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1ª EDIÇÃO
2022
SUMÁRIO
Capítulo 1
Capítulo 2
Capítulo 3
Capítulo 4
Capítulo 5
Capítulo 6
Capítulo 7
Capítulo 8
Capítulo 9
Capítulo 10
Capítulo 11
Capítulo 12
Capítulo 13
Capítulo 14
Capítulo 15
Capítulo 16
Capítulo 17
Capítulo 18
Capítulo 19
Capítulo 20
Capítulo 21
Capítulo 22
Capítulo 23
Capítulo 24
Capítulo 25
Capítulo 26
Capítulo 27
Capítulo 28
Capítulo 29
Capítulo 30
Capítulo 31
Epílogo
Agradecimentos
Sobre o Autor
Créditos
Para todos os garotos gays que um dia já se
perguntaram o que havia de errado com seus
cupidos.
Quando percebo quem está na minha frente, dou um passo pra trás
numa reação involuntária. Não precisa de muito pra eu perceber que
não estou mais no banheiro da minha empresa. Agora estou numa
sala escura, com uma única fonte de luz iluminando o meu avô.
Na sala gigante, as janelas vão do chão até o teto e, na
penumbra, consigo enxergar que estou num ambiente luxuoso,
provavelmente no último andar de um dos maiores arranha-céus da
cidade. À primeira vista, apenas uma sala para reuniões, mas
depois que examino melhor percebo que o espaço é grande demais
para isso. A julgar pela cadeira de escritório em que o maior deus do
Olimpo está sentado, o local se assemelha muito mais a um tribunal.
Zeus usa um terno preto, ou talvez esteja escuro demais para
que eu consiga perceber a verdadeira cor. Seu rosto aparenta estar
mais velho, mas mesmo assim continua austero como da última vez
em que nos vimos, logo após o assassinato de Narciso. Branco, alto
e com olhos de um azul-profundo. Quase a imagem perfeita que
inspirou gerações e gerações de Deuses superpoderosos. Deuses
que não necessariamente existem, ou melhor, existem numa só
figura: a dele. A crença em infinitos nomes o alimenta e também o
mantém no mesmo trono desde quando a humanidade ainda
engatinhava nesse planeta.
Ele então se levanta da cadeira, e consigo perceber que a única
característica que o diferencia das imagens que a maioria da
humanidade tem dele ainda continua ali. O olhar carregado de ódio.
Os cabelos não são completamente brancos, têm um tom de cinza.
Eu sempre nutri a teoria de que ele jamais os deixaria clarear por
completo, baseado num medo infundado de que todos iriam
enxergar sua velhice como um sinal de fraqueza. Quando ele se
movimenta, abajures que estavam escondidos se acendem e, junto
deles, um arrepio se espalha por todo o meu corpo.
— Eu poderia mentir e falar que é um prazer revê-lo. — A voz
grave ecoa por todo ambiente. — Mas você sabe muito bem que
alguém tão poderoso quanto eu não precisa ficar de conversa-fiada.
Engulo em seco rapidamente. Não quero demonstrar nenhum
sinal de fraqueza. Ele interpreta o meu silêncio como um
consentimento para continuar a falar.
— Na última vez em que nos falamos, pensei que tinha sido
claro — ele continua —, mas aqui estamos nós, em uma conversa
que não poderia me interessar menos, em que preciso te punir por
abusar dos dons que EU TE DEI para unir aberrações COMO VOCÊ! —
A última frase sai num só grito.
Minha mente se divide em dois estados completamente opostos.
Uma parte de mim sabe que chegou o fim, que tudo está acabado e
hoje talvez tenha sido o último aniversário que tive a chance de
viver. A outra está desesperadamente em busca de palavras que
possam manter a conversa acontecendo, de uma resposta que ao
menos demonstre um pouco da dignidade que penso ter acumulado
durante os últimos séculos.
— Não fui o único a não cumprir com as promessas feitas no
Olimpo, Zeus. — Ele se surpreende comigo o chamando pelo nome.
Ele suprime a breve surpresa com uma risada irônica.
— Provavelmente o seu tempo vivendo entre os mortais atrofiou
a sua cabeça — ele me responde. — O que te faz pensar que você
tem o direito de me questionar sobre qualquer coisa?
É a minha vez de me movimentar. Meu avô sempre foi fã de
joguinhos e uma vida de sofrimentos me ensinou a jogar.
— Pelo que me lembro do nosso acordo, eu devia unir casais
heterossexuais — explico. — E, em troca, você não matava
ninguém, abre aspas, da minha espécie.
Ele continua me encarando com desdém, um olhar que aprendi
a reconhecer durante todos os anos convivendo com a minha mãe.
— Não sei se você acompanha notícias do mundo mortal de
onde quer que você governe hoje em dia — continuo a falar,
ganhando tempo para pensar num argumento que me salve. — Mas
todos os dias nós estamos morrendo. Você está vencendo, Zeus.
— Não tenho culpa pelo que os mortais decidem fazer, mas
pode acreditar que, se dependesse apenas de mim, não existiria
nenhum de vocês para morrer nos dias de hoje. — Mesmo na
explicação consigo notar o orgulho na voz dele ao falar sobre os
assassinatos diários da população queer.
É claro que ele não ia assumir o jogo sujo. O que eu estava
esperando? Que ele desse um passo à frente e dissesse que
alimentou o preconceito humano durante milênios com toda a
história de sodomia? Que ele assumisse que a religiosidade
fanática, grande parte alimentada por homens como ele, foi o
sinônimo da nossa perseguição? Não, é claro que ele não admitiria
a responsabilidade.
— Então por que você se importa? — retruco.
— Meu querido neto, meus poderes, os mesmos que garantem a
sua imortalidade imbecil, vêm da tradição — ele começa a explicar,
como se eu fosse uma criança.
A resposta não me satisfaz. É claro que os imortais se mantêm
no poder durante tanto tempo graças a uma manutenção de valores
que sempre os mantém no topo. Nunca tive dúvidas de que meu
avô sempre esteve presente nos momentos de maiores mudanças
da vida humana. Criando vilões quando a humanidade precisava
voltar a se apegar a ideais fantásticos, sussurrando informações
quando guerras precisavam ser vencidas e até fornecendo
tecnologias em pontos de pouco avanço.
Mas nada disso explica por que ele se importaria com o fato de
um aplicativo unir casais LGBTQIA+. Diariamente isso ainda
acontece. Mesmo que a passos de tartaruga, a comunidade
prospera. Que diferença faz a existência de um aplicativo para isso?
— Então, não vai ser um Deus menor com manias sórdidas que
irá atrapalhar a minha ordem agora — ele continua o discurso
maquiavélico. — Por conta dessa desobediência, é claro que eu
preparei um castigo à altura. Isso é claro, se você quiser preservar
sua imortalidade.
Dois pensamentos cruzam minha cabeça na mesma hora. O
primeiro é de puro terror, já que as feridas da morte de Narciso
ainda estão acesas como brasa, mesmo que os sentimentos tenham
virado uma brisa perto da tempestade que já foram. Por fora, ensaio
um dar de ombros que vai demonstrar como me importo pouco com
a imortalidade. Mas a verdade é que me importo, sim. Depois de
tanto tempo, os mortais continuam me dando motivos pelos quais
ainda vale a pena estar vivo.
O segundo pensamento surge tão rápido quanto o medo. Um
questionamento de por que Zeus precisa me castigar por tudo o que
fiz, quando ele mesmo poderia acabar com tudo agora. Ao retirar
minha imortalidade, todos os problemas dele estariam resolvidos.
Por que meu avô ainda me mantém numa coleira que claramente
ele não consegue controlar?
Decido me apegar ao segundo sentimento. Mesmo exausto de
carregar um fardo muito maior do que a minha existência, gosto de
acreditar que ainda existe alguma força lutando a favor dos nossos.
— E se eu me negar? — pergunto, enquanto viro de costas para
esconder o medo.
— Ora, Cupido, a essa altura achei que você já tivesse
aprendido a lição de como os mortais são frágeis. — Se eu não
tivesse virado de costas, talvez pudesse ver o quanto ele ficou
vermelho com a minha frase. — Ou você já se esqueceu do
Alvinho?
Volto a estremecer. A lembrança desse nome me deixa
paralisado, por um momento até esqueci como respirar. Há mais de
vinte anos me pergunto se o que aconteceu com o meu amigo tinha
sido um acaso do destino, ou obra do meu avô. A provocação ajuda
a responder às minhas dúvidas. Então ele estava por trás de toda
aquela desgraça. Em um jogo no qual o meu adversário conhece
todos os meus pontos fracos, é impossível planejar qualquer jogada.
— Ou como é o nome da assistente mesmo? — ele continuou.
— Ah, não podemos nos esquecer também do seu sócio, né? O que
você contaminou com sua podridão.
Engulo o orgulho. O medo de colocar meus melhores amigos em
risco é maior do que a esperança de me livrar do fardo que meu avô
me incumbiu. Preciso de mais tempo para entender as escolhas
dele e, acima de tudo, mais tempo para encontrar uma alternativa
na qual os meus amigos não acabem mortos.
Ainda assim, algo não parece certo. Que Zeus é mestre em
esconder o jogo, todo mundo sabe, mas o que ele estava deixando
de me contar?
— Você se lembra do que aconteceu da última vez em que
ousou me desafiar — ele solta a última cartada.
Outra lembrança me faz fechar os olhos. Parte de mim ainda
acreditava que o que aconteceu alguns anos atrás também não
tinha nada a ver com meu avô. Que fora apenas fruto da ignorância
humana. Mas, sem surpreender a ninguém, o Deus do Amor estava
enganado de novo.
Preciso pensar rápido, agora não é a hora de me mexer no
tabuleiro. Preciso ficar algumas rodadas sem jogar, e isso significa
dar todo o poder ao meu avô. Os deuses amam jogar com os dados
do destino.
— Qual a sua oferta? — pergunto, fingindo uma rendição.
Ele abre um sorriso, enquanto sua mente diabólica começa a
tecer inúmeras possibilidades de como me fazer sofrer apenas para
aumentar sua própria diversão. Estava claro desde o início que eu
não teria apenas que desfazer o meu recente erro. Com Zeus,
arrependimento nunca era o suficiente.
— Finalmente agindo com a maturidade esperada de um deus.
— Zeus volta para a mesa dele. — Estou retirando, por hora, a sua
imortalidade e os seus poderes, até que você se prove digno deles
novamente. Você terá até o solstício de verão para unir o primeiro
homem e a primeira mulher que você encontrar, sem usar os seus
poderes. É na paixão dos dois que você encontrará a sua salvação.
Espero-o continuar. Suas tarefas nunca vieram sem uma
condição clara do que aconteceria com aqueles que falhassem em
cumpri-las. Até Hércules sabia que nenhuma tarefa era proposta
sem um preço igualmente alto a ser pago no caso de uma derrota.
— Caso você não consiga, sua imortalidade será perdida para
sempre e todo o império que você construiu em volta dela irá
desabar. Junto, é claro, de todos os seus seguidores — ele termina.
A última frase soa como uma navalha diretamente em minha
jugular.
Então, caso eu não cumpra as condições, não só perco minha
imortalidade, como também o Finderr e todos que estão diretamente
envolvidos nele.
O que preciso fazer para preservar tudo é unir um casal sem
usar meus poderes. O jogo parece fácil demais, mesmo que os
riscos sejam altos. Que regras ainda desconheço?
O tempo que levo para respondê-lo vem diretamente do pânico,
mas gosto de pensar que ao menos por um momento ele me viu
considerar. Quero pensar que o meu avô ainda acredita existir em
mim mínimas quantidades de orgulho e autopreservação. Não sei se
é isso o que acontece, mas, pouco antes de responder, não
encontro o olhar de indiferença típico de Zeus. Curiosidade?
Divertimento? Insegurança? Essa é uma resposta que se torna
irrelevante no momento em que eu finalmente o respondo:
— Aceito — digo e minha voz sai confiante, mesmo com uma
tremida perto do fim.
Meu avô volta a se encaminhar para sua cadeira no fim da sala.
Ele senta-se antes de me direcionar um último lembrete.
— Lembre-se: até o solstício de verão, nem um minuto a mais —
ele finalmente vira a cadeira de costas pra mim.
Antes que eu perceba, estou de volta ao banheiro. Meu rosto
está úmido e não consigo decidir se é da água que joguei alguns
minutos atrás ou do suor que toda essa situação me causou.
Finalmente solto a respiração e, de repente, percebo o quanto
estava me segurando desde o momento em que o encontrei. O
fôlego sai em tremores, exatamente como acontece comigo antes
de um ataque de pânico.
Não posso me dar ao luxo agora e começo a olhar todos os itens
ao redor. Toalha. Talvez eu consiga mandar uma mensagem para
alguns conhecidos que possuem uma energia similar e pedir a eles
para me encontrarem. Torneira. Bom, e se eu não tivesse aceitado,
seria mesmo uma má ideia? Pia. Lixo. Preciso pensar em tudo isso
com mais clareza, preciso voltar para casa.
Me abaixo para lavar o rosto mais uma vez e ver se o frio da
água ajuda a me acalmar. Ainda abaixado, escuto a porta se
abrindo. Quando levanto a cabeça, descubro que meu avô não é a
última pessoa que eu gostaria de encontrar nesse momento.
— Finalmente eu te achei! Pensei que você tinha passado mal
depois de tanto vinho — diz meu sócio e melhor amigo, olhando na
minha direção.
Pelo amor dos deuses, será que existe um jeito deste dia ficar
pior? Agora vou precisar unir o cara por quem sou apaixonado com
a primeira mulher que eu encontrar. Então a porta se abre de novo.
— Ah! Ainda bem que você já achou ele. Eu já ia ligar pros
seguranças! — Bruna entra afobada no banheiro e me olha com
preocupação.
É muita informação para processar. Então a minha ansiedade
age por conta própria e eu simplesmente apago.
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