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Circo máximo ou Eros desencantado

Pseudônimo: José de Barros Morgado


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1. ABERTURA

Respeitável mestre de cerimônias,

Eis o magnífico, encantatório, descomunal, raro e maravilhoso público!

Milhares de olhinhos – alguns míopes, uns astigmáticos! –

Como borboletinhas fluorescentes no escuro

Que são os mesmos olhos diferentes

De qualquer país, raça, crença

Na mesma dúvida baça

No mesmo riso de indiferença.

Eis aqui a menina de lábio leporino

O casal em lua de mel

O padeiro, o oleiro, o charcuteiro

A devassa, a ex-freira, a muitas vezes mãe

A criança, o pé na cova, o sonhador.

Todos em suspensão!

O respeitável mestre de cerimônias


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Verá o espetáculo mais incrível da terra:

O jogo do espelho.

O pedófilo, o onanista, o canibal,

O amante desesperado, a virgem, o serviçal,

Grileiros, coronéis, guerrilheiros,

Dentistas, físicos, massagistas,

A mulher mais feia do mundo

E a mais bonita

Por que todo lugar tem a sua!

O respeitável mestre de cerimônias

Terá a oportunidade única, volante,

De conhecer

Nossos mundos fantásticos, imaginários,

Criativos, fugidios

E o inconcebível, o inigualável, o insuportável

Lugar-comum!
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Aqui

Rimamos amor e dor

Mas amor e cor também

Tanto se nos dá na telha

Porque as rimas inspiram

O encontro do sofredor e do sonhador!

Somos poetas ruins!

Somos bons!

Somos enfadonhos!

Somo gênios!

Não estranhe nosso olhar de esguelha

Nossa dúvida

Nossa fé

Nosso calor.

Abre bem os olhos, abre as cortinas

Como se diz em seu país distante.

A gente fica aqui, de cisma constante.


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2. PORTA PUMPŒ

Vai-se o circo

E a mágica dos mundos circunscritos

Os penhascos de rubi

Os danados, bem-aventurados, escusos,

As metáforas de metáforas afora

O psicopompo e o sacerdote de Mitra

O mundo inventado a partir de um Teorema.

Longe vai o castelo, a catedral, o totem

Pulveriza-se a doutrina do contentamento

Há das estacas as marcas mudas

A força das amarras, a lona dura, já no chão estendida

Jaz

O silêncio do malabarista

A suspensão da plateia

Plumas, rugidos

Balançar de rede, susto

A garra, o equilíbrio, a labareda, o peso da alimária

Argolas de fogo, areia batida.


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Vai-se o circo, mundo inventado

Começa do fundo, luxo encarnado

Ameaça perene.
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3. PORTA TRIUMPHALIS

O rei Tarquínio sonhou com um sol a cegar-lhe:

Era a vinda do império.

Para ele, seu próprio brilho

Então o circo, a areia, a corrida.

E veio Soberbo

E veio Colatino

E veio o império

Sobrou do sonho de Tarquínio o circo.

Soberbo sonhou com um ambulatorium

Colatino com bancos especiais para os reis, com o podium e uma porta triunfal.

Mas o sonho mais nobre foi o de Nero.

Em seu sonho um estrangeiro escrevia com tinta negra,

E a escrita era ao mesmo tempo a idéia e a coisa

Um cavalo, areia, aplausos.

E foi o que fez.

Da sinuosa e elegante caligrafia do sonho de Nero, surgiu o circo:

Circus Flaminus
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Circus Vaticanus

Circus Romuli

Circus Constantinplæ

Pantomimas, cenas militares, clowns, equilibristas, domadores, animais, rufiões,

malabares, zebras, plumas, brilhos, lantejoulas caídas.


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4. SPINA

A tenda vem do oriente

É o que vejo quando

Abro um antigo tomo

E no labirinto de páginas

Surge uma gravura delicada

Pintada em cores vibrantes

É uma mulher de olhos negros

Fonte decerto de beber aos cantadores antigos

Saciar da sede

Ela caminha a passos lentos

Ao som de sinos e trombetas

Chiang Mai

Samarcanda

Ugarit

O mar mediterrâneo

No alto de um rochedo, pelo caminho


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Como uma oração fúnebre, lendária

Em caracteres assírios e babilônicos

Lê-se: Reis dos reis, filho do grande rei, filho

Conquistador e deus

Apenas

Num epigrama encantador

Em grego o raro emprego

Do cantado e do cantador

Apenas

Volto as páginas

Era uma deusa de asas de prata

Numa mão segurava um cálice

Noutra mão portava um camafeu

(efígie de Afrodite Anadiomena)

Vestia um traje de bordado com fênix dourados

Tocava um tambor de seda

Presa por bambus

Que príncipe algum da terra poderia ouvir

E chorava pérolas
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Lia rostos como quem lê cometas

E realizou um périplo por Creta e Istambul

A princesa de olhos de ônix

Andava sobre tamancos venezianos

De marfim esculpido

E arrastava um manto bordado de veludo vermelho

Debruado com canutilhos furta-cor

Formando flores de lis

Qual o som de um tambor de seda?

Fecho o livro e disparo uma seta negra

A tenda cobre nossas cabeças

E nos protege da tempestade de areia

É possível porque o homem inventou a matemática

São poliedros concêntricos em suspensão

Complexos, vazios, vazados

De gelo, de areia, de linhas celestes

Como a poesia
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Que é farsa, não existe

Pois é metáfora que se acaba

Não persiste

Deixemos que saiam os versos com pés quebrados.

O mastro sustenta uma torre de Babel

A lona avançando aos quatro cantos

Ora ameaçada pelo vento: ondulação

Modo de vê-lo: dança eólica

Ora lutando contra ele

Modo de sê-lo: crença bucólica

No Inatingível.
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5. MULHERES MALABARISTAS

O circo se vai

E leva os tapetes dourados de Kublai Khan

As jóias da imperatriz Teodora

Que atravessa o picadeira com um corpete de paetês lilases

E plumas de galo negro

Ela e o elefante

Cujas patas podiam e não podiam esmagar a suave cabeça da imperatriz

O brilho é efêmero

Fiordes também o são a seu tempo

E o momento é aquilo que outra coisa não podia ser

Também as três moças e os cavalos

As três mais belas que andam juntas

Dançando os cabelos louros, negros ou ruivos

São três fadas, as três meninas

Trindade de musas

Trio de beldades puras

Mas são também três parcas

As três meninas comportadas.


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6. ROMANCE DO MESTRE DE CERIMÔNIAS E DA CONTORCIONISTA OU O

DISCURSO DO APAIXONADO

Antes de escrevermos

Deparamos com um caderno de 50 folhas

Ora demasiadamente pequeno

Ora imenso e intransportável

Antes eu escrevia para quem não sabia ler

Para cegos

E compunha para os que me ouvir não podiam

Nunca trabalhei para especialistas

Sempre respirei o silêncio das palavras e as flexionei indistintamente

Pois minhas linhas são simplórias

Descrevo paisagens e objetos

E ainda não conheço filosofia

Nasci de um ventre simples

E brinquei na grama

E minha pele é ressecada pelos sóis primaveris

Bebi água de rio corrente

E já tive cavalo e escudeiro


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Vou pegar sua mão e conduzi-la ao rio

E sentar na grama verde

Olharemos o movimento irregular dos redemoinhos

Que são pensamentos desalinhados, inconstantes, que correm para o mar

E trocaremos sonhos

O outono chegou

E traz um azul profundo e frio

E folhas secas que sugerem poemas

Levam-nas os redemoinhos

Dorme ao som dos pássaros

Velarei seu sono

Pois é ao lado do amante que o amado repousa

Depois aproximemo-nos da água

Veremos espelhos móveis

Olho para a água, Ana

A meditação e a água são ligadas para sempre

Eu mergulho no espelho

Para alcançar a imagem fugidia

Mas malgrado a esperança

A imagem está a léguas de distância

Na suave planície vertical e luzidia


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Estou num barco

Para onde, nau, agora me leva?

Para onde, agora, vento sopra ?

Para onde, vagas, agora miram ?

Sou náufrago, Ana

Estou perdido no mar

e o sol queima minha fronte febril

E destilo de minha pele gotas amargas

Combustíveis

Ouço uma música atordoante

Ou serão os ruídos das asas quebradas

Das libélulas engolidas pelas ondas?

Vitral nouveau estilhaçado

Levanta da rede a cabecinha

Curiosa

Para melhor ver a movimentação de seus vizinhos

Já vejo o vai e vem de sua pele de lírio

E o roçar das navalhas que são suas unhas

Olho para água


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Transitando entre o azul e um

Esverdeado azulado

Que reflete em espelho

Seu oposto

Choramos diamantes

E criamos sem querer

Áspides pequenas

E encantadoras

Quando despertar verei seu corpo estendido

Num leito de edredons escarlates orientais

E negros

Amassaremos as flores com que decorei seus cabelos

Pela noite

(eu quero uma túnica bordada com seus cabelos feito ônix)

Emoldurando suor congelado

Ainda arfando, mas suave

Aproximei de seus olhos uma lâmina e sequer os fechou

Pois o amor é assim: um horror surdo

Seu corpo proibido


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Estende-se sobre uma pira incandescente

E exala aromas

Sagrados e distantes

Desejo esse corpo sagrado

Esse corpo de sacrário

Um ser de altar:

O sono de um suicida, Ana

É um namoro com a morte

Mas ainda não é a morte

É um sono de leve de dor

(mas ainda pecado)

Pesado e sem cor

Esfacelado

Pluma e adaga:

A alma que voa, a vida que apaga

De repente tudo escureceu

E a humanidade ficou cega

Eu furei meus olhos para ver-te

E ninguém viu a pétala

O anjo, a asa

A pluma, o pavio
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De todos os fogos, o fogo

Repetição da chama primeva

Que arde cá e lá

Sem diferença

Todos os deuses, o mesmo deus

Todos os fragmentos, o fragmento

No nada, Ana

Em cada parte

No escuro

E onde arde a vela

A vela acesa

Há outro copo

Uma cadeira

E uma mesa

Não há mais nada

Aí está tudo

Sem eira nem beira

Mente apagada

Resta-me um poema

A rima se perdeu

Sob a poeira
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Passo a passo, pé ante pé

Percorro o labirinto do mundo

Atrás da poesia, Ana

(o veneno de suas unhas)

Aquela que está e não está

Cada rocha, rio arvoredo

Vidro, gema, genoma

Folha, cinzel, passaredo

Vamos imitar os velhos

Poetas

Rir da mesma piada

Acenar para a velha que passa

A morte não é triste

É um vício vulgar

Prende-me à vida, Ana

O desejo de ver o mar

No verão, o luar sobre o mar

No cais, os navios
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A movimentação dos marinheiros

Os estivadores

O amor que vem é como o navio

Que não cabe no olhar

O amor que vai não difere

Logo desaparece

O mar cura minhas feridas

Sal

Tenho sede, Ana

Mas não me dê de beber

Deixe-me morrer avaliando os desmoronamentos que encontrei

Tenho fome

Mas não me dê esse fruto que tu olhas com cobiça

Deixe-me pensar nas cariátides mudas

Nos anjos quebrados

Nos buracos de balas dos muros

Tenho dor

Mas afasta sua mão de minha ferida

Ela é delicada como o dente-de-leão


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Fume novamente um cigarro na janela

Para eu ver seu perfil iluminado pelo sol

Depois vai, sem olhar para trás

Vou acender uma pira na noite de trevas

E sacrificar uma rês

Branca, de lírio, de hóstia

Uma pomba, cereais

Um carneiro de lã pura

O sangue mancha a terra estéril

Há muito sem vida

Na câmara ardente,

Um vale de lágrimas

E o pranto, um poço profundo

Bicicletas cortam o asfalto da madrugada

Enquanto ouço canções antigas

Cansei de contar estrelas

Contar estrelas é vulgar

Como enumerar grãos de areia

Também matar dragões

E aprisionar pássaros azuis


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Decorar Vieira, Camões

Ou Virgílio de trás para diante

Eu flexiono advérbios

Conheço a acepção exata dos vocábulos

Canto fonemas de línguas africanas

Aprisiono a música

Vaticino catástrofes

E canto para você dormir

Leio tocário

E conheço seu nome secreto

Que é a junção das palavras da Bíblia e do Alcorão

Um palíndromo longo, escandido

Imito o som dos basiliscos

E falo a língua lunar

Quando a lua é cheia

Eu trouxe para a praia o mar

Carreguei uma estrela em minhas mãos calcinadas

E matei o minotauro

Bebi veneno de cem víboras

Escalei a montanha de Sísifo


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E contei as folhas de um Baobá derrubado pelo frescor de meu sopro

Cortei os pulsos para Baal proteger meu gado

E roubei o colar de um khan

Ana, meu livro de cabeceira tem muitas cores:

Reza comigo, ele, enquanto caminho

E narra-me lendas antigas

E é tão pesado que mal o posso carregar

Pois cada folha possui mil páginas

Ana,

Vim para lhe descrever flores

E mapear pétalas

Como um cartógrafo de plantas

E um legista de folhas

Que questiona a causa-mortis

Dos vegetais derrubados pelo frio

Venho para lhe falar de pedras

E da arte glíptica

Venho descrever ninfas esculpidas

Mas venho sem mapas de pétalas

Venho sem óbitos de folhas


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Venho sem tatear esmeraldas em relevo

Caminho cabisbaixo

E lhe trago mãos vazias, meio tristes.

Plantamos uvas há anos

E trigo na última estação

Hão de nos fortalecer o sangue

Olhamos estáticos o V das aves migratórias

presságios

Seus arrulhos diários e antediluvianos se nos pareciam de prazer

Invejavam-nos os lírios campestres

Pois tínhamos cortes nas mãos e as têmporas

róseas de sol:

Sangue e ouro

Passou a ave e feneceu o lírio

E brotou o joio

Se são sete as chagas, são sete os pecados

São sete as pragas

Podamos as videiras, não assamos pão

Cresceram nas faces sulcos sinistros

Olhamos paralisados o V das aves migratórias


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E colhemos lírios para altares vários

Nunca se esqueça que nada somos, Ana

Viajo em séricos tapetes bagdalis

Se andamos numa bolha de ar

Volátil e leve, sonho aéreo

Sobrevoando tatâmis de ipês

Vendo lírios amarelos

Dulcíssimos nos canteiros das calçadas

Ah,

Se usamos jóias de calcedônias e lápis-lazúli

Desviando do pó das britadeiras

(semanas escorrem como sangue)

E voam palimpsestos de Calímaco

Invejados em Pérgamo e Éfeso

Ah,

Se vemos hipocampos de ouro

Pendurados nas orelhas das mulheres

(pensamentos voam como águia)

Se, de olhos vendados,


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Arriscamo-nos às florestas dos sudharbans bengalis

Aos vales úmidos de Ngorongoro

Gnus, gnomos, gdankis, guindastes

Guinchos, guizos

Mosaicos

Ah, nada somos, Ana

Nada somos

Projetos de sombras nos asfaltos ferventes

Se viajamos com imagens de goyas, martes rembrandtianos

Séries de Rabelais

(bergantins e naus fenícias formam alfabetos no céu)

Queremos um pouco de paz

Nada

mais........................................................................................................................................

................................................................................................................................................

................................................................................................................................................

Não, Ana

Não enviarei antúrios

Que fenecerão ao entardecer

Não enviarei catas de amor

Que serão cinzas antes da noite

Guardei seu ramalhete de rosas


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Cujas pétalas são cacos de vidro

Nascidas num terreno de espinhos ardentes

Cercados de ciprestes retorcidos

Crispados de agulhas

Somos os dois namorados na praia

Ferindo os pés nas conchas mortas

Desviando-se das ondas

Brincando

Rumo ao nada

Que vão olhando para trás

Vendo as pegadas apagadas

Tão apaixonadas

Debruçados numa janela de pousada

Uns olhinhos miúdos e míopes percorrem a praia

Invejando os namorados

Tão apaixonados

Brincando na praia

Passeando na calçada de pedras negras e brancas

Irregularíssimas

Uma senhora de luto vai olhando para trás


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Buscando na turva paisagem

Lembranças guardadas num túmulo

Parando para ver os namorados

Que

De tão apaixonados

São versos marítimos

Quando eu te amava

Desenhava corações frios, frágeis, efêmeros

No suor das garrafas

E construía imperfeitos anagramas imperfeitos

Acrósticos pueris

Que escondia nas dobraduras da agenda

E me sentia só nas partidas de xadrez

Guardava petalazinhas de rosa

Retrabalhadas com um estilete roubado

Em envelopes de papel vergê

Quero pegar sua mão pelas ruas de Jerusalém

E rezar em quatro línguas

Para quatro distintas religiões

E chorar no muro
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E lamentar sua ausência

Ó, mar de braços infinitos

Que liga e separa continentes

Ó, Jerusalém libertada

Berço de tantas orações

Quero atingir os cumes de seus montes sagrados

À sombra das figueiras

Vou sequestrá-la

E invadir a Europa como um touro

E chorar pingos de ouro nos seus cabelos escuros

Ainda que mais uma vez

Camões não tinha razão:

Vemos o amor e sua ardência

É um animal acuado

num canto

Com olhos de pavor

Chorei sobre sua pira

Sobre a qual repousarias eternamente

Seu corpo suave

Você morreu tantas vezes!

E fui derramar suas cinzas no mar


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Esperando que as ondas me as trouxessem às praias

Você voltou tantas vezes!

O barco balançava estupidamente a urna dourada

Idiota

Vazia de seu corpo

O mar agora lhe cobre, enlaça, envolve

Observo a mica brilhante, para mim sua alma

E o feldspato escuro, seu corpo morto

E me ponho a construir castelos e dédalos

Agarrando a areia sem o decoro não atípico dos amantes

Espumas são suas palavras jateadas

Ardentes de calafrios

Vêm cifradas nas conchas mortas e retorcidas

Tantas vezes se foi

São tantos corais e conchas

Da outra vez segui seu féretro

E atirei três punhados de terra

Antes da lápide, do manto

Do epigrama composto às pressas

Digno de Golias

Depositei espadas e fundas


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E terei chorado horas

Como nunca Iolau terá ouvido algum pranto

Cresceram lírios sorridentes

Que iluminava a expressão

Da fotografia exposta em bronze

Vi, então, seu corpo arder

Partir numa nave nórdica ao horizonte

Ser no seio da terra depositado

E tanto hei prateado

Mas eis que está no mar

Nos lírios, nas fotografias

Por que não morres?

Quando seu navio partir acena

Uma última vez

Para eu chorar no porto

A lágrima cai fácil

Triste como toda lágrima

Nunca a última

Não queremos ver o mundo debruçados na janela

Lá passam os amantes
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Toda lágrima é doce

Quando chega à boca

Todo beijo é falso

Toda paixão embuste

Todo ato de amor, impuro

Quem ama a paixão não ama ninguém

Na loucura da sede toda fonte é pura

Todo amor é pó

Sem sopro

Artemísia vai traçando os últimos esboços

De um túmulo dedicado a Mausolo

Não entendo bem metáforas

As dores diante de cujas portas

O sorriso por causa de cujo vinco triste

A solidão por através de cujos labirintos

O vazio em meio a cujo centro

Os demônios de cujas alabardas

Eu, as metáforas despedaçadas


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Na escuridão proliferam demônios

E esqueci como usar as contas do rosário

Que se liquefaz
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7. TRAPEZISTAS

Anjos afrescos voando sob o teto baixo da catedral

O sonho é volátil, libertador

O desejo tem asas de chumbo, cárcere

Ventos têm asas dessemelhantes

Como plumas, uns rufluam as asas

De lado a outro

E são o orgulho das aves migratórias

Outros, irreverentes, são chaminés

E fazem o movimento de baixo para cima

E são o regozijo dos planadores

Dos artistas dos ares

Que são anjos

Porque prescindem de pés

Com sua divina matéria podem percorrer o espaço tão rápido quanto Mercúrio

Desdenham as asas pois que para voar Deus lhes deu uma essência etérea

[que escapa aos sentidos mortais

Asas os pássaros possuem para voar

Para correr atrás das presas

Para embelezar os jardins dos reis


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Para ceder aos escritores a pena que se embebeda em

[tinteiros azuis

Mãos de anjos seguram palmas e espadas de fogo somente no imaginário

[dos mestres da pintura

Pois os mestres

Para glorificar o criador

Pensam em homens e não em anjos

Mãos podem misturar venenos misturando essências de frascos escuros

Podem segurar punhais e crateras de vinho

Anjos não pensam em morte nem em opulência

Não vão à guerra os anjos

Não percorrem as naves e o transepto nos dias de coroação cobertos com

[tecidos orientais bordados a ouro

Os anjos apreciam voar rente ao teto das catedrais

Meio indiferentes

Depois vão embora

Cansados da fuligem das velas e do burburinho das orações.

Era uma vez um pássaro com asas de ouro

Esse pássaro-midas, frígio

De pesadas asas
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Voar não podia

Ovídio não nos revela

Que Dionísio, embebedado por tanta beleza

Imortalizou-o com Aurora Boreal


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8. DANÇARINA

Cada homem é Lúcifer

Lançado contra a História

De costas vê o tempo passar

Com as mãos estendidas

Sem poder tocá-lo

Traz no pescoço uma esfera de luz

Que vai enegrecendo

Enegrecendo como as duas Sombras infinitas

Caminhamos da Sombra para a Sombra

Vendo maçãs que caem em qualquer canto

A rolar como pequenas rochas

Abatidas

Vendo mesquitas que viram capelas

E catedrais que ganham minaretes

A dançarina é curda, persa, urdu?

Ela entoa um canto de uma língua morta

Mágico

Indecifrável
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Poriaskandas

Fá-la tida, fá-la tida, cruspius

Tandeámos, priskaia morfia

Dariánoske, suspiando, prínceps

Alma atá, lukas viertá lukas viertente

(que são as orações senão a repetição de algo que se perdeu, do sagrado perdido,

sacralizado no ato mesmo da oração, a palavra como o próprio ícone e o ícone, o retorno

ao primitivo mais antigo e mais certo, a dúvida e a absolvição, a certeza e a beira do

abismo)

Seus véus esvoaçam como o pensamento que rumou ao Himalaia

Em cada palavra há uma mácula e uma absolvição

Seu olhar é um lago algo doce

Algo iluminado por um clarão

Vajra

Sem dimensão no fundo de um poço

Santo

Um lago algo espelho

Onde o teto é também o fosso

Cântico

Um tanto frio, um manto morno


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Uma parede, uma prisão

Um refúgio, uma armadilha

Esconderijo

Era o olhar triste

Pura e inacabada poesia

Da mais pura, da mais etérea

A perambular pelas ruas sinistras

(porque as ruas são sempre sinistras perto dos poemas)

Como quem diz: eis-me aqui

(porque a poesia sempre dança arrancando véus)

Não eram verdes nem azuis seus olhos

Eram negros

Como nos infernos deve ser o céu

Arrojada não é a Toledo

Lavrada na mais pura prata

Nem o brilhante no dedo

Que para a terra não vale nada

Toda alma é negra, de um negro luzidio

Sem candeias

Por sorte nascem lótus nas almas de alguns


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Que percebem o tremor ao vento das palmeiras

A singularidade de um nó de bambu

Mas talvez haja uma chama

Simples e intrincada como uma raiz

Que se alimenta da pureza de detritos

A dançarina sonha com um milharal em dia de sol

Imagina andar pelas ruas de Bizâncio

Ver o rosto de Tammuz

A dança de Shiva, Salomé, Sherazada

O luar sobre Alexandria

E os doze touros do Templo de Salomão

Quer inebriar-se com um olhar azul

Cuja cor, se escapar, inundará o mundo conhecido

Limpar as migalhas de pão

E os lábios de vinho

Passear por dunas

Em janeiro, com estrelas cadentes

E sentir a ornis vaporosa deslizar sobre sua pele

Admirar o alfanje

E o acutilamento em couro do soldado


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Mas suas mãos recusam os mudras felizes

E seus pés não estão mais pintados

Um filho morto

Uma música antiga

Um amor distante

Uma face devastada

Fá-la vierkastas tila

Fá-la vierkastas kará

Choremos cada um nossos mortos

Ao filho cantemos em seu túmulo uma canção de ninar

Ao pai brindemos com um trago de aguardente

Que será fogo antes que brisa

Para a mãe vamos preparar uma refeição frugal, bem leve

Que outra coisa em vida não fez nem teve

Vamos matar todos

Um a um

Todos os nossos sonhos

Eles são veneno que se espalham entre as hortênsias e os heliantos

Vai gritando sua oração por todas as planícies


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Por todas as cordilheiras

Cada palavra arde como chama

E vai deixando um rastro de fonemas

Que começam a ecoar em cada montanha

Fazendo nascer fontes

Definhando ninfas

E fazendo pavões chorarem porque têm olhos em vez de ouvidos

No barco

É o barco, a proa, a popa, o estibordo e o bombordo

Beija as águas

O brilho espelhado do sol

Em milhões de estilhaços

E olha para trás

Tentando apagar o passado

É a lua e seu oposto

Uma serpente

Um cordeiro

Um touro levado pelo djin das marés

Olha para um gato


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Que vai de um lado a outro do picadeiro

Um desenho de da Vinci

Levado pelo djin dos caminhos terrestres

Qual o sentido da flor?

Uma criança sorri ao ver o falcão

Levado pelo djin dos ares, dos ventos

O sorriso sempre sagrado rompe a dor

A rosa não tem sentido

É uma rosa que desabrocha, depois morre

O matemático diante do zero

O buril que encontra um nó

E escapa da mão

A linha da tecedeira que se parte

No último arremate do ponto

O ponto final que não vem

O ovo partido

A lágrima dura

O anel caído no bueiro

A pérola morta
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O retrato que amareleceu

A tinta esgotada

A taça vazia

O abismo na estrada
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9. PALHAÇOS ou  

O outono chegou e preenche os pequenos

Espaços entre os calores

O céu é azul

Os amantes passeiam sob seus auspícios

Distantes da primavera

Abril dos meses não é o mais cruel

Os amantes mudaram de praça

E passeiam abraçados não mais protegidos pela noite

Um a roubar roupas de um varal

O outro a buscar o que o olhar não percebe

Um a proteger o outro das milícias

O outro a buscar o néctar das manhãs

Conheço aquele árabe de um bar

Aquele louro já se viu pelas ruas

Vestido numa jardineira imensa, azul

Aquele procura nervoso algo nos bolsos

Este suga o cigarro como a retirar dele vida

Não se pode invejá-los

Nem pela distância do mundo ordenado


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Nem por estarem juntos

Todos temos nossas drogas e nossos amores

Pode ser que desconheçam a irregularidade das pedras da calçada

E vão de bar em bar à caça de fichas

(assim como arrancam aplausos de fileira em fileira)

Um anjo está sentado no alto do teatro

Depois sobrevoa a praça para ver os amantes

Ajeitando as asas sob as costas nuas

E chora

Corramos nós também atrás do néctar das manhãs

Mas não choremos

O choro dos anjos corrói as colunatas

Para os anjos muito frágeis

Como estalactites
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10. DOMADOR

Só se entra, Daniel,

Quando a fé do fiel

Desmorona de vez.

Só se olha, Daniel,

Quando a crença caduca

Muito mais que o talvez.

Daria o rei medo

Atenção a esse credo

Soubesse ele que é cego

O medo menor que o ego?

Então, não nos minta,

Daniel

Ao alcançar o sol sua tez.

A soberba é a mãe dos pecados

E olhar de Deus não é um


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São três.

O leão de Deus,

Daniel, Ariel,

É, claro, vingativo.

Dos olhares seus

O que mais detesta

É, esse, altivo.
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11. A MULHER GORDA

A mulher gorda sorriu ao ouvir os pingos da chuva, o barulhinho na lona dura, circo

vazio, e ao ver passar

correndo o faquir.

Quem orbita o corpo de Anastácia

Deve temer sua rota

Seu desejo oculto de colisão

E depois seus resquícios irônicos

Marcas de satélites perdidos

Os vendavais, os redemoinhos que provoca

O tom da sardônica de seu vestido

Seu sorriso de prazer.

Anastácia reivindica seu lugar no espaço

Cada vez maior, espaço, lugar, sarcasmo.


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12. MÁGICO

De longe miro as muralhas de Jericó

Enquanto os exércitos não impõem armas

Mas sim trombetas brilhantes ao sol

A mágica é desvelamento, descobrimento

O mágico conhece o segredo da trombeta

Quem escreveu o Gênesis

Fazer rufluar as flâmulas de d. Sebastião

O mais louco dos cristãos

Fazer chover

Grãos dourados

Interpretar o sonho mais complexo de José

Revelar a magia dos anjos que se casaram com as mortais que Deus muito

[belas criara

E as sendas da retidão

O que antes do pó há

E o que há depois do pó

Ele revela para nós a estrela de cinco pontas que está no centro do picadeiro,

[umbigo do mundo.
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O universo do mágico vai de alfa a ômega e ele vê o estilhaçamento do mundo, o ápice, a

ave, a arma, a analogia, a aliança, a areia, a armadura, a águia, o arco, a auréola, o bote, a

besta, o barco, a bainha, o báculo, a barca, o bar, a bússola, o binóculo, a bula, o buril, a

bílis, a carta, o colo, a caneta, o cavalo, a crítica, o caracol, a cúpula, o coro, a cor, o

corpete, o denário, o dado, o dardo, o disco, o ditame, o dourado, o discurso, o desejo, o

discípulo, o dedo, o elefante, o espelho, o espetáculo, o escudo, a esfera, o estilo, a

estrela, o estilete, o espécime, o eunuco, o estado, a faca, a foice, a foca, a família, a fada,

o fardo, a fome, o furo, a figa, o figo, o gato, a gaita, o garrote, a gama, o gorjeio, a

gorjeta, o gordo, a gema, o golpe, a grama, a hora, o horto, a horta, Houdini, o homem, a

hera, o hímen, o húmus, a hóstia, o humor, o hóspede, o istmo, a igreja, a ira, o índio, a

íris, o ímã, a ilha, o idiota, a imensidão, o irremediável, a jaca, o jovem, a jóia, o junco, a

juta, o jeito, a jangada, o javali, a juriti, o julgamento, a laranja, o leme, a lâmina, o

lêmure, a lâmpada, o leque, a luz, o lampejo, a lei, o meio, a metade, o marco, a marca, o

misto, a mística, o martelo, a meia, o morto, a multidão, o navio, a nau, o neto, a nuca, o

natimorto, a nuvem, o núncio, o ovo, a ogra, o óbito, a ostra, o ontem, a orca, o ópio, a

ordem, o óbolo , a oração, o pátio, a prática, o prédio, a palavra, o pé, a pistola, o passo, a

piastra, o peso, a parte, o quieto, a quimera, o quarto, a queda, o quadrado, a quadrilha, o

quartzo, a quota, o quê, a quilha, o rato, a rama, o rastro, a rota, o rol, a rua, o rei, a rena,

o resto, a réplica, o surdo, a sarda, o sal, a sombra, o suspiro, a saída, o sextante, a sesta, o

sono, a senda, o tapete, a tília, o tonel, a tábua , o tiro, a tigela, o tímido, a túnica, o tabu,

a tatuagem, o último, a uva, o único, a unha, o ultimato, a urgência, o úbere, a úvula, o

uso, a úlcera, o vinco, a vulva, o vínculo, a vacina, o vazio, a vida, o vaticínio, a vírgula,

o vórtice, a vítima, o xadrez, a xícara, o xeque, a xilogravura, o xale, a xara, o xamã, a


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xiba, o xisto, a xantopsia, o zigurate, a zorra, o zeugma, a zebra, o zepelim, a zanga, o

zodíaco, a zoada, o ziguezague, o zênite.

Vladmir é sardônico

Pois mandou gravar, já, sua lápide:

“Aquele que a vida fez sumir”

Sua capa não tem símbolos mágicos

E sim equações bordadas

Vladmir não crê na mágica

Sabe-a falsa

Ao lhe perguntarem: essa não seria a capa do equilibrista?

Ele responde: o equilibrista é um mágico.


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13. CARTOMANTE

Presa numa ilha, a velha cega

À espera dos navios, os monarcas.

As nuvens escuras, o mar Egeu

O futuro, um prato de prata

Os arbustos rasteiros, o sol grego

A felicidade, possibilidades.

Há água no prato raso

Que observa ao ver girar com lentidão

A água, princípio das coisas

E seu fim mais certo

A pitonisa

Os navios vêm e vão

E a velha virgem, presa na ilha

A serenidade das estátuas gregas

O silêncio que gira sobre sua cabeça

O vento, o pensamento, a lembrança remota

Lançada ao futuro

O cristal, o fogo, as vísceras, o céu, a carta, o deus, a borra, a água, a mesa,

[a visão, a vareta, a pedra, o dólmen, o búzio, a íris,


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[as linhas de Nazca e a pele sulcada,

[palma da mão.

O que vê o cristal?

Ele vê o gato de Nefertite

O mar  túmulo de marinheiros

Uma urna de cinzas rumo ao poente

O futuro, enigma e certeza

Lá está Ana, que amou até a morte

E Putífar, sepultado sob os ciprestes

O ideograma para cavalo

O primeiro nome revelado por Champollion

Os redemoinhos do regato

A naumaquia

O tridente do gladiador

caído

O ventre da dançarina

os sulcos precisos no mármore

A rota do navegador

As sete maravilhas cada qual destruída e remontada no imaginário dos

[sonhadores.
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...sem escolha,

Fecho os olhos e vejo quantos seres morrem nesse exato momento

Um tordo nas Ilhas Faroe

Um leão marinho

Uma menina santa num subúrbio de Caracas, estigmata.

Não vejo nascimentos.

Dá-me tua mão para eu ver a geografia

Dessa planície sulcada

Mas cuidado

Caso veja que morrerás amanhã.


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14. ATIRADOR DE FACAS

Entre a vida e a morte

O atirador de facas vê brilharem os brincos da assistente

O corpo desenhado

O corpo vivo frente ao desenho

A alma

A maquiagem azul

A musculatura da face

O medo de viver

O olhar

A nuvem escura

A mácula, o mote

A plateia em silêncio

A ponta da lâmina

Madeira perfurada
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O gume, o golpe, a gota

De suor

As franjas de cristal negro

O animal malhado

A neve fria

Todas e cada mancha da alma

O atirador mira um desenho

Uma faca, tábua perfurada

Outra faca, ponto a ponto

Dez facas, treze, trinta

Trezentas vezes

Trinta mil facas

Vida em fio

Navalha, katana, sabre, salamanca, cimitarra

Tapas, patas, palmas


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15. NUT

Há um céu estrelado sobre nossas cabeças

Como espadas pendentes

São estrelas cadentes

Faça dia ou seja noite

Faça chuva ou sol

São estrelas silenciosas como pedras

Meteoro, granizo, avalanche:

Qual nossa chance?


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16. PIPOQUEIRA

A pipoqueira daria um romance

Depois base para um filme

E ganharia vários prêmios europeus.

Quireras brilhantes

Sal

Açúcar,

Por vezes, manteiga.

Sua pele cheira a cortiça

Chocolate

Terra

Tem o hálito amargo da semente de café mordida.

Veste-se de algo como juta

Cor de melaço.

Quimera
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17. DONA DOLORIDA

A pergunta da mulher barbada

Frente ao espelho

É muito simples.

É possível amar a um

Dos gêmeos siameses?

Que é maior:

O barulho lá fora

O silêncio aqui dentro?

Onde é mais escuro?

Haverá um cavaleiro

Para o Clavileño?

O que é uma casa?

O que é o chão?
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O que é a estrada?

Quem lhe enviará flores?

Qual o significado mesmo que remoto

De teratologia

E o que seria o hirsutismo senão um enigma de Ribera?

Funda, cimitarra, alabarda

Cada soldado, sua farda.

Projétil, punhal, dardo

Cada soldado, seu fardo.

Mulher-menina

Mulher masculina

Há como falar em sina?

E sai por aí,

Cofiando ideias.
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[No fundo, ela sabe:

Antes que o dia acabe

Tanto ela quanto o anão

Desviam toda a atenção

Dela e do si mesmo

Busquem a diversão

Ou perambulem a esmo:

Ser máximo da sedução

Speculum

Serão um só

Da sombra à sombra

Do pó ao pó.
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18. ARGOLA

Ora o aro ora a hora

Roda a menina na argola

Suspensa num céu de estrelas de papel alumínio

Paira a dúvida:

A menina sem o aro é a menina?

Menina-aro, menina-argola

Ora aro, ora menina:

Mundo inconstante

Servil ao acaso

Preciso no atraso

Indiferente ao espetáculo

Há quem pergunte:

Argola tem fim, tem começo,

Tem meio, tem área,

Espaço?
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16. POMPAS FÚNEBRES

O vazio é mudo.

Vazio é a carta sombria enviada ao amigo mais nobre

Vazio é a secção da esfera das rodas das bicicletas

Vazio é o estouro da bolha de sabão

Vazio é o vão dos dedos dos anciãos

Vazio é o ar que circula entre as penugens dos amantes

Vazio é a folha do diário chaveado

Vazio é uma chávena de chá frio

Vazio é um colo sem pedrarias, um bordado sem canutilhos

Vazio é o papel do cigarro que contempla mudo a fumaça

Vazio é o espaço entre os fonemas das palavras raras

Vazio é o calor do assento dos cinemas

Vazio é a aura das flores de maio quando chega junho

Vazio é o punho doente emoldurado em gesso

Vazio é um cachimbo, um bule, um pente, samovares

Vazio é um casario sem sombras ao crepúsculo

Vazio é um leito estéril, corpos ardentes, onde não corre o rio

Vazio é o monte Tabor, Olimpo, Atlas sem Paladas de Alexandria


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Vazio é a alabarda e a adaga num museu

Vazio é o peito ofegante, o corpo doente

Vazio é o pássaro que se agita no calor oco das mãos

Vazio é o mito de Sísifo, da rocha, da colina

Vazio é a circunferência ígnea da aliança

Vazio são as pepitas de ouro dos milharais,

[os cântaros de vinho de Midas

Vazio é o exército de Aníbal, a pena de Dürer, as almas de Ênio

Vazio é o pecado sem absolvição

Vazio é o cálculo matemático, a lei mais humilde da física e o entendimento

[do espaço

O depois, o esmero, o desejo mais ardente

A lágrima

A clepsidra próxima à chama

As vagas

O antes

A ágora

O agora

Oa

O início de tudo,

Com certeza, seu fim.


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19. CEMITÉRIO DE ELEFANTES

Será a morte um abismo

Uma queda livre sem destino

Com o horror da queda

E a ideia – sempre presente –

Do esfacelamento

Ou será a morte um voo

Para o alto, abismo ao contrário

Onde a luz do fim

É negra, escura massa

Nunca encontrada

Numa queda que nos suga

Dentro de uma catedral

Onde ogivas dançantes

Sobem e rufluam como

Aurora boreal

Ou será a morte um vagar

Solitário, com o sofrimento

Da não lembrança de nada


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Ou será a morte um tumulto

Onde ninguém nos vê?

Será a morte o esmagar surdo

Da pata de um elefante

Ou um veneno lento

Da áspide oscilante

Num sono profundo...

Será a morte um grito

Agudo, mas tão alto, tão alto, tão alto

A nos deixar mudos,

Um contralto infinito

Apito profundo.
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20. SABAKO

Mil origamis para curar-se

Garças.
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DESPEDIDA

E lá vai o circo

Não chore na despedida

Como sói ao sonhador

Maior mistério da vida

Além ou aquém da dor

É justamente a ida.
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Circo é emoção sem rima – anônimo.

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