Na Inglaterra, Thatcher era uma política da “oposição” e no ano seguinte chegaria ao cargo
de primeiro-ministro. Dali a dois anos, Reagan seria eleito presidente nos EUA. No Brasil,
o presidente era Geisel, cujo sucessor foi Figueiredo. No Egito, o presidente ainda era
Sadat; em Israel, Begin sucedeu a Rabin e 1978 foi o ano da morte de Golda Meir. Na Índia,
o primeiro-ministro era Desai, que seria substituído por Indira Gandhi, novamente, um ou
dois anos depois. Foi um ano complicado para a Índia, e para a África, e para o mundo
soviético, e para os militares sul-americanos, e para tantos outros lugares mundo afora.
No ano seguinte, a URSS invadiria o Afeganistão e o Xá do Irã cairia pelas mãos dos
aiatolás, criando uma terrível instabilidade na região, que chega aos dias de hoje. A
presença marcante de armamento ocidental (notadamente americano, alemão, italiano e até
brasileiro) numa vasta região da Ásia não seria uma boa presença — e o interesse pelo
petróleo tampouco. De lá para cá vimos a região pegar fogo literalmente em alguns lugares,
como o Kweit.
Falo disso tudo porque a guerra realmente não tem rosto de mulher. A despeito da presença
de Thatcher e Indira Gandhi, todos os demais líderes são homens… mas os soldados que
lutam nas guerras raramente são mulheres… E, se são mulheres, e quando são mulheres,
estas acabam sendo esquecidas pela história, seja no campo de batalha ou na retaguarda,
montado aviões.
Ao menos, esse era ou tem sido o discurso oficial sobre guerras: o de que as mulheres não
lutam. As guerras são um resultado de um processo complexo, que envolve homens e
mulheres, claro. A jovem Svetlana, talvez sem estudar os movimentos das correntes da
Nova História, percebeu que poderia contar a história da guerra por um outro ângulo, o das
mulheres. Ela tinha razão. “A guerra não tem rosto de mulher” porque o discurso da guerra
é feito por homens, mas as mulheres estão lá. E o que fica claro a cada página desse livro
estupendo é que a guerra é a cara do pobre, do cidadão comum, do indivíduo que não
escolheu guerrear, e que invariavelmente morrerá jovem. Homens e mulheres, crianças,
velhos, doentes também.
Em particular, a pesquisa da jovem Svetlana não tinha interesse para o estado soviético.
Ninguém queria publicar um livro que não mostrasse a glória de se haver lutado na guerra,
assim como ninguém queria falar do sofrimento, da fome, dos assassinatos em massa, do
medo, dos estupros, da carestia, do frio e mesmo da presença da mulher, que sempre foi
considerada secundária. Difícil dizer onde está o ponto central do levantamento feito pela
autora, porque o livro vira um mosaico ao longo da leitura. Ela mesma conta que teve
dificuldade em escolher, dentre tantas narrativas e centenas de horas de entrevista, aquelas
que deveriam compor o livro. Optou, então, por semelhanças. A primeira constatação — a
partir de uma intuição e de uma descrição familiar — dizia respeito ao fato de as mulheres
terem participado da guerra. Se participaram em menor número que os homens, isso não
quer dizer que não participaram. A segunda constatação foi a de que as mulheres não
tiveram papel “secundário” na guerra, ocupando postos, por exemplo, na artilharia pesada.
Uma terceira constatação, eu poderia dizer, foi sobre os discursos sobre a fraqueza
feminina: se as mulheres já não eram consideradas aptas para a guerra, mesmo tendo lutado
lado a lado com homens, foram vítimas da construção de um discurso diminuidor,
apaziguador ou de apagamento, fosse qual fosse o lugar ocupado por elas nas batalhas, no
front, nos serviços de comunicação ou nos serviços médicos, fosse em Leningrado ou na
Crimeia.
O leitor talvez não se surpreenda hoje com os relatos do livro da autora Nobel de Literatura.
Hoje, o acesso a informações semelhantes vem através de outros relatos, de filmes
(ficcionais e documentais), do teatro ou mesmo de uma literatura considerada confessional
ou de denúncia ou memorialística ou ainda jornalística. No entanto, o susto é certo e explico
a razão. Uma experiência é ver um filme, assistir a uma peça teatral, ler um romance; outra
experiência — nem melhor nem pior — é ler relatos de pessoas reais. Esse é o grande
mérito do trabalho de Svetlana Aleksiévitch e por isso justamente seu nome foi o escolhido
para a láurea mais famosa do planeta, “pela sua polifonia de vozes” [deixe Bakhtin por uns
segundos num limbo].
Leia Svetlana Aleksiévitch porque ela merece ser lida. Ela fez o que muitos historiadores do
universo fora do mundo soviético fizeram ou tentaram fazer. Vale a pena. Por vezes, a
leitura fica repetitiva, mas não deixa de emocionar. Ela foge tanto dos estereótipos (de resto,
cunhados pelos críticos) de uma literatura “soviética” ou “pós-soviética” (falarei melhor
disso com os próximos autores, Sorókin e Ulitskaya).
Quando Svetlana Aleksiévitch recebeu o Nobel, o mundo tinha mudado e queria ouvi-la.
Seus escritos começaram a ter um sentido novo a partir dos anos 1990. Ela mesma precisou
esperar anos para publicar suas obras. Antes dela, Alexander Soljenítsin, também agraciado
com o Nobel em 1970, escrevera sobre os gulags, mas não sob a perspectiva da mulher. E
também antes dela o poeta Joseph Brodsky, laureado em 1984, foi perseguido por
“vadiagem”. A autora nasceu na Ucrânia, adotou a língua russa, como tantos outros, e tem
cidadania bielo-russa.
A partir dessa obra, foi feito o roteiro de “Uma mulher alta [Dilda*]”, levado às telas pelo
jovem cineasta russo Kantemir Balagov, aluno de Alexandr Sokurov, que não tem muito a
ver com o livro — e explico isso outra hora.