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PROSA

INSÓLITA

֍
Contos

ALEX MENDES
ÍNDICE

Apresentação .................................................................................................. 5
O mistério do moço sério do Santa Teresa .................................................. 7
Leocádia ....................................................................................................... 15
Preta não pode.............................................................................................. 23
Licantropia ................................................................................................... 32
Vozes na minha cabeça ............................................................................... 44
Estranho ........................................................................................................ 74

[2]
[3]
Dedico à minha família que acha tudo o que eu faço lindo e digno
de nota. Perdoai-os, Belial. Eles não sabem o que fazem.

[4]
Apresentação

Essa é a minha primeira obra publicada, faço questão de escrevê-la


toda, da capa ao miolo. Fico feliz de ver nascer, crescer e frutificar algo
que veio de minhas mãos, da pontinha de meus dedos num teclado e,
claro da minha mente. Apresento aos futuros leitores seis histórias,
pródigas de palavras, mas curtas de enredo. O ato de imaginar é difícil,
apesar de gostoso. Comparo-o à ação de um montanhista em direção
ao cume e depois ao sopé: tudo é difícil. Mas o resultado compensa.
Para animá-los a continuar a leitura, eu deixo aqui o parecer dos
julgadores dessa obra, que a premiaram em primeiro lugar na Bolsa de
Publicação Ana Maria Godinho de Menezes, de 2022, realizada pela
Prefeitura de Goianésia – GO, por meio da Secretaria de Cultura e
Turismo e do Conselho Municipal de Cultura:
“O texto possui grande qualidade literária. O
candidato possui domínio da língua, uma voz
narrativa original e um estilo distinto. As histórias
são envolventes e as personagens bem
desenvolvidas.”
Esse parecer me afaga e me deixa muito orgulhoso do que fiz,
no entanto, a minha modéstia me chama à realidade: nada é mais
importante do que a opinião de quem lê, e uma obra não pode ser
reduzida a uma mão de cinco dedos de opiniões. Para ser boa ela
precisa de bem mais do que isso, ela precisa de um público. E é a isso
que convido vocês todos que me leem: sejam meu público.

[5]
A respeito do título, Prosa Insólita, possui um adjetivo erudito.
“Insólito” significa incomum, anormal. Situações insólitas, pessoas
insólitas, neuroses insólitas, violência e imaginário unem-se ao
absurdo, ao onírico, em que personagens comuns ou aparentemente
comuns sofrem de si mesmos e de coisas externas que os oprimem.
Vale a leitura, vale cada página, cada deslizar de tela, cada segundo
gasto. Boa leitura!

O autor.

[6]
O mistério do moço sério do Santa Teresa

Acho o Santa Teresa um bairro estranho. Mal iluminado. Mas a


culpa é minha de sempre passar por lá à noite. De fato, é muito
complicado, não saber se está no Santa Teresa, no Santa Clara.
Assim como é perturbador não achar mais ali a Cibrazem,
praticamente no meio de um pasto estranho. Eu me lembro de ir até
lá para dar aulas para uma mocinha, aula particular de matemática.
Ela aprendia pouco, eu ganhei pouco e depois que eu fui dispensado,
após poucas aulas, achei ótimo. Vários quilômetros da minha casa,
vencidos com uma bicicleta bem mais ou menos. Não era
exatamente isso que eu queria, do ponto de vista de um professor
particular, informal, adolescente. Sempre havia o medo de que o pai
ou a mãe do estudante achasse que eu não conseguia mesmo ensinar.
Eu não tinha tanta noção de didática, não tinha métodos. Ensinava
resolvendo as contas na frente do estudante até que ele achasse que
sabia, enfim. Isso não faz muito sentido agora. Eu só lembrei porque
eu achava que nunca tinha ido ao Santa Teresa, mas já tinha sim.
Havia essa aluna, lá não sei quando. Ela morava na última rua, na
frente do armazém que parecia abandonado. Era um lugar ruim.
Mas um dia eu fui lá. Alguém me mandou uma mensagem
num famoso aplicativo de encontros. Era um garoto tipo uns dezoito
anos. Morava no Santa Teresa. Longe pra cacete, eu não tinha

[7]
exatamente como chegar lá de carro. Fui de bicicleta preta que eu,
depois acabei trocando num Aifone Seis de cento e vinte oito
gigabytes, negócio de ocasião. Fico tão constrangido que eu rodeio,
rodeio e não quero falar de fato o que eu fui fazer no Santa Teresa.
Complicado, mas meia hora depois eu estava lá, olhando na cara do
cara. Um moço com jeito de criança, olhos de criança. Sentamo-nos
no sofá para conversarmos, a mãe dele saiu para olhar para nós,
como se fôssemos duas crianças. O cara era pequenininho mesmo.
Bem mais feio que nas fotos. Ele tinha uma síndrome tal de não sei
o quê. Não tinha terminado o Ensino Médio, porque tinha déficit
intelectual, ele, de fato, parecia um menino de doze anos falando,
mas tinha mais de vinte e três.
Era um menino sério. Falamos de maneira rápida sobre nós,
sobre as coisas de que gostávamos, a sua mãe aparecia rindo, como
quem celebrava até mais que ele aquela suposta conquista de seu
filho: eu. Eu me constrangi um pouco, porque achei que se tratava
de um rapaz mais maduro, mesmo que jovem. Em momento algum
ele disse que era alguém com deficiência intelectual. Ele recebia
benefício de prestação continuada e com isso ajudava no sustento da
casa. Sua mãe administrava seu dinheiro, seu irmão trabalhava como
entregador e sua irmã, com filho, trabalhava de dia e estudava de
noite, na Educação de Jovens e Adultos, numa escola próxima dali.
As fichas foram caindo. Ele quis um beijo, eu dei alguns nele
e me despedi. Tchau. Adeus, de fato, não dava para namorar aquele
cara, naquelas condições, sob os auspícios e total fiscalização da
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mãe. Mas ele era um moço sério. Não me vi, não me imaginei em
momentos de intimidade com ele, naquela casa simples, num quarto
com portas sem tranca. Não me imaginei saindo com ele e as pessoas
perguntando coisas, tipo: quem é esse, esse cara tem problema? Por
que ele não fala direito? Quantos anos você tem? E ele? De fato, a
vergonha de não conseguir construir por ele e com ele o sentimento
de amor erótico e sentimental que a gente tem de construir por um
semelhante, esse vexame pessoal me fez esquecer do moço sério do
Santa Teresa. Jamais conversamos de novo, uma vez que, de fato,
foi vergonhoso. Eu não consegui, não achei certo. Achei que um dia
poderia ser considerado um abusador, um cara que fode deficientes,
sem pensar que eles podem não ter condições de consentir. O que
mais me perturbou é que a mãe dele aparentemente consentia. Não
sabia se ela, de fato, queria que o filho dela arrumasse um namorado
real. Ou se queria que eu caísse numa espécie de esparrela montada
para o primeiro que quisesse cair.
Depois me envergonhei de pensar isso das pessoas. O garoto
era de Brasília. O pai dele estava trabalhando lá. Ainda havia o pai.
Sim, mais essa. Um pai. Uma pessoa de fora que, quando voltasse
de uma jornada de dias e mais dias de trabalho, iria achar o filho
deficiente dele debaixo da asa de um marmanjo que ele não
conhecia. Ser viado tem desses problemas, gente. É cada uma que
acontece com a gente. Não dá para dormir de olho fechado, as coisas
chegam a espantar. E como eu havia entrado naquilo? Eu
simplesmente disse que iria ver uma pessoa que eu conheci no dia
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anterior. Alguém que foi educado e interessado por mim num
aplicativo de encontros e namoro. Maldita Internet e seus itinerários
diários de desgraçamento a da vida de um guei. Era isso: o cara legal
era legalmente incapaz. Não dá para trepar com um incapaz. É
crime. Não trepei, mas dei uns beijos nele, sob os olhos de sua mãe
atrás de uma cortina.
Ele contou tudo isso enquanto a ficha ia se posicionando para
cair. Mas uma hora ela caiu. A informação do benefício passou
novamente na frente da minha cabeça. Benefício + deficiência +
mãe com o cartão do banco = filho incapaz que paga o aluguel com
sua “aposentadoria”, como ele disse. Foda. Dei tchau. Mas diferente
dos Teletubbies, eu não voltei no dia posterior e acabei explicando
isso tudo para ele do mesmo modo que eu o conhecera: a distância.
Foi triste, foi chato, mas eu não sentia nada por ele a ponto de ter
algo para lamentar, eu apenas agradeci por ter conseguido tirar o pé
do laço a tempo.
Mas tudo tem um retorno. Eis que eu vou passando de carro
o vejo. Ele mesmo, o moço sério do Santa Teresa. Sabe ali, aquele
pit-dog de trailer que fica do lado da Rodoviária? Ficava do lado da
Praça do Carrilho, mas eles estão restaurando a praça, então fica do
lado da Rodoviária. Então. Eu passei lá esses dias e o vi. Fui lá em
cima, no sinaleiro e voltei. Entrei pela viela do hospital e saí de novo
na Goiás, passando lentamente. Parei num espaço de ônibus da
Rodoviária (era muito tarde para qualquer ônibus parar ali) e fui
andando para pedir um xis beicom enquanto eu o olhava. Ele não
[ 10 ]
me viu, talvez nem se lembre mais de mim. Então, pude notá-lo
melhor. Ele estava, desde que eu passei de carro, parado perto
demais da pista, olhando fixamente para seu amigo que bebia e
conversava com outros amigos. Os outros comiam, mas nem o moço
sério e nem seu amigo comiam. Na mão do moço sério, uma garrafa
de cerveja, daquela verde, pela metade. Em todo o tempo, eu o vi
levá-la aos lábios somente uma vez.
Então era isso. Ele estava muito bêbado. Se eu me lembro de
nossas conversas, o moço sério tem problemas de locomoção e não
pode andar de um lugar para o outro sem dores, sem cansaço
extremo, embora ele goste de sair de casa. Ele olhava com uma cara
indefinida, não sorria, mas fitava o seu amigo. Uma hora
resmungou. Outra, disse algo que eu não pude ouvir. Lá pelas tantas,
depois que eu comi o sanduíche sem o pão, ambos cruzaram a
avenida e eu os vi sumir nas sombras depois do Hotel Goiatuba. Não
consegui mais vê-los. Levantei-me da cadeira em que estava e fui
lentamente caminhando até a rotatória. Voltei, paguei pela comida e
andei de carro pela esquina, dando uma, duas voltas pelas quadras,
mas nada deles. Quando eu voltava para casa, ocorreu-me de ir
novamente ao Santa Teresa.
Só por precaução. Ou por uma curiosidade mórbida, algo que
me consumia. Era uma verdadeira tentação satânica. Aonde ele teria
ido em tão poucos minutos? Mas a resposta era mais que óbvia, eles
poderiam ter entrado numa casa, na casa da esquina, sei lá, ou
montado numa motocicleta, entrado num carro e, a essa hora,
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estarem onde deveriam estar. E por que cargas d’água isso me
importava naquele momento? Meu relógio marcava onze e pouco,
dava para ir ao Santa Teresa, onde ele morava mesmo? Na rua doze,
na doze “a”, na catorze… Deveria ser na… sei lá, não me lembro,
só sei que acertei a rua, que hoje, me parece incerta, jamais
conseguiria chegar lá. Andei o logradouro na sua extensão, indo e
voltando: bairro mal iluminado da porra, deu medo. Tantos oitis
plantados, escondendo as luzes das janelas e das lâmpadas da rua,
muros de placa, calçadas sem pavimento, cheias de terra, monturos.
A cada esquina uma parada, estava com medo de que alguém
saltasse armado para cima do meu carro, um medo bobo, mas ao
mesmo tempo, real. Enfim, de repente era ali mesmo, naquela casa.
Um carro velho, um Gol redondo parou e ambos desceram. O moço
sério brandia os braços e puxava seus próprios cabelos espichados
por um alisamento malfeito. O moço apenas abriu o portão e tentava
pô-lo ali dentro. Era seu irmão, talvez? Não era. O irmão apareceu
logo em seguida, e a mãe, baixinha.
Escutei uns gritos abafados, pois passava em baixa
velocidade. Mas logo eu estacionei a uma distância segura, o
suficiente para ver que o moço avançou para cima do outro com
socos e pontapés. Eu apeei do carro e cheguei mais perto. O moço
sério jazia caído no chão, apontava uma arma (soube depois que
subtraída da cintura do algoz, na hora da briga) e simplesmente
matou todo mundo. Todo mundo. Todo mundo ali morreu. Menos
eu e ele. Por fim, eu, em choque, depois de me urinar todo de pânico,
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dei dois passos para trás, ele olhou para mim, gritou de maneira
lancinante e atirou dentro da própria boca.
Na hora eu não sabia o que fazer. Mijado, fedido. Eu
precisava voltar para casa. Lembrei-me de um pano que estava
dentro do meu porta-malas, fiz um forro para meu banco. Sentei-me.
A vizinhança já saíra dali, em polvorosa. Se eu fosse embora,
provavelmente se lembrariam de mim, já deviam ter fotografado a
placa do meu carro. Tarde demais. A polícia chegou. Perguntaram
quem tinha visto, de fato, o tiroteio. Cabeças balançaram e falaram
que ninguém tinha visto.
Tomei coragem e disse: “Eu”.
O que eu fui fazer ali, meu Pai do Chão? Não havia
explicação para minha intromissão, minha conduta estúpida. Mas eu
fui muito verdadeiro e contei para a polícia tudo, inclusive que, o
fato de saber que ele era deficiente e estava bêbado, me fez querer
checar se ele, de fato, havia chegado bem em casa, ainda que não
fosse da minha conta. Contei que havíamos nos conhecido muitos
meses antes e que eu sabia de sua fragilidade física e mental, por
isso a curiosidade e uma certa dose de cuidado ao tentar verificar se
ele, de fato, havia chegado em casa, em segurança. Contei também
que havia percebido que ele estava bêbado e nervoso, mas que não
havia presenciado nada de mais, nenhuma briga entre os dois. Mas
que, de fato, uma curiosidade intensa havia me feito ir na direção de
ambos, algo do que eu me arrependia ali, naquele momento.

[ 13 ]
No entanto, deixei claro que não queria faltar com meu dever
como cidadão, ser humano, mas que queria muito ir embora, estava
mijado, de verdade, devido ao susto, precisava me banhar, trocar a
roupa. Só que fomos todos à delegacia. E de lá, depois de horas, para
a casa. Muito complicada a situação, aconteceu semana passada, eu
não sei exatamente o que esperar, se eu precisarei ou não participar
de alguma coisa, depor novamente ou mesmo falar como
testemunha em algum processo. Pensei em pedir ajuda a algum
advogado, mas no momento, eu estou com medo de sair à rua,
encontrar alguém que eu conheci e essa pessoa matar outras na
minha frente.
Eu preciso mesmo é de ir a um psiquiatra.

[ 14 ]
Leocádia

“Desgraça, desgraça, perdi minha terra e meu marido”, pensava


Sebastiana, andando a passos miúdos, com suas sandálias chiando
no cascalho da estrada, depois daquela subida, uma curva. Depois
disso, o zigue-zague da estradinha daria numa grande descida
montanha abaixo. E lá no final, depois da ponte sobre o Córrego das
Laranjeiras estava Goianésia. Tudo o que ela precisava era vencer
aqueles quilômetros, pegar a Avenida Contorno e chegar na chácara,
ali perto do campo de aviação. Nossa Senhora da Penha, Aparecida.
Nunca sabia o nome do bairro. Nomes de santos a confundiam
profundamente, assim como a religião. Eram uns dez quilômetros
até o lugar onde a comadre a esconderia, até poder chegar na casa
do pai, em Ceres. E de lá para o Mato Grosso. Goiás, nunca mais.
Maldita hora que viera de lá, na boleia de um caminhão, de mãos
dadas com José Mário.
A estrada era longa, a noite escura, e a criança soluçava
baixinho. Ah, tinha mais essa. Uma criança. Leocádia. Novinha,
amarrada com um pano ao seio de Sebastiana. Sua filha. Na sua
cabeça, um ferimento com sangue já meio seco. Ela chorara o tempo
todo, tendo desmaiado de cansaço depois de mamar por alguns
minutos naqueles peitos desidratados de Sebastiana. E estavam
mesmo. Ela estava cansada, seca, sedenta, exausta ali, naqueles

[ 15 ]
morros, naquela serra cheia de pedras. Sebastiana tropeçava de tanto
olhar para trás. Era o medo. Seu ouvido ainda zunia com os
estampidos dos tiros dos quais fugira. A cabecinha de Leocádia suja
do sangue da queda de ambas da janela. Ela estava pronta para fugir
se fosse preciso, por isso levava o essencial.
Essencial: um embornal com roupas e alguns documentos.
Uma garrafa de vidro sobrevivera à queda por estar embrulhada em
panos. Retirou a rolha de buriti e bebeu bons goles de uma água com
gosto de azeite de mamona. Horrível, mas necessária. “Quente, que
gosto horrível. Cuidado para não tropeçar”, falava sozinha de si para
si, as pedras da beirada da estrada eram grandes, tinha que tomar
cuidado para não deslizar para o sulco lateral da rodovia não
asfaltada e cair de novo, como caíra da janela e machucara a própria
filha. Foi difícil fazê-la parar de chorar, de fato ela não parou. Uma
fralda arrolhou sua boca por vários instantes até que ela foi obrigada
a soltar a menina da mordaça, para não morrer afogada no próprio
muco nasal. Era muito triste aquilo tudo. Correndo no meio do pasto
recém-formado, ela escutava mais um e outro estampido, alguns
tiros pareciam passar ao seu lado, provavelmente porque deduziram
a sua fuga naquele breu de noite nublada. Havia caminhado uns dois
quilômetros de subidas e descidas. O medo de tudo e a pressa de
fugir fazia com que ela acertasse o caminho sem pôr o pé nos
inúmeros buracos de tatu, sem passar nas moitas de cansanção ou
outros espinhos. Mas Sebastiana era mulher do campo e conhecia
bem aquela saroba onde andava, inclusive sabia que passaria por
[ 16 ]
uma cerca de arame liso caso ela fosse mais pela esquerda, em vez
de em linha reta. Isso também despistaria quem a eventualmente
perseguisse seguindo pela lógica. Isso tudo aconteceu num tempo
muito curto. Sebastiana já estava na beira da estrada de novo,
guardando meia garrafa de água no seu embornal, enquanto isso
olhava para trás.
“Lá evinha um carro, do Paletó para Goianésia”. Poderia
tentar pedir carona. Mas os estampidos de tiros ainda eram ouvidos.
Aquilo poderia ser perigoso. O carro poderia não parar. Ou pior
ainda, poderia levá-la à polícia. Ela só queria ir embora. E agora?
Entrou no sulco da rodovia, não era o suficiente. Correu para o outro
lado, uma moita, não era unha de gato, a outra ali na frente, não era
moita. Muito escuro. De repente a providência sabe-se lá de Deus
ou do Diabo veio lhe valer. A nuvem grossa saiu da frente da luz do
luar. Uma nuvem fina permitiu a ela ver a paisagem cheia de
sombras pretas. Um pé de algo ali. Cagaita. Fino, mas ela também
era fina, magra. Escura. O carro passou deixando uma poeira pesada
que logo se assentou. Era novembro, as primeiras chuvas já haviam
molhado a terra, estavam no meio de um veranico, era uma noite
quente de primavera. Ainda bem que as nuvens não choveram sobre
ela e Leocádia. De longe, as luzinhas vermelhas fizeram a curva para
entrar na descida para a cidade. Suas pernas movimentavam naquele
solo pedregoso sem parar. Dessa vez ela nem olhou para trás até
chegar na grande ladeira morro abaixo. Mas vinha outro carro, e de
repente, duas viaturas da polícia sem sirene ou luzes também
[ 17 ]
vinham na direção dela. Era impossível não ser vista se ficasse no
leito da pista. Teria de voltar. De um lado, um paredão de pedra. De
outro, uma escarpa íngreme. Novamente a lua a ajudou a ver uma
árvore de um dos lados da pista. Estranha aquela árvore ali, mas ela
estava no limite da borda do precipício. Sem pensar duas vezes,
Sebastiana a escala como uma guariba, Leocádia começa a chorar
baixinho, transida de dor da pancada na cabeça. Ela a acalmava
chorando em profundo terror. Os carros pararam, para seu pânico.
Precisou engolir o choro. Leocádia, pela primeira vez, colaborou e
ficou quietinha. Nem parecia respirar.
As pessoas ao redor dos dois carros falavam, apontavam para
a fazenda de onde ela vinha fugindo. Fazenda São Carlos, um lugar
mítico, lindo, de morros e escarpas, terra vermelha, córregos cheios
d’água, hortas cheias de folhas, rocinhas de arroz e feijão que davam
a cem por um. Mas, de uma hora a outra, o próprio inferno, quente,
vermelho, sangrento. Os carros saíram, cada um ao seu lugar. O que
fazer? Descer da árvore, descer a serra? Devia ter tentado fazer isso
pela frente, passando por tantas propriedades, cachorros ferozes,
cobras, tiros dos proprietários e caseiros a defender o seu e dos
outros. Não. Ela precisava de muita velocidade e sorte. Voltou ao
leito da estrada e continuou a descer rapidamente, não adiantaria sair
da estrada. Teria de continuar se escondendo a cada carro que viesse,
porque sair da estrada significaria ter de atravessar o Córrego das
Laranjeira, fundo, barrento. Ou não?

[ 18 ]
Sebastiana pensou. Leocádia quentinha, calada, mudinha.
Nem parecia respirar. Mas estava quente, sobre sou peito ofegante.
Poderia descer ali, com muito cuidado, sob a luz do luar que agora
estava ajudando bem. “Quantas horas? Só Deus sabe. Umas onze,
meia-noite, uma da manhã? Não sabia”. Desceu e ficou margeando
a lateral da rodovia de cascalho, construída no aterro acima. Já
estava perto do córrego, sentia a umidade no ar. Procurou um modo
de voltar para o leito da estrada, não arriscaria atravessar o
Laranjeiras no escuro, conseguiu com esforço inumano subir por
cercas, arbustos e galhos. Leocádia quietinha. Meio gelada. Era o
frio da madrugada. Passou correndo pela ponte de madeira,
descendo dela e embrenhando no pasto de novo. Não seguiria pela
estrada até a Contorno. Seria vista por alguém. E se soubessem o
que está acontecendo lá em cima. Lá na frente, via umas luzes baças
de lampião, talvez, eram as casinhas da Vaca Brava, provavelmente.
Conhecia aquele lugar ali, mais ou menos, se andasse para a Vaca
Brava, para despistar, teria de atravessar um córrego, passar por
terreno encharcado, difícil, àquela hora. Se fosse em direção ao
campo de aviação, chegaria logo, mas quanto mais entrasse para
oeste, mais se aproximava da cidade, não sabia se as pessoas sabiam
do que acontecia na serra. Poderia encontrar um lugar ali e passar a
noite. Andara mais de seis quilômetros numa condição muito ruim.
Elas precisavam descansar.
Quer dizer, Leocádia dormia profundamente, coitadinha.
“Daqui a pouco ela acorda e pede peito”. Então ela olhou para o
[ 19 ]
rumo da Vaca Brava. As luzes já haviam se apagado. O jeito foi
olhar bem o terreno e ir em direção ao Morro da Ema. Era mais ou
menos para aquele lado ali, pensou, apontando para o oeste, andando
pela colina, tentando ficar nos lugares mais altos. Invariavelmente
os fundos de vale eram cheios de água, cobras, mosquitos. Estavam
em Goianésia. Julho. Não havia chovido, mas é melhor não arriscar.
Leocádia tomaria várias picadas de mosquito nas pernas, depois
virariam perebas feias. Nem pensar. Vamos assim mesmo, e que
Deus nos proteja dos cachorros que latiam ao longe. De repente, a
chácara do Nestor encostava no campo de aviação, ótimo. Ali
mesmo estava a casinha de sua comadre. “Maria!”, gritou
Sebastiana. Maria não acreditou. Eram três e meia da manhã. Hora
de mentiroso. “Entra Tiana, essa menina tá esquisita, nem parece
viva”.
Um choque elétrico percorreu Sebastiana que levou as duas
mãos ao peito e girou o pano que a amarrava a Leocádia. O nó
desfeito de qualquer jeito enquanto Maria acendia mais uma
lamparina. Leocádia estava fria. Morta. Não estava gelada porque o
corpo de Sebastiana a aquecia o tempo todo. “Meu Deus, mia fia
não!” De repente Sebastiana caiu em si e abafou o seu grito com as
duas mãos. O sangue cobrado pela Fazenda São Carlos estava ali,
derramado sobre seu peito na sua fatídica e dolorida descida da
montanha. Leocádia jazia morta, de lábios descoloridos, inerte.
Sacudida de um lado para outro, ela não reagia, não mexia os olhos,
abertos, embaçados. Tarde demais.
[ 20 ]
Sebastiana corria de um lado para outro enquanto os seus
berros acordaram toda a casa. Ninguém mais dormia na chácara e
logo vizinhos mais próximos vieram ajudar. Antes do amanhecer, a
menina já estava dentro de uma caixa de uvas improvisada de
caixão, no meio da sala, com velas ao lado. Um par de velhas
recitavam os mistérios dolorosos do rosário. Maria servia café e
biscoitos velhos de polvilho, guardados há dias, com gosto metálico
da folha de flandres da lata que usavam. Sebastiana havia tomado
um banho, passado iodo nas feridas das pernas. Maria emprestara-
lhe um par de chinelas usadas. Sem muita vaidade, amarrou um pano
preto nos cabelos e estava sentada do lado de sua filha, chorando o
tempo todo, amaldiçoando-se, ao seu marido e a todos os falecidos
naquela tragédia.
Pela manhã, as notícias do massacre na serra haviam se
espalhado pela cidade. A notícia de que o marido de Sebastiana
estava preso com outros sitiantes na delegacia, no centro da cidade,
também correu a vizinhança. O marido de Maria temeu por ela ali,
já querendo se ver livre da sitiante e dos possíveis problemas que
viriam com ela. Maria implorou por misericórdia ao seu marido. Era
um momento de luto e tristeza. Enterrariam a menina, mas como? O
padre veio e alguém doou um caixãozinho. Tocaram enterrá-la em
vala comum. Tinha nome, batistério e certidão de nascimento, tudo.
Leocádia dos Santos Silva. Filha de Sebastiana dos Santos e José
Mário Barbosa da Silva. Ela, do lar, ele lavrador. Ambos, sitiantes
de uma terra que tinha muito dono. Veio a imprensa, na hora do
[ 21 ]
enterro, no cemitério. Veio repórter conversar com Maria e
Sebastiana, elas não puderam falar, com medo de mais desgraças.
Sem problemas, a vizinhança fofoqueira criou e recriou a história
toda e a contou minuciosamente a quem quis ouvir. Enterraram a
menina no cair da tarde. Sebastiana ficou ali, na sepultura, de fato,
um monte de terra com uma cruz fincada, chorando. Até que tiros
foram ouvidos.
Todos saíram correndo e se protegeram, gritaria, choro,
Sebastiana foi sendo arrastada por Maria para a porta do cemitério.
Tarde demais. Três tiros muito bem dados alvejaram Sebastiana no
peito, jogando-a no chão, sobre o corpo vivo e inquieto de Maria.
Na cadeia, José Mário havia amanhecido dependurado pelo pescoço
na grade, com o pano da própria calça. A polícia investiga o caso,
especificamente o extermínio dessa família, na intenção de
descobrir outros conflitos de outra natureza que justificavam a
perseguição a Sebastiana e José Mário. Mas, como sempre, tarde
demais.

[ 22 ]
Preta não pode

— Então, você comprou Fluido Ibasa? É a mesma coisa que


Calminex, que Gelol. No fundo, é tudo salicilato de metila.
Analgésico e anti-inflamatório…
Eu disse isso manipulando o frasco. Enquanto isso, minha tia
dizia para mim:
— Então, eu gosto porque relaxa muito e sara as dores do
corpo rapidamente…
— Tem aquela também, a Pomada Negra, Pomada Preta.
Tem a Canela de Velho, também.
— Então, é tudo fitoterápico…
— De fato, mas salicilato de metila é remédio alopático.
Corta a dor e desinflama. O segredo do fitoterápico, nesse caso aqui,
é ter algo que funcione. Senão não conseguiria vender bem. E como
vendem essas pomadas e fluidos.
— É verdade, funciona mesmo. Ontem mesmo eu estava
com uma dor aqui, ó...
— Meu pai também não fica sem por causa do desgaste no
joelho. Sempre que a Clarinha machuca lá em casa, ele passa essa
pomada, uma verdadeira panaceia — disse rindo.
— Pois é, mas qual seu pai usa de fato?

[ 23 ]
— Pomada preta, pomada negra, sei lá. O nome é assim. Mas
eu não sei exatamente. O frasco é todo preto…
— Você sabia que não se pode mais falar “pomada preta”
né?
— Acuma?
— Isso mesmo, não pode. É considerado preconceito.
Nesse momento eu perdi tudo, ri, depois fiquei sem-graça, e
depois de alguns segundos de boca semiaberta, eu olhei de novo,
sacudindo a cabeça:
— Como assim, não pode?
— É, porque as pessoas dizem que é preconceito… A gente
não pode nem mais falar essa palavra que dá problema…
— Pode sim, quem te disse isso está errado. Primeiro porque
estamos falando de uma pomada, um medicamento, uma substância.
Não tem problema algum em dizer sua cor. Preta, negra, não
estamos falando exatamente de gente.
Daí entra meu tio de sola:
— Mas as pessoas hoje em dia estão cheias de mimimi.
Ninguém pode falar mais nada. Quando eu era criança, as coisas não
eram assim.
— Mas não tem esse negócio de não poder dizer que algo
seja preto, gente. Um carro preto, sapato preto, que bobeira, isso não
faz o menor sentido…
Daí, entra outra tia minha, que vinha de rodear a Terra e
andar por ela:
[ 24 ]
— Tem isso sim, inclusive…
E já ia dizendo algo que eu não consegui terminar de ouvir,
já que um barulho chiado, como a estática de rádio, enchia a minha
cabeça, e se transformava lentamente num apito agudo de milhares
de Hertz, tudo isso por causa de meu ódio por aquele tipo de
estultice.
— Gente, não! — eu falei de modo mais alto que o normal
— Isso não faz sentido.
Olhei desolado ali para os três e continuei:
— Eu sei do que estou falando porque eu sou uma pessoa de
cor. Olha a minha pele. É escura. Sendo eu afro-americano ou não,
eu sou uma pessoa de cor.
Minha tia:
— Eu também tenho cor, disse mostrando sua pele morena
bem clara...
— Eu também, branco é cor, disse meu tio...
Eu, sem um pingo de paciência, a essa altura do campeonato,
desandei a falar que isso era um desrespeito com a história do país e
das pessoas negras. Respondi de maneira incisiva ao meu tio que
insistia em dizer que antigamente não havia nada disso. Disse que
havia sim, sempre houve preconceito e discriminação, ao contrário,
antigamente era pior, porque uma pessoa sofria discriminação e
preconceito e não poderia dizer que estava magoada com aquilo,
nem era levada a sério, e muitas vezes era duramente silenciada
quando tentava opinar de modo diferente.
[ 25 ]
Mas uma das minhas tias, desesperada em parar a conversa,
dizia que, de verdade, não poderíamos mais falar aquilo. As pessoas
estavam sendo censuradas por uma espécie de grupo organizado. Eu
fiquei embasbacado com aquilo e minha boca abriu, e foi abrindo
com a insistência deles naquele assunto ridículo, por fim, eu tive de
pegar minha mandíbula no chão.
Todos criam piamente numa real existência de uma agência
secreta contra o politicamente incorreto. Aquilo era demais para
mim. Resolvi ir embora. Já ia me despedindo quando, de repente,
um barulho ensurdecedor encheu os céus. Minha tia correu a tapar
os ouvidos de vovó, que chorava sem entender nada, aturdida com
aquele ruído. Olhei para o muro e duas cordas pendiam dele, olhei
para cima, procurando a origem das cordas e fiquei pasmo, sem crer:
um helicóptero pairava no ar, fazendo descer quatro pessoas. Uma
delas era uma mulher negra, de tranças marrom, mas vestida de
roupa militar. Saiu do rapel e veio ao nosso encontro, de mão em
riste, aberta, a palma virada para nós, como a Lumena no Big
Brother Brasil vinte e um, trotando e dando um grito surpreendente:
“RACISTAS NÃO PASSARÃO!”
Meu tio, apesar de assustado, recobrou a calma e a ironia.
Sentou-se, cruzou as pernas e apontou para mim:
— O racista aqui é ele.
Minha tia, em pânico o censurou, a essa altura, minha avó
estava sendo levada para dentro, quando pediram para que todos
ficassem.
[ 26 ]
A tal ponto, já estavam dentro da área de serviço da casa de
vovó: dois soldados fortemente armados, a tal mulher e, por fim, um
homem em trajes militares, mas com cara de doente, que era tratado
por doutor, pela mulher.
Era um doutor em sociolinguística. Ele estava ali para
analisar os dizeres que alertaram a todos. Meu tio:
— Eles ouvem tudo, do microfone do celular, até mesmo
daquela “Alexa” que seu irmão comprou e trouxe para cá, outro
dia…
Eu via aquilo tudo tão estupefato, tão incrédulo, que eu
parecia anestesiado.
A perplexidade persistia, apesar do desenrolar da cena. O
helicóptero havia subido, mas as pessoas ali começaram a fazer um
inquérito, começando pelos mais brancos, até chegar a mim. Eu, sem
entender nada, achei que aquilo se tratava de uma encenação, tipo
uma pegadinha daquelas que a gente via na TV.
Por fim, meu tio narrou mais ou menos o que eu havia dito,
o que eles haviam dito, eximindo-se e a todos ali (menos eu) de
alguma culpa em dizer algo errado.
Minha tia, a mais branquinha de todas, vendo aquelas armas
e morrendo de medo de tiro (era bancária e tinha pânico de assalto),
afirmou veementemente que tentou me alertar para as proibições
linguísticas desse tempo em que vivemos.
Eu, quando interpelado, estava tão anestesiado, que falei
como se fala com qualquer um, sem um mínimo de reverência:
[ 27 ]
— Vocês primeiro me expliquem o que está acontecendo. Eu
dormi ontem e acordei num mundo de absurdos, de polícia
linguística. Estão falando em nome do governo?
Nesse momento a mulher rompeu em risada, e então disse:
— Governo? Não pactuamos com governos capitalistas,
genocidas e com a política assassina, machista, racista, fascista do
executivo, legislativo e judiciário. Somos heróis de uma causa que
luta pela verdade.
— E que verdade?
Nesse momento o tempo fechou. A mulher passou meia hora
batendo boca sozinha, explicando milhares de teorias e práticas que
justificam uma ação semiterrorista contra o racismo. Eu achei
aquilo um delírio, fiquei a perguntar por que não agiam pelos meios
legais, mas a resposta era óbvia. Como que um país burguês e
capitalista possui meios legais que não sejam em prol do capitalismo
e da burguesia? E ao dizer isso ela acrescentou orgulhosa:
— Agora é a hora de nós, do sistema de cotas darmos nosso
troco em quem nos humilhava, no passado e ainda nos humilha no
presente.
Dito isso, um laptop preto, equipamento militar, robusto, foi
colocado em cima da mesa. Tocaram áudios da nossa conversa
anterior. Por fim, a moça se virou para mim e disse: pela análise do
timbre vocal que estamos fazendo desde que chegamos aqui, você é
o autor desse discurso, liberando o uso da palavra “preta”, dentro de
contextos não racistas. Quem é você mesmo? Não precisa dizer.
[ 28 ]
Virando o computador para mim, vi minha foto, como na
carteira de motorista, todos os meus dados, movimentações
bancárias, dívidas, tudo sobre mim ali, naquela tela. Inclusive a
minha designação de “pardo”, dada quando eu fiz o alistamento
militar, em 1999. Então ela tirou do bolso uma espécie de trena,
pequenina. Puxou a sua fita, como se fosse me medir. Então eu vi
que a fita era curta e tinha uma escala de cores de pele humana.
Ela disse então:
— Por sorte, o senhor é uma pessoa de cor. Pelo que
podemos ver aqui, por sua ficha, seu histórico bancário que, além de
tudo, é pobre e proletário. Tem lugar de fala para dizer preto, preta,
negro, negra, prete, negre, em qualquer contexto ou gênero que
deseje. Mas aviso ao senhor que seu comportamento é abusivo,
porque quer legislar sobre o que pode ou não ser dito. Além disso, o
senhor está perdendo seu tempo tentando explicar para as pessoas
erradas como elas devem agir. Contra elas, a lei. Caso seja flagrado
novamente, jogando pérolas aos porcos, ou batendo palma para
maluco dançar, não terei tanta clemência.
Eu ri alto depois de tantas sandices. Ouvi como resposta os
cliques-claques das armas dos soldados, engatilhando-as e
apontando-as para mim. Eu fiquei assustado. Olhei para todos,
minhas tias em pânico, vovó chorava sem parar e meu tio ria
entredentes daquilo.
Por fim, ela avançou para cima de mim e me deu um murro
no estômago, deixando-me sem ar, no chão, enquanto minhas tias
[ 29 ]
gritavam e pediam misericórdia. Eu me levantei enquanto ela me
passava de novo o mesmo sabão. De pé, eu olhei para aquilo sem
entender nada. Ela disse que não me puniria mais, mas deixaria um
recado do qual eu não me esqueceria. Virando as costas, ela disse
algo num rádio acoplado ao uniforme e saiu pela porta da frente. Os
soldados, imóveis, agiram quando um sinal sonoro foi dado nos seus
rádios, ao mesmo tempo. Metralharam todos na casa, menos eu.
Nem o gato escapou.
Atônito e em pânico, eu nem sabia o que fazer, uma poça de
sangue enorme ao meu redor, minha avó morta no sofá, os outros
caídos. Olhei para fora e as cordas desceram novamente, sob o som
do helicóptero, içando todos e os levando dali.
Nenhum vizinho, ninguém pareceu ouvir ou reagir àquilo.
Só podia ser mentira. Então eu gritei alto, desesperado, por fim
despertei de um cochilo, sentado numa cadeira dura na mesa grande
da casa de minha avó. Olhei meio tonto, uma das minhas tias estava
ali. Era um sonho daqueles que a gente tem, depois de cochilar
sentado, após o almoço.
De repente, chega minha outra tia e meu tio de carro, entram
na garagem, saem do veículo com sacolas de compras. Meu tio
deposita o frasco de Fluido Ibasa na mesa, a mesma cena começa a
se repetir. Eu pego aquilo e fico olhando sem falar uma palavra.
Minha tia: “É um santo remédio, que nem aquela Pomada Negra”.
Eu olhei para ela e assenti com a cabeça e soltei, quase sem
sentir:
[ 30 ]
— Conheço a “Pomada Preta”. Quando percebi o ato falho,
era tarde para engolir as palavras. Minha tia:
— Sabia que não se pode mais falar “Pomada Preta?”
Eu a fuzilei com sangue nos olhos de tal maneira e já fui logo
pisando no pescoço:
— Pelamordedeus, aqui todo mundo fez o Ensino
Fundamental! Vamos parar de besteira!
Ela passou de um lado para outro atônita, eu saí e olhei o céu,
ainda impressionado com o pesadelo. Queria ir embora. Foi o que
eu fiz, despedindo-me rapidamente de todos, ainda sob certo pânico
do sonho ruim daquele cochilo fora de hora.

[ 31 ]
Licantropia

Sim, licantropia. Não é um nome de doce de Goiás. Ambrosia, seria


ele. Mas não é. Licantropia é quando alguém acha que é lobo, sendo
homem ou mulher. Uma doença mental que atacava muito as
pessoas na Europa, já me disseram, durante a Idade Média e no
início dos tempos modernos. O engraçado é que a lenda do
lobisomem está bem relacionada a esse termo. Assim sendo,
licantropia pode sim se referir à transformação de homem em lobo
ou um ser intermediário, o famoso lobisomem, ser amaldiçoado,
satânico, cuja existência era presumida, mas jamais provada. O
máximo que conseguiram foi prender uns doidinhos achando que
eram capazes de virar lobos, ou que já tinham se transformado neles
em algum momento da vida.
Mas minha avó, que ignorava tudo isso, contava uma história
muito interessante a respeito do tema. Era uma licantropia à goiana:
tudo tinha acontecido ali mesmo, perto de Goianésia, um casal de
namorados, uma tragédia, tipo um Romeu e Julieta, só que em Goiás
e com o tal do monstro no meio de tudo. Tudo aconteceu no sul do
Estado, numa cidadezinha cujo nome não era dito por minha
avozinha.
Tinha toda aquela história do sujeito ser o sétimo filho de
uma ninhada de mulheres. O caçula. O desgraçado ainda inventou

[ 32 ]
de nascer numa sexta-feira de lua cheia e na Quaresma. Espia…
muita maldição numa pessoa só. Vamos chamá-lo de José. Era
franzino, pequeno quando criança. Custou a aprender a falar, custou
a aprender a ler. Tinha crises nervosas o tempo todo, chorava muito
e não reagia a nenhum tratamento: purgantes, remédios de farmácia
ou até mesmo as homéricas surras que seu pai lhe dava quando
achava que o filho precisava mesmo era de peia.
O desgraçadinho do José foi crescendo mal-e-mal. No
entanto, assim que os primeiros sinais da puberdade apareceram,
seus males logo sararam. Ainda era um menino meio pálido, ainda
tinha uma certa melancolia no olhar. Mas tinha força. Seu pai adorou
aquilo: pô-lo a trabalhar na roça imediatamente. Afinal de contas,
quem chegou terra ao pé do milho, está pronto para plantá-lo e
colhê-lo… Por fim, ali pelos doze anos completos, José era um
rapagão com voz desafinada e um ou outro fiapo de barba.
Espadaúdo, ainda um pouco despinguelado, como todo menino da
idade. Só mesmo na entrada da lua cheia que ele ficava insone,
andava pela cada a noite inteira. Ainda aos doze anos, assim que
descobriu que era macho pela primeira vez, acordando no meio de
uma polução noturna (Tá, eu sei que vovó não me contou isso aqui,
né? Andei pesquisando…), as crises na entrada da lua cheia eram
incontroláveis. Ele suava muito e ficava agoniado, andando de um
lado para outro. Por fim, um dia saiu. De bermuda e chinelo, fazendo
frio de geada lá fora. Voltou depois das três. Estava andando no
campo. Sua bermuda sumira, os pés e mãos arranhados por
[ 33 ]
espinhos, unhas arroxeadas, como se ele as tivesse usado para cavar
algo ou subir. Mas logo ele melhorava e voltava a ser o mesmo José
de sempre. Trabalhava com o pai na lida do campo e só tinham que
se preocupar com mais um passeio noturno na próxima lua.
Seu pai, com certeza, havia tentado segui-lo. Mas era noite,
muito escura. Poucos metros depois da casa, ninguém mais o via ou
ouvia. Ele voltava antes do nascer do sol, vomitando, algumas vezes.
Noutras, ele voltava mais tarde, atônito, dizendo que tinha acordado
no meio da mata, ou no mangueiro dos porcos, ou no meio das vacas
ou dos cavalos. Uma vez foi achado roncando de barriga para cima,
num monte de palha de arroz na casa do vizinho. E com isso, os anos
foram passando. A princípio, isso incomodava a todos, algumas
conversas mal faladas começaram a associá-lo com morte de
animais: porcos, galinhas, bezerros. Uma vez encontraram um
cavalo com a jugular mordida. O dono veio tirar satisfações, falando
de bicho, de lendas, de histórias desconexas, tiros na noite, porco do
mato, lobisomem…
Isso tudo só acabou quando o pai de José pegou a família
toda e se mudou para o Paletó. Longe, muito longe. José já tinha
dezesseis. Até arruamento havia ali. Venda, tudo... Até luz elétrica.
A vida ali era mais fácil. José entrou na escola, tinha sido
alfabetizado em casa. O trabalho na fazenda leiteira nos arredores
do povoado era bom, fácil. Mas as crises de José continuavam. A
sorte é que ele se controlava mais. Aonde quer que ele fosse,
conseguia ficar longe do povoado. Exceto por uma ou outra história
[ 34 ]
do povo, naturalmente supersticioso, nada associava as crises de
loucura lunar de José a qualquer tipo de desaparecimento animal ou
de pessoas.
Se bem que haviam achado um tal Zé da Dorcas morto perto
da fazenda onde moravam. Mas juravam que era onça. Depois que
eles chegaram no Paletó, sumiu uma criança, à noite, mas ninguém
nunca achou. Criança roubada, com certeza. O povo não olha os
filhos depois ficam caçando motivo em cima de motivo. Ora é bicho
do mato, ora é lobisomem, mula sem cabeça. Que nem saci-pererê.
Só aparece em casa de gente desmazelada.
A vida foi passando. Aos dezoito anos, José se apaixonou
pela Joaninha, filha da Zica e do Tataco. Namoravam sério,
resolveram se casar. O pai de Joaninha fazia muito gosto, porque
trabalhava com José havia anos, admirava sua constância e
comportamento. Já tinha ouvido alguma coisa sobre o fato de que
José tinha algo, algum mal-estar mental, uma espécie de melancolia.
Mas nunca havia visto ele doente, de fato. Nunca havia visto ele
blasfemar ou desrespeitar o próprio pai. Além de dócil, ele era
respeitador, jamais cortejava a filha às escondidas. Não era muito de
ir à missa, mas era batizado, comungava de vez em quando. Era o
que se esperava de todo cristão trabalhador e homem. Sem frescuras,
respeitador.
Por fim, noivado acertado. José passou a trabalhar mais, na
esperança de ajuntar algum para arrumar a vida, depois das núpcias.
O rapaz ficou mais tenso, passou a ter ciúmes de Joaninha, até
[ 35 ]
mesmo com os pais e os irmãos, parecia persegui-la. Às vezes
chegava nos lugares junto com ela, sem que ela soubesse que ele
também iria. Sempre estava junto dela, que nem um cão de guarda.
Todo dia, só ia embora da casa de Joana quando ela dormia. A
princípio, a moça parecia lisonjeada com aquilo. Depois, ficou
incomodada, José se mostrou ríspido, por várias vezes. E tinha
também aquilo.
É. Aquilo…
Nas sextas de noite de lua cheia, ele desaparecia. Quer dizer.
Ele sumia, ia embora mais cedo, dizia que estava passando mal. Em
casa, como ela já havia investigado, ele se fechava no quarto,
trancando a porta por dentro e só era visto no outro dia, passando
mal, às vezes com sintomas de uma moléstia que dificilmente
atacaria alguém dentro de um quarto, fechado, deitado numa cama.
E a noite estava próxima. Na próxima sexta, ele deveria
sentir mal-estar. Pensando nisso, Joaninha foi para a casa dele mais
cedo. Ela queria muito. Ajudou a sogra, as cunhadas. Quando ele e
o pai chegaram, à tarde, a janta estava no fogo, tinha café, até laranja
descascada, tinha. Ele tomou seu banho, passou para dentro do
quarto e voltou com uma calça de tergal, camisa de manga curta e
alparcatas. Ela se sentou ao lado dele, comeram, logo ele disse que
queria dormir e estava com dor de cabeça. Ela insistiu, mas teve que
ceder. Ele se levantou e vomitou após alguns passos. Ela se ofereceu
para cuidar dele, mas logo a mãe de José e suas irmãs passaram na
frente. Logo botaram-no dentro do quarto. Da porta, ela o ouviu
[ 36 ]
fechar a taramela por dentro. Pronto. Silêncio. Logo a quase sogra
chega e sugere que ambas possam ir embora. Já estava escuro e a
mãe de Joaninha poderia ficar preocupada.
A casa de Joaninha era perto, mas a sogra foi com ela assim
mesmo, foi e voltou. Chegando lá, Joaninha se surpreendeu com a
notícia de que sua mãe estava na casa da tia e que tinha deixado
recado para que, quando ela chegasse, fosse até ela, para não ter de
voltar sozinha. Joaninha olhou no relógio da parede: ainda não eram
sete horas. Estava frio, era uma noite de julho, escura. Agasalhou-se
bem e foi, o pai achou perigoso, mas Joaninha cresceu fazendo
aquele caminho até a fazendinha ali perto. Não seria tão perigoso.
Chegou lá em meia hora de caminhada apertada: os dois quilômetros
que separavam a casa dela da casa de sua tia eram planos e com
poucas curvas. Havia um atalho: ela podia cortar pelo pasto e andar
em linha reta até o terreiro da tia, mas preferiu ir pela estrada,
achando mais seguro. Chegando lá, a mãe estava pronta para voltar,
mas ferraram na conversa. Sem preocupações maiores, foram
ficando. A comida estava pronta sobre o fogão em casa, as coisas
arrumadas, era só o pai de Joaninha comer, se aquietar e dormir. O
papo não cessava na casa da tia, Joaninha se preocupou ao ouvir uma
batida no relógio. Inacreditavelmente já era perto da meia-noite. A
tia havia pedido a presença delas porque sofrera um mal-estar por
causa da labirintite. A mãe de Joana fora antes e preparara comida.
Joaninha teve de esperar um pouco, mas logo todas se distraíram
falando do casamento e outras coisas. Já era quinze para meia-noite.
[ 37 ]
O pai de Joaninha, a essa altura teria ferrado no sono, mas sem
problemas. Elas já tinham feito aquele caminho àquela hora ou até
mais tarde, em outros dias, estavam acostumadas. Joaninha, de
repente, viu que a mãe tomara o atalho, ambas andavam com um
toco de vela dentro de uma lanterna que iluminava mal e mal aqui e
ali. A estrada estava longe e compensaria andar por ela, pois era
mais larga, uma serpente de areia branca que agradecia a qualquer
luzinha jogada sobre ela. O pasto seco e frio, por sua vez, crepitava
aqui e ali, porque andavam juntas pelo trilheiro de vacas, estreito
para duas pessoas andarem lado a lado. Conversavam baixinho e
antes de avistarem a cerca que as deixariam praticamente na rua de
casa, escutaram baques surdos no chão, como passos pesados.
Ambas ficaram imóveis, com a lanterna na mão, prestes a se apagar.
Um barulho como um ronco, depois um latido muito pesado
e, por fim, um uivo. Estava perto, provavelmente farejando. Devia
ser um cachorro de fazenda, se bem que todos os cães ali conheciam
o cheiro das duas. Falando em cães, dezenas de latidos pipocavam
no ar. O bicho se afastara, mas voltava agora num tropel chegando
mais perto. As duas correram e subiram num enorme cupim (foi
assim que vovó me contou), a metros da cerca que tinham de
transpor. Uma massa preta, disforme, corria ao redor delas
rapidamente, sem dar chance de que uma dela pudesse descer.
O bicho chegou perto o suficiente para que a luz fraca do
toco de vela o mostrasse de maneira clara. Era um monstro, grande,
enorme, como um porco do mato com patas curtíssimas. Joaninha
[ 38 ]
pôde ver as dianteiras. Eram garras enormes, pretas. Ele corria com
velocidade, mas tinha patas traseiras maiores, dando um ar
desengonçado. A cara era também meio suína, meio canina. Um
nariz esborrachado, duas presas para fora, como uma queixada, o
corpo era coberto de pelos mais ou menos ralos. Um toco de rabo
curto, o corpo muito roliço, muito inchado. Em cima do cupim, as
duas choravam e rezavam mil orações. Ele rondava e cheirava o ar,
como se as reconhecessem, e titubeava. O cupim era extremamente
alto, mas nada que parecesse impossível de ser escalado pelo bicho.
Ele não subia, ao contrário. Quando ele se aproxima, mostrava-se
incapaz de pular e alcançá-las.
Valei-me minha Nossa Senhora, era um lobisomem, era
sexta-feira de lua cheia. Já devia ser meia-noite. Dito isso, uns fiapos
de nuvem que cobriram o céu a noite inteira se dissiparam. A
lâmpada na mão de ambas quase não era necessária. O luar banhou
o pasto frio revelando os trilheiros brancos de areia aqui e ali, mais
à frente a estradinha a entrar no povoado. Elas começaram a chorar,
a gritar quando o lobisomem começou a avançar. O cupim crepitava
debaixo de seus pés, crocante, seco, sem receber chuva por meses.
O bicho avançava por todos os lados, as patas curtas arranhavam o
cupim, quebrando-o. O monstro parecia desesperado, uivava e
babava, como se estivesse com fome. Saltava, mas não as alcançava.
Joaninha se mexia e onde seus pés estavam, sobre o cupim, se
quebrou, o que a fez deslizar para o chão. Sua mãe a puxou de volta,
mas o lobisomem avançou e mordeu a barra de sua saia. Içada de
[ 39 ]
volta para o topo nada seguro da casa das térmitas, ambas gritavam,
choravam e o bicho abocanhava o ar com um som de pancada seca
horrível, como se sua mandíbula fosse a de um crocodilo. A borda
quebrada do topo do cupim permitia que ele avançasse mais e o
novamente bicho abocanhou a barra da saia de Joaninha (saia longa,
por assim dizer). O terror não parecia ter fim. O bicho não ia embora,
elas ficaram ali, chorando, rezando, com frio, por horas, talvez. O
bicho continuava rondando, uivando, ao longe, cães latiam, e sem
que elas percebessem, uma luz fraca se acendeu numa janela ao
longe: alguém notara o latido dos cães e ouvira os gritos delas.
Quando o bicho avançava, ambas gritavam a plenos pulmões, o que
deixava o animal mais irritado, mas ele não parecia ser capaz de
escalar aquele cupim com aquele corpo de capado gordo.
Incrivelmente, ele parecia se deslocar com uma velocidade imensa,
mas não parecia conseguir se inclinar o suficiente para escalar a
borda do cupim. Ele tentava, o cupim desmoronava e ele descontava
a frustração uivando. A saia de Joaninha estava em frangalhos. Ela
estava morrendo de frio, arranhada, sangrando na testa, sua mãe
chorava rezando e o bicho não arregava.
Por fim, ele atacou mais uma vez e recuou ao ouvir um
estampido. Um tiro. O bicho recuou e cheirou o ar. Depois uma
figura humana de camisa branca apareceu ao luar desferindo mais
tiros em direção ao bicho. Minha avó conta que o primeiro tiro foi
para cima e quando o atirador pôde distinguir quem era quem, ele
atirou para matar, sem colocar as duas em risco. Não adiantou. O
[ 40 ]
monstro de pernas dianteiras curtas que não conseguia escalar
revelou-se muito ágil em sair correndo pelo meio da mata. As duas
desceram. O vizinho as levou para casa, em choque, onde a família
as pôde amparar corretamente.
Foi a pior noite da vida de ambas, não dormiram por um
minuto sequer. No outro dia, sábado, o pai chegou à hora do almoço
e encontrou umas vizinhas amparando a ambas. Tinham feito
comida, arrumado a casa. Naquele momento, a mãe de Joaninha
tomava um caldo verde, enquanto Joana comia uma tangerina
fazendo caretas. Depois de um tempo em silêncio, tendo comido, o
pai solta a notícia de que José não havia aparecido no trabalho. A
primeira vez que ele faltava na vida dele. O pai disse que nunca vira
José tão mal. Apesar de tudo o que havia acontecido, Joaninha
considerou ir vê-lo, caso a mãe melhorasse do susto. O pai dela,
então a tranquilizou, dizendo que fosse. Ele havia pedido
autorização para ficar em casa, o patrão consentira. Ela poderia ir
ver o noivo, embora não precisasse exatamente cuidar dele, porque
a mãe e as irmãs estavam de plantão. No entanto, o pai acha que
deveriam enviá-lo a Barbacena, para tratar os miolos, o corpo. Ele
não parava de vomitar e chorar, estava muito triste.
Essas palavras de seu pai ainda ressoavam em seus ouvidos
quando Joaninha se assomou à porta do quarto de José. A sogra,
preocupada, já tinha ouvido o relato dos vizinhos, queria saber como
estava Joaninha, a mãe, e como estavam aqueles arranhões nas
pernas e na testa. Ela disse estar bem, não deu muita conversa. De
[ 41 ]
repente, a irmã de José chega dizendo que ele acordou e chamava
por Joaninha. Ela entra no quarto e grita horrorizada. José estava
deitado de ceroulas, o rosto meio inchado e vermelho, dando ânsias
de vômito a cada trinta segundos. Ele contorcia-se e dobrando-se ao
meio, gemia de dor. Levantou uma mão em direção de Joaninha, que
a pegou entre as suas. Mão calejada, com dedos sujos de terra, uma
terra muito parecida com terra de cupim, foi impossível não notar.
Olhando ao lado, viu rastros pelo chão, marcas de mão no batente
da janela, também sujos de areia como a do pasto. Na bacia ao lado
de José, vômito, uma espuma cheia de coisas indefinidas e uns
fiapos estranhos.
Joaninha largou a mão de José e andou ao redor de sua cama,
ele escondia o rosto no travesseiro. Ela avançou para ele e tomou
seu rosto inchado nas mãos. Sua boca arroxeada estava fechada. Ela
o sacudiu e pediu para ver a boca. Ele não quis, ela gritou com ele,
atirando o de volta na cama com força. Sem equilíbrio, José caiu no
chão batendo a cabeça ruidosamente no chão de tábuas. Joana,
arrependida correu até ele, a essa altura, os outros também entraram
no quarto. José estava semiconsciente no chão, ela chegou até seu
corpo mole e quente, ele se apoiou nos cotovelos e tentou se
equilibrar, perdendo o controle sobre si e abrindo a boca, pelo que
Joaninha deu um grito de terror apavorante e saiu correndo
chorando. Entre os dentes de José, estavam os fiapos da saia que
havia sido dilacerada pelos dentes do lobisomem, na noite anterior.

[ 42 ]
Depois disso, Joaninha foi para o convento e nunca mais
voltou. Morreu um ano depois de um mal que ninguém sabe o que
é. Alguns acreditam que ela morreu de paixão. Já José, ele jamais
recobrou a sanidade e, antes da próxima lua, seus pais o internaram
no sanatório de Barbacena, de onde nunca mais saiu. Obviamente,
passava as noites de lua cheia preso numa solitária. Licantropia,
diziam. Um problema de cabeça comum na Europa na Idade Média.
Ele achava que virava um lobo, misturado com gente.

[ 43 ]
Vozes na minha cabeça

Vozes conversando comigo, dentro da minha cabeça. Começou


assim, quando eu era criança, com quatro ou cinco anos, ou seja, eu
revelei isso quando pude compreender e verbalizar. Claro que fui
levado a um psicólogo e diagnosticado. Depois encaminhado a um
psiquiatra que confirmou. A princípio, era esquizofrenia. Mas o meu
quadro não era típico. Descobriram que eu tinha Transtorno
Dissociativo de Identidade, mas isso há menos de um ano. O
engraçado é que meu pai é ateu, minha mãe católica roxa, daquelas
que vai todo dia na missa. Com quatro anos de idade, falavam dentro
de mim, e depois por minha boca, sete pessoas. Um índio charrua de
época desconhecida, chamado Vaimã; uma criança brasileira negra,
escrava, do século dezoito, chamada Manuelzinho; uma cigana,
Madalena; um ex-traficante de escravos chamado Seu Caveira; um
cangaceiro chamado Bartolomeu; um preto velho chamado Pai
André; um boiadeiro chamado Antônio Gomes.
Os meus pais, aos poucos foram se acostumando com aquilo,
mesmo que de modo tenso ou agressivo. Até que um deles, os que
falavam dentro de mim, num determinado momento, disse à minha
mãe que a irmã dela morreria em poucos dias. Perturbada, minha
mãe deixou aquilo de lado, mas foi surpreendida pela notícia.

[ 44 ]
Nisso, eu virei uma espécie de Valquíria. Era só olhar para
alguém que estava para morrer, que eu adiantava a notícia, a que
mais demorou, morreu em quinze dias. Minha própria avó.
Foi dolorido.
Não teve graça.
O pior é que essa coisa, identificada por várias pessoas como
mediunidade, ficava cada vez mais evidente.
Mas meu pai, ateu, não acreditava. Era década de noventa. A
tentação de me deixar num manicômio era grande. E ele fez isso, a
princípio para diagnóstico, depois para tratamento. Um mês lá, sem
escola, sem amigos. Tomando remédios fortes, dormindo o dia
inteiro, tendo conversas esquisitas com médicos.
As vozes não paravam.
Ficavam caladas por um minuto. Mas depois voltavam.
Eu comecei a ficar preocupado, afinal de contas a coisa toda
estava piorando. Eu estava ali há uma semana e não havia previsão
de alta.
Foi então que Manuelzinho falou comigo. Por que você não
mente? Para de falar que a gente tá aqui. Isso é fácil, não é?
Madalena repreendeu Manuelzinho, dizendo que se Pai
André soubesse, o arteiro ficaria de castigo para sempre. Aquilo foi
como uma semente em solo fértil e úmido. Eu realmente iria mentir.
Na outra semana, agindo como um digno de Óscar, meu pai fora
chamado. A previsão do tratamento era só de mais vinte e poucos

[ 45 ]
dias. Eu estava ali havia sete. Naquela época, ninguém me
observava. Eu estava num quarto, de porta encostada.
Passava o dia inteiro, quando acordado, conversando com os
sete amigos. Vaimã era o que menos falava comigo, mas bufava num
sotaque sulista que aquilo era errado. Pai André conversava
longamente comigo e falava que um dia teríamos uma tenda. Eu não
queria. Não gostava daquilo. Nesse dia, Pai André me revelou que
todos ali eram mortos.
Eu falava com mortos.
E possivelmente falava com outros, além deles, também.
Madalena disse que me ensinaria a jogar cartas, e reforçava os
ensinamentos de Pai André. Uma coisa que ela me disse me deixou
em profunda reflexão. Talvez eu tivesse conhecido pessoas,
conversado e convivido com elas sem que eu soubesse se eram, de
fato, vivas ou mortas. Disso, eu jamais poderia ter certeza, a não ser
que eu tivesse mesmo o interesse de saber, perguntar.
Mas não poderia ser ali. Não poderia conversar com cada
interno, na hora de tomar sol ou de comer, no refeitório, a respeito
de quem fosse ou não morto. Era um sanatório. Provavelmente
alguns diriam o que eu queria ouvir, só por loucura mesmo.
Os trinta dias de internação, vinte e oito, na prática, eram o
suficiente para que os medicamentos fizessem efeito e eu ficasse
estável. Fiquei num apartamento confortável. Não me lembro muito
de muita coisa, mais dormia do que tudo. Comia muito, embora
tivesse emagrecido muitos quilos. As vozes não calavam um minuto
[ 46 ]
sequer. Na última semana, acho que elas estavam muito entediadas,
como eu. Houve uma mudança ou redução na medicação usada,
então eu tinha mais tempo para ficar acordado. Vaimã bufava o dia
inteiro na minha cabeça, queria ir à mata, me dar um passe. Mas
quem começou mesmo a me incomodar era a tal da Madalena. O
garoto, de castigo, conversava comigo por pouco tempo e depois
tinha de ir dormir, dizendo ele. Madalena, como tinha trânsito livre,
passou dias contando a história da vida de cada um, que ela acessava
por ser espírito, por se aproximar das pessoas e entendê-las. Lê-las.
Seu Caveira ficava o dia inteiro adivinhando quem surtaria, quem
avançaria nos colegas internos ou brigaria com enfermeiros. Eu
fiquei tão grilado com aquilo que passei a pensar se ele, de fato, não
era o verdadeiro responsável por aqueles conflitos e mal-estares.
O Preto velho sempre vinha rezar Ave-Marias ao meu
ouvido para eu dormir. Madalena às vezes se ria daquilo. Eles todos
não eram uma coisa só. Eram diferentes, conflitantes, até. O
cangaceiro queria me ensinar a usar uma faca, a atirar. O boiadeiro
queria que eu prometesse que, quando eu enricasse, eu compraria
uma fazenda com cavalos e bois. A criança pedia refrigerante e
balinhas, doces. Já o autointitulado Exu Caveira queria mesmo era
pinga e charutos. No entanto, nenhum deles, de fato, podia nada. O
Preto velho dava broncas homéricas neles. Ao perceber a irritação
de todos com a minha reclusão, ele passou a falar mais comigo para
ocupar meu tempo e me ensinava coisas importantíssimas sobre o
mundo, o universo. Deu-me explicações que depois eu fui ler em
[ 47 ]
tratados profundos de magia e Cabala. Na verdade, ele me
encaminhou para uma prática de magia popular.
Por causa dele é que eu aprendi a benzer. Ele me fez ir à casa
de uma tia-avó aprender uma benzeção. E depois disso, ele me
ensinou várias. Eu era muito ligado a isso. Mezinhas, chás, poções,
garrafadas, licores, aromas, incensos. Usava muito o branco e batas
de algodão. Mas isso anos depois de eu sair dali. Naquele momento,
no entanto, ele estava falando para me ver livre de uma mulher
sedenta de bebida e cigarros, de um exu doido para cumprir uma
sina do bem, já que fora mau, de outros espíritos que queriam meu
corpo para trabalhar com cura, com poderes que eu nem sequer
imaginava.
No entanto, nada daria certo desse jeito.
Primeiro porque, ao voltar para casa, percebi que meu pai e
minha mãe estavam se separando. Por minha causa, não sei. Eu tinha
apenas quinze anos. Adolescente comum nunca fora mesmo. Essas
vozes me acompanhavam desde criança. Sempre comuniquei isso à
minha família. Minha mãe perdeu a paciência com a medicina,
depois da minha internação. Seguindo a orientação de uma vizinha,
ela me levou num centro de Umbanda para fechar a minha coroa.
Coitado de mim. A médium chefe da casa nem me atendeu, de fato.
Ela bateu o olho em mim e disse que não tinha mais jeito. E ofereceu
para eu trabalhar ali, se eu quisesse, e desenvolver. Mas pelo pouco
que ela estava vendo, as coisas estavam muito desenvolvidas. No

[ 48 ]
meu ouvido, Pai André dizia para eu ficar calmo, eu não iria perder
o controle ali. Era motivo para meu pai me internar de novo.
Chegando em casa, meu pai quase morreu. Censurou
horrivelmente a minha mãe por estimular aquela loucura dentro de
mim. Detalhe. Eu não tinha dito a ninguém que queria ir ao centro.
Jamais tinha falado a palavra Umbanda dentro de casa. E, até certo
ponto, eu me decepcionei com Pai André, porque o centro era de
Umbanda, mas ele não estava em casa. As outras vozes caladas
dentro de mim e só ele conversando coisas, orientando.
Por fim, ele se foi. No meu ouvido, só a criança brincando
comigo. Minha mãe olhava eu conversar pela fresta da porta, já
estava tão acostumada com aquilo. Ouvir nomes como Madalena,
André ou Manuelzinho. Era tão comum aquilo.
Eu me lembro quando cada um deles veio até mim.
Manuelzinho primeiro. Brincávamos o dia inteiro. Eu queria muito
vê-lo, mas não conseguia. Um dia ele disse que iria usar minha mão.
O giz de cera desenhou sozinho um menino marrom de cabelo preto
colado no topo da cabeça com um par de calças e camisa azul
celeste. Madalena, a madrinha de Manuelzinho veio depois.
Manuelzinho só brincava, Madalena cantava para mim. Havia
momentos que os dois cantavam juntos, eu amava. Quando entrei na
escola, Seu Caveira apareceu na minha cabeça e me ensinou o que
dizer para se defender dos meninos. Um dia, ele me fez bater na cara
de um garoto que me ameaçava. Foi um reboliço, minha mãe foi
chamada na escola, eu fiquei de castigo uma semana inteira. Foi
[ 49 ]
então que os outros vieram. Primeiro Pai André, sempre explicando
tudo com aquele português de negro do século anterior. Ele falou de
cada um, falou que estavam me acompanhando para um bem maior.
Na verdade, isso não significava nada para mim. Cada um chegou
dando seu show, boiadeiro, cangaceiro, eles cantavam, assobiavam,
de repente eu me via fora de mim mesmo, e meu corpo cantava e
dançava coisas bonitas. Até que, por último chegara Vaimã. Um
índio charrua. Ele, de acordo com Madalena, era bonito, vestido de
couro e de cabelo tosado na testa, nariz adunco, aparecia montado
num cavalo. Caboclo. Um dia, eu vi uma estampa dessas, numa
revista, passei a imaginar Vaimã como um índio norte-americano. A
terra dele era fria, campos desertos, lagoas e rios profundos. Vaimã
cantava e dançava quando eu tinha medo de chuvas e trovoadas, me
fez tomar remédios que ele assoprava no ouvido de minha mãe, ele
me ajudava a adivinhar onde estavam as coisas na casa.
Eles eram o que eu era, de fato, em personalidades bem
distintas. Mas logo eu comecei a crescer. A adolescência se
aproximava e eu percebi, por meio de Madalena, que eu não gostava
de mulheres. E que minha atração por meus amigos ia além da
amizade. Ela me impulsionou a dar meu primeiro beijo, que deu
muito certo. Até hoje eu guardo uma relação muito profunda com
esse garoto. Não fizemos mais que beijar. Eu tinha treze anos, ele
também. Aos quinze, hospitalizado, visitando centros de Umbanda.
Mas isso não parou aí. Começamos, a contragosto de meu pai, ir a
um centro kardecista perto de casa. Toda terça-feira. Sim, a
[ 50 ]
confirmação de que eu era acompanhado de entidades
desencarnadas, algo que o próprio Pai André já tinha me revelado.
Foi um choque no dia, eles eram mortos. Manuelzinho apanhara até
morrer de um senhor de escravos por roubar doces de coco
destinados a serem vendidos. Madalena num cabaré, numa briga
contra a polícia invadira a casa de tolerância. O boiadeiro Antônio
morreu chifrado por um touro bravo. Bartolomeu atirado pela
polícia no sertão do Pernambuco. Seu Caveira, morrera de sífilis,
delirando como louco, mendigo, na porta de um cemitério. Não
resistira a uma noite de inverno no interior paulista. Já Pai André
morrera centenário, num ranchinho na beira da mata, perto da
fazenda onde trabalhara como escravo a vida inteira.
Eu quis falar isso, mas esperei um melhor momento. Pai
André disse um sonoro não, que eu repeti instintivamente. O diretor
do centro que conversava com minha mãe perguntou, eu apenas
disfarcei, dizendo que pensava alto. Ele me olhava, parece que
percebendo algo em mim. Começamos ir às reuniões de doutrina.
Havia momentos de perguntas e respostas. Eu tomava a palavra e
dava uma palestra ainda melhor do que o dirigente, falando o que
Pai André me dizia. Já Madalena punha na minha boca palavras que
desafiavam a hipocrisia do moralismo cristão daquelas pessoas. Seu
Caveira discorria, pelos meus lábios, sobre o Umbral, sobre castigos
e curas com tanta maestria, que parecia que eu queria reescrever o
códice espírita todo em menos de dois meses frequentando ali.

[ 51 ]
Não deu outra. Ninguém me queria por perto. Minha mãe,
por outro lado, ficou decepcionada. Achou que eu seria um daqueles
médiuns de branco dando passes ou escrevendo cartas.
A ida ao centro, no entanto, me deu curiosidade e o que eu
não aprendi ali, consegui aprender lendo sobre, na vasta literatura
supostamente séria sobre o assunto. Consegui me aproximar de
outras supostas consciências. De vez em quando eu pensava que
estava ouvindo minha avó, e dizia coisas que deixava a todos
impactados. Mas nada se comparava ao que Madalena e Seu Caveira
faziam. As mensagens que eles buscavam dela ou de outras pessoas
conhecidas eram tão autênticas que me assustavam, também.
Meu pai odiava aquilo tudo. E secretamente arquitetava algo
que eu não sabia o que era, mas pressentia. Com calma, ele começou
a se aproximar. Ele queria muito que eu voltasse ao psiquiatra, mas
a minha aparente saúde mental não dava nenhuma possibilidade de
uma consulta que fosse. Mas nem tudo são flores. Ele realmente se
irritava com aquele papo todo de espíritos. Minha mãe agora me
levava a novenas e romarias, atrás de uma bênção, ela queria que eu
ficasse livre desse fardo. Começamos aqui mesmo, com o Santuário
do Perpétuo Socorro, rezando toda terça. Fui levado a um exorcista
numa paróquia perto da Universidade Federal. Lá puseram a mão na
minha cabeça. Coitado do exorcista, o braço dele ficou duro e foi
lançado para trás. Seu Caveira ria alto no meu ouvido. O exorcista
começou a bradar contra um suposto demônio no meu corpo, mas
Pai André tomou da minha voz e falou forte, alto e claro um discurso
[ 52 ]
tão cristão, tão católico, repreendendo o incauto. Era um
seminarista. Pai André, por intermédio de mim, disse que iria
procurar a Diocese caso ele não pedisse desculpas. Eu fui embora
cansado, minha mãe, humilhada. Depois, fomos à Aparecida, em
São Paulo, a Bom Jesus da Lapa, seguimos o Círio de Nazaré no
Pará.
A fase mais difícil foi a ida aos centros de candomblé, alguns
que trabalhavam com eguns. Mas minhas entidades não saíam de
mim. Elas estavam dentro de mim. Isso era muito interessante. Pude
conversar com médiuns em muitas oportunidades. A maioria não
entendia a experiência espiritual como eu.
Primeiro porque eles incorporavam os espíritos. Ou os
espíritos se incorporavam neles. Comigo era diferente. Um amigo,
médium poderoso com uma coroa completa, sete entidades e mais
umas três ou quatro que vinham esporadicamente, narrava o
processo de convivência com as entidades de um modo muito
diferente.
Eles as sentiam por perto. Alguns entravam à força, outros
entravam suavemente. Mas naquele ponto de maturidade como
médium, ele estava no controle o tempo todo. Não eram parte dele.
Vinham e se iam porque tinham uma existência diferente. As
entidades se repetiam, por exemplo. Meu amigo começou a
incorporar o exu que a fundadora do centro, falecida há vinte anos,
também incorporava. Uma pesquisa profunda achou alguns Pais

[ 53 ]
Andrés na literatura da Umbanda. Mas nenhum deles era como o
meu.
Esse amigo me fez passar por uma vivência. Pediu que eu
desenhasse o ponto de Pai André. Eu perguntei em voz alta a ele.
Como é meu pai? Ele relutou. Ouvi-o resmungar, por fim ele tomou
a pemba. Um círculo. Dois triângulos separados por um vão com
três cruzes no centro do triângulo. Dentro dos triângulos, um Sol no
ascendente, uma lua no descendente e estrelas de Davi de cada lado
dos triângulos. Cada um tinha o deles. O de Madalena, um tridente,
uma taça e uma rosa num círculo. O da criança, um sol e um arco-
íris. O do cangaceiro, a frente de seu chapéu com três estrelas de
Salomão, o do boiadeiro, um laço e uma estrela. O de Seu Caveira
era um crânio, estrelas de cinco pontas circulando o crânio e dois
tridentes. O caboclo, uma ferradura, embaixo de um arco e flecha,
rodeado de folhas.
Ele, por fim olhou o chão. Trouxe de dentro de casa uma
máquina fotográfica digital. No outro dia chegou a uma conclusão.
Minhas entidades eram novas. Tinham acabadas de nascer do éter
de Aruanda, porque elas nunca tinham sido registradas nos centros
de Umbanda do país inteiro. Nunca. Além disso, a minha descrição
de como eu agia sob a influência desses espíritos era muito
particular.
Ele se sentou na minha frente, numa tarde. No chão, uma
jarra d’água, um copo de barro cheio de vinho, alecrim, benjoim e
um caquinho com brasa. Quartinhas cheias d’água. Sentamos juntos
[ 54 ]
e ele começou a cantar e rezar. Eu conhecia uma das músicas, cantei
junto, rezamos ave-marias, salve-rainhas, pais nossos e creio-em-
deus-pais até à exaustão, por fim ele estremeceu todo, arquejou e
apontou para uma bengala encostada na parede. Ele incorporara com
uma entidade, uma preta velha que passou a mão em mim, nos
braços, acendeu um cachimbo retirado do bolso, usando a brasa do
caquinho. Foi uma longa conversa. Ela chamava Pai André, olhando
para mim, procurando por ele. Chegou a ponto de apertar meu crânio
dolorosamente entre suas mãos, depois de riscar cruzes na minha
testa.
Ela, ele, os dois por fim pararam. Respirando ofegante, ela
chamou três vezes: venha irmão! Eu deixei Pai André sair, quer
dizer, ele nunca esteve ausente. Talvez estivesse esperando-a
terminar de fazer o que quer que fosse. Novamente eu me vi fora de
mim mesmo, como sempre que um deles assumia. Não houve rezas,
não houve chacoalhar do corpo e nem aquela pausa dramática até a
primeira palavra do espírito que se incorpora. Meu corpo estava ali,
a voz de um velho conversou por horas com a preta velha. Os dois
tomaram água, café e fumaram muito, travaram conhecimento, pelo
que a preta velha parecia não acreditar naquilo. Balançava a cabeça,
e dizia não entender, até que por fim ela decidiu. Vocês todos são
um só e estão vivos no corpo dele. Encarnaram sete num corpo só,
não é certo isso, vão explodir o aparelho
Eu fiquei atônito. Do meu lado, via os outros que foram
surgindo e conversando comigo. Eles discordavam da preta velha.
[ 55 ]
Nascemos de novo com você, disse Madalena. Naquele momento o
corpo do meu amigo olhou para o meu lado, era a preta velha me
fitando. Parece que ela vira a nós todos ali, os sete de fora e ele de
dentro. Madalena pediu a bênção e disse respeitosamente que eles
não provocariam nada em mim, nem doença do corpo e nem da
cabeça. Estavam juntos desde sempre, nunca estivemos do lado de
fora. Ele é cada um de nós. E somos ele. A senhora é a senhora, pode
desmontar do seu cavalo quando quiser. Nisso, a preta velha foi ao
congá e pegou um ovo, que eu não notara ali. Quebrou o ovo numa
xícara esmaltada com perícia, tirando uma tampa de casca tão
delicadamente que parecia mágica mostrou gema e clara ,
colocando-as dentro de uma xícara, retornou-as para dentro da casca
e se concentrou, tapando o buraco do ovo com a mão. Rezava
alguma coisa em sua língua-mãe e por fim, tirou baforadas e soprou
dentro do ovo a fumaça branca. Quando ela se dissipou, ela entregou
o ovo ao meu corpo, comandado por Pai André. Ele sacudiu a casca,
seca, chacoalhando algo dentro. O buraco por onde saíra a clara e a
gema estava fechado. Eu ardia de curiosidade e Pai André olhava
para mim. Estendeu o ovo na minha direção e imediatamente eu o
vi nas minhas mãos. Havia recobrado o corpo. Forcei a casca e a
senti trincar, apertei mais e a esmigalhei.
Dentro dela, um terço de contas de lágrimas, feito de linha
preta e de cruz prateada. No meio, uma medalha milagrosa. Peguei
aquilo, beijei e fiz o sinal da cruz, fechando os olhos. Quando eu
abri, estava de novo fora do corpo. A preta velha olhava
[ 56 ]
incisivamente para Pai André, quase como o desafiando a fazer algo
assim. Ele olhava para ela sacudindo a cabeça e disse que não.
Aquele corpo que ela via não era um cavalo, um burro, um aparelho.
Era o corpo que ele tinha ganhado para viver sobre a Terra por mais
uma vida. Não era assim que ele tocava as cordas daquele
instrumento. A preta velha tossia, fumava e tossia. Bebeu água e
disse. E como toca, vassuncê?
Pai André, sentado como estava, traçou um pentagrama no
ar. Imediatamente a tosse da preta velha voltou com força em sete
grandes tossidas. Depois da sétima, já era meu amigo de volta,
cuspindo sangue no chão e derramando sangue por uma narina.
Pai André apontou para o nosso corpo, pelo que eu entendera
naquele momento. Aqui, a gente trabalha com a sutileza, com o
amor e a força de quem é vivo. O meu amigo estava trêmulo. Jamais
havia voltado da incorporação assim. Ele sangrava e estava exausto.
Pai André, ao me devolver o corpo disse que aquilo tudo era porque
ela estava exibindo sua força, achando que eu pudesse ser uma força
do além e do mal. De repente, a preta velha volta ao corpo de meu
amigo. Ela e Pai André apertam as mãos e se despedem. Agora eu
entendi, ela disse. O que você me mostrou, eu ainda não tinha visto
em Aruanda. E desse modo, rezaram, dessa vez ela subiu como
sempre subia.
Meu amigo estava exausto. Disse que conversava comigo no
outro dia.

[ 57 ]
Por incrível que seja, ele me convenceu a voltar ao
psiquiatra. Disse que meu pai tocaria no assunto e que eu deveria ir.
Não havia uma explicação espiritual para aquilo que eu era.
Ninguém era assim, como eu, na Umbanda. Eu era um conjunto de
espíritos, ou talvez um só fragmentado em oito pedaços. Isso me
deixou interessado, mas o misticismo não me explicava. Aliás, a
ideia central do misticismo é exatamente a unidade na totalidade.
Por mais que se considere a ideia de que houvesse um deus, uma
alma mater de tudo, como se estivéssemos todos conectados a ela
com fios, cada um de nós era um terminal. Eu era oito ao mesmo
tempo, cada um com uma história pregressa, como se os sete e eu
resolvessem ocupar o mesmo espaço e o mesmo tempo numa
existência só.
A ciência poderia sim, me explicar. Pelo menos em parte.
Ele, como médium e místico, iria buscar outras formas de
compreensão de mim. Médium eu não era, não de incorporação,
porque eu não me incorporava. Eu não recebia espíritos. Eu era
cheio deles. E eles dividiam comigo o corpo, as minhas necessidades
eram as necessidades deles. Foram várias conversas que tivemos
sobre essas coisas. Tudo fazia muito sentido, menos uma delas. O
fato de que os espíritos não tinham uma sexualidade. Claramente eu
era inquilino de um corpo que também abrigava entidades parecidas
com as da Umbanda. Talvez fosse para eu ser médium e algo
autorizou ou apenas permitiu que eles se fundissem comigo, ou eu
consegui passar para esse plano com todas as roupas que eu já tinha
[ 58 ]
vestido nessa realidade. Fazia sentido. Nunca havia perguntado
quem era cada um deles de fato, eles me falavam. Eu só precisava
saber a diferença de idade entre o boiadeiro e o cangaceiro. Mas eles
me disseram. O cangaceiro morreu e encarnou na barriga da própria
viúva, que carregava um filho dele. A criança era mais velha que o
preto velho. A cigana, a mais velha de todos. Entre ela e a criança,
o Exu, que vivera 35 anos e o índio que vivera vinte e três. A minha
história começava no ano de 1610, em Salvador, Bahia, e daí até o
século XX, na década de 1960, quando morrera o boiadeiro, no
interior de Minas Gerais. Eu era esse espírito que havia nascido. Eles
corroboraram a intuição do meu amigo médium e deram as datas,
assim pudemos chegar à conclusão de que eu era eu mesmo
encapsulado em reencarnações que não apagaram sete eus
anteriores.
Eu era oito.
Por isso cada um deles não tinha uma sexualidade diferente.
Eu tinha a sexualidade deles. Todos eram como eu, mesmo
em épocas em que isso não podia ser dito. Manuelzinho morrera
criança demais para se entender de qualquer forma como ser sexual.
Mas os outros. Afirmaram que eram como eu era hoje em dia. Que
gostavam do seu semelhante. Mesmo Madalena. Todos contaram
paixões avassaladoras que sentiram, deles, apenas o boiadeiro
conseguira levar a cabo um amor por outro homem, e morrera
desgostoso de ter sido abandonado. O cangaceiro e Pai André
tiveram filhos. Pai André, sábio como sempre, resumiu tudo numa
[ 59 ]
frase só. Tivemos, Bartolomeu e eu. Como os gregos antigos tinham.
Eu entendi, pois havia estudado sobre isso, lido bastante sobre
sexualidade humana, como forma de tentar me entender.
No entanto, essa explicação que meu amigo me dera não era
assim, nenhuma coisa que me deixava confortável comigo mesmo.
Eu, de fato, não me sentia como ele dizia que eu era. Eu era eu
mesmo. E eu era a medida da experiência das coisas. Eu sempre
comandava o corpo, eu deixava que eles o usassem, às vezes. Não
ao contrário. Eu era o elo entre todos, tudo passava por mim. Eu não
os via como indivíduos capazes de estar no meu lugar ou corpo, na
verdade eu não os via como indivíduos, mas como facetas de algo
que eu podia ser.
Eu era o centro de tudo.
Lembra-se de que eu disse que meu amigo médium avisara
que meu pai me abordaria, pedindo para eu voltar ao psiquiatra? Pois
é. Ele não disse como isso aconteceria.
De fato. De tanto pensar e resistir a eles, depois de tudo o
que eu descobrira no centro de meu amigo, eu passei a querer
controlá-los. Um deles reagiu mal a isso. Seu Caveira.
Entrou sem pedir licença. Ele me deixou uma semana
andando atrás de mim mesmo sem poder entrar. Uma semana. Meu
pai e minha mãe ficaram aterrorizados com uma súbita e estranha
mudança de comportamento. Depois descobriram que não era eu, ou
que não era fingimento, porque a pessoa em mim se apresentou na
mesa de jantar, falando alto, gritando, de fato, sentado com um pé
[ 60 ]
na cadeira e o joelho no queixo. Como as coisas não poderiam ficar
piores, Seu Caveira conseguiu comprar duas garrafas de cachaça no
bar com o dinheiro que eu tinha na carteira. Isso foi a pior das coisas
que nos acontecera. Fui, fomos encontrados no outro dia junto de
uns moradores de rua na Praça do Avião, uns dois quilômetros de
nosso prédio de apartamentos, numa rua chique do Setor Oeste, ali,
perto do Marista.
Levado para casa, bêbado, Seu Caveira me deixou entrar
assim que eu voltei para casa. Tive ânsia de vômito, passei para
dentro do banheiro e de lá para uma conversa muito séria com meu
pai. Depois de desistir que eu assumisse culpa consciente por tudo
o que acontecera, a proposta de me levar ao psiquiatra foi aceita
imediatamente. Eu queria ir ao médico no mesmo dia,
assustadíssimo. Era a primeira vez que algum deles faziam aquilo.
Chamei mentalmente por Pai André, queria explicações. Ele
demorou horas para me atender. Não havia horários, mas eu poderia
tentar um encaixe no dia seguinte. Meu pai conseguiu falar com o
médico pelo telefone, isso eu pude perceber. Quando eu me deitei,
ouvi a voz de Pai André, mansa, humilde. Eu estava com raiva e
confuso, ele apenas disse que aquilo era inevitável, um dia iria
acontecer, caso eu resistisse. O direito que eu tinha ao corpo era
compartilhado, e eles acreditavam que poderiam negociar isso
comigo facilmente, bastava eu querer, deixar. Mas eu não entendia
o que queriam.

[ 61 ]
Eles sabiam o que queriam. Queriam que eu crescesse logo,
que eu fosse morar longe de meus pais. Já haviam traçado um plano
e eu, deliberadamente, havia confundido as coisas.
Eu era uma criança inconveniente. Desde cedo, eles
precisavam conversar comigo, aliás, eles eram o motivo de eu ter
falado em tempo recorde, com menos de um ano de idade. Isso levou
a um desenvolvimento recorde, a uma inteligência notória na escola.
Mas ao mesmo tempo eu os revelava o tempo todo, os denunciava.
Foram anos indo ao psicólogo, depois ao psiquiatra. Em vez de
manter segredo sobre eles, eu falava o tempo todo.
Na verdade, eu insistia em contar isso para a minha mãe, que
achou que eu estava obcecado. Na adolescência, esse tipo de
comportamento passou a ser notado como doença e assim, o segredo
se fora. A internação tinha sido uma lição dolorosa. Mas a
curiosidade da mãe com relação a uma cura que não era necessária
irritou aos sete de maneira muito forte. Seu Caveira tomou a
dianteira do corpo como sinal de que nem tudo é como eu gostaria
que fosse. Na verdade, aquilo tudo era muito complicado para mim.
Passei uma noite em claro. Pai André me convenceu a não falar nada
e eu assenti, eu precisava acreditar. Eles liam a minha mente. Quer
dizer, eu também lia a deles. Havia um perímetro de comunicação
entre nós, as pessoas dentro de mim. Eu também sabia que havia um
nível mais profundo em que cada um de nós tinha a sua privacidade.
Eu também conseguia estar nesse nível e ao mesmo tempo
consciente. Havia meus pensamentos, só meus. Eu só precisava
[ 62 ]
verbalizar a decisão positiva a Pai André para todos ficarem
sabendo. Mas no meu quarto mental, eu decidira escancarar tudo. E
se eles me tomassem de assalto no consultório médico, tanto melhor.
Ninguém nunca mais sairia. Eu e todos eles estariam para sempre
presos no torpor dos antipsicóticos.
Mas eu estava errado.
Foi exatamente o que aconteceu.
Madalena e Seu Caveira se manifestaram no consultório,
reagindo violentamente à minha revelação esquizoide de que eu
tinha pessoas na minha cabeça desde criança.
Eu fui detido. Internado é muito pouco para definir o que
aconteceu comigo. Amarrado com faixas, eles me deram remédios
injetáveis, até que eu me acalmei. Mas, nesse meio tempo, foi uma
semana de rodízio entre a mulher, o exu e o cangaceiro.
Curiosamente, o índio, o boiadeiro, a criança e o preto não se
mostraram na Clínica. Que coisa. Eu não entendi, embora falassem
comigo, eles preferiram o silêncio. Um deles, o índio, falou em
morrer, mas morrer, naquele âmbito, era um deles assumir o corpo
e fazê-lo falecer. Isso levaria os outros sete.
Naquele turbilhão, entre uma injeção e outra eu pude dormir
e sonhar com todos, ver seus rostos e corpos, como eu via na minha
mente, quando pensava muito concentradamente em cada um deles.
Lembrei-me de como cada um deles surgiu, um atrás do outro, até
que os sete e eu fechamos o círculo. Um dia, sonhei com todos de
mãos dadas, eles falaram um pouco do ressentimento que tinham
[ 63 ]
por eu tê-los denunciado, com a intermediação de Pai André, o único
que não reclamou.
Depois eles contaram a verdade. Eles eram um. A mulher
morrera de sífilis. No Umbral, conhecera um espírito evoluído, que
a ensinava sobre o mundo espiritual, e a estimulou a voltar como
uma criança escravizada e as idas e retornos tornara aquele espírito
sábio e forte. Sete encarnações. Quando chegara a vez de Pai André,
chegando no Umbral, ele apenas passaria por ali, rumo à luz. Mas
ele ficou e aprendeu muito com os espíritos em sofrimento. Foram
várias tentativas de resgatá-lo, ele era uma luz acesa num lugar
inútil. Pai André não aceitava aquela lógica celeste e um dia, num
esforço, mostrou ao ser evoluído o que era capaz de fazer,
fragmentando-se nas suas vidas anteriores. Decidindo reencarnar,
escondeu a si e aos outros nas mentes das pessoas que se tornaram
até que meu corpo veio.
Diferente do que os espíritos de luz diziam, a ida ao corpo
não é uma escolha, é inevitável. Ele se rebelou e conseguiu a ousadia
de ser muitos em um só, de se projetar como matéria espiritual,
relembrando e materializando as vidas que tivera no passado. Sua
força como ser escravizado, como conhecedor dos segredos de sua
religiosidade afro-brasileira, tudo isso colaborou para que ele tivesse
a força de mil espíritos, a força de um Lúcifer questionando Javé.
Nesse ponto, os espíritos de luz não tinham força contra Pai André,
que gestara uma revolta, que não foi seguida pelo Umbral inteiro

[ 64 ]
porque os espíritos ali não tinham toda aquela força criativa. Ao
chegar em mim, eles eram íntegros, completos.
Eu não sabia se acreditava naquilo.
Parecia que Pai André tinha entendido mais sobre as
explicações de meu amigo médium, no episódio da ida ao centro do
que eu, e agora usava aquilo como uma espécie de explicação para
que eu pudesse compreender aquilo e aceitar.
Mas, de fato.
Por que ele se apresentava daquele jeito? De onde eu teria
tirado tanta informação, que acesso eu tenho ao imaginário que
pudesse explicar essas personalidades tão concretas, tão
corretamente individuais, sem que isso fosse verdade? Eu não queria
acreditar em Pai André, mas não saberia explicá-lo.
Mas era tempo de pensar nisso depois. Fomos devolvidos
para casa, em um mês, eu estava, de novo, estável.
Mas algo estava diferente. Toda semana eu voltava ao
psiquiatra e conversava. Muitas vezes, um deles assumia, falava
coisas, levantava-se da cadeira do consultório, tentava intimidar o
médico, mas ele conseguiu dobrar a mulher, o exu, a criança, o
cangaceiro e o boiadeiro. Eles todos apareceram para o médico e
falaram por si, contaram suas histórias. Por seis meses conversamos
bastante, todos nós, com aquele médico curioso e aparentemente
isento de nos julgar.
Por fim, fui chamado no consultório. Eu, meu pai e minha
mãe recebemos juntos o diagnóstico de que eu tinha um tipo
[ 65 ]
incomum de transtorno dissociativo de personalidade, na verdade,
eu era o único que tinha aquele tipo que ele vinha estudando e
descrevendo.
Eu senti um múltiplo alívio dentro de mim quando o médico
suspendeu a medicação e substituiu tudo pelo acompanhamento com
uma psicóloga de sua confiança. Ele me deu um cartão.
Marcamos uma primeira consulta, levando um detalhado
relatório do psiquiatra.
Mais uma vez, tudo recomeçou. As entidades, pessoas,
personalidades dentro de mim se manifestaram. Uma a uma. Dessa
vez, até Pai André deu o ar da sua graça. Não foi necessário que eles
me assaltassem e me tirassem do ar, eu simplesmente deixei que
entrassem.
Aos poucos as coisas ficaram mais suaves. Eu estava muito
bem, eles estavam bem. Conversávamos. Mas havia uma falta
grande de intimidade entre nós. Pai André se aproximava e
começava a dizer coisas para mim, segredos o universo que ele
aprendera no Umbral, no mundo do além, quando vivera junto com
os espíritos de luz, até retornar ao Umbral para novamente encarnar.
Um dia disse que não acreditava naquilo.
Nenhum deles jamais me haviam dito nada daquilo. Aquela
história toda eu, eu mesmo, havia aprendido lendo, frequentando
centros espíritas e de Umbanda, vendo programas.
Até filmes idiotas de terror sobrenatural dão essas
informações a qualquer um. Não havia nada de revelado naquilo
[ 66 ]
tudo. Eu realmente padecia de um transtorno e ouvir a essas minhas
personalidades, eu as fortalecia cada vez mais.
Pai André apenas disse que, quando ele era pequeno,
menino, os sete já eram como são hoje.
Eu disse que isso eu não saberia explicar, não teria nem uma
teoria sobre isso. Realmente, nem tudo era lógico, claro para mim
naquilo. Mas de fato, éramos sete. Não um. Assim que um de nós
pôde, aprendeu isso tudo e passou aos outros por pensamento. Acho
que isso tudo foi arranjado.
Acho que o plano original era me fazer acreditar que eu era
um médium de Umbanda. Depois, quando minha família resistiu a
isso, quando a própria Umbanda não pôde nos explicar, eu voltei
para o consultório do médico.
E agora a gente era os oito. Eu e os sete. Somos uma pessoa
só com uma mente fragmentada, dissociada. Não há nada que me
convença do contrário, disse. Mas Pai André não se deu por vencido.
Tomou de mim o corpo. Sentou-se numa cadeira. Foi a uma gaveta
e tirou dela uma caixa, com fósforos, fumo e um cachimbo.
Eu não me lembrava daquilo. Eu perguntei de onde aquilo
tinha vindo. Ele me disse que eu dormia demais. Mais que o
necessário para que meu corpo se reestabelecesse. Ademais, o corpo
se sente cansado ao se conectar com mentes que o deixaram
cansado. Por exemplo. Eu dormi a noite toda, mas não significava
que Pai André e os outros estivessem dormindo. Eles tinham oito,

[ 67 ]
dez até doze horas de sono, dependendo do medicamento que eu
tomava, para usar o corpo de maneira positiva e criativa.
Fora assim que Seu Caveira jamais deixara faltar fumo aqui
dentro de casa, começou a dizer Pai André. Dinheiro você sempre
tem, bastava depois eu dizer baixinho no seu ouvido, pela parte de
dentro, que você não tinha aquele dinheiro. Quando você passava os
olhos nos papéis que mostravam o que entrava e saía do banco, eu
distraía seus olhos para as linhas onde estavam os gastos que eu e os
outros fizemos sem que soubesse.
Mas nada de tão perigoso. Esse cachimbo aqui. Algumas
velas e pinga para que Seu Caveira fizesse algumas coisas que eu
pedi. Rosas para a menina, doces para o menino. Os outros se
contentavam com pouco. Bastava eu dizer a você, sem que
percebesse, que queria comer certas coisas, vestir outras. Esses dias
você desceu as escadas, comprou e comeu um queijo de coalho.
Uma noite dessas, subiu com uma porção grande de carne seca com
manteiga de garrafa. Dançou e bebeu pinga a noite inteira. Foi
dificílimo mexer com seu corpo para que não acordasse mal no outro
dia, cheio, empanzinado ou vomitando.
Mas não pude evitar uma diarreia longa e dificultosa.
Já percebeu que você gostou de um menino e nunca fez nada
com ele? Nunca, depois dele, se ligou a outra pessoa? Porque você
tem que dar atenção a sete. Não cabe mais ninguém na sua vida.
Aceite isso. Aceite-nos.

[ 68 ]
Você não acredita em mim, nas histórias que eu conto e nem
que já contaram ao meu respeito. Acredita na psicóloga. Nós temos
falado com ela para que ela ajude a você não mais nos atrapalhar.
Precisamos da sua vida, do seu corpo. A missão que você tem não
pode ser adiada para sempre.
Ao ouvir aquilo, eu não sabia o que fazer, quis invadir meu
corpo, mas senti as outras seis mãos no meu ombro. Eram meus
únicos amigos de longa data. Eu não queria nenhuma missão. Falei
logo que nenhuma missão seria levada adiante por mim.
Então ele me revelou o que ele houvera pensado e feito. A
razão da existência de todos nós juntos no mesmo corpo já era parte
da missão. Antes de deixar o Umbral, ele, sem contar como,
capacitara mais de cem espíritos a se separar, se dividir,
multiplicando-se, como ele fizera. Isso fora há mais de dezesseis
anos atrás, antes de encarnarem comigo nesse corpo. Os sete saíram
na forma de um para se abrirem no momento do nascimento, da
primeira respiração. Hoje, haveria mais de mil pessoas assim só na
nossa cidade. No país inteiro, mais de dois milhões.
E qual o sentido disso? Ele respondeu. Somos pessoas
completas. Um de nós é sempre sábio. O outro doce. O outro
sedutor, o outro valente, o outro guerreiro, o outro trabalhador
devotado, o outro inescrupuloso, assassino, mau. Temos em nós a
doçura de uma criança aliada às artimanhas de uma cortesã hábil no
uso de facas e venenos. Até agora, usamos isso muito pouco com

[ 69 ]
você ou por sua causa, precisamos que seu corpo cresça até o fim do
ciclo, precisamos que estude um pouco mais.
Dezesseis anos. Eu tinha dezesseis anos. Então ele era uma
espécie de líder rebelde do além, fazendo com que milhões de
pessoas fragmentadas tomassem o país, mais hábeis, mais
preparadas, mais inteligentes e capazes. Mas eu era apenas um
adolescente, pensei. Ele, por fim, revelando que não havia mais
segredos entre nós, disse que havia uma única ordem que ele não
podia burlar, no mundo paralelo de onde vinha. A da reencarnação.
Ele jamais poderia encarnar de novo com a mesma consciência,
tomando a dianteira de um corpo.
Mas a magia que estudara com espíritos muito mais
elevados, e com os mais baixos do Umbral, deram-lhe condições de
burlar todas as outras. O mundo material era decepcionante. Ele não
era como um preto velho de Umbanda, que tinha certos poderes por
ser, de fato, um espírito passageiro num corpo. Ali, ele era copiloto.
Toda encarnação obrigava as personalidades-alma a se apagarem e
assumirem tudo novo. Esquecerem o que aprenderam de vidas
passadas. Ele não. Tinha quase quinhentos anos de idade, e isso o
colocava na frente de qualquer um ali. Ele pretendia abrir mais o
leque, descobrir vidas passadas dele mesmo até a origem maior na
imensidão que o criara, no seio do próprio Deus. Lembram-se de
que eu disse que um deles adivinhava a morte dos outros, no início
da história. Era Pai André. Ele olhava para o tudo ao nosso redor e

[ 70 ]
via mais do que eu, o do que qualquer outra pessoa. Uma análise
simples do comportamento indicava sintomas do fim.
Enquanto ele falava, guardava seus apetrechos de fumar. Eu
tomei o corpo de volta. Disse em voz alta que não. Ele continuou a
falar na minha cabeça. Disse que bastava que ele pudesse tomar meu
corpo por um tempo, no momento adequado, que se aproximava
cada vez mais, e dizer as palavras certas, no momento certo. E todos
os milhões de múltiplas almas, de seres com vozes na cabeça, o
atenderiam.
Eu pensei comigo mesmo que não. Aquilo não aconteceria.
Por mais que ele relutasse, a primazia sobre o corpo era minha. Ele
não poderia ficar no meu lugar.
Como não? Ele disse isso rindo alto dentro de mim. Vou
pegá-lo. E agora. Eu saí do quarto assustado, querendo falar com
minha psicóloga. Meus pais haviam saído. A atendente do
consultório disse que eu poderia ir em vinte minutos, se eu
precisasse. Eu precisava. Bastava eu calçar meus tênis e sair pela
porta. Na pressa, apertei os botões do elevador que se apagaram.
Falta de luz, problemas no motor? Não sei. Eu precisava descer
apenas quatro andares até o térreo. Ao chegar na escada e abrir a
porta, senti como se alguém tivesse segurado meu pé, ele torceu
estalando dolorosamente e assim que eu caí para frente, ele ficou
livre, caí os dois lances de escada, sem parar no patamar. Consegui
abrir a porta como por milagre. No andar de baixo, eu dolorido e
escorrendo sangue pelo nariz, me arrastei até uma porta, mas senti
[ 71 ]
meu corpo se arrastando involuntariamente e se erguendo na
maçaneta da porta da escada, novamente. Mais uma vez me atiraram
abaixo. Certamente já estava todo fraturado: braços, pé. Minha
cabeça rodava, sentado no patamar e sangrando, senti minhas costas
me jogando abaixo, novamente, acertando meu corpo na porta de
maneira sonora.
Uma vizinha abriu a porta e me viu cair no chão, chamando
socorro.
Eu morri.
Quer dizer, passei um certo tempo morto. Quebrei costelas,
tive uma hemorragia, meu pulmão cheio de sangue fez com que eu
parasse de respirar. Quando o socorro chegou, meu coração havia
parado de bater. Fiquei nesse estado por um tempo indeterminado.
Fui ressuscitado com um desfibrilador. Quando acordei estava meio
fora de mim. Era uma experiência que eu já tivera antes. Olhando
meu corpo, vi-o abrir os olhos, na UTI e fechar novamente. Não
tinha sido eu que fizera aquilo. Eu tinha sono. Dormi.
Quando acordei, meu corpo estava do meu lado. Olhei de
novo e alguém veio e o desentubou. Dias depois meu pai veio me
visitar, embora eu o ouvisse, não fui eu que o respondi. Eu perdera
o controle do meu corpo. Quis voltar, consegui. Mas ouvi
claramente a voz de Pai André, depois de um tempo, me pedir
licença e eu fui obrigado a sair para ele entrar.
Ele conseguira.
Mas como?
[ 72 ]
Ao meu lado, Seu Caveira tirou o chapéu preto e disse: Você
morreu. Foi para o fim da fila.
Desesperado, tudo agora fizera sentido. Eu era só mais uma
faceta daquele poliedro espiritual, a menor de todas, a que nascera
por último. E a mais fraca, via cada um deles entrar e sair do corpo,
estavam hábeis em fazer coisas, conquistar pessoas, convencer.
Logo me vi líder de um culto, poderoso influenciador de políticos.
Quer dizer, meu corpo era o corpo desse líder. Eu era o que não tinha
opinião.
Eu tinha que parar aquilo.
Mas para isso, quem tinha que morrer de novo com o corpo
era Pai André. E isso era muito, muito difícil.

[ 73 ]
Estranho

Levantando-se e olhando num espelho perigosamente encostado na


parede, Gilmar se vê. Pardo, avermelhado do sol de ontem, por
limpar tranqueiras no fundo do quintal, sob protesto, já que não
queria. Mas na sexta, a intrometida daquela mulher de bolsa amarela
havia entrado ali e achado pilhas e pilhas de lixo amontoadas. Ele
havia ocupado a casa recentemente, depois de pagar dois meses de
aluguel que o deixara liso. Não tinha como pagar alguém para fazer
aquela força. Calçou uma bota que não tinha devolvido no serviço.
As mãos tremiam ainda devido ao esforço do dia anterior,
trabalhando como pedreiro. O pior tinha sido aguentar o chororô da
filha, que não calava um minuto ao reclamar que não iria mais ao
parque por causa da faxina involuntária. Lixo, lixo e mais lixo,
arrumara um carrinho emprestado. Terminara às quatro da tarde,
todo ardido de sol, cansado, com fome. A menina se virou
esquentando a janta do outro dia ao micro-ondas. Ele nem sequer se
deu a esse trabalho de comer. Ódio, raiva. A casa velha fedia a mofo
e tinha infiltrações, mas pelo menos tinha um quarto só para si e
podia receber a pimpolha quando viesse. A mãe nem chegava perto,
mandava a avó trazer a menina. E vinham as duas a pé, aliás, tudo
ali era a pé. Por mais que tentasse, ele jamais se afastou um
quilômetro que fosse do círculo das pessoas que conhecia, era fácil

[ 74 ]
terem acesso a ele e sua ex-namorada nunca deixaria de fazer a
garota passar os fins de semana regulamentares com ele, para ter
seus dias de folga e encontrar-se com o outro namorado. Odiava
tudo aquilo. Odiava secretamente aquela menina, embora ela lhe
fizesse sentir certa ternura, às vezes. Viu a barriga surgir na mulher,
à distância, viu ela andar por aí grávida e depois com a menina no
colo. E recebeu o pedido de pensão, que ele paga religiosamente.
Mas a filha nunca foi sua de verdade. Chata. Catarrenta. Irritada.
Chorona. Parecia evitar o contato com o pai, mesmo estando apenas
os dois dentro de casa. Junto com a mãe, no entanto, era uma
dependência e contato que o constrangia. Gilmar resolveu, não sabe
o porquê, solicitar as visitas da menina, pensando que alguém a
levaria de vez em quando para ele ver. A princípio chegava à casa
da avó da menina, a real mãe substituta, chamava à porta e lá vinha
a garota, vestida de qualquer jeito, às vezes suja, fedida à urina, às
vezes doente. Ele a punha sentada na garupa da bicicleta Monark
barra circular e a empurrava duas, três quadras até o quarto que
alugava, distante quase dois mil quilômetros da casa de seus
parentes mais próximos.
Ali, era impossível ficar com ela em paz, isso foi
aumentando a sua irritação. Mas nem tinha tempo de tentar diverti-
la. Passava fins de semana em filas de hospitais públicos, e depois
velando o sono da menina convalescente. Seis meses depois
resolveu deixar o quarto e alugou uma casinha, mas era muito longe.
Voltou e alugou de novo o quarto, mas por um mês. Achou outra
[ 75 ]
casa, e outro e outra e nos últimos cinco anos, aquela era a quarta ou
quinta casa. Nesse meio tempo já tinha o que pôr dentro de uma.
Havia o quarto da garota. Ela já tinha sete anos. Parte da chatice
havia acabado. Ela já sabia montar na bicicleta e segurar firme, na
verdade, ela já tinha uma bicicletinha que ele a havia dado, ambos
vinham calmamente até chegar à casa dele, agora na mesma quadra,
na rua oposta. Nessa casa, cansado, chateado e dolorido pelo esforço
físico feito no dia anterior, Gilmar sentava-se na cama de solteiro,
fazia questão de ter uma, e olhava para o espelho, enquanto o dia ia,
minuto a minuto, se consolidando lá fora. Irritou-se ao olhar no
relógio e concluir que não precisava ter acordado àquela hora. A
garota era de sono pesado e tinha certa autonomia ali dentro da
residência, ela saberia se levantar e comer, caso tivesse fome. Mas
algo o inquietava, eram seis da manhã e nada fazia com que ele
dormisse de novo.
Gilmar se via feio, ele se considerava assim e geralmente
todos o consideravam também. Tinha um nariz largo de ponta
afilada que apontava para baixo, era pardo e de cabelo curto, tão
curto que nunca se soube se era liso, ondulado ou encaracolado.
Magro, seu corpo parecia uma pamonha achatada, tinha uma súbita
cintura e braços e pernas finas, apesar de fortes e competentes para
o trabalho. Sua cor avermelhava-se facilmente ao sol. Gilmar não
tinha opiniões, não discutia as coisas, não se comunicava. Nunca era
visto em companhia de quase ninguém. Um dia apareceu com essa
garota, mãe de sua filha. Foi tudo muito breve. Gilmar não gostou
[ 76 ]
dela, mas conseguiu inseminá-la. Azar, dizia ela às amigas. Duas
vezes apenas. Uma no escuro, no quarto fedido dele, outra na casa
dela, enquanto a mãe saía. Nem viu direito como era o troço dele,
não teve beijo durante, só depois, ele beijava mal, dizia ela, fedia a
sovaco e a chulé. Gilmar ficou triste quando ouviu aquilo. O quarto
dele fedia mesmo. Mas era o mofo das paredes, ele não ficou ali
muito tempo por medo de adoecer. Ele sempre estava limpo e
cheiroso. Ela que era uma vagabunda. Pensou em fazer DNA da
menina, mas não precisou. Ambos tinham marca idêntica, uma
mancha em forma de mapa na omoplata direita. A menina herdara-
lhe também o nariz feioso. Ela dizia também que o pinto dele era
pequeno, isso o fazia olhar para sua genitália de cima para baixo
toda vez que se banhava. Parecia tudo normal, ela que era uma puta
sem-vergonha. Analfabeta. Ele pelo menos havia estudado até
terminar o Ensino Médio na Educação de Jovens e Adultos. Já tinha
quase trinta quando começou. Agora tinha trinta e cinco. Trabalhava
de pedreiro. Era pedreiro e dos bons. Ele mesmo arrumava tudo
naquelas casas alugadas, mas estava naquela havia dois meses e a
falta de vontade de mexer nas infiltrações e limpar o quintal era
imensa, a ponto de negligenciar esses cuidados. As chuvas
chegaram e o mofo começou a surgir aqui e acolá, o quintal enchera
de mosquitos por causa da água parada. Notificado, resolveu botar
o lixo para fora. O dono da casa estaria ali na porta antes do meio-
dia para questionar a limpeza feita durante todo o sábado,
reclamando disso ou daquilo, pensava Gilmar. Sentado na cama box
[ 77 ]
nova e alta, balançava os pés com chinelas velhas olhando-se no
espelho… Era até simpático, uma espécie de privilegiado dentre
todos os feios. Levantou o braço, sua axila peluda cheirava a suor,
mas um cheiro amigável de gente. Levantou-se, escovou os dentes
e olhou o barbeador. Olhou a axila. Depilou-a sentindo inevitáveis,
mas suaves cócegas. A lâmina deslizou para o peito e a barriga,
eliminando pelos ralos e desceu ao púbis. Percebendo a dificuldade,
ensaboou-se e continuou a raspar tudo. Sentado de pernas
extremamente abertas no grande vaso sanitário, depilou sua bolsa
escrotal, e depois passou às pernas. Minuciosamente depilado,
banhou-se e passou hidratante no corpo. Nada parecia tão feio assim
em si mesmo. Era magro, usava roupas até novas, calçava 40. A
barba continuava na cara. Vai crescer. Eu vou deixar e ficar aqueles
barbudos massa da televisão.
Vestiu sua bermuda e calçou as chinelas velhas, deslizando
sob o solado do pé com hidratante. Passando pelo quarto viu um par
de chinelas brancas, novas, com detalhes em azul. Cinquenta contos
na promoção. Nunca as tinha usado. Calçou-as confortavelmente,
combinavam com a bermuda. Não tinham tiras, mas uma faixa a
cobrir os dedos do pé. Era chic. Pegou um boné e pô-lo à cabeça,
vestiu uma regata e saiu andando para a padaria. Alguém parecia ter
notado suas pernas depiladas do joelho para baixo, mas ele não deu
confiança, sorria comprando pão e voltou para casa. Sua filha, já
acordada, o questionou sobre os pelos, ele não a respondeu, apenas
sorria tomando café enquanto a menina tagarelava sozinha. O
[ 78 ]
domingo passou com ambos dormindo depois do almoço, e ele
combinando com a avó que a deixaria na escola na segunda. Isso
aconteceu, acordou cedo. Tinha de ir trabalhar, mas a aula da garota
começava uma hora mais cedo do que seu trabalho, e a escola era
tão perto que compensava deixá-la a pé mesmo antes das sete e
pegar ônibus. Eram cinco da manhã, pois tal da obrigação de se
trabalhar o acordava mais cedo sem necessidade. Mais uma sessão
de cinco ou mais minutos se olhando no espelho. Olhou-se
profundamente e ao ver seu braço refletido no espelho achou-o
subitamente bonito. Era forte, esguio. Olhou para os lados e viu uma
camiseta velha, azul. Tomou uma tesoura e recortou a malha em
forma de faixa. Cortado, o tecido emborcou-se, tornando-se numa
espécie de fita canelada. A malha sintética era da cor de turquesa,
intenso. Amarrou delicada, mas firmemente no seu braço, à altura
do fim do bíceps. Deu um nó deixando duas pontas de uma chave
de comprimento, saindo harmonicamente da amarração do nó. Fez
pose com o braço na frente do espelho. Estava lindo aos seus olhos,
perfeito. Uma satisfação quase sexual o preencheu completamente,
e sua adoração a si só foi interrompida por barulhos de sua filha
batendo coisas na cozinha. A garota foi flagrada pronta,
uniformizada, bastava ser penteada. Enquanto arrumava seus
cabelos revoltos, a menina olhava no espelho a fita de pano
amarrada no braço do pai, sem entender aquilo. O pai sorria o tempo
todo, mas não era para ela, não parecia estar ali. Ela reclamou do
negócio, o pai a mandou se aquietar, saíram ambos na rua. Como ela
[ 79 ]
havia se adiantado, poderia levá-la para a escola antes de se arrumar.
Seis e meia da manhã e ela já estava na escola, com outros
coleguinhas madrugadores. Voltando para casa, Gilmar percebera
alguns olhares estranhos para aquele pano amarrado no braço. Mas
ele ignorou sumariamente toda e qualquer forma de abordagem, não
precisava daquilo, sentia-se bem com seu braço amarrado em
turquesa, seus chinelos brancos e suas pernas depiladas.
Pensar aquilo fê-lo sentir muito bem. Era todo sorrisos, de
uniforme azul escuro e capacete laranja, a manga do uniforme não
conseguia esconder a amarração no braço. Um fanático mais
impertinente o abordou dizendo que aquele costume era coisa de
macumbeiro, que amarrava corda e palha nos braços para se
consagrar aos demônios. Riu tanto na cara do colega que ele saiu
sem-graça, sem continuar a pregação. Aqueles dois dias se olhando
no espelho, cortando seus pelos e se ataviando ainda que de maneira
estranha fizeram-no destravar o riso. E era riso para tudo. Todos o
consideraram estranho, a princípio. Todos se riam dele junto, ou o
taxavam de esquisito. Mas a estranheza nunca fica livre dos
estereótipos e é uma questão de tempo até que eles surjam e deem
ao estranhamento palavra exatas. Começaram a caluniá-lo de gay e
macumbeiro. Gay. Logo ele, riu-se do comentário ouvido na hora
do pão com margarina e café, no serviço. A galera nem sequer
disfarçou direito quando ele chegou, mas para não perder a prática
já comum, balançou a cabeça rindo e mandando a todos caçar o que
fazer. Ele era encarregado de uma turma de serventes, exatamente
[ 80 ]
essa, que trabalhava sob sua supervisão. Espalhando a galera, riu-se
pensando naquela bobagem. Já em casa, passava horas, se pudesse,
se admirando no espelho, olhando o braço amarrado. O pano
continuava ali. Lavava-se com o pano no braço. Sentindo um cheiro
enjoativo de sabonete, desfez o nó e pô-lo a secar. Olhou o trapo da
camiseta cortada e retirou dali outras faixas, umas quatro. Uma
delas, ele cortou em três e a trançou, criando um adereço novo, o
que usava naquela hora das risadas dos colegas. Não era gay, aliás,
nunca duvidou por um instante sequer de seu desejo por mulheres,
elas o faziam descontrolar facilmente, elas o excitavam muito. E
nem precisavam ser bonitas, ao contrário, preferia as feias como ele.
Teve dezenas e dezenas de parceiras sexuais, mas apenas duas
namoradas, e a última era a mãe de sua filha. Traumatizado com essa
paternidade involuntária, evitava namoros, embora fossem
frequentes em sua cama simples e estreita, corpos de garotas ali do
bairro. No entanto, não tinha fama de pegador, porque não se exibia,
mas sua sanha por sexo o fazia levar para cama mulheres de amigos,
colegas, donas de casa cujos ex-maridos não estavam e até mesmo
a própria ex-sogra, algumas vezes. Talvez por isso, Gilmar não fosse
tão preocupado com calúnia, já que ele não precisava provar nada.
Sua fama, no entanto, não chegava ao ouvido de seus julgadores. E,
afinal, ele poderia ter mudado de ideia, como comentou o maldoso
colega fanático da pregação do dia anterior.
Ciente da degradação moral de Gilmar, esse colega se
aproximou dele no dia seguinte, num dos reservados da obra e pôs-
[ 81 ]
se a olhá-lo. Num impulso, Gilmar sentiu o toque sobre o braço
amarrado. A mão do colega estava suada e fria, enquanto o tocava,
o fanático demonstrava sua excitação sexual tocando os órgãos
sexuais. Gilmar repeliu a mão com um forte movimento do braço
amarrado, que mostrou toda a sua esguia, mas forte musculatura. A
cara de Gilmar, sempre sorridente, agora era como uma máscara
negra, do negro dos olhos, do cenho fechado, da barba comprida por
estar a semanas sem fazer. O outro se assustou, mas continuou firme
e deu dois passos em direção a Gilmar, só então que ele vislumbrou
uma porta trancada atrás do seu aparente assediador. Gilmar,
instintivamente, sem dizer uma palavra, alcançou uma colher de
pedreiro bem afiada pelo excesso de uso e a encostou com força no
nariz do colega, que perdeu o rebolado e se constrangeu. E não é que
o cara não era gay mesmo, deve ter pensado o fanático. Saiu
destravando a porta e todo suado. Seu pânico fê-lo aumentar ainda
mais a calúnia a respeito da sexualidade de Gilmar, por medo de ser
denunciado entre os colegas. Gilmar sabia de seu segredo, tinha
sentido seu toque e entendido bem a mensagem. Mas não apenas
Gilmar, outros ali também sabiam. O cara dava em cima de geral,
só que ninguém falava…
As coisas meio que saíram do controle quando a filha de sete
anos de Gilmar perguntou se aquela cordinha no braço era coisa de
gay. Chateado, ralhou com a moleca e tomou uma decisão. Tinha já
marcado um encontro com uma de suas amigas solteiras e sem muita
reserva pediu-a em namoro. A incrédula aceitou surpresa, mas
[ 82 ]
parecia carinhosa. No outro dia, estava na casa de Gilmar e lhe fez
vários mimos, limpando o chão e organizando a cozinha. Apesar de
ser a mais sem-graça de todas as amigas que ele tinha, era a mais
oportuna e para o que ele precisava, passava de boa. Pediu que ela
fosse conhecer seu local de trabalho. Não era muito distante,
apontou para um conjunto massivo de prédios sendo construído num
bairro ao lado. Um ônibus e mais três quadras a pé a colocou no
meio da obra, recebendo um abraço e um beijo bem cinematográfico
de Gilmar diante de todos os colegas. Sentiu-se ridículo e o namoro
não durou duas semanas. Pensando que isso teria tido um efeito
positivo, o comentário do término na obra, graças a um colega que
morava perto da casa da sogra, reavivou a brasa da calúnia, afinal
de contas, Gilmar agora cortava o cabelo em cortes modernos, tirava
a sobrancelha e continuava a se depilar. A ida dele numa Tenda de
Umbanda, a convite de uma de suas ficantes, fê-lo trocar seus
paninhos trançados por um belo contra-egum de palha da Costa,
cravejado de búzios abertos, lindo, dizia a garota negra, beijando-o.
Ele amou aquilo tudo, menos a menina que era muito exigente e
ciumenta. Com uma agenda que incluía dar atenção ao outras seis
amigas, Gilmar não quis compromisso.
A maledicência da garota, do vizinho, das pessoas ao redor,
o bafafá todo reanimou as conversas. Ele se isolou, sem tristezas,
por um tempo, mas logo teve de mostrar alguma reação a isso. O
descontrole dessas fofocas o rodeou totalmente de forma que ele
precisou chamar a atenção de um colega subordinado no serviço.
[ 83 ]
Sem paciência para piadas, depois que alguém deixou em cima de
seu monte de tijolos uma trança de pano arco-íris, ele chamou a
atenção de um de seus colegas, tendo em uma de suas mãos um tijolo
cheio de massa, brandindo a colher suja no ar. Evitando levar a
conversa adiante, por medo de perder a razão, passou a protagonizar
todo dia, um bate-boca. O fanático, sempre muito sisudo e calado o
olhava de soslaio, e se irritava, pois após a sessão de humilhação,
algo o capturava em seus pensamentos e o sorriso voltava ao rosto
de Gilmar. Saindo do trabalho, ao chegar à sua casa, notou um
barulho atrás de si e mal pôde se desviar de um maciço tijolo que se
despedaçou no muro atrás de si, um cara corpulento avançou com
uma faca, mas perdeu o equilíbrio, pelo que Gilmar acertou-lhe com
o pé a mão e lhe tomou a arma branca. O cara avançou e Gilmar deu-
lhe um talho no braço. Sem dizer nada, o cara correu para o escuro.
No outro dia, ao chegar no trabalho, em vez de encontrar as
conversinhas de sempre, notou que todos comentavam a ausência do
fanático pregador, no outro dia ele aparece com um corte suspeito
no braço, no mesmo lugar em que Gilmar acertara o suposto
agressor na porta de sua casa. Chamou-o para conversar
amigavelmente e pediu que ele parasse. Mas ouviu do cara que
veado tinha que morrer. Gilmar disse que não era veado. Talvez o
fanático fosse, pois havia assediado a ele há um tempo. E só ali na
obra, já tinha ouvido mais duas ou três conversas de caras que
também sido assediados, alguns, inclusive, muito irritados porque o
contato inadequado continuava.
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Enfurecido, o fanático quis avançar para Gilmar que assumiu
posição de combate com um pedaço de caibro na mão, olhando para
os lados, percebeu que os colegas formavam uma roda em torno de
si. Gritos, assovios, vaias, xingamentos para Gilmar e para o
fanático. Apontando o caibro para a cara do fanático, Gilmar gritou
bem alto: “eu não sou gay e aqui não sou eu o único a saber disso,
vocês sabem quem é o errado aqui!” Suas palavras caíram junto com
seu corpo, quando um pedaço de concreto com vergalhão incrustado
acertou a cabeça de Gilmar pelas costas. Quem foi? Não se sabe,
ninguém viu também. O fanático aproveitou-se do momento e o
chutou ferindo mais ainda a cabeça. O encarregado da obra chegou
gritando com todos enquanto o povo se desfazia. O fanático fugiu,
não foi mais visto e o corpo de Gilmar caía inerte sobre um monte
de areia lavada. Veio a polícia, a ambulância, levaram-no ao
hospital.
Morre, não morre, dias se passaram, uma cirurgia, dores
intensas e sono profundo o tempo todo. O traumatismo sério o
deixou sem fala coordenada, ao acordar do último estado comatoso,
sentindo dor, não podia falar, e parecia não compreender bem o que
diziam. Foi para um quarto novo do hospital, ainda sentindo
dificuldades em falar e compreender as coisas, em dois ou três dias,
já estava melhor e pôde se sentar na cama, a despeito das broncas da
enfermagem. A primeira coisa que notou foi a ausência do seu
contra-egum, removido durante a hospitalização. Teria que voltar lá
no centro. Seu braço pálido continuava o mesmo, apesar de seco,
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cinzento. Quantos dias ele ficara ali? Ninguém sabia, um colega
chegou no outro dia, numa visita tímida e inesperada, dizendo que
era quase um mês. Uma enfermeira chegou e trouxe rolos de gaze
para refazer o curativo da cabeça, quase bom, ele tomou um rolo
para si, torcendo o tecido, fez uma nova amarração no braço, com
muita dificuldade, pegou a tesoura da enfermeira, que acedeu com
protestos e cortou as pontas dos nós para parecer mais disfarçado e
olhou para aquilo com olhos brilhando.
Então, algo pareceu acontecer dentro dele, e a partir daí,
começou de novo a falar eloquentemente e a sorrir.

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