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O DOCE LUAR DA PRIMAVERA

Copyright © 2016 por Guto Cruz


Grafia atualizada segundo o Acordo Ortográfico da Língua Portuguesa.

Capa
Foto e design por Karine Mendonça

Projeto gráfico
Karine Mendonça

Revisão
Cibele Louise Pruner Frahm
Natália Mendes

Ficha catalográfica
Charles Rodrigues CRB 14°/870

C957d
Cruz, Guto
O doce luar da primavera / Guto Cruz. Itajaí
(SC): Acene, 2016.
111 p.

1. Contos - Itajaí (SC). 2. Poesias - Itajaí


(SC). Literatura catarinense. II. Título.
CDU 82-34:82-1(816.4)

[ 2016 ]
Todos os direitos desta edição reservados à
ACENE EDITORA
Rua José Cândido, 598
88305-070 - Itajaí - SC
www.aceneditora.com.br
GUTO CRUZ

O D O C E L UA R D A

PRIMAVERA

aceneditora
Eu tinha quase 16 e a minha mãe
sempre dizia que, quando eu escrevesse
um livro, deveria colocar no prefácio
aquela canção do Sérgio Britto, gravada
pelos Titãs, que fala que o acaso vai me
proteger enquanto eu andar distraído.

No entanto, na verdade, meu eu-


lírico cantava versos do Nenhum de
Nós – aos prantos – soluçando aos
avessos:

Ninguém me compreendia e eu não


compreendia ninguém.
Estava decidido. A música que mamãe sugeriu seria
o prefácio do meu primeiro livro – sim, eu sempre quis
escrever um livro. Na verdade, estava na minha listinha
de 100 coisas para fazer antes de morrer. Era uma meta de
vida – desde muito antes dos dezesseis. Com Epitáfio
selecionada para introduzir minhas palavras, eu só sabia
de algumas coisas que eu deveria fazer para escrevê-lo:

a) Amar mais;
b) Chorar mais;
c) Ver o sol nascer;
d) Arriscar mais;
e) Errar mais;
f) Fazer tudo o que eu realmente queria fazer;
g) E aceitar as pessoas como elas são.

Pensando assim, concordei que, antes de qualquer


coisa, era preciso aceitar a mim mesmo, como sou.

Mas

Quem sou eu? – saudades Orkut.

Que mistério. Que busca! O Mundo de Sofia não


me respondeu. Se o único mistério é que realmente haja
quem pense no mistério, talvez não seja a hora de pensar
nas razões, mas nos fins.
E eu precisava decidir. Quem sabe fosse cedo para
um rapazinho com sol em leão – mas com ascendente em
libra – pensar algumas coisas por si mesmo e escolher
seus próprios caminhos. Entretanto, com um pouco de
insani-dade e sorte, saí andando distraído por aí,
contando que – sim – o acaso me protegeria.
Epitáfio é um pequeno verso gravado em pedras tumulares

Ana Cristina Cesar


Se me permitem sonhar,
permito-me realizar.
Naquela manhã gelada, despertei antes mesmo do
celular. O que realmente não era nada comum para uma
pessoa como eu, que não abria mão de nem um minu-to
de sono. Mas, naquele dia, aconteceu diferente: acordei
estranhamente disposto, levantei, preparei um chocolate
morno, tomei um banho quente, revisei os planos de aula,
conversei com minha gata e estiquei o edredom sobre a
cama – logo naquela noite em que havia custado tanto a
pegar no sono, planejando a viagem que faria nas férias
de fim de ano. Escolhi usar um suéter que já havia esque-
cido no armário e pensei em como fui idiota por deixá-lo
lá, guardado por tanto tempo, sendo que vestia tão bem.
Resolvi então que deixaria o carro na garagem e tomaria
um ônibus como nos velhos tempos. Deixei os fones de
ouvido na mochila, dei uma centena de passos até a
esqui-na e fiquei sentado no meu velho ponto, em frente
à praia, apenas ouvindo o barulho das ondas e
saboreando minha nicotina mentolada.
Passei a catraca e havia um banco vago na janela.
Fiquei ali admirando a paisagem. O sol beijava as águas
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de uma forma tão brusca que sua cor se espalhara por
todo o horizonte. Tudo aquilo refletia em meus olhos
cas-tanhos – naquele momento eram mel. Vários
estudantes adentravam o ônibus, e já era um lugar lotado,
mas nem sequer prestei atenção aos rostos que habitavam
o mesmo ambiente que meu corpo. Saltei no ponto mais
próximo à escola em que trabalhava e fui andando até lá.
Logo que o sinal soou, encaminhei-me em direção
aos alunos que me esperavam em fila indiana – uma das
minhas alunas tomou minha bolsa e fomos para a sala. A
manhã seguiu normal e tranquila. Como sempre, ao passar
dos minutos, a sala de aula ficava mais agitada, e, às vezes,
era necessária uma pequena elevação da minha voz.
Finalmente a manhã se encerrou e fui atrás de almo-
ço. Atravessei a rua e segui até a conveniência do posto de
gasolina – comer aquela coxinha me fazia sentir água na
boca só em pensar. Pedi duas e, claro, uma latinha de Coca-
Cola estupidamente gelada. Este foi meu almoço: fritura,
refrigerante, ketchup e solidão. Na televisão, passava esse
lixo comercial e industrial que comemos desde pequenos e
que nos fez deixar os deveres de casa para depois.
Tentei ligar para minha mãe e lembrá-la que ela
pre-cisava depositar o dinheiro do meu aluguel o quanto
antes, pois o prazo para o pagamento já estava esgotando,
mas o celular dela – pra variar – estava fora de área.
Saí dali e resolvi passar no mercadinho da esquina.
Quase fui atropelado.
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Entrei.
Peguei uma revista que trazia uma matéria de capa
sobre educação e um punhado de balas de iogurte que se-
ria o suficiente para lotar meu bolso e que,
provavelmente, durariam até o anoitecer.
Se aquelas crianças famintas não avançassem em
mim.
Aguardei na fila do caixa em que uma simpática se-
nhora estava sendo atendida. Ela parecia ter dificuldades
em contar as moedas e, ao mesmo tempo em que achei a
cena fofa, dei umas risadinhas daquilo.
Na hora em que estava sendo atendido percebi
certa movimentação estranha no mercado.
Não tive tempo de notar de quem se tratava, mas
logo ouvi gritos masculinos impondo silêncio.
PUTZ!
Eu estava no meio de um assalto!
Se fosse em meus tempos de estudante, alguns ami-
gos diriam:
“Bino, é uma cilada!”.
Três homens portando armas de fogo, usando mole-
tons surrados com capuz, renderam a funcionária do caixa
três e ordenaram que todos os clientes deitassem ao chão.
Eu não sei o que passou pela minha cabeça, como
um instinto involuntário, saí correndo em direção à porta
de saída, que estava próxima.
Depois disso, lembro apenas de um forte ruído.
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Meus joelhos, forçadamente, prostraram ao chão e
meu corpo atirou-se àquele piso branco em uma fração
de segundo.
Minhas mãos que carregavam as balinhas de iogur-
te abriram-se fazendo com que se espalhassem a minha
frente, mas apenas uma bala foi suficiente para fazer meu
sangue escorrer.
Uma bala fatal.
Os olhos reviraram lentamente e nada se passava
pela minha cabeça naquele instante. Nenhum filme con-
tando minha história; nenhuma das músicas preferidas;
ne-nhuma pessoa confiável para me pôr nos braços e
fechar meus olhos.
Nada dessas coisas que dizem os filmes.
Apenas uma escuridão tomando conta da minha
vi-são turva e uma dor que jamais senti.
Eu estava morrendo e não podia fazer nada para
impedir aquilo. Morria frustrado por ter uma morte tão
banal. Um fim tão rápido, sem nem ao menos ter opor-
tunidade para “as últimas palavras”. Aquelas palavras em
que aproveitaria para pedir perdão às pessoas que não
tive coragem, para confortar uma dúzia de gente que
choraria a minha partida.
Se eu soubesse que aquela sexta-feira seria a última
da minha vida, talvez eu tivesse dado um beijo no rosto
dos meus amigos que moram comigo antes de sair de
casa. Teria deixado separado um exemplar de O Pequeno
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Príncipe para minha mãe – assim, todas as vezes que ela o
lesse, lembraria que bastava olhar as estrelas para ouvir o
som do meu gargalhar. Se eu soubesse, teria dito para meu
irmão que mesmo em um relacionamento nota cinco, eu o
admirava – por ser um homem que nunca fui, por ter
construído uma família encantadora. Teria abraçado minha
irmã e dito que chegaria ao céu e – assim que chegasse
– mandaria o anjo mais lindo que habita o paraíso direto
para o seu ventre. Deixa, deixa. Teria ligado para meu pai
dizendo que o amo, em vez de cobrar a pensão. Se eu
soubesse, teria separado um pertence para cada amigo
querido.
Eu não fazia a mínima ideia de que justo naquela
sexta-feira (uma sexta-feira, assim como o dia que eu
nasci) eu seria assunto no noticiário das sete e inúmeras
famílias, tomando cafezinho sentadas no sofá, diriam que
a violên-cia está incontrolável – que país é esse, né?
Eu não tive nem a chance de desmarcar os
compro-missos que assumi para a semana. Ninguém me
avisou, ninguém nem ao menos alertou, me preparou.
Terminei com o corpo violado, com um suéter tão
bonito perfurado, assim como um coração, que era reche-
ado de sentimentos, e que hoje carrego apenas em minha
alma que descansa.
Não sabia que junto com aquela bala que se perdeu
naquele mercadinho de esquina, estavam se perdendo os
inúmeros sonhos que deixei de realizar, os filmes que não
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assisti no cinema, as festas que não poderia mais frequen-
tar. Perdiam-se ali, também, as ideias que não proclamei,
os pores do sol que não assisti e a chance de ter lutado
por tudo o que queria.
Eu queria tanto a estrela da manhã, as águas de mar-
ço e o vento ventando. Mas, agora, é o fim da ladeira; o fim
da canseira. Muita coisa estava se perdendo, não era
apenas uma bala perdida.
Não é justo que minha vida tenha se perdido.
Durante toda ela vivi com intensidade – justamente para
não perder nada –, agarrando tudo o que estava ao meu
alcance. Mas o que viria depois daquele instante? O
primeiro verme roendo as frias carnes do meu cadáver.

Era apenas uma pequena balinha sem açúcar.

Minha alma hoje respira em algum lugar de paz,


enquanto meu corpo descansa debaixo de tais dizeres de
mármore, adaptados do verso de Álvares de Azevedo,
suficientes para resumir tudo: Foi menino – sonhou – e
amou a vida.

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A Profecia

Viste além
do futuro.
Imaginaste gratidão a quem me salvou. E sim.
Hoje prego! Pastor de ovelhas num rebanho de versos.
Levo as palavras,
Não só Daquele
Que me curou.
A doutrina
desta dádiva
que me deixou:
— À Vida!
Maior presente
que me deste.
Minha sequela:
Vida de Poeta;
Mestre.

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Epitáfio

Devia ter:
a) complicado menos;
b) trabalhado menos;
c) visto o sol se pôr;
d) me importado menos com problemas tão pequenos;

— Ah, mãe.

20
PA
LA
VR
AS
21
De vez em quando eu me dispunha a rabiscar uns
versos, verbos, verbetes. Eram curtos, sem muito
conteúdo. Eu tentava, por vezes, escrever e descrever o
que sentia, via e imaginava. Para falar a verdade, eu sentia,
via e imaginava muito mais do que pudera escrever. Não
tinha o dom. Mas tinha vontade. Tinha necessidade.
Eu precisava me expressar de alguma maneira. Por
mais espontâneo, alegre e falante que eu fosse, tinha
muita dificuldade em conversar sobre o que passava
dentro de mim com as pessoas que estavam comigo. E
eram muitas. Sempre estive rodeado de afeto mas nunca
me senti con-fortável para expor algumas ideias.
Todavia, a cada linha que percorria, aliviava-me a
alma. Descarregara um peso que teimava em acumular.
Com o tempo, tornava-se cada vez mais comum transferir
meus pensamentos para o papel. Qualquer ideia solta vira-
va verso. Logo já era prosa. Não era intencional. Quando
logo vira, já estava transcrevendo tudo que se passava em
minha mente e principal: em meu coração.
Dedicando-me à escrita tive um aprendizado: não

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tinha dom para escrever, mas podia sentir, ver e imaginar...
O que, pra mim, valia muito mais.

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3x4

Segure este livro


Estique o braço
na direção do rosto
escolha o melhor ângulo
Sorria
Selfie.

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O que tem de mais bonito dentro de mim
São estas letras laranjas azuis e amarelas
Belas lavandas que respiram as flores
Suaves palavras que sorriem disfarçadas
Amoras, aromas e amores

São belezas tão belas


como elas que cismam rimando
e que rimam cismando
que estão pintando aquarelas

São palavras que saem assim


Numa melodia de um menino que ria
e fazia tão bonitas poesias aqui
dentro de mim

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LIRISMO?
DOS
LOUCOS!
POR
FAVOR!

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Iluminuras

Da minha geração herdo anseios


e dos compadres da semana, a liberdade.
À calmaria árcade ou engenhosa da
natureza, Um retrato irônico
e simbólico tão cru; e ousa.

Eu: de A a Z
Adjetivo romano soberano e
imponente dos anjos, dos santos, da
cruz. Amém.

O escapismo das histórias mais açucaradas


Uma descoberta que navega e caminha
Transbordando as artes confrontadas
Ela por ela; sozinha

Uma identidade livre


como o tempo
Contemporânea.

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Vingadora

Vai
Tra tra tra
Tra tra tra
Tra tra trabalhar

Po!

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(...)

Poeta gramático que esbarra na linguística


Desagua em literatura
Com toda a sua educação.
Do núcleo das Letras
Poeta acadêmico começa a misturar
Características da regra, licença e
adequação. Todos os fluxos de Clarice
Deste eu abstrato e metafórico
Dos segredos de liquidificador.

(...)

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Morri de amor

Quantas saudades, arrepios e ataques cardíacos na alma.


Franzi até o último fio de cabelo, cambaleei as pernas, es-
perneei de ansiedade. Quanta vontade de alguém – que
domine pensamentos e leve a uma realidade – leve. Que
tenha a ousadia de arrancar meus pés do chão e arrastar-
mos à outra dimensão e vivermos uma aventura daquelas
típicas dos amantes aventureiros com direito a segredinhos
e mensagens nos intervalos. De tirar o fôlego. Olho para o
relógio: o tempo não pensa em parar. Envelhecendo, as
coisas parecem menos coloridas. Mais reais. Menos fanta-
siosas. Mais conscientes; menos excitantes. A percepção de
mundo – e pessoas – vem assumindo novas formas ao
correr do tempo impetuoso. Pode ser medo, até inseguran-
ça. Mas é que: falta encantamento e deslumbre; verdade e
lealdade. Dê-me sua mão; façamos voar – e cair?

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Mais um sábado e Cristina procurando um vestido
inédito para a noite. Enrolada na toalha, perdeu o equi-líbrio
quando deu um passo alto para subir na cama e al-cançar a
prateleira mais alta do seu guarda-roupas marfim.
Trilhou o lençol com pés encharcados pós-banho e
respingou gotas no espelho ao secar o cabelo. Ouviu al-
guém bater à porta da suíte, apressando.
Gritou num tom de verdade que estava quase
pronta e pulou dentro de alguma calcinha especialmente
selecio-nada para noites em que alguém possa vê-la.
Demorou em apertar a alça do sutiã (sempre tem problemas
em colocá-la devidamente), demorou em achar um sapato e
demorou mais ainda para conseguir deixar o cabelo
razoavelmente aceitável, assim como a maquiagem. Batem
novamente à porta e ela diz que está indo.
Mas na mente berra uma voz desesperada:

ESTOU MUITO ATRASADA


ONDE COLOQUEI AS
CHAVES CADÊ MEU CARTÃO
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DEIXEI O CIGARRO NO
SOFÁ ELES VÃO ME MATAR

Chega à sala, ao encontro dos que impacientemente


esperam, disfarçando com o telefone, como se estivesse
em uma ligação muito importante (a desculpa de um es-
quema para a balada é a melhor: entradas VIP, caronas,
be-bidas etc. Eles sempre acreditam – é conveniente
acharem que Cristina atrasou-se pensando neles).
Apagam as luzes, trancam a porta, chamam o ele-
vador. No caminho até o hall, todos esticam as vestes em
frente ao espelho, dão uma passada de mãos nos cabelos,
reparam a maquiagem e observam se ficou algum detalhe
por deixar. No fim, todos sentem satisfação com o que
apresentam.
No caminho, ingerem teores elevados de álcool,
acompanhados de nicotina mentolada e das queixas femi-
ninas adaptando o salto que as sustentará durante toda a
festa – ou não.
Quando chegam não precisam enfrentar fila. Cris-
tina é crush do promoter e, por isso, tem suas vantagens.
Os seguranças sempre aproveitam para apalpar as
bundas alheias – é algo a se questionar.
A música lá dentro vibra e Cristina sente até uma
ansiedade oculta, como se fosse a primeira vez. A pouca
iluminação, a multidão dançando freneticamente, os
rapazes trocando beijos desesperados pela pista e a fila do
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bar – clássicos noturnos.
Ela, claro, antes de enfrentar a multidão vai em di-
reção ao bar pegar um drink leve para começar a segunda
etapa da noite.
Procura brechas na fila, vai discretamente se infil-
trando até alcançar o balcão e se pendura para cumpri-
mentar um dos barmans conhecidos e, quem sabe, obter
um desconto.
Enquanto aguarda sua bebida chegar, avista, lá na
ponta, uma imponente presença, vestida com camisa gola
polo tamanho M, jeans escuro (que deve ter custado caro)
e sapatos claros. Um cabelo castanho organizadamente
ba-gunçado e um sorriso limpo, largo, alinhado e
perfeitamen-te desenhado.
Aquele sorriso o denunciava.
Cristina fingiu que não viu nada, serviu-se e saiu dali
– meio transtornada. Deu um grande gole em sua birita e
achou que precisava lavar o rosto para se recompor e ter
condições de autoafirmar que não estava abalada.
Então o fez.
Caminhou em direção ao banheiro, desviando dos
corpos suados que estavam por toda parte. Executou o
ritual planejado no lavabo compartilhado por ambos os
sexos e, então, enquanto puxava o papel-toalha para secar
suas mãos ainda cheirando ao creme de erva doce que ga-
nhou da sua tia no último natal, sentiu o perfume que
fazia seu coração vibrar.
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Nada mais naquele lugar conseguia fazer seu cor-po
entrar num estado tão intenso e incontrolável quanto
aquele nostálgico aroma.
Olhou através do espelho e confirmou que aquele
sorriso tão cheiroso estava ali. Ficou em dúvida de qual
decisão tomar: deveria tornar sua presença nula ou
encher-se de ego e ser notada?
Optou pela segunda, por conveniência.
Foi quando ele disparou olhares confusos que omi-
tiam sua mistura de surpresa, espanto e felicidade ao ver
que ela estava ali.
Cumprimentaram-se apenas com o canto da boca e
menções positivas com a cabeça, logo depois seus olhares
se encaminharam ao chão e ele tomou destino ao
primeiro reservado disponível.
Cristina continuou ali intacta, em frente à pia, pen-
sando em alguma maneira de chamar a atenção dele de
for-ma mais objetiva. Agachou fingindo ajeitar o salto e
deixou que a carteira de motorista, que estava na bolsa,
caísse ao chão.
Enquanto ele veio ensaboar as mãos, Cristina ainda
arrumava o sapato.
Em seguida, pôs-se em direção à porta.
Contou mentalmente até três, como num instinto
in-voluntário, e o ouviu pronunciar seu nome.
Seu plano havia dado certo! Arrepiou-se por todo o
corpo e seu estômago ficou
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tão gelado quanto o drink que servira. Virou
bruscamente, com um jogar de cabelos hollywoodiano e
um levantar de sobrancelhas, falsamente desconfiado.
Ele: acenou portando o documento em suas mãos –
tão macias. Mãos que já haviam a tocado por vezes. Mãos
cheirosas e brancas que a fazem delirar só de pensar. Ai.
Ela: soltou um ar de surpresa, andou em direção a ele,
portou a habilitação, guardou-a na bolsa e o agradeceu.
Elegantemente, para sua surpresa, ele soltou uma
piadinha referente à época que Cristina aprendeu a diri-
gir – alegando o quanto é perigoso que ela seja realmen-te
habilitada a conduzir alguma espécie de veículo. Nesse
momento ela foi ao céu e voltou – mas seu corpo só
soube gargalhar.
Trocaram conversas bobas por alguns minutos, ali,
parados em frente ao lavabo, até ela o convidar para
acom-panhá-la à área de fumantes.
Lá puderam se sentar, apoiar em uma mesa alta,
acender um cigarro e ela pode o ouvir reclamar do mal-
estar que o odor do cigarro mentolado causava: sempre
reclamando, era encantador.

Mudaram as estações, mas nada havia mudado.

Cristina não viu seus amigos naquela noite. Não se


lembrava de mais ninguém além deles dois. Conversaram
sobre tantos assuntos, sobre tanta besteira, tanta coisa
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séria, tantos detalhes que não a permitiam prestar atenção
no mundo ao seu redor. Naquelas horas ela nem ao
menos se lembrava de que existia outra coisa no mundo a
não ser ele.
A noite ainda estava na metade quando ele disse
que precisava ir embora. Tinha uma reunião familiar pela
manhã e queria ter algumas horinhas de sono – aquelas
tradições de sua família sempre a deixaram fascinada e,
pelo visto, elas ainda continuavam depois de tanto tempo.
Ela disse que procuraria seus amigos para também
ir embora – já estava com preguiça só de pensar em
continu-ar ali sem a presença dele.
Sempre querido, ele ofereceu uma carona a ela. Fa-
lou que não via problema em deixá-la em casa e alertou
de que era pouco provável que viesse a encontrar seus
amigos em meio a tanta gente alcoolizada.
Cristina, simulando hesitar, concordou.
Correram em direção ao carro para evitar a chuva
que caía e recordaram, com risadas, das vezes que
ficavam horas no ponto de ônibus sonhando com o dia
que pode-riam dirigir.
E ali estavam eles, dentro de um carro, juntos, só os
dois.
Ela deu as instruções da localização do seu prédio e
ele seguiu, sem dificuldades.
Ficaram alguns minutos conversando em frente ao
edifício, enquanto a chuva caía torrencialmente do lado de
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fora.
Na hora do adeus, um abraço bem apertado e, da
parte dele, veio um sutil “obrigado”.
Cristina não entendeu ao certo o que aquela palavra
queria dizer.

Obrigado pela companhia?


Obrigado pela presença?
Obrigado por ter esquecido as mágoas do passado?
Obrigado por ter perdoado as inúmeras ofensas im-
pensadas de suas brigas?

Resolveu não questionar. Só continuou abraçando,


hipnotizada por aquele aroma cítrico que vinha tão
intenso do pescoço.
E, dali, saiu correndo para evitar
( x ) se molhar;
( x ) se arrepender.

Ele, educadíssimo, ficou esperando para vê-la aden-


trar o hall e seguir. Mas no caminho, ainda na calçada do
prédio, Cristina escorregou em uma poça e caiu com um
dos joelhos no chão.
Apressado, saiu do carro. Com ajuda, ela levantou e
foi apoiando no ombro dele, enquanto mancava, até a
marquise do prédio. Deu uma olhada na perna esquerda e
havia um pequeno corte, que sangrava no joelho. Os dois
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sentaram na escada do edifício e botaram pra rir: enchar-
cados.
Esse tipo de coisa só acontecia com eles, definitiva-
mente.

Cristina o convidou para subir até o apartamento,


pegar uma toalha, secar um pouco as roupas. Devia pelo
menos isso a ele.
Enquanto estava no banheiro procurando uma toa-
lha bonita para oferecer à visita, ele observava os retratos
na sala e percebeu que estava em um deles.
Lembraram-se do momento em que tiraram aquela
foto, foi em uma viagem entre amigos. Lembraram-se de
quando achavam que o para sempre nunca acabava.
Entregou a ele a toalha, que tirou a camisa e pôs a se
enxugar. Cristina ficou sentada no sofá, admirando a cena.
Era muito fora da realidade que ele estivesse ali na
sala do seu apartamento, secando-se na toalha que ela
nem havia terminado de pagar e os dois convivendo sem
ne-nhum ressentimento do passado.
Ela fez um rápido curativo no joelho que já não
san-grava mais.
Ele disse que precisava ir.
Cristina o encaminhou até a porta e, ao se despe-
direm, abraçaram-se novamente. Um abraço forte, firme,
afetivo. Podiam sentir seus corações palpitando.
Indescritível foi o momento em que seus queixos
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deixaram de tocar o ombro um do outro, mas seus
corpos continuavam abraçados.
Olharam fixamente dentro dos olhos e, depois
disso, Cristina perdeu a visão. Lembra-se apenas que foi o
beijo mais
apaixonado,
irreal,
surreal,
intenso,
vivo,
desejado
e esperado de toda a sua vida. Um beijo longo, suave,
forte e recheado de uma saudade guardada há tanto tempo.
Enquanto o beijava, suas mãos percorriam as más-
culas costas nuas, tocavam os cabelos molhados e os glú-
teos redondamente perfeitos. As mãos dele também per-
corriam o corpo dela. Os dois corações aceleravam o
ritmo e foi, sem dúvida, uma das cenas mais marcantes
que já tiveram.
Deitaram trocando carícias.
Ela sentiu a mais intensa vertigem do paraíso
naque-la noite.

É primavera. A lua sorri no céu – tão lindo. Cristina


dormiu sentindo-o em seus braços, da forma que tanto
sentia falta. Durante a noite, acordava por alguns segundos
e perguntava se aquilo era mesmo verdade. Logo fechava
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os olhos pois, caso fosse um sonho, não podia perder a
chance de que durasse, pelo menos, para sempre.

Ela percebeu alguns raios tentando invadir a persia-


na. Eles clareavam todo o quarto. Ao abrir os olhos,
estava sozinha em sua cama.
Olhou ao redor e só havia seus sapatos e suas
roupas molhadas espalhadas ao chão.
Abriu a porta do quarto e não havia ninguém ali
fora. Despedaçou-se.
Ela, que havia sonhado um sonho presente, chorou
de repente, após despertar de um sonho ausente.

Foi ao banheiro, tentou aquele ritual de recomposi-


ção novamente. Abriu a torneira e pôs-se a enxaguar o ros-
to cansado. Secou com a toalha e ao olhar para o espelho,
encontrou uma mensagem rabiscada a lápis de olho:

Meu coração estava como tua habilitação.


Você o juntou
mas estou levando comigo.
Depois do almoço te ligo
quero devolver.
Obrigado
por absolutamente
tudo.

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Querida Saudades,

Há muito não nos víamos. Foi bom te reencontrar


e lembrar os velhos tempos. Ouvir uma voz que acalma e
sentir um perfume de boas memórias.
— Sente-se aqui, conte as novidades. Quero saber
tuas últimas aventuras...
Foi muito bom lamentar teus lamentos, conhecer
um novo lado e sentir íntimo novamente.
És alguém que muito me marcou. Com certeza
uma boa lembrança, uma ótima razão para apertar os
olhos e sorrir com o canto esquerdo da boca. Jamais
pense que és alguém que eu enterrei junto com memórias
ruins; nem pensar, nem que eu quisesse.
Com o passar dos dias, tornou-se menos frequente
sua aparição em minha mente. Mas como sempre, você
continuava ali.
É bom revirar minhas fotos e encontrar você.
Se eu pudesse, não desgrudaria de ti por nem um
momento – carregaria junto a mim – até enjoar! O que
acho que seria difícil, porque, por mais que até nos estra-
nhássemos, sei que tolero todos os seus súbitos ataques.
Bem, não quero me estender muito. É só mais uma
daquelas minhas tentativas em matá-la. Saiba desde já que
vou aguardar por você. Estou no mesmo endereço, venha
me visitar.
— Escreva-me. Não pense duas vezes.
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Estarei aguardando notícias. Mande beijos para to-
dos. Em breve nos veremos novamente.
Beijos, com amor

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um dia
quem sabe
a gente se esbarre
e tu me surpreendas com um
Sim
e assim
a vida
em mim
Enche!
e teu beijo
se for
como nos sonhos
é molhado
e arriscado

43
Não me deixe esquecer
as nossas poesias,
os nossos versos.
que talvez nem rimem
mas constroem poemas
tão míopes e tão certos

44
dormi com o lápis na mão

45
Já passavam das sete horas e nada de ele aparecer.
Pra variar, seu atraso não me é surpresa. Porém, confesso
sentir certo medo, afinal, é a primeira vez que me faz
espe-rar desde que voltamos a nos ver.
Ainda não era noite, mas o sol já começava a fazer
o seu último ritual e eu estava ali naquela rua deserta à sua
espera. Até que, para minha alegria, vejo seu carro dobrar
a esquina.
Respiro aliviado.
Entro no carro, ele fecha os vidros negros para que
ninguém nos veja e nos olhamos como se fosse a primei-
ra vez. Era tão bom sentir novamente tudo aquilo. Sentir
como se cada segundo com ele fosse como o passado.
Percorremos a cidade pelas ruas menos movimen-
tadas, fazendo fofocas sobre nossos dias, rindo da cara de
algumas pessoas e – tão – felizes. Até parece que não
haví-amos trocado mensagens pelo celular durante todo o
dia, descrevendo até o que acontecia quando cada um ia
ao banheiro.
Eu, que de tudo ao meu amor venho sendo aten-

46
to, rindo o seu riso ou derramando o seu pranto, estra-
nhamente o senti distante e pensativo. Não estava falante
como ontem ou em qualquer um dos dias anteriores.
Ele chegou à esquina da minha rua e parou o car-
ro. Entrei e saí sozinho do meu apartamento, verifiquei se
realmente não tinha ninguém em casa e dei o passe-livre.
O encontro foi no quarto. Não podíamos correr o
risco de sermos vistos juntos.
Hoje foi diferente. Ele não chegou correndo, tran-
cando a porta e me enchendo de beijos que estalavam na
testa. Ou então me arrastando para tirar o suor da rua em
um banho quente. Ele deitou e pediu para que eu o abra-
çasse.
Fiz.
Podia sentir seu coração bater forte. A cada batida
de sua caixinha muscular, o meu dava um suspiro. Ou um
grito. Ou mais do que isso. Podia senti-lo querer voar
pela minha boca e arrancar aquele nó na sua garganta.
Acendi um cigarro e ofereci outro. Passei o isqueiro
e o vi tragar lenta e profundamente.
Não conseguia entender o que estava acontecendo.
Hoje seu celular não tocara; pelo contrário, permaneceu
desligado por toda a noite. Hoje ele não sentiu fome;
ficou calado, abraçando.
Eu estava tão confuso que podia ver o redemoinho
de dúvidas que girava na minha mente. Não sabia o que
estava acontecendo. O que foi que eu fiz?
47
Todo aquele amor guardado estava finalmente sendo
colocado para fora. Estávamos conseguindo manter esse
segredo do mundo. Nossos sentimentos estavam virando
planos concretos para o futuro, mas eu o conhecia e sabia
que, a partir daquela noite, alguma coisa estava para mudar.
Resolvi o questionar e saber o que o perturbara.
Ele não falou nada. Pelo contrário, levantou, agarrou os
sa-patos jogados no canto do quarto, apanhou a carteira e
a chave do carro de cima do criado-mudo e apenas disse:
— Vem.

Eu enfiei um calçado nos pés e fui atrás dele. Esque-


ci os documentos, dinheiro, celular. Tudo! Só o segui.
Entramos juntos no carro.
Naquela hora muitas coisas se passavam pela minha
cabeça. O que estamos fazendo? Podemos ser vistos! Mas
não tive coragem para quebrar o silêncio com nada além
de um suspiro.
Percorremos toda a avenida que beira o mar: mudos. Ele
estacionou o carro e fomos andando por um convidativo
deck de madeira no fim da orla. Andamos, an-damos e
andamos. Quase no fim da trilha, ele sentou em um dos
bancos e deixou lugar ao seu lado para que eu me sentasse.
Ficamos ali, observando toda a imensidão do mar
e todo o paraíso que nos cercava.
Foi então, que coçou a garganta:
— É lindo, não é?
48
Falhando a voz, concordei e peguei sua mão. Ele
vi-rou-se para mim e começou a falar:
— Já faz alguns dias que venho pensando nisso. Há
um mês, desde que voltamos a nos falar e ficar juntos, ve-
nho pensado nisso. Sabe, já não somos mais crianças, sabe-
mos aonde isso tudo pode nos levar. Tivemos tempo o su-
ficiente para conhecermos o melhor e o pior de cada um.
Nesse momento, fixou seus olhos nos meus. Eu o
encarei e me perdi dentro da negritude de seus olhos, que
dilatava suas pupilas. Seus lábios movimentando-se
calma-mente e proferindo todas aquelas palavras.
— Eu sei que estou longe de ser a melhor pessoa do
mundo – continuou – e você também não está muito perto
disso. Eu sou errado, tenho a cabeça dura e eu sei o quanto
isso o irrita. Você então, sabe exatamente como me deixar
abalado e, quando quer, não mede esforços para isso.
Uma lágrima rolou dos meus olhos. Conseguia ver
todo um breu se formando em minha volta e já enxergava
o estrago que meu coração estava prestes a sofrer depois
de tanto tempo que passei tentando reconstruí-lo.
— Não quero mais ter que passar por isso – ele fa-
lava e eu só conseguia pensar em uma maneira de evitar a
dor – você e eu, juntos, é algo difícil de dar certo. O
mundo está contra nós, as situações estão contra nós.
Voltei meus olhos para o chão e concordei com a
cabeça. Ele continuou dizendo:
— Erramos tanto e eu não quero mais isso. Eu que-
49
ro acertar dessa vez. Nada está ao nosso favor. Mas eu sei
que nós dois juntos podemos dar um jeito nisso e lu-tar
contra tudo e, principalmente, contra o pior que existe
dentro de cada um.
Reencontrei seu olhar e não conseguia mais racioci-
nar. Vendo as dúvidas gritando dos meus olhos, não
parou de falar:
— Vamos fazer dar certo? Vamos levar essa história a
sério? Como falei, não somos mais crianças e sabemos
aonde isso pode chegar. Sabemos quão felizes podemos ser
se dermos o máximo de si um pelo outro. Não quero perder
essa chance. Podemos sair juntos pelas ruas, pode-mos
mostrar ao mundo o quanto somos capazes de amar e não
devemos nos importar com o que vão achar. Desco-brimos
no mundo que preferimos estar presos dentro de quatro
paredes desde que estejamos juntos. Eu não quero mais te
perder. Eu não quero mais deixar pra trás o que sempre
esteve guardado. Por favor, deixe-me ser seu.
Abracei-o. Senti nossos corações batendo em sin-
cronia, aliviados com a garantia de um futuro juntos.
E daí o que os outros pensam? Os outros são os
outros – somente os outros.
O céu irradiava infinitas estrelas brilhantes, assim
como cada gota de sentimento que habitava os nossos
corações.

50
Das lentes, o aumento.
Foco e malícia; película cinematográfica.
Uma pena, tinta e forma.
São metáforas da vida.

51
Mais do que quero, venero. Preso numa liberdade tragada
tão cheia de prazeres e liberada ao suave veneno que desce
queimando o ventre em uma dose, apenas. Alma gentil,
apresenta-se. Destina-se ao céu límpido tão escuro quanto
sua carga - descarregada. Surge como um clarão imenso,
hipertenso. Meus rabiscos mal traçados proclamam divin-
dade;
Tão sujos.
No acaso, por acaso, percorrem linhas inocentes, ironica-
mente, tentando levar-me a um alguém distante e inatingí-
vel que foge e entrega-se a uma festa de funeral circense.

52
Um buquê de girassóis é só um caixão que carrega
um cadáver. Flores, quando arrancadas do pé, morrem.
Há pessoas que mantêm em vasos, para decorar a
casa, flores cortadas dos pés. Sabem que estão mortas,
mas tentam aproveitar sua beleza.

****

Clara sabia que a linda história de amor que viveu


com um cafajeste não passava do maior devaneio de sua
cabeça. Ela perdia horas olhando para o mar e imaginando
como seria lindo se ele estivesse ali do seu lado. Ela ouvia
belas canções, fechava os olhos e sentia novamente aqueles
momentos tão lindos – e platonicamente apaixonados – que
vivera ao lado de André. Com os olhos fechados, ela podia
novamente ver seu sorriso, o suor que pingava de seu corpo
e podia até ouvir, novamente, doces – e falsas – palavras
que ela gosta de escutar.
Clara não percebia que, quando fechava os olhos, via
apenas girassóis mortos plantados em vasos. Clara não

53
percebia, que ao fechar os olhos e reviver aqueles
momen-tos, ela apenas estava regando o vaso e
preservando péta-las mortas por mais tempo. Clara
precisava, agora, apenas fechar os olhos e aceitar que os
girassóis de sua vida estão mortos. E acompanhar,
fortemente, as pétalas caírem uma a uma.
A cada pétala que cai, a dor da próxima queda será
menor. E Clara não precisa preocupar-se. Ela não está so-
zinha.

****

O domingo de Páscoa começou cedo para quem


ainda não dormiu. O clarear do dia estampado na janela e
iluminando os olhos baixos de Clara apontavam que era
hora de acordar seu primo Vicente, que roncava de bruços.
Após tentativas eficazes de melhorar o humor do
primo, convenceu-o a arrumar-se e irem logo, afinal, os
pais de Clara entenderiam o atraso dos garotos para a via-
gem como afronta e desinteresse. E isso era tudo o que
ela não precisava no momento.
Enquanto Vicente manobrava o carro, Louise
apare-ce à porta, vestida como uma mulher fatalmente
adulta que não sabia que era.
O som dos alto-falantes foi diminuído para que os
três pudessem planejar as comemorações do aniversário de
Clara, que viria no próximo mês. Sentada no banco trasei-
54
ro do carro, Louise dava ideias mirabolantes e fantásticas
como se fosse sua própria primavera chegando.
Quando estacionaram o carro em frente à casa de
Clara, os pais da garota já os esperavam pacientemente
dentro do carro – ligado. Vicente cumprimentou os seus
tios e os desejou votos de renovação que o feriado
sugeria. Em seguida, o garoto apresentou Louise a eles,
que já a conheciam de tanto que ouviram dizer.

****

Enquanto os adultos ocupavam-se com a brasa que


queimava na churrasqueira, os garotos foram para o
quarto de Beto, que dormia em sono profundo.
— Vocês precisam me entender. É difícil falar dis-
so – disse Clara, com olhar de lamento que implorava ser
ouvido.
Beto estava usando o computador, ainda em estágio
sonâmbulo. Louise e Vicente insistiram que a garota con-
tasse a eles suas angústias. O que eles não sabiam é que ela
realmente faria, mas, dessa vez, sem suas máscaras de ga-
rota forte. Em diálogo aberto, Clara começou a desabafar a
seus confidentes os maiores anseios de seu coração.
— Eu sempre soube que o “nós” nunca existiu.
Sempre fui eu quem carregava o peso de levar sozinha a
nossa história e de não conseguir e não querer me livrar da-
quilo. E hoje, depois de dois anos e alguns meses, eu sinto
55
que precisa ser colocado um ponto final. Mas eu
realmente quero e não consigo. Acabaram-se as vírgulas,
reticências e pontos de interrogação – vomitou a garota.
Mas a sujeira dessas palavras respingou apenas nela.
Clara continuou seu monólogo, dizendo que, se An-
dré tentasse entender tudo o que ela fez durante todo esse
tempo, ele teria condições de enxergar que sua loucura
poderia ser perdoada. Se ele ao menos pudesse sentir um
pouco do que ela sentiu, perceberia o número de vezes que
ela precisou conter-se para não se atirar da janela do oitavo
andar de um prédio qualquer de esquina. Ela sabia que só se
sentiria livre desse passado tão presente em sua vida depois
que André parasse alguns instantes de sua maravi-lhosa e
maliciosa existência para perguntar-se: como será que Clara
se sente sobre isso? Mas essa ideia nem passava pela cabeça
dele. Pois, por mais doído que fosse a verdade, ela era esta:
ele simplesmente não se importa.

Ele que teve azar. Talvez não fosse a hora de ele ser o
cara mais feliz do mundo. Talvez não fosse a hora de ele
encontrar seu verdadeiro eu. Se ele tivesse coragem de
trocar as lentes que o cegavam diante daquela menina clara
tão cheia de vida, querendo dividir-se e desdobrar-se em
prol dele, veria que ela realmente o conhecera. Ela sabia
que, por detrás daquele sorriso cafajeste, vivia uma risada
engraçada e inocente de um moleque. Ela sabia que ele era
capaz de ser um amigo, mesmo daquele jeito meio torto.
56
Sabe quando uma criança se perde da mãe no meio de
uma multidão? O desespero toma conta dessa pequena vida
e o medo é perder-se e nunca mais encontrar o seu único
ponto de equilíbrio e segurança. E então, quando essa
criança acha que nunca mais terá paz em sua vida, ao longe
avista seu pai que lhe abre os braços para que ela possa
correr e ter o abraço mais aliviado do mundo. Então, era
assim que Clara se sentia diante de André. Somente com a
presença dele ao seu lado sua loucura se acalmava.
Durante muito tempo, desde que a poeira levantou
e Clara perdeu sua obsessão na multidão, pensou que
uma hora a poeira fosse baixar e ele estaria ali. Mas a
poeira tocou o chão e a garota chorou: ele havia sumido.
E dessa vez, se ela deixar, para sempre. Pois ela sabe que,
na verda-de, ele nunca esteve ali.
Ao falar disso tudo com seus amigos, Clara não
der-ramou nenhuma lágrima. Seu corpo mantinha-se
firme e forte enquanto sua alma esperneava e debatia-se
ao chão feito rapaz pequeno.
— Clarinha, o ser humano, em meio à toda sua
confiança racional, raciocina em todos os momentos.
Exceto quando enlouquece. A loucura foge aos padrões –
filosofou Louise em tom confiante.
— Concordo, prima! – disse Vicente, convencido
pelas palavras da amiga – se não domares tua loucura, se-
rás domada por ela.
Clara ouviu as palavras dos amigos e calou-se por al-
57
guns segundos, enquanto olhava a cor azul oceano de suas
unhas e pensava, quando compartilhou sua conclusão:
— Mas, gente, minha loucura é apenas amor.
— Não. Isso é obsessão. E por isso que é loucura –
terminou Vicente, enquanto acendia um cigarro.

****

O jeito é seguir. Fingindo que realmente pensa que


uma hora ou outra o destino se ajeita. Pensar é o fluxo
que sucede o fingimento. Se você pensa que algo pode
acontecer e amadurecer essa ideia em sua mente, você
será capaz de usar a razão e transportar o pensamento
para o fluxo das escolhas. E, em seguida, para o fluxo das
atitu-des. E o seu fluxo de atitudes mostra quem tu
realmente és. A obsessão de Clara por querer aquele
homem que só ela consegue enxergar que é maravilhoso
deve acabar. E, depois que ela tiver coragem de ver o
girassol morto des-compor-se, ela será capaz de abrir
espaço para plantar uma nova semente em seu vaso. E,
assim, ela conseguirá parar de fingir que cultiva plantas
vivas para então ver a semente começar a germinar.

58
Este sorriso
me acalma
e cura
a minha alma
o teu jeito todo manso e comportado
a tua boa educação e as meninices
me encantam
continue aqui
como for
como quiser
mas
não se vá

59
— tudo bem ser
contraditório disse

60
Uma xícara e meia de café, alguns cigarros e um
incômodo profundo que me atordoava. Parecia que, de
repente, já não me encaixava àquele lugar tão particular-
mente desapropriado a mim. Apaguei as luzes da casa,
deitei-me do lado direito da cama e segui a vida metódica
que estávamos levando – a programação da tevê aberta e
aquele travesseiro vazio e afundado ao meu lado.
O tempo passava no relógio e uma dose de
corrosão atropelava minhas artérias. Palavras presas na
garganta e nenhuma perspectiva de que fosse proferi-las.
Já não me interessava mais.
Acordei com o barulho do carro estacionando na
garagem. Mantive-me com os olhos fechados. Coragem é
um estado de espírito que vem como a maré. A
movimen-tação na casa mexia com tudo o que gritava em
meu eu. O diálogo dispensava qualquer espécie de
linguagem. Dei-xávamos que as paredes falassem por nós
e que o eco do silêncio nos desse as respostas.
Eu sabia que os dias como este o deixavam num can-
saço físico e mental elevado. O travesseiro já preenchido,

61
assim como todo o outro lado da cama, me desconfortava
ainda mais. Não havia mais nada ali, só um abismo.
Fixei meu olhar nele, adormecido. Procurava ali res-
quícios da admiração que uma vez sentira. Remexi todo o
velho baú de memórias, construído e reconstruído, ten-
tando não quebrar nenhum outro pilar ou arrancar algum
caco colado. Vieram-me lembranças de restos de felicida-de.
Aqueles momentos que deveriam ter durado para sem-pre.
Não fossem os fantasmas do passado, frios e meticu-losos,
tudo estaria em harmonia. Eu não sabia exatamente se a
desarmonia me pairava ou nos pairava. Cicatrizes tão
visíveis no interior tiravam-me a lucidez. Talvez não fosse
ele o culpado. Outras marcas estavam aqui. Deixaram um
borrão que atrapalhava a visão.
Encharquei-me, deitei lentamente e dormi.
Tinham crianças brincando em algum lugar que não
conhecia. Era um parque, destes de bairro. Corriam e
gritavam por todos os lados. Fizemos brincadeiras de roda,
vestindo traje cítrico. O gramado exalava.
Surpreendentemente, um beijo. Idêntico ao da primeira vez.
Aquele segundo de eternidade voltou a se repetir. Uma
palha de esperança incendiou. Mas as crianças olham, não é
o momento. A razão ficou para trás. Uma porção de
dúvidas; realidade e imaginação. A negritude do quarto
voltando a tomar conta da minha consciência e o sabor de
seus lábios, antes do outro lado do abismo, já me afogavam.
Delírios e arrepios.
62
As paredes gritavam, ensurdecendo-me. O eco no
vão dos travesseiros. O sabor daquela xícara e meia de café.
O despertador soou. Levantei-me. O travesseiro
va-zio e afundado.

63
Chamas

satisfação
sentir poder
tua luz
meu brilho
teu olhar

intenso
tu
meu inferno

64
Era como se o mar saísse pelos meus olhos. Os
sen-timentos vinham com a maré, no vai e vem das
ondas. E logo se dissolviam ao vento, carregado e fraco.
Carregado por um peso acumulado, deixando minhas
forças afoga-rem-se nas águas agitadas que escorriam em
minha face. Vinham fortes e rebeldes e aos poucos
perdiam as forças até que, suavemente, beijassem as
areias. E ali se refugia-vam, procurando teto.
Eu já não podia sentir suas areias brancas,
protegidas fator 30. Já não sentia suas folhas, tão macias e
aparadas, cobrindo seu rosto. E muito menos seu sol,
quente. Já não podia ouvir o som do seu vento, dotado
daquele sotaque interior. Metaforicamente falando, você
era como minha praia, cheia de luz. E aquela ilha, tão
distante de mim, é o seu coração.
Dizem que sofrer é uma opção. Longe de mim.
Quando há dor, impossível reter o sofrimento. Imagine uma
ferida aberta, jorrando sangue. Não dá para ignorá-la e
seguir vivendo. É preciso fazer um curativo, tomar algumas
drogas para fazê-la amenizar e, então, cultivar cuidados

65
para evitar a dor. Os antigos sugerem que tratemos com
água do mar. E por isso elas continuam a escorrer das
minhas meninas castanhas, esperando fazer parte daquela
paisagem.

66
Ininterruptamente doerá.
Como uma ferida aberta
na imensidão dos meus maiores delírios.

E lá no fundo
Sempre haverá um abismo o qual me atirei.
Na estrada, por uma miragem infinita eu ei de passar.
Tudo feito para amantes.

E estarás lá:
A profunda dor em minha felicidade.
O maior sofrimento dos meus dias de glória. Haverá uma
fenda aberta em que espiarei o futuro; como uma brecha
visível
e risível
mas impossível de ultrapassar.

67
Continuemos a dançar sobre os destroços.

68
Perfil do Tinder

Sou do mar e das ondas que beijam as brancas areias. Sou


das tempestades, do sereno e luz da lua. Todas as melo-
dias me embalam, todos os ritmos me seduzem e todas as
pessoas me são especiais. Sou da música, da literatura, da
fotografia, da arte e minha vida é uma oração e uma
missa; uma bela comunhão pelos olhos e pelos ouvidos.
Ando por aí a procura de uma brisa suave que me invada
a alma, uma aventura que tire meus pés do chão e uma
calmaria que me afague nos dias nublados.

69
It’s Match!

70
O relógio biológico de Catarina tocou. Sentou-se à
cama e o quarto mantinha-se escuro, visto que as cortinas
continuavam fechadas. Pôs os pés no assoalho frio e dei-
xou a cama desarrumada.
Com os cabelos embaraçados e o pijama rosa claro
– presente de sua mãe no último aniversário – desceu as
escadas do chalé. No aparador, encostado na parede no
canto da sala, havia porta-retratos empoeirados com ima-
gens de pessoas felizes como em revistas.
À cozinha, encheu uma xícara de água, programou
o micro-ondas para esquentá-la e misturou o pó do café
solúvel. Acomodou-se no sofá, tentando aquecer seus pés
nas almofadas de canto. Os grilos e os pássaros cantavam
lá fora.
Domingos não são mais dias em que a família se
reúne para um farto almoço na casa de sua avó. Muito
menos são dias para dar risadas à beira do lago. Domingos
são dias de nada. O tempo passava lentamente pelo relógio

71
enquanto Catarina vagava por entre os cômodos da casa
tentando desviar das peças de roupas espalhadas ao chão.
O chalé em que Catarina mora fica no centro de um
verde terreno. Vidraças altas e largas fazem-se paredes.
Madeiras vistosas compõem os pilares de sustentação. Os
banheiros e a cozinha têm um acabamento suavizado com
tijolinhos à vista. O telhado, inclinado, dava um toque rús-
tico. A casa havia sido projetada pelo seu falecido pai que
não teve tempo para vê-la erguer-se.
Todas as cortinas mantêm-se fechadas, para que a
claridade fique do lado de fora de sua vida. Esquentou
res-tos para o almoço.
Enquanto mastigava, ligou o rádio em busca de
qualquer coisa que tirasse a felicidade dos pássaros da sua
audição. Aquela música tocou. A melodia invadia sua alma e
desafiava seus instintos. Voz e violão que eram capazes de
fazê-la transportar-se para aqueles dias de cor e pé-de-
ouvido. Largou os talheres e dedicou exclusiva atenção para
aquele sussurro memorial que a fizera se arrepiar da cabeça
aos pés desde a primeira vez que ouvira.
Jogou o prato na pia, sem nem ao menos terminar a
refeição. Aproximou-se das cortinas e esticou seus braços
para abri-las. Repetiu o movimento em todas elas. O dia
cinza lá fora trazia a sensação de nulo. Aquela cômoda sen-
sação de que é melhor ficar ali trancada, esperando anoite-
cer, a ter que acostumar-se com o preto e branco celeste.
Deitou-se de barriga pra cima no tapete,
72
chacoalhando os pés para um lado e para o outro.
Contou cada tábua do teto de trás pra frente e de frente
pra trás. Incomodada, arrastou-se até a estante de livros e
tirou qualquer antologia poética, mas espirrou. Levantou-
se e debruçou-se sobre a vidraça lateral direita para
observar o nada lá fora. Viu um vaso quebrado. Arrastou
seu dedo pelo vidro e depois o limpou na calça de seu
pijama cor-de-rosa. Um rastro preto ficou ali cravado.
Observando a poeira em suas vestes, espalmou suas
mãos com violência e rapidez nos vidros da sala. Espirrou
novamente. Fixou seu olhar em suas palmas e viu a negri-
tude tomar conta das linhas. Aplaudiu a desordem de sua
vida.
Catarina marchou até a lavanderia e, enquanto o bal-
de enchia, procurava entre os produtos de limpeza, joga-dos
no canto, algum que lhe servisse. Pegou uma camiseta da
última eleição e, munida de água e sabão, prostrou-se de
joelhos às paredes da sala e pôs-se a limpá-las. Esfregava
com tanta força que sentia seus braços pedirem socorro.
Mas eles precisavam correr riscos para salvar outra vítima.
As marcas da sujeira iam saindo das paredes
transpa-rentes. Seu pijama já imundo. O suor que escorria
mistura-va-se à essência do pinho.
Exausta, atirou-se ao chão e recostou-se na lateral do
sofá. O rádio trazia novas composições. Não acreditava no
que seus olhos estavam vendo: um azul no céu e raios de sol
cobrindo todos os seus móveis. Havia um dia inteiro
73
esperando por ela lá fora. Era a imundice das suas
vidraças que não a deixava ver.
— Desamarra!
Desamarra tua cabeça
Dá liberdade pros teus
voos E pro teu coração

74
Se Brás Cubas estivesse aqui, ele já teria me dado
um piparote! Ou uma machadada na cabeça. Como é que
eu não conhecia esse seu tom irritante e provocante de
falar o que pensa e o que sente?
Eu imaginava sim os livros nas prateleiras. Cheiro
de novo. A textura do papel. A capa e, lá, bem grandão, o
meu nome! Estampando em um lindo livro. Para que
negá-lo? Eu sempre fui um sonhador tipo máster, com o
ego mais inflado do mundo e um grande e espalhafatoso
foguete de lágrimas. Mas, tá! Um livro. Mas um livro que
trata exata-mente sobre o que, amigo?
Durante muito tempo, mais precisamente quando
eu decidi que SIM, eu seria professor e trabalharia com
lite-ratura, eu só pensei nesta ideia. Eu sou isto. Então,
tudo o que vinha na minha cabeça, no meu coração, que
descia como uma inspiração – desfie da irracionalidade –
ia para o papel e tá aí! Que moleque arteiro.
Expressão! Liberdade! Eu cheguei a pintar as paredes
de casa com guache, só porque eu achava que eu poderia
fazer qualquer coisa, ultrapassar os limites, fazer incoeren-
temente e inconscientemente, para expressar o que sinto.

Essa história é boa.


Há alguns anos, quando eu estava iniciando a
docên-cia, eu levava da escola para casa potinhos e
potinhos de tinta guache, porque eu decidi que iria pintar
o corredor de casa com guache. É!
75
Um dia, uma das professoras percebeu que estavam
faltando tintas.
Eu fiquei bem quieto.
Um mistério ficou no ar.
Até hoje.

Tudo começou porque


– teve um dia –
que me deu à louca.
Eu estava sofrendo, ok? Amar também tem disso.
Sei que, em um instinto meio Vani – é, a do Rui,
de Os normais (que falou, vestida de noiva, que daria pro
primeiro que passasse) – e eu comecei a respingar tinta
guache na parede.
Vermelho.
Sangue.
E eu jogava e chorava. Atirava na parede –
branqui-nha – toda uma carga de dor e sofrimento que eu
carregara em meu coração.
Ai que deselegante, eu sei. Mas me entenda: eu esta-
va desesperado. Um sentimento desesperador de desespe-
rado invadiu desesperadamente a minha desesperada dor.

Foi assim que a pira começou.

76
Tudo o que te inspira é uma pira.

77
Ó

78
Quando o trem sai dos trilhos
a tempestade custa a passar
e as energias são consumidas
ligeiramente nossa visão fica turva à
realidade Mergulhamos de cabeça
nas profundezas frias dos nossos sentimentos
nos defeitos das pessoas na mesmice dos dias

Fica daí
difícil a tarefa da felicidade
Sorrir dói

79
Não espere nada além do que possa dar. Pare de fazer
cobranças, de enxergar um eu que não existe faz tempo.
Tenho limites para tudo, menos para as coisas que eu
realmente quero. Sou movido pelas minhas vontades e
hoje posso querer estar ao seu lado, mas amanhã talvez
prefira ficar em casa assistindo Netflix; isso não muda o
que sinto. Tente achar uma alternativa válida, uma opção
viável. Crie aspectos interessantes e irresistíveis. Jogos me
atraem, segredos me dominam e é muito fácil balançar o
que há em mim. Mas nunca esqueça de que sou
imprevisível e que, dependendo das circunstâncias, eu
posso simplesmente virar as costas e voltar pra casa.

80
O mundo nem sempre é justo. Justiça é realmente algo
muito relativo. Mas há apenas uma coisa da qual
podemos ter certeza que estaremos sempre vulneráveis:
às consequências.

81
Quando a tempestade tenta te carregar com ela e tu
não encontras um lugar firme para te segurar: abra os
braços, jogue-se ao vento e deixe que a chuva trilhe seu
caminho. Uma hora a tempestade vai embora, as nuvens
desaparecem, e o sol volta a brilhar.
É preciso não temer a tempestade. Ela lava a alma
e carrega as folhas do chão. Ela leva as lágrimas com a
enxurrada.
Quando o tempo se fechar, lembre-se que uma
hora ele se abrirá. Então, tire a esperança do bolso que
ela o ajudará na árdua espera.

****

A lua estava sendo regida por Marte. Netuno era o


astro que a inspirava. Suas fantasias e seu romantismo esta-
vam aflorando à pele. A promessa de Marte em deixar seus
desejos mais intensos fez com que ela caísse em tentação.
Aquela madrugada estava quieta – como todas as
outras. A televisão desligada e apenas a luz do corredor
82
iluminavam o apartamento de Bárbara. Os quadros, de-
salinhadamente pendurados às paredes, lembravam
outros tempos. Vasculhando suas emoções, precisava
esclarecer todas as suas dúvidas. Mas seus sentimentos
chicoteavam suas decisões pelas costas.
O lustre da sala, coberto de poeira, trazia a
lembran-ça daquele fim de tarde. Todo casal prevê viver
feliz para sempre. Mas a novela já acabou. Não foi por
desamor. Foi por um desejo: desejar – que pulsava nas
veias de um jo-vem casal à procura de si mesmo.
Restaram lembranças, tentativas, traições, ciúmes e
medos soterrados embaixo do tapete.
Ela sentia falta do perfume impregnado nos
lençóis, das roupas espalhadas pelo chão, do corpo
ocupando a cama e dos abraços a fazendo delirar. Ela
sente a sua au-sência.
Remexeu fotografias antigas que agora eram proibi-
das. Um sentimento invadiu a alma.
Redigia-se um número no celular.
Dois amantes atraídos para a mesma armadilha:
eles mesmos.

— Alô?
— Pensei que não me atenderia.
— Pensei que não me ligaria.
— Eu preciso falar com você.

83
Ela sabia as consequências.

Ela sabia que suas palavras – guardadas por tanto


tempo – seriam como um terremoto no Haiti. Haveria
mortos e feridos. Ninguém sairia ileso. Mas somente ela
poderia resolver este problema.

— Eu poderia dizer que sinto muito.


— Seria bonito da sua parte.
— Mas eu não sinto.
Deixarei essas palavras para quando cometer erros
de verdade.
Afinal de contas, eu não consigo mais ferir a minha
verdade.
— Eu ainda sinto a dor de minhas feridas. Elas
estão abertas, sangrando, pedindo perdão.
— Elas ainda fazem meu coração gritar,
ensurdecen-do-me pela falta de sangue para fazê-lo bater.
Estou anestesiada com essa história sem final feliz.

Pausa para uma lágrima. Procura um lenço na gaveta.

— E tu? Tu és meu clímax. És meu refrão. É história


que eu sempre quis contar. É novela mexicana me chaman-
do pra viver. É drama vagabundo, história de amor daque-
las de enlouquecer todos os sãos. É um monte de palavras
soltas procurando por linhas vazias. E eu? Eu sou apenas
84
um poeta melancólico que tem vergonha de dizer que não
sabe o que é perdão.

Ouve-se o silêncio perpétuo que, do outro lado da


linha, era embalado por uma respiração deprimida.

— Eu tenho fé. Eu acredito na sorte, no destino e


nas escolhas.
Eu sou uma bomba-relógio que não combina com
o tempo.
Eu sou uma flor que já preencheu muitas coroas.
E que hoje está perdendo suas pétalas por não ter
palavras suficientes para te dizer o que aconteceu.

****

Ele chegou e ela não precisou falar nada. Apenas


ar-rebatou um beijo de saudade. A boca fria do
companheiro, o qual dividiu anos de sua vida, apontavam
o susto que o levara até ali.
Afastaram-se alguns centímetros e analisaram a
alma um do outro através do olhar.
As olheiras fundas, o queixo afinado e a expressão
dele deram a certeza que Bárbara não queria ter: ele não
estava bem.
Trocavam beijos e tropeçavam nos móveis.

85
Afastaram-se alguns centímetros e analisaram o
medo um do outro através do paladar.
O gosto dos seus beijos trazia a insegurança que o
casal não queria ter: aquilo poderia não ser certo.
Trocaram carinhos.
Seus corpos dançaram o blues dos apaixonados.
A melodia movimentava cada incerteza que os
levara até ali.

Afastaram-se alguns centímetros e analisaram o po-


der um do outro através do tato.
O toque de seus dedos e a força de seus abraços
carregavam uma paixão que os faziam acreditar em
apenas uma coisa: há motivos para esperança. Deliraram
e gargalharam juntos.
Seus corpos transbordaram a leveza que há no amor.
Os arrepios congelavam dos pés à cabeça.

Afastaram-se alguns centímetros e analisaram o


sabor de seus pecados através do olfato.
O cheiro dos prazeres estremecendo a carne.
Abraçaram-se lentamente.
Descansaram no peito um do outro. Seus corações
em sincronia.
A satisfação de estarem juntos, da maneira que fosse.

Afastaram-se alguns centímetros e analisaram o


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pavor da dúvida através do silêncio em seus ouvidos.
O barulho daquela falta de coragem.

Os cinco sentidos. Os dois infantis. Os milhares de


sentimentos. Um despertando o outro.

Despediram-se para sempre.


Mais uma vez.

Continuaram a não entender o que nunca


entenderam. Não conseguiam fugir de si mesmos. Eram
as consequências de dois inconsequentes. Mas sabiam
que havia um universo sob os dois, provando que há
milhares de astros brilhantes num breu de infinitos
sentimentos – enquanto durar.

87
Preciso de uma coberta quentinha, um cantinho pouco
iluminado, um chocolate e um coração ardente. O que
vem depois é inspiração.

88
Facebook
não é felicidade
é truque

89
Vivemos no século XXI. Na geração do sexo sem
compromisso, da liberdade de expressão e do “ser
diferen-te é normal”. Somos uma geração livre, egoísta,
do cada um por si e Deus no comando. Cada vez
começamos mais cedo a nos relacionar, sair da toca, cair
no mundo e que-brar a cara.
Todo mundo já acompanhou de perto a história de
um casamento fracassado, já teve algum tipo de decepção
e já esperou demais de alguém.
Tá todo mundo com medo: medo da entrega; medo
do desejo; medo de se sentir nas alturas; medo da queda.

Aonde foi o amor?

90
91
Sinceridade faz de tudo mais compreensível.

92
Cara ou tapa

Sou permanente.
Não dá mais tempo pra rascunhos.

Destrói esse muro!


— Sai daí de cima!
Derrota é a pena de quem te detesta.

Um arranhão;
de cada leão que você matou.

93
Rita; Ritinha; Maria Rita. Ela morava numa casa
ver-de na beira da estrada. O gramado que descia do
outro lado abrigava um rio de peixes longos e longínquos.
A imensa árvore, à esquerda da casa, tinha galhos
compridos que sombreavam por toda’quela casinha-verde-
herança-de-família. Nos dias de chuva, Ritinha tinha que
trancar-se dentro de casa e contentar-se com o cheiro da
água que refletia por todo o verde de fora daquelas paredes.
Ontem choveu. Choveu uma chuva gelada que
fazia as co’redeiras do ‘rio co’rerem ‘rápidas e ‘rasteiras.
Hoje, o sol sorri feliz e animado.
Os irmãos de Ritinha dormem. O avô esfola os co-
tovelos no parapeito da privilegiada janela do quarto. O
assento do balanço de madeira na imensa árvore, à
esquer-da da casa, ainda marca a água absorvida do dia
anterior. Ritinha sentou-se, umedeceu seu jeans e pôs-se a
balançar no balanço que esticava duas cordas fortes e tão
longas que faziam com que ela se sentisse voando.
O balanço, que havia sido construído por seu pai
nos fundos da casa, já arrebentara diversas vezes. Mas a
94
mãe de Ritinha, que era boa moça, colocava tudo no lu-
gar. Balançava tão alto que o voo de Ritinha a levava a
ver o horizonte das águas que formavam ondas verticais.
O azul-bandeira contrastava com o verde-celeste da copa
das árvores.
Quando o balanço pendulava para trás, Rita batia
num galho que lhe cutucava o passado nas costas. Mas
va-lia a pena, pois a visão do paraíso à sua frente e aquela
sensação de voo que lhe causava borboletas no estômago
eram únicas.
Ela continua a balançar. E a intensidade do voo de
Ritinha e da dor do galho de trás da árvore, à esquerda da
casa, que inflamava o passado nas costas de Rita, também.
Rita percebeu que precisa parar de se balançar na-
quele pêndulo que já lhe causa dor. E, no momento do
voo, largou-se ao vento em direção ao céu.
Com os pés no chão, Maria Rita foi andando len-
tamente até o balanço e, com línguas afiadas, arrebentou
aquelas cordas que enforcavam o passado nas suas costas.
Maria Rita resolveu começar uma caminhada e,
hora ou outra, senta-se à beira do rio de peixes longos e
longín-quos para admirar a paisagem.

95
Estacionei o carro na garagem e fechei o portão
pelo controle. Abri a porta do meu apartamento e
coloquei a caixa pesada de compras no balcão da cozinha.
Prendi o ticket do mercado na geladeira, coloquei no
armário um dos vinhos que comprei e abri o outro.
Despejei uns cinco dedos dele numa taça qualquer e
tomei tudo em um úni-co gole: tingindo meus lábios e
descendo suavemente pela minha garganta.
Coloquei as cervejas no congelador e tirei da caixa
os dois livros que também comprara. Sentei-me em uma
das altas banquetas e debrucei-me na bancada que divide
a cozinha e a sala. Acendi um cigarro, liguei o home
teather pelo controle remoto e iniciei minha leitura.
Livros de crônicas são leituras estranhas: as personagens
vivem a mesma vida que vivemos, passam pelas mesmas
situações que passamos e estão estagnadas nessa
melancolia que se instaurou em minha geração.
A campainha tocou. Mas não esperava por ninguém.
O porteiro também não anunciou. Antes de abrir a porta,
conferi pelo olho mágico, e não havia ninguém do outro

96
lado. Com receio, girei a chave e abri a porta devagar. O
andar estava vazio. Havia no tapete um pequeno buquê
de lírios. Lírios me causam delírios! Segurei as flores e
senti seu perfume invadir minhas entranhas.
Não havia nenhum cartão, nenhum bilhetinho, ne-
nhuma pista do remetente. Apenas lírios! Lindos lírios
cor-de-sol!
Por alguns instantes deixei que a curiosidade
tomas-se conta de mim. Mas descobrir o dono deste
gesto tão lindo não seria minha nova missão de vida. Se
quisessem que eu soubesse quem era, teriam esperado
que eu abrisse a porta. Coloquei as flores num vaso, enchi
minha taça de vinho e voltei à minha leitura. Agora com
lírios encantan-do meu olhar.
Nunca havia recebido flores antes. Achei que só as
mandariam junto com aquela chuva fininha que peneirará
o meu velório.

97
Um coração generoso é um operador de ofertas para
verdadeiros milagres.

98
Inspiração não vem com o vento, não tem hora marcada,
não basta ligar a televisão. Inspiração acontece. Acontece
como quando você vê aquele amor platônico na rua, como
quando você se sente sozinho ou tão feliz a ponto de
explodir. Acontece como quando o celular vibra, a Coca-
Cola toca os lábios, a montanha-russa começa a subir ou
como quando você está tão ansioso que sua cabeça ferve.
Inspiração é questão de momento. Inspiração para compor,
expor, recompor. Inspiração para pintar, fantasiar, declamar.
Inspiração para proclamar e amar. Inspiração é algo muito
mais complexo do que se pode imaginar; é justamente isso o
mais inspirador.

99
Tinha um poeta no meio do caminho
No meio do caminho tinha um poeta

100
Às vezes te enxergo falar
Meu olhar descansa em teus olhos
Quando tu me falas tuas andanças
E em minha cabeça eu fico a vasculhar
Algumas palavras bonitas que eu possa te dar
Então elas me somem e pra ti sorrio
Enquanto elas me sobem num arrepio
Quando quase que eu penso em te contar
Mas escolho por guardar nas minhas lembranças
Este tudo que agora eu tenho
O lindo sorriso do teu olhar

101
Embriaguei-me de tudo:
foi vinho;
foi virtude;
foi poesia.
pqp, hein?
Cantei
Falei
Gemi
Tudo na mesma oração.

102
Sou flor de cemitério;
Os fantasmas fazem vigia meus pensamentos.

Acenda uma vela!


Monte um altar
Reze por quem me zela.

Não seja mais um.


Entre poucos que tentaram,
Há um porão de ossos espalhados.

Aqui só sobrevivo;
Procurando fugir da lição tida.
Sobrevivente na vida.

103
Siga o cometa
É lá que estarei
Atravesse a trilha dos sonhos
Encontre as ondas que sorriem nas areias
E lá estarei
Coberto sobre o manto negro
Que nos envolve
Entregue aos grãos que reluzem no infinito
Lá estarei

104
É irônico como o sentimento de sofrimento da dor cessa
quando a gente decide que ele deve esgotar-se. Perceber
que eu só queria atrair sua atenção de alguma forma, fazer
com que sua culpa o corroesse e, depois, você viesse
pros-trar-se aos meus pés atrás de desculpas;
amedrontadas. E então, o ego domaria meus instintos e
eu proclamaria as palavras: tarde demais. Este não é você,
mas principalmen-te, este não sou eu. Ontem eu nem ao
menos sabia – mas queria saber - quem eu era e hoje já é
algo tão indiferente que, simplesmente, passou.
Amor próprio! Queira Deus que continuemos a carregá-
lo, para exclamar que nós dois fomos, apenas, como uma
chu-va em quarenta graus, que veio intensa e inesperada
e, logo, no final da tarde, foi embora, deixando espaço
para o céu rosa e convidativo abençoar o coração.
E este sou eu, proferindo minhas últimas palavras
referen-tes àquilo que foi apenas um sonho de mais uma
intensa noite de verão.

105
Sou o crepúsculo rotineiro; tempestade veraneio.

106
Uma luz se ascendeu
Num plano infinito
Brilhou sobre os homens
E iluminou sua expressão
A idade das belezas deste mundo começou
Olho fundo nos seus olhos
E me perco numa imensidão
Destes traços de musa
inspiradora Da mulher de
Francesco — que sim.
Tinha um traço sobre os olhos
O homem renascido também era humano
Mostra hesitação porque se cobra
É quando uma luz reacende
— Era seu sorriso
Que contemplava sua obra.

107
Você é dono da sua própria história, você decide se quer
ser o mocinho ou o vilão. As atitudes revelam diversos
caminhos que esta história tende a seguir. Entre pulos e
tropeços cada página é escrita. A cada vitória, um
incentivo; com cada erro, uma lição. E com a cabeça
erguida, lutar por um final feliz.

108
A chuva cessou e um clarão varreu o céu até que as
estrelas voltassem a brilhar. Amélia ocupava-se com seus
bordados: um vestido preto, que acentuava sua delicada
cintura bailarina, com paetês que enfeitiçavam seu olhar.
A festa é dela. Lá estarão todas as pessoas com
quem ela se importa e quer bem. Família, amigos, colegas
de es-cola e até aqueles a quem conheceu numa fila de
bar ou trocando verbos desaforados no trânsito.
Um banho de sais; toalha felpuda; secador de cabe-
los. Via seu rosto rosado responder a suas ações no espe-
lho e se perguntava como seria a noite. Quem iria, quem
cairia, o que a faria rir, o que a faria chorar. Ansiosa,
gosta-ria de estar lá há muito tempo.
Maquiagem pronta. Vestiu-se dos paetês brilhantes e
seu cabelo, liso e perfumado, sobrevoava seu colo nu. De
orelha a orelha, ela estampava a felicidade de ser quem é.
A festa está apenas esperando. Todos estão lá nos
seus devidos lugares e ela sabia o que fazer.
Correu para seu armário em busca do sapato que fe-
charia seu visual. Um sapato de camurça, preto. Lembrou-

109
se que ficou dias e dias esperando até tê-lo. Era seu
sonho de consumo. Um sapato lindo que a fazia crescer,
lhe dava postura e deixava seu caminhar leve, leve...
Amélia colocou em seus pés.

Mas,
estranhamente,
já não lhe causavam o mesmo conforto.

Desfilou pela sala; algumas voltas; frente; trás; vai;


volta.

Há algum tempo que os esquecera ali. Estava aper-


tando, sentia os dedinhos esmagarem-se uns sobre os ou-
tros. O calcanhar começara a esfolar.

Ele já não a deixava mais com aquela sensação de


voo. Parecia um vento pesado e difícil de alcançar.
Fechou a casa e, entre tropeços, saiu com ele. A
festa aguardava sua chegada e ela queria que seu sapato
sonho-de-consumo fizesse parte de tudo aquilo.
Estacionou o carro.
Chegou a hora.
Só restavam duas opções: ou cortava o calcanhar
do sapato – o que faria com que o encanto que ele teve
um dia desaparecesse por completo – ou enfrentaria a
festa mesmo com dor.
110
Amélia descalçou-o e seguiu.

Era a sua festa: nada a faria desconfortar.


O paetê brilhou e Amélia seguiu seu baile com
postura
e
o seu caminhar
leve,
leve...

111
Publicação financiada pela Lei de Incentivo à Cultura
de Itajaí por meio do edital Meu Primeiro Livro.

1ª edição SETEMBRO 2016


Impressão TIPOTIL
papel de capa TRIPLEX DUO 300G/M²
papel de miolo PÓLEN SOFT 80G/M²
Tipografia GARAMOND

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