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COPYRIGHT © TODOS OS DIREITOS RESERVADOS.

“UMA NOITE E MEIA”

Original de Marcos Tand

Escrito por

Marcos Tand

“Pois todo obstáculo se dobra ante a Vontade cheia de Propósito.”


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"Tem que ser selado, registrado, carimbado


Avaliado, rotulado se quiser voar!
Pra Lua: A taxa é alta
Pro Sol: Identidade
Mas já pro seu foguete viajar pelo universo
É preciso meu carimbo dando o sim
Sim, sim, sim"

Alô, viajante! Carimbador Maluco aqui vos fala. Você está pronto para embarcar nessa
noite cheia de mistérios e surpresas? Lembre-se de se desligar de tudo que aprisiona seus
sentidos. Você está entrando em território desconhecido. Permita-se explorar toda a magia
nostálgica da década perdida. Sim, a partir daqui a zona é oitentista. Aperte os cintos,
prepare o coração, um lanchinho legal e se ajeite confortavelmente. O passaporte é a sua
imaginação, então dê asas a ela e simbora!

**********

Você já teve um walkman? Só quem é da geração anos oitenta vai entender. Ai, ai, bons
tempos.Ter um walkman era a sensação! Quem imaginaria o prazer de caminhar, pedalar sua
bike ou fazer qualquer outra atividade ouvindo suas músicas favoritas num fone de ouvido,
sossegado, sem incomodar mais ninguém? Andreas Pavel e Nobutoshi Kihara são meus
heróis!

No auge da minha juventude, eu sonhava em ser muitas coisas e, dentre elas, jornalista.
Almejava ser um correspondente internacional e acompanhar bandas de sucesso por suas
turnês mundiais. Por isso me dedicava nas aulas de inglês da escola. Nutrindo ainda mais
essa paixão, meu pai me presenteou com um gravador portátil de fitas K7 que vinha com um
pequeno microfone.

Um tempo atrás, enquanto faxinava a minha antiga casa, acabei encontrando um tesouro há
muito perdido: um bauzinho com várias fitas que gravei naquela época, nas quais eu narrava
cada acontecimento da minha vida, como um treinamento para quando eu finalmente
realizasse meu futuro sonho profissional. Surpreendentemente, elas estavam em razoável
estado de conservação, apesar do áudio já meio abafado. Eu jurava que o meu auge em 1989
seria ter assistido ao show da Banda A-ha com meus amigos, que ocorreu na “cidade
maravilhosa” em 11 de março, dia do meu aniversário de dezessete anos. Acontece que a
vida é imprevisível e o segundo semestre daquele mesmo ano foi absurdo.
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Ao ouvir novamente as fitas, eu jamais poderia deixar de registrar em páginas todo seu
conteúdo. Assim, eu as digitalizei e remasterizei seus áudios convertendo-os em arquivos
MP3. Qual não foi minha surpresa ao deparar-me com meu eu adolescente.

Então, como toda fita K7, tudo nessa vida tem dois lados. E, se você fizer escolhas ruins, ou
passar por algum embaraço, sua fita pode “engasgar” ou até arrebentar. Tudo depende de
como você encara os desafios.

A partir daqui vocês conhecerão um garoto de mente fértil e apaixonado, no auge dos seus 17
anos em pleno final dos anos 80, cheio de sonhos ainda não realizados, vivendo a dor e a
delícia da primeira paixão. Essa é a playlist dessa parte da minha vida, por isso, uma
observação: Em diversos momentos dessa história, você encontrará trechos de músicas
nacionais e internacionais que fizeram a cabeça e o coração de quem viveu “a década
perdida”. Assim, eu sugiro que, ao se deparar com uma estrofe, você pesquise a letra na
internet. Quem sabe você não descobre uma canção que nunca tenha ouvido? Dessa forma,
sua leitura pode ser ainda mais imersiva e atmosférica.

Aperte o play no seu walkman e vem comigo!

FITA 1: 06 de outubro de 1989

"E naquele momento o chão desapareceu sob meus pés. Não havia mundo para mim e os
segundos duraram uma eternidade. (...) aquela cena ficaria gravada em minhas retinas.
Para sempre.
Meu estômago revirou, as tripas deram um nó e o coração finalmente acelerou. Apesar disso
tudo eu tomei posse novamente da sanidade mental que por hora havia me abandonado.
Estava aceso como o Tocha-Humana, vermelho de decepção e raiva.

Eu era um completo idiota e na frente de toda aquela gente. Me retirei do palco e abri
caminho pela multidão como um trator. Tirei da mão de alguém a primeira garrafa que me
parecesse álcool e saí entornando-a. Onde estava o Beto? Não sei. Aquele não era eu, ou
talvez fosse. Às vezes precisamos passar por alguma situação extrema para conhecermos o
monstro interior que todos nós carregamos. Esse monstro nunca é racional, ele é impulsivo,
cheio de ódio, frustrações, mágoas e até traumas irreparáveis. Na maioria das vezes é
libertado durante alguma situação de desespero, decepção, humilhação. Nascemos com ele e
aprender a dominá-lo pode evitar um processo chamado “autodestruição”.

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"Eu tenho o gesto exato


Sei como devo andar
Aprendi nos filmes pra um dia usar
Um certo ar cruel
De quem sabe o que quer
Tenho tudo planejado pra te impressionar"

Até hoje, quando olho para trás, eu me pergunto: o que foi aquele ano de 89? Sério, vocês
não têm ideia do que aconteceu. Parece até loucura, mas foi real. É como se a lembrança
ainda permanecesse atrelada aos meus cinco sentidos. Certo, vou parar de divagar, mas já
aviso logo que essa história está bem além da compreensão racional.

Antes de voltar no tempo, rumo aos meus anos de escola, vou me apresentar. Meu nome é
Humberto, mas gosto que me chamem de Beto. Alguns me chamam de Betinho, que eu não
curto tanto, mas fazer o quê? O apelido pegou. Então, para os íntimos eu sou Beto, e para
aqueles que querem pegar no meu pé eu sou Betinho.

Essa história aconteceu comigo quando eu tinha dezessete anos. Tudo começou quando, pela
primeira vez, meu coração bateu diferente por alguém. Aquela coisa doida de ficar pensando
na pessoa direto, não comer direito… Pois é, eu estava amarradão.

Lana era a menina mais gata da escola, do Rio de Janeiro, da Terra! Todos os garotos
babavam por ela. Seus cabelos loiros e compridos ao vento... Seu corpo meticulosamente
desenhado… E a boca, então? Uma perdição! Tudo bem que hoje em dia tudo isso soa meio
patético, mas na época ela era a Coca-Cola (ainda se usa essa gíria para elogiar alguém?) que
todos queriam provar. Lana liderava o clube de ginástica e aeróbica da escola, do qual a
maioria das meninas participavam junto de suas mães e até das professoras. Vocês
precisavam ver a apresentação dela para o clássico “Flashdance”. Um sucesso!

“Com sete notas vivo


É tudo que eu preciso
E faz a vida mágica
Play back
Toque de novo
Play back
A música... música
Play back
Que eu não posso parar
De dançar contigo
De dançar... de brincar
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De cantar... contigo”

E como aqueles anos foram estilosos, cara! Dá uma nostalgia só de lembrar. Lana mandava
muito bem no visual, porque o Colégio Teorema, onde a gente estudava, era bem liberal
quanto ao assunto dos uniformes. Para os meninos, ela era como a Elizabeth Shue do pátio na
hora do intervalo. Já as meninas sempre liberavam a passarela para a Madonna passar! A
garota era dona da admiração e prestígio de todas as camadas da pirâmide de popularidade
do reino escolar. Ao mesmo tempo em que cultivava em seu entorno uma aura de mistério
sobre sua vida particular. Ninguém sabia sobre sua família, onde ela morava ou quem dirigia
o luxuoso carro preto que sempre a deixava pouco antes da quadra da escola.

"Manequim
Teu sorriso é um colar de marfim
Vou te seguindo, Manequim
E nem dá bola pra mim
Manequim
Mil carinhas com o queixo na mão
Apaixonados, Manequim
você me deixa na mão"

Estranho foi quando meus amigos e eu percebemos que Lana estava dando conversa para a
gente. Quase todo dia era um "Oi, tudo bem?" sempre daquele jeitinho meigo e sensual que
só ela tinha. Caraca, que gata! E com cada vez mais frequência Lana passava e dava um
cumprimento coletivo, jogava um papo rápido sobre as provas. Antes disso, ninguém parecia
se importar com nossa existência. Por “nossa”, eu falo do João Carlos ou Joca, o molecão da
turma; da Mel, a noveleira metida a detetive; e do Caio, o playboy do gueto.

O Joca era o mais porra louca do nosso grupo. Não tinha uma pessoa que ficasse triste com
ele por perto, era sempre uma piada, uma risada. Ele mesmo se dizia o "negão sedução" e
causava a ira dos professores que nunca conseguiam reprová-lo. Apesar de espoleta, o cara
era dedicado e estudava todas as matérias em casa; assim, quando chegava na escola, ele
podia ficar de papo enquanto a aula rolava... Se tiravam pontos dele em comportamento, não
podiam fazer o mesmo nas provas e assim ele mantinha sua bolsa de estudos. O espoleta
morava sozinho com a mãe, dona Neusa, e nunca havia conhecido o pai. Joca adorava
implicar com a Mel e os romances policiais que ela vivia lendo.

Falando nela, Mel era incrível! Negra, toda empoderada já na adolescência, uma precursora
do feminismo juvenil. Ironicamente, nunca foi muito amiga das meninas. Gostava mesmo era
de andar com os moleques, mas nem por isso era uma "ogra". Mel sempre tinha algum
conselho pra dar. Entendia como ninguém a fisionomia e os gestos de todos os funcionários
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do local. Sabia quando o diretor ia aparecer na sala só pelo jeito que a professora olhava e
respirava enquanto saía da sala. Quando a gente perguntava como ela adivinhava, sua
resposta era: “Eu não adivinho nada. O corpo fala”. Ela morava com sua avó, Dona Cida,
pois era mais próximo do colégio do que a casa de seus pais, os quais ela visitava aos finais
de semana.

E o Caio? Bom, ele era o mais descolado do grupo. Um magnata, o manda chuva do colégio,
eleito pelas meninas como o garoto mais bonito. Aliás, não sei mesmo o que ele achou na
gente pra querer se juntar. Passou algum tempo afastado de mim. Tínhamos estudado a 5ª
série juntos em outra escola. O que nos uniu foi uma espécie de detenção na sala da diretora:
eu por cantarolar distraidamente durante uma prova, “grêlo na cuca”, parodiando
chulamente a música do Dudu França. E Caio por ter batido no garoto que o dedurou por
tê-lo visto fumando no banheiro. Quando nos encontramos no Colégio Teorema foi meio
estranho. Ele queria demonstrar ser diferente, mas ao mesmo tempo queria ser legal. Acho
que, no fim das contas, Caio percebeu o quão mais fácil seria se juntar ao grupo de alguém já
conhecido.

Enfim, voltando ao título de magnata, foi isso que fez de Caio popular. Ele levava o
equivalente a cinquenta reais (em cruzeiros, moeda da época) todos os dias e emprestava
com juros para quem precisasse. E ai de quem não quitasse a dívida! Dizem que uma vez ele
quase matou de pancada o valentão de outra escola, que depois, ao que parece, virou seu
capacho para serviços sujos. Mas era só boato. Pelo menos nós preferíamos acreditar que
sim. Caio era meio caladão, mas gente fina.

No entanto, mesmo rico, Caio não tinha uma vida nada glamurosa e odiava falar sobre sua
família. Seu pai era um respeitado bicheiro do Morro do Mutuca e, até onde a gente sabia,
não costumava ser muito presente ou carinhoso.

E eu? Bom, apresentações à parte, acho que era um meio-termo, comum em meio às minhas
nerdices. Eu era quietinho até me juntar aos outros no intervalo ou sairmos para curtir depois
da aula e acabarmos no boteco de um amigo de bairro do Joca. Nós nos sentíamos “super
adultos” por tomar algumas cervejas escondido.

Aos dezessete, eu já tinha ficado com algumas garotas, mas lembro que, antes de eu me
apaixonar platonicamente pela Lana, só tinha sentido algo parecido por Mônica, a babá do
meu irmãozinho, Théo. Um clássico fetiche adolescente.

Minha nerdice era legal, do tipo que as pessoas não faziam piada. Minha inteligência era uma
ferramenta financeira muito boa, pois eu tinha um esquema de venda de colas da prova. Todo
mundo passava de ano e eu ainda ostentava o cash adquirido.
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Mas, então, voltando a falar de Lana… A “menina veneno” entrou na escola no meio do ano,
já com suas amigas do outro colégio na bagagem. Aí não tinha como ficar perdida e nem
teria o trabalho de conquistar novas amizades. Se bem que sendo bonita daquele jeito...

E o pior de tudo é que Lana veio justo para a minha sala! Assim ficava difícil eu me
concentrar, né? Porque, vamos combinar, era muito mais atrativo ficar prestando atenção na
loira gostosa sentada perto de mim do que no professor entediante. Pelo visto, naquele
semestre eu estava ferrado!

Mas essa paixonite de verão me cegou para uma verdade irrefutável: tudo tem um propósito,
a vida é a melhor escola e, se você não aprende com a lição de hoje, a de amanhã vai ser pior.
Infelizmente, eu só fui aprender na fatídica noite de 31 de outubro de 1989.

Isso mesmo, no Dia das Bruxas. Pela primeira vez, nossa escola organizaria uma festa para
essa data tipicamente "estrangeira" e que fazia a direção torcer o nariz ao realizá-la. Mas
eram os anos 80, né? O ápice do cinema de terror, então todos os alunos queriam se fantasiar
dos seus personagens favoritos e a "voz do povo" acabou ganhando. Claro que não seria nada
muito elaborado, como nos filmes que eu assistia, mas mesmo assim a minha empolgação era
grande.

No intervalo, depois que a festa à fantasia foi anunciada, não rolava outro papo. Todos
estávamos bem entusiasmados para aquele evento.

— Xii, gente, acho que vocês estão se animando à toa! — Mel tirou o nariz de um romance
policial do Marcus Rey para abafar a nossa euforia. Seus óculos de grau para descanso
estavam sem as “pernas”, pois Joca os havia quebrado ao sentar neles sem querer; então ela
amarrou um lápis de cor na armação e usava como um legítimo lorgnon, segurando pelo
lápis — Prefiro carnaval. Halloween no Brasil já é meio cafona, porque é uma festa gringa. E
nessa escola, então? Se nem festa junina, que já é daqui, eles fazem direito… Vocês tão
assistindo muita Sessão da Tarde!

— Ah, não vem não, Mel, que o colégio sabe sim fazer um arraiá chocante! Adoro a barraca
do beijo! — Joca adorava essa tal barraca. Tanto que juntava dinheiro durante todo o mês
para gastar exercitando os lábios com as garotas do negócio. Quase não ficava com ninguém,
então tinha que aproveitar. Feio ele não era, só mesmo o comediante da nossa classe. E essa
má fama o deixava “queimado” entre as meninas que se importavam com isso, justamente as
que ele cobiçava.

— Eu até poderia gostar, se tivesse pelo menos uma barraca em que os meninos fossem os
vendedores de beijo. Aff, que injustiça!

— Injustiça nada, tradição! — Caio tentou falar com a boca cheia — Já pensou a gente ter
que beijar as baranguinhas da escola?
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— Baranguinhas? Ah, não! — Mel fechou o livro e voltou sua atenção para Caio. Isso era
um péssimo sinal. Ela raramente trocava seus mistérios pela conversa de alguém — Tirando
algumas exceções, as meninas daqui são mó gatas, Caio. Eu mesmo ficaria com algumas —
Melissa era mente aberta quanto à sua sexualidade — A aluna nova mesmo é bem acima do
padrão. Você é que tá exigindo demais e sem motivo, já que eu nunca te vi paquerar
nenhuma garota aqui na escola.

Mel e Caio se fuzilaram com o olhar. Apesar de serem muito amigos, vira e mexe trocavam
farpas.

— Você quer me beijar, Melissa? É só pedir, gatinha, não precisa engrossar — Caio
respondeu com um sorriso debochado.

O magnata se levantou do nosso “banco de estimação” e saiu para cobrar os seus


"caloteiros", impedindo Melissa de responder à altura. Estranhei Joca ter ido junto e os dois
ficarem de papinho a sós.

— O Joca entrou para a gangue do Caio, foi? — Perguntei para Mel, que já estava
novamente absorta em seu mundo de enigmas literários.

Ela levantou os olhos da leitura e investigou Caio e Joca, um pouco à frente, por cima de
seus óculos.

— Sei lá. Mas, se for isso, o João Carlos tá perdido. Que ele é meio da pá virada a gente até
entende, mas estagiário de bicheiro júnior?

— Não gosto de ver você e o Caio se estranhando. Que implicância foi essa? —indaguei.

— Relaxa, Beto! Você sabe que eu adoro o Caio, mas acho essa afirmação dele de
masculinidade muito machistinha. Ainda bem que você não fica posando de "garanhão",
Betinho. Continua assim. Ninguém gosta de gente esnobe.

Quase protestei por ela ter me chamado de "Betinho", mas Melissa logo voltou a se
concentrar em sua leitura e por lá ficou. Só mesmo ela e sua determinação de ferro para
conseguir ler no meio daquela barulheira. Então me restou a companhia do meu inseparável
walkman amarelinho da Sony, presente de natal do papai. Ajeitei os fones de ouvido e apertei
o play na fita de greatest hits que eu havia gravado na loja de som do meu padrinho.

“When you see her, say a prayer and kiss your heart goodbye
Quando você a vir, diga uma prece e dê um beijo de despedida ao seu coração
She's trouble, in a word get closer to the fire
Ela é encrenca, em uma palavra aproxima-se do fogo
Run faster, her laughter burns you up inside
Vá mais rápido, sua gargalhada te incendeia
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You're spinning round and round


Você está girando, girando
You can't get up, you try but you can't
Não consegue se levantar, você tenta, mas não pode
¿Quién es esa niña? Who's that girl?
Quem é essa garota, quem é essa garota?”

E então, o inferno sonoro deu lugar à rainha do pop, e em uma sincronicidade surreal Lana,
que tinha acabado de sair da sala, surgiu desfilando pelo pátio principal. A trilha sonora
deixou tudo mais exuberante. Seus cabelos estavam frisados — à moda da época — e ela
usava um vestido vermelho/laranja bem picotado. Toda cheia de pulseiras, braceletes, e os
brincos de triângulo rosa, sua marca registrada. É sério, eu lembro de todos os detalhes do
seu look pop-punk!

Ouvi um cochicho ao meu lado.

— É, ela é realmente um deslumbre. Se não fosse tão… — Melissa começou a falar, mas se
deteve.

— Oi? Desculpa, Mel. Você disse alguma coisa? Acabei não te ouvindo…

— Claro, diante da princesa todas as plebeias são invisíveis — Melissa respondeu tão
secamente, que eu precisei deixar Lana de lado e lhe dar atenção.

— Ah, Mel, não fica chateada, vai. Não foi por mal, é que...

— Você está apaixonado! — Essa frase é muito forte para ser dita a uma pessoa, e muito
mais forte e difícil de ser admitida pelo alvo da afirmação. Mel sabia disso e, com todas as
suas habilidades de leitura corporal, havia desvendado os meus sentimentos.

— Nada a ver, Melissa! Chega de romance policial por hoje, que você já tá ficando paranóica
com esse lance de leitura corporal!

Tentei tirar o livro das mãos dela, mas, como uma leoa defende sua cria, minha amiga, que
ironicamente usava um colete de oncinha combinando com as presilhas do seu cabelo negro
e cacheado, foi mais rápida e me impediu.

— Primeiro estágio: NEGAÇÃO DO FATO. Nessa fase você passou. Segundo estágio:
MODO DE OLHAR. Nessa fase você se entrega de vez!

Nossa, eu nunca tinha visto minha melhor amiga falar algo com tanta certeza. E o pior: ela
estava certa. Mas eu não queria assumir aquilo pra mim mesmo. Afinal, eu só tinha trocado
míseras palavras com Lana. Eu me sentia ridículo, já que NUNCA teria chances com aquela
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gata fora de série. Era mais fácil ela pegar o Joca. Afinal, ele tinha o bom humor tão
aclamado pela preferência feminina. Ou o Caio, que era o todo "Poderoso Chefão". Mas eu?

“Quero seus lábios


dá pra mim o seu carinho, dá pra mim
Por você que eu perco o sono,
Por você que eu ando doido
Amor dá pra mim, dá pra mim”

— Não pira, Mel! Daqui a pouco vai começar a brotar na minha cabeça um monte de sonho
com a Lana e meu cérebro vai crer que são reais, por culpa sua. "Pó pará" com essa história!

— Você não olha pra ela como um cachorro no cio. Seus olhos brilham diferente, Betinho.

— Betinho, não, pô! — protestei sem convicção — Mas tá bom, vai. Ela mexe comigo. E
com a torcida do Flamengo inteira também. É típico, Lana é uma baita gata, acho que esse
comportamento é natural.

— Que seja, eu ainda acho que você está apaixonado! — Melissa foi incisiva — Mas se
estiver mesmo, demonstra isso pra ela! Atitude, garoto! Ela pode não ser o que parece, mas
você só descobre se meter a cara e partir pro ataque.

Comecei a desconfiar da forma como Mel se referia à Lana.

— Parece até que você sabe de alguma coisa dela e não quer me contar...

— O que eu sei é muito pouco para julgar ou te dizer algo — ela esclareceu e me pareceu
bem sincera — Não quero te influenciar a não gostar da garota sem nem mesmo ter a chance
de conhecer ela. O que posso dizer agora é: vai, tenta descobrir quem é ela. Mas toma
cuidado, tá?

Mais uma vez o mistério e o ar subjetivo tomaram conta de Mel. Ela tinha esse poder de
impressionar. Nesse aspecto batia de frente com Lana. Martelei aquelas palavras na minha
cabeça durante o fim de semana inteiro.

Por que tomar cuidado? Que perigos uma menina tão linda e gentil como Lana poderia
representar?

Pensei em questionar Melissa a respeito disso, mas não tive coragem na hora. E nós não nos
vimos no fim de semana. Na verdade, só voltamos a nos encontrar mesmo segunda-feira, na
escola.

Então eu tive que ficar com essa dúvida. No sábado, saí com Joca e Caio, depois de implorar
de todas as formas para o meu pai. Melissa preferiu sair com sua amiga Paulinha, que
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estudou com ela em outro colégio. Nós fomos à casa de Maurício, um colega de escola gente
fina, que estava de aniversário. Quando chegamos, eu só pensei no quanto seria ótimo se a
noite de dia das bruxas da escola tivesse metade da animação daquela festa. Rolou de tudo:
tinha gente na piscina, nos quartos, em todos os cantos possíveis.

A gente chegou e ficou zanzando pela casa enorme. Joca e eu não conhecíamos quase
ninguém, mas a maioria das pessoas nos cumprimentavam com o olhar só porque estávamos
ao lado do Caio. Ô moleque de moral! Eu não me lembro mais como, só sei que me perdi dos
caras no meio da multidão. Rodei aquilo tudo e não os encontrei mais. Foi aí que uma luz
apareceu.

Não podia ser verdade... Mas era... Em carne e osso, bem na minha frente...

Perseguição ou destino? Pura coincidência ou os astros queriam que a gente se topasse ali?
Eu não sabia. A única coisa que sei é que Lana exalava ainda mais magnetismo do que
quando eu a via na escola. Ela estava com roupas brilhantes e justas, que realçavam as curvas
do seu corpo de um jeito bem sensual. Nada naquele salão chamava mais a atenção do que
ela e todos a cercavam, hipnotizados por sua dança de passos despojados. Ela girava com
muita suavidade e as batidas da música pareciam fazê-la levitar. Ainda me lembro da letra:

"Seu corpo é fruto proibido


É a chave de todo pecado e da libido
E prum garoto introvertido como eu
É a pura perdição"

Essa cena é como um filme remasterizado em widescreen na minha tela mental. Nem se me
fizessem lavagem cerebral eu seria capaz de esquecer uma performance daquelas. Nesse
momento, percebi que eu tinha me aproximado, quase que de forma inconsciente, da rodinha
que a observava de perto. Cara, como aquela garota me deixava bobo! De um jeito que eu
perdia a noção do lugar onde estava, até dos meus próprios atos. Eu nunca tinha sentido nada
parecido por ninguém.

E foi neste momento que Lana parou de dançar e encarou as pessoas ao seu redor. Para ser
sincero, ela parecia me encarar. E não sei se enxerguei bem, mas uma expressão de surpresa
pareceu ganhar o seu rosto. Meu coração foi a mil!

Até que Lana estendeu o braço gracioso. Em um gesto curto, mas preciso, apontou… Para
mim? Era na minha direção mesmo? Olhei para trás, atordoado, para confirmar. Comecei a
tremer de nervosismo. As pessoas começaram a prestar atenção em mim e isso me deixou em
pânico.
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— Beto! Vem cá… — Ela ofereceu a mão anelada e atirou um sorriso para mim. Sim,
porque aquele sorriso era um tiro. Na minha alma. No meu coração de vidro, que naquela
hora já devia estar transparente, deixando à mostra tudo o que eu sentia.

Resisti a um impulso de perguntar "eu?" e pagar de trouxa na frente daquela galera mais
velha. Peguei na mão de Lana, que me puxou para dançar. Gentil, mas firme, neste momento,
eu me deixei levar… Sem pensar duas vezes… Para um dos episódios mais marcantes da
minha vida.

FITA 2: 09 de outubro de 1989

Lana me tirou para dançar! Todo o meu corpo vibrava. Não sei mais o que me ocorreu, mas
se eu fosse cardíaco, não estaria aqui escrevendo tudo isso, tamanha a emoção que senti
naquela hora. Aqueles olhos verdes, tão penetrantes, me encaravam de modo enigmático.

— Meu Deus, que mão gelada! — Lana comentou entre mais um dos seus sorrisos
matadores.

— É que eu sou frio, baby — tentei dizer isso sem parecer um idiota. Mas o nervosismo
comandava minhas ações. Minhas mãos não estavam geladas à toa.

Lana riu, inclinando brevemente a cabeça para trás. Então me soltou e começou a dançar
sozinha, rente ao meu corpo. Parecia querer me provocar, mas sem parecer apelativa ou
vulgar demais. Pelo contrário, seus movimentos, embora insinuantes, eram tão sutis que me
deixavam na dúvida… Enfim, sua mensagem corporal era clara e ao mesmo tempo não.
Como eu queria a Mel ali para me ajudar a decifrar aquela dança.

Seja como for, uma oportunidade daquela não cairia nas minhas mãos de novo. E foi esse
pensamento que me levou a me soltar e ousar mais. Dançar nunca foi meu forte - e continua
não sendo - mas eu tentei acompanhar Lana em seus passos. Me arrisquei mais e toquei de
leve em sua cintura, sentindo as curvas perigosas daquela gata entre meus dedos. Como não
houve recusa, eu coloquei a outra mão e a olhei bem nos olhos. Cada passinho ensaiado
escondido no espelho do meu quarto, fez-se valer naquele momento de puro sonho.

Ela sorria e se divertia. E eu me senti o “rei da cocada preta” principalmente porque tinha
muita gente da escola lá, vendo eu dançando com Lana. A melhor parte foi quando
começaram as músicas românticas.

“Baby, you're all that I want


Meu bem, você é tudo o que eu quero
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When you're lying here in my arms


Quando você está aqui deitada em meus braços
I'm finding it hard to believe
Eu acho isso difícil de acreditar
We're in heaven
Estamos no paraíso”

Apesar de não estar entendendo nada, alguma coisa me fez acreditar que sim, que eu era
merecedor daquilo estar acontecendo comigo. Sempre fui um cara legal, então nada mais
justo. Infelizmente a música acabou. E as amigas de Lana, umas intrometidas, a chamaram.

— Preciso ir, gatinho. — Ela se despediu com um beijo na minha bochecha. — Até segunda
na escola.

E Lana se afastou sem me olhar novamente. Entre risinhos e cochichos com suas amigas.
Fiquei com cara de bobo no meio do salão, até me recuperar e voltar a procurar meus
amigos. Vaguei pela mansão que Maurício herdaria de seus papais ricos, tinha gente demais e
eu tinha me perdido de Joca e Caio. Decidi ir para a parte de fora, perto da área de serviço.
Eu precisava de uns minutos para digerir o que tinha me acontecido e aquele era o local
perfeito, pois havia poucas pessoas. Logo, fui deportado de meus devaneios quando Guto
brotou do nada, todo marrento.

— Tá se escondendo de mim é, frangote? — ele falou de peito inflado.

Guto era o valentão das costas largas metido a surfista. Estudávamos em turmas diferentes.
Repetente, o mesmo já tinha chegado na casa dos 20 ou estava muito perto disso. Ele parecia
uma versão piorada, mas não menos perigosa do Buddy Revel. Quem assistiu "Te Pego Lá
Fora" sabe do que eu tô falando. Aquele cabelo loiro grande, fedorento, maltratado de sebo e
água salgada. A cara toda manchada de sol.

Eu media exatos 1 metro e 80 de altura. Guto era uns cinco centímetros mais alto do que eu.
Então, respondi secamente:

— Me escondendo de você por quê?

— Fala aí, qual é a tua com a Lana, mané? — Ele perguntou apertando os dentes, chovendo
sua saliva raivosa na minha cara — Porque foi que tu dançou agarradinho com ela lá dentro,
hein?

— Bicho, que eu saiba a Lana é solteira! Ela dança com quem ela quiser, sacou? E a minha
com ela é a mesma que a tua, cara — respondi, impaciente — Ela não tem nada comigo e
nem contigo. Mas pela moral que ela me deu agorinha lá dentro, com certeza ela ia me
preferir.
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Saí dali com essa última frase de efeito e andei o mais rápido que pude em direção à piscina
ao lado, onde havia muita gente se divertindo, mas Guto me seguiu e me puxou pela
camiseta, prendendo meus braços para trás e ameaçando me jogar com tudo contra a parede
de pedra que ornamentava a área de lazer onde estávamos agora.

— Se rasgar minha camisa, vai me pagar outra, troglodita!

— Tu não passa de um playboyzinho folgado. Xinga feito homem! — disse ele segurando
mais forte a gola da minha camiseta — Seguinte é esse: fica longe da Lana, morô? Bora ver
como fica essa tua carinha de barbie depois que eu esfregar ela nessa parede "macia". Acho
que tu vai ficar um pitelzinho, hein?

Fechei os olhos e me preparei para usar uma máscara de ferro para sempre. Meu rosto seria
esfregado naquela parede de pedra carcomida e as cicatrizes seriam eternas.

— Solta ele! — Do nada a voz imponente de Caio se fez presente — Eu mandei soltar. Não
me faça falar de novo…

Guto me largou. Tive certeza que ele ficou com medo do terceiro aviso de Caio, que,
acompanhado de Joca, fazia pose de maioral, com os braços cruzados e mascando chiclete.
Estavam todos assistindo àquele vexame.

— Qual foi, Caio? Tu não tem nada a ver com isso. Não se mete!

— Eu me meto sim! O Beto é meu amigo e tu vai soltar ele é já! — Caio afirmou,
aproximando-se devagar como um lobo ameaçador.

Joca seguiu seus movimentos e reiterou:

— É isso aí, cara. Deixa o Betinho em paz!

Guto se voltou para Joca com olhar de escárnio:

— Fica na tua, “meia-noite”. Lugar de macaco é no circo!

— E lugar de burro é no curral! — Joca rebateu com sua pose de “Um tira da pesada”.

Caio apertou os punhos e os olhos azuis simultaneamente, movimento que, segundo Mel,
sempre vinha seguido de alguma explosão.

— Perdeu, cara! Vaza daqui, antes que eu perca a paciência — Caio ameaçou em timbre
vocal manso, contribuindo para deixá-lo ainda mais assustador.

Guto me olhou novamente e ameaçou: "Tá avisado". Mas antes de sair, encarou Caio e disse
em tom de despeito:
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— Se eu tivesse “pistolão de ouro do papai”, também botava essa banca toda. Quando ele
vestir o paletó de madeira, quero ver tu manter essa pose.

Enquanto ele fazia sua ameaça de vilão da novela das sete, eu pude reparar que, como
sempre, ele andava com seu tênis mulambento, que fedia ao pior dos gorgonzolas, com os
cadarços desamarrados. Então, eu fiz o que meu impulso mandou: num golpe rápido e sagaz,
sem que o imbecil percebesse, pisei nos cadarços encardidos, provocando o desequilíbrio de
Guto, que deu um passo em falso e acabou dando com as costas na piscina.

— Belo salto, paquita do capeta! — debochou Joca, em meio a gargalhadas — Vai ser garota
do Fantástico também?

A risadaria da galera foi geral. Algumas meninas que estavam na piscina, começaram a sair
sinalizando nojinho em suas expressões faciais, como se a própria Bolha Assassina tivesse
caído ali na água. Guto devia estar fedendo mais do que o habitual. Quando ele resolveu sair
da piscina, parecia o jacaré maldito do filme Alligator, possesso de raiva.

— EU VOU TE MATAR, SEU MELA CUECA! — vociferou ele vindo em minha direção.

Caio se pôs na minha frente com seus 1 metro e 83 de altura.

— Que baderna é essa aqui? — Maurício, o aniversariante, brotou em postura de autoridade,


interrompendo a briga — Guto, que porra é essa? Só pode entrar na piscina em traje de
banho, cara!

— Esse nerd de merda me empurrou! A culpa é dele! — disse o surfista, todo molhado.

— Vai botar a culpa da tua péssima coordenação motora em mim agora? Te manca, idiota!
Tu caiu sozinho! — disse eu, usando todo o meu cinismo — Se brincar já tá de cara cheia…

— Não quero saber de confusão na minha festa! Se vocês quiserem brigar, a rua é logo ali.
Quem não tiver no astral, vaza! — Maurício impôs respeito com sua já conhecida
diplomacia de presidente do grêmio estudantil. Eu tinha um pouco de invejinha dele. Desde
os 16 anos, ele já havia sido emancipado pelos pais; era um cara descolado, tinha até algumas
tatuagens iradas.

— Vocês tão fudidos! E tu me paga, frangote! — O surfistinha saiu bufando de ódio e


encarando Caio, que manteve sua postura indiferente. Ele não seria otário de fazer ainda mais
feio justo na festa do Maurício, que era tão popular e tinha influência com alunos e
professores.

Caio era ligeiramente menor que Guto, mas sua altivez botava moral por causa de seu
histórico, digamos…perigoso.
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— Cê tá legal? — Caio imediatamente despiu-se da bronca e sua feição transpareceu


preocupação — O que esse otário queria contigo?

— Tá mordendo a testa porque eu dancei com a Lana — respondi.

Caio maneou a cabeça negativamente.

— Caraca, ele fez esse terrorismo todo por isso? — Joca não acreditou — Mas a gata nem
tem nada com ele…O Surfista tá ficando biruta de tanto fritar o juízo no sol.

O clima logo mudou quando meus amigos começaram o interrogatório sobre Lana.

— Já pode ir despejando tudo pra gente, eu deixo… — Caio parecia uma bomba prestes a
explodir de curiosidade.

— Foi legal — A única coisa que eu consegui responder diante de toda aquela pressão.

Caio não se conformou com aquela minha resposta inexpressiva e rebateu:

— Como assim legal? Você dança, pega, aperta e faz sabe-se lá mais o que com a Bruna
Lombardi do colégio e diz que foi legal? Nada mais?

— Cara, é que nem eu acredito direito no que aconteceu. Foi tudo muito rápido e intenso. Só
sei que ela disse que a gente vai se falar melhor segunda-feira no colégio.

— Falar melhor? Brother, você é muito sortudo mesmo! Vai ganhar moral demais. Essa Lana
deve ser a gata mais quente da cidade inteira e pode apostar que você vai descobrir — Os
olhos do Joca se insinuaram com malícia.

— Tomara, vou tentar fazer tudo certo — respondi, buscando transparecer alguma
convicção.

Chegando em casa, por volta das três da manhã, eu me olhei no espelho e vi a marca do
batom de Lana em minha bochecha. Acariciei com a ponta dos dedos e deixei sair um
sorrisinho besta. Fui para a cama daquele jeito mesmo. Com rosto marcado e as roupas da
festa. Não consegui dormir. Eu estava sob o efeito da insônia dos apaixonados.

***

Passei o domingo inteiro na minha, pensando na dança do dia anterior. Como nunca fui um
cara avoado, meu pai logo se ligou nesse meu transe intermitente. Mas nada adiantava,
ninguém me tiraria o prazer de reviver mentalmente a felicidade daquele momento.

Eu não quis falar com nenhum dos meus amigos naquele dia. Nem mesmo com Mel. Fiquei
em casa curtindo as fitas novas que eu havia comprado para meu walkman. Só que
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segunda-feira, no colégio, a notícia já tinha corrido entre os alunos, claro, e quando a aula
começou, eu percebi que Lana havia faltado. Sua voz doce, quase sensual, sussurrou
novamente no meu ouvido a mesma frase de sábado. “Até segunda, na escola”. Fiquei
frustrado pacas! Aquela promessa de que a gente iria conversar naquele dia estava quebrada.
Alguma coisa devia ter acontecido com ela, mas o quê? Fiquei pensando nisso a aula toda.

Minha chateação por Lana ter faltado era tanta, que eu nem quis falar com ninguém no
intervalo. Apenas meu walkman poderia me consolar; coloquei meus fones de ouvido e me
“tranquei por dentro”. Eu estava chateado e, pior, com medo de compartilhar esse meu
fracasso com os caras. Fracasso sim! Pois provavelmente ela não foi ao colégio para não ter
que falar comigo. Provavelmente se arrependeu da dança, suas amigas devem ter lhe aberto
os olhos do quão esquisito seria ela se envolver com um “quase nada” feito eu. Fiquei com
esses pensamentos pelo resto da manhã.

************

“Nós vamos chacoalhar a sua aldeia


Mistura sua laia
Ou foge da raia
Sai da tocaia
Pula na baia
Agora nós vamos invadir sua praia”

Meus amigos insistiram em irmos ao Arpoador, à tarde, pegar uma praia. Apesar da minha
alma vampiresca avessa à combinação “sol e areia”, cedi à insistência da turma. Seria bom
refrescar o corpo, ainda mais no calorão que fazia. Uma boa forma de neutralizar o estresse
que passei na escola de manhã. Combinamos de nos encontrar perto da nossa “pedra de
estimação''. Calcei meus chinelos, coloquei um shorts e uma regata, passei protetor solar e
ganhei a rua.

Para não perder o costume, Joca pentelhava Mel, que rebatia à sombra de seu chapéu
colorido e extravagante. Caio usava só óculos escuros, regatinha fina e sunga preta, mas nem
mesmo esse look praiano quebrava sua aura de bad boy. Joca era o puro suco do garoto
carioca, todo de calção amarelo, corrente de aço no pescoço, camisa no ombro e óculos
escuros. Estávamos bem animados com aquele programa. O brilho do mar estava tão
convidativo naquele dia, mesmo para mim que não era tão fã de água salgada. A majestosa
vastidão azul também me causava certo medo. No geral, a praia me trazia mais tranquilidade
à noite.
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Eu adorava aula de natação no colégio. Até hoje é meu esporte preferido. Na época eu
cheguei a competir e ganhar duas medalhas: uma de ouro e outra de bronze. Mas eu sempre
tive receio de entrar no mar pra valer. No máximo gostava de admirá-lo ali no raso, onde as
ondas não me ameaçavam. Esse medo começou quando, ainda criança, eu peguei escondido
uma fita VHS de “Tubarão” do Spielberg e assisti sozinho. Tive pesadelos e tudo. Por causa
disso, meu pai teve a “brilhante” ideia de me matricular numa aulinha de surf. Apesar de eu
ter aprendido os conceitos básicos de equilíbrio, nas tentativas práticas só consegui ficar de
pé numa prancha uma única vez. Trauma do filme. Meu negócio é piscina.

Bom, voltando à praia. Aos poucos, o pessimismo deu lugar ao pensamento: “Eu estou na
praia com meus amigos. Nada vai estragar esse momento”. Mas foi só sentir a areia da praia
nos pés, que o território se converteu em campo minado. Tradução: Guto estava mais à
frente, papeando com outros surfistas.

O Arpoador sempre foi o point do surf. Eu era um invasor em terras inimigas.

— Pensei que a Big Loira só assombrava o banheiro da escola — eu disse irritado.

— Ué, qual é a surpresa? — perguntou Mel perante o meu desconforto — Esse ogro tá
sempre “poluindo o oceano” por aqui.

— É que esse cara não me desce! Sempre detestei.

Guto com certeza se achava acima de qualquer suspeita, pois sem o mínimo
constrangimento, ele trocou alguma coisa miúda com um dos caras com quem conversava. A
tentativa de disfarçar foi risível. Não deu para ver direito, mas parecia um papelote suspeito.

— Dizem que ele passa pó aqui e até na escola — Joca olhava Guto inquisitivamente.

— Se for verdade, esse trombadinha deve tá metido com cachorro grande… — continuou
Mel.

— Pode crer. Vira lata feito ele não anda easy desse jeito sem ter uma costa quente —
completou Caio.

— Esse aí se a “carrocinha” pegar, ninguém vai sentir falta. — falei com toda maldade
guardada no meu lado obscuro da alma.

— Agora é pessoal, Beto?

Melissa me lançou um esperto olhar de raio x, provavelmente analisando minhas expressões


por trás dos seus óculos de sol. Mudei de assunto com Caio e Joca e depois saí para comprar
uma coca-cola, porém, no instante em que dei as costas, fui surpreendido por um magnífico
par de olhos verdes vindo em minha direção.
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“Everybody, summertime love


Todo mundo, amor de verão
You'll remember me
Você vai lembrar de mim
Everybody, summertime love
Todo mundo, amor de verão
Be my lover, be my baby
Seja meu amante, seja meu bebê
Boys, boys, boys
Meninos, meninos, meninos
I'm looking for a good time
Eu estou procurando por um bom tempo
Boys, boys, boys
Meninos, meninos, meninos
Get ready for my love
Prepare-se para o meu amor”

Lana apareceu tomada de um brilho ofuscante, acompanhada de suas duas amigas


inseparáveis, que eram quase acessórios dela, mas tão insignificantes que eu nem consigo me
lembrar dos nomes. Ela usava um mínimo e sugestivo biquíni pink neon, com uma canga
verde-cana transparente enrolada na cintura.

Meu coração acelerou quando percebi Lana a poucos passos de mim. A musa dos meus
sonhos caminhou com charme até onde nós estávamos, ostentando um sorriso discreto e
amistoso. Suas madeixas loiras corriam contra o vento litorâneo, dando asas à minha
imaginação, que contemplava a cena em slow motion.

Achei que rolaria um grilo, mas Lana já chegou cumprimentando como se fosse nossa amiga
íntima, com direito a dois beijinhos no rosto, como manda a tradição carioca.

— Beto! O clube de aeróbica hoje foi aqui na praia. Acabei de dar a aula, tava ali na água de
côco e te vi de longe. — ela disse depois de me abraçar.

A minha vontade era perguntar o porquê de ela não ter dado as caras no colégio de manhã.
Mas, perdi totalmente a pose de “Menino do Rio” e assumi o “Tic Tic Nervoso”, de tão
desconcertado que fiquei.

— Nossa, que olho bom! — Melissa interrompeu cheia de ironia — Como uma lince
mirando a presa.

Lana ficou sem graça com a sequidão de Mel, mas logo voltou os olhos exuberantes para
mim.
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— É…achei que te veria hoje no colégio — eu disse tentando quebrar o climão.

— É, gatinho, hoje não deu pra ir. Eu tinha um compromisso inadiável de manhã. —
Justificou Lana — Qualquer coisa você me passa as anotações do seu caderno. Pode ser,
Betinho? Posso te chamar assim, né?

— Te empresto meu caderno, com certeza! — respondi sentindo meu coração acelerar
novamente. Eu tinha certeza de que ia desmaiar de emoção e vergonha — E pode me chamar
de Betinho sim, que eu adoro.

Meus amigos me olharam simultaneamente com uma expressão de “ele disse isso mesmo?”.

— Pois é, gato, lá na festa do Maurício a gente dançou a beça e agora você nem me olha
direito. Homens… Só mudam mesmo é de endereço.

— Não, não, não é isso — refutei aflito. — Desculpa… É que eu fiquei tão surpreso em te
ver, que… Nossa, nem sei o que falar. Tô feliz que a gente se encontrou agora — se tivesse
um buraco na areia, eu teria enfiado a cara.

Dei uma olhada de leve na turma e eles estavam lutando muito para segurar o riso.

Lana sorriu com mistério nos lábios.

—Você é tão fofo, Beto. Sabe que eu não diria que você dança tão bem… Curti muito a sua
pegada — Lana continuou.

É sério que Lana estava enchendo a minha bola? Nem dava para acreditar. Botei a vergonha
no bolso e me atirei um pouco mais.

— Jura? Eu também adorei a sua pegada! Se você quiser, a gente repete a dose qualquer dia
desse. Conheço cada danceteria chocante…

Era pura mentira! Ainda que eu ensaiasse passos legais em frente ao espelho do quarto,
qualquer um que olhasse para mim veria minha cara de “garoto fliperama” e não de
"danceteria". Lana caiu nessa minha lorota e se mostrou animada pelo convite. Ela puxou a
bolsinha transversal amarela de uma de suas escudeiras, sacou uma canetinha enfeitada com
pluminha rosa na ponta e uma espécie de agendinha, na qual anotou seu telefone, rasgou o
papelzinho e me entregou. Vitória! Eu tinha acabado de conseguir o telefone mais cobiçado
do Rio de Janeiro. Logo pedi para Melissa guardar em sua pochete estampada de oncinha.

Antes que eu me desse conta, Guto apareceu e com ele a raiva que minou meu momento de
alegria. Eu já tinha me esquecido completamente de sua existência ali na praia. Seu cabelo
loiro e ensebado estava molhado e, como sempre, ele chegou com seu peito tão inflado
quanto o próprio ego. Investiu para cima da Lana, dando beijinhos no rosto.
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— Achei que tu ia me dar o bolo, princesa. — Guto falou pegando na cinturinha de pilão de
Lana.

Então eles tinham marcado de se ver?

— Eu…não tô entendendo, Guto — Lana respondeu.

— Tu não veio pra me ver surfar altas ondas, gatinha?

O incômodo de Lana com Guto era visível.

— Qual foi, gata, vai me deixar no vácuo? — Guto perguntou quase gritando — É por causa
desses otários?

Diante daquela frase de Guto, Lana transpareceu desconforto. Ninguém estava entendendo a
situação. Guto era do tipo que só pelo seu jeito rude e inadequado, já causava ranço nas
pessoas.

— Sério que eu vou ter que te enxotar de novo, Guto? Vaza daqui enquanto eu tô só
avisando, falô? — Caio interveio.

O surfista soltou uma risada que mais pareceu em relincho.

— Eu acho tão engraçadinho quando você defende seus amiguinhos, ainda mais esse fracote
aí — Guto aproximou-se de Caio — Vocês dois são namoradinhos é?

— Vai se fuder, babaca!

Retribuindo a provocação, Caio deu um empurrão em Guto, que caiu de bunda no chão.

— Se tu chegar perto dos meus amigos de novo, a surra que eu dei no Alfredão vai parecer
batizado de neném, perto da sova que eu vou te dar! — ameaçou Caio, seguro.

Antes que Guto se levantasse para revidar, eu berrei:

— EU SEI ME DEFENDER SOZINHO!

A bronca de Guto era comigo por causa da Lana. Não era justo Caio estar sempre bancando o
meu protetor. Isso também deixava minha autoestima no subsolo. Eu tinha que dar um basta
naquele otário e aquele era o momento ideal.

— É mesmo, “Zé Betinho”? Então, mostra aí como é que tu se defende! Quero só ver! — Já
de pé, Guto provocou.

Minha boca secou. Como em uma partida de xadrez, qualquer atitude minha poderia
desencadear uma reação do oponente e Guto era sempre imprevisível. Senti o meu instinto de
autopreservação da própria reputação falando alto.
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— Duvido tu aguentar um murro meu. Tu tem cara que nunca ganhou nem brincando de
lutinha — ele debochou.

— E você se acha o campeão de North Shore só porque fica em cima de uma prancha! Se eu
quiser também consigo… — desdenhei.

— Ah, é? Tu tá querendo cantar de galo na minha área, Zé? Quem manda nessa porra aqui
sou eu! Se garante na água eu e tu? Quem dropar uma onda primeiro ganha, bora?

Guto me olhou como uma fera marítima prestes a abocanhar sua presa. Sabendo do meu
medo de mar, todos os meus amigos protestaram e Lana endossou o coro. Mas desistir seria
admitir a vitória de Guto. Pior ainda, uma vitória dada de bandeja, sem lutar. Eu estava
cansado dele me chamando de “frangote”.

"Fechado", aceitei.

— Já subiu numa prancha alguma vez? — Debochado, Guto perguntou confiante que eu
fosse totalmente leigo.

— Eu faço uma ideia — Provavelmente ele não estava se lembrando de que eu fazia natação
no colégio e eu não contei sobre as aulinhas de surf que tive brevemente na infância. Não
falei mais nada, pois eram exatamente nesses dois fatores que eu estava me garantindo. De
qualquer forma eu precisaria muito da tal “sorte de principiante”, pois piscina é totalmente
diferente do mar e as lições de surf já tinham abandonado minha memória há muito tempo.

— Então bora!

Caio se pôs na minha frente e tentou dissuadir-me daquela loucura. Dessa vez não me
escondi atrás do meu amigo magnata. Guto foi até um grupo de surfistas e me arrumou uma
prancha. Ironicamente, ela tinha um desenho do Aquaman, nerd que sou, logo reparei. Tirei
minha regatinha e prendi o leash no meu tornozelo. Em seguida, corri lado a lado com Guto
até chegarmos ao mar. Até aí tudo ok. A cada segundo, eu buscava rememorar as remotas
lições de surf.

— Hoje tubarão vai comer guisado de “frango”!

Guto me provocou sem saber do meu “trauma cinematográfico”, deitou-se colando o peito
em sua prancha e cortou o mar com braçadas seguras.

A maré acolheu os meus pés. Por um segundo pensei em hesitar, mas ao olhar para trás,
minha visão focalizou em Lana atenta ao meu próximo passo. Não dava para recuar. Era hora
de enfrentar a Big Loira.

Deitei sobre a prancha, olhei o símbolo do Aquaman e, imbuído de coragem, dei as primeiras
braçadas na água. A trilha sonora de “Tubarão” não parava de tocar na minha cabeça.
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Observei à frente e avistei Guto equilibrando-se em cima de sua prancha, passeando


modestamente sobre a baixa maré, esperando a onda na qual me derrotaria.

“Show time!” Pensei. É agora ou nunca. Me agarrando com força nas bordas da minha
prancha de Aquaman, dei um impulso e o milagre aconteceu: fiquei de pé sobre ela. Depois
de não sei quanto tempo sem repetir o feito, eu havia conseguido. Parte da minha ansiedade
transformou-se numa tímida e ligeira risada. Ouvi a voz de uma animada Melissa gritando.
Uma onda começara a se formar no mar azul-esverdeado do Arpoador. Guto preparou a
postura.

“Tan tan tan tan tan tan…”. Conforme a onda se formava e se aproximava, o volume da
maldita musiquinha do tubarão assassino só aumentava em minha mente. Contudo, eu
precisava enfrentar o medo e vencer aquela parada. Minha reputação com Lana também
estava em jogo.

— Perdeu, “Big Loira”!

Gritei para Guto, que me retribuiu com um olhar maldoso e, conforme ele foi pegando a
onda, veio se aproximando de mim. Achei estranho, pois já tinha visto dois surfistas
disputando a mesma onda, mas não tão próximos. Quando chegou o meu momento de
dropar, ele fez uma manobra semelhante ao drift que os pilotos de corrida fazem, inclinando
bruscamente para o lado e jogou água na minha cara.

Você já sentiu água do mar, que é sal puro, nos olhos? Pois é! A ardência me fez
desequilibrar e cair da prancha. A música do “Tubarão” veio com tudo e as cenas do filme
assumiram o controle da minha mente. Não houve conhecimento de natação que me salvasse.
O leash que prendia meu tornozelo a prancha arrebentou, enquanto meu corpo foi arrastado
rapidamente para o fundo. Tentei voltar à superfície, mas Poseidon estava revoltado àquela
tarde. O desespero me fez perder o raciocínio, o fôlego e, por último, a consciência.
Submergi.

Fade out.

*******

Fade in.

Foi como um sonho real. Tão real que posso jurar ter vivido o que estou prestes a relatar.
Depois de afundar e perder a consciência, minha tela mental foi invadida por visões nítidas e
até complexas. Eu me vi andando por Copacabana e tudo me era bastante familiar, exceto
pelo fato temporal. As roupas das pessoas, a ornamentação, os veículos que passavam…tudo
antigo.
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“Que porra é essa?”, pensei.

Estava tudo em preto e branco, tinha um clima noir, como se eu estivesse num filme
marginal do Júlio Bressane. No começo da avenida, o único elemento em cores surgiu: um
imponente letreiro em vermelho neon que piscava o nome "Broadway". Era a famosa boate
dos maiorais, políticos e marajás. Seus seguranças não me viam. Aliás, ninguém pareceu
notar ali minha presença. Todas as pessoas estavam fantasiadas ou pelo menos mascaradas
elegantemente.

Adentrei a boate sem nenhum empecilho e tudo ganhou cor. Admirei a ornamentação
glamurosa e reparei em um cartaz que dizia “Carnaval 69”. Sempre tive curiosidade de
entrar na Boate Broadway, mas a menoridade não me permitia e agora eu estava lá dentro.
Ou será que não estava?

Era como se eu tivesse entrado numa caixinha de música gigante. As paredes eram decoradas
com quadros de artistas da Era de Ouro hollywoodiana. Pessoas sofisticadas de máscara,
fumavam, bebiam e conversavam alegremente.

Um globo espelhado pontilhava de luzes a pista de dança. Nesse momento, as cortinas do


palco se abriram. Um homem jovem, com voz solene e sotaque castelhano, saudou a todos e
anunciou a atração principal da noite. "La Romani", como ela foi chamada por ele, entrou no
palco em meio a uma dança sensual.

Ela usava uma máscara prateada brilhosa com plumas douradas acima da cabeça. Seu vestido
era verde e longo, com fios dourados destacando suas curvas e uma reveladora fenda
exibindo suas lindas pernas de vedete. Seus cabelos cor de fogo realçavam-se na pele alva.

A performer abria e fechava um leque vermelho com desenvoltura. Enquanto seus olhos
âmbar contemplavam o público, ela cantava doce e poderosamente os versos:

“Tanto riso, oh quanta alegria


Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão”

A plateia em êxtase, acompanhava a música em coro. Ao findar a canção, ela retirou-se do


palco ao som de aplausos fervorosos. O senhor de meia-idade voltou declarando: "E esse foi
mais um esplêndido número de La Romani!".

De repente, fui transportado para uma espécie de camarim, cheio de fotos de divas como
Marilyn Monroe e Carmen Miranda na parede. A cigana pôs-se em frente ao espelho e
encarou o próprio reflexo por um breve instante respirando fundo, quando foi interrompida
pelo homem jovem do palco.
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— Está na hora. Ele está à sua espera.

— Eu já te falei que eu não vou pra lugar nenhum com aquele infeliz — volveu a cantora
encarando o homem pelo espelho.

— Por favor, estrela. Quanto tempo acha que vai conseguir adiar o inevitável? — O
apresentador tentou convencê-la e segurou seu braço direito com leveza. Era quase um afago
de amizade — Ele é perigoso, manda nessa maldita cidade. Metade do Rio de Janeiro tem
medo dele.

— Por isso mesmo. Agora eu vejo que perdi o juízo quando vim parar nesse lugar! Você era
meu amigo, Juan. Deve ter nesse mundo qualquer outro lugar pra nós. Vamos correr estrada!

— Aqui é meu lugar, estrela. Não achei outro teto que abrigasse um viado pobre em troca de
cerimonialismo barato. Você é mais do que minha amiga, é minha estrela. Eu preciso de você
tanto ou mais do que você precisa de mim. Me ajuda, por favor!

— Te ajudar como? Me abrindo para aquele cafetão? É assim que eu sou sua amiga, sua
estrela? Eu sou artista, Juan, e não uma prostituta! — ela respondeu e livrou o braço das
mãos do amigo. Em seguida, começou a juntar alguns itens da penteadeira e a guardá-los em
uma bolsa. — Você merece mais, eu mereço mais! Pela milésima vez: eu não vou!

— Vai sim! — Por um momento se fez eco no camarim e o som do show lá fora no palco
parecia não existir. — Eu estou ameaçado. Ele sabe que somos melhores amigos. Se eu não
convencer você a sair com ele hoje, morremos nós dois. Ou pior, ele te joga lá com aquelas
outras coitadas que nem tiveram a chance dessa escolha.

— Foi você que me abriu a porta dessa boate quando eu não tinha pra onde ir. E de lá pra cá
tem um ano e meio que eu canto nesse inferno. Eu já vi todo tipo de gente e coisa errada por
aqui, mas ser cortesã do diabo já é demais. Tudo tem limite, Juan! — A cantora disse
vestindo um sobretudo preto.

Ela terminou de se arrumar sem tirar a máscara. Mesmo sem ver o seu rosto, eu pude
perceber sua beleza delicada, que contrastava com a forte personalidade. Ela estava convicta.

— Você vem? — Ela perguntou ao amigo. O homem não respondeu, apenas encheu os olhos
d’água. A cantora então, deu as costas e abriu a porta para sair, mas foi surpreendida por um
homem alto, gordo e careca que estava do outro lado. Seu rosto estava coberto por uma
máscara negra e seus cabelos já perdiam espaço para a calvície.

— Já vai, meu bibelô? — disse ele com voz assustadora.

— O combinado pelo meu cachê é apenas uma apresentação por noite, chefe — ela
respondeu segura encarando o grandalhão de igual para igual — Eu acho que por hoje não
tenho mais compromisso aqui.
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— Tem sim. Aliás, nós temos. Combinei com o seu amiguinho “delicado” ali, o Juan — ao
ser mencionado, o apresentador petrificou-se — Eu sempre achei que a única utilidade do
viado era ser pau mandado, mas pelo visto nem pra isso ele serviu.

— Deixa o Juan em paz! Eu…

A cantora tentou argumentar, mas foi surpreendida mais uma vez. O mal-encarado
desferiu-lhe um tapa na face, fazendo-a voltar dois passos atrás e gemer baixinho de dor,
tamanha a força do golpe.

— Chega, menina! Você brincou demais comigo. Eu estava gostando do seu joguinho, mas
agora cansei! — O homem disse em voz alta, sem se preocupar com o show que acontecia no
palco — Você vai aprender quem é que manda aqui. Eu faço as regras. Quem diz a hora que
você sai sou eu! O que você faz e com quem faz, sou eu!

—Nunca! — volveu a performer indignada, com os olhos em brasa, encarando o cafetão.

— Sou eu, tá ouvindo? — enfatizou ele.

Neste momento, o homem alto, gordo e careca, segurou a cantora pelo braço dizendo:

— E agora, chegou a hora de você mostrar para mim aquele talento escondido no meio das
pernas!

O agressor arrastou “La Romani” pela porta dos fundos. Ela gritava desesperada e eu me
senti impotente. O tal Juan não fazia nada além de chorar. Então, eu corri atrás deles e vi que
a porta dava acesso a parte externa da boate, um beco ao lado, para ser mais exato, onde tudo
estava novamente em preto e branco, fedendo a esgoto e cheio de lixo. Na escuridão daquele
local, não vi muita coisa, apenas ouvia a voz do homem vociferando absurdos humilhantes e
o som de tapas sendo desferidos, enquanto a artista gritava transmitindo dor e agonia.

Uma angústia sufocante tomou conta de mim. Percebi o homem se afastando e lançando a
cantora entre caixas de papelão e sacos de lixo. A vida que, outrora, brilhava cantando como
um rouxinol no palco da Boate Broadway, estava morta.

O bandido cafetão retornou fumando e segurando uma lata, da qual dispensou todo o líquido
sobre a moça.

— Capachos…quando a gente precisa, não aparece um. Imprestáveis!

Ele deu uma última tragada e jogou o cigarro em cima do corpo sem vida, que extinguiu-se
rapidamente em violentas chamas, iluminando tudo ao redor como só mesmo uma grande
estrela poderia se acabar.
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FITA 3: 10 de outubro de 1989

Não sei quanto tempo se passou, mas em um súbito impulso, fui sugado de volta à
consciência. E as chamas que ardiam na minha visão, anteriormente, se converteram em uma
luz tão forte que me impedia de abrir totalmente os olhos. Era o sol. Eu estava de volta ao
Arpoador. Abruptamente, comecei a cuspir água salgada e respirar ofegante.
Não adiantou nada o meu rompante de coragem. Caio me salvou mais uma vez e eu não virei
comida de peixe. Tem coisas que só acontecem comigo mesmo. E se eu contar que meu pai
resolveu passear por lá e tomar uma água de coco justo na fatídica hora? Tudo bem que parte
da minha afeição pelo Arpoador era justamente porque meu pai sempre me levou para lá
quando o assunto era praia. Mas qual a chance disso acontecer? O Dr. Herbert Vieira, viciado
em trabalho, passeando na praia de terno e gravata em plena tarde de segunda-feira?

Ferrou!

Papai era muito cabeça fria, mas rigoroso nas decisões. Ainda mais depois que virou o terror
do Ministério Público do Rio de Janeiro. Gente finíssima, mas ele sempre me dizia: “Tem
hora para tudo”. E quando ele avistou o chapéu inconfundível de Melissa, logo apurou mais a
vista e percebeu que se tratava de alguma situação grave, pois mais pessoas se juntavam ao
redor. Alcançou a muvuca no mesmo momento em que recobrei os sentidos. Foi bizarro,
depois daquilo tudo, abrir os olhos e ver o meu pai numa clara expressão de pânico e
indignação. Ele nem ligou para quem estava ao redor, só me abraçou e depois me levou para
o carro, enquanto dava seu sermão, ignorando completamente os apelos e justificativas de
meus amigos. Só deu tempo de Mel depositar em meu bolso o papelzinho com o telefone de
Lana.

Não deu outra: castigo.

“Terminantemente proibido de sair com seus amiguinhos! Sem ônibus, sem bike e sem
WALKMAN! Mônica vai te levar à escola todo dia! Ah…e sem protesto também, pois
enquanto você morar sob o meu teto…”.

Apesar de tudo, o que mais ia doer era ficar sem meu walkman, companheiro de todas as
horas. Eu não respondi nada, com medo de descobrir mais coisas importantes das quais meu
pai me privaria no período indeterminado do castigo.

No dia seguinte, Mônica deixou Théo na escolinha dele. Ele adorava me ver de castigo. Me
caçoou à beça. Uma quadra antes do colégio, eu disse:

— Para aqui, por favor.

— Não vai dar não, Humberto. Ordens do seu pai! — Disse Mônica, que era super
descolada, mas muito responsável. Ela sempre deixava claro o quanto gostava de trabalhar
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com papai. Mônica era um avião, um belíssimo exemplar do fetiche "babá gostosa" e, muitas
vezes, protagonizou meus sonhos molhados, confesso. Mas se eu pudesse demiti-la naquele
instante, eu o faria, tamanha vergonha que ela me fez passar quando desci do carro. Mônica
gritou:

— Betinho, depois da aula eu passo para te buscar! — sua expressão brincalhona entregava
que havia sido proposital.

Respirei fundo para não devolver o grito “Betinho, não, pô!”.

Uma esquina antes da escola, Lana, a abelha rainha, desceu de sua carruagem, o misterioso
carro preto, acompanhada de seus zangões. Já a Big Loira estava distraída conversando com
uns caras suspeitos na calçada. Aproveitei o momento, tomei coragem e entrei no colégio.
Abraçando seu fichário lilás, Lana passou por mim me olhando com preocupação e um
tímido sorriso. De admiração à piedade. Eu tinha descido muitos degraus na escala de
sentimentos da minha musa.

— E aí, cara, cê tá legal? — Joca apareceu de supetão, ansioso — Foi mal, ontem foi corrido
demais pra mim. Depois que teu pai brotou na praia do nada, não consegui mais falar
contigo.

— Acho que só tô vivo mesmo — tentei manter o bom humor.

— Se tu tentar morrer de novo, eu te mato, moleque!

— Ah, e o pior: tô de castigo.

— Aff, que droga!

Joca me deu um abraço, na tentativa de me consolar. Fomos interrompidos por Guto, que
chegou feito uma hiena desagradável.

— Já trocou de namoradinho? — relinchou o idiota — Tu se amarra mesmo é num tiziu, né?

— Não enche, babaca — Joca revidou.

— Não disse que tu ia me pagar, Pequena Sereia? — zombou de mim o surfista — E o


príncipe encantado? Ele beija bem?

Zombeteiro, Guto estalou os beiços e me jogou um beijo, chamando a atenção da galera que
passava por ali. Joca e eu, ignoramos e seguimos rumo à sala de aula. Mas fiquei cismado
com aquela gozação.

— Cê entendeu alguma coisa? Que sacanagem foi essa da Big Loira?

Joca ficou desconcertado. Ele não sabia mentir e tentou desconversar.


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— Tu vai ligar pra aquele merdinha? Tá entrando demais na dele, Beto.

Tinha alguma coisa errada, sim. Joca não foi nenhum pouco convincente. Será que havia
acontecido algo que eu não vi ou não me lembrava?

Melissa chegou e nos sentamos no "nosso banco de estimação", que ficava perto da “árvore
peituda”, que na verdade era uma frondosa mangueira, cujo tronco tinha duas protuberâncias
que originaram o apelido. A oportunidade perfeita para Mel me atualizar dos fatos e lançar a
braba sobre a zoação de Guto com o beijinho estalado. Joca não conseguiu ser tão discreto ao
fazer sinal para que ela não dissesse nada.

— Ah, Joca, você vai me desculpar, mas eu conto sim. Vocês precisam aprender a lidar com
essa masculinidade frágil! — Mel pôs os cachos para trás em sinal de preparação — É que
você se afogou legal, acabou bebendo muita água e o Caio teve que fazer respiração boca a
boca pra te trazer de volta ao mundo dos vivos.

— Putz…agora faz todo sentido... — disse eu olhando longe — Mas essa gracinha não vai
ficar assim.

— Deixa esse imbecil pra lá! — Mel foi taxativa — Dá um tempo de confusão, Beto. Sou
capaz de apostar que o seu pai te deixou de castigo.

— Como você adivinhou? — perguntei eu, estupidamente.

— Eu ainda preciso dizer? — Melissa falou com ar de obviedade.

Eu realmente não podia mais me meter em nenhuma confusão. Meus olhos então procuraram
o outro envolvido nessa história. Caio estava próximo ao bebedouro intimidando um carinha
do primeiro ano. Bati uma reta em sua direção; percebi Mel e Joca vindo atrás de mim e ao
me aproximar, ouvi ele dizer ao garoto: “Já tô perdendo a paciência. Esse é o meu segundo
aviso. Manda ele fazer os corres dele e me pagar. E nem adianta ficar matando aulinha, que
eu sei onde ele mora. Da próxima vez, o recado sou eu!”.

— Caio, quero falar contigo! — eu disse a ele no mesmo tom de cobrança.

— Que é, Beto? Acordei bom hoje não, amigo! — ele me devolveu rispidamente.

— Que ideia foi essa de me “beijar” no Arpoador? — perguntei fazendo as aspas com as
mãos.

— Beijo? Que porra de beijo? Bebeu leite estragado hoje de manhã? — Caio me encarou,
quase dando um nó nas sobrancelhas.

— A respiração boca a boca — Melissa se intrometeu.

Caio respirou fundo tentando conter seu mau humor matinal.


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— Tá de onda comigo, Beto?

— Não, cara. Pegou mal pra caralho! Tu só deu mais motivo pro Guto implicar comigo —
expliquei me sentindo “pê da vida”— Ele já insinuava que a gente é “namoradinho”, agora
então…

— Foda-se o Guto! — Caio mencionou o surfista com desprezo na voz — Brother, eu salvei
a tua vida e é com isso que cê se preocupa?! Caralho, não tô acreditando.

— Tá certo, tá certo. É que eu fico puto com esse lance de ser sempre salvo. Eu sei me
defender.

— Se defender? Pombas! Tá de sacanagem comigo, né? Cê literalmente se jogou numa


missão kamikaze, parceiro! Mas, tranquilo. Faz assim: na próxima vez, eu deixo você morrer.

Depois de Caio proferir essas palavras, eu pude mensurar o quão desapontado meu melhor
amigo ficou com minha atitude infantil. Eu realmente estava dando confiança demais aos
comentários de Guto.

A sirene tocou anunciando que já era hora de entrar na sala para assistir a primeira aula.

— Vê se cresce!

Arrematou Caio, virando-se de costas rumo à sala e me ignorando até a hora do intervalo,
quando o procurei para pedir desculpas. Eu havia sido muito idiota com meu melhor amigo.
Ele me perdoou e nós dividimos um guaraná caçula.

O professor do último horário faltou, então fomos liberados mais cedo. Caio e Joca saíram
para resolver seus assuntos. Foi a oportunidade que tive de narrar para Melissa a minha
cabulosa experiência. Ela era minha cúmplice para compartilhar lendas urbanas e demais
assuntos que fugiam da compreensão humana. Caio e Joca zombariam de mim, certamente.
Mel era uma entusiasta do assunto, adorava parapsicologia e me ouviu atentamente.
— Menino, eu tô toda arrepiada! Olha aqui — ela disse perplexa, indicando os pelinhos
levantados do braço esquerdo — Beto, se você quer minha opinião sincera, eu acho que você
teve uma E.Q.M.
— E o que quer dizer isso? — indaguei curioso.
— É uma EXPERIÊNCIA DE QUASE MORTE — Melissa disse com ares de fascínio —
Na verdade é algo bem comum. Existem muitos relatos sobre isso, mas a maioria das pessoas
têm essa “vivência” durante um período em coma.
— É, considerando que eu quase “virei bacalhau”…
— Justamente. O curioso é que teu relato é cheio de detalhes, com diálogos e tudo. Não deu
tempo pra tudo isso, porque o Caio foi rápido em te salvar. Caso contrário, você nem estaria
aqui.
— Pode crer. Isso é mó viagem!
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Melissa e eu ficamos tentando descobrir possíveis ligações entre mim e a boate Broadway.
Quem era a cantora? Muitas perguntas e nada de respostas. Após criarmos algumas teorias
sem embasamento algum, nos despedimos e fomos cada um para sua casa.

*******

Depois de acabar meus afazeres escolares daquela tarde, abri o meu caderno e vi o número
de telefone que Lana anotou no papelzinho no dia anterior, na praia. Aquele pedaço de papel
era mais valioso do que qualquer pergaminho de tesouros que o Indiana Jones pudesse
encontrar. Fui até o telefone e girei o disco com os números de Lana. Chamou, chamou e
ninguém atendeu. Tentei de novo. A mesma coisa. Encaixei o telefone no gancho, e
frustrado, pensei que provavelmente ela estivesse ocupada. Eu ainda pensava sobre ela e
Guto. Teriam eles realmente marcado de se encontrar ali na praia?

“I feel her breath in my face


Sinto sua respiração em meu rosto
Her body close to me
Seu corpo perto de mim
Can't look in her eyes
Não consigo olhar em seus olhos
She's out of my league
Ela é demais para mim
Just a fool to believe
Só um bobo para acreditar
I have anything she needs
Que eu tenho algo de que ela precisa
She's like the wind
Ela é como o vento”

Fui tomar banho. Debaixo da água quente do chuveiro, questionei a mim mesmo se Lana
valia tanto investimento. Talvez ela nem estivesse na minha. Quem sabe me passou o seu
número só por educação. Muito esquisito ela dar condição para um nerd esquisito como eu.
Ouvi o telefone tocar na sala. Era ela? Acelerado, desliguei o chuveiro e me enrolei na
toalha. Saí todo ensaboado e escorreguei caindo na porta do banheiro, mas consegui me
levantar e chegar ao telefone. “Droga!”, ele estava mudo.

Encarei o telefone por quase dois minutos, na expectativa de uma nova ligação. Tomei a
atitude de ligar de novo para Lana. Dessa vez ela atendeu.
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— Alô? — Aquela voz educada e sensual me deixava louco.

— Oi? Lana? Sou eu, o Betinho! — eu estava ofegante. Só mesmo ela para fazer eu me
apresentar no diminutivo.

— Ah, Betinho! E aí, tudo em cima? Você tá legal depois de ontem? Foi tanta coisa hoje no
colégio, que a gente nem se falou.

— Pois é, mas eu tô bem. Foi um susto grande, mas já passou! — deixei a atitude falar por
mim — Espero que nossa dança ainda esteja de pé, até porque sei de uma danceteria maneira
pra gente ir.

— Por mim tá super de pé, gatinho! Então cê tá bem mesmo! — Lana respondeu com
entusiasmo — Que ótimo saber disso. Quando você quiser, a gente vai.

— Pode ser neste feriado?

— Ah, poxa, Betinho. No feriado eu tenho um compromisso inadiável. Desculpa.

— Ah, tá ok. A gente marca pra outro dia.

— É só porque eu já tenho o compromisso mesmo. Foi mal.

— Ah, saquei — Um duro golpe no meu coração. Convidá-la para sair e saber que ela já tem
compromisso, foi o suficiente para minha imaginação fértil mirabolar um caso de Lana e
Guto.

— Betinho, você tá aí?

— Opa… Tô sim. Só viajei um pouco aqui.

— Pensando no que?

— Queria te perguntar uma coisa, mas não sei se devo — eu disse meio sem jeito.

— Fala, menino. Pode perguntar — ela me encorajou.

— É…você e o Guto. Rola algum lance entre vocês? — eu precisava tirar essa dúvida do
meu coração.

— Credo, Betinho! Claro que não. Eu hein — disse Lana em tom de repulsa.

— Desculpa pela pergunta, mas é que na praia aquele dia, ele pareceu muito íntimo, sei lá.

— Ele tava era tentando forçar uma intimidade. Gato, eu tô livre, leve e solta.

— Aí sim, bom saber disso… — Eu não tinha acreditado muito na justificativa de Lana.
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— Sobre a nossa saída, não fica chateado comigo, por favor. Eu quero muito, mas no feriado
não dá. Vamos apenas adiar nosso encontro.

— Chateado com você? Que nada! — ela disse "encontro" uma palavra com bastante
significado nos anos 80. Me agarrei nesse pensamento.

— Então, bacana. Vai dar certo. Pode me ligar sempre que quiser pra gente conversar. De
preferência à noite, tá? A gente se fala na escola.

— Beleza! Ligo sim, com todo prazer. Sua voz fica um charme pelo telefone.

Não sei de onde eu tirei isso.

— Até depois, gato! Beijinhos.

— Beijão!

Fiquei orgulhoso de mim, pois eu não estava tão enferrujado assim na arte da paquera. Não
importa o quão Dom Juan você seja. O friozinho na barriga sempre estará lá. Eu sabia que
era um sortudo, pois Lana era uma beldade cobiçada, cujo olhar era motivo de disputas. A
Luciana Vendramini do Colégio Teorema. Com um sorriso besta na cara voltei ao banheiro
para tirar o sabão do corpo.

FITA 4: 12 de outubro de 1989

"Eu quis saber da minha estrela-guia


Onde andaria meu sonho encantado
Fada-madrinha, vara de condão
Esse meu coração sonhando acordado”

Ser criança/adolescente nos anos 80 era mágico. Fiquei em casa o restante daquele dia.
Mônica ajudava Théo a montar um quebra cabeças do He Man, o que me fez lembrar
imediatamente de Guto. Engraçado lembrar desses detalhes, pois normalmente eu não era o
irmão mais presente do mundo. Mesmo assim, o pestinha não desgrudava de mim.

Perguntava demais, corria demais, mas também era muito inteligente. Seu único problema é
que ele tinha um pouquinho de preguiça; nada que uns empurrões não resolvessem. Gostava
muito de ver desenho animado, programa infantil e as sessões de filmes. Se deixasse, nem
mesmo comia. A rua era o playground dele.
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Apesar de toda essa alegria e energia, Théo sentia muita falta da nossa mãe. Ela faleceu dias
após dar à luz, devido a complicações do parto. Quando eu o encontrava pelos cantos, meio
cabisbaixo, já tinha certeza de que estava pensando nela.

Não ter convivido com nossa mãe é para Théo, até hoje, meio que um trauma insuperável. Eu
compreendo. Imagina você passar todo Dia das Mães contando para o seu irmãozinho como
ela era? A propósito, minha mãe se chamava Alice. Linda, lecionava inglês na escola onde eu
estudava. Então naquela época, apesar de eu não ser O POLULAR, as pessoas me conheciam
como "O filho da professora de inglês". Nunca me incomodei com isso, achava o maior
barato. Todas as pessoas curtiam a minha mãe. Quando ela se foi, a escola inteira (sem
exageros) ficou de luto.

Mas enfim! Não vamos falar mais de tristezas. Théo não se preocupava com a escola, nem
com as confusões que arranjava por lá. Sempre tinha na ponta da língua uma resposta
infalível para ameaçar os "coleguinhas": MEU PAI É ADVOGADO! Era um bom garoto,
mas um tanto endiabrado. E que não pisassem em seu calo, pois tudo ficaria pior. Como eu
disse antes, ele assistia religiosamente seus programas infantis (dos quais ainda hoje guarda
muitas lembranças, tipo revistinhas, bonecos… Inclusive temos isso em comum) e como se
não bastasse assistir, ele também participava. Sim, Théo era um ratinho de programas de
auditório infantil!

Meu pai, Herbert, tinha um amigo chamado Ricardo Teixeira que, dentre outras coisas, era
publicitário e meu padrinho. Ele conhecia muita gente da mídia. Famosos, empresários,
atores, etc… De vez em quando, Théo tirava boas notas e aí ganhava de presente uma ida a
um desses programas. E em vez de ir com Mônica ou com uma caravana de escolas,
adivinhem quem ele forçava a ir? Sim, eu mesmo. E meu pai adorava, pois dizia que era
necessário que nós passássemos algum tempo "colados" por causa da diferença de idade.
Théo nessa época tinha sete anos e eu dezessete.

O problema não era ir aos programas. Eu achava bacana não ir ao colégio com a desculpa de
acompanhar meu irmãozinho, conhecer lugares novos, ver os bastidores dos estúdios e
artistas de perto. O lance era que Théo sempre surtava de alguma maneira inusitada. Não sei
até hoje qual era o mistério, mas parecia que para ele os programas de TV eram os lugares
perfeitos para aprontar todos os seus planos malignos, dar vexame e me fazer pagar mico.

Por exemplo, como quando ele brigou com outro menino pelo lugar mais próximo de
Angélica no “Clube da Criança” da Rede Manchete; quando ele urinou de medo do alien que
estava atrás da sua porta dos desesperados no “Oradukapeta” com o Sérgio Mallandro;
quando puxou o cabelo da Mariane para saber se eram verdadeiros; ou ainda quando pisou de
propósito no pé da Simony.

Incrível como todas as vezes que nós fomos a algum programa, rolou um evento embaraçoso.
Certeza que o Sílvio Santos já estava quase barrando nossa entrada nos estúdios do SBT.
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Mas, analisando melhor, se não fosse tão marcante e divertido, embora também bastante
vexatório, não valeria a pena.

"Super fantástico
No balão mágico,
O mundo fica bem mais divertido!
Sou feliz, por isso estou aqui,
Também quero viajar nesse balão"

Lembro de ter ficado muito triste, mesmo não sendo mais criança, quando o "Balão Mágico"
acabou. O que eu não sabia é que a Globo havia preparado uma atração tão competente
quanto para preencher o lugar do Fofão: O "Xou da Xuxa". E pra lá é que a gente foi dessa
vez.

Creio que esse era o único programa que ainda não tínhamos visitado e o Théo ficou bastante
feliz. Eu precisava admitir que a Xuxa tinha um "negócio" a mais, uma magia MUITO
diferente. Acho que grande parte disso se dava pela produção ímpar que fez do seu programa
o mais popular e líder de audiência desde a sua estreia.

Fomos ao Teatro Fênix, onde eram gravados os programas da Globo. Chegando lá, o
Teixeira, amigo do meu pai nos apresentou à produção responsável. Daí meu irmão foi
levado para junto das outras crianças no palco e eu fui instruído a ficar, como sempre, na ala
destinada aos pais e responsáveis.

Aquele já era o terceiro programa a ser gravado no mesmo dia. Imagina o cansaço que o
pessoal devia estar sentindo? Eu estava ansioso, não minto. Por mais que eu já fosse mais
maduro do que as crianças para entender como tudo funcionava ali, estava doido pra ver logo
a Xuxa chegando em sua nave cor de rosa. O legal era ver as crianças achando que ela
realmente morava em outro planeta e só vinha à Terra para apresentar o programa. E depois a
pergunta que eles sempre faziam: para onde vai a nave? Fantasias de criança…

"Amiguinha Xuxa é hora de brincar


Estamos esperando só você chegar
A felicidade se fantasiou de amor"

Estava quase tudo pronto. Havia uma enorme rede cheia de balões pendurada ao teto. As
luzes da nave foram testadas, microfone e sonoplastia também. Distribuíram pompons para
as crianças e para nós deram lanchinhos de acordo com a quantidade de "baixinhos" que cada
adulto levou como responsável, nesse caso eu recebi dois lanchinhos. Paquitas, Praga e
Dengue a postos… O Xou ia começar.
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"Bom dia, amiguinho já estou aqui


Tenho tantas coisas pra nos divertir
Quero ouvir vocês vou contar até três
1, 2, 3, vamos todos de uma vez
Pular, dançar, correr, cair no chão
Cantando alegremente esta canção"

Não sei descrever o que eu senti ao ver a Xuxa descendo da sua nave cantando essa música
tão icônica. Quando o Xou estreou eu já não era mais criança, mas sempre fui atraído por
bons desenhos animados e a presença de uma mulher como ela no comando do programa
deixava tudo mais interessante. Um avião! Xuxa tem até hoje um magnetismo ímpar e por
uma manhã me fez esquecer a beleza da Lana. Quer dizer, quase, pois uma surpresa me
aguardava ao longo do programa.

Entre uma e outra brincadeira com os pirralhos, a Xuxa apresentava, fazia um “merchan” ou
trazia um número musical. A atração deste programa foi o grupo Dominó, que divulgava a
música "Bruta ansiedade". Depois do estouro dos Menudos na América Latina, boybands
como essa foram mania nacional, principalmente entre as garotas. As músicas chamavam a
atenção do público jovem por traduzir sentimentos comuns dessa idade. As letras falavam
sobre paquera e eram visivelmente produzidas para se tornarem chicletes. E realmente não
desgrudavam das rádios e da boca do povo.

“É uma bruta ansiedade


Periga sufocar
O vento fica na saudade
Do ar
Quero respirar”

Xuxa entrevistou brevemente o grupo Dominó e eles deixaram o estúdio. Quando eu acho
que estava tudo fluindo normalmente, eis que surge uma surpresa:

— E agora, meus baixinhos, eu gostaria de apresentar pra vocês...

Xuxa foi interrompida pela paquita chamada Pituxa Pastel, que discorreu brevemente sobre
sua admiração pela apresentadora e junto com as outras paquitas apresentou a música "Fada
Madrinha".

"É tão bom, bom bom bom


Quem quer pão, pão pão pão
Bom estar contigo na televisão
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É tão bom bom bom bom


Quem quer pão pão pão pão
Bom estar contigo no meu coração"

Impossível falar das Paquitas sem lembrar dessa música e mais impossível ainda é para mim
falar delas sem citar o que me deixou de boca aberta. Depois que as meninas terminaram de
cantar, Xuxa falou sobre seu orgulho em tê-las como suas assistentes de palco e de como o
concurso para preencher as vagas do cargo foi acirrado. Então para simbolizar todas as
garotas que sonhavam em ser suas Paquitas e não conseguiram participar do seletivo, ela
daria a oportunidade a uma garota por programa ser escolhida como "Paquita por um dia".

— A minha paquita honorária de hoje é a gatíssima Lana Martins, ou melhor, "Lanuxita"!

Sim, caro leitor. Lana apareceu no palco do Xou da Xuxa toda vestida de paquita, com o
uniforme, bota e tudo! Eu fiquei embasbacado com aquilo. Quer dizer que ela não saiu
comigo naquele Dia das Crianças porque ia gravar o Xou pela manhã? Então, não era o Guto
que estava na parada, só um compromisso mesmo.

Passado o alívio, restou-me curtir uma entrevista rápida que a Xuxa fez com ela. A dona do
meu coração ficou o restante do programa ajudando com as crianças, realmente trabalhando
como paquita. Podia ser apenas minha impressão, mas ela não tinha muita paciência com os
pequenos, não. Daí eu dividia minha atenção entre as duas maiores beldades ali presentes,
Xuxa e Lana. Difícil não se deixar fascinar pela figura de Xuxa, ela era um fenômeno
idolatrado pelas crianças. Tanta simpatia lhe rendeu o perpétuo título de "Rainha dos
Baixinhos".

"Doce, doce, doce


A vida é um doce, vida é mel
Que escorre da boca, feito um doce
Pedaço do céu"

Quando tocava o instrumental dessa música era sinal de que o Xou ia terminar. Mas, você
realmente acha que meu irmão ia mesmo deixar o programa se encerrar sem a sua
"marquinha"? Não mesmo!

Eu já estava dando graças a Deus pelas paquitas terem controlado Théo, que mesmo de longe
eu via estar encabeçando travessuras com outros pirralhos. De repente, um tumulto perto da
nave, Xuxa subindo a escada em direção à porta do seu disco voador, quando eu avisto meu
irmãozinho correndo. Ele deu um "olé" no Dengue e no Praga! Xuxa já dando tchau quando
o moleque adentra a sua nave cor de rosa. A loira levou um baita susto. Não havia mais nada
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a se fazer, então ela apenas riu e o abraçou. Os dois davam tchau pros outros baixinhos que
ficavam na "terra dos mortais" enquanto partiam pro espaço da fantasia.

Depois de uns minutos esperando as instruções para a saída do estúdio eu só pensava em


onde estavam Théo e Lana. De repente uma moça muito educada me levou às pressas a um
corredor quase vazio atrás do estúdio. Quase caio pra trás, era o camarim da Xuxa.

— A Xuxa pediu pra eu te chamar pra você buscar seu irmão — Nessa hora eu já pensei que
ele tinha aprontado das suas. "Coitada da Xuxa, que vergonha! Nunca mais vou com essa
peste a lugar nenhum!". Mas, foi o contrário. Quando me deram permissão para entrar na
sala, me surpreendi. Haviam outras crianças e alguns adultos, pouca gente. Eles tiravam fotos
e davam coisas para a Xuxa autografar.

Aí eu saquei tudo. Meu irmão fez toda aquela loucura de invadir a nave para entregar um
desenho que havia feito para a Xuxa. Um rabisco dela própria, que estava muito bem feito. O
nível da "obra" estava tão bom que ela resolveu me chamar e quando chegou nossa vez de
falar com ela, disse:

— Tu que é o irmão dele? Humberto, né?

— Pode chamar de Beto, não tem problema.

— Prazer, Beto. Olha o desenho do teu irmão tá incrível, cara! Incentiva mais ele a desenhar,
ele é muito bom nisso, de verdade.

— Claro! Eu sempre soube que ele desenhava muito bem, só que não nesse nível! —
Mentira! Nem sabia que o Théo desenhava daquele jeito e estava morrendo de medo dele me
desmentir na frente da Xuxa — A propósito, seu programa é encantador, assim como você.

— Ah, nossa muito obrigada. Fico muito feliz em saber disso! Deixa eu falar pra vocês: não
interessa o quanto impossível um sonho possa parecer, lembrem de três palavras: QUERER,
PODER e CONSEGUIR! Me promete que vai continuar desenhando, Théo?

— Mas é claro, Xu! — Os olhos do capetinha brilhavam.

— Xuxa, só uma última coisa. A gente pode tirar uma foto com você? — interrompi por uma
ótima razão.

— Claro, achei que vocês não fossem pedir! — Xuxa riu tão meiga. Mas, antes da foto, a
rainha dos baixinhos fez questão de passar o batom e deixar sua marquinha em nossas
bochechas.

— Lembrem sempre: “Querer, poder e conseguir”.

Tirada a foto, nos despedimos e fomos instruídos em como seguir corretamente rumo à saída
do Teatro Fênix. Porém, eu estava inquieto; queria saber onde Lana se encontrava. Não a
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tinha visto em nenhum canto por onde passávamos. Até que, na porta do prédio, a vimos
entrar no mesmo carro preto e chique que a levava para a escola diariamente. Dessa vez pude
ver o motorista, mesmo sem tanta nitidez: era um senhor gordo, alto e mal encarado que
esperava fora do automóvel, escorado na porta. Todo trajado de preto, com chapéu e óculos
escuros.

Fiquei meio intrigado, mas resolvi esquecer aquilo momentaneamente. Aquele foi um dia
memorável, mais um pra lista de programas infantis visitados. Théo, apesar de ter descoberto
que a nave da Xuxa não alçava vôo ao espaço sideral, não se mostrou decepcionado de forma
alguma. Xuxa disse a ele que a nave só ia decolar de vez quando ela gravasse todos os
programas do dia e ele passou um bom tempo acreditando nisso.

"Faz de conta sou o símbolo da paz


Entre os homens e animais
Minha mágica é pra já
Faz de conta que todos nós somos baixinhos
Heróis e amiguinhos
E o futuro dessa terra linda"

FITA 5: 13 de outubro de 1989

“Nada ultrapassa
A velocidade do amor
Venha de onde vier
Seja como for
Subitamente o tempo
Parece parar
Nada acontece distante
Do teu olhar...E eu aqui sozinha
Esperando você chegar
Enquanto o digital do relógio
Parece avisar
Ah! Ah!...
Que no balanço das horas
Tudo pode mudar
Que no balanço das horas
Tudo pode mudar...
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Quando Théo e eu voltamos do "Xou da Xuxa", fomos direto para nossas respectivas camas
dormir, tamanho era o nosso cansaço. Mas mesmo deitado, não consegui pegar no sono de
imediato. Eu só pensava em Lana entrando no carro preto com o tal velho mal encarado.
Quem ele podia ser? Pai da Lana? Mas como aquele velho, careca e feioso tinha sido capaz
de conceber um anjo como ela?

E as dúvidas não paravam por aí. Qual era a ligação de Lana com Guto se eles não tinham
qualquer envolvimento amoroso? Afinal, naquele dia no Arpoador ela não se mostrou
animada ao vê-lo. Mas ele disse que eles haviam combinado de se ver ali.

Então eu me lembrei das teorias de que Guto vendia drogas na praia e na escola. Não, não era
possível. Lana não tinha cara de quem se drogava, a líder do clube de aeróbica jamais se
meteria com algo que prejudicasse sua saúde e beleza. Adormeci com essas interrogações e
só acordei lá pelas dez horas do dia seguinte, pois o colégio emendaria o feriado de Dia das
Crianças, do dia anterior, uma quinta, com aquela sexta e mais o final de semana. Será que
durante esses dias eu conseguiria levar Lana para sair?

Me arrumei e desci para tomar meu café. Pois, mesmo já perto do almoço, nunca fui de pular
refeições. Papai estava na mesa, esperando aprontar o feijão e lendo as notícias da manhã.
Depois de dar bom dia para ele e passar manteiga no pão, perguntei:

— E o pirralho?

— Não chama seu irmão de pirralho, Beto. Ele saiu com a Mônica — papai me respondeu
sem tirar a cara do jornal, nem mover um músculo sequer, com sua típica voz de “não
interrompa minha leitura”.

Mordi o pão e dei um gole no suco para ajudar a descer.

— Pai…

— Hum?

— Será que rola de eu dar uma escapadinha do castigo hoje à noite? Eu volto cedo, prometo!
— Cruzei meus dedos indicadores e dei dois beijinhos.

Papai abaixou o jornal e o pôs sobre a mesa.

— Você tá de brincadeira, Humberto? Se saindo de dia, debaixo desse sol que faz no Rio de
Janeiro, você já quase se mata… À noite eu nem me atrevo a imaginar o que de pior você
aprontaria. Não vai não senhor.
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— Pô, pai, mó injusto isso aí — falei em tom de queixa, antes que ele voltasse a tapar o rosto
com o jornal. — Eu sempre fui um filho exemplar. No primeiro vacilo que eu dou o senhor já
quer me dar prisão perpétua?

— É assim mesmo que começa. Depois da primeira mancada, é só ladeira abaixo! —


argumentou ele — Que exemplo você acha que está dando ao seu irmão?

— Ah, pai, é só hoje, eu juro. Se o senhor quiser, depois eu até volto pro castigo. É que eu
marquei com a gata mais gata da escola. Facilita aí pra mim, cara, por favor!

— Ela é bonita mesmo? — papai cravou os olhos em mim, surpreso e com interesse.

— Linda. Saca a Michelle Pfeiffer em “Scarface?”. Pronto. A Brooke Shields perde!

— Rapaz… não vai me dizer que já se apaixonou? — ele riu, desfazendo a postura austera
— Bom, se é pra você dar uns beijos na boca, eu te libero. Por hoje cê tá livre…

Antes de eu comemorar, ele impôs sua condição:

— Mas, você vai datilografar os documentos de um inquérito que eu trouxe pra casa. O
escrivão lá do Ministério não tá dando conta de tudo e eu tenho uma papelada gigantesca aí
pra bater. Aproveita que você tá livre essa tarde e já começa. À noite você sai. Ah, mas a
Mônica vai te levar e buscar!

— Pobre Mônica. Pega leve com ela — protestei — Isso é exploração, tá sabendo?

— Relaxa, eu sempre pago as horas extras dela. Bom, filho, você que sabe. Até você ter
maioridade vai ser assim — o velho dizia isso como se eu fosse ter dezessete anos para
sempre.

Papai dobrou o jornal e se levantou. Não fiz mais objeções, com receio de que ele mudasse
de ideia. O Dr. Herbert Vieira ganhou respeito como advogado e passou no concurso público
para promotor havia alguns anos. O delegado com quem ele trabalhava, Hélio Gama, dizia
que ele tinha o “sétimo sentido" para farejar crimes e arrancar confissões e o apelidou de
cachorro brabo.

Antes de deixar a cozinha, papai comunicou que viajaria para Macaé. "Fazer o que lá?",
perguntei.

—É sobre esse caso aí que eu tô resolvendo agora. Uma pessoa de uma comunidade
alternativa que mora por lá denunciou — ele me respondeu — Mas eu não demoro, vou
apenas sondar informações. Aliás, cuidado com a papelada. Esse caso é extremamente
importante e sigiloso. O inquérito foi reaberto agora. Ninguém além de você pode ler o que
tem na pasta marrom. Combinado? Eu confio em você.

— Sim, senhor.
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Antes de sair em direção à garagem, papai voltou mais uma vez e disse:

— Esteja em casa até a meia noite ouviu, cinderelo? Nenhum minuto a mais! E apaga o fogo
do feijão daqui a 5 minutos.

— O senhor não vai almoçar?

— Eu como alguma coisa no caminho. Se eu perder mais tempo, volto muito tarde.
Meia-noite, hein!

Consenti. E tinha outro jeito? Senti um vindouro cheirinho de queimado, mas consegui
apagar o fogo da panela do feijão a tempo. Depois de terminar meu café, me refresquei com
um bom banho e me preparei para passar a tarde exercitando os dedos na máquina de
escrever.

Olhei para o telefone e não resisti. Girei o disco com os números de Lana. Ela atendeu com a
voz cansada, disse que estava "tudo certo" e não estendeu conversa. “Acho que ela estava
dormindo. Será que eu a acordei?”, pensei. Calei minhas paranoias, peguei a chave do
escritório do meu pai que estava na estante da sala e entrei em seu "santuário”, deixando a
porta aberta. A atmosfera do cômodo exalava seriedade assim como o Dr. Herbert. Na
verdade eu achava aquele escritório meio assustador.

A pasta marrom estava sobre a escrivaninha. Era bem antiga, tanto que o papel estava meio
amarronzado e puído nas extremidades. Devia ser dos anos 50 ou 60. Meu pai trabalhava
com casos antigos, que, depois de muitos anos sem solução, eram reabertos para nova
investigação.

Papai costumava me pedir para datilografar novamente antigos requerimentos, novos


depoimentos e novidades do processo. Passando as folhas da pasta amarronzada, deparei-me
com o recorte de uma notícia de jornal. "Jovem é assassinada em Copacabana".
Acompanhando as letras do título, havia a foto em preto e branco de uma moça, mas a
péssima qualidade da fotografia desgastada pelo tempo, me impediu de ver seu rosto com
precisão.

“Eu vou contando as horas


E fico ouvindo passos
Quem sabe o fim da história
De mil e uma noites
De suspense no meu quarto”

Repentinamente, um estranho arrepio tomou minha nuca, no calor quase insuportável do Rio
de Janeiro. Muito esquisito, sem lógica. Fiquei ali analisando aquela sensação incômoda. Eu
estava sozinho em casa, naquele cômodo austero e silencioso.
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“Beto… Beto…”.

Posso jurar ter ouvido uma voz adocicada chamar pelo meu nome, ao mesmo tempo em que
o arrepio aumentou significativamente. Me levantei devagar e segui aquele chamado, que
continuava de forma melódica e cada vez mais forte, até chegar à sala da televisão. A luz do
corredor começou a piscar quando uma estranha silhueta dirigiu-se rapidamente da cozinha
para a sala de jantar.

Paralisei. Minhas mãos gelaram e a indecisão tomou conta de mim. Eu deveria ir averiguar
perguntando “Tem alguém aí?”, tal qual um personagem burro de slasher movie e correr o
risco de morrer esfaqueado com a tramontina do Michael Myers? Ou deveria simplesmente
ignorar e fingir demência já que a casa estava devidamente trancada?

— AI, CARALHO!

O telefone tocou, ecoando alto na casa inteira e me dando um baita susto.

Meu coração quase sai pela boca. Agarrei o telefone com raivinha do susto e atendi a ligação.

— Alô.

— Fala, Betinho, tá afim de ruar com a turma hoje? A gente tá aqui num orelhão pertinho do
teu barraco.

Era Joca. Ele tinha se esquecido de que eu estava de castigo. Expliquei que estava ajudando
meu pai, para poder sair com Lana àquela noite.

— Pois nós vamos até aí. Quero ver o Seu “Versão Brasileira” expulsar a gente… — disse
Mel, ao tomar o telefone da mão de Joca. Não bastando “cachorro brabo”, a turma apelidou
papai secretamente de “Versão Brasileira” por causa do nome e de sua voz robusta, que lhe
conferia ares de locutor enquanto falava.

— Ele nem tá aqui, gente. Viajou. — eu disse sem tirar os olhos do corredor.

— Não diga mais nada — Mel desligou o telefone na minha cara.

A distração daquele telefonema me deu coragem para averiguar. A casa de fato estava
totalmente trancada. A cozinha e a sala de jantar sem nenhuma viva alma. Eu estava sim
sozinho em casa, mas não por muito tempo. Cerca de 15 minutos depois, o interfone tocou e
meus amigos estavam na porta. Caio também foi. Então, ele realmente estava numa boa
comigo. Sinal disso, é que ele trouxe até o cartucho do seu queridinho e recém comprado
jogo “The Legend of Zelda”. Meus olhos de “Garoto fliperama” brilharam na hora e eu logo
me esqueci do sustinho anterior.

— Ainda tem TV no seu quarto? A gente joga lá se você deixar — sugeriu Caio, empolgado.
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— Pô, cara, eu ia me amarrar, mas tenho que datilografar uns papéis do velho. Prometi pra
ele. É a condição pra eu sair hoje à noite — falei com cara de velório — Mas o Nintendo tá lá
se vocês quiserem jogar.

— Enquanto vocês se resolvem, vou tomar uma água na cozinha, tá? — avisou Melissa.

Os meninos insistiram tanto, que eu acabei cedendo à tentação do vídeo-game, os levei até
meu quarto e me distraí com aqueles gráficos revolucionários para a época.

Caio, Joca e eu, passamos um tempo envolvidos com o jogo. Joca era o melhor de nós e fazia
sucesso com o Theo, que se identificava com o jeito moleque dele. Quando o pirralho
chegou, Joca já foi convidando ele para se juntar ao grupo, sem nenhum grilo por ele ser
criança. Achava engraçado como eles se entendiam apesar da diferença de idade. Tinham se
passado uns 20 minutos e eu, de repente, me dei conta: cadê Melissa? Até o Théo já tinha
chegado e nada dela aparecer no meu quarto. Quando eu me virei para ir procurar, dei de cara
com ela e Mônica em seu rastro. A babá me chamou na porta e advertiu:

— Eu só não conto pro seu pai que você deixou a Melissa entrar no escritório dele, porque
não quero prolongar teu castigo, mas você vai ficar me devendo essa.

Ela saiu sem me dar chance de resposta. Mas responder o quê? Eu estava errado mesmo. Ah,
dane-se! Mônica não ia me entregar. Não sei se foi impressão minha, mas eu podia jurar ter
visto um volume esquisito na cintura da babá. Algo parecido com um revólver, uma
pistolinha pequena entre sua calça e a camiseta meio folgada. Mas, com certeza foi apenas
um delírio da minha fértil imaginação.

Melissa tinha interesse pessoal no escritório do velho e, ao ver a porta aberta, não se conteve.
Ela adorava tudo sobre investigação criminal e conversar com Dr. Herbert sobre os casos em
andamento, justamente porque eram do departamento de Arquivo Morto da polícia. Aquela
era sua chance de xeretar arquivos confidenciais sem a presença dele.

— O escritório do meu pai é sagrado! Cê bagunçou tudo? Um clips de papel fora do lugar e
ele vai se ligar que alguém mais entrou no “santuário”.

— Calma, chatinho, relaxa. Você podia me agradecer, né? Ainda consegui bater uma página
inteira. Sou craque na datilografia!

— Meu Deus, Melissa. Pombas! Aquilo tudo lá é literalmente “segredo de Estado”. Agora eu
tô ferrado!

— Que ferrado o quê! Até parece que eu vou colocar tudo no Jornal Nacional. E eu nem vi
tanta coisa assim…só uma introdução babado — minha melhor amiga estava estranhamente
pensativa — Infelizmente a Mônica me interrompeu bem na parte mais importante. Droga!

Melissa mudou de assunto e quis saber qual seria meu outfit para encontrar Lana à noite.
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— Sabe que eu nem sei? Acho que vou decidir na hora mesmo.

— Você ficou pinel? — Melissa se indignou — Pra conquistar aquela ali, você tem de estar
no mínimo deslumbrante, meu amor. Beto, se você vestir essas camisetas de banda e filme de
terror, já era. Eu sei o quanto isso é importante pra você, então…essa é mais uma missão
para mim. Bora lá!

O que tinha de errado com minhas camisetas temáticas?

Enquanto Caio, Joca e Théo ficaram imersos no vídeo game, Melissa se entreteu com a
escolha do meu look ideal. Ao final da sua consultoria de moda, decidimos que eu usaria
camiseta preta básica sem estampa e meu par de calças chino cinza, numa combinação
certeira com os sapatos novos que eu havia ganhado do Tio Teixeira de aniversário.

Vesti as roupas e nós avaliamos cada milímetro do look, para ver se não tinha nenhum furo,
rasgo ou linha fora do lugar.

— Ficou uma uva! — aprovou Mel, fazendo sinal de ok com a mão direita.

************

“Meu mundo você é quem faz


Música, letra e dança
Tudo em você é fullgás
Tudo você é quem lança
Lança mais e mais e
Só vou te contar um segredo
Não nada
Nada de mal nos alcança
Pois tendo você meu brinquedo
Nada machuca, nem cansa”

A turma já tinha ido embora e papai acabara de chegar. Por volta das 19h30 da noite, Mônica
saiu comigo de casa. No rádio estava tocando Fullgás, da Marina.

Do nada, Mônica abaixou o som e me deu um breve e esperado sermão:

— Teu pai te confia demais, Beto. Você não pode dar mancada com ele! Nem eu entro
naquele escritório. O trabalho do Dr. Herbert é muito sério e ele precisa ter certeza do sigilo e
da segurança das informações e dos filhos dele. Eu sei que a Melissa é sua amiga e jamais
faria nada que prejudicasse vocês, mas o lance é não facilitar. Ou você acha que os bandidos
que ele manda prender não podem atentar contra sua vida e a do Théo? Fica esperto.
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Aquilo foi bem esquisito. Mônica falou como se soubesse de muito mais coisas do que
aparentava. Mas ela tinha razão sim. Por fim, chegando na esquina da casa de Lana, na
Gávea, a babá “virou o disco” de bronca para conselho.

— Eu conheço esse olhar — ela declarou, enquanto me estudava — Estar apaixonado é uma
doce e perigosa viagem, sabe? O trajeto é lindo, mas também é cheio de curvas e abismos
que a gente não vê. Nem prevê.

— Isso é para me animar? — Questionei, com sarcasmo.

— Pra te alertar. Não tô te dizendo para você ficar na defensiva e não se permitir viver essa
sensação, porque é gostoso. Eu sei que é, já estive boba assim por alguém. Eu tenho
carteirinha VIP no "Clube dos Bobões"... Só fica sempre de pés no chão, tá? Agora vai lá
curtir a sua noite. E trata bem a menina. Vê lá, hein…

Eu me despedi de Mônica e saí. Mas suas palavras ficaram comigo. Acho que todo mundo já
fez parte do Clube dos Bobões. Pelo menos uma vez na vida. Você faz o teste, se torna
membro, frequenta as reuniões e aprende muitas lições. O nosso coração é como se fosse a
"Casa da árvore". Muitas pessoas vão entrar lá; algumas vão se alojar e deixar tudo intacto;
outras vão bagunçar e, quem sabe, até causar danos irreparáveis na estrutura, sair sem deixar
recado, sem se importar com o proprietário.

O Clube dos Bobões te ensina como selecionar as pessoas a quem você dará passe livre para
entrar na sua "casa da árvore". O problema é que, na maioria das vezes, ela já vem com o
tapetinho de "seja bem-vindo" na porta. Não seleciona, apenas recepciona. Todo mundo é
assim. Se você não é, sinto lhe dizer que sua "casa da árvore" é de pedra e uma hora o tronco
pode não aguentar mais. Aí você vai perceber que não viveu. Que fechou a porta por medo, e
que teria sido melhor desmoronar aprendendo uma lição e reconstruir, do que ver tudo se
acabar por causa do vazio, do nada.

Foi com esse pensamento em mente que eu toquei a campainha da casa de Lana.

FITA 6: 14 de outubro de 1989

“Seus olhos verdes no espelho brilham para mim


Seu corpo inteiro é um prazer do princípio ao sim
Sozinho no meu quarto eu acordo sem você
Fico falando pras paredes até anoitecer
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Menina veneno você tem um jeito sereno de ser


E toda noite no meu quarto vem me entorpecer
Me entorpecer, me entorpecer iê iê iê iê"

— QUE É?! — Pelo interfone, um senhor com voz grave e irritada me atendeu. Será que
era o mesmo careca mal encarado que eu tinha visto com Lana, saindo do "Xou da Xuxa"?
Provavelmente o pai dela. Eu parecia estar dialogando com o chifrudão vermelho de “A
Lenda”.

— Ér… Boa noite! — eu estava nervoso e mal conseguia elaborar uma frase curta sequer —
A Lana está?

Ele não me respondeu e volveu, com sequidão:

— QUEM QUER FALAR COM ELA?!

Que cara mais azedo!

— Meu nome é Humberto, eu sou amigo da Lana — tentei manter a naturalidade na voz,
mesmo intimidado — a gente combinou de sair hoje.

— Humberto do quê? — O mal educado inquiriu.

Aquilo era um interrogatório?

— VIEIRA. O sobrenome dele é VIEIRA! — A voz inconfundível de Lana interrompeu o


nosso diálogo, quando ela abriu a porta e apareceu linda para variar. Estava usando um
vestido preto de vinil que ia até o meio das belas coxas com uma jaqueta jeans por cima.
Seus cabelos loiros exalavam um cheiro bom de shampoo — O pai do Beto é promotor,
sabia? Ele é que faz o interrogatório, não você — Lana respondeu para a detestável voz do
interfone — É meu pai. Não liga, não.

“Você pensa que muito me conhece


A lua também tem uma face escura
A minha luz que às vezes te aquece
Se apaga e ninguém mais me segura
E quem não sabe que eu sou tão legal
Vê no fundo dos meus olhos um mistério
Faço tipo ou é charme natural?
Aconselho começar levar a sério
O meu angelical touch”
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O velho claramente não deixaria a filhinha, seu precioso trofeuzinho sair com um zé
ninguém. São as regras desse “mundo cão”. E um sobrenome não é nada sem o “peso” de
quem o carrega. Eu era um “zé ninguém”, mas meu pai tinha lá o seu cartaz.

Caminhando pela rua, Lana quis saber para onde iríamos. Éramos simplesmente dois jovens
de dezessete anos saindo juntos, mas ela parecia muito mais madura, segura e confiante de si.
Enquanto eu tentava manter a pose de “faço isso toda semana”.

— Surpresa, você vai ver... — fiz ar de mistério e Lana me lançou um olhar de curiosidade.
Ela parecia fazer de tudo para manter sua aura de realeza. No colégio, de várias formas
demonstrava gostar de estar sempre no comando, fosse no clube de aeróbica ou apresentando
um trabalho em grupo.

Tomamos um táxi e fomos até um sushi bar. Um lugar aconchegante onde eu já tinha ido
com os meus amigos. Chamava-se Hikari e até meados de 1998 ainda existia, fechando as
portas quando seus donos retornaram para o Japão. Sei disso, pois a turma e eu continuamos
a frequentá-lo ao longo dos anos, e inclusive comparecemos à festa de despedida do Sr.
Hikari, o proprietário do local. Falando nisso, ele mesmo veio nos receber e oferecer o
cardápio.

— Nossa, mas quanto capricho! Não imaginava que você fosse preparar tudo isso, Beto! —
Lana comentou quando puxei a cadeira para que ela se sentasse, em um gesto de
cavalheirismo recém adquirido.

— Fico feliz em surpreender — respondi com um sorriso. Lana demonstrava estar fascinada
com a decoração e o carinho dos funcionários. Tinha música ao vivo e tudo. De repente, o
garçom nos trouxe um pote de biscoitos da sorte para que cada um escolhesse o seu.

— “A gente cuida do cabelo todo dia. Porque não o fazemos com o coração?” — Essa foi a
frase do meu biscoito. Entendo hoje perfeitamente o que ela queria dizer. Você pode até não
acreditar nessas coisas, mas depois do que eu passei naqueles dias acho impossível.

— Bacana — fiquei olhando pro bilhete dela. Lana o leu, mas logo o fechou.

— Não vai ler o seu também?

— Me reservo o direito de ficar calada. — Ela me respondeu e sorriu. Preferi não insistir. —
É a primeira vez que um garoto me leva a um restaurante como esse.

— Você nunca tinha ido a um restaurante japonês?


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— Já sim, o que eu quero dizer é que você teve um cuidado com a escolha de tudo. Teve a
preocupação de tentar surpreender e isso conta muito. Mas, esse restaurante aqui eu não
conhecia. De verdade, eu tô curtindo o clima desse lugar. É tão…

— Oriental? — eu completei com o óbvio e nós rimos daquela bobeira — Olha só, estou me
sentindo Daniel San…só falta aprender o karatê. — Nossa, como eu falava bobagem, mas
pelo menos Lana embarcava na minha.

— Então eu devo ser a Ali Mills! — ela disse apoiando as mãos no queixo e piscando os
olhinhos. — O karatê eu não sei, mas o Sr. Miyagi já está trazendo nosso jantar.

A comida chegou. O Sr. Hikari deixou em nossa mesa uma bandeja lotada de sushi e uma
travessa média de yakisoba. Nossa conversa fluiu muito bem. Falamos sobre tudo: escola,
música, amigos e sem querer, eu soltei:

— Te vi no Xou da Xuxa!

Lana ficou um pouco embaraçada. Passou a mão esquerda no cabelo.

— Pois é. Eu achei que tinha visto alguém parecido com você, mas daí achei que talvez não
fosse. Eu tava tão concentrada ali... Como você deve ter percebido, tentei ser paquita mas,
ainda não deu — Lana pareceu estar realmente envergonhada, pois nem me olhava direito
nos olhos.

— E você tá… Com vergonha disso? Não precisa. Olha pra mim. – Com um certo tremor nas
mãos eu tomei seu rosto pelo queixo e o ergui — Com certeza vai ter muitos outros
concursos de paquitas e eu acredito que você pode ser o que quiser. Minha mãe costumava
me dizer que nós somos aquilo o que acreditamos ser.

— É… Sua mãe devia ser muito legal. Desde que entrei na escola, todo mundo fala dela com
saudade, mesmo depois de tanto tempo. Parece que você herdou isso dela.

— Eu tento, né? Mas… obrigado. — respondi, sem graça.

— Pelo menos ninguém vai assistir a minha derrota, já que o Xou passa de manhã e estamos
em semana de prova — ela deu uma risadinha de resignação.

— É, eu na verdade não acho que tenha sido uma derrota. Digamos que entre todas você era
a mais bonita ali naquele palco. E imaginemos que, quem sabe, uma das paquitas sofra algo
grave… Longe de mim estar desejando, mas vai que precisem de uma substituta?

— Ai, para! Que menino mau! — Ao rirmos juntos, o clima ficou um pouco mais leve —
Mas sabe? Depois dessa vergonha eu peguei trauma da palavra paquita. Aliás, da ideia toda
por trás! Não sou tão boa assim com crianças mesmo.
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Rimos mais uma vez e eu me sentia o bam bam bam por fazer Lana se sentir melhor. Então
ela me disse que ia ao toalete retocar a maquiagem. Graças a Deus, pois aquele assunto
estava pesando a atmosfera do encontro. A gata ainda estava muito triste por não ter ganhado
o concurso. Imagina a poderosa do colégio ser desprezada pela produção da Xuxa?
Vergonha, claro!

Lana ostentava de tudo na escola, mas não o cargo de paquita, a não ser na pobre e mortal
imaginação fetichista dos meninos. Por isso a preocupação de que ninguém a visse sendo a
“Paquita Consolação” na TV. Talvez por ela não ter sido tão carinhosa com os baixinhos ou
não cantar tão bem assim, não tenha sido escolhida…vai saber.

Aproveitando sua ausência, não pude me controlar e acabei conferindo o bilhete do biscoito
da sorte que ela deixou amassado sob a mesa. A mensagem dizia: “São nossas escolhas que
definem quem somos”.

Não entendi o que o universo queria dizer com aquilo. Que escolhas Lana estaria para fazer?
Nem tive muito tempo para pensar na resposta, já que ela voltou do banheiro e eu tive que
amassar novamente o bilhete da sorte e deixá-lo sobre a mesa. Tentei disfarçar quando ela
voltou.

Minha conversa com Lana foi se aprofundando à medida que nosso encontro avançava. Em
meio a esse papo descontraído, ela demonstrou seu lado mais humano, mais íntimo, longe
daquela imagem de "inalcançável" do colégio. Confessou detestar filmes de terror.

— Ai, credo! Acho um horror todo aquele sangue jorrando, tripas voando…

Gargalhamos. Mas quando o assunto chegou ao terreno "família", percebi que Lana ficou
mais inquieta e desconfortável. Como se não quisesse falar sobre o tema.

— Eu sou órfã de mãe, que nem você. — Lana me contou, com os olhos verdes um pouco
distantes. — Ela morreu quando eu tinha 9 e daí passei a morar só com meu pai. É isso.

Fiquei surpreso em como Lana conseguiu resumir sua constituição familiar em duas frases
curtas. E ainda por cima, sem a menor emoção.

— E seu pai? — Ela me perguntou enquanto Seu Hikari retirava os nossos pratos vazios da
mesa. — Me fala do seu pai. Ele é um homem muito importante, né? Deve estar sempre
envolvido em muitas “investigações”. É assim que fala?

— É sim. Já faz uns dois anos que ele trabalha lá no Ministério Público. Tá sempre com o
nariz metido em pilhas intermináveis de papel. Acho que ele nem dorme direito de tanto
trabalho. No banheiro dele tem uns calmantes. Às vezes eu até ajudo datilografando e
organizando documentos.

— Olha só! Então você também é um “homem da lei”...


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— Que nada! — fiquei sem graça.

— Claro que é. Se teu pai te deixa saber dessas coisas, é porque ele confia muito em você!
— Sem perceber, malandramente, Lana brincou com o hashi nos lábios, atiçando minha
imaginação — Me leva pra ver você cuidando dos documentos de trabalho do seu pai,
qualquer dia desses. Eu te confesso que adoro esse lance de “men at work”. Acho…sexy.

Levar Lana ao escritório do Dr. Herbert seria arriscado, praticamente uma missão suicida.
Ele eu conseguiria despistar, mas Mônica não deixaria passar um segundo vacilo como esse.
Lembrei de seu discurso no carro, mas pensei: que ameaça alguém como Lana poderia
representar?

Nesse momento os músicos que tocavam pararam para um intervalo e a pista do restaurante
foi aberta para a dança. Olhei convidativamente para Lana e tive sua devolutiva em olhar
afirmativo. Então, peguei-a pela mão e a levei até a pista. A música que tocava era “Fica
comigo” da banda Placa Luminosa.

Lana cruzou os braços sobre os meus ombros e eu me enrosquei sua cintura. Aquilo era
inacreditável. Difícil cair a ficha de que não era um sonho. Dançávamos lentamente entre
olhares sugestivos.

Devagar, como a música, nossos rostos se aproximaram, nos levando a um beijo perfeito.
Senti o gostinho de cereja do seu batom. Senti como se eu estivesse beijando pela primeira
vez, mas não tecnicamente, e sim pelo envolvimento. Pela primeira vez eu beijei uma garota
com tanta entrega e capricho. Não era uma simples ficada de fim de semana. Era Lana, a
garota perfeita.

"Amo você, fica comigo


O seu jeito de ser, me pegou sem notar, sem querer
Quero você, mas deixa comigo
Dá o teu coração, te devolvo em dobro a paixão
Já provei da maçã e é você que eu quero
Tudo bem sou teu fã, eu confesso te espero amanhã…"

— Quer ir no baile à fantasia comigo? — Criei coragem e a convidei

— Achei que eu teria de pedir... — Lana fez que sim, encostando a cabeça em meus ombros.

Os músicos voltaram a tocar ao vivo e nós dois continuamos como se não houvesse mais
nada ao redor. Uma noite memorável. Só quem já passou pela situação na qual ficar com
alguém é como realizar um sonho, sabe do que eu falo. Se apaixonar é para todos, viver a
paixão não.

Voltamos para a mesa.


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— O que mais eu posso fazer pra te ver feliz essa noite? — perguntei.

— O que cê acha de uma coisa mais agitada, gato?

— Tá afim de barbarizar, né?

— Eu quero me acabar! — disse ela arrumando os cabelos.

— Vish, pior que a essa hora não tem mais matinê — disse isso e lembrei à Lana de que
éramos menores de idade.

— Relaxa, gatinho. Eu conheço a galera de umas danceterias aí — Lana disse isso com a
naturalidade de quem não tem pai promotor — Eles podem deixar a gente entrar um pouco.
Sem falar que não tem toda essa fiscalização que dizem…

— Caio e Mel já me falaram a mesma coisa.

— Ah… sobre a sua amiguinha Melissa, eu não quero ser chata, mas preciso te contar uma
coisa. Pra ser direta, a gente se topou no banheiro da escola há uns dias atrás. Daí ela me
encheu de perguntas sobre quais eram as minhas intenções com você e tal.

— Ué, mas, gente…Não acredito que ela fez isso! — essa informação me pegou de surpresa.

— Pois acredite. Eu sei que ela é sua melhor amiga, mas achei nada a ver ela me fazer esse
tipo de pergunta daquele jeito tão…desagradável. Eu hein, parece até que ela gosta de você.
— Lana foi sugestiva nessa última frase.

— Não mesmo. Eu nem sei o que te dizer. Melissa sempre foi meio preocupada comigo, mas
acho que ela passou dos limites. Não se preocupa, eu falo com ela.

— Não precisa. Deixa isso pra lá. Vamos mudar de assunto — Lana disse com expressão de
pouco caso — Então, a verdade é que esses gorilas nem reparam em nada. A galera entra nas
festas facinho.

Na hora um pensamento intruso invadiu minha mente e eu soltei a frase:

— Saquei. E se a gente tentasse entrar na boate Broadway?

Lana arregalou os olhos.

— Acho melhor não — ela deixou escapar uma certa apreensão.

— Ué, por que não?

— Ah, é que… — Lana demorou um pouco para formular sua resposta — nunca tive
interesse em entrar naquele lugar. Sem falar, que lá eu não conheço ninguém que facilite
nossa entrada. Podemos ir lá na “Contramão”, se você preferir.
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Como assim Lana não tinha interesse em conhecer a famosa e badalada Boate Broadway?
Aquele lugar era quase uma lenda carioca!

A danceteria “Contramão” era uma proposta tentadora, mas meu relógio digital apitou o
alarme, marcando 23h30. Como prometido para o meu pai, eu precisava estar de volta em
casa até às 00h00. Não contei o motivo da minha mudança repentina de ideia, apenas dei
uma desculpa qualquer. Se eu falhasse com o velho, o castigo não teria fim. Tomamos um
táxi de volta e ao invés de palavras, trocamos beijos intensos. Investi muito em mãos bobas,
mas Lana se esquivava, lisa como um sabonete.

Ao chegar na casa dela, me desculpei por não tê-la acompanhado na ida à danceteria.

— Sem problemas, gatinho. Na próxima a gente fica mais tempo juntos. Marcamos mais
cedo. Aí quem sabe a gente consiga dançar pra valer.

Ali mesmo, comecei a maquinar mil ideias de como levá-la para conhecer a melhor
danceteria da cidade: o meu quarto.

Lana despediu-se de mim com dois beijos na bochecha, me desejou boa noite, saiu do carro e
entrou em casa sem olhar para trás.

Mônica buzinou de leve, indicando sua presença na esquina. Paguei o táxi, mudei para o
carro do meu pai e ela dirigiu até em casa. Chegando em casa, me joguei na cama tomado
pelo sentimento de realização. Papai apareceu na porta e bateu o indicador da mão direita no
relógio preso ao seu pulso esquerdo: “Gostei de ver”. Bateu uma continência e saiu com um
leve sorriso no rosto.
“Até a festa da escola a gente vai estar namorando!”, comentei com meus amigos ainda de
madrugada, lá pelas 2 da manhã.

Não sosseguei e acordei todos pelo telefone, contando tudo pela metade, no outro dia eu
daria o relatório quase completo. Exatamente, quase, pois eu sempre tive vergonha de contar
meus avanços com as garotas. Gente, até virgem eu era. E quando você amadurece, aprende
sobre algo chamado “ética dos relacionamentos afetivos”. A maioria dos caras são
desprovidos de qualquer pudor ou vergonha e falam até o que não fizeram com a garota com
a qual saíram.

Provavelmente os drinks que tomamos me ajudaram a dormir com mais facilidade, após a
euforia e também o fato de finalmente termos saído juntos tirou da minha consciência toda
aquela “bruta ansiedade” que andava me consumindo.

FITA 7: 16 de outubro de 1989


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"Pai, pode ser que daqui algum tempo


Haja tempo pra gente ser mais
Muito mais que dois grandes amigos
Pai e filho talvez
Pai, pode ser que daí você sinta
Qualquer coisa entre esses vinte ou trinta
Longos anos em busca de paz."

Eu só conseguia pensar nela. Cada música, cada paisagem, cada toque. Tudo me lembrava
Lana, a musa do verão carioca; e das outras estações também. Planejava mil coisas para nós
dois. O Clube dos Bobões nunca teve um membro tão dedicado.

Eu queria comprar um presente para ela. Uma pulseira, um colarzinho com pingente fofo, um
anel talvez. É muita piração a mente de um jovem apaixonado. Olhei minha carteira e me dei
conta de que havia gasto toda a minha mesada naquele jantarzinho romântico no japa. Seu
Hikari não deu nem um descontinho maroto.

Estava quase anoitecendo. Meu pai só iria chegar pela noite. Mônica estava na cozinha
comendo e preparando um sanduíche para meu irmãozinho. Théo tinha se saído bem numa
provinha de matemática.

— Você vai querer um sanduba também? Aproveita que hoje eu tô bem legal... — Mônica
parecia estar de fato mais contente do que de costume, até sujou sua blusinha florida de
ketchup e nem se importou — Vai?

— Aceito, sim! O meu sem mostarda, por favor.

— Meu querido, aqui nessa casa nem tem mostarda — ela disse com aquele ar petulante que
só ela sabia como não soar boçal — Ou seu pai não fez o supermercado ou eles ainda não
vieram entregar.

Cada vez que Mônica passava aquela manteiga no pão era como se um sentimento de
satisfação tomasse conta de mim. Seus movimentos milimetricamente certeiros, desde o
corte do pão até a montagem do sanduíche, atestavam seu sol em virgem

— Você já ligou pra lá, gatinha? De repente você podia fazer umas compras pra essa semana.

— Ôh, garoto! Eu sou babá do Theodoro, não empregada de vocês… — Ela disse isso me
entregando o sanduíche com a mão esquerda, enquanto apoiava a mão direita na cintura —
Apesar de parecer… E que lance é esse de gatinha? Já esqueceu a outra lá, foi?
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— Bem que eu queria, pelo menos por umas três horas seguidas! Não consigo pensar noutra
coisa. E esse sanduba tá um espetáculo! — disse eu com a boca cheia de pão.

— Engole primeiro e fala depois, menino. Eu sei bem como é essa merda. Paixão é um
negócio tipo assim, sabe máquina agrícola? É como se uma daquelas te passasse por cima e
você só percebesse o estrago depois, bem depois.

—Valeu pelo apoio, você é uma amigona! — Eu disse agora com a boca cheia de ironia.

— Eu sou mesmo sua amiga, hein? Tô te prevenindo só. Não tô dizendo pra você não viver
isso. Pelo contrário, viva sim essa experiência única e avassaladora. — Era incrível como ela
misturava papo sério e sarcasmo. — Mas esteja ciente dos efeitos colaterais. Você ainda é
muito pirralho, Betinho. — Ela se adiantou ao meu habitual protesto. — Opa, Beto!
Desculpa...

— E você viu ela? Certeza que você ficou espionando até ela sair de casa aquele dia...

— Espionando, eu? Jamais. Eu só fiquei no carro até ter certeza de que vocês estavam saindo
em segurança. — Mônica ficava uma fofa quando mentia sem disfarce – Mas nem deu pra
ver a cara da “senhorita fatal” direito.

— Aham, sei… Sua cara nem treme mais! Virou agente secreta agora, foi?

— Eeeuuu? Eu sou uma “Charlie Angel”, meu amor. Uma pantera sedenta por perigo! Você
tá é por fora. — A sacana me surpreendeu sujando meu nariz de maionese.

— Ah, agora limpa com a boca! — Botei minha cara mais safada de dezessete anos pra jogo.

— Ííh aqui não, bocão! Nem vem, que eu não tô pra papa anjo, ainda não cheguei nesse nível
de decadência — ela já disse sorrindo, surpresa com minha audácia.

— Sua sem graça, sabe nem brincar… Ei, Mônica, agora é sério. Aproveitando esse nosso
momento “ternurinha”, eu posso te pedir um favor?

— Lá vem ele. Não é sexual não, né?

— Eu falei que agora é sério, pô.

— Tá, manda aí.

— Tem como você me descolar um troco? — Eu tentei dizer isso com naturalidade.

— Betinho lindo do meu coração…— dessa vez eu achei fofo ela me chamar no diminutivo.
— Seu pai, o doutor Herbert Vieira, não fez nem o supermercado. Você acha que ele lembrou
de pagar o meu salário? Qual parte de “não tem mostarda” você não entendeu, bobinho? —
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Mônica começou a rir, bagunçou meu cabelo e saiu andando com a bandeja de lanchinho do
Théo nas mãos.

Fiquei pensativo durante aquele resto de crepúsculo. Meu pai ainda não tinha chegado em
casa e eu estava disposto a pedir mais dinheiro para ele. Uma missão digna do Esquadrão
Suicida. Seu Herbert não chegava a ser um ditador em casa, mas gostava das coisas muito
corretas e eu já tinha gastado toda a mesada. Ele com certeza ia jogar na minha cara sobre o
meu incidente no mar, quando eu tentei dar uma de Aquaman. As chances eram remotas de
eu receber uma resposta positiva. Será que não era melhor inventar alguma coisa da escola, a
compra de um material talvez? Mas ele certamente ligaria lá pra saber.

Eu precisava de dinheiro. Caio poderia me emprestar, mas não sei. Amigos,


amigos...negócios à parte. Nessas horas eu invejava o esforço do Joca que trabalhava desde
cedo, mesmo sabendo que a motivação dele para isso era a sobrevivência dele, de sua mãe e
seus irmãos. Meu pai preferia que eu estudasse, alegando “é para isso que eu me mato em
escritório, tribunal e até em casa”. De certa forma ele estava certo, mas também era fato que
eu precisava amadurecer nesse quesito. Estava tão avoado que até dos meus esquemas de
venda de trabalhos escolares eu esqueci.

De repente, ouvi a maçaneta enferrujada da porta principal girar com seu rangido peculiar e
corri para a sala. Aquele homem sério entrava em sua casa com ar de imperador. Meu pai era
um cara de meia idade, meio grisalho já, feições parecidas com as minhas. Vestia um terno
marrom bem alinhado, que lhe deixava mais velho; devia ser parte do seu marketing pessoal
para passar a credibilidade necessária, mesmo que àquela altura sua fama lhe precedesse.
Como eu o admirava...

— Oi, filho. Tranquilo? — ele disse jogando sua pasta no sofá.

— Tudo certo, pai. Como foi seu dia? — Eu estava tão nervoso que nem parecia estar diante
do meu próprio pai.

— Hoje foi osso! Mas, eu sou cachorro brabo...

— Ah, que bom pai, fico tão feliz! — Num impulso involuntário, eu o abracei fortemente e
quando me dei conta, não sabia mais reagir.

— Tá tudo certo mesmo com você, Humberto? — Ele adorava meu nome e fazia questão de
me chamar assim. Eu é que tinha neura adolescente de me achar brega ao ser chamado
daquela forma, ou de me sentir infantil quando me chamavam por Betinho.

— É sério, pai, tô bem. Desculpa se...


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Eu disse me desvencilhando, mas meu pai me abraçou novamente e me deu um cheiro na


testa.

— É só que eu achei estranho, meu filho. Você nunca está aqui quando eu chego, me
abraçando, então? É pura novidade para mim!

Minha ficha caiu. Meu abraço poderia soar falso e interesseiro depois que eu pedisse a grana.
Nos soltamos um do outro e sentamos no sofá de couro que ele tanto amava.

— Tenho sentido falta de te ver mais, pai. O senhor tá trabalhando tanto. Toda hora é uma
emergência diferente...

— Eu sei. Você tem razão, Beto. Estou com dificuldade de me organizar e ainda te devo
aquele passeio. Seu irmão, se não fosse pela Mônica... — Dizia com ar de culpa enquanto
tirava os sapatos e afrouxava a gravata. Papai há dois anos trabalhava no departamento
criminal de arquivo morto. Era basicamente desenterrar casos não solucionados que
envolviam bandidos muito perigosos.

— Relaxa, pai. Foi só uma observação. Não é só você que tá com a cabeça cheia. Eu também
tenho andado bem desregulado.

— Isso é. Na verdade, você sempre foi um um garoto muito ligadão, filho. Mas ultimamente
anda “fora de órbita”— Meu pai usava esses termos e sorria; acho que para ele é como se
fosse uma gíria — É o lance com aquela garota?

— É sim, eu confesso. — Oba! Entramos no assunto...

— Você nem me contou o que aconteceu entre vocês. Deu tudo certo?

— Ah, pai. Foi tudo perfeito. A gente ficou legal. Valeu por ter me liberado do castigo! —
Eu disse com um pouco de vergonha. Acredite ou não, aquela era a primeira vez que eu
falava de um interesse amoroso meu com o velho.

— Então que ótimo. Não tem que agradecer. Até parece que eu ia te atrapalhar de dar uns
beijos da Brooke Shields, como você mesmo disse. E aonde vocês foram?

— Levei ela pra comer um japa. E ela come bem, viu? — Meu pai soltou uma gargalhada
como há muito tempo eu não ouvia — Gastei minha mesada inteira nesse encontro.

— Ah, filho, se a comida foi boa… Digo, “comida” mesmo — ele se embaraçou e sorriu
novamente — Então você ganhou 50% do encontro. E eu conheço essa menina?

— Conhece nada, mas qualquer hora dessas eu trago ela aqui. Não sei se ela tá totalmente na
minha ainda...
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— Quando tiver mais certeza, traz ela para almoçar um dia. Se for importante pra você, faço
questão.

— Poxa, pai, valeu!

Seu Herbert estava cansado, mas eu notei nele um certo contentamento. Então decidi
aproveitar a deixa e falar sobre “negócios”.

— Pai, eu tava querendo conversar com você uma coisa... — Cocei a cabeça de nervoso.

— Tirou nota baixa? Preciso assinar o boletim? Eu sabia que teria essa primeira vez. – Ele
estava curiosamente tranquilo.

— Vou te mandar a real. Não quero que você pense que tô me aproveitando desse momento
bacana entre a gente, falou? O seguinte é esse: tô liso e queria comprar um presente pra gata.
Me arruma grana? – mordi os lábios já esperando a negativa.

Meu pai ficou em silêncio por volta de um minuto. Cara, aquilo pareceu uma eternidade.
Depois ele me encarou por uns 10 segundos. Fuzilou-me com aquele olhar “sereno e severo”
que só ele sabia fazer. Me senti o réu de um dos seus muitos tribunais.

— E como você pretende conseguir essa grana? — Essa foi a frase que ele usou para quebrar
o silêncio.

— Ué… Com você. — Eu tava morrendo por dentro.

— Humberto, meu filho, eu não vou te dar mais dinheiro. Ouça, eu quero, mas não posso.
Você precisa conhecer o valor das coisas. Se você me pedir pra fazer um curso, eu pago.
Mas, para ostentar? Não. — O sermão veio com força, meu pai estava em plena forma —
Você sabe que eu estou trabalhando muito justamente para ganhar melhor, mas sou contra
esbanjar ainda mais em plena inflação. É por isso que a gente mora bem, mas não em
mansão; a gente se veste e calça bem, mas não preza marca nem grife; e você estuda em
colégio bom, mas não no mais granfino — Herbert enumerava as frases com os dedos das
mãos.

— Pô, pai, me desculpa, eu sabia que não ia rolar, mas eu precisava tentar. Não queria
estragar...

— Calma, ouve teu pai. — Ele me interrompeu com um toque na minha perna, como sempre
fazia quando queria dar algum conselho. — Eu não vou te dar dinheiro. Mas você já tem
dezessete anos e por isso eu já andei pensando em mudar de ideia quanto àquela história de
você trabalhar.

— Sério? Como assim? — Meu queixo caiu.


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— Falei com teu padrinho. A proposta é você trabalhar por um período na loja de música
dele, assim, meio de ajudante só para pegar alguma experiência. Não vou te obrigar a nada,
na verdade acredito que não seja preciso, já que você adora ficar de bobeira por lá sempre
que pode.

— Oooii? Não tá tirando uma com a minha cara? Pai, você tá falando sério mesmo?

— Palavra! — Ele fez aquele aceno seguro com a cabeça.

— Pô, pai, que máximo! Muito obrigado. Sério, valeu mesmo!

Dei um abraço tão apertado e sacudido no meu velho, que ele quase se sufocou. Jamais
esperei aquela atitude do meu pai. Achei que sairia do colegial direto para a universidade e
só depois lutaria por algum emprego minimamente decente. Tudo bem que era um bico
arranjado e eu não lutei para conseguir, mas era uma experiência.

Saímos do abraço, digo, eu o libertei de minha prisão. Seu Herbert fez uma ligação rapidinho
para meu padrinho, combinou tudo para o dia seguinte. Papai me fez algumas
recomendações; ele deu seu jeito de falar da minha vontade de ser jornalista e sobre as
dificuldades da profissão. O discurso de pai preocupado com a escolha profissional arriscada
do filho. Como ainda eram seis e vinte, levou-me ao supermercado junto a Théo e Mônica.
Tratei logo de pôr a famigerada mostarda no carrinho.

FITA 8: 17 de outubro de 1989

“Disputar em cada frequência


O espaço nosso nessa decadência
Canções de guerra
Quem sabe canções do mar
Canções de amor ao que vai vingar
Toquem o meu coração
Façam a revolução
Que está no ar
Nas ondas do rádio
No underground repousa o repúdio
E deve despertar!”

O castigo finalmente acabou. Era tarde, por volta das duas horas. Depois do colégio, pedalei
bastante até o centro do Rio, com todo aquele sol na moleira e meu walkman no volume
máximo. Meu pai não pôde me levar, pois tinha um de seus compromissos impreteríveis. A
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fachada da loja estava sendo reformada. Eu conhecia aquele lugar como a palma da minha
mão. Amava passar minhas horas ociosas entre os discos, instrumentos e revistas sobre
filmes e bandas famosas. Havia uns quatro carinhas descarregando um caminhão e levando
caixas de todos os tamanhos e formatos lá para dentro.

No interior daquele templo estava um homem alto, bronzeado, de cabelos castanhos bem
claros, usando bermuda jeans desfiada, regata vermelha e brinquinho maroto de cruz na
orelha esquerda. Uma mistura de George Michael e Carlos Alberto Riccelli.

Ricardo Teixeira era meu padrinho e dono da ALPHA SOM, a loja do segmento musical
mais badalada da cidade e região. Conhecido apenas como Teixeira, também era promoter
das melhores festas e conhecia muita gente do meio artístico. Teatro, cinema, TV…em tudo
estava metido de alguma forma. Era ele quem facilitava nossa ida aos programas de auditório
que o Théo queria. O dindo, como ele odiava ser chamado, havia trabalhado até com a galera
do “Asdrúbal Trouxe o Trombone”.

Teixeira e meu pai tinham sido amigos de colégio na época em que tudo era uma “brasa”.
Inseparáveis! Era assim que minha mãe os descrevia quando me contava algumas histórias
de juventude deles. Falando nisso, o grande cupido da relação de meus pais havia sido ele.

— Pontualidade britânica. Gostei de ver — Ele comentou quando entrei na loja e acendeu o
cigarro, sua marca registrada.

— À suas ordens! A benção, padrinho. — Fui entrando em meio à bagunça que estava na
Alpha Som naquele dia.

— A benção tu vai ver se trabalhar direitinho. — Ele sorriu e me puxou pelo braço. — Dá cá
um abraço, que faz tempo que não te vejo. Deus te abençoe — ele disse me dando uns tapas
no traseiro — Tu sumiu, rapaz! Não veio nem buscar tuas revistas de filme, pô, tão tudo aí,
nem vendi.

— Depois eu pego, tava mega ocupado, mas o senhor tava viajando também, né? Tô saindo
com uma gata quente!

— Nãããooo, não me diga! Mas até que enfim, Beto! Então, o senhor anda ocupado por uma
boa causa. — Eu achava o máximo ele conversando e baforando aquela fumaça de cigarro
importado ao redor.

— É muita coisa pra te contar, padrinho.

— Então me conta depois, que a gente ainda vai ter muito tempo. Agora temos que
organizar esse caos, porque eu já quero abrir amanhã, se possível. Tu sabe que eu sou
avexado, como diz minha prima do Ceará.
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Um dos homens que trabalhava descarregando o caminhão interrompeu nossa conversa e


perguntou:

— Ô, chefia, onde a gente deixa essa última caixa? Ela é mais sensível.

Tio Teixeira foi orientar e, logo após, os caras foram embora com o caminhão.

— É... Agora somos só nós e tudo isso! — Meu padrinho estava bem disposto. Ele tinha essa
gana de viver que era contagiante.

— Então, bora! — eu disse eu já abrindo alguns pacotes.

Eram encomendas caras. Todo tipo de parafernalha, microfones, mesas de som, LP’s, fitas
K7, revistas e uma variedade de produtos. A gente foi ajeitando as coisas e papeando. Ele ia
transformar a loja futuramente em um estúdio para bandas e cantores independentes, além de
criar um espaço no andar superior para pocket shows e lançamentos. O primeiro estava
programado para ser uma noite de autógrafos com a banda Kid Abelha. A ALPHA SOM não
seria mais uma loja, mas uma espécie de centro cultural, um ponto de encontro, como a
Galeria do Rock de São Paulo.

— Eu fiquei mais surpreso do que você, Beto. Teu pai sempre foi muito superprotetor com
vocês. Na verdade, até comigo no tempo da escola. Ele gosta dessa coisa de ser responsável
sempre, prover, proteger... – Disse ele rasgando uma embalagem com os dentes. — Só que
isso demais estraga.

— Parece que ele resolveu te ouvir, padrinho. — Eu não segurava a alegria de estar ali com
meu segundo pai. Foi ele que segurou a barra quando minha mãe morreu. Meu pai demorou
muito a se reerguer. E acabamos entrando nesse assunto.

— Graças aos Deuses! Martelei tanto naquela cabeça… Eu percebo que Herbert tá mais
aberto, mais solto. Eu sei que ele parece distante, mas se não fosse o trabalho… Isso é coisa
que você vai entender só quando for um yuppie, Beto. Teus pais são minha família. Digo são,
porque pra mim tua mãe tá viva e é assim que é.

— E o senhor nunca quis casar padrinho? Não achou a mulher ideal?

— Que mané casar, moleque! Me tira dessa – Teixeira era muito escorregadio quanto a pauta
casamento e sempre mudava de assunto — Se liga agora, que eu só vou explicar uma vez.
Regras: não quero ninguém, eu disse NINGUÉM atrás desse balcão que não seja você ou eu!
E muito menos no almoxarifado. Somente nós dois podemos entrar e você com minha
permissão. — Sua expressão era tão precisa e severa quanto a de seu amigo Herbert, meu
pai.

— Tá certo — sem dúvida nenhuma, com certeza eu iria acatar todas as suas ordens.
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— Eu demiti a funcionária antiga, porque ela não sacava nada além de música pop
americana. A pessoa morar no Brasil em 1989 e não conhecer Marina? Que absurdo! — Ele
amava muito ouvir o timbre rouco de Marina em qualquer oportunidade — Se tudo sair
como tô planejando, vai ser ótimo pra aquele teu sonho de ser jornalista de filme e música. A
galera da área vai viver aqui dentro. Enfim, se meus projetos audiovisuais derem certo no
próximo mês, quero que você chame aquele seu amigo que vem aqui às vezes, o Joca. É
assim que ele se chama?

— Sim, Joca de João Carlos. Pô, padrinho, sério? Seria tudo!

— Pois é, eu gosto dele, acho esforçado e mó alto astral. E cê já me contou que ele precisa e
tals. Mas, é como te disse: só se meus projetos derem certo, pois aí eu vou ter de passar um
tempo em Sampa. Caso contrário eu continuo aqui pela manhã e você à tarde.

— Como o senhor quiser — A felicidade mal cabia em mim.

— As próximas caixas são especiais. Dentro delas tem um computador novo e uma mesa de
som de primeira!

— Caraca, não acredito! Isso custa os olhos da cara! — Êxtase! O primeiro computador legal
que usei na vida foi aquele.

— Como você deve ter notado, ainda tenho os dois lindos olhos aqui e muita bala na agulha.
Santa maré de sorte! Então, nós vamos...

O chamado do telefone interrompeu Teixeira, que atendeu. Era a transportadora avisando que
a caixa com os novos fones de ouvido havia ficado no caminhão. Os funcionários saíram e
não havia ninguém para realizar a entrega.

— Incompetentes! Beto, eu vou sair pra buscar esses fones. Tranca a porta e não abre por
nada. Pode passar alguém, ver o movimento e achar que estamos abertos. Ninguém aqui
além de você! Não sei se demoro, vai depender do trânsito. Se passar do horário, eu te ligo e
você fecha tudo com a chave reserva que tá na primeira gaveta do balcão.

Ricardo Teixeira pegou suas chaves, carteira, entrou no seu Monza Sedan quatro portas e saiu
cantando pneu.

De repente, aquele lugar pareceu quieto demais. Eu estava contente, satisfeito e envaidecido.
Peguei o telefone e contei aos meus amigos a novidade. Finalmente eu ia ganhar meu
dinheiro trabalhando. Melissa, Joca e Caio já queriam fazer uma visitinha, mas eu os adverti
que não poderia recebê-los. Minha última ligação foi para ninguém menos que Lana. Eu
precisava aumentar o meu status diante dela e trabalhar na ALPHA SOM era o distintivo
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perfeito de “Olha como eu sou descolado”. Eu só não contava com um detalhe: depois de
vinte minutos, ela apareceu na porta da loja.

"Electric youth
Juventude elétrica
Feel the power, you see the energy
Você vê a energia
Comin' up
Tá vindo
Coming on strong
Tá vindo bem forte
The future only belongs
O futuro somente pertence
To the future itself/in the hands of it self
No futuro de si mesmo
And the future is
E o futuro é
Electric youth
Juventude elétrica

— Lana? — Eu estava branco feito papel e ela linda como sempre.

— Não vai abrir? — Ela estava chupando um pirulito daquele jeito bem… Travesso, se é
que me entendem. Como eu poderia dizer não para aquela beldade?

— Cla-claro… — gaguejei.

Girei a chave para abrir a porta de vidro. De repente, ela já estava inaugurando o novo
espaço de shows. Lana iluminava qualquer ambiente. Perto dela eu perdia a noção de tudo.

— Então agora você trabalha aqui? Maneiro, hein?! Tive que vir pessoalmente te dar os
parabéns... — Ela chegou bem pertinho e me beijou o canto da boca bem devagar. – Põe do
disco da Debbie Gibson e me leva pra conhecer os bastidores… Me mostra tudo!

Lana saiu correndo pela loja feito criança curiosa entre as caixas, sacos e prateleiras. Imagine
tudo isso acontecendo ao som de "Electric Youth”.

— Seu padrinho deve ser maneiro! Uma loja desse porte não é pra qualquer um. — ela
comentou enquanto rodava a prateleira giratória de revistas sobre música.
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— Ele é meu segundo pai. É o melhor sujeito que eu conheço! Tirando meu pai, é claro...

Depois ela rapidamente subiu para o segundo andar e na mesma velocidade tornou a descer
ao térreo. Até que Lana avistou a porta cheia de adesivos que ficava mais adiante após o
balcão.

— O que tem ali? — A gata me perguntou, enquanto andava em direção à porta.

Era o almoxarifado. A voz do meu padrinho parecia ecoar pelos auto falantes da ALPHA:
“Ninguém deve ultrapassar os limites do balcão”, mas era só a minha consciência, que ao
mesmo tempo dizia “Que mal tem? É só um pouquinho”.

— Me mostra o que tem aqui, gato...

Lana foi covarde. Ela se insinuou de tal forma no batente da porta, que meu cérebro
adolescente só pensava: “É agora que perco a virgindade!”. Peguei a chave e abri o
almoxarifado. Não entendi nada, pois Lana estava analisando as prateleiras, caixas e pastas
como se procurasse por algo específico.

— Ué, você tá atrás de alguma coisa? — Perguntei.

— É só curiosidade. Isso deve ser a contabilidade da loja, né? Que barato! — Ela disse
abrindo um gavetão enorme.

— Provavelmente. Na verdade não devíamos estar aqui. Acho melhor a gente...

Fui calado com um beijo quente e irresistível.

— Ai, Beto, confesso que tô um pouco… excitada! Me agarra!

— Claro, vossa alteza.

Peguei Lana com jeito pela cintura, beijei-a como vi nos filmes de romance e em ponto de
bala que estava, apaguei a luz. Isso durou quase nada. A luz acendeu e Tio Teixeira apareceu
pigarreando.

— Eita, é… padrinho! O senhor já tá de volta? — Eu e Lana não sabíamos onde enfiar a


nossa cara.

— Felizmente não tinha trânsito e eu sou muito bom de volante — ele disse parecendo um
boneco ventríloquo, mexendo só a boca.

— Ah... E os fones? — Meu coração estava saindo pela boca do susto e dos beijos quase
sufocantes
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— Estão lá fora esperando por você.

— Certo. Então, gata, vamo lá comigo? — Chamei Lana que saiu arrumando o vestido e
passando os dedos ao redor da boca borrada de batom. Ela e eu nos despedimos na porta.
Apanhei as caixas no bagageiro do carro de Teixeira e as levei para dentro da loja. Ouvi uma
bronca merecida.

— Eu disse NIN-GUÉM! Beto, pelo amor de Deus… O lugar mais sagrado dessa loja é
aquela sala. O Almoxarifado é o coração da Alpha Som. Um alfinete fora de lá e tudo pode ir
por água abaixo.

— Desculpa, padrinho. Eu devia ter seguido seu conselho...

— Conselho não, ordem! — Teixeira respirou fundo e se apoiou no balcão pensativo.


Prometi por todos os deuses da arte que aquilo jamais se repetiria. Ele resolveu me dar mais
uma chance e de quebra não contar ao meu pai sobre o ocorrido.

— Desculpa, Beto. É que esse lance de organização mexe demais comigo, você sabe que isso
aqui é o meu sonho. É que aquele não é só um simples almoxarifado. Ali tem o cofre, notas
fiscais, documentos importantíssimos…

Fiquei calado, esperando ele recomeçar a bronca.

— Aquela é a tal gata quente? — Teixeira me perguntou e acendeu outro cigarro importado.

— A própria — eu respondi mais aliviado.

— É quente mesmo. Cuidado pra não se queimar... — ele disse soprando as “terras de
Malboro” na minha cara.

FITA 9: 18 de fevereiro de 1989

Dias se passaram e eu continuei guardando para mim o que Lana havia me contado sobre
Melissa. Seriam ciúmes ou minha melhor amiga estava apenas sendo cuidadosa comigo? Eu
a conhecia há um tempo considerável e ela nunca tinha demonstrado interesse romântico em
mim. Melissa era uma garota linda, segura, sem grilo. Inteligente e meio xarope, às vezes, eu
admito, mas seu sorriso era puro carisma. Naquela manhã de quarta-feira, quebrei o silêncio,
não resisti. No intervalo, enquanto dividíamos um “pastel de vento”, questionei Mel com
rispidez sobre o relato de Lana.
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— Eu sabia! — ela sorriu batendo no peito, terminando de engolir a massa — Eu sabia que
ela ia te contar. Foi de propósito, bobo. Acho até que você demorou demais a vir me
perguntar sobre isso.

Fiz cara de confuso, mas continuei.

— Eu te adoro, Mel, você sabe disso. Mas, é que fica chato você interrogar a minha paquera.
Pode parecer até ciúme… — confesso que proferi essa última palavra com receio da reação
de Mel.

— Ciúmes, eu? Da Lana? — Melissa gargalhou ainda mais alto, amarrando os cachos com
uma chuquinha amarela — Não viaja, amigo! Beto, ela não te contou tudo. Pera lá, que vou
tentar resumir.

Ouvi atentamente minha amiga esclarecer a situação. Ela realmente interpelou Lana, quando
elas se encontraram ocasionalmente no banheiro do colégio. Melissa quis saber se a “abelha
rainha” de fato gostava de mim, pois elas já se conheciam de outra escola e a experiência de
quase amizade das duas foi péssima. Tudo começou na 6ª série, quando Melissa ainda
morava em outro bairro, na casa dos pais. Um belo dia, ela teve a ideia de levar Lana à casa
de sua avó, Dona Cida; elas passariam a tarde fazendo um bolo para vender na feira de
ciências da escola onde estudavam juntas. Lana tinha adorado a ideia de cozinhar, pois sendo
rica, nunca precisou pôr a mão na massa.

Porém, ao chegarem na casa de Dona Cida, Lana começou a agir estranhamente e foi embora
antes do combinado. O bolo nem mesmo havia ficado pronto. Na manhã seguinte, no
colégio, Melissa notou que Lana se comportava estranhamente, quase indiferente a sua
presença. Foi então que o pesadelo começou. Lana ficara impressionada com as imagens de
divindades africanas de Dona Cida e, ao contar para outra colega de classe, a informação
espalhou-se e, durante o resto do ano letivo, Mel sofreu bullying pesado quando essa palavra
nem existia sob a alcunha de “despacho”.

Quando o ano acabou, Melissa foi morar com a avó, aliviada, pois conseguiu uma bolsa de
estudos integral no Colégio Teorema, que ficava mais próximo a casa de Dona Cida. Ela
alegrou-se, pois iria estudar da 7ª série até o final do colegial em uma escola diferente. Mas,
para sua decepção, Lana decidiu fazer o 3º ano colegial na mesma instituição e agora elas
eram novamente colegas de classe. Contudo, contrariando as expectativas de minha amiga,
Lana não espalhou o apelido e fingiu nem a conhecer.

— Que coisa absurda! Você é maravilhosa, Mel! Sua avó é maravilhosa! — surpreendi Mel
com um abraço apertado — E daí se ela curte bater um tambor?

— Ai, ai, Beto! Só você… — Melissa riu — eu tô rindo assim, mas na época foi pesado.
Uma menina preta e pobre que nem eu, bolsista naquela escola, igual sou aqui, rodeada de
riquinhos me chamando de “despacho”... foi péssimo.
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— Isso explica teu jeito de porco espinho quando ela chega perto.

— É, mas, agora sei lá…quem sabe ela mudou? — Mel disse em tom indulgente — O fato
dela não espalhar nada disso aqui na escola e fingir que não me conhecia, é um ponto
positivo. Bom, milagres podem acontecer…

— Eu fiquei griladaço agora… — eu disse enrolando meu dedo nos cachos de minha amiga.

— Ei, eu só te contei pra você ficar por dentro. Esquece isso! Acho que eu fui meio invasiva
mesmo com o lance de vocês. Mas, só quis te proteger e sei que você não gosta disso. Foi
mal.

— Tá tudo certo, gatinha. Cê, na verdade, nunca fez a caveira dela pra mim.

— Pois é, só te dei uns alertas por causa dessa minha vivência horrorosa. Mas a gente era
praticamente criança. Se bobear, nem foi ela que inventou o apelido. O lance é viver o agora!

— Desculpa eu? — fiz carinha de cachorro abandonado.

— Tá tudo bem, amigo. Aliás, eu tenho que te contar sobre umas novas leituras que andei
fazendo. Descobri coisas que podem te ajudar a desvendar sua E.Q.M.

— E.Q.M? — demorei um pouco a processar a informação — Ah, sim! a “experiência de


quase morte”? Eu já tinha até me esquecido disso…

— Pois eu ainda não — respondeu ela.

Nos abraçamos novamente e o sinal tocou, avisando que já era hora de retornar para a sala.

FITA 10: 28 de outubro de 1989

“O teu amor é uma mentira


Que a minha vaidade quer
E o meu, poesia de cego
Você não pode ver
Não pode ver que no meu mundo
Um troço qualquer morreu
Num corte lento e profundo
Entre você e eu”
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Aproximadamente quinze dias se passaram. Lana e eu ficamos durante todo esse tempo.
Mesmo com as implicâncias de Guto, que sempre dava algum jeito de encher o saco e tentar
estragar nossos encontros. Numa dessas, ele inclusive apareceu atrás do ginásio, onde Lana e
eu estávamos nos beijando, todo alterado, parecia um drogado em abstinência fungando sem
parar.

— Tu tem que ser minha, patricinha do caralho! TU TEM QUE SER MINHA! — ele berrou,
totalmente fora da casinha.

Sempre bancando o protetor, Caio interveio novamente e a Big Loira acabou na diretoria pela
milionésima vez. Aquela foi uma situação bastante tensa, pois mesmo que Guto fosse
implicante, ele ainda não tinha direcionado sua violência para Lana. E ao mesmo tempo que
sentia ódio, Guto, por algum motivo, terminava por respeitar Caio. Algo me dizia que não
era apenas pela “fama de mau” do meu amigo badboy.

Bom, do seu jeito enigmático, Lana demonstrava gostar da minha companhia. Aos poucos
fomos conhecendo partes da vida um do outro. Ela, sempre muito discreta quanto à sua
família e bastante curiosa sobre como era minha relação com meu pai, meu padrinho e o
trabalho de ambos. A gata era do tipo que gostava de provocar, interrogar. Ciente da própria
beleza, ela atirava seu charme como uma metralhadora. Comentei com ela que havia
aprendido a patinar recentemente com Caio e ela logo se interessou em aprender a arte de se
equilibrar nas rodinhas. Quis que eu fosse seu professor. Treinávamos por volta das 5 da
tarde, na quadra da escola; sempre depois que eu saía da Alpha Som e ela terminava sua aula
no clube de aeróbica.

“O nosso amor a gente inventa


Pra se distrair
E quando acaba a gente pensa
Que ele nunca existiu
O nosso amor a gente inventa, inventa
O nosso amor a gente inventa”

Nesse meio tempo, Lana me confessou não saber nadar, depois de me ver em uma
competição amistosa com meus colegas de aula. Imediatamente me ofereci para ensiná-la o
pouco que eu sabia de natação e até sobre a história do esporte. Nerd é um caso sério!
Modéstia à parte, essa era uma das únicas coisas nas quais eu era realmente bom, apesar do
meu trauma de mar, na piscina eu me garantia. Sem contar que seria mais um motivo para eu
vê-la de biquíni. Nós treinávamos quase sempre na piscina da escola, alternando os dias com
as aulas de patins. O que eu queria era passar mais tempo com ela. Até que numa dessas,
Lana sugeriu: “Por que não vamos para sua casa?”. Aproveitei que naquele horário minha
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residência estaria livre, pois meu pai só chegava lá pelas sete ou oito do trabalho e, naquela
tarde, Mônica tinha ido levar o Théo para passear. Concordei. Qualquer mero sinal de
“oportunidade sexual” era sagrado para mim.

Saímos da quadra do colégio em cima das rodinhas e fomos com cuidado para a minha
residência. Quando nós chegamos em casa, eu fui logo tirando os patins e subindo as
escadas, mas Lana não me acompanhou. Ela quis primeiro dar um rolê pelos cômodos, os
quais eu lhe apresentei como em uma “tour” por uma galeria de arte. “Ela deve estar curiosa
para saber como é a casa de um pai solteiro de classe média”, imaginei.

Apressadamente, apresentei a casa para a gata. Quando paramos em frente ao escritório do


meu pai, ela me olhou com euforia e, como a porta estava entreaberta, eu não consegui barrar
a sua entrada.

Lana foi logo se sentando na cadeira do velho e bancando a promotora sexy. Xeretou todas as
gavetas, até que fixou os olhos na mesma pasta marrom do caso que Melissa datilografou um
pouquinho, como favor para mim. Seus olhos se paralisaram ali naquelas páginas e não me
pergunte como, ela lia enquanto eu desfrutava do seu corpinho esculpido pelos deuses.

Eu estava aproveitando aquele momento de excitação para tirar umas casquinhas. Curioso,
que só relembrando agora, eu percebo o quanto aquele episódio remetia a uma vibe “patrão e
secretária”. Se fosse hoje, essa atitude teria me dado um processo por assédio e com razão.
Com a velha tática da mão boba, eu estava conseguindo alguns “contatos imediatos de
vários graus”.

Eu só conseguia pensar no sermão que ouviria caso meu pai aparecesse ali naquela hora.
Podia não parecer, mas o episódio na Alpha Som com o Tio Teixeira tinha me afetado um
pouco a respeito desse tipo de flagra. Tentei sair daquele “templo” judiciário e levar Lana
comigo, pegando-a pela cintura e a levando em direção ao meu quarto. Adoraria que ela
conhecesse minha cama tão bem quanto eu. No entanto, como uma gata ensaboada das
promoções de lava jato norte americano, Lana escapulia das minhas mãos e mantinha os
olhos vidrados naqueles papéis mofados.

Lana esquivou-se do jeito que podia e apenas me beijava dizendo que “ainda não era o
momento certo”.

— Por que não? — Argumentei enquanto cafungava em seus cabelos. Eu estava louco de
vontade e frustrado com suas escapadas — Só tá nós dois aqui. Vamos aproveitar.

— Porque eu não quero! — Taxativa, Lana me respondeu em um tom de voz mais agressivo.
— O combinado de hoje era aula de patins, lembra? Eu só quis vir aqui pra conhecer sua
casa. Agora me tratando assim feito um objeto, você até me ofende…
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Fiquei envergonhado e triste pela forma como Lana me respondeu. Ela nunca tinha me
tratado daquele jeito.

— Desculpa. Me desculpa… — Falei sem graça.

— Tá desculpado, gatinho. Só não força mais, tá?

Lana ainda voltou seus olhos para a pasta do inquérito e deu mais uma olhada, antes de
fechá-la e colocá-la sobre a escrivaninha. Admito que estava achando aquele interesse
exagerado dela nas coisas do meu pai, no mínimo, esquisito. Em nossas conversas sobre
vestibular, Lana sempre deu a entender que queria fazer Moda ou Arquitetura, não falava
nada sobre Direito e o universo das leis e dos crimes. Então por que tanto interesse em
xeretar os documentos do meu pai? Esquisito.

Assim que Lana devolveu a pasta à escrivaninha, fiz questão de guardá-la em uma gaveta.
Lembrei da voz de trovão do Dr. Herbert dizendo que ninguém deveria tocá-la além de mim.
Imagina se ele soubesse que, àquela altura, Melissa e Lana, duas “estranhas”, já tinham lido
os documentos daquele inquérito?

— Lana, por que esse interesse todo no trabalho do meu pai? — decidi interrogá-la — Você
quis vir aqui em casa e eu achei que fosse pra gente se curtir, mas cê só se ligou nesses
papéis.

— Íh, garoto. É só curiosidade mesmo. Sem grilo, tá? Esses dias eu vi um filme ótimo de
detetive e ainda tô com a cabeça nesse universo. É só isso.

— Ah, legal. Como chama o filme?

— Ai, sou péssima com nomes. Mas, quando você for lá em casa, eu te mostro. A fita era da
minha mãe.

— Eu vou adorar assistir contigo — tentei soar descontraído, para dissipar o climão que se
formou.

— Agora eu preciso ir. Cê me leva até lá fora? — Lana veio até mim e me deu um bejinho
na bochecha.

— Claro! — Ao sairmos do escritório, Lana pegou a mochilinha preta com suas roupas, que
estava sobre o sofá, pendurou no braço e me acompanhou até a saída de casa, pisando firme
em seu par de All Star branco tão descolado.

— Eu adorei a aula de hoje, Betinho! — ela me disse no portão, depois de me dar um selinho
tão rápido que nem consegui sentir o gosto do seu marcante batom de frutas vermelhas —
Com você de professor, rapidinho eu fico craque no nado borboleta, hein…
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— Eu quero ver a sua performance depois — tentei parecer sacana, mas percebi que só
fiquei brega.

Lana deu uma risada estranha e completou:

— Então tá. Te vejo segunda no colégio…

— Segunda? Amanhã não?

— Não posso, gato. Preciso acertar os últimos detalhes da minha fantasia pra festa… As
meninas vão lá em casa e a gente vai tirar um dia de ateliê. Vou ficar o dia todo nisso.

— Você não vai me contar qual vai ser a sua fantasia?

— É surpresa, gatinho…

Ela se despediu brevemente e foi embora.

Lana parou na esquina de casa, virou-se e me lançou um sorriso seguido de um aceno


gracioso com a mão esquerda. Devolvi o gesto lhe soprando um beijo invisível, o qual ela
“aparou” e guardou no coração. Mais uma vez, eu fiquei literalmente na mão. Foi o encontro
mais estranho que tivemos. Mas eu já estava acostumado ao jeito esquivo dela. Digo, eu
tentava me acostumar. Porque se dependesse de mim, Lana e eu já estaríamos namorando há
muito tempo e não naquele lance indefinido. Corri para o banheiro, entrei no chuveiro e,
enquanto tirava o cloro da pele, me ensaboei pensando naquele corpo tão bem desenhado
pela natureza, escondido debaixo daquele cropped branco e do shortinho de malha rosa.

FITA 11: 31 de outubro - 19h00 da noite

“So let's sink another drink


Então vamos tomar outra bebida
'Cause it'll give me time to think
Pois isso me dará tempo para pensar
If I had the chance
Se eu tivesse a oportunidade
I'd ask the world to dance
Eu convidaria o mundo para dançar
And I'll be dancing with myself, oh, oh
E estarei dançando comigo mesmo, oh, oh”
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Finalmente tinha chegado a noite da festa à fantasia. Peguei o telefone e liguei para cada um
da turma. Queria saber se já tinham ido, pois não tínhamos combinado nada a respeito de
irmos juntos e tal.

O Joca estava com a conta de telefone atrasada, por isso cortaram sua linha. Só depois de
tentar três vezes, eu me lembrei disso. Na casa do Caio só dava ocupado, até que a mãe dele,
Dona Sandra, atendeu e me disse que o magnata já tinha ido para o colégio com o Joca.
Depois de eu ter insistido cinco vezes, Melissa finalmente atendeu. Raivosa, por sinal.

— Até parece que você não me conhece, Beto! Fica fazendo esse telefone tocar bem na hora
da minha novela! Eu e minha vó estamos aqui numa apreensão só... — Ela falava da novela
“TOP MODEL” que era um grande sucesso no país inteiro. Lembro como se fosse hoje da
repercussão e dos comentários no intervalo do colégio sobre as cenas da Malu Mader e da
Família Kundera. Anos antes, Mel tinha viciado em outra novela, “A Gata Comeu”.

— Calma, Mel, é só uma novela. — Nunca diga isso para uma pessoa noveleira.

— Garoto, diz logo o que você quer ou deixa pra festa, porque o intervalo tá no fim e o
próximo bloco promete!

— Era só pra saber se você já tinha ido pra lá, mas já que ainda está em casa pensei em te
oferecer uma carona...

— Não… Você vai é com a Lana, não é? Ela que é o seu par… Eu nem isso arranjei, então
nos vemos na Halloween Party School! Começou a novela aqui, socorro! Beijinho!

Mel nem pôs o telefone direito de volta no gancho e eu me permiti ouvir um pouco da sua
euforia junto de Dona Cida. Elas torciam pelo casal como eu torcia pros vilões dos slasher
movies matarem todos os protagonistas burros. Então eu decidi me arrumar.

Depois de devidamente trajado como o próprio Drácula, eu estava me sentindo o Christopher


Lee com o cabelo mais topado de gel que o Bela Lugosi. Caprichei na maquiagem, digo,
tentei né? Saí do quarto em direção à sala, onde Mônica e Théo viam televisão. O capetinha
adorou minha fantasia, mas antes disso, levou um mini susto.

— Nossa, mas se isso fosse num filme eu ia adorar levar uma mordidinha no pescoço, viu,
seu moço? Digo, seu morcego... — Mônica e eu agora estávamos mais próximos e ela se
sentia à vontade pra fazer essas piadinhas.

— Não seja por isso, quando eu voltar te espero na minha cripta. Você não vai sair pra
algum lugar mais tarde?

— Ah, bem que eu queria. Mas, tenho um monte de conta pra pagar e como hoje seu pai me
ofereceu um extra pra dormir aqui, aceitei na hora. Boa festa! Curte lá por mim...
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— Te trago um “ponche” se eu lembrar... E você Théo, vê se não dá trabalho pra Mônica


cara...

— A gente se entende, morcegão. — Théo respondeu sem tirar os olhos da TV, com medinho
de me encarar de novo. Devia ser por causa do trauma no programa do Sérgio Mallandro.

Liguei para o táxi e ele chegou por volta de uns quinze minutos. Fomos direto buscar Lana
em seu castelo. No caminho eu só pensava em qual seria sua fantasia misteriosa. Com
certeza algo que combinasse com a personalidade dela. Chegando na “residência real”, mal
toquei a campainha e o pai de Lana me atendeu pelo interfone.

— Namoradinho da Lana? — A voz interfonada soava como um transformer debochado.

— Sim, sou eu. Vim buscar sua filha pra festa da escola.

— Lana já foi com as amigas dela. Disse que ia se fantasiar no colégio e vocês se
encontrariam lá. E também mandou desculpas por não te avisar.

Antes que eu pudesse esboçar qualquer reação, o “sogrinho” desligou o interfone. Sempre
muito simpático e receptivo, ele. “Lana foi sem mim?”. Fiquei confuso e inerte por alguns
segundos.

— E aí, cara? — O taxista me interrogou, impaciente — Vai ficar por aqui mesmo?

Entrei no táxi novamente e dei o endereço do meu colégio. Eu me sentia estranho, mesmo
que Lana só quisesse terminar de se arrumar na escola, porque ela não me telefonou
avisando?

“Ah, mas foi de última hora”. Vai saber o que deve ter acontecido, não é mesmo? Mas poxa,
todo mundo ia me perguntar o porquê de não termos chegado juntos e tal. Porém, mesmo que
eu criasse a mais mirabolante das desculpas, seria em vão, pois ela já estava lá e o melhor a
fazer era chegar logo à escola e encontrar Lana para assim curtirmos a festa juntos como
planejado.

“Sweet dreams are made of this


Doces sonhos são feitos disso
Who am I to disagree?
Quem sou eu para discordar?
I've traveled the world and the seven seas
Eu viajei pelo mundo e pelos sete mares
Everybody's looking for something
Todo mundo está à procura de algo”
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Finalmente cheguei ao colégio. Cara estava tudo tão bem transado! A decoração chocante!
Desde a entrada até o interior ornamentado nos mínimos detalhes.

O portão de entrada virou um muro rústico cheio de olhos observadores. O Pedrão, vigia do
portão frontal, estava trajado de médico macabro, com um jaleco todo ensaguentado. No
corredor de entrada, muita gente que não era aluno do colégio pagando pra entrar.

A fila dos alunos andava depressa, todos queriam curtir “a festa do ano” ainda mais quem
tinha botado a mão na massa pra organizar. Não ajudei manualmente, mas doei cinco litros
de Coca-Cola, já que as bebidas alcoólicas estavam proibidas, contudo isso só no papel
mesmo, porque na hora do “vamo ver” muita gente entrou com birita escondida. Caio,
obviamente, foi um deles.

No corredor das salas de aula tinham muitas aranhas, cobras e outros bichos peçonhentos de
borracha. Eu fiquei impressionado no quanto a direção do nosso colégio — sempre tão mão
de vaca — havia investido pesado naquela festa. Pouco tempo depois de ter chegado,
encontrei Caio e Joca.

— Cara, cê demorou pra cacete! Se perdeu da Transilvânia pra cá? — Caio me recepcionou
esquentadinho como sempre. Ele estava fantasiado de Batman.

— Foi mal, galera, é que pintou um imprevisto aí — justifiquei.

— Mas não dava pra avisar, pô? A Mel a gente sabe que não sai de casa antes da novela dela,
mas você... — Joca estava fantasiado de Charada, o vilão estrategista de Gotham City,
usando um conjunto verde adornado de pontos de interrogação e o cabelo inteiramente
tingido de laranja.

— Pois é. Eu vim de carro hoje. Teria te buscado em casa… — lembrou-me Caio.

— Mas o importante é que eu já cheguei, galera. E, cara, tia Neuza mandou muito nessas
fantasias!

Nós quatro havíamos encomendado nossos trajes de halloween com Dona Neuza, mãe do
Joca, que era costureira de mão cheia.

— Mamãe arrasa demais! — ele disse todo convencido — E agora que eu reparei, vocês
dois estão competindo pra ver quem faz o melhor Capitão Caverna? Vamo combinar nossa
próxima “sessão katana”, hein! — Joca adorava cortar cabelos. Ele aprendeu com um
barbeiro da sua rua e era o nosso hair stylist particular. Assim, juntava dinheiro para
futuramente montar sua própria barbearia. Ele sempre dizia que seria o “samurai black do
haircut”.

— Sim, cara. Foi por isso também que eu melequei o cabelo de tanto gel. Ele cresce muito
rápido, aí fica todo desalinhado — afirmei conferindo se o gel já havia endurecido.
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— Ah, Joca, nem sei. Tô querendo deixar meu mullet maior, experimentar — Caio alegou
analisando a cabeleira.

— Mudando de assunto rapidão: vocês viram a Lana por aqui? — Minha ansiedade era de
corroer o estômago.

— Eu não... — Caio e Joca falaram juntos.

— Então, beleza. Vou dar um rolê e procurar por ela. Vocês ficam aí?

— Vai lá! A gente fica por aqui caso a Mel apareça. A novela já deve ter terminado a essa
hora. — Caio conferiu o seu “Bat relógio”.

Saí em busca de Lana. Enquanto eu segui pelos corredores, as pessoas pareciam me encarar
estranho, como se perguntassem com o olhar porque diabos eu não estava acompanhado da
abelha rainha. Eu me senti invadido e queria a todo custo me esconder, até que esbarrei com,
Josiane, nossa professora de Arte.

— Oi, desculpa, professora, beleza? Você viu a Lana?

— Sim, Beto, eu estava te procurando mesmo. Lana tá na sala de arte se arrumando com as
amigas. Ela pediu pra você esperar perto da entrada do ginásio.

— Mas, por que esse mistério todo? Tô esperando ela tem um tempão… Não posso entrar
pra ver ela?

— Acho melhor você fazer o que ela pediu. Vai valer a pena.

Quando a professora disse aquilo meu coração gelou, pois eu não sabia o que esperar. Queria
que fosse algo grandioso, sabia que seria, mas ao mesmo tempo eu tinha medo da exposição,
da responsabilidade de uma nova “posição social” na pirâmide no colégio; medo das
proporções que tudo aquilo poderia tomar. Porém, ainda assim eu queria pagar o preço de
viver um filme de amor por uma vez na vida.

Quando a gente é jovem acha que tudo é “uma única vez na vida”, queremos tudo na hora e
nos jogamos de cabeça sem medir as consequências. Sei que o melhor que eu fiz foi mesmo
esperar Lana perto do ginásio. Os meninos também foram pra lá.

Enquanto eu tinha ido atrás da minha musa, Mel havia chegado e estava deslumbrante, toda
paramentada como Diana de “A Caverna do Dragão”, com direito ao bastão e tudo.

— Menino, cê acredita que deixaram essa fantasia lá em casa? Beto, depois que a gente se
falou pelo telefone, minha avó percebeu que ele estava fora do gancho. Aí na mesma hora
que ela o colocou de volta, o danado tocou! Era uma voz estranha, parecia um gravador,
dizendo que queria me ver na festa usando a fantasia.
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— Parece que alguém tem um admirador secreto…— eu falei puxando uma zoeira.

— Pois esse não entende nada de romantismo. Só veio com um bilhete dizendo “Espero que
goste. Faça bom uso”. Alguém avisa que esse correio nada elegante é só em festa junina?

Nós quatro caímos na risada.

— Eu podia nem ter usado hoje pra não dar gosto, porque com certeza a pessoa que me
mandou está aqui sim! Só preciso identificar quem é.

— Cê só veio depois da novela mesmo, hein? — Disse Caio enquanto distribuía balinhas de
menta pra gente.

— E eu perco? Querido, hoje foi babado! Depois te conto...

Ah, não disse isso pra vocês, mas o Caio tinha uma peculiaridade. Quando criança seu avô
materno lhe contava muitas histórias e depois que ele morreu, meu amigo ficou bem mal.
Não gostava muito de ver televisão. O negócio dele era imaginar. Mas, um dia de bobeira,
zapeou os canais da TV e se apaixonou quando viu um trecho da novela TOP MODEL.
Como seu pai era um machista de marca maior, não o deixava assistir. Quase todos os dias,
Melissa o mantinha informado da história. Era o passatempo dos dois. Ela contava e se sentia
como a escritora que revive seus romances favoritos e ele imaginava tudo como numa das
histórias que seu avô lhe contava. A única personagem que ele não idealizou foi a
protagonista… Também pudera! Quase impossível em 1989 um adolescente não saber quem
era Malu Mader. Então a “Duda” ele já imaginou como a linda moça de sobrancelhas
grossas.

“Já desesperado parecia que era o fim


Nunca encontraria a garota de Berlim
De repente então ela me apareceu
Foi num piscar de olhos, não sei como aconteceu
Fiquei ali parado, ela então se aproximou
Olhou bem nos meus olhos e pra mim assim falou
Sex, sex, sex
And fire”

O ginásio finalmente foi liberado pela galera da organização e nós quase fomos pisoteados na
entrada. Caio aproveitou a confusão para nos dar alguns goles de uma bebida bem forte que
até hoje eu não sei qual era. Ele a escondia por dentro do cinto de utilidades da fantasia de
Batman. Era doce, porém forte e me deu uma aliviada na tensão.

— Galera, podem ir, eu fico aqui esperando a Lana. — Eu não podia sair de onde ela me
pediu para ficar.
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— Claro que eu vou, imagina se vou perder de assistir num enquadramento perfeito a entrada
triunfal de vocês dois. —Mel parecia mais ansiosa do que eu.

A turma foi pro ginásio e eu fiquei jantando as unhas, até que depois de uns vinte eternos
minutos, Lana resolveu aparecer.

Mal pude acreditar quando eu a vi… Era uma aparição, como se algo de surreal a rondasse
naquela noite. Tive que me segurar de tão surpreso que fiquei. Não dava para acreditar
naquela VISÃO. Aquela garota na minha frente não podia ser real.

FITA 12: 31 de outubro - 20h00 da noite

Por cima da fantasia, Lana usava um roupão bege e caminhava em câmera lenta em minha
direção. Ok, era minha imaginação, mas enfim, pra variar eu serei redundante em dizer que
ela estava divinamente gata.

— E aí, gato, preparado? — ela me perguntou isso com um tom de voz incomum.

— Acho que sim… Você tá… Tá uma deusa!

— E você irresistivelmente vampiresco... — Nos aproximamos e o beijo foi inevitável. As


amigas dela, as quais eu continuo sem lembrar o nome, deram risadinhas. Pelo hálito ela já
tinha bebido algo forte. Depois do beijo ela pegou meu braço e cruzou no dela. — Vamos?

Chegou o momento. Eu finalmente ia experimentar a sensação de como é ser popular. Foi


como se um outro Beto roubasse o meu lugar e tudo que eu achava que conhecia estivesse
prestes a sumir assim como o chão onde eu pisava com as pernas bambas. Eu me recordo até
da cara dos professores, todos admirados e por um momento me perguntei sobre o que eles
fofocavam.

But why do I always feel


Mas por que eu sempre sinto
Like I'm in The Twilight Zone? And
Como se eu estivesse no Além da Imaginação? E
(I always feel like somebody's watching me)
(Eu sempre sinto como se alguém estivesse me observando)
And I have no privacy, oh
E não tenho nenhuma privacidade, oh
(I always feel like somebody's watching me)
(Eu sempre sinto como se alguém estivesse me observando)
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Tell me, is it just a dream?”


Me diga, isto é apenas um sonho?

Lana sorria como uma miss, eu tentava não encarar as pessoas diretamente desviando o olhar
para ela, que, ao contrário, retribuía todos os olhares como a Abelha Rainha perante seus
operários. Algumas pessoas abriam espaço pra gente passar como um corredor humano. Eu
definitivamente não estava nem um pouco à vontade naquela situação. Deu pra ver de longe
a cara da turma, eles estavam se divertindo. Mas ver a cara de ódio do Guto não teve preço.
Assim como eu, todos certamente estavam curiosos sobre a fantasia que Lana escondia
debaixo do roupão. Paramos no meio do salão e Lana disse em meu ouvido:

— Tira meu roupão agora!

Obedeci sem pestanejar e quase enfartei junto com o resto dos marmanjos. Lana estava
vestida de fada, mas não era uma Sininho da vida. Ela realmente levou a sério a competição
feminina de surpreender no look. Na verdade aquilo era mais uma lingerie rosa bebê
customizada: espartilho, meias, cinta liga, salto alto e asinhas purpurinadas. Imagina aquela
“fada safada” te visitando à noite em troca de um dente? Sei bem qual seria a recompensa!
Depois disso tudo alguém percebeu que até o DJ tinha parado de tocar e berrou: “Ei, DJ,
parou por quê?!” fazendo-o voltar a comandar a mesa de som. A galera não sabia se dançava
ou continuava “secando” nós dois.

“We're talking away


Estamos jogando conversa fora
I don't know what I'm to say
Eu não sei o que vou dizer
I'll say it anyway
Eu direi mesmo assim
Today's another day to find you
Hoje é outro dia para te encontrar
Shying away
Me evitando
I'll be coming for your love, okay?
Eu voltarei para buscar o seu amor, tá bom?
Take on me (take on me)
Me dê uma chance (me dê uma chance)
I'll be gone
Eu irei embora
In a day or two
Em um dia ou dois”
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Mais uma vez aquela “magia” aconteceu. Ao som de “take on me” da banda A-Ha, nós
dançamos juntos e eu esqueci completamente das pessoas em volta. De repente, foi como se
Lana e eu estivéssemos no videoclipe da música, como desenhos animados. Emendamos uma
música atrás da outra e a galera acompanhava os passos da dança numa divertida sincronia.
Não houve tempo nem pra um beijo, ela só queria balançar aquele corpo o mais
freneticamente possível. Toda vez que eu iria beijá-la, Lana dava um perdido nos meus
lábios. Até que ela me deu um selinho inesperado, mas bem de leve.

Lana apenas me atiçava, me provocava. Às vezes dava a impressão de estar procurando por
alguém, mas logo voltava seu olhar ao meu e dava aquele sorriso. Ficou um bom tempo
assim, até que me agarrou pela mão e fomos pra arquibancada.

— Vamos curtir um pouco sentados? Meus pés pedem socorro! Sabia que esse salto ainda ia
me matar. — Ela foi tirando as sandálias gladiadoras de salto alto transparente.

— Eu tiro pra você. — Eu me ofereci como um perfeito cavalheiro.

— Ah, Beto, você é mesmo um amorzinho, sabia? Eu gosto tanto de você…

Tirei suas sandálias delicadamente. Quando ela terminou essa frase, logo tasquei um beijo
sufocante e disparei:

— Acho que… eu te amo!

Lana retribuiu com um olhar sorridente.

— Que fofo! — Ela alisou meu rosto e me beijou a bochecha esquerda, como que
acarinhando um cão fiel. — Já que você está tão romântico, podia pegar uma bebida pra
gente, né? Vai lá, gatinho...

Fui todo feliz e obediente, feito um labrador. Estava indo pegar bebida pra menina mais gata
do colégio, numa festa com a social inteira, e ESSA MENINA MAIS GATA DO COLÉGIO
ERA MINHA NAMORADA! Claro que era! Não podia ser outra coisa. Me responde qual o
adolescente não pensa nisso mesmo hoje em dia? Adolescente é tudo igual, seja nos anos
oitenta ou na era digital.

O olhar de aprovação e admiração das pessoas foi algo que me marcou muito. É sempre
assim, quando você vive ou faz algo que a maioria gostaria, das duas uma: você é inspiração
ou invejado. Senti um misto das duas coisas, não só pelos olhares dos meninos, mas também
pelas fofocas da rádio corredor da escola. Esse aprendizado eu levei pra vida: no ostracismo
ou nos holofotes haverão comentaristas especializados na sua vida. Lide com isso!

Peguei dois ponches não batizados. Eu tinha planos “maliciosos” para aquela grande noite,
não queria nos embebedar logo de cara. Quando voltei, Lana estava com suas amigas toda
sorridente e terminando de virar uma pequena taça de algo parecido com caipirinha. Os
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alunos quebraram todas as regras quanto à entrada de bebida alcoólica no colégio, toda
supervisão dos professores foi totalmente ignorada, visto que jovens de outras escolas
também estavam lá. Confesso que nem dava pra sentir tanta pressão deles em cima da gente,
parecia que os próprios queriam se misturar e esquecer dos estresses de sua profissão por
pelo menos uma noite.

Antes de nossa entrada triunfal, Lana estava meio esquisita, seu hálito com toque alcoólico
não deixava dúvidas de que ela já havia bebido algo forte. Achei que era pra criar coragem
de encarar a multidão de curiosos, afinal aquela era a primeira vez que andamos de mãos
dadas na frente de todos.

— Lana, aqui, trouxe ponche pra gente.

— Ponche? — As amigas dela riram. — Tem álcool? — Ela nem me deixou responder. —
Não importa, hoje eu quero tudo! Brinda comigo...

Não deu pra entender direito pelo que brindamos, mas ela tomou o ponche todo de uma vez
só. Ainda parecia procurar alguém. Pegou uma taça grande de uma das amigas e me puxou
pela mão. Eu ainda terminava o ponche de cidra e pedaços de maçã. Ela só queria beber e
dançar, nada de papo. Eu sinceramente achava que tudo naquela noite seria pra lá de
romântico.

Que nada! Até aquele momento, foi só diversão e exibição. Honestamente eu teria me
divertido mais com meus amigos. Estava começando a me entediar, mas não podia
demonstrar nem mesmo pra mim, afinal de contas, a noite também era dela, eu não tinha o
direito de estragar nosso momento.

Lana mesmo estranha conservava seu brilho e aquilo de alguma forma ainda me hipnotizava.
Eu achava suas atitudes esquisitas e isso, na minha cabeça, talvez fizesse parte do seu jogo.
Toda hora que alguém passava com uma garrafa ela não perdia a oportunidade de abastecer
sua taça.

— Gata, é melhor ir com mais calma. A festa acabou de começar. — Eu disse abaixando seu
braço e impedindo que ela chamasse um carinha que estava servindo vodka.

— Qual é, Beto? Tá com medo de quê? A noite é nossa baby! — Ela respondeu levemente
alterada. — Dança comigo, gostoso!

“Get into the groove


Entre na onda
Boy, you've got to prove
Garoto, você precisa provar
Your love to me, yeah
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Seu amor para mim, sim


Get up on your feet, yeah
Fique de pé
Step to the beat
Sim, siga o ritmo
Boy, what will it be?
Garoto, o que vai ser?

Tocou “Into the groove” da Madonna e pronto, ela foi à loucura! Se esfregava em mim de um
jeito quase obsceno. Lana estava fora de si. No começo eu fiquei sem graça, sem saber o que
fazer, mas quando avistei novamente a cara mal acabada do Guto nos assistindo, eu soube
direitinho como encarnar o performer sensual, um verdadeiro GoGo Boy de quadril duro
igual uma vassoura. Deve ter sido no mínimo curioso ver o Drácula sarrando com a fada
carioca ao som da rainha do pop.

Eu me passei! A gata era minha e Guto tinha que engolir. Lana já estava bêbada, do tipo que
levanta o copo com uma mão e desce até o chão deslizando a outra mão pelo meu corpo.
Sim, ela fez isso e muito mais. Falou besteiras, mordeu minha orelha e deu tapas no meu
traseiro. Quando a música acabou, me virei de costas e avistei Mel e Joca se acabando de rir
fazendo gestos de aprovação. Nessa fração de segundo, me virei de volta e Lana terminava o
copinho de outra bebida que não consegui identificar.

— Lana, você não tá legal… — eu tentava colar o corpo dela ao meu, no ritmo da música
lenta que agora tocava, na intenção de acalmá-la.

— Ih, o que é que foi, hein?! Virou meu pai agora? — Lana se desvencilhou do meu abraço,
mas continuava segurando minha mão e olhando ao redor como quem procurava alguém —
Cadê o Betinho bonzinho?

— Você só precisa se sentar um pouco, vem — eu disse tentando levá-la para a


arquibancada.

— Sai fora! Senta você. Eu quero é me acabar! — Ela deu uma gargalhada e gesticulando
com a mão esquerda, chamou suas escudeiras, que prontamente chegaram — Eu vou ao
banheiro. Fica aí que eu volto já, pra gente dançar mais.

Bêbada, Lana e suas amigas sumiram de vista!

— Levou um toco, Conde Frácula?— Debochado, Guto me encarava passando a mão


naquele cabelo oleoso. Ele não estava fantasiado. Parece até que sabia da sua condição
natural de assombração.
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— Cê tá pancada, né? O toco é todo teu, cara… — Dessa vez, Guto não me intimidou. Eu
não tinha tantos músculos feito ele, mas não teria medo de brigar. Sempre achei que é melhor
apanhar do que fugir. Pelo menos um soco eu daria.

— Não foi o que pareceu. Eu acho melhor tu se ligar, mané, se não vai ficar sem a gata…

— Inveja é foda, mermão. Vai procurar tua turma!

Guto me deu um tapa forte no ombro direito e saiu rindo ainda mais debochado. Ele estava
muito alegrinho, diferente de sua costumeira carranca. Parecia saber de algo.

Lana já estava demorando muito para voltar. Ficar sozinho ali na pista pouco a pouco
tornava-se constrangedor. As pessoas já começavam a me olhar como um noivo abandonado
no altar. Decidi ir ao banheiro feminino mais próximo, perguntei para algumas garotas sobre
a fada. “Ela não está aqui” era a resposta padrão. Continuei minha busca por Lana.
Impossível! Ela não estava em lugar nenhum. Nem mesmo os professores, que deveriam
estar vigiando, tinham visto sequer seu vulto rosa. Saí do ginásio, fui pro labirinto de TNT
preto e havia todo tipo de gente se pegando, até me surpreendi com algumas “revelações”,
mas nada de Lana. Entrei em todas as salas de aula que estavam abertas, vi coisas que não
podem ser “desvistas”, mas nada da gata. Eu estava extremamente frustrado e preocupado.
Fantasiava que dali a pouco estaríamos num lugar mais reservado, desfrutando intimidades
como jovens que éramos, aproveitando a juventude e experimentando coisas “novas”. De
repente, tive um insight. Resolvi voltar pro ginásio e focar minha procura na área para onde
Lana tanto concentrava seus penetrantes olhos verdes.

A turma estava lá, digo, só Mel e Joca dançando juntos. Não queria preocupá-los, mas
precisava de ajuda na operação “Procura-se Lana desesperadamente”.

— Aí sim, hein? Gostei de ver! Até que vocês combinam mesmo. — Eu disse batendo
palma de leve.

— Não vai pensar besteira, Beto! — Melissa disse corada de vergonha, desvencilhando-se de
Joca.

— Ah é, morena? Vai desfazendo desse negão aqui, vai… — Joca estava visivelmente
contente por dançar com a Mel.

— E cadê o justiceiro de Gotham City? — senti falta do Caio, afinal, ele gostava de sempre
ficar perto da gente nas festas.

— Caio saiu dizendo que ia no banheiro rapidinho, mas isso faz um tempo. Ele já tava meio
“altinho” — Mel informou.

— Quer que eu te ajude a procurar por ele? — Joca estava bastante suado.
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— Não, cara, eu tô mesmo é atrás da Lana. Ela sumiu de mim e ainda por cima já tá
totalmente bêbada. Não sabia que ela era fraca assim pro álcool.

— Oh my god! Pois, trate de achá-la logo, rapazinho! Uma beldade daquelas bêbada e solta
sozinha nesse colégio, pode não acabar bem… Quer nossa ajuda?

— “Nossa”?! — Joca não aprecia estar disposto.

— Valeu, gente. Na verdade eu só queria avisar vocês, caso a vissem pra darem um jeito de
me avisar… — Na verdade, eu queria sim a ajuda deles, mas não podia estragar a noite dos
meus amigos com meu problema.

— Nada disso! Eu e Joca vamos te ajudar a achar a Miss Sumiço e aproveitamos para
encontrar o Caio também – disse Mel se desvencilhando de Joca.

— Então tá, a gente vai, né… — Coitado! Joca só queria curtir e, pelo que vi, ele se entendia
muito bem com Melissa antes de eu chegar.

Não localizamos Lana ou Caio. A festa estava mais animada do que o esperado. Muita gente
até de outros colégios pagando pra entrar. De repente a música parou e o diretor, Marco
Aurélio, trajado de Don Corleone, assumiu o microfone. Um pessoal de fora tentou puxar
vaia, mas nós, seus alunos, calamos os “forasteiros” de outros colégios. Afinal, Marco
Aurélio fazia o tipo “amigo da galera”, isso não apenas conquistou os alunos de sua
intituição, mas também o tornou respeitado até na Secretaria de educação do Rio de Janeiro.

— Caros alunos, hoje serei breve. Só quero dizer o quanto estou feliz pelo sucesso dessa
festa, pelo empenho de vocês em arrecadar dinheiro para os times de futebol e volêi do
colégio, além, é claro, da formatura de vocês. Isso me enche de orgulho verdadeiramente.
Essa noite é de vocês. Aproveitem!

A fantasia de “poderoso chefão” estava meio folgada em seu corpo magrelo. Ele realmente
foi breve, estava emocionado. Logo após, Maurício, o líder do grêmio estudantil, assumiu o
microfone e proclamou:

— É galera, agora chegou o grande momento! Vamos anunciar o Rei e a Rainha da festa,
depois os prêmios de melhor fantasia masculino e feminino!

Agora sim a festa se pareceu de fato como aquelas dos filmes high school norte-americanos.
Parecia o Maracanã lotado em dia de jogo do Flamengo! Nossa senhora, como gritavam! Só
faltou fazer o “olé”. Era uma noite gloriosa. Eu e os meninos até paramos um pouco de
procurar Lana e Caio por causa disso. O ginásio era grande e de qualquer forma Lana parecia
não querer ser encontrada facilmente. Avistei Caio de relance, estava do outro lado do
ginásio, pegando um ponche e comendo algo. Não dava pra ir lá. Eu tinha que decidir minhas
prioridades naquele momento. Optei por Lana. Mel e Joca estavam comigo, mas de olho na
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premiação. Saí sem avisar. Dei a volta no ginásio inteiro e nada de Lana. Caio também não
estava mais na mesa de comes e bebes.

— Vamos primeiro ao Rei e Rainha da festa!

Do nada uma luz me cegou tão forte que me deixou tonto e quase desmaio. A galera estava
fervendo, gritavam meu nome, me empurravam.

— Beto do 3º ano B, vem pro palco! Você é o nosso Rei da festa!

A voz de Maurício ecoava misturada com o barulho da multidão e com o agudo da leve
microfonia. Algumas pessoas me parabenizaram ao longo do percurso até o palco. Eu estava
longe, mas cheguei. Uns professores e outros adultos que eu não sabia quem eram apertaram
minha mão, até eu chegar à mesa do DJ! De cima do palco dava pra ver Melissa e Joca me
aplaudindo, sorridentes. Meu coração não acelerou, parecia mesmo é que ia parar. Estava por
fora desses pormenores da festa. Não fazia ideia de que haveria essa premiação.

— O que você tem a dizer hoje sobre ter ganhado esse prêmio por voto popular? — Maurício
estava adorando seu momento Gugu Liberato, fantasiado de Stallone em Rambo.

Eu não sabia o que dizer, tanto que não disse nada. Tentei apenas dar as costas e sair, mas
não houve jeito. Passavam mil coisas pela minha cabeça. Daqui a pouco chamariam Lana
com certeza, já que ela era a rainha de toda festa que ia! E onde estaria ela? O que eu
responderia? Que pesadelo! Que vergonha! Maurício enrolou dizendo algumas abobrinhas
para manter o suspense. Eu não disse nada. Deu “tilt” no meu cérebro. Era uma enxurrada de
pensamentos que eu não conseguia organizar, num brainstorming desesperador. Apenas sorri
como um rei despreparado assumindo seu posto de realeza estudantil da futilidade
adolescente.

— Pois bem, senhoras e senhores. E a rainha da festa é...?!?!?!

O suspense era como uma nuvem de fumaça que cobria todo o ginásio. É incrível como as
pessoas dão importância à títulos. Naquele dia a certeza era que a Rainha da porra toda seria
coroada de fato e de direito. Professores na lateral do fundo do palco já seguravam faixas,
coroas, flores e um cetro, para nos deixar ainda mais fantasiados.

— Nossa rainha da noite é a fada mais linda do mundo. Lana Martins!

Lembra que eu falei da galera vibrando como o Maracanã lotado em dia de jogo do
Flamengo? Imagina isso agora dez vezes mais. Pois é. Na minha cabeça veio um único
pensamento positivo: pelo menos agora ela vai aparecer... Eu acho. Todos a procuravam pelo
ginásio. Já tinham se passado uns três minutos de aplauso, gritaria, pula-pula e nada dela
aparecer. O cara da iluminação teve a brilhante ideia de usar o holofote para tentar
encontrá-la.
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— Ela tá ali em cima, à sua esquerda!

Alguém berrou e o holofote foi certeiro. “Ainda bem que acharam essa louca”, pensei.

Talvez fosse minha imaginação, mas a reação da galera indicava que infelizmente não era.
Lana, a fada safada, beijava outro cara. Deram-se conta de que estavam sendo observados, a
luz do holofote os incomodava. O alvo dos lábios de Lana era o Batman. O pessoal foi
unânime nas expressões de surpresa, nos risinhos, deboches e também nas manifestações de
piedade. Naquele momento eu só desejava que fosse outro cara fantasiado de
homem-morcego. Mas era Caio, ele mesmo.

E naquele momento o chão desapareceu sob meus pés. Não havia mundo para mim e os
segundos duraram uma eternidade. Ainda que os dois, Lana e Caio, tenham se separado logo
que foram flagrados, aquela cena dos dois se beijando ficaria gravada em minhas retinas para
sempre.

FITA 13: 31 de outubro - 21h30 da noite

“I did my best, but I guess my best wasn't good enough


Eu fiz o meu melhor, mas acho que o meu melhor não foi o suficiente
'Cause here we are back where we were before
Porque estamos aqui de volta onde estava antes
Seems nothing ever changes
Parece que nada muda
We're back to being strangers
Voltamos a ser desconhecidos”

Meu estômago revirou, as tripas deram um nó e o coração finalmente acelerou. Apesar disso
tudo, eu tomei posse novamente da sanidade mental que por instantes havia me abandonado.
Estava aceso como o Tocha-Humana, vermelho de decepção e raiva.

Por que? Motivos…não havia um que me convencesse. Eu era um completo idiota e na


frente de toda aquela gente. Me retirei do palco e abri caminho pela multidão como um trator.
Tirei da mão de alguém a primeira garrafa que me parecesse álcool e saí entornando-a. Onde
estava o Beto? Não sei. Aquele não era eu, ou talvez fosse. Às vezes precisamos passar por
alguma situação extrema para conhecermos o monstro interior que todos nós carregamos.
Esse monstro nunca é racional, ele é impulsivo, cheio de ódio, frustrações, mágoas e até
traumas irreparáveis. Na maioria das vezes é libertado durante alguma situação de desespero,
decepção e humilhação. Nascemos em sua companhia e aprender a lidar com ele pode evitar
um processo chamado “autodestruição”.
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É claro que toda essa minha maturidade é de agora. Quando se é jovem temos dificuldade em
entender tudo isso… Porra, não entendemos nem nós mesmos. Mas, não pense que ficar mais
velho te dá alguma vantagem em saber lidar com todas essas emoções que compõem seu
Megazord autodestruidor. Na verdade, tudo fica é mais difícil, contudo suas experiências em
ser feito de trouxa te ajudam a superar da melhor forma, extrair algum aprendizado daquilo,
de maneira que você não saia tão machucado. Algumas vezes esse diploma de “trouxisse”
que todos vamos adquirindo ao longo da vida, pode te ajudar a prever alguma ocorrência que
não seja tão favorável. Daí você recua, reflete e não se atira cegamente no vale da decepção.
Óbvio que nem toda vez funciona ou você usa esse artifício, mas...

Voltando ao que interessa, eu nem sabia pra onde ir. Enquanto eu saía do colégio, ainda
escutei algumas pessoas dizendo coisas do tipo “Eu sabia que não ia durar!”, “Eu sabia que
não era verdade!”, “O Caio combina muito mais com a Lana!”. Foi duro aguentar toda
aquela humilhação. Andei pelas ruas meio louco, atravessei algumas sem olhar o trânsito, até
que avistei um táxi e lhe fiz um sinal. Quando entrei, meu primeiro pensamento foi a praia do
Arpoador. Era um dos meus lugares favoritos da vida. Me trazia bem estar, lembranças com
os amigos. O problema foi lembrar de que Caio fazia parte dos meus “amigos” e esteve
presente em todos os momentos bacanas que passamos naquelas areias. Mas era lá que eu
precisava afogar esses sentimentos.

A mágoa é realmente algo que não deveríamos sentir. Eu estava a ponto de chorar lágrimas
de sangue. Chegando no “Arpa”, algumas pessoas estranharam ver um jovem vestido de
vampiro descendo do táxi. O halloween nunca foi popular nos trópicos, mesmo numa capital
moderninha. Paguei o táxi e o dispensei. Eu estava cem por cento nem aí pra vida, pro futuro.
Eu só queria esquecer e ao mesmo tempo passar por cima de Lana e Caio com um trem
cargueiro de cem vagões. Achei que aquela garrafinha de álcool ia me embebedar, só que eu
estava mais sóbrio do que nunca, para meu azar.

Caminhando em direção ao mar, tirei o par de sapatos sociais caros e baguncei o penteado de
Bela Lugosi. A areia fina massageava meus pés como se quisesse me consolar. As ondas
pareciam sussurrar algo que eu não entendia. Fechei os olhos pra tentar sentir, ouvir algum
consolo vindo da natureza. Foi inútil.

— VAI SE FODER!!!

Gritar isso a plenos pulmões foi libertador. Comecei a chutar o mar num descarrego de raiva.
Da minha boca saíram os piores xingamentos possíveis, alguns eu até inventei. Meu
repertório de baixo calão era tão extenso que nem eu sabia. Num chute desses eu acabei
desequilibrando e caí na areia molhada. Lá permaneci, com as ondas indo e vindo, molhando
minhas costas. Passou pela minha cabeça a ideia de me atirar ao mar, felizmente minha
consciência sempre foi espertinha nessas situações de risco e não me deixou concretizar tal
feito. Naquele estado triste, eu parecia uma oferenda recusada por Iemanjá .
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— Por que, meu Deus? O que foi que eu fiz, pô?!

Essa é a pior parte. Quando você começa a transferir boa parte da responsabilidade do que
houve para suas costas. Foi como um mamute de culpa sentando em meus ombros. Será que
o defeito estava em mim? Naquele momento não levei em conta que Lana estava bêbada e
Caio também, segundo Mel havia me dito.

“Ela é só uma menina


E eu pagando pelos erros que eu nem sei se eu cometi
Ela é só uma menina
E eu deixando que ela faça o que bem quiser de mim
Se eu queria enlouquecer essa é a minha chance
É tudo que eu quis
Se eu queria enlouquecer
Esse é o romance ideal”

“Eu não era bom o suficiente pra ela? Por que então me fez de otário? Por isso é que ela
queria saber sobre meus amigos só pra eu falar dele e de como o admirava… Seu trouxa!
Você transferiu toda sua admiração por Caio para Lana e ela acabou se apaixonando por ele.
Ridículo! Ele não podia ter me traído. Sabe lá há quanto tempo já se pegavam escondido de
todos. Meus chifres devem ser estratosféricos!”.

Todos esses pensamentos eu exclamava em alto e bom som. As pessoas da praia devem ter
me achado um louco. Eu definitivamente não me importava e precisava digerir aquela
traição. O mar me ajudou a ficar um pouco mais calmo e em resposta, me atirou um forte
vento salino. Na verdade, foi como se uma forte rajada tivesse começado de repente, fazendo
minha capa de vampiro balançar com violência. E da mesma forma repentina que começou,
o vento parou. Eu me levantei lentamente, encarei os prédios que ladeavam a orla para lá da
outra ponta da faixa de areia. Perdido. Triste. Com o coração em frangalhos… Sem entender
o próprio mundo em que eu habitava. Sentindo pena de mim e raiva dos outros.

— Você também tá perdido, cara? — Uma voz doce e quase melodiosa me perguntou a
alguns passos de distância.

Ela era linda de uma forma incomum. Seus cabelos eram muito ruivos e dançavam conforme
o vento, que agora corria suave. Ela tinha uma pele pálida e olhos âmbar muito expressivos.
Fiquei extasiado com aquela visão. E por alguma razão eu senti que já a conhecia de algum
lugar, mesmo sabendo que nunca a havia visto na minha frente antes. Claro que a moça
estranhou toda aquela minha perícia ocular e ficou me encarando, entre confusa e assustada.

— De certa forma… — foi o que eu consegui responder, cheio de amargura.


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— Será que você poderia me ajudar um pouquinho? Só preciso me situar direito. Já perguntei
pra outras pessoas, mas ninguém soube me responder.

Só nesse instante, então, eu percebi que seus trajes eram exóticos. Diferentes. Acho que
tinham alguma coisa indiana naquele modo de se vestir…

— Eu preciso saber onde fica a Sorveteria Refresco! — ela me pediu, muito educada e
solene.

— Já ouvi meu pai falar desse lugar. Bom, moça, se não me engano você deve estar a uns dez
quarteirões dela. Mas, não é muito antigo isso? Nem sei se ainda existe.

— Deve estar lá sim. Obrigada! — Ela deu um sorriso e saiu correndo pela areia fofa
segurando nas mãos seu par de sapatos.

— Boa sorte! — eu gritei, mas ela não ouviu. Voltei para minha dolorida inércia e nela
fiquei ainda por algum tempo. Até que eu resolvi me levantar e ir pra casa.

*****************

“Plunct Plact Zum


Pode partir sem problema algum
Plunct Plact Zum
Pode partir sem problema algum
Boa viagem”

Olá, viajantes! Estão curtindo a jornada? Carimbador Maluco aqui novamente para avisar que
essa noite alucinante está apenas começando, como a mais empolgante das aeróbicas. Então,
como vocês puderam acompanhar, a fita K7 da minha vida deu uma mega “engasgada”. E
agora? Como resolver essa situação? A gente troca a fita!
Preparados para as próximas canções? Espero que sim, pois na segunda parte dessa aventura,
vamos descobrir que a noite é uma criança e a madrugada é um jovem adolescente cheio de
vontades e hormônios inconsequentes, doido para dar um "beijo no capeta".

Desce uma dose de música, dança e um duplo de violência básica. Quer mais? Pois traz
também um shot do outro mundo! Só assim Beto pode curar sua ressaca de desilusão,
aprontando "altas confusões"! Dá a partida no DeLorean novamente, aquece esse motor, troca
a fita e desce o play!

*************

FITA 14: 31 de outubro - 22h00 da noite


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“Eu nunca tinha pensado sobre a morte antes e ter aquela arma apontada bem na minha
cara me fez ver a vida passar num segundo como um filme, na minha tela mental.
Provavelmente, eu seria apagado ali como mais um ser humano “descartável” de tantos que
são desovados nas valas metropolitanas que apareciam nos jornais. A impotência me
acertou em cheio. Estava cara a cara com a face oculta da cidade maravilhosa. Foi quando
o estouro da arma de fogo ecoou, seguido de um silêncio fatal.”

**********************

Tomei outro táxi e fui para casa na esperança de dormir e acordar no outro dia livre daquele
pesadelo. Certamente contaria com a ajuda de uma ou duas pílulas calmantes do papai.
Chegando em casa logo percebi que Mônica já havia colocado meu irmãozinho pra dormir,
pois não havia mais ninguém na sala nem barulhos de nada. O mundo estava em paz. Fui
direto pra cozinha e ataquei uns brigadeiros que Mônica havia feito para Théo. Cata essa
dica: depois ou durante o ato de chorar após alguma decepção, lembre-se do velho amigo
chocolate, ele vai entender você como poucos.

Subi para o quarto. Tirei aquela fantasia que só serviu para deixar tudo mais ridículo: Só de
cueca e com a maquiagem de vampiro, eu me sentei no chão próximo ao canto onde ficava
meu telescópio. Olhei as estrelas, parecia que ninguém da constelação mais próxima queria
papo comigo. Eu era a vergonha do mundo. Não por ter me iludido amorosamente, mas pela
forma dolorosa de ter descoberto isso. Peguei meu walkman e coloquei uma fita com a
etiqueta “músicas de bode”.

“Hey Jude, não fique assim


Sabe a vida ainda é bela
Esqueça de tudo que aconteceu
Amanhã será um novo dia
Hey Jude, pra que chorar
Por alguém que não te ama?
Se o mundo agora te faz sofrer
Tudo vai passar você vai ver
Muita coisa vai fazer você mudar
Não tem mais razão de ser essa tristeza
Se alguém te faz sofrer, pra que lembrar?
Mais vale tentar viver de esperança”
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Ah, Kiko Zambianchi, será que havia mesmo algum consolo para o meu judiado coração?
Traído pela suposta “namorada” popular e pelo melhor amigo, bem na frente de todo o
colégio. Tem coisa pior que isso para um jovem de dezessete anos? Não mesmo. Eu
precisava fazer algo, sumir, desaparecer. Nenhuma ideia me passava pela cabeça a não ser a
de passar o resto da minha vida trancafiado no quarto relembrando amargamente o
constrangimento público. Descobri da pior maneira, que a vida não é um filme do John
Hughes ou uma comédia romântica dirigida pelo Jorge Fernando.

Então eu desliguei o walkman, me levantei, peguei minha toalha e fui em direção ao


banheiro. O banho mais demorado que eu me lembro de já ter tomado. Eu me sentia meio
sujo, não sei explicar o motivo. Pelo ralo desceram minha dignidade e a maquiagem dark.
Me olhei no espelho e não quis encarar meu próprio rosto. Um carimbo imaginário havia
taxado o rótulo “TROUXA” bem no meio da minha testa. Fui ao quarto do meu pai e peguei
seu frasco de pílulas calmantes. Voltei para o meu "cafofo", onde eu tinha sempre uma
garrafinha de água. Me sentei na cama e encarei o frasco. Eram apenas fitoterápicos, então
ok.

Se eu pudesse, beberia tudo de uma vez. Já pensou que poético? “JOVEM MORTO POR
OVERDOSE DE DECEPÇÃO”. Minha sorte é que eu nunca tive cabeça o suficiente pra
fazer besteiras maiores. Tomei apenas um comprimido. Encarei a parede e outro cara
pregado nela me devolveu o olhar. Era o Matthew Broderick no pôster de “Curtindo a Vida
Adoidado”.

— “A vida passa muito depressa. Se não paramos para curti-la de vez em quando, ela passa
e você nem vê!” — pude ouví-lo em minha mente.

“O que Ferris Bueller faria no meu lugar?”. Pensei.

Se você não sabe quem é o Ferris, pode se jogar da ponte. Não, não se joga da ponte, não,
mas vai pesquisar com urgência. Aquela frase do filme me despertou para algumas reflexões.
O que eu estava fazendo comigo mesmo? Será que eu era tão idiota a ponto de me achar
REALMENTE apaixonado pela Lana? Eu definitivamente não estava. Depois daquele
insight libertador, houve um grande “BOOM!” no meu cérebro e eu finalmente me toquei do
que estava acontecendo de verdade.

Sofri uma desilusão amorosa, sim, mas porque EU quis.

Eu nunca estive realmente apaixonado por Lana. Apenas achei que estava, queria estar e,
quando nossa mente decide querer algo no lugar do coração, não dá certo. Toda aquela
situação tinha sido provocada por mim. Nada disso teria acontecido se eu não tivesse me
deslumbrado pelo número do telefone de Lana.

Lana era muito rasa comigo e meu coração sempre soube disso. Porém, a mente me
apresentava fantasias tentadoras. Acabei me colocando em todo esse embaraço pelo simples
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desejo inconsciente de viver algo surreal, ainda que isso me causasse sofrimento. Pode
parecer masoquista, eu sei. Mas quantos de nós vivemos diversas situações desagradáveis por
vontade própria… Mesmo que de forma inconsciente? Já parou para pensar alguma vez
sobre isso? Quem sabe você também não está passando por algo parecido.

Mas havia uma questão que eu não conseguia entender: por que Lana me deu um mole
daqueles se na real queria o Caio? Será que ela me usou pra fazer ciúmes? Bom, o certo é
que eu não quis que essas questões permeassem minha mente por mais tempo.

“Moreno alto, bonito e sensual


Talvez eu seja a solução
Do seu problema
Carinhoso, bom nível social
Inteligente e à disposição
Pra um relacionamento
Íntimo e discreto
Realize seu sonho sexual”

Eu precisava expurgar tudo isso de mim, cada pensamento de vergonha, cada sentimento de
culpa inconsciente. Então tomei como pessoal o conselho do “Dr. Bueller” e tratei de me
arrumar com um look bem transado: camiseta branca sem estampa, calça jeans rasgada, all
star vermelho nos pés, reloginho digital no pulso esquerdo e uma jaqueta de couro preta
“Hard Rock Café” que nunca tinha sido usada, pois o calor no Rio de Janeiro não me
permitia. Me dei cinco borrifadas de perfume, uma leve bagunçada nos cabelos. Pronto, não
era o mais lindo dos rapazes, mas ninguém podia me chamar de mulambento. Eu estava
doido para me aventurar, explorar os mistérios da noite como o Patrick Dempsey em
“Loverboy” e Richard Gere em “Gigolô Americano”. Nunca fiz o tipo bonitão, mas eu tinha
lá o meu charminho também.

Fiquei pensando em como sair. Busão aquela hora não rolava, bike muito menos. Meu cash
tava quase no fim, não dava pra ida e volta de táxi, até porque eu nem sabia pra onde ir, mas
precisava sair daquela casa.

BOOM! Outro insight!

— O coroa vai me matar… Mas quer saber? Que se foda.

Não adiantou nada a voz da consciência alertar; o diabinho do outro lado me lembrou de que
meu pai tinha saído em seu carro habitual, um Chevrolet Kadett 1989, para um encontro de
trabalho, mas era estranho ele ainda não ter chegado. Nesse cenário, o Cadillac vermelho do
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velho estava sozinho, abandonado e aprisionado naquela garagem. Coitadinho, precisava


passear um pouco.

Eu ainda não era maior de idade, mas sabia dirigir muito bem. Meu pai me ensinava sempre
que podia e eu já tinha dado umas voltas no bairro em feriados e horários menos propícios à
qualquer intervenção policial. Fui correndo ao quarto do Seu Herbert e abri a primeira gaveta
do criado mudo. Lá estava a caixinha de madeira com a chave dentro. Catei a diabinha de
uma vez e desci para a sala rumo à garagem.

— Você já voltou? — disse Mônica, espantada, usando seu pijama do Piu-Piu e desfazendo
uma postura de lutinha.

— E já tô saindo. Pensou que eu fosse quem, pantera? — perguntei irônico e surpreso.

— Talvez fosse algum ladrão, sei lá. Essa cidade anda cada dia mais perigosa…mas não
chegou nenhum táxi ainda, Beto — ela disse estranhando a situação e olhando pela janela da
sala.

— Quem vai de táxi é a Angélica!

Mônica me seguiu até a garagem.

— Êpa, você vai realmente fazer o que eu tô pensando que vai?

— Abre esse portão aí pra mim, por favor. Hoje a noite promete... — Já fui entrando naquele
sonho em forma de carro. Não era a versão conversível, mas tão charmoso quanto. O tanque
estava cheio. Era como se aquela belezinha estivesse me implorando por uma voltinha. —
Não quer ir comigo?

— Tá doido, menino?! Teu pai te mata…e me mata — Mônica fez cara de quem assistia ao
pior dos delitos.

— Mata nada. Isso pegaria bem mal pra carreira dele — eu disse já entrando naquela
belezinha de automóvel.

— Beto, sai desse carro agora! — A babá estava indignada. — Você não sabe dirigir e nem
tem licença pra isso.

— Ei, eu sei dirigir sim senhora! E eu não tenho licença, mas isso é só um detalhe. Vem
comigo… Tranca o Théo dormindo no quarto e cuida de mim hoje… — Fiz a cara mais
insinuante que consegui e dei a partida.

— Desliga esse carro, pelo amor de Deus! — Mônica implorou.

— Abre esse portão ou eu passo por cima dele! — eu não estava para brincadeira.

— Tá maluco, garoto?!!! — Mônica percebeu minha seriedade.


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Eu me sentia possuído por uma vontade absurda de viver aquele momento de felicidade
clandestina. Eu acelerava com o carro em ponto morto. O cheiro inebriante de gasolina
exalando. Mônica notou que eu não estava blefando.

— O que eu digo pro teu pai? — ela perguntou mais conformada.

— Sei lá. Inventa qualquer coisa.

A contragosto, Mônica abriu o portão da garagem. Engatei a primeira marcha e arranquei


com tudo. Pelo retrovisor eu a vi diminuindo conforme tomava distância de casa, até sua
imagem sumir junto com a rua onde eu morava. E isso era tudo que eu precisava: distância.
De tudo, até de mim mesmo.

“As ruas têm cheiro de gasolina e óleo diesel


Por toda plataforma, toda a plataforma
Por toda a plataforma você não vê a torre
Tudo errado mas tudo bem
Tudo quase sempre como eu sempre quis
Sai da minha frente que agora eu quero ver”

Sair pelas ruas com aquele carro foi libertador. O bairro estava tranquilo, praticamente sem
trânsito. Fui confiante que a vida não ia me decepcionar pelo menos daquela vez. Dirigindo
com uma mão só, pisando fundo em ruas mais desertas. Tentando esquecer a trágica festa de
Halloween, pensando somente em me divertir de algum jeito. Lavar a alma num barzinho
escondido chamado “Peixe Podre”, que vendia bebida alcoólica para menores sem problema
algum, segundo a lenda, porque o dono era um importante chefe de polícia do Rio de Janeiro.

— Atenção, galera esperta! É hoje, hein?! “Festa Boo!” para os fissurados em um bom
Rock n’ Roll, lá no Circo Voador! Descola vinte mil cruzados novos e uma mina, porque gata
acompanhada não paga! — Era o locutor da rádio anunciando uma festa de Halloween no
lendário Circo Voador. Eu nunca tinha ido lá. — Vai rolar Ultraje, Paralamas e muito mais!

— PUTA MERDA!

Freada brusca. Só deu tempo de gritar isso. Quando vi já tinha batido em alguma coisa.
Possivelmente uma pessoa. Enquanto prestava atenção no recado do locutor da rádio, pisei
fundo no acelerador aproveitando as quadras livres na avenida de mão única. Do nada me
aparece um vulto que se joga na frente do Cadillac Vermelho do papai. Saí do carro quase
sem voz.

“Entra e sai, muita gente, confusão


O sinal fechado, e ela vem na contramão
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Ela é invencível, pura ficção


A mulher invisível
Ela está onde ninguém está
Ela é dona da noite, abandona o dia
Ela mora em nenhum lugar
Ela é pura energia”

— Pelo amor de Deus! Moça, você tá legal? — eu perguntei colocando as mãos na cabeça

— Qual foi, cara! Tá lelé da cuca? Presta atenção!

— Desculpa, de verdade! É sério, deixa eu te ajudar a levantar… — eu tremia mais que vara
verde. Tentei levantar a moça delicadamente pelo braço. Curiosamente ela não tinha
ferimento nenhum.

— Não precisa, eu levanto sozinha. Cê tirou a carta agora? Tem que voltar pra aula, falô?

— É ruim de eu dirigir mal, hein? Foi você que apareceu do nada! — me veio à mente uma
lembrança daquela voz — Ué, a gente já não se viu antes?

— Sei lá, mas prefiro não ver de novo!— ela disse enquanto limpava a roupa inconfundível:
um vestido comprido vermelho e preto, cheio de detalhes combinando com seus cabelos
ruivos de tom natural e boca preenchida de batom carmim. Usava também adornos como
colar, pulseiras, brincos, etc. Os ombros cobertos por uma echarpe preta estampada com
estrelas bordadas em bonita linha prateada.

— A sorte definitivamente tá comigo! — examinei o Cadillac vermelho de papai como um


verdadeiro especialista em automóveis. — Não amassou nada do carro e você nem se
machucou!

Quando olhei mais de perto, percebi que era a mesma moça que me pediu informação na
praia.

— Pois eu tô na merda, olha aqui meu vestido todo sujo!

— Já sei! Você é mesmo quem eu tô pensando... me lembrei da sua voz, do cabelo... você é a
garota que falou comigo na praia há um tempinho atrás, né?

A moça parou para de fato me olhar e disse apontando o dedo indicador direito:

— Então você é aquele esquisito que tava chutando o mar? Mas só podia... — ela me
analisou enquanto descansava as mãos nos quadris.

— O que você faz aqui longe da praia? Andou isso tudo atrás... Atrás do que mesmo?
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— Ainda tô procurando a Sorveteria Refresco, mas não encontrei nada. — ela colocou a mão
direita na testa, em um gesto de puro cansaço.

— Se eu puder fazer alguma coisa… Nem que seja pra me redimir do “susto”.

A moça pensou um pouco.

— Esse carango é seu? – ela perguntou, alisando o capô do carro.

— É... sim — hesitei um pouco, mas disse que o Cadillac era meu pra não pagar de filhinho
de papai.

— Então, sem desculpa e sem demora, você vai me ajudar a encontrar essa bendita
sorveteria! Porque de manhã tenho que ir embora.

— Eu vou, é? Tá certo. Entra aí, vamo ver no que dá – me alegrei um pouco, afinal agora eu
tinha um propósito, não queimaria gasolina à toa.

— Então vamos! — pude sentir uma dose de alegria nos lábios da moça — A propósito, meu
nome é Luna Khamali – ela me disse estendendo a mão direita.

Tá de sacanagem comigo! Eu acabei de sofrer uma decepção horrível por causa da “Lana”,
aí a vida me aparece com uma “Luna”? Ah, destino, fala sério!

— Prazer, o meu é Humberto, mas pode chamar de Beto! — apertei sua mão tentando
disfarçar meu pensamento sobre o seu nome — Você foi onde eu te disse?

— Você me disse que eu estava há uns dez quarteirões de lá partindo daquela área da praia.
Só que eu acabei me perdendo na contagem, tô de cabeça cheia.

— Nem me fale de cabeça cheia… Eu que sei! Bom, então vamo lá.

Arriscando tudo, confiando que meu pai era advogado, não passava pela minha jovem cabeça
que o seu Herbert poderia me deixar na prisão por alguns dias só pra me dar uma lição. Eu
estava me achando o Michael Knight carioca por dirigir sozinho a super máquina do papai,
sem habilitação, pelas ruas do Rio de Janeiro. E com uma tremenda gata no banco do carona.
Só rezava para não aparecer uma blitz do nada.

Apesar de Luna ser uma moça exuberante, eu não queria focar nisso. Já havia me
decepcionado muito àquela noite, mesmo que em partes por culpa minha. Não queria me
envolver romanticamente com ninguém durante um bom tempo. “É mais fácil mexer com o
fígado, do que com o coração”, já diz o poeta.

Conversamos um pouco sobre nós ao longo da viagem:

— Você é daqui mesmo? — perguntei enquanto conduzia o volante com a mão esquerda e
penteava o cabelo com a direita.
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— Não. Quer dizer, morava, agora não mais. Me mudei já tem um bom tempo – Luna
parecia perdida no olhar contemplativo de quem nunca havia visto nada daquilo. Como uma
criança que vai pela primeira vez ao zoológico.

— E onde você está morando agora, gata? — indaguei sem querer soar invasivo. Ela me
respondeu com outra pergunta.

— Você estava só de bobeira, passeando? — Seus olhos fixos na janela pareciam admirar a
paisagem urbana da noite no Rio.

— Só dando um rolê mesmo... Pra esfriar a cabeça um pouco… – Eu evitava falar sobre a
festa.

— Quer dizer então que eu esbarrei justo num esquentadinho?

— Nada. Sou até bem de boa. É que hoje o dia não foi muito legal… Pelo menos até agora.
Se você não se importa, eu não queria falar disso.

— Tudo bem. Você que sabe. Tem coisas que realmente é melhor a gente esquecer.

Rodamos mais uns quinze minutos e enfim chegamos ao lugar.

— Ué, tô sem entender nada! Era pra ter uma sorveteria aqui...

— Poxa, eu achei que você sabia onde estava indo.

Comentei sem muito interesse e levemente preocupado por estar com o carro naquela região
desértica. Só havia uma praça bonitinha, mas sombria e casas antigas precisando de reforma
urgente. Saímos do carro e resolvemos olhar em volta. De repente, surge um senhorzinho
colocando lixo para fora de sua residência.

— Bora lá, vai ver ele pode ajudar. — Ansiedade era o meu sobrenome. Eu estava curioso
para saber o motivo pelo qual Luna queria tanto encontrar essa sorveteria, afinal de contas
ela estava procurando o bendito estabelecimento há horas.

— Com licença, senhor. Por favor, uma informação. Onde fica por aqui a Sorveteria
Refresco? — O senhor levou um pequeno susto ao ver Luna e eu naquela rua deserta.

— Boa noite, mocinha... Acho que não posso ajudá-la. – Ele falou com pesar na voz, mas seu
olhar não escondia a admiração pela figura exuberante de Luna.

— Sério? Meu senhor, posso jurar que nessa região havia uma sorveteria chamada Refresco.
Você tem certeza que eu não estou louca? — Luna passava os dedos na cabeleira ruiva .

— De fato havia. Bem ali na esquina, mas já faz tempo que fechou.
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— Ah, quer dizer que não existe mais sorveteria… Pelo menos você não tá maluca, né? – Eu
tentava dizer algo de útil.

— O senhor poderia me dizer o que aconteceu? — Ela me ignorou e continuou interrogando


o velho. — Será que não mudou de endereço?

— Olha, moça, pelo que sei a família que era dona da Sorveteria foi embora faz tempo sem
avisar pra ninguém da rua. Simplesmente fecharam e puseram a casa à venda. A vizinhança
aqui nunca foi muito amigável, mas de fofocar todo mundo gosta! — O senhor riu
brevemente do próprio comentário. — Quando me mudei pra cá com minha esposa, eles já
haviam ido embora, dizem as más línguas que por uma briga de família.

Luna era a decepção em pessoa. Um semblante triste ganhava seu rosto à medida que o
senhorzinho falava.

— Mais alguma coisa que eu possa fazer pela senhorita? — O senhor perguntou, já se
retirando rumo à própria casa.

Luna não respondeu, estava em transe.

— Não, não senhor. Muito obrigado pelas informações. Boa noite! — respondi por ela.

— Não acredito… Não tem mais sorveteria e eles não avisaram pra onde foram. E agora, o
que é que eu vou fazer?

— Olha, eu gostaria muito de poder te ajudar, mas primeiro preciso saber mais sobre o quê
tanto você procura nessa finada sorveteria.

— Essa sorveteria era da minha família. Achei que os encontraria hoje…

— Saquei. E você não tem nenhum outro parente pra qual possa pedir ajuda, saber onde eles
estão?

— Meus pais casaram escondido, fugiram ainda jovens. Nunca mais viram meus avós.
Infelizmente só tenho eles como família. — Luna lacrimejava com o olhar longe, perdida
entre a expectativa e a frustração. — Agora não tem mais jeito...

Caminhamos em direção à pracinha, ela sentou num banco e tirou os sapatos vermelhos.

— Eu realmente não sei o que dizer. Mas ainda quero te ajudar. De repente essa noite ainda
pode valer a pena. — Sentei ao seu lado dando aquele suspiro de apoio moral.

— Todo dia vale a pena. Acho que não há o que fazer, pelo menos por hoje. – Luna
respondeu com ar de conformada, enquanto massageava os tornozelos; um deles adornado
com uma correntinha de pequenas moedas douradas.
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— Então chorar também não tá valendo… — falei com alguma nota de alegria, procurando
transmitir todo o meu apoio sem ser grosseiro.

— Verdade. Chorar é inútil! — ela me olhou com esperança e eu imediatamente retribuí com
uma ideia saborosa. Me lembrei que doces são ótimos conselheiros em momentos de
decepção.

— Posso te pagar um Milk Shake? Assim a nossa viagem não fica totalmente perdida.

— Ah, não sei… A gente nem se conhece direito.

— Ora, mas você já até pegou carona comigo! Não seja por isso. Passaremos a noite
afogando as mágoas em taças sinistras de chocolate. Aí a gente conta tudo um do outro…o
que me diz?

Luna pensou um pouco. E então, decidiu:

— Tá certo!

Ela abriu um sorriso, ergueu o braço direito na minha direção. Segurei sua mão e a levantei
do banco. Fomos para o carro. Engatei a primeira marcha novamente e saímos. A carteira de
habilitação? Eu nem lembrava disso! Precisava fazer aquela garota rir, eu devia isso a ela
depois de tê-la atropelado. Tentar animar aquela moça solitária me faria sentir melhor.
Afinal, ela ia embora logo ao amanhecer. Aquela velha história de que fazer algo bacana por
alguém é um band-aid para as feridas da alma e a minha precisava de todos os curativos do
mundo naquele momento.

FITA 15: 31 de outubro - 23h00 da noite

— Então você era cigana? — perguntei surpreso e suguei o restinho de milk shake que ainda
tinha na taça. Um barulhinho irritante subiu pelo canudo.

— É como estou te dizendo. Meus pais eram de clãs ciganos rivais e fugiram para se casar.
Se casaram ainda sob as leis ciganas e, abrindo a sorveteria, continuaram mantendo as
tradições vivas comigo e meus irmãos. — Luna riu baixinho, mas com certo amargor. — Eu
gostava da cultura, da música… Só o que eu queria mesmo é seguir a carreira artística, sabe?
Ser livre, poder cantar, dançar, atuar… Brilhar em teatro de revista.

Teatro de revista?!

— Saquei. E por que você não fez isso?


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— Eu fiz. Só que eu tive que sacrificar os laços que eu tinha com minha família. Quer dizer,
eles levavam a sério demais essa coisa de ser cigano. Ficaram enchendo meu saco querendo
que eu me casasse com um cara que eu nem conhecia, sem nem eu ter feito dezoito anos
direito! Ser artista não fazia parte do que eles queriam para mim. Era casar, servir e procriar.
Só.

Fiquei em silêncio. Aquele relato era triste demais. Meu pai nem parecia tão autoritário perto
dos pais de Luna.

— E aí eu fugi. — Ela continuou e afastou a taça vazia de milk shake pela mesa. — Fui atrás
do meu sonho de poder cantar, dançar… Ser livre como eu queria.

Por isso Luna estava procurando a sorveteria, porque queria reencontrar os pais. Fiquei com
vontade de perguntar há quanto tempo ela não os via, mas percebi que talvez fosse muita
intromissão. Então preferi fazer outra pergunta:

— Mas você conseguiu fazer o que queria?

— Mais ou menos. — Os olhos dela foram longe, para além daquela mesa. Talvez até
daquela lanchonete. — Meu problema foi ter esbarrado nas pessoas erradas… Só que hoje eu
vim para resolver algumas pendências com essas mesmas pessoas. Digamos que eu tenha
uma listinha de afazeres para riscar antes do sol nascer.

Luna ficou subitamente estranha e o modo soturno com que ela disse aquilo me deu calafrios.

— Nossa, por que antes do sol nascer?

— Porque é quando meu ônibus sai. Eu moro em um lugar muito longe daqui… Mas, depois
eu penso nisso. Me fala de você também, gatinho!

Apesar do jeito enigmático, Luna inspirava tanta confiança em mim que quando eu vi já
tinha lhe contado tudo. Falei sobre minha paixonite incontrolável por Lana, por toda a
expectativa envolvendo o baile daquela noite e, com mais força do que eu imaginava que
tinha, sobre tê-la visto aos beijos com meu melhor amigo em frente a todo o colégio.

Luna me ouviu com um olhar compadecido. Não me interrompeu em nenhum momento e só


foi falar mesmo quando terminei e tentei beber mais um pouco de milk shake inexistente da
minha taça. Fez-se um silêncio constrangedor entre nós depois que acabei de fazer dela o
meu muro das lamentações. A lanchonete estava imersa em uma poluição sonora que
mesclava música alta e um vozerio eufórico.

— Tudo isso aconteceu hoje, Beto? Caraca, você deve estar no maior bode! — Luna
comentou e colocou sua mão em cima da minha sobre a mesa. Fiquei um tomate de tão
vermelho nessa hora.
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— Afogar a cara com milk shake ajuda um pouco… — comentei em um sorriso amarelo.

— Milk shake? — Luna deixou sair um riso debochado — A gente vai sair daqui e você vai
ver o que é afogar as mágoas de verdade. Sabe, cara, eu gostei de você e quero te dizer: não
fica triste por isso. O que aconteceu hoje vai fortalecer seu coração. Você vai ficar mais
esperto, não vai mais se confundir e se enganar tão fácil, entende? Acredita em mim, já
passei por cada uma…

— Tipo o quê? Porque sinceramente, eu com certeza ganharia o prêmio de maior perdedor
do mundo! — duvido que ela ultrapassasse meu recorde de humilhações por uma noite.

— Que mané perdedor o quê! Você tá numa viagem errada. Beleza que foi péssimo o que te
aconteceu e tals, mas você é mó gatinho e preferiu botar uma roupa maneira e sair de casa ao
invés de ficar na cama choramingando. Isso diz mais sobre você do que o que te fizeram —
Luna me encarou e seus olhos pareciam duas armas raio laser, que me atingiam
certeiramente.

— Nossa…obrigado – com certeza eu estava rubro de vergonha, mas retribuí os raios laser
com um olhar ainda mais firme — É verdade. Um perdedor jamais estaria acompanhado de
uma gata incrível como você.

Luna sorriu lindamente e já mudou de assunto.

— Nossa, mas tá difícil conversar aqui, né… — ela olhou em volta, incomodada com o
barulho. Muitas pessoas se reuniam em uma pistinha de dança aos fundos da lanchonete,
gritando animadas.

Olhei para onde ela encarava incomodada e me lembrei na hora o motivo daquilo. Aquela era
a lanchonete “Mixto Quente”, famosa por sua decoração inspirada nos “diners”
norte-americanos e promover calorosas batalhas de dança. Todo o Rio de Janeiro sabia
daquelas competições e os vencedores às vezes saíam nos jornais. Expliquei isso para Luna
que ficou completamente surpresa com essa informação.

— Parece que ainda estão escolhendo os participantes! — eu comentei — Você não tá afim
de me mostrar todo o seu talento como dançarina?

— Eu? Eu tô enferrujada demais pra isso, garoto! — respondeu ela esticando os braços para
cima.

— Eu não sou nenhum pé de valsa. Mas pode ser legal. Bora curtir essa! — estendi a mão
esquerda em sua direção.

Luna rolou os olhos e me respondeu um "Ai, tá bom…" quase infantil. Agarrou minha mão e
fomos até a garçonete que organizava a competição, ela anotou nossos nomes em uma
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prancheta. Os participantes eram divididos por pares, mas as danças oscilavam entre os
gêneros e às vezes eram individuais, às vezes em dupla.

Eu e Luna nos divertimos à beça enquanto dançamos. Para quem não estava querendo nem
participar, ela se concentrava em cada passo. Luna, foi muito competitiva. Naquela pequena
pista, nós formamos uma dupla para “Dirty Dancing” nenhum botar defeito. A cada rodada,
os competidores iam sendo eliminados pelo gerente e nós que, só queríamos nos divertir,
fomos ficando. Quando tocou “Never gonna give you up” do Rick Astley, ah eu dei tudo de
mim e Luna acompanhou meu ritmo. Então só sobramos nós e mais duas duplas.

Eu estava ofegante. Meu cabelo molhado de suor estava pregado na testa. Toda aquela
empolgação até me fez esquecer do ocorrido naquela noite. E para completar minha
felicidade… Thriller, do Michael Jackson, começou a tocar. Eu sabia a coreografia de cor e
salteado. E qual jovem dos anos 80 não tentou aprendê-la? Guardo até hoje o VHS com o
clipe, presente do meu padrinho. Luna, como tinha acontecido em quase todas músicas, me
disse que não conhecia Thriller. De que planeta aquela garota era, afinal? Bem, não
importava. Eu estava ali para salvar a noite.

— Só me segue, tá bom? A gente vai ganhar essa parada! — falei para ela com muita
confiança.

Luna copiava meus passos enquanto a música rolava. Ela parecia se divertir muito, porque
dava risada sempre que errava um passo. Pensei bem e meio que abandonei a coreografia,
começando a me mover conforme o corpo mandava. Ela fez o mesmo e o nosso improviso
sincronizado foi muito divertido. A sensação de dançar no meio de toda aquela gente sem se
importar com julgamentos era libertadora. Algo que todos devem experimentar uma vez na
vida.

“'Cause this is thriller


Thriller night
Porque isso é terror
Noite do terror
There ain't no second chance
Against the thing with the forty eyes, girl
Não tem segunda chance
Contra essa coisa de quarenta olhos, garota”

No refrão da música nós já éramos duas almas livres, leves e soltas pela pista de dança. Em
oposição à outra dupla, que reproduzia fielmente a coreografia do Rei do Pop, eu e Luna
apenas íamos fluindo em sintonia com nossa própria vontade. Michael Jackson que me
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desculpasse, mas foi muito mais legal curtir aquele som sem se preocupar em seguir os
passos icônicos que ele havia inventado. E com essa música, passamos para a fase final.

“Chorando se foi quem um dia só me fez chorar


Chorando estará, ao lembrar de um amor
Que um dia não soube cuidar
Chorando estará, ao lembrar de um amor
Que um dia não soube cuidar
A recordação vai estar com ele aonde for”

Quando os primeiros acordes do single do grupo Kaoma começou a tocar, eu meio que entrei
em pânico internamente: Lambada? Isso é difícil pacas!

— E aí? — Com o olhar, Luna me impulsionou a mexer o corpo. — Já começou a música!

Respondi ao seu incentivo, relembrando os únicos dois passinhos que ensaiei em casa,
durante uma brincadeira com Mônica. Inventei uma nova e atrapalhada modalidade de
lambada. O bom é que Luna entendia meus passos, ela pegou rápido aquela coreografia
maluca. A platéia ao redor dava altas risadas de nós dois, principalmente quando eu remexia
os ombros e ela imitava; quando a gente rodopiava enrolando os braços naquele divertido
improviso, ou ainda, quando eu a peguei pela cintura e tentei fazer aquela “sarradinha” com
meus quadris duros. Pelo menos eu tentei.

Terminada a canção, abracei Luna de supetão. Ela ficou surpresa e sem jeito, mas retribuiu o
meu abraço. E ainda me disse baixinho antes que a gente se separasse: "Muito obrigada por
isso".

Todos os participantes e espectadores abriram espaço na pista de dança e a garçonete com a


prancheta entrou no centro. Ela fez um discursinho piegas sobre “o importante é competir”.
Apesar de eu só ter entrado na parada pela brincadeira, confesso que a minha expectativa
estava nas alturas.

— Essa foi uma decisão muito difícil, já que as duas duplas finalistas deram um show aqui!
— ela falou em cerimonioso tom — Mas, pela lambada mais esquisita e engraçada já vista
nessa pista, a nossa dupla campeã da Maratona de Dança do dia das bruxas é a dupla número
3: Beto e Luna!

Desta vez, foi Luna que me surpreendeu com um caloroso abraço. Ambos recebemos
medalhas em formato de hambúrguer por nossa performance e um cheque com valor
simbólico em dinheiro.

Falei para Luna que eu descontaria o cheque no dia seguinte e poderíamos dividir o valor.
Mas ela não pareceu se importar.
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Só em participar do concurso, eu já estava feliz. Não imaginava ganhar a competição com


minhas habilidades de improviso, ainda mais com um ritmo que só viraria febre mundial no
ano de 1990.

*********

Quando saímos da “Mixto Quente”, dava para sentir uma atmosfera diferente no ar que
entrava no Cadillac do meu pai. O efeito “adrenalina” causado pela dança me deixou mais
eufórico.

Sinal vermelho, parei. Talvez tenha sido um delírio meu, mas eu juro pela minha mãe ter
visto um “diabólico” Lincoln Mark III preto encostando ao lado. No seu banco do motorista,
uma obscura silhueta masculina usava uma cartola e nos encarava de forma invasiva, pisando
fundo no acelerador sem sair do lugar. Seus olhos em destaque, passeavam entre o semáforo
e eu, que o afrontei de volta com olhar altivo e curioso. Eu sabia perfeitamente o que ele
queria dizer sem usar palavras. Era a linguagem das ruas. Então, comecei a também acelerar
sem sair do lugar, indicando competição.

— Beto, o que você está fazendo? — Luna me perguntou receosa.

— Segura!

Acelerei ainda mais forte, como se eu dirigisse o Turbo Interceptor do Charlie Sheen em “A
Aparição”. O sinal ficou verde e de tanto pesar o pé no acelerador, o carro bateu uma reta tão
veloz, que eu quase perdi o fôlego. Luna gritou desesperada. Passei a segunda marcha e segui
em frente riscando o asfalto em alta velocidade, fazendo daquela pista preta de petróleo, uma
“rua de fogo”.

“And even if you don't have anywhere to go


Se você não tiver lugar pra ir
You go down on the pedal and you're ready to roll
Apenas acelere e você está pronto
And your speed is all you'll ever need
E a sua velocidade é tudo o que você precisa
All you'll ever need to know
Tudo o que você precisa saber
Darlin' darlin'
Querida querida”

Por um instante, tudo se apagou e eu voltei ao colégio, ouvi todas aquelas risadas na minha
cabeça como se fossem uma orquestra desafinada. Num lapso de segundo, Luna pegou o
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volante e bruscamente desviou de um carro que vinha na direção contrária. Instintivamente,


meu pé pisou no freio com toda força antes que o Cadillac subisse na calçada. O Lincoln
Mark III preto tinha ficado para trás e sumido. Questionei Luna sobre o tal carro, mas ela
disse que não havia carro algum. Eu estava pirando. Era a única e vergonhosa explicação.

— Beto, cê tá bem mesmo? — ela perguntou preocupada e com os olhos arregalados.

Não consegui responder. Era meu segundo “quase acidente” da noite.

— Quer ir pra casa? – Luna pôs a mão no meu ombro. — Diz alguma coisa!

— Desculpa… Eu quase te matei pela segunda vez e você tá aqui toda preocupada comigo.
Olha, se você quiser eu te pago um táxi, daí você volta para o seu hotel, sei lá. Talvez não
seja seguro estar comigo aqui.

— Você pensou nela outra vez, não foi?

— Vai parecer muito estúpido se eu disser que sim?

— Não. Vai parecer que você é humano e teve um coração partido da pior maneira. É sua
primeira decepção amorosa? — Luna passava a mão pelos meus cabelos suados.

— É. Nunca achei que passaria por isso. Ver toda essa dor acontecer nos filmes, novelas e na
vida de todo mundo ao meu redor é bem diferente de sentir na pele. Eu juro que tô tentando
lidar com tudo isso da forma mais racional. Ainda agora eu refleti de um jeito que tudo
pareceu tão fácil de encarar... — disse eu quase chorando.

— O problema é que o coração tem vida própria, só se cura quando quer. Sem que você
perceba, já não dói mais. Daqui a pouco, amanhã ou mês que vem… Não dá pra saber
quando será. Você só tem que ir vivendo.

— Você fala tão bonito. Parece até que tô lendo um dos livros da Mel.

— Quem é Mel? Outra paquera sua?

— Nada! — Não pude deixar de rir. — Melissa Carvalho é a melhor pessoa a quem posso
chamar de amiga.

— Entendi. Já sei! A gente pode ir dar uma voltinha na praia, deitar na areia, conversar… —
Luna sugeriu toda eufórica. — Aí você me conta mais sobre os romances da Melissa.

—Fechou, então!

— Vê se não mata a gente, hein?! Lembra que eu estou aqui com você e a gente prometeu se
divertir — Luna ergueu os dedos indicadores cheios de anéis e fez gesto de marchinha de
carnaval.
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— Relaxa, que agora eu tô de boa. Tá comigo, tá com Deus! — dei uma piscadela de leve e
ela me retribuiu.

Dirigindo até a praia, eu me lembrei de como adorava ficar no banco de trás do carro, vendo
meus pais conversarem coisas de adulto nos bancos da frente, o jeito como se tocavam e riam
um da cara do outro. Até as brigas eram engraçadas. Como se descobre quando aquela
pessoa é o amor da sua vida? Será que existe realmente uma pessoa destinada a completar a
outra? Essa conversa de metades da laranja é uma breguice sem tamanho, mas talvez seja
verdade. Na juventude, a gente cria mil teorias de como será nosso grande amor, mas
ninguém pensa que talvez ele não dure para sempre. Enfim, divagações.

“I wanted to be with you alone


Eu queria ficar sozinho com você
And talk about the weather
E conversar sobre o clima
But traditions I can trace
Mas as tradições que eu posso rastrear
Against the child in your face
Contra a criança no seu rosto
Won't escape my attention
Não vão escapar da minha atenção
You keep your distance
Você mantém sua distância
With a system of touch
Com um sistema de toque
And gentle persuasion
E persuasão gentil
I'm lost in admiration
Eu estou perdido em admiração
Could I need you this much?
Eu poderia precisar tanto assim de você?”

Estacionei na divisa da Praia do Recreio com a Praia da Macumba. Pedra do Pontal.


Curiosamente, havia gente àquela hora da noite. Lembro de um grupo de jovens curtindo um
violão. O Arpoador era o point com meus amigos e meu pai. Já aquele cantinho era só meu.
E agora eu o dividia com alguém legal.

— Esse é um dos meus lugares prediletos. — Meus olhos sempre brilhavam quando eu
botava os pés naquele lugar, especialmente à noite.
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— É lindo mesmo. Sabe que eu nunca subi naquela Pedra? — O vento insistia em esvoaçar
os cabelos rubros de Luna, enquanto ela parecia regozijar-se com aquela vista.

— Jura? Quer fazer isso agora? — Toda ideia que me parecesse minimamente aventureira,
era uma candidata a boa sugestão de rolê.

Luna já foi tirando os sapatos e eu a acompanhei. A gente se olhou como dois moleques
levados subindo numa árvore. Corremos até a Pedra do Pontal e Luna atiçou a minha
imaginação.

— Quando a gente chegar lá em cima quero te mostrar uma coisa.

Encontramos algumas cordas fincadas na pedra. Pessoas de todas as partes iam ali
diariamente para escalar e se deslumbrar com a vista incrível da cidade maravilhosa. Escalar
aquela rocha gigante, segurando apenas em uma corda cheia de nós, era um desafio.

Não tão fácil, mas apenas difícil o suficiente para sentir o gostinho de se superar ao chegar
no topo. Isso me fez lembrar novamente de como são os relacionamentos. Luna quis subir na
frente, para que eu pudesse estar atrás dela caso se desequilibrasse. Não que eu fosse
musculoso, mas pelo menos poderia amortecer uma possível queda.

— Não vale espiar o meu traseiro, hein…— advertiu ela maliciosamente.

— Jamais. Eu sou um cavalheiro, milady — respondi em tom de brincadeira. Eu nem estava


espiando, mas sua advertência despertou minha curiosidade, então dei uma conferida rápida.

Subindo juntos a Pedra do Pontal, de nó em nó que passavam pelas nossas mãos, adquirimos
confiança um no outro. Dois estranhos que em tão pouco tempo já partilhavam cumplicidade.
A vida realmente nos surpreende de muitas maneiras. Porém, naquela hora, sempre que
algum pensamento tão “existencial” como este passava pela minha cabeça, eu rápida e
involuntariamente o rejeitava. Só queria curtir cada segundo que me fizesse esquecer de Lana
e Caio.

— Nem foi tão cansativo. — Luna disse já se sentando no topo da pedra.

— Ah, não é? Seu pulmão ofegante diz o contrário! — Eu me sentei ao lado dela e ganhei
um tapinha no ombro esquerdo — O que você queria me mostrar?

— Tá vendo aquela estrela ao lado das Três Marias? — Ela me disse e apontou o céu com o
indicador.

— Não muito... — Apertei os olhos tentando enxergar.

— Sério? Você está precisando trocar esses óculos, então. Enfim, é que eu tenho uma teoria
particular e vou compartilhar contigo.
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— Sou todo ouvidos, dona cigana. Pode filosofar… — Eu a incentivei e estiquei as costas ao
me deitar na pedra.

— Besta… — Luna riu e continuou. — Eu penso que todos nós temos uma estrela.

— Ah, tipo estrela da sorte?

— Tipo isso, mas não necessariamente.

— Tá, explica.

—Tá legal. — Ela decidiu deitar ao meu lado. — É como se cada estrela representasse uma
pessoa. Intuitivamente você descobre qual é a sua apenas contemplando o céu numa noite
bem estrelada. Aquela que mais brilhar, não tanto visualmente, mas no teu coração, essa é a
tua estrela.

— Interessante. Mas, como vou saber qual a minha estrela em todas as noites seguintes? —
eu estava mesmo interessado na teoria de Luna.

— Eu não sei te responder com certeza, mas tenho outra teoria sobre isso. Reparei que
quando tô meio pra baixo, sem coragem ou autoestima, não consigo enxergar minha estrela,
ainda que ela esteja lá. Pode ser pura coincidência, mas...

— Coincidências não existem, né? Minha mãe dizia isso — eu a interrompi num ímpeto de
euforia. Aquela era uma teoria de fato original, apesar de um tanto piegas.

— E ela estava mega certa. A grande lição das constelações é "acredite na sua estrela". Creio
que assim ela sempre poderá te apontar a direção certa.

Ficamos em silêncio por alguns eternos segundos, apenas contemplando o brilho de cada
estrela morta que pairava no firmamento.

— Você acha que foi coincidência a gente se esbarrar hoje? — perguntei ainda olhando para
o céu.

— Sua mãe diria que não. Vai saber as surpresas que a vida nos reserva. E isso a gente só
descobre de um jeito.

— Qual?

— Vivendo!

Luna olhou pra mim, beijou a ponta do dedo indicador direito e o passou em meus lábios.

— Vamo logo, cabeção! A gente ainda tem uma cidade inteira para ver antes do sol nascer.
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“Uma vez que existe só para ser visto


Se a gente não vê, não há
Se a noite inventa a escuridão
A luz inventa o luar”

Descemos a Pedra do Pontal correndo, mas nenhum acidente ocorreu. Paramos num
quiosque e Luna pediu coca cola.

— É por sua conta, brotinho — Disse ela já se sentando em uma das mesas de plástico do
quiosque.

Luna me deixou meio confuso, mas sua companhia era agradável. Eu fingi que nada estava
acontecendo. Não sabia direito o que aquele gesto tinha significado. Também não queria
criar expectativas depois de tudo que me havia ocorrido mais cedo no baile à fantasia da
escola. Fingi costume e entrei na onda dela, que sempre soltava uma frase irônica entre as
chupadas no canudo da coca cola.

Do nada, me aparece Maurício.

— Ôu! Beto? Grande Beto!

Maurício era um cara legal, apesar de um pouco esnobe por ser o jogador principal do time
de futebol da escola. A versão masculina de Lana e sua popularidade, mas sem todo aquele ar
intocável de celebridade. Como líder do grêmio estudantil, cumprimentava todo mundo que
era relevante de alguma forma. Comigo, por exemplo, ele falava por conta das colas na prova
de química e dos trabalhos de história pelos quais ele me pagava às vezes. Uma relação boa e
profissional que eu estava disposto a manter caso precisasse dele um dia, depois que o
colegial terminasse. O mundo dá muitas voltas, vai saber.

— E aí? – respondi meio sem graça. Não estava disposto a encontrar com ninguém que
estava na festa. Luna vinha sendo uma terapia e Maurício poderia estragar isso se falasse
sobre a humilhação daquela noite.

— Tudo bem? — ele perguntou insistente e com aquele sorriso de político em campanha
eleitoral, cheio de covinhas.

— Aham… Tranquilo — porra, tanto lugar no Rio de Janeiro e ele tinha que ir justamente
onde eu estava? — Aprontando o quê por aqui, Maurício?

— Eu não apronto nada... Vim aqui só pegar uns bebes pra galera, meu tio é dono desse
quiosque e libera mais barato pra mim. — Essa frase ele disse em tom baixo, olhando para os
lados — Tá tendo festinha na casa da Karina. Tá afim de ir? Ela convidou geral.

— Não sei...
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— Cara, tua turma tá lá — Tudo o que eu não queria era olhar na cara de Caio e Lana —
Digo, só o Joca e a Melissa, que aliás eu nunca tinha reparado que era tão gata! — Maurício
sorriu sem graça.

Me senti menos desconfortável com a ideia de que Joca e Melissa também estariam na festa.
Mas, pensei em Luna e no que a gente queria fazer durante toda a noite.

— Pode levar sua mina se quiser. — O playboy cumprimentou Luna com um olhar curioso.
— A Karina mora perto daquele depósito abandonado, aquele que a galera vai de vez em
quando pra fumar unzinho. Qualquer coisa, chega lá. Cê tá de a pé?

— Não, tô de carro — apontei para o Cadillac do Seu Herbert com a cabeça.

— “Ôh loco!” Mandou super! É do teu pai? Não importa — Ele nem me esperou responder
— Eu nem sabia que cê dirigia… Te avisar aqui — Maurício foi muito gente fina, me
avisando sobre quais ruas eu não deveria trafegar para não ser pego por alguma blitz.
Segundo ele, seu primo mais chegado era da civil e lhe passou as coordenadas, já que ele
também era menor de idade, mas iria dirigir naquela noite — Tô indo nessa, Betão! – Ele se
despediu e colocou a grade de cerveja no porta malas. Entrou num Ford Escort cinza e vazou.

Maurício estava lendo meus pensamentos. Talvez fosse bom eu aparecer lá com Luna no
meio de toda aquela gente. Não seria humilhado novamente, ninguém faria chacota minha,
pois eu estaria com outra garota e ainda mais bonita, misteriosa.

— Você quer ir? — perguntei meio sem jeito.

Luna demorou alguns segundos para responder, sugando a última gota da coca cola.

— Por mim, já é. Mas só se pra você estiver tudo bem.

— Então, bora!

Paguei o refrigerante, entramos no carro e acelerei rumo à festa.

FITA 16: 31 de outubro - 00h30 da noite

Ao nos aproximarmos da casa de Karina, percebi muitos carros e motos, por isso estacionei
meio longe. Era um muro amarelo com leves pinceladas naturais de lodo por toda a parte
superior. Eu já tinha ouvido falar que a casa de Karina era uma espécie de sítio ou chácara
urbana, devido ao tamanho do terreno, mas não imaginava que fosse tão grande. As luzes e o
som indicavam que ali realmente rolava uma festa. A rua estava um pouco deserta. O
depósito abandonado que a galera usava como clubinho privê ficava umas duas quadras atrás
e diziam que era do pai dela, um locador de imóveis. Eu já tinha ido lá uma vez, curtir um
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baseado com a galera do Maurício, mas o beck me deu uma crise de riso, que acabou virando
uma bad trip. Eu literalmente quase morri sem fôlego de tanto rir.

O asfalto rachado e a má iluminação pública da rua eram a decoração de terror perfeita. Bati
no portão e a janelinha embutida abriu.

— Senha! — Gritou uma voz masculina desconhecida.

— Eu sei lá de senha. Maurício me convidou! — respondi com certo mau humor.

— Nome! — Insistiu.

— Beto, do terceiro ano B!

Não demorou três segundos e a porta já se abriu. Luna e eu entramos e ela, como que para
me encorajar, me ofereceu o braço que eu entrelacei com o meu. Realmente senti-me bem
mais confiante!

De fato, o terreno era enorme. As mangueiras e coqueiros estavam enrolados com luzinhas
lilás e haviam também alguns lampiões acesos, o que dava um clima bem soturno à festa.
Olhares de julgamento foram inevitáveis. Muitos surpresos, alguns chocados, outros
reprovando com a cabeça. Isso não importava, a gente já estava lá. A maioria dos convidados
ainda estavam trajados com suas fantasias de halloween.

Karina veio correndo e nos abraçou com seus braços ligeiramente mais curtos. Ela tinha um
grau leve de vitiligo, o que deixava sua pele cheia de pintinhas brancas. Mudava a cor de
seus cabelos quase semanalmente. Era o que chamam de “cheinha” e, apesar do bullying
velado que sofria, ela não se intimidava. Famosa por sua lista enorme de ficantes e o batom
rosa que marcava bem os lábios carnudos. A Cyndi Lauper do colégio.

— Gente do céu, vocês vieram mesmo! Quase não acreditei quando o Maurício contou que te
viu com outra garota. Que rápido, hein, menino?! Aproveita boba. De santinho esse aí só tem
a cara. Ele beija bem, que eu já provei.

Discrição não era muito o forte da Karina, como vocês podem ver. Mas era compreensível
que todos achassem que eu estaria no quarto chorando. Na real, o plano era esse, porém não
existe nada mais surpreendente do que a própria vida. E sim, nós ficamos uma vez no
carnaval da escola do ano anterior.

— Pois é, né? — não consegui formular frase mais elaborada diante do constrangimento —
Aliás, essa é a Luna.

Luna e Karina trocaram beijinhos e logo ficamos a sós novamente, mas não por muito tempo.
Do nada, Melissa e Joca, ambos bebendo cerveja, apareceram e o já esperado interrogatório
começou.
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— Olha, eu estava quase morrendo de preocupação, tentando me consolar na possibilidade


do seu bom senso e instinto de sobrevivência não deixarem você fazer besteira. Humberto,
nunca mais faça isso comigo! — Mel me abraçou tão forte que quase me quebrou em dois.

— E eu, que fui na tua casa e você não tava lá? Minha vontade é te socar, seu filho da puta!
— O abraço de Joca foi ainda mais forte, seguido de um tapa na moleira. — A babá do teu
irmão disse que você saiu no carro do teu velho. É sério?

— É verdade, tá lá fora…

— Que doideira foi essa? Você nem tem habilitação, menino! — Melissa me interrompeu
espalmando as mãos no rosto.

— Calma, gente, eu tô bem. Não aconteceu nada e habilitação é só detalhe.

— Mas, depois então você vai ter que me levar pra casa. — Joca fez piada para quebrar o
clima de preocupação e recebeu uma cotovelada de Mel.

— Levo, levo sim, mas, antes de mais nada, deixa eu apresentar pra vocês a Luna.

Luna estava tão acanhadamente fofa e com um riso nos lábios, parecia se divertir com o
ataque dos meus amigos.

— É um prazer te conhecer, Luna! — Melissa, ainda fantasiada como Diana de “A Caverna


do Dragão”, e Luna trocaram os dois beijinhos cariocas na bochecha. — Menina e essa
roupa hein? Meio vintage, né? A-DO-REI. — Eu já podia imaginar Mel tentando desvendar
as expressões corporais de Luna — Que echarpe linda! É bordado?

— Ah, obrigada. É sim. São estrelas, olha. — Luna tirou a echarpe dos ombros, abrindo a
peça para Mel ver melhor — São as doze constelações astrológicas.

— PERFEITA! — Disse Mel, encantada.

— Você não perde tempo hein, doutor? — Joca abraçou Luna olhando pra mim com carinha
de aprovação.

— Aliás, o prazer é meu, gente. Eu estava super ansiosa, vocês não sabem como o Beto falou
de vocês! — Luna me entregou e passou os dedos da mão esquerda nos cabelos escarlate.

— Ah, é? Espero que tenha falado bem, até porque...

Melissa foi interrompida por uma garota da nossa idade, baixinha, um tanto franzina, de pele
clara, par de olhos pretos e cabelo curtinho platinado. Ela vestia saia verde fluorescente de
babado, meias arrastão e regata estilizada preta.

— Até porque se ele falar que você é uma chata que não me liga mais, ele tá mega certo!
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Eu conhecia aquela figura. Era amiga da Melissa. As duas se abraçaram dando tapinhas na
bunda uma da outra.

— Escuta aqui, garota, está terminantemente proibido caluniar a minha pessoa! — Melissa
exigiu em claro tom de brincadeira. — E é você que some tanto, que nem ligando pra sua
casa eu te acho. Sua mãe sabe que você tá aqui do outro lado da cidade?

— Claro que não, né?

Paulinha era uma amiga do colégio onde a Mel estudou anteriormente. Elas se viam sempre,
mas ultimamente a garota franzina havia sumido bastante em suas novas aventuras
envolvendo muito álcool e companhias duvidosas, motivo que lhe trouxe àquela festa. Todos
nós percebemos que ela estava já um pouco alterada. Uma Heleninha Roitman juvenil.
Melissa havia nos contado sobre ela algumas vezes, mas só naquele momento, passamos a
conhecê-la pessoalmente. Paulinha enfrentava uma barra com os pais que a repudiavam de
todas as formas por ela ser lésbica.

— Com quem você veio, sua louca? — Mel perguntou puxando a amiga em um abraço
maternal.

— Eu vim com umas meninas, mas me perdi delas. Daí eu te vi e corri para os seus braços,
Melissa! YOU ARE MY QUEEN! — Paulinha só se equilibrava em pé por causa de suas
botas punk pretas. Com certeza eram elas que faziam o contrapeso necessário.

— Pois agora eu não desgrudo mais de você, sua meliante. Trate de ficar aqui sob minhas
vistas! — Mel sabia que não podia deixar a amiga sozinha naquele estado.

— Mas então, vocês já se conheciam? — Perguntou Joca, dirigindo-se a Luna e a mim. Ele
também ainda estava usando a fantasia de Charada.

— Nada! Eu saí de casa com o Cadillac do velho e do nada essa doida se joga na minha
frente.

— Alto lá, Mister Topetinho! Você é que não sabe conduzir direito. Ele quase passa por cima
de mim, acreditam? — Luna já se sentia mais à vontade, era do tipo que se enturma fácil.

— Já tô até vendo o “Dr. Versão Brasileira” decretando: “Dez anos de castigo! Estrelando,
Humberto Vieira” — Joca não perdia uma oportunidade de imitar o meu pai.

— Sim, eu espero que ele tenha alguma piedade no meu tribunal familiar. Mas, caro amigo
Joca, eu sinceramente… TÔ CAGANDO PRA ISSO! — gritei essa última frase com toda
força e mesmo com a música alta, ainda teve gente que ouviu e se virou para olhar. Peguei
emprestado a cerveja de Joca e dei três goles.
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— Que coisa feia, Beto… Tsc tsc. Luna, você tem minha total solidariedade. Não sei como
vocês conseguiram chegar vivos até aqui. — Melissa e sua mãozinha esquerda no coração,
sinal máximo de deboche.

— Íííh, fica na sua, Mel. Aqui é Ayrton Senna, rapá! É Tom Cruise no céu e Beto no asfalto.
Cês estão por fora… — passei a palma da mão direita na lateral do cabelo, tentando emular
um Rob Lowe. Pelo menos eles riram.

— E o carro amassou? — carros eram uma paixão do Joca, que sempre se pegava sonhando
acordado com o dia em que teria seu “automóvel futurístico”.

— Nadinha! — Falei me gabando, logo puxei Luna pela cintura e completei. — Meu único
prejuízo foi essa gata roubar meu coração. — Eu já não tinha nada a perder. Estava
acompanhado de uma gata e sentia que estava rolando um clima entre nós, mas também
havia uma barreira e ela precisava ser derrubada. De repente, investindo em frases assim na
frente dos meus amigos, Luna desarmasse sua postura enigmática e “heartbraker” que tanto
me deixava grilado.

— Eeeu? — Luna retribuiu e apertou minha cintura. — Eu não roubo nada, meu bem, só
pego emprestado. — Ela piscou o olho direito e a turma riu de novo. Não sei se minha
investida funcionou ou se virei mesmo uma piada, mas até o final da noite eu estava disposto
a descobrir.

“Você é a ciganinha
Dona do meu coração
Não tenho sangue cigano
Mas vou pedir a sua mão”

Foi bom ver que todos estavam entrosados. Àquela altura, eu não sabia o que a vida me
reservava. A festa na casa de Karina estava ótima. Ela já havia me convidado para outras,
mas eu nunca conseguia ir. Meu pai era superprotetor e hoje eu compreendo que seu cargo de
promotor lhe tornava alvo de certas ameaças. Ele fazia de tudo para preservar os filhos. Foi
um milagre ele ter me deixado ir ao aniversário do Maurício, por exemplo.

Bom, voltando à festa, decidimos explorar mais a enorme área externa da casa. Parecia
mesmo com uma fazenda, uma chácara e havia um grupinho formado perto da piscina que,
aliás, era bem brega com estátuas de leões, golfinhos e todo o resto do zoológico em volta. O
grupinho estava em volta da mesa de comida, onde estava a mãe de Karina, Dona Julieta. Ela
era uma perua muito sem noção, mas gente finíssima. Adorava dançar e batia no peito com
muito orgulho de sua origem nordestina. Juju, como preferia ser chamada, era maranhense e,
além de frequentar as aulas do clube de aeróbica de Lana no colégio, fazia amizade com os
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adolescentes. Aqueles casos em que a pessoa não perde nunca a juventude, nem no modo de
se vestir. A perua usava um conjunto de calça e blusa todo estampado de oncinha, salto alto e
barriguinha de fora.

— Perninha lá na frente e vai… De novo! — Julieta estava ensinando a umas meninas a


coreografia da Rita Cadillac para a sua icônica música “É bom para o moral”.

— Olha o Beijo do Capeta! — Karina apareceu do nada com um tabuleiro cheio daqueles
copinhos de bar. Eram bebidas em azul e vermelho que fumaçavam.

— Aaaaaah, agora sim, hein?! — Finalmente eu provaria a famosa “bebida assassina” que
fez a fama das festas de Karina.

— Isso aqui é o seguinte: tem que beber de uma golada só e já engatar no segundo — disse
Joca com ar de especialista.

— Você já se acostumou com o inferno, né, meu bem? De tanto beijo do capeta?! — Mel
adorava implicar com Joca.

— “Hail satan!” — Joca não ligou para Mel, saudou o lord das trevas com um gesto de rock
n’ roll, pegou um copinho do líquido azul e virou tudo goela abaixo. — EITA! Que esse
abriu todos os meus chakras!

— Ah, nem tá tão forte assim… Minha mãe que fez dessa vez, não sei o que ela botou. —
Karina disse segura, abraçando o caos que poderia se tornar aquela festa graças ao seu
coquetel infernal. — Mais algum corajoso?

Cada um pegou um copinho de bebida azul fumaçante. Apenas Paulinha e eu pegamos os


únicos dois copinhos com líquido vermelho, que Karina me informou serem dose dupla antes
de sair para reabastecer o tabuleiro com mais doses de Beijo do Capeta. Ela adorava a onda
de servir essa bebida aos mais chegados.

Chegamos mais perto e entramos na rodinha onde algumas meninas dançavam como as
chacretes lideradas por Dona Juju. Karina sempre deixava sua mãe dar esses showzinhos no
início das festinhas. Era meio que uma condição para que ela tivesse a permissão do pai para
usar o espaço, com a intercessão da mãe. Então, todos até já gostavam e esperavam para ver
as presepadas de Dona Juju performando com “umas na cara”. Se naquela época existissem
redes sociais como hoje, com certeza ela seria um meme viral. Quando finalmente acabou a
música da Rita Cadillac, ela insistiu para que Melissa entrasse na “girlband”.

— Meu amor, essa sua beca de guerreira tá um ARRASO! ADOREI! — Disse Juju alisando
os cachos de Mel. — Vem, boba, vamos dançar a próxima música que já é a última!

Após algumas insistências e um empurrão de Paulinha, Melissa foi dançar a tal música.
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“Conga la conga
Conga conga conga
Oh, I like dancing everyday
Oh, you and me
Au all the times
El conga la conga quiero bailar
Ai ai ai ai ai ai”

Aquela festa parecia uma mistura louca de Perdidos na Noite e Cassino do Chacrinha.
Gente, foi um negócio muito engraçado, porque a coreografia da Dona Juju era hilária e as
meninas não conseguiam acompanhar direito. Mas também foi legal ver a Melissa, que era
sempre tão preocupada com o julgamento alheio, se divertindo, sensualizando enquanto
dançava com o bastão da fantasia da acrobata de “A Caverna do Dragão”. Joca gritou: “Deu
a louca na Diana!”. Santo beijo do capeta! Juju entreteu todos ao som de Gretchen.

— Aaaaai, que loucura! Que barato! — Dona Juju comemorou ao fim da apresentação com
Melissa, que corou de vergonha e de tanto rir. — AI MEU DEUS! Que encanto essa
ciganinha. — A mãe da anfitriã apontou para Luna, que acompanhava com empolgação o
show ao meu lado. —Vem cá pra eu te ver de perto, meu bem.

Ainda rindo da situação, Luna se aproximou de Dona Juju e ganhou o centro da rodinha onde
a perua comandava as hilárias apresentações daquela noite.

— Garota, que cabelo belíssimo. Parece aquela atriz daquele filme que tu gosta, filha… —
Dona Juju elogiou enquanto alisava com a mão algumas mechas ruivas de Luna e buscava o
nome do filme.
— Sim, a Molly Ringwald, “A Garota de Rosa Shocking!” — respondeu Karina.
— Essa mesmo. A cor é natural?
— Aham — Luna confirmou com um riso simpático.
— Ah, que gracinha! Muito linda a sua roupa. Eu sou apaixonada pelo povo cigano! Uma
vez, quando eu era molecota, fui numa festa deles. Foi o sacode mais “astral”, mais supimpa
que eu já fui! Uma cigana até leu a minha mão e adivinhou que eu ia casar bem, me mudar
pra cidade que tivesse mar e que eu teria uma filha linda. A danada acertou foi tudo!
Ainda animada com a presença de Luna, Dona Juju perguntou a ela:
— Mas tu é cigana de verdade mesmo ou tá só fantasiada?
—Sim, eu sou cigana legítima!
Dona Juju soltou mais um de seus gritinhos eufóricos e pediu à Luna para fazer uma
apresentação de dança cigana aos convidados.
— Mãe, a menina tá sem graça — interferiu Karina — Não liga não, ela é assim mesmo.
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— Não, tá tudo bem. Eu aceito sim.


Sem acreditar, Dona Juju foi falar com o DJ para escolherem a música.

Antes da apresentação, Luna sorriu para mim e maneou a mão esquerda cheia de anéis,
usando os dedos num gesto convocatório. O Beto normal teria recusado, pois, apesar dos
últimos acontecimentos, eu sempre tive aversão de holofotes em mim. Mas, o Beijo do
Capeta duplo falou mais alto.
Luna me ofereceu a mão cheia de pulseiras e eu entrei debaixo dos olhares atentos que
aguardavam ansiosamente aquele espetáculo improvisado. As primeiras notas da música
começaram.

— Dessa vez, você é que vai me seguir. — Luna piscou para mim e tirou os sapatos,
destacando sua tornozeleira, uma correntinha com pequenas moedas douradas. Ela me olhou
como que esperando algo. Captei seu gesto e também tirei meu par de All Star vermelhos.

“Teu!
Todo teu
Minha!
Toda minha
Juntos essa noite
Quero te dar todo meu amor…”

Acompanhei Luna através dos versos e acordes de “O Meu Sangue Ferve Por Você” do
Sidney Magal. Aquela melodia era muito envolvente. Luna batia palmas e usava suas mãos
de forma sedutora, criando atmosfera quase sobrenatural. A galera acompanhava empolgada
batendo palmas, como uma verdadeira roda de música cigana. Novamente eu estava no
centro dos holofotes. Dessa vez como o garboso “Amante Latino”. A moça de cabelos cor de
carmim parecia ler a minha alma, a cada olhar brilhante que a mim disparava, balançando
sua echarpe em minha direção.
Contudo, tantos rodopios começaram a me deixar levemente enjoado.

“Toda!
Minha vida
(siiiiimm)
Eu te procurei
(nananananá)
Hoje sou feliz
Com você que é tudo
O que sonhei…”
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Luna me puxou com força pelo braço, uma tontura absurda quase assaltou meu equilíbrio.
Com sua longa e rodada saia, ela movimentou-se provocante ao meu redor. Luna sacudia os
ombros com graciosidade colando seu corpo ao meu. Tentei acompanhá-la segurando sua
cintura. Até hoje não sei como não lhe dei um pisão nos pés. Minhas mãos gelaram. O enjôo
só crescia amarrando minhas tripas.

A cigana continuou dançando de forma sinuosa, passando sua echarpe no meu rosto e
pescoço. Todos ao redor estavam se divertindo, na verdade eu também estava. Luna Khamali
era de fato magnífica. Sua dança sedutora lembrava muito uma odalisca.

“Oooohhhh!
Eu te amo!
Oooohhhh!
Eu te amo meu amor
Oooohhhh!
Eu te amo!
E o meu sangue ferve
Por você…”

De surpresa, Luna esticou um de meus braços, e me atirou para longe do seu corpo em um
rodopio. Péssima ideia. Como um pião desgovernado, me atrapalhei tropeçando em mim
mesmo e dei de testa no chão. Por instinto, ainda consegui me virar e um peso inevitável
preencheu meu corpo. O som foi deixando minha consciência como se a música estivesse
terminando.

Fade out.

Fade in.

Abri os olhos devagar, ainda meio baratinado, sentindo a cabeça pesada. Olhei ao meu redor
e me sentei em um salto, agarrando-me ao lençol velho. Uma pontada aguda na testa me
arrancou gemidos.

— Ai, Beto, que bom que você acordou! — Exclamou Melissa ao lado da caminha de
solteiro onde eu estava sentado. O lugar era minúsculo, mal iluminado e cheio de
quinquilharias típicas de uma pessoa acumuladora.
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— Já saquei. Paguei micão de novo, né? – perguntei desejando ser aquilo apenas um
pesadelo.

— Meio que sim. Eu e o Joca já íamos até chamar a ambulância pra você.

— Que mané ambulância! — Joca se sentou ao meu lado sobre a cama e a estrutura rangeu
pelo peso. — O Betão tá inteiro! Isso acontece nas melhores famílias.

— Caralho… Que troço forte esse Beijo do Capeta. — Reclamei colocando as mãos na
cabeça. — Hoje não é meu dia. Eu achei que não ia dar em nada, já que forrei bem o
estômago na lanchonete com a Luna… Falando nela… Cadê?

— Foi pegar água na cozinha. — Mel avisou. — Aliás, foi ela quem passou esse cafezão
forte para você. — Minha amiga despejou um pouco de café de uma garrafa térmica preta
num copo de requeijão. — Toma, vai te ajudar a cortar o efeito do “manjar de satanás” que
tu bebeu. Engole junto com esse comprimido aqui; é pra dor de cabeça. Dona Juju que deu.
— Melissa era aquela que cuidava dos amigos bêbados.

A fumaça do café invadiu minhas narinas e o gosto amargo me lembrou o café de papai.
— Joca, você pode ir ver se encontra a Luna, por favor? — Melissa pediu a Joca.
— Tá bom. Fica bem aí, meu guerreiro.

Joca saiu e Melissa voltou a me observar, agora com seu característico olhar analítico. Dei
mais um golão de café e tentando disfarçar minha vergonha e medo do que ela falaria em
seguida. Mel queria ficar a sós comigo.

— Betinho…
— Betinho, não… — protestei sem convicção.
— Bebetinho, então!
Ela sorriu e perguntou:

— Eu tô gostando de ver você reagindo. Honestamente, eu imaginava que você ia ficar a


noite toda trancado no quarto, ouvindo música triste naquele seu walkman.

Mal sabia ela que isso chegou a acontecer.

— Você até veio na festa da Karina e tal. Mas sinceramente, como é que você tá? Digo, aí no
fundo…
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Após um longo e profundo suspiro, dei o último gole no café e pus o copo entre as pernas.

— Eu não tô afim desse papo, Mel. Pelo menos não hoje.

— Eu sei, eu te entendo. — Melissa concordou — Só que eu tenho um certo receio de você


projetar essa mágoa de hoje pra cima da Luna.

Eu devo ter feito uma careta de incompreensão, pois minha amiga logo retificou:

— Só tô dizendo que não seria justo, tipo, usar a Luna pra pagar de “Sr. Superação” na
frente de todo mundo, sem ter interesse de verdade na menina.

— Relaxa, Mel. Não é isso. Na verdade… é loucura dizer, mas eu acho que tô gostando da
Luna. Sei lá, a gente se conheceu faz poucas horas mas parece que entre nós existe uma
ligação. Não consigo explicar, mas é diferente. Não me sentia assim quando tava com a
Lana.

Mel ouviu isso e deu uma viajada em sua mente cheia de teorias e mistérios.

— Mel? — estalei os dedos chamando minha amiga de volta à Terra.

— Oi! Então… — Melissa pareceu guardar para si o que passou por sua mente nos poucos
segundos em que esteve fora de órbita. — Você tá certo: É meio loucura sim. Vocês
acabaram de se conhecer. Por mais incrível que ela possa parecer, eu me pergunto: será
possível gostar e construir uma ligação assim com alguém em apenas uma noite? Talvez a
rejeição por causa da festinha do colégio tenha cavado um buraco no seu coração e você
esteja tentando preencher… Amigo, eu te amo, então, só não deixa a carência falar mais alto
que a razão. Assim nenhum de vocês sai ferido.

Concordei e devolvi o copo de café vazio à Melissa. A gente se encarou por uns segundos e
começamos a rir.

— Ê, Melissa… Que bom que você me entende. Que bom que eu tenho você na minha vida,
amiga. Te amo.

—A recíproca é verdadeira, seu cabeção! Vem cá, me dá um abraço!

Eu e Mel nos abraçamos e, então, percebemos que já fazia algum tempo desde que Joca saíra
para procurar Luna. Aliás, eles tinham ido buscar essa água nos lençóis freáticos?

Falei para Melissa que eu iria procurar por Luna. Minha amiga disse que não era uma boa
ideia sair andando por aí, pois eu poderia ter outra tontura. Não lhe dei ouvidos e quando dei
por mim, já estava cruzando os longos corredores da casa de Karina.
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“Vai por aí com uns e com outros


E passa por mim
Faz pouco de mim
Anda muito bem
Com todos, menos comigo”

Ao chegar lá fora, Luna estava sentada na mesa de sinuca e rodeada de machos. Ela era
entretenimento puro! Rapazes doidos pela carne nova do pedaço, exalavam feromônio
enquanto ela lia suas mãos pervertidas. Fiquei tão grilado que me aproximei do grupinho e,
sem pensar, peguei Luna pelo braço afastando-a para longe daqueles coiotes. Pude ouvir os
risinhos e comentários maldosos da parte deles, mas não dei ouvidos.

— Não tô acreditando que você fez isso comigo! — Eu me queixei revoltado quando
paramos em um lugar ligeiramente mais tranquilo. — Você me deixou jogado naquele
quartinho só pra ficar livre? Cheia de conversinha com esse bando de machos?

— Ei, peraí, cara! — Luna tirou o braço da minha mão possessiva com muita força. — Eu
fiquei preocupada contigo, tá legal? Você caiu de tão bêbado e eu pedi pra menina dona da
festa e pra Dona Juju que você pudesse ficar num quarto descansando. SÓ ISSO! Deixei
você lá dormindo um pouco, afinal de contas, seus amigos estavam cuidando de você, não
estavam? Tomou o café que eu te passei? Aquilo levanta até defunto!

— Não tenta desconversar! Foi só eu sair de cena pra você querer me fazer de otário?

— Escuta aqui, esquentadinho, eu só aproveitei pra olhar em volta. Caso não tenha notado,
essa casa é linda!

Na festinha do colégio, Lana me deu perdido, fingindo ir buscar bebida. Já Luna se


aproveitou do meu pileque para sair à francesa atrás de outros caras, talvez mais
interessantes e bonitos do que eu. Se Caio estivesse ali, com certeza ela iria preferi-lo.

— Putz! A água, né? É isso? Acabei esquecendo. — Luna coçou a cabeça. — É que quando
fui na cozinha pegar, umas meninas meio que me arrastaram…

— Não precisa inventar toda essa lorota, não. Pode admitir que queria se livrar logo de mim.
— eu a interrompi com rispidez.

— Beto, se toca! Tô te falando o que aconteceu. Fiquei preocupada, sim. Cuidei de você,
sim! Mas, poxa, você não me conhece e não sabe o valor desta noite em especial pra mim.
Não vou deixar nada estragar!
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— Muito bonito da sua parte! — rebati cheio de ironia — Você não acha muito egoísta dizer
que eu tô estragando sua noite, sendo que a minha parece estar sendo estragada pela segunda
vez? Primeiro pela Lana, depois por você, que eu achei que fosse diferente. Bom, mas até o
nome de vocês é parecido… Eu é que sou otário. Aposto que se o Caio tivesse aqui nessa
festa você ia dar em cima dele também!

Luna franziu a testa e ficou boquiaberta com o que eu disse.

— Nossa, isso foi ridículo! — Ela concluiu com pesar. — De tanto homem ruim que eu já vi
nessa vida, até agora você tinha sido a exceção. Mas você é igualzinho a todos eles. Tá
pensando que é meu dono, cara? Se enxerga…

Asperamente, Luna deixou minha presença e eu não a acompanhei. Eu já nem sabia mais o
que pensar. Fiquei parado no meio da festa com a mente perturbada por cada chumbo verbal
que trocamos

“Será que peguei pesado? Tinha projetado em Luna minha decepção a respeito de Lana e
Caio? Mas foi ela que me abandonou para flertar com outros rapazes”.

Por um bom tempo, ponderei esses pensamentos até perceber que eu tinha de me desculpar
com Luna. Fui procurá-la pela festa e dei de cara com Mel, Joca, e Karina, que agora
procuravam por Paulinha, mas não estiquei o papo. Só me importava saber onde Luna estava.

Saí para o grandioso quintal da chácara à procura de Luna. Fui me afastando cada vez mais
do barulho da festa.

— Quer sim, porra! Vou te ensinar a gostar de homem, sua sapatão!

— SAI, CARA… ME SOLTA! EU VOU GRITAR!

Ouvi uma voz familiar e embriagada gritar. O grito de desespero vinha de uma grande árvore
próxima ao muro dos fundos. Corri para ver do que se tratava e quando cheguei lá, um
grande susto.

Guto estava deitado no chão, sem camisa, com a calça desabotoada e segurando um corpo
feminino com força contra o seu.

FITA 17: 31 de outubro - 01h30 da madrugada

“Push it to the limit,


Vá até o limite
Walk along the razor's edge,
Ande sobre o fio da navalha
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Don't look down just keep your head and you'll be finished!
Mas não olhe para baixo, apenas mantenha a cabeça erguida”

Guto olhou na minha direção e esboçou uma expressão de surpresa e raiva. Seus olhos
brilhavam na noite como os de um felino. Com um sorriso amarelo, ele debochou:

—Tá olhando o que, Zé Ruela? Levou um toco da ruivinha também e agora quer me roubar
essa gata aqui? Ou tu tá é querendo participar? Eu sabia que tu era moderninho… Te manda!

— Larga ela, cara… — pedi com certa educação, ainda que uma raiva crescente estivesse me
subindo à cabeça.

Deitada na grama, ainda presa sob o corpo pesado de Guto, Paulinha chorava baixinho sem
sua regata preta estilizada. Ela chorava confusa e desesperada. Cerrei os punhos e ameacei
novamente:

— Tô avisando, é melhor você soltar ela…

— Ou senão o que, seu merda? Tu não tem culhão nem pra segurar a Lana, e tá querendo sair
na mão comigo? TE MANCA, BEBEZÃO! — Guto se pôs de pé levantando Paulinha pelo
braço.

Tu não tem culhão nem pra segurar a Lana. Essa frase ressoou na minha mente em eco
despertando um gatilho até então adormecido em minha personalidade: a violência. Acertei
um grande soco bem no meio na cara de Guto. Com toda a minha força, meu ódio e minha
coragem.

O Surfista deixou evidente que jamais esperou por essa minha reação, por isso estava de
guarda baixa e acabou caindo sentado para trás. Foi a oportunidade para que Paulinha, que
caiu junto com ele, se arrastasse um pouco mais para longe e depois saísse cambaleando em
direção à festa.

O rosto de Guto ficou mega vermelho do soco que lhe dei, mas agora eu não podia mais
contar com o fator surpresa. Meu coração estava acelerado como um motor de fórmula 1; um
frio na barriga tomou conta de mim. Naquele momento minhas emoções congelaram.

— Seu merda, eu vou te moer na porrada!! — Guto grunhiu igual bicho, levantou-se em um
salto e avançou para cima de mim.

— Se você conseguir me pegar…

Por puro reflexo, consegui dar um "olé" no surfista e fazer ele socar o ar de um jeito meio
apalermado.
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Isso só pareceu irritá-lo ainda mais e fazê-lo tentar desferir o golpe novamente, do qual
consegui desviar de novo por questão de milímetros. Valeram a pena as aulas de educação
física nas quais optei por jogar queimada, mesmo com a implicância dos meninos. O
“esporte de mulher” me deu ótimos reflexos.

— Se você queria tanto dançar comigo era só pedir, cara! — provoquei Guto, ofegante. A
adrenalina corria a mil pelo meu corpo. De certa forma, eu estava gostando. Pela primeira
vez eu o enfrentava corpo a corpo. Guto sempre me despertou os piores sentimentos e, apesar
de me garantir em ofensas verbais, jamais tinha brigado com alguém no braço pra valer.

Guto mostrou os dentes, numa careta ameaçadora.

— Tu se acha muito esperto, né? — Guto debochou, enquanto tentava avançar contra mim,
mas sem conseguir me agarrar — Se você soubesse das paradas que eu sei… Cara, tu ia ver o
merdinha que tu é. Só porque é filho de promotorzinho, pensa que é gente?

— O que meu pai tem a ver com isso, imbecil?

Guto deu sua risada de relincho.

— Uma hora tu vai saber… Talvez por último, mas vai. Igual corno. Mas não vai ser
problema pra tu, não é, bafo de pica? Já que tu é chifrudo duas vezes na mesma noite. Tá
doendo não, a galhada crescendo? — Guto me olhava como uma hiena na savana encarando
sua presa — Se quiser eu deixo você correr, vai, te dou uma vantagem. Vou te dar um trato
que você nunca vai esquecer – ele disse esfregando o punho direito fechado na palma da mão
esquerda — Capaz até de você gostar, né?

— CALA A BOCA! EU NÃO TENHO MEDO DE VOCÊ!

Vociferei desferindo um soco pesado contra o rosto de Guto. O cara cambaleou para trás,
mas não por muito tempo, pois logo se virou e revidou o soco com tanta força que eu fiquei
atordoado na hora e dei passos vacilantes para trás.

— Que nada, tu se caga de medo! — provocou Guto tirando um soco inglês do bolso e
encaixando nos dedos da mão direita.

— Eu tinha medo era de mim, pô! Medo de me soltar e ficar igual você: Um bife de rato
metido a garanhão. Tu não passa de um jumento! Com todo respeito aos jumentos.

Não deu mais tempo de me esquivar. Mais outro soco veio me derrubando de vez no chão.
Senti um gosto de ferrugem na boca. Era sangue. Ele tinha me arrancado algum dente, com
certeza.

Enquanto isso, Paulinha, que gritava sem força pedindo por ajuda, cambaleava tonta em
direção à festa; ela parecia nunca chegar lá. Guto se ajoelhou sobre o meu corpo caído e
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tentou me socar de novo, mas graças ao meu reflexo eu consegui segurar o seu punho de
soco inglês a caminho do meu rosto e o agarrei pelo braço com as duas mãos, canalizando
nelas toda minha força, cerrando os dentes.

— Briga que nem homem, bichinha! — Guto me ofendeu entre um grunhinho, tentando se
libertar do agarrão.

Tanto eu quanto Guto nos avermelhamos de tanto esforço e ódio. Ele era mais atlético por
causa do surf, mas eu não ficava tão atrás com a natação. Munido de uma força que até hoje
não sei de onde tirei. Era a adrenalina de finalmente não me sentir um covarde. A sensação
de me defender sem a ajuda de Caio e sua figura imponente. Eu também podia ser “bom de
briga” e bater no adversário mesmo apanhando dele.

Com todo meu empenho, consegui tirar o soco inglês dos dedos da mão direita de Guto e ele
se afastou abruptamente me empurrando no chão com força. Peguei o artefato e o lancei para
longe no matagal adiante.

— Você é que briga feito bicha, seu pedaço de bosta trapaçeiro! — disse eu ofegante
reunindo minhas forças novamente e levantando do chão. — Tu é um carma! Sabe carma
coletivo?

— Cala boca, seu frangote! — Guto fez cara de que não estava entendendo meu papo,
enquanto a gente se encarava andando em círculos.

Nem eu sabia direito o que era carma, só estava replicando uma frase de efeito que vi a Mel
usar uma vez.

— Na turma, aliás, na escola inteira, NINGUÉM TE SUPORTA! Não dá pra você se mancar
e subornar uns professores pra eles te aprovarem logo não? Coitados dos futuros alunos, pô!
Ninguém merece dividir o mesmo ar contigo, sua fossa ambulante! Você é sujo, contamina,
sacô? Você é um surfistinha burro e vai reprovar sempre. Na escola e na porra da sua vida!
Seu, sem-futuro! Volta pro inferno, Big Loira!

Eu não sei o que se passou na mente do Guto naquele momento, mas eu destilei todo meu
ódio, todo meu veneno guardado de anos e ainda foi pouco. Sei que peguei pesado, pois já
era a terceira vez que o cara tentava sair do ensino médio. Não me lembro mais como era o
esquema pedagógico na época, mas com certeza ele já estava no limite das tentativas, até
pela idade.

Guto inflamou-se de uma forma que me deu medo. Quando olhei um pouco para trás,
Paulinha ainda tentava chegar na galera da festa. O terreno era muito grande e nós estávamos
num ponto bem distante, tanto que se ouvia o som em volume mais baixo. Guto tinha levado
Paulinha ali para abusar dela, isso era uma certeza. Quis se aproveitar da embriaguez da
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garota. Ela andava devagar. Imagino que sua consciência era mínima e lhe permitia apenas
saber que precisava chegar à festa e tentar dizer o que estava rolando entre eu e a Big Loira.

Minha olhadinha para trás foi o suficiente para que Guto me surpreendesse numa tentativa de
me furar com canivete. Sim! Um canivete super afiado brilhando sua lâmina sob o luar que
prateava o céu. O cara estava transtornado. Seu sorriso debochado deu lugar a uma feição
digna de um desses maníacos que mata a própria família. Meu sorrisinho sarcástico sumiu
dos lábios na hora. O sopro gelado da morte me arrepiou a nuca.

— Tu se acha o bonzão, né? Só porque tira notão nas provas… O queridinho dos
professores… RIDÍCULO! Se enxerga! Tu é um manezão, filhinho de papai! Eu te odeio,
sabe por quê? Por causa desse teu topete de se achar mais inteligente, mais importante!

Guto avançou e cortou meu braço esquerdo. O couro grosso da jaqueta não foi o suficiente
para suavizar o afiado golpe e rasgou. Eu estava encurralado, mas não queria correr, não
podia. Fugir seria meu atestado de medo; pior, de covardia.

— E vai fazer o quê? Me matar? Vai acabar de estragar tua vida, por causa de alguém que tu
acha insignificante? — perguntei sentindo a ardência do corte.

— “Insignificante”! — Guto tentou me arremedar. — Palavra difícil até agora, frangote? Tu


sempre atrapalhou a minha vida, seu porra. Até a Lana tu pegou sabendo que eu sempre fui
parado na dela! A Lana era minha! — Guto se tremia de ódio.

— Que sua o quê?! Tá maluco, cara? Nem sua, nem minha. Você não viu quem ela tava
beijando na festa? Ela não quer e nem merece nenhum de nós dois. — falei isso na tentativa
de uma psicologia reversa, esperando que ele sentisse algum consolo e baixasse a guarda.

— Merece sim! Ela me merece... Ela vai perceber que EU é que sou homem pra ela! E se ela
não me quiser, eu faço ela querer!

— Ah, mas com certeza! Forçar garotas é bem mais a sua cara, né?

Eu não deveria ter sido sarcástico novamente. Dessa vez, Guto me olhou com cólera e
manejou o canivete mais rápido e com muito mais destreza. Tentei me esquivar, mas só senti
a ponta daquela lâmina me rasgando abaixo da costela esquerda. Imediatamente minha
camiseta branca e sem estampa ficou manchada de sangue. Eu caí de joelhos. Sempre odiei
hospitais e um dos motivos eram os exames de sangue. Aquilo sempre me deu aflição e isso
foi o que eu senti naquele momento ao ver o fluido vital que escorria de mim.

– Tu vai morrer agora. Degolado feito frango no abate! — Guto esbravejou com toda fúria na
minha frente.

Não havia nada entre a morte e eu.


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— AI, PORRA! — Guto berrou expressando muita dor.

Uma silhueta conhecida se fez atrás dele.

— Hoje não, maldito!

Era Luna Khamali empunhando um punhal prateado com o qual acertou o ombro esquerdo
de Guto, que caiu gemendo de dor.

— Puta desgraçada! — Guto parecia incrédulo ao olhar para Luna e constatar com a mão
direita o sangue que saía de si próprio. – Vão morrer os dois, então!

Luna havia me defendido no impulso e agora precisava também se proteger daquele surtado.
Com dificuldade, eu me levantei e constatei que Paulinha finalmente tinha conseguido ajuda.

— Gente, parem com isso pelo amor de Deus!

Ao ouvir o grito estridente de Karina ecoar e ver os outros jovens que vinham no rastro dela,
Guto vacilou por um segundo e foi tempo suficiente para que eu fizesse a única coisa que
passou pela minha cabeça de jovem nerd. Esqueci momentaneamente a dor do corte e, sem
nunca ter pisado em um dojô de Karatê, mandei um desajeitado, mas confiante “golpe da
garça” na mão de Guto, desarmando-o num chute com meu all star vermelho. O canivete
dele voou para o chão próximo a Luna, que logo se apoderou da arma.

Ele me olhou incrédulo e eu aproveitei meu último “acesso” de força e soquei sua cara
manchada de tanto sol.

— Perdeu, Big Loira! Perdeu!

Karina e os outros jovens, que estavam armados com vassouras, pás e facas de cozinha,
gritaram eufóricos como se fosse a luta final entre Daniel Larusso e Johnny Lawrence. Guto
ainda tentou revidar e correr, mas a galera não deixou e, liderados por Maurício, o renderam
até a polícia chegar. Logo eu voltei a cair de joelhos. Os ferimentos do braço e costelas
estavam doloridos demais. Tirei a camiseta branca ensopada de sangue e a jaqueta, que usei
para tentar estancar o sangramento da costela. Mel e Joca chegaram e foi aquele alvoroço.
Fim de festa, óbvio. Levaram-me devagar até um enorme sofá de couro estampado de zebra,
ao lado da piscina, onde Paulinha já descansava com um baldinho de gelo entre as pernas
aparando seu vômito. Quiseram chamar ambulância para mim, mas Karina se ofereceu para
me levar ao pronto socorro mais próximo que ficava dali a cinco quadras. Porém, eu queria
um tempo a sós com Luna, então recusei.

— Tem que ver se isso não infeccionou. Vai saber se a faca daquele desgraçado não tava o
puro tétano... — Luna estava toda preocupada.

— Você vem comigo? — perguntei na esperança dela ter me perdoado.


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— Claro — Luna respondeu como se quisesse dizer mais do que isso.

— E você dá conta de dirigir nesse estado, garoto? É muito sem juízo mesmo. Não vai não
senhor! — Melissa falou com ar de mãe preocupada.

— Karina disse que são só cinco quadras daqui até o “P.S”, então acho que consigo sim.

— Caraca, nessas horas me dá uma raiva não saber dirigir! Mesmo sem habilitação, eu te
levava lá. — Joca estava eufórico, passando as mãos na cabeça, como ele sempre reagia
diante de situações inesperadas. — Você não quer que a gente vá junto, cara?

— Acho melhor não, né? Pelo visto, Betinho tem alguma coisa a mais para resolver… —
Melissa sempre muito esperta, já havia deduzido que eu precisava me entender com Luna. E
eu nem liguei dela ter me chamado no diminutivo; achei fofo dessa vez.

— E a carona que eu daria pra vocês?! — eu me lembrei disso. Nunca deixava meus amigos
na mão.

— Não se preocupa com isso, Beto. Eles podem ficar aqui essa noite. Minha mãe adorou a
Mel mesmo... — Karina respondeu toda prestativa. — E outra, isso não acaba agora. A
polícia ainda vai chegar e esse imbecil não vai se safar. A gente cuida da Paulinha também,
qualquer coisa levamos ao hospital. Se bobear ninguém dorme hoje. Pega aqui, pressiona
isso na costela. — Ela me deu uma bolsa de gelo para ajudar a estancar o ferimento.

— Ah, sendo assim, então ok. — Assenti aliviado, vestindo novamente minha jaqueta de
couro preta rasgada e agora ensanguentada, que até então me servia como bandagem.

— Vamos? — Luna me estendeu as mãos. Segurei e levantei com certa dificuldade.

— Então, já que a gente não vai mesmo, se precisar de alguma coisa, dá teu jeito de gritar. —
Os olhos de Joca me encararam cheios de preocupação.

— Pode deixar, amigo.

— Cara, cê vai dirigir assim? Tá louco? Eu te levo, pô! — se ofereceu Maurício assim que
deu as caras novamente.

— Que leva o quê, rapaz! Tu é menor de idade, que eu sei. Aliás, parece que tirando eu e o
bandidinho lá, aqui é todo mundo criança perante a lei! — Dona Juju apareceu feito um
furacão, interrompendo Maurício.

— Mas, eu tenho primo na Civil e sou emancipado. Não vai dar nada se pegarem a gente. —
justificou Maurício.
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— E desde quando só por que é emancipado pode dirigir? Isso aí tá errado, garoto. Está
decidido. Quem vai levar o Beto no Pronto Socorro sou eu! Bora, cadê a chave do possante?
Por que meu marido saiu com nosso carro. Depois eu volto de táxi.

— Não precisa se preocupar, Dona Juju. Eu consigo chegar lá — tentei negociar.

— Não senhor! Pra depois minha fama de irresponsável aumentar? Ainda mais sendo teu pai
quem é… jamais!

Depois de alguns minutos tentando dissuadir Dona Juju sem sucesso, dei a chave do cadillac
nas mãos dela e saímos em direção ao estimado carro de papai.

— Betinho precisa de um banho com sal grosso urgente… — Melissa deixou escapar
enquanto eu saía.

Ainda sangrava um pouco só que o gelo amenizava a dor e a ardência. Joca me ajudou a
chegar no carro e daí Juju assumiu o volante. Incrível como a vida é surpreendente. Eu
jamais imaginei passar por uma situação dessas. Jamais pensei viver uma noite tão intensa,
incluindo parar no pronto socorro, cortado no braço e na costela, com uma moça
“desconhecida” pressionando uma bolsa de gelo na minha ferida e uma perua dançarina na
direção do Cadillac de papai. Parece um filme aleatório da Sessão da Tarde.

FITA 18: 31 de outubro - 03h00 da madrugada

"Vem chegando o verão


O calor no coração
Essa magia colorida
Coisas da vida…
Não demora muito agora
Toda de bundinha de fora
Top less na areia
Virando sereia"

Foi tudo muito rápido no Pronto Socorro. Dona Juju deixou a gente, me entregou as chaves e
tomou um táxi de volta para casa, pois, sendo a adulta dona da casa, recepcionaria a polícia e
responderia sobre Guto, que ainda estava lá, detido por outros adolescentes.

O bom é que era madrugada e havia poucos pacientes para serem atendidos. Logo passei pela
médica e enfermaria. Tomei umas injeções fortes de analgésico e antiinflamatório, que
aliviaram minhas dores. Sorte minha estar em dias com a vacina antitetânica. Luna esteve ao
meu lado o tempo todo e segurou minha mão enquanto o enfermeiro fez a assepsia no
ferimento, deu dois pontos no corte e cobriu com o curativo. Aquilo doeu pra caralho.
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Eu apertei seus dedos entre os meus e me senti o cara mais sortudo do mundo. Aquela
energia que vinha dela… Era revigorante e me fazia esquecer a dor da facada que Guto me
dera ou a ardência do mercurocromo que eles passaram para limpar o ferimento. O corte não
foi tão profundo, mas a lâmina era fina e rasgou bonito.

Eu me sentia bem melhor por causa das injeções de analgésico e antiinflamatório. Luna e eu
deixamos o pronto socorro de braços dados. Fomos recepcionados por uma madrugada
estranhamente fria de verão, mesmo estando no Rio de Janeiro. Ainda bem que eu me
lembrei de pegar a jaqueta de couro preta. Apesar do clima estranho, uma baita lua nova
brilhava no céu e me atiçava a ainda viver o resto daquela madrugada. Naquela mesma noite,
Luna e eu nos conhecemos. Nada podia ser mais especial que isso. Não sabia como, mas
sentia que já nos conhecíamos de um outro lugar. Olhei para ela ao meu lado. Apertei sua
mão com mais força e pedi com sinceridade:

— Me desculpa. Me desculpa de verdade. Eu fui um grande babaca com você, um perfeito


idiota. Por ter te pegado à força pelo braço daquele jeito, por ter gritado com você e te falado
toda aquela merda. Eu fui um cara péssimo contigo, Luna, escroto mesmo. E, na moral, até
vou entender se você não me perdoar.

Enquanto eu falava, os belíssimos olhos âmbar de Luna brilhavam intensamente e


acompanhavam cada palavra com atenção.

— Claro que te perdoo, Beto — ela me respondeu — Eu entendo que você está vivendo um
dia difícil, e provavelmente isso vai te marcar pro resto da vida, mas o que importa mesmo,
cara, é que você demonstrou ser um homem de verdade. Tanto por defender a Paulinha
daquele infeliz, como por se desculpar nesse momento. E até parece que eu estaria aqui
contigo até agora, se não fosse te perdoar.

Luna disse isso com um sorriso singelo.

— Nossa... — por alguns segundos, desviei meus olhos de Luna e vislumbrei o céu
iluminado. A lua grandiosa me devolveu um olhar cintilante. — Eu tenho observado o céu
desde que você me falou da sua teoria de que cada um de nós tem uma estrela — confessei
ainda olhando para o alto — Mas no meu caso, você está errada. Eu posso passar a vida
olhando pro céu. Minha estrela nunca vai estar lá, pendurada com as outras.

— Mas, por quê?

Voltei a olhar para Luna. Seu rosto de porcelana roubava o brilho do astro-mãe acima de nós.

— Porque você está comigo aqui e agora.

Luna arregalou os olhos, surpresa e envergonhada.


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— Ai, Beto, para com isso, garoto! — Luna e eu compartilhamos um sorriso bobo — Só se
eu for uma estrela muito cadente!

— Ué, pode ser… Não dizem que as estrelas cadentes realizam desejos? — Foi inevitável
insistir naquele papo “serenata de amor”.

— Depende do desejo… Qual seria?

Nossos olhos se conectaram em uma troca sentimental, transmitindo o mais puro desejo.
Segurando Luna pelas duas mãos, entrelaçamos nossos dedos com carinho. Fui me
aproximando aos poucos, controlando a ansiedade de beijá-la logo, enquanto examinava os
contornos daquela face exuberante. Seus lábios tão vermelhos e magnéticos, me atraíam
como um ímã.

Luna não fugiu. Seguro de mim, agarrei sua cintura e a beijei com tanta vontade, em cada
manobra de nossas línguas. Ela se entregou retribuindo com a mesma intensidade segurando
delicadamente o meu rosto com as mãos cheias de anéis.

"Essa noite eu quero te ter


Toda se ardendo só pra mim
Essa noite eu quero te ter
Te envolver, te seduzir."

Nossas línguas se conheceram no ritmo daquele beijo lento, que foi avançando. Luna
acariciou meus cabelos e desceu suavemente as mãos pela minha nuca. Eu já estava bem
excitado e a apertei firmemente ao meu corpo, arrancando da cigana, um pontual e discreto
gemido.

— Espera, Beto, calma! — Luna me afastou suavemente, arfando — A gente está em frente
a um hospital! Não fica bem. Tem gente doente aí…

— Mas a gente tá cheio de saúde...

Suspirei com o coração a mil. Eu não queria parar justo naquela hora. Estava bom demais.
Dentro de segundos eu maquinei mentalmente, vários cenários para ficar sozinho com Luna.
Até que…eureca! Muito arriscado. Mas naquela noite, meu sobrenome era perigo.

— Quer ir comigo na loja em que eu trabalho? — Convidei.

Luna estranhou a princípio. Expliquei a ela que a loja era do meu padrinho, Teixeira, e que
eu havia começado a trabalhar lá por causa da amizade entre ele e meu pai. Ainda esclareci
que eu tinha as chaves

— Não é uma invasão. É só pra gente ficar mais à vontade. Você vai curtir pacas o lugar!
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Meu poder de persuasão estava em dias e cara de cachorro sem dono, ajudou com que Luna
aceitasse meu convite. Medicado, até esqueci do meu machucado. Abri a porta para ela e
depois assumi o volante. Liguei o rádio e Marina estava terminando de cantar sua icônica
"Uma Noite e Meia".

Luna me falou que não conhecia a música. Achei estranho, mas talvez, os ciganos não
ouvissem esse estilo musical. Conversamos durante todo o trajeto e a brisa do mar de
Copacabana deu o ar da graça, quando eu entrei na Avenida Atlântida. A única blitz no
caminho agora era a voz do Evandro Mesquita que vinha do rádio tocando “A dois passos do
paraíso”. Mensagem subliminar? Papai do céu estava ao meu lado.

“O rádio toca uma canção


Que me faz lembrar você, eu
Eu fico louco de emoção
E já não sei o que vou fazer
Estou a dois passos do paraíso
Não sei se vou voltar
Estou a dois passos do paraíso
Talvez eu fique, eu fique por lá”

Finalmente estacionei em frente à loja. Entramos na Alpha Som e eu acendi apenas as luzes
auxiliares, que eram mais fracas, para não chamar a atenção. Luna se encantou com todo
aquele ambiente e infinidade de discos. Fiquei meio bobo de vê-la igual a uma garotinha
numa loja de brinquedos, olhando para as prateleiras e toda a moderna estrutura espelhada
com olhos brilhantes.

— Que lugar lindo! Tô chocada... — Ela elogiou rodopiando no eixo de si mesma.

— Eu não te falei que era incrível? Eu amo trabalhar aqui. Sabia que é a loja de discos mais
completa da região?!

— Sério? Brasa demais!

Não esperei nem mais um segundo e calei Luna com um beijo ansioso. Ela correspondeu na
mesma sintonia e fomos nos beijando até esbarramos em uma prateleira de fitas K7's com
temas de novela, de onde derrubamos algumas no chão.

Rimos do nosso pequeno desastre.

— Calma aí, vou pôr uma música pra ficar um clima legal...

Luna concordou e fui até o moderno aparelho de som que ficava no balcão. Procurei pelo
álbum do duo Wham!. George Michael seria a escolha perfeita. Eu ouvia tanto aquele disco,
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que já sabia onde estava a faixa que eu queria. Então, o coloquei para rodar na vitrola e o
clássico saxofone de "Careless Whisper" invadiu todo o ambiente. Com um tapão no
interruptor, acendi apenas as luzes auxiliares próximas ao balcão.

Corri empolgado até Luna e a convidei:

— Mademoiselle, me concede a terceira dança da noite? Dessa vez sem mico, eu juro.

— Claro, cavalheiro! — Luna riu e fez uma reverência.

Peguei suas mãos, dei um beijinho e as coloquei sobre meus ombros, enquanto segurei de
leve sua cintura. Começamos a dançar lentamente ao ritmo da música.

"I feel so unsure


Me sinto tão inseguro
As I take your hand and lead to the dance floor
Quando pego a sua mão e te levo à pista de dança
As the music dies, something in your eyes
Enquanto a música acaba, alguma coisa em seus olhos
Calls to mind the silver screen
Traz a lembrança de uma tela prateada
And all its sad good-byes
E tudo as são despedidas tristes"

Levei meu rosto ao pescoço de Luna aspirando aquele perfume doce e inebriante. Pude notar
que ela se arrepiou. As borboletas fizeram festa na minha barriga. Uma gostosa e estranha
ansiedade fez meu coração acelerar. Eu sentia meu peito acalorado.
Nossos lábios se encontraram novamente em beijos nada apressados.

I'm never gonna dance again


Eu nunca dançarei de novo
Guilty, feet have got no rhythm
Estes pés culpados não têm ritmo
Though it's easy to pretend
Embora seja fácil fingir
I know you are not a fool
Eu sei que você não é tola"

Aquela foi nossa terceira dança da noite. Foi como se eu estivesse flutuando.
Espontaneamente, Luna e eu começamos a nos despir em cada toque carinhoso que nossos
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cinco sentidos nos proporcionaram. Nossos corpos envolveram-se num abraço cúmplice e a
pele se arrepiava à medida que as mãos tocavam com mais ousadia, mapeando os detalhes da
nudez com as digitais.
Eu já nem me lembrava dos curativos na costela e braço. Santas injeções! Luna me transmitia
confiança, o que me deixou mais tranquilo sobre aquela ser minha primeira experiência
sexual. A poesia da meia luz me fez sentir o tato de forma quase “extrafísica”. Com
naturalidade, dançamos a melodia do desejo, entre sussurros lascivos que se eternizaram em
minha mente e nas paredes da Alpha Som. Ali mesmo, tendo os deuses da música como
testemunhas, eu conheci uma mulher pela primeira vez.
Ao fim daquela coreografia erótica, deitamos de mãos dadas e rimos ofegantes olhando um
para o outro. Minha primeira vez não poderia ter sido melhor.

FITA 19: 03h40 A.M do dia 31 de outubro para 01 de novembro

“Don't be mistaken by the first impression


Não se engane com a primeira impressão
And don’t be fooled by that innocent expression
E tome cuidado com a expressão inocente
She's not what she seems
Ela não o que parece
Don't wait in her dreams
Não espere nos sonhos
Coz when she breaks away from the child
Pois quando ela deixa de ser a criança
And the woman is wild
Se torna uma mulher selvagem
So wild
Tão selvagem
She's on fire
Ela está em chamas
And she burns through the night at the speed of light
E ela queima durante a noite à velocidade da luz”

Depois de mais alguns beijos e carícias, nos vestimos novamente e, de repente, me lembrei
que Luna iria embora logo ao amanhecer. Então me ocorreu uma ótima ideia.

— Vou gravar uma mixtape em K7 especialmente pra você se lembrar de mim — declarei
super empolgado — Só as melhores!
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— Você e suas ideias… Não preciso de K7 nenhum para me lembrar de você, bobinho! —
Luna frisou e apertou meu queixo com a mão esmaltada de vermelho.

— Não, mas é sério. Eu reparei que você não conhece vários artistas super maneiros e, tipo
assim, cê não ouve rádio mesmo ou você saiu de um super computador nerd? — Comecei a
selecionar LP’s com greatest hits de vários cantores. Quem sabe eu conseguisse embutir em
pout pourri num K7 só. Ia demorar um pouco, mas valeria a pena.

— Não sou muito de reparar em música de Gadjô… — Luna começou a recolher as fitas que
havíamos derrubado anteriormente e colocá-las novamente na prateleira.

— O quê? “Catiôrro”?

— Não!! — Luna abriu uma gargalhada tão gostosa por causa da minha ignorância. —
“Gadjô”, quer dizer um garoto que não é cigano. É assim que meu povo chama vocês…
“GADJÊ”. As moças são “GADJÍ”, mas você que é um rapaz…“GADJÔ”.

— Aaaahh, tá! Então eu sou “gadjô”? Tendi.

— Um gadjô muito atrevido e safadinho.

— Imagina...

Procurei por fitas K7 virgens para transferir músicas dos LP’s e gravar a playlist e só
encontrei uma lacradinha na gaveta do balcão. Rapidamente, a encaixei no compartimento do
aparelho que copiava as fitas e apertei o botão embaixo do balcão, ligando o microfone para
captação máxima de áudio, que seria gravado diretamente da mesinha de som para a fita e
não ecoaria pela loja.

— Agora eu vou mandar um recado para a moça mais bonita da festa, a dona da quermesse, a
rainha das danceterias de todo o mundo. Luna Khamali, prepare-se, pois eu vou ficar para
sempre no seu coração! — fiz minha melhor voz de locutor de rádio romântico.

Quando eu já ia pôr o LP na vitrola, fomos interrompidos por uma estranha movimentação na


porta de entrada, que era de vidro, mas as persianas estavam fechadas, ou seja, não dava para
ver o que acontecia lá fora e quem estava fora não via nada do lado de dentro também, até
por causa da pouquíssima iluminação interior.

— Que barulho foi esse? Você ouviu? — Luna perguntou baixinho com feição desconfiada.

— Fica aí.

Silenciosamente, pé ante pé, fui até a janela mais distante da porta e, com cuidado, abri de
levinho uma persiana do cantinho inferior direito. Eram dois homens de cara amarrada
vestindo roupas casuais e armados. O mais jovem com uma pistola e o mais velho com um
revólver calibre 38. Eles conversavam como se calculassem a melhor maneira de abrir a
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porta da loja, que era de vidro e estava trancada à chave nas duas fechaduras por dentro. Pior
que aquele setor era muito mais comercial do que residencial. Estava tudo meio deserto.
Quem perceberia a movimentação suspeita?

Só deu tempo de voltar rapidinho, pegar os sapatos, apagar as luzinhas auxiliares próximas
ao balcão, agarrar a mão de Luna e correr para o almoxarifado, enquanto eu sussurrava:
"Tem dois bandidos querendo invadir a loja!". Ainda bem que estávamos descalços para
correr sem fazer barulho. Nós nos trancamos dentro daquele quartinho que não via uma
limpeza há dias.

Em meio a todas aquelas caixas, pastas, ferramentas e quinquilharias, eu me lembrei do meu


padrinho. Era a segunda vez que eu o desobedecia e levava alguém para o “Cômodo
Proibido”. Mas dessa vez era por sobrevivência. Luna estava assustada e eu também. Se nos
encontrassem ali era fim de linha. Papai do céu ainda estava ao meu lado? Difícil saber.

Ouvimos dois estalos. Tiros. Barulho de cacos de vidro estilhaçando no chão. O alarme da
loja nem soou direito e foi silenciado pelo terceiro tiro. Com certeza eles viram a luzinha
vermelha no canto superior da parede de entrada, indicando onde era a matriz do alarme.

— Eles entraram… — Luna sussurrou apertando forte a minha mão.

— Calma, calma. Fica fria. — Frias estavam as minhas mãos com medo de morrer, mas uma
calma absurda não me deixava enlouquecer. Era como estar mais uma vez no limbo de onde
a qualquer momento eu sairia vivo ou morto.

Do almoxarifado, eu só sabia onde ficavam as lanternas. Consegui achá-las, peguei uma e dei
outra para Luna, que me abraçou com muita força bruscamente. E agora, vozes masculinas se
faziam perfeitamente audíveis. Isso significava que os bandidos estavam bem próximos de
nós. Dava impressão que estavam na área do balcão. Desliguei o rádio na velocidade da luz.
Qualquer barulho mínimo nos entregaria.

— Pois é, chapa, eu nem sei te dizer qual é a do chefe. Mas isso é coisa das antigas. Parece
que é sobre uma tal de cigana… Uma puta famosa que trabalhava pra ele. Não faz mais
sentido, já tem muito tempo essa história. Eu era novato igual tu, que chegou mês passado.
— Esse era o cérebro da dupla, o veterano.

— E tu já viu essa mulher? — O outro bandido perguntou.

— Já. O patrão tinha muitas fotos dela. Linda demais, um pitelzinho!

— Então, o quê é que a gente tá procurando aqui mesmo?

— Mandaram a gente aqui para pegar tudo que é pasta e papel que fale sobre esse assunto.
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Luna segurava sua lanterna iluminando o belo rosto cheio de perplexidade. O que havíamos
escutado era muito grave. Ela tremia os lábios e dos olhos arregalados corriam lágrimas, que
com certeza não eram de tristeza. Do nada, como numa epifania, um insight, Luna girou a
chave e com duas voltas na fechadura a porta se abriu. Meu coração gelou na hora. Tentei
impedir aquela loucura, mas sem sucesso. Tarde demais. Ela saiu do almoxarifado e eu fui
junto, a fim de protegê-la caso algo ruim acontecesse. Assim que saímos, nos deparamos
com os dois bandidos.

— Que porra é essa…? Você? — consegui ver o bandido veterano atônito. Sua boca tentava
formar palavras além de sílabas soltas — Não é possível… Eu devo ter exagerado no pó!

— BÚ! — Luna imitou com deboche um susto fantasma iluminando o próprio rosto com a
lanterna.

O veterano grisalho berrou e saiu correndo, atropelando a prateleira de revistas estrangeiras e


deixando cair seu 38 perto da entrada da loja.

— Sem gracinha, vocês dois, que eu não tô pra brincadeira! — ameaçou o bandido novato
com uma vozinha esganiçada. Honestamente, não era amedrontador e, se não fosse pelo
revólver que ele tinha acabado de engatilhar, eu teria partido pra cima dele.

— Cara, por favor, deixa a gente na boa. Pode levar o que você quiser…— tentei negociar.

— Ele vai deixar a gente sim e sem roubar nada! — Luna expressou uma firmeza assustadora
e deu dois passos para frente em direção ao invasor.

— Se der mais um passo eu atiro, vadia! Eu não sou igual aquele frouxo do Matias, eu não
deixo serviço pra trás. Eu vou levar o que eu vim buscar aqui hoje, nem que eu tenha que
passar fogo em vocês! — Sua voz de gralha estava cheia de nervosismo, mas também
demonstrava convicção. Sim, ele atiraria.

— Cara, não faz nenhuma besteira, pelo amor de Deus! — eu ainda tentava apelar para o
bom senso e tudo que fosse sagrado. E olha que eu era agnóstico.

— Mas você já falhou. Falhou quando matou sua própria mãe ao nascer...

Do que Luna estava falando?! Sem dar ouvidos aos meus pedidos para que ela ficasse ao
meu lado, a teimosinha deu alguns passos rumo ao bandido e recebeu um tiro na perna
direita.

—LUNA! — gritei desesperado — NÃÃÃOOO!

Luna não esboçou qualquer reação de dor e continuou caminhando normalmente em direção
ao mal encarado. Eu não entendi absolutamente nada. Como… como aquilo era possível?

Como alguém toma um tiro na perna e fica tranquilaça?


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— Não é assim que você se sente, Celso? Um nada, um zero à esquerda criado pela avó…

Como ela sabia o nome dele?

Conforme Luna avançava, o bandido, chamado Celso, recuava com o braço direito esticado e
a mão cada vez mais trêmula apontando a arma. Até que não havia mais para onde correr.
Ele ficou encurralado na parede lateral, onde estavam os aparelhos de som com fones de
ouvido.

— Você não quer fazer isso. Sua avó está doente numa cama e você precisa de dinheiro para
os remédios… Ela nem sabe que você virou bandido, sabe? Imagina a decepção quando
souber que o netinho que ela mais ama virou um bandido. — Luna enfatizou essa última
palavra em tom de julgamento.

— Cala a boca, sua piranha! Você não sabe de nada!

Celso disparou mais um tiro e dessa vez atingiu Luna na barriga. A essa altura eu não sabia o
que pensar. Só gritei e tentei chegar perto dela, mas fui impedido pela arma que o criminoso
apontava para mim.

— Chega mais perto e você morre agora!

Luna não se abalou e o surpreendeu abrindo a palma da mão, soprando uma espécie de pó,
que eu até hoje não sei de onde ela tirou. O bandido nitidamente se confundiu e começou a
fraquejar. Luna tocou o peito do cara e começou a estalar os dedos sobre a sua cabeça. Eu
não sabia o que estava acontecendo. Minha mente parecia uma televisão tentando sintonizar
o sinal. Afinal, que porra era aquela?

— Quem é você? — encarando Luna cheio de medo, os olhos de Celso ficaram molhados de
lágrimas. Ele caiu chorando em posição fetal.

Eu me fazia a mesma pergunta enquanto me abaixava para pegar o revólver.

— Calma, rapaz. Põe essa mágoa pra fora. Você não precisa disso… — Ajoelhada, Luna
estalava os dedos na cabeça de Celso e ele chorava copiosamente.

— MAS, QUE PORRA… — uma voz robusta adentrou a loja e exclamou com ar de
espanto.

Eu ainda não tinha ligado as luzes de novo, então não dava para ver de quem se tratava.
Percebi que, na verdade, eram duas pessoas, outros dois homens. Deu para ver suas silhuetas
altas e robustas mesmo na penumbra. Luna e eu imediatamente nos afastamos de Celso.

— Eu sabia que era um frouxo… — disse o outro cara alto em tom de clara decepção.
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— Tu só me arruma capanga cagão, Rivaldo! Eu sabia que ia ter de pegar essas provas com
minhas próprias mãos. — comentou a mesma voz, que vinha de um cara alto, gordo e de
roupa escura. Ele segurava um revólver na mão direita e charuto na esquerda.

— É mesmo um borra-botas… Eu confiei tanto no teu potencial, Celso! — lamentou


Rivaldo, em franca decepção. Tinha uma voz normal e de certa forma, familiar. Ele era só
uns dois palmos mais baixo do que o primeiro. — Vai dizer "oi" pra puta da tua mãe agora.

Ele sacou uma arma da cintura e disparou duas vezes contra a cabeça de Celso, que morreu
ali no mesmo instante.

— SEU INFELIZ! — bradou Luna com choro na voz.

— Olha só… Pelo visto não foi só a gente que quis dar uma passadinha noturna aqui nessa
lojinha de merda hoje. — O homem chamado Rivaldo se aproximou pegando uma das
lanternas que estava no chão e iluminou nossos rostos. Eu olhei direto para ele, mas Luna
permaneceu de cabeça baixa. — Vamos ver o que temos aqui…

— Só pode ser alucinação! Não tô acreditando no que eu tô vendo! — O cara grandão estava
incrédulo — É você mesmo? Olha pra mim!

— Boa noite, filho da puta! — Luna ergueu a cabeça devagar e lançou um olhar fuzilante aos
dois grandalhões recém-chegados.

— MAS É IMPOSSÍVEL! A cigana? Mas você…você morreu. Eu mesmo dei fim no seu
corpo! — O brutamontes deixou cair o charuto de tão chocado que ficou. Momentaneamente,
ele perdeu sua pose de vilão e pareceu assustado. — Você não pode ser a cigana, porque ela
tá MORTA!

Morta?! Não… Como assim?! Ele deve estar confuso.

— Tão morta quanto você, Malvino Martins… — disse Luna com altivez.

Luna estava viva. Eu senti sua pulsação em cada toque de nossa intimidade. Aquele bandidão
só podia estar muito cheirado igual ao seu comparsa fujão.

— Pera aí, que diabo é isso? — Rivaldo sustentou um olhar incrédulo, enquanto encarava
Luna pela luz da lanterna que segurava. — Não pode ser… É ELA! Luna Khamali! A
vadiazinha metida a estrela! Tu não me disse que tinha apagado ela, cara? Ou era cascata
tua?

— Que porra de cascata, Rivaldo! Eu dei mesmo uma lição nessa vadia, tô te falando! — O
grandalhão cuspia em cada sílaba.

Rivaldo era o dono da voz que me soava familiar. Foi chocante para mim. Eu só tinha visto
seu rosto uma vez e bem rápido, na casa de Caio. Sim, para o desgosto de ambos, eles eram
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pai e filho. Um dos bicheiros mais famosos do Rio de Janeiro tinha antipatia pelo filho, que
não correspondia às suas expectativas. Era um homem perigoso que dominava várias
comunidades, sendo a principal, o Morro do Mutuca, com seu esquema de jogo do bicho,
contrabando de armas e drogas. Não era nada provado, mas uma coisa aqui e ali eu sabia,
pois adorava ficar de ouvido nas conversas de trabalho do meu pai e Caio sempre deu a
entender certas ilegalidades nos negócios da família dele. Agora estava explicado por A mais
B, de onde Caio havia tirado inspiração para o seu negócio de “agiotagem amadora” na
escola. Mas me calei; estava confuso demais para conseguir dizer qualquer coisa.

— LIÇÃO?! — Luna gritou com tanta força que sua voz ecoou pela Alpha Som com uma
potência que desafiou a escala de decibéis. — Você me ESTUPROU, SEU ESCROTO! ME
ESTUPROU! E depois incinerou meu corpo como se eu fosse um saco de lixo qualquer. Mas
hoje você vai pagar!

Cada palavra de Luna fazia meu estômago revirar. De repente, meu cérebro começou a trazer
flashes da visão que eu tive ao me afogar na praia do Arpoador. O letreiro da boate
Broadway, a apresentação da cantora. Finalmente meus neurônios fizeram a devida ligação.
Aquele cara alto, aquela voz…era o mesmo da “experiência de quase morte”. Engoli seco e
tentei não ter um surto com aquela situação absurda na qual eu estava inserido naquele
momento. Não havia como Luna resistir aqueles tiros sem que ela fosse uma espécie de
mulher biônica, o que eu já tinha verificado que não era o caso.

Luna começou a estalar os dedos das mãos enquanto Rivaldo a mantinha presa. Era um
estalar rítmico, como se seguisse uma melodia. Senti um calafrio na nuca que percorreu toda
a minha espinha. A mesma sensação esquisita que me atingiu no escritório do meu pai, dias
atrás. E então eu me lembrei da moça assassinada cuja morte ele investigava e cuja foto de
péssima qualidade eu havia visto ao explorar o conteúdo da pasta marrom. Olhei para Luna.

Não. Definitivamente não. Sem condições da minha suspeita ser real. Eu estava maluco! Era
a única explicação.

O tal Malvino deu um risinho de deboche. Nem ele, nem o pai do Caio pareciam de fato
intimidados por estarem diante de um suposto fantasma. Estava mais para um misto de
choque e surpresa, mas amedrontados não. Pelo menos não era o que demonstravam.

— Vinte anos depois e você continua querendo chamar atenção, não é, garota? “LA
ROMANI”! Sempre querendo palco. — Malvino despejava ironia

“La Romani”? Meu Deus do céu…era ela mesmo! Luna era a cantora da boate Broadway
que foi violentada e incinerada. Mas…como? Não fazia sentido. Então eu não tive apenas
uma simples visão.

Malvino continuou:
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— Para com esse teatrinho barato que eu não tenho medo de “gente morta”.

Luna não respondeu, apenas ofegava de ódio.

— Isso só pode ser um truque pra assustar a gente, cara! — opinou Rivaldo — Essa moleca
deve ser filha da cigana. Se fosse ela de verdade, estaria mais velha. Você lembra que ela
vivia de segredinho com aquela bichinha do Juan? Devia ser isso! Uma filha escondida que
agora apareceu pra vingar a morte da mamãezinha! Cigano tem muito truque, é tudo ladrão!

Agora não me restavam dúvidas. O tal do Juan foi citado. Era o cerimonialista da boate. Me
senti dentro de um episódio de “Além da Imaginação”, que só a Mel poderia me ajudar a
desvendar. Ela até tinha mesmo me dito que tinha descoberto algumas paradas a respeito da
minha E.Q.M, mas eu meio que ignorei. Ah, Melissa… que falta você fez!

— Limpa essa boca imunda pra falar do meu povo, seu verme! Hoje eu vou pôr fim na
sujeira de vocês. Vou vingar todo sangue inocente que lavou o chão daquela boate. — Luna
falou isso cheia de firmeza

— Não sei do que você está falando. — Malvino respondeu sarcasticamente.

— Sabe sim. Vocês vão pagar muito caro pelos seus crimes!

Minha garganta estava atada por um nó cego. Eu não conseguia gritar. Não conseguia
entender nada do que estava rolando naquela loja. Nem Freddy Kruger orquestraria tal
pesadelo. Mil coisas passavam pela minha cabeça, dentre elas, a busca por um plano mais
elaborado que nos tirasse dali. Ninguém nos salvaria. Era coisa de gente grande. Não era
briga de faca com valentão do colégio, não tinha "Golpe da Garça'' que mudasse o rumo
daquela tragédia. Desespero, impotência.

— Chega dessa ladainha. Eu não sei o que você é e muito menos como reapareceu vinte anos
depois — Malvino disse isso com ódio e fascínio na voz — mas, antes de te mandar pra cova
de uma vez por todas, vou te dar aquele presentinho de novo, que é pra você fazer a sua
passagem “realizada” direto pro inferno, sua puta. Tira a roupa dela, Rivaldo!

— NÃÃOOO!

Esqueci completamente que eu estava sob a mira do revólver de Malvino, pois levantei num
salto quase olímpico e me atraquei nas costas de Rivaldo, que desequilibrou, soltou Luna e
atirou para o chão. Nisso, Luna tentou correr, mas foi impedida por uma bofetada segura da
mão gigante de Malvino.

Rivaldo se recuperou do susto e teve tempo de dar uma coronhada com o revólver na minha
testa. Não apaguei, mas caí atordoado aos pés de Malvino, que me pegou pelo topete, o que
doeu pacas, para depois me manter preso por seu braço num “mata-leão” sufocante, mas não
o suficiente para me desacordar.
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Luna se levantou e deu alguns passos para trás. Dava para ouvir o estalar dos seus dedos cada
vez mais alto.

— Eu tinha até me esquecido de você, seu bostinha! — Malvino bafejou aquele hálito fétido
de charuto na minha cara. Seus dentes tortos e, certamente, cheios de tártaro, vistos de perto,
me causaram asco— É teu namoradinho, biscate? — Ele perguntou a Luna.

— Larga o Beto, maldito! Seu negócio é comigo! — Luna ordenou com veemência. Ela
tinha tomado dois tiros, uma bofetada e mesmo assim não havia marcas em seu corpo. Eu já
não entendia mais nada. Quem era ela? Uma vampira?

— É, eu sou namorado dela, sim! E aí? Meu pai vai prender vocês dois, desgraçados! —
Ainda pude ameaçar com dificuldade por causa da “gravata” que Malvino sustentava contra
meu pescoço.

— Adolescente é mesmo uma piada. Você vai ligar pro papai, “Betinho”? — Malvino
parecia saber que eu não gostava de ser chamado no diminutivo. — Como vai a Lana? Já
conseguiu comer ela? — Ele não segurou a risada e foi acompanhado por Rivaldo — Fala, já
trepou com a Lana?

— O que aquela cachorra tem a ver com isso? Como você sabe dela?

— Eu sei de tudo, moleque! E cachorra é tua mãe, olha o jeito que você fala da minha filha!
— Nessa hora meu mundo caiu outra vez. Então Malvino era o pai da Lana? Por causa da
meia-luz eu não conseguia enxergar suas feições direito a ponto de associá-las com o velho
mal encarado que estava no carro que foi buscar Lana no XOU DA XUXA; ou com o dono da
desagradável voz do interfone. — Já que vou matar vocês dois, é justo que morram sabendo
o que eu vim fazer a essa hora de uma noite tão agradável, nessa lojinha chinfrim.

Eu estava rendido por Malvino e Luna se mantinha a certa distância, sob a mira hostil da
arma de Rivaldo, mas isso não parecia amedrontá-la, visto que ela continuava estalando os
dedos ritmicamente.

Nossa bela noite terminaria em tragédia? Eu suava frio, Luna não perdia a pose altiva. Ela
continuava estalando os dedos incansavelmente. Mais um truque?! Só faltava o corpo de
Celso ressuscitar ali; eu não duvidava de mais nada. Malvino e Rivaldo pareciam não
perceber ou se importar com os estalos melódicos dos dedos de Luna.

— Tu só beijou aquela boca porque eu deixei, rapaz! Fui eu que ordenei pra Lana se
transferir para a mesma escolinha onde você estuda e jogar um charme pra cima de você, seu
playboyzinho de merda! E ela fez tudo como eu mandei, senão eu não estaria aqui.

Eu não queria acreditar que isso fosse verdade.

— Do quê cê tá falando, porra?! O que a loja tem a ver com vocês e a Lana? — perguntei.
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— Você é burro, moleque? Acha que não sei quem você é? Quem é o seu papaizinho de
merda? Acha que não estou vigiando a vida de vocês há meses? Lana era apenas a cereja do
bolo! Você achou que ela veio aqui aquele dia pra quê? Pra fazer sexo com essa tua figura
broxante? Te manca!

— E veio pra quê então? FALA LOGO, DESGRAÇADO! — botei a força que eu tinha na
garganta e quase estourei minhas cordas vocais.

Malvino me soltou do mata-leão abruptamente e me atirou com força no chão. Desferiu um


chute na minha costela esquerda sem saber que ela já estava ferida. Os pontos do corte
arrebentaram e eu gritei alto de tanta dor.

— BETO! — Luna gritou quando eu me contorci no assoalho.

Cheio de euforia, Malvino começou a confessar tudo:

— É aqui que teu pai esconde o dossiê sobre mim, Rivaldo e nossos negócios. Eu tenho
certeza. Lana observou tudo! Ela é raposa fina, criada pra isso! Investigou tua casa quando
esteve lá e investigou aqui. Viu o almoxarifado e matou a charada. O promotorzinho metido
a besta sabe que eu tenho amigos e informantes na polícia. Ele não deixaria documentos tão
importantes ao alcance de qualquer um. E resolveu esconder aqui, na loja do amiguinho.
Reza pra Lana estar certa, porque se não, a tua casa será a nossa próxima parada!

Será que meu pai já tinha chegado em casa ou Théo e Mônica ainda estavam sozinhos?
Preocupei-me.

— Coitada da Lana. Com um porco desses como pai… — Luna afrontou e cuspiu no chão,
estalando os dedos mais uma vez.

— Coitada? Coitada por quê? Ela tem tudo que uma garota quer! Uma vida de princesa.
Claro, desde que faça o que eu mandar. — Malvino dizia isso como se Lana fosse seu troféu
— Se não fizer, já sabe. Foi por isso que tirei dela a chance de ser a porra de uma paquita.
Fui eu que barrei ela daquele programeco de televisão.

— Você é nojento! Vende até sua própria filha. — Mesmo sob a mira de Rivaldo, Luna não
se calava.

— Não. Lana eu não vendo, só empresto de vez em quando. É uma troca, ela tem beleza e eu
tenho amigos influentes, políticos, empresários, juristas, bicheiros... Tipo o Rivaldo, que é
meu sócio de longa data lá na Broadway.

— Meu Deus, ela ainda existe? Você ainda escraviza aquelas meninas? CONFESSA,
MALDITO! — Luna estalou os dedos bem rápido por três vezes seguidas e novamente
parecia que só eu tinha notado. Aquele papo era sinistro demais.
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— Aquelas meninas já eram. Agora são outras beldades e de toda parte! Os negócios estão a
todo vapor, gatinha! Agora eu trafico arma, pó e puta. Sou eu que mando na porra dessa
cidade! — Rivaldo confessou cheio de orgulho. Parecia que ele falava de um negócio super
maneiro e não de algo tão nojento.

— E a Broadway virou minha disneylândia do pecado! E pensar que podia ter sido você o
meu braço direito. Meu bibelô… — Malvino balançou a cabeça em negativa. — Mas você
fez charminho demais. Hoje é fim de linha pra vocês dois. E dessa vez eu garanto que tu
morre mesmo, piranha. Porque é isso que eu faço com gente imprestável. Limpo do mundo.
— Ele se virou para mim e completou — Por exemplo, a mãe da Lana. Sabe o que eu fiz,
Betinho, com aquele traste de mulher? Matei. É isso que eu faço com quem não presta, eu
limpo o mundo de pesos mortos iguais a você e seu papai metido a justiceiro! LEVANTA!

Malvino me levantou a força pelo braço machucado. Gemi de dor e arfei, já quase
entregando os pontos.

— Tu ao menos deu um trato nessa vadia, moleque? Ou tu ainda é “virjão”? Se não fodeu até
hoje, não fode mais! — zombou o bicheiro.

— Agora a queima de arquivo vai ser completa! — garantiu Malvino.

Tanto Malvino quanto Rivaldo tiraram dos bolsos seus respectivos silenciadores e os
encaixaram em suas armas. Era o fim.

De repente, uma poderosa ventania adentrou violentamente a Alpha Som e como por mágica,
todos os amplificadores que estavam desligados, começaram a reproduzir simultaneamente e
em volume estrondoso uma música que me soara muito familiar. Era a voz de Luna cantando
a mesma canção que “La Romani” performou no palco da boate Broadway em minha visão.

“Tanto riso, oh quanta alegria


Mais de mil palhaços no salão
Arlequim está chorando pelo amor da Colombina
No meio da multidão”

Malvino e Rivaldo se entreolharam e nesse segundo de distração, Luna já não estava mais ao
meu lado. Eu estava sozinho sob a mira de dois revólveres impiedosos. Os dois começaram a
olhar para os amplificadores, procurando um motivo lógico para aquele fenômeno
claramente sobrenatural. Como se a situação envolvendo o fato de Luna já estar
supostamente morta não fosse absurda o suficiente.

— Cadê a piranha, moleque? — indagou Rivaldo com cara de quem tinha acabado de se
surpreender em um show de mágica.
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— É bom ela aparecer agora, porque essa noite só acaba com vocês dois numa vala! —
vociferou Malvino.

No instante seguinte, todas as luzes começaram a piscar, inclusive os refletores e holofotes


que só serviam de enfeite e também estavam desligados da tomada. Foi como se a Alpha
Som ganhasse vida própria. Malvino e Rivaldo observavam tudo de olhos arregalados, mas
sem tirar as armas da minha cara. A ventania violentou novamente o espaço, derrubando as
prateleiras e as mercadorias.

— Procurando por mim? — a voz da cigana irrompeu pelos amplificadores da loja.

Entre feixes de luzes coloridas, Luna apareceu com um sorriso macabro nos lábios. Uma
visão aterradora! Ela estava desfigurada. Vestida como “La Romani”, a cantora da minha
visão. Porém, boa parte do seu corpo eram apenas ossos, sangue e resto de pele queimada.
Junto dela, várias outras pessoas, em sua maioria mulheres, e igualmente desfiguradas. Elas
apareciam e desapareciam conforme o piscar frenético das luzes. Se eu fosse cardíaco, teria
morrido ali só de susto. Eu estava tendo um pesadelo de olhos abertos. O título “A volta dos
mortos vivos” nunca fez tanto sentido.

— Que desgraça é essa?! — Rivaldo gritou arregalando os olhos cheios de ódio e desespero.

— A SUA DESGRAÇA! — esbravejou Luna, guturalmente, apontando para os bandidos


com o seu braço esquerdo carbonizado — “CHEGOU A HORA DA PENITÊNCIA!” — os
outros mortos a acompanharam em uníssono como se fossem backing vocals do purgatório,
cujas palavras saíam pelas caixas de som da loja.

— Sua cigana maldita! Eu não vou mais cair nos seus truques! Eu não tenho medo de nada,
tá ouvindo, sua puta?! — Malvino claramente tentava transmitir indiferença, mas notava-se
certo grau de medo em sua voz.

Outro golpe de vento forte invadiu a Alpha Som e Luna saiu de cena, dando lugar a uma
mulher loira muito bonita, aparentando uns trinta e cinco anos. Ela usava roupas meio
hippies e sensuais. Carregava um semblante mórbido, com olheiras fundas e um buraco de
tiro no meio da testa.

— Nem medo e nem remorso, seu covarde! — disse a mulher.

— Est… Estela? — indagou Malvino — Não é verdade. É só mais um truque!

— Você é um infeliz. Me matou só pra ficar com a minha filha e fazer dela aquilo que eu não
quis ser pra você! Uma moeda de troca que você oferece a mãos tão imundas quanto as suas!
— Estela, o espírito da mãe de Lana, berrava raivosa e magoada — ELA NÃO É SUA! A
MINHA LANA NÃO É SUA FILHA, SEU MALDITO! — os “mortos vivos” em coro
repetiram esta última fala de Estela.
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— Cala a boca, vagabunda, a Estela já morreu! Você já morreu! A Lana nunca vai saber
disso! — Malvino esbravejou olhando ao redor, aquele sinistro espetáculo.

Estela converteu-se em chamas avermelhadas, assim como os outros mortos deformados, que
agora emitiam sons de dor e aflição. Uma coisa horrível de se presenciar. Nenhuma palavra
que eu escrever aqui, conseguirá transmitir o misto de sensações que eu experimentei
assistindo àquele acerto de contas do além. Estive muito perto de surtar como Ash Williams
na maldita cabana do Tennessee.

Com a cara toda queimada e manchada de sangue, Luna apareceu novamente, como a “Fênix
Negra zumbi”, envolta nas mesmas chamas avermelhadas que se misturaram aos seus
cabelos e começaram a se alastrar por toda a loja. Esse mesmo fogo serpenteou formando um
círculo envolta de Malvino, Rivaldo e, consequentemente, eu, que continuava sob a mira
deles. Os bandidos, mesmo surpresos e assustados, ainda encaravam aquilo como um truque
cigano e não como uma ameaça real. Eu confesso que estava com medo. Um medo
paralisante, que me impediu até mesmo de mijar nas calças. E aquele medo agora teria um
motivo ainda maior de existir, pois Malvino virou-se para mim e declarou:

— Chega de palhaçada, piranha! Acabaram seus truques! Agora esse traste vai virar
presuntinho!

Eu vi tudo em câmera lenta. Malvino e Rivaldo apontaram as armas para mim com
convicção e decididamente se prepararam para puxar o gatilho. Ao passo que Luna vinha
salvar-me cheia de ira, num fogaréu monstruoso, que começava a subir pelas pernas dos dois
mafiosos.

Eu nunca tinha pensado sobre a morte antes e ter aquela arma apontada bem na minha cara
me fez ver a vida passar num segundo como um filme na minha tela mental. Provavelmente,
eu seria apagado ali como mais um ser humano “descartável” de tantos que são desovados
nas valas metropolitanas que apareciam nos jornais. A impotência me acertou em cheio.
Estava cara a cara com a face oculta da cidade maravilhosa. Foi quando o estouro da arma de
fogo ecoou, seguido de um silêncio fatal.

FITA 20: 04:20 A.M do dia 01 de novembro

“Farsas e jogos
Armas de fogo
Um corte exposto
Em seu rosto amor
E eu!
Nesse mundo assim
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Vendo esse filme passar


Assistindo ao fim
Vendo o meu tempo passar
Hey!
Apocalipticamente
Como num clip de ação
Um clic seco, um revólver
Aponta em meu coração”

— O TRASTE SEMPRE FOI VOCÊ, MALDITO! — Ouvi uma voz familiar vir da direção
da entrada da loja quando três estouros de tiro pipocaram em meio à iluminação ígnea do
ambiente e atingiram Malvino pelas costas, fazendo-o cair de barriga no chão. Seu corpo
ficou lá, parado. Na certa tinha morrido com os disparos.

Aquela voz de aeromoça eu conhecia muito bem, aquela silhueta. Era Lana. Com três tiros,
ela matou o próprio pai. Foi uma cena muito chocante. Eu estava perto de um interruptor,
aproveitei e liguei a maioria das luzes principais, dando fim a toda aquela pirotecnia
sobrenatural. Mas este simples segundo de distração foi o suficiente para que Rivaldo me
desse uma “gravata” por trás e me rendesse como refém.

— Outra gracinha e eu estouro os miolos do playboyzinho! — Rivaldo ameaçou para Lana


que continuava segurando a arma e ofegando bastante, como se estivesse em estado de
choque.

Nesse momento, Caio apareceu ao lado de Lana. Os dois ainda estavam com as fantasias da
festa.

— Pai? O que cê tá fazendo? — Caio perguntou com os olhos surpresos cheios de lágrimas.
Aquela era a decepção que faltava para enterrar qualquer relação entre os dois.

— Caio?! — Rivaldo se distraiu com o olhar de mágoa e reprovação do filho, que o via “em
ação” pela primeira vez.

Luna, agora com aparência normal, reapareceu ao meu lado e de Rivaldo, e logo em seguida,
cravou seu punhal de prata na perna esquerda do bicheiro, que atirou sem querer com seu
revólver.

Um grito feminino cortou o ambiente e assustou todo mundo. Lana caiu de joelhos, enquanto
segurava o braço ensanguentado. Ela chorava e gritava de dor. Tinha sido atingida pelo tiro
acidental da arma de Rivaldo. Caio se ajoelhou ao lado dela e tentou ajudá-la, tremendo entre
o choque e o desespero. De surpresa, soquei o bicheiro distraído e roubei o revólver de sua
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mão, apontando fixamente para sua cabeça. Agora eu sabia o quão empoderado se sente um
cara armado. Rivaldo me encarou e esbravejou:

— Atira, moleque! Tu tá doido pra fazer isso!

O sangue que corria feito lava quente em minhas veias. Olhei pelo canto do olho e vi a
silhueta de Caio.

— Tu não tem coragem, né? É um almofadinhas, um frang…

Antes que Rivaldo pudesse completar aquela ofensa infame, mirei em seu ombro direito e
atirei. Acertei por pura “sorte”, já que nunca havia pegado num revólver antes. O bicheiro
caiu vertendo-se em dor e gritando para mim um extenso repertório de xingamentos.

— PARADO!

— NINGUÉM SE MEXE!

Dois policiais adentraram a loja, rendendo Rivaldo e eu. A viatura chegou sem sirene e como
sempre acontece nos filmes, atrasada. A vida imita a arte, né? Mas pelo menos prenderam o
bicheiro.

Como Lana e Caio foram parar na Alpha Som justo naquele momento? Minha cabeça rodava
em meio a tantas perguntas. Parecia que eu tinha acabado de participar de um filme de terror
ou ação, sei lá, difícil definir o gênero. Era gente morta no chão, polícia prendendo Rivaldo e
me desarmando, Lana sangrando e sendo acudida por Caio; eu não sabia o que pensar, mas
registrava tudo em “slow motion”. Então Luna, chegando por trás de mim, fez um
movimento sinuoso com os dedos cheios de anéis em direção aos policiais que estavam na
loja, pelos quais nós passamos diante de seus olhos e pareceu que não fomos notados.

Aos poucos, a rua foi invadida pelo barulho de ambulância, que estacionou bruscamente em
frente à loja. Os paramédicos que saíram dela foram conduzidos pelos policiais até Lana, que
soluçava de tanto chorar.

— Ela tá sangrando muito. Precisa estancar! Cê dá licença, garoto, por favor — disse o
paramédico negro e bigodudo, inspirando muita confiança no procedimento e afastando Caio
— Vamos para a ambulância. No hospital resolvemos isso melhor.

Lana, que estava em estado de choque, foi levada para a ambulância numa maca. Caio foi
junto. Ele quase não me encarava. Com certeza devia estar envergonhado do que houve na
festa da escola. Mas eu precisava de respostas, então segui os profissionais da saúde e Luna
me acompanhou enquanto segurava o meu braço.

— Vai pro carro, por favor? — Me virei para a cigana pedindo com firmeza e ela concordou.
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Então aproveitei e fui até a ambulância e perguntei ao motorista para qual hospital eles
estavam levando Lana.

— Hospital público mesmo, xará. O mais perto — ele me respondeu com um bafo forte de
cigarro.

— Valeu. Eu tô de carro, vou seguir vocês.

Voltei para o Cadillac vermelho do papai, entrei e respirei fundo.

— Beto… Você tá legal? — Luna perguntou receosa. Ela sabia que eu estava a ponto de
surtar.

— Que pergunta é essa? Eu cansei de tantas perguntas. Agora eu quero respostas.

Eu me sentia usado e preterido. Sabe, homem traído? O Guto bem que avisou; eu seria o
último a saber. Mas como ele poderia saber disso? Será que sabia? Quem mais? O Rio de
Janeiro todo testemunhava meu perfeito papel de trouxa?

— Eu não sei por onde começar…

Encarei Luna e ela tentou iniciar uma possível explicação para aquela loucura vivida dentro
da Alpha Som que, para mim, era o lugar mais mágico da vida toda. E naquele momento
tinha se transformado em palco do meu pior pesadelo.

— De você eu só aceito a verdade, Luna! Mas não agora, não aqui.

Desviei meu olhar para a rua novamente e avistei um familiar Chevrolet Kadett 1989. Era
Herbert Vieira e Ricardo Teixeira, ambos perplexos, atônitos e chocados. Meu pai já se
apresentando aos policiais e meu padrinho, proprietário da loja, com as mãos na cabeça, em
tempo de arrancar os cabelos loiros. A ambulância começou a sair, mas com dificuldade, pois
alguns curiosos pararam seus carros no meio da rua para saber o que estava rolando na maior
loja de som da cidade.

— RÁPIDO! Faz teu lance com os dedos aí.

— Quê? — Luna não entendeu.

— Ah, qual é? Eu vi você fazer lá dentro. Foi como ser transparente na cara da polícia. Não
sei qual é a sua, mas, por favor, deixa a gente invisível agora! Meu pai tá aí com meu
padrinho. Eles não podem ver a gente agora. Antes eu preciso ir pro hospital falar com a
Lana.

— Vai! — Luna cruzou os braços em forma de X, posicionou as mãos no painel do Cadillac


e fechou os olhos.
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Dei a partida e acompanhei a ambulância que ia devagar se esquivando das pessoas e


contornando carros que estavam parados no meio da rua, literalmente. Confusão, burburinho,
Rivaldo dentro da viatura, mais policiais chegando. Saímos da rua sem sermos vistos. Mais
uma vez eu me perguntava, agora até com certo medo: quem é essa mulher?

FITA 21: 04:30 A.M do dia 01 de novembro

“Step by step
Passo a passo
Heart to heart
Coração para coração
Left, right, left
Esquerda, direita, esquerda
We all fall down
Nós todos caímos
Like toy soldiers
Como soldados de brinquedo
Bit by bit
Pedaço por pedaço
Torn apart
Separados à força
We never win
Nós nunca ganhamos
But the battle wages on
Mas a batalha continua
For Toy soldiers
Para os soldados de brinquedo”

Chegando ao hospital, ainda tive que esperar um pouco até conseguir falar com Lana, afinal
ela passou direto para cirurgia de remoção da bala que ficara presa ao braço. Logo após, a
polícia chegou fazendo a segurança da assassina. Sim, Lana era uma assassina. Havia
matado o próprio pai com três tiros à queima roupa. Luna estava ao meu lado, nós nos
mantivemos longe dos olhos do guarda que ficou na porta do quarto. Eu nem sei quanto
tempo demorou, mas me pareceu uma eternidade. Cansado e impaciente, me dirigi até o
balcão e pedi informação sobre Lana. A recepcionista me olhou de cima a baixo com cara de
sono e desconfiança.

— Eu sou amigo dela, moça. Só quero saber a que horas ela pode receber visitas.
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— Amigo? Sei… — perguntou a recepcionista bocejando e tapando a ficha de Lana com a


mão esquerda — Olha, rapazinho, essa garota aí matou alguém. É tudo o que eu sei. Você
acha mesmo que vão te deixar falar com ela? — a mulher fez gesto para que eu fosse
embora, abanando o ar com a mão direita — Vai pra casa. Volta outra hora, de dia é melhor.
Ou vá visitá-la na prisão, que é com certeza para onde ela vai.

Eu não podia desistir. Voltei para o banco de madeira nada confortável onde Luna estava
sentada. Ela tentava me consolar acarinhando meus cabelos, que já estavam bagunçados.
Então, a recepcionista saiu para ir ao banheiro. Era coisa rápida. Eu levantei de supetão, fui
até o balcão e, fingindo que estava pegando panfletos informativos sobre HIV e gravidez, dei
uma olhada rapidinho na ficha de Lana. “Quarto 19” estava escrito com letra cursiva de
funcionária sonolenta. Ou seja, ela já tinha passado pela cirurgia e, provavelmente, estaria
dormindo naquele exato momento. Voltei para o banco de madeira e bolei um plano ruim.
Usaria Luna como isca para distrair o guarda que estava no quarto de Lana. Ela concordou
e…ação!

Fingimos ir ao banheiro, que ficava no final do corredor de entrada e de lá procuramos direto


pelo tal quarto dezenove. Não foi difícil. Avistei o bendito quarto com seu “cão de guarda” a
postos. Então eu pisquei para Luna e desviei no sentido oposto me sentando no banco de
madeira que havia nesse outro corredor de azulejos azul claro.

Até hoje eu não sei qual papo Luna mandou naquele guarda, mas ele ficou completamente
envolvido e hipnotizado por aqueles olhos de cigana oblíqua e dissimulada. Me aproximei
devagar, passei por trás do guarda, abri a porta do quarto e passei para o lado de dentro com
cuidado. Lá estava Lana. Linda. Mas não arrebatadora como antes, sem o ar de princesa. A
maquiagem da festa borrava seu rosto, que estava inchado de tanto chorar.

Curiosamente, Caio não acompanhava Lana no quarto.

Fui chegando mais perto da cama. Era um quarto pequeno e com um lerdo ventilador de
teto. Fiz sinal de silêncio tocando os lábios com o dedo indicador.

— Beto? — Lana nitidamente não me esperava ali aquela hora — O que você tá fazendo
aqui?

— Queria saber se você tá bem — respondi sem jeito.

— Estou péssima. O remédio para dormir não fez efeito algum, mas pelo menos o analgésico
e o anestésico, sim. A bala foi de raspão, mas atingiu um vaso, por isso sangrou demais —
seu rosto de modelo estava inchado de tanto chorar.

— Na real eu PRECISO MUITO falar com você.

— Agora? — Lana me olhou com cara de gatinha abandonada.


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— Por favor… — implorei com o olhar mais penoso possível, o que não era difícil devido ao
meu estado deplorável.

— Eu sei. Te devo uma explicação, né? — ela disse sem me encarar.

— Você me deve bem mais do que uma explicação — eu não queria constrangê-la, mas a
raiva ainda me consumia.

— Eu sinto muito. Sinto mesmo, tá? Só fiz tudo isso porque fui obrigada — Seus olhos
verdes se encheram d’água

— Eu sei…

— Não! Você não sabe. Ninguém sabe de nada da porra da minha vida! — Lana me
interrompeu com ferocidade — Eu não tinha saída. Aquele homem, ele… Você não tem ideia
do que é morar num verdadeiro inferno. Ter que cumprir cada ordem nojenta daquele… —
ela respirou fundo sem conseguir completar a frase.

— É, mas eu tenho ideia do que é ser sincero, do que é ser leal com quem eu gosto, com
quem merece. Você e o Caio, que eu jurava ser meu amigo, simplesmente cagaram pra isso.
Eu confiei em vocês e levei um chifre histórico! Baita crocodilagem!

— Eu fui sincera com você, Beto. Nunca disse que te amava nem nada do tipo — disse ela
dando de ombros.

— Eu reconheço meu papel de trouxa de me iludir sozinho. Mas, sincera? Você entrou na
minha casa pra espionar! Pra xeretar o trabalho do meu pai! Você tava me usando pra
conseguir livrar a cara daquele porco maldito do teu pai! Caraca, Lana…e você vem me falar
sobre sinceridade?

— Qual parte do “eu não tinha saída” você não entendeu, Beto? Se liga, cara! No fim das
contas, eu nem consegui concluir o plano mesmo. Era pra eu continuar te iludindo, caso meu
“papai” ainda precisasse de você. Mas estraguei tudo na festa. — Lana não parecia ter real
dimensão de seus estragos.

— Tinha saída sim. Você sabia que o pai do Caio era sócio na sujeirada toda. Sabia que meu
pai era o promotor do caso. Podia ter avisado a gente. É certo que teu depoimento ajudaria no
processo. Pô, você ganharia até proteção policial!

— Tá certo, Beto. Eu sou burra mesmo, então é isso que você quer dizer! Mas não é tão fácil
quanto parece. Eu tava investigando sobre uma suspeita que me consumia, mas só hoje eu
tive a certeza de que foi aquele desgraçado que matou a minha mãe — uma pausa dramática
invadiu o quarto.

— Eu sinto muito.
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— É… e agora eu sou uma assassina. A menina que matou o próprio pai!

— Mas, Lana, ele tava mais pra teu cafetão! Pelo que eu entendi da confusão, ele não é seu
pai. Não, olha só: Você não é uma assassina. Foi justiça! Você diz, sei lá, que foi em legítima
defesa! Meu pai pode te ajudar, eu falo com ele.

— Ai, ai… você e essa sua mania de achar que seu pai resolve tudo. Muito fofo da sua parte
querer me ajudar. Até meio bobo, eu diria. Logo eu? A garota que fudeu seu terceiro ano no
colegial? A menina que te traiu com seu melhor amigo? Eu não presto, Beto. Eu não valho
nada. Você devia estar me odiando.

— Eu estava. Ah, como eu te praguejei até horas atrás… Seria impossível contar de quantos
palavrões eu te xinguei essa noite.

— Pelo menos eu servi pra não deixar você morrer. Eu e Caio, acabamos salvando você e
aquela sua amiga esquisita. Quando eu contei pra ele que ia ter uma invasão na loja do seu
padrinho, ele correu desesperado procurando um orelhão e ligou pra polícia, mas ninguém
atendeu. Daí ele insistiu pra gente ir na loja. Então, quando eu cheguei lá, achei uma arma
caída no chão e resolvi pegar pra proteger a gente, mesmo o Caio falando pra deixar lá… E
quando fomos entrando eu ouvi o meu pai…aquele cretino falando… — Lana interrompeu
sua fala com voz de choro e os olhos molhados — Na verdade, eu nem sei direito o que foi
aquilo tudo que eu vi. Só sei que era a minha mãe. Não sei como, mas era ela sim. Eu sei que
era!

— Olha, grato eu não sei se consigo ser agora. Mas, também não tô com raiva. Acho que,
depois de tudo, agora você só me dá… pena.

— Não quero e não preciso da piedade de ninguém, muito menos da sua — ela disse
tentando enxugar as lágrimas.

— Pois você devia aceitar a minha piedade, sim. Às vezes é tudo que alguém tem a te
oferecer. E você não tá podendo recusar.

Virei de costas em direção à porta, mas parei quando Lana disse:

— Eu e Caio nunca tivemos nada. Nunca teremos. Você é um cara legal. Desculpa.

Ouvi essa frase ainda de costas e saí do quarto.

Luna e o guarda estavam sentados no banco de madeira do corredor ao lado. Ela lia a mão
dele com certa teatralidade. O cara estava fascinado, com cara de bobo, retardado. Com
certeza foi com aquela cara que eu passei todos os dias de ilusão que Lana me proporcionou.
E, como se não bastasse, ainda tinha Luna. Um mistério que eu estava prestes a desvendar.
Ao me ver, a cigana deu uma desconversada no guarda e seguiu atrás de mim até sairmos do
hospital. Meu medo era que chegassem mais policiais, delegado e o escambau.
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— Oi! E aí, tudo certo? — Luna perguntou parecendo de fato preocupada.

— Sei lá. Certo não tá, mas eu tinha que falar com ela — respondi sem a mínima vontade de
papo furado e olhando para o céu. Estava muito escuro, ou seja, o amanhecer estava bem
próximo — E você? Vai me contar a verdade sobre quem é ou prefere mentir pra mim
também?

— Tudo bem. Só podemos ir pra outro lugar?

Entramos no carro e dei a partida. Eu sabia exatamente onde ir.

FITA 22: 05:00 A.M do dia 01 de novembro

“How can I just let you walk away?


Como eu posso simplesmente deixar você ir embora?
Just let you leave without a trace?
Simplesmente deixar você partir sem deixar rastros?
When I stand here taking every breath with you
Quando eu fico aqui a cada respiração com você
You're the only one who really knew me at all
Você é a única que realmente me conheceu por inteiro
How can you just walk away from me
Como você pode simplesmente se afastar de mim
When all I can do is watch you leave
Quando tudo o que posso fazer é assistir você partir?
'Cause we've shared the laughter and the pain
Porque nós compartilhamos o riso e a dor”

Dirigi até a praia onde nos encontramos pela primeira vez. Pessoas começaram a surgir no
Arpoador fazendo caminhada, dando sua corridinha matinal. E era ali mesmo que nós
tínhamos de estar. Por alguma razão eu sabia disso.

—- Pronto. Chegou a hora da senhorita, seja lá quem você realmente for, me explicar
direitinho o que foi tudo aquilo que aconteceu — comecei a introduzir aquela conversa,
deixando toda a minha ansiedade falar.

— Olha, Beto, eu entendo que você esteja confuso, mas calma, presta atenção — Luna
espalmava as mãos como se segurasse uma caixa reveladora invisível.

— Tô prestando... — disse eu posicionando as mãos na cintura.

—- Tá certo. Não tem outro jeito mais sutil de dizer… Eu sou uma Encantada.
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— É o quê?!

—- Sabe o brilho das estrelas? O que você está vendo é apenas o que eu já fui — Pelo visto
ela gostava mesmo de astronomia.

— Que papo é esse? Não dá pra ser mais clara? — Em plena cinco horas da manhã, eu não
estava nem um pouco para enigmas.

— É como se eu estivesse entre a vida e a morte, entendeu?

— Cê tá doente? Não mete essa, que cê levou dois tiros e não tem nem marca! Você é o quê
afinal? A fênix negra?!

— Beto, por favor, isso é sério. Acredita em mim — Luna segurava meu rosto com as duas
mãos — Nada que eu disser agora vai fazer sentido, mas você terá todas as respostas.

— Luna, você tá de onda com a minha cara?

O sol começou a derramar seus raios devagar. A pele de Luna parecia resplandecer sob a
dourada luz do astro rei.

— Eu sou o véu que separa sonho e realidade. Eu sou uma Encantada.

Luna se aproximou e como um imã me atraiu para seus irresistíveis lábios cor de carmim.
Nos beijamos de mãos dadas, colados um no corpo do outro, enquanto um calor fora do
normal invadia meu peito.

— Meu Deus do céu...

Me assustei ao perceber que no entrelaçar de nossos dedos, formou-se uma chama cor de
rosa, que flamejava forte, mas surpreendentemente, não doía. Luna agora estava fulgurante
da cabeça aos pés.

— Olha! — Luna estava emocionada. De olhos marejados, ela sorria expressando satisfação
— Eu sou a magia que existe na terra, no céu e no mar.

— Luna?! O que é isso? O QUE TÁ ACONTECENDO? — Aquilo era surreal demais para
minha cabecinha de dezessete anos. Um certo desespero tomou conta de mim. Era a mulher
dourada ofuscando minha visão, calor danado no peito, era fogo rosa nas nossas mãos…
Muita coisa!

— Escuta, Beto. Tudo que nós vivemos juntos foi real. A gente ainda vai se ver. Em breve
você vai entender.

Conforme o sol saía das águas e se impunha majestoso sob o firmamento, Luna foi ficando
transparente. Uma ventania se fez na praia, agitando os grãos de areia até as ondas do mar,
espelho do céu.
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— Luna, não…

“And even shared the tears


Compartilhamos até mesmo as lágrimas
You're the only one who really knew me at all
Você é a única que realmente me conheceu por inteiro
So take a look at me now, oh there's just an empty space
Então, olhe pra mim agora, porque há apenas um espaço vazio
And there's nothing left here to remind me
E não restou nada para me recordar
Just the memory of your face
Apenas a lembrança do seu rosto
Oh take a look at me now, for there's just an empty space
Oh, só olhe pra mim agora, porque há apenas um espaço vazio
And you coming back to me is against the odds
E você voltando para mim é contra todas as probabilidades
And that's what I've got to face
E é isso que tenho que encarar”

Luna, a cigana com quem eu tinha vivido tantas coisas nas últimas horas, simplesmente
desapareceu no meio desse espetáculo minimalista da natureza. De repente era eu, só eu.
Apenas um garoto latino-americano na praia do Arpoador, refletindo sobre o que tinha vivido
naquela noite alucinante. Eu estava maluco? Comecei a chorar. Foi uma descarga emocional
contida e necessária. Andei pela praia tentando digerir cada minuto daquela noite, pensando
que naquele momento, a única coisa boa que me acontecera foi embora.

— Pô, cara… Cê tá legal, chapa? — fui interrompido de meus pensamentos por um surfista
cinquentão com a prancha debaixo do braço. O cara estava mais bronzeado do que camarão.

— Não sei... — respondi sem convicção e enxugando as lágrimas do rosto.

— Tu tá puro, brother? Se quiser eu te pago um café. Tu é muito novo pra tá falando sozinho
assim, parceiro — seu sotaque era de alguém que havia surfado não apenas em altas ondas,
mas em “altas brisas” de Saquarema ao Hawaii.

— Ah! Não, relaxa. Eu sou assim mesmo. De vez em quando eu... — tentei dar qualquer
desculpa, mas meu cérebro foi incapaz.

— Tá sussa, não precisa explicar nada não. Eu sei como é isso aí, já tive minha época — O
cara me deu três tapinhas no ombro — Daqui a pouco bate a larica e é aquele salve-se quem
puder. Ô, paixão! — Aparentemente, Paixão era a mulher da barraquinha de lanche da
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calçada — Descola aí um cafezinho esperto pro meu amigo aqui! Vai lá, cara. É por conta da
casa; mas só hoje, hein! Meu nome é Ciano.

—Valeu, Ciano. Meu nome é Beto — Nos cumprimentamos com aperto de mão. Pude
reparar que ele carregava tatuado no peito peludo, o símbolo do movimento paz e amor.

— Prazer, garoto. Vai lá comer. Aloha!

— Bom surf aí pra você!

O cara fez um hang loose e saiu em direção aos braços de Iemanjá. A mulher cujo nome eu
descobri ser de fato Paixão, me serviu um café preto e um cachorro quente. Uma combinação
inusitada e deliciosa. Nem conversamos direito, pois ela precisava atender os clientes que
faziam fila na frente da barraquinha estilizada com penduricalhos new age.

Ao terminar de comer, agradeci pelo lanche, voltei pro carro e fiquei um bom tempo
pensando naquelas lendas urbanas em que os taxistas são seduzidos por belas passageiras e
ao final da corrida descobrem que elas não passavam de meros fantasmas. Teria eu vivido
uma nova versão desses causos? Se contar, ninguém acredita. Parece um episódio de
Armação Ilimitada. Bom, eu precisava ir para casa. Aquela altura dos acontecimentos, eu já
não me importava em ser pego por blitz. Nem sabia o que me aguardava logo em seguida.
Girei a chave, passei a primeira marcha e cantei pneu.

“Welcome to your life


Bem-vindo à sua vida
There's no turning back
Não há volta
Even while we sleep
Mesmo enquanto dormimos
We will find you
Nós vamos te encontrar
Acting on your best behavior
Agindo da melhor maneira
Turn your back on Mother Nature
Vire as costas para a Mãe Natureza
Everybody wants to rule the world
Todos querem governar o mundo”

FITA 23: 06:00 A.M do dia 01 de novembro


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Dobrando a esquina de casa, já dava para sentir o clima pesado. A recepção não podia ser
“melhor” com meu pai, meu padrinho e a polícia na calçada. Era o delegado Hélio Gama. Eu
o conhecia de algumas visitas de trabalho lá em casa. Um senhor com seus 60 anos, negro,
meio gordo, bigodudo, com ray-ban no rosto e ares de Danny Glover. Eu até brincava às
vezes chamando ele de “Máquina Mortífera”. Costumava ser gente fina, mas agora a
situação era outra. Eu sabia que estavam ali por minha causa. Meu pai estava com a
expressão mais carrancuda de todas. Enquanto eu estacionava, saía do carro e andava até ele,
era possível sentir a pressão de seus olhos me analisando como um scanner.

— Oi, pai… Bom dia — tentei não tremer igual vara verde quando Seu Herbert me encarou
com sangue nos olhos.

— Bom dia, margarida. Trouxe o pão? — Seu Herbert com sua famosa ironia circunstancial,
geralmente quando estava puto da vida — Dr. Gama, o senhor pode me dar um tempinho?
Preciso ter uma conversinha aqui com o garoto. Um lance de pai e filho. Pode ser? É jogo
rápido, prometo.

— Vou abrir mais essa exceção, porque é para você, Vieira — Gama, apesar de sério,
demonstrava estar mais amistoso do que meu pai — Cinco minutos.

— Escritório. Bora! — intimou Herbert curto e grosso.

Olhei para meu padrinho Teixeira como um pedido de intercessão. Quando ele ia advogar
por mim, foi interrompido pelo dedo indicador de papai.

— Hoje não, Ricardo.

Entramos em casa e seguimos direto para o escritório. Papai fechou a porta e pediu para que
eu me sentasse no sofá marrom de dois lugares, enquanto ele continuou de pé passando a
mão no cabelo meio grisalho.

— Eu definitivamente não sei por onde começar, Humberto.

— Pai, olha…

— Não! Agora você não fala, você só ouve — interrompeu ele abruptamente — O que foi
que te deu, meu filho? Onde você estava com a cabeça? Eu sinceramente esperava mais
responsabilidade de você.

— E eu esperava mais sinceridade sua, pai…

— Eu disse pra você ouvir calado.


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— Pois eu me recuso. É isso aí, eu tô me rebelando! — afirmei na tentativa de expressar


maturidade — Eu tô cansado de só ouvir e ser sempre o último saber das coisas. Isso quando
eu fico sabendo, né?

— Do que exatamente você está falando?

— Tá. Quando eu ia saber que você estava investigando o pai bandido da garota com quem
eu tava saindo?

— Essa é boa. Como EU ia saber que o bandido era pai da tal garota? Já que a investigação
não era de âmbito familiar?

— Sei lá, você não é o Sherlock Holmes do Rio de Janeiro?

— Sem deboche! — O dedão impositivo na minha cara era inevitável — O meu trabalho é
estudar caso, ligar pontos, criar teorias e provar a culpa de gente que não presta. Você acha
que se essa garota tivesse aparecido nos documentos e eu soubesse que ela era A SUA
GAROTA, eu não te avisaria? — meu pai começou a suar na testa e tentava enxugar com a
manga da camisa — A questão aqui é: como você foi parar na Alpha Som de madrugada
SEM PERMISSÃO, vira testemunha de um CRIME, depois some feito fumaça e tudo isso
dirigindo sem carteira de motorista O MEU CADILLAC?!

— Ah, mas tinha que ser… O bendito carro que você nem usa! Aposto que a Mônica foi
correndo te ligar, né?

— É óbvio! Ela é paga para isso! Você sabe muito bem do meu apreço por essa relíquia.

— E você só se importa com esse carro? Ou se a sua reputação vai pro ralo com a minha
imagem de “filho delinquente juvenil”? — teatralizei fazendo aspas com os dedos, mas a
vontade de chorar veio de novo — Você não tem ideia de metade do que eu passei essa
noite…

— E você não sabe o quanto eu estava aflito! O quanto eu rezei pra Deus e até pro diabo,
para que você estivesse a salvo. Beto, o meu trabalho é perigoso. Eu sou pago para
incriminar bandido grande, mafioso de verdade! Você acha que eles não atentariam contra
você e seu irmão para me atingir? Filho, tudo que eu faço é para o seu bem, é pensando em
proteger vocês dois.

— Protege tanto que acaba me escondendo tudo! Você não acha que me dizendo a verdade
estaria me protegendo muito mais? Não tô nem falando de contar sobre os casos; isso aí eu
sei que tem sigilo profissional e tals. Mas, poxa, um alerta que seja. Eu já tenho idade para
estar a par dos seus assuntos, pai. Não sou mais criança!

— Talvez você esteja certo — papai ficou pensativo — Eu reconheço que tenho falhado
como presença paterna. E isso não é só por conta de muito trabalho. É que, apesar dos
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percalços da idade, eu estou te vendo mais crescido. Você não depende mais tanto assim de
mim…

— Ah é? Mas e o Théo? Tem dias que ele nem te vê!

Papai fez um silêncio sepulcral e sentou-se ao meu lado no sofá.

— Pai, eu não…

— Você tem razão. Desde que sua mãe se foi está tudo errado — sua voz falhando não me
enganava, papai estava segurando o choro — Eu… eu vou pensar numa maneira de
consertar isso. Precisamos da nossa família de volta. Nós merecemos isso — Herbert
bagunçou meu cabelo carinhosamente, me deu um tapinha na perna e se levantou indo em
direção à porta. Antes de chegar lá, virou de lado e completou — E como ele foi? O
Cadillac…?

— Chocante... — respondi surpreso.

Papai me devolveu um sorriso que dizia “É a juventude, eles não tem jeito!”.

— Já passamos dos cinco minutos. Vou chamar o Gama, deixar para ele o interrogatório. Ele
está ansioso para saber como diabos você conhece ou acha que conhece Luna Khamali. Na
verdade, eu também estou. Seja honesto nas suas respostas, meu filho. Já foi um custo
convencê-lo a fazer isso aqui e não na delegacia.

— Você vai ficar aqui comigo?

— Claro, réu. Eu não perderia por nada o seu primeiro interrogatório policial. Espero que
seja o único — Seu Herbert adorava um deboche.

Como eles sabiam sobre minha “relação” com Luna? Toda a verdade se descortinaria em
alguns minutos, quando entraram no escritório; Gama, um outro policial portando um
gravador e um escrivão com sua máquina de escrever. Logo atrás, meu pai, meu padrinho e
Mônica, que trazia uma bandeja de copos americanos cheios de café fresco e biscoitos. Ela
pôs a bandeja na mesa e saiu fazendo caretinha de “Você está encrencado”.

— Eita, mas isso aqui vai ser melhor do que eu imaginava! Quem me dera na delegacia
tivesse essa mordomia toda — brincou Gama tentando quebrar o gelo.

— É o mínimo depois de tantos favores, Gama — disse Herbert, meio constrangido.

— Favores? Nenhum, Vieira. Somos parceiros. Você é o melhor que já tive! — disse Gama
dando leves e firmes pancadinhas nos ombros do meu pai — Pelo menos o único que durou
mais de três meses vivo.
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Essa foi boa. Mas não era uma piada e logo as risadas se calaram. Gama voltou-se para mim
com cara de senhorinha fofoqueira e ardilosa.

— Escute aqui, meu jovem Beto. Eu te conheço já tem um tempo. Já visito esta casa com
certa frequência, conheço seu pai bem demais e posso afirmar que ele jamais criaria um filho
de caráter que não fosse digno de confiança. Sendo assim… — ele retirou os óculos ray-ban
do rosto. Seus olhos castanhos me intimidaram — posso esperar absoluta honestidade de
suas palavras?

— Sim, senhor — falei atropeladamente.

— Certo. Então não há interrogatório — o delegado pegou seu copo de café e outro para
mim — Vamos apenas conversar — Gama deu a volta na mesa de madeira, sentou-se na
imponente cadeira do meu pai — Onde está Luna Khamali?

— Como vocês sabem sobre ela?

— Acontece, meu rapaz, que você agiu de maneira providencial. Não intencionalmente, é
claro, mas facilitou o nosso trabalho.

— Não entendi — dei um gole no café grosso e fumegante.

Gama fez um sinal e o policial mais novo tirou do jaleco preto um gravador e o pôs em cima
da mesa.

— Pode apertar o play — disse o delegado para mim, que o obedeci imediatamente.

“Agora eu vou mandar um recado para a moça mais bonita da festa, a dona da quermesse, a
rainha das danceterias de todo o mundo. Luna Khamali, prepare-se, pois eu vou ficar para
sempre no seu coração!”.

Era a minha voz saindo daquela gravação. Aquela era a fita na qual eu gravaria a mixtape
para Luna. Hélio Gama me pegou no pulo. Ele sorria com os olhos enquanto degustava seu
café.

— Como vocês descobriram isso? — disse eu boquiaberto.

— Ah, eu só trabalho com os melhores. Por que você acha que fui atrás do seu ilustre papai?
O cara é cachorro brabo. Minha perícia é “pente fino”, rapaz! Essa fita estava num aparelho
gravador da loja, cuja entrada estava conectada a um microfone de alta captação com o
volume máximo. O aparelho ainda estava ligado quando nós chegamos, então foi só ouvir o
conteúdo.

— Eu esqueci de desligar quando os caras entraram… — pensei alto achando que ninguém
me ouvia.
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— Pois é. Eu devia até te agradecer, mas só farei isso depois que você me disser onde está a
musa inspiradora dessa locução.

— Honestamente…eu não sei — tentei dizer isso com o máximo de franqueza que pude, mas
foi em vão.

— Quer dizer que você passou a noite toda com uma garota que “honestamente não sabe”
onde está?

— E quem disse que eu passei a noite toda com ela?

— Melissa e Joca me contaram, filho. Longa história — papai se meteu rapidinho


explicando.

— Você ainda vai continuar nos testando? Nos subestimando? Não seria melhor trocar as
informações que temos? — propôs Gama, se deliciando com os biscoitinhos — Eu ouvi parte
da sua conversa com seu pai. Aliás, nós ouvimos. Foi inevitável, desculpe. Você reclamou de
estar “por fora”. Pois então, nós podemos jogar em pratos limpos. Te mostrar todo o
processo, provas, documentos, o dossiê inteiro; e em troca, você nos conta tudo que sabe ou
que viveu com essa mulher durante essa noite. Fechado?

Pensei um pouco e achei justo.

— Fechado!

Em questão de horas, eu sabia de tudo que estava rolando bem debaixo do meu nariz. Eu fui
mesmo um otário. Seu Herbert Vieira, notável promotor de justiça, trabalhava em conjunto
com o renomado delegado Hélio Gama no departamento de arquivo morto, ou seja, casos que
foram engavetados por insuficiência de evidências, provas e outros fatores que
possibilitassem julgamento; ou ainda, casos que foram varridos para debaixo do tapete do
esquecimento, por influência pesada dos próprios alvos da investigação. Essa segunda opção
se encaixa perfeitamente na situação em questão.

Segundo os arquivos, documentos, fotos e recortes de jornais que me foram mostrados, Luna
Khamali era uma artista, uma atriz performática que se apresentava cantando como “La
Romani” na famosa boate Broadway no final da década de 60. De acordo com relatos, ela
desapareceu subitamente e em seu rastro, várias outras mulheres com idades entre 12 e 35
anos. Os principais suspeitos, eram Malvino Torres Martins e Rivaldo Vergueiro, os pais de
Lana e Caio, respectivamente. O primeiro, era o dono legal do estabelecimento e o segundo
era sócio fornecedor de bebidas. Desde sua inauguração em 1965, a Broadway cresceu e se
destacou meteoricamente, recebendo a cada noite, grandes nomes da elite carioca e até
mesmo de outros estados. Mas, sua fama não vinha apenas dos belos números artísticos, nem
dos políticos, juristas, celebridades e magnatas que a frequentavam. Jogo do bicho, drogas,
prostituição e libertinagem eram a cereja do bolo.
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Pouco a pouco, boatos de tráfico humano ganharam a “zona” e a boate passou a ser alvo de
constantes apurações policiais que nunca se concluíam. A partir de então, toda autoridade
que encabeçava uma nova empreitada de averiguações acabava desistindo, se aposentando,
exonerada do cargo ou morta. Os nomes de Malvino e Rivaldo foram crescendo no meio
empresarial, assim como sua influência política.

— Dessa forma, jamais foram investigados de fato até uns seis meses atrás, quando essa
pasta velha veio parar na minha mesa — explicou meu pai como se eu fosse parte da equipe
— Esses são apenas documentos de abertura do novo processo, do inquérito. A pasta com
cópias dos arquivos comprometedores, extratos de sonegação de imposto, depoimentos, fotos
e todo o resto que você está vendo aqui, estavam guardados no cofre da Alpha Som, longe de
possíveis raposas.

— E é aí que você entra, Humberto — Gama falou de boca cheia, ainda se acabando nos
últimos biscoitos — Essa fita finaliza o mistério. Nós ouvimos tudo. Aqui está a confissão
dos dois sacripantas! Você nos deu a prova cabal que faltava para reabrir oficialmente esse
inquérito e já chegar acusando, dispensando formalidades anteriores. Pena que um deles
morreu.

— Mas o outro tem que pagar! E ele não vai querer ir pro saco sozinho! — respondi perplexo
e empolgado.

— Exatamente, meu rapaz, exatamente. E apesar de já termos a fita com as confissões deles,
um mistério ainda paira no ar. Como Luna Khamali, a artista que fora aparentemente morta
em 1969, faz-se ouvir discutindo a plenos pulmões com Malvino e Rivaldo na gravação
dessa fita cassete, vinte anos depois? Gravação essa com trechos absurdamente fora dessa
realidade… — O delegado indagou e cruzou os braços.

Respirei profundamente ouvindo as batidas dos dedos rápidos do escrivão datilografando a


conversa.

— Não tenho a mínima ideia.

— Pensei que nós tivéssemos um acordo, rapaz — Gama deixou-se transparecer


desapontado.

— Mas, é verdade. Eu tô falando sério. Sim, ela esteve comigo a noite toda e a voz na
gravação é dela. Só que eu não sei dizer como ela ainda está viva, sendo que, segundo vocês,
já estava morta — Eu peguei um biscoito e mordi, pois precisava sentir algo doce na boca —
Eu não sei onde ela está agora e isso também é verdade. Mas, posso contar sobre coisas
estranhas envolvendo a Luna.

Talvez tenha sido um erro que me custou o atestado de sanidade mental, mas eu contei tudo
que vivi com a cigana dos cabelos cor de fogo. Só omiti os detalhes mais íntimos, é claro.
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Não poupei nem os ripongas da praia. Vocês precisavam ver a cara do delegado Gama
quando eu cheguei na parte do “fogo rosa que flamejou em nossas mãos entrelaçadas”. Me
senti ridículo, mas foi necessário. Era a verdade, ué!

— Já acabou, Humberto? É nisso que você espera que nós acreditemos? — meu pai não
sabia onde enfiar a cara.

— Pior que é — respondi levantando os ombros.

— Sabe, meu jovem Humberto, em trinta e cinco anos de profissão, essa é a história mais
absurda que eu já ouvi — expôs o delegado, que fumava um charuto.

— Gama, me desculpa, o Humberto com certeza está só brincan… — Seu Herbert tentou por
um ban-aid na situação.

— E é por isso que eu acredito em você! — completou Gama, interrompendo meu pai. Fiz
cara de surpresa — Sei identificar um mentiroso. Farejo eles a léguas! No entanto, aqui está
você na minha frente sem qualquer mínimo sinal de hesitação, nervosismo, medo, nem
mesmo reticente. Pelo contrário, você está até empolgadinho narrando suas desventuras. Ora,
se essa moça estiver viva, você realmente não sabe onde ela está ou não irá nos contar — O
cara apertou os olhos insinuando desconfiança. — E aí esteja certo de que estaremos na sua
cola, aguardando na espreita por qualquer indício de algum possível encontro entre vocês.
Agora, se essa moça é mesmo uma espécie de “fantasma” como você diz… Então, esse caso
sempre esteve no departamento certo — ele disse apontando com a caneta cara do meu pai
em direção à etiqueta da pasta velha e amarronzada que dizia “Arquivo Morto”.

Assim, antes das onze da manhã, decidiram me deixar em paz durante o resto daquele dia,
mas eu estava de sobreaviso para qualquer nova informação ou averiguação sobre o caso. E
ainda tinha o lance da Lana ser indiciada por homicídio, ela seria investigada logo em
seguida. Na verdade, posteriormente, haviam muitas coisas para se falar e resolver. Contudo,
o que me fez mais feliz naquele momento foi poder tomar um belo banho. Tirei a roupa e me
lembrei de guardar o cheque que ganhei com Luna na competição de dança da lanchonete
“Mixto Quente”. A água do chuveiro levou embora não apenas o grude e a sujeira, mas
também a ansiedade e a tensão.

Depois de uma ardência nas feridas, senti enorme leveza. Foi como se falar sobre o que
aconteceu, tivesse me tirado um elefante dos ombros. Olhei meu reflexo no espelho e as
olheiras saltavam. Minha cara tava toda ferrada com marcas da briga com Guto. Troquei os
curativos sozinho com o que tinha no kit de primeiros socorros do banheiro; passei até um
pouco de cola super bonder como vi em um filme. Me borrifei uma colônia qualquer, tomei
uns analgésicos do velho, vesti uma cueca mais velhinha, pulei na cama e capotei. Dormi
pesado até às seis da tarde.
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FITA 24: 18:00 - 01 de novembro

Apesar de profundo, ainda não tinha sido o sono dos justos. Mesmo assim, acordei quase
sem saber meu próprio nome, com rosto marcado e o travesseiro babado. Sentei na cama e
demorei alguns segundos para voltar ao modo on.

— Nossa, como você ronca, menino! — Mônica brincou quando deu as caras na porta do
quarto que eu tinha esquecido de trancar.

— Porra, que susto! Tava admirando eu dormir? Eu durmo feito anjinho, né? — retruquei e
limpei meus olhos que ainda estavam embaçados.

— Anjinho o senhor não é, que eu sei. Mas o bumbum é de neném! — Mônica falou aquilo
só para zuar, fazendo gesto de ok com a mão e rindo da minha cara envergonhada — Te veste
aí. Teu pai ligou e pediu pra eu te acordar.

— E cadê ele? — Imediatamente me levantei e comecei a procurar uma roupa caseira. Eu já


não tinha vergonha alguma de Mônica.

— Saiu cedinho da tarde pra ajudar teu padrinho com o lance da loja, perícia… aquelas
burocracias, você sabe. Quando ele folgar mais dessa loucura, vai te levar ao hospital. Ele
disse que vai trazer pizza agora. Até aquela doce que você gosta.

— Aí sim, tô varadão de fome! — Vesti uma bermuda jeans rasgadinha e uma regata azul.

— E tem mais uma coisa que eu preciso te dizer. Agora que foi tudo revelado, não vejo
motivo para continuar omitindo.

Ah, meu Deus. Lá vem mais uma bomba. Qual era a novidade da vez? Mônica seria minha
nova madrasta? Só faltava essa.

— Eu não sou babá. Digo, acabei sendo, mas por força das circunstâncias. Na real, eu sou
uma segurança particular.

— Você o quê? Tá de sacanagem…

— Ué, por que o espanto? Se eu fosse homem você ia se surpreender assim?

— Não, você não entendeu. É que eu não esperava que até você tivesse metida nesse rolo,
tivesse algo pra esconder.

— Ah, mas eu não tô metida nesse rolo, não. Minha função era só cuidar de vocês, checar a
casa, proteger principalmente o Théo.

— Caramba! É sério? Então você não tava brincando quando falou que era uma pantera!
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— E seu pai é o Charlie — Mônica não se aguentou com a própria piadoca de tia e
gargalhou.

— Mas que porra… — eu disse boquiaberto.

— Cuidado com essa boca suja, menino. Eu luto muay thai, boxe, karatê e krav maga! — ela
ameaçou de zoeira e fazendo pose de lutadora.

— Não brinca! Cê tá me zuando, sua safada! Agora eu tô lembrando: bem que eu achei ter
visto um revólver na tua cintura há dias atrás, mas pensei que fosse só minha imaginação.

— Olha aí, eu dando bobeira! E você andou muito perto de eu te levar a nocaute várias
vezes, tá? Saliente…me respeita, garoto, que eu nem sou tão nova quanto aparento. E nem
adianta perguntar minha idade, que é sigilo absoluto.

—Puts! O que mais falta descobrir? Jurei que você ia dizer: “Beto, seu pai e eu vamos nos
casar”.

— Ah, você bem que merecia uma madrasta feito eu. Ia andar na linha! Aliás, eu ainda
pensei em descobrir quem era essa fuinha com quem você saía, mas não segui meu instinto.
Se eu soubesse que era aquela pistoleira filha do crápula, nada disso teria acontecido.

— Mas, tinha que acontecer, né? É como você me disse um dia desses. Foi uma máquina
agrícola que passou por cima de mim. Agora eu também debutei no “Clube dos bobões”.

— Então, seja oficialmente bem-vindo, bobão! — Mônica me abraçou dando uma risada
gostosa.

—- MÔNICAAA! — exclamou meu irmãozinho Theodoro, interrompendo nosso momento.

— O dever me chama. Não sei se ainda estou empregada, então, serei eficiente até o fim! —
Se prontificou a “babá” e saiu do meu quarto gritando um sonoro "Já vou!".

— Pois, eu vou junto. Depois dessa noite, assistir desenho animado com meu irmãozinho vai
ser no mínimo terapêutico.

Acompanhei Mônica e Théo em sua maratona diária de programas infantis e desenhos


animados. Era hora do “Clube da Criança” na Rede Manchete e Angélica anunciava
“JASPION!”. Lá pelas sete da noite, meu pai chegou com tio Teixeira e foi só pizza e
alegria. Evitou-se comentar sobre os fatídicos acontecimentos recentes na frente do Théo. Ele
só sabia que o irmão tinha ido a uma festa e acabou machucado numa “briga boba”. Foi um
dia cheio para todos. Antes das dez, meu tio foi embora, meu pai descansou junto ao meu
irmão e Mônica também vazou para sua casa. Eu acabei acordado por um bom tempo, com a
pança cheia de pizza e assistindo tudo que pudesse me distrair na televisão. Até que, de
madrugada, o cansaço me venceu e eu cochilei ali mesmo no sofá; depois fui para a cama.
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FITA 25: 9:00 do dia 02 de novembro

Uma vantagem dessa maldita festa à fantasia, foi que emendamos com o feriado de finados;
um consenso entre o colégio, alunos e seus pais. Mesmo assim, acordei no susto achando que
estava atrasado para a rotina escolar. Me levantei da cama num pulo, olhei o relógio e fiquei
aliviado ao lembrar que era feriado. Escovei os dentes, calcei a Raider e desci para a cozinha.
Meu pai terminava de falar ao telefone.

— Está certo. Combinado. Ah, ele vai adorar, tenho certeza! Já até acabou de acordar… —
meu pai falou aumentando o tom de voz como se ela apontasse para mim — Até! —
Desligou depois.

— Eu vou adorar o quê? — Meu nariz farejava o cheirinho de café do Seu Herbert. Ele não
era muito hábil na arte culinária, mas se virava bem até. O café era sua obra-prima.

— Sua amiga Melissa acabou de te chamar para dormir na casa dela hoje. Vai fazer almoço
pra você e tudo.

— Aí sim, hein?! Agora eu gostei! Finalmente comida! — O rango da Dona Cida era um
manjar.

— Quem vê assim, pensa que você morre de fome nessa casa… — comentou meu pai com o
pano de prato no ombro — comprei pão agorinha, quase não chego a tempo de atender o
telefone. Cê dorme demais, cara.

— Cadê o pirralho?

— Foi ele que me acordou hoje. Ele comeu aquele cereal horrível dele e saiu. Os vizinhos
vieram chamar pra brincar e eu deixei.

— Nooossa! — coloquei toda minha surpresa na voz.

— Eu sei, eu sei. Estava prendendo muito ele. Tem que brincar na rua, sim! — meu pai
estava cercado por uma atmosfera mais leve e tinha o semblante mais sorridente. Dava para
ouvir os gritos da meninada correndo na calçada. — Só não exagera no pão, você almoça lá
na Melissa já, já.

Théo passou como um vulto eufórico na janela, sujando o vidro com a mão enlameada.
Contrariando Seu Herbert, me empanturrei de pãozinho com manteiga, molhando dentro da
xícara de café com leite. Perto do meio-dia, arrumei minha mochila e meu pai foi me deixar
na casa da Dona Cida. Melissa morava com ela, pois era mais perto do colégio.
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“Perigo é ter você


Perto dos olhos
Mas longe do coração
Perigo é ver você
Assim sorrindo
Isso é muita tentação…”

Ao chegar lá, já fui recepcionado com uma informação nova. A madrugada do dia 31 de
outubro para 01 de novembro foi realmente atípica. E lá vinha uma nova bomba para
processar.

— VOCÊS O QUÊ?! — exclamei perplexo.

— É, ué! Namorando… — Joca disse com toda tranquilidade e abraçou Melissa pela cintura.

Então todo aquele clima de "cão e gato" entre os dois era pura tensão pré-romântica?

— A gente tá se conhecendo! — Mel corrigiu Joca com afinco.

— Como assim, preta? Tu já me conhece há tantos anos…

— Por isso mesmo, bonitinho. Eu conheço você bem demais. Preciso saber se a gente vai dar
certo mesmo.

— Então, quer dizer que vocês estão numa boa…?

— Mas o nosso plano quase falha, Betão. — entregou Joca.

— “Nosso” plano? Que história é essa, Beto? — Mel perguntou curiosa.

— Ah, Mel, eu ajudei o Joca a te pegar pela investigação, já que ele não conseguia ser
romântico — respondi.

— Ah, seu safado! Como assim? — Melissa fez cara de chocada.

— Preta, de quem tu acha que foi a ideia da ligação anônima, da fantasia de Diana, do
bilhete, e até da minha fantasia de Charada? Eu era a própria charada! Sacou, agora? — Joca
explicou quase fazendo um slide mental — Tudo isso aí foi ideia do Betão. A fantasia da
personagem que você adora, se liga! Só podia ser um de nós, que te conhece tão bem.

— Mas, gente, não acredito…

— E mesmo assim, tu não pegou os sinais. É, minha amiga, será que você está
“enferrujando”? — eu disse puxando uma zoeira.
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— Jamais, queridinho! Vocês é que não capricharam. Joca mesmo, o único sinal que emitia
era de pura implicância — Mel jamais admitiria não ter percebido a linguagem corporal do
amor.

—- Ah Mel, até eu sei que quando começa a implicar demais, pode ser que tenha sentimento
ali. Logo você, a leitora de mentes não deduziu isso? — eu estava adorando pegar no pé
dela.

— Jurava que ela reconheceria meu garrancho quando lesse o bilhete, Betão. Tudo bem que
eu podia ter sido mais romântico, mas poxa… — disse Joca em falso tom de decepção.

— E por acaso você achou que eu fosse o quê? Perita grafotécnica? — Mel argumentou com
as mãos na cintura — E aquela voz esquisitona na ligação?

— Eu que fiz quando liguei do orelhão lá da rua de casa. Eu podia até ser dublador, já
pensou? — explicou Joca

— É tua voz até que é bonita mesmo, João Carlos. Só falhou em me deixar com medinho.

— Mas não era pra te assustar, só plantar a semente do mistério. — Joca deu uma cafungada
de surpresa no cangote de Melissa, que se amoleceu toda.

— Para, menino…

— Êpa! Que cabaré é esse aqui na minha casa? — Joca petrificou-se quando ouviu a voz de
Dona Cida, avó da Melissa. Ela era gente fina, foi só zueira — Você já tá aqui de novo,
menino? Tem casa não? — brincou ela com Joca e já veio me dar um abraço — Betinho! Pra
mim é Betinho mesmo… Sumido!

— Pois é, muita coisa acontecendo. Mas, hoje eu vim dormir aqui com vocês, olha que
maravilha!

— O bom é que você não tem frescura. A casa é pequena, você já conhece, sabe onde fica
tudo, inclusive o “bom senso”... — Dona Cida pontuou bem o final da frase e olhou para
Joca.

— Ôh, Dona Cida, a senhora quer que eu vá embora? É só dizer… — lamuriou Joca.

— Eita menino dramático! Ô, Melissa, esse garoto não serve pra você. Já tá chorando e eu
mal comecei a atentar o juízo dele.

Todos rimos. Melissa lembrou de um detalhe importante:

— Mas, Beto… E a Luna? Cadê ela? Vocês ainda se viram? O que aconteceu? Ela é um
“fantasma” mesmo? — Mel disse essa última frase como se estivesse em um velório.

— Não sei nem por onde começar — respondi suspirando pesado.


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— Vamos começar almoçando? Enquanto essa bendita inflação, mesmo aos trancos e
barrancos, ainda nos permite! Conversa esquisita essa de vocês — convidou Dona Cida.

Enquanto Joca esfregava as mãos em sinal de bom apetite, eu já começava a contar as


desventuras absurdas que vivi com Luna. Mais uma vez, eu me senti ridículo, pois a história
é surreal, vamos combinar?

Cada garfada naquela lasanha dos deuses era mais um pedaço da trama rocambolesca na qual
me meti. O suspense (e a fome) foi tanto que a travessa grandona ficou totalmente vazia.
Quando terminei de contar tudo, eles me olhavam com cara de “internação já!”. Acho que a
história foi demasiada sobrenatural até para Dona Cida que, segundo ela própria, “já viu de
tudo nessa vida”.

— E aí, quando eu perguntei como sabiam que eu tinha passado a noite com a moça chamada
Luna, papai disse que vocês tinham contado a ele. Daí eu fiquei tipo “QUÊ?!”. Pois agora
desembuchem!

— Menino, te senta que lá vem história! — Melissa disse pondo os cachos para trás, em
gesto de preparação.

— Betão, foi uma doideira! Depois que tu saiu da festa pro P.S com a gata, a Mel pirou numa
nóia de que precisava te encontrar de qualquer jeito.

— Beto, depois que tu me contou sobre a tua “experiência de quase morte” e eu li parte
daqueles documentos lá do teu pai, eu comecei a ligar alguns pontos, mas não quis te dizer
nada. Você tava tão “nas nuvens” com a Lana, que eu não quis te encher o saco com minhas
teorias paranormais. Primeiro, que eu não tinha nenhuma prova concreta. Segundo, que você
não me pediu ajuda, só fez um desabafo sobre uma visão que teve no tempo em que
permaneceu inconsciente.

— Sim, e aí? — Mel conseguiu atiçar minha curiosidade — Agora eu tô ávido por respostas.

— Então, quando eu passei o olho naquela pasta marrom do seu pai, tinha muita coisa barra
pesada sobre a Boate Broadway e uma cantora de lá que morreu misteriosamente.

— “La Romani”? — acrescentei.

— Sim, ela mesma! Mas lá não constava o nome verdadeiro dela. Acontece que você teve
uma visão com o caso que teu pai tava investigando, sem fazer a menor ideia disso. E
também não fazia ideia de que, por alguma doideira dessa vida, tava passando a noite justo
na companhia da tal “cantora morta”. — Melissa disse apontando para o braço com os
pelinhos arrepiados — Era Luna o tempo todo e nem eu, que sou super atenta, desconfiei
disso. Beto, “romani” é um termo usado para designar o povo cigano. É também tipo um
idioma secreto deles, sei lá.
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— Claro! Agora, faz todo sentido! Mel, tu é a fera da pesquisa mesmo, hein? — concluí.

— Olha, eu tô te contando essas coisas aqui fingindo uma naturalidade… — Mel deu uma
risadinha nervosa — Mas, então, confesso que na festa eu só queria me divertir, minha
cabeça só pensava em uma cervejinha marota mesmo. Não tava nem me lembrando dessa
história.

— E eu, que tava super envolvido? Minha mente estava em outro lugar! Pior que nem dava
pra saber da Luna, já que a foto dela na pasta do papai tava péssima!

— Sim, mas eu li e datilografei uma página do documento antes da Mônica me pegar no


pulo. Por isso eu estava pensativa, não queria dizer nada sem ter prova. Eu li meio por cima
até a parte que citava o Rivaldo Vergueiro. Eu sabia que era o nome do pai do Caio e ainda
mais sendo descrito como bicheiro e suspeito de tráfico…só podia ser ele. Daí o Guto tava
amarrado na casa da Karina, rosnando pra todo mundo, falando um monte de besteira sobre
você. Aproveitei e perguntei na lata sobre as drogas que ele passava na praia. Ele tentou
mentir, mas eu meti o bastão da fantasia de acrobata bem no buraco da facada que ele levou
da Luna…

— Para, Mel, não acredito que tu fez isso! — eu disse rindo só de imaginar a cena — Queria
ver a cara dele na hora!

— Essa garota aqui é de uma sagacidade assustadora, Betão! — Joca disse orgulhoso.

— Meu filho, o Guto é um frouxo! Entregou tudo! Que pegava droga com o pai do Caio,
porque queria fazer parte da sua equipe de capangas. Que ele queria namorar a Lana, para
ganhar ainda mais cartaz, já que o pai dela, Malvino, e de Caio, Rivaldo, eram sócios. Eu
nunca soube quem era o pai da Lana, muito menos que era um mafioso. Guto falou até que
aliciava meninas pra depois elas serem VEN-DI-DAS por Malvino e Rivaldo!

— Escroto do caralho! — não contive minha revolta.

— Aquele cara é perturbado! — concluiu Joca.

— Bizarro! E tem mais: ele falou que ouviu o Malvino falando pro Rivaldo sobre um
documento na loja do teu padrinho e que eles iam invadir a loja naquela madrugada.

— A polícia tava demorando muito e eu não queria sair de lá sem acompanhar e falar alguma
coisa contra o Guto. Nossa, eu tava tão odiada pelo que ele tentou fazer com a Paulinha. Ao
mesmo tempo, eu queria falar com você, te contar tudo o que eu tinha descoberto e sobre a
invasão que ia ter na loja. Isso rezando para que ainda não tivesse acontecido — explicou
Mel.
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— Bicho, o telefone da polícia só dava ocupado e a viatura não chegava nunca. Depois, a
dona Juju chegou de táxi e deu a ideia de ligar pro P.S e te avisar. Quem sabe, você avisava
teu padrinho que os caras iam entrar lá na Alpha Som — acrescentou Joca.

— Pois, peguei a lista telefônica e procurei com a Karina pelo número do P.S. Ligamos e a
recepcionista atendeu dizendo que o rapaz com as tuas características já havia sido atendido e
já tinha até ido embora. Eu apenas pensei: “E agora, meu Deus?” — Melissa dramatizou
pondo as mãos na cabeça.

— Betão, a gente ficou nessa aflição por um tempão e o telefone da polícia continuava
ocupado. — Joca pontuou.

Eu estava adorando aquela instigante reconstituição do caso pelas vozes de Melissa e João
Carlos.

— A verdade é que, como sempre, eles não estavam muito preocupados com ocorrências
importantes, fora de onde pudessem coçar o saco cheio de ócio — completou minha amiga.

— Aí finalmente a polícia chegou e foi uma confusão, porque todo mundo queria falar, dar
sua versão do que aconteceu — continuou Joca.

— E a cara de pau do Guto, dizendo que era inocente? — Melissa expressou perplexidade —
Ainda bem que a Paulinha já tava melhorzinha do porre e conseguiu explicar o que houve,
mesmo meio confusa.

—Tô ligado, e aí? — instiguei, ansioso.

— Eu me meti na história com a Karina e o Maurício, entregando todo o histórico de


encrenqueiro do Guto. — Joca parecia um narrador de programa policial de rádio.

— Quando terminou essa parte, eu arrematei: contei aos policiais tudo que ele tinha acabado
de me confessar. Ele tentou negar, mas, como eu te disse, Guto é um bundão, e acabou
confirmando tudo pra polícia sob pressão. — contou Melissa, orgulhosa.

— Aí sim eles se apressaram, botaram a Big Loira no camburão e já saíram passando rádio
para outra viatura ir checar a loja — Joca relatou com empolgação — Daí eu tive uma ideia
brilhante, Betão: ligar pro teu pai! Não é possível que ele ainda não tivesse em casa naquela
hora!

— Como a gente ainda não tinha pensado nisso? — Mel estalou os dedos — Porque daí, ele
acionaria teu padrinho e até os contatos dele na polícia, bem mais rápido do que nós, simples
mortais adolescentes!

— Até me assustei quando ele atendeu com aquela voz de “versão brasileira” dele: “Beto?
É você? Trate de voltar para casa com meu carro AGORA!” — Joca amava imitar o meu pai
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— cara, ele tava putaço contigo, porque tu pegou sem pedir aquela banheira que ele chama
de carro. Eu disse que não sabia onde você tava.

— Aí eu tomei o telefone do Joca, desesperada, expliquei pro teu pai bem rápido o que eu
tinha descoberto e que a polícia estava indo checar a loja. Só deu pra ouvir ele gritando
“desgraçado!”. Ele deve ter achado que bateu o telefone. Aí eu desliguei. O resto você já
sabe — concluiu Melissa.

— Meu Deus… Eu tô chocado, gente. Não sei nem o que dizer.

— Eu sabia que cê ia fazer essa cara de final de filme do Hitchcock. Ah, a Paulinha está bem
aparentemente. Fiquei de fazer uma visitinha pra ela nesse fim de semana. E o Guto foi preso
mesmo tá? Parece que ele não é réu primário. Acho que tão cedo ele não termina o colegial.

— Se é que vai terminar…

— Enfim, depois de toda essa doideira, eu resolvi me declarar de vez pra essa princesa aqui
— acrescentou Joca abraçando Melissa.

— A Karina convidou a gente pra dormir por lá mesmo, mas acabamos aceitando a carona
do Maurício pra cá. A polícia e o teu pai já tinham ido para a loja mesmo… Então, estava
tudo certo — Melissa finalizou com uma carinha de safada.

— Bom, pelo menos vocês não participaram do caos insano que rolou na Alpha Som… —
disse eu, buscando um conforto ao relembrar o ocorrido.

— Muito bem lembrado, Betão! Eu te confesso que ainda tô processando tudo que tu contou.
É muito absurdo, cara. Tenho mó cagaço de assombração! — Joca arregalou os olhos
comicamente.

— E eu que transei com uma mulher fantasma, maluco? Acho que eu tô é preso num livro do
Stephen King! Mel, se tu tiver romantizado isso, pode se internar!

— Ai, credo, menino! Eu não… — Melissa fez o sinal da cruz — Até minha vó, que já viu
de um tudo no terreiro de umbanda dela, achou essa história absurda, gente.

**********

Passamos o resto da tarde papeando para nos distrair e até ajudamos Dona Cida a fazer um
bolo de goiabada. Ela e Melissa preparavam muitos tipos de bolinhos e quitutes para vender
na vizinhança e complementar a renda. Joca tentou introduzir uma pauta sobre Caio, mas eu
desconversei educadamente. Não queria falar sobre meu ex-melhor amigo; estava abalado e
os sentimentos ainda eram confusos. Melissa deu a ideia de irmos à inauguração de um
parque de diversões a poucas quadras dali. Fiquei todo animado com a sugestão. Com
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certeza, um lugar lúdico e animado era o que eu precisava para exorcizar os “fantasmas”
daquela fatídica noite que se estendeu madrugada afora.

Quando deu lá pelas 19:30h, Joca, Melissa e eu saímos a pé para o tal parque. Quanto mais
próximo, mais alto era o barulho das pessoas. Ouvíamos gritos de medo e de empolgação,
como também, das músicas tocadas. Até que chegamos finalmente ao exótico lugar.

“ZOLTAR, Le Magnifique - Parque de Diversões”, dizia o letreiro brilhante com dois olhos
misteriosamente chamativos ao lado.

Impossível não se sentir em outro mundo ao caminhar naquele espaço tão alegre, colorido e
misterioso. Era pequeno sim, um parque de bairro, mas cheio de inventividade. A
maquiagem dos palhaços era diferente. Havia um clima burlesco e esotérico no ar. Perto dos
guichês de venda dos ingressos para as diversas atrações, um senhor grisalho muito
simpático e trajado como mago dava as boas-vindas aos visitantes e indicava as melhores
atrações. Ele me fitou com curiosidade e disse com um sotaque meio castelhano:

— Você, jovem garoto! Está pronto para encarar seus próprios medos? Mergulhe nas
profundezas de sua alma na CASA DOS ESPELHOS!

Compramos os ingressos e saímos para explorar o parque e escolher os brinquedos nos quais
iríamos arriscar nossas vidas.

— Aqui é “Pague para entrar e reze para sair”, né? — brinquei apontando para a frágil
estrutura de tábuas e tijolos que ajudava a manter a roda gigante de pé.

— A emoção é justamente essa, Betão! — respondeu Joca, animado.

— Gente, eu não sei vocês, mas eu bem que tô afim de me arriscar naquela mini
montanha-russa ali — Melissa vislumbrou o carrinho que ziguezagueava pelo brinquedo de
cima a baixo — espero que não quebre comigo lá em cima.

— Então, vamos! — convoquei.

As filas estavam enormes por causa do feriado, mas conseguimos rodar nos brinquedos
adultos mais disputados. A mini montanha-russa, kamikaze, barco pirata, pandeiro e as
xícaras dançantes. Fomos até “perseguidos” pelo Jason Voorhees na casa do terror.

Nunca pensei que me sentiria tão bem sendo vela de Melissa e Joca. Era tão bom ver que no
meio daquela confusão, eles estavam se entendendo, se gostando. Enfim, depois de rodar
nessas principais atrações, ainda arranjamos tempo para conferir a transformação de uma
linda moça em Monga, a mulher-macaco. Logo após, procuramos algo para um lanchinho
rápido e Joca sugeriu sorvete, afinal, estava um calor danado mesmo.
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Depois de comprarmos os sorvetes de casquinha, não pude deixar de reparar no familiar


nome da barraca: “Sorveteria Refresco”. Um arrepio leve me pegou pela nuca, mas
rapidamente passou. Resolvi não ligar e continuei o passeio pelo parque normalmente com
Melissa e Joca.

Até que nos deparamos com algo incomum num cantinho meio afastado de toda aquela
movimentação. Era um artefato que lembrava bastante um caça níquel, mas ainda melhor.
Infelizmente eu não tinha uma máquina fotográfica comigo, pois eu certamente teria
registrado aquele momento único. Meus olhos estavam bem arregalados diante de “The
Great Gypsy”. Só então, eu me liguei na referência ao nome do parque, “Zoltar”, pois o
equipamento era uma perfeita réplica da máquina homônima que transforma Josh Baskin em
adulto, no filme “Quero ser grande”, estrelado por Tom Hanks. Um cigano de metal
animado eletronicamente, que concedia desejos, dentro de uma vitrine chamativa. Era
basicamente isso. Coisa de filme, óbvio!

— Caraca! Joca, me belisca, eu não tô acreditando no que eu tô vendo… — eu falei,


esquecendo do sorvete que derretia na casquinha escorregando pela minha mão.

— Betão, eu achei que esse troço só existia no filme…— Joca estava boquiaberto.

— Cê ainda lembra da nossa musiquinha? — perguntei com olhar de traquina.

— Com certeza! — Joca devolveu o olhar.

No ano anterior, Caio, Joca e eu, tínhamos ido ao cinema assistir ao filme e, ao sair da
sessão, inventamos nossa própria versão da cantiga de amizade de Josh e Billy. Performamos
ali mesmo a nossa musiquinha vergonhosa que dizia:

“Baby, baby, baby


Não me chame de amor
Se você me olhar assim
Já me bate até calor
Se tu me chamar de mel
Eu te levo até o céu
Se tu me chamar de pão
Entro no teu coração
E tu não vai me esquecer
Aposto um beijo pra valer!”

— Garotos sempre serão garotos! — disse Melissa com vergonha alheia das pessoas que
passavam. Mas no fundo ela adorou aquele showzinho.
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— Que maneiro, cara! Achei que você não se lembrava mais dessa bobeira, Joca!

— Claro que eu me lembro, cara. Só faltou o Ca… — Joca interrompeu a si próprio, quando
percebeu que ia falar de Caio.

— E vão ficar parados aí? Anda, gente, façam seus pedidos! — Melissa nos salvou do
constrangimento.

— Vocês tem moeda aí? Eu agora só tenho nota — disse Joca conferindo os bolsos.

— Eu tenho uma — constatei olhando a carteira depois de lamber minha mão lambuzada de
sorvete derretido — Vamos jogar lá! Pelo menos um pedido ele vai ter que realizar!

Fechamos os olhos e respiramos fundo. Honestamente, não comentamos nada sobre o que
cada um pediu. Quando coloquei a moeda, a máquina tocou uma música meio sinistra e o
boneco fez uns movimentos falando em inglês, algo como “Bem-vindo a tenda Zoltar. Faça
seu pedido e revelarei a sua sorte!”. Ao final da incursão, a máquina ejetou um bilhetinho
estilizado com uma mensagem bem piegas sobre plantio e colheita de boas ações. Dividimos
o canhotinho em três partes e cada um guardou a sua.

— No filme parecia mais emocionante… — Joca demonstrava parcial decepção.

— Justamente porque é um filme, né? — pontuou Melissa.

— Bom, se realizar nossos desejos, já tá valendo — falei em tom conformado.

Logo tomamos outra direção e paramos em frente a duas atrações: a roda gigante e a casa dos
espelhos. Cada um de nós só tinha um ingresso e fizemos o óbvio: meu casal de amigos foi
namorar um pouco na roda gigante e eu segui o conselho do mago recepcionista: “Mergulhe
nas profundezas de sua alma na CASA DOS ESPELHOS!”. Entrei junto de outras quatro
pessoas, mas logo só havia eu. Andar por aquela miúda casa era um verdadeiro desafio. A
saída não se mostrou nenhum pouco fácil. Espelhos de todos os tamanhos, formatos e cores,
confundiam a visão. Sem tatear era impossível não dar de cara no próprio reflexo, que nem
sempre se mostrava claro. Alguns corredores e espelhos eram falsos.

“Close your eyes, give me your hand, darling


Feche os olhos, me dê sua mão, meu bem
Do you feel my heart beating
Você sente meu coração batendo?
Do you understand?
Você compreende?
Do you feel the same
Você sente o mesmo?
Am I only dreaming
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Estou apenas sonhando?


Is this burning an eternal flame?
Isso que queima é uma chama eterna?
I believe it's meant to be, darling
Eu acredito que isso é destino, meu bem
I watch you when you are sleeping
Eu te observo quando estás dormindo
You belong with me
Seu lugar é comigo”

Quando as luzes piscaram, o arrepio me pegou de jeito, dessa vez transcorreu da minha nuca
ao resto do corpo inteiro. E quando pisquei confuso, com um pouco de claustrofobia, lá
estava ela bem na minha frente. A máquina Zoltar acabara de realizar meu pedido. Luna, a
cigana dos cabelos cor de fogo, olhava para mim de forma terna e saudosa, acompanhando os
movimentos de minhas mãos. Eu queria tocá-la, mas só sentia a superfície lisa e gelada do
espelho que refletia sua imagem. Comecei a ficar irritado e perdi a razão; procurando por
alguma passagem que rompesse aquela barreira que nos separava. Pá! De tanto procurar,
acabei encontrando uma fina portinha coberta por espessa cortina preta. Me espremi ainda
mais em minha própria magreza e ao conseguir passar, levei um pequeno tombo, caindo do
outro lado da portinha, numa sala em nível inferior.

A sala parecia uma tenda das Mil e uma noites, ou o interior da garrafa da Jeannie é um
gênio, toda enfeitada com almofadas, cadeiras confortáveis e lampiões. O cheiro era
maravilhoso! Aroma de incensos, iguais aos que o meu padrinho acendia na casa dele para
disfarçar o odor de tabaco. Depois desse rápido vislumbre, levantei-me rapidamente e logo
uma exótica figura feminina se fez presente.

— Ora, ora…O que temos aqui? O cavaleiro de paus! Impressionante como tarda, mas não
falha. Eu estava à sua espera.

A dona da voz aveludada era uma mulher magra que devia ter uns cinquenta e poucos anos,
mas cheia de jovialidade em sua postura. Ela tinha cachos vermelhos que se confundiam com
os fios brancos da raiz. Me olhava de cima para baixo com seus grandes e castanhos olhos de
coruja. Suas vestes excêntricas lhe conferiam uma aparência mística.

— Sente-se comigo, belo rapaz.

Ela me convidou, tomando assento na mesa redonda de toalha lilás, que sustentava uma bola
de cristal e um deck de cartas douradas. Sinceramente, eu não fazia ideia de onde tinha me
metido. Seria aquela uma encenação? Fazia tudo parte do espetáculo da casa dos espelhos?
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Ou eu tinha entrado em outra dimensão? Bom, de qualquer forma, aceitei sua sugestão e me
sentei frente a ela.

— Você está confuso. Posso ver em seus olhos. Não fique, jovem Beto. Vamos encontrar a
peça que falta no seu quebra-cabeça.

— Como você sabe o meu nome? — perguntei assustado. Ela claramente não era uma
charlatã.

— Madame Kali sabe de tudo. Aqui você encontrará todas as respostas. Corte em três!

Ela pediu para que eu dividisse o monte de cartas em três partes. Seus dedos anelados
começaram a embaralhar com destreza o deck de cartas douradas que saltavam
desesperadamente como se quisessem a todo custo serem lidas. Curiosamente, todas as cartas
pulavam com o arquétipo voltado para baixo, como se só quisessem revelar suas mensagens
para Madame Kali.

— Eu sei quais são as perguntas que assaltam a sua paz e estou aqui para respondê-las —
disse ela, organizando as cartas que tinham saído.

— O que você é? Bruxa, advinha…cigana?

— Um pouco dos três e muito mais.

— Quando o rei de paus atendeu ao nosso chamado em Macaé, ele jamais pensou que você
seria o cavaleiro de paus, não é mesmo? — disse ela mostrando as respectivas cartas — A
imperatriz executa a ordem cósmica, mas quem conduz é o cavaleiro. Só assim ela pode
fazer sua justiça, que foi o que aconteceu.

— Entendi bulhufas.

— Você conheceu Luna Khamali, “La Romani”.

— Sim! Eu sabia. Tinha que haver alguma explicação. Você também conhece a Luna? Ela tá
aqui, não é? Eu a vi no espelho agora há pouco.

— O espelho só mostra nossos anseios mais profundos. Infelizmente, ela não está aqui — ela
afirmou com tristeza no olhar.

— E como você sabe dela? Quem é você?

— Eu sou mãe dela. Luna é minha filha. Acredite quando digo, que toda vez que olho aquele
bendito espelho, é a imagem dela que ele me mostra.

— Você é mãe dela? Pelo amor de Deus, me dá alguma explicação! Não pode ser real essa
parada dela já estar morta. Essas coisas não existem.
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— SHIU! — sibilou Madame Kali, pedindo silêncio e virando as cartas restantes. Ela disse
tudo num transe de olhos fechados — Como eu desconfiava… Eles mostram resgate
cármico.

Eles quem, meu Deus do céu?

— E o que isso quer dizer? — perguntei, curioso.

— Quer dizer que uma vida ceifada no passado veio cumprir uma missão que não conseguiu
antes. É como se você tivesse sido escolhido por Eles, Beto. Sua ingenuidade foi necessária
para acolher essa vida e guiá-la ao momento crucial.

— A minha sensação é que fui feito de idiota…

— Não, você não deveria saber de nada. Seu sentimento genuíno e desinteressado foi o laço
de união que ancorou energia suficiente para que esta vida pudesse estar aqui naquela noite.
O entrelaçar corpóreo de vocês concebeu a força telúrica e diante do perigo iminente, essa
vida, como que por epifania, rememorou-se do propósito para o qual havia ressurgido e
enfrentou o destino sem medo, executando a sentença final.

— Em resumo, você tá me dizendo…

— Estou dizendo que o ciclo de abuso, violência e morte provocado naquele antro, acabou.
Assim, Luna cumpriu o intento para o qual foi designada e libertou-se das correntes que a
prendiam ao nosso mundo, dando sossego a outras almas também. Ela finalmente se
“encantou”.

— Encantou? “Encantada”... — falei baixinho com meus botões — Ei, ela falou sobre isso!
Madame Kali o que significa?

— Um encantado é alguém que, por algum motivo, seja ele bom ou ruim, na hora da morte
se transforma em uma espécie de entidade. É diferente de uma simples alma morta que
“sobe”, “desce” ou fica vagando. Um encantado ajuda as pessoas e transita facilmente entre o
material e o espiritual. Conseguem se materializar e ter experiências físicas, mas depois que
ganham sua ascensão, isso já não os interessa.

— CARALHO! — Madame Kali repreendeu meu palavrão com o olhar. — Desculpa. Mas é
impossível eu ouvir isso e não lembrar daquelas histórias tipo Iara, mula sem cabeça…

— Todas as regiões, não só do Brasil, mas de todos os países, tem suas lendas, seu folclore.
Nós, ciganos, também temos. Eu só jamais imaginei que minha filha seria um desses
“causos”.

— Desculpa, mas isso é muito insano. Meu cérebro fica dizendo que a Luna tá viva sim e
que essa parada de magia é só coincidência.
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— E o que é magia senão a manipulação de coincidências? Luna fugiu de casa para seguir
seu sonho. Acabou sofrendo uma morte digna das tragédias gregas que ela tanto gostava. Já
chorei demais, menino. Chorei tanto que sequei. O pai dela vendeu nossa casa e a sorveteria
e depois comprou e aperfeiçoou aos poucos esse parque, acolhendo outros irmãos ciganos e
artistas que não tinham teto. Cigano de verdade não sabe viver preso num lugar só. Nosso
negócio é a estrada. Um parque de diversões itinerante foi o empreendimento perfeito. —
Kali segurou em minhas mãos e me olhou fundo nos olhos — Mas, tudo isso foi só para
expiar o remorso que ele sentia pela morte da nossa filha. O pai dela morreu de culpa por
tê-la deserdado. Depois que ele faleceu, fiquei sozinha cuidando disso aqui.

— Eu sinto muito — aquela história me “socou” o estômago — Mas porque esperar todo
esse tempo para fazer a denúncia? — indaguei

— Sabe o que me manteve viva nesses vinte anos, Beto? A promessa dos Deuses, de que eu
veria a justiça ser feita. Não foi só a morte da Luna que se resolveu nesse resgate. Se você
reparar direito, outras histórias também foram resolvidas.

— É muita informação. Não sei o que lhe dizer…

— Não precisa dizer nada. Mas, se você não acredita no sobrenatural, acredite pelo menos
em Luna, na noite que passou com ela. Isso foi real e nada pode mudar. Ignorar tudo o que
vocês dois viveram juntos, ofende diretamente a memória dela.

— Mas o pior é que eu acredito! No fundo eu nunca vou conseguir esquecer! E esse meu
racionalismo é uma defesa que me impede de sofrer. Porque eu sei que nunca mais vou vê-la
de novo e isso me maltrata — desabafei com um nó na garganta.

— Ela cruzará o seu caminho novamente, mas não do jeito que você espera. Saiba que a
partir daquela noite, sua sorte mudou para melhor.

Madame Kali me transmitiu certeza e ternura com o olhar. Levantamos da mesa e nos
despedimos com um abraço. Ela me disse que eu sempre seria bem vindo em seu parque de
diversões. A cigana me conduziu até a saída de sua tenda, que ficava atrás e embaixo da casa
dos espelhos, onde Melissa e Joca estavam aflitos esperando por mim.

— Onde tu se meteu, maluco? Vambora, que amanhã tem aula! — Joca me deu umas
palmadas no ombro esquerdo.

— Ah, cara, longa história.

— Pois trate de ir contando! Essa história, além de longa tem que ser muito boa, pra eu
perdoar esse tempo todo que você me fez te esperar aqui na porta — intimou Melissa.

— Ah, gente, sem essa! Então, vocês não souberam aproveitar esse tempão que dei pra vocês
namorarem?
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Fomos conversando enquanto fazíamos o caminho de volta à entrada do parque. Novamente,


o mago me cumprimentou com seu sotaque castelhano e dessa vez eu o reconheci. Era o tal
Juan, o cerimonialista da boate Broadway que apareceu na visão da minha experiência de
quase morte, o amigo da Luna. Só que agora mais velho, pois havia se passado vinte anos
desde a tragédia que ceifara a vida de “La Romani”.

Agora tudo fazia sentido. Não de forma racional, mas dentro de uma misteriosa lógica
sobrenatural. A comunidade alternativa que meu pai havia visitado dias antes em Macaé, era
o pessoal desse parque, os ciganos. Foi um quebra- cabeças muito bem arquitetado por seja
lá quem for o dono disso tudo que chamamos de universo.

Passei o caminho todo contando como foi a experiência de conhecer Madame Kali e tudo
que ela me revelou. Ao chegarmos na casa de Dona Cida, contei novamente para ela, só que
agora acompanhado de um café com bolo de goiabada.

— Menino, tu tá precisando é de um descarrego, um ebó dos brabos! — disse a avó de


Melissa, entre gargalhadas.

Porém, Dona Cida logo tratou de se despedir e nos lembrar que “amanhã tem colégio!”,
então nos arrumamos para dormir, mas antes ela me presenteou com um unguento de babosa
para eu passar nos ferimentos e evitar cicatrizes. Depois, Joca e eu nos ajeitamos no
sofá-cama da sala, mas eu quase não preguei os olhos. Desde esse dia, tornei-me um adepto
do ditado: “Yo no creo en brujas, pero que las hay, las hay”.

FITA 26: manhã do dia 3 de novembro de 1989

“Veja o Sol dessa manhã tão cinza


A tempestade que chega é da cor dos teus olhos
Castanhos
Então me abraça forte
Me diz mais uma vez que já estamos
Distantes de tudo
Temos nosso próprio tempo”

Dormi pouco, mas o suficiente para conseguir ficar de pé quando amanheceu. Nos ajeitamos,
tomamos café novamente com pão caseiro. Joca, Mel e eu fomos para a escola de ônibus e ao
passarmos em frente ao espaço aberto onde o parque estava acampado, qual não foi a nossa
surpresa constatando que o local estava limpo. Nem sinal do misterioso “ZOLTAR, Le
Magnifique - Parque de Diversões”, como se ele jamais houvesse estado ali. Sinistro.
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Já no colégio, eu tentei fingir que nada tinha acontecido, mas foi impossível. O ensino médio
é um inferno e os adolescentes são os demônios em formação. Quem consegue passar por
essa provação sem dano algum, provavelmente foi o causador de danos alheios. As pessoas
não faziam nenhuma questão de disfarçar que falavam sobre mim. Os cochichos de outrora
se transformaram em declarações indiscretas e despudoradas. Um misto de “Coitado! Que
chifrudo épico!” com “Ele salvou aquela menina do Guto!”.

Chegando na sala de aula, a professora Josiane tinha acabado de entrar e estava abrindo seu
material. Foi quando reparei no braço da minha carteira rabiscada com pincel permanente,
uma caricatura minha tipicamente chula, dizendo “Salve Galhada-San! Nosso herói!”.
— Que merda é essa aqui? — exclamei, inflamado de raiva.
— E que boca suja é essa na minha aula, Humberto? — Josiane berrou mais alto, ajeitando
os óculos no nariz bem afilado, como de costume.
— Professora, minha carteira tá toda pichada!
Josiane veio analisar a "obra de arte" que fizeram e concluiu, apertando os lábios:
— Essa é uma piada de muito mau gosto! Muda de carteira.
Sentei lá no fundo da sala e foi até bom, pois fiquei longe de Caio, que não parecia se
constranger com minha presença tão perto. A hora custou passar e o meu sono, não dormido
devidamente à noite, veio com força total. O sinal do intervalo bateu. Avisei para Joca e
Melissa que ia tentar cochilar escondido no banheiro até dar a hora de ir embora.
Peguei minha mochila para disfarçar e zarpei. Mas, ao me aproximar da porta do banheiro,
percebi que haviam garotos falando sobre mim e a última coisa que eu queria era lidar
pessoalmente com chacota explícita da minha cara. Passei reto e tive uma ideia: o antigo e
inacabado banheiro dos deficientes. Espero que já tenham terminado essa obra tão
importante, mas na minha época, aquele lugar só servia para os alunos irem fumar e se pegar.
Os professores faziam vista grossa na maioria das vezes, pois morriam de medo de perder
seus empregos por causa de alunos mimados de escola particular. No Colégio Teorema,
qualquer repreensão mais vexatória por parte dos professores, era rebatida pelos alunos
esnobes com a famigerada e vergonhosa frase: “Eu que pago o seu salário!”.

Liguei meu walkman e me dirigi como foguete ao banheiro abandonado nos fundos da
quadra poliesportiva. Ao ver uma sombra no chão, percebi que estava sendo seguido, mas
não parei. Guto não era com certeza, pois estava mordendo grade. Quando finalmente entrei,
me virei para olhar quem vinha no meu encalço.

— Fala sério! Você? O que é que você quer? — disse eu, retirando meus fones de ouvido.
Era Caio, todo na pose com seu look meio punk, porém visivelmente cansado.
— Precisamos conversar — ele declarou de um jeito meio ansioso.
— Não precisamos, não. Cai fora! — recusei.
— Não saio daqui até você me escutar.
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— Me deixa em paz, porra! Já não basta você ter me sacaneado na festa? O que você ainda
quer comigo? — gritei e joguei a minha mochila com força no chão.
— Beto, me escuta, por favor! — Caio tentou se aproximar e eu dei dois passos para trás.
— NÃO! Agora por sua causa eu sou o “Galhada San”! — com a minha mania de gesticular,
fiz um chifrinho com as mãos na cabeça — Satisfeito?
— Eu não queria nada disso. Nunca foi minha intenção magoar você, cara — Caio falou
manso como sempre.
— Não interessa a tua intenção, porra! Eu sempre fui teu amigo, eu confiava em você! —
Meu peito explodia de raiva, o que me fez chegar perto o suficiente e apontar meu dedo
indicador na cara do meu ex-melhor amigo.
— Eu também sempre fui teu amigo, cara! Sempre tive do teu lado. Quantas vezes eu
defendi você? — Sua habitual fala mansa e segura, deixava Caio com ares de razão.
— Ah, claro! “A donzela em perigo”, né? Devia ter deixado eu morrer de pancada ou
afogado mesmo. Seria muito menos humilhante do que me trair com a mina que eu tava
ficando em plena festa da escola! PRA TODO MUNDO VER! — alterei a voz num tom
quase didático.
— Mas, Beto, eu…
— Você o quê? — interrompi — Tudo bem que a Lana não vale uma aspirina, mas se vocês
estavam a fim um do outro, era só você me falar, parceiro! Ia ser chato, mas teria sido muito
mais bonito da tua parte e da dela.
— Eu nunca quis nada com a Lana! Ela é que vivia dando em cima de mim escondido. Eu
até desconfiei que ela tava contigo pra tentar me fazer ciúmes. Mas, era tudo por causa do
lance com o pai dela. Depois da festa, ela me contou tudo!
— Tá vendo? Estavam juntos depois da festa, por isso é que foram bater lá na loja juntinhos
também.
— Não, cara! Não é nada disso. Se acalma, deixa eu te explicar! — O magnata tentou pôr as
mãos em meus ombros.
— Mas não tem nada pra explicar, está tudo mais claro impossível! — fui taxativo e me
esquivei daquele contato físico.
— PRESTA ATENÇÃO: Eu jamais teria alguma coisa com a Lana. Beto, eu sou gay.
— Quê? — não consegui acreditar naquela frase — Você ainda é capaz de descer mais
baixo… Inventar uma coisa dessas só pra sair de bonzinho?
— Eu tô sendo sincero como nunca fui nem diante do espelho. Eu sou gay! — Disse Caio
com as mãos na nuca e a respiração pesada. Houve uma pausa pequena, mas que pareceu
uma eternidade.
— Por que eu deveria acreditar nisso? — perguntei com as mãos na cintura e cara de
inquisidor.
— Porque você é meu MELHOR AMIGO — Caio se aproximou e dessa vez eu permaneci
parado com altivez. Botou as mãos em meus ombros, me encarou e disse: Eu jamais
magoaria você, Beto. Eu te amo, cara!
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— Você é doente! — com cara de asco, desfiz o contato físico bruscamente.


Caio era um mentiroso. Projetinho de bicheiro. Que garoto baixo! Aliás, subterrâneo! Peguei
minha mochila do chão e, saindo do banheiro em ruínas, me deparei com um grupo de alunos
que ouvia atentamente minha discussão com meu ex-melhor amigo como se fosse a melhor
radionovela. Devem ter nos seguido até lá ao notar que o badboy pisava em meu rastro. Não
olhei para trás, segui rumo ao portão de entrada e implorei ao vigia, Pedrão, que me deixasse
ir embora. Ele permitiu dizendo “Só porque você é o Galhada-San”. Que ódio! Engoli meu
protesto pelo apelido e fui para casa a pé. Precisava daquela caminhada.

Melissa telefonou lá pra casa preocupada comigo, dizendo que precisávamos conversar sobre
Caio, mas eu simplesmente decretei a morte daquela “amizade” e encerrei o assunto.

— Se você continuar insistindo nessa parada, eu deixo de falar com você também. Não tem
defesa. Quer continuar sendo amiguinha, seja, mas não me peça o mesmo. Te amo, Mel. Vai
curtir o fim de semana com o Joca, vocês merecem. Não se preocupa comigo, que eu tô é
leve, bem levinho… — Essa parte era balela, eu não estava nem um pouco leve — A gente
se fala na segunda. Beijão!

O fim de semana passou voando. No sábado de manhã, papai me levou ao hospital para
alguns exames. Ele queria saber se eu tinha fraturado algum osso, mas por sorte eu estava
bem. À tarde, aproveitei para ficar com meu velho e o maninho; fomos assistir ao
lançamento de “Batman” com Michael Keaton e Jack Nicholson. Foram dois dias que nos
fizeram muito bem como família. Em muito tempo, era a primeira vez que tínhamos um
momento só nosso.

No domingo, tio Teixeira apareceu lá em casa e fez a sua famosa costelinha agridoce para o
almoço; ele e meu pai ficaram relembrando a mocidade com minha mãe. Cultivar uma
relação saudável com quem se ama é terapêutico. No fim da tarde, Théo e eu fomos à
sorveteria da pracinha que havia perto de casa. Foi quando percebi que meu irmãozinho
estava crescendo, entrando na pré-adolescência.

Eu me dei conta do quanto eu o amava e do quanto ele representava o último legado que
minha mãe deixara. Família é preciosa e o amor é um laço inquebrantável, ainda mais forte
do que partilhar o mesmo sangue.

Na segunda-feira, fui à escola de bike e, no caminho, preparei mentalmente as respostas para


as zoações da galera e caso Caio tentasse uma nova conversa. Quanto a isso não foi preciso,
pois ele não apareceu na aula. O falatório tinha piorado e na hora do intervalo veio a gota
d’água. Os capanguinhas do Guto, que ainda estava preso, picharam o pátio com um desenho
meu e de Caio nos beijando. Eu me tremia de raiva e fui à diretoria exigir punição para os
responsáveis, porém não havia provas de quem seria o culpado.
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Mas, eu sabia que eram os seguidores da Big Loira. Então, encorajei o diretor, Marco
Aurélio, a fazer uma busca em suas mochilas e lá estava, no caderno de garranchos, o
desenho original numa folha dobrada. O bando de hienas foi obrigado a lavar o chão do
pátio. O melhor não foi isso e sim, saber que eles pensavam duas vezes antes de procurar
briga direta comigo, pois minha fama de “Karatê Kid”, ou melhor, “Galhada-San”,
mantinha-se firme e forte sem eu saber ao menos um golpe que fosse de qualquer arte
marcial. Ser nerd e decorar cenas de filmes tem suas vantagens.

Ao fim da última aula, a secretária chegou na sala e colou na parede um papel com a relação
dos alunos, suas médias e faltas, notas de comportamento, bem como os que tinham ficado
de recuperação. Felizmente minhas notas nos três primeiros bimestres já eram suficientes
para minha aprovação, vulgo carta de alforria do colegial. Melissa foi bem, mas precisava
melhorar em biologia. Joca como sempre, muito inteligente, só precisava de mais frequência
em educação física e parar de conversar durante a aula.

— Caraca. Se o Caio não tirar um 10 em química e inglês, tá ferrado. Ele já está de


recuperação final!

Fingi não ter ouvido. “Foda-se o Caio!”, pensei. E pelo visto ele realmente ia se estrepar,
afinal, durante o mês de novembro ele não teve frequência o suficiente, ultrapassando o
limite de faltas, provavelmente por causa da zoeira em cima da sua suposta
homossexualidade

Sua mãe, Sandra, a quem nós víamos raramente, compareceu ao colégio no início de
dezembro e negociou com a diretoria sobre a vida escolar do filho. Ela aparentava exaustão e
até depressão. Olheiras fundas e estava mais magra também. Pouco lembrava a morena
elegante e amigável de outrora. Certamente eram consequências da prisão do marido
Rivaldo. Os negócios devem ter se abalado. As faltas de Caio na escola se deviam às suas
obrigações como sucessor do pai. Era o que todos diziam. Melissa e Joca mantinham algum
contato com o magnata, mas respeitavam a minha mágoa e não me falavam nada a respeito
dele.

Naquela tarde eu saí para ajudar meu padrinho a dar uma geral e redesenhar o modelo da
nova Alpha Som. Finalmente a perícia policial tinha liberado o lugar. Ele precisava
reinaugurar a loja em grande estilo e não estava podendo pagar o aluguel de um espaço novo,
então a solução era se livrar da aura de morte deixada pela tragédia que ocorrera lá na virada
de outubro para novembro. Entre uma ideia e outra, surgiu o papo sobre as minhas amizades.

— Tô te achando meio solitário, Beto. O que rolou com teus amigos?

— Nada, tio, tá tudo certo. A Melissa e o Joca estão namorando, aí já viu, né? Não
desgrudam por nada e eu não tenho vocação pra vela — falei catando revistas amassadas do
chão.
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— Mas e aquele seu amigo Caio? Nunca mais vi vocês juntos. — perguntou ele tentando
desempenar uma prateleira caída.

— Ah… Esse aí… — eu nem queria tocar no assunto.

— O quê? Brigaram?

—Ok, de você é impossível esconder alguma coisa. — Pus as revistas sobre o balcão — Sabe
a festa à fantasia da escola? Lembra daquela gata que eu tava pegando… A que matou o pai
aqui na loja?

— Lana. Agora não tem como esquecer… O que tem ela? — perguntou Tio Teixeira,
desistindo de vez da prateleira empenada e se ajeitando no sofá para ouvir melhor.

— Então, na festa, ela e Caio deram uns amassos na frente de todo mundo. Tipo assim,
TODO MUNDO mesmo! Foi humilhante.

— PUTA QUE PARIU! Como que você não me conta uma fofoca dessas? Quer dizer,
desculpa. Óbvio que deve ter sido mó baixo astral pra você, mas é que você sempre me conta
tudo… — sua mão no queixo era o maior sinal de interesse pela minha tragédia particular.

— Vergonha, né? Não quero ninguém sabendo que sou… corno — confessei e fiz novamente
o gesto de chifrinho com a mão.

— Entendo. Relaxa, comigo tá tranquilo. Até porque todo mundo é corno pelo menos uma
vez na vida — ele comentou em tom resignado.

— Só que minha estreia foi em “grande estilo”, tio! Daí eu e aquele traidor brigamos na
escola, mó galera ouviu tudo.

— PELA DEUSA! — Sua mão subiu do queixo para a boca.

— Não, e detalhe: pra completar a banana split, Caio teve a cara de pau de se dizer gay, só
pra sair de inocente e…

— Pera aí, o quê? — Teixeira se levantou e me interrompeu, com semblante sério.

— Tô falando… Aquele garoto é um doente e fiz questão de dizer isso na cara dele!

— Você disse o quê? Beto, calma, pera lá. Teu melhor amigo...

— Ex-melhor amigo — eu o corrigi com pressa.

— Tá, teu ex-melhor amigo se assume gay pra você e a tua reação é chamar ele de doente?
— Meu padrinho juntou as mãos como se estivesse rezando.

— Tio, mas é óbvio que isso é só mais uma mentira do Caio!


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— Como mentira? Por que você acha isso?

— Ah, qual é… É a desculpa perfeita! E ele não parece gay — fiz o batido gesto da mão
quebrada.

— Ah, tá! E eu… Eu pareço gay? — Meu padrinho repetiu o gesto.

— Como assim? Não, né? Por quê?

— Meu amado afilhado, Beto. EU SOU BISSEXUAL — Sua ênfase me pareceu uma
manchete digna do Jornal Nacional.

— Tá de onda comigo, tio? — perguntei sem fé no que tinha ouvido.

— Ao longo desses dezessete anos que eu te conheço, não tenho sido outra coisa a não ser
sincero. Sempre achei que nunca precisaria “sair do armário” pra você, mas agora vejo que é
NECESSÁRIO! — Teixeira falou num tom que ele usava apenas para me dar broncas.

— Então é sério? Você é bissexual mesmo? — Meu mundo caiu. Não sabia como reagir
àquela nova informação — Mas por que nunca me contou?

— Ah, sei lá. Você nunca perguntou. Como eu disse, não achei que fosse preciso.

— Caraca… Desculpa, mas é que não parece...

— Tenho que tatuar na testa? — Nós dois tínhamos o mesmo hábito de gesticular a fala,
então qualquer aspas no texto, tenha certeza de que foi reproduzida pelas mãos — Isso é
ridículo! Gay não tem cara, cor, jeito. Gay é normal. É só uma pessoa, homem ou mulher,
que gosta, prefere, ama alguém do mesmo sexo. Mas agora eu sendo bissexual, as pessoas
não entendem. Acham que é tudo putaria, indecisão, libertinagem. Então, falo logo que sou
gay para elas assimilarem melhor. E modéstia a parte, eu não passo fome.

— Caraca, tio Teixeira é “gilete”! — Pensei alto mais uma vez.

— Ah, fala sério, Beto. Que brega!

— Desculpa, tio. Eu não queria te ofender, foi só jeito de dizer — falei sem encará-lo,
procurando um buraco no chão para enfiar a cara — Eu nunca fui um preconceituoso.

— Ofender? Não, “magina”. E realmente, nunca ouvi você fazer nenhum comentário
maldoso sobre essas coisas. Pelo menos não na minha frente. Mas é que você é desligado da
vida, menino. Parece que vive num mundo só seu. Olha, Beto, a sociedade impõe muitas
regras, modelos, estereótipos… Não se deixa levar por isso. Na vida, as pessoas são muito
mais do que aparentam. Esse lance de pôr todo mundo em caixinhas, não funciona na prática.
O mundo é diverso, filhote. As pessoas são…plurais. É que nem um disco de vinil ou uma
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fita K7. Nem sempre as melhores e mais autênticas canções estão no LADO A e todo mundo
tem um LADO B, C, D…

— Saquei… — Minha mente estava processando aquela metáfora. Eu parecia viver mesmo
numa bolha, num mundinho secreto.

— Me preocupa que você tenha chamado o Caio de doente — continuou ele com seriedade.

— Ah, falei o que me veio na hora da raiva. Pra mim tudo que ele dizia era mentira… —
justifiquei dando de ombros, mas confesso que minha consciência se sentia mal.

— E ele pode ser um mentiroso mesmo. Agora, supondo que ele esteja dizendo a verdade.
Vamos lá: Caio é gay. Como você acha que ele se sentiu?

— Uma merda! — Não havia outra resposta.

— Ainda mais na virada de 1989 para 1990, quando essa porcaria da AIDS tá matando geral
e o mundo inteiro culpa apenas os gays — sua voz se alterou com notas de revolta — Como
se ser gay fosse crime, uma praga maldita que contamina tudo por onde passa e héteros
fossem imunes ao vírus!

— Caralho, tio… Eu não pensei nisso. Desculpa, de verdade. — Eu estava me sentindo um


lixo.

— Beto, meu bem, comigo tá tudo certo. Eu amo você e tô te batendo a real. É ao Caio que
você deve essas desculpas. Você está em paz com a sua consciência? Não sente falta da
amizade de vocês?

— Já que é pra ser franco, ando meio atormentado e sentindo falta dos papos que a gente
tinha. Me sinto sozinho…

— Então, filhote, se liga: se o Caio te contou que é gay e se isso for verdade… É porque ele
te confia demais e provavelmente não te traiu! — Teixeira bateu uma palma forte. — Vai
atrás dele, pede desculpa. Você não perde nada esclarecendo as coisas.

— Mas faz tanto tempo. Não tenho nem cara pra isso.

— Tem sim, carinha de bebê, uma pele ótima! — ele disse apertando meu queixo — Você é
quem sabe. Sua cabeça, seu guia.

— Posso te abraçar, tio?

— É claro, pivete. Eu te amo, tá?

— Eu também amo você, tio.


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Depois desse abraço, nós ainda ficamos a tarde toda arrumando a bagunça da loja, limpando
a poeira. Teixeira me contou sobre quando era estudante colegial amigo dos meus pais e foi
expulso de casa por ser bissexual. Meu pai que o acolheu em sua casa com a permissão dos
meus avós, já que a família da minha mãe sempre foi muito inflexível. Meu pai, apesar de
sério e responsável, veio de uma família mais compreensiva e herdou essa qualidade. Era ele
que defendia meu padrinho dos preconceituosos e, junto com mamãe, acobertava suas
paqueras. Com o tempo veio a maturidade e Ricardo Teixeira aprendeu a se virar, se
defender.

Aos trancos e barrancos, se formou em publicidade e pouco a pouco ajustou sua


independência financeira como produtor e empreendedor cultural. Mesmo renegado pela
família de sangue, ele se tornou um grande homem. Tio Teixeira também relembrou
aventuras de quando integrou o staff da turnê itinerante do Circo Voador em 1985, a qual fez
escalas em cidades nordestinas até chegar a São Luís do Maranhão.

FITA 27: 8 de dezembro de 1989

Ainda demorei uns três dias reunindo coragem para fazer o que devia ser feito. Indo à escola
naquela semana, passando o recreio com Melissa e Joca, senti muita falta de Caio e sua
bronca. Me lembrei de vários momentos da nossa amizade. Como quando ele tentou sem
sucesso me ensinar a brigar e adotar uma postura mais altiva que intimidasse possíveis
valentões.

— Vocês têm notícias do Caio? — perguntei sorrateiramente. Mel e Joca fizeram cara de
surpresa — É sério, gente.

— Só sei que anda muito ocupado. Quase não me liga mais… — Melissa deixou
transparecer preocupação.

— Desde que vocês brigaram, a galera dele se desmontou. Já tem um tempinho que não vejo
aquelas fuças — Joquinha também parecia apreensivo.

— Tava refletindo esses dias. Tô querendo ir na casa dele, saber se tá tudo bem.

— Betinho, meu amor! Graças aos deuses! — comemorou Mel, com um beijo na minha
bochecha — O universo ouviu minhas preces. Eu já não sabia o que fazer, porque vocês dois
são teimosos pacas!

— Tu quer que a gente vá junto, cara? — Joca perguntou e tocou meu ombro para dar apoio.
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— Não, gente. Acho que vai ser uma conversa chata. Eu só quero passar a limpo umas
coisas. Nem espero reconciliação, só preciso pedir desculpas por umas palavras mal ditas.
Ele ainda mora na mesma casa?

— Parece que agora ele tá morando com a mãe dele naquela casa que era da vó dele. Lá onde
a gente fez aquela festinha surpresa pra ele, lembra?

— Lembro, eu sei onde é. À tarde eu vou lá, depois que eu passar na loja.

Depois da escola, passei em casa rapidinho, almocei e pedalei direto para a Alpha Som,
ajudei meu padrinho um pouco e contei que veria o Caio depois. Ele me liberou antes, lá
pelas quatro da tarde. Depois, eu pedalei de novo pensando no que eu diria ao magnata
quando chegasse em sua casa, que ficava mais perto do que a residência anterior. Era mais
simples, porém com uma fachada mais convidativa, sem muro alto como a antiga “toca” dos
Vergueiro. Dessa vez era uma pintura azul claro, muro baixo chapiscado e cancela preta.

Depois de umas 3 palmas batidas, dona Sandra apareceu na porta e foi até a cancela.

— Oi, Beto. Quanto tempo… — Ela parecia estar exausta e não estava usando suas roupas
chiques como antes. Era apenas uma camiseta vermelha de algodão e saia jeans.

— Pois é. E a senhora, como tem passado?

— Não muito bem. Você deve estar por dentro do que aconteceu.

— Na verdade, não. Digo, ouvi boatos…

— Pois, confirme todos e mais alguns. Quanto mais a minha imagem tiver desassociada das
sujeiras do meu ex-marido, melhor. Perdemos tudo, até a nossa antiga casa. E parece que a
vontade de viver também tá indo embora.

— Sinto muito… — Não sabia o que dizer. Sandra parecia inconsolável — E o Caio tá por
aí?

— O que você quer com ele? Não é por sua causa que ele agora só vive no quarto, quase sem
comer e provavelmente vai perder o ano no colégio? — Foi um tapa de luva que eu mereci.
Sandra estava triste, mas como uma boa mãe, defendeu seu filho de mais uma possível
decepção.

— Foi tudo um mal-entendido.

— Ele só não foi reprovado por faltas, porque eu encharquei a mesa da diretoria com todas as
lágrimas que eu ainda tinha e o pai dele já havia quitado todas as mensalidades. Deve ser
horrível a gente ser humilhado simplesmente por ser quem é.
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— Eu sei que errei, Dona Sandra. Mas vim aqui para tentar consertar as coisas. Preciso muito
falar com ele! — Segurei com firmeza nas grades da cancela.

— Você vai falar, se ele quiser te ver. Se não, você vai embora e não aparece mais.

Ela abriu o portão rangente e eu entrei com a bike. Acompanhei Sandra pela casa até o quarto
de Caio. Ela bateu na porta e abriu.

— Tem alguém querendo te ver, filho.

O quarto de Caio estava meio bagunçado e com caixas de papelão lacradas, que deviam ser
ainda da mudança. A única janela que havia, estava fechada e com cortina escura, impedindo
a claridade de entrar.

— Quem é? — Caio se voltou para ver quem era e seus olhos expressaram surpresa com a
minha figura parada na porta — E o que é que você quer?

— Será que a gente pode conversar?

— Cê não disse que a gente já tinha dito tudo?

— Disse. Mas não era verdade.

— Por que eu deveria te ouvir? Você não me deu essa chance.

— Porque sua mãe acha que vale a pena. — Tive que apelar para a autoridade materna e
Sandra me apoiou com o olhar.

— Pode ir, mãe — Caio pediu a Dona Sandra, que estava de guarda na porta. — Qualquer
coisa eu despacho esse aí — Meu ex-melhor amigo se voltou para mim, seco — Entra e
fecha a porta.

Entrei no quarto e ao fechar a porta, a escuridão total se instalou novamente. Foi esquisito e
até meio assustador ter aquela conversa no breu.

— Não quero demorar. Eu só vim dizer que sinto muito. Eu não devia ter falado aquelas
coisas pra você.

— Você não tem que sentir muito por isso. Não era o que estava te sufocando? Cê só deixou
sair.

— Não. Digo, eu estava com raiva sim, mas não tinha o direito de falar contigo daquele jeito.

— Saquei.

Caio sempre foi sucinto, mas aquele silêncio na escuridão estava me matando. Então eu
levantei e usei minha memória fotográfica para me situar dentro do quarto, fui em direção à
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janela e abri as cortinas. A luz do fim de tarde adentrou em tons rosados refletindo no azul
dos olhos de Caio, que me encarava sentado na cama.

— É verdade que você é gay?

— É — respondeu ele depois de alguns instantes — Eu nunca mentiria sobre uma parada
séria dessas.

— E por que você nunca me contou?

— Você sabe o que é viver com medo de perder as pessoas que ama? Sabe o que é ter que se
esconder de tudo que possa levantar qualquer suspeita sobre quem você realmente é? Fingir
tanto até não saber distinguir onde começa e termina o personagem? Você não sabe.

— Cara, você não confiava em mim? A Mel também é super aberta, cê sabe disso. Eu era teu
melhor amigo, podia ter me falado.

— Era mesmo e eu confiava demais em você. Até que te contei e você ainda me chamou de
doente.

— Porra… Caio aquilo foi uma babaquice… Na hora da raiva a gente fala qualquer merda
sem pensar! — argumentei, sem graça.

— A gente só fala o que pensa, Beto.

— Me perdoa, por favor!

— E que diferença isso faz?

— Faz toda a diferença, porque não é verdade. Você não é doente porra nenhuma! Você é gay
e é o meu melhor amigo.

— Eu fui seu melhor amigo. Até você descobrir o meu “segredo” e revelar que só gostava do
meu personagem que você inventou nessa sua cabeça imatura.

— Eu nunca ia adivinhar! Você sempre foi caladão. Toda vez que você era o assunto de
qualquer conversa, dava um jeito de sair pela tangente.

— E eu tava certo, né? Parece que eu tava adivinhando o que aconteceria. Mas cansei de me
esconder. Foi até melhor assim, porque aí eu já vi que você é preconceituoso e a escola toda
descobriu logo sobre mim.

— Mas eu não sou assim, cara, eu juro! Eu achei que você tava mentindo só pra não ficar
como traidor no lance da Lana.

— Meu Deus, Beto, tu tem a mente muito fértil, cara.


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— Eu sei, eu sei, mancada! Depois eu refleti e vi que isso não tinha cabimento. Caio, eu tô
aqui de coração aberto. Eu errei, errei muito, errei feio! Mas, por favor, me perdoa.

Caio ficou em silêncio de cabeça baixa.

— Bom, então é isso.

Fui em direção à porta, mas antes de eu sair do quarto, o ex-playboy e ex-melhor amigo
acrescentou com sua fala mansa e sem me encarar:

— Tudo que eu te falei lá no colégio é verdade. Nunca tive nada com a Lana, mas ela deu em
cima de mim até cansar. Não te contei nada por puro medo da sua reação. Isso abalaria nossa
amizade. A última cartada dela foi me agarrar na festa e, por azar, justo quando os holofotes
procuravam por ela. Não deu tempo de nada! Você foi embora igual foguete. A mina teve um
porre desgraçado e fui eu que ajudei, botei no carro e levei pro P.S. As amiguinhas dela
sumiram. Demorou, mas eu não podia deixar a doida em casa daquele jeito. Ela tomou um
coquetel pra ressuscitar. Depois, comprei café num posto 24 horas e quando ela melhorou,
me contou tudo que estava acontecendo com nossos pais e que iam invadir a Alpha Som
naquela madrugada. Lana teve receio, mas eu não hesitei. Eu precisava acabar com toda a
sujeira do meu pai. Liguei pra polícia de um orelhão, mas deu ocupado, então chegamos lá
primeiro e não imaginei que você estaria lá justo naquela maldita hora. O resto você já sabe.

Meu rosto estava molhado de lágrimas e meu paladar sentia o gosto de cada gota salgada que
eu enxuguei com as mãos. Timidamente, comecei a cantarolar a nossa ridícula musiquinha:

“Baby, baby, baby


Não me chame de amor
Se você me olhar assim
Já me bate até calor
Se tu me chamar de mel

Ao passo que Caio continuou:


Eu te levo até o céu
Se tu me chamar de pão
Entro no teu coração
E tu não vai me esquecer
Aposto um beijo pra valer!”

Fui até a cama onde Caio estava sentado na beirada, me sentei ao seu lado e deixei meu
coração falar:

— Caio, eu não quero perder tua amizade. Não posso te perder! Você é um dos caras mais
importantes da minha vida. Você é meu parceiro, meu melhor amigo. Cê sempre foi forte,
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determinado, uma referência pra mim, pô. Nada vai mudar entre a gente! — com a garganta
quase travada de emoção, consegui dizer — Eu te aceito como você é, cara. Eu… Eu te amo.

Caio caiu no choro e de supetão eu o envolvi em um carinhoso abraço de reconciliação.

“But I see your true colors


Mas eu vejo suas cores verdadeiras
Shining through
Brilhando por dentro
I see your true colors
Eu vejo suas cores verdadeiras
And that's why I love you
E é por isso que eu te amo
So don't be afraid to let them show
Então não tenha medo de deixá-las aparecerem
Your true colors
Suas cores verdadeiras
True colors are beautiful
Cores verdadeiras são lindas
Like a rainbow
Como um arco-íris”

Avistei no chão o boletim de Caio com suas notas vermelhas em química e inglês.

— E essa bomba aqui? — perguntei saindo do abraço e catando o papel.

— Deixa essa porra pra lá — ele disse enxugando o rosto.

— Nada disso! Até parece que amigo meu repete de ano. E outra: eu jamais daria esse
gostinho pra Big Loira — consegui arrancar uma risada de Caio.

— E vai fazer o quê? Subornar os professores?

— A partir de agora eu sou seu professor! — afirmei batendo no peito e fazendo cara de
responsável.

— Mas isso aí é nota dez ou nada!

— Se você prometer que se dedica, eu te transfiro toda minha sabedoria nerd. Fechado? —
estendi a ele minha mão direita.

—Fechado! — Caio concordou com um sorriso no rosto.


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— Conta comigo, cara — acrescentei.

Apertamos as mãos e combinamos de que no outro dia eu dormiria lá, para estudarmos com
mais afinco. Caio me pareceu mais leve e Sandra, que estava nitidamente contente, me
convidou até para jantar, mas eu preferi ir para casa, pois já estava escurecendo. Cheguei em
casa a tempo de jantar com meu pai, Théo e Mônica, que não foi demitida. Meu maninho
tinha se afeiçoado a ela e meu pai gostava do seu trabalho de babá, sem contar que ela
quebrava muito o galho em alguns afazeres domésticos. Mas era temporário, Mônica ficaria
até arrumar um trabalho mais adequado às suas qualificações profissionais.

No dia seguinte, sábado, arrumei minha mochila para passar o final de semana com Caio em
sua casa. Meu pai foi me levar de carro. As provas da recuperação final já eram na
segunda-feira e meu amigo estava muito enferrujado. Suzane nos dava força com lanchinhos
e conselhos. Sua presença materna foi essencial para que o clima ficasse ainda mais leve.

À noite nós descansamos um pouco, já que Caio tinha que ver sua novela TOP MODEL e
dessa vez eu assisti junto. Era até bonito ver a empolgação de criança curiosa com a qual ele
acompanhou a história que antes ele só imaginava por meio da criatividade de Melissa que
lhe contava cada capítulo ludicamente.

Antes da gente dormir, trocamos confidências. Caio me contou sobre um romance de verão
que ele teve com um carinha chamado Mateus. Os dois se conheceram na Alpha Som, numa
tarde em que eu saí rapidinho para resolver alguma coisa. Eles trocaram telefones e não
desgrudaram durante todo o mês de julho. Porém, os pais de Mateus o mandaram aos EUA
para estudar e morar com uma tia, separando-o de Caio. Ou seja, meu amigo já vinha
sofrendo de amor faz tempo e o segundo semestre de 1989 foi bem mais hardcore para ele do
que eu pensava. Depois falamos sobre o ocorrido na Alpha Som, Luna etc. Caio relembrou a
surrealidade do que presenciou e ficou boquiaberto com as revelações que lhe fiz.

Enfim, no domingo, estudamos novamente e fiz um mini simulado durante o dia todo. À
tardezinha, o casal Melissa e Joca apareceu por lá. Mel tinha feito uns sequilhos e Sandra fez
um café para acompanhar. Lembramos da máquina “Zoltar” e minha amiga confessou que
seu pedido foi a minha reconciliação com Caio. Então eu abri minha carteira, peguei o meu
pedaço do bilhetinho do cigano de metal, rasguei na metade e dei a outra para Caio fazer seu
pedido e guardar. Não custava nada tentar, não é?

Depois, Seu Herbert foi me buscar e conversou brevemente com a mãe de Caio sobre seu
trabalho e o processo. Ela fez questão de lhe dizer que não o culpava por nada e garantiu que
encarava aquele momento como uma libertação, ou melhor: um recomeço. Eu me despedi
do meu amigo com palavras de motivação e voltei para casa confiante.
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Na segunda-feira, dia 11 de dezembro, pela manhã, Mel, Joca e eu chegamos mais cedo no
colégio e esperamos por Caio perto da entrada. Ele chegou todo nervoso, não apenas por
causa das provas, mas pelo julgamento de todos.

Entramos de mãos dadas com ele e dentro dessa corrente de amor e respeito, qualquer
chacota e olhar maldoso foram neutralizados. Caio fez suas provas em outra sala, nos dois
primeiros horários da grade. Perto do meio-dia, a secretária veio colar na porta da sala um
novo papel com notas, avisos e observações. Estávamos em nossa última semana de aula e,
para nossa felicidade, Caio passou de ano com nota máxima. E eu pensei: “Será que tenho
vocação para a docência?”.

Cumprimos toda a carga horária restante naqueles quatro dias em clima de despedida. Teve
rasgação de agenda, discurso e assinatura de uniformes. Inclusive sobre isso, depois da
minha reconciliação com Caio, eu meio que ressignifiquei o apelido de “Galhada San” e o
rubriquei em todos os uniformes daqueles com quem troquei votos de um bom futuro.
Porque corno todos já fomos ou seremos, agora “Galhada San” só tem um. O que me remete
à Lana… Pois é, um amigo do meu pai a representou na justiça e ela foi absolvida de ter que
cumprir pena por homicídio em algum reformatório, já que foi alegado legítima defesa e o
juiz acatou. Apesar disso, Lana não retornou à escola. Simplesmente perdeu o ano. Sobre ela,
escreverei com detalhes mais adiante.

A propósito, a festa de formatura do colegial foi linda. Depois de seu discurso geral,
Maurício escolheu Joca para orador da nossa turma, por causa de suas boas notas e
desinibição. Sua mãe, Tia Neuza, deixou as lágrimas rolarem de tanto orgulho do filho
bolsista. Foi uma bela confraternização dos alunos e seus familiares.

“Hoje o tempo voa, amor


Escorre pelas mãos
Mesmo sem se sentir
Não há tempo que volte, amor
Vamos viver tudo que há pra viver
Vamos nos permitir”

FITA 28: POT-POURRI

Foi um natal lindo o de 1989. Lá em casa teve almoço no dia 25 e todo mundo foi. Meu pai
abriu cedo a cozinha para dona Cida, tia Neuza, Sandra, Mel e Tio Teixeira. Juro para vocês
que foi o melhor almoço da minha vida inteira!

Uma surpresa gigante estava por vir. Tio Teixeira aproveitou a ocasião para anunciar que
comprara, a preço de banana, a “maldita” boate Broadway e que já estava reformando-a
desde que havia sido liberada das averiguações policiais. Seu objetivo era inaugurá-la com
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tudo novo, incluindo o nome e com uma grande festa de réveillon na virada de 1989 para
1990. Todos gostamos da notícia, ainda que a boate remetesse a algo muito ruim. Seria a
chance de ressignificar aquele lugar.

A novidade foi que até Caio entrou no empreendimento como sócio, usando o capital que
arrecadara em seus anos de “agiota colegial”. A nova boate abriu as portas batizada de “Fly
Back” e agora com uma proposta de público mais abrangente, principalmente à classe
LGBT+, ou GLS, sigla utilizada na época. A festa foi linda, um marco da noite carioca, com
a presença de vários amigos, artistas e importantes pessoas da cena cultural, e saiu em todas
as colunas sociais dos jornais e revistas. O convite era uma camiseta colorida com estampa
em neon do logotipo da boate. E adivinhem quem virou hostess do lugar? Ela mesma,
Mônica, a pantera, que também comandava o pessoal da segurança.

No dia 17 de março de 1990 foi a vez da Alpha Som ressurgir das cinzas, agora muito mais
tecnológica e carismática. Dessa vez tinha meu toque especial em quase tudo. Eu estava
orgulhoso do espaço estrategicamente pensado para ser não apenas uma loja de música, mas
um local de encontros e pocket shows. A festa foi linda e contou com show da cantora
Fernanda Abreu, a Garota carioca Suingue sangue bom, que lançava seu primeiro álbum.

“A tarde cai
E a noite vem atropelando
Todos os chatos desanimados
Tá na hora de acordar e sair
E ver que a vida é se divertir
A noite é negra
E os holofotes vasculham
Toda essa escuridão
À procura de um lugar ideal
Pra dançar e barbarizar”

Durante o dia anterior à reinauguração, eu passei uma hora refletindo sozinho pela manhã.
Estava melancólico e já quase saindo para o almoço. Lembrei de Luna e quase morri do
coração quando uma moça ruiva entrou na loja sem que eu percebesse. Ela era linda e quase
idêntica à cigana. Naquele momento, só me lembrava da tal Madame Kali me dizendo que
Luna voltaria a cruzar o meu caminho.

— Amanhã já reinaugura a loja? — ela me interrogou.

— É sim. Qual o seu nome? — perguntei nervoso.

— Pra que você quer saber? — respondeu ela.

— Você não…não se lembra de mim? — indaguei.


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— Eu deveria? — a moça fez cara de estranhamento.

— Então, você não é ela…é? — eu insisti.

— Desculpe, eu com certeza não sou quem você tá pensando. Dá licença.

A moça ruiva saiu da Alpha Som me deixando com cara de tacho. Aquela mulher
definitivamente não era Luna, mas a cigana se fez presente de outra forma. Uma das vitrolas
começou a reproduzir uma música do LP da Rosana que dizia:

“Guarde um pedacinho de você


Pra lembrar de mim a vida inteira
Pede ao coração não esquecer
Nossas emoções e brincadeiras
Sempre que você quiser estou contigo
Pra você desabafar, um ombro amigo
Num cantinho, num amor, numa cabana
É possível acreditar quando se ama”

O mais curioso de tudo foi quando a música parou e eu fui desligar a vitrola. O vinil estava
lá, mas o aparelho não estava ligado na tomada. Era a minha cigana, eu simplesmente sabia,
sentia… Então, naquela noite, depois de algum tempo contemplando o céu, eu finalmente
encontrei minha tão esperada estrela.

Luna se fazia presente em todas as noites de luar, brilhando única e poderosamente no


firmamento junto ao astro mãe. Era ela e só eu conseguia enxergá-la. Também, em meus
momentos de solidão e tristeza, um aroma de rosas pairava no ar deixando seu recado.
Shakespeare sabia das coisas, ele estava certo quando disse: “Há mais mistérios entre o céu e
a terra do que pode supor nossa vã filosofia”.

Após meus relatos absurdos sobre o ocorrido, papai ficou muito preocupado com minha
saúde mental e me fez frequentar algumas sessões de psicoterapia. Bom, eu devo admitir que
no início foi estranho, mas depois eu me acostumei mesmo sem chegar a uma conclusão
específica sobre tudo o que vivi; aquela madrugada certamente estava numa espécie de
“Twilight Zone”, entre o racional e o delírio.

O Joca trabalhava comigo na loja e tínhamos um ótimo fluxo de investimento e retorno. A


inflação estava no auge, mas graças aos lançamentos de cantores e saraus realizados, a Alpha
sobreviveu e alguns anos depois agregou o serviço de aluguel de VHS, tornando-se também
uma videolocadora. Foi uma SENSAÇÃO!

Nesse meio tempo, eu fiz um curso rápido de tradução simultânea e, graças a meus contatos
da loja, comecei a trabalhar redigindo para inúmeras revistas em quadrinhos e livros de
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várias editoras. Melissa graduou-se em Psicologia e continuou seus estudos sobre leitura
corporal. Joca enfim deu asas à sua criatividade e seguiu seu sonho de ser barbeiro
profissional e, ao terminar seu curso de Administração, abriu a própria barbearia em
sociedade com Caio. Finalmente usei aquele cheque que ganhei na lanchonete “Mixto
Quente” para presentear meu amigo e ajudar na construção desse seu sonho. Emocionado,
ele confessou que a barbearia foi seu pedido à máquina “Zoltar” do parque de diversões.

E Caio, que sempre foi um "ímã" para dinheiro, soube aplicá-lo com propriedade; por isso
mesmo, quase não se forma em Contabilidade, alegando saber mais do que as disciplinas
ofereciam.

Ah, a Karina investiu no ramo das festas e se tornou uma badalada promoter dos melhores
eventos do Rio de Janeiro! O “Beijo do Capeta” ainda fez muitas vítimas. Maurício
formou-se em Direito e seguiu carreira na política, sendo um nome forte no incentivo aos
esportes e lazer para a juventude. Paulinha ainda deu trabalho com a bebida, mas conseguiu
concluir seu curso de magistério e sair de casa. Ela e Melissa continuaram amigas.

Já o Guto, eu nunca mais tive notícias desde que ele foi preso. Que bom.

Meu pai, Herbert, continuou trabalhando no departamento de arquivo morto da justiça até o
final da década, quando o delegado Hélio Gama, seu parceiro, faleceu por complicações de
diabetes. Papai também estava cansado de tanto pepino velho e decidiu seguir na promotoria
normal. Ele se abriu para novas possibilidades românticas e conheceu uma mulher muito
distinta que mexeu com seu coração. Shirley, uma enfermeira gente boa e que sempre ri das
piadas de gosto duvidoso que ele conta. O cachorro brabo amansou.

Agora vamos aos desfechos atualizados.

Olha, gente, eu fiz faculdade, Jornalismo e fiquei famosinho dentro da bolha nerd ao escrever
para algumas revistas de música e cinema. Consegui contatos importantes e participei da
cobertura de vários eventos grandes como o Hollywood Rock e outros festivais de música,
acompanhando inclusive bandas nacionais em rápidas turnês pela Europa. Ou seja, aquele
meu sonho de moleque adolescente se concretizou, graças ao trabalho na Alpha Som, ao
estudo, insistência e a minha cara de pau, pois muitas vezes até de penetra eu entrava nas
coxias e camarins.

No meu aniversário de vinte e um anos, Seu Herbert me presenteou com o seu tão precioso
Cadillac vermelho. Quase não acreditei! Ele me disse que era o último bem material que me
daria e que depois que eu terminasse a faculdade, não me bancaria mais. E assim foi. Depois
daquela “uma noite e meia” vivida com a moça de cabelos rubros, eu só pude batizar o carro
de Luna. Por incrível que pareça, foram várias as ocasiões, nas quais o volante virou sozinho
e o freio apertou sem explicação, me livrando de algum acidente. Houve também a vez em
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que eu quase fui assaltado no sinal; os bandidos atiraram contra o vidro, mas as balas
ricochetearam. Eu me senti o Arnie Cunningham tupiniquim, de forma positiva, é claro.

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“Listen to your heart


Ouça seu coração
When he's calling for you
Quando ele está chamando por você
Listen to your heart
Ouça seu coração
There's nothing else you can do
Não há mais nada que você possa fazer”

Enquanto estive na faculdade, mais precisamente em 1992, participei das manifestações a


favor do impeachment do até então, presidente Fernando Collor de Melo. O movimento que
ficou conhecido como “os caras pintadas” me deu um presente que eu jamais imaginei. No
meio de toda aquela confusão, fotografei uma linda morena enquanto ela pintava o rosto com
listras em verde e amarelo. Sua pele negra em tom “café com leite”, seus cabelos cacheados
volumosos e caídos até o busto, e os óculos de grau me chamaram muito a atenção.

— Cê tá tirando foto só de mim, por quê? — inquiriu ela.

— É que você é linda demais — respondi — Mas, se tô incomodando, me desculpe.

— Nada. Só não tô acostumada com uma lente desse tamanho na minha cara — ela guardou
a maquiagem na bolsinha transversal.

— Como assim? Jurei que você fosse modelo…

— Cê usa essa cantada sempre, é? — indagou ela com sotaque meio “caipira”.

— Não. Só quando a garota é gata pra caralho — falei encarando a moça, todo “pra frente”.

— E funciona? — ela demonstrou curiosidade.

— A margem de erro é mínima — respondi, seguro do charme que estava jogando.

— Será que eu entro nessa estatística? — disse ela se aproximando.

— Se você aceitar tomar uma cerveja comigo depois daqui… — Eu não tinha nada a perder
e já não era mais um adolescente inexperiente na arte da paquera.
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Seguimos juntos durante todo o percurso do protesto e quase no final, desviamos da rota e,
no Cadillac, fomos a um bar de esquina qualquer. O tempo passou tão rápido que não
percebemos. Foram algumas cervejas e muito papo. Tudo fluiu com naturalidade. Nos
apresentamos devidamente já quase na hora da despedida.

Seu nome era Aline, estudante de fisioterapia, professora de Yoga e recém-chegada no Rio
de Janeiro. Uma fã do Roxette. Nascida em Belo Horizonte e criada em Goiânia, mudou-se
para a cidade maravilhosa em busca de estudos e emancipação financeira. Morava na casa de
uns tios. Aline e eu, jamais imaginamos que nosso encontro aleatório, resultaria em
casamento no réveillon de 1999 para 2000, o bug do milênio. Fato curioso é que, pouco
depois de firmarmos namoro, ela me confessou que dias antes de me conhecer, quando saía
de uma festa, foi abordada por uma mulher de roupas exóticas e cabelos muito vermelhos.
Essa mulher lhe disse que no meio de uma multidão, ela encontraria seu amor verdadeiro,
cuja inicial do primeiro nome era a letra H. Mas, segundo Aline, por estar meio bêbada, ela
não deu muita importância para a previsão da “tal mulher”. Em 2001, Aline e eu, tivemos
uma filha chamada Aurora.

Théo cresceu e ficou bonitão. E não estou puxando saco porque é meu irmão, tá? O pirralho
ainda hoje mantém contato com Mônica, que, por sua vez, conheceu um produtor audiovisual
alemão na Fly Back e foi morar com ele na terra do Tio Sam; por lá, a ex-babá trabalhou
como dublê de ação e, hoje em dia, é preparadora de dublês. Bom, Théo estudou Ciência da
Computação e atualmente desenvolve aplicativos e sistemas personalizados para empresas.
Ele não se casou e nem pensa no assunto. Seu negócio é trabalhar, beijar na boca e viajar.

Melissa e Joca vão muito bem, obrigado. Depois de tantas idas e vindas, finalmente se
acertaram, casaram. Ela tem uma clínica de atendimento psicoterapêutico a preço acessível e
leciona na UFRJ, comandando um braço de pesquisa sobre parapsicologia. Joca ainda
administra sua barbearia, que se tornou uma franquia bem sucedida, a “Yasuke Barber”. O
nome é uma referência ao samurai negro do século 16. Fruto dessa união, nasceu Maria
Eduarda, a Duda. Melissa batizou a filha em homenagem à personagem de Malu Mader em
TOP MODEL, a novela preferida dela e de Caio, que dividiu comigo o apadrinhamento da
garota.

Falando em Caio, ele e Mateus estão juntos até hoje, pasme! Ah, quem é Mateus? É aquele
romance que ele teve nas férias de julho de 1989, antes dos acontecimentos que dão início a
esse livro. Eles foram separados, mas se reencontraram anos depois. Vou escrever um
capítulo bônus sobre os dois.

Vocês devem estar se perguntando: “O que será que aconteceu com Lana?”.

Bom, ao dar o meu depoimento para a polícia sobre o que aconteceu na fatídica noite dentro
da Alpha Som, eu acabei citando Lana como a “menina veneno”, sem saber que daria início
a um surto coletivo dos anos 90. Os policiais começaram a chamá-la da mesma forma, mas
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apenas entre eles. Porém, o apelido vazou rapidamente, e a mídia, ao reportar seu julgamento
nos meios de comunicação da época, a chamava desta maneira. Sendo assim, a clássica
música do Ritchie, retornou ao 1º lugar das paradas de sucesso e, logo que foi inocentada das
acusações de assassinato, Lana Love, como passou a ser conhecida artisticamente, estrelou o
novo clipe da canção que lhe daria fama nacional, virando a musa do “abajur cor de carne”.

Logo após, é lançada a biografia “Menina Veneno: a infeliz história de Lana Love”, baseada
em seus dezessete anos de vida, na qual ela narrou todos os abusos que sofreu e absurdos que
se submeteu, entregando também nomes de políticos e outras pessoas influentes, que
passaram a ser investigadas e condenadas por crimes de tráfico de mulheres, drogas e
sonegação de impostos.

Que paquita que nada! Ela seguiu uma meteórica carreira de modelo pelos anos 90, reinando
absoluta em vários outdoors e principais revistas de moda. Ganhou do Dr. Ivo Pitanguy, uma
plástica para remover do braço a cicatriz do tiro que levara. Sua figura se tornou onipresente
em diversas campanhas publicitárias e programas de TV. A banheira do Gugu que o diga! Só
faltou mesmo virar apresentadora infantil. Sua capa na revista Playboy, inspirada no filme
“Instinto Selvagem”, foi a mais vendida daquela década. Firmou parceria de sucesso com o
autor Carlos Lombardi, em participações especiais nas suas novelas, começando em
“Perigosas Peruas” e terminando em “Uga Uga”. Lana Love também foi homenageada no
filme “Zoando na TV”, através da personagem homônima interpretada pela atriz Danielle
Winits. Então, aos poucos, sua imagem foi se desgastando após sucessivas investidas de
prolongar sua permanência na mídia. Apadrinhada por ninguém menos que a cantora
Gretchen, sua cartada final foi se lançar na música, com a seguinte música de gosto
duvidoso:

LOIRINHA 38
“Ele tá vidrado
Nos meus olhos de colírio
Ele tá entrando
Na minha zona de perigo
Vai e vem
Igual a mim não tem
Vem e vai
Você de mim não sai

Se eu usar meu arsenal


Esse marmanjo passa mal
Bolo rebolo e te faço remexer
Sou loirinha 38 e te mato de prazer (bis)
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Tá parado na minha
Só me encarando de longe
Mas quer conferir de perto
Minha marquinha de bronze
Com meu três oitão
Te encho de tesão”

O título da canção fazia referência ao revólver de calibre 38 que ela usou para matar
Malvino. Assim como outras subcelebridades brasileiras dos anos 90, Lana Love deu uma
sumida e retornou aos destaques atualmente, na era dos memes. Em suas redes sociais, ela
compartilha sua vida de extravagâncias e até participou de um famoso reality show com
outras socialites. Suas polêmicas renderam bem. No fim das contas, ela também tinha sofrido
e foi vítima dos abusos do próprio pai e, honestamente, eu a perdoei antes mesmo de toda
essa doideira. Espero que ela não me processe por expor sua figura nesse livro.

***************

A “Fly Back” reinventou-se através das décadas como uma camaleoa. Tio Teixeira
praticamente não se mete em mais nada, deixa tudo para o sócio. Caio tem ótima visão de
negócios e a boate persiste com programação diversa, agradando todos os públicos.

A Alpha Som não existe mais, digo, como era antes. Agora ela vende e aluga instrumentos e
equipamentos técnicos de áudio, vídeo e luz para shows. Também inaugurou um mini estúdio
para gravação de EP’s. A era digital veio com tudo, varrendo das prateleiras Lps, Cds, Dvds,
revistas, etc. Porém, a loja continua sendo um point com um espaço de café bem frequentado
na parte superior e mantém sua ala de pocket shows. Artistas independentes e iniciantes são
quem geralmente se apresentam lá, a galera jovem ainda curte.

Tio Teixeira ainda está vivo e não quis juntar seus trapos com ninguém, mantendo intacta sua
posição de solteiro convicto. Papai e Shirley ainda estão firme e forte, seguem felizes. O
Cadillac, eu nunca vendi e continua na garagem da casa de papai. De vez em quando o levo
para passear.

Agora, para encerrar, vos deixo a letra de uma canção que fala sobre o que temos de mais
valioso. Aquilo que passa sem retroceder e que pode nos iludir através da memória de um
passado bom ou nos deixar ansiosos sobre o que há de vir. O tempo, senhor de todos nós.
Escrever esse livro e relembrar todos esses momentos da juventude, me fizeram sentir como
o Marty McFly em seu DeLorean, viajando pela linha temporal da vida.
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Muito obrigado a todos que acompanharam essa “história sem fim”. Espero que sempre
possamos nos reencontrar pelo éter do espaço-tempo, onde paira como neon a década
perdida. Os anos oitenta nunca morrerão e recordar é viver!

E antes que eu me esqueça: "Acredite na sua estrela".

“Cedo ou tarde, todos eles irão partir


Sooner or later, they all will be gone
Por que eles não permanecem jovens?
Why don't they stay young?
É tão difícil envelhecer sem um motivo
It's so hard to get old without a cause
Eu não quero perecer como um cavalo moribundo
I don't want to perish like a fading horse
A juventude é como diamantes ao Sol
Youth's like diamonds in the Sun
E diamantes são eternos
And diamonds are forever
Tantas aventuras não poderiam acontecer hoje
So many adventures couldn't happen today
Tantas canções que esquecemos de tocar
So many songs we forgot to play
Tantos sonhos arrumando-se de repente
So many dreams swinging out of the blue
Nós vamos deixá-los tornar-se realidade
We let them come true
Eternamente jovem, eu quero ser eternamente jovem
Forever young, I want to be forever young
Você realmente quer viver pra sempre?
Do you really want to live forever?
Para sempre e todo sempre
Forever, and ever”

FITA Bônus: IN DEXTRO TEMPORE


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Quarta feira, 12 de julho de 1989, 16:45.

-— Me liga qualquer hora. Quer dizer, só não à noite, que meus pais estão em casa.

Foi assim que começou. Com essa resposta positiva. Eles não sabiam o que ia acontecer.

Caio estava de bobeira com seu amigo, Betinho, na Alpha Som, a loja de discos mais
descolada do Rio de Janeiro, tomando conta do lugar enquanto Ricardo Teixeira, o dono,
tinha saído brevemente.

Falavam sobre como o mês das férias começou morno. Esperavam mais agito, mais curtição.
Nenhuma festa, nenhuma paquera legal. A escola lhes oferecia mais agito. O telefone tocou.

-— Alpha Som, boa tarde –— atendeu Betinho, na esperança de que fosse o empresário do
Kid Abelha. Seu padrinho, Teixeira, era produtor cultural e tentava há muito marcar o
lançamento do novo LP da banda na loja. –— Ah tá! Putz! Agora? Olha, eu não trabalho
aqui, mas sou afilhado do dono. Não, eu não sei a que horas ele volta. Posso buscar se não
tiver problema. Anoto o endereço agora — Beto disse buscando papel e caneta — Tá certo,
então. Não fecha essa nota antes de eu chegar! Falou.

-— Que foi, cara? Qual é a parada? –— Caio disse franzindo a testa.

-— Bicho, segura as pontas aí que em meia hora eu tô de volta, pode ser? — Beto rasgou o
papel com o endereço anotado e botou no bolso da calça jeans.

-— Pode, mas pra onde você vai?

-— Eu tô indo buscar a caixa com os novos microfones aqui da loja. Esse fornecedor não faz
entrega. Porra, justo hoje! –— disse Beto se arrumando para sair. –— Você até podia ir
comigo, mas se o tio Teixeira passa e vê a loja fechada, me descasca!

-— Porra, era só uma passadinha aqui e teu tio escravizou a gente. Mas, de boa, corre lá.
Quem sabe ele te contrata –— disse Caio jogando a chave do carro para Beto. –— Vai na
maciota, cuidado com “os homi”.

Beto aparou a chave com a mão direita, bateu continência pro amigo e saiu da loja correndo.
Nenhum dos dois era maior de idade, mas dirigiam escondido. Beto era filho de um
importante promotor. Já o pai de Caio, era um dos bicheiros mais importantes da região. A
Alpha Som era enorme e por incrível que pareça, estava vazia há umas duas horas. Caio
reparou que o LP do Bruce Springsteen tinha finalizado sua última canção e procurava um
novo para rodar como música ambiente. Ele se sentia em outro mundo quando estava lá. Era
como se todos os problemas de um garoto de dezessete anos sumissem.
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Olhou para a entrada da loja e percebeu que o movimento na rua estava mais fraco. Viu um
fone de ouvido que mais parecia um equipamento da NASA. Deu mais uma conferida na
porta e apagou uma das luzes. O tempo de uma música não faria tanta diferença. A música
que ele queria ouvir estava no LP cujo encarte era ilustrado por mãos femininas com o
polegar apoiado nos bolsos de uma calça jeans.

Caio, pôs o disco na vitrola e selecionou a segunda faixa. A voz do furacão loiro Madonna
ecoou nos seus ouvidos e fez vibrar o seu mundo particular. Cada frase e batida de “Express
Yourself” lhe empolgava mais. O jovem não se aguentou. Fitou mais uma vez a rua pela
vitrine e obedeceu seu coração. Desconectou o fone do som e deixou a rainha do pop reinar
em toda a loja, ao mesmo tempo em que se divertia inventando uma coreografia, passando
por cada corredor e prateleira da Alpha Som.

Quando a música finalizou, ele observou sua respiração ofegante e ouviu um bater de palmas
que vinha da porta de entrada.

-— Adorei a reboladinha e a jogada de cabelo no final.

Caio quase caiu para trás, mas o susto o fez derrubar alguns discos. A voz era de um rapaz
jovem. Moreno, um pouco mais baixo que Caio. Pele clara, cachos ondulados e escuros, com
um sorriso sarcástico nos lábios.

-— Você tava aí esse tempo todo? –— disse Caio com os olhos saltando.

-— Aham, tava. Esse show é de graça e todo dia nesse mesmo horário? Adoraria assistir
mais vezes...

-— Eu tô só ajudando um amigo. Ele saiu, aí tô quebrando esse galho. Mas, ele volta já já.
Posso te ajudar? Os lançamentos são naquela prateleira ali à direita. –— Caio tentava
desconversar e arrumar a bagunça.

-— Tá certo.

Um absurdo silêncio se fez. Nem parece que Caio tinha incorporado a própria Madonna há
poucos minutos atrás. O cliente se chamava Mateus e não conseguia disfarçar os olhares
endereçados a Caio, que fingia muito mal não perceber.

Caio tinha a pele bem bronzeada, mas não gostava muito de praia. Gostava de carros, mas
principalmente de motocicletas. Nem tanto pelos veículos em si, até porque não sacava nada
de mecânica, mas pela sensação de liberdade que dirigir lhe proporcionava. Cresceu com
piscina no quintal, mas era todo cheio de frescura com água salgada, dizia que acabava com
seu amado e intocável cabelo mullet. Fazia o estilo bad boy. No fundo a pose era só uma
casca para agradar o pai bicheiro, que o preparava contra sua vontade para assumir “o
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negócio da família”. Talvez se fosse só o bicho ele não se sentisse tão sujo, mas tinha o pó.
Nenhum bicheiro conseguiu escapar; ou entrava na onda do momento, ou ficava para trás.

Caio não curtia e tentava fugir desse destino. Com seus amigos Beto, Mel e Joca, ele sonhava
com um futuro melhor. Ele não sabia o que exatamente significava “melhor”, mas queria
demais. Queria tanto que às vezes saía de órbita só imaginando o que lhe aconteceria após o
colegial.

-— ALÔ! PLANETA TERRA CHAMANDO! –— Mateus estalava os dedos bem na cara de


Caio.

-— Opa! Foi mal. Já escolheu?

-— Já escolhi dois e tô em dúvida com esse aqui. Posso ouvir um pouco?

-— Pode sim. Vai querer fones?

-— Nada. Taca som em tudo!

O disco era Patrícia da cantora Patrícia Marx, lançado no ano anterior. Caio olhou para capa
e pensou “Sério, que ele ouve isso?”. A fisionomia transpareceu seu pensamento e Mateus
percebeu.

-— Você deve estar achando que eu sou um carinha bem piegas. Mas é que eu queria muito
esse disco, a voz dela me deixa de coração quentinho –— os dois ficaram em silêncio. –—
Nossa, agora isso sim foi piegas! –— eles riram –— Você pode pôr a terceira música do lado
A? Adoro essa canção.

Caio conseguiu pôr o disco na vitrola.

“Quando a gente encontra alguém bem diferente


E esse alguém é muito especial pra gente
Pinta uma paixão
Esquenta até demais
Bate o coração”

A voz doce de Patrícia cantando “Doçura”, realmente trouxe um aconchego inexplicável.


Mateus dublou a música como se cada nota lhe transpassasse o corpo. A vitrola parou do
nada, deu pau. Ele continuou cantando sem perceber. Caio ficou encantado com sua voz não
menos afinada que a de Patrícia. Foi pouca coisa, uns quatro segundos, mas o suficiente para
que Mateus ficasse vermelho igual morango.

-— Putz, que zebra hein! Não sei se o defeito foi na vitrola ou no disco. Quer tentar outro?
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-— Agora não. Poxa, tava tão bom...

-— E você canta bem, cara. Minha vez de aplaudir. –— Caio bateu palmas enquanto Mateus
fez reverências como que agradecendo. Os dois riram.

-— Que nada. Não é pra tanto. Eu só brinco de cantar. Meu chuveiro adora! Essa música é
fofa demais.

-— Devo admitir que é mesmo.

-— Só não é mais fofa do que você... –— Mateus continuava vermelho como um


moranguinho envergonhado, mas tinha que conseguir pelo menos o telefone do dançarino
bronzeado.

-— É... então, não vai levar pra casa a música fofa? Daí você treina um show no banheiro.
–— Caio estava sem graça e fingindo analisar o vinil procurando algum defeito. –— Não tô
vendo aqui nenhuma falha, mas você pode levar uma fita cassete. Ainda tem...

-— Vou querer sim. Onde tá?

-— Pego pra você. –— Caio vai até a prateleira das fitas cassete sentindo que seu estômago
tinha virado um grande borboletário. Ele não entendia a causa do suor brotar em suas mãos.
Percebeu que não escapava do olhar predador de Mateus ao retornar ao balcão.

-— Cara, você já tem cadastro aqui? Eles sempre têm descontos muito bons pra quem é do
Clube Alpha.

-— Ainda não tenho. Demora pra fazer?

-— Nada, aqui é the flash. Escrevo aqui no papel, depois o Beto põe no computador. Ainda
não me dou com essa máquina velha. Como você se chama?

-— Mateus... E você?

-— Caio. –— Ele não queria ter dito. Era como se agora tivesse exposto e indefeso. Não
sabia por que estava tão na defensiva; ou sabia, mas precisava ignorar. Terminou o cadastro e
se deu conta de que os dois moravam bem próximos e até suas respectivas escolas eram
vizinhas. Mateus era simpático, tinha o sorriso bem bonito. Porém, Caio não sabia como se
comportar diante de alguém que fugia do padrão socialmente aceito de masculinidade,
principalmente se esse alguém lhe despertasse borboletas no estômago e suor nas mãos.
Alguém que ele sabia ser como ele, cuja semelhança ele tanto reprimia para não sofrer nas
mãos do próprio pai.

Todo mundo tem segredos que não conta nem para si mesmo.
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-— Então, vou levar esses: a Debbie Gibson e o cassete da Patrícia. Espero conseguir
esconder –— disse Mateus comprimindo um lábio no outro.

-— Esconder por quê? Como assim?

-— Esconder dos meus pais. Do meu pai principalmente. Ele diz que é “música de viado”
-— Mateus sofria mais repressão dentro de casa por causa do que seus pais chamavam de
“jeito”. Eles nunca o entenderam; só queriam não ser motivo de piada. O custo era podar o
menino em todas as suas autênticas expressões do ser.

-— Ah sim.

Caio não soube o que dizer, só olhou para Mateus com cara de solidariedade, enquanto
colocava os produtos na sacola.

-— Você também acha que é coisa de viado ouvir essas músicas? –— Mateus encarou os
olhos azuis de Caio com profundidade.

Caio mexeu no cabelo e em um segundo lembrou que nunca conseguiu assistir a uma novela
inteira, pois seu pai não permitia. “Novela é coisa de maricas! Você quer ser uma
mulherzinha?”, cansou de ouvir e desistiu de acompanhar qualquer uma delas. Quando
muito, ele conseguia que sua mãe lhe contasse o desenrolar da trama.

-— Não. Não mesmo. Eu não tenho costume de ouvir essas cantoras, mas achei legal.

-— Ah, bom! Não esperava menos do melhor dançarino de Madonna que já vi até agora. Só
perde pra original, óbvio. Até porque, se Madonna não for “coisa de viado”, eu não sei mais
o que é. -— Os dois riram.

-— Você é engraçado, cara.

-— Ah, que bom! Espera, isso foi um elogio, né?

-— Posso te ligar nesse número? –— Caio não esperava dizer isso. Seu coração acelerou de
forma quase explosiva. Foi uma frase que saiu quase que involuntariamente. Foi como se as
borboletas saíssem do estômago e se transformassem em palavras atrapalhadas.

Mateus hesitou por uns três segundos. Ele também não esperava que Caio lhe fizesse essa
pergunta e ainda de forma tão atropelada.

— Me liga a qualquer hora. Quer dizer, só não à noite, que meus pais estão em casa. Agora
eu preciso ir, que tô atrasado pra aula de inglês. Já é de graça, não posso faltar. Vou esperar
você ligar. Até depois.
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Mateus saiu da loja com o coração aquecido e não só por causa da canção de Patrícia Marx.
Caio estava vermelho, sentindo-se surpreso consigo mesmo.

Às 17:25 Beto voltou com uma caixa. Ele achou o amigo meio diferente. Caio disse que não
podia mais ficar, que havia se esquecido de um compromisso em casa. Ele deu longas voltas
de carro pensando na vida e nem se preocupou de não ter carteira de motorista, afinal, tinha
costas quentes com papai bicheiro. Não podia dividir isso com ninguém. Por mais legal que
fossem seus amigos, não tinha certeza de que iriam mesmo ficar ao seu lado. Além do mais,
ele precisava de algo só seu e uma amizade com alguém “semelhante” lhe faria muito bem.
Ele nunca antes tivera interesse em conhecer outro rapaz assim.

Teve que esperar até o dia seguinte. Lá pelas nove da manhã saiu de casa e procurou um
orelhão longe de sua residência, ligou para Mateus. Os dois conversaram por dez minutos e a
fila para usar o telefone público só aumentava atrás dele. Marcaram de se ver no fliperama
do outro lado da cidade. A tarde foi mega divertida. Caio não sorria de verdade há muito
tempo e Mateus era de fato muito engraçado. Caio comprou um walkman só para ouvir a fita
cassete que Mateus gravou com suas músicas prediletas. Ambos estavam se descobrindo sem
barreiras. Quando juntos o tempo parava. Foi assim no toque, no beijo, no sexo e em tudo
que era novo, terno e excitante, que dois garotos como eles, no auge dos 17 anos podiam
descobrir. O mês de julho terminou com saldo mais do que positivo. Caio conseguiu sair com
os amigos, mas também viver um amor secreto de verão.

“I just fell, don't know why


Simplesmente me apaixonei, não sei o por quê
Something's there we can't deny
Há algo que não conseguimos negar
And when I first knew
E eu só soube
Was when I first looked at you
Quando o vi pela primeira vez”

No início de agosto, Mateus recebeu uma visita inesperada. Sua tia Cláudia, que foi tentar a
vida nos Estados Unidos e trabalhava lá como babá dos filhos de uma família milionária. A
mesma convenceu seus pais a o levar com ela para os EUA. Era ela que pagava seu curso de
inglês. Mateus iria estudar em um bom colégio americano. Seus pais não queriam ter um
filho como ele por perto e ao mesmo tempo queriam o melhor para ele. Uniram o útil ao
agradável.

Mateus e Caio tiveram uma noite linda de despedida, mas sem juras de amor. Caio jamais
achou que choraria por alguém, mas não se conteve ao chegar em casa e deitar sobre o
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travesseiro. Aquela foi uma noite difícil. O período letivo na terra do Tio Sam se inicia no
mês de setembro. Mateus ainda teve um mês inteiro para se adaptar e aprimorar o seu inglês,
que era muito bom.

Um não teve mais notícia do outro. Foi assim até 1993.

Filho único, Mateus veio cuidar da mãe depois que seu pai faleceu de AVC. Não pensava em
procurar Caio. Os dois já não tinham mais nada a ver. Foi um ano obscuro; o martírio de não
ter se despedido, nem verdadeiramente se reconciliado com o pai antes de sua morte, era
insuportável. Tentava se distrair como podia, até arrumou um emprego como professor
particular de inglês e estava se virando bem.

Em uma tarde quente, Mateus passa em frente à Alpha Som e seus olhos são hipnotizados
pelo cartaz que anunciava a venda de ingressos para o show de Madonna no estádio do
Maracanã. Não pensou duas vezes e gastou metade do que tinha economizado. Veria sua
diva, nem que fosse da última fileira. Ao adentrar na loja, lembrou-se inevitavelmente do
rapaz bronzeado que dançava Express Yourself como se mais nada importasse. O rapaz que
ele nunca esqueceu. Com sorte, encontrou ingresso em lugar em frente ao palco e lembrou do
cadastro de fidelidade da loja. O desconto foi uma benção.

6 de novembro de 1993.

A The Girlie Show World Tour só começou de verdade quando ele avistou, entre luzes de
todas as cores, o rapaz de sorriso torto. Ele dançava muito mais livre, a pele bronzeada e os
cabelos no ombro não negavam. Caio finalmente conseguiu dançar “Express Yourself” sem
medo de ser visto. Ele estava rodeado de amigos. Mateus tentou controlar as pernas, mas elas
não obedeciam, só caminhavam na direção de Caio.

-— CAIO!!! –— Mateus gritou com a voz trêmula de nervosismo.

Caio virou-se confuso, olhou ao redor para ver se alguém tinha gritado seu nome ou se eram
apenas ruídos do show. Deu de cara com Mateus e seu rosto transpareceu a mesma expressão
de uma criança perdida que reencontra a mãe.

-— Eu sabia –— Mateus sentiu-se novamente com o coração aquecido, como no verão de


1989.

-— MATEUS!!! –— Caio puxou Mateus pela cintura e o abraçou muito forte. Os dois se
olharam e não houve nada mais. O tempo parou novamente. O beijo veio ainda mais intenso
do que o abraço, como se um quisesse se nutrir do outro. –— NÃO ME DEIXA NUNCA
MAIS!
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As pessoas que estavam em volta começaram a aplaudir e os amigos de Caio, Beto, Mel e
Joca, olharam surpresos.

-— Seus amigos estão olhando –— Mateus disse meio acanhado. Caio logo fez as honras.

-— Beto, Melissa e Joca. Esses são os meus melhores amigos. E, gente... esse é o Mateus!
Quero saber se vocês podem incluir ele no grupo. Beto, esse foi o meu pedido para aquele
pedaço de bilhete da “Zoltar” que tu me deu faz anos!

-— Brother, se você tiver feliz, eu também tô! Irado… –— disse Beto cumprimentando
Mateus.

-— A gente tá fechado e tu sabe disso –— Joca abraçou os dois.

-— Pois eu digo: O que Madonna uniu, o homem não separa! –— Melissa disse desenhando
um coração no ar e abraçando o casal.

Caio e Mateus curtiram o show como uma grande celebração. Estavam se casando sob as
bênçãos da rainha do pop e não tinham ideia de que realmente seria para sempre.

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