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A guerra não tem rosto de mulher, Svetlana Aleksiévitch

Quando Svetlana Aleksandrovna Aleksiévitch começou a pesquisa com mulheres que


lutaram na Segunda Guerra, mulheres soviéticas, corria o ano de 1978, o ano em que Karol
Józef Wojtyła sentou no trono de Pedro. Ela tinha trinta anos. As mulheres pesquisadas, em
torno de 50-60. O Solidariedade ainda nem tinha sido fundado na Polônia e o mundo ainda
rodaria uns bons anos para ver a queda do muro de Berlim e o fim da URSS.

Na Inglaterra, Thatcher era uma política da “oposição” e no ano seguinte chegaria ao cargo
de primeiro-ministro. Dali a dois anos, Reagan seria eleito presidente nos EUA. No Brasil,
o presidente era Geisel, cujo sucessor foi Figueiredo. No Egito, o presidente ainda era
Sadat; em Israel, Begin sucedeu a Rabin e 1978 foi o ano da morte de Golda Meir. Na Índia,
o primeiro-ministro era Desai, que seria substituído por Indira Gandhi, novamente, um ou
dois anos depois. Foi um ano complicado para a Índia, e para a África, e para o mundo
soviético, e para os militares sul-americanos, e para tantos outros lugares mundo afora.

No ano seguinte, a URSS invadiria o Afeganistão e o Xá do Irã cairia pelas mãos dos
aiatolás, criando uma terrível instabilidade na região, que chega aos dias de hoje. A
presença marcante de armamento ocidental (notadamente americano, alemão, italiano e até
brasileiro) numa vasta região da Ásia não seria uma boa presença — e o interesse pelo
petróleo tampouco. De lá para cá vimos a região pegar fogo literalmente em alguns lugares,
como o Kweit.

Falo disso tudo porque a guerra realmente não tem rosto de mulher. A despeito da presença
de Thatcher e Indira Gandhi, todos os demais líderes são homens… mas os soldados que
lutam nas guerras raramente são mulheres… E, se são mulheres, e quando são mulheres,
estas acabam sendo esquecidas pela história, seja no campo de batalha ou na retaguarda,
montado aviões.

Ao menos, esse era ou tem sido o discurso oficial sobre guerras: o de que as mulheres não
lutam. As guerras são um resultado de um processo complexo, que envolve homens e
mulheres, claro. A jovem Svetlana, talvez sem estudar os movimentos das correntes da
Nova História, percebeu que poderia contar a história da guerra por um outro ângulo, o das
mulheres. Ela tinha razão. “A guerra não tem rosto de mulher” porque o discurso da guerra
é feito por homens, mas as mulheres estão lá. E o que fica claro a cada página desse livro
estupendo é que a guerra é a cara do pobre, do cidadão comum, do indivíduo que não
escolheu guerrear, e que invariavelmente morrerá jovem. Homens e mulheres, crianças,
velhos, doentes também.

Em particular, a pesquisa da jovem Svetlana não tinha interesse para o estado soviético.
Ninguém queria publicar um livro que não mostrasse a glória de se haver lutado na guerra,
assim como ninguém queria falar do sofrimento, da fome, dos assassinatos em massa, do
medo, dos estupros, da carestia, do frio e mesmo da presença da mulher, que sempre foi
considerada secundária. Difícil dizer onde está o ponto central do levantamento feito pela
autora, porque o livro vira um mosaico ao longo da leitura. Ela mesma conta que teve
dificuldade em escolher, dentre tantas narrativas e centenas de horas de entrevista, aquelas
que deveriam compor o livro. Optou, então, por semelhanças. A primeira constatação — a
partir de uma intuição e de uma descrição familiar — dizia respeito ao fato de as mulheres
terem participado da guerra. Se participaram em menor número que os homens, isso não
quer dizer que não participaram. A segunda constatação foi a de que as mulheres não
tiveram papel “secundário” na guerra, ocupando postos, por exemplo, na artilharia pesada.
Uma terceira constatação, eu poderia dizer, foi sobre os discursos sobre a fraqueza
feminina: se as mulheres já não eram consideradas aptas para a guerra, mesmo tendo lutado
lado a lado com homens, foram vítimas da construção de um discurso diminuidor,
apaziguador ou de apagamento, fosse qual fosse o lugar ocupado por elas nas batalhas, no
front, nos serviços de comunicação ou nos serviços médicos, fosse em Leningrado ou na
Crimeia.

O leitor talvez não se surpreenda hoje com os relatos do livro da autora Nobel de Literatura.
Hoje, o acesso a informações semelhantes vem através de outros relatos, de filmes
(ficcionais e documentais), do teatro ou mesmo de uma literatura considerada confessional
ou de denúncia ou memorialística ou ainda jornalística. No entanto, o susto é certo e explico
a razão. Uma experiência é ver um filme, assistir a uma peça teatral, ler um romance; outra
experiência — nem melhor nem pior — é ler relatos de pessoas reais. Esse é o grande
mérito do trabalho de Svetlana Aleksiévitch e por isso justamente seu nome foi o escolhido
para a láurea mais famosa do planeta, “pela sua polifonia de vozes” [deixe Bakhtin por uns
segundos num limbo].

Nunca discutirei se a escrita de Svetlana Aleksiévitch é literatura. Mas a questão pode


gravitar em torno de: o que ela faz é uma narrativa? E se é uma narrativa, pode ser
considerada romanesca? Sim e não. Aqui não caberia analisar isso de todo. Então, algumas
pistas. Como diz Jeffrey J. Williams, a pergunta “o que é literatura” é feita para legitimar
nossa vida de pesquisadores e professores. Amo essa ironia britânica. Ele diz isso em
paralelo ao que diz, por exemplo, Sullà, para quem uma das maiores dificuldades da vida do
pesquisador e investigador da literatura é a definição do que seja, justamente, um romance.
Outros? Brink, Moretti, Pavel, Lukács, Bakhtin, e tantos outros, tentaram uma explicação
para o que seria um romance. Talvez um caminho possível fosse tomar o romance como
algo “dado”, primeiro, e como um discurso possível, segundo, deixando de lado as
tentativas frustradas de discutir o formato de um gênero, pois se pensarmos o que é um
romance, temos uma ideia mais ou menos precisa do que seja, mas quando mergulhamos na
variedade romanesca vemos que nossa ideia mais ou menos "precisa" necessita de aparos,
considerações, ressalvas.

Leia Svetlana Aleksiévitch porque ela merece ser lida. Ela fez o que muitos historiadores do
universo fora do mundo soviético fizeram ou tentaram fazer. Vale a pena. Por vezes, a
leitura fica repetitiva, mas não deixa de emocionar. Ela foge tanto dos estereótipos (de resto,
cunhados pelos críticos) de uma literatura “soviética” ou “pós-soviética” (falarei melhor
disso com os próximos autores, Sorókin e Ulitskaya).

Quando Svetlana Aleksiévitch recebeu o Nobel, o mundo tinha mudado e queria ouvi-la.
Seus escritos começaram a ter um sentido novo a partir dos anos 1990. Ela mesma precisou
esperar anos para publicar suas obras. Antes dela, Alexander Soljenítsin, também agraciado
com o Nobel em 1970, escrevera sobre os gulags, mas não sob a perspectiva da mulher. E
também antes dela o poeta Joseph Brodsky, laureado em 1984, foi perseguido por
“vadiagem”. A autora nasceu na Ucrânia, adotou a língua russa, como tantos outros, e tem
cidadania bielo-russa.

A partir dessa obra, foi feito o roteiro de “Uma mulher alta [Dilda*]”, levado às telas pelo
jovem cineasta russo Kantemir Balagov, aluno de Alexandr Sokurov, que não tem muito a
ver com o livro — e explico isso outra hora.

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