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Agradecimentos

Essa obra só se tornou possível graças à ajuda de algumas


pessoas, sem as quais meus contos, relatos e criações ainda
estariam engavetados e escondidos do mundo, ou perdidos em
alguns blogs que ninguém nunca ouviu falar. Escrever, para
mim, sempre foi algo relativamente fácil, eu gosto de escrever
desde pequena, e sempre fiz alguns contos e poesias, mas nunca
tinha chegado a completar um livro.

Veja bem, escrever para mim é fácil, mostrar nem tanto.


Apesar de receber alguns elogios das poucas pessoas que eu
mostrava os meus trabalhos, eu nunca tive a coragem necessária
para fazer nenhuma publicação até então, abrir minha mente ao
grande público me apavorava um pouco, logo, eu não poderia
deixar de agradecer à essas pessoas que foram mais do que
importantes, tanto para a minha vida, quanto para esse livro.

Gostaria, primeiramente, de agradecer a minha mãe, que


quando eu olhei nos olhos dela e disse que iria desistir de voltar
à cursar psicologia e me tornaria escritora, ao invés de
enlouquecer, dizer que eu estava ficando louca e me mandar
arrumar um emprego, me deu todo o suporte necessário, disse
que acreditava que seria uma boa ideia, e que sempre gostou
dos meus contos.

Também preciso colocar aqui, um agradecimento especial


à minha irmã, que com seus comentários ácidos e humor único,
me ajudou a perceber que mudanças eu poderia fazer para a
história ficar exatamente do jeito que eu queria que ficasse, ou
seja: uma leitura leve, casual, que faça quem lê poder dar
algumas risadas com as trapalhadas, mas também aprender um
pouco com o que eu passei. Vou ser sincera aqui e admitir que
eu ignorei algumas das críticas que ela me passou, mas a
pequena revisão dela, me foi de muita ajuda.

Ela utilizou as seguintes palavras: “o livro está tão bom


que não dá nem pra acreditar que foi a Giulia que escreveu”.
Esse elogio, vindo de um irmão ou irmã, é o equivalente familiar
a receber o Pulitzer. Para os que não tem irmãos, vou uma
situação serve de comparação: imagine a tia que sempre fica
comentando como todos deveriam seguir os passos de algum
primo, ficando boquiaberta porque o “primo” da vez é você.
Esse foi o meu sentimento ao receber esse comentário.

Depois, gostaria de agradecer à dois amigos virtuais, duas


pessoas que eu conheci de forma completamente aleatória, e que
se tornaram extremamente especiais para mim, o arquiteto 3D
Matt Buehler que, mesmo tendo uma profissão completamente
avessa à minha e estando à um oceano de distância de mim,
conseguiu me incentivar a seguir os meus sonhos.

O Matt me mostrou que quando se trabalha com algo


relacionado à nossa paixão, tudo fica mais bonito, leve e
tranquilo, mesmo quando as coisas não correm exatamente do
jeito que esperamos, e que o segredo de qualquer coisa é
mergulhar de cabeça e colocar o coração naquilo.

Devo muito disso também, ao dono de uma livraria da


minha cidade, que leu meus trabalhos em um concurso de
poemas promovido pela minha escola do qual participei quando
tinha apenas 8 anos de idade, e me disse que gostaria de
publicar um livro meu, pois acreditava que, um dia, eu seria
uma grande escritora. Essas palavras, precisamente, foram as
que me impulsionaram a começar a escrever as primeiras
páginas desse livro. Afinal, alguém que eu sequer conhecia,
acreditou em mim antes mesmo de eu pensar em começar a
acreditar. Eu sequer sabia o que queria fazer da vida naquela
época, só sabia que queria tocar o coração das pessoas.

Tem também um pequeno grupo de pessoas que tiveram


um impacto absurdamente grande na minha vida, tanto pessoal
quanto acadêmica, que eu preciso agradecer. São eles Evaldo
Antonio Kuiava, atualmente reitor da UCS, pessoa responsável
por me apresentar à Kant quando eu tinha apenas 11 anos, e
que, junto dos queridos Lino Casagrande, Décio Bombassaro e
da Verônica Bohm, foram os responsáveis por alimentar a
minha paixão por livros e por filosofia. Eu sei que, no fim, eu
não rumei para a filosofia, mas os ensinamentos que eu recebi
por meio dessas pessoas maravilhosas, me acompanham todos
os dias da minha vida.

Outra pessoa indispensável de mencionar aqui, é o Renan


Gimenez Azevedo, que me ajudou a colocar as minhas ideias em
ordem, e a encontrar um ponto de partida. E que mesmo eu
interrompendo os estudos da especialização dele com as minhas
dúvidas, me cedeu os ouvidos quando eu me encontrava em
algum tipo de crise em função de não encontrar as palavras
certas para utilizar aqui.

Não posso esquecer de mencionar, em momento nenhum,


todos os meus relacionamentos fracassados – eu sei que parece
mais um brinde, mas é a minha forma de agradecer –, aos meus
ex-namorados, que foram o ponto de partida dessa história,
agradeço pelas histórias e pelas experiências a mim
proporcionadas. Deixo claro que, apesar de estar agradecendo,
muitas delas eu dispensava e não pretendo passar de novo.
Afinal, é para isso que serve o aprendizado, não? Mas mesmo
assim, agradeço por elas, afinal foram essas experiências que me
moldaram e fizeram de mim o que eu sou hoje.

Preciso agradecer também a todos esses amigos que,


anonimamente, tem os seus relatos contados nesse livro, amigos
esses que confiaram em mim para desabafar suas histórias, e
que me autorizaram a transcrever as mesmas aqui, desde que eu
mantivesse a confidencialidade dos mesmos.

Por fim, mas não menos importante, gostaria de agradecer


à você, caro leitor, que se interessou pelos meus devaneios e
aqui está, conhecendo um pouco mais da minha história, e das
pessoas que fizeram e fazem parte dela.

Intro - A tragicomédia da vida real, e seus lindos


momentos de serendipidade

Esse livro começou como uma ideia surgida de várias


ideias, lembranças, pensamentos e conversas, vários
depoimentos de amigos e algumas comparações feitas entre
experiências que aconteceram comigo e com outras pessoas,
encontrando várias coincidências que podem ser consideradas,
ao mesmo tempo, cômicas e tristes, e tudo isso se passou em
uma única noite. Cômicas em função de serem coincidências, a
história de um se repete na de outro, e por vezes aconteceram ao
mesmo tempo. E tristes porque, bom... Não é a princesinha
casando e vivendo feliz para sempre que está em foco aqui.

Logo no início, quando eu percebi o que tinha acontecido


e resolvi começar a escrever, eu estava absurdamente travada,
não sabia muito por onde começar a relatar tudo o que tinha
acontecido ou escutado, até porque eu não queria tornar essa
obra uma leitura maçante e nem transformar isso em um diário
de choros e desabafos.

Eis que, um dia belo, ao entrar aleatoriamente em uma


livraria-café para passar o tempo – eu estava esperando uma loja
abrir, e precisava fazer algo para não ficar cozinhando no sol –
eu encontrei um grande amigo que não via há tempos, que
estava trabalhando na sua monografia e me introduziu aos
conceitos de “serendipidade” e da “dívida moral”.

Serendipidade, nada mais é do que os “acidentes felizes”


que acontecem na nossa vida, como por exemplo, ter encontrado
com ele aquele dia. Se não fosse a feliz coincidência de cruzar
com ele, eu provavelmente teria continuado empacada por um
bom tempo até descobrir por onde começar. Inclusive, o que me
deu o start para essa história, foi justamente o fato de termos
entrado em uma discussão sobre o conceito dos relacionamentos
e ele ter me perguntado o seguinte: será que os relacionamentos
de hoje em dia não estão dando certo justamente em função de
uma busca incessante desses “acidentes”?

Que a monotonia nunca foi a melhor amiga de um


relacionamento feliz e saudável todos estamos carecas de saber,
mas talvez essa idealização do relacionamento feliz – ou
doentio? - seja justamente o que está trazendo toda essa
frustração e insatisfação para os casais modernos. Consigo ver
nesses casais um asco à ideia de rotina, unido com um pânico de
qualquer novidade que possa alterar – adivinha – a rotina. Digo
doentio porquê, me desculpe, mas ninguém consegue ser
absurdamente feliz e realizado 100% do tempo, à menos que
algo esteja faltando na química cerebral dessa pessoa.

Outro ponto interessante que tocamos foi todo o conflito


entre as promessas da Disney e de Hollywood e a vida real que
agora, mais do que nunca, são gritantes. Não estou dizendo que
antes o marido ideal surgia montado num cavalo branco, que a
esposa ideal o esperava, sorridente, sentada na beira de um poço
enquanto conversava com os passarinhos, e que eles se casavam
e viviam felizes para sempre. Não, longe disso. Mas, na época
de nossos avós, por exemplo, a mulher era criada para cuidar da
casa e passava a vida fazendo isso, e o homem era criado para
cuidar das despesas e também passava a vida fazendo isso. As
opções de estilo de vida, profissão e relacionamento, eram
escassas, o que, de certa forma, fazia com que a escolha e a
realização se tornassem algo mais fácil. Hoje isso já não
acontece...

Hoje, a branca de neve está com um vestido colado, salto


alto e braços tatuados em uma boate tomando cerveja e olhando
o tinder, e o príncipe está chegando com os parça, de tênis, boné
e calça larga, pra encher a cara, encontrar o match do tinder e
levar ela o mais rápido possível pra um motel – muitas vezes
pra dormir mesmo, dependendo do nível alcoólico em que os
dois estiverem quando chegarem lá – e depois nunca mais olhar
na cara dela de novo.

Lembrei que um outro amigo meu levantou a questão da


nossa sociedade atual ter sido meticulosamente planejada para
ser uma fábrica impecável de infelicidade e frustração. O
excesso de opções para tudo faz com que a pessoa se sinta
frustrada por nunca conseguir atingir o seu ideal. E, nesse ponto
em específico, essa fábrica vai além dos relacionamentos
românticos, vai para a área acadêmica, profissional, pessoal. É
tanta opção e tanta mudança tão rápida, que tudo parece ter
surgido com obsolência programada, não apenas os
equipamentos eletrônicos. Tudo parece vir com data de
validade.

Nessa hora começaram a surgir mais milhares de


questionamentos sobre o relacionamento: É paixão ou é tesão? O
que é paixão? O que é amor? Só se ama uma vez? Será que eu já
amei? Será que o amor realmente acaba? Como acaba o amor?
Porque o amor acaba? O que causa tanta frustração
generalizada? Porque essa sensação de inferioridade e
insegurança permeia todos os nossos relacionamentos? O que
aconteceu de errado?

Tão logo essas questões começaram à surgir na nossa


mesa, ele comentou sobre a tal da “dívida moral”, que é um
conceito com o qual muitos da nossa geração - e eu meio que me
incluo nessa parte - não estamos familiarizados. É um sistema
moral de “empréstimo de concessões”, que deveriam ser feitas
quando se está em um relacionamento.

— Vou te dar um exemplo: a mulher quer ir no cinema e o


marido quer ir assistir ao jogo de futebol. A mulher não gosta de
futebol e o marido não quer ir no cinema. Aí, ela abre uma
exceção e resolve ir com ele no jogo. Eles vão, o maridão fica
feliz e vida que segue. Só que agora ele está em “dívida” com
ela, então na próxima vez que ela pedir, ele teria que ceder
também, e ir no cinema com ela. Só que um “empréstimo”
nunca quita o outro, porque sempre vai ter aquela lembrança de
“da última vez o outro que cedeu, então agora é a minha vez de
ceder”, então essa dívida vai se construindo uma em cima da
outra, pra que o convívio dos dois seja bom.

— Então essa “dívida” consiste em os dois cederem em


alguma vontade sua, para que os dois possam aproveitar um
momento juntos, certo? Um toma-lá-dá-cá moral.

— Exatamente.

— Mas isso, tirando pela minha experiência e raciocínio


lógico, teria que acontecer sem cobranças, pra não gerar
conflitos entre o casal, se não ficaria um jogando na cara do
outro que “eu fiz isso àquela vez por ti” e isso só ia fazer com
que os dois entrassem em uma discussão interminável. Então, o
“pagamento” da dívida precisaria acontecer de forma natural,
não?

— Sim, os dois teriam que ceder pro negócio funcionar


direito, e sem o outro precisar falar nada. É uma questão moral
essa troca.

Agora, meu caro leitor, me diga: Quantos casais você


conhece que realmente conseguem agir dessa forma, os dois
cedendo e se apoiando, se revezando, um tentando fazer o outro
feliz, sem ficar nessa “cobrança de favores”? Dois? Um?
Nenhum? Pois é. E isso é algo que vem lá da nossa criação,
quando nossos pais nos disseram “você merece o mundo, não
aceite menos do que isso” nós entendemos que o outro tem que
nos dar tudo, só que o que não nos passaram é que os pais do
outro também falaram isso pra ele, e ele espera que nós também
demos o mundo pra ele. E sem reclamar.

O que geralmente acontece? Ou só um lado cede e,


inevitavelmente, uma hora se cansa, ou nenhum dos lados cede,
e ouvimos aquela linda frase “se não tá bom, mete o pé!” ou “eu
não nasci pra isso, ou é do meu jeito, ou não é!”. Sem
concessões, sem ajustes, sem diálogo, sem tentativas de
concertar ou remediar nada. Isso quando essa frase aparece, né?
Porque muitas vezes as pessoas só ficam ali, juntas, pra manter a
imagem do casal – ou a imagem pessoal deles mesmo – e
arrumam algum amante pra passar o tempo e fazer o que o
parceiro não faz, e por vezes não faz porque não sabe que o
outro quer.

Sim, é exatamente isso! A gente – a gente não, me tira fora


dessa, porque eu já aprendi a minha lição, mas a maioria das
pessoas – culpa o outro por não fazer aquilo que ele não sabe
que nós queremos que ele faça, porque nós não falamos que
queremos, apenas ficamos sentados, comendo mosca, esperando
que nosso excelentíssimo adivinhe todos nossos desejos e
intenções – como se tivesse uma bola de cristal – e realize todos
os nossos sonhos sem que precisemos abrir a boca pra falar
nada.

Ai, isso cansa! Mas, novamente por experiência pessoal,


eu sei que não adianta eu ficar aqui repetindo mil vezes que
“você não pode ser assim”, porque eu sei que a mamãe já falou,
a vovó já falou, os amigos já falaram, mas mesmo assim a gente
não escuta. Pra falar bem a verdade, a gente só entende isso e
aprende a fazer diferente – não necessariamente do jeito certo,
mas de forma diferente disso – depois de quebrar a cara
algumas vezes. Várias vezes. Quando a gente cansa de quebrar a
cara, nós mudamos. Digo, alguns mudam, outros preferem ficar
sofrendo a vida toda. Cada um com seus fetiches, né? Se gosta
de sofrer, não posso fazer nada...

Vamos esclarecer aqui: esse tipo de comunicação funciona


perfeitamente entre o nenê e a sua mãe, às vezes, o pai também
entende o que o nenê quer. Mas funciona por tempo limitado,
porque tão logo a criança aprende à falar, os pais param de
atender aos resmungos, caras feias e choros, e a criança é
obrigada à vocalizar o que ela quer. Eu creio que, se a pessoa
está em um relacionamento, isso significa que ela já aprendeu à
falar, caminhar, limpar a bunda... Caso contrário, não é
relacionamento, é pedofilia. Então gente, acho que já está na
hora de se utilizar dessas habilidades básicas aprendidas com 2
anos de idade. Vamos lá, momento de vergonha alheia coletiva:
uma criança de 2 anos de idade consegue se comunicar melhor
do que nós.

Ela se comunica melhor do que nós, porque nós não nos


comunicamos. Parece que com o passar do tempo, nós
desaprendemos como conversar. A gente não fala nada, mas
porquê? Na nossa cabeça, nós montamos todo o script, a cena
pronta, criamos o diálogo, os efeitos especiais, a trilha sonora,
temos o toque, as vontades... Mas isso não sai da nossa cabeça.
Nós não nos expressamos, não sabemos dizer o que queremos
pros outros. Ou, simplesmente nós não queremos contestar o
outro. Nós só queremos ser felizes. Sempre.

A questão é: a felicidade não é uma constante. Nunca foi e


nunca será. A vida é mais uma montanha russa de sofrimentos e
êxtases que, bem no final, quando nem os dentes da boca forem
mais nossos, nós poderemos fazer um balanço e determinar se
tivemos uma vida mais feliz ou mais triste. Mas ninguém nos
dias de hoje parece entender isso. Inclusive, eu conheço muita
gente que diz que a felicidade depende de nós mesmos... Mas
ninguém nunca explicou como faz pra isso acontecer. Eu
desenvolvi a técnica de olhar apenas o lado positivo de todas as
situações, mas não indico. Isso pode te deixar muito bobo.
Busquem o equilíbrio. E me ensinem.

Agora, uma que eu indico, depois de alguns anos levando


no lombo, vivendo, chorando, rindo e aprendendo, eu acho que
aprendi uma receitinha que funciona muito bem pra minha
vida, que é: não procure o que tu não podes oferecer. Simples,
não? Mas está funcionando bastante. Aprendi à não ir com
muita sede ao pote, o que é, até hoje, algo ainda um pouco difícil
de fazer, porque a vontade de se entregar completamente é
forte, mas assim eu consigo dar tempo ao tempo e ver se a
pessoa realmente é capaz de me dar o que ela promete.

Com o passar dos anos, o homem ideal pra mim deixou


de ser o moreno, alto, bonito e sensual, que completa todos os
itens do check-list do homem perfeito que Hollywood me fez
acreditar que eu encontraria de forma corriqueira, e passou à ser
alguém que não me encha o saco, que goste de resolver conflitos
por meio do diálogo, que seja engraçado e carinhoso, e que me
dê um belo de um orgasmo. Um não, vários. Se o cara tem
barriga de chopp ou de tanquinho, pra mim não faz mais
diferença.

Sabe o que eu acho extremamente curioso? Curioso e que


vocês vão perceber ser real no andamento desse livro/relato, é
que via de regra, nós desabafamos e pedimos orientações, ajuda
e conselhos amorosos justamente àquelas pessoas com a maior
cota de relacionamentos falidos no currículo emocional.
Exemplo? Eu. Sim, eu sou a conselheira amorosa/sexual
preferida dos meus amigos e amigas. Eu, que tenho um noivado
rompido, fui trocada duas vezes, fui traída e até mesmo
simplesmente abandonada – o cara me pediu em namoro e
sumiu no mundo –, eu, a pessoa que vos fala nesse momento,
sou a pessoa mais procurada pelos meus camaradas pra dizer
pra eles o que eles precisam fazer pro relacionamento deles dar
certo.

É curioso, mas também faz muito sentido. Sabe porquê?


Porque quanto maior a cota de fracasso, maior a quantidade de
conhecimento acumulado. Sou uma romântica desiludida mas
com um pézinho na ciência: nada é completamente inútil, tudo é
aprendizado. Ou seja, na questão de relacionamentos, a pessoa
que mais quebrou a cara, é a que, ao menos numa visão lógica,
mais sabe o que fazer para não quebrar a cara. Conhecimento
empírico puro. Eu posso não saber o que fazer para dar certo,
mas eu já sei o que não fazer, e isso é uma mão na roda, e por
isso meus amigos correm pra mim. O que me deixa na posição
de “tia conselheira”, e eu não tenho muita certeza que gosto
desse título, mas tudo bem...

Graças ao meu excelentíssimo amigo, eu consegui


organizar as minhas ideias e começar a escrever a minha “obra
piloto”. Eu continuar escrevendo depende mais de vocês do que
de mim, logo, peço-vos encarecidamente que, caso gostem,
indiquem esse livro aos amigos e presenteie pessoas com ele –
aliás, presenteie as pessoas com livros, independente se meu ou
não, a leitura é um costume que não está em voga ultimamente,
e isso pode ser uma das causas da dificuldade de comunicação
–, para que eu possa continuar escrevendo e possa viver da
minha paixão.

Agora, focando um pouco na questão de formatação – um


pouquinho de informação técnica não faz mal à ninguém –,
alguém me disse uma vez, que a função de uma introdução é
dar uma base para a história e passar algumas informações
importantes, mas que não revelem o conteúdo do livro por
completo – resumindo: a introdução é a isca para o leitor. Então
eu vou aproveitar esse momento, e esclarecer alguns pontos
aqui: a história a seguir é um relato de um compilado de
histórias de relacionamentos passados, que foram todas
comentadas em uma única noite – exceto a introdução, que
aconteceu um pouco depois –, na qual eu, coincidentemente,
tive a mesma ideia que os meus amigos: a de ir para um
determinado pub da cidade pra chorar minhas pitangas com um
vinho.

Se não gostas de monólogos, não há motivos para


preocupação, porque esse livro jamais será um, afinal eu já
comecei conversando diretamente contigo, caro leitor que
resolveu comprar minha obra prima, e apesar de não poder
escutar os teus comentários e histórias – o que é uma pena, pois
tenho certeza que algum aprendizado extra eu teria –, eu vou
continuar me dirigindo à ti até o final, pois já abandonei a ideia
de ter um ponto final para qualquer assunto que seja há muito
tempo, então conforme eu vou desenvolvendo os meus
pensamentos, estou colocando aqui. Mas também não posso te
prometer exclusividade de atenção, afinal, como eu disse, essa
história se situa em um pub bem movimentado da minha
cidade, na rua, e com amigos chegando o tempo todo para
ajudar nessa construção e alimentar cada vez mais as
possibilidades de raciocínio sobre os fatos.

Outro ponto que eu gostaria de esclarecer é que a ideia


dessa obra não é a de aumentar a coletânea de livros disponíveis
para o estudo da psicologia – apesar de que, dependendo do
caso, ele pode servir muito bem pra esse propósito,
principalmente em momentos de pesquisa etnográfica – mas
sim, de levar um pouco de conhecimento científico – bem pouco,
prometo – misturado com algumas reflexões filosóficas – e
outras nem tão filosóficas assim, que talvez tenham sido mais
culpa do vinho do que de qualquer estudo que eu já tenha feito
– para fora das salas de estudo e testes, então eu não vou nem
sequer me preocupar em ficar usando termos científicos aqui,
inclusive vou evitar ao máximo utilizá-los. Juro que essa história
vai ser tão romantizada quanto a minha paciência permitir que
seja.

Calma, eu não sou nenhuma romancista também. Apesar


de às vezes eu estar tão nostálgica que poderia facilmente
escrever um livro ao estilo de “Razão e Preconceito” – e nada
impede que um dia eu, de fato, o faça –, não é o que está
acontecendo aqui. Algumas descrições se fazem necessárias para
que você, meu caro leitor, entenda a tragicomédia pela qual eu
estava – estou? – passando e as diferenças coincidentes de vida,
sexo, conhecimentos e experiências dos meus amigos. Admito
que uma certa parte das descrições que eu coloquei não fazem
diferença nenhuma para o andamento da história e que eu
coloquei apenas por achar que melhoraria a estética do livro.

Eu resolvi, enquanto pensava como iria estruturar essa


estória de histórias, que todos os capítulos receberiam nomes de
filmes carinhosamente selecionados que podem – ou não –
ajudar a criar “um clima” para o que está acontecendo, ao
menos no início de cada um deles, ou à entender a
personalidade de cada um desses meus amigos, e que também
nos permitem dar algumas risadas percebendo que a frase “a
vida imita a arte”, dita por Oscar Wilde, é mais real do que a
gente pensa. São todos filmes que eu gosto, inclusive. Fique à
vontade para parar a leitura e assistir os filmes abaixo
mencionados nos títulos ou no corpo do livro, caso não conheça.
Vocês poderão perceber que apesar de toda a minha pose, eu
sou bem melosa quando se trata de filmes e questões amorosas.

CAP I - Sociedade dos Poetas Mortos

Senta, caso ainda esteja de pé – o que seria um pouco


estranho, levando em conta tudo o que já leste, mas tudo bem –
pega um vinho, um café, um chá, uma cerveja, um copo de leite,
ou a bebida que preferir e vem aqui curtir comigo o clima dessa
bela noite de verão – que, de verão mesmo, só tinha a
temperatura, afinal, tudo aconteceu no meio de junho, e no
hemisfério sul isso significa inverno, mas estava incrivelmente
quente – a qual o universo escolheu para me presentear com
essa nossa conversa. É interessante usar o termo “presentear”
para descrever a noite na qual eu resolvi sair na rua para
espairecer, após sair de mais uma tentativa de relacionamento
fracassado. Vou admitir outra coisa aqui: não exatamente noite,
tinha sol ainda... Posso descrever como “fim-de-tarde” sem
mentir. Mas ninguém pode me julgar por aproveitar o solzinho
das 17h pra tomar umas depois do milésimo pé-na-bunda, ainda
mais com um clima bom desses.

Inclusive, a causalidade de tudo isso ter acontecido em


um pub e de eu poder transcrever a história nesse clima veio
muito à calhar porque, sejamos sinceros, é exatamente no pub
ou no bar onde nós mais filosofamos e refletimos sobre a vida,
normalmente sobre o que deu errado na vida, e aproveitamos o
ombro amigo do garçom - pobre garçom - para tentar encontrar
ou criar alguma explicação para o que nos aconteceu. E,
normalmente, quando está frio ou chovendo, nosso consolo
costuma ser o travesseiro. Ao menos o meu sim, porque eu só
saio de casa com o tempo ruim em última estância. Se eu já saí
de casa para fazer qualquer coisa contigo, considere-se
importante. Mas, se você ainda está vivo, isso significa que era
alarme falso, e eu vou pensar duas vezes antes de sair na chuva
de novo quando me chamar.

Certo, aqui vamos nós, eu sentada na parte externa de um


pub, em uma rua relativamente bem movimentada da cidade,
com um cigarro em uma mão, uma taça de vinho na outra,
usando o meu macacão preto clássico de todas as horas, com
uma echarpe roxa pendurada na bolsa – nunca se sabe quando o
tempo vai mudar –, me sentindo entorpecida pela vida, olhando
para o pôr-do-sol tentando entender o que diabos há de errado
comigo, que eu nunca consigo encontrar o meu “felizes para
sempre” em lugar nenhum. Apesar de perceber que era ridículo,
eu continuei ali encarando o céu por um bom tempo, como se eu
estivesse esperando alguma resposta vinda dos céus para atos
completamente humanos.
Concordemos que é uma atitude bem mais saudável do
que sair e tomar um porre, coisa que eu fiz várias vezes durante
a minha adolescência... Lembro bem do meu primeiro término
de relacionamento, que foi o responsável por me fazer gastar
mais de seiscentos reais em bebida em uma festa, como se toda
aquela quantidade de álcool fosse resolver alguma coisa. No dia
seguinte, quando uma amiga me contou que eu realmente tinha
bebido tudo aquilo sozinha, e que eu ainda tinha ganhado mais
algumas cervejas dela, eu comecei à me questionar como eu
ainda estava viva, e se eu realmente estava viva ou apenas tendo
um sonho pós-morte ou talvez em uma espécie de coma
alucinatório... Eu cheguei até a me beliscar para ter certeza de
que eu ainda estava ali, sã (será?) e salva.

Acho que, na verdade, essa é uma coisa que se aprende


com a idade... Depois de alguns vários pés-na-bunda, a gente
aprende que não vale à pena jogar a saúde fora em função de
outra pessoa que não vai voltar – e que, sinceramente, não sei se
realmente deveríamos querer de volta, afinal, se essa pessoa nos
causou todo esse mal, a atitude mais sensata seria querer se
afastar dela o mais rápido possível, não? Digo, a pessoa nos faz
querer gastar metade do suado salário em bebida, chorar, se
desesperar... Ah, não! Levanta as mãos e agradece que foi
embora e que não vai mais te fazer sentir assim, credo! Isso não
é uma perda, é um livramento!

O start dessa história foi um término, infelizmente já


esperado, com um rapaz que eu estava saindo há alguns meses,
mas que eu tinha uma certa esperança, afinal foram meses de
um chove-não-molha interminável, mas tudo, o tempo todo,
sempre apontava para um futuro, até que ele tinha um surto, se
afastava, aí depois voltava, e quando estávamos novamente às
mil maravilhas, ele surtava novamente.

Chegou um momento em que, no meio de uma conversa,


ele perguntou porque eu estava tão distante, então eu
simplesmente mandei uma mensagem pra ele, dizendo que
tinha cansado, que tinha tirado ele da minha lista de prioridades
e que ia ficar assim. Se quiser, faz tua parte, se não quiser, passar
bem. O cara parecia um chuchu na cerca, não sabia pra que lado
caía.

Desde o início ele tinha me dito que não queria nada sério
- apesar de muitas das atitudes dele me mostrarem o contrário -,
mas tínhamos decidido que ficaríamos juntos até um cansar do
outro, sem compromisso. E acontece que eu fui a primeira a
cansar. O incrível é que em seguida, ele mudou completamente,
começou a querer ficar junto, me tratando como uma rainha por
3 semanas, até que em um final de semana ele simplesmente
desapareceu, ficou quase uma semana sem falar comigo, e
depois me mandou uma mensagem dizendo que não queria
mais.

Eu não consigo descrever a minha cara de tacho lendo


aquela mensagem, obviamente eu fiquei sem entender nada. Eu
digo que não quero, aí ele me trata igual rainha pra depois dizer
que não quer. Talvez uma necessidade de ser ele à dar um fim?
Bom... O que mais eu poderia fazer? Recebi a mensagem, levei
uns 5 minutos pra processar o que estava acontecendo, me
arrumei, fui para o pub, peguei um vinho, fiquei olhando para
aquele lindo céu cor-de-rosa de fim de tarde e pensando “oh,
vida de merda”.
Ainda que eu aprendi à criar um certo filtro para
companheiros, o que faz com que eu analise bem a pessoa antes
de topar qualquer coisa, só pra evitar dor de cabeça. A minha
mãe às vezes pega no meu pé dizendo que eu sou uma
encalhada, eu até posso ser, mas sou uma encalhada recente, eu
já fui noiva – aos 19 anos – mas, o relacionamento acabou. Como
posso explicar? Eu não tinha vocação pra ser saco de pancada, e
era isso que ele queria. Um saco de pancada, submisso, no qual
ele pudesse enfiar o pinto de vez em quando.

Esse relacionamento foi brevemente mencionado aqui, por


ser o culpado de estragar toda a minha vida amorosa e
desgraçar a minha cabeça. Não pelo fato de ter terminado o
noivado ou algo do gênero, mas porque quando eu saí desse
relacionamento, minha autoestima estava mais baixa que
diferencial de sapo. Eu saí praticamente implorando por
alguém, porque eu não estava me sentindo desejável, ou
namorável, ou qualquer coisa que o valha. Até porque, no fim,
eu ouvi exatamente isso, que eu “não prestava para namorar”.

Resultado? Eu, desesperada, querendo provar que era


desejada por outros e que tinha gente que queria namorar
comigo, comecei a atirar para todo o lado, e a cair em qualquer
conversinha fiada que alguém me soltasse. Aceitei ser amante,
aceitei homem que queria mandar em mim, aceitei até um que
me usava de capacho, até que eu fiz “EPA! PERA AÍ!” e comecei
a prestar atenção no que eu estava fazendo da minha vida, o que
resultou em anos de solteirice, e no apelidinho carinhoso que a
minha mãe, vez ou outra, me dirige.

Quando cheguei no final da saga da desgraça, eu não


tinha mais contato com vários amigos, porque não saía mais de
casa, não tinha mais certeza se eu sabia passar um batom sem
borrar, tinha parado a academia, engordado 16kg e voltado a
fumar. Sim, eu já parei uma vez – e emagreci 7kg na brincadeira,
eu só estou mencionando isso pra fechar a boca de quem diz que
é impossível parar de fumar e emagrecer, é possível sim e eu
estou aqui de prova –, mas essa criatura mencionada acima era
fumante, e isso fez com que eu voltasse à fumar.

Olha no espelho, se xinga, toma banho e sai de casa. Voltei


à malhar – eu não sou muito fã do ambiente da academia, e
tenho uma certa preguiça de persistir nessas coisas, mas achei
necessário –, comecei à me alimentar decentemente, arrumei o
cabelo, o rosto e criei amor-próprio. Mas mesmo com todos os
cuidados que eu passei à tomar quando o assunto era
relacionamento, eu ainda passei por situações como as que me
trouxeram à esse pub sozinha. Mas, felizmente, agora eu lido
melhor com essas situações.

Antes de continuar, eu quero agradecer à todas as


feministas do mundo, que lutaram para que nós, mulheres,
pudéssemos fazer algo tão corriqueiro como ir à um bar para
espairecer sem sermos tão julgadas quanto antigamente. Bom, a
vantagem de se estar sozinha em um bar, é que não tem
ninguém ao lado pra ficar policiando os meus devaneios, e que
eu não preciso ficar focando o tempo inteiro em uma pessoa só,
e nem dando atenção à quem não me interessa, ou seja, posso
observar melhor. A desvantagem é justamente o fato de que, eu
estou sozinha, logo, alguns engraçadinhos se acham no direito
de sentar na mesa e puxar conversa, com a intenção de me tirar
da mesa e me botar na cama. Obviamente, eu despachei esses
intrometidos com toda a indelicadeza do mundo.
Olho passeia pra direita, olho passeia pra esquerda,
observo o movimento dos carros, completo minha taça de vinho
e, do nada, me pego com os olhos grudados em um casal de
namorados que estava do outro lado da rua, pelas feições deles,
acredito que eles deveriam ter cerca de uns 15 ou 16 anos, e
provavelmente estavam no primeiro namoro de ambos. O rapaz
com toda uma pose de “bad boy”, e a menina olhando pra ele
como se ele fosse a razão da existência dela. Eu não sabia se eu
chorava de dó, ou se eu começava a rir.

A risada venceu.

Ah, o primeiro amor, lindo, idealizado a vida inteira por


filmes de comédia romântica e contos de fadas vendidos –
principalmente – a nós, mulheres, como algo real, tangível e
perfeitamente normal. Inclusive, me fizeram acreditar por muito
tempo que, se minha vida romântica não era daquele jeito, é
porque havia alguma coisa de errado comigo. Talvez eu não
vestisse rosa o suficiente? Ou será que a culpa era da faixa do
meu cabelo que não ficava igual à da Cinderela? Ou, quem sabe,
porque o Ashton Kutcher – minha paixão da adolescência –
ainda não tinha resolvido viajar para o Brasil visitar uma cidade
não-turística? Segundo minha irmã, realista que só ela, a culpa é
do cheiro do cigarro e do meu mau humor mesmo. Calúnia dela,
eu não sou mau humorada.

Só sei que olhar aqueles dois pombinhos fez com que eu


me lembrasse do meu primeiro namoro. Eu conheci o meu
primeiro namorado em uma janta do curso da minha mãe na
faculdade. Eu tinha lindos e inocentes 13 aninhos na época, e ele
15, duas crianças inexperientes. Nenhum dos dois tinha sequer
dado o primeiro beijo ainda, e na época eu ainda estava meio
perturbada com a mudança de padrão de vida, ocasionada pela
separação dos meus pais, somada à pressão de passar na prova
seletiva para um colégio de ensino médio disputadíssimo da
minha região – e caríssimo, inclusive não sei como meus pais
planejavam pagar aquilo tudo –, que dispensa até a necessidade
de vestibular para os seus alunos, então meu foco não estava
exatamente em garotos, o que fez com que nos tornássemos
apenas amigos. No fim, eu terminei meus estudos em escola
pública mesmo, percebi que estudar lá era mais status do que
qualquer outra coisa.

Ele tinha um estilo meio roqueiro, era cabeludo, meio bad


boy, mas era um cavalheiro com as mulheres. Nós começamos a
namorar quando eu tinha 15 pra 16 anos, mais ou menos a idade
do casal perfeito que eu vi na rua. Minha vida amorosa começou
praticamente junto com a vida social, porque antes dos 15 minha
mãe não me deixava sair de casa se não fosse com ela. Ele era de
outra escola, mas as minhas colegas achavam que ele era
universitário, morriam de inveja por eu estar namorando com
alguém “tão mais velho e independente” e eu, que não sou boba
nem nada, não desmenti e aproveitei a fama.

Apesar da cara de malando, ele era super responsável,


trabalhava, ajudava a mãe e a irmã em casa, ia na igreja – ele era
evangélico –, era divertido e bonito. Ele não me mandava flores,
nem chocolates. Pra não dizer que eu nunca ganhei nada desse
estilo dele, eu ganhei uma caixa de sapato com uns bombons e
uma flor de plástico dele no nosso aniversário de um ano de
namoro. Não foi ideia dele, obviamente, eu que reclamei que em
um ano eu não tinha recebido nada além de cerveja dele, aí ele
resolveu me dar esse presente “maravilhoso” pra tentar me
agradar. Digamos que romance não era bem a praia dele, mas eu
achei fofo ele ter se importado com a minha reclamação. Foi ele
quem me apresentou o uísque, o meu eterno e fiel companheiro
de festa até os dias de hoje. Ficamos juntos por dois anos, e eu
realmente acreditava que, talvez, apesar de ele não cumprir
todas as minhas fantasias românticas, nós dois pudéssemos ficar
juntos por toda a vida. Que fofo, né? Mas toda desgraça começa
fofa.

Ele cumpria quase todos os pré-requisitos da minha lista


de “príncipe encantado ideal”: moreno, olhos azuis, forte, mais
alto que eu, engraçado, trabalhador, se dava bem com meus pais
e com a minha irmã, estudava. Ele só não era romântico, como
eu falei acima, mas achei de bom-tom relevar ele “lapso”, afinal
ele batia com todo o resto. Nosso namoro até foi bem bonitinho,
nós saíamos, conversávamos bastante, os amigos dele gostavam
de mim, meus amigos gostavam dele, e eu realmente acredito
que, se ele não tivesse feito merda – ou se a minha amiga tivesse
ficado de boca fechada – eu estaria com ele até hoje, porque
nunca tive nenhuma reclamação à respeito dele. Mas, ele
resolveu me trair, e eu resolvi terminar. Mas não antes de armar
uma vingancinha digna de filme pra cima dele, óbvio. Eu nunca
tinha sido de engolir sapo, não era ali que eu ia começar.

A minha amiga, na verdade, não falou nada de especial,


apenas elogiou a minha “cor nova de cabelo” que ela tinha visto
em uma foto de uma festa que, supostamente, nós dois
estávamos, e ela disse que tinha combinado comigo aquele novo
tom. Porém, meu cabelo continuava igual, e eu não lembrava de
ter ido na tal festa. Fiquei um tempo pensando se eu tinha ido
ou não, ou se talvez ela tinha confundido o nome da festa.
“Pode ter sido efeito da luz”, pensei.
Lá fui eu, bem bela e faceira, inocente que só, verificar.
Afinal, segundo ela eu tinha ficado bonita, então, eu queria a
foto. Eis que eu encontro a bendita foto, tirada em um bar que
eu ia frequentemente com ele, e a foto, como eu pensei, era de
uma festa que eu não tinha ido, mas ele sim, e sem me avisar.
Zoom na foto. Ele não estava logo na frente do flash, mas sim
mais no fundo da foto, e abraçado com uma menina. Pensei que
fosse a irmã dele, mas na foto seguinte, novamente ele aparece
no fundo, aos beijos com essa menina.

Ah... O lindo som do meu castelo de areia desmoronando


invadiu meus pensamentos. O pior é que ele não parou por aí. E
nem eu. Comecei a olhar foto por foto de todas as festas que
aquele bar já tinha feito algum dia desde que estávamos juntos
e, para minha surpresa, não encontrei mais uma, nem duas, mas
sim outras três meninas com ele nas fotos do bar, totalizando 4
moças além de mim. Pesquisei as meninas, descobri os nomes –
a mesma amiga que elogiou o meu cabelo me deu um auxílio
nessa parte, minha rede de amizades funciona melhor que o FBI
– e então, a revelação mais chocante: todas estavam namorando
com ele. Uma estava com ele há pouco mais de um ano, outra há
quase um ano inteiro, e as outras há alguns meses apenas, a
mais recente estava com 5 meses de namoro.

Vou ter que admitir, esse cara merece um prêmio. Eu


ainda vou encontrar ele para dar os meus parabéns, afinal
durante todo o nosso namoro, eu sequer suspeitei de nada, ele
manteve exatamente o mesmo comportamento do início ao fim,
e durante 5 meses ele administrou, no mínimo, – nada impediria
ele de ter mais – 5 namoradas, sem que uma soubesse da outra,
e sem deixar faltar nada (no quesito de atenção, tempo, etc.)
para nenhuma delas, sendo que ele trabalhava o dia inteiro no
comércio e fazia faculdade durante a noite. Eu, até hoje, não
entendo como que ele conseguiu fazer todo esse malabarismo.
Prefiro deixar isso para a tua imaginação do que continuar
quebrando a minha cabeça tentando entender.

Na época, eu armei uma vingancinha com todas as


meninas depois de ter descoberto isso, marcamos um encontro
com ele e aparecemos as cinco dizendo “oi amor” e largando as
alianças na mesa. A cara de tacho dele foi linda. Gostaria, antes
de qualquer coisa, de esclarecer que isso aconteceu antes de
“Mulheres ao Ataque” ser lançado – falei que a vingança tinha
sido digna de filme –, logo, não foi o filme que me inspirou à
fazer isso, então eu sinto como se fosse meio que uma
homenagem para mim. Obrigada, Hollywood.

Tempos depois eu descobri que ele só tinha ido na pilha


dos amigos dele, que disseram que ele precisava experimentar
mais mulheres, que tudo bem ele gostar de mim e querer ficar
comigo para o resto da vida, mas que eu não podia ser a única
da vida dele. Todos os amigos dele sabiam que eu tinha sido a
primeira, e ficaram colocando pressão para que ele “pegasse
mais mulheres”. E ele foi. Isso é desculpa? Não. Ele podia muito
bem ter ignorado. Eu realmente senti uma certa pena dele
quando descobri o que tinha acontecido, e entendi toda a dor
que ele estava demonstrando quando foi na minha casa na
semana seguinte para se explicar e pedir uma segunda chance.
Ele queria me pedir em casamento, vê se pode? Infelizmente,
tive que mandar embora.

Eu não estou dizendo, em momento algum, que esse


jovem e fofo casal que eu vi na rua perto do bar vá ter o mesmo
fim, muito menos estou agourando eles, eu só disse que a
configuração do grupo em que eles estavam me lembrou muito
como eu ficava com esse meu namorado anos atrás. Eu estava
rindo de nervosa por ela. Pobre moça. Só me resta desejar boa
sorte pros pombinhos e torcer pra que o que eu passei tenha
sido apenas um caso isolado. Não, melhor: que o caso deles
possa ser um caso isolado, porque eu já sei que não fui a
primeira a passar por isso.

Nossa, como é triste perceber que um relacionamento


feliz, duradouro e fiel é um caso isolado. Eu não queria torcer
para a felicidade alheia sabendo que isso é algo raro de se ter,
queria poder dizer que relacionamentos infelizes é que são raros
e difíceis de acontecer. Infelizmente, esse não é o caso, se fosse
eu não estaria aqui te escrevendo, tu não encontraria
semelhanças com a tua própria vida, não existiriam essas
coincidências com a vida dos meus amigos que me levaram à
tentar encontrar o ponto no qual tudo o que estávamos vivendo
cai por terra para poder tentar evitar o mesmo na próxima vez
que resolvermos ter um relacionamento amoroso com alguém
de novo. É triste, mas é a mais pura realidade.

Logo após tirar os olhos deles, foi o momento em que eu


comecei a reparar algumas semelhanças entre os meus fracassos,
e os fracassos dos meus amigos e... Nossa, como existem!
Inclusive, uma das minhas amigas mais próximas passou por
um caso parecido com um rapaz que estava saindo com ela fazia
um bom tempo. Eles quase começaram à namorar, mas ela
descobriu isso um pouco antes do pedido. O incrível é que a
maior semelhança de todas é: a faixa etária, os nascidos entre a
década de 80 e 90, pertencentes à tal da geração Y é a que mais
sofre com esse tipo de desilusão.
Pessoas criadas em época de mudanças políticas, na qual
os pais buscaram não ser tão ausentes como a geração anterior –
salvo algumas exceções – e encheram os filhos de atenção
querendo aumentar sua autoestima. O resultado disso é o que
temos hoje desfilando pelas ruas e avenidas das cidades: um
bando de criaturas individualistas e competitivas, com seu nariz
empinado e pose de imperador, que gostam de chegar ao topo,
rápido, sem passar por muitas adversidades, e que, muitas
vezes, não se importam de passar por cima de normas e pessoas,
desde que aquilo faça com que seus objetivos se cumpram mais
rapidamente. Poderíamos muito bem alterar a nomenclatura,
em vez de chamar de “Geração Y”, chamar de “Geração ‘Os Fins
Justificam Os Meios’”. Eu sei que é duro de ler algo assim, mas
minha função aqui não é amaciar o ego de ninguém. Nem
mesmo o meu, eu sou dessa geração.

Outra característica é o fato de que nós não nos


submetemos a empregos com tarefas muito simples, queremos
tecnologia de ponta no dia-a-dia, além de sermos consumidores
exigentes. Somos jovens com capacidade multitarefa – ou
achamos que somos, ao menos – trabalhamos ouvindo música,
enviando mensagens para os amigos, lendo sobre assuntos
diversos e visitando as redes sociais, tudo ao mesmo tempo. Via
de regra, o serviço fica feito “tipo a nossa cara”, uma expressão
muito utilizada pela minha mãe quando não gosta do que está
vendo. “Fez isso tipo a tua cara, né Giulia?!”. Sinceramente?
Acho que a minha mãe não vai muito com a minha cara.

Essa geração obtém conhecimento muito fácil através da


internet, o que nos deixou absurdamente preguiçosos, afinal a
maioria acredita que não há necessidade de se aprofundar em
muitos assuntos, somente aqueles que interessam, afinal quando
precisar de alguma informação basta recorrer a um site de busca
ou algo do gênero. Resultado? Um monte de barbado
acreditando em corrente e em fake news espalhadas internet
afora por meio de sites de fofoca e aplicativos de mensagens.
Que vergonha alheia que me deu agora. Falando em aplicativos
de mensagens, nossa turma gosta de se comunicar de forma
prática – não necessariamente eficiente, afinal quantas vezes não
fomos mal interpretados por resumir algo, ou em função do
destinatário da nossa mensagem ter colocado uma entonação
diferente da que desejávamos na hora de ler algo? É mais
simples mandar um e-mail ou uma mensagem do que fazer uma
ligação ou conversar pessoalmente. Esqueça a eficiência, a
maioria de nós nem sabe o que é isso ultimamente.

E-mail e mensagens são mais simples e relativamente


mais seguros, afinal de contas, se estamos cara-à-cara com
alguém, ou durante uma ligação, corremos o risco do outro nos
interromper a qualquer momento, ou demonstrar alguma
emoção que não queríamos, e as nossas chances de “ignorar” tal
reação são mínimas, isso quando existem. Via e-mail ou
mensagem, por mais que a pessoa receba e possa responder em
tempo real, nós conseguimos falar tudo o que queremos antes
da outra pessoa ter chance sequer de raciocinar sobre a
informação que estamos passando, e depois podemos olhar o
resumo da resposta antes de realmente abrir a mesma, e decidir
se queremos ou não ler aquilo. A facilidade de ignorar qualquer
coisa que o outro possa nos passar é o mais tentador nesse tipo
de atitude.

Como nós gostamos de ignorar coisas, né? Ignoramos as


advertências, o sinal vermelho na estrada, a dieta ou os
exercícios que o médico nos passa, os conselhos dos nossos pais,
a saudade dos nossos amigos, a hora de bater o ponto, a hora de
tomar os remédios... Ignora o sentimento dos outros.

Foi nesse instante, enquanto eu comecei à me questionar o


porquê dessa nossa inconstância nos relacionamentos, que eu
percebi o quanto ignoramos coisas que não deveriam ser
ignoradas. E na maioria das vezes por medo ou por estética –
como, por exemplo, as modelos que ignoram a dor no estômago
apenas para não fugir da dieta. Passo número um: precisamos
parar de ignorar tudo. Pode até ser doloroso no início, escutar o
que não quer do chefe, colega ou parceiro não é legal, mas é um
exercício necessário.

Lembrei que no meu primeiro namoro eu, apesar de


esperar algum romance da parte do moço, eu não me dobrava às
vontades dele. Eu costumava, com frequência, ignorar o que ele
me pedia, e talvez eu pudesse ter sido um pouco mais maleável
em algumas circunstâncias, eu podia atender alguns dos
pedidos – menos o pedido para me converter e começar à
frequentar a igreja, aí já era demais pra mim. Seria até hoje.
Antes que me odeiem, eu não tenho nada contra religião
alguma, eu só não me sinto bem dentro de igrejas – de nenhuma
religião, acredite, eu tentei ir em várias – e não acho certo ir em
qualquer lugar que me faça sentir desconfortável, não faz
sentido.

No segundo namoro, um pouco contrariada com a minha


própria decisão, eu resolvi tentar ficar agradando, pra ver se
esse daria certo, e no final de tudo ele tinha tanta certeza que eu
estava dependente dele que resolveu me bater (essa história vai
ser melhor descrita abaixo, acalma o coração). Ok, nesse
momento eu entendi que, sim, eu precisava ser maleável em um
relacionamento, mas que não poderia ser tão maleável á ponto
dele pensar que poderia fazer o que bem entendesse comigo.
Meninas que estão lendo isso aqui: não sejam capacho de
homem nenhum. Nem de Sugar Daddy. Tudo tem limite!

Aí, no terceiro namoro eu busquei um meio-termo, mas


mesmo assim ele tentou me controlar e me usar de capacho,
porque ele não queria dividir a responsabilidade comigo. Na
verdade, eu me abri completamente com ele, e ele meio que
usou dessa fragilidade adquirida por mim no namoro anterior
para me manipular. Até o momento em que escrevo, eu não
namorei mais, apenas tive alguns relacionamentos curtos.

Eu meio que desisti da ideia de encontrar a minha alma


gêmea, então comecei apenas à ter alguns casinhos leves. Mas,
fazendo uma análise rápida aqui, eu acredito que em todos esses
meus casinhos eu ainda tinha algum resquício de esperança de
ver aquilo se transformando em uma grande história de amor
que terminasse com um “felizes para sempre” ou algo do
gênero. Digo isso porque, olhando pra trás, eu sempre fiz
alguma coisa pra sinalizar que o rapaz da vez estava comigo, e
sempre tentei fazer algo que servisse de desculpa para ele
lembrar de mim ou para nós nos vermos outra vez.

Desculpinhas, lembrancinhas, gestos... Inclusive, essas


“coisinhas” que eu fazia – e muita amigas e colegas minhas
também – foram tema de um estudo não-oficial que fizemos na
faculdade. Fizemos esse estudo porquê... Não existe um
“porque”, pra ser bem sincera, nós simplesmente tínhamos
muito tempo livre – mentira, nenhum universitário, em toda a
história da humanidade, teve, tem ou terá qualquer coisa
parecida com “tempo livre”, o nome real desse “tempo” que nós
dizíamos ter é: procrastinação. Esse estudo, ou melhor, esse
projeto de estudo nunca foi terminado, afinal, como ele não teria
uso acadêmico nenhum, não levamos o mesmo adiante, mas eu
acho interessante mencionar ele aqui, já que estamos falando de
relacionamentos.

Inspira, exala, já falei que não estou escrevendo nenhum


livro acadêmico ou uma dissertação de mestrado aqui, o que eu
vou te passar à seguir, é apenas um pouco mais de cultura inútil
para colecionar. Essa cultura inútil pode te ajudar à puxar a
conversa com o/a crush, por sinal, então relaxa o corpo e te
prepara para receber um pouco de informação inusitada.

Sabia que existe uma espécie de demarcação de território


estranha na espécie humana? Sim, nós resolvemos perder tempo
pesquisando isso e não, eu não vou contar como chegamos nesse
assunto, pode envolver conteúdo ilegal e eu preciso que esse
livro continue circulando. Use a imaginação. Certo, voltando ao
assunto: essa demarcação, via de regra, é feita pela mulher. Sim,
isso mesmo, a mulher. E sem nem precisar fazer xixi em nada!

Sem descrição de nenhum experimento científico


aprofundado – ou nem tanto – para não acabar indo contra o
que eu falei acima, aqui vou me utilizar apenas de conhecimento
de causa. Como diria minha vizinha: conhecimento empírico
puro, direto da fonte. Graças à esse nosso pseudoestudo,
descobrimos que muito da nossa demarcação de território
parece ser totalmente inconsciente, e mesmo assim, um recado
claro para qualquer outra mulher que possa passar por aquele
lugar.

A demarcação funciona por meio de detalhes, aquele tipo


de coisa que ninguém realmente observa, à menos que estejam
procurando exatamente por aquilo. Um brinco pequeno
esquecido no banheiro, uma sombrinha deixada dentro do
carro, alguns fios de cabelo nos bancos, travesseiros, roupa... Até
o perfume na roupa, que sempre tem uma fixação maior do que
aquele que usamos para jantar com as amigas. Agora vem o
pulo-do-gato: lembra que eu falei que parece ser totalmente
inconsciente? Então, o que faz com que eu coloque essa palavra
ali é o seguinte: nós nem sequer pensamos no brinco quando
estamos indo embora, somente quando queremos colocar o
brinco é que nos lembramos dele, e sabemos exatamente onde
ele está.

“Essa roupa combina perfeitamente com o meu brinco de


pérola... Que eu deixei sexta-feira passada no banheiro do João,
em cima da banqueta que fica ao lado da entrada do box, ficou
atrás do shampoo 2 em 1 dele.”

A todos os leitores com parceiras do sexo feminino,


independentemente da orientação sexual: revistem suas casas de
cima à baixo que vocês vão encontrar algo. A todas as mulheres
que estão lendo isso: não adianta fingir que isso nunca
aconteceu, porque eu sei que aconteceu. Aconteceu, acontece,
acontecerá, e em algum lugar, neste exato momento, isso está
acontecendo.

O motivo por trás de tudo isso? Justamente “sinalizar” o


homem que escolhemos para nós, e evitar que outras se
aproximem sem saber da nossa existência. Como sabemos que
fazemos isso, a primeira reação ao entrar na casa alheia é
escanear o ambiente inteiro com os olhos, procurando algum
sinal de que aquela casa já tem “dona”. Raramente acontece de
não encontrarmos nada e a pessoa em questão ter uma parceira.
Isso é sinal de que o pretendente é minucioso.

A demarcação de território/parceiro é algo comum em


todo o reino animal, e nossas ações se justificam em função da
combinação de feromônios. Sim, nós, seres humanos, as
criaturas que acreditam estar acima de todas as leis da natureza,
também possuímos feromônios, e o interessante – e que
corrobora com essa pesquisa feita enquanto a qualidade das
nossas faculdades mentais era discutível – é que apenas as
mulheres conseguem captar o feromônio, os homens não tem
essa capacidade, ou seja, as mulheres conseguem decidir qual
dentre os “machos disponíveis” seria a melhor escolha para a
reprodução.

Eu sei que é meio estranho dizer que a escolha de


parceiros humanos tem a ver com algo visto como tão
“primitivo” quanto a reprodução, mas é o que temos para hoje.
Acredito que isso ajude à entender o porquê de vermos tantas
mulheres em relacionamentos “vantajosos” infelizes. Muitas
vezes, a culpa nem é do parceiro, ele até cuida bem da mulher, o
problema é o cheirinho do cara que não ajuda. E o pior é que é
um cheiro que banho nenhum arruma... Isso também explica
aqueles casais com uma mulher absurdamente bonita, e um cara
que é, no máximo, aceitável. O cara não precisa ser o Brad Pitt,
ele só precisa ter o cheiro certo.

Tudo bem, eu também fiquei chocada com essa revelação,


também passei vários anos acreditando que as uniões tinham à
ver com a aparência da pessoa, ou com as maneiras dela, ou
qualquer outra coisa. Descobrir que o que determinava se eu iria
sentir atração por determinada pessoa ou não eram os
feromônios, foi um belo de um susto.

Cultura inútil do dia apresentada – estou aqui pensando


sinceramente que eu poderia escrever um livro falando apenas
desse tipo de assunto –, é hora de explicar o porquê eu resolvi
colocar isso aqui, e para isso eu vou precisar continuar mais um
pouco na parte animalesca: nós todos aprendemos em biologia
que os feromônios são essenciais para promover a aproximação
de certos indivíduos da mesma espécie, e que essa atração é
importante para possibilitar a reprodução e perpetuação da
espécie, o que faz com que os animais precisem disso, eles
precisam reconhecer os feromônios e precisam demarcar o seu
parceiro, porque eles tem que sinalizar pro bando qual o
território deles e qual o parceiro da vez pra reprodução.

Além dos feromônios secretados, existem outras coisas


que sinalizam a hora exata da reprodução. Mamas inchadas,
lábios e genitais maiores e mais avermelhados e olhos maiores
são sinais de que a fêmea entrou no cio, e é nesse momento que
todos os machos da espécie ficam enlouquecidos para encontrar
as suas fêmeas e acasalar, e é também o momento em que nós
somos acordados de madrugada com gatos miando
enlouquecidamente no nosso telhado.

Segue um pouco mais de cultura inútil aqui, porque essa


informação é crucial – ou não – para o restante do meu texto:
essa é uma reação comum a todos os mamíferos, ou seja, isso
acontece conosco também. Caso nunca tenha experienciado isso
por conta própria, chame a mulher com a qual tens mais
afinidade e pergunte sobre esses sintomas físicos que ela vai te
confirmar. Aí, sabendo disso, o que o ser humano faz? Inventa o
silicone, o batom vermelho e aumenta os olhos com maquiagem.

A ideia de “falsificar” o cio tem seus motivos: uma mulher


“no cio” é mais atraente para qualquer homem que passe, logo,
se confundimos os sentidos dos homens e aparentamos estar
permanentemente no cio, eles nunca vão saber quando o
“perigo” de outro homem gerar um filho naquela mulher
passou, o que faz com que, na espécie humana, os machos não
se unam às fêmeas apenas na hora da reprodução, mas com que
permaneçam ali indefinidamente. Somos mais cheios de
artimanhas do que pensavas, né?

Acho que estou acabando com as fantasias românticas de


muita gente dando tantas explicações científicas que ninguém
esperava receber. Mas calma, o ser humano ainda tem o amor, e
a história do surgimento do amor é bem bonitinha, por sinal.
Tem à ver com a nossa transição para seres bípedes, que tornou
o sexo frontal possível. Essa posição deixa as partes mais
vulneráveis do corpo – coração, pulmão, abdômen – expostas, o
que transformou o sexo, que antes era apenas para reprodução,
em um ato de confiança entre os dois seres envolvidos no ato.
Viu que fofo?

O papai-e-mamãe, feito olho-no-olho, trouxe carícias para


o ato sexual, o aconchego dos braços, que antes era algo
exclusivo dos bebês, passou a fazer parte do coito, aumentando
a intimidade dentre os indivíduos. Isso alterou até mesmo a
fisionomia dos rostos, deixando-os mais atraentes, e
acrescentando o beijo ali, como uma forma de união,
transformando um ato que antes era exclusivamente feito para a
reprodução, em um momento de entrega profunda e
cumplicidade.

Assim surgiu a vontade de explorar outras partes do


corpo durante o sexo, e a descoberta do prazer erotizou o ato.
Claro que estou resumindo milhares de anos de
desenvolvimento em algumas poucas linhas aqui, porque eu
quero apenas dar uma base para compreender esse lindo
sentimento, que é capaz de unir duas pessoas durante uma vida
inteira.

Ou era, digo “era” porque tudo está muito descartável na


nossa sociedade atual, e nesse “tudo”, inclui-se os sentimentos.
“Meu celular quebrou, tudo bem, eu compro outro”, “A comida
estragou, tudo bem, eu jogo fora e preparo novo”, “Minha calça
rasgou, tudo bem, eu compro nova”, “Meu relacionamento
acabou, tudo bem, arrumo outro!”

Na verdade, parece que nós nos esquecemos como amar,


e, infelizmente, ao contrário da maioria das coisas que nós
podemos jogar fora, comprar novo, ou fabricar com cola e
tesoura, não existe nenhum tutorial disponível na internet com
um passo-a-passo de como o amor é feito. O amor ainda existe,
por mais que muitos de nós achemos que não, ele faz parte da
nossa evolução e ainda está presente nas nossas vidas. Só
precisamos descobrir como trazer ele à tona. Acredito que um
pouco menos de ego e um pouco mais de empatia seja uma boa
receita, mas vamos discutindo isso.

Lembra que ainda na introdução eu falei sobre a


dificuldade de escolha, decisão e realização em função da
quantidade de opções? Então, aí está. Escolher a faculdade
antes, era mais fácil, não existiam tantas profissões como
atualmente, praticamente tudo o que existe na área de TI, não
existia 20 anos atrás... “Desenvolvedor de aplicativos? O que é
isso?”. Se voltarmos um pouco mais, as profissões eram bem
mais restritas.

Na questão amorosa, nossos pais/avós tinham o amor, o


romance, a intimidade, a cumplicidade e o companheirismo que,
teoricamente, deveriam ser capazes de nos unir à outra pessoa
pelo resto de nossas vidas. E nós? Nós temos o tinder que nos
permite escolher uma pessoa por final de semana. Nossos
amores são freelance, não um plano de carreira. Nós, leitor
querido, temos o nosso sexo casual, amigo de todas as horas,
que funciona perfeitamente para aquele momento de tesão. Ah,
o maravilhoso sexo casual. Temos a facilidade de escolher à
dedo quem vai ser a bola da vez, todos os dias, todas as horas,
sempre alguém novo e diferente.

Repetindo: sempre alguém novo e diferente. Nunca o


mesmo. Afinal, “figurinha repetida não completa álbum”. A
nossa geração consegue, com a ponta dos dedos, descobrir todo
o histórico da pessoa desejada em menos de cinco minutos.
Conseguimos nos encontrar a primeira vez com alguém já
sabendo desde o perfil criminal até o nome do cachorro da
bisavó dela. É só encontrar o perfil da pessoa em alguma rede
social que já somos capazes – ou achamos que somos – de
decidir se aquela pessoa ainda é desejável para nós, ou se já
podemos desfazer o match e seguir para o próximo perfil
disponível e encontrar alguém mais “interessante” do que o
anterior.

Eu disse que nós “achamos que somos” capazes de tomar


essa decisão porquê, sejamos sinceros, o perfil da rede social da
pessoa não nos mostra nada. GIFs de gatinhos, foto com os
amigos, foto na praia... Alguns poucos posts relevantes sobre a
forma como a pessoa se porta, às vezes a faculdade que fez e
onde trabalha, mas nem sempre. É praticamente isso o que tem
na rede social da pessoa e... Não vamos ser inocentes aqui, e
fingir acreditar que a vida social da pessoa é realmente aquilo
que ela posta nas redes sociais. Eu, por exemplo, quando tinha
facebook, só postava as fotos nas quais eu estava extremamente
arrumada. Mas 90% da minha vida era sem maquiagem, com o
cabelo preso de qualquer jeito e organizando alguma coisa. A
minha vida não era o que estava no meu perfil, assim como a da
maioria das pessoas não é.

Todo esse acesso à informação, toda essa exposição da


vida das pessoas que, teoricamente, deveria nos ajudar, parece
que está atrapalhando. Primeiro porque nós baseamos as nossas
decisões de encontrar ou não alguma pessoa naquilo que vemos
em uma rede social mentirosa, e segundo, porque toda a
informação que poderíamos obter, e toda a conversa que
poderíamos ter em um primeiro encontro, já acontece antes
mesmo de encontrar a pessoa, logo, que tipo de conversa é
possível de ter? Quase nenhuma. Isso faz com que não criemos
profundidade com a pessoa à nossa frente, e então, dificilmente
passamos do sexo casual.

Nós temos, todos os dias, um “cardápio de gente” ao


nosso dispor, e isso meio que nos confunde. Queremos a
satisfação imediata do nosso desejo, mas recuamos e quase
morremos de medo na hora em que começa a surgir qualquer
tipo de sentimento. Não conseguimos fazer uma escolha entre
uma pessoa e outra. Temos medo de resolvermos ficar com
alguém e depois nos arrependermos da escolha, porque, talvez,
o outro fizesse uma ou outra coisa melhor que o que
escolhemos. Aquele papo de “a grama do vizinho é sempre mais
verde” nunca esteve tão em voga. Eu sei que é difícil decidir até
qual roupa nós vamos usar ou não, mas não custa nada dar uma
chance e arriscar em vez de simplesmente descartar porque algo
não fez nosso olho brilhar logo de primeira.

Não, isso não é a única coisa que tem de errado com a


nossa geração não, longe disso, tem muito mais. Por exemplo,
nós não fomos criados para lidar com a má-fase alheia, com
qualquer problema ou reclamação. Não aceitamos que uma
pessoa possa não ser alegre e sorridente o tempo inteiro, e isso
faz com que, no primeiro problema que apareça – que pode ser
apenas um desencontro de horários por falta de comunicação –
nós já não queiramos mais ficar do lado daquela pessoa.
Inclusive, eu vou comentar desse nosso problema de não
dialogar um pouco mais adiante. Tem muita coisa errada na
nossa geração, mas se eu fosse falar de todos, eu precisaria
escrever, no mínimo, uns 10 livros só sobre esse tema, e eu não
seis e tenho paciência suficiente para isso.

Antes de mais nada, em momento algum eu estou


criticando o sexo casual em si. Inclusive, sou fã. Pessoalmente,
eu considero o sexo casual a oitava maravilha da humanidade.
Não precisar ficar esperando e remoendo vontades e sensações
quando o que mais se quer é transar e – infelizmente ou não,
afinal, conheço pessoas que simplesmente não gostam de
relacionamentos – não estamos com ninguém, é a melhor coisa
que existe. A possibilidade de poder pegar o celular naquele dia
que estamos extremamente necessitadas, ligar para um pau-
amigo e conseguir realizar os fetiches quase sem ser julgada é
realmente libertador. Eu sinto muita pena da minha avó, por
exemplo, por não poder fazer isso.

Transem sim. Sempre que quiserem. E com quem


quiserem também. Desde que tenha consentimento e desejo
mútuo, sexo casual é uma delícia mesmo.

Digo “quase” porque, como tenho a perspectiva feminina


aqui, eu sei que, infelizmente, ainda tem muito julgamento
quanto à nossa vida sexual. Estamos em pleno 2020, e ainda
somos tratadas como se esperassem que nos mantivéssemos
puras, castas e virgens até o nosso casamento. A mulher
trabalha fora faz um século, usa calças, mora sozinha, dirige
empresas, faz faculdade, faz intercâmbio... Mas é só enxergar
uma mulher saindo sozinha ou com as amigas, bebendo,
fumando, usando roupas curtas ou saindo de uma festa com
alguém que chove julgamento em cima dela como se ela
estivesse quebrando alguma promessa divina. Por favor,
melhorem.

Nós, como seres humanos, temos um impulso pelo sexo,


em função da necessidade de reprodução e proliferação da
espécie. Faz parte do nosso kit de instinto de sobrevivência
básico que veio junto com a nossa evolução. Podemos nos
movimentar em duas pernas, ao invés de quatro, mas ainda
somos animais, quer a gente queira ou não. Não precisamos
mais seguir o “uni-vos e multiplicai-vos" – ufa – mas o impulso
permanece ali, apenas com uma camisinha em cima. Muitas
vezes redirecionamos esse impulso, também chamado de libido,
para questões de realização profissional, ou atividade
intelectual, porque – atenção – ele não está exclusivamente
ligado aos órgãos sexuais, e sim à sensação de desejo e
realização. Sabe quando escutamos a expressão “isso me dá
tesão” relacionada à qualquer assunto? Então, dá mesmo.

Pessoalmente, eu acredito que nós estamos na geração


campeã de redirecionamento da libido, até porque o amor, per
se, é cada vez mais visto como algo cafona, e demonstrar
sentimento – qualquer sentimento – agora é sinal de fraqueza.
Sentimentos são inúteis. Eca, sentimento.

Se formos olhar um pouco mais a fundo essa questão, faz


um certo sentido o que está acontecendo. Afinal, prometeram o
mundo inteiro à nossa geração, certo? “Vocês nasceram com a
faca e o queijo na mão, se não conquistarem algo é porque não
querem”. Geralmente, essa frase é sucedida pela comparação
com algum primo que passou em um concurso e está ganhando
muito bem. É, a cobrança para que conquistemos o mundo de
todas as formas possíveis é algo incessante, que muitas vezes
nos faz passar noites em claro lamuriando o fato de que somos
uma decepção para os nossos pais. É, eu sei, vivi – e ainda vivo –
com isso. Bem-vindo ao clube.

Agora vou falar levando em conta a minha experiência


pessoal, com todas essas promessas e cobranças, quando eu
parava pra pensar em seguir em frente com algum
relacionamento, sempre me dava um friozinho na barriga,
afinal, como uma pessoa pode alcançar tudo isso o que nos é
cobrado, tipo ser bem-sucedido, viajar o mundo, provar de tudo,
estar sempre nas melhores festas e tudo mais, se essa pessoa
estiver “presa” a um casamento? E se tiver filhos, então? A
burocracia é maior do que pra comprar éter de petróleo.
Ah! Quero aproveitar a oportunidade e fazer uma
reclamação aqui, como mulher, porque a nossa cobrança é pior
ainda. Sim, eu sei que homens tem que ser todos bem-sucedidos,
sem exceções, a cobrança é essa. Tem que ser bem-sucedido, em
forma, inteligente, rico, e precisa ter um filho homem para
passar o sobrenome da família adiante – que coisinha mais
arcaica, por sinal. Mas, isso para por aí. Agora, nós, mulheres,
temos que ser bem-sucedidas, independentes, formadas,
viajadas, estar em forma, casadas, com filhos, ter a casa
impecável, sempre absurdamente arrumadas e sorridentes.
Quanto ao casamento, a preferência da família é que a mulher
case com um homem estilo galã de Hollywood que banque a
mulher em tudo. Agora, leia o que nos é cobrado e encontre o
erro.

Dá pra perceber a dificuldade de se alcançar tudo isso?


Não digo que é impossível – apesar de que ser independente E
ser bancada pelo marido é impossível sim, ou um ou outro,
sociedade, se decida! O resto até pode não ser tão difícil pra
herdeira de uma rede de internacional de hotéis, afinal ela já
nasce rica, bem-sucedida, com um personal trainer que
acompanha ela 24h por dia, nutricionista, cinco babás para cada
filho que tiver... Isso sem levar em conta que, se ela quiser, antes
de completar 15 anos, já conheceu metade do mundo. Pra ela
não é impossível. Mas e para nós, pobres mortais que contamos
as moedas pra pagar as contas, e no fim do mês estamos
decidindo se os trocos na carteira vão servir pra comprar pão ou
se vão para a passagem de ônibus? Pra nós não é tão fácil assim.

Mas tudo bem, corremos atrás, jurando que nossos pais e


professores não iriam nos prometer algo que não pudesse se
tornar realidade. Aí vamos nós, acordando 5h da manhã,
deixando 1/3 do salário e, no mínimo, 1h por dia pra academia,
trabalhando 8h, estudando mais 4h – isso contando que a pessoa
só faça faculdade, se fizer qualquer outro cursinho o tempo
aumenta –, indo nos bares mais badalados para manter a nossa
vida social em dia, e fazendo toda a programação da nossa vida
de como ela tem que ser para fechar tudo no prazo que nos
deram e não sermos considerados uns fracassos. Adiciona nessa
rotina extremamente tranquila, ao menos 1h diária de skincare, e
terás o perfeito ser jovem-adulto, que se estressa por 14h ao dia,
usa mais algumas horas pra se mostrar “presente” sendo online
ou offline, e que dorme em média 4h. Que vida perfeita, não?

Aí, nessa correria toda, estando sempre de corpo presente


nos lugares, mas com a mente em outro, nós ficamos tão
atordoados em cumprir o script da vida prometida que não
temos sequer tempo para pensar em um relacionamento – nem
em saúde, se formos ser bem sinceros. Aí nós baixamos todos os
aplicativos de paquera existentes no mundo, liberamos nossos
gritos na cama, e no dia seguinte vai todo mundo seguir o
roteiro de novo.

A questão que eu quero levantar aqui é: e o resto? Uma


hora, o “resto” faz falta. Uma hora o “resto” te faz sair de casa,
sozinha, pra beber no bar da esquina, reclamando da vida com o
amigo, a vizinha ou o garçom. Falando em garçom, lembre-se
sempre da gorjeta, afinal, todos estamos sujeitos a precisar do
ombro dele uma hora ou outra.

Eu lembro de protagonizar uma cena digna de filme


alguns anos atrás – sim, mais uma, mas dessa vez seria um
drama, para ser bem sincera eu acho que meus pais estavam
certos quando disseram que eu deveria ser atriz, porque é cada
situação que eu passo que chega à ser impressionante – e esse
último término trouxe isso novamente à minha mente, e eu
passei uma boa parte desse meu tempo sozinha refletindo sobre
esse assunto.

Na verdade, acho que a cena era mais pra clipe de música


triste do que de filme, mas eu vou contar a cena e deixar para o
leitor decidir como a descrição se encaixaria melhor. O que
aconteceu foi o seguinte: estava eu, voltando de uma festa,
completamente bêbada e chorando igual uma louca, com a mão
e a cabeça no vidro da janela do carro, depois de levar um fora
do cara com o qual eu estava saindo a meses porque “ele não
estava no clima para romance”.

Essa foi a parte que se encaixaria em um clipe ou filme,


voltamos completamente à realidade quando eu abro a porta do
carro – em movimento – dizendo que eu vou vomitar, e
simplesmente jogo o corpo pra fora do carro. A sorte é que a
minha mãe – a motorista da noite – tem reflexos absurdamente
rápidos e conseguiu me segurar pela calça para que eu não
caísse de boca no meio-fio, caso contrário, eu muito
provavelmente teria alguns “enfeites” no corpo pra me lembrar
daquela noite.

No dia seguinte – eu quase disse “naquele dia”, mas eu


tenho apenas flashes do restante da noite, e não sei nem se
alguma coisa passou pela minha cabeça – eu comecei a me
questionar sobre os possíveis motivos que faziam com que eu
não conseguisse me manter com alguém por muito tempo. Sim,
no dia seguinte, além da minha ressaca, minha mãe teve de
aguentar um choro sem fim de “eu não presto pra
ninguém/ninguém me quer”. Como eu disse na introdução, eu
posso ser bastante dramática as vezes. Mas esse dramalhão foi
bom porque me fez perceber que: eu não era a única, tem mais
gente comigo nesse barco, e não é pouca gente não.

Esse sim parece ser um “privilégio” exclusivo da nossa


geração: a superficialidade. Nós não criamos laços afetivos
profundos com quem estamos saindo, porque a pessoa pode ir
embora a qualquer momento, e nem sempre os motivos são
claros... Até porque, às vezes, nem motivo tem. A única questão
que envolve tudo é o desapego. Nós somos constantemente
inconstantes, não só na questão de relacionamentos, mas nos
círculos sociais também. Nós não queremos nos apegar, mas por
quê? E quando começamos isso? Teve algum início, ou só fomos
nos afastando gradativamente?

Por um lado, o fato da globalização geral deu uma ajuda


nesse quesito. As pessoas que trabalham em quase todos os
níveis organizacionais podem, nos dias de hoje, serem
transferidas para uma sucursal do outro lado do mundo, podem
fazer um intercâmbio, podem simplesmente sumir. Às vezes as
pessoas afetadas até querem estar juntas, mas não podem. Pega
o exemplo da empresa: se a empresa quer transferir a pessoa
para o outro lado do mundo, a empresa vai arcar com as
despesas de transferir essa pessoa, mas somente as dessa pessoa,
se o parceiro quiser ir junto que se vire, e nem sempre isso é
possível.

Por outro lado, parece que a forma como fomos criados


ajuda nesse afastamento. Chame uma pessoa 10 anos mais velha
para conversar sobre a infância e a adolescência dela e compare
com a tua. Eu fiz isso algumas vezes e fiquei impressionada com
a diminuição de contato com outras pessoas que eu tive, e olha
que eu fui uma criança muito ativa! Corria, andava de bicicleta,
praticava esportes, brincava na rua... E mesmo assim,
comparando com a infância das minhas primas que são, em
média, 10 anos mais velhas do que eu, eu praticamente não
conversava com ninguém.

O problema disso é que quanto mais restrições ao contato


externo uma criança tiver, menos ela vai aprender a dividir, a
conversar, a fazer amizades, a negociar... E isso pode trazer
enormes problemas na vida adulta! Pode, e já trouxe em alguns
casos... Quantos de nós não conhecemos um adulto que não
sabe perder? Que não sabe ouvir um “não”? Que tem problemas
de interação social e não consegue se abrir para o mundo? O que
acontece durante a infância, determina o adulto que se forma,
Freud explica!

Outra coisa que prejudica – e muito – a criação de laços


com o outro, é toda essa hipervalorização do sexo, criada em
grande parte pela mídia. “Sexo é vida/Uma vida sexual ativa
envolve vários parceiros/Quanto mais, melhor” e por aí vai.
Assistimos filmes, novelas e séries, e dificilmente vemos um
casal que passe da primeira briga, que geralmente tem algo à ver
com ciúmes ou com o fato da pessoa não estar tão sexualmente
ativa como antes. E se o meu parceiro não está transando
comigo no momento em que eu quero transar, o que isso
significa? Dor de cabeça? Cansaço? Estresse? Que ele
simplesmente não está afim naquele dia? Não. Ele só pode estar
me traindo.

E com quem meu parceiro está me traindo? Obviamente


com alguém com genitália e bico do seio cor de rosa. Se for
mulher, ela deve ser mais magra e apertada que eu, se for
homem, então o dito-cujo do cara é grosso, todo de uma cor só,
grande... E com certeza o gosto da pessoa deve ser melhor que o
meu, a pessoa deve ter mais resistência pra fazer malabarismos
na cama e consegue proporcionar um orgasmo múltiplo.

Porque sim, até isso é idealizado, cor, formato, grossura,


duração, sabor, tipo de orgasmo... Principalmente em pornô. Vê
se pode uma coisa dessas?! Tem check-list até pra genitália da
pessoa, agora! E o que eu acho mais engraçado, é que quase
ninguém parece reparar o quão absurdo são esses pensamentos
até que outra pessoa faça um comentário do gênero.

Voltemos pra cena na qual todos esses pensamentos


estavam passando pela minha cabeça. Tem horas que eu
agradeço por não existir a possibilidade de enxergar a mim
mesma, como, por exemplo, a hora que eu estou descrevendo
pra vocês, porque eu já estou quase na metade da garrafa de
vinho, e com certeza a minha expressão não deve ser a mais
bonita, não deve estar sequer apresentável, afinal, estou
mentalmente xingando o mundo por seus padrões, e quando eu
estou sozinha e pensativa, eu tenho o costume de morder as
bochechas, mantendo o olhar fixo em algum ponto.

Se eu vejo algum desconhecido com uma expressão dessas


eu levo um susto e atravesso a rua na hora. Porque não é a cara
de quem está fazendo uma análise interna, e sim de quem está
planejando um assassinato. Caso me encontre na rua algum dia,
vou aproveitar para deixar avisado: eu não sou assassina, e sou
extremamente comunicativa, não precisa ter medo, é só o olhar
que assusta um pouco, não julgue o livro pela capa – olha o
trocadilho especialmente selecionado para estar no meio de um
livro, minha gente...
— Giulia! Tá livre?

Um grito extremamente animado – e alto, diga-se de


passagem, a pessoa parece que tem um equalizador na garganta
– me tirou do transe introspectivo e me ajudou a descobrir que
meu coração ainda estava batendo, e bem forte, porém na minha
garganta.

Quase me engasguei com o vinho, e o meu cigarro eu


realmente não sei onde foi parar, só espero que não tenha voado
brasa em ninguém. Olhei pro lado e quase quebrei o pescoço pra
encontrar o rosto daquele ursinho carinhoso de praticamente
dois metros de altura, que me olhava com um sorriso de orelha-
a-orelha. Grande, forte, mas a criatura mais amável e inofensiva
que tu podes imaginar.

— Oi, meu bem! Sim, estou livre. Quer sentar?

CAP II - Vicky Cristina Barcelona

Olhei para a cara desse meu amigo, que aqui resolvi


chamar de Allan, porque esse nome me remete a pessoas altas.
Ele parecia cansado – como quase sempre, aliás... foram raras as
vezes que vi essa criatura com cara de disposição total – e um
pouco nervoso. Chamei o garçom, pedi mais uma taça, Allan
sentou, ascendeu um cigarro e fumou quase metade em uma
tragada só, então ele percebeu que eu estava encarando ele e,
numa tentativa falha de mostrar que estava tudo bem, ele abriu
um sorriso forçado – acredito que era para ser um sorriso
simpático, mas acabou parecendo um sorriso maníaco.

— Desembucha.

— Oi?

— Sim, que cara é essa? Nem tenta me dizer que tá tudo


bem porque eu não nasci ontem. Fala.

Ele balançou a cabeça e olhou pra rua, observando os


carros, como se aquilo fosse me convencer de que estava tudo
bem. Tirei o cotovelo da mesa, inclinei o corpo para o outro
lado, cruzei minha perna na direção dele, ascendi outro cigarro
e voltei à encarar ele. Ele me olhou de canto de olho enquanto
dava a segunda – e última – tragada no cigarro e começou à rir,
olhando pros pés e balançando a cabeça.

— Vai ficar me encarando com essa pose de psicóloga?

— Uhum.

— Tu é muito chata.

— Uhum. Agora fala.

Agora ele entendeu que eu não ia parar de incomodar até


que ele me contasse o que tinha acontecido, o que deixava ele
com duas opções: ir embora ou falar. Se fosse embora, eu ia ficar
incomodando por mensagem depois, então ele optou pela opção
mais rápida. Deu um suspiro/grito e ficou acho que quase um
minuto balançando a cabeça pra cima e pra baixo enquanto
olhava a rua. Parecia um cachorrinho de mola – um cachorrinho
de mola gigante, mas ainda um cachorrinho de mola. Ele deu
uns três goles seguidos no vinho e começou a falar.
— Chegou mais uma pessoa pra trabalhar no projeto hoje.

Eu só deitei a cabeça e continuei encarando. Não era


possível que ele estivesse naquele estado só porque tinha mais
gente trabalhando com ele. Ok, ele não gosta de dividir tarefas
mas... Não.

— Já estamos com todas as posições de direção ocupadas.


O cara já chegou dando pitaco, o projeto já tá todo programado,
agora só falta fazer, todos os cargos “importantes” já estão
ocupados e todo mundo já concordou com o que vai ser feito.
Menos ele, que resolveu aparecer só hoje, se enfiou no meio, e já
tá querendo reclamar.

— Tá, mas quem é?

— Pedro.

— Pedro?

— É. Pedro. “O” Pedro.

Eu só arregalei os olhos e comecei a rir. Rir não, gargalhar,


e foi uma gargalhada quase tão maníaca quanto o sorriso que ele
tentou me dar antes. Recebi um olhar de nojo e uma risada
debochada. Eu ri ainda mais.

— Puta merda, cara!

Pedro. O bendito Pedro. Vou ter que voltar uns três anos
no tempo agora pra explicar minha crise de risada quando eu
entendi de quem ele estava falando...

Eu conheço o Allan a quase quatro anos, e quando conheci


ele, ele morava junto com a ex-namorada dele que, agora, é
namorada do Pedro, ou do irmão do Pedro, já nem sei mais
direito que fim levou a moça... Enfim, Pedro era o melhor amigo
do Allan há anos, se conheceram no trabalho. Ele tinha um sócio
numa produtora que não durou muito tempo, e logo ele chamou
o Allan pra trabalharem juntos. Nesse meio-tempo, o Allan e a
moça – desculpem, como eu realmente não lembro o nome dela,
não vou me esforçar para criar um nome fictício, ela vai ser
“moça” do início ao fim – começaram à namorar, e estavam
morando juntos há uns seis meses, se eu não me engano,
quando resolveram alugar um apartamento maior para ter um
espaço pra trabalho.

Pois bem, tempo vai, tempo vem, e um ano depois o


Pedro resolve ir morar junto com eles. Como eles tinham um
quarto sobrando, resolveram acolher o amigo. Os dois
trabalhavam na mesma área, por conta, tinham uma parceria e
agora um local pra facilitar as coisas pro serviço. Óbvio que,
cada um manteve seus próprios projetos particulares também,
afinal eles não iam abrir mão de algo que já estava funcionando
e que não interferia na parceria.

Tudo ia muito bem até a tal moça resolver se esconder pra


ficar com uma outra moça em uma festa. Os dois brigaram,
discutiram por semanas, e resolveram que iam “terminar”. Entre
aspas porque foi um término que não terminou nada de
verdade, eles continuaram de romance. Ele não ficou brabo por
ela ter ficado com outra moça, mas por ter se escondido para
fazer isso, por não ter comentado com ele nem a vontade de
fazer algo do gênero. Conhecendo o Allan do jeito que eu
conheço, tenho certeza de que ele rearranjaria o relacionamento
pra que ela se sentisse confortável e pudesse realizar as
vontades dela.
Bem, o Allan fazia muitos trabalhos externos, e ela e o
Pedro ficavam muito tempo juntos em casa, porque mais ou
menos na mesma época, ela ficou desempregada. Eu não sei, até
hoje, quem quis e quem cedeu, mas isso também não importa,
afinal, o cara era o melhor amigo dele, e ela era namorada do
Allan, ou seja, nenhum dos dois deveria ter feito nada.
Convenhamos, se quem está no relacionamento investe no
amigo do parceiro, então essa pessoa não deveria estar
namorando, e se é o amigo quem investe, isso significa que
“amigo” não é tão amigo assim.

Mas, essa linha ética/lógica não foi exatamente o que


aconteceu. Um belo dia, o Allan fez uma de suas jantas
maravilhosas – maravilhosas mesmo, dá até uma dó de não
poder falar o nome real dele aqui, mantendo o leitor na
escuridão de não poder provar as delícias gastronômicas dele –,
estavam os três tomando alguns drinks, quando o Pedro sai do
apartamento dizendo que vai comprar cigarro, e ela resolve
abrir o jogo.

— A gente tá junto.

— Quê?

— É, faz um tempo já, uns dois meses eu acho.

— Quê?! — Eu sempre fico imaginando o Allan com os


olhos arregalados, com um sorriso que significa “eu vou te
matar” e uma gota de suor escorrendo na testa nessa parte... Eu
não estava lá pra saber, então tenho que me contentar com a
história sem tantos detalhes que me foi passada pelo Allan.
Compreensível ele não me dar tantos detalhes. Mas eu
realmente adoro imaginar essa cena.
— Eu tô dando pra ele — Segundo o Allan, ela falou isso
com a maior cara de paisagem que ele já tinha visto na vida.

Cena de novela! O Allan jogou o copo no chão, pegou a


vassoura pra juntar os cacos, ficou com raiva, quebrou o cabo da
vassoura e mandou uma mensagem pra ele voltar pro
apartamento mesmo sem os cigarros. Enquanto isso, a bonita
sentada, fumando um cigarro e olhando pra ele, como se nada
tivesse acontecido. No meio da discussão ele descobriu, pelo
celular dela que – essa é a minha parte favorita – o cara nunca
tinha saído do prédio, ele simplesmente tinha ido se esconder na
garagem por medo de acontecer alguma coisa, até porque, ele
sabia que por mais revoltado que o Allan estivesse, ele jamais
encostaria um dedo nela, nem ameaçaria, agora nele...

Eu estou até hoje tentando convencer o Allan a fazer um


curta dessa cena, isso ganharia um Kikito sem sombra de
dúvidas! E a frase “baseado em fatos reais” nos créditos deixaria
todo mundo de boca aberta. Falei pra ele que ajudaria na
produção/atuação e tudo, mas ele não quer, fazer o quê... Adeus,
Kikito.

Assim que o Pedro voltou pro apartamento – após a moça


avisar que ele não corria risco de vida – o Allan aproveitou pra
xingar os dois de tudo quanto era nome. No dia seguinte ele
resolveu sair do apartamento e deixar a cama e os sofás pro
novo casal de pombinhos que havia surgido, afinal, como o
próprio Allan disse, em dois meses dá pra transar em muitos
lugares, vai saber onde eles não tinham feito?

O que me deixa mais revoltada nessa história toda, é que


ela ficou com a gata. A gatinha deles é um amor, fazia carinho
em todo mundo, conversava... Ela não merece aquela gata.
Ok! Voltemos ao momento “presente”, enquanto eu estou
rindo escandalosamente sob o olhar julgador do meu
excelentíssimo amigo.

— Mano, como assim?! Mas porquê?!

— Eu que vou saber?! Ele só tá lá.

— Puta merda! — mais uma rodada de risadas — E


agora?

— Agora o quê?

— Sim, o que tu vais fazer? Não vai mandar ele embora,


nada?

— Não, tá bom assim.

Para tudo. Agora é que eu não entendi mais nada. Como


assim “tá bom assim”? Não tá bom não. Comigo não estaria, ao
menos... Eu já teria dado uns gritos com o cara e mandado ir
tomar vergonha na cara... Mas temos que levar em conta que a
estourada do grupo sempre fui eu, os meus amigos costumam
ser muito diplomáticos.

Espalmei as mãos no joelho como quem não entendeu


nada e olhei para os dois lados da rua – eu não sei porque eu
faço isso, será que eu estou esperando aparecer um ônibus com
a resposta colada na lateral como se fosse um anúncio? – e olhei
pra ele novamente, incrédula, e ele com a cabeça erguida e o
olho brilhando de malícia.

— Eu quero ele lá. Como eu disse, todos os cargos


“importantes” já foram ocupados, e sou eu que estou
coordenando tudo. Eu quero ver ele recebendo as minhas
ordens e acatando tudo o que eu disser.
Ah... O doce gostinho da vingança. Agora tudo fez
sentido. Mais risadas.

Continuamos conversando mais uma hora,


aproximadamente, sobre vários assuntos aleatórios, e volta e
meia acabávamos voltando pra essa história. Chegamos à
conclusão de que a culpa dessa volta inesperada do Pedro pra
era do mercúrio retrógrado. Precisávamos culpar alguma coisa,
certo?

Do nada ele dá um pulo porque lembrou que tinha


marcado um jantar com uns amigos que estariam chegando em
poucas horas, depois de cruzar um estado inteiro pra vir pra cá.
Nos despedimos, ele foi embora, e eu fiquei bebendo, fumando,
e rindo sozinha da triste situação dele e comparando com a
minha. Dizem que só temos maturidade quando conseguimos
rir da própria desgraça, certo? Então, cá estava eu, rindo das
duas. Provavelmente as pessoas que estavam passando na rua
achavam que eu estava louca, mas tudo bem, já estou
acostumada com esses olhares.

Tirando a culpa do pobre mercúrio, comecei a buscar


alguma explicação psicológica pra esse fenômeno da traição.
Será que Freud explica essa também? Com Freud ou sem Freud,
se tem uma coisa que não podemos negar, é que ao entramos em
um relacionamento, nós depositamos todas as nossas
expectativas e esperanças, em um único ser, que faz exatamente
o mesmo conosco. Como eu comentei antes sobre a “faixa de
cabelo da Cinderella”, as comédias românticas, os musicais e
filmes de princesa, são os principais culpados de tudo isso. A
combinação fantasiosa de galãs de Hollywood + contos de fada
+ músicas cheias de declarações apaixonadas que todos nós já
ouvimos, resulta no nosso protótipo de parceiro ideal.

Falando bem sério agora, nem sequer as princesas do


século XV, acostumadas com serenatas, demonstrações de
bravura, galanteios e a serem presenteadas o tempo todo com
festivais, batalhas, joias e banquetes esperariam que seu
pretendente fosse tão encantador e apaixonante como o que nós
pintamos na nossa imaginação. Parabéns aos responsáveis.

O toque final desta construção vem das nossas frustrações


e dos comentários familiares. Pegamos as falhas do ex e
convertemos elas em virtudes, somamos com as histórias – que
foram cuidadosamente enfeitadas antes de chegarem aos nossos
ouvidos – sobre o relacionamento de nossos pais e avós.
Colocamos tudo isso no liquidificador e temos um ser perfeito,
que viverá única e exclusivamente para o romance, cheio de
virtudes e zerados de defeitos.

O que parecemos ter esquecido aqui, é que – e aqui o meu


ego me obriga a dizer: infelizmente – nós não somos o centro do
universo. Nem do universo em geral e nem do universo
particular de ninguém – absolutamente ninguém – à não ser,
talvez, do nosso próprio. Nós fomos levados a acreditar que o
nosso grande amor iria ficar nos orbitando o tempo inteiro como
se fosse um satélite, e nós o planeta. Uma vida depende da
outra. Que lindo. Mas não é bem assim que a banda toca.

Se alterarmos o sentido da frase “você é o meu mundo” de


“você é a única razão d’eu existir” para “você é uma grande bola
molhada, explosiva e cheia de calombos e rachaduras”, talvez
possamos conseguir algum progresso no caminho de parar com
essas fantasias absurdas. Ninguém quer ser comparado à uma
bola toda errada.

É dentro de nós, e somente dentro de nós, que tudo isso


acontece ou deixa de acontecer de forma perfeita: primeiro a
gente sonha com o que quer, depois deseja que aquilo se realize
com todas as nossas forças, pedindo ajuda pra estrela cadente, aí
vê que a estrela não está ajudando e planeja, desde como vai ser
o primeiro encontro, até pedido de namoro, casamento, quantos
filhos vão ter e tudo mais, aí depois prepara todo o look perfeito
e corre pra vida real para ver no que dá.

Sejamos realistas, raramente – para não dizer nunca –


tudo acontece exatamente de acordo com o que planejamos
primeiramente. Principalmente no que se refere às outras
pessoas. Vamos explorar isso, aproveitando que eu ainda tenho
mais alguns goles de vinho nessa garrafa e mais uns dois dedos
na taça... Esse torpor alcoólico sempre é útil na hora de usar a
imaginação.

Se tem uma coisa que eu aprendi nessa vida é que, por


mais que desejemos, nós não podemos controlar tudo. O que eu
posso controlar é o que eu vou fazer, como eu vou agir, como eu
vou deixar uma situação me afetar, e qual vai ser a minha
resposta a tudo. Mas eu não posso controlar essas reações no
outro. Eu decido se vou sorrir ou não para alguém, e esse
alguém é quem decide se vai sorrir ou não de volta para mim. Se
eu queria ter o poder de estalar os dedos e fazer a pessoa
responder da forma que eu gostaria? Sim. Mas não tenho.

Como eu adoro usar analogias para explicar o meu ponto


de vista, pois acredito que elas ajudam meu interlocutor a
entender melhor o que estou querendo dizer, vou soltar uma
aqui, comparando cada um de nós com uma loja, pode não
parecer fazer muito sentido agora, mas vai facilitar o
entendimento. Calma, eu sei que esse papo parece coisa de
louco, mas vai fazer sentido no final – espero eu –, segue a linha
e confia.

Cada loja que visitamos possui uma vitrine


cuidadosamente criada para nos mostrar exatamente as peças
que podem nos chamar a atenção, coisas que o lojista acha
interessante mostrar, exatamente naquela disposição, para cada
cliente em potencial. Essa vitrine já “seleciona” o tipo de
clientela que vai se interessar pela loja. partes de si que a pessoa
quer mostrar. É um trabalho que exige que o lojista seja muito
meticuloso. Toda loja nos permite uma “visita”, para que
possamos entrar e procurar algo mais que possamos querer.
Mas, como toda boa loja, aquela peça que está com defeito,
estragada, manchada, ou danificada de qualquer forma, está
muito bem guardada à sete chaves no estoque, junto com os
segredos de contas, contatos, contratos e toda a papelada de
burocracia que não é bom mostrar aos clientes.

Nós fazemos exatamente a mesma coisa. Selecionamos


cada pedacinho da nossa personalidade que queremos mostrar,
cuidamos para que o nosso visual seja atrativo para um tipo “X”
de pessoas, e cuidamos como vamos nos portar e o que mostrar
em cada relance. Depois, vem a hora da “visitação”, aquele
primeiro contato que fazemos com uma pessoa que nos chamou
a atenção pra ver se “rola” ou se “não rola”. E quanto ao que
não queremos mostrar? Tudo escondido, não se toca no assunto.
O que nos “envergonha” de alguma forma nós escondemos do
mundo, nossas partes “manchadas”, segredos, passado, história.
Isso nós fingimos que não existe para evitar que o “cliente” fuja.
Viu como faz sentido? A melhor parte de tudo isso é que:
nós sabemos que isso acontece. Claro que sabemos! Todos
possuem história, partes ocultas, fatos dos quais se
envergonham ou tem medo de mostrar, algo que os deixa
inseguros quanto à reação do próximo ou a si mesmos e que
preferem não mostrar. Nós sabemos, porque fazemos
exatamente a mesma coisa. Não saímos falando todos os nossos
traumas, medos e inseguranças de cara para as pessoas, até
porque isso iria assustá-las. Nós vamos nos abrindo aos poucos,
esperando que a outra pessoa faça o mesmo.

Porém, mesmo estando cientes da existência dessas portas


secretas, nós esperamos que as outras não as tenham, e é isso
que causa toda uma confusão louca e que eu não entendo.
Queremos uma folha em branco, alguém cru, recém-saído de
fábrica que não vá nos causar nenhum tipo de incômodo no
presente ou no futuro, por conta de um passado do qual não
fizemos parte. E ainda assim queremos que essa pessoa tenha
todo o jogo-de-cintura necessário para lidar com o nosso lado
escondido que às vezes vem à tona sem a nossa autorização. Ou
seja, a pessoa tem que saber lidar com todos os nossos defeitos,
mas nós não precisamos saber como lidar com nenhum dela,
porque ela não é autorizada a ter defeito algum.

Essa idealização absurda me lembra aquelas incríveis


“ofertas” de emprego, que exigem que a pessoa seja graduada,
esteja fazendo uma pós-graduação, tenha domínio da área,
experiência de campo, transporte próprio, estabilidade de
emprego e renda, more perto do local onde a empresa está, que
faça todas as funções e ainda crie novas oportunidades de
expansão para a empresa, isso tudo sem sair da faixa dos vinte
anos, e oferecem um salário mínimo como pagamento.
Revoltante, não? Mas é o que a gente faz nos
relacionamentos.

Lendo Bauman, eu encontrei uma confirmação –


extremamente bem-estudada por ele, e o livro em questão, assim
como todos os outros que eu li e que me inspiraram aqui, estará
recomendado na bibliografia, caso desperte algum interesse de
se aprofundar no assunto – da “causa-mãe” de tudo isso: o
medo. Sim, medo.

Quando estamos no período de transição entre a


adolescência e a fase adulta, percebemos que ficaremos largados
à nossa própria sorte – ou seja, nós que, até ontem não
conseguíamos decidir o que comer no café da manhã, faremos
todas as decisões da nossa vida, começando por decidir em que
área queremos nossa carreira – o que é, no mínimo apavorante.
Essa “independência cognitiva forçada” nos faz ansiar pela
segurança do convívio, por um ombro amigo sempre disposto a
ajudar, e por termos com quem nos relacionar.

Mas, ao mesmo tempo, o medo de nos comprometermos


com alguém é gigante. Medo porque não sabemos se vamos
cumprir as expectativas do outro ao nosso respeito, porque não
sabemos se o outro não pode, sem querer, atrapalhar o nosso
percurso profissional ou acadêmico, porque não sabemos como
o outro vai reagir à nós e não sabemos se nós vamos saber como
reagir ao outro. De fato, um compromisso é assustador,
principalmente quando não conseguimos ter certeza do que nos
espera mais à frente. Ou seja, nós ficamos em uma encruzilhada:
queremos ter alguém, mas não queremos a responsabilidade
que um relacionamento, principalmente de longo prazo, pode
acarretar nas nossas vidas.
As tensões que um relacionamento pode acarretar não
condizem com o nosso modo de vida fluido, no qual tudo vem e
vai na mesma rapidez e no qual tudo pode mudar em um piscar
de olhos. Então nós queremos sem querer de fato. Esperamos
fidelidade e comprometimento total da outra pessoa enquanto
nós mesmos não queremos ceder a isso, por medo de que aquela
pessoa possa não ser a pessoa certa. Essa pessoa pode não ser
nosso “príncipe encantado”.

Esse papo de “a grama do vizinho é sempre mais verde” é


o que cria essa ideia de “apertar os laços, deixando-os frouxos”
como disse Bauman. Ele identifica isso como “um querer perto,
querer amarrar a pessoa em si, mas não amarrar tanto que fique
difícil de desfazer o nó quando qualquer coisa que pareça um
pouco mais interessante brilhar no horizonte”.

E quando eu digo qualquer coisa que “pareça” mais


interessante, é porque nem sempre é, de fato, mais interessante.
Sabe aquele ditado “nem tudo que reluz é ouro”? Pois então,
esse ditado se refere a tal da pirita, que pesa como ouro, brilha
como ouro, tem a aparência de ouro, mas não é ouro, é apenas
dissulfeto de ferro que, comercialmente, vale apenas uma fração
do ouro de verdade. Às vezes, “compramos” uma pessoa-pirita
achando que é uma pessoa-ouro.

A pessoa parece ouro para nós, porque normalmente


entramos de cabeça no relacionamento, esperando que tudo seja
um conto de fadas perfeito, nós “criamos” coincidências e gostos
em comum – todos nós vez ou outra “passamos à gostar” de
alguma coisa, sem gostar de fato, só porque a outra pessoa gosta
e nós queremos passar mais tempo com ela – fazemos juras de
amor e começamos à fazer tudo juntos: viagens, barzinhos,
maratonas de série... Até cursinhos de culinária. Só o fato de
estarmos juntos já é uma maravilha.

Só que, o tempo passa, o tempo voa... E poupança do


amorzinho não continuam numa boa. Pois é, as conversas, os
programas, a companhia, o sexo, a comida, a música, com o
passar do tempo fica tudo muito insosso. Até uma lata de
ervilha brilha mais que o olhar do “casal perfeito”. Nosso conto
de fadas moderno ficou mais desbotado que camisa lavada sem
alvejante. O que aconteceu? Eu te digo o que aconteceu:
aconteceu que o príncipe tem chulé, acorda descabelado e com
bafo de manhã, volta cansado do trabalho, tem problemas,
envelheceu, não tem pique pra passar o final de semana
bebendo e transando. Foi isso o que aconteceu.

Aconteceu que depois de um tempo, nosso lojista nos


entregou as chaves do estoque da loja, e nós ficamos cientes da
bagunça que tinha lá atrás, nós fomos além da vitrine e da “sala
comum”, e nos deparamos com algo que não estávamos
esperando.

Eu sei que tudo o que nós queremos é uma pessoa perfeita


que lide com todas as nossas imperfeições sem reclamar, mas
isso não existe. Primeiro: se a pessoa fosse perfeita, ela não iria
aceitar alguém imperfeito do lado dela. Segundo: se a pessoa
não fosse imperfeita, não existiria a menor possibilidade de ela
saber como lidar com as nossas imperfeições. Ela sequer
pensaria nessa possibilidade. A realidade é mais parecida com
um travesseiro de tijolos do que com um colchão de nuvens, eu
sei. Mas acredite: na posição certa, dá pra encontrar conforto
nesses tijolinhos. É só querer.
O que precisamos aprender é que, do mesmo jeito que
nenhuma fada-madrinha vai aparecer pra nos presentear com
um vestido novo e um sapatinho de cristal, a gente não pode
mandar fabricar o modelo perfeito da pessoa com a qual
queremos nos relacionar em uma “linha de montagem do
parceiro ideal”. Acho até que não faria sentido. Sim, é ótimo
receber todos os agrados do mundo, mas só por algum tempo,
depois cansa, enjoa, fica monótono. Ou seja: a gente ia continuar
achando defeito - até onde não tem.

Aí, aparece a insatisfação, também conhecida como “a


mãe de todos os chifres” – não é, sabemos que tem gente que
trai mesmo sem estar insatisfeito, mas para a nossa sorte, esse
tipo de gente não é tão comum assim – porque, à partir do
momento que o que nós temos não agrada mais, passamos à
buscar algo que pareça mais interessante. De novo: pareça. Via
de regra se troca seis por meia-dúzia – ou nem isso – quando
isso acontece, mas quando a gente percebe, já é tarde demais. Aí
já aconteceu a troca – ou a traição.

Essa insatisfação deveria, na verdade, gerar um diálogo


entre o casal, pra ambos tentarem entrar em algum acordo. Será
que é tão difícil assim chegar pro parceiro e falar “senta aqui,
vamos conversar” e desabafar? Ao meu ver, não deveria, até
porque choramos nossas mágoas facilmente pro garçom do bar
quando tem algo nos incomodando, e nós nem conhecemos
aquele cara, nosso parceiro divide a cama com a gente,
compartilhou sonhos e realizações, viu nossas frustrações
acontecerem, estava lá, mesmo desapontado, estava lá. Ou ao
menos deveria estar.
Mas, como eu já comentei, o diálogo foi banido das nossas
relações. Espera, quero corrigir isso, o diálogo não foi banido
das nossas relações, apenas dos nossos relacionamentos
amorosos. Digo isso porque cansamos de lidar com os defeitos e
crises dos nossos amigos, de conversar, de ajudar, até de dar
uma bronca de vez em quando. Com os nossos amigos nós
dialogamos, discutimos, trocamos ideias, é apenas o nosso
parceiro amoroso/sexual que não goza desse privilégio.

Pro nosso amigo nós dizemos sem culpa nenhuma “não


me leva à mal mas eu não estou afim de sair hoje,
principalmente pra ir lá, não gosto daquele lugar/daquela
pessoa, outro dia a gente marca alguma coisa”, e falamos
porque sabemos que nosso amigo vai entender, da mesma
forma que nós entendemos quando o nosso amigo nos fala algo
do gênero.

Mas o meu parceiro me falar isso? QUE ABSURDO! Como


assim “não quer”? Mas EU quero ir! Desde quando ele não quer
mais ir nos mesmos lugares que eu? Ele não me ama mais, é
isso? Posso saber o que está acontecendo? Ele quer ficar em casa
hoje pra quê, afinal de contas? Será que cansou de mim?”

É aí que todas as nossas paranoias começam a acontecer. E


não falamos esse tipo de coisa para o nosso parceiro pelo mesmo
motivo. Nós nos ofendemos quando a pessoa com a qual
estamos nos relacionando não está no mesmo clima que nós, e
cuidamos a fala para não ofender essa pessoa também. E isso
não faz o menor sentido. Da próxima vez que acontecer algo do
gênero, tenta chamar a pessoa pra conversar e explica teus
motivos. Eu prometo que não vai cair nenhum dedo se fizer isso.
Gente, a pessoa só não gosta do lugar ou não está afim de
sair, isso não é nenhum crime. Mas toda essa cena acontece – e
não vem tentar dizer que não acontece, porque acontece sim, se
não verbalizada, é mentalizada – porque o outro não está
cumprindo todas as nossas vontades, como nós idealizamos.
Idealizamos ou fomos condicionados a acreditar que isso
deveria acontecer dessa maneira, mas enfim...

No caso desse meu amigo, teria sido tão mais fácil ela ter
dito que não queria nada sério, ou que estava cansada do
relacionamento, ou que queria algo novo, ou que estava
sentindo atração por outra pessoa, ou que precisava de
novidade, ou que queria inovar, ou que estava curiosa... Enfim,
existem milhares de maneiras de evitar a traição. Já foi
inventado até o tal do “tempo”. “Vamos dar um tempo na
relação”. Geralmente esses “tempos” são espaços curtos, onde
os dois ficam livres para fazer o que quiserem, com quem
quiserem, do jeito que quiserem. O “tempo” culmina ou no
término do relacionamento, ou nos dois voltando felizes e
decididos pro namoro. Em caso de dúvidas, peça um “tempo” e
tudo fica mais simples de resolver.

Ela, provavelmente, estava em dúvida quanto ao


relacionamento dela, se era realmente o Allan que ela queria, ou
se o que ela estava sentindo pelo Pedro era real, ou, talvez,
estava em dúvidas sobre a própria sexualidade e queria “testar”,
eu não sei exatamente quais eram os motivos dela, estou apenas
criando possibilidades aqui.

Nada, absolutamente nada impedia que ela pedisse um


tempo no relacionamento. Eles estariam em um “intervalo” que
permitiria que os dois pudessem se afastar um pouco um do
outro, sem culpa, para ficar com outras pessoas e decidirem o
que gostariam de fazer. Aí ela poderia, depois desse intervalo,
terminar o namoro de uma forma mais pacífica. Muito estresse
teria sido evitado, e a pobre vassoura provavelmente
continuaria inteira, assim como o copo, que não tinha culpa de
nada e acabou estilhaçado no chão.

Mas, ela preferiu não fazer isso, preferiu se esconder para


ficar com outras pessoas, preferiu trair o namorado com o
melhor amigo dele, preferiu não ser honesta. Foi a opção dela
que criou todo esse caos naquele dia no apartamento dos três.
Como eu disse antes, quem decide a forma como vamos ou não
agir somos nós, e a decisão dela foi essa.

Utilizando a interpretação popular, e não a psicológica, do


termo “caráter”, que é popularmente definido como a soma das
virtudes morais de uma pessoa, o que ela fez demonstrou, para
todos os envolvidos na situação – e para todos os que ficaram
sabendo do que aconteceu depois – que ela demonstrou ter falta
de caráter, ou seja, mesmo errando repetidamente com os
outros, causando prejuízo a terceiros e ferindo sentimentos
através de manipulações e mentiras, ela insistiu no ato.

Vou entrar aqui em um campo um pouquinho mais


profundo, o da ética. Eis outra coisa que não foi corretamente
passada para a nossa geração, e que não está sendo passada
também para as que vieram, e ainda estão vindo, depois de nós,
o que é algo extremamente grave. Não estão sendo passadas por
um simples motivo: nós não podemos ensinar algo que não
aprendemos, e o fato de não sabermos o que é ou como funciona
a ética nos trás problemas que vão muito além dos nossos
relacionamentos amorosos.
Ética, ou filosofia moral, essa palavrinha que vem do
grego, significa caráter, disposição, costume, hábito, ou seja, é o
resumo das nossas ações. Não sei se vocês já ouviram falar de
Immanuel Kant, um filósofo prussiano do século XVII, que no
livro “A Fundamentação da Metafísica dos Costumes”
apresentou o conceito de “Imperativo Categórico”.

Eu, desde que conheci as obras de Kant, ainda na pré-


adolescência – sim, eu era aquela adolescente estranha que
ficava nos cantos lendo livros enormes e me deliciando com os
mesmos no recreio, enquanto meus colegas discutiam quem ia
ser o próximo à beijar quem – tento seguir, dentro do que me é
possível, a definição de ética que ele apresentou, que tem como
conceito exatamente o sistema do Imperativo Categórico.

Eu não vou entrar em detalhes aprofundados sobre esse


assunto, nem sobre o autor em si, pois apesar de adorar a ideia
de redigir uma segunda biografia sobre Kant, esse não é o meu
foco aqui, e não foi pra ler sobre o filósofo que você comprou o
livro. Eu apenas quero chamar a atenção para esse conceito em
particular, porque ele vai ser muito útil para nós, em todos os
âmbitos da vida, pois, a partir do momento em que
conseguimos conceituar a ética, conseguimos trabalhar com ela
em nossas vidas, encontrando os nossos erros e podendo corrigi-
los até mesmo antes deles acontecerem.

Imperativo Categórico de Immanuel Kant:

"Age como se a máxima da tua ação fosse para ser


transformada, através da tua vontade, em uma lei universal da
natureza."
Não entendeu? Tudo bem, mais de 3 séculos de
abreviações, terminologias e formas de estudo separam essa
frase de nós, mas ela não é tão difícil de entender – nem de
seguir – quanto parece. Vou colocar em outros termos, um
pouquinho mais modernos, pra depois passar o Tutorial
Kantiano de Como Viver a Vida de Forma Ética em Passos Simples. E
é simples mesmo, precisa de só alguns segundos de imaginação
antes de tomar alguma decisão.

Resumindo um pouco e alterando os termos para dizer


exatamente a mesma coisa, nós temos “Age de forma com que
as tuas ações possam se tornar uma lei universal”. Já ficou um
pouquinho mais fácil, né? Basicamente, em um resumo mais
resumido que cola para prova, para conseguir adaptar nossas
ações a esse conceito, tudo o que precisamos fazer é perguntar
para nós mesmos: “Se todo mundo fizesse o que eu estou
querendo fazer, vai dar merda?” Se a resposta for “sim”, então a
tua ação não é correta dentro do conceito de ética de Kant, se a
resposta for “não”, pode fazer.

O jornalista, sociólogo, e professor brasileiro Clóvis de


Barros filho, utilizou outras palavras para ajudar nessa
definição. Palavras bem melhor escolhidas do que as minhas,
obviamente, afinal, ele é professor, e não pega bem usar
palavrão em sala de aula. Em um de seus vídeos, ele explica que
a ética é definida pelas nossas ações. Se uma ação, qualquer que
seja, não gera conflito com o interesse geral, ela pode ser
definida como ética; se uma ação, qualquer que seja, privilegia o
teu interesse privado em detrimento do interesse coletivo, então
ela não é ética.
Viu como é fácil? Se eu decidisse escrever um livro sobre o
Tutorial Kantiano de Como Viver a Vida de Forma Ética em Passos
Simples, meu livro ia ter capa, folha de rosto, dedicatória,
agradecimentos, uma apresentação de 3 linhas, meia página de
conteúdo escrito, e as referências. Seria um livro mais fino que
folheto de promoção de farmácia.

Ser ético é simples, é fácil, é rápido, é indolor, e o melhor


de tudo: é de graça. Porque as pessoas não seguem esses passos?
Porque as pessoas, na nossa sociedade atual, não foram criadas
para serem éticas, ou para se preocuparem com o bem-estar dos
outros. Nós fomos criados para nos preocuparmos apenas com
nós mesmos e com as nossas vontades, o bem-estar dos outros
não importa, desde que tenhamos o nosso.

O mais engraçado de tudo é que quando os outros não se


preocupam com o nosso bem-estar, nós ficamos bravos com eles.
Minha mãe – sempre ela – usa uma expressão maravilhosa pra
explicar essa forma de agir, e essa frase é baseada em uma
oração católica, por sinal. Toda vez que ela presencia, ou fica
sabendo desse tipo de atitude ela diz “venha a nós, e o vosso reino
que se foda”. Sim, ela sabe muito bem que ela comprou seu
bilhete de primeira-classe pro inferno com essa, eu vivo dizendo
que ela não vai pro céu em função dessa frase e ela dá risada.

Agora que estamos com a ética conceituada – precisei


esclarecer o conceito de ética que eu sigo aqui, porque ele é o
meu instrumento para meus julgamentos e decisões, e também
porque foi ele que me veio na cabeça na hora de raciocinar sobre
o problema do meu amigo – posso voltar à cena do bar, e me
descrever levantando da cadeira e começando a me esticar em
todas as direções possíveis, porque eu só sei ficar sentada se eu
estou com as pernas cruzadas, e ficar com as pernas cruzadas
me deixa com dor nas costas, logo, eu precisava me alongar.
Apesar de eu ainda não ter alcançado os 30, a minha coluna
parece já ter passado dos 80, e com folga.

Estica a coluna, escora na parede, bufa. Toda a vez que eu


penso nessa história, eu lembro da total falta de ética dessa
mulher em todos os sentidos, e em todos os momentos, antes
durante e depois do ocorrido e fico com raiva. Existe um sério
problema de falta de ética em todas as nossas relações, que teve
início ainda na nossa criação. Não fomos ensinados a ser
responsáveis por todas as nossas ações. Por mais que nossos
pais achem que sim, a maioria não conseguiu nos passar isso,
talvez em questões cívicas, mas não em um nível moral, que é a
ética.

Tenho certeza que os termos “empatia” e


“responsabilidade afetiva” soam familiares, e ambos fazem
parte de uma tentativa de explicação e de uso da ética no âmbito
dos relacionamentos, a palavra “empatia”, em especial, se aplica
a todos os tipos de relacionamentos, não somente os amorosos.
Ter empatia é saber se colocar no lugar do outro, aprender à ver
o mundo com as lentes do outro, para poder entender os
sentimentos do outro em cada situação, e encontrar a forma
mais correta, ou menos danosa de agir.

Mas, basicamente, esses três termos – empatia, ética,


responsabilidade afetiva – são apenas uma nomenclatura
rebuscada para todo um guarda-chuva de coisas que no fim das
contas se resume à: não seja um babaca. Quando se fala de
responsabilidade afetiva, fala-se de ter cuidado com os
sentimentos do outro, em pensar no bem-estar do outro, em
respeitar os acordos que se tem na relação, em ter sempre uma
comunicação aberta no relacionamento, em não ser egoísta e
entender que a relação tem mais alguém além de você.

O egoísmo é o extremo oposto disso, é o oposto da


empatia, o oposto da ética. É pensar apenas em si e ignorar os
outros e seus sentimentos. E é o egoísmo que nos afeta, que
entristece, que faz mal. Veja bem, não tenho absolutamente nada
contra pensar em si próprio, nas suas próprias realizações, em se
priorizar. Isso é inclusive algo saudável, eu mesma faço isso,
afinal de contas, a única pessoa que tem como dever me ter
como prioridade, sou eu mesma. Eu sou a única pessoa capaz de
correr atrás dos meus sonhos e de fazê-los virar realidade. Eu e
ninguém mais.

Mas, pensar só em si, apenas levando em conta as


próprias vontades, sem colocar na balança o dano que isso pode
fazer ao próximo, é algo que chega a ser desumano. Mas
quantas vezes já não vimos essas histórias se repetirem? Já
escutei que era em função das pessoas serem muito jovens,
daquele ser o primeiro relacionamento deles, de eles não terem
experiência externa àquilo, que a culpa era da outra pessoa, que
não dava o afeto ou a atenção necessária ao parceiro, e que eles
foram “forçados” à agir daquela maneira.

A verdade, é que ninguém nos força a nada, e que a


atitude tomada, tanto dentro quanto fora de um relacionamento,
não depende de ninguém à não ser de nós mesmos. Pode ter
sido uma falha de nossos pais, mas não podemos deixar que o
erro deles se torne o erro do restante de nossas vidas. É pra isso
que existe terapia, sabia? Se esse for o seu caso, eu juro que se
colocar no google a palavra “psicoterapeuta” e adicionar a tua
localização, vai aparecer um monte de pessoas disponíveis para
te ajudar a superar os traumas de infância. Se não tiver como
pagar, os formandos de psicologia atendem pacientes no final
do curso, logo, todas as universidades com esse curso são
pontos de referência para quem precisa de auxílio. Por favor,
melhore. Eu confio no teu potencial.

Depois de estralar bem as costas, quase performando uma


ginástica laboral completa no meio da calçada, é hora de
terminar a garrafa de vinho. A minha sorte é que é vinho e não
cerveja, caso contrário, a essa altura do campeonato, já estaria
choca e intragável. É decepcionante ver as últimas gotinhas
caindo do gargalo, sinceramente. Com toda a evolução
tecnológica, já temos caros que se dirigem sozinhos, mas
ninguém foi capaz, até hoje, de inventar um sistema de
reabastecimento automático das garrafas de bebidas. É
decepcionante, pra dizer o mínimo. Ciência, eu esperava mais
de ti!

— Algo me dizia que eu ia te encontrar aqui.

Com a mesma expressão de revolta por ver a minha


garrafa vazia, viro o rosto para o lado para descobrir quem
estava falando comigo. Abro um sorriso, era a Bia, minha
amiguinha que se mudou de um estado quente e que permanece
ensolarado por praticamente todos os 365 dias do ano, para essa
minha cidade linda, que nos presenteia com 2 meses de um
calor infernal e 10 de um frio capaz de te matar – sem exageros,
apesar de raramente nevar no sul do Brasil, o frio aqui é pior
que o Canadá, lá algumas pessoas perdem os membros
congelados, aqui não dá tempo de necrosar um pedaço da pele e
cair, a pessoa literalmente morre de hipotermia em questão de
horas. Se resolver visitar o sul do Brasil, venha agasalhado.

Depois dessa notícia você deve estar se perguntando o


que diabos fez com que ela escolhesse morar aqui. A resposta é:
não sei, até porque ela passa todos os dias do nosso super
inverno reclamando do frio, da chuva, da visibilidade, de como
fica o humor das pessoas, do trânsito... Mas nem pensa em
voltar para lá.

— Ué, como assim? Como é que me achou?

— Fiquei sabendo do que aconteceu, e depois de quase


uma década de convivência, eu acho que eu consigo “prever”
algumas das tuas atitudes.

— Boa. Faz sentido, inclusive. Mas vieste aqui só pra


confirmar as tuas suspeitas?

— Óbvio. Que não.

— Vinho?

Qualquer desculpa é válida para mais uma garrafa de


vinho.

CAP III – O Lado Bom da Vida

Sentamos uma em cada lado da mesa, ela começou a


esfregar a boca da taça com o dedo, levantou a taça, analisou as
marcas e chegou à conclusão que ela não era a primeira visita
inesperada da noite. Contei pra ela do meu encontro ao acaso
com o Allan, e ela começou a dar risada.

— É engraçado como as nossas histórias começam a se


repetir, ou à se fazer lembrar do nada. Tu tá uma noite em casa,
pintando as unhas e bolando um, cai no sono e sonha com o ex,
aí acorda apavorada pensando que ele entrou no apartamento
durante a noite e fica toda nervosa o resto do tempo.

— Sonhou com o Ivan de novo?

— Sim. Acordei apavorada. Passei o dia lembrando do


que ele fazia. Mas eu jurava que eu ia levantar da cama e
encontrar com ele na mesa da cozinha.

— Calma, mulher. Mudaste de apartamento 2 vezes já


depois que vocês terminaram, não tinha nem como ele ter a
chave pra entrar.

— E eu não sei? Mas é a mesma coisa contigo e o bar da


faculdade. Faz 5 anos que deu toda aquela merda com teu ex e
tu continua não indo lá.

— É... É apavorante a ideia de encontrar com uma criatura


dessas de novo.

A Bia e o Ivan foram namorados por aproximadamente


cinco anos, e a história deles foi do céu ao inferno. A Bia entrou
na minha vida por intermédio do Ivan, que tinha sido meu
colega na escola, e desde que nos conhecemos, sempre tinha
sido uma pessoa legal comigo e com o resto da galera. Ele era
meu amigo, tão amigo que nós tivemos uma banda juntos um
tempo antes deles se conhecerem, eu cantando e ele na guitarra.
Quando ele me apresentou a Bia, eu fiquei mega feliz por
ele ter encontrado uma guria legal que nem ela, desencanada,
sorridente, independente. E, ainda por cima, alguém que foi
com a minha cara de primeira. Sério, é muito difícil namorada
de amigo meu gostar de mim, via de regra elas proíbem contato
comigo. Dá vontade de chegar e dizer “escuta aqui, queridinha,
eu estou na vida dele há muito mais tempo do que tu, acho que
se eu quisesse alguma coisa com ele eu já teria feito, não é
mesmo?” Mas tudo bem.

Pausa pra reclamação: se tem uma coisa que não me entra


na cabeça é essa mania de ficar proibindo o parceiro de fazer
uma coisa ou outra. Gente, presta atenção, é uma pessoa e não
uma propriedade, namoro não é recibo de compra que nos
permite fazer o que bem entender com a pessoa e ficar cheio de
mandos e desmandos. Namore porque a pessoa te nutre, porque
a companhia dela te faz bem, e não porque quer poder mandar
em alguma coisa. Se quer fica mandando, adote um cachorro e
ensine truques. Mas presta atenção: tem que ser um cachorro. Se
adotar um gato e ficar tentando mandar nele, a resposta virá em
forma de olhares de desprezo, copos quebrados e cocô no
travesseiro. Nunca irrite um gato, não é uma boa ideia.

Não demorou quase nada pra ficarmos amigas, logo eu


fui a pessoa escolhida pra cuidar da beleza da moça – eu
trabalhava em um salão na época – e ela ia junto comigo em
todas as festas. Parceria mesmo. Aliás, isso aconteceu faz tanto
tempo, que ela me acompanha desde a época do meu primeiro
namorado, ou seja, viu todos os perrengues amorosos que eu já
me meti e me salvou de alguns porres também. A recíproca é
verdadeira.
— Como foi o sonho?

— Foi dividido em duas partes, na verdade... Ivan pt. 1 e


Ivan pt. 2.

Resumindo: ela foi da comédia romântica ao filme de


terror. Nessas horas eu digo que é uma pena não existir um
projetor cerebral... Uma coberta e uma pipoquinha e estava feita
uma noite de cinema especial.

— Na primeira parte do sonho, ele estava agindo como


agia quando a gente se conheceu, andando de skate,
conversando com a minha mãe, tomando um chimarrão sentado
no parque... Aqueles programas que eu e ele fazíamos quando
nós duas nos conhecemos, lembra? Aí no sonho apareceu um
chiado junto com uma imagem tipo interferência de sinal de TV,
sabe? E mostrou ele na cama do hospital, veio a imagem e o
chiado de novo, e aí começou a parte dois do sonho.

Gente, acho que essa é a história mais louca que eu


consigo me lembrar envolvendo alguma amizade minha.
Inclusive, a gente se refere à definição “parte 1” e “parte 2”
também como “antes do acidente” e “depois do acidente” na
vida real também, não só nessa descrição do sonho. No fim
parece, na verdade, que estamos falando de duas pessoas
completamente diferentes, porque foi uma mudança de 180° de
personalidade que aquela criatura sofreu.

Vamos para mais um flashback para descrever o Ivan parte


1: Eu lembro bem dele em 2010, ele gostava muito de andar de
skate e BMX, fazia isso todo o final de semana, e quase sempre
íamos eu, Bia e meu ex pra assistir e ficar conversando. Era
ritual de final de semana: preparar um chimarrão e uns
biscoitinhos, pegar o ônibus e ir pro parque onde ele ia. O
parque sempre foi aberto e muito bonito, então nós quatro,
aproveitando os raros dias de sol dessa cidade de céu cinza,
passávamos nosso tempo lá. Meu ex também andava de skate,
então não foram poucas as vezes que ficamos só eu e Bia
conversando e comendo sentadas na sombra.

Um belo dia, o Ivan sofre um acidente. Não lembro


exatamente o motivo, mas nem eu, nem a Bia estávamos lá
naquele dia, ficamos sabendo como tudo aconteceu só quando
os amigos dele nos contaram, apavorados, a cena do acidente.
Ele errou a decida da maior rampa do parque, e a roda da BMX
pegou em uma pedra no meio do caminho, bateu com a roda da
frente da bicicleta e a cabeça na rampa seguinte, ricocheteou
para uma outra um pouco menor, batendo a parte de trás da
cabeça e depois caiu com o rosto no corrimão que tinha na
rampa e escorregou pra fora da pista, caindo na grama que tem
do lado, imóvel. Ele entrou em coma na hora.

Ninguém conseguiu entender muito bem o que aconteceu,


ele tinha muita prática naquela descida, fazia quase todos os
finais de semana aquela manobra. Não souberam dizer se ele
perdeu o controle do guidão, se estava rápido demais ou se
resolveu frear muito rápido... Não deu exatamente pra entender
como aquilo tinha acontecido. Até hoje, na verdade, essa cena
segue sem explicação.

Pânico geral, todo mundo parou de andar, correram para


alertar os guardas do parque sobre o ocorrido, chamaram uma
ambulância que imobilizou ele imediatamente e levaram para o
hospital. Antes da ambulância chegar, tiraram algumas fotos
para mostrar para a Bia e para os pais do Ivan, era sangue pra
todo lado. Disseram que ele estava com a respiração muito fraca
e inconsciente. Todos os amigos dele que viram a cena se
prepararam para o pior, e depois de ouvir a história, nós
também pensamos que era questão de tempo para o Ivan
morrer. A rampa fechou naquele dia, ninguém mais queria
andar. Mas também, depois de uma cena dessas eu não sei como
que quem estava lá ainda teve coragem de subir no skate ou na
BMX de novo.

Na época do acidente, eu fui no hospital visitar ele, tentar


passar energias positivas, sei lá, dar meu apoio. Eu lembro dele
com olho inchado e roxo, cortes na cabeça, nos braços e nas
mãos. No dia que eu fui, ele abriu os olhos, tentou um sorriso
dolorido e me cumprimentou, perguntou o que eu estava
fazendo ali, agradeceu a visita e depois dormiu de novo. Nos
primeiros dois meses depois de sair do hospital ele estava meio
perdido, confuso, mas continuava o Ivan alegre e divertido que
eu conheci, só precisava de uma ajuda às vezes para se situar no
que estava acontecendo.

O problema começou logo em seguida. Feche as cortinas,


acabou a comédia romântica da vida desse casal, é aqui que a
história de terror começa. Em uma inexplicável mudança de
personalidade – e inclusive ideais – ele se tornou agressivo,
rancoroso, e machista a um nível inacreditável. Queria controlar
a Bia em tudo, passou a reclamar de peso, cabelo, do sotaque
dela, proibiu ela de sair, de usar certos tipos de roupa, até que, o
inacreditável aconteceu: ele proibiu ela de falar comigo, porque
eu era uma má influência pra ela, e ele não conseguia entender o
porquê da nossa amizade.

Oi? Amigo? Foi tu que nos apresentou, lembra?


— O que houve na segunda parte?

— Ele simplesmente entrou no meu apartamento, nesse


novo, dizendo que meu cabelo curto estava ridículo, reclamando
da forma que eu organizo a minha casa, reclamando dos gatos,
me xingando pelo meu comportamento “enquanto ele estava
fora” – Vale um adendo aqui pra esclarecer que, pouco tempo
depois do término deles, ele se mudou para outro estado – Que
eu não estava respeitando ele, e que eu tinha virado uma
vagabunda depois que eu voltei à sair contigo. Pensa que eu
acordei apavorada!

— Credo, Bia.

— Eu que o diga!

Eu acho engraçado a forma como as nossas histórias


sempre se cruzam de alguma maneira. Praticamente ao mesmo
tempo que o Ivan começou com esses comportamentos, no
último ano de namoro deles, eu estava namorando com um
outro rapaz, o Marcel, que – adivinha? – não gostava da Bia e
queria, a qualquer custo, me afastar dela. Ou seja, o ódio de um
alimentava o ódio de outro, e nós duas ficamos meio perdidas,
sem saber o que fazer, afinal, eram nossos namorados e nós
queríamos agradar eles, mas ao mesmo tempo éramos amigas e
não queríamos nos afastar. Nós até chegamos a parar de nos
falar por... Duas semanas? É.

Essa relação de ódio que cada um deles nutria pela amiga


da respectiva namorada, chegou a gerar um belo conflito entre
nós duas. Em um certo nível dessa saga, eu cheguei a comprar a
briga do Marcel, não pela Bia, obviamente, mas em função da
forma como o Ivan me tratava. A Bia, que se manteve plena e
imparcial nessa história toda, obviamente ficou brava comigo
quando isso aconteceu, mas tudo foi superado. Permita-me
outro comentário aqui: quando eu estava raciocinando sobre a
história do Allan, eu comentei sobre a facilidade que temos para
perdoar os deslizes de nossos amigos, mas que via de regra isso
não se aplica aos nossos parceiros, lembra? Eis um exemplo
claro. Minha amizade com ela permanece intacta.

Calma, eu não estou dizendo que ela deveria ter perdoado


o Ivan, ou eu perdoado o Marcel. Não, nós não devíamos. O que
nós duas vivemos com eles foi um relacionamento abusivo e
terminar o namoro foi a melhor coisa que nós duas poderíamos
ter feito. Mas eu escorreguei feio com ela ao comprar a briga do
meu então namorado, e mesmo assim ela me perdoou. É disso
que eu estou falando, da forma como ela me perdoou quando eu
cometi um erro de julgamento. Esse perdão exigiu de mim
apenas um pedido de desculpas e uma explicação do porque eu
tinha agido daquela forma. Em um relacionamento amoroso, é
difícil que uma situação como a minha seja tão facilmente
perdoada.

Voltemos: pouco tempo antes de ela me contar desse


sonho, eu tinha cruzado com o meu ex em uma festa que eu fui
com outra amiga, esse mesmo ex que queria me afastar dela, e
nós tivemos a oportunidade de sentar e conversar por alguns
minutos. Nessa conversa, descobri que ele estava prestes a ter
um filho, que tinha saído da empresa que ele trabalhava quando
estávamos juntos, que estava fazendo terapia, que tinha parado
algumas coisas e começado outras... Enfim, ele me passou um
relatório completo dos últimos... 3 anos (?) da vida dele
enquanto conversávamos.
A parte boa desse encontro, foi perceber as mudanças
reais que ele alcançou com a terapia. Ele me pediu desculpas
pela forma como agia comigo, disse que ir na psicóloga fez com
que ele percebesse que ele era de fato abusivo, e não só comigo,
mas com alguns parentes dele. Fiquei muito feliz de ver isso, e
mais ainda quando ele pediu que eu transmitisse à Bia o pedido
de desculpas dele, coisa que, até essa conversa, eu não tive a
oportunidade de fazer.

— Chegou a ver aquele traste mais alguma vez?

— O meu traste ou o teu traste?

— Ambos

Entre um gole e outro, fui contando sobre o encontro


aleatório que eu tive, e aproveitei o momento para transmitir o
pedido de desculpas dele, que deixou a Bia extremamente
surpresa. Por um segundo ela se perguntou se essa mudança
seria possível no Ivan, mas aí ela lembrou que ele considerava
terapia “coisa de gente louca” e perdeu as esperanças. Quanto
ao Ivan, eu realmente não tinha mais visto. Ele tinha me
bloqueado em todas as redes sociais antes de eu excluir as
mesmas, e como eu mudei o número do celular e ele mudou
para outro estado, eu nunca mais tive sequer notícias dele.

— Giu... Acabou o vinho...

— Mas tu bebe, hein?!

— Não me julgue.

— Chopp?

— Bora.
Feito. Um caneco de chopp na mão de cada uma e
começamos a devanear sobre as atitudes de ambos... Um deles
bateu com a cabeça, então talvez existisse ali alguma explicação
para a mudança brusca de comportamento nessa situação, eu
não entendo muito bem até onde uma pancada na cabeça pode
afetar a personalidade de alguém, então pode ser que tenha ao
menos uma desculpa nesse caso. Mas o outro, no caso o Marcel,
também mudou a forma de agir comigo, e foi uma mudança
radical, apesar de ter sido um pouco mais sutil que a do Ivan.

Em ambos os relacionamentos, tanto eu quanto Bia


éramos livres no começo. Saíamos com nossos amigos,
usávamos as roupas que queríamos, conversávamos com quem
bem entendêssemos, sempre de salto e bem maquiadas, e eles
aceitavam isso sem reclamar. Inclusive, até gostavam, pois o fato
de nós termos os nossos hábitos, os nossos grupos de amigos, as
nossas vidas, permitia que eles também tivessem as deles, sem
que isso gerasse cobranças de lado algum, afinal se eu posso, ele
também pode.

Eis uma coisa que eu acho importante enfatizar aqui,


porque é algo absurdamente relevante para um relacionamento
saudável: a liberdade. A questão é que essa liberdade depende
da confiança que temos no outro, e a confiança no outro
depende, na maioria das vezes, da confiança que temos em nós
mesmos. Ah, a importância do amor próprio...

Sabe aquela conversa de “ame-se primeiro, para depois


poder oferecer o seu amor pra alguém” que a maioria acha que é
balela, conversinha de autoajuda? Pois então, é mesmo uma
conversa de autoajuda, mas que ajuda de fato. É sério, pensa
bem: se quando eu penso em mim mesma, eu imaginar uma
pessoa fraca, feia, sem atrativos, burra ou qualquer adjetivo
pejorativo do gênero, como que eu vou conseguir ficar tranquila
em uma relação e deixar a pessoa que está ao meu lado viver a
vida dela sem morrer de medo que ela vá encontrar alguém
melhor? Não tem como.

Vou continuar com o papinho de autoajuda aqui só mais


um pouco, depois eu volto pra história, prometo, mas eu
realmente preciso tocar nesse assunto porque eu não quero que
esse seja apenas um livro de relatos, eu quero te ajudar à se
ajudar e me ajudar um pouco também no processo. É o livro
mais autoajuda de todos os livros de autoajuda, porque é pra
ajudar a própria escritora antes de mais nada. Mas também é
um livro de histórias reais, vidas reais, decepções e machucados
reais.

Certo, prosseguindo com a importância do amor próprio:


essa atitude simples de ter bons pensamentos acerca de si
mesmo ajuda não só no relacionamento romântico, mas também
nas questões profissionais e relações interpessoais com amigos,
colegas ou qualquer coisa do gênero. Afinal, quem não quer
ficar perto de uma pessoa confiante? Que gosta de si mesma e se
aceita? O amor próprio te ajuda desde a ter uma vida à dois
saudável até conseguir a vaga de emprego dos sonhos.

Sim, eu sei que não é tão fácil assim começar a se amar da


noite para o dia, eu passei por uma experiência pessoal que
destruiu toda a minha autoestima, e pra recuperá-la foi um
tormento. No início da adolescência eu engordei mais de 50kg
em pouco mais de 6 meses, o que deixou marcas na minha pele
até hoje, e fez com que eu tivesse dificuldade para caminhar
durante o tempo.
Imagina, passei por isso bem na fase em que eu estava me
afirmando, me conhecendo como indivíduo e me desvinculando
da minha mãe. De alguma forma eu consegui entender que eu
não poderia deixar ninguém me diminuir por aquilo, e depois
de um tempo consegui emagrecer. Mas essa experiência me
afetou de maneiras absurdas, deixou marcas físicas em mim que
eu vou carregar para o resto da vida, e muito medo de passar
novamente por uma situação como essa.

Uma adolescente abalada emocionalmente, pesando


quase o dobro do que deveria, e que não encontrava exatamente
um “encaixe” em nenhum grupo da escola. Fisicamente eu
“voltei ao normal” logo que entrei na faculdade, mas a
recuperação psicológica levou um bom tempo para acontecer, e
ainda hoje eu tenho meus receios quanto ao meu corpo em
função de estria e flacidez, mas já estou bem melhor do que
estava quando iniciei a graduação, e com um bom apoio
psicológico eu acredito que logo não serei mais afetada por isso.

Eu sei que nem todos tem condições de sair de casa nesse


exato momento em busca de terapia, e os motivos para isso são
inúmeros, então eu vou dar aqui uma dica que foi o meu ponto
de partida para essa recuperação: encontre ao menos uma coisa
que goste muito em ti, algo que te traga orgulho. Não precisa ser
algo grande, não precisa se forçar à olhar no espelho e se achar
maravilhoso, mas ao menos uma coisa em ti eu tenho certeza
que tu gostas.

No meu caso, foram os meus olhos, eu sempre gostei dos


meus olhos, então eu mantive meu foco neles por um tempo. Se
tornou quase que um mantra pra mim “eu tenho olhos muito
bonitos”. Logo, eu comecei à gostar do arco da minha
sobrancelha, percebi que gostava da cor e textura dos meus
cabelos e por aí foi. Uma coisa foi puxando a outra. Quando eu
percebi que aquilo estava funcionando para que eu gostasse do
meu exterior, eu fui para o meu interior, e percebi que eu era
muito boa com redação – olha eu aqui escrevendo – e também
com comunicação interpessoal, eu converso facilmente com as
pessoas. E, novamente, cada coisa que eu gosto vai puxando
outra.

Isso que eu falei não substitui, em momento algum um


tratamento psicológico, e eu vou explicar o porquê: o que eu fiz
aqui, foi ajudar a tratar o sintoma, e não a causa. Eu “dei um
remédio pra dor de cabeça”, mas não te ajudei a curar o que
causa essa dor de cabeça. A terapia te auxilia a encontrar cada
um dos motivos que abalam a tua autoestima e a ressignificar
cada uma dessas experiências, para que as mesmas não te
abalem no futuro. Eu só tapei um buraco aqui com essas dicas,
assim que possível, vá atrás de terapia.

E caso estejas pensando “nossa, já perdi as contas de


quantas vezes e por quantos possíveis motivos ela já mandou o
leitor ir pra terapia”, eu te pergunto: o que mais tu esperavas de
uma estudante de psicologia? Vá fazer terapia! E sinceramente,
nos dias de hoje a pessoa praticamente já nasce precisando de
terapia, é um baque muito grande nascer depois da
industrialização, eu estou quase abraçando os recém-nascidos e
dizendo “tadinho, não precisava passar por isso”...

Ok! Estou devaneando demais, permita-me retomar a


história do ponto onde parei:

Em algum momento dos nossos relacionamentos, os


rapazes decidiram que assim não estava bom, que eles queriam
que nós deixássemos de fazer as coisas. Liberdade cassada sem
motivo aparente. Tínhamos duas opções: acatar as demandas ou
conviver com reclamações intermináveis – terminar o namoro
não fazia exatamente parte do nosso leque de opções naquele
momento, a gente preferia tentar concertar.

Por obra divina – é a única explicação que eu consigo dar


para esse ocorrido –, um arrumou implicância com a namorada
do outro. O Marcel queria que eu me afastasse da Bia, e o Ivan
queria que a Bia se afastasse de mim. “Ela não é boa companhia
pra ti” ambos diziam. Essa frase, vinda do Ivan, era um absurdo
sem tamanho, afinal, como contei anteriormente, ele foi o
responsável por essa amizade. Inclusive, caso tenha comprado o
livro, obrigada Ivan, por colocar essa pessoa tão maravilhosa no
meu caminho – e por ter saído dele.

Desculpa, eu não podia perder essa oportunidade...


Voltando: o Marcel começou de forma sutil, dizendo que achava
que eu ficava mais bonita com um tipo de maquiagem do que
com outro, dizendo que um tipo de roupa me valorizava mais
do que a outra, que o meu cabelo ficava melhor assim do que
assado, dizendo que minhas mãos ficavam mais delicadas
quando minhas unhas estavam de um jeito do que de outro,
dizendo que queria passar mais tempo comigo, e pedindo pra
eu ficar em casa com ele quando eu combinava de sair com os
meus amigos...

E como ele fazia esses comentários de forma calma e


esporádica, e muitas vezes com cara de anjo, eu fui acreditando,
e fui fazendo... Até que eu me olhei no espelho e percebi que
uma freira se arrumava mais do que eu naquele momento. E, se
duvidar, a vida social dela também era mais agitada do que a
minha.

Foi aí que eu resolvi que eu iria voltar a me cuidar do jeito


que eu fazia antes de tentar agradar ele, e aconteceu o estouro.
“O que os teus amigos te oferecem que eu não? Porque tu
queres sair com eles sozinha?”, “Pra quem é toda essa
arrumação? Vais aonde de salto e com toda essa maquiagem?
Precisa do decote?”, e assim por diante... Enquanto eu estava
fazendo as vontades dele, estava tudo às mil maravilhas,
quando eu parei, ele começou a enlouquecer e a agir de uma
forma que eu jamais teria imaginado que ele faria.

Nesse ponto, os dois passaram a agir da mesma forma:


brigando o tempo todo, criticando as duas, controlando tudo o
que fazíamos, cobrando satisfações, e pedindo explicação do
porquê que nós duas resolvemos agir exatamente da forma que
agíamos quando começamos a namorar com eles. Acho que o
fato das duas terem se resolvido mais ou menos na mesma
época foi o que fez com que eles botassem a culpa na amizade.

— Eu não entendo esse tipo de atitude, sabe? — disse a


Bia, enquanto chacoalhava o caneco de chopp, encarando a
espuma — Não faz o menor sentido!

— De fato... O Marcel dizia que tinha se apaixonado por


mim justamente por eu ser “desencanada”, por eu sair com
meus amigos, não ficar o tempo todo dependendo dele, e por eu
ter o meu estilo, independente do que os outros falassem... E de
uma hora para a outra tentou me mudar para algo que poderia
ser qualquer coisa, menos a pessoa que ele conheceu.
Bia grunhiu um “uhum” com as bochechas cheias de
chopp, balançando a cabeça com os olhos arregalados, e
começou a apontar com o dedo pra mim, balançando pra cima e
para baixo... Foi uma cena engraçada demais para não ser
descrita, desculpem, mas parecia que ela estava sendo
controlada por um ventríloquo que estava chacoalhando ela
para cima e para baixo, de tão fortes os movimentos que ela
estava fazendo. Aquele dedo inquieto significava “segura a
conversa que eu tenho algo pra falar, mas não posso agora
porque estou com a boca cheia”.

— Isso! — disse ela depois de engolir todo o chopp da


boca, era tanto que os olhos dela chegaram a se encher de água
— Tu se apaixona pela pessoa de um jeito, aí depois quer mudar
a pessoa e deixar de um jeito que não tem nada à ver com o que
ela era no início, e diz que se a pessoa não mudar, tu não vais
mais conseguir ficar com ela, porque do jeito que ela está agora,
“não dá mais”, sendo que o jeito que ela tá agora, é o jeito que tu
disse que fez com que tu se apaixonasse por ela!

— Sim, e se a pessoa fosse do jeito que tu está querendo


deixar, tu provavelmente não se apaixonaria por ela, porque ela
se tornou o exato oposto da pessoa pela qual tu se sentiu
atraída... E o mais engraçado de tudo, é que, normalmente,
quando a pessoa se transforma de quem ela era pra quem tu
queres que ela seja, a paixão acaba e o relacionamento termina.

— Esse é o meu ponto! ... Merda! — acho que ela esqueceu


que estava com quase meio caneco de chopp na mão, o
equivalente à uns 200ml, e chacoalhou exatamente a mão que
estava segurando o caneco pra demonstrar sua fervorosidade no
argumento, o que resultou em um banho de chopp nela, na
mesa, e em mim. — Desculpa... Eu vou buscar um pano e já
volto terminar o meu ponto.

Melhor pessoa essa Bia... Adoro sair com ela porque eu


não me sinto a mais destrambelhada do lugar quando estou com
ela. As loucuras que eu faço, ela faz também. Enquanto ela foi,
buscou o pano, limpou a mesa e devolveu o pano pro garçom,
eu acendi outro cigarro e fiquei rindo e fumando, olhando para
o meu braço melado de chopp e esperando ela voltar pra mesa
pra terminar o raciocínio.

— Pronto. O que eu estava falando? Ah, sim, lembrei,


então... Qual é a moral de morrer de amores por uma pessoa que
é de um jeito X, fazer de tudo pra conquistar essa pessoa, e
depois transformar ela num C, que não tem nada a ver com o
que ela era antes, pra, no fim, terminar?

— Acho que isso é culpa da paixão.

— Oi?

— Sim, quando tu se apaixona, a pessoa é perfeita,


maravilhosa, linda, sem defeitos... Tem todo aquele entusiasmo,
aquela sensação de novidade que te faz ignorar todo e qualquer
sinal que a pessoa possa dar de que ela não é exatamente aquela
pintura renascentista incrível que a gente imagina... Mas aí
quando a gente se acostuma com a pessoa, quando ela não é
mais novidade, quando o nível de dopamina que o cérebro
libera quando olhamos pra ela já não é mais o mesmo, os
defeitos começam a aparecer, eles sempre estiveram ali, só que a
gente não tinha visto... E esses defeitos não nos agradam, então
tentamos mudar.
“O amor é cego”. O amor não, mas a dopamina nos cega,
e quando a gente vê já tá mais enrolado que novelo de lã. Dica:
pesquise os antecedentes da pessoa antes de se entregar.

— Agora fez um certo sentido... Mas os defeitos fazem


parte da pessoa, eles moldam a pessoa, e por mais que
incomode, se mudar um lado, o outro não vai permanecer igual,
então o lado da pessoa que te agradava, vai desaparecer junto
com os defeitos. Ou, ao menos, vai ser afetado, não?

— Claro que sim. Eu lembro de escutar em aula, em uma


das cadeiras da Psicologia, não lembro qual agora, a frase “Nós
somos consequência. Somos o conjunto das nossas experiências,
sensações, emoções e ações. Nós somos um todo que se modela
por inteiro.”, ou seja, o que nos faz sermos nós, é justamente a
soma dos defeitos e qualidades... E o que mais “dita” a forma
como agimos, é o que nós passamos, que alterou a nossa
personalidade e criou essa figura pela qual a pessoa se
apaixonou...

O passado... Ah, o passado, o ditador de pensamentos,


comportamentos, hábitos, tudo. O grande criador da sabedoria
(ou não). Depois de se queimar, a pessoa não tenta mais tocar o
fogo. Depois de se afogar, a pessoa não mergulha mais sem se
preparar. Depois de se cortar, a pessoa não seca mais a faca com
o fio virado para a mão. Depois de apanhar, a pessoa não cai
mais na conversa fiada de qualquer um que diga estar
apaixonado por ela (às vezes cai).

Tenha você a personalidade que tiver, tudo o que faz ou


deixas de fazer, tem base no teu passado. O que conheceu, o que
sentiu, o que machucou, o que agradou... Tudo. O teu passado
te formou por inteiro. Do corte de cabelo ao tom de voz. A soma
da tua versão crua, com os acontecimentos da tua vida, te criou,
te moldou, te modificou. E não há, nesse mundo, uma única
pessoa crua dessas experiências. Ao menos não com idade
suficiente para se relacionar da forma como estamos falando
aqui...

Quando somos novos, não nos damos conta de que as


nossas atitudes são escolhas, não conseguimos projetar o nosso
futuro e ver o que vai acontecer, ou deixar de acontecer, se
tomarmos determinadas atitudes. Vivemos um dia de cada vez,
sem pensar muito no que pode acontecer conosco e com os
outros. Nós só fazemos, ainda cambaleando, dando os primeiros
passos pra tentar descobrir como funciona esse jogo de twister
infernal que é a vida.

Somente depois de um certo tempo, quando olhamos para


trás, é que descobrimos que cada passo despretensioso e
desavisado que demos, na verdade foram escolhas que fizemos,
e cada escolha nos levou à um ponto do nosso caminho, que nos
trouxe uma punição ou uma recompensa, e que nos fez
aprender, pouco à pouco, dia após dia, o que fazer ou o que não
fazer. O resultado final, é a melhor versão que conseguimos
criar de nós mesmos, com todas as limitações que nos foram
impostas. Traduzindo: é o que temos para hoje.

No futuro, somando as experiências do passado, com as


do presente, com as que ainda estão por vir, que também
dependerão das nossas escolhas, nós teremos um resultado
diferente. A Ana de 45, é diferente da Ana de 35, que é diferente
da Ana de 25, que é diferente da Ana de 15... Mas o que a Ana
de 15 fez, foi o que possibilitou a Ana de 45 que conhecemos. Se
as escolhas, atitudes e falas da Ana de 15 tivessem sido
diferentes, os caminhos dela teriam mudado, e a Ana de 45 seria
outra, entende?

É por isso que eu não gosto de trabalhar com o “se”.


Poucas coisas me irritam mais do que alguém que fica “mas e
se” o tempo todo. “Se” a pessoa fosse diferente, nós nunca
saberemos o resultado, porque ela não é, então não podemos
trabalhar com essa possibilidade. “Se” escolhermos agir de um
jeito e não de outro, nós nunca saberemos se o outro caminho
poderia ser melhor ou pior, porque nós não vamos vivenciar
aquilo. O “se” só é útil quando utilizamos para ponderar entre
as opções antes de escolher, porque ele nos possibilita trabalhar
com possibilidades, mas depois da escolha tomada, o uso dele
só nos traz sofrimento. O “se” não é real, o “se” é hipótese, e no
mundo prático, só se trabalha o real. As hipóteses nós deixamos
ao encargo dos cientistas.

O “se” nos prende ao passado, nos deixa nostálgicos, nos


deixa inseguros, pode inclusive nos causar depressão. Temos
que nos desprender do passado, mesmo o passado nunca se
desprendendo de nós. Conhecer nosso passado, e trabalha-lo,
pode nos ajudar à agir de outras formas, a entender certas
coisas, à nos entender, à melhorar a nossa qualidade de vida.
Mas ficar remoendo o passado, ficar criando diferentes
possibilidades na nossa cabeça quando fingimos uma mudança
em alguma atitude passada, não nos leva à lugar algum. Apesar
de desejarmos, nossa vida não é um jogo interativo no qual
podemos voltar ao último ponto salvo e tomar a outra rota para
depois escolher qual caminho seguir, a gente é o que é.

Apesar de muitas vezes nós negarmos, nós sabemos que


somos como somos em função disso, e como diria minha avó: a
gente só vê no outro o defeito que é nosso. Inclusive, às vezes eu
fico pensando se esses rompantes de querer mudar as ações e o
estilo alheio não são em função de não gostarmos daquilo em
nós mesmos, mas não sabemos como mudar, aí jogamos pro
outro, na tentativa de descobrir se funcionaria aquela tentativa...
E terminamos com um espécime tão insosso que nada naquilo
acaba atraindo atenção.

— Essa gente precisa é de terapia — Bia pontuou,


interrompendo meu monólogo interno. Eu fico tão entretida
nesses meus devaneios que eu sempre preciso de alguns
segundos para voltar à realidade e conseguir continuar minhas
interações do ponto que parei.

— Precisa. Com certeza... Uma boa terapia ajuda nessas


mudanças... Dá um norte, pra gente saber o que fazer e parar de
botar a culpa nos outros... Evitaria muita dor de cabeça

— E muitos copos quebrados também... Tapas na cara...


Roupas jogadas pela janela...

Caímos na gargalhada. Eis uma cena que eu nunca


protagonizei na vida: quebrar os copos dentro de casa e jogar as
roupas do excelentíssimo pela janela... Acho que é porque eu
tenho noção de que, se eu quebrar os copos, eu vou ficar sem
copos, e aí eu vou ter que gastar dinheiro pra comprar copos
novos – porque todo mundo precisa de copos – e esse é um
dinheiro do qual eu não disponho. Ao menos não pra ficar
renovando à cada briga.

— Bia, ainda bem que eu não sou rica.

— Quê?
— Sim. Pensa se eu tivesse o dinheiro daquelas ricaças de
novela, que ficam atirando vasos caríssimos na parede porque
estão irritadas... Cada estação eu ia ter louça nova na minha
casa...

— Seria uma casa bem moderna, sempre equilibrada com


a paleta de cores da estação...

Mais risadas. Nossa, como eu adoro essas conversas! Papo


descontraído, sabe? Sou muito sortuda de ter os amigos que eu
tenho, porque por mais pesado que seja o assunto, nós sempre
encontramos uma forma de descontrair e ficar rindo da própria
desgraça como se não fosse nada, e no fim nós geralmente
encontramos uma forma de resolver a bagunça. Se duvidar, é
justamente isso que nos dá o Norte: dar risada. Sim. Porque aí
nós tiramos o “ruim” do foco e olhamos o lado “positivo”, aí,
nessa outra luz, nós conseguimos resolver o assunto... Acho que
é isso.

Esse tipo de atitude pode trazer alguns desconfortos?


Pode. O mais recente foi no enterro da minha bisavó – sim, eu
conheci duas delas, morreram com quase 100 anos – quando
começamos a fazer piadas dentro do cemitério. A família inteira
ficou me encarando, mas ao menos eu relaxei...

— Se tu te reservasse a quebrar as louças única e


exclusivamente da tua casa, tudo bem, se não o que tu ia
precisar era de uma fisioterapia depois de apanhar.

Uma terceira voz atrás de mim, de alguém que chegou


sorrateiramente perto da mesa. Virei a cabeça para olhar.

— Lana!
— Tem espaço pra mais uma?

— Claro que tem!

CAP IV – Alguém Especial

— Sua louca! — Levantei e dei um abraço nela — Tu


casou e sumiu do mundo!

— Verdade, sua monstra! Nos abandonou!

— Ai gente, desculpa... Dois filhos pequenos em casa não


é algo fácil de dar a volta para sair beber com as amigas, hoje
que eu me liberei.

Lana era uma figura. Eu lembro quando trabalhávamos


juntas em um bar, e os clientes viviam nos confundindo... Nós
somos meio parecidas, de fato... Mesma altura, mesmo tipo de
corpo, e pra ajudar: gostos parecidos. Nosso estilo de se vestir
pra trabalhar no bar era praticamente o mesmo, e os cabelos
costumavam estar iguais também. Acho que não nos
confundiriam mais agora, afinal ela tem, no mínimo, umas 15
tatuagens a mais do que eu, e está com o cabelo curto e rosa, e o
meu eu deixei crescer natural. Talvez – só talvez – os clientes
conseguissem nos diferenciar agora.

— Gente, espera! Eu tenho maconha!

— Opa! Quero! Desde que nasceu o rebento que eu não


fumo um.
— Passo — fui censurada pelas duas com os olhares,
ambas me julgando, acho que estavam se preparando pra me
chamar de “certinha” — Bia, não me olha assim que eu já estou
bebendo desde antes de tu chegar e não faço ideia de que horas
eu vou parar. Só estou tentando evitar a fadiga.

Um aceno leve de compreensão com a cabeça das duas.


Lana pediu uma IPA e passamos a conversar. O casamento da
Lana é um sonho de princesa dos tempos modernos: poucos
atritos e um marido comunicativo, eles resolvem praticamente
tudo sem gritos. Eles discutiram muito bem o formato da
relação antes de se juntarem, e estão indo de vento em popa.
Claro, como em qualquer relação sempre existe um ponto ou
outro pra reclamar e ajustar, mas isso não era frequente ali.

Pelos meus cálculos, 4 anos se passaram desde a última


vez que encontrei com essa moça em um bar ou em qualquer
lugar sem os filhotes à tiracolo, e a nossa conversa pôde rolar
solta. Ela passou quase uma hora botando o papo em dia com a
Bia, contando e mostrando fotos e vídeos dos filhotes, das
reformas da casa e dos bolos maravilhosos que ela estava
fazendo.

— Mas olha, vou ser sincera, não vejo a hora do meu


caçula começar à ir pra escola também. Vou ter uma tarde
inteirinha de paz e serenidade, sem barulhos, sem peças de
brinquedo assassinas jogadas pelo chão da casa, só eu e a minha
TV. Silêncio gente, silêncio... Ultimamente só tenho isso às 3h da
manhã, que é a hora que está todo mundo dormindo.

Toda vez que a ideia de ter filhos um dia aparece na


minha cabeça, os relatórios das minhas amigas me fazem pensar
duas vezes e, normalmente, conseguem atingir o objetivo de me
fazer desistir da ideia. Ou postergar, ao menos. Na atual
circunstância eu estou com um pensamento do tipo “quero, mas
daqui a uns 15 anos”. Nem sei se meu útero vai estar
funcionando daqui a 15 anos, é provável que não... Mas deixa.

— Antes de eu chegar aqui, me apossando da terceira


cadeira, o que vocês estavam fazendo?

— Falando mal de ex — largou a Bia — Meu esporte


favorito!

— Que é isso?! — Lana caiu na gargalhada — Credo. Fala


de ex e eu me lembro daquele fantasma que eu namorei antes de
conhecer o César. Aliás, eu e a Giulia estávamos namorando
com uns imbecis naquela época. Lembra, Giu?

— Misericórdia, lembro — cheguei a sentir um arrepio


lembrando daquela época.

— Histórias cruzadas... Mas eu acho que vocês não me


contaram disso. É da época do Júlio que vocês estão falando?

— Exatamente... — Lana balançou a cabeça, com os olhos


arregalados e olhando pra rua — Dois viciados em cocaína. Que
vida infernal.

— Nem me fale.

— Não, fale! Fale sim, eu quero saber!

Resolvi deixar a Lana contar essa. Eu não gosto muito de


ficar revivendo o passado, principalmente essa história, porque
apesar de eu conseguir contar ela facilmente hoje em dia, eu
ainda tenho alguns pesadelos esporádicos com aquela época que
desgraçou a minha cabeça.
— Bom, do Júlio tu sabe, né? Eles começaram a namorar,
noivaram, o ciúme leve que ele tinha começou a aumentar, ele
tentou afastar ela de mim porque eu era “uma vagabunda”,
prendeu ela em casa e um belo dia resolveu que ela merecia
apanhar. Disso tu lembra, né?

— Lembro, lembro sim. Os namorados dela sempre tiram


alguma das amigas pra vagabunda, né? Incrível... — Bia virou a
cabeça pra mim — Mas me diz, ele te bateu do nada?

— Praticamente — eu nunca passo lisa dessa história sem


ter que explicar um ponto ou dois, infelizmente. Tive que me
pronunciar — Ele pegou meu celular pra jogar, aí foi olhar umas
conversas minhas antigas, e encontrou eu conversando com um
amigo sobre “nossos filhos”.

— Filhos? Como assim?

— Sim. Era uma piada interna, na verdade. Nós dois


somos ruivos, e como tinha saído aquela conversa anos atrás, de
que em 2060 não existiriam mais ruivos no mundo, nós
combinamos que quando estivéssemos com uns 45 anos, nós
iríamos nos encontrar e ter um filho, pra garantir a
sobrevivência da espécie, assim, ao menos um ruivo ia existir
em 2060.

— Olha as ideias da pessoa! — As duas começaram a rir.


E a ideia desse “acordo” era justamente essa: dar risada. Não
merda.

— Pois então, ele levou aquilo à sério e teve uma crise de


ciúmes. Começou a socar as paredes da casa, quebrou porta do
armário, me puxou pelos cabelos... Até que ele resolveu sair de
casa, comprar cocaína e voltar, bêbado, pra me forçar a cheirar e
me bater um pouco mais.

— Mas meu Deus, mulher! — Bia gritou apavorada.

— Ah! Detalhe: essa conversa tinha acontecido no


mínimo 6 meses antes dee nós começarmos à namorar, mas ele
surtou da mesma forma.

— Credo! Tu apanhaste também?

— Quase. Encontrei cocaína na pia do banheiro, tivemos


uma briga e ele me empurrou, eu quase caí da escada, mas ele
não chegou a me bater.

Silêncio na mesa. Relacionamentos abusivos sempre são


os mais pesados de todos, e os mais sem explicação também. Na
verdade, explicação até tem, mas é algo tão mesquinho que não
dá pra acreditar que alguém se deixaria levar por isso. A
explicação é o sentimento de posse, é sentir que a pessoa que
está contigo é tua propriedade, que ela tem que te idolatrar e
que tu podes fazer dela o que bem entender, caso ela não te
obedeça.

Eu gosto de assistir séries que falam dos séculos passados,


por curiosidade de querer entender o que aconteceu nos outros
países (os países que “deram certo”), em questões de política e
economia, pra ver se eu encontro um norte pra discutir com os
meus amigos (meu hobby favorito é discutir política, perdão).
“Tá Giulia, o que tem a ver tuas séries políticas com
relacionamentos abusivos?” tem que: até o presente momento,
nenhum diretor conseguiu criar sequer uma série que seja sem
envolver romance na história, e eu consigo ver muito desses
abusos ocorrendo nessas séries.
Infelizmente, ainda nos dias de hoje, existem lugares que
a mulher é tratada como gado, trocada por animais, e deve
obediência ao marido. Antes que pergunte, sim, elas lutam
contra isso. Lutam, e são presas por desobediência. Ou
linchadas em praça pública. É só digitar “piores lugares para se
nascer mulher” no buscador da internet que encontramos uma
lista consideravelmente grande de países com práticas abusivas
contra a mulher, e logo na sequência encontramos os relatos
apavorantes de quem vive isso diariamente.

Nos países fora dessa listagem, em sua maioria países


ocidentais, não funciona mais assim, apesar de ainda sermos
muito desvalorizadas, ao menos não temos mais nosso valor
medido em camelos... Mas tempos atrás isso acontecia, a mulher
tinha que obedecer o marido, e se causasse algum desconforto
ao mesmo, ela era castigada. Ah, sim, quase me esqueci: o
direito de castigar a mulher era garantido por lei, tá?

Mulher não tinha vez nem voz, e por mais que muitos
tentem ignorar isso, todos sabemos que isso é verdade. Os
donos das propriedades – homens, pelo simples motivo de que
a mulher não podia ter terras em seu nome – casavam com
quem bem entendiam, porque eram “bons partidos”. Sendo que
dentro desse “quem bem entendiam” entravam mulheres de
todas as idades. Eles eram nossos salvadores, que nos davam a
oportunidade de sermos felizes engravidando, criando os filhos
deles e cerzindo meias. A única coisa que nos pediam em
retorno era obediência cega à todas as ordens e desejos que eles
tinham, caso contrário, nos castigariam. Eu li um relato uma vez
– peço perdão aqui, pois realmente não lembro onde eu li – de
uma mulher que ficou uma semana inteira sem poder comer por
não agradar o marido.
No caso desses relacionamentos abusivos, quem pratica o
abuso ainda acredita que é um “senhor de terras/dono de sua
esposa”. Esse pensamento é o que faz com que quando se
irritam por algo, eles achem que podem “punir” a mulher,
afinal, na cabeça deles, ela tem que obedecer a eles em todas as
situações e não pode falar nada. Submissão de nível extremo.

Em filmes como “50 Tons de Cinza” nós temos a situação


do cara “bonitão, rico e controlador”. Ele dita as regras, diz
como tudo vai acontecer, cerca ela em todas as direções. Ele
manda no trabalho, na casa, no sexo. Ele proíbe ela de fazer
algumas coisas, e usa da prática do BDSM para realizar
pequenas torturas e machucar a personagem quando ele fica
“incomodado”. O mais interessante foi, depois dos filmes e dos
livros, a quantidade de mulheres dizendo que queriam ser a
personagem. Se isso não é romantização do abuso, então eu não
sei o que é.

No caso meu e da Lana ele era só controlador mesmo.


Sério, olhando pra trás, nenhuma das duas consegue entender
como que nós conseguimos nos apaixonar por aquelas
criaturas... Zero sex appeal em nenhum dos dois. Detalhe
interessante: no meu caso, ele nem trabalhava, era bancado
pelos pais que estavam falindo e tinha uma filha de outro
relacionamento, mas a irmã dele, logo após a denúncia, disse
que eu “estava interessada nas terras dele, e só estava fazendo
isso porque não aceitava o fim do relacionamento”.

Sim. Eu ouvi isso. Depois ouvi ameaças da mãe dele


dizendo que se eu não retirasse a denúncia eu iria receber um
processo por calúnia e difamação, e recebi mensagens da irmã
dele dizendo que eu era uma “piranha sem coração”, afinal o
irmão dela era um doente – se ela estivesse falando da
dependência química eu até concordaria, mas na verdade era
sobre uma válvula que ele colocou na cabeça quando tinha 7
anos porque tinha convulsões, e que não tinha mais serventia
alguma agora, e só não foi retirada porque a família não tinha
dinheiro para uma segunda cirurgia. Mas eles estavam me
acusando de interesse financeiro.

Na verdade, acho que o que mais me incomoda nessa


história inteira, é exatamente a atitude da família dele, do que o
ato em si. Porque, na noite em questão, eles estavam na casa,
ouviram tudo o que estava acontecendo, e não fizeram
absolutamente nada. Tempo depois, eu descobri que ele tinha
feito algo parecido com a ex dele – com a ex, ele chegou ao
ponto de amarrar ela no pé da cama obrigando ela à ver ele
transando com outra mulher, enquanto ouvia xingamentos
dirigidos à ela também; não consegui descobrir se a outra moça
participou por vontade própria ou se foi forçada, mas enfim –, e
que a família sempre acobertou, usando a válvula como
desculpa. Era, literalmente, uma válvula de escape pro mal
comportamento.

— A válvula de escape cerebral dele — largou a Bia.


Começamos a rir novamente — Essa é a parte boa do passado:
lembrar que já passou e que não estamos mais nele.

— Aceito, agradeço e dispenso.

Do nada, a Bia começou a rir descontroladamente e eu e


Lana ficamos sem entender nada. Ela estava com o celular na
mão e estava escutando alguns áudios, ao que pareceu. Acredito
que meu rosto tenha se transformado em uma linda
interrogação, porque ela começou a soltar o fone e a aumentar o
volume do celular. Aperta o play, uma voz absurdamente aguda
grita “vinícola!”. Quase caí da cadeira de tanto dar risada, mas a
Lana continuava não entendendo nada. Pronto, clima pesado da
mesa se foi.

— Melhor áudio da vida! — Falei ainda dando risada.

— Gente, do que é esse áudio?

— De um ex da Giulia — explicou Bia — Aquele que tinha


uma Vinícola Boutique, lembra?

Recebemos uma negativa, e passamos às explicações. Na


verdade, esse relacionamento não foi exatamente um namoro...
Nós saímos por um tempo, antes de eu conhecer o Júlio. Esse foi
o único cara que tinha de fato dinheiro que eu já saí. Meus
relacionamentos sempre foram com pessoas que tinham uma
renda média parecida com a minha, ou abaixo. Nunca fiquei
verificando conta bancária também, mas via de regra, o poder
econômico era parecido.

Mas enfim, foi um relacionamento bem leve, pelo pouco


tempo que durou, e eu tive uma leve experiência de como
funcionava a vida de dondoca. Gente, o carro dele tinha banco
aquecido, era uma delícia! E sim, ele tinha uma vinícola. Passeei
algumas vezes naquela vinícola, foi a minha época mais
embriagada, acredito... Entre vinhos e espumantes, meu sangue
nunca estava 100% limpo.

Acontece que, nós dois nos dávamos muito bem na cama,


e ele estava extremamente aberto à um relacionamento sério
comigo. Ele tinha, na verdade, outra empresa, a vinícola era só
um “passa tempo lucrativo” dele. Chique, não? Também achei.
Cheguei a ouvir que se eu me casasse com ele, eu passaria à “ter
uma parte da vinícola”, e poderia administrar a mesma por ele,
caso eu assim desejasse, pois nesse caso, ele poderia se dedicar
melhor a sua outra empresa. Naquela hora, me veio um
sentimento de “ele está oferecendo a vinícola como meu dote”,
mas eu deixei quieto.

Não vou mentir, a ideia de ganhar uma vinícola assim,


praticamente de graça, me deixou muito interessada. Não por
nada, mas o cara me tratava bem, era bom de cama e estava
disposto a me presentear com uma vinícola. Era bom demais
para ser verdade. Conto de fadas não existe, afinal...

— Ué, tinha um preço?

— Mas é claro que tinha um preço! — respondi pra Lana


enquanto os olhos da Bia quase pulavam pra fora do rosto de
tanta força que ela fazia para não rir — Já viu alguma coisa ser,
de fato, de graça nessa vida? Eu só não acho que o preço
precisava ser mostrado do jeito que foi.

Pronto, a Bia não conseguiu mais se segurar depois dessa.


Ela estava, literalmente, chorando de tanto rir. Sabe crise de
riso? Então. Ela não conseguia nem respirar direito. Talvez
tivesse algum efeito da maconha nessa crise, sabe como é, né?
Enfim, a Lana continuava sem entender nada, então eu
continuei.

— Beijo grego.

— QUÊ? — ela quase se engasgou com o chopp.

— Sim, ele disse que “sempre teve vontade de


experimentar”, e queria que eu fizesse... Mas eu ainda acho que
ele poderia ter feito a proposta sem ter me acordado com a
bunda na minha cara... Digamos que não é uma visão
exatamente “bonita” de se ter quando abrimos os olhos.

A cena que se seguiu à essa frase foi linda: Lana deu um


grito, começou à rir e bater na mesa, levantou e correu até o final
da quadra dando risada e chacoalhando as mãos, e fez o mesmo
quando voltou pra mesa. Incrédula. À essa altura a Bia já estava
no chão, escorada com o braço na cadeira e ainda se
contorcendo de tanto rir. E eu? Bom, eu estava plena, fumando
um cigarro e de perninha cruzada assistindo às duas rirem da
minha situação. A reação que elas tiveram já era esperada,
afinal, olha bem o que aconteceu!

Inclusive, sinta-se à vontade para parar um pouco a


leitura e rir um pouco – ou um monte – disso que acabei de
relatar. Toma teu tempo, sem pressa. Respire, tome uma água, e
depois retomamos a conversa. Vai lá.

Primeiramente, deixe-me esclarecer que não tenho


absolutamente nada contra fetiches, acho inclusive
extremamente saudável ter algo que te anime ou te dê
curiosidade no sexo. Ninguém merece um “papai e mamãe”
interminável do início ao fim da vida sexual. Mas gente, lembra
que eu comentei sobre o tal do diálogo? Então: ele poderia ter
conversado comigo sobre isso antes.

Vamos lá, descubram seus fetiches, falem sobre eles,


façam uso deles, mas de preferência, na hora de comentar sobre
as suas vontades, façam isso sem estar com o genital na cara da
pessoa. Garanto que a ideia será melhor recebida.

— Não julgo, cada um com seus fetiches. Eu, por exemplo,


realmente não consigo imaginar a minha vida sexual fazendo
tudo em uma única posição depois da liberdade que eu tive com
o Sommelier.

— Ah, não, Giulia!

— Ah, o sommelier...

— Quem? — acredito que a Lana não estava familiarizada


com este ser sedutor que entrou na minha vida a alguns anos, eu
realmente não lembro de ter comentado desse ser com ela... A
Bia sim, sofreu me ouvindo. Aliás, foi aí que eu percebi que eu
não andava conversando muito com essa moça, coisa que
mudou imediatamente depois desse encontro.

Bom, estou eu aqui, neste momento, ponderando se abro


detalhes sobre os dias mais selvagens da minha vida, ou se
deixo para outra oportunidade, para garantir que esse livro não
se torne um conto pornô deste momento até o fim. Até porquê,
este momento da minha vida mereceria uma atenção especial
para que a sua pessoa possa apreciar tudo o que me aconteceu
naqueles 45 dias. Sim, foram apenas 45 dias que revolucionaram
a forma como eu me enxergava no espelho.

Ele, o tal do sommelier, me apresentou à um novo


universo de possibilidades no âmbito sexual que ou eu não
conhecia, ou que eu até conhecia, mas não tinha confiança
suficiente em mim mesma para dizer “eu quero experimentar”.
E com ele eu experimentei, e descobri o quão sem sal as coisas
eram antes disso.

— Eu não gosto desse cara. Ele dizia que estava


perdidamente apaixonado por ti, e fazia juras de amor à fuinha.
— Bia soltou, sempre pontual, com sua raiva declarada aos
meus erros amorosos — E no fim escolheu errado.
— Discordo, o fato dele não ter ficado comigo, não
transforma a escolha dele em “errada”. Na verdade, foi bem
certa, ele escolheu sair do país e abrir o próprio negócio. Se eu
fosse ir contra, eu ia bancar o Nate agindo com a Andy no
aniversário dele.

— Quem?

— “O Diabo Veste Prada”, doida. Jura que tu não


conhece?

— Ah! Sim! Lembrei! Verdade, ele sumiu porque ele


sumiu mesmo, ele não escolheu a outra, a usurpadora, a cara de
fuinha...

— Bia, às vezes eu acho que essa história aconteceu


contigo, e não comigo, de tanta raiva que tu sentes.

Eis o porquê de eu amar a minha trupe: um assume a dor


do outro pra si. Não tenho o que reclamar dos meus amigos,
nunca tive, na verdade. Ao contrário dos namorados, nós nunca
nos deixamos na mão. E por mais que às vezes a gente fique
muito tempo sem se ver – como foi no caso da Lana – a amizade
continua a mesma sempre.

As duas eu conheço a quase uma década, e ambas foram


meu porto seguro em diversas situações, assim como eu acredito
que fui delas. Cenas como a desse dia aconteceram centenas de
vezes antes, sempre acompanhadas de uma garrafa. Este
encontro, na verdade, foi um pouco fora do comum, afinal não
foi exatamente um desabafo, e sim um bate-papo entre amigas,
coisa que geralmente acontece em jantas ou almoços na casa
uma das outras, e não sentadas em uma mesa de bar, agarradas
à um litro de chopp.
Como eu não consigo ficar tomando chopp o tempo
inteiro – na verdade não deveria tomar nem meio caneco, afinal
eu sou celíaca e o chopp e a cerveja não me descem direito em
função disso – eu me levantei e fui até o bar pedir mais um
vinho, e deixei as duas moças conversando sentadas na mesinha
do lado de fora.

Olhei o interior do pub. Eu gosto daquele cantinho da


cidade, a vista é bonita, e o pub em si tem um ar mais intimista.
É super bem iluminado, tem drinks e bebidas ótimas, e é
pequeno e familiar, então é bem organizado, e mesmo quando o
espaço fica cheio, nenhum cliente é mal atendido. Acho que é
justamente isso que faz com que eu e meus amigos tenhamos
essa preferência por ir ali para beber, comer e desabafar.

Inclusive, excelentíssimos leitores donos de


bares/pubs/etc.: Foquem em conforto para os seus clientes.
Conforto acústico, físico e visual. Esse pub é a prova de que um
ambiente pode ser ao mesmo tempo intimista e bem iluminado.
Ah! Não esqueçam dos comes e bebes diferenciados.

Falando em comer, deu fome. Apesar de estar em uma


aposta com os meus parentes pra ver quem emagrece mais
rápido, não vou resistir a pegar uma porção de batatas fritas pra
comer. Falei que ia pegar vinho, certo? Mudei de ideia, o dia
pede uma frozen marguerita e eu não vou me negar esse prazer.
Eu não estou dirigindo mesmo, então eu posso.

Esse pub já foi pano de fundo de muitos romances, brigas,


términos, propostas de casamento e traições. Lembra do Allan?
Uma vez ele estava com uma moça aqui, e mais uns amigos.
Eles só estavam se conhecendo, na época, mas a ex dele – sim, a
que escondeu o amante na garagem do prédio – resolveu
aparecer com – atenção – o irmão do ex melhor amigo do Allan
ali.

Sim, é exatamente o que tu pensas. Ela traiu o Allan com o


Pedro, escondeu o Pedro na garagem pra contar a verdade pro
Allan, eles terminaram. Pedro e a moça assumiram o namoro, e
ela começou à conversar com o irmão do Pedro, e assim que ele
precisou viajar à trabalho, ela ficou com o irmão dele, e
resolveram ir naquele pub.

E então, aconteceu: ela entrou no pub, aos beijos com o


irmão do namorado dela, e sentou em uma mesa de frente à
mesa do Allan, e começou à se agarrar com ele – tentando fazer
ciúmes – e quando percebeu que o meu caro e excelentíssimo
amigo não estava sendo afetado pela situação ela simplesmente
levantou do colo do cara, fechou o semblante, foi em direção ao
Allan, e deu um tapa na cara dele. Depois pegou seu novo
amante pela mão e saiu do bar.

Eu fiquei um bom tempo encarando a mesa na qual essa


cena se passou e rindo, enquanto esperava minha bebida e
minha batata ficarem prontas. Eu estava tão entretida na minha
cabeça que quando o garçom disse que estavam prontas, eu
levei um susto. Batata e drink em mãos, voltei para a mesa.

— Certo — soltou a Lana — Me conta qual é a desse


Sommelier.

— Ah, não foi nada demais... Foi só um caso que eu tive


por um tempo limitado, na primeira vez que saímos ele já me
avisou que ia sair do país em 45 dias, mas que queria ter
lembranças “memoráveis” desses últimos dias dele aqui no
Brasil, e me convidou pra essas lembranças.
— E?

— Eu aceitei.

Olho pra Bia, ela estava com cara de quem comeu um


peixe malcozido com molho azedo. Sério, até hoje eu não
entendo porque ela se ressente tanto com essa história, mas a
Lana se mostrou extremamente interessada, então eu contei
alguns causos que aconteceram com ele.

Esse “romance” foi uma aventura, que logo no início já


mostrou a data de expiração. Nos conhecemos em uma rede
social, adicionei ele em função dos contatos profissionais que ele
tinha, talvez pudesse me ser útil uma pessoa tão bem
relacionada, visto que na época eu estava desempregada e
tentando a vida com doces. Cogitei inclusive uma parceria, uma
harmonização de vinhos e bebidas... Poderia dar certo.

Mas, ele resolveu que as intenções dele comigo não eram


tão puras quanto as minhas... Jantar, motel, motel, motel, motel,
café, motel de novo... Nossa rotina não variava muito, pra te ser
bem sincera. Mas eu tive a oportunidade de experimentar um
“50 Tons de Cinza” sem abuso na minha vida.

— Foi libertador, pra falar a verdade. Descobri, com ele, o


que eu gosto na cama, como eu gosto, quanto eu gosto... E
descobri que eu tenho alguns fetiches que eu jamais pensaria
ter... Quer dizer, não é com todo mundo que tu podes chegar e
“ah, bate com uma cinta nas minhas costas só pra eu testar uma
coisa”...

Nessa hora até a Bia deu o braço a torcer e começou a rir.


Se imaginar pedindo uma coisa dessas para qualquer criatura
aleatória desmonta qualquer um. Se bem que, foi meio o que
aconteceu, ele me falou o que gostava de fazer, e me pediu se eu
estava disposta a experimentar coisas novas. Provavelmente, eu
só aceitei porque, como ele mesmo disse, em 45 dias ele estaria
indo embora do país, e muito provavelmente eu nunca mais
veria ele – não é verdade, ele veio visitar a família este ano e
acabamos nos encontrando, mas nada aconteceu.

César apareceu, Lana foi embora. Hora de voltar para casa


e cuidar dos rebentos. Ficamos, novamente eu e Bia na mesa,
mas não por muito tempo, ela precisava ir buscar a mãe no
aeroporto, que estava voltando de viagem. Em poucos minutos
estava eu, sozinha novamente, bebendo meu drink favorito,
comendo batatinha e observando o céu estrelado que aquela
noite me entregou como presente.

Como é gostoso quando a conversa flui levemente, acho


incrível o poder que uma amizade dessas proporciona. O que
me leva a perguntar: custa rolar uma conversa nesse nível
quando estamos em um relacionamento?

Fiquei um tempo analisando as histórias compartilhadas


ali. Já vou deixando claro que não foi exatamente na ordem
abaixo apresentada que a minha cabeça funcionou naquela hora
– até porque, eu jamais forçaria qualquer outra pessoa a tentar
seguir a minha linha de raciocínio, nem eu consigo entender
como eu vou ligando as coisas na minha cabeça, mas no fim,
tudo faz sentido. Digo, quase sempre. Mas enfim, vou tentar
montar uma “linha cronológica” fácil de seguir aqui, pra ajudar
na compreensão.

Tivemos três histórias sobre sentimento de posse


mencionadas em um curto espaço de tempo: a minha, a da Lana,
e a do Allan. Sim, a do Allan também. O que mais faria alguém
se levantar de uma mesa, bufando, atravessar um bar e estapear
o ex, que não um sentimento de posse? Ela se sentiu ofendida
porque ele não estava bravo, ou sequer incomodado com a
atitude dela, ele demonstrou, na verdade, que já tinha se
desligado dela, e ela não pôde aceitar isso.

A possessividade está intimamente ligada ao ciúme, outro


dos maiores encarregados de destruir relacionamentos, seguido
de perto da infidelidade, mas o pior de tudo, é que esse também
é um sentimento lentamente autodestrutivo. A ideia de ser
“dono” do outro, geralmente está relacionada com a
insegurança que a pessoa sente. Claro, no meu caso em
específico, a culpa foi da criação mesmo. Em função da tal
“válvula” que ele tinha (tem?) na cabeça, a família nunca disse
um “não” pra ele, e ele fazia o que bem entendia da vida, sem
nunca ser repreendido por ninguém – chegando inclusive ao
ponto de dar tapas na cara da mãe.

Da última vez que eu recebi notícias desse indivíduo, ele


estava internado, pela sétima vez, em uma clínica de
reabilitação. Não vou mentir, me senti mal por isso. É sério, me
senti mal mesmo, porque por mais que eu não queira ver essa
criatura na minha frente nem pintado de ouro, quando
terminamos, eu realmente esperava que ele fosse mudar um
pouco, que a filha dele – recém nascida na época – pudesse fazer
com que ele tomasse jeito, ou enfim...

Expectativas frustradas. Eu acho que eu alimento muita fé


pelos outros, e é exatamente isso que acaba me frustrando...

Bom, vamos voltar a falar do sentimento de posse, ou eu


vou começar a me lamuriar aqui e esse livro vai, literalmente, se
tornar um desabafo bêbado no ombro do garçom. E adivinha
quem vai ser o garçom? Exatamente, caro leitor, você. Então,
permita-me focar no que interessa para nós, que eram os meus
pensamentos no dia da conversa, e não os que estão na minha
cabeça enquanto transcrevo a história.

A questão é que eu nunca entendi muito bem essa coisa


de tentar controlar o outro, e acredito que seja algo da minha
criação também, assim como o fato deles serem tão possessivos
também é algo da criação deles. Eu não perdoo traição, por
exemplo. Não por nada, não é que seja algo que me afete, ou que
eu não acredite que a pessoa possa mudar, como disse, eu tenho
muita fé nas pessoas, mas é que eu me conheço, e na hora da
raiva não tem o que segure a minha língua, e eu posso acabar
jogando isso na cara da pessoa... E, eu acredito que, se é pra
perdoar, então é pra perdoar e ponto, não pra ficar jogando na
cara da outra pessoa o que ela fez ou deixou de fazer. Então, eu
não guardo mágoas, mas prefiro encerrar o relacionamento por
ali mesmo do que correr o risco de acabar traindo as minhas
premissas depois.

Eu sei lá, eu costumo deixar a criatura livre para viver a


vida do jeito que ela gosta, como está acostumada... Eu acredito
que, se for para entrar em um relacionamento, que seja para
somar, e não para ficar podando a pessoa e proibindo ela de
fazer tudo. Porém, às vezes, eu fico pensando se não é
justamente essa liberdade que me causou tantos problemas de
ciúme nos meus relacionamentos.

Digo isso porque não foi um caso isolado, em quase todos


os relacionamentos que eu tive, tanto os firmes, quanto as
tentativas, eu presenciei alguma crise de ciúmes da outra
pessoa. Não acho que eu esteja errada em ser assim, e para todas
as pessoas que agem da mesma forma que eu, um abraço bem
apertado e minha gratidão por me fazer companhia nessa luta
de deixar os relacionamentos mais leves e felizes. Acredito, na
verdade, que o erro – neste caso – resida no outro, e novamente,
na forma como a pessoa cresceu e foi criada.

Eu sei que pode parecer que eu simplesmente estou


seguindo o tutorial básico de “Como Acabar O Seu Relacionamento
Em Um Único Passo: Culpe o Outro”, só que eu tenho um álibi
para refutar esse pensamento – Ahá! Não contavam com a
minha astúcia! – que é: eu conheço muito bem todos os meus
defeitos, fazer terapia me ajudou à entender que sim, eu sou um
amor... Quando eu quero. Mas nessas circunstâncias em
específico eu não consigo ver erro nas minhas atitudes – ou nas
atitudes de quem age da mesma forma. Afinal, desde quando
respeitar a individualidade do outro é errado?

Bom, enfim. Eu digo que essa liberdade pode ser a causa-


mãe das crises pelas quais eu passei, porque a maioria das
pessoas não estão acostumadas com isso. Via de regra, quem
quer te “prender” é porque está acostumado a ser “preso” nos
relacionamentos, entende? Então, essa liberdade assusta, causa
insegurança, e a pessoa começa a te cercear em todas as tuas
atitudes porque pode pensar que, essa “falta” de “demonstração
de apego” da tua parte, pode significar que ela está prestes a te
perder... Seguiu o raciocínio?

São aquelas paranoias criadas pela nossa cabeça que eu já


comentei anteriormente, vem à mente um “se me deixa tão livre,
é porque não está tão interessado assim em mim”, quando na
verdade é o contrário, o interesse existe e é grande, mas o
interesse surgiu pela pessoa como ela é, e queremos que ela
continue assim, logo, tentamos fazer com que ela esteja sempre
feliz, e para isso, deixamos que a pessoa faça aquilo que ela
gosta. Às vezes se gosta tanto da pessoa, que a felicidade dela é
o mais importante, acima até do nosso querer, e queremos tanto
que ela fique bem, que no fim deixa de importar de ela está
contigo ou não.

Na verdade, eu acho que esse é um belo resumo do que é


o amor, é colocar a felicidade do outro acima das tuas vontades
imediatas. Obviamente que ninguém esperaria uma atitude
dessas de uma mulher em plena TPM, vamos com calma. Eu,
por exemplo, no meio de uma TPM não quero nem saber se o
cara estiver com a peste negra, se eu disser que eu quero ele do
meu lado, eu quero ele do meu lado e ponto, sem conversa, sem
discussão. Eu quero e deu. Mas entendam, nenhuma mulher se
manda na TPM. São os hormônios.

Passando essa terrível fase do mês, eu volto ao normal. Dá


nada gente, é 5 dias de loucura que o poder de gerar uma vida
nos dá. Acho justo. Filhos enlouquecem as mães do momento
que nascem até a hora que elas morrem, porque diabos as mães
– de fato e em potencial – não teriam o direito de enlouquecer os
filhos/maridos/pais de vez em quando? Poxa, são só 5 dias, dá
pra aguentar, né?

Entendam, a liberdade é uma coisa maravilhosa. Pensa


como é bom ter uma pessoa do teu lado, não porque ela precise
de ti, não porque ela tem medo de ti, não porque ela é obrigada
a isso, mas porque ela quer. Dentre 7,53 bilhões de
possibilidades, ela te escolheu. A pessoa está ali, porque ela
quer, porque ela gosta, porque tu agregas valor à vida dela,
porque ela te ama. Aproveite isso, viva isso e ofereça isso a
quem está ao teu lado.

Falando em liberdade, vamos criar um pouquinho mais


de intimidade entre os casais e discutir os gostos pessoais
também, né? Isso é válido pra tudo: desde lugares onde sair,
decoração da casa, se querem casar ou não, se vai ser civil ou
religioso, se querem fazer viagens anuais, se preferem praia,
piscina ou campo, se querem ter filhos, como pretendem chamar
os filhos... E sobre os fetiches sexuais.

Quer um ménage? Conversa com o parceiro, discutam essa


possibilidade e respeite a decisão. Gosta de usar fantasias?
Gosta da sensação de poder ser pego? Quer dominar ou ser
dominado? Gosta de fazer um strip-tease? Voyeurismo? Tem
curiosidade com fisting? Quer que o parceiro te faça um beijo-
grego? Converse sobre. Sem julgamentos.

A questão do “sem julgamentos” é o que mais complica,


na verdade. Porque para não haver julgamentos, tem que existir
intimidade, e pra existir intimidade, é necessário ter o diálogo.
Tá dando pra entender a importância de um bom bate-papo no
relacionamento? É algo essencial, mas que a maioria das pessoas
não faz, ou por falta de costume, ou por medo.

Aí o que acontece? Um belo dia a pessoa te acorda com a


bunda aberta na tua cara, o saco balançando e ela dizendo
“lambe?”. Gente, não tem vinícola que arrume essa situação.
Não dá, não tem volta. É uma imagem traumatizante. Eu sei
que, pra quem tem imaginação fértil essa imagem já se criou e já
vai ser difícil de tirar da mente, agora imaginem pra mim, que
nem precisei imaginar... Por favor, conversem.
E o sommelier, bom... Foi uma experiência libertadora.
Ele, com todo o cuidado e respeito, conseguiu me livrar das
muitas das minhas vergonhas, e me “seduziu” para um mundo
sexual completamente diferente. Essa aventura que eu tive com
ele, me permitiu conhecer o meu corpo, meus desejos, e os meus
limites também. Desejo um sommelier pra todo mundo. Sério.
Eu ainda vou explorar esse universo de prazer dos 45 dias
passados com ele, porque eu quero te permitir entender tudo o
que aconteceu, quando aconteceu, e porquê aconteceu. Mas eu
não vou conseguir espremer tudo em apenas algumas páginas
aqui. Esse capítulo da minha vida, merece uma história à parte e
atenção.

É dia – ou noite? – de provar tudo o que é servido nesse


lugar, vou pra dentro e peço um apperol spritz, e me escoro no
bar para esperar.

— Giulia! Que saudade!

CAP V – Madame Bovary

— Oi!

Outro susto. Dona Eduarda chegou no recinto, com suas


bochechas fofas, olhos brilhantes, cabelos compridos, pretos e
cacheados. Eu olhei pra ela toda arrumada e não consegui
segurar uma onomatopeia de fofura quando vi aquela criatura,
que bate na minha cintura, de salto-alto.

— Duda, sua linda! Quanto tempo eu não te via!


Duda foi minha colega anos atrás – não interessa quantos,
permita-me preservar a minha juventude através do tempo – e é
uma das minhas amigas mais chegadas até hoje, mesmo à
distância. Depois da formatura, a dona moça foi morar em outra
cidade e me abandonou aqui, essa monstra. Mas tudo bem, ela
está feliz da vida e ganhando mais do que jamais tinha
imaginado ganhar. Rica, ela. Tomara que ganhe 3x mais pra que
ela possa me levar num cruzeiro – interesseira eu, não?

— Encontrei com a Bia na rua, ela me disse que eu poderia


te encontrar aqui, aí eu resolvi aproveitar que estou na cidade
para conversar contigo.

— Ótima ideia essa! Até porque, a bonita nem me avisa


que vem, né? Se não eu tinha preparado alguma coisa para
fazermos... Bebe comigo?

Duda pegou o mesmo drink que eu e fomos novamente


sentar no lado de fora do pub. O fim de tarde tinha sido
maravilhoso, a noite estava estrelada como nunca, e o
“calorzinho” estava convidativo demais para que qualquer uma
de nós sequer pensássemos em ficar lá dentro. Acho que meu
anjo da guarda viu a minha situação e sentiu tanta pena, que
bateu um papo com São Pedro, para que ao menos o clima
estivesse bom para beber.

Tá, estou sendo dramática, eu sei. Minha situação nem


estava tão ruim assim, já estive em situações absurdamente
piores do que aquela, mas qual o propósito de escrever um livro
contando a própria história, se eu não puder me vitimizar um
pouco? Me deixa chorar um pouco aqui, vai... Se eu resolver
fazer isso em casa, entre os comentários da minha mãe e os da
minha irmã, não vai sobrar nem pó de mim.
Voltemos: Duda me contou sobre as férias maravilhosas
que ela teve em Jericoacoara, me atualizou sobre o trabalho dela,
brigou comigo porque eu não tinha ido visitar ela ainda – como
é que ela esperava que eu, com o carro precisando passar uma
temporada na oficina, tivesse dinheiro pra revisão e gasolina, e
viajasse 379km na atual situação trabalhista do país, que
ninguém está conseguindo se fixar em emprego algum? Sonha,
né?

Papo vai, papo vem, perguntou sobre a minha faculdade,


respondi que estava trancada há três anos e levei uma bronca. É
muita brabeza pra pouco tamanho, sério, dona Duda é
praticamente um Pinscher. E vou ser bem sincera, é muito
cômico olhar pra baixo pra levar bronca... Eu me senti naqueles
vídeos que tem um nenê de 2 anos apontando com os dedinhos
gordinhos pros pais e dizendo “chega, deu por hoje!”

Eis que um rapaz, muito parecido com um affair que eu


tive passou na nossa frente, me olhou de canto de olho, sorriu, e
eu fiquei olhando pra ele e bebida. Ela estava ciente deste affair,
e notou a semelhança.

— Foi na época da faculdade, né? Bem no início...

Olhei pra ela, meio perdida. Fiquei absorta nos meus


pensamentos quando vi ele, pensando em como um homem foi
capaz de me fazer ir contra todos os meus princípios daquele
jeito.

— O Felipe.

— Nossa, tu também achou parecido? Sim, foi.


— Às vezes eu fico lembrando das situações às quais a
gente já se sujeitou e dou risada... Como elas nos marcam, né? —
concordei com ela... Na verdade, todo relacionamento nos
marca, mas quando nós quebramos nossas próprias regras
parece que a memória fixa mais — Falando nisso, eu tenho uma
pra te contar!

— Então me conte!

— Olhei pra esse cara e lembrei direto do Felipe, e da


relação que vocês tiveram, e lembrei da situação que eu vivi com
o Ricardo... Lembra dele?

Ah, o Ricardo, aquele cara 25 anos mais velho, alto,


grisalho, musculoso, que ela tinha se apaixonado enquanto
estava na faculdade, que era casado, mas tinha oferecido um
carro e um apartamento pra ela, que inclusive pagava alguns
cursos de especialização que ela fazia? Não, lembro não.

— Lembro... O que tem ele?

— É meu vizinho.

— Quê?!

— Sim, se mudou pra minha cidade, e a casa dele está a


meia quadra de distância da minha... Mulher, eu levei um susto
quando eu vi ele... Sei lá, me deu um medo... Tu chegaste a ver o
Felipe depois do que aconteceu?

— Passei por ele ainda naquele semestre da faculdade,


mas fiquei um bom tempo sem ver ele... Encontrei ele no centro
ano passado, e faz algumas semanas que ele entrou eu contato
comigo, então eu acho que eu sei muito bem o que está se
passando dentro do seu coraçãozinho.
Apesar de ser absurdamente contra traições, e achar isso o
fim, preciso admitir que já participei de uma. Eu tinha, até um
tempo atrás, um sério problema no quesito romance: eu me
apaixonava rápido demais. Na verdade, eu não sei ao certo se
ainda não tenho... Provavelmente se eu voltar a agir da forma
que eu fazia quando conheci o Felipe, fazendo tudo olho no olho
e me prolongando nas coisas, é possível que eu, novamente,
depois de quebrar a cara tantas vezes, ainda assim, me
apaixonasse de forma extremamente rápida.

Mas, como eu mudei, isso não tem mais acontecido. Não


sei ao certo porque eu mudei, talvez por ter me machucado
demais da última vez, talvez por medo de me apaixonar de
novo e ficar “refém” de outra pessoa, talvez seja o que
chamamos de amadurecimento... Não sei. Sei que passei à agir
de outra forma, e não estou mais me apaixonando. E vou ser
bem sincera, não sei se eu gosto dessa nova “eu”... Mas, é o que
temos para hoje, não é mesmo?

Quando começamos a sair, ele não me disse que tinha


namorada. Não por maldade, a verdade é que a maioria das
pessoas já sabia que ele estava namorando, e ele estava com a
mesma guria há anos, provavelmente ele achou que eu também
soubesse dessa informação naquela hora. Ele não me falou nada
de estado civil, pra falar a verdade, nem sequer tocamos no
assunto.

Nós nos conhecemos no café que fica ao lado do bloco da


minha faculdade. Ele fazia outro curso, mas nos intervalos nós
sempre conversávamos, até que começamos a nos aproximar, à
gostar um do outro, até que fomos pra cama. Quando ele
comentou sobre a namorada, eu levei um susto, mas à essa
altura, eu já estava apaixonada.

Eu lembro até hoje como que essa aproximação aconteceu.


Nós já tínhamos conversado algumas vezes, mas sempre tinha
um grupo de amigos ao redor, e as conversas meio que ficavam
mais em questões acadêmicas, não entrávamos muito em
detalhes da vida um do outro. Até que um dia nós ficamos
sozinhos no café.

Na verdade, eu estava na mesa externa do café, e ele em


um banco próximo. Eu estava meio absorta analisando como
que eu ia fazer pra conseguir as notas que eu precisava, porque
era semana de provas, fim de semestre. Era um café atrás do
outro, sem pausa, ansiedade à mil e a minha cabeça girando do
trabalho, pra faculdade, pras coisas da casa, e repetia. Eu sequer
tinha visto ele sentado ali.

— Me permite um elogio, com todo o respeito e sincero?


Tu tens as pernas mais sexy que eu já vi.

Levanto a cabeça e olho. Abro um sorriso. Foi aí que tudo


começou a acontecer. Não estávamos falando de revisão de
texto, nem de uma resenha, nem discutindo autores, normas,
formatos, ou gastando tempo comentando do que tinha ocorrido
em sala de aula. Não. Ele começou falando diretamente de mim,
pra mim, e assim continuamos.

Eu sei que não foi nenhum elogio como “o desenho e o


formato do teu pescoço me lembra dos detalhes entalhados nas colunas
gregas de mármore, e a graciosidade que tu tens para usá-lo ao teu
favor, me faz entender os motivos de adoração às deusas daquele
panteão”. Mas, ainda assim foi um elogio, e me chamou a
atenção. Talvez por ter sido direto, ou um pouco inapropriado,
ou porque não houve um “oi” sequer antes daquela interjeição.
Não sei dizer o porquê exatamente, mas me fez querer sorrir e
continuar conversando com ele.

Enfim, o importante dessa história, é que eu não sei, até


hoje, o que exatamente fez com que eu me apaixonasse por ele.
O sexo com ele era gostoso, relaxante, confortável. Era leve
como rolava com ele. Fomos pra cama porque gostávamos um
do outro, porque deu curiosidade, porque as ideias batiam... E
continuamos porque o sexo era bom. Mas isso foi até a terceira
vez, depois começou a surgir sentimento, e foi mútuo ainda. Foi
depois disso que ele comentou sobre um compromisso com a
namorada.

Na hora eu decidi que não ia mais ficar com ele, porque


não achava aquilo certo. Mas no dia seguinte eu estava falando
com ele de novo. Uma noite pensando em ficar longe dele e eu
chorei. E ele também. E o pior de tudo, eu via que ele estava
sofrendo naquela situação. Falamos mil vezes em parar com
aquilo, mas só a ideia causava dor.

No fim, as circunstâncias nos forçaram a colocar um ponto


final na nossa história – nada que não pudéssemos prever,
afinal, olha como começou a relação, não é mesmo? E, a Duda
passou exatamente pelo mesmo que eu, essa confusão de
sentimentos.

— Sei lá, fazia anos que eu não via ele... Mas, eu larguei
sem querer largar, foi forçado, eu estava apaixonada por ele na
época. Eu segui em frente, estou com outra pessoa agora, mas
ver ele lá, tão perto de mim, me deu medo de tudo voltar.
— Eu sei bem como é. Acho que o problema é justamente
quando tu terminas sem querer terminar. É como se, ao invés de
botar algo no lixo, a gente só guardasse e torcesse pra nunca
abrir de novo... E depois de um tempo a gente até esquece que tá
lá, até ver de novo.

— Exato! Doeu muito deixar ele, como eu sei que doeu


pra ti deixar o Felipe, e eu tenho medo de que essa proximidade
faça tudo vir à tona.

Fiquei pensando um pouco, e de fato, eu reparei que


depois que eu tive esse término forçado, eu passei à evitar
passar nos lugares que eu sabia que ele costumava frequentar...
Não foi algo pensado, mas acho que alguma coisa em mim sabia
que era o mais sábio à se fazer e me guiou para outros locais.
Outra coisa é que, toda vez que eu passava, por acaso, nesses
lugares, eu olhava pra dentro, na esperança – ou com medo – de
encontrar ele ali.

Digo medo porque eu sabia que iria sentir alguma coisa, e


isso me fazia temer a minha reação... Eu poderia simplesmente
ignorar o que senti, poderia ficar paralisada, poderia chorar,
poderia ir ao encontro dele. Esse tipo de “fim” só causa
problemas, porque apesar de dizermos que foi um ponto final
na história, nós sabemos que não foi. É medo. Um medo bom e
ruim ao mesmo tempo, um frio na barriga que lá no fundo, ao
mesmo tempo que sussurra um “e se tudo for bom como
antes?”, também sussurra “e se isso acabar estragando de vez a
vida de vocês dois?”.

Sendo sincera, me arrependo do que aconteceu. Não, eu


me arrependo de como aconteceu, não do que aconteceu. São
coisas diferentes. O que aconteceu foi leve, lindo e natural, o
tipo de experiência que não sai da memória. Mas a forma como
aconteceu sim, foi errada. Ele errou ao investir em mim
enquanto namorava, e eu errei em resolver ficar com ele, mesmo
sabendo disso.

Às vezes os nossos sentimentos falam mais alto do que a


nossa razão, do que a nossa noção de moralidade, do que tudo.
O nome disso é paixão. Eu me pego pensando nisso às vezes, e
eu morro de medo de me apaixonar de novo, de ficar refém de
mim mesma, de não conseguir mandar nas minhas ações. Isso
me deixa praticamente em pânico. Só de imaginar que eu vou
ficar boba olhando para alguém, e ignorando tudo o que pode
estar errado naquilo, me dá calafrios.

— A gente precisa é de uma poção anti-apaixonamento,


Duda.

Ela deu uma risada tão escandalosa que fez com que o
pub inteiro olhasse para a nossa mesa. Adoro a forma como as
minhas amigas são discretas e delicadas.

— Nossa! Imagina que maravilha! Colocar alguns


ingredientes em um caldeirão e ficar imune à paixão! Que
delícia! Aí a gente só se apaixonaria pela pessoa certa.

— Aí eu te pergunto: quem é a pessoa certa?

— Giu, precisamos de duas poções. Uma pra apaixonar e


uma pra não apaixonar. Aí enquanto a gente não faz a anamnese
completa do candidato, a gente toma a poção que não apaixona,
e depois que ele passar pelos pré-requisitos, a gente toma a
poção que apaixona, simples!

— Tá... E se ele não se apaixonar?


— Poção nele, oras!

Pronto. Dona Duda, a mini bruxa. Será que ela tem altura
o suficiente para alcançar a boca do caldeirão? Não sei...

Você, pessoa de estatura baixa que comprou o meu livro,


eu passei a vida inteira sendo a gigante, a girafa, o bambu, o
Everest, a taquara... Por favor, entenda, não é nada pessoal, mas
em algum lugar – ou em alguém – eu teria que projetar a minha
vingancinha. Gostaria de dizer que eu adoro vocês todos, e que
o clima aqui em cima é maravilhoso, agora, permitam-me
continuar com o meu bullying inofensivo.

Voltemos à história – eu acho que estou falando isso até


demais já, mas é quase impossível pra mim não acrescentar
alguns comentários extras... Depois de mais algumas
gargalhadas nós começamos à pesquisar se existia, de fato,
alguma maneira de inibir isso... Afinal, como tudo o que
acontece em nosso corpo, a paixão também é uma reação
química, causada por um hormônio chamado feniletilamina – que
tem estrutura parecida com a anfetamina, uma droga
estimulante do sistema nervoso central, que de tão “tranquila” é
proibida em alguns países da europa.

Resposta: não, não tem como bloquear essa reação. Vou


ter que continuar desviando o olhar para não ficar “drogada”.

Depois de descobrir a semelhança do “hormônio da


paixão” com a anfetamina, eu comecei a entender porque os
meus avós usavam o termo “embriagado de paixão”. É porque a
pessoa fica – literalmente – embriagada. A paixão é uma droga.
E é uma droga em quase todos os sentidos, na minha singela
opinião.
Um olhar de decepção entre as duas, um suspiro,
seguimos bebendo. Nós duas realmente estávamos querendo
descobrir algo que pudesse bloquear isso – ou que pudesse fazer
aflorar isso, para quando quiséssemos que outras pessoas se
apaixonassem por nós – mas isso não existe. Triste, né? Às
vezes, buscar resposta da ciência pode ser deprimente. Eu acho
que vou só esquecer que eu li isso e seguir planejando minha
poção do amor imediato. Ao menos acreditar em conto de fadas
dá alguma esperança...

Chegamos à conclusão que, em ambos os casos, o melhor


que nós poderíamos fazer era exatamente o que estamos
fazendo: evita, e foca no que está acontecendo agora. Ela
focando no namorado dela, e eu focando na minha ideia de
trajetória profissional.

— Chama ele pra conversar.

Duda me encarou atônita. Parou no meio de um gole e


virou o rosto para mim procurando algum nexo entre “não
posso me aproximar dele” e “vou chamar ele pra conversar”.

— Eu fiz isso.

— Com o Felipe?

— Sim. Na real, não fui bem eu que chamei ele, ele que me
chamou e eu fui no apartamento dele para conversar.

— E? Veio tudo de novo?

— Na verdade não. Entrei no prédio com um frio na


barriga apavorante, mas depois que começamos à conversar,
tudo passou.
E realmente, eu estava com as pernas bambas enquanto
subia até o 4º andar do prédio com ele. O medo de acabar
fazendo algo que eu não tinha me planejado pra fazer, ou de
voltar à sentir tudo o que eu senti uma vez por ele quase me fez
desmaiar. Literalmente.

Eu estava morta de medo de ir até lá. Mas fui. Não sei


como não explodi de ansiedade enquanto dirigia até o outro
lado da cidade pra falar com ele. Mil pensamentos vieram na
minha cabeça. Mas quer saber? Foi uma das melhores decisões
que eu tomei nos últimos anos.

— Nós conseguimos um ponto final. Ele me falou tudo o


que ele disse que queria me falar naquela época e não
conseguiu, aquilo que ficou entalado na garganta, e eu também
falei. Desabafamos um com o outro, e conseguimos entender
que, por mais que tenha sido bom, não era pra ser.

— E o sentimento?

— Não estou mais apaixonada por ele. Estive, muito,


loucamente, mas não mais. Se eu estava com medo de me atirar
nos braços dele gritando “me ame”? Sim. Morrendo de medo.
Mas não aconteceu. O que eu sinto por ele é um carinho imenso
apenas, nada além disso. Mas acho que se não tivesse sido essa
conversa, eu não teria descoberto isso.

Duda parou um tempo, pensativa, e depois concordou


com o que eu disse. Para existir um ponto final, nós temos que
colocar um ponto final. Se afastar sem um último “adeus” deixa
sempre a sensação de que falta algo, fica um vazio no peito.
É apavorante a ideia de se reencontrar com alguém que já
foi uma grande paixão tua, principalmente se a separação não
foi opcional, eu sei. Mas é bom, faz bem.

Terminamos os copos, e ela disse que precisava voltar pro


hotel, porque viajaria cedo na manhã seguinte. Ela foi decidida a
chamar o Ricardo para conversar. Se ela ia ficar toda vermelha e
nervosa? Com certeza, porque até eu – posuda do jeito que sou –
fiquei da cor de um pimentão quando foi a minha vez de ter
essa conversa. Se eu queria ser uma mosquinha pra ver essa
cena? Óbvio. Mas o mais importante é que: ela ia resolver esse
medo dentro dela.

Estou sozinha na mesa outra vez.

CAP VI - O Fabuloso Destino de Amélie Poulain

Olho para o relógio, quase duas horas da manhã, ou seja,


é hora de ir pra casa. Aprendi com Ted Mosby, de HIMYM que
nada de bom acontece depois das duas. Não que eu seja
absurdamente supersticiosa, mas melhor não arriscar. Já diria
minha avó: o seguro morreu de velho. Mas nossa, como passou
rápido o tempo! E a minha vibe de querer ficar podre de bêbada
e passar vergonha também passou, e passou graças às conversas
que eu tive nessa noite.

Chega uma caipiroska de morango na minha mesa. “Por


conta da casa!” me diz o garçom. Na hora que decido que não
preciso ficar bêbada, o pub me presenteia com essa maravilha.
Tudo bem, uma saideira é que não ia me matar, e eu ainda tinha
algumas coisas para botar em ordem na minha cabeça antes de
levantar da mesa e ir pra casa.

Todas essas conversas e desabafos que chegaram até mim,


me fizeram pensar bastante sobre “o fim”. O fim dos outros, o
meu, o consensual, o litigioso, o fim aceito e principalmente, o
fim não aceito. E quando me veio este fim “não aceito” na
cabeça, eu não estava nem pensando no caso do Felipe, mas sim
no que me fez me dirigir até esta mesa. Por que a gente resiste
tanto a deixar qualquer coisa acabar? A aceitar qualquer tipo de
término, não é?

A gente estica o elástico até o limite, e gasta uma força


danada pra dar conta de segurar as duas pontas e continuar
forçando para ver se consegue um pouco mais, se machuca, se
aperta, faz de tudo. A única coisa que não fazemos, é perceber
que esse elástico já está frouxo, que não consegue prende mais
nada... No fim nem sei se ainda dá pra chamar de elástico aquilo
que sobrou.

Eu bem sei que pontos finais dão calafrios, acabei de


relatar como me senti quando tive o último encontro, como eu
sei que a Duda vai estar quando marcarem o lugar e hora para
poderem conversar. Essa sensação pode ser qualquer coisa
menos boa ou confortável.

É o medo do vazio, o medo de ficar sozinhos de novo, é a


incerteza quanto à lidar consigo mesmo no espelho, sem alguém
para botar a culpa dos nossos erros, é o medo de não saber o que
nos espera na hora que aquele capítulo da nossa vida chega ao
fim. Mas o fim chega sempre e para todos. Eis uma certeza da
vida: tudo tem um início e um fim.
A data de início, geralmente nós sabemos, mas a data do
fim sempre permanece um mistério, e acho que é isso o que mais
nos apavora nessa conversa toda, é levantar da cama todos os
dias sem saber o que aquela manhã inicia e o que ela termina
nos nossos ciclos. É apavorante quando o medo da incerteza é
maior que a sensação de que a gente consegue, ou quando o
medo do vazio é maior que a certeza de que merecemos algo
melhor.

Mas sejamos sinceros aqui, nós nunca temos certeza de


que entendemos ou gostamos mesmo de um filme antes de os
créditos começarem a passar na tela. Não sabemos se uma
leitura foi impactante ou não antes de virarmos a última página
do livro. A vida é um mistério, e acho que essa é a parte mais
bonita dela: a surpresa.

Saber a hora de dar fim, é também saber confiar. Confiar


no nosso coração que diz que algo já não agrega, confiar na
nossa intuição que diz que devemos pegar um caminho
alternativo pra casa naquela noite, confiar que os nossos amigos
vão ser a nossa rede de suporte caso alguma coisa saia do nosso
controle, confiar que a banca vai ser justa na hora de fazer a
avaliação da nossa monografia.

O fim sempre dói, mas mesmo que doa, o fim é necessário,


afinal se livrar dos entulhos que guardamos nos armários é a
única maneira de abrir espaço e dar a oportunidade para que
algo novo entre.

É o implacável fim.

Eu sei que quanto mais tempo um ciclo dura, mais


dolorido é o final. O término de um romance de duas semanas
com uma pessoa que as ideias fecharam em uma balada vai doer
bem menos do que perder o companheiro de uma vida toda, de
uma hora pra outra para um infarto.

Mas temos prazo de validade, e tudo o que temos e


vivemos também tem. Eu sei que não é nada agradável ficar
pensando assim, e que eu provavelmente estou parecendo uma
niilista que vai terminar a fala com “pra quê se importar, se a
entropia é inevitável e todos vamos morrer?”, mas calma, é
apenas uma conclusão sóbria de um pensamento relativamente
embriagado, afinal essa última caipirinha não ajudou no meu
estado alcoólico.

Eu cheguei a começar a contar, quando comecei a escrever


essa conclusão, quantos copos e taças eu tinha bebido na noite
em questão, mas desisti porque não quero terminar o livro
sentindo vergonha de mim mesma. Fique à vontade para fazer a
contagem, se a curiosidade bater muito forte.

Quando reparei que estava olhando para o fundo do copo


pensando “é, acho que ele pode ter sido a minha saideira”, eu
percebi que, talvez, fosse a hora de parar de beber e voltar pra
casa, afinal eu estava comparando o minha última tentativa de
relacionamento com a bebida que eu estava tomando. Comecei a
rir desesperadamente e levantei da mesa.

Paguei minha conta, chamei um carro, acendi mais um


cigarro para terminar enquanto eu esperava a minha carona
chegar. E queria um café. Meu Deus como eu queria tomar um
café naquela hora. Eu queria que me dissessem um único
motivo plausível para os pubs, bares, botecos, boates e casas
noturnas em geral não servirem café. Sério, se prestam à servir
shot de gelatina com vodka, mas não tem um cafezinho que seja
para servir às pobres almas que estão saindo do
estabelecimento. É inadmissível.

Adivinha o que eu fiz quando cheguei em casa? Café.

Voltando um pouco para momentos antes de eu entrar no


carro e dar por encerrada a minha noite, enquanto eu fumava e
esperava, eu me peguei sorrindo com o pensamento que me
veio enquanto eu encarava o fundo do copo.

Será que faz algum sentido essa sensação de saideira?


Seria o último antes do último? Será que não haveria um
próximo depois do próximo? Será que eu ia me apaixonar
perdidamente de novo? E se sim, porque diabos eu estava
sorrindo com a ideia?

Aí sim eu comecei a rir. Quando o motorista chegou, me


olhou de um jeito como quem diz “tá tudo bem?” e eu segui
rindo para dentro do carro. Confirmei o endereço, abaixei a
janela e fui o trajeto inteiro olhando a rua.

Casais de mãos dadas por todos os lados, grupos de


amigos ainda na rua, pessoas entrando e saindo de casas
noturnas. Praticamente todos mais novos do que eu, encontrei
alguns poucos da minha faixa etária ou mais velhos. A noite
nessa cidade é agitada, mas quem agita na cidade são os mais
novos mesmo.

Depois de tantas conclusões, pensamentos, desilusões,


desabafos, drinks e risadas, eu comecei a me sentir esperançosa.
Eu não sei, até o presente momento, dizer o porque daquela
sensação, mas eu fiquei feliz. Ao invés de rir dos adolescentes na
rua e pensar nas decepções que aqueles abraços pela cintura
poderiam causar, eu estava feliz por ver o amor deles
acontecendo naquela hora. Apenas torcendo internamente para
que eles conseguissem intimidade o suficiente para conversar e
continuar daquele jeito.

Sigo o meu caminho, e uma pichação recente no muro de


um prédio me chama a atenção, e é com ela que me despeço.

“Não há nada mais profundo que um mergulho no


teu corpo; Não há nada mais brilhante que o fundo
dos teus olhos; Não há nada mais doce que o som
da tua voz; Não há nada mais assustador do que
estar nas suas mãos; E não há nada nesse mundo
que me faça abrir mão disso”

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