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O coração

e o voo
Samantha
Abreu
[este livro é uma produção independente. todos os textos são de responsabilidade
do seu autor]

Edição: Samantha Abreu


Diagramação: Samantha Abreu
Capa: Carolina Panchoni
Revisão: Samantha Abreu

ABREU, Samantha. O coração e o voo. Londrina, PR, 2020.

Todos os direitos dos textos desta edição são reservados ao seu respectivo autor.
O CORAÇÃO
E O VOO
Samantha Abreu

2020
EU TENHO NAS MÃOS O CORAÇÃO DE UM PÁSSARO

Eu abro o peito do pássaro: sinto o coração bater na


ponta do dedo
e tenho penas de todas as dores
enquanto o pássaro me observa segurando seu
coração.

O pássaro ainda se debate com violência


mas não pode voar
e eu já não sei mais como devolver-lhe as palpitações,
pois a morte agarrou minhas mãos e está tentando
fechá-la.
Ela quer esmagar a beleza do coração que pulsa,
a beleza,
ela quer parar o coração do pássaro.

Eu não resisto e esmurro fortemente o chão,


deixando que o sangue dos meus dedos se misture ao
do coração dilacerado.

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O pássaro emudeceu e não me olha mais.

Então eu sepulto seu pequeno corpo sob todas as


formas que tenho
de gritar em silêncio

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PEQUENO CONFESSIONÁRIO ADMIRATÓRIO

“Depende de tantas palavras o amor de um homem por uma mulher,


mas uma mulher ama a outra em silêncio.”
Mar Becker

Eu escrevo sobre mulheres para imaginá-las


majestosas e donas de seus corpos caminhando em
direção a um pôr do sol, sumindo no horizonte dos
sonhos.

Acho gentil a poética de seus ventres quando as


trompas se transformam em galhos cheios de flores.
Existe tanta beleza na anatomia das ancas
arredondadas, uma arquitetura sutil dos desníveis.

Admiro a deformação de seus rostos quando se


emocionam; me encanta a euforia de suas vozes e o
silêncio de suas dores. São seres que não passam
incólumes pela cerca viva e espinhosa da grade das
próprias costelas.

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São jeitos de quem aprendeu sobre os contornos da
existência, quem enfrentou os desvios necessários das
lâminas, quem sobreviveu aos abismos diários das
pequenas mortes.

Eu escrevo sobre mulheres para descobrir os segredos


do mundo.

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RETIRADA

Vocês me chegam
trazendo uma guerra pronta,
com seus soldados e armas.

E me encontram tão acovardada,


tão eu,
assim
amuadinha.

Ainda acho lindo ver o sangue untando a espada,


o suor diluindo o sangue,
o barulho da lâmina cortando o vento.

Mas ando tão débil. Ando tão branda.

Tenho amado muito mais a bainha.


O silêncio secreto dos bordados na bainha.

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UM CÂNTICO NO CAOS

A profunda letargia de um corpo entre carros,


entre caos.
Toda a apatia das mulheres cansadas nasce do peso das
asas.

É quando planam silenciosas,


com seus olhares pra dentro de si.

Um desejo de morte leve, lenta.

Algo de beleza. A letargia


de um rosto afundado na desordem natural dos
ovários, um período
pré-histórico, ancestral
um cântico de renascimento.

É quando, de novo,
as asas se abrem sobre os homens
e o esplendor cega as grandes ordens do dia.

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COMO DESCOBRIR O SILÊNCIO NO SILÊNCIO

A solidão amedronta a mulher que corta o vento das


multidões. Um estado de alma vacilando entre o perigo
de fora e o abismo de dentro.

Não são raros os dias de ver o medo dominado pela


força

e ela bate de cara,


assim de assombro,
com a mais profunda letargia: uma viagem interior da
qual a mulher mal tem consciência do retorno. Ela nem
se lembra do alvoroço da turba de onde saiu; chega a
desaprovar a vida anterior.

Segue pelo nomadismo de si mesma


e espera, ansiosa,
pelo dia em que poderá atravessar uma parede e se
tornar cosmonauta.

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II

Tenho pensado na palavra aleluia,


escapando no rosnado das onças, entre os dentes
espumados pela dor dos tiros;
Aleluia, devem repetir as cadelas
quando lambem a placenta dos filhotes e percebem na
cria a perpetuação do instinto.

De tal aleluia foi a água viva que queimou meu corpo,


aleluia, gritei com a boca abafada entre os dedos.

Imagino que nos saltos do balé


as golfinhos fêmeas digam aleluia para as águas que
amortecem a queda;
Todas as vezes que uma ursa encontra um cadáver de
foca, todas as vezes que a foca percebe o frio
estranhado da morte: aleluia.

Tenho pensado que aleluia, talvez,


seja o hino das aves na reta da mira, seja o vento veloz
nascendo de suas asas;

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Penso nas aleluias que soam em coro da floresta,
quando as índias dão de seus peitos o leite da vida e as
raízes da compreensão universal.

Eu também uivei aleluias e rezas quando avancei sobre


a exaustão e permaneci em pé sobre o medo.

Sempre que vejo de longe uma mulher apressada em


sobreviver, uma mulher assumindo o sangue secular
do renascimento,
imagino aleluias no canto dos que se entregam puros.

(este poema é um excerto da série


‘Sobre a ordem dos mícrones’, em desenvolvimento)

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IV

Os pelos de uma mulher crescem tão silenciosos


que
não sabem deles os grandes debatedores políticos,
os educadores de biologia,
os poetas inspirados pelas musas.

Nenhuma legislação precisa ser criada para que os


pelos cresçam inabaláveis,
não precisam de autorização para tomarem o corpo
como se conquistassem um reino.

Não escutaram seus ruídos os compositores que foram


capazes de finalizar o Réquiem,
não são perceptíveis aos cineastas iranianos nem
cabem no silêncio do menino Antoine Doinel olhando
as franjas das ondas.

Os pelos brotam no rosto de Clémentine Delait


sem que os bichos sintam inveja, sem que um gato se
arrepie diante do mistério,

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Senhoras Doloridas enfim não precisam inventar
encantamentos para seus rostos de cavaleiros.

Os pelos de uma mulher crescem tão silenciosos


que
somente ela os sabe
quando se observa e se acarinha,
a aspereza das pontas abrindo os poros.

Algumas profecias dizem que


todas as vezes
que uma mulher corta, raspa ou depila seus pelos
- tomando para si o disfarce da lisura -,
seus restos descem pelo ralo e alimentam os monstros
que um dia invadirão o mundo.

(este poema é um excerto da série


‘Sobre a ordem dos mícrones’, em desenvolvimento)

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CONSAGRAÇÃO

Existe um poema dentro


de mim
que não pode ser dito:

- Do que se trata o impronunciável


senão do sacramento
entre a vida e
o verso?

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SERPENTES SOB O SOL

Alguns tipos de mulheres


se reúnem sob um céu laranja que derrete fluidal sobre
suas cabeças. Elas se olham enquanto reviram as
próprias entranhas. Depois se perdem entre choros e
braços,
acenando labaredas.

De longe ouço seus lamentos: os gemidos


daquelas que desejam o baile de línguas de um fogo
sacro.

Então invejo os estalidos em seus corpos, dominando -


de longe e de sempre - a arte sublime de compreender
os contornos.

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UM MUNDO NA PRECE DOS ANJOS

Eu quero falar a língua de anjos silenciosos


que imaginam preces enquanto observam o amor
fecundar
os úteros de mulheres tristes.

Uma linguagem sem superfície, algo de nível


profundo,
um poço escuro
onde tatear se torna inútil. Onde
o grito seja mudo.

Eu busco a fala dos fetos,


seus gemidos,
um estourar que infla os pulmões.

Quando descobri o mundo, eu tinha


uma falta de roupa, em mim
uma ausência de tudo.

17
ANCESTRALIDADE

Existe uma imagem antes do símbolo.


Um poema antes do verso
- o invisível da palavra não sendo palavra.

Tem um estalar que transpõe matéria através de


imanências:
a poesia está antes. Está entre. Está indo: vai,
cansada,
a ancestral de todas as coisas,
a mãe interior da vida e da morte imaginadas.

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AS REZAS QUE INAUGURAM O DIA

Há algum tempo eu me convenci de que poemas estão


no início e no fim.

Então me levanto pela manhã com metáforas enroladas


na língua; com visões plenas de abismos.
Não respondo um bom dia sequer,
mas já repeti dois ou três versos em silêncio, um ritmo
mental,
a incandescência do dia.
O poema do início, uma fundação.

Quando as lutas se acalmam e se abaixam as espadas,


eu volto ao poema em busca do fôlego, o fim da fadiga.
Abro os vãos da casa e avisto um descampado,
infinito campo de unguento.

O poema que é fim de tudo,


o impronunciável: um soluço que interrompe a
lágrima.

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SAL NOS OLHOS

A chuva lá fora,
mas molhado
está aqui
inundando a casa que é vida
e os olhos
que ardem nessa água de mar

Desaguar salga feridas.

Desaguar...
Uma única palavra
para tantos litros de mágoas.

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AMOR

Um buraco no peito
do tamanho do teu
punho

um murro
virando flor.

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PEQUENO MANUAL PARA SER ESPECTRO

Sentar-se na frente do espelho e rasgar os poros com


as longas unhas,
espalhar o sangue
que escorre.

Erguer as têmporas em direção ao sol


e então fechar os olhos no silêncio honroso da graça,
o milagre
do corpo que se integra: de si mesma
em si mesma
pois em si mesma uma
reciclagem,
autofagia da carne sendo engolida pelas cavidades de
onde levantam os pelos.

Sentir calafrio, suor e,


finalmente,
desistir de resistir ao gozo.

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UM NOME SANTO

Um nome santo não nasce quando permanecemos


adorando seus ecos, não nasce
quando precisamos que ele nasça,
porque um nome só existe quando as ladainhas se
encontram em um templo ermo, um descampado.

um nome só deixa de ser etiqueta quando


repetidamente,
sem nenhum cansaço, sem nenhum
desalento
um cortejo segue cantando as aleluias de sua presença.

Um registro cartorário, uma fotografia, uma assinatura,


uma cicatriz na alma de quem ama
e, no fim, por fim,
uma lápide para olhar e chamar entre soluços.

Ainda que um nome seja milagre, poema,


unguento,

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ainda que estudemos sua morfologia,
ele só se faz santo quando o silêncio cala o grito
e o choro nos coloca sob a ordem sensível do mundo.

Um nome santo é sempre uma prece inabalável na boca


dos que se desesperam
por amor,
por ódio
ou por um desejo de serenidade.

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DESCOBRIMENTOS

Mulher que sempre se entrega aos sóis e vias


guardei [em nós] os segredos do tempo, uma
passagem,
a dimensão exata dos mapas do céu
tatuados na sua pele,
suas veias mostrando os caminhos dos impérios, dos
reinos imortais,
das cruzadas,
descobrindo mistérios. Um bárbaro
invadindo meu peito,
expondo costelas e nervos ao calor apaixonado dos
encontros.

De todos os planos onde já fui deusa,


de todas as rotas e planetas
que já percorri,
seu corpo – o seu corpo, sim –
é uma ilha desconhecida,
pátria sem lei,

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uma fenda na terra por onde podemos encarar o
abismo
e saltar
para onde haja apenas sua língua
sussurrada entre dentes
quando à noite inauguramos linhagens.

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UM RIO
para Marceli Becker

Quando ela chega, olhos no chão seguindo um tipo de


linha
algo de caminho dos desígnios

a outra a espera,
altiva,
entre rajadas de vento.

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VIA LÁCTEA

Quando teu corpo se aproxima


no meio de uma noite,
no breu,
eu vejo espatifamento de astros, eu acarinho
o céu com as pontas dos dedos.

Algo dentro de mim se debate


buscando
algo dentro de ti que te acalma
e que paira solene entre rajadas de vento.

Algo dentro de mim se debate


tentando
rasgar, tentando nascer no silêncio do teu hálito
em meu ouvido:

- teu voo é pleno; a rapina dos teus lábios me descobre.

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Então -
suscetível aos teus manejos na escuridão do quarto -
uma arfada ávida me faz explodir
asas enormes.

29
O GOLPE

A diferença entre a pancada e tombo está no cambalear


das pernas.
As mesmas que vibram durante o ato - teu dia
amanhecendo em mim – são as que cedem diante do
fato de que tua ausência seja sempre
passagem.

O teu perfeito golpe me pega na rigidez das coxas para


o amparo dos braços antes da queda. Mas o tombo
chega inelutável, fazendo do susto o sonho
sempre depois do nascer do dia
o nocaute, a lona.

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MENINAS QUE SALTAM DE PARAPEITOS

Algumas meninas se debruçam sobre os parapeitos e


observam encantadas outras vidinhas e pequenos
afetos. Algumas meninas se debruçam sobre as grades
e sorriem com os olhos. Depois se recolhem silenciosas
para suas modéstias e sobriedades. Algumas meninas
se recolhem.

Eu me deito sobre o vento


pincelando no ar meus dedos de autoridade sobre o
recato.
Tenho desejo de gravidade infinita. E me jogo do
parapeito das meninas, sorrindo as sobrancelhas e
deformando a boca enquanto berro.
[berro, mas não paro de cair].

Eu desabo estendida em nuvens.

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PUTAS

Elas passam pelas ruas de todas as horas arrastando


pedaços de seus corpos anteriores,
pedaços de suas trompas,
suas pontas de astros.
Passam altivas carregando o peso de antigos seios de
tantas mamadas,
braços marcados por unhas e barbas,
genitálias explodidas por muitos nãos que foram ditos
entre berros,
cabelos enozados por coágulos e vômitos cuspindo
dentes.

Caminham juntas, passo a passo, cantando


dolorosamente sua elegia da carne viva, enquanto as
ruas as observam
quase vivas,
garantidas por um mandado de segurança: cem metros
de distância

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e maquiagens de alta definição – uma renovação pela
graça de grandes laboratórios dirigidos por homens
cientistas.

As boas pessoas que assistem ao cortejo rezam de


cabeça baixa pedindo
a benção do esquecimento, mas as mulheres seguem
ensanguentadas
em direção ao espaço reservado aos que pagam
penitências e culpas: putas!

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ALICE CONTRA O ESPELHO

Falsas verdades não me parecem mentiras.


Eram apenas demasia
de um capricho transbordando
de mim para o outro.

Alice e o gato,
por horas a fio
atraindo-se pelo recôndito.

O que se mostra não me fascina.


Eu cobiço o incompreensível
e o inexplicável
que me resuma.

Procuro a passagem secreta no tronco da árvore,


e um mundo farto
de dogmas imperfeitos.

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BABILÔNIA

Estou na casa do sempre


quando abres teu peito e crias imagens que reconheço
profanas
desde tempos

atrás, o tempo do retrovisor, um pretérito,


outras formas de vida, suor,
uma arfada,
gametas e cigarros,

de memórias hieroglíficas,
dos símbolos: uma palavra é desenho com som.

Agora faz de conta que somos fluentes; que deciframos


a linguagem das caixas torácicas. Faz de conta
que já pronunciamos todas as
falas que dominam os gestos; que já percorremos
todos os traços feitos por meus dedos em teu corpo.

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Depois saltamos – juntos e destemidos –
na grande fornalha de fogo
que é teu coração-babilônia pulsando exposto.

36
A MULHER QUE FLORESCE EM CAVIDADES

Uma mulher atravessa um muro com seu corpo


translúcido e alcança o outro lado, acariciando as
vértebras torácicas.

Entre as paredes ela consegue intuir a morte atingindo


veias e músculos. Sente o calafrio: a mulher de sangue
diáfano não arde, ela não queima. A mulher que
atravessa muros não tem febres.

Suas mãos reviram toda a cavidade preparando-a para


plantar girassóis.

Mas ela não sabe onde deixar as raízes; não conhece


sobre a natureza das raízes nem sobre o bombeamento
de diafragmas.

A mulher floresce nas pequenas costelas flutuantes.

37
FAZ SOL

Logo agora que a chuva parou e que voltamos a ter


vinis na estante. Agora, bem agora que não queremos
mais ter tudo pois estamos de folga. Que não
precisamos calçar sapatos, que a lua de mel mora no
sofá de veludo. Bem agora.
Estava chovendo antes de ser hoje. Antes de ser este
cabelo ruivo secando ao vento antes de ser vida
acontecendo a partir das dez da amanhã. Mas dormir é
sonho que também é noite. Bem agora que dormir é
sonho eu escuto esses gritos lá fora e corro pra ver a
morte, o ardor, a bomba. Bem agora, bombas.
Explosões que não são coloridas e a gente querendo
um banho morno seguido de pijama cama pra dois
nossa comida. Bem agora que acabou a comida, que o
sapato aperta e que a gente desaprendeu a dançar, já
não temos cabelos nem sono nem os sonhos.

O que é que a gente vai fazer quando essa guerra


acabar?

38
MÃOS DE MEDUSA

Porque estamos todos no centro e entre.

E da ponta dos dedos da menina, luzes se decompõem


poeticamente no universo.
Raios coloridos, flashes, lasers.

Enquanto irradia energia universal – a que muitos,


equivocadamente, chamam de amor – a menina ovula
mais e mais espectros.

Ela, em fotossíntese, se faz de prisma sob o sol.

Durante séculos têm sido assim. Desde então, o sol


ficou conhecido como pai. E a menina, em plena
gestação, gira como quem colore: vida.

39
UM DESEJO LATEJANDO NA CÓRNEA

Uma vontade não é reprimida na ausência


o desejo de outro desejo, uma faculdade do querer,
uma cisma.

Teimar em fisgar o oxigênio nas trompas,


até sentir o ar alcançando as amígdalas
liquefação
explodindo nas córneas.

Arranhar as paredes da casa com os dentes,


gritar socorro
entre os buracos dos tijolos
que agora se mostram,
querer diluir o corpo e sumir entre o concreto,
assim

feito massa corrida: lisa, fina e confortável.

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UMA PALAVRA NUNCA É A COISA ANTES DELA

para minha mãe,


que me ensinou a invenção

Eu preciso falar do meu ódio, mas a palavra ódio não


consegue falar do que sinto. Também quando sinto dor,
ao dizer que dói nunca confesso exatamente a dor que
tenho.

Uma vez, depois de se assustar com algo, minha mãe


disse que ficou abismada. Aí eu imaginei dentro dela
um buraco fundo, infinitamente fundo, e muito escuro.
Tanto que se ela abafasse um grito, seu corpo todo
vibraria com os ecos do grito virado para o lado de
dentro.

Mas não era isso. Ela estava abismada, mas não se


referia a um abismo dentro si.

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Então entendi que existe uma coisa antes da palavra
ser palavra, uma imagem que tenta - mas não pode -
encontrar escoamento nos acordos que criamos.
Uma palavra nunca é a coisa que nasceu antes dela.

Por isso a poesia: algo como fazer alguém entender o


quanto de sexo contenho quando uso a língua pra dizer
que amo.

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EM CARNE VIVA

Foi durante o banho que o sangue escorreu


pela primeira vez
entre as coxas da menina.

Sangue diluindo na água, a menina derretendo purezas,


fluindo dela os segredos dos sonhos.

Sobre aquele vermelho iluminando o chão, ela pensou


em gritar o nome da mãe
[a mulher premonitória que conhecia as fendas
entre as trompas,
que sabia dos volumes hormonais nos desejos de
fertilização].

Abafou o grito entre os dedos e quis,


por um segundo,
que fosse possível devolver ao corpo sua infância
morrendo líquida.

43
Com as mãos de concha entre as pernas aparou o
sangue e untou
delicadamente
a altura do ventre, o umbigo e os pequenos seios,

– pedaços de coágulos formaram em seu rosto uma


máscara escarlate! –

quando se viu pelo espelho, a menina era uma mulher


em carne viva.

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UMA MULHER É UMA IMAGEM EM PÉ

Uma mulher caminha roçando suas asas nas pernas


dos sonhos
e as asas flamejam e estalam,
as asas chicoteiam quando a mulher se levanta pisando
no acolchoamento de nuvens.

Sempre que a mulher se ergue


– de dentro do vapor suado que circula o mundo –,
sempre que ela se mostra, sempre que a mulher
caminha

eu entendo que anjos e demônios usam seu corpo,


que anjos e demônios se irmanam

sob as formas que ela encontrou de entender o


mistério.

45
GUERRILHA

Simulo que não, ele provoca o sim. Tem fácil acesso,


nome na lista, ingresso livre. Entra, carrega as malas,
todas as balas e todos os concordantes motivos. Ele me
arranca os sorrisos, os suspiros. Arrasa todos os atinos.
Faz que não faz e desfaz a completa certeza do não.
E daí já não sei, já não importa: roupa, brincos e cordas.
O banco de trás, o beco e o balcão. Guerra indeclarável
pelo território alheio. Língua na boca do outro e
cerveja esquentando na mão.

Enquanto ele derrete, eu sua.

Líquido e rubro amor que escorre. Terra invadida que


ferve por toda a veia que corre,
briga no escuro, gangue de rua.

46
NOTAS SILENCIOSAS

Nenhum barulho ensurdece


quando
você se fecha
dentro da própria cabeça.

A quietude,
a pressão dolorosa
do vácuo, espaçoso
dentro de si.

Tenho uma gama


de embalos,
uma sucessão de deslizes
nas notas mais agudas

O silêncio
ainda me cabe como uma luva.

47
ONTOLOGIAS

Uma puta está sendo gerada em meu ventre.


Ela se contorce,
louca:
vou parir a puta que traz a alma de minha avó. Sagrada,
a puta de dentro
quer renascer explodindo a revolta de minha mãe e de
todas as minhas avós anteriores,
e das avós de minhas avós.
De todas as putas antes de mim.

48
O FIM:
O CORPO DEPOIS DO MUNDO

Eu assisto ao meu espectro que se levanta


e vive, que se levanta e vive,
como se ensinasse outras a serem espectros. Eu
escrevo um manual:

Despertar com canções de antigamente,


uma névoa de memória,
um desejo de revivamento

ao caminhar pela rua, fazer da levitação o desfile do


corpo,
andar por um bairro desertado, ouvir o ranger de
janelas,
esperar o café das dezesseis horas em uma varanda
qualquer

tentar enxergar – através da claridade –

49
rostos de deusas ancestrais e suas árvores
genealógicas

alimentar-se de deslumbramentos quando


aproximar-se de outra mulher
em observação mútua

fazer da reminiscência uma faculdade de alimento,


até que um bater de cílios seja capaz de apagar um
corpo:
e ele suma
como quem sequer tivesse existido.

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SOBRE A AUTORA

Samantha Abreu é escritora, professora e pesquisadora,


mestre em literatura brasileira pela UEL. Participa e organiza
eventos literários e publicou os livros "Fantasias para quando
vier a chuva" (Orpheu, 2011); "Mulheres sob Descontrole"
(Atrito Arte, 2015); "A Pequena Mão da Criança Morta"
(Penalux, 2018), “Debaixo das Unhas” (Olaria Cartonera,
2020). Também já foi publicada em antologias, sites, revistas e
teve textos adaptados para o teatro. Integra o Coletivo Versa,
que pesquisa e divulga autoras londrinenses.
Contato: sa.d.abreu@gmail.com

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