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Accordatura do Destino

Thaís Olivastro
A todos que escutam a música Monstros, do Jão,
e se identificam.

Prólogo
Domingo, 1 de março
Querido leitor enxerido e fofoqueiro que está lendo o meu diário...
seja bem-vindo!
Tenho algumas considerações a fazer antes de dar início oficial
aos meus registros sagrados que, um dia, eu tenho certeza, mas
também apenas quando eu quiser assim, serão muito necessários
para a humanidade — ou, pelo menos, para aqueles meros mortais
que, assim como eu, querem sobreviver até o final do ano letivo sem
considerar seriamente se internar num manicômio.
Primeira consideração: eu posso saber onde a madame
mexeriqueira encontrou o meu diário e por que raios se achou no
direito de sair lendo e fuxicando sobre a minha vida? Até onde sei,
eu o manterei trancado a sete chaves na privacidade segura e
inarrombável da minha gaveta de calcinhas até segunda ordem,
então se ele de alguma forma foi parar em suas mãos antes disso,
saiba que além de ladrão fofoqueiro você também é um belo de um
tarado! Eu não ia querer esse peso na consciência se fosse você,
então aqui está a sua chance de devolver o presente conteúdo ao
exato lugar de onde o tirou. Junto com a minha calcinha, fazendo o
digníssimo favor.
Segunda consideração: amanhã é o primeiro dia de aula no
país inteiro, mas para mim, sua autora favorita a partir de agora,
este dia fatídico tem apenas um significado: o pior e o melhor dia da
minha vida de uma só vez.
Motivos:
Pior: estarei começando a frequentar uma escola nova, cercada
de pessoas estranhas e desconhecidas, ou seja, completamente
sozinha e abandonada no meio de um campo minado. Armada
apenas com o meu charme e sorrisos que, eu espero, serão
convincentes o suficiente para me garantirem, pelo menos, a
simpatia dos meus novos professores.
Melhor: minha nova escola se trata de, nada mais, nada menos,
que o famoso e desafiadoramente exigente Conservatório
Intermezzo Musicale, lar de aprendizado e responsável pela
formação dos melhores musicistas do país. Não há um aluno que
não se deu bem na vida desde que saiu de lá.
O simples fato de eu ter conseguido entrar já pode ser considerado um milagre. E um
verdadeiro desafio para a humildade do meu espírito. Claro, assim que vi o meu nome na
lista e descobri que fui aprovada no processo seletivo, a última coisa que me passou pela
cabeça foi ser humilde ou discreta. Eu literalmente comecei a gritar, no meio do corredor do
conservatório, e saí abraçando todo e qualquer estranho que aparecesse na minha frente
enquanto corria desembestada pelos corredores. Corredores que agora cruzarei todos os
dias, que agora farão parte da minha rotina.
E por isso eu tenho que me conter e ser humilde.
Começando amanhã, claro. Hoje eu vou me permitir sonhar
acordada, imaginando como serão os meus dias, carregando livros
e mais livros sobre música e seus vários campos de aprendizado
por aqueles longos corredores, com a mesma plenitude e finesse de
uma modelo desfilando na passarela, sendo cercada por música,
respirando música, das mais variadas formas e estilos e
preenchendo completamente os meus dias com ela.
Caramba, eu mal posso esperar!
Mas voltando à nossa lista... (por mais que eu esteja literalmente
quicando na cadeira de animação e ansiedade nesse momento).
Terceira consideração: me comprometi a registrar todas as
minhas experiências aqui, tanto para não me esquecer nunca dos
meus dias de mera estudante do famoso e prestigiado Intermezzo
Musicale — enquanto cumpro minha agenda lotada de
compromissos e apresentações depois que eu me formar — quanto
para ajudar aqueles que, futuramente, estarão na mesma posição
que eu me encontro agora: uma adolescente ansiosa e maravilhada,
mas ao mesmo tempo terrivelmente assustada, que está prestes a
descobrir o que a aguarda no grande palco vida atrás das cortinas
fantasiosas de realizar um dos seus maiores e mais desejados
sonhos.
Apenas quando eu assim permitir, óbvio. Só pra deixar bem claro.
Mas quando isso finalmente acontecer...
Que rufem os tambores!
Senhoras e senhores, este é o momento pelo qual esperavam! A grande, inesquecível,
fabulosa, incomparável e mágica aventura da mais fabulosa e incomparável ainda
musicista de todos os tempos!
Sem mais delongas, apresento-lhes o grande espetáculo da noite!
O Magnífico Palco Aurora!
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale

Abertura: Peça instrumental que que precede uma obra de


grande desenvolvimento, como uma ópera, cantata ou oratório.
Serve para introduzir a atmosfera da obra que se seguirá. Ex.:
Ouverture, protofonia etc.
Capítulo 1
Minha vida é um desastre. Um completo desastre.
Claro, as coisas não seriam tão complicadas se eu não fosse
tão desastrada, mas a sorte infelizmente não estava a meu favor.
Nunca, aparentemente. Quando acho que as coisas finalmente vão
começar a dar certo, vem a vida e PÁ!, me acerta com uma porrada
bem dada na cara.
É só uma fase ruim, as pessoas dizem. Vai passar.
Sim, a fase ruim realmente sempre passa. Por cima de mim.
Mas nem só de desastres são feitos os meus dias. Claro, eu
preciso conciliar os estudos com o trabalho, pois apesar de ser
apenas uma adolescente, o meu quase miserável salário é a renda
principal da minha casa, mas me acontecem muitas coisas boas
também além de tragédias. Algumas. Poucas.
São quase uma raridade, mas é por isso que quando os
momentos bons vêm, eu dou o máximo de valor possível. E,
recentemente, um deles aconteceu. O melhor que eu poderia
esperar, na verdade.
Eu só esperava não estragar tudo, pra variar um pouquinho.
— Tchau vovô, tô indo pra aula. — Beijei o topo da cabeleira
branca do senhorzinho sentado na poltrona em frente à TV. — A
partir de hoje eu vou voltar mais tarde que o normal, então qualquer
coisa me liga, ok? E nada de ficar zanzando pela rua, sua saúde tá
muito frágil. A dona Josefa já me garantiu que vai ficar de olho na
janela, então se você tentar me enrolar e fugir de casa de novo, eu
vou descobrir.
— Bah, que absurdo! — ele resmungou. — Eu sou um homem
adulto, posso cuidar de mim mesmo. Não preciso de uma velha
fuxicando a minha vida pela janela ou de uma menina me dizendo o
que eu posso ou não fazer.
Soprei a franja para longe.
Velhinho teimoso.
— Ou o senhor faz o que eu digo, ou vai pro asilo. — Afastei o
cabelo que mal chegava aos ombros, ajeitei as alças da mochila e
cruzei os braços. — Aí não vou ser mais eu a dizer o que o senhor
pode ou não fazer, mas uma equipe inteira de enfermeiros. É isso
que você quer?
Ele não respondeu, mas fez uma careta.
— Não tem nada na rua que eu queira fazer mesmo. Só
mantenha aquela chata da Josefa longe da minha casa, e eu fico
quieto.
Soltei uma risada.
— Não sei por que o senhor não gosta dela, é uma senhora
muito gentil.
E confiável, já que sempre me mantinha atualizada dos
movimentos do meu avô quando ele resolvia se rebelar pelas
minhas costas.
— É uma fuxiqueira enxerida, isso sim. — Se ajeitou debaixo do
grosso cobertor de lã.
Revirei os olhos e segui para a porta da entrada.
— Tem comida na geladeira, é só esquentar no micro-ondas.
Tem o suficiente pro almoço e janta. Eu ligo pra te lembrar dos
remédios. Qualquer coisa o senhor me liga, ok?
— Tá, tá. — Abanou a mão em dispensa, os olhos grudados no
noticiário da manhã.
Suspirei. E, lançando um último olhar ao senhorzinho solitário
que se resumia a toda a minha família, peguei a maleta pesada do
violoncelo ao pé da porta e me preparei para sair.
— Julieta — meu avô chamou antes que eu botasse o pé pra
fora.
— Sim?
Por um momento ele pareceu relutante, mas disse por fim:
— Boa sorte na escola nova. Sei que vai se sair bem.
Senti um aperto no coração. Era raro ouvir aquele tipo de
elogio, mas eu sabia que, do jeito dele, estava tentando.
Tentando não cometer o mesmo erro do passado.
— Prometo que vou me esforçar, vovô. Obrigada.

ʄʅ
— Meu Deus — sussurrei, incrédula, enquanto admirava o
prédio da calçada. — É real. Isso tá acontecendo mesmo.
Depois de dois ônibus e uma caminhada de vinte minutos,
cheia de bagagem, finalmente cheguei naquele prédio, tão longe de
tudo que eu conhecia, localizado em uma cidade vizinha que
praticamente fazia divisa com a capital.
Essa seria a minha rotina agora, mais abarrotada e conturbada
que o normal. Mas valia a pena. Ah, se valia.
Porque, diante de mim, estava nada mais, nada menos, que o
famoso Colégio São Patrício. Uma escola muito famosa, cara e
prestigiada por sua qualidade de ensino.
Mas apesar de me sentir muito aliviada por ter conseguido uma
bolsa integral para estudar ali, não eram as aulas comuns que no
momento faziam o meu coração galopar feito louco dentro do peito.
Não, era a enorme construção que se erguia mais atrás, conectada
à instituição do colégio. O majestoso e imponente Intermezzo
Musicale. O melhor e mais concorrido conservatório de música do
país.
Eu, dentre tantos músicos habilidosos, consegui passar na
audição no final do ano passado e agora passaria os meus dias ali.
Estudando ali. Me profissionalizando ali.
Era o maior sonho da minha vida, por uma série de motivos
diferentes!
Ainda boquiaberta, passei pelos grandes portões de ferro
escuro, olhando para tudo e todos os lados e absorvendo o máximo
de detalhes e informações que conseguia. Um grande pátio de
ladrilhos e uma fonte circular no centro davam as boas-vindas a
quem entrava, revelando o imenso prédio branco do colégio e, mais
atrás, quase como um castelo, se erguia a estrutura amarelada de
arquitetura antiga do conservatório. Pessoas entravam e saíam do
prédio principal, desde adultos e idosos até adolescentes e crianças.
O conservatório tinha uma grade de atividades bem
interessante e abrangente. Desde aulas e cursos livres iniciantes
para todas as idades, a cursos técnicos mais intensos para aqueles
que desejavam se profissionalizar em alguma área artística e seguir
carreira, como no meu caso. E, além das aulas de música, dança ou
teatro, havia também a escola comum, de onde a maioria dos
alunos vinham.
Eu não conhecia a história sobre a fundação do Intermezzo
muito bem, só sabia que o filho do fundador do Colégio São Patrício,
logo após assumir a diretoria da escola depois do falecimento do
pai, incluiu o ensino de música na grade curricular. O feito fez tanto
sucesso que eles foram expandindo o alcance das aulas a pessoas
de fora, até que a instituição do conservatório foi oficialmente
consolidada.
E agora lá estava eu, uma simples adolescente comum que, por
um milagre, passou na concorrida audição e ganhou uma bolsa de
estudos integral. Às vezes eu ainda me perguntava se tudo aquilo
não passava de um sonho.
— Se for mesmo um sonho, ai de quem ousar me acordar! —
sussurrei com os olhos arregalados enquanto cruzava o pátio
ensolarado até o interior do prédio, e admirava ao meu redor a
arquitetura antiga do lado de dentro.
E, sem querer, bati com tudo a maleta do cello em alguma coisa
que caiu com um estrondo atrás de mim. E essa coisa gemeu de
dor.
Ai, droga.
— Me desculpa! — exclamei já me virando para a minha vítima,
e estendi a mão para ajudá-lo a se levantar. — Eu tava distraída e
não te vi. Desculpa mesmo.
— Não foi nada — o garoto de cabelo encaracolado e pele
negra balbuciou, aceitando minha mão. Não devia ser muito mais
velho que eu. — Que bom que eu não tô com o violão, isso sim teria
sido ruim. — Ficou de pé e bateu as mãos na calça jeans, limpando
a poeira.
Mordi o lábio. Eu não sabia onde enfiar a cara.
— Desculpa mesmo. Eu devia ter prestado mais atenção, é só
que… é meio difícil ter noção de espaço com esse trambolho. — Fiz
uma careta, indicando a maleta grande nas minhas costas que tinha
quase o meu tamanho. –—Você tá bem mesmo? Não se
machucou?
— Não, tudo bem. Eu… — Ergueu os olhos cor de avelã para
mim e parou de falar de repente, a boca entreaberta. — Eu…
Pisquei.
— O quê?
O garoto ficou em silêncio por alguns segundos, apenas me
encarando, até que piscou os olhos rapidamente e desviou o olhar.
— Eu tenho que ir. Vou me atrasar pra aula. T-Tchau. — Saiu
apressado pelo corredor, quase correndo para longe de mim.
Olhei enquanto ele se afastava, me sentindo mal por já ter
começado a arrumar confusão tão cedo, mas suspirei e segui meu
caminho até a secretaria.
— Oi, meu nome é Julieta Bellini — falei para a secretária pela
janela de vidro que permitia a vista de uma ampla sala com estantes
lotadas de pastas e arquivos em todas as paredes bem atrás dela.
— Vim pegar uma cópia da minha grade de aulas.
— É aluna nova? — ela perguntou, já digitando no computador.
— Sim.
— Só um momento. — Digitou por mais um tempo, até que
franziu o cenho para a tela. — Julieta Bellini, você disse? 16 anos?
— Isso mesmo.
Ela olhou para mim.
— Seus pais não assinaram sua matrícula? Aqui não consta o
nome de ninguém responsável por você.
Suspirei.
Lá vamos nós de novo.
— Sim, eu sei. Eu… — Baixei os olhos e comecei a retorcer os
dedos. — Eu sou emancipada.
A mulher piscou e arqueou as sobrancelhas, surpresa. E um
homem atrás dela, mexendo nos arquivos e que provavelmente
tinha me ouvido, virou sutilmente a cabeça na minha direção.
— Ah — a secretária balbuciou. — Entendi. Claro, sem
problemas. — Voltou a digitar no computador e, após alguns
segundos, a impressora atrás dela apitou e começou a imprimir.
Fiquei grata por ela não fazer perguntas. Eu tentava manter
esse detalhe da minha vida de lado o máximo que podia, só
mencionando quando era estritamente necessário, como naquele
caso. Mas era difícil esquecê-lo. Impossível. Ainda mais quando
toda a minha vida girava em torno daquilo.
Uma adolescente independente. Para a maioria das pessoas da
minha idade, a emancipação podia parecer algo libertador, ser “dona
do meu próprio nariz” como alguns diziam, mas na verdade era…
cansativo. Muito cansativo. Ainda mais quando a minha
independência era necessária e essencial para que eu pudesse
cuidar do meu avô. Eu entendia a importância daquilo e dava o meu
melhor para fazer tudo certo, mas, às vezes…
Às vezes eu sentia que ser emancipada não era uma libertação,
mas uma condenação.
— Aqui está. — A secretária me passou os papéis pela abertura
abaixo do vidro. — Suas aulas, os horários e as salas.
Sorri para ela, um sorriso pequeno, mas educado.
— Obrigada.
— Seja muito bem-vinda ao Colégio São Patrício. E ao
Intermezzo Musicale — acrescentou com gentileza.
E, apesar dos meus pensamentos terem seguido um caminho
um pouco conturbado, consegui alargar o sorriso de forma sincera
quando repeti, acanhada:
— Obrigada.

ʄʅ
Logo depois do almoço, após uma manhã surpreendentemente
tranquila no colégio e sem causar nenhum estrago em nada nem
ninguém, entrei na sala da minha primeira aula de música do
conservatório e ocupei a primeira carteira ao lado da janela,
apoiando a maleta grande e pesada contra a parede para não
atrapalhar o caminho de ninguém.
— Boa tarde, crianças. — O primeiro professor do dia falou com
um sorriso enorme assim que entrou na sala. Era um homem muito
bonito, alto, de cabelos castanhos ondulados, e vestia uma calça
social cinza, um colete da mesma cor e uma camisa branca com as
mangas enroladas nos cotovelos. Não devia ter nem trinta anos. —
Sejam muito bem-vindos a mais um início de ano letivo. Para
aqueles que não me conhecem... — sacou um crachá do bolso da
calça, erguendo para os alunos — eu sou o professor De Lucca.
História da Música é o que vamos aprender aqui. Mas antes de
começarmos… — Sentou na beirada de sua mesa e cruzou os
braços, olhando para cada um de nós. Quando seus olhos azuis
pousaram em mim, ele sorriu. — Vejo que temos algumas carinhas
novas por aqui. Por que não se apresentam?
Pisquei uma, duas vezes. Seus olhos não desviaram dos meus.
— Eu? — perguntei por fim.
Seu sorriso alargou. Um sorriso muito bonito.
— Esta é uma aula de história. E todos aqui têm a sua, não
concordam? Então, por que não conhecer um pouco sobre cada um
de vocês antes de dissecar cada centímetro da vida de
compositores há muito tempo já mortos? — Fez uma careta
divertida. — Quem sabe um de vocês não é o próximo músico a
fazer história? Quem sabe, daqui a muitos anos, algum outro jovem
e belo professor, ou um ciborgue de lata exterminador do futuro, vai
estar neste mesmo lugar dando esta mesma aula, mas com o nome
de um de vocês nos registros históricos?
Dei risada, assim como os outros alunos. O professor De Lucca
tomou isso como um encorajamento.
— Vamos lá, vamos dissecar vocês um pouquinho. Nome,
idade, instrumento, sonho, ambição na vida e seus dados bancários.
A sala toda gargalhou de novo. Mas os olhos do professor
voltaram a pousar em mim. Esperando.
— Bom… — Me levantei, o rosto inteiro fervendo de vergonha,
e comecei a retorcer os dedos. — Meu nome é Julieta… tenho 16
anos, toco violoncelo desde os 6… e acho que a minha ambição na
vida é me tornar uma musicista profissional com um emprego e
salário estáveis.
— Não é o que todos queremos? — O professor voltou a sorrir.
— É uma ambição justa. E qual é o seu sonho?
— Não são a mesma coisa?
— Não necessariamente. — Ele deu de ombros. — Às vezes,
consideramos um sonho algo que está longe no momento, fora do
nosso alcance. Ou que, pelo menos, parece estar. Algo que
começou como um sonho pode se tornar uma ambição futura, mas
nem sempre uma simples ambição é o nosso maior sonho.
— Mas mesmo que sejam diferentes, um pode completar o
outro — murmurei, encarando a maleta do violoncelo.
— Gostaria de nos dar um exemplo?
Corei mais ainda.
— Eu… bom… acho que o meu maior sonho seria… não falhar
com o meu avô. Conseguir cuidar dele sem medo do que pode
acontecer… — Se sua saúde piorar e o dinheiro não for suficiente,
foi o que deixei de mencionar. — E pra isso eu preciso alcançar
meus objetivos. E minhas ambições. — O mais rápido possível.
— Seus pais não podem cuidar dele? — alguém perguntou de
repente, ganhando um olhar de reprovação do professor.
Mas respondi, de qualquer modo.
— Somos só meu avô e eu. — E voltei a me sentar, evitando
fazer contato visual com qualquer um ali.
— Bom... — o professor voltou a falar daquele modo
descontraído, e começou a andar pela sala — muito obrigado por
compartilhar um pouco da sua história conosco, Julieta. Vamos nos
esforçar para alcançar seus objetivos. — Passou distraidamente
pela minha carteira com os braços cruzados nas costas, seguindo
para o fundo da sala… e, discretamente, jogou um pedaço de papel
na minha mesa. — Quem é o próximo? Você aí no fundo, pode se
apresentar?
Franzi o cenho e olhei ao redor, me certificando de que
ninguém prestava atenção em mim, e puxei o bilhete para debaixo
da carteira.

Sala de Orientação Estudantil no primeiro andar.


Intervalo entre o segundo e terceiro período.

Olhei por cima do ombro, confusa. O professor De Lucca


conversava, descontraído, com os alunos que se apresentavam,
mas não voltou a olhar para mim. Nem deu nenhum sinal de que
tinha me passado um bilhete secreto, tampouco jogou um bilhete
parecido para qualquer outro aluno.
Orientação? Era a primeira aula do primeiro dia e ele já achava
que eu precisava de orientação?
Que ótimo.

ʄʅ
— Com licença. — Bati no umbral da porta aberta. O professor
De Lucca estava sentado atrás da mesa, folheando uma pasta de
arquivos.
— Você veio. — Ele ergueu os olhos reluzentes para mim e
sorriu. — Por favor, entre.
— Não sabia que além de professor você também era
orientador.
— Vai por mim, às vezes eu também não acredito nisso. — Seu
sorriso alargou.
— Eu… fiz alguma coisa errada? — perguntei assim que me
sentei na cadeira acolchoada em frente à mesa, largando a mochila
no chão e apoiando a maleta do cello ao meu lado. — Eu ofendi
alguém sem saber? Quebrei alguma coisa de valor? Ah, meu Deus,
foi o garoto que eu derrubei lá na secretaria mais cedo, não foi? Ele
se machucou? Droga, eu sabia que ia acabar tendo problemas por
causa disso, mas eu juro que não foi de propósito…
— Julieta, calma, você não fez nada errado — o professor me
interrompeu.
Pisquei.
— Não? Mas então por que você pediu que eu…
— Viesse aqui? E daquele jeito pouco convencional? — Soltou
uma risada e cruzou as mãos sobre a mesa. Eram cobertas de
cicatrizes, tanto finas quanto grossas e de tamanhos variados,
percebi agora que as olhava de perto. E tremiam levemente. — Me
desculpe se te preocupei com aquilo, mas eu sempre gostei de uma
cena dramática. E de assustar os novatos.
Desviei os olhos, não querendo parecer grosseira, e soltei o ar
com força.
Bom, missão cumprida com sucesso.
— Então por que me chamou?
— Estava dando uma olhada nos seus arquivos… — Indicou a
pasta parda de papel à sua frente. — Seu histórico escolar é ótimo,
nunca tirou uma nota abaixo de 9 ou 10. É realmente
impressionante.
— Ah… obrigada.
— Suas notas na prova e na audição de admissão também
foram surpreendentes. Conseguiu bolsa integral, estou certo?
— Eu… — Comecei a retorcer os dedos. — Isso mesmo.
— Deve ser difícil conseguir dar conta de tudo isso e ainda ter
que cuidar do seu avô e administrar a casa.
Pisquei. Duas vezes.
— C-Como o senhor…
— Acabei escutando quando você estava na secretaria e
comentou sobre o seu… status.
Me remexi na cadeira, desconfortável.
— E isso é um problema?
— Não, de forma alguma. Mas eu fiquei curioso quando soube
e, depois da sua apresentação na aula, profissionalmente falando, a
curiosidade virou preocupação. É muita coisa pra lidar, imagino. Ter
que agir como adulta, assumindo as responsabilidades de um
adulto, sendo apenas uma adolescente.
Assenti. Ele nem fazia ideia.
— Entendi — me limitei a dizer.
— Por isso te chamei aqui. Queria que soubesse que, se
precisar de alguma coisa, de ajuda com algum trabalho ou prazo, ou
até mesmo se quiser apenas conversar… minha sala estará sempre
aberta. Não hesite em pedir ajuda, tudo bem?
Minha garganta fechou. Mas consegui me obrigar a dizer:
— Tudo bem. Obrigada, professor.
— Disponha. — Esboçou um sorriso educado e olhou para o
instrumento ao meu lado. — Violoncelo, não é? É um belo
instrumento. Eu... sempre gostei dos sons mais graves.
— Eu também. — Sorri de volta, mais relaxada. — Desde
pequena.
— Você vem de uma família de músicos? — Semicerrou os
olhos de leve, curioso.
O sorriso sumiu do meu rosto e baixei o olhar, até as mãos que
repousavam em meu colo.
— Mais ou menos. Minha mãe era violoncelista. Tocava em
eventos, principalmente casamentos. — Apoiei uma mão na
superfície fria e escura da maleta. — Era dela antes, sabe. Ganhou
de presente do meu avô quando eu era criança. Só passou a ser
meu depois que ela… — Não consegui continuar. Mas nem precisei.
— Eu sinto muito — o professor De Lucca falou, a voz baixa.
Engoli o caroço na boca da garganta e sacudi a cabeça.
— Faz tempo que aconteceu. No começo eu não queria mais
saber de música, mas… foi a única coisa que me ajudou a seguir
em frente. E é uma das únicas coisas que me restaram dela. Desde
então, eu e o violoncelo somos inseparáveis.
O professor assentiu, o pesar evidente em seus olhos.
— E seu pai? — perguntou delicadamente.
Algo dentro de mim endureceu.
— Eu não tenho pai.
Não desde que o homem responsável pelo meu nascimento
nos abandonou para fugir com outra e construiu outra família. Eu
tinha apenas 6 anos na época, pouco tempo antes do... acidente.
— Entendo. — Foi tudo que o professor De Lucca falou em
resposta. E pareceu entender mesmo. — Bom, tenho certeza de
que se sairá muito bem nas aulas, Julieta. Você parece ser uma
menina habilidosa, focada e determinada. Mas, apenas reforçando o
meu convite, sempre que precisar estarei à disposição. Não hesite
em me procurar quando precisar.
E, apesar das circunstâncias e das lembranças sombrias,
consegui sorrir.
— Pode deixar. Obrigada, professor.

ʄʅ
— Nossa, isso foi impressionante. — A professora de violoncelo
falou com um sorriso satisfeito assim que terminei de tocar. — Não
é à toa que você foi uma das únicas novatas a conseguir bolsa
integral na audição.
Logo após a conversa na sala de orientação, parei apenas para
ir ao banheiro e engolir uma barrinha de cereal, e corri para a
próxima aula. A que eu mais ansiava em ter, de toda a minha grade.
A professora Fabiana Takahashi parecia ser muito gentil e era
muito bonita. Tipo, muito mesmo. O cabelo preto caía em longas
madeixas lisas até o quadril, os lábios sensuais vermelhos
contrastavam com a pele pálida e os olhos angulosos eram tão
escuros, mas ao mesmo tempo tão brilhantes, que pareciam duas
pedras preciosas. E, apesar do sorriso estampado em seu rosto ser
sincero e acolhedor, ela também tinha uma firmeza no olhar que
deixava claro saber ser dura e exigente quando queria.
— Obrigada. — Sorri, corando. — Sei que a minha técnica não
é perfeita, mas sempre me esforcei ao máximo. Prometo que aqui
não vai ser diferente, eu quero muito dar o meu melhor.
Assim que entrei em sua sala — basicamente um estúdio
devido às paredes com placas de espuma para melhor acústica,
uma estante alta repleta de livros novos e antigos e uma
escrivaninha simples com um notebook — e as apresentações
foram feitas, a professora Fabiana pediu que eu apenas me
sentasse e tocasse uma peça de minha escolha para ela.
— É claro que sua técnica não é perfeita. Ainda — acrescentou
com um sorriso astuto. — Mas é pra isso que estamos aqui. É pra
isso que eu estou aqui. Agora que conheço um pouco melhor o seu
estilo e o seu ritmo, vamos montar um plano de estudos baseado
nisso. E vamos começar com o arco, seu som está um pouco tenso
demais. Vou te passar alguns exercícios para a mão direita, tente
manter o som o mais leve e fluido possível, ok?
— Ok.
Passamos a aula toda trabalhando esses exercícios, e ainda
mais alguns para eu estudar em casa. A próxima aula seria apenas
dali a uma semana, mas teríamos um encontro breve de
acompanhamento por meia hora todas as quartas-feiras para
verificar se o plano das aulas estava funcionando e se eu estava
fazendo os exercícios da forma correta.
Apesar de simples, os exercícios requeriam muita
concentração, cuidado e tempo. Mas ao final da aula eu saí da sala
da professora Fabiana determinada a dar o meu melhor e nada
menos que isso. Eu queria e precisava provar o meu valor e fazer
jus à bolsa que me permitia estudar e vivenciar tudo aquilo.
E depois de um dia intenso e cansativo de aulas, tanto no
colégio quanto no conservatório, enquanto seguia pelos corredores
antigos, mas muito bem conservados, abarrotada de lições de casa,
me peguei massageando o pescoço e só querendo ir para casa e
passar o resto da minha vida na cama.
Mas eu não podia. Porque ainda tinha mais um compromisso
para cumprir na minha agenda infinita. Trabalhar.
Ah, a verdadeira magia da vida adulta! A liberdade de poder
escolher fazer o que eu quisesse com a minha vida e ainda receber
um salário para isso.
Só que não. Só que nunca.
Tudo bem, eu trabalhava em algo que gostava e não tinha do
que reclamar sobre as minhas obrigações. Era um emprego de
apenas meio período e nem de longe poderia ser considerado um
trabalho infeliz, mas… às vezes eu simplesmente… queria não
precisar trabalhar. Ser apenas uma adolescente como qualquer
outra, aproveitando o fim de semana com as amigas e tendo como
única obrigação estudar para as provas e pensar no futuro com
calma.
Mas eu mal conseguia pensar no meu futuro, quanto menos
fazer isso com calma. E eu não tinha muitos amigos. Quase
nenhum. Os únicos mais próximos eram Jéssica e Elias, meus
colegas e companheiros no meu segundo trabalho não-oficial aos
fins de semana, tocando em um evento atrás do outro, literalmente.
E o mais próximo que eu chegava de ter uma adolescência normal
no meu dia a dia era a escola. E, claro, a montanha de deveres,
trabalhos e provas para fazer, agora ainda mais abarrotada com as
tarefas de música.
Qualquer um pensaria que era loucura, inventar mais essa pra
cabeça quando eu já estava atolada até o pescoço de obrigações e
problemas. E em parte era loucura mesmo, mas… música era algo
que eu gostava de fazer. A única coisa que eu queria fazer, me
empenhar de verdade. Era a única coisa… normal na minha vida.
Que me dava prazer, que me trazia paz de espírito. A única coisa
que tinha restado… de quando os dias eram mais fáceis. De quando
a minha vida era mais fácil. E não tão vazia.
Perdida em pensamentos, segui meu caminho pelos
corredores, pessoas indo e vindo de suas respectivas aulas, o
burburinho de conversas e a algazarra de sons dos mais variados
instrumentos que se possa imaginar vazando de, aparentemente,
toda e qualquer sala até o corredor, até que uma melodia em
especial chamou a minha atenção. Um som grave e suave ao
mesmo tempo, gentil e acolhedor. Pessoal. Íntimo.
Segui aquele som, quase hipnotizada, até parar em frente a
uma sala com a porta entreaberta. O espaço grande estava vazio,
apenas uma figura solitária lá dentro, um garoto, sentado na mesa
de qualquer que fosse o professor responsável por aquela sala, de
costas para mim e tocando um violão. E por mais que eu não
quisesse me intrometer, fiquei parada ali, ouvindo a suavidade e
tranquilidade daquelas cordas dedilhadas. E me peguei sorrindo.
— Sabia que é feio ficar escutando atrás da porta? — o garoto
falou de repente, parando de tocar.
— Droga! — sibilei, dando um pulo de susto por ter sido pega
espionando, me virei apressada para sair correndo… e bati com
tudo em alguém que vinha atrás de mim, e que caiu com um
estrondo.
— Ai, sua inútil! — a garota estatelada no chão exclamou. —
Por que não olha por onde anda?!
— Ah, meu Deus, me desculpa! — Corri até ela. — Foi sem
querer, eu… não te vi e… ai, me desculpa mesmo!
Ofereci a mão para a garota, mas ela grunhiu com raiva.
— Não encosta em mim! — Afastou minha mão e se levantou
sozinha, bufando. — Eu deveria te denunciar pro diretor por ter feito
isso! E se eu quebrasse um braço? Você tem muita sorte de eu não
estar com o instrumento hoje, senão aí sim você ia arrumar um belo
de um problema, sua desastrada.
Me encolhi e recuei um passo.
— Mas eu… foi sem querer.
— Dane-se se foi ou não! — Afastou o cabelo escuro e liso do
rosto e se aproximou bem de mim, os olhos azuis faiscando. —
Encoste um dedo em mim de novo e vai se arrepender — sibilou
entre dentes, e não duvidei nem por um segundo sequer da ameaça
em seu tom de voz.
— Giovanna, pega leve — alguém falou logo atrás de mim até
parar do meu lado e reconheci a voz, do garoto que estava tocando
violão.
Olhei de relance para ele e me dei conta de que já o tinha visto
antes também. Mais cedo na secretaria, quando o derrubei da
mesma forma que tinha acabado de fazer com a garota.
Ah, que ótimo. Minhas duas vítimas juntas para me rechaçar
por ser enxerida e desastrada.
E também uma bela de uma azarada, pensei com amargura.
— Não se mete nisso, Richard — a garota, Giovanna, grunhiu
para ele, e voltou para mim. — Quem é você afinal de contas? Uma
novata insignificante, com certeza.
— Giovanna — o garoto, Richard, falou em tom de aviso. —
Não começa.
Mas ela o ignorou.
— Vamos deixar bem claro como as coisas funcionam por aqui,
garota. Assim você já vai aprendendo. — Semicerrou os olhos para
mim. — Essa escola é minha. Esse território é meu. Se meta no
meu caminho mais uma vez e vai se arrepender até de ter cogitado
pisar aqui.
— Mas eu… — minhas mãos começaram a suar — não fiz
nada. Já disse que foi sem querer.
— Então comece a prestar mais atenção, pois eu não vou ser
tão paciente na próxima vez — grunhiu mais uma vez e passou por
mim, me empurrando com o ombro.
— Sinto muito por isso — Richard falou com um suspiro assim
que a garota se afastou o suficiente. — Giovanna é sobrinha do
diretor, por isso se acha a rainha do conservatório. Você é mesmo
aluna nova?
— Tá óbvio, não tá? — resmunguei, ajeitando a alça da
mochila, e comecei a andar.
Ele veio atrás de mim, a capa preta que carregava o violão em
uma mão.
— Uma novata bem azarada, por sinal — deu risada. —
Ninguém aqui em sã consciência se aproxima da Giovanna ou do
grupo de amigos dela. Se é que dá pra chamar aquele exército de
demônios que a segue pra cima e pra baixo de amigos.
— É, eu tenho esse dom de atrair o pior que a vida tem a
oferecer direto pra mim. É melhor nem chegar muito perto, ou você
vai ser contaminado também.
Richard riu.
— Giovanna não me assusta. Mas eu te aconselharia evitar
qualquer tipo de contato com ela. Vai por mim, a dor de cabeça não
vale a pena.
Descemos a escada comprida e antiga até o térreo, seguindo
pelo longo corredor que ligava o conservatório ao colégio, até as
enormes portas principais.
— Eu reparei — comentei meio sem jeito e tentando me manter
a uma distância segura do garoto. Eu não fazia ideia de como tinha
conseguido derrubá-lo, ele era bem maior do que eu. — Desculpa
por mais cedo. Eu realmente não sei como consigo ser tão
desastrada e sair derrubando todo mundo por aí, mas não foi por
querer.
— Sem problemas. — Richard sorriu. — Sério, não foi nada. Eu
só acho que você precisa… — Olhou para frente e ficou sério de
repente, arregalando os olhos. — Merda.
E antes que eu conseguisse olhar para o que quer que o
tivesse deixado daquele jeito, sem aviso, fui empurrada para o
interior de uma salinha escura no meio do corredor e com um cheiro
forte de produtos químicos, provavelmente um depósito de limpeza.
Assim que a porta se fechou fui prensada contra um armário, a
mão de Richard sobre a minha boca.
— Shhh… — sussurrou quando tentei gritar, meus olhos tão
arregalados que eu podia jurar que iam saltar pra fora do meu rosto.
— Fica quieta. Por favor.
Os olhos cor de avelã estavam alertas e as feições de seu rosto
tinham adquirido um ar sombrio. E, do lado de fora, passos pesados
se aproximavam, a algazarra de vozes e risadas do grupo cada vez
mais perto.
— Como vamos saber quem é? Esse lugar tem centenas de
alunos, literalmente — falou uma voz feminina.
— Sabemos que ela toca violoncelo, isso já facilita bastante o
trabalho — uma voz masculina respondeu. E soltou uma risada de
satisfação. — Não sei se acho engraçado ou se fico com pena da
garota.
Meu coração parou. Assim como minha respiração.
Meu olhar de pânico encontrou o de Richard, mas ele apenas
manteve aquela expressão sombria, atento a cada palavra dita do
lado de fora.
— E o que, exatamente, devemos fazer quando a
encontrarmos? — Uma terceira voz, mais suave e entediada,
também masculina, falou.
— Ficar de olho — a garota falou, dura e com superioridade. —
Apenas ficar de olho. Pode parar de ficar tão animadinho, Vitor, as
ordens foram bem claras. E vocês sabem muito bem o que acontece
quando saem dos trilhos e fazem o que bem entendem.
O grupo passou bem em frente ao nosso esconderijo e um dos
garotos praguejou, socando a porta antiga de madeira, que
estremeceu e rangeu ruidosamente, me fazendo encolher.
— Isso é o que acontece quando as garotas ficam no comando
— ele reclamou. O primeiro garoto, reconheci. — Vocês complicam
e tiram a graça de absolutamente tudo. Se a Giovanna não foi com
a cara dessa novata, por que não a assustamos de uma vez?
Ensinamos uma boa lição e pronto, problema resolvido.
Meus joelhos tremiam tanto que eu tinha certeza de que a única
coisa que ainda me mantinha em pé era a mão de Richard firme na
minha boca.
— Porque ela não é descerebrada igual a você, idiota — a
garota respondeu, as vozes começando a se afastar. — Se
fizéssemos tudo do seu jeito, todos nós já teríamos sido expulsos.
Precisamos ter cautela pra não arranjar problemas com o diretor,
então trate de ficar de boca fechada e obedecer, entendeu?
— Vai à merda — o garoto respondeu, e o grupo continuou
trocando ofensas até que seus passos ficaram fora de alcance e
suas vozes se misturaram à balbúrdia geral do falatório no prédio.
Richard soltou o ar com força e afastou a mão de mim. Com o
coração desenfreado e desesperada por ar, saí aos tropeços do
depósito, arrastando meus pertences comigo de qualquer jeito, e me
apoiei contra a parede fria do outro lado do corredor, a respiração
trêmula.
— O exército de demônios da Giovanna, imagino? — foi tudo
que consegui balbuciar quando ele se aproximou de mim com
cautela, olhando na direção que as vozes seguiram.
— Sim.
— O que eles querem comigo? Por que eu virei a droga de um
alvo de repente? Foi um acidente!
— Eu sei — Richard falou com sinceridade. — Provavelmente
foi só mais um dos chiliques da Giovanna, mas… toma cuidado. Ela
sozinha é inofensiva, mas junto com aquele grupo… toma cuidado
— repetiu. — Ainda mais com o Vitor.
— Quem?
— Vitor Cárceres. O idiota que se acha o fodão, mas que não
passa de uma pilha de músculos sem cérebro. Ele sim pode ser um
problema, ainda mais se você acabar chamando muita atenção.
Suspirei pesadamente, me curvando sobre os joelhos. Fechei
os olhos com força, ouvindo, buscando o meu caminho de volta. De
volta ao controle, à razão.
— Eu não tenho tempo pra esse tipo de coisa. Só quero focar
nos estudos e viver a minha vida em paz, já tenho problemas o
suficiente pra lidar.
Problemas de verdade, como contas pra pagar e um avô
doente pra cuidar. Não tinha tempo para um drama adolescente.
Richard inclinou a cabeça para o lado, me olhando com
curiosidade.
— Você não liga mesmo?
Franzi o cenho.
— Como assim?
Mas ele piscou uma vez e sacudiu a cabeça.
— Deixa pra lá. Vamos, eu te acompanho até a saída. Não vai
ser bom dar de cara com eles sozinha logo agora, é melhor esperar
um tempo até a poeira baixar.
Eu ri, mas sem humor.
— Vai virar meu guarda-costas agora?
Voltamos a andar, os olhos de Richard varrendo cada canto por
onde passávamos. E, apesar das circunstâncias, ele sorriu.
— Que tal um amigo? Tá na cara que você é o tipo de pessoa
que se mete em muita confusão, seria bom ter alguém confiável pra
essas situações.
Meu rosto esquentou.
— E eu posso confiar em você?
Torci para que ele não se ofendesse. Eu sabia que era uma
pergunta idiota, ele tinha acabado de me salvar de um grupo de
valentões sem nem me conhecer, mas… o número de pessoas na
minha vida em quem eu podia confiar de verdade era quase nulo.
Então eu precisava de garantias, e todo cuidado era pouco.
Mas, apesar das minhas inseguranças, Richard olhou para mim
com compreensão e… voltou a sorrir. Um sorriso gentil e
tranquilizador.
— Sim, você pode confiar em mim. Além do mais… —
acrescentou — acredite, você não vai conseguir sobreviver sozinha
nesse lugar. As aulas e os professores são ótimos, mas os alunos…
— Soltou uma risada. — Frequentar um hospício seria mais seguro.
Meu rosto esquentou ainda mais enquanto um sorriso tímido
tomava forma em meus lábios. Richard era um garoto bonito. Muito
bonito, o que era desconcertante, mas apesar de não ter muita
experiência ou facilidade em fazer amigos, eu queria acreditar nele.
Queria sua amizade. Precisava dela, se as coisas por ali eram tão
caóticas quanto ele dizia.
— Vou considerar a sua oferta — falei assim que chegamos nos
grandes portões de ferro que davam para a calçada. — E…
obrigada. Por me ajudar. — Por sequer se importar, eu queria
acrescentar. Dificilmente qualquer outra pessoa viria em socorro de
uma desconhecida, ainda mais depois de ser arremessado no chão
por ela.
— Pense com carinho — foi tudo que ele disse em resposta.
Assenti com a cabeça e comecei a me afastar, mas ele
acrescentou:
— Qual é o seu nome?
Parei, olhando por cima do ombro com um sorriso tímido.
— Julieta.
Ele também sorriu, um sorriso muito bonito que exibia os dentes
brancos, e assentiu com a cabeça.
— Foi um prazer te conhecer, Julieta. Até amanhã.
E talvez meu sorriso tenha crescido, só um pouquinho, quando
respondi:
— Até amanhã, Richard.
Capítulo 2
Sexta, 6 de março
Caramba, eu sou péssima em cumprir promessas.
Tudo bem, eu não prometi nada, mas tinha feito um acordo
comigo mesma de que escreveria aqui, detalhadamente, cada dia
do meu ano letivo.
Isso foi há quase uma semana.
Mas não tem problema, meu cérebro é brilhante e, modéstia à
parte, tenho quase certeza de que tenho memória fotográfica pois
me lembro de cada conversa nos mínimos detalhes, então tentarei
fazer um breve resumo de tudo que aconteceu durante a semana.
E, caramba, que semana.
Pra começar, o Intermezzo é incrível. Desde a estrutura do prédio, imensa e exalando
majestade em cada canto, até a qualidade das aulas. Os professores são ótimos e as aulas
são simplesmente incríveis. Maaaaas…
Os alunos são uma merda. Uma bela pilha da mais fedorenta
merda.
Que coisa horrível de se dizer, vocês devem estar
imaginando. E é horrível mesmo, mas é o único adjetivo capaz de
descrever fielmente o caráter daquela gente. Acreditem, eu não diria
isso se não fosse verdade.
Claro, eu também não saí por aí distribuindo ofensas gratuitas a
quem passasse só porque não fui com a cara de ninguém, mas
mesmo depois de apenas cinco dias, já me considero perfeitamente
capaz de julgá-los com propriedade.
O motivo? Bem, é uma história engraçada. Claro, se você gosta
de rir da tragédia alheia, vai achar a história engraçada. Eu acho.
Mais ou menos.
Tudo começou quando anunciaram que as inscrições para o
concurso anual do conservatório estavam abertas. Todos os anos a
diretoria do colégio sede uma competição entre os alunos do
conseratório, a fim de fazer propaganda das aulas de música,
atraindo pessoas de fora. O prêmio? Nada menos do que uma bolsa
de seis meses pra estudar música em Paris com os melhores
professores e profissionais da área.
Eu mal cheguei no conservatório, não conheço ninguém direito ainda, mas não podia
deixar essa oportunidade escapar. Me disseram que apenas os alunos mais experientes e
que estavam ali há mais tempo ousavam fazer a inscrição e encarar a pressão do
concurso, mas não me importei. Era justamente para momentos assim que eu tinha
entrado no Intermezzo: me arriscar, enfrentar todas as dificuldades e inseguranças de
frente. E ser a melhor musicista que eu poderia ser.
Mas é claro que sempre tem um infeliz que tenta te
desencorajar.
Comigo não foi diferente. Eu estava terminando de preencher a
minha ficha de inscrição no intervalo quando uma risada ecoou atrás
de mim. Para mim, percebi assim que me virei.
“Ora, ora, isso sim é novidade”, a garota de olhos turquesa falou com falsa doçura. “Um
dos bichinhos novos vai tentar a sorte no concurso.”
Eu tentei ignorar, tentei de verdade, mas a garota continuou, se
aproximando até parar ao meu lado e bisbilhotar a minha ficha.
“Harpa?”, falou, surpresa. E seu sorriso cresceu. “Mais curioso
ainda.”
“Algum problema com isso?”, perguntei sem rodeios, apesar de
ter que olhar para cima para poder encará-la. “Até onde eu sei
qualquer um pode se inscrever, não importa se é aluno novo ou se
estuda aqui desde que nasceu.”
Nota importante sobre mim: minha paciência pra gente fuxiqueira
é zero.
“Mas eu não disse que você não podia.” Ela puxou a ficha da minha mão na cara dura e
correu os olhos pela folha com um sorrisinho doce. “Vai ser muito interessante ter você
como concorrente. Isso é, se você sequer passar na fase eliminatória. Não é nada fácil,
sabe. Ainda mais pra uma novata.”
Estreitei os olhos e puxei a folha de volta, amassando a borda.
“Isso é problema meu. Por que você não se preocupa com a
sua performance nas eliminatórias ao invés de encher o meu saco?
Imagina se, depois de todo esse discursinho, você acaba não sendo
selecionada?” Exibi o mesmo sorrisinho que ela. “Que morte horrível
para o ego.”
Para o meu eterno deleite, o sorriso da garota diminuiu
consideravelmente, e ela estreitou os olhos para mim também.
“Boa sorte nas eliminatórias” falou simplesmente, mas senti o veneno escorrendo de
cada sílaba. “Aurora”, acrescentou depois de uma pausa, ainda com aquele sorriso
envenenado estampado na cara, e saiu.
E eu, como a pessoa madura que sou, revirei os olhos e mostrei a
língua para as costas da garota que se afastava.
Agora eu pergunto a você, querido leitor: o que podemos concluir
dessa experiência mágica, inspiradora e, sem dúvida nenhuma,
instrutiva?
Eis a resposta:
Os músicos são a pior raça existente do planeta.
Fala sério, quem além do músico consegue ser tão mesquinho,
convencido e com um nariz tão empinado que se acha o deus da
verdade e da razão? Os “insuperáveis” que não se permitem nunca
ser deixados para trás e sentem a necessidade constante de provar
o quanto são habilidosos, melhores que qualquer um que passar em
seu caminho. Os incríveis fodões.
No rabo deles.
E não falo isso apenas por causa da garota que claramente tentou
me intimidar, mas porque a maioria das pessoas no meio musical
com quem já tive contato se encaixam perfeitamente nessas
descrições.
Claro, nem todos são assim. Existem também os músicos
humildes que não diminuem ninguém, preocupados apenas em
cuidar da própria vida, mas são uma raça quase extinta.
Você pode achar exagerado da minha parte falar assim, até
grosseiro, e é livre pra pensar o que quiser sobre o assunto, mas de
qualquer modo, fica aqui o meu conselho, querido leitor:
Se encontrar alguém assim em seu caminho, alguém que tente
te intimidar, te diminuir ou te fazer acreditar que seus esforços não
são o suficiente, não dê ouvidos. Não importa quão talentosa e
experiente a pessoa seja, não acredite por um segundo sequer que
você é incapaz de alcançar seus objetivos. Você consegue. Você
vai conseguir. Apenas dê o seu melhor e não desista, mesmo que a
caminhada seja longa e difícil.
E, se sobrar tempo, mande a pessoa ir à merda. Vai por mim, a
sensação é libertadora!
Capítulo 3
— Como é lá? Os professores são bons? Já fez um monte de
amigos? E os meninos, são bonitos? Já temos um possível
namorado? — minha amiga perguntou tudo de uma vez pelo
telefone.
— Respire entre as perguntas, Jéssica — soltei uma risada
contida enquanto fechava a porta da salinha lateral anexa ao lado
do salão onde acontecia o ensaio da orquestra de Demétrio.
— Respirar? — ela exclamou enquanto eu voltava a me sentar
na cadeira em frente ao computador. — Eu me segurei a semana
inteira pra te poupar do interrogatório! Pretendia fazer as perguntas
pessoalmente amanhã porque queria que você tivesse tempo pra
processar tudo, mas eu não aguento mais, Ju! Vai, acaba com a
minha agonia de uma vez, pelo amor de Deus, antes que meu
coração de fofoqueira tenha um treco.
Mordi a bochecha para segurar outra risada e apoiei o celular
entre o ouvido e o ombro enquanto digitava.
— As aulas e os professores são incríveis, como sempre
ouvimos falar, mas… bom, todo o restante lá é… meio complicado.
Quase pude ouvir as orelhas atentas da minha amiga se
erguendo quando ela perguntou, a curiosidade clara como água em
sua voz:
— Como assim? Aconteceu alguma coisa? Ai, Julieta, não me
diz que em menos de uma semana você já conseguiu arrumar
confusão.
Não respondi. E Jéssica sabia muito bem o que aquele silêncio
significava.
— Conta tudo — falou simplesmente.
Suspirei pelo nariz e me recostei na cadeira, voltando a pegar o
celular e massageando o ombro com a mão livre. Ao fundo, os ecos
abafados da música do próximo concerto da orquestra entravam
pelas frestas da porta.
— Não se anima muito, não — avisei antes de começar a
relatar o meu primeiro dia desastroso no conservatório. E, muito
provavelmente por uma intervenção divina, tinha sido o único.
O restante da semana passou tranquilamente e sem problemas.
Quero dizer, para os meus padrões, claro. Nos últimos cinco dias, as
minhas horas se resumiram a pegar um ônibus atrás do outro, correr
de um prédio a outro e depois até ao trabalho. Não havia nada de
tranquilo nisso. Mas, pelo menos, eu tinha conseguido não causar
um acidente a mais nenhum aluno e também não tive nenhuma
surpresa desagradável no que dizia respeito a Giovanna e seu
grupo de amigos. Devia ter sido apenas um dos chiliques dela,
como Richard disse. Mas, mesmo assim, ele insistia em me esperar
na entrada todas as manhãs. E em passar os intervalos comigo. E
em me acompanhar até a saída.
Eu ainda não sabia o que pensar sobre isso.
Richard era um garoto legal, bonito, e sempre me fazia rir. Era
fácil conversar com ele e tê-lo como amigo... ou mais ou menos
isso. Porque, frequentemente, mais frequente do que eu gostaria de
admitir, ele e aquele… sorriso encantador… me faziam corar. E
quando digo corar, entende-se ficar com as bochechas ardendo em
fogo vivo.
Deixei essa informação de fora da conversa com Jéssica por
motivos óbvios, mas esconder qualquer coisa que fosse dela era
quase inútil. O que os ouvidos aguçados de Jéssica não ouviam, o
espírito fofoqueiro que a habitava adivinhava.
— Nossa, as pessoas lá devem ser malucas então —
comentou, surpresa, assim que terminei. — Por que ficar
perseguindo alguém só por causa de um acidente?
Mordi o lábio.
— Bom, você sabe como os músicos podem ser às vezes. São
pessoas difíceis e… um pouco excêntricas.
— Essa deve ser a pior coisa que você já falou de alguém —
Jéssica riu. — Excêntrico é o rabo dela, essa tal Giovanna deve ser
uma filhinha de papai mimada, isso sim. Toma cuidado, Ju. Não
deixa ela te intimidar, mas toma cuidado.
— Relaxa, não vai acontecer nada.
— Mas toma cuidado mesmo assim. E se ela ousar fazer
qualquer coisa contra você, me avise. Eu e Elias vamos até lá e
acabamos com a raça dela e dos amiguinhos em dois minutos.
Dei risada. Jéssica e Elias, seu marido, faziam parte do
pequeno grupo de pessoas que eu realmente confiava e podia
chamar de amigos.
— Tudo bem, eu prometo.
— Ótimo. Agora me conta… — sua voz adquiriu um tom
malicioso. — Fale mais desse seu amigo novo, Richard. Ele parece
ser… interessante.
Gemi de frustração.
— Por favor, nem começa. Ele é legal e me ajudou a não
arrumar mais confusão, mas é só isso. Não tem mais nada pra falar.
— É claro que por enquanto é só isso, foi apenas a sua primeira
semana. Mas espera até que vocês comecem a se conhecer e se
entender melhor, aí eu quero só ver se ele vai continuar sendo
apenas um “cara legal”.
O que Jéssica não sabia, era que eu meio que já estava
começando a conhecê-lo melhor. Não sabia muito sobre sua vida
pessoal, mas no que dizia respeito às aulas, já sabia quase tudo.
Richard estava no último ano do ensino médio, ali mesmo no
Colégio São Patrício, e tinha se matriculado no conservatório para
se profissionalizar em violão. Ele era bem mais avançado que eu, já
que tinha começado no Intermezzo antes mesmo de sair do ensino
fundamental, e se inscreveu em todas as aulas que se pudesse
imaginar ao longo dos anos, e por isso me deu várias dicas sobre as
aulas da minha grade e os professores.
A experiência e o entendimento que ele tinha sobre tudo que
envolvia música era surpreendente e, sempre que me contava suas
histórias e tudo que já tinha feito, eu ficava de queixo caído. E,
apenas talvez, com os olhos brilhando de admiração. Só um
pouquinho.
Sacudi a cabeça, me livrando daquele pensamento, fechei os
olhos com força e os cobri com a mão livre, as bochechas
esquentando numa velocidade surpreendente.
— Jéssica, não inventa.
Mas ela adorava inventar.
— Aposto que você fica toda vermelha quando conversa com
ele.
— Jéssica! — esganicei, a voz subindo uma oitava.
Minha amiga fofoqueira riu com gosto.
— Ah Ju, relaxa. Não tem problema nenhum ter uma quedinha
por alguém, ainda mais se ele for um cara legal. Você precisa ser
tão séria e controlada o tempo todo, dá uma chance pro seu
coraçãozinho se apaixonar por alguém. Vai te fazer bem, eu tenho
certeza. E você merece e precisa de um pouco de normalidade
adolescente na sua vida.
Suspirei, cansada, apoiei o celular no ombro mais uma vez, e
voltei a digitar no computador. Eu podia muito bem começar o bom e
velho discurso do “não tenho tempo pra isso enquanto me afogo em
contas pra pagar e problemas pra resolver”, mas só resultaria em
outra discussão desgastante. Nenhuma das duas daria o braço a
torcer.
— Quantos eventos a gente tem pra amanhã? — foi o que falei
ao invés, optando por mudar de assunto. Porque, enquanto a
maioria das pessoas descansava nos fins de semana, minha
agenda ficava mais lotada de compromissos do que nunca.
— Seis ao todo. Quatro casamentos, uma boda de um casal
muito idoso, e uma serenata.
— Serenata? Tipo, daquelas debaixo da janela de alguém?
Jéssica riu.
— Isso mesmo. Quando a gente pensa que já viu de tudo, vem
alguém querendo fazer o mais antigo dos clichês românticos.
— Desde que me paguem, aceito até tocar em velórios —
comentei. Coisa que, literalmente, já tinha acontecido.
— Cachê é cachê — Jéssica concordou. — Vou passar pra te
buscar bem cedinho, então não vai dormir muito tarde. Amanhã
conversamos mais sobre o conservatório, tudo bem?
— Tudo bem. Obrigada pela carona, vocês são a minha
salvação.
— Relaxa amiga, você é praticamente da família. Durma bem,
beijinhos. — Mandou vários beijos estalados pelo telefone e
desligou.
Bem que eu queria ir dormir cedo, ou pelo menos ter o mínimo
de horas de sono que toda pessoa normal precisa, mas a realidade
era mais complicada que isso.
Deixei o celular em cima da mesa, trocando pela caneca
fumegante de café, e foquei a atenção na tela à minha frente
enquanto me entupia de cafeína para me manter acordada.
O trabalho de arquivista na orquestra de Demétrio era bem leve
se comparado ao que acontecia nas grandes orquestras. A
demanda não era tão pesada, ainda mais nos horários do ensaio, de
forma que eu aproveitava o tempo livre para adiantar as tarefas e
trabalhos escolares.
Foi-se o tempo em que os tempos livres eram gastos em redes
sociais no celular ou simplesmente pra distrair a cabeça. Pelo
menos para mim. Não, eu aproveitava cada segundo do dia para
diminuir a minha enorme e interminável pilha de afazeres. Não
porque gostava, mas porque se não fosse assim, eu simplesmente
não conseguiria cumprir nenhum prazo de entrega. Era cansativo e
desgastante, sim, mas eu não tinha outra alternativa.
Às vezes eu me perguntava como ainda estava viva.
— Julieta? — alguém me chamou da porta entreaberta de
repente, seguido de batidinhas.
Pisquei, voltando à realidade e desgrudando os olhos da tela.
— Sim? — Me virei na cadeira em direção à porta e avistei o
senhor robusto e cabeludo ali parado. — Ah, Demétrio! Algum
problema? Falta partitura pra alguém?
— Não, problema nenhum. — Ele sorriu. — Na verdade, o
ensaio já acabou.
Arregalei os olhos e saltei da cadeira.
— Acabou? Eu nem percebi! Ai, me desculpa, Demétrio. Acho
que acabei me distraindo com as lições de casa, mas eu já vou
recolher as partituras, termino tudo em cinco minutos. — Me
adiantei até a porta a passos largos.
Demétrio me deu passagem porta afora, mas antes que eu
conseguisse chegar até o palco, voltou a me chamar.
— Julieta, você está bem?
— Como assim?
— O trabalho está muito puxado pra você?
Parei com um solavanco e girei nos calcanhares.
— Puxado? Não, imagina. Por quê? Eu… fiz alguma coisa
errada?
Demétrio continuou ali parado em frente à porta e enfiou as
mãos nos bolsos da calça.
— Não, não é isso. É só que você parece cansada. Se eu
estiver te fazendo trabalhar demais, me avise por favor. Te
sobrecarregar é a última coisa que eu…
— Não, Demétrio, imagina! — interrompi. — O trabalho está
ótimo, eu não tenho do que reclamar. É só que… — Suspirei. — Foi
uma semana intensa. Preciso me acostumar à nova rotina ainda,
com o conservatório e tudo mais.
— Entendo. Bom, se precisar de ajuda com alguma coisa, é só
me dizer.
Eu gostava de Demétrio. Aposentado de seu antigo cargo como
maestro de uma grande e importante orquestra internacional, ele
voltou para o país para ficar perto de seus familiares, de volta às
suas raízes, mas não aguentou ficar muito tempo longe da música.
Apesar de ser famoso e ter grande influência no meio musical, optou
por assumir a orquestra local e humilde da cidade. Ele tratava a
todos com respeito e muito carinho, como se fizessem parte da sua
própria família. Quando soube que eu tinha passado na prova de
admissão do Intermezzo, ele ficou tão feliz e me abraçou tão forte
que achei que uma costela fosse se partir.
— Pode deixar, Demétrio. — Sorri. — Obrigada por se
preocupar.
— Ora, não é nada. Mas vamos terminar com isso rápido. —
Veio na minha direção e seguiu até o palco. Os músicos já tinham
ido embora, restando apenas os equipamentos e partituras a serem
recolhidos.
— Demétrio, não precisa. — Segui atrás dele. — Eu dou conta
de tudo sozinha.
— Ah, eu sei que sim. — Sorriu de volta para mim e começou a
empilhar as cadeiras. — Mas eu também sei que você teve um dia
cheio, deve estar exausta. É o mínimo que posso fazer.
Soltei uma risada cansada, mas não tentei impedi-lo. Eu sabia
que seria uma batalha perdida.
Segui até as estantes e comecei a recolher as partituras,
sentindo uma gratidão enorme por aquele pequeno, e ao mesmo
tempo tão raro gesto de uma mão estendida e pronta para ajudar.
— Obrigada, Demétrio. Você é o melhor.

ʄʅ
— Será que eles já não querem fechar um velório com a gente?
— Elias murmurou baixinho do teclado, olhando para o casal de
idosos que comemorava as bodas de ouro.
— Pelo amor de Deus, Elias, cala a boca! — Jéssica sibilou
com raiva na cadeira ao meu lado.
Comprimi os lábios segurando a risada e ajeitei o cello.
Ninguém prestava atenção em nós naquele momento, enquanto o
senhorzinho careca, em pé em seu lugar na enorme mesa redonda,
fazia um discurso para a esposa sentada ao seu lado, os olhos
brilhando de emoção.
— É só que eles já são bem velhos — Elias continuou, sua voz
mal passando de um sussurro no enorme salão decorado e repleto
dos familiares e amigos do casal, todos trajando roupas elegantes
de gala. — Longe de mim desejar a morte de um casal de velhinhos,
mas nunca se sabe quando um deles pode ter um piripaque de
repente…
— Cala essa boca agora ou eu dou na sua cara! — Jéssica
sussurrou entre dentes, o cabelo vinho ondulado escorregando pelo
ombro quando ela se virou com raiva para o marido.
Elias apenas encolheu os ombros ao mesmo tempo em que o
senhorzinho terminou seu discurso e os convidados aplaudiram
emocionados, a senhorinha de cabelos brancos usando um vestido
de manga comprida azul-marinho se levantando e beijando
carinhosamente o marido no rosto.
Sorri diante daquilo, mas logo me preparei, ficando em posição.
Meus colegas fizeram o mesmo, e Jéssica olhou para mim com o
violino já posicionado. Assenti com a cabeça, bem ciente de que
Elias fazia o mesmo atrás de mim e, puxando uma breve inspiração
como sinal, Jéssica desceu o arco nas cordas do instrumento,
dando início à extensa lista de músicas que tocaríamos naquela
tarde.
Aquele era apenas o terceiro evento do dia. Logo depois, nós
três faríamos uma breve parada em um restaurante ou lanchonete
qualquer que fosse mais perto do nosso próximo destino, e que
estivesse aberto, para um almoço tardio. Correríamos de um
casamento a outro, tocaríamos debaixo da janela de alguém tarde
da noite e aí, por fim, daríamos o expediente por encerrado.
Até o dia seguinte, onde teríamos mais quatro casamentos
aguardando em nossa agenda.
— E seu avô, como está? — Jéssica perguntou no fim do
evento, enquanto desmontávamos os equipamentos para ir embora.
— Emburrado e teimoso como sempre. — Ajeitei as alças da
maleta do cello nos ombros e me abaixei com cuidado para pegar
as estantes de partitura desmontadas no chão.
— Então ele tá ótimo — minha amiga riu enquanto pegava o
suporte do teclado. — Continua reclamando da vizinha?
— Só reclamou dela duas vezes ontem, então acho que
estamos começando a fazer progresso.
— Deus abençoe a dona Josefa. — Jéssica riu de novo e
seguimos para o carro, onde Elias terminava de guardar o teclado
no porta-malas.
— Prontas pra mais um casamento? — falou assim que
guardamos tudo, o cabelo curto liso e castanho-claro balançando
levemente com a brisa.
Respirei fundo como se o gesto, de alguma forma, pudesse
repor um pouco das minhas energias.
— Sempre. — Sorri, confiante, mas me joguei no banco traseiro
do carro, me contorcendo sobre os equipamentos que ocupavam
parte do espaço para conseguir deitar e descansar as costas
doloridas.
— E como está indo o conservatório, Jujuba, tudo bem? —
Elias falou, ligando o carro.
Jéssica mal disfarçou a animação à menção do assunto, se
virando para mim no banco passageiro com um pulo e um sorriso
enorme estampado na cara.
— Eu ia esperar até o almoço pra perguntar, mas… — Os olhos
castanhos dela brilharam, sedentos por uma fofoca.
Suspirei, afastando uma mecha de cabelo do rosto.
— O que querem saber?
— Tudo — Elias falou com um sorriso, manobrando o carro até
a saída do espaço do evento.
— Não poupe nenhum detalhe — Jéssica completou.
Soltei uma risada. Eu não sabia qual dos dois era mais
fofoqueiro, o que os tornavam perfeitos um para o outro. Mas contei
tudo, com o máximo de detalhes que consegui me lembrar,
principalmente sobre as aulas de violoncelo e como a professora
Fabiana era incrível.
— Eu sei que leva tempo até os exercícios mostrarem
resultado, mas juro que já sinto uma diferença enorme no meu som
— falei me levantando, apoiando os braços nos bancos dos dois à
minha frente.
— Que bom Ju, eu fico muito feliz por você. — Jéssica sorriu
com carinho.
Ela sabia o que aquilo significava pra mim, estudar no
Intermezzo. E tinha sido a minha principal fonte de apoio durante os
vários meses em que eu praticamente me matei de estudar para as
provas e audições. Sempre que pensava em desistir ou botava na
cabeça que não era boa o suficiente, ela ficava horas e horas
falando comigo, me aconselhando e encorajando a insistir no meu
sonho. No nosso sonho, eu sabia secretamente.
Quantas vezes eu já não a tinha ouvido falar com suspiros
sonhadores sobre como devia ser incrível ter a chance de entrar no
conservatório? Eu tentava encorajá-la a se matricular em algumas
aulas que a instituição disponibilizava para as pessoas de fora, mas
ela sempre se esquivava. Dizia que não tinha tempo ou, pior, que já
estava muito velha pra isso.
Tá bom, como se os vinte e oito anos daquele mulherão a
transformassem numa velhinha atrofiada.
Mas eu a entendia, de certa forma. Tanto Jéssica quanto Elias
eram músicos incríveis, e ganhavam a vida tocando em eventos e
dando aulas particulares de violino e teclado. A rotina deles era tão
lotada, agitada e conturbada quanto a minha, sempre com cada
centavo contado, mas eu queria muito que minha amiga, uma das
únicas que eu tinha, um dia também tivesse a oportunidade de
vivenciar aquela experiência. De andar por aqueles corredores, de
ouvir a algazarra de sons que preenchiam cada canto do prédio. De
estudar no melhor conservatório de música do país.
Tão perto, mas ainda assim tão longe, ela brincava sempre que
o assunto surgia, mas eu via o desejo brilhando em seus olhos.
— Tem algum professor gato? — minha amiga soltou de
repente com um sorriso interesseiro.
— Ei! — Elias se virou para ela em choque, os olhos verdes de
azeitona arregalados.
— Ah, por favor! — Jéssica semicerrou os olhos em desafio. —
Acha que eu não vi como suas orelhas ficaram de pé quando a
Julieta falou como a professora de violoncelo é linda e perfeita?
O rosto de Elias empalideceu levemente. Jéssica apenas sorriu,
triunfante, e voltou a me encarar, esperando a resposta.
Eu não queria causar discórdia na relação dos dois, mas os
conhecia bem o suficiente para saber que nenhuma discussão séria
sairia daquilo. Eles se amavam com a mesma intensidade que
trocavam patadas.
— Olha, até que tem um professor bem gato — confessei,
rindo, e comecei a falar do professor De Lucca e seu senso de
humor descontraído.
Jéssica mordeu o lábio inferior, mal contendo a animação
enquanto ouvia tudo atentamente, e Elias bufou sacudindo a
cabeça:
— Que Deus me ajude com vocês duas.
Capítulo 4
— O que tá acontecendo? — falei como cumprimento, me
aproximando de Richard na segunda-feira depois do almoço
enquanto uma multidão de alunos se acumulava na janela da
secretaria.
Ele estava parado a uma certa distância do aglomerado com
uma expressão pensativa estampada em seu rosto, a alça da capa
preta do violão pendurada em um ombro.
— É o concurso — murmurou, olhando rapidamente para mim
antes de voltar a encarar a multidão. — Abriram as inscrições há
poucos minutos e todo mundo quer participar. O vencedor ganha
uma porrada de dinheiro, além de uma bolsa de estudos pra estudar
música fora do país.
Arqueei as sobrancelhas, surpresa.
— Concurso? Eu não sabia que aqui tinha esse tipo de coisa.
— Não tem. — Franziu as sobrancelhas. — Quero dizer, faz
tempo desde a última vez que fizeram algo do tipo. Anos.
— Por quê?
— Parece que não acabou muito bem. Uma briga ou algo do
tipo, eu não sei direito. Faziam esse concurso todos os anos, mas
pelo jeito o último foi ruim o suficiente pra tirarem do calendário de
vez. Bom… — indicou a multidão com a cabeça — pelo menos até
agora.
Observei o aglomerado de alunos também, inquietos e ansiosos
até chegar sua vez de fazer a inscrição.
— Você vai participar? — perguntei depois de um tempo.
Richard mexeu os pés, trocando o peso do corpo, e ajeitou a
alça da capa do violão no ombro. Parecia pensativo e ansioso.
— Eu não sei, eu… preciso falar com o meu professor antes.
Saber o que ele acha disso. Participar desse concurso não é
brincadeira, ele... muda as pessoas. A competitividade muda as
pessoas. Então, não sei se vale a pena.
Pensei na garota que tinha tentado me intimidar na semana
anterior, Giovanna, em como ela fez questão de se impor por causa
de uma besteira, e seu grupo de amigos. Com certeza eles estariam
nesse concurso impondo sua autoridade, e se empenhariam ao
máximo para aterrorizar aqueles que fossem considerados uma
ameaça aos seus olhos.
— Entendo — me limitei a dizer, cruzando os braços e
encolhendo os ombros.
É claro que o concurso não tinha essa finalidade, mas a
competitividade realmente mudava as pessoas, na grande maioria
das vezes pra pior. E músicos eram naturalmente competitivos,
sempre buscando a perfeição para serem os melhores no que quer
que fizessem.
Vendo por esse ponto de vista, aquele concurso era como uma
declaração de guerra. Uma versão musical dos Jogos Vorazes.
— E você? — Richard falou de repente. — Vai participar?
Dei risada.
— É claro que não. Minha cota de trabalhos e obrigações já tá
no limite. Só quero focar nas aulas e sobreviver ao semestre com
boas notas.
Ele me olhou, pensativo e curioso.
— Os professores estão muito exigentes?
Pisquei. Não tinha contado a ele a loucura que era a minha
vida. Por isso, apenas colei um sorriso amarelo na cara esperando
ser convincente o suficiente, e respondi:
— Isso. Ainda tô me acostumando à rotina daqui.
Deve ter funcionado, pois Richard sorriu.
— Bom, então pelo jeito seremos os únicos a não entrar no
matadouro.
Dei risada.
— Pelo jeito seremos.

ʄʅ
— Julieta, eu gostaria que você participasse do concurso.
— O quê?! — exclamei com os olhos arregalados, quase
caindo da cadeira.
Se a professora Fabiana, sentada à minha frente, ficou
surpresa com o meu choque, não demonstrou.
— Eu normalmente não pediria isso a um aluno que acabou de
chegar… — ela continuou, inabalável, e cruzou as pernas longas
cobertas pelo macacão vermelho folgado. — Mas eu realmente
acredito que você se sairia bem. Você melhorou muito desde a
última vez que nos vimos. Aprende as coisas rápido e é nítido que é
muito dedicada.
Eu tinha acabado de tocar para ela os exercícios da última aula.
Estava orgulhosa por ter conseguido sobreviver à primeira semana
e ter cumprido todas as tarefas, tanto do colégio quanto do
conservatório, dentro dos prazos, mas agora a única coisa que
enchia o meu peito era desespero.
— Obrigada, mas… o que isso tem a ver com o concurso? —
Ignorei a quentura no rosto que com certeza tinha deixado minhas
bochechas vermelhas diante de seu elogio.
Ela, no entanto, deu de ombros.
— Você quer ser uma violoncelista profissional, não quer?
Participar de coisas assim faz parte do processo. Mesmo que não
vença o primeiro lugar, o que realmente é muito difícil conseguir logo
de cara, adquire experiência. E isso é o mais importante. Mas, cá
entre nós… — Se inclinou levemente na minha direção. — Não me
surpreenderia em nada se você vencesse. Não falo isso por mim,
mas porque te vendo tocar… eu realmente acho que você tem
potencial.
Reprimi um gemido de frustração.
— Seus outros alunos também vão participar? — Eu ainda não
tinha conhecido nenhum pessoalmente, mas sabia que ela tinha
uma agenda de aulas cheia.
— Alguns. A maioria quer participar, mas… nem todos estão
prontos pra algo desse tamanho — confessou. — Quero dizer, todos
os meus alunos são ótimos, muito dedicados e serão músicos
excelentes no futuro, mas… ainda falta uma certa maturidade para
um ou outro. Não que isso os impeça de fazer o que lhes der na
telha — bufou, revirando os olhos.
— Como assim?
A professora Fabiana suspirou, puxando os cabelos longos por
cima de um ombro.
— O concurso é livre, Julieta. Eu posso tentar te convencer a
participar, mas não posso te obrigar a fazer nada que você não
queira. E a mesma regra vale pro outro lado. Por mais que eu
recomende a alguns alunos que esperem até o próximo ano, se
resolverem ignorar os meus avisos e se inscreverem mesmo assim,
eu não posso fazer nada. É restrito aos alunos do conservatório,
sim, mas o concurso não tem vínculo com as aulas ou com os
professores de música. Se você aceitar o meu conselho de
participar, eu me comprometo a te ajudar com os ensaios, mas só
porque a ideia foi minha. Nada além disso. Não posso interferir em
mais nada.
— E aqueles que se inscreverem apesar dos seus avisos? Vai
ajudá-los com os ensaios também?
Seu olhar ficou severo, quase sombrio.
— Eu já deixei bem clara a minha opinião sobre o assunto com
os mais teimosos. Se ainda assim fizerem como bem querem, o que
quer que aconteça com eles nesse concurso não será problema
meu.
Engoli em seco. Eu já adorava a professora Fabiana, mas
também era bem consciente de que tinha que ser muito louco da
cabeça pra desobedecer aquela mulher.
— Então você acha que vale a pena só pela experiência? —
perguntei com cautela, me remexendo no assento. — Se eu
participar e não ganhar nem o terceiro lugar, você não vai ficar
decepcionada comigo?
— É claro que eu não aceitaria nada menos do que o seu total
comprometimento, ainda mais se eu vou te ajudar com os ensaios,
mas… não, eu não ficaria decepcionada.
Suspirei.
Aquilo era uma má ideia. Uma péssima ideia, por milhares de
razões diferentes.
Fechei os olhos, respirando fundo. E aquelas palavras, que eu
tinha ouvido há muito tempo, teimaram em invadir meus
pensamentos.
Promete que nunca vai se esquecer disso, Julieta… Eu quero
que você seja melhor…
Sacudi a cabeça, me livrando daquelas lembranças, e abri os
olhos.
— Eu… vou pensar — falei por fim. —Tudo bem?
A professora suspirou, parecendo chateada, mas assentiu com
a cabeça.
— É claro. Só pense com carinho, sim? — pediu.
Forcei um sorriso, torcendo para parecer convincente e, com o
coração apertado e nem um pouco orgulhosa do que estava prestes
a fazer, menti.
— Pode deixar.

ʄʅ
Estava na secretaria, encarando a ficha de inscrição em branco
nas mãos, quando uma garota apareceu e pediu uma cópia para a
secretária. Olhou para mim por um momento com um sorriso
educado, que respondi, e voltei a atenção para o papel à minha
frente.
— Eu não recomendo ficar pensando muito no assunto — a
garota falou de repente, me fazendo erguer os olhos mais uma vez.
Ela encarava a minha ficha em branco. — Se vai se inscrever pro
concurso, é melhor fazer isso logo antes que perca a coragem. Pelo
menos, é o que eu tô fazendo. — Sorriu, nervosa.
— Eu não vou me inscrever. — Ou, pelo menos, não pretendia.
— Só… fiquei curiosa. — Dobrei o papel várias vezes e enfiei no
bolso da calça.
— Meu nome é Mariana — ela falou enquanto preenchia a
ficha, e me olhou pelo canto do olho. — E o seu?
— Julieta — respondi meio sem jeito.
— Que nome bonito. — Sorriu.
Corei, as bochechas ficando quentes.
— O-Obrigada. — Comecei a retorcer os dedos. — Pelo jeito
você tá bem confiante com o concurso. Eu não conseguiria sentir
nada além de pavor.
O sorriso dela cresceu.
— Nem tanto. Faz muito tempo que não acontece nada do tipo
aqui, então a galera tá uma confusão só de sentimentos. Eu,
inclusive. — Riu, afastando o cabelo castanho-dourado do rosto. —
Mas não deve ser muito diferente do recital de fim de ano. Pelo
menos, eu tento pensar que não, isso me deixa mais tranquila.
— Você estuda aqui há muito tempo?
— Há cinco anos. Desde os doze. — Terminou com a ficha,
entregou para a secretária e se virou para mim. — Mas acredite, o
frio na barriga de se apresentar no recital nunca vai embora. Parece
ruim, mas eu adoro. A adrenalina ajuda muito na hora de subir no
palco. E você? — perguntou conforme seguimos até a saída. —
Estuda aqui há quanto tempo?
Soltei uma risada nervosa.
— Uma semana.
Mariana parou, os olhos arregalados fixos em mim.
— Agora entendi por que você não quer se inscrever. Seria
assustador mesmo enfrentar algo desse tamanho logo de cara.
— Minha professora achou que seria bom, pelo menos pela
experiência. Acha que é muita loucura?
Seu olhar desviou rapidamente para a maleta do cello nas
minhas costas.
— Normalmente? Sim, muita. Mas… se a professora Fabiana
acha uma boa ideia, eu não sou ninguém pra discordar.
Arqueei as sobrancelhas.
— Você é uma das alunas dela?
— Ah, não. Tenho amigos que são, por isso a conheço. E seu
temperamento — riu. — Mas eu? Eu faço parte da família dos
sopros. Flauta transversal sempre foi a minha paixão. — Exibiu um
sorriso orgulhoso quando chegamos nos grandes portões de ferro.
— Bom, boa sorte com os estudos. E pensa bem sobre o concurso.
Se a Fabiana confia que você vai se dar bem, então com certeza é
verdade. — Me lançou uma piscadela sobre o ombro e seguiu pela
calçada, acenando.
Sorri, envergonhada.
— Boa sorte pra você também, Mariana. — Acenei de volta
enquanto ela se afastava e virava a esquina.
— Ei, Julieta! — alguém falou atrás de mim. Richard. —
Desculpa por não te acompanhar até a saída hoje. — Se aproximou
e fez uma careta. — Fiquei meio enrolado na última aula.
— Falou com o seu professor de violão?
— Exatamente. — Suspirou. — Ele ficou tentando me
convencer a participar do concurso.
— É, eu também passei por algo do tipo — confessei.
Richard piscou, surpreso, mas falou:
— Quer dizer que agora somos rivais?
Arregalei os olhos.
— Você vai participar?
— É, eu sei. — Richard bufou, descontente. — Ainda não gosto
muito da ideia, mas meu professor insistiu tanto que, em parte, só
aceitei pra que ele calasse a boca. Mas, sabe… — Ajeitou a alça do
violão no ombro e coçou o pescoço. — Em uma coisa ele tem razão:
é meu último ano aqui, não terei outra oportunidade como essa tão
cedo.
— Ah… entendo. Bom, eu te desejo boa sorte então. — Sorri.
— Vou torcer por você… da plateia.
Ele piscou, confuso.
— Mas você não disse que…
— Sim — interrompi. — A professora Fabiana também tentou
me convencer a participar, mas… — encolhi os ombros — sei lá,
acho que isso não é pra mim.
Por mais que aquela vozinha no fundo da minha mente ficasse
repetindo você prometeu, você prometeu, você prometeu.
— Entendi. — Richard sorriu. — Bom, pelo menos agora que
alguém legal vai estar assistindo, vou me empenhar em dobro.
Tóquio, aqui vou eu!
Pisquei.
— Tóquio?
— Sim. — Os olhos de Richard brilharam. — Além de uma
quantidade obscena de dinheiro, o grande vencedor ganha uma
bolsa de estudos de música por seis meses no Japão.
Ah, nossa. Que conservatório humilde com prêmios mais
humildes ainda.
— Vou torcer em japonês por você então — assegurei, fazendo
ele rir.
— Fez uma amiga nova? — perguntou de repente. — Eu vi
vocês duas de longe agora há pouco. Ela é da sua turma?
— Ah, não. Acabamos de nos conhecer, ela também vai
participar do concurso. Parece ser legal, ela toca…
Parei de falar quando meu celular começou a tocar. Olhei a tela
de relance e, por um momento, senti meu coração parar.
— Dona Josefa? — falei assim que atendi, me virando de
costas para Richard. — Tá tudo bem?
— Oh, meu bem… — minha vizinha choramingou, a voz
trêmula. — Eu tive que chamar uma ambulância, não sabia mais o
que fazer.
O mundo ao meu redor pareceu desabar, e um zumbido alto
ecoava em meus ouvidos.
— O que aconteceu? — Minha voz não passava de um
sussurro trêmulo. — Dona Josefa, o que…
Senti Richard se aproximar de mim por trás, mas eu não
conseguia me mexer. Estava petrificada.
— Eu estava cuidando das flores no meu jardim quando seu
avô saiu de casa. — Dona Josefa falou, tentando manter a calma.
— Avisei que não deveria ir para a rua, mas ele começou a
resmungar que só queria tomar um pouco de ar, e o resmungo
desandou em uma série de reclamações sobre eu ser enxerida. Eu
o ignorei, e já estava voltando para dentro, quando ouvi algo
estranho. Parecia um gemido de dor. Me virei e, do outro lado da
mureta, seu avô tinha caído de joelhos e segurava o peito com
força. Corri pra dentro e chamei a ambulância.
Não. Não, não podia ser verdade. Simplesmente não podia…
— Como ele está? — Minha respiração ficava cada vez mais
acelerada. — Dona Josefa, como ele…
— Meu filho apareceu para me fazer uma visita enquanto eu
chamava o socorro e está com ele fazendo tudo que pode, mas
ainda estamos aguardando a ambulância. Sei que você não pode
fazer nada, é só uma menina, meu Deus, mas… Julieta, venha
rápido. — E desligou.
Eu não conseguia respirar. Não conseguia respirar…
— Julieta, o que foi? — alguém falou em algum lugar perto de
mim enquanto erguia meu rosto. Minha visão estava embaçada,
mas reconheci os traços preocupados de Richard. — Tá tudo bem?
Meu avô… Meu avô estava…
Pisquei, focando a visão, e senti a lágrima escorrendo pela
minha bochecha antes de me dar conta de que estava chorando. Me
afastei de Richard e atravessei os portões do conservatório,
andando sem rumo pela calçada enquanto erguia o celular e
chamava um Uber num pânico silencioso, mecânico.
Meu avô… Meu avô…
— Julieta! — Richard chamou, vindo atrás de mim. — O que foi
que aconteceu? Precisa de ajuda? Pelo amor de Deus, diz alguma
coisa! — Me segurou pelos ombros, buscando meus olhos.
Mas eu não conseguia falar. Não conseguia pensar…
— Meu avô… — me ouvi murmurar, distante, enquanto sentia
as lágrimas quentes rolarem pelo meu rosto. — Meu avô…
— Merda. — Richard sibilou ao mesmo tempo em que um carro
parava no meio-fio.
— Senhorita Julieta? — o motorista falou.
— Vamos. — Richard me guiou pela calçada, mas não lembro
de como fui parar dentro do carro, nem do que aconteceu com os
meus pertences, nem do caminho até o hospital que dona Josefa
ligou avisando que estavam. Foi Richard quem atendeu a ligação e
quem instruiu ao motorista a localização do novo endereço, já que
eu não conseguia me obrigar nem a piscar.
Por favor… por favor, Deus… não tire de mim a única pessoa
que sobrou na minha vida. Por favor…
Capítulo 5
Ah, esqueça isso, Andréia!, as palavras duras do meu avô me
vieram à mente, uma lembrança de uma discussão entre ele e
minha mãe que eu tinha ouvido escondida atrás da porta quando
era criança. Use a cabeça e crie algum juízo! Eu só estou pensando
no seu próprio bem. No seu e no da menina. Desista dessa
estupidez de música de uma vez por todas e arranje um emprego
decente. Um emprego de verdade, com um salário de verdade. Já
não foi ruim o suficiente ser abandonada por aquele idiota do seu
marido? A Julieta já perdeu o pai, quer que ela perca a mãe
também?
Eu vou conseguir, pai, foi a resposta da minha mãe, irredutível,
mas com a voz trêmula. Eu sei que vou. Sei que para o senhor isso
é quase impossível, mas… por favor, acredite em mim. É só isso
que eu peço.
Lembrei do olhar contrariado que ele lançou à minha mãe, a
incredulidade, a raiva e a decepção estampadas em seu rosto. O
olhar de alguém que nunca apoiou a decisão da filha de seguir
carreira na música, nem nunca apoiaria.
Uma mão segurou a minha de repente, me despertando e
trazendo de volta à sala de espera fria. Richard. Ele não saiu do
meu lado em nenhum momento, desde que chegamos no hospital.
Dona Josefa e seu filho, Marcelo, um homem alto de cabelos
pretos e alguns fios grisalhos nas laterais, já estavam à nossa
espera quando chegamos, mas não haviam tido notícias desde que
os médicos levaram meu avô, então só nos restava sentar e
esperar.
Como se fosse fácil. Como se a única família que me restasse
não estivesse atrás daquelas portas, inconsciente numa maca entre
a vida e a morte.
Apertei a mão de Richard de volta, quente e acolhedora em
contraste com a minha, fria e trêmula, desesperada por um pouco
de consolo diante daquela confusão, quando um senhor vestindo
jaleco saiu pelas portas duplas do pronto-socorro e veio até nós.
Me levantei num salto, as pernas bambas, bem consciente de
que a adrenalina do medo era única coisa que ainda me mantinha
em pé.
— Como ele tá? — balbuciei mais do que falei. — Meu avô tá
bem?
— Como já devem saber, o senhor Aurélio teve um infarto — o
doutor falou. — Na idade dele isso é mais arriscado e delicado que
o normal, mas felizmente conseguimos reverter o quadro a tempo.
Ele está medicado e ainda não acordou, mas está estável. Vamos
monitorá-lo por uns dias, por segurança, mas acredito que ficará
bem.
Senti como se um peso do tamanho do planeta saísse de cima
de mim.
Mas mal tive tempo de respirar com alívio quando ele
prosseguiu:
— Ele não estava respondendo aos medicamentos
convencionais, então tivemos que fazer uma cirurgia de emergência.
Infelizmente… — correu os olhos pela prancheta que tinha em mãos
com um semblante tenso — seu plano de saúde não cobre esse tipo
de procedimento.
Ele me estendeu um documento, que informava o valor, tanto
da cirurgia quanto dos remédios que meu avô precisaria para
continuar o tratamento no coração…
Meus olhos arregalaram, e por um momento senti meu próprio
coração parar. O mundo despencou e eu sentia que podia
despencar junto com ele a qualquer momento.
Cirurgias eram caras. Muito caras. Estava feliz que o doutor
tinha feito de tudo para salvar a vida do meu avô, mas… eu não
tinha aquele dinheiro. Não tinha nem metade da metade daquele
valor.
O que eu ia fazer?
— Julieta… — ouvi alguém falar, mas a voz parecia distante.
Me afastei dali, mal conseguindo respirar, até que as cadeiras
da sala de espera entraram no meu campo de visão e deixei meu
corpo desabar.
— Como eu vou… eu não tenho… e agora, o que eu…?
— Muito obrigada, doutor, nós assumimos daqui — minha
vizinha falou. — Calma, meu amor. — O vestido florido de dona
Josefa apareceu diante de mim, sua mão fina e enrugada
acariciando meu cabelo. — Vamos dar um jeito. Nós vamos te
ajudar, não se preocupe.
Se eu não estivesse em choque, teria dado risada. Uma risada
de completo desespero.
Eu sabia que ela também não tinha aquele dinheiro. Minha
vizinha, apesar de ter um coração enorme, tinha uma vida e uma
condição financeira tão humilde e simples quanto a minha. Por mais
que ela quisesse ajudar, coisa que eu não podia aceitar quando
sabia que isso afetaria seu próprio sustento, ainda não seria o
suficiente.
Meu salário todo praticamente ia para as contas e mercadorias
de casa, e a aposentadoria do meu avô mal cobria as despesas dos
remédios que ele já tomava. Mais remédios então… e uma
cirurgia…
Eu estava perdida. Completamente perdida.
Mas me obriguei a respirar. E a pensar.
Fiz uma nota mental de bisbilhotar a poupança do meu avô —
danem-se os escrúpulos, eu estava desesperada demais para me
envergonhar de invadir sua privacidade — e de sacar cada centavo
guardado na minha própria conta, o que não era muito. Teria que ir
ao banco ver se conseguiria um empréstimo, imploraria a Jéssica
que me passasse todos os eventos que conseguisse nos próximos
meses e veria com Demétrio se ele podia me dar um adiantamento
no salário, pelo menos para que eu conseguisse pagar a primeira
parcela da conta do hospital, que já era um valor considerável.
Pisquei e ergui a cabeça de repente. Demétrio.
Droga, àquela hora eu já deveria estar no trabalho.
Saquei meu celular do bolso às pressas e um papel dobrado
veio junto, caindo no chão. Disquei rapidamente o número e
levantei, indo de um lado para o outro na sala de espera enquanto
esperava o velho maestro atender a ligação.
— Julieta, você tá bem? — Richard veio atrás de mim,
preocupado. Dona Josefa e o filho também me olhavam, perto das
nossas coisas largadas a um canto, instrumentos e mochilas, com
os rostos tensos. — É melhor sentar, você ainda tá em choque.
Ignorei e continuei zanzando pela sala de espera com o celular
na orelha. Eu não tinha mais tempo pra choque, tinha que dar um
jeito de resolver aquele problema.
Após explicar rapidamente a Demétrio o que tinha acontecido e
pedir muitas desculpas por ter que faltar do trabalho naquele dia —
que ele censurou, dizendo que eu não devia me preocupar com isso
num momento tão delicado, e me assegurou de que veria como
poderia ajudar — desliguei a ligação num suspiro cansado, já
procurando o nome da minha amiga na lista de contatos.
Até que Richard parou na minha frente, me impedindo de
continuar a andar em círculos.
— Ei. — Me segurou pelos ombros, me obrigando a olhar para
ele. — Será que dá pra parar com isso? Você vai acabar tendo um
ataque de nervos se continuar pilhada desse jeito. Eu sei que é
muita coisa pra digerir, mas tenta se acalmar um pouco.
— Eu não tenho tempo pra isso — falei, séria, adotando uma
postura dura que sempre me obrigava a manter quando tinha algum
problema. Um lado meu que pouquíssimas pessoas já tinham visto.
— Preciso resolver essa situação o mais rápido possível, então não
tenho tempo pra me acalmar. Ou pra ter um ataque de nervos. —
Me afastei de suas mãos e voltei minha atenção para o celular.
Mas Richard o tirou das minhas mãos.
— Julieta, qual é! Você não tem que fazer tudo sozinha.
— Richard, devolve! — Tentei recuperar o aparelho, mas ele o
ergueu acima da cabeça, tirando do meu alcance. Pulei e estiquei o
braço o máximo que pude, mas eu era baixinha, ainda mais perto
dele.
— Eu sei que você tá sensibilizada... — falou, ainda com meu
celular nas alturas — e com medo pelo que aconteceu com o seu
avô, mas esse peso não é seu pra carregar sozinha.
— Você não sabe do que tá falando. — Pulei de novo com os
dentes trincados, mas mal cheguei na altura de seu cotovelo.
Ora, mas que droga!
— Por que vocês dois não se sentam? — Marcelo falou com
cautela. — Vamos falar sobre isso com calma, desse jeito vocês só
vão…
— Me devolve isso agora! — exigi após mais uma tentativa
falha, cerrando os punhos ao lado do corpo e me sentindo tão alta
quanto um smurf.
— Só depois que você se acalmar — Richard falou, inabalável,
e pulei de novo, dessa vez usando seu ombro para dar impulso,
mas só avancei alguns poucos centímetros. — Ou até seus pais
chegarem, o que vier primeiro.
Parei, meu corpo inteiro enrijecendo. Dona Josefa arquejou
baixinho, uma mão cobrindo a boca para esconder a surpresa, e seu
filho ao lado se manteve num silêncio pesado, o rosto tenso nos
observando. Eles sabiam sobre mim. Sobre a minha história e a
minha situação.
— Qual é o problema? — Richard perguntou, confuso,
enquanto olhava de um para outro, o braço erguido voltando
lentamente para baixo.
Olhei para ele com irritação, mesmo sabendo que não tinha
falado aquilo por mal. Diante de tudo que estava acontecendo, me
controlar ficava cada vez mais difícil.
— Ainda não entendeu? — falei, fervilhando. Richard não
respondeu, apenas me encarava, buscando a resposta em qualquer
que fosse a expressão em meu rosto. Então falei de uma vez: —
Não tem ninguém. Ninguém vai chegar pra resolver essa situação.
— Respirei fundo, mas minha voz saiu trêmula quando completei: —
Sou só eu.
A expressão dele se alarmou, a compreensão o atingindo aos
poucos. Mas não dei chance para que dissesse qualquer coisa.
— Preciso ver meu avô. — Disparei pelo corredor atrás de uma
enfermeira.
Ninguém ousou me seguir.

ʄʅ
— Você vai conseguir — sussurrei enquanto encarava os olhos
fechados da única família que tinha me restado, uma máscara de
oxigênio fixa em seu rosto. Vários acessos pendiam de seus braços
e peito, o ligando a máquinas e dispositivos de monitoração,
produzindo beeps suaves vez ou outra. — Você é forte. E teimoso e
um tremendo cabeça-dura. Então você vai conseguir. Não é uma
opção.
Meu avô permanecia inconsciente, ainda sob efeito da
anestesia da cirurgia de emergência, mas a máquina que
monitorava seus batimentos cardíacos era constante e ritmada
como um relógio.
Ele está vivo, eu ficava repetindo mentalmente para mim
mesma. Está vivo. Está vivo.
E talvez fosse a tensão do momento, ou apenas desgaste
emocional, mas aquelas lembranças que tinham circulado meus
pensamentos na sala de espera voltaram com força total.
Eu estava escutando atrás da porta enquanto minha mãe e meu
avô discutiam. Tínhamos acabado de nos mudar para a casa dele,
logo depois de termos sido abandonadas pelo meu pai.
Meu avô tentava convencer minha mãe a “arrumar um emprego
de verdade”, como ele não parava de repetir, mas não importava o
que dissesse, que argumentos usasse para fazer a cabeça dela, ela
não cedia. Não desistiria de ganhar a vida como musicista.
— Mas e a Julieta? — ele falou de repente, talvez como uma
última tentativa. — O que você ganha tocando em casamentos mal
dá pra se sustentar, como espera conseguir cuidar da menina?
— Eu vou dar um jeito, pai — ela respondeu, irredutível. — Vou
arranjar mais eventos pra tocar, dar aulas. A Julieta vai ficar bem, eu
garanto isso ao senhor.
— Mais eventos? — ele exclamou, incrédulo. — Você não tem
mais tempo pra tocar em mais eventos. Não tem tempo pra fazer
mais nada! Esse trabalho, ou seja lá o que isso for, exige
praticamente tudo de você, você mal para em casa! E ganha muito
pouco pra sustentar uma casa, pra sustentar sua própria filha!
Mamãe, por um momento, não falou nada. Apenas o encarava
com os olhos brilhando de lágrimas.
— Uma orquestra na capital abriu vaga pra novos músicos —
ela balbuciou. — Talvez eu consiga…
— Ah, esqueça isso, Andréia! — ele esbravejou. — Use a
cabeça e crie algum juízo! — Respirou profundamente, apoiando as
mãos nos quadris e, quando voltou a falar, controlou o tom de voz.
— Eu só estou pensando no seu próprio bem. No seu e no da
menina. Desista dessa estupidez de música de uma vez por todas e
arranje um emprego decente. Um emprego de verdade, com um
salário de verdade. Já não foi ruim o suficiente ser abandonada por
aquele idiota do seu marido? A Julieta já perdeu o pai, quer que ela
perca a mãe também?
Uma lágrima escorreu pelo rosto pálido da minha mãe,
contorcido de dor. E lembro de ter sentido os meus próprios olhos
queimarem de lágrimas também. Eu não gostava de ver minha mãe
chorar. Não era certo.
— Eu vou conseguir, pai — ela falou por fim com a garganta
oscilando, a voz trêmula, mas os punhos cerrados com força ao lado
do corpo. — Eu sei que vou. Sei que para o senhor isso é quase
impossível, mas… por favor, acredite em mim. É só isso que eu
peço.
Meu avô respirou fundo mais uma vez, olhando-a de cima a
baixo e sacudindo a cabeça, contrariado.
— Quer saber? Faça o que você quiser. A vida é sua pra
desperdiçar. Mas pense na sua filha. Se pouco importa o que
acontece com você, pense no estrago que vai causar na vida dela
se comportando assim, insistindo nessa fantasia. Pense em como
isso vai afetá-la, pelo menos uma vez.
Use a cabeça e crie algum juízo.
Pense no estrago que vai causar se comportando assim,
insistindo nessa fantasia.
Pense em como isso vai afetá-la, pelo menos uma vez.
Aquelas palavras severas ficavam rodando minha mente, de
novo e de novo e de novo. Tinham sido direcionadas à minha mãe,
mas…
Meus olhos encheram de lágrimas, e respirar ficou difícil. Tive
que morder o lábio com força para impedi-las de cair, cerrei os
punhos nos joelhos, me obriguei a respirar fundo e me ajeitei na
cadeira, me aproximando mais do meu avô até alcançar sua mão
enrugada.
— Vai ficar tudo bem — funguei, apertando seus dedos. — Eu
vou dar um jeito nisso tudo, o senhor vai ver. Eu prometo. Então não
se preocupe com nada, ok? Apenas descanse. Vai ficar tudo bem —
repeti, mais para mim mesma do que para ele. — Vai ficar tudo bem.

ʄʅ
— Querida, como ele está? — Dona Josefa perguntou assim
que voltei para a sala de espera. Os três ainda estavam lá, os rostos
ansiosos.
Não ousei encarar Richard por um tempo.
— Ainda sob efeito da anestesia. Mas bem. Obrigada pela
ajuda, dona Josefa, se não fosse por vocês… — Eu nem queria
pensar no que teria acontecido.
— Não foi nada, ficamos felizes em poder ajudar — Marcelo
falou, e se virou para a mãe. — Se ele está bem, então acho que já
podemos ir embora. Vamos, eu vou buscar o carro.
— Venha, meu bem, nós levamos você. — Dona Josefa
ofereceu a mão para mim.
— Obrigada, mas… acho melhor eu passar a noite aqui.
Três pares de olhos se arregalaram para mim.
— Mas, querida, você deve estar exausta.
— Eu vou ficar bem.
— Não, não vai — Richard falou. — Julieta, você teve um dia
muito agitado, precisa descansar.
Sacudi a cabeça.
— Eu preciso ficar e me assegurar de que…
— De que o quê? — ele me interrompeu com cuidado. — O que
você pode fazer? Olha, eu sei que você tá acostumada a assumir o
controle da situação, ok? Agora eu entendo isso, mas… não tem
nada que você pode fazer agora, Julieta. Seu avô vai ficar bem aqui,
os médicos vão ficar de olho nele. Vão cuidar dele. Mas você
precisa descansar, pensar no seu bem-estar também.
Soltei algo parecido com uma risada cansada.
Pensar no meu bem-estar, tá bom.
— Quando foi a última vez que se preocupou com você
mesma? — Richard falou, no entanto, e pelo olhar da minha vizinha
percebi que ela andou contando algumas coisas a ele. — Ou que
alguém se preocupou?
Pisquei. E percebi que não tinha uma resposta para aquilo.
— Você pode voltar amanhã pra ver seu avô — continuou — e
eu vou ficar mais do que feliz em vir junto te fazer companhia,
mas… hoje você precisa descansar.
— Ele tem razão, meu bem — dona Josefa falou com cuidado.
— Eu dei seu número para o pessoal da recepção, eles me
asseguraram de que vão ligar caso tenham qualquer notícia do
quadro do seu avô. Por enquanto, só podemos esperar.
Eu sabia daquilo. Sabia que, por mais que quisesse, não podia
fazer nada, não tinha controle nenhum de qualquer coisa ali. E isso
só me deixava ainda mais ansiosa e frustrada, mas…
— Tudo bem — suspirei e fui até as minhas coisas, me jogando
na mesma cadeira que tinha sentado mais cedo. O papel dobrado
ainda estava esquecido ali no chão.
— Eu vou pegar o carro, não demoro — o filho da dona Josefa
falou, seus passos se afastando.
— Precisa de carona também, querido? — ela perguntou a
Richard enquanto eu pegava o papel e começava a desdobrá-lo.
— Não, eu não moro muito longe daqui. Posso pegar um
ônibus, não se preocupem comigo.
— Ora, não diga besteiras. É perigoso perambular pela rua
essa hora da noite. Vamos, você vai conosco também e isso não é
discutível.
— Ah… obrigado — Richard falou sem jeito, mas sorria.
— Bom, então podemos ir? — minha vizinha falou, e percebi
que era para mim que ela olhava dessa vez.
Mas não consegui responder. Não enquanto encarava o papel
em minhas mãos.
— O que foi? — Richard se aproximou até parar diante mim.
Ergui lentamente a cabeça até encará-lo, meu queixo caído
enquanto a ideia se assentava em meu cérebro.
— O que é isso? — ele perguntou com o semblante
preocupado, olhando de mim para o papel.
— Acho que descobri um jeito de pagar a cirurgia. — Minha voz
não passava de um sussurro.
Richard franziu as sobrancelhas e sentou ao meu lado, lendo o
conteúdo do papel.
— A ficha de inscrição do concurso? Como isso vai ajudar?
Nossos olhos se encontraram, e vi quando a compreensão o
atingiu com tudo.
— O prêmio — sussurrou.
Assenti.
— Uma quantidade obscena de dinheiro — sussurrei de volta.
Era uma ideia maluca, insana, mas no momento era a minha
única opção. O único jeito de conseguir aquele valor astronômico,
quitar a dívida do hospital e pagar os remédios.
Participar do concurso. E vencer.
Capítulo 6
Segunda, 7 de abril
Eu passei! Eu passei! Chupa, sociedade musical arrogante, eu
passei! Passei na fase eliminatória! Sou, oficialmente, uma das
participantes do concurso!
Eu sei, eu sei. Não cumpri minha promessa de relatar tudo todos
os dias. De novo. Mas, em minha defesa, foi por uma boa causa. Eu
trabalhei duro e me dediquei de verdade nos estudos no último mês
pra entrar na competição.
E, calma, vou contar tudo a vocês. Não nos mínimos detalhes,
mas acho que consigo fazer um resumo. Então, aqui vai:
Foi um mês intenso. Não só com a preparação pras audições, mas com as aulas de
uma forma geral, tanto do colégio quanto do conservatório. Os professores não foram
misericordiosos, com concurso ou não.
Mas eu consegui dar conta. Passando mais tempo que o normal na escola estudando o
repertório da audição e praticamente sem dormir pra cumprir os prazos de entrega de
trabalhos, mas consegui fazer dar certo. Fiquei quase desnutrida e parecendo uma múmia
seca prestes a esfarelar, mas o sacrifício valeu a pena.
A fase eliminatória aconteceu no fim do mês passado, e foi
dividida em duas fases: na primeira, tiveram que separar dois dias
inteiros pra ouvir todos os alunos que se inscreveram. Eu me
apresentei no segundo dia. O resultado saiu no dia seguinte e, no
próximo, já começou a segunda fase, quase sem tempo pra
descanso.
A segunda fase foi realizada em um dia só, pois, por incrível que
pareça, os participantes da primeira fase foram reduzidos a dez
pessoas. Sim, isso mesmo que você acabou de ler. Apenas 10
aprovados para a segunda fase, de centenas de inscritos, e eu —
EU — estava entre eles.
Não foi fácil, não apenas pela tensão quase palpável entre os aprovados, mas também
pelo desgaste físico, mental e emocional. Todos ali se mataram de estudar, todos ali
passaram pelo mesmo perrengue de conseguir dar conta de todas as aulas e trabalhos. E,
por mais que todos os dez tivessem plena consciência disso, também sabíamos que
apenas cinco seriam aprovados dessa vez. Apenas cinco teriam a oportunidade de disputar
pelo cobiçado primeiro lugar, pelo troféu e, mais importante, pelo grande prêmio. Por Paris.
Foi um massacre, pra dizer o mínimo. Não um com sangue e
ossos expostos, ou uma fileira de mortos ao redor, mas chegou
perto.
Nervos à flor da pele, um comentário venenoso aqui, um sussurro pouco discreto sobre
outro participante ali, e logo o cenário todo virou um caos. Um menino e uma menina que
tocavam violino começaram a discutir e criticar a técnica um do outro, jurando que a sua
era melhor, que seu instrumento tinha o som mais potente e qualquer outro assunto ou
insulto idiota que pudessem usar pra se atracar. E aqueles que se intrometiam na tentativa
de separar os briguentos acabavam implicando com os que ficavam na sua e deixavam a
briga rolar.
Eu era um deles. Dos que não se intrometeram, quero dizer. E
ainda não entendo como, mas acabei no meio da discórdia, de
qualquer jeito e, bem… digamos que eu não sou o que se pode
chamar de “pessoa mansa”.
“A novata não quer entrar na briga?”, um garoto que toca
trombone falou, me provocando. “Deve se achar melhor que todo
mundo. Ou será que tá assustada demais pra se mexer?” Se
aproximou, me circundando com um sorriso malicioso.
“Talvez eu só não queira perder o meu tempo com gente inútil”,
murmurei baixo, mas áspera.
“Como é que é?”, uma garota com o dobro do meu tamanho
segurando um oboé se aproximou também, o queixo erguido e me
fuzilando com o olhar. “Por que não repete isso mais alto na cara de
todo mundo? Quero ver se é tão corajosa assim.”
Trinquei os dentes, mas mais pessoas começaram a se
aproximar, um discutindo com o outro e querendo falar mais alto.
Só sei que assim que a coisa estava realmente a ponto de ficar fisicamente violenta, o
professor responsável por monitorar os participantes finalmente resolveu dar o ar da graça
e separou todo mundo, literalmente. A audição aconteceria no anfiteatro do conservatório,
mas aqueles que não estivessem se apresentando no palco deveriam esperar sua vez nas
salas de ensaio. Cada um em uma diferente.
E talvez fosse o estresse da briga, o cansaço acumulado do último mês, ou talvez eu
apenas seja um bebê chorão, mas assim que entrei na minha sala e fechei a porta, desabei
em lágrimas.
Literalmente desabei. Literalmente em lágrimas. Apenas me
apoiei contra a parede ao lado da porta e deixei minhas pernas
cederem, indo de encontro ao chão acarpetado enquanto começava
a soluçar.
E, antes que eu pudesse prever, a porta se abriu de repente, um
garoto carregando um violoncelo nas costas entrando sem a menor
cerimônia.
“Ah!”, ele exclamou, surpreso, assim que me viu ali largada.
“Desculpa, achei que essa sala tava desocupada. Não vi ninguém
pelo vidro da porta…”
“Sai logo daqui”, disparei com os dentes trincados.
Mas ele nem se moveu. Ao invés disso, me olhou da cabeça aos
pés. Ou quase isso. Reparei quando seus olhos pararam nas
minhas pernas. Mais especificamente, na saia preta enrolada até o
alto das coxas e quase revelando minha calcinha. Suas
sobrancelhas arquearam sugestivamente.
“Sai daqui!”, praticamente rosnei enquanto meu rosto inteiro
entrava em combustão, e puxei a barra da saia até os joelhos.
“Por que tá chorando?”, ele falou, voltando a encarar meu rosto
ao invés de sair. De novo.
“Não te interessa. Já viu que a sala tá ocupada, então vai procurar
outra.”
Mas ele me ignorou pela terceira vez e se agachou bem ao meu lado, os cotovelos
apoiados nos joelhos. Como conseguiu fazer isso de forma tão natural apesar do peso do
violoncelo ainda é um mistério pra mim.
“Você é surdo? Já disse pra sair!” Encarei com raiva. “Vai
embora!”, falei lentamente e acentuando cada sílaba.
Mas ele tocou meu rosto com uma mão, erguendo meu queixo,
seu polegar passando lentamente pela minha bochecha enquanto
secava uma lágrima. E eu congelei.
O rosto do garoto estava bem próximo do meu, os olhos azul-
cinzentos me analisando atentamente e com curiosidade. E como
eu não era boba nem nada, aproveitei a oportunidade pra fazer o
mesmo.
Uma mecha do cabelo castanho-escuro ondulado caía em sua
testa, contrastando com a pele pálida e, apesar de ser bem
volumoso e selvagem na parte de cima, o corte não passava da
nuca. Uma argolinha de prata pendia de suas orelhas e, se olhasse
bem de perto, dava pra ver várias pintinhas decorando seu rosto
logo acima das bochechas e na ponte do nariz. Vestia uma camisa
social preta, as mangas enroladas na altura dos cotovelos, jeans
escuro e… tênis de skatista.
Informal e arrogantemente bonito.
“Acho que não te conheço”, falou, pensativo, voltando minha
atenção para o seu rosto. “É aluna nova?”
Abri a boca para mandá-lo ir à merda, mas a pressão de seus
dedos grossos e quentes, mas ainda assim delicados, na minha
bochecha impediu minha voz de sair.
Seus olhos foram para o meu cabelo, acompanhando o comprimento de cada cacho
como se eu fosse um enigma e, quando parou em uma das mechas cor-de-rosa, os cantos
de sua boca se repuxaram num sorriso mínimo.
O gesto atraiu meu olhar, por mais imprudente que fosse, mas antes que eu pudesse
sequer pensar em dizer ou fazer qualquer coisa, ele falou, decidido:
“Vou te chamar de Moranguinho.”
O que quer que tivesse esquentado dentro de mim esfriou e
congelou, virando um bloco de gelo maciço. E bem que eu gostaria
muito de tê-lo arremessado na cara daquele garoto.
“Moranguinho é a sua avó!” Afastei a mão do meu rosto com um
tapa e me levantei, limpando as lágrimas restantes de qualquer jeito
e alisando minhas roupas. “Anda, sai logo daqui. Hoje é um dia
muito importante, e a última coisa que eu preciso agora é de um
garoto esquisito e abusado enchendo o saco.”
“Ai”, ele falou, se levantando num movimento fluido e uma
expressão ofendida até demais estampada no rosto, a mão no peito
de forma teatral. “Abusado tudo bem, mas esquisito? Magoou. Que
tal irritantemente bonito e abusado?”
Soltei uma risada desprovida de humor.
“Era só o que me faltava.”
“Talvez na próxima vez, então.” Levou dois dedos à lateral da testa, fazendo um aceno e
me lançando uma piscadela enquanto saía. “Foi um prazer conhecer você, Moranguinho”.
“Não me chame assim!”
O garoto parou no batente da porta e exibiu um sorriso
ridiculamente satisfeito.
“Me diz seu nome, então.”
“Nem em sonhos.”
Seu sorriso cresceu.
“Então você não me deixa escolha.”
Revirei os olhos, mas ele voltou a falar, o sorriso desaparecendo
por completo e uma expressão resignada tomando o lugar:
“Não deixe que os outros te vejam chorar. Não deixe que vejam suas fraquezas. Ainda
mais aqui, enquanto esse concurso durar. Você viu o que aconteceu mais cedo, e por uma
bobeira. Essa gente vai se aproveitar de qualquer brecha que você der pra poder sair por
cima. Não deixe que isso aconteça, sob nenhuma circunstância”, falou a última frase com
firmeza, os olhos duros fixos em meu rosto.
Por um momento minha postura firme quase vacilou, mas me
obriguei a manter o rosto inexpressivo. Mostrar como suas palavras
me atingiram com força seria um belo exemplo daquela brecha.
“E por que você se importa com o que acontece comigo?”, falei ao
invés. “O que te faz diferente deles? Me ver abalada e
desequilibrada não seria bom pra você também?”
Mas o garoto apenas exibiu um meio sorriso cheio de significados,
segredos e promessas que não consegui decifrar, e falou antes de
sair:
“Acho que, com o tempo, você vai perceber que eu não sou tão abusado quanto pensa,
Moranguinho. Não com relação a isso, pelo menos.”
Garoto abusado, metido e convencido. Com certeza deve ser o
tipo que se acha o bonzão, um ser superior que está acima de tudo
e de todos.
Irritantemente bonito? Que tal irritantemente arrogante?!
Não importa que ele realmente seja bonito. Não importa que eu tenha me deslumbrado
com isso por um momento. O fato dele saber, e ainda querer que eu admitisse em voz alta,
foi o suficiente pra quebrar qualquer… encanto momentâneo, ou o que quer que tenha
rolado ali naquele momento.
E depois que ele saiu, eu me recusei a ficar pensando no que
tinha acontecido. Não, eu tratei de me recompor e focar toda a
minha concentração na apresentação. Não sabia se aquele papo de
não deixar que os outros participantes do concurso vissem as
minhas fraquezas o incluía, mas não permitiria que ele me pegasse
desprevenida de novo. Não deixaria que ninguém me pegasse
despreparada ou sequer distraída. Jamais daria esse gostinho a
eles.
E foi com isso em mente que eu subi no palco. A grande harpa
que o conservatório havia emprestado já estava posicionada no
centro iluminado, a banca avaliadora ocupando um dos primeiros
assentos da plateia, aguardando.
Cumprimentei cada um, me apresentei formalmente com uma mesura e sentei na
cadeira, me ajeitando atrás do belo instrumento. Meu coração estava acelerado e minhas
mãos suavam, mas a decisão de me manter firme, independente do que acontecesse,
ainda martelava em meu peito, tão alto e forte quanto o órgão ali dentro.
Posicionei as mãos nas cordas rígidas, fechei os olhos e respirei
fundo, deixando que aquela parte de mim que sempre ganhava vida
na presença de música cantasse junto com as notas reproduzidas
pelos meus dedos.
E dei tudo de mim. Cada pedacinho, até que meu fôlego não passasse de um sopro e
minha existência não fosse nada além de notas musicais, ecoando em cada canto daquele
lugar.
Eu não era fraca. Não era uma novata que não tinha ideia do
que estava fazendo, que tinha chegado até ali por um milagre e que
contava com a sorte para que as coisas dessem certo. Não, eu fazia
a minha própria sorte. Via uma oportunidade e agarrava com unhas
e dentes, mirava um objetivo e não descansava até alcançá-lo. Sem
brechas. Sem ficar abaixo de ninguém.
Se o que esperavam ver era uma garotinha assustada e indefesa,
eu não demonstraria nada além de força e astúcia. Se queriam me
intimidar ou diminuir por ser uma simples novata inexperiente, eu
manteria a cabeça erguida e encararia cada um deles de frente.
E se tinham a intenção de me desestabilizar e passar por cima de
mim, bem… então estavam prestes a descobrir que, apesar da
aparência de garota frágil, eu sou o tipo de pessoa que, quando
quer, dá muito, mas muito trabalho.
Capítulo 7
Eu estava em pânico, pra dizer o mínimo.
Era de se pensar que semanas de estudo e preparação para a
classificação final do concurso teriam me deixado confiante e sem
maiores preocupações quanto ao meu desempenho, mas a verdade
é que eu estava à beira de um desmaio.
A primeira fase das eliminatórias, ao contrário do que eu
pensava, não foi tão ruim. Mas isso porque foi feita via internet.
Todos os inscritos mandaram um vídeo tocando o repertório exigido
para os seus respectivos instrumentos por e-mail e, a partir daí, a
banca examinadora escolheu os quinze aprovados para a segunda
fase. E era aí que morava o problema maior.
Sim, eu fui uma das aprovadas e, sim, estava muito feliz por
essa primeira pequena vitória, mas o que eu não tinha me dado
conta até agora era que…
Eu morria de medo do palco.
Não de tocar para um público, pelo menos não em grupo. Mas
sozinha… a história já era outra.
— Eu vou conseguir, eu vou conseguir — fiquei repetindo a mim
mesma conforme retorcia os dedos e andava de um lado para o
outro na coxia do anfiteatro, onde todos os aprovados aguardavam
o início da segunda fase. — Eu vou conseguir. Não tô fazendo isso
por mim, mas pelo meu avô. Eu vou conseguir.
Desde a cirurgia, há quase um mês, meu avô ficou internado no
hospital. Ele estava bem, se recuperando e tomando os remédios,
mas os médicos ainda queriam ficar de olho. Ele tinha passado por
um procedimento delicado e, como já tinha problemas de saúde
antes do infarto, queriam ter certeza de que ele estava cem por
cento recuperado antes de liberarem sua volta para casa.
Nesse meio-tempo, eu alternei minhas horas em visitá-lo,
conseguir cumprir os prazos de trabalhos e lições de casa, estudar
para o concurso e trabalhar.
Por um verdadeiro milagre, consegui negociar com a gerência
do hospital de começar a pagar pela cirurgia apenas a partir do
segundo semestre. Quando o concurso já tivesse terminado e, o
vencedor, com o grande prêmio em dinheiro em mãos.
Mas por mais que eu tivesse apostado tudo nesse concurso,
não me permiti ficar sentada esperando e contando com a sorte.
Não, todas as minhas economias no banco agora estavam
destinadas ao meu plano de emergência, e eu também fiz
mudanças consideráveis na minha rotina para conseguir economizar
cada centavo: cortei todos os gastos em casa pela metade,
economizando o máximo que podia em energia e água, comprava
apenas o essencial para cada refeição do dia a dia e praticamente
tudo que eu ganhava no trabalho ia para a poupança da cirurgia. Eu
fazia hora extra com Demétrio sempre que podia e, nos fins de
semana, Jéssica me ajudava a conseguir mais eventos que o
habitual, me indicando e encaixando em outros grupos musicais de
amigos e conhecidos dela.
Na maioria dos dias eu me obrigava a manter o ritmo, me
entupindo de cafeína e dormindo ainda menos que o habitual.
Mesmo quando meu corpo protestava, implorando por descanso,
implorando que eu apenas parasse e respirasse, eu me obrigava a
continuar, me obrigava a me manter em movimento.
Mas havia dias em que eu simplesmente queria chorar. Me
jogar no chão e apenas chorar em posição fetal.
No entanto, isso eu não me permitia fazer. Chorar não me
ajudaria em nada, não faria dinheiro cair do céu, nem resolveria os
meus problemas. Por isso eu abafava aquele desespero crescente e
turbulento dentro de mim e… simplesmente me obrigava a
continuar.
— Vai dar tudo certo, não se preocupe — Mariana sussurrou ao
meu lado de repente, me fazendo parar, e lançou uma piscadela
antes de seguir para o seu próprio canto na coxia, a flauta em mãos,
junto de sua pianista acompanhante.
Tentei sorrir de volta para ela e respirei fundo, apoiando as
costas na parede, o violoncelo apoiado no chão ao meu lado.
Mariana e eu não conversamos muito nas últimas semanas pois
ambas estávamos muito ocupadas com os estudos e preparativos,
mas sempre que cruzávamos nos corredores trocamos sorrisos e
palavras de encorajamento.
Além de Mariana, Richard também passou para a segunda
fase. E Giovanna e dois de seus amigos, que agora se reuniam em
uma rodinha aos cochichos e sorrisos confiantes. Um deles, o mais
alto, de cabelo loiro — imaginei que fosse o tal Vitor que Richard
havia comentado —, olhou diretamente para mim e sorriu de forma
selvagem. Como se estivesse me marcando como um alvo.
Desde o incidente do primeiro dia de aula, eu não tive
problemas com nenhum deles, nem um sussurro que me dizia para
ficar alerta, pelo motivo que fosse, mas agora, pela forma como
aquele garoto me olhava… era como se dissesse “seu tempo de paz
acaba de terminar”. Ainda mais quando Giovanna voltou seu olhar
para mim também com um olhar carregado de desprezo.
Não, é claro que nenhum deles havia se esquecido de mim.
Seria muita sorte se o universo tivesse me concedido essa
misericórdia. E eu sabia que, o que quer que estivessem tramando
para “me dar uma lição”, estava cada vez mais perto. Principalmente
quando a minha presença no concurso podia significar uma ameaça
para eles.
Procurei pelo olhar de Mariana, um pedido silencioso de
socorro, mas ela estava muito concentrada na conversa com sua
acompanhante para me dar atenção. Richard ainda não tinha
chegado, ou meu acompanhante, e eu não conhecia mais ninguém
para pedir ajuda, e me recusava a ficar ali como um coelho
encurralado por lobos, então peguei meu instrumento e tratei de sair
o mais rápido possível…
Apenas para colidir com uma figura alta e dura feito pedra na
porta.
— Perdão! — exclamei enquanto tentava me equilibrar.
— Ora, ora, Julieta! — respondeu a voz bem-humorada do
professor De Lucca. — A Fabi me disse que você ia participar do
concurso, mas não consegui acreditar. Enfrentar algo assim logo de
cara é muita coragem, você deve ser durona mesmo.
Ah, claro. Durona igual uma maria-mole.
— O que faz aqui, professor? — perguntei, surpresa, aliviada e
bem ciente de que, enquanto me mantivesse perto dele, o grupo
logo atrás não tentaria nada contra mim.
O professor De Lucca sorriu, um pouco tenso.
— Fiquei responsável por ficar de olho em vocês. Sei como os
ânimos devem estar à flor da pele nesse momento, então
precisamos ter certeza de que… — Hesitou, escolhendo as
palavras. — Bem, de que todos sairão vivos daqui hoje.
Ótimo. Era toda a garantia que eu precisava.
— Graças a Deus — sussurrei, tentando não parecer aliviada
demais. — Então, deixa eu ver se entendi: você é professor de
História da Música, orientador e, agora, nossa babá?
Ele piscou uma vez, surpreso.
— Você é bem ousada. — Sorriu de novo. — Gostei de você. E,
sim, acho que é bem por aí. O diretor — revirou os olhos — acredita
que eu, como orientador, sou o mais adequado para a tarefa. Então,
por favor, seja uma boa menina e não me cause problemas, sim?
Facilitaria muito a minha vida. — Piscou um olho para mim.
— Eu vou me esforçar — falei com toda a sinceridade que
consegui. Olhei por cima do ombro, o grupinho de Giovanna não me
encarava mais, mas eu sabia muito bem que sua atenção ainda
estava fixa em mim. Podia sentir. — Mas, infelizmente, isso não
depende de mim — murmurei baixinho.

ʄʅ
— Relaxa, respira fundo — Richard falou ao meu lado. Ele,
assim como meu pianista acompanhante, chegaram pouco tempo
depois da minha conversa com o professor De Lucca. — Não é tão
ruim quanto parece, você vai se sair bem.
O primeiro dos quinze aprovados já tinha sido chamado e,
enquanto ele se apresentava, todos os outros tentavam bisbilhotar
de alguma forma por entre as cortinas que separavam o palco da
coxia.
E eu tremia tanto que estava surpresa por ainda não ter
desmoronado.
— Acho que eu vou vomitar — gemi com a respiração
descompassada e segurando o violoncelo com força nas mãos
suadas. — Não sei no que eu tava pensando, isso não é pra mim.
— Quer que eu chame alguém? — Lucas, um garoto do terceiro
ano que tinha aceitado fazer meu acompanhamento no piano, falou.
Tínhamos aula de arranjo e harmonia musical juntos, apesar de eu
ser do segundo ano. — O professor De Lucca tá logo ali no
corredor, quer que eu vá chamar?
— Ela vai ficar bem — Richard falou antes que eu pudesse
responder.
— Não, não vou.
— Ah, vai sim. Julieta… — Ele me pegou pelos ombros, me
obrigando a encará-lo. — Presta bastante atenção. — Seu olhar era
firme, mas sua voz, gentil e tranquilizadora. — Você estuda,
trabalha, faz hora extra até nos finais de semana e ainda consegue
ter as melhores notas da turma. E faz tudo isso com uma garra e
determinação que muitos aqui apenas sonham em ter, inclusive eu.
Se existe alguém capaz de enfrentar esse concurso, é você. E, se
você acha que não consegue… que chance qualquer um de nós
pode ter? Além do mais… — acrescentou quando abri a boca. —
Você tem um objetivo aqui. Um muito honrado. Então não foque no
nervosismo, no medo ou na insegurança, mas no seu objetivo. E
apenas no seu objetivo. Tudo bem?
Não tínhamos conversado muito sobre o assunto desde aquele
dia no hospital, mas agora Richard sabia, pelo menos um pouco,
sobre a minha situação e tudo que eu fazia fora da escola. Dona
Josefa o inteirou enquanto eu visitava meu avô logo após a cirurgia.
E, apesar de sempre me olhar com admiração e curiosidade quando
me via correndo de um lado para o outro na minha rotina
conturbada, nunca forçou o assunto, perguntando ou pedindo
detalhes de como ou por quê eu fazia tudo aquilo.
— Respira fundo — falou, os olhos cor de avelã fixos nos meus
e seus dedos pressionando de leve meus ombros. — Você
consegue, Julieta. Vai dar tudo certo, você vai ver.
Algo dentro de mim ainda tremia e teimava em se rebelar, jogar
tudo para o alto e sair correndo dali, mas Richard me olhava com
tanta sinceridade, com tanta confiança, que… foi impossível não
acreditar nele.
— Tudo bem — falei por fim, respirando fundo, sem desviar o
olhar do seu. — Tudo bem.
— Que bom. — Ele sorriu, aliviado.
— É, que bom — Lucas ecoou atrás de mim. — Porque você é
a próxima.
— O quê?! — exclamei com os olhos arregalados, e sentindo o
que só podia ser a minha pressão afundando como uma âncora.
Mas antes que pudesse desmaiar de vez, fui chamada até o
palco.
— Você consegue — Richard repetiu com um sorriso e fez sinal
de joinha com os dois polegares enquanto Lucas me empurrava
pelas cortinas até a entrada do palco.
Droga, droga, droga, droga, droga!
Paramos a um passo de cruzar as cortinas para o palco
iluminado e, antes que eu me acovardasse de novo e começasse a
correr, fechei os olhos com força e tentei me recompor.
Quando tiver dúvida de alguma coisa — aquelas palavras
doces que sempre me ajudavam a encontrar o meu caminho de
volta ecoaram em minha mente —, quando achar que está
perdida… quando ninguém acreditar em você, nem você mesma…
lembre-se sempre de fazer isso, Julieta: feche os olhos, bem
apertados, e escute.
Respirei fundo mais uma vez, escutando o ritmo pulsante e
forte dentro do meu peito.
Assim você nunca vai se perder. Promete que nunca vai se
esquecer disso?
Engoli em seco, mas abri os olhos.
— Prometo, mamãe — sussurrei.
Ela teria encarado. Se estivesse aqui, se estivesse no meu
lugar, eu sabia que minha mãe teria encarado esse concurso. Teria
dado tudo de si. E me encorajaria a fazer exatamente isso agora.
E foi com isso em mente que, esticando os ombros e erguendo
o queixo, segui até o centro do palco, onde uma cadeira e uma
estante musical já me esperavam.
Eu quero ser igualzinha a você quando crescer.
E eu quero que você seja melhor.
Eu nunca consegui entender o sentido dessas palavras. Minha
mãe era uma violoncelista incrível, e tudo que eu sempre quis,
desde criança, era ser exatamente como ela. Como musicista e
como pessoa. Eu não via como poderia ser melhor. E esse desejo
ainda pulsava no meu coração, mesmo agora.
E agora eu tinha diante de mim uma oportunidade que minha
mãe não teve. Eu queria ser como ela, sim, mas também queria
fazer algo por ela. Porque ela nunca teve uma chance, porque não
acreditavam nela e isso a fazia duvidar de si mesma.
Me sentei na cadeira, posicionei a partitura na estante e ajeitei
o cello entre as minhas pernas. Olhei para Lucas, que já tinha se
posicionado no piano logo atrás de mim, e ele me respondeu com
um aceno de cabeça.
Não ousei olhar para a banca examinadora. Não sabia se isso
contaria pontos, se me desclassificariam por falta de postura
profissional, mas eu não arriscaria perder a coragem, que já era
frágil e instável, encarando seus olhos duros e frios.
Não, apenas posicionei o arco nas cordas do meu instrumento,
encarei a partitura, respirei fundo mais uma vez como um sinal para
o pianista e, mesmo com medo, mesmo ainda tremendo levemente
e sentindo as mãos suadas, me concentrei naquela melodia, me
concentrei naquele rosto que, mesmo não estando mais aqui, ainda
seguia vivo no meu coração… e comecei a tocar.
E não parei, não pisquei… mal respirei… até que cada nota
tivesse sido tocada, até que cada som, do mais grave até o mais
agudo, tivesse ecoado entre aquelas quatro paredes… até que tudo
o que eu via, pensava e era tivesse se convertido em música. Eu
não parei.
Não até que a peça tivesse, finalmente, terminado.
Capítulo 8
— Julieta Bellini, Julieta Bellini… — murmurei no dia seguinte,
enquanto procurava o nome no mural da secretaria. Na lista oficial
dos participantes do concurso. — Julieta Bellini, Julieta Bellini… —
Fui descendo o dedo pela lista, o rosto tão perto que meu nariz
estava quase colado no mural. — Julieta Be… — Meu dedo parou.
Bem em cima do meu nome.
Meu queixo caiu.
Eu passei, um eco distante ressoou na minha cabeça. Eu
passei. Passei na segunda fase. Eu entrei no concurso. Eu…
— Eu passei! — exclamei em voz alta, na secretaria vazia. Era
horário de almoço e todos os alunos estavam no refeitório naquele
momento, mas desde manhã eu estava tão ansiosa em saber se
tinha passado ou não que, assim que vi a secretária pregando
aquela folha de papel no mural, desci as escadas correndo e aos
tropeços para ver seu conteúdo. — Eu não acredito, eu realmente
passei! Eu, euzinha! — Cerrei os punhos nas bochechas e comecei
a dar pulinhos de alegria. — Aaaaaah!
Mas tentei me acalmar e li a lista mais uma vez, dessa vez
prestando atenção nos outros nomes.
Ah, que bom, Richard também tinha passado! E Mariana! E…
Giovanna. E Vitor. E Pedro e Beatriz. Eu não sabia quem eram.
Será que também faziam parte do grupinho da sobrinha do diretor?
Vi pouca coisa depois de ter me apresentado. Estava tão
exausta que o simples ato de caminhar de volta do palco até a coxia
consumiu o pouco de energia que me restava, e literalmente
desabei assim que passei pelas cortinas.
Lucas, que vinha logo atrás e previu meu estado de desgaste,
foi quem me amparou e me impediu de ir de cara no chão. Richard
se ofereceu para guardar meu violoncelo e, assim que o tirou das
minhas mãos trêmulas, o professor De Lucca apareceu e me levou
para o corredor do lado de fora, para eu me recompor.
Levei um bom tempo para conseguir voltar a respirar como uma
pessoa viva de verdade, e infelizmente não consegui assistir às
apresentações, nem de Richard, nem de Mariana. Mas eles me
asseguraram de que tinham ido bem e que estavam confiantes. E
fizeram questão de me dizer que eu tinha ido muitíssimo bem
também.
Mariana foi quem apareceu primeiro, dizendo que correu palco
afora assim que sua apresentação terminou, pra ver se eu tinha
morrido. E, apesar do meu estado e de ainda estar jogada no chão
do corredor, esperando pela volta do professor que tinha ido buscar
um copo d’água para mim, consegui rir.
— Isso não tem graça — Mariana resmungou com uma
expressão severa. — Você tocou muito bem, e deu pra ver como
deu tudo de si na apresentação, mas quando caiu igual um boneco
de pano eu achei de verdade que você ia passar dessa pra melhor.
Só não vim na mesma hora porque o professor De Lucca não
deixou ninguém seguir vocês.
— Desculpa — gemi. — Eu não queria preocupar ninguém. Ou
atrapalhar a concentração de vocês. O clima ficou muito ruim lá
dentro?
— Bom, foi pior pra mim. — Ela fez uma careta — Ter que subir
no palco logo depois de você, que eu achei que estava morrendo,
não foi muito encorajador. Mas deu tudo certo, quando saí o clima
parecia estar mais leve. Disseram que o professor passou lá pra
dizer que você tava bem, mas eu precisava ver com os meus
próprios olhos.
— E sua apresentação? Como foi?
— Considerando a instabilidade emocional de última hora… —
Mariana riu. — Eu fui bem. Arrasei, na verdade. Acho que o medo
de você morrer serviu de adrenalina.
Dei risada também.
— Então nesse caso, de nada.
Ela mostrou a língua e, depois de se assegurar que eu ia ficar
mesmo bem, disse que tinha que ir falar com sua professora de
flauta, se despediu com um beijo assoprado e foi embora.
O professor De Lucca voltou alguns minutos depois com a
água… e Richard e Lucas no encalço.
Richard tinha acabado de se apresentar e, assim como
Mariana, correu para ver como eu estava. E, fazendo cara feia para
o professor, que apenas sorriu em resposta, pediu desculpas por
não ter vindo antes.
— Eu tô bem — assegurei, dispensando os pedidos de
desculpa. — Só exagerei um pouquinho.
— Um pouquinho? — Lucas riu. — Eu penei muito pra
conseguir te acompanhar, sabia? Quase fiquei pra trás. Mas não dá
pra negar, foi impressionante. Você tava muito mais confiante e
intensa do que nos ensaios. Parabéns.
Corei de vergonha.
— Que exagero, eu não fiz nada demais…
— Ah, fez sim — Richard falou, os olhos brilhando. — Foi
incrível! Todos na coxia ficaram de queixo caído. Sério, se você não
passar nessa fase, ninguém passa.
Corei mais ainda.
Mas eu ainda estava insegura. Tinha dado tudo de mim, sim,
mas não sabia se seria o suficiente. Pelo ponto de vista de outros
alunos eu até podia ter ido bem, mas… será que pelo ponto de vista
da banca eu tinha realmente alcançado as expectativas? Ou será
que fui… medíocre?
Remoí esse pensamento pelo resto do dia e da noite, mas não
consegui chegar a nenhuma conclusão.
Até aquele momento, encarando a lista oficial dos aprovados.
Sim, eu tinha conseguido mesmo!
— Ora, ora, parabéns — alguém falou logo atrás de mim de
repente.
Me virei num pulo, dando de cara com… droga.
— Vitor — sussurrei, me afastando uns bons cinco passos.
Ele pareceu surpreso.
— Você me conhece, é?
Engoli em seco.
— Ouvi o suficiente a seu respeito. — O idiota que se acha o
fodão, mas que não passa de uma pilha de músculos sem cérebro,
era o que eu tinha ouvido a respeito. Mas não era louca de repetir
em voz alta. — O que faz aqui?
O garoto alto de cabelo loiro sorriu, satisfeito.
— O mesmo que você, eu acho. Giovanna me pediu pra
conferir a lista por ela, mas… tenho quase certeza de que, se
estivesse aqui, ela adoraria te dar os parabéns.
Ah, com certeza adoraria. Me agarrando pelo pescoço.
— Eu tenho que ir. — Comecei a me afastar, seguindo pelo
corredor que levava ao conservatório. E não pararia até botar uma
distância considerável entre nós.
Mas, no meio do caminho, passos começaram a ecoar atrás de
mim. E olhei por cima do ombro, apenas para ver Vitor se
aproximando… vindo até mim.
Apertei o passo.
— Qual é, Julieta! — ele falou, sua voz alta ecoando pelo
corredor vazio. — Só queremos ser seus amigos! A Giovanna até
me pediu pra te dar um recado caso te visse!
Alcancei as enormes escadas e comecei a subir, saltando de
dois em dois degraus. Meu coração martelava contra as costelas e
minha respiração começou a ficar irregular, mas não ousei olhar
para trás.
Vitor continuou me seguindo.
— Não é muito educado ignorar quando falam com você,
sabia?
No que dependesse de mim, a educação podia ir para o espaço
junto com ele e seu grupinho. Mas poupei o fôlego e me concentrei
em continuar subindo, continuar colocando distância entre nós. Não
fazia ideia de quais eram suas verdadeiras intenções em me
encurralar, mas nada de bom poderia sair daquilo.
E, quando os degraus finalmente terminaram, sem olhar para
trás, comecei a correr.
Mas ouvi os passos pesados de Vitor começarem a correr
também.
— E eu aqui pensando que você seria fácil de lidar — ele riu, e
não precisei olhar para saber que também já tinha alcançado o alto
das escadas. — Sorte sua que eu adoro um desafio!
Corri mais rápido, agradecendo por não ter o atraso do cello
pesado naquele dia, virei uma esquina, saindo em outro corredor
repleto de salas… e me joguei na primeira porta aberta que
encontrei — outro depósito, considerando o espaço apertado e
todos os itens que caíram da estante metálica com o impacto do
meu corpo. Mas ignorei a dor e me apressei em fechar a porta, me
jogando contra ela também.
Os passos que me seguiam viraram no corredor… e pararam.
— Julietaaa? — Vitor cantarolou, como se estivesse brincando
de esconde-esconde com uma criança.
Prendi a respiração.
— Sabe que não pode se esconder pra sempre, né? Uma hora
ou outra você vai ter que sair.
Seus passos, agora cautelosos, se aproximavam cada vez mais
do meu esconderijo. Tapei a boca e o nariz com uma mão trêmula,
tentando silenciar ao máximo a respiração pesada. Eu não podia me
permitir fazer um ruído sequer. Mesmo tremendo até os ossos.
Vitor continuou se aproximando, o barulho de uma porta se
abrindo vez ou outra conforme ele verificava cada sala e, quando
seus passos cessaram diante do meu esconderijo, quando a sombra
de seus pés se tornou visível na fresta de luz que entrava por
debaixo da porta… um estrondo ecoou mais adiante no corredor, de
uma porta batendo, e Vitor soltou uma risada satisfeita, voltando a
correr.
— Pronta ou não, aqui vou eu, bonequinha!
Continuei ali, imóvel, por uns bons minutos antes de ousar me
mexer. Mas Vitor não retornou.
— Bonequinha — repeti com desprezo. — Quando eu te meter
um chute nos países baixos, aí eu quero ver quem é a bonequinha.
Se um dia eu tivesse coragem de fazer algo do tipo, claro.
Suspirei, me afastando da porta, e liguei a lanterna do celular,
olhando ao redor. Sim, aquele era outro depósito. E eu tinha feito
uma bela bagunça.
Apoiei o celular em uma prateleira, soltei a mochila no chão e
comecei a recolher as escovas, rolos de papel e produtos de
limpeza que tinham caído no chão, colocando tudo no lugar, mas,
quando me agachei para pegar uma garrafa de álcool que tinha
rolado para debaixo da estante, algo chamou a minha atenção.
Coloquei a embalagem no lugar, peguei meu celular ainda com
a lanterna ligada, voltei a me agachar e mirei a luz lá embaixo.
Era algo grosso e encouraçado. Como a lombada de um livro.
Puxei o objeto para fora e me ajoelhei para olhar melhor.
Realmente parecia um livro, um bem empoeirado, mas… não tinha
título.
Comecei a folhear as páginas tortas e amareladas, e… não era
um livro. Era um caderno.
Um diário.
Várias anotações escritas à mão com caneta preta, canetinha,
caneta gel, lápis de cor e tudo mais que se pudesse imaginar. E
havia alguns desenhos também.
Coisa engraçada de se ter hoje em dia. Numa época em que os
celulares substituíam praticamente tudo que fosse de papel, era no
mínimo curioso que alguém ainda escrevesse em diários.
Voltei na primeira página, procurando um nome ou endereço
que pudesse identificar a dona, mas não havia nada.
Puxa vida.
Não queria invadir a privacidade de ninguém, mas se eu tivesse
perdido algo tão íntimo quanto aquilo, iria querer de volta. Por isso,
fiz a única coisa que poderia me ajudar e, mentalizando um pedido
de desculpas a quem quer que fosse, li a primeira página.
— Gaveta de calcinhas? — Li em voz alta, confusa, e olhei ao
redor mais uma vez. — Olha… — voltei a encarar a página — eu
não sei o que aconteceu pro seu diário ter vindo parar aqui, mas
esse depósito não parece uma gaveta de calcinhas pra mim.
Continuei lendo, prometendo a mim mesma que pararia assim
que descobrisse o nome da garota. No final daquele primeiro relato
ela deu a entender que se chamava Aurora, mas eu precisava ter
certeza.
A garota parecia ser legal. Escrevia de forma descontraída e
tinha opiniões bem… fortes sobre os alunos. E era difícil não
concordar com ela.
Até onde eu tinha entendido, ela também era aluna nova e
começou a escrever para registrar suas experiências no Intermezzo.
Se não ficasse brava por eu ter lido seu diário, quem sabe nós não
pudéssemos ser amigas? Duas novatas se ajudando a sobreviver
nesse lugar caótico. Mas…
— Inscrições pro concurso anual do conservatório — murmurei
enquanto lia, o cenho franzido. — Concurso anual? Anual? Espera
aí. — Ergui a cabeça, tentando entender.
Até onde eu sabia, o concurso tinha voltado recentemente ao
calendário. Richard disse que fazia anos desde o último.
Voltei a encarar o diário. A quantidade de poeira na capa, as
páginas amareladas, tortas e grossas. Prejudicadas pela umidade
do depósito.
Graças ao trabalho como arquivista na orquestra de Demétrio,
mexendo em partituras e documentos antigos, eu tinha experiência
o suficiente para identificar coisas daquele tipo. E para saber que,
naquele estado, o diário devia ter pelo menos…
Parei. E pisquei, lentamente.
— Meu Deus — sussurrei, meus dedos ficando rígidos contra a
capa encouraçada.
Aquele diário devia ter, no mínimo, dez anos.
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale

Pausa: Intervalo variável de silêncio em uma peça musical. Na


partitura, é representada por sinais que indicam o tempo de duração
desse silêncio, e levam o nome das figuras de nota de duração
correspondente.
Capítulo 9
Uma mão tocou meu ombro de repente, me fazendo dar um
pulinho de susto.
— Ei, você tá bem? — a voz de Richard sussurrou atrás de
mim, e ele logo entrou no meu campo de visão.
Eu estava na biblioteca do colégio, em uma das várias mesas
de estudo, encarando a capa do diário. O lugar era enorme e, como
todo o restante do prédio, tinha arquitetura antiga, com enormes e
largas estantes de madeira ocupando praticamente todos os cantos,
todas abarrotadas de livros. O teto alto e reto, todo adornado em
gesso, tinha vários lustres de luz amarelada pendurados em toda a
sua extensão, iluminando as mesas longas de estudo no centro do
espaço, sobre tapetes verde-escuro. Era lindo, como o cenário
mágico e acolhedor de um livro de fantasia.
E o único lugar seguro para examinar cautelosamente o que eu
tinha em mãos. Ninguém suspeitaria de um livro velho ali.
— Desculpa, o que disse? — Tirei os olhos da capa de couro
escuro à minha frente e encarei Richard.
— Perguntei se está bem. — Ele olhou de mim para o diário, e
de volta para mim, o cenho franzido. — Eu ia te dar os parabéns
pelo concurso, mas… ele deve ser muito ruim se você tá com essa
cara.
— O quê?
— O livro. — Indicou com a cabeça. — Você fica encarando
isso aí como se fosse um zumbi. Se procura algo específico eu
posso ajudar, já li praticamente tudo que eles têm disponível…
— Não é um livro — sussurrei, interrompendo-o, e voltei a
encarar a capa marrom.
— Hã?
— Não é um livro — falei mais alto, olhando ao redor e me
assegurando de que ninguém prestava atenção em nós. Gesticulei
para que Richard se aproximasse e, assim que ele se curvou para
mais perto, voltei a sussurrar: — Isso é um diário. Achei em um dos
depósitos do conservatório mais cedo.
— Um diário? — ele falou, alto demais. — Quem ainda escreve
em diários?
— Shhh! — O puxei para baixo até que ele caiu sentado na
cadeira ao meu lado. — Não conta pra ninguém sobre isso,
entendeu?
— Você pretende ficar com ele? — Arregalou os olhos, mas
passou a sussurrar também. — Julieta, isso é errado! Você precisa
devolver pro dono.
— Esse é o problema. — Franzi as sobrancelhas. — A dona
desse diário não estuda aqui, Richard. Pelo menos, não mais.
Ele franziu o cenho, confuso.
— O quê? Espera, como você sabe disso?
Corei.
— Eu… Eu dei uma olhada nele. Mas só porque queria saber
quem era a dona pra poder devolver, eu juro! Só que… — Suspirei.
— É melhor você ver com seus próprios olhos. — Abri o diário e
folheei algumas páginas. — Tá vendo a cor e a rigidez das folhas?
— Richard olhava com atenção e assentiu com a cabeça. — E como
o papel absorveu a tinta das canetas? Esse diário é antigo, Richard.
Não pertence a nenhum dos alunos daqui.
— Antigo quanto?
Engoli em seco.
— Eu não sei ao certo, mas… acho que, pelo menos, uns dez
anos.
Richard me encarou com os olhos arregalados.
— Dez… — exclamou, mas segurei sua cabeça por trás e tapei
sua boca com a outra mão. — Dez anos?! — murmurou, o som
agora abafado.
— Promete que não vai contar pra ninguém! — sussurrei entre
dentes, desesperada. — Promete!
Ele se acalmou e suspirou pelo nariz, sua respiração quente
fazendo cócegas na minha mão, ainda em sua boca. Os olhos cor
de avelã estavam fixos nos meus e, após alguns segundos, ele
assentiu.
Soltei o ar com força, aliviada.
— Que bom. Obrigada.
Minha mão escorregou do seu rosto, os lábios grossos
resvalando minha pele e… me dei conta do tamanho da distância
que havia entre nós. Era mínima. Apenas centímetros.
Richard também parecia bem ciente disso porque analisava
cada pedacinho do meu rosto com a boca entreaberta e a
respiração pesada, os olhos subindo e descendo como se não
quisesse perder nenhum detalhe.
Eu não conseguia respirar. Não conseguia sequer pensar…
Ele ergueu uma mão, afastando uma mecha de cabelo do meu
rosto, mas, quando as pontas de seus dedos roçaram a curva da
minha orelha meu corpo reagiu, enrijecendo, e arrastei a cadeira
para trás com brutalidade, me afastando.
Richard recolheu a mão e pigarreou, se aprumando.
— Desculpa — falou, a voz baixa.
Sacudi a cabeça, encarando o diário aberto diante de mim e
evitando seus olhos.
— Não foi nada.
— Mas então… — percebi o nervosismo em sua voz enquanto
ele mudava de assunto — o que vai fazer com isso?
E a verdade era que… eu não fazia ideia.
— Acho que o certo seria encontrar a dona, independente de
onde ela esteja.
— Sabe o nome dela? Podemos pesquisar na internet, ver se
ela tem alguma rede social.
— O nome… — murmurei, ainda meio transtornada. — Eu acho
que… — Voltei a folhear o diário, até as primeiras páginas. — Aqui.
O nome dela é Aurora.
— Tudo bem… — Richard tirou o celular do bolso e começou a
digitar. — Não é um nome que se vê muito por aí, então não deve
ser difícil encontrá-la.
— Mas como vamos saber que é a pessoa certa?
Ele parou, considerando.
— Ela chegou a escrever o sobrenome?
— Não, isso é tudo que diz. Não tem sobrenome, endereço,
nada. — Pelo menos, até onde eu tinha lido.
E, com isso, uma ideia começou a se formar na minha cabeça.
Uma muito inconsequente, mas talvez…
— E se ela registrou isso mais pra frente? — falei com cautela.
— Nesse caso, teria apenas um jeito de descobrir.
Richard me encarou, incrédulo.
— O quê, você quer ler?
— A não ser que você prefira contatar todas as Auroras
existentes no planeta, sim. Ela pode estar, literalmente, em qualquer
lugar agora. Além do mais… — acrescentei antes que ele pudesse
dizer qualquer coisa — ela mesma disse que o objetivo desse diário
era ajudar futuros alunos. Tá escrito bem aqui, pode ver. —
Empurrei o diário para ele.
— Sim, mas “apenas quando eu quiser assim” — Richard leu
em voz alta.
Revirei os olhos.
— E se ela escondeu de propósito? Quem garante que essa já
não seja a vontade dela?
— Em um depósito? Acho pouco provável, é mais capaz que
ela tenha perdido. Será… — Franziu o cenho de repente, pensativo.
— Será que aconteceu alguma coisa? Algo que tenha feito o diário
parar lá?
Abri a boca para protestar, mas parei. E pisquei.
Eu fui parar no depósito porque estava fugindo de Vitor. Será
que algo parecido tinha acontecido com Aurora e ela acabou
perdendo o diário ali?
Um calafrio subiu pela minha espinha, fazendo os pelos dos
meus braços eriçarem. Estava com um mau pressentimento.
E Richard parecia seguir a mesma linha de raciocínio, porque
falou de repente:
— O que você tava fazendo no depósito?
Pisquei de novo e comprimi os lábios.
— Julieta… — Richard arqueou uma sobrancelha, sério.
— E-Eu… Eu tava…
— Julieta — reforçou, a voz firme.
Suspirei. E comecei a relatar o que tinha acontecido.
Richard ouvia com atenção, o rosto uma máscara indecifrável,
mas com a mandíbula tão rígida que poderia trincar a qualquer
momento.
— Vitor… — falou com os dentes cerrados assim que terminei,
e sua voz era puro ódio. — Eu vou matar aquele desgraçado. —
Arrastou a cadeira para trás, começando a se levantar, os punhos
cerrados.
— Não! — Segurei seu pulso. Richard me olhou com
incredulidade. — Já é ruim o suficiente eles ficarem me
perseguindo, não quero que você vire um alvo também. Além do
mais… eu tô bem, não aconteceu nada.
— Não aconteceu nada? — repetiu, os olhos semicerrados. —
Você pode não ter se ferido, o que foi um verdadeiro milagre, mas o
simples fato dele ter te perseguido, só Deus sabe pra quê, é grave o
suficiente. Eu não vou deixar esse safado sair impune disso, Julieta,
não importa o que você diga.
Engoli em seco.
— Por favor… — sussurrei, as mãos começando a tremer. —
Por favor, não faz isso.
— Por quê?
— Porque… da mesma forma que você se preocupa comigo,
eu… também me preocupo com você. Todos naquele grupo são
maus. Você pode até fazer o Vitor pagar pelo que fez, mas e se eles
voltarem pra se vingar depois? Eu nunca me perdoaria se… —
Engoli em seco. Eu tremia só de pensar. — Se algo acontecesse
com você... por minha causa.
O rosto de Richard relaxou, assim como a tensão em seu
corpo. Mas falou:
— Então quer deixar ele se safar? Acha que isso é justo?
Soltei seu pulso. E suspirei, cansada.
— Eu só não quero mais problemas. Já tô lotada até o pescoço,
não quero arrumar mais um pra cabeça. Eu… — Baixei o olhar, os
ombros curvados. — Eu não aguento mais.
Ficamos ambos em silêncio por alguns segundos, até que
Richard entrou no meu campo de visão, se ajoelhando à minha
frente.
— Ei... — falou com suavidade, e ergueu meu queixo até que
meus olhos encarassem os seus. — Eu entendo. De verdade.
Talvez não esteja sentindo isso na pele como você, mas… eu
entendo.
— Mesmo?
— Claro. E, só por isso… — comprimiu os lábios — por mais
que eu não concorde muito… não vou fazer nada.
— Promete?
— Prometo. Pelo menos até que tentem algo de novo. Se
qualquer um deles ousar encostar um dedo em você, o acordo já
era. Não vou deixar que se safem de algo assim.
Suspirei pelo nariz.
— Tudo bem, acho que é justo. Mas não se preocupe, não vai
acontecer nada comigo. Eu corro rápido — ri, mas sem humor, e
voltei a encarar o diário. — Precisamos dar um jeito de encontrá-la.
E descobrir o que aconteceu.
Richard também voltou os olhos para o caderno amarrotado.
— Acho que sei de algo que pode ajudar — falou após alguns
segundos, pensativo.
— O quê?
— É só um palpite, mas… os arquivos na secretaria. Quais as
chances deles manterem uma sessão reservada a ex-alunos?
Pisquei e arqueei as sobrancelhas.
— Richard, isso é… genial! — Com certeza tinha uma pasta lá
dentro com o nome e as informações de Aurora. E, mesmo que o
endereço e o número de telefone estivessem desatualizados, só de
saber seu nome completo já seria uma belo começo. — Mas…
como fazemos pra ter acesso? Duvido que deixem qualquer um
entrar lá.
Richard permanecia com aquela expressão pensativa.
— Eu até tenho uma ideia, mas… — Hesitou.
— Mas o quê?
Os olhos cor de avelã voltaram a me encarar, hesitantes.
— Só podemos arriscar uma vez. Se fizermos tudo certo, as
chances de sucesso são boas, mas… se qualquer etapa do plano
falhar… — Franziu as sobrancelhas, e não gostei nada do arrepio
gélido que subiu pela minha espinha quando falou: — Então vamos
estar muito, mas muito ferrados.
Capítulo 10
Cinco minutos. Era tudo que eu tinha pra cumprir a primeira
parte do plano de Richard.
Era simples. Podia dar certo. Tinha que dar. Senão…
Ajeitei a mochila nos ombros, segurei com firmeza os papéis
que tinha nas mãos e caminhei até a secretaria, tentando controlar
os nervos.
Eu podia fazer aquilo. Podia desempenhar aquele papel. Não
faria nada de mal, apenas precisava de uma informação, então não
era nada tão grave assim, se fosse ver bem.
Eu apenas ia mentir e enganar a secretária. E poderia levar
uma suspensão se fosse pega. Ou pior, desclassificada do concurso
como punição.
Sacudi a cabeça, me livrando daquele pensamento e tentando
manter o foco, e parei diante da janela da secretaria ao final da
última aula, o sorriso mais inocente possível estampado em meu
rosto.
— Oi, tudo bem? — falei para a mulher do outro lado do vidro.
— Lembra de mim? Julieta Bellini, 16 anos… sem a assinatura dos
pais na matrícula. — Soltei uma risadinha nervosa.
A mulher bonita de pele negra e cachos iluminados volumosos
desviou os olhos da tela do computador à sua frente, me encarando.
E sorriu, educada.
— Ah sim, claro que me lembro! Do que precisa?
Apoiei o maço de papéis na bancada.
— De um favor. Um super favor, na verdade. — Sorri, nervosa e
acanhada, o retrato da ingenuidade. — Eu preciso, urgentemente,
tirar cópia desses textos. Será que eu podia usar a sua impressora?
A mulher piscou uma vez.
— Temos uma impressora disponível na biblioteca para uso
exclusivo dos alunos, por que não dá uma passada lá?
Assenti. Richard disse que isso podia acontecer. E tinha bolado
uma forma de contornar a situação.
— Sim, eu sei, mas é que… — Mordi o lábio, ansiosa. — Eu
fico sem jeito de dizer, mas… você sabe sobre a minha… situação,
né?
— É claro — ela falou com delicadeza.
— Então, acontece que, daqui, eu preciso correr direto pro
trabalho e tem uma fila enorme de alunos na biblioteca pra usar a
impressora. Eu realmente não quero causar problemas, mas será
que, só dessa vez... — juntei as mãos em prece — você pode me
deixar usar a impressora daqui?
A mulher hesitou por um momento, e tentei não encarar o
relógio pendurado na parede no fundo da sala, o tique-taque me
lembrando constantemente que eu não tinha tempo a perder.
— Certo, tudo bem — falou por fim. — Mas só dessa vez, ok?
Se os outros alunos virem você aqui, vão querer tratamento especial
também.
— Sem problemas! — assegurei com um sorriso aliviado que
não era falso. — Prometo que vai ser rápido.
Recolhi os papéis e segui para a porta lateral. Ouvi a tranca
sendo aberta e, assim que entrei, me deparei com as enormes
paredes, cobertas de estantes de metal de cima a baixo e
abarrotadas de pastas de arquivos.
— Uau — sussurrei, maravilhada.
— A impressora já está ligada — a secretária falou, voltando a
se sentar em frente ao computador. — Pode ficar à vontade.
— Obrigada.
Não perdi tempo, seguindo para a impressora, e comecei a tirar
cópias, folha por folha, apenas para não ser rápida demais e
conseguir a informação que precisava.
— Nossa, esse lugar é impressionante — comentei, puxando
assunto. — Todos esses arquivos são sobre os alunos?
— Sim, a maioria — a mulher falou sem se virar para mim,
digitando no computador.
— Deve dar trabalho encontrar uma pasta específica.
— Hoje em dia nem tanto, a maioria das informações já foi
lançada no sistema, então só precisamos do nome do aluno e
conseguimos encontrar o que precisamos.
Bom saber.
Folha após folha após folha…
— Até mesmo de alunos que não estudam mais aqui? —
perguntei como quem não quer nada. — Tipo, digamos que eu sou
uma aluna que estudou aqui há, sei lá… dez anos. As informações
vão estar todas no computador?
A secretária se virou para mim, uma sobrancelha arqueada.
Droga.
— É que eu também trabalho com arquivos. — Sorri, nervosa.
— Perdão pelas perguntas, mas é que eu adoro saber como essas
coisas funcionam em lugares diferentes.
Ela pareceu surpresa.
— É mesmo? Engraçado, a maioria dos alunos aqui se
empenha muito pra fazer essa escola parecer um circo. É difícil ver
um alguém tão novo interessado nesse tipo de coisa.
O rubor nas minhas bochechas não foi fingido.
— Mas, respondendo à sua pergunta… — ela continuou. —
Vejamos, um ex-aluno de uma década atrás? Sim, provavelmente
as informações já estão no sistema. Ainda estamos atualizando o
catálogo com os arquivos mais antigos, mas a grande maioria já
está disponível em formato digital.
Bingo.
— Incrível! — exclamei com um sorriso de pura animação.
Bem a tempo de Richard aparecer do outro lado do vidro,
afobado e com os olhos arregalados no mais puro horror.
— Cris! — exclamou, agarrando a bancada. — Você precisa vir
rápido, tem alunos brigando lá fora no pátio!
— O quê?! — A mulher levantou num salto.
— Não tem nenhum professor por perto pra apartar, precisamos
ir logo antes que eles se matem!
— Ah, esses pirralhos! — ela exclamou, furiosa, correndo para
a porta. Mas parou e se voltou para mim. — Vai ficar bem aqui
sozinha?
— Claro, não se preocupe comigo — assegurei. — Eu fecho a
porta quando terminar, prometo.
— Vamos logo! — Richard exclamou, e sua atuação era tão
convincente que até eu quase acreditei na briga falsa.
— Moleques! — Cris rosnou entre dentes antes de sair
correndo sobre os saltos atrás de Richard.
Corri até o computador e encontrei a página de acesso aos
arquivos sem dificuldade. Era um sistema muito parecido com o que
a orquestra de Demétrio usava.
— Tomara que dê certo só com o primeiro nome — murmurei
enquanto digitava às pressas.
Joguei o nome de Aurora no sistema, pressionei Enter e
esperei, o coração a galopes.
Procurando…
Procurando…
Procurando…
— Isso! — exclamei assim que a página abriu.
— Isso o quê? — uma voz grave falou atrás de mim de repente,
me fazendo soltar um gritinho e saltar na cadeira de susto.
— Professor De Lucca! — Dei de cara com ele, parado bem
atrás de mim. E fechei a página aberta antes que ele sequer
piscasse para a tela do computador.
Droga, eu estava muito ferrada!
— O que está fazendo? — Me olhou de cima, da cabeça aos
pés, com uma sobrancelha arqueada. — Não deveria estar aqui.
Cadê a Cris?
— Eu… Ela… — Comecei a retorcer os dedos, o corpo
completamente rígido. — Ela foi atender uma emergência lá fora.
Alunos b-brigando — gaguejei.
O professor De Lucca semicerrou os olhos, ainda me
analisando de cima.
— E o que você faz aqui?
— Nada, eu só tava… u-usando a impressora. A f-fila na b-
biblioteca tava m-muito longa e… e-eu precisava tirar um-mas
cópias c-com urgência. P-Por causa do meu trabalho. A Cris d-disse
que não tinha p-problema.
— Entendo — foi tudo que ele disse, a expressão indecifrável.
Saltei da cadeira, me apressei até a impressora e peguei os
papéis de qualquer jeito, empilhando tudo.
— E-Eu já vou indo, preciso ir pro t-trabalho. Até mais,
professor.
— Espera aí — falou antes que eu pudesse chegar à porta.
Parei na mesma hora, dura feito uma pedra.
Ferrou, ferrou, ferrou!
— Sim? — Olhei por cima do ombro com cautela.
— Me desculpe, mas vou precisar roubar uns minutos de você.
— O professor De Lucca passou por mim e abriu a porta. — Sei que
você tem horário e vou tentar ser breve, mas eu realmente preciso
falar com você. Com vocês, na verdade.
Engoli em seco, mas o segui porta afora.
— Vocês quem?
E Richard, para minha consternação, estava ali também,
parado no corredor, os olhos arregalados e o rosto pálido. Nos
esperando, percebi.
Droga!
— Vamos? — o professor falou com tranquilidade, e seguiu
pelo corredor que levava aos domínios do conservatório.
Sem alternativas, tanto eu quanto Richard começamos a segui-
lo devagar.
— O quê… — sussurrei para Richard, mas ele sacudiu a
cabeça em aviso.
Meu estômago afundou como uma âncora.
As costas e os ombros do professor estavam rígidos, reparei
enquanto subíamos as escadas, e ele contraía os dedos cobertos
de cicatrizes sem parar, até que enfiou as mãos dentro dos bolsos.
— Cuidado com os degraus — falou, a voz tão tensa quanto
seu corpo.
Droga, com certeza estávamos muito ferrados. Mas
continuamos andando em silêncio, devagar, até chegar na sala que
o professor De Lucca usava para dar aula de História da Música.
— Por favor, entrem. — Ele abriu a porta e nos deu passagem.
E, quando entramos…
Vitor, Giovanna, Mariana e mais dois alunos, um menino e uma
menina, também estavam lá dentro.
— Mas o quê… — balbuciei assim que o professor fechou a
porta atrás de nós. Richard não parecia estar entendendo muito
mais que eu.
— Bom, agora que estamos todos reunidos… — o professor
falou. E sorriu. — Permitam-me dar, oficialmente, os parabéns a
todos vocês por terem passado no concurso.
Tive que me segurar para não desabar. E senti como se um
peso enorme saísse de cima de mim.
Não estávamos encrencados. Não tínhamos sido descobertos.
Olhei para Richard. Ele parecia tão confuso e aliviado quanto
eu.
— E aí, vai nos dizer logo por que nos reuniu aqui ou não? —
Vitor resmungou, largado em uma das carteiras no fundo da sala, e
olhou para mim, me lançando uma piscadela e um sorriso malicioso.
Richard enrijeceu ao meu lado.
— Assim que seus colegas se acomodarem, eu explico — o
professor se limitou a dizer, despreocupado.
Sentei em uma das primeiras carteiras encostadas na parede, e
Richard na fileira ao lado, duas carteiras atrás. Me ocultando da
visão de Vitor, percebi ao olhar por cima do ombro.
O professor De Lucca ocupou seu lugar habitual, sentado na
beirada de sua mesa com os braços cruzados, e começou a nos dar
os parabéns, dizendo que as fases eliminatórias não tinham sido
fáceis e que estava orgulhoso de nós.
Aproveitei o momento para tirar o celular do bolso e,
discretamente, mandar uma mensagem para Richard, o celular
escondido embaixo da carteira.

“Achei que você tinha sido pego.”

Ele respondeu um minuto depois.

“Eu também. Estava voltando pra ver como você


tava quando dei de cara com o professor. Ele não
falou nada sobre o assunto, mas pediu que eu fosse
com ele e me mandou esperar do lado de fora da
secretaria enquanto ia te buscar. Achei que tinha
ferrado pra nós dois.”
“E você não arrumou problemas por mentir pra
Cris? O que ela fez quando descobriu que a briga
era mentira?”
“Aí é que tá. Não era mentira.”
“O quê?!”
“Eu planejava inventar outro tipo de distração
pra tirar ela de lá. Dizer que o diretor tinha
chamado, ou algo do tipo. Não me colocaria em
problemas. Inventar uma briga falsa seria loucura,
burrice até. Mas, por sorte, dois moleques do
quinto ano estavam quase saindo no tapa bem na
hora que eu tava indo pra secretaria.”
“Quase?”
“Pode ser que eu tenha gritado uma provacação
quando um deles deu as costas.”
“E?”
“E eles começaram a se socar, achando que o
outro tinha feito aquilo.”
“Richard! Meu Deus…”
“Não foi tão sério quanto eu fiz parecer na
hora, relaxa. Mas e você, conseguiu descobrir
alguma coisa?”

Comecei a digitar, mas o professor De Lucca falou, atraindo a


minha atenção:
— Como sou responsável por vocês enquanto o concurso
durar, é minha obrigação também explicar algumas coisas. Então
vamos lá. — Começou a andar de um lado para o outro na sala, os
braços cruzados nas costas. — O concurso vai acontecer da
seguinte maneira: serão três seleções, uma com cada tema
diferente. Vocês podem escolher qualquer peça que quiserem pra
apresentar, mas com a única condição de que esteja de acordo com
o tema exigido pela banca.
— Tema? — murmurei comigo mesma.
— Na primeira e na segunda seleção, vocês receberão notas
pelas suas apresentações. Prestem atenção nisso, é muito
importante: após a segunda seleção, a banca somará as notas de
cada um de vocês e apenas os três participantes que tiverem a
pontuação mais alta seguirão para a terceira seleção. O restante
estará fora.
— O quê? — Mariana murmurou, sentada na fileira no centro
da sala, os olhos grandes arregalados.
— Por que não ir eliminando aos poucos a cada seleção? —
Giovanna, sentada na parede oposta, falou com cara de tédio. —
Assim os inúteis já vão saindo sem precisar desperdiçar o tempo de
ninguém. Por que esperar até a última pra eliminar quatro de uma
vez?
O professor adotou uma expressão dura e séria que eu vi
apenas pouquíssimas vezes desde que entrei no conservatório.
— Senhorita Giovanna, qual é o propósito do concurso na
sua… humilde opinião?
Ela ergueu o queixo daquele jeito superior, ignorando a ironia
do professor.
— Mostrar quem é o melhor, claro. Apenas os melhores
chegam ao topo. É assim que funciona, é assim que sempre foi. E é
assim que sempre vai ser. — Exibiu um sorrisinho malicioso cheio
de significados. — Professor.
O professor De Lucca semicerrou os olhos, a mandíbula um
pouco tensa, e eu podia quase jurar que ele estava se segurando
muito para não rebater a resposta de Giovanna.
Mas ao invés disso, voltou os olhos para… mim.
— Julieta — falou, relaxando a mandíbula. — E você, qual
acredita que seja o propósito do concurso?
Arqueei as sobrancelhas. Ele queria que eu rebatesse a
resposta de Giovanna?
— Eu… não sei — murmurei, o corpo tenso.
Por favor, não me mete nisso!, eu queria gritar.
Mas o professor insistiu.
— Vamos, com certeza todos vocês têm uma opinião sobre o
assunto. Ou não teriam sequer se inscrito.
— E-Eu… bom, eu acho… q-que… — Hesitei.
Giovanna me encarava com uma sobrancelha arqueada,
claramente um desafio. E o professor também me olhava,
esperando a resposta.
Respirei fundo. Aquilo só podia ser algum tipo de punição do
universo pela mentira de mais cedo.
— O objetivo do concurso é incentivar os alunos a dar o seu
melhor — falei, os olhos baixos. — Conhecer pessoas e
instrumentos diferentes… realidades diferentes. E aprender a
conviver e respeitar as diferenças de cada um. Não é sobre
competitividade, é sobre… crescer e amadurecer como músico e
como pessoa.
O professor De Lucca esboçou um sorrisinho mínimo, mas
satisfeito. E um pouquinho orgulhoso.
— Exatamente. — Olhou para todos os alunos. — A qualquer
um dos professores ou funcionários que vocês perguntem, a
resposta sempre será a mesma: antigamente, as eliminações
realmente ocorriam a cada seleção. O problema é que isso acabou
passando a mensagem errada, e os participantes só queriam saber
de... passar uns por cima dos outros. Por isso, este ano, as coisas
vão funcionar de uma forma diferente. Se não forem muito bem na
primeira seleção, terão mais uma chance de demonstrar e provar o
seu potencial e, se conseguirem uma boa nota na segunda, pode
ser que consigam passar para a seleção final. Mas isso só depende
de vocês, de seus esforços. Entendido?
Todos concordaram e, pelo canto do olho, olhei para Giovanna
do outro lado da sala. Ela ainda me encarava com nada menos que
fúria nos olhos azuis.
Vitor, que provavelmente assistia a tudo lá do fundo, riu com
gosto e murmurou:
— Isso vai ser divertido.
Eu sabia muito bem que não era do concurso que ele falava.
Richard se remexeu na carteira, os punhos cerrados. Tentando
se conter, percebi. Mas antes que ele ou qualquer outra pessoa
fizesse ou dissesse qualquer coisa, o professor voltou a falar com
um sorriso... tenso:
— Então, querem saber o tema da primeira seleção?

ʄʅ
— Tudo bem? — Richard falou ao meu lado enquanto
seguíamos pelo corredor até a saída. — Você parece meio distante.
— É que foi um dia cheio. — E minha cabeça estava mais cheia
ainda. Suspirei. — Essa foi por pouco.
Ele respirou fundo.
— Foi mesmo.
Olhei ao redor, me certificando de que estávamos sozinhos.
Eu pretendia conversar com Mariana no final da reunião, queria
perguntar como estava e se queria companhia até a saída, mas ela
saiu apressada e ansiosa assim que o professor De Lucca nos
dispensou, resmungando sobre precisar escolher uma peça logo.
— Eu descobri uma coisa — murmurei baixinho, só pra ter
certeza. — Lá na secretaria.
Richard levou alguns segundos para entender do que eu falava.
E virou a cabeça para mim, os olhos arregalados.
— Achei que não tinha dado tempo.
— Quase não deu — confessei. — O professor apareceu bem
na hora, mas consegui pelo menos uma informação: o nome dela é
Aurora Ferrari.
Richard arqueou as sobrancelhas.
— E você tem certeza de que é a pessoa que procuramos?
Assenti.
— Não tem como ser outra pessoa. Eu joguei o primeiro nome
no sistema e, Richard, deu apenas um resultado na busca. Em toda
a história do Colégio São Patrício e do Intermezzo Musicale, apenas
uma aluna se chamava Aurora. Matriculada há dez anos,
exatamente como pensei. Só pode ser ela.
Richard voltou a olhar para frente, o rosto admirado.
— Uau. Mas e agora? Vai procurar por ela na internet?
— Acho que é o único jeito. E, sinceramente, não sei mais o
que fazer se isso não der certo.
Ele assentiu, pensativo.
— Enfim… — continuei, respirando fundo. — Enquanto isso se
resolve, precisamos nos concentrar na primeira seleção do
concurso. Alguma ideia do que o tema pode significar?
Richard bufou.
— Parece simples à primeira vista, mas com certeza deve ser
algo mais complexo. Aqueles caras da banca examinadora não
fariam uma coisa tão óbvia.
Gemi de frustração, ajeitando a mochila nos ombros.
— Foi o que pensei.
— Vamos descansar a cabeça por hoje e amanhã sentamos e
tentamos entender isso juntos. O que acha?
— Acho que é o melhor. Não que eu vá conseguir descansar
muita coisa, mas… — ri, sem humor, e dei de ombros. Cinco horas
de trabalho e uma caneca grande cheia de café ainda me
aguardavam.
— Como seu avô está? — Richard perguntou com cuidado.
— Bem. Continua internado e emburrado, mas, aos poucos,
sua saúde tá voltando ao normal. Ainda não sei quando ele vai
receber alta, mas pelo menos… — respirei fundo — o pior já
passou.
Richard assentiu, compreensivo e, ao ver que eu não me
aprofundei muito na questão, não forçou o assunto.
Que bom. Porque, sim, o pior dos piores realmente tinha
passado, mas ainda tinha aquele outro grande e inevitável
problema. Eu não me permitia ficar pensando muito no assunto, pra
não surtar ou entrar em colapso, mas querendo ou não, ele sempre
estava ali, à espreita, e controlando cada segundo dos meus dias
como se eu fosse uma marionete.
— Vamos conseguir pensar em alguma coisa — Richard falou
de repente, mudando de assunto. — O significado do tema não
deve ser tão óbvio quanto parece, mas com certeza também não é
nenhum bicho de sete cabeças. Nós vamos resolver o enigma.
E, apesar do desgaste e do cansaço, consegui sorrir.
— Sim, vamos. — Alonguei o pescoço e girei os ombros para
trás. — Abertura… — murmurei.
— Abertura — Richard ecoou.
O tema da primeira seleção.
Capítulo 11
Quarta, 9 de abril
“Abertura”. Esse é o tema da primeira seleção do concurso.
Ontem, depois do almoço, tivemos uma reunião com todos os
alunos que passaram na segunda fase das eliminatórias, e o
professor responsável pela nossa orientação explicou como tudo
funcionaria dali pra frente.
Eis como vai ser:
O concurso será dividido em três seleções, cada uma com um
tema diferente. Temos permissão de escolher qualquer peça musical
que quisermos, mas com uma única condição: que ela esteja de
acordo com o tema.
A primeira seleção será apenas no começo do mês que vem e, nesse meio-tempo,
devemos escolher uma peça e deixá-la pronta para a apresentação, que vai acontecer no
anfiteatro e com a escola toda como plateia.
Parece simples, né?
Mas só parece mesmo.
“A banca examinadora dará notas às apresentações de cada um de vocês”, o professor
falou. “Quem tiver a melhor nota ficará com o primeiro lugar na seleção, e por aí vai, até o
quarto lugar.”
“Quarto lugar?”, o mesmo garoto abusado do outro dia falou, largado na carteira com
aquela arrogância despreocupada de sempre e arqueando uma sobrancelha. “Mas nós
estamos em cinco. O último lugar não deveria ser o quinto?”
Aquele detalhe não passou despercebido por ninguém. E quando
a pergunta pairou no ar, todos olhamos para o professor com
expectativa.
E era aí que estava a bomba atômica.
“Não exatamente.” O professor exibiu um sorrisinho. “Apenas
quatro de vocês passarão para a próxima seleção. Quem tiver a pior
nota estará fora, então eu sugiro que se esforcem bastante.”
Foi quase audível como todos enrijeceram, e o clima dentro da
sala pesou na mesma hora.
“Meu Deus”, sussurrei conforme me dava conta do que aquilo
significava. E, só pra confirmar, dei uma olhada ao meu redor.
Fora eu e o garoto abusado, haviam mais três competidores: uma garota e um garoto,
ambos violinistas — os mesmos que quase saíram no tapa no dia das eliminatórias —, e,
argh, aquela pianista metidinha do dia da inscrição. Eu ainda não sei os nomes de
ninguém. Mas, a julgar pela expressão no rosto de cada um... é perda de tempo sequer
tentar conhecê-los.
Rostos tensos, mas determinados. Nenhum deles se daria por
vencido, nenhum deles facilitaria as coisas pros adversários.
Os dois violinistas trocavam olhares com faíscas raivosas, a garota do piano sorria de
forma aparentemente inocente, mas com olhos ambiciosos, e o garoto abusado soltou uma
risada de desdém, ainda naquela pose arrogante de bad boy. Como se estivesse
convencido de que os esforços de qualquer um ali seriam inúteis.
E quando percebeu que eu o encarava, seu sorriso cresceu e ele
me lançou uma piscadela.
“Boa sorte a todos”, o professor falou, ainda sorrindo. Parecia
estar se divertindo com aquela atmosfera. “Vocês vão precisar.”
Meu estômago revirou violentamente, mas me obriguei a manter
uma expressão neutra e entediada no rosto. Sem demonstrar medo
ou fraqueza. Sem brechas.
Mesmo sabendo… que não seria uma competição limpa ou
amigável entre colegas de escola. Não, o buraco era bem mais
embaixo.
Aquilo não seria um concurso. Seria um massacre.
E, hoje no intervalo, enquanto eu roía a unha de ansiedade de
tanto pensar naquela droga de tema… bom, algo aconteceu. Eu só
não sei dizer se foi interessante ou extremamente perigoso. Talvez
as duas coisas.
“Abertura, abertura, abertura…”, eu murmurava, sentada com as pernas dobradas uma
embaixo da outra na mureta do chafariz na entrada da escola, os cotovelos apoiados nos
joelhos nus sob a barra da saia rosa.
Era um tema bem vago. Mas eu tinha que pensar e escolher algo
o mais rápido possível. Tinha apenas semanas pra deixar a peça
pronta. E o mais perto da perfeição que conseguisse.
Assim como os outros, eu não seria uma adversária fácil. Não podia ser. Finalmente
tinha chegado até ali, eu não cederia por causa da pressão. E não seria desclassificada
logo na primeira seleção.
Então eu tinha que manter a calma. E o foco. Mas…
“Abertura, abertura, abertura…”, aquele garoto apareceu, repetindo as minhas palavras.
Tirando sarro. “Problemas no paraíso, Moranguinho?”
Manter a calma. Esse pensamento caiu por terra assim que
aquela droga de apelido e aquele sorriso convencido apareceram na
minha frente.
“Tava tudo ótimo até você resolver vir me infernizar”, foi a minha
resposta seca.
Ele teve a audácia de rir.
“Eu não vim te infernizar.”
“Bom, então realmente deve ser um dom.”
O garoto deu de ombros. E se sentou ao meu lado na mureta.
“O que você quer?”, perguntei com uma careta, ajeitando as
pernas e a barra da saia, me lembrando com amargura do meu
estado quando nos conhecemos, e me afastei uns bons
centímetros.
“Colher informações. Preciso estudar meus adversários se quiser
vencer essa coisa. Já desvendou o enigma da primeira seleção?”
Meu queixo caiu.
Não consegui acreditar. Ele… Ele realmente estava…
“Você tá querendo assunto pra fofocar e me pede isso na cara
dura?”
“Colhendo informações”, corrigiu.
“Fofoca.”
Ele deu de ombros mais uma vez.
“Chame como quiser. Mas você ainda não respondeu minha
pergunta.”
“Se vira pra descobrir sozinho”, cuspi.
“Você também ainda não sabe, né? Tudo bem, podemos pensar
nisso juntos.”
Comecei a rir alto. Não consegui evitar, ele pediu por aquilo.
“Juntos? Juntos uma ova! Eu não vou ser sua fonte de informação
no concurso, pode esquecer.”
“Não tô pedindo uma fonte de informação, só quero… um aliado.”
“Aliado”, repeti pouco convencida.
“É. Não precisamos ser os melhores amigos do mundo, mas eu
realmente acho que podemos nos ajudar em situações como essa.
Assim, os dois se garantem até a final do concurso.”
“Sabe o que realmente vai te garantir na final do concurso?
Estudar e tocar bem.”
O garoto revirou os olhos.
“Claro, isso também. Mas pense em quanto tempo vamos perder
tentando adivinhar cada tema sozinhos. Tempo que poderíamos
usar pra melhorar nossa performance.”
E… droga, eu não podia negar que nisso ele tinha razão. Desde
a noite passada, eu não tinha parado de tentar entender o que,
exatamente, abertura queria dizer. Até pensei em algumas
possibilidades, mas pra ser bem sincera, podia ser qualquer outra
coisa.
“Vamos lá, dois cérebros pensam melhor do que um”, ele insistiu
com um sorriso nada menos que interesseiro.
Semicerrei os olhos, ainda desconfiada.
“Por que eu?”
“Como assim?”
“Dentre todos os outros participantes, por que tá pedindo que
eu seja sua aliada? Dos cinco, eu sou a única novata participando
do concurso. Por que não pediu isso pros outros, que são mais
experientes?”
“Porque você é a melhor entre eles”, falou simplesmente, como se
não fosse nada demais.
Engasguei uma risada.
“Nossa, você realmente diz qualquer coisa pra conseguir o que
quer.”
“Não é mentira”, ele falou com o cenho franzido. “Conheço bem
os outros participantes, então sei do que tô falando. Eles são bons,
claro, mas você…” Inclinou levemente a cabeça, me olhando com
atenção. “Seu som é diferente. E você é esperta. Consegue
controlar bem as emoções… às vezes.” Um sorriso brotou no canto
de sua boca. “A garota que escutei no palco não tinha nada a ver
com a chorona da sala de ensaio.”
Revirei os olhos.
“Enfim…”, continuou. “Eu acho que podemos nos ajudar. Ainda
mais se os outros estiverem fazendo suas próprias alianças pelas
nossas costas. E aí, o que me diz?”
Suspirei pelo nariz. Aquela era uma má ideia e talvez me
prejudicasse mais do que traria benefícios, mas…
“Tá, tudo bem”, falei. “Mas só em casos muito urgentes, como
esse. Não quero arrumar dores de cabeça desnecessárias por
causa das suas tramoias.”
Os olhos azuis do garoto brilharam com malícia e ele sorriu de
novo daquele jeito convencido. Triunfante.
E senti como se tivesse acabado de fazer um pacto com o Diabo.
“Combinado.” Começou a mexer em um dos bolsos da mochila e me jogou um objeto
pequeno de embalagem cor-de-rosa. “Pra você.”
Peguei no ar às pressas pra não deixar cair, e quando olhei para
ver o que era…
Um chocolate. Moranguete.
Fuzilei o garoto com o olhar. Ele ainda sorria daquele jeito
irritante.
“Retiro o que disse. Só aceito ser sua aliada se parar com essa
droga de Moranguinho.”
“Bom, então me diz o seu…”
“Aurora”, interrompi. “Meu nome é Aurora.”
“Aurora”, ele repetiu lentamente, experimentando cada sílaba
como se fosse um gato ronronando. “Gostei. Combina com você.”
Ignorei a sensação estúpida e inconsequente de borboletas
voando dentro do estômago.
“E você, como se chama?”, perguntei, tentando mudar o foco.
“Vougan.”
Engasguei de novo, segurando, lutando para não rir.
“Vougan?”, repeti, mal conseguindo disfarçar o sorriso de
deboche. “Que tipo de nome é esse? Seus pais te odeiam?”
“Não.” Revirou os olhos. “São dois nerds que gostam muito de livros de fantasia. Eles
são escritores, então…” Deu de ombros. “Dei a sorte, ou o azar de, provavelmente, ser o
único cara no mundo com esse nome. Pode rir, eu não ligo.”
Fiquei séria na mesma hora.
“Desculpa, eu não queria rir. Só fui pega de surpresa. Sei bem
como é ter um nome… incomum.”
Na infância as crianças, principalmente os meninos, adoravam tirar sarro de mim por
causa do meu nome. Falavam que era nome de velha. Era irritante, e eu metia o soco em
todos sempre que vinham com essa história.
Aquele sorrisinho malicioso voltou. E, talvez, apenas para me
punir por ter rido…
“Relaxa, suas palavras grosseiras não me magoaram…
Moranguinho.”
Bufei.
“Tá, já entendi. Mas então…” Abri a embalagem do chocolate e
comecei a comer. “O que acha que abertura quer dizer?”
Ficamos discutindo durante todo o intervalo, trocando ideias,
opiniões e teorias sobre o que a banca examinadora queria dizer
exatamente com aquele tema. O que esperavam de nós. E, apesar
de não chegarmos a nenhuma resposta certeira e concreta, depois
de um ver e entender pelo ponto de vista do outro, pelo menos a
ideia do que abertura poderia significar já não parecia tão vaga ou
complexa.
E talvez eu ainda precise pensar mais no assunto, mas enquanto
me levantava para voltar para a aula, uma ideia de uma possível
peça já começava a rondar meus pensamentos. Ainda ronda.
“Boa sorte com a sua peça”, Vougan falou enquanto eu me
afastava, voltando para o prédio.
Olhei por cima do ombro. Ele sorria. Não daquele jeito convencido
de sempre, mas de um jeito bem… natural. Sincero.
“Obrigado pela ajuda”, continuou. “Foi muito esclarecedor.”
“Igualmente”, falei meio sem jeito. E ergui a embalagem vazia e
rasgada do chocolate nos dedos. “Pode trazer mais quando formos
discutir o tema da segunda seleção.”
Suas sobrancelhas arquearam. E o sorriso satisfeito voltou.
“Sua fé nas minhas habilidades me deixa honrado. E, só por isso,
vou te trazer dois na segunda seleção.”
Ri com deboche e voltei a andar.
“Não aceito nada menos que uma caixa inteira.”
Vougan ouviu. E deu risada.
“Gulosa.”
“Esse é o preço da minha aliança, parceiro”, exclamei,
chacoalhando a embalagem para cima, e entrei no prédio.
Agora, queridos leitores, pensem comigo:
Será que eu realmente posso confiar nele? Na hora eu não disse
nada, mas quem garante que Vougan não tá saindo por aí fazendo
alianças com todos os outros participantes do concurso? Ele os
conhece, saberia como manipular cada um deles.
Seria uma jogada inteligente que daria a ele muitas vantagens. E
eu ainda não o conheço bem, mas já percebi que é esperto. Muito
esperto. Aquele garoto tem lábia e, combinando seus argumentos
com todos aqueles sorrisos, olhinhos azuis e apelidos
provocantes…
Eu preciso ficar alerta. Não baixar a guarda, independente de
ter concordado ser sua aliada ou não. Preciso tirar tantas
informações dele quanto puder, virar o jogo para que eu tenha a
vantagem. Se a intenção dele com essa aliança é me puxar o
tapete, então eu preciso estar pronta pra revidar.
Quem sabe enrolá-lo no tal tapete e arremessá-lo de uma
janela…
É, acho que pode ser um bom começo.
Capítulo 12
Nada. Em duas semanas de pesquisa, eu não encontrei
absolutamente nada sobre Aurora. Nenhuma pista, nenhuma rede
social, nenhuma foto. Nenhum rastro sequer.
Aparentemente, a única prova de que ela era real, de que
realmente existia, era aquele diário.
Eu ainda não tinha criado coragem — ou ousadia — o
suficiente para ler. Uma parte de mim me dizia pra não fazer, que eu
logo encontraria sua dona e poderia devolver o diário sem o peso na
consciência de ter invadido sua privacidade, mas... a outra parte...
Só uma olhadinha, ela parecia sussurrar. Só até você encontrar
um endereço ou número de telefone... ou até entender o que
aconteceu para que o diário tenha ido parar no depósito.
Era difícil ignorá-la. Ainda mais porque eu andava com o diário
pra cima e pra baixo. Não tinha ousado ler, mas também não
conseguia deixá-lo em casa. Só de saber que ele estava ao alcance
se eu precisasse, já bastava. Por enquanto.
Porque, no momento, eu tinha que me concentrar na peça do
concurso. As provas do bimestre tinham acabado na semana
passada, então tinha que focar toda a minha atenção no concurso a
partir de agora. Eu tinha escolhido uma peça e estava trabalhando
nela há alguns dias já, mas agora era hora de mergulhar de cabeça
pra valer.
Mas...
— Porcaria — resmunguei pela vigésima vez ao errar um trecho
ridiculamente fácil da peça por falta de atenção.
— Alguém pediu porcaria? — Richard deu batidinhas na porta,
abrindo um fresta.
— Ah, oi. — Parei para me espreguiçar e bocejei. — Achei que
você tava ensaiando.
— Eu tô. Só parei pra... hã... — Hesitou.
Dei risada.
— Deu dor de barriga?
— Não — riu também. — Só... queria saber quando foi a última
vez que você comeu. Não te vi no intervalo.
— Ah. Eu tava aqui, queria adiantar algumas coisas. Mas não
se preocupa comigo, eu almocei.
— Isso foi há quase cinco horas.
Pisquei. Era verdade, e eu nem tinha reparado.
E só porque ele comentou, senti meu estômago roncar.
— Aqui. — Richard entrou na sala de ensaio que eu usava e
me estendeu uma sacolinha branca de plástico. — Sabia que você
ia acabar ficando sem comer, então passei na cantina.
Peguei e olhei dentro da sacola. Tinha um pão de queijo grande
enrolado em um pacote de papel, uma garrafinha de iogurte e um
Chokito.
— Não precisava... — Minhas bochechas esquentaram, mas
senti um sorriso curvar os cantos da minha boca de leve, uma
sensação quentinha aquecendo meu peito. — Obrigada.
Richard sorriu, corando também.
— Não foi nada. Você tá dando duro nos estudos pro concurso
e eu sei que ainda tem uma noite cheia pela frente no trabalho,
então... — Encolheu os ombros. — Só não quero que acabe
passando mal.
Tentei segurar, mas meu sorriso cresceu.
— Obrigada — repeti. Não estava acostumada a ser paparicada
daquele jeito, mas era... bom.
— Vou te deixar se concentrar. — Recuou até a porta,
segurando a maçaneta. — Bons estudos. — Sorriu e indicou a
sacolinha com a cabeça. — E vê se come.
Peguei o pão de queijo e dei uma bela mordida, meu estômago
roncando ainda mais.
— Pode deixar — murmurei de boca cheia, fazendo Richard rir
com gosto enquanto fechava a porta atrás de si.

ʄʅ
— Porcaria! — exclamei, frustrada, quando errei o mesmo
trecho da peça meia hora mais tarde.
— Problemas de concentração? — alguém falou atrás de mim.
Era Mariana dessa vez. Suspirei.
— Um pouco.
— Leva um tempo até pegar no embalo, é normal. — Ela entrou
na sala e deu uma olhada na partitura. — A semana de provas foi
intensa, ainda mais pros estudantes de música. — Arqueou as
sobrancelhas. — Uau. Boccherini, é? Essa peça parece ser...
interessante.
— Não é tão monstruosa quanto parece. — Ajeitei o cello entre
as pernas. — Mas eu preciso levar a sério e prestar mais atenção.
— Eu te ouvi lá de fora. Você tá levando a sério, Julieta, de
verdade. Só deve estar com a cabeça cheia.
Ah, ela nem fazia ideia. A frustração de não ter encontrado
nadinha de nada sobre Aurora ou seu paradeiro não saía da minha
cabeça.
Eu não tinha contado a Mariana sobre o diário. Não que não
confiasse nela, mas sabia que ela estava dando tão duro quanto eu
nos estudos para o concurso.
Todo dia depois das aulas, Mariana corria para as salas de
ensaio e só saía depois de anoitecer, então eu não queria atrapalhá-
la com assuntos de diários misteriosos e suas donas desaparecidas.
Já bastava uma de nós pensando incessantemente naquilo.
— Acho que sim — me limitei a responder. — Mas e você, tá
bem? Você tem ido embora mais tarde que o normal desde que as
provas acabaram.
— Tô legal. Só tive que parar um pouco pra respirar, mas... —
Riu, esticando os braços e se espreguiçando, seu umbigo
aparecendo por baixo da barra do uniforme. — Estou confiante. Um
pouco ansiosa, talvez, mas de animação. Quero que a primeira
seleção chegue logo.
Gemi um resmungo.
— Queria ser confiante igual a você. Quando penso em subir no
palco de novo, não sinto nada além de dor de barriga.
Mariana riu de novo e afastou o cabelo castanho-dourado do
rosto, torcendo-o num coque alto.
— Relaxa, vai dar tudo certo. Mas é melhor eu voltar. Só passei
pra ver como você tava. — Foi andando até a porta. — Grite se
precisar de alguma coisa.
Soltei uma risada cansada e voltei a ficar em posição para
tocar.
— Você também.
ʄʅ
Estava atravessando o corredor até a saída quando, mais à
frente, vozes falando alto e em tom de briga chegaram até mim.
— Você ficou louca? — Reconheci a voz da professora
Fabiana, e congelei no lugar. — Fazer isso a essa altura do
campeonato é pedir pra ser desclassificada!
— E o que você vai fazer? — falou uma voz feminina familiar.
— Me impedir? Você já escolheu o seu lado nessa história. E deixou
bem claro que não se importa com o que acontece comigo!
Me aproximei devagar, quase na pontinha dos pés. Apoiei as
mãos na parede para me equilibrar e estiquei o pescoço para dar
uma olhada no que estava acontecendo...
E fiquei dura feito uma pedra. A pessoa com quem a professora
Fabiana discutia era… Giovanna.
— Mas o quê… — sussurrei, os olhos arregalados.
As duas estavam no hall da secretaria, logo na entrada do
colégio. Eu não conseguiria passar sem ser notada, mas não fazia
sentido voltar para trás. Já tinha encerrado meus estudos de
violoncelo após as aulas e realmente precisava ir embora para o
trabalho.
— Quantas vezes vou ter que repetir? — a professora Fabiana
falou entre dentes, fuzilando Giovanna com o olhar. — É justamente
por me importar com você que eu queria que você esperasse até o
ano que vem! Mas você me escutou? Você ainda não está pronta
para um concurso, Giovanna! E agora quer cometer a burrice de
trocar de peça tão em cima da hora? Qual é o seu problema?
Minha boca estava seca. Não, eu não podia estar entendendo
certo. Não podia ser.
Giovanna… também tocava violoncelo.
— Esperar até o ano que vem pra quê? — Giovanna rebateu,
tão furiosa quanto a professora. — Só eu posso dizer se estou
pronta ou não! Eu sou boa! Eu passei nas eliminatórias! Quer prova
melhor do que isso?
— Eu nunca disse que você não era boa. — Os olhos escuros
da professora Fabiana quase pegavam fogo. — Mas você não tem
maturidade o suficiente pra algo desse tamanho, esse é o problema.
Esse sempre foi o seu problema! Você sempre quer mais do que
pode ter, sempre quer estar acima de todos, custe o que custar. Não
é assim que se chega ao topo, Giovanna!
— Bom, agora isso não é mais da sua conta. — Giovanna
empinou o queixo. — Eu pedi transferência. A partir dessa semana,
estarei sob os cuidados do professor Henrique. Ele sim reconhece o
meu valor.
— Professor Henrique?! — A professora Fabiana soltou uma
risada incrédula.
— Aposto que está feliz — Giovanna continuou, inabalável. —
Não vai mais ter que lidar comigo ou com meus problemas. Até
porque, já tem sua nova favorita, não é? Vocês duas se merecem —
cuspiu, e não esperou uma resposta da professora antes de sair
marchando. — Deseje boa sorte à sua querida Julieta por mim. Ela
vai precisar.
Se é que era possível, meu corpo ficou ainda mais rígido do
que já estava.
Eu sabia que Giovanna não ia com a minha cara, mas achava
que ela não passava de uma garota mimada. Que queria se impor
porque se divertia ao ver os outros quebrarem a cara, porque era a
sobrinha do diretor e gostava de exercer seu poder sobre os outros
alunos, ou qualquer coisa do tipo. Mas jamais imaginaria que,
comigo, a coisa era pessoal.
Quando contei para a professora Fabiana que tinha entrado no
concurso, ela ficou muito feliz. Radiante. E me ajudou muito com os
ensaios, estudos e até com a escolha da peça, como tinha
prometido.
Mas Giovanna…
E aqueles que se inscreverem apesar dos seus avisos? Vai
ajudá-los com os ensaios também?
Eu já deixei bem clara a minha opinião sobre o assunto com os
mais teimosos. Se ainda assim fizerem como bem querem, o que
quer que aconteça com eles nesse concurso não será problema
meu.
Eu, uma novata, recebi a aprovação da professora Fabiana.
Giovanna, que era sua aluna há anos, não. E estava, no
mínimo, furiosa. Com nós duas, percebi.
Não ousei me mexer conforme a professora olhava na direção
que Giovanna tinha seguido. Com os olhos duros e punhos
cerrados, a boca comprimida de uma forma que me fez pensar que
ela estava se segurando muito para não começar gritar com a
garota que se afastava.
Mas seus ombros se curvaram para frente de repente, os
longos cabelos pretos escorregando por eles feito uma cortina, e a
professora Fabiana soltou um longo e pesado suspiro.
— Droga, Giovanna — murmurou, a voz baixa e… triste.
Eu queria poder fazer alguma coisa. Queria poder consolar a
professora de algum modo, dizer que ela não tinha feito nada de
errado. E até cheguei a dar uns dois passos em sua direção
quando, do nada, a porta da secretaria se abriu e o professor De
Lucca apareceu.
Corri de volta para trás da parede.
— Fabi? — ele falou com delicadeza, se aproximando da
professora com cuidado.
Ela se virou num pulo, os olhos arregalados.
— Ah, professor De Lucca! Perdão, não te ouvi chegar.
O professor enfiou as mãos no bolso da calça e se aproximou
mais dela, o semblante preocupado.
Uhhh, aquilo estava ficando bom!
— Você está bem?
— Claro — a professora Fabiana tentou desconversar. — Por
que não estaria?
Mas o professor De Lucca era esperto. E muito, muito
charmoso.
— Ouvi a discussão entre você e... aquela aluna. Perdão, eu
não pretendia ficar ouvindo, mas estava terminando de guardar uns
arquivos na secretaria.
— Ah. Achei que a Cris já tinha ido embora.
— Ela foi. — O professor sorriu daquele jeito astuto. E sedutor.
— Mas eu dei meu jeitinho de conseguir uma cópia da chave.
A professora Fabiana riu, uma risada melodiosa.
— Ah, sim. Com seus sorrisos, elogios e jogada de cabelo.
O professor De Lucca também riu, exibindo os dentes brancos.
Agarrei a parede com mais força. Aquilo estava ficando muito
bom!
Alguém cutucou meu ombro por trás. Richard.
— O que está…
— Shh! — Agachei um pouco e o puxei para o meu lado.
Richard começou a observar também, sua cabeça alguns
centímetros acima da minha.
— Fui descoberto — o professor falou, ainda sorrindo. — Vou
ter que mudar minha tática de abordagem.
— Não, deixe assim. — A professora sorriu. — É divertido de
assistir.
Beija, beija, beija!, eu queria gritar.
— Anda, fala — o professor insistiu. — Sabe que pode confiar
em mim. A garota não pegou leve com você.
A professora Fabiana suspirou, parecendo cansada.
— Você sabe como ela é. Giovanna sempre foi difícil. Faz anos
que eu tento controlar o temperamento dela, professor. Anos. Mas
nunca pensei que chegaria a isso. E por uma besteira! Acredita que
ela me trocou? Eu fui trocada pelo professor Henrique! — falou,
incrédula. — Eu! Pelo Henrique! Sei que é antiético falar isso, mas
aquele cara é um babaca! Um tremendo cabeça-dura, sem didática
nenhuma e que não dá a mínima pro que acontece com os alunos,
desde que toquem bem.
O professor De Lucca assentiu, compreensivo. Mas falou:
— Bom, então acho que eles se merecem, não é?
O olhar da professora baixou.
— Ela disse a mesma coisa. Sobre mim.
E sobre mim. Tentei ignorar o aperto no coração conforme
observava a culpa no olhar da professora Fabiana.
— Onde foi que eu errei? — murmurou, quase um sussurro.
— Ei, não fica assim — o professor falou com delicadeza,
apertando seu ombro. — Você não fez nada errado, Fabi. Está
fazendo um ótimo trabalho com seus alunos. Com todos eles. Se a
Giovanna não quer reconhecer os seus esforços, então ela não
merece ter você como professora.
Ela ergueu a cabeça.
— Você acha?
— Claro. Quero dizer, eu não sou ninguém pra falar, mas…
— Nem começa — a professora Fabiana cortou. — Nem vem
com aquele discursinho ridículo do “sou apenas o professor de
História e não entendo nada desse assunto”. Você sabe muito bem
que é mentira.
Algo brilhou nos olhos azuis do professor De Lucca. Mas não
era um brilho de diversão, era um brilho de… tristeza. E sua mão
deixou o ombro da professora, caindo inerte ao lado do corpo. Ou
quase, já que seus dedos tremiam.
Algo mais sério e profundo estava rolando ali, entre aqueles
dois e aquela conversa. Mas eu não conseguia identificar o quê.
Olhei para cima, para Richard. Ele também parecia pensativo,
sua atenção completamente focada nos dois professores.
Jéssica ficaria orgulhosa de nós, pensei com ironia na minha
amiga fofoqueira.
— Isso não importa mais — o professor De Lucca falou, a voz
inexpressiva. Seus dedos se contraíam, tensos, as cicatrizes
brancas e irregulares repuxando sua pele. — Eu… tenho que ir.
Tenha uma boa noite, Fabi. Nos vemos amanhã.
A professora apenas ficou olhando enquanto ele se afastava e,
após alguns segundos, suspirou pesadamente e… também foi
embora.
Espera aí. Só isso? Nenhuma explicação, revelação polêmica
ou declaração apaixonada?
Ah, que desperdício!
— O que será que aconteceu entre esses dois? — Richard
falou, ecoando meus pensamentos, e se afastou da parede.
— Ótima pergunta. Eles formariam um lindo casal, não acha?
Ele fez uma careta.
— Sei lá. Talvez. Ou são apenas amigos.
Eu, sinceramente, esperava que não. Não sabia se era por
passar tanto tempo focada nos problemas e obstáculos da vida, mas
aquele pingo de demonstração de afeto e romantismo despertou
minha imaginação de um jeito que eu já podia visualizar
perfeitamente os dois professores se casando e sendo felizes para
sempre.
— Sabe o que eu acho? — falei. — Que essa escola tem
muitos mistérios, muitas perguntas, e poucas respostas. — Assoprei
um pedaço da franja para longe dos olhos. — Não é justo.
Richard soltou uma risada.
— Ainda nenhuma pista da dona do diário, pelo jeito.
— Não — suspirei. — E eu não consigo pensar em nenhuma
outra forma de encontrá-la.
— Mesmo? — Estreitou os olhos, um sorrisinho de canto de
boca se insinuando nos lábios grossos. — Duvido. Você anda com
esse diário pra cima e pra baixo, faz tempo que tá se segurando pra
não ler.
Minhas bochechas esquentaram.
— Ué, mas não foi você mesmo que disse que eu não deveria?
— me defendi. — Mudou de ideia, por acaso?
— Talvez. — Deu de ombros. — Se for a única forma de
encontrar essa tal Aurora e entender o que aconteceu com ela…
então por que não? Já esgotamos nossos recursos de espionagem,
de qualquer jeito. — Exibiu um sorriso torto. — Mas… é melhor você
ler sozinha. Por mais que seja antigo e a dona não esteja por perto,
ainda é o diário de uma garota. Não seria… ético da minha parte ler.
Lembrei do aviso de Aurora sobre a gaveta de calcinhas e tive
que lutar contra o sorriso. Realmente, era estranho imaginar Richard
lendo uma coisa dessas. E podia apostar que o diário estava repleto
de coisas do tipo.
— Tudo bem — falei. — Eu leio e aviso se descobrir alguma
coisa que nos leve até ela. Talvez comece essa noite mesmo… —
Meu celular começou a tocar.
Era do hospital.
— Alô? — atendi, o coração disparado de repente. E arregalei
os olhos. — Sério? Tá… Tudo bem, estou indo agora mesmo até aí.
Muito obrigada, tchau.
— Tudo bem? — Richard perguntou, alerta.
Eu encarava, boquiaberta, a tela do aparelho.
— Meu avô… — murmurei, os olhos arregalados. — Pediram
que eu fosse buscá-lo. — Encarei os olhos cor de avelã que
analisavam cada centímetro e expressão do meu rosto. E se fixaram
no sorriso que se formou na minha boca. — Ele vai pra casa,
Richard. Vai pra casa. — Senti meu sorriso crescer, e lágrimas de
emoção encheram meus olhos. E não me importei em ser discreta
quando pulei nos braços de Richard e o abracei com força. — Meu
avô recebeu alta!
Capítulo 13
— Cuidado com o degrau, vovô. — O guiei para dentro de casa,
segurando seu braço com firmeza.
— Bah, já sei! — reclamou, os passos lentos feito uma
tartaruga. — Acabei de sair do hospital, mas não sou inválido.
Posso andar sozinho muito bem na minha casa.
Revirei os olhos.
Após receber a notícia sobre a alta do meu avô, corri para o
hospital. Liguei para Demétrio no meio do caminho, explicando a
situação e prometendo que faria horas extras até compensar o dia
perdido, mas ele apenas dispensou explicações e me mandou focar
na recuperação do meu avô, desejando melhoras. Richard queria
me acompanhar e ajudar de alguma forma, mas aquilo era algo que
eu precisava fazer sozinha. Ou quase.
— Se começou a reclamar, então já tá recuperado mesmo —
Jéssica falou atrás de mim com uma risada, carregando minha
mochila.
— Onde coloco isso? — Elias falou atrás dela assim que
entramos, carregando meu violoncelo e a mala com os pertences do
meu avô.
Os dois tinham aceitado nos dar carona de volta para casa do
hospital. E graças aos céus, porque eu não podia pagar outra
viagem de Uber.
— Podem deixar tudo na entrada do corredor. — Ajudei o
senhorzinho rabugento a sentar no sofá e me virei para os dois. —
Eu guardo tudo depois. Obrigada pela ajuda.
— Não mexam em nada meu! — meu avô exclamou. — Eu vou
guardar as minhas coisas, não mexam em nada!
Bufei, começando a perder a paciência. Mas segurei a língua.
— Ignorem ele — falei baixinho para meus amigos enquanto os
acompanhava até a porta. — Eu nem sei como agradecer vocês
dois pela ajuda.
— Não se preocupa com isso, Ju. — Jéssica abanou a mão em
dispensa. — Você já tem muito pra lidar, é o mínimo que podemos
fazer.
— Nos avise se precisar de mais alguma coisa — Elias
acrescentou enquanto cruzamos o jardim até o portão, a mão
apoiada nas costas da esposa. — Não sei se podemos fazer muito,
mas nunca te negaríamos ajuda, Jujuba.
— Tá brincando? Vocês dois são a minha salvação! Eu já teria
ido parar no fundo do poço há muito tempo se não fossem vocês. —
Financeira e psicologicamente, era o que dizia nas entrelinhas.
— Vai ficar bem? — Jéssica falou com o semblante
preocupado, parando no portão baixo de ferro descascado que
separava minha casa da calçada. — Eu sei que você conseguiu se
virar até agora, mas… — Olhou além de mim, para o interior da
casa, e voltou a me encarar. — Você tá tão atolada de obrigações e
problemas, Ju. E agora seu avô vai precisar de cuidados extras.
Você precisa de cuidados também. Quando foi a última vez que teve
uma refeição decente?
Baixei o olhar, retorcendo os dedos. A verdade era que eu já
nem sabia mais.
— Eu vou ficar bem. Não se preocupem comigo, eu… vou
cuidar de tudo.
— Mas quem vai cuidar de você? — Jéssica insistiu baixinho,
quase num lamento.
— Você perdeu peso — Elias murmurou, para enfatizar. E me
olhava com tanta preocupação quanto Jéssica.
Um caroço se formou na boca da garganta, e meus olhos
começaram a arder.
Forte. Eu tinha que ser tão forte o tempo todo… Mas ali,
encarando meus amigos e aquela verdade tão dura que eu lutava
para deixar de lado…
— Eu tô fazendo o que posso — falei, lutando para conter as
lágrimas. — Tô dando o meu melhor.
— Nós sabemos, Ju — Jéssica falou com delicadeza. — E te
admiramos muito por isso. Só… tente pensar um pouco em você
também.
Seria ótimo. Se eu tivesse tempo pra algo do tipo.
E Jéssica deve ter visto isso em meu rosto, porque falou de
repente, resoluta:
— Está decidido. Vamos, Elias. — Começou a puxar o marido
enquanto seguia… de volta para dentro de casa.
— Jéssica! — Corri atrás deles. — O que vai fazer?
— Coelhinha? — Elias chamou enquanto subiam os poucos
degraus da entrada, tão confuso quanto eu, e me obriguei a ignorar
o uso do apelido íntimo de Jéssica. — Tá fazendo o quê?
— Pra quê tanto alvoroço? — meu avô resmungou de cara
amarrada do sofá, a voz rouca, mas Jéssica seguiu em frente
comigo e o marido no encalço.
— Perdão, seu Aurélio, mas vai ter que nos aguentar aqui um
pouquinho mais.
— Bah! Contanto que não me perturbem. — Se ajeitou debaixo
do cobertor e voltou a encarar a TV... assistindo a novela A
Usurpadora.
— Será que dá pra dizer de uma vez o que tá fazendo? — falei
assim que entramos na cozinha.
— Você tá um caco, Julieta — Jéssica respondeu, abrindo a
geladeira e o freezer. — Pálida, desnutrida e quase anêmica.
Pisquei e arqueei as sobrancelhas.
— Grossa — resmunguei.
— Não é isso. — Tirou uma carne congelada esquecida do
fundo do freezer. — Sei que você tá dando duro na escola e no
trabalho… e ainda tem a cirurgia do seu avô, e esse concurso. Você
precisa de mais ajuda do que admite. Por isso... — Colocou a carne
pra descongelar no micro-ondas e começou a vasculhar a geladeira.
— Nós cuidamos do jantar hoje, então descanse. Vai tomar um
banho, tirar um cochilo, meditar ou qualquer outra coisa.
— Mas, Jéssica...
— Sem “mas” — Elias falou, entrando na onda da esposa, e
começou a me empurrar para fora da cozinha. — Ela tem razão,
hoje nós cuidamos de tudo. Agora, fora daqui.
Parei do lado de fora e fiquei encarando os dois. Jéssica agora
vasculhava os armários, vários ingredientes espalhados pela
bancada da pia.
— Xô. — Elias abanou as mãos, me dispensando como se eu
fosse um cachorrinho.
Eles não iam mudar de ideia.
E uma parte de mim estava muito, muito aliviada por isso.
Respirei fundo.
— Não sei se eu já disse isso alguma vez… — Olhei de um
para outro, um sorriso agradecido tomando forma em meu rosto. —
Mas eu amo vocês dois.
Jéssica parou e se virou para mim, os olhos castanhos
arregalados… e brilhando de lágrimas. Elias, em contrapartida, ficou
imóvel e duro feito uma estátua.
Os dois trocaram um olhar significativo e minha amiga sorriu,
emocionada. Mas foi Elias quem falou, um sorriso bonito e sincero
curvando os cantos de seus lábios para cima:
— Nós também te amamos, Jujuba.

ʄʅ
Depois de um belo banho, vesti o pijama, desembaracei
rapidamente os cabelos curtos e peguei a mala do meu avô
esquecida no corredor, jogando tudo na pilha de roupa suja.
Arrastei o cesto pesado até a lavanderia, joguei as roupas
dentro da máquina e, enquanto a abastecia com sabão em pó e
amaciante, Jéssica apareceu no batente da porta, se apoiando e
cruzando os braços.
— Você não consegue relaxar, né?
— Consigo sim, até tomei banho dessa vez — provoquei,
fazendo ela rir. — Mas não é isso, eu só… tô adiantando o
inevitável. Você deixou Elias sozinho?
— Ele vai ficar bem. Está de olho no forno, como mandei. Duro
feito uma pedra e com medo de explodir a cozinha sem querer se
piscar os olhos, mas vai ficar bem.
Dei risada, visualizando perfeitamente a cena.
— E como vai na escola? — ela continuou. — Ainda estão te
provocando?
Parei o que estava fazendo por um momento… mas tratei de
voltar a mexer na máquina, apertando os botões e fazendo o
trambolho velho ganhar vida.
— Tá tudo bem — enrolei, tentando não mentir, mas também
evitando ter que contar toda a verdade. — Conheci algumas
pessoas legais, eles têm me ajudado muito nos últimos dias.
— Richard é um deles? — perguntou, sem nem disfarçar o tom
interesseiro.
E, mesmo de costas para ela, revirei os olhos.
— Richard é um deles. Mas pode parar de criar histórias nessa
sua cabeça, não é nada do que você tá pensando.
— Mas eu nem disse nada — falou em tom provocador.
— Nem precisa. — Me virei para ela. — Richard é um garoto
ótimo, e um bom amigo. Nada além disso.
Jéssica franziu as sobrancelhas bem-feitas.
— Você não gosta dele?
E, mesmo contra a minha vontade, corei.
— Isso não vem ao caso.
Passei por ela e segui pelo corredor até meu quarto. Um
cômodo simples, mas bem iluminado, com apenas uma cama, um
guarda-roupa e uma cômoda, todos de cor branca, e um espelho
comprido pendurado em uma das quatro paredes de cor amarela.
— Ah, não vem? — Jéssica falou, me seguindo. — Por quê? Se
você gosta dele, qual o problema? A não ser que… — Parou no
centro do quarto enquanto eu me jogava na cama. — Ele… não
corresponde seus sentimentos?
Arregalei os olhos, meu rosto entrando em combustão.
— Jéssica, pelo amor de Deus, para de dizer besteiras! —
Cobri o rosto com o travesseiro.
— Então conta a fofoca completa, garota! — Sentou na beirada
da cama e começou a me cutucar, enfatizando cada sílaba. — Se
não me contar as coisas, eu não vou ter escolha a não ser tentar
adivinhar por eliminatória.
Me contorci, tentando fugir de seus cutucões, gemi um
resmungo e afastei o travesseiro, me sentando.
— Tudo bem.
— Isso! — Minha amiga se ajeitou na cama, cruzando uma
perna embaixo da outra. — Então vamos começar com: se você
gosta dele e ele de você, por que ainda não rolou nenhum beijinho?
Eu tinha certeza que meu rosto estava da cor de um tomate.
— Eu nem sei se ele gosta mesmo de mim — confessei,
retorcendo os dedos. — Mas mesmo que goste, a verdade é que…
— Hesitei por um momento, e soltei um suspiro. — Tanto ele quanto
eu estamos focados no concurso. E por mais que sejamos amigos…
enquanto esse concurso durar, nós… meio que somos rivais.
Mais uma verdade que eu tentava ignorar.
E não tinha parado pra pensar no que motivava Richard a
vencer o concurso. Talvez fosse a bolsa para estudar no exterior,
mas ele nunca tocava no assunto. E por mais que eu torcesse muito
para que ele fosse bem nas seleções, não podia negar ou esconder
o fato de que eu também queria ser a grande vencedora. E nenhum
dos dois desistiria do seu objetivo.
Não tinha jeito. A vitória de um resultaria na derrota do outro.
Será que nossa amizade estava com os dias contados?
— É, isso complica um pouco as coisas — Jéssica falou, o
cenho franzido.
Sacudi a cabeça. Eu tinha certeza de que fritaria os neurônios
com aquilo mais tarde, mas no momento era a última coisa em que
queria pensar.
— Mas e você e Elias, estão bem? — mudei de assunto.
Os olhos grandes da minha amiga se arregalaram levemente e
ela contraiu os lábios, parecendo nervosa de repente.
Não gostei nada daquela reação.
— Jéssica? — falei com cautela, analisando-a atentamente da
cabeça aos pés. Seu corpo tinha ficado tenso. — O que foi? Vocês
estão com problemas? Aconteceu alguma coisa?
Ela levou alguns segundos para responder, os lábios tão
comprimidos que não passavam de uma linha fina, até que soltou
um suspiro pesado e falou por fim:
— Eu tô grávida, Ju.
Por um momento apenas fiquei ali, imóvel, encarando minha
amiga com a boca entreaberta.
— G… Grávida? — engasguei num sussurro.
Jéssica assentiu lentamente. E parecia tão assombrada quanto
eu, como se ainda não acreditasse.
— Descobri ontem à noite — sussurrou de volta, os olhos
vidrados.
— Elias sabe?
Ela assentiu de novo.
Desci o olhar até sua barriga reta.
Um bebê. Havia um bebê se formando ali dentro. Um
coraçãozinho batendo como o tique-taque de um relógio. Uma vida
sendo gerada, resultado do amor entre Jéssica e Elias.
Meus dois amigos… seriam pais.
— Meu Deus… — minha voz mal saía. — Jéssica… parabéns!
— Avancei em cima dela, jogando os braços ao seu redor em um
abraço de urso.
E, apesar do assombro, minha amiga sorriu.
— Obrigada. — Me apertou de volta.
— Elias deve ter surtado quando descobriu. — Dei risada,
soltando-a. — No mínimo, deve ter desmaiado. Meu Deus… um
bebê! Jéssica, isso é incrível!
Seu sorriso tremeu.
— É… É sim — falou com uma expressão… resignada?
Meu sorriso sumiu.
— Qual o problema? — perguntei com cuidado. E arregalei os
olhos, me dando conta tarde demais. — Você… não quer o bebê?
Eu sabia como era ser rejeitada por um pai que não me queria.
E na minha cabeça, apenas pessoas más faziam esse tipo de coisa.
Nunca imaginei que alguém como Jéssica, sempre tão amorosa,
poderia sequer ser capaz de algo tão… horrível.
— Não, não é nada disso! — ela falou, no entanto, o espanto e
o horror evidentes em sua voz. — Eu tô feliz, Ju, de verdade. —
Apoiou a mão na barriga lisa. — Estou assustada, claro, e minha
ficha ainda tá caindo, mas mesmo assim… jamais pensei que
pudesse sentir algo desse tipo. Imaginar que tem uma vidinha
crescendo aqui dentro é… — um pequeno sorriso brotou nos cantos
de seus lábios — é surreal.
Um alívio enorme percorreu todo o meu corpo, e relaxei os
ombros.
— Mas então… qual é o problema?
Seu sorriso sumiu.
— Não temos condições financeiras pra cuidar de um bebê. —
Jéssica baixou os olhos, agarrando o tecido da blusa cor de creme
com mais força. — Estávamos discutindo isso ontem, Elias e eu. O
que ganhamos com as aulas e eventos mal é o suficiente pra nós,
imagine pra… um filho.
Não gostei nada do rumo que aquilo estava seguindo.
— Elias tem formação na área de engenharia… — continuou,
me olhando com cautela. — Então chegamos à conclusão de que,
se vamos ter esse bebê, pelo menos um de nós precisa trabalhar
com outra coisa. Algo que… dê mais dinheiro.
Pisquei lentamente, tentando absorver aquelas palavras.
Se Elias pretendia trabalhar com outra coisa, então isso queria
dizer que ele não ia mais dar aulas de teclado e… e…
Minha alma ameaçou sair do corpo.
Elias ia parar de tocar em eventos. E Jéssica, eventualmente,
com o avanço da gravidez. Ou seja, nosso grupo ia se desfazer.
E minha fonte de renda extra ia pro buraco.
— M-Mas… — gaguejei, as mãos suando e tremendo. —
Mas… e eu?
É claro que eu desejava o melhor para os meus amigos, ainda
mais agora com a chegada de um bebê. Se eles tinham os meios
para melhorar sua condição financeira, para dar um futuro melhor
para o filho, eu não os impediria. Nem tinha esse direito.
Mas ainda assim…
— O que eu vou fazer? — sussurrei.
— Calma, Ju. — Jéssica segurou minha mão. — Elias ainda
está procurando um emprego, as coisas não vão mudar de um dia
pro outro. E não vamos te deixar desamparada, nós sabemos como
o cachê dos eventos é essencial pra você. Eu tenho contatos, vou
dar um jeito de te encaixar em outro grupo. — Apertou minha mão, e
encarei os olhos castanhos da minha amiga. — Ainda estamos
juntos nessa, Ju. Nós três. Não vamos te abandonar, não pense
nisso nem por um segundo.
Me obriguei a engolir o caroço na boca da garganta e assenti,
tentando ignorar o pânico crescente dentro de mim e me esforçando
muito para acreditar nas palavras de Jéssica.
— Por favor, não me abandonem — sussurrei e apertei sua
mão de volta, lágrimas empoçando meus olhos.
E Jéssica sabia muito bem que não era apenas do nosso grupo
de eventos que eu falava.
— Ah, Ju… — Seus olhos se encheram de lágrimas também e
ela me puxou num abraço.
Abandonada pelo pai e tirada da mãe por uma tragédia. Essa
era a minha realidade. E por mais que as circunstâncias tivessem
me obrigado a crescer mais rápido, a agir como uma adulta, a
verdade era que eu ainda precisava de alguém que me orientasse…
que cuidasse de mim. Eu queria. Pelo menos às vezes, quando as
coisas ficavam muito difíceis.
Alguém para me trazer à tona nos momentos em que a vida
parecia determinada a me afogar, alguém que apoiasse minhas
decisões e me instruísse nas horas de dificuldade. Alguém para
quem voltar no final do dia, alguém que fosse o meu porto-seguro.
Alguém que… me amasse. Como minha mãe me amava e como
meu pai nunca amou.
E talvez eu estivesse confundindo as coisas, mas de alguma
forma… em algum momento, pelo menos um pouco… encontrei isso
em Jéssica e Elias.
E agora… eu estava com medo de perdê-los também.
— Isso não vai acontecer — Jéssica falou, como se soubesse
exatamente o que se passava no meu coração. — Não vai, Ju. Eu
prometo. — Começou a afagar meus cabelos.
Não consegui responder, não sem liberar a enxurrada de
lágrimas que eu lutava tanto para conter, então apenas assenti,
abraçando minha amiga com força.
— Eu prometo — ela continuou sussurrando até que eu me
acalmasse. — Eu prometo.
Capítulo 14
— Julieta, você tá verde — Lucas falou como cumprimento
enquanto se aproximava de onde eu estava na coxia, encarando o
palco iluminado… e a plateia lotada de alunos.
— Precisa mesmo de tudo isso? — gemi, agarrando as cortinas
grossas de veludo com mais força, meus joelhos quase batendo um
no outro de tanto tremerem. — Por que a escola toda precisa
assistir? Por que não pode ser igual na audição, só com a banca de
plateia?
— E perder a oportunidade de ganhar visibilidade? — Lucas
arqueou as sobrancelhas. — Você realmente não sabe como as
coisas funcionam por aqui, né?
Lutei para não revirar os olhos.
— Sei mais do que imagina — resmunguei baixinho.
— Relaxa, vai dar tudo certo. — Apoiou a mão no meu ombro,
apertando de leve. — Se tocar igual da última vez eu tenho certeza
de que você vai se sair bem. É só não me deixar pra trás. — Me
lançou uma piscadela. E ao olhar meu rosto melhor, acrescentou
com o cenho franzido: — Ou inundar o palco de vômito. Quer que
eu chame alguém?
Engoli com dificuldade e sacudi a cabeça.
— Não precisa. — Por enquanto. — Eu vou ficar bem. — Eu
acho.
Era oficial. O tão temido dia finalmente tinha chegado. A
primeira seleção do concurso.
E eu estava a ponto de despejar meu café da manhã pelo chão.
Olhei ao redor. Tanto os outros participantes quanto seus
acompanhantes pareciam confiantes. Nervosos e ansiosos, mas
determinados. Já eu…
Respirei fundo e estiquei os ombros, pelo menos tentando
aparentar não estar tão nervosa.
Eu faria aquilo. Subiria no palco mais uma vez. Me
apresentaria. Tocaria a peça do início ao fim. Não daria pra trás. E
faria tudo de novo até a última seleção, por mais que meu corpo
inteiro tremesse até os ossos e meu estômago parecesse uma
montanha-russa. Sim, eu faria aquilo.
Mas uma coisa era certa: a carreira de solista definitivamente
não era pra mim. E eu sinceramente não conseguia entender quem
fazia isso por prazer.
Sério, como podem existir pessoas que sobem em um palco e,
simplesmente… se sentem à vontade? Confiantes… animadas?!
Como se o palco realmente fosse o lugar delas.
Não, de jeito nenhum. A bile me subia na garganta só de
pensar. Nem de longe eu me encaixava nesse grupo de malucos.
Não que eu não gostasse do palco. Eu gostava. Quando estava
tocando em grupo e meu som se misturava ao dos demais. Não
quando era o centro das atenções.
Mas no momento… eu não tinha escolha.
— Bom dia. — Richard entrou pela porta da coxia e veio até
nós, a alça da capa do violão pendurada em um ombro. Ele vestia
uma camisa social branca, o colarinho frouxo com os primeiros
botões abertos e jeans escuro, os cachos volumosos e bem
definidos caindo com perfeição em sua testa.
— B-Bom dia — gaguejei, meu rosto inteiro ficando vermelho.
Minha nossa, ele estava tão… minha nossa!
Richard sorriu, seus olhos brilhando enquanto me analisavam
da cabeça aos pés.
Eu não usava nada demais, apenas as roupas simples de
sempre, praticamente um uniforme de quando tocava em eventos. A
blusa preta de manga comprida de renda era justa no busto e
larguinha na cintura, confortável, e calça preta de malha, perfeita
para não restringir meus movimentos com o violoncelo. O penteado
era o mesmo de sempre, devido à altura curta dos fios: solto e liso,
apenas a franja tinha sido domada — ou, pelo menos, eu tinha
tentado. E os sapatos… bem, talvez fossem a única coisa colorida
que tinha ousado vestir: meu bom e velho All Star vermelho.
— Julieta… — Richard falou ainda sorrindo, com um aceno de
cabeça. Mas ficou sério quando seus olhos foram para a mão do
meu acompanhante, ainda apoiada em meu ombro. — Lucas —
falou com certa frieza, encarando seus olhos.
— E aí — ele respondeu com um sorriso, completamente
alheio. — Nervoso? A Julieta aqui tá quase desabando, já vi que
vou ter que arrastá-la pra fora do palco de novo. — Apertou meu
ombro para enfatizar.
A mandíbula de Richard ficou tensa. Mas ele respirou fundo e
forçou um sorriso.
Espera, aquilo era… ciúmes?
— Tô ótimo. — Olhou para mim. — Podemos conversar?
— Claro, manda aí — Lucas falou antes que eu pudesse
responder.
— Com a Julieta — Richard reforçou, a mandíbula ainda tensa
e as narinas dilatadas.
— Ah, foi mal. — Meu acompanhante me soltou, mas ainda não
parecia ter percebido… o que quer que Richard estivesse fazendo
naquele momento. — Se precisarem de mim, é só gritar. A menos
que a Julieta vomite pra valer, nesse caso eu vou estar bem longe e
ocupado com… — fez uma careta — qualquer outra coisa. — Mas
se virou para mim com um sorriso zombeteiro e encaixou a mão
grande no topo da minha cabeça, bagunçando meu cabelo. — Vê se
relaxa, Julie.
— Ah, fala sério, Lucas! — resmunguei conforme ele se
afastava e tirei o celular do bolso, ligando a câmera frontal. Meu
cabelo agora parecia um ninho de passarinho. E minha franja… —
Mas que droga!
— Ei, vem cá. — Richard se aproximou enquanto eu tentava, e
falhava, arrumar a bagunça com uma mão só. — Eu te ajudo com
isso.
Suspirei e baixei o celular, me virando para ele. Richard apoiou
o violão no chão com cuidado, chegou mais perto e, com
delicadeza, começou a ajeitar e desembaraçar meus fios.
Corei com aquela aproximação e olhei muito fixamente meus
próprios pés, mas seus dedos gentis passavam entre meus cabelos
devagar, da raiz até as pontas, como uma carícia.
Ele alcançou a parte de trás da minha cabeça, as pontas
grossas e quentes de seus dedos descendo até a nuca e… eu
buguei.
Meu corpo entrou em um estado de transe, e eu podia jurar que
algo muito parecido com um ronronar vibrava em meu peito.
Hummm, que coisa gostosa…
E inapropriada!, arregalei os olhos que estavam quase se
fechando, sonolentos.
— Sobre o que queria conversar? — falei de repente, para tirar
a atenção daqueles… dedos malandros.
— Nada demais, só… Julie? — Percebi a curiosidade em sua
voz, a mesma sempre tão presente em Jéssica assim que sentia o
cheiro de uma fofoca no ar.
E, apesar de ainda estar vermelha feito um pimentão, soltei
uma risada.
— É a primeira vez que escuto isso também.
Richard terminou com o comprimento do meu cabelo e seguiu
para a franja, os dedos leves como plumas mal tocando minha testa.
Arqueei as sobrancelhas e olhei para cima, acompanhando
seus movimentos enquanto as pontas retas dos fios faziam cócegas
em minha pele.
— Vocês parecem estar se dando bem — ele falou como quem
não quer nada, mas a sugestão silenciosa não me passou
despercebida.
E fiquei com muita vontade de rir de repente, mas mordi o
interior da bochecha e comprimi os lábios.
— Ele é legal. Me ajuda muito nos ensaios.
As sobrancelhas grossas de Richard arquearam… levemente.
— Nos ensaios — repetiu, mais para si mesmo, e sua
mandíbula travou. Como se só tivesse parado pra pensar naquilo
agora: em mim e Lucas ensaiando sozinhos.
Outra gargalhada reverberou em meu peito, mas me forcei a
segurar.
— Sim, e é muito atencioso. Semana passada meu pescoço
travou, e…
Os dedos de Richard enrijeceram no ar e seus olhos
semicerrados me encararam, os dentes quase trincando.
— E o quê? — perguntou baixinho, mal se contendo.
Não ria, não ria, não ria…
— Bom, ele disse que eu devia estar muito tensa, então veio
até mim… — as narinas de Richard quase soltavam fogo conforme
eu falava — me pegou pelos ombros e… — seu olho direito quase
tremia — me sacudiu feito um boneco de posto.
Richard parou. E piscou.
— Quê? — foi tudo que conseguiu dizer, quase engasgado.
Não consegui segurar mais e comecei a rir.
— É verdade, senti como se tivesse virado um chocalho. Lucas
disse que era pra ajudar a tirar a tensão, mas chutei sua canela pra
me vingar.
Richard ainda me encarava, quase sem acreditar. Mas
começou a gargalhar também, seu corpo inteiro relaxando.
— Bom dia, crianças! — A voz bem-humorada do professor De
Lucca ecoou pela coxia conforme ele entrava, aquele sorriso
sedutor estampado em seu rosto. — Posso ter um segundinho da
atenção de vocês?
Todos pararam o que estavam fazendo e, aos poucos, fomos
nos aproximando do professor até formar um círculo. E meu coração
disparou de ansiedade.
— Bom… — O professor juntou as mãos, esfregando uma na
outra. — Chegou o tão esperado dia, não é? Sei que devem estar
nervosos e que a caminhada até aqui não foi nada fácil, mas
também tenho certeza de que cada um de vocês deu tudo de si nos
estudos. Não se deixem levar pelo nervosismo. Relaxem e, assim
como nos ensaios, dêem o seu melhor.
Engoli em seco. E cerrei os punhos ao lado do corpo para não
começar a retorcer os dedos de ansiedade.
— Você vai se sair bem — Richard falou baixinho, percebendo
meu estado, e me empurrou de leve com o cotovelo. — Vai dar tudo
certo, você vai ver. — Esboçou um sorriso tranquilizador.
— Richard, você vai ser o primeiro — o professor falou de
repente e, para a minha surpresa, o sorriso tranquilizador sumiu
num piscar de olhos.
E Richard, sempre tão tranquilo e confiante, empalideceu.
— Mariana, você é a segunda — o professor continuou,
despreocupado, encarando cada um conforme falava. — Pedro é o
terceiro, depois Beatriz, Vitor, Giovanna e, por fim, Julieta. — Sorriu
para mim antes de voltar a encarar todo mundo. — Alguma dúvida?
Considerei de verdade pedir auxílio médico para Richard, que
ainda não tinha se movido um milímetro sequer. Mas o professor
continuou:
— Não? Ótimo! Vamos começar daqui a dez minutos, então se
preparem. Desejo a todos muita sorte e, se precisarem de algo,
estou à disposição.
— Você tá bem? — Arqueei uma sobrancelha, encarando
Richard com curiosidade conforme os outros participantes
dispersavam.
Ele piscou rapidamente de repente e pigarreou, saindo do
estado de choque.
— Sim, é só que… — Hesitou.
— Tá nervoso?
Richard respirou fundo e foi até as cortinas, espiando a plateia
pelas frestas. A luz que vinha do palco iluminava parte de seu rosto,
os olhos cor de avelã distantes conforme ele falou:
— Sei que é besteira, mas… sim. É que… — me olhou de
relance, nervoso — tem tanta coisa importante envolvida, que
depende da vitória desse concurso. Parece que, quanto mais
significado as coisas têm, mais forte é a dúvida e a insegurança.
Será que eu escolhi a peça certa? Será que dei duro o bastante?
Será que vai ser o suficiente? Será que… eu tô fazendo a coisa
certa?
Seus punhos estavam cerrados ao lado do corpo, tensos. E,
bem, eu queria ajudar, dizer algo que pudesse aliviar seu
nervosismo, mas a verdade é que eu me sentia exatamente do
mesmo jeito. Então fiz a única coisa que me ajudava a relaxar em
momentos como aquele.
Me aproximei um passo e, com cuidado, segurei a mão de
Richard. Ele desviou os olhos do palco para mim, o cenho franzido
com curiosidade. Não desviei o olhar do seu e apenas continuei
segurando sua mão, esperando que ele entendesse a mensagem.
Eu te entendo. E não te julgo. Estarei aqui sempre que precisar.
Sua expressão relaxou, assim como seu corpo e… ele segurou
minha mão de volta. Como se tivesse entendido, e respondesse.
Também sempre estarei aqui.
— Todos prontos? — A voz do professor De Lucca voltou a
ecoar pela coxia, quebrando a nossa… ligação.
Soltei a mão de Richard, que sacudiu a cabeça e foi até onde
tinha deixado o violão, tirando da bolsa escura e conferindo
rapidamente a afinação das cordas.
— Tudo certo? — o professor perguntou, se aproximando
conforme Richard se aprumava em frente à linha que dividia a
entrada do palco.
— Melhor impossível — ele respondeu alongando o pescoço,
mas percebi a tensão em sua voz.
— Ótimo, você entra em um minuto. — Deu um tapinha no
ombro de Richard.
Ele respirou fundo, e eu quase podia ouvir as batidas fortes e
aceleradas de seu coração ansioso, mas apenas assentiu para o
professor.
— Quer saber de uma coisa? — Me aproximei com cuidado e
falando baixinho para que apenas Richard escutasse. — Nós
estávamos certos.
— O quê? — Se virou para mim, confuso. — Certos sobre o
quê?
Fixei os olhos na plateia lotada de alunos.
— O tema da primeira seleção. Tudo que pensamos estava
certo, então… — Olhei para ele com um sorriso discreto. — Não
precisa se preocupar com a escolha da sua peça. Só dê o seu
melhor.
Seus olhos arregalaram levemente, as sobrancelhas
arqueadas.
— Como você sabe?
Voltei a encarar a plateia. E meu sorriso cresceu.
— Dez anos atrás, alguém que conhecemos passou por essa
mesma experiência. E relatou tudo por escrito.
Richard arquejou baixinho.
— Aurora — sussurrou. — Você…
Mordi o lábio, tentando me conter, e assenti.
— Comecei a ler ontem à noite. Estávamos certos, Richard.
Sobre tudo.
Ele abriu a boca para dizer mais alguma coisa, mas uma voz
ecoou das caixas de som no palco, dizendo:
— Sejam todos muito bem-vindos à volta oficial do famoso
concurso anual de música do nosso prestigiado conservatório
Intermezzo Musicale!
— Se prepare... — o professor De Lucca murmurou para
Richard durante o discurso de abertura. — Você vai entrar em três,
dois… agora! — Bateu no ombro dele de novo quando o primeiro
participante foi chamado e os aplausos começaram.
— Boa sorte — sussurrei, me afastando, mas Richard me
segurou pelo pulso.
O encarei, confusa, mas ele apenas sorriu… um sorriso
completo que fez seus olhos brilharem e minhas pernas
amolecerem, e falou antes de seguir para o centro iluminado do
palco:
— Obrigado.
ʄʅ
— Ele é bom — Mariana sussurrou, se aproximando de onde
eu estava.
Me obriguei a desviar os olhos de Richard no palco para
encará-la. Mariana parecia nervosa, as sobrancelhas finas estavam
franzidas, a respiração mais acelerada e pesada que o normal, e ela
mordia o lábio inferior sem parar.
— Você é a próxima, né?
Ela assentiu devagar, os olhos grandes colados no palco e a
flauta prateada firme em suas mãos.
— Odeio ter que esperar a minha vez. A ansiedade só
aumenta. Ainda mais depois de ver a apresentação de outro
participante… que é tão bom assim.
Voltei os olhos para Richard. Ele realmente era bom. Seus
dedos longos eram firmes e ágeis nas cordas, e seu som…
confiante, seguro. Incrível. Dedilhados bem suaves e fluidos nos
trechos melódicos e potentes e encorpados nos harmônicos. E a
escolha da peça…
Concierto de Aranjuez, primeiro movimento. Uma abertura
perfeita.
Um arrepio subiu pela minha espinha.
— Vai dar tudo certo — murmurei, tanto para Mariana quanto
para mim mesma. E entrelacei meu braço no seu. — Só precisamos
dar o nosso melhor. Chegamos até aqui, então isso quer dizer
alguma coisa, né? — Olhei para ela com um sorriso, que eu
esperava aparentar confiança. — Vamos conseguir. Vai dar tudo
certo.
Mariana olhou para mim também, dos nossos braços
entrelaçados até meu rosto. Parecia um pouco confusa e pensativa,
até que esboçou um sorriso discreto e falou por fim:
— Sim. Vamos conseguir.
E ela conseguiu mesmo. Assim que Richard terminou sua
apresentação — com uma salva de palmas explosiva, diga-se de
passagem —, Mariana foi chamada até o palco.
Seu som era doce, tranquilo e equilibrado, como um campo
repleto de flores na primavera, as pétalas coloridas se abrindo em
todo o seu esplendor conforme a melodia suave da suíte de Grieg,
Morning Mood, ecoava pelo anfiteatro.
E assim foram todos os participantes. Eu seria a última, então
só podia assistir e ficar boquiaberta com a apresentação de cada
um enquanto esperava a minha vez.
Respirei fundo e tentei controlar os nervos. Mariana tinha razão,
ficar esperando só fazia a ansiedade aumentar.
Depois de Mariana, que também recebeu aplausos eufóricos,
foi a vez de Pedro, um dos participantes que eu ainda não conhecia,
com seu trompete. O som do garoto era firme e potente. Enérgico.
Muito diferente do que ele aparentava ser.
O cabelo preto como nanquim e a pele tão pálida davam a ele
um ar mais introvertido, reservado e misterioso. Das vezes em que
nos encontramos, nas reuniões do concurso, eu nunca sequer tinha
ouvido ele falar. Mas seu som… era como se fosse ali, daquela
forma e com seu instrumento, que ele realmente conseguia
expressar o que havia em seu interior. Como se palavras não
chegassem nem perto de ser o suficiente.
Beatriz foi a próxima, outra participante que eu ainda não havia
conhecido formalmente. Ela tocou uma melodia suave em seu
clarinete, tranquila e romântica, mas… um pouco instável. Parecia
estar bem nervosa. E eu gostaria de poder ter ajudado de alguma
forma antes, para que ela se sentisse mais confiante, mas… eu
tinha quase certeza de que tanto ela quanto Pedro faziam parte do
grupo de Giovanna. Já a havia visto com Pedro pelos corredores e
podia associar perfeitamente a voz suave do segundo garoto do
grupo a ele, do dia em que Richard me arrastou para o depósito por
causa dos amigos de Giovanna. Só precisava dar um jeito de me
certificar disso. Então me aproximar de Beatriz, por mais que o rosto
suave da garota parecesse ser amigável e receptivo… eu não podia
arriscar.
Vitor foi o próximo, tocando uma sonata para piano. E, minha
nossa, o garoto era bom. Talvez com um som um pouco bruto
demais, mas… não tinha como negar que ele tinha técnica. Seus
dedos grossos eram ágeis e firmes nas teclas, o som profundo e
potente ressoava por todo o meu corpo e sua concentração de aço
era quase invejável.
Engoli em seco. E me dei conta, pela primeira vez desde que
tinha chegado no conservatório, do nível dos alunos daquele lugar.
Das pessoas que estavam concorrendo o primeiro lugar do
concurso junto comigo. Era absurdo.
Que ninguém ali estava pra brincadeira eu já sabia, mas ver
com os meus próprios olhos, ao vivo e a cores…
— Eu tô muito ferrada — gemi com um gosto estranho na boca,
o estômago dando cambalhotas.
— Ei… — Uma mão grande tocou minhas costas, e Richard
logo entrou no meu campo de visão. — Fica calma, vai dar tudo
certo.
— Isso tudo é loucura — falei, minha voz instável e a respiração
irregular. Ao fundo, Vitor continuava martelando as teclas do piano.
— Essa gente é praticamente profissional, eu não posso me
comparar a isso.
— Nem deve. — Richard tocou meu queixo com a outra mão e
ergueu meu rosto. — Me escuta. Somos todos diferentes, Julieta.
Cada um tem seu jeito de fazer as coisas, cada um tem seu estilo.
Seu próprio ritmo. E nada disso diminui quem você é. Você é boa.
Muito boa. Do seu jeito e no seu ritmo, mas não pense nem por um
segundo que é inferior a qualquer um aqui.
Suspirei. Bem lá no fundo eu sabia que ele estava certo. Já
tinha ouvido um conselho parecido com aquele uma vez, mas…
mesmo assim…
— Mas e se eu não…
— Sem “mas” — falou com firmeza, os olhos fixos nos meus. —
Você nem estaria aqui se não fosse boa, Julieta. Não pense na
habilidade dos outros, se concentre na sua. Na sua caminhada, nos
seus objetivos. — Sua voz suavizou, assim como seu olhar. — Sei
que está com medo. Eu entendo, de verdade. Mas você consegue.
É muito mais forte e habilidosa do que imagina. Você consegue —
reforçou.
Engoli com dificuldade, o olhar ainda fixo nos olhos cor de avelã
de Richard, mas…
Meu estômago já não dava tantas cambalhotas e meu coração
tinha se acalmado um pouco. Respirei fundo uma vez, e consegui
assentir com a cabeça, meu corpo relaxando a tensão aos poucos.
— Tudo bem? — ele perguntou com cuidado, me soltando e se
certificando de que eu não ia desabar.
Assenti mais uma vez, devagar.
— Tudo bem.
— Finalmente tá chegando a nossa vez, hein? — Lucas
apareceu, parando ao meu lado. — Pronta pra arrebentar?
Abri a boca para responder, mas o som do piano parou, seguido
por uma salva de palmas maravilhada e eufórica, e o próximo
participante foi chamado ao palco.
Giovanna se aproximou, o violoncelo fosco avermelhado firme
em suas mãos, e… parou entre mim e Richard. E me encarou, os
olhos azuis frios e um sorriso malicioso nos lábios.
Congelei no lugar, meu corpo todo voltando a ficar tenso por
qualquer ofensa ou palavra maldosa que fosse sair de sua boca,
mas… ela apenas voltou os olhos para frente, empinando o nariz
fino, e seguiu para o palco com aquele ar superior de sempre, sua
acompanhante vindo logo atrás.
— Eu sempre esqueço como essa garota é sinistra — Lucas
murmurou, fingindo um calafrio.
— O que foi isso? — Richard fez uma careta confusa.
Sacudi a cabeça, ainda estagnada no chão.
— Eu… não faço ideia.
Giovanna se ajeitou no centro do palco, ficou em posição, o
cabelo escuro e liso escorregando como um véu sobre seus
ombros, e assentiu para a pianista, que imediatamente começou a
tocar.
E o mundo desabou sob os meus pés assim que reconheci a
melodia, como se um buraco tivesse aberto no chão e me engolido.
— Desgraçada! — Lucas exclamou com os olhos arregalados.
— Por quê? — Richard falou, o cenho franzido, seus olhos
alertas indo e voltando de mim para Lucas. — O que foi, o que
aconteceu?
Abri a boca, mas não consegui reproduzir nenhum som.
— Filha da… — Lucas grunhiu, os dentes cerrados, mas se
conteve. — Como ela sabia?!
— O que foi? — Richard insistiu, fixando o olhar em mim, que
permanecia imóvel e à beira de um infarto. — Julieta, o quê…
— É a mesma… — balbuciei, minha voz mal passando de um
sussurro. — A mesma…
Não consegui continuar. Mas nem precisei.
Richard voltou os olhos para o palco, para a garota que tocava
com energia, toda cheia de si. Para a garota que tocava exatamente
a mesma peça que eu tinha escolhido.
— Merda — sibilou.
Realmente. Merda. Era exatamente onde eu estava.
— Como ela sabia? — Lucas insistiu, incrédulo. — Quais…
Quais as chances disso ter acontecido por acaso?
Nem Richard nem eu respondemos. Porque a resposta era
óbvia. Não tinha sido por acaso.
Respirei fundo.
— Ela trocou a peça — falei. — Vi quando Giovanna e a
professora Fabiana discutiram sobre isso. Ela ia tocar outra coisa, e
trocou a peça do nada. Mas… como? Como Giovanna descobriu
que eu ia tocar essa?
— Talvez ela tenha te ouvido ensaiar — Richard sugeriu.
— E agora? — Lucas se virou para mim, as sobrancelhas
franzidas.
Bom, era uma ótima pergunta.
Olhei ao redor, procurando Mariana, precisando do conforto de
uma amiga sábia que tinha a cabeça no lugar, mas ela tinha sumido.
Ao invés, encontrei o olhar de Vitor, que me encarava de longe com
um sorriso malicioso e satisfeito. Apenas para confirmar que nada
daquela confusão tinha sido acidental.
Voltei a encarar o palco, as mãos tremendo e suando como
nunca. Giovanna tocava com elegância e confiança, exibindo suas
habilidades e sua técnica. Mas... era só. Um som claro e limpo, mas
vazio. Mecânico.
No entanto… ela prosseguiu assim, inabalável, até o fim e,
quando acabou, recebeu muitos, muitos aplausos animados e até
alguns assobios.
— Ai, não — gemi, me curvando sobre os joelhos e sentindo o
coração já acelerado bater com mais força ainda. Minha vontade era
sair correndo dali, me encolher num canto e começar a chorar.
— Julieta… — Richard apoiou uma mão no meu ombro,
provavelmente conferindo se eu tinha resolvido vomitar por fim. Não
seria má ideia. — Você tá bem?
Sacudi a cabeça, os joelhos fraquejando mais a cada segundo.
Não tinha como eu me apresentar depois daquilo.
Mas passos vieram do centro palco, direto na minha direção e,
quando consegui me obrigar erguer a cabeça pelo menos um
pouco…
— Boa sorte — Giovanna falou com doçura, um sorriso
inocente e falso estampado na cara.
E, antes que eu pudesse sequer reagir, fui chamada até o
palco.
— Fodeu — Lucas murmurou assim que a garota e sua
acompanhante se afastaram.
— Julieta, levanta — Richard falou, pois eu ainda estava
curvada com as mão apoiadas nos joelhos trêmulos.
— Eu não consigo — choraminguei.
— Consegue sim — insistiu, mas percebi a leve alteração em
sua voz. Meu comportamento o estava deixando preocupado e
ansioso. — Por favor, levanta.
— Não me obrigue a fazer isso — pedi num sussurro, lágrimas
enchendo meus olhos. — Por favor, não me obrigue a ir até lá.
— Julieta, é a sua vez, por que ainda não foi pro palco? —
Reconheci a voz alerta do professor De Lucca se aproximando. E
quando seus passos pararam atrás de mim, sua mão grande e
quente tocou minhas costas. — Você tá bem?
Sacudi a cabeça de novo, as lágrimas se acumulando mais e
mais em meus olhos.
— É que a peça que nós íamos tocar… — Lucas começou a
murmurar às pressas para o professor, mas eu estava muito
ocupada tendo uma crise de ansiedade para ouvir.
Eu estava perdida. Já era. Não ia conseguir superar a
performance de Giovanna. Não tinha como não nos comparar dessa
vez, ambas tinham preparado a mesma peça! A diferença entre nós
devia ser gritante, eu seria massacrada pela banca. Seria
desclassificada assim que começasse a tocar.
— Eu não vou conseguir — sussurrei, ofegante. — Não vou
conseguir.
Eu não era forte o suficiente pra encarar aquilo. Não era forte,
não era…
— Julieta, me escuta. — Richard entrou no meu campo de
visão, se ajoelhando à minha frente, e pegou meu rosto nas mãos.
— Olha pra mim. Respira.
Tentei obedecer. Mas eu não servia praquilo, não sabia lidar
com situações daquele tipo. Eu não era forte, não era…
Senti que ia desabar, mas a mão quente nas minhas costas
veio acompanhada de outra, passando para os meus ombros e me
segurando no lugar.
— Ela precisa de ar — o professor falou, a voz firme. — Eu vou
levá-la para a enfermaria, alguém por favor avise a banca que
encerramos por hoje.
Era isso. Era o fim.
— Não! — Richard falou, os olhos arregalados. — Por favor,
professor, deixa eu tentar falar com ela. Só cinco minutos, é tudo
que eu peço.
— Richard, ela não está em condições de se apresentar — o
professor falou. — Quer que a condição dela piore? Precisamos tirá-
la daqui agora. Afastem-se! — exclamou para os curiosos ao redor.
— Por favor — Richard insistiu, ainda ajoelhado. — Ela vai
conseguir, professor, sei que vai. Só me deixa tentar.
O professor ficou em silêncio por alguns segundos, relutante,
mas falou por fim com um suspiro pesado, olhando por cima do
ombro:
— Beatriz, vá até a banca e diga que precisamos de cinco
minutos antes de prosseguir.
— Richard, por favor… — pedi, fraca, todo o meu peso sendo
sustentado pelo professor. — Eu não…
— O que ela faria? — Richard falou de repente, os olhos fixos
nos meus. — Você leu, não leu? Ela escreveu tudo aquilo porque
queria ajudar quem lesse, então me diz, Julieta: o que ela faria?
Parei. E pisquei.
— Ela quem? — o professor De Lucca falou, atento a cada
palavra. — Do que está falando, Richard?
— Aurora... — Minha voz saiu tão baixa que praticamente
apenas meus lábios se moveram.
— O quê? — o professor indagou, sem entender.
Mas Richard ouviu. E assentiu.
— O que ela faria? — repetiu.
Se o que esperavam ver era uma garotinha assustada e
indefesa, eu não demonstraria nada além de força e astúcia, me
lembrei das palavras decididas de Aurora.
O que ela faria?, a pergunta ecoava em minha mente. O que
ela faria? O que ela faria?
— Ela encararia os adversários de frente — murmurei, os olhos
ainda meio desfocados fixos em Richard. — Ela via uma
oportunidade e agarrava com unhas e dentes. Ela… não ficava
abaixo de ninguém.
Se queriam me intimidar ou diminuir por ser uma simples
novata inexperiente, eu manteria a cabeça erguida e encararia cada
um deles de frente.
— Isso — Richard falou com alívio, me incentivando. — Isso
mesmo! E se ela consegue, Julieta, você também vai conseguir.
— Ela não era fraca — continuei murmurando, as palavras
registradas no diário chegando lentamente até mim, como uma
canção. — Não era fraca.
E se tinham a intenção de me desestabilizar e passar por cima
de mim, bem… então estavam prestes a descobrir que, apesar da
aparência de garota frágil, eu sou o tipo de pessoa que, quando
quer, dá muito, mas muito trabalho.
Richard assentiu, como se tivesse ouvido aquelas palavras
também.
— Você sabe o que precisa fazer — falou com firmeza.
Respirei fundo uma, duas, três vezes. E, juntando uma força
que eu não sabia que ainda tinha, me firmei nos meus próprios pés
e me ergui, não precisando mais do auxílio do professor.
Fui até onde tinha deixado o violoncelo e o peguei nas mãos,
uma calma que eu não sabia de onde vinha tomando conta de mim.
Voltei para onde o grupo estava reunido, todos me encarando com
confusão e incredulidade, e olhei para Lucas.
— Vamos — falei simplesmente, e segui até a entrada do palco.
Ele piscou algumas vezes, em choque, mas veio atrás de mim.
Assim como Richard e até mesmo o professor De Lucca.
— Tem certeza de que vai fazer isso? — o professor perguntou,
tenso. — Digo, tem certeza de que está bem pra fazer?
Não, eu não tinha. Mas não tinha nada a perder.
— Vou ficar bem — me limitei a dizer, encarando o centro do
palco.
— Isso é loucura — Lucas falou, abanando a cabeça. Mas
cerrou os punhos ao lado do corpo. — Mas aqueles desgraçados
merecem. Seja como for, vamos acabar com a raça deles.
— E a melhor forma de fazer isso... — Richard completou — é
dando uma surra neles com a melhor apresentação que já viram.
O professor De Lucca inspirou profundamente e soltou o ar com
força pela boca.
— Se me perguntarem vou negar até a morte, mas… vocês têm
meu apoio. Vão lá, e arrebentem aquele palco.
Lucas riu com gosto, mas eu apenas respirei fundo mais uma
vez e me virei para Richard.
— Obrigada — falei com sinceridade, fiquei na pontinha dos
pés e… beijei sua bochecha.
Ele ficou duro e imóvel feito uma estátua e, assim que me
afastei, percebi uma coloração rosada tingir todo seu rosto.
— Ei, ei, não se animem demais — o professor falou com
reprovação quando Lucas riu mais alto ainda e um sorriso bobo
curvou os cantos da boca de Richard para cima.
Olhei para o fundo da coxia e avistei Giovanna, que me
encarava com uma sobrancelha arqueada e um sorriso malicioso
nos lábios, claramente me desafiando.
Se o que esperavam ver era uma garotinha assustada e
indefesa, eu não demonstraria nada além de força e astúcia.
— Eu não sou fraca — falei com o máximo de firmeza que
consegui, sem desviar os olhos da garota.
Não esperei uma reação e voltei a olhar para frente, seguindo a
passos firmes para o centro do palco, Lucas em meu encalço.
Sentei na cadeira, a iluminação forte e quente me cegando por
um momento, mas ajeitei o violoncelo entre as minhas pernas e
fiquei em posição. Olhei por cima do ombro e Lucas me respondeu
com um aceno de cabeça do piano, as mãos já posicionadas nas
teclas do instrumento.
Fechei os olhos, me concentrando nas notas e na melodia e,
um segundo antes de começar a tocar, fiz uma prece silenciosa.
Onde quer que esteja, Aurora, por favor, me empreste um
pouco da sua força.
Capítulo 15
Segunda, 5 de maio
Abertura.
Um caminho se abrindo, o início de um novo capítulo, um sonho
se tornando realidade. A chegada da primavera, botões se abrindo
em um campo repleto de flores coloridas. A criação do universo.
Começos. Era disso que se tratava uma abertura. Era isso que a
nossa peça deveria retratar. Não apenas na escolha do repertório,
como o primeiro movimento de uma sinfonia, o prelúdio de uma
ópera ou qualquer coisa assim, mas também na interpretação. Nos
sentimentos, intenções e sensações que passaríamos ao público
que escutasse a nossa música. Na história que contaríamos através
das notas musicais.
E eu não sei de você, querido leitor, mas eu amo histórias.
Quando o dia da primeira seleção finalmente chegou e eu subi no
palco, me tornei a personificação daquela que sempre ganhava vida
dentro de mim assim que começava a dedilhar as cordas da harpa.
E como toda boa história, essa começa com o bom e clássico...
Era uma vez, uma bailarina, linda e delicada, mas que também possuía uma
determinação de aço. Ela queria ser a dançarina principal de uma apresentação de ballet,
mas todas as outras bailarinas a subestimavam e faziam de tudo para diminuí-la, para
desanimá-la. Para fazê-la acreditar que não era boa o suficiente. Por mais que a bailarina
se esforçasse, não era reconhecida, por mais que encantasse a todos que a assistissem,
não acreditavam nela.
Mas por mais que as coisas estivessem difíceis, por mais que ela
não tivesse o apoio de ninguém… quando parecia que nenhuma
porta se abriria para ela… a bailarina não desistiu. Continuou
insistindo e persistindo no seu sonho, com um sorriso radiante no
rosto, uma leveza impecável nos pés… e uma força
impressionantemente elegante em cada músculo de seu corpo, em
cada movimento… até alcançar o seu objetivo.
Ela construiu o seu caminho, escreveu a sua história. E realizou o
seu sonho.
Ela fez a sua própria abertura. E, bom… eu também.
Assim que terminei de tocar, assim que a última nota da harpa terminou de ressoar no
ambiente, seus últimos ecos se dissipando aos poucos entre as quatro paredes do
anfiteatro… uma sequência descontrolada de palmas, assobios e — pasmem — gritos
explodiu ao meu redor.
EU ARRASEI, queria gritar a plenos pulmões conforme saía do
palco de volta para a coxia, onde os outros participantes estavam
reunidos.
Não, pior. Minha euforia ia muito além disso. Eu queria era esfregar a minha vitória na
cara de cada um. Mas me segurei e me limitei a esboçar um sorriso enorme cheio de
dentes.
E ainda bem que fiz isso. Porque, assim que todos se apresentaram e as colocações
foram anunciadas (e, por consequência, também o primeiro eliminado) na frente de todo o
público… como posso dizer?
Quebrou um barraco digno de primeira página de revista de
fofoca.
“Isso foi tudo culpa sua!”, a violinista e primeira eliminada rugiu
pro outro violinista assim que a primeira seleção foi dada por
encerrada. Sarah é o seu nome, Vougan me contou.
O garoto magro e alto apenas sorriu com malícia e respondeu
com uma falsa inocência:
“Não faço a mínima ideia do que tá falando.”
“Ah, não?!”, Sarah rebateu, o rosto vermelho e contorcido de
raiva. “Você me enganou! Disse que faríamos isso juntos, mas só
me usou!”
E, bem, eu não me considero uma pessoa fofoqueira, mas quando ela falou aquilo,
fiquei imóvel no lugar e no mais absoluto silêncio, esperando o restante da história. Até
onde eu sabia, os dois se odiavam, sempre trocavam olhares raivosos e mal se dirigiam a
palavra.
“Eu usei você?”, o garoto, Marcus (Vougan me contou seu nome
também), falou de forma teatral e exalando falsidade. “Por que faria
isso?”
“Não me venha com gracinhas!”, Sarah berrou, quase voando em cima dele. “Você me
convenceu a aceitar aquela aliança estúpida, dizendo que juntaríamos nossas forças, mas
fez tudo isso pra me prejudicar! Eu confiei em você, e seu único objetivo desde o início era
me chutar pra fora do concurso!”
“E como eu fiz isso?”, Marcus perguntou, seu sorriso crescendo. Não porque duvidava
da palavra de Sarah, mas porque… queria ouvi-la confessar. Como o belo cachorro sem-
vergonha que era.
E Sarah, sempre tão segura de si, vacilou.
“Eu confiei em você”, falou baixinho, a voz carregada de mágoa e
os punhos cerrados ao lado do corpo. Seus olhos estavam
vermelhos, mas não de raiva. Lágrimas.
E foi quando entendi. Como ela tinha sido enganada.
A apresentação de Sarah não foi ruim, mas fazia sentido que ela
tivesse sido eliminada. A escolha do repertório não representava
bem uma abertura, como a banca tinha exigido, e sua execução…
bem… parecia mais uma declaração de amor.
Marcus ofereceu uma falsa aliança a ela, mas essa foi apenas a
primeira etapa de seu plano, porque conseguiu fazer com que Sarah
se apaixonasse por ele nesse meio-tempo. Ela deve ter ficado
relutante no início, mas… Marcus sabia o que estava fazendo. E
ceder, confiar nele… gostar dele… a desestabilizou, resultando em
sua eliminação do concurso. Exatamente como ele queria, eu podia
apostar.
Marcus apenas se aproximou de Sarah, aquele sorriso ainda estampado em sua cara,
segurou o queixo dela e falou com uma voz sedutora que, eu tenho certeza, usou com ela
várias vezes enquanto fazia suas falsas promessas:
“Eu não tenho culpa se você não consegue controlar as próprias
emoções, gatinha.” Se inclinou para perto dela, suas bocas a
apenas centímetros de distância. “Infelizmente… é assim que as
coisas funcionam pros fracos.”
E eu não conheço Sarah direito, mas o que ela fez a seguir foi o
suficiente para ter todo o meu respeito e admiração pelo resto da
vida.
“E é assim que as coisas funcionam pros merdas iguais a você, idiota!”, rugiu… e meteu
um tapão na cara de Marcus, os dedos bem abertos e emitindo um estalo que deu gosto de
ouvir.
A cabeça do garoto quase deu um giro de 360°, mas ele
conseguiu se equilibrar e, apoiando a mão no vergão recente na
bochecha, soltou uma risada surpresa.
Tanto eu quanto Vougan, e até a outra participante, Susana,
apenas encaramos a cena boquiabertos e de olhos arregalados,
sem ousar interromper a discussão e assistindo tudo de camarote.
Mas infelizmente, antes que Sarah pudesse continuar a descontar
sua raiva em Marcus, o professor responsável por nós apareceu aos
berros, reprovando o nosso comportamento, e arrastou Sarah para
longe, mandando que todos os outros fossem embora.
Mas eu não estava nem perto de encerrar aquele assunto. Não
quando o que tinha acabado de testemunhar poderia muito bem ter
servido como um aviso.
“Eu sabia!”, exclamei com raiva, indo atrás de Vougan enquanto ele saía pelos
corredores do conservatório, o violoncelo em suas costas. “Essa aliança não passa de
fachada, não é? Me fala de uma vez o que você quer de mim e vamos acabar logo com
essa palhaçada.”
Mas ele se virou para mim, seu rosto uma máscara de confusão.
“Do que você tá falando? Fachada? Tá de sacanagem, né?”
“Me diz você”, rebati, empinando o queixo e cruzando os braços. “O que, exatamente,
você planeja conseguir de mim? Quer algo específico ou só me chutar do concurso igual
fizeram com a Sarah?”
Vougan arqueou as sobrancelhas, surpreso.
“Você acha mesmo que eu quero te prejudicar? Sério, Aurora, é
isso que você pensa de mim desde o início?”
Ele parecia levemente ofendido, mas não baixei a guarda.
“E por que não deveria? Eu não te conheço direito, mas é óbvio
que todos queremos vencer o concurso. Até onde sei, você pode
muito bem estar apenas me usando pra conseguir o que quer.”
“Você recebeu uma nota melhor do que eu!”, exclamou, incrédulo.
“Se quisesse te chutar pra fora do concurso, acha mesmo que eu já
não teria dado um jeito de fazer isso? Acha mesmo que eu sequer
te daria a oportunidade de me passar pra trás?”
E, bem… ele tinha um ponto.
Vougan tinha escolhido uma peça ótima e que tinha tudo a ver
com o tema, mas…
“Não me olhe assim”, resmungou de cara amarrada conforme eu
me lembrava de sua performance.
“Assim como?”
“Como se eu fosse um coitado que precisasse da sua pena. Eu
fiquei nervoso em cima do palco, grande coisa. Isso não faz de mim
uma criança medrosa que não sabe o que tá fazendo.”
Ele estava tentando ser forte, mas eu sabia que, por baixo de tudo
aquilo, Vougan devia estar se sentindo… muito mal. Porque a
verdade era que, se Sarah não tivesse sido eliminada do
concurso… Vougan teria sido.
Sua apresentação não foi ruim. Ele tem técnica, e não tem como
negar que é muito bom no violoncelo. Mas seu som ficou bem
instável em cima do palco e, por isso, ele ficou em quarto lugar.
“Eu não disse que fazia”, rebati, mas meu tom de voz estava bem
mais controlado. “Desculpa. Eu não queria chatear você.”
Ele riu com escárnio.
“Não, só me acusar de uma coisa que eu não fiz.”
E, pela primeira vez… me senti envergonhada.
Vougan e eu não tínhamos conversado muito desde o nosso
pacto. Ambos andamos muito ocupados estudando para as provas e
ensaiando para a primeira seleção, mas sempre que nossos
caminhos se cruzavam, Vougan sorria para mim daquele jeito
provocador e me lançava uma piscadela atrevida de olhos azuis.
E me mandava mensagens mais provocadoras ainda,
perguntando como andavam os preparativos para a apresentação e
fazendo piadinhas sem graça sobre como suas pernas abertas para
tocar o cello deveriam ser consideradas a mais bela abertura de
todo o concurso.
E, bem, ele não era o único que podia usar aquele argumento. A
harpa exigia isso de mim também.
“Boa tentativa, mas nós dois sabemos que a minha abertura é
muito mais atraente”, foi a minha resposta, com direito a um emoji
de carinha atrevida.
“Como alguém que já teve a oportunidade de ver isso de perto
uma vez, e secretamente torcendo pra ter uma próxima… tenho que
concordar”, ele mandou com uma carinha pensativa. E, logo depois
dessa, acompanhada de um emoji de piscadela… “Rosa é,
definitivamente, a sua cor.”
E meu rosto quase ardeu em chamas quando me lembrei da cor
da minha calcinha no dia em que nos conhecemos.
“Vai à merda”, foi a minha resposta seca. E acrescentei
rapidamente: “Não vai ter próxima vez.”
Sua única resposta foi o emoji de um morango e… um emoji de
foguinho.
E eu não faço ideia do por quê acabei registrando isso aqui,
mas…
Enfim.
Vougan não tentou nada contra mim nesse meio-tempo. Pelo
contrário, até me desejou boa sorte antes de eu entrar no palco. E
sorria de uma forma radiante assim que saí. E sempre dizia que eu
podia contar com ele se tivesse alguma dúvida, tanto sobre o
concurso quanto às aulas.
E eu tinha acabado de acusá-lo de tentar me enganar e se
aproveitar de mim.
Dizer que eu agi como uma completa e perfeita burra seria elogio.
“Perdão”, pedi com os olhos baixos. “Perdão, é só que eu…
Ainda é tudo muito novo pra mim e…” Suspirei e, pela primeira vez,
falei em voz alta como me sentia. Foi difícil, e eu tropecei bastante
nas palavras. “Eu tenho medo de acabar me ferrando se confiar na
pessoa errada. Sei que não tenho muita experiência no assunto,
mas já vi que a maioria das pessoas aqui só quer saber de levar a
vantagem, não importa como e o que aconteça, então… a verdade é
que eu… morro de medo de acabar… virando um alvo. Mas, de
verdade, eu… peço perdão.”
Graças a Deus, o semblante de Vougan suavizou.
“Tudo bem”, falou. “Acho que eu também não me esforcei muito
pra ganhar a sua confiança.” Coçou a nuca, parecendo sem graça.
“Por que não começamos tudo isso de novo?”
“Tem certeza?”, perguntei.
“Claro.” Estendeu a mão para mim com um sorriso suave. “Prazer.
Meu nome é Vougan.”
Encarei seus olhos por alguns segundos, ainda insegura e,
devagar, retribuí o cumprimento.
“Vougan?”, falei por fim, ainda segurando sua mão. “Que tipo de
nome é esse? Seus pais te odeiam?”
O sorriso de Vougan foi alargando devagar, até que ele soltou
uma gargalhada.
“Parece que certas coisas nunca mudam, né? Moranguinho”,
acrescentou, ainda sorrindo.
E meu corpo deve ter reagido por conta própria, porque eu
também sorri.
“Não. Não mudam.”
Nossas mãos ainda não tinham se soltado.
“Quer fazer alguma coisa?”, Vougan falou de repente. “Tem uma
lanchonete aqui perto, a gente podia ir lá comer alguma coisa e…
conversar. Conhecer melhor o outro.”
Pisquei e arqueei as sobrancelhas.
“E matar aula? Você sabe que em dia de apresentação o
concurso só ocupa o primeiro e o segundo período, né? Depois
disso, as aulas continuam com a rotina normal, igual todo dia.”
Ele deu de ombros.
“Vamos voltar a tempo pras aulas de música.”
“Mas… e se nos pegarem fugindo da escola?”
O sorriso de Vougan cresceu de forma maliciosa.
“Tá com medo?”
“É claro que não”, rebati na mesma hora. “Só não quero arriscar
me meter em problemas. Ao contrário de você, eu tenho muito a
perder.”
“Nós dois estamos no concurso, lembra?”, Vougan franziu o
cenho.
“Não é disso que eu tô falando. Eu… sou bolsista. Se me pegarem matando aula, posso
acabar me metendo numa encrenca muito pior do que ser desclassificada do concurso.
Posso perder a bolsa e ser expulsa.”
Vougan considerou por um momento, pensativo. E falou por fim:
“Então vamos nos assegurar de não sermos vistos.”
E, antes que eu pudesse protestar, começou a me puxar pelos
corredores, sua mão quente segurando a minha com firmeza.
“Vougan, isso é uma péssima ideia!”, exclamei num sussurro,
desesperada, e tropeçando nos meus próprios pés enquanto
tentava acompanhar seu ritmo.
Ele apenas olhou por cima do ombro, a argolinha prateada em
sua orelha reluzindo e os olhos azul-cinzentos brilhando
perigosamente. Pareciam pedras de água marinha.
“Relaxa, Moranguinho.” Exibiu um meio sorriso que fez meu
estômago virar de ponta-cabeça. “Não vou deixar nada de ruim
acontecer com você. Confia em mim.”
Ele só podia estar me testando.
E, Deus, eu devia estar completamente fora de mim porque, apesar de tudo indicar que
aquilo não tinha como dar certo, e de todos os sinais vermelhos na minha cabeça apitarem
que eu ia me ferrar bonito com aquela história… senti aquela parte de mim que não
conseguia recusar um desafio, que ansiava por sair da rotina e fazer loucuras, martelando
em meu sangue.
Continuei encarando Vougan, os olhos arregalados e a boca
seca… e, devagar, assenti com a cabeça.
“Tudo bem. Eu confio em você.”

O lugar era incrível.
A lanchonete que Vougan me levou realmente não ficava longe da escola, apenas
algumas quadras de distância, e tinha um estilo retrô, com paredes em um tom claro de
azul, piso quadriculado, um balcão com banquetas altas e redondas e mesas com
poltronas compridas em couro vermelho como assento.
Tinha até uma daquelas jukebox enormes com luzes coloridas, e
funcionando.
“Gostou?”, Vougan perguntou com um sorriso satisfeito quando
reparou que eu tentava absorver com muita atenção cada canto
decorado.
Apenas assenti com a cabeça enquanto olhava, admirada, os
quadros de músicos famosos da época, pendurados nas paredes.
Eu nunca estive em um lugar como aquele antes.
“E aí, tô perdoado?”, falou assim que nos sentamos em uma das
mesas, mais ao fundo da lanchonete.
Fechei a cara e arqueei uma sobrancelha.
Depois de ter guardado/escondido o violoncelo em um dos vários
depósitos do colégio, Vougan nos guiou para o lugar que, segundo
ele, era o mais seguro e brilhante pra nos tirar da escola sem
sermos vistos.
Então, é claro, só podia ser um plano horrível.
A ideia incrível de Vougan nada mais era que seguir para a área
das quadras esportivas ao ar livre atrás da escola e pular o muro,
que, citando as palavras dele, “só era protegido por uma cerca de
arame.”
Dizer que eu queria matá-lo depois de ter que fazer uma acrobacia pra conseguir
escalar o muro sem me enroscar naquela cerca maldita e pular pro outro lado seria
eufemismo. E de saia!
“Eu ainda vou pensar no seu caso”, resmunguei assim que o garçom deixou os
cardápios e, por debaixo da mesa, ajeitei a saia preta esvoaçante que descia até um pouco
abaixo dos joelhos. A única coisa que tinha me impedido de sair toda rasgada daquela
história foi o meu bom senso de ter escolhido calçar meu bom e confiável All Star rosa de
cano médio de manhã ao invés de sandálias.
“Qual é, eu te segurei no ar antes que você desse de cara no
chão, não segurei?”, falou na maior cara de pau. “Nenhum arranhão,
exatamente como prometi.”
Minha vontade era meter um tapa na cara de Vougan, do mesmo
jeitinho que Sarah tinha feito com Marcus. Mas me limitei a
semicerrar os olhos pra ele e falar:
“Você vai pagar a conta?”
Um sorrisinho se insinuou no canto de sua boca.
“Claro.”
Respirei fundo, endireitei os ombros e abri o cardápio.
“Ótimo. Então está perdoado.”
Ainda faltava umas duas horas pro horário do almoço, então o
lugar estava praticamente vazio, o que foi ótimo porque a comida
chegou bem mais rápido. Nós comemos e conversamos bastante —
eu me empenhei pra dar prejuízo à carteira de Vougan —, mas foi
quando a jukebox começou a tocar Burning Love que a conversa
rendeu de verdade.
“Eu amo essa música!”, falei, quase pulando de animação no
assento, assim que a voz incrível de Elvis começou a ecoar pelo
ambiente.
“Mesmo?” Vougan parecia realmente intrigado. “Não sabia que
você gostava desse tipo de música.”
“É Elvis! Simplesmente… o rei! É estritamente proibido não gostar
do rei.”
Vougan sorriu daquela forma astuta, afastou o prato vazio e se inclinou mais na minha
direção, apoiando os braços cruzados na mesa.
“Eu não podia concordar mais. E da Sua Majestade, você gosta?”
Mandei uma batata pra dentro da boca e comecei a cantarolar
enquanto mastigava:
“Is this the real life? Is this just fantasy?”
Olhei para Vougan e pisquei duas vezes, esperando. Seu sorriso
alargou, e ele continuou:
“Caught in a landslide, no escape from reality.”
“Open your eyes...”, cantamos juntos. “Look up to the skies
and seeeeee…”
“Você canta muito mal”, ele riu.
Exibi um sorrisinho cínico e falei com doçura enquanto mostrava o
dedo do meio:
“Você também. Mas falando sério agora...” Baixei o dedo e bebi
um pouco do milk-shake de morango. “De que banda você mais
gosta? Pode pensar com calma, eu não vou te pressionar com…”
“Aerosmith”, falou sem nem piscar.
Arqueei as sobrancelhas.
“Algum motivo especial?”
“Não, eu só…” Parou de repente, os olhos arregalados na direção
da entrada, e sibilou, se agachando na mesa e me puxando junto.
“Merda. Abaixa a cabeça e, não importa o que aconteça, não olha
pra trás.”
Nem preciso dizer que meu corpo inteiro congelou e meu coração
parou.
“O que foi?”, sussurrei, o rosto quase colado no tampo da mesa e
os olhos arregalados.
Vougan tirou a jaqueta de couro com uma rapidez impressionante
e a passou para mim.
“Veste isso. E esconde seu cabelo, ele vai nos entregar.”
“Mas e você?”, apertei o couro nas mãos trêmulas e
repentinamente geladas.
“Aurora, só obedece!”, sussurrou entre dentes, os olhos colados
no que quer que estivesse acontecendo atrás de mim. “Agora!”
Vesti a jaqueta e cobri o cabelo com o capuz de moletom cinza,
me assegurando de que nenhum cacho, tanto cor-de-rosa quanto
castanho, ficasse de fora.
“Quem é?”, perguntei, ainda agachada por precaução. “Vougan,
quem tá aí?”
Ele chegou mais perto de mim, nossos rostos ficando a apenas
centímetros de distância, mas ainda olhava, com cautela, na direção
da entrada.
“Parece que não fomos os únicos a dar uma escapada da escola”,
murmurou. “Talvez eles não venham na nossa direção, mas…
merda.”
“O que foi, droga?”, grunhi, já perdendo a paciência. “Fala de uma
vez que porra tá acontecendo!”
Vougan finalmente olhou pra mim, o rosto mais pálido que o
normal realçando as sardas.
“Aurora, me perdoa por isso”, falou apressado, e eu mal tive
tempo de ter qualquer reação porque… o que Vougan fez a seguir…
droga, eu ainda não sei o que pensar.
Vougan pegou meu rosto nas mãos e me beijou.
Eu nunca tinha beijado ninguém. E não tinha parado pra pensar
em como seria a minha primeira vez, mas com certeza não
esperava nada parecido com aquilo.
Nossas pernas estavam praticamente enroscadas em uma confusão só embaixo da
mesa, suas mãos me seguravam com firmeza, as pontas dos dedos se enroscando nos
meus cabelos, e sua boca… sua boca… era quente… e macia… e com gosto de milk-
shake de chocolate.
Não foi ruim. Apesar das circunstâncias, do medo de sermos
pegos matando aula e no que aquilo poderia resultar… o beijo foi
gentil. Vougan foi gentil. Tudo bem, eu fiquei imóvel e dura feito uma
pedra o tempo todo, mas ainda assim… sei lá, eu… argh!
Como já disse, eu ainda não sei o que pensar.
Ainda mais porque… quando ouvi e senti pessoas se
aproximando, passando por nós, a boca de Vougan se afastou um
pouco e vi seus olhos acompanhando discretamente o movimento
do casal que seguia em frente.
Seu corpo relaxou, assim como seus dedos, ainda em meu
cabelo, mas aí ele voltou a me encarar e… com a respiração
irregular e o foco na minha boca… as pupilas dilatadas e
umedecendo os lábios… voltou a me beijar. Devagar.
Não um beijo com saliva e língua, não chegamos a ir tão longe,
mas acredito que foi tão provocador quanto. Principalmente quando
seus dentes mordiscaram e puxaram meu lábio inferior, me
obrigando a me aproximar ainda mais dele e, minha nossa, minha
nossa!, eu quase tive uma parada cardíaca.
“Por favor, não grita”, murmurou ofegante assim que se afastou,
ainda segurando meu rosto. “Por favor, só… agora não.”
Mal sabia ele que eu não conseguia nem respirar, quanto mais
começar a gritar.
“O que… por que… eu não… o que foi que acabou…”, eu balbuciava e piscava igual
uma idiota, sem conseguir encontrar capacidade física ou lógica de terminar qualquer frase
que fosse.
“Olha ali”, sussurrou, sua boca ainda bem perto da minha, e indicou com a cabeça.
“Com cuidado”, acrescentou quando me inclinei para o lado para enxergar o casal algumas
mesas atrás de Vougan.
E, merda, tive que engolir um palavrão.
“O que significa isso?”, murmurei atordoada, e esquecendo —
quase — completamente as borboletas no estômago e o
formigamento que a boca de Vougan tinha deixado na minha.
Porque o casal era… Susana… e Marcus.
Os dois estavam de mãos dadas, os dedos entrelaçados, e a
garota sorria de forma sedutora, os longos cabelos castanho-
avermelhados caindo sobre um ombro e pelas costas, os olhos
turquesa brilhando. E Marcus… bem, quase dava pra ver a baba
pingando na mesa conforme ele a olhava.
“Próxima vítima?”, Vougan sugeriu, olhando discretamente por
cima do ombro.
Só se ela fosse muito burra. Susana viu o barraco que Sarah
causou por causa de Marcus, não seria ingênua a ponto de acreditar
que com ela a coisa seria real.
A menos, claro, que ela realmente fosse burra. O que podia ser
uma possibilidade, já que Susana parecia genuinamente encantada
por Marcus.
“E se…”, murmurei devagar conforme a ideia tomava forma. “E
se, de alguma forma, Marcus e Susana armaram juntos toda a
história da Sarah?”
Vougan sacudiu a cabeça.
“Não acho que Susana seria capaz de algo assim. Ela é um
pouco difícil e ambiciosa, claro, mas prejudicar Sarah por causa de
um garoto? E Marcus, ainda por cima?”
Bom, quanto ao caráter de Susana eu não tenho como confirmar
ou negar nada já que não a conheço, mas até que a teoria de
Vougan fazia sentido.
Quero dizer, Marcus não é um garoto feio, pelo contrário. É bonito, e ficou em primeiro
lugar na primeira seleção do concurso, o que já diz muito sobre suas habilidades musicais.
Mas o garoto é podre por dentro, disso eu não tenho dúvidas.
“Acha que ele andou enganando as duas então?”, perguntei.
“Acho que ele pode ter feito promessas, tanto à Sarah quanto
Susana. Pode ter feito Susana acreditar que o lance com Sarah era
apenas pra tirá-la do caminho deles.”
Dei mais uma olhada no casal. Marcus só faltava ajoelhar e pedi-
la em casamento.
“E se com ela for de verdade mesmo? Quero dizer, olha só
aquilo.” Fiz uma careta, enojada com tanta melação. “E se ele
realmente gosta dela? E se…” Parei por um momento, meu cérebro
fazendo um clique. “E se o plano de Marcus for chegar à final junto
com Susana?”
Vougan piscou. E voltou a me encarar, os olhos levemente
arregalados.
“Mas então isso quer dizer…”
Respirei fundo. E assenti.
O próximo alvo de Marcus… seríamos nós.
Capítulo 16
— E aí, quem vai primeiro? — murmurei, retorcendo os dedos.
Era bem cedo e a escola ainda estava vazia, mas Richard e eu
tínhamos combinado de chegar naquele horário, antes de todo
mundo, para que pudéssemos fazer aquilo com calma.
— As damas, é claro. — Ele estava tão imóvel quanto eu, os
dois duros feito estátuas e encarando de longe a lista com os
resultados da primeira seleção na secretaria. Nem Cris, a secretária,
tinha chegado ainda.
Engoli em seco. E minhas pernas trêmulas não ousaram se
mover.
— Se você fosse um cavalheiro de verdade, olharia por mim —
apelei. Eu não queria ser a primeira a olhar. Não queria ter que
descobrir que tinha recebido a pior nota do concurso.
Mas mesmo assim…
Pelo canto do olho, vi Richard fazer uma careta.
— Os dois juntos? — sugeriu por fim.
Respirei fundo e soltei o ar com força.
— Tudo bem.
— No três. — Richard endireitou os ombros, se preparando. —
Um…
— Dois… — balbuciei, e estiquei a mão até alcançar a dele.
Seus dedos envolveram os meus de forma acolhedora.
— Três — falamos juntos e cruzamos a distância até a lista
pregada no mural da parede.
Os nomes estavam em ordem alfabética, com as notas
definidas pela banca indicadas bem ao lado. E eu…
— Eu tirei 10! — Richard exclamou, boquiaberto. — Eu… Eu
tirei 10!
— Eu tirei… — murmurei baixinho, sem acreditar no que estava
vendo.
Aquilo estava certo mesmo?
Coloquei o dedo sobre o meu nome e deslizei até a minha
pontuação para ter certeza de que não tinha enxergado coisa.
— Não acredito... — sussurrei, os olhos ficando arregalados. —
Não acredito! Eu tirei 8! Eu! Tirei 8!
— Conseguimos! — Richard me encarou, os olhos de avelã
arregalados e um sorriso enorme tomando forma, e me segurou
pelos ombros. — Conseguimos! — Me puxou num abraço apertado
que era pura animação. — Caramba, Julieta, nós conseguimos! Eu
consegui! Você conseguiu!
— Eu tirei 8 — repeti, ainda incrédula. — Eu tirei 8! — Retribuí
o abraço e comecei a rir.
Tudo bem, 8 era, de longe, a menor nota que eu já tinha
recebido em toda a minha vida acadêmica, mas ei!, considerando
tudo que tinha acontecido antes da minha apresentação, conseguir
aquela nota foi praticamente um milagre!
— Será que dá pra dar licença? — uma voz fria e baixa falou de
repente.
E, assim que Richard me soltou e me virei para ver quem era…
dei de cara com o rosto pálido e cabelos pretos de Pedro, que nos
encarava com uma expressão de tédio. Beatriz vinha logo atrás
dele, o cabelo cacheado de cor dourada emoldurando o rosto negro
e rosado de nervosismo enquanto encarava a lista atrás de nós.
Engoli em seco e saí do caminho, Richard vindo logo atrás com
o rosto sério e encarando Pedro muito fixamente.
O garoto apenas ignorou, mantendo a expressão de tédio no
rosto, e deixou que Beatriz olhasse a lista primeiro… os dedos de
ambos entrelaçados.
Eu não sabia que os amigos de Giovanna tinham aquele tipo de
relação. Tudo que conseguia pensar quando os imaginava juntos
era troca de ofensas e temperamentos raivosos, mas… eles
pareciam ser um casal mesmo. Um casal lindo, se precisasse ser
honesta.
— Eu… tirei 5 — Beatriz balbuciou com a voz trêmula, os dedos
que seguravam a mão de Pedro ficando rígidos. — Não pode ser.
Eu me esforcei tanto, e ainda assim… — Baixou a cabeça, os
cachos volumosos oscilando sobre os ombros. E fungou.
A mandíbula de Pedro ficou tensa, mas o garoto não soltou a
mão dela e apenas se aproximou da lista, correndo os olhos de cima
a baixo — provavelmente conferindo a nota de Beatriz e dando uma
olhada em sua própria.
— Quanto você… — a garota começou, mas Pedro a
interrompeu.
— Não importa — falou com a mesma voz fria de antes e
começou a se afastar, levando Beatriz junto sem nem nos dirigir um
olhar. — Vamos.
— Por que ele fez isso? — murmurei baixinho quando os dois
estavam a uma distância segura. — A garota já tá fragilizada, ele
não precisava ser grosseiro assim.
— Não acho que Pedro agiu assim por grosseria — Richard
respondeu, no entanto.
— Como assim? — Me virei para ele. — E como pode ter
certeza?
Richard continuou encarando o casal que se afastava, o cenho
franzido.
— Vi sua nota na lista. Pedro tirou 9 na primeira seleção.
Arqueei as sobrancelhas, surpresa, e voltei a encará-los
também.
Richard continuou:
— Pedro consegue ser um verdadeiro babaca quando quer,
mas… com Beatriz… acho que ele não queria que ela se sentisse
pior.
E, como se para confirmar, já ao longe, Pedro passou um braço
sobre o ombro da garota, puxando-a para perto e… beijou a lateral
de sua cabeça.
Um ato realmente inesperado, já que se tratava do famoso
exército de demônios da Giovanna.
— Ora, ora, parece que todo mundo decidiu chegar mais cedo
hoje — a voz familiar demais de Vitor falou atrás de nós.
E Richard nem pensou duas vezes antes de me empurrar para
trás dele, o corpo inteiro enrijecendo, os punhos cerrados e a
mandíbula trincada.
Vitor apenas riu e se aproximou da lista, a mochila pendendo
casualmente de um ombro.
— Relaxa aí, cara, não são nem sete da manhã. Se quer
arrumar briga, pelo menos espera até o meu cérebro acordar direito.
— Como se você tivesse um — Richard respondeu, e eu
congelei.
Vitor parou e olhou devagar na nossa direção, o rosto
repentinamente sério e as narinas levemente dilatadas.
— Quer resolver isso agora, Lobo? — falou, a voz calma
demais. — Vamos ver quem vai acabar sem cérebro nessa história.
— Tô esperando pra resolver isso faz tempo, Cárceres. —
Richard se aproximou um passo.
Vitor se aprumou, esperando que Richard se aproximasse mais,
coisa que ele realmente estava prestes a fazer, mas segurei seu
pulso com força com as duas mãos.
— Você prometeu — falei desesperada, minha voz mal
passando de um sussurro. — Prometeu que não faria nada.
— Sim, até que eles tentassem algo contra você — retrucou. —
E tentaram. — Voltou a encarar Vitor. — Ou vai me dizer que aquela
cena ridícula no concurso foi pura coincidência?
Um sorriso maldoso curvou o canto da boca de Vitor para cima.
— Aquela brincadeira? Qual é, não faça tanto drama. Até que
sua amiga se virou bem… — Pousou os olhos castanhos em mim e
me lançou uma piscadela. — Não é, bonequinha?
Richard ficou ainda mais tenso e algo parecido com um rosnado
saiu dele.
— Você tá pedindo… — grunhiu entre dentes, os punhos
cerrados com força.
E Vitor, se divertindo com aquilo, largou a mochila no chão e
abriu os braços.
— Pode vir.
No entanto…
— Sai da frente — alguém bufou de repente, passando
apressada entre os dois nervosinhos e… empurrando Vitor com
brutalidade com o ombro.
Pisquei, imóvel e em choque com o tamanho da audácia e da
coragem da garota, e reconheci o rosto ansioso e determinado de
Mariana conforme ela se aproximava e olhava a lista bem de perto.
Eu podia jurar que Vitor a provocaria, xingaria ou qualquer outra
coisa pra botar medo nela, mas para a minha surpresa e total
consternação, o garoto apenas revirou os olhos e resmungou de
volta:
— Sempre estragando a diversão.
Richard ainda permanecia imóvel, a atenção fixa em Vitor e
alerta a qualquer coisa que acontecesse ao nosso redor.
Mariana apenas ignorou Vitor, os olhos arregalados quase
grudados na lista, e… abriu um sorriso enorme.
— Nove… — falou para ninguém em especial, mas cheia de
animação.
— Parabéns — falei com um sorriso, esticando a cabeça por
cima do ombro de Richard para conseguir enxergá-la. Mariana
merecia aquela nota, tinha dado muito duro nos estudos e foi
incrível em cima do palco.
Ela olhou para mim com um sorriso discreto e assentiu de leve
com a cabeça. Richard, por algum motivo, ficou ainda mais tenso e,
se dando conta do clima pesado em volta, Mariana piscou, os olhos
arregalados indo de Richard a Vitor.
— O… O que tá acontecendo aqui? — perguntou lentamente.
Vitor voltou a sorrir.
— Um acerto de contas, pelo jeito. — Flexionou os dedos. —
Quer fazer parte da diversão? — Piscou um olho para ela.
Eu teria me encolhido com um calafrio em seu lugar, mas
Mariana apenas sustentou o olhar de Vitor, inabalável.
E quase pedi que ela me ajudasse a separar aqueles dois —
que eu tinha certeza que voltariam a se alfinetar a qualquer
momento —, mas Mariana falou de repente, disparando pelo
corredor:
— Eu… hã… tenho que ir. — Baixou a cabeça e quase correu
para longe de nós.
— Mari… — Tentei ir atrás dela, mas Richard me bloqueou com
o braço, me impedindo de sair de trás dele.
Não me deixe aqui sozinha com esses dois!, eu queria gritar.
Mas não podia culpar Mariana por não querer se meter em uma
possível briga, ainda mais quando um dos piores valentões da
escola estava envolvido.
Vitor, por algum motivo, começou a rir. E olhou de Richard para
mim.
— Eu tomaria cuidado com as minhas amizades se fosse você,
bonequinha. — Se agachou e pegou a mochila, mas manteve o
olhar fixo no meu, o sorriso malicioso crescendo. — Nunca se sabe
quando alguém só tá esperando o momento certo pra te apunhalar
pelas costas.
— Vai à merda, Vitor — Richard cuspiu, e voltou a cerrar os
punhos. — Você não reconheceria uma amizade de verdade nem se
esfregassem na sua cara.
Vitor grunhiu, mas não teve tempo de fazer ou responder nada,
porque a única pessoa que faltava naquela história toda finalmente
apareceu, exalando o ar superior de sempre.
— Vocês são um bando de idiotas mesmo — Giovanna
resmungou com cara de tédio assim que entrou na secretaria, e
jogou os cabelos escorridos para trás. — Será que podem me dar
licença? Estão no caminho. — Gesticulou com a mão, nos
dispensando feito cachorros.
— Vamos embora daqui. — Richard me pegou pela mão e
começou a me guiar pelo corredor. — Não vale a pena. Eles só
sabem dar dor de cabeça.
— Ah, fiquem mais um pouquinho... — Giovanna falou com
doçura, me fazendo olhar por cima do ombro para encará-la. Ela
sorria da mesma forma falsa de quando saiu do palco, logo após
apresentar a minha peça. — Assim vocês podem testemunhar ao
vivo e a cores quem de nós duas foi a melhor. — Encarou a lista e
soltou uma risada de desdém. — Com certeza não a medíocre
Julieta com uma nota 8.
— Ei — Vitor a olhou de cara fechada. — Eu também tirei 8.
Olha como fala.
Giovanna apenas revirou os olhos.
— Vamos — Richard falou com um suspiro cansado e apertou o
passo.
— Isso, fujam mesmo! — Giovanna continuou, e pelo tom
venenoso de sua voz eu sabia que ela sorria com malícia. — Mas
vão adorar saber que eu, a melhor violoncelista do conservatório,
tirou nada menos do que… um 6?! — esganiçou de repente, sua
voz aguda, histérica e raivosa ecoando por todo o corredor.
Paramos com um solavanco, e todo o meu corpo enrijeceu. E
Richard parecia tão imóvel e em choque quanto eu.
Aquilo estava certo mesmo? Giovanna tinha tirado nota 6?
Então isso queria dizer que… eu… minha apresentação… tinha
sido melhor?
Olhei para trás, devagar, na direção de Giovanna. Ela encarava
a lista com o rosto perigosamente vermelho, os olhos azuis
injetados de raiva e… devagar… me encarou.
Um arrepio gélido subiu pela minha espinha. Richard, ao meu
lado, engoliu em seco tão alto que o som quase ecoou pelo corredor
também. Até Vitor estava imóvel e alerta, olhando com cautela para
Giovanna.
— Você! — ela rugiu de repente, os dentes tão trincados que
parecia que iam rachar.
E começou a correr na minha direção.
— Corre! — Richard exclamou e voltou a me puxar, me tirando
do estado de choque.
— Vitor! — Giovanna chamou, sem parar de correr, e sua voz
era puro comando.
— Merda — o garoto resmungou… mas largou a mochila no
chão mais uma vez e começou a correr em nossa direção também.
Richard e eu tínhamos alguns metros à frente de vantagem e
Giovanna não era muito mais rápida que eu, mas era apenas
questão de tempo até que Vitor e suas pernas longas e fortes nos
alcançassem. Ainda mais com o violoncelo nas minhas costas me
atrasando.
E Richard pareceu pensar o mesmo, pois parou de repente, a
mão que segurava meu braço me jogando e impulsionando para
frente e, ao mesmo tempo em que me soltou, agarrou a maleta do
violoncelo com agilidade, tirando-a das minhas costas.
Consegui acelerar, mas Richard deve ter se desequilibrado
durante a manobra pois ouvi um estrondo logo em seguida.
Desacelerei apenas para vê-lo caído no chão, meu instrumento o
esmagando enquanto seu corpo absorvia o impacto da queda.
— Richard! — Derrapei no chão, e já ia fazer o caminho de
volta até ele, quando…
— Não! — exclamou. Vitor e Giovanna estavam na metade do
caminho agora. — Eu cuido do Vitor, mas você precisa correr!
Corre, Julieta! — berrou quando eu não saí do lugar.
Minhas pernas estavam duras e tensas, mas obedeci. E um
sentimento horrível de déjà-vu me invadiu conforme chegava nas
escadas e começava a pular os degraus, minhas panturrilhas
queimando e meu coração quase saindo pela boca.
Atrás de mim, ouvi um grito. E eu sabia que não devia, mas
olhei por cima do ombro, apenas o suficiente para ver… Richard,
ainda estirado no chão, puxando Vitor pelo calcanhar… e fazendo o
garoto cair no chão também com outro estrondo.
E, num piscar de olhos, os dois estavam rolando e se
esmurrando no meio corredor.
Parte de mim queria dar meia-volta e ajudar Richard, mas a
outra… aquela que via Giovanna se aproximar mais a cada passo
até chegar nas escadas também… aquela parte tomou conta de
cada instinto de sobrevivência que eu tinha e, mesmo com as
pernas queimando e a respiração perigosamente pesada, acelerei
mais ainda.
Tentei todas as portas que encontrei, como da outra vez, mas
estavam trancadas. Se era pelo horário, cedo demais, ou apenas
meu azar do dia a dia, eu não sabia dizer. Mas continuei correndo
naquele labirinto, sem ousar olhar para trás e virando corredor após
corredor após corredor, até que…
BUM!
Me choquei contra alguém.
Pedro e Beatriz, constatei enquanto tentava recuperar o
equilíbrio.
— Credo, o que aconteceu? — Beatriz resmungou, esfregando
o ombro dolorido.
— Ficou maluca, garota? — Pedro me olhou com raiva.
— Me ajudem — pedi desesperada, sabendo muito bem a
quem pedia ajuda e sem me importar por um segundo sequer. —
Por favor, eu faço o que vocês quiserem, mas me ajudem. Ela não
pode me encontrar. Por favor.
— Quem? — Beatriz franziu as sobrancelhas.
— Giovanna — Pedro constatou rapidamente ao me analisar de
cima a baixo. — Já posso até imaginar o motivo.
— Por favor — sussurrei ofegante, meu desespero crescendo
mais a cada segundo que perdia ali ao invés de continuar botando
distância entre nós duas.
Pedro não parecia nem um pouco disposto a ajudar o maior
alvo da líder do seu grupo a escapar, mas Beatriz falou, olhando
para o namorado com o semblante sério:
— Pedro. — Sua voz era um comando e um aviso.
Se isso era algo bom ou ruim eu não fazia ideia, já que Pedro
apenas arqueou minimamente as sobrancelhas, um diálogo
silencioso acontecendo entre a troca de olhares dos dois.
Até que ele revirou os olhos e falou, por fim:
— Vão, eu distraio ela.
Beatriz não perdeu tempo e me puxou para dentro do banheiro,
a apenas alguns passos de distância de onde Pedro tinha
permanecido, imóvel. Esperando.
Assim que Beatriz fechou a porta, apoiamos as costas contra a
madeira e, antes que eu pudesse dizer qualquer coisa, a garota
levou um dedo aos lábios, indicando que eu ficasse quieta. E bem a
tempo, porque…
— Cadê ela?! — Giovanna berrou assim que virou no corredor,
derrapando.
— Ela quem? — Pedro perguntou com aquela calma indiferente
de sempre.
— Não se faz de sonso! — Seus passos se aproximaram. —
Aquela ratazana da Julieta, cadê ela?!
— O dia mal começou e você já tá nesse estado? — Percebi
um leve tom de sarcasmo na voz de Pedro. — O que a garota fez,
Giovanna, te esbofeteou?
Ela grunhiu feito um animal raivoso.
— Não teste a minha paciência. — Suas palavras vieram
acompanhadas do som de couro sendo agarrado, o que me fez
pensar em Giovanna pegando Pedro pela gola da jaqueta. Ao meu
lado, Beatriz ficou tensa, os punhos cerrados e os olhos faiscando
de raiva. — Cadê. Ela — falou pausadamente e entre dentes.
— Desculpa... — a voz de Pedro permanecia no mesmo tom de
tédio — acabei de sair do banheiro. Não vi ninguém.
Giovanna bufou, largando Pedro com brutalidade, o som de
seus pés batendo no chão… na direção do banheiro feminino.
Engoli em seco e Beatriz arregalou os olhos, seu rosto
empalidecendo.
— Eu não vi ninguém — Pedro voltou a falar, um tom mínimo
de alerta alterando sua voz —, mas… ouvi. Alguém correndo.
Seguiu na direção do estúdio.
Giovanna parou.
— Por que não disse antes, seu incompetente? — cuspiu. —
Vai ajudar o Vitor na secretaria. Richard consegue ser um
verdadeiro pé no saco quando quer.
— Achei que gostasse dele — Pedro soltou de repente, e eu
fiquei tensa e dura feito uma estátua.
— Vai à merda — Giovanna retrucou com raiva.
— Só tô dizendo… — ele se defendeu. — Vocês não eram
melhores amiguinhos de infância? Incrível como as coisas mudam
de uma hora pra outra, né? Um dia vocês são quase como irmãos e,
no outro… puff, uma novata chega e muda tudo.
Meu coração ameaçou sair pela boca.
Mas que droga, Pedro estava me ajudando ou botando lenha
na fogueira?
Giovanna grunhiu mais uma vez.
— Por que você não cala essa boca e cuida da sua vida? Anda,
faz algo útil pelo menos uma vez e vai ajudar o Vitor. Agora —
reforçou e começou a se afastar, seus passos ficando cada vez
mais distantes.
E, após alguns segundos, uma batida leve ressoou na porta.
— Eu vou resolver as coisas lá embaixo — Pedro murmurou. —
Esperem alguns minutos antes de sair, por precaução. E, Julieta…
— acrescentou, as palavras frias e afiadas como estacas de gelo. —
Se colocar Beatriz em problemas por causa disso, não espere
qualquer tipo de ajuda numa próxima vez, entendeu?
Encolhi os ombros, ficando mais tensa ainda.
Mas Beatriz respondeu, irritada:
— Eu sei me cuidar sozinha. Já conversamos sobre isso, então
para de agir como uma galinha superprotetora.
Quase pude ver Pedro revirando os olhos do outro lado.
— Você deveria valorizar mais os meus esforços, sabia? —
resmungou antes de sair, mas percebi um leve tom de humor em
sua voz.
A garota apenas revirou os olhos, mas sorriu.
— Essa foi por pouco — suspirou, se afastando da porta. —
Muito pouco.
— Por que fez isso? — perguntei, o cenho franzido. — Quero
dizer, eu agradeço de verdade por ter salvado meu pescoço, mas…
por que me ajudou?
Beatriz foi até a pia e começou a ajeitar alguns cachos do
cabelo dourado.
— Nem todos que andam com a Giovanna são pessoas ruins,
sabia? Ou gostam dela — acrescentou baixinho.
Arqueei as sobrancelhas, surpresa.
— Achei que vocês fossem um grupo… sabe… — fiz uma
careta — unido.
— Pedro é amigo dela, não eu. — Soltou uma risada sem
humor. — Ela nem gosta de mim de verdade, só finge que me tolera
pra não perder um dos seus preciosos… capachos — cuspiu a
palavra e apoiou as mãos na pia de porcelana. — Vai por mim, eu
também não acho certo o que ela faz com você. Ou com qualquer
um nessa escola. Mas Pedro diz que… — Hesitou, mordendo o
lábio.
— O quê?
Beatriz suspirou e endireitou os ombros, mas seu olhar estava
perdido no espelho, como se analisasse a imagem refletida ali.
— Eu também sou bolsista, sabe. Entrei na escola ano
retrasado, na mesma sala que Pedro, Giovanna e os demais. E ela
quase arrancou a minha cabeça só porque tirei uma nota melhor no
recital de fim de ano. — Virou a cabeça na minha direção, me
encarando bem fundo nos olhos. — Vai por mim, eu sei o que é ter
um alvo pregado nas costas. Sei como é se sentir deslocada e
indesejada. Eu já teria saído dessa escola há muito tempo se não
fosse por Pedro. Ele me ajudou na época. E cuida de mim desde
então. Ele sabe que não tem chance nenhuma de Giovanna e eu
nos darmos bem, mas acha que ficar do lado dela é o único jeito
de… sair de sua mira.
Ficar do lado dela, não se destacar em nada, obedecer aos
seus chiliques e maltratar os novatos.
— Ainda não parece certo pra mim — murmurei.
Beatriz riu de novo, uma risada vazia de autodepreciação, e
sacudiu a cabeça.
— Não. Não é mesmo.
Dava pra ver que ela gostava de ficar perto de Giovanna tanto
quanto eu. E por mais que achasse errado, eu não sabia pelo que
Beatriz já tinha passado ali, então será que podia julgá-la por tentar
manter o mínimo de estabilidade e paz em sua vida?
— Bom, eu… é melhor eu ir. Não quero acabar te prejudicando
caso alguém nos veja juntas.
Beatriz abanou a mão em dispensa.
— Ah, não ligue pra tudo que Pedro diz. — Revirou os olhos
amendoados. — Às vezes ele exagera e é muito dramático.
Ou cuidadoso com alguém que já sofreu nas mãos do monstro
mimado que era Giovanna.
— Mas é melhor eu ir mesmo assim. Preciso saber se Richard
está bem.
Porque se eu entendia Pedro em algo, era querer manter
alguém querido para mim bem longe das maldades da sobrinha do
diretor.
Melhores amigos de infância. Quase como irmãos.
Meu estômago começou a revirar.
Mas Beatriz se aproximou de mim e apoiou uma mão em meu
ombro.
— Se precisar de alguma coisa, é só dizer. Ficarei mais do que
feliz em poder ajudar. — Piscou um olho para mim.
E, apesar de tudo, consegui sorrir para ela.
— Obrigada, Beatriz. Pode contar comigo pro que for também.
Eu te devo uma.
Ela sorriu de volta e me soltou.
— Combinado. E… sei que não somos muito íntimas, mas… —
suas bochechas adquiriram um tom rosado — pode me chamar de
Bia. Você parece ser legal, Julieta. Eu gostaria muito se, talvez um
dia, quem sabe, depois que essa loucura toda do concurso passar…
pudéssemos ser amigas.
Senti minhas próprias bochechas ficarem coradas, mas sorri de
novo e assenti.
— Claro. Eu ia adorar.

ʄʅ
Eu andava com cautela pelo corredor, tentando fazer o mínimo
de barulho possível e analisando atentamente cada canto por onde
passava. Não tinha encontrado Richard ainda, e também nenhum
sinal de Vitor ou Pedro.
Até onde eu sabia, eles ainda podiam estar trocando socos na
secretaria. E era pra lá que eu seguia, por um caminho diferente do
habitual, a passos de tartaruga e com a respiração entrecortada.
A que ponto eu cheguei?, pensei com um lamento conforme
verificava com cuidado atrás da parede se o corredor seguinte era
seguro. Como foi que eu acabei me metendo em uma confusão
desse tamanho? Só pode ser uma brincadeira de muito mau gosto
de qualquer que seja a divindade ou fenômeno que controla esse
tipo de coisa.
Olhei pela janela alta e abobadada do corredor, fixando a
atenção no céu azul do outro lado do vidro.
— O que foi que eu te fiz, hein? — resmunguei com uma
careta. — Será que não dá pra me dar uma folga? Só um diazinho?
E não fui rápida o suficiente para perceber, ouvir ou sequer
prever a pessoa que chegou com tudo por trás, me puxando com
força pelos braços e me jogando com violência no chão.
— Te achei — Giovanna grunhiu entre dentes, já em cima de
mim e segurando meus braços com força contra o piso frio.
Ah não, só pode ser brincadeira!
Capítulo 17
— Achou que podia escapar de mim pra sempre, bonitinha?
Lamento decepcionar. — Giovanna soltou uma risada nada menos
que sádica. — Você nem faz ideia de como tá ferrada.
Droga, droga, droga, droga, droga!
— O que foi que eu te fiz? — arfei, me contorcendo e tentando
me soltar. — Você arma pra mim na primeira seleção e eu ainda
levo a culpa? O que foi que eu te fiz?!
— Tudo! — Seus dedos me apertaram com mais força ainda. —
Você estraga absolutamente tudo! Desde que chegou, é só isso que
você faz! Tudo ia muito bem na minha vida antes de você, a culpa
de toda essa merda é sua!
— Você é louca! — exclamei em pânico. — Eu nem te conheço!
— E ainda assim consegue ser o maior inconveniente de todos
— grunhiu, o rosto bem perto do meu, suas unhas se enterrando em
minha pele.
Me contorci mais uma vez, mas apesar de magrela aquela
garota tinha uma força surpreendente.
— Não precisa ser assim — arfei, vários fios do meu cabelo
entrando na boca. — Por que resolver tudo na violência? —
Giovanna me apertou ainda mais e tive que conter um grito. — Que
droga, a gente não pode sentar e conversar como duas pessoas
normais?!
E consegui mover as pernas o suficiente para desequilibrá-la;
não perdi tempo e empurrei Giovanna, rolando pra cima dela.
— O que é que você quer, afinal?! — exclamei.
Mas ela apenas grunhiu, me jogando no chão mais uma vez e
voltando a me esmagar.
— Quer saber o que eu quero? — Exibiu os dentes. — Desista
do concurso!
Agarrei seus pulsos e me impulsionei, de volta pra cima dela.
— Não posso — arfei, segurando-a no chão. — Acredite, eu
nem queria ter me inscrito, pra início de conversa, mas… eu não
posso.
E, mais uma vez, Giovanna me empurrou e rolou para cima de
mim, os olhos azuis faiscando de raiva.
— Então você não me deixa escolha — ofegou.
— Você também não.
E ficamos rolando uma para cima da outra aos gritos e
grunhidos, meus braços cheios de vergões e alguns arranhões,
nenhuma das duas se rendendo ou deixando que a outra tivesse a
vantagem por muito tempo.
— Chega! — falei por fim em cima dela e segurando seus
braços contra o chão.
E, bem no topo da cabeça de Giovanna, um par de sapatos
lustrosos apareceu e uma sombra grande nos cobriu, a figura
misteriosa parando tranquilamente diante e acima de nós.
Giovanna olhava diretamente para cima, os olhos azuis ficando
arregalados… e o rosto empalidecendo levemente.
— Droga — sussurrei comigo mesma. Para Giovanna
empalidecer, coisa boa não podia ser.
Mas, lentamente, subi o olhar dos sapatos, passando pelo jeans
escuro de aparência cara, pelo blazer cinza passado e sem um fiapo
fora do lugar, até o rosto bonito e surpreendentemente jovem do
homem que nos encarava com uma expressão nada menos que
severa e um olhar frio e afiado feito uma estaca de gelo.
— Podem me dizer que droga está acontecendo aqui? — Sua
voz era tão fria e dura quanto seu olhar.
Mas não era para mim que ele olhava.
— Tio… — Giovanna murmurou embaixo de mim.
Tio? Então quer dizer que aquele homem era… e eu estava em
cima da…
Bem… que droga.
Dessa vez eu estava ferrada. Muito ferrada.
— O expediente ainda nem começou — o diretor falou,
imponente. — E essa escola já virou um circo. Garotos aos socos
na secretaria, uma garota aos berros, e agora vocês duas rolando
pelos corredores feito animais. Que droga está acontecendo aqui —
repetiu, puro comando em sua voz.
Abaixei a cabeça, mirando os pulsos de Giovanna, ainda presos
em minhas mãos, e seus olhos arregalados também me encararam.
— Me solta — grunhiu.
Obedeci, por motivos óbvios, e fiquei em pé num pulo.
— Expliquem — o diretor exigiu assim que Giovanna levantou
também.
Abri a boca, mas ela foi mais rápida.
— Foi ela que começou. Faz tempo que essa garota implica
comigo, tio, e eu não fiz absolutamente…
— Mentira! — exclamei, me virando para ela com os olhos
arregalados. — É você que implica comigo desde que botei os pés
nessa escola.
— Foi ela! — Giovanna insistiu, encarando o tio.
— Quem foi que me agarrou por trás e me jogou no chão, pra
início de conversa? — Semicerrei os olhos, incrédula com o
tamanho da audácia daquela garota.
— Basta — o diretor falou, a voz e os olhos duros. — As duas
vão para a minha sala. Agora.
Giovanna ergueu o queixo daquele jeito superior, e eu tinha
certeza de que ela estava prestes a se recusar a ir, mas o diretor
apenas a encarou com aqueles olhos azuis, tão severos quanto os
da sobrinha.
— Vamos — falou, passando por nós e tomando a dianteira.
Engoli em seco, bem ciente de que estava muito encrencada e,
sem alternativas, segui o diretor, Giovanna batendo os pés,
descontente, ao meu lado.
Olhei para o céu azul através das janelas altas ao longo de toda
a extensão do corredor e fiz uma careta quando um raio de sol
passou pelos meus olhos.
— Valeu pela ajuda — murmurei com desgosto.

ʄʅ
A situação era muito pior do que eu tinha imaginado.
Assim que chegamos na diretoria, demos de cara com… todo
mundo.
Richard, Vitor, Pedro e Beatriz já estavam esperando na porta
da sala do diretor, as cabeças baixas e um silêncio mortal
predominando no ambiente.
Não deu tempo de analisar os detalhes, mas percebi um corte
no lábio de Richard, Vitor com um olho roxo e, para a minha
surpresa, Pedro com sangue seco sob o nariz. Nada muito grave,
mas ele devia ter levado um soco e tanto.
E, pela cara assombrada de Richard ao me analisar da cabeça
aos pés, eu sabia que não devia estar muito melhor.
— Todos pra dentro. — O diretor abriu a porta e ficou
esperando do lado de fora até que todos entrassem.
Não havia cadeiras para todos se acomodarem, mas ninguém
nem ousou sentar, de modo que ficamos em fila, lado a lado, de
frente para a mesa do diretor.
— Muito bem, vamos cortar a enrolação. — O diretor fechou a
porta e sentou na cadeira estofada atrás da mesa. E encarou um
por um com os olhos afiados. — Quem começou a confusão e por
quê.
— Eu não tive nada a ver com esses idiotas. — Giovanna
indicou os meninos com a cabeça.
— Não tentem me enrolar — o diretor respondeu simplesmente.
Entediado. — Querem que eu acredite que foi tudo por acaso? Se
fossem alunos comuns eu até poderia considerar a possibilidade,
mas vocês… — Exibiu um sorrisinho astuto, os olhos semicerrados.
— Justamente os participantes do concurso. Não me subestimem.
Andem logo… — Se recostou na cadeira e cruzou as pernas. —
Desembuchem.
— Eu já disse — Giovanna resmungou. — Foi tudo culpa da
Julieta, ela que começou tudo isso. Não é? — Encarou os amigos
com as sobrancelhas arqueadas.
— Mentira! — Richard exclamou antes de qualquer um. — Foi
você que causou tudo isso, Giovanna, e por uma besteira, como
sempre!
— Então prove! — ela desafiou. — Você não tem provas contra
mim, mas eu, por outro lado, tenho testemunhas! Não é mesmo,
gente? — Voltou a encarar Pedro e Vitor, e não de uma forma
amigável. — Digam quem é a culpada por toda essa confusão.
E, para a minha surpresa, nenhum dos dois parecia muito
inclinado a concordar com ela. Pedro contorceu os lábios e encarou
o chão, desconfortável, e Vitor…
Vitor encarava Giovanna com raiva ressentida e cautela. Como
se quisesse gritar com ela, mas estivesse se segurando.
— Digam — Giovanna repetiu entre dentes e encarou Pedro, ao
seu lado, como um lobo alfa raivoso numa matilha.
Mas foi Beatriz quem deu um passo à frente, o queixo erguido e
os punhos cerrados com raiva, se recusando a olhar para Giovanna.
— Com todo o respeito, senhor diretor, mas foi a sua adorável
sobrinha que começou tudo. — Olhou de relance, com desprezo,
para a garota, mas voltou a encarar o diretor. — Eu encontrei a
Julieta fugindo da Giovanna nos corredores, e a ajudei a se
esconder. Não sei como elas acabaram brigando, mas posso
assegurar que não foi a Julieta quem começou.
Giovanna abriu a boca para rebater, mas o diretor encarou
Beatriz, intrigado.
— E em que momento a senhorita foi parar no meio da
confusão dos garotos? Porque quando cheguei, você estava aos
berros ao redor deles.
Beatriz engoliu em seco. Mas não hesitou.
— Fui ajudar Pedro logo depois de deixar Julieta. Eu sabia que
ele tinha ido apartar a briga entre Vitor e Richard, mas quando
cheguei… — Olhou por cima do ombro, para o nariz ensanguentado
do namorado. — As coisas já tinham saído do controle.
— Bom, estamos chegando a algum lugar — o diretor falou. E
encarou Pedro. — E em que momento, exatamente, as coisas
saíram do controle?
Pedro levou alguns segundos para responder, contrariado, mas
falou por fim:
— Os dois já estavam se esmurrando feito animais quando
cheguei. Tentei separar, mas… — encarou Vitor pelo canto do olho,
irritado — não quiseram me ouvir. E me acertaram, eu espero, por
acidente. Acabei no meio da confusão, de qualquer forma, mas
apenas porque estava tentando acabar com a briga.
— Ah, claro que estava. — O diretor sorriu com ironia. — E
pular nas costas do seu amigo encaixando uma chave de braço em
seu pescoço é o melhor jeito de fazer isso.
Tive que me segurar para não demonstrar meu horror. Vitor, por
outro lado, olhou para Pedro com a mesma irritação.
E eu não sabia se era muita coragem ou loucura, mas o garoto
apenas deu de ombros.
— Eu me alterei um pouco — falou na cara de pau e sem um
pingo de arrependimento pelo que tinha feito.
O diretor revirou os olhos e respirou fundo, e eu quase podia
ouvi-lo resmungando “que Deus me ajude”.
— E isso nos leva aos nossos dois brigões. Não me interessa
quem de vocês vai começar a falar, mas vamos acabar logo com
isso. Expliquem.
— Eu já disse o que aconteceu — Richard falou com
impaciência. — Giovanna começou a implicar com a Julieta por
causa da nota da primeira seleção. Quando viu que Julieta tinha
tirado uma nota melhor, enlouqueceu. Saiu correndo atrás dela e
mandou Vitor fazer o mesmo, o que, na minha opinião, foi pura
covardia. — Olhou para os dois com desprezo. — Eu só tava
tentando ganhar tempo pra Julieta conseguir fugir. Mas não pude
fazer nada pra impedir sua sobrinha. — Enfatizou as últimas
palavras de propósito. Acusatório.
Mas o diretor nem piscou. Apenas voltou os olhos azuis, quase
cinza, para mim.
— Acho que agora é a sua vez, senhorita. Pode me dizer qual é
o seu papel nessa confusão?
— O senhor já sabe o que aconteceu — Giovanna interrompeu.
— Eu já disse, a culpa é toda dela…
— Você já falou demais, Giovanna. — Sua voz era afiada, mas
ele nem a encarou. Porque seus olhos continuavam fixos em mim. E
continuaram assim, esperando.
Engoli em seco.
— E-Eu… — Flexionei os dedos, me segurando para não
começar a retorcê-los, um tique quase involuntário sempre que
ficava nervosa. — Richard não mentiu. S-Sua sobri… Giovanna
ficou brava por causa da minha nota no concurso. E começou a me
perseguir. Eu não queria causar confusão, só… s-só estava me
defendendo.
— Tem alguém que possa confirmar a sua história? — ele falou,
para a minha surpresa. — Porque, quando cheguei, era você que
estava em cima dela, ou estou errado?
— Sr. Diretor! — Richard exclamou, indignado. — Ela já disse,
estava se defendendo da…
— Eu escutei da primeira vez, sr. Lobo — o diretor cortou,
afiado feito uma lâmina. — Mas até que uma testemunha de
verdade confirme ou negue sua história, todos vocês são culpados.
Me dêem uma boa razão pra não punir os seis pelo que aprontaram.
Eu posso banir todos do concurso, o que acham? Será que seria
punição o suficiente?
— Por favor, não — sussurrei em pânico e dura feito uma
pedra.
E minha mente deu um clique.
Banir todos do concurso. Todos os seis. Mas o concurso era
composto por sete pessoas, não seis.
Uma testemunha…
— Com licença. — A porta da sala se abriu de repente, e o
professor De Lucca foi entrando. E parou no lugar quando nos viu ali
em fila, sujos, machucados e descabelados. — O que aconteceu
aqui? — Franziu as sobrancelhas.
O diretor bufou.
— Nunca aprende a bater na porta, professor? — Voltou a se
recostar na cadeira.
— Desculpe. — O professor De Lucca piscou, se virando para o
diretor. E puxou uma pessoa para dentro da sala. — É só que
encontrei essa aluna tentando bisbilhotar… o que quer que esteja
acontecendo aqui.
E a aluna era justamente… Mariana.
Seus olhos grandes estavam arregalados e ela olhava tudo e
todos ao mesmo tempo, confusa e ansiosa.
— Ah, que ótimo, a pecinha que faltava — o diretor ironizou,
revirando os olhos.
— Se me permite, diretor, o que é que está acontecendo… — o
professor começou, mas eu o interrompi, desesperada.
— Diz pra ele — implorei à Mariana e dei um passo à frente,
sem nem pensar nas consequências. — Você viu mais cedo, não
viu? Por favor, diz pra ele que não fizemos nada de errado. Por
favor... — Minha voz tremia.
Richard se remexeu, desconfortável, ao meu lado, mas não
disse nada.
Já Giovanna…
— Isso mesmo. — Sorriu com malícia, o olhar afiado em
Mariana. — Diga quem é o culpado por toda essa confusão. Ou
melhor, a culpada.
Mariana olhava da sobrinha do diretor para mim, a dúvida e o
temor nítidos em seus olhos castanhos. E meu medo era que ela
fizesse a vontade de Giovanna, só para não virar um alvo também.
— E então? — o diretor falou, intrigado, atraindo sua atenção.
— Você viu alguma coisa, mocinha?
Ela voltou a nos encarar, ansiosa. A tensão e expectativa no ar
eram quase palpáveis.
Giovanna empinou o queixo daquele jeito superior, como se
lembrasse à garota quem mandava ali. E Mariana devia ter uma
coragem de aço, pois não se encolheu ou se deixou intimidar.
Apenas deu mais uma olhada em nós duas, os olhos duros, respirou
fundo e, voltando para o diretor, falou com uma convicção
surpreendente:
— Julieta não fez nada, sr. Diretor. Foi a Giovanna que
começou tudo. — A sobrinha do diretor a encarou com os olhos
arregalados, como se tivesse sido traída. Mas Mariana não parou.
— Eu já estava longe, mas ouvi quando ela começou a gritar na
secretaria, ameaçando Julieta por causa da nota. E voltei pra… ver
o que eu podia fazer. Mas Giovanna já estava correndo atrás da
Julieta quando cheguei. E os meninos, bem… eu não conseguiria
separá-los nem se quisesse.
Vitor, apesar do mau humor, soltou uma risada de desdém e
sacudiu a cabeça, mas não disse nada.
Mariana voltou a nos encarar, os olhos grandes correndo por
cada um até parar em Giovanna, que a encarava com um olhar
mortífero e as narinas dilatadas. E, mesmo tendo feito a coisa certa
e contado a verdade, Mariana parecia saber, em seu íntimo, que
estava encrencada. Não com o diretor, mas com o Diabo encarnado.
— Já ouvi o suficiente — o diretor falou por fim. — Professor De
Lucca, por favor, leve os alunos até suas salas. E se certifique de
que permaneçam lá. Quietos — acrescentou com firmeza.
— Mas então… não vai nos banir do concurso? — balbuciei
enquanto os outros saíam de cabeças baixas, o professor De Lucca
nos esperando da porta.
— Para as salas — o diretor respondeu, no entanto, sem nem
me encarar. — Você não — acrescentou quando Giovanna seguiu
para a porta.
Ela parou no lugar, o corpo endurecendo.
— Precisamos ter uma conversinha. Sobrinha — falou, frio e
duro como um iceberg.
— Vamos. — O professor De Lucca tocou meu ombro enquanto
eu olhava a cena por cima do ombro, me guiando para fora.
Giovanna engoliu em seco, mas manteve o queixo erguido, os
olhos azuis iguais aos do tio encarando com a mesma dureza, mas
com uma pontada de… incerteza? Ansiedade?
Segui para fora da sala, e o professor De Lucca alcançou a
maçaneta da porta para fechá-la e dar privacidade ao diretor e à
bronca e punição que ele provavelmente daria à sobrinha.
— Com licença, diretor — o professor falou com educação e,
conforme a porta se fechava, continuei olhando, tentando decifrar
aquela emoção nos olhos de Giovanna e que eu nunca tinha visto
antes. Não nela, pelo menos.
Quando faltava apenas uma fresta, ela olhou para mim, o corpo
enrijecido, as sobrancelhas franzidas e as mãos tremendo
levemente, e eu finalmente entendi o que via conforme sua imagem
desaparecia atrás da porta que se fechava de vez.
Medo. Giovanna, sempre tão confiante e inabalável… estava
com medo.

ʄʅ
— Não precisava ter saído no soco com o Vitor — murmurei
enquanto molhava um pedaço de algodão com soro.
— Ele tava pedindo por isso faz tempo — Richard resmungou,
sentado na maca da enfermaria. — Só dei o que ele queria. E
merecia muito mais do que apenas um olho roxo, se quer mesmo
saber.
Me virei para ele e, me aproximando com cuidado, comecei a
limpar o corte em sua boca. Ele sibilou com o contato do algodão
molhado, mas não se afastou.
— Podíamos ter nos metido em uma encrenca muito pior do
que apenas levar uma bronca — falei. Porque, apesar do diretor não
ter nos punido, o professor De Lucca não economizou reprovações
e até alguns palavrões enquanto guiava todo mundo pelos
corredores, quase soltando fogo pelo nariz, tamanho era o seu
choque e decepção com o nosso comportamento.
Ninguém ousou retrucar ou se explicar, só ouvimos e
aguentamos tudo em silêncio e de cabeças baixas enquanto
arrastávamos os pés atrás dele.
— Mas nada disso teria acontecido se Giovanna e seus
amiguinhos sossegassem de uma vez — Richard bufou.
O encarei por alguns segundos com cautela, mas tratei de
voltar o foco para o corte em sua boca.
— É verdade que vocês eram amigos de infância? — murmurei,
tão baixo que saiu quase como um sussurro.
Richard ficou imóvel.
— Como sabe? — Acompanhei o movimento de seus lábios
com os olhos.
E suspirei.
— Pedro e Beatriz me ajudaram a me esconder de Giovanna.
— Fiz uma careta. — Bom, mais ou menos. Ouvi quando Pedro
começou a provocá-la por causa disso, ele deu a entender que
vocês eram muito amigos. E que… — afastei o algodão e baixei os
olhos — por minha causa… não eram mais.
Richard inspirou profundamente. E bufou.
— Pedro é uma raposa traiçoeira. Não dê ouvidos a tudo que
ele diz, Julieta. Ele adora inventar histórias.
Continuei encarando meus pés.
— Mas?
— Mas… — Richard suspirou. — Ele não tá totalmente errado.
Sim, eu e Giovanna crescemos juntos. Nossas mães se
conheceram na faculdade e agora trabalham juntas. E pode se dizer
que nós dois éramos amigos… bem próximos. — Tocou meu queixo
e ergueu minha cabeça até que meus olhos encarassem os seus. —
Mas você não tem absolutamente nada a ver com nada disso. Já
não estávamos nos dando muito bem quando te conheci. A
Giovanna… — hesitou e franziu o cenho, procurando as palavras
certas — sempre foi competitiva. E muito temperamental. Não era
uma pessoa ruim, pelo menos não quando a conheci, mas nos
últimos tempos… a competitividade subiu à cabeça dela, eu acho.
Só não consigo entender o motivo.
Me lembrei do medo em seus olhos pouco antes da porta da
sala do diretor se fechar.
— Você sabe algo sobre o tio dela? Talvez, por ser sobrinha do
diretor, ela se sinta mais… sei lá, pressionada a ser a melhor em
tudo.
Richard ponderou por um tempo.
— Talvez. Mas eu não sei nada além do que todos já
conhecem. Diretor jovem, mas bastante rigoroso, sobrinha mimada
com mania de perseguição e muita dor de cabeça desnecessária se
arrumar briga com ela.
— E que dor de cabeça — ironizei, e Richard riu. — Se não
fosse por Mariana, o concurso nem existiria mais.
Ele voltou a ficar sério.
— E por falar nisso… — fez uma careta — o que foi aquilo com
Mariana mais cedo? Foi muito arriscado colocar a decisão de tudo
nas mãos dela, você ficou doida?
Senti minhas bochechas corarem.
— Ora, eu entrei em pânico! O concurso tava por um fio, eu não
podia simplesmente ficar de braços cruzados e não fazer nada.
Richard bufou mais uma vez e saltou da maca.
— Foi arriscado mesmo assim. E muita sorte por ela ter dito a
verdade ao invés de obedecer Giovanna. Muita sorte mesmo, por
mais que eu ainda não entenda o motivo.
Cruzei os braços e o encarei com os olhos semicerrados.
— Sabe, você devia dar mais crédito a ela. Nem todo mundo
nessa escola se deixa intimidar por um capricho… — Parei,
boquiaberta. E encarei os olhos de Richard com mais atenção.
Ele franziu as sobrancelhas.
— Por um capricho…?
Não respondi, mas me aproximei mais um pouco e apertei os
olhos. Não, eu não podia estar vendo certo.
— O que foi? — Ele parecia mais confuso conforme eu me
aproximava. E nervoso.
Mas continuei encarando atentamente em seus olhos… o meu
reflexo.
Para aquela mecha bem no meio da minha franja que decidiu
desafiar a lei da gravidade e ficar em pé, parecendo uma crista de
galo.
— Só pode ser brincadeira! — exclamei, horrorizada, e corri
para o banheiro anexo à enfermaria, me dando conta pela primeira
vez do meu estado. — Eu tava assim o tempo todo?! — Minha voz
subiu uma oitava enquanto eu me olhava no espelho e me sentia
completamente traída. — Por que ninguém me avisou?!
A cabeça de Richard apareceu na lateral da porta.
— Ah, isso? — Riu ao ver minha tentativa falha de colocar a
franja no lugar. — Relaxa, nem dá pra notar.
O fuzilei com o olhar.
— Sai daqui. — Bati o pé e fechei a porta, quase soltando
fumaça pelas ventas. — Hoje, definitivamente, não é o meu dia —
resmunguei, puxando os fios da franja com impaciência.
— Vamos mudar de assunto então — a voz abafada de Richard
falou do outro lado, e ouvi quando ele se apoiou contra a porta. — E
o lance do diário, como tá indo?
— Nada ainda — murmurei, desembaraçando o restante do
cabelo com os dedos. E, apesar de tudo, sorri. — Bom, nada que
nos leve até ela, pelo menos.
— Como assim? — Notei a curiosidade em sua voz.
Meu sorriso cresceu.
— Aurora tinha um namorado, sabia?
— Namorado? — Quase pude ver as sobrancelhas de Richard
arquearem. — Ela escreveu isso? E você, já procurou por ele?
— Não… e não. Bom, eles não são namorados até onde eu li.
Ainda. Mas tenho certeza que vão acabar juntos, tá na cara que ele
é louco por ela. E ela por ele.
Richard ficou em silêncio por um minuto inteiro. Até que falou,
devagar:
— Você sabe que isso é um diário e não um livro de romance,
né?
— Sei.
— Então por que não procura logo esse cara? Faz mais sentido
do que ficar fantasiando um relacionamento que pode nem ter
acontecido, não faz? Ele pode nos dizer onde Aurora está.
Sim, eu sabia disso. E Richard estava certo, claro, mas…
— É que… — Suspirei. E me apoiei contra a porta também. —
Ler o diário me ajuda a distrair a cabeça de, sabe… tudo. Aurora é o
exato oposto de mim, mas passou por coisas que nós também
estamos passando aqui e dá conselhos muito bons. Eles me ajudam
a esfriar a cabeça e ver as coisas por outra perspectiva… com mais
clareza. E humor. — Sorri com a lembrança. — Eu… Eu quero
encontrá-la, quero devolver o diário, mas também… quero saber
como termina. Será que ela venceu o concurso? Será que ela e
Vougan ficaram juntos? Será que as coisas… dão certo no final? —
murmurei, pensando tanto no final de Aurora quanto no meu. —
Será que existe um final feliz nessa bagunça toda?
E eu podia muito bem parecer maluca, mas também queria
saber mais sobre Aurora. Conhecê-la mais. Eu gostava dela e ter
seu diário comigo, passando por situações parecidas e no mesmo
lugar, no mesmo cenário… era quase como tê-la por perto. Como se
ela fosse uma amiga.
E eu ainda não estava pronta para perdê-la.
— Eu entendo — a voz abafada e baixa de Richard murmurou
em resposta.
— Mesmo?
A madeira da porta rangeu, como se ele tivesse se remexido.
— Claro. Afinal, ela te ajudou com a primeira seleção, não
ajudou? Você quase desistiu de se apresentar, mas foi só pensar
nela que tudo mudou.
— É… é verdade. Mas então… o que fazemos?
Richard respirou fundo do outro lado.
— Acho que essa decisão só cabe a você. Se quiser devolver o
diário agora, vai em frente, mas… acho que não vai fazer diferença
se ficar com ele por mais um tempo. O que são mais alguns dias de
espera pra alguém que o perdeu já tem dez anos? — Soltou uma
risada baixa.
Respirei fundo, mais aliviada.
— É, acho que você tem razão.
— Vougan… — murmurou depois de um tempo, pensativo. Abri
a boca para perguntar se ele já tinha conhecido alguém chamado
assim, mas Richard apenas acrescentou: — Que nome engraçado.
Um sorriso se formou em minha boca.
— Eu gosto. Achei criativo. E único.
Richard riu.
— Deve ser mesmo. Mas vamos, as aulas vão começar daqui a
pouco.
Suspirei. E me equilibrei, abrindo a porta. Richard estava
apoiado no batente, as mãos nos bolsos da calça, seus olhos
atentos percorrendo meus fios.
— Eu gosto do seu cabelo. — Sorriu, voltando a me encarar. E
fazendo meu coração dar uma pirueta. — Parece a Branca de Neve.
Bufei uma risada apesar das bochechas quentes.
— Eu tô mais pra um dos sete anões. Se tivesse um chamado
Desastre, ele teria a minha cara. Mas... e seu lábio, como tá?
Richard projetou o lábio inferior para frente, o corte levemente
inchado.
— Um pouco dolorido. — Passou a ponta da língua por todo o
comprimento do lábio, até o ferimento. Lentamente. — Mas vou
sobreviver. Você tá bem? — Franziu as sobrancelhas.
Agora meu rosto e meu pescoço estavam em chamas, minhas
mãos suavam e eu estava tão dura que corria o risco de me
estilhaçar inteira.
Ora, como eu podia estar bem depois daquele… depois de ver
aquela… depois daquilo?!
— É melhor a gente correr. — Engoli toda aquela saliva e
obriguei minhas pernas duras a se moverem para bem, bem longe
dele. — Ou vamos nos atrasar.
— Espera! — Se apressou até me alcançar, mas não diminuí o
ritmo. — Julieta, eu… queria perguntar uma coisa.
— O quê? — Continuei marchando pelo corredor, Richard logo
atrás.
— Eu… O que vai fazer no fim de semana? Digo… sábado à
noite — gaguejou, parecendo ansioso.
O olhei rapidamente e de relance por cima do ombro.
— Trabalhar. — Voltei os olhos para frente. — Por quê?
— Trabalhar — repetiu, murchando. — Claro, você também
trabalha de fim de semana. Eu tinha esquecido.
— Como uma condenada — resmunguei baixinho.
Richard apertou o passo até estar do meu lado.
— O que você faz mesmo?
— Eu… toco. Em casamentos, formaturas, velórios… eventos
em geral.
— Velórios? — Arregalou os olhos.
Deixei escapar uma risada.
— Não são muito frequentes, mas às vezes acontece. E eu não
tô em posição de reclamar ou recusar nada, cada centavo é
extremamente necessário.
— Entendo. — Desviou os olhos para frente, desanimado. — É,
você tem razão. Deixa pra lá.
O olhei de esguelha mais uma vez e abri a boca para perguntar
qual era o problema, mas…
— É… — murmurei ao invés, baixando os olhos. — Deixa pra
lá.

ʄʅ
Tinha acabado de sair da aula da professora Fabiana, cansada
e massageando o pescoço dolorido, e estava prestes a virar no
corredor quando vozes mais à frente me fizeram parar.
— Em que merda você tava pensando? — Giovanna grunhiu
com raiva, pra variar. — Tem alguma ideia do que fez?
— Eu fiz o que tinha que fazer. — Reconheci a voz de Mariana,
surpreendentemente firme. E arregalei os olhos, o corpo tenso. —
Você é sobrinha do diretor, eu sabia que ele não ia ser tão drástico
com você. E eu tava certa, não tava? Ele não te baniu do concurso,
ou baniu?
— Não graças a você — Giovanna cuspiu. E acrescentou com
cinismo: — Sabe, às vezes eu acho que você se esquece de quem
manda aqui. Sobre o que tudo isso se trata. Será que eu vou ter que
te lembrar?
Fiz menção de seguir adiante em defesa de Mariana, mas um
puxão firme na mochila em minhas costas me impediu, como se
estivesse enganchada em algo.
Olhei para trás e dei de cara com Vitor, segurando minha
mochila e sacudindo a cabeça em negativa. Abri a boca para
mandá-lo me soltar, mas ele ergueu a outra mão… e levou um dedo
aos lábios, indicando que eu ficasse em silêncio.
O que era aquilo, ele estava espionando as duas?
Mariana, com aquela coragem invejável, respondeu com a
mesma firmeza de antes:
— Sei perfeitamente sobre o que tudo isso se trata, Giovanna.
Todo mundo sabe. Mas acho que é você quem se esquece que não
é a única aqui com potencial pra se destacar. — Giovanna riu com
desdém, mas Mariana continuou: — Você não é a melhor musicista
do conservatório. E acho que sua nota na primeira seleção deixou
isso bem claro, não é?
O estalo do tapa veio rápido e sem aviso, seguido de um
arquejo surpreso e em choque de Mariana. E eu não precisava ver
para saber o que tinha acontecido.
Giovanna tinha acabado de esbofetear Mariana.
Trinquei os dentes e tentei avançar de novo, mas Vitor me
manteve no lugar. O encarei com raiva, mas o sentimento logo se
transformou em confusão.
Vitor mantinha os lábios contraídos, os olhos fechados e as
narinas dilatadas, o corpo tão tenso quanto o meu. Como se
também estivesse se segurando para não interromper a discussão.
Como se o tapa em Mariana o deixasse com tanta raiva quanto
tinha me deixado.
— Mas que droga… — Mariana começou, o choque ainda
nítido em sua voz.
— Que isso sirva de aviso — Giovanna interrompeu. E
acrescentou mais baixo, mas não menos afiada, como se tivesse se
aproximado: — Não ouse me atrapalhar nunca mais, entendeu?
Nem sequer considere a ideia, sejam quais forem os motivos. Se
coloque no seu lugar. Caso contrário… vai acabar como a sua
querida amiguinha.
Claro que ela ia dar um jeito de me botar no assunto. Tava
demorando.
E ficou óbvio que ser sobrinha do diretor tinha seus privilégios.
Se, apesar de toda a confusão que tinha causado, Giovanna não foi
devidamente punida, então era óbvio que ela não pararia com a
perseguição. Na verdade, eu podia apostar que as coisas ficariam
muito piores a partir de agora.
Mariana não respondeu, e os passos duros e decididos de
Giovanna começaram a se afastar. Após alguns minutos, Mariana
soltou o ar com força, como se estivesse prendendo o fôlego.
E começou a soluçar.
Eu estava bem perto da curva da parede, então bastou que
esticasse um pouco a cabeça para que conseguisse enxergar o
corredor logo à frente.
Mariana estava de costas e se apoiava na parede oposta com
uma mão, a outra tocando sua bochecha avermelhada pelo tapa, os
cabelos bagunçados pela violência do golpe.
— O que é que eu tô fazendo? — Fungou baixinho, e algo
dolorido afundou dentro do meu peito.
Me senti mal por ela, por tê-la metido naquilo. Se não fosse por
mim e minha boca enorme, Mariana não precisaria ter entregado a
sobrinha do diretor. Ela estava se matando de estudar pro concurso
e estava completamente focada nisso. E agora, por minha causa…
Giovanna a tinha na mira.
Baixei os olhos, envergonhada, e só percebi que ela já tinha ido
embora quando Vitor finalmente me soltou.
— Por que não fez nada? — resmunguei, me afastando dele e
ajeitando a mochila. — Você e Giovanna são muito amiguinhos, não
são? Por que não fez nada?
Sua mandíbula estava tensa, os punhos cerrados ao lado do
corpo. Mas os olhos… frustração. E impotência.
— Você não faz ideia de como as coisas são por aqui — falou,
o olhar baixo.
Era só o que me faltava.
— Ah, faço sim. Você literalmente me perseguiu no outro dia, e
ainda acha que eu sou tão ingênua a ponto de não saber que você
podia ter impedido…
— Não, você não sabe — me interrompeu. — Não faz ideia
nem da metade das coisas que acontecem nessa droga de lugar.
Seu tom de voz, a franqueza na expressão de seu rosto… me
deixaram sem palavras.
E me lembrei do que Beatriz disse mais cedo… sobre não
gostar de Giovanna, apesar de andar com ela. Achei que suas
palavras só se referiam a si mesma e Pedro, mas… será que Vitor
também compartilhava desse sentimento?
Pedro, aparentemente, tolerava Giovanna e seus chiliques
apenas para proteger Beatriz. Mas e Vitor? O que poderia motivá-lo
a ficar do lado de alguém que não gostava?
A expressão em seu rosto quando Mariana foi agredida...
— Por que não fez nada? — voltei a perguntar, dessa vez sem
acusação.
Vitor ergueu os olhos para mim e, mesmo sem revelar nada
sobre as minhas suspeitas… ele viu. Viu a compreensão em meu
rosto.
E soltou uma risada fraca e sem qualquer tipo de humor.
— O que te faz pensar que ela precisava de ajuda? Nem todas
as garotas precisam de proteção, sabia? — Uma sombra encobriu
seu olhar. — Ou a aceitam.
Todos eles se conheciam há anos, aparentemente. E me dei
conta de que os dois podiam ter uma história, um passado, mas
ainda assim…
— Ainda não justifica você ter deixado que Giovanna
simplesmente a machucasse assim — rebati.
— Por que você se importa? — Ele me encarou com os olhos
semicerrados.
— Porque é o que amigos fazem. Amigos de verdade. Eles se
importam e cuidam uns dos outros. Independente da situação.
Vitor franziu o cenho, parecendo genuinamente confuso. E
intrigado.
— Cuidam? — murmurou, mais para si mesmo.
— É. — Cruzei os braços e encolhi o corpo. Era a primeira vez
que tinha uma conversa civilizada com Vitor, e me dar conta disso
foi estranho. — Devia tentar um dia. Se gosta da Mariana, comece a
demonstrar. Como uma boa pessoa. Ainda mais agora que ela
provocou a ira de Giovanna e provavelmente virou um alvo também.
Não tinha muito que eu pudesse fazer para ajudá-la, por mais
que quisesse. Estava tão encrencada com a sobrinha do diretor
quanto Mariana, e era mais provável que eu apenas piorasse a
situação dela se me intrometesse mais em seus assuntos. Mas
Vitor… se ele realmente gostava dela poderia protegê-la, como
Pedro fazia com Beatriz.
— Alvo? — Vitor riu de leve e sacudiu a cabeça, no entanto. —
Você ainda tem muito que aprender, bonequinha.
O olhei com cautela.
— O que isso quer dizer?
Mas ele apenas suspirou, ajeitou a mochila pendurada em um
ombro e passou por mim, seguindo pelo corredor.
— Você vai descobrir. Na hora certa. E quando isso
acontecer… — riu mais uma vez, daquele jeito desprovido de humor
— estaremos todos completamente fodidos.
Capítulo 18
Quarta, 7 de maio
Pode-se dizer que hoje foi o dia em que eu coloquei todas as
minhas habilidades de Sherlock Holmes em ação.
Depois de descobrir que eu e Vougan seríamos os próximos alvos
de Marcus, passei a dedicar todo o meu tempo livre para conseguir
mais informações sobre o assunto.
Eis o que eu precisava saber antes de bolar um plano de contra-
ataque:
1 – Marcus não conseguiria se livrar de nós dois ao mesmo
tempo, então quem seria o primeiro? Vougan ou eu?
2 – Que táticas ele usaria pra nos desestabilizar? Será que tentaria nos colocar um
contra o outro? Será que tentaria se aproximar de mim como fez com Sarah? E Vougan, o
que Marcus estaria bolando pra ele?
3 – Quando começaria a agir? Ele ainda não tentou nada, mas
será que está apenas esperando por um momento específico?
4 – Por fim… qual o papel de Susana em tudo isso?
Vougan duvida que ela está tão envolvida assim nos planos de Marcus, mas… por mais
que ele a conheça, ou acha que conhece, eu sei que santa ela não é. É perfeitinha demais
pro meu gosto. E por mais que meu foco no momento seja Marcus, decidi ficar de olho no
comportamento de Susana também, só por precaução.
E depois de dois dias exaustivos de investigação, seguindo
Marcus pra cima e pra baixo escondida na escola e tentando juntar
as peças do quebra-cabeça, eis algumas conclusões e teorias a que
consegui chegar:
1 – É mais provável que Vougan seja a próxima vítima. O lance
com Sarah ainda é muito recente, então Marcus deve saber que
suas intenções ficariam muito óbvias se viesse direto até mim.
2 – Eu ainda não consegui pensar em como ele se aproximaria de
Vougan ou o faria ser desclassificado. Preciso pensar mais no
assunto e colher mais informações.
3 – Marcus provavelmente está esperando a poeira baixar, porque
até agora não teve nenhum comportamento suspeito. Talvez
coloque seu plano em ação, seja ele qual for, quando anunciarem o
tema da segunda seleção.
4 – Susana pode muito bem… fazer parte ou… ser o tal plano.
Fazer com Vougan o mesmo que Marcus fez com Sarah. Se
aproximar como quem não quer nada, ou oferecendo uma aliança,
fazer com que ele caia em suas graças e desestabilizá-lo. Seria um
pouco óbvio, mas não deixa de ser uma possibilidade.
E se Vougan cair na manipulação dela… NEM PENSAR.
Eu… quero dizer, seria cruel deixar isso acontecer. Vougan é
um cara legal e não tá fazendo jogo sujo pra vencer o concurso, por
isso é meu dever prote...
Não.
Não, eu nem devia me preocupar com isso. Vougan é um garoto inteligente e não cairia
num truque barato desses. E também, ele já é MEU aliado, não interessa se Susana é
linda e cheia de gracejos sedutores. Vougan não faria a burrice de me trocar…
Me trocar por ela.
Ele não faria isso… certo?
Por mais que ele a conheça há mais tempo. Por mais que os dois,
de certa forma, com aquele humor ácido e sorrisinhos maliciosos e
provocantes, combinem. E por mais que imaginar me faz pensar
que eles formariam um… casal muito bonito.
Ele não me trocaria… ele não pode fazer isso. Ele… pode?
Será que faria?
Por que eu me importo, afinal? Não é como se Vougan me
devesse qualquer coisa, ou fosse minha propriedade. Assim como
eu não me prendo a nada nem ninguém, também não obrigo
ninguém a permanecer do meu lado. Ele é livre pra fazer as próprias
escolhas assim como eu sou livre pra fazer as minhas.
É só que… aquele beijo não sai da minha cabeça. Toda hora as
imagens daquele momento voltam, assim como a sensação de sua
boca na minha e… e eu não sei o que isso significa.
Porque parte de mim sorri igual uma idiota ao lembrar, e a outra
parte… se irrita por não ter acontecido de novo.
E agora, se Vougan escolher me trocar por Susana, sua amiga de
longa data que tem mais em comum e provavelmente também o
conhece muito mais do que eu… não aconteceria de novo mesmo.
Nada, nunca mais.
Nem piscadelas, nem sorrisos travessos, troca de mensagens
provocantes, chocolates, escapadas da escola… nada.
Eu não tinha me dado conta de como perdê-lo podia doer. Nem sabia que estava tão…
envolvida com ele. Com a nossa amizade, quero dizer.
Mas então, que droga isso significa?
Eu me importo com Vougan, claro, mas não é como se gostasse
dele, certo? Não de um jeito romântico, isso seria… loucura. Não é?
Mas… pra ser bem sincera… não acho que estou, ou algum dia
estarei pronta para… vê-lo partir. De qualquer forma que seja… com
qualquer pessoa que seja. Meu coração aperta só de pensar…
Ah, não. Ah. Não!
Droga, Aurora, como você pôde ser tão burra?
Capítulo 19
Quinta, 8 de maio
“Ei Moranguinho, tá escutando o quê?”, Vougan chegou se
jogando na cadeira de rodinhas ao meu lado na biblioteca e
arrancou um lado do meu fone de ouvido, encaixando em sua
própria orelha. E arqueou as sobrancelhas, surpreso, ao som de
Cryin'. “Aerosmith?”
“Fiquei curiosa”, me limitei a responder, sem ousar desgrudar os
olhos da tela do computador. “É legal.”
“Sim, é mesmo”, ele riu. “Mas… por que essa? É meio triste. Pra
você.”
O olhei de esguelha.
“Quero memorizar a letra pra quando você partir meu coração”,
provoquei com um sorrisinho de canto de boca.
Ele piscou uma vez. E levou uma mão ao peito de forma teatral.
“Eu nem sabia que tinha capacidade de fazer tal coisa. Que
honra.”
Besta.
Revirei os olhos e continuei digitando no teclado.
“O que tá fazendo?” Tentou bisbilhotar, mas me apressei e joguei
os braços ao redor do monitor.
“Nada.”
Ele parou. Piscou. E sorriu da forma mais ridícula possível.
“Moranguinho, você tá vendo pornô?”
SINCERAMENTE, VOUGAN, QUE DROGA DE PERGUNTA FOI
ESSA?
“Vai à merda”, foi a minha resposta, no entanto.
“Quem não deve, não teme.” Me lançou uma piscadela, ainda
sorrindo com malícia.
E tive que fechar os olhos e contar até 10, implorando por
paciência.
“Promete que não vai rir?” Olhei com cautela.
“Não”, falou simplesmente. E acrescentou quando fechei a cara:
“Você riu de mim quando falei meu nome. Por direito, posso rir de
você também, pelo menos uma vez.”
Só podia ser um teste divino de paciência.
“Tá, tudo bem”, resmunguei e larguei o monitor, me recostando na
cadeira e deixando que ele olhasse. “Mas entenda que é apenas um
hobby e que eu ainda tô aprendendo.”
Ele se aproximou da tela feito uma criança viciada em desenho
animado… e olhou. E olhou. E olhou.
Meu arranjo musical para um quarteto de cordas.
“Você fez isso?”, perguntou depois de um tempo, ainda
encarando o monitor com o programa de partituras aberto.
“Tá tão ruim assim?” Eu roía a unha do polegar de ansiedade.
“Ruim?” Seus olhos arregalaram. “Aurora, isso tá incrível!”
E não era, não devia ser nada demais, mas ainda assim meu
rosto inteiro esquentou.
“V-Você acha mesmo?”, gaguejei igual uma idiota.
“Claro que sim!”, Vougan pegou o mouse e começou a passear pelas páginas já
escritas. “A harmonia entre a viola e o violoncelo encaixou muito bem. E…” Parou em um
trecho repleto de escalas bem rápidas onde eu, talvez, tenha me animado um pouquinho
demais quando escrevi. “Uau”, Vougan suspirou e ergueu a mão esquerda, reproduzindo o
dedilhado como se estivesse tocando no cello. “Incrível! Não sabia que você era
compositora.”
“Eu não sou”, falei sem jeito. “Já disse, é só um hobby.”
“Um hobby no qual você é muito boa. Podia ganhar dinheiro com
isso fácil, fácil.”
“Talvez”, murmurei ainda vermelha e com o olhar baixo.
Ainda estávamos com os fones, e a playlist no modo aleatório
começou a tocar That's What You Get, do Paramore.
“Você andou sumida”, Vougan falou depois de um tempo e com
cautela, a introdução da guitarra ecoando em nossos ouvidos.
“Eu… estive ocupada”, respondi. Seguindo e bisbilhotando cada passo e respiração do
traíra do Marcus. E me afundando em uma crise existencial com a possibilidade de ser
trocada pela Barbie Malibu e seus longos cabelos castanho-avermelhados.
Mas Vougan não precisava saber dessa parte.
“Acho que Marcus vai mirar em você primeiro”, falei sem
rodeios. E contei minhas suspeitas sobre… bem, como Vougan
poderia ser… abordado.
Pela fadinha de olhos turquesa.
Argh.
“Faz sentido”, ele murmurou, mas não parecia muito preocupado.
Não com isso, pelo menos. “Mas então… foi por isso que eu não vi
nem a sua sombra nos últimos dois dias? Porque você tava
bancando o Sherlock Holmes por aí?”
“Por que mais seria?” Franzi o cenho.
“Eu…” Hesitou e baixou os olhos. “Achei que você tava brava
comigo. Por causa… Por causa do beijo.”
E naquele momento, algo palpitou dentro de mim, dando um salto
tão violento no peito que quase foi parar na boca.
“A-Ah… não, eu não… não fiquei brava”, gaguejei. “Você fez o
que tinha que fazer. Pra gente não ser pego”, acrescentei depressa.
“É… mais ou menos”, pensei ter ouvido murmurar, mas sua voz
saiu muito baixa. E ele logo voltou a sorrir daquele jeito astuto e
cafajeste. “Mas então, se não ficou brava… podemos fazer de
novo?”
“Só se você quiser perder a língua”, ameacei, mas tenho certeza
que minhas bochechas estavam vermelhas.
“Ora, ora, você já tá pensando na minha língua?” Seu sorriso
cresceu. “Fico lisonjeado. E aceito o desafio.”
Palavras não podem expressar o tamanho da minha vontade de
dar na cara dele.
Então tive que me contentar em mostrar o dedo do meio.
Vougan apenas sorriu com malícia. E se aproximou tanto de mim
que nossos rostos ficaram a apenas milímetros de distância.
“Pode fingir o quanto quiser, Moranguinho, mas eu vejo o que
você tenta esconder com tanta determinação.” Tocou meu queixo e
ergueu meu rosto. Nossas bocas não se tocaram por muito, muito
pouco. E eu tive a sensação de que meu coração tinha parado de
bater. “Me avise quando ficar cansada de tentar se enganar. Estarei
esperando por você.”
Um arrepio subiu por todo o meu corpo, desde o dedinho do pé
até o último fio de cabelo, e soltei o ar com força pela boca, que saiu
trêmulo.
Vougan exibiu um sorriso preguiçoso e, só pra piorar a minha
situação, passou o polegar pelo meu lábio inferior, devagar.
“Só, por favor, não demore muito”, pediu com a voz macia e olhos
brilhantes. “É uma tortura pra mim também.”
E me soltou de repente, se afastando de mim e me largando ali,
sem ar nos pulmões ou batimentos cardíacos, e seguiu
despreocupado entre as mesas de estudo até a saída da biblioteca.
Sem nem olhar pra trás.
E eu fiquei ali, perdida e desnorteada, e levei mais tempo do que
gostaria de admitir para me recompor, a respiração pesada, os
pensamentos turvos… e as coxas tão juntas e rígidas uma na outra
que meus músculos já começavam a doer.
Mas que inferno, Vougan!

Eu sou muito trouxa.
Insatisfeita por ter sido feita de palhaça na biblioteca, eu ainda fui
atrás de mais humilhação. E comecei a seguir Vougan no intervalo
do almoço.
Não, eu não estava atrás das provocações dele. Pior.
Queria descobrir se minha teoria estava certa, e se um certo
alguém não ia sair correndo atrás dele para fazê-lo de besta. Igual
ele tinha acabado de fazer comigo.
Se eu estava certa, parte de mim achava que ele merecia sentir o
gostinho do próprio veneno, mas a outra parte…
Droga.
Eu gostaria de dizer que a outra parte sabia que não era justo deixar aquilo acontecer
com ele só porque estava irritada, mas a verdade era que… eu não queria vê-lo com outra
garota. Não queria nem imaginar a possibilidade.
Patético.
Então, lá estava eu, bufando e seguindo Vougan pelos corredores
lotados de alunos, bagunçando e gritando feito animais, a uma
distância segura.
Ele seguiu pela secretaria e virou no corredor que levava ao
conservatório, até a enorme escadaria. Havia um painel grande e
grosso de vidro sobre um suporte de metal na base da escada, com
o nome do conservatório e o emblema da escola gravados, como
uma placa de boas-vindas a alunos e visitantes.
E, sentada nos primeiros degraus bem ao lado do painel, uma
maleta de instrumento preta aos seus pés, havia uma garota, no
máximo 13 ou 14 anos, toda encolhida. E chorando.
E não fiquei nem um pouco surpresa quando Vougan parou ao
ver a cena. E foi até ela, sentando ao seu lado.
Uma parte muito feia e egoísta de mim se irritou com aquilo. Queria que ele ignorasse a
garota e seguisse seu caminho. Mas mandei aquela vozinha calar a boca e permaneci
escondida atrás de uma das várias pilastras no corredor, observando.
“Ei Princesa, faz tempo que eu não te vejo”, Vougan falou daquele
jeito doce. E tive que morder a língua pra não soltar um grito de
indignação.
Ele a conhecia. A conhecia e até tinha um apelido pra ela.
“Vougan?” Ela ergueu os olhos vermelhos e encharcados para ele, notando sua
presença. E fungou, enxugando o rosto com a palma das mãos. “É, eu… voltei essa
semana.”
“Pra onde foi dessa vez? Alemanha? Itália?”
“Londres”, a garota murmurou, os olhos baixos. “Bem que eu
gostaria de ir pra Itália.”
“Ah, com certeza você vai um dia”, Vougan sorriu daquele jeito
astuto. “Vai viajar o mundo todo, Princesa, você vai ver.”
Ouvir aquela conversa de gente rica me fez revirar os olhos.
Quando eu viajo, no máximo vou pro litoral pegar um pouco de
sol na praia. E ainda chove.
“Se você diz…” A garota deu de ombros e fungou mais uma vez.
“Ouvi dizer que está participando do concurso.”
“É verdade.” Vougan assentiu com um sorriso. “Tive que
aproveitar que você não tava aqui, só assim pra conseguir uma
vaga. Pelo menos agora nós, meros mortais, temos uma chance de
vencer.”
A garota tentou, mas não conseguiu segurar o sorriso tímido que
se formou em sua boca. E o empurrou de leve com o ombro.
“Não exagera.”
Não exagera, imitei baixinho com uma careta.
“Não é exagero.” O sorriso de Vougan cresceu. “Falo com tranquilidade que você é, sem
dúvida, uma das melhores musicistas que esse conservatório já teve.”
A garota cedeu por fim e soltou uma risada.
E me perguntei se seria possível derrubar aquela pilastra em cima
dos dois.
“Por que estava chorando?”, Vougan perguntou com suavidade, franziu as sobrancelhas
e inclinou a cabeça, analisando atentamente o rosto vermelho da garota. “Ainda aquele
problema?”
Ela ficou tensa de repente e arregalou os olhos, parecendo em
choque.
E ver aquela reação, o medo em seus olhos… me fez ficar
alerta.
“Não foi nada”, ela murmurou, mas seus olhos voltaram a ficar
marejados. “Ele não…” Suspirou e sacudiu a cabeça. “Sou eu que
estrago tudo, como sempre. Mas não precisa se preocupar, não foi
nada.”
“Já conversamos sobre isso, Princesa”, Vougan falou, e percebi o
leve tom de irritação em sua voz. “O que ele faz não é certo.
Quantas vezes eu já não te vi aqui chorando, e sempre pelo mesmo
motivo? Até quando as coisas vão ficar assim?”
A garota se encolheu um pouco.
“Ele… quer o melhor pra mim. Só tem um péssimo jeito de
demonstrar isso.”
“Eu sei bem o que ele quer”, Vougan cuspiu com a mandíbula
trincada e parecia muito… puto. “Já disse, se quiser que eu resolva
isso…”
“Não.” A garota ergueu a cabeça num salto, o encarando nos
olhos. “Por favor, Vougan, não faça nada, só vai te arranjar
problemas. Eu… vou ficar bem. Prometo.”
Vougan arqueou uma sobrancelha, parecendo pouco convencido,
mas soltou o ar com força e… estendeu o mindinho para ela.
“Promete que vem até mim quando precisar?”
Ela olhou dele para o dedo estendido, um pouco insegura, mas
voltou a sorrir daquela forma tímida.
“Prometo.” Entrelaçou o mindinho no dele.
Eu tentava entender o que estava acontecendo ali apenas pelos
fragmentos de informação que captava da conversa, mas…
“Ótimo”, Vougan falou antes que eu concluísse o pensamento. “É
só chamar e nós vamos correndo te ajudar. Certo, Aurora?”
Fiquei imóvel atrás da pilastra. E meu coração só faltou sair pela
boca.
“Sai logo daí”, Vougan insistiu.
Merda merda merda merda merda, era a única coisa que se
passava pela minha cabeça.
E, bem, eu não tive outra alternativa, não é?
De novo… patética.
Bufando, saí de trás da pilastra, mas não me aproximei deles.
Apenas me recostei na superfície larga e arredondada do meu
esconderijo e cruzei os braços, emburrada.
Vougan sorria daquele jeito, cheio de si. E a garota… me olhava
com os olhos arregalados.
“Eu amei seu cabelo”, soltou antes que eu sequer pudesse abrir a
boca. “Como você fez? Ficou lindo!”
Ela parecia genuinamente maravilhada e nem um pouco
preocupada que eu estivesse bisbilhotando.
E, bem, decidi que até podia gostar dela. Um pouquinho.
Peguei um dos cachos cor-de-rosa do meu cabelo. Tinha
retocado a tintura para a apresentação da primeira seleção, então a
cor ainda estava bem pigmentada.
“Posso fazer em você, se quiser”, murmurei, ainda sem graça por
ter sido pega no flagra.
“Ah, minha mãe nunca deixaria”, ela lamentou. “Gritaria comigo
por uma semana inteira.”
E não consegui segurar o sorriso.
“É melhor pedir perdão do que permissão.”
A garota voltou a sorrir… e se virou para Vougan.
“Sua namorada?”, perguntou, fungando e passando as costas da
mão no nariz que escorria.
E, para a minha surpresa, ele ficou imóvel. E aparentemente
mudo.
“Não”, falei um pouco mais tarde do que gostaria e me remexi,
desconfortável. “Não, de jeito nenhum.”
“Uma pena”, a garota suspirou. “Vocês formariam um casal muito
bonito.”
“É”, Vougan voltou a falar, tentando conter o sorriso. “Eu ainda tô
tentando convencer ela disso.”
Com o rosto em chamas, desejei ter uma pedra na mão para
poder acertá-lo bem no meio da fuça.
“Vai ter que se esforçar um pouquinho mais então.” Cruzei os
braços e empinei o nariz, me recusando a ficar ali parada deixando
que ele se gabasse.
E Vougan me encarou com as sobrancelhas arqueadas,
surpreso. Mas voltou a sorrir daquele jeito irritante como se dissesse
“desafio aceito”.
“Você tem sorte.” A garota olhou para mim. “Vougan é um cara
incrível. Sempre me anima quando eu tô triste.” Sorriu. “E sempre
digo que quero conhecer alguém igual a ele no futuro.”
Quando ouvi aquilo, engasguei uma risada.
Ela queria namorar alguém convencido, irritante, abusado e
completamente cheio de si?
“Boa sorte”, me limitei a dizer, segurando o sorriso sarcástico e a
língua afiada.
E Vougan, sabendo exatamente o que eu pensava, apenas fingiu
um sorrisinho… e me mostrou o dedo do meio.
“Por que estava chorando?”, perguntei, incapaz de me segurar.
Porque se eu tinha entendido a conversa do jeito certo… “Algum
garoto te fez mal?”
O sorriso sumiu do rosto da garota e ela encarou os próprios pés,
os lábios comprimidos. E não respondeu.
Olhei para Vougan, mas ele também não parecia muito inclinado a
responder. E eu não entendia o motivo de tanto mistério, mas falei
de qualquer modo:
“Se alguém tá te enchendo o saco, sempre pode optar pela
agressão física, sabe? Um chute nas bolas ou um soco bem dado
no nariz geralmente resolve o problema de valentões
inconvenientes.”
“Ah, ela com certeza sabe dar um belo soco, não é, Princesa?”
Vougan riu.
E, aos poucos, o sorriso voltou ao rosto da garota.
“Claro. Eu aprendi com o melhor.” O olhou de esguelha, tímida.
“Mesmo?” Franzi as sobrancelhas, surpresa.
“Claro”, Vougan falou. E se virou para ela. “Como é mesmo o
nosso lema?”
“Meter a porrada e sair correndo.” Ela assentiu com firmeza.
“Boa menina.” Ele sorriu com orgulho.
E analisei a cena, curiosa.
Uma garota. Ela literalmente não passava de uma garota. Mal
tinha entrado na fase da adolescência, mas Vougan a conhecia o
suficiente para achar que ela precisava aprender a se
defender. Tinha ensinado como socar valentões.
As coisas ali realmente não deviam ser nada fáceis para ela. E pensar que devia existir
não apenas um, mas vários valentões daquele tipo na escola, se aproveitando dos mais
novos e fracos, me deixou irritada.
“É um bom lema”, falei por fim, e o sinal do fim do almoço bateu
logo em seguida.
“Eu preciso ir.” A garota se levantou num pulo, agarrando a maleta preta retangular.
“Não posso me atrasar, senão…” Hesitou, os lábios comprimidos.
Vougan suspirou, parecendo saber as palavras não ditas, e se
levantou também.
“Não esquece da sua promessa.” A segurou pelo braço com
cuidado antes que fosse embora. “Se ele fizer alguma coisa,
qualquer coisa que seja, que te incomode, venha até mim. Eu… nós
— corrigiu, me olhando de esguelha — cuidamos de você.”
“Tudo bem.” Ela assentiu sem jeito. “Eu prometo. Mas eu
realmente preciso ir, Vougan, ou vou levar bronca.”
“Tudo bem.” Ele a soltou, relutante. “Boa aula, Princesa.”
“Obrigada.” A garota sorriu. E olhou para mim. “Tchau, Aurora. Foi
um prazer conhecer você.”
“Igualmente”, falei antes que ela começasse a saltar os degraus
até o andar de cima.
“Tchau, Vougan!” Acenou por cima do ombro, os cabelos castanhos batendo nas costas,
e os olhos, de um tom castanho-claro quase dourado brilhando.
“Tchau, Princesa.” Ele sorriu e acenou de volta, mas percebi que
algo ainda o incomodava.
“Você leva jeito com as pessoas.”
Vougan deu de ombros.
“Todos querem ser compreendidos. Eu só tento enxergar o pedido
de ajuda escondido nas entrelinhas. Ele sempre tá lá. Por mais que
esteja fundo e camuflado... sempre tá lá.”
“De quem estavam falando?”, perguntei com cuidado ao me
aproximar. “Algum… colega ou… paquera?”
Ele comprimiu os lábios com força antes de dizer, ainda olhando
conforme ela se distanciava:
“Não. Do professor. Ele… faz muita pressão psicológica em cima dela. Ela é uma
musicista incrível, já participou do concurso duas vezes, e ganhou. Uma vez o segundo
lugar e, no ano seguinte, o primeiro. Ela acabou de voltar de uma viagem de estudos no
exterior que ganhou como prêmio em um concurso sediado pela prefeitura no começo do
ano.” Sacudiu a cabeça, indignado. “E acabou de fazer 14 anos. 14! Essa menina é um
gênio, de verdade. Mas o idiota do professor a faz se sentir um lixo. Eu sempre a encontro
aqui chorando, e sempre pelo mesmo motivo.”
Começamos a subir a grande escadaria também, e algo pesou
como chumbo dentro de mim conforme ouvia.
“Por que ele faz isso?”, perguntei com o estômago revirado.
Vougan falou com uma expressão de nojo no rosto assim que
chegamos no segundo andar:
“Ele sabe bem o que tem nas mãos. Se ela souber o quanto é
boa, ele corre o risco de perder sua aluna prodígio”, cuspiu as
últimas palavras.
Olhei para frente e, ao longe, pude ver a garota ainda correndo,
apressada, corredor adentro.
Uma garota. Ela era apenas uma garota.
Decidi que ia ficar de olho nela e no tal professor. Se visse
qualquer coisa estranha… o homem que me aguardasse.
“Como ela se chama?”, perguntei, memorizando seu rosto e sua
fisionomia. Seus olhos.
Vougan também olhava enquanto ela sumia de vista, e falou com
um suspiro pesado:
“Clarice. Clarice Marquês.”
Capítulo 20
Estava sentada na mureta do pátio — com vista para o chafariz
na entrada da escola — durante o intervalo do almoço… e
engasguei com o refrigerante.
— Clarice Marquês?! — exclamei em meio a uma crise de
tosse, os olhos arregalados para o diário. — A Clarice Marquês?!
Caramba, eu a conhecia!
Clarice trabalhava com Demétrio antes de mim, e eu só assumi
o cargo de arquivista depois que ela conseguiu um trabalho na
capital, na famosa e prestigiada Orquestra Filarmônica Conducto, e
se mudou. Agora ela estava viajando o mundo, se apresentando
como uma solista profissional em um teatro mais fantástico que o
outro e, de quebra, ficou noiva do — perturbadoramente lindo —
Martin Castelli, maestro da Conducto.
Ela era uma pessoa incrível. E tinha me ajudado muito antes da
audição para o conservatório, me encorajando a não desistir dos
meus sonhos quando tudo o que eu queria era me enfiar num
buraco por medo de não passar.
Reli o encontro dela com Aurora, completamente boquiaberta.
Eu tinha ouvido falar daquele professor. E meu estômago embrulhou
com o conhecimento de tudo que aconteceria entre eles, com ela,
no futuro.
Sem dúvida nenhuma, Clarice era uma sobrevivente.
E eu sabia que ela tinha se formado no Intermezzo, mas jamais
imaginei que o caminho dela e Aurora tinham se cruzado.
Será que elas tinham mantido contato? Será que viraram
amigas? E, o mais importante… será que Clarice sabia onde Aurora
estava agora?
— Eu não acredito — ofeguei, apoiando a lata de refrigerante
na mureta e sacando o celular do bolso, mal conseguindo conter a
animação e quase quicando no lugar. — Eu não acredito, não
acredito, não acredito! — E me permiti fazer uma coisa que
raramente fazia: — Cacete!
— Senhorita Julieta! — uma voz grave em tom de reprovação
chamou antes que eu pudesse encontrar o contato de Clarice.
Estanquei no lugar, dura, e olhei por cima do ombro com os
olhos arregalados.
O professor De Lucca estava a poucos passos de distância de
mim, uma carranca contorcendo seu rosto e me encarando com
surpresa. E não de um jeito bom.
— P-Professor… — gaguejei.
— Esse tipo de palavreado é proibido nos domínios da escola
— falou, se aproximando. — Infelizmente a maioria dos alunos
escolhe ignorar essa regra, mas eu não esperava esse
comportamento vindo de você.
— Até onde me lembro, você mesmo quebrou essa regra há
alguns dias, professor — murmurei, me lembrando de quando ele
nos guiou de volta da sala do diretor na semana anterior,
despejando uma série muito vasta de palavrões, um pior e mais
criativo que o outro.
O professor De Lucca parou e piscou, os olhos arregalados.
— Você tá me respondendo? — perguntou lentamente,
completamente em choque.
E… ah, não! Eu tinha feito exatamente isso!
Nunca, na minha vida, eu tinha respondido um professor. Nunca
nem tinha recebido reprimendas, imagine começar uma discussão.
— E-Eu… Eu não queria… — Saltei da mureta e me virei para
o professor De Lucca, os olhos arregalados de horror e
arrependimento. — Por favor, perdão! Eu não queria ser grossa,
professor, eu… eu só… eu sinto muito!
Ele ainda me encarava, incrédulo, até que seus olhos desceram
para o diário em minhas mãos.
— O que é isso? — perguntou, desconfiado.
Encarei a capa escura de couro e fiz uma careta, reprovando
mentalmente Aurora e a má influência que seu temperamento
estava tendo sobre mim.
— Só… um livro. — Mantive os olhos baixos.
— Sobre?
— História? — arrisquei, estampando um sorriso amarelo e
mentindo na cara dura.
— História — o professor repetiu com um sorriso astuto e os
olhos semicerrados. — Sei. Deixa eu adivinhar, História da Música?
— Não — menti de novo, sem nem pensar duas vezes. —
História da Independência. É pra… um trabalho.
E ele me encarou de um jeito, como se não acreditasse em
uma palavra sequer do que eu dizia.
— História da Independência — falou, pouco convencido. — Tá
bom. — Apoiou uma mão no quadril e passou a outra no rosto,
esfregando os olhos cansados. — Julieta, preciso que venha
comigo. Teremos uma reunião sobre a segunda seleção do
concurso. Arrume suas coisas e me encontre na secretaria em cinco
minutos. Eu vou buscar os outros.
Assenti, cruzando os braços nas costas e tirando o diário de
vista.
— Pode deixar, professor.
— História da Independência... — voltou a resmungar enquanto
se virava, e começava a se afastar. — Era só o que me faltava. —
Mas me olhou por cima do ombro, os olhos brilhando com diversão,
e acrescentou: — Boa tentativa, espertinha.
E não consegui evitar o suspiro de alívio seguido de um sorriso
travesso que tomou forma assim que ele entrou no prédio da escola
e fiquei sozinha.

ʄʅ
Algo em que acreditar.
Esse era o tema da segunda seleção. E outra charada pra
resolver.
Repetindo as palavras mentalmente e esperando que alguma
ideia brotasse milagrosamente, juntei minhas coisas após o fim da
reunião e segui até a porta. Richard já me esperava no corredor.
Mas uma risada histérica no fundo da sala me fez parar.
— Você tá de brincadeira, né? — Giovanna riu para Vitor, que
estava sentado na carteira atrás dela.
Mas pela expressão séria em seu rosto, ele não parecia estar
brincando, fosse qual fosse o assunto. E olhou na direção de
Mariana, que ajeitava a mochila nas costas e também seguia para a
porta revirando os olhos com desprezo conforme Giovanna
gargalhava.
— Psiu... — Richard sussurrou do lado de fora da sala ao
perceber que eu ainda estava ali parada, prestando atenção na
conversa. — Julieta, vamos logo. Nada de bom vai sair disso.
Apenas levantei um dedo, indicando que ele esperasse e,
fingindo que meu cadarço tinha desamarrado, agachei e continuei
ouvindo.
— Espera, você tá falando sério? — Giovanna continuou,
tentando conter o riso. E falhando. — Eu não acredito, que coisa
mais ridícula!
— Será que dá pra parar? — Vitor murmurou entre dentes. —
Depois de tudo que eu já fiz por você, o mínimo que eu esperava de
volta era sua ajuda com isso. — Arrastou a cadeira para trás com
irritação. — Mas já vi que foi burrice.
E, ainda agachada e parecendo uma tartaruga, me firmei nos
pés e corri para fora da sala.
— Se vira! — Giovanna exclamou bem na hora em que alcancei
Richard, e Vitor saía bufando.
Ele me encarou, apenas por alguns segundos, e seguiu seu
caminho a passos duros corredor adentro.
— O que foi isso? — Richard falou, o cenho franzido.
E, mesmo que tenha sido rápido, reconheci a emoção no olhar
de Vitor antes que ele quebrasse a conexão. Frustração e… uma
pontada de vergonha.
— Eu não sei — confessei, observando conforme o garoto alto
de cabelo loiro sumia de vista. — Não sei mesmo.
Capítulo 21
Sexta, 16 de maio
Eu… Eu nem sei como começar a explicar tudo que aconteceu
hoje.
Eu simplesmente não… Eu ainda não consegui entender como…
Eu não acredito que…
Ah, foi um dia longo. Confuso. E simplesmente — suspiros
sonhadores — maravilhoso.
Eu não faço ideia de quem tá lendo isso agora, mas, se chegou
até aqui, sabe muito bem que Vougan e eu temos uma relação um
pouco… curiosa.
Bom, hoje as coisas ficaram mais curiosas ainda. E só pra você, caro leitor, ter uma
pequena noção do quanto… estou escrevendo isso da escrivaninha do meu quarto
enquanto Vougan está, neste exato momento, tomando banho no andar de baixo.
Pois é.
Mas vamos com calma. Vou tentar explicar toda essa confusão
desde o começo.
Primeiro, não aconteceu nada de muito relevante durante a
semana. Tivemos a reunião da segunda seleção do concurso, onde
foi revelado o tema — Algo em que acreditar, que droga de tema é
esse? —, mas fora isso… nada de incomum ou polêmico aconteceu.
Até hoje.
Marcus não fez nenhum movimento estranho ou suspeito durante
a semana, mas eu tinha certeza de que ele estava apenas
esperando pela chegada da segunda seleção para agir. E foi
exatamente o que ele fez.
Mas em uma coisa eu estava errada. Vougan não era seu próximo
alvo.
Era eu.
Estava praticando harpa em uma das salas de ensaio depois da
aula quando ele entrou do nada e sem aviso, quase me causando
um ataque cardíaco.
“Você”, falou com os olhos arregalados para mim antes que eu
pudesse sequer reagir. “Era você que eu queria ver.”
Saltei da banqueta e fiquei atrás da harpa, longe do seu alcance.
“O que você quer”, exigi saber, o coração a galopes.
“O que eu quero? Eu é que pergunto!”, exclamou. “Você tá me
seguindo pra todo lado há dias. O quê, acha que eu não percebi?”
Riu quando abri a boca, em choque. “Desembucha logo, garota, o
que é que você quer? Me sabotar? Se vingar pelo que eu fiz com a
Sarah? Foi ela que te mandou atrás de mim?” E riu de novo
conforme meus olhos arregalavam ainda mais. “Você não é a única
que fica de olho nos adversários. Eu vi como vocês duas se
aproximaram depois da primeira seleção.”
E, droga, eu odeio admitir, mas ele me pegou no flagra.
Não, Sarah não tinha me pedido para sabotá-lo ou qualquer coisa
do tipo, mas eu realmente tinha me aproximado dela.
Depois de ter conhecido a amiga de Vougan — a Princesa, como ele gostava de chamar
—, percebi como as atitudes egoístas dos outros podiam afetar seriamente as pessoas,
seu psicológico. E tentei me aproximar de Sarah, perguntei como ela estava com tudo o
que tinha acontecido na primeira seleção e garanti que ela não tinha culpa de nada.
E, bem, meio que acabamos virando amigas. Ela era uma pessoa
ótima, muito gentil e ainda estava muito magoada — e puta da vida
— com Marcus.
“Eu realmente achei que ele gostava de mim”, ela me contou aos
prantos no banheiro feminino. “Mas agora fica desfilando por aí com
perfeitinha da Susana”, cuspiu. “Mal sabe que ela só tá esperando
pra meter uma facada nas suas costas. E quer saber? Não é menos
do que aquele idiota merece!”
“Como sabe?”, perguntei, perplexa. “Ela te contou isso?”
“Não”, fungou, esfregando os olhos vermelhos com raiva. “Mas eu
sei reconhecer uma manipulação quando vejo. Quero dizer…”
Lágrimas voltaram a rolar por seu rosto. “Agora eu sei, graças
àquele babaca!” Voltou a abrir o berreiro e me abraçou,
desconsolada.
“Ah, por favor, eu tenho mais o que fazer ao invés de perder
tempo te sabotando”, cuspi para Marcus, me recompondo. “Ao
contrário de algumas pessoas, planejo vencer o concurso de
maneira honesta. Não preciso me rebaixar igual você.” Sorri com
malícia. “Eu me garanto com as minhas habilidades. Mas parece
que esse não é o seu caso, já que precisa ir atrás de um por um.”
Marcus cerrou os punhos, as narinas dilatadas.
“Mentirosa”, grunhiu. “Eu sei que tá tramando alguma coisa. Os bilhetes, as ameaças…
é tudo coisa sua, não é? Sua e da Sarah. Eu tentei…” Hesitou, parecendo… arrasado.
“Tentei pedir perdão, mas ela não quer me ouvir. Agora eu entendi por quê. Ela quer se
vingar de mim e você tá ajudando, né? Confessa de uma vez!”
Eu não tava entendo um caralho do que ele dizia, mas Marcus
parecia estar fora de si. Não faria sentido nem se tentasse.
“Quer saber se a Sarah disse algo sobre você?”, disparei,
perdendo a paciência com ele e toda aquela palhaçada. “Sim, ela
realmente falou uma coisa, e uma muito interessante. Ela mandou
você ir se foder, traidor de merda!”
E, antes que eu pudesse piscar, Marcus estava diante de mim, me
segurando pelos ombros com força.
“Não teste a minha paciência”, falou entre dentes, o rosto bem
perto do meu, e quase me tirando do chão. “Não vai querer se meter
comigo, garota, confessa de uma vez!”
“Me solta”, grunhi, mais pela dor de seus dedos me apertando que
pela raiva.
E Marcus, com uma expressão lunática no rosto, riu.
“Ou o quê?” Exibiu os dentes, tão perto que seu hálito pinicava
meu nariz.
E, do nada, um par de braços apareceu por trás de Marcus e
encaixou um mata-leão nele.
“Ou… eu arrebento o seu pescoço”, Vougan falou com uma calma surpreendente
apesar da força com que segurava Marcus. E os olhos… frios e afiados como lâminas de
gelo. “Você tem exatos três segundos pra soltar. 3…”, começou a contar, as narinas
dilatando de leve conforme estrangulava Marcus com mais força. “2… Não me faça chegar
no 1. Não vai acabar bem pra você, mas acredite…” Sorriu com malícia, a voz baixa. “Eu
vou gostar muito de arrebentar essa sua cara.”
E Marcus, com o rosto quase roxo pela falta de ar, finalmente me
soltou. Ou empurrou pra longe, melhor dizendo, pois cambaleei para
trás e não consegui me equilibrar, caindo de bunda no chão
acarpetado.
E Vougan, ainda segurando com força, girou para trás e
praticamente jogou o garoto para fora da sala pelo pescoço.
“Se tiver um pingo de bom senso, ou de amor à vida…”, falou
tranquilamente, a mão na maçaneta da porta. “Vai tirar essa sua
bunda frouxa daqui e nunca mais incomodar, ou sequer encostar em
Aurora de novo. Estamos entendidos?”
“Vai se arrepender disso, Vougan”, Marcus cuspiu com raiva e
tossindo, mas ouvi quando ele se levantou e saiu correndo, os tênis
derrapando no piso.
“Foi bom falar com você também”, Vougan exclamou com um
sorrisinho, olhando conforme Marcus desaparecia.
E fechou a porta, vindo até mim — ainda estatelada no chão — e
se agachou.
“Ele te machucou?”, perguntou com cuidado, me analisando
atentamente dos pés à cabeça.
E eu tentei, mas não consegui fazer minha voz sair. Então apenas
sacudi a cabeça em negativa.
“Posso ver?” Indicou meu braço, onde a manga do meu suéter
branco tinha caído do ombro, pendendo abaixo do cotovelo.
Assenti.
Vougan se aproximou devagar e pegou meu braço com cuidado,
analisando as marcas vermelhas que os dedos de Marcus tinham
deixado na minha pele.
“Dói?” Passou o polegar de leve pelo vergão.
“Um… Um pouco”, consegui balbuciar, ainda encarando Vougan
com os olhos arregalados.
“Não acho que vai virar um hematoma. Logo deve sumir.”
“Você ia bater nele”, sussurrei. “Ia bater nele pra valer.”
Os olhos azuis e frios encontraram os meus.
“E não deveria? Acha que ele não merecia depois de ter te
encurralado aqui sozinha?”
Sim, eu achava. Mas não era sobre isso que estava falando.
“Por quê?”, perguntei, as sobrancelhas franzidas. “Você podia se
meter numa bela encrenca, e mesmo assim não pensou duas vezes
antes de partir pra cima dele. Por quê?”
“Aurora...”, falou, e não consegui evitar olhar o formato de sua
boca enquanto pronunciava meu nome. “Onde tá querendo chegar?”
Voltei a encarar seus olhos… e engoli em seco. Ele me olhava com tanta intensidade
agora, como se chamas azuis queimassem ali.
Eu não disse a Vougan onde estaria depois da aula, e podia jurar
que a maioria dos alunos e professores já tinham ido embora àquela
altura. Mas de alguma forma… ele sabia exatamente onde me
encontrar.
“Por que veio até aqui?”, consegui dizer por fim. “E por que… me
protegeu dessa forma?”
A expressão no rosto dele não se alterou. E piscou uma vez antes
de dizer, a voz tão intensa quanto seu olhar:
“Não é óbvio? Eu não consigo ficar longe de você, Aurora. Não consigo nem suportar a
ideia. Pode dizer que é clichê, mas é a verdade.”
Meu coração deu um salto, e de repente fiquei muito ciente de seus dedos grossos, e
ainda assim gentis, envolvendo meu braço e disparando uma onda de calor por todo o meu
corpo.
“Quanto a te proteger…”, continuou. “Aquilo não foi nem uma
fração do que eu realmente faria caso alguém te machucasse.”
“Por quê?” Minha voz saiu tão baixa e fraca que fiquei surpresa
dele ter ouvido.
Vougan ergueu a outra mão, segurando meu queixo bem perto do
seu rosto com o indicador e o polegar.
“Porque eu gosto de você, Aurora. Porque sempre que você se
irrita comigo, me provoca, me xinga ou me ameaça, minha vontade
é te agarrar e te beijar até que não sobre qualquer resquício de
fôlego em qualquer um dos dois.”
Minha pressão foi lá pro chão. E ainda bem que eu já estava
sentada, pois tenho certeza que desmaiaria se estivesse em pé.
“E o que te impede?”, tive a ousadia — e a insanidade — de
perguntar.
Vougan exibiu um sorrisinho de canto de boca, os olhos correndo
preguiçosamente por todo o meu rosto.
“Sua teimosia, eu acho. E o fato de que você insiste que não
sente nada por mim. Eu… — aproximou a boca da minha, bem, bem
pertinho — jamais faria nada contra a sua vontade, Aurora. Jamais
te forçaria a algo que você não quer.” Seu sorriso cresceu de leve.
“Ou que você tenta se convencer de que não quer.”
Todo e qualquer pensamento coerente já tinha derretido do meu
cérebro àquela altura.
“B-B-Bom saber”, gaguejei, os olhos grudados naquela boca…
naquela maldita boca que ainda não estava colada na minha.
“Sabe o que eu quero saber?”, sussurrou, a mão no meu braço
deslizando lentamente até… meu quadril. “O que é que você quer,
Aurora?”
“O que eu quero?”, repeti desnorteada, como a perfeita
descerebrada que era.
“De mim.” A boca de Vougan quase roçou a minha. E aquele
quase me deixou à beira de um surto nervoso.
“Quero você”, falei por fim, mandando o orgulho e a incerteza pro
espaço, junto com o meu bom senso. E endireitei os ombros, me
aproximando dele e fazendo Vougan recuar um pouco. Agarrei a
gola de sua camisa e o encarei nos olhos. “Quero as provocações,
as piadas idiotas, as mensagens ousadas com duplo sentido…
quero tudo isso. Eu quero você, droga. Só pra mim, e ninguém
mais.”
Egoísta, eu sei. Mas era verdade.
A mão que estava no meu quadril deslizou de novo e parou no
meio da minha coxa exposta, a saia plissada que descia até pouco
acima dos joelhos agora enrolada quase na altura da cintura.
Os dedos de Vougan estavam bem abertos, seu polegar
escorregando pela pele sensível no interior da minha coxa. E quase
me fazendo acender feito uma tocha.
“Eu também quero você”, falou, aquele olhar incandescente ainda
fixo em meus olhos.
E se ajeitou, sentando no carpete e — alguém me jogue um balde
de água fria — me puxando até que eu estivesse em seu colo.
“Diga de novo então”, falei, passando a ponta dos dedos por seu
cabelo, até a argolinha prateada em sua orelha.
Ele nem hesitou.
“Eu gosto de você, Aurora.”
Sacudi a cabeça.
“Diga do jeito certo.”
Vougan apertou os olhos de leve, mas sorriu assim que entendeu.
“Eu quero você. Só pra mim, e ninguém mais.”
“Por quê?”
“Porque eu gosto de você...” Aproximou a boca da minha e
escorregou a outra mão até minha nuca, enterrando os dedos em
meu cabelo. “Moranguinho.”
Um sorriso involuntário surgiu na minha boca e fiz questão de
acabar com aquela distância entre nós de uma vez… até que ele
falou:
“Trouxe algo pra você.”
Abri os olhos, confusa, e o encarei. Vougan apenas indicou com a
cabeça na direção da porta, onde… onde sua mochila tinha sido
jogada, o zíper aberto, revelando…
“Você disse que queria uma caixa da próxima vez”, falou
enquanto eu olhava boquiaberta para a embalagem cor-de-rosa
grande e fechada de Moranguetes.
Voltei a encarar Vougan, perplexa… e dei risada.
“Você é impossível”, falei antes de, finalmente, colar minha boca na dele e cumprir seu
desejo de beijá-lo até que os dois estivessem sem ar.
E foi um beijo completo dessa vez. Assim como tudo que fizemos
depois.
Nossos uniformes jogados pelo chão, assim como uma certa
peça de roupa íntima feminina... meus dedos entrelaçados nos de
Vougan, segurando com firmeza contra o carpete... sua boca
passeando e explorando cada pedacinho de mim com beijos
lentos… a sensação do seu corpo no meu, a sensação dele em
mim, de todas as formas que se possa imaginar…
Completo.
Ah, minha nossa! Eu ainda não consigo acreditar que… que eu e
Vougan, nós…
Nós ficamos juntos. Ficamos juntos pra valer.
E, quando o êxtase passou, quando as cores brilhantes que eu
podia jurar que tinha visto no ápice daquele turbilhão de sensações
incandescentes cessaram, e veio a calmaria… ainda deitados sobre
o carpete, o braço de Vougan me envolvendo e mantendo junto de
si enquanto eu quase pegava no sono… ele começou a cantarolar.
Era uma melodia lenta e vagamente familiar, mas quando abri a
boca para perguntar que música era aquela, ele respirou fundo e
falou:
“Tá tarde. Temos que ir.”
Realmente estava. O céu já estava escuro quando saímos da
escola (pulando o muro das quadras de novo, pois todo o restante já
tinha sido trancado).
E eu tentei recusar, mas Vougan insistiu em me acompanhar até em casa, dizendo que
era perigoso voltar sozinha de ônibus naquele horário e sei lá mais o quê, mas eu tinha a
sensação de que ele queria atrasar aquela despedida o máximo possível. E fomos de
mãos dadas o caminho todo, os dedos dele se recusando a soltar os meus, e… foi bom.
Enfim, mas o fato é que o plano inicial seria que Vougan apenas
me deixaria na porta de casa, sã e salva como ele queria, e seguiria
seu caminho.
O que não aconteceu, claro, porque assim que paramos em frente
de casa, o portão se escancarou e minha mãe apareceu, histérica.
“Isso é hora de chegar em casa, Aurora?!”, exclamou de olhos arregalados. “Tem ideia
de como nós estávamos preocupados com você? Eu estava quase tendo um ataque do
coração, onde foi que você se meteu?”
Ah, se eu contasse onde realmente tinha me metido, levaria
uma chinelada na cabeça.
Comecei a inventar uma desculpa que não me ferrasse tanto, como o ônibus ter
quebrado no meio do caminho, mas Vougan foi mais rápido.
“Ela ficou até mais tarde na escola, senhora Ferrari. Estudando
harpa. Acho que Aurora perde a noção do tempo quando toca, mas
eu estava por lá também e me ofereci pra acompanhá-la até em
casa. Sabe, por segurança.”
E, sem discrição nenhuma, minha mãe o analisou de cima a
baixo. Como se fosse mesmo uma pessoa severa. Ou séria.
Mas a fachada se desfez assim que Vougan se apresentou,
daquele jeito descontraído e cheio de sorrisos sedutores. Até minha
mãe ele conseguiu enrolar na base da lábia.
“Ora, mas que amigo cavalheiro você arranjou, filha.” Os olhos
dela brilhavam.
“Tá mais pra um cavalo”, murmurei baixinho com sarcasmo. Mas,
inferno, Vougan ouviu.
“Você bem que gostou de montar nesse cavalo”, murmurou de
volta, aquele sorriso maldito curvando o canto da sua boca.
“Ora vamos, querido, vamos entrar”, minha mãe falou,
completamente alheia, antes que eu pudesse meter um pisão no pé
de Vougan.
“Obrigado, senhora Ferrari, mas não quero atrapalhar. Só queria ter certeza de que
Aurora chegaria bem.” Apoiou a mão nas minhas costas como quem não quer nada… mas
foi escorregando os dedos lentamente até a base, e tive que me segurar para não deixar
meu corpo reagir, e me manter imóvel.
“Pode me chamar de Ângela, meu bem. E não seja bobo.” Minha mãe abanou a mão
em dispensa. “Está na hora do jantar e vocês devem estar com fome. Vamos, é o mínimo
que podemos fazer em agradecimento. Aurora é tão desligada às vezes que não seria
nenhuma surpresa se ela passasse a noite em claro na escola sem nem perceber.”
Vougan, não contente com toda a vergonha que eu já estava
passando, me olhou pelo canto do olho com um sorriso nada menos
que satisfeito.
“Ela realmente parecia estar muito entretida.”
“Idiota”, tossi.
E, bem, Vougan não conseguiu — ou não quis — recusar o
convite, e ficou pro jantar.
Ele e meu pai se deram muitíssimo bem desde o primeiro contato
visual. Parecia que um completava a idade mental do outro.
Não que eu esteja falando mal dos meus pais, ambos são
pessoas incríveis, mas é que às vezes… eu não sei quem é o
adolescente rebelde da casa, eles ou eu. Mas até que os dois são
bem liberais. Claro, eles me proíbem de fazer qualquer coisa muito
inconsequente e zelam pela minha segurança, mas de uma forma
geral são bem tranquilos. Sem regras exageradas ou
conservadorismos sufocantes.
Eles me deixam ser, sabe… eu.
E, apesar dos meus protestos e argumentos sobre os pais de
Vougan ficarem preocupados, os dois insistiram que ele também
ficasse para passar a noite.
“É muito tarde pra voltar sozinho”, minha mãe falou. “Nós ligamos
e explicamos aos seus pais se for necessário.”
“Vamos, fique”, meu pai completou. “Amanhã vamos fazer churrasco no almoço, e você
está mais do que convidado a participar. Não, melhor dizendo, está intimado a estar
presente.”
A ideia de Vougan passar a noite em casa… na minha casa,
era… como posso explicar?
Me dava vontade de sair pulando de alegria por aí.
Mas eu não queria que ele se sentisse obrigado a ficar, não queria
que aceitasse só pela insistência dos meus pais quando, no fundo,
se sentisse incomodado. Então abri a boca pra dizer exatamente
isso a ele… mas não tive tempo.
“Se não for muito incômodo…”, Vougan falou com um sorriso
enorme, sem parecer nem um pingo incomodado. “Eu aceito.”
Então, aqui estamos nós.
Vougan, a essa altura, já deve ter se acomodado embaixo das
cobertas no sofá da sala lá embaixo, vestindo um conjunto de
moletom emprestado do meu pai.
É claro que não tenho expectativa nenhuma com relação a essa
noite, mas eu me pergunto… será que ele também está… pensando
em mim?
Porque, por mais que o dia tenha sido longo e cheio de reviravoltas, eu não consigo
parar de pensar em… mais cedo. Em como eu e Vougan cruzamos uma fronteira
importante. Em como nossa… amizade, relação, ou o que quer que exista entre nós…
mudou. Pra melhor, eu espero, mas agora tudo vai ser diferente e não tem como voltar
atrás.
Pra ser sincera, eu nem quero que volte. Mas também me assusta
o que pode acontecer no futuro.
E se ele se cansar de mim? E se descobrir que preferia as coisas
como eram antes? E se as mudanças forem muito drásticas entre
nós e ele começar a me achar desinteressante? Chata? Ou… se me
enxergar como eu realmente sou?
Uma birrenta tonta e inexperiente.
As possibilidades são infinitas. Mas…
Ai, meu Deus.
Por que Vougan está, neste exato momento, me observando com
um sorriso radiante da porta do meu quarto?
Capítulo 22
Sábado, 17 de maio
Tudo bem, eu disse que não tinha expectativas quanto a noite
passada, mas…
Ah. Meu. Deus.
Assim que percebi que Vougan estava ali me observando, fechei
o diário correndo e me virei para ele.
“O que tá fazendo aqui?”, perguntei, os olhos arregalados. A única
iluminação vinha da luminária de luz amarelada na escrivaninha.
“Achei que já estivesse dormindo. Lá embaixo”, acrescentei com a
voz baixa. Meus pais até podiam ser bem liberais, mas se
descobrissem que Vougan esteve no meu quarto tarde da noite…
acho que nem eles levariam isso numa boa.
Ainda mais se soubessem tudo que já tínhamos feito.
“Só queria desejar boa noite”, falou da porta, também em voz
baixa, e ainda sorrindo.
“Ah… boa noite”, falei sem jeito.
Vougan nem se mexeu.
“Você parecia bem concentrada. O que tá escrevendo?”
“Há quanto tempo você tá aí me espionando?”, falei ao invés.
Ele deu de ombros.
“Talvez uns cinco ou dez minutos. Ou mais, eu não sei. Fiquei…
curioso quando te vi escrevendo. Você ficou sorrindo a maior parte
do tempo.”
Meu rosto inteiro ferveu de vergonha e, de repente, o quarto
pareceu mais abafado que o normal.
“Não é nada, é só…” Empurrei o diário pro fundo da escrivaninha.
“Só um… passatempo.”
“Assim como suas composições?”
“Tipo isso.”
O sorriso de Vougan cresceu.
“Sei. Posso perguntar uma coisa?”
“Claro.”
“Eu apareço muito nesse seu… passatempo?”
Quase engasguei com a minha própria saliva.
“Bom saber”, ele falou sem esperar uma resposta.
“Convencido”, resmunguei, as bochechas vermelhas.
“Não, pelo contrário. Fiquei surpreso. E feliz.” Os olhos azul-
cinzentos reluziram à meia-luz. “De verdade.”
Baixei os olhos, meu rosto esquentando mais ainda, e encolhi os
ombros, sem graça.
“Eu só… não quero esquecer. De nada.”
O encarei por baixo dos cílios e… fiquei chocada. As bochechas
de Vougan também estavam coradas.
“Eu também não quero esquecer”, falou, quase um sussurro.
E ficamos ali por um tempo, ambos em silêncio.
“Não vai dormir?”, falei por fim.
“Eu… não quero”, foi a resposta, sinceridade pura carregando
cada sílaba.
Eu também não queria, apesar de sentir os músculos cansados.
E sabia que não devia, mas perguntei mesmo assim, brincando
com a caneta pra disfarçar o nervosismo:
“Quer entrar?”
Vougan hesitou, como se decidisse entre usar o bom senso ou…
não usar.
“Não quero causar problemas.”
Respirei fundo, apoiei a caneta e me levantei.
“Muito bem, então.”
Cruzei o quarto até ficar de frente pra ele do outro lado da porta…
e sentei no chão.
“Você não vem?” Apoiei as costas no batente e ajeitei a barra da
camisola de seda branca.
Vougan riu, mas sentou no chão também e apoiou as costas
contra a parede.
“Seu cabelo fica bonito assim”, falou depois de um tempo em que
ambos ficamos em silêncio, apenas nos encarando.
Involuntariamente, toquei um cacho escuro que tinha se soltado
do coque alto e volumoso, caindo pela lateral do meu rosto, e o
prendi atrás da orelha.
“Obrigada. É mais prático deixar assim quando tô em casa.”
“Está sempre impecável na escola. Dá muito trabalho?”
Soltei uma risada. Ah, se dava.
“Nada que uma boa finalização e muito creme de cabelo não
resolvam.”
Vougan sorriu, os olhos cintilando.
“Por que quer ganhar o concurso?”, perguntou após alguns
segundos. “O que te motiva?”
Franzi as sobrancelhas.
“Ganhar uma bolsa de estudos em Paris não é motivação
suficiente?” Dei risada.
“Justo.” Ele riu também.
“Mas por que pergunta? Você… tem uma motivação diferente?”
Seu sorriso foi diminuindo até sumir.
“Eu não diria que é uma motivação, mas… sim, tenho. Participar
do concurso, vencer, é meio que… uma tradição na minha família.
Ou algo assim.” Revirou os olhos.
“Tradição?” Franzi o cenho.
“Eu venho de uma família de músicos”, Vougan explicou. “Desde
que esse concurso existe, alguém da minha família participa. E
vence. Meu pai, apesar de não exercer mais a função, meus tios,
meus primos… agora meio que é a minha vez.”
“E você não queria participar?”, perguntei devagar.
Ele me olhou nos olhos, e parecia que o mundo inteiro pesava
neles.
“Sinceramente, eu não dou a mínima pra esse concurso. Eu gosto de tocar, gosto de
fazer música, mas ser forçado a competir é… uma merda. Mas perder de propósito
também não é uma opção”, acrescentou. “Minha família é próxima e mantém contato com
o diretor, tenho um primo que tá pra se formar no conservatório, então… eles estão de olho
em mim. No que eu faço em cima do palco. Então, dar o meu melhor e vencer é quase…
uma obrigação.”
“Sinto muito”, falei com sinceridade. Porque era tudo que eu podia oferecer naquele
momento. “Mas você toca muito bem, Vougan. Tem potencial pra vencer, e muito. Sua
colocação na primeira seleção... você ficou nervoso, só isso. Tenho certeza que a próxima
vai ser melhor, você vai ver. Então, sabe… não acho que tenha com o que se preocupar.”
Mas ele baixou os olhos, uma expressão de dor estampada em
seu rosto.
“Talvez seja isso que me preocupa.”
“Vencer?” Franzi a testa. “Como isso pode ser ruim?”
“Você não entende.” Sacudiu a cabeça. “A competitividade muda
as pessoas. O que aconteceu com o Marcus não foi nada, algumas
pessoas se transformam em verdadeiros monstros. Acredite, eu já vi
acontecer. Muitas vezes. E eu não quero…” Fechou os olhos,
respirando fundo. “Eu tenho medo de que isso aconteça comigo. Do
que eu posso me tornar. Tenho medo…” Abriu os olhos, olhando
diretamente para mim. “Tenho medo de me perder.”
Minha garganta fechou. E tive que piscar várias vezes para
clarear a visão.
“Isso não vai acontecer”, falei com o máximo de firmeza que
consegui. “Não vai.”
“Como pode ter certeza?” Sua voz estava baixa. Trêmula.
Estiquei a mão até alcançar a dele. E segurei com firmeza.
“Porque eu não vou deixar. Mesmo que seja desclassificada, eu
não vou sair do seu lado. Isso não vai acontecer”, repeti.
Vougan olhou das nossas mãos unidas de volta para o meu rosto,
seus olhos… temerosos, mas… com um brilho de esperança.
“Promete?”, sussurrou.
“Prometo”, sussurrei de volta e apertei seus dedos. “Aconteça o que acontecer, eu
sempre estarei aqui pra te mostrar o caminho de volta. Aos socos e metendo um chute
nessa sua canela fina, mas você entendeu o recado.”
Vougan engasgou uma risada.
“Não espero nada menos que isso.”
Sorri de volta, nossos dedos ainda entrelaçados, e apoiei a
cabeça no batente às minhas costas, os olhos começando a ficar
pesados.
“Foi a sua primeira vez?”, Vougan perguntou baixinho depois de
um tempo.
Meus olhos já estavam fechados, o sono me envolvendo mais a
cada segundo, mas consegui responder, a voz arrastada:
“Foi. E você?”
Ele demorou pra responder, ou foi o que pareceu no meu estado
semi-acordado, mas posso jurar que o ouvi sussurrar:
“Sim, você foi a primeira. E rezo que seja a única.”
A próxima coisa que me lembro é de estar na minha cama, dedos
carinhosos deslizando pela minha bochecha.
“Fica”, murmurei sonolenta debaixo do cobertor, alcançando às
cegas os dedos que começavam a se afastar, e os prendendo nos
meus. “Por favor.”
Ouvi Vougan suspirar, mas ele se ajeitou debaixo do edredom no colchão logo ao lado
da minha cama, o qual eu tinha, cautelosa e propositalmente, arrumado logo após o jantar.
Tudo bem, talvez eu tivesse criado alguma expectativa, afinal.
Mantive o braço esticado pra fora da cama, ainda segurando a
mão de Vougan. Ele não tentou se soltar de mim.
Pelo contrário, seus dedos começaram a acariciar os meus… e
ele começou a cantar. A mesma música de mais cedo.
E dessa vez eu reconheci a letra.

♪ I don't wanna close my eyes


I don't wanna fall asleep
'Cause I'd miss you, babe
And I don't wanna miss a thing

'Cause even when I dream with you


The sweetest dream would never do
I'd still miss you, babe
And I don't wanna miss a thing ♪
“Boa noite, Vougan”, murmurei, molenga e de olhos fechados,
mas com um sorriso estampado no rosto.
“Boa noite, Moranguinho”, ele murmurou de volta, nossos dedos
ainda entrelaçados bem firme, como o elo que agora nos unia.

“O que é que eles tanto conversam?”, murmurei, encarando as
costas de Vougan e do meu pai pela janela da cozinha, enquanto
mexia a panela de arroz.
Depois de um café rápido e tardio, meu pai pediu a ajuda de
Vougan com a churrasqueira, com o carvão e sei lá mais o quê. E,
antes que eu pudesse ir junto com eles, minha mãe me arrastou pro
fogão, pra ajudar com o restante da comida.
“Sabe como seu pai é.” Ela deu de ombros, temperando a salada, um cacho castanho
de cabelo escapulindo da trança e caindo em seu rosto. “Deve estar dando uma de
superprotetor e tentando botar medo no namorado novo da princesinha do papai.”
A colher caiu da minha mão e tilintou pesadamente pelo chão.
“Ele não é meu namorado”, engasguei, e me agachei para pegar.
E dona Ângela apenas me olhou de esguelha com uma
sobrancelha arqueada… e sorriu com astúcia.
“Sabe me dizer por que as roupas de cama que deixamos no sofá
pro Vougan permaneceram intocadas?”
Me ergui num salto com o susto, calculei errado e bati a cabeça
contra o armário da parede.
“Ele… deve ter acordado cedo e arrumado tudo”, sibilei com dor,
esfregando o topo da cabeça.
“E foi tirar um cochilo no seu quarto depois?” Minha mãe se virou
para mim, uma mão apoiada na cintura e um olhar de desafio no
rosto.
Ela sabia muito bem que eu estava tentando enrolar, mas queria
ver até onde iria.
“Você deixou a porta aberta”, completou por fim, os olhos
semicerrados.
“Tá, tudo bem.” Suspirei com derrota. “Ele dormiu no meu quarto,
mas não fizemos nada, eu juro.”
Porque já tínhamos feito antes, mas uma coisa não tinha nada a
ver com a outra.
“Só quero que tome cuidado.” Ela voltou pra comida. “Sei que
você é uma menina inteligente e responsável, mas também ainda
tem muito que aprender sobre… tudo. Por isso, por mais que esse
garoto pareça e seja uma boa pessoa, tome cuidado. Eu ainda sou
muito nova pra ser avó”, acrescentou, dramática.
“Tudo bem.” Revirei os olhos.
Terminei de ajudar com o restante dos preparativos para o almoço, fui até o banheiro
jogar uma água no rosto… e parei na frente do escritório no final do corredor, encarando o
grande instrumento lá dentro. E entrei.
Era mais minha sala de estudos particular do que um escritório de verdade, pois apesar
da estante de livros e da escrivaninha no canto da parede com o trambolho do computador
dos meus pais, que raramente entravam ali, era onde minha harpa ficava acomodada e
onde eu passava a maior parte do meu tempo livre quando não estava na escola.
O cheiro de churrasco já começava a entrar pela janela aberta,
fazendo meu estômago roncar, mas eu sabia que ainda levaria um
tempo até que tudo estivesse realmente pronto. Então, me
acomodei na cadeira estofada atrás do instrumento de madeira
coberto por verniz de um tom dourado, apoiei a caixa de
ressonância em meu ombro, fazendo aquele encaixe familiar e
perfeito do instrumento com o meu corpo, fechei os olhos, posicionei
as mãos nas cordas e… após alguns segundos assim, apenas
deixando a conexão entre mim e a harpa ficar mais forte… comecei
a puxar e dedilhar delicadamente as cordas, deixando aquele som
suave e angelical ressoar pelo cômodo, até dentro de mim.
Por um momento, pareceu que o mundo parou ao meu redor. Não
havia mais nada além da melodia da minha harpa, nem eu mesma.
Não era mais eu que estava no controle, era… a música. Ela que
me guiava, que me dizia pra onde ir ou o que fazer, me levando
cada vez mais fundo, mais alto e tornando tudo mais intenso e, de
alguma forma, ao mesmo tempo, mais leve.
Era como se os papéis tivessem sido trocados e eu agora fosse o instrumento, uma
mera ferramenta usada para reproduzir aquilo que o universo queria que fosse dito ou
transmitido ao mundo. Uma ponte entre o etéreo e o mundano.
E quando parei, quando minha alma estava, por fim, saciada e quase pude sentir meus
pés voltando a tocar o chão… ouvi um suspiro vindo da direção da porta.
“Isso foi lindo”, Vougan sussurrou ali parado, os olhos brilhando
feito duas pedras de água marinha. “Você… sua música… foi lindo.”
O sangue nas minhas bochechas esquentou em um piscar de
olhos.
“O-Obrigada”, gaguejei, as mãos suando de repente. Ele parecia
tão maravilhado, quase… hipnotizado.
“Toca de novo”, pediu, entrando no cômodo. “Por favor.”
“Ah… eu não sei, eu…”
“Por favor”, repetiu, quase implorando. “Pode ser qualquer
coisa, eu só quero… preciso te ouvir de novo. Por favor.”
E eu estava pronta pra recusar, mas… a urgência, o desespero
estampado em seu rosto…
“Você tá bem?”, perguntei com cuidado. “Meu pai disse ou fez
algo ruim?”
“Seu pai?” Franziu as sobrancelhas. “Não, de jeito nenhum. Ele
me tratou como um filho desde que cheguei aqui.”
Uma parte de mim se acalmou… e ficou feliz. Quentinha.
“Então o que foi?” Olhei de cima a baixo, procurando qualquer
coisa que pudesse estar errada. “Você não tá… no seu humor
habitual. Parece meio… angustiado.”
Vougan ficou em silêncio por alguns segundos. E suspirou.
“Quer saber por que aceitei passar a noite aqui sem nem pestanejar?”, falou por fim, se
sentando no chão diante de mim e cruzando as pernas.
“Por quê?”
“As coisas lá em casa… não estão muito bem”, murmurou de
olhos baixos, os cotovelos apoiados nos joelhos. “Meus pais… acho
que vão se divorciar.”
Eu não sabia o que dizer. Nem conseguia imaginar como ele devia estar se sentindo
naquele momento, só que devia ser muito ruim. Ainda mais com a pressão do restante da
família por causa do concurso.
“Sinto muito”, falei com o máximo de sinceridade.
Vougan deu de ombros.
“Se acham que vai ser o melhor pra eles, eu não ligo. Só não
quero mais ficar no meio das brigas, dos gritos, xingamentos e
discussões. Não é…” Hesitou por alguns segundos, e sacudiu a
cabeça. “Eu não desejaria isso a ninguém.”
Ver e ouvir coisas tão violentas das pessoas que te criaram e que
deveriam ser a sua maior referência de um relacionamento…
realmente não devia ser fácil.
E imaginar Vougan em um ambiente assim, logo ele que era
sempre tão alegre, sorridente e brincalhão… meu coração encolheu
dolorosamente dentro do peito.
Estiquei o braço até alcançá-lo, toquei seu queixo e ergui seu
rosto. Os olhos azul-cinzentos fixaram em mim, abalados.
Errado. Aquilo era tão errado...
Devagar, passei o polegar por sua bochecha lisa e quente, me
inclinei em sua direção… e beijei sua boca de leve.
Ele mal se mexeu, mas retribuiu meu beijo. Suave e simples, mas
cheio de significado.
“Aconteça o que acontecer”, sussurrei em sua boca, lembrando
da promessa.
Vougan assentiu e me beijou mais uma vez.
“Essa é a parte que você me chuta?”, perguntou de repente.
E não consegui segurar a gargalhada que escapou do fundo do
meu peito.
“Se for necessário.”
“Toca de novo”, voltou a pedir, segurando minha mão em seu
rosto.
E, droga, não consegui encontrar forças pra recusar.
“O que quer ouvir? Algum pedido especial?”
“O que você quiser. Qualquer coisa que tocar vai me deixar
hipnotizado, eu tenho certeza. Não consigo parar de olhar seus
dedos quando você toca.” Sorriu com… timidez.
Vougan sorriu com timidez.
Meu rosto e pescoço esquentaram como se eu fosse uma tocha.
E eu com certeza devia estar parecendo um pimentão.
Mas me aprumei na cadeira, ajeitei a harpa e voltei a posicionar
os dedos nas cordas. Vougan permaneceu em silêncio, esperando,
os olhos arregalados e brilhantes como os de uma criança em uma
loja de doces.
Eu não queria tocar qualquer coisa. Se Vougan estava passando por um momento
difícil, então eu queria que minha música ajudasse de alguma forma. Não apenas
entorpecendo ou tirando ele de órbita, mas que fizesse sentido. Que tivesse significado,
que… falasse com ele. Confortasse.
Fechei os olhos e respirei fundo, como sempre fazia pra me
concentrar… e, de repente, pensei na música perfeita.
Sorrindo, comecei a dedilhar as cordas, deixando que a
introdução suave de Sutilmente, do Skank, tomasse forma e
preenchesse a sala.
Vougan se aprumou, o reconhecimento iluminando seu rosto, e
abriu um sorriso enorme.
E eu não era cantora nem nada do tipo, mas comecei a cantar a
letra junto com a harpa mesmo assim, suave e baixinho para não
estragar a música, e olhei para Vougan pelo canto do olho. Ele
realmente parecia hipnotizado, alternando o olhar entre meu rosto e
minhas mãos, que se moviam com fluidez e elegância pelas cordas
do instrumento.
“Nunca quero esquecer esse momento”, falou baixinho assim que
a música acabou, olhando com atenção cada pedacinho de mim, da
harpa, da imagem como um todo. Como se estivesse gravando a
cena na memória.
“Eu também”, confessei ao ver seu sorriso radiante, e sentindo os
dedos trêmulos. “Também não quero esquecer.”
Capítulo 23
Parei com um solavanco no meio do corredor entre uma aula e
outra, engasgando com a minha própria saliva.
— Eles ficaram?! — exclamei com um sorriso enorme, o diário
quase grudado no nariz. — Ficaram e namoraram na sala de
ensaio?!
Finalmente!
Mas por mais que a minha vontade fosse sair pulando por aí,
infelizmente não tive tempo de comemorar a consolidação do casal
que eu tanto shippava nos últimos dias, porque…
— Quem fez o quê e onde?! — alguém gritou do nada, tão
engasgado quanto eu. Mas com muito menos animação e muito
mais severidade.
Olhei na direção da porta aberta da sala que eu tinha parado
bem em frente no corredor, e…
Ah droga, o professor De Lucca de novo!
De tantos lugares pra eu gritar aquele tipo de coisa, escolhi
fazer justo em frente à sala de orientação estudantil.
Muito bem, Julieta, você é uma bela de uma burra.
— Quem fez o quê e onde — ele repetiu devagar e com
firmeza, se levantando de sua cadeira atrás da mesa e vindo até
mim, paralisada no lugar e com os olhos arregalados igual a um
gato prestes a ser atropelado.
Me obriguei a me mover e escondi o diário nas costas. Mas eu
sabia que ele já tinha visto, por mais que não soubesse exatamente
do que se tratava.
— N-Não foi nada, p-professor. Eu s-só p-pensei alto, s-só isso.
Mas ele nem piscou.
— Você já tentou me enrolar uma vez, e eu deixei passar —
falou, as narinas dilatadas e os olhos severos. — Mas agora chega
de brincar, Julieta. Se souber de alguma coisa sobre alunos
quebrando as regras da escola, diga de uma vez. Ou vai acabar se
metendo em uma bela encrenca.
Apertei o diário contra as costas, considerando falar logo a
verdade, mas… sabia que assim que abrisse a boca, ele seria
confiscado de mim.
Ah, eu já estava metida em tantas encrencas, uma a mais com
certeza não faria muita diferença.
— Eu não sei de nada, professor — falei com o máximo de
sinceridade que consegui. — Eu juro, não tava falando de nada nem
ninguém daqui.
Ou daquela década.
— Você disse claramente que ficaram e namoraram na sala de
ensaio. Sobre o que mais poderia estar falando? — O professor De
Lucca semicerrou os olhos.
Engoli em seco.
— É só… — Apertei o diário com mais força, quase cravando
as unhas na capa de couro. — S-Só… um… um livro — falei por
fim, minha voz saindo mais aguda do que eu gostaria.
O professor revirou os olhos, impaciente.
— Não me venha com essa enrolação de História da
Independência de novo, Julieta.
— Não é enrolação. É mesmo um livro, só que… de romance.
— Romance? — Arqueou uma sobrancelha, desconfiado.
— Sim, ué. Tenho 16 anos e praticamente zero vida social. O
que tem de tão errado assim numa adolescente com uma realidade
quase miserável se distrair um pouco com um romance fictício?
Será que pelo menos essa normalidade eu posso ter na minha vida?
Os olhos do professor De Lucca estavam arregalados. E me dei
conta de que era a segunda vez em poucos dias que eu tinha batido
de frente com ele.
Mas dessa vez… não me senti tão culpada. Porque o que eu
tinha dito… não era tão mentira assim. Na verdade, a sensação era
a de tirar um peso do peito.
— Eu… não foi o que eu quis dizer. — O professor parecia em
choque. Mas endireitou os ombros, se recompondo. — É claro que
você pode ler… romances — falou a palavra como se ela fosse um
alienígena. — Só tome cuidado com o tipo de conteúdo romântico
que você consome, Julieta. Algumas coisas não são apropriadas pra
uma garota da sua idade.
Encarei meus pés, os lábios contraídos. Aquilo eu não podia
rebater, por mais que achasse besteira.
— Pode deixar, professor. Prometo que vou tomar cuidado.
— Bom. — Vi pela visão periférica que ele enfiou as mãos nos
bolsos da calça. — E eu posso saber o nome desse livro?
Ergui a cabeça num salto, os olhos quase pulando pra fora.
— O nome? Mas p-p-p-p-p-por quê?
— Quero saber do que se trata — falou simplesmente. — Pode
não parecer, mas me interesso muito por livros de ficção. Até
mesmo romances. — Exibiu um sorrisinho de canto de boca,
claramente um desafio. — Vamos. Diga.
— Ah… — Dei um, dois passos para trás. — O nome é… A
Sonata Proibida — inventei qualquer coisa e saí correndo.
— Julieta! — o professor De Lucca chamou com firmeza, mas
eu já estava longe. — Julieta, esse livro não existe!
— Existe sim! — Sacudi o diário acima da cabeça e continuei
correndo, sem olhar para trás, até virar no corredor e sumir de vista.

ʄʅ
Ouvi aquele som suave e acolhedor de cordas dedilhadas,
vindo de uma das salas de aula no fim do dia, e o segui. Era a
mesma melodia que tinha atraído a minha atenção no meu primeiro
dia ali no conservatório e, quando parei diante da porta entreaberta,
um sorriso se formou em minha boca assim que vi a figura lá dentro.
— Sabia que é feio ficar escutando atrás da porta? — Richard
falou de costas para mim, como da outra vez, um leve tom de humor
acentuando sua voz.
— Como você sempre sabe? — Abri mais a porta e me recostei
na batente. — Eu tento não fazer nenhum barulho.
Ele riu e apoiou o violão no colo.
— Seu chaveiro. — Se virou na cadeira e apoiou o braço no
encosto, apontando minha mochila. — Ele faz barulho enquanto
você anda, dá pra te ouvir a metros de distância. Acho que você tá
tão acostumada que nem escuta mais.
Baixei os olhos e encarei a pelúcia de tubarão-martelo
pendurada. Cinza e branco, ele tinha o tamanho da minha mão
aberta e um sininho dentro. Era um chaveiro antigo que ganhei de
presente da minha mãe na infância, e que vivia grudado comigo
desde então. Eu o chamava de Bob.
— Acho que tem razão. — Dei risada e sacudi o tubarão, o
sininho tilintando, suave. Voltei a encarar Richard. — Posso
perguntar uma coisa?
Ele apenas inclinou a cabeça de leve, esperando.
— Você conhece uma música chamada… — Parei, tentando
me lembrar. — Sutilmente? — falei devagar, incerta se tinha dito o
nome certo.
Richard ficou me encarando por alguns segundos.
— Do Skank? — falou por fim, as sobrancelhas franzidas. —
Claro que sim. Você não?
Corei, meu sangue esquentando até o pescoço, e comecei a
retorcer os dedos.
— Não. Aurora menciona ela no diário, mas… eu nunca ouvi.
Você pode… tocar pra mim?
Richard ficou em silêncio por alguns segundos, apenas me
olhando, até que… sorriu.
— É claro. Mas só se você cantar junto comigo.
Arregalei os olhos.
— Cantar? M-Mas eu não conheço a letra.
— Ela é fácil, vem. — Acenou com a mão e voltou a pegar o
violão, se ajeitando. — Eu canto a primeira parte e você me
acompanha depois.
Aquilo não ia dar certo. Eu nem sabia se sabia cantar direito.
Mas entrei na sala, suspirando, larguei a mochila no chão e ocupei a
cadeira de frente para Richard.
Ele riu, sacudindo a cabeça, esticou o braço… e puxou minha
cadeira, até que eu estivesse ao seu lado.
— Assim é melhor — falou ainda sorrindo e começou a tocar,
mal me dando tempo para me recompor, dura e rígida no lugar.
Mas quando ele começou a cantar… toda a minha atenção e o
meu foco foram para Richard e seu violão.
O acompanhamento era suave e… bem-humorado. Gostoso de
ouvir. Como uma tarde ensolarada em um parque, a brisa leve e
fresca fazendo as folhas das árvores farfalhar e dançar. E a letra…
Além de tocar muito bem, Richard também tinha uma voz
incrível, grave e suave, melodiosa e quente. E combinada à letra da
música, simples e ao mesmo tempo ousada… eu tive uma reação
diferente em cada verso.
E quando eu estiver triste, simplesmente me abrace — eu sorri,
tímida.
Quando eu estiver louco, subitamente se afaste — arqueei as
sobrancelhas, surpresa.
Quando eu estiver fogo, suavemente se encaixe — arregalei os
olhos e corei, queimando de vergonha.
Richard deu risada, mas continuou tocando e cantando, fluido,
leve e… divertido. Contagiante.
— Vai, canta comigo — falou após o primeiro refrão.
E, bom, eu tentei acompanhar. Me atrapalhei um pouco com o
jogo de palavras da segunda estrofe, mas consegui pegar no
embalo quando chegou de novo no refrão.
Eu simplesmente amei a música. E me perguntei como
consegui ficar tanto tempo sem nem saber de sua existência.
Imaginei Aurora tocando os acordes e dedilhados do
acompanhamento na harpa, e o brilho no olhar de Vougan ao ouvi-
la. Deve ter sido uma cena e tanto. Deve ter sido um momento
perfeito entre eles. Assim como estava sendo… entre Richard e eu.
Leve, descontraído, natural. Certo. Tão, tão certo.
— Posso saber o que estão fazendo aqui sozinhos? — uma voz
grave falou de repente, me fazendo pular de susto e Richard parar
de tocar abruptamente.
Ambos olhamos na direção da porta… e encontramos o olhar
duro do diretor, parado com uma mão na maçaneta da porta, agora
escancarada.
— Só ensaiando — Richard falou com rispidez, se recompondo
bem mais rápido que eu. — Ou é proibido fazer isso em um
conservatório de música?
O diretor apenas continuou, inabalável:
— Ensaios devem ser feitos nas salas de ensaio. Com
agendamento, e sob a supervisão de um inspetor. Assim evitamos
qualquer tipo de… tramoias de alunos espertinhos. — Me encarou
com um sorrisinho.
— Tá insinuando o quê? — Richard rebateu, os olhos
semicerrados e a mandíbula tensa.
— Sabe muito bem, sr. Lobo. Sugiro que os dois saiam logo
daqui. Vocês têm cinco minutos até que eu mande alguém vir
conferir.
Richard revirou os olhos, mas o diretor não falou mais nada e
saiu, os passos duros e firmes ecoando pelo corredor.
— Vamos — falou para alguém conforme se afastava, e passos
apressados se juntaram aos dele.
Corri para a porta, bem a tempo de vê-los virar a esquina do
corredor e desaparecer de vista. O diretor e… o professor De Lucca,
logo atrás.
E ele deve ter me ouvido, porque se virou para mim um
segundo antes de desaparecer, com uma expressão confusa e
assombrada nos olhos arregalados. Como se tentasse entender o
que quer que tivesse visto ou ouvido.
— Dá pra acreditar nisso? — Richard resmungou, guardando o
violão na capa preta. — Tramoias de alunos espertinhos. Ah, me
erra! De onde ele tirou essa agora?
Mordi o lábio, incerta. Aquela desconfiança podia muito bem ser
culpa minha, pela cena que tinha causado com o professor De
Lucca mais cedo.
Será que era por isso que ele tinha me olhado daquele jeito?
Porque estava preocupado que a desconfiança do diretor fosse
verdadeira?
— Só vamos… sair logo daqui — murmurei, me afastando da
porta e indo até onde tinha largado minha mochila. — O que você
tava tocando quando eu cheguei? — falei, ajeitando as alças e
tentando mudar de assunto. — Parece que você gosta mesmo
daquela música, faz tempo que a toca sem parar.
— Ah, aquilo? — Seu semblante suavizou. — Não é nada, é
só… digamos que é um presente pra alguém.
Arqueei as sobrancelhas.
— Um presente? Acho que nunca vi uma música como um
presente antes, no máximo uma serenata, mas… é bem criativo.
— E tem uma letra. Quer ouvir?
Pisquei uma, duas vezes.
— Não gaste seu presente comigo — murmurei, as bochechas
quentes. E o coração repentinamente apertado. — Vai ser mais
especial pra pessoa se ela for a primeira a escutar.
— Tenho certeza de que ela não vai se importar. — Richard
sorriu, despreocupado. — A música não é minha, então várias
pessoas já escutaram antes. Minha execução que é a surpresa
principal, na verdade.
— Não sei se entendi.
— Nem precisa — riu, e sacou o celular do bolso. — E então,
quer ouvir? — Fixou os olhos de avelã nos meus, um convite e um
desafio.
— Tá, claro. — Minha voz saiu mais trêmula do que deveria.
Paramos no meio do corredor e Richard colocou a música pra
tocar no Spotify, mas evitei encarar seus olhos enquanto ouvia.
Meu coração parou. A letra…

♪ Sabe aquela pessoa que é quase perfeita?


É simples e fofa, é profunda, é poesia
Aquela pessoa que te faz sorrir
De manhã até de tardezinha
Sabe entrar e sair de qualquer coração
Mas deixando sua boa impressão… ♪

Era claramente uma declaração de amor. E ouvir aquelas


palavras, aquela poesia cantada de uma forma tão simples, mas
ainda assim tão profunda… foi como se um enxame de borboletas
voassem em meu estômago.
Mas elas logo caíram e morreram assim que me lembrei que
aquelas palavras, que aquela música… era pra outra pessoa.
Se você gosta dele e ele de você, por que ainda não rolou
nenhum beijinho?, Jéssica me perguntou certa vez.
Eu nem sei se ele gosta mesmo de mim, foi a minha resposta.
Bom, agora eu sabia. Por mais que minha garganta se fechasse
e minha vontade fosse sair correndo aos berros e lágrimas… pelo
menos agora eu sabia.
— E então, o que achou? — Richard perguntou, pausando a
música após o primeiro refrão.
Engoli meu coração de volta.
— É… É linda. Pra quem… você vai cantar essa música?
Richard sorriu. Um sorriso que era puro orgulho… e carinho.
— Pra mulher mais importante da minha vida.
As palavras me acertaram como um tapa na cara. Mas um tapa
teria doído menos.
— Ela é uma mulher de sorte, sem dúvida — me forcei a dizer
com um caroço na boca da garganta.
Algumas coisas não são apropriadas pra uma garota da sua
idade, as palavras do professor De Lucca me vieram à mente, tão
corrosivas quanto ácido.
Uma garota. Era o que eu era. Eu não passava de uma
garotinha ingênua.
Não importava se o que tinha acabado de acontecer entre nós
dois, tocando e cantando aquela música, parecesse ser… qualquer
coisa romântica e estúpida.
Eu era apenas uma garota. E Richard estava apaixonado por
uma mulher.
— Tudo bem? — ele perguntou, me olhando com preocupação.
— Você murchou de repente. Tá passando mal?
— Não, eu só… — Virei o rosto, me recusando a encarar seus
olhos. — Eu tenho que ir. Vou me atrasar pro trabalho.
Apertei as alças da mochila com força e saí correndo dali, o
sininho do meu chaveiro tilintando sem parar.
Encarei Bob, o tubarão, com raiva por cima do ombro.
Uma garota. Uma garota tonta e infantil, era o que eu era.
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale

Appassionato: Termo de origem italiana; indicação musical que


aparece na partitura, designando uma interpretação feita de maneira
apaixonada, ardorosa, fortemente sentimental.
Capítulo 24
— E seu avô, como tá? — Jéssica perguntou, já devorando um
de três pães de queijo enormes empilhados em seu prato.
— Bem. Se recuperando e mais reclamão que nunca, mas bem.
— Mexi a espuma do cappuccino com a pazinha transparente de
plástico, distraída.
— E na escola, tudo bem? — murmurou de boca cheia.
Apenas assenti com a cabeça ainda olhando minha xícara, a
bochecha apoiada em um punho.
— E o concurso?
Dei de ombros.
— A segunda seleção vai ser só no fim do mês, daqui a duas
semanas. Até lá, a única coisa que posso fazer é estudar, estudar e
estudar. — Coisa que eu fazia dia após dia após dia.
— Então… nenhuma novidade? — Jéssica insistiu.
Apenas franzi as sobrancelhas, assoprei a bebida quente e
beberiquei. E não respondi.
Jéssica tinha me convidado pra tomar café da manhã antes da
aula, em um dos lugares mais famosos da cidade, o Marquês
Cafeteria. E eu não conhecia muito bem os detalhes sobre os
proprietários, mas o nome do café não me passou despercebido.
Eu ainda não tinha conseguido falar com Clarice sobre Aurora.
Ela estava em uma das muitas viagens em sua agenda profissional
e, por mais que sempre respondesse minhas mensagens quando
podia, aquele era um assunto que eu queria falar cara a cara. Ainda
não sabia ao certo quando ela voltaria pra capital, sua nova casa,
mas sabia que ainda demoraria algumas semanas.
Reprimi um bocejo, ainda sonolenta, beberiquei mais um pouco
do cappuccino e mordisquei meu pão na chapa com manteiga,
quase me derretendo com o sabor e agradecendo mentalmente
minha amiga por me levar ali. Eu tentei recusar num primeiro
momento, pelo motivo óbvio — falta de verba —, mas Jéssica
insistiu, reforçando a palavra convite. Disse que queria satisfazer os
desejos alimentícios da gravidez e botar o papo em dia, apesar de
nos encontrarmos todo final de semana, e que tudo ficaria por sua
conta.
Mas olhando nossa mesa, repleta de salgados e doces, todos
dela… eu tinha a leve impressão de que o primeiro motivo era a sua
verdadeira missão ali.
Então apenas continuei comendo e bebendo, com cuidado para
não queimar a língua, mas…
— Ah qual é, Julieta, me conta alguma coisa! — resmungou,
indo para o segundo pão de queijo.
Ergui os olhos para ela, confusa. A iluminação amarelada da
lâmpada baixa que pendia logo acima das nossas cabeças, uma
das várias decorações rústicas e acolhedoras do lugar, reproduzia
uma coloração cobre no cabelo vinho da minha amiga — e na raiz
escura que já começava a despontar.
— Hã?
— Quer mesmo que eu olhe pra essa sua cara de enterro e
acredite que tá tudo bem?
— Eu não tô com cara de enterro.
— Ah, não? — Jéssica inclinou a cabeça e fez uma careta nada
menos que deprimente. — Triste, né? Pois é exatamente assim que
você tá. Então, lamento, mas vai ter que fazer melhor se quiser me
enrolar. Anda, desembucha.
Suspirei.
— Acho que eu só tô… cansada.
E Jéssica devia me conhecer bem, ou eu era muito óbvia,
porque falou com cuidado:
— Cansada de quê, Ju? Ou… de quem?
Respirei fundo e fechei os olhos.
— A gente pode… não falar sobre isso? Sei que você só quer
ajudar, Jéssica, e agradeço, mas… eu realmente não quero falar
disso agora.
— Certo — ela murmurou, descontente. — Mas sabe que pode
me contar qualquer coisa, né? As coisas podem estar difíceis, e
pode não ter muito que eu possa fazer pra ajudar, mas… se precisar
de algum conselho, um abraço, ou só desabafar… — esticou a mão
até segurar a minha — sabe que eu tô aqui pro que precisar.
— Eu sei. — Apertei sua mão de volta. — Eu sei, é só que… sei
lá, acho que ainda é muito cedo. Não sou a melhor das companhias
quando acabo de acordar — ri, mas sem humor.
— Posso servir mais alguma coisa a vocês duas, meninas? —
Uma mulher bonita com um rosto familiar falou com um sorriso
educado, se aproximando de nós. Ela usava um avental preto
amarrado na cintura e os cabelos castanhos, com alguns fios já
grisalhos, estavam presos em um coque frouxo no topo da cabeça.
Jéssica exibiu um sorriso enorme e realmente parecia prestes a
pedir mais comida, mas consegui ser mais rápida.
— Não, estamos bem. — Sorri de volta para a mulher, que
devia ser a proprietária do café. — Mas tá tudo uma delícia,
obrigada.
— Se precisarem, é só chamar. — Piscou um olho e deu uma
batidinha na plaqueta pendurada em sua blusa, com o nome
Lucinda gravado.
— Se meu filho nascer com cara de croissant... — Jéssica
resmungou de cara amarrada assim que a mulher saiu — a culpa é
toda sua.
— Tenho certeza que tem um perdido em algum lugar nessa
montanha no seu prato — retruquei com um sorriso debochado. —
Além do mais, todo recém-nascido tem cara de croissant. Mas como
tá o bebê? Já sabe se é menino ou menina? — Voltei a bebericar o
cappuccino que, meu Deus, estava uma delícia.
— Ainda é muito cedo. — Ela suspirou, limpando os farelos que
tinham caído em sua blusa azul-marinho. — Só dá pra saber a partir
da 13ª semana de gestação. Eu ainda tô entrando na quarta
semana. — Fez beicinho e passou a mão na barriga ainda reta. —
Mas o bebê tá bem. Estou fazendo todos os exames e seguindo
todas as recomendações médicas à risca. Ele, ou ela, vai crescer
forte e saudável, certo bebê? — Esfregou a barriga com carinho, me
fazendo sorrir.
— E Elias, como vão as entrevistas de emprego? Já achou
alguma coisa?
Jéssica fez uma careta.
— De novo, muito cedo pra saber. Ele tá fazendo uma
entrevista atrás da outra, mas nenhuma empresa respondeu ainda.
Acho que essa é a pior parte, sabe. Esperar. Mas tenho certeza que
ele vai achar alguma coisa, é muito inteligente e habilidoso com
qualquer coisa em que coloque as mãos. — Arqueou as
sobrancelhas e exibiu um sorrisinho malicioso.
Bati a xícara na mesa, quase engasgando com a bebida
quente.
— Eu podia ingerir meu café da manhã sem ter ouvido isso. —
Fiz uma careta.
— Enquanto isso… — Jéssica continuou, inabalável, e
começou a picar o terceiro pão de queijo… em cima de uma fatia de
torta de morango — continuamos com nossa agenda normal e
lotada de compromissos e eventos. A espera pode ser a parte
chata, mas não temos do que reclamar. — E começou a devorar
aquela gororoba.
Enruguei o nariz, tentando mentalizar que aquilo ainda era
muito melhor do que ver minha amiga comendo terra ou tijolo, como
eu sabia que algumas grávidas faziam quando tinham desejos
estranhos.
— E por falar nisso… — acrescentou de boca cheia, limpando o
canto do lábio com o dedo — temos um velório nesse fim de
semana. Guarde sua cara de enterro até lá.
Franzi as sobrancelhas, mas soltei uma risada.
— Seus conselhos são os mais animadores, Jéssica, obrigada.
Ela apenas exibiu um sorrisinho e assoprou um beijo para mim
antes de voltar a misturar os doces e salgados em uma lambança
só.

ʄʅ
O sinal da troca de aulas bateu, mas nem me mexi.
No conservatório cada aula acontecia em uma sala diferente,
mas no período da manhã, quando as aulas normais do colégio
ocorriam, eram os professores que iam de uma sala a outra. E, bem,
tínhamos acabado de ter aula de filosofia, então eu não conseguiria
me mexer nem se quisesse. Estava ocupada demais quase caindo
no sono pra prestar atenção em qualquer outra coisa ao meu redor.
Até que…
— Psiu — alguém chamou, alto o suficiente para que eu
entreabrisse os olhos sonolentos.
E quase dei um pulo na cadeira quando vi quem me chamava.
O que Vitor estava fazendo ali, só com a cabeça e metade do
corpo aparecendo na abertura da porta entreaberta e… me olhando
com urgência?
— Vem cá — sussurrou entre dentes, os olhos arregalados.
Eu realmente não esperava vê-lo àquela hora. Raramente via
qualquer um dos meus colegas do conservatório pelos corredores
do colégio, a quantidade de alunos no período da manhã era muito
maior.
Olhei ao redor, confusa, procurando a pessoa por quem ele
chamava. Porque não podia ser eu.
Mas só encontrei um grupinho de garotas atrás de mim olhando
Vitor de esguelha, cochichando e dando risadinhas de bochechas
coradas.
— Será que dá pra vir logo, Julieta? — o garoto meio
sussurrou, meio grunhiu da porta, impaciente.
Cambaleei até ele, ainda meio sonolenta e confusa, mas assim
que cheguei perto o suficiente, Vitor me puxou pra fora da sala. As
garotas lá dentro arquejaram.
— O que você quer? — resmunguei assim que ele me soltou,
no meio do corredor. — Meu próximo professor vai chegar logo, e se
me ver fora da sala vou levar bronca.
— Por que acha que fiquei te apressando? — Revirou os olhos.
— Bom, e então?
Vitor hesitou por um momento.
— Eu… queria te perguntar uma coisa.
— O quê? — perguntei devagar, desconfiada, e cruzei os
braços.
Ele parecia genuinamente nervoso. Ansioso.
— O que um cara teria que fazer… pra agradar uma menina?
Apenas encarei Vitor, piscando igual uma tonta e com a boca
entreaberta.
— Como é que é? — falei por fim, pasma.
— Você disse uma vez que eu deveria demonstrar a uma
garota que gosto dela. Como uma… — fez uma careta — boa
pessoa. Bom, como eu faço isso?
Quase um minuto inteiro se passou antes que eu conseguisse
encontrar capacidade pra responder.
— Ah… eu… não sei. Por que você não pergunta pros seus
amigos?
Vitor se remexeu, desconfortável.
— Pedro vai rir da minha cara se eu sequer tocar no assunto. E
Giovanna… — Desviou o olhar, encarando os próprios pés. — Bom,
ela já riu.
Me lembrei de quando ele discutiu com a sobrinha do diretor
após a reunião da segunda seleção do concurso, e a deixou falando
sozinha… rindo.
Então era disso que eles falavam? Vitor foi pedir ajuda e ela
simplesmente riu na cara dele?
Meu coração encolheu. Que coisa horrível de se fazer com
alguém que você chama de amigo.
— Bom… acho que não existe uma regra pra isso — falei sem
jeito. — Mas… tenta descobrir o que ela gosta, como… sei lá, livros,
flores, chocolates.
— E isso funciona mesmo? — Vitor arqueou uma sobrancelha.
— Tem certeza?
— Com a Aurora funcionou — murmurei baixinho, me
lembrando dos Moranguetes.
E, bem, comigo também tinha funcionado, ainda que sem
querer. Quando Richard apareceu pra ver se eu estava bem durante
os ensaios da primeira seleção, se assegurando de que eu não
desmaiasse de fome ou desidratação.
Sacudi a cabeça e mandei aquela lembrança pra longe, junto
com o aperto no peito.
— Mal não vai fazer — falei, voltando a encarar Vitor. — E tenta
demonstrar interesse pelas coisas que ela gosta também, acho que
isso ajuda. Ela vai gostar de compartilhar isso com você.
— Ela gosta de filmes de terror — murmurou, os olhos distantes
e pensativos.
Engoli em seco e exibi um sorriso trêmulo.
— Sério?
— E documentários de serial-killers vestidos de palhaço.
Ah, meu Deus.
— Que gosto… peculiar o dela — ri de nervoso.
Vitor piscou e ergueu a cabeça de repente, como se uma luz o
tivesse iluminado.
— Acho que eu já sei o que fazer. Obrigado Julieta, você me
ajudou muito. — Estendeu a mão grande e encaixou na minha
cabeça, bagunçando meu cabelo. — Eu te devo uma!
— Ah, isso é sério mesmo? — resmunguei tentando ajeitar os
fios enquanto ele se afastava. — Vitor! — chamei antes que
sumisse de vista.
O garoto de cabelos loiros parou e me olhou por cima do
ombro.
— Essa garota… é a Mariana, não é?
Mas ele apenas riu daquele jeito debochado e falou com o
desdém de sempre:
— Tá querendo saber demais, bonequinha.

ʄʅ
— Julieta... — Richard sussurrou, ocupando o lugar bem de
frente para mim em uma das longas mesas de estudos na
biblioteca. — Psiu. Ei, Julieta.
Comprimi os lábios e engoli um resmungo, mantendo os olhos
nas minhas anotações.
O professor De Lucca tinha juntado duas turmas diferentes na
biblioteca para a pesquisa de um trabalho. A minha sala era uma
delas e a de Richard, a outra — o que incluía também todos os
outros participantes do concurso.
Tinha pelo menos quinze minutos que ele tentava fazer com
que eu o olhasse. E quinze minutos que eu o ignorava
completamente.
Não tive uma conversa de verdade com Richard desde que ele
me mostrou aquela música. Mas não era por estar brava com ele,
nem nada do tipo. Eu simplesmente… não conseguia. Não agora
que sabia que ele estava apaixonado… por outra pessoa. Claro, ele
tinha esse direito, mas eu não era do tipo que conseguia disfarçar e
agir como se nada tivesse acontecido quando algo me incomodava.
E, nesse caso, o incômodo se tratava de nada menos que um
coração ferido.
Eu precisava de um tempo pra assimilar tudo. E pra aceitar. Só
isso.
O problema é que Richard não fazia a menor ideia da
turbulência que se passava dentro de mim e tentava a todo custo
chamar a minha atenção.
— Psiu — sussurrou mais alto e entre dentes. — Julieta!
Ora, mas que saco.
— O que foi? — grunhi e lancei o olhar mais irritado que
consegui.
Richard parou, os olhos arregalados. Provavelmente não
esperava aquela reação de mim.
— Qual o problema? — voltou a sussurrar. — Você tá estranha
hoje. Aconteceu alguma coisa?
Suspirei pelo nariz com força.
— Não. Só tô tentando me concentrar. — Indiquei os livros ao
meu redor na mesa. — E você devia fazer o mesmo, ou vai levar
uma bronca. — Voltei a fazer anotações em meu caderno.
— Tem mais alguma coisa, eu sei disso. — Richard esperou
uma resposta, mas após alguns segundos de completo silêncio,
bufou. — E é difícil me concentrar em qualquer coisa que seja com
você assim.
Arqueei as sobrancelhas, mas não ergui os olhos para ele.
— Não sei o que quer dizer com isso.
— Sabe muito bem o que quero dizer — resmungou de volta.
Revirei os olhos, fazendo com que ele grunhisse todo
irritadinho, e senti um movimento atrás de mim.
— Mariana? — murmurei baixinho ao me virar e encontrá-la
engatinhando pelo tapete, perto da minha mochila. — Tá fazendo o
quê?
— Ah… — Ela me olhou de baixo, os olhos grandes
arregalados e o rosto levemente pálido. — Nada, eu só… um grafite
da minha lapiseira caiu e eu… não tô conseguindo achar.
— Precisa de ajuda?
— Não, não precisa se incomodar. Eu tenho mais, não se
preocupe comigo. — Começou a engatinhar de volta, desajeitada e
com pressa, até seu lugar no fim da mesa.
— Vitor falou com você? — perguntei antes que ela se
afastasse o suficiente para não conseguir me escutar.
Mariana parou com um solavanco, quase perdendo o equilíbrio.
— Vitor? — exclamou um sussurro por cima do ombro com uma
careta confusa. — Não, por quê?
Avistei o garoto alto e loiro do outro lado, também no fim da
mesa. Ele tentava aparentar concentração, olhando o professor com
cautela pelo canto do olho, mas vez ou outra digitava e rolava a tela
do celular sem parar, como se sua pesquisa de verdade estivesse
acontecendo ali.
— Nada — falei por fim. — Nada, eu devo ter me enganado.
Não precisa mesmo de ajuda?
Ela esboçou um sorriso debochado e abriu a boca para falar,
mas…
— O que foi? — Richard perguntou, esticando o pescoço e
tentando enxergar o que estava acontecendo. — O que tem aí?
Voltei a olhar na direção de Mariana… mas ela já tinha sumido.
E a encontrei se ajeitando em seu lugar, de volta ao fim da mesa.
— Nada. — Evitei o olhar de Richard e apenas voltei a enfiar a
cara nos livros. — Não foi nada.
Eu podia sentir seus olhos em mim, tão intensos que quase
queimavam, mas após alguns minutos assim ele finalmente desistiu,
bufando feito um touro raivoso.
Mas ao final da aula, quando sinal do intervalo bateu e todos
recolheram suas coisas e se dirigiram ao mesmo tempo para a
saída da biblioteca, tentei me embrenhar no meio do aglomerado de
alunos pois sabia que Richard viria atrás de mim.
— Julieta! — ele chamou, bem como eu tinha previsto.
Ignorei e continuei me enfiando entre a massa de alunos
apressados, aproveitando que era baixinha e magricela pra poder
avançar mais rápido.
— Vão com calma — o professor De Lucca falou das enormes
e pesadas portas duplas, monitorando o movimento. — Sem
empurrar. Vocês têm tempo suficiente pra aproveitar o intervalo, não
sei pra quê tanta pressa.
— Julieta! — Ouvi de novo por cima da balbúrdia, mas apenas
continuei me espremendo em toda e qualquer abertura que
encontrava.
Quase lá… quase lá…
Finalmente consegui passar pro lado de fora e praticamente
empurrei os que estavam na minha frente, quase correndo pra longe
dali.
Mas não fui muito longe.
— Espera aí. — Richard me puxou pelo braço, me fazendo
parar antes que conseguisse sumir de vista.
— O quê? — bufei, frustrada.
— O que tá acontecendo com você hoje? — Parou na minha
frente, me segurando pelos ombros enquanto o corredor ficava cada
vez mais lotado de alunos que saíam de suas salas. Me afastei, me
livrando de seu toque. Richard pareceu magoado. — Julieta, o que
foi? Eu… fiz alguma coisa errada?
Comprimi os lábios com força e desviei o olhar.
— Não — me limitei a dizer, fazendo uma força absurda para
não começar a retorcer os dedos.
— Você mente muito mal.
— E por que acha que isso tem alguma coisa a ver com você?
— Porque você nem consegue me olhar. Me diz, Julieta, o que
foi que eu fiz de tão ruim assim?
Fechei os olhos, tentando controlar a respiração e os nervos.
Mas Richard não queria colaborar.
— Diz de uma vez, o que foi que eu fiz? — insistiu, impaciente.
— Julieta, olha pra mim. Me diz o que tem de errado com…
— Por que não me contou que estava apaixonado?! — explodi
de repente, incapaz de continuar me segurando.
Richard parou e arregalou os olhos, em choque.
— O… O quê?
Minha respiração estava trêmula.
— Por que não me contou de uma vez? Acha que manter isso
em segredo, depois de todo esse tempo, foi justo comigo? Achou
que eu não ia descobrir alguma hora? Sinceramente, você
realmente me acha tão ingênua assim?
Ele piscou algumas vezes, petrificado, antes de conseguir dizer:
— Eu… não sabia como você ia reagir. Tive medo de…
estragar nossa amizade.
Amizade. Era tudo que existia entre nós. Nunca passou disso
pra ele.
E eu devia estar muito alterada, pois apesar de toda a minha
irritação, ri com deboche.
Mas meu coração doía. Doía muito.
— Devia ter me contado desde o início — falei, sem conseguir
disfarçar a mágoa na voz.
— E isso é tão ruim assim? — Richard falou, tendo a audácia
de parecer tão magoado quanto eu. — Eu estar… apaixonado. Isso
estraga tudo?
Ri de novo, mas o que saiu foi um som quebrado.
— Teria me poupado tempo. E um coração ferido. — O encarei,
e o que vi ali… desolação pura.
— Foi sem querer — sussurrou, dor carregando cada sílaba. —
Quando me dei conta… já tinha acontecido.
Comigo também. E eu achava que isso era uma coisa boa, que
a sensação era boa. Algo que nasceu e floresceu aos poucos, com
cuidado, mas que agora… me partia em mil pedacinhos.
Agora eu daria tudo para simplesmente parar de sentir.
Respirei fundo e me obriguei a engolir aquele caroço que subia
cada vez mais na boca da garganta, embaçando minha visão.
— Acho que o melhor agora é cada um seguir seu caminho —
falei com o máximo de controle que consegui.
Richard não respondeu. Apenas ficou ali parado com uma
expressão arrasada no rosto, como se o mundo ao seu redor tivesse
desabado.
E, tentando dar sentido às minhas próprias palavras, me pus a
andar, passando por ele e me afastando de uma vez.
— Achei que você sentia o mesmo — falou de repente por cima
do ombro.
— O quê? — Voltei para ele com os olhos arregalados, ao
mesmo tempo em que alguém trombava comigo com força, me
derrubando no chão junto com minha mochila, que eu não reparei
que estava aberta, espalhando todos os meus pertences pelo chão.
— Opa — Giovanna falou com um sorrisinho inocente, parada
bem ao meu lado e me olhando de cima. — Desculpa por isso. Você
devia tomar mais cuidado por onde anda. — Acenou e me lançou
uma piscadela, retomando seu caminho.
Bufei enquanto a olhava se afastar, sabendo muito bem que
tinha feito aquilo de propósito.
— Eu te ajudo. — Richard se aproximou correndo, já se
agachando para recolher minhas coisas.
— Não precisa — falei com rispidez, ajuntando tudo em um
amontoado à minha frente antes que os outros alunos pisoteassem
meus pertences.
— Deixa eu pelo menos te ajudar.
— Já disse que não precisa! — exclamei, o mau humor
crescendo mais a cada segundo.
— Julieta, tudo bem? — o professor De Lucca apareceu,
olhando a bagunça ao meu redor.
— Foi só um acidente — resmunguei empilhando os livros,
cadernos e, minha nossa, o diário. Já estava irritada o suficiente, a
última coisa que precisava agora era botar mais lenha na fogueira
por causa de Giovanna e suas provocações.
E, antes que eu pudesse recusar, o professor se agachou e
começou a recolher os objetos menores que tinham ido parar mais
longe, e que eu ainda não tinha alcançado.
— Isso — falou de repente com um tom ríspido e ao mesmo
tempo curioso que me fez erguer a cabeça, alerta — é seu,
senhorita Julieta?
Senhorita. O professor De Lucca só usava esse tipo de
tratamento quando estava prestes a encurralar algum aluno.
Ergui os olhos para o que ele tinha em mãos, ajoelhado a
poucos passos de mim, mas não reconheci a embalagem.
— Não sei. — Apertei os olhos, tentando enxergar melhor.
Parecia um pacotinho preto e verde que, eu podia quase jurar,
nunca tinha visto na minha vida.
— Julieta... — Richard sussurrou, ajoelhado ao meu lado,
pálido e com os olhos arregalados em completo choque para o que
quer que fosse aquilo nas mãos do professor De Lucca. — O que
significa isso?
Pisquei, confusa.
O professor ficou em pé e caminhou lentamente na minha
direção, os olhos azuis duros e severos como eu nunca tinha visto
antes e, podia apostar, não ia querer ver de novo.
— Pode me explicar o que isso fazia no meio das suas coisas?
— perguntou devagar e com a voz grave, fria e controlada enquanto
parava bem na minha frente e estendia o objeto na altura dos meus
olhos.
Franzi as sobrancelhas enquanto lia as palavras na
embalagem, sem entender, e…
Meu. Bom. Deus.
Meu coração parou de bater e meus olhos quase pularam para
fora do rosto enquanto meu cérebro processava aquelas palavras.
Prudence Neon…
Aquilo era… uma embalagem de preservativos. Que, de alguma
forma, tinha ido parar dentro da minha mochila.
— Julieta — o professor De Lucca falou, duro, como se fosse
uma ameaça.
Engoli em seco, tão alto que o som quase ecoou pelo corredor.
Nunca, na minha vida, eu estive tão encrencada quanto agora.
Capítulo 25
— Precisamos ter uma conversa séria — o professor De Lucca
falou, fechando a porta da sala de orientação. — Muito séria,
senhorita Julieta.
— Eu não faço ideia de como isso foi parar na minha bolsa,
professor — me apressei em dizer, porque durante todo o trajeto até
ali ele mandou que eu ficasse calada. — Eu juro, eu… isso não é
meu!
— Sente-se — se limitou a dizer, ocupando seu lugar atrás da
mesa.
Respirei fundo, tentando acalmar os nervos apesar de estar à
beira de um ataque de pânico, e me sentei.
— Se isso não é seu… — apontou a embalagem preta e verde
em cima da mesa, como a prova de um crime — então como explica
o fato de que estava no meio das suas coisas?
Bom, era uma ótima pergunta!
— Eu… não sei. Juro, professor, eu não faço ideia, mas… não
é meu. O senhor me conhece, sabe que eu jamais teria algo a ver
com… isso. — Olhei o pacotinho com uma careta. — Nem com isso,
nem nada que envolva isso. Nada.
— Sabe o que eu sei? — Me encarou de olhos semicerrados.
— Que nos últimos dias você tem demonstrado atitudes e
comportamentos fora do comum. No começo eu até poderia achar
absurda a ideia de que você sequer pensaria em fazer uma coisa
assim, mas agora… eu realmente não sei o que pensar, Julieta. E
isso não é nada bom — acrescentou, grave.
— Como assim? — perguntei devagar, minha voz mal
passando de um sussurro.
O professor De Lucca se inclinou sobre a mesa, me olhando
atentamente.
— Você faz alguma ideia do que isso implica, Julieta? Esse
assunto é grave. Meu dever, como professor e orientador, é levar a
questão até o diretor.
Engoli em seco. Eu não estava gostando nada daquilo.
— Você pode ser desclassificada do concurso por causa disso
— continuou. — Pior… pode ser expulsa.
Não.
— Por favor, não faz isso — implorei, trêmula, entrando em
desespero. — Eu não posso ser expulsa, não posso… o que eu vou
fazer? Tudo depende de mim nesse concurso, eu não posso ser
desclassificada, não posso ser expulsa. Meu avô… a cirurgia… —
Meus olhos se encheram de lágrimas e respirar ficou difícil. —
Como eu vou pagar? Eu não tenho como… eu não tenho dinheiro o
suficiente, eu não… o que eu vou fazer?
— Julieta, se acalma — o professor falou, a voz mais suave e
uma expressão confusa e preocupada no rosto. — Por favor.
Respira.
Como eu podia respirar? Ia ser expulsa por algo que nem fiz,
não tinha como provar minha inocência e tudo pelo que eu estava
lutando, todo o meu esforço pra conseguir me manter firme no
concurso, pra conseguir pagar a cirurgia do meu avô, ia pro ralo.
Então como ele podia esperar que eu simplesmente
respirasse?!
— Julieta! — exclamou com firmeza, se inclinando sobre a
mesa e me segurando pelos ombros.
Parei, meus olhos arregalados e embaçados encarando o rosto
do professor.
— Respira — ordenou.
Tentei obedecer. O ar entrou aos tropeços pela minha boca.
— De novo. Puxa pelo nariz e solta pela boca.
Obedeci. De novo e de novo.
— O que aconteceu com seu avô? — o professor perguntou
delicadamente assim que me acalmei, e me soltou.
Precisei de quase um minuto inteiro pra botar os pensamentos
em ordem enquanto continuava me concentrando em manter a
respiração… mas contei tudo ao professor De Lucca. Sobre o infarto
do meu avô, a cirurgia de emergência, a falta de dinheiro apesar de
ter dois trabalhos, e como vencer o concurso era a minha única
opção.
— Entendo — foi tudo que ele disse assim que terminei.
— Por favor, não me expulse — implorei baixinho, as mãos
tremendo.
— Eu não tenho esse poder, Julieta. — Se recostou na cadeira,
esfregando os olhos cansados. — Quem decide esse tipo de coisa é
o diretor.
— Então… não conta pra ele — pedi, mesmo sabendo o óbvio.
— Eu não posso esconder algo assim dele — o professor falou,
apenas para confirmar. — Mesmo que não seja por mim, isso vai
chegar a ele em algum momento. Eu lamento, mas não posso fazer
nada.
— O senhor precisa me ajudar. — Agarrei as quinas da mesa.
— Por favor, professor. Aplique a punição que achar mais justa, mas
por favor… não me deixe ser expulsa.
— Ou desclassificada? — acrescentou. — Como qualquer
punição vai ser justa dessa forma, Julieta?
Me afastei da mesa, recostando na cadeira e deixando meus
ombros caírem.
— Então segundas chances só valem pra sobrinha do diretor,
né? — murmurei, os olhos baixos.
— O quê? — O professor De Lucca franziu o cenho e arregalou
os olhos. — Como assim?
— Nada. — Dei de ombros. — Faça o que o senhor achar
melhor, professor.
Ele ficou em silêncio por bastante tempo.
— Talvez... — falou devagar — haja algo que eu possa fazer.
Ergui os olhos, alerta.
— O quê?
— Se eu falasse com algum responsável, pra ter certeza de que
você… sua rotina, seus atos… estão sendo bem-supervisionados
fora da escola, então talvez… talvez não precisemos tomar medidas
tão drásticas.
A fagulha de esperança que se acendeu em mim voltou a
morrer.
— Mas… eu não tenho ninguém além do meu avô. O senhor
não pode estar dizendo que quer que ele venha até aqui.
O professor De Lucca franziu as sobrancelhas.
— Sinto muito.
— Mas… ele ainda tá se recuperando da cirurgia! E se pensar
que eu tive algo a ver com… isso… — fiz uma careta praquela
coisa. Era capaz que meu avô tivesse outro infarto só de olhar a
embalagem.
— Se não tiver mais ninguém, Julieta, então é o único jeito. —
O professor comprimiu os lábios, bem ciente de que a situação era
delicada.
Não. Não, não, não, não, não, essas não podiam ser as minhas
únicas opções.
Ser expulsa da escola ou matar meu avô do coração de vez.
Não, eu precisava de outra saída. Outra alternativa. Tinha que
ter uma, as coisas não podiam simplesmente acabar daquele…
Sabe que eu tô aqui pro que precisar, as palavras me vieram à
mente de repente, me dando uma luz.
Palavras que foram ditas a mim naquela mesma manhã.
— Professor — falei, quase engasgando —, na verdade… tem
uma pessoa.
O professor De Lucca apertou os olhos de leve, desconfiado.
— Quem?
Situações críticas pedem medidas desesperadas.
— Minha tia. — A mentira escorregou pela minha língua. — Ela
não mora aqui na cidade, mas tá de visita. Por favor, deixe que ela
fale com o senhor ao invés do meu avô. Por favor.
O professor levou alguns segundos para responder, pensando.
Considerando.
— Qual é o nome dela?
Respirei fundo.
E comecei a falar detalhadamente da minha querida,
responsável e protetora tia Jéssica.

ʄʅ
— Eu não acredito que realmente estou aqui! — Jéssica
exclamou com um sorriso enorme e de queixo caído, olhando tudo
ao seu redor por detrás dos óculos escuros, maravilhada. — Eu
devo estar sonhando. Meu Deus, alguém me belisca porque eu com
certeza estou… Ai!
— Foi você que pediu. — Elias se fez de sonso após beliscar a
cintura da esposa.
Graças aos céus, os dois tinham aceitado vir ao meu socorro.
Assim que pintei todo o cenário para o professor De Lucca —
de como, há um mês, minha tia preocupada tinha vindo de tão longe
pra cuidar de mim e me ajudar com meu avô doente —, ele pediu o
número do celular dela.
Dei com o coração na mão, mas minha amiga devia ter um
sexto sentido porque assim que atendeu a ligação e o professor se
identificou, dizendo que se tratava de um assunto do Colégio São
Patrício, Jéssica entrou no papel sem nem pestanejar.
— Vamos, é por aqui. — Guiei os dois para dentro do prédio e
segui de volta até a sala de orientação. — Vocês não fazem nem
ideia de como sou grata por me ajudarem com isso. Sério, quase
me pegaram pelo pescoço dessa vez.
— O que aconteceu? — Jéssica perguntou, erguendo os óculos
até o topo da cabeça e afastando os cabelos cor de vinho do rosto,
a bolsa pendurada em seu braço chacoalhando. — Por que seu
professor acha que eu sou sua tia?
— Porque eu disse que você era. — Suspirei. Eu não tinha
tempo suficiente pra explicar tudo. — Olha, é uma longa história,
mas por favor, aconteça o que acontecer... não acreditem em uma
só palavra do que ele disser a vocês, tá?
Meus dois amigos arregalaram os olhos, em choque.
— Mas… — Elias começou, mas chegamos na sala de
orientação, onde o professor De Lucca esperava. Bem na porta.
— Me perdoem pelo incômodo, sr. e sra. Cardoso — falou,
cumprimentando os dois. — Mas eu não teria pedido que viessem
até aqui se não fosse sério.
Elias me olhou de relance, provavelmente pensando no que eu
tinha dito sobre não acreditar no professor, e tendo sérias dúvidas,
mas Jéssica tomou a dianteira, tirando os óculos da cabeça e
jogando o cabelo ondulado para trás, sorrindo e fazendo charme.
— Imagine, professor De Lucca! Nós agradecemos a
preocupação e estamos ao seu dispor. — Me abraçou pelos ombros
com a força de uma tia babona de verdade. — Qualquer problema
da nossa querida Julieta é nosso problema também. — Alargou o
sorriso e piscou os olhos de cílios longos.
— Pega leve — murmurei entre dentes, forçando um sorriso
amarelo.
— Não enche, esse é o meu momento de brilhar — murmurou
de volta, a bochecha colada na lateral da minha cabeça.
Atrás de nós, Elias suspirou profundamente como se pedisse
socorro.
— Bom, vamos entrar — o professor falou, completamente
alheio à encenação. — É melhor conversar lá dentro. Por favor… —
Indicou o interior da sala, dando espaço.
— É claro. — Minha amiga me soltou, toda sorrisos, e entrou
requebrando na sala do professor De Lucca, seguida de perto por
Elias que, eu desconfiava, tentava manter a bunda da esposa fora
de vista.
Fui atrás dos dois, suspirando e torcendo muito para que as
coisas dessem certo pelo menos uma vez na minha vida.
Meu Deus!, Jéssica fez com os lábios, a boca escancarada,
indicando o professor De Lucca com um sorriso malicioso.
Foco, respondi, também sem som, me sentando na cadeira
entre ela e o marido.
— Bom, vamos direto ao assunto. — O professor voltou a
ocupar seu lugar atrás da mesa, cruzando as mãos cobertas de
cicatrizes sobre o tampo. — Ultimamente a Julieta tem andado…
com comportamentos estranhos. Comportamentos que não
condizem com as diretrizes do colégio. Eu não duvido do caráter
dela, sei que é uma boa garota e tira ótimas notas, mas a minha
preocupação é que ela esteja… confundindo as coisas — falou com
cuidado.
— Confundindo como? — Elias semicerrou os olhos verdes de
leve.
— Ela me contou tudo que está acontecendo com o avô. E sei
que, apesar da idade, Julieta já tem uma carga e tanto nos ombros,
dividindo seu tempo entre escola e trabalho. Há momentos em que
ela precisa agir e pensar como uma adulta, eu entendo, mas isso
não muda o fato de que ainda é apenas uma adolescente. E há…
coisas que ainda são inapropriadas pra idade dela.
— Entendo — Jéssica falou, ajeitando a bolsa com cuidado no
colo, mas não parecia estar entendendo nada. — E de que coisas
estamos falando exatamente, professor?
O professor De Lucca respirou fundo, provavelmente se
preparando para o escarcéu que aquela reunião estava prestes a se
tornar, e tirou da gaveta a coisa inapropriada pra minha idade,
depositando com cuidado em cima da mesa, bem na minha frente.
Jéssica arquejou de um lado, engolindo um palavrão, e Elias,
do outro, quase engasgou.
— Isso estava dentro da mochila da Julieta — o professor falou,
se recostando na cadeira. Ou se afastando do campo minado.
— Não é meu! — insisti, encarando minha amiga nos olhos e
quase implorando. — Por favor, vocês precisam acreditar em mim.
Eu não faço ideia de como isso foi parar lá, alguém deve ter tentado
me sabotar.
Jéssica me olhou com os olhos arregalados e as sobrancelhas
franzidas, em choque.
— Julieta, chega — o professor De Lucca falou, no entanto. E
voltou a atenção para meus supostos tios. — Sei que vocês
entendem como isso é grave. E quais medidas teríamos que tomar
como instituição. Por isso mesmo eu queria saber de vocês, como é
o convívio com ela dentro de casa, se notaram alguma mudança em
seu comportamento, com quem a Julieta tem andado nos últimos…
— Julieta, sua burra! — Jéssica exclamou de repente, quase
saltando da cadeira.
Todos pararam, os olhos arregalados.
— O quê? — perguntei lentamente, minha voz mal saindo.
— Perdão, professor… — ela falou, pegando a bolsa e
começando a mexer lá dentro, frenética — mas aconteceu um
terrível engano.
— Aconteceu? — balbuciei, alerta.
— Que tipo de engano? — o professor De Lucca falou com
cautela, uma sobrancelha arqueada.
— Julieta se confundiu. Eu a levei pra tomar café hoje antes da
aula, e quando estávamos indo embora ela me pediu uma… bala.
Eu disse que tinha na bolsa e que ela podia pegar à vontade
enquanto fui pagar a conta, mas a Julieta é tão desligada que não
deve ter percebido o que acabou pegando.
— Hã? — Fiz uma careta.
— O que ela realmente devia ter pego era… isso. — Tirou um
pacotinho de balas de menta da bolsa, assustadoramente parecido
com a… outra embalagem.
Mas aquilo tudo era mentira. O que ela tava tentando fazer?
— Coelhinha? — Elias murmurou com cuidado, olhando de
esguelha.
— Então... — O professor De Lucca arqueou as sobrancelhas,
olhando Jéssica atentamente. — O que está tentando dizer, sra.
Cardoso, é que…
— Isso — minha amiga pegou aquele diabinho neon nas mãos,
um sorriso amarelo estampado na cara lavada — é meu.
O quê?!
Tive que me segurar para não fazer nenhum movimento em
falso que delatasse a mentira. Ao meu lado, Elias ficou imóvel.
— Quero dizer… — Jéssica continuou — é nosso. Não é,
querido? — Encarou o marido com as sobrancelhas arqueadas,
uma ordem para que ele entrasse na dela.
— É… — Ele franziu as sobrancelhas, encarando o pacote nas
mãos da esposa como se fosse uma bomba. — Claro que é nosso.
Agora que você falou, querida, eu… reconheci a embalagem.
— Queríamos tentar algo novo — Jéssica emendou, voltando
para o professor De Lucca, seu sorriso tremendo levemente. — E eu
sempre quis saber como era… sabe… brilhando no escuro. —
Engasgou as últimas palavras.
— Somos fãs de Star Wars — Elias completou tentando
segurar a risada, pra fechar com chave de ouro.
Eu apenas olhava de um a outro, sem entender absolutamente
nada.
Star Wars e… preservativos?
— O que uma coisa tem a ver com a outra? — murmurei com
uma careta, para ninguém em especial.
Elias engasgou de vez, mas Jéssica aproveitou a oportunidade.
— Tá vendo, coitada. — Sacudiu a cabeça para enfatizar. —
Nem sabe pra quê serve, ela não entende dessas coisas. — Enfiou
a embalagem na bolsa. — Eu lamento muito por esse mal-
entendido, professor, mas a Julieta realmente não fez nada de
errado. Foi um descuido meu e assumo total responsabilidade.
Eu tinha tantas perguntas, e tive que segurar a língua com
força, mas fiquei quieta.
O professor De Lucca apenas escutava tudo com um misto de
confusão, incredulidade e… uma vontade quase incontrolável de rir.
— Bom… — falou depois de um tempo, esfregando os olhos e
comprimindo os lábios. — Se foi isso mesmo que aconteceu, então
não há mais nada a ser dito, eu espero. Está liberada, Julieta. Pode
voltar pra sua sala.
Meu coração deu um salto e me inclinei mais sobre a mesa, os
olhos arregalados.
— Sério? Eu… posso mesmo, professor?
Ele deu de ombros.
— Claro. Apenas tome mais cuidado da próxima vez —
acrescentou assim que me levantei, quase pulando. — E, por
favor… tente ficar longe de problemas.
Ah, eu bem que tentava.
— Pode deixar, professor — falei mesmo assim, incapaz de
segurar o enorme sorriso de alívio. — Prometo que vou me
comportar.
— Tudo bem. Peço desculpas pela confusão. — Olhou meus
dois amigos, que também se levantavam.
— Nós é que pedimos desculpas — Jéssica falou, ajeitando a
bolsa no ombro. — E vamos ficar mais atentos também. Isso não vai
se repetir, eu garanto. — Me olhou sugestivamente. — Certo,
Jujuba? Vamos conversar um pouquinho lá fora?
Ah, é claro que ela não ia deixar aquilo barato pra mim. Jéssica
ia me interrogar até cansar sobre como aquela coisa tinha ido parar
na minha mochila. Bem que eu queria saber também.
Mas forcei um sorriso mesmo assim.
— É claro. Com licença, professor De Lucca. Vou levar meus
tios até a saída.
— Claro, fiquem à vontade. — Gesticulou com a mão.
— Foi um prazer, professor. — Elias cumprimentou o professor,
tentando manter a fachada séria, mas louco para sair logo dali. —
Com licença. — E me seguiu até o corredor do lado de fora da sala.
— Por favor, nos avise se acontecer qualquer outra coisa com a
Julieta — Jéssica falou, apertando a mão do professor De Lucca
também. — Não somos seus tutores legais, mas nos preocupamos
muito com ela. Se precisar, é só chamar — acrescentou com
sinceridade.
— É claro, sra. Cardoso. — O professor sorriu daquele jeito
galante. — Não tem com o que se preocupar.
— Jéssica. — Elias se empertigou ao meu lado, claramente
enciumado. — Temos que ir.
Minha amiga assentiu e seguiu para a porta, mas parou de
repente e voltou para o professor.
— Eu nunca testei esse aqui, sabe se é bom? — perguntou do
nada, tirando a embalagem de preservativos da bolsa.
— Jéssica! — Elias bradou, o rosto quase roxo.
— Tá, deixa pra lá. — Ela encolheu os ombros e marchou porta
afora.
Elias agarrou sua mão e tratou de afastar a esposa dali, mas
não sem antes lançar um olhar enviesado ao professor De Lucca.
Olhei para ele do corredor, pronta para pedir desculpas por
aquilo, mas o professor apenas continuou lá sentado e… deu risada.
— Essa foi por pouco, Jujuba — falou, os olhos brilhando com
diversão.

ʄʅ
— Uau, é tudo tão lindo! — Jéssica suspirou, os olhos grandes
e castanhos arregalados olhando tudo ao redor. — Eu nunca pensei
que um dia realmente teria a oportunidade de ver esse lugar tão de
perto.
Eu tinha levado meus dois amigos para um tour no
conservatório, pois sabia que minha amiga sempre amou aquele
lugar. E já estava muito atrasada pra assistir a última aula mesmo,
então decidi que não faria mal usar o restante do tempo pra mostrar
tudo aos dois.
— Sabe que eles disponibilizam vários cursos gratuitos, né? —
voltei a insistir, mesmo sabendo sua resposta ensaiada.
— Ah, eu não tenho mais tempo pra isso, Ju. — Passou um
dedo nos arabescos de gesso da moldura de uma das janelas no
corredor, distraída. — Ainda mais agora com um bebê a caminho.
Encarei meus pés e comprimi os lábios, sem saber o que dizer.
Porque, apesar de entender que aquilo era verdade, também sabia
que uma parte de Jéssica ansiava por viver aquilo tudo. Por viver
naquele mundo, repleto de música o dia todo, em todos os lados.
Mas ela e Elias casaram muito jovens e, por mais que visse em
seus olhos que ela não se arrependia de nada nem por um
segundo, não mudava o fato de que Jéssica teve que fazer uma
escolha na época: se dedicar à carreira musical ou ao casamento. E
ela escolheu Elias.
Claro, eles tinham dado um jeito de conciliar as duas coisas, os
dois viviam de tocar em eventos e dar aulas particulares de música,
mas eu sabia que não era a mesma coisa. Suas rotinas eram
agitadas, sempre na correria e com cada centavo contado. E era
arriscado também, pois a perda de um aluno sequer afetaria sua
renda.
Em seu interior, eu sabia que aquela não era a vida que Jéssica
tinha planejado para si quando mais nova. Mas também sabia que
ela não teria feito diferente se tivesse uma segunda chance. Era só
olhar para o modo como ela e Elias olhavam um para o outro, amor
e companheirismo preenchendo cada centímetro do sorriso de
ambos, e dava pra saber.
Um pequeno preço a se pagar pra poder viver ao lado do meu
melhor amigo, ela me disse um dia, quando perguntei por que ela
não correu atrás do seu sonho de ser uma violinista famosa.
E talvez eu ainda fosse muito nova para entendê-la de verdade,
mas… ainda acreditava que Jéssica merecia viver seu sonho.
Acreditava que ela podia ter as duas coisas. Só não sabia ainda
como ajudá-la com isso.
— Obrigada por me salvar hoje — falei com sinceridade,
erguendo os olhos para o seu perfil, iluminado pelos raios de sol que
entravam pelas janelas, o cabelo vinho ganhando uma tonalidade
vermelho-vivo. — Sei que vocês dois são ocupados, mas eu não
sabia mais o que fazer.
Elias tinha ido buscar o carro para evitar que Jéssica tivesse
que andar muito no caminho de volta, de modo que estávamos
sozinhas ali no corredor.
— Imagina, Ju. Nunca negaríamos ajuda, sabe disso. Mas já
que tocou no assunto… — Se virou para mim com as sobrancelhas
arqueadas, interesse puro carregando suas palavras. — Quer me
explicar como foi que você se meteu nessa confusão?
Gemi, me recostando na pilastra mais próxima.
— Eu não faço ideia! Sério, eu juro que não sei como aquela
coisa foi parar na minha mochila.
— Acha que alguém botou lá dentro de propósito?
— Só pode ser — bufei. — E eu até posso imaginar quem. —
Me lembrei com desgosto do momento que Giovanna trombou em
mim no corredor, me derrubando no chão. Não ficaria nem um
pouco surpresa se descobrisse que foi naquele momento que ela
conseguiu a proeza de colocar a embalagem na minha bolsa, mas
infelizmente eu não tinha como provar.
— O que quer dizer com isso? — Jéssica apertou os olhos de
leve. — Tem alguém te perseguindo aqui na escola, Julieta? —
falou, e o tom em sua voz não era nada além de uma mãe-ursa
pronta para defender o filhote. — Quem é? Ainda aquela garota? Me
diz agora e a gente resolve esse problema com apenas um tapão
bem dado na cara.
Eu não duvidava nem por um segundo das palavras da minha
amiga, mas a situação era um pouco mais complicada do que
aquilo. Por isso comecei a enrolar uma mentira qualquer, mas bem
na hora…
— Ei baixinha, eu tava te procurando. — Vitor apareceu,
ofegante e carregando uma sacola azul de plástico, as alças quase
arrebentando pelo conteúdo pesado lá dentro. — Preciso da sua
opinião sobre uma coisa.
Jéssica deu um passo à frente, um sorriso enorme e os olhos
brilhando.
— Você é o Richard que eu tanto ouvi falar?
Quase engasguei.
E Vitor, olhando minha amiga de cima a baixo com uma careta
que expressava nada menos que puro choque, falou:
— Tá me estranhando, tia?
Jéssica arquejou, os olhos arregalados e o queixo escancarado.
— Tia?! — exclamou horrorizada.
— Hoje você é uma, lembra? — sussurrei entre dentes,
segurando seu braço e forçando um sorriso.
— Ah, mas o contexto aqui é bem diferente, pode apostar —
grunhiu, fervilhando.
— Bom, esse não é o Richard e é melhor você esquecer essa
história. — Pigarreei e ergui a voz. — Esse é o Vitor, ele é um…
colega. — Era estranho me referir a ele como alguém relativamente
próximo. Antes eu pensava em Vitor apenas como um empecilho,
alguém de quem manter distância, mas de repente ele realmente
começou a se mostrar ser alguém… decente. Quase.
Mas não aos olhos da minha amiga, ainda ofendida, que
apenas o olhou com superioridade — apesar de ser menor que ele
— e empinou o nariz.
Suspirei.
— Eu já volto. — Deixei Jéssica ali, indo até a próxima pilastra
com Vitor.
— Segui seu conselho e comprei uma coisa — ele foi falando
—, mas quero saber se você acha que vai dar certo.
Cruzei os braços e encolhi os ombros.
— E por que você acha que eu tenho tanta experiência assim
sobre o assunto pra saber?
Vitor deu de ombros.
— Você é uma garota, não é?
— Bem observado.
— É só o que eu preciso saber. A opinião de uma garota. Sobre
um presente pra outra garota. — Estendeu a sacola aberta.
Suspirei pelo nariz e estiquei a cabeça, olhando lá dentro. Havia
um livro. Um livro enorme, mais grosso que a Bíblia, de capa branca
e a cara de um palhaço horroroso com manchas de sangue no lugar
do cabelo.
— Acha que ela vai gostar? — Vitor perguntou, ansioso.
Ergui o olhar até seu rosto com cuidado. Ele ainda ofegava um
pouco e gotinhas minúsculas de suor brotavam em sua testa,
umedecendo os cabelos loiros.
— Você matou aula pra ir comprar um presente? — Porque o
sinal do fim do dia ainda não tinha batido e os corredores estavam
desertos, todos os alunos ainda em suas salas.
Vitor trocou o peso entre os pés, a sacola ainda estendida.
— Eu fui em uma livraria aqui perto durante o intervalo, mas o
livro tava esgotado lá. Então tive que ir procurar em outra no centro
da cidade, mas… era mais longe.
Um sorriso começou a se formar em meu rosto, mas segurei o
impulso.
— Isso foi… muito legal da sua parte, Vitor. Você levou isso a
sério mesmo.
Ele franziu o cenho, levemente confuso.
— É claro que levei. Mas então, o que você acha? — insistiu,
erguendo mais a sacola. — Ela vai gostar ou não?
Dei mais uma olhada lá dentro. Aquele palhaço era mesmo
horrível.
— Ela vai adorar — falei, no entanto, com sinceridade.
Bom, pra quem gosta de filmes de terror e documentários de
serial-killers vestidos de palhaço, aquele parecia mesmo ser o
presente perfeito.
Vitor soltou o ar com força, parecendo aliviado.
— Ainda bem, porque essa coisa custou caro.
Dessa vez não consegui segurar o sorriso. Ao fundo, o sinal da
última aula bateu.
— Posso perguntar uma coisa? — falei antes que ele fosse
embora. Aquilo atiçava a minha curiosidade há dias. — Como vocês
se conheceram? Você e a… Mariana.
Ele piscou, surpreso com a pergunta e, devagar, baixou a
sacola, os olhos perdidos no livro lá dentro. E, ao contrário do que
eu pensei, não negou minha afirmação sobre a identidade da
garota.
— Temos uma… amiga em comum. Elas já eram melhores
amigas quando as conheci, mas… eu tinha me metido em confusão,
uma das feias, e essa amiga ajudou a livrar a minha cara. Nos
aproximamos depois disso, e foi quando conheci Mariana. — Vitor
soltou uma risada. — Ela era um verdadeiro pé no saco, uma
esquisita com gostos mais esquisitos ainda, e não dava a mínima
pra mim ou minhas provocações. E isso… me irritou muito.
Segurei a risada conforme os corredores ficavam mais
movimentados. Ah, eu podia imaginar perfeitamente a cena.
— Estava determinado a tirá-la do sério, a ponto de fazer com
que ela finalmente gritasse comigo, mas… um dia, no intervalo, eu
fiz uma piada muito idiota e ela… riu. Simplesmente riu. E acabei
descobrindo que queria fazê-la rir mais vezes, mais do que irritá-la.
Mas eu… não sou bom nisso. — Sua expressão murchou. — Não
sou bom em bancar o príncipe do cavalo branco. Só o cavalo que dá
coice em tudo e todo mundo.
Respirei fundo e, apesar de ainda ser um pouco estranho…
tentei encorajá-lo.
— Bom, mas eu acho que você tá indo pelo caminho certo. E
acertou em cheio no presente.
Uma insinuação de sorriso brotou no canto de sua boca.
— Eu só não entendi uma coisa. — Aproveitei que ele estava
de bom humor e arrisquei tirar mais uma dúvida. — Como você… foi
parar no grupo da Giovanna? Sei que não é da minha conta, mas é
que… eu tenho a impressão de que vocês não gostam muito dela.
Então… por quê?
Cada vez mais alunos passavam por nós, deixando Vitor
inquieto conforme ele ponderava, provavelmente decidindo se
falaria sobre aquilo comigo ou não.
— É que na verdade… — começou. Mas hesitou. — Deixa pra
lá. — Sacudiu a cabeça e começou a se afastar. — Eu já falei
demais. Tenho que ir.
— Mas, Vitor…
— Obrigado pela ajuda, bonequinha, te devo mais uma. —
Continuou andando a passos largos, apressado.
Suspirei.
— Você não me deve nada! — falei por cima da balbúrdia, mas
Vitor apenas continuou seguindo o fluxo de alunos até a saída.
— Ele é uma gracinha — Jéssica falou, se aproximando. —
Mas estragou tudo me chamando de tia — cuspiu a palavra.
Abri a boca pra responder, mas alguém resmungou atrás de
mim:
— Desde quando você e Vitor são tão amiguinhos?
Me virei e dei de cara com um Richard nada contente.
— O quê? — balbuciei.
— Eu vi vocês dois agora há pouco. Conversando e sorrindo.
Desde quando são tão próximos?
— Não somos amigos — falei com o máximo de sinceridade
que consegui. Não era assunto meu então não sairia contando por
aí, nem mesmo para Richard. Mas como ele já tinha me ajudado
tantas outras vezes e até já tinha apanhado por minha causa,
merecia pelo menos que eu esclarecesse as coisas. — Ele só…
queria a minha opinião sobre uma coisa. Nada além disso.
Mas Richard não parecia muito convencido.
— Aquilo que aconteceu mais cedo… — semicerrou os olhos —
tem a ver com ele? Aquela coisa tem a ver com ele? — Percebi a
ansiedade e o desespero em sua voz, apesar dele tentar manter o
controle.
Arregalei os olhos, em choque.
— Não! Ficou doido? Aquilo não era meu.
— Então como foi parar na sua mochila? — falou, mas a
pergunta soou como um pedido. Como se ele estivesse implorando
por uma resposta.
— Eu… — balbuciei, sua expressão me deixando confusa. —
Eu não sei. Mas por que você se importa com isso?
E para a minha surpresa, descrença tomou conta dos seus
olhos.
— É sério isso, Julieta? Volta um pouquinho em tudo que a
gente conversou mais cedo e vai descobrir que a resposta é meio
óbvia.
O que tínhamos conversado mais cedo…
Santo Deus, mas que raios a paixão de Richard tinha a ver com
aquilo?
— Esse aí é o Richard? — Jéssica murmurou baixinho por cima
do meu ombro.
Pulei de susto, me lembrando de que ela estava ali… e, meu
Deus, escutando toda aquela conversa!
— É sim — gemi de frustração e vergonha e simplesmente saí
dali, deixando minha amiga fofoqueira com a boca escancarada, e
Richard ainda com aquela expressão estranha e confusa no rosto.
Eu desisto!
Até que me lembrei de que Jéssica podia muito bem começar a
falar um monte de bobagens mais constrangedoras ainda e me virei,
pronta para arrastá-la pra longe de Richard.
Mas ela apenas entregou um cartão de visitas do nosso grupo
de eventos a ele com uma piscadela, e falou com um sorriso antes
de vir atrás de mim:
— É um prazer finalmente te conhecer.
Esperei até que ela se aproximasse o suficiente e continuei
seguindo pelo corredor. Jéssica me alcançou e entrelaçou o braço
no meu com força, aquele tom curioso e exigente na voz quando
declarou:
— Você tem muita coisa pra explicar, mocinha.
Capítulo 26
Assim que terminamos de tocar, Jéssica largou o violino na
cadeira e saiu correndo. Na direção do banheiro.
— Ela ainda tá vomitando sem parar? — murmurei para Elias
enquanto apoiava o violoncelo com cuidado no chão.
— Faz uns dois dias — ele suspirou. — Provavelmente foi por
causa das flores. Ela anda meio sensível a aromas doces. Ou a…
cheiros no geral.
Bom, não era surpresa nenhuma que minha amiga grávida
sentisse enjoo em um velório, repleto de coroas de flores enormes
dos mais variados tipos.
— Até que ela conseguiu segurar por bastante tempo —
comentei.
Quando chegamos no local do velório, bem cedo, o rosto de
Jéssica já estava pálido e ela evitou a todo custo olhar o… corpo no
caixão, mas mesmo que durante o tempo em que ficamos tocando
sua pele tivesse adquirido um tom esquisito de verde, ela aguentou
firme até o final.
A alguns metros de nós, o caixão era erguido e levado na
direção do cemitério, uma grande fila de pessoas chorosas e
fungando o seguindo.
— Só espero que ela fique bem pro evento da noite. — Elias
olhou na direção do banheiro com as sobrancelhas franzidas,
provavelmente considerando ir atrás da esposa.
— Evento da noite? — Parei no meio do caminho enquanto
desmontava os equipamentos. — Achei que o último compromisso
de hoje seria o casamento da tarde, depois do almoço. Jéssica não
me falou que tinha mais um à noite.
Elias piscou e voltou a atenção para mim.
— Ela deve ter esquecido. Foi agendado meio que em cima da
hora e, bem… — encolheu os ombros — ultimamente ela tem
passado mais tempo com a privada do que com qualquer outra
pessoa.
Fiz uma careta, guardando meu instrumento na enorme maleta.
— Quão em cima da hora?
— Bom… — Elias se espreguiçou, contendo um bocejo —
terminamos de acertar os detalhes ontem de manhã.
Quase engasguei.
— Ontem?! Isso é muito em cima da hora!
— É sim, mas a noiva tava desesperada. O grupo que ela
contratou teve que cancelar, então ela literalmente implorou que
aceitássemos o trabalho. Mas o cachê é bem generoso —
acrescentou.
— E o repertório?
— Deixamos bem claro que não dava tempo de preparar nada
especial, mas a noiva concordou em usar as músicas que já temos.
Na verdade, ela disse que as nossas sugestões eram mais que
perfeitas.
Arqueei as sobrancelhas.
— Nossa, que… inesperado.
Elias sorriu e começou a enrolar os cabos, tanto do teclado
quanto dos microfones.
— Nem tanto. Inesperado mesmo foi o pedido a respeito das
roupas.
Afivelei o último fecho, me assegurando de que o violoncelo
estava bem preso lá dentro, e me virei para Elias. Ele agora
guardava o violino da esposa na chamativa maleta rosa-bebê.
Jéssica amava aquela maleta como se fosse um filhotinho.
— O que tem as roupas? Não é o preto de sempre?
— Ah, não. — Elias riu, fechando o zíper e o fecho de velcro. —
Dessa vez não. O casamento vai ser em uma chácara, ao ar livre,
então a noiva quer tudo nessa… vibe. Cores vivas, estampas
floridas, fadinhas, um duende com um pote de ouro no final do arco-
íris e sei lá mais o quê.
Eu teria rido se aquilo não me deixasse preocupada.
— Encantador. — Forcei um sorriso. — Só tem um
probleminha: eu não tenho nada com cores vivas, flores ou
fadinhas. Nada decente pra um casamento, pelo menos.
— Bom, vai ter que achar alguma coisa. — Jéssica apareceu, o
rosto pálido. — Se quiser, a gente tenta achar algo no meu guarda-
roupa, Ju.
A olhei de cima a baixo. Tínhamos quase a mesma altura, mas
enquanto Jéssica tinha uma bunda digna de Nicki Minaj, eu era reta
feito uma tábua.
Não que eu me incomodasse com o meu corpo, mas a
diferença entre nós era notável. A menos que Jéssica tivesse uma
roupa guardada da época em que ela era uma criança, eu podia
apostar que tudo ficaria largo em mim.
Suspirei.
— Vou dar uma olhada lá em casa, só pra ter certeza — falei,
ajeitando as alças do cello nos ombros. — Qualquer coisa eu aviso.

ʄʅ
Fiquei encarando o baú à minha frente, mas não ousei olhar o
que tinha lá dentro.
Ainda não.
Assim que cheguei em casa e dei uma olhada em meu avô,
roncando em frente à TV enquanto Paola Bracho ria daquela forma
maléfica inconfundível, fui pro meu quarto e revirei literalmente
todas as minhas roupas, tanto do armário quanto da cômoda,
apenas para descobrir o óbvio: eu não tinha nada pra usar no
casamento.
A maioria das minhas roupas se resumiam a jeans, leggings,
camisetas e suéteres. E roupas pretas para os eventos, essas eu
tinha de monte.
Já estava ligando para Jéssica pra pedir socorro, quando
passei em frente ao quartinho minúsculo ao lado do banheiro e
parei, olhando de esguelha lá dentro. E me lembrei de uma coisa.
Eu tentava não pensar naquilo, mas… no momento era uma
das minhas únicas opções.
Desliguei o celular, respirei fundo e, tomando coragem, abri a
porta velha e enferrujada e entrei. O quarto servia mais como um
depósito, onde meu avô guardava — ou acumulava — tudo que não
servia pra mais nada, mas que ele se recusava a jogar fora. Toda a
tralha lá dentro era dele, exceto por uma única coisa.
O baú que eu encarava há pelo menos dez minutos agora, feito
um zumbi.
Me obriguei a sair do estado de transe e arrastei o trambolho
pesado para fora, até o meu quarto. E tranquei a porta. Não queria
que meu avô visse o que eu estava fazendo, pelo menos não por
enquanto.
Limpei a poeira da superfície, me ajoelhei em frente ao malão e,
com os dedos trêmulos e o coração disparado, abri a tampa, me
deparando com… as roupas antigas da minha mãe.
Engoli em seco. Fazia tanto tempo que eu não via nada
daquilo…
Peguei a primeira peça com cuidado, como se ela fosse se
desfazer ao toque. Era um xale rosado de renda que eu me
lembrava bem. Minha mãe amava usar aquilo.
Esfreguei o tecido nos dedos de leve. Era estranho e, ao
mesmo tempo, familiar. Como quando você tem uma lembrança,
mas não sabe se aconteceu mesmo ou se foi só um sonho.
Segurei o xale com mais força. Real. Era bem real.
Dobrei com cuidado, apoiando em cima da cama, e continuei
vasculhando o baú. Cada peça me trazia uma lembrança diferente
e, por mais que tudo aquilo estivesse guardado há pelo menos uma
década… eu podia jurar que ainda sentia o perfume suave da minha
mãe nas roupas. Como se estivesse costurado entre as linhas.
Tirei um vestido amarelo pálido lá de dentro, todo estampado
com ramos de flores cor-de-rosa. Era casual e longo, com uma
fenda em um dos lados da saia e mangas ombro a ombro curtas e
levemente bufantes, estilo ciganinha, assim como o busto.
Eu tinha visto minha mãe com aquele vestido apenas uma vez:
no meu aniversário de seis anos. O último em que ela esteve
presente.
Passei os dedos sobre o tecido macio e leve, contornando uma
das flores.
— Sinto sua falta — sussurrei, a lembrança do seu rosto não
tão nítida quanto eu gostaria. — Todos os dias eu sinto a sua falta.
Sentindo a garganta começar a fechar, segurei o vestido com
força e me levantei, indo até o espelho e estendendo em frente ao
meu corpo. Parecia servir.
Sem perder tempo, tomei um banho rápido e me vesti. Ficou
um pouco folgado em alguns lugares, mas nada muito visível. O
corpete justo caiu bem e a saia rodada chegava até os meus pés,
mas sem arrastar pelo chão.
Eu não era muito vaidosa, mas também era raro que tivesse a
oportunidade de vestir algo daquele tipo, então decidi arriscar e
passei um pouco de maquiagem. Esfumei os olhos com uma
sombra marrom leve, alonguei os cílios com um pouco de rímel e
um pouco de blush nas bochechas pra disfarçar a palidez. Na boca,
optei também por um tom de marrom, apenas um pouco mais
escuro para combinar com os olhos.
Quando terminei, parei e conferi o resultado. Eu não era
nenhuma profissional, mas até que tinha me virado bem. Mas ainda
faltava alguma coisa...
Fui até meu armário e revirei lá dentro por um tempo, até que
encontrei o que procurava: um lenço branco. Puxei duas mechas de
cabelo na altura das orelhas para cima e amarrei em um meio rabo
de cavalo atrás da cabeça, as faixas suaves do lenço se misturando
ao restante do meu cabelo curto e solto. Puxei alguns fios de cada
lado do rosto para emoldurar junto com a franja e... nada mal. Nada
mal mesmo.
Tudo bem, agora só faltava…
— Sapatos, sapatos, sapatos… — murmurei, olhando ao redor.
Eu não tinha muita variedade nesse departamento. Minhas
escolhas basicamente se resumiam ao par de sapatilhas pretas que
usava nos eventos, meu All Star vermelho, ou um par de sandálias
de salto alto que Jéssica me deu de aniversário uma vez, e que eu
nunca tinha usado. Não porque não tinha gostado, mas porque eu
simplesmente não sabia andar naquela coisa.
Suspirei, soprando para longe uma mecha de cabelo que
tentava grudar no batom, e peguei as sandálias no armário. Eram
bonitas. Simples e de um preto brilhante que combinava com
qualquer coisa chique.
Calcei as sandálias, decidindo dar uma chance e, andando feito
uma pata, ensaiei alguns passos, indo e voltando até o espelho pra
testar. Me desequilibrei e torci os pés pelo menos duas vezes em
cada volta.
— Puxa vida — resmunguei após me jogar sentada na cama,
os tornozelos sacolejando para tentar manter o equilíbrio. — Não vai
ser dessa vez. — Chutei os sapatos para longe e calcei o All Star.
Aquilo teria que servir.
Voltei para o espelho uma última vez. Eu estava… uau.
Acho que nunca tinha me sentido tão bonita antes.
Toquei minhas bochechas e fiquei dando voltas, me olhando de
todos os ângulos possíveis para ter certeza de que aquela era eu.
Minha nossa, era.
Meu coração estava acelerado de expectativa, ansiedade e
animação. Era bom. E eu não fazia ideia de que dar um tapa na
aparência fazia a gente se sentir assim.
Jéssica mandou uma mensagem dizendo que já estava a
caminho da minha casa, então tratei de me apressar. Peguei uma
pequena bolsa marrom de franjas, guardei o batom, a carteira e o
celular lá dentro, e a pendurei no ombro. O violoncelo já estava na
sala, então apenas agarrei o xale, apaguei a luz e saí.
— Andréia? — meu avô exclamou de repente, me olhando da
entrada da cozinha com os olhos arregalados. — Filha? É mesmo
você?
Parei, petrificada, e senti meu coração parar por um segundo.
— Não, vovô — falei com cuidado, mas minha voz mal saiu. —
Sou eu, Julieta. Sua neta.
Ele apenas ficou ali, me olhando daquele jeito assustado e
confuso. E com os olhos úmidos.
— Vovô? — Me obriguei a me mexer, me aproximando dele
devagar. — O senhor tá bem?
Ele piscou algumas vezes, desviando o olhar e, se recompondo
como podia, falou com a voz meio embargada:
— Julieta. É claro. Sim, eu tô bem. Tô ótimo.
Meu avô estava se recuperando bem da cirurgia e, apesar de
ainda precisar de uma dieta restrita e muito repouso, ficava mais
forte a cada dia. A cirurgia realmente tinha salvado a vida dele. Mas
agora, com aquela expressão em seu rosto, o assombro de
realmente ter achado que eu era…
— Tem certeza? — perguntei com o peito apertado.
— Claro que sim — resmungou, desaparecendo cozinha
adentro. — Vai sair? Eu fiz café, por que não toma um pouco antes
de ir? Você precisa comer mais, ou daqui a pouco vai ficar anêmica.
Suspirei pelo nariz. Mas fui atrás dele.
— O senhor não pode tomar café. Está indo tão bem na dieta,
por favor não comece a ficar rebelde agora.
Ele se sentou na pequena mesa redonda coberta por uma
toalha florida, repleta de guloseimas que não podia comer.
— Eu não fiz pra mim — falou antes que eu pudesse dar uma
bronca. E começou a beber de uma caneca fumegante, o cordão do
chá pendurado para fora.
Olhei a mesa mais uma vez. Ele tinha arrumado tudo e feito
café da tarde… pra mim.
Algo quente se espalhou pelo meu peito, me fazendo sorrir. E
fui até ele, me sentando ao seu lado. Jéssica e Elias ainda levariam
alguns minutos pra chegar, de qualquer jeito.
— Acho que posso comer um pouquinho. — Servi o café em
uma xícara e beberiquei. E tive que conter um gritinho. — Hummm,
forte do jeito que eu gosto!
Meu avô assentiu, a caneca na boca, mas tive a impressão que
ele sorriu de leve.
— Pra onde você vai? — quis saber.
— Trabalhar — murmurei de boca cheia, mastigando uma
bolacha de coco.
— Vestida assim? Você sempre vai de preto da cabeça aos pés
como se fosse um vulto.
Tive que segurar a risada.
— Foi um pedido da noiva. Acha que eu exagerei?
Meu avô estalou a língua.
— Que nada. É bom usar uma cor de verdade de vez em
quando, pra variar. — Olhou de esguelha para o vestido. — Está
parecendo a sua… — Hesitou. E voltou a atenção para sua caneca.
— Está muito bonita, Julieta.
— Acha mesmo? Que eu me pareço com ela? — insisti com
cuidado, mesmo sabendo que ele tinha evitado o assunto.
Eu não me lembrava muito bem dos detalhes do rosto da minha
mãe. Só sabia que a achava a mulher mais linda do mundo, com os
olhos brilhantes e os cabelos ondulados de um tom castanho-
dourado. E eu, bem… não tinha nada daquilo. Meus olhos eram tão
escuros que às vezes parecia que a íris e a pupila eram uma coisa
só, e meu cabelo também era preto e escorrido como as penas de
um corvo.
E eu tentava não pensar de quem tinha vindo certos traços
meus.
— Parece sim — meu avô falou, no entanto. — Vocês têm o
mesmo nariz arrebitado. E os mesmo olhos.
Arqueei as sobrancelhas, surpresa.
— Sério? Na minha lembrança eles eram diferentes.
— Não, são iguais. — Se levantou, terminando com o chá e
indo até a pia. — Escuros como duas jabuticabas. Vocês puxaram
os olhos da sua avó.
Lentamente, um sorriso enorme se abriu em meu rosto bem na
hora que uma buzina soou do lado de fora.
— Acho que seus amigos chegaram — meu avô falou, de
costas para mim. — É melhor se apressar ou…
— Obrigada, vovô. — O abracei por trás com força, seus
cabelos brancos fazendo cócegas na minha bochecha.
— Pelo quê? — perguntou, a surpresa nítida em sua voz.
— Por tudo — sussurrei antes de dar um beijo em sua
bochecha, e corri para a porta. — Até mais tarde! — Acenei com o
violoncelo já nas costas e fechei a porta atrás de mim.
Lá dentro, meu avô acenou de volta, a mão trêmula. E sorriu.
Capítulo 27
— Julieta, você tá muito gata. — Jéssica me olhou de cima a
baixo com aprovação assim que descemos no estacionamento ao ar
livre da chácara.
— Obrigada. — Sorri, corando. — Você também, Jéssica. Tá
linda, como se tivesse saído de um conto de fadas.
Minha amiga usava um vestido azul-celeste translúcido, longo e
esvoaçante, todo estampado com flores de tom coral e brancas. O
decote ousado descia até o meio do corpete justo e mangas
compridas e folgadas terminavam em um bracelete justo em seus
pulsos. Os olhos de chocolate estavam bem desenhados com
delineador, e sua boca brilhava de gloss cereja. E os cabelos…
Jéssica realmente não era o tipo de pessoa que brincava em
serviço, pois os fios brilhantes tinham sido cacheados, caindo em
ondas grandes sobre os ombros, e uma coroa de flores brancas
decorava o topo da sua cabeça.
Ela sorriu e assoprou um beijo para mim em agradecimento.
— Ainda bem que os enjoos deram uma trégua — Elias falou,
tirando o controle do carro do bolso da calça cinza e apertando um
botão, travando o veículo com um bipe. E apoiou uma mão nas
costas da esposa, um sorriso satisfeito iluminando seu rosto
conforme a olhava. — Já vi que vou ter que ficar atento caso algum
engraçadinho venha tentar a sorte. — Olhou de Jéssica para mim.
— Com vocês duas.
Uma risada incrédula e engasgada escapou de mim.
Tá bom, como se aquilo fosse acontecer.
— Bom, eu digo o mesmo. — Jéssica empinou o nariz
conforme ajeitava a gola da camisa azul-claro do marido. A cor,
além de combinar com o vestido da esposa, também realçava os
olhos verdes de Elias e o cabelo castanho-claro. — Se alguma
fulaninha se aproximar de você além do permitido, não respondo por
mim. — Deu dois tapinhas em seus ombros. — Então, a menos que
queira que esse casamento vire um barraco, tente não me dar
trabalho, sr. Cardoso.
O sorriso de Elias aumentou e ele esticou um braço, indicando
o caminho à frente.
— Depois de você, sra. Cardoso.
Jéssica apenas exibiu um sorrisinho e, com a maleta rosa bebê
do violino nas costas, foi desfilando pela trilha de cascalho.
Elias revirou os olhos e deu risada, mas voltou a atenção para
mim.
— Você também, srta. Bellini. — Fez uma reverência dramática,
indicando o caminho mais uma vez.
Segurando o riso, ajeitei as alças do violoncelo nos ombros, e
fiz uma mesura em resposta.
— Quanta gentileza — cantarolei, indo atrás de Jéssica e
imitando seu jeito de andar.
Atrás de mim, ouvi Elias suspirar.
— Eu vou ter muito trabalho hoje à noite.

ʄʅ
Ah. Meu. Deus.
Aquilo não era uma simples chácara. Ou, pelo menos, não
parecia uma. Porque o que estava à minha frente parecia mais um
mundo encantado, saído diretamente de um livro de fantasias.
A trilha de cascalho do estacionamento, rodeada de árvores, se
abria em um pátio enorme com piso de ladrilhos de cimento, mesas
redondas preenchendo cada canto do lugar. Toalhas brancas
cobriam cada mesa e peças de porcelana e taças brilhantes tinham
sido cuidadosamente arrumadas em cima, com arranjos de flores
rosadas e brancas decorando o centro. E em volta… árvores
enormes rodeavam o espaço, as copas verdes decoradas com
luzinhas amarelas cobrindo tudo como se fosse um dossel.
Eu já tinha tocado em vários casamentos, dos mais variados
estilos, mas caramba… aquele lugar tinha se superado.
Seguimos entre as mesas e pegamos mais uma trilha de
cascalho, até o local onde a cerimônia aconteceria. Passamos por
uma cortina de flores brancas e nos deparamos com o que parecia
uma floresta encantada, com árvores finas e altas por todo lugar, os
troncos cobertos de luzinhas, iluminando todo o ambiente, cadeiras
brancas estofadas dispostas em fileiras e uma passarela de tacos
de madeira no centro, pétalas brancas decorando as laterais do
caminho. E no final dele, um casebre de madeira, como uma
capelinha, folhas e flores cobrindo e descendo pelo telhado
triangular como se fosse um manto, o interior também todo
decorado de luzinhas amarelas.
— Uau... — Jéssica murmurou, os olhos arregalados
absorvendo a paisagem.
— É. Uau. — Elias concordou, tão pasmo quanto ela.
— Será que essa noiva não quer me adotar? — sussurrei,
assombrada e maravilhada com tudo aquilo.
— Se ela aceitar… — Jéssica seguiu pela passarela, olhando
até o alto das árvores — me leva junto dentro da mala.
Nos instalamos ao lado da capelinha e, após algumas idas e
vindas de volta até o carro para descarregar todos os equipamentos,
tudo ficou pronto para a cerimônia.
Os convidados estavam começando a chegar e Elias sugeriu de
darmos uma passada no som, tanto para testar se nada daria
problema na hora quanto para distrair e entreter as pessoas até que
o casamento tivesse início.
Começamos com Hey, Soul Sister e foi o suficiente para atrair a
atenção de todos, sorrisos e palmas logo acompanhando o nosso
ritmo. E somando essa energia ao cenário mágico ao nosso redor…
Eu não conseguia parar de sorrir enquanto tocava. Olhei de
relance para Jéssica e Elias… eles também sorriam.
Era disso que eu gostava. Tocar com meus amigos e, juntos,
fazer música com o intuito de colocar um sorriso no rosto de todos.
Sem competição, sem richa, sem… pressão. Sem raiva, medo,
ansiedade ou obrigação. Apenas… música pura, leve e melodiosa.
Como tinha que ser.
Pelo menos, no meu ponto de vista.
Aplausos animados ecoaram assim que terminamos e,
enquanto minha amiga murmurava qual deveríamos tocar a seguir,
vi pela visão periférica que alguém se aproximava.
— Vocês são realmente incríveis! — a pessoa falou, fazendo
meu corpo inteiro travar.
Aquela voz…
— Richard? — Minha voz saiu aguda conforme ergui o olhar.
Ele usava um terno cinza-claro que dava um contraste lindo
com a pele negra, o paletó aberto revelando a camisa branca com
os primeiros botões desabotoados e sapatos pretos brilhantes. O
cabelo castanho-escuro curto estava levemente úmido, alguns
cachos caindo com perfeição em sua testa.
Ele estava… droga, eu não conseguia nem respirar!
— O que… o que você… o que está…
— Fazendo aqui? — terminou por mim, dando risada. —
Digamos que eu sou parente dos noivos.
— Parente. — Jéssica riu com deboche. — Que apelido
humilde pro filho da noiva.
— O quê?! — engasguei, quase caindo da cadeira. — Filho da
noiva?
— A mãe dele nos contratou — Elias explicou. E sorriu. — E foi
tão insistente quanto ela pra que aceitássemos o trabalho.
Richard encolheu os ombros, culpado, mas sorria de um jeito
que dizia que ele faria tudo de novo se fosse preciso.
— Por que não me contou? — murmurei entre dentes para a
minha amiga traíra.
— Eu não contei? — fez a sonsa, mal disfarçando. — Nossa,
devo ter esquecido. Sabe como é, com os enjoos e tudo mais… —
Cobriu a boca com a ponta dos dedos. — Opa.
A fuzilei com o olhar.
Jéssica podia ter sofrido com os enjoos, mas depois de ter
conhecido Richard pessoalmente, e fofoqueira como era, eu sabia
que nem se ela estivesse vomitando as tripas ia simplesmente
esquecer de me contar aquele detalhe.
— Você me paga — foi tudo que me permiti dizer naquele
momento.
— O casamento vai começar logo — Richard falou, ainda
sorrindo. E sem desviar os olhos dos meus. — Não vou atrapalhar.
Se precisarem de alguma coisa, é só chamar. Estarei à disposição.
— Ah… ok — balbuciei com o rosto inteiro fervendo e ainda em
choque por vê-lo ali.
— Você tá linda — murmurou baixinho, me olhando de cima a
baixo. E, sorrindo, se demorou um pouco mais na fenda do vestido,
que revelava minha perna até metade da coxa.
Elias pigarreou alto.
— Bom trabalho a todos — Richard se apressou em dizer, se
recompondo, e acenou rapidamente para os meus dois amigos
antes de se afastar.
— Ele é uma gracinha — Jéssica falou entre risadinhas.
— É, e tá cheio de gracinha também — Elias resmungou. E me
encarou. — Eu disse que ia ter trabalho hoje.
Minha cabeça quase virou uma bola de fogo.
— Vocês dois só falam besteiras — resmunguei e comecei a
puxar a saia do vestido, tentando esconder o máximo que conseguia
da minha perna.
Mas por mais que tentasse me esconder, ainda podia sentir
aqueles olhos cor de avelã queimando na minha direção.

ʄʅ
— Foi lindo! — a noiva, e mãe de Richard, falou assim que
terminamos de guardar nossas coisas e fomos dar os cumprimentos
no fim da cerimônia. — Eu não poderia ter desejado um grupo
melhor, vocês foram perfeitos!
Jéssica começou com as formalidades, agradecendo pela
oportunidade e dando os parabéns pelo casamento, e aproveitei a
oportunidade para analisar a mulher com mais atenção.
Ela era bonita, linda, os cabelos escuros na altura dos ombros
cacheados como os de Richard e soltos em uma massa volumosa e
brilhante. Tinha também um sorriso branco perfeito, e os olhos…
iguais aos do filho. Desde a cor, de um tom castanho esverdeado,
até o brilho que iluminava todo o seu rosto negro. Ela devia ter, mais
ou menos, uns 40 anos, mas o corpo violão e definido estava
simplesmente incrível no vestido tomara-que-caia estilo sereia.
— Você já conhece o Elias — Jéssica continuou, fazendo as
apresentações. — Nosso tecladista, e meu marido. — Sorriu com
carinho para ele, que respondeu com uma carícia nas costas da
esposa enquanto cumprimentava a noiva com a outra mão. — E
essa é a Julieta, nossa violoncelista. Ficamos sabendo… — apoiou
a mão nas minhas costas e me empurrou para frente, quase me
jogando na frente da mulher — que ela e o seu filho estudam juntos,
não é muita coincidência?
Eu ainda te mato, falei para Jéssica com o olhar.
— Não me diga, é sério?! — A mãe de Richard escancarou a
boca conforme me olhava, os olhos brilhando. — Que mundo
pequeno! Fico muito feliz que tenha vindo, minha querida. — Me
abraçou com força, enterrando meu rosto em seu cabelo.
— Eu que agradeço a oportunidade — balbuciei tentando
recuperar o equilíbrio assim que me afastei. — E parabéns pelo seu
casamento. Está tudo muito lindo.
— Ah, que gracinha. — Esticou uma mão, as unhas pintadas
em estilo francesinha, e apertou minha bochecha. — Espero que
fique pra festa. Todos vocês. — Olhou para os dois atrás de mim. —
Estão mais do que convidados a participar.
Nem pensar!
— Nós agradecemos — Elias começou —, mas minha esposa
está grávida e precisa repou…
— Repor as energias — Jéssica interrompeu, empurrando o
marido com o quadril. — Repor as energias com bastante comida, é
o que ele quis dizer. Nós adoraríamos ficar. — Lançou a Elias e a
mim um olhar assassino que não aceitava contestações. — E
agradecemos o convite, sra. Gomes.
— Nossa, preciso me acostumar a ser chamada assim agora.
— Ela corou, sorrindo. — Mas, por favor, podem me chamar de
Rose. E divirtam-se! — Acenou assim que a cerimonialista
apareceu, seguindo até onde o marido já aguardava para tirar fotos.
— Por que aceitou? — resmunguei, emburrada.
— Você não pode abusar, coelhinha — Elias emendou. —
Precisa descansar.
— Não vou abusar — Jéssica respondeu simplesmente. — Mas
já que estamos aqui, por que não aproveitar? Isso aqui é uma festa
de gente rica! Quando vamos ter outra oportunidade assim tão
cedo? Com certeza não depois que o bebê nascer. — Olhou para
Elias de forma significativa.
Ele respirou fundo e soltou o ar com força.
— Tudo bem. Mas só um pouco — acrescentou quando Jéssica
começou a bater palminhas de comemoração. — Tudo bem pra
você, Jujuba?
Definitivamente não.
— Fazer o quê — falei ao invés, seca. Eles eram a minha
carona, eu literalmente não tinha escolha.
— Isso! — Minha amiga sorriu e agarrou a mão de Elias, quase
correndo pela plataforma de madeira. — Então vamos logo que eu
tô morrendo de fome, e preciso comer por dois!
Fechei os olhos, pedindo por um socorro divino, respirei fundo
e, certa de que aquela noite seria mais problemática do que minha
amiga poderia imaginar, os segui.
Capítulo 28
— Isso aqui tá uma delícia! — minha amiga murmurou de boca
cheia, quase quicando na cadeira.
Eu odiava admitir, mas realmente estava tudo incrível. Jéssica
foi rápida e conseguimos uma mesa perto da saída da cozinha,
então comida era o que não faltava ali. E eu não era de comer
muito, mas até meu prato parecia uma montanha, de tão
maravilhoso que era o gosto de tudo.
— Nem pensar. — Elias segurou as mãos da esposa na mesa
quando um garçom passou oferecendo taças de champanhe e
Jéssica quase pegou. — Nada de álcool pra você por um bom
tempo, mocinha. Lembra? É o nosso bebê que você carrega aí
dentro. — Fez uma pausa, analisando o prato dela. — E já tá
entupindo ele de coxinha.
Tive que me segurar para não começar a rir e cuspir comida.
— Tá, você tem razão — minha amiga lamentou, pegando o
copo de água com a cara emburrada.
— Tudo bem por aqui? — Richard apareceu… se sentando ao
meu lado. — Estão aproveitando a festa?
— Com certeza — Elias falou, tentando se manter sério
enquanto olhava de soslaio para Jéssica, que enfiava uma garfada
enorme de comida na boca escancarada.
Ela tentou sorrir e deu um joinha a Richard em resposta, as
bochechas quase explodindo.
Ele deu risada.
— E você, tá gostando? — Se virou para mim.
Peguei meu copo e comecei a beber o refrigerante devagar,
enrolando pra não ter que responder, mas Richard não parecia com
pressa de sair dali.
— Uhum — murmurei por fim, meio dentro do copo, e evitando
fazer contato visual.
— Comeu bastante?
— Comi.
— Ótimo! Então pode me ajudar com uma coisa?
Franzi as sobrancelhas, surpresa, e finalmente o encarei.
— Ajudar com o quê?
— Lembra daquela música que eu tava ensaiando?
A que ele queria dedicar à mulher mais importante da sua vida?
Ah, se lembrava.
— Sim — me limitei a dizer, seca.
Richard começou a coçar a nuca, sem jeito.
— Então, eu tava pensando… será que você podia me ajudar
com ela? Tipo… cantando?
Quase engasguei.
— Cantan… o quê?
— É… — exibiu um sorriso amarelo — tipo, daqui uns dez
minutos.
Arregalei os olhos.
— O quê?! — Ele tinha batido a cabeça ou algo do tipo? —
Você bateu a cabeça ou algo do tipo?
Diante de mim, tanto Jéssica quanto Elias apenas alternavam o
olhar de mim para Richard, em completo silêncio.
— Não — Richard falou, encolhendo os ombros. — É só que…
essa música é um dueto, sabe? Eu planejava cantar sozinho, mas
depois que cantamos juntos lá no conservatório, pensei que talvez
seria uma boa ideia se você… me acompanhasse.
Só podia ser brincadeira.
Mas se ele queria cantar aquela música agora, então queria
dizer que…
— Ela tá aqui? — Arregalei os olhos com horror. — Tá aqui
agora?
Richard piscou, confuso.
— Claro — falou devagar. — Ela é a noiva, afinal de contas.
Foi minha vez de piscar, completamente confusa.
A noiva…
Ah.
Meu.
Deus.
— A mulher mais importante da sua vida… — sussurrei em
choque — é a sua mãe?
— É… — Richard falou como se fosse óbvio. E piscou,
compreendendo. — Achou que fosse quem?
Fechei a boca, o rosto inteiro queimando.
É claro que era óbvio, como eu era burra!
— Nada, eu não achei nada — balbuciei depressa,
desesperada para desviar o assunto. — E-Então foi isso que v-você
quis dizer quando d-disse que a m-música seria um p-presente? Um
presente de c-casamento?
— Sim, isso mesmo. — Ele sorriu. — André é um cara legal, eu
gosto dele, e dá pra ver que faz minha mãe feliz. E ela merece isso,
sabe.
Não consegui falar, então apenas assenti com a cabeça.
— Então eu queria fazer algo especial pros dois. Principalmente
pra ela, que sempre entendeu e apoiou a minha vontade de estudar
música.
— Isso é muito legal — murmurei.
— Mas como eu disse… — sorriu, me olhando de forma
sugestiva — é um dueto.
— É, Ju — Jéssica interveio com um ar cúmplice antes que eu
pudesse responder. — É um dueto.
— Duas pessoas — Elias completou, erguendo os dedos para
enfatizar.
Bufei pelo nariz.
— Eu sei, obrigada.
— Então vai logo! — Jéssica exclamou.
— Mas… — Olhei para Richard, ansiosa. — Por que eu? Quem
disse que eu sei cantar? Por que você não convidou uma cantora de
verdade pra te ajudar com isso? Tenho certeza que no conservatório
tem várias.
— Isso é história pra outra hora — ele fez uma careta. — E
você pode não ser uma cantora profissional, mas a música é
simples, não tem segredo nenhum. Além do mais, eu já te ouvi
cantar, lembra? Sei que você consegue.
— E quem disse que eu sei a letra?
Richard franziu as sobrancelhas.
— Você não sabe?
Sim, eu sabia. Tinha ouvido aquela música sem parar depois
que Richard me mostrou, como uma forma de tortura pessoal pra
ficar me lembrando que tudo que eu achei que havia entre nós tinha
sido um surto.
Mas ele não precisava saber de nada disso.
— Mais ou menos — resmunguei, me recusando a dar o braço
a torcer.
— É só me seguir — falou com a voz suave e tranquilizadora,
esticou a mão e pegou a minha por debaixo da mesa. Era quente e
firme. — Por favor, Julieta. Canta comigo.
Seu rosto estava bem perto do meu, e seus olhos… quase
suplicantes.
Suspirei. Eu não precisava pensar muito pra saber qual seria a
minha resposta.
Droga.
— Tá, tudo bem. Eu canto.
Richard sorriu de orelha a orelha, radiante, e sua mão apertou a
minha, me puxando.
— Então vamos, não temos tempo a perder.
— Ah, essa eu quero ver! — Jéssica saltou da cadeira na
mesma hora.
— A Jujuba cantando? Essa eu também não perco por nada. —
Elias a seguiu, dando risada.
Eu já estava arrependida. Mas sabia que era tarde demais pra
voltar atrás.
Então deixei que Richard continuasse me guiando entre as
mesas repletas de convidados — seus parentes e amigos da família
— até o centro do enorme pátio, onde duas banquetas altas, um par
de microfones e o violão de Richard já esperavam sobre a pista de
dança escura e repleta de luzinhas que mais parecia um céu
estrelado.
— Com licença — ele falou no microfone assim que ocupamos
as banquetas. E sorriu, o burburinho das conversas cessando. —
Boa noite, família. Se eu puder ter a atenção de vocês por alguns
minutos… — Se agachou e pegou o violão, passando a alça por um
ombro. E olhou na direção da mesa maior, a mesa dos noivos. Dona
Rose olhava para ele com olhos emocionados, uma mão no
coração. — Mãe, eu entendo como esse dia é especial pra senhora.
Entendo de verdade. Por muito tempo fomos só nós dois, mas eu
sempre acreditei que um dia você encontraria alguém especial.
Alguém que enxergasse a mulher incrível que você é e que te
amasse da forma como você merece. E estou muito feliz por esse
dia ter chegado. Estou muito feliz por você. Por vocês dois —
acrescentou, olhando o padrasto. — Dá pra ver que vocês se amam
de verdade, e eu só queria que soubessem que vocês são um
exemplo pra mim. Em todos os sentidos possíveis. E por isso… —
Se posicionou, o violão firme em suas mãos e apoiado em sua
perna. Minhas mãos suavam segurando o microfone. — Quero
dedicar essa música a vocês. Um presente simples, mas de
coração, de um filho aos seus pais.
Todos os convidados começaram a bater palmas animadas e
eu podia jurar que a mãe de Richard já estava chorando de emoção.
O padrasto também.
— Pronta? — sussurrou, me olhando de esguelha.
Soltei algo parecido com uma risada nervosa e sofrida.
— Não mesmo.
Richard riu.
— Relaxa. E vem comigo. — Começou a tocar, as cordas
ressoando lenta e com suavidade.
Respirei fundo, os olhos grudados no chão de luzinhas abaixo
de mim. E me lembrei de uma coisa… algo que me disseram havia
muitos anos já, mas que tinha encontrado seu caminho de volta de
algum modo.
Um palácio com um céu estrelado…
Sorri, me lembrando do sorriso iluminado da minha mãe quando
me contou aquela história e, mentalizando que ela estava sempre
comigo, sentindo que ela estava comigo ali naquele exato
momento… com o chão iluminado à nossa volta dando uma
sensação mágica, comecei a cantar, minha voz e a de Richard
harmonizando com o violão.
Começamos bem. Eu estava nervosa e com medo de estragar
tudo, mas consegui acompanhar Richard. Ele era paciente e vez ou
outra me olhava de esguelha, sempre sorrindo, e assentia de leve,
me encorajando.
Quando chegamos na segunda parte da música eu já estava
mais relaxada e consegui aproveitar o momento e me divertir. Como
se estivéssemos mais uma vez cantando sozinhos na sala de aula.

♪ Aquela pessoa que te faz sorrir


De manhã até de tardezinha
É completa e rara, é tipo aquela estrela que o céu ilumina
Tipo o vento, é suave, mas tem seus momentos de fúria
Fazer ventania

Sabe entrar e sair de qualquer coração


Mas deixando sua boa impressão ♪

Olhei para Richard. Ele também me olhava e, de repente, havia


mais sentido naquelas palavras cantadas. Mais sentimento, mais…
verdade. Nenhum dos dois ousou quebrar o contato visual enquanto
continuávamos cantando, como se… como se estivéssemos
cantando não apenas juntos, mas um para o outro.

♪ Esse alguém é você


Garota levada, às vezes mimada por ser meu bebê
Eu te amo, te zelo, te cuido e te quero
E pra sempre… vai ser meu bem querer ♪

Seus olhos não desgrudavam dos meus. E eu não sabia o que


significava aquilo, o que estava realmente acontecendo entre nós,
só que meu coração estava disparado. Não de medo ou ansiedade,
mas de… expectativa. E me perguntei se Richard sentia o mesmo.
E eu nunca admitiria isso em voz alta, mas uma partezinha de
mim, escondida lá no fundo do meu coração, esperava
desesperadamente que sim.

ʄʅ
— Foi lindo! — Jéssica exclamou com pura animação quando
voltamos a nos sentar na mesa. Minhas pernas tremiam tanto que
tive que cravar os dedos na toalha pra não desabar. — O cenário,
as luzes… a música… — me olhou de forma sugestiva — parecia
cena de filme.
— Acha que os noivos gostaram? — perguntei, ignorando o
fogo que sentia dentro das veias correndo até as bochechas, e
agarrei uma garrafinha de água que um dos garçons tinha deixado
ali. Minha garganta estava seca como um deserto, mas eu não
sabia se era por ter acabado de cantar ou se tinha algo a ver com
meu rosto estar tão quente que tinha me desidratado.
— Não sei se ouviu todos os aplausos e lágrimas de emoção,
Jujuba — Elias riu —, mas isso geralmente quer dizer que todo
mundo amou.
Apenas gemi, sem graça, e continuei virando a garrafa de água.
Droga, por que minhas bochechas não paravam de arder?
— Deve ter alguma coisa a ver com o gatinho do violão. —
Jéssica sorriu com malícia, como se lesse meus pensamentos. — E
com a forma que se declararam um pro outro.
Bufei e revirei os olhos.
— Não teve declaração nenhuma.
Droga, será que tinha sido tão óbvio assim?!
— Aham, sei. — Ela continuou sorrindo.
— Julieta. — Richard apareceu, apoiando uma mão no encosto
da minha cadeira. — Você tá bem? Praticamente saiu correndo
quando a música acabou.
— Que exagero — eu ri, nervosa.
Mas realmente tinha saído correndo.
Assim que a apresentação terminou, e aplausos emocionados
explodiram ao nosso redor, Richard foi cumprimentar a mãe e o
padrasto. Eu sabia que devia ir também, mas meus sentimentos
estavam uma confusão só e eu não sabia o que fazer ou como agir,
então simplesmente… andei mais depressa que o normal para
longe dali.
— Tô bem — assegurei. — Eu só não tô acostumada… sabe…
a ser o centro das atenções. Fiquei um pouco nervosa, mas já
passou. Juro.
Ele expirou, aliviado.
— Que bom.
— Vocês foram muito bem. — Jéssica pegou um cacho de
cabelo e começou a enrolá-lo no dedo. — Realmente parecia que
estavam… ah, meu Deus. — Parou, os olhos arregalados quando
Meu Abrigo começou a reverberar das caixas de som. — Eu amo
essa música! — Se virou para o marido, agarrando suas mãos. —
Vamos dançar? Por favor, por favor, por favor, por favor!
— Coelhinha... — ele começou, todo gentil para não chateá-la
— você não pode abusar, sabe que precisa descansar…
— Só uma — ela implorou fazendo beicinho, como uma
criancinha. — Por favorzinho.
Elias respirou fundo… e soltou o ar com força, derrotado.
— Tudo bem. Só uma — reforçou quando o rosto de Jéssica se
iluminou, e começou a puxá-lo para a pista de dança, onde vários
casais e crianças agora dançavam e se divertiam.
Dei risada conforme assistia os dois se afastarem. Richard se
sentou ao meu lado.
— Eles são legais.
— São mesmo — falei, observando quando meus amigos
chegaram na pista de dança e, sorrindo, Elias rodopiou a esposa, a
saia esvoaçante acompanhando o movimento com graça. — Às
vezes eu não sei quem de nós é o adolescente imaturo, mas eles
são incríveis. Não sei o que faria sem os dois.
Richard ficou em silêncio por tanto tempo que desviei os olhos
da pista de dança para encará-lo. E engoli em seco. Ele me olhava,
sorrindo, a bochecha apoiada em um punho.
— O que foi? — perguntei, repentinamente sem ar.
— Você cantou muito bem.
Meu rosto voltou a ferver.
— Ah… v-você também. — Por favor mude de assunto, por
favor mude de assunto!
— Posso perguntar uma coisa?
— Eu…
— Pra quem você achou que fosse a música?
Droga, isso não! Por favor, Deus, qualquer coisa menos isso!
— Julieta… — Richard insistiu quando não falei nada.
— Não achei nada, já disse. — Encolhi os ombros e baixei os
olhos.
Ele deu risada.
— Eu já comentei que você mente muito mal?
Suspirei.
— Uma ou duas vezes.
— Então me diz… você achou que eu estivesse falando de
outra garota?
Ai, Deus.
— É isso, não é? Por isso você tava tão esquisita na escola.
— Bom… — comecei a retorcer os dedos, o rosto em brasa —
você também não ajudou em nada simplesmente falando aquilo com
uma música romântica de fundo. Eu fiquei confusa.
Richard riu mais uma vez.
— Desculpa. Vou tentar ser mais claro da próxima vez. — Se
aproximou um pouco. — Mas fiquei feliz em saber que você ficou
toda enciumada.
Arregalei os olhos para ele, meu coração indo parar na boca.
Ora, quanta ousadia!
— Eu não fiquei toda… enciumada! — cuspi a palavra, mas
minha voz saiu mais aguda e desesperada do que eu gostaria.
Ele apenas voltou a apoiar a bochecha no punho, seu sorriso
crescendo.
— Aham, sei.
— Não mesmo! Eu fiquei… — Fechei a boca e bufei, voltando a
encarar minhas mãos no colo. — Eu não fiquei com ciúmes, fiquei…
chateada.
Richard não falou por um tempo.
— Perdão — murmurou, seus dedos afastando um pedaço da
franja do meu olho com cuidado. — Foi só um mal-entendido, mas…
perdão.
Inclinei a cabeça, minha bochecha roçando de leve em seus
dedos.
— Tudo bem, eu…
— Ah, aí está você! — alguém falou de repente, me
sobressaltando. Richard recolheu a mão.
Era dona Rose.
— Mãe — Richard falou erguendo o olhar para ela, a voz
vacilando de leve. E pigarreou. — Precisa de alguma coisa?
— Já cumprimentou seus tios? Eles vieram de muito longe pro
casamento, querem ver como você… — Olhou para mim, notando a
minha presença. E seu sorriso cresceu. — Ah, desculpe, eu não
sabia que estava com a sua colega. A música que vocês cantaram
foi linda, minha querida. Muito obrigada. — Acariciou minha
bochecha, um gesto puramente materno. E voltou para o filho. — E
por falar em colegas, cadê seus amigos da escola? A Fernanda está
aqui, já viu se Giovanna veio com ela?
Bati o joelho contra o tampo da mesa com um estrondo,
chacoalhando tudo.
— Gi… Giovanna? — engasguei. E olhei para Richard com
nada além de pânico. — Ela tá aqui?
Ele apenas encolheu os ombros com uma careta esquisita e
dona Rose, completamente alheia, falou olhando ao redor:
— Bom, vamos ver… Fernanda, querida! — exclamou e
acenou.
E uma mulher algumas mesas à frente se virou e levantou,
vindo até nós com um sorriso enorme.
— Rose! — A abraçou com força. Ela usava um vestido longo
de um roxo escuro e era bonita, com um rosto bem familiar. Familiar
demais.
Minhas mãos suavam frio.
— A apresentação dos meninos não foi linda? — a mãe de
Richard falou assim que se afastaram. — Eles estudam juntos,
sabia? E por falar nisso, onde está sua menina? Se não me engano
são todos colegas, não? — Olhou para Richard, buscando
confirmação.
— Ah, Giovanna ficou em casa — a outra mulher falou com um
suspiro. — Eu bem que tentei fazê-la sair um pouco, mas ela está
tão focada com essa coisa do concurso que não pensa em outra
coisa, fica apenas estudando.
Engoli em seco.
— Nossa, mas tanto esforço assim não faz mal? — dona Rose
falou com as sobrancelhas franzidas.
A mãe de Giovanna, Fernanda, assentiu com outro suspiro.
— Foi o que eu tentei dizer, mas ela não me escuta. Ela sempre
foi assim, sabe. Sempre colocou a música em primeiro lugar, e em
parte eu entendo, é uma coisa de família, mas ultimamente… eu
não sei qual é o problema, mas me preocupa que ela acabe
exagerando. Não acho isso nada saudável. Meu irmão diz que não
devo me preocupar e, bem, como ele é o diretor e passa o dia
inteiro com ela, praticamente, eu tento acreditar, mas ainda assim.
Sabe como é coração de mãe.
Olhei para Richard pelo canto do olho. Ele também escutava
tudo com atenção.
— Claro que eu entendo — dona Rose falou, segurando a mão
da amiga. — Quem sabe os meninos não possam falar com ela e
ver se algo a está incomodando? Não é, filho?
Quase engasguei. E os olhos de Richard quase saltaram para
fora do rosto.
— Bom… — Fernanda falou com cautela, olhando para ele. —
Eu sei que ela ficou bem chateada com... — me olhou de esguelha,
mas logo voltou a encarar Richard, falando baixo — aquilo. Talvez
você possa falar com ela? Talvez possam voltar a se entender?
Algo dentro de mim pesou feito chumbo até a boca do
estômago.
— Vou tentar falar com ela, tia Fer — Richard falou, parecendo
desconfortável. — Prometo.
— Obrigada, querido. — Se agachou e o abraçou. — Bom, com
licença. Parabéns pelo seu casamento, Rose. — Segurou as mãos
da mãe de Richard. — Você merece.
Outros convidados apareceram para dar os parabéns à noiva e
pedindo para tirar foto e, enquanto ela e a mãe de Giovanna se
afastavam, olhei para Richard com uma expressão muito séria.
— Aquilo? O que isso quer dizer? Tem… Tem a ver comigo?
Ele baixou os olhos e respirou fundo.
— Não. Não exatamente, é só que… — Sacudiu a cabeça. —
Olha, Julieta, eu prometo que conto tudo que você quiser saber,
mas antes eu… eu queria que aproveitássemos a festa. Só nós
dois, sem Giovanna, concurso, nem nada disso. Pelo menos um
pouco, antes que toda essa bagunça do dia a dia volte a dar dor de
cabeça. Pode ser?
Ponderei por um tempo. E por mais que minha cabeça rodasse
com milhares de perguntas, entendia o que Richard queria dizer.
— Tudo bem — falei por fim. — Então, o que quer fazer?
Outra música animada começou a tocar, o ritmo do acordeon
fazendo os olhos de Richard brilharem e um sorriso se abrir em sua
boca.
— Acho que sei por onde podemos começar. — Pegou minha
mão. — Dança comigo?
Arqueei as sobrancelhas.
— Eu não sei dançar. Muito menos… isso. — O ritmo da
música me lembrava forró, mas ao mesmo tempo era algo mais pop
e romântico.
O sorriso dele cresceu.
— Você disse a mesma coisa sobre cantar. Vem, você
consegue. — Começou a me puxar e, por algum motivo… eu deixei.
Corremos entre as mesas até a pista de dança e passamos por
vários casais, até Jéssica e Elias, que estavam tão concentrados e
grudadinhos um no outro que nem nos viram, e Richard só parou
quando chegamos bem no centro da pista iluminada.
Ele pegou minha mão, guiando a outra até seu ombro e
deslizando os dedos de leve pelo meu braço até minha cintura. Meu
corpo inteiro ficou arrepiado.
— Eu juro, não sei como fazer isso — falei olhando ao redor,
para os casais que dançavam com perfeição e gingado ao ritmo
animado da música.
— Bom, então nesse caso… — Richard falou e, antes que eu
conseguisse processar a informação, apertou o braço ao meu redor,
meu corpo indo de encontro ao seu, e me tirou do chão. Quando
afrouxou o toque, meus pés estavam em cima dos seus. — Agora
não tem desculpa.
Soltei uma risada surpresa, nossas mãos ainda entrelaçadas, e
ele logo começou a rodopiar pela pista, me levando junto. Richard
também não sabia dançar aquele ritmo, mas nenhum dos dois
parecia se importar. Ficamos apenas girando e rindo, nossas
bochechas bem próximas uma da outra. E foi tão… tão bom.
Ao longe, vi meus amigos dançando. Jéssica beijou o marido
com carinho após ser rodopiada uma vez e, sorrindo com as bocas
coladas, Elias tirou a coroa de flores da cabeça dela e colocou em
sua própria, fazendo a esposa soltar uma gargalhada.
— Julieta — Richard sussurrou de repente, a letra da música se
misturando à sua voz.

♪ No nosso livro, a nossa história


É faz de conta ou é faz acontecer? ♪
— O quê? — murmurei baixinho, bem ciente de seu corpo
colado no meu.

♪ No nosso livro, a nossa história


É faz de conta ou é faz acontecer? ♪
— Eu queria te fazer uma pergunta. — As pontas dos seus
dedos faziam movimentos lentos e circulares nas minhas costas.

♪ No nosso livro, a nossa história


É faz de conta ou é faz acontecer? ♪
— Qual? — Baixei o rosto de leve, meu nariz roçando a gola de
seu paletó. Ele cheirava a grama molhada e pinho.

No nosso livro, a nossa história…

Richard afastou o rosto, encostando a testa na minha. E ele não


precisava dizer nada para que eu visse a pergunta em seus olhos.

É faz de conta ou é faz acontecer?

Me perdi por um momento naqueles olhos de avelã,


esverdeados por fora e formando um degradê castanho até o
centro, brilhando de um jeito incrível à luz amarelada que vinha do
chão. E, sem me permitir tempo para pensar ou considerar… o
beijei.
Nossas bocas se tocaram de leve e, a princípio, Richard
apenas ficou ali parado, em choque. Até que sua mão subiu até
minha bochecha, segurando o meu rosto e, respirando fundo, ele
me beijou com urgência, seu outro braço me envolvendo e me
segurando com firmeza, como se tivesse medo que eu saísse
correndo.
Mas eu não pretendia correr. Não, apenas ergui uma mão e,
tocando seu rosto também, acariciei sua pele devagar conforme
Richard me beijava e me deixava cada vez mais sem fôlego.

♪ Acontecerá ♪
Capítulo 29
— Vamos sair daqui? — Richard sussurrou, o rosto ainda bem
perto do meu.
— Sair? Pra onde?
— Confia em mim? — Passou um dedo pela minha bochecha,
até meu lábio inferior.
Suspirei, o ar saindo trêmulo. E assenti.
Ele sorriu, pegou minha mão e começou a me guiar para fora
da pista de dança lotada, mas senti alguém segurar meu ombro.
Era Jéssica.
— Finalmente! — exclamou com um sorriso enorme, os olhos
brilhando. — Seu primeiro beijo, Ju!
É claro que ela tinha visto, eu nem deveria ficar surpresa. O
sentido aguçado de Jéssica não deixava que ela perdesse nenhum
detalhe do que acontecia ao seu redor.
Bom, mas tinha um detalhe que ela não sabia.
— Não foi o meu primeiro beijo — falei com um sorriso antes de
deixar que Richard continuasse me guiando para longe dali,
deixando minha amiga com os olhos arregalados e a boca
completamente escancarada para trás.
Nos afastamos do pátio e seguimos por uma trilha que eu ainda
não conhecia, cercada de árvores e vegetação, postes de luz baixos
que pareciam lampiões iluminando o caminho.
— Onde isso leva?
— Você vai ver. — Richard sorriu, sua mão ainda segurando a
minha conforme ele se mantinha um passo à frente na trilha estreita.
— Não fica muito longe, já estamos chegando.
E quando a trilha acabou, saímos em um campo amplo e
aberto, que estaria completamente imerso em escuridão se não
fosse pela… meu Deus…
Se não fosse pela enorme árvore no centro. O tronco grosso e
alto tinha sido todo enrolado com luzinhas amarelas e globos de
vidro com velas dentro pendiam dos inúmeros galhos.
— Que… Que lugar é esse? — sussurrei, maravilhada. O
cenário todo parecia tão mágico que eu não ficaria nem um pouco
surpresa se fadinhas começassem a voar da árvore.
— Minha mãe e André fizeram uma sessão de fotos aqui antes
da cerimônia. — Richard continuou me puxando, cada vez mais
perto da árvore mágica. E a cada passo dado, eu tinha que olhar
mais e mais para cima. Era tudo muito maior do que parecia.
Passamos pelos galhos mais baixos e tive que desviar de
alguns globos de vidro, mas chegamos na base do tronco, onde um
banco simples de pedra aguardava.
— É lindo — sussurrei assim que nos sentamos, e admirei a
paisagem.
Os ecos da música no pátio chegavam até nós, abafados, mas
fora isso o único som ali era o canto suave dos grilos e cigarras.
— É mesmo. Quando vi, sabia que queria trazer você aqui.
Arqueei uma sobrancelha e o encarei pelo canto do olho.
— Ah, então foi tudo friamente calculado?
Richard se esticou e inclinou, pegando algo atrás do banco.
Quando voltou a se erguer, tinha uma garrafa de champanhe e duas
taças em suas mãos.
— Meticulosamente calculado.
Pisquei uma vez.
— Eu não bebo. Quero dizer, não posso beber. Não devo beber.
Ele exibiu um meio sorriso, me oferecendo uma taça.
— Não conto nada se você não contar.
Hesitei.
— Elias vai me matar se souber. Vai te matar se souber.
— De novo… — insistiu, me olhando sugestivamente — não
conto nada se você não contar.
Mordi o interior do lábio, incerta… mas acabei aceitando.
— Então vamos lá… — Richard falou, enchendo minha taça e
depois a sua. — Vamos acabar logo com isso. Quer saber sobre o
que a mãe da Giovanna tava falando?
Arqueei as sobrancelhas, surpresa por ele ter abordado o
assunto tão rápido.
— Quero. — Beberiquei o champanhe. E fiz uma careta. Era
meio amargo e as bolhas faziam cócegas na minha língua.
— No começo do ano, pouco antes das férias terminarem, foi
quando eu decidi que queria cantar no casamento da minha mãe. E
já sabia até qual seria a música. Mas… — Bebeu um gole da sua
taça. — Como você sabe, ela é um dueto.
— Sei.
— Bem, você tava certa quando disse que tem várias cantoras
no conservatório, mas a verdade é que eu não sou próximo de
nenhuma. E não queria pedir a uma desconhecida que me ajudasse
com isso. Então… — Hesitou.
— Você pediu que Giovanna cantasse com você?
— Nós ainda éramos amigos na época — explicou. — E como
nossas mães são amigas desde a faculdade, achei que seria uma
boa ideia.
Bati os dedos contra o vidro da taça, pensando no que ele
disse.
— E em que momento as coisas deram errado? — perguntei
com cuidado, bebendo mais um gole. Minha língua estava
levemente dormente.
Richard suspirou, claramente frustrado.
— Eu… não sei bem. Estávamos ensaiando uma tarde, e ela
recebeu uma ligação. Disse que era assunto de família e que tinha
que ir. Eu não a vi por um tempo depois disso. Ela sumiu. Mas
finalmente a encurralei um dia, depois de uma de suas aulas
particulares de violoncelo, só que ela… tava estranha. Ansiosa,
estressada e com um mau-humor do cão.
— Ela não é sempre assim? — ironizei.
— Não era — Richard falou, no entanto. — Não quando não
estava na escola, pelo menos. Durante as férias, Giovanna parecia
outra pessoa. Mais leve, mais tranquila. Uma garota como qualquer
outra. Mas é só as aulas recomeçarem e ela fica daquele jeito.
Neurótica e estressada com tudo e todo mundo.
— E sem aceitar que alguém além dela se destaque —
acrescentei baixinho.
— É. Eu achava que era por causa… da puberdade, ou sei lá,
mas com esse concurso… ela ficou ainda pior.
— E aí vocês brigaram?
Richard não respondeu por alguns segundos.
— Sim. — Manteve os olhos baixos e bebeu mais um gole do
champanhe. — No primeiro dia de aula, depois que… depois de
ouvir o que ela tinha mandado os amigos fazer.
Franzi o cenho. O primeiro dia de aula…
— Que ficassem de olho em mim?
Ele bufou uma risada.
— Se é assim que quer chamar. Eu prefiro o termo
perseguição.
— Brigou com ela, sua amiga de infância, por minha causa?
Você nem me conhecia direito na época.
Richard sacudiu a cabeça.
— Não foi só isso. Eu… tava cansado daquilo tudo. De ver a
mesma Giovanna que cresceu comigo durante as férias, mas nas
aulas ela virar um monstro. Eu não queria mais ficar perto de
alguém assim. Então, depois que você foi embora naquele dia, voltei
e a encurralei num corredor. Disse que ela podia esquecer a música
do casamento e… toda a nossa amizade.
— Então foi isso que a mãe dela quis dizer quando disse que
ela ficou chateada. Eu não fazia ideia. E você nunca tentou
descobrir por que isso acontece com a Giovanna?
— Claro que sim. Mas ela nunca quis falar sobre isso comigo. E
chega uma hora que, sabe… a gente para de tentar.
Não falei nada por um tempo, apenas pensando em tudo aquilo.
— Bom, agora que isso já foi esclarecido… — Richard se virou
para mim, apoiando um braço no encosto de pedra do banco. — É a
sua vez.
Franzi as sobrancelhas.
— De quê?
— De explicar o que foi aquilo no corredor com o Vitor. E… —
fez uma careta — todo aquele rolo de antes.
— Eu já disse, não tem nada com o Vitor. Sei que deve ter sido
estranho me ver falando com ele, eu mesma ainda fico meio
confusa quando penso nisso, mas… ele precisava da minha ajuda
em uma coisa, só isso.
— Em quê?
Comprimi os lábios.
— Não posso dizer. Mas só porque não tem nada a ver comigo,
não é um assunto meu pra falar. Então, por mais que a situação te
incomode, e eu sei que incomoda… vai ter que confiar em mim. —
O olhei de esguelha com a sobrancelha arqueada.
Richard semicerrou os olhos, claramente contrariado, mas
suspirou com força pelo nariz.
— Tá, tudo bem. Se você diz que não é nada… Mas toma
cuidado. Essa gente não é nada confiável.
— São mais humanos do que pensei — confessei, no entanto.
— Quero dizer, eu sei que não posso confiar cegamente neles e não
sou ingênua a ponto de achar que podemos ser todos grandes
amigos, mas… também não são os monstros que achei que fossem.
E eu posso não entender e não concordar com o que fazem, mas...
acho que cada um ali tem seus motivos.
— Talvez — Richard murmurou depois de um tempo.
— Você não era amigo deles também?
Ele deu risada.
— Meu Deus, não. Já disse, eu nunca concordei com o
comportamento da Giovanna na escola, então sempre mantive
distância dos amigos dela. — Revirou os olhos. — Mesmo que
sejamos todos da mesma sala desde que entramos na escola.
Soltei uma risada fraca.
— Que pesadelo deve ter sido.
— Você nem faz ideia — Richard riu também.
Pigarreei.
— Sobre aquela… coisa que caiu da minha mochila… —
murmurei, as bochechas vermelhas. — Eu ainda não sei como foi
parar lá, mas não era meu. Graças a Deus, Jéssica salvou o meu
pescoço da expulsão, mas… foi por muito pouco. Quem quer que
seja o culpado, sabia muito bem o que tava fazendo. Não foi uma
simples brincadeira.
— Que mistério — Richard ironizou, revirando os olhos. Pra ele
também era óbvio quem tinha armado aquilo tudo.
Bebi mais um gole do champanhe e respirei fundo, esticando os
ombros. Não queria mais ficar pensando naquilo. Richard tinha
razão, aquela noite rara de tranquilidade devia ser aproveitada.
— O que sua mãe faz? — perguntei, mudando de assunto. —
Tá na cara que ela tem um ótimo gosto quando o assunto é festa e
decoração. Ela trabalha com isso?
Bebendo um longo gole de sua taça, Richard sorriu.
— Não. Ela é médica. Neurocirurgiã.
Parei com a taça a meio caminho da boca, os olhos
arregalados.
— Minha nossa — sussurrei. — Isso é… incrível.
Seu sorriso alargou.
— É sim. Ela e a tia Fer, mãe da Giovanna, trabalham no
mesmo hospital. Mas minha mãe trabalha muito, mal para em casa.
E quase nunca sai pra se divertir. Por isso fiquei feliz quando ela
conheceu o André. Ele é incrível, e minha mãe merece alguém
assim.
Um sorriso tomou forma em meu rosto.
— Eu imagino.
Alguns minutos se passaram antes de Richard perguntar com
cuidado:
— O que aconteceu com os seus pais?
Olhei para ele, surpresa com a pergunta, mas voltei a baixar os
olhos quando falei:
— O homem responsável pela minha existência nos abandonou
quando eu era criança. Parece que conheceu outra mulher, e…
fugiu com ela. Pra formar outra família. — Respirei fundo. — Desde
o dia que ele foi embora, até hoje, nunca voltou a entrar em contato.
Nem sequer tentou. Ele simplesmente… finge que nós nunca
existimos.
— Sinto muito — Richard murmurou baixinho após alguns
segundos.
— O que aconteceu com o seu pai? — perguntei, encarando a
grama aos meus pés com os olhos inexpressivos.
— Nada. Ele e minha mãe só não estavam mais se
entendendo, mas não guardam rancor um do outro. Pelo contrário,
continuam sendo amigos.
Arqueei as sobrancelhas. Aquilo sim era novidade pra mim.
— Ele voltou a se casar?
— Sim.
— E sua mãe e a nova esposa dele se dão bem? — Na minha
cabeça aquilo não era possível.
— Claro, os três se dão muito bem. Minha mãe, meu pai e o
marido dele.
Ergui a cabeça num salto, encarando Richard. E soltei uma
risada surpresa.
— Minha nossa, me desculpa. — Cobri a boca com a mão livre.
Eu não achava engraçado de verdade, mas fui pega desprevenida.
Richard, no entanto, riu.
— Tudo bem, é meio engraçado mesmo quando se para pra
pensar. Mas todos se dão bem e são felizes, isso é tudo que
importa.
— É verdade.
— E a sua… — hesitou — sua mãe?
Engoli em seco. E dei umas boas goladas no champanhe antes
de começar a falar.
— Minha mãe… morreu num acidente. No mesmo ano em que
fomos abandonadas. Não sei direito o que aconteceu, mas… um
cara apareceu no meio da avenida, um dos carros não conseguiu
desviar a tempo, e… o atropelou. Mas não parou por aí. O motorista
perdeu o controle do volante e cruzou a faixa. Ia bater de frente com
o táxi que a minha mãe estava. O taxista tentou manobrar pra
desviar, e virou o carro. A batida aconteceu… bem no lado do
passageiro. Bem onde minha mãe… — Não consegui continuar.
Ouvi quando Richard engoliu em seco.
— Eu… sinto muito — falou, a voz mal passando de um
sussurro assombrado.
— Nem ela, nem o homem que foi atropelado resistiram —
continuei, o gosto do champanhe ficando ainda mais amargo na
minha boca. — Alguns dias depois, a polícia apareceu na casa do
meu avô. Devolveram o violoncelo da minha mãe, o único pertence
dela que não tinha sido destruído. Acho que ele tava no banco atrás
do motorista, por isso não sofreu nenhum dano.
— Entendi.
— Naquele mesmo dia, um homem da assistência social
apareceu. — Respirei fundo. — Eu lembro que fiquei com medo
quando o vi. Era bonito e surpreendentemente jovem, mas o cabelo
preto dava um contraste gritante com a pele tão pálida, os olhos de
um azul intenso e frio e… uma cicatriz enorme no lado direito do
rosto. E tinha uma expressão tão séria e dura que me deixou
arrepiada e tremendo da cabeça aos pés. Enfim… meu avô ficou
muito bravo quando ele apareceu e o mandou embora, dizendo que
a assistência social não tinha nada que fazer ali pois agora eu era
responsabilidade dele… e bateu a porta na cara do homem. Eu
comecei a chorar, achando que ele ia dar um jeito de entrar e me
levar à força, mas… ele não voltou. E somos apenas eu e meu avô
desde então.
— Eu não… fazia ideia de que você tinha passado por tanta
coisa — Richard murmurou, a voz baixa. — E sendo apenas uma
criança, eu... sinto muito.
Dei de ombros.
— Tudo bem. Meu avô cuidou bem de mim, apesar de não
concordar com a minha escolha de seguir carreira na música. Ele
nunca gostou da ideia, diz que não é trabalho de verdade. Mas aí a
saúde dele ficou frágil e eu tive que assumir as finanças da casa,
então… ele não tem muita escolha agora, eu acho. — Soltei uma
risada fraca, mas sem humor.
— Foi por isso que você optou pela emancipação?
Não falei nada por um tempo.
— Ele não tinha mais condições de cuidar de mim. Então, ou
era isso... ou eu ia pra um abrigo.
Richard engoliu em seco. Mas não forçou mais o assunto.
— Sua mãe também tocava. — Não foi uma pergunta.
— Sim.
— Profissionalmente.
— Em eventos, como eu.
— Profissionalmente — Richard repetiu. — E ainda assim, seu
avô não via como um trabalho de verdade?
Dei de ombros.
— Ele nunca foi muito bom em… dar o braço a torcer. Mas pelo
menos nunca tentou me impedir de fazer o que eu queria. Acho que
ele viu como a música era importante pra mim, ainda mais depois do
acidente. Tocar… me ajudou a colocar as emoções no lugar.
Estiquei e alonguei as pernas que começavam a ficar
dormentes, e Richard apoiou a taça no chão e as pegou, me virando
de frente para ele e colocando em seu colo.
— N-Não precisa…
— Como ela era? — perguntou simplesmente, me
interrompendo… e acariciando minha panturrilha exposta pela fenda
do vestido, as pontas dos seus dedos fazendo movimentos
circulares e preguiçosos. — Sua mãe.
— Ah… — Tive que piscar várias vezes para conseguir tirar a
atenção de seus dedos e da sensação quente e… muito boa que se
espalhava ali. Na minha perna, quero dizer. — Ela… Ela era… a
mulher mais incrível que já conheci.
Seus dedos subiram um pouco, perto da parte de trás do meu
joelho.
— Fala mais — pediu, a voz tranquila e gentil.
— Ela… adorava me contar histórias — falei, tentando me
concentrar em qualquer coisa que não fossem os dedos de Richard.
Ou meu coração disparado. — Não os contos de fadas tradicionais,
ela… gostava de criar as próprias histórias. Uma vez, me contou
uma sobre… um palácio. Com um céu estrelado dentro.
— Tipo… um pátio ao ar livre?
— Não. Literalmente um céu, do lado de dentro. Segundo a
história, o palácio era mágico e apenas os melhores magos e
feiticeiros ganhavam acesso pra entrar e fazer suas magias.
— Ah, tipo Hogwarts?
— Não — dei risada. — Pelo menos não foi o que pareceu
quando minha mãe contou. Qualquer um de fora podia entrar pra
ver a mágica que acontecia lá dentro, como se fosse um espetáculo.
E quando saíam, descobriam que todas as suas preocupações e
medos tinham desaparecido. Quem entrava doente, era curado. E
quem tinha o coração ferido, voltava a ter esperanças.
Richard ponderou por um tempo.
— E tudo isso acontecia debaixo do teto de estrelas?
— Era um céu — corrigi, petulante, e segurando a risada. —
Mas sim. Eles olhavam pra cima e... a grande inspiração dos magos
e feiticeiros pra fazer sua mágica vinha das estrelas únicas que eles
tinham lá dentro.
Richard sorriu, as luzinhas enroladas no tronco atrás de nós
refletindo em parte de seu rosto.
— Deve ser um lugar lindo.
— É… — Baixei os olhos, meu sorriso sumindo devagar. — Ela
me contou essa história na noite antes do acidente. Disse que as
coisas finalmente iam melhorar pra nós e que ia me levar lá um dia.
Respirei fundo, o ar saindo trêmulo da minha boca.
A outra mão de Richard alcançou meu queixo e ergueu meu
rosto. Quando meus olhos encontraram os dele, nossos rostos
estavam bem, bem perto.
— Sinto falta dela — sussurrei com a garganta apertada, a
visão ficando borrada. — Acho que uma parte de mim nunca vai
conseguir seguir em frente. Acho que uma parte de mim… morreu
com ela naquele acidente.
A parte que via a beleza da vida, que acreditava que o arco-íris
aparecia depois de uma tempestade… a parte que tinha
esperanças. A parte que era feliz.
— Ela não se foi completamente — Richard sussurrou de volta,
encostando a testa na minha. — Ela ainda vive, Julieta. Dentro de
você. E ela nunca vai sair daí. Nunca vai te abandonar. — Roçou a
ponta do nariz no meu. — E eu também não, se é que isso faz
alguma diferença.
Soltei uma risada quebrada, fungando e tentando engolir de
volta as lágrimas que se acumulavam nos meus olhos.
Tentando trancar tudo aquilo de volta.
Mas assenti para Richard, tentando controlar minhas emoções,
tentando me controlar, e falei a única coisa que eu sabia que me
ajudaria a parar de pensar. E de sentir dor.
— Faz sim. Como faz. — Segurei a barra do seu paletó. —
Richard... me beija — sussurrei. Implorei. — Por favor.
Eu não precisei pedir uma segunda vez.
Os dedos no meu rosto me seguraram com mais firmeza, se
enroscando no meu cabelo, e a boca dele se prendeu à minha, o
gosto do champanhe agora doce em minha boca levando embora
todas as lágrimas não derramadas junto com o meu fôlego. Eu não
tinha percebido como nem quando a mão na minha perna tinha
subido mais, mas agora estava segurando a minha coxa, logo acima
do joelho.
— Pelo amor de Deus, Julieta — arfou, mas sem me soltar —,
você não precisa implorar por nada, muito menos por algo assim.
Não obedeci.
— Por favor — arfei de volta, enrolando os dedos na gola de
sua camisa. — Por favor.
— Droga, você quer me matar — ele grunhiu, meio
desesperado, mas voltou a me beijar.
Sua boca desceu pelo meu pescoço, carinhosa, me deixando
arrepiada dos pés à cabeça, e parou na minha clavícula exposta. A
mão na minha perna subiu mais um pouco…
E eu me sobressaltei, o corpo endurecendo.
— Desculpa — Richard murmurou, descendo a mão. —
Desculpa.
Levei alguns segundos para recuperar o fôlego.
— Tudo bem. Tudo bem, só… vamos com calma, pode ser?
— Claro. — Seu polegar contornou minha bochecha. — Vamos
no ritmo que você quiser.
Assenti, meio sem graça.
— Você já…? — Não consegui terminar a frase, mas ele
entendeu.
— Não. — Afastou uma mecha de cabelo do meu rosto. — Já
fiquei com outras garotas antes, mas nada sério a esse ponto.
Você?
Bufei uma risada.
— Precisa mesmo perguntar?
Richard sorriu, mas encolheu os ombros.
— Nunca se sabe.
— Eu… fiquei com um menino uma vez, na minha antiga
escola. Mas foi só um beijo — acrescentei depressa quando ele
arqueou as sobrancelhas e sorriu, surpreso. — Aquela estupidez
de… jogo da garrafa.
— Jogo da garrafa?! — engasgou, rindo.
Gemi, envergonhada.
— Foi só uma vez, e eu odiei. Tanto que saí correndo depois
que acabou.
— Ah, isso sim é uma surpresa e tanto. — Richard tentava
segurar o riso. — Quem diria que você já participou de um jogo
assim por livre e espontânea vontade?
Encolhi os ombros.
— Às vezes eu sou curiosa.
Ele riu mais uma vez e, ainda segurando meu rosto e minha
perna, beijou minha boca de leve.
— Bom, me avise quando ficar curiosa de novo. Vou ficar mais
do que feliz em te ajudar com isso.
Meu queixo caiu e soltei uma risada incrédula.
— Richard!
Ele sorriu, nem um pouco arrependido.
— O quê? Só tô sendo sincero.
Ao longe, ouvi uma voz masculina chamando, cada vez mais
perto... e mais irritada:
— Julieta! Julieta, cadê você?
Arregalei os olhos. Elias. Estava vindo da trilha.
— Quando encontrar aquele espertinho, eu juro que vou…
— É melhor eu ir — falei antes de deixar Richard ouvir o final
daquela sentença, e saltei do banco.
— Espera. — Ele me segurou pelo pulso, me fazendo virar.
E me puxou de volta para baixo, me fazendo cair… sentada em
seu colo. Não tive nem tempo de reagir, pois Richard me beijou com
tanta fúria e desejo, como se estivesse me engolindo, uma mão
segurando minha nuca enquanto a outra segurava minha coxa com
firmeza.
— Até segunda — falou, a voz rouca e os lábios inchados.
— A-Até — gaguejei, desnorteada, enquanto me punha de pé
aos tropeços.
— Julieta! — Elias voltou a chamar e me apressei pelo campo,
as pernas bambas.
Olhei por cima do ombro antes de entrar na trilha e vi Richard
ainda ali, embaixo da árvore iluminada e em pé ao lado do banco.
Ele acenou, um sorriso enorme e brilhante estampado no rosto.
Sorri de volta, sentindo as bochechas quentes e o corpo
formigando de uma maneira nova e incrível nos lugares onde ele
tinha me tocado.
— Até segunda, Richard.
Capítulo 30
Quarta, 12 de junho
O dia da segunda seleção.
Era de se esperar que eu estivesse nervosa e insegura, o que
faria com que eu parecesse qualquer ser humano normal, mas a
verdade é que o único sentimento, a única coisa que corria pelas
minhas veias quando acordei de manhã, era adrenalina.
Eu estava louca pra subir no palco mais uma vez e quase podia
sentir o sangue subir aos olhos.
Tenho que confessar que às vezes essa parte de mim me assusta
um pouquinho.
Mas era a verdade. Eu não sentia nem um pouco de medo do que viria pela frente, e
com certeza não estava preocupada com a minha performance. Eu me sentia confiante.
Invencível. Poderosa. Nada nem ninguém poderia me abalar.
Bom, ninguém exceto meu pai. Que me fez passar uma vergonha
sem tamanho na entrada da escola.
Como todas as manhãs, ele me levou pra aula. Como todas as manhãs, ele colocou um
CD diferente pra tocar, de bandas da época dele. Eu não me importava. Na verdade, até
gostava.
O problema foi que hoje, especificamente, ele estava com o
humor nas alturas e se sentindo nostálgico ao mesmo tempo. Então
é claro que o resultado disso só podia ser uma cena escandalosa
dele cantando Mulher de Fases a plenos pulmões com o volume no
máximo e quicando no assento. Tudo isso enquanto parava em
frente à escola com uma multidão de alunos de plateia.
Eu me encolhi no assento do passageiro, cobrindo a cabeça e
escorregando para baixo até ficar fora de vista. E estava prestes a
me recusar a descer quando alguém se debruçou sobre a minha
janela com a maior naturalidade do mundo.
“Bom dia, seu Carlos”, falou por cima da música com a mesma
animação do meu pai. Eu não precisava olhar pra saber quem era.
Pelo contrário, me encolhi ainda mais, queimando de vergonha.
“Bom dia, Vougan!”, meu pai respondeu com um sorriso enorme.
“Grande dia hoje, hein. Nervoso?”
Vougan riu com gosto.
“Sinceramente, acho que o meu nervosismo acabou de ir embora,
graças ao senhor.” Ah, bom pra ele. “Vai ficar pra assistir?”
“Bem que eu gostaria, mas o trabalho me espera. Só vim deixar a
Aurora.”
“Ah você tá aí, é?” Vougan olhou pra baixo, para mim, com uma
surpresa fingida. “Por que parece que você tá se escondendo,
Moranguinho? Aconteceu alguma coisa?”
“Não enche”, resmunguei de volta.
Mas Vougan, como o perfeito pé no saco que é, apenas trocou o
peso de perna e se acomodou mais na minha janela.
“Acho que alguém tá nervosa com a segunda seleção”,
cantarolou.
Pfff… bem que ele gostaria mesmo.
“Vai se ferrar.”
“Tá vendo como a sua filha me trata?”, falou todo dramático pro
meu pai.
“Seja legal com ele, filha, o garoto só se preocupa com você.”
Me ergui, bufando e revirando os olhos.
“Você é um puxa-saco.” Olhei meu pai com uma carranca, e me
virei para Vougan. “E você é um…”
“Cara incrível e atencioso, preocupado com a sua garota?”, me
interrompeu, piscando e sorrindo como um perfeito cafajeste.
Mas aquelas palavras saindo de sua boca… minha garota.
Eu podia sentir o meu lado feminista e autossuficiente virando
fumaça.
Mas era birrenta o bastante pra não dar o braço a torcer.
“Um babaca”, falei do jeito mais seco que consegui. “Sai da frente,
preciso descer.” Fui abrindo a porta do carro.
Vougan riu e levantou, dando um passo para trás.
“Boa aula pra vocês”, meu pai falou, acenando lá de dentro. “E
boa sorte no concurso.”
Me inclinei sobre a janela, ocupando o lugar de Vougan, e
assoprei um beijo para ele.
“Bom trabalho, pai. Te amo.”
“Também te amo, filhota.” Sorriu de volta.
“Por que eu nunca ouvi isso?”, Vougan perguntou assim que meu
pai foi embora.
“Isso o quê?”
“Sabe muito bem o quê. Aquelas… três palavras.”
Meu coração deu um salto.
Faz quase um mês desde que eu e Vougan… bem, passamos
de colegas a… levemente comprometidos. Nenhum dos dois usou o
termo namorados ainda, e eu não tenho experiências passadas pra
poder comparar, mas tenho quase certeza de que estamos mais ou
menos nesse caminho.
Mas o que ele estava dizendo…
“Tá com pressa?”, provoquei, tentando disfarçar o coração
acelerado, e passei por ele, seguindo até os portões da entrada. “Se
eu não te conhecesse, diria até que parece um cachorrinho sem
dono.”
Olhei para ele por cima do ombro. Vougan continuava ali parado, me olhando com
curiosidade, as mãos nos bolsos da jaqueta de couro.
“O que foi?”, perguntei.
Ele apenas continuou me olhando e, após alguns segundos,
soltou uma risada.
“Me diz, Deus, o que é que eu faço agora?”, cantarolou. “Se
me olhando desse jeito ela me tem na mão.”
Um sorriso se formou em meus lábios. E encolhi os ombros.
“Meu filho, aguenta. Quem mandou você gostar…” Deixei o
restante da música no ar e estiquei a mão, a palma virada para
cima.
O sorriso de Vougan alargou e ele veio até mim, sua mão
cobrindo e segurando a minha conforme seguimos para dentro da
escola.
E estávamos quase chegando na entrada dos fundos do auditório
quando um garoto alto apareceu por trás, passando um braço sobre
os ombros de Vougan e puxando-o bruscamente de mim num
abraço.
“E aí garotão, como é que vai?”, falou com um sorriso cafajeste,
parecido com o de Vougan. Na verdade, eles eram bem parecidos,
desde os olhos azuis até o cabelo castanho-escuro.
“Sai fora, Vinícius”, Vougan resmungou, se soltando do garoto,
por falta de palavra melhor. Ele parecia ser mais velho que nós,
provavelmente entre 18 e 19 anos, e era uns bons centímetros mais
alto. Vougan mesmo, que já era maior que eu, batia no ombro dele.
“O que você quer aqui?”
“Quanta grosseria”, Vinícius cantarolou, ainda sorrindo. “Só vim
desejar boa sorte ao meu querido primo, não precisa ficar
nervosinho.”
Tentei não parecer surpresa, mas os olhos dele voaram até mim.
E soltou uma gargalhada.
“Confraternizando com o inimigo, Vougan? Seu velho não ia
gostar de saber.”
“Meu velho pode ir à merda”, ele cuspiu, os olhos repentinamente
gélidos e afiados. “Ao contrário do que todos vocês pensam, não
podem controlar cada passo meu. Eu já tô no concurso, não tô? O
que eu faço ou deixo de fazer nesse meio-tempo não é da porra da
conta de vocês.”
Todos os meus sentidos ficaram em estado de alerta e meu corpo
endureceu feito uma estátua. Vougan tinha mencionado que só
estava participando do concurso por causa da família, mas eu nunca
pensei que a relação deles fosse tão… conturbada assim.
Mas eu estava muito enganada, e percebi isso no momento em
que a descontração desapareceu por completo do rosto de Vinícius,
dando lugar a uma expressão fria e séria.
“Eu não teria tanta certeza se fosse você”, falou com a voz baixa
e calma demais. “É bom você levar isso a sério, Vougan. É minha
responsabilidade ficar de olho em você, então se ferrar tudo de
propósito eu vou saber. Sabe como isso é importante pra nossa
família. Foco.” Olhou para mim com desconfiança, me analisando de
cima a baixo. “E vê se para de ficar brincando, ou vão te passar a
perna quando você menos esperar.”
Tá, eu entendia que aquele concurso fazia parte da tradição da
família deles… mas Vinícius tinha ido longe demais.
“Tá querendo dizer o quê?”, rosnei entre dentes, avançando até
ficar bem de frente com ele. “Se tem um problema comigo, fala na
minha cara.”
“Olha aqui, garota…”, começou, impaciente.
“Não, olha aqui você.” Cutuquei seu peito com força. Eu tinha
metade do tamanho dele e o encarava de baixo, mas não me deixei
intimidar. “Pode se gabar o quanto quiser sobre o concurso, sobre a
sua família ou o que for, mas não ouse insinuar qualquer coisa
sobre mim nunca mais, tá entendendo?”
Vinícius semicerrou os olhos.
“Como você se atreve…”
“Me atrevendo!”, interrompi. E num ato de completa loucura e
falta de juízo, agarrei a gola de sua camisa e o puxei para baixo, até
que seus olhos estivessem quase na altura dos meus. “Cometa o
erro de me insultar mais uma vez e vai ser a última coisa que vai
fazer. Pouco me importa quem você é, se sua família é rica ou se
seu velho tem alguma influência nessa escola. Quer um motivo pra
falar mal de mim? Continue testando a minha paciência e eu
realmente vou te dar um. Só reze pra ter a sorte de continuar com a
língua presa na garganta quando eu terminar de acabar com a sua
raça.”
“Aurora…” Senti a mão tensa de Vougan no meu ombro.
Mas continuei segurando o primo dele com força, fuzilando-o nos
olhos…
“Aurora”, Vougan voltou a falar, e dessa vez não era um pedido.
Afrouxei os dedos e soltei, Vougan me puxando para trás. Não
para me proteger, mas para me afastar de Vinícius. Para evitar que
eu o atacasse.
O garoto se endireitou, ajeitando a camisa amassada, mas apesar
do rosto estar mais pálido que antes, seu olhar não vacilou. Não, ele
apenas continuou me encarando, dessa vez com curiosidade, como
se tentasse me decifrar.
“Sai daqui, Vinícius”, Vougan falou com irritação. “O concurso
começa daqui a pouco, e a última coisa que precisamos agora é nos
atrasar por causa de uma discussão.” Sorriu com malícia. “Não vai
querer levar a culpa se eu for desclassificado, né?”
O primo soltou uma risada desprovida de humor, e começou a se
afastar.
“Você bem que gostaria que eu levasse a culpa. Mas lá no
fundo sabe que é o deslocado da família, Vougan. Continue assim,
e vai jogar no lixo décadas de trabalho duro que o nosso sangue,
que o seu sangue, teve pra se manter no topo. E o culpado não vai
ser ninguém além de você.”
“Seu primo é um babaca”, falei assim que ele sumiu de vista.
“Achei que eu fosse um babaca. Foi do que você me chamou
mais cedo”, acrescentou quando franzi as sobrancelhas.
“Tá, então retiro o que disse. Seu primo é um cuzão.”
Vougan riu.
“Difícil não concordar. Mas… ele tá certo. Eu sou o deslocado da
família.”
Levei alguns segundos para responder:
“E isso é ruim?”
“Eu… não sei. Talvez sim, talvez não. Eu ainda não sei ao certo.”
Respirei fundo e me aproximei dele, segurando sua mão.
“Eu posso não entender exatamente como você se sente…”,
comecei. Vougan encarava nossos dedos entrelaçados. “Mas você
tem todo o direito de querer seguir um caminho diferente. É a sua
vida, Vougan. Seu futuro. De ninguém mais. Não importa se o
mundo tá explodindo ao seu redor. Não importa se sua família te
critica. A única coisa que realmente importa é o que você quer.”
“E como eu sei o que eu quero?”, perguntou baixinho.
Me aproximei mais dele e inclinei a cabeça, até que seus olhos
encontrassem os meus.
“Porque vai parecer certo. Não aqui.” Toquei a lateral de sua cabeça. “Mas aqui.” Desci
o dedo até seu coração. “Não tem como ser errado quando vem daqui. Entendeu?”
Vougan assentiu devagar, os olhos quase cinza fixos nos meus.
“Então acho que eu queria muito ver você meter a porrada no
meu primo, porque meu coração tava quase explodindo de
expectativa quando você o ameaçou.”
Soltei uma gargalhada.
“E isso confirma as minhas suspeitas de que você tem uma queda
pelo meu lado agressivo.”
Vougan esboçou um sorriso largo.
“Tá mais pra um abismo. Ver esses olhos castanhos pegando
fogo me excita.”
Meu coração saltou feito uma rolha de champanhe, mas me
obriguei a ficar firme.
“Eu poderia viver sem saber disso.”
“Duvido muito.” Seu sorriso adquiriu uma pontada de malícia, e a
mão que segurava a minha passou para o meu quadril, subindo
lentamente até a curva das minhas costas. “Eu já disse como você
está perturbadora hoje?”
Engoli em seco.
“Que tipo de elogio é esse?”, balbuciei, tentando manter o foco.
Mas Vougan aproximou a boca do meu ouvido, sua respiração
quente fazendo todo o meu corpo ficar arrepiado.
“Do tipo que descreve perfeitamente como você tá me torturando,
Moranguinho.”
Meus joelhos fraquejaram.
Tudo bem, dessa vez eu realmente tinha ousado um pouco na escolha do look para a
segunda seleção. Mas é que eu gostava muito de me arrumar, ainda mais em ocasiões
especiais e, principalmente, quando tinha liberdade pra usar o que quisesse. Então, sim,
nessas horas eu usava e abusava da minha criatividade.
Tinha optado por um vestido branco leve, longo e largo, de mangas compridas ombro a
ombro estilo cigana. A saia esvoaçante descia até minhas canelas e tinha uma fenda na
lateral da perna direita. E, bem, o vestido não acentuava nenhuma curva, mas o espartilho
justo preto de couro deu conta do recado. Nos pés eu usava um dos meus vários All Stars,
dessa vez preto de cano alto. O cabelo estava como todo dia, cacheado e solto, mas eu
tinha retocado as mechas cor-de-rosa, então a cor estava bem vibrante.
“Isso aqui solta?” Vougan alcançou o cordão na frente do meu
espartilho, uma sobrancelha arqueada de forma sugestiva.
“Isso você nunca vai descobrir.” Afastei a mão dele com um
tapa, me recompondo. “Vamos logo, ou vamos nos atrasar.
Descobriu o que é o seu algo em que acreditar?”, perguntei, me
referindo ao tema, conforme seguia para o interior do prédio.
“Ah, sim.” Vougan veio atrás de mim com aquele sorriso cafajeste.
“É uma peça que diz como eu acredito que até o fim do dia vou
conseguir arrancar esse espartilho de você.”

“Bom dia, Vougan.” Susana veio cumprimentá-lo, cheia de
sorrisinhos, quando entramos na coxia. E jogou os braços ao redor
de seu pescoço, puxando-o num abraço.
Bom, nisso éramos parecidas. Minhas mãos também coçavam
para agarrá-la pelo pescoço.
“Bom dia, Susana”, Vougan respondeu com educação, mas tratou
de soltá-la logo.
“É, bom dia Susana.” Esbocei um sorrisinho, sem me preocupar
se parecia falso.
“Bom dia, Aurora.” Ela sorriu com inocência, inabalável. “Algum de
vocês viu o Marcus por aí?”
“Não, graças a Deus”, bufei.
“Não, não vimos”, Vougan reforçou, me olhando com reprovação.
“Mas ele deve estar por aí em algum lugar.” Voltou os olhos para
Susana. “Não se preocupa, logo ele chega.”
“Claro.” Ela voltou a sorrir. E olhou para mim. “Aurora, posso falar
com você um segundo?”
Arqueei as sobrancelhas. Aquilo sim era inesperado.
“Sobre?”
Mas ela apenas olhou para Vougan pelo canto do olho, como se
não pudesse falar com ele ali.
“Eu já volto”, ele falou por fim, pegando a deixa. “Preciso conferir
a… afinação do violoncelo. Lá na sala de ensaio. Até mais tarde.”
Piscou um olho para mim conforme se afastava. Tentei segurá-lo ali,
mas ele se desvencilhou da minha mão e saiu. Filho da mãe.
“O que você quer?” Encolhi os ombros e cruzei os braços. Não
estava nem um pouco a fim de ficar batendo papo com ela.
Mas Susana, que não devia ter um pingo de noção sobre espaço
pessoal, esticou a mão e segurou meu pulso.
“Queria pedir desculpas pelo meu comportamento no dia da
inscrição.” Me olhou com os enormes olhos turquesa arregalados.
“Eu estava com os ânimos à flor da pele com toda essa coisa do
concurso, sabe como é. É muita pressão.”
Fiquei encarando a mão no meu pulso. Ela não se tocou e
continuou me segurando.
“Aham”, foi tudo que respondi.
“Fico muito feliz por você ter passado. Você é uma musicista
incrível e eu só queria que soubesse que é um prazer pra mim
competir ao seu lado.”
“Mesmo que eu seja apenas uma novata?”, arqueei uma
sobrancelha, citando suas mesmas palavras daquele dia.
Susana fechou os olhos, parecendo se sentir culpada.
“Eu sei, o que eu disse foi horrível. Desculpa, eu não queria…” Suspirou, abrindo os
olhos e finalmente me soltando. “É só que é muita pressão. Principalmente pra quem
estuda aqui há mais tempo. Sabe, nós crescemos ouvindo que temos que ser os melhores
e… uma hora ou outra, isso acaba subindo à cabeça.”
E quando ela disse isso, eu me lembrei da amiga de Vougan
chorando na escada.
“Pressionar os alunos não ajuda em nada”, falei. “Não é um
incentivo saudável.”
“Sim, eu concordo. Por isso mesmo vim pedir desculpas. E dizer
que, se precisar de algo… de ajuda, de um conselho ou de qualquer
outra coisa, principalmente com o concurso, é só pedir. Afinal de
contas, nós garotas temos que nos manter unidas, não é
mesmo?” Me lançou uma piscadela.
E teria sido um final perfeito para o assunto… se eu tivesse
segurado a minha língua.
“Igual você fez com a Sarah? Marcus a enganou e chutou pra fora
do concurso, e no mesmo dia vocês estavam agarrados. Isso é
união feminina pra você?”
O sorriso de Susana sumiu no mesmo segundo.
“Eu não sabia que eles estavam juntos”, falou, os olhos
arregalados. “Fiquei tão chocada quanto você naquele dia. Ele…
nós nos aproximamos ao mesmo tempo em que ele e a Sarah.
Depois da primeira seleção, quando finalmente ficamos sozinhos…
eu estava tão brava e ia terminar tudo, mas… ele me pediu outra
chance. Me garantiu que só fez aquilo por estratégia porque queria
que nós fôssemos juntos pra final do concurso.”
“E você acreditou?”, perguntei, incrédula.
Eu estava certa, Susana era mesmo burra.
Ela encolheu os ombros, os olhos baixos.
“Ele prometeu que não ia sabotar mais ninguém. E eu… gosto dele. Sabe como é
quando gostamos de alguém.” Voltou a me encarar, e dessa vez seu olhar era firme.
“Fazemos qualquer coisa por eles. Até mesmo perdoar as vezes que nos magoaram.
Certo?”
Eu não sabia o que responder, pois não podia dizer as palavras
exatas que estava pensando.
Porque se fosse Vougan quem tivesse feito tudo aquilo na cara de
pau e ainda pedido uma segunda chance, ele já estaria largado em
uma vala sem a cabeça.
“É…”, murmurei em resposta, desesperada pra terminar aquela
conversa. “Bom, não se preocupe comigo. Sem ressentimentos.”
“Mesmo?” Susana voltou a segurar meu braço e tive que me
segurar muito pra não me esquivar dela.
“Mesmo”, me apressei em dizer, forçando um sorrisinho. “É
melhor eu ir, eu… preciso conferir a afinação da harpa”, dei a
mesma desculpa esfarrapada de Vougan. “Boa sorte com a sua
apresentação.”
“Pra você também.” Sorriu conforme eu passava por ela.
E podia ser porque eu não fui muito com a cara dela desde o
início, ou era apenas coisa da minha cabeça, mas algo na pessoa
de Susana ainda não me descia muito bem. Provavelmente era
aquele brilho ambicioso em seu olhar, que poderia até ser
interpretado como algo sem muita importância, se não fossem as
palavras “você vai precisar” que eu podia quase jurar ver
estampadas ali.

Marcus ainda não tinha aparecido. Faltava menos de quinze
minutos pra segunda seleção começar, e ele simplesmente não
estava ali.
“Será que passou mal?”, cochichei para Vougan.
“Ou amarelou”, cochichou de volta. “Ele não tá batendo bem da
cabeça ultimamente, não me surpreenderia nada se tiver desistido.”
Depois de todo aquele show na primeira seleção? Eu duvidava
muito.
“Você teve alguma notícia, Susana?” Me virei para ela, que olhava
fixamente para o palco do outro lado das cortinas.
Ela virou a cabeça para mim lentamente, os olhos vidrados.
“Não. Espero que esteja bem.”
Calma demais.
“Mas você tentou falar com ele?”, insisti.
“Não”, resmungou, impaciente, sacudiu a cabeça e voltou a olhar
para frente. “Quero dizer, eu me preocupo com Marcus, mas sou a
primeira a me apresentar. Não posso ficar pensando nele agora.”
E, bem, ela tinha um ponto.
Mas ainda assim era muito estranho que ele tivesse simplesmente
desaparecido.
“Com licença”, uma voz suave e tímida falou atrás de nós de
repente, e cutucou o ombro de Vougan.
“Princesa!” Ele sorriu assim que se virou e a puxou num abraço
de urso, tirando a garota do chão. “O que veio fazer aqui?”
“Desejar boa sorte, é claro”, ela falou com os olhos brilhantes
assim que Vougan a soltou. “Eu não perderia por nada, ainda mais
com vocês dois participando.” Olhou para mim, seu sorriso
crescendo. “Oi, Aurora.”
Meu Deus, ela era tão fofa.
“Oi, Clarice.” Sorri de volta. “Ou eu preciso te chamar de Princesa
também?”
Ela riu.
“Não, isso é coisa do Vougan. Eu já desisti de tentar fazer ele me
chamar pelo nome.”
Ah, como eu entendia.
“Vocês deviam ficar lisonjeadas.” Ele arqueou as sobrancelhas
com superioridade. “Não coloco apelido em qualquer um, só quem é
importante pra mim.”
Clarice corou, mas seu sorriso tímido cresceu. E, bem… minhas
bochechas também esquentaram um pouquinho.
“Onde ela está?”, alguém bradou de repente, entrando na coxia
como um furacão e fazendo a garota congelar e encolher feito um
gato assustado. “Ah, te achei”, o homem alto de olhos azuis e
óculos quadrados resmungou assim que botou os olhos nela.
“Pensei que tivesse mandado você usar o tempo livre pra estudar.”
Ao mesmo tempo, tanto eu quanto Vougan nos postamos na
frente dela, impedindo que o professor a alcançasse.
“Ela é nossa convidada”, grunhi entre dentes, encarando os olhos
duros do homem.
“E não tem obrigação nenhuma de fazer qualquer atividade escolar durante o concurso”,
Vougan acrescentou, os olhos alertas.
“Vocês não passam de dois pivetes”, ele cuspiu, nos fuzilando.
“Acham mesmo que podem passar por cima da minha autoridade?”
Ah, eu estava muito perto de dizer onde ele podia enfiar aquela
autoridade, mas…
“Ricardo!”, alguém exclamou com animação pura e… pulou no
pescoço do homem, o abraçando.
Tive que piscar uma, duas vezes, antes de entender o que estava
acontecendo. Não tinha sido Clarice, mas… Susana.
“Que bom te ver aqui!” Ela sorriu de um jeito iluminado que eu nunca tinha visto antes.
Ao meu lado, Vougan estava imóvel. “Vai ficar pra assistir?”
“Eu…” O homem a olhou com uma expressão confusa e… pouco
interessada. “Não, só vim buscar minha aluna fujona.” Sorriu de uma
forma que tinha a intenção de ser descontraída, mas não me deixei
enganar. “Vamos, Clarice. Temos muito trabalho a fazer.”
Atrás de mim, uma mão trêmula agarrou a saia do meu vestido.
“Ela não vai a lugar nenhum”, Vougan falou, fervilhando.
“Por favor, fique.” Susana segurou a mão do homem, os olhos
brilhando. E destoando completamente do clima tenso que pairava
ali. “Eu sou a primeira a subir no palco, vai ser muito importante pra
mim se você assistir.”
“Por quê?”, soltei, sem conseguir segurar a língua.
“Simplesmente porque estou diante do meu primeiro professor de piano”, Susana
respondeu, ainda olhando o homem com admiração.
“Isso já faz muito tempo. Eu parei com o piano”, ele falou
parecendo desconfortável. E voltou a procurar os olhos da garota
atrás de mim. “Minha preocupação agora é a Clarice. Vamos logo.”
O rosto de Susana murchou, e ela olhou de relance para a garota,
um brilho no olhar que não consegui decifrar.
Escorreguei a mão para trás até segurar os dedos tensos em meu
vestido.
“Hoje não, Ricardinho.” Exibi um sorrisinho cínico. “Vai procurar
outra coisa pra fazer, porque ela não vai sair daqui.”
“Sua…” Avançou um passo, os dentes cerrados, mas Vougan se
adiantou.
“Encoste em qualquer uma das duas e vai se arrepender”, falou com a voz baixa e fria.
“Pouco me importa quem você é. Não tem poder aqui. Professor”, cuspiu a palavra.
“O que é que está acontecendo aqui?”, o professor responsável
pelo concurso falou, entrando na coxia. “Nós já vamos começar, o
Marcus já chegou? Susana, você é a primeira, fique a postos.
Professor Ricardo, o que faz aqui?”
Ele nos analisou mais uma vez com cuidado, com triunfo, antes
de responder:
“Nada. Minha aluna queria desejar boa sorte aos colegas do
concurso, mas já estamos indo. Vamos, querida. Não queremos
atrapalhar.”
Eu ia matar aquele velho.
“Por favor”, Clarice sussurrou, tremendo. “Eu quero ficar. Eu já
estudo o dia inteiro, todos os dias. Me deixe ficar, só hoje.”
“Ora, mas é a Clarice Marquês que está aí atrás?”, nosso
professor falou, olhando por cima do meu ombro. “A vencedora do
penúltimo concurso? Imagine, será uma honra tê-la aqui, não vai
atrapalhar em nada!”
O rosto do homem ficou vermelho, os punhos cerrados com força.
Mas ele respirou fundo, soltando os dedos.
“É claro. Mas se não se importa, professor, posso ficar também?
Só pra garantir que ela não vai causar problemas. Às vezes, Clarice
consegue ser muito… inconveniente.” Lançou um olhar cortante a
ela.
Foi a minha vez de cerrar os punhos. Vougan grunhiu ao meu
lado, igualmente puto.
“É claro”, o professor falou, distraído, olhando o relógio de pulso. “Susana, você entra
em dois minutos. Infelizmente, se Marcus não chegar antes da última apresentação, será
desclassificado. Se preparem todos.”
Meus nervos já estavam à flor da pele. Tentei esvaziar a
cabeça, mas tinha que dividir a atenção entre me concentrar no
concurso e ficar de olho no professor de Clarice, que fez questão de
ficar do outro lado da coxia com os olhos grudados em nós, nela, o
tempo todo.
“Desculpa, eu não queria atrapalhar”, ela murmurou depois de um
tempo, enquanto eu bufava pela centésima vez ao tentar, e falhar,
manter a calma. “Talvez seja melhor mesmo que eu vá embora, não
quero prejudicar vocês.”
“Nem pensar”, Vougan falou.
“Estamos bem, não se preocupe”, acrescentei, chacoalhando os
braços pra aliviar a tensão.
Susana, por outro lado, estava extremamente calma, quase radiante enquanto seguia a
passos firmes até o centro do palco e se sentava ao piano. Pensei que ela estaria nervosa
e ansiosa pelo sumiço repentino do namoradinho, mas aparentemente a presença de seu
querido primeiro professor tinha causado o efeito contrário. E, sinceramente, eu ainda não
conseguia entender como ela conseguia gostar daquele homem.
“Ele não é ruim”, Clarice sussurrou ao meu lado, como se lesse
minha mente. “É bem exigente e meio rabugento, mas… ele se
preocupa comigo.” Seus olhos arregalados e a testa franzida, no
entanto, contradiziam suas palavras. “Eu ainda não tô pronta, mas
ele acredita que eu posso ser uma solista profissional. Ele só quer
me ajudar a chegar lá.”
Palavras ensaiadas e sem emoção. Eu podia apostar que ela
ficava repetindo aquilo a si mesma, de novo e de novo e de novo,
até se convencer de que era verdade.
Aquilo não era certo.
Pelo olhar de Vougan, um misto de incredulidade e preocupação,
ele pensava a mesma coisa.
“Escuta…” A virei de frente para mim. E de costas para o
professor, que mantinha o olhar gélido na nossa direção. “Não
importa o que aconteça, nunca deixe ele fazer você se sentir inferior,
entendeu? Ele pode ser seu professor, mas só você pode dizer se
realmente está pronta ou não, pra qualquer coisa que seja. Ninguém
conhece suas habilidades melhor do que você.” Me agachei até ficar
na altura de seus olhos e segurei seus ombros. “Você não é a
marionete de ninguém, Clarice Marquês. Entendeu?” Apertei o
toque de leve, meus olhos ardendo de uma emoção que eu não
esperava, e sendo guiada por um sentimento estranho que me
impulsionava a dizer aquelas palavras. Eu não sabia por que, mas
precisava dizer. “Por favor, nunca se esqueça disso. Aconteça o que
acontecer… por favor, não se esqueça.”
Ela me olhava com os olhos grandes arregalados e ouvia com
atenção.
“Tudo bem”, sussurrou, assentindo de leve com a cabeça. E
esticou o dedo mindinho. “Eu prometo.”
Consegui sorrir, mais aliviada, e entrelacei o dedo no seu.
“Boa menina.”

Algo em que acreditar.
Mais uma charada que tivemos que desvendar ao longo do
mês. Mas com tudo que estava acontecendo ao meu redor… a
sabotagem entre os competidores do concurso, a realidade injusta
de alunos que sofriam uma pressão absurda de seus professores, a
obrigação que outros sentiam em abrir mão das próprias vontades
pra agradar a família… em meio a todo esse caos, eu ainda
consegui encontrar um pedaço de alegria. Consegui encontrar o
meu algo em que acreditar.
Uma mão estendida quando menos se espera. Um voto de
confiança. Uma união inesperada e improvável.
Um sorriso cafajeste. Olhos de um azul tão frio e, ao mesmo
tempo, aconchegante. Dedos entrelaçados, uma caixa de
chocolates, beijos e toques proibidos, trocados tarde da noite entre
carpetes e instrumentos musicais.
Medos revelados, inseguranças expostas… um pacto feito e
selado entre dois corações que, juntos, estavam apenas começando
a descobrir que caminho seguir.
Era nisso que eu acreditava. Era nele que eu acreditava.
Em nós.
E foi pensando em tudo isso, em todos os nossos momentos
juntos, desde os mais carinhosos e puros até os mais intensos e
agressivos, que subi no palco quando chegou a minha vez, e
comecei a tocar.
Era uma peça curta, mas tão tranquila, envolvente, melódica e
íntima que eu não conseguiria descrevê-la de maneira melhor além
das palavras do próprio tema que tinha me levado a escolhê-la. E
me fazia pensar que, apesar de toda aquela loucura que nos
cercava, daríamos um jeito de sobreviver. Eu e Vougan, juntos.
Lado a lado, até onde a vida permitisse.
Talvez até um pouco mais.
Será que ele consegue ouvir?, eu me perguntava enquanto
meus dedos fluíam pelas cordas da harpa. Será que consegue
enxergar o que eu enxergo agora? Será que entende o que
estou tentando dizer?
Eu não tinha como saber, mas continuei tocando. Continuei
contando nossa história através das notas dedilhadas, deixando que
ressoasse pelo espaço até que não passasse de ecos distantes
vagando pelo etéreo.
Quando acabei, voltei para a coxia em meio a uma explosão de
aplausos e, ainda me sentindo meio aérea, fui recebida por um par
de mãos grandes e quentes que seguraram o meu rosto… e fui
beijada com força.
“Você ouviu?”, murmurei quase sem ar quando a boca de Vougan
se afastou da minha.
“Cada palavra.” Ele sorriu, o rosto ainda bem perto do meu. “Foi a
coisa mais linda que eu já ouvi em toda a minha vida. Obrigado.”
Voltou a me beijar, quase desesperado. “Obrigado.”
“Menos, jovenzinho.” O professor apareceu, tocando o ombro dele
e nos separando. “Menos. Anda, é a sua vez. Toque bem, e estará
classificado para a final. Marcus, pelo jeito, nos abandonou.”
“Ele ainda não chegou?” Arregalei os olhos.
“Quem liga?” Vougan deu de ombros e tirou a jaqueta, revelando
a camisa social preta com as mangas enroladas nos cotovelos. “Me
desejem sorte.” Me entregou a jaqueta, pegou o violoncelo e, dando
um tapinha no topo da cabeça de Clarice e na minha, com um beijo
na ponta do meu nariz de bônus, seguiu para o palco parecendo
muito mais relaxado e confiante que da última vez.
“Eu sabia que acabariam juntos”, Clarice sussurrou com um
sorriso travesso.
Dei um peteleco em seu nariz.
“Não enche, espertinha.” Encarei o palco, mas não consegui
evitar o sorriso que se abriu em minha boca.
E com uma olhada de esguelha na nossa direção… não, na
minha direção, pois os olhos cinzentos encontraram os meus com
um brilho perigoso… Vougan começou a tocar.
Seu som era firme e suave ao mesmo tempo. Poderoso e
delicado. Os dedos grossos apertavam as cordas na medida certa,
nem forte demais, nem leve demais. O braço do arco ia e vinha,
pesado nas partes graves e fluido nas partes agudas. Relaxado.
Confiante. Como se o cello fosse uma extensão natural de seu
corpo. E a música… O Cisne, de Saint-Saëns. Profunda, intensa e
melódica. Apaixonada.
Era quase como se a música de Vougan respondesse à minha.
“A arte da música… — Clarice sussurrou ao meu lado, tão
maravilhada quanto eu — mais do que todas as outras, é a
expressão da alma.”
Olhei para ela.
“Que bonito. Foi você que inventou?”
“Não.” Ela sorriu. “É uma citação. Uma das minhas favoritas.”
Voltei a olhar Vougan, seu som ecoando por todo o anfiteatro e
entrando, cálido, no meu coração. E suspirei.
Sim, aquela frase se encaixava perfeitamente com a cena.

Marcus não apareceu, então foi oficialmente desclassificado do
concurso. Mas, ainda assim, nossas performances foram julgadas.
Vougan ficou em primeiro lugar dessa vez. Eu fiquei em segundo, e Susana em terceiro.
Ela não pareceu muito feliz, principalmente quando Ricardo, aquele homem desprezível,
passou reto quando ela tentou ir falar com ele no final das apresentações. Como se ela
nem existisse.
“Vamos, Clarice”, ele falou, impaciente, enquanto se aproximava
de nós. “Já chega dessa palhaçada, você ainda tem muita coisa pra
melhorar naquele concerto. Consegui uma autorização dos seus
professores do período da manhã, e você está liberada do restante
das aulas gerais por hoje. Vamos, anda logo.” Estendeu a mão
aberta.
Vougan se colocou casualmente na frente dela, apenas
aguardando caso precisasse bater de frente com o homem.
A olhei pelo canto do olho.
“Ele não pode mandar em você fora do horário”, murmurei,
apenas para lembrá-la de sua promessa. “Se não quiser, não
precisa ir. Ele não pode fazer nada.”
Ela me olhou com aqueles olhos grandes, quase dourados. E
assentiu com firmeza.
“Clarice…”, o professor resmungou, apressando.
“Não”, ela respondeu, em alto e bom som.
O homem quase engasgou.
“O quê?” Semicerrou os olhos.
“Eu disse que não”, repetiu, inabalável. “Não quero estudar
concerto nenhum agora. E eu não vou.” Ergueu o queixo, decidida.
O rosto do professor ficou perigosamente vermelho.
“Como você ousa…”
“Eu tenho aula agora”, Clarice interrompeu, e seguiu porta afora
até o corredor. “Aula de História e Geografia. Com licença.” Esboçou
um sorrisinho e saiu de cabeça erguida, mas não antes de lançar
uma piscadela para mim e Vougan.
Ai, que orgulho!
“Clarice!”, o velho chamou, puto. “Clarice Marquês, volta aqui agora!” Mas ela não
voltou. “Vocês me pagam.” Nos fuzilou com o olhar antes de sair pisando duro e soltando
fogo pelas orelhas.
“Acha que devemos ir atrás deles?” Olhei para Vougan.
“Não, ela sabe se defender. E ele não é nem louco de tentar levá-
la à força, tem muita gente circulando pelos corredores agora.”
“Certo”, murmurei, um pouco contrariada, e seguimos corredor
afora quando o sinal da próxima aula bateu.
Seguimos em frente, mas Vougan se virou para mim de repente
com uma sobrancelha arqueada e um meio sorriso curvando o canto
de sua boca.
“E aí, tá afim de repetir nossa aventura de fugir da escola depois
do concurso?”
Soltei uma risada.
“Quer que eu dê mais prejuízo à sua carteira?”
“Na verdade…” Parou e me segurou pela cintura, aproximando a boca do meu ouvido.
“Eu tava pensando em fazer algo diferente hoje”, murmurou, seu hálito quente fazendo
cócegas e me arrepiando inteira.
“O quê?”, balbuciei, sentindo as bochechas ficarem quentes.
Seu nariz desceu devagar pelo meu pescoço, e ele começou a
dar beijos leves na curva perto da clavícula.
Eu acendi feito uma árvore de natal.
“Meus pais não estão em casa”, murmurou entre um beijo e outro,
a voz melada e doce como calda quente de chocolate enquanto um
dedo se enroscava no cordão do meu espartilho. Graças a Deus o
corredor estava quase vazio agora. “Que tal se a gente der um
pulinho lá antes? Eu prometo que depois te levo pra comer uma
lanchonete inteira, se quiser.”
Ri baixinho, segurando a barra de sua jaqueta e aproveitando o
arrepio delicioso que seus beijos me causavam, quando…
Ouvi uma coisa mais adiante.
“O que é isso?”, falei mais alerta, erguendo a cabeça. “Consegue
ouvir?”
“O quê?”, Vougan perguntou sem muita convicção, ainda beijando
meu pescoço.
O corredor estava vazio agora, então apurei os ouvidos. E ouvi o
barulho de novo.
“Parece que tem alguém…” Me concentrei, tentando decifrar.
“Esmurrando uma porta.”
“Não deve ser nada.” Vougan voltou a me abraçar, mas me
desvencilhei e comecei a seguir o barulho. Ele veio atrás de mim,
gemendo de frustração.
“Tá ouvindo isso?” O encarei conforme avançava, alerta. O
barulho estava mais nítido agora.
“Deve ser uma brincadeira idiota de algum aluno.” Ele deu de
ombros.
Mas continuei seguindo o som, com cuidado, até… parar na frente
de um dos vários depósitos no meio do corredor.
A porta tremia e chacoalhava com o que quer que estivesse
acontecendo do lado de dentro.
“Me tira daqui!”, uma voz abafada gritou em meio aos murros. “Me
tira daqui!”
“Merda”, Vougan sibilou, encarando a porta com os olhos
arregalados. “Se afasta”, falou para mim, tirando o violoncelo das
costas e me entregando.
“O que vai fazer?”
Ele tirou a carteira do bolso da calça, presa por uma corrente, e
apalpando mais fundo sacou um molho de chaves. Um dos vários
chaveiros era um canivete.
“Para de esmurrar a droga da porta, senão eu não consigo abrir!”,
exclamou para quem quer que estivesse preso lá dentro e se
ajoelhou, encaixando a ponta afiada da faca na abertura da chave.
A porta parou de se mover, mas bastou apenas o barulho suave
do fecho se abrindo, e a porta escancarou. Não acertou o nariz de
Vougan por muito, muito pouco.
“Vocês me pagam!”, o garoto rosnou, voando pra fora, e avançou
em Vougan, os dois rolando pelo chão.
E foi quando o reconheci.
“Marcus?!”, exclamei, minha voz saindo mais aguda que o normal.
“Vocês me pagam!”, ele repetiu tentando pegar Vougan pelo
pescoço, o rosto vermelho de raiva. “Vocês me pagam!”
“Pelo quê, caralho?!”, Vougan gritou de volta, tentando se
desvencilhar dele.
Mas Marcus continuava gritando e agredindo Vougan, então fiz a
única coisa que me passou pela cabeça.
Corri até eles e me joguei em cima de Marcus, que não esperava
meu golpe surpresa, e caiu no chão. Rolei pra cima dele e meti um
soco em seu nariz.
Ele finalmente parou, segurando o nariz dolorido com os olhos
lacrimejando.
“Que droga foi essa?”, perguntei, ofegante.
“Vocês me sabotaram!”, ele grunhiu, ainda desorientado. “Me
agarraram por trás e me jogaram dentro do depósito!”
“Ah, me poupe”, Vougan resmungou, se levantando e batendo as
roupas sujas. “Caso não lembre, eu não tenho problema em acabar
com você cara a cara. Não ia perder tempo fazendo isso pelas suas
costas.”
Tudo aconteceu em questão de segundos.
Marcus grunhiu mais uma vez e tomou impulso, se levantando,
mas perdeu o equilíbrio e acabou sentado, agarrando minha coxa
no meio do caminho pra não desabar. E como eu ainda estava em
cima dele, acabei escorregando para baixo, parando bem em seu
colo. E, meu Deus, senti seu… membro encaixando entre as
minhas pernas.
Ele corou com a proximidade e com a minha reação, e ficou
imóvel, mas… merda, a coisa lá embaixo se mexeu!
“VOUGAN!”, berrei, desesperada.
E, de repente, fui puxada com força para cima pelos braços, um
grunhido raivoso ecoando em meus ouvidos conforme Vougan me
arrancava do colo de Marcus na força do ódio.
“Você tá pedindo pra morrer”, rosnou quando me colocou no
chão, e avançou pra cima do garoto.
“Foi sem querer!”, implorou, se encolhendo e cobrindo a cabeça
com os braços.
“Que droga está acontecendo aqui?” Uma professora saiu de uma
das salas, mais atrás de nós. “Já vi que vou ter que chamar o
diretor! Se estão com tempo pra arranjar briga, então terão tempo
pra cumprir um belo castigo também.”
“Merda”, sibilei.
“Corre”, Vougan murmurou entre dentes, agarrando o violoncelo,
e foi o que fizemos. Até Marcus levantou aos tropeços e saiu
correndo atrás de nós.
“Vocês ainda me pagam”, ofegou quando finalmente paramos,
perto das salas de ensaio.
“Já disse que não fizemos nada”, resmunguei de volta, também
ofegante. “Até cinco minutos atrás, jurávamos que você tinha
amarelado.”
“Eu? Amarelar?” Arfou por um tempo antes de conseguir voltar a
falar. “Não fode, Aurora.”
Bufei, perdendo a paciência, mas me segurei. Precisava me
concentrar em respirar.
“O que foi que aconteceu com você, afinal?”, perguntei.
“Já disse. Estava chegando no anfiteatro quando me seguraram
por trás e me jogaram no depósito. Não deu tempo de ver nada,
quando dei por mim já estava trancado.”
“Ah, e você simplesmente joga a culpa na gente?”, grunhi. “Bela
lógica a sua, idiota.”
“Quem mais seria?”, desafiou. “Quem além de vocês me queria
fora do concurso?”
Quem diabos o queria no concurso, pra início de conversa?
“Sua namoradinha não parecia muito preocupada com o seu
sumiço”, cuspi com uma risada sarcástica.
Marcus semicerrou os olhos.
“O que foi que você disse?”
“É surdo ou retardado?”, retruquei. “Quer que eu desenhe?”
“Chega.” Vougan se aproximou de nós. “O corredor tá limpo. Acho
que é seguro sair.”
Marcus riu com desdém.
“É claro que eu vou acreditar em você.”
“Eu tô pouco me fodendo pro que você acha, Marcus.” Lançou a
ele um olhar frio e afiado. “O que acontece com você a partir de
agora é problema seu. Se quiser ficar aqui até a noite cair, eu não
dou a mínima.” Olhou para mim, mais controlado, e entrelaçou os
dedos nos meus. “Vamos.”
“Espera”, Marcus falou antes de virarmos no corredor. Parecia
confuso e contrariado. “Ela realmente não ficou preocupada?”
O encarei por alguns segundos. E podia inventar qualquer resposta afiada, ou apenas
xingá-lo pra satisfazer a minha raiva, mas sabia que a verdade o atingiria o suficiente.
“Não. Nem um pouco.”

“Essa… é a sua casa?”, balbuciei, boquiaberta, conforme absorvia
o cenário à minha frente, e Vougan fechava a porta. Uma porta
enorme, diga-se de passagem, com uma maçaneta vertical que
tinha quase o meu tamanho.
“É, eu sei”, Vougan zombou e tirou o instrumento das costas,
apoiando no canto da parede. “Tudo muito moderno, fresco e sem
graça.”
Aquela descrição não passava nem perto do que eu realmente
tinha em mente.
A casa de Vougan era imensa, toda arquitetada em conceito
aberto e tons claros, que davam ao ambiente uma sensação ainda
mais espaçosa.
“Seus pais ganham mesmo a vida como escritores?”, perguntei
com cautela.
Ele soltou uma risada.
“Também. Eles trabalham na mesma editora, uma das maiores do
país. Minha mãe é tradutora, e meu pai é editor. Escrever é um
trabalho secundário, mas até que eles vendem bem.”
Muito bem, pelo jeito.
“Vamos, por aqui.” Me pegou pela mão e me guiou, adentrando
mais na casa.
Subimos uma escada grande que até fazia uma curva e, no andar
de cima, seguimos até a porta no final do corredor largo e iluminado.
O quarto de Vougan.
O cômodo destoava de todo o restante da casa. Era espaçoso e arrumado, mas bem
mais… decorado, por falta de palavra melhor.
Uma das paredes era completamente coberta de pôsteres de
bandas, de cima a baixo, e com uma cama simples em tons de preto
e azul-marinho encostada. A parede do outro lado tinha três fileiras
de prateleiras, todas lotadas de livros, tanto novos quanto surrados,
e uma mesa larga de estudos logo abaixo com um notebook,
cadernos, papéis avulsos, lápis e todo tipo de material escolar. E na
outra ponta, bem de frente para a cama, uma porta de vidro larga
que dava para uma sacada quase tão espaçosa quanto o quarto, e
com vista para o jardim dos fundos.
“Que menino aplicado”, murmurei, passando um dedo pela pilha
de cadernos.
“Eu sou inteligente apesar das aparências, acredite se quiser”,
zombou com um meio sorriso, apoiado no batente da porta.
Ergui os olhos para as inúmeras lombadas de livros nas
prateleiras acima.
“Tem algum personagem chamado Vougan aí?”
“Não”, ele riu e se aproximou, puxando um livro da primeira
prateleira. Parecia ser velho, mas estava bem conservado. “Mas tem
uma Aurora.” Começou a folhear e parou em uma página com a
figura da pintura de uma mulher cercada por anjos. “A deusa do
amanhecer na mitologia romana”, falou com a voz baixa e macia.
E não consegui evitar o sorriso.
“Minha nossa, você é muito nerd.”
Vougan levou uma mão ao peito de forma teatral e devolveu o
livro ao seu lugar na prateleira.
“Eu prefiro o termo culto, muito obrigado.”
“Nerd”, insisti, indo para a porta da sacada. “Um baita nerdão.”
Mas antes que conseguisse chegar lá, ele me pegou por trás e
me jogou na cama, deslizando para o meu lado com um sorriso
afiado.
“Eu disse que até o fim do dia ia arrancar isso de você”, falou,
enroscando o dedo no cordão do espartilho. E puxando até soltar o
laço. “E olha que ainda não chegamos nem na metade dele. Deve
ser um recorde.”
“Eu já disse que você é um babaca?”
Ele se inclinou sobre mim, beijando a base do meu pescoço.
“Eu adoro quando você me xinga”, murmurou, roçando os dentes
pela pele sensível. “Ou ameaça de morte. É assim que eu sei
quando você quer tirar a minha roupa tanto quanto eu quero tirar a
sua.”
Arfei, surpresa.
“Um babaca convencido, ainda por cima.”
Ele riu e continuou soltando o cordão, afrouxando até que seus
dedos conseguissem alcançar o tecido do vestido por baixo.
“Isso aqui não termina nunca?”, resmungou, me fazendo rir.
“Não é pra soltar tudo, só o suficiente pra passar pela cabeça”,
expliquei.
“Aaah...” Arqueou as sobrancelhas, entendendo… e enfiou as
duas mãos enormes por baixo do espartilho, tirando com um puxão
firme e rápido e o jogando no chão ao lado da cama.
Eu fiquei sem reação.
“Agora sim.” Ele riu, satisfeito, e segurou minha coxa pela fenda
do vestido, subindo lentamente até meu quadril… minha cintura… e
acariciando minha barriga com a ponta dos dedos calejados.
“Espera.” Segurei seu braço, corando e engolindo em seco. “Eu…
precisamos tomar mais cuidado. Da última vez, nós… demos
sorte… de nada ter acontecido.”
Vougan apenas me encarou por alguns segundos, os olhos azuis
tão ternos e compreensíveis que quase acariciavam meu rosto.
“Eu sei”, falou baixinho, passando um dedo com delicadeza pela
minha têmpora e descendo até a bochecha. “Mas não se preocupa
com isso. Dessa vez vamos tomar cuidado.” Apalpou o bolso interno
da jaqueta e tirou de lá um… pacotinho vermelho.
Peguei de sua mão e aproximei do rosto para observar bem.
Vougan apertou os olhos de leve, um sorriso de canto de boca
brotando ali enquanto me olhava com diversão curiosa.
Aquela coisa era de morango.
“Pra quê colocar sabor nessas coisas?”, murmurei com o cenho
franzido.
Vougan engasgou uma risada, mas se conteve.
“Use a sua imaginação, Moranguinho.”
Minha imaginação não falhou.
Soltei a embalagem como se estivesse pegando fogo, e ela caiu
em cima da minha barriga. Vougan começou a gargalhar.
“Você… Você não espera que eu realmente vá… você sabe…”,
gaguejei, começando a me levantar caso precisasse sair correndo,
mas Vougan me empurrou com cuidado pelos ombros, me fazendo
voltar a deitar.
“Eu não vou te obrigar a fazer nada que você não queira, caso essa seja a sua
preocupação. Mas…”, acrescentou, pegando o pacotinho. “Caso queira experimentar algo
novo… achei que talvez isso fosse ajudar a não parecer tão… desconfortável logo de
cara.”
Eu tinha certeza de que meu rosto estava tão vermelho quanto
aquela embalagem.
“Achei que quem gostasse de coisas com sabor de morango
fosse você”, murmurei, tentando disfarçar a vergonha.
Vougan riu e voltou a se inclinar sobre mim, me abraçando pela
cintura e enterrando o rosto em meu cabelo.
“Você ficaria surpresa com como essa coisa pode beneficiar nós
dois”, murmurou com a boca colada em meu ouvido, me causando
arrepios pelo corpo todo. E desceu uma mão pela minha barriga…
até meu baixo-ventre, os dedos puxando o tecido do vestido com
cuidado até revelar minha pele. “Quando terminarmos aqui…”, roçou
o dedo na borda da minha calcinha. “Eu te mostro. Te mostro tudo
que quiser saber.”
E, como uma amostra do que aquela promessa tentadora envolvia, passou a ponta da
língua, quente e molhada, pela curva do meu pescoço, perto da mandíbula, até a orelha.
Minhas coxas se fecharam por reflexo, mas Vougan meteu a mão
no meio e voltou a separá-las, se posicionando entre elas.
“Você tem cinco segundos pra tirar esse vestido — falou enquanto
tirava a jaqueta e desabotoava a camisa — antes que eu decida
fazer isso por conta própria e o transforme em um pano de chão
inútil e rasgado.”
Bom, o que é que eu podia fazer, não é?
O vestido foi pro chão junto com o espartilho… e meus sapatos…
e minha roupa íntima… e as roupas de Vougan.
Ele estava em cima de mim, me olhando de cima a baixo com aqueles olhos afiados
brilhando perigosamente. Ergui um dedo e toquei seu ombro, bem onde ele tinha — meu
Deus, minha pressão cai só de lembrar — uma tatuagem tribal que cobria quase todo o
lado esquerdo de seu corpo. Começava no ombro e descia até um pouco acima do
cotovelo, e uma faixa contínua descia também pelo seu peito, abdômen, até a lateral da
linha V logo abaixo do umbigo.
Meu dedo percorreu o caminho todo com cuidado, meus olhos
acompanhando o movimento. Na nossa primeira vez, estávamos tão
afobados que não tive tempo suficiente pra admirar aquela obra de
arte, mas agora… eu queria beijar cada centímetro daquele
desenho. Devagar.
“Faça”, Vougan sussurrou, sem fôlego, voltando minha atenção
para seu rosto. Parecia faminto e desesperado, cada músculo de
seu corpo tensionado. “O que quer que esteja pensando em fazer
enquanto me olha e me toca desse jeito… por favor, apenas faça.”
Fiquei imóvel, surpresa com a sinceridade e vulnerabilidade em
suas palavras… surpresa com a forma que ele reagia a mim, ao
meu toque.
“Interessante”, murmurei, maravilhada, sentindo um sorriso brotar
no canto da minha boca. “Acho que essa brincadeira pode ser
divertida, no fim das contas.” Subi o dedo de volta até seu rosto.
Sua boca. Vougan o prendeu entre os dentes, a língua passando
quente e despreocupada ao redor da minha pele. “Muito divertida.”
Ele sorriu daquele jeito cafajeste e, apoiando uma mão de cada
lado da minha cabeça, se inclinou e aproximou bem o rosto do meu.
“Pronta?”, sussurrou com a boca quase colada na minha.
Assenti.
“Me mostre tudo”, sussurrei de volta.
Ele sorriu e me beijou, ao mesmo tempo em que entrava em mim,
devagar e com o maior cuidado do mundo, e fazendo um gemido
sufocado sair dos meus lábios.
E me mostrou muito mais do que eu sequer poderia imaginar.
Capítulo 31
Quinta, 13 de junho
Hoje eu recebi uma carta anônima. Me ameaçando.

DESISTA DO CONCURSO AGORA MESMO, AURORA


FERRARI, OU AQUILO EM QUE MAIS ACREDITA SERÁ
ARRANCADO DE VOCÊ.
SE ESTIVER EM CIMA DAQUELE PALCO NA SELEÇÃO
FINAL, ESTEJA PREPARADA PARA SOFRER AS
CONSEQUÊNCIAS.
A ESCOLHA FICA POR SUA CONTA E RISCO.
NÃO SERÁ AVISADA UMA SEGUNDA VEZ.

O bilhete apareceu dentro do meu caderno depois do intervalo.


Foi impresso, então não tem como identificar o autor pela caligrafia.
Vougan ficou possesso.
“Quem é o filho da puta que se atreveu a fazer isso?”, grunhiu, a voz baixa, fria e afiada
como uma estaca de gelo enquanto segurava o bilhete com tanta força que quase o rasgou
ao meio. “Seja quem for, acabou de cavar a própria cova.”
Felizmente, o número de pessoas que poderiam querer algo
daquele tipo era bem baixo. Bem específico.
“Marcus, Susana e Vinícius”, contei nos dedos, encostada na
parede ao lado da porta e olhando conforme os alunos voltavam aos
poucos pra dentro da sala. “São os únicos que podem ter algo a ver
com isso.”
“Vinícius?” Vougan ergueu os olhos arregalados, incrédulo. “Por
que acha que ele faria isso?”
Tive que respirar fundo. Não queria ficar causando mais discórdia
na família dele, mas se eu estivesse certa…
“Por enquanto, é o que faz mais sentido”, falei com cuidado.
“Por quê?” Vougan insistiu com uma carranca.
“Você recebeu um bilhete parecido, por acaso?” Peguei o bilhete
de volta, dobrando e guardando no bolso da jaqueta jeans. “Te
ameaçaram pra sair do concurso também?”
Ele piscou, sua expressão suavizando.
“Não. Não que eu saiba.”
“Exatamente. Por que só eu sou o alvo? Por que querem me tirar
e não você?”
Vougan se remexeu, desconfortável.
“Não sabemos se foi só você.”
“Susana ficou em terceiro lugar nas duas seleções, ele não
deve achar que ela é ameaça o suficiente. Mas eu?” Ri com
sarcasmo. “Você ouviu o que ele disse ontem. Que você tava
confraternizando com o inimigo. E insinuou que eu queria te
prejudicar.”
“Ele é meu primo, Aurora”, murmurou com os olhos baixos. “Sei que é um babaca,
mas… ele não faria algo assim. Não pode ter feito.” Vougan falava como se tentasse
acreditar nas próprias palavras… mas tivesse dúvidas.
Me aproximei dele, segurando sua mão.
“Vamos por eliminatória, tudo bem?”, falei com cuidado,
acariciando sua mão com o polegar. “Fala com a Susana, tenta
descobrir se ela também recebeu uma carta anônima ou se tem algo
a ver com tudo isso, e eu falo com o Marcus. Ele já não gosta de
mim, não duvido nada que possa estar querendo se vingar.”
“Nem pensar”, Vougan protestou, seu olhar endurecendo. “Olha,
não quero bancar o namorado idiota e controlador, mas não quero
você perto daquele sem-vergonha. Não sozinha.”
Quase engasguei à menção da palavra. Namorado.
Então era aquilo que ele era? Que nós éramos?
Meu coração deu um salto, as batidas repentinamente aceleradas
ecoando aquela palavra com mais êxtase a cada segundo.
Namorado, namorado, namorado, namorado.
“Tá…”, balbuciei, tentando recuperar o foco. “Tudo bem, então…
eu… você fala com ele. Eu falo com a Susana. Pode ser? Vai ser
mais fácil se a gente sondar os dois estando separados. Juntos
podemos acabar levantando suspeitas.”
“Tudo bem.” Vougan expirou, mais aliviado. E ergueu a mão livre
até minha bochecha. “Vamos descobrir quem fez isso, Moranguinho.
Eu prometo.” Beijou minha boca de leve. Com carinho. “Ninguém vai
encostar um dedo em você enquanto eu estiver aqui. Não vou
deixar que te façam mal.”
Meu coração apertou. Não de uma forma ruim, mas é que ouvir
ele falando tudo aquilo de uma forma tão protetora e cuidadosa,
como se eu fosse uma joia… tive que controlar o impulso de jogar
os braços ao redor de seu pescoço.
“Eu…” Segurei sua mão com mais firmeza e o encarei nos olhos,
as palavras saindo engasgadas. “Vougan, eu… eu…”
“O quê?” Franziu as sobrancelhas, os olhos azul-cinzentos
percorrendo cada centímetro do meu rosto.
“Eu…” Tentei fazer as palavras saírem, mas… Suspirei. E mudei
de ideia. “Nada, é só que eu… preciso entrar. A aula já vai
começar.” Baixei os olhos, me sentindo muito estúpida.
Mas Vougan tocou meu queixo e ergueu meu rosto, me fazendo
voltar a encará-lo.
“Que menina aplicada.” Sorriu, zombeteiro. E me beijou mais uma
vez. “Vai lá, Moranguinho. Boa aula. Mais tarde eu conto o que
descobri.”
“Ok”, murmurei de olhos fechados e segurando a barra do seu
uniforme, meu rosto ainda bem perto do seu. Não queria que ele
fosse.
“Não vai me soltar?”, ele riu, percebendo minha hesitação.
Sacudi a cabeça.
“Moranguinho, Moranguinho…” Me puxou num abraço apertado, e
senti seu hálito quente em meu ouvido. “Eu sei. Eu entendo. Mas
não precisa ficar com medo. Eu vou cuidar de você. Mesmo quando
estiver longe.”
Ele entendeu errado. Eu não estava com medo. Não daquela ameaça, pelo menos, mas
de uma coisa muito mais boba do que ele pensava. O que me fazia sentir mais estúpida
ainda. Mas não o corrigi.
Não, apenas o abracei com mais força e assenti com a cabeça, inalando seu cheiro.
Sabonete masculino e… livros.
“Acho que eu gosto de você, Vougan”, murmurei em seu pescoço,
pois naquele momento era o mais perto que conseguia chegar
daquilo que realmente queria dizer.
Ele parou. E soltou uma risada baixa.
“É claro que gosta.”

Encurralei Susana no horário do almoço. Ela não estava no
refeitório, mas a encontrei perambulando pelos corredores do
conservatório. Não, perambulando não. Espionando. Uma sala
específica.
“O que tá fazendo?”, perguntei, sem me preocupar em
cumprimentá-la.
“Aurora!”, exclamou, se afastando da porta fechada. “O que faz
aqui?”
Exibi um sorrisinho cínico.
“Perguntei primeiro.”
“Nada, só tô esperando o professor sair. Preciso… resolver um
assunto com ele.”
Tentei olhar pelo vidro da porta, mas ela bloqueou meu caminho.
“Queria falar comigo?”
Apertei os olhos de leve.
“Sim. Quero saber que droga é essa.” Empurrei o bilhete amassado para ela, que me
encarava sem entender. Tinha optado por uma abordagem curta e direta, pois sabia que se
Susana tivesse algo a ver com aquilo, se fingir de sonsa seria muito fácil se eu perguntasse
na inocência. O jeito era agir como se ela realmente fosse a culpada, e pressioná-la até
arrancar tudo que aquela cabeça castanho-avermelhada sabia. “Faça um favor a nós duas
e corta a enrolação. Só desembucha.”
Devagar, ela desviou os olhos dos meus e leu o bilhete. A
ameaça.
“O que é isso?”, sussurrou, franzindo o cenho. “Isso aqui é sério? Alguém te mandou
esse bilhete?” Voltou a erguer os olhos turquesa para mim. “Já mostrou isso pro diretor?”
“Falei pra cortar a enrolação”, respondi, seca.
Ela arregalou os olhos, compreendendo.
“Tá achando que fui eu?”
Apenas continuei encarando Susana. E não respondi.
“Aurora!”, censurou, ofendida. “Olha, eu sei que somos rivais no
concurso e que não somos as melhores amigas do mundo, mas eu
jamais faria algo assim! Tudo bem, eu entendo que o lance com
Marcus e Sarah deve ter feito parecer que eu era suspeita, mas tem
que acreditar em mim. Eu não acredito em sabotagem.”
Arqueei levemente as sobrancelhas.
“Você não recebeu nada do tipo?” Indiquei o papel em suas mãos.
Ela leu as palavras mais uma vez.
“Não. Acha que é pessoal?”
Pelo jeito era. Mas não respondi.
“Ficou sabendo o que aconteceu com o Marcus?”, falei ao invés.
Ela soltou uma risada fraca sem humor.
“Sim. Não sei se acredita em carma, mas pra mim, ele só colheu
aquilo que plantou. Triste, mas não posso dizer que foi injusto.
Você… acha que são a mesma pessoa? Quem fez aquilo com ele e
quem escreveu… isso?” Me devolveu o bilhete.
Sim, eu achava. Mas também não dei essa informação a ela.
“Então o problema sou eu”, murmurei comigo mesma.
“Pelo jeito, Vougan também não recebeu um”, ela concluiu, me olhando com atenção. E
acrescentou com cuidado: “Acha que ele tem alguma coisa a ver com isso?”
A fuzilei com o olhar.
“O que quer dizer?”
Susana ergueu as mãos na defensiva.
“Nada, nada. É só que… você viu como Marcus manipulou a
Sarah. E é a primeira vez do Vougan no concurso. Não sei se sabe,
mas a família dele tem um histórico nessas competições. Histórico
de vencedores. Você é novata, mas é inteligente. Como acha que
eles conseguem manter esse título por tanto tempo?”
Soltei uma risada de desdém.
“Tá insinuando que Vougan tá me ameaçando? Que tá me
usando pra depois me apunhalar pelas costas?”
Ela fechou a cara.
“Vai rindo, mas eu não ficaria nem um pouco surpresa se
estivesse. Aquela família é ambiciosa. E sabe como pessoas
ambiciosas enxergam as coisas: qualquer coisa é válida se isso
significar tirar um obstáculo do caminho.”
Cruzei os braços, semicerrando os olhos.
“Parece que você os conhece bem. Bem demais”, acrescentei
com tom sugestivo.
Susana deu de ombros.
“Só sou observadora. Mas se não quiser acreditar em mim, fique
à vontade. É o seu que tá na reta mesmo.”
“E eu aqui pensando que seu arrependimento era real.” Sorri com
malícia. “Magoou meus sentimentos.”
“Não desejo nenhum mal a você, se é isso que está pensando. Mas sabe como é…
competição é competição. Se não quer ouvir meu conselho, então não posso fazer nada.”
Começou a se afastar, mas bloqueei seu caminho.
“O que sabe sobre o primo de Vougan?”
E, pela primeira vez, Susana vacilou.
“Vinícius?”, engasgou, os olhos arregalados.
Expressão alerta, quase apavorada. Aquilo não era nada bom.
Merda.
“O que sabe sobre ele?”, repeti, tentando manter a voz firme. “Já
que sabe tanto sobre a família deles, pode falar tudo que sabe
daquele babaca.”
“Não sei nada.” Desviou e tentou me contornar, mas voltei a
bloquear seu caminho. “Não sei nada, tá bom?”, resmungou. Mas
acrescentou com impaciência quando não me movi: “Só que quando
ele participou do concurso, ou os outros participantes desapareciam
no dia da apresentação, ou ficavam indispostos do nada. Ele
ganhou, mas foi quase por falta de opção.”
“Como assim indispostos?” A olhei com cautela. “Que tipo de
indisposição?”
“Do tipo que te leva pro hospital. Um mal-estar repentino, uma
pancada acidental na cabeça que causa um desmaio, uma perna
quebrada, e por aí vai.”
Engoli em seco.
“Ele não…” Encarei o bilhete nas minhas mãos, as palavras
carregadas de ódio quase saltando e agarrando meus olhos. “Não
chegaria a esse ponto comigo… né?”
Susana riu com desdém e desviou de mim mais uma vez. Dessa
vez não impedi.
“Sei que não acredita em mim, mas pelo menos aceite esse conselho: se a pessoa que
tá te ameaçando for mesmo o Vinícius, então desiste do concurso enquanto é tempo.” Me
olhou com firmeza, uma expressão tão dura e séria que fez um calafrio subir pela minha
espinha. “Você não tem chance contra isso. Arrisque, e vão acertar onde mais dói.
Literalmente.”
Mais um calafrio percorreu o meu corpo, dessa vez desde o
dedinho do pé até o meu último fio de cabelo.
Susana foi embora, mas permaneci ali parada. Congelada.
O som abafado de um instrumento de cordas chegou até mim, da
sala mais à frente que Susana tentava bisbilhotar. Me obriguei a sair
do estado de choque e me aproximei, espiando pela janelinha de
vidro da porta. Era uma das salas de aulas particulares. E quem
estava lá dentro, tocando uma viola…
Reconheci os olhos castanho-claros que normalmente brilhavam
de um tom quase dourado, mas que agora estavam opacos e sem
foco, olheiras escurecendo ainda mais seu olhar e contrastando com
o rosto pálido e cansado. Clarice.
Ela estava ofegante, quase sem fôlego, e sua boca estava praticamente sem cor. Seu
cabelo estava preso em um rabo de cavalo alto, mas vários fios tinham se soltado e
estavam desgrenhados, como se ela estivesse ali há horas. Dias.
Parecia exausta e à beira de um desmaio. Mas continuava
tocando, continuava encarando a partitura à sua frente como se
fosse um zumbi.
Ergui a mão até a maçaneta, mas outra figura apareceu na janela.
E me olhou com nada além de fúria por trás dos óculos quadrados.
O professor dela.
Saia, ele fez com os lábios, quase arreganhando os dentes
como um animal. E se virou de costas para mim, bloqueando
completamente a visão de dentro da sala.
Eu queria gritar. Queria chutar e esmurrar aquela porta até que não passasse de lascas
pontiagudas de madeira. Não só por causa daquele homem desprezível, mas por tudo que
estava acontecendo ao meu redor, naquela droga de lugar.
Tudo ali estava errado, e eu não conseguia entender por que
todos agiam como se aquilo fosse normal. Como se a realidade não
pudesse ser diferente. Como se fosse a ordem natural das coisas.
Os fortes mandam, seja uma autoridade ou algum filhinho de
papai com influência. E os fracos, os sonhadores… apenas abaixam
a cabeça e obedecem de boca fechada.
Antes de pisar ali, eu via o conservatório como um castelo nas
nuvens. Um lugar mágico e repleto de música em todos os cantos,
onde as pessoas entravam como meros mortais e saíam como
deuses. Mas agora… agora que eu fazia parte daquilo, agora que
via como as coisas realmente funcionavam ali…
Aquele lugar não era um castelo nas nuvens. Era o inferno na
Terra.
Capítulo 32
— No que tá pensando? — Richard perguntou depois de um
tempo em que apenas permaneci em silêncio.
Me remexi, a bunda doendo por ficar tanto tempo sentada na
grama, e me ajeitei em seus braços, minhas costas e cabeça
apoiadas contra o seu peito. O diário repousava em cima da minha
barriga, meus dedos ainda marcando as últimas páginas que tinha
lido.
— Tô com um mau pressentimento — murmurei.
— Por quê? — Eu quase podia sentir a sobrancelha de Richard
arqueando, mas ele começou a acariciar a base da minha nuca com
os dedos grossos, e tive que me segurar para não começar a
ronronar feito um gatinho. — Aurora descobriu que existe gente
escrota na escola, grande coisa. Cedo ou tarde isso ia acabar
acontecendo.
— É, mas… — Suspirei. — A gente não pode esquecer que
algo ruim deve ter acontecido pro diário ter ido parar no depósito. E
se… — estremeci com a possibilidade — esse tal de Vinícius
realmente fez alguma coisa com ela?
A outra mão de Richard pousou em seu joelho, erguido ao meu
lado, e ele apoiou o queixo no topo da minha cabeça. Após alguns
segundos apenas encarando a vista que tínhamos das quadras
atrás da escola, vários alunos jogando bola ou sentados em rodinha
pelos arredores, ele falou com firmeza:
— Vougan não ia deixar que fizessem mal a ela. Não importa se
são primos, eu duvido que deixaria ele encostar um dedo sequer na
Aurora.
Isso era verdade. Mas ainda assim… aquele último relato tinha
me deixado com uma pulga atrás da orelha.
— É que algumas coisas simplesmente não encaixam —
comentei. — Essa garota de quem Aurora fala, Clarice. Eu a
conheço. Ela me contou algumas coisas de quando estudou aqui,
mas nunca falou desses dois. Na verdade, ela sempre diz que não
teve muitos amigos na época da escola que ajudassem com os
seus… problemas. — Fiz uma careta, pensando em seu professor.
— Mas vendo pelo ponto de vista da Aurora, parece que tanto ela
quanto Vougan se preocupavam com a Clarice. Então, a não ser
que algo tenha acontecido que tirou os dois de circulação, não
entendo como eles simplesmente começariam a ignorá-la.
Richard escutava com atenção, e ponderou por um tempo.
— Já tentou falar com ela? Talvez saiba o que aconteceu.
Suspirei mais uma vez.
— Na verdade, eu… tenho medo de perguntar e acabar… sei
lá, disparando algum gatilho. Ainda mais enquanto ela estiver longe
de casa. — Contei resumidamente o que eu sabia sobre o passado
de Clarice, e como também sabia que algumas coisas ainda a
afetavam. Era um assunto delicado demais para eu simplesmente
sair perguntando como se não fosse nada, apenas pra satisfazer
minha curiosidade. — Eu me sentiria melhor falando sobre isso
pessoalmente, mas a Clarice tá viajando. E não volta tão cedo. —
Baixei os olhos. Infelizmente, a minha melhor opção pra desvendar
aquele mistério tinha que ter data e hora marcada.
— Bom, então acho que só resta uma alternativa — Richard
falou, se espreguiçando e alongando braços e pernas. Senti seus
músculos tensionarem ao meu redor, mas quando relaxou, voltou a
me abraçar, seus braços enlaçando minha cintura. — Temos que
achar esse tal de Vougan.
— Ele também não facilitou pra gente — resmunguei, me
aninhando em seu abraço. — Procurei na internet, mas Vougan,
aparentemente, também não é fã de redes sociais.
— Adultos... — Richard bufou revirando os olhos.
— É. Adultos — concordei ao mesmo tempo em que o sinal do
fim do intervalo batia. Gemi um resmungo. — Aaah… não quero ir
pra aula.
Richard deu risada enquanto eu me levantava com a coluna de
uma idosa e batia a grama da bunda.
— Achei que gostasse das aulas de violoncelo. — Se levantou
também com um movimento fluido que me deu inveja.
— Eu gosto. Mas é que eu tô tão… — respirei fundo e suspirei
— cansada. De tudo.
Ele se aproximou de mim e afastou um pedaço da franja que
caía em meus olhos.
— Eu sei — murmurou com cuidado. Com compreensão. —
Mas vai passar. Logo, logo essa coisa toda do concurso acaba.
Consegui sorrir, e o dedo de Richard desceu com carinho pela
minha têmpora até a bochecha, me fazendo ficar arrepiada. Mesmo
depois de duas semanas desde que demos nosso primeiro beijo e,
bem, nos acertamos, eu ainda tinha aquele tipo de reação toda vez
que ele me tocava. E nos víamos praticamente todos os dias, então
ele me tocava bastante, o que me garantia horas e horas de
bochechas vermelhas e arrepios pelo corpo todo.
Tudo bem, ainda não tínhamos passado de abraços e beijos —
que, modéstia à parte, já eram o suficiente pra me deixar de pernas
bambas —, mas por enquanto estava bom assim. Richard não me
apressava em nada e, assim como eu, gostava de aproveitar ao
máximo o simples fato de estarmos juntos durante as aulas. Era
difícil encontrar tempo na minha agenda conturbada, em meio a
trabalho e eventos, para que nos víssemos fora da escola, mas até
nisso ele era compreensivo e não me cobrava nada. Pelo contrário,
até me acompanhou algumas vezes nos eventos de fim de semana.
E se dava muito bem com Jéssica, que o enchia de perguntas, uma
mais curiosa e descabida que a outra, e sempre que eu a
repreendia pela falta de vergonha na cara, Richard apenas dava
risada e respondia mesmo assim. Até Elias gostava dele, apesar de
às vezes querer bancar o meu guardião coruja, e lançava a Richard
olhares de aviso quando estávamos grudados feito chiclete, como
ele não parava de resmungar.
Mas eu estava feliz. Finalmente tinha encontrado um pouco de
alegria em meio a tanta confusão e, por mais que soubesse que
alguns dos meus problemas estavam longe de se resolver, também
sabia que Richard ficaria ao meu lado, me dando apoio. E me
ouvindo resmungar.
— É — falei, o abraçando pela cintura conforme voltávamos pro
interior do prédio. Richard passou um braço por cima do meu
ombro. — Vai passar. Só espero que dessa vez não seja por cima
de mim.
Ele riu com gosto e, quando passamos pela secretaria, até o
corredor que levava ao conservatório, falou:
— Que horas mesmo você sai do trabalho?
— Na orquestra? Lá pras dez da noite, por quê?
Richard arregalou os olhos.
— Tudo isso? Todos os dias?
Assenti.
— Todos os dias.
— Como você… — Parou, procurando as palavras.
— Como ainda estou viva? — Dei risada. — É uma boa
pergunta.
— E volta pra casa de ônibus tarde da noite?
— Não, Demétrio me dá carona na volta. — Sinceramente, ele
era um santo. E mais um no pequeno grupo de pessoas na minha
vida que eu estaria perdida sem.
— Entendi… — Richard murmurou, pensativo.
O olhei com cautela.
— Por que a pergunta?
Ele abriu a boca para responder, mas viramos no corredor que
dava na sala da professora Fabiana… e o professor De Lucca
estava lá. Parado feito uma estátua com as mãos nos bolsos
enquanto olhava, um pouco distante, pelo vidro da porta.
Tanto eu quanto Richard paramos no lugar, e trocamos um
olhar. Ele assentiu e me soltou, indicando que eu fosse.
— Vou esperar aqui — sussurrou e recuou alguns passos, até
sumir no corredor ao lado.
Respirei fundo e segui até o professor De Lucca. Pensava em
provocá-lo de alguma forma por estar bisbilhotando a professora
Fabiana, mas à medida que me aproximava… seu olhar não parecia
o de alguém apaixonado ou admirado, mas… arrasado. Será que
tinham brigado?
— Professor? — falei com cuidado, olhando com cautela. —
Tudo bem?
Ele virou o rosto, devagar, na minha direção, os olhos azuis
vidrados.
— Julieta — falou, inexpressivo, antes de voltar a encarar a
porta. — Como tem passado?
Esquisito era pouco pra definir o comportamento dele.
— Bem — murmurei, um pouco incerta. — O senhor… precisa
falar alguma coisa com a professora Fabiana? Se quiser eu posso
chamar por ela.
Ele sacudiu a cabeça de leve.
— Não precisa — falou daquele jeito distante. E continuou
olhando o interior da sala.
Me aproximei um pouco e fiquei na pontinha dos pés até
conseguir olhar lá dentro também.
A professora Fabiana estava concentrada, tocando o cello com
toda a maestria e elegância que só ela conseguia, os cabelos
longos e pretos escorrendo por seus ombros contrastando com o
incrível macacão vermelho que deixava boa parte das suas costas à
mostra.
E reconheci a melodia que chegava abafada até nós pelas
frestas da porta fechada. A peça que eu ia tocar na segunda
seleção.
— Ela toca muito bem, né? — Voltei a olhar o professor e sorri.
— Seus dedos são tão firmes, e ainda assim ela consegue
reproduzir um som tão suave… espero conseguir pelo menos
chegar perto disso um dia.
Um indício muito leve de sorriso brotou no canto da boca dele,
mas logo sumiu.
— Dedos firmes… — murmurou baixinho — e um som suave.
É… acho que sim.
— Professor… — Eu estava começando a ficar preocupada.
Nunca tinha visto o professor De Lucca tão… perdido. Instável.
Praticamente do avesso. — O senhor tá bem?
Suas mãos se remexiam dentro dos bolsos, como se ele
estivesse contraindo os dedos, e todo o seu corpo parecia tenso.
Estiquei a mão e toquei seu braço de leve na altura do pulso…
e ele piscou e sacudiu a cabeça, como se acordasse. E se afastou
de mim.
— Perdão, Julieta, eu não estou me sentindo muito bem. É
melhor… — continuou se afastando, recuando, os olhos tentando
focar em tudo e nada ao mesmo tempo — melhor eu ir. Boa aula.
Fiquei olhando enquanto ele sumia, completamente confusa. E
a porta à minha frente se abriu.
— O que faz aí fora? — a professora Fabiana perguntou. —
Entra, Julieta, você tá atrasada. Não temos tempo a perder, a
segunda seleção é amanhã.
Desviei os olhos do ponto onde o professor De Lucca tinha
sumido, e a encarei de olhos arregalados. Ainda estava meio
perdida com o que tinha acabado de presenciar.
— Ah… certo — murmurei.
E me virei para o outro lado no corredor enquanto ela me dava
as costas, onde Richard me olhava meio escondido atrás da parede.
Ele inclinou a cabeça em uma pergunta silenciosa.
Assenti, assegurando-o de que estava tudo bem. E segui para
dentro da sala.
— Posso fazer uma pergunta? — Fechei a porta atrás de mim.
A professora Fabiana apenas voltou a se sentar, cruzando as
pernas longas, e me encarou, esperando.
— Você e o professor De Lucca... sabe... se dão bem?
Suas sobrancelhas finas arquearam.
— Claro que nos damos bem, Julieta, somos ótimos colegas de
trabalho. Por que a pergunta?
— Só colegas de trabalho? — insisti. — Tem certeza de que
não... se dão um pouquinho melhor do que isso?
Ela piscou e arregalou os olhos escuros.
— Julieta Bellini! Que tipo de insinuação é essa? — Suas
bochechas coraram.
Encolhi os ombros, mas não consegui segurar o sorriso.
— Só acho que vocês formariam um casal muito bonito,
professora. Não pode culpar uma adolescente que gosta de
romance por tentar.
E, por mais que tentasse manter a fachada severa... a
professora Fabiana soltou uma risada.
— Vocês, adolescentes, são impossíveis mesmo. Não é a
primeira vez que escuto esse tipo de coisa.
— E com razão, professora. Você é um mulherão, e o professor
De Lucca é... bom, você sabe... minha nossa! E acho que ele gosta
de você. Então...
— Então você tá sonhando acordada, espertinha. E assistindo
muita comédia romântica. O professor De Lucca não gosta de mim
assim, acredite.
Franzi as sobrancelhas.
— Por quê? Ele... já é comprometido?
Ela arqueou uma sobrancelha, estreitando os olhos de leve.
— Sabe que não é permitido falar da vida pessoal dos
professores com os alunos, né?
Juntei as mãos em prece.
— Por favorzinho? Prometo que isso não vai sair daqui. E que
eu paro de ficar fantasiando coisas — acrescentei depressa.
A professora Fabiana revirou os olhos, respirando fundo. Mas
suspirou e falou:
— Ele não é comprometido até onde eu sei, e aparentemente
não se importa com isso.
— Como assim?
Ela deu de ombros.
— Eu nunca o vi acompanhado. Parece que ele não liga, ou
não quer se envolver com ninguém. Talvez prefira ficar sozinho.
Minha expressão murchou.
— Mas você já tentou...
— Somos só amigos, Julieta. É só assim que ele me vê, e eu
também. Lamento frustrar suas fantasias, mas... — Encolheu os
ombros. — Ele não faz o meu tipo.
Foi a minha vez de piscar e arregalar os olhos.
— Como isso sequer é possível? Já olhou pra cara daquele
homem? Tipo... olhou bem?
E, por mais que a minha insistência estivesse beirando à
invasão de privacidade, a professora riu.
— Desculpa, Julieta. Mas eu tenho... outras preferências.
Inclinei a cabeça, confusa.
— Tipo?
A professora Fabiana sacudiu a cabeça e fechou os olhos, mas
falou por fim, acabando com qualquer resquício de fantasia que
tivesse sobrado:
— Tipo a Cris da secretaria.
Pisquei mais uma vez, escancarando a boca.
— Ah! Tá — balbuciei, o rosto inteiro pegando fogo. — Certo,
eu... entendi. Desculpa, professora, eu não...
— Tudo bem. — Ela me interrompeu, rindo com gosto. — Como
eu disse, lamento frustrar suas fantasias, Julieta.
Comecei a retorcer os dedos.
— E a Cris gosta de você?
— Ah, meu Deus, menina! — Riu, incrédula. — Chega de
fofoca por hoje pra você. Anda, pro violoncelo. — Apontou a minha
cadeira com o arco.
Tive que segurar o sorriso, mas fiz como ela mandou.
— Sabe, eu ainda não entendo por que você escolheu essa
peça — a professora falou, mudando de assunto, enquanto eu
pegava meu instrumento no canto da parede e o tirava da maleta.
Às vezes o deixava ali na sala dela durante o período da manhã,
enquanto tinha as aulas gerais do colégio. Era mais fácil me
locomover por aí sem o trambolho nas costas o dia inteiro. — É
bonita e combina com o tema, claro, mas em comparação com a da
primeira seleção, ela é… — Hesitou.
— Muito simples? — Me sentei na cadeira, posicionando o cello
entre as pernas.
— Tipo isso. — Fez uma careta, jogando os cabelos por cima
de um ombro.
— É, eu sei. — Ajeitei o arco na mão com firmeza. — Mas é
que… toda essa coisa do concurso é estressante. E eu não
conseguiria encarar isso numa boa se não fosse pela ajuda de
algumas pessoas, então… tocar essa peça é meio que uma forma
de agradecimento. De homenageá-los da única forma que eu posso.
A professora escutava tudo com atenção. E sorriu.
— Eles virão amanhã? Te assistir?
Baixei os olhos.
— Não, eles não… vão poder. Mas eu gosto de pensar que
conseguirão me ouvir, independente de onde estiverem. — Ou do
que tiver acontecido.
— Bom, isso é muito bonito — ela falou depois de um tempo. E
endireitou os ombros, ficando com aquela postura ereta e inabalável
de sempre. — Mas então vamos lá, mocinha. Mãos à obra. —
Indicou a partitura à minha frente e cruzou os braços. — Hora de
mostrar as garrinhas.
Soltei uma risada, mas tratei de focar toda a minha atenção nas
notas diante dos meus olhos e na melodia que já estava bem fixa na
minha memória.
Na melodia de O Cisne, de Saint-Saëns.
Capítulo 33
O carro antigo parou em frente de casa, a rua tranquila e vazia
imersa em escuridão.
— Obrigada pela carona, Demétrio — falei, como todos os dias,
enquanto me soltava do cinto de segurança e descia.
— Não tem de quê, Julieta — ele respondeu e sorriu, como
todos os dias. — Boa sorte no concurso amanhã — acrescentou
enquanto eu pegava o violoncelo no banco de trás. — Tenho certeza
de que vai se sair muitíssimo bem.
Ofereci um sorriso trêmulo pela janela, nervosa.
— Tomara. Cruze os dedos por mim.
O senhor robusto e sorridente ergueu as duas mãos para mim,
os dedos cruzados.
— Sempre. Boa noite, menina.
— Boa noite, Demétrio. — Acenei enquanto o carro se afastava,
e sumia de vista.
Com um suspiro cansado, ajeitei o instrumento nos ombros e
peguei a mochila de qualquer jeito, pendurada nos dedos, e abri o
portãozinho baixo de ferro e tintura branca descascada. Cruzei o
pequeno jardim até a porta, abrindo com cuidado para não fazer
barulho e acordar meu avô… mas a casa estava toda acesa, e ouvi
vozes vindo da cozinha. Vozes mesmo, no plural.
— Agora joga o molho em cima até cobrir tudo — a voz rouca
do meu avô falou. — Cuidado pra não derramar.
— Assim? — falou uma voz conhecida que, com toda certeza,
não deveria estar ali.
Apoiei a mochila e o cello no chão perto da porta e segui as
vozes, incrédula. Não podia estar acontecendo o que eu achava que
estava acontecendo.
— O que estão fazendo? — exclamei assim que entrei na
cozinha, meus olhos tão arregalados de surpresa e confusão que
quase saíram quicando pelo chão.
Os dois se viraram para mim ao mesmo tempo. Meu avô… e
Richard.
— Oi! — Ele teve a cara de pau de abrir um sorriso largo, como
se estar ali fosse a coisa mais natural do mundo. E segurava uma
panela de molho em uma mão e uma concha metálica na outra.
— Tá atrasada — meu avô resmungou, inabalável, enquanto
pegava uma travessa de cima do fogão e colocava sobre a pequena
mesa redonda no centro da cozinha.
Eu estava boquiaberta. E tão perdida naquela cena sem sentido
que achei que pudesse estar sonhando. Richard ainda não conhecia
meu avô, nem sabia meu endereço, então que raio estava fazendo
na minha cozinha?
— O que estão fazendo? — insisti, encarando um de cada vez.
— O jantar — Richard respondeu simplesmente, e apoiou a
panela no fogão.
— O que mais poderia ser? — meu avô completou com outro
resmungo.
— Às vezes a Julieta fica perdida com coisas tão óbvias... —
Richard riu.
Meu avô assentiu, concordando.
Espera. Meu avô concordou? Meu avô, o mesmo senhor que
não se dava bem com ninguém e reclamava de Deus e o mundo o
dia inteiro, concordou com Richard?
Eu definitivamente estava sonhando. Um sonho muito doido.
Provavelmente tinha dormido no carro de Demétrio no caminho de
volta e, no exato momento, estava babando no banco do passageiro
enquanto sonhava com tudo aquilo.
— Tá esperando o quê? — meu avô voltou a resmungar, me
tirando de órbita. Ele e Richard já estavam acomodados na mesa.
— Senta logo, senão vai esfriar.
Meu Deus. Não era um sonho.
— Como… Quando… Por que… — Eu não conseguia formular
uma frase coerente conforme me sentava e encarava Richard,
incrédula.
— Bom… — Ele deu risada. — Como? Pedi seu endereço à
sua amiga, Jéssica, que ficou mais do que feliz em me passar,
contanto que eu dissesse exatamente o que queria fazer. — Típico.
— Quando? Eu já tava pensando nesse plano lá na escola quando
perguntei que horas você saía do serviço, mas se sua pergunta for
quando cheguei aqui… não sei, talvez umas oito, seu Aurélio? — Se
virou para o meu avô como se já fossem velhos amigos, e fazendo
meu queixo cair.
— Oito e meia — meu avô respondeu, pegando meu prato e
amontoando comida nele.
— Isso, oito e meia. E, bom, fiz isso porque… — deu de ombros
— amanhã é um dia importante e, dado o seu histórico, tinha
certeza de que você passaria a noite ansiosa e se remoendo com o
que pode acontecer. Queria te ajudar a relaxar, pelo menos um
pouco. — Sorriu como um garoto, orgulhoso por sua artimanha ter
dado certo.
— O que tem amanhã? — meu avô perguntou, devolvendo meu
prato agora cheio de rocambole recheado, molho, arroz e batata
assada. — Eu perguntei, mas o espertalhão aqui ficou
desconversando. — Indicou Richard com a cabeça e fez uma
careta.
— Ah… uma prova. Uma prova importante — enrolei. Não tinha
contado sobre o concurso a ele, pois isso implicaria explicar o
motivo de estar participando, e eu sabia que meu avô não ia gostar
nada se soubesse, rabugento e orgulhoso como era.
Richard, pelo jeito que me olhava, já tinha imaginado.
— Isso — ele acrescentou. — É um simulado. Pro vestibular.
Meu avô assentiu, começando a encher seu próprio prato.
— Pois então coma bem e vá descansar. Nada de ficar
acordada até tarde, eu já cuidei das tarefas de casa.
— O senhor pode comer isso? — Apertei os olhos com
desconfiança conforme ele cortava a carne em seu prato.
— Bah! — resmungou. — Não usamos óleo em nada. E eu já
me recuperei da cirurgia, não precisa ficar vigiando o que eu como
pelo resto da vida.
Suspirei, lutando para não revirar os olhos. Velhinho teimoso.
— Só não exagera — insisti. — E na verdade, eu preciso
estudar mais um pouco antes de dormir. Acho que ainda tem muita
coisa que eu posso…
— Não tem — Richard me cortou, sério. — Você já estudou o
bastante, Julieta. Até demais. Precisa descansar.
— Precisa mesmo — meu avô concordou de novo. — Por isso
mesmo que ele veio. Pra se assegurar de que você não vai
exagerar.
Franzi o cenho, alerta.
— Como assim? O que isso significa?
Meu avô apenas suspirou pesadamente e focou a atenção em
seu prato, como se a ideia não o agradasse, mas fosse um mal
necessário.
Richard, por outro lado, exibiu aquele sorriso largo de novo,
puro triunfo envolvendo cada palavra quando falou:
— Significa que eu vou dormir aqui hoje, Jujuba.

ʄʅ
Aquilo não ia dar certo. De jeito nenhum.
— Não acredito que eu tô vivendo o clichê de só ter uma cama
— murmurei baixinho.
— O quê? — Richard se virou para mim.
Respirei fundo, tentando me acalmar.
— Nada.
Ele deu de ombros e continuou olhando meu quarto de cima a
baixo. Cada canto, cada móvel, cada centímetro do lugar. Nada
passou despercebido de seus olhos curiosos e atentos.
— Sabe, amarelo combina com você. — Sorriu, olhando as
paredes cor de gema de ovo. Era uma cor incomum de se pintar o
quarto, mas eu gostava. Me lembrava de dias ensolarados.
— Obrigada — falei sem jeito da porta, sem saber o que fazer
com as mãos, com os pés ou com a minha própria existência.
O detalhe não passou despercebido por Richard.
— Posso dormir na sala, se quiser.
Sacudi a cabeça.
— Não, tudo bem. O sofá é velho e desconfortável, não vai te
fazer bem. Além do mais… — Apontei a cama de casal, indicando o
óbvio. — Tem espaço suficiente pra nós dois.
Era uma cama que eu dividia com a minha mãe quando nos
mudamos para a casa do meu avô. Dividíamos o quarto todo, na
verdade, mas depois que fiquei sozinha, eu não quis mudar nada
nele.
Bom, nada além da cor das paredes. Precisava de algo mais
alegre do que o branco manchado de antes.
— Se você diz… — Richard sorriu. Mas voltou a ficar sério. —
Só quero que saiba que não tenho nenhum tipo de… segundas
intenções. — Fez uma careta. — De verdade, eu só quero que você
relaxe e descanse.
Assenti, um canto da minha boca teimando em subir.
— Você não confia em mim pra relaxar por conta própria?
Ele engasgou uma risada.
— Nem um pouco.
Dei risada também.
— Ok. Então… você já quer… deitar?
De repente, era Richard que não sabia o que fazer com as
mãos.
— Tá… — Olhou de mim para a cama e de volta para mim. —
Claro. Hum... quer assistir um filme antes de dormir? — Ergueu o
celular.
— Tá, claro.
Enquanto Richard se acomodava no lado perto da parede,
apaguei as luzes e encostei a porta, deixando uma fresta aberta.
Meu avô já tinha ido dormir, e tinha desejado boa noite a nós de
forma curta e rápida, se apressando até seu quarto. Como se não
quisesse nem saber o que aconteceria a seguir no restante da casa.
Ora, sinceramente…
Cruzei a distância de poucos passos até a cama no escuro, e
tateei até encontrar o cobertor. Deslizei até o colchão e me deitei,
meu cabelo ainda úmido do banho fazendo cócegas geladas em
meu pescoço.
A tela o celular de Richard acendeu enquanto ele abria o
aplicativo e rolamos até ficar de bruços, o celular apoiado na
cabeceira antiga da cama.
— O que quer assistir? — Ele rolava a tela com o dedo, o outro
braço agarrado no travesseiro. — Tem uma porrada de coisa aqui.
— Ah, não sei... — Eu não tinha nenhum daquelas assinaturas
de streaming e não era muito de assistir televisão, então com
certeza estava muito por fora do que andava em alta no mundo de
filmes e séries. Mas reconheci uma imagem no catálogo e segurei o
dedo de Richard. — Aqui. Eu quero ver isso.
— Friends? Você nunca assistiu?
Apertei o travesseiro nos braços e sacudi a cabeça. Sabia que
era uma série muito famosa e que, apesar de já ser bem antiga,
aparentemente nunca saía de moda.
— Na minha antiga escola todo mundo conhecia, menos eu.
Então nunca consegui fazer parte das rodinhas de conversa.
Richard não falou nada por um tempo. Mas clicou na série,
dando play no primeiro episódio.
— Bom, prepare-se pra ficar viciada então. — Seus olhos
brilhavam contra a tela. — E pra entrar na discussão eterna pra
decidir se o Ross traiu ou não traiu a Rachel.
— Quê?
— Nada. — Deu risada, e a música de abertura começou a
tocar, um solo de guitarra animado que com certeza ficaria grudado
na minha cabeça. — Você vai descobrir. Mas só pra constar... não
traiu. Não foi legal o que ele fez, mas não traiu. Foi ela que pediu
um tempo.
— Ah... — fiz uma careta confusa — tudo bem.

ʄʅ
Eu encarava o teto, ou o que parecia ser o teto, no meio do
breu. Tínhamos assistido três episódios da série antes de concordar
em ir dormir, por causa do horário. Mas por mais que me sentisse
cansada, uma parte de mim parecia se recusar a pegar no sono.
— O que acha que vai acontecer amanhã? — sussurrei por fim.
— Não faço a mínima ideia — Richard sussurrou de volta, com
sinceridade.
— Acha que Giovanna vai tentar algo de novo?
— Talvez. Vamos ter que ficar atentos.
Suspirei, frustrada.
— Por que ela não pode simplesmente me deixar em paz? Por
que eu, afinal? Tem mais pessoas no concurso pra ela pegar no pé
além de mim, por que não vai atrás deles?
— Vou tentar não levar isso pro lado pessoal — Richard riu.
Soltei uma risada baixa também.
— Desculpa. Não foi o que eu quis dizer. Mas ainda não faz
sentido só eu ser o alvo. — Se bem que Mariana poderia virar um
também, mas eu só descobriria na manhã seguinte.
— Ela pode se livrar dos amigos quando quiser. Você é mais
difícil de intimidar — falou, e eu podia jurar que ele sorria ao
pronunciar aquelas palavras.
— Só não deixei porque tive ajuda — confessei. — A verdade é
que eu não teria chegado até aqui se não fosse por isso. Eu não
sou… — minha garganta fechou — não sou forte o suficiente pra
encarar coisas assim sozinha. Por mais que eu queira, eu não…
— Ei. — Sua mão encontrou a minha, e segurou. — Não faz
isso. Você é forte sim, Julieta. Fala sério, você estuda, trabalha e
cuida da casa ao mesmo tempo. E só tem 16 anos! Eu duvido que
alguém naquela escola faça sequer metade disso.
— Isso é diferente.
— Não, não é. — Entrelaçou os dedos nos meus. — Você dá
conta de tudo isso porque é forte, Julieta. Tudo bem, você pode não
ter tido escolha. Tudo bem, a vida pode ter te obrigado a fazer e ser
quem é hoje. Mas isso não te faz menos forte. Pelo contrário, só
mostra como você é durona. — Seu polegar começou a acariciar as
costas da minha mão com movimentos lentos e circulares. Quando
voltou a falar, sua voz era suave e tranquilizadora. — Mas você não
precisa ser durona o tempo todo. Não tem problema precisar de
ajuda… não tem problema ficar cansada. E, principalmente… isso
não é vergonha nenhuma.
Fechei os olhos e respirei fundo, segurando as lágrimas. Ali
estava uma verdade que eu tinha ignorado por muito tempo. Uma
verdade que eu não queria aceitar.
— Só mostra que você é humana, Julieta — Richard continuou.
— Por favor, nunca pense que é menos do que ninguém.
Virei a cabeça para o lado, para onde eu sabia que ele estava
apesar de não enxergar.
— Acho que eu entendo o que ela quis dizer — sussurrei. E
quase pude sentir as sobrancelhas de Richard franzirem. — Você é
o meu algo em que acreditar.
A mão que segurava a minha ficou imóvel, e tive a sensação de
que ele parou de respirar.
— Acho que você também é a minha — sussurrou, tão baixo
que eu quase não ouvi.
Me virei de lado no colchão, de frente para ele. E ouvi quando
ele se mexeu, se virando até ficar de frente pra mim também.
— Obrigada por me ajudar no primeiro dia. Eu não sabia o
quanto precisava.
— Ser jogada dentro de um depósito por um estranho? — ele
riu.
Estiquei a mão até tocar seu rosto.
— O quanto precisava de alguém como você.
Richard ficou em silêncio por um tempo, até que sua mão
quente cobriu a minha.
— Enquanto precisar, Julieta, eu vou estar aqui. Eu prometo.
— E se eu precisar de você pra sempre? — sussurrei baixinho,
fechando os olhos.
Seu polegar acariciava minha mão.
— Então eu fico aqui pra sempre. Ficar do seu lado sempre vai
ser a escolha certa pra mim. Você sempre vai ser a escolha certa,
Julieta.
E mesmo no escuro, eu sorri. Um sorriso cansado, mas
genuinamente feliz. E finalmente me rendi ao cansaço.
Foi a melhor noite de sono de toda a minha vida.
Capítulo 34
— Quem estamos bisbilhotando? — Beatriz falou em tom
conspiratório, e se agachou ao meu lado atrás da parede, seu
vestido vermelho farfalhando.
Dei um salto de susto por ter sido pega, mas ela apenas sorriu
e olhou para o corredor à nossa frente.
— E então? O que tem de tão interessante acontecendo aqui?
— É… não é nada, eu só…
— Julieta — falou, as sobrancelhas arqueadas e um olhar
pouco convencido. — Você não me engana. Diz logo, eu também
adoro uma fofoca.
Suspirei.
— Tudo bem. — Voltei a apoiar as mãos na parede, olhando
com cuidado do outro lado. — Tá vendo ali? — Acenei com a
cabeça.
Onde Vitor, usando uma camisa social branca, gravata folgada
e jeans escuro, esperava do lado de fora da sala de ensaio que
Mariana usava. Segurando um embrulho.
— O que ele tá fazendo? — Beatriz sussurrou, o cenho
franzido.
— Bom… — comecei, mas não precisei continuar. Porque a
porta da sala se abriu e Mariana, vestida e toda bonitona pro
concurso, saiu.
— Vitor? — ela falou, olhando para ele com confusão enquanto
fechava a porta, segurando a maletinha da flauta na outra mão.
O garoto a olhou de cima a baixo, coçando o pescoço de
nervosismo. Não era pra menos, Mariana estava linda. Ela usava
um vestido de mangas compridas azul-marinho, a saia rodada
descendo até seus joelhos, e sandálias pretas que pareciam de
boneca, os cabelos castanho-dourados soltos com as mechas da
frente presas atrás da cabeça com grampos de pequenas
borboletas azuis.
Pobre Vitor.
— Aconteceu alguma coisa? — ela voltou a perguntar, com um
leve tom de desconfiança, quando ele não falou nada.
Na verdade, ele nem parecia estar respirando direito.
— Ah, meu Deus — Beatriz sussurrou ao meu lado. — Coitado,
daqui a pouco ele desmaia.
— Força, Vitor — sussurrei tentando encorajá-lo, por mais que
ele nem fizesse ideia de que estávamos ali.
— Não, não aconteceu nada — ele balbuciou, forçando a voz a
sair. — Eu só queria… eu pensei em… sabe, eu…
— O quê — Mariana falou, mais desconfiada ainda.
Vitor engoliu em seco.
— Vai logo! — Beatriz exclamou num sussurro, me agarrando
pelos ombros.
— Eu só queria… — Vitor tentou de novo, estendendo o
embrulho — te desejar boa sorte no concurso.
Meu fôlego estava preso na garganta, e agarrava a parede com
tanta força que pensei que fosse abrir um buraco ali.
Mariana piscou uma vez, descendo lentamente o olhar até o
embrulho simples de papel verde, e depois de volta até o rosto de
Vitor.
— O que é isso?
Ele trocou o peso entre os pés, cada vez mais ansioso.
— Um presente… pra você.
Mas Mariana não parecia muito convencida.
— Por quê? — Franziu o cenho.
E Vitor perdeu a paciência.
— Porque eu quis, inferno! — exclamou com os olhos
arregalados. — Será que dá pra não ser tão complicada assim pelo
menos uma vez, droga?
Tanto eu quanto Beatriz ficamos duras e imóveis no lugar, de
queixo escancarado. Em completo choque.
Mas Mariana apenas o encarou por alguns segundos com
aqueles olhos grandes… e soltou uma risada.
— Tá certo — falou, e pegou o embrulho. — Segura pra mim?
— Ergueu a maletinha da flauta, e Vitor pegou com todo o cuidado
do mundo apesar do surto.
Me aproximei um pouco mais, meu rosto quase colado na
parede, e Beatriz fez o mesmo, apoiando o queixo no meu ombro.
Seus cachos volumosos faziam cócegas na minha bochecha.
— O que é? — ela sussurrou, apertando os olhos enquanto
Mariana abria o embrulho. — O que ele comprou pra ela?
— Bem… — Fiz uma careta, me lembrando daquele palhaço
horroroso.
Mas assim que terminou com o embrulho e viu o que tinha em
mãos… os olhos grandes de Mariana se arregalaram. E brilharam.
— Vitor… — ela arquejou, incrédula, olhando cada centímetro
da capa do livro. — Isso é sério? Isso é… pra mim?
— Você gostou? — ele perguntou com cuidado, provavelmente
tentando decifrar a expressão em seu rosto.
Mariana ergueu os olhos para ele, assombrada e maravilhada
ao mesmo tempo… e corou.
— Gostei — sussurrou, um pequeno e sincero sorriso curvando
os cantos de seus lábios. — Gostei muito. Obrigada.
Ele exalou pesadamente e sorriu também, ainda sem graça,
mas mais aliviado.
— De nada. Então, eu… também queria saber se… sabe, no
almoço… você gostaria de… sair comigo — quase engasgou as
palavras. — Sabe, tem uma lanchonete aqui perto que toca aquelas
músicas antigas que você gosta. Se não quiser não tem problema,
mas eu tava pensando que talvez a gente…
— Sim — ela falou sem pestanejar, e pareceu surpresa com a
própria resposta. Mas repetiu. — Sim, eu quero.
— Sério? — Foi a vez de Vitor arregalar os olhos.
Mariana assentiu, seu sorriso crescendo um pouco. E, um
pouco hesitante, se aproximou um passo.
— Eu… ia adorar.
— Se beijem — sussurrei, quase explodindo de expectativa.
— Por favor, só se beijem — Beatriz concordou, tão agonizada
quanto eu.
Vitor se aproximou um passo também e, com cuidado e um
pouco incerto, ergueu uma mão, tocando a bochecha de Mariana
com as pontas dos dedos. Ela não recuou, mas continuou com os
olhos arregalados fixos nele, como se o visse sob aquela
perspectiva pela primeira vez. Como se o enxergasse de verdade
pela primeira vez.
Ele se inclinou sobre ela devagar e Mariana ficou imóvel, os nós
dos dedos brancos de tanto apertar o livro. Agora era ela quem mal
respirava. E, com cuidado, Vitor depositou um beijo em sua
bochecha. Ela fechou os olhos, seus rostos ainda bem próximos, e
eu podia imaginar bem como seu coração devia estar acelerado
naquele momento.
— Boa sorte no concurso — ele murmurou ao se afastar,
apenas o suficiente para encará-la nos olhos. — Tô torcendo por
você.
Mariana abriu os olhos, um pouco confusa, mas sorriu e disse:
— Boa sorte pra você também.
E, sem aviso, ficou na ponta dos pés e deu um selinho em Vitor.
O garoto ficou vermelho, e tentava conter um sorriso… mas não
deu tempo de ver sua reação completa. Porque Beatriz
simplesmente decidiu que era uma boa hora para seus gritos de
comemoração.
— FINALMENTE! — bradou com vontade, chamando a atenção
dos dois mais à frente e revelando nosso paradeiro.
O semblante de Vitor mudou de bobo alegre pra puto da vida e,
enquanto grunhia com raiva por estar sendo espionado, me levantei
aos tropeços e puxei Beatriz comigo, que ainda ria e gritava.
— Corre! — exclamei, disparando pelo corredor antes que ele
decidisse vir atrás de nós.
— Eles se beijaram! — Beatriz continuava gritando a plenos
pulmões, os braços jogados pra cima e rindo de alegria. — Uhuuuul!
Eles se beijaram!

ʄʅ
— Vamos seguir a mesma ordem da primeira seleção — o
professor De Lucca falou quando formamos um círculo ao redor dele
nos bastidores do palco. — Richard, Mariana, Pedro, Beatriz, Vitor,
Giovanna e Julieta. Sei que os ânimos estão à flor da pele nesse
momento, mas comportem-se — frisou, lançando um olhar de aviso
a cada um de nós. Com certeza não tinha se esquecido da confusão
que arrumamos da última vez, quando o resultado da primeira
seleção saiu. — Eu fui designado pra tomar conta de vocês, então
se vocês aprontam… — mais um olhar de aviso, dessa vez mais
severo — a culpa é minha. Portanto, não quero saber de brigas,
tramoias, xingamentos, nem sequer provocações entre vocês.
Estamos entendidos?
— Sim, professor — falamos todos em uníssono, alguns de
cabeça baixa, outros com desinteresse.
— Ótimo. Começamos em quinze minutos. Relaxem, se
divirtam… e se comportem. Boa sorte a todos — concluiu, nos
dispensando, e seguiu corredor afora.
— Nervosa? — Richard perguntou quando me viu encarando,
ansiosa, a porta de entrada da coxia.
— Um pouco. É que… — continuei olhando, e só não
começava a torcer os dedos porque estava segurando o violoncelo
— o Lucas ainda não chegou.
Richard piscou.
— Seu acompanhamento?
— É — gemi. — E também não atende o celular, só cai na caixa
postal.
Richard respirou fundo e me puxou para perto em um abraço
para tentar me acalmar, mas reparei seu olhar preocupado e
levemente desconfiado.
— Desculpa me intrometer… — alguém falou com cuidado
atrás de mim, e Richard enrijeceu. Olhei por cima do ombro… era
Mariana. Olhava de mim para ele com cautela, como se não
quisesse interromper. — Mas te ouvi dizer que seu acompanhante
ainda não chegou.
— É. — Me desvencilhei do abraço de Richard e virei para ela.
Ele não pareceu gostar muito, pois segurou minha mão livre com
firmeza. — Sim, eu disse. E ele não atende o celular, então… —
encolhi os ombros — não sei o que pode ter acontecido.
Mariana franziu o cenho, confusa e desconfiada.
— Bom, isso é estranho porque… eu juro que o vi quando
cheguei.
Meu coração deu um salto violento. Mas foi Richard quem deu
um passo à frente, uma expressão séria e a voz dura.
— Desembucha — falou entre dentes, e não pude deixar de
notar o tom acusatório em sua voz.
O encarei, em choque.
— Richard… — falei com cuidado, mas ele continuou
encarando Mariana daquele jeito.
— O que você sabe? — insistiu, as narinas dilatadas.
Mariana o encarava com os olhos arregalados e o corpo rígido,
claramente em choque. E olhou para os lados, nervosa, como se
tivesse medo que alguém visse a cena.
— É só o que eu sei. — Começou a recuar, ainda olhando de
um lado para o outro. — Eu juro. Mas garanto que o vi, chegamos
na escola na mesma hora. Não… Não sei de mais nada. — Recuou
o máximo que pôde e seguiu na direção do banheiro, os passos
apressados.
— O que foi isso? — Me virei para Richard.
— Bem que eu queria saber — ele falou, ainda encarando a
direção que Mariana tinha seguido.
— Não, o que foi que deu em você. — O olhei de cima a baixo.
— Por que falou com ela daquele jeito? Ela só queria ajudar.
Foi a vez dele me olhar com confusão.
— Ajudar? — riu com descrença. — Desde quando algum deles
ajuda em alguma coisa?
Pisquei, fazendo uma careta. A forma como falou deles, como
se Mariana fizesse parte...
Parei. E finalmente me dei conta do que estava acontecendo.
— Ah, não… — sussurrei, um pânico crescente tomando conta
de todo o meu corpo. — Droga. Isso não.
— O que foi? — Richard falou baixinho, os olhos arregalados
pela minha súbita mudança de comportamento. — Julieta, o que
aconteceu?
Olhei ao redor da coxia, encarando cada um, cada rosto
presente ali. E parei quando encontrei Giovanna, rindo de triunfo
com sua acompanhante.
Por um momento, por um brevíssimo momento… seu olhar
encontrou o meu. E ela sorriu daquele jeito convencido, como se
soubesse exatamente o que eu estava pensando. E confirmasse.
Ela sabia. De alguma forma, ela sabia daquela história. E fez
exatamente a mesma coisa que fizeram na época.
— Julieta — Richard me segurou pelos ombros e me sacudiu.
— Julieta!
Os outros participantes olharam na nossa direção, percebendo
a mudança no clima. Mas não me importei, não tentei ser discreta e
com certeza nem me lembrei da ordem do professor De Lucca sobre
me comportar.
Não enquanto deixava o violoncelo nas mãos de Richard, e
segui até Giovanna a passos largos e duros, empurrando-a contra a
parede e segurando seus ombros com força.
— Cadê ele?! — gritei, prendendo-a no lugar. — O que foi que
você fez?! Cadê ele?!
A pianista dela começou a gritar comigo, me mandando soltá-la,
mas não soltei. Pelo contrário, prensei Giovanna com ainda mais
força contra a parede.
— Será que você não pode simplesmente me deixar em paz,
droga?! Cadê ele?!
— Não faço a mínima ideia do que você tá falando — ela teve a
audácia de dizer, entre dentes, mas ainda com aquele sorrisinho
maldito.
Todos se agitaram ao nosso redor.
— O que tá acontecendo? — Beatriz perguntou atrás de mim.
— Do que ela tá falando, Giovanna? — Vitor falou, alerta.
Mentiras. Eu cheguei a pensar que talvez os amigos de
Giovanna não fossem tão cruéis, mas ela não teria conseguido fazer
aquilo sozinha. Ela tinha que ter tido ajuda.
Mentirosos, todos eles. Minha nossa, eu fui tão burra!
— Cadê ele — vociferei, me segurando para não agarrá-la pelo
pescoço.
— Alguém controle essa garota — Pedro falou, mas parecia
estar se divertindo com a cena.
— Sai pra lá. — Ouvi Richard empurrando todos até chegar
onde eu estava. — Julieta, se acalma. Isso não vai resolver nada.
— Escuta seu namoradinho e me solta, sua maluca —
Giovanna falou, cheia de veneno.
Mas não soltei. Eu não ia soltar, não até descobrir onde ela e os
amigos tinham trancado Lucas.
— Mas que inferno, o que foi que eu disse sobre se
comportarem?! — o professor De Lucca vociferou, voltando de onde
quer que tivesse ido.
— Diz pra ela me soltar, professor! — Giovanna implorou, tendo
a cara de pau de começar a chorar. — Por favor, ela tá me
machucando!
— Sua nojenta! — grunhi com raiva, mas antes que
conseguisse forçá-la mais, o professor me puxou para trás, me
afastando dela.
— Julieta, chega! — Me segurou pela cintura e me ergueu, pois
eu lutava contra ele.
— Cadê ele?! — continuei gritando, me debatendo e tentando
me soltar do professor pra poder esganar aquela cobra. — Eu sei
que foi você, Giovanna! O que foi que você fez com ele?!
— Do que ela tá falando, Giovanna? — o professor De Lucca
perguntou.
— Eu não sei! — Ela voltou a chorar, cobrindo o rosto e sendo
consolada pela amiga pianista. — Essa menina é doida, eu não fiz
nada!
Aquela…
— Mentirosa! — Chutei o ar, tentando acertá-la de qualquer
maneira que conseguisse, mas o professor me afastou, me levando
pro outro lado da coxia.
— Que droga, Julieta, se acalma! — grunhiu, me colocando no
chão e segurando de frente para ele pelos ombros, de costas para
os outros.
— Como eu vou me acalmar?! Aquela nojenta sempre tenta me
sabotar, eu já cansei!
— Do que tá falando? — Ele me encarava como se eu fosse
louca. E provavelmente parecia uma naquele momento. — O que foi
que ela fez?
— Meu acompanhante sumiu! Viram ele chegar na escola mais
cedo, e agora ele simplesmente sumiu! — Virei a cabeça até
conseguir enxergá-la. — E eu tenho certeza que aquela insuportável
da Giovanna é a culpada! Ela fez a mesma coisa que fizeram com o
Marcus!
Agora todos me olhavam como se eu fosse louca. Menos
Richard, que me olhava com um misto de horror e compreensão,
entendendo o que eu queria dizer.
— Quem é Marcus? — Pedro perguntou, para ninguém em
especial.
— Julieta. — O professor me virou de volta para si, os olhos
azuis fixos nos meus. — Do que é que você tá falando?
Inspirei com força. Eu queria gritar, chorar, espernear, tudo ao
mesmo tempo.
— No concurso de dez anos atrás… — falei mesmo assim, sem
me importar se ele pensaria que eu tinha enlouquecido de vez. —
Sabotaram um dos participantes do mesmo jeito. Ele não apareceu
pra tocar, e depois descobriram que tinha sido preso em um dos
depósitos. Eu não sei como ela sabe, mas Giovanna fez exatamente
a mesma coisa, eu tenho certeza!
Eu podia sentir os olhares confusos e cautelosos queimando
nas minhas costas. Mas foi a expressão do professor De Lucca que
prendeu a minha atenção.
— Dez anos atrás? — ele sussurrou, empalidecendo. — Julieta,
de onde foi que você tirou isso?
Mas não tive tempo de responder, porque uma voz feminina
ecoou das caixas de som no palco, anunciando oficialmente o início
da segunda seleção.
E todos os olhos se voltaram para o professor, sem saber o que
fazer.
Ele apenas encarou de volta por alguns segundos, tão confuso
quanto o resto, mas falou por fim:
— Estão esperando o quê? Eu resolvo esse assunto, vocês
façam o que eu mandei. Subam naquele palco quando for a vez de
vocês, e os que ficarem, comportem-se. Em silêncio. Se ouvir um
pio sequer de qualquer um, será desclassificado. Estamos
entendidos?
Todos engoliram em seco, mas assentiram.
— Vai logo, Richard, você é o primeiro — o professor
completou.
Mas ele apenas olhava de mim para o professor, hesitante.
— Vai — falei, mais controlada. — Eu vou ficar bem.
Richard suspirou, contrariado.
— Assim que acabar eu te ajudo a resolver isso, ok?
Assenti, mas encarei meus pés. Frustrada e cansada.
Eu só queria um dia comum e tranquilo naquela escola. Só um.
Será que era pedir demais?
Richard foi até onde tinha deixado o violão, perto do meu
violoncelo e, passando a alça do instrumento por um ombro, seguiu
para a entrada do palco. Mas parou, me lançando um último olhar.
— Vai dar tudo certo, eu prometo.
Assenti, no momento em que ele cruzou as cortinas e foi
recebido por uma salva de palmas animada e eufórica.
— Me deixe ir procurar por ele — implorei ao professor, que
ainda me segurava no lugar. — Eu sou a última a me apresentar, dá
tempo de procurar. Por favor, professor.
Ele ainda me encarava daquele jeito, assombrado e confuso.
— Você não tem provas de que isso realmente aconteceu,
Julieta — falou.
— Professor — falei com firmeza. — Eu sei o que estou
dizendo. E não tô pedindo que o senhor acredite ou me ajude, só
quero que me deixe ir procurar meu amigo. Por favor — acrescentei,
e minha voz falhou.
— Eu te ajudo — alguém falou atrás de mim. Mariana.
— Nem pensar. — Vitor se aproximou, atento a cada palavra
trocada ali. — Você é a próxima a se apresentar, não dá tempo de
sair por aí e voltar.
— Mariana, ele tem razão… — comecei, mas fui interrompida.
— Você não manda em mim. — Ela o fuzilou com o olhar. — Já
disse que eu vou.
— Não — Vitor grunhiu. E respirou fundo. — Eu vou. Sou mais
rápido e mais forte que vocês. Se ele tá mesmo trancado em algum
lugar, vão precisar de alguém que consiga resolver isso.
— Eu não pedi a sua ajuda — cuspi, fazendo os olhos de Vitor
se arregalarem com surpresa. — Acha que eu não sei que vocês
têm parte nisso também? Acha que eu sou idiota a ponto de
acreditar que sua amiguinha fez tudo sozinha?
— Chega — o professor De Lucca falou com firmeza, mas
Pedro também se aproximou.
— E você acha mesmo que vai conseguir encontrar seu amigo
sozinha? — falou naquele tom de tédio. — Sabe quantos depósitos
tem nesse lugar? Você pode não ser idiota, mas também não seja
burra. Sem ajuda é impossível encontrá-lo a tempo.
— Seria mais rápido se vocês dissessem de uma vez onde o
prenderam — grunhi.
— Não fizemos nada — Vitor protestou. — Sabemos desse rolo
tanto quanto você.
— Quem quer que tenha ajudado a pessoa que você acusa…
— Pedro acrescentou tranquilamente — não fomos nós.
Mesmo que aquilo fosse verdade…
— E por que querem me ajudar? — Cruzei os braços e encolhi
os ombros.
Vitor parecia querer dizer alguma coisa, mas tinha dificuldade.
Mariana olhou pra ele, compreendendo, e falou por todos:
— Porque é o que amigos fazem. Não é? — Olhou tanto Vitor
quanto Pedro.
Eles se entreolharam por um momento… e assentiram.
— Você já me ajudou — Vitor murmurou. — Mais de uma vez.
— E não é justo o que estão fazendo com você — Pedro
completou.
Podia ser uma armadilha, mais uma de várias, mas… eles
estariam arriscando sua participação no concurso. Será que
chegariam a tanto apenas pra armar pra mim?
— Se vão mesmo fazer isso… — o professor De Lucca falou,
me despertando — precisam ir logo, ou vão perder tempo. Sugiro
que se separem. Aqueles que estiverem mais próximos da sua vez
de se apresentar, fiquem por perto. Os outros podem ir mais longe.
Mariana… — acrescentou antes que ela abrisse a boca — você fica.
Se eles ainda não tiverem encontrado Lucas quando sua
apresentação terminar, pode ir ajudar, mas por enquanto você não
sai daqui.
Ela bufou, descontente, mas assentiu.
— Certo, temos pouco tempo. — Beatriz apareceu atrás de
Pedro conforme disparamos até a porta. — Eu acabei de montar um
grupo no WhatsApp com todo mundo. Se alguém achar o Lucas,
avise por mensagem e, quem puder, vá correndo ajudar.
Estávamos quase no corredor quando Giovanna segurou Vitor
pelo braço, fazendo ele parar.
— O que pensam que estão fazendo? — grunhiu entre dentes.
— Não é da sua conta, Giovanna — ele grunhiu de volta, se
soltando.
— Assim como esse seu plano novo não era da nossa — Pedro
completou, e os dois seguiram atrás de nós, deixando Giovanna se
remoendo sozinha com um olhar mortal apontado para suas costas.

ʄʅ
— Lucas! — chamei no meio do corredor vazio com as mãos
em concha ao redor da boca. — Lucas, cadê você?!
Eu corria, batia e chutava todas as portas que encontrava, mas
ainda não tinha encontrado nenhum sinal dele.
— Lucas! — Tomei fôlego. — LUCAAAAAAS!
Nada.
Já fazia vinte minutos que eu procurava, sem sucesso. Como
era a última a me apresentar, fui a que se afastou mais do anfiteatro.
Eu nem procurava pelo conservatório, tinha ido direto pros
corredores do colégio.
Meu celular vibrou no bolso da calça, e um alívio momentâneo
tomou conta de mim. Uma mensagem do nosso grupo de busca.
Mas o alívio durou pouco. A mensagem de Pedro apenas dizia
que Mariana tinha acabado de subir no palco e, como ele seria o
próximo, tinha que voltar.
Gemi, querendo chorar. Mas respirei fundo e digitei.

Julieta: Beatriz, coloca o Richard no grupo,


por favor. Ele vai ajudar a procurar.
Beatriz: Feito.
Richard: Alguma novidade? Onde já procuraram?
Vitor: Nada no ginásio.
Beatriz: Nada no estúdio.
Julieta: Nada na biblioteca.
Richard: Vou pro refeitório então.

Guardei o celular e me recostei na parede, fechando os olhos e


respirando fundo. Me sentia zonza com todo aquele estresse.
Mas tratei de me recompor e voltei a chamar, testando porta
após porta após porta. Não podia me dar ao luxo de descansar. Ou
de recuperar o fôlego.
— Lucas! Por favor… — meus olhos começaram a arder —
aparece. LUCAS!
Nada.

ʄʅ
Eu já tinha andado tanto que nem sabia mais pra onde ia.
Apenas seguia em frente, sem rumo, chamando Lucas com a
garganta arranhando e a voz mal saindo.
Só percebi que tinha voltado pro anfiteatro quando a porta da
coxia se abriu, e Vitor apareceu.
— Ainda bem que você tá por aqui — falou, vindo até mim. —
Minha apresentação acabou agora, Giovanna está subindo no
palco. Você… é a próxima — acrescentou com cuidado. — Melhor
ficar por perto.
Soltei algo parecido com uma risada cansada. Exausta.
— Pra quê? Eu não posso tocar sem acompanhamento. E meu
acompanhante simplesmente evaporou. — Encolhi os ombros. — Já
era pra mim.
Todos já tinham ido e voltado de suas apresentações,
continuando a procurar por Lucas. Mas sem sucesso ainda.
— Vocês não sabiam mesmo que ela faria isso? — perguntei
baixinho, encarando o nada.
— Não — Vitor respondeu, também baixo. E soltou uma risada
sem humor. — Acho que ela não confia mais na gente.
— Você teria feito? Se ela tivesse mandado… teria obedecido?
Ele não hesitou nem um segundo quando disse:
— Não. E não posso falar por ninguém, mas sei que Pedro
também não faria. Nenhum de nós faria.
Não falei nada e apenas segui em frente, devagar, passando
por Vitor e entrando na coxia escura. Parei perto das cortinas,
observando a garota tocando violoncelo no centro do palco. Vitor me
seguiu e parou ao meu lado.
— Por quê? — sussurrei. — Você não tinha problemas em me
perseguir antes… que diferença faz agora?
Ele levou um tempo pra responder, procurando as palavras
certas.
— Richard tava certo quando disse que eu não sabia o que era
uma amizade de verdade. Eu achava que receber e obedecer as
ordens de Giovanna era o certo, que não existia nada além disso,
mas com o tempo… depois que você chegou… as coisas mudaram.
Não desviei os olhos do palco.
— Como assim?
— Eu achava divertido pegar no pé dos novatos, mostrar quem
é que manda. Gostava da sensação de causar medo na molecada.
Mas naquele dia, depois que a Giovanna… bateu em Mariana… —
falou com dificuldade, como se doesse lembrar. — Ver aquilo mudou
tudo. E você, mesmo sendo baixinha e magricela, bateu de frente
comigo e me deu uma bela bronca. — Riu de leve. Mas voltou a
ficar sério. — Foi quando eu me dei conta de como tudo aquilo era
errado. Assustar era uma coisa, mas… bater, ainda mais em alguém
que te considera um amigo… não é certo. E comecei a ver as coisas
de uma forma diferente. Comecei a… pensar por conta própria, eu
acho. — Suspirou. — E me dei conta de que nada daquilo era
amizade de verdade. Até que você… me ajudou.
O olhei pelo canto do olho.
— Mesmo depois de tudo que eu fiz, você não me julgou —
continuou. — E me ajudou. Foi… o mais perto de uma mão amiga
que eu já cheguei. E foi… legal saber que eu podia contar com
alguém pra me ajudar quando precisasse.
— Eu não acho certo zombar dos amigos quando eles precisam
de ajuda — falei, me lembrando da risada de Giovanna na sala
quando ouviu o pedido de Vitor. — E eu posso parecer idiota por
isso, mas eu dificilmente nego ajuda a alguém.
— Se fosse idiota, não teria feito diferença pra mim. — Vitor
sorriu de lado. — Mas fez.
E, indo contra todas as probabilidades, consegui sorrir. Um
sorriso pequeno e cansado, mas ainda assim um sorriso.
No entanto, ele sumiu quando voltei os olhos para o palco.
— Pena que nada disso faz diferença agora. Agradeço a ajuda
de todos vocês, mas… acho que só um milagre pra me salvar
dessa.
Conferi a tela do celular só pra ter certeza… Nada. Nenhuma
notificação de mensagem.
Vitor respirou fundo e, após alguns segundos, refletindo, soltou
o ar com força e falou:
— Tudo bem, vamos fazer isso.
Olhei pra ele, confusa.
— Fazer o quê?
Vitor sacudiu os braços, se livrando da tensão e, alongando o
pescoço, falou como se fosse a coisa mais natural do mundo:
— Eu faço o seu acompanhamento.
Arregalei os olhos, quase certa de que meu coração tinha
parado de bater.
— O quê? Não, você… não pode fazer isso!
Ele fez uma careta pra mim, fingindo estar ofendido.
— Acha que eu não consigo fazer algo tão simples? Me
respeita, bonequinha.
— Vitor, isso é loucura. Você pode ser desclassificado!
O ar de descontração deixou seu rosto.
— Eu sei. Mas você já me ajudou duas vezes. Tá na hora de
devolver o favor.
Sacudi a cabeça, incrédula.
— Já disse que você não me deve nada. Vitor… eu não posso
deixar você fazer isso.
Mas ele sorriu de lado, um sorriso astuto e triunfante.
— Ainda bem que eu não tô pedindo permissão.
Abri a boca para tentar fazê-lo mudar de ideia, mas na mesma
hora Beatriz e Mariana passaram pelas portas, vindo até nós.
— Que bom que você já tá aqui, Julieta — Beatriz falou,
suspirando de alívio. — Te procuramos por todo lugar, mas não
conseguimos te achar. Sua vez tá chegando, né?
— Pedro e Richard ainda estão procurando. — Mariana olhou
ao redor. — Cadê o professor De Lucca?
— Foi atrás do diretor — Vitor falou. — Pra explicar o que tá
acontecendo e ver se podem fazer alguma coisa. Mas relaxem, o
problema já foi resolvido.
— Já? — Beatriz arregalou os olhos. — Encontraram o Lucas?
— Não — sussurrei. E olhei Vitor, quase implorando. — Por
favor, não faz isso.
— Fazer o quê? — Mariana nos encarou, um de cada vez,
alerta.
Mas antes que qualquer um pudesse dizer mais alguma coisa,
uma salva de palmas ressoou do outro lado das cortinas,
anunciando o fim da apresentação de Giovanna. Eu era a próxima.
Todo o ar escapou dos meus pulmões.
— Ah não — gemi.
— Ah sim — Vitor foi até onde estava meu violoncelo e o
pegou, empurrando para mim. — Vamos logo, Julieta, não dá mais
tempo de pensar.
— Façam alguma coisa — implorei às duas garotas. — Não
deixem ele fazer isso.
— Isso o quê — Mariana exigiu, impaciente e ansiosa.
Mas foi Beatriz quem falou, olhando de mim para Vitor com
compreensão:
— Ele vai fazer o acompanhamento dela.
— O quê?! — Mariana esganiçou, e encarou Vitor com nada
menos que desespero. — Você não pode fazer isso, vai ser
desclassificado!
— Você faria a mesma coisa se pudesse — ele respondeu,
olhando no fundo de seus olhos. — Eu sei que faria.
Mariana não respondeu, mas sua expressão entregava tudo.
— Vitor… — insistiu, baixinho e com a voz trêmula. — Por
favor.
Mas ele apenas se aproximou dela e ergueu a mão até seu
rosto, um sorriso de canto de boca estampado no rosto.
— Eu disse que tava torcendo por você. Pelo menos agora vou
poder fazer isso sem precisar competir.
Mariana engoliu em seco, os olhos grandes arregalados com
temor.
— Nada saiu como planejado… — Vitor continuou — mas ainda
vamos naquela lanchonete mais tarde, ok? Quero ouvir você se
esgoelar quando começar a tocar as músicas do Bon Jovi.
Ela fechou os olhos e suspirou, frustrada, ao mesmo tempo em
que Giovanna saía do palco e vinha na nossa direção.
— Nada do seu amiguinho ainda? — falou, toda dócil, enquanto
passava por mim. — Que pena, ele deve ter passado mal. É só um
palpite, mas já olharam na enfermaria?
Todos enrijecemos, e meus olhos quase explodiram pra fora do
rosto.
Giovanna sorriu com deleite diante da nossa expressão.
— Pena que não dá mais tempo de fazer nada. — Estalou a
língua. — Desculpa não ter podido ajudar antes. — Sorriu mais uma
vez e me lançou uma piscadela, seguindo em frente e nos deixando
sozinhos.
Meu sangue ferveu e, por muito, muito pouco mesmo, não fui
atrás dela e comecei a puxá-la pelos cabelos. Ao invés disso,
respirei fundo, as mãos duras tremendo de raiva, e encarei Vitor.
— Você tem certeza do que quer fazer?
Ele me olhou com a mesma raiva e determinação.
— Agora mais do que nunca.
Assenti e me virei para o palco, na mesma hora que a voz
ecoou das caixas de som, anunciando o meu nome. Vitor se postou
ao meu lado, respirando fundo.
— Eu esqueci de perguntar… — falou, encarando o palco
iluminado que aguardava. — Que peça você vai tocar mesmo?
Fechei os olhos por um momento, tentando me acalmar. Aquilo
podia dar muito certo ou muito errado. Mas percebi que eu já nem
me importava mais.
— O Cisne, de Saint-Saëns.
Vitor sorriu e entrelaçou os dedos, esticando os braços em
frente ao corpo e alongando os músculos.
— Moleza.
— Já avisei os meninos — Beatriz falou atrás de nós. — Eles
estão indo pra enfermaria.
Assenti. Não dava mais tempo deles voltarem, mas eu torcia
para que Lucas estivesse bem.
— Boa sorte — Mariana sussurrou, trêmula.
Vitor a olhou por cima do ombro e, com aquele sorriso
despreocupado e astuto, piscou para ela.
— Pronta? — perguntou, virando o rosto na minha direção. —
Essas apresentações estão muito tranquilas e sem graça, é hora de
dar uma animada e causar um pouquinho de confusão.
Sorri de leve e olhei para ele.
— Obrigada, Vitor. Quando tudo isso acabar, vou ficar feliz se
puder começar a te chamar de amigo.
Ele riu, e indicou o caminho à frente.
— Você primeiro, bonequinha.
Voltei a encarar o palco iluminado e, respirando fundo, com as
mãos ainda trêmulas… cruzei as cortinas, os passos determinados
de Vitor em meu encalço.
O silêncio da plateia era mortal quando nos viram, dois
participantes do concurso dividindo o mesmo palco. Mas seguimos
em frente, de cabeça erguida, mesmo sem fazer a mínima ideia do
que aconteceria a seguir.
Capítulo 35
— Foram eles! — Lucas exclamava, deitado na maca da
enfermaria, fraco, pálido, suando… e apontando para Pedro e Vitor
com os olhos arregalados. — Foram eles que fizeram isso comigo,
eu tenho certeza!
— Ah, fala sério. — Pedro revirou os olhos, parado a alguns
metros de distância da maca com os braços cruzados. — A gente te
ajudou, por que não agradece ao invés de ficar nos acusando de
algo que você nem sabe?
— Eu sei, sim! Foram vocês, desgraçados! — Tentou se
levantar, mas Richard o empurrou de volta.
— Fica calmo. — Segurou Lucas contra a maca, os dentes
trincados. — Você tá muito fraco e alterado, isso só vai te fazer mal.
— Mas foram eles! — Lucas encarou Richard, suplicando. —
Foram eles, eu sei que foram!
— O que aconteceu? — perguntei com cuidado, me
aproximando e segurando sua mão numa tentativa de acalmá-lo. —
Você viu alguma coisa? Ouviu? Qualquer coisa que você lembrar
pode ajudar a entender essa confusão.
— Entender? — Os olhos castanhos de Lucas se voltaram para
mim, descrentes. — Você não acredita em mim, Julieta? Vai ficar do
lado deles? É sério?
Mordi o lábio. Eu não duvidava que Lucas acreditasse que os
garotos tivessem feito aquilo, mas… depois de tudo que tinha
acontecido, depois de tudo que eles fizeram pra me ajudar… não,
eu não acreditava que estivessem envolvidos.
— Eu só quero que você me diga tudo que lembra — falei de
forma tranquilizadora. — Por favor.
— Ficamos todos muito preocupados com o seu sumiço —
Richard acrescentou. — Te procuramos em todo lugar sem parar.
Lucas alternava o olhar entre nós com cuidado, o corpo tenso.
Dava pra ver que ainda estava confuso e assustado com tudo que
tinha acontecido, e não era pra menos. O hematoma em sua
têmpora dava uma boa ideia do que tinham feito com ele.
Depois que minha apresentação terminou — graças ao bom
Deus conseguimos tocar a peça do início ao fim sem problemas —,
tanto eu quanto Vitor, Mariana e Beatriz saímos correndo do
anfiteatro até a enfermaria. Pedro e Richard já estavam lá, com um
Lucas ofegante quase inconsciente e a porta de um depósito
minúsculo arrebentada — Richard disse que não tinha encontrado
outro jeito de abrir além de usar o próprio pé.
— Eu tinha acabado de chegar… — Lucas começou, olhando
para frente com os olhos levemente apertados conforme se forçava
a lembrar. — Fui ao banheiro antes de ir pro anfiteatro… e quando
estava saindo… alguém chegou por trás e me deu uma pancada na
cabeça, eu acho. Acordei já no depósito, e ouvi quando me
trancaram. — Olhou feio para Vitor e Pedro, do outro lado da
enfermaria. — Eram duas pessoas, disso eu tenho certeza.
— Chegaram a dizer alguma coisa? — Vitor perguntou,
inabalável com a acusação enquanto Pedro revirava os olhos mais
uma vez.
— Você é mesmo muito cara de pau de perguntar isso… —
Lucas grunhiu com os olhos semicerrados, mas foi interrompido pelo
professor De Lucca, que acabava de entrar… acompanhado do
diretor. E Giovanna.
— Eu posso saber o que foi que aconteceu aqui? — o diretor
falou, encarando cada um de nós com aqueles olhos azuis e frios.
E me dei conta pela primeira vez. Seus olhos… eram azul-
cinzentos.
Pisquei, ficando imóvel e dura. E alerta. Não permitiria o
pensamento se concretizar ainda. Não antes de ter certeza.
— O que foi que aconteceu? — Lucas cuspiu, inabalável pela
presença autoritária do diretor apesar do seu estado. — Aqueles
dois me prenderam no depósito pra sabotar uma apresentação do
concurso, foi isso que aconteceu! — exclamou, lívido de raiva, e
apontando para os dois garotos do outro lado. — Me deram até uma
pancada na cabeça, esses idiotas!
— Não fizemos nada! — Pedro perdeu a paciência, devolvendo
o olhar raivoso. — Fomos nós que te ajudamos a sair, que droga!
— Calma, Pedro. — Vitor o segurou pelo braço, olhando do
amigo para o diretor com cautela.
Mas Pedro, aparentemente, não estava nem aí.
— Acha que arriscaríamos nossa própria apresentação pra ir te
procurar se fôssemos os culpados? — continuou. — Vê se acorda,
imbecil!
— Tudo armação! — Lucas exclamou, tentando se levantar
mais uma vez, e sendo empurrado de volta por Richard mais uma
vez. — Vocês se acham os espertos, mas eu sei que foram vocês!
— Vamos todos nos acalmar… — o professor De Lucca falou,
se aproximando com as mãos erguidas.
— Você não sabe nada — Vitor grunhiu, perdendo a paciência
também e interrompendo o professor. — Não faz a mínima ideia do
que aconteceu, do que alguns de nós tiveram que fazer pra salvar a
apresentação, então não tem o direito de botar a culpa na gente.
— Garotos… — o professor insistiu, a mandíbula tensa.
— EU OUVI TUDO, CARALHO! — Lucas explodiu, se sentando
apesar das mãos de Richard o segurarem com força. — Ouvi vocês
dois rindo depois de me trancarem naquele cubículo! Vocês até se
chamaram pelo nome, pelo amor de Deus!
Arregalei os olhos, a garganta repentinamente seca. E foi como
se o chão desabasse sob os meus pés.
— O quê? — sussurrei, trêmula.
— Eu ouvi tudo! — Lucas continuou, o rosto pálido e a voz
arranhando. — Vocês acharam que eu ainda tava desmaiado, mas
ouvi muito bem. Ouvi quando disseram que agora a novata não tem
chance — cuspiu, me olhando de relance de forma significativa e
voltando o olhar raivoso aos dois. — Vamos, Pedro, vamos ver a
cara de pânico daquela baixinha. — Encarou Vitor ao pronunciar as
palavras. Depois Pedro. — Eu mal posso esperar, Vitor.
Não. Aquilo não podia ser…
Lentamente, olhei para os dois, e podia apostar que estava tão
pálida quanto Lucas.
— Vitor? — Mariana murmurou ao meu lado, os olhos alertas
conforme o analisava de cima a baixo.
— Pedro… — Beatriz sussurrou, como se implorasse…
implorasse que ele negasse tudo aquilo.
Tanto Pedro quanto Vitor estavam com os olhos arregalados em
puro choque. O primeiro sacudia ligeiramente a cabeça de forma
frenética enquanto o segundo me olhava e abria a boca para falar,
em pânico:
— Isso não é verdade. Eu juro que não fizemos nada! — Olhou
de mim para Mariana, suplicante. — Vocês têm que acreditar em
nós, quem quer que tenha feito isso… — Parou, sem saber mais o
que dizer.
— Quem quer que tenha feito isso — Pedro continuou pelo
amigo, a voz súbita e incrivelmente calma… enquanto os olhos
escuros e inexpressivos se voltavam para Giovanna — fez de
propósito. Pra parecer que fomos nós.
Vitor piscou, olhando rapidamente para o amigo, mas também
encarou Giovanna, incrédulo.
— Não. Diz que você não fez isso.
A garota apenas arqueou uma sobrancelha e inclinou a cabeça
de leve, olhando de um para outro. Os olhos… os mesmos olhos do
tio… eram impossíveis de decifrar enquanto os analisava de cima a
baixo como se fossem presas.
— Não sei do que tá falando — falou simplesmente.
— Giovanna… — Vitor insistiu, se aproximando um passo, mas
o diretor interveio, se colocando na frente dela.
— Parece que temos um problema sério pra resolver aqui, não
é mesmo? — Olhou para cada um de nós, se demorando em Lucas
na maca e nos dois garotos que ele acusava do outro lado. — Se o
que o colega de vocês diz é verdade, então medidas drásticas
precisam ser tomadas. — Parou na frente de Pedro e Vitor, a
postura ereta e as mãos cruzadas nas costas. — Percebem a
gravidade do que estou dizendo?
A autoridade fria e dura que ele exalava pesava em todo o
ambiente, e ficou difícil respirar. Mas os dois apenas mantinham a
cabeça baixa, encarando o diretor por baixo dos cílios. Não por
medo, reparei, mas porque até eles sabiam a hora de ficar calados.
— Senhor diretor… — o professor De Lucca se aproximou com
cautela. — Tenho certeza de que há uma explicação pra tudo isso.
Eles ajudaram na procura do aluno desaparecido, não acredito que
realmente tenham feito isso…
— Professor. — O diretor o olhou por cima do ombro com
firmeza, o cabelo castanho-escuro contrastando com a pele pálida.
E engoli em seco com o pensamento que teimava em tomar forma
conforme eu analisava sua fisionomia com muito, muito cuidado. —
Acho que já tivemos confusão demais por hoje. E o garoto os ouviu
confessar.
— Senhor diretor… — o professor insistiu, tenso, mas…
— Não se esqueça de que tudo isso aconteceu bem debaixo do
seu nariz, professor — o diretor cortou, mais afiado que antes, se é
que isso era possível. — Não apenas os alunos, mas tudo que
acontece com relação ao concurso é sua responsabilidade. E olha
só onde estamos.
A mandíbula do professor De Lucca travou. Dava pra ver que
queria continuar insistindo na inocência dos dois, mas baixou o
olhar, contrariado, e permaneceu em silêncio.
Meu coração encolheu e afundou dentro do peito. Nada daquilo
era culpa do professor De Lucca.
— Agora… — o diretor continuou, voltando aos dois garotos. —
Creio que vocês entendem a gravidade do que fizeram. Então
espero que não seja nenhuma surpresa quando eu disser que os
dois estão expulsos.
— O quê?! — exclamei, sem conseguir me conter.
— Não… — Richard sussurrou atrás de mim.
— Do conservatório e do colégio — o diretor prosseguiu,
inabalável. — Que fique bem claro que esta instituição não tolera
esse tipo de comportamento.
— Senhor direitor, por favor… — Mariana começou, os olhos
grandes marejados de lágrimas. — Eles não fizeram nada de
errado.
— Pedro ficou comigo o tempo todo desde que chegamos —
Beatriz soluçou, também começando a chorar. — Por favor, não
faça isso. Eles são inocentes!
— Chega — o diretor falou, baixo e sério. À sua frente, Pedro e
Vitor apenas continuavam com as cabeças baixas, um semblante de
derrota em seus rostos.
— Eles só estavam tentando ajudar! — insisti em completo
desespero, quase agarrando o diretor pelo paletó. — Eles fizeram
de tudo pra me ajudar a não desistir da apresentação, não têm
culpa de nada! — Me virei para Giovanna, sem me importar se
pareceria uma idiota por pedir: — Faz alguma coisa! São seus
amigos. E você sabe que eles não fizeram isso, então faz alguma
coisa!
— Julieta… — Vitor murmurou, sacudindo a cabeça.
Mas não parei. Não importava que ela tivesse armado aquilo,
não naquele momento. Porque se Giovanna realmente tinha
influência sobre o diretor por ser sua sobrinha, então que a usasse
para fazer algo útil, pelo menos uma vez.
— São seus amigos — reforcei, implorando.
Mas ela apenas me olhava com um total de zero interesse, e
não parecia nem um pouco preocupada com o que ia acontecer com
Pedro e Vitor.
O professor De Lucca se aproximou um passo do diretor com
um olhar significativo.
— Por favor, não tome decisões precipitadas, V…
— Chega! — ele ordenou, interrompendo. — Eu sou o diretor
desta escola. Sou eu que decido as coisas aqui. Minhas palavras
são a ordem final e não vou aceitar nem mais um segundo dessas
reclamações. Entenderam? — Olhou ao redor, para cada um de
nós, com aqueles olhos afiados.
Eu estava imóvel e meus olhos estavam arregalados, mas não
tinha nada a ver com a bronca do diretor.
Não tome decisões precipitadas, V…
V… Vougan?
— Ah, meu Deus… — sussurrei baixinho, quase sem ar.
— Agora vão andando — o diretor continuou, endireitando os
ombros. — Todos fora daqui. E vocês dois… — Encarou Pedro e
Vitor. — Na minha sala. Já.
— Espera — Giovanna falou de repente. Finalmente.
Todos pararam, voltando os olhos alertas para ela.
— O quê — o diretor falou, seco.
Ela se aproximou um passo, despreocupada.
— Não quero passar por cima da sua autoridade, tio, mas acho
que não precisa chegar a tanto. — O diretor semicerrou os olhos
para ela e trincou a mandíbula, provavelmente pronto para dar uma
bronca na sobrinha, mas ela apenas continuou: — Julieta está certa.
Meu corpo inteiro endureceu. E quase pude ouvir os músculos
de Richard e Lucas atrás de mim enrijecerem também.
— O que eles fizeram não pode ficar impune... — Giovanna
prosseguiu de cabeça erguida — mas acho que aplicar um castigo à
altura é o suficiente para que se arrependam dessa… — olhou para
a porta arrebentada e depois para Lucas na maca — brincadeirinha
de mau gosto.
O diretor esboçou um sorriso de canto de boca que não chegou
aos olhos.
— E eu posso saber por que, sobrinha, me pede uma coisa
dessas? — Inclinou a cabeça da mesma forma que Giovanna tinha
feito, a analisando como se fosse uma presa.
A garota deu de ombros.
— Julieta está certa — repetiu. — São meus amigos. Se eu
puder fazer algo pra ajudar, é claro que farei. Sem passar por cima
da sua autoridade, óbvio. Por isso, apenas peço que… — sorriu de
forma doce — pense com carinho.
Pedro e Vitor se entreolharam com desconfiança, Beatriz cerrou
os punhos com força e Mariana apenas continuou observando
Giovanna de cima a baixo, como se tentasse decifrar um enigma. E
não era pra menos, eu também podia apostar que ela estava
tramando alguma coisa.
Mas o diretor a analisou por mais alguns segundos… e seu
sorriso cresceu, mas não de uma forma amigável.
— Muito bem — falou por fim. — Então, querida Giovanna, o
que sugere que seja feito com seus amigos?
Meu queixo se escancarou. Aquilo era piada, né?
— Diretor… — O professor De Lucca voltou a se aproximar,
olhando o homem com a mesma incredulidade estampada nos
olhos de todos ao redor.
Mas o diretor apenas ergueu uma mão, o impedindo de
continuar, seus olhos de predador nunca deixando os da sobrinha.
— Vamos, diga — falou. Como se a estivesse testando. — Que
punição sugere que seja aplicada a seus amigos?
Giovanna não decepcionou.
— Bani-los do concurso, é claro. Eles armaram tudo isso pra
sabotar uma apresentação e ter vantagem. Nada mais justo que o
tiro sair pela culatra.
Abri a boca para protestar, mas o diretor inclinou a cabeça para
trás… e começou a rir.
— Você é perspicaz, garota — falou, ainda sorrindo. — Eu
gosto disso em você. Mas ainda tem muito que aprender. Muito
bem. — Se virou para Vitor e Pedro. — Eis o que vai acontecer:
vocês não serão expulsos. Mas… — acrescentou antes que o
suspiro de alívio pudesse se concretizar — como a querida amiga
de vocês tão bem pontuou, serão desclassificados do concurso. E
cumprirão uma semana de suspensão cada um. Não que isso vá
fazer alguma diferença, o histórico escolar de vocês já não é grande
coisa. Quando retornarem, ficarão até depois do expediente por
mais duas semanas para cumprir tarefas. Você — encarou Vitor —,
por aquela cena em cima do palco. Foi um completo desrespeito
com as normas do concurso. E você — encarou Pedro com a
mesma dureza —, por ter danificado uma das portas da instituição,
como deixou bem claro ao dizer que foi o responsável por libertar o
colega que vocês mesmos prenderam.
Encarei Richard com os olhos arregalados. Ele já estava dando
um passo à frente, alerta e a ponto de contar que ele tinha sido o
responsável pela porta arrebentada, mas…
— Eu fiz o que tinha que fazer. — Pedro teve a ousadia de dar
de ombros daquele jeito monótono e entediado, como se não se
importasse.
— Pedro… — Richard começou, mas o garoto apenas acenou
sutilmente com a cabeça em negativa. Ele assumiria a culpa.
— Ah, fez? — o diretor ironizou com um sorriso afiado. — Vão
começar o castigo consertando a porta que destruíram então. —
Olhou ao redor mais uma vez antes de declarar: — É só isso. O
show acabou. Todos de volta às suas salas, exceto por vocês dois.
Vão esperar seus pais na diretoria pra assinar a suspensão. De lá
vão direto para casa, e espero não ver nem a sombra de vocês pela
próxima semana.
— Sim, senhor diretor — murmuraram em uníssono, as
cabeças baixas.
— Vamos — ele falou, seguindo até o corredor, e os dois foram
atrás.
Quando passaram por Giovanna, ela sorriu. Aquele sorrisinho
cínico de quem tinha aprontado e saído impune.
Eles a encararam, sérios, mas não falaram nada. Trinquei os
dentes e cerrei os punhos, mas antes que pudesse pensar em dizer
qualquer coisa, o diretor continuou:
— Professor De Lucca, você também. Preciso falar um assunto
sério com você.
O professor hesitou.
— Não quer que eu acompanhe os outros alunos até suas
salas?
— Eles já são bem grandinhos pra fazer isso sozinhos. —
Parou e olhou por cima do ombro. — E não são nem loucos de
aprontar algo depois do que acabou de acontecer. Estou certo? —
Dirigiu a última parte diretamente a nós.
— Sim, senhor — falamos depressa, também de cabeças
baixas.
— Ótimo. Vamos logo, professor. — Voltou a seguir pelo
corredor, e dessa vez o professor De Lucca foi atrás, os dedos
cobertos de cicatrizes tensos conforme alongavam e encolhiam ao
lado do corpo.
— Que isso sirva de aviso — Giovanna falou por fim, séria,
quando os outros se afastaram o suficiente para não conseguir
ouvir, e encarou cada um de nós nos olhos, parando em mim. —
Nesse lugar as coisas só funcionam de um jeito. Nenhum de vocês
têm chance. Não adianta tentar mudar. — Fez uma pausa, mas
voltou a dizer com os olhos azuis brilhando antes de seguir para o
corredor: — É a ordem natural das coisas.
A ordem natural das coisas… eu já tinha visto aquilo antes.
Tinha lido.
E talvez eu estivesse enlouquecendo de verdade com toda
aquela história, mas não consegui segurar a língua quando
perguntei, indo atrás dela:
— Você sabe sobre ela? Sabe sobre a Aurora? — sussurrei a
última parte.
Se o tio de Giovanna realmente fosse quem eu achava que
fosse… talvez ela soubesse. Talvez soubesse o que tinha
acontecido com eles. E explicava também como ela sabia sobre o
ocorrido com Marcus trancado no depósito.
A sobrinha do diretor parou e se virou para mim.
— Seu tio falou sobre ela? — insisti.
Giovanna apenas me encarou por alguns segundos, e olhou na
direção que o diretor e os outros seguiam.
Ao longe, o professor De Lucca olhava para trás, para nós,
como se ainda não tivesse certeza de que era seguro nos deixar ali
sozinhos.
— Eu não sei onde você ouviu essa história… — ela falou, e
soltou uma risada sem humor. — Mas eu desistiria de tudo isso se
fosse você. Principalmente se não quiser ter o mesmo fim daqueles
dois.
Capítulo 36
— Eu não tô louca — argumentei, cruzando os braços e
arqueando as sobrancelhas.
— Eu não disse que você tá louca — Richard rebateu, apoiando
as costas contra a porta fechada da sala de ensaio.
— Mas tá me olhando como se eu fosse. Você não acredita em
mim.
— Não é isso. — Ele fez uma careta. — É só que… Vougan e o
diretor serem a mesma pessoa? É a mesma coisa que dizer que
Thor é o Thanos de peruca.
Apenas o encarei. E pisquei.
— Deixa pra lá. — Sacudiu a cabeça. — O que eu quis dizer é
que um parece ser o exato oposto do outro. Ou ele mudou
completamente nos últimos dez anos, ou Aurora interpretou as
ações e o caráter desse cara muito mal.
Suspirei.
— Eu sei, mas é que… — Me ajoelhei e vasculhei a mochila até
encontrar o diário, folheando até achar o que procurava. — Aqui.
Vougan disse uma vez que tinha medo do concurso porque ele
mudava as pessoas. — Richard se aproximou e ajoelhou ao meu
lado, encarando as páginas com o cenho franzido. — Tinha medo
de se perder. E se foi isso que aconteceu? — Me virei para ele,
nossos rostos bem próximos. — E se alguma coisa aconteceu com
a Aurora antes do fim do concurso que a fez se afastar e, por isso,
não conseguiu cumprir a promessa de ficar do lado dele?
— E aí ele se perdeu no meio caminho… — Richard murmurou,
pensativo. — Por influência ou pressão da família.
Assenti.
— Seria bem possível.
— Acha que pode ter alguma pista no diário? Acha que ela
chegou a escrever sobre o que quer que tenha acontecido antes
dele ir parar no depósito?
— Eu espero que sim. — Franzi a testa para a página marcada
do último relato que tinha lido. Estava quase no fim. — Porque se
não tiver… duvido muito que Giovanna conte de boa vontade o que
sabe sobre o passado do tio.
— E o diretor muito menos — Richard bufou. — O próprio
Vougan, durante todo esse tempo… quem diria.
— Pois é — sussurrei, ainda assombrada com a possível
descoberta. — Mas seja como for, vou tentar ler o restante ainda
essa noite. Se não tiver nenhuma explicação do que aconteceu…
— O que vai fazer? — Richard perguntou, como se lesse a
minha mente.
Suspirei, frustrada.
— Eu não faço a mínima ideia.

ʄʅ
Estávamos todos sentados na mureta do chafariz na hora do
almoço, olhando na direção dos enormes portões da entrada do
colégio. Observando conforme Vitor e Pedro seguiam os pais de
cabeça baixa.
— Você tem cinco minutos pra se despedir — a mãe de Pedro,
com os cabelos tão escuros quanto os do filho, falou com dureza. —
Vou esperar no carro. Cinco minutos — reforçou entre dentes antes
de seguir, furiosa, para o veículo do outro lado da rua.
Já Vitor...
— Posso me despedir deles também, tia Larissa? — perguntou,
nervoso, para a mulher de cachos dourados que fervilhava sobre as
botas de salto.
— O que é que eu vou dizer pra sua mãe, hein?! — esganiçou
ao invés, apertando a bolsa junto ao corpo. — Eu te dei todo o apoio
do mundo quando você insistiu em entrar pro conservatório, e é
assim que me agradece? Ela vai arrancar a minha cabeça quando
descobrir! Sabe que nem ela, nem seu pai concordam com a sua
decisão de estudar música.
Vitor, apesar de ter a mesma altura que ela, encolheu os
ombros como se fosse minúsculo. A mulher, mesmo jovem,
realmente sabia botar medo.
— Pedi que você viesse justamente porque é a única que
entende, tia. É a única que me apoia. E eu sei que já dei muita
mancada, mas precisa acreditar em mim, o que aconteceu não foi
minha culpa.
A tia de Vitor respirou fundo e suspirou.
— Tá, tudo bem. Se despede dos seus amigos, mas não
demora. Eu vou ver o que posso fazer. Talvez seja melhor você
passar a semana lá em casa até seus pais decidirem não te matar.
Ou melhor, nos matar. — O encarou com uma carranca e seguiu até
os portões.
Pedro e Vitor ficaram para trás, observando conforme seus
responsáveis se afastavam, e pareciam… bem, arrasados. O diretor
com certeza não pegou leve na reunião.
— Fodeu pra gente, né? — Vitor perguntou ao amigo.
— Fodeu gostoso — Pedro respondeu.
— A semana vai passar rápido. — Beatriz se aproximou do
namorado, o abraçando pela cintura e apoiando a cabeleira dourada
em seu ombro. — E ainda podemos nos ver no fim de semana, né?
— Melhor não contar com isso. — Pedro fez uma careta, mas
passou um braço por cima do ombro da namorada. — Pelo menos
enquanto essa suspensão durar, é pouco provável que me deixem
sequer sair no quintal.
— Sinto muito — falei aos dois com sinceridade. — Tudo que
vocês fizeram foi pra me ajudar, e no fim… olha o que aconteceu.
— Teria acontecido de qualquer jeito. — Vitor deu de ombros.
— Mesmo que não tivéssemos movido um dedo pra ajudar, ainda
levaríamos a culpa.
— É, sobre isso… — Lucas falou, ainda um pouco pálido e com
um hematoma na lateral da cabeça, mas recuperado o suficiente
para ser liberado da enfermaria. — Sinto muito por ter jogado a
culpa em cima de vocês. Se foi mesmo como todo mundo aqui diz…
não é justo que sejam punidos.
— Você não fez de propósito — me apressei em dizer.
— Foi tudo armado — Richard completou, seus dedos
entrelaçados nos meus. — Queriam que você pensasse que foram
eles. Por isso tomaram cuidado pra não revelar os rostos, mas não
mediram esforços pra revelar os nomes.
Lucas trocou o peso de pé, desconfortável.
— Eu ainda não agradeci vocês por terem me tirado daquele
lugar. — Olhou Richard e Pedro, sem jeito. — Obrigado por
quebrarem a porta. — Olhou Vitor. — E obrigado por me substituir
no palco. Fico feliz de saber que a Julieta conseguiu se apresentar.
E que não foi desclassificada.
— Bom, isso a gente ainda não sabe — acrescentei com
cautela. — Só três vão passar pra seleção final. Eu posso muito
bem perder pontos por ter me apresentado com outro participante.
— Não vai — Vitor falou com firmeza. — Você tocou muito bem,
apesar de todo aquele estresse. Bem melhor do que a Giovanna,
pelo menos — cuspiu o nome da garota. — Se quer mesmo saber,
minha aposta é em você, Richard e Mariana na seleção final. —
Lançou uma piscadela à garota ao seu lado. E gritou de dor quando
Pedro meteu um pisão em seu pé. — AI, INFERNO! Desculpa, a Bia
também tocou muito bem, eu não quis ofender.
— Não ofendeu. — Beatriz riu. E deu um peteleco no nariz do
namorado como punição. — Não precisam se preocupar comigo.
Participei do concurso mais pela experiência, eu não ligo se não
passar. Além do mais, se lembram do que o professor De Lucca
disse na primeira reunião? O objetivo do concurso é conhecer
pessoas novas e fazer amigos. E olha só pra gente agora. — Seu
sorriso cresceu, e ela abraçou Pedro com força, olhando ao redor.
— A gente pode estar atolado até o joelho em merda, mas estamos
todos muito mais próximos que antes. Não concordam? — Olhou
Mariana, que arregalou os olhos e corou.
— É… acho que sim. — Cruzou os braços e encolheu os
ombros, sorrindo com timidez.
— E você, não concorda? — repeti baixinho com um sorriso,
encarando Richard pelo canto do olho e cutucando sua costela com
o cotovelo.
Ele revirou os olhos, mas sorriu também, e a mão que segurava
a minha foi para a minha cintura, me puxando para mais perto. E,
nossa... a sensação foi muito boa!
— Desculpa não poder cumprir minha promessa hoje — Vitor
falou para Mariana com o olhar baixo. — Não achei que as coisas
fossem sair do controle assim.
— Ninguém sabia. — Mariana segurou sua mão com
compreensão. — A culpa não é sua.
Richard e Pedro franziram o cenho, confusos, enquanto
assistiam a cena.
— Mas a gente ainda pode ir. — Vitor ergueu os olhos para ela,
segurando sua mão de volta. — Quem sabe amanhã?
Mariana arqueou as sobrancelhas.
— Mas… você tá suspenso.
Vitor deu de ombros.
— Eu não posso entrar na escola, mas nada me impede de te
esperar aqui na frente, digamos… no horário do almoço? — A olhou
sugestivamente.
Mariana ponderou um pouco, corando, mas esboçou mais um
daqueles sorrisos tímidos.
— Pode ser.
— Ótimo. — Vitor sorriu, satisfeito. — Combinado então. Só vou
precisar dar um jeito de enrolar minha tia. Talvez o namorado dela
me ajude com isso, ele é super gente boa e....
— Espera aí — Pedro interveio com uma careta. E apontou o
dedo para Vitor. — Você… e você? — Apontou Mariana,
contorcendo a careta ainda mais, e me fazendo segurar a risada. —
A maluca dos palhaços assassinos?
E foi a vez de Beatriz meter um pisão no pé do namorado.
— Deixa eles — grunhiu entre dentes enquanto Pedro xingava
e encolhia o pé dolorido.
— Nunca pensei que um dia fosse dizer isso… — Richard
murmurou baixinho para que só eu conseguisse ouvir, enquanto
Mariana mostrava a língua para Pedro — mas dessa vez concordo
com o Pedro. Que casal mais… improvável — riu.
Cutuquei sua costela com mais força dessa vez, fazendo-o se
curvar de dor em meio ao riso.
— Espera aí — Lucas falou, olhando cada um de nós com o
cenho franzido. — Então se vocês são um casal… — apontou Pedro
e Beatriz — vocês são um casal… — apontou Vitor e Mariana — e
vocês, obviamente, também são um casal… — apontou para mim e
Richard. — Então quer dizer que eu tô sobrando? — Apontou para
si mesmo com uma careta inconformada. — Eu tô segurando três
velas diferentes, é isso mesmo?
Apenas encaramos Lucas por um tempo. E, nos entreolhando
novamente diante daquela percepção, acabamos todos caindo na
gargalhada.
Capítulo 37
Sábado, 15 de junho
Agora eu entendo por que Vougan não hesitou um segundo
sequer quando meus pais o convidaram para passar a noite em
casa. A família dele é um caos.
Ontem, Vougan me convidou para conhecer seus pais e passar o
fim de semana na casa dele. Mas dado o histórico sofrível que eu
tinha com seu primo, e sabendo que praticamente sua família inteira
esperava que ele vencesse o concurso, tentei recusar. Pelo menos
até que toda a loucura do concurso acabasse e aquele problema do
bilhete anônimo fosse resolvido. Eu sabia que não seria recebida
com sorrisos e abraços calorosos e que eles provavelmente nem me
queriam ali.
Mas Vougan insistiu. Quase implorou.
Pelo que eu entendi, foi uma semana difícil pra ele. As discussões entre os pais eram
cada vez mais frequentes e, por mais que tentasse se manter distante, Vougan sempre
acabava no meio da confusão, fosse porque o colocavam no meio da briga — como a mãe
ameaçando sumir e levá-lo junto, e o pai berrando que ela podia fazer o que quisesse, mas
que Vougan não iria a lugar nenhum — ou simplesmente pra berrar da porta do seu quarto
que eles calassem a boca.
E foi só por isso, pelo desespero e medo em seus olhos, pela
angústia que eu sabia que ele sentia por não querer ficar sozinho
em um momento delicado como aquele, que aceitei.
Então, me forçando a permanecer firme e de cabeça erguida,
engolindo em seco enquanto passava pela porta da frente — e
tendo a cara de pau de fingir que era a primeira vez que pisava ali
—, parei diante do casal que me observava atentamente enquanto
Vougan fechava a porta atrás de nós.
A mãe era bonita, não muito mais alta que eu, com cabelos lisos escuros de
comprimento médio e um rosto com traços delicados, mas ainda assim sério, e postura
ereta. Me analisava de cima a baixo com os braços cruzados, os olhos castanhos brilhando
de forma afiada. E o pai… perturbadoramente parecido com o filho. O cabelo castanho-
escuro ondulado, que já começava a ficar grisalho em alguns pontos, os olhos azul-
cinzentos, cansados mas com décadas de experiência e sabedoria, a pele pálida que
apenas começava a mostrar as marcas do tempo… acho que, além da diferença óbvia de
idade, o único traço mais marcante que diferenciava os dois era a barba curta que cobria a
parte inferior do rosto do homem, porque de resto… eu podia muito bem estar olhando pro
Vougan do futuro.
O homem, no entanto, não parecia nem um pouco interessado na
minha presença ali, se é que os olhos vazios e desprovidos de
emoção serviam de algum indicativo.
“Mãe, pai…”, Vougan começou, segurando minha mão. “Essa é a
Aurora. Já falei o suficiente dela pra vocês dois, então, por favor,
sem perguntas inconvenientes.”
Pisquei, sentindo as bochechas esquentarem e tentando não
deixar óbvio demais que meu corpo inteiro tinha ficado rígido. Se
falasse daquele jeito tão direto e seco com os meus pais, levaria um
belo puxão de orelha. Mas acredito que, com as brigas e bate-bocas
frequentes, Vougan tenha adquirido certa… liberdade pra falar
algumas verdades na cara dos dois.
“Ela é minha convidada”, continuou, com aqueles olhos
afiados. “Então que fique bem claro que, enquanto ela estiver aqui,
não quero ouvir uma palavra sequer sobre os seus… assuntos”,
falou a última palavra com um olhar sugestivo para os dois. “Nem na
mesa do jantar, nem em qualquer outro canto da casa.”
“Não me lembro quando foi que você teve permissão pra dar
qualquer ordem debaixo do meu teto”, o pai falou, baixo e sério.
“E eu não me lembro de pedir pra ficar no meio da merda de
vocês, então acho que a decepção caminha dos dois lados.”
Vougan sorriu daquele jeito cínico.
Engoli em seco, correndo os olhos pela sala à procura da janela
mais próxima caso a casa começasse a pegar fogo.
“Chega, vocês dois”, a mãe falou com rispidez. “Só estão
deixando a menina mais desconfortável ainda.” Voltou os olhos para
mim, menos duros agora. “Gosta de comida japonesa?”
“E-Eu… ainda não tive oportunidade de experimentar…”,
gaguejei, resistindo à vontade de encolher os ombros. E
acrescentei, nervosa e sem saber o que fazer: “Senhora.”
Ela soltou uma risada baixa, descruzando os braços.
“Bom, então é o seu dia de sorte. Vamos jantar fora hoje, pra
variar um pouco.”
“Eu não trouxe dinheiro”, sussurrei para Vougan, apertando sua
mão com desespero enquanto seus pais se afastavam para vestir os
casacos. “Você não disse nada sobre comer fora.”
“Como assim, você não tem cartão de crédito?” Arregalou os
olhos como se fosse um absurdo.
Apenas pisquei, boquiaberta. E Vougan deu risada.
“Relaxa. Você tem dois rins perfeitamente saudáveis e só precisa
de um pra viver, então…”
Não dei chance dele continuar, pois meti um soco em suas
costelas.
“É brincadeira”, ele meio riu, meio engasgou conforme se curvava
e cobria o corpo dolorido com o braço. Quando se recompôs, voltou
a segurar minha mão, e seu polegar acariciou minha pele com
movimentos circulares. E ele sorriu. “Enquanto estiver aqui, encher
seu estômago é minha responsabilidade. Não se preocupa com
isso, Moranguinho.”
“Tudo bem.” Respirei fundo, tentando me acalmar.
“Estão prontos?”, a mãe de Vougan perguntou, ajeitando o casaco
grosso e jogando os cabelos para trás. E deu uma olhada nas
minhas roupas, franzindo o cenho. “Não trouxe nada mais quente?
Tá frio lá fora hoje.”
“Eu…” Corei. “Não sabia que planejavam sair. Só trouxe roupas
de ficar em casa.”
Na mesma hora, uma jaqueta pesada de couro foi jogada nos
meus ombros.
“Ela vai ficar bem”, Vougan assegurou, ajeitando o capuz cinza de
moletom na minha cabeça.
“Não precisa disso.” Tentei afastar o capuz, mas levei um tapa na
mão.
“Não quero levar a culpa se você ficar resfriada.” Vougan exibiu
um sorrisinho provocador e apertou meu nariz.
Mas antes que eu pudesse xingá-lo ou meter um chute em sua
canela, Vougan se afastou e seguiu até as escadas, provavelmente
indo buscar outro casaco.
“Vocês têm uma relação curiosa”, a mãe falou, me olhando pelo
canto do olho com astúcia e um sorrisinho de canto de boca. “Ele
parece gostar de você.”
“Ah…”, gaguejei, esquentando do pescoço até a ponta das
orelhas. O que eu devia dizer, obrigada? “Eu também gosto muito
dele. Senhora”, acrescentei rapidamente.
A mulher soltou outra risada, dessa vez mais sincera e relaxada.
“Pode me chamar de Verônica. E aquele rabugento ali é o Giulio.”
Indicou o marido com a cabeça e seguiu para a porta da frente
conforme Vougan, vestindo uma jaqueta jeans de cor clara,
reaparecia saltando os degraus. “E não se preocupe. Se meu filho
encher muito o seu saco, pode dar um puxão de orelha nele. Ele
merece.” Piscou para mim, seu sorriso crescendo. “E eu faço de
conta que não vi nada.”

Eu não volto a pisar em um restaurante japonês de novo tão cedo.
Principalmente aquele em que os pais de Vougan nos levaram.
Primeiro, porque o lugar é completamente fora da minha realidade — e do meu
orçamento. O restaurante era grande, bonito e todo temático, como se estivéssemos
mesmo lá no Japão — desde a construção avermelhada que parecia um templo todo
adornado, até a paisagem ao redor, com árvores de flor de cerejeira e a vista de um lago
na parte de trás que podia ser acessado por um deque.
E segundo, porque… eu só passei vergonha ali, desde o minuto
em que entrei.
Depois de tropeçar não em uma, mas duas cadeiras enquanto
adentrávamos cada vez mais o restaurante — e eu olhava tudo de
cima a baixo com a boca escancarada, Vougan se segurando para
não explodir em gargalhadas —, nos acomodamos em uma mesa
de assentos de couro vermelho perto de uma das várias janelas
largas com vista para o lago.
Eu não conhecia nada sobre culinária japonesa, então me poupei
da vergonha — pelo menos essa — de olhar o cardápio, e deixei
que os três escolhessem por mim. Mas o alívio durou pouco.
“Como se segura isso?” Olhei em pânico para os palitinhos
enroscados nos meus dedos. Tentei equilibrar com o indicador, e um
deles saiu voando com uma pirueta da minha mão, batendo no vidro
da janela ao meu lado com um estampido bem audível.
“Ajude a menina ao invés de ficar rindo, Vougan”, seu Giulio
resmungou, de frente para o filho, enquanto Vougan gargalhava de
mim com lágrimas nos olhos.
“Assim, Moranguinho”, ele falou, quase sem fôlego e com o rosto
ainda vermelho de tanto rir enquanto recuperava o palitinho e os
arrumava entre os meus dedos.
“Eu não posso usar um garfo comum ao invés dessa coisa?” Fiz
uma careta, os dedos rígidos tentando mantê-los no lugar.
“Essa coisa se chama hashi”, Vougan falou, arrumando meu
polegar. “E qual é a graça de comer comida japonesa se não for pra
ter a experiência completa?”
“A graça é que eu não derrubaria tudo no chão só de tentar
colocar a comida na boca”, resmunguei ao mesmo tempo em que o
garçom chegava com uma barca enorme, com tanta variedade de
sushis dentro que parecia um arco-íris feito de peixe.
“Não é tão difícil quanto parece”, dona Verônica falou, me
encorajando, enquanto empunhava os hashis com destreza e
pegava um sushi da barca. “Viu? É só questão de equilíbrio.”
Reprimindo um choramingo, tentei imitá-la. Peguei um sushi que
parecia firme o suficiente para não desmontar ou esfarelar no meio
do caminho, enrolado no que parecia ser alga, e me proibi de
pensar muito conforme me inclinava mais para perto e o mandava
pra dentro da boca, pra não fazer uma cena.
“Viu?” Vougan sorriu, arqueando as sobrancelhas. “Não é um
bicho de sete cabe…”
Me virei para ele e cuspi o sushi meio mastigado bem na sua
cara, e a coisa o atingiu com um sonoro “pléc”. Aquele negócio era
horrível!
Comecei a tossir e agarrei o copo de água com desespero,
engolindo metade em uma golada só.
“Minha nossa, você está bem?”, dona Verônica perguntou,
tentando segurar a risada. Até o marido tentava disfarçar, virando o
rosto com a mão casualmente cobrindo a boca, mas seus ombros
sacudiam.
“Meu Deus”, balbuciei, mortificada e tentando não babar o que restava daquela coisa na
minha língua. “Me desculpem. Eu não queria… é que eu nunca comi…” Me virei para
Vougan, que esfregava o guardanapo de linho no rosto. “Me perdoa, não foi de propósito.”
“Tudo bem”, ele falou, o rosto vermelho de tanto esfregar o
guardanapo. Ou de raiva, eu não sabia dizer. “Talvez Tekkamaki não
seja o seu favorito.” Empunhou os hashis e pegou um sushi laranja
da barca com um sorriso que ele nem tentava esconder que era
forçado, as narinas dilatadas. “Mas eu tenho certeza de que você
vai adorar esse daqui.” Segurou a parte de trás da minha cabeça
com a mão livre e forçou o peixe cru e picante na minha goela.
Tudo bem uma ova.
“Por favor, não…”, implorei com os olhos ardendo, mas Vougan
segurou minhas bochechas, me impedindo de cuspir aquele
também.
“Engole, Moranguinho”, falou entre dentes com aquele sorrisinho
falso, os olhos faiscando.
E, sem outra saída, engoli com uma careta sofrida.
“Agora estamos quites”, Vougan falou com doçura, me dando dois
tapinhas na bochecha, e me soltou por fim.
Bufei, limpando a boca com as costas da mão. Ele não sairia vivo
daquele restaurante.
“Vocês… são sempre assim um com o outro?”, dona Verônica
perguntou nos olhando com cautela, um sushi preso nos hashis a
meio caminho da boca.
“Só nos melhores dias.” Vougan deu de ombros, e chamou o
garçom.
“O filho de vocês é uma peste”, resmunguei com os ombros
encolhidos, ainda sem graça, conforme Vougan abria o cardápio e
pedia mais comida ainda apesar da arca de Noé de peixe morto
bem na sua frente.
“Bem-vinda ao grupo”, seu Giulio ironizou, voltando a comer. E
apesar de ter se mantido distante o tempo todo desde que botou os
olhos em mim, agora ele parecia mais… à vontade. De bom humor,
talvez. O que me deixou mais aliviada.
“Pra quê tudo isso?”, perguntei quando o garçom voltou com uma
tigela grande e fumegante de porcelana com o que parecia ser
algum tipo de macarrão com legumes, e um prato com… eu não
fazia ideia do que era aquilo, algum tipo de bolinho frito?
“Pedi pra você”, Vougan falou simplesmente, empurrando a tigela
e o prato de bolinhos para mim. E exibiu um meio sorriso
provocador. “Não tô afim de levar sushi mastigado na cara a noite
toda.”
Corei de vergonha.
“Mas não precisava…”
“Apenas coma, Moranguinho”, falou com uma ternura que eu não
esperava… e que me fez fechar a boca.
Encarei a tigela à minha frente, o vapor quente fazendo cócegas no meu nariz. O cheiro
estava muito bom e me deu água na boca, ao contrário do sushi.
“O que é isso?”
“Yakisoba”, seu Giulio falou, pegando um daqueles sushis
laranjas.
“E rolinho primavera.” Dona Verônica indicou o prato de bolinhos
roliços, piscando um olho para mim com um sorrisinho encorajador.
“São muito bons.”
Sorri de volta, sem graça, e peguei os palitinhos, tentando me
lembrar como devia segurar. Sutilmente, Vougan empurrou um garfo
para mim, me olhando pelo canto do olho com um sorriso de canto
de boca.
“Obrigada.” Peguei o garfo com um suspiro de alívio e comecei a
comer.
Meu Deus, aquilo sim era gostoso!
Com temperos e um molho escuro que eu nunca tinha
experimentado antes, a comida saborosa aguçou meu paladar e
parecia fazer carinho na minha língua. E, o melhor de tudo, era
quente. O clima lá fora realmente tinha dado uma esfriada, mas
mesmo vestindo a jaqueta de Vougan eu ainda sentia frio, então
aquele tal de yakisoba tinha caído como uma luva no meu
estômago, me esquentando de dentro pra fora.
“E como vai na escola?”, a mãe de Vougan perguntou, olhando de
relance.
“Bem”, ele se limitou a responder, pegando outro sushi. “Normal,
como sempre. Nenhuma novidade.”
Claro, se ignorarmos aquele detalhe pequenininho e insignificante
do primo dele me ameaçando para que Vougan ganhe o concurso…
tudo ia ótimo mesmo.
Mas a pergunta não tinha sido feita a mim, então fiquei quieta e
continuei devorando meu yakisoba.
Mas é claro, claro que o assunto surgiria.
“E o concurso?”, o pai dele perguntou. “Se eu bem me lembro, a
seleção final tá chegando. Está estudando?”
“Claro”, Vougan respondeu, sem interesse.
“Vou reformular”, seu Giulio insistiu, o encarando com dureza.
“Está estudando o bastante?”
A mandíbula de Vougan trincou, mas ele se recusou a encarar o
pai nos olhos.
Fiquei bem quietinha e imóvel e fingindo que não estava ali.
“Não comece”, dona Verônica falou com frieza para o marido, o encarando pelo canto
do olho com uma sobrancelha arqueada. “Já conversamos sobre isso. Nós três. O acordo
era que Vougan ia dar o seu melhor no concurso, e você não ia ficar pressionando. Se ele
vencer, ótimo. Se não vencer…”
“É porque não tentou o suficiente”, o homem falou mesmo assim.
Vougan fechou os olhos e respirou fundo, se segurando para não
explodir com o pai, mas eu fui mais rápida.
“Perdão, mas o que seria tentar o suficiente pro senhor?”, falei
com aspereza, olho no olho.
Todos na mesa ficaram em completo silêncio, e senti quando o
corpo de Vougan ficou rígido ao meu lado. Seu Giulio apenas me
encarou, surpreso pela minha ousadia apesar dos olhos afiados e
frios.
“Aurora…”, Vougan murmurou, alerta.
Mas não me deixei intimidar.
“Só porque não sabota nenhum dos outros participantes quer
dizer que ele não deu o seu melhor?” Apertei os olhos de leve.
“Sabotagem?”, ele falou baixo e entre dentes, semicerrando os
olhos para mim também. “Acha que eu encorajo esse tipo de
comportamento, menina tola?”
“Pai”, Vougan falou em tom de aviso, erguendo o olhar cortante
para ele, a mandíbula ainda trincada.
Continuei sustentando o olhar frio e afiado do meu adorável
sogro. E sorri com doçura.
“Seu querido sobrinho com certeza encoraja. Até me mandou
uma carta de amor linda que deixava isso bem claro. Como foi que
ele escreveu mesmo? Ah é, se estiver em cima daquele palco na
seleção final, esteja pronta pra sofrer as consequências”, cuspi.
“Não será avisada uma segunda vez.”
De novo, o silêncio pesou na mesa. E o rosto do pai de Vougan
ficou pálido.
“Ele fez isso?” Desviou o olhar do meu por fim, encarando o filho
com espanto. “Vinícius realmente fez isso? Ameaçou sua
namorada?”
De novo aquela palavra. E por mais inoportuno que fosse, meu
coração decidiu que era uma boa hora pra dar uma pirueta de
alegria e satisfação enquanto as batidas ecoavam aquilo como se
fosse um título da realeza.
Namorada, namorada, namorada, namorada.
“Fez”, Vougan respondeu, baixando os olhos. Como se ainda
fosse difícil acreditar no que o primo tinha feito. “Ele não ficou nem
um pouco feliz quando soube que estávamos juntos. E sugeriu que
isso ia interferir no resultado do concurso. Que a Aurora… só estava
me usando pra poder me passar a perna depois.”
Dois pares de olhos se viraram para mim, a pergunta óbvia estampada neles como um
letreiro em luz néon conforme seu Giulio e dona Verônica aguardavam que eu dissesse
alguma coisa.
Tudo bem, eles ainda não me conheciam direito, então deixei
essa passar. Só essa.
“Eu jamais faria algo assim”, me limitei a responder com o máximo
de firmeza e sinceridade que consegui. “Não aceito nada que não
tenha conquistado com o meu próprio esforço.”
“Vinícius não vai encostar um dedo nela”, Vougan continuou,
baixo e sério. “E Aurora vai participar da seleção final. Ninguém vai
tirar essa chance dela só por causa de um histórico idiota de
família.”
Seu Giulio se empertigou, pronto para dar uma reprimenda no filho, mas dona Verônica
segurou sua mão em aviso e sacudiu a cabeça. O homem parou, seu olhar voando para as
mãos unidas dos dois com o cenho franzido. A mulher também pareceu se dar conta do
que tinha feito e afastou a mão depressa com uma careta.
Se eles realmente estavam a ponto de se divorciar, como Vougan
achava, imaginei que seria mesmo estranho pra eles qualquer toque
ou demonstração de afeto. Mas então por que parecia que os dois
estavam levemente corados?
“Eu não toco se ela não tocar”, Vougan concluiu, alheio ao que
quer que tivesse acabado de acontecer entre os pais. E a
declaração chamou a atenção deles.
Por um momento, os dois apenas encararam o filho, sem reação.
E se entreolharam, uma conversa silenciosa acontecendo, que
apenas pessoas que se conheciam há anos conseguiam entender e
decifrar.
Até que seu Giulio respirou fundo, voltando o olhar para Vougan
e, como se tivesse dificuldade de pronunciar as palavras, falou:
“Acho que… é uma coisa muito honrada de se fazer, Vougan.”
Pisquei, surpresa. E Vougan ergueu a cabeça, olhando o pai com
um misto de choque e confusão.
“O quê?”, exclamou com uma careta.
“Sei que tenho sido duro com você com tudo isso do concurso…”,
seu Giulio continuou. “Mas você está certo em não apoiar esse tipo
de coisa. E que fique bem claro que eu nunca quis que você
chegasse a esse ponto pra vencer. Nossa família tem um histórico
no concurso, sim, e é claro que eu gostaria que você desse
continuidade a ele. Mas sem trapaça. Não sei em que ponto as
coisas desandaram e vocês, garotos, pensaram que esse caminho
era uma opção, mas vai contra os princípios da nossa família.”
“Eu nunca considerei trapaça uma opção.” Vougan se remexeu,
desconfortável.
“E fico feliz por isso. Mas pelo jeito, terei que ter uma conversa
séria com o seu tio pra ver que droga ele anda colocando na cabeça
do Vinícius.”
“Não fazíamos ideia de que tudo isso estava acontecendo, filho”,
dona Verônica emendou, e esticou a mão sobre a mesa até
alcançar a de Vougan. E sorriu de leve. “Fico feliz que tenha nos
contado. Você anda tão… distante ultimamente”, falou com cuidado,
mas culpa carregava seu olhar.
“É meio difícil achar uma brecha nas discussões de vocês pra
contar como foi o meu dia”, ele falou, mas não pareceu uma
acusação, e sim… um lamento.
Dona Verônica fechou os olhos, os lábios comprimidos. Ao seu
lado, seu Giulio baixou o olhar, parecendo se sentir tão culpado
quanto a esposa.
“Eu sei”, a mulher sussurrou, voltando a encará-lo. “Nos desculpe por isso. Vamos
tentar… nos entender melhor. Certo?” Se virou pro marido, que assentiu com a cabeça.
“Certo.”
Vougan olhou de um para outro devagar, absorvendo suas
palavras… e sorriu. Um sorriso sutil, pouco mais que um erguer de
canto de boca, mas ainda assim um sorriso.
“Que bom”, murmurou baixinho.
Os três ficaram em silêncio, sem saber como prosseguir a
conversa, então decidi que era uma boa hora para lembrá-los de
que eu ainda estava ali.
“Vougan disse que vocês são escritores”, falei, quebrando o gelo.
“Acho que isso explica por que ele é tão nerdão.”
“Como?”, seu Giulio engasgou uma risada.
“Lá vamos nós...” Vougan revirou os olhos, mas sorriu com
deboche. “Ela quis dizer inteligente. Um gênio. O cérebro mais
brilhante que ela já conheceu, não é?” Me olhou, fazendo charme.
Eu com certeza não quis dizer nada daquilo.
“Se isso te faz sentir melhor, claro.” Devolvi o sorriso debochado.
“Pode amansar esse seu ego enorme.”
“Você adora o meu ego enorme”, provocou, e foi a minha vez de
revirar os olhos. E, aproveitando que os pais tinham parado de
prestar atenção em nós e voltavam ao sushi, se inclinou para perto
do meu ouvido e cochichou com aquele sorriso convencido e
cafajeste: “Assim como adora outra parte de mim que também
achou enorme.” Passou o polegar pelo meu lábio inferior,
despertando lembranças muito específicas da última vez que
ficamos juntos.
Engasguei com a saliva e meu joelho foi de encontro com o tampo
da mesa, fazendo tudo chacoalhar com um estrondo.
“Perdão”, balbuciei com o rosto fervendo para os dois à minha
frente, que agora nos olhavam com olhos arregalados.
“Ela só tá com frio. Eu disse que usar saia nessa época não era
uma boa ideia, Moranguinho, mas você não me escuta.” Vougan
sorriu, satisfeito com a minha reação, e sua mão envolveu minha
perna nua por debaixo da mesa, erguendo-a e colocando em seu
colo.
“Ficou doido?”, grunhi entre dentes, olhando de relance para os
pais dele com desespero. “O que tá fazendo?”
“Te esquentando.” Sorriu como se fosse um garotinho, mas
reconheci aquele brilho de malícia em seu olhar.
E sua mão grande e quente começou a esfregar minha perna. E talvez o gesto não
parecesse ser nada demais, não fosse pelas pontas calejadas de seus dedos subindo
devagar até alcançarem a parte de trás do meu joelho.
Ah, eu com certeza já estava quente o suficiente.
“Não precisa”, falei com os dentes cerrados, quase sem ar e com
o coração acelerado, mas tentando a todo custo fingir costume na
frente dos pais dele.
Mas Vougan me ignorou e continuou com a mão ali,
despreocupado, enquanto voltava a atenção para os pais e
perguntava algo sobre as vendas dos livros daquele mês.
Tentei prestar atenção na conversa, mas não consegui. Não
conseguia focar em mais nada que não fosse aquela maldita mão
que continuava subindo e agora estava na minha coxa, logo acima
do joelho.
Que droga, ele não criava vergonha na cara nem na frente dos
pais?!
“Gosta de livros de fantasia?”, dona Verônica perguntou de
repente, voltando a atenção para mim.
“Ah…” Pisquei igual uma retardada, tentando processar suas palavras e desviar o foco
daqueles dedos que deslizavam pela pele sensível na parte interna da minha coxa. “Acho
que nesse gênero eu só li Harry Potter até agora. Mas eu… gostei bastante.”
Os olhos do casal brilharam com interesse curioso.
“Qual a sua Casa?”, seu Giulio perguntou.
Os dedos de Vougan subiram mais um pouco, por baixo do tecido
da minha saia, as pontas calejadas arranhando minha pele de leve e
fazendo cada centímetro do meu corpo ficar arrepiado.
“Grifinória”, balbuciei, quase engasgando.
“Tão previsível.” Vougan revirou os olhos, mas não parou o
movimento dos dedos.
“Pelo tamanho da sua arrogância, com certeza é Sonserina”,
cerrei os dentes, tentando ficar firme.
“Vougan?” Seu Giulio franziu a testa, pegando outro sushi da
barca. “Bem que ele gostaria, mas nesse departamento puxou a
mãe.” Indicou a mulher com a cabeça, que exibiu um sorriso afiado
para o marido em resposta.
Vougan soltou uma risada, um sorriso lento e completamente
convencido tomando forma em seus lábios.
“Corvinal com orgulho, muito obrigado.” Me lançou uma piscadela
e beliscou minha perna de leve, me fazendo dar um pulinho de
susto.
“Babaca”, grunhi baixinho, mas meu coração batia desenfreado
dentro do peito, ainda mais quando a mão subiu mais um pouco, o
polegar chegando muito perto… de uma área perigosamente
quente e úmida.
Eu queria gritar de desespero. Não sei como aquele cretino
consegue, mas Vougan tem um talento único que me faz ficar
derretendo por ele e com vontade de espancá-lo ao mesmo tempo.
É irritante. Frustrante. E tão… tão bom.
Desgraçado.
“Aurora escreve também, sabiam?”, ele soltou de repente, me
fazendo enrijecer.
“O quê?!”, exclamei, minha voz saindo mais aguda do que eu
gostaria.
“É mesmo?” Dona Verônica me olhou com mais curiosidade
ainda. “O que você escreve?”
A lápide do filho dela.
“Não é o que vocês estão pensando”, me apressei em dizer. “Eu
não escrevo como vocês, eu só...” Fiz uma careta, me sentindo
patética. “Tenho um diário. Gosto de registrar minhas experiências
pessoais, só isso.”
“E não é assim que todos começamos?”, seu Giulio riu.
“Mas eu não planejo me tornar escritora. É só um hobby.”
“Aham, igual os arranjos que você compõe”, Vougan provocou,
mandando um sushi pra dentro da boca.
E torci para que ele engasgasse. Sério, Vougan tinha que
aprender a calar aquela boca.
“Você também compõe?” Os olhos de dona Verônica brilharam
com admiração. “Tão novinha… com certeza é uma menina
multitalentos.”
“Pode fazer disso uma carreira”, seu Giulio acrescentou.
“Quem sabe…”, me limitei a dizer, forçando um sorriso, e enfiei
um rolinho primavera na boca pra não precisar mais falar.
Eu não sou do tipo de pessoa que gosta de tagarelar sobre si
mesma, ou dos planos pro futuro. Prefiro deixar que a vida me
mostre o que tem preparado pra mim e apenas seguir o fluxo.
E como se tivesse pressentido meu desconforto, a mão na minha perna subiu mais um
pouco, me sobressaltando… e parou de repente, quando sentiu o efeito que seus toques
tinham causado ali.
Corei do pescoço até a ponta das orelhas quando Vougan me
olhou pelo canto do olho, alarmado e com a mão imóvel. Surpreso.
E tive que usar toda a minha força de vontade pra não fechar as
pernas com força. Serviria apenas para que seus dedos chegassem
mais perto ainda.
Abri a boca, desesperada para dizer alguma coisa, qualquer
coisa, que explicasse que aquilo que ele estava sentindo em mim
não tinha sido intencional, mas os olhos azuis adquiriram um brilho
intenso e determinado que me calou antes mesmo de conseguir
formular uma frase na cabeça.
Vamos ter que resolver isso mais tarde, ele parecia dizer
com aquele olhar predatório, os dedos longos se fechando e
agarrando minha perna com força para enfatizar.
Apenas engoli em seco, porque era tudo que eu tinha capacidade
de fazer naquele momento.

“Obrigado por hoje”, Vougan murmurou, a bochecha apoiada no
topo da minha cabeça.
Me ajeitei em seus braços, abraçando sua cintura com mais força
e encarando um dos vários pôsteres na parede do seu quarto.
“Mas eu não fiz nada.”
“Fez sim.” Ergueu uma mão até minha nuca, afundando os dedos
no meu cabelo e massageando meu pescoço. Tive que me segurar
pra não começar a ronronar igual um gato. “Eu não me lembro
quando foi a última vez que tive uma noite tão tranquila com os
meus pais. Acho que até eles sentiram como o clima tava mais
leve.”
“Mas eu não fiz nada”, insisti, corando.
“Lembra da sua promessa?” Entrelaçou as pernas nas minhas e ajeitou o cobertor nos
meus ombros. “Você disse que sempre estaria do meu lado.”
Inspirei fundo, inalando seu cheiro.
“Claro que lembro.”
“É só o que eu preciso que faça”, falou baixinho, a mão livre
descendo pelas minhas costas por baixo do cobertor.
Afastei e ergui a cabeça, apoiando o queixo em seu peito e
encarando seus olhos enquanto Steven Tyler cantava I Don't Want
to Miss a Thing no celular de Vougan na mesa de cabeceira.
“A promessa é verdadeira. Sempre vai ser. Pelo menos enquanto
você quiser que seja.”
Ele arqueou uma sobrancelha.
“Enquanto eu quiser?”
Encolhi os ombros.
“Vai que um dia você cansa de mim, então nesse caso eu não ia
querer que você se sentisse na obrigação de ficar comi…”
Vougan parou a massagem e segurou minhas bochechas, me
impedindo de continuar a falar.
“Nunca mais repita isso”, falou, sério, os olhos queimando como
chamas azuis. “Nem sequer pense numa coisa dessas de novo.
Entendeu?”
“Mas…”
“Aurora.” A pronúncia dura e firme do meu nome não era nem de
longe um pedido.
Engoli em seco. E, ainda presa em sua mão, assenti.
Com a expressão suavizando, com cuidado, ele me soltou, e
voltei a deitar a cabeça em seu peito. E Vougan começou a
cantarolar junto com a música romântica.

♪ Then I kiss your eyes


And thank God we're together
And I just want to stay with you
In this moment forever
Forever and ever ♪

Sorri, os olhos começando a pesar. E me deixei ser embalada


pela voz de Vougan, suave e rouca, enquanto acompanhava a
melodia da música, a mão quente nas minhas costas fazendo o
caminho de volta devagar por baixo do meu moletom.
Mas ele parou quando chegou na altura onde deveria estar o
sutiã.
“Tá faltando coisa aqui”, falou, alerta, enquanto as pontas dos
dedos apalpavam minha pele.
Soltei uma risada baixa.
“Eu não uso sutiã pra dormir. Me incomoda.”
Quase pude sentir as sobrancelhas dele arqueando com puro
interesse.
“Bom saber”, falou, e pelo som eu sabia que ele sorria.
Os dedos voltaram a se mover, devagar, e desceram pelas
minhas costelas até alcançarem a curva do meu seio. Estremeci, os
dedos dos meus pés se curvando para dentro conforme meus olhos
se abriam e todo o meu corpo despertava.
“Vougan…”, suspirei, uma onda de calor passando por todo o
meu corpo e se concentrando no meu baixo-ventre. “Seus pais…”
“Já foram dormir”, sussurrou, seus dedos continuando a me
explorar, provocar. “E se eu me lembro bem, temos um assunto
pendente.”
Me apoiei sobre os cotovelos, me erguendo apenas o suficiente para olhá-lo de frente…
e liberando o acesso aos meus seios nus. Vougan mordiscou meu lábio inferior, os olhos
quase cinza e semiabertos fixos nos meus enquanto passava o polegar pela ponta firme e
sensível do meu mamilo. A sensação que me percorreu como uma onda elétrica quase me
fez chorar.
Soltei um suspiro trêmulo e, meu Deus, a sensação quente e
úmida no meio das coxas voltou com uma rapidez e intensidade
surpreendentes.
“Acha que é uma boa ideia?”, sussurrei, o rosto ainda bem perto
do seu. “E se sua mãe decidir vir dar uma olhada em nós, ou…”
“Não vai”, Vougan falou simplesmente, acabando com a distância entre nós e colando a
boca na minha, sua outra mão descendo firme pela minha cintura até alcançar o cós da
calça. “Por que não dorme sem os dois?”, riu baixo, enroscando os dedos na minha
calcinha e agarrando meu bumbum.
“Como se isso fosse um empecilho pra você”, rebati, ofegante, e
voltei a beijá-lo.
Vougan me puxou um pouco para cima e me ajoelhei, apalpando
a mesa de cabeceira ao lado da cama até encontrar a segunda
gaveta, onde eu sabia que ele tinha guardado o pacotinho com o
restante dos preservativos. E sem soltar sua língua, puxei sua calça
junto com a roupa de baixo, libertando aquela parte que delatava
que ele estava tão excitado quanto eu.
“Devagar”, arfou de olhos fechados quando terminei de abrir a
embalagem e estiquei a mão para alcançar seu… membro. “Por
favor, cuidado.”
“Por quê?”
“Nada, é só que… tem uma área bem sensível aí que pode doer
muito se não tomar cuidado.” Abriu os olhos e exibiu um meio
sorriso. “Então por favor, faça com carinho.”
“Me ensina”, pedi num sussurro.
E sem tirar os olhos do meu, Vougan segurou minhas mãos com
delicadeza e as guiou, me mostrando cada movimento, preciso e
suave ao mesmo tempo.
“Onde é mais sensível?”, perguntei assim que terminamos com o
preservativo.
Vougan guiou meu dedo por toda a extensão, subindo até parar
na ponta. Eu ainda não sabia muito bem o que fazer, mas não
queria que ele tivesse que me ensinar cada detalhe, então apenas
me inclinei sobre aquela área ereta e, com muito cuidado, a envolvi
com os meus lábios, passando a língua devagar ao redor e sentindo
o gosto artificial de morango do lubrificante.
Seu corpo enrijeceu embaixo de mim e, apesar de não ver, ouvi
quando Vougan soltou um suspiro profundo, uma mão subindo pelo
meu pescoço e segurando meu cabelo com firmeza.
Ergui a cabeça apenas o suficiente para encará-lo, e o que eu vi
quase me fez engasgar: Vougan com a cabeça inclinada para trás,
os olhos fechados e as veias saltando em seu pescoço.
Meu corpo acendeu como a sirene de uma ambulância e,
sugando uma última vez, com força e fazendo Vougan soltar um
gemido rouco, enrosquei os dedos em sua camisa, que ele se
prontificou a tirar e jogar longe, e avancei com a língua bem onde
terminava a tatuagem, subindo e subindo pelo seu corpo
desenhado, lambendo, até o pescoço e a mandíbula, onde a boca
de Vougan encontrou a minha enquanto seus dedos puxavam
minha blusa para cima, minha calça para baixo, e voltavam a
agarrar meu bumbum com força.
E com uma sincronia perfeita, me ajeitei em seu colo e nos
encaixei, Vougan entrando em mim ao mesmo tempo em que minha
língua entrava bem fundo em sua garganta.
O beijo foi molhado e feroz, o gosto de morango na minha boca
se misturando ao hálito de hortelã de Vougan até tudo virar uma
coisa só, assim como nossos corpos. O começo foi desesperado e
faminto, impaciente, até que encontramos nosso ritmo e seguimos
juntos, colados de todas as formas possíveis, até atingir o ápice
explosivo de sensações, cores e sons que nos invadiam como
ondas elétricas.
“Cacete”, Vougan ofegou, apoiando a cabeça na parede, o rosto e o pescoço suados. E
soltou uma risada fraca, seu peito subindo e descendo pesadamente para recuperar o
fôlego. “Eu adoro quando você vai por cima. Achei que eu fosse explodir.”
E pra ser bem sincera, eu também gosto de ir por cima. Gosto de
ver a cara dele quando assumo o controle. A expressão de
submissão em seu rosto e o brilho no olhar que pareciam implorar
que eu fizesse dele o que bem entendesse.
Abri a boca para responder, mas naquele momento não
conseguia fazer duas coisas ao mesmo tempo, então apenas foquei
em acalmar a respiração, minha cabeça tombando em seu peito
enquanto Steven Tyler continuava cantando, dessa vez a música
Pink, que reforçava o quanto ele gostava da cor.
“Acho que essa música foi feita pra você”, zombei com uma risada
fraca.
“Só porque tem a ver com você.” Vougan alcançou um cacho cor-
de-rosa do meu cabelo e enrolou no dedo.
“Nem tudo que você gosta precisa ter a ver comigo, sabia?”
“Eu sei. Mas fica mil vezes melhor quando tem.”
E, mesmo sem querer, um sorriso surgiu no canto da minha boca.
“Tá vendo meu moletom por aí?”, perguntei, torcendo muito para
que não tivesse que me mexer. “Não quero infartar seus pais
amanhã de manhã se eles me pegarem aqui sem roupa.”
“Hummm…” Vougan esticou o pescoço para o lado, procurando.
“Ficou pendurado na prateleira.”
Que ótimo.
Me levantei, bufando e ajeitando a calça no lugar, e tive que ficar
na pontinha dos pés pra alcançar a manga pendurada. Quando
puxei, um livro caiu para fora, quicando pelo chão.
“Opa...” Exibi um sorriso amarelo por cima do ombro. Vougan estreitou os olhos e
grunhiu baixinho, olhando de mim para o livro caído. Parecia mesmo ser o tipo de pessoa
que não gostava nem que respirassem da forma errada em cima de seus livros, quem dirá
derrubar no chão.
Revirei os olhos, mas vesti o moletom e recuperei o volume de
aparência antiga. Era o mesmo que Vougan tinha mostrado a
pintura da deusa Aurora. Encarei a capa por um tempo, pensativa, e
ao invés de devolver à prateleira, levei comigo até a cama.
“O que tá fazendo?” Vougan arqueou uma sobrancelha enquanto
me observava pegar sua camisa largada no meio do caminho e a
jogava para ele. Voltei a me encaixar entre suas pernas depois que
ele se vestiu, as costas apoiadas em seu peito, e ergui o livro acima
da minha cabeça, na altura de seus olhos.
“Lê uma dessas histórias pra mim.”
Vougan riu, pegando o livro, e o som reverberou pelo meu corpo.
“São contos de várias mitologias e folclores diferentes. Tem
certeza que quer ouvir isso?”
Apenas me aninhei mais em seu peito como resposta, puxando o
cobertor até o queixo.
“Tudo bem”, ele riu mais uma vez e, passando os braços ao redor
da minha cintura e apoiando o livro em meu colo, começou a folhear
até parar em uma página com a gravura de duas mãos, unidas por
um laço vermelho. “Acho que você vai gostar dessa.”
“É sobre o quê?”
“Uma lenda chinesa antiga que fala sobre almas gêmeas.”
Pisquei uma vez, meu coração dando um salto. Ele podia ter
escolhido aquela história por acaso. Podia não ter nada a ver com
nós dois.
Ou podia ter tudo a ver e ele fez aquilo de propósito. Podia estar
querendo me dizer alguma coisa. Mas não tentei descobrir.
“Como se chama essa lenda?”, foi o que eu perguntei ao invés, os
olhos fixos na gravura.
Vougan deslizou um pouco para baixo, até estar na mesma altura
que eu, e apoiou o queixo no meu ombro, sua bochecha quente e
macia encostando na minha com delicadeza.
“Akai Ito”, murmurou, a voz suave. “Significa fio vermelho do
destino.”
Meu corpo inteiro ficou arrepiado, e senti um leve frio na barriga
ao ouvir aquelas palavras. Mas não falei nada e apenas deixei que
Vougan começasse a ler.
Até onde eu entendi, a lenda contava a história de um deus
chinês que morava na lua e que era responsável por unir pessoas
predestinadas uma à outra com um fio vermelho em seus
tornozelos. Até aí tudo bem, mas o restante da história era bem
esquisito, e nada romântico.
“Deixa eu ver se entendi”, falei, franzindo o cenho. “O deus
casamenteiro da lua falou pro garoto que ele devia se preparar pro
seu destino, ou seja, casamento.”
“Isso mesmo.”
“Mas ele não queria saber disso, e depois que o velho mostrou o
fio vermelho que o ligava à sua alma gêmea… o garoto
simplesmente tacou uma pedra na cara da menina e saiu
correndo?”
“Não diga que você não faria exatamente a mesma coisa”,
Vougan riu.
Eu faria mesmo, e acertaria a fuça do velho da lua com uma
pedra ainda maior, mas isso não vinha ao caso.
“E mesmo assim, anos depois, ele volta, se apaixona pela
garota… e ela ainda se casa com ele? Com o cara que deixou uma
cicatriz no seu rosto depois de uma pedrada?”, falei, inconformada.
“Ela devia era tacar uma pedra no saco dele pra devolver o favor.”
“É só uma lenda”, Vougan lembrou, segurando a risada. “Pra
passar a mensagem de que aqueles que são ligados pelos deuses
por esse laço estão destinados a ficar juntos, independente da hora,
lugar ou circunstância. É uma conexão invisível. O fio pode ficar
cheio de nós, enroscar, puxar e se esticar por quilômetros,
mas nunca vai arrebentar. Ele representa a união inquebrável entre
duas pessoas.”
Fiquei em silêncio por um tempo, absorvendo suas palavras.
“É um compromisso muito sério” murmurei baixinho por fim.
“É sim”, Vougan murmurou de volta, tão baixo quanto eu. “Mas
acho que vale a pena quando se trata de algo tão forte assim.”
Virei ligeiramente a cabeça em sua direção, apenas o suficiente
para conseguir olhá-lo pelo canto do olho.
“Você acha que é o nosso caso? Acha que a nossa união é
inquebrável?”, sussurrei, minha voz mal saindo.
Mas a verdadeira pergunta, escondida nas entrelinhas, era… se
ele acreditava que, de alguma forma invisível, tínhamos aquele fio
vermelho amarrado em nós, nos conectando. Se acreditava que
estávamos destinados a ficar juntos, independente das
circunstâncias. Se acreditava que éramos almas gêmeas.
Vougan encarava a gravura no livro, mas não parecia enxergar.
Como se seus pensamentos estivessem em outro lugar. Até que ele
virou a cabeça para me encarar também, a ponta de seu nariz
quase roçando no meu.
“Acho que, se a gente quiser… podemos ser”, falou por fim,
baixinho. “Não gosto de pensar que estamos presos um ao outro,
sem poder escolher, mas… acho que podemos construir essa união
inquebrável. Juntos. Podemos tecer nosso próprio fio vermelho do
destino, se quisermos.”
Um suspiro de alívio me percorreu.
Eu gosto de Vougan. Gosto muito. E quero ficar com ele, mas
também sempre gostei de pensar que sou um espírito livre. Sem
regras ou amarras que me prendam no lugar ou definam quem eu
devo ser. E acho que é por isso que, às vezes, eu sinto medo de
dizer como realmente me sinto em relação a ele, a nós… e por que
eu tenho medo de pronunciar aquelas três palavras que eu sei que
ele quer tanto ouvir. Porque tornaria tudo real e sério demais, como
se estivéssemos fechando um contrato.
Mas saber que ele pensa assim… que os dois são livres pra fazer suas próprias
escolhas, independente de regras ou destino… tive que me segurar para não arrancar suas
roupas de novo.
“Eu gosto desse plano”, sussurrei.
Os cantinhos da boca de Vougan subiram.
“Eu também”, sussurrou de volta.
E talvez eu ainda não conseguisse botar pra fora aquelas
palavras que martelavam meu coração sempre que olhava pra ele,
mas precisava que ele soubesse que…
“Eu quero tecer esse fio com você.” As palavras saíram um pouco
engasgadas.
O sorriso de Vougan cresceu devagar, até mostrar os dentes. E,
com carinho, beijou minha boca.
“Já estamos tecendo, Moranguinho. E pra ser bem sincero, acho
que começamos sem nem perceber.”
Capítulo 38
Terça, 18 de junho
Eu caí na merda de uma armadilha.
Estava usando um dos computadores da biblioteca, terminando
um arranjo complexo — e simplesmente incrível — que tinha
tomado forma na minha cabeça há alguns dias já, quando um aluno
mais velho apareceu, dizendo que o professor de harmonia queria
conversar urgente comigo no estúdio.
Salvei o projeto no pen drive, guardei minhas coisas e
praticamente corri até lá, entrando na sala maior. Vazia. Até que
ouvi a porta atrás de mim se fechando, me fazendo virar num salto.
Não tinha professor nenhum. E sim uma muralha bloqueando a porta, os braços
cruzados e os olhos azuis frios e cortantes fixos em mim. Vinícius.
A sensação de vê-lo ali, me encurralando, foi a de um buraco se abrindo sob os meus
pés. Mas permaneci imóvel. Petrificada e com o sangue virando gelo nas veias, mas sem
demonstrar qualquer emoção, o que, naquelas circunstâncias, considerei uma pequena
grande vitória.
“O que é isso”, exigi saber, a voz tão inexpressiva quanto meu
rosto, mas podia sentir as pernas começando a virar gelatina.
“Vou ser curto e direto”, ele falou, os olhos afiados. “Não quero
perder muito tempo com você.”
“Eu odiaria mesmo ser um incômodo à vossa senhoria”, ironizei,
mas o sorrisinho provocador não acompanhou minhas palavras.
Não conseguia me obrigar a ficar calma nesse ponto. “Achei que
seu bilhetinho dizia que não teria um segundo aviso.”
Vinícius franziu o cenho, confuso, mas me ignorou. E, realmente,
foi curto e direto.
“Desista do concurso.”
Não ousei desviar o olhar do seu por um momento sequer, mas também prestava muita
atenção aos seus movimentos. Um passo na minha direção e eu teria que calcular uma
rota de fuga em questão de segundos. Mas Vinícius não parecia ter intenção de se
aproximar. Por enquanto.
“Vai pelo menos se dignar a me dizer o por quê?”, perguntei,
mesmo já sabendo a resposta. Precisava ganhar tempo. Pra quê eu
não sabia, mas enquanto continuasse falando, ele não consideraria
partir pra ameaça física. Ou assim eu esperava.
“Sabe muito bem por quê”, respondeu, no entanto. “Vougan é
muito molenga pra fazer o que é necessário pra vencer, mas eu não.
Então desista do concurso por livre e espontânea vontade
enquanto é tempo, bonitinha, senão…”, deixou o restante para a
minha imaginação. E, ah, ela não falhou.
“Vai mesmo cometer a covardia de encostar a mão em mim?”,
apelei, num lapso insano de coragem. Ou burrice.
Mas Vinícius apenas sorriu com malícia e não moveu um músculo
sequer.
“Eu não ando sozinho, sabe. Não preciso encostar nem um dedo
em você para que aprenda a lição.”
Engoli em seco, tão alto que podia jurar que ele tinha ouvido
também. E achei melhor mudar de estratégia.
“Por que você não deixa Vougan tentar vencer o primeiro lugar
sozinho? Ele é muito bom, pode muito bem fazer isso por conta
própria e de forma justa. Eu sei que sua família tem um histórico de
vencedores, e que manter essa tradição é importante. Mas você
realmente acha que trapaça é o único jeito de conseguir vencer?
Não acredita nas habilidades ou na capacidade do seu próprio
sangue?”
Vinícius não respondeu. Mas sua expressão tinha ficado tão dura
que achei que seu rosto fosse rachar.
“Eu não dou a mínima pro que você acha. Se não desistir do
concurso, pior pra você. Já foi avisada.” Descruzou os braços e
abriu a porta, mas parou antes de sair, me olhando por cima do
ombro. “E vê se esquece o Vougan. Essa palhaçada de vocês não
tem futuro, então corta logo a enrolação.”
“Vai se foder”, cuspi, meu temperamento saindo de controle, como sempre acontecia
quando tentavam me dar ordens. Só meus pais tinham moral suficiente nesse
departamento pra me fazer ficar quieta. “Talvez seja exatamente o que você precisa pra
resolver esse mau humor, se é que me entende.” O sorrisinho cínico finalmente deu as
caras, mas não podia ter sido em hora pior.
Eu sinceramente tinha que aprender a abrir uma droga de
exceção e ficar de boca fechada quando se tratava de um valentão
com o dobro do meu peso e quase o triplo do meu tamanho.
Principalmente porque, em uma fração de segundo, literalmente
um piscar de olhos, Vinícius cruzou a distância entre nós e me
empurrou para trás com força, me prensando contra a parede.
“Ah, entendo. E quem melhor do que você pra me ajudar com isso, não é?”, murmurou
baixinho no meu ouvido, sorrindo como uma cobra e colando o corpo no meu. Cada
centímetro de mim foi esmagado por ele. “O que me diz, bonitinha? Será que não gostaria
de trocar um primo pelo outro? Te asseguro que conheço truques muito mais interessantes
que seu namoradinho.” Afastou meu cabelo do ombro devagar. “Truques que te fariam
gemer tão alto que sacudiria as paredes.” Seus dentes roçaram o lóbulo da minha orelha.
“Não se atreva”, grunhi e tentei empurrá-lo, mas só serviu pra ele
me segurar ali com mais firmeza.
“Não seja malcriada. Só estamos conversando.” Aproximou bem o rosto do meu, me
analisando com muita, muita atenção. Cada detalhe, cada traço, nada escapava daqueles
olhos… perturbadoramente parecidos com os do primo. Podia até jurar que as mesmas
chamas azuis e intensas queimavam ali. As mesmas que eu sempre via quando Vougan…
me desejava. “Você ficaria surpresa se soubesse como eu posso ser gentil quando quero”,
falou baixinho, quase sussurrando. E ergueu uma mão, os dedos longos envolvendo o meu
pescoço… e sentindo a pulsação acelerada que refletia meu coração, disparado de medo e
confusão feito uma metralhadora num campo de guerra.
“O que tá fazendo?”, arfei, minha voz mal saindo. Não conseguia
respirar direito com ele me prensando daquele jeito. “Um minuto
atrás você tava me ameaçando. Que droga de conversa é essa…”
“Quer ouvir um segredo?”, me interrompeu, o olhar fixo na minha
boca. “Eu invejo Vougan. Ter um bichinho nervosinho e afrontoso
como você nas mãos deve ser muito interessante. Deixa eu
adivinhar, ele fica todo excitado quando você o ameaça de morte.”
Meu coração afundou até o estômago, e tenho quase certeza de
que meu rosto empalideceu.
Vinícius riu.
“Não posso dizer que não entendo. Quando você ameaçou arrancar a minha língua…”
Deslizou o polegar pelo meu pescoço. “Por mais estranho e indecente que fosse, não
consegui parar de pensar no que você faria se tivesse a chance. De que formas criativas
brincaria com ela”, falou com a voz grave, apertando minimamente os dedos ao redor do
meu pescoço após cada palavra. “E, ah, pode apostar que eu pensei em jeitos mais
criativos ainda de retribuir o favor.”
Engoli com força. E o filho da mãe sentiu, pois seu sorriso
cresceu.
Eu queria meter um chute nas suas bolas. Mas não conseguia.
Não apenas porque ele era pesado e mais forte que eu, mas porque
não conseguia parar de encarar aqueles olhos. Tão, tão
familiares…
“Por favor…”, implorei, minha voz saindo trêmula e meus olhos ardendo. Não queria
pensar no que aconteceria se ficasse mais um minuto presa ali. No que eu deixaria
acontecer porque não conseguia encontrar forças pra lutar contra ele ou sequer me mexer.
“Me solta.”
Ainda segurando meu pescoço, Vinícius esticou o polegar até
meu queixo, virando meu rosto para o lado. E, respirando fundo,
colou a boca no meu ouvido.
“Você vai desistir do concurso?”
Assenti freneticamente com a cabeça, os olhos fechados com
força e engolindo as lágrimas. Sua boca se curvou num sorriso.
“Boa menina”, sussurrou, e deu um beijo demorado bem no canto
da minha boca. Meu corpo inteiro tremia, e achei que poderia ter
uma convulsão a qualquer momento.
Mas Vinícius finalmente me soltou e saiu, sem olhar para trás, me
deixando sozinha.
E, ainda sem conseguir respirar direito, desabei no chão. Eu queria chorar, mas ao
mesmo tempo segurava as lágrimas com todas as minhas forças. Queria gritar, mas cerrei
os dentes tão firme que quase trincaram. E estava a ponto de explodir, mas agarrei o
carpete com força e me obriguei a continuar respirando.
Mas parecia que o ar simplesmente não entrava nos meus
pulmões.
Minha visão estava borrada, mas vi quando a figura de alguém
parou diante da porta aberta.
“Aurora? O que tá fazendo?”, a voz de Marcus ecoou nos meus
ouvidos, confusa e desconfiada. E depois alerta. “Aurora?”
Eu continuava puxando o ar, mas a sensação era a de que estava
largada no espaço sem capacete de oxigênio.
“Aurora, o que aconteceu?” A sombra borrada de Marcus se aproximou e ajoelhou
diante de mim, e pensei ter visto lampejos de seus olhos escuros arregalados com
desespero.
Não conseguia respirar… não conseguia…
“A…”, tentei falar com o pouco de oxigênio que me restava,
engolindo o ar que não entrava. “Asma… asma…”
“Merda!”, ele sibilou e arrancou a mochila das minhas costas,
abriu o zíper e a virou de ponta-cabeça, jogando todos os meus
pertences no chão. “Cadê a bombinha? Por favor, diz que você tem
uma droga de bombinha!”
E, bem na hora, a dita-cuja caiu do bolso lateral. Marcus a
agarrou e chacoalhou rapidamente, ergueu meu rosto e enfiou a
bombinha na minha boca, pressionando o spray.
O alívio foi quase instantâneo, mas precisei repetir a dose uma
segunda vez.
“Graças a Deus”, Marcus suspirou pesadamente, se jogando de
bunda no chão enquanto eu ofegava, a respiração se acalmando
aos poucos. “Que droga foi essa, afinal de contas?”
“Uma crise de asma”, falei o óbvio, fraca.
“Não fode”, bufou. “Perguntei o que foi que causou isso.”
Sacudi a cabeça, evitando ao máximo falar.
“Não foi nada.”
“Ah, então realmente espera que eu acredite que você tem crises
de asma assim do nada?” Semicerrou os olhos. “Isso nunca
aconteceu antes, nem depois da gente correr a escola inteira pra
fugir da direção.”
Merda. Ele tinha um ponto. Fazia tempo que eu não tinha aquelas
crises, e me odiei por ter sido flagrada em um momento tão fraco.
“Não foi nada”, repeti. Nem ferrando ia falar sobre aquilo com ele. “Mas obrigada. Eu
podia ter morrido se você não tivesse aparecido.” Porque apesar da vergonha que sentia,
aquilo não deixava de ser verdade.
Marcus não falou nada por um tempo, até que bufou e se
levantou.
“Você tá bem mesmo? Eu posso chamar alguém da enfermaria.”
“Tô bem. Eu só preciso… descansar um pouco.” Comecei a
recolher minhas coisas, devagar.
“Vou avisar o Vougan que você tá aqui então…”
Ergui a cabeça num salto, o que me rendeu uma onda de náusea,
mas falei mesmo assim, desesperada:
“Não. Não diga uma palavra sequer sobre o que viu a ele.”
Marcus franziu o cenho.
“Por que não? Vocês… brigaram?” Fez uma careta.
Eu poderia dizer que sim, que essa foi a causa da minha crise,
mas não conseguiria mentir naquele estado nem se quisesse. Não
de forma convincente.
“Não. Só… por favor, não fala nada. Finge que isso nunca
aconteceu. Promete?”
Marcus fez outra careta, como se fosse recusar.
“Me ajuda com isso e eu te ajudo a se entender com a Sarah”,
ofereci. Ele arqueou as sobrancelhas, claramente interessado.
“Como sabe que eu quero… me entender com ela?”
Mas a pergunta real de Marcus era: como sabe que eu me
ajoelharia e imploraria seu perdão se ela sequer me deixasse
chegar perto?
A resposta era simples: o desespero e a desolação estavam
estampados na cara dele.
“Não quer?”, franzi as sobrancelhas.
“Quero”, resmungou por fim, as bochechas corando.
“Então promete que Vougan nunca vai saber o que acabou de
acontecer aqui. Faça isso, e eu convenço Sarah a conversar com
você.”
Marcus ponderou por um tempo, considerando suas opções, mas
bufou mais uma vez.
“Tá bom. Só tenta não morrer até falar com ela. Não vou ficar
atrás de você com uma bombinha, esperando outra crise.”
Soltei uma risada fraca de deboche.
“Não fode, Marcus”, falei, selando nosso acordo.

Eu andava pelos corredores, me sentindo um fantasma. Ainda
sentia um leve aperto no peito por causa da falta de ar, mas isso
não era nem de longe o pior.
O pior era a pressão que ainda sentia do corpo de Vinícius no
meu. Cada parte de mim que ele tocou — ou seja, praticamente
tudo — formigava como se mãos fantasmas passassem por mim,
apenas para me lembrar de suas ameaças… e das coisas obscenas
que ele revelou.
Eu ainda não sabia o que pensar sobre isso, mas socar uma
parede parecia um bom começo. Se eu sequer tivesse forças pra
isso.
Cheguei até o fim do corredor nos fundos da escola e fui para o
lado de fora, até os portões abertos de ferro escuro que levavam às
quadras.
Garotas do grupo de dança ensaiavam ali, na quadra menor,
enquanto os garotos do time de futebol treinavam na quadra maior,
mais ao fundo. E, sentados ali na grama, havia um grupinho de
meninos conversando, rindo e observando com atenção demais as
pernas firmes e expostas das meninas dançando.
Minhas próprias pernas enrijeceram como pedra, me lembrando de como tinha sido
prensada e presa contra a parede, sem conseguir me mover…
Uma cabeça de cabelos castanho-escuros volumosos e rebeldes
se ergueu no meio do grupinho, fixando o olhar em mim. Estava
muito longe para que eu conseguisse ver a cor dos olhos com
clareza, mas nem precisei. Sabia quem era.
Ele se levantou com aquela fluidez arrogante de sempre e quase
correu até mim, as pernas longas cruzando a distância em poucas
passadas.
“Graças a Deus você apareceu.” Vougan sorriu enquanto se
aproximava, realçando as pintinhas em seu nariz. “Se tivesse que
ouvir mais uma palavra sequer daqueles babacas discutindo qual
das meninas tem a maior bunda, ia estourar meus próprios
tímpanos.”
“E você não tava olhando também?”, falei numa tentativa tosca de
provocá-lo, mas minha voz saiu inexpressiva. E meus olhos, baixos.
“Não, só estava lá porque um daqueles virjões ficou de me passar
umas músicas.” Sacudiu o celular na altura do rosto antes de
guardá-lo no bolso da jaqueta, e parou diante de mim, segurando
meu pulso. “Tudo bem, Moranguinho? Você tá meio pálida.”
Abri a boca para dizer que sim, mas nada saiu.
“Ei...” A outra mão de Vougan pousou na minha bochecha, e ele
ergueu meu rosto. Mas mantive o olhar baixo. “O que aconteceu?”
Seu toque era tão diferente… daqueles que eu ainda sentia por
todo o corpo. Era carinhoso. Terno. Protetor.
E foi só por isso que deixei que ele me tocasse. Mas os olhos…
ainda não conseguia olhar. Porque sabia o que encontraria ali, e
ainda era tudo muito recente para que eu conseguisse separar um
do outro, então…
“Moranguinho…” Vougan pediu. Mas não ergui o olhar. Ainda
mais quando senti as lágrimas voltando e fazendo meus olhos
pinicarem. “Aurora”, ele falou com mais firmeza. “Olha pra mim. O
que foi que aconteceu?”
Apenas sacudi a cabeça de leve, mas meu lábio inferior começou
a tremer e minha visão ficou borrada pelas lágrimas acumuladas.
“Aurora”, Vougan insistiu, procurando meus olhos. “AURORA!”,
exclamou ao mesmo tempo em que segurava meu rosto com as
duas mãos e o erguia na altura do seu.
Me encolhi com o susto, mas finalmente o encarei… encarei aqueles olhos azul-
cinzentos, que conseguiam ser tão afiados e frios quanto estacas de gelo, mas também tão
intensos e ardentes como chamas azuladas.
Aqueles olhos que eu conhecia tão bem… mas que também
habitavam o rosto de outra pessoa. Uma pessoa cruel e asquerosa,
que tinha me tocado de uma forma tão íntima porque aqueles
malditos olhos azuis tinham me deixado confusa e paralisada e…
Não consegui mais me segurar e abri o berreiro, as lágrimas
rolando soltas e pesadas como uma cachoeira pelo meu rosto, e
minhas pernas simplesmente desistiram de me manter em pé.
Vougan não hesitou e me amparou, envolvendo os braços ao meu
redor e me segurando no lugar, sustentando o peso morto que eu
sentia que era.
Por que deixei aquilo acontecer? Por que não consegui reagir? Eu
sempre fui tão corajosa, e encarava qualquer briga de frente, então
por que simplesmente fiquei lá parada, deixando aquele escroto do
Vinícius me tocar do jeito que quisesse?
Eu sentia vergonha de mim mesma. Sentia nojo daquele idiota. E
ainda estava muito confusa com tudo aquilo. Eu era uma bomba de
sentimentos e emoções, mas ao mesmo tempo sentia que era um
monte de nada.
“Não chora, bebê”, Vougan falou, pediu, com um misto de ternura
e desespero, seus dedos enterrados no meu cabelo, massageando
minha nuca. “Me conta o que aconteceu. Por favor.” Me abraçou
com mais firmeza. “Você é a pessoa mais forte que eu conheço.
Nunca chora. Nunca quebra. Não você. Você sempre encara tudo
de cabeça erguida… então eu não faço ideia do que fazer se você
chora assim. Por favor, Moranguinho, só me diz qual é o problema.”
Cacete. Se eu já não tivesse motivos suficientes pra estar me
debulhando em lágrimas, aquelas palavras com certeza dariam
conta do recado.
Respirei fundo e trinquei os dentes, tentando colocar as emoções
no lugar e engolir o restante das lágrimas. Contei até dez,
controlando a respiração, e inalei o aroma de Vougan, aquele cheiro
reconfortante de sabonete e livros, do garoto que tinha nas mãos
tudo o que eu era e tinha a oferecer. E, devagar, ergui o olhar até
seu rosto.
Sim, a cor dos seus olhos era exatamente igual aos do primo,
mas os de Vougan tinham algo único: conexão. Quando olhava em
seus olhos, era como se meus sentimentos mais íntimos se
entrelaçassem aos seus. Era quase uma ligação física. Como… um
fio.
Um fio. Uma união inquebrável. Que tínhamos tecido juntos.
E aquilo era só dele. Só nosso. E de mais ninguém.
Mas no momento, aquela conexão só exalava preocupação.
Preocupação, pânico e desespero, que refletiam nas íris azuis,
ainda tentando decifrar as emoções do meu rosto. Ou o motivo por
trás delas.
Funguei, forçando minhas pernas a sustentarem meu corpo, e me
afastei um pouco, mas Vougan não me soltou.
“Eu tô bem”, murmurei, fungando mais uma vez. “Desculpa, eu
só… devo estar cansada. Mas eu tô bem, juro.”
“Não, não tá.” Vougan franziu o cenho, tão forte que as
sobrancelhas estavam quase unidas. “É a primeira vez que eu te
vejo chorar assim. Não é cansaço.”
Droga de fio inquebrável.
“É sim”, enrolei. “Mas é que eu também… tô de TPM. Sabe como é, hormônios
femininos descontrolados… Junta isso com o cansaço e estresse com a seleção final
chegando… Eu fiquei esgotada, só isso.” Sequei o nariz com as costas da mão.
Vougan segurou minha bochecha e secou meu rosto molhado
com o polegar.
“Tem certeza de que é só isso?”
Claro que não.
“Sim. Desculpa se eu te assustei. Não queria te preocupar.”
“Sabe que pode falar comigo sobre qualquer coisa, né?” Me olhou
atentamente. “Você prometeu estar sempre ao meu lado, mas eu
também quero estar sempre do seu. Pra qualquer coisa que
precisar.” Afastou um cacho de cabelo do meu rosto. “Mesmo se
você achar que não tem importância… pra mim tem. Sempre vai
ter.”
Assenti com a cabeça, incapaz de responder. E Vougan voltou a
me abraçar.
“Se estiver cansada, ou frustrada, pode me dizer. Vou fazer tudo
que eu puder pra que você se sinta bem de novo. Combinado?”
Assenti mais uma vez, a pulsação forte do seu coração batendo,
ritmada e constante, no meu ouvido.
“Vougan…”, murmurei. “Eu… eu…”
“O quê?” Se afastou apenas o suficiente para me olhar nos olhos.
“Eu…” Suspirei, derrotada. Ainda não conseguia dizer, apesar de
sentir com uma intensidade quase sufocante. “Nada. É só que eu…
ainda não sei o que vou tocar na seleção final.”
Seus olhos brilharam com compreensão.
“Entendi. Você ficou nervosa porque a seleção final tá chegando e
ainda não escolheu uma peça. Foi isso?”
Engoli aquela mentira em seco, como se fosse um caroço na boca
da garganta.
“É, foi isso.”
“Você vai escolher algo. Vai encontrar a peça perfeita, você vai
ver.”
Forcei um sorriso que não sentia.
“Tenho uma coisa pra você”, murmurei, tentando mudar de
assunto, e alcancei o bolso lateral da mochila. “Eu ia esperar até a
seleção final, mas…”
Eu provavelmente não estarei lá no dia, foi o que deixei de
falar. E entreguei o embrulho simples de papel marrom.
Vougan piscou, surpreso e confuso, mas pegou o pacotinho e
abriu, virando o conteúdo até cair em sua palma. E piscou
novamente enquanto encarava o par vermelho de pulseiras de nylon
trançadas.
“O que é isso?”, murmurou, mas seus olhos me diziam que ele já
sabia a resposta. Só queria a confirmação.
“Nosso fio vermelho do destino”, sussurrei, a voz voltando a ficar
embargada. Peguei uma das pulseiras, que tinha um pingente cor-
de-rosa pendurado no centro, e amarrei em seu pulso. “A lenda diz
que é no tornozelo, mas… eu gosto de pensar que ele sempre vai
estar ao alcance da vista. Quando estivermos longe um do outro… é
só olhar pra baixo, e sempre vai estar lá.”
Estiquei a mão para ele, o punho fechado. Esperando.
Vougan olhou da pulseira em seu braço para a outra em sua mão,
essa com um pingente azul.
“Onde conseguiu isso?”
Me remexi, as bochechas esquentando.
“Eu… eu mesma fiz. Com cordas antigas da minha harpa. Não
gostou?”
Os olhos azuis fixaram nos meus… carregados de uma emoção intensa que só podia
ser minha imaginação… e, sem desviar o olhar, amarrou a pulseira no meu pulso.
“Promete que nunca vai arrebentar”, sussurrou. E eu sabia que
ele não estava falando apenas da pulseira.
No que dependesse de mim…
“Prometo”, sussurrei de volta.
Vougan sorriu, um sorriso rápido e extasiado, e segurou a parte
de trás da minha cabeça, me beijando com força.
“Eu também prometo”, murmurou assim que me soltou, a testa
encostada na minha. Até que seu sorriso alargou e, olhando de
relance para o grupo de dança mais ao longe, me pegou pelo pulso
e começou a correr, me puxando até a quadra. “Vem, vamos
oficializar isso em grande estilo.”
“O que tá fazendo?”, exclamei com os olhos arregalados.
Mas ele não respondeu e apenas continuou me puxando, até
estarmos literalmente no meio das meninas que faziam piruetas e
abriam espacates no ar. Elas resmungaram quando invadimos sua
coreografia, mas Vougan nem se importou. Apenas me puxou para
si e começou a me girar ao ritmo animado da música.
O grupinho de meninos que antes observava se levantou num
salto, entre gritos e risadas, e invadiram a quadra também, puxando
as meninas para dançar em movimentos desengonçados e
descontraídos. Elas começaram a rir e entraram na brincadeira, e
uma das garotas me ensinou um dos passos, que parecia
relativamente simples, enquanto Vougan se enroscava com os
meninos em um tango muito engraçado.
Reproduzi, desajeitada e entre risadas, os passos que tinha aprendido com as meninas
e Vougan logo voltou a me alcançar, imitando a sequência… e rebolando com um gingado
impressionante.
Gargalhei mais ainda e imitei seus movimentos exagerados, e
logo estávamos criando uma sequência só nossa, rebolando e
girando, atrapalhadamente sincronizados.
E, apesar de tudo que tinha acontecido, que ainda estava
acontecendo… eu consegui relaxar e aproveitar aquele momento
único com ele, com Vougan, com um sorriso genuíno no rosto.
Capítulo 39
Sexta, 28 de junho
Meu mundo… meu mundo desabou. Se estilhaçou. Literalmente.
Aquele aviso… aquela droga de bilhete… eu não me atentei.
Não me atentei ao verdadeiro significado. À verdadeira ameaça
escondida nele. E agora… meu Deus…
Vougan… por minha culpa, você… você…
Não pode ser… não pode ser…
Deus… o que foi que eu fiz?
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale

Coda: Termo de origem italiana (trad.: cauda). Designa o fim de


um trecho musical, de um andamento de uma sonata ou sinfonia.
Capítulo 40
— Por que será que estão demorando tanto pra decidir? —
choraminguei, olhando o mural de avisos na secretaria. Vazio.
— Ou foi todo mundo muito bem, e eles não sabem pra quem
dão a maior nota… — Richard ponderou ao meu lado — ou foi todo
mundo tão mal que eles não conseguem decidir quem de nós foi o
menos pior.
Gemi de frustração, me afastando do mural.
— Isso não tá ajudando.
Era terça-feira de manhã, na semana seguinte à segunda
seleção do concurso. O resultado com os nomes dos três alunos
que iriam para a seleção final devia ter saído no dia anterior, mas
pelo jeito os jurados ainda não tinham chegado a um consenso.
— Eles tiveram o fim de semana inteiro pra decidir — falei,
seguindo pelo corredor em direção à sala da professora Fabiana
para deixar o violoncelo antes das aulas gerais. Não tínhamos aula
naquele dia, mas eu tinha esperanças de já poder começar a me
preparar para a seleção final, caso fosse escolhida. No entanto… —
Será que a minha apresentação tem alguma coisa a ver com essa
demora? Vitor ter feito meu acompanhamento realmente me salvou
na hora, mas… talvez isso acabe afetando a decisão final.
Eu não me arrependia de ter aceitado a ajuda de Vitor, no
entanto. Seria desclassificada se não me apresentasse, de qualquer
forma, então se fosse pra levar bomba, não queria ter o peso na
consciência de não ter tentado e feito o meu melhor até o último
momento.
Mas agora eu tinha que começar a considerar outra forma de
conseguir o dinheiro para pagar a cirurgia do meu avô. E rápido.
Tinha passado o fim de semana inteiro pensando nisso, passando e
repassando minhas opções sem parar caso fosse desclassificada.
Não tinha chegado a nenhuma conclusão satisfatória. Não uma
que me permitisse continuar estudando ali, pelo menos. Se não
passasse para a seleção final, a única alternativa que me restava…
deixando um gosto muito amargo na minha boca… era sair da
escola e procurar um trabalho de período integral.
Estaria desistindo do meu sonho, e só de pensar nessa
possibilidade meu coração se apertava de angústia, mas… eu me
importava mais com meu avô, com seu bem-estar, do que comigo
mesma. Não podia deixá-lo à deriva assim quando eu era tudo que
ele tinha. Ele cuidou de mim quando fiquei sozinha, e eu faria o
mesmo por ele agora.
E por isso mesmo eu já estava preparando meu psicológico e
minhas emoções para amenizar o impacto do baque da realidade
caso recebesse a confirmação de que fui desclassificada.
— Talvez afete — Richard respondeu, caminhando pelos
corredores ao meu lado. — Talvez não. Mas sendo sincero, não
acho que demorariam tanto pra decidir se o que vocês fizeram fosse
tão grave assim.
— É… — Fiz uma careta. — Pode ser.
Chegamos na sala da professora Fabiana, ainda vazia pelo
horário, mas usei a cópia da chave que ela tinha confiado a mim
para usar nos dias em que todas as salas de ensaio estivessem
ocupadas. Deixei a maleta do violoncelo apoiada com cuidado no
canto da parede pra não atrapalhar, e já estava voltando para a
porta quando vozes nada menos que ferozes ecoaram pelo
corredor.
Richard arregalou os olhos e correu para dentro, fechando a
porta.
— O que é isso? — Franzi as sobrancelhas.
— Shhh… — Ele levou um dedo aos lábios, o ouvido colado na
porta. — Acho que é o diretor.
Corri para a porta também e, com muito cuidado, fiquei na
pontinha dos pés para olhar pela janelinha. Richard não tinha o
problema da altura, mas também olhou com cuidado pela lateral do
vidro.
— Você tem ideia do problema que me criou? Eu disse pra ter
cuidado! — a voz dura e inconfundível do diretor, muito
possivelmente Vougan, exclamou no corredor vazio.
— Eu só fiz o que o senhor mandou — outra voz falou, baixa e
trêmula. Com medo.
O diretor, no entanto, riu com escárnio.
— Se realmente tivesse feito o que eu mandei, não teria essa
bomba nas mãos agora. Eu já cansei de limpar as bagunças que
você faz, Giovanna.
Engoli em seco, enrijecendo. Richard também tinha ficado
imóvel, os olhos arregalados com assombro.
— O senhor me mandou vencer o concurso, não importa o que
aconteça — Giovanna falou mais alto e dura, talvez num lapso de
coragem. Seus passos estavam mais perto agora. — É só isso que
eu tenho feito até agora, mas nada nunca é bom o suficiente pra
você!
— Bom o suficiente? — o diretor cuspiu, parando bem em
frente à sala da professora Fabiana, e se virou para a sobrinha.
Mesmo ao longe e não sendo direcionado a mim, podia sentir a
frieza cortante daquele olhar enfurecido, e meus joelhos
sacolejaram. — Sabe quantas vezes eu tive que interferir na decisão
dos jurados por sua causa? Você não passaria nem nas
eliminatórias por conta própria!
Giovanna vacilou, seu rosto empalidecendo.
— É mentira — sussurrou, os olhos azuis iguais aos do tio
arregalados com pânico. — Eu cheguei até aqui porque me esforcei.
Eu me matei de estudar. — Trincou os dentes e exclamou: — Eu
cheguei até aqui porque sou boa!
— Então me explique por que eu tenho passado os últimos três
dias na cola dos jurados pra você não ser desclassificada — o
diretor grunhiu entre dentes, baixo e furioso. — Me explique por que
eu fiz de tudo pra impedir que eles soubessem do seu envolvimento
com toda a merda que você aprontou até agora. E me explique em
que droga de momento você se ouviu tocar e achou que aquela
porcaria seria o suficiente.
Giovanna recebeu o golpe como uma facada no peito. E seus
olhos se encheram de lágrimas, mas ela as segurou com força,
tentando ao máximo manter o queixo erguido.
Meu coração se apertou por ela. Não importava quem fosse,
ninguém devia dizer palavras tão cruéis e injustas, ainda mais para
o seu próprio sangue.
Richard parecia tão tenso e incomodado com aquilo quanto eu,
os olhos fechados e a mandíbula trincada com força, os punhos
cerrados. Mas nenhum dos dois ousou se mexer. E talvez isso
fizesse de nós pessoas horríveis, mas… eu tinha a impressão de
que Giovanna ficaria ainda mais furiosa se descobrisse que
estávamos ali.
Tornaria tudo ainda mais humilhante.
— Eu sou boa sim — Giovanna falou mais para si mesma,
tentando se manter firme, mas sua voz falhou. Como se estivesse
tentando se convencer mais do que ao tio. Ela piscou, e uma
lágrima escapuliu, caindo pesadamente no chão. — E tudo que eu
fiz foi pra dar continuidade ao legado da família. Eu sou uma
Lombardi. Uma família de vencedores. O senhor mesmo vive
dizendo isso.
O diretor lançou a ela um olhar que era um misto de desprezo e
decepção.
— Infelizmente, nem todos os Lombardi nasceram pra ser
vencedores. — Olhou para o chão, os olhos ficando pesados e…
carregados de culpa? — Talvez você tenha puxado esse lado da
família, Giovanna. E por mais que tente… já basta. Eu devia ter
aprendido com o meu erro da primeira vez. Mas talvez não seja
tarde demais pra acabar com isso. Antes que a história se repita e
mais alguém se machuque — concluiu e deu as costas, deixando
Giovanna ali parada enquanto se afastava.
— Como assim? — a sobrinha perguntou, no entanto, trincando
os dentes. — O que quer dizer com já basta?
— Você tá fora do concurso — o diretor falou simplesmente,
sem se virar para ela. E continuou andando até sumir de vista.

ʄʅ
“Ele não devia ter feito aquilo”, li na notificação no
meu celular. Era uma mensagem de Richard.
Olhei ao redor, principalmente para a professora de matemática
na frente da sala, me assegurando de que ninguém prestava
atenção em mim, e puxei o aparelho debaixo da carteira.
“Eu sei”, mandei de volta. “Apesar de tudo que
Giovanna já fez pra me prejudicar, também não
achei justo com ela.”
“Eu devia ter interrompido aquilo. Devia ter
feito alguma coisa.”
Levei algum tempo pra responder.
“Pela amizade que vocês já tiveram um dia?”
Dessa vez, foi ele que levou um tempo para responder.
“Algo do tipo.”
“Você não podia ter feito nada. Acho que, mais
cedo ou mais tarde, eles acabariam tendo aquela
conversa. Giovanna fez muita coisa ruim desde que
o concurso começou… Alguma hora isso ia
acontecer.”
Mais alguns minutos de espera antes da resposta chegar.
“A Giovanna que eu conheci não fazia nada
disso. Não consigo entender em que ponto as coisas
desandaram tanto pra ela.”
Bom, eu podia fazer uma ideia. Carregar o fardo de uma família
de vencedores nas costas não devia ser fácil. Não justificava as
crueldades dela, mas ainda assim…
“Acho que ela sofre muita pressão da família
pra ser a melhor em tudo.”
“Como o tio dela sofreu do primo?”
“Talvez até pior.”
“Mas eu não entendo uma coisa: se Vougan não
ligava pro histórico da família no concurso… se
odiava a pressão que botavam em cima dele e tinha
medo do que podia acontecer por causa disso… por
que agora faz a mesma coisa com a sobrinha?”
Bom, era uma ótima pergunta. Uma que eu torcia para ter a
resposta no diário de Aurora, mas ainda não tinha continuado a ler
de onde eu e Richard paramos juntos na semana anterior.
E, como se lesse a minha mente, ele acrescentou:
“Você ainda não terminou de ler, né?”
“Não”, comecei a digitar. “Fiquei ocupada com o
trabalho, e no tempo livre eu…” Parei.
No tempo livre eu alternei minhas horas entre agonizar com o
resultado da segunda seleção e mandar alguns currículos caso o
pior acontecesse. Mas não queria que Richard soubesse de nada
disso agora, não até saber se meu nome estava ou não na lista de
aprovados para a seleção final.
Apaguei tudo e, com mais um olhar pela sala, digitei de novo.
“Vou terminar hoje. Eu te aviso se descobrir
alguma coisa.”
“Podemos ler juntos no almoço se quiser.”
Considerei por um momento, mas fiz uma careta.
“Minha próxima aula é filosofia. Entre Aurora
e… seja lá qual for o grande e chato pensador que
estamos vendo agora, Platão, Sócrates ou
Aristóteles… Terminar o diário vai ser a minha
salvação.”
Eu quase pude ver o sorriso de Richard quando ele mandou:
“A santíssima trindade dos filósofos ficou
muito magoada agora.”
“A santíssima trindade dos filósofos diminui
minha vontade de viver por 50 minutos inteiros.”
“Pobre Jujubinha”, Richard mandou de volta com um emoji
de coração partido.
Revirei olhos com um sorriso contido, na mesma hora que o
sinal de troca de aula tocou. Mandei um “Tchau, bobão” com um
emoji mostrando a língua e guardei o celular na mochila, trocando
pelo diário.
O professor de filosofia entrou na sala, um senhor barrigudo de
semblante cansado, careca e com uma barba desgrenhada enorme,
e não consegui deixar de pensar que ele se parecia muito com um
daqueles filósofos dos livros. Ainda mais quando começou a falar e,
automaticamente, meu corpo reagiu com um bocejo tão profundo
que fez meus olhos lacrimejarem.
Eu definitivamente não gostava de filosofia.
Afundei na cadeira, me escondendo dos olhos caídos do
professor, e agarrei o diário, abrindo na página marcada que tinha
parado na semana anterior.
Muito bem, Aurora, pensei, piscando para me livrar da
sonolência. Me surpreenda. Estou pronta pro que vier.
Capítulo 41
Eu não estava pronta coisa nenhuma.
— O que… — Fiquei encarando a última página escrita do
diário, a boca abrindo e fechando igual um peixe. — O que
significa… Não pode ser…
Folheei o restante das poucas páginas em branco que tinham
sobrado. Nada.
Não, não podia ser só aquilo. Não podia ter acabado daquele
jeito. Aurora não podia simplesmente ter deixado as coisas daquele
jeito. O que aconteceu com ela? O que aconteceu com Vougan? O
que é que ela tinha feito, o que tinha acontecido para deixá-la tão
desesperada daquele jeito?
Li e reli o último relato pelo menos vinte vezes. Não fazia
sentido. Não fazia o menor sentido.
Segurei a página com força, esperando um milagre… e reparei
na costura que unia as folhas de papel na lombada. Por toda a
extensão, de cima a baixo… pedacinhos rasgados.
As últimas páginas tinham sido arrancadas.
Um calafrio subiu pela minha espinha. O que quer que tivesse
acontecido naquele dia com certeza tinha a ver com as páginas
arrancadas. E com o que levou o diário até o fundo do depósito. Eu
tinha certeza.
— Julieta, você está prestando atenção? — o professor
perguntou, a voz monótona, e me olhando com cansaço.
— Eu tô passando mal — falei, já me levantando. — Por favor,
eu preciso ir ao banheiro, professor.
Ele apenas suspirou.
— Não consegue esperar? O sinal daqui a pouco vai bater…
— Desculpa, não dá tempo. — Agarrei o diário e a mochila e
corri porta afora sem esperar uma resposta. Podia me dar mal por
isso mais tarde, mas no momento era a última coisa que me
importava.
Disparei pelos corredores até parar em frente à sala do diretor.
Se Aurora não ia me contar o que aconteceu, então eu teria que ir
até uma das fontes de uma vez.
Ergui o punho fechado, pronta para esmurrar a porta… mas
parei no meio caminho. Quando ouvi vozes do lado de dentro.
Abafadas, mas bem nítidas já que parecia que nenhum deles fazia
muita questão de falar baixo.
— Eu avisei que nada disso era uma boa ideia! — a primeira
voz, que reconheci ser do professor De Lucca, falou. — Avisei que
isso iria acontecer! E você, melhor do que ninguém, deveria saber!
— Isso o quê, professor? — o diretor respondeu com um
grunhido. — Não tem nada acontecendo, não tem com o que se
preocupar. Está tudo sob controle.
— Sob controle? Eu não queria acreditar, mas você mesmo
acabou de confessar. Você manipulou o concurso pra Giovanna
conseguir entrar! Jogou pra debaixo do tapete tudo que ela armou
pra prejudicar os outros e puniu dois alunos inocentes no lugar dela!
Chama isso de controle?
— O que eu faço ou deixo de fazer com relação à minha
sobrinha não é da sua conta.
Um estrondo ecoou do outro lado, muito parecido com um
punho esmurrando uma mesa.
— Eu preciso te lembrar que você é a porra do diretor desse
lugar?! — o professor De Lucca explodiu. — As decisões que você
toma não são apenas sobre a Giovanna, elas afetam a porra do
colégio inteiro! Ela prendeu um aluno num depósito! Que mensagem
vai passar pro restante se você não pune o responsável que fez
algo assim?
— Os responsáveis já foram punidos — o diretor insistiu, a voz
dura.
E o professor riu com escárnio.
— Não pense nem por um segundo que qualquer um deles caiu
nessa. Você os subestima, mas esses alunos são muito mais
inteligentes que isso. Todos são. Mas você parece só se importar
em exercer seu poder de diretor — cuspiu.
— Eu já disse… — o diretor falou, fervilhando. — Está tudo sob
controle. Eu já resolvi o problema da Giovanna. Tudo foi resolvido.
— O cacete que foi. Nada vai se resolver enquanto você não
botar nessa sua cabeça que precisa começar a fazer as coisas do
jeito certo, ou esse colégio inteiro vai afundar em merda. E vê se me
escuta da próxima vez, porra. Você sabe melhor do que ninguém
que eu senti na pele como esse inferno todo termina.
Só tive tempo de saltar para o lado antes que o professor De
Lucca abrisse a porta de supetão e marchasse para fora soltando
fumaça pelas orelhas, as mãos tremendo.
O diretor foi atrás dele, igualmente furioso, mas parou quando
me viu plantada ali do lado com os olhos arregalados.
— O que você quer? — sibilou com a voz afiada feito uma
lâmina.
Engoli em seco. Mas dessa vez não me deixei intimidar.
Endireitei os ombros, ergui o queixo e perguntei da forma mais firme
que consegui, indo direto ao ponto:
— Senhor diretor, o que foi que aconteceu entre você e Aurora
Ferrari dez anos atrás?
Em questão de segundos, o rosto do diretor empalideceu feito
uma folha de papel, e ele arregalou os olhos como se tivesse visto
um fantasma. E, olhando ao redor, na direção do professor De
Lucca, me puxou para dentro da sala e fechou a porta com um
estrondo.
— Como você a conhece? — falou entre dentes, me segurando
pelos ombros. — Ela entrou em contato com você? Depois de tanto
tempo, o que é que ela quer agora? Eu mandei que ficasse longe!
Meu queixo caiu e, de repente, esqueci como se falava.
Mandou que ficasse longe? Não… não era isso que eu
esperava ouvir da boca de Vougan.
E percebi, tarde demais, que tinha cometido um erro colossal
indo até ali.
— Desembucha, menina! — O diretor me sacudiu, aproximando
o rosto do meu. — Como você a conhece?
— N-Não conheço — gaguejei, começando a tremer. Giovanna
merecia crédito por conseguir permanecer firme diante daquele
homem sem desmoronar no chão. — Eu s-só ouvi falar d-dela e f-
fiquei curiosa. S-Soube que v-vocês se c-c-conheciam.
— Onde ouviu falar dela? — Aproximou ainda mais o rosto do
meu, estreitando os olhos. E cavei fundo na mente tudo que sabia
sobre Aurora no colégio para poder usar a meu favor. E fugir dali o
mais rápido possível. — Quem foi que abriu a boca sobre ela?!
— N-Ninguém! — choraminguei, minha voz saindo esganiçada.
E, no desespero, a mentira escorregou pela minha língua. — Vi um
trabalho de arranjo dela na biblioteca e queria saber mais, então
perguntei na secretaria.
— Na secretaria? — Os olhos azuis se estreitaram ainda mais,
seus dedos grossos enterrados em meus ombros. — O que foi que
disseram? Quem disse? A Cris? — Seus dentes trincaram.
— Ela não sabia de nada, só que vocês dois estudaram juntos.
Ninguém disse mais nada, senhor, eu juro!
Eu estava a um passo de começar a chorar feito um bebê. Mas
o diretor respirou fundo e, afastando o rosto de mim, me soltou.
Minhas pernas vacilaram e tive que me apoiar contra a porta para
não desabar.
— Ótimo — ele falou, a voz mais controlada. — Então esqueça
esse assunto. — Apoiou uma mão do lado da minha cabeça e
acrescentou, toda a sua postura dura feito granito: — E não volte a
falar dessa moça, nem sequer seu nome, nunca mais. Entendeu?
Assenti freneticamente, incapaz de falar, e saí correndo quando
o diretor voltou a se afastar e abriu a porta.
E tinha acabado de virar no corredor deserto quando alguém
me alcançou por trás e me segurou, tapando minha boca.
— Shhh… por favor, não grita. — Reconheci a voz… do
professor De Lucca, quando me debati e tentei gritar. — Sou eu, fica
calma. Eu não vou fazer nada.
Minha respiração estava descontrolada e meus olhos quase
saltaram das órbitas, mas… me obriguei a me acalmar. E quando
teve certeza de que eu não ia causar um escândalo, o professor
relaxou e me soltou.
— Me desculpa por isso. — Ergueu as mãos trêmulas,
indicando que não ia voltar a me tocar. — Eu não queria te assustar,
mas… eu preciso falar com você, Julieta. Urgente.
Eu ainda ofegava, o coração disparado com tudo que tinha
acontecido, mas consegui controlar a respiração o suficiente para
perguntar:
— Falar sobre o quê?
O professor virou ligeiramente a cabeça para trás, olhando com
cautela na direção da sala do diretor.
— Não aqui. É melhor irmos para a minha sala. Por favor,
confia em mim — acrescentou quando engoli em seco.
Mas dei um passo para trás.
— Com todo o respeito, professor, vai ter que me dar mais
motivos pra isso — balbuciei, tremendo dos pés à cabeça. Tinha
acabado de fugir de alguém que eu achei que, bem, bem no fundo
fosse uma boa pessoa, então por mais que gostasse do professor
De Lucca, dessa vez tomaria mais cuidado.
Ele suspirou, compreendendo e, ainda com as mãos erguidas,
me olhou nos olhos e falou:
— Eu não sei exatamente o que você quer descobrir, mas…
acho que eu posso ajudar.
Pisquei, meu sangue gelando.
— O quê? — Minha voz não passou de um sussurro fraco e
surpreso.
— Confia em mim. — Seus olhos estavam suplicantes. E sua
voz saiu surpreendentemente instável quando acrescentou: — Por
favor.
Aquilo me desarmou. Ele parecia desesperado, o que me
deixou mais em choque ainda. Não fazia a mínima ideia do que
esperar, mas algo dentro de mim formigava, como uma alergia
insuportável. Eu tinha que coçar. Tinha que descobrir o que
aconteceria a seguir. Ainda mais se o que ele dizia sobre me ajudar
era verdade.
Respirei fundo, tentando colocar as emoções no lugar.
— Tudo bem — falei por fim. — Eu confio em você, professor.
Só esperava não estar me metendo em mais uma roubada.

ʄʅ
— Por favor, sente-se — o professor De Lucca falou assim que
fechou a porta atrás de mim.
Me sentei ao mesmo tempo que ele, em sua cadeira atrás da
mesa e, por um momento, ficamos apenas nos encarando de olhos
arregalados.
— O-O senhor disse que tinha algo urgente pra falar —
balbuciei por fim, quebrando o silêncio.
Ele piscou, se recompondo, e cruzou as mãos em cima da
mesa. Mas ao invés de despejar uma enxurrada de informações,
como eu esperava, perguntou tão baixo que eu quase não ouvi:
— Como você a conhece?
Eu sabia de quem ele falava, talvez tivesse escutado a minha
conversa com o diretor. Mas abri a boca… e nada saiu.
— Você a conhece pessoalmente? — o professor insistiu, os
olhos ansiosos. — Tem contato com ela?
Sacudi a cabeça.
— Não. O senhor a conheceu? — Um arrepio de expectativa
percorreu todo o meu corpo assim que pronunciei as palavras.
Sabia que estava perto de descobrir algo grande.
Mas o professor De Lucca apenas soltou uma risada vazia,
quase um lamento. E levou uma mão ao rosto, massageando a
ponte do nariz entre os olhos. Cansado.
— Posso perguntar uma coisa antes? — falou, os olhos
fechados. — Como sabe sobre ela se não a conhece?
Eu não entendia por que todo mundo ali tratava aquele assunto
como algo tão confidencial, quase proibido, mas estava cansada de
tanto mistério. Então apenas peguei a mochila e tirei o diário dali de
dentro… mas não o entreguei.
— Achei isso num dos depósitos do colégio. É o…
— O diário dela — o professor sussurrou, assombrado,
encarando o objeto em minhas mãos. — No depósito, você disse?
Ele esteve aqui esse tempo todo?
Pisquei, confusa. Não com a pergunta, mas… a maneira como
o professor olhava para o diário… um olhar incrédulo e em choque,
mas também… quase nostálgico.
Abri a boca mais uma vez e, de novo, nada saiu. Quase podia
ouvir as engrenagens do meu cérebro, girando e soltando fumaça,
conforme o pensamento ia tomando forma.
O professor se inclinou levemente na minha direção, sem
desviar os olhos do diário e, esticando uma mão, perguntou num fio
de voz:
— Posso ver?
Apenas o encarei, boquiaberta, e afrouxei os dedos ao redor do
diário. Ele tomou isso como um encorajamento e o pegou com
cuidado, os olhos brilhando como se tivesse acabado de descobrir
um baú do tesouro.
Começou a folheá-lo, passando por desenhos, colagens e
rabiscos em lápis de cor e canetinha, cada um de acordo com a
inspiração e o humor do dia de Aurora.
Lentamente, ele sorriu. Não um sorriso feliz, mas um que eu
reconheceria em qualquer lugar: um sorriso saudoso. O mesmo que
eu via em mim mesma quando olhava fotografias antigas da minha
mãe.
— Professor De Lucca… — sussurrei, mal ousando respirar.
Mas ele não pareceu me ouvir e apenas continuou folheando com
cuidado… até que parou em uma página com uma embalagem
colada. Uma embalagem de chocolate cor-de-rosa. E lágrimas
encheram seus olhos azuis.
Não qualquer tom de azul, me dei conta de repente. Azul-
cinzentos.
Ah, meu Deus.
— Vougan? — chamei, mas meu coração batia tão alto e
disparado que eu não sabia se minha voz tinha saído.
Mas ele piscou, arqueando levemente as sobrancelhas.
— Sim? — Encarou o diário por mais alguns segundos antes de
finalmente me olhar.
Quase pude ouvir o som da última peça se encaixando dentro
do meu cérebro. E meu queixo caiu.
Palavras não podiam descrever o tamanho do meu choque. E
por mais que eu não fosse muito adepta de palavrões, apenas uma
coisa chegou perto o suficiente de expressar o que eu sentia
naquele momento.
PUTA MERDA!
Capítulo 42
— Era você? — falei, mas minha voz não passou de um
sussurro. — Esse tempo todo… era você?
Encarei bem o professor De Lucca, agora com novos olhos. O
cabelo castanho-escuro ondulado, as pintinhas ao redor do nariz…
os olhos de um azul pálido, quase cinza… ele era o Vougan escrito.
Tudo bem, no geral eu me considerava uma pessoa inteligente,
mas confesso que fui bem burra por ter demorado tanto pra
enxergar algo tão óbvio.
Ele não falou nada por um tempo, apenas olhou de mim para o
diário e de volta para mim. E pareceu entender.
— Você não achou que meu nome de verdade fosse De Lucca,
né?
Não, eu não achava, mas com certeza também não esperava
aquilo.
— Mas… — Busquei na memória. — Achei que o sobrenome
da sua família fosse Lombardi. A família de vencedores ou sei lá o
quê. É o sobrenome da Giovanna. E do diretor. — Meu cérebro
estalou mais uma vez, e arregalei ainda mais os olhos com horror.
— Vocês são parentes?
Lentamente, o professor… Vougan pousou o diário em cima da
mesa e, respirando fundo, se recostou na cadeira.
— Sim — começou a explicar. — O sobrenome da minha
família é Lombardi. Eu sou um Lombardi. Mas uso o sobrenome da
minha mãe, meu nome do meio, justamente pra evitar que me
associem… — fez uma careta — ao restante da minha família. Pelo
menos aqui, onde todo mundo faz questão de ficar repetindo isso. E,
sim… — Suspirou profundamente. — Por incrível que pareça… o
diretor e eu somos parentes. Ele é meu primo.
Eu podia muito bem ter levado um tapa na cara.
— Vinícius?! O babaca que ameaçou Aurora?
Tudo bem, associar a imagem dele com a do diretor foi muito
mais fácil que a de Vougan, mas ainda assim…
— Babaca? — o professor repetiu, arqueando uma sobrancelha
de forma sugestiva. E soltou uma risada fraca. — Você fala igual a
ela. E como funcionário eu não devia concordar, mas sim, ele
realmente é um babaca. Mas deixa eu ver se entendi: você
encontrou isso — tocou a capa encouraçada do diário com o dedo
— em um depósito, e começou a ler? Foi assim que… — hesitou,
sua garganta vacilando — a conheceu?
Assenti.
— Eu queria saber como o diário foi parar lá.
— E descobriu? — perguntou com cautela. Com expectativa.
Sacudi a cabeça, baixando o olhar.
— Desculpa.
O professor sacudiu a cabeça em dispensa, se recompondo, e
voltou a pegar o diário. Dessa vez ele começou a ler algumas
passagens, um sorriso discreto curvando os cantos da sua boca
enquanto seus olhos corriam, nostálgicos, pela caligrafia de Aurora.
— Eu sabia que ela escrevia sobre mim aqui — falou baixinho.
— Mas não imaginei que… tivesse tantos detalhes. — Soltou uma
risada. — Ela ficou muito brava comigo quando eu a obriguei a pular
a cerca de arame da quadra.
Eu ainda tinha tanta coisa pra perguntar, mas vendo aquilo,
vendo o próprio Vougan na minha frente, lendo o diário de Aurora…
não consegui reagir. E fiquei apenas observando, maravilhada e
sem palavras, conforme ele avançava pelas páginas.
Até que parou, os olhos arregalados, e me encarou, corando do
pescoço até as orelhas.
— Você leu tudo?
— Ah… — Olhei de relance para a página que ele tinha parado.
E entendi seu nervosismo porque meu próprio rosto ferveu de
vergonha. Era uma das vezes em que ele e Aurora tinham… —
Quer mesmo que eu responda isso?
Ele apenas virou a página, o barulho ríspido cortando o ar junto
com o climão que tinha se formado.
— Vocês… ainda mantêm contato? — perguntei com cuidado,
julgando que era um bom momento para começar a saciar minhas
dúvidas.
Ele desviou os olhos das páginas mais uma vez, mas não olhou
para mim. Apenas encarou um ponto à sua frente, sem parecer
enxergar de fato. Até que fechou os olhos e respirou fundo.
— Não — falou baixinho.
— O que aconteceu? — sussurrei, incerta se ele me contaria, e
com medo da resposta.
O professor De Lucca apertou mais os olhos fechados, os
lábios contraídos, e falou com dificuldade:
— Ela… foi embora.
Pisquei, atônita.
Embora? Aurora? A mesma Aurora que prometeu a Vougan
que sempre estaria ao seu lado? A mesma Aurora que se agarrou
àquela lenda sobre o fio do destino como se fosse sua âncora?
Tinha simplesmente ido embora? Não. Não podia ser.
— Por quê? — perguntei, mas saiu mais como um pedido
desesperado.
O professor abriu os olhos e falou com uma voz completamente
vazia:
— Eu não sei. Quando acordei… — encarou as próprias mãos,
as cicatrizes que as cobriam até pouco abaixo dos pulsos — ela já
tinha ido.
Quando ele acordou?
Peguei o diário com cuidado e abri a última página, aquele
relato curto, vago e desesperado.
— O que houve nesse dia, professor? — Voltei a apoiar o diário
à sua frente. — Ela deu a entender que algo ruim aconteceu.
Ele não tocou no diário, apenas baixou os olhos para as
palavras escritas às pressas, lendo sem prestar muita atenção… e
fixou o olhar na data.
— Foi no dia da seleção final — murmurou. — Eu… sofri um
acidente.
Meu coração parou por um segundo.
— Acidente?
— Tinha um painel grosso de vidro no pé da escada na
época… com o símbolo da escola.
Cavei na memória, procurando a informação… sim, Aurora
tinha comentado desse painel. Clarice estava chorando ao lado dele
nas escadas quando elas se conheceram.
Mas eu nunca vi nada do tipo desde que cheguei no colégio.
Os pelos na minha nuca se eriçaram em antecipação ao que
ele estava prestes a dizer.
— Depois da apresentação… eu estava procurando por ela, e
fui na direção da secretaria. Mas tropecei quando estava descendo
as escadas e… — Engoliu com dificuldade e fechou os dedos
trêmulos com força. — Acordei no hospital com um braço quebrado
e as duas mãos enfaixadas. Fiquei lá por quase dois meses até me
recuperar da cirurgia, e os cortes mais fundos cicatrizarem. — Fez
uma pausa antes de concluir: — Eu nunca mais consegui tocar
depois disso.
Olhei suas mãos com atenção. As cicatrizes eram brutais. E
não consegui me recordar de nenhum momento em que suas mãos
não estivessem tremendo desde que o conheci.
Não era tremedeira, me dei conta. Eram espasmos. Espasmos
involuntários, provavelmente uma sequela permanente do acidente.
Meu coração afundou dentro do peito. Aquele Vougan
apaixonado por música, que gostava de tocar pelos mesmos
motivos que eu — puro prazer e alegria —, não existia mais. Não
porque não queria. Ele não podia. Não conseguia mais.
— E a Aurora? — perguntei num fio de voz, meus olhos
pinicando.
Ele também voltou a encarar as mãos.
— Ela nunca foi me ver. E eu não conseguia ligar ou mandar
mensagem porque meu celular também foi destruído no acidente.
Quando recebi alta, a primeira coisa que fiz foi ir até a casa dela.
Mas… não tinha mais ninguém lá. Tinham ido embora.
— Pra onde?
O professor soltou uma risada fraca e sem humor.
— Pra onde mais? Paris, é claro.
Levei um minuto para processar a informação. E meus olhos se
arregalaram com espanto.
— Ela venceu o concurso? Participou da seleção final… e
venceu?
— Venceu. — Voltou a encarar o diário, daquele jeito vítreo e
vazio. — E eu nunca mais a vi desde então. Não faço ideia de onde
qualquer um deles está agora. Não importa o quanto eu procure…
não consigo encontrá-la. — Uma sombra encobriu seu rosto, e os
olhos azuis ficaram carregados. Carregados de dor e mágoa.
Arquejei de leve, compreendendo.
— Ainda gosta dela.
Ele não falou nada. Mas foi confirmação o suficiente.
— Depois de todo esse tempo? — sussurrei baixinho.
Os olhos azuis finalmente me encararam, ainda carregados
daqueles sentimentos que faziam meu peito apertar, e sussurrou de
volta com um meio sorriso dolorido:
— Sempre.
Uma década. Foi o tempo que os dois ficaram separados, e o
professor De Lucca, Vougan, ainda gostava da Aurora. Mesmo sem
ter notícias, mesmo sem ter a mínima ideia de onde ela estava
agora. Mesmo depois de dez anos.
— Precisamos encontrá-la — falei, o coração disparado. —
Professor, temos que dar um jeito de encontrá-la. O senhor não
pode desistir.
— Julieta… — ele começou, e eu sabia muito bem o discurso
que estava prestes a vir.
Eu já tentei de tudo… Ela provavelmente não quer ser
encontrada… É melhor deixar isso pra lá…
— Eu não vou desistir, professor — falei com firmeza. — Muita
coisa ainda não faz sentido. Como o diário foi parar no depósito? O
que a fez mudar de ideia e participar do concurso mesmo depois de
ser encurralada daquela forma pelo Vinícius? Por que foi embora
sem mais nem menos? E por que…
— Peraí, peraí, peraí — o professor me interrompeu, alerta, e
arregalou os olhos como se tivesse visto uma assombração. — O
que foi que você disse? Encurralada pelo Vinícius? — Suas narinas
dilataram, a mandíbula tensa. — O que quer dizer com isso?
Pisquei, fechando a boca. O professor estava com aquele olhar
raro, porém mortal, de uma bomba prestes a explodir.
Baixei o olhar lentamente até o diário e apenas estiquei a mão,
voltando algumas páginas sem ousar tirá-lo do lugar. O professor
acompanhou meus movimentos, e começou a ler assim que parei
na data indicada.
E me afastei até afundar na cadeira, encolhendo os ombros.
— Ele fez o quê?! — Seus olhos estavam injetados de raiva. —
Vinícius... aquele filho da… — grunhiu entre dentes, os dedos
apertando a capa de couro com força. Mas piscou, em choque,
conforme continuava a leitura. — Crise de asma? — balbuciou, e
uma série de sentimentos cruzou seu rosto ao mesmo tempo:
pânico pela descoberta, medo ao imaginar a cena, confusão por
nunca ter sabido de nada daquilo… — Então é por isso que ela tava
tão estranha naquele dia... Por que não me contou?
Comprimi os lábios, sem saber o que dizer. Se ele pelo menos
soubesse de qualquer coisa sobre seu paradeiro, poderíamos
perguntar a ela pessoalmente.
— O senhor não teve mesmo nenhuma notícia dela durante
todos esses anos? — insisti. — Nem uma só?
— Não, notícia não. — Fechou o diário e voltou a esfregar os
olhos, suspirando profundamente. — Só suposições.
Franzi o cenho.
— Como assim?
O professor levou alguns segundos, mas pegou o notebook na
lateral da mesa e, com alguns cliques, uma música começou a
tocar. Era um arranjo para quarteto de cordas. E um muito bom, eu
tinha que admitir.
— Preste atenção agora. — Ergueu um dedo, esperando. Até
que a viola e o violoncelo fizeram uma série de escalas
impressionantes enquanto os violinos seguravam a harmonia.
— Incrível — sussurrei, maravilhada.
Ele assentiu e pausou a música. Com mais alguns cliques,
começou a digitar e, assim que a página abriu, virou a tela para
mim.
— Agora veja isso. — Deu play no vídeo, onde uma orquestra
tocava um arranjo de uma música popular. Após o refrão, consegui
identificar o mesmo padrão de escalas do arranjo anterior.
— São muito parecidos — admiti.
— Sim. — Me olhou de forma sugestiva. — Quase como se
tivessem sido feitos pela mesma pessoa, não é?
— Acha que foi ela?
— Acho. O primeiro arranjo veio dos registros de antigos
trabalhos do conservatório. Da aluna Aurora Ferrari. O segundo…
foi reproduzido por uma orquestra nacional no começo do ano. Um
concerto gratuito com um repertório inteiro de músicas populares
famosas, pra comemorar sua volta aos palcos. Todos os arranjos
possuem uma mesma assinatura: uma empresa chamada Petite
Fraise Production.
— O que significa?
Os cantos de sua boca subiram. Mas ele desviou o assunto.
— Entrei em contato com essa empresa assim que me dei
conta, mas a única resposta que recebo é um e-mail automático
padrão com informações sobre orçamentos e coisas do tipo. Sem
nome, telefone ou qualquer outra possibilidade de contato. Mas os
arranjos fizeram sucesso — riu, sem humor. — Depois dessa
apresentação… — indicou o vídeo — várias orquestras do país
agora apresentam os trabalhos dela.
Outro beco sem saída.
Suspirei, frustrada.
— Tem que ter um jeito… — murmurei, mordendo o lábio
enquanto quebrava a cabeça, meus olhos grudados no vídeo à
minha frente.
Até que reparei. No maestro jovem e ruivo que conduzia a
orquestra com perfeição.
Meu queixo despencou mais uma vez.
— Professor… — balbuciei, os olhos arregalados — o senhor
acha que o pessoal dessa orquestra pode ter falado com ela
diretamente? Pra assinar um contrato e coisas do tipo?
— Talvez. Eu tentei falar com eles também, mas são muito
rigorosos com o sigilo. Não me deram nada além do endereço de e-
mail que eu já tenho. Por quê?
Encarei seus olhos azuis, que me observavam com atenção.
— Acho que eu conheço alguém que pode ajudar.

ʄʅ
Apenas quinze minutos depois, eu e o professor De Lucca
disparamos pelos corredores.
— Demétrio, você tem certeza de que esse é o endereço certo?
— ofeguei com o celular colado na orelha enquanto corria.
Assim que me dei conta de qual era a orquestra no vídeo, liguei
para o velho maestro, que não precisou de muitas explicações para
concordar quase que imediatamente em me ajudar. Eu sabia que
ele era muito amigo do diretor da Orquestra Filarmônica Conducto e
que não negariam um pedido dele, então implorei que conseguisse
qualquer informação que pudesse sobre Aurora.
Mas o que ele descobriu era uma verdadeira mina de ouro.
— Claro que sim, o próprio Cláudio me mandou por mensagem
— ele respondeu. — Não tem como estar errado, essa moça mora
mesmo lá.
Eu ainda não conseguia acreditar. Era tão perto que parecia ser
piada.
— Pelo que eu entendi… — Demétrio continuou — ela voltou
pro país não tem muito tempo, e estava procurando um lugar pra
morar. A recomendação do apartamento veio do próprio Martin, o
maestro da Conducto, que sabia que um de seus vizinhos estava
alugando o imóvel.
— Demétrio, você não faz ideia de como salvou a minha vida.
— Chegamos na secretaria e corremos para o lado de fora, até o
estacionamento ao lado do colégio. — Você é incrível, fico te
devendo uma!
— Você não me deve nada, menina — falou, e eu quase podia
ver seu sorriso. — Mas se quiser mesmo fazer algo por mim, por
favor, me conte como essa história termina assim que falar com
essa moça, sim? Adoro um bom drama musical.
Não consegui segurar a risada.
— Pode deixar. — Chegamos ao carro do professor De Lucca e
saltei para o banco do carona. — Torça por mim!
— Meus dedos estão sempre cruzados por você, Julieta —
falou com carinho antes de desligar.
— Pra onde? — o professor falou, tão ansioso quanto eu,
ligando o carro e dando ré. O volante era adaptado, reparei, com um
pomo giratório repleto de botões, que permitiam ativar todos os
comandos do carro sem precisar soltar o dispositivo e dirigir com
firmeza e segurança.
Coloquei o endereço no GPS, e o professor De Lucca, Vougan
em pessoa, pisou fundo no acelerador.
Em direção à capital. Aurora estava morando na capital!

ʄʅ
O relógio bateu onze horas da manhã quando o carro parou em
frente ao prédio alto, localizado perto de uma praça enorme com um
lago no centro. Descemos do veículo, analisando o ambiente ao
nosso redor.
O prédio era grande e bonito, bem conservado, mas dava pra
ver que era antigo. E não tinha portaria, o que considerei ser um
ponto a nosso favor. Ninguém tentaria nos impedir de entrar. Só
tínhamos que pensar em um jeito de conseguir fazer isso.
Me aproximei do painel de botões ao lado das enormes portas-
duplas de vidro, protegidas por um portão de ferro. Eram interfones,
cada um indicando o número do apartamento correspondente. O de
Aurora era o número 43, no quarto andar.
— Ela não vai liberar a entrada se descobrir o que viemos fazer
aqui, né? — falei.
— Não. — O professor parou ao meu lado, olhando para o alto.
Provavelmente procurando a janela de Aurora. — Mas eu tenho
uma ideia.
— O que você vai… — Não tive tempo de concluir a pergunta.
Porque o professor De Lucca se aproximou do painel e apertou um
dos botões, um som agudinho e mecânico de telefone ecoando da
saída de som.
— Quem é? — um garoto atendeu.
— iFood — o professor falou na cara dura.
Sério, aquele era o plano dele? Não tinha como dar…
— Ah, a vizinha voltou, é? — O garoto bufou. — Vai começar a
chuva de delivery. Olha, aqui é o 34, tá bom? O apartamento dela é
o 33, mas pode entrar. — O sinal de liberação soou e o portão de
ferro abriu. — Diz pra ela aprender a cozinhar de uma vez, ou pelo
menos passar o número certo quando for pedir. E toma cuidado com
o velhote do andar de baixo, seu Manoel. Se ver qualquer
entregador zanzando por aí, ele vai te ameaçar com a bengala.
Encarei o professor, boquiaberta. Ele apenas exibiu aquele
sorrisinho astuto e empurrou a porta de vidro, me dando passagem.
Não topamos com nenhum velhote de bengala no caminho até
o elevador, ainda bem, e subimos direto para o quarto andar. O
número 43 ficava no final do corredor.
Paramos a alguns passos da porta e, engolindo em seco, me
virei para o professor.
— Quer fazer as honras? — Forcei um sorriso.
Mas ele nem se mexeu. Apenas ficou olhando a porta mais à
frente, a respiração pesada.
— Ela vai surtar quando me ver aqui. E não de um jeito bom.
— Sei que não a conheço tão bem, mas tenho certeza que a
Aurora do diário não ficaria brava por te ver.
Ele finalmente se virou para mim, os olhos arregalados de
ansiedade. Tão vulnerável...
E naquele momento eu não via mais o professor De Lucca,
apenas… o Vougan.
— Já se passaram dez anos. E se ela não for mais a Aurora do
diário?
Ponderei por um momento.
— O fio pode ficar cheio de nós… — recitei, olhando em seus
olhos — pode enroscar, puxar e se esticar por quilômetros,
mas nunca vai arrebentar. Não é?
Devagar, um sorriso brotou nos cantos da sua boca, e sua
expressão suavizou.
— Acho que sim.
— Eu posso ir primeiro, se quiser. Sabe… preparar o terreno.
Dessa vez ele riu.
— Eu agradeceria. Diminuiria minhas chances de ser
arremessado pela janela.
Abri um sorriso também e cruzei a distância até a porta. O
professor veio atrás e se posicionou contra a parede ao lado,
assentindo para mim. Me encorajando.
Respirei fundo, ergui a mão e toquei a campainha, sem me
permitir pensar muito.
Passos abafados do lado de dentro se aproximaram, e vi a
sombra de pés pela fresta. A chave na fechadura girou devagar e
prendi o ar quando a porta se abriu, meu coração ameaçando sair
pela boca...
E o mundo inteiro parou ao meu redor quando a figura do outro
lado apareceu.
Aurora estava bem na minha frente. E ela era exatamente como
eu tinha imaginado!
Com traços mais maduros que a identificavam com uma adulta
agora, claro, mas… o cabelo castanho cacheado que caía na altura
do peito, os olhos como se fossem chocolate ao leite, as
sobrancelhas bem desenhadas e o nariz arrebitado… até mesmo a
mecha cor-de-rosa única que ela tinha mantido, presa atrás da
orelha.
— Pois não? — perguntou, me olhando com uma sobrancelha
arqueada. E ao ouvir sua voz, ainda fora do seu campo de visão, o
professor De Lucca enrijeceu.
— Ah… Oi. Meu nome é Julieta. Eu… Eu queria… — Engoli em
seco e puxei a mochila nas minhas costas, abrindo o zíper. — Eu só
queria devolver isso. — Estendi o diário.
Aurora olhou do meu rosto para as minhas mãos, devagar e
confusa, e num primeiro momento não reconheceu o diário. Mas vi
quando a compreensão a atingiu com tudo, seus olhos se
arregalando e o rosto ficando pálido.
— Como você achou? — falou, sua voz mal saindo, e o pegou
nas mãos. — O que… — Voltou a me encarar, em completo choque.
— Quem é você? — Fixou os olhos no meu uniforme, no símbolo da
escola estampado ali. E empalideceu mais. — O que significa isso?
— Estávamos te procurando — o professor De Lucca falou por
fim, saindo do seu esconderijo e parando bem atrás de mim, as
mãos enfiadas nos bolsos. — Você não facilitou nada.
Aurora o encarou, a expressão assombrada… e, se é que era
possível, todo o seu sangue esvaiu do seu rosto de vez.
— Ah, meu Deus... — sussurrou, tão baixo que eu quase não
ouvi. — Vougan?
Olhei para cima por cima do ombro, para o rosto do professor.
Ele também estava nervoso, mas respirou fundo e esboçou aquele
sorriso que, várias vezes, foi catalogado nas páginas do diário como
cafajeste.
— Também senti sua falta. — Os olhos azuis brilharam,
predatórios. — Moranguinho.
Capítulo 43
Eu apenas alternava o olhar de um para outro, boquiaberta e
com os olhos brilhando. Era como ver os personagens de um livro
ganhando vida bem na minha frente.
— Como me acharam? — Aurora sussurrou, fechando a porta
atrás de nós.
O apartamento era simples, mas muito bonito. As paredes de
cor creme combinavam com os móveis, de vários tons diferentes de
marrom. Porta-retratos de vários tamanhos estavam espalhados por
cada prateleira, rack ou qualquer outro canto disponível. Mas o que
chamava mais atenção ali com certeza era a enorme harpa dourada
posicionada ao lado das portas abertas da sacada, com uma vista
de tirar o fôlego do parque, o lago azul refletindo os raios de sol.
O professor De Lucca também olhava o lugar com atenção,
principalmente as fotografias. Como se procurasse alguma coisa
específica.
— Bom, agradeça à sua amiga insistente aqui — falou,
apontando com o queixo para mim conforme parava no centro da
sala de estar, e se virava para ela. — Foi ela que conseguiu seu
endereço.
Me encolhi diante da palavra. Amiga.
Sim, eu tinha desenvolvido um carinho enorme por Aurora
enquanto lia seu diário e, no meu íntimo, a considerava mesmo uma
amiga. Mas ela não fazia a mínima ideia de quem eu era, e seu
olhar confuso e levemente desconfiado fixo em mim só reforçava
isso.
— Desculpa — falei, corando e com as sobrancelhas franzidas.
— Eu não queria incomodar, mas é que… eu encontrei o seu diário
lá na escola. Não tinha nenhuma informação de contato pra
conseguir devolver, então… — me encolhi mais ainda — eu li.
Eu esperava um chilique nervoso por ter me intrometido em
algo tão íntimo e particular, mas a única reação de Aurora foi piscar
uma vez. E voltar a encarar o professor, a respiração
descompassada.
— Não deveria estar aqui — falou baixinho, e sacudiu a cabeça
de leve. — Depois de tanto tempo… o que você quer?
Ele apenas voltou a sorrir daquele jeito.
— Não se preocupe comigo por enquanto. Acho que a Julieta
ainda tem muita coisa pra dizer.
Os olhos castanhos voltaram para mim, cautelosos. E tive que
engolir um caroço na boca da garganta, meus dedos se retorcendo
de nervosismo e ansiedade.
Sim, eu tinha tanta coisa pra falar…
— Você disse que seu nome é Julieta? — Aurora falou por fim.
E suspirou profundamente quando eu assenti. — Obrigada por ter
encontrado o diário. E por ter devolvido. — Apertou a capa de couro
entre os dedos finos, os lábios comprimidos. — Por favor, sente-se.
— Indicou o sofá atrás de nós. E olhou de relance para o professor.
— Vocês dois.
Ela estava claramente desconfortável. Não era pra menos, uma
adolescente desconhecida carregando seu diário e o namorado de
uma década atrás de repente aparecendo em sua porta… até que
ela estava lidando muito bem com aquilo tudo, mas uma aura
melancólica ainda pesava no ambiente.
— Eu só queria agradecer — falei de uma vez assim que me
sentei. — Sei que foi invasão de privacidade, e eu peço mil
desculpas por isso, mas… ler o seu diário… me ajudou muito.
Ela riu de leve, no entanto, se sentando na poltrona ao lado do
sofá. Uma risada vazia.
— Essa era a minha intenção no início, mas… como qualquer
porcaria aqui pode ter ajudado em alguma coisa?
Enrijeci, arregalando os olhos. Porcaria?
Ao meu lado, o professor também ficou imóvel. Porque a
maioria das porcarias escritas no diário o envolviam.
— Você era uma novata na época — falei devagar, tentando
manter a voz firme. — Eu também sou. Entrei no Intermezzo esse
ano. Sei que pra você nada disso pode ter importância depois de
tanto tempo, mas pra mim… suas experiências, o jeito como você
via as coisas… me ajudou em vários momentos. Principalmente
com o concurso.
— Concurso?! — Aurora engasgou, arregalando os olhos. E
voltou a encarar o professor. — Achei que tinham banido essa droga
do conservatório de vez.
— Eu também — ele respondeu, baixo e sério. — Mas foi uma
decisão do diretor.
— Do diretor? — Aurora piscou, confusa. — Quem...
— Se lembra do meu querido primo? — O professor voltou a
exibir um sorrisinho que não chegou aos olhos.
E Aurora trincou os dentes à menção de Vinícius.
— Ele virou diretor? — Bufou com desprezo. — Eu nem deveria
ficar surpresa. Aquele… — Comprimiu os lábios com força, se
segurando, mas eu sabia muito bem qual era a ofensa presa em
seus lábios. — O que é que ele tá pensando? — explodiu, saltando
da poltrona. — Aquele inferno de dez anos atrás não foi o suficiente
pra ele entender que esse concurso é uma péssima ideia?!
Abri a boca, mas o professor foi mais rápido.
— Engraçado você pensar assim — falou com ironia, e apoiou
um tornozelo no joelho enquanto se recostava tranquilamente no
sofá. — Já que você venceu aquele inferno de dez anos atrás e foi
correndo buscar seu prêmio. Nem sequer olhou pra trás. — Seus
olhos adquiriram um brilho afiado. — Nem sequer pensou em quem
deixou pra trás.
Aurora o encarou, em choque. E o clima tenso e pesado que se
formou entre os dois era tanto que ficou quase palpável.
Fiquei imóvel. E, lentamente, mal ousando respirar, fechei a
boca. Era um ótimo momento pra fingir que eu não estava ali.
— Isso não é justo — ela sussurrou, sua mandíbula ficando
tensa. — Não ouse jogar isso na minha cara agora, como se…
— Como se o quê — o professor desafiou, se levantando
também, devagar. — Como se você tivesse ido embora? Como se
não tivesse jogado no lixo tudo que havia entre nós? Como se… —
Hesitou, sua garganta vacilando, mas trincou a mandíbula e forçou
as palavras a saírem. — Como se não tivesse quebrado a sua
promessa?
Por um momento, Aurora apenas piscou, os olhos quase
saltando para fora do rosto conforme o encarava.
Até que…
— Quebrar a promessa? — grunhiu, tentando manter o controle
do temperamento. E falhando. — Quebrar a promessa?! Vai à
merda, Vougan! Não aja como se você fosse um pobre coitado
nessa história toda!
— Pobre coitado? — ele riu, incrédulo. Mas seus olhos voltaram
a faiscar. — Ah, me desculpe se eu não consegui te parabenizar
pela sua grande vitória só porque fui parar na porra do hospital
depois de ter rolado escada abaixo! — Tirou as mãos dos bolsos,
cerrando os punhos com força. — Me desculpe se fiquei internado
por dois meses pra me recuperar de uma droga de cirurgia que
tentou reconstruir a porra dos nervos das minhas mãos!
Num piscar de olhos, a raiva sumiu do rosto de Aurora, dando
lugar ao horror. Ela desviou os olhos arregalados do rosto do
professor, mirando suas mãos… e os globos castanhos se
encheram de lágrimas.
— Eu não sabia que tinha sido grave assim… — sussurrou,
trêmula.
O professor De Lucca riu com escárnio, mas mágoa encobria
seu olhar.
— Como poderia? Você nem se deu ao trabalho de ir ao
hospital. Estava muito ocupada fazendo as malas pra Paris.
Aurora voltou a encará-lo, em choque.
— Claro que eu fui — falou, ofendida. — Por um mês inteiro eu
tentei te ver, Vougan. Mas nunca me deixaram entrar. Você nunca
me deixou entrar.
Um silêncio pesado caiu no ambiente, feito uma âncora. E foi a
vez do professor empalidecer.
— O quê? — murmurou, baixo.
— Eu tentei de tudo. Fui ao hospital todo santo dia, por um
mês, desde o acidente. — Aurora trincou os dentes, as lágrimas
ameaçando cair. — Até que você me mandou embora.
Encarei o professor, boquiaberta. Ele parecia a ponto de
vomitar.
— Não, eu… não fiz nada disso. Eu nem sequer te vi durante o
tempo que fiquei lá. Como poderia te mandar embora?
Aurora expirou pesadamente. Cansada, aparentemente por
dias já, se as olheiras que escureciam seus olhos serviam de algum
indicativo. Talvez tivéssemos chegado em um momento ruim para
ela.
— Disseram que você estava tomando muitos remédios fortes e
não conseguia falar direito. Mas sempre que diziam que eu estava
lá, que queria te ver… você surtava. Não queria me ver de jeito
nenhum, e me mandou ir embora. — Encolheu os ombros, uma
expressão de dor no rosto. — Então eu fui. Não queria… dificultar
ainda mais as coisas pra você.
O professor fez uma careta incrédula, como se aquilo fosse um
absurdo.
— Eu tive que tomar muitos remédios, sim, mas me lembro
perfeitamente de cada mísero segundo que passei naquele lugar.
Ninguém nunca falou sobre você. Quem foi que disse uma coisa
dessas?
Aurora levou um tempo, mas falou por fim:
— Demorou, mas eu consegui convencê-lo a te passar meus
recados. Ele estava lá todos os dias, tão arrasado e desesperado
quanto eu.
— Quem? — o professor insistiu.
— Seu primo.
Tive que me segurar para não começar a gritar de indignação.
Ah, fala sério! Vinícius?!
— Tá de sacanagem?! — o professor explodiu, ecoando meus
sentimentos. — Porra, Aurora, depois de tudo que aconteceu,
depois de tudo que fez, você ainda acreditou nele?
Mas Aurora apenas o encarou, sem se exaltar. Tão cansada...
— Não foi ele, Vougan — falou simplesmente. — Ele me queria
fora do concurso, sim, mas aquela ameaça, o bilhete… — Abraçou
o próprio corpo, encolhendo os ombros. — Eu me enganei. Não foi
ele.
O professor ficou imóvel feito uma estátua.
— O quê? — As palavras saíram engasgadas. — Como assim
não foi ele?
Aurora fechou os olhos, respirando fundo— Você não lembra?
Eu expliquei tudo na carta...
— Que carta? — O professor interrompeu, com uma careta
completamente perdida.
Mas ao invés de responder, Aurora olhou para o diário
esquecido na poltrona… e se virou para mim.
— Você leu ele todo, certo?
Com a respiração pesada, assenti.
— Tudo bem — ela murmurou, suspirando com força, e foi até o
rack sob a TV. Se agachou e abriu o pequeno armário, revirando o
conteúdo lá dentro por alguns segundos. Quando voltou a se erguer,
me estendeu um maço de papéis amassados e de aparência
antiga… idênticos às páginas do diário. — Você deve ter percebido
que as últimas folhas estão faltando. — Os estendeu para mim. —
Foi a única coisa que consegui salvar antes de… perdê-lo.
Peguei os papéis com cuidado, os dedos trêmulos.
— Eu posso? — sussurrei.
Ela deu de ombros.
— Se quiser. Você teve todo o trabalho de vir até aqui pra
entender o que aconteceu, eu imagino. — Indicou os papéis com o
queixo. — Não sei se vai tirar todas as suas dúvidas, mas… acho
que pode explicar muita coisa.
Em choque, me virei para o professor De Lucca. Ele também
encarava o maço de papéis, um misto de surpresa e medo
estampado em seu rosto.
Devagar, ele se aproximou e voltou a sentar do meu lado. Voltei
os olhos para a caligrafia de Aurora, respirando fundo. E, sem saber
o que encontraríamos ali, juntos, eu e o professor começamos a ler.
Capítulo 44
Segunda, 01 de julho
Ok. Acho que agora estou calma o suficiente pra explicar o que
aconteceu. Não, eu não tô bem. Nada ao meu redor está bem. Mas
escrever me ajuda a me acalmar. E distrair a cabeça. Por mais que
as lembranças ainda me assombrem e causem pesadelos horríveis.
Então, aqui vai…
Sexta-feira, dia 28 de junho. Era o dia da seleção final. Eu não
pretendia participar. Não depois do… ultimato de Vinícius.
Parece besteira, já que eu sempre encaro tudo de frente, mas a
verdade é que… eu fiquei com medo. Dele, do que deu a entender
que faria comigo.
Eu fiquei apavorada.
Mas não contei nada disso a Vougan, nem da minha decisão de desistir do concurso.
Não por medo de como reagiria, mas porque ele mesmo disse que não se apresentaria se
eu não me apresentasse também. Então achei melhor manter tudo em segredo, para o seu
próprio bem. Pelo menos um de nós ainda teria chance de vencer.
Então, sim, eu fui pra escola naquele dia e, sim, agi como se nada
tivesse acontecido, cada movimento minimamente calculado para
que Vougan não desconfiasse de nada.
Chegamos juntos, provocamos um ao outro como todos os dias,
seguimos de mãos dadas até o anfiteatro e aguardamos o início da
seleção final.
Susana seria a primeira a se apresentar, depois Vougan e, por
último, eu. O plano era ficar do lado dele até que entrasse no palco,
até que começasse a tocar… até que não tivesse mais volta. E
desaparecer, até que decidissem me desclassificar.
Mas tudo caiu por terra assim que chegou a vez dele.
Susana ainda estava sendo ovacionada pela plateia ao fim de sua
apresentação, e foi quando Vougan se virou para mim com um
sorriso enorme, os dedos entrelaçados nos meus.
“Moranguinho, eu quero dizer uma coisa. Vai ser rápido, então
promete que só vai escutar.”
Pisquei, confusa, mas assenti.
“Tudo bem. Prometo.”
“Eu queria te agradecer. Desde que você chegou, minha vida
virou de ponta-cabeça.”
Fiz uma careta.
“Isso era pra ser um elogio?”
“Falei pra não me interromper.” Me olhou com uma carranca.
“Desculpa.”
“Minha vida era um tédio”, continuou. “Por mais que não
parecesse, todo mundo ao meu redor queria controlar cada segundo
do meu dia. Meu pai, meu primo, até os professores. Todos queriam
que eu seguisse os passos da minha família e me cobravam um
comportamento à altura.” Fez uma careta de desgosto. “Até que
eu… conheci você. Com essa sua personalidade forte e um
temperamento mais forte ainda”, deu risada. “Você não se importava
com regras ou expectativas. Ninguém podia te dizer o que e quando
fazer. Você era… um espírito livre. Espontâneo. E ainda assim…”
Afastou um cacho de cabelo do meu rosto e desceu gentilmente os
dedos pela minha bochecha. “Frágil. Inocente em vários aspectos. E
com um coração enorme.”
Engoli em seco, sem saber como reagir, e o coração disparado
como o de um beija-flor.
Mas Vougan continuou, os olhos tão ternos que eram quase uma
carícia:
“Você me deu coragem pra lutar por aquilo que eu acreditava. Pra lutar por mim, minhas
próprias vontades… e por você.” Sorriu com carinho. “Começamos toda essa loucura como
aliados… uma união muito improvável e com grandes chances de causar uma explosão…”,
deu risada, e não consegui conter o sorriso também. “Mas foi a primeira vez que eu decidi
algo por conta própria. A primeira vez que eu pude escolher. E eu… escolhi você.” Ergueu
a mão até a lateral do meu pescoço, os dedos longos acariciando minha nuca. “Escolhi ir
contra tudo e todo mundo que me dizia pra ficar longe. Escolhi ouvir aquela parte rebelde e
inconsequente de mim que ficava eufórica e parecia uma cadela no cio sempre que te via.”
Dessa vez eu gargalhei.
“Nossa, você é péssimo com elogios.”
Seu sorriso alargou, nem um pouco arrependido e, ao fundo,
Susana já começava a voltar do palco. Vougan seria chamado em
questão de segundos.
“Sei que é uma forma meio bruta de se dizer isso, mas é a
verdade. Mas o que eu realmente quero dizer com tudo isso, é
que…”
Uma voz ecoou das caixas de som, anunciando o próximo
participante. Os dedos de Vougan se enrijeceram no meu pescoço,
mas ele continuou falando mesmo assim:
“Aconteça o que acontecer, eu não vou desistir de lutar por nós.
Nunca.” Olhou para minha boca e esboçou um sorriso trêmulo.
“Somos eu você contra o mundo, não é?”
Borboletas voaram no meu estômago com aquela insinuação.
“Vougan, o que…”, comecei, mas ele não me deixou terminar.
Porque Vougan acabou com a distância entre nós e me beijou,
um beijo rápido e eufórico, mas profundo. Verdadeiro. Como se
quisesse transmitir tudo aquilo que se passava em seu coração
através do toque dos nossos lábios.
E sussurrou com o rosto bem próximo do meu antes de se afastar
e seguir com aquela confiança arrogante de sempre até o palco:
“Eu te amo, Moranguinho.”

Eu te amo. Vougan disse eu te amo.
Não consegui sair do lugar, não consegui mover um músculo sequer enquanto ficava
parada ali como uma estátua, o som do violoncelo de Vougan preenchendo o palco, a
coxia, o anfiteatro inteiro.
Era a primeira vez que um de nós dizia aquelas palavras. Não
que o sentimento já não estivesse ali há dias, semanas, talvez até
meses, mas dizer aquilo em voz alta… ouvir aquelas palavras
saindo de sua boca…
Eu sempre tive a sensação de que Vougan estava se segurando
há tempos. Que as palavras estavam entaladas. Que era só uma
questão de tempo até que ele finalmente explodisse e berrasse
aquilo para Deus e o mundo.
E que ele só se segurava porque queria que eu fosse a primeira a
dizer. Talvez porque não queria me pressionar, talvez porque tinha
medo de como eu reagiria… ou talvez porque queria ter certeza de
que o sentimento era recíproco.
Mas ele finalmente disse. E eu apenas fiquei ali parada, suas
palavras dando voltas e mais voltas na minha cabeça. Não apenas
aquelas três palavras, mas também todo o restante.
Eu sabia que tinha que me mexer, tinha que sumir dali para que o
plano desse certo, mas…
Eu escolhi você. Escolhi ir contra tudo e todo mundo que me
dizia pra ficar longe.
Aconteça o que acontecer, eu não vou desistir de lutar por
nós. Somos eu e você contra o mundo.
Eu te amo.
Cacete, como eu poderia sequer reagir depois daquilo tudo?
E talvez esse tenha sido o meu erro. Porque, se eu
simplesmente tivesse seguido a droga do plano… se eu
simplesmente tivesse me mexido e saído dali… a merda que veio a
seguir não teria acontecido.
“Você é corajosa, eu tenho que admitir”, Susana falou, baixo,
parando ao meu lado e cruzando os braços atrás das costas.
“Aparecer aqui depois ter sido explicitamente ameaçada… não é pra
qualquer um.”
A encarei pelo canto do olho. Seus olhos inexpressivos estavam
fixos na figura de Vougan no palco.
“Não sabia que isso era da sua conta”, falei, também
inexpressiva.
O canto de sua boca subiu de leve.
“Sabe, desde a primeira vez que eu te vi, no dia da inscrição, tive
um pressentimento de que você ia me dar trabalho. Mas você não
passava de uma novata nervosinha que deu sorte, então não me
preocupei muito. Uma hora ou outra você sairia do caminho por
conta própria, então foquei nos participantes que realmente eram
habilidosos.” Se virou ligeiramente para mim, os olhos turquesa me
olhando com atenção. “Mas acho que talvez esse tenha sido o meu
erro. Eu te subestimei.”
Fiquei imóvel, alerta. E, franzindo o cenho enquanto me virava
lentamente para ela, perguntei:
“Do que tá falando?”
“Você não é só nervosinha”, continuou, me ignorando. “Também é
teimosa, insistente… e surpreendentemente boa na harpa. Sim, o
meu maior erro foi te subestimar. Devia ter me livrado de você de
uma vez enquanto tive chance.”
Pisquei, boquiaberta. E saltei para trás, me afastando dela.
“Foi você. Aquele bilhete… o tempo inteiro foi você! Não o
Vinícius, como me convenceu a acreditar.”
Não que ele fosse inocente, mas então foi por isso que Vinícius pareceu confuso
quando mencionei a ameaça por escrito no dia que ele me encurralou. Era um babaca,
sim, e também me queria fora do concurso, mas…
Aparentemente, eu estava sendo ameaçada por duas pessoas
diferentes. Que ótimo.
Susana riu com escárnio.
“Você já tinha tanta certeza de que era ele, eu nem precisei de
muito esforço pra tirar o meu da reta. Só dei o empurrãozinho que
faltava.”
Eu sabia. Sabia que ela não era apenas a metidinha convencida
que todos acreditavam que fosse. Mas também devia ter prestado
mais atenção.
Não cometeria o mesmo erro de novo, no entanto. Começando
pelo que ela mesma tinha acabado de confessar.
“E como, exatamente, você focou nos outros participantes? A
não ser que…” Minha mente deu um estalo. “Foi você que prendeu
Marcus no depósito na segunda seleção.”
“Culpada.” Susana sorriu, triunfante. “Se bem que não posso levar
todo o crédito por isso, eu não teria conseguido sozinha.”
“Quem te ajudou?”
Ela deu de ombros.
“Não importa. Eu consegui o que queria. Menos um inconveniente
no meu caminho.”
“E Sarah? Foi Marcus quem a desestabilizou, mas isso também
fazia parte do seu plano?”
“Garotos são tão fáceis de manipular!”, ela riu com gosto, o cabelo castanho-
avermelhado escorregando pelo ombro. “Uma piscadela aqui, um sorrisinho ali e, pronto,
eles comem na palma da sua mão. Apesar das aparências, Marcus é tão influenciável que,
com apenas uma conversa, acreditou fielmente que a ideia de enganar a Sarah tinha sido
toda dele.” Riu mais uma vez com a lembrança. “Você devia ter visto a cara dele quando se
deu conta de que realmente tinha começado a gostar dela. Já era tarde demais, óbvio,
mas… patético, pra variar.”
“E Vougan? O que te faz pensar que ele não tem capacidade de
vencer? Planejou algo pra ele também?”
Ela sorriu feito uma cobra.
“Isso depende inteiramente de você. Vocês formam um casal tão
bonitinho… Ele faria qualquer coisa pra te proteger, né? Até mesmo
renunciar o prêmio. E você também faria de tudo pra deixá-lo fora
disso, imagino. Então, se não for uma boa menina, eu terei o prazer
de acertar os dois coelhinhos com uma cajadada só. Mirando em
um, me livro automaticamente do outro.”
Cerrei os punhos, fervilhando, mas me forcei a manter o controle
do temperamento.
“O que você ganha com isso? Você é realmente tão ambiciosa e superficial que vencer
por pura trapaça vale a pena? Ganhar o prêmio dessa forma não tem valor nenhum. Você
não ganha porque é a melhor, mas porque é tão insegura com as próprias habilidades que
precisa jogar sujo e passar por cima de todo mundo. Você tá mesmo tão desesperada
assim?”
O sorriso de Susana sumiu, e sua expressão ficou tão fria quanto
uma nevasca.
“Eu não espero que você entenda. Apesar de já ter dito uma vez
que eu sou capaz de tudo por aquele que amo. Achei que isso tinha
ficado claro.”
A encarei, incrédula.
“Você tá fazendo tudo isso só pra provar algo pra alguém que
você gosta? É isso mesmo?”
Seus olhos brilharam com malícia, mas o sorriso que se abriu em
sua boca foi genuíno. Esperançoso. O que a deixou com uma cara
de lunática, no mínimo.
“Ele finalmente vai olhar pra mim. Vai perceber que o talento que
procura sempre fui eu, e não aquela… chorona”, falou com
desgosto, seu sorriso sumindo.
“Você é maluca”, sussurrei, encarando de cima a baixo com os
olhos arregalados.
“Maluca ou não, o aviso ainda é válido. Desista do concurso
enquanto é tempo, e eu não vou precisar tomar medidas drásticas
pra te tirar do caminho. Você não tem provas contra mim”,
acrescentou quando abri a boca. “Não tem nada além da minha
confissão que, poxa vida, ninguém mais escutou.” Fez beicinho.
“Ninguém vai acreditar em você se contar.”
Vagabunda. O pior é que ela estava certa.
“Você tem minutos pra decidir”, continuou, endireitando os ombros e seguindo de nariz
empinado até as portas duplas que levavam ao corredor. “Dê um jeito de sumir, ou… você
se lembra bem do bilhetinho, não é?” Sorriu com malícia da porta aberta, veneno
escorrendo dos cantos da sua boca. “O tempo tá passando. Tic-tac, tic-tac.” E saiu, suas
palavras ecoando em meus ouvidos como uma bomba-relógio.
Merda. Uma imensa e fedorenta merda, era a situação em que eu
me encontrava.
Já tinha decidido que não participaria da seleção final, mas a
revelação de Susana… tudo que ela tinha feito por debaixo dos
panos, todos que prejudicou por causa de um motivo tão idiota…
não era justo. E saber que ela era a responsável por aquele bilhete
mudava tudo.
Sim, eu teria que lidar com Vinícius mais tarde, mas no momento ele era a minha última
preocupação. Não, eu só conseguia pensar que não seria nada mal meter umas porradas
naquela vaca da Susana. Ao contrário do que ela pensava, não me causava medo
nenhum.
E, movida pela raiva e indignação, foi quando me decidi.
Que ela viesse atrás de mim.
Aquilo tinha que acabar. Toda aquela competitividade tóxica que
preenchia cada canto do conservatório, toda aquela rivalidade,
raiva, armação e jogo sujo. Já bastava.
Vougan terminou sua apresentação, palmas eufóricas e
ensurdecedoras explodindo ao redor, mas ele não se demorou muito
para sair do palco, as passadas longas e apressadas vindo direto
até mim.
“Parabéns.” Forcei um sorriso, ainda transtornada. Mataria
Susana por ter tirado o meu foco da apresentação dele. “Você foi
incrível.”
Mas Vougan, que não deixava escapar nada, franziu o cenho
levemente enquanto me olhava com atenção.
“Você tá bem? Parece nervosa.”
“Bom, eu sou a próxima. Claro que estou nervosa.”
“Não. Nervosa do tipo prestes a matar alguém.”
Que droga, Vougan, será que dá pra você não ser tão
observador?
“Tô bem”, menti, os olhos fixos no palco atrás dele, nos alunos
voluntários que posicionavam a harpa no centro iluminado.
Eu não tinha como ganhar. Não tinha preparado nada específico
pra seleção final, pois nem planejava me apresentar. Mas não daria
a Susana a satisfação de pensar que eu tinha me acovardado.
E apesar de saber que aquela era uma batalha perdida, que o prêmio já não estava
mais ao meu alcance… também não queria dizer que eu não tinha uma carta na manga.
Podia dar muito certo ou muito errado, mas era a única
alternativa.
“Preciso de um favor”, falei a Vougan de repente, tirando o pen
drive que sempre carregava comigo da bolsa. “Leva isso pro cara da
mesa de som. Faixa 3.”
Ele pegou o dispositivo, me olhando com cautela e confusão.
“O que vai fazer?”
“O que eu faço de melhor: irritar gente convencida. Vai logo”,
apressei, sacudindo os braços para me livrar da tensão. “E
Vougan…”, acrescentei antes que ele saísse correndo. “Aumenta
essa porra no último.”
Se eu ia perder, que fosse em grande estilo.
Ele ainda tinha aquele olhar confuso, mas sorriu de forma
cúmplice.
“Pode deixar, Moranguinho.”
Respirei fundo uma, duas vezes e, assim que anunciaram o meu nome para a plateia,
cruzei lentamente as cortinas que separavam a coxia do palco, dando tempo para que
Vougan chegasse até a mesa de som.
A luz ofuscante e quente me cegou por alguns segundos, mas
caminhei tranquilamente até o centro do palco, até o grande e
elegante instrumento que me aguardava, os aplausos que me
recebiam ecoando por todo o espaço. Me sentei na cadeira, ajeitei a
harpa até sentir aquele encaixe perfeito e familiar, como se ela fosse
uma extensão natural do meu corpo.
Olhei para o fundo do anfiteatro, para a galeria além da plateia, onde eu sabia que os
equipamentos e o técnico da mesa de som ficavam posicionados. E, mesmo com a
distância, reconheci a figura que me observava com ansiedade e expectativa. Ele assentiu
com a cabeça e ergueu o polegar, confirmando que estava tudo pronto.
Respirei fundo mais uma vez, os dedos imóveis nas cordas
rígidas da harpa, e fechei os olhos assim que a introdução da
música começou a ecoar das caixas de som. Do último arranjo que
eu tinha feito, uma versão orquestral de I Don't Want to Miss a
Thing, do Aerosmith.
Foi um tiro no escuro. Mas eu já tinha ouvido aquela música
tantas vezes enquanto escrevia o arranjo que a melodia estava bem
fixa na minha memória, então apenas me concentrei no som grave
das cordas, violinos, violoncelos e contrabaixos fazendo o
acompanhamento, e deixei meus dedos fazerem o restante do
trabalho como se tivessem vida própria, a melodia tomando forma
conforme avançava pelas oitavas na harpa.
Eu escolhi você, as palavras de Vougan ecoavam na minha
cabeça enquanto tocava. Escolhi ir contra tudo e todo mundo
que me dizia pra ficar longe.
Era exatamente isso que eu queria dizer com a minha música.
Não apenas me rebelar e esfregar na cara de Susana que ela e sua
ameaça podiam muito bem ir se foder. Queria também, e
principalmente, que Vougan soubesse que eu também escolhia ele.
Independente do que dissessem, do que pensassem sobre nós. Eu
sempre escolheria ele.
Aconteça o que acontecer, eu não vou desistir de lutar por
nós. Somos eu e você contra o mundo.
Estiquei o braço para alcançar as cordas mais distantes, abrindo minimamente os olhos,
e tive um vislumbre da pulseira vermelha no meu pulso, o pingente azul-claro brilhando
contra a luz amarelada do palco.
Sim, éramos eu e ele contra o mundo, e ninguém atrapalharia
isso. Ninguém romperia a nossa união. Nosso fio, cuidadosamente
tecido, mas forte como aço.
Eu te amo.
A música chegou no ápice, o crescendo imponente dos tímpanos
e pratos sinfônicos explodindo em toda a sua majestade,
acompanhado da harmonia dos instrumentos de sopro e cordas, a
harpa cantando a melodia como um amante apaixonado. Como uma
declaração.
Eu só podia esperar e torcer para que Vougan entendesse a
mensagem. Que entendesse o significado através da música. Que
ouvisse o sentimento do meu coração, expressado além de
palavras.
Eu te amo também.

E foi nesse momento que a merda foi consolidada.
Eu não fiz todo aquele show porque achei que fosse vencer, muito
pelo contrário. Fiz porque tinha certeza de que seria desclassificada,
então taquei o famoso foda-se e fiz a primeira coisa que me deu na
telha.
Eu esperava de tudo quando terminei de tocar e, ofegante pelo
cansaço, cambaleei para fora do palco: bronca dos jurados, surto do
professor responsável pelos participantes, um chute na bunda
corredor afora pra oficializar a minha desclassificação…
Tudo, menos que retornaria poucos minutos depois, entre
aplausos explosivos de arder os ouvidos, com uma medalha
dourada no pescoço e segurando um envelope pardo com a bolsa
de estudos em Paris.
Vougan estava do meu lado direito, aplaudindo também e sorrindo
para mim com orgulho, usando a medalha de prata do segundo
lugar. E, por uma ironia cômica do destino, Susana estava do meu
lado esquerdo, usando a medalha de bronze do terceiro lugar, nada
além de uma máscara fria e indecifrável no rosto.
“Susana…”, comecei, indo atrás dela assim que saímos do palco.
“Eu avisei”, foi tudo que ela disse, a voz baixa, fria e ameaçadora
como nunca, antes de desaparecer pelo corredor, os cabelos
avermelhados batendo furiosos em suas costas como um chicote de
fogo.
“O que tá fazendo?” Vougan me segurou pelo pulso quando tratei
de segui-la. “Vai por mim, não é uma boa ideia. Não agora. Sei que
você só quer ajudar, mas deixa ela esfriar a cabeça primeiro.”
Ele ainda não fazia ideia de tudo que eu tinha descoberto. Para Vougan, provavelmente
parecia que eu apenas queria consolar uma colega que ficou frustrada por não ter vencido.
Ah, se ele soubesse.
E eu ia contar tudo a ele, mas primeiro precisava encontrar
Susana. E fazer de tudo para convencê-la a não fazer nenhuma
burrice. Podia muito bem estar entrando na boca de um tubarão por
livre e espontânea vontade indo atrás dela, mas…
“Eu tenho que fazer isso”, falei, me desvencilhando dele e correndo até a saída da
coxia, que levava ao corredor. “Não dá pra esperar. Preciso fazer sozinha”, acrescentei
quando Vougan fez questão de me seguir. Ele parou, me olhando com confusão. E trinquei
os dentes, me odiando pelo que estava fazendo. “Desculpa. Prometo que vou explicar tudo
quando voltar, mas agora eu realmente preciso correr. E encontrar aquela vagabunda.”
No entanto… procurei Susana em literalmente todos os cantos,
tanto do colégio quanto do conservatório, mas não vi nem sua
sombra. Ninguém sabia onde ela estava. Ninguém sequer a tinha
visto depois do concurso.
“É bom que ela esteja planejando me bater…”, sibilei entre
dentes conforme virava corredor após corredor após corredor.
“Porque com certeza é a primeira coisa que eu vou fazer quando ver
a fuça dessa cretina.”
Só eu mesmo pra ir como um cachorrinho farejador atrás da
garota que tinha ameaçado acabar comigo bem na minha cara. Eu
bem que merecia uns tapas por ser tão idiota.
Mas aquilo precisava acabar. Todo aquele ódio, aquela visão distorcida de que músicos
precisam estar uns contra os outros o tempo todo, numa competição infinita. Se
conseguisse pelo menos convencer Susana a desistir de qualquer que fosse a vingança
idiota que estivesse planejando contra mim, já consideraria uma vitória. Ela não precisava
gostar de mim. Eu, definitivamente, não gostava dela. Mas também não precisávamos ficar
em guerra o tempo todo. Podíamos simplesmente suportar a existência uma da outra sem
precisar nos matar.
Pelo menos, era no que eu acreditava.
Estava olhando na biblioteca pela terceira vez quando meu celular
vibrou pela décima. Olhei de relance pela tela e o que encontrei
foram várias e várias mensagens de Vougan, perguntando onde
infernos eu estava, e que ele já estava ficando preocupado.
“Foda-se, tô indo procurar por você”, era o que a última dizia.
Suspirei, cansada e frustrada, mas comecei a fazer o caminho de volta. Tudo bem, eu
podia continuar minha busca depois de contar a Vougan tudo que Susana tinha feito.
Cheguei na secretaria e segui a passos apressados pelo corredor
que levava ao conservatório, mas a multidão de alunos que passava
ali na mesma hora me obrigou a diminuir o ritmo, todos vindo do
anfiteatro e seguindo para suas respectivas salas de aula.
Estava no meio do caminho, desviando de aluno após aluno,
quando avistei Vougan no alto da escada, ainda muito longe para
que conseguisse me ouvir por cima da balbúrdia se tentasse
chamar.
Ele começou a saltar os degraus, apressado e impaciente… e foi
quando eu vi, escondida no meio de um grupinho logo atrás dele…
aquele inferno de cabelo castanho-avermelhado, os olhos turquesa
o fuzilando com pura fúria e malícia.
Estanquei no lugar, a percepção do que estava prestes a
acontecer me deixando paralisada. Congelada. Em pânico.
“VOUGAN!”, gritei, a garganta queimando, uma tentativa
desesperada de chamar sua atenção… no exato momento em que
Susana meteu o pé no caminho dele, fazendo Vougan se
desequilibrar… e rolar escada abaixo.
Os ecos agudos do meu grito ainda percorriam todo o corredor
enquanto Vougan caía, e só consegui voltar a me mexer quando ele
aterrissou… as mãos estendidas para tentar diminuir o impacto da
queda… contra o painel grosso de vidro no pé da escada.
O ar escapou dos meus pulmões e meu coração parou. Tudo ao meu redor parou
quando o barulho ensurdecedor de Vougan caindo em cima do painel estourou no
ambiente. Junto com o som de vidro se estilhaçando.
O falatório parou de súbito e todos se viraram, assombrados, para
ver o que tinha acontecido, mas eu corria, empurrando todo e
qualquer um que estivesse na porra do caminho.
Mas quando finalmente o alcancei…
Meu estômago revirou, e só não vomitei por causa do horror
congelante que me paralisou até os ossos.
Vougan, desacordado, entre os estilhaços e cacos de vidro…
suas mãos… meu Deus… em carne viva, inúmeros fragmentos
pontiagudos do painel agarrados à pele flagelada e perfurando
ainda mais os cortes que cobriam cada mísero centímetro de ambas
as mãos.
E todo aquele sangue… uma poça já se formava ao redor dele,
machando o piso liso e brilhante de cera.
Um grito dilacerado de puro desespero e agonia estourava nos
meus ouvidos, e só me dei conta de que era meu quando me joguei
em cima de Vougan, e o som ficou abafado.
“Acorda!”, gritei, implorei, quando segurei seu rosto desacordado
nas mãos, cortes superficiais também cobrindo sua testa e
bochechas. “Vougan, acorda!”
Ele não reagiu, e comecei a chorar, minhas lágrimas pingando
uma a uma em seu rosto.
“Por favor…”, solucei, quase sem ar. “Por favor, acorda. Por favor
por favor por favor por favor...”
Seus olhos continuaram fechados, o rosto tranquilo como se
estivesse dormindo. Mas eu não sabia se ele estava respirando, não
sabia se eu estava respirando conforme o sacudia, chorava e
gritava, tudo ao mesmo tempo.
Eu precisava que ele abrisse os olhos. Precisava ver aquelas íris
azul-cinzentas brilhando com vida e me olhando de volta. Precisava
que ele acordasse, precisava…
“Por favor”, implorei, minha voz mal saindo. “Vougan…” Encostei
a testa na dele, seu rosto bem preso nas minhas mãos. E meu
coração apertou e afundou dentro do peito, caindo pesado feito uma
âncora em alto mar conforme pronunciei as palavras engasgadas e
entre lágrimas: “Eu te amo. Eu te amo, Vougan. Eu sei que você
sabe, mas eu também preciso que você me escute dizer isso em
voz alta, então por favor… abre os olhos.”
“Vougan!”, alguém gritou ao longe, cortando o silêncio pesado que
tinha tomado conta da multidão de alunos que observava, e veio
correndo na nossa direção. Vinícius.
“Faz alguma coisa”, solucei, erguendo o rosto encharcado de lágrimas para ele. Vinícius
encarava a acena com o rosto pálido, quase verde, os olhos arregalados no mais puro
horror. “Por favor… FAZ ALGUMA COISA!”
“Porra...”, grunhiu e se ajoelhou ao meu lado, pronto para pegar o
primo no colo, mas um grupo de professores liderado pelo diretor
chegou e mandou que todos se afastassem. Inclusive nós.
Segurei Vougan com mais firmeza, me recusando a deixá-lo ali,
mas Vinícius ficou de pé num salto e começou a me puxar para
longe. Esperneei e gritei em protesto, desesperada, mas ele me
agarrou pela cintura e me ergueu no ar, andando de costas
enquanto se afastava. Enquanto me afastava do primo.
“Não se preocupem, já chamamos uma ambulância”, falou um dos
professores, erguendo os braços para manter distância entre a cena
catastrófica logo atrás dele e os alunos.
Eu chutava e socava Vinícius de todas as formas que conseguia,
mas ele se recusou a me soltar, principalmente quando os
paramédicos chegaram e, com cuidado, imobilizaram o corpo
desacordado de Vougan e o colocaram numa maca, levando-o
embora.
“Eu quero ir junto”, meio chorei, meio gritei, mas ninguém me deu
atenção. Apenas ficaram parados olhando enquanto Vougan era
levado… levado pra longe de mim.
Ele foi, e eu fiquei. Não pude fazer nada além de observar
enquanto ele se afastava até sumir de vista, sangrando, ainda
desacordado, os olhos ainda fechados…
E a poça de sangue ainda manchava o chão, entre milhares e
milhares de cacos de vidro.
Sangue de Vougan. Sangue do garoto que eu amava.
Voltei a chorar, desconsolada, e Vinícius finalmente me colocou no chão. Seus braços
tremiam pelo pânico, e ele ainda estava pálido, olhando fixamente o ponto em que Vougan
tinha desaparecido, os olhos arregalados e vítreos.
E só porque eu estava fora de mim, em completo choque e a
ponto de ter outra crise de asma, não protestei quando os braços
fortes de Vinícius voltaram a me envolver… mas dessa vez num
abraço.
Trêmula, agarrei seu uniforme e escondi o rosto em seu peito e
chorei com mais desespero ainda, meu coração tão estilhaçado e
em pedaços quanto os cacos de vidro no chão.
“O que aconteceu?”, ele sussurrou, tão baixo e fraco que quase
não ouvi. “Como foi que isso aconteceu com ele?”
Trinquei os dentes, me forçando a respirar, tentando com todas as
minhas forças conter as lágrimas apenas o suficiente para conseguir
dizer:
“Foi ela. Foi ela que fez isso.”
“Quem?” Notei o tom de alarme em sua voz.
Funguei, trincando os dentes com mais força ainda.
“Susana.”
Os braços ao meu redor enrijeceram, e ele trincou a mandíbula
com tanta força que o som reverberou por mim.
Mas Vinícius não disse mais nada.

Fiquei encarando meu reflexo no espelho do banheiro feminino,
desde a falta de cor que me fazia parecer uma assombração até os
olhos vermelhos de tanto chorar, mas vazios de emoção.
Eu me sentia vazia. Completamente vazia.
Vougan estava no hospital, Vinícius tinha conseguido autorização
para sair e ir vê-lo, mas de novo… eu fiquei. Não me deixaram nem
ligar para os meus pais, e confiscaram meu celular.
“Você só precisa se acalmar”, foi o que disseram, me forçando a
ficar deitada na maca da enfermaria. “Apenas quando tivermos
certeza de que você não corre perigo de ter uma crise de asma,
vamos te liberar.”
Conversa fiada de merda.
Eu sabia que a família de Vougan e o diretor eram próximos,
então eles provavelmente queriam chamar o mínimo de atenção
possível depois do que aconteceu. E, aparentemente, deixar que
alunos desesperados simplesmente saíssem do colégio para ir atrás
dele seria visto com maus olhos.
A única coisa que eu podia fazer, que me deixavam fazer, era
sentar e esperar pacientemente de braços cruzados até o fim do
expediente. Como se uma das pessoas mais importantes da minha
vida não estivesse sangrando desacordada em um hospital.
Continuei encarando meu reflexo, eu não fazia ideia de quanto
tempo tinha se passado, e meus olhos desceram para as minhas
roupas, que eu tinha evitado encarar até o momento.
Eu estava toda suja de sangue. Tinha me ajoelhado e agarrado
Vougan como se a minha vida dependesse disso, então manchas
vermelhas me cobriam quase toda do pescoço pra baixo.
Meu lábio inferior começou a tremer, e minha visão ficou borrada
com novas lágrimas conforme as imagens passavam e repassavam
na minha mente sem parar… e me obriguei a me afastar do
espelho.
A professora de educação física tinha conseguido uma troca de roupas para mim, um
conjunto de moletom das aulas de ginástica, e me arrastei até o chuveiro do vestiário perto
das quadras. Tomei uma ducha rápida com movimentos puramente mecânicos enquanto
minha cabeça viajava para longe, e me vesti.
Joguei as outras roupas no lixo. Não queria ver nada daquilo
nunca mais.
E, enquanto arrastava meus pés para fora, sem rumo e sem ter a
mínima ideia do que faria a seguir… ouvi vozes. Vozes muito
específicas que me fizeram parar antes de virar no corredor deserto.
“Porra, você tem ideia do que fez?!” Reconheci a voz de
Vinícius. Provavelmente tinha acabado de voltar do hospital. “O
acordo era tirar a Aurora do concurso! Não tinha que encostar um
dedo sequer no Vougan!”
Enrijeci, um calafrio gélido subindo pela minha espinha. E a
sensação só piorou quando reconheci a voz de Susana falando
daquele jeito frio e desprovido de emoção:
“Eu disse que faria o que fosse necessário pra que ela saísse
do caminho. Do meu caminho.”
“E que porra Vougan tem a ver com isso?!”, Vinícius vociferou.
“Além de não fazer nada que garantisse a desistência dela, você
ainda quis se vingar quase matando o meu primo! Você é uma
vagabunda doente!”
“Eu avisei que ela ia se arrepender se não desistisse”, Susana
falou, inabalável. “Avisei que sofreria as consequências. Nada disso
teria acontecido se ela tivesse me escutado, então não é culpa
minha se a namoradinha do seu primo é teimosa e irresponsável.”
“Sofrer as consequências?!”, Vinícius repetiu, incrédulo. “Esse
foi o seu aviso? O seu grande ultimato? Porra, não tinha como ser
mais específica?!”
“Se ela prestasse atenção, teria entendido”, falou simplesmente.
Tranquila.
Cavei fundo na memória, procurando as palavras exatas do bilhete. Elas foram
voltando, uma a uma e, agora que tudo já tinha sido feito, agora que não tinha mais volta…
eu entendi.
Era uma droga... uma porra de uma charada.
Aquela filha da puta…
“Você me enganou”, Vinícius grunhiu feito um animal raivoso.
“Me enganou e me fez acreditar que o objetivo era tirar Aurora do
concurso. Foi só por isso que te ajudei a prender aquele pirralho no
depósito, você deu a entender que ela seria punida caso não
obedecesse.”
“Dois coelhos com uma cajadada só”, Susana falou e, pelo som,
eu sabia exatamente que aquele sorriso envenenado estampava
seu rosto.
Vinícius grunhiu mais uma vez, mais furioso a cada segundo.
“Você não tinha o direito de meter Vougan nisso. Mas, ah, agora
eu vou fazer você se arrepender por toda essa merda, sua vadia.”
“Não tão rápido”, Susana cantarolou, fazendo Vinícius parar.
“Pode me culpar o quanto quiser, mas você tem tanto envolvimento
nisso quanto eu, bonitão. Você foi meu cúmplice. E tem um não-tão-
secreto-assim histórico de confusões que causou no colégio ao
longo dos anos.” Deu uma risadinha de satisfação. “O meu favorito,
sem dúvida, é o rastro de acidentes que perseguiu seus colegas
quando você venceu o concurso no ano passado. E, ao contrário do
que você pensa, eu tenho provas. Então, quer me entregar pro
diretor ou qualquer outra merda? Vai em frente, mas fique sabendo
que, se eu for jogada no inferno, vou fazer questão de te arrastar
junto comigo, direto pro colo do capeta”, concluiu, dura e afiada.
“Vagabunda…”, Vinícius falou, mas sua voz já não estava mais
tão firme e segura quanto antes.
“Logo você, que está sempre nas graças do querido diretor, amigo
tão próximo da família…” Susana estalou a língua e deu o tiro de
misericórdia: “Eu me pergunto o que a prestigiada família Lombardi
vai achar de tudo isso. Que decepção você seria pra todo mundo,
manchando décadas de trabalho duro e honesto. Eu não ia querer
esse peso na consciência se fosse você.”
Um silêncio pesado se seguiu, e fechei os olhos, torcendo para
que, pelo menos uma vez na vida, Vinícius fizesse a coisa certa e
entregasse Susana, que não deixasse ela sair impune depois do
que tinha feito com o primo.
Até que ele bufou.
“O que você quer?”, falou por fim, e eu tive que me apoiar na
parede para não desabar.
Ele não faria nada. Escolheria a si mesmo, sua imagem e sua
reputação.
“Certifique-se de que Aurora desista do prêmio. Vougan já tá fora
da corrida, então se ela desistir, o prêmio vem pra mim.”
“Por quê?”, Vinícius perguntou, perturbado. “Nem eu iria tão longe
por um prêmio que passou tão longe do meu alcance assim. Pra
quê você quer tanto isso?”
“Ele gosta de vencedores”, ela falou daquele jeito esperançoso,
lunático e bizarro. “Eu só preciso de um prêmio, e ele vai olhar pra
mim… vai perceber que eu sou sua obra-prima.”
Senti meu estômago embrulhar. E não consegui escutar mais
nada daquilo, então apenas me afastei dali e saí correndo, sem
olhar para trás.
Nunca mais voltaria a pisar ali.
Capítulo 45
Ergui os olhos da última página, surpresa demais para
conseguir reagir.
O acidente de Vougan, do professor De Lucca… não foi um
acidente de verdade. Foi uma armação, fria e calculada.
— Foi a Susana que fez isso comigo — ele sussurrou ao meu
lado, tão em choque quanto eu. — Ela fez sem nem pensar nas
consequências. Simplesmente… me jogou de uma escada.
Aurora não falou nada, apenas baixou os olhos com um
semblante de dor no rosto.
— Vinícius sabia — o professor continuou, os olhos fixos no
tapete. — Durante todo esse tempo, ele sabia e não me disse nada.
Aurora fechou os olhos, os lábios comprimidos. E continuou em
silêncio.
E eu finalmente deixei que a curiosidade tomasse o controle.
— O que aconteceu com ela? Com a Susana? — Olhei de um
para o outro. Se Aurora realmente foi para Paris, então o plano de
ficar com o prêmio do concurso falhou.
— Eu não sei — o professor respondeu, ainda transtornado e
sacudindo a cabeça de leve. — Quando saí do hospital, eu… não
voltei pra escola. Terminei os estudos em casa, e fui direto pra
faculdade. Nunca mais pisei lá, até que Vinícius… me ofereceu a
vaga de professor há um ano.
Olhei para Aurora, mas ela também sacudiu a cabeça.
— Me mudei pra Paris antes de Vougan sair do hospital,
então… eu também não sei.
— Mas como você conseguiu se livrar dela? — insisti. — Digo,
mesmo depois do acidente ela não desistiu do prêmio.
O professor De Lucca também a encarou, curioso.
Aurora suspirou e voltou a se sentar na poltrona, se encolhendo
e abraçando os joelhos, os dedos enterrados na larga calça
moletom cinza-claro.
— Eu escrevi isso — indicou as páginas nas minhas mãos —
em uma segunda-feira. Na semana seguinte ao acidente. Fui pra
escola naquele dia apenas porque tinha convencido meus pais a
trancar minha matrícula. Não queria mais ficar naquele lugar depois
de tudo que tinha acontecido. — Mordeu o lábio, os olhos baixos. —
Enquanto eles resolviam a questão da papelada na diretoria, eu
fiquei esperando do lado de fora, mas… precisava desabafar.
Precisava escrever. E fui parar na biblioteca. Eu escrevi tudo
enquanto estava lá.
— Não ficou com medo que Susana ou Vinícius aparecessem?
— perguntei.
Ela riu, mas seus olhos ficaram sombrios.
— Eu não me importava mais. Estava tão cansada de tudo
que… lembro que, na hora, pensei na possibilidade de um deles
aparecer, fiquei imaginando o que fariam comigo se me vissem ali,
mas… percebi que já não me importava mais. Comigo, com nada
daquilo. Eles podiam fazer o que quisessem. A pior dor que
poderiam me causar já tinha acontecido.
Engoli em seco, mas os olhos do professor pesaram com
agonia.
— Mas um deles realmente me encontrou — ela continuou. —
Vinícius. Assim que terminei de escrever… uma sombra pairou em
cima de mim e, quando olhei por cima do ombro… ele estava lá,
pálido e lendo cada palavra do que eu tinha escrito. — Prendi a
respiração, meus olhos ficando arregalados. — A ameaça de
Susana de expor toda as merdas que ele já tinha feito, o silêncio
comprado dele… ele viu tudo. E eu soube o que ele faria antes
mesmo que movesse um dedo sequer. Agarrei as últimas páginas
do diário ao mesmo tempo em que ele o puxou de mim, e saiu
correndo sem perceber que eu tinha conseguido salvar as que
tinham rasgado. Mas corri atrás dele mesmo assim, e finalmente o
encurralei perto da diretoria, no exato momento em que meus pais e
o diretor saíam. Mas… quando o acusei de ter me roubado, ele já
tinha se livrado do diário. Meus pais estavam tão cansados e bravos
com tudo aquilo, com aquele lugar, que apenas me seguraram pelos
pulsos e me arrastaram pra longe dali de uma vez. Eu nunca mais
pisei ali desde então.
Então foi assim que aconteceu. Vinícius, enquanto fugia, deve
ter jogado o diário no primeiro depósito que encontrou, e não fez
questão de se lembrar qual era, se livrando da prova de que ele
estava envolvido na armação de Susana.
— Eu só voltei a vê-lo… — Aurora continuou, se remexendo
desconfortável na poltrona — nas inúmeras vezes em que fui ao
hospital. Mas ele se recusava a me ouvir, nem me olhava nos olhos.
Só parou pra me dar atenção uma vez, quando… pedi que ele te
entregasse uma carta. — Olhou para o professor de relance, mas
logo voltou a baixar os olhos. — Eu disse que não me importava
com o acordo dele com Susana, e que não insistiria nessa história,
desde que você recebesse a minha mensagem. Não precisava te
convencer a me deixar entrar, só queria que você lesse. E ele
finalmente concordou, mas quando voltou… — engoliu com
dificuldade e respirou fundo. — Ele disse que você tinha lido e,
mesmo assim, me mandou embora. Não apenas do hospital, mas…
embora da sua vida. Pra sempre.
— Fala sério, Aurora — o professor falou, se inclinando para
mais perto, os olhos suplicantes. — Você não pode simplesmente
ter acreditado nisso. Eu nunca diria uma coisa dessas, você sabe.
Mas Aurora se encolheu ainda mais.
— Talvez você não se lembre por causa dos remédios.
— Pro inferno aqueles remédios! Nem que eu estivesse
chapado, Aurora, eu nunca diria…
— Você disse que eu estava livre da minha promessa — Aurora
sussurrou, interrompendo.
O professor fechou a boca, o rosto empalidecendo.
— O quê?
— Ele não quer te ver. Disse pra ir embora de uma vez. Você
está livre da sua promessa. Foi a mensagem que você pediu que
Vinícius me entregasse naquele dia. — Encarou o professor De
Lucca, os olhos carregados de mágoa. — Como ele sabia da
promessa, Vougan? Mesmo que tivesse lido, eu não mencionei ela
na carta. Então, se é mentira… como ele poderia saber?
O professor não disse nada, mas apenas porque não parecia
ser capaz de dizer qualquer coisa que fosse. Apenas encarava
Aurora, confuso e incrédulo, e eu quase podia ouvir as engrenagens
em sua cabeça trabalhando conforme ele cavava fundo na memória.
Provavelmente tentando se lembrar se, mesmo que por engano por
causa dos remédios, acabou dizendo algo daquele tipo para ela.
Aurora voltou a baixar os olhos, ainda encolhida na poltrona
como se pudesse se proteger. De mais mágoas, de lembranças
ruins ou qualquer outra coisa relacionada ao passado.
E eu… bem, estava sobrando. Tinha finalmente desvendado o
mistério do diário, então… o que mais poderia fazer ali?
Continuei olhando de um para outro, confusa e me segurando
pra não começar a retorcer os dedos de ansiedade. Uma coisa era
certa, aqueles dois precisavam se resolver. Se apenas houvesse
algo que eu eu pudesse fazer pra ajudar, mas…
Caramba, eu era apenas uma adolescente!
Mas tinha chegado até ali. E não deixaria as coisas terminarem
daquele jeito.
Então, respirei fundo e, como a bela adolescente imatura e
inexperiente que era, soltei a primeira coisa que me veio à mente:
— Você tem namorado? — perguntei à Aurora na maior cara de
pau.
Ela piscou e arregalou os olhos, confusa e surpresa com a
pergunta repentina. O professor enrijeceu ao meu lado.
Tudo bem, eu tinha um empurrãozinho pra ele também.
— O senhor não namora, né? — Me virei para ele. — Bom, eu
até cheguei a pensar que você e a professora Fabiana formavam
um casal, mas nunca consegui ter certeza. — Mentira.
O professor engasgou e o rosto de Aurora ficou vermelho, mas
apenas me levantei e perguntei com a maior naturalidade:
— Por favor, onde fica o banheiro?
— Ah… — Ela piscou mais uma vez, tentando se recompor. —
No final do corredor. Eu posso… — Se levantou, mas ergui uma
mão.
— Não, tudo bem. Eu consigo achar sozinha. Mas obrigada. —
Sorri com inocência e segui até o corredor, sumindo da vista deles.
Fui até o banheiro, mas ao invés de entrar, apenas fechei a
porta alto o bastante para que eles pudessem ouvir… e caminhei de
volta na ponta dos pés, os ouvidos atentos.
— Então… — Aurora começou depois de um tempo — você e
essa professora Fabiana…
— Não — o professor falou na mesma hora, se levantando
também. — Ela é uma mulher incrível, mas… só uma amiga. Do
trabalho — acrescentou rapidamente.
Me virei lentamente, escondida atrás da parede, e arrisquei
uma olhadela. Eles estavam de frente um para o outro, ambos
nervosos e de olhos arregalados.
— Entendi. — Aurora puxou as mangas compridas da blusa fina
branca até cobrir os dedos e cruzou os braços, provavelmente não
querendo parecer tão vulnerável.
O professor acompanhou cada movimento com os olhos, não
querendo perder nenhum detalhe.
— E você? — balbuciou. — Não vi foto de ninguém aqui além
dos seus pais. — Olhou ao redor. — Você tem um… — Engasgou,
sem conseguir terminar.
— Namorado? Ou marido? — Ela arqueou uma sobrancelha
provocadora.
O professor engoliu com força, os punhos cerrados. Eu nunca o
tinha visto tão nervoso antes.
Mas Aurora por fim soltou uma risada e resolveu acabar com o
sofrimento dele.
— Nenhum dos dois. Até tentei conhecer outras pessoas,
mas… — deu de ombros — eu desisti disso tudo faz tempo.
— Eu também — ele murmurou.
Mais um minuto de silêncio.
— Eu juro que nunca disse nada daquilo — o professor falou,
baixo. — Não sei como ele soube da promessa, mas… eu juro, juro
que nunca te mandei embora. Jamais faria algo assim. Eu nem
sequer ouvi falar de você durante o tempo que fiquei internado.
Também não recebi nenhuma carta.
Aurora ergueu os olhos, a testa franzida.
— Não recebeu?
Ele sacudiu a cabeça. E, devagar, se aproximou um passo.
— O que dizia? — Inclinou levemente a cabeça.
Ela engoliu em seco. E desviou os olhos.
— Ah… é que já faz tanto tempo, eu… não me lembro muito
bem.
— Me diz o que lembra — pediu, e se aproximou mais um
passo.
Aurora baixou a cabeça, respirou fundo, e disse:
— O bilhete da Susana… dizia que aquilo em que eu mais
acreditava seria tirado de mim se eu me apresentasse. Você lembra
qual era o tema da segunda seleção?
— Algo em que acreditar — ele murmurou, franzindo o cenho.
Aurora assentiu, fechando os olhos.
— Minha apresentação naquele dia… a mensagem que eu quis
passar… era que eu acreditava em você. Em nós. Ela entendeu
isso. E deixou a charada no bilhete da ameaça.
Tive que conter o suspiro de surpresa.
— Porra… — o professor murmurou.
— Eu expliquei isso na carta… e disse que ia entender se você
me culpasse pelo que aconteceu. Ia entender se não quisesse
mais… saber de mim. Mas também queria que você entendesse
que, independente de qualquer coisa, eu sempre iria… — Se
interrompeu, comprimindo os lábios.
— O quê? — ele encorajou, se aproximando mais um passo.
Havia apenas centímetros de distância entre os dois agora. — Você
sempre iria o quê?
Mas Aurora sacudiu a cabeça e começou a se afastar…
— Eu ouvi — o professor falou de repente e, num ato de súbita
coragem, segurou o rosto dela com uma mão. — Aquele dia na
escola… eu ouvi.
— O quê? — ela murmurou, confusa.
— Quando acordei no hospital, depois da cirurgia, achei que
tivesse sonhado tudo, mas… depois de ter lido o que realmente
aconteceu… — sacudiu a cabeça — não foi um sonho.
— Vougan… — Aurora sussurrou, suplicante, os olhos ficando
marejados.
— Você disse as palavras. As palavras que eu sempre quis
ouvir você dizer. Você disse. — Aproximou o rosto do dela, as testas
se encostando…
Deus, eu ia ter um troço se aqueles dois não se beijassem logo!
— Você disse… — sussurrou mais uma vez, a boca bem perto
da dela, encorajando, suplicando…
— Vougan...
— Diz. Se você ainda sente, por favor... diz.
Aurora suspirou, trêmula, mas segurou a mão em seu rosto,
fazendo-o estremecer e, olhando fundo em seus olhos...
— Eu te amo, Vougan.
Ele respirou fundo, o corpo inteiro tremendo, mas sorriu com
alívio, um sorriso enorme e brilhante.
— Eu também te amo, Moranguinho — murmurou com a voz
rouca.
E a beijou.
Aurora derreteu em seus braços, os joelhos fraquejando, mas o
professor a sustentou, envolvendo sua cintura com a mão livre e
puxando-a para perto até que os dois estivessem colados. Ela
agarrou o cabelo dele, enroscando os dedos nos fios perto da nuca,
e a mão do professor desceu até…
Ai, meu Deus!
Cobri o rosto quente de vergonha com as duas mãos enquanto
ele agarrava a bunda dela, mas não conseguia parar de sorrir e tive
que me segurar para não começar a dar pulinhos de alegria.
Era como ver um romance ganhando vida bem na minha frente.
Aurora e Vougan finalmente tinham se acertado! Eu quase podia
ouvir a música alegre e romântica da trilha sonora tocando ao fundo.
— Ele tava certo — Aurora murmurou de olhos fechados, os
lábios inchados. E soltou uma risada baixa, quase melancólica. —
Ele sempre esteve certo.
— Quem? — O professor franziu o cenho de leve, a testa
encostada na dela.
Mas Aurora sacudiu a cabeça e abriu os olhos, tocando suas
orelhas.
— Você tirou os brincos. — Esfregou os lóbulos entre seus
dedos. — Que pena. Eu gostava.
— Amanhã mesmo estarão de volta. — Ele sorriu, louco para
voltar a beijá-la.
Mas Aurora desviou, rindo, e… beijou seu pescoço, enrolando
os dedos na gola de sua camisa.
Meu rosto esquentou ainda mais, mas não ousei desviar os
olhos. Eu queria soltar fogos de artifício de tanta felicidade por poder
vê-los juntos.
— Por favor, diz que a tatuagem ainda tá aqui — ela murmurou,
a boca colada em sua pele.
O professor deu risada, e Aurora não esperou uma resposta
antes de afastar um pouco a camisa dele… revelando um pedaço
do desenho tribal que tinha descrito com tanta… admiração no
diário.
Minha nossa senhora tatuada, ela não tava brincando quando
disse que era de fazer a pressão cair.
— Ainda bem! — Aurora choramingou de alegria e alívio,
fazendo o professor De Lucca gargalhar alto.
Ele segurou seu rosto para cima, de frente para ele, e a beijou
com urgência e saudade desesperadas. Os dedos de Aurora foram
para o seu pulso e deslizaram até sua mão… e o professor
interrompeu o beijo.
— Desculpa — ela sussurrou, afastando a mão da dele. — Dói?
— Não. Não, é só que… eu ainda não sei lidar com isso muito
bem. Tudo que foi tirado de mim, tudo que eu perdi… — Seus
dedos tremiam. — Ainda não descobri como… aceitar. Aceitar que
essa parte de mim não existe mais.
Ainda mais trabalhando como professor no mesmo
conservatório em que tudo aquilo aconteceu… e ficando
responsável pelo concurso, uma lembrança constante do pior
momento da sua vida.
Meu coração apertou dentro do peito por ele. Não conseguia
nem imaginar o que faria em seu lugar.
Aurora pareceu sentir o mesmo, pois ergueu as duas mãos e
segurou as dele com cuidado… olhando com atenção cada cicatriz,
desde os pulsos até as pontas dos dedos trêmulos… e beijou sua
pele com carinho, passando os lábios de uma mão à outra, até
cobrir cada pedacinho com beijos suaves.
— Ainda é você — sussurrou, erguendo os olhos. — Nada
disso muda quem você é. Por fora talvez um pouco, mas… aqui. —
Tocou seu peito. Seu coração. — Aqui você continua o mesmo.
Nada pode mudar isso. E ninguém pode tirar isso de você.
O professor ergueu um dedo, descendo pela têmpora dela até a
bochecha, e Aurora deslizou os dedos pelo seu pulso.
— Eu ainda tenho a minha pulseira — falou, corando… e
ergueu a barra da calça, revelando no tornozelo a pulseira vermelha
trançada e desgastada pelo tempo, um pingentinho azul pendurado.
O professor sorriu com carinho e nostalgia… mas falou com um
lamento:
— Cortaram a minha quando cheguei no hospital. Precisavam
limpar os cortes pra fazer a cirurgia, então… — Sacudiu a cabeça,
fechando os olhos. — O sangue e os cacos a destruíram, de
qualquer modo. Mas consegui recuperar isso. — Tirou um molho de
chaves do bolso e apontou um berloque muito delicado e sutil
pendurado entre as várias chaves. Um pingente cor-de-rosa.
Os olhos de Aurora voltaram a ficar marejados, e senti a minha
própria vista ficar embaçada… até que ela sacudiu a cabeça e
perguntou de repente:
— Sua aluna não tá demorando muito no banheiro?
Enrijeci no lugar.
Oh-oh.
O professor De Lucca apenas sorriu, despreocupado.
— Quem disse que ela foi pro banheiro, pra início de conversa?
Certo, Julieta? — Ergueu a voz, olhando na direção do corredor… e
me flagrando ali, meio escondida entre a parede e o vaso de
plantas. — Gostou de ver tudo ao vivo e a cores?
Droga, como ele sabia?
— Onde será que eu já vi isso antes? — Aurora riu enquanto eu
saía do meu esconderijo de cabeça baixa. E me olhou com
curiosidade, o canto dos lábios tremendo enquanto tentava segurar
o sorriso. — Você não é muito nova pra ver dois adultos se
pegando?
Corei, meu rosto inteiro fervendo.
— Não, graças a você ela já nos viu fazer coisa bem pior — o
professor provocou.
Aurora riu, cutucando sua costela com o cotovelo… mas
finalmente entendeu o que ele quis dizer e, olhando uma vez do
diário para mim, seu sorriso sumiu.
— Você leu tudo?
Cruzei os braços atrás das costas.
— Bom… sabe como é… sim — falei de uma vez. E ergui as
mãos na defensiva. — Mas se quer a minha opinião, eu tava
torcendo muito por vocês dois.
O professor De Lucca baixou a cabeça e esfregou os olhos,
envergonhado, mas Aurora jogou a cabeça para trás e gargalhou.
— Você é o meu tipo de leitora — falou, piscando um olho. —
Nesse caso, tenho uns livros bem interessantes pra te indicar.
— Nem pense nisso — o professor interrompeu. — Julieta
ainda é praticamente uma criança.
— Tenho a mesma idade que vocês tinham quando aquilo
aconteceu — protestei, indicando o diário.
— Enfim, a hipocrisia. — Aurora balançou a cabeça com uma
indignação teatral.
— Vocês são iguaizinhas. — Ele revirou os olhos. — Mas é
melhor nós irmos. Preciso levar a Julieta de volta pra escola. —
Travou a mandíbula. — E resolver uns assuntos na direção.
Aurora hesitou por um momento, olhando os porta-retratos ao
seu redor, mas deu um passo à frente.
— Posso ir junto?
Eu e o professor piscamos, surpresos.
— Tem certeza? — ele perguntou. — Caso não tenha
entendido, eu pretendo meter a porrada no meu primo. E muito
provavelmente vou perder o emprego. Quer mesmo presenciar
isso?
Ela arqueou as sobrancelhas.
— Presenciar? Eu quero descontar a minha parcela de porrada
também. Ele me deve algumas respostas.
O professor sorriu com orgulho, e indicou a porta com a cabeça.
— Esse seu lado agressivo ainda me excita, Moranguinho.
Aurora sorriu também, vindo atrás de nós.
— Posso assistir? — perguntei, entrando no elevador e me
posicionando bem no meio dos dois.
Aurora e o professor me encararam por um momento, depois se
entreolharam.
— Podemos ficar com ela? — Aurora perguntou, os olhos
brilhando, como se eu fosse um filhotinho.
Ele deu risada e abanou a cabeça, incrédulo. Mas ela apenas
voltou os olhos para mim e deu dois tapinhas no topo da minha
cabeça.
— Boa menina. — Sorriu com orgulho. — Você, definitivamente,
é uma das minhas.
Capítulo 46
Era pouco mais de meio-dia quando chegamos na escola.
— Esse lugar não mudou nada — Aurora murmurou olhando ao
redor, estremecendo.
— Nem na aparência, nem nas merdas que são jogadas pra
debaixo do tapete — o professor concordou, seguindo para a
diretoria. Mas parou, se virando para mim. — Julieta, é melhor você
ficar por aqui.
Abri a boca, pronta para protestar.
— Eu agradeço tudo que você fez até agora — ele continuou,
no entanto. — Sei que é uma menina corajosa e quer que a justiça
seja feita, mas eu não posso te envolver mais ainda nisso. Não no
que está prestes a acontecer. Não quero, e não posso, te causar
esse problema.
— Mas, professor…
— Não, Julieta — reforçou, a voz decidida. — Me desculpa,
mas isso não é discutível.
Trinquei os dentes e cerrei os punhos, pronta pra começar uma
birra… até que Aurora se aproximou de mim e me abraçou com
força.
— Obrigada, Julieta — sussurrou. — Obrigada por ter
encontrado o diário. Por ter lido. E por ter lutado por mim. Por não
ter desistido quando eu mesma já não tinha mais esperanças.
Graças a você, a melhor coisa da minha vida voltou pra mim. Eu
nunca vou conseguir te agradecer o suficiente por isso, mas…
obrigada. Por tudo.
Uma lágrima rolou pelo meu rosto e, incapaz de responder,
lentamente, retribuí o abraço.
— Você já fez o bastante — Aurora continuou, se afastando, e
me lançou uma piscadela. — Deixa o resto com a gente.
Ainda sem palavras, fiquei observando boquiaberta enquanto
os dois se afastavam, de mãos dadas, e corriam para a diretoria.
Tinha acabado de dar o primeiro passo na direção deles
quando Mariana apareceu, vindo da direção oposta, afobada e com
os olhos grandes arregalados, e quase trombou em mim ao tentar
desacelerar.
— Julieta, graças a Deus eu te achei! Em que caralho de
buraco você se meteu?!
Pisquei, em choque.
— O que foi?
— Te mandei um milhão de mensagens, mas você não
respondeu e também não me atendia. — Apoiou as mãos nos
joelhos, ofegante. — Droga, eu achei que… — Parou, tentando
controlar a respiração.
— Achou que o quê? Mariana, o que aconteceu?
Com algum custo, ela se endireitou.
— É a Giovanna — ofegou, o rosto vermelho. — Saiu o
resultado da segunda seleção…
Ah, sim. Ela tinha sido desclassificada, mas disso eu já sabia. O
diretor mesmo fez questão de esfregar isso na cara dela, mas…
será que só agora ela tinha resolvido surtar?
— O que ela fez?
Mariana sacudiu a cabeça.
— Você não tá me entendendo. — Me agarrou pelos ombros,
os olhos quase explodindo para fora do rosto. — Ela viu os nomes
na lista. O de Richard, o meu… e o seu. E ficou possessa, como eu
nunca vi antes. Ela tá armando alguma coisa, Julieta, uma merda
grande. Por isso fiquei te procurando igual uma doida. Você passou,
e ela não. Me assusta o que aquela garota pode ser capaz de fazer
por causa disso…
— Cadê o Richard? — perguntei de repente, baixo e alarmada.
E agarrei seus pulsos. — Mariana, cadê o Richard?
Ela piscou, confusa.
— Eu não sei — falou lentamente. — Só o vi de manhã quando
cheguei. Por quê?
Por quê? Simplesmente porque Giovanna claramente sabia o
que tinha acontecido no passado, seguia os passos do tio como um
manual de instruções e era capaz de coisa muito pior.
Até onde eu sabia, ela podia muito bem fazer algo parecido
com a loucura de Susana. Tinha até se inspirado na armação dela
de prender alguém no depósito apenas para prejudicar uma
apresentação. O que não faria para se vingar?
Droga. Eu tinha que encontrar Richard, e já!
Saí correndo sem nem dizer nada a Mariana, mas ela
prontamente veio atrás de mim.
Os corredores estavam desertos, os alunos deviam estar no
refeitório para o almoço, mas continuei correndo, varrendo cada
canto com os olhos e o celular colado à orelha.
Se Richard pelo menos me atendesse!
Tinha procurado por todo o conservatório, e já estava voltando
para olhar no refeitório quando… parei, os pés derrapando no chão.
Paralisada.
Apenas alguns metros adiante, Giovanna estava parada, bem
perto da longa e alta escada que se estendia até o andar de baixo…
segurando o meu violoncelo.
— Giovanna… — sussurrei, praticamente sem ar. — O que tá
fazendo?
Como ela tinha conseguido pegar? Estava trancado na sala da
professora Fabiana.
Ao meu lado, Mariana empalideceu.
— Giovanna… — sussurrou também, erguendo as mãos
devagar — não faz isso. O que quer que esteja pensando em
fazer… não faça.
Os olhos azuis estavam frios e vazios, mas sua boca se curvou
num sorriso nada menos que maléfico.
— Ou o quê — falou lentamente, apertando os dedos ao redor
do braço do instrumento. Do meu instrumento.
Engoli em seco. Precisava pensar, precisava encontrar um jeito
afastá-la da escada, de tirar meu violoncelo de suas mãos… o
violoncelo da minha mãe. A única coisa que tinha restado dela.
— Pra quê tudo isso? — falei, tentando ganhar tempo. — Por
que descontar sua raiva em mim? Eu não te fiz absolutamente nada!
O sorriso afiado cresceu.
— Sempre bancando a inocente. E sempre atrapalhando tudo.
Eu não aguento mais ter você no meu caminho, Julieta. E se você
não vai sair por bem… — inclinou levemente o violoncelo na direção
da escada — a única alternativa que resta é cortar o mal pela raiz.
— Eu nunca fiz nada pra te prejudicar!
— Você não tem ideia do que fez! — vociferou. — Julieta, a
garota exemplar. Julieta, a bolsista com a melhor nota. Julieta, a
queridinha dos professores! Julieta, Julieta, Julieta, eu não aguento
mais! Você tem alguma noção do quanto eu me sacrifico pra ser a
melhor? De tudo que eu tenho que fazer, todo santo dia, pra ser
reconhecida?
Sacudi a cabeça.
— Você não precisa ser a melhor em tudo…
— PRECISO SIM! — explodiu, aproximando perigosamente o
violoncelo do primeiro degrau. Prendi o fôlego, enrijecendo no lugar,
mas ela continuou: — Você faz alguma ideia de como é fazer parte
da minha família? Do que significa ser uma Lombardi? Dar o seu
melhor nunca é o bastante, dar o seu sangue nunca é o suficiente!
Eu preciso ser a melhor do conservatório. Não é uma opção. Mas
você, Julieta, a cada dia que passa, torna essa tarefa mais e mais
difícil. E sem nem tentar! — riu, mas seus olhos se encheram de
lágrimas. — E enquanto você passa na minha frente sem parar,
sabe o que resta pra mim? Broncas. Sermões, reprimendas,
cobrança… humilhação. Não é justo.
— Sinto muito por isso, Giovanna — falei com sinceridade,
ousando me aproximar um passo. — De verdade. Até um tempo
atrás eu talvez não entendesse como você se sente, mas… agora
eu entendo. Não é justo o que fazem com você, eu sei. Mas você
não precisa chegar a esse ponto. Não precisa seguir esse caminho.
Tem pessoas na sua família que vão te entender se você falar como
se sente.
— Quem? O tio Vougan? — bufou com desdém. — Por favor.
Ele é exatamente o tipo de pessoa que eu não posso me tornar. —
Trincou os dentes, as lágrimas ameaçando cair. — E é exatamente
com ele que me comparam. O lado da família que deu errado, a
decepção do sangue Lombardi. O elo fraco — cuspiu. — Ele pode
até não dar a mínima pro histórico da família, mas eu me recuso a
ser vista como uma decepção.
Respirei fundo, prendendo o fôlego.
— E como fazer isso vai ajudar em alguma coisa? — Indiquei
meu instrumento em suas mãos. — Não vai te colocar de volta no
concurso, só piorar ainda mais as coisas com o diretor. Com o seu
tio. Não foi por isso que ele te tirou do concurso? Porque estava
cansado de limpar a sua sujeira?
Giovanna piscou, o olhar duro vacilando.
— Como sabe que ele me tirou?
Engoli em seco, mas Mariana também avançou um passo.
— Por que não resolvemos isso tudo com calma? — falou,
trêmula. — Não precisa fazer isso, Giovanna. Já é demais.
Mas Giovanna olhou para ela, abrindo um sorriso que era puro
veneno.
— Olha só quem fala. Quer resolver tudo? Então por que não
começa contando à sua querida amiguinha como você a esfaqueia
pelas costas há meses, Mariana?

ʄʅ
Aurora
Estar novamente no colégio depois de tanto tempo deveria me
causar nostalgia. Deveria me fazer lembrar dos momentos bons, e
me deixar com saudades. Mas tudo que eu sentia naquele
momento, cada vez mais perto da diretoria, era enjoo.
Aquele lugar era um inferno. E mesmo depois de uma década,
a sensação continuava exatamente a mesma.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — Olhei para Vougan
pelo canto do olho.
Vougan. Eu nunca sequer imaginaria que voltaria a vê-lo um
dia. Pensava nele com frequência, claro, e durante todo o tempo
que ficamos separados eu não conseguia parar de pensar e
imaginar como ele estava, no que estava fazendo… se tinha enfim
conhecido outra pessoa e me apagado da memória.
Mas de todas as fantasias e especulações, com certeza nada
nem chegou perto daquilo. Vougan aparecendo na minha porta
acompanhado de uma adolescente, despejando uma enxurrada de
memórias e revelações sobre o passado. E menos de uma hora
depois estávamos indo, juntos, descer o cacete no babaca do primo
dele.
Eu com certeza não esperava uma reviravolta dessas quando
acordei de manhã.
— Precisa mesmo perguntar? — Ele me olhou, incrédulo. Os
olhos azuis, que nos últimos anos sempre invadiam os meus
sonhos, estavam daquele jeito, frios e afiados como estacas de
gelo. No mínimo, ele devia estar pretendendo matar o primo.
— Vai arriscar perder tudo. Isso não te preocupa nem um
pouco?
O olhar duro vacilou, apenas um pouco.
— Sei quais são os riscos. Eu gosto sim de trabalhar aqui,
gosto de estar perto dos alunos e vê-los crescer e amadurecer… e
sei do que vou abrir mão seguindo em frente com isso, mas também
já fiquei parado por tempo demais. Ainda mais agora que eu sei que
praticamente tudo nos últimos dez anos foi uma mentira. Não posso
deixar que essa injustiça continue por mais um segundo sequer. —
Cerrou os punhos com força, a mandíbula tensa. — E ele ainda me
deve muitas explicações.
— Certo — murmurei, voltando a olhar para o corredor. E
indiquei a porta familiar mais à frente com a cabeça. — É ali?
Vougan assentiu de leve, o corpo todo tenso. E foi confirmação
suficiente para pôr meu plano em ação.
Saí correndo, acelerando o máximo que consegui, passando
por Vougan e, antes que ele pudesse reagir, alcancei a porta.
— O que tá fazendo? — exclamou, os olhos arregalados, e se
apressando para me alcançar. Mas já era tarde demais.
— Me desculpa — falei, ofegante. — Mas não posso deixar
você perder tudo mais uma vez.
— AURORA, NÃO! — berrou.
No exato momento em que eu bati a porta, deixando-o do lado
de fora. E bloqueei a passagem, prendendo uma cadeira embaixo
da maçaneta.
— Aurora! — ele exclamou, esmurrando a porta.
— Me perdoa — sussurrei com o coração apertado. Não queria
trair sua confiança logo depois de fazer as pazes, mas… tinha que
protegê-lo. Não pude da primeira vez, mas não deixaria isso
acontecer de novo.
Tentando recuperar o fôlego, me virei lentamente, dando de
cara com o rosto pálido e em choque de Vinícius atrás de sua mesa,
me encarando como se eu fosse uma assombração. O cabelo
castanho-escuro estava mais curto, mas de resto… não tinha
mudado nada.
— Aurora? — sussurrou, se levantando com cuidado, como se
estivesse de frente com um animal mortífero e não quisesse fazer
movimentos bruscos. — O que tá fazendo aqui?
Ainda com a respiração pesada, sorri da forma mais maliciosa
que consegui e cruzei a distância até ele a passos largos. Empurrei
os papéis, pastas e o que mais tivesse em sua mesa, derrubando
tudo no chão, e me sentei sobre o tampo, girando e metendo um
chute em seu peito com força o suficiente para fazê-lo cair de volta
sentado na cadeira.
— Sentiu saudades? — falei com doçura, me aproximando e
agarrando sua gravata como se fosse uma corda de enforcamento,
meu pé ainda firme em seu peito o mantendo no lugar. — Acho que
você me deve algumas respostas. Cuzão.
Capítulo 47
Julieta
Meu coração falhou uma batida com a revelação de Giovanna.
— O quê? — sussurrei, olhando com cautela para a garota ao
meu lado. Seu rosto tinha perdido completamente a cor. — Do que
ela tá falando, Mariana?
Mas ela apenas me olhou pelo canto do olho, os lábios
comprimidos com força até não passarem de uma linha fina.
— Não quer mais conversar? — Giovanna inclinou a cabeça,
ainda sorrindo. — Me permita fazer as honras, então. — Voltou a me
encarar. — Como acha que eu descobri que peça você ia tocar na
primeira seleção? Ou como aquele pacotinho comprometedor foi
parar na sua mochila? Nada me faria mais feliz do que ficar com
todo o crédito, mas não pode achar que eu conseguiria fazer tudo
sozinha.
Engoli em seco. Não, não podia ser.
— É mentira. — Olhei para Mariana, suplicante. — Por favor,
diz que isso é mentira.
Mas seus olhos estavam carregados de culpa. Ela abriu a boca,
trêmula, e falou:
— Eu não queria…
— Ah, por favor — Giovanna cuspiu. — Já pode parar com a
encenação.
— Você me sabotou? — Lágrimas queimavam os meus olhos.
— Por quê?
— Eu não queria! — Mariana repetiu, sacudindo a cabeça. E
apontou para Giovanna. — Ela me obrigou!
— Obriguei? — Giovanna voltou a inclinar a cabeça, os olhos
inocentes. — Que palavra forte. Não, você simplesmente me
ajudou. Foi minha cúmplice. É o que melhores amigas fazem no fim
das contas, não é?
Quase engasguei. Melhores amigas?
— Bom, já que ela não quer falar, falo eu. — Giovanna deu de
ombros. — Mariana e eu nos conhecemos desde o ensino
fundamental, e sempre fomos muito próximas. Como era mesmo
que nossas mães diziam? Que éramos praticamente irmãzinhas? A
escola inteira sabe disso. E você ser uma novata que não fazia ideia
ajudou muito pra esse plano dar certo.
— Plano? — balbuciei, incapaz de pensar.
— O plano de fingir que Mariana era sua amiga, claro. —
Giovanna sorriu com doçura. — É bem simples de entender, na
verdade: se você sequer ousasse tentar participar do concurso, ela
ia fazer de conta que não fazia parte do meu grupo pra poder te
espionar. E passaria pra mim tudo que descobrisse de útil sobre
você pra me poupar o trabalho.
Me lembrei de Mariana aparecendo durante o meu ensaio na
primeira seleção... ela foi embora assim que deu uma olhada na
minha partitura. E na biblioteca, engatinhando próximo à minha
mochila com a desculpa de que estava procurando o grafite da
lapiseira… logo depois disso a embalagem de preservativos
apareceu misteriosamente no meio das minhas coisas. E ainda…
Se gosta da Mariana, comece a demonstrar, falei para Vitor
logo após presenciar o tapa que Mariana levou no rosto. Ainda mais
agora que ela provocou a ira de Giovanna e provavelmente virou um
alvo também.
Alvo?, ele respondeu com uma risada. Você ainda tem muito
que aprender, bonequinha.
O que isso quer dizer?
Você vai descobrir. Na hora certa. E quando isso acontecer…
estaremos todos completamente fodidos.
Ah, meu Deus. Era disso que ele falava.
— Todo mundo sabia — sussurrei, quase sem ar. — Esse
tempo todo… eu achei que tinha julgado vocês mal. Achei que
podiam ser meus amigos. Mas todos vocês armaram pra mim. —
Pisquei, arregalando os olhos para Mariana. — Era você naquele
dia. No primeiro dia de aula, quando eu escutei de dentro do
depósito. Vitor, Pedro… e você.
Aquela voz feminina, firme e decidida… não era de Beatriz.
Por isso Richard sempre ficava tenso quando Mariana estava
por perto?
Richard…
— Ele sabia sobre isso? — Olhei de uma garota à outra, com
cautela e atenção. — Richard sabia sobre esse plano de vocês?
Mariana sacudiu freneticamente a cabeça, mas foi Giovanna
quem falou:
— Richard é um molenga. Nunca foi alguém com quem eu
pudesse contar, não quando realmente precisava. Se bem que… —
Encarou Mariana com desprezo. — Todos vocês me traíram em
algum momento. Foi só passar um tempo com a Julieta, a sempre
perfeitinha Julieta, e você começou a me dar trabalho. Não queria
seguir com o plano e me desafiava.
— E como punição você meteu um tapa na minha cara —
Mariana grunhiu.
— Você não me deu escolha! — falou como se fosse óbvio. —
Eu tive que te lembrar onde era o seu lugar. Era só seguir a porra do
plano! Mas não, você tinha que estragar tudo! E ainda convenceu
Pedro e Vitor a fazer o que você queria!
— Eu não fiz nada! — Mariana exclamou, os olhos injetados de
ódio. — Eu não tive que fazer nada. Ninguém mais aguenta você,
Giovanna! Ninguém nunca gostou de você! Vitor só te obedecia
porque tinha uma dívida com você por ter livrado a cara dele de uma
expulsão, e Pedro só te suportou pra você parar de perseguir a
Beatriz. Richard então, nem se fala. Ele foi o único que se importou
com você, que realmente se preocupou com o seu comportamento,
mas você nunca dava o braço a torcer. Então ele desistiu! E eu… —
Se aproximou um passo, fervilhando. — Não importava o que
fizesse, você nunca me escutou. Você foi a minha primeira e única
amiga aqui na escola, mas nunca agiu como uma amiga de
verdade. Eu sempre tentei te agradar, mas você sempre agiu como
se eu não tivesse feito mais do que a minha obrigação. — Trincou
os dentes, os olhos marejados com lágrimas de raiva. — Então me
desculpe se eu me afastei de você, se todos se afastaram de você
depois de termos conhecido alguém que realmente sabia valorizar
uma amizade! Mas sabe o que é pior? O que mais pesa na
consciência? Não é ter cansado de você, mas me dar conta de que
a pessoa que me mostrou o que é uma amizade de verdade
também era a pessoa que eu mais ia magoar depois que
descobrisse toda essa merda!
Silêncio pesou no ambiente.
Eu apenas encarava Mariana, boquiaberta e sem saber o que
pensar, o que sentir, enquanto o rosto de Giovanna era um misto de
sentimentos e emoções: raiva, incredulidade, choque… mágoa.
— E é exatamente por isso — ela falou, a voz baixa e
surpreendentemente fria — que eu não confio mais em ninguém.
Por que acha que nenhum de vocês sabia sobre o meu plano na
segunda seleção? Eu tive que encontrar outros que estivessem
dispostos a me ajudar, sem perguntas e sem discussão.
— Mas fez questão de se vingar dos meninos, jogando a culpa
em cima deles — Mariana rebateu.
Giovanna deu de ombros, o canto da boca se curvando em um
sorriso sombrio.
— Uma puniçãozinha de nada.
— Por que não deixou que eles fossem expulsos então? —
ousei falar.
Ela piscou, seu sorriso vacilando.
— Como?
— O diretor ia expulsar Vitor e Pedro, mas você o convenceu a
não ir tão longe. Se estava com tanta raiva assim deles, por que não
deixou que fossem expulsos de uma vez?
Giovanna não respondeu, mas nem precisou. A resposta, por
mais estranha e improvável que fosse, era óbvia. Ela gostava do
grupo de amigos. Do seu jeito distorcido, frio e bruto, mas gostava.
Pelo menos o suficiente para impor alguns limites do quão longe ela
mesma iria pra dar uma lição neles pela traição.
— Tá de sacanagem — Mariana falou, se dando conta também.
Lágrimas voltaram a encher os olhos de Giovanna, apesar da
expressão de pedra.
Não justificava tudo que ela tinha feito, não apagava tudo que
tinha acontecido até ali. Mas se Giovanna era tão quebrada daquele
jeito, não tinha feito tudo sozinha. Alguém a tinha moldado daquela
forma. E pela mágoa em seus olhos… ela não se orgulhava. Podia
apostar que até odiava. Mas também não sabia agir de outro jeito.
— Olha… — ergui as mãos, tentando acalmar os ânimos — a
gente pode resolver isso. Tudo isso. Não é tarde demais, Giovanna.
— E o que você sabe? — grunhiu, se aproximando mais dos
degraus.
Meu coração parou por um segundo, o pânico crescendo dentro
do meu estômago, lutando pra tomar conta de mim, mas continuei
falando.
— Eu fui a pessoa que você mais perseguiu esse semestre. Fui
a pessoa que você mais prejudicou, e ainda assim quero dar uma
chance pra tudo se resolver. Por favor, Giovanna, você sabe que
esse não é o único jeito. Você não precisa ser desse jeito. Você é
mais do que o seu sobrenome, é muito mais do que a sua família
quer que você seja. Só dê uma chance de enxergar isso. Se dê uma
chance, Giovanna. Por favor.
O lábio inferior dela tremeu, as lágrimas se acumulando mais a
cada segundo conforme seus dedos seguravam e apertavam com
força o meu violoncelo, uma luta sendo travada em seu interior. Ela
podia ceder, podia me escutar, mas também podia simplesmente
jogar toda a merda no ventilador. Era como se ela estivesse
andando em uma corda bamba emocional.
Abri a boca para tentar mais uma vez, mas passos apressados
se aproximaram, me sobressaltando.
— Julieta, finalmente te achei! — Richard falou atrás de mim, e
veio correndo na minha direção. — Recebi suas ligações, mas… —
Parou, os tênis derrapando no piso.
Olhei para ele por cima do ombro, com cuidado. Ele encarava a
cena com os olhos arregalados, percebendo que algo muito sério
estava acontecendo ali.
— Giovanna… — falou, se aproximando com muita cautela. —
O que tá fazendo?
Ela o encarou, os olhos marejados ficando carregados de ódio,
e esticou ainda mais o braço na direção da escada, meu violoncelo
pendendo perigosamente no ar.
— Nem mais um passo — falou entre dentes, os olhos afiados
passando por cada um de nós.

ʄʅ
Aurora
— Cadê aquela vaca da Susana? — perguntei, exibindo os
dentes, o rosto bem próximo do de Vinícius enquanto o puxava pela
gravata. Esperava que o estivesse estrangulando. — Vocês
manteram contato? Sabe onde ela tá?
— Não — balbuciou, engasgando. — Ela só ficou na escola até
o final daquele ano, depois eu nunca mais ouvi falar dela.
— Por que não contou a verdade? Você tinha a porra da
influência da sua família, por que não a usou pra algo decente pelo
menos uma vez na vida?
— Você sabe muito bem por que eu não disse nada. — Me
fuzilou com os olhos. — Ouviu a conversa naquele dia, como a
enxerida que é.
Pressionei ainda mais seu peito com o pé e enrolei a gravata
em minha mão, puxando com mais força.
— Você não considerou nem por um mísero segundo fazer
justiça pelo seu primo ao invés de se preocupar com seu próprio
rabo? — grunhi.
Vinícius ficou em silêncio. Mas era resposta o suficiente.
Ao fundo, Vougan ainda chutava e esmurrava a porta.
— O que você fez com a minha carta? Vougan nunca chegou a
receber, então só posso presumir que um certo carteiro malandrinho
sumiu com ela.
— Virou confete e foi dar um passeio pela descarga do
banheiro. — Sorriu com malícia, os dentes cerrados. — Foi o lugar
mais decente que consegui arrumar pra ela depois de ler toda
aquela melação ridícula.
Soltei a gravata e agarrei seu pescoço de uma vez. Ele
arquejou, sem ar, mas apenas continuei o interrogatório.
— Como você soube da promessa? Eu não mencionei ela na
carta e duvido muito que você e Vougan sejam do tipo que fofocam
e trocam confidências.
Mesmo engasgando e sem conseguir respirar direito, Vinícius
riu com satisfação.
— Ele jura pela própria vida que não ficou grogue por causa
dos remédios, mas falou coisas muito interessantes logo após a
cirurgia. Tudo sobre você, claro. Então pode ser que ele tenha
mencionado uma certa promessa sobre você nunca sair de perto
dele, e pode ser que eu tenha usado isso a meu favor. Mas sabe
qual foi a melhor parte? — Os olhos azuis brilharam de uma forma
familiar demais que me despertava uma lembrança de dar náuseas.
— Foi ouvir aquela língua solta falar com detalhes sobre como você
parecia um anjo enquanto tocava, como seu cabelo era cheiroso e
macio em seus dedos… como sua pele tinha gosto de morango e
como a sensação da sua língua no pau dele parecia o paraíso.
Engoli em seco, em choque, meus dedos em seu pescoço
vacilando por um mísero segundo, mas foi o suficiente para ele, com
todo o seu tamanho e peso, levar a vantagem.
Vinícius avançou, agarrando meus braços, e me empurrou
sobre a mesa até minhas costas baterem contra o tampo de
madeira.
— Sabe como foi difícil não te agarrar no meio do hospital
mesmo depois de ter ouvido tudo aquilo? — ele falou com a voz
tranquila e sedosa em cima de mim, os dedos grossos me
segurando com força e me prendendo no lugar. — Depois de ter
imaginado cada uma daquelas cenas… da sua boca em mim?
Tentei me debater, mas só serviu para que ele me segurasse
ainda mais firme.
— Ainda não superou essa paixonite? — cuspi as palavras
como se fossem ácido. — Que patético, um adulto da sua idade se
corroendo de inveja do namoro adolescente do primo. Vê se cresce,
Vinícius.
Ele grunhiu, aproximando o rosto do meu.
— Você nunca se perguntou por que eu não fiz nada quando te
peguei na biblioteca? Por que apenas me livrei daquela droga de
diário ao invés de me livrar de você como a Susana queria?
— Porque a sua prioridade sempre vai ser o próprio rabo —
falei entre dentes, tentando libertar minhas pernas. Mas ele me
segurou com o próprio corpo, quase subindo em cima de mim.
— Acredite se quiser, mas eu fiz aquilo pra te proteger! —
cuspiu com raiva.
Parei de lutar, apenas porque aquilo me pegou de surpresa.
Mas não acreditei em suas palavras nem por um segundo sequer.
— Conta outra — bufei.
— Aquela garota era maluca — continuou, me ignorando. —
Obsessiva de uma forma que eu nunca vi, e capaz de fazer coisas
que nem eu teria coragem pra conseguir o que quer. Me livrei do
diário pra me safar, sim, mas também nunca contei a ela que você
apareceu naquele dia. Pra Susana, você simplesmente
desapareceu depois do acidente do Vougan. E eu queria que
continuasse assim, então precisava arrumar um jeito dela nunca
mais chegar perto de você. E foi aí que inventei que meu primo tinha
mandado você ir embora.
Pisquei, tentando não revelar o tamanho real do meu choque.
— É mentira — falei, mas minha voz não saiu tão firme quanto
eu queria e meu coração estava perigosamente disparado.
Vinícius inclinou a cabeça, olhando cada centímetro do meu
rosto com atenção.
— É mesmo? Então me diga por que outro motivo eu daria um
jeito de mandar você pra longe. Por que simplesmente mandaria
você embora e te afastaria do Vougan se isso ia significar que eu
também nunca mais ia te ver. — Aproximou o rosto do meu, a boca
da minha. — Não foi por ciúme, Aurora.
— Vinícius… — falei, fraca mas desesperada, a respiração
ficando mais irregular do que seria considerado normal. Droga, de
novo não. Eu não tinha bombinha nenhuma ali. — Por favor… eu
não consigo…
Mas ele, como o babaca guiado pela cabeça de baixo que era,
interpretou minhas palavras do pior jeito possível.
— Eu também não — falou com a voz grave antes de baixar
ainda mais o rosto na minha direção… e me beijou.
Parecia que minha cabeça ia explodir, e meus pulmões
queimavam.
Não conseguia respirar, não conseguia respirar…
ME SOLTA, PORRA, eu queria gritar, mas não conseguia nem
puxar o ar pelo nariz…
Um estrondo ecoou em algum lugar mais ao longe, mas podia
muito bem ter sido coisa da minha cabeça já que a língua de
Vinícius continuou invadindo minha boca.
Um grito de puro ódio, quase um rugido, explodiu em meus
ouvidos e Vinícius foi literalmente arrancado de cima de mim, a
pressão em meus pulmões aliviando um pouco, mas ainda não
conseguia puxar ar suficiente, não conseguia…
— Aurora! — Olhos azul-cinzentos desesperados pairaram
acima de mim, mas minha visão começava a escurecer. — Aurora,
fica comigo! Respira!
Eu bem que tentava, mas meus pulmões não queriam
colaborar.
— Moranguinho! Ei! — Ele me deu tapinhas no rosto, a voz
tomada por pânico, mas a pressão no meu cérebro só aumentava.
Não conseguia respirar, não conseguia respirar… não
conseguia…
Não conseguia.
Capítulo 48
Julieta
— Fala com ela — murmurei baixinho para Richard,
completamente desesperada. — Por favor, faz alguma coisa. Por
favor…
— Giovanna… — ele falou, tranquilizador — você não quer
fazer isso.
— Você não faz a mínima ideia do que eu quero — ela grunhiu.
— Não me conhece, nunca conheceu.
— Conheço, sim. — Ergueu as mãos devagar. — Talvez não a
versão ambiciosa e perfeccionista, mas a garota, a humana, sim. A
Giovanna de verdade.
— Não se aproxime — reforçou quando Richard tentou avançar
um passo. Ele parou, tenso.
— Você é melhor do que isso. Cadê aquela Giovanna leve e
sorridente que eu conheci quando era criança? Ela não ligava pra
competições, não tocava por qualquer outro motivo a não ser
porque gostava. Porque a música a fazia feliz. Você era feliz. Não
quer sentir aquilo de novo?
— Isso é só conversa… — Giovanna abanou a cabeça, mas
estava claramente mexida com as palavras de Richard, por mais
que tentasse esconder.
— É mesmo? — ele insistiu, ousando se aproximar um passo.
Dessa vez ela não impediu. — Então olhe nos meus olhos e diga
que não sente falta daquela época. Que nada daquilo teve
significado e que aquela Giovanna serelepe que gargalhava o dia
inteiro não existe mais.
— Eu nunca disse… — Ela piscou, cada vez mais incerta. —
Você tá brincando comigo, isso não vai…
— Ainda dá tempo, Giovanna. — Ele se aproximou mais um
passo, a voz tranquila. — A leveza, os sorrisos, as músicas felizes…
as coisas podem voltar a ser daquele jeito.
— Podem? — ela murmurou de repente, o rosto suavizando
aos poucos.
— Podem. — Richard sorriu, encorajando. — Éramos eu e você
contra o mundo, lembra? Não foi o que você disse enquanto a gente
fazia um castelo de areia no parquinho, anos atrás?
— Você entrou na fonte pra pegar as moedas e decorar as
torres — Giovanna falou baixinho, quase um sussurro.
O sorriso de Richard cresceu.
— E você ficou em pé na mureta, toda pomposa como a capitã
de um navio, apontando a direção das mais brilhantes.
— Eu nunca me esqueci daquele dia. — Giovanna recolheu um
pouco o braço, e ousei soltar um suspiro mínimo de alívio. Mariana
ainda estava rígida ao meu lado, os olhos grandes arregalados
olhando de Richard a Giovanna sem ousar piscar.
— Você é muito mais do que sua família te pressiona a ser —
Richard continuou. — Você pode ter esquecido, pode sentir que se
perdeu no caminho, mas ainda pode voltar. — Esticou o braço na
direção dela, a mão estendida. — E não precisa fazer isso sozinha
se não quiser. Eu aponto a direção das moedas brilhantes dessa
vez. Eu prometo.
Giovanna recuou mais o braço, estava quase cedendo…
— E ela? — Acenou para mim com a cabeça, os olhos voltando
a ficar severos. — Vai querer trazer ela junto, imagino.
Engoli em seco, sem ousar me mexer, mas Richard deu um
passo para o lado, me bloqueando de sua vista.
— Eu e você, lembra? Ninguém vai chegar perto de você, a
menos que você queira. Mas… eu te asseguro que ninguém aqui
quer o seu mal. Mariana foi sua amiga por muito tempo, e Julieta…
ela tem um coração bom. Tenho certeza de que vocês poderiam se
dar bem se tivessem a chance. Tenho certeza de que ela gostaria
de ter essa chance. E você?
Giovanna levou um tempo, sopesando as palavras…
— Todos estão muito melhor sem mim — falou, no entanto. —
Eu vi como estavam rindo juntos semana passada. — Inspirou com
força entre os dentes, a voz ficando trêmula de raiva. — O meu
grupo… se unindo, feliz, ao redor da Julieta. Ela tirou tudo de mim.
As conquistas, a atenção dos professores… meus amigos. Você. —
Soltou uma risada histérica, fungando. As lágrimas tinham, por fim,
começado a cair. — O que é que eu tenho agora? O que restou pra
mim? Todos a amam, e me odeiam. — Trincou os dentes, tentando
segurar o choro. — Eu não tenho mais nada a perder.
— Eu também perdi tudo. — Me pus ao lado de Richard, as
mãos ainda erguidas, numa última tentativa desesperada. — Acha
que minha vida é perfeita? Acha que eu vivo num mundo mágico de
fantasia? — Minha visão ficou embaçada, e minha voz embargada.
— Minha vida é uma luta diária, Giovanna. Eu só participei do
concurso porque literalmente não tive outra opção. Eu preciso desse
prêmio. Eu estudo e trabalho em dois empregos pra conseguir pagar
as contas e os remédios que meu avô doente precisa, e agora
preciso dar um jeito de pagar a cirurgia do coração que o salvou da
morte. Ele só tem a mim, e ele também é toda a família que me
resta. Eu sei que ser a melhor em tudo é importante pra você, e eu
não desmereço os seus motivos, mas entenda que eu também não
tive escolha.
Mariana e Richard estavam completamente imóveis e mal
ousavam respirar. E Giovanna me olhava com os olhos arregalados,
o peso das minhas palavras e da minha realidade a atingindo com
tudo.
— Eu não entendo — sussurrou, uma lágrima descendo
lentamente pela sua bochecha até o queixo. — Por que você
precisa fazer tudo isso?
Minhas mãos estavam trêmulas e tive que engolir o caroço
enorme que tinha se formado na boca da garganta, que pesou como
chumbo no meu estômago.
— Meu pai me abandonou quando eu era pequena, e minha
mãe… — Fechei os olhos por um momento, uma lágrima quente
escorrendo de cada lado do meu rosto. — Esse violoncelo… —
indiquei o instrumento em suas mãos — era dela. Foi com ela,
tocando esse mesmo violoncelo, que eu aprendi a amar música. E
agora ele é tudo que me resta dela.
Giovanna piscou, em choque, fazendo outra lágrima cair
pesadamente de seus olhos azuis.
— O quê? — falou, assombrada.
— Ela morreu num acidente de carro quando eu tinha seis
anos. — Sacudi a cabeça de leve, meu lábio inferior tremendo
enquanto tentava não desabar no choro. — Eu sei o que é perder
tudo, Giovanna. Senti isso no fundo da minha alma. Então, por
favor, acredite quando eu digo que eu nunca, jamais, faria isso com
você. Eu nunca quis te prejudicar, de nenhuma forma. A única coisa
que importa pra mim agora é conseguir cuidar do meu avô. Então,
por favor… — minha voz saiu como um sussurro trêmulo — não faz
isso. — Olhei para o violoncelo, as lágrimas caindo sem parar. —
Por favor, não tire de mim a única lembrança boa que eu tenho de
uma vida inteira de dor.
— Dor… — Giovanna murmurou baixinho, os olhos ficando
distantes. Como se estivesse revivendo uma lembrança antiga. — A
dor é o que te torna forte, Giovanna. A dor vai endurecer seu
coração como se fosse uma armadura, e ninguém nunca vai
conseguir entrar. Ninguém nunca vai conseguir te vencer.
Meu sangue gelou, fazendo todo o meu corpo ficar rígido.
— Giovanna — Richard falou, alerta.
— Giovanna… — falei num fio trêmulo de voz.
Ela voltou a me encarar, os olhos lívidos e os nós dos dedos
brancos pela força com que segurava o meu instrumento no ar.
— Por favor… — sussurrei.
Um lampejo de agonia cruzou os olhos azuis, fazendo outra
lágrima cair, mas logo sumiu, endureceu, como um bloco de gelo frio
e impenetrável.
— Me perdoa por isso, Julieta — falou, a voz tão fria quanto sua
expressão. — Mas eu também não tenho escolha.
O grito ficou preso dentro da minha garganta conforme obrigava
meus pés rígidos a se moverem… tarde demais.
Porque Giovanna empunhou o braço do violoncelo com as duas
mãos e o jogou escada abaixo.

ʄʅ
Aurora
Vougan me colocou sentada, o queixo apoiado em seu ombro.
— Tá tudo bem, Moranguinho — falou, a voz trêmula delatando
o quanto ele estava nervoso, mas passou a mão quente e
tranquilizadora pelas minhas costas. — Respira devagar. Fica
calma, você consegue. Devagar. Devagar…
Senti seu calor, os braços protetores ao meu redor… e tentei
obedecer, tentei obrigar meus pulmões a puxar o ar pelo nariz e
soltar pela boca, devagar…
— Isso, você consegue. Sente o ar entrando e saindo. Vai ficar
tudo bem.
A crise ainda estava no início quando ele apareceu, então
mesmo que ainda me sentisse meio zonza e desorientada, aos
poucos, minha respiração foi entrando nos eixos. Os dedos de
Vougan acariciavam minhas costas num ritmo lento e constante, que
usei de guia para inspirar e expirar, recuperando o controle do meu
corpo lentamente a cada segundo que passava.
— Isso, assim mesmo — ele suspirou pesadamente, aliviado, e
beijou a lateral da minha cabeça. — Essa é a minha garota.
— Que merda foi essa? — Ouvi Vinícius resmungar em algum
lugar, fora do meu campo de visão.
O corpo de Vougan enrijeceu, mas ele me tirou da mesa com
cuidado e me colocou sentada no outro par da dupla de cadeiras
estofadas de um tom verde-escuro. Sua irmã gêmea, que eu tinha
usado pra bloquear a porta, estava esquecida no chão com uma
perna quebrada.
Apoiei os cotovelos no tampo da mesa, ainda focando na
respiração, quando Vougan grunhiu, massageando meu pescoço:
— Ela tem asma… seu idiota! — Girou, o punho cerrado, e ouvi
o estalo dos ossos da mão de Vougan encontrando a mandíbula de
Vinícius. — É a segunda vez que você faz essa merda! — Outro
soco, que fez Vinícius se desequilibrar e cair de bunda no chão, mas
Vougan avançou pra cima dele. — A culpa é toda sua! Por dez anos
você me enganou, me fazendo acreditar que Aurora tinha ido
embora sem mais nem menos, mas foi tudo armação sua! — Mais
um soco. — Você sabia sobre a merda da Susana, e ainda assim
ficou quieto! Minha vida inteira desmoronou e você só ficou
assistindo! — Dois socos. — E agora incentiva essa mesma porra
de comportamento na sua sobrinha!
Pisquei, levantando a cabeça. Me virei lentamente, observando
a briga. O nariz de Vinícius sangrava, e as mãos de Vougan… os
espasmos tinham piorado, mas ele não parava de socar o primo.
— Para — falei, mas minha voz ainda estava fraca. Me movi,
tombando da cadeira, e me arrastei até alcançar Vougan, segurando
seu braço, mas tudo que consegui com meus dedos frouxos e sem
força foi enroscar as unhas em sua camisa. — Vougan… para.
Ele desferiu mais um soco em Vinícius antes de finalmente me
encarar, os olhos injetados de raiva… mas parou. Alcancei sua mão
e segurei seus dedos trêmulos com cuidado, tentando acalmá-lo.
Devia estar doendo nele também, forçar as mãos daquele jeito.
— Para — pedi num sussurro. — Já basta.
— Eu tirei ela do concurso — Vinícius resmungou de dor,
tossindo, engasgando e tentando conter o sangramento do nariz. —
Percebi o meu erro, e tirei Giovanna do concurso.
Vougan piscou, voltando a encarar o primo.
— O quê? Como ela reagiu? — Sua voz estava alarmada.
Vinícius bufou uma risada dolorida.
— Como você acha? Como uma Lombardi, mas com o dobro
de histeria.
— Merda — Vougan sibilou, saltando até ficar em pé, e me
ajudou a levantar também.
— Quem é Giovanna? — perguntei devagar.
Mas Vougan sacudiu a cabeça, os olhos arregalados, e me
segurou pelo pulso.
— Precisamos encontrar a Julieta. E rápido.

ʄʅ
Julieta
O som agonizante do estilhaço, de madeira se quebrando e se
partindo em lascas pontiagudas, estourou em meus ouvidos.
Só não foi tão agonizante quanto o grito de puro desespero que
saiu do fundo da minha garganta, arranhando e queimando como
ácido.
Não pensei em Giovanna, Mariana ou Richard naquele
momento. Apenas saí correndo, pulando os degraus com o coração
tão disparado que achei que fosse infartar, até alcançar o meu
violoncelo. Ou o que restou dele.
As cordas tinham estourado e se contorciam como dedos
curvos, o cavalete tinha rachado no meio e escorregado pra longe, o
braço estava torto e num ângulo muito errado, e a caixa sonora…
quebrada, com buracos e rachaduras em tantos lugares… em
pedaços.
Caí de joelhos diante da pilha de destruição, farpas e lascas
arranhando meus joelhos… e comecei a chorar. Amargamente, do
fundo da minha alma despedaçada, eu comecei a chorar.
O bem mais precioso que eu tinha, a única parte da minha mãe
que tinha sobrevivido ao acidente… destruída, como todo o restante
da minha vida.
Eu gemia, gritava e suplicava, pedindo a Deus pra acordar
daquele pesadelo, enquanto as lágrimas encharcavam o meu rosto,
meu pescoço, e eu me curvava para frente, o peito tão apertado que
parecia que ia explodir, e tocava com cuidado o que antes tinha sido
um instrumento lindo que, desde que eu me conhecia por gente,
cantou tantas músicas maravilhosas para mim com seu som grave e
acolhedor.
Nada. Ele tinha sido reduzido a nada. E eu não tive como
impedir. Não pude salvá-lo, assim como não pude salvar a minha
mãe. Assim como não pude impedir que ela fosse levada embora de
mim. Deus, a sensação era tão parecida e tão dolorosa quanto
naquele dia…
Passos apressados ecoaram à minha frente e atrás de mim,
mas não levantei a cabeça. Apenas continuei debruçada sobre a
pilha quebrada e pontiaguda. Não importava quem estava ao meu
redor, quem assistia àquela cena. Nada mais importava. Ninguém
importava.
— Julieta… — Richard sussurrou atrás de mim, a voz pesada
como se ele também sentisse dor.
— Merda. O que aconteceu? — Reconheci a voz assombrada
do professor De Lucca à minha frente, mas um pouco afastado.
— A Giovanna… — Mariana murmurou com a voz embargada,
mas não conseguiu continuar.
Mas foi o suficiente para o professor falar, um pouco trêmulo,
mas do modo mais firme que conseguiu:
— Vocês dois, levem-na para a sala do… pra minha sala. Isso
não vai ficar assim. E vão me contar exatamente o que aconteceu.
Relutantes, três pares de pés passaram por mim, e só vi de
relance enquanto eles avançavam, Mariana me olhando com os
olhos cheios de lágrimas e Richard com o rosto sombrio, furioso e
magoado, enquanto arrastava uma Giovanna de expressão
indecifrável e vazia pelo braço.
— Julieta… — o professor falou, o tom mais suave, mas não
me mexi. Não sairia dali nem arrastada.
— Eu fico com ela. — Reconheci a voz de Aurora, um pouco
fraca e instável, mas decidida. — Vou ficar bem — insistiu quando o
professor pareceu relutar. — Vai. Eu já te alcanço.
Ele não falou mais nada, mas pareceu assentir já que começou
a se afastar junto com os outros. Aurora logo se aproximou de mim,
ajoelhando ao meu lado com cuidado, e pousou uma mão delicada
nas minhas costas.
— Eu sinto muito, Julieta — sussurrou, a voz embargada. — Eu
sinto tanto…
— Acabou — lamentei, as lágrimas ainda rolando soltas pelo
meu rosto. — Ela se foi pra valer dessa vez. Eu não tenho mais
nenhum pedacinho dela. Acabou.
— Quem? — Aurora perguntou com cuidado.
Funguei, uma nova enxurrada de lágrimas vazando de mim,
meu coração apertado como se garras o torcessem ao meio.
— Minha mãe.
Aurora suspirou, trêmula, e fungou baixinho também, a mão nas
minhas costas subindo até meu ombro e me abraçando de leve.
— Eu sei que dói. E sei que parece que o mundo acabou, mas
você vai sobreviver a isso, Julieta. Eu prometo.
Ela falava com uma sinceridade, como se entendesse mesmo.
E foi só por isso que perguntei, a voz mal saindo e quase sem ar:
— Como você sabe? Como pode ter tanta certeza?
— Eu sei como é perder alguém que significa o mundo pra você
— falou com a garganta apertada, os dedos pressionando meu
ombro de leve. — Acredite, eu sei. Parece que a dor nunca vai
embora, e talvez não vá mesmo, mas… um dia de cada vez. A
gente vai sobrevivendo. Até que não seja tão sufocante.
Solucei, o coração tão despedaçado quanto o instrumento que
eu considerava como uma parte de mim, e me virei para Aurora,
agarrando-a pela cintura e voltando a chorar, desolada, em seu colo.
— Mesmo que o mundo acabe enfim… — ela cantarolou
baixinho, acariciando meu cabelo. — Dentro de tudo que cabe em
ti… Mesmo que o mundo acabe enfim…
Continuei chorando até sentir que tinha ficado vazia, a voz
suave de Aurora preenchendo minha mente cansada e os buracos
pontiagudos do meu coração.
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale

Fantasia: Peça musical que, a partir de melodias conhecidas e


trechos de ópera, revela a técnica do compositor e o virtuosismo do
intérprete.
Capítulo 49
Era tarde da noite, o quarto que eu e minha mãe dividíamos
imerso em completa escuridão. Estávamos deitadas na cama de
casal que nós duas também dividíamos, e me enrosquei no corpo
quente e seguro ao meu lado, agarrando seu braço.
— Por que o vovô não quer que você toque mais? — perguntei.
Mesmo tendo ouvido a conversa, a briga dos dois, eu ainda era
nova demais pra entender os assuntos dos adultos.
Ela me puxou para mais perto e me abraçou com força, o
perfume suave do seu cabelo ondulado fazendo cócegas no meu
nariz.
— Você ouviu aquilo, não é? — Suspirou, a voz suave apesar
do cansaço. — Ele nos ama, e se preocupa com a gente, Julieta. Só
tem um péssimo modo de demonstrar isso.
— Mas você não vai parar de tocar, né? Eu não quero que você
pare.
Ela levou um tempo pra responder, quase num sussurro:
— Talvez ele esteja certo.
— Não! — choraminguei. — Você gosta de tocar, mãe. Vive
dizendo isso. E sempre diz que a gente tem que fazer aquilo que
gosta.
— Julieta…
— Você sempre fala que eu preciso seguir o meu sonho. Como
eu vou fazer isso se você parar de seguir o seu? Por favor… —
Minha garganta apertou e comecei a chorar. — Por favor, não para
de tocar. Eu acredito em você. O vovô pode não acreditar, mas eu
acredito, mamãe.
Ela suspirou mais uma vez e me apertou mais contra o seu
peito, sua mão delicada e quente acariciando o meu cabelo curto.
— Você acha mesmo que eu consigo, florzinha? — perguntou
depois de um tempo, a voz suave, mas um pouco ansiosa.
— Eu sei que sim. Você é a melhor no viloncelo. A melhor do
mundo.
Mamãe riu.
— Se você diz, então é verdade. — Respirou fundo uma vez. —
Mas você tem razão, bebê, eu não posso desistir do meu sonho.
Seria um péssimo exemplo pra você se fizesse isso. — Ficamos em
silêncio por alguns minutos, até que ela acrescentou: — Quer
aprender uma coisa?
Funguei, esfregando os olhos, mas abri um sorriso enorme
quando falei:
— Quero!
— Feche os olhos — mamãe sussurrou, encostando a
bochecha quente no topo da minha cabeça.
Obedeci. A escuridão era completa e apenas os batimentos do
seu coração, bem perto do meu ouvido, eram audíveis.
— Quando tiver dúvida de alguma coisa, quando achar que
está perdida… quando ninguém acreditar em você, nem você
mesma… lembre-se sempre de fazer isso, Julieta: feche os olhos,
bem apertados, e escute.
— Escutar o quê? — sussurrei de volta.
— Isso aqui. — Seus dedos tocaram o meu peito por cima do
pijama de flanela. — Escute o seu coração. Olhe com o seu
coração. O coração entende, e nunca mente. Acredite no que ele diz
e siga a direção que ele mostrar. Assim você nunca vai se perder.
Promete que nunca vai se esquecer disso?
Assenti com a cabeça.
— Prometo, mamãe.
Senti quando ela abriu um sorriso.
— Que bom.
Tateei na escuridão, me guiando pelo som, até que meus dedos
pequenos encontraram o peito quente e acolhedor dela. Seu
coração batia forte, um ritmo constante e seguro contra a minha
palma.
É bom você mostrar o caminho certo pra minha mãe, pensei,
direcionando o aviso àquela batida.
— Eu quero ser igualzinha a você quando crescer — murmurei,
me aninhando em seu abraço enquanto meus olhos ficavam
sonolentos.
Minha mãe suspirou, e beijou minha testa.
— E eu quero que você seja melhor — sussurrou de volta.
ʄʅ
Algo muito parecido com uma marreta começou a esmurrar a
porta do meu quarto, me obrigando a abrir os olhos.
— Ju! — A voz de Jéssica começou a chamar, abafada mas
ainda assim alta demais, do outro lado. — Qual é, Ju, fala comigo!
Apenas bufei um resmungo e me contorci na cama, virando as
costas para a porta e puxando o cobertor por cima da cabeça.
— Eu passei no Marquês Cafeteria e comprei aquele capuccino
que você gostou tanto. E um bolinho! — cantarolou, tentando me
seduzir. Mas nem me mexi. — Já tem dois dias que você não dá
sinal de vida, Ju — insistiu. E, quando não respondi, voltou a
marretar a porta, abandonando qualquer tentativa de ser agradável.
— JULIETA, ABRE ESSA MERDA DESSA PORTA AGORA!
Tentei ignorar, tentei fechar os olhos com força e tapar os
ouvidos, mas… ah, quando Jéssica queria, conseguia ser
insuportavelmente insistente.
Chutei o edredom pra longe, bufando, e me levantei, batendo
os pés.
— Me deixa em paz! — gritei com raiva, escancarando a porta.
E um punho fechado me acertou com tudo bem na testa.
— Ai, meu Deus! — Jéssica arquejou, horrorizada, quando
cambaleei pra trás feito uma boneca de pano, e caí de bunda no
chão. — Me desculpa, Ju! — Se equilibrou nos saltos scarpin e
agachou pra me ajudar a levantar. Aceitei sua mão, a outra
esfregando a testa dolorida, e fiquei em pé, vendo estrelas.
— O que você quer? — resmunguei, ainda desorientada, e
voltei a me jogar na cama e me enrolar no cobertor.
— Vim ver como é que você tá, óbvio — resmungou de volta, e
ouvi seus pés decididos caminharem até a janela, que ela abriu com
tudo, banhando o quarto com luz. Luz demais.
Gemi, e escondi a cabeça embaixo do travesseiro.
— Tô ótima — bufei.
— Parece seu avô falando.
— Foda-se.
Jéssica parou, em choque. E correu até mim, puxando o
edredom.
— O que foi que você disse?! — esganiçou, a boca
escancarada enquanto segurava o cobertor em uma mão e uma
bandeja de papelão com um copo comprido de café e um saco
pardo equilibrado na outra, os óculos escuros no topo da cabeça
afastando o cabelo vinho ondulado do rosto. — Isso lá é coisa que
se diga, Julieta?
Bufei mais uma vez, voltando a puxar o travesseiro sobre o
rosto.
— Por que todo mundo me trata como se eu fosse uma
criança? Todos ao meu redor falam essas porcarias, mas eu nunca
posso.
— Desculpa, mas é que você é… sabe… você!
— Muito bem observado.
Jéssica suspirou, e espiei por uma fresta quando ela sentou no
colchão, apoiou a bandeja entre nós, e se deitou ao meu lado.
— Eu sei, Ju. Desculpa. Você não é uma criança, é até mais
madura que muitos adultos por aí. Às vezes, até mais do que eu —
riu de leve.
— Tudo bem — murmurei.
— Como você tá? — perguntou baixinho e com cuidado.
No fundo do poço, atolada até os joelhos em cocô.
— Sei que ainda é muito cedo pra falar — Jéssica murmurou
quando fiquei em silêncio. — Mas sabe que pode contar comigo
sempre, né? Pra qualquer coisa que precisar.
Não falei nada por um tempo.
— Como o bebê tá? — perguntei por fim.
— Bem. Ainda me causando muitos enjoos… — riu mais uma
vez — mas ele tá bem. Também é muito cedo pra isso, mas Elias
acha que é uma menina.
— Você quer que seja uma menina?
Jéssica ponderou por um tempo.
— Eu quero… o que ele ou ela tiver preparado pra mim. Seja
uma menina, um menino, um unicórnio… vai ser o momento mais
feliz de toda a minha vida de qualquer jeito.
E mesmo com tudo que estava acontecendo dentro de mim, eu
consegui sorrir, mesmo que só um pouco.
— Você já se sente uma mãe? Ou ainda tá assimilando tudo?
Mais alguns segundos antes de Jéssica falar, baixinho,
provavelmente sentindo onde eu queria chegar com aquilo:
— Por que pergunta, Ju?
Engoli com dificuldade, meu lábio inferior tremendo. E, devagar,
tirei o travesseiro do rosto, encontrando os olhos castanhos e
carinhosos da minha amiga.
— Porque tudo que eu preciso agora é de uma mãe —
sussurrei, lágrimas enchendo os meus olhos.
— Ah, Ju… — Ela se aproximou, me puxando num abraço que
só podia ser classificado como materno. Não recuei, e apenas
enterrei o rosto em seu ombro, chorando baixinho e absorvendo seu
calor. — Vai ficar tudo bem. — As pontas dos seus dedos
começaram a acariciar meu cabelo. — Você não tá sozinha. E
nunca vai ficar sozinha. Vou te ajudar como puder, sempre. Sei que
não é a mesma coisa, mas você tem sim uma família. Elias, eu… e
agora o bebê a caminho… somos sua família também, Ju. Nem
ouse pensar que você não faz parte da equação.
Não falei nada, não consegui, mas assenti de leve com a
cabeça.
E meu estômago roncou, mal me dando tempo de me recompor
com dignidade.
— O bolinho é de quê? — choraminguei, as últimas lágrimas
ainda caindo.
Jéssica riu da minha situação.
— Recheio de baunilha e coberto com gotas de chocolate.
Me sentei no colchão com um suspiro, e meu estômago roncou
uma segunda vez, fazendo Jéssica gargalhar.
— Alguma notícia do… colégio? — perguntou com cuidado, no
entanto, se sentando também enquanto eu devorava o bolinho e
pegava o copo de capuccino com os dedos lambuzados. — O que
eles vão fazer a respeito de tudo que aconteceu?
Parei por um segundo, meu coração apertando com a
lembrança, mas tratei de voltar a comer.
— Giovanna foi expulsa, até onde eu sei — falei, inexpressiva,
e tirei a tampa do copo. — E os pais ficaram responsáveis pelos…
danos que ela causou. O violoncelo era antigo, e tinha um valor
considerável. — Baixei os olhos, encarando a bebida quente, o
vapor subindo preguiçosamente. — O dinheiro caiu na minha conta
ontem.
— Isso é uma coisa boa… não é?
Fechei os olhos por um momento, sacudi a cabeça de leve e
aproximei a bebida do rosto, soprando com cuidado.
— Vai me ajudar a pagar a cirurgia. Mas tirando isso, eu… não
consigo perdoar o que ela fez.
— Ninguém disse que você precisa perdoar. Pagar os danos
não foi mais do que obrigação. Mas pelo menos… pela primeira vez,
a escola responsabilizou as pessoas certas.
Assenti, bebericando a bebida doce e, meu Deus, muito
saborosa.
— Mas isso só aconteceu porque o professor De Lucca tomou a
frente da direção.
— E o antigo diretor? — Jéssica inclinou a cabeça para o lado,
as ondas vermelhas escorregando pelo ombro.
— Depois da confusão daquele dia, acho que ele renunciou o
cargo. — E não era só da confusão da sobrinha que eu estava
falando.
Aurora e o professor tinham descoberto toda a verdade sobre o
passado e, juntando isso com tudo que Giovanna tinha armado
durante o concurso… o diretor não tinha mais como varrer a sujeira
pra debaixo do tapete.
— Que confusão. — Jéssica arregalou os olhos depois que
contei tudo a ela, desde as confusões do concurso até o rolo do
diário, e como aquilo tinha terminado. — E o professor De Lucca vai
assumir a posição de vez? Ou é só temporário, até que encontrem
outra pessoa?
— Não sei. O professor e o diretor… ex-diretor são parentes,
talvez o conselho estudantil veja isso de um jeito negativo. Mas,
depois de tudo que aconteceu… eu realmente acho que o professor
De Lucca seria um diretor muito bom. Um diretor justo, pra variar.
Jéssica assentiu, pensativa.
— E o concurso, como ficou? Ainda falta uma seleção, não é?
Vai acontecer, ou… cancelaram a coisa toda?
Mordi mais um pedaço do bolinho, bufando, mas respondi:
— Não faço ideia. E, sinceramente, prefiro nem saber.
— Você e Richard não conversam mais? — perguntou com
cuidado.
Engoli o bolinho como se fosse chumbo.
— Eu só… preciso de um tempo. De tudo. Eu não tô brava com
ele, só… ainda é tudo muito recente.
Eu não tinha nem motivos para ficar brava com Richard.
Realmente só precisava ficar afastada de tudo aquilo por enquanto.
E ele entendia, pois na única vez que conversamos, antes de eu
entrar no carro de Jéssica e Elias quando foram me buscar depois
daquele dia fatídico, deixou isso bem claro.
Sinto muito por tudo, falou, a voz embargada e me abraçando
com força. Me desculpa por não ter conseguido ajudar.
A culpa não foi sua, foi tudo que consegui falar, fraca e
inexpressiva. Vazia. Só preciso descansar, mas… eu vou ficar bem.
Nem eu acreditava naquilo, mas não tinha outra opção.
Richard assentiu, no entanto.
Leve o tempo que precisar, lutou com as palavras, como se
doesse dizer aquilo. Mas estarei aqui sempre, pra qualquer coisa.
Tudo vai se resolver, eu prometo.
Meu celular vibrou e apitou, me tirando do devaneio. Tive que
usar o mindinho pra abrir a notificação, o único dedo que não estava
lambuzado de recheio de baunilha… e arregalei os olhos.
— O que foi? — Jéssica perguntou quando endireitei os ombros
e peguei o aparelho com os dedos sujos mesmo, aproximando do
rosto para ler com mais atenção.
— Eu… — balbuciei, o canto da boca sujo de bolinho. — Eu
consegui uma entrevista. Pra amanhã, depois do almoço.
Tinha mandado vários currículos caso não passasse para a
seleção final, mas não pensei que realmente me responderiam.
— Entrevista? — Jéssica fez uma careta. — Pra fazer o quê?
— Estão precisando de recepcionista em uma clínica
odontológica. — Me arrastei até a beirada da cama e saltei para
fora, lambendo o que restou do recheio gorduroso nos dedos. —
Trabalho em período integral.
— Clínica odontológica? — minha amiga repetiu, sem entender,
como se eu tivesse falado em outra língua. — Período integral?
Mas… você só tem dezesseis anos.
— Dezessete a partir do mês que vem — lembrei, abrindo a
gaveta da cômoda e procurando alguma coisa adequada o
suficiente.
— Ainda é menor de idade. Eles podem contratar
adolescentes?
— Legalmente falando, eu já sou uma adulta, lembra? Tem um
documento oficial que comprova isso.
— Mas… e a escola?
Parei o que estava fazendo e, lentamente, me virei para ela.
— Eu tenho uma conta de valor astronômico no hospital pra
pagar, Jéssica. Preciso dar prioridade a isso.
— Eu sei. — Ela se levantou, suspirando, e largou os óculos de
sol no colchão. — Mas você não quer fazer faculdade um dia, Ju?
Trabalhar em algo que realmente goste? Não pode simplesmente
largar os estudos assim.
Baixei os olhos, brincando com as unhas.
— Tem algumas opções. Eu posso continuar estudando pela
internet, ou…
— Ou?
— Tem uma prova que eu posso fazer. É mais difícil, mas… se
eu passar, consigo tirar o diploma do ensino médio mesmo sem ter
feito até o fim.
— E você acha que consegue?
Dei de ombros.
— Eu me considero bastante inteligente, mas ainda assim
precisaria estudar muito. Só tentando pra saber.
Jéssica assentiu, mas não parecia estar gostando nada daquilo.
Suspirei.
— O que foi? — perguntei por fim.
— Nada. É só que… — soltou o ar com força — me dói ver
você assim, tendo que crescer tão rápido. E não poder fazer nada.
Engoli com dificuldade. E falei, mesmo sem acreditar muito nas
minhas próprias palavras:
— Tudo bem. Eu já tô acostumada. — Voltei a vasculhar as
roupas na gaveta.
Jéssica também não acreditou. Mas perguntou mesmo assim:
— Precisa de carona pra entrevista amanhã?
— Ajudaria muito. Mas… você e Elias não vão estar ocupados
dando aula?
— Não, amanhã de tarde eu tô livre. E Elias… passou os
alunos dele pra outro professor.
Pisquei, girando nos calcanhares de volta para Jéssica. Só
havia um motivo para que Elias fizesse aquilo.
— Ele conseguiu o emprego? — perguntei, os olhos
arregalados.
Minha amiga tentou, mas não conseguiu segurar o sorriso de
pura empolgação e orgulho.
— Conseguiu. Numa empresa perto de casa, com um salário
ótimo. Não uma quantidade absurda, mas… — baixou os olhos e
apoiou as mãos na barriga com carinho — o suficiente pra garantir
uma vida boa pro nosso bebê. Vai começar na semana que vem.
— Meu Deus… Jéssica, isso é incrível! Parabéns! — Corri até
ela, sorrindo de orelha a orelha, e joguei os braços ao redor de seu
pescoço. — Eu fico tão feliz por vocês! Esse bebê não sabe a sorte
que tem por ter vocês dois como pais.
— E você como tia — falou, apertando o abraço.
Me afastei apenas o suficiente para encará-la nos olhos.
— Tia? — sussurrei.
— É claro. — Minha amiga sorriu. — O quê? Eu disse que você
faz parte da equação. — Afastou um pedaço da minha franja que
caía em meus olhos. — Podemos não ser parentes de sangue, mas
você faz parte da família, Ju. Sempre fez.
Um sorriso genuíno tomou forma em meu rosto, e senti meus
olhos ficarem marejados.
E voltei a abraçar Jéssica com força. Minha amiga, quase uma
irmã. Minha família.
— Eu te amo, Jéssica — sussurrei segurando as lágrimas, mas
com o coração quentinho ao mesmo tempo.
— Eu também te amo, Ju — sussurrou de volta, acariciando
meu cabelo.
E eu não sabia, mas aquele calor era tudo que eu precisava pra
começar a me curar.
Capítulo 50
Aurora
Eu estava na escola, no meio dos degraus daquela maldita
escadaria. Sozinha, apenas o silêncio absoluto como companhia.
Até que ouvi um choro.
Olhei para baixo e, na base dos degraus, havia uma garota. Eu
a conhecia. Só via o cabelo castanho comprido descendo pelas
costas, mas ela estava exatamente do mesmo jeito de quando a
conheci. A amiga do Vougan, Clarice. Ela chorava com uma dor e
mágoa que apertavam o meu peito.
Desci correndo, quase pulando os degraus que pareciam muito
maiores em número que o normal, mas quando finalmente a
alcancei… não era mais ela, e sim uma garota de cabelos curtos tão
pretos quanto as penas de um corvo. E bem diante dela… uma pilha
quebrada e pontiaguda de madeira, restos do que um dia foi o seu
violoncelo.
— Julieta… — sussurrei, trêmula, e me ajoelhei em frente a ela
e a pilha. Farpas e lascas afiadas machucavam seus joelhos e suas
mãos, a ponto de tirar sangue, mas ela apenas continuava chorando
amargamente pelo instrumento destruído.
— Eu devia ter percebido antes — sussurrou em meio ao choro,
as lágrimas pingando do seu rosto para os pedaços de madeira. —
Devia ter prestado mais atenção. Isso é tudo culpa minha.
Pisquei, horrorizada.
— O quê? Julieta, nada disso é culpa sua…
— Nada disso teria acontecido se eu tivesse entendido — ela
continuou, me ignorando. E apertou as lascas de madeira com mais
força, aprofundando os cortes. — É tudo minha culpa, tudo minha
culpa. Tudo minha culpa.
Encarei suas mãos com horror, meu estômago revirando
conforme o sangue pingava. E uma sensação horrível de déjà-vu
tomou conta de mim.
— Julieta, para! — Agarrei suas mãos, mas quando as
encarei… não eram mais as mãos pequenas e delicadas de uma
garota que eu segurava. Mas mãos grandes de dedos longos,
dilaceradas por cacos de vidro.
Voltei a olhar para cima, para onde Julieta estava… mas a
imagem havia mudado novamente. Agora eu encarava… a mim
mesma, uma versão mais jovem, com o rosto encharcado de
lágrimas e segurando aquelas mesmas mãos.
— É tudo minha culpa — continuou a sussurrar, as lágrimas
escorrendo pelo queixo, mas eu não queria voltar a olhar para baixo.
Sabia o que encontraria, podia sentir o líquido quente e pegajoso
nos meus joelhos, mas… simplesmente não conseguia. — É tudo
minha culpa, eu devia ter percebido antes. Devia ter prestado
atenção, devia ter entendido. É tudo minha culpa.
Abri a boca, mas não conseguia falar. Não conseguia respirar.
Até que aquela versão de mim ergueu os olhos… e me olhou
como se fosse um reflexo.
— Olhe — falou entre dentes, raiva e mágoa endurecendo a
voz. — Olhe o que você fez. É tudo culpa sua.
Sacudi a cabeça, sentindo as lágrimas quentes escorrendo
pelas bochechas…
— OLHE! — ela vociferou e, bem como um reflexo, olhou para
baixo, me fazendo encarar à força.
Me fazendo encarar aquela imagem horrível que, mesmo
depois de uma década, ainda me assombrava. Vougan
desacordado, cercado por uma poça de sangue, as mãos em carne
viva, fraturas expostas até o osso…
Não conseguia respirar… não conseguia respirar…
— Olhe bem o que você fez — ouvi aquela versão de mim
grunhir, como uma punição. — É tudo culpa sua. Nada disso teria
acontecido se você tivesse prestado atenção. E agora vai sentir
esse peso na consciência pelo resto da sua vida.
— Eu não queria que nada disso acontecesse — consegui
sussurrar em meio às lágrimas e à falta de ar, ainda encarando
Vougan, ainda procurando aquele lampejo de azul dos seus olhos
em meio a tanto vermelho. Mas sabia que ele permaneceria
inconsciente. — Eu juro que nunca quis nada disso.
— Você não conseguiu ajudá-lo. Não conseguiu ajudar a
Clarice… — o timbre da voz mudou, voltando a ficar agudo e suave.
A voz da garota que, naquele mesmo lugar, chorou a perda da única
coisa que tinha restado de sua mãe. — E agora também não vai
conseguir me ajudar.
Me forcei a fechar os olhos, tentando sair dali, tentando fazer
tudo aquilo desaparecer.
Respire… respire…
Mas a voz acusadora, carregada de dor e mágoa de Julieta, tão
afiada quanto uma lâmina atravessando meu peito, voltou a falar:
— A culpa é toda sua, Aurora. A culpa sempre foi toda sua.
Soltei um grito, tão alto e forte que senti a garganta arranhar, e
abri os olhos.
Estava tudo escuro e quieto ao meu redor, e senti a maciez dos
lençóis entre meus dedos rígidos e trêmulos enquanto tentava
controlar a respiração pesada e acelerada.
Um sonho. Tudo aquilo não passou de um sonho.
Passos pesados e apressados ecoaram do lado de fora, e a
porta abriu com um estrondo.
— O que aconteceu? — Vougan falou, alarmado, e por mais
que só conseguisse enxergar sua silhueta contra a luz que vinha do
corredor, sabia que seus olhos estavam arregalados com
preocupação.
E aquela mera percepção, saber que ele estava ali, ouvir sua
voz… depois de rever aquelas imagens horríveis como se tivesse
acabado de acontecer…
Comecei a chorar.
Vougan se apressou até a cama e me puxou para si, me
aninhando em seu peito nu, os braços me segurando com firmeza.
— Shhh, tá tudo bem... — murmurou com a voz tranquilizadora,
os dedos acariciando meu cabelo. — Foi só um pesadelo,
Moranguinho.
Moranguinho. Mesmo depois de dez anos, ele pronunciava
aquele apelido exatamente do mesmo jeito, carinho e provocação
envolvendo cada sílaba.
E ouvir aquilo também ainda mexia comigo como se eu fosse
uma adolescente.
— Você me odiou em algum momento? — consegui perguntar
em meio às lágrimas. — Depois de tudo que aconteceu… você ficou
com raiva de mim?
Vougan enrijeceu de leve, surpreso, mas não falou nada por um
tempo.
— Eu tentei — confessou por fim, a voz baixa. — Quando
descobri que você tinha ido embora, eu… tentei odiar você. Tentei
bloquear e substituir todos os outros sentimentos pela raiva, porque
parecia mais fácil. De encarar, de superar tudo, mas… eu não
consegui. No final, a única coisa que senti durante todo esse tempo
foi tristeza. E saudade. Uma saudade tão agonizante que às vezes
parecia que eu ia morrer.
— Eu senti a mesma coisa — murmurei baixinho. A única
diferença é que a minha tristeza sempre vinha acompanhada de
uma dose enorme de culpa. Fechei os olhos e engoli com
dificuldade, mais lágrimas rolando pelas minhas bochechas. — Me
perdoa. O que aconteceu com você… e tudo que veio depois… foi
culpa minha. Me perdoa.
Vougan se moveu, segurando meu rosto nas mãos e
encostando a testa na minha, e falou devagar:
— Não pense nisso nem por um segundo. A maldade dos
outros não é culpa sua, Aurora. Meu acidente, você ter ido
embora… foi culpa deles. Você foi vítima disso tanto quanto eu.
Você não tinha controle de nada, não tinha como adivinhar o que ia
acontecer. — Engoliu com força, as palavras saindo com
dificuldade. — Foi uma tragédia, sim, mas nem você, nem eu temos
culpa, entendeu? E a única coisa que importa agora… é que você
voltou. — Passou gentilmente os polegares pelas minhas
bochechas, secando as lágrimas. — Não vou deixar você escapar
de mim de novo. Não vou deixar que mais ninguém tente te levar
embora. Nunca mais, entendeu? — falou com firmeza, e eu sabia o
que ele queria dizer.
Mesmo depois de dois dias desde que toda aquela loucura
aconteceu, não tínhamos conseguido conversar… sobre o motivo
que me fez voltar de Paris, quanto tempo duraria a minha estadia e
quais eram os meus planos para o futuro.
Com todo o rolo que Vinícius deixou para trás quando deixou a
diretoria do colégio e do conservatório, Vougan assumindo
temporariamente seu lugar, tendo que limpar toda a sujeira da
sobrinha e tentando lidar com um conselho estudantil simplesmente
puto com toda aquela situação… apenas na noite anterior
conseguimos um tempo pra ficar juntos de verdade. Mas até isso se
resumiu a apenas trocas inocentes de beijos e carícias até cair no
sono. Vougan estava exausto.
— Vougan… — comecei, sabendo que teríamos que falar sobre
aquilo em algum momento. Mas ele me interrompeu.
— Não. — Enroscou as pontas dos dedos levemente trêmulos
nos cabelos na base da minha nuca, segurando meu rosto com
mais firmeza. Como se afrouxar o toque pudesse me fazer
desaparecer. — Só… agora não. Por favor.
Medo. Ele estava morrendo de medo de ter que encarar aquele
assunto. De, talvez, ter que aceitar uma realidade dura logo agora
que parecia que tudo finalmente tinha se acertado entre nós.
Eu queria confortá-lo, queria tirar aquele medo dele… mas se
Vougan ainda não estava pronto para ter aquela conversa, eu não o
obrigaria. Não depois de todo o sofrimento que passou por dez anos
inteiros.
Um descanso de tudo aquilo. Um tempo. Era só o que ele
precisava no momento.
E, pensando bem… acho que eu também.
— Agora não — murmurei, concordando. — Que horas são?
— Quase cinco da manhã. Eu só tinha ido beber água quando
você acordou. Quer voltar a dormir?
Apenas me aproximei dele devagar, roçando meus lábios nos
seus como resposta.
Vougan não se mexeu, deixando que eu continuasse
explorando sua boca, abrindo-a lentamente conforme eu me
aproximava mais e mais. Até que sua língua quente encontrou a
minha, aprofundando o beijo preguiçosamente e… caramba, foi
quando eu me derreti, abafando um gemido.
A mão no meu rosto desceu lentamente pelo meu pescoço,
meu seio, minha cintura, até a barra da minha blusa, e a puxou para
cima sem cerimônia. Bom mesmo, ela só estava atrapalhando.
— Pelo jeito, alguém ainda não se dá bem com o sutiã durante
a noite. — Vougan falou ao segurar meu seio nu em concha, e
mesmo conseguindo enxergar apenas parte de seu rosto pela luz
que vinha da porta, vi aquele sorriso malicioso que me deixava
maluca.
— Essa é uma guerra perdida — falei, ofegante, voltando a
colar minha boca na sua.
Vougan riu e me deitou de volta no colchão, sem nunca
interromper o beijo, e continuou descendo a mão, agora agarrando a
cintura da minha calça e puxando para baixo, junto com a calcinha.
Chutei as pernas para fora do moletom grosso e da peça de renda,
impaciente para me livrar logo de todas aquelas camadas que mais
pareciam barreiras entre nós dois, e Vougan jogou tudo espalhado
pelo chão.
— Sem preservativos de morango dessa vez? — perguntou
quando alcancei o botão da sua calça, um leve tom de desafio em
sua voz.
Soltei uma risada.
— Lamento decepcionar, garotão.
— Então… tem certeza de que quer…
O puxei de volta pela cintura da calça, calando-o com um beijo.
— Estou bem protegida, nerdão. Esse não é o único método
contraceptivo que existe. Já ouviu falar do DI…
Dessa vez foi Vougan quem me calou, como se só precisasse
da confirmação de que podíamos continuar namorando sem
problemas. O resto não importava. Abri sua calça, tateando com
cuidado até libertar aquela parte sua que delatava como ele estava
tão excitado quanto eu, e fui deslizando lentamente os dedos base
abaixo… deslizando… deslizando…
Ainda deslizando…
Aquilo não tinha mais fim?
— Mas o quê… — Inclinei a cabeça, tentando enxergar, mas
Vougan avançou com tudo, agarrando meu seio com os dentes.
E eu esqueci todo o resto.
Aquelas sensações… o formigamento no meu baixo-ventre, as
borboletas no estômago, tudo que havia de sólido dentro de mim
derretendo como cera próxima do fogo… eu tentei encontrar isso
com outros caras ao longo dos anos, mas nada nunca chegou nem
aos pés do que sentia quando estava com Vougan. Ninguém
conseguia me preencher como ele conseguia, e não apenas do jeito
físico. Os sentimentos com ele eram sempre intensos, os toques
pareciam deixar impressões por dias e as sensações que ele
causava em mim… minha nossa, eu sentia que me afogava e
transbordava ao mesmo tempo.
Aquela língua quente no meu mamilo firme, sugando, enquanto
os dentes provocavam a pele sensível… caramba, eu podia muito
bem me estilhaçar a qualquer segundo. Ainda mais quando ele
aproximou o quadril do meu e senti a ponta macia de seu membro
encostando em mim, perturbadoramente de leve, instigando.
Apenas uma insinuação.
Ergui o quadril, praticamente implorando que ele avançasse,
que fizesse aquele encaixe perfeito entre nossos corpos, mas ele
apenas se afastou, continuando a provocação. Brincando comigo e
minha fome desesperada.
Desgraçado.
Grunhi, agarrando seus ombros e entrelaçando as pernas em
sua cintura, e me impulsionei para cima. Vougan girou e caiu de
costas no colchão comigo em cima dele.
— Ainda não aprendeu que não se brinca comigo? — Sorri com
malícia, triunfante, diante de seu olhar surpreso. — Eu nunca perco,
professor.
Vougan fechou os olhos, contendo um gemido.
— Isso nunca soou tão erótico. E nunca mais vou conseguir
ouvir de outro jeito.
Meu sorriso cresceu, mas apenas segurei seus ombros com
mais firmeza, ergui o quadril e, me posicionando, voltei a descer
sobre seu membro ereto, centímetro a centímetro, da forma mais
lenta e torturante que consegui.
Vougan quase explodiu.
— Porra… — grunhiu entre dentes, os dedos enterrados na
minha cintura me segurando enquanto eu continuava a descida
preguiçosa. As pupilas dilatadas quase devoravam o azul de seus
olhos. — Porra, porra, porra, porra…
Minhas coxas queimavam, mas finalmente cheguei à base,
estremecendo com o preenchimento completo dentro de mim, a
linha tênue entre prazer e dor quase se desfazendo, e não consegui
segurar o gemido ofegante que saiu de mim quando soltei o peso
restante em cima dele. Os dedos na minha carne afundaram ainda
mais.
— Aurora… — ele falava com dificuldade, como se estivesse
usando toda a sua força para segurar a coleira de um animal
selvagem e faminto. — Caralho, você quer me matar.
Mordi o lábio, sem desviar de seu olhar, e comecei a me mover
devagar, rebolando e contraindo os músculos internos ao redor dele.
Vougan estremeceu com violência, quase sem ar, e trincou os
dentes.
— O… O que é isso? — balbuciou quando continuei contraindo,
sentada em cima dele com a tranquilidade e plenitude de uma
dama, mas devorando-o por dentro com a fome e luxúria de uma
dominadora.
— Aprendi alguns truques ao longo dos anos — falei, a voz
suave e sedutora. — É bom?
— Sim — sussurrou, suplicante, os dedos ainda enterrados na
minha pele. Contraí mais uma vez, com força, e ele gemeu alto,
quase perdendo a consciência. — Porra, sim!
Sorri mais uma vez, satisfeita com sua reação, e firmei as
pontas dos pés ao lado do seu corpo. Usando seu peito de apoio,
comecei a subir devagar, quase até a ponta, e voltei a descer.
Vougan fechou os olhos, respirando fundo e com a mandíbula
trincada, mas suas mãos no meu quadril me ajudaram a manter um
ritmo constante, subindo e descendo sem pressa.
— Isso… — Vougan sussurrava como se fosse uma prece. —
Assim mesmo… assim mesmo…
Nos movíamos juntos, sincronizados como uma dança sensual,
cada movimento era uma pergunta e uma resposta.
— Diz que me ama — ofeguei baixinho, meus dedos apertando
sua pele de leve e acompanhando o desenho da tatuagem. Era tão
perfeita e de tirar o fôlego quanto eu me lembrava, ainda mais
quando seguia seu percurso com os olhos. Ela terminava na lateral
da virilha de Vougan, bem onde nossos corpos estavam unidos.
Só pensar nisso fez um gemido subir pela minha garganta.
— Eu te amo — sussurrou como se fosse algo sagrado. — Eu
te amo, Moranguinho. Eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu te
amo…
O gemido escapou de mim ao mesmo tempo em que o ritmo
entre nós começou a acelerar e, enquanto continuava o movimento
de subir e descer, acrescentei o movimento de contração.
Vougan gemeu tão alto que os vidros da janela tremeram.
Ele suava, as veias em seu pescoço saltando devido ao
esforço, e cada músculo de seu corpo estava tensionado, rígido,
uma mão subindo e fechando os dedos ao redor do meu pescoço
enquanto a outra segurava meu quadril com força, como se eu fosse
uma âncora, a única coisa que ainda o prendia a esse mundo.
— Diz que me ama, Aurora — falou, sufocado, cada palavra
exigindo um esforço hercúleo enquanto ele se segurava para não
explodir de vez, os dedos na minha garganta apertando de leve. —
Porra, só diz que me ama.
Uma onda de prazer me atingiu, me fazendo soltar outro
gemido, e Vougan acelerou ainda mais o ritmo, feroz e desenfreado.
Como se finalmente tivesse soltado a coleira daquele animal
selvagem.
Minhas coxas queimavam, suor escorria entre os meus seios,
mas acompanhei o ritmo do meu parceiro, aquela sensação
crescente e agonizante, mas ao mesmo tempo maravilhosa
chegando ao seu ápice e, quando finalmente explodiu como chamas
através dos meus olhos, me inundando por completo com ondas
quentes, poderosas e brilhantes, falei em meio ao gemido profundo
que acompanhou os espasmos do meu corpo:
— Eu te amo, Vougan.
Ele trincou os dentes com força, ainda se movendo,
aproveitando e preenchendo cada gota de prazer que ainda me
restava e, me segurando no lugar com os dedos quase entrando na
minha pele, também explodiu.
Os olhos azuis arregalados e sem foco miravam o teto
enquanto o prazer o alcançava, o gemido que veio do fundo da
garganta acompanhando os espasmos que sacudiam seu corpo
rígido e suado.
Senti Vougan se derramando dentro de mim, e só ousei me
mexer quando ele relaxou por fim, a cabeça tombando
pesadamente no travesseiro e os braços caindo ao lado do corpo,
inertes, seus dedos me soltando e deixando marcas na minha
cintura.
Vougan sibilou baixinho quando saí de cima dele, seu membro
latejante ainda sensível, mas me puxou de volta para baixo, me
aninhando em seu peito, ainda em seu colo. Nossas respirações
pesadas, ofegantes e descompassadas se misturavam, e ficamos
em silêncio por um tempo, apenas aproveitando aquela sensação
relaxante de alívio e deixando que nossos corpos recuperassem um
pouco da força. E do raciocínio.
Ergui a cabeça de leve quando minha respiração se acalmou e
Vougan me puxou mais para cima, até que nossos rostos
estivessem na mesma altura.
— Na próxima vez eu deixo você ir por cima — falei, ainda meio
fraca, e fazendo-o soltar uma risada.
— Se você quiser. Mas eu gosto da visão daqui. — As íris azuis
brilharam com malícia.
Mordi o lábio, tentando segurar o sorriso ridiculamente
presunçoso que teimava em tomar forma, mas a mão de Vougan
alcançou meu rosto e me puxou mais para baixo, até que nossas
testas estivessem unidas.
— Senti saudades — murmurou baixinho, com tanta
sinceridade que fez meu peito doer. Podia sentir a agonia,
acumulada por anos, envolvendo cada sílaba, seus dedos
levemente trêmulos e cobertos por cicatrizes me segurando com um
pouco mais de firmeza, como se quisesse ter certeza de que eu era
real, de que tudo aquilo era real.
Fechei os olhos, sentindo a garganta apertar.
— Eu também senti — sussurrei.
— Sabe, eu… Ao longo dos anos, sempre que deitava na cama
no fim do dia, sozinho, me pegava pensando no que você estava
fazendo. Se estava feliz, se estava com alguém, se… tinha me
esquecido. Ou se sentia um vazio tão grande quanto eu. E eu sei
que é injusto e egoísta, mas às vezes… eu torcia para que você
estivesse sozinha. Torcia para que você estivesse do outro lado,
olhando pela janela também e fazendo as mesmas perguntas sobre
mim.
Engoli o caroço na boca da garganta e abri os olhos.
— Eu fiz a mesma coisa — confessei, roçando a ponta do nariz
no dele. — É egoísta, sim. E injusto. Mas eu fiz a mesma coisa.
Lembra daquela história? Do deus na lua? Eu tentei… ter outros
relacionamentos. Tentei me convencer de que o que tinha entre nós
era passageiro, tentei seguir em frente, mas… aquele encaixe,
aquela conexão… eu não senti com mais ninguém. Só você. —
Suspirei pelo nariz, mordendo o interior do lábio. — Acho que, no
fim das contas, eu só estava tentando te encontrar em outra pessoa.
E eu sei que isso também é injusto e egoísta, mas é a verdade. Eu
nunca quis outra pessoa além de você.
Vougan me olhava com intensidade, bem no fundo dos olhos, e
eu podia jurar que ele enxergava bem além da minha alma, mas
tudo que vi ali foi compreensão. Nenhum julgamento. Nenhuma
reprimenda. Apenas compreensão pura.
— Independente da hora, lugar ou circunstância — falou, a voz
baixa. — O fio pode ficar cheio de nós, enroscar, puxar e se esticar
por quilômetros, mas nunca vai arrebentar.
Os cantos da minha boca subiram.
— É uma conexão invisível. E representa a união inquebrável
entre duas pessoas.
Vougan assentiu de leve.
— É agora que você joga a pedra na minha cara? — provocou,
me fazendo rir.
— Se for necessário…
Os olhos azuis estreitaram com diversão maliciosa.
— Nada é mais excitante que uma bela ameaça saindo dessa
sua boca.
Me inclinei para perto de forma provocadora.
— Sorte sua então que eu tenho um arsenal inteiro cheinho
delas.
Ele riu com satisfação, o som reverberando por mim. Mas
suspirou profundamente e, fechando os olhos, o polegar passando
pelo meu lábio inferior, praticamente implorou:
— Por favor, me diz que isso é pra sempre. — Pisquei, ficando
imóvel, mas ele continuou: — Diz que é definitivo. Que você vai ficar
e que nunca mais vai embora. Sei que é egoísta pra caralho, mas…
por tudo que é mais sagrado, só diz que vai ficar.
— Vougan…
— Sim, eu tô desesperado. Completa e fodidamente
desesperado. E não consigo nem pensar na possibilidade de você ir
embora mais uma vez. Eu já tinha perdido as esperanças de sequer
voltar a te ver de novo. Não posso… não consigo… suportar tudo
isso mais uma vez.
— Por que você acha que eu vou embora? — perguntei com
cuidado.
Vougan levou um tempo para conseguir dizer, a garganta
oscilando:
— Porque você me olha como se fosse partir o meu coração
sempre que o assunto paira entre nós dois.
Engoli em seco. Sobre aquilo…
— É que… — Saí de cima dele e me sentei no colchão,
prendendo o lençol entre os braços e cobrindo minha nudez.
Vougan se ergueu e apoiou nos cotovelos, me olhando com
atenção. — Não é do jeito que você imagina, mas eu realmente
preciso contar uma coisa que vai te machucar.
Ele engoliu com tanta força que foi audível.
— O quê? — perguntou baixinho.
Comecei a roer a unha do polegar, pensando nas palavras com
cuidado, e falei por fim:
— Você nunca chegou a se perguntar por que eu voltei pra cá,
pra início de conversa?
Vougan piscou, como se realmente só pensasse nisso agora.
— Por quê? — perguntou.
Endireitei os ombros, segurando o lençol no lugar, e respirei
fundo.
— Quando eu fui embora… depois de um tempo, meus pais se
mudaram pra Paris também. A empresa em que meu pai trabalhava
tinha uma filial na França e ele conseguiu pedir transferência pra lá.
Venderam a casa, deixaram tudo que tinham aqui pra trás e foram
ficar comigo. E ficamos os três vivendo lá desde então.
Parei para tomar fôlego, Vougan ouvia tudo com uma atenção
aguçada, mas continuei:
— Ano passado… — encarei Vougan com cautela, meu
coração batendo desenfreado dentro do peito — meu pai descobriu
que estava com câncer. Leucemia.
Parei, ainda encarando Vougan e deixando que as palavras se
assentassem. Lentamente, sua boca se entreabriu, o rosto ficou
pálido e os olhos arregalaram de leve.
— Não — sussurrou, assombrado.
Minha garganta apertou, mas me obriguei a engolir o que quer
que estivesse tomando forma ali e baixei os olhos que ardiam, a
visão começando a ficar borrada.
— Tentamos todos os tipos de tratamento disponíveis —
continuei, a voz instável. — Mas o quadro dele não regredia. E
chegou um momento em que… — minha garganta oscilou — os
médicos falaram que não tinha mais jeito. Que era só questão de
tempo até que… — Não consegui continuar. Não sem desmoronar.
— Aurora…
— Ele queria voltar — falei, no entanto, fungando e esfregando
os olhos, secando as lágrimas antes que pudessem cair. — Mesmo
fraco, queria usar o tempo que restava no lugar onde ele construiu
toda a sua vida. Onde ele cresceu… onde conheceu a minha mãe,
onde eles se casaram… onde eu nasci. E eu não pensei duas vezes
antes de largar tudo e dar o que ele queria. Meus pais sempre
fizeram tudo por mim, deixaram a vida aqui pra poder ficar perto de
mim… Era o mínimo que eu podia fazer pra retribuir. Então nós
voltamos. Ficamos em um hotel por um tempo, até que eu consegui
fazer cachê como harpista em uma apresentação importante de
uma orquestra e, depois, eles me contrataram como arranjadora.
Consegui juntar o dinheiro que ganhei com o restante das minhas
economias de Paris, e aluguei esse apartamento. — Sorri um pouco
com a lembrança. — Durante anos meu pai teve a vista da Torre
Eiffel na janela do apartamento, mas foi a vista da sacada daqui, e o
fato de estar tão perto do parque, que ele gostou de verdade. Nós
íamos lá no fim da tarde, ver o pôr do sol no lago. — Lentamente,
meu sorriso desapareceu. — Ele faleceu no mês passado. E somos
só eu e minha mãe desde então.
Vougan levou um tempo para conseguir dizer, devagar, tão
baixo que eu quase não ouvi:
— Como ela está?
— Arrasada. Ela perdeu seu melhor amigo e, por mais que já
estivéssemos nos preparando pra isso… a realidade é sempre mais
difícil de encarar. — Fechei os olhos e sacudi a cabeça. — Agora
ela está passando uns dias na casa da irmã, pra se afastar um
pouco de tudo isso. Eu queria ir junto e fazer companhia, mas não
pude por causa do trabalho. Minha tia mora numa chácara e lá não
tem internet, então… — dei de ombros.
Vougan se sentou também e se aproximou de mim, pegando
meu rosto nas mãos.
— Eu sinto muito — falou baixinho, os olhos levemente
marejados. — Sinto muito pelo seu pai e por tudo que vocês
passaram. Sinto muito por ter estado tão perto durante todo esse
tempo, e ainda assim não ter podido fazer nada. — Encostou a testa
na minha. — E sinto muito por você ter passado por isso sozinha
nos últimos dias. Ainda é muito recente, deve... ter sido difícil.
Novas lágrimas voltaram a encher meus olhos e meu lábio
inferior começou a tremer, mas apenas assenti com a cabeça. Sim,
os últimos dias realmente foram um inferno antes de Vougan
aparecer.
— Ele sempre gostou muito de você — sussurrei baixinho. —
Quando voltamos, sempre que íamos ver o pôr do sol, ele dizia que
acreditava que eu e você nos reencontraríamos um dia. Me dizia pra
ir atrás de você. — Soltei uma risada fraca e baixa, uma lágrima
escorrendo pela minha bochecha. A lembrança, recente demais,
ainda doía. — Eu já tinha perdido as esperanças, mas… por ele, eu
dizia que era possível. — Segurei a mão no meu rosto, áspera pelas
cicatrizes. — No fim das contas, ele estava certo. Ele sempre esteve
certo.
Vougan respirou fundo, o ar saindo trêmulo de seu nariz.
— Fico feliz que ele pensasse assim. Eu também gostava muito
do seu pai. Queria poder… ter falado com ele uma última vez.
Agradecer. — Acariciou minha bochecha de leve, e inclinei o rosto
da direção de seu toque, um pedido silencioso para que
continuasse. — E o que você vai fazer agora? — perguntou
baixinho, com cautela.
Foi a minha vez de respirar fundo.
— Eu deixei minha vida em Paris. Tinha um bom emprego em
uma orquestra lá, mas abri mão de tudo pra poder ficar com a minha
família nos últimos momentos do meu pai. Acho que qualquer
pessoa sensata pensaria em voltar pra lá, agora que ele morreu,
tentaria colocar a vida de volta nos eixos, mas… acho que eu não
sou uma pessoa sensata. Eu… não quero voltar pra Paris. —
Encarei Vougan bem fundo nos olhos. — Desde que botei os pés
aqui… é como se os últimos dez anos tivessem sido apenas uma
experiência. Quando voltei, senti que minha vida finalmente tinha
entrado nos eixos, e não o contrário.
— Então… — Vougan piscou algumas vezes, como se não
tivesse certeza se tinha entendido. — Você vai ficar? — perguntou
devagar. — Aqui? Pra valer?
E, mesmo em meio às lágrimas e às lembranças dolorosas,
consegui esboçar um pequeno sorriso.
— Sim. Eu vou ficar. Pra valer.
Vougan ficou em silêncio, incrédulo, mas lentamente um sorriso
radiante tomou forma em seu rosto. E ele avançou para cima de
mim, me fazendo deitar mais uma vez, e começou a beijar todo o
meu rosto e meu pescoço.
— Você não vai mais passar nenhum dia sozinha — falou
enquanto eu dava risada. — Nem você, nem sua mãe. A primeira
coisa que vamos fazer assim que ela voltar vai ser um jantar na
casa dos meus pais. Eles vão adorar te ver de novo, e tenho certeza
de que nossas mães vão se dar muito bem.
Parei de rir e arregalei os olhos.
— Seus pais… não se divorciaram?
O sorriso de Vougan cresceu de uma forma linda.
— Não. Depois daquele dia no restaurante, o primeiro em muito
tempo que eles conseguiram passar uma noite inteira sem brigar,
concordaram em tentar manter pelo menos a paz entre si. E, depois
do meu acidente… voltaram a se aproximar. Apenas pra cuidar de
mim, a princípio, mas com o tempo eles… se entenderam.
Acertaram as diferenças e conseguiram seguir em frente com o
casamento. Não são o casal mais apaixonado do mundo… —
Revirou os olhos com uma risada de desdém. — E às vezes ainda
se atracam, mas no final de toda discussão eles dão aquele sorriso
de cumplicidade um pro outro. E tem sido assim nos últimos anos.
Afastei uma mecha de cabelo dos seus olhos, sorrindo com
carinho.
— Que bom. Fico feliz por eles. E acho que minha mãe também
vai adorar conhecer sua família.
Vougan aproximou o rosto do meu e murmurou baixinho, a boca
bem perto da minha:
— No que depender de mim, Moranguinho, logo, logo vai tudo
virar uma coisa só.
Capítulo 51
Aurora
Apenas algumas horas depois, ainda um pouco cedo demais
para um escritório comum, eu estava entrando no prédio simples
atrás do teatro e, virando no corredor, segui direto até a sala
particular de um dos meus empregadores. Sabia que ele sempre
chegava antes de todo mundo, e precisava urgentemente resolver
um assunto.
E por assunto, eu quero dizer pedir um favor enorme.
Depois daquele pesadelo horrível que me acordou mais cedo,
decidi que precisava tomar algumas atitudes. A primeira, me acertar
de vez com Vougan e esclarecer tudo, já tinha sido resolvida. Agora
faltava mais uma. A parte mais difícil, pra ser bem sincera.
O cara do outro lado da porta era gente boa, mas durão e difícil
de convencer, por isso, tinha preparado todo um discurso cheio de
argumentos super coerentes antes de realmente ir até ali. E, só por
precaução, levei um saquinho com mini pães de queijo e um copo
de café bem forte pra ganhar alguns pontos extras a meu favor e
garantir seu bom humor.
Bati na porta e esperei, passando a mão livre na blusa preta de
manga comprida, alisando o tecido.
— Entra — resmungou a voz abafada do outro lado, com um
leve tom de confusão. Claro, eu não tinha avisado que ia aparecer
àquela hora da manhã. Nem eu mesma sabia disso até algumas
horas atrás.
Mas respirei fundo, endireitei os ombros e, colando o sorriso
mais amigável possível no rosto, abri a porta.
Lá vamos nós.
— Bom dia! — cantarolei, entrando na sala.
— Aurora? — Ele me olhou com uma carranca confusa,
sentado atrás de sua mesa e com um notebook aberto diante de si.
— Tá fazendo o que aqui?
Curto e direto, como sempre.
— Ah, sabe como é… — falei com naturalidade, dando de
ombros. — Estava passando pelo bairro e resolvi dar um oi.
— Às sete da manhã? — Arqueou as sobrancelhas acobreadas
de forma sugestiva.
Esbocei um sorriso amarelo.
— Insônia. Com fome? — Ergui a bandeja com o saquinho
branco e o copo de café. E, sem esperar uma resposta, coloquei na
mesa sem ousar me aproximar muito, como se estivesse diante de
um campo minado.
Ele olhou da bandeja de volta para mim com desconfiança. Até
que os olhos verdes brilharam com astúcia. E eu não era burra a
ponto de acreditar que ele não tinha percebido que eu queria
alguma coisa.
— Quanta consideração. — Os cantos de sua boca subiram
minimamente, os olhos estreitando de leve. — Por favor… —
Indicou o par de cadeiras diante da mesa.
Sorri, agradecida, e me sentei com cuidado, mantendo a
postura ereta.
— Muito bem… — Ele afastou o notebook, empurrando com
cuidado para a lateral da mesa, e cruzou os braços fortes sobre o
tampo, me olhando atentamente. — Do que você precisa?
Minha boca ficou seca. Ele era jovem e bonito de uma forma
perturbadora, e eu nunca podia olhar pra ele e falar ao mesmo
tempo, por isso desviei casualmente os olhos para a bandeja de
papelão entre nós. Tinha descoberto do jeito mais difícil e
humilhante que fazer as duas coisas ao mesmo tempo resultava em
uma série de gaguejos nervosos e risadinhas ridículas.
— Nada, não — falei casualmente e apoiei um cotovelo na
mesa, o queixo descansando na mão aberta. — Eu só estava me
perguntando… vocês já preencheram aquela vaga no arquivo?
Porque acho que eu conheço uma pessoa que faria o trabalho muito
bem.
— Sei. — Foi tudo que ele respondeu, um claro desafio para
que eu continuasse falando e chegasse logo ao ponto.
— Ela é jovem, mas tem muita experiência com isso, e também
é muito inteligente. E precisa do emprego. Se chama Julieta, tem
apenas dezesseis anos, cuida do avô doente e precisa pagar uma
cirurgia que ele fez recentemente no coração. Ela fez o melhor que
pôde pra conseguir esse dinheiro, mas… aconteceram umas
merdas, e… agora ela tá sem opção.
Ele apenas piscou e franziu o cenho, processando toda aquela
informação.
— Por que tá me contando isso?
Suspirei, longa e profundamente.
— Porque eu não teria vindo aqui pedir isso se ela não
precisasse de verdade. Essa garota fez uma loucura enorme por
mim, eu só… queria retribuir de alguma forma.
E pedir perdão por tê-la metido naquela confusão. Talvez, se
Julieta não tivesse encontrado o diário, teria feito as coisas de forma
diferente. Talvez, se ela não tivesse vindo atrás de mim, teria
conseguido impedir aquela tragédia de acontecer.
Tanto a minha vida quanto a dela deram uma reviravolta com
toda aquela situação. A minha, de uma forma positiva. Mas a dela…
Eu não podia simplesmente ficar sentada assistindo enquanto
aquela garota incrível caía de um penhasco.
— Você disse que ela tem experiência com arquivos? — o
bonitão à minha frente perguntou, considerando. Considerando de
verdade.
Assenti com a cabeça, tentando não deixar muito óbvia a minha
expectativa. Vougan tinha me contado a história e a realidade dura
de Julieta.
— Ela trabalha como arquivista em uma orquestra simples e
humilde da cidade dela. E toca em eventos nos fins de semana,
então entende bem de música.
— Mesmo? O que ela toca?
— Violoncelo. Bom… tocava — acrescentei com um gosto
amargo na boca.
— Tocava? — Me olhou com atenção. Parecia genuinamente
curioso e interessado. — Como assim?
— Ela… perdeu o instrumento. Em um acidente. Meu…
companheiro… — engasguei a palavra, sem saber ao certo como
deveria me referir a Vougan no momento. Estávamos juntos, sim,
mas dizer que ele era meu namorado ou qualquer outra coisa sem
nem termos definido isso direito não parecia muito certo. — Nós
tentamos recuperar todas as partes quebradas e levamos a um
especialista, mas… ainda não sabemos se tem conserto. E eu sei
que, apesar do trauma que ela passou, Julieta vai procurar outras
formas de conseguir o dinheiro, de trabalhar. — Não porque queria
ou porque já tinha superado, mas porque simplesmente não tinha
escolha. — Ela já precisa se sacrificar muito carregando essa
responsabilidade nas costas, sendo apenas uma adolescente, eu só
não quero… que ela também sacrifique talvez a única coisa que
gosta de fazer de verdade. — Por mais que não fosse a mesma
coisa, mas ela ainda teria contato com a música. Suspirei, e
finalmente o encarei, finalizando com o máximo de sinceridade que
consegui: — Por isso eu vim pedir a sua ajuda. É o único que pode
me ajudar.
Ele me olhava com seriedade, mas seus olhos também
brilhavam com… compreensão. Eu já cheguei a comparar os olhos
azul-cinzentos de Vougan com pedras de água marinha, mas se
seguisse a mesma lógica com aqueles olhos de um verde intenso,
diria que se pareciam com… esmeraldas.
— Entendo — o maestro da Orquestra Filarmônica Conducto
falou, Martin Castelli em pessoa. E ponderou por um tempo antes de
acrescentar: — Sei que é loucura, mas você sabe se ela consegue
arranjar outro violoncelo? Pegar um emprestado, talvez?
Pisquei, os olhos arregalados.
— Eu… hã… não sei. Por quê?
Ele exibiu um meio sorriso repleto de segredos, mas contou a
ideia que teve. E, caramba, se Julieta conseguisse dar conta
daquilo… ela não teria mais que se preocupar com trabalhar em
vários empregos ao mesmo tempo pra conseguir pagar a cirurgia e,
de quebra, também não sacrificaria seus sonhos.
— E então? — Martin voltou a perguntar. — Acha que ela
consegue? Amanhã à tarde?
Era arriscado. Muito arriscado, mas eu sabia que uma
oportunidade daquelas não apareceria de novo tão cedo.
— Eu vou dar um jeito — assegurei, já botando a cabeça pra
funcionar. — Estaremos aqui, eu prometo. Você não faz ideia do
quanto eu agradeço, Martin, de verdade. Mas… posso perguntar
uma coisa?
Ele apenas arqueou as sobrancelhas, esperando.
— Por quê? — Inclinei levemente a cabeça. — Pedir algo desse
tamanho nem sequer passou pela minha cabeça. — E olha que
quase implorar pela vaga de arquivista já tinha sido algo enorme. —
Por que está disposto a dar uma oportunidade dessas a uma garota
que você nem conhece?
Ele assentiu, compreendendo a minha dúvida.
— Sei que pode parecer estranho e inacreditável, mas… —
Sorriu, um sorriso discreto e um tanto triste, mas cheio de
significados que eu não entendia. — Passar por um trauma e abrir
mão de todos os seus sonhos? Eu já ouvi uma história muito
parecida com essa. E, por muito pouco, ela não acabou mal. Então
eu sei como é querer ajudar alguém nessa situação, vai por mim. E
sei… — Fechou os olhos por um momento, como se doesse
lembrar. — Sei exatamente como é chegar ao ponto de um milagre
ser a única solução. — Abriu os olhos e focou a atenção em um
pequeno porta-retrato mais no canto da mesa. E sorriu com carinho
para qualquer que fosse a foto emoldurada ali, e que eu não
conseguia ver por estar de costas para mim. — Se eu puder ajudar
de alguma forma, pra que ninguém mais tenha que se sentir desse
jeito… — passou a ponta do dedo pela fotografia — faço tudo que
estiver ao meu alcance.
Olhei com atenção a expressão em seu rosto bonito, a forma
como seus olhos estavam distantes apesar de encarar fixamente o
quadro, o misto de dor, saudade e… amor puro e incondicional
estampados ali. Eu não precisava de muito mais para imaginar.
— Sua noiva? — perguntei baixinho, indicando o porta-retrato
com a cabeça.
Não sabia muito sobre ela e ainda não tinha tido a oportunidade
de conhecê-la pessoalmente, mas sabia que eles tinham ficado
noivos logo depois da apresentação em que eu tinha feito cachê
assim que voltei para o país. A peça de encerramento daquela noite,
o inesquecível e apaixonante Pas de Deux de Tchaikovsky, e sua
angelical introdução na harpa, foi um dos motivos principais pela
minha contratação.
Martin me olhou por um segundo, parecendo se lembrar de que
eu ainda estava ali, e sacudiu a cabeça de leve, se recompondo e
endireitando os ombros.
— Sim — falou, no entanto, com um sorriso completamente
besta no rosto. Ele tinha a fama de maestro sério e exigente, virava
o diabo encarnado quando perdia a paciência, muito dificilmente
aceitava ser contrariado e sua palavra era praticamente a lei na
orquestra e no escritório. Mas quando o assunto era a noiva… ele
perdia completamente a postura, e nem ligava.
Era muito cadelinha dela, e com orgulho.
— Quando é o casamento? — perguntei, tentando disfarçar o
sorriso, grande demais para a situação.
— No final do ano. — Suspirou. — Se dependesse de mim, já
tínhamos casado há meses, mas ela ainda precisa viajar muito a
trabalho. E eu, bem… ainda tenho muito trabalho aqui, ajudando a
orquestra a se reerguer.
— Só mais seis meses — provoquei. — Tá pertinho.
Ele me encarou com um olhar exasperado.
— A única coisa que me consola são as três semanas inteiras
que vamos passar na lua de mel, sem ninguém enchendo o saco.
Não aguento mais ter que dividir minha noiva com o resto do
mundo. — Revirou os olhos, e não consegui segurar a risada.
— Que Deus abençoe sua pobre alma, maestro.
Capítulo 52
— Oi. — Richard sorriu do outro lado quando abri a porta.
— Tá fazendo o que aqui? — Arregalei os olhos e escondi o
corpo atrás da porta, ficando só com a cabeça de fora. Droga, eu
ainda estava de pijama! Com estampa dA Pequena Sereia!
— Queria ver como você tava. — Franziu as sobrancelhas,
claramente preocupado. — Já faz três dias que você não dá
nenhum sinal de vida.
Baixei os olhos, sem jeito e torcendo os pés um contra o outro,
mas falei por fim, abrindo mais a porta:
— Pode entrar.
Seguimos para a sala e, enquanto Richard se acomodava no
sofá, ocupei a velha poltrona ao lado, encolhendo as pernas
cobertas pela calça de escamas verdes e roxas, e abraçando os
joelhos. E escondendo a cara enorme da sereia ruiva e sorridente
na minha camiseta.
— Cadê seu avô? — perguntou.
— Saiu pra comprar pão.
Suas sobrancelhas arquearam de leve.
— E ele pode fazer isso?
Dei de ombros, vencida, e ri baixinho.
— Desde quando eu consigo impedir aquele velhinho teimoso
de fazer alguma coisa?
Richard riu também.
— Claro. Mas então… — falou com cuidado. — Como vão as
coisas? Com você?
Apoiei o queixo nos joelhos e baixei os olhos.
— Bem, eu acho. Na medida do possível. Tenho uma entrevista
de emprego hoje à tarde.
— Entrevista? — Sua voz se alarmou de leve.
Suspirei, cansada de ver aquela reação sempre que o assunto
surgia, mas contei sobre os vários currículos que tinha mandado por
segurança logo depois da segunda seleção, e que finalmente estava
começando a receber algumas respostas.
— Período integral? — Richard falou, entendendo o peso
daquilo. — Eu… fico feliz por você, Julieta, de verdade. Mas… e a
escola?
— Já tô pensando nisso. — Comecei a retorcer os dedos. — A
melhor opção agora é agendar uma prova especial. Se eu passar, já
consigo tirar o diploma do ensino médio. Ainda preciso falar com o
professor De Lucca sobre isso, mas… tenho certeza que ele vai me
ajudar.
Richard assentiu.
— Entendi — murmurou, pensativo.
— E na escola? — perguntei com cuidado depois de um tempo.
— Como vai… tudo? Todo mundo?
— Giovanna continua expulsa, se é isso que te preocupa — riu,
mas o som foi vazio. — Vitor e Pedro ainda estão suspensos, mas já
foram inteirados de tudo por uma Beatriz que quase entrou em
colapso quando soube o que aconteceu. Lucas também, ficou
chateado e muito puto. E Mariana… — Me encolhi um pouco à
menção do nome, e Richard parou. — Ela… me contou o que
aconteceu — falou com cuidado. — O que ela e Giovanna armaram.
Mariana está se sentindo muito mal.
— Eu ainda não sei o que pensar — confessei baixinho, os
olhos fixos no tapete marrom desgastado. — Achei que ela fosse
minha amiga.
Nos últimos momentos ela realmente foi, mas descobrir que
tudo começou com uma mentira pra me sabotar…
— Sinto muito. — Richard esticou a mão até segurar meu braço
com cuidado, as pontas calejadas dos dedos acariciando minha pele
de leve. — Eu também não fazia ideia de que elas estavam
tramando isso. Sempre estranhei como você a tratava, como se
fossem próximas, mas nunca imaginei que era isso que andava
acontecendo de verdade. Eu sinto muito — repetiu, apertando o
toque gentilmente.
Não consegui responder, mas assenti, mantendo os olhos
baixos.
— E o concurso? — perguntei por fim. — Foi cancelado?
— Quase. — Richard suspirou profundamente, apoiando os
cotovelos nos joelhos. — Depois que explicamos o que aconteceu, e
os pais da Giovanna finalmente apareceram e a levaram embora, o
professor De Lucca ficou… bem… puto pra cacete, é a única forma
que dá pra definir. E disse que o concurso tinha acabado ali. Mas…
— Hesitou.
— O quê?
Ele comprimiu os lábios e respirou fundo antes de dizer:
— Mariana começou a chorar e implorou que o professor não
fizesse aquilo. Ela literalmente ajoelhou aos pés dele, desesperada,
e o agarrou pela perna. Foi… bizarro.
Soltei uma risada amarga.
— Claro que ela fez isso. O que importa mais pra esses alunos
riquinhos do que ganhar uma viagem internacional?
Mas Richard me olhou com confusão, franzindo o cenho.
— Riquinhos? Não, Mariana não é rica.
Franzi as sobrancelhas.
— Quê?
— Ela é bolsista, Julieta, como você. Ela não te contou?
Apenas pisquei, uma resposta clara e óbvia de que eu não fazia
a mínima ideia daquilo.
Richard voltou a suspirar.
— Ela começou a estudar no conservatório pelos cursos livres
quando era criança. Um tempo depois, quando tinha aprendido só o
básico na flauta, começou a se virar sozinha porque os pais não
podiam pagar aulas particulares. E continuou assim até ter idade o
suficiente pra fazer a prova. E passou. Sei que o que ela e Giovanna
armaram não foi legal, não justifica nada do que ela fez, mas…
Mariana quer mesmo o prêmio. É a única oportunidade dela de
conseguir estudar no exterior.
Eu realmente não sabia de nada daquilo. E éramos mais
parecidas do que eu pensava, afinal.
Será que foi por isso que Mariana acabou desistindo do plano?
Porque… se identificou comigo, de certa forma?
— Então… — murmurei — o professor mudou de ideia porque
ela começou a chorar?
— Não. Ele mudou de ideia porque… eu também implorei que
não cancelasse o concurso.
Ergui a cabeça num salto, encarando Richard com os olhos
arregalados.
— Você… por quê? Achei que não ligasse pro concurso. Que
só tava participando por causa… da experiência, do seu professor.
— Pelo menos, foi o que ele disse no começo.
— É, eu sei — suspirou, cansado. — Antes, essa era mesmo a
minha única motivação.
— Então, o que mudou?
Ele levou alguns segundos, mas disse, respirando fundo:
— O que mudou foi que eu vi de perto como é o pânico e o
desespero de quase perder alguém que se ama. Aquele dia no
hospital, quando seu avô precisou fazer a cirurgia… — Encarou
seus pés, os olhos sombrios. — A gente ainda nem se conhecia
direito, mas acho que eu nunca senti tanto medo por alguém em
toda a minha vida. E mesmo com tudo que tava acontecendo, você
ainda tinha que manter a cabeça no lugar e resolver tudo sozinha.
Um caroço se formou na boca da minha garganta, mas me
obriguei a engolir.
— O que isso tem a ver? — perguntei baixinho, a voz mais
instável do que pensei.
— Você não queria participar do concurso, mas pelo seu avô,
pra cuidar dele e garantir que ficasse bem, nem pestanejou. Deixou
todos os seus outros medos e receios de lado e mergulhou nisso de
cabeça. Por mais que soubesse o que iria enfrentar, quem iria
enfrentar… você simplesmente seguiu em frente de cabeça erguida,
e nunca deu pra trás.
E, mesmo sem querer, soltei uma risada sem humor.
— Eu bem que tentei algumas vezes, mas você não deixou.
— Porque eu sabia que você se arrependeria depois, se
desistisse. Sabia quanto isso significava pra você. Ninguém
consegue ser cem por cento forte o tempo todo, e não tem nada de
errado com isso. É completamente normal. Eu só queria ser o seu
apoio quando você precisasse.
— Então… foi por isso que você continuou no concurso? —
perguntei devagar. Ainda não fazia muito sentido.
Mas Richard sacudiu a cabeça de leve e me encarou fundo nos
olhos.
— Eu continuei porque queria que você tivesse mais chances
de vencer. Eu fiz de tudo pra isso não acontecer, mas, se você
dissesse que não aguentava mais, se algo sério acontecesse e você
entregasse os pontos de vez… queria que tivesse um jeito desse
dinheiro ainda ser seu.
Apenas o encarei por alguns segundos, processando suas
palavras. E quando a ficha caiu…
— Você… — O ar escapou dos meus pulmões. — Você quer
vencer o concurso… e dar o prêmio pra mim?
Ele enlouqueceu?!
— Eu não preciso do dinheiro — falou na mesma hora, resoluto.
— E não preciso estudar no exterior. Eu nem queria participar de
nada disso, pra início de conversa, só enxergava uma oportunidade
de melhorar o meu currículo. Mas… depois daquela noite no
hospital… eu percebi que existem coisas muito mais importantes.
Que o prêmio teria muito mais valor nas mãos de quem realmente
precisa. Só não contei nada porque… — fez uma careta — sabia
que você me olharia exatamente do mesmo jeito que tá fazendo
agora.
Meu queixo quase batia no chão de tão escancarado, e meus
olhos estavam muito perto de pular pra fora do meu rosto.
— Você não pode fazer isso — sussurrei, em choque. — Não…
Não seria justo.
Mas ele apenas deu de ombros, teimoso.
— Posso fazer o que quiser com o prêmio, se vencer.
— E quem disse que eu vou aceitar?
Ele me encarou, alarmado.
— Julieta…
— Não posso fazer isso. Não posso deixar você fazer isso. Eu
tive a minha chance, Richard, e perdi. Não seria justo me aproveitar
da situação e usar você assim.
— Perdeu? — Estreitou os olhos de avelã. — Você perdeu?
Julieta, arrancaram a chance de você! Isso é justo? Você nunca fez
mal a ninguém, pelo contrário, tentou ajudar quem nem merecia, e
ainda assim foi quem mais se ferrou nessa história. Isso é justo? E
agora você vai sair da escola e trabalhar como uma condenada pra
conseguir juntar um dinheiro que estaria nas suas mãos se não
tivessem te tratado feito lixo. Isso é justo?!
— Richard… — falei, mas minha voz saiu como um sussurro
trêmulo por causa das lágrimas que se acumulavam em meus olhos.
A verdade, nua e crua, sendo jogada na minha cara. Mas eu era
muito boazinha, ou trouxa, pra enxergar.
— Eu tô pouco me fodendo pro que é justo ou não! — Richard
continuou, indignado. — Ninguém ligou pra isso até agora! Eu vou
vencer essa porcaria de concurso e você vai aceitar o prêmio, tá me
entendendo? — Se levantou, marchando até a porta. — Nem que
eu tenha que colar ele nas suas mãos. Ou jogar nessa sua cara
teimosa. Só preciso descobrir qual colocação vai levar o prêmio em
dinheiro.
Qual colocação?
Saltei da poltrona e corri atrás dele.
— O que isso quer dizer? — Segurei seu pulso antes que
passasse pela porta. — Achei que o vencedor ganhava a bolsa de
estudos e o prêmio em dinheiro.
Richard parou. E respirou fundo, se acalmando.
— Não mais. Conseguimos convencer o professor De Lucca a
não cancelar o concurso, mas como agora somos só eu e Mariana
competindo, o conselho estudantil dividiu o prêmio. Depois de
descobrir a confusão que foi desde o início, eles não acham que
nenhum dos dois merece o prêmio completo. Mas não revelaram
quem leva o quê.
Engoli em seco, completamente em choque.
— É de se esperar que o primeiro lugar ganhe a bolsa e, o
segundo, o prêmio em dinheiro, mas… — Richard continuou,
sacudindo a cabeça — não dá pra ter certeza. Eles podem muito
bem ter invertido, só pra dar uma lição na gente.
Era bem possível mesmo.
— De qualquer forma… vou dar o meu melhor. Sei que Mariana
vai fazer a mesma coisa.
— Se você ganhar a bolsa, e ela o dinheiro… acha que ela
aceitaria trocar? — perguntei, sabendo muito bem que ele
considerava propor exatamente aquilo.
— Não sei — respondeu, no entanto. — Sei que o que ela mais
quer é a bolsa, mas… com o dinheiro, pode tentar entrar na
faculdade que quiser. Seja em Tóquio, em Paris, nos Estados
Unidos… mas não custa nada tentar.
Ele deu de ombros, mas a determinação irrefreável estampava
todo o seu rosto. Richard daria um jeito de convencer Mariana a
trocar, e eu sabia que aquilo não era discutível.
No entanto… Mariana conseguia ser tão determinada e cabeça-
dura quanto ele. Se batesse o pé que não queria trocar o prêmio…
— Obrigada — falei baixinho mesmo assim, e me ergui na
pontinha dos pés para beijar sua bochecha. — Por tudo. Por sequer
se importar comigo assim. — Segurei sua mão e apertei de leve. —
Ninguém nunca fez tanto por mim.
Seus olhos duros suavizaram, e Richard se inclinou para perto
do meu rosto, o olhar fixo na minha boca.
— Posso? — sussurrou.
Com as bochechas quentes, assenti com a cabeça.
E seus lábios tocaram os meus, de leve e com carinho, seu
polegar acariciando meu rosto.
— Vai dar tudo certo, Jujubinha. Eu prometo — falou, e a
variação do meu apelido que ele gostava tanto de usar fez
borboletas alegres voarem em meu estômago.
Não consegui segurar o sorriso tímido que curvou os cantos da
minha boca para cima, e assenti mais uma vez.
— Boa sorte no concurso.
Ele sorriu também, e beijou minha testa.
— Boa sorte na entrevista.

ʄʅ
Me olhei no espelho uma última vez, conferindo se estava tudo
ok.
Tinha caçado no fundo no guarda-roupa a única camisa social
que eu tinha, de cor branca, e vesti um blazer preto por cima,
combinando com a calça e as sapatilhas de camurça. Prendi duas
mechas de cabelo atrás da cabeça com uma presilha de lacinho e
dei uma alisada na franja, só pra ter certeza de que ela não me faria
passar vergonha e entortar do nada. Passei apenas o básico de
maquiagem também, rímel nos cílios longos e um batom rosado
nude para dar uma acentuada nos traços. Básica, mas profissional o
suficiente pra uma adolescente.
Peguei a mesma bolsa lateral de franjas que tinha usado no
casamento e conferi tudo ali também antes de sair do quarto:
celular, carteira, documentos…
Estava tudo certo, mas ainda não me sentia segura o suficiente.
E talvez isso delatasse o quão imatura eu era, mas fui até minha
mochila e soltei o chaveiro do Bob, o tubarão-martelo, do zíper,
enfiando a pelúcia dentro da bolsa também. Uma pequena ilusão de
companhia e conforto.
Respondi a mensagem de Jéssica com um joinha positivo
quando ela perguntou se já podia vir me buscar e segui para a sala,
onde meu avô assistia A Usurpadora com os olhos sérios e
arregalados colados na TV. Aparentemente, era a única coisa que
passava quando ele estava internado e agora queria, precisava,
saber como terminava.
— Tchau, vovô. — Beijei o topo da sua cabeça quando passei
atrás do sofá, e segui para a porta. Estiquei a mão por puro reflexo
para pegar a maleta do violoncelo que sempre ficava ali, me
esperando… mas não tinha nada, claro. Nunca mais haveria. E
recolhi a mão, o estômago virando de ponta-cabeça. — Eu… vou
esperar a Jéssica lá fora. Me deseje boa sorte.
— Espera aí — falou de repente, me fazendo parar. — Vem
aqui um minuto, Julieta. Quero falar com você.
Pisquei, confusa e surpresa, mas soltei a maçaneta e fui até
ele, me sentando com cuidado na poltrona.
— O que foi, vovô?
O senhor de expressão severa me olhou atentamente antes de
pegar o controle, mutar a televisão e se virar lentamente para mim
com uma respiração profunda conforme suas articulações cansadas
reclamavam.
E apenas me encarou por mais um tempo.
— Tem certeza de que quer fazer isso? — perguntou por fim, as
mãos entrelaçadas pendendo sobre o colo.
— A entrevista? — falei devagar.
— Tudo isso. Sair da escola, arrumar um emprego de gente
adulta… — Hesitou por um momento, mas forçou as palavras a
saírem: — Desistir da música.
Pisquei e arqueei as sobrancelhas, mais surpresa ainda.
— Por que tá me perguntando isso? — Minha voz saiu mais
baixa e instável do que planejei.
Ele apenas ficou em silêncio por um tempo, os olhos,
adquirindo um ar de tristeza, percorrendo todo o meu rosto.
— Sua mãe não ia querer isso. Nada disso — disse por fim. E
meu coração deu um salto, mas ele continuou, a voz frágil ficando
embargada: — Eu fui muito injusto com ela quando me disse que
queria seguir carreira na música. Não dei a ela o benefício da
dúvida. Não… acreditei nela ou em sua capacidade. E agora… olha
onde estamos. — Baixou os olhos… marejados. — A última coisa
que eu disse pra ela foi que estava cometendo um erro enorme.
Que os sonhos dela não passavam de uma fantasia sem futuro.
— Vovô… — sussurrei, trêmula e com os olhos também cheios
de lágrimas.
— Ela morreu… — Ele encarava o tapete, os olhos distantes.
Como se visse as imagens daquele dia mais uma vez. — E a última
coisa que eu fiz foi dar uma bronca nela. Minha filha morreu, e eu
não tive a chance de pedir perdão. Nem de dizer que eu… — Uma
lágrima pesada caiu de seus olhos, pingando no chão. — Que eu a
amava. E que estava errado.
— Vovô, não faz isso. — Me ajoelhei diante dele e segurei suas
mãos. — A culpa não foi sua. O acidente, nada daquilo… não foi
culpa sua.
— Eu cometi um erro mesmo assim. Um erro horrível que me
assombra até hoje. — Me olhou nos olhos… e tocou meu rosto com
carinho. — Não posso fazer isso de novo. Não posso cometer o
mesmo erro com você, florzinha. Sua mãe nunca me perdoaria.
Nem eu.
Segurei sua mão no meu rosto, e não consegui segurar a
lágrima que escorreu pela minha bochecha.
— O senhor não errou comigo, vovô. Cuidou de mim quando eu
não tinha mais ninguém e foi o pai que eu nunca tive. Agora é a
minha vez de cuidar do senhor, só isso.
— Não devia ser. — Fechou os olhos, como se odiasse aquilo.
— Era eu quem devia cuidar de você pelo resto da minha vida, não
o contrário. Eu não tenho mais nada a perder, já você… você ainda
tem toda uma vida pela frente. E está deixando tudo de lado por
minha causa. Não devia ser assim.
Tive que me obrigar a engolir as lágrimas. Não podia deixar que
a enxurrada dentro de mim se libertasse de novo.
E, apesar de doer em mim também, tive que falar o óbvio:
— Não temos escolha, vovô. Pense o que quiser, mas eu não
vou deixar o senhor à deriva e pensar só em mim. Minha mãe
também não ia querer isso.
E, mesmo com os olhos cheios de lágrimas, ele soltou uma
risada sem humor.
— Não tenho tanta certeza. Eu fui um pai horrível pra ela.
Sacudi a cabeça.
— Não foi. Pode não ter sido o pai perfeito, mas… horrível
nunca. Ela sabia que o senhor a amava, vovô. Ela mesma dizia isso.
Seus olhos se alarmaram.
— O quê?
— Às vezes eu ouvia vocês dois discutindo. E antes de dormir
perguntava pra mamãe se o senhor estava bravo porque não nos
queria aqui. Ela sempre dizia a mesma coisa: Pra algumas pessoas
pode ser mais difícil demonstrar, mas ele nos ama, Julieta. Só
precisamos enxergar através das palavras. Eu ainda era muito nova
pra entender, mas… acho que o que ela quis dizer é que, mesmo
com as discussões, ela sabia que no fundo o senhor só dizia tudo
aquilo porque se preocupava com ela. Com nós duas.
O violoncelo tinha sido um presente dele, afinal de contas.
Os olhos marejados do meu avô se encheram mais ainda,
fazendo uma lágrima escorrer de cada lado do seu rosto.
— Eu só não quero que sua vida seja difícil como a dela —
falou, a garganta apertada. — Mas se música é o que você gosta de
fazer, Julieta, então não desista. Se é o que te faz feliz… — Seu
polegar secou uma lágrima no meu rosto. — Por favor. Vai chegar o
dia em que eu também terei que te deixar, minha florzinha. E nada
me deixaria mais triste do que ter que fazer isso sabendo que você
é infeliz com a própria vida.
Aquele foi o tiro de misericórdia. E, ainda tentando segurar as
lágrimas, e falhando maravilhosamente, me firmei nos joelhos e
joguei os braços ao redor do seu pescoço, meu rosto enterrado em
seu ombro.
— Eu não sou infeliz, vovô — solucei baixinho. — Enquanto o
senhor estiver comigo, não tem como minha vida ser infeliz. Então
por favor, promete que ainda vai ficar bastante tempo comigo.
Ele não respondeu, mas retribuiu o abraço, suas mãos
enrugadas e trêmulas acariciando minhas costas com cuidado.
— Você é a melhor coisa que minha filha fez nessa vida,
Julieta. É a marca que ela deixou no mundo. E o melhor presente
que um avô poderia receber. Eu vejo tanto dela em você… não só
na aparência, mas no coração. Ela teria muito orgulho de você.
Minha maquiagem já era de vez.
— Eu te amo, vovô — sussurrei entre as lágrimas, apertando o
abraço.
Ele começou a afagar meus cabelos.
— Eu também, minha florzinha.

ʄʅ
Assim que consegui me acalmar e soltar meu avô, corri até o
banheiro e lavei o rosto. Se Jéssica chegasse e me visse daquele
jeito, parecendo um urubu, ou teria uma crise de riso até quase
desmaiar, ou faria um interrogatório até saber detalhe por detalhe do
que aconteceu.
Ou, o que era bem provável, faria uma coisa seguida da outra.
E ainda bem que consegui limpar a cena do crime rápido,
porque assim que terminei de secar o rosto com a toalha de mão, a
campainha tocou.
Corri para atender, pegando minha bolsa e me despedindo do
meu avô mais uma vez no meio do caminho.
— Julieta! — Olhos castanhos arregalados me aguardavam do
outro lado do portãozinho de ferro assim que abri a porta. Mas não
era Jéssica.
Estanquei no lugar, paralisada.
— Aurora?
Capítulo 53
Tanto Aurora quanto o professor De Lucca estavam na minha
calçada, me encarando.
— Podemos conversar? — ela falou, ansiosa.
— Agora? — Franzi as sobrancelhas, mas fechei a porta atrás
de mim. Não queria que meu avô achasse que precisava intervir…
no que quer que fosse aquilo. Saltei os poucos degraus e cruzei o
pequeno jardim às pressas. — Desculpa, mas não é uma boa hora.
Eu… vou sair.
— Pra onde? — o professor perguntou, já me analisando de
cima a baixo com aqueles olhos aguçados que não perdiam nada.
Mas eu não queria falar sobre aquilo no momento.
— Sair — falei simplesmente, e parei diante do portão baixo e
descascado. — Com uma amiga. E ela já está pra chegar, então…
— Por favor, me escuta — Aurora falou, tentando se conter. Por
qual motivo, eu não fazia ideia. — Nós… — Encarou o professor De
Lucca de relance, como se buscasse confirmação. Ele apenas
assentiu de leve com a cabeça. — Nós precisamos que você venha
com a gente. É um assunto urgente.
Soltei uma risada. Só podia ser piada.
— Vai ter que ficar pra próxima. — O carro de Jéssica virou a
esquina, se aproximando tranquilamente de casa. Abri o
portãozinho, que rangeu nas dobradiças, e saí. — Inclusive, minha
carona acabou de chegar. Desculpa ter feito vocês virem aqui à toa,
mas eu realmente não posso me atrasar.
Jéssica parou atrás do carro do professor De Lucca e ergueu os
óculos de sol, olhando a cena com aquela desconfiança que eu
conhecia bem.
Fiz menção de ir até ela, mas Aurora me segurou pelo pulso.
— Por favor, Julieta. É um assunto muito importante.
— Meu compromisso também — insisti, tentando não parecer
grossa.
— Entrevista de emprego? — o professor falou, aquele meio
sorriso de sabe-tudo estampando seu rosto.
Como ele sempre sabia?
Eu podia negar, mas meu silêncio de choque foi o suficiente pra
acabar com qualquer possibilidade de sequer tentar.
Aurora empalideceu e arregalou ainda mais os olhos.
— Tá brincando, né?
— Eu preciso ir — falei depressa e segui até o carro, mas a
mão no meu pulso voltou a me impedir.
— Só me escuta, por favor… — Aurora começou a implorar,
mas foi interrompida pelo estrondo da porta do carro de Jéssica
batendo.
— Sra. Cardoso… — o professor murmurou conforme ela se
aproximava, resoluta, os saltos martelando o asfalto.
Mas Jéssica ignorou o professor, um olhar mortífero
estampando seu rosto conforme agarrava o pulso de Aurora e o
soltava bruscamente de mim.
— Tira a mão — falou, afiada, e me embalou em um abraço
protetor enquanto mantinha os olhos duros e atentos nos outros
dois. Uma onça protegendo o filhote. — Posso saber que droga tá
acontecendo aqui? O que querem com a Julieta agora?
Aurora apenas estreitou os olhos de leve para a minha amiga.
Analisando e provavelmente procurando o melhor lugar para desferir
um soco caso precisasse.
— Ela tá grávida — me apressei em dizer, segurando os braços
de Jéssica como se também pudesse protegê-la. — Por favor,
perdoem o temperamento dela. São os hormônios.
Aurora soltou os punhos cerrados no mesmo segundo, a
surpresa nítida em seu rosto apesar do leve tom de desconfiança
que ainda brilhava em seus olhos.
O professor também pareceu surpreso.
— Perdão — falou, erguendo as mãos e tentando tranquilizar a
situação. — Não viemos fazer mal. — Se virou para Aurora. — Tá
tudo bem, ela é tia da Julieta...
— EU NÃO SOU UMA TIA! — minha amiga vociferou.
Hormônios, com certeza.
— Não tá ajudando — falei entre dentes e esboçando um
sorriso amarelo para o professor De Lucca, que agora me olhava
com incredulidade por ter caído na mentira.
— Foda-se — Jéssica falou, no entanto. E não desgrudou os
olhos do casal à nossa frente. — Ninguém sai daqui até dizerem o
que querem.
A mandíbula de Aurora ficou tensa, mas ela bufou e falou de
uma vez:
— Consegui uma entrevista de emprego pra você também,
Julieta.
E ainda bem que Jéssica estava me segurando, porque senti
meus joelhos ficarem bambos.
— O quê? — sussurrei.
— Vougan me disse que você trabalha com arquivos. E eu
conheço uma pessoa que precisa de alguém com experiência nessa
área. Em uma orquestra.
Meu coração deu um salto. E até mesmo Jéssica ficou imóvel.
— Por que fez isso? — perguntei com cuidado, me
desvencilhando da minha amiga devagar.
Aurora sacudiu a cabeça de leve, suspirando, sua mão
alcançando a do professor De Lucca.
— Era o mínimo que eu podia fazer depois de tudo. Sei que não
é muito, mas pensei que assim, pelo menos, você não precisaria se
afastar da música de vez. Não teria que parar de fazer algo que
gosta.
Meu coração encolheu. E encarei o vidro do carro do professor,
considerando. Considerando de verdade. Até que… consegui
distinguir o formato da maleta grande do lado de dentro do carro.
Meus olhos arregalaram tanto que quase saltaram para fora.
— O que é isso? — perguntei me afastando um passo, mesmo
sabendo exatamente o que era.
Eles acompanharam meu olhar… e enrijeceram.
— Ah… Vougan precisa da sua ajuda com uma coisa — Aurora
balbuciou, passando a bola pra ele.
— É, eu… — lançou a ela um olhar afiado — preciso mesmo.
— Com o quê? — Arqueei uma sobrancelha.
O professor encarou o violoncelo no banco de trás do carro por
um tempo, pensativo, e soltou o ar com força.
— Eu não posso mais tocar, Julieta. — Ergueu as mãos
trêmulas para enfatizar. — Nunca consegui me desfazer dele,
mas… não adianta. Não consigo mais.
Senti um aperto no coração. Eu tinha lido várias das aventuras
dele no concurso, como tocava por puro prazer apesar da pressão
da família, e agora… tinham arrancado isso dele.
Permanentemente.
— Sinto muito — murmurei. Ao meu lado, Jéssica também
baixou os olhos com pesar.
— Por mais que ainda me doa… — ele continuou, se
esforçando para fazer as palavras saírem — sei que já passou da
hora de aceitar isso. E seguir em frente. Por isso… decidi doar o
instrumento pra essa orquestra também.
Pisquei, em choque.
— Por que não vende?
Ele deu de ombros.
— A orquestra tem projetos comunitários. Vão saber aproveitar
o violoncelo melhor do que eu, talvez ele vá para alguém que
precise de verdade.
— E por que… precisa da minha ajuda com isso?
O professor baixou os olhos, para esconder a dor que
obscurecia as íris azuis.
— Você sabe como é a sensação — murmurou, baixo. — De ter
algo arrancado de você e não poder fazer nada. A única coisa que
fica é um buraco. Um buraco fundo e vazio que você não sabe como
preencher. Que não tem como preencher.
Um bolo se formou na boca da minha garganta, mas me
obriguei a engolir. Eu entendia perfeitamente o que o professor
dizia.
Ele ergueu o olhar para mim e se aproximou, se agachando e
apoiando as mãos nos joelhos até estar na minha altura e cara a
cara comigo. E por mais que seu rosto estivesse sombrio, seus
olhos suavizaram e cintilaram.
— Talvez eu tenha sido teimoso, mas ainda não aprendi a lidar
com isso. Depois de dez anos, ainda… ainda dói. E eu sei que
preciso dar esse passo, mas… preciso de ajuda.
Eu ouvia tudo com atenção e encarava o professor com as
sobrancelhas franzidas, sem ousar desviar o olhar.
Devagar, ele esboçou um sorriso, pequeno e triste.
— Você me ajuda, Julieta? — pediu baixinho, me oferecendo
uma mão trêmula coberta de cicatrizes. — Me ajuda a dar esse
passo?
Pisquei algumas vezes, impedindo que as lágrimas tomassem
forma e chegassem aos meus olhos. E, soltando a pelúcia de
tubarão dentro da bolsa que eu nem tinha me dado conta que tinha
agarrado, devagar, apoiei minha mão, pequena demais em
comparação, na do professor.
Vougan, que apesar de toda a sua autoconfiança tinha medo de
ficar sozinho e se perder. Vougan, que não queria outra coisa além
de liberdade pra ser ele mesmo, independente das expectativas
alheias. Vougan, que tinha perdido um pedaço de si que não voltaria
nunca mais.
Assim como eu.
Fechei os dedos ao redor de sua palma, quente e áspera, e ele
retribuiu o gesto, seus dedos longos cobrindo minha mão.
— É claro que eu te ajudo, professor.
Capítulo 54
— Uau… — Jéssica sussurrou, olhando do chão até o teto,
maravilhada, enquanto seguíamos pelo longo tapete azul-marinho
do interior do enorme teatro que mais parecia um palácio grego,
imponente e majestoso com suas imensas colunas. Eu tinha
concordado em fazer aquela entrevista, mas só se minha amiga me
acompanhasse. — Esse lugar… acho que nunca vi nada tão lindo
assim.
— Nem eu — concordei baixinho, me sentindo minúscula no
imenso e claro salão de entrada. Estava vazio, então qualquer
fôlego ecoava ali de forma bem audível. Olhei para o teto triangular
de vidro, os raios de sol do meio da tarde projetando filetes coloridos
de luz. Sem dúvida, era o mais perto que eu já tinha chegado de um
palácio. — A entrevista vai ser aqui? — Mirei as costas do professor
e Aurora, mais à frente de nós e liderando o caminho. — Achei que
seria num escritório, ou sei lá.
— Ah… tem várias salas menores aqui — ela explicou. E
cutucou o professor com o cotovelo nas costelas.
Ele se curvou de leve, resmungando, mas se virou para mim.
— Pode segurar pra mim um pouquinho? — Tirou o violoncelo
das costas, passando para mim. — Só até encontrarmos o… amigo
da Aurora?
Ele parecia ansioso. E imaginei que devia estar sendo difícil
mesmo ter que se desfazer do seu instrumento depois de anos
resistindo. Então, apesar da minha incerteza, aceitei e peguei a
maleta branca pelas alças, o peso familiar demais fazendo meu
peito apertar.
Jéssica passou por mim e continuou andando, boquiaberta
enquanto olhava tudo de cima a baixo, quando parei para passar as
alças pelos ombros, ajustando as tiras ao meu corpo para equilibrar
melhor o instrumento.
E, quando voltei a olhar para frente… tinham sumido. Os três
tinham sumido.
— Jéssica? — chamei, imóvel. — Aurora? Professor?
Nada.
Segui até as enormes escadas de mármore no fundo do salão e
saltei os degraus acarpetados como podia. No topo, a escada se
dividia em duas, seguindo tanto para a esquerda quanto para a
direita, mas eu não fazia a mínima ideia de onde iam dar, nem para
que lado o grupo tinha seguido. Então tentei a primeira coisa que
me veio na cabeça: cruzei as enormes e pesadas portas duplas de
madeira escura ornamentada, posicionadas ali mesmo, entre as
escadas adjacentes.
E perdi o fôlego. Fileiras e mais fileiras de bancos azul-marinho
se estendiam diante de mim, até onde um enorme palco se erguia,
um arco dourado ornamentado de arabescos e esculturas
emoldurando toda a estrutura. Ao meu redor, pilares de mármore
circundavam o local e sustentavam os andares de camarotes acima.
Estava tudo escuro, mas o silêncio absoluto e familiar que
carregava a sala do teatro vazia caiu sobre mim, tudo tão quieto e
calmo que a única coisa audível ali eram as batidas fortes do meu
coração acelerado.
— Jéssica? — chamei mais uma vez, mas minha voz não saiu.
Só de pensar em quebrar aquele silêncio sagrado parecia errado.
Olhei ao redor, meus olhos ainda se ajustando à escuridão da
sala escura e fechada. Devia ser o sonho de todo músico se
apresentar ali.
Se eu sentia um frio na barriga só de estar parada ali sozinha,
como devia ser a sensação de estar no centro daquele palco
cintilante, pessoas eufóricas preenchendo cada um daqueles
bancos e aplaudindo enlouquecidamente? Eu não gostava da ideia
de me apresentar sozinha, mas tinha que admitir que devia ser uma
sensação única no mundo. Indescritível.
Fui andando sem perceber, olhando cada detalhe ao meu redor
e perdida em pensamentos, quando me vi parada bem de frente
para o palco.
Engoli em seco, apertando as alças da maleta nas minhas
costas. E olhei ao redor mais uma vez. Até onde podia ver, estava
sozinha.
Sabia que precisava sair dali, sabia que precisava encontrar os
outros, mas…
— Olá? — chamei, pra ter certeza de que não havia ninguém,
minha voz parecendo muito mais alta naquele silêncio
ensurdecedor.
Nada.
Era loucura. Tanta, mas tanta loucura…
Mas eu tinha que saber como era. Pelo menos uma vez na
minha vida.
Com o coração martelando, fui para a lateral do palco e subi a
pequena escada que levava até lá em cima. Várias cadeiras e
estantes musicais estavam dispostas ali, e reconheci o padrão. Tudo
tinha sido montado para uma orquestra.
Segui para o lado onde eu sabia que ficavam posicionados os
violoncelos e me sentei na primeira cadeira, apoiando a maleta ao
meu lado. Abri os fechos e a tampa, e me deparei com um belo
instrumento fosco, a madeira de um tom claro amarelado. Tão
diferente do meu, que era de um marrom tão escuro que beirava à
cor preta...
— Então foi você que cantou pro Vougan tantos anos atrás? —
sussurrei, sentindo um sorriso sutil se formar na minha boca. E
passei a ponta dos dedos pelas cordas grossas. — É um prazer
finalmente te conhecer também.
Soltei a tira que o mantinha seguro na maleta, peguei o arco e,
com muito cuidado, posicionei o violoncelo entre as minhas pernas.
Puxei cada corda com cuidado, conferindo a sonoridade e…
surpreendentemente, estava afinado.
— Você é guerreiro mesmo — ri de leve. Mas respirei fundo,
endireitando os ombros, e posicionei o arco nas cordas, tudo se
encaixando de uma forma tão automática e natural, como se meus
músculos tivessem vida própria. Fechei os olhos e sussurrei: — Não
faço a mínima ideia do que eu tô fazendo, mas quero que seja de
coração. Então, por favor, seja legal comigo. — Posicionei os dedos
da mão esquerda, mentalizando a melodia… e abri um olho,
encarando o instrumento. — Meu nome é Julieta, aliás.
Ele não respondeu, óbvio, mas dei uma olhada ao redor mais
uma vez, até o teto escuro repleto de luzinhas minúsculas que
pareciam estrelas e, maravilhada e com o coração transbordando
com um sentimento estranho de nostalgia, voltei a fechar os olhos.
E comecei a tocar.
A Suite No.1 de Bach praticamente deslizou pelos meus dedos,
suave, melódica, tranquila. E ecoando tão maravilhosamente entre
as quatro paredes da sala vazia que fez todo o meu corpo se
arrepiar.
Quer aprender uma coisa?, me lembrei das palavras da minha
mãe, as mesmas da lembrança que invadiu meus sonhos. Quando
tiver dúvida de alguma coisa, quando achar que está perdida…
quando ninguém acreditar em você, nem você mesma… lembre-se
sempre de fazer isso, Julieta: feche os olhos, bem apertados, e
escute. Escute seu coração. Olhe com o seu coração. O coração
entende, e nunca mente. Acredite no que ele diz e siga a direção
que ele mostrar. Assim você nunca vai se perder.
E foi o que fiz. Enquanto tocava, enquanto as notas graves
ressoavam pelo violoncelo em minhas mãos, a vibração do som
sacudindo até meus ossos, escutei e sincronizei as batidas do meu
coração à melodia apaixonada de Bach.
Paixão, alegria, fúria, raiva… medo. Coloquei todos esses
sentimentos na minha música, acumulados nos últimos dias, meses,
anos, deixando que meu coração pegasse tudo isso e guiasse os
meus dedos com a intensidade que ele queria. Deixei que meu
coração cantasse.
Não meus dedos, não o violoncelo. Meu coração.
Promete que nunca vai se esquecer disso?
Prometo, mamãe.
Que bom, ela sorriu.
E, quando parei de tocar, quando a música acabou, meu
coração acelerado e martelando no peito foi a única coisa que
continuou ressoando quando os últimos ecos se dissiparam, e o
silêncio voltou a predominar. Minha respiração estava ofegante, suor
escorria da minha testa e meus dedos estavam trêmulos de
adrenalina.
De repente, a luz quente e ofuscante do palco se acendeu
sobre mim, me fazendo saltar de susto na cadeira. E consegui
discernir uma silhueta na plateia, se aproximando, conforme meus
olhos se acostumavam com a claridade repentina.
— Perdão! — Me adiantei saltando da cadeira, ainda meio
cega, o violoncelo firme nas minhas mãos repentinamente rígidas.
— Eu não estava fazendo nada demais, juro! Só me perdi dos meus
amigos e achei essa sala no meio do caminho, ela tava aberta e eu
só queria dar uma olhada…
— Calma, Julieta — uma voz grave e masculina falou… bem-
humorada. — Eu sei por que está aqui.
Fechei a boca e apertei os olhos, tentando ver o rosto que se
aproximava.
— Sabe? Desculpa, mas quem é… — Minha voz morreu no
meio da frase quando vi. Quando reconheci. Os olhos verdes e o
cabelo ruivo.
Ah, minha nossa. Ah, minha nossa!
— M… Maestro? — sussurrei, completamente sem ar.
Martin Castelli em pessoa?! Era a orquestra dele que se
apresentava ali? Era com ele que Aurora tinha conseguido uma
entrevista? Pra trabalhar no arquivo da Conducto?
Senti minha pressão cair. E tive que voltar a me sentar, meus
joelhos sacudindo feito duas varetas.
— Foi impressionante — ele continuou, sorrindo, e parou a
poucos passos do palco com as mãos nos bolsos do jeans escuro.
— Eu não sou expert em violoncelo, mas ouso dizer que você toca
muito bem pra alguém da sua idade. O que você acha, Flávio? —
falou por cima do ombro, e foi quando reparei que mais dois homens
se aproximavam também.
— Fiquei em choque — um deles falou. Na casa dos cinquenta
anos talvez, o cabelo escuro e curto puxado para trás e grisalho nas
laterais. Me lembrava o cara do Quarteto Fantástico. — Acho que eu
nunca vi uma Suite de Bach tão furiosa antes. Eu normalmente daria
um tapão na cabeça do aluno que fizesse isso, mas tenho que
admitir que sua execução me impressionou.
— Ah… — Eu não sabia se agradecia ou pedia desculpas. —
Não era a minha intenção, eu só… não sabia que tinha gente
ouvindo.
— Se o chefe de naipe dos violoncelos aprovou, quem sou eu
pra discordar? — o terceiro riu, um homem na casa dos quarenta
anos de cabelo curto encaracolado, óculos e pele negra clara.
— Engraçado, de mim você adora discordar — Martin
provocou.
— E ainda assim você faz tudo do seu jeito, então não reclama
— retrucou com as sobrancelhas arqueadas atrás das lentes.
— Perdão… — me intrometi enquanto o maestro apenas
revirava os olhos para o homem. — Mas acho que eu não tô
entendendo do que tudo isso se trata. Eu… não tô encrencada por
ter invadido?
— Por que estaria? — Martin perguntou. — Você fez
exatamente o que a gente queria que fizesse.
Pisquei. Mas o que é que estava acontecendo…?
— Então, Flávio, Cláudio… — ele continuou, olhando os outros
dois homens de forma sugestiva. — O que acham?
— Ela tem meu voto — o primeiro, Flávio, falou erguendo uma
mão.
— O meu também, com certeza. — Cláudio sorriu… e me
lançou uma piscadela cúmplice.
— Ótimo. Somos três então. — O maestro sorriu de uma forma
que fez todo o meu rosto esquentar. E se virou para mim. —
Parabéns, senhorita Julieta Bellini. A Orquestra Filarmônica
Conducto tem o prazer de te receber como uma das nossas
violoncelistas oficiais.
Meu coração deu um salto tão violento que quase explodiu
dentro do peito. E, Deus, ainda bem que eu já estava sentada,
porque senão…
— V… Vio… o quê?
— AAAAAAH! — Um grito de pura euforia estourou no canto do
palco, na direção da coxia, e Jéssica apareceu, correndo até mim. E
se inclinou sobre mim, quase me enforcando em um abraço. —
Você conseguiu, Ju! Eu sabia que você ia conseguir, estou tão
orgulhosa!
— Você sabia? — sussurrei, ainda sem saber se meu coração
tinha voltado a bater. — Sabia sobre isso?
— Aurora e o professor De Lucca me contaram quando me
puxaram pra longe de você lá no salão.
— Contaram o quê?
Atrás dela, a dupla que aparentemente tinha armado tudo
aquilo apareceu por entre as cortinas.
— Que sua entrevista, na verdade, era essa — Aurora falou
com um sorriso orgulhoso que só crescia. — E você conseguiu,
Julieta. Entrou pra Conducto!
— Eu não tô entendendo — murmurei, perdida. — Você disse
que a vaga era no arquivo.
— Uma mentirinha de nada. — O professor De Lucca sorriu,
triunfante. — Você não teria vindo se soubesse a verdade.
— A ideia inicial era a vaga de arquivista — Aurora revelou. E
olhou para os três homens na plateia com um sorriso agradecido. —
Mas eles concordaram em te dar essa oportunidade.
— Por quê? — Olhei para eles também, os olhos arregalados.
— Vocês… nem me conhecem.
— Abrimos audições pra novos músicos há alguns meses —
Cláudio falou com um sorriso gentil. — Então não se preocupe, não
fizemos nenhum absurdo quando concordamos em ouvir você.
— As audições de violoncelo aconteceram há dois dias —
Flávio emendou, dando de ombros. — Os resultados ainda não
saíram, então você chegou a tempo.
Olhei para Martin, mas ele apenas baixou a cabeça, pensativo.
E foi Cláudio quem falou, com um sorriso significativo:
— E talvez… — apoiou a mão no ombro dele — o coração do
nosso maestro aqui tenha ficado meio molenga. Ficamos sabendo
de tudo que aconteceu e… ele quis te dar uma chance.
— Vai à merda — ele resmungou com uma carranca, mas não
negou nada.
E, bom, pelo menos nessa parte eu sabia do que se tratava.
— Ela tá bem? — perguntei baixinho, com cuidado.
O maestro arqueou as sobrancelhas.
— Quem?
Não consegui evitar o sorriso tímido que tomou forma em meu
rosto.
— Clarice Marquês, é claro.
Ele piscou, surpreso. E sorriu também, um sorriso largo.
— Conhece minha noiva? — falou a palavra com tanto orgulho
que seu peito quase inflou.
Pela visão periférica, vi tanto Aurora quanto o professor De
Lucca erguerem as cabeças num salto, alertas.
— Clarice Marquês? — o professor sussurrou com espanto e
nostalgia.
— Sua noiva? — Aurora murmurou, incrédula.
Meu sorriso cresceu, mas apenas falei para o maestro:
— Nos conhecemos ano passado. Ela é uma amiga.
Ele assentiu, ainda sorrindo.
— Ela está bem, sim. E imagino que vai ficar muito feliz de
saber que você entrou pra orquestra. — Me olhou de forma
sugestiva, uma pergunta silenciosa.
Certo, eu ainda não tinha falado nada sobre aceitar ou não a
vaga.
Respirei fundo e olhei para cima, absorvendo tudo aquilo. Fazer
parte da Conducto, um membro oficial. Uma musicista profissional.
Não foi isso que eu sempre quis? Não era exatamente ali que eu
queria tanto chegar?
Parecia um sonho. Os últimos meses foram tão difíceis, parecia
que eu sempre acabava em um beco sem saída, não importava pra
onde corresse. E agora, como um verdadeiro milagre, como se
fosse mágica…
Mágica. A palavra se assentou em mim com um sonoro clique.
Fixei os olhos no teto abobadado e escuro, nas pequenas luzes
que pareciam estrelas em um céu noturno… um céu estrelado…
dentro de um palácio.
— Um palácio mágico… — sussurrei com o coração a galopes,
me lembrando da história que minha mãe me contou certa vez. —
Onde apenas os melhores mágicos e feiticeiros ganhavam acesso
pra entrar e fazer suas magias.
Senti os outros ao meu redor ficarem alertas.
— Ju? — Jéssica perguntou com cuidado, apoiando a mão em
meu ombro.
— Qualquer um de fora podia entrar pra ver a mágica… —
continuei encarando o teto, as palavras escorrendo de mim
conforme tudo, devagar, ia finalmente fazendo sentido. — Como se
fosse um espetáculo.
Ela disse que ia me levar até lá um dia. Até o palácio com um
céu estrelado dentro. E disse que… que as coisas finalmente iam
começar a melhorar pra nós.
Voltei a encarar os três homens à minha frente, e só percebi
que meus olhos tinham se enchido de lágrimas quando uma
escorreu pela minha bochecha.
— Minha mãe… — balbuciei, saltando da cadeira, do palco, e
praticamente agarrei o maestro pela barra da camisa. — Vocês
conheceram a minha mãe? Ela já tocou aqui? Ela…
— Ju! — Jéssica chamou, alarmada, e desceu do palco
correndo também, Aurora e o professor vindo atrás.
— Por favor — implorei, as lágrimas rolando soltas. — O nome
dela era Andréia. Andréia Bellini. Ela já tocou aqui?
— Ah… — Martin me olhava com confusão, sem saber o que
fazer e me segurando pelos ombros com cuidado. — Eu não sei.
Quando foi isso?
— Dez anos atrás — sussurrei. Implorei.
Os olhos verdes se arregalaram de leve.
— Dez… não é da minha época. Cláudio? — Olhou para o
homem ao seu lado, tão confuso quanto o restante.
— Eu não sei — ele falou, encolhendo os ombros. — Eu ainda
não era diretor, só… Espera. — Piscou. E me olhou com cautela. —
Andréia, você disse? Andréia Bellini?
Assenti, mais lágrimas se acumulando nos meus olhos.
— Esse nome é familiar — Flávio falou do outro lado do
maestro, pensativo. — Por que é familiar?
— Dez anos atrás… — Cláudio falou devagar — a orquestra
abriu audições pra novos músicos também. Meu pai ainda era o
maestro, mas lembro que ajudei na organização e assisti algumas
audições. Uma delas foi… de uma violoncelista. — Me olhou de
novo, dessa vez analisando cada centímetro do meu rosto. — Você
é filha da Andréia — murmurou, contemplativo. — Sim, dá pra ver.
Você se parece com ela.
Jéssica arquejou de leve atrás de mim, tapando a boca. Aurora
e o professor apenas observavam, assombrados.
Eu não conseguia respirar.
— Ela passou? — perguntei, mas não sei se minha voz chegou
a sair. — Ela passou na audição?
— Ah, eu lembro dela! — Flávio exclamou, as sobrancelhas
arqueadas. — Ela foi uma das melhores. Nunca vi ninguém tocar
com tanta paixão.
— Ela passou? — insisti, olhando cada um deles.
— Passou. — O homem assentiu. E franziu o cenho, confuso.
— Mas ela nunca mais apareceu. Por quê? — Olhou para Cláudio,
que agora tinha sombras encobrindo seu olhar. Um olhar de luto que
eu conhecia muito bem.
— O que aconteceu? — Martin perguntou, reparando também
na expressão do diretor.
— Ela… morreu em um acidente de carro. No mesmo dia que
os novos músicos seriam recebidos oficialmente. — Olhou para mim
com pesar e lamento, assim como os demais.
Mas eu já tinha sofrido com aquilo por dez anos. Não era
nenhuma novidade pra mim. Não, a única coisa que ecoava na
minha cabeça, de novo e de novo, era…
Ela passou. Apesar das dificuldades, apesar das reprovações…
apesar das dúvidas e do medo, minha mãe se inscreveu na audição,
deu o melhor de si e passou. Por nós. Por mim.
Ela… ela…
— Ela chegou lá — sussurrei, os olhos marejados desfocados.
— Ela conseguiu. — Lentamente, um sorriso se formou no meu
rosto e me virei para Jéssica, que também tinha lágrimas nos olhos.
— Ela fez isso por mim. Meu Deus, ela conseguiu!
— É claro que sim. — Minha amiga sorriu, apoiando a mão na
minha bochecha. — Uma mãe faz de tudo pelos filhos. E agora você
também conseguiu, Ju. É forte e corajosa como ela. Sua mãe teria
muito orgulho de você.
Meu sorriso cresceu, as lágrimas rolando soltas. Mas tentei me
recompor e, enxugando o rosto com as mãos, me virei para o
maestro.
— Eu posso pedir uma coisa?
Ele franziu as sobrancelhas, surpreso, mas apenas esperou.
— Querendo ou não, vocês abriram uma exceção por mim —
continuei. — Me ouviram, mesmo não estando inscrita na audição.
— Alcancei a mão de Jéssica, segurando firme. — Será que…
poderiam fazer o mesmo por ela?
— Julieta! — Ela me censurou entre dentes, os olhos
arregalados de choque. Mas não parei.
— Ela é uma violinista incrível. Dá muito duro e leva o trabalho
a sério. E também… — olhei minha amiga com carinho — sempre
sonhou em viver uma aventura musical. Se tem alguém que merece
uma oportunidade assim, é ela.
— Ju… — murmurou, sacudindo a cabeça de leve. — Não
precisa fazer isso por mim…
— O que vocês acham? — Martin falou, no entanto, para a
minha surpresa, e olhou para Cláudio. Minha amiga enrijeceu ao
meu lado.
— A audição pra violino vai ser daqui duas semanas. — Cláudio
ergueu os ombros com um sorriso discreto, mas cúmplice. — Acho
que dá tempo de encaixar mais uma pessoa.
— Nisso eu não posso opinar… — Flávio falou. — Mas tenho
certeza que César, o nosso spalla, não se oporia.
— A peça de confronto é o famoso concerto pra violino de
Mozart. Acha que consegue? — O maestro olhou para Jéssica, uma
sobrancelha arqueada e um sorriso de canto de boca. Uma
pergunta e um desafio.
Minha amiga ficou tão vermelha quanto seu cabelo, mas
conseguiu se manter firme o suficiente para não desmaiar.
E assentiu com a cabeça depois de um tempo, resoluta.
— Consigo.
— Ótimo. — Martin esboçou aquele sorriso largo de fazer a
pressão cair. Minhas bochechas esquentaram, Jéssica parecia não
conseguir respirar direito e até Aurora, atrás de nós, soltou um
suspiro trêmulo. O professor De Lucca fez uma carranca e beliscou
a bunda dela, fazendo-a sibilar com os dentes trincados.
— Vai dar tudo certo. — Apertei a mão de Jéssica. E sorri,
olhando na direção da sua barriga. — Afinal, uma mãe faz de tudo
pelo filho, né?
Ela apoiou a mão ali por reflexo, um sorriso emocionado se
abrindo em seu rosto.
— Faz sim. — E me puxou num abraço. — Obrigada, Ju. Você
só me mete em roubada… — riu, novas lágrimas enchendo seus
olhos — mas obrigada.
— Ela teria orgulho de você também — murmurei. — Amiga,
irmã… você é tudo isso pra mim. E já perdi as contas de quantas
vezes você foi a mãe que eu precisava, e Elias, o pai que eu nunca
tive. Nos piores momentos, vocês estavam lá por mim. Minha mãe
teria amado vocês dois. Então, o mínimo que eu posso fazer é
retribuir todo o cuidado que vocês tiveram comigo durante todo esse
tempo.
— Ah, Ju… — ela choramingou, emocionada.
E ouvi quando Aurora fungou, tentando segurar o choro, o
professor De Lucca a puxando para perto e acariciando seus
cabelos.
— Depois eu que sou molenga, né? — Martin provocou, e vi os
olhos de Cláudio marejados enquanto ele piscava sem parar para
afastar as lágrimas.
— Não enche — resmungou, esfregando os olhos e ajeitando
os óculos.
— Se até o diretor tá chorando, quem sou eu pra não chorar?
— Flávio falou, sem medo de esconder as lágrimas que também
escorriam pelo seu rosto. — Isso tudo é emocionante demais.
Dei risada, também com o rosto encharcado, mas foi o maestro
quem falou com um sorriso compreensivo, apoiando a mão pesada
no ombro do homem:
— Vai se acostumando, isso é mais comum por aqui do que
parece.
— Obrigada — sussurrei com um sorriso, meus olhos
encontrando os de Aurora.
Ela sorriu de volta, um sorriso cheio de significados e,
entrelaçando os dedos nos do professor, seu tão amado Vougan,
respondeu:
— Eu que agradeço.
Capítulo 55
Um mês depois
— E seu avô? — Richard perguntou, segurando minha mão e
ajudando a me equilibrar enquanto eu andava pela mureta do
chafariz na entrada da escola, a água azul cristalina refletindo a luz
do sol. — Ele tá bem?
— Tá sim. Mas não reclamou muito nos últimos dias, então
talvez isso me deixe um pouco preocupada.
Ele riu com gosto.
— Provavelmente tá pensando em uma forma nova de se
rebelar e te dar trabalho.
— Não duvido nada — falei com um sorriso. E parei, me
virando para Richard, que segurou minhas duas mãos e ergueu a
cabeça para me olhar nos olhos. — Como se sente sendo o grande
vencedor do concurso, ó Todo-Poderoso do conservatório?
Ele revirou os olhos, mas deu risada.
— Ainda esperando meus privilégios reais. Furar fila, lanche de
graça na cantina, uma baixinha de olhos escuros me abanando com
uma folha de bananeira…
Dei um peteleco em seu nariz, fazendo-o gargalhar ainda mais.
Richard venceu o primeiro lugar no concurso, mas, ao contrário
do que pensou, o conselho não inverteu a ordem do prêmio. O
prêmio em dinheiro foi para o segundo lugar, e a bolsa, para o
primeiro. No entanto, como prometido, ele convenceu Mariana a
trocar. O que, surpreendentemente, não deu muito trabalho. E eu
tentei convencê-lo a não fazer isso, claro, mas quem disse que
adiantou? Richard literalmente quase esfregou o cheque enorme na
minha cara.
Tentei argumentar mesmo assim, mas em resumo… eu paguei
a conta no hospital três dias depois. Emburrada e contrariada, mas
sob a ameaça de que ele se livraria do dinheiro caso eu não
aceitasse.
— E na orquestra? — Richard perguntou, os polegares
acariciando minhas mãos com movimentos circulares. — Quando
você começa?
— Ainda preciso levar a documentação e o diploma, mas
depois disso… começo na semana que vem.
— E o instrumento?
Respirei fundo.
— Vou usar o do professor De Lucca por enquanto. Ele queria
que ficasse comigo pra valer, mas... eu não ia me sentir bem com
isso. Só concordei em pegar emprestado até conseguir comprar
outro pra mim.
— Típico de você. — Richard riu. — Violoncelista oficial da
Orquestra Filarmônica Conducto. — Sorriu, como se fosse um título
da realeza. — Fica bem em você.
Eu ainda estava me acostumando com tudo aquilo, mas tinha
que admitir…
— Fica mesmo. — Sorri, convencida.
— Então… chega de trabalhar em dois empregos?
— Até poderia — confessei. — Mas não vou deixar Demétrio na
mão. Ele ficou muito feliz quando soube da novidade, mas tá quase
indo atrás do maestro da Conducto com um pedaço de pau.
— Por quê? — Richard franziu as sobrancelhas.
E não consegui conter a risada que escapuliu.
— Porque ele já tá cansado do maestro bonitão ficar roubando
as meninas dele. — Foram as palavras exatas do velho regente,
com humor, mas aquele fundo de verdade era claro como cristal.
Richard gargalhou mais uma vez.
— Pobre Demétrio.
— Vou continuar ajudando. Como trabalho voluntário dessa
vez, mas uma parte de mim sempre vai pertencer àquele lugar.
Um movimento na direção da entrada do prédio chamou a
minha atenção, e vi quando a professora Fabiana saía para o
almoço... acompanhada da Cris, a secretária.
Meu sorriso cresceu, radiante, e acenei para as duas. A
professora me olhou de forma sugestiva, implorando mentalmente
que eu não fizesse um escarcéu, mas acenou de volta, sorrindo. E,
quando chegaram nos grandes portões de ferro... vi quando as duas
deram as mãos.
— E o grupo de eventos? — Richard perguntou, completamente
alheio.
Infelizmente, não existia mais. E eu nunca me esqueceria dos
momentos incríveis que passei com Jéssica e Elias, e a correria de
todo fim de semana em um casamento atrás do outro, mas,
felizmente…
— Todos estão começando uma nova aventura agora. Elias tá
se saindo muito bem no trabalho novo, e Jéssica… — Meu sorriso
alargou. — Vai ser bom ter uma amiga me acompanhando na
cerimônia dos novos músicos da orquestra. Vivendo tudo isso
comigo.
Jéssica tinha arrasado na audição. Estudou feito uma louca e
deu tudo de si. Eu e Elias tivemos que nos revezar pra ficar de olho
nela, e nos assegurar que Jéssica não ia passar dos limites por
causa do bebê, mas mesmo assim ela encarou a pressão de frente.
Sem medo.
E ficou tão eufórica quando recebeu a notícia de que tinha
passado que começou a gritar no meio do restaurante com o e-mail
aberto no celular, quando estávamos comemorando meu
aniversário… e vomitou em cima do marido logo depois. A fase dos
enjoos definitivamente ainda não tinha acabado.
— A propósito… — acrescentei, apoiando as mãos nos ombros
de Richard. — Ela te convidou pro chá do Filipe.
Ele franziu o cenho, confuso, mas seu rosto se iluminou quando
entendeu.
— É um menino?
— É sim. — Mordi o lábio e dei pulinhos de alegria.
Eu ia ser tia de um menininho!
— Com toda certeza eu vou. — Richard sorriu, orgulhoso. —
Sua amiga vai precisar de todos os pacotes de fralda que conseguir
estocar, acredite.
Dei risada, mas voltei a ficar séria quando perguntei, com
cuidado:
— Teve notícias da Giovanna?
O sorriso de Richard apagou.
— Vai começar o segundo semestre em uma escola nova, pelo
que eu soube. Uma bem mais... rigorosa.
— Vocês voltaram a se falar?
Ele fez uma careta.
— Não exatamente. Minha mãe foi visitar a tia Fer ontem, e me
fez ir junto. A Giovanna ficou lá com a gente, mas foi praticamente
por obrigação também. Mas... ela tá mais tranquila, pelo que eu
reparei. Acho que dar um tempo dos estudos de música vai fazer
bem a ela. Pelo menos até entender que não precisa competir com
todo mundo pra tocar bem.
— Acha que ela vai conseguir? Se... reencontrar?
Richard ponderou por um tempo.
— Acho. Ela é teimosa e cabeça-dura, mas... ela vai tentar
melhorar. Depois que fomos embora, eu... mandei uma mensagem
pra ela. Dizendo que podia conversar comigo, se quisesse. E ela...
agradeceu. Não falou muito mais que isso, mas parece que tá
começando a afrouxar as rédeas.
Assenti.
— Que bom. Espero que ela consiga. E que não dê mais
ouvidos a ninguém que tentar pressioná-la por causa do nome da
família.
— Ei, baixinha! — Alguém chamou de repente, voltando a
minha atenção pra entrada do prédio.
Vitor. E Pedro, Beatriz, Lucas… e Mariana.
— O que tá fazendo aqui? — O garoto loiro se aproximou, o
grupo vindo atrás. — Até onde eu sei, bonequinha, você não é mais
aluna. Ou levou bomba na prova?
Mostrei a língua, fazendo ele rir.
— Pra sua informação… — Pulei da mureta e empertiguei os
ombros. — Eu fui muito bem na prova. E vim buscar meu diploma.
— Sorri, orgulhosa.
Pedro assobiou, provocando Vitor.
— Ela não é igual a você, que gosta de ver o boletim todo em
vermelho.
Vitor abriu a boca, provavelmente pra xingar o amigo de alguma
coisa bem criativa, mas Mariana interrompeu:
— Ele não vai mais tirar notas vermelhas. Não com a minha
ajuda — falou com superioridade e sorriu para Vitor, um sorriso
tímido e significativo. — Não é?
— Estudar nunca pareceu tão divertido. — Ele abriu um sorriso
completamente besta no rosto, e Pedro fez cara de nojo fingindo
ânsia de vômito.
— Parabéns pelo concurso — falei sem jeito para Mariana, e
ofereci um sorriso. Não estava mais brava com ela, mas também
não tínhamos conversado desde aquela confusão com Giovanna.
Ela piscou os olhos grandes, bem ciente daquilo, e retribuiu o
sorriso tímido.
— Obrigada.
— Quando você vai pra Tóquio? — Richard perguntou.
O sorriso de Vitor murchou.
— Mês que vem — Mariana murmurou, olhando o namorado
pelo canto do olho. — Mas vai passar rápido. — Segurou a mão
dele com carinho. — São só alguns meses.
— É, até você conhecer um japonês tão nerd quanto você e
perceber que são almas gêmeas — Vitor resmungou.
— Meus Deus, você consegue ser tão dramático. — Beatriz
revirou os olhos. — A bolsa é só pra uma temporada, não é um
curso superior completo.
— E eu não planejo ficar lá — Mariana emendou. — Claro,
quero aprender tudo que puder e aproveitar a experiência ao
máximo, mas… — esboçou um sorrisinho para ele — tenho outros
planos em mente também. Planos que envolvem um pianista loiro
chato e resmungão. — Ficou na pontinha dos pés e beijou sua
bochecha.
E a postura marrenta caiu por terra, dando lugar a um Vitor todo
bobo alegre.
— Todos vocês são nojentos. — Lucas enrugou o nariz.
— Só diz isso porque você ainda não conheceu sua princesa
prometida — Richard provocou, todo teatral.
— É só questão de tempo. — Pedro sorriu com malícia. —
Aposto que ele é do tipo que fica atrás igual um cachorrinho.
— Olha só quem fala — Lucas resmungou de volta. — Se a Bia
mandar, você late, rola e dá a patinha com prazer.
— Não é mentira… — Beatriz cantarolou quando o namorado
fechou a cara.
— Pedro? — Vitor riu. — Ele só tem pose de durão, mas é a
maior cadelinha que eu já vi.
O golpe veio sem aviso. Em um momento, Vitor estava ali, em
pé e rindo da cara do amigo. No segundo seguinte, os dois estavam
rolando pra dentro da fonte, água espirrando pra todo lado.
— Briga, briga, briga, briga! — Lucas começou a exclamar na
beirada da mureta, eufórico.
Até que Vitor emergiu com uma carranca e puxou Lucas pra
dentro da fonte também, que caiu lá dentro como um boneco de
pano.
— Meu Deus — Beatriz murmurou, inexpressiva, encarando a
cena como se eles fossem um bando de crianções.
— Lamentável — Mariana concordou de braços cruzados.
Apenas encarei Richard pelo canto do olho, sem conseguir
conter o sorriso. Ele me olhou do mesmo jeito, e eu soube que tinha
pensado exatamente a mesma coisa.
— Bia… — cantarolou, enroscando o braço no de Beatriz.
— Mari… — enrosquei o meu no de Mariana com um sorriso
nada inocente.
— Ah, não… — ela começou, mas não teve tempo de terminar.
Porque Richard e eu começamos a correr na direção da fonte
arrastando as duas e, aos gritos, pulamos na água também.
Um afogava o outro, jogando água pra todo lado com gritos e
risadas eufóricas, e acho que nunca na minha vida eu me diverti
tanto. Sem ficar pensando ou planejando cada minuto do meu dia,
sem me preocupar com horários e prazos, sem pensar nas
consequências dos meus atos.
Naquele momento, eu era apenas uma adolescente normal,
fazendo besteiras e arrumando confusões de adolescentes normais.
Por muito tempo eu tentei me convencer de que isso não era pra
mim, que já tinha passado dessa fase… que eu tinha que crescer.
Mas ali, enquanto gargalhava observando Richard pular em
cima de Lucas, os dois afundando na água, Pedro dando um caldo
em Vitor com um sorriso assassino no rosto, e Beatriz e Mariana
competindo pra ver quem jogava mais água na outra… parecia que
a última peça da minha vida finalmente tinha se encaixado.
Tudo estava, finalmente, em seu devido lugar.
Ou pelo menos era o que eu achava, até que…
— O que pensam que estão fazendo?! — O novo diretor
apareceu, bufando, e parou a uma distância segura da fonte e da
água que jorrava.
Todos nós paramos no mesmo segundo, encharcados e com
água até a cintura.
— Dando uma festa de despedida pra Julieta? — Beatriz
arriscou com um sorriso amarelo.
Ele bufou mais uma vez, revirando os olhos.
— Será que vocês não vão me dar paz nunca? Por que,
sempre que alguma confusão acontece, eu sei que vocês vão estar
metidos no meio?
Mas antes que pudéssemos responder…
— Ah, não seja hipócrita, Vougan. — Aurora apareceu por trás,
o abraçando pela cintura. E com um anel vermelho reluzindo em seu
dedo anelar… igual ao do parceiro. Uma aliança personalizada, que
representava aquele fio vermelho e inquebrável entre eles. — Até
parece que você era um santinho nessa idade.
Comprimi os lábios, segurando a risada, mas um dos outros
não conseguiu ter tanto sucesso pois ouvi um engasgo.
— Será que pelo menos aqui eu posso ter autoridade? — ele
resmungou para ela, mas seus olhos brilhavam com diversão
maliciosa.
— Ah, me desculpe… — Aurora provocou, aproximando o rosto
do dele e olhando sua boca descaradamente — diretor.
Ele engoliu com tanta força que foi audível. E, a julgar pelas
roupas desalinhadas e levemente amassadas dos dois, os cachos
de Aurora bagunçados e os lábios inchados… eu diria que eles
estavam se provocando daquele jeito há um bom tempo já.
— Essas visitas no horário de almoço ainda vão me causar um
problemão, Moranguinho — grunhiu, mas sua voz era desejo puro.
Ela sorriu, ainda olhando sua boca.
— Que bom. Esse lugar precisa mesmo de um pouquinho de
diversão.
E Vougan, que passou oficialmente de professor a diretor do
Colégio São Patrício e do Intermezzo Musicale, teve que usar de
toda a sua força de vontade para se conter, desviar os olhos de
Aurora e olhar para mim, os punhos cerrados delatando como ele
estava a um suspiro de devorar sua Moranguinho bem ali na frente
de todo mundo.
— Senhorita Julieta… — falou com um sorriso tenso. — Sua
documentação ficou pronta. Assim como seu diploma.
Era exatamente por causa daquilo que eu tinha ido ao colégio
naquele dia, mas mesmo assim… meu coração deu um salto.
— Sério? — sussurrei com um sorriso.
Ele assentiu e sorriu também, com orgulho.
— Parabéns. É oficialmente uma formanda do Colégio São
Patrício.
— Uhuuul! — alguém exclamou, e a zona na fonte voltou com
força total, dessa vez comigo como alvo principal dos espirros
encharcados e caldos.
Vougan revirou os olhos, desistindo de tentar botar ordem, mas
os cantos da sua boca teimavam em subir. Aurora esboçou um
sorriso orgulhoso enquanto admirava a bagunça e, como uma
lembrança de que o assunto deles ainda estava inacabado, mordeu
o lábio e beliscou a bunda do diretor.
— Se me dão licença… — ele falou por cima da balbúrdia com
a mandíbula tensa, devorando Aurora com o olhar — agora eu
tenho que resolver outro assunto. — Nos olhou rapidamente pelo
canto do olho. — Terminem aí e não arrumem mais confusão.
— Pode deixar — falei, mas não conseguia parar de sorrir e dar
risada.
Aurora gargalhou quando Vougan se agachou e a jogou nos
ombros, seguindo para o interior do prédio daquele jeito mesmo,
rumo à sua sala.
Mas antes que eles sumissem, os olhos castanhos dela
encontraram os meus, e sorrimos uma para a outra, trocando uma
mensagem silenciosa.
Finalmente… encontramos nosso final feliz.
Sim… encontramos.
Richard me alcançou no meio da baderna, no exato momento
em que tentei me levantar e escorreguei, e me segurou antes que
eu voltasse a afundar na água.
— Não vai ser a mesma coisa aqui sem você — falou, água
pingando de seu cabelo, seu nariz, seu queixo…
— Eu venho visitar de vez em quando — assegurei, afastando
uma mecha de cabelo ensopada que caía em seus olhos cor de
avelã. — E vocês vão me assistir no teatro. Quero todo mundo lá
toda semana.
— E vamos sair pra comer depois.
— Na lanchonete que toca música antiga pra gente se esgoelar.
Ele sorriu, um sorriso radiante.
— Pode deixar. — Aproximou o rosto do meu, a boca da minha.
— Posso?
Olhei no fundo de seus olhos, um sorriso tranquilo, genuíno e
muito feliz tomando forma em meu rosto. E murmurei antes dele me
beijar, com tanto carinho e cuidado que me deixou completamente
sem fôlego:
— Pode.
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale
Intermezzo: Também chamado de Interlúdio ou Entr’acte, é
uma peça musical que preenche o vazio entre duas cenas ou atos
de uma ópera. No séc. XVI, era um espetáculo completo, com
dança, canto e música instrumental.
Cartas do Vougan para Aurora
(que ela nunca leu, porque ele ainda não criou coragem pra
mostrar)

Moranguinho...
Faz um tempo já que a fisioterapeuta me faz praticar a escrita,
como um exercício de recuperação. Começamos aos poucos, letra
por letra, depois palavra por palavra, e por mais que seja difícil, por
mais que minhas mãos não parem de tremer e ainda doam um
pouco, e por mais que minha caligrafia esteja simplesmente
horrorosa por causa disso, essa é a primeira coisa mais extensa que
eu escrevo desde o acidente. E, mesmo sabendo que ninguém vai
se dar ao trabalho de enviar, decidi que queria escrever pra você.
Porque...
Hoje faz dois meses que eu fui internado. E dois meses que eu
não tenho nenhuma notícia sua. Perguntei de você pra cada pessoa
que veio me visitar, cada médico e cada enfermeira, mas ninguém
se lembra de ter visto uma garota baixinha raivosa com cachos cor-
de-rosa.
Em dois meses, eu nem sequer ouvi seu nome. E eu não consigo
entender o por quê. Podia jurar que o seu rosto seria o primeiro que
ia ver assim que acordasse... eu queria que fosse o primeiro cada
maldita vez que abri os olhos nas últimas oito semanas, mas... você
nunca veio.
Por quê você nunca veio?
Moranguinho...
Hoje eu recebi alta no hospital, e a primeira coisa que fiz foi ir
atrás de você. Com as mãos enfaixadas e um braço pendurado
numa droga de tipoia, mas eu ignorei os gritos da minha mãe e fuji
de casa, peguei um ônibus e fui te procurar.
Mas não te encontrei. Quando cheguei na sua casa, havia um
caminhão de mudanças descarregando móveis estranhos que eu
nunca tinha visto, e pessoas entrando e saindo que não eram os
seus pais.
Me disseram que os antigos moradores se mudaram. Para Paris.
E foi quando eu entendi. Por mais que a sensação fosse a de ter o
coração arrancado pra fora do peito e pisoteado com pregos... eu
entendi. Você não foi me ver porque... foi embora.
Simplesmente foi embora. E... me deixou aqui.
Aurora... por quê? Que droga aconteceu com você? Com a
gente? Eu... podia jurar que tinha ouvido... que tinha te ouvido dizer
que...
Acho que tudo não passou de um sonho. Não só aquelas palavras
que eu queria tanto ouvir você dizer, mas tudo que existia entre nós.
Tudo que eu acreditei que existia entre nós.
Mas você prometeu... e eu acreditei.
Éramos eu e você contra o mundo, Moranguinho.
E, ainda assim, eu fiquei sozinho.
Moranguinho...
Um mês se passou desde a última vez que escrevi pra você. Não
que faça alguma diferença. Não posso mandar carta nenhuma, nem
se quiser, porque não faço a mínima ideia de como te encontrar.
E, porra, como eu tentei.
Mas, mesmo que você nunca vá ler nada disso, eu... queria falar
com você. Queria te contar como anda a minha vida. A droga da
minha vida.
Mesmo tendo recebido alta no hospital, continuei com a
fisioterapia. Os ferimentos estão melhores, mas alguns cortes ainda
estão cicatrizando. É difícil e doloroso, mas me agarrei ao
tratamento e aos exercícios com unhas e dentes porque acreditava
do fundo da minha alma que as coisas voltariam ao normal. Pelo
menos nessa parte da minha vida. Pelo menos com o meu corpo.
Mas...
A tremedeira não passa. Meus dedos, eles simplesmente... não
param de tremer. E qualquer força, mesmo que mínima, que eu
tente fazer nas mãos me perfura com uma dor insuportável.
Eu... acho que não vou mais conseguir tocar. A doutora disse que
ainda é muito cedo pra falar, mas... droga, eu não consigo nem
escrever uma frase inteira sem precisar literalmente segurar a mão
no lugar.
Queria que você estivesse aqui. Com certeza diria algo que
tranquilizaria esse medo dentro de mim, como sempre fazia. Como
só você consegue fazer. Eu queria...
Droga, Aurora, queria tanto que você estivesse aqui.
O acidente tirou tudo de mim. Minhas mãos, minha música...
minha Moranguinho. Eu não tenho mais nada, sinto que eu não
passo de uma casca vazia e inútil, um peso morto que não tem
utilidade nenhuma.
Eu tentei ficar com raiva, tentei transformar o medo em ódio por
você ter ido embora, tentei te odiar, mas a verdade é que... eu não
consigo. Porque no fim das contas, ter você aqui do meu lado, me
tirando de todo esse inferno com seus sorrisos, provocações e
ameaças de morte, é a única coisa que eu queria de verdade.
A única coisa que eu preciso.
Mas agora é como se você nunca tivesse existido.
Moranguinho...
Tudo ao meu redor não para de desmoronar, como se eu
estivesse rolando pela porra de um barranco, mas preciso seguir em
frente. E te deixar pra trás, da mesma forma que você fez comigo.
Então, só quero que saiba que... essa é a última vez que escrevo
pra você. Eu não quero te ver nunca mais. Não quero pensar em
você nunca mais. Eu não posso. Por isso...
Não volte. Onde quer que esteja... nunca mais volte. Eu não
preciso de você.
Eu não amo mais você.
É isso. Adeus.
Aurora.
Faz dez anos já desde a última carta. Tinha prometido a mim
mesmo que não faria mais isso, que deixaria essa parte da minha
vida para trás, e só olharia para frente. Para o agora, para o futuro.
Por um tempo eu consegui. Não completamente, pois aquele
buraco dolorido no meu coração era um lembrete constante de que
tinha algo faltando, de que sempre teria algo faltando, mas eu
aprendi a conviver com isso. Aprendi a sobreviver a isso. No
entanto...
Os últimos dias foram difíceis. A dor pareceu aumentar de
tamanho, e as lembranças do passado ficaram cada vez mais
insistentes, invadindo meus sonhos noite após noite.
E acho que o motivo disso é que... eu conheci uma pessoa que
me lembra muito você. Nós dois, na verdade. Sempre que a vejo
tocar, é como se estivesse olhando para o Vougan do passado. O
Vougan que sonhava, que sentia prazer na música, o Vougan... que
fazia sentido.
Acho que você ia gostar dela. É uma aluna nova, muito inteligente
e responsável, mas que também sabe se meter em confusão como
ninguém e não tem medo de falar o que pensa. Já me respondeu
duas vezes, com a mesma petulância e ousadia que eu amava tanto
em você.
Amava...
Eu ainda tento me convencer disso. Que tudo ficou no passado.
Você, nós... todos aqueles sentimentos intensos que eu nunca
consegui sentir com mais ninguém, por mais que tentasse...
Patético, eu sei. Mas quem eu quero enganar? A verdade é que...
eu ainda te amo, Aurora. E não importa quanto tempo passe, acho
que meu coração sempre vai bater mais forte quando pensar em
você. E eu tenho pensado em você com muita frequência nos
últimos dias. Só me pergunto se você também pensa em mim. Se
uma parte de você, por menor que seja... ainda me ama também.
Às vezes eu me pergunto se tudo aquilo foi real. Se você foi real
ou apenas fruto da minha imaginação, um sonho lindo e maluco que
eu, de alguma forma, criei sozinho na minha cabeça desmiolada.
Se foi um sonho... por favor, volte a me visitar. Eu sei que disse a
você que nunca mais voltasse, mas... por tudo que é mais sagrado,
volte e me dê mais daqueles momentos bonitos e intensos. Felizes.
E se foi real... volte também. Por favor. Pode me chutar, xingar,
jogar aquela pedra na minha cara... apenas volte, Moranguinho.
Do fundo do meu coração, eu preciso que você volte.
Vougan
(dias atuais)
O ar de inverno estava gelado, mas o sol brilhante no céu limpo
trazia uma sensação quente e acolhedora. Caminhei com cuidado
pela grama, as mãos nos bolsos da jaqueta de couro, não ousando
quebrar aquele silêncio sagrado, e me aproximei de onde Aurora
estava ajoelhada, pensativa, diante da placa de pedra.
Diante da lápide do falecido pai.
Tirando nós dois, apenas mais uma pessoa ocupava o espaço
grande e aberto do cemitério: um homem de pele pálida e cabelo de
um preto intenso, roupas pretas e pesadas de aparência cara para
se proteger do frio, parecendo a morte encarnada. Ele estava em pé
mais ao longe, apoiando uma rosa vermelha diante da lápide de
qualquer que fosse seu conhecido ou parente que descansava
eternamente ali. E, mesmo com a distância, a grande e brutal
cicatriz que descia por todo o lado direito do seu rosto era visível.
Flexionei os dedos trêmulos dentro do bolso, uma lembrança
constante das minhas próprias marcas. Das cicatrizes que
carregaria pelo resto da vida, muito mais profundas do que aquelas
visíveis sobre a pele.
— Sinto sua falta — Aurora sussurrou, sua voz suave se
misturando à brisa fria e o farfalhar das árvores ao redor. Seus
dedos finos agarravam a grama diante da lápide. — Todo dia eu
sinto a sua falta. Acho que não vai ter um dia sequer daqui pra
frente que eu não vá sentir esse vazio que o senhor deixou. —
Apertou mais os dedos na grama... e fungou.
Senti um aperto na garganta, mas me obriguei a engolir. E
ajoelhei ao seu lado, abraçando-a pelo ombro. Seu cheiro doce de
morango me envolveu.
Eu podia tentar dizer qualquer coisa para confortá-la, para
tentar diminuir a dor em seu peito, mas sabia por experiência própria
que não adianta tentar tapar alguns buracos. Eles sempre vão
existir, e a única coisa que podemos fazer é aprender a conviver
com eles, aceitando a dor e deixando ela se assentar.
— Sentir falta de alguém nem sempre é uma coisa ruim —
sussurrei, enterrando os dedos em seus cachos até alcançar sua
nuca. — Sentir dor, ter um coração partido... quer dizer que um dia
ele foi amado. Seu pai nunca deixou de te amar, e eu tenho certeza
de que ele nunca vai te deixar completamente. Ele ainda existe
dentro de você, Moranguinho. E ele nunca vai sair daí.
Devagar e com o lábio tremendo, ela assentiu, uma lágrima
rolando pela bochecha rosada. E fui invadido pela lembrança da
primeira vez que a vi, chorando sozinha dentro da sala de ensaio,
escondendo sua vulnerabilidade do restante do mundo.
Ainda nem nos conhecíamos, mas, Deus, Aurora nem fazia
ideia do quanto eu a entendia. Do quanto entendia aquela
necessidade de não deixar que os outros enxergassem as minhas
fraquezas.
Mas não mais. Não entre nós, pelo menos.
E, como se soubesse o rumo que meus pensamentos
tomavam, ela virou o rosto avermelhado na minha direção,
sussurrando com um sorriso triste:
— Eu e você contra o mundo?
Meus olhos ardiam, mas assenti com a cabeça, olhando
fixamente aqueles olhos irresistíveis de chocolate ao leite.
— Eu e você contra o mundo, Moranguinho.
Aurora respirou fundo e se remexeu, sustentando o peso em
uma perna e trazendo a outra para frente. Levantou a barra da
calça, soltou aquela pulseira vermelha e desgastada do tornozelo...
e apoiou com cuidado em cima da lápide de pedra.
— Nossa união também é inquebrável — sussurrou para o pai.
— E nada, nem o tempo e o espaço, vão mudar isso. Eu prometo.
Tirei o molho de chaves do bolso da calça e, com certa
dificuldade por causa dos espamos nos dedos, soltei o pingente cor-
de-rosa dali também, prendendo ao lado do pingente azul da
pulseira.
Aurora observou tudo com paciência, sabia que apesar da
minha condição tinha coisas que eu preferia fazer sozinho, levando
o tempo que fosse necessário.
— Obrigado pelo amigo que o senhor sempre foi pra mim —
sussurrei também, encarando o nome gravado na pedra e
visualizando aquele rosto sempre alegre e descontraído. — E
obrigado por ter colocado no mundo a pessoa mais importante da
minha vida.
Aurora fungou mais uma vez, trêmula e incapaz de segurar as
lágrimas, e me virei para ela. Não tinha planejado fazer aquilo ali no
cemitério, mas sentia no fundo do coração que devia.
— Prometemos que sempre estaríamos um do lado do outro. E,
se for pra fazer isso, Moranguinho, quero fazer do jeito certo.
Ela se virou para mim também, afastando os cachos do rosto e
prendendo atrás da orelha, a mecha única cor-de-rosa se
misturando ao restante da massa castanha.
— Eu também quero, Vougan. — Alcançou minha mão,
passando o polegar pelas grossas cicatrizes na minha pele.
Envolvi seus dedos com os meus e, tirando a caixinha do bolso
da jaqueta com a mão livre, continuei:
— Você sabe que eu nunca gostei da ideia de que
estivéssemos presos um ao outro, mas ao mesmo tempo quero que
você escolha isso. Quero que você me escolha, Moranguinho,
porque... eu também escolho você. A cada dia que passa, cada
momento que passamos juntos, cada risada e cada lágrima... eu
escolho você. Escolho passar o resto da minha vida ao seu lado,
independente da hora, lugar ou circunstância.
— Vougan... — ela sussurrou, trêmula, os olhos marejados
arregalados e fixos na caixinha que eu segurava. — O quê...
Me apoiei num joelho só e ergui sua mão enquanto abria a
caixinha, revelando o par de alianças vermelhas, uma
representação digna daquele fio inquebrável que nos conectava.
— Eu escolho você, Aurora Cristina Ferrari, pra ser minha
companheira, parceira... esposa... — acariciei seus dedos macios —
e objeto de desejo permanente da minha cadela no cio interna. —
Ela gargalhou em meio às lágrimas, e não consegui segurar o
sorriso também. — Pelo resto da minha vida. Enquanto eu respirar,
minha existência pertence a você. Enquanto meu sangue correr nas
veias, vou te seguir pra onde for. E enquanto meu coração continuar
batendo... ele é seu. Eu sou seu. Por completo, cada pedacinho, até
o mais defeituoso e quebrado... — um espasmo fez minha mão
apertar a sua de leve, como se meu corpo entendesse, e
concordasse — é seu. Eu só preciso saber... — engoli com força, os
olhos ardendo e o coração quase explodindo — se você me escolhe
também.
Uma lágrima rolou pela bochecha de Aurora, caindo na grama.
E ela ergueu nossas mãos unidas, depositando um beijo quente e
suave na minha pele flagelada.
— É claro que eu também escolho você, Vougan De Lucca
Lombardi. Por mais que você tenha um dom natural de acabar com
qualquer clima romântico com essas besteiras que sempre diz... —
riu, fazendo meu sorriso alargar. — Eu escolho você. Todos os dias
da minha vida, eu escolho você. Até que nossa existência não
passe de um sussurro entre o terreno e o etéreo, eu vou continuar
escolhendo você. Pra sempre.
Tentei segurar, mas não consegui impedir que uma lágrima
rolasse também, caindo pesadamente no chão.
Minha Moranguinho, de volta na minha vida depois de uma
década de agonia pura e sofrimento...
Devagar, puxei sua mão de volta para mim, deslizando o anel
pelo seu dedo.
Minha, pelo resto da vida. E eu não deixaria nada nem ninguém
colocar isso em risco, nunca mais.
Aurora pegou a outra aliança e deslizou pelo meu dedo
também, um toque brilhante e delicado de beleza em meio a tantos
retalhos.
— Eu te amo, Vougan — ela sussurrou, atraindo meu olhar de
volta para si. — Do jeitinho que você é. Não mudaria nada em você.
— Segurou minhas duas mãos entre as suas, os olhos fixos nos
meus. — Nada. E se precisar finalmente tacar aquela pedra na sua
cara pra que você entenda isso de uma vez, sabe que eu não vou
hesitar em fazer.
Engasguei uma risada, mas ainda tive que segurar o impulso de
cerrar os punhos, uma mania que tinha adquirido pra tentar controlar
os espasmos. Teria que aceitar e fazer as pazes com aquela parte
de mim, mais cedo ou mais tarde, com ou sem pedra no meio da
fuça.
— Anotado. — Ergui uma mão, enroscando os dedos no cabelo
em sua nuca, e aproximei nossos rostos. — Eu te amo,
Moranguinho.
Aurora roçou a ponta do nariz no meu, e tive que ficar me
lembrando de que estávamos em um cemitério, pelo amor de Deus,
e não podia avançar em cima dela como eu queria, como aquela
parte faminta e insaciável dentro de mim necessitava.
Uma pequena flor branca caiu da árvore acima de nós,
rodopiando com graça e repousando delicadamente no cabelo de
Aurora, perto de sua orelha. Quase como se tivesse sido
cuidadosamente colocada ali.
Aqueles olhos castanhos irresistíveis encararam a minha
boca...
— Também te amo, nerdão — sussurrou, seu hálito quente
fazendo cócegas no meu rosto gelado... e me beijou, nossos dedos
entrelaçados, as alianças enroscadas uma na outra.
Como nossas almas, com certeza, também estavam.
Como sempre estiveram, e sempre estariam.
Julieta
Eu estava deitada em um campo de flores brancas, a grama
verde pinicando meus braços expostos. O sol brilhava em cima de
mim, o céu de um azul intenso e limpo.
Me levantei devagar, olhando ao redor. Estava sozinha e...
usando aquele vestido amarelo da minha mãe.
E, como se o pensamento a tivesse invocado...
— Eu sempre gostei desse vestido. — Sua voz suave e
melódica chegou até mim, animada e acolhedora. Materna.
Enrijeci no lugar, com medo de olhar para trás. Olhar, e
descobrir que estava imaginando coisas...
— Sabia que um dia ele ia ficar bem em você — ela voltou a
falar, no entanto... e senti quando sentou atrás de mim, as costas
contra as minhas. Respirou fundo o ar do campo, apoiando as mãos
ao lado do corpo. — Lembra quando você era criança e a gente foi
visitar o Jardim Botânico? — Soltou uma risada suave. — Você ficou
apaixonada na quantidade flores que tinha lá.
Engoli em seco. Eu tinha bloqueado aquela lembrança.
Porque...
— Vocês ainda eram casados — sussurrei, as palavras saindo
com dificuldade.
A mulher atrás de mim suspirou. E esticou a mão, aproximando
de mim, um pedido silencioso.
Respirei fundo, ainda com medo de que qualquer movimento
em falso fizesse tudo aquilo desaparecer, mas estiquei a mão
também, com cuidado, e a segurei.
Tão quente e familiar...
Lágrimas encheram os meus olhos.
— Eu sei, filha — ela sussurrou. — Desculpa ter feito você
passar por tudo aquilo. E por tudo que aconteceu depois.
Fechei os olhos, meu lábio tremendo e minha garganta
oscilando...
— Isso é real? — consegui sussurrar, trêmula.
Ela riu mais uma vez, bem de leve, e o som foi quase como
uma carícia.
— Abra os olhos e descubra, florzinha.
— Eu tô com medo.
— Não precisa estar. Não aqui. Eu prometo. Confia em mim?
Assenti uma vez e me virei devagar, com cuidado. Respirando
fundo mais uma vez, abri os olhos aos poucos, a silhueta vestida de
branco à minha frente tomando forma, borrada a princípio por causa
das lágrimas, mas quando aquele rosto lindo e familiar ficou nítido...
— Mamãe... — solucei, as lágrimas rolando soltas. E, como
uma criança, me joguei em seu colo, abraçando sua cintura com
força conforme chorava, sentindo seu calor, inalando seu cheiro.
— Eu sei, filha... — sussurrou, acariciando meu cabelo. — Você
foi tão corajosa esse tempo todo, Julieta... não faz ideia de como me
dá orgulho.
Solucei por mais um tempo antes de finalmente conseguir me
controlar, e perguntei, a voz mal saindo:
— Você viu?
— Claro que vi, meu amor. — Os dedos finos passavam pelos
meus fios, exatamente do mesmo jeito de quando era criança. — Vi
cada segundo. Estou sempre olhando por você, Julieta. Você nunca
está sozinha. Desde o momento em que acorda, até voltar pra cama
e cair no sono... mesmo nos seus sonhos... estou sempre lá com
você.
— Onde? Por que eu não consigo te ver?
— Ora, por acaso você já esqueceu o que eu te ensinei? Não é
com os olhos que você deve enxergar, florzinha, mas com o seu
coração.
Me levantei devagar, segurando sua mão, e olhei atentamente
seu cabelo, seu rosto, seus traços, muito mais parecidos com os
meus do que eu me lebrava...
— Acho que eu prefiro te ver com os olhos, mamãe. Queria
poder te ver e falar com você todos os dias.
Ela riu mais uma vez daquele jeito suave, quase etéreo, mas
percebi o brilho de tristeza e melancolia em seus olhos escuros, tão
pretos quanto os meus.
— Eu sei, florzinha. Acredite, eu também gostaria de poder ficar
assim, pertinho de você. Mas... — Parou, evitando dizer o óbvio.
— Isso é real? — voltei a perguntar, baixinho. — Ou é tudo
coisa da minha cabeça?
Ela ergueu a outra mão, tocando meu rosto, e sorriu de um jeito
puramente materno.
— Quem foi que disse que o que se passa na sua cabeça não é
real, florzinha? Eu já disse, estou com você o tempo todo. Aqui... —
tocou minha testa — e aqui. — Tocou meu coração. — Tudo que
acontece aqui é real. Nunca duvide disso, Julieta.
Meu lábio começou a tremer, e novas lágrimas encheram meus
olhos.
— Você tá bem? Sabe... onde você tá agora?
O sorriso cresceu, a mão quente acariciando minha bochecha.
— Sim, meu amor. Eu estou bem. Em paz. Não precisa se
preocupar comigo.
— Você tá sozinha? — perguntei mesmo assim. — Ou... tem
companhia?
— Eu nunca estou sozinha. Lembra? Estou sempre olhando por
você, acompanhando cada passo seu. Mas... sim, às vezes eu
tenho companhia. De outros pais que também olham por seus filhos
o tempo todo, por mais que já sejam crescidos.
Assenti, os olhos ardendo.
— Sinto sua falta.
— Eu também, florzinha. — Se aproximou, prendendo uma flor
branca no meu cabelo e encostando a testa na minha. — Mas eu
nunca tô muito longe. Lembre-se... é só fechar os olhos, e logo você
me encontra.
Assenti mais uma vez, e segurei seu pulso.
— Eu vou voltar a te ver?
— Claro que vai, meu amor. Eu ainda sou sua mãe. — Tocou a
ponta do meu nariz com a mão livre. — Sempre vou cuidar da minha
florzinha. Mas sei que você está sendo muito bem cuidada também.
— Sorriu. — Você fez amigos especiais, filha. Isso me deixa muito
feliz.
— Queria que eles tivessem a chance de te conhecer.
— Eles me conhecem. Porque você é mais parecida comigo do
que pensa.
— Mesmo? — funguei.
— Claro que sim. — Soltou uma risada suave. — É
determinada, esforçada, muito carinhosa... um pouquinho cabeça-
dura, talvez... — dei risada em meio às lágrimas — e faz tudo pela
família. Obrigada por cuidar do vovô por mim.
— Vai visitá-lo também? — Se o que ela disse sobre aquilo ser
real era verdade...
— Eu vou lidar com aquele outro teimoso mais tarde. — Riu,
travessa. — Mas por enquanto... quero que sejamos só eu e você.
Joguei os braços ao redor do seu pescoço, abraçando minha
mãe com força.
— Eu te amo, mamãe.
— Eu também te amo, minha florzinha.
Ela me abraçou de volta, me embalando e murmurando uma
canção de ninar. Meus olhos foram ficando sonolentos e pesados...
Mas apertei o abraço.
— Acho que ainda não tô pronta pra te deixar ir, mamãe.
— Nem precisa. Eu não vou sair do seu lado, Julieta. Nunca.
Você e eu temos uma conexão invisível, que ultrapassa qualquer
limite que exista no mundo. Independente do tempo... do lugar... da
circunstância...
Sua voz suave continuava falando, seus braços me embalando,
e fechei os olhos, deixando que a aura da minha mãe me
envolvesse por completo, até cair no sono.
E quando abri os olhos, a faixa fina e pálida de luz entrando
pelas frestas da janela do meu quarto... estiquei a mão para fora do
cobertor até alcançar a mesa de cabeceira, onde uma pequena flor
branca repousava, uma lembrança e uma promessa.
Uma união inquebrável.
Dicionário do estudante de música do
Conservatório Intermezzo Musicale
Accordatura: Termo italiano que designa um esquema de
afinação de instrumentos de corda.

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