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ELIZABETH SMART

com Chris Stewart

ESCOLHI VIVER

TR ADUÇÃO:

MÁRIO DIAS CORREIA


1.

ELIZABETH

É curioso, algumas das coisas de que me lembro, os pormenores


que ficaram para sempre gravados na minha mente.
É como se ainda cheirasse o ar, ouvisse o restolhar das folhas
das árvores da montanha por cima da minha cabeça, sentisse o teci-
do do véu com que Brian David Mitchell me tapou a cara. Consigo
ver todos os pormenores do que me rodeava: a tenda, o lavatório, o
opressivo abrigo cheio de aranhas e de ratos. Sinto a dureza do cabo
de aço atado com tanta força à volta do meu tornozelo, a queima-
dura do calor de verão que subia da encosta da colina, o balouçar
do autocarro Greyhound em que fugimos para a Califórnia. Con-
tinuo a ver as pessoas à minha volta, as suas expressões vazias, o que
medo que lhes causava a maneira como estávamos vestidos, o meu
véu e as vestes sujas, o ar de estranheza nos olhos delas.
Recordo tantos sentimentos e emoções avassaladores. Um ter-
ror indescritível, ainda hoje. Humilhação e vergonha tão profun-
das, como se tudo o que eu era e valia tivesse sido arrojado para o
chão. Desespero. Fome. Cansaço e sede e uma nudez daquelas que
nos deixam despidos até aos ossos. Mãos abusivas. Dor e queima-
dura. O desejo obsceno nos olhos escuros dele. Uma enorme sau-
dade da minha família. Um desejo dilacerante de voltar para casa.

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Todas estas recordações fazem agora parte de mim, do meu ADN.


Na realidade, foram estas as coisas que me moldaram, que torcendo,
puxando, batendo, fizeram de mim a pessoa que hoje sou.
Algum tempo antes de ter sido levada, tinham-me dito que,
quando alguém morre, a primeira coisa que esquecemos é o som
da sua voz. Este pensamento aterrorizava-me. E se eu não conseguisse
lembrar-me da voz da minha mãe, um som que ouvi todos os dias
da minha vida? Começava a pensar nela, e noutros membros da
minha família e nas suas vozes. Começava a pensar nas coisas que
a minha mãe me dizia todos os dias: Tem um bom dia na escola.
Amo-te. Dorme bem. Daria tudo para a ouvir naqueles momentos.
Todas as manhãs, ela cantava a plenos pulmões, «Oh what a
beautiful morning...»
E eu detestava.
O que não daria agora para voltar a ouvir a voz dela!
Durante as primeiras semanas de cativeiro, obriguei-me a pen-
sar neste tipo de coisas. Lembro-me de me sentar sob o calor do
verão, com o sol a queimar-me as costas, e obrigar-me a pensar na
voz da minha mãe, no seu riso. Em como ficava bonita com a sua
saia preta e o top dourado. Na cor e na forma dos olhos dela.
Mas havia também outros sentimentos. E embora possa ser
difícil compreender, alguns deles eram bons, porque mostravam as
coisas a que nos agarramos quando perdemos tudo.
Lembro-me da pura e absoluta gratidão por qualquer momen-
to em que pudesse dormir. De saber que viveria mais um dia! Do
alívio quando o Sol se punha e o calor dava lugar ao fresco da noi-
te. Dos poucos minutos em que ficava sozinha. Da capacidade de
entrar num estado de pura sobrevivência, um estado de vazio, um
lugar silencioso e indolor onde podia desligar o mundo.
Em retrospetiva, apercebo-me de que a dada altura, no início
da manhã do primeiro dia, alguma coisa mudou em mim. Depois
de ter sido violada e brutalizada, passou a haver qualquer coisa de
novo na minha alma. Qualquer coisa que ardia dentro de mim,

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ELIZABETH

uma determinação feroz e inabalável: fosse o que fosse que tivesse


de fazer, ia viver!
Esta determinação era a única coisa que me dava um pouco de
esperança – a compreensão de que enquanto conseguisse sobreviver
mais um dia, mais uma hora, poderia encontrar uma maneira de
regressar a casa.
A dada altura, durante o primeiro par de dias, apercebi-me
de que não estava sozinha. Havia outros além de mim, invisíveis
mas sentidos. Por vezes, imaginava-os a meu lado, a procurarem a
minha mão.
E essa é uma das razões por que ainda estou viva.

Quando penso naqueles negros dias do meu cativeiro, aper-


cebo-me de que a minha história não começou na noite em que
David Brian Mitchell se introduziu no meu quarto e me encostou
uma faca à garganta. De uma maneira estranha, começou alguns
dias antes. Na tarde de domingo. Em minha casa. Poucos dias an-
tes de o meu mundo ser despedaçado.
Com o tempo, acabei por dar um enorme valor ao que experi-
mentei naquele domingo. Tem-me ajudado a manter as coisas em
perspetiva. Ajudou a dar-me esperança. E ajudou-me a compreender
um pouco melhor por que razão as coisas puderam acontecer como
aconteceram.

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2.

CATEQUESE

D ois dias antes de ser raptada, estava na minha aula de cate-


quese, rodeada por um grupo de outras raparigas e rapazes de
catorze, quinze anos. Éramos talvez sete ou oito. Alguns de nós
prestavam atenção, mas nem todos, porque éramos adolescentes,
estão a ver. Olhando em redor, sentia-me à vontade, porque aque-
les eram os meus amigos. Tinha crescido com eles, tinha ido à
escola com eles, tinha lanchado em casa deles, tinha brincado com
eles no recreio. Conhecíamo-nos uns aos outros.
Apesar da brincadeira, que a houve, eu mantive-me de um
modo geral sossegada. Não sei se era tímida, mas penso que sim.
Não sentia necessidade de dar nas vistas. As pessoas ficam surpreen-
didas quando digo isto. A maior parte imagina-me como uma ado-
lescente extrovertida. Do género chefe de claque, acho eu. Mas
não era. Era para o calado. Uma criança muito obediente. Uma
estudante de 4. Tocava harpa, pelo amor de Deus! Será possível ser
menos chefe de claque do que isso?
Há quem diga que sou bonita. Cabelos louros. Olhos azuis.
Mas, juro, nunca pensei em mim mesma nesses termos. Com ca-
torze anos, a assistir à minha aula de catequese, de certeza que
não me imaginava bonita. Palavra. Acho que não pensava. Algu-
mas das raparigas que conhecia eram malucas por rapazes, mas eu

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nunca pensava nesse género de coisas. Não usava maquilhagem.


Nunca tinha tido um namorado. A ideia nunca me passara sequer
pela cabeça. As coisas de que mais gostava era conversar com a
minha mãe e saltar na cama elástica com a minha melhor amiga,
Elizabeth Calder. Gostávamos de nos divertir juntas. Mas a nossa
ideia de divertimento não era andar atrás dos rapazes, ou pregar
partidas pelo telefone a outros miúdos da nossa turma. Em quase
todos os sentidos, continuava a ser uma miúda.
E uma coisa que posso dizer com certeza absoluta é que não
compreendia o mundo.
Lembro-me de alisar o meu vestido de algodão branco – es-
tampado com tulipas debruadas a verde-claro – enquanto ouvia o
professor. Para a maior parte de nós, parecia ter para aí uns cem
anos, com aquela barba grisalha e os cabelos brancos. Mas gostáva-
mos dele. Sentia que se interessava por nós, apesar de nem sempre
o ouvirmos com a devida atenção.
Naquela manhã, o meu professor disse uma coisa que me to-
cou fundo como poucas outras tinham feito até então.
– Se rezarem para fazer o que Deus quer que façam, Ele guiará
a vossa vida – disse.
Voltei a alisar o vestido, de cabeça baixa. Naquele momento,
estava a ouvi-lo com toda a atenção. Não sei o que foi, mas houve
qualquer coisa na maneira como o disse, na intensidade da voz, que
me fez compreender que o que dizia era importante.
– Se dedicarem a vossa vida ao serviço de Deus, Ele orien-
tar-vos-á. Ajudar-vos-á. É isso que vos desafio a fazer. Assumam
um compromisso para com o Senhor, e ele guiará o vosso caminho.
Mas, perguntei a mim mesma, que posso eu fazer para servir
Deus? Sou apenas uma garotinha. Não sei nada. Não posso fazer
nada. Por que caminho poderá Ele guiar-me?
Não sabia as respostas para estas perguntas. Mas sentia que,
fossem elas quais fossem, tinha de fazer o que o meu professor me
desafiara a fazer.
Mais tarde nesse domingo, fui para o quarto que partilhava
com a minha irmã mais nova, chamada Mary Katherine, e fechei

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CATEQUESE

a porta. Entrei na casa de banho e tranquei-me lá dentro. No extre-


mo oposto havia uma armário do chão ao teto. Enfiei-me lá dentro
e fechei também aquela porta. Tenho três irmãos e uma irmã mais
novos e um irmão ano e meio mais velho do que eu. Com seis miú-
dos, a nossa casa era sempre caótica. Cheia de vida e de vozes. Mas
ali, no armário, estava tão sozinha quanto era possível estar numa
casa com oito pessoas.
Ajoelhei-me e fechei os olhos.
Não sabia como dizer aquilo, mas fiz o melhor que pude.
– Deus, estou aqui – disse. – Tenho só catorze anos. Eu sei que
não passo de uma miúda. Mas farei o que quiseres que faça, seja o
que for. Quero muito servir-te. Mas não sei muito bem como.
Esperei um instante. Talvez à espera que acontecesse qualquer
coisa. Uma visão. Uma revelação. Um sinal qualquer de Deus.
Mas não aconteceu nada.
Por isso pus-me de pé e não pensei mais naquilo.
Pelo menos até dois dias mais tarde, quando Brian David Mi-
tchell me tirou de minha casa e me obrigou a começar a subir a
montanha a meio da noite.
Enquanto me esforçava por trepar a encosta, ofegante a aterro-
rizada, com um homem barbudo atrás de mim e uma grande faca
apontada às minhas costas, os braços arranhados pelos ramos e as
calças do meu pijama de seda encarnado coladas às pernas, não
pude impedir-me de perguntar: Deus, era isto que tinhas planeado?
Estava tão confusa e tão assustada.
Não compreendo! Fiz o que me pediste! Não pode ser isto que
querias!
E claro que não era. Sei-o agora. Ser levada como cativa não
fazia parte de um qualquer grande e eterno desígnio.
Mas a confusão era esmagadora. A minha mente soçobrava no
mais puro terror: Isto não faz sentido! Nunca fiz nada de mal!
E apesar de ter demorado algum tempo, as respostas para a
minha confusão acabaram por chegar.
Não penso que o que me aconteceu foi qualquer coisa que Deus
tenha querido. De certeza nunca Ele teria desejado a ninguém a

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angústia e o tormento por que eu ia passar, e muito menos a uma


criança.
Mas desde então, aprendi uma lição importante. Sim, Deus
pode fazer com que algum bem resulte do mal. Mas nem mesmo
Ele, em toda a Sua majestade, pode erradicar o mal. Os homens
são livres. Ele não quer controlá-los. Existe o mal neste mundo.
O que me deixou com isto: quando confrontados com a dor e
o mal, temos de fazer uma escolha.
Podemos escolher ser arrastados pelo mal.
Ou podemos tentar abraçar o bem.

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3.

BRIAN DAVID MITCHELL

B rian David Mitchell iniciou o caminho que o levaria ao meu


quarto muitos anos antes de dar por si à beira da minha cama
a meio da noite.
O mal que cresceu dentro dele foi lá plantado muito cedo.
Antes de ir mais longe, gostaria de deixar bem claro que a vida
de Brian David Mitchell não é coisa que esteja interessada em com-
preender. Não é coisa que tenha estudado, ou passado um momento
sequer a tentar perceber. Conhecê-lo a ele e ao seu passado é o mes-
mo que aprender a respeito do diabo. Mas não tive por onde esco-
lher. Fui atirada para a vida dele. Por causa da situação em que me
encontrei – o rapto, e depois o julgamento que se arrastou por sete
anos –, fui forçada a conhecê-lo como mais ninguém o conheceu.
Sei que foi condenado por pedofilia, quando era adolescente,
por ter-se exposto a uma criança. Sei que casou três vezes. Sei que
teve treze filhos e enteados. Sei de mais condenações por abuso de
crianças. Sei das várias fases da sua atividade na igreja a que per-
tencia e em que militou apenas o tempo suficiente para assimilar o
vocabulário e os costumes religiosos. Das novas acusações de abu-
sos feitas pelos enteados. Das ameaças de violência contra a família.
De um casamento à pressa com Wanda Barzee no mesmo dia em
que o divórcio da sua segunda mulher foi oficializado. De Barzee

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ter desistido de todos os direitos parentais sobre os seus seis filhos


para poder casar com ele. Da crescente compreensão de que a reli-
gião podia ser usada para conseguir o que queria, de Barzee ou de
qualquer outra pessoa. Da transição de um homem relativamente
calmo para um marido controlador e abusivo. Das tortuosas rela-
ções com outras mulheres, que incluíram convites para se tornarem
esposas polígamas. Do súbito e intenso interesse em Satanás. De
Barzee se sentir rejeitada devido aos constantes convites dele a ou-
tras mulheres. Da repentina vaga de revelações religiosas que lhe
disseram que era o escolhido. De Barzee aceitar a sua luxúria e as
suas infidelidades. Da emergência do rei davídico. Da separação
e, finalmente, do corte de relações com outros membros da famí-
lia. De a própria mãe ter pedido uma providência cautelar contra
ele. Das drogas e do álcool e da pornografia. Do aparecimento do
profeta Immanuel nas ruas. De ficar sem emprego. De ficar sem
dinheiro. De ele e Barzee terem percorrido o país à boleia sem ou-
tras posses além daquilo que levavam nas mochilas. Da escrita do
Livro de Immanuel David Isaiah (uma compilação das revelações
espirituais de Mitchell). Da decisão de me raptar e fazer de mim a
sua segunda mulher.
São estes os momentos definidores da vida de Brian David
Mitchell.
Para mim, ter de deambular por esta teia de escuridão é muito
difícil. E entrar na cabeça dele pode ser aterrador, porque é um
lugar fechado e mau.
Mas, repito, fui obrigada a compreendê-lo. Não tive por onde
escolher.
É também importante darmo-nos conta de que compreender
Brian David Mitchell é uma tarefa extremamente dificultada pelo
facto de ele ser um exímio manipulador.
Ainda hoje é capaz de se lançar em discursos altissonantes e
violentos, debitando um chorrilho de banalidades, e então, de re-
pente, fechar-se em si mesmo, escondendo as cartas. É como se es-
tivesse sempre a avaliar a próxima jogada, a pesar as probabilidades,

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BRIAN DAVID MITCHELL

a tentar descobrir a melhor maneira de controlar a situação. E mesmo


quando não está a perorar, não existe a possibilidade de qualquer
espécie de conversa com significado a menos que se seja um guarda
prisional ou alguém que possa dar-lhe qualquer coisa que ele quei-
ra. É egoísta e irascível. Mas é também muito esperto, muito mais
inteligente do que a maior parte das pessoas pensa. É importante
ter isto presente. Não se trata de nenhum parvo. Há até quem diga
que é brilhante. Na realidade, esta característica provou ser um dos
elementos do seu poder, a capacidade de parecer inofensivo e apaga-
do mesmo quando estava a planear e a remoer e a ferver por dentro.
Ao longo da investigação que se seguiu, a família dele lan-
çou muito pouca luz sobre as circunstâncias do meu rapto, talvez
em parte por não quererem falar, talvez sobretudo por pura e sim-
plesmente não o compreenderem. Sempre tinha tido muito poucos
amigos, e as pessoas de quem numa ou noutra altura fora próximo
tinham-se visto obrigadas a abandoná-lo ao aperceberem-se de como
era malvado.
Mas apesar de sempre ter recusado falar com as autoridades,
e do seu complicado passado, Brian David Mitchell não escondeu
tudo sob a capa dos seus ardis e mentiras.
Pode-se até dizer que o julgamento de Brian David Mitchell
por me ter raptado e abusado sexualmente pouco deixou por re-
velar. Embora de boa vontade me tivesse mantido à margem do
processo, não podia fazê-lo, porque era a figura central do caso, a
testemunha mais importante, a razão de tudo aquilo. Tudo o que
foi dito ou feito durante o julgamento teve, em certa medida, de
ser centrado em mim.
Mas também compreendo que foram investidas milhares de
horas de trabalho na construção da acusação feita pelo Ministério
Público. Dezenas de investigadores, de agentes da polícia, de pro-
curadores, de médicos, juízes, psiquiatras, técnicos de saúde men-
tal, especialistas forenses, juristas e advogados ajudaram as montar
as várias peças, cada uma das quais tinha o seu pedaço de história
para contar.

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Os artigos dos jornais forneceram milhares de páginas de


informação adicional. Na realidade – e digo isto com sentimentos
contraditórios –, poucas histórias prenderam tanto a atenção do país
como o meu caso. O rapto e o julgamento mereceram uma cober-
tura maciça por parte da imprensa local, nacional e internacional.
Mas embora as fontes possam ser úteis para ajudar a com-
preender Brian David Mitchell, a verdadeira história só pode ser
contada por aqueles de nós que a viveram.
A mulher de Mitchell, Wanda Barzee, é uma dessas pessoas.
E não foi uma espectadora inocente. É uma mulher magoada e
má – uma mãe que certa vez serviu à filha ao jantar, em segredo,
o coelhinho de estimação da garotinha, e ficou a vê-la comê-lo com
um sorriso nos lábios – que tem de aceitar a sua parte de culpa.
Mas, ao menos, mostrou-se de certa maneira disposta a discutir o
que aconteceu.
E, claro, há também Brian David Mitchell. Mas depois de ter
sido finalmente capturado, passou de uma verborreia desenfreada
para um mutismo absoluto.
O que deixa nas minhas mãos as chaves da história.
Fui eu que vivi nove meses de inferno. Fui eu que fui obrigada
a deitar-me ao lado de Mitchell todas as noites. Fui eu que tive de
ouvir as suas histórias, incluindo longos e mirabolantes relatos que
revelavam alguns dos pormenores mais íntimos da sua vida. Fui eu
que tive de sentir na cara o seu hálito quente, trepar com ele até ao
alto da montanha, lavar-me com ele, comer e descansar com ele,
esconder-me atrás de contentores de lixo e nas montanhas com
ele, andar à boleia e viajar de camioneta pelo país com ele. Fui eu
que fui obrigada a assistir a coisas entre ele e Barzee a que nunca
ninguém deveria ser obrigado a assistir. Fui eu que o vi dissipar a
fúria ciumenta de Barzee com uma palavra murmurada a respeito
da sua fraqueza e com uma bênção sobre a cabeça dela. Fui eu que
tive de ouvir os seus intermináveis devaneios, por vezes interrom-
pidos apenas o tempo suficiente para me violar antes de voltar a
partilhar comigo as suas elucubrações. Fui eu que o vi manipular

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BRIAN DAVID MITCHELL

outras pessoas como se fossem marionetas, que o vi lidar com po-


lícias e investigadores – pessoas treinadas para detetar a mentira
– como se não passassem de crianças num jogo de escondidas. Vi a
sua calma. Vi a sua frieza. Vi-o atirar uma e outra vez areia aos olhos
das pessoas.
Vi tudo isto, e mais. E é por isso que conheço Brian David
Mitchell melhor do que qualquer outra pessoa neste mundo. Con-
vencido de que eu seria sua mulher para sempre, contou-me tudo.
Sei das suas idas e vindas nos meses que antecederam a noite
em que entrou no meu quarto. Sei o que fez no dia em que veio
para me levar. Sei como o planeou, por onde andou e qual era o seu
objetivo final.
Sei que decidiu raptar-me depois de me ter visto naquela tarde
de novembro em que fui às compras com a minha mãe na Baixa
de Salt Lake City. Sei que conspirou desde o início, oferecendo-se
para apanhar as folhas mortas do jardim e consertar o telhado da
casa do meu pai para descobrir onde eu vivia. Sei que arranjou
maneira de entrar em nossa casa para tomar nota da localização do
meu quarto e conhecer os meus hábitos de sono. Sei o que fez para
preparar o rapto, acoitando-se nas montanhas que se erguem perto
da cidade durante meses antes daquela fatídica noite de junho. Sei
que comprou o material de que ia precisar: cabo de aço, cavilhas,
um par de cadeados e um alicate de grifo com pegas cor de laranja.
Sei que mudou o acampamento de verão onde ele e Barzee viviam
para mais perto do cume da montanha, onde seria mais difícil
encontrá-lo. Ali, no campo superior, como lhe chamavam, despen-
dera um esforço enorme para cavar um buraco entre as árvores,
cortando grossos troncos para fazer um teto e nivelando a encosta
de modo a criar um abrigo onde tencionava passar o inverno com
Barzee e com a sua nova esposa.
Sei que não passou o tempo todo a viver como um eremita
na montanha. Contou-me que passeava muitas vezes pelas ruas
de Salt Lake City, em busca de uma bebida, à procura de uma
festa, a roubar no mercado local, a mendigar comida. Sei que era

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ELIZABETH SMART

preguiçoso, que se julgava demasiado importante para trabalhar,


preferindo vadiar pelas ruas. Gostava de chamar-lhe «pregação»,
mas a sua vida era vagabundagem e nada mais do que isso.
Sei também que, à medida que o tempo passava, se embre-
nhava cada vez mais fundo na sua caricatura de profeta. Mas nada
daquilo era real. Brian David Mitchell não é louco. A análise pro-
fissional é muito clara.
É um pedófilo manipulador, narcisista e antissocial. Não é cli-
nicamente psicótico ou alienado. É apenas um homem mau.
Brian David Mitchell entrava e saía com excessiva facilidade
na profecia para que esse alguma vez fosse o seu verdadeiro estado
de espírito. Limitava-se a usar a cultura e a linguagem da religião
para manipular as pessoas e conseguir o que queria. Vi-o fazê-lo
vezes sem conta. Quando precisava verdadeiramente de qualquer
coisa – sabendo que os profetas não são por norma levados a sério
–, desligava o interruptor e comportava-se de uma maneira muito
racional. Quando a situação o exigia, mostrava-se o mais são de es-
pírito possível.
No entanto, à medida que a noite do rapto se aproximava, de-
cidiu que a persona de um profeta dos tempos modernos era a que
mais lhe convinha. Era a menos trabalhosa. A que proporcionava
mais oportunidades de logro e manipulação. E era muito excitante
poder afirmar que era um homem que falava com Deus. Tinha
força. Conferia poder. Atraía a atenção das pessoas e ajudava a ex-
plicar uma parte do seu comportamento menos convencional. Por
isso pusera de parte as Levi’s e começara a andar de túnica e sandá-
lias de couro. Mas mesmo então, o seu objetivo era apenas mani-
pular. Por exemplo, quando caminhar pela montanha de sandálias
e embrulhado num lençol sujo se revelou pouco prático, começou
a guardá-las no oco de um velho carvalho a que chamava a árvore
dos sapatos. Quando descia à cidade, sabendo que as pessoas o ve-
riam, ia buscar as sandálias. Quando voltava à montanha, sabendo
que não haveria ninguém por perto, parava na árvore dos sapatos e
trocava-as pelas botas.

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BRIAN DAVID MITCHELL

Como já testemunhei em tribunal:

A sua prioridade número um era ele próprio, seguida


por sexo, drogas e álcool, mas recorria à religião em todos
estes aspetos para justificar o que fazia.
Nove meses a viver com ele e a ouvi-lo proclamar que
era o servo de Deus e que tinha sido chamado a realizar o
trabalho de Deus, mas tudo o que me fez a mim e à mi-
nha família é uma coisa que eu sei que Deus nunca diria
a ninguém para fazer. Deus nunca lhe diria para raptar
uma pessoa, sob ameaça de faca, da sua cama, do lado da
irmã (...) nem para continuar a abusar sexualmente dela.

E nunca Deus lhe diria para me matar. Mas era o que ele esta-
va preparado para fazer.

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