabei estragando o teste. Fui avisar Xico que
teríamos que comprar outro teste porque tinha feito errado.
- Mas deu positivo, amor? – ele me perguntou
- Sim, mas apareceu muito rápido porque coloquei muito xixi.
410
Como tínhamos que sair para passear com a Padilha então fui
com eles e comprei o teste que parece um termômetro, mais
prático que do copinho. Eu não estava querendo acreditar que
poderia estar grávida, estávamos a menos de quatro meses juntos,
mesmo com nossa vontade de termos filho, ainda estava cedo,
teríamos um ano pela frente para pensarmos nisso. Fiz o novo
teste e novamente o resultado apareceu muito rápido, dois
tracinhos estavam berrando. Saí do banheiro e fui correndo
avisar Xico, não é possível que eu tinha feito errado dessa vez.
Eu não estava acreditando, a minha reação imediata não foi
chorar e comemorar, era como se eu estivesse sonhando.
Ficamos abraçados por um bom tempo, sem conseguirmos
dizer nada, sentíamos apenas o coração do outro bater forte.
Soltamos nosso abraço e ele disse emocionado: “Você está
grávida, amor! Estamos realizando um dos nossos sonhos
juntos!!!”. Eu continuava sem acreditar, me sentindo nas
nuvens, a ficha não estava caindo que aquele momento era real,
que realmente estava vivendo isso. Combinamos que apenas
comemoraríamos de fato quando confirmássemos com exame
de sangue no laboratório. Ficamos tão empolgados e ansiosos
que não conseguimos dormir, passamos a madrugada inteira
conversando e refazendo nossos planos, pois em vários deles
não consideramos o fato de que teríamos que conciliar com a
gravidez. Entusiasmados, começamos a pensar em nomes. Se
fosse menino, eu definiria o nome e ele ficaria responsável pelo
nome feminino. Por mais que o sexo da criança seja um detalhe
pequeno e o que vier está ótimo, lá no fundo a gente tem uma
preferência. Eu queria muito que fosse um menino, Xico queria
menina. Ele escolheu rapidamente: “Se for menina, vai se
chamar Elis”. Amei o nome e a ideia de homenagearmos Elis
Regina, uma das cantoras que sempre esteve presente em nossa
playlist diária desde o início do nosso relacionamento. Eu tinha
vários nomes masculinos em mente, mas não tinha decidido.

411
Essa parte de escolher nome foi fácil demais porque tínhamos o
mesmo ponto de vista sobre isso, não queríamos algum que
fosse a modinha do momento, queríamos que um nome simples,
pequeno e bem forte. Amei a escolha dele, nem precisamos
discutir ou pensar em outras possibilidades. Batemos martelo.
Se fosse menina, seria a nossa Elis e ponto final.
No dia seguinte, não conseguimos realizar o exame de sangue
porque queríamos ir bem cedo por causa do jejum que acabei
quebrando, então deixamos para terça. Chegamos no laboratório
já tendo certeza de que o resultado seria positivo, nós não
aceitaríamos que fosse negativo, afinal já tínhamos incluído um
filho em nossos planos de vida. Passamos o dia inteiro na maior
expectativa e ansiedade para o momento de entrarmos no site
do laboratório e vermos o resultado. Mesmo nos avisando que
estaria disponível apenas a partir das 17hs, eram 14hs e já
estávamos atentos no site, atualizando a cada quinze minutos,
com esperança que aparecesse algo antes do horário previsto,
mas não aconteceu isso. Enfim, o resultado apareceu, fiquei
indignada por não ser simplesmente: positivo ou negativo.
Vimos o número do resultado e abaixo dele uma tabelinha
indicando que inferior ao número X era negativo, entre X e Y
seria necessário realizar outro exame e a partir de Y era positivo.
Até aí tudo bem, super fácil de entender e concluir o resultado.
No entanto, o número estava muito superior ao Y, a diferença
era tão grande que nos assustamos. Liguei no laboratório para
perguntar, mas a moça que me atendeu disse que apenas um
médico poderia tirar minha dúvida. Então mandei mensagem e
o print do resultado a um amigo que é médico, a resposta dele
foi imediata, direta e reta: “Você está gravidíssima! Parabéns!!!”.
Eu e Xico ficamos aliviados e então comemoramos muito.
Tivemos que antecipar nossa mudança ao Rio de Janeiro por
vários motivos, um deles era porque no início da gestação, seria
mais fácil de fazer acontecer isso, teria de ser antes da barriga
412
crescer e dos incômodos surgirem, pensamos também que nos
mudarmos de cidade com um bebê no colo, seria mais difícil.
Esse período foi uma loucura porque tudo começou a dar
errado, quando achávamos que tínhamos conseguido um lugar
para morar, algo não dava certo e dávamos um ou dois passos
para trás. Após algumas tentativas frustrantes, resolvemos vir de
qualquer jeito e nossa solução mais rápida foi morar com a mãe
dele por um tempo até encontrarmos com calma uma moradia.
Chegamos no dia 16 de março.
Eu nunca tive vontade de morar no Rio de Janeiro, sempre
concordei que é uma cidade maravilhosa, mas morar aqui
passava bem longe dos meus planos. Às vezes, tinha vontade
de me mudar de São Paulo, mas quando pensava nisso, meu
destino seria o Nordeste. Foi o Xico que mudou minha maneira
de enxergar sobre morar aqui e comecei a considerar como uma
boa ideia, assim como o melhor destino para nós dois.
Por mim, por estar ao lado de São Paulo, separada por apenas
uma ponte-aérea ou a poucas horas de carro. Não me sinto tão
longe dos meus amigos paulistanos, nem do terreiro ou de
outros lugares que sempre fizeram parte da minha vida. E por
Xico, pois a família dele está aqui, com exceção da irmã e por
ser ator, estar aqui é a melhor opção para a carreira dele.
***
No final de março, comecei a sentir muita dor nas costas, fiquei
alguns dias sentindo sem reclamar, era uma dor suportável e
achei que fosse normal. A barriga estava começando a crescer,
tinha ganhado alguns quilos, então pensei que fosse incômodo
de início de gestação. Depois de uma semana, acordei com uma
dor insuportável, comentei durante o café-da-manhã e minha
sogra sugeriu de irmos à ‘Clínica da Família’ que faz parte do
SUS e que fica no final da rua da casa dela. Como ela conhece
algumas pessoas que trabalham lá, poderiam nos ajudar com um

413
encaixe para ser atendida rapidamente. Nós fomos, fui atendida
pela doutora Márcia que foi incrível comigo, solicitou exame de
urina porque desconfiou ser infecção urinária, precisávamos ter
certeza com o resultado para iniciarmos o tratamento. Ela estava
certa, eu estava com uma baita infecção. No dia seguinte, fomos
realizar a primeira ultrassonografia, estávamos ansiosos para ver
o projetinho do nosso bebê e descobrirmos se era menina ou
menino. Quando deitei e vi o monitor ligado, me deu um frio
na barriga tão gostoso, a felicidade tomou conta de mim por
saber que veria pela primeira vez, a pessoinha responsável por
estar vivendo meu sonho da maternidade.
O médico ligou o aparelho, olhei para o monitor e não estava
entendendo nada. Silêncio. Ele disse demonstrando surpresa:
- Ih, são duas cabeças!
Eu me apavorei. Só não caí para trás porque já estava deitada.
Foram segundos de desespero que me fizeram pensar:
‘Meu Deus, o que vou fazer com um filho com duas cabeças???’
Infelizmente, este foi o único pensamento que conseguir ter
naquele momento. Estava quase chorando de tristeza por estar
gerando um bebê com duas cabeças, olhei para o Xico para
buscar força, mas ele nem piscava olhando para o monitor,
parecia estar em estado de choque, percebi que estava precisando
de mais força do que eu. Estava usando máscara, o médico deve
ter percebido meu desespero no olhar e lido meus pensamentos,
quando resolveu refazer a frase que disse:
- São duas cabeças, dois bebês, sua gestação é gemelar!
Ufa! Não terei um filho com duas cabeças! ... CARALHOOO
tô grávida de gêmeos!! Foram alguns segundos para processar a
informação. Quando fico muito nervosa, tenho crise de risada
incontrolável. Olhei para o Xico que começou a rir também, o
médico não aguentou e riu com a gente. Eu ria tanto que formou
uma cachoeira de lágrimas em meu rosto.
414
Parei somente quando olhei de novo para o monitor e consegui
enxergar duas coisinhas dentro de mim e então comecei a ouvir
os corações. Chorei.
O médico passou algumas informações: uma única placenta
com duas bolsas e nos deu certeza de que um bebê era menina.
Em relação ao outro, ele não podia ainda confirmar, mas disse
que era bem provável ser também do sexo feminino.
Não consegui prestar tanta atenção nas imagens, ficava apenas
pensando no fato de ser dois bebês. O médico dizia: “Olha um
bracinho!” e eu apenas conseguia enxergar um borrão.
Me senti abençoada, meu sonho estava ainda mais completo.
Achava que ser mãe de gêmeos era o tipo de coisa que jamais
aconteceria comigo. A vida me surpreendeu.
Foi um susto descobrir a gravidez gemelar. O susto mais bonito.
Eu e Xico não sabíamos se ríamos ou chorávamos quando nos
abraçamos. Rimos emocionados. Não aguentamos chegar na
casa da mãe dele para darmos a notícia pessoalmente, ligamos e
contamos que seria avó de dois ao mesmo tempo. Ela achou
que fosse brincadeira. A comemoração foi linda, ao mesmo
tempo que continuava assustada, não parava de agradecer à
Deus, aos Orixás e guias espirituais por estarem me permitindo
algo tão grandioso. Que honra e privilégio ter sido escolhida
para viver esta experiência!
Eu quis muito dividir esta notícia com meus fãs e seguidores,
foi difícil guardar este segredo. Aliás, eles ainda não estavam
sabendo da gravidez, pois queria ter certeza de que estava tudo
bem para então compartilhar a novidade. Também pensava no
fato de que, ao anunciar minha gestação, repercutiria na mídia,
jornalistas me procurariam para falar sobre isso, mas estava me
sentindo tão plena, que queria viver o máximo que pudesse
deste momento apenas com o Xico e as pessoas que amamos.

415
Em março, participei pela quarta vez do Altas Horas, apareci
em vídeo e a Maria Bopp estava no palco para falarmos sobre a
série, ela já sabia da gravidez, aliás, foi uma das primeiras que
contei. Minha vontade de contar para o Serginho Groisman era
grande demais, mas ainda estava bem no início da gravidez,
menos de três meses, muito cedo para revelar. Antes de iniciar a
gravação, mandei mensagem à Maria avisando que não contaria.
Fomos realizar a segunda ultrassonografia e minhas sensações
foram as mesmas da primeira vez, poder enxergar os fetos,
mesmo sendo através de um monitor e ouvir do médico que
está tudo bem, é um alívio indescritível. Já poderíamos ter
certeza do sexo do outro bebê e confesso que estava com
esperança do médico ver um pedacinho de pele entre as pernas
do outro feto e me dizer que era um menininho. No fim, deu a
notícia com cem porcento de certeza que eram duas meninas.
Não consegui ficar triste por não ser um casal. Nem poderia.
Saudei a força feminina com muita força e orgulho!
Escolhi o segundo nome: Maria. Nome simples e forte como
todas as Marias que conheço.
***
O nosso relacionamento é tão perfeito que fomos presenteados
com uma gravidez em pouco tempo de convivência e em dose
dupla. A notícia de ser mais de um bebê é um susto muito
grande, mas é impossível o casal não se sentir abençoado por
ter sido escolhido para viver esta experiência desafiadora, afinal
gravidez gemelar de maneira natural não é comum.
Nós dois não queríamos viver um relacionamento tão cedo e
então nos conhecemos no meio desse ‘não querer’. Entramos
de cabeça na vida um do outro e nos entregamos ao amor que
surgiu rapidamente e naturalmente. Ainda bem que nos
permitirmos dar mais uma chance ao amor de alguém.

416
Nunca quis me relacionar com cariocas porque sempre os
considerei marrentos demais e nem com homens mais novos
do que eu. Xico é carioca da gema e sou cinco anos mais velha.
Ele calou minha boca por não ser marrento e por ser um
homem-menino responsável e maduro, com uma criança
interna tão viva quanto a minha.
Estamos morando em um apartamento do jeito que desejamos,
mas chegar aqui não foi fácil, vivemos uma saga com vários
momentos estressantes e alguns perrengues. No dia que
pegamos a chave daqui, há apenas duas semanas antes do
nascimento das meninas, ficamos emocionados e comemoramos
como pudemos, respeitando as limitações por estar na reta final
da gestação. Dias de luta, dias de glória. Merecemos estar aqui, a
luta continua, estamos longe de podermos ficar sossegados sem
preocupações com a vida financeira, ainda mais com duas filhas
para criar ao mesmo tempo, mas sabemos que vamos conseguir
chegar aonde queremos.
Estamos noivos há quase um ano, no entanto, temos um
relacionamento de casados desde a semana do nosso replay,
quando nunca mais nos desgrudamos e começamos a viver toda
nossa intensidade. Com ele, vivo uma experiência diferente, é a
primeira vez que convivo 24hs com alguém. São pouquíssimas
coisas que não fazemos juntos, mas mesmo nestes casos,
estamos sempre por perto. A nossa convivência é muito leve,
me sinto em paz com a presença dele, é a calmaria que eu
precisava enquanto acredito ser o agito que faltava nele.
Nos completamos e nossas filhas chegaram em nossas vidas
para nos complementarem. Nós quatro juntos mais nossos
quatro pets formamos a nossa família nada tradicional brasileira.
Deixamos nossa vidaloka no passado para nos dedicarmos à
nossa missão de proporcionarmos o melhor para nossa família.

417
Caminhando juntos de mãos dadas na mesma direção, focados
em nossos planos e projetos.
Xico deu um novo sentido para a minha vida, me permitindo
um recomeço lindo em minha trajetória, me permitindo realizar
meu principal sonho pessoal: ser mãe.
Que sorte a minha o ter ao meu lado e em minha vida, sorte de
Maria e Elis por terem um pai tão maravilhoso e especial.
A nossa história de amor está apenas começando.

418
CAPÍTULO 13 – Família

Família é uma questão muito bem resolvida, deixou de ser um


assunto que me causa sofrimento e dor. Para hoje poder afirmar
isso, no entanto, não foi fácil todo o processo de cura. Como
não consegui sozinha, então precisei buscar ajuda e apoio no
plano espiritual, sessões de terapia, xamanismo e constelações
familiar. Ainda não construí todo o quebra-cabeça, faltam
poucas peças para completar, mas não estou desesperada para
que isso aconteça logo, acredito que descobrirei as últimas
respostas no momento certo. Não é algo que me atrapalha mais,
quero ir até o fim por curiosidade e porque tenho o direito de
saber da minha história antes de chegar ao mundo, minha raiz.
Estas respostas são relacionadas ao relacionamento entre meus
pais biológicos e os adotivos, sei que existe uma relação entre
eles e quero desvendar o mistério que os envolvem.
Há indícios que eu seja filha biológica do meu pai adotivo, por
conta disso, ele teve facilidade em me buscar no hospital após
meu nascimento. E isso me explica tantas coisas: o fato dele me
dizer durante as brigas que estava arrependido por ter me adotado,
a sensação desde criança de sentir tudo muito estranho ao meu
redor, uma vontade inexplicável de conquistar o amor do meu
pai, o acolhimento que se transformou em repulsa, minha mãe
sempre muito distante, o peso de uma energia estranha que rolava
entre todos nós, o fato de me dizerem que minha mãe biológica
estava mais perto do que eu imaginava, sabendo quem ela é.
Mas pode não ser nada disso. Descobrirei.
Durante uma sessão, minha terapeuta me perguntou se eu
sentia falta DA minha família ou DE uma família. Respirei
419
fundo antes de responder, por não ser fácil assumir isso, mas
sentia falta DE uma família. Problema resolvido.
Para trabalharmos esta questão, realizamos muitas análises.
Desde 2016, comecei a enxergar tudo de uma outra maneira.
Eu não tenho uma família. Posso dizer que tenho três: a minha
principal é a que construí com o Xico: nossas duas filhas, Maria
e Elis, além das nossas quatro filhas pets. A segunda família são
os meus amigos que considero como irmãos que a vida me deu.
E a terceira, é a qual construí no terreiro, com Pais e Mães no
Santo e meus irmãos de Corrente.
Família nem sempre é qual nos acolhe. É qual a gente escolhe.
***
Em dezembro de 2020, a jornalista Roberta Malta me entrevistou
por vídeo para uma matéria que foi publicada na revista ‘Marie
Claire’. Foi uma fase que estava bem sensível, mais do que o
normal, meus hormônios estavam à flor da pele. Eu já estava
grávida e não sabia. Além disso, estava com o sentimento
melancólico que surge com força na época de final de ano.
Iniciamos a entrevista e senti empatia nos primeiros minutos.
Ela me deixou tão à vontade que chegou num ponto da conversa
que não me lembrei mais que estava sendo entrevistada.
Roberta conduziu tão bem nossa conversa que acabou sendo
uma terapia para mim, eu estava realmente precisando externar
algumas questões. Ela enxergou meu lado humano e conseguiu
tirar uma situação que ainda não havia exposto em público: o
abuso que sofri do meu pai na infância.
É um fato que me marcou demais, sempre me incomodou, por
isso cresci sem querer cutucar, ficou escondida na caixinha de
lembranças proibidas que eu não queria abrir por saber que
seria difícil ficar relembrando. Para curar uma dor, é necessário
420
cutucar a ferida, deixar sangrar, para então cuidarmos e cicatrizar
direito. Esta situação com meu pai era uma ferida que eu não
queria arrancar a fina casquinha que formou naturalmente com o
tempo. Mas chegou o momento de encará-la porque precisava
ser curada, não podia mais adiar. Passei a infância e parte da
adolescência, vendo minhas irmãs e mãe passando pano para o
meu pai para qualquer coisa, ele poderia cometer um erro grave
que tudo bem, pelo menos uma estava de prontidão para passar
o paninho. Justificavam qualquer atitude errada dele, culpando
os fortes remédios que tomava. Para elas, eram os comprimidos
de tarja preta que não o deixavam manter a coerência de
raciocínio e atitudes. Elas me fizeram aprender que agir assim,
era o mais correto.
Eu tinha sete anos quando acordei assustada no meio de uma
madrugada por sentir uma mão pesada passando em meu
corpo, na região entre o umbigo e minhas partes íntimas.
Estava dormindo com um conjunto de shorts e regatinha,
nunca gostei de usar calcinha para dormir. A mão passava num
movimento rápido, abri os olhos. A mão continuou realizando
a “massagem”, vi um vulto ao meu lado, era o meu pai com os
olhos fechados. Eu fiquei sem reação, não entendi o que estava
acontecendo, mas por ser meu pai, achei que fosse algum tipo
de carinho diferente, não consegui enxergar maldade ou identificar
que aquela mão se movimentando no meu corpo jamais poderia
estar ali, apenas achei muito estranho por estar dormindo e por
estar sendo no lugar de fazer xixi. A inocência de uma criança.
Esperei que ele abrisse os olhos, mas como demorou e comecei
a me sentir incomodada, eu consegui apenas dizer: “Pai???”
Ele abriu os olhos assustado, como se estivesse dormindo em
pé, mas acredito que tenha perdido além do bom senso, noção
do tempo e esqueceu que eu poderia acordar com os toques.
Começou a gaguejar, disse apenas que eu estava tossindo muito
421
e foi fazer uma massagem no meu peito para aliviar. E saiu do
quarto sem me dar chance de questionar algo. Essa massagem
no peito acontecia realmente, por minha mãe ou por ele, quem
estivesse disponível no momento, massageava meu peito e
minhas costas quando eu estava com crises de bronquite, de
fato eu sentia alívio e me ajudava a dormir melhor. Mas
naquela madrugada, mesmo com toda minha ingenuidade, sabia
que meu pai estava longe demais do meu peito. Guardei essa
cena comigo, até que um dia, resolvi comentar com minha irmã
mais velha que passou pano, me orientou a não comentar com
mais ninguém e disse que ele devia estar sob efeito dos remédios,
sem ter consciência do que estava fazendo. Cresci, nunca me
esqueci e não engoli esta situação. Quando me dei conta que
minhas partes íntimas não eram apenas para fazer xixi, a ficha
caiu. Juntei as peças. Meu pai me abusou e ponto final. Para ser
abuso sexual, não precisa haver penetração, qualquer ato
malicioso no corpo de uma pessoa, criança ou não, sem o
consentimento dela, é abuso. Sendo criança, além do abuso,
temos de considerar outra gravidade, a pedofilia.
Não sei se foi uma atitude isolada, algo que aconteceu apenas
naquela madrugada ou se ocorreu outras vezes e eu não acordei.
A única pessoa que comentei foi com minha irmã, mas como
ela me fez acreditar que era algo normal por conta dos remédios,
não comentei com mais ninguém, nem com ele, mas deveria.
Foi no final de 2018, durante uma dinâmica no ‘Leader Training’
que reativei na memória a cena desse abuso. Fui amparada por
psicólogos e comecei a trabalhar esta questão para deixar de ser
um conflito interno. Precisei de muita terapia e apoio do plano
espiritual, consegui resolver, não foi fácil, doeu, quase pirei, mas
foi uma das melhores coisas que fiz por mim.

422
CAPÍTULO 14 - Fama

Em agosto de 2004, o jornalista Pedro Dória encontrou meu


blog e me notou, jogou o paraquedas, peguei com força, voei,
caí no mundinho dos cinco minutos de fama e cá ainda estou.
Sou sonhadora desde que me conheço como gente, muitos
sonhos habitaram dentro de mim, vários perderam força ou
sentido e foram substituídos por outros. Já quis ser muitas
coisas nesta vida, no entanto, nunca desejaria abandonar o
anonimato, minha timidez jamais me permitiria ter vontade de
estar sob os holofotes. Mas já que a fama apareceu na minha
frente, de mão beijada, quis aproveitar a oportunidade para
viver esta experiência. Mesmo assim, antes de aceitar a primeira
entrevista na televisão, refleti bastante se queria realmente seguir
por este caminho porque poderia ser sem volta em caso de
arrependimento. Estou a milhares de quilômetros de distância
para ser celebridade, nunca me definirei desta maneira.
Em contrapartida, também não posso me considerar como
subcelebridade, pois quem é sub se mantém na mídia a qualquer
preço, cria polêmicas propositalmente, planta notícias, faz de
tudo para não cair no esquecimento, é notado apenas por portais
de fofoca, mas como é o que querem, então está tudo certo.
Celebridades não precisam dar entrevistas para serem lembradas,
pois jamais cairão no esquecimento, são atemporais. Enquanto
existir a humanidade, manterão o sucesso em todas as gerações
e o trabalho que deixaram, será sempre reconhecido e prestigiado.
É assim o meu ponto de vista, posso estar enganada.
Prefiro me definir de uma outra maneira e minha linha de
raciocínio é bem simples: se não sou anônima, celebridade nem
subcelebridade, sou apenas famosa mesmo.
A fama tem um preço muito alto, não é um conto de fadas.

423
O bônus é gratificante demais, mas precisamos saber lidar com
o ônus. A partir do momento que nós damos a cara à tapa para
a sociedade e nos expomos, as pessoas se sentem no direito de
cuidar de nossas vidas, fiscais da vida alheia é o que não falta, o
mundo está cheio deles. Recebemos opiniões que não pedimos,
temos que aguentar os militantes que não descansam e os haters
que são pessoas infelizes, descontam as frustrações em famosos.
Eles falam mal de nós, pois quando falam de si, ninguém presta
atenção. Também nos deparamos com pessoas pseudo bacanas
que dizem querer nos dar uma crítica construtiva, mas isso não
existe, crítica é crítica. Assim como não existe inveja boa.
Somos muito cobrados, o tempo todo, todos os dias.
Não podemos decepcionar ou cometer qualquer tipo de erro,
podemos ser cancelados sem mesmo saber o motivo. Nada
passa despercebidamente. Onde quer que estejamos, somos
vigiados ou no mínimo observados, temos que nos acostumar
com os olhares ao redor e aos poucos, aprendemos a decifrá-
los, se é julgador, de carinho ou meramente de curiosidade.
Atraímos muitas pessoas interesseiras e falsas, nem todos que se
aproximam é porque gostam realmente da gente ou querem o
nosso bem. Precisamos saber lidar muito bem com decepções.
Se somos mulheres, nosso corpo acaba sendo alvo de análises e
não são por profissionais da saúde. Se estamos acima do peso...
Será que vem bebê por aí? Se estamos magras demais... Será que
é depressão? Não podemos expor as celulites na praia porque
são uma ameaça à sociedade, com certeza os portais de fofoca
vão divulgar isso para mudar a vida da população.
A pressão é grande porque precisamos ser legais o tempo todo.
Não podemos reclamar da vida, afinal se resume a passeios de
lancha e não sabemos o que são boletos. Muitas pessoas acham
que vivemos numa eterna festa e que somos todos milionários.
***
424
O bônus é a nossa recompensa. Termos o trabalho reconhecido
e recebermos mensagens carinhosas de pessoas que nunca vimos
na vida, não tem preço. Reconheço que sou muito amada e
querida, me emociono com a maioria das mensagens que recebo,
um cisco sempre entra no meu olho. Tenho muitos fãs que me
acompanham desde a época do blog e estamos falando de
dezessete anos. Muitas pessoas se identificam comigo, que
nunca se prostituíram, simplesmente enxergam meu lado
humano e notam semelhanças. Acabam me considerando como
uma amiga confidente. É bem comum me mandarem desabafos
e segredos, acabo me sentindo uma amiga próxima. Também é
comum pessoas me agradecerem porque acham que de alguma
maneira indireta, mudei a vida delas, confesso que às vezes me
assusto com isso, mas fico lisonjeada.
Demorei para entender que minha história de vida tem um
poder de reflexão, enquanto para mim, a trajetória que segui
sempre foi tão normal. Muitas pessoas que me conhecem
pessoalmente já me disseram que não tenho noção de quem
sou, do que represento e da força que Bruna Surfistinha tem.
Talvez seja melhor que eu continue sem saber disso tudo,
prefiro continuar como estou, sem deslumbramentos e com os
pés bem firmes no chão.
Até hoje, as abordagens das pessoas que me reconhecem foram
todas muito fofas, antes da pandemia, sempre recebi abraços.
Já aconteceu mais de uma vez de estar na bad e alguém alegrar
meu dia, me abordando e dizendo palavras que aqueceram meu
coração. Estas pessoas nem imaginam o quanto me ajudaram.
Acho impressionante como sou reconhecida onde quer que eu
esteja, demorei um bom tempo para me acostumar com isso.
Certa vez, estava no mercado, escolhendo batatas para comprar.
Uma moça chegou e começou a escolher as dela, percebi quando
ela me notou porque olhava mais para mim do que para as
batatas. Não demorou muito para perguntar se era eu, confirmei
que sim e ela me disse:
425
“Não acredito! Nunca imaginei que te conheceria comprando
batatas, minhas amigas não vão acreditar quando contar, posso
tirar uma foto para mandar para elas?”. Queria muito ter esta
foto como lembrança, estou ao lado da moça, segurando uma
batata em cada mão. E foi assim que ela provou às amigas que
me conheceu de uma maneira inusitada, bem dona de casa,
escolhendo batatas para faze purê.
Uma outra abordagem que me pegou de surpresa foi de um fã
que me abraçou e começou a chorar. Eu não sabia o que fazer,
o que dizer, se enxugava as lágrimas dele ou se chorava junto.
Então me contou que o incentivei a assumir a homossexualidade
à família e sociedade, por isso estava emocionado porque queria
muito me conhecer um dia para me agradecer. Esse dia chegou.
Sempre dei a atenção que pude para quem me abordou, o único
momento que não gosto é quando estou comendo, em especial
com comida na boca. Comer é um momento tão sagrado,
acredito que ninguém goste de ser incomodado. Talvez eu
tenha sido grossa sem querer com algumas pessoas que me
abordaram nestes momentos, mas quando estou comendo, não
quero tirar fotos nem com meus amigos. Gosto de comer quieta,
sentindo o prazer que o sabor da comida me proporciona.
Fui à Natal (RN) para ser DJ numa festa. Eu e João chegamos
no comecinho da noite, os organizadores do evento marcaram
uma entrevista ao vivo na rádio para que eu convidasse os
ouvintes. Ainda precisava ir ao local para fazer a passagem de
som antes do público chegar, fora o tempo para me arrumar no
hotel, enfim, após a entrevista, fomos a um restaurante e
tínhamos apenas meia hora para jantarmos. Os pratos que
pedimos demoraram e quando chegaram na mesa, tínhamos
apenas doze minutos contadinhos. Eu estava na segunda ou
terceira garfada quando uma moça parou ao meu lado e pediu
para tirar uma foto comigo. Olhei para o João e sem precisar
dizer nada, ele entendeu e avisou a moça: “Ela vai tirar foto

426
sim, mas você pode esperar um pouquinho? A comida acabou
de chegar e estamos com pouco tempo para comer!”.
Ela respondeu: “Claro! Eu espero sim!” e ficou parada ao lado
da mesa me olhando. Obviamente não consegui continuar
comendo, então resolvi engolir a comida que estava na boca,
me levantei, dei o melhor sorriso que pude naquele momento
sem transparecer minha irritação com a situação e pronto, ela
ficou feliz e foi embora, eu pude comer em paz.
A única vez que neguei foto foi quando estava na igreja, após a
missa de sétimo dia do pai do João. Chorei a missa inteira, meu
rosto estava inchado e o momento era triste demais para que eu
me esforçasse a sorrir. Um moço que estava no grupo de outra
família participando da mesma missa, mas para outra pessoa
falecida, me abordou assim que levantei e pediu uma foto.
Precisei recusar porque realmente não tinha condição nenhuma.
Com exceção desse episódio, não neguei nenhuma outra foto e
por isso mesmo, fico incomodada quando percebo que alguém
está tirando de uma maneira escondida. Quando ocorre isso e
eu tenho certeza de que realmente está tirando de mim, faço
pose e sorrio para sair bem na foto e deixar a pessoa sem graça.
***
Para quem ama ser convidado para festas e eventos dos mais
variados possíveis, a fama proporciona bastante. No meu auge,
era convidada para tudo quanto era lugar, mas como nunca
consegui ser arroz de festa, deixei de aproveitar esses momentos
que tive oportunidade, mas não me arrependo. Não consigo ir a
uma comemoração que não conheço pessoalmente o dono da
festa. Mesmo com convite em mãos, me sentiria uma penetra
num evento alheio.
Sempre guardarei com carinho as lembranças de ter conhecido
duas pessoas incríveis e que infelizmente faleceram: conheci a
427
Gabriela Leite, ex-prostituta, militante, idealizadora da ONG
Davida e da marca Daspu, escritora. Nosso encontro foi na
gravação do ‘Boa noite Brasil’ apresentado por Gilberto Barros.
Fomos entrevistadas juntas. Gabi era uma mulher forte, com
uma história incrível de vida, me conquistou rapidamente.
Começamos a manter contato, a avisei quando fui ao Rio de
Janeiro, combinamos de nos encontrar no escritório da ONG
porque ela queria que eu conhecesse de perto o trabalho que
exercia com tanto amor. Depois, fomos a um boteco no bairro
Lapa onde ficamos bebendo e conversando até o final da noite.
Nos encontramos outras duas vezes, quando participamos do
programa ‘Roberto Justus +’, na Record. E no lançamento do
livro dela ‘Filha, mãe, avó e puta’, em São Paulo. Na última vez
que conversamos, ela estava lutando contra o câncer que a
matou. Mesmo estando com a saúde debilitada, demonstrou
estar com muita força emocional para continuar lutando.
Ter sido convidada para ser entrevistada por Antônio Abumjara
para o programa ‘Provocações’ que ele apresentava na TV
Cultura foi uma surpresa muito boa. Já acompanhava com
admiração o trabalho dele, o achava um gênio, sempre conduziu
as entrevistas de uma maneira como poucos conseguem. Ele me
fez perguntas que nunca tinham me feito, com delicadeza e
respeito, saí da gravação o admirando ainda mais. Pouco tempo
depois, um produtor da equipe dele, me ligou para contar que
estavam lançando um DVD do ‘Provocações’ com as melhores
entrevistas e que a minha foi selecionada, então estava fazendo
parte do conteúdo. Fui convidada para ir ao lançamento deste
DVD que aconteceu na ‘Livraria Cultura’ da Avenida Paulista.
Foi uma honra ter participado deste momento e rever Abumjara.
Fiquei bem triste quando soube que ele faleceu.
***
Um outro momento inesquecível foi o evento do lançamento
do livro ‘O primeiro a gente nunca esquece’ do publicitário
428
Washington Olivetto. Eu não tinha nem roupa para ir a este
evento chique, mas fui mesmo assim. Quando descobri o
motivo do convite, fiquei emocionada. Olivetto é o responsável
pela famosa campanha publicitária dos anos 80 da marca
Valisere com o bordão: ‘O primeiro sutiã a gente nunca
esquece’. Em comemoração aos 20 anos desta campanha
publicitária, ele coletou textos de pessoas conhecidas que
escreveram sobre uma lembrança e citaram que a primeira vez
de ‘algo’ a gente nunca esquece. Um desses textos foi escrito
por mim e está neste livro dele.
Olivetto me elogiou por ter uma ótima visão de marketing. Esse
elogio vindo dele, me fez transbordar de orgulho.
***
De todo o ônus que enfrentei por causa da fama, o pior até
agora foi o fim da amizade com a Gabi. Na medida que minha
exposição na mídia foi crescendo, também aumentava o
incômodo que ela sentia com a situação. Gabi começou a não
gostar de ser vista ao meu lado, quando alguém me reconhecia e
me abordava, ela sutilmente saia de perto e voltava apenas
quando a pessoa ia embora. Nas primeiras vezes, bem que
tentou disfarçar, mas como a atitude se tornou frequente, acabei
percebendo e quando a questionei sobre isso, assumiu que tinha
vergonha de estar ao meu lado quando eu era reconhecida.
“É claro que as pessoas vão pensar que também me prostituí ou
que ainda faço programa, Deus me livre, Bruna!” – me disse.
Eu fiquei quieta, engoli seco a resposta que tive vontade de dar
e que ela merecia ouvir, achei melhor deixar quieto e ignorar,
mas chorei quando cheguei em casa. Tentei manter a amizade
porque eu não queria que acabasse dessa maneira, acreditei que
talvez fosse questão de tempo para que se acostumasse e tirasse
da cabeça, a preocupação de ser associada à prostituição pelo
simples fato de estar ao meu lado. Não precisou de muito
tempo, no entanto, para que eu sentisse o distanciamento dela,
429
pois parou de querer sair comigo e nossa amizade tornou-se
apenas virtual. Ela deixou de ser minha melhor amiga, mas
continuamos mantendo contato, de vez em quando, acontecia
de trocarmos algumas mensagens para sabermos uma da outra.
Até que em 2008, fui convidada para participar do programa
‘Nada além da verdade’ apresentado por Silvio Santos. Quando
entraram em contato me convidando para participar, avisaram
que eu precisava levar duas pessoas muito próximas a mim para
serem minhas testemunhas. Deixou claro que Silvio Santos não
perguntaria nada da vida delas, o foco seria apenas em mim.
Obviamente, o primeiro nome que surgiu em minha mente foi
o da Gabi, não existia melhor testemunha que ela, era a pessoa
que mais me conhecia. Tinha certeza de que ela não aceitaria
meu convite, mas por desencargo de consciência, resolvi tentar
a sorte. Não consegui terminar de passar as informações, Gabi
me cortou dando risada e dizendo: “Ah, Bruna, me poupe, não
acredito que você me fez perder tempo para ouvir isso tudo,
não posso me expor ao seu lado para o Brasil todo saber que
sou sua amiga!”. Depois disso, a amizade acabou para mim, mas
não excluí Gabi de uma vez da minha vida. Parei de correr atrás,
de mandar mensagens, raramente ela me procurava, ficou sem
me dar notícias por quase um mês. Comecei a ser seca nas
respostas e acho que ela sentiu a mudança brusca na maneira de
tratá-la. Uns dois meses depois, me procurou dizendo que tinha
conhecido uma garota que fazia programas em Madrid. A cada
três meses, vinha ao Brasil e ficava um mês para matar saudade
da família e amigos. Gabi contou que a boate era uma das
melhores da cidade e a garota garantiu que em três meses, era
possível fazer um bom pé-de-meia. Enfim, convenceu a Gabi
de ir junto com ela e a viagem aconteceria em duas semanas.
Até aí tudo bem, até que ela me pediu dinheiro emprestado para
comprar as passagens de ida e me devolveria quando voltasse.
Eu poderia emprestar? Poderia! Se nossa amizade não estivesse
abalada, daria até de presente a passagem, mas segui a razão e
avisei que não emprestaria. Ela não conseguiu disfarçar a
430
chateação, o tom de voz mudou na hora e começou a ficar
grosseira comigo, me disse que estava contando demais que eu
emprestasse o dinheiro, mas quando mais precisou de mim, eu
não quis ajudá-la. Engraçado que pegar o meu dinheiro, fruto
das minhas conquistas contando sobre meu passado como
prostituta, ela não sentiria vergonha. Essa conversa foi a gota
d’agua tanto para mim como para ela. Foi a última vez que nos
falamos, a amizade acabou de vez. Não tive notícias se ela foi
trabalhar na Espanha ou não. Foi difícil lidar com a saudade
que sentia dela, com o tempo não senti mais e ficaram apenas as
boas lembranças, sou grata por tudo que ela fez por mim. Não
tive vontade de procurá-la para colocar os pontos nos ‘is’ e
retomarmos a amizade, se isso acontecesse, sei que não seria
mais do mesmo jeito. Ela também nunca me procurou. Agora
há pouco, enquanto escrevia sobre ela, dei uma pausa e resolvi
procurá-la no Instagram e como o nome de batismo não é
comum, encontrei o perfil dela. Não há nem vinte publicações,
fisicamente continua da mesma maneira, como se o tempo não
tivesse passado para ela.
O resumo do que vi é: Gabi atualmente é confeiteira e mãe de
uma linda menina.
***
Se há uma religião que admiro muito depois da umbanda, é o
budismo. A filosofia é linda demais e os budistas são os seres
mais leves que já conheci. Sempre tive a imagem de um Buda
em casa, pois acredito que me traz sorte e prosperidade.
Tenho muita vontade de um dia conhecer a Índia. Um dia, uma
jornalista do Portal Terra, entrou em contato comigo me
convidando para participar de uma das matérias que realizava,
que era unir duas pessoas com estilos de vida bem diferentes
para que conhecessem um pouco sobre a outra.
Topei participar sem saber quem formaria a dupla comigo, pois
amo conhecer mundos diferentes do meu.
431
Para a minha grata surpresa, participei da matéria com a Monja
Coen que me recebeu no templo dela, em São Paulo.
Assim que cheguei, senti uma energia maravilhosa, forte e leve.
Fui recebida de braços abertos e um sorriso no rosto. Ela me
levou para conhecer o templo, enquanto me contava sobre a
própria rotina, a história de como se tornou budista e o
budismo. Foi uma aula inesquecível. Por fim, a convite dela,
meditamos juntas. Confesso que não consegui elevar minha
mente, mas fiquei quietinha sentindo a energia enquanto ela
meditava na minha frente. Monja Coen transmite uma paz
inexplicável, ela é a calmaria em forma de mulher e o abraço
dela é um dos mais fortes e acolhedores que já recebi, me fez
sentir protegida de todos os males e tive vontade de pedir para
que não me soltasse nunca mais. Conheci o mundinho dela e
depois foi a vez de levá-la para conhecer o meu. Como eu já
estava aposentada da prostituição, a jornalista pediu para que eu
levasse a Monja Coen até um lugar que rolasse prostituição,
então resolvi levá-la à boate Kilt, o conhecido castelinho.
Nossa visita aconteceu quando estava fechada ao público,
mesmo assim, foi suficiente para que conhecesse o espaço
enquanto eu contava um sobre meu passado na prostituição.
Ela me ouviu com respeito, sem julgamentos. Não esperava
outra postura dela. As horas que passamos juntas foram muito
especiais para mim, foi uma honra ter a conhecido.
***
Tive oportunidade de conhecer pessoalmente muitos famosos
que admiro, alguns acompanho desde a infância, outros desde a
adolescência, independente do tempo, estar diante de quem
marcou minha vida de alguma maneira e, mais do que isso,
sendo entrevistada, sempre foi muito emocionante e gratificante
para mim. Em uma das fases nostálgicas, quis relembrar de
alguns momentos revendo entrevistas bem antigas. Como sou
extremamente autocrítica, me analisei intensamente, foquei
primeiramente no quanto algumas respostas poderiam ter sido
432
bem melhores, mas me enxerguei com carinho.
Eu era uma menina com meus vinte e poucos anos, tendo crise
de ansiedade e controlando a timidez para não travar.
Acredito que meu jeitinho de ser colaborou bastante para me
manter na mídia por tanto tempo, até o momento são 17 anos,
praticamente metade da minha vida. Não adianta ter uma boa
história se não souber contá-la.
Perdi as contas de quantas vezes fui entrevistada. Nos primeiros
três anos, além de fazer arquivos de clipping com as matérias que
eram publicadas em revistas e jornais, também listava numa
planilha, as entrevistas em televisão e rádio, organizava tudo
bonitinho, não sei dizer em qual momento parei de fazer isso,
mas confesso que perdeu a graça ao se tornar algo comum.
Na noite anterior de qualquer entrevista que fosse com alguém
que eu admirava, a ansiedade não me permitia dormir, passava a
madrugada em claro com insônia, com a mente acelerada
imaginando várias situações. E durante as entrevistas, sempre
tive os mesmos sintomas: coração disparado, frio na barriga,
sentia calor mesmo suando frio. Guardo todos os momentos
com carinho, é claro que algumas entrevistas foram mais
especiais que outras.
Quando era criança amava assistir o programa ‘Rá-Tim-Bum,
na Tv Cultura. Gostava de todos os quadros, mas o ‘Senta que
lá vem a história’ e a do Professor Tibúrcio eram os meus
preferidos. E foi por isso que ter sido entrevistada por Marcelo
Tas no programa ‘Saca Rolha’ foi um momento especial. Além
dele, os outros apresentadores eram a Mariana Weickert e o
Lobão. Já assistia este programa antes de participar.
Na época do CQC, aliás, saudade, o Tas comentou sobre mim
em pelo menos dois momentos, sem que eu soubesse que faria
isso, me pegando de surpresa como espectadora.
Assim como a maioria da minha geração, cresci assistindo Silvio
Santos, parei de acompanhá-lo na fase adulta, mas na infância
433
terminava todos meus domingos o assistindo no ‘Topa tudo
por dinheiro’, um clássico daquela época. Também não perdia o
‘Porta da Esperança’ e o ‘Em nome do amor’.
Estava no camarote do SBT, terminando de me arrumar para ir
ao estúdio quando alguém bateu na porta, era simplesmente o
próprio Silvio Santos. Fiquei paralisada, não estava preparada
para conhecê-lo nos bastidores. Me cumprimentou e percebeu
que eu estava tensa, então me acalmou ao dizer brincando:
“Eu não mordo, não!” e deu aquela risada que é marca dele.
Fiquei impressionada com tanta humildade. Assim que ele saiu,
o maquiador que estava comigo, comentou que o Silvio Santos
cumprimenta quem estiver na frente dele quando chega no
estúdio, não importa se é a faxineira ou um diretor.
Nesse dia, eu estava mais tensa do que o normal, pois gravaria o
‘Nada além da verdade’ que valia prêmio em dinheiro. Uma
“máquina da verdade” era ligada com fios presos no convidado,
que tinha que responder perguntas aleatórias e polêmicas sobre
a própria vida. Um especialista controlava a tal máquina e após
cada resposta do convidado, ele fazia a leitura se baseando em
alguns sinais do corpo que a máquina mostrava, como os
batimentos cardíacos e os movimentos das mãos. Eu tinha
certeza de que levaria o prêmio total por ter respondido todas
as perguntas com verdade. Estava tão confiante que até fiz
planos com o valor do prêmio que certamente cairia na minha
conta. Pois muito que bem. Em uma das primeiras perguntas,
se não me engano na quinta, a máquina detectou que eu estava
mentindo. Quando o especialista disse ao Silvio que minha
resposta era mentira, me desesperei. O pior é que não tive
oportunidade de argumentar, afinal ele acreditava mais na
máquina do que no convidado. A frustração foi tão grande que
demorei alguns dias para superar. Tenho costume de gesticular
bastante enquanto falo, então fiz o possível para me policiar e
movimentar menos as mãos, para que os fios presos em meus
dedos não balançassem tanto. Infelizmente, não consegui ter
controle do coração disparado causado pela ansiedade. Jamais
434
imaginei que um dia, sentiria tanta raiva de uma máquina.
Meses depois, me chamaram para participar do quadro ‘Três
Pistas’ no ‘Programa do Silvio’. Também não ganhei o prêmio,
mas pelo menos dei risada. Em certo momento, Silvio pegou o
livro ‘O doce veneno do escorpião’ e foi ao meio da plateia
avisando que leria um trecho. Abriu aleatoriamente uma página
e começou a ler um parágrafo picante com uma frase assim:
“Então eu e as primas...”.
Não sei se ainda usam esta expressão, mas na minha época,
“prima” era uma gíria, uma maneira carinhosa de chamar outras
garotas de programa com discrição. Clientes assíduos da putaria
também usavam esta gíria nas resenhas do Fórum: “Hoje fui
visitar as primas...”. Pronto. Gíria explicada, voltamos ao Sílvio
lendo a página do livro. Assim que ele finalizou a frase com as
primas, virou para mim e disse: “Hmm, família safadinha a sua
hein, Bruna!”. Eu comecei a rir tanto que não consegui explicar
que aquelas primas do texto, não eram filhas dos meus tios.
No SBT, participei apenas de mais dois programas: o ‘Cante se
puder’ apresentado por Patrícia Abravanel e o ‘Conexão
Repórter’ do jornalista Roberto Cabrini por três vezes, sendo
que a mais recente, gravada em 2019, foi a melhor de todas.
***
Nunca consegui dormir cedo, mesmo quando estudava de
manhã. A última coisa que fazia antes de dormir era assistir o
‘Programa do Jô’. Meu pai não gostava muito da ideia, mesmo
assim assistia. Quando ele passava na frente do meu quarto e
ouvia que a televisão estava ligada, entrava sem bater na porta,
pegava o controle da TV e desligava enquanto me dava bronca
por ainda estar acordada. Para não dormir sem o Jô, então tive a
brilhante ideia de assistir com o mínimo de volume possível,
quase fazendo leitura labial, mas tudo bem. E quando meu pai
invadia meu quarto, fingia que estava dormindo para me poupar.
E foi lembrando disso que cheguei no estúdio da Globo para
435
ser entrevistada por Jô Soares. Minha ficha caiu apenas quando
ouvi ele dizendo meu nome ao me anunciar como uma das
convidadas daquela noite. A entrevista em si não foi boa como
gostaria, não fiquei nem um pouco à vontade, o nervosismo me
prejudicou porque não consegui controlar as emoções, fiquei
tensa porque ele me cortava e eu não conseguia concluir minha
linha de raciocínio nas respostas. Mesmo eu não gostando do
resultado, o feedback foi positivo demais: meu livro que estava
em quarto lugar na lista dos mais vendidos na revista Veja,
naquela semana saltou para o primeiro lugar. Além disso, minha
caixa de e-mail bombou com tantas mensagens que recebi de
pessoas que assistiram. Na noite que o programa foi exibido,
meu blog - criei um para compartilhar minha rotina pós
prostituição - teve um aumento surreal de visitas, o servidor não
aguentou e o site saiu do ar.
***
Na pré-adolescência, não perdia o ‘Programa Livre’ no SBT,
amava a maneira como o Serginho Groismann falava a língua
dos jovens sempre com pautas e entrevistados interessantes.
Nunca deixei de assisti-lo, continuei o acompanhando quando
deixou de dizer “Fala, garoto!” e começou a apresentar o ‘Altas
Horas’, na Rede Globo. Quando comecei a dar entrevistas,
Serginho fazia parte da minha lista de desejos para conhecer
durante os cinco minutos de fama. Berrei quando soube que a
produção entrou em contato me convidando, lembro como se
fosse ontem. Nem pude acreditar quando Serginho me chamou
para entrar no palco e me sentar em uma das cadeiras.
Eu zerei a vida ali.
Ele não decepcionou, me tratou com carinho, conduziu a
entrevista de uma maneira leve e descontraída, como sempre faz.
O tempo voou, quase duas horas que não vi passar. Torci para
que ele tivesse gostado de mim e me convidasse novamente.
No total, fui quatro vezes em momentos diferentes e com um
436
espaço bom de tempo entre uma e outra. Sempre tive sorte em
relação aos demais convidados, pois não houve algum que eu
não gostasse, então tive oportunidade de conhecer vários
famosos que admiro: Ney Matogrosso, Bruna Lombardi, Pedro
Bial, Fabiana Karla, Grazi Massafera etc.
***
Estar de frente com a Marília Gabriela por duas vezes, uma no
‘De frente com Gabi’ no SBT, e depois no ‘Marília Gabriela
Entrevista’, no GNT, foram momentos inesquecíveis, pois
sempre a admirei e a considero como uma das mulheres mais
inteligentes que já conheci, por isso, foi uma honra ter tido as
duas oportunidades para ser entrevistada por ela. Assim como
aconteceu com Serginho, ela me deixou tão à vontade que
quando relaxei, esqueci que estávamos sendo filmadas. O filho
dela, Theodoro, atuou no filme ‘Bruna Surfistinha’, interpretou
o apresentador de televisão que entrevista a Bruna.
***
Comecei a acompanhar e admirar o trabalho de Fabrício
Carpinejar com vinte e poucos anos, acho incrível a visão que
ele tem sobre relacionamentos e outras questões da vida.
Já era seguidora e leitora dele quando fui convidada para
participar do programa ‘A Máquina’ na TV Gazeta, em 2013.
Gosto do humor inteligente do Carpinejar, ser entrevistada
por ele foi uma das entrevistas que mais me diverti.
Em 2018, um trecho dessa entrevista, viralizou na internet
e bombou de visualizações. Foi a parte onde conto sobre um
cliente que tinha o pênis tão pequeno que precisei fazer uma
pinça com os dedos para masturbá-lo.
Outra entrevista divertida foi com o Danilo Gentili, no ‘Agora é
tarde’, na Band. Fui um pouco tempo após ‘A Fazenda’ acabar.
Em certo momento, ele pegou um pepino, relembrou da cena
com Dinei e Compadre Washington, então pediu para que o
437
ensinasse a fazer sexo oral e me entregou o pepino. Com o
pensamento rápido, peguei e o levei até a boca do Gentili.
Ele quis me pegar de surpresa, mas eu que surpreendi. Por um
bom tempo, a foto nos perfis das redes sociais dele, foi uma
imagem que ele está com o pepino na boca.
Na infância, era fã número 1 da dupla Sandy & Junior. Minha
irmã do meio me levou em um show deles, foi presente de
aniversário. Em 2011, soube que a cachorra do Junior chama
Bruna Surfistinha. A justificativa dele? É porque ela é muito
dada. Amei a homenagem. Muito turu turu.
E o que falar da MTV? Deixou saudade e ótimas lembranças.
Passei a adolescência assistindo este canal, acompanhava a
maioria dos programas. Me sinto privilegiada por ter participado
de quase todos os programas que recebiam convidados entre
2006 e 2013, até acabar a versão raiz da emissora.
Minha última participação foi no programa ‘Adnet ao Vivo’, do
Marcelo Adnet. Tive muitos bons momentos nesta emissora.
Lembro do tanto de medo que estava de ser entrevistada por
João Gordo, mas ele me respeitou demais, fiquei perplexa.
Vivi duas experiências marcantes e inesquecíveis: participei do
VMB 2006, ao lado de Fernando Vanucci, entreguei o prêmio
de ‘Melhor performance ao vivo’ ao CPM 22, banda que sempre
gostei. Cinco anos depois, os reencontrei quando fizeram show
em ‘A Fazenda’ na edição que participei. Nos bastidores do
VMB, tive oportunidade de conhecer e conversar com o meu
ídolo e inesquecível Chorão, do Charlie Brown Jr., ele foi muito
simpático, sinto muito por ter ficado com vergonha de pedir
para tirar foto comigo. Baita arrependimento.
A outra experiência foi quando participei do ‘MTV Sem
Vergonha’ que era apresentado por Didi Effe e Titi Müller.
Amei ter sido entrevistado por estes dois lindos. E para a minha
surpresa, duas semanas depois, fui convidada para substituir a
Titi em um programa quando ela estava de férias.
Eu e Didi entrevistamos o Erasmo Carlos.
438
Em minhas viagens para divulgar o livro em países europeus e
da América Latina, recebi um tratamento como se fosse uma
diva brasileira. Sem exagero. Eu ficava muito sem graça, mas é
claro que aproveitei o máximo que pude, se queriam me tratar
extremamente bem, por que não aceitar? Fui muito mimada por
onde passei. Detalhe: na época, não existia o filme e a série, me
viam como diva apenas pelo fato de ter um livro na lista dos
mais vendidos no Brasil. Uma situação engraçada foi quando eu
e João estávamos em Buenos Aires. Saiu uma matéria enorme
no jornal ‘El País’ sobre mim e uma foto minha estampava boa
parte da capa. Pois bem. A moça que trabalhava na editora e
estava nos acompanhando, comentou conosco sobre um
restaurante super-romântico, perfeito para casais. Fez uma
propaganda maravilhosa e afirmou que não poderíamos ir
embora sem antes conhecer este lugar. Nos convenceu que
precisávamos ir naquela noite. Ela disse que era um dos
melhores da cidade e por conta disso, vivia lotado e tinha lista
de espera. Ligou para reservar uma mesa para nós dois para
aquela noite mesmo, pois iríamos embora da cidade no dia
seguinte. A pessoa que a atendeu, avisou que não havia mais
nenhuma mesa disponível, então ela contou para quem era,
falou que estava comigo, uma escritora famosa do Brasil, que
inclusive estava na capa do ‘El País’ naquele dia. Pronto.
Apareceu uma mesa rapidinho. Nos arrumamos e fomos.
Chegando lá, foi nítido que eles deram um jeitinho bem
improvisado e colocaram nossa mesa entre outras duas, ficamos
bem apertadinhos, os clientes ao redor nos olhavam sem
entender nada, ficou muito na cara que estávamos num espaço
que não era para existir uma mesa, não fazia o menor sentido.
Ficamos sem graça por estarmos ocupando um espaço que
estava incomodando os demais clientes, mas o que poderíamos
fazer? Já que estávamos lá, aproveitamos. Só faltou os
funcionários beijarem nossos pés. A comida era divina.
Restaurante realmente maravilhoso.
Infelizmente, não existe mais, era o ‘Te mataré Ramírez’.
439
CAPÍTULO 15 – Nasce uma mãe

Foram quase 38 semanas de gestação, o tempo passou mais


rápido do que imaginei. Aproveitei cada etapa, tentei sentir
todos os movimentos delas. No último mês, estavam bem
agitadas, quase não me deixaram dormir, não existia mais
alguma posição que pudesse considerar como confortável.
Minha barriga ficou linda, a admirava no espelho várias vezes
todos os dias, sem me importar com a estética. Ganhei 23
quilos no total. Aproveitei para comer tudo o que quis, sem um
pingo de culpa. Tive apenas dois desejos: melancia e aquela
coisa que chamamos de pipoca doce, mas parece que estamos
comendo pedacinhos de isopor, com a embalagem plástica
vermelha. Apenas. Um dia enjoei com o cheiro do desodorante,
outro dia com cheiro de feijão preto. E só. Os únicos problemas
de saúde que tive foram a infecção urinária no quarto mês e
anemia que foi controlada com vitaminas por toda gestação.
Probleminhas básicos. Minha pressão se manteve baixa como
sempre foi. Passei longe de ter diabetes. Ainda bem.
Xico fez tudo por mim, para meu conforto e bem-estar, me
senti muito amada, todos os dias. Ele teve uma paciência
admirável nos dias que meu humor estava insuportável.
Hormônios bombando, uma montanha russa de emoções.
Não houve chá revelação, chá de bebês e visitas na maternidade.
Meus amigos em São Paulo se reuniram e fizeram uma surpresa
para mim, me presentearam com uma quantidade grande de
coisas lindas de enxoval. Tive muitos choros sem motivos ou
com, mas existiu mais sorrisos. Teve dias que me perguntei se
estava sonhando. Todos os dias agradeci a Deus, Orixás e guias
espirituais por terem me abençoado. A chegada delas é a
resposta de tantas perguntas íntimas que me fiz e busquei.
Para quem duvidou se eu merecia ser mãe nesta vida, veio uma
gestação gemelar. Duas de uma vez, numa tacada só.

440
Tudo em dobro: amor, despesas, manhas, fraldas, chorinhos,
planos, sorrisos, preocupações, medos, castelinhos na areia etc.
Os dias têm sido exaustivos demais, vivemos por elas, somos
delas, é tudo por elas. Ter duas bebês amorosas e risonhas não
tem preço. Houve muita reflexão durante toda a gestação.
Pensei em tudo que poderia ter feito diferente para recebê-las
em uma situação melhor emocionalmente e financeiramente.
Agora é pensar daqui para frente, por e com elas. Chegou o
momento de colocar em ordem toda a bagunça que sou.
Chega de me sabotar e de procrastinar. Chega de me torturar.
Minhas meninas cariocas. Será que vão puxar o meu sotaque ou
o do pai? Será que vão falar bolacha ou biscoito? Só não vão
poder colocar catchup na pizza, a mamãe aqui não vai deixar.
O parto foi emergencial, precisamos salvar Elis, ela precisou
ficar duas semanas na UTI neonatal para fortalecer o coração e
atingir dois quilos para receber alta. Quando a visitava e a via na
incubadora com vários fios presos no corpinho, mesmo com o
coração angustiado, eu não conhecia chorar, ela me transmitia
uma força e calma inexplicável. Pequenas virginianas com mãe
escorpiana e pai canceriano, um combo intenso e perfeito.
Estou amando acompanhar a evolução diária, é uma novidade
por dia, para elas e para a gente. Não sabemos mais o que é
dormir três horas direto. A demanda aqui é livre. Mãe de
gêmeas, quem diria. Adeus, vidaloka. É tão gostoso admirar a
relação que elas estão criando com o pai. Elis é um bebê
empelicado, nasceu dentro da bolsa intacta. Maria e Elis são
meus bebês arco-íris. Geração Q de quarentena. Elas terão uma
infância leve, doce, recebendo muito amor, vão brincar até
cansar. Não vejo a hora da fase de começarem a brincar,
desenhar no papel, assistir desenhos na TV, tagarelar, castelos
de areia na praia. Mas estou aproveitando a fase enquanto são
bebês, sei que sentirei falta, pois já sinto da gestação. Se depender
de mim, serão as mulheres mais felizes deste mundo!
Uma mulher que está realizando o sonho da maternidade não
quer guerra com ninguém! Salve a força feminina!!!
441
***
A vida é feita de escolhas, momentos, recomeços e ciclos.
Fiz muitas escolhas erradas e outras tantas certas. No meio de
momentos ruins, guardo na lembrança outros incríveis que vivi.
De todos meus recomeços, sem dúvidas, este é o mais bonito.
Ainda bem que não desisti de buscar a felicidade, demorou, mas
a encontrei aos meus 36 anos. E nunca é tarde para a gente
começar a viver da maneira que sempre desejamos. Continuarei
cuidando de mim, no meu tempo. Durante minha gestação, me
limpei de todas as mágoas e sentimentos ruins que carregava.
O nascimento de minhas filhas foi o meu renascimento.
Desejo que Maria e Elis aprendam com muito amor tudo o que
precisei aprender na dor.

***

- Quem está nas trincheiras ao teu lado?


- E isso importa?
- Mais do que a própria guerra.
(Ernest Hemingway)

Agradeço aos melhores amigos do mundo que amo tanto e que


estão na trincheira comigo:
Ana Paula Genioli, Bio Marques, Chrisinha, Eli, Fê Sanz, Fê
Rocha, Jana, Linda, Lidi, Marcella, Mitti, Pati Arruda,
Renatinha, Ricardo, Rochelle, Will.

***

Quer continuar acompanhando meus textos e momentos da


minha vida?
www.mechamaderaq.com.br

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ressignificar v.t.d
Adaptar-se por inteiro. É atribuir um novo significado para a
vida. É enxergar oportunidade até mesmo nos piores
momentos. É ter coragem para mudar. É enfrentar as dores de
peito aberto e aprender com elas. É encontrar novos caminhos
para realizar os sonhos. É ser perseverante no amor.

( José Lucas Moreira)

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