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Fábrica

Ivan Andrade Guardia


Prelúdio:

Nessa coletânea dedico valioso período de tempo para


reunir algumas de minhas obras mais explícitas e coerentes.
Admito me ter restrito a alguns temas, particularmente não
enxergo essa característica de modo pejorativo.
Convenho que a literatura fora um vício diretamente
vinculado a esses escritos.Escritos que não ultrapassam um
abismo de filosofias e sentimentos intransponíveis, o
pomposo e o sórdido. Um grito sem voz de mil significados.
A doçura do mel e os ferrões venenosos das abelhas.
Tive incontáveis influencias para redigir vários de
meus textos: romancistas, poetas, pensadores, jornalistas.
Decerto tive varias outras influencias secundárias, porém
minhas experiências humanas foram as principais definidoras
do coração dessas páginas.
O ambiente em que existo não é um paraíso, meu espírito
não se compara ao éter e envelhecer cumpre o dever que lhe
cabe com maestria: ser inaturável. Escrevi um vácuo de
refúgios, um desabafo sintético, sem expor todo meu alento,
sem expor axiomas. Escrevi-o e o supro todo tempo, meu
paralelo de agradabilidade.
Não escrevo lá muito filantropicamente, a confissão não
satisfaz ninguém além de si. Contudo não torno a vida mais
enfadonha com esses escritos ao contrário do que faz a
rotina a que estamos habituados.

Saudade

Coroa: A anatomia de uma libélula no embrulho


Caleidoscópios de esqueletos-flores dentro da embalagem
água
Holografias de Saturno no verso verde
Lantejoulas de sangue e néctar
Autofagia que anda pelas venezianas de um bangalô
O jardineiro que mastiga cana e sorri
Jangadas flutuando paralelismos
Caules grades na caixa de areia
Dedal de baunilha que tomo antes do cochilo
O sonho e o pesadelo dos sisos pós-modernos
A firmeza que depende leveza
Tudo isso são coisas ocas sem humildade
Qual uma Oca sem redes ou uma porta sem paredes
Ou a visão de uma miragem no Atacama
Resquício de cansaço feito de medalhão e raízes
No acorde naja silvo dentição falta.
Fagulhas no Espelho

Eu, cego em marasmo, repouso febril


Sou o rabugento vassalo do temor
Poeta descontente, sofredor hostil
Sombra que chora e lamenta o esplendor

Altivo poente, me guie ao jamais


Por frívolos trechos, no alto do cais!
Soluço, tremo ─ sou fértil humano
Avanço, cresço ─ esguio engano

Entrego-me a bafejos em desilusão


Punhaladas ébrias vertem serenas
Fonte afável no fim da estação

Esquivo-me sadio às noites amenas


Ouço mil cantigas – sussurram paixão,
O sangue casto de infinitas arenas.

Função

O escritor que não perece


Perde o estímulo e a tinta
É chão felpudo que decresce
É natureza morta, já extinta

Arrasta-se lúdico ao céu


Cultivando as frestas, utopias
De seu néctar exaure o mel
Na lucidez, cria fobias

Pomposa flor que espairece na neblina


Paraíso letárgico que assassina
Vales cálidos no além da serra
Flamejando seus anseios na preta terra

Amor ígneo, cultivado inerte


No peito dilacerado pela água marinha
Toda brisa o enche
Pela incoerência da dor, faz gozo.

Aleph

Fardos, livros, cimento, árvore;


Um ruído emudecendo a tarde
Cães, robôs, pessoas, cárcere;
Buzinas de carros, sol que arde
Ternos, zôos, sem tetos, karatecas;
O teatro vivo atuando a desordem
Banquetes, fome, reuniões, guerrilhas;
Multidões atrasadas que eclodem
Opulência, miséria, castelos, becos;
Burocratas emaranhados a vadios,
Fantasmas, bandidos, entusiastas, leigos;
Bonecos que respiram, pontilhados
Aristocracia, plebe, afã, desleixo;
O cego que corta a artéria do relógio
E enxerga a hora do gênesis
Rosas, rugas, cristais, ferro-velho, fita
A asa de Pegasus (re)partida.

O Raio Sideral

Cada estrofe, pois, numa bandeja de temperaturas


Numa infinitude de momentos e distância
Que antevêem nas previsões um futuro que traz
Beleza ao invés de destruição
Alimento ao invés de terror
A flor de lótus, ainda que estragada, em pé e disposta a
tratamento
O cisco do caos cai qual esfinge em meu olhar
Derramo meu tédio no assoalho:
É réstia de pólvora
É motor de carne na contramão
Sinto-me, então, um elefante numa gaiola
E não sou de condizer a tentativa do ser ou não ser
A partitura suave de se conter
Engulo a lágrima da seca que sopra e multiplica
O pino da granada, tirei da minha amídala.

Não me sinto satisfeito se inacabei a obra, é preciso


visualizar o sumo
Não me sinto otimizado quando irracional ou racional, creio
na eficácia das complexidades catárticas sobre as
autoevidências
Não sou estóico e não sou mole, sou eu
Contemplo a vida num gira gira, pandeiro que cai e sobe por
esplendor e louvação e feiúra e croque de cascalho
Minhas certezas não são só minhas (são mutação)
Estejam na frente, estejam no vão, vou pelo meio
O que tenho que citar, o que não devo ousar é dívida que
com ninguém divido a fita, a bica, a luz que afina
O pino da granada, tirei da minha amídala.

Se sou indiferente, desengonçado, se me chamam espúria,


tenho desculpa: Pertenço à contracultura
Mas e daí: Se sou calado, se como com a mão, se não
convenho?
Não me alongo além de meu próprio engenho
Mas e daí: Se a vida é doce ou amarga, se serena muito na
madrugada?
Não me importo: Acendo um fósforo.
Mas e daí: Se tudo é maré ou tudo é grito?
Nada vale, ainda respiro. E se respiro, por que resta a
dúvida?
A pino da granada, tirei da minha amídala.

Há tanto pé d’água depois de sol abrasante.


No brilho de uma lágrima magricela ou na gota de suor que
ele leva.
Tem um rasante, que pondero, e nele mora puro diamante: Não
poeto por estrita desocupação, tampouco por consultar
cartomante ou ter dor de cotovelo. Só fico puto quando me
empurram aura ou tridente.
Quando poeto nem sempre quero ser comovente ou comover.
Só rabisco por me meter.
Deixo aos Bilacs que toquem cítaras, aos Sades que escrevam
com sangue em manicômios, aos Hemingways os lápis bem
apontados e aos Comtes a exatidão cirúrgica.
Escrevo o que vejo e o que não vejo.
Meu realístico ensejo: Momentar castelos de areia, pois há
muita areia apesar de apenas 118 grãos (quando se fala em
espécie)
Castelos de areia são os pratos preferidos do oceano.
Para se levantar castelos de areia só não se utiliza como
ferramentas o chiar e o assoprar de apitos e da entonação
da gaita
Mas o pino da granada tirei da minha amídala.

Já cuidei de overdoses íntimas, já alimentei desandanças,


já mergulhei na lua bebendo taças de vinho, já cultivei
pinhas de recordação e vi pinheiros altos em filmes de fim
de ano, gosto mesmo de rochas repletas de musgo que trazem
meu instinto felino ao corpo e mente. Gosto também do
ronronar que germina somente no topo das serras e exigem
solidão como prérequisito à visita.
Minha mãe chega e me pergunta por que não pego um livro
para grafar essas bobagens: Tais grandiosidades é bom
pertencerem a um bloquinho.
No entanto o que quero é agradecer, após tantos
paralelepípedos, ao doutor que receita doses de sinestesia,
ao singularíssimo mestre, geograficamente distante e
próximo amigo, por tantas granadas que eclodem e duplicam
em asas dançantes e tão queridas a esses gastos ouvidos.
Abrir o dia é metaforizar qual quem injeta heroína Gaia
para seivar as veias e celestiar olhares de acácia movediça
em arborizantes instintos, estrelas mórficas líricas comuns
ao tatalar de andorinhas pelo horizonte inacabável.
Após, enfim, a fratura da Hera o bando que se espalha
graças a Deus incapturável até às mais experientes balas
perdidas.
O zumbido que fica é de cigarra (as andorinhas dormem no
ninho)
O pino da granada, tirei da minha vida.
Onde há Pietá e explosão de rimas, confecção de métricas,
adocicar de almíscar, mel, ondular de venezianas e a
passagem corrente das abas pelas estações da estiva.
O pino da granada, tirei da minha vida.

Limpando cebolinhas

Função zen do ato


Olhar de sol e planalto
Melodia terna no peito
Gruta de cristal-pele
Insight-exercício, doar
Magia, vibração de corda, ar
Madeira, rosário, vitral
Flores de sangue e sal
Palma, polpa, paz
Poço artesiano, sussurro
Asa, palavra que vai.

Subtrações

Violeta, marfim, quedas d'água, perfumes pulsáteis.


A energia eletrônica orienta a noção de ida.
Canoa amena que corta de costa a costa a maré.
Dia dentro da aurora, aspectos de uma folha caída.
Balanços de uma cadeira de madeira castanha.
Quintal largo com feixes de luminosidade adiantada.
Bandos longe, sempre espaçados, aerodinâmicos.
Sensação zen que perdura até a hora do lanche.
Lavouras a se perder do terreno brando, vasto.
Um cavalo que relincha antes de correr e
Circular a árvore frondosa, acalmando-se.
Fogueira comunitária, causos, marshmelows.
Uma catarse que permanece perto do peito.
Rodamoinho de lembranças, gestos,
Sons de garoa e toques de jasmim.
Sinos badalando para os filhos do éter.

Anonimatos

Tendência de amar que suaviza o chicote


Da rua que pisa nossas solas.
Cada vez mais íngreme repouso para Porteira-Lume.
Longeva firma de sete cantos, pontos,
Origamis feitos, alardeados, ampolas-chave.
Arrostamentos, vetores jardineiros do brilho, isca.
Condor de alpiste prisma, tato.
Papila gustativa de confeito, vista.
Entrega do flúor, benção, sina
Volume do ínterim, estopim, roupagem.
Dose distintiva: senha, musgo, pelicanos, prendas.
Roletas do envelhecer, escolhas, legendas,(p)almas.

Asfalto

Vertigem, conselhos, avalanches


Telegrafias anoitecidas em tulipas, temas
Vertentes, parapentes, ambrosias
E o balé das desvalidas damas de camélia

Purpurina, febre, pisca-piscas,


No palco de cupins, confetes e batucadas
Para-choque de caminhão com portões banguelas
Platéia, polpa, proporção, breque, bandas, enseada

Motores pulando longínquos, tênues e nus


Em tardinha só fantasia, carrossel de entalhes,
Palma de ouro e milho no cocuruto do Rei Momo calmo
Empurrões, desafetos, vaivém em pernas de pau,
odes, misturas

Assim que os trios elétricos ganham a vida


Assim que os trios elétricos ganham as ruas.

Título

Descidas, carícias, ônix dividida. A eletricidade é um


cordão umbilical atando tribos e linhas genealógicas,
pólos de magma, enguias, figurinhas de álbum com a página
virada e que se come do chão (trevo de quatro folhas) qual
a quadra da quadrilha, os números da amarelinha de solas de
vapor e os giros dos gira-giras, andorinhas diagonais sobre
o teto. Onça de ouro nos dentes da baleia azul que afunda
entre algas mais sensíveis que levitar (desfecho da língua
e da joaninha de quatro asas, do nó do laço ou da garra da
presilha ou do momento profundo de se amar amando).

Ah, Bukowsky

Não me canso de regredir


Até não ter mais para onde ir
Uso de métodos sonsos, alugo sobretudos,
visito um grilo
Digo , laconicamente, "às farpas"
E bebo
Não tenho razão para me subordinar
rotineiramente
Não faço por merecer muito chão,
muita vela, muita poça
Restauro-me pelos pés até a cabeça que dói
como uma queimadura
Por isso talvez que eu reme sozinho
E ofenda sem querer as pedras
que sempre se encontram na rede social
Não há um certo e um errado afinal de contas
Estou sempre errado e já me acostumei
a parcelar meus pecados
Aplacamos o verbo com líquido
Os desinfetantes são nossas armas para sermos especiais
Lembro do dia que quase não saí vivo de mim
Eu, meu suor e meus Serafins cambaleando
Eu, contraste de intimidações
Palmas se esfregando cada vez mais rápido até desfiarem
A Pagu me odeia
Todos os artistas do beco não me suportam
Minha literatura desce fácil mas o efeito é de como se não
descesse
Que nem um bom gole de cerveja
Galerias de putarias, livros proibidos, acidentes de
percurso
Futurismo em pilulas, gemidos, bingos
Até que chega o momento em que todos imploram que você
durma
E é o melhor que você pode fazer.

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