Escolar Documentos
Profissional Documentos
Cultura Documentos
Capa
Foto e design por Karine Mendonça
Projeto gráfico
Karine Mendonça
Revisão
Cibele Louise Pruner Frahm
Natália Mendes
Ficha catalográfica
Charles Rodrigues CRB 14°/870
C957d
Cruz, Guto
O doce luar da primavera / Guto Cruz. Itajaí
(SC): Acene, 2016.
111 p.
[ 2016 ]
Todos os direitos desta edição reservados à
ACENE EDITORA
Rua José Cândido, 598
88305-070 - Itajaí - SC
www.aceneditora.com.br
GUTO CRUZ
O D O C E L UA R D A
PRIMAVERA
aceneditora
Eu tinha quase 16 e a minha mãe
sempre dizia que, quando eu escrevesse
um livro, deveria colocar no prefácio
aquela canção do Sérgio Britto, gravada
pelos Titãs, que fala que o acaso vai me
proteger enquanto eu andar distraído.
a) Amar mais;
b) Chorar mais;
c) Ver o sol nascer;
d) Arriscar mais;
e) Errar mais;
f) Fazer tudo o que eu realmente queria fazer;
g) E aceitar as pessoas como elas são.
Mas
18
A Profecia
Viste além
do futuro.
Imaginaste gratidão a quem me salvou. E sim.
Hoje prego! Pastor de ovelhas num rebanho de versos.
Levo as palavras,
Não só Daquele
Que me curou.
A doutrina
desta dádiva
que me deixou:
— À Vida!
Maior presente
que me deste.
Minha sequela:
Vida de Poeta;
Mestre.
19
Epitáfio
Devia ter:
a) complicado menos;
b) trabalhado menos;
c) visto o sol se pôr;
d) me importado menos com problemas tão pequenos;
— Ah, mãe.
20
PA
LA
VR
AS
21
De vez em quando eu me dispunha a rabiscar uns
versos, verbos, verbetes. Eram curtos, sem muito
conteúdo. Eu tentava, por vezes, escrever e descrever o
que sentia, via e imaginava. Para falar a verdade, eu sentia,
via e imaginava muito mais do que pudera escrever. Não
tinha o dom. Mas tinha vontade. Tinha necessidade.
Eu precisava me expressar de alguma maneira. Por
mais espontâneo, alegre e falante que eu fosse, tinha
muita dificuldade em conversar sobre o que passava
dentro de mim com as pessoas que estavam comigo. E
eram muitas. Sempre estive rodeado de afeto mas nunca
me senti con-fortável para expor algumas ideias.
Todavia, a cada linha que percorria, aliviava-me a
alma. Descarregara um peso que teimava em acumular.
Com o tempo, tornava-se cada vez mais comum transferir
meus pensamentos para o papel. Qualquer ideia solta vira-
va verso. Logo já era prosa. Não era intencional. Quando
logo vira, já estava transcrevendo tudo que se passava em
minha mente e principal: em meu coração.
Dedicando-me à escrita tive um aprendizado: não
22
tinha dom para escrever, mas podia sentir, ver e imaginar...
O que, pra mim, valia muito mais.
23
3x4
24
O que tem de mais bonito dentro de mim
São estas letras laranjas azuis e amarelas
Belas lavandas que respiram as flores
Suaves palavras que sorriem disfarçadas
Amoras, aromas e amores
25
LIRISMO?
DOS
LOUCOS!
POR
FAVOR!
26
Iluminuras
Eu: de A a Z
Adjetivo romano soberano e
imponente dos anjos, dos santos, da
cruz. Amém.
27
Vingadora
Vai
Tra tra tra
Tra tra tra
Tra tra trabalhar
Po!
28
(...)
(...)
29
Morri de amor
30
Mais um sábado e Cristina procurando um vestido
inédito para a noite. Enrolada na toalha, perdeu o equi-líbrio
quando deu um passo alto para subir na cama e al-cançar a
prateleira mais alta do seu guarda-roupas marfim.
Trilhou o lençol com pés encharcados pós-banho e
respingou gotas no espelho ao secar o cabelo. Ouviu al-
guém bater à porta da suíte, apressando.
Gritou num tom de verdade que estava quase
pronta e pulou dentro de alguma calcinha especialmente
selecio-nada para noites em que alguém possa vê-la.
Demorou em apertar a alça do sutiã (sempre tem problemas
em colocá-la devidamente), demorou em achar um sapato e
demorou mais ainda para conseguir deixar o cabelo
razoavelmente aceitável, assim como a maquiagem. Batem
novamente à porta e ela diz que está indo.
Mas na mente berra uma voz desesperada:
40
Querida Saudades,
42
um dia
quem sabe
a gente se esbarre
e tu me surpreendas com um
Sim
e assim
a vida
em mim
Enche!
e teu beijo
se for
como nos sonhos
é molhado
e arriscado
43
Não me deixe esquecer
as nossas poesias,
os nossos versos.
que talvez nem rimem
mas constroem poemas
tão míopes e tão certos
44
dormi com o lápis na mão
45
Já passavam das sete horas e nada de ele aparecer.
Pra variar, seu atraso não me é surpresa. Porém, confesso
sentir certo medo, afinal, é a primeira vez que me faz
espe-rar desde que voltamos a nos ver.
Ainda não era noite, mas o sol já começava a fazer
o seu último ritual e eu estava ali naquela rua deserta à sua
espera. Até que, para minha alegria, vejo seu carro dobrar
a esquina.
Respiro aliviado.
Entro no carro, ele fecha os vidros negros para que
ninguém nos veja e nos olhamos como se fosse a primei-
ra vez. Era tão bom sentir novamente tudo aquilo. Sentir
como se cada segundo com ele fosse como o passado.
Percorremos a cidade pelas ruas menos movimen-
tadas, fazendo fofocas sobre nossos dias, rindo da cara de
algumas pessoas e – tão – felizes. Até parece que não
haví-amos trocado mensagens pelo celular durante todo o
dia, descrevendo até o que acontecia quando cada um ia
ao banheiro.
Eu, que de tudo ao meu amor venho sendo aten-
46
to, rindo o seu riso ou derramando o seu pranto, estra-
nhamente o senti distante e pensativo. Não estava falante
como ontem ou em qualquer um dos dias anteriores.
Ele chegou à esquina da minha rua e parou o car-
ro. Entrei e saí sozinho do meu apartamento, verifiquei se
realmente não tinha ninguém em casa e dei o passe-livre.
O encontro foi no quarto. Não podíamos correr o
risco de sermos vistos juntos.
Hoje foi diferente. Ele não chegou correndo, tran-
cando a porta e me enchendo de beijos que estalavam na
testa. Ou então me arrastando para tirar o suor da rua em
um banho quente. Ele deitou e pediu para que eu o abra-
çasse.
Fiz.
Podia sentir seu coração bater forte. A cada batida
de sua caixinha muscular, o meu dava um suspiro. Ou um
grito. Ou mais do que isso. Podia senti-lo querer voar
pela minha boca e arrancar aquele nó na sua garganta.
Acendi um cigarro e ofereci outro. Passei o isqueiro
e o vi tragar lenta e profundamente.
Não conseguia entender o que estava acontecendo.
Hoje seu celular não tocara; pelo contrário, permaneceu
desligado por toda a noite. Hoje ele não sentiu fome;
ficou calado, abraçando.
Eu estava tão confuso que podia ver o redemoinho
de dúvidas que girava na minha mente. Não sabia o que
estava acontecendo. O que foi que eu fiz?
47
Todo aquele amor guardado estava finalmente sendo
colocado para fora. Estávamos conseguindo manter esse
segredo do mundo. Nossos sentimentos estavam virando
planos concretos para o futuro, mas eu o conhecia e sabia
que, a partir daquela noite, alguma coisa estava para mudar.
Resolvi o questionar e saber o que o perturbara.
Ele não falou nada. Pelo contrário, levantou, agarrou os
sa-patos jogados no canto do quarto, apanhou a carteira e
a chave do carro de cima do criado-mudo e apenas disse:
— Vem.
50
Das lentes, o aumento.
Foco e malícia; película cinematográfica.
Uma pena, tinta e forma.
São metáforas da vida.
51
Mais do que quero, venero. Preso numa liberdade tragada
tão cheia de prazeres e liberada ao suave veneno que desce
queimando o ventre em uma dose, apenas. Alma gentil,
apresenta-se. Destina-se ao céu límpido tão escuro quanto
sua carga - descarregada. Surge como um clarão imenso,
hipertenso. Meus rabiscos mal traçados proclamam divin-
dade;
Tão sujos.
No acaso, por acaso, percorrem linhas inocentes, ironica-
mente, tentando levar-me a um alguém distante e inatingí-
vel que foge e entrega-se a uma festa de funeral circense.
52
Um buquê de girassóis é só um caixão que carrega
um cadáver. Flores, quando arrancadas do pé, morrem.
Há pessoas que mantêm em vasos, para decorar a
casa, flores cortadas dos pés. Sabem que estão mortas,
mas tentam aproveitar sua beleza.
****
53
percebia, que ao fechar os olhos e reviver aqueles
momen-tos, ela apenas estava regando o vaso e
preservando péta-las mortas por mais tempo. Clara
precisava, agora, apenas fechar os olhos e aceitar que os
girassóis de sua vida estão mortos. E acompanhar,
fortemente, as pétalas caírem uma a uma.
A cada pétala que cai, a dor da próxima queda será
menor. E Clara não precisa preocupar-se. Ela não está so-
zinha.
****
****
Ele que teve azar. Talvez não fosse a hora de ele ser o
cara mais feliz do mundo. Talvez não fosse a hora de ele
encontrar seu verdadeiro eu. Se ele tivesse coragem de
trocar as lentes que o cegavam diante daquela menina clara
tão cheia de vida, querendo dividir-se e desdobrar-se em
prol dele, veria que ela realmente o conhecera. Ela sabia
que, por detrás daquele sorriso cafajeste, vivia uma risada
engraçada e inocente de um moleque. Ela sabia que ele era
capaz de ser um amigo, mesmo daquele jeito meio torto.
56
Sabe quando uma criança se perde da mãe no meio de
uma multidão? O desespero toma conta dessa pequena vida
e o medo é perder-se e nunca mais encontrar o seu único
ponto de equilíbrio e segurança. E então, quando essa
criança acha que nunca mais terá paz em sua vida, ao longe
avista seu pai que lhe abre os braços para que ela possa
correr e ter o abraço mais aliviado do mundo. Então, era
assim que Clara se sentia diante de André. Somente com a
presença dele ao seu lado sua loucura se acalmava.
Durante muito tempo, desde que a poeira levantou
e Clara perdeu sua obsessão na multidão, pensou que
uma hora a poeira fosse baixar e ele estaria ali. Mas a
poeira tocou o chão e a garota chorou: ele havia sumido.
E dessa vez, se ela deixar, para sempre. Pois ela sabe que,
na verda-de, ele nunca esteve ali.
Ao falar disso tudo com seus amigos, Clara não
der-ramou nenhuma lágrima. Seu corpo mantinha-se
firme e forte enquanto sua alma esperneava e debatia-se
ao chão feito rapaz pequeno.
— Clarinha, o ser humano, em meio à toda sua
confiança racional, raciocina em todos os momentos.
Exceto quando enlouquece. A loucura foge aos padrões –
filosofou Louise em tom confiante.
— Concordo, prima! – disse Vicente, convencido
pelas palavras da amiga – se não domares tua loucura, se-
rás domada por ela.
Clara ouviu as palavras dos amigos e calou-se por al-
57
guns segundos, enquanto olhava a cor azul oceano de suas
unhas e pensava, quando compartilhou sua conclusão:
— Mas, gente, minha loucura é apenas amor.
— Não. Isso é obsessão. E por isso que é loucura –
terminou Vicente, enquanto acendia um cigarro.
****
58
Este sorriso
me acalma
e cura
a minha alma
o teu jeito todo manso e comportado
a tua boa educação e as meninices
me encantam
continue aqui
como for
como quiser
mas
não se vá
59
— tudo bem ser
contraditório disse
60
Uma xícara e meia de café, alguns cigarros e um
incômodo profundo que me atordoava. Parecia que, de
repente, já não me encaixava àquele lugar tão particular-
mente desapropriado a mim. Apaguei as luzes da casa,
deitei-me do lado direito da cama e segui a vida metódica
que estávamos levando – a programação da tevê aberta e
aquele travesseiro vazio e afundado ao meu lado.
O tempo passava no relógio e uma dose de
corrosão atropelava minhas artérias. Palavras presas na
garganta e nenhuma perspectiva de que fosse proferi-las.
Já não me interessava mais.
Acordei com o barulho do carro estacionando na
garagem. Mantive-me com os olhos fechados. Coragem é
um estado de espírito que vem como a maré. A
movimen-tação na casa mexia com tudo o que gritava em
meu eu. O diálogo dispensava qualquer espécie de
linguagem. Dei-xávamos que as paredes falassem por nós
e que o eco do silêncio nos desse as respostas.
Eu sabia que os dias como este o deixavam num can-
saço físico e mental elevado. O travesseiro já preenchido,
61
assim como todo o outro lado da cama, me desconfortava
ainda mais. Não havia mais nada ali, só um abismo.
Fixei meu olhar nele, adormecido. Procurava ali res-
quícios da admiração que uma vez sentira. Remexi todo o
velho baú de memórias, construído e reconstruído, ten-
tando não quebrar nenhum outro pilar ou arrancar algum
caco colado. Vieram-me lembranças de restos de felicida-de.
Aqueles momentos que deveriam ter durado para sem-pre.
Não fossem os fantasmas do passado, frios e meticu-losos,
tudo estaria em harmonia. Eu não sabia exatamente se a
desarmonia me pairava ou nos pairava. Cicatrizes tão
visíveis no interior tiravam-me a lucidez. Talvez não fosse
ele o culpado. Outras marcas estavam aqui. Deixaram um
borrão que atrapalhava a visão.
Encharquei-me, deitei lentamente e dormi.
Tinham crianças brincando em algum lugar que não
conhecia. Era um parque, destes de bairro. Corriam e
gritavam por todos os lados. Fizemos brincadeiras de roda,
vestindo traje cítrico. O gramado exalava.
Surpreendentemente, um beijo. Idêntico ao da primeira vez.
Aquele segundo de eternidade voltou a se repetir. Uma
palha de esperança incendiou. Mas as crianças olham, não é
o momento. A razão ficou para trás. Uma porção de
dúvidas; realidade e imaginação. A negritude do quarto
voltando a tomar conta da minha consciência e o sabor de
seus lábios, antes do outro lado do abismo, já me afogavam.
Delírios e arrepios.
62
As paredes gritavam, ensurdecendo-me. O eco no
vão dos travesseiros. O sabor daquela xícara e meia de café.
O despertador soou. Levantei-me. O travesseiro
va-zio e afundado.
63
Chamas
satisfação
sentir poder
tua luz
meu brilho
teu olhar
intenso
tu
meu inferno
64
Era como se o mar saísse pelos meus olhos. Os
sen-timentos vinham com a maré, no vai e vem das
ondas. E logo se dissolviam ao vento, carregado e fraco.
Carregado por um peso acumulado, deixando minhas
forças afoga-rem-se nas águas agitadas que escorriam em
minha face. Vinham fortes e rebeldes e aos poucos
perdiam as forças até que, suavemente, beijassem as
areias. E ali se refugia-vam, procurando teto.
Eu já não podia sentir suas areias brancas,
protegidas fator 30. Já não sentia suas folhas, tão macias e
aparadas, cobrindo seu rosto. E muito menos seu sol,
quente. Já não podia ouvir o som do seu vento, dotado
daquele sotaque interior. Metaforicamente falando, você
era como minha praia, cheia de luz. E aquela ilha, tão
distante de mim, é o seu coração.
Dizem que sofrer é uma opção. Longe de mim.
Quando há dor, impossível reter o sofrimento. Imagine uma
ferida aberta, jorrando sangue. Não dá para ignorá-la e
seguir vivendo. É preciso fazer um curativo, tomar algumas
drogas para fazê-la amenizar e, então, cultivar cuidados
65
para evitar a dor. Os antigos sugerem que tratemos com
água do mar. E por isso elas continuam a escorrer das
minhas meninas castanhas, esperando fazer parte daquela
paisagem.
66
Ininterruptamente doerá.
Como uma ferida aberta
na imensidão dos meus maiores delírios.
E lá no fundo
Sempre haverá um abismo o qual me atirei.
Na estrada, por uma miragem infinita eu ei de passar.
Tudo feito para amantes.
E estarás lá:
A profunda dor em minha felicidade.
O maior sofrimento dos meus dias de glória. Haverá uma
fenda aberta em que espiarei o futuro; como uma brecha
visível
e risível
mas impossível de ultrapassar.
67
Continuemos a dançar sobre os destroços.
68
Perfil do Tinder
69
It’s Match!
70
O relógio biológico de Catarina tocou. Sentou-se à
cama e o quarto mantinha-se escuro, visto que as cortinas
continuavam fechadas. Pôs os pés no assoalho frio e dei-
xou a cama desarrumada.
Com os cabelos embaraçados e o pijama rosa claro
– presente de sua mãe no último aniversário – desceu as
escadas do chalé. No aparador, encostado na parede no
canto da sala, havia porta-retratos empoeirados com ima-
gens de pessoas felizes como em revistas.
À cozinha, encheu uma xícara de água, programou
o micro-ondas para esquentá-la e misturou o pó do café
solúvel. Acomodou-se no sofá, tentando aquecer seus pés
nas almofadas de canto. Os grilos e os pássaros cantavam
lá fora.
Domingos não são mais dias em que a família se
reúne para um farto almoço na casa de sua avó. Muito
menos são dias para dar risadas à beira do lago. Domingos
são dias de nada. O tempo passava lentamente pelo relógio
71
enquanto Catarina vagava por entre os cômodos da casa
tentando desviar das peças de roupas espalhadas ao chão.
O chalé em que Catarina mora fica no centro de um
verde terreno. Vidraças altas e largas fazem-se paredes.
Madeiras vistosas compõem os pilares de sustentação. Os
banheiros e a cozinha têm um acabamento suavizado com
tijolinhos à vista. O telhado, inclinado, dava um toque rús-
tico. A casa havia sido projetada pelo seu falecido pai que
não teve tempo para vê-la erguer-se.
Todas as cortinas mantêm-se fechadas, para que a
claridade fique do lado de fora de sua vida. Esquentou
res-tos para o almoço.
Enquanto mastigava, ligou o rádio em busca de
qualquer coisa que tirasse a felicidade dos pássaros da sua
audição. Aquela música tocou. A melodia invadia sua alma e
desafiava seus instintos. Voz e violão que eram capazes de
fazê-la transportar-se para aqueles dias de cor e pé-de-
ouvido. Largou os talheres e dedicou exclusiva atenção para
aquele sussurro memorial que a fizera se arrepiar da cabeça
aos pés desde a primeira vez que ouvira.
Jogou o prato na pia, sem nem ao menos terminar a
refeição. Aproximou-se das cortinas e esticou seus braços
para abri-las. Repetiu o movimento em todas elas. O dia
cinza lá fora trazia a sensação de nulo. Aquela cômoda sen-
sação de que é melhor ficar ali trancada, esperando anoite-
cer, a ter que acostumar-se com o preto e branco celeste.
Deitou-se de barriga pra cima no tapete,
72
chacoalhando os pés para um lado e para o outro.
Contou cada tábua do teto de trás pra frente e de frente
pra trás. Incomodada, arrastou-se até a estante de livros e
tirou qualquer antologia poética, mas espirrou. Levantou-
se e debruçou-se sobre a vidraça lateral direita para
observar o nada lá fora. Viu um vaso quebrado. Arrastou
seu dedo pelo vidro e depois o limpou na calça de seu
pijama cor-de-rosa. Um rastro preto ficou ali cravado.
Observando a poeira em suas vestes, espalmou suas
mãos com violência e rapidez nos vidros da sala. Espirrou
novamente. Fixou seu olhar em suas palmas e viu a negri-
tude tomar conta das linhas. Aplaudiu a desordem de sua
vida.
Catarina marchou até a lavanderia e, enquanto o bal-
de enchia, procurava entre os produtos de limpeza, joga-dos
no canto, algum que lhe servisse. Pegou uma camiseta da
última eleição e, munida de água e sabão, prostrou-se de
joelhos às paredes da sala e pôs-se a limpá-las. Esfregava
com tanta força que sentia seus braços pedirem socorro.
Mas eles precisavam correr riscos para salvar outra vítima.
As marcas da sujeira iam saindo das paredes
transpa-rentes. Seu pijama já imundo. O suor que escorria
mistura-va-se à essência do pinho.
Exausta, atirou-se ao chão e recostou-se na lateral do
sofá. O rádio trazia novas composições. Não acreditava no
que seus olhos estavam vendo: um azul no céu e raios de sol
cobrindo todos os seus móveis. Havia um dia inteiro
73
esperando por ela lá fora. Era a imundice das suas
vidraças que não a deixava ver.
— Desamarra!
Desamarra tua cabeça
Dá liberdade pros teus
voos E pro teu coração
74
Se Brás Cubas estivesse aqui, ele já teria me dado
um piparote! Ou uma machadada na cabeça. Como é que
eu não conhecia esse seu tom irritante e provocante de
falar o que pensa e o que sente?
Eu imaginava sim os livros nas prateleiras. Cheiro
de novo. A textura do papel. A capa e, lá, bem grandão, o
meu nome! Estampando em um lindo livro. Para que
negá-lo? Eu sempre fui um sonhador tipo máster, com o
ego mais inflado do mundo e um grande e espalhafatoso
foguete de lágrimas. Mas, tá! Um livro. Mas um livro que
trata exata-mente sobre o que, amigo?
Durante muito tempo, mais precisamente quando
eu decidi que SIM, eu seria professor e trabalharia com
lite-ratura, eu só pensei nesta ideia. Eu sou isto. Então,
tudo o que vinha na minha cabeça, no meu coração, que
descia como uma inspiração – desfie da irracionalidade –
ia para o papel e tá aí! Que moleque arteiro.
Expressão! Liberdade! Eu cheguei a pintar as paredes
de casa com guache, só porque eu achava que eu poderia
fazer qualquer coisa, ultrapassar os limites, fazer incoeren-
temente e inconscientemente, para expressar o que sinto.
76
Tudo o que te inspira é uma pira.
77
Ó
78
Quando o trem sai dos trilhos
a tempestade custa a passar
e as energias são consumidas
ligeiramente nossa visão fica turva à
realidade Mergulhamos de cabeça
nas profundezas frias dos nossos sentimentos
nos defeitos das pessoas na mesmice dos dias
Fica daí
difícil a tarefa da felicidade
Sorrir dói
79
Não espere nada além do que possa dar. Pare de fazer
cobranças, de enxergar um eu que não existe faz tempo.
Tenho limites para tudo, menos para as coisas que eu
realmente quero. Sou movido pelas minhas vontades e
hoje posso querer estar ao seu lado, mas amanhã talvez
prefira ficar em casa assistindo Netflix; isso não muda o
que sinto. Tente achar uma alternativa válida, uma opção
viável. Crie aspectos interessantes e irresistíveis. Jogos me
atraem, segredos me dominam e é muito fácil balançar o
que há em mim. Mas nunca esqueça de que sou
imprevisível e que, dependendo das circunstâncias, eu
posso simplesmente virar as costas e voltar pra casa.
80
O mundo nem sempre é justo. Justiça é realmente algo
muito relativo. Mas há apenas uma coisa da qual
podemos ter certeza que estaremos sempre vulneráveis:
às consequências.
81
Quando a tempestade tenta te carregar com ela e tu
não encontras um lugar firme para te segurar: abra os
braços, jogue-se ao vento e deixe que a chuva trilhe seu
caminho. Uma hora a tempestade vai embora, as nuvens
desaparecem, e o sol volta a brilhar.
É preciso não temer a tempestade. Ela lava a alma
e carrega as folhas do chão. Ela leva as lágrimas com a
enxurrada.
Quando o tempo se fechar, lembre-se que uma
hora ele se abrirá. Então, tire a esperança do bolso que
ela o ajudará na árdua espera.
****
— Alô?
— Pensei que não me atenderia.
— Pensei que não me ligaria.
— Eu preciso falar com você.
83
Ela sabia as consequências.
****
85
Afastaram-se alguns centímetros e analisaram o
medo um do outro através do paladar.
O gosto dos seus beijos trazia a insegurança que o
casal não queria ter: aquilo poderia não ser certo.
Trocaram carinhos.
Seus corpos dançaram o blues dos apaixonados.
A melodia movimentava cada incerteza que os
levara até ali.
87
Preciso de uma coberta quentinha, um cantinho pouco
iluminado, um chocolate e um coração ardente. O que
vem depois é inspiração.
88
Facebook
não é felicidade
é truque
89
Vivemos no século XXI. Na geração do sexo sem
compromisso, da liberdade de expressão e do “ser
diferen-te é normal”. Somos uma geração livre, egoísta,
do cada um por si e Deus no comando. Cada vez
começamos mais cedo a nos relacionar, sair da toca, cair
no mundo e que-brar a cara.
Todo mundo já acompanhou de perto a história de
um casamento fracassado, já teve algum tipo de decepção
e já esperou demais de alguém.
Tá todo mundo com medo: medo da entrega; medo
do desejo; medo de se sentir nas alturas; medo da queda.
90
91
Sinceridade faz de tudo mais compreensível.
92
Cara ou tapa
Sou permanente.
Não dá mais tempo pra rascunhos.
Um arranhão;
de cada leão que você matou.
93
Rita; Ritinha; Maria Rita. Ela morava numa casa
ver-de na beira da estrada. O gramado que descia do
outro lado abrigava um rio de peixes longos e longínquos.
A imensa árvore, à esquerda da casa, tinha galhos
compridos que sombreavam por toda’quela casinha-verde-
herança-de-família. Nos dias de chuva, Ritinha tinha que
trancar-se dentro de casa e contentar-se com o cheiro da
água que refletia por todo o verde de fora daquelas paredes.
Ontem choveu. Choveu uma chuva gelada que
fazia as co’redeiras do ‘rio co’rerem ‘rápidas e ‘rasteiras.
Hoje, o sol sorri feliz e animado.
Os irmãos de Ritinha dormem. O avô esfola os co-
tovelos no parapeito da privilegiada janela do quarto. O
assento do balanço de madeira na imensa árvore, à
esquer-da da casa, ainda marca a água absorvida do dia
anterior. Ritinha sentou-se, umedeceu seu jeans e pôs-se a
balançar no balanço que esticava duas cordas fortes e tão
longas que faziam com que ela se sentisse voando.
O balanço, que havia sido construído por seu pai
nos fundos da casa, já arrebentara diversas vezes. Mas a
94
mãe de Ritinha, que era boa moça, colocava tudo no lu-
gar. Balançava tão alto que o voo de Ritinha a levava a
ver o horizonte das águas que formavam ondas verticais.
O azul-bandeira contrastava com o verde-celeste da copa
das árvores.
Quando o balanço pendulava para trás, Rita batia
num galho que lhe cutucava o passado nas costas. Mas
va-lia a pena, pois a visão do paraíso à sua frente e aquela
sensação de voo que lhe causava borboletas no estômago
eram únicas.
Ela continua a balançar. E a intensidade do voo de
Ritinha e da dor do galho de trás da árvore, à esquerda da
casa, que inflamava o passado nas costas de Rita, também.
Rita percebeu que precisa parar de se balançar na-
quele pêndulo que já lhe causa dor. E, no momento do
voo, largou-se ao vento em direção ao céu.
Com os pés no chão, Maria Rita foi andando len-
tamente até o balanço e, com línguas afiadas, arrebentou
aquelas cordas que enforcavam o passado nas suas costas.
Maria Rita resolveu começar uma caminhada e,
hora ou outra, senta-se à beira do rio de peixes longos e
longín-quos para admirar a paisagem.
95
Estacionei o carro na garagem e fechei o portão
pelo controle. Abri a porta do meu apartamento e
coloquei a caixa pesada de compras no balcão da cozinha.
Prendi o ticket do mercado na geladeira, coloquei no
armário um dos vinhos que comprei e abri o outro.
Despejei uns cinco dedos dele numa taça qualquer e
tomei tudo em um úni-co gole: tingindo meus lábios e
descendo suavemente pela minha garganta.
Coloquei as cervejas no congelador e tirei da caixa
os dois livros que também comprara. Sentei-me em uma
das altas banquetas e debrucei-me na bancada que divide
a cozinha e a sala. Acendi um cigarro, liguei o home
teather pelo controle remoto e iniciei minha leitura.
Livros de crônicas são leituras estranhas: as personagens
vivem a mesma vida que vivemos, passam pelas mesmas
situações que passamos e estão estagnadas nessa
melancolia que se instaurou em minha geração.
A campainha tocou. Mas não esperava por ninguém.
O porteiro também não anunciou. Antes de abrir a porta,
conferi pelo olho mágico, e não havia ninguém do outro
96
lado. Com receio, girei a chave e abri a porta devagar. O
andar estava vazio. Havia no tapete um pequeno buquê
de lírios. Lírios me causam delírios! Segurei as flores e
senti seu perfume invadir minhas entranhas.
Não havia nenhum cartão, nenhum bilhetinho, ne-
nhuma pista do remetente. Apenas lírios! Lindos lírios
cor-de-sol!
Por alguns instantes deixei que a curiosidade
tomas-se conta de mim. Mas descobrir o dono deste
gesto tão lindo não seria minha nova missão de vida. Se
quisessem que eu soubesse quem era, teriam esperado
que eu abrisse a porta. Coloquei as flores num vaso, enchi
minha taça de vinho e voltei à minha leitura. Agora com
lírios encantan-do meu olhar.
Nunca havia recebido flores antes. Achei que só as
mandariam junto com aquela chuva fininha que peneirará
o meu velório.
97
Um coração generoso é um operador de ofertas para
verdadeiros milagres.
98
Inspiração não vem com o vento, não tem hora marcada,
não basta ligar a televisão. Inspiração acontece. Acontece
como quando você vê aquele amor platônico na rua, como
quando você se sente sozinho ou tão feliz a ponto de
explodir. Acontece como quando o celular vibra, a Coca-
Cola toca os lábios, a montanha-russa começa a subir ou
como quando você está tão ansioso que sua cabeça ferve.
Inspiração é questão de momento. Inspiração para compor,
expor, recompor. Inspiração para pintar, fantasiar, declamar.
Inspiração para proclamar e amar. Inspiração é algo muito
mais complexo do que se pode imaginar; é justamente isso o
mais inspirador.
99
Tinha um poeta no meio do caminho
No meio do caminho tinha um poeta
100
Às vezes te enxergo falar
Meu olhar descansa em teus olhos
Quando tu me falas tuas andanças
E em minha cabeça eu fico a vasculhar
Algumas palavras bonitas que eu possa te dar
Então elas me somem e pra ti sorrio
Enquanto elas me sobem num arrepio
Quando quase que eu penso em te contar
Mas escolho por guardar nas minhas lembranças
Este tudo que agora eu tenho
O lindo sorriso do teu olhar
101
Embriaguei-me de tudo:
foi vinho;
foi virtude;
foi poesia.
pqp, hein?
Cantei
Falei
Gemi
Tudo na mesma oração.
102
Sou flor de cemitério;
Os fantasmas fazem vigia meus pensamentos.
Aqui só sobrevivo;
Procurando fugir da lição tida.
Sobrevivente na vida.
103
Siga o cometa
É lá que estarei
Atravesse a trilha dos sonhos
Encontre as ondas que sorriem nas areias
E lá estarei
Coberto sobre o manto negro
Que nos envolve
Entregue aos grãos que reluzem no infinito
Lá estarei
104
É irônico como o sentimento de sofrimento da dor cessa
quando a gente decide que ele deve esgotar-se. Perceber
que eu só queria atrair sua atenção de alguma forma, fazer
com que sua culpa o corroesse e, depois, você viesse
pros-trar-se aos meus pés atrás de desculpas;
amedrontadas. E então, o ego domaria meus instintos e
eu proclamaria as palavras: tarde demais. Este não é você,
mas principalmen-te, este não sou eu. Ontem eu nem ao
menos sabia – mas queria saber - quem eu era e hoje já é
algo tão indiferente que, simplesmente, passou.
Amor próprio! Queira Deus que continuemos a carregá-
lo, para exclamar que nós dois fomos, apenas, como uma
chu-va em quarenta graus, que veio intensa e inesperada
e, logo, no final da tarde, foi embora, deixando espaço
para o céu rosa e convidativo abençoar o coração.
E este sou eu, proferindo minhas últimas palavras
referen-tes àquilo que foi apenas um sonho de mais uma
intensa noite de verão.
105
Sou o crepúsculo rotineiro; tempestade veraneio.
106
Uma luz se ascendeu
Num plano infinito
Brilhou sobre os homens
E iluminou sua expressão
A idade das belezas deste mundo começou
Olho fundo nos seus olhos
E me perco numa imensidão
Destes traços de musa
inspiradora Da mulher de
Francesco — que sim.
Tinha um traço sobre os olhos
O homem renascido também era humano
Mostra hesitação porque se cobra
É quando uma luz reacende
— Era seu sorriso
Que contemplava sua obra.
107
Você é dono da sua própria história, você decide se quer
ser o mocinho ou o vilão. As atitudes revelam diversos
caminhos que esta história tende a seguir. Entre pulos e
tropeços cada página é escrita. A cada vitória, um
incentivo; com cada erro, uma lição. E com a cabeça
erguida, lutar por um final feliz.
108
A chuva cessou e um clarão varreu o céu até que as
estrelas voltassem a brilhar. Amélia ocupava-se com seus
bordados: um vestido preto, que acentuava sua delicada
cintura bailarina, com paetês que enfeitiçavam seu olhar.
A festa é dela. Lá estarão todas as pessoas com
quem ela se importa e quer bem. Família, amigos, colegas
de es-cola e até aqueles a quem conheceu numa fila de
bar ou trocando verbos desaforados no trânsito.
Um banho de sais; toalha felpuda; secador de cabe-
los. Via seu rosto rosado responder a suas ações no espe-
lho e se perguntava como seria a noite. Quem iria, quem
cairia, o que a faria rir, o que a faria chorar. Ansiosa,
gosta-ria de estar lá há muito tempo.
Maquiagem pronta. Vestiu-se dos paetês brilhantes e
seu cabelo, liso e perfumado, sobrevoava seu colo nu. De
orelha a orelha, ela estampava a felicidade de ser quem é.
A festa está apenas esperando. Todos estão lá nos
seus devidos lugares e ela sabia o que fazer.
Correu para seu armário em busca do sapato que fe-
charia seu visual. Um sapato de camurça, preto. Lembrou-
109
se que ficou dias e dias esperando até tê-lo. Era seu
sonho de consumo. Um sapato lindo que a fazia crescer,
lhe dava postura e deixava seu caminhar leve, leve...
Amélia colocou em seus pés.
Mas,
estranhamente,
já não lhe causavam o mesmo conforto.
111
Publicação financiada pela Lei de Incentivo à Cultura
de Itajaí por meio do edital Meu Primeiro Livro.