Você está na página 1de 4

A Dádiva do Tempo – Abigail Lemos Ribeiro

Mesmo pensando longe, ainda consigo ouvir o tique-taque das máquinas enquanto
sinto essa dor e incerteza no peito, querendo que o tempo pare ou ande mais rápido, algo
que que poderia fazer se não fosse acabar atrás das grades por descumprir as regras da
empresa em que trabalho, onde ajudo controlar uma das coisas mais importantes para as
pessoas do Mundo Grande, o tempo, mas mesmo tendo certo controle sobre algo tão
esplendido sinto não ter controle algum sobre nada, nem mesmo sobre minha própria
vida.

De repente meu pensamento é abafado por uma gargalhada escandalosa misturada


com tosses que escapavam no meio dela.

— Mas onde está essa tal Carina meu filho? — me aproximei ao ouvir meu nome
do lado de fora.

— Ali está ela senhor! — disse meu colega de trabalho, apontando para mim,
então dei um sorriso amarelo sem entender muito bem a situação.

— Estava contando para o Raimundo o quanto você é toda atrapalhada, por isso
estava encaixotando as peças para você. — Ao ouvir a explicação do meu colega de
trabalho, só consegui ficar mais sem graça.

— Prazer em conhecê-la filha! Parece que agora trabalhamos juntos também, pode
me chamar de Raimundo. — disse-me o senhor grisalho, estendendo a mão enrugada, que
cumprimentei educadamente. Abri um sorriso ainda maior e disse-lhe:

— Prazer em conhecê-lo senhor Raimundo, tenho certeza de que daremos uma


ótima dupla!

Chegando ao trabalho, às sete da manhã, caminho pelos corredores da fábrica,


mesmo caminho de sempre, passo pela ala do passado, onde estão os encarregados das
histórias, das lembranças e dos aprendizados das pessoas do Mundo Grande, algo muito
importante, nada comparado com o que eu faço, coisas simples como cuidar dos relógios
e da percepção de tempo. Fico pensando se ao menos notariam minha falta se eu sumisse,
afinal a menina magricela que aperta parafusos é totalmente substituível. Correndo os
olhos pelo lugar, ao fundo do corredor consigo enxergar alguém indo atrás de mais um
robô fugitivo na ala do futuro, não consegui segurar a risada.

— Aí está mais uma prova do quando o dia está lindo, olha só esse sorriso! —
anunciou Raimundo, quando cheguei na porta da sala.

— Bom dia Raimundo!

— Olha só esse céu, esse sol, mais um dia perfeito para trabalhar! — exclamou
ele.

— Trabalhar? Mas se está tão lindo não deveríamos estar lá fora aproveitando o
dia? Ao invés disso temos que ficar enfurnados aqui dentro, isso não tem nada de perfeito!

Ele me olhou perplexo, mas ao mesmo tempo com compreensão.

—Também pensava isso na sua idade, mas depois de anos, percebi que como não
podemos ter tudo o que queremos, também não podemos deixar que o que temos nos
impeça de ser feliz ou de ter um dia perfeito, mesmo que seja dando o nosso melhor no
trabalho.

— Onde o senhor trabalhou todo esse tempo?

— Trabalhava na ala do presente — Lá cuidam dos acontecimentos rápidos e dos


imprevistos bons ou ruins do dia a dia —, mas às vezes, me desmotivava ver que as
pessoas do Mundo Grande não valorizavam nosso trabalho. Quando os visitava, me sentia
desmotivado pela ingratidão, acho que por isso tenho tantas rugas.

— Acho que é porque nada atinge as expectativas deles, ou eles têm medo do que
pode acontecer, consigo entendê-los, me sinto um pouco assim, mesmo vivendo eu um
mundo tão diferente do deles.

— Mas se viverem com medo, como vão viver?

Fiquei muito pensativa com o que Raimundo disse. Ele sempre fazia isso comigo.
No final de cada dia de trabalho, após seus conselhos inspiradores que surgiram com a
idade, me questionava se na verdade era eu que me sentia substituível, eu não deveria me
sentir assim, deveria lutar contra essas tantas angústias.
Estar ao lado de Raimundo era como estar com o avô que nunca tive. Depois de
poucos meses de trabalho juntos já confiava nele mais do que ninguém. Contei que nunca
conheci meus pais, só tinha uma foto deles, com minha mãe ruiva e meu pai de olhos
escuros como os meus. Ele me contou sobre sua esposa, eles se conheceram no trabalho
e como ele mesmo afirmou, ela foi o maior presente de sua vida. Fiquei muito grata por
ter feito um novo amigo.

— Aqui pequena, para combinar com seus cabelos. — Raimundo disse colocando,
com as mãos tremendo, uma rosa vermelha em meus cabelos ruivos.

— Ela é linda! — disse, olhando-me no espelho. — Não precisava disso.

— Achei que seria um bom presente de despedida, já que estou me aposentando.

O sorriso sumiu do meu rosto.

— Mas o senhor acabou de chegar!

— Não querida, tenho certeza de que já estou nesse mundo a mais de 60 anos, já
passou da hora... — Não acredito que ele me fez rir — além do mais não estou mais em
condições.

— Como assim? — disse apesar de não ter certeza se queria saber a resposta.

— Não estou me sentindo muito bem, só isso. — Me lembrei de tantas tossidas e


espirros que ele me disse que era apenas poeira.

No final do dia o acompanhei até a saída passando pela ala do futuro, que ele me
explicou que era onde eles cuidavam das mudanças, das inovações e evoluções, como se
fosse a primeira vez que eu passasse por ali. Do lado de fora, nos sentamos em um banco,
logo abaixo de uma árvore com o pôr do sol atravessando seus galhos, refletindo em
nossos rostos.

—Vou sentir tanto sua falta, o senhor foi o colega mais engraçado e sábio que eu
já tive.

Eu piscava para conter as lágrimas.


— Não fique assim pequena, fico feliz em ter alegrado seus dias, quando te
conheci, parecia tão tristinha.

— É porque eu achava que estava presa aqui, queria conquistar coisas maiores,
poder ir para o Mundo Grande, mas achava que eu era insignificante e tinha essa dor no
peito de ansiedade, que me lembrava de cada passo errado que dei e me fazia pensar que
não era capaz — disse com as mais sinceras palavras — isso não me deixava ser feliz,
então o senhor veio e me mostrou o quanto é simples colocar um sorriso verdadeiro no
rosto de alguém.

— Oh minha pequena... — Ele me aconchegou em seus braços — fico feliz em


ter ajudado a tirar esse peso de seus ombros, nunca mais duvide de que é capaz e sei que
logo poderá conhecer o Mundo Grande — Esse tal mundo, pelo qual trabalho tanto,
ajustando o tempo para eles, mas não faço ideia de como é. —, mas agora tenho que ir
pequena, se cuide!

Ele estava certo, não muito tempo depois, conheci o Mundo Grande, eles são como
nós fisicamente, mas traçam seus próprios caminhos com suas escolhas, lá vi de tudo,
existiam profissões incríveis, como músicos, professores, atores ou até médicos, algo que
não temos aqui, já que é o tempo que controla tudo, quando chega a hora de alguém partir,
não há remédio que impeça.

Fui até a casa de Raimundo, sua esposa atendeu a campainha e me levou até onde
ele estava deitado, me juntei a ele, colocando a cabeça sobre sua barriga, que acredito que
foi a primeira que conheci, já que ela sempre chega primeiro que ele nos lugares. Nem
precisavam palavras, dava apenas para sentir, a lágrima escorria em minha bochecha e
pelos pés de galinha da pele de Raimundo, minha cabeça subia e descia com sua
respiração, até que não subiu mais. Lembrei do Mundo Grande onde isso poderia ser
impedido, pelo menos por um certo tempo, mas tenho a certeza de que ele não precisava
de mais tempo, pois aproveitou cada momento sem esperar ter tudo para ser feliz, espero
que as pessoas do Mundo Grande façam o mesmo.

Você também pode gostar