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UNIVERSIDADE DO VALE DOS SINOS – UNISINOS

UNIDADE ACADÊMICA DE GRADUAÇÃO


CURSO DE PSICOLOGIA

DIENNIFER COUTO BITTENCOURT


VERÔNICA ROSA

NARRATIVA:
Só mais um dia, porém em duas visões.

SÃO LEOPOLDO
2018
“E sua alegria se tornava inquieta,
batendo as asas dentro dela, como
quem busca uma chance de sair
voando.” Chimamanda, (p. 72).

VISÃO DA DIENNIFER

Sair de casa, sem rumo e sem intuito, pode ser um desafio para tantos
e tantas, porém, para mim, era maior: escolhi um dia de chuva. Mas, apesar do
aconchego do lar em dias como este, me propus a esta aventura. Saí com meu
guarda-chuva, e minha cabeça avoada, achando que estava plenamente
preparada para o que o mundo lá fora me reservava de inusitado e (im)previsto,
mas logo percebi: esqueci e saí de chinelo. Pois bem, a chuva batendo gelada
em meus dedos desprotegidos me fez refletir sobre a minha falta de atenção
com, basicamente, a maioria das coisas que faço no meu dia a dia.

Apesar da chuva batendo, o dia não estava fresco, e muito menos frio.
Estava um dia abafado, como estes regulares de verão quando chove; o céu
estava em uma cor acinzentada, o que particularmente acho bonito de apreciar,
pois esse tom de melancolia agrada aos meus olhares. Imaginei naquele
momento, embaixo daquela chuva, todas as pessoas que, por algum motivo,
estavam à olhar aquele dia como eu, e me peguei imaginando se algumas delas,
nesse momento, ao redor da cidade, estaria apreciando esse tom melancólico
que o dia nos oferecia.

Saí em direção à praça principal da cidade, a Praça da Matriz, que fica


em frente à uma igreja, a qual por anos, frequentei. Porém, no meio do caminho,
encontrei um senhor, o qual sempre converso esperando o ônibus para a
faculdade. Ele me olhou, me cumprimentou sorridente, apesar desse
visivelmente “triste”, e disse: “Oi! Está com pressa? Queria te mostrar uma
coisa.” Cumprimentei-o de volta, disse que não estava com pressa alguma, e o
mesmo entrou em seu apartamento, enquanto eu sentava na parada de ônibus
para esperá-lo. Voltou lá de dentro com uma foto em mãos e um brilho nos olhos,
sentou ao meu lado e disse: “Toma, olha essa foto”. Peguei-a nas mãos e vi duas
pessoas sorridentes, emaranhadas em roupas de inverno, cercadas por um lugar
lindo coberto de neve. Ele me disse: “Estes somos eu e minha esposa, anos
atrás, numa cidade aqui do Rio Grande do Sul, em uma época do ano que
nevava, a coisa mais linda do mundo, levei ela lá pra ver”. Contou-me a história
da viagem, de como eles se divertiram e de como ela adorou aquele lugar. Eu
só sorri naquele momento, achando encantadora a expressão no rosto dele ao
me relatar detalhes da viagem dos dois. Logo, ele me disse que ela havia morrido
há alguns anos atrás, que agora ele estava sozinho por aí, pois não ganhava
muitas visitas de familiares, mas que gostava de dias assim, cinzentos, pois ela
adorava, e esses dias traziam, para ele, uma lembrança muito confortante da
presença dela. Me peguei estranhando aquele momento, pois, apesar das
circunstâncias, ele não conseguia parar de sorrir olhando aquela foto e me
contando toda aquela história, e achei lindo e pura a maneira como ele escolheu
de encarar a situação. Além de, obviamente, encher os olhos de lágrimas, me
contive e sorri, pois encontrei uma pessoa que, naquele momento, também
estava apreciando o dia nublado como eu, cada um por seus motivos.

Depois, em direção à praça, tentei esvaziar a mente, procurando ouvir e


observar tudo com a maior transparência possível. O mais engraçado é que,
percebi que nunca vamos conseguir enxergar as coisas com a maior
transparência possível, pois, mesmo tentando, naquele momento, ter a visão
mais clean possível, por trás, eu ainda tinha um intuito com aquilo, que era o
trabalho para a cadeira, e não o simples fato de querer entender mais a realidade
e a naturalidade das circunstâncias ao meu redor.

No caminho para a praça, observei as pessoas, os seus hábitos,


algumas manias e o jeito com o qual estavam levando o seu dia. Num âmbito
geral, a maioria estava um pouco estressada, por ter que realizar seus afazeres
em um dia chuvoso, andando com os guarda-chuvas pela calçada, tentando
desviar das pessoas ao seu redor. Percebi, em alguns, feições alegres, a maioria
irritados, e alguns neutros, se assim posso me referir. Estranhei, naquele
momento, uma criança, extremamente feliz, brincando em algumas poças de
água, enquanto a mãe conversava com outra pessoa, estando ela um pouco
irritada pois a criança não parava de se mover por um minuto que fosse, e
percebi ali como somos diferentes, como temos visões diferentes das situações
e como nos deixamos diariamente ser facilmente afetados pelas menores coisas
possíveis que acontecem ao nosso redor.
Chegando até a praça, o intuito era sentar e observar os acontecimentos
ali ao redor, mas vi que tudo estava parcialmente encharcado, então resolvi
permanecer em pé, em um lugar mais ao centro da praça, embaixo de árvores,
onde conseguiria uma visão mais ampla do lugar. Ali esperei por algo
extraordinário acontecer, claro, pois queria um relato interessantíssimo para a
minha narrativa. Pois bem, não foi o que aconteceu. Os únicos acontecimentos
que ali perpetuaram foram cachorros fazendo um passeio diário, com um intuito
óbvio, eu diria, pois, a maioria dos cachorros “fizeram seu trabalho” para a
felicidade (ou não) de seus donos. Apenas um dos que passaram não completou
sua tarefa. Ele rodou e rodou por tempos a praça, brincando com as plantas,
seguindo pessoas, correndo da sua própria dona e, por um momento, me senti
como aquele cachorro, totalmente à parte quanto aos meus afazeres diários que
me mobilizam todos os dias, apenas procurando me divertir fazendo coisas
absurdamente normais.

Passei mais um tempo naquela praça, ouvindo os sons altos dos carros
no asfalto, dos cachorros latindo, das conversas paralelas, de uma fruteira
anunciando as ofertas do dia, de passos apressados, de passos lentos, da chuva
fraquinha batendo no meu guarda-chuva, e me entediei.

Procurei seguir caminho pela rua principal da cidade, para o lado onde
fica a Lagoa Armênia, o ponto turístico mais procurado por lá. Percebi as ruas
mais vazias para aquele lado, visto a distância tomada da área comercial. Mas
foi ali que tive um último encontro, caminhando pela rua. Naquele ponto da minha
caminhada a chuva tinha cessado, e eu estava perto de uma pracinha da cidade,
e avistei uma quantidade exorbitante de crianças naquele lugar, e logo avistei
algumas professoras, concluindo ser um passeio de escola. Tentei não julgar
naquele momento, mas somos humanos, e fazemos isso com frequência, e me
peguei pensando de quem foi a genial ideia de trazer crianças na pracinha após
um período longo de chuva. Mas isso não pareceu importar para elas, as
crianças, pois brincaram como se estivesse tudo seco e impecável, e me peguei
refletindo sobre essa parte inicial da nossa vida, como tudo é bom, nada tem
defeitos, e conseguimos nos agradar com facilidade.

Fiquei por minutos observando cada criança, seu jeito particular de se


divertir ali, sendo sozinha ou com outros colegas. Mas logo a felicidade acabou,
pois tinham que se retirar com suas professoras de volta para a escola, e fiquei
observando todos formando filas, andando de mãos dadas, imagino que com o
intuito de que nenhuma se perdesse, porém três crianças não quiseram andar
de mãos dadas com ninguém, uma delas disse: “Não preciso de mão prof, não
vou me perder, eu sei o caminho.” Achei engraçada a cena, e me peguei
pensando sobre como queremos sempre ser independentes, querendo crescer
mais rápido, saber fazer as coisas sozinho, como se isso fosse algo que
devemos nos vangloriar. Eu me vi nessa criança, sempre querendo resolver tudo
sozinha e tentando ser o mais independente possível, e percebendo que nem
sempre esse é o melhor caminho para tudo.

Por fim, voltei à minha casa, pensando sobre como tornaria essa
narrativa algo interessante de se ouvir ou ler. Mas percebi que nem tudo precisa
ser interessante, nem tudo precisa de propósito, e nem tudo precisa de um fim
lindo e emocionante, ou drástico, ou engraçado. As coisas simplesmente
precisam ser.

“Em um tempo de capturas advindas do que


poderíamos chamar de uma sobrevalorização do
imaginário, pensar o olhar como ferramenta para um
trabalho do psicólogo social é tanto pertinente quanto
indicativo de perigo. Pertinente porque atentar para o
olhar numa sociedade marcada pelas imagens é colocar
em questão o estatuto do visível, na medida em que a
produção de imagens através das novas tecnologias
coloca uma nova dimensão para o imaginário e nossa
capacidade de ver.” Diehl e cols., (p. 412).

VISÃO DA VERÔNICA

Se tem algo que me deixa totalmente desconfortável, é sair para resolver


contas no centro, encarar filas gigantes em todo lugar que eu entro. Mas pior
ainda, é sair para fazer isso em um dia de chuva.

Moro em uma cidade pequena, o centro de compras obviamente é


pequeno também, em dias de chuva, as ruas ficam lotadas, ninguém consegue
caminhar, sempre temos que estar desviando na calçada das pessoas e se
batendo sem querer com os guarda-chuvas. Além disso, eu ainda tinha que
observar todos os detalhes desse dia, que eu queria que passasse logo, para
fazer uma narrativa dele.
Como diz minha avó “nem tudo na vida são flores”, então lá fui eu, viver
este dia.

Cheguei na avenida do centro, como eu já esperava, estava impossível


estacionar o carro, tudo estava lotado. Enquanto eu procurava uma vaga para
estacionar, me deparei com meu primeiro encontro, um índio que está morando
na minha cidade, ele estava na Praça da Matriz, que fica em frente à igreja
católica. Estava sentado em um banco, que respingava pouca água da chuva, e
assim, conseguia fazer seus artesanatos. Ele estava fazendo um filtro dos
sonhos. Desde muito pequena, eu sempre tive um apego inexplicável por filtro
dos sonhos, amo o que ele representa e sempre colecionei muitos. Ao lado dele,
tinha uma criança, penso que era filho dele, que estava sentado também. Mas
estava no chão úmido, e pelo seu rostinho, percebi que estava desconfortável
aquela posição, aquele jeito de sentar passando frio e se molhando, mas ao
mesmo tempo, percebi que ele, tão pequeno, já estava acostumado com aquele
tipo de vida.

Em primeira parte, aquela cena me deu uma certa felicidade, pois vi o


filtro dos sonhos e lembrei-me de todos os que coleciono em casa, e tinha a
oportunidade de comprar mais um, mas não pude, pois estava com o dinheiro
contado para pagar as contas. Quando pensei em comprar um, ao mesmo tempo
que me sentiria feliz de ter mais um para minha coleção, eu lembrei de outros
aspectos da minha vida e da maioria das pessoas, nós nunca estamos satisfeitos
com o que temos, sempre queremos ter mais, mais blusas, mais sapatos, mais
um celular novo, mais uma tv pra casa, mais um armário pra cozinha, sempre
queremos o que não temos, sempre queremos ter o melhor. Me senti mal com
esse pensamento, pois eu não deveria querer mais, deveria me contentar com o
que eu tinha. Isso me fez pensar o quanto somos materialistas, o quanto
“amamos” os objetos e colocamos um valor gigante neles, e esquecemos de dar
valor a nossas relações do dia a dia, as pessoas que estão a nossa volta. As
vezes encontramos alguém pelo centro, que só precisa de um sorriso de alguém,
que só precisa ser percebida e valorizada por pelo menos um minuto do seu dia,
e essa pessoa nos passa despercebida, pois estamos ocupados demais
pensando no que mais temos para fazer, e acabamos deixando de fazer o dia
de alguém melhor.
Depois deste momento de reflexão, coloquei meus fones de ouvido e
segui com meu guarda-chuva, não ouvia nada que tinha na rua, apenas olhava,
parecia cena de um clipe. A música que tocava tinha a seguinte letra “pode ir
agora, que a vida decidiu te trazer outras coisas boas, pode ir sem medo, pode
ir tranquilo, que a vida te reserva muitos abraços e muitos sorrisos, amanhã é
outro dia, amanhã é sempre outra história, agradeça e sorria, pode ir agora”. Eu
sempre escuto essa música quando penso que não vou ter um bom dia, e ela
me traz uma paz, uma confiança, uma esperança inexplicável. É incrível como a
arte pode nos tocar, pode nos transformar de uma hora para outra. Ouvir algo
bom transforma meu dia, e eu, que estava irritada com aquele tempo de chuva,
fiquei feliz, o dia ficou bom, depois de toda positividade que aquela música me
trouxe, e então eu percebi, que não importa se está chovendo, se tem sol, ou se
está nublado, quem faz o dia bonito é você e o modo como o seu interior está.

Depois de ter dado um up no meu dia com aquela música e aquelas


reflexões que eu estava fazendo, resolvi me permitir um momento de prazer no
meio de todo aquele transtorno de entra e sai de lojas, pagando contas. Entrei
em um dos meus lugares favoritos da cidade e pedi um café (uma das coisas
que mais me deixa bem é o café, não sei explicar), peguei meu celular e comecei
a usá-lo pra algo realmente bom, abri um aplicativo e comecei a ler um livro,
enquanto tomava o café, mas fiquei tão distraída pensando em outras coisas
enquanto “lia” o livro, que só passava os olhos no que estava escrito. Minha
cabeça estava em outro lugar. Na minha frente, tinha um quadro com a seguinte
frase “se podes sonhar, podes conseguir”. Não é novidade para ninguém que
meu sonho é me formar na faculdade e exercer minha profissão. Comecei a
pensar nesse sonho, e se eu estava lutando por ele, se eu estava correndo atrás
ou estava apenas fazendo uma faculdade para me formar. Percebi como tenho
passado despercebida de mim, este foi o segundo encontro, mas foi o encontro
comigo mesmo, tive um tempo para pensar. Todos os dias, quando chega perto
das 17 horas, eu reclamo que tenho que ir para parada de ônibus, e passar 2
horas até chegar na Unisinos, e aos poucos realizar meu sonho. Mas eu pensei,
sonho deve ser algo bom, algo que nos motive. Eu estou todos os dias
reclamando do meu sonho, como assim?
Comecei a lembrar o que vivi para chegar até o começo do meu sonho,
das amizades que eu construí dentro da universidade, de tudo que eu aprendo
todos os dias, e de todas as desconstruções que eu tive por causa do curso de
psicologia, e me saiu um sorriso no rosto e quase deixei cair uma lágrima, triste
por não ter percebido e valorizado isso antes, e feliz pois ainda tenho tempo para
ser contente com a minha rotina, e não reclamar de ir todos dias para a parada
de ônibus, às 17 horas, para vir pra Unisinos. É um privilégio que poucos tem.

Então, me veio na cabeça o indiozinho lá da praça. Pensei que,


provavelmente, ele não vai ter essa oportunidade que eu estou tendo. E não
fiquei feliz por isso (por eu ter e ele não, claro). Já que eu tenho, devo valorizar
e ser feliz com o que a vida me possibilitou, mas penso que todos deveriam ter
as mesmas oportunidades. Não é justo ele não poder, é um ser humano como
eu, tem sentimentos e sonhos como eu. Me deixou profundamente tocada estes
meus pensamentos.

Eu não sei se isso terá um significado para quem ler, se vai ser
emocionante, ou vai soar desnecessário e sem sentido para alguém. Mas, isso
fez com que eu pensasse, pelo menos um dia em mim e na minha vida, pois tudo
passa tão corrido pelos nossos olhos, que nem percebemos o valor e o
significado que possuem.

“[...] Trata-se de olhar como se fosse a primeira vez


para tudo isso que construímos e em que estamos
imersos, não de forma anárquica, mas guiados pelos
pressupostos éticos que apontem para a possibilidade
de habitarmos um espaço mais justo, onde o saber não
sirva apenas para a dominação e manutenção do status
quo.” Diehl e cols., (p. 410).

REFERÊNCIAS NA NARRATIVA:

Ngozi Adichie, Chimamanda. Americanah.Ed.1. Companhia das Letras. 2014.

DIEHL, R., MARASCHIN, C., TITTONI, J. Ferramentas para uma psicologia


social. Psicologia em Estudo, Maringá, v. 11, n. 2, p407-415, mai/ago. 2006.

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