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Caderno de Selos

Ivan Guardia
Índice
Prefácio 3.

Volver 4.

Estradas Perdidas 6.

Sinergia 11.

Tateando Escapatórias 12.

Destino Ausente 14.

Soluços no Subúrbio 16.

Bar Integração 19.

Fórmulas de Destruição 20.

Preso Dentro de Si 21.

O Gelo Próximo 27.

Perdi 28.

Não Há Manhã Para Os Loucos 35.

Giusepe 37.

Conexões 40.

Massas de Tolerância 43.

Macas & Focinheiras 47.

Comunicado 50.

Sobre Pensões E Eu-líricos 52

Claquetes Em Branco 54
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No devasso regimento das estagnadas aureolas (sua sala) Ocupava-se com seus tolos
pensamentos (seu passado não esquecido apesar da amnésia crônica, simplesmente sua
trajetória esboçada em marteladas). Pensava, também, no clima que brincava com as
vivalmas lá fora. Pensava em seus parentes ainda vivos (alguns que já deveriam ter
visitado) E as demais coisas que denominava “de velho”: A rodada de baralho da semana, o
jogo do bicho, o bingo beneficente, a megasena acumulada... “Coisas de velho”. Quis
escrever um poema mas seus ossos não permitiram, estalaram na poltrona... Desistiu.
Tragou um gole grande da cerveja preta do criado-mudo. Seu último trabalho fora,
simplesmente, cuidar da segurança de um museu. Aposentou-se com um salário decente. O
que mais ansiava? Outro gole de cerveja.

— Mulher, o que vais fazer para o almoço? — perguntou.

— Espera homem, tenha calma!

— Bolas, estou faminto.

— Sempre está faminto!

— Pois então te apresses.

— Vá aos diabos!

De fato sempre estava faminto, idade frouxa aquela, de poucas preocupações... O que a
velha poderia estar preparando? Macarrão? Macarrão era ótimo mas também não seria mal
se fizesse alguns bifes ou uma travessa de panquecas. “Tanto faz”, pensava, “Minha
degustação já não é mais a mesma. Oh juventude, invejada juventude”. O jeito era não se
manter lúcido por muito tempo. Talvez engradar melhor as atividades no tempo. Às
preocupações cercar o cordão da desafetação. E se orgulhar das juntas afinal.

— Traze cerveja quando acabar! — bradou.

— É o mesmo percurso da poltrona até aqui.

— Estou a ver a luta de boxe.

— Estou a preparar o almoço.

Decidiu se levantar, relutou nos primeiros instantes embora logo estivesse pelo corredor;
regressou gloriosamente com suas latinhas de cerveja. Abriu uma e deu alguns goles
enquanto se acomodava direito na almofada de remendos.“Vida miserável!”.
As lutas começaram. Rememorou os tempos de colégio, onde brigava com os colegas por
exigüidades: Um sanduíche, um lápis... Brigas bestas de boca e tapa. Qualquer discussão
era considerada. Não se esquivava a nenhum desaforo, tempos férteis aqueles. Perambular
nas ruas sem preocupação com balbúrdias, brincar o dia inteiro, trepar em árvores. Coisas
bobas que urdem a infância e fazem a maturidade de um homem (se é que algum homem,
um dia, realmente cresce).

— Está pronto! — disse a velha.

— Já vou.

— Vem logo. — insistiu

— Já vou.

— Vai esfriar... — ponderou.

— Já disse que já vou, bolas!

Espreguiçou-se, engoliu o resto da cerveja num experiente trago. Foi ao banheiro. Urinou.
Caminhou o comprido corredor, que com o passar do tempo se tornava mais e mais
comprido. Assentou-se à ponta da mesa. Eram batatas com peixe ensopado. Ambos
molinhos.

— Passa-me a pimenta... precisas comprar mais azeite.

— É.

A ausência do azeite foi levada em conta. Não só ela; alguns floreios, condecorações, sons
da campainha. Iniciou, aí, o décimo assalto.
Estradas Perdidas

Joni se barbeava ouvindo My Way. Tudo límpido em sua mente, o corpo um pouco
cansado pelos exercícios. Desceu até a saleta e se serviu de um Martini com gelo. Acendeu
um cigarro e foi até a varanda. Preparou sua luneta e ficou observando as estrelas inertes
que chispavam no céu. Poucas nuvens, uma atmosfera sonolenta. Marcou um ponto de
referência com os olhos e se fixou ali. Esperava o tempo passar. O tempo passar. Ouviu o
zunido que se aproximava. Era Al flutuando dentro de seu Monza azul marinho. Al abriu a
porta e colocou seu rosto gordo para fora. Brincava com um elástico entre as mãos. Um
velho hábito seu.

— Olá Joni, está preparado?

O compadre arrumou o telescópio e o levou para dentro, voltando em seguida. Entrou no


carro e estendeu a mão para o amigo.

— Tudo pronto. A noite tá fria, hein?

— É melhor assim. Vamos?

Al bateu a porta sem esperar resposta. Ligou o veículo e assentou o pé no acelerador. Ele
mascava um chiclete e dirigia pacientemente. Joni olhava a janela e deixava os olhos
estampados no movimento.

— É sempre na última hora que esse medo vem... — murmurou Al.

— Não sei se é medo ou expectativa, mas é uma sensação desagradável.

— Bom, não tem como dar errado. Dois meses de planejamento não podem falhar.

— Ou podem... não sei. Agora temos que ir até o fim.

Al abriu o porta luvas.

— Pegue a sua.

Joni pegou o revólver metálico. Al retirou o capuz e pôs na cabeça.

— Tem certeza de que não irá se disfarçar?

— Trouxe meus óculos escuros. Além disso, nunca mais voltarei para o negócio.

— É arriscado, haverá câmeras.

Viajo para a Argentina amanhã, não vou ficar aqui por muito tempo.

— Você é louco, um grande idiota.


— Cuide da direção e cale a boca, sua função é essa.

Al era um boa-vida medíocre, dormia onze horas por dia e passava o resto do tempo em
bares e bordéis baratos até acabar com seu dinheiro e energia. Fazia gatunices e voltava ao
ciclo.

Entraram na longa via, ambos calados. Joni pensava em mil coisas enquanto Al tentava se
lembrar do nome de um filme que assistira no fim de semana. Havia vários carros aquela
noite. Muita fiscalização, consequentemente. Também acidentes de beira de estrada.
Estavam a duzentos metros do primeiro posto. Joni maquinava sobre as rotas do enredo
geral. Al tentava pegar um novo chiclete no bolso da camisa.

— Concentre-se, estamos chegando — rosnou Joni.

Al meteu o chiclete na boca, conduzindo o carro para a entrada do lugar. Era um posto
médio, apenas quatro funcionários noturnos e pouca variação de horários. Al abaixou o
gorro na altura do queixo e pegou sua escopeta no banco de trás. Joni colocou os óculos
escuros, pegou o revólver e abriu o carro. Os dois saíram ao mesmo tempo. Enquanto o
primeiro ia para o caixa, Al anunciava o assalto e mandava que os frentistas deitassem no
chão. A tensão sobre Joni aumentava, pôs a arma na cara do caixa possesso e gritou para
que limpasse a registradora. Tirou uma bolsa das costas e disse para ele colocar tudo ali,
sem fazer movimentações bruscas ou tentar heroísmos. O caixa obedeceu. Joni apressava-o,
o suor escorria pelo seu rosto. Quando o caixa ficou liso, ele correu para o carro
lateralmente. Sempre com a arma apontada para o atendente. O homem desmaiou.

— Vamos Al! — atentou Joni, já dentro do carro.

Al entrou e jogou a escopeta no banco traseiro. Arrancaram dali.

— Ufa, esse foi fácil.

— A adrenalina corre nessas horas.

Joni acendeu um cigarro. Tirou os óculos, suas mãos tremiam. Al pegou outro chiclete, pois
o seu já estava sem açúcar. Seguiram para o próximo posto. Falavam de mapas. O
nervosismo pairava em todos os gestos e falas de Joni. Al continuava tentando lembrar o
nome do filme que assistira no fim-de-semana. Lembrou finalmente e esqueceu em seguida.

— Quer um chiclete? — perguntou.

— Não, obrigado.

— Vai te acalmar.

Joni meneou a cabeça negativamente. Estava absorto na próxima tarefa. O próximo posto
era menor, mas tinha um segurança. Avançavam num ritmo constante. A mudez
massacrava Joni, os únicos ruídos partiam do motor e do vento. Chegaram no posto,
perceberam os carros de alguns clientes.

— Al, você está com o canivete?

— Sim.

— Teremos que usá-lo dessa vez. Redobre a astúcia, pegue a carteira dos clientes e
desarme o segurança.

Saíram do carro, Al cuidou do segurança. Fê-lo deitar de bruços, furou os pneus dos carros
dos fregueses. A escopeta sempre imponente e alerta. Pegou as carteiras dos clientes e
também os fez deitar. Um homem de meia idade, entretanto, ousou correr. Al deu um tiro
que tascou o chão e o derrubou pelo susto. Desceu um olhar ameaçador nos funcionários,
famílias e no segurança.

Joni voltou do caixa e chamou Al. Entraram no Monza e desapareceram na pista


novamente.

— Ei Al, temos que ser cuidadosos, a fiscalização deve intensificar.

— Você acha que não sei? Já estou em cima do limite de velocidade, mais um pouco e será
excesso.

— Ótimo. Observe tudo e todos. Falta pouco, falta pouco.

Joni fumou outro cigarro. Al mastigou outro chiclete. O outro posto foi mais fácil, apenas
dois clientes, nenhuma surpresa. Além disso a atendente era belíssima e Joni fez com que
ela tirasse a blusa e mostrasse os seios.

Entraram no carro contentes. O recipiente de pano quase transbordava, a bolsa idem. Al


estava começando a ficar exultante. Joni continuava indiferente. Prolongava dentro de si a
visão daqueles seios redondos e pálidos.

— Estamos chegando, é o último. — disse Al, tirando o amigo de seu devaneio.

— Oi?

— Estamos chegando.

— Ah.

— Preciso dizer que você deve se concentrar?

—Vamos acabar logo com isso. Estou ficando exausto, preciso de um banho quente e de
uma cama macia.
— Não desvie o foco.

— Não estou desviando, só estou me reconfortando. Isso ajuda, sossegue aí.

— Sei... chiclete?

—... Cigarro?

A curva que levava para o último posto era levemente íngreme. Seria o local mais difícil.
Dois seguranças. Ponto de pernoitamento de caminhoneiros. Tumulto de automóveis
entrando e saindo além da fadiga corporal. Contudo os dois homens não se importavam. O
esquema estava concreto em suas cabeças. Muito estudo e observação os levava e
impulsionava para o objetivo final. Uma aliança forte os impelia sem que percebessem.
Apenas indivíduos fartos dos desenganos, das desilusões e das falsas esperanças.
Preparavam-se por dentro e deixavam que o corpo arquitetasse o trabalho projetado por
suas mentes.

Joni era um militar aposentado. Recebia pensão de guerra contra o narcotráfico e


indenização por sequelas psicológicas em um episódio ocorrido na Bolívia com um
coronel. O coronel o torturou por motivos fúteis, um livro erótico. Desde então vivia
recluso, atirando em clubes e indo a raras farras com Al.

Al foi o primeiro a sair do veículo, aquele era o fim, Joni saiu em seguida para lhe dar
apoio. Rapidamente neutralizaram os seguranças, roubaram os motoristas e passageiros e
furaram as rodas de seus carros e caminhões. Deixaram os funcionários sem reação,
totalmente incapacitados perante as armas sedentas e hipnotizadoras. Em menos de três
minutos todos estavam debruçados no chão mal varrido e sujo de óleo. Encarando de
soslaio o homem com um saco de lã na cabeça. Nada podia ser feito. Qualquer reação seria
tolice. Muitos daqueles homens e mulheres ouviram pelo rádio a notícia dos roubos e do
homem ferido em um deles. Corpos estáticos, pensamentos tempestuosos, angústias
abafadas. Subitamente, Joni irrompeu com sua mochila de pano estufada e os bolsos cheios.
Fez um pequeno sinal para Al e os dois desapareceram assim como haviam surgido. As
pessoas respiraram aliviadas. Os poucos minutos da tangência de séculos, terminavam ali.

Joni e Al só precisavam chegar em casa. Comprimiam-se e cavalvagavam nos estofados


conforme o carro embrenhava a pista de terra sem iluminação. Submergiam em vales antes
inimaginados por eles. A emoção pulsando tão rápido quanto seus corações. A rodovia
parecia mais lisa; os fatos, mais coesos. Uma veracidade erigida com o vigor de uma
fortaleza. Os reais nuances de uma convicção sublime, tocável.

— Extraordinário, extraordinário! Agora só precisamos voltar, trocar a placa falsa pela


autêntica e pintar o carro. Muito boa sua ideia. Nunca pensei que daria tão certo. Acho que
é a tal da eterna novidade do mundo. — disse Al quebrando o silêncio.

Joni apenas anuiu.


Voltaram por um percurso totalmente diverso do feito na ida. Não se depararam com
nenhuma fiscalização e ninguém os parou. Talvez porque os policiais estivessem em busca
de um Monza veloz e displicente e não de um carro regular e respeitoso. Adentraram a
garagem de Joni após olharem copiosas vezes para se certificarem de que não haviam sido
seguidos ou se algo suspeito os rondava.

Fecharam o portão e subiram para a cozinha. Sentaram-se e dividiram o dinheiro, os


relógios, celulares, talões de cheque e pertences de ouro. Destinariam o resto para a pintura
do carro e algumas outras despesas menos significantes. Joni acompanhou Al até a porta
dos fundos, que dava acesso à rua menos movimentada. Aguardaram ali o táxi que Al
chamara.

O carro não demorou.

— Adeus Al.

— Adeus Joni. Logo que você voltar da Argentina entrarei em contato.

— Tudo bem, não perca no jogo.

Al sorriu e se foi. As mãos no bolso, a cabeça nas nuvens.

Joni dirigiu-se para a sala. Viajaria para a Argentina no dia seguinte. Seu fascínio jazia nos
raciocínios mais complexos e obscuros. Sentou-se na poltrona enquanto refletia sobre isso.
Abriu uma garrafa de uísque, encheu um copo grande para si mesmo, acendeu um cigarro e
deixou que os olhos transcendessem a janela e as estrelas. Só que o céu ficou vermelho,
eram as sirenes.
Sinergia

E meus dias floresciam assim. Soturnos, palpitavam naqueles mórbidos suspiros e as


evocações surgiam como um ritual. A morte perto. Eu encarando um sólido complexo de
vaidades. Viciando o olho atrás de tudo. Desenhando tirinhas. As paredes e brasões de
desespero subindo. Levitando para o veneno e o propósito para isso. O asfalto cru
perseverando minhas faltas. Mal sabia como a singularidade dos ícones e tráfegos faziam o
preliminar sossego. Ferido e sufocado, levantava. Sumia para mais revanches e vultos de
fumaça. Uma ópera maldita. Mais naturezas e revezes, o reservatório cheio. Cheio dos
sedimentos de mim. As cascas que acabavam efêmeras.

Nasciam presas e eu as procurava. Andando no viés. O súbito desenlace me ouvindo.


Tratando de assoviar e voltar pela ponte do reverso. Não continuavam as palavras.
Pálpebras se debatendo, frouxas. O chicote invisível. Eu sentado no pátio sem conseguir
distinguir as múltiplas navalhas e raios. O campo se restaurando na distância. Sentia,
trucidava.

Jamais pude aproveitar o abandono dos intervalos. Nódoas espalhadas pela pele. Nada era
necessário. Fazia-me enxergar à força e desastres. Quase atropelado. Fios prematuros que
ensaiavam veículos. Arrefecia, crivava fúrias no século de fogo. Pétalas disparando com os
retornos da miragem. Os poros pulsantes. Inclinações, curvas, reincidências. As suspeitas
de tudo. Nem letargo nem acidez. Arrostava-me com a velocidade. Perdurando nas folhas
em branco. Não acreditando em paz nenhuma. Mordiscando um pedaço. A desenvoltura,
selvagem e seca. Cínico, me transferindo à epilepsia das resignações. Às coleiras das
sarjetas.

Inutilizo-me embaixo de plataformas. Encostado na pele da consciência. Refaço a tortura


que ganha autonomia. Pé ante pé ante pé. Nenhuma suavidade, nenhum poeta. As sementes
do subterrâneo, ressequidas no ventre linear. Simulo meu próprio efeito permutando as
pessoas-obstáculos. Vendo as silhuetas que não fitam. O mecanismo dos seres vencidos.
Navegando numa praça. No espaço emancipado da botique dos desejos. Ultrapassando a
agonia. Os mestres dividem a ignorância. Dúvidas atrás de vidros. Garotinho que passa,
olha, sorri. Isso até que voe em um latão e estraçalhe uma sacola. Memórias no maremoto.
Estampam-se confusões. Coceira que arde todas as chagas. Drásticas corrosões inflamando
o movimento. Paciência. Paciência para ter pena ou achar outro boteco. O reflexo abre uma
nuvem. A pluma da lassidão. Primaveras de portais. Sou ilha. Vazia atmosfera.
Ininteligível cerimônia das coisas. Vacila-me uma centelha. E disparo atrás do ônibus,
depois da moto, depois, arfante, me persigo. Horizontes acossados. Fuligem, colunas cegas,
lentes se despindo no átimo senil. A região placebo. A existência é mesmo esquisita.
Durmo quente no capim só palha após os ralampeios e o banho gratuito. O cantinho enxuga
e aquece. Ainda me chamam de vagabundo, peralta, andaluz.
Tateando Escapatórias

“Na grande balança da fortuna, raramente pára o fiel; deves subir ou descer; deves dominar
e ganhar, ou perder e servir. Deves sofrer ou triunfar; deves ser bigorna ou martelo”
Goethe.

— Queria desistir disso, sabe?

— Isso é coisa de bicha.

— Coisa de bicha nada, não vale a pena.

— Como você sabe?

— Até hoje não valeu.

— Sei, pede mais uma pinga, eu pago.

— Não é questão de entornar, é mais sério que isso. Como se todo o resto dependesse da
resolução desse ponto.

— E lá vamos nós...

— Olha cara, cê devia considerar melhor as coisas.

— Ficar cismado com elas não adianta. E como você pensa em fazer?

— Sei lá: arma, prédio, um pesadão sobre rodas. Nada de coisa trágica, complicação.

— Dose isso. Tem certeza?

— Tenho. Essas fórmulas já não causam variável, retorno, coisa nenhuma.

— Cê tá exagerando, amanhã te mostro como compensa continuar tal qual. Acha que tá
sendo exemplo, tá sendo burro.

— Sei.

— Primeiro que não entendo sequer por que cê decidiu isso.

— Conclusões demais.

— De que tipo?

— Do tipo que não te interessa.

— E eu tentando ajudar...
— Alguns adoram se intrometer...

— ...

— Quem é amigo de todo mundo não é amigo de ninguém.

— Não interessa em quais circunstâncias sua vida resulta, tá se precipitando.

— Acho que estou perdendo meu tempo. — Martins joga uma nota de dez na mesa. Põem
um cigarro na boca, apruma-se.

— Espere... Não vou deixar cê sair assim. — Danilo levanta.

— Desculpe, só vou para algum underground desconhecido.

E Martins não passou da dimensão daquele dia. Há muito descontrole por trás das atitudes.
As certezas assustam, os planos não têm esperança, esperar aflige e sonhar é algo tão
repetitivo e sonolento quanto uma composição de sutilezas embotadas pela dor.
Martins via algo além, algo inagarrável na condição de corpo e tempo. Um mecanismo
mais perfeito que o dos homens. Uma ilusão mais concisa que a das tintas e das formas.
Uma imensidão mais diáfana que a imensidão dos paraísos. Um templo isolado que podia
dissolvê-lo. Conforto. Deslocamento. Letargia. A confusão era, para ele, o que manipulava
a simultaneidade. Fez currículos e foi, finalmente, procurar um emprego.
Destino Ausente

Ligou o telefone. Chamou, chamou sem resposta. Desligou, tocou para outro, a mesma
coisa. Sempre assim, ninguém do outro lado do fio. A sala estática, aquela pequena esfera
de isolamento e monotonia. Calvin não tentaria mais. Ao seu redor: a mesa, a xícara
fumegante, o cachorro dormindo no carpete, lamparinas amarelas, televisão desligada, rádio
desligado. O derradeiro momento de esperança se dissolvia ali.

Ficou cogitando sobre os sons eletrônicos das aparelhagens, milhares de sistemas lutando
para a comunicação imediata. Todos falíveis. Falíveis em suas áureas de superficialidade.

Desejava ouvir uma voz humana, um amigo. Qualquer coisa que proporcionasse o vínculo
do contato.

Odiou todos. Lamentou. Arrependeu-se.

Afinal, por que os outros não poderiam se atarefar? Não era culpa deles. Literalmente todos
os outros eram inocentes.

Acendeu um cigarro e foi para a janela, a sensação da última página lida. Comprara um
romance no shopping aquela manhã. Acabara o romance no mesmo dia. Fatalmente no
mesmo dia.

Labaredas de fumaça retornando com o vento frio. Tédio, ansiedade, rupturas


desconhecidas com a existência pétrea.

Fechou a janela, fechou os olhos, fechou-se na imaginação das oportunidades para aquela
noite. Não precisava de ninguém para se entreter. Deveria ter comprado um quebra-cabeça
de manhã. O quebra-cabeça de mil peças vendido na loja de brinquedos do shopping.
Sentiu que os dedos estavam queimando. Apagou o cigarro na parede mesmo. Morava
sozinho, não precisava dar satisfações a ninguém. Rumou resignadamente de volta à mesa.
Bebeu o resto do líquido da xícara fumegante, café. Café forte e amargo. Espreguiçou-se,
bocejou, olhou para o cachorro. Para o relógio. Nada.

Tudo acabava na constatação de estar desocupado. Eram nesses conflitos sutis com a
liberdade que conhecia as pequenas prisões cotidianas. Foi ao banheiro, despiu-se. Um
banho quente, um banho bom. Enxugou-se, vestiu o roupão, voltou para sala. A sala vazia,
imersa em suas mobílias, seus tapumes, seus focos de luz e escuridão. Suspirou enquanto
contemplava o telefone. Mudo, anêmico... estirado num canto, sem função.

Quando era garoto os dias passavam com uma velocidade cruel, num passe de mágica. Ah!
A infância... os jogos bobos, os jogos disputados com sangue e alma.

Depois... Ah, depois tudo simplesmente acontecia. Exército, faculdade, trabalho,


casamento, filhos, uma viagem ou outra. Um natal bêbado, uma discussãozinha aqui outra
acolá, separação, divisão de bens. O único objetivo era continuar respirando. Visualizar as
coisas com uma lucidez mórbida, uma lucidez visceral e hipotética.
Sentiu aquele aperto profundo da angústia. Quis se desvencilhar, não era permitido.

Começou a chover, uma garoa fina, leve... A ex-mulher devia estar na igreja. Os filhos, dois
rapazes, no ginásio. Era separado da mulher há dois anos. Falavam apenas o necessário.

Não ligava muito para os moleques, a mãe os colocara contra ele. Nos primeiros dias foi
difícil, chegou a ficar deprimido. Depois se acostumou. Agora tinham um relacionamento
distante, formal.

Os garotos faziam-no rememorar a juventude. A juventude repleta de descobertas, filmes,


cerveja, praças, quadrinhos, a juventude de namoradas. A juventude feliz.

Queria ainda ter os sonhos da juventude...

Escalar montanhas, acampar, praticar mergulho nos oceanos, caçar borboletas, pilotar
monomotores celestes, ter uma fazenda, criar ovelhas, descansar numa cadeira de balanço
eterna, ver o crepúsculo de uma colina de neve, atravessar o país de carona, conhecer as
estrelas através de um grande telescópio, cavalgar por dunas de areia, virar andarilho.

Não tinha mais tempo. Não tinha mais paciência. Perdera um pedacinho da vida com todas
as preocupações, os compromissos, os deveres, o desespero cíclico.

Toda a fortuna e a aventura eram feitas de ilusão. Construídas no oásis da ilusão.

As veredas todas terminavam num ciclo paralítico de glórias falsas. Num terreno dominado
por fantasmas e memórias.

Acendeu outro cigarro, aprumou-se, levantou. Uma golfada de fumaça no ar. Passos em
direção ao telefone.

Ligou o telefone. Chamou, chamou sem resposta. Desligou, tocou para outro, a mesma
coisa. Sempre assim, ninguém do outro lado do fio.
Kelly

Fui para o apartamento de metrô, levando dois livros de contos, uns cinco maços de cigarro,
camisinhas e umas trouxas de roupa na maleta improvisada, encarando as janelas que
voavam sobre os trilhos e relaxando com os olhos semicerrados e febris após um maldito
dia na linha de produção. O ar pestilento do desdém de todos estava insuportável, fiquei
dando umas olhadelas para cima, na eletricidade. Chegou um fiscal e apontou para a placa
de não fume ao meu lado. Mostrei-lhe que não estava e recebi um sorrisinho repreensor de
volta. O trem subterrâneo, em bulício, chiou, freou e parou na minha estação, saí em
seguida com uma mão metida nas calças surradas do jeans preto e a outra carregando a
maleta atrás das costas. As pessoas que freqüentavam o metrô eram um tanto excêntricas,
via-se de tudo... Desde senhores carregando seus guarda-chuvas e indo para os museus
centrais até mendigos de boina xadrez admirando as frases nos muros e as pichações
iminentes. Parei em frente de uma taverna perto dos túneis subterrâneos, logo à frente da
escadaria do metrô, no exato horário de erupção da hora do rush, adentrei a espelunca e
pedi uma cerveja e um cachorro-quente com mostarda. Era incrível a sensação que se sentia
sob os pés, advinda do formigueiro humano todo que se espalhava no subsolo. Fiquei lá
mastigando e encarando os outros utentes do bar, que não consistiam em mais que alguns
operários de meia-idade que tragavam vodka e discutiam sobre golpes financeiros e uma
mulher com trajes bordô que bebia conhaque. O bafo que emanava do lugar era gorduroso e
forte, a mulher chegou ao meu lado após algumas tentativas de “relacionamento” com os
operários e murmurou um preço no meu ouvido, escancarei a boca num riso, ela parecia
estar sob os efeitos de alguma droga e ficamos nos apalpando e beijando sem dizer palavra.
Os operários pareciam arrependidos e já não discutiam mais nada, apenas bebiam e se
entreolhavam com fisionomias melancólicas.

O balconista me viu com a garota e, todo rabugento, deixou claro que aquilo não era um
prostíbulo e nos expulsou dali resmungando o preço e apontando a saída, meti umas notas
amassadas no balcão e saímos. Eu carregava a mala numa mão e seguia a garota com a
outra; íamos vacilando pelos becos que ela me levava, furando o aglomerado todo. Já havia
anoitecido e começava a esfriar. Olhei no relógio e gemi que tínhamos que fazer logo.
Quando ela me perguntou aonde tinha que ir, disse que no apartamento de um colega que
havia acabado de sair da cadeia. Ela engomou o decote, levantou as coxas e as fechou na
minha perna esquerda (aquilo me esquentou soberbamente). “Vamos pegar um táxi”
sussurrei já meio dopado pelo climinha dantesco. Meu sotaque era dos piores. Fiz sinal para
o primeiro veículo esquálido que vi e num murmurejo indiquei o bairro do meu colega para
o latino que dirigia o táxi, ziguezagueando por aqui e por ali. Falei “que se ele me enrolasse
pelos emaranhados das ruas eu não pagaria a diferença”. Ele me olhou incisivamente e
disse que não era nenhum charlatão.

“Da onde você é?” — perguntei para a garota sem ouvir a resposta. “Hum”. “É aqui, pode
parar aqui... Aqui porra” bradei para o taxista que parecia me ignorar de propósito. “São
onze dólares” disse o homem, indiferente, batendo o dedo três vezes no taxímetro “É, vejo
que são.” — joguei o preço e uma moeda de um real de gorjeta — O latino arrancou o
carro sem dar a mínima e sumiu no meio do trânsito conturbado.

Pulamos de lá, eu com minha mala e uma vontade desenfreada de trepar, a garota com seu
jeitinho desengonçado e terno... Mexendo-se um pouco e tremendo levemente o lábio
inferior. “Tenho que retocar a maquilagem”. Fiquei olhando e pensando no que ela estava
armando. “Vamos andando” — Eu disse. Ela fechou o espelhinho oval. Fomos
perambulando pelos cantos, quase encostados no muro, gargalando e gargalhando.
“Compra alguma coisa de beber” ela disse em tom zombeteiro. “Olha, vamos logo no
apartamento desse colega e lá nós vemos isso. Já estou meio atrasado”. Na verdade estava
umas cinco horas atrasado. Havia resolvido umas coisas e ia vagando pela existência nesse
meio-tempo de marasmo cinzento.

“Você tá dopada?” “Nada, só uns drinks” “Tá, com alucinógenos você quer dizer”. Larguei
a mala no chão da rua deserta, que vaporava frialdade e penúria e abracei-a ...Começando a
beijar e morder seu pescoço e tateando o vestido enrugado. Ela falou alguma coisa sobre
camisinha, estávamos na ruela mais decrépita da cidade e numa luminosidade meio azulada
e úmida. Insalubre. Abri a mala com uma patada no zíper e tirei de lá uma embalagem.
Meti a camisinha no bolso da jaqueta, peguei um cigarro do maço que carregava na
algibeira e ofereci outro a ela, que recusou polidamente. Tempos idos, eu e minhas atitudes
niilistas e fartas de tudo. “É aqui o alojamento dos vira-latas”.

Galgamos as escadas do apartamento e, no final, soltei uma espécie de shrubws para


anunciar minha chegada. Abriram, eu inclinei a mão para uns conhecidos e todo esse
alvoroço que são os encontros. Consegui escapar por um tempo e levei a garota para o
quarto vago para minha pernoitada. Tranquei a porta, pus a maleta no chão e sentei na cama
com ela. Começamos a nos acariciar e, quando acabamos, caímos cada um em seu canto,
esbaforidos, úmidos e esgotados. Devo ter cochilado, não lembro. “Tá, acabou a
brincadeira... Levanta desse monte de saliva que eu pego algo para você beber” disse eu
meio que perplexo. Ela não reagiu. Vesti a calça e corri para a maçaneta. “Ei, me ajudem
aqui!” berrei, irritado. “Que droga tá acontecendo?” perguntou um adolescente arruaceiro
que cheirava a leite e andava conosco ás vezes para filar bebida e baseados. “Entrem logo,
o que eu faço numa situação dessas?” “Calma , calma...” moderou outro conhecido indo até
a cama e apertando os pulsos da garota no colchão e assoprando um zunido de silêncio.
Tudo isso em uns vinte segundos, minha calça ficou bamba e tive que afivelar o cinto. “Ela
está bem?” perguntei. “Sim, sim... Foi algo leve, ela só entrou numa espécie de nirvana”
gracejou ele “ só que numa convulsão a poucas roupas”. Ela estava com uma camisa grande
e seis pessoas, a essa altura, já estavam no quarto. “Saiam daqui!”, zombou ela.

“Olha, vou lavar o rosto” disse sem esperar resposta de ninguém, me adiantando para a pia
no banheiro ao lado do quarto. Todos saíram aos risinhos e Kelly, esse era o nome dela,
ficou com a mão opressa nos olhos com vergonha de tudo. Regressei com uma toalha
enrolada entre os ombros e acendi outro cigarro. “O que você guarda aí dentro?” ela me
perguntou apontando para mala, já recomposta. “Só o necessário para minha estadia, eu não
sou daqui.” Abri a mala. “Livros, maços de cigarro, uma escova de dentes, camisinhas e
umas roupas. “Vê?”... Sorvi mais um pouco do cigarro e deixei que a fumaça esvaecesse
pelo nariz... “Por que pergunta?”, “ Não sei, já que não conheço você. Ao menos seria
interessante conhecer seus hábitos. Que livros são esses?”. Mostrei os dois livros de contos:
Frederick Forsyth e Edgar Allan Poe. Ela leu as sinopses inteiras e bocejou. “Interessante”
ela parecia o tipo que nunca havia lido muitos livros durante toda a vida, livros. “Se eu lhes
desse você os leria?” “Provavelmente não” “Compreendo... Vou pegar uma bebida para
nós” ela se aproximou e afagou meu cabelo e minha face, sua mão era macia. “Faça isso...
faça isso. Vou ficar mais um pouco por aqui”, fumei demoradamente o resto do cigarro,
joguei ele pela janela que ladeava uma das paredes. Ela continuava me fazendo carícias, eu
poderia ficar o resto da minha existência nesse momento. Finalmente perguntei: “O que
você bebe? Só?” Vesti minha blusa e saí do quarto aos assobios.

Sete caras na saleta assistindo a televisão muda, escutando os belos cânticos que emanavam
dos blues contemporâneos, bêbedos, falando besteira e comendo batatas fritas. “Ei
garanhão” disse Romão com sua voz estúpida cheirando a leite e álcool. “Eaí” Eu falei
brandamente para todos “...Onde estão as bebidas?” “Ora, na cozinha... Quer que eu o
acompanhe?” zombou outro. Fui para cozinha e peguei as garrafas de soda e rum e dois
copos. Voltei para o quarto, a garota estava deitada olhando para o teto com as retinas
sonolentas.

“Acho que esqueci de perguntar seu nome”, “Nomes não são muito importantes”, eu disse,
“É, de fato não são”, concordou Kelly.
Bar Integração

— Eu estou bem.

— Na verdade não parece.

— Meu organismo já se adaptou... Agora tem barreiras naturais.

— E ontem, chegou e foi para a cama?

— Não... Entrei em casa, bebi um bule de café. Escutei os grilos, depois os galos, depois
minha mãe. Ela berrava, dizia como eu estava cheirando a álcool, apontava o dedo pro meu
nariz. Coisas do tipo. Fui pro sofá, liguei a tevê, apaguei instantaneamente.

— Hum.

— Pica-pau, sabe?

— Sei.

— Agora tô aqui pra fazer tudo de novo.

— A vida é estranha em perspectivas, terei que me conformar. O difícil é ligar os pontos


desconexos. Arrumar as opções. As poções. Encontrar estímulo pra tudo. Variar os ângulos.
Suportar. Manter o rosto levantado. Isso, ou algo que o valha. Acho que estou sendo
introspectivo. Mas depois a introspecção explode.

— É. Vou dar em cima daquela mulher com um pêlo na bochecha.

— Vai lá.
Mesosfera

Continuo aqui olhando para as formigas.

Desço milhares de escadas, pego um pedaço de pizza e uma lata de tônica... Tudo para
acreditar que um dia impõem pequenas obrigações. Para acreditar que há fatores de apatia
que interferem na imaginação. Para acreditar que os climas e as inércias causam massacres.
Rumino a pasta de queijo com a boca, trago grandes goles de soma. Sinto-me a realização
do gesto. O que faço se tornará o ícone monumental de minha personalidade.

Continuo aqui olhando para as formigas.

Vou até a pia. Tudo se digere no processo natural das entranhas, do intestino grosso. Lavo
os objetos até lhes alterar a textura. A torneira jorrando. Meus dedos gelados esfregando a
louça sem nenhum avanço concreto. Cheiram a detergente. Meus pensamentos estão ocos e
não me importo. Enxergo através da muralha do medo. Das lentes do óculos. Os detetives
passando, o banqueiros dentro dos carros, os guarda-chuvas que abrem e fecham. A retórica
não possui nenhuma sintonia.

Não presentearei mais ninguém com fitas coloridas de entusiasmo por ora. Os cursos
continuarão os mesmos. A jaula sublime da organização absoluta anulará todas as coisas.
Menos o eu e o você. Isso é impossível. O portão de ferro range como meus traumas
descompassados. Emoldurei a coletânea das maneiras em respeito aos homens. As luvas
não aceitam minhas mãos. As bengalas são pequenas. A balança não conhece meu novo
peso. O espelho distorce o que me tornei. O que me tornei? Sei que me tornei.

Continuo aqui olhando para as formigas.

Despedaço um algoritmo. As poeiras também se foram: envelhecerão, censurarão outros...


Os raios intensos deram trégua. Não sinto nenhuma vida por perto. Não tenho nenhuma
lágrima dentro de mim. Passo o pano gasto nos últimos talheres. Volto para a mesa. A mesa
que fica mil escadas acima. A mesa ao lado da janela do pico do mundo. Subo. Subo.
Antecipo a projeção das penumbras. Quase perto da antena noto uma lágrima dentro de
mim.

Chego. Sento na velha cadeira. Mensuro as rendas das consciências. Estudo suas formas.
Defendendo os mil pareceres da minha vertigem. Continuo aqui com esse velho bloco
embaixo das unhas pobres. Impossibilitado de alinhar qualquer coisa. Tossindo, com dores
nas costas, com uma atitude capaz das maiores balbúrdias imóveis. Racho. Com a iniciativa
do volante. Com um gosto na língua. Com uma carreira no peito. Uma careta. Com uma
loção envolvendo meu pescoço, nuca, ombros. Com uma asa pregada no chão. Desprendo.

Continuo aqui olhando para as formigas.

Depois vou dormir e não penso mais nelas. Uma asa pende rente ao teto.
Dentro de Si

As possibilidades eram céleres e massacrantes. Por isso era rude, feria, mantinha uma
distância instantânea das pessoas, das relações. O eufemismo, o sarcasmo, a indiferença
formavam a estrutura da única linguagem divertida. Tinha a pele abatida, o rosto rígido
com expressões amargas, o nariz adunco. Olhos leitosos pela catarata. Era viciado em
analgésicos, forjava receitas todos os sábados com um criminoso médico. Trabalhava como
engenheiro de veículos em uma grande empresa e ganhava um bom dinheiro com isso.
Chegou em casa, já no hall engoliu uma pílula e tirou os sapatos. Mergulhou-se naquelas
luzes que davam a impressão de um lugar escuro e sóbrio. Encheu a banheira de água
gelada. Deixou o terno, o cachecol, o suéter preto e o resto dos tecidos que lhe cobriam o
corpo em cima da pia. Entrou no túmulo branco de gelo e esticou as pernas. O corpo
dormente. Fazia aquilo apenas para sair de lá depois de um tempo, enrolar-se em uma
toalha quente e macia e fingir que nada estava acontecendo, nada acontecendo em lugar
nenhum. Apenas desertos e seres que respiravam para poderem funcionar como máquinas.
Máquinas que idolatravam, transavam e morriam. Foi para o quarto e vestiu o roupão. Foi
para a cozinha e começou a remexer as correspondências que estavam sobre a mesa. Leu
apenas uma. Escreveu códigos em um papel e o lacrou. O relógio tilintava e afirmava a
madrugada ríspida. Seu bip tocava, Fez "Sim" com a cabeça e enviou a mensagem para as
paredes. Um serviço que se aproximava. A moradia enrijecia de maneira insossa dentro de
seu cérebro. Acendeu a lareira e se sentou na poltrona imensa para se aquecer. Não tremia
mais, nem sofria. Não sentia absolutamente nada definido, definitivo. Uma frivolidade
percorreu seus membros. A frivolidade durava um pequeno instante. Um momento menor
que a percepção futura de si própria. A campainha soou. Ele se levantou, abriu a porta com
uma solidez de movimentos. Era o serviço. O simples e vazio serviço concretizado numa
negociação instintiva.

A mulher entrou, ela abriu a boca, falou.

Deu a resposta a que se viu obrigado:

— Entre, não quero que pegue um resfriado.

— Obrigada Tom, você está simpático hoje. — Ela deu um risinho.

Um maldito e insignificante risinho.

— Lógico. Agora vamos. Não quero que você gaste meu tempo com suas conveniências.

Foram para o quarto. O serviço se consumou, a mulher foi embora. A bolsinha de couro
mais cheia. Tom voltou para a banheira. Engoliu uma pílula. Foi para a cama e dormiu.
Dormiu pois sabia que acordaria. Abriria os olhos para mais uma sucessão qualquer de atos
e palavras.
·
Tom despertou instantaneamente com o barulho do despertador. Desligou-o. Foi para a
cozinha e preparou uma grande quantidade de café. Encheu uma, duas xícaras sorvidas por
necessidade.

Escovou os dentes. Ingeriu uma pílula. Pôs uma roupa e saiu, um caminho que o levava
direto para o trabalho. Um caminho visto com tristeza e tédio através das translúcidas
janelas de seu Jaguar cinquenta e oito. Entrou na empresa. Alguns ainda o
cumprimentavam, ele ignorava. Entrou no escritório e se esquivou para analisar os
requisitos do projeto em que estava trabalhando. Bocejou, espiou sonsamente as paredes do
escritório e se deixou absorver pelo trabalho. A porta foi aberta. Um raio caiu em sua
concentração e a esmigalhou. Mirou a porta com um olhar psicótico. Era seu patrão.

— O que você quer? — perguntou, aborrecido.

— Vim conferir seus progressos no novo projeto que lhe foi incumbido.

— E o conferirá em breve se não voltar aqui outra vez até que ele esteja pronto.

O patrão saiu e bateu a porta. Conhecia o gênio de Tom, se acostumara. Tinha que aturar
esse tipo de comportamento pela simples razão de Tom ser o melhor no que fazia. Não
havia ninguém que o substituísse no cargo que ocupava nem o superasse em criatividade,
lógica e estética. Sua experiência lhe dava certas liberdades. O patrão possuia muitas
ocupações nesse dia e logo se esqueceu das solitárias conjecturas de Tom.

Tom suspirou e voltou ao trabalho. Ninguém mais entrou em seu escritório pela manhã e
ele pôde fazer ótimos avanços. Chegou o horário do almoço, Tom saiu por quinze minutos,
comeu um lanche triangular e bebeu uma tônica. Voltou, trabalhou até dezenove horas.
Uma hora a mais do que lhe pagavam. Acabou o projeto no qual se dedicava há meses.
Organizou-o e colocou-o dentro da primeira gaveta de sua escrivaninha. Trancou-a e
guardou a chave no bolso do paletó. Fechou o escritório e o trancou. Guardou seu molho de
chaves no mesmo bolso.

Seus analgésicos acabaram, seu nervosismo e concentração de ferro fizeram com que os
consumisse todos durante a tarde sem sequer perceber. Essa constatação fez com que seu
raciocínio o abandonasse e que uma angústia profunda se apossasse de seus sentidos. As
pernas corriam para o carro, as mãos apalpavam o bolso do paletó, o Jaguar ronronava
pelas ruas quase congestionadas. Uma viatura o deteve. As artérias pulsando, explodindo de
ansiedade. Tom olhava a viatura de esguelha, pelo espelho retrovisor. O suor escorria pela
sua cabeça, inundava todo seu corpo. Um guarda alto e de faces vermelhas desceu e se
aproximou do Jaguar. Trazia na mão esquerda uma lanterna e a apontava exatamente na
cabeça de Tom e, na mão esquerda, a prontidão para sacar o revólver. Enfim chegou, ficou
diante da porta:

—Documentos — Anunciou com um filete de orgulho e impiedade.

— Estou sem.
O guarda ruborizou, atingindo um vermelho chispante.

— Sem documentos?

Tom explicou com pressa que o veículo era de um amigo que estava viajando... Não
acreditava naquilo. Pensou em como o uniforme era falho ao camuflar a alienação e a
servilidade gratuita.

— Saia do carro, vou levá-lo. Mãos na cabeça, poderá contatar um advogado mais tarde.

Tom permaneceu estático. Levou, em vão, as mãos para o vidrinho vazio de analgésicos. O
guarda interpretou aquilo como um gesto muito brusco e repentino. Abriu a porta num
átimo e algemou Tom assistido por um companheiro.

— Vamos seu inútil, ande, ande! — dizia enquanto o levava para o carro de sirenes
escandalosas e brilhantes.

O guarda o jogou no banco de trás. Entrou, ligou o carro e pegou novamente a estrada.
Agora enveredando a esquina que os levava à delegacia, guinchando o Jaguar logo atrás.
Tom não dizia nada, apenas olhava o percurso sem interesse. Azar, essa a palavra. Voltou a
si numa cela insalubre e tomada por trevas. Deixaram-no sentado em uma banqueta de
concreto após telefonar, em vão, para amigos (que não atenderam às chamadas) e receber o
aviso de que os defensores públicos só iriam vê-lo pela manhã. Verificou os bolsos, tinham
retirado tudo de dentro deles. Tom estava sem documentos, e o carro no nome de pessoa
jurídica, a empresa fechada e o delegado sem paciência até amanhã, até amanhã...

Tom olhou para o corredor por trás das grades. Havia mais celas, mais homens. Todo tipo
de homens. "A noite lá fora estava sendo tumultuada" pensou Tom, cogitava sobre
pormenores irrelevantes. "Isso aqui está muito lotado e perigoso". "Queria estar em casa,
queria acomodar a cabeça em um grande travesseiro e apagar". "Quando alguém virá
esclarecer as coisas, afinal? Quando alguém virá? Alguém tem que vir!". Tom bateu nas
grades para fazer barulho. Bradou que exigia falar com seu advogado imediatamente, que
tinha direito a fazer uma ligação, que se confundiram, que queria ver o delegado. Uma onda
de risos desatou. Um homem da cela ao lado respondeu num tom satírico que só veria o
delegado pela manhã, se tivesse sorte e aguardasse comportado no final da fila. Mais
gargalhadas.

Toda aquela atmosfera era horrível, fedia. Não sabia se localizar entre as vozes e barulhos.
Soterrado naquele caos que lhe era estranho. Tudo se passara como que transcendendo a
imaginação. Sem nenhuma separação entre o real e o irreal. Tom parou de bater nas grades
e berrar à medida que percebia a inutilidade de seu desespero. Largou as barras de ferro.
Sentou-se na bancada de concreto, cabisbaixo. Os minutos se passavam com o aterrorizante
peso de eternidades. Eternidades partilhadas com náusea e inépcia. Limitou-se dentro de si.
Assim, ao menos, não prestava atenção nas circunstâncias exteriores.

Um guarda abriu a porta no final do corredor. Trazia dois adolescentes algemados. Um


silêncio apreensivo infundiu-se no ambiente.
— Por favor, houve algum engano. Deixe-me conversar com o delegado. — Suplicou Tom,
escolhendo bem as palavras.

— Não cometemos enganos — Retrucou o guarda com desprezo. Afastando-se e saindo.

A porta do final do corredor foi fechada. Extinguiu-se o facho de luz que cobrira o lugar
momentaneamente.

Tom sentou-se de novo. A crise irrompida pela ausência de analgésicos aumentava.


Começou a suar frio. A cabeça doía-lhe. Punhaladas invisíveis afligiam todas as partes de
seu corpo. Precisava de seu remédio. Precisava tanto de lucidez! A agitação recomeçou
dentro das celas. Tom não mais conseguia segregar a agitação de sua mente da agitação
daqueles homens. Os adolescentes olhavam-no curiosos:

— Você está bem vovô? — Questionou um deles.

Tom não respondeu. Como poderia dizer alguma coisa? Como poderia fazer alguma coisa?
Um medo se apossou de seu espírito. Um medo singular, estrangeiro. Uma bruma que não
podia entender nem espantar. Olhava seu aspecto glacial. Estudava seus efeitos retrógrados.
Imitava seus labirintos. Nada disso o levava a algum resultado. Os presos ficavam a
moscar, ninguém era tirado dali. Tom ainda viu as cores da aurora chisparem em uma das
janelinhas do teto. Encostou a cabeça na parede. Desfaleceu simplesmente. Entorpecido,
cansado e sem nenhuma nova expectativa para aquele dia. O alvoroço que o possuíra se
transformara em apatia e derrota. A esperança e seus falsos pilares ficavam cada vez mais
nítidos nele. Foi acordado por um guarda. Reparou em como a cadeia estava mais vazia
pela manhã. Alguns pássaros cantavam.

— Levante-se, vire-se. — Imperou o guarda. Passou as pulseiras da algema pelas suas


mãos e as prendeu. - Agora venha comigo.

Tom estava com o corpo encharcado. Olhos vermelhos. Mal podia esconder toda dor que
corria sob sua pele. Teve uma tremenda dificuldade para se levantar. Caminhar parecia uma
espécie de tortura medieval. Bufava freneticamente. Os membros, ávidos, tentavam retrair
aquela sensação tenebrosa e suprema. Maior que ele. A dor brutalmente esquadrinhada.
Disseminada sem conhecer barreiras. Pulsando, apelando, cutucando, oprimindo. Tom
pensou que iria desmaiar novamente. O coração disparava. O ar lhe faltava. Se tivesse
começado o tratamento de abstinência no início não teria que se preocupar com esse tipo de
coisa. Tivera um acidente no ginásio enquanto jogava basquete. Vários músculos de sua
lombar ficaram desfibrados. Foi submetido a uma cirurgia complexa e arriscada.
Recuperou-se. Odiara a terapia. Tudo era demorado e causava seqüelas horríveis. Só
conseguia andar decentemente com a ajuda dos analgésicos. Abandonou a terapia e todo
tratamento de reabilitação em poucas semanas. Começou a tomar analgésicos cada vez
mais fortes. Os pais o chamavam de imbecil.

Detestou a recordação. Gritou alto.

— O que você tem? — Perguntou o guarda, enfurecendo-se.


— Há alguma farmácia aqui perto?

— Sim, há uma a dois quarteirões daqui. Você precisa de alguma coisa?

— Compre quatro cartelas de analgésicos senão eu morro. Rápido, a receita está no bolso
do meu paletó.

— Olha...

— Rápido!

— Certo, se for algum truque você se arrependerá.

O guarda o deixou no escritório do delegado e retirou suas algemas. Chamou um


companheiro para vigiar a sala e saiu. Não era um escritório muito receptivo. Uma pessoa
com claustrofobia não poderia ficar ali por muito tempo. O delegado era um sujeito obeso,
de meia idade. Usava um bigodinho e deixava alguns retratos da família, papéis e canetas
em sua mesa. Falava no telefone. Olhou para Tom, disse algumas instruções pelo telefone e
desligou.

— Tom Souza, hein? Já resolvemos tudo, o carro era rastreado. Pode ir.

— É compreensível. — redargüiu Tom.

— Na verdade temos que aclarar mais uma coisinha... Importa-se?

— E o do que se trata essa coisinha?

— Oh, nada sério. É só que... — o delegado inclinou a cabeça e adquiriu feições de


suspense — não gostamos muito de boatos sobre a polícia, Sr. Tom. E você não deve gostar
de boatos sobre as drogas que consegue por meios ilícitos. Estou me fazendo entender?

— Sei.

— Ótimo. Pode sair, espero que nossa conversa tenha sido proveitosa.

— Creio que foi bastante produtiva.

O delegado se virou para o policial que vigiava a sala.

— Policial, você faria a gentileza de acompanhar esse cavalheiro até o seu carro e entregar-
lhe tudo que estava no seu paletó?

Tom levantou-se com descomunal dificuldade. O guarda devolveu-lhe as duas chaves e a


carteira apenas com os cartões. Era uma penitenciária pequena e decrépita. Tom sentia
dores cada vez mais agudas. Ficou em frente ao seu carro enquanto esperava o guarda que
fora buscar seus comprimidos. Quando sentiu o ápice da dor viu o guarda correndo com o
medicamento.

— Aqui está senhor, são duzentas pratas.

Tom pegou os comprimidos, colocou cinco de uma vez dentro da boca. Ligou o carro.

— Cobre do delegado. — Respondeu, indiferente — Meu dinheiro está com ele.

E disparou na rua plana com seu Jaguar. Lembrou após alguns instantes, ainda, que só tinha
cem pratas na carteira e sorriu de si para si. A dor amenizava. Era muito bom se sentir ele
novamente.
Perdi

Era noite avançada quando retornei à minha casa, havia bebido alguns copos de uísque a
mais e não me aguentava sobre as botas de couro, já surradas pela terra e pelas longas
caminhadas do destino usurpador. Desabotoei a camiseta enxadrezada, afrouxei o lenço e o
cinto e me deixei esparramar no leito que minha mãe havia preparado zelosamente antes de
se deitar. Eram curtas as minhas horas de sono e nessa noite em específico eu havia bebido
além do aconselhável. Irritava-me o corpo e a mente a vida miserável que levava e o grande
labor que me exigiam as despesas. Repousei a cabeça sobre o travesseiro, mas o sono
demorou a chegar. Pensei na escassez de comida e na exiguidade da colheita que os maus
tempos nos traziam há meses. Os impostos aumentavam desenfreadamente e sustentar os
poucos alqueires de terra da família era tarefa árdua para meus solitários ombros. Meu pai
havia morrido de tuberculose há poucos meses e meus dois irmãos estavam presos pelo
envolvimento em um tiroteio; mesquinharias de bar. Nosso pedaço de terra (que perdera
seu pio empreendedor) passava por pavorosas dificuldades. Minha família era formada
apenas por mim e minha mãe, já idosa e doente.

Precisava fazer algo logo para reverter essa situação, as dívidas se acumulavam e os
alimentos estavam cada vez mais caros e ruins. Minha mãe precisava de remédios e eu não
tinha como comprá-los. Perambulava, enfim, entre a embriaguez e a penúria... Todos meus
amigos passavam pelas mesmas necessidades e sufocos, mas era eu o que se encontrava no
mais desesperador estado. Dormi. Contudo dormi um sono pesado e amargo, absorto na
vida real... Cruel e desoladora. Acordei com uma terrível dor de cabeça, apertei o cinto e o
lenço, tomei um banho frio e bebi um trago grande de leite. Despedi-me de minha mãe que
bordava, taciturna, uma toalha sobre os farrapos a que chamávamos “sofá”.

O desafio mais insano me chamava. O desafio de se manter vivo e com o mínimo conforto
possível. Os compromissos com os ressequidos canteiros e o gado que me restava me
mantiveram ocupado o dia todo. Consegui alguns ínfimos trocados vendendo algumas
sacadas de batata para alguns feirantes da região... Os lucros davam para suprir alguns
mantimentos para a semana e uma bebedeira. “Por quanto tempo viveria essa vida
medíocre?” Era o que me indagava a todo momento.

Quando cheguei em casa, minha mãe estava recostada num canto da cozinha esquentando
água para uma provável sopa. Deixei alguns alimentos sobre a mesa e a cumprimentei com
a voz rouca da exaustão em que me encontrava.

— O que deu para comprar? — perguntou ela com o tom mais calmo e doce que conseguiu.

— Bem, não muito. Os tempos estão ruins para a colheita e mesmo trabalhando o dia todo
na terra, os canteiros não estão suportando a seca dessa temporada. Bom, já passamos por
isso antes.

— É... — Disse simples e lamentosamente.

A verdade era que todos estavam espantados pelo longo tempo sem chuva, o solo não
resistiria muito tempo. O vilarejo todo estava atônito com a possibilidade de ter que migrar
para outra área, deixando suas poucas propriedades nas garras da hipoteca para pagamento
dos impostos devidos. Lavei-me, deitei-me e dormi simplesmente. Dessa vez, considerando
a triste possibilidade de ter de me mudar se as coisas não melhorassem.

No dia seguinte fui visitar meus irmãos, encarcerados já há dois meses, cumprindo uma
pena de seis. Gostaria de priorizar a fiança deles mas os sufocos já eram grandes o
suficiente. Levei alguns pedaços de bolo e lanches, a comida da prisão era, como se deve
imaginar, horrível e insossa.

Conversamos bem nesse dia e nem percebi o tempo passar, isso era ótimo para eles:
esquecer, mesmo que por poucos minutos, que o tempo os regia.

— Como vocês estão? — Inquiri serenamente após um bom papo entorno das atividades da
família, o vilarejo, nossos poucos animais, etc.

— Olha, Sal, a situação aqui não é das melhores... Você sabe, um defende o outro mas
mesmo assim é muito ruim ter que dormir perto dos bandidos. Nós temos que manter a
passividade e não perder a cabeça, esse é o segredo. Já vimos muita gente sofrer aqui por
causa dessas duas regras básicas. Vivemos um dia de cada vez, sabe?

— É... Deplorável vê-los nessa jaula, como costumam passar o tempo?

— Ora, nós jogamos muito xadrez e principalmente pôquer... hehe, pena não haver apostas.
Procuramos ler jornal e essas outras coisas a que nos dão algum acesso... Você sabe. E
como está a situação financeira da família? ... Deve estar sendo difícil carregar a fazenda
nas costas sozinho e, pelo que se têm comentado nos noticiários, a seca está cada vez mais
devastadora...

— É, é isso mesmo, irmão... As dívidas vão se acumulando e não tenho dinheiro nem para
pagar os remédios para a mãe. Tenho que elaborar algum plano de improviso para faturar
uns tostões ou vou perder a fazenda em poucos meses.

— Olha, não vejo outra saída... A não ser... — Sabia o que ele ia dizer e senti uma estranha
tremulação me percorrer os ossos — Você sabe jogar pôquer não sabe?

— Faz um bom tempo que não jogo, olhe... isso me parece muito arriscado — Na verdade
eu nem sequer me lembrava de como se jogava, repudiava jogos de baralho...
Principalmente os de aposta.

— Irmão, você sabe que a gente só quer ajudar. Você lembra ou não como se joga?

— Na verdade, não. Vou com calma nisso, vocês sabem que estão aqui por causa desse
vício não sabem?

Eles menearam a cabeça negativamente, de modo pueril. Correram para um canto da cela e
recolheram uma caixinha que continha um baralho inteiro. Em poucos minutos eu já estava
a par de todas as regras mas o que eles fresavam era que não me adiantava saber regra
nenhuma sem assimilar os gêneros humanos, as cartas boas e ruins... Separar, enfim, “a
água do vinho”. Eles me deram uma visão em amplitudes gerais nos quarenta minutos
restantes de visita, dizendo “treine bastante quando terminar o trabalho lá no arado e aposte
alguns tostões à noite para aliviar um pouco nosso pescoço das fanfarronices do tempo e do
governo”. Foi o que fiz, trabalhei como Sísifo à tarde e estudei o jogo á noite, sozinho,
apenas para conhecer as mãos decentes e calcular algumas probabilidades e percentagens.
Lavei-me e caí desgastado e estafado no leito, dormi bem pelo cansaço que me consumia.
Iria jogar só no dia seguinte, estava um verdadeiro trapo.

Acordei, tomei meu melhor banho em tempos, comi uns pãezinhos com café preto e pus
meu melhor traje, meti minha pistola lustrada com minhas iniciais (S. R. – Sal Raveiro) em
meu cinto e meu chapéu de felpudo castanho de lado na cabeça. Despedi-me de minha mãe
dizendo simplesmente que ia arrumar uns trocados extras e saí. Com uma única frase
matutando em minha mente “Seja o que for”. E seria mesmo pois minha única arma era
saber vagamente “jogar o jogo”, a grande definidora de meus resultados seria a ventura e o
psicológico que eu saberia ou não manipular.

Já havia decidido também que seria ou tudo ou nada, por isso levava todas as minhas
irrisórias economias (que não ultrapassavam sessenta pratas). Entrei no bar onde
costumavam jogar mais freqüentemente e sentei em uma mesa onde cinco vaqueiros
jogavam. Pedi permissão para entrar no jogo, eles me avaliaram de soslaio e um deles disse
simplesmente: “Sente”. Eu sentei e pedi para o crupiê me trocar as sessenta pratas por
fichas. Os jogadores me olharam desdenhosamente, avaliei que a maioria deles possuía
mais de quatrocentas pratas em fichas. Jogávamos a variedade sem limites.

Joguei cinco mãos e estava pensando em desistir quando me deparei com um par de ás, o
sonho de qualquer jogador de pôquer... Mantive-me o mais impassível que pude. Um
velhote abastado da mesa apostou vinte, eu fingi cogitar um pouco e cobri a aposta com
feições de arrependimento sutis. Quando o jogo abriu na mesa ele prontamente apostou
tudo, eu cobri e ganhei com um “full house” de ases e reis, ele tinha um full house de reis.
O que interessa é que no final daquele dia eu saí da taberna com trezentos mangos no bolso
e vários olhares atravessados na alma, os jogadores mudaram, minhas técnicas mudaram, as
apostas mudaram... A única coisa que não mudou foi minha implacável sorte. Considerei as
circunstancias e constatei altivamente: “Não se pode agradar a todos os larápios do mundo,
afinal”.

Em pouco tempo paguei a fiança de meus irmãos; voltávamos sorridentes e saltitantes para
a fazenda. Meu irmão Bento dizia a todo instante: “Que sorte, que sorte você possui seu
maldito!”. E ríamos copiosamente. Àquela noite foi regada a muito uísque e fumo, mas nos
embriagamos em silêncio para não acordar nossa mãe. Seria uma surpresa e tanto na manhã
seguinte, para ela.

Acordei cedo apesar de tudo. Minha dor de cabeça não me incomodava mais, era apenas
recordação de minha feliz noite e de minha possível prosperidade no carteado. Tomei um
rápido banho e saí. Comprei comida, paguei dívidas e comprei os remédios de que minha
mãe necessitava. Além disso, levei-a a um médico após tantos anos.
Não disse como conseguira tanto dinheiro em tão curto prazo. Apenas defini “São
turbulências da vida, ora se ganha, ora se perde”. O doutor disse que tudo estaria em ordem
com os novos remédios, agradeci os exames e o diagnóstico e o despachei. Comemos
fartamente no almoço, felizes e com a sensação latente de “Vitória” no peito. Não seria
exagero dizer que era nosso dia mais feliz desde a morte de nosso pai. À tarde eu e meus
irmãos saímos e decidimos investir os derradeiros quinhentos reais que sobraram em um
sistema de irrigação para a fazenda e suprir os animais que nos sobravam. Disse
simplesmente:

— Peguem isso por enquanto, o resto vou investir em algo mais lucrativo.

— Olha, toma cuidado... Você sabe o perigo do jogo.

O mesmo conselho me era devolvido.

— Claro, claro... — Gracejei e me fui para mais uma rodada.

Meus irmãos me olhavam ao longe com olhos doridos mas não me impediram de
prosseguir, no fundo pareciam acreditar em mim. Aquilo, contudo, me magoou
profundamente o espírito... Agora não jogaria mais por necessidade, jogaria por avareza,
prazer e ócio.

Na verdade isso não me pareceu tão ruim.

Depois desse devaneio o tempo transcorreu como uma carroça, tinha razoável sorte. Não
como a do dia anterior mas valia-me muito de minha habilidade e ardilosidade o jogo todo,
e o mais fantástico de tudo, não tinha grandes baixas. Era incrível, eu mesmo mal
acreditava em tanta ventura num jogo de apostas. Nesse dia faturei novecentos, uma fortuna
para meu estado atual — duas vezes mais dinheiro do que conseguiria trabalhando semanas
sozinho. Saí do bar empertigado... Já estava ficando com fama na região como jogador
indestrutível.

Meus irmãos mal acreditavam também.

Tudo começou a passar obsessivamente para mim. Jogava todos os dias e por muitas e
muitas horas; não tinha prejuízos (eu mal me reconhecia numa mesa de jogo). Ganhava
desenfreadamente, comecei a investir pesado no ramo imobiliário, contratar lacaios,
comprar gado. Todo o tipo de coisa que algum “semi-milionário” que se prezasse faria para
aumentar seus lucros numa Capital de pólos bem distantes no tocante ao material.

Herdei a manha para o empreendimento de meu pai. A sorte, bem, a sorte herdei de algo
totalmente subliminar. E sempre fui autodidata, isso se aprende com os bichos.
Em quatro anos já tinha três enormes fazendas e três razoáveis indústrias do ramo de
laticínios. Esbanjava como um devasso e comecei a ficar arrogante. Mente
desvergonhadamente quem diz que dinheiro não muda as pessoas. Muda absolutamente,
transforma o âmago e a estrutura do sujeito de modo incompreensível, incontrolável.
Não passava um dia sem gastar proporções imensas em fichas, eu estava falindo as pessoas
e não tinha remorso algum. Jogava como um monstro e ganhava quantias monstruosas.
Tinha ganhos soberbos. Principalmente porque os grandes fazendeiros, coronéis e políticos
de meu patamar financeiro de apostas jogavam sem refletir muito... Pouco avaliavam as
probabilidades e malbaratavam como cães o dinheiro. Seus grandes prejuízos eram meus
grandes lucros. Estreei meu sétimo ano de jogo com um total que, pensei eu, impossível de
se abalar. Dez fazendas produtivas e sete indústrias prósperas. Não irei negar que o dinheiro
traga abundância (seria ilógico).Traz, e muita, mas equivoca-se imensamente quem cogita
que essas mudanças são tão benévolas. Traz sim a abundância de propriedades, de
respeitabilidade, de garbo, de mulheres, de viagens, etc. Mas não deixa de balancear tudo
isso com preocupações, desdém, orgulho, desconfiança e ambição. Os sólidos tentam. Não
acreditem que a vida se torna mais sossegada, é de rir quem pronuncie isso. Milhares de
coisas surgem para se tratar: Negociações, pessoas desonestas, interesse alheio, segurança
do patrimônio.

São milhares de percalços para se manter a propriedade arejada dos chamados parasitas.
Não pensem, caros leitores, que me tornei conseqüentemente uma pessoa mais honesta,
polida e altruísta por causa de meu invejável patrimônio. Pelo contrário, brigava
constantemente com tudo e com todos. Reclamava de quase tudo que me cercava. Tornei-
me desumano com os empregados. Tornei-me desumano comigo mesmo. Sabia que não
estava sendo feliz mas o vício de possuir mais me manuseava como a uma marionete,
troquei todos os meus velhos e bons amigos (inclusive os de infância) por empresários
secos, comecei a ter contato com os mais crápulas da política. Jamais doei um centavo sem
interesses maiores de popularidade. Era um dos homens mais ricos do país e um dos mais
infelizes também. Minha mãe morreu com oitenta anos, rica e consternada com o que seus
filhos tornaram. Comecei a ter mais escrúpulos com as pessoas e comigo mesmo, meus
irmãos também. Parecia algo surreal acontecendo conosco: O arrependimento.

Parei de destratar minha família (ou o que restou dela) que sempre havia me ajudado
engajadamente com todos os meus empreendimentos. Passei a doar mais dinheiro para
instituições e dar salários dignos para meus empregados. Dispensei minhas dezenas de
namoradas (se é que podemos chamar acompanhantes de luxo de namoradas). Parei de
beber e me embriagar com freqüência, comecei a viajar mais constantemente com meus
irmãos a turismo, ler e adquirir sabedoria interior — Que é o que realmente começou a me
importar. Todas essas coisas que realmente são compensadoras. Contudo há um ponto: Não
abandonei o vício do jogo que, por mais técnico que fosse, não deixava de ser um vício. E,
bem, a sorte que estava desenvolvendo em minha vida pessoal refletia-se inversamente nas
mesas de pôquer. Passei a perder torrencialmente o que havia ganhado; e quando se perde
algo se faz as coisas mais desvairadas e impetuosas para recuperá-lo. Se conquistei tudo
que possuía em alguns poucos anos, fui perdendo tudo em poucos meses. Deixava de
trabalhar em meus negócios para passar o tempo nos bares de alta classe e cassinos, sempre
perdendo e acreditando numa sorte que jamais existe quando se tem falta de vontade no que
faz. Os cassinos fecharam e o pôquer criou uma aura mais clandestina ainda.

Perdi muito: propriedades, cavalos do jóquei, mobília, carros e, acima de tudo, dinheiro de
minha conta bancária. Meus irmãos não conseguiam me frear, eu não estava enxergando a
realidade como ela era. Quem saberia frear algo desse gênero? É o mesmo que tentar fazer
um usuário avançado de crack largar a droga. Algo muito avassalador tem de ocorrer para
abrir seus olhos, ou uma overdose ou qualquer coisa parecida. Que o deixe de frente com a
morte. E até mesmo isso raramente funciona... O patamar inicial sempre será a meta e
estará cada vez mais longínquo e próximo. Sempre inagarrável, natural e instintivamente
inagarrável. Meu grande choque sísmico de atitude ocorreu dentro de um cassino após
meses de descomunais derrotas, sucessivas derrotas. Lá estava eu, perdendo como uma
criança desregrada, já jogando há oito horas com um saldo negativo tão grande quanto o
rombo em minha vida de conquistas. Tentando a “sorte” no five cards draw quando, de
repente, me defronto com um straight flush (a segunda melhor mão de todo o jogo e
praticamente impossível de ocorrer). De nove, dez, valete, dama e rei (O maior dos
straights flush). Do naipe de paus.

Estava com cinqüenta mil pratas em fichas, jogando com grandes milionários do país. Um
dos jogadores apostou a quantia exorbitante de sete mil dólares, o mais forte deles. Todos
fugiram, eu fiquei eufórico com meu todo poderoso straight flush de rei e aumentei a aposta
para todo meu saldo de fichas. O adversário pagou a aposta e me mostrou benfazejamente
seu ostensivo Royal Straight Flush de espadas, encarei pasmo e desmaiei ali mesmo. Perdi
cinqüenta mil para uma mão que ocorre tão freqüentemente quanto ser surpreendido por um
raio na cabeça. Tive um ataque cardíaco e fui levado às pressas para o hospital, fiquei num
estado grave de coma por dois dias, andando na pinguela suprema que aparta a vida da
morte.

Os médicos disseram que me recuperei por milagre e meu caso de consternação foi
raríssimo. Havia perdido quase toda minha fortuna em uma mão de pôquer, mas ainda tinha
a vida em mãos (se é que alguém pode afirmar isso com certeza). Voltei para o Brasil. O
que me restou? Uma fazenda. Pouco maior que a que possuíamos. Reatei minhas amizades
anteriores e não posso reclamar do que se tornou minha vida. Hoje tenho sessenta anos e
meus irmãos me perdoaram por tudo. Eu ainda não consegui me perdoar, quem sabe em
algum dia urdido pela posteridade ou pelo abalo? O certo é que ando evitando a primeira
ficha.
Não Há Manhã Para Os Poucos

A voz externa aumenta, você não está. Você acorda, não há mais ninguém.

Infelizmente, a maestria leva tempo e nem sempre é uma levitação tranqüila.

Com ela, o meu rosto doeu, dói.

Tapa ou soco ou coisa pior. Acendo um cigarro, procuro um bar, converso sozinho.
Vibraçõezinhas corroendo meus ouvidos cerebrais: Como elas são idiotas! Como se tornam
tenras num piscar de olhos! Como se abrem maçante e repentinamente! Ela, a mácula sob
um vestido rasgado!

Peço outra vodca. Preciso deixar minha indiferença nítida... Meu rosto precisa ficar o mais
intacto possível. A violência não estará mais por perto. Nem olhará para minha imensa
áurea de repulsa. Pendurarei uma placa no pescoço: Sujeito frio, egoísta e cretino. Não
dizer mais que o necessário. Ausenta-se com freqüência. Não gosta de intelectualóides de
feira de livro. Não gosta de chororôs. Tem carro, prefere sexo selvagem. Não paga.

Chego em casa mais estúpido, mais feliz. Deito, estou sozinho, olho a escuridão. Apalpo as
bordas do tempo, ligo a luz amarela, faço rios de café, abro uma garrafa de conhaque, tiro o
livro de Shakespeare da estante, dissimulo leitura.

Ouço trovões. Há goteira no teto. Pego uma bacia de prata. As coisas são tão gelatinosas.
Não sei como vou acordar no amanhã. No daqui a pouco. Como vou retificar o erro que é o
futuro. Como vou continuar a girar a roleta dos humores. Como vou deixar a corda quieta,
no porão.

Quero chorar, não consigo. Quero um momento de futilidade, não tenho. Nem tenho
explicação, nem consigo ler Shakespeare. Enumero meus desatinos, delineio minha
decrepitude interna. Delineio minha decrepitude e me deixo afundar. Não afundo.

Ouço as gotas na bacia, ouço os trovões. Sinto meu corpo se debatendo embaixo da pele.
As paredes se ergueram sozinhas. Meus calcanhares doem muito. Jogo a garrafa de
conhaque pela janela, jogo o livro de Shakespeare pela janela. Jogo a xícara vazia pela
janela.

Circulo a casa até encontrar a porta do banheiro, sinto-me terrivelmente sujo. Entro.

Ligo o chuveiro e me deito na cabine clara, encolho. Tento acompanhar a respiração que
maquina, maquina. Meus dedos enrugam. Levanto, giro as torneiras, aspiro o vapor quente.
Enxugo-me, esfrego a toalha nos olhos enquanto meus dentes tiritam.

Na cama, enclausurado sob os mantos, não me viro para os lados. Minhas convicções
parecem remotas. O deserto das experiências esqueceu de me ensinar lições.
Não sei o que me deixa frenético e deprimido. Se é minha insônia, Se foi ela, se é a dor no
meu queixo, se são os litros de álcool metidos garganta abaixo, se é tudo me esmurrando
pelas costas. Minha pequena tragédia não passa.

Vou para farmácia. Compro soníferos de bulas diferentes. Volto para casa. Roupas
ensopadas. Ponho outro pijama. Volto para os mantos. Água num copo sujo, a pílula no
bolso de pano azul claro. Shakespeare deve estar se afogando lá fora. Ponho a solução na
língua. Bebo um pouco de água. Tudo dará certo, não há manhã para os loucos, para os
poucos.

Dissolvo.

Sumo.
Giusepe

Giusepe fumava seu cachimbo placidamente num canto da sala quando ouviu um barulho.
Um distinto estrépito vindo de fora. Abandonou o cachimbo sobre o criado-mudo ao lado
de sua poltrona, franziu as sobrancelhas, aprumou-se e levantou (a fim de se dirigir à porta
e constatar a proveniência do estranho som). Antes; contudo; envergou a coluna, pigarreou
e pegou seu casaco ao lado da porta, ganhando o tapete de boas vindas. Quando saiu do
apartamento foi recebido por uma golfada de vento frio. Era domingo e a rua estava
deserta, exceto por alguns transeuntes que se distanciavam e sumiam no horizonte. Giusepe
sentiu-se desconfortável e procurou ouvir o barulho de novo; algo parecido com
marteladas, mas cessara. Olhou para os dois lados da rua e para todos os seus ângulos,
procurando barulhos ou movimentações suspeitas. Nada descobriu e resolveu ir ao bar
encontrar alguns amigos, beber, conversar e jogar cartas. Enfim, emergir de seu terrível
costume de não fazer nada nos dias de folga. Sua atenção teimosa a ruídos esvaeceu e ele
pode caminhar até sua antiga taberna preferida.

Encarava com um olhar de espanto cada criança, cada cão e cada árvore como se tudo isso
lhe fosse novo, coisas plenamente avulsas da rotina que seguia. Giusepe se maravilhava
facilmente e tudo parecia maravilhá-lo. Em seu rosto se estampou um sincero sorriso de
satisfação e, de súbito, não se sentiu mais tão abatido. Sentia a inveja do mundo que se
apinhava acerca dele para olhá-lo. Toda a brisa, toda a visão, todos os vagabundos e
marajás o invejavam sem saber porquê. E emanava um orgulho transparente e fervoroso.
Deixou-se parar na vitrine da loja de chapéus e olhou cada modelo com um carinho
diferente sobre manequins idênticos. Sentiu a tão sonhada revelação suprema e quis que
aquele momento durasse tempo suficiente para que ele absorvesse sua beleza qual uma noz
que racha em contato com uma quina de porta fechando. Perdia o fôlego, rodopiava,
esquecia do resto da cidade sem saber, sem se mover. Todos o viam espantados, perplexos
como veriam uma miragem. Quando Giusepe chegou à taberna reviu apenas alguns dos
antigos colegas. Estendeu a mão para eles e pediu uma garrafa. Conversaram sobre seus
negócios, o envelhecimento de cada um debulhava a felicidade extrema de seus ouvidos. O
sucesso conquistado concomitantemente, as pequenas intrigas familiares, cada detalhe
financeiro e infimidade narrativa o comoviam. Ficou longo tempo escutando e anuindo com
um sorriso enigmático. Não via os amigos há muitos anos e ficara surpreso com suas
inflexões pela vida. Jogava baralho, embriagava-se, ouvia, e se sentia contente. Giusepe
não falava nada. Escutava tudo com interesse e concordava com a cabeça. Até o instante
em que um de seus conhecidos, questionou-lhe diretamente:

— E você Giusepe, que fez nesse período?

— Nada, continuo o mesmo.

— Isso é impossível! Não constituiu família, não subiu de cargo, não trocou de casa, não
fez inimigos ou amigos? — esnucou o colega.

— Não... Na verdade li alguns livros e experimentei alguns tipos de tabaco para cachimbo.
Mas para que haveria de mudar? Sou o mesmo, ainda trabalho na indústria de automóveis.
Tenho meu velho e aconchegante apartamento e ainda vivo sozinho pois as mulheres me
enervam. E sim, ainda sou operário. Para que haveria de mudar? Por que desejaria maiores
preocupações, hierarquias mais distantes, vidas que não são minhas?

Acendeu o cachimbo e resmungou algo sobre amizade. Deixou o pagamento com alguma
gorjeta no balcão. Saiu com as mãos enterradas no casaco, soltando baforadas para o céu e
escutando distraidamente seus passos. Viu no relógio da torre da igreja o horário e foi para
um cabaré conhecido. Não teria o que fazer em casa a não ser dormir e ter pesadelos, além
disso, a embriaguez lhe permitia mais algumas possíveis aventuras. Andou sem caminho,
entrou no velho cabaré que o agradava e desabotoou o casaco, deixando-o sobre uma
cadeira. Pediu uma garrafa de vinho branco e travou conversa com um sujeito que estava
sentado na sua lateral. O movimento não era grande nem regular, mas as raparigas
continuavam lascivas e ambiciosas como de costume. Duas criaturinhas se aproximaram
dele e do sujeito que bebia ao seu lado. Seus sentidos levitavam quando o sujeito ao seu
lado, com quem conversava, reclamou:

— Sou eu quem ficará com essa. — Revelando uma voz austera, imperativa e ecoante.

— Não, não ficará. Não antes de mim. — retorquiu Giusepe em tom tranqüilo e pausado.

— Velho atrevido. — Trovejou o sujeito, que ruborizava mais a cada segundo.

Atracaram-se e as prostitutas começaram a berrar e ficar desesperadas, os homens presentes


no cabaré ficaram eufóricos com a briga, riam e conversavam animadamente acerca do
“duelo”; formando, aos poucos, um círculo em volta dos dois lutadores que mais pareciam
cachorros babões. Giusepe logo percebeu que o sujeito tinha músculos túmidos e vigorosos
e que sua única chance seria agarrar algum objeto e esmagá-lo na cabeça do tal homem. Foi
a garrafa de vinho. Giusepe despedaçou-a com força na nuca do adversário. O sujeito teve
um espasmo pelo corpo todo, vacilou dois passos para trás e caiu no chão desacordado.
Alguns segundos de silêncio e constataram que ele realmente desmaiara. Os homens do
cabaré ficaram histéricos de alegria e pagaram muitas bebidas para Giusepe. Constava que
o valentão já tinha má reputação no local e se tornara insuportável — levaram-no
desacordado para fora a pontapés, trancando a porta principal em seguida. Giusepe bebeu
as bebidas que lhe pagaram com vontade, agradeceu a todos e levou a rapariga que
escolhera para um quarto. Conversaram apenas. Depois de cortejado percebeu que não
tinha dinheiro suficiente. Disse à menina que precisava usar o banheiro, adentrou esse e
trancou a porta atrás de si. Espiou bem a janela e, sorrateiramente, saltou-a.
Depois se afastou do local às carreiras.

Voltou para seu apartamento e ficou no chuveiro por meia-hora. Quando se deitou na cama
tudo começou a girar. As paredes, o teto, seu corpo... Tudo. Os postes da rua se apagaram
um a um, começou a chover, as marteladas retornaram, dessa vez dentro de sua cabeça,
então ele se horrorizou com o manequim com olhos de estátua de pedra sabão que frigiu
num raio ao lado do umbral do seu quarto. Desde o episódio ficou dois dias inteiros em
claro como um sonâmbulo que fica moscando de um lado para o outro do apartamento. A
insônia só cessou quando comprou o maldito chapéu que tanto lhe chamara a atenção na
vitrine tempos atrás.
O Vapor e o Vaso

Wilson levou a xícara de porcelana branca à boca, o chá quente revigorava os dias inóspitos
do inverno.Observou de longe, através das janelas poeirentas de seu apartamento, o trânsito
que se dispersava na metrópole. Espreguiçou-se como um felino que desperta após
temporadas prolongadas de sono sossegado...

Precisava cumprir a carga horária de seu trabalho, mas ansiava profundamente retornar à
cama e nela depositar suas horas de sono interrompidas. A razão de seu afã não era sua
ociosidade, era a má vida que levava sem contestar. Seu dinheiro acabava rapidamente, os
passos que o transportavam eram ineficientes e até mesmo o ar que impregnava seu corpo
era destituído de essência. Pensava em interferir no ciclo financeiro hediondo que a
solenidade lhe impunha. A modernidade o encurralou por muito tempo, por muito tempo
procedeu com satisfação.

Wilson bisbilhotou novamente a janela, constatou que uma sutil garoa caía sobre os
automóveis flutuantes do asfalto, tão leve e lânguida como o ar poluído que preenchia as
lacunas do espaço naquele lugar. Quase adivinhara tal quadro.

Desviou a atenção á sua mão dormente que começava a formigar e averiguou tristemente
que a idade lhe fora antecipada pela exploração dos outros homens. Mesmo já sabendo
domar as angústias e encarar tudo com olhos amenos e pacíficos sentia profundamente
agulhadas de indignação.

Infelizmente ser comodista e submisso era o único modo de sobreviver com a baixa renda
que ganhava. Os bens mal lhe garantiam o conforto merecido, o cômodo em que morava
era desprovido de arrumação e demasiado simples: Muros velhos recobertos por papéis de
parede frágeis e sujos, uma escrivaninha com livros, revistas, jornais velhos e seu óculos de
leitura, um rádio a pilha e um sofá marrom com dois pequenos assentos. Além da mesa e da
cadeira (onde jazia na maior parte de seu tempo matutino).

O esqueleto do edifício que morava era de um concreto desgastado, as rachaduras


recobriam seu quarto e davam-lhe um aspecto mais lúgubre que o comum.

Wilson sorviu sua indignação junto com o chá que lhe sobrava na xícara rasa, sua alma se
refletia no chá desse momento, seus olhos encaravam uma lagoa de obscuridade do outro
lado; de desquite com o semelhante, de profundo desrespeito; ele, em sua posição, atenuava
essa realidade com uma colherinha de açúcar. Contudo, mesmo assim, era envolvido pelo
chá escuro e amargo; pelo infortúnio gargantilha.

Ao encarar esse aterrorizante espelho, sua perplexidade se transformou em agonia que se


transformou numa terrível punhalada em seu coração. Fulminantemente Wilson despencou
da cadeira torta e aos poucos sucumbiu, a alça da xícara enroscada em seu incador,
próximos ao cárdio.

No dia seguinte, em nota no jornalzinho da cidade o acontecimento era descrito sem ênfase:
“Morreu na manhã da última segunda-feira o pedreiro Wilson Lavinno de quarenta e sete
anos de idade. O motivo da morte foi um ataque cardíaco. O operário foi encontrado
morto, estirado no chão de seu apartamento de três cômodos onde vivia sozinho.
Conhecidos de Wilson declararam que ele não sofria de problemas do coração”.

Clara foi tomada de curiosidade quando passou em frente da banca de revistas, raramente
disponibilizava do dinheiro suado para comprar os jornalecos de notícias da cidade; nesse
dia, porém, Clara teve um ímpeto desconhecido: Entrou com alguma pressa na pequena
caixa metálica e escolheu um exemplar de um dos jornais.

Espantou-se com seu comportamento imprevisto mas não se arrependeu intensamente pois
o jornal lhe custara apenas algumas moedas. Clara era fotógrafa mas estava com a semana
livre para descansar, o dono de estúdio em que trabalhava havia lhe oferecido uma semana
de férias antecipadas devido baixo movimento no começo do inverno, ela se sentiria inútil
sem fazer nada por um mês então aceitou a proposta de uma semana.

Caminhava pelo centro da cidade em busca de alguma cafeteria interessante para fazer a
refeição matinal e se distrair com o jornal que comprara ocasionalmente e mantinha
agarrado embaixo do braço direito, meio desajeitado com os passos e a concentração nas
lojinhas e bares.

Acessou uma cafeteria que podia se dar ao luxo de oferecer um aconchegante sistema de
aquecimento aos fregueses. Com o clima que fazia na rua isso se tornava fundamental para
um bom ambiente. Clara pôs respectivamente no balcão: o jornal, o casaco e a bolsa. Pediu
ao atendente um copo de café expresso e um pão de queijo.

Abriu o jornal e logo se frustrou com o mau investimento... “Deveria ter comprado algo
mais profícuo que um ajuntamento de tragédias e rumores... Os jornais estão cada vez mais
desinteressantes e imbecis. Realmente deveria ter comprado algum romance ou livro de
poesias ao invés dessa troça informativa”. Foi interrompida pelo atendente que lhe servia o
pedido e desejava “bom apetite”... “Eles não deveriam desejar-nos bom apetite quando
sabem o assunto que estamos lendo, quem se importa? É apenas hipocrisia de quem quer
uma boa gorjeta. Pois não deixarei nenhuma justamente pelo intrometimento”.

— Obrigada

Avaliou os talheres com cuidado e certificou-se de que não estavam sujos, “isso é
fundamental nos dias de hoje e principalmente nesses lugares que servem centenas de
pessoas por dia”. Ergueu o braço para o atendente quando este passava o olhar por ela.

— Também um expresso.

A maioria das pessoas não tem rosto. A maioria das pessoas não tem nome. A maioria das
pessoas é evitada, excluída e colhida pelo esquecimento. Ciclos contínuos. No final, resta
muito pouco. Talvez alguns pitacos. Talvez um pouco de salmoura para mergulhar os pés.
Os jornais não deveriam perder tempo com isso já que caminhamos rápido para a boba
alternativa: café ou chá?
Espremendo Espinhas

A sarjeta fora brilhante, mas a chuva já havia se dissipado. Tudo que sufocava o ambiente
se fora. Restou, para mim, o cheiro fortíssimo de tabaco na camiseta, a estranha ternura que
articulava tudo numa direção insólita e a náusea. Estranhamente nenhum desses
sentimentos metamorfoseava alguma coisa, fumaça saía da minha boca. Eu apenas
encarava bêbedo de irredutibilidade. Assim foi até o que supus ser o fim de um manifesto
contra a existência desafinada de símbolos no mundo, das coisas e arames arrepiados,
papelões e macas.

Acordei com um sono bolero marginal nas retinas. Não ia levantar mas me lembrei de
responsabilidades com a escola, trabalhos inúteis, projetos que se declaravam necessários e
o fim do ano me enregelando como o fim de mais um apocalipse de situações e polaroids
mentais a serem postas em álbum. Conturbação neuronal que tentava, com afinco, emendar
entalhar em meu mármore encefálico princípio, calor e moralidade. Esse stencil todo recém
tirado do muro, eu na cama e o maldito aparelho noturno que o dentista me fizera usar por
causa do bruxismo. Estava atrasado (sempre estava atrasado e isso raramente me alterava o
humor... não tenho humor de manhã) quando fui para cozinha tive de apelar para cafeína.
Enchi um copo com café quente e forte. Minha mãe sabia preparar um café decente. Escutei
o carro saindo, estava sozinho em casa. Adocei o café mais que o devido e o traguei. O
primeiro copo. No segundo enchi com menos açúcar, sorvi com mais avidez e queimei a
língua... Tenho uma habilidade incrível para me machucar com ninharias. Soprei e bufei
algumas vezes e rocei a língua no céu da boca. Bebi um copo de água e marchei para o
quarto. Ajeitei os livros na bolsa, vesti o horrível uniforme e fui para escola. No caminho
fresco pude espairecer e respirar melhor. Todos já haviam entrado nas salas, entrei na
minha. O professor de português devia ter entregado algumas redações, posicionei os
braços no formato de uma concha e meti meu rosto lá dentro... Não queria dormir e, depois
de torrentes de café ígneo, não ia mesmo, não queria ver os semblantes e corpos de meus
colegas de sala. O professor me chamou, entregou a redação e anunciou a apresentação do
livro Budapeste, de Chico Buarque. Escrevi um poema tosco durante a apresentação.
Depois outro grupo foi, discussõezinhas e sinal. Deambulava com meu grupinho, juntamo-
nos a grupinhos nessa fase. Esse, em questão, para receber o grau: parasitava as suas provas
de física, metia-me em seus trabalhos e fazia algumas outras investidas de boa pessoa. Meu
tímpano formigava com uma ou outra de suas conversas... Mas até que me saia bem e meu
silêncio se expressava magnificamente. Ou meu falatório fanho recém saído da puberdade.
Apresentaram Queen na aula de inglês, seu show no Wembley, assisti. Infelizmente virei
minha cabeça para o lado e vi que dançavam com o pescoço e os ombros. Sinal. No recreio
eu e um colega, resolvemos os últimos retoques de um projeto de panfletagem que
realizávamos e saiam maravilhosamente mimeografados e etiquetados para críticas nem tão
agradáveis e fomos para sala de coordenação pedir aulas de matemática de reforço que
sempre precisávamos para as últimas notas. Algumas conversas polidas com a
coordenadora pedagógica, um revezamento de cargos (diretor de recursos, coordenadora
pedagógica, diretor de recursos; tênis de mesa escolar, um laser apontado para espelhos em
diagonal) e finalmente conseguimos. “Fica combinado então que vocês passarão o
comunicado na sala para assinaturas de quem precisar das aulas”. Um troço bocejante
assim. Andamos mais um pouco e anunciamos à sala a intémperie. A sala nem aí. Passamos
a folha para assinaturas. Na aula de biologia o professor deu continuidade à corrida com
obstáculos para o vestibular permitindo que organizássemos nossas palestras de sexologia e
essa coisa batida toda. Fomos dispensados, voltei para casa, tomei banho, me empanturrei
de comida, pus o aparelho na boca e dormi como uma múmia metade da tarde. As horas de
sono não eram suficientes, nem os exercícios nem os sermões nem as barberagens sobre
patins nem os palavrões nem a pressão nem o foda-se. Quando acordei estava com o rosto
inchado e marcado com vergões vermelhos pela minha má posição na cama. Joguei muita
água nas faces e esfreguei bem os olhos. Depois vesti uma roupa leve e saí de bicicleta para
o clube. No clube é tudo muito descontraído, jogamos vôlei... Eu não muito, meu time foi
derrotado e achei tonteira esperar, fui à academia e fiz uns minutinhos de corrida na esteira.
Não ofegava nem nada na esteira, quando me senti esgotado desci e fui até minha magrela.
Pedalei o percurso ao avesso, cheguei em casa e abri o chuveiro, senti a temperatura do
chuveiro com a mão e deixei a água escorrer, lavar, refrescar, enganar. Enxuguei-me, pus
colônia, vesti roupas engomadas, penteei o cabelo, fiz gargarejo e me sentei ao computador
(uma lareira aos dezessete). Troquei e-mails, vi fotos eróticas e fui para a varanda de casa
abrir um livro do Brecht. Bateram na porta. Não abri.

Conhecemos o piolhento aos dezessete: James Dean, a pichação, a base para as unhas, a
misancene, o pôquer, o destilado, a madrugada, o narguillé, os mangás, sebos, o beijo, os
barracos, o lago, as anginas, a camisinha, os rateios, o truque, o chute, o mormaço e a
reviravolta. Os empurrões ficam frequentes e o que não é cera quente é ditadura (ou fast
food). É quando a serpentina está perto de esticar, a banheirona perto da rua sem saída, a
britadeira entrando em cheio na casa abandonada. Há uma revolta confidencial em todo tipo
de sensatez. Uma logomarca incrustada na estampa da blusa seja ela qual for. Portanto as
ovelhas são cinzas, eretas e, quando jovens, pouco convencidas do Pastor que mais tarde
lhes desferirá uma bela cajadada na consciência, uma cajadada indicadora da seta a se
perseguir porque nesse horizonte (elas querendo ou não) ficarão lado a lado. Umas mais,
outras menos. Porque o cansaço vem depois que a serpentina arrebenta e queda qual um
rolo de filme se separando da lata e parando diante da antena. Não sabia exatamente o que
isso significava porque perderia a fatia a toa da vida se viesse a me ser revelado cedo.
Tocaram a campainha e dessa vez tive que ir lá. Era só o catador de material reciclável.
Sobre Pensões E Eu-líricos

Ouvindo Lee Hooker e calçando chinelas. Vendo lampejos azuis dentro das nuvens, os
pequenos deslocamentos terrestres. Bebendo cerveja. Pensando na condição de cela. Na
condição de cela num domingo a noite. Andando de um lado para o outro. Criando
exterioridades. Prendendo a angustia pelo pescoço. Jogando-a nos calos da parede.
Também me sinto prensado, mas já disseram que sou jovem, muito jovem para esse tipo de
coisa. Bem, pois o boxe e as corridas no jóquei clube acontecem nesse momento.
Infelizmente não tenho apostas a fazer nem acompanho nenhum dos esportes. Aliás,
acompanho-os eventualmente. Tenho pouca sorte com os cavalos e meus lutadores são
derrubados antes do sexto assalto. Não aposto em ninguém. Isso é o motivo do sorriso
involuntário que me perfila o rosto nesse exato instante. Escovo os dentes, tiro a agulha do
vinil antigo, pego uma porção deles em leque. Aperto a vista e fico analisando,
selecionando, recordando. Significados compactados entre linhas. Impulsos sob
embalagens brilhantes. Como bom lobo rabugento, dedico-me demasiadamente à minha
solidão. Eu a conservo como um filhinho prodígio no palco de marionetes. Minha bagagem
é toda essa locomoção de rochas. Arcos remotos, ruas ambíguas, seios de montanhas,
conduções rasgadas. Acabei com minha autorepreensão diante de pontas. Evito. Louvo
mesmo o sincretismo. As unhas descascadas numa tempestade cerebral. Freios de pouso
acionados. Lumes embaixo de cílios. Sim, dão sempre um jeito de olhar. Eles sempre
esperam aquele desempenho cristalino que formaram de você em algum acidente, ocaso.
Não esperam um camaleão, um acrobata, um problemático. No fundo você só se sente o
camaleão, o acrobata, o problemático. E por que não há de se sentir bem? Encilhei-me num
afrouxado tesouro próprio. Finalmente me escondi, aprendi a me esgueirar. Todos dormem
nos quartos dispostos pelos corredores. Repicam nos lençóis, roncam, é a grande felicidade,
ou seria amenidade? Ou talvez eu possa captar de suas vidas o que eles podem captar da
minha: muito pouco, migalhas. Vejo esse entra e sai de indivíduos da sala desde que nasci,
porém nunca me convenci de seus propósitos. Nem do meu. A pensão, seus corredores,
suas tabelas de preços e pagamentos. Uma herança! Com todos seus estranhos, os velhos
estranhos que não bateram as botas antes de meus pais. Quando criança fiz minhas
traquinagens em cada cômodo desse lugar. Pus pedregulhos nas máquinas de lavar roupa,
joguei corante na caixa d'água, troquei açúcar por sal em jantares especiais; arrumei dez
baratas e as deixei numa caixa de sapato; quando procriaram abri a caixa no meio do porão.
Fase áurea, tanto quanto a fivela da redimição. As temporadas são cheias, há sempre
alguma tarefa pendente. Desentupir vasos, abafar brigas domésticas, ameaçar caloteiros, dar
ordens para cozinheiros incompetentes e faxineiras preguiçosas. Saio raramente, nessas
ocasiões é meu irmão quem cuida da vigilância ou algum colega que precise de dinheiro.
Deixo as coisas entregues às moscas em minhas crises. Desapareço. Aconteça algo, não
aconteça. Que faria eu para evitar? Abro outra cerveja, apreciando a força do anel contra o
lacre, ouvindo a espuma subir vagarosamente. Muito pouco para se fazer a respeito do
restante. O negócio é saber entreter o ócio, ficar atento. Cochilo de vez em quando, o
serviço exige horários de zumbi e noites em claro. Isso não me incomoda, não enxergo o
sono ligado a qualquer grande prazer. O líquido gelado faz carícias na minha garganta. A
agulha do vinil sobe. Risco um fósforo e o vejo apagar entre meus dedos. Logo os galos
começarão seus hinos de horror, logo terei que volver para a calculadora e somar algumas
dívidas. Logo algum hóspede acordará, lhe perguntarei as horas e escolherei outro disco.
Hora de abrir as cortinas.
Claquetes Em Branco

Quantos gritos levados para dentro até a conspiração do óbvio? Quanta dor até que você
não consiga se mover ou respirar?

Batimentos cardíacos, frascos de chumbo, receitas óticas, coxinhas de frango. Duplos,


miragens, soluções pessoais. Ingratas soluções pessoais. O fato é que minha liberdade lida
com muitos complexos. Deito-me e resmungo por não estar fora, longe. Narcotizado até a
limpeza total dos delírios.

Vi a lividez profunda. Não havia mais recomeços. Perfurei o zinco dos deuses pagãos
rancorosos. Os relâmpagos ressoaram na minha tontura. Dobrei desânimos sob a borda das
altitudes. E o gato pulou para o muro seguinte.

Agora vibrarei contornos na diminutez. Comportando gozos e barreiras. Uma estação, um


quarto. Outono, de preferência. Nenhuma temperatura.

Alguns aspectos da minha memória: serviço militar, banco, problemas com carteiros,
cheques-sem-fundo, xícaras manchadas, substancialismo. Muita decrepitude, muitos
mendigos ofuscantes, muitos detetives, muita filosofia e muita impaciência.

Impotência.

Do asfalto só se enxerga a frustração armazenada em tijolinhos. As planícies que sobem e


descem. As formiguinhas e seus cérebros perversos. As luvas chamando táxis e levando
alguns assuntos a sério. Alguém acendendo a luz de uma janela. O grande curto-circuito
romântico.

Depois que comecei a escrever tive tendinite. No fundo essa foi a única lição. Morava
embaixo de um cassino que entrou em falência. Pagava uma ninharia de aluguel. Solitário,
misantropo; um inseto entre a geladeira, a poltrona e o cesto de roupas sujas. Visitas
regulares de entregadores de pizza e vizinhos irritados com o barulho das gaitas.
Trabalhava na companhia de água e esgoto. Concursado, credenciado e escravizado.
Gastava metade do salário na primeira semana. Sobrevivia pelo resto do mês. Versatilidade
estúpida. Uma minhoca embaixo da lama não ficcional.

Ás vezes jogava bocha, fazia palavras cruzadas, ia passear no parque, perdia meu tempo em
museus, boiando na piscina pública, zanzando a biblioteca municipal, vendo jogos inter
bairros. Sentia que não estava em canto algum. Que não ocupava nenhuma função. Que um
peso em ação é um peso melhor. Verdade verdadeira.

Quando o relógio da igreja badalou meio-dia fazia calor, garoava e eu devorava uma
baguete recheada com molho de pimenta e parmesão. O rangido dos dentes e o embrulho
do papel pardo eram a única orquestra audível. Meu tempo de almoço corria, esperava um
ônibus. Um engraxate veio conversar comigo.

— Tudo em cima?
— Quase isso.

— Posso dar um jeito nos seus sapatos?

— Gosto deles encardidos. Quer um pedaço?

— Como assim?

— Não agüento mais esse treco.

— Tudo bem.

— Tá sendo salgados e lanches há dois meses.

O pupilo tinha um rosto parrudo, braços sujos, vestia uns trapos beges e vermelhos. Pegou
o pacote e agradeceu.

— Não como há um bocado de tempo — ele disse.

— Não sou nenhum enfermeiro do exército da salvação — eu disse.

Meu ônibus parou, lotado. Permaneci inerte, analisando o guri.

— Lustrou muitos sapatos hoje?

— Não — mordiscou um pedaço de pão — esse negócio não funciona mais. Bem, preciso
ir andando.

— Boa sorte.

— Pode deixar, comprarei um bilhete de loteria.

Levantei, cocei o traseiro e andei até o cruzamento. Olhei para os dois lados, atravessei o
cruzamento. Entrei numa relojoaria e perguntei as horas. Fui até o ponto de táxi e perguntei
o preço da corrida. Sentei na poltrona.

— Quando era criança sonhava ser taxista — comentei.

— Se começar o deboche pode sair.

— É tão ruim assim?

— Quando era criança sonhava ser astronauta. Dirigir um táxi dez horas por dia é um
pesadelo.

— E como resistiria dias inteiros no espaço?


— Tem desconto se fechar o bico.

Paguei o chofer. Dirigi-me à portaria. Fui para minha sala. Bebi meia garrafa de café,
atendi chamadas, recebi ordens, despachei arquivos. Fui ao pátio, tentando meditar. Tive
que fazer hora extra. Voltei pra casa a noitinha, pé-ante-pé, infeliz como de costume, azedo.
Um desfile massacrado de nostalgias, flashes, azucrinação. Despi-me. Percebi duas cartas
estiradas sob a porta: Meu irmão pedindo dinheiro (e não era nenhum Van Gogh.) e minha
parte em um bico como servente. Não sabia que ainda tinham o costume de mandar
quantias por correio.

Meti “minha parte” na gaveta da escrivaninha, tomei um banho, fiz a barba, passei loção de
hortelã. Despejei um pouco de leite para o gato e abri as cortinas. O quarto estava
sufocante. Em que diabos de lugar estavam as laranjas de Arturo Bandini?

Sim, você pode sobreviver se: nascer numa família milionária, pagar os impostos em dia,
implorar por clemência, vender balinhas de pêssego no sinal, não perder as aulas de
hidroginástica, comprar um rottweiler de dois metros, ignorar os enfeites no dia do baile.
Você também pode sobreviver se: tiver o ensino médio completo e disposição para apertar
parafusos, acompanhar a novela das oito, levar os filhos ao circo e ao teatro, ler apostilas
maçantes de informática, aprender latim, jejuar na quaresma e ser o próprio jardineiro.

Acordei no sofá. Fui ao correio. Assobiava, brincava com um graveto, cumprimentava os


seres sorridentes. Parecia um sujeito elegante, mas a pulseira de prata era falsa e o chapéu
de brechó. Parei num boteco e pedi um pingado.

Um velhote trêmulo se virou, uma dedada no meu ombro:

— Se você tivesse três desejos, quais seriam? — que bafo de cachaça!

— Paz, amor e dinheiro.

— Ou você é um grande sábio, ou é um grande tolo.

— Apostaria minhas fichas no tolo.

— Quantas fichas tem?

— Nenhuma.

Segui. Estava meio anestesiado, nauseabundo, áspero. Enfiei-me no mormaço. Peguei um


lenço do bolso e assoei o nariz. Minhas narinas começaram a sangrar, procurei uma
sombra. Encostei as costas no muro de uma pastelaria e sentei no chão. Considerei o ato
exagerado. Minha camisa ficou ensopada de suor. Todos olhavam.

Uma mulher de meia veio oferecer ajuda, no entanto desmaiei.


Recobrei os sentidos num sofá. Uma bolsa de gelo na testa, um prato de caldo no criado
mudo. Minha camisa havia sido lavada e passada a ferro, jazia num cabideiro da parede,
vesti-a. A sala era arrumadinha, cada molécula no seu devido lugar. Peguei o prato e tomei
ele todo. Cenoura, músculo, molho de feijão e pão; mistura perfeita para alguém faminto.
Fui dar uma olhada na estante: Ampulhetas, velas, pentagramas, enciclopédias, dicionários,
retratos, canetas, um bonequinho de voodoo. Em suma, nada importante. Chamei por
alguém duas, três vezes sem resposta. Fui até a cozinha e peguei uma cerveja da geladeira.
A última, reparei. Uma mosca voava pelo cômodo. Dispus-me a matá-la, descalcei um dos
pés. A mosca me venceu por exaustão (eis aqui uma grande síntese do que é metafísica.)
Eu, a mosca, o universo e o tempo.

Escutei a porta da sala abrir. Era a mulher, minha salvadora. Seu cabelo era de ruivo bem
vermelho com mechas roxas, ela o mantinha caído nos ombros, oleoso. Seu rosto era
marcado por expressões sutis, covinhas, pele bem corada e lábios finos. Trazia dois pacotes
de plástico, sorriu ao me ver. Dei de ombros. Ela me levou até a porta e perguntou meu
nome. Disse meu nome, perguntei o dela. Ela disse o nome, disse também que eu
aparecesse mais tarde. Eu disse que apareceria. Fui ao trabalho, à minha casa e voltei pra lá.
Talvez aquilo aliviasse meu tédio noturno, minha insônia e minha cartela de soníferos;
talvez minha ansiedade estivesse num estopim desconhecido; talvez compulsão, talvez
libido ou talvez qualquer outra coisa idiota e inconsciente. Toquei a campainha. Levava
duas caixas de comida chinesa e uma garrafa de vinho artesanal. Vestia um tweed
amassado e uma calça jeans.

Ela me atendeu com uma gesticulação de pré-bocejo. Mostrei a refeição e o líquido, disse
que era para retribuir um pouco.

— Prateleira interessante — menti.

Tudo naquele apartamento era meio aborrecedor. Preferi não responder com minhas
observações. Dei de ombros, fomos comer.

Ela me guiou até a cozinha e começou a preparar as coisas: pratos, talheres, taças e um
castiçal com velas compridas (devia ter me referido aos copos de plástico e aos palitinhos
que acompanhavam as caixinhas do fast-food.) Ela apagou a lâmpada, acendeu as velas e
me serviu. Tive o impulso de sair correndo dali com o vinho nas mãos.

— Você não fala muito não é? — murmurou.

— Na maior parte do tempo. Vez em quando ligo um gravador. Toco gaita.

Ela riu, cogitei realçar que era verdade. Não realcei. Peguei meu garfo e fiquei encarando
os palitinhos, jamais soube usá-los. Senti que era conhecimento inútil. Levantei um par
deles.

— Sabe usar essas porcarias?

— Nunca tentei.
Joguei os palitinhos no lixo e voltei para mesa. Comemos em silêncio, bebi três taças
durante a refeição. A moça sequer relou na sua.

— Experimente. Não bebe vinho artesanal?

— Não bebo enquanto como — bebericou a contragosto — é bom.

Assistimos um filme mudo chatérrimo; secando o vinho, fazendo piadas imbecis e rindo de
nós mesmos. No meio do filme fui ao banheiro e tive lapsos. Após o filme nos beijamos.
Ela dormiu e eu fui embora.

O retorno para casa foi uma correria de analogias. Melancólico, ingerindo cada espessura
do transtorno. Corroendo os músculos da madrugada. Adequando os quadros das sombras.
O retrato das adições. A manhã de brutalidades me tirando do chão.

Entrei em meu quarto, guardei o canivete embaixo do travesseiro, deitei e esperei. Uma
longa espera furando minhas retinas, minhas marcas, espreitando de dentro do seu próprio
prolongamento.

O despertador soou da autonomia contida por ponteiros digitais. Um zumbido pairando no


vazio. Cortara meu dedo no canivete que guardava por precaução. Um band aid resolveu o
corte, mas a fronha ficou manchada. Relutâncias esvaziando o colo, me chamando para
visitar a ociosidade. Garoava atrás do ácido ligeiro das janelas. Vesti o uniforme como
máquina, escovei os dentes e peguei um guarda chuva. Comi biscoitos de maisena. A brisa
me recebeu com amenidade. Pilares repetidos deformando a rotina, atraindo a rotina,
amassando os desejos. Meu colchão estava por perto, me esparramei nele. Perdi o emprego
e tive que trocar a roupa de cama. A décima falta injustificada em dois meses. O último
mês indecente da minha vida, pensei. Tremores perderam as cifras musicais. Pontilharam a
epiderme temporal, a estratosfera e o buraco negro. Toda vacilação lânguida ensurdecedora.
Flutuava uma placidez, um dueto, armadilhas africanas na gengiva das pistas de pouso.
Espelho contrário. É preciso viver muitas vidas para se tornar poeta ou astrólogo.

Perder o emprego foi como uma muralha despencando num amontoado de circunstâncias
mal escolhidas. O dia foi como o cinerama de uma bola oito.

Noite. Coloquei o lixo na rua. Uma menininha brigava com a mãe na frente de casa. O gato
não comeu a ração. As baratas do apartamento sumiram. Desenhei duas caricaturas da
estátua da liberdade. Fiquei despencado no sofá fazendo jogos-dos-sete-erros e brincando
com hipóteses. Nenhum plano ainda. A verdade é estéril.

Madrugada. Pensei nos últimos colegas de andança: no taxista, no engraxate, no homem do


bar, na mulher, no meu irmão, no mestre de obras, em besouros voadores, em moscas. Foi
impossível relaxar, alguém plantou pilhas no meu encéfalo.
Aurora. Os passarinhos me fizeram levantar. Saí e mentalizei cada um deles dentro de uma
gaiola. O cobrador me encontrou, paguei-lhe. Na sala, ouvi um tumulto, mas era apenas
imagética espiritual.

Olhei nos classificados um anúncio e peguei a lotação. Fechei a porta do prédio atrás de
mim. Roí um pouco das unhas. Tomei um dos complexos vitamínicos. Apertei o botão do
elevador. O elevador subiu lotado. Meti-me lá dentro e fiquei encostado numa das placas
metálicas. Os sujeitos que dividiam a cabine comigo se vestiam bem, usavam perfume,
tinham os dentes impecáveis e seus salários deviam somar o que ganhei honestamente
desde os dezesseis anos. Na entrada do prédio bebi o que pude de água. Contei as notas
amassadas do bolso. Folheei uma revista de celebridades. Contei as notas novamente.

É estranho quando se está numa situação risível e não há lágrimas dentro de você. Tropecei
até a calçada e me juntei ao tomba tomba de figurantes não remunerados. Parei no meio do
vaivém, coloquei um chiclete na boca. Fiquei assobiando.

Fui entrevistado pelo pessoal de RH.

Em casa, tomei um banho quente e me estiquei na poltrona. Pensei um bocado no assunto.


Misturei clonozepans com complexos vitamínicos e bebi uns goles do uísque que tinha
sobrado de um aniversário. Fiquei a boiar numa crista semilisérgica. As paredes queriam
me dar conselhos. As manchas do meu pijama dilataram. Tiritava o maxilar como um
bovino. Minhas costelas amoleceram até completarem nós e cruzes. A sala também
afrouxou. Experimentei-a macilenta, desfigurada. Balanças e bules irromperam sob meus
pés. Uma fita capenga cerceou tudo.

Inspirei quatro vezes, soltei os pulmões e devo ter adormecido. Os sonhos vieram logo,
contudo, não saberia discerni-los numa grade cronológica precisa. Em cabeçalho, clímax e
contracapa.

Cabeçalho, clímax e contracapa.

Deixei meu casulo para cobrir a vaga disponível num buffet perto de casa. Ajudava um
tanto. O telefonema fora bem simples, o contrato assinado em questão de segundos: “Está
com as unhas cortadas” “Estou” “Tem roupas de garçom” “Sim” “Sabe servir?” “Acho que
sei”.

Lancei-me à rua assim. Estava meio alterado após a leitura de algumas páginas de Mad.
Um moleque brincava de açoitar o ar com um cadarço. Era uma bela manhã.

Meu circular não demorou. Subi a escada atrás de uma rapariga que usava coturnos e
pintava o cabelo de verde. Saias longas, vestuário grosso e escuro. Fazia calor, tive dó. Ela
parecia um papagaio gótico, aí me lembrei que Baudelaire também pintava o cabelo de
verde; fiquei intrigado. Não consegui desviar o interesse. Sentei-me ao seu lado, no assento
adjacente ao corredor. A gôndola estava vazia. Eu não era nenhum ingênuo, mas vivia num
bairro relativamente familiar. Ou seja: nada de desmanches exóticos ou estranhezas. Aquilo
me intensificou os sentidos.
O buffet era um lugar arejado, dividido em dois barracões. Expliquei o telefonema que me
levara até lá para o primeiro que vi. Um velho que martelava pedaços de boi e suava como
um jogador de basquete.

— Olha, meu jovem, entra naquela sala que o sujeito mostra como funciona.

O sujeito em si jogava mini-game.

Meu primeiro dia causou exaustão suprema. As veias pareciam inflamadas após tantas
caixas de peso. Fiquei com quatro bolhas na mão de tanto lavar pratos, copos, talheres. Isso
até um amável cozinheiro recomendar as luvas destinadas ao cargo. Dobrei as toalhas de
mesa e também tive que auxiliar na hora de por tudo de volta no caminhão. O imperador do
mini-game elogiou meu serviço, deu cinco pratas extras e me chamou para a próxima festa.
Recusei.

Nove horas, nove malditas horas de trabalho mal remunerado. Eis aqui o desencadeador de
intoxicações alimentares, o gerador da vigilância sanitária e o motivo dos guardanapos em
origami estarem em extinção.

Claquetes em branco quicando nos nervos. Retalhos pretos girando e correndo. Afastando-
se, encostando-se, projetando hortos, riscando transes sonoros e táteis. Afastando-se,
encostando-se, esvaindo.

Claquetes pássaros.

Isso é um pouco da vida de quem morava embaixo de um cassino.

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