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CRÍTICA

(não só)
LITERÁRIA

NELSON ASCHER
Para
Arthur Nestrovski
&
Marcelo Coelho

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PREFÁCIO

POETAS BRASILEIROS
1) CENTENÁRIO DE CRUZ E SOUZA
2) VINICIUS DE MORAES
3) PAULO LEMINSKY

POESIA ESTRANGEIRA
4) CÂNTICO DOS CÂNTICOS: FAMILIARIDADE E ESTRANHEZA
5) HÖLDERLIN
6) LAUTRÉAMONT
7) BLAISE CENDRARS
8) EUGENIO MONTALE
9) WISLAWA SZYMBORSKA
10) JOHN ASHBERY
11) HANS MAGNUS ENZENSBERGER
12) JOSEPH BRODSKY
13) POESIA HÚNGARA MODERNA
14) POESIA ESTRANGEIRA EM PORTUGUÊS

DRAMATURGOS
15) ARTAUD
16) BRECHT: UMA NOVA BIOGRAFIA
17) IONESCO

PROSADORES BRASILEIROS
18) PAGU
19) PAULO RÓNAI
20) PAULO RÓNAI – OBITUÁRIO
21) DOIS BRASILEIROS NA SEGUNDA GUERRA
22) BORIS SCHNAIDERMAN
23) ANTONIO CANDIDO
24) PAULO FRANCIS
25) MOACYR SCLIAR
26) JOSÉ GUILHERME MERQUIOR
27) CONTARDO CALLIGARIS
28) MARCELO RUBENS PAIVA
29) BERNARDO CARVALHO

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PROSADORES ESTRANGEIROS
30) JACQUES CAZOTTE
31) HERMAN MELVILLE
32) LEWIS CARROLL
33) ) H.G. WELLS
34) THOMAS MANN
35) KÁREL TCHÁPEK
36) SIGISMUND KRZYZANOWSKI
37) WALTER BENJAMIN
38) RAYMOND QUENEAU
39) ELIAS CANETTI
40) ISTVÁN ÖRKÉNY
41) LÉVI-STRAUSS
42) KOBO ABE
43) CABRERA INFANTE
44) A ÍNDIA DE NAIPAUL
45) A.B.YEHOSHUA
46) MICHAEL ONDAADTJE
47) A REVOLUÇÃO SEXUAL
48) O MANIFESTO DO "SUBCOMANDANTE MARCOS"
49) ELIOT WEINBERGER

CINEMA
50) ALMODÓVAR
51) O PACIENTE INGLÊS
52) GOSTO DE CEREJA

ESPECULAÇÕES
53) A DIFICULDADE DE ESCREVER
54) O AMBIENTE LITERÁRIO BRASILEIRO: LACUNAS E OMISSÕES
55) ESPLENDOR E GLÓRIA DA MPB
56) PREVISÕES
57) UMA DEFESA DA FOFOCA
58) NORMA CULTA, GÍRIA, LITERATURA
59) A MORTE DE UM PATAXÓ
60) PROPAGANDA ELEITORAL EM SÃO PAULO
61) REAGE SÃO PAULO
62) DO NOTICIÁRIO FUTURO
63) A CANONIZAÇÃO DO HOLOCAUSTO

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PREFÁCIO

Já caminharam sobre a terra, gravando caracteres em algum tipo de material,


pelo menos 150 gerações de escritores. Dizem que tudo começou 5 ou 6 mil
anos atrás no sul do que é hoje o Iraque de Saddam Hussein e era então a terra
dos sumérios. Foi lá que se teria inventado pela primeira vez um modo de, às
emissões sonoras que chamamos de linguagem verbal, fazer corresponder
sinais visíveis, transmissíveis sem o auxílio nem a presença de memórias
individuais e, conseqüentemente, perduráveis. Os mortos tornaram-se desde
então capazes de falar com os vivos. “Escucho com mis ojos a los muertos”,
constatou don Francisco de Quevedo y Villegas e, conforme passa o tempo,
multiplica-se exponencialmente o número de mortos falantes (Quevedo entre
eles) que competem com os vivos que, por seu turno, competem entre si pela
atenção de um número limitado de olhos ouvintes. E este número, ao que tudo
indica, cresce (se é que cresce) num ritmo consideravelmente mais lento.
Por isso existe a crítica literária: porque nem mesmo a vida de um leitor
voraz, dedicado e, sobretudo, longevo bastaria para dar conta sequer de todos
os romances que foram publicados ano passado no mundo. Talvez uma vida
inteira não seja mesmo suficiente para se ler rigorosamente quanto há para ser
lido em, digamos, “A Montanha Mágica”. E, no entanto, o desejo de ler tudo é
tão natural aos verdadeiros leitores quanto é o da imortalidade para quem,
tendo aprendido a distinguir os tempos verbais, já não ignore a ameaça
presente no futuro da primeira pessoa do singular.
A crítica literária existe, antes de mais nada, para triar as obras recentes,
apontando quais dentre elas merecem atenção, e para re-triar, a cada geração,
as obras previamente triadas, de modo a questionar os juízos passados e
confirmá-los – ou não. Chamar a atenção para certa obra – uma atividade
generosa – implica deixar inúmeras outras de lado – o que é obviamente uma
crueldade, mas crueldade necessária. A vida é curta, a paciência dos leitores,
mais ainda e “triagem” é um galicismo de origem sinistra. Durante a Primeira
Guerra, conhecida antes da Segunda apenas como a Grande Guerra, a escala
industrial da sangueira (decorrente da fartura combinada de soldados e
metralhadoras) sobrecarregou todos os serviços médicos nas frentes de
batalha. O exército francês, portanto, viu-se forçado a “triar”, ou seja, repartir
seus feridos em três categorias: os que podiam ser medicados in loco; os que
valia a pena levar aos poucos hospitais na retaguarda; e aqueles que, embora
talvez até tivessem uma chance de sobreviver nesses hospitais, estariam
tirando o lugar de gente com chances melhores. Estes últimos eram entregues
aos sedativos e aos sacerdotes, sorte melhor, observa o historiador militar John
Keegan, do que aquela reservada aos feridos que, não tendo conseguido

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retornar às suas próprias linhas, agonizavam sozinhos e sem consolo na terra-
de-ninguém que separava suas trincheiras das inimigas. Não é à toa que, no
contexto de alguma conflagração anterior (não muito), Baudelaire referiu-se a
“le râle épais d’un blessé qu’on oublie/ au bord d’un lac de sang, sous un
grand tas de morts,/ et qui meurt, sans bouger, dans d’immenses efforts”.
Se a atividade dos críticos parece impiedosa, talvez seja o caso de lembrar
que, difrentemente dos seres humanos, as obras literárias não têm direito
algum, nem sequer o direito à vida que, no seu caso, equivaleria ao de serem
lidas. Nenhum livro é obrigatório, exceto para os estudantes, professores e
críticos profissionais que, geralmente, são os que não os lêem. O grande (isto é
uma hipérbole) público não tem deveres ou obrigações em face dos escritores
vivos ou mortos e, quando ele realmente lê, está lhes fazendo uma gentileza,
um favor. É aos autores que cabe estar à altura de tamanha deferência, pois
toda obra literária é culpada até prova em contrário. O crítico, assim, também
pode ser visto como seu advogado. Ele é, naturalmente, capaz de mentir,
chicanear etc., mas o processo é tão aberto e sujeito a tantas revisões que
alguma verdade acaba afinal se estabelecendo. Daí a dificuldade, em qualquer
arte, de alterar os cânones vigentes e colocar, por exemplo, Salieri no lugar de
Mozart ou vice-versa.
Um advogado é tanto melhor quanto mais extensa e profundamente
conhecer o seu caso e, como a literatura diz respeito a tudo, porque ela é uma
forma de organização do conhecimento, não resta ao crítico outra opção que a
de tentar se familiarizar com tudo, algo obviamente impossível. Bom, há outra
opção e ela esteve (se é que ainda não está) em moda por muitos e muitos
anos. Trata-se da abordagem estritamente “literária” no sentido mais tacanho
do termo, uma abordagem para a qual um livro é um amontoado de palavras
organizadas de um determinado modo (o que ele de fato é) e nada mais do que
isso, um ponto de vista que se situa entre a miopia e a cegueira (mais próximo
desta). Discorrer sobre “Guerra e Paz” ou “A Cartuxa de Parma” sem levar em
consideração as minúcias das guerras napoleônicas e os tipos de armamentos à
disposição dos contendores, analisar “Os Lusíadas” sem pensar na expansão
do império colonial português ou na arte da navegação da época, analisar
“Ulisses” sem refletir sobre as relações entre Irlanda e Inglaterra ou sobre o
anti-semitismo é perder de vista muito da razão de ser dessas obras – se bem
que julgá-las exclusivamente através de qualquer um desses prismas tampouco
seja mais inteligente.
Em outras palavras, quem escrevesse algo intitulado “Auschwitz: uma
Abordagem Contábil” e concluísse que o comandante Rudolf Höss era
inocente, pois administrou direito seu campo, ou (o que dá na mesma)
culpado, porque revendeu algumas latas de Zyklon B ao seu colega de

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Treblinka, Franz Stangl, mas não registrou nos livros a transação, quem
chegasse a tais conclusões sem se perguntar para o que exatamente serviam
aquelas latas seria, como diz Bruce Willys em “Duro de Matar 1”, parte do
problema, não da solução – a não ser que se trate da Solução Final. Mas, por
outro lado, quem quer que a esta altura transborde de justíssima indignação
moral sem ser capaz de esfregar na cara de um contestador revisionista os
dados relevantes que demonstram a existência das câmaras de gás e sua
função também não será de grande valia. Caso este queira que sua indignação
prevaleça, ele deverá saber tudo o que o contador acima sabe – e mais.
O interesse pela literatura ou é onívoro ou não é, o que quer dizer que o
autêntico leitor deseja saber de tudo – um truísmo que deve ou deveria se
aplicar com mais intensidade ainda no caso dos críticos. Os autores de best-
sellers, atentos à curiosidade de sua audiência, estão cientes disso e,
coerentemente, recheiam seus calhamaços com uma variedade de informações
sobre como se desmonta uma bomba; o que comem, bebem ou cheiram os
socialites; como se pilota um Spitfire; quais as posições sexuais favoritas de
um samurai do século 16 etc. Quando Mallarmé observou que o mundo existe
para acabar num livro, ele não estava aviltando o primeiro, mas sim afirmando
quão abrangente e ambicioso era seu programa para o segundo. Seu discípulo,
Paul Valéry, disse que um homem que nunca quis ser um deus é menos do que
um homem. Da mesma forma, um crítico que seja apenas literário é menos do
que um crítico literário. E não há meio termo.

São Paulo, março de 1998

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POETAS NACIONAIS

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1) CENTENÁRIO DE CRUZ E SOUZA

Em 19 de março de 1898, dia seguinte ao de sua chegada à Estação de Sítio,


Minas Gerais, para onde seguira em busca de tratamento para a doença que se
declarara três meses antes, o poeta catarinense João da Cruz Sousa morreu de
tuberculose
Filho de um de escravo alforriado quando seu senhor, o Marechal-de-Campo
Guilherme Xavier de Sousa, partira para a guerra do Paraguai, o poeta,
nascido em 24 de novembro de 1861, foi educado pela família do senhor e é
dela também que tomou seu nome. Sua educação, para os padrões da época,
pode ser chamada de aristocrática e os amigos lembram-se dele como um
verdadeiro dândi. Ele estudou os clássicos, línguas estrangeiras e teve como
professor um naturalista alemão que se correspondia com Darwin: Fritz
Müller. Nos anos seguintes, a cor revelou-se grande empecilho para sua vida
profissional, mas ajudou de certa forma a chamar a atenção da crítica e dos
leitores para sua carreira literária – que começou oficialmente com a dupla
publicação em 1893 dos poemas de “Broquéis” e da prosa poética de
“Missal”. Devido a esses dois livros, 93 é consensualmente considerado o ano
inaugural do simbolismo no Brasil. Outros pontos em que há certo consenso
são os traços gerais que definem o movimento e a avaliação da obra do
catarinense como um de seus ápices neste país.
Embora, em meados do século 19, Baudelaire (ou Nerval etc.) não estivesse
pensando exatamente em criar um movimento, as discussões, posteriores em
torno de seus poemas, de sua estética e da obra dos continuadores, tornaram o
que viria a se chamar simbolismo um movimento dotado de uma doutrina tão
ou mais influente no curto prazo do que sua própria poesia e, por isso mesmo,
muito mais semelhante nesse aspecto, aos “ismos” do século seguinte do que a
tudo que surgira antes. Define-se geralmente o simbolismo como uma revolta
contra o racionalismo progressista, otimista e cientificista do século passado,
uma revolta cujo objetivo, dando continuidade aos extremos do romantismo,
era tornar a linguagem menos precisa e lógica, mais sugestiva e musical por
meio do ciframento, da ambigüidade e de associações inesperadas ou
inexplicáveis, para que ela pudesse aproximar-se daquilo que a razão seria
incapaz de perceber, atingindo assim algum tipo de transcendência. Associa-se
a tudo isto a atração pelo esotérico e o culto da “arte pela arte” que
transformaria poesia, pintura e música numa religião e seus praticantes em
sacerdotes. (O acréscimo brasileiro estava no combate aos ditames do

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parnasianismo). O único problema é que essa definição está longe de
circunscrever a obras dos seis representantes máximos do simbolismo francês:
Baudelaire, Verlaine, Rimbaud, Laforgue, Corbière e Mallarmé.
Pode parecer estranho, mas Cruz e Sousa está mais próximo deste ideário
do que os seis poetas acima, se bem que seus poemas tampouco se limitem a
isso. Ele começou a escrever numa veia entre parnasiana e condoreira e é
nessa combinação estilística que, no começo de sua carreira, compôs poemas
abolicionistas, ou melhor, anti-escravagistas. Um exemplo notável, diferente
em tudo do lirismo que o tornaria célebre, leva o título de “Escravocratas”:

Oh! Trânsfugas do bem que sob o manto régio


manhosos, agachados – bem como um crocodilo,
viveis sensualmente à luz dum privilégio
na pose bestial dum cágado tranqüilo.

Eu rio-me de vós e cravo-vos as setas


ardentes do olhar – formando uma vergasta
dos raios mil do sol, das iras dos poetas,
e vibro-vos à espinha – enquanto o grande basta

O basta gigantesco, imenso, extraordinário –


da branca consciência – o rútilo sacrário
no tímpano do ouvido – audaz me não soar.

Eu quero em rude verso altivo adamastórico,


vermelho, colossal, d’estrépito, gongórico,
castrar-vos como um touro – ouvindo-vos urrar!

Quem esteja familiarizado com o Cruz e Sousa de “Antífona”, o poema-


manifesto que encabeça “Broquéis”, mal reconhecerá o autor num soneto
como este (não datado em sua “Obra Completa”, mas possivelmente escrito
poucos anos antes da Abolição). Alguns elementos que mais tarde se
tornariam centrais aparecem aqui, mas não passam de detalhes secundários:
uma expressão como “rútilo sacrário” ou a seqüência de adjetivos na última
estrofe. Ainda assim, sua poesia oficialmente simbolista é vaga, etérea,
abstrata delicada, enquanto este poema é objetivo, direto, rude e contundente.
Aquela é quase sempre despida de humor; a sátira deste beira o grotesco. A
sintaxe ali é simples, singela e composta de frases curtas; aqui, se bem que não
chegue ao “gongórico”, ela é rebuscada, complexa e turva, com a enunciação
da segunda quadra invadindo brutalmente o primeiro terceto. Não conheço

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juízo de valor ou critério de julgamento segundo o qual “Escravocratas” não
pudesse ser considerado um de nossos mais enérgicos poemas políticos. E, no
entanto, não figura, que eu saiba, em nenhuma antologia posterior à sua
redescoberta.
É sobretudo ao próprio autor que isto se deve, pois, como se vê nos volumes
de 93, ele acabou optando por um estilo, ou melhor, uma poética tão diferente
quanto possível da do soneto em questão. É difícil dizer o que o teria movido
mais: a leitura da poesia simbolista francesa ou sua doutrina. Em todo caso,
ele deixou de lado o que já sabia fazer bem em prol de algo que lhe cabia
aprender. Não raro parece que o que Cruz e Sousa adotou foi menos uma
estética do que um mecanismo que lhe permitia escrever poema após poema
num fluxo surpreendente. Este fluxo tem, sem dúvida, qualidades: sua escolha
lexical, normalmente estreita, é sempre apropriada, suas imagens são
coerentes e, dentro de seu sistema, bem construídas, seu fraseado é elegante e
equilibrado, sua dicção é a de um mestre, a versificação límpida e musical
combina com suas rimas corretas.
Em seus bons momentos, o poeta pode competir tranqüilamente com
Cesário Verde:

A peregrina carnação das formas


—o sensual e límpido contorno,
tinham esse quê de avérnico e de morno,
davam a Zola as mais corretas normas!...
(“Dormindo”)

ou

E tens as nuances raras


dos bons prazeres servidos
nos rostos enlourecidos
as parisienses preclaras.
(“Lirial”)

com Augusto dos Anjos:

“Aplica o ouvido à correnteza fria


dos golfões da matéria
e recorda de que lama sombria
é composta a miséria.”
(“Recorda”)

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ou

...e viva essência


dos fantasmas noctívagos da cova
(“Flores da Lua”)

ou

“Vala comum de corpos que apodrecem,


esverdeada gangrena,
cobrindo vastidões que fosforecem
sobre a esfera terrena.”
(“Tédio”, onde, mais adiante, “sinistras sereias” é superior ao
poeta de “Eu”)

ou

Riso de ateu e riso de budista


gelado no Nirvana impenitente
(“Rebelado”)

com o Manuel Bandeira de “Carnaval”:

De ironias o momo picaresco


abre-lhe a boca e uns dentes de ferrugem,
verdes gengivas de ácida salsugem
mostra e parece um Sátiro dantesco
(“Majestade Caída”)

ou “Canção do Bêbado”;
com o Vinicius de Morais de “Receita de Mulher”:

Para haver mais requinte e haver mais viva,


doce beleza e original carícia,
deu-lhe uns toques ligeiros de ave esquiva
e uma auréola secreta de malícia
(“A Flor do Diabo”, onde o poeta chega a imagens como:

nas lagoas letíficas, sidéreas’,

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o cadáver da lua vai boiando).

E, de quando em quando, Cruz e Sousa alcança apogeus exemplares:

Jamais há de ela Ter a cor saudável


para que a carne do seu corpo goze,
que o que tinha esse corpo de inefável
cristalizou-se na tuberculose
(“Tuberculosa”)

Ó carnes que eu amei sangrentamente


(Dilacerações”)

Rio do esquecimento tenebroso,


amargamente frio,
amargamente sepulcral, lutuoso
amargamente rio!
(“Esquecimento”)

certo neblinamento de saudade


(“Ressurreição”)

Um luar de perdões desabotoa


(“Enlevo”)

És velada, quebradiça
como teu nome é velado.
Certa flor curiosa viça
no teu corpo edenizado.
(“Inês”)

Tristeza de não sei donde


de não sei quando nem como...
flor mortal, que dentro esconde
sementes de um mago pomo
(“Tristeza do Infinito”)

Não há, porém, como deixar de observar que essas condensações de


inspiração e de engenho estão espalhadas em poemas cujo restante é
substancialmente menos realizado. Grande parte de sua produção compõe-se

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de sonetos decassilábicos, mas estes tendem a se confundir uns com os outros
em decorrência da repetição insistente de imagens, de palavras, de fórmulas
mesmo. A falta de foco e a irresolução programática de seus poemas
transforma-os freqüentemente num todo indiferenciado onde a descoberta de
pontos luminosos é a recompensa da persistência paciente do leitor. Deste
modo, são os poemas longos que servem ao poeta como uma espécie de rede
para capturar o que ele podia oferecer de melhor e, dentre estes, destacam-se
as litanias escritas em versos mais curtos como as redondilhas. Talvez, ao
abandonar seu estilo juvenil por uma idéia daquilo que seria o simbolismo,
Cruz e Sousa não tenha afinal chegado ao simbolismo própriamente dito (se
são os seis poetas franceses mencionados que melhor o representam) mas a
algo diferente e um poeta cujos paralelos com o autor de “Broquéis”
mereceriam ser analisados é o inglês Dante Gabriel Rossetti, fundador, em
1848, do Pré-Rafaelismo, um movimento poético e pictórico tardo-romântico
que está para o romantismo original de Blake, Wordsworth ou Keats assim
como o rococó está para o barroco.
Pouquíssimos poetas brasileiros foram tão bem estudados quanto o
catarinense. Desde seus partidários e defensores como Nestor Vítor, Sílvio
Romero, Andrade Muricy ou Roger Bastide até nossos principais historiadores
literários como Manuel Bandeira, Péricles Eugênio da Silva Ramos, Otto
Maria Carpeaux, Massaud Moisés, Alfredo Bosi e Luciana Stegagno Picchio,
passando por opositores que mudaram depois de idéia, como José Veríssimo,
os críticos dedicaram-lhe uma atenção sincera e o analisaram com
sensibilidade, nem por isso deixando de expor seus senões. Nada mais justo,
pois, além de ter seu lugar garantido entre os melhores do Brasil oitocentista
não só com sua poesia mas também com sua prosa poética, Cruz e Sousa foi
sem dúvida (se descontarmos as origens remotas, quase lendárias, de
Aleksandr Serguêievitch Púchkin) o mais importante poeta negro a escrever
fora da África antes dos caribenhos Aimée Cesaire, Kamau Brathwaite, Derek
Walcott e do americano Amiri Baraka.

(Folha de S. Paulo, 11/1/98)

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2) VINICIUS DE MORAES

Se houve um poeta brasileiro moderno que tenha sido vítima do próprio


sucesso, esse foi Vinicius de Moraes. Vítima em termos, é claro, na medida
em que a nenhum outro poeta nacional deste seculo couberam a fama, o
apreço e a popularidade que um público sempre renovado continua lhe
reservando. Bandeira, Drummond e Cabral têm asseguradas suas respectivas
audiências e, ao que parece, após sua obra voltar realmente à circulação,
Murilo Mendes também. Mário e Oswald talvez dependam mais das
exigências do vestibular e dos currículos universitários mas, ainda assim,
privam igualmente da consagração. Seja como for, no entanto, nenhum deles
cruzou a barreira que separa o leitor intelectualizado da platéia leiga de forma
tão efetiva e inconteste quanto Vinicius --e esse é o seu grande sucesso.
Em outras palavras, o poeta carioca fala a linguagem clara e consolidada do
modernismo brasileiro --da modernidade internacional-- a um público que não
freqüenta, salvo a sua, outra poesia. A que se deve isso? As hipóteses, aqui,
começariam a abrir seu leque. Sua participação central no momento mais
criativo e, concomitantemente, bem divulgado da MPB, ou seja, a Bossa
Nova, diriam alguns. O apelo dos temas que explorava --já que ele foi o mais
escancaradamente amoroso e, até certo ponto, sentimental dos nossos
modernos-- afirmariam outros. A facilitação, diluição e falta de radicalidade,
argumentariam certos detratores. A combinação de tudo isso... e algo mais,
arriscariam os eternos conciliadores. Meu próprio palpite se restringe ao
supracitado "algo mais". Antes, porém, de tentarmos defini-lo, vejamos do
quê, especificamente, o poeta teria sido vítima.
"Cânone" é (em português) uma proparoxítona que tem sido muito usada
ultimamente. Embora provenha da terminologia teológica e fosse por séculos
utilizada para definir quais, dentre as dezenas de livros que formam o Antigo e
o Novo Testamento, eram considerados legítimos, corretos e oficiais segundo
tal ou qual confissão ou seita religiosa, ela serve também maravilhosamente
para descrever o conjunto de obras que instituições educacionais,
governamentais, tendências críticas etc. consideram dignas de menção e isto,
geralmente, de modo hierarquizado. Na maioria dos países, o canône literário
se formou, quase "naturalmente", numa discussão de centenas de anos que
envolveu leitores, críticos, professores, ideólogos, escritores... Nunca foi
segredo que um autor conceituadíssimo numa época podia perfeitamente se
tornar irrelevante para a seguinte -- e vice-versa. Acontece que,
especificamente nos EUA, com a hipertrofia do estudo universitário da
literatura, a balcanização dos departamentos de letras que começaram a se

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separar (e combater) segundo linhas sexuais e étnicas, o cânone cuja formação
vinha sendo esmiuçada se tornou um cavalo-de-batalha e, em última instância,
de acordo com uma leitura superficial (se é que cabe outra, mais profunda) de
gente como Michel Foucault, um produto puro e simples do poder que, por
sua vez, é, como se sabe, ou melhor, como eles imaginam, uma entidade
simples, inteligível e aberta a uma interpretação fundamentada em teorias
conspiratoriais.
A essa altura, alguém dotado do bom senso que Descartes assegurara ser
bem distribuído, contestaria: "Deixemos o cânone de lado". Só que o cânone
existe e, no que diz respeito ao nosso, Vinicius está mais ou menos de fora. De
que maneira? Em primeiro lugar, ele não ocupa a posição que merece nos
currículos. Em segundo, sua fortuna crítica, pelo menos nos últimos 30 anos, é
bastante pobre: os principais críticos nacionais, sejam eles marxistas ou
concretos, provenham da USP, Unicamp, PUC, UFRJ etc. não têm se
interessado por sua obra. Finalmente, seu prestígio intelectual está, há muito
tempo, em baixa, isto é, não é de bom tom mencionar seu nome em rodas mais
refinadas, pois este se tornou sinônimo de pieguice, melosidade e lugar-
comum. Um exemplo é suficiente: pouco anos atrás, o poeta paulista Augusto
Massi organizou no MASP um evento que reunia poetas, uns jovens, outros
nem tanto, de todo o país. Além de lerem poemas, eles foram convidados a
discorrer sobre seu próprio trabalho e carreira. Entre os jovens que nomearam
suas influências, muitos mencionaram Bandeira, Drummond, Cabral e Murilo,
mas nenhum, que eu lembre, citou Vinicius. Por quê? Porque o carioca não os
influenciara mesmo? Dificilmente. No fundo confuso do córtex que se teima
ainda em chamar de inconsciente, a poesia de Vinicius deve se harmonizar tão
perfeitamente com a deses outros que não seria fácil discernir nos versos de
um poeta recente quais cadências se originam na obra de qual antecessor. O
mesmo, aliás, aplica-se à MPB “culta” dos anos 60/70 que, desdobramento
conseqüente e coerente do modernismo, influenciou igual embora menos
confessamente todo e qualquer poeta nascido nestas terras depois da Segunda
Guerra.
Como de hábito, no caso de Vinicius também é mais fácil detectar as razões
que o levaram a cair em desgraça junto à intelectualidade do que definir o tal
"algo mais" que torna absolutamente injusta essa desgraça. Para começar,
sobrevive nos nossos meios mais cultos um ranço de elitismo bacharelesco --
comum tanto à direita, quanto ao centro e à esquerda-- onde se gesta uma
perpétua desconfiança em relação a quem quer que atinja um grau de
popularidade entre o "pessoal de baixo": "se essa gente gosta dele, ele não
deve ser tão bom assim". Uma grande tiragem, edição esgotada e seguidas
reedições equivalem a trair tanto toda a classe quanto os bem guardados

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segredos de um grupo conspiratorial -- e o sucesso de Vinicius na MPB
exacerbou ainda mais esse fato. Não deixa, porém, de ser curioso que sua
rejeição tenha prosseguido entre intelectuais que se empenharam na
redefinição da MPB enquanto alta cultura, e esse paradoxo talvez se deva à
constação de que Vinicius, não tendo sido jamais uma espécie de "primitivo" a
ser adotado, tornava meio irrelevante essa redefinição. A vida, por assim
dizer, "desregrada" e boêmia do poeta tampouco deixou, num país que,
explicitamente então, é hoje envergonhadamente moralista, de contribuir para
caracterizá-lo como pouco respeitável. No Brasil, os anátemas possuem uma
durabilidade assombrosa. É provável, contudo, que esses todos sejam fatores
de importância menor e que o mistério de sua rejeição se esconda, ou melhor,
exiba-se nas linhas de seus poemas.
Um dos aspectos mais atraentes para o grande público em sua poesia é o
quão transparantemente amorosa ela costuma ser. Uma vez que o amor é um
dos temas mais constantes da lírica ocidental desde, pelo menos, os
provençais, nunca foi suficientemente frisado que ele raramente aparece na
melhor poesia brasileira posterior a 1922. Dos modernistas citados
anteriormente, nenhum se destacou nessa vertente específica e, para se
recorrer a uma demonstração não muito convencional num texto de crítica,
bastaria procurar na obra deles um poema inteiro que se pudesse aduzir a uma
missiva amorosa dirigida a uma moça que não estivesse cursando Letras.
Quem sabe, até se achasse um texto assim -- mas só depois de uma boa
garimpagem. A mesma ausência se patenteia, em diversos graus, na poesia
posterior, seja a dos concretos, seja, mais surpreendentemente, na dos poetas
marginais. Que toda uma linhagem poética disposta declaradamente a falar ao
público de forma mais direta e imediata tenha deixado esse tema relativamente
à margem é coisa que não se explica apenas pelo temperamento de seus
autores. Há um pudor muito peculiar nas diversas gerações modernistas e
seguintes, um pudor que se caracteriza sobretudo pelos temas evitados, mas
também pela recusa de todo um conjunto de abordagens, pelo horror à
efusividade e pelo amor ao tortuoso e ao oblíquo, um pudor, enfim, que destoa
das propostas programáticas do próprio modernismo e aponta para tendências
subjacentes bastante distintas. A verdade é que, apesar de se pretender fácil,
objetiva, direta e legível, a poesia brasileira moderna tem muito de difícil,
complexo e até mesmo de hermético. A cada releitura, por exemplo, um
Drummond revela uma nova camada menos acessível. Num momento inicial,
portanto, Vinicius é o exato oposto desse quadro, com suas declarações
inequívocas de amor, sua efusão lírica, seu vocabulário no mais das vezes
trivial. Além disso, o modernismo e seus desdobramentos requeriam um
paralelo despudor formal, ou seja, se não cai bem expor determinados

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sentimentos, o poema em si, por seu lado, deve se mostrar inteiramente
desnudado, com todas as suas vigas, fios elétricos e encanamentos. Aqui, de
novo, o que Vinicius geralmente fez contradizia seus contemporâneos, pois,
com o retorno ao soneto, à balada, à redondilha e aos decassílabos clássicos,
ele se esmerou em dar a seus poemas o mais tradicional dos acabamentos.
Tudo, assim, conspirava para fazer Vinicius parecer um poeta convencional e
antimodernista, quando não pura e simplesmente antimoderno. Há uma
possibilidade --carente de maior investigação-- de que seja esse caráter
ilusório que tenha despertado a afeição do público leigo, e é bem provável que
isso dê conta de sua rejeição por parte dos intelectuais. Depois de todo o
esforço que um bom leitor investe para começar a se sentir à vontade no
mundo da poesia moderna, chega um poeta que torna quase supérflua essa
dedicação. Que fazer com ele?
Pode-se principiar uma carreira de leitor com sua obra, porque sua aparente
simplicidade é uma isca exemplar. Requer-se, contudo, um trato maior com a
poesia --um trato que talvez transcenda as fronteiras do idioma e não se limite
apenas à leitura-- para que Vinicius se digne a entremostrar suas qualidades.
Vejamos. Há quem tenha aprendido a gostar de um texto cheio de trocadilhos
e paronomásias onde o português se mistura com outras línguas? Que leia "A
Última Elegia". Intertextualidade é a palavra-chave? Bom, "O Crocodilo" e
"As Mulheres Ocas" são paródias ou paráfrases extremamente criativas de,
respectivamente, "The Hipopotamus" e "The Hollow Man" do poeta anglo-
americano T.S. Eliot. E "Receita de Mulher" é puro, não, não, impuro Rilke
reimaginado no litoral do Atlântico Sul. Se a questão é um trabalho de aporias
que, à maneira de e.e. cummings, subverta a própria gramática da língua,
então se pode ler "Poética (1)", o sonetinho que principia com "De manhã
escureço". O "in" é um texto construtivista ou combinatório com ecos de
Gertrude Stein? Lá estão "A Rosa de Hiroxima" --"Mas oh não se esqueçam/
Da rosa da rosa/ Da rosa de Hiroxima"-- e o poema em louvor do edifício do
Ministério da Educação, "Azul e Branco". Fossem estes reunidos num volume
autônomo e um crítico desavisado imaginaria que se tratava dos poemas de
um autor, vinte anos mais jovem, de vanguarda. Os recursos que aproximam
Vinicius da poesia concreta dos anos 50 são mais relevantes em sua obra do
que os escassos experimentos realizados por Drummond em "Lição de Coisas"
ou por Bandeira.
A alta qualidade desses poemas não impede, todavia, ninguém de concluir
que uma defesa do poeta enquanto, digamos, um precursor da vanguarda
acrescentaria pouco ao seu prestígio e menos ainda à exposição de suas
especificidades. Os poemas em questão servem, por um lado, para ilustrar sua
versatilidade e, por outro, para realçar a complexidade envolvida em outros

18
poemas que o acabamento faz parecerem simples. Entre estes, um caso muito
mais importante é o de "O Operário em Construção". "O quê", interviriam os
leitores mais exigentes, "uma longa balada político-panfletária em versos
heptasílabos e rimas em 'ão' que, lançando mão de uma história bíblica
arquiconhecida traça um paralelo entre Cristo sendo tentado pelo demônio no
deserto e um patrão tentando subornar seu proletário?" -- "O tema é banal; seu
tratamento, óbvio; e a forma, fácil". É mesmo? Releia-se uma, duas, várias
vezes a balada. Nada nela é banal, óbvio ou fácil. Como? Há, naturalmente, o
trocadilho central do operário bitransitivo na construção, que contrói algo para
alguém, e o operário reflexivo em construção, que se constrói. Há também a
metáfora um tanto stalinista-jdanovista (mas não só) do poeta como operário.
Nada muito transcendente, mas arredondando um pouco mais o poema. E o
resultado final, palavra a palavra, funciona, não tanto por causa quanto apesar
de tudo isso, porque esses elementos todos, nas mãos de um poeta menor,
seriam armadilhas capazes, cada uma delas, de gerar um resultado grotesco.
Que não se possa acusar "O Operário em Construção" de grotesco é um
triunfo maior do que se imagina, um triunfo que, após um momento de
reflexão, poderia levar um leitor atento a se perguntar se o poeta não teria
escolhido todos esses elementos justamente porque eram armadilhas, porque a
graça mesmo estava em se fazer, contra todas as probabilidades, um bom,
talvez um grande poema com materiais viciados, imperfeitos, defeituosos.
Voltando a escrever baladas e sonetos, o poeta carioca não virou as costas ao
modernismo. Ele assumiu, isto sim, a tarefa árdua de escrever baladas e
sonetos incontestavelmente modernistas. E, além disso, evidenciou uma
característica central da moderna poesia brasileira: seu âmago se encontra
principalmente na dicção, ou seja, na escolha lexical e nas sutilezas de
combinação e modulação do fraseado, algo que, mais do que coloquialismo,
cabe chamar de idiomaticidade. Eis o "algo a mais" de Vinicius.
A poesia é muitas coisas; entre estas ela é uma constante ampliação do
campo do dizível, uma operação que pode se realizar na direção do nunca
antes dito ou na daquilo que o desgaste, a repetição, a imperícia e os novos
tabus converteram em algo impossível de ser dito ou, mais propriamente, bem
dito. Rumando nesta última direção, Vinicius tem arcado com a
incompreensão de um público que parece lê-lo por razões equivocadas (mas
não de todo) e de uma crítica que deveria saber melhor. É lamentável, pois
esta situação não colabora em nada para encorajar os poetas atuais a emulá-lo
num tipo de trabalho com a língua e a tradição que, nos dias que correm, anda
fazendo grande falta.

Janeiro de 97

19
(LIVRO ABERTO No. 3, fevereiro de 97 )

20
3)PAULO LEMINSKY*

Há uma geração de poetas que gravitam em torno dos 50 anos de idade. Eles
são contemporâneos de músicos como Chico Buarque, Caetano e Gil. São
sucessores imediatos dos debates gerados pelas vanguardas dos anos 50/60 e
vêm, portanto, depois dos irmãos Campos, Décio Pignatari, Ferreira Gullar e
José Paulo Paes. Alguns se revoltaram contra as idéias e/ou as práticas tanto
destes (de alguns destes, pelo menos) quanto de João Cabral, outros as
incorporaram. Quinze anos atrás, a crítica chegou a discernir nesta geração
duas vertentes distintas, talvez opostas: a poesia marginal vs. a construtivista.
Hoje, porém, uma coisa está cada vez mais clara: as duas pseudo-vertentes
tinham e têm muito mais em comum do que parecia, e quanto haja de
diferente deve-se sobretudo ao temperamento de cada poeta. Vistas a uma
distância de uma ou duas décadas, elas são a face hippie e a face yuppie do
mesmo fenômeno -- se bem que uma eventual tentativa de se descobrir
retrospectivamente quem estava mais para cá ou para lá prometa resultados
curiosíssimos. As duas personalidades mais famosas da referida geração são a
carioca Ana Cristina César e o paranaense Paulo Leminsky.
Acima de qualquer nuance crítica, eles estão ligados para sempre pelas
circunstâncias relativamente trágicas da morte mais ou menos precoce. Ana
Cristina, propensa às crises de depressão, cometeu suicídio. Leminsky matou-
se meticulosamente com o álcool. Há, contudo, outras semelhanças. Ambos
eram cultos e cosmopolitas, dominavam idiomas estrangeiros, traduziam
literatura. Ambos amadureceram no clima entre provinciano e claustrofóbico
dos primórdios da ditadura militar e cada qual, à sua maneira, absorveu a
contracultura dominante na época, ou seja, rock e mpb, o sexo que se liberava
e a informalidade que começava a desengravatar o país. "Last but not least",
para lá de divergências circunstanciais, ambos descendiam do projeto
modernista inaugurado em 1922, e a este nenhum deles rejeitava, embora
talvez o interpretasse distintamente.
O que mais surpreende na carreira do paranaense --que ora chega à
excelente coleção "Melhores Poemas" dirigida por Edla Van Steen, num belo
volume organizado e prefaciado por Fred Góes e Álvaro Martins -- é sua
coerência, e isso não como um dado positivo ou negativo, mas apenas factual.
A poesia de Leminsky é tão homogênea que, na ausência de outras
referências, torna-se difícil datá-la, periodizá-la. Ele encontrou, ou melhor,
encontrou-se muito cedo com seu estilo próprio e não parece ter se
*
MELHORES POEMAS. PAULO LEMINSKI. ORGANIZAÇÃO DE FRED GÓES E ÁLVARO
MARTINS. GLOBAL. 1996.

21
preocupado demasiadamente em se livrar dele ou sequer alterá-lo. Tanto
pessoalmente quanto em sua obra, ele sempre pareceu estar perfeitamente em
paz com o que fazia. Sua trajetória é algo surpreendentemente livre de grandes
inquietações, seja existenciais, seja --até mesmo-- poéticas. Ainda assim, ele
não era um dogmático, um "maitre-à-penser", um candidato a ditador das
letras exigindo discípulos leais. Talvez seja por isso que sua certeza não
incomodava a ninguém: ele a possuía apenas para uso pessoal; não a impunha
aos outros.
Se bem que tal tipo de segurança nem sempre se torne prejudicial à obra de
um autor, cabe assinalar que a poesia do paranaense traía uma certa falta de
ambição. A história não se faz com o "se", mas se seu fígado não tivesse
cedido antes, é lícito supor que o talento de Leminsky o teria conduzido mais
em direção à prosa, onde seus projetos --pelo que se pode deduzir de seus dois
romances-- eram tão ousados e, sim, ambiciosos que mesmo seu trabalho de
tradução --Becket, Petrônio, Joyce etc.-- poderia ser lido como um
aprendizado, uma preparação para o futuro, um futuro em prosa. Sua falta de
ambição poética não deve, no entanto, em circunstância alguma, ser
confundida com uma falta de talento. Seu caso parece mais o de alguém que
atingiu as suas metas. E em poesia, fixadas no começo da juventude, estas
eram obrigatoriamente limitadas. Mantidas as devidas proporções, o próprio
Joyce escreveu uma poesia limitada --e boa, na medida mesmo em que não era
pretenciosa-- antes de mergulhar de cabeça na prosa. Se --novamente esta
partícula incômoda, o "se"-- tivesse vivido, uma boa aposta é a de que
Leminsky teria se celebrizado como romancista e, consequentemente, sua
poesia viria um dia a ser vista enquanto atividade subsidiária. Não está
excluída tampouco a hipótese de que, com a maior divulgação de "Catatau" e
"Agora É que São Elas", venha a suceder precisamente isso.
Nos dias que correm, a opinião acima beira a heresia, pois há duas correntes
críticas: para a primeira, Leminsky é um herói, um grande poeta, quem sabe o
maior de seu tempo; para a outra, ele é irrelevante em tudo o que fez. Ambas
se equivocam porque partem de pressupostos que não se aplicam à sua poesia.
Se os padrões de grandeza forem Drummond ou João Cabral, Leminsky
obviamente empalidecerá. Mas se descartá-lo quer dizer que, por um lado, ele
não sabia fazer o que queria fazer ou, por outro, que o que fazia era
desimportante, cometer-se-á um erro ainda maior. Sua avaliação depende do
confronto de metas e resultados. O problema é que ele não deixou nenhum
panfleto e muito menos um tratado onde declarasse suas intenções. Cabe,
portanto, deduzi-las de sua obra, de sua trajetória, identificando nestas o que
era que, para além das convenções e da linguagem de sua geração,
individualizava sua atividade.

22
Duas características centrais de sua poesia --bastante típicas também de toda
aquela geração-- são a brevidade e o apego aos jogos de palavra. Ambas o
aproximam igualmente do primeiro modernismo (Oswald, Drummond de
"Alguma Poesia", Murilo Mendes de "História do Brasil") e da poesia
concreta. No anos 80, ele dedicou-se a poemas um pouco mais longos, mas,
bem examinados, eles entremostram uma lógica de construção que é a mesma
dos curtos, uma formulação que, às vezes, é esticada com brio e graça e,
outras, raramente perdendo o rebolado, articula-se mediante um acúmulo
simples de poemas mais curtos. Durante quase toda a sua carreira Leminsky
escreveu incessantemente seus haicais, uma forma na qual ele se sentia
particularmente em casa, e o sucesso de seus resultados está na raiz da febre
haicaística que acometeu muitos dos poetas posteriores. Convém, aliás,
assinalar que esses seus poemas curtíssimos não eram realmente haicais
segundo qualquer definição rigorosa, mas antes epigramas geralmente livres
de qualquer convenção formal. O que importa aqui, porém, é definir as razões
que lhe impunham a brevidade e o jogo de palavras. Ao contrário do que se
possa pensar, estas razões têm pouco a ver com a concepção construtivista,
digamos mallarmaica, do texto, uma concepção que se apóia em
complexidades sintáticas que não ocupavam o centro da inspiração ou da
prática poética leminskiana. Ele não buscava programaticamente a concisão
ou a rarefação, nem procurava fundamentar seus versos em sutis simetrias
fonológicas ou morfológicas entre as palavras --anagramas, paragramas etc.--
pois seus jogos de palavras eram antes de tudo jogos mesmo, apenas jogos,
nada mais que jogos, isto é, brincadeiras, trocadilhos às vezes infames (no
bom sentido, é claro). Tampouco desejava abolir o verso ou pesquisar, na
poesia, novas formas de expressão para ampliar o campo semântico da poesia
com novos temas. Seus temas eram propositadamente os mais banais
possíveis. A poesia de Leminsky não parece querer se entranhar na função
poética definida por Roman Jakobson, mas sim em algo diverso, algo que
poderia ser chamado de "função proverbial da linguagem". Ela se realiza em
momentos como:

Tempo lento
espaço rápido,
quanto mais penso,
menos capto

uma quadra que aspira à condição idêntica de

Água mole

23
em pedra dura
tanto bate
até que fura

Aspira e, diga-se de passagem, chega lá. Em suma, o que ele fazia era tentar
criar novos provérbios, ditados, frases feitas.
Paulo Rónai conta em um ensaio que, quando ensinava Horácio a seus
alunos de latim, estes resistiam ao poeta argumentando que tudo o que ele
dizia eram meros lugares-comuns. Rónai contra-argumentou, demonstrando-
lhes que o poeta em questão não partia de frases-feitas; o que acontecera é
que, devido à precisão lapidar de sua formulação, seus versos haviam
posteriormente se tornado proverbiais. O mesmo terá acontecido com alguns
dentre os clássicos da língua portuguesa --por exemplo, "um fraco rei faz fraca
a forte gente"--, mas só ocasionalmente. A poesia luso-brasileira, ao contrário
da espanhola, da alemã ou russa (estas desde o romantismo) e até mesmo da
anglo-americana, é uma das que se encontram mais distantes das tradições
populares. Poesia em português é normalmente sinônimo de literatura culta, de
partimônio de uma minoria letrada e formada em Coímbra ou no Largo de São
Francisco. O modernismo reagiu a isso, sem dúvida, mas antes com a
coloquialidade e informalidade urbana do que com uma revalorização da veia
oral e, nesse sentido, nem mesmo a renovação da MPB com a Bossa Nova e a
Tropicália objetivava qualquer tipo de "folclorismo" e se aproximava mais da
linguagem da classe média do que das populares, mais da cidade que do
campo. Assim, tirando um "e agora José" aqui ou um "de repente, não mais
que de repente" ali, há muito pouco na poesia brasileira moderna (ou antiga,
ou na portuguesa) que pudesse se transformar num lugar-comum.
Se para Horácio, no entanto, a proverbialização foi antes um subproduto de
seu trabalho, essa parece ter sido precisamente a meta de boa parte da
produção do paranaense. Além disso, ele operava nitidamente num registro
particular, que não é o mesmo daquele em que se encontra habitualmente a
assim chamada "grande poesia" um registro para cuja definição seria possível
lançar mão de uma expressão raramente usada entre nós, a de "poesia leve".
Esta, enquanto tal, não é nem melhor nem pior do que sua contrapartida, a
poesia séria: ela é diferente. E tem seus grandes expoentes: Jacques Prévert
em francês, Dorothy Parker em inglês. Numa certa leitura, e.e. cummings, que
não resiste a uma comparação minuciosa com seus
conterrâneos/contemporâneos Ezra Pound, William Carlos Williams, Wallace
Stevens ou Charles Olson, só ganharia se fosse considerado sobretudo um
autor de "light poetry". Pertencem a essa categoria, no Brasil, certas
coletâneas de versos de circunstância como o "Mafuá do Malungo" de

24
Bandeira ou "Viola de Bolso" de Drummond -- e não creio que alguém
descartaria esses livros como sendo "irrelevantes".
Não é o caso de se confundir proverbialismo com poesia leve, embora haja
convergência entre ambos, na medida em que dependem da oralidade e da
imediaticidade. Na obra de Leminsky, porém, a identificação é total. Havia (e
há) poucas pessoas mais habilitadas do que ele para tentar preencher o que,
afinal, não deixa de ser um lapso na nossa literatura. Isso acabou
aproximando-o da MPB, mas, como se assinalou antes, esta, desde a Bossa
Nova, relaciona-se melhor com a poesia literária do que com a fraseologia
popular, como se comprova na obra de um dos mais talentosos compositores
do país, Caetano Veloso. Letras como "O Quereres" são justificadamente
famosas pela competência com que o autor retrabalha a tradição que remonta
até Camões. Só que, infelizmente, o complemento disso se encontra numa
certa dificuldade, da parte de Caetano, em lidar com as frequências menos
cultas. Quando sua mestria mais ou menos livresca desce até a gíria, os
resultados são geralmente problemáticos. Um estrangeiro que pode, por
exemplo, dominar o "King's English", soará sempre ridículo falando
"cockney". Assim, o amor de Caetano pela gíria quase nunca é correspondido,
seu "approach" é de fora e, quando ele a usa, o que sobressai é um eco de
afetação que não está distante nem da demagogia nem do "kitsch". É o que
acontece quando ele diz "mina, você é massa": a gíria já se tornara obsoleta no
momento em que o disco chegava às lojas, observação que vale também para
títulos como "Bicho", "Transa", "Qualquer Coisa" etc., assim como para
expressões do tipo "odara". Porque quem quer falar que nem malandro tem
que ser malandro, algo que Caetano não é. E Leminsky era.
Sua gíria, por exemplo, não é apenas usada com parsimônia e adequação
como também não envelheceu: ela funciona sem incomodar. E essa
constatação vale para todas as suas (aparentes) limitações, porque estas
decorrem de suas intenções, não de sua habilidade. Posicionar-se pró ou
contra a grandeza de sua poesia equivale justamente a ignorar essas intenções
e só pode, é claro, redundar em equívocos que vale a pena desfazer. Sua
poesia, a rigor tradicionalista, pouco tem de vanguarda no sentido estrito nem
aponta para uma renovação de formas, algo que ele mesmo satirizava:

o novo
não me choca mais
nada de novo
sob o sol

apenas o mesmo

25
ovo de sempre
choca o mesmo novo

Ele não buscava coloquializar a poesia, mas sim desentranhá-la diretamente da


fala cotidiana:

moinho de versos
movido a vento
em noites de boemia

vai vir o dia


quando tudo que eu diga
seja poesia

Sua obra mantinha um parenteco apenas parcial com uma MPB culta:

à pureza com que sonha


o compositor popular

um dia poder compor


uma canção de ninar

Leminsky, enquanto poeta, era o poeta leve de temas quase intemporais e


também, essencialmente, o compositor mais verbal que musical de futuras
frases feitas para um folclore urbano. O que há nele de mais peculiar está em
formulações como:

não discuto
com o destino

o que pintar
eu assino

ou

confira
tudo que respira
conspira

26
Borges, ao contar o enredo de um poema de Robert Graves, conclui com um
elogio preciso: "esta história mereceria ser muito antiga". Os melhores poemas
do paranaense são, assim, de fato autênticos provérbios que mereceriam,
portanto, ser anônimos.

(LIVRO ABERTO No. 1, agosto de 96)

POESIA ESTRANGEIRA

27
4) CÂNTICO DOS CÂNTICOS: FAMILIARIDADE E ESTRANHEZA*

**
Conferência apresentada nas Faculdades Integradas de Osasco num ciclo sobre o “Cântico dos Cânticos”.

28
O "Cântico dos Cânticos" é um texto a um tempo familiar e estranho. Ele
nos é familiar porque pertence a uma das obras fundamentais de toda a nossa
civilização, a Bíblia, e também porque é uma coleção de poemas erótico-
amorosos, ou seja, desempenha a função que mais corriqueiramente
esperamos da poesia. Ele nos é estranho, contudo, exatamente por essas
mesmas duas razões, isto é, primeiro: o que faz uma coleção de poemas
erótico-amorosos, despida de qualquer menção ao Senhor, à história de Israel
e dos judeus, livre de toda e qualquer culpa, justamente no âmbito da Bíblia?
E, segundo: que poemas são esses nos quais amado e amada celebram-se
respectiva e mutuamente em termos quase explícitos, lançando mão dos
recursos comparativos da metáfora não tanto para ocultar decorosamente
aquilo que pretendem fazer e repetidamente fazem, mas simplesmente para
obter suas intensificação imagética em vários planos sensoriais? Que poemas
são esses que recorrem a imagens estranhas e exóticas, a lugares como o oásis
de Engadi, às florestas do Líbano, que comparam, valendo-se de um
conhecido estratagema militar, a amada a uma égua no cio solta em meio aos
garanhões da cavalaria real, que apelam sobremaneira ao olfato, multiplicando
comparações com óleos aromáticos, mirra, incenso, aloés etc.?
A possível apreciação desses poemas requer, portanto, que o leitor deixe de
lado, pelo menos por um momento, tanto seu sentimento de familiaridade
quanto o de estranheza. Abandonar a familiaridade implica se esquecer de
todo o resto do universo bíblico e, principalmente, daquele que o crítico norte-
americano Harold Bloom, em seu "Livro de J", considerou a personagem mais
eficaz e engenhosa já inventada pela literatura, ou seja, Jeová, Javé, o próprio
Deus, pois este não se dá sequer ao trabalho de fazer sua presença sentida no
"Cântico", talvez devido à completude em que se dá ou a que se chega durante
a descoberta, pelos amantes, do júbilo do amor consumado. Mas a
familiaridade com toda a tradição erótica e amorosa ocidental também precisa
ser suspensa, pois, desde pelo menos os gregos, a lírica amorosa enveredou
por caminhos substancialmente distintos dos que conduzem os amantes no
"Cântico". Assim, a esmagadora maioria do que nos chegou --seja da Grécia
ou de Roma, seja do Islã ou da Europa medieval-- não foi apenas composta
por homens, como também foi escrita segundo uma perspectiva que, se seria
abusado e implicaria uma adesão ao reducionismo feminista chamar de
machista, seguramente pressupunha uma diferença qualitativa de "status" entre
homem e mulher, em favor do primeiro. Além disso, muito cedo, o amoroso e
o erótico se bifurcaram na tradição ocidental, criando a divisão entre amor,

29
geralmente casto, e sexo, habitualmente obsceno. Essa bifurcação segue
mostrando uma vitalidade inacreditável mesmo depois da revolução sexual
dos anos 60 e nada parece apontar para sua convergência. (É significativo,
neste sentido, que, para falar do "Cântico", eu venha usando ambas as
expressões de forma composta e conjugada, tão dissociadas elas continuam
entre nós.)
A tradição ocidental nos legou uma poesia amorosa cuja imagem central é a
da distância a se vencer, a da impossibilidade de qualquer consumação. Essa
imagem, como se sabe, chegou à sua máxima elaboração na Idade Média, seja
nas "Cantigas de Amigo" portuguesas nas quais, embora escritas por homens,
é a mulher que lamenta a ausência de seu "amigo", seja nas baladas provençais
de um Jauffre Rudel, tão soberbamente analisadas por Leo Spitzer. Se o amor
quase não envolve sexo, entre outras razões, pela distância geográfica, social
etc. entre os amantes, o erotismo é básicamente apenas sexo e destaca-se em
toda a produção erótica ocidental dos últimos dois mil e tantos anos um
perpétuo tom de desprezo do homem que possui pela mulher que se deixa
possuir facilmente. As instâncias de uma poesia erótica na qual fala uma
primeira pessoa feminina somente confirmam essa regra, pois, escritas em
geral por um homem, elas servem antes de mais nada para atiçar a fantasia
masculina. Como bem disse o satirista vienense Karl Kraus: "Os homens
comparam a mulher a um refresco; eles não imaginam que ela também tem
sede". Bom, a poesia erótica escrita por homens em nome das mulheres
concede a elas uma sede masculina, não feminina e o faz, com desdém
subjacente, como se se tratasse de alguma espécie de anomalia merecedora de
maiores estudos, ou simplesmente para que aquele que possui não sinta culpa
alguma em relação àquilo que possui.
"O Cântico dos Cânticos" não nos é familiar, pois, pertencendo à Bíblia, é
puramente secular. É também uma coletânea erótico-amorosa
fundamentalmente livre de culpa e da divisão entre o erótico e o amoroso.
Tudo isso e mais suas características estilísticas próprias o tornam estranho.
Cabe lembrar que esses poemas foram escritos numa língua semítica, o
hebraico, que, descendendo da família afro-asiática originária do Leste
africano, provavelmente da Etiópia, tem uma estrutura sintática e uma
gramática substancialmente diferentes das daquelas línguas que conhecemos
melhor, as indo-européias. Mesmo os modernos fdalantes do hebraico têm
dificuldades para entender a língua na qual estes poemas foram escritos e o
sentido de muitas palavras e expressões já se perdeu há muito tempo. Os
poemas em questão foram escritos há quase três mil anos no contexto de uma
sociedade sobre a qual só alimentamos noções vagas decorrentes dos escritos
que ela mesma nos legou e dos achados dos arqueólogos. Não sabemos quem

30
escreveu esses poemas, nem quando. Não sabemos se eles são produto de
alguma tradição popular e seguiram existindo por século antes de chegarem à
primeira forma escrita ou se já foram compostos diretamente em pergaminho
ou papiro ou qualque coisa semelhante. Tampouco sabemos se eles cumpriam
alguma função específica. Há quem tenha falado em resquícios de algum culto
à fertilidade, um tema obsessivo da antropologia britânica tributárias das
especulações de Fraser no começo do presente século. Há quem se refira à
possibilidade de que esses poemas fossem cantados durante as bodas e outro
crítico americano, Robert Alter, lembra que há documentação indicando que,
no período da conquista romana da Judéia, eles serviam a esse intuito. Tudo o
que sabemos hoje, como diz Alter, é que eles são antiquíssimos, tendo sido
provavelmente compostos no primórdio da época do primeiro Templo, isto é,
em torno dos séculos 10 ou 9 antes de nossa era, e que, sujeitos a sabe-se lá
quê alterações, foram finalmente incorporados ao cânone das escrituras
hebraicas no primeiro século de nossa era, depois da destruição do segundo
Templo, quando os doutos rabinos, ainda sob o impacto direto da destruição
de Jerusalém e do antigo reino de Israel, antevendo prescientemente todos os
perigos que acometeriam o povo judeu e seu legado cultural na dispersão que
se tornou conhecida como a Diáspora, buscaram salvar o salvável,
organizando numa coletânea única todo o patrimônio de mil ou mais anos que
julgavam merecedor de perpetuação.
O que não sabemos acerca do "Cântico" supera de longe o que sabemos
embora, comparando o que nos chegou da antiga Palestina com os às vezes
ininteligíveis fragmentos da poesia lírica grega de Safo ou Arquíloco,
devêssemos antes nos sentir gratos. Nenhum ciclo de poemas semelhantes que
nos tenha chegado de qualquer civilização mediterrânea é mais extenso ou
completo do que o "Cântico" antes dos tempos romanos e dos poemas de
Catulo, Horácio, Propércio e outros.
Essa afirmação precisa, no entanto, ser qualificada.
1922 é considerado o ano-chave da poesia moderna e da literatura moderna
em geral. O grande crítico e historiador literário Hugh Kenner o chamou de
"annus mirabilis" não porque soubesse da nossa Semana de Arte Moderna,
que ocorreu no mesmo ano. Aliás, em parte alguma de sua extensa obra ele dá
provas de conhecê-la. 1922 é para ele o "annus mirabilis" por ter visto a
publicação de duas obras centrais da modernidade anglo-americana: o
"Ulisses" de James Joyce e "The Waste Land" de T. S. Eliot. Kenner
tampouco dá notícia de outra obra tão central quanto essas e também
publicada no mesmo ano: o ciclo que o peruano Cesar Vallejo chamou de
"Trilce" e que, desde então, tornou-se o conjunto de poemas mais influente
para todos os que escrevem em espanhol e, cada vez mais, inclusive em inglês.

31
Poetas norte-americanos contemporâneos como Clayton Eshleman, que
traduziu "Trilce", ou Michael Palmer, que se inspirou no peruano para
escrever muitos de seus próprios textos, são prova cabal da importância desses
poemas. Agora, voltando às outras obras de 1922, vale a pena ressaltar um
fato curioso e sintomático. Já numa das primeiras resenhas sobre o livro
joyceano, "Ulysses, Order and Myth" ('Ulisses', Ordem e Mito'), ninguém
menos que o próprio Eliot observava que o elemento central de organização
dessa narrativa quintessencialmente moderna era uma outra, uma obra antiga,
arcaica mesmo, a "Odisséia" de Homero. Essa interpretação fez escola e por
muitos anos os "scholars" ocuparam-se quase unicamente de desentranhar do
"Ulisses" joyceano os paralelos homéricos. Não muito tempo depois, outros
críticos constatarm que, aos sublinhar esse tipo de organização narrativa, Eliot
referia-se pelo menos ranto aos seu próprio poema quanto ao romance de seu
amigo irlandês. E é, claro, verdade que "The Waste Land" recorre
incessantemente a paralelos mitológicos e literários, que referências antigas as
mais diversas são parte integrante de seu poema, que uma de suas personagens
centrais é o mesmo vidente cego Tirésias cuja história Ovídio narra nas
"Metamorfoses" e que, antes, na peça de Sófocles, levara Édipo a descobrir
seus próprios crimes. Que a interpretação pioneira de Eliot valesse afinal tanto
para o "Ulisses" quanto para seu "The Waste Land" evidencia uma
característica importante dessas duas obras publicadas no "annus mirabilis"
bem como a de muitas outras, suas contemporâneas. A característica é a
seguinte: a modernidade literária dispõe de duas extremidades, uma
propsectiva, apontada para o futuro, elemento de destaque nos vários e
diversos "futurismos", no culto da tecnologia, da novidade e do "novo", e uma
retrospectiva, não tanto voltada para o passado quanto sequiosa de recriar o
passado, de resgatá-lo das superposições de falsificação, banalização,
reverência mecânica e lugar-comum sob as quais havia sido soterrado. Esse
passado pode ser o mais imediato, como a releitura dos textos do século
anterior exemplificam, ou o mais remoto, mítico, pré-literário e, nesse sentido,
a formulação mais claramente de suas recuperação está em movimentos como
o da etnopoesia de Jerome Rothenberg. De forma pioneira, ainda que
instintiva, muito de nosso próprio modernismo, como o "Macunaíma" e
"Cobra Norato", se inclui nessa vertente.
Acontece que essa modernidade retrospectiva não começou em 1922, mas
quase exatamente um século antes, em 1823, quando um oficial francês
decifrou pela primeira vez os caracteres de uma escrita milenarmente
esquecida. Refiro-me, naturalmente, a Champollion que decifrou os
hieroglifos inscritos na Pedra Roseta. Talvez eu esteja sendo injusto com um
feito de importância pelo menos igual, realizado uma geração antes. No

32
penúltimo decênio dos século 18, um inglês assumiu o cargo de magistrado da
recente possessão britânica no subcontinente indiano. Ele já havia vivido por
algum tempo na então chamada Pérsia, onde se dedicara ao estudo, decifração
e interpretação daquilo que havia sido escrito na antiga língua desse povo, o
avéstico. E chegara a conclusões interessantes, entre elas, a de que havia
algum tipo de parentesco entre essa língua e o grego e latim clássicos.
Chegando à Índia, ele se pôs a estudar o sânscrio, um idioma que, como o
latim medieval, apenas alguns religiosos locais dominavam. Em breve,
constatou que essa outra língua também se aproximava daquelas que o
Ocidente considerava clássicas e isto de uma forma tão extrema que o mero
acaso não podia explicar. Com base nessas suas descobertas, ele postulou a
teoria de uma origem comum para línguas tão diversas e geograficamente tão
distantes entre si quanto o Grego e o Latim, por um lado, e o Avéstico e o
Sãnscrito, por outro. Elas e várias outras pertenceriam afinal a uma única
família indo-européia. Lançaram-se, assim, as bases do estudo moderno,
comparativo e linguístico, dos idiomas. O magistrado inglês responsável por
isso chamava-se Sir William Jones, que, não contente com esse feito, abriu
também para o Ocidente, com estudos e traduções, toda a riqueza literária
praticamente esquecida da antiga Índia.
A linguística de Sir William Jones associada às técnicas de decifração de
Champollion e mais o trabalho de centenas de estudiosos, linguistas,
arquólogos e visionários nos quais se reuniam nas doses mais variadas o
espírito aventureiro dos construtores de impérios e a erudição exigente foram
responsáveis pela redescoberta de um passado que, por gerações e gerações,
nossos ancestrais simpesmente ignoravam. Logo depois do Egito, da Índia e
da Pérsia, a curiosidade deles todos se voltou obviamente para o mundo de
onde provinham os pilares reconhecidos da civilização ocidental, isto é, os
poemas homéricos e a Bíblia. A exploração do mundo homérico resultou não
apenas na localização da cidade de Tróia --várias delas, em camadas
sucessivas, para dizer a verdade-- como também a descoberta de uma
civilização anterior, a micênica/minóica, com seus palácios e suas escritas
silábicas, uma delas numa forma anterior mas reconhecível do grego, o Linear
B, decifrado, já nos anos 50 de nosso século por Chadwick e Michael Ventris.
O estudo arqueológico, linguístico etc. do mundo bíblico é que rendeu, como
se poderia esperar, as revelações mais interessantes. Entre as primeiras estava
a de que os reinos mesopotâmios de que falavam as escrituras não eram lendas
nem mitos, mas história. O clima seco do que é hoje o deserto iraquiano
guardava uma, talvez a maior de todas as surpresas: a literatura desses povos,
os assírios e os babilônios, e, além disso, a de um outro, anterior, de cuja
existência nem sequer se suspeitava, literalmente, havia milênios: os sumérios.

33
Esses achados aliados ao trabalho dedicado e obsessivo de gerações de
decifradores fizeram o conhecimento histórico recuar em algo entre dois e três
milênios, das datas bíblicas mais remotas, situadas nos reinados de Davi e
Salomão em torno de 1.000 antes de nossa era a quase 4.000 antes de nossa
era, a época em que pioneiramente os sumérios inventaram a escrita.
Constatou-se concomitantemente que muitas das histórias bíblicas antes
consideradas pristinas, originais entre as originais, eram sobretudo o resultado
de uma antiquíssima tradição transmitida milênios afora antes de se fixarem
nas escrituras hebraicas.
Nós ocidentais, possuidores de um sentido da história, se não melhor, talvez
mais obstinado que o das outras civilizações, temos nos visto, nos últimos dois
séculos --e cada vez mais-- quase que na obrigação de assimilar uma
perspectiva histórica que praticamente dobra os cerca de dois ou dois mil e
quinhentos anos com os quais já havíamos feito as pazes. A modernidade
literária à qual eu me referia antes, com sua dimensão retrospectiva, pode ser
igualmente lida como uma resposta imaginativa a esse desafio. O trabalho dos
eruditos que vêm, há pelo menos dois séculos, renovando o estudo dos textos
bíblicos é outra resposta possível. A dimensão sagrada da qual esses textos se
revestiam dispensou durante quase dois milênios os estudiosos de uma série
de obrigações. No caso específico dos "Cãnticos", a intepretação consensual
de que se tratava de poemas nos quais se expressava o amor mútuo entre a
alma e seu criador ou qualquer coisa semelhante, uma interpretação, enfim,
que parece ter sido inventada por rabinos do começo de nossa era para
convencer seus colegas mais puritanos da necessidade de se incluir esses
poemas no cânone, essa interpretação funcionou durante todo esse tempo
como um jogo no qual a conclusão já vinha dada desde o começo e que
consistia, portanto, na elaboração de caminhos sempre melhores, mais
elegantes ou engenhosos, para se atingir esse resultado pré-determinado.
A entrada em cena de milênios de literatura suméria, babilônia, assíria e
egípcia mudou substancialmente o horizonte da leitura. Assim, de início, está
a constatação de que há hoje, à nossa disposição, uma imensa literatura que é
tão estranha quanto possível, mas que precede em linha mais ou menos reta a
nossa própria. Essa é a principal estranheza com que nos defrontamos e nos
defrontaremos ainda por muito tempo, se mais nada, porque são tantos os
subsídios que nos faltam, por um lado, e, por outro, porque nem deus sabe que
revelações nos aguardam a cada nova escavação arqueológica. É inevitável,
portanto, que se procure a origem de um ciclo poético que se pensava
absolutamente original, como o "Cântico", nessas antiquíssimas tradições
recém-descobertas e, se histórias como a do Dilúvio parecem ter sua origem
na Mesopotâmia, a leste da Palestina, muitos estudiosos apontam, no caso do

34
"Cântico", para as influências vinda do oeste, do Egito. As canções de amor
do Reinado Novo, facilmente disponíveis hoje em dia em traduções para as
principais línguas européias, mostram semelhanças marcantes com o
"Cântico", entre outras coisas, no uso dos termos irmão/irmã pelos amantes.
A questão, porém, não é tanto essa, mas a do profundo estranhamento
ocasionado pela nova profundidade temporal que impede toda leitura inocente
de qualquer texto bíblico. Em outras palavras, não é porque não se acharam
até agora os originais egípcios ou sumérios de tal ou qual poema hebraico que
eles não estão nos aguardando debaixo de alguns metros de areia neste ou
naquele deserto. Mesmo, portanto, que um poema bíblico nos pareça familiar
devido ao que se fez dele, ao modo como vem sido lido desde que a Bíblia se
tornou o livro sagrado do Ocidente, ele é, por definição, um texto estranho que
pertence muito menos a nós do que a uma tradição da qual não sabemos o
suficiente para poder inferir muito de relevante, mas da qual sabemos mais do
que o suficiente para dizer que existiu e pesa, ou deva pesar,
significativamente sobre ele.
Ainda assim, e embora invoquemos o "Depois de tal conhecimento, que
perdão?" de T. S. Eliot, não nos cabe apavorarmo-nos diante de tanta
estranheza. A linguística, na obra de um Roman Jakobson ou de um Noam
Chomsky, evoluiu também na direção de determinar os traços universais de
todos os idiomas e se o norte-americano argumentou convincentemente que há
uma gramática profunda que subjaz a todas as línguas, que ela tem
provavelmente uma matriz genética e está de alguma forma embutida no
cérebro de todos os mebros de nossa espécie, que ela é que de fato define a
nossa espécie, o russo, por seu turno, determinou que aquilo que ele chamou
de função poética --a possibilidade de poesia mais do que a própria poesia-- é
uma característica da linguagem como um todo, não de tal ou qual língua.
Desta forma, nunca será demasiado realçar que o "Cântico dos Cânticos" é um
ciclo poemas erótico-amorosos que lança mão de recursos potencialmente
universais, refere-se a uma esfera que caracteriza toda a espécie humana e
dirige-se a todo e qualquer leitor não importa a que civilização ou época
ele/ela pertença.
Num momento seguinte, no entanto, convém retornamos à familiaridade,
não para que se dissipe o medo que nos causou o abismo temporal do qual
provém esses poemas e o abismo maior no qual se ocultam suas possíveis
raízes, mas para que lembremos de duas coisas. Uma é que dois mil anos de
familiaridade, mesmo que seja nos termos, à Harold Bloom, de "misreading",
de desleitura bíblica não se jogam, não devem nem podem ser jogados fora. Se
há dois mil ou mais anos de tradição literária à qual os poemas do "Cântico"
pertencem, não é menos verdadeiro que eles pertencem também aos nossos

35
dois mil anos que, para alguém versado na tradição judaica, são, afinal, quase
três mil. Jorge Luis Borges conta uma história instrutiva. Algures, na
Andaluzia medieval, mouros cultos discutem poesia. Um deles é Averróes e o
conto se chama justamente "A Busca de Averróes". Um dos tópicos da
discussão é o envelhecimento das metáforas e, aliás, o próprio autor partilha
da teoria de que só existem algumas poucas metáforas verdadeiras --como a
dos olhos da amada comparados às estrelas, a velhice ao outono, a morte à
noite-- e que todas elas já foram, por assim dizer, inventadas há muito tempo.
A metáfora especificamente discutida pelos mouros do conto é aquela na qual
um poeta árabe anterior havia comparado o destino a um camelo cego. Um
interlocutor argumenta que, de tanto ter sido usado, esse símile que,
inicialmente teria causado surpresa e espanto, se desgastara, transformando-se
num inane lugar-comum. Averróes lhe retruca que não, pelo contrário, se
alguns séculos antes essa metáfora evocava apenas uma imagem simples, já na
época deles, dos que ali se reuniam longe do deserto africano, a imagem
tornara-se mais complexa, pois ao binômio destino/camelo cego acrescera-se
um terceiro termo gerado pela distância espaço-temporal, a de um poeta antigo
do deserto comparando o destino a um camelo cego. Para Averróes e, pode-se
crer, para o próprio Borges, se as metáforas originais eram poucas e já haviam
sido todas inventadas, elas enriqueciam-se "naturalmente" com o correr do
tempo, com as espessura que se uso e a história lhes sobrepunha. Ora, o
mesmo sucede com o "Cântico". As elaboradas leituras alegóricas que dele
fizeram, ao discutir suas canonização, os rabinos no ano 90, a complicada
intepretação católica que dele, na era da contrareforma, ofereceu seu tradutor,
o poeta espanhol Fray Luis de Leon, a atribuição ao rei Salomão, tudo isso
pertence hoje ao poema, à história de sua sobrevivência. Como qualquer texto,
sbretudo se tiver um mínimo de história própria, o "Cântico" é mais do que ele
mesmo. Ele é suas traduções, suas paráfrases e os inúmeros outros poemas
que, consciente ou inconscientemente, derivam dele. Só no modernismo
brasileiro poderíamos mencionar, entre os esperados, o "Cântico dos Cânticos
Para Flauta e Violão" de Oswald de Andrade e, entre os inesperados, "O Mito"
de Carlos Drumond de Andrade, poema no qual, a uma certa altura, o
protagonista pergunta sobre Fulana a várias pessoas na rua exatamente como
no texto hebraico a amada indaga aos guardas sobre o paradeiro do amado.
É verdade, todavia, que, na tradição lírica luso-brasileira, o "Cântico" se faz
sentir pouco e de forma atenuada. Essa circunstância resulta de um mistério
que me só não me intriga mais do que o fato mesmo de ele não ter começado a
ser averiguada antes. O mistério em questão é o da relativa ausência de poesia
amorosa em nossa tradição. Parece que, desde a época em que Camões se pôs
a alegorizar com todo seu neoplatonismo, que o amor propriamente dito ou

36
mal aparece na poesia luso-brasileira, ou aparece convencionalmente ou está
servindo como ilustração de algum tema extra-amoroso. Se nos dermos,
porém, ao trabalho de frequentar a tradição anglo-americana, veremos que o
"Cântico" está bastante presente. Esse fato aparentemente curioso está prenhe
de significados, pois, em última instância, procede da relação diferente que,
com a Bíblia, estabeleceram os povos católicos e os protestantes. Durante
centenas de anos, para as populações de língua inglesa, a obra fundamental, a
obra que pautou os temas e estilos de sua literatura, não foi o teatro de
Shakespeare, a epopéia de Milton ou qualquer coisa desse gênero, mas a
Bíblia. Traduzida soberbamente por Tyndale e, depois, retraduzida com base
nessa versão anterior, por uma comissão de eruditos das principais
universidades inglesas, a assim chamada "King James Bible" foi, até bem
entrado esse século, a obra literária por antonomásia dos anglo-americanos.
Desfaçamos antes um mal-entendido comum aqui no Brasil. Nenhum rei
Jaime jamais traduziu a Bíblia para o inglês, primeiro porque James em inglês
se traduz como Tiago, Iago ou Jacó em português e, segundo, porque a Bíblia
leva seu nome enquanto quem comissionou, não enquanto quem realizou a
tradução que, como vimos, foi trabalho de uma equipe numerosa. Seja como
for, traduzida, e com todos os erros de interpretação e intelecção que os
estudos modernos já apontaram, a Bíblia se tornou o item básico de leitura na
Inglaterra e nos EUA, algo que não ocorreu em Portugal e no Brasil, salvo
entre os prelados cuja influência literária, depois do Padre Vieira, foi, entre
nós, principalmente indireta, enquanto educadores. Se a Bíblia não conta,
assim, na nossa língua com uma tradução clássica ou com várias modernas,
ela influenciou-nos indiretamente também através de uma literatura como a
anglo-americana.
No que diz respeito à tradução da Bíblia, cabe também observar que, se por
séculos ela foi o domínio dos reformadores religiosos --muito dos quais,
enquanto tradutores da Bíblia, acabaram na fogueira--, ela tornou-se em
seguida o campo privilegiado dos eruditos. Só muito recentemente é que,
reunindo textos inspirados dos que se supõem terem sido os melhores poetas
de suas respectivas épocas, a Bíblia voltou de uma forma laica, secular mas
literária à mão de poetas tradutores. Do prêmio Nobel polonês Czeslaw Milosz
ao poeta brasileiro de vanguarda Haroldo de Campos, que estudaram ambos, o
hebraico antigo para traduzir alguns livros bíblicos, do americano Stephen
Mitchell, tradutor também de Rainer Maria Rilke, ao poeta e crítico literário
francês Henri Meschonic, há no mundo atualmente um grupo pequeno mas
significativo de pessoas dispostas a ler e traduzir as escrituras antes sagradas
como literatura, tentando preservar ou recriar seu valor estético para o leitor
moderno.

37
Tudo isso dito, talvez seja o caso, para concluirmos, de retomar mais uma
vez as notas de estranheza. O "Cântico dos Cânticos" tornou-se um texto
familiar para o Ocidente a partir do momento em que as escrituras judaicas
foram incorporadas ao cânone do cristianismo, mais especificamente, cerca de
um milênio e meio atrás, quando São Jerônimo as traduziu para o latim na sua
"Vulgata". Um conhecimento mais direto dessas escrituras se generalizou com
a reforma protestante e a decorrente tradução das escrituras para vários dos
modernos vernáculos europeus, sobretudo o inglês e o alemão. Um texto
conhecido dos judeus por, digamos, 2.500 anos, tornou-se fundamental para as
elites cristãs há 1.500 e uma parte substancial da população européia passou a
conhecê-lo melhor do que a qualquer outro texto literário há cerca de 500
anos. Para gerações e gerações, a Bíblia não era apenas um texto familiar, mas
o substrato cultural que subjazia a todo o restante de sua cultura literária, para
nem falar da pictórica, pois os temas bíblicos eram até há bem pouco
preponderantes na pintura ocidental, ou musical, sob a forma da música sacra.
Nesse contexto, e através de camadas e camadas de "misreadings", tresleituras
criativas ou não, o "Cântico" era, por seu turno, um dos exemplos máximos, se
não o máximo, da poesia erótico-amorosa, embora, é claro, sua contínua
leitura alegórica atenuasse-lhe esse caráter.
Acontece que, depois das descobertas arqueológicas, da decifração de textos
antigos, das análises linguísticas e filológicas, de tantas novas interpretações
históricas etc., uma obra como o "Cântico" se reveste de uma infinidade de
novos sentidos, entre estes alguns que mal começamos a imaginar. Só que o
que vale para os "Cânticos" vale de forma ainda mais acentuada para todo o
conjunto de escrituras sagradas ou sacramentadas "a posteriori" que
conhecemos como a Bíblia. Há pelo menos dois séculos cada livro, cada
página frase ou palavra da Bíblia vem sendo esmiuçada, analisada,
comparada, dissecada, contextualizada e recontextualizada à luz de novos
conhecimentos acerca de uma antiguidade que, paradoxalmente, renova-se dia
a dia. Se poucos textos foram solenemente lidos com tanta atenção quanto a
Bíblia enquanto era considerada sagrada, nenhum outro texto foi (junto com
seu contexto histórico) tão esmiuçado depois que deixou, pelo menos para
uma parte considerável da população, de ser sagrado. A consequência disso é
que a estranha surpresa que o "Cântico" nos desperta à luz, digamos, dos
poemas de amor dos antigos egípcios, repete-se, sob as mais variadas formas,
quando lemos a história de Noé e do Dilúvio à luz da epopéia mesopotâmica
de Guilgamesh, ou quando estudamos as duas versões da Gênese incluídas no
Pentateuco informados por tantos outros mitos de origem, seja do Oriente
Médio, seja de outras culturas tão remotas quanto a dos aborígenes
australianos ou dos hotentotes sul-africanos.

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Fenômeno semelhante ocorre, por exemplo, durante a leitura de obras que
nossos ancestrais imediatos julgavam tão familiares quanto a "Ilíada" e a
"Odisséia". Para ilustrar rapidamente quão estranhas essas obras se tornam
para nós a cada nova informação que nos chega acerca dos antigos gregos, eu
mencionaria a capa da edição norte-americana de um livro chamado "War
Music" (Música de Guerra). O livro consiste na tradução/adaptação
extremamente livre que o poeta inglês Christopher Logue fez dos cantos da
"Ilíada" que narram a morte de Pátroclo. O grande "insight" da capa está em
não reproduzir uma figura qualquer de guerreiros extraída de uma ânfora
grega mais ou menos contemporânea, mas sim uma foto de um guerreiro
"primitivo" que eu não saberia dizer se é da Amazônia, da África ou da Nova
Guiné. E há um alto grau de verdade nessa capa: se pudéssemos, por meio de
uma hipotética máquina do tempo, visitar a época e o lugar onde teriam se
enfrentado Aquiles, Agamenon, Heitor, Enéas ou Odisseu, entre outros, nós
nos sentiríamos não tanto "entre os nossos" quanto no meio de uma luta tribal
travada por kañakarores ou yanomamis. Esse tipo de conhecimento, que
derivamos da antropologia, parece, uma vez formulado, suficientemente
óbvio. Experimentemos, contudo, ler os poemas homéricos como se fossem
obras de povos neolíticos e tribais e, sobretudo, tentemos convencer as
pessoas imbuídas de uma visão radiante da Grécia da verossimilitude dessa
leitura -- aí sim é que nos defrontaremos com as imensas dificuldades
envolvidas.
A Bíblia judaica se compõe dos poemas e das preces, da história e das
invectivas políticas de uma civilização extremamente remota da nossa e que
via o mundo sob um prisma também muito diferente. Não é menos verdade,
porém, que essa civilização tão diferente é uma das raízes da nossa. De certo
modo, se ela, de acordo com as novas leituras, tem para nós tão pouco de
familiar, isso não se deverá necessariamente apenas às diferenças reais que
nós mesmos desenvolvemos. A imagem que nossa civilização e nosso tempo
fazem de si mesmos também são responsáveis por esse sentimento de
estranheza e parte considerável dessa imagem pode também ter muito pouco
de real, de comprovável, isto é, pelo menos uma parte de nossa auto-imagem é
também fabricada, responde às necessidades de nosso etnocentrismo que
insiste em nos tornar mais diferentes de outras épocas e civilizações do que
realmente somos. A mescla peculiar de estranheza e familiaridade com que
nos defrontamos ao ler um texto como o "Cântico dos Cânticos" diz respeito
não apenas à distância real que há entre nós e seus possíveis autores, mas entre
a realidade e a fabricação de nossa auto-imagem. Ler e reler um texto várias
vezes milenar que julgávamos familiar, tornou-se estranho, mas insiste em
parecer-nos estranhamente familiar ou familiarmente estranho envolve

39
também o choque de certo auto-reconhecimento ao qual todas as descobertas
dos dois últimos séculos nos impelem. Olhamos no espelho de um texto
antiquíssimo e o que vemos? Vemo-nos a nós mesmos, a um tempo
inconfundivelmente reconhecíveis e, no entanto, diferentes do que
esperávamos.

Junho/97

(INÉDITO)
5) HÖLDERLIN *

**
Apresentação de CANTO DO DESTINO E OUTROS CANTOS. FRIEDRICH HÖLDERLIN.
ORGANIZAÇÃO, TRADUÇÃO E ENSAIO DE ANTONIO MEDINA RODRIGUES. ILUMINURAS.
1994.

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Hölderlin escreveu poesia sublime na juventude e passou o restante de uma
vida relativamente longa entrevado na loucura. O que fascina em sua carreira,
porém, não é tanto a o trágico da descontinuidade quanto o que há de abrupto
nessa ruptura, ou seja, menos o fato de que alguns elementos em sua obra
pudessem prenunciar o entrevamento do que o contraste deste com a clareza
ofuscante daquela. Os versos de Hölderlin lançam luz sobre sua própria
loucura, sugerindo a hipótese de que esta pudesse ter se originado num
excesso de lucidez, ou fosse mesmo sua inevitável consequência: a cegueira
decorrente de olhar de frente o sol.
O mérito central --entre tantos outros-- das traduções de Antônio Medina
Rodriguez é ter ressaltado o caráter heliotrópico da lira hoelderliniana. Há nos
textos do presente volume uma solaridade rara na poesia de nossa língua --
Sousândrade ou Cesário Verde são os poucos exemplos passíveis de
comparação--, uma solaridade que, no seu perpétuo meio-dia, remete ao
regozijo da aurora sem deixar de anunciar a melancolia do ocaso.
Como é que isto foi conseguido?
Medina é primordialmente um classicista. Tradutor de Aristófanes, foi
também responsável pela recuperação minuciosa do trabalho injustiçado e
esquecido de Odorico Mendes, o maranhense que, há mais de um século,
recriou em português Homero e Virgílio (que chamou de "brasileiro"),
forjando para eles o português hierático que suas epopéias exigiam. Os
problemas que Hoelderlin --o mais grego dos poetas românticos, tradutor,
aliás, de Sófocles e Píndaro-- coloca, ao elevar a linguagem ou lançar mão de
metros clássicos, são essencialmente os mesmos.
Dois outros poetas verteram, com sucesso, Hölderlin, de acordo com táticas
diferentes: Manuel Bandeira preferiu contaminar o português com a
estranheza sintática do original, enquanto Haroldo de Campos optou por
resgatar o que no poeta em questão prefigurava a modernidade.
Medina, por seu turno, criou-lhe um nicho numa região olvidada da
periodologia poética. Elaborando a linguagem do tardo-classicismo e do
romantismo luso-brasileiros, refinando-lhes os recursos de um modo que a
média de seus praticantes originais, por tibieza ou inépcia, não foi capaz de
fazer, ele inventou uma dicção para o poeta alemão e, ao mesmo tempo, re-
inseriu-o no seu próprio tempo. Seu Hölderlin brasileiro corrige nossa história
literária, preenchendo uma lacuna com o poeta que lhe faltava. Trata-se de
uma operação obviamente ficcional. Mas, em poesia, o que conta é a ficção.
Não é à toa que para Wallace Stevens ela era "a ficção suprema".

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6) LAUTRÉAMONT*

**
OBRA COMPLETA: OS CANTOS DE MALDOROR, POESIAS, CARTAS. ISIDORE DUCASSE,
CONDE DE LAUTRÉAMONT. TRADUÇÃO PREFÁCIO E NOTAS DE CLAUDIO WILLER. EDITORA
ILUMINURAS. 1997.

42
Isidore Ducasse (1846-70), o autobatizado Conde de Lautréamont, era um
garoto (do que mais se pode chamar, nos dias que correm, a alguém que
morreu aos 24 anos?) nascido, de uma família francesa, no Uruguai (como
dois outros poetas franceses: Laforgue e Supervielle), país onde passou a
primeira metade da vida, antes de ser mandado à França para continuar seus
estudos.
Suas obras completas –os seis “Cantos de Maldoror” e as duas sequências
mais breves, chamadas “Poesias”— cabem num volume de tamanho médio.
Trata-se de textos em prosa, escritos pouco tempo depois de, primeiro,
Aloysius Bertrand e, em seguida, Baudelaire terem consagrado a idéia do
“poema em prosa”. Os “Cantos” são, de longe, sua criação mais célebre,
enquanto as poucas páginas das “Poesias” formam, na medida em que
parecem contradizer o espírito de “Maldoror”, uma espécie de apêndice
incômodo que tem dado lugar às mais desencontradas interpretações: seriam
uma manifestação de arrependimento? deveriam ser lidas numa chave
paródica? etc.
A tradução brasileira dessa obra, realizada com esmero pelo poeta paulista
Claudio Willer, é, na realidade, a terceira edição dos “Cantos” (a primeira foi
publicada em 1970) acrescida dos poemas e de um aparato crítico a esta altura
não apenas útil, como indispensável. Willer, vale a pena observar, além de
tradutor de Antonin Artaud e Allen Ginsberg, é um poeta reconhecidamente
influenciado pelo surrealismo e é à luz de tal “background” que se podem
encontrar pelo menos em parte as raízes de sua paixão pela obra em questão.
Afinal, foram os surrealistas e, entre eles, o próprio André Breton, que
elevaram esses textos difíceis de classificar e seguramente anticanônicos à
categoria de clássicos.
É o tradutor mesmo que, na sua introdução, enfatiza o caráter de exceção
dos escritos de Lautréamont, comparando-os a outras tantas obras que tiveram
que esperar anos ou mesmo décadas para se tornarem conhecidas e
reconhecidas. Pode-se identificar nessa característica o sentido forte da
expressão “marginal” quando aplicada à literatura,: uma obra marginal seria
aquela que, à margem das convenções de sua época, requereria um certo prazo
para poder ser compreendida pelos leitores. E particularmente os “Cantos”
conformam-se a tal definição, pois são, para os padrões da prosa ou da poesia
francesa de meados do século passado, mesmo após o terremoto
baudelaireano, algo, no mínimo, inesperado.
A crueldade sádica que neles se manifesta quase histericamente, bem como
a subcorrente de homossexualismo, além de uma iconoclastia peculiar, já

43
foram devidamente esmiuçados por gerações de exegetas e, obviamente, não
detém mais a capacidade de chocar a quem quer que seja, salvo, sem dúvida,
os ideólogos da correção política (que melhor fariam colocando-os em seu
“Index”) e, quem sabe, os epígonos tardios do rousseauismo. Esses elementos
decorrem provavelmente da influência onipresente de Byron, ou melhor, de
uma certa leitura francesa que poderíamos chamar de “byronismo" (que fez
escola até mesmo entre os românticos brasileiros). Embora mais que de
exceção, excessivas, tais características já tinham mesmo, à época de Ducasse,
conquistado uma parcela de respeitabilidade e não dariam conta da fama
póstuma de sua obra.
O que em “Maldoror”, por assim dizer, escandalizava ou chocava era menos
seu aspecto temático do que o estilístico, pois era neste que o autor punha em
cena a maior de suas perversões: a perversão das normas de decoro e bom
gosto que vigoravam (e, numa medida surpreendente, ainda vigoram) no uso
da língua literária francesa. Um livro pequeno mas importante, resultado das
investigações da estudiosa brasileira Leyla Perrone-Moisés e (postumamente)
do uruguaio Emir Rodriguez Monegal, “Lautréamont Austral”, propõe
algumas das mais interessantes explicações formuladas até hoje.
Assim, o Uruguai e a língua espanhola não teriam sido tão irrelevantes à
formação do escritor francês quanto se supunha e seu estilo teria nascido, em
boa parte, de uma revolta contra o manual de retórica que havia sido forçado a
estudar. Este manual, escrito por um espanhol classicizante, condenava com
vigor o barroquismo e o jovem Ducasse, para fazer oposição àquele, teria
tomado o partido desse, usando na sua obra recursos tanto mais estranhos na
medida em que pertenciam a uma época anterior, a uma tradição diferente e a
uma outra língua. Com isso, ele acabou merecendo um lugar de pioneiro entre
aqueles que, consciente ou inconscientemente, passaram, com intensidade
cada vez maior, a buscar em contextos distintos e distantes elementos
inesperados com a intenção de subverter seu próprio ambiente.
A poesia em prosa de Ducasse/Lautréamont pertence incontestavelmente ao
círculo restrito de textos com os quais alguns poucos franceses, geralmente
jovens –Nerval, Baudelaire, Rimbaud, Corbière, Laforgue e Mallarmé—,
criaram, na Segunda metade do século 19, as bases sobre as quais o século
seguinte edificaria muito de sua melhor literatura. A centralidade desses textos
e sua importância se reafirmam, até mesmo no Brasil, com as novas traduções,
edições e/ou reedições que saem a cada década. Só nos anos 90 tivemos os
volumes de Rimbaud de Augusto de Campos e Ivo Barroso, um de Corbière, o
Laforgue de Luis Carlos de Brito Resende, novas versões de Mallarmé feitas
por Julio Castañon Guimarães e uma edição completa de Baudelaire. Com o

44
Lautréamont de Claudio Willer, o círculo não tanto se fecha quanto volta a se
abrir para as novas leituras e interpretações que o século que vem nos reserva.

(Folha de S. Paulo, 14/12/97)

45
7) BLAISE CENDRARS (1887-1961)

“Este caderno é dedicado a meus bons amigos de São Paulo, PAUL


PRADO, MARIO ANDRADE, SERGE MILLIET, TASTO DI ALMEIDA,
COUTO DE BARROS, RUBENS DE MORAES, LUIZ ARANHA, OSWALD
DE ANDRADE, YAN e aos amigos do Rio de Janeiro, GRAÇA ARANHA,
SERGIO BUARQUE DE HOLLANDA, PRUDENTE DE MORAES,
GUILERMO DE ALMEIDA, RONALD DE CARVALHO, AMERICO FACO,
sem esquecer o inimitável e querido LEOPOLD DE FREITAS do Rio Grande
do Sul."
É assim que Blaise Cendrars (1887-1961) abria um de seus últimos livros de
poemas, "Feuilles de Route" (Notas de Viagem). Ou melhor, ele o fez em
francês, mas, ao transpor a dedicatória para nossa língua, cuidei de deixar os
nomes de seus amigos na sua própria grafia peculiar, pois ela até que revela
um ouvido atento, disposto, apesar de alguns equívocos (Tasto por Tácito, mas
não o Serge, porque Sérgio Milliet provavelmente fazia questão de declinar
seu nome em francês) e de alguns ecos hispânicos (Guilermo por Guilherme),
a captar o timbre específico do país que visitava.
Pode ser provinciano, ou meio etnocêntrico, abordar Cendrars por
intermédio de seu "séjour" brasileiro de 1924, das amizades que fez entre os
modernistas e da influência que sobre eles exerceu. Mas é inevitável. Ele foi o
mais importante autor estrangeiro a travar relações pessoais, num momento
histórico absolutamente crucial, com a intelectualidade daqui. Sua presença
literária antecede, aliás, a física e, para comprová-lo, basta ver quanto o
primeiro Mário de Andrade e, sobretudo, Luis Aranha (em poemas escritos
entre 1920-22) devem ao Cendrars de antes da Primeira Guerra, ou quanto
Raul Bopp vinha aprendendo com seus "Poèmes Nègres".
Essas mesmas "Feuilles de Route" seriam decisivas para o "Primeiro Caderno"
e para a "Poesia Pau Brasil", de Oswald. O que nas décadas seguintes se
consideraria uma bifurcação virtualmente irreconciliável da poesia brasileira
já estava prefigurado, só que sob a forma harmônica da diversidade na obra de
um único autor. Ou, quem sabe, talvez não tão harmônica assim. Se havia
contradições entre seus diversos estilos, Cendrars não tratou de desenvolvê-
las, pois 1924 foi também o ano em que abandonou a poesia.
O poeta nasceu em 1º de setembro de 1887, filho de uma família burguesa
da cidadezinha de La Chaux-de-Fonds, na Suíça. Seu nome de batismo era
Frédéric Louis Sauser. Na infância, morou com os pais em vários países, e a
propensão a viajar e a se mudar constantemente se tornariam a marca
registrada do poeta e de sua poesia. Com ressalvas, claro, porque a segunda

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metade de sua vida ele a passou basicamente na França. Ressalvas, aliás, que
podem ser estendidas a boa parte de sua biografia, já que sua outra marca
registrada era a criação ininterrupta de mitos acerca de si mesmo.
Alguns fatos, porém, parecem seguros. Aos 17 anos ele teria fixado
residência na Rússia para trabalhar com um comerciante de relógios de sua
região. Três anos depois, em 1907, ele volta à Suíça e, por algum tempo,
frequenta a universidade. No ano seguinte conhece uma jovem estudante
polonesa que se tornaria sua primeira mulher e juntos tentam se estabelecer
em Paris, onde ele faz amizade com Marc Chagall. Sua mulher parte para os
EUA e ele, para São Petersburgo. Em dezembro de 1911 ele toma um navio
para encontrá-la em Nova York. É esta cidade que lhe inspiraria seu primeiro
poema importante, "A Páscoa em Nova York", escrito em dísticos
alexandrinos rimados, e datado de abril de 1912. De volta a Paris, Freddy
Sauser, que criara nos EUA seu pseudônimo (cujo significado ele explicava
como uma corruptela da justaposição das palavras "braise", "cendre" e "art",
"brasa", "cinzas" e "arte', passa a conviver com os diversos criadores _poetas
como Apollinaire, pintores como Chagall e Léger, músicos como Stravinsky_
que estavam renovando as artes em geral.
Seus contatos não se limitavam, obviamente, aos artistas que estavam em
Paris e, cosmopolitamente, estendiam-se aos futuristas italianos e aos
expressionistas alemães, entre outros. Em 1913, Cendrars publica um poema
que seria imediatamente considerado (ao lado de "Zone", de Apollinaire) o
marco, por excelência, daquele momento da modernidade internacional: "A
Prosa do Transiberiano". Trata-se da narrativa delirante (em mais de 400
versos livres e com pouca pontuação) de uma viagem que o autor teria feito
anos antes por essa ferrovia russa e de tudo que lá teria visto, por exemplo, as
consequências nefastas da guerra russo-japonesa de 1904. A primeira edição
do texto era, ela mesma, uma obra original : o poema, ilustrado em cores pela
pintora Sonia Delauney, vinha estampado numa tira única de dois metros, que
se abria como uma sanfona.
Cendrars escreveria ainda um poema longo, "Panamá, ou as Aventuras de
Meus Sete Tios" (1914), seus "19 Poemas Elásticos" (concluídos em 1919),
"A Guerra no Luxemburgo" (1916), "Poemas Negros", "Kodak" (estes dois
últimos, respectivamente de 1916 e 1923, mais influenciados pelas suas
leituras de romances de aventuras do que por viagens reais) e, após as "Notas
de Viagem" e "Mulheres Sul-Americanas", além de uns tantos dispersos,
deixaria inconcluso "Ao Coração do Mundo".
Depois do ano de sua memorável visita ao Brasil, ele se dedicaria
exclusivamente à prosa, concluindo uma carreira poética de cerca de 12 anos.
No entretempo, embora suíço e, portanto, não obrigado a combater, ele se

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alistara na Legião Estrangeira no princípio da Guerra de 1914-18 e perdera o
braço direito. Foram os anos posteriores que o celebrizaram como autor dos
romances "Ouro" (1924), "Moravagine" (1925), "Dan Yack" (1929), de livros
de reportagens nos anos 30 e de memórias a partir da década seguinte. . Ainda
nos anos 20 Cendrars colaborara com Abel Gance em projetos
cinematográficos e havia escrito o roteiro para um balé de Darius Milhaud
(cujo cenário levava a assinatura de Legèr). A tendência da crítica e dos
leitores atuais, no entanto, é a de enfatizar seus 12 anos de poeta. Cendrars não
apenas esteve no centro espaço-temporal (ou seja, Paris de antes da Primeira
Guerra) do ciclone que leva o nome de modernismo internacional, como foi
um de seus principais catalisadores. "A Prosa do Transiberiano" é um dos dois
ou três documentos inaugurais de uma era que, embora talvez já tenha se
acabado, mal começou a ser realmente metabolizada. E, no que nos diz
respeito, o poeta deu sua contribuição nada desprezível para que o Brasil
também entrasse nesse ciclone.

(Folha de S. Paulo, 3/8/97)

8) EUGENIO MONTALE*

POESIAS. EUGENIO MONTALE. SELEÇÃO, TRADUÇÃO E NOTAS DE GERALDO HOLANDA


**

CAVALCANTI. RECORD. 1997.

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Um século e um ano após seu nascimento, 72 e 22 anos, respectivamente,
depois da publicação de sua primeira —e, desde então, célebre— coletânea
"Ossi de Seppia" (1925) e de seu Prêmio Nobel, o poeta italiano Eugenio
Montale, morto 16 anos atrás, chega, numa seleção generosa, ao Brasil
Montale está entre as vozes mais centrais deste século e, no âmbito de sua
língua, só compete pela primazia absoluta com um contemporâneo
igualmente longevo, Giuseppe Ungaretti (1888-1970). Ambos rivais têm seus
partidários encarniçados, mas, como em todos os outros casos semelhantes de
oposições aparentemente irreconciliáveis (Eliot vs. Pound, Mário vs. Oswald,
Vallejo vs. Neruda etc.), ninguém precisa levar sua rivalidade muito a sério e
qualquer leitor inteligente ganhará mais frequentando a ambos.
A poesia deste italiano que pretendia de início ser cantor de ópera (paixão
que reteve até o final da vida), lutou como oficial na Primeira Guerra, ajudou a
salvar dos fascistas o maior poeta judeu de seu país, o triestino Umberto Saba,
e tornou-se senador vitalício na velhice, a poesia de Montale não pertence às
categorias com as quais os leitores brasileiros já se habituaram. Herdeiro de
Dante Alighieri e de Leopardi, a concisão rarefeita, o horror ao discursivo, a
busca de imagens luminosas e perfeitas, o apego aos índices epidérmicos da
modernidade bem como ao sublime e à epifania — nada disso caracteriza seus
versos. Isso mesmo: versos. Pelo contrário: sua abordagem é quase sempre
argumentativa e ele raramente tem pressa de arrematá-la com alguma surpresa
(embora não faltem, em seus poemas, as surpresas) ou algum "non sequitur"
(se bem que a lógica de seu discurso seja bastante peculiar). Aliás, é na
capacidade mesma de argumentar, de serpentear entre os extremos do
desespero e do júbilo, que está a grandeza de seu estilo. Nisto, se há em nossa
tradição algum poeta cujas características sirvam de paralelo (ainda que
remoto) ao italiano, esse é Drumond, sobretudo o de "Claro Enigma".
Descendente que é, em linha direta, de Dante (e, através dele, dos latinos,
principalmente talvez de Horácio, não só o das "Odes", mas também o das
"Epístolas" e "Sátiras"), Montale pareceria, num contexto cujas expectativas
fossem explicitamente de vanguarda —surrealista, expressionista ou
construtivista—, uma "avis rara", uma "avis" voluntariamente "rara", porque
seu ponto de partida é mesmo uma reação a tais tendência, em especial ao
ideário do futurismo italiano. No entanto, ele filia-se a uma outra vertente
moderna, igualmente respeitável, que, só por conveniência, poderíamos
chamar de "classicizante", vertente que, de Caváfis e de certo Pessoa, chega,
passando por Rilke, Mandelstam, Eliot (com seus famosos versos dantescos
em "Little Gidding", no final dos "Quatro Quartetos") e o próprio Drumond
(também revisitando Dante —e Camões— em "A Máquina do Mundo"), a

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poetas recentes como Joseph Brodsky (um admirador que imitou
maravilhosamente a primeira "Xênia" de Montale).
Ao italiano não cabe, portanto, o epíteto de "modernista radical", ou
qualquer coisa semelhante, mas ele é, mesmo assim, moderno e é meio através
do poeta da "Divina Comédia" que tal modernidade pode ser definida, pois o
autor de "Ossi de Seppia" revela-se basicamente um poeta purgatorial, avesso
tanto ao som e fúria do inferno (a guerra de 39-45 está praticamente ausente
de sua obra) quanto aos neóns paradisíacos. Montale é um poeta
extremamente discursivo e que, além disso, compraz-se na sua habilidade de
conduzir com elegância e sobriedade seu discurso não só aonde queira chegar
mas também fazendo-o passar por cada qual dos pontos que julga relevantes.
Nem por isso o "understatement" é alheio ao mais anglófilo dentre os poetas
peninsulares, só que ele não anuncia a todo instante algo como "Atenção: aqui
há um subentendido".
O refinamento de sua discursividade, sua visão sóbria do mundo, o fraseado
complexo e o instinto para o "mot juste" flaubertiano que fariam de seu texto,
se não fosse grande poesia, ótima prosa, o equilíbrio muito mais difícil de se
obter com as centenas de palavras que usa do que com a meia-dúzia que há
num poema minimilista, tudo isso está preservado na tradução brasileira
realizada por Geraldo Holanda Cavalcanti. Que o tradutor tenha conseguido
reproduzir essas características já é em si mesmo meritório e merecedor de
gratidão. Assim, diante do imenso esforço realizado, talvez pareça ingrato
reclamar de outro, que não foi feito.
Grande parte dos poemas de Montale é metrificada e rimada. Que um poeta
cujo livro de estréia foi publicado um ano depois do primeiro Manifesto
Surrealista tenha feito e sustentado tal opção até seus últimos livros, nada tem
de acidental ou irrelevante. Os franceses professam atualmente um horror às
formas fixas e os anglo-americanos inventaram uma versificação própria, que
não é tradicional nem livre, mas tem rendido bons resultados. Nossa poética,
porém, ainda mais em se tratando de um poeta que escrevia numa língua e
numa tradição tão próximas, requereria, na tradução, uma resposta às
dificuldades formais propostas pelo autor. Traduzindo assim "Godi se il vento
ch'entra nel pomario" (em "O Torso e o Gato"), Ivo Barroso provou que esse
esforço, possível e necessário, faz diferença. Estas ressalvas, naturalmente,
não desmerecem o empenho do tradutor, que nos presenteia com um Montale
digno e são antes uma sugestão ou desafio a ele mesmo e aos outros que
enveredem pelos caminhos agradavelmente tortuosos de Montale.

(Folha de S. Paulo, 26/10,97)

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9) WISLAWA SZYMBORSKA*

**
Escrito quando o Nobel de Literatura foi concedido à poeta.

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O Nobel de Literatura deste ano, concedido à poeta polonesa Wislawa
Szymborska, era relativamente previsível na medida em que, por um lado, já
no ano passado ela figurava nas listas informais como forte candidata e, por
outro, uma nova antologia de poemas seus traduzidos para o inglês foi
recebida entusiasticamente, na primeira metade deste ano, pelo "New York
Review of Books", um indício seguro de prestígio intelectual. Ainda assim,
sua premiação causou alguma estranheza entre os conhecedores da poesia
polonesa, porque há pelo menos dois outros poetas da mesma geração e do
mesmo país que são geralmente reconhecidos como superiores: Zbigniew
Herbert e Tadeusz Rozewicz.
Os critérios que, em última instância, determinam a premiação literária mais
célebre do planeta são e seguirão sendo um mistério, mas não é ilícito
suspeitar que fatores "politicamente corretos" pesam cada vez mais e,
portanto, Szymborska, além de seus próprios méritos, estaria também
preenchendo uma vaga reservada às mulheres. Isso é, na realidade, um
problema menor, pois a função central do Nobel de Literatura, mais do que
chamar a atenção para autores isolados, é sublinhar a importância de tradições
mal-conhecidas. E esta meta se cumpre perfeitamente no caso da polonesa.
Szymborska é, para todos os efeitos, uma poeta de primeira linha. As marcas
características de sua poesia são a inteligência, a clareza, a amplitude temática
e uma ironia peculiar. Ela teve também a sorte --que para um autor menor
seria azar-- de surgir num país e numa geração que produziram algumas das
obras mais relevantes da atualidade. A poesia polonesa que começou a ser
escrita imediatamente após a Segunda Guerra, embora relativamente
desconhecida no Brasil, é uma das mais fortes das que se fazem hoje em dia. É
impossível explicar o porquê sem recorrer a um mínimo de contextualização.
A Polônia, cujo apogeu fora alcançado na Idade Média, entrou, no século
16, num processo de decadência e desagregação devido tanto a divisões
políticas e religiosas quanto à incapacidade de criar um verdadeiro poder
central nos moldes do de seus vizinhos, como a Rússia, a Áustria e a Prússia,
que, no final do século 18 acabaram repartindo-a entre si. Desaparecida do
mapa por mais de um século, a Polônia reconquistou sua independência após a
Primeira Guerra, mas sua difícil posição geográfica --entre dois antagonistas
ávidos e cruéis, a URSS e a Alemanha-- continuou basicamente inalterada, de
modo que em 1939 ela foi vítima de uma nova partição. Entre alemães e
russos, a Polônia continuou ocupada por mais 50 anos exatos, até 1989.
Muitos dos combates mais pesados da Segunda Guerra ocorreram em seu
território, assim como o extermínio dos judeus. Consequentemente, a Polônia
foi um dos países que sofreram --em cifras relativas e absolutas-- as maiores

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baixas do conflito, perdendo 3 milhões de poloneses e mais 3 milhões de
judeus, pois cerca de metade das vítimas do Holocausto eram judeus
poloneses. A Polônia foi também o país onde a Guerra se estendeu por mais
tempo, pois iniciada em 39, ela só cessou de fato, em terras polonesas, em 47.
Entre 45, data oficial de sua conclusão, e 47 seguiram se desenrolando nesse
país atividades de guerrilha (contra os ocupantes soviéticos) e pogroms anti-
semitas.
O horror dessa cadeia quase inimaginável de eventos despertou na geração
de poetas que começava a escrever nos anos 40 a necessidade de pensar o seu
mundo em ruínas sem abrir mão das conquistas formais das décadas anteriores
de experimentação modernista. O grande pioneiro desse processo e patriarca
da geração em questão foi um poeta mais velho, Czeslaw Milosz, nascido em
1911 e premiado com o Nobel em 1980. Sob sua influência e no quadro dos
acontecimentos acima, os jovens poetas poloneses de então dedicaram-se a
pensar o impensável, criando uma poesia altamente comunicativa,
formalmente puritana, avessa ao hermetismo cada vez mais irrelevante do que
viria a marcar muito da pós-modernidade, e despida dos fogos-de-artifício
típicos das obras nascidas em situações menos extremas. Mais, portanto, do
que no caso da maioria das tradições contemporâneas, a poesia polonesa do
pós-guerra tornou indissolúveis a estética e a ética.
A poesia de Szymborska se filia explicitamente a essa vertente, não
deixando o leitor se esquecer jamais da história, pois é na história antiga ou
recente que Szymborska vai buscar seus temas. Na sua poesia, porém, a
história é sobretudo a narrativa de uma série interminável de acontecimentos
trágicos, uma imensa metáfora da destruição. A poeta polonesa não busca
negar ou embelezar essa metáfora com a idéia de que ela ocultaria algum
significado trascendente, alguma justificativa de ordem superior. Pelo
contrário, trata-se de uma poesia destinada a manter vivo todo o inexplicável
horror da história. Embora seja uma definição obviamente reducionista, ao
trabalhar com a clareza de raciocínio, com a ampliação implacável da
consciência e com um perpétuo estranhamento em face da história, a meta da
poesia de Szymborska e seus conterrâneos/contemporâneos é realmente a de
assustar seus leitores, deixá-los intranquilos e, despertando-os do torpor,
torná-los mais aptos a sobreviver.

(Ciência Hoje, 1996)


10) JOHN ASHBERY *

**
Escrito quando o poeta visitou o Brasil a convite do Banco Nacional de Idéias.

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Postulemos o poeta "P" e sua respectiva amada "A". Como se sabe, poetas
gostam de escrever sobre suas amadas. Para muitos, a poesia não passa disso.
Mas o que dirá nosso P sobre sua A? Falará de seus olhos, que são pérolas e,
ao mesmo tempo, estrelas, ou descreverá minuciosamente sua genitália? Re-
encenará seu encontro real/imaginário, ou lamentará sua impossibilidade? Há,
obviamente, dois ou três milênios de precedentes na lírica ocidental para cada
uma dessas formas de abordar a amada --e para muitas outras. Daí a riqueza
de nossa comum tradição poética, bem como a dificuldade de renová-la.
Uma primeira definição do modo segundo o qual John Ashbery --cuja poesia
não é amorosa-- compõe seria aproximadamente o seguinte: para falar de A, o
P em questão voltaria, na sua imaginação, a A1, A2, A3 e tantas outras, cujas
diversas partes se combinam na A definitiva. Não pensaria só nas suas
características físicas ou espirituais, mas também nas circunstâncias em que as
viu ou reviu. Lembraria concomitantemente de seu estado de ânimo quando
isso ou aquilo aconteceu. Como qualquer rememoração depende do presente
imediato de quem está rememorando, a situação imediata se combinaria com
as passadas num tempo-espaço contínuo que só existe dentro da caixa
craniana. Para complicar, P não transcreveria todo esse processo no papel, mas
somente determinados momentos não necessariamente privilegiados. O texto
final sugeriria fortemente o clima geral do que significa para P seu encontro
com A, mais seus comos do que seus porquês, sem fazer qualquer menção
clara ou definida a A, P ou seu encontro.
O poema descrito acima não existe na obra do norte-americano, mas,
embora hipotético, representa tipicamente o movimento interno de sua poesia,
pelo menos a partir dos anos 70, quando o poeta consolida seu estilo
característico. Geralmente não se sabe num poema seu quem está falando com
quem ou sobre o quê. Um solilóquio tranforma-se súbito em diálogo ou
discurso, tornando-se logo uma consideração sobre algo importante que se
revela trivial e assim por diante. A crítica já discorreu sobre o caráter onírico
de seus textos, mas, como bem observou Marjorie Perloff, Ashbery está
menos interessado no que se sonha do que no como se sonha. Ainda assim,
sua poesia é muito menos intimista do que seu onirismo sugeriria. Boa parte
de seus materiais é preferencialmente oriundo da subjetividade e os textos
resultantes exploram sedutoramente estados de atenção/desatenção,
consciência/inconsciência. Eles são sobretudo associativos e é geralmente
difícil discernir vínculos causais entre suas diferentes partes.
Que interesse, contudo, poderiam ter as experiências particulares de um
"flâneur" da subjetividade para seus leitores? Para que servem, digamos,
evocações de uma infância em Rochester combinadas com impressões

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extraídas da observação de uma tela qualquer de um mestre menor numa tarde
de outono, entremeadas com trechos de uma conversa ouvida à distância? Para
se responder a isso, convém, antes de mais nada, não confundir o método de
Ashbery com seus resultados poéticos. Se seu lado surrealista, livremente
associativo, seu fluxo da consciência conseguem surpreender pelo inusitado
das combinações e justaposições, sua poesia não se resume apenas nisto. O
poeta investiu muito tempo e trabalho nessa exploração consequente para que
ela não aponte na direção de algo distinto. Que este algo existe é demonstrado
pelo controle cuidadoso com o qual ele maneja a linguagem. No plano mais
material --sonoro, rítmico-- bem como nas dimensões do tom ou do estilo --
que vão do sério ao satírico; citam, parodiam e parafraseiam outros autores--,
seus textos são extremamente trabalhados, o que contrasta objetivamente com
o aparente caos semântico que parece não raro excluir toda e qualquer
referencialidade. Assim, parafraseando Perloff, o que conta não é tanto o que
Ashbery escreve, mas como ele escreve --o "como" não do método, mas do
texto final sobre o papel.
Ashbery é provavelmente um poeta estranho para o leitor da melhor poesia
brasileira contemporânea. A atual linha de força desta --que vai do Drummond
dos anos 40, passa por João Cabral e pelos concretos e continua nas novas
gerações-- defini-se antes pelo que, a propósito de Kurt Schwitters, Haroldo
de Campos chamou de "o júbilo do objeto". Nossa poesia dos últimos 50 anos
é mais hiperrealista que surrealista, tem mais a ver com a vigília do que com o
sonho, atende principalmente à "educação dos cinco sentidos". Em termos de
artes pictóricas, ela se traduziria nos construtivistas russos, em Klee e
Mondrian, num Miró ocasional ou Volpi. Ashbery lembra, por exemplo,
Kandinsky, De Chirico, a "action painting", o expressionismo abstrato,
Pollock. Na poesia brasileira, seu único parente verdadeiro seria certo Murilo
Mendes, mas um Murilo nada sublime nem exclusivamente erudito, ou seja,
um poeta cujas colagens admitissem uma ruptura dos limites entre o elevado e
o baixo de modo a incorporar matérias-primas "sujas" como "T shirts",
"thrillers" e todo o rebotalho da sociedade de consumo. Mesmo na poesia
norte-americana, porém, ele se distancia da tradição central, assemelhando-se
menos a William Carlos Williams, Ezra Pound e T.S. Eliot, ou a dois poetas
que admira, Wallace Stevens e Elizabeth Bishop, que a alguns franceses:
Pierre Reverdy, Max Jacob, René Char.
Resenhando o livro de outro poeta, Ashbery se mostrou claramente cético
diante da poesia que vê um universo em todo grão de areia, referindo-se
ironicamente aos famosos versos nos quais William Blake discorria sobre a
capacidade do poeta de perceber transcendências relevantes nas coisas mais
triviais. E, de fato, à sua recusa em remeter o leitor a qualquer realidade

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facilmente discernível, subjaz a rejeição das transcendências fáceis às quais tal
realidade se prestaria. Pois ele vive num tempo e numa sociedade em que a
trascendência tornou-se mercadoria de consumo corriqueiro, onde a eternidade
é vendida em prestações (com desconto no cartão de crédito) e a revelação se
apresenta em capítulos diários nas redes nacionais.
Em vez de oferecer realidades, portanto, acompanhadas ou não de
transcendências, ele prefere mostrar processos e tecer sobre eles infinitas
considerações. Ashbery deixa de lado as conclusões do pensamento para
tentar materializar em palavras o funcionamento do devaneio. Trata-se, no
entanto, de um devaneio particular, voltado para um tema específico, pois não
é uma subjetividade qualquer que passeia em suas próprias dobras, mas uma
vontade criativa verbal inconfundivelmente poética. Em outras palavras: o
devaneio do poeta em busca do poema transforma-se em poesia. É disso e só
disso que decorrem sua relevância e seu interesse.
Não é por outra razão, tampouco, que se encontram frequentemente em seus
poemas versos, frases, trechos inteiros que equivalem a considerações
coerentes e articuladas sobre as coisas e, especialmente, sobre a arte em geral
e a poesia em particular. Podem-se isolar nos textos caracteristicamente
ashberyanos unidades menores que, lidas em separado, configurariam
excelentes poemas de natureza diferente, talvez mais convencional. Entre as
várias "personae" que habitam sua obra há um poeta autêntico e é ele que
legitima o devaneio de/sobre todas as outras. Voltando ao modelo inicial:
alguém deseja cantar a amada. Como muita coisa mudou nos últimos três mil
anos, tornou-se necessário escapar à banalidade e à trivialização. Não basta
cantar somente a amada, mas é preciso discutir uma situação ampla e
emaranhada que envolve a análise expositiva do processo mesmo de
composição. Todo esse trabalho só se justifica se for coordenado por um
vigoroso "know how" poético que, afinal, é a própria amada em questão.

(Folha de S. Paulo, 1993)

11) HANS MAGNUS ENZENSBERGER*

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Escrito quando o poeta visitou o Brasil a convite do Banco Nacional de Idéias.

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Hans Magnus Enzensberger seguiu pelo menos duas carreiras paralelas: a de
ensaísta e a de poeta. Elas não apenas se justapõem como também se
complementam, ou melhor, se entrelaçam. Nos ensaios ou nos poemas pode-
se observar o que ele pensa, mas é de seu confronto que ressalta como ele
pensa. Isso não é secundário, pois estamos diante de uma trajetória intelectual
exemplar da segunda metade deste século.
Quem quer que leia seus ensaios antigos, dos anos 60, digamos, constatará
que ele era um escritor inequivocamente de esquerda, profundamente imbuído
das categorias marxistas. Num texto como "O Interrogatório de Havana", onde
analisa o que disseram os invasores cubanos derrotados por Fidel Castro na
Praia dos Porcos, encontrará termos típicos do jargão da época: "classe
dominante ou dominada", "revolução e contrarevolução", "imperialismo" etc.
(Mas não achará nada do que é mais frequentemente praticado por quase toda
a crítica marxista, em particular a literária: a denúncia alcagueta e ameaçadora
dos inimigos da classe ou do partido.)
Seus dois novos livros publicados no Brasil discutem o caos urbano, as
migrações em todos os continentes, os novos conflitos políticos, étnicos, a
criminalidade, o papel da TV etc. Mas estão inteiramente livres dessa espécie
de terminologia bem como do tipo de pensamento associado a ela. O autor
seria então um renegado, um ex-marxista arrependido? Não é bem assim.
Pois, em primeiro lugar, ele não era um esquerdista convencional. Trinta anos
atrás, Enzensberger já usava o jargão mais como um trampolim do que como
uma camisa-de-força. Daí o fato de que em seus ensaios antigos, vazados
numa linguagem que parece tão obsoleta quanto a da escolástica medieval,
manifestam-se, ainda assim, idéias e observações dignas de nota. Ele é uma
dessas raras pessoas que, para usar a velha equação, superou o esquerdismo
marxista incorporando-o. Ele pode, portanto, se dar ao luxo de abordar as
esquerdas, nova e velha, com a condescendência com que neste país se trata,
digamos, a Academia Brasileira de Letras.
Sua prosa ganha, porém, quando lida em conjunto, principalmente se cada
texto for acompanhado da respectiva data de composição. Pois ela ilustra um
pensamento de exceção segundo o qual --ao contrário daquilo a que nos
habituamos-- se a realidade não corresponde à teoria, tanto pior para a teoria.
Isso explica também por que, marxista ou não, Enzensberger sempre deu
preferência a abordar não abstrações, mas questões concretas, atuais.
Mais do que dos teóricos, ele se aproxima do homem-de-letras tradicional e,
particularmente, da categoria minoritária de poetas que aplicaram sua perícia
ao estudo da política e da sociedade: o polonês Czeslaw Milosz, o mexicano

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Octavio Paz etc. Nenhum desses últimos o fez apenas por capricho, mas
devido a uma necessidade profunda, decorrente tanto da urgência dos
problemas quanto da superficialidade dos outros analistas.
Para tanto, o fato de serem poetas foi sempre central. É curioso como, num
século como o nosso, quando poesia e política se envolveram mais
intimamente do que antes, alguns poetas --tradicionalmente considerados seres
etéreos e alienados-- compreenderam a política melhor do que qualquer
político entendeu a poesia. Talvez porque a mente política mediana é
necessariamente dogmática, enquanto a poética é, numa acepção muito
material, eminentemente prática. Fazer poesia consiste antes de mais nada em
resolver problemas verbais e expressivos com os recursos à mão. Poemas
podem até falar em utopias, mas não são utópicos: eles existem.
Muito do que se pode dizer da poesia de Enzensberger se aplica à sua prosa
e vice-versa. Seu poema longo ou ciclo poético "O Naufrágio do Titanic" é
polifônico. Seus ensaios também buscam examinar os diversos aspectos de
uma questão. Sua poesia é clara como seus ensaios. Seus ensaios lançam mão,
como sua poesia, de inúmeros recursos literários. Mas se naqueles há uma
clara evolução durante a qual eles se livram de seu apego inicial a concepções
mais ou menos apriorísticas e fechadas, nesta há apenas transformação, uma
transformação que não teme reconsiderar amiúde seus pressupostos para
reformulá-los.
É a poesia, contudo, que está no centro de sua obra, pois esta consiste em
operar com variantes e variações potencialmente infinitas, o que, no ensaísmo,
equivale a aceitar as hipóteses enquanto tais e trabalhar com elas. Seus ensaios
são poéticos num sentido profundo, o da metodologia; e seus poemas são
antipoéticos tanto na rejeição de uma linguagem artificialmente distante ou
elevada, quanto no exercício de um prosaísmo que, conscientemente
perseguido, torna difícil extrair de qualquer texto seu um verso citável como
"belo". Enzensberger raramente deixa de lado uma desconfiança que, na
poesia, o afasta da convencionalidade poética e, na ensaística, torna-o imune
ao esquematismo dogmático.

(Folha de S. Paulo, 23/4/95)

12) JOSEPH BRODSKY*

MENOS QUE UM. JOSEPH BRODSKY. TRADUÇÃO DE SÉRGIO FLAKSMAN. COMPANHIA DAS
**

LETRAS. 1994.

58
Dos cinco autores russos laureados com o Prêmio Nobel de Literatura, três --
Ivan Bunin, Alexander Soljenítsin e Joseph Brodsky-- tiveram que deixar seu
país por razões políticas, um --Bóris Pasternák-- não pôde recebê-lo, pois, se
fosse à Suécia, corria o risco de ter interditada sua volta, e outro --Mikhail
Sholokov-- recebeu-o devido à longa insistência das autoridades soviéticas
que o apoiavam. Como diz o próprio Brodsky: "Essa insistência --ou antes
uma imensa encomenda de navios aos estaleiros suecos-- acabou sendo
premiada, e em 1965 Sholokov ganhou seu Prêmio Nobel". Essa amostragem
basta para ilustrar as difíceis relações entre os escritores e o poder na extinta
URSS.
Joseph Brodsky, um caso típico e recente, é um poeta que escreve em russo
(e atualmente também em inglês: um exemplo raro de perfeito bilinguismo
literário), mas sua nacionalidade, segundo o parágrafo 5 do passaporte interno
dos cidadãos soviéticos, era judaica. A dissidência e o exílio poderiam
completar o quadro. Sua trajetória e obra acrescentam-lhe, porém,
complexidades inesperadas. Antes de ser um dissidente, ele foi um "drop out"
que, adolescente, abandonou a escola --e a perspectiva de um posto de
"colarinho branco"-- para trabalhar como operário numa fábrica. Sua carreira
poética, principiada nos anos do degelo khruscheviano, seria tolhida pouco
depois, através de um julgamento surrealista no qual o condenaram a cinco
anos de trabalhos forçados no norte ártico do país, por crime de parasitismo e
vadiagem, algo que, trocado em miúdos, correspondia ao exercício da
profissão literária sem licença oficial. Depois de cumprir apenas parte da
sentença, mas impedido de publicar na URSS, ele a deixou para se fixar nos
EUA, onde vive desde então.
Devido à sua idade, Brodsky pertence a uma geração posterior à época do
grande terror. Nascido em 1940, ele viveu a guerra como criança --o
prolongado cerco de sua Leningrado natal-- e não tinha treze anos ainda
quando morreu o "guia genial dos povos". Sua vida adulta na Rússia coincidiu
com o início do demorado e relutante desmantelamento da máquina totalitária
inaugurada por Lênin e aperfeiçoada por Stálin. Coincidiu também com a
institucionalização do anti-semitismo (que ajudaria a transformar seu país no
principal obstáculo para a paz no Oriente Médio) numa época marcada por um
novo contrato social no qual o estado, abrindo mão da combinação bastarda de
terror e de mobilização popular fanática, aceitou conviver com a população
num clima de cinismo mútuo.
Numa sociedade onde nenhuma informação --nem mesmo a puramente
literária-- circulava honestamente, Brodsky teve a sorte de ser "adotado", no
começo dos anos 60, por Anna Akhmátova, única sobrevivente da maior

59
geração poética que o país já teve, aquela --formada também por Pasternák,
Maiakóvski, Mandelstam e Tzvietáieva-- que chegou à maturidade na época
da outrora chamada "gloriosa revolução de outubro". Isso lhe permitiu retomar
os vínculos com a melhor tradição viva, uma tradição quase que inteiramente
obliterada naqueles tempos, e tornar-se tanto seu propagandista quanto
continuador. A gratidão para com a poesia do passado imediato e o horror
cinzento da parte do mundo em que lhe foi dado nascer permeiam muito de
sua poesia e de sua prosa.
A poesia e a prosa de Brodsky são fenômenos não opostos, mas
absolutamente contíguos. As mesmas preocupações e o mesmo modo de
organizar percepções e idéias são comuns a ambas. Sua poesia é prosaica no
sentido de se ocupar tanto de trivialidades cotidianas, como uma mosca,
quanto de abstrações, como a tirania, cujo tratamento mais corriqueiro
ocorreria num ensaio. O comprimento mesmo de seus poemas, bem como seu
caráter frequentemente digressivo, servem para afastá-los da imagem
substantiva e concentrada da lírica moderna, razão pela qual seus leitores não
raro os consideram neoclássicos. Sua prosa, por outro lado, é poética não por
qualquer característica vaga ou etérea, mas por fugir, na sua organização, de
um esquematismo que se associa erroneamente à lógica. Ambas, contudo,
prosa e poesia, buscam a precisão e um tipo de objetividade que deriva de um
auto-exame explícito e contínuo.
A edição brasileira de seu livro de ensaios e memórias "Menos que Um"
corresponde a dois terços do original em inglês. De 18 textos, seis foram
omitidos. Felizmente, a escolha foi criteriosa e o núcleo do livro se manteve
intacto. Talvez o que mais venha a surpreender seu leitor seja a convicção
tranquila de suas opiniões. Discorra sobre poetas e prosadores injustiçados --
Platónov e Akhmátova-- ou simplesmente assassinados pelo sistema --
Mandelstam--, relembre sua infância e juventude, descreva sua cidade natal --
Leningrado que já reassumiu seu nome pré-revolucionário, São Petersburgo--,
uma coisa ressalta incessantemente em sua prosa: a crítica impiedosa a mais
de meio século de desvairio comunista.
Brodsky é, então, um poeta anti-comunista? Sem a menor sombra de dúvida.
Em suas próprias palavras: "Era uma vez um menino. Ele vivia no país mais
injusto do mundo. O qual era governado por criaturas que, por todos os
critérios humanos, deviam ser consideradas degeneradas. O que nunca
aconteceu." Ou referindo-se ao fundador do regime, Lênin: "Havia talvez
apenas duas coisas que ele tinha em comum com Pedro 1: o conhecimento da
Europa e a brutalidade. Mas enquanto Pedro, com sua variedade de interesses,
sua energia borbulhante e o amadorismo de seus grandes desígnios, era uma
versão atualizada ou desatualizada do homem da Renascença, Lênin era na

60
verdade um produto de seu tempo: um revolucionário de mentalidade estreita,
com um típico desejo monomaníaco e pequeno-burguês de poder, que é, em si
mesmo, um conceito extremamente burguês". Nada na sua exposição
devastadora dos absurdos da realidade soviética lembra o pavor com que os
liberais ocidentais fugiam (e fogem) do risco de serem chamados de anti-
comunistas. Sabendo que o fato de ter rompido com o regime --embora fosse o
regime que tivesse rompido com ele-- já o desqualificava diante de tais
interlocutores, ele não se preocupa em tentar convencer quem quer que seja,
limitando-se a falar, desapaixonadamente e sem rancor, sobre aquilo que
conhece bem.
Nada seria mais injusto, contudo, do que reduzir Brodsky às dimensões
claustrofóbicas da política. Ele, aliás, seria o primeiro a se insurgir. Se há uma
preocupação de fundo nos seus ensaios, essa é a da poesia enquanto uma
atividade enraizada não na sociedade, e sim em algo distinto. O que ele
defende é o direito, ou melhor o dever, do poeta de estar acima da política, em
simbiose ativa com algo que a transcende no espaço e no tempo: a linguagem,
que pertence a toda a comunidade, mas sobre a qual apenas ele atua em
profundidade. Nos tempos atuais de populismo generalizado --
multiculturalismo, história dos oprimidos etc.--, as opiniões literárias de
Brodsky deverão ser consideradas ainda mais reacionárias que sua posição
política. Esse poeta russo é um elitista irredutível que não tem medo de
afirmar que a democracia não vale nem para a ciência nem para as artes. Pois
teve tempo de sobra para observar que as devastações culturais, políticas,
sociais e econômicas não só convivem e coincidem como são afinal a mesma
coisa. Oriundo de um país onde à supressão absoluta de qualquer liberdade
associou-se, no caso das artes, a obrigatoriedade de servir ao povo, ou seja, ao
estado, ele sabe perfeitamente que, despejado compulsoriamente da suposta
torre de marfim, o artista costuma ser enviado em seguida para o Gulag. E não
vai sozinho.

(Folha de S. Paulo, 6/2/94)

13) POESIA HÚNGARA MODERNA1

1*
THE COLONNADE OF TEETH - MODERN HUNGARIAN POETRY", EDITED BY GEORGE
GÖMÖRI & GEORGE SZIRTES, TRANSLATED BY VARIOUS HANDS, BLOODAXE BOOKS,
NEWCASTLE UPON TYNE, ENGLAND, 1996.

61
É um velho truísmo o de que existem obras que, merecendo ser mais
conhecidas, seguem encerradas em línguas pouco acessíveis. A rigor, toda a
literatura da Europa Centro-Oriental pertence a essa categoria, pois, nos países
que se encontram geograficamente entre a Alemanha e a Rússia, fala-se uma
multiplicidade de línguas que, excetuados os nativos, quase ninguém domina.
Um dos casos mais extremos é o do húngaro, uma língua difícil e sem
parentes próximos, pertencente não, como praticamente todas as línguas da
Europa, à família indo-européia, mas sim à fino-ugriana. Falada num pequeno
país sem importância econômica nem relevância política, ela, no entanto,
dispõe de uma literatura invejável.
A constatação de que muito da devastação mais violenta da Segunda Guerra
ocorreu na Europa Centro-Oriental e também o fato de que os países da região
é que foram os primeiros importadores --geralmente involuntários-- do
sistema soviético ajudaram, nas últimas décadas, a chamar a atenção para a
cultura que ali se produzia, particularmente se pudesse ser identificada com a
dissidência política. Assim, os poloneses Czeslaw Milosz, Wislawa
Szymborska e o tcheco Jaroslav Seifert ganharam o Nobel de Literatura,
enquanto ficcionistas como o tcheco Milan Kundera, o polonês Tadeusz
Konwicki, o iugoslavo Danilo Kis, o estoniano Jaan Kross e outros
conquistaram certa popularidade no Ocidente. A Hungria não é exceção e,
embora de início fosse sobretudo o trabalho de seus compositores (Béla
Bartók, Zoltán Kodály, György Ligeti) ou de seus cineastas (Miklós Jancso,
Márta Meszáros e István Szabó) que circulasse além das fronteiras, aos poucos
também sua literatura vem começando a ser exportada.
Assim, os principais romances e muitos dos ensaios de George (György)
Konrád, presidente, ainda há pouco, do PEN Club internacional, já estão
disponíveis em inglês, francês, alemão etc. Narradores mais jovens, como o
genial Péter Eszterházy, podem ser lidos nessas línguas e, nos EUA, acaba de
sair um romance que é considerado a melhor obra de ficção húngara das
últimas décadas, o "Livro de Memórias" de Péter Nádas. Graças à iniciativa,
primeiro, de Phillip Roth que dirigiu a coleção "Writers from the Other
Europe" para a Penguin Books e, agora, do analista político Timothy Garton
Ash (autor de livros famosos sobre os últimos anos do comunismo na região),
com sua coleção "Central European Classics, publicada pela Central European
University, outros autores, não só húngaros, também estão chegando à língua
inglesa. A poesia, porém, como se poderia esperar, conta com outros tipos de
dificuldade.

62
Assim, como a poesia raramente informa tão imediatamente quanto a prosa
de ficção, ela tampouco atrai o interesse de quem leia romances para, entre
outras coisas, saber mais acerca da situação política de um dado país.
Normalmente, além disso, o público de poesia é muito menor e os obstáculos
que opõe à tradução, sempre maiores. Acontece que os húngaros vêem, com
justiça, na poesia o ápice da cultura de seu país, só que se trata de uma poesia
difícil, ainda mais emaranhada do que é praxe nas peculiaridades da língua e
de suas várias tradições. A consequência disso é que, devido a uma
compreensível impaciência, os húngaros mesmos vêm, há um bom tempo,
tomando a iniciativa de incentivar e/ou apoiar a tradução de sua poesia,
convidando poetas estrangeiros a trabalhar a partir de traduções literais dos
textos originais, divulgando os resultados em revistas como "The New
Hungarian Quarterly" e reunindo-as em coletâneas da Corvina, a editora
oficial que publicava obras húngaras em línguas estrangeiras.
Variações desse processo ocorrem em países tão diversos quanto os
escandinavos, a Holanda, Israel e Portugal. Sua limitação é a de que,
particularmente no universo anglófono, obras traduzidas e publicadas dessa
maneira raramente atingem um público mais considerável, nem chegam às
grandes livrarias. Ainda assim, trata-se de um investimento que, no médio ou
longo prazo, dá retorno, pois, se determinado autor não dispõe de um apelo
imediato, são necessários anos de insistência para que ele cruze a barreira da
indiferença. O retorno, para os empenhados divulgadores húngaros da poesia
de seu país, veio sob a forma de uma antologia respeitável, publicada por uma
importante editora comercial britânica.
Há, hoje em dia, na Inglaterra três editoras comerciais que se especializam
em poesia: Carcanet, Anvil e Bloodaxe. É essa última que acaba de publicar
"The Colonnade of Teeth - Modern Hungarian Poetry", uma coletânea,
organizada por George Gömöri e George Szirtes, de poesia húngara escrita por
autores nascidos a partir de 1900 e traduzida para o inglês pelos organizadores
e por várias outras pessoas. O livro traz poemas de 35 autores, de Lörinc
Szabó (1900-57) aos mais jovens, como Gyözö Ferenc (1954). A seleção tanto
de poetas quanto de poemas é das melhores, embora se possa lamentar a
ausência de György Somlyó, György Rába e Sándor Rákos, para ficar só
nesses. O essencial, porém, é que os organizadores conseguem apresentar
seletivamente uma boa visão de conjunto de quase um século de poesia em
belas traduções. Nem é para menos, pois tanto Gömöri quanto Szirtes se
encontram numa posição privilegiada para realizar a intermediação entre
ambas as culturas, a húngara e a inglesa.
Gömöri é um poeta húngaro que, nascido em 34, deixou a Hungria rumo à
Inglaterra depois da insurreição de 56, dedicando-se desde então a ensinar

63
húngaro e polonês no seu país de adoção. Szirtes, mais jovem, deixou ainda
garoto seu país natal na mesma época e, criado na Inglaterra, tornou-se um
poeta inglês. Entre as melhores traduções do volume, muitas são de sua
autoria e outras são as realizadas pelo escocês Edwin Morgan (nascido em
1920), ótimo poeta cujos interesses tradutórios já renderam versões do russo e
até mesmo dos poetas concretos brasileiros.
O corte cronológico que os organizadores se impuseram impediu
infelizmente que a antologia estampasse trabalhos da primeira geração de
renovadores da poesia húngara, a geração que, no começo do século,
capitaneada pelo poeta Endre Ady, fundou a influente revista "Nyugat"
(Ocidente), baluarte literário e democrático do país. Nem por isso é menos
importante o que fizeram as gerações seguintes e os mais altos momentos da
moderna poesia magiar estão bem representados nos poemas de Attila József
(1905-37), o jovem talentoso e dilacerado que, antes de se suicidar aos 32
anos atirando-se sob um trem de carga, deu forma e voz aos recessos mais
fundos da dor humana; nos de Miklós Radnóti (1909-44), um judeu que,
assassinado pelos nazistas húngaros, registrou, sintetizando Virgílio e
Apollinaire, a barbárie em hexâmetros perfeitos; de István Vas (1910-91) que,
transitando da vanguarda a um classicismo peculiarmente moderno, tornou-se
o exemplo acabado do poeta civilizado; de Sándor Weöres (1913-88) que,
com sua pesquisa etnopoética, seu interesse pelas culturas mais distantes e seu
virtuosismo formal, ampliou consideravelmente o âmbito da poesia (é um
poema seu que dá nome ao volume); e de János Pilinszky (1921-81), o
existencialista cristão que, tendo presenciado o horror no campo de
concentração de Ravesbrück, resumiu, nos seus versos crípticos, as angústias
de todo um século. Cada qual dos outros poetas mereceria menção, bem como
vários poemas específicos, por exemplo: "Uma Sentença sobre a Tirania" que,
escrito por Gyúla Illyés (1902-83) na época mais negra do stalinismo húngaro,
em 1950, tornar-se-ia, seis anos mais tarde, o manifesto poético dos
insurgentes de outubro em Budapeste.
Enfim, esse volume inglês coloca em circulação efetiva e numa tiragem
decente toda uma tradição previamente oculta numa língua estranha ou em
edições restritas e de difícil acesso. Divulga-a, sobretudo, no idioma que é
hoje o principal veículo planetário de comunicação, colocando-a à disposição
de uma audiência que não se restringe de forma alguma aos falantes nativos
do inglês. Trata-se, portanto, de um marco que, alargando um pouco mais
aquilo que é chamado (ainda com mais otimismo que realismo) de "literatura
universal", leva em si a promessa de assegurar a vários poetas o lugar que
merecem no concerto da modernidade.

64
(SOCIEDADES EM TRANSFORMAÇÃO/CEPSt/USP,
JULHO/AGOSTO/SETEMBRO DE 97)

65
14) POESIA ESTRANGEIRA EM PORTUGUÊS*

Tradução de poesia, no Brasil em particular e na língua portuguesa em geral,


nunca foi considerada uma atividade de primeira. Aliás, para que serviria a
tradução? A uma pessoa culta --conforme reza a cartilha-- basta ter acesso ao
francês, ao inglês e, caso tenha veleidades filosóficas, ao alemão e talvez ao
grego. Excetuando-se alguns romances russos, tudo o que se escreveu nas
outras línguas ("exóticas") é mais ou menos irrelevante. Leitura séria, além do
mais, é prosa. O resto é o resto e a poesia, mesmo no caso (duvidoso) de que
valha à pena lê-la (pois, em geral, não passa de um rebuscamento
"esteticista"), é obviamente, como todos sabem, "intraduzível".
Os resultados dessa mentalidade, no entanto, são mais complicados. Nos
últimos 20/30 anos produziram-se em inglês mais de dez traduções completas
do livro de Catulo, todas competentes e em versos, todas informadas do tipo
de poesia que se faz no mundo anglo-americano, algumas bebendo em
William Carlos Williams, outras em Pound etc. Há meia-dúzia de traduções
completas, também em versos, das "Metamorfoses" de Ovídio e, aliás,
praticamente toda a obra desse poeta conta com versões novas, porque
competem entre si não apenas americanos e ingleses, mas também coleções de
clássicos como a da Penguin e a da Oxford University Press. Catulo e Ovídio
são famosos? Bom, nos últimos dez anos saíram duas versões completas da
"Farsália" de Lucano, uma em cada lado do Atlântico, bem como uma da
"Tebaida" de Estácio. E ainda estamos só nos clássicos latinos.
O mesmo, em inglês, repete-se em graus variados seja com o extremo
Oriente, seja com as literaturas vernáculas. Assim, a ocupação americana do
Japão depois da Segunda Guerra gerou um grande número de "scholars" e
poetas familiarizados com o japonês, algo que, por sua vez, rendeu uma
verdadeira biblioteca de obras e autores nipônicos clássicos e modernos
disponíveis em inglês, um evento comemorado --dado que é pouco provável
que os membros da Academia Sueca leiam japonês-- com dois prêmios Nobel
de Literatura, o de Kawabata e o de Kenzaburo Oe. Diga-se de passagem que,
entre os "scholars" anglo-americanos das línguas orientais, tampouco é difícil
**
31 POETAS 214 POEMAS -- DO RIG-VEDA E SAFO A APOLLINAIRE". SELEÇÃO E
TRADUÇÃO DE DÉCIO PIGNATARI. COMPANHIA DAS LETRAS.
ESCRITO SOBRE JADE -- POESIA CLÁSSICA CHINESA REIMAGINADA POR HAROLDO DE
CAMPOS. TIPOGRAFIA DO FUNDO DE OURO PRETO.
CÉU VAZIO -- 63 POETAS ESLAVOS". ALEKSANDAR JOVANOVIC. HUCITEC.
QUATRO POETAS POLONESES. TRADUÇÃO E PREFÁCIO DE HENRYK SIEWIERSKI E JOSÉ
SANTIAGO NAUD. GOVERNO DO PARANÁ/SECRETARIA DO ESTADO DA CULTURA.

66
encontrar gente como Burton Watson que, para traduzir poesia da China e do
Japão, não titubeou --para ter uma idéia mais clara dos recursos poéticos de
sua própria língua-- em se aconselhar com poetas como Gary Snyder.
Devido a tudo isso, quem hoje esteja familiarizado com o inglês dispõe de
um acesso preferencial a um sem número de tradições menores ou maiores,
antigas ou recentes, distantes ou próximas. E enquanto o inglês se enriquece
com a colaboração de valores que antes eram alheios mas agora lhe
pertencem, seu prestígio cresce continuamente. Como nem mesmo o melhor
linguista dominará realmente mais que duas dezenas de línguas, o inglês, para
quem quer que se interesse pela literatura universal, tornou-se indispensável. E
a responsabilidade por boa parte desse fenômeno cabe aos tradutores. Como,
porém, fazer nosso meio intelectual acatar o óbvio?
Nessa área específica, ninguém no Brasil --ou na língua portuguesa-- tentou
fazê-lo nas últimas décadas --e depois do trabalho pioneiro de Paulo Ronai--
com mais empenho, conhecimento e habilidade do que Haroldo e Augusto de
Campos. Entre si, eles elevaram consideravelmente o patamar técnico-artístico
da tradução de poesia, apresentaram ao público nacional uma profusão de
autores estrangeiros e, num trabalho de quase meio século, criaram um
conjunto de traduções que é uma espécie de enciclopédia da poesia universal.
Como na tradução os Campos se dedicaram quase que exclusivamente à
poesia, cabem aqui algumas observações sobre a natureza desse trabalho. Diz-
se frequentemente que a poesia, se não de todo intraduzível, é de transposição
mais difícil e problemática do que a prosa. Isso é apenas uma meia-verdade,
pois verter direito, digamos, um Flaubert não é em nada mais simples do que
recriar Éluard, René Char, ou Francis Ponge. A questão está antes na diferença
do que se traduz e no que se considera minimamente satisfatório enquanto
resultado. Por mais que, em seus limites, elas se confundam, prosa --
particularmente a de ficção dos últimos séculos-- e poesia são duas coisas
distintas.
Geralmente, os recursos mais naturais ou íntimos da poesia (repetições
sonoras como a rima ou a aliteração, jogos de palavras etc.) são considerados
vícios quando usados na prosa. Ao que parece, a prosa, que é uma criação
posterior, provavelmente associada à invenção da escrita, já nasceu tentando
fugir à atração do pólo poético e não é descabido dizer que o romance se
desenvolveu operando com estruturas que tendem a estar acima de qualquer
idioma em particular, de modo que ele está de antemão preparado para
sobreviver à tradução. Um romance, mesmo se for mal escrito, pode ser ótimo.
E até uma obra-prima como "Guerra e Paz" é capaz de conservar quase tudo o
que tem de importante se chegar ao português numa tradução ruim realizada
através de duas ou três línguas intermediárias. O mesmo não sucede com a

67
poesia que, valendo-se de recursos inerentes à língua original, é incapaz de
sobreviver a uma má tradução.
Cientes dessas peculiaridades, os Campos transformaram a tradução de
poesia em centro vital de seus interesses. Devido ao trabalho de ambos,
associa-se hoje amiúde essa atividade ao movimento poético que eles
fundaram há quatro décadas, o concretismo. Mas esse interesse parecia quase
ausente da obra do terceiro membro da tríade concreta, Décio Pignatari que,
embora tivesse vertido alguns poemas isolados, era um tradutor esporádico,
até surpreender a todos com seu "Retrato do Amor Quando Jovem"
(Companhia das Letras, 1990), um volume que reúne suas traduções de Dante,
Shakespeare, Sheridan e Goethe.
A personalidade polêmica do poeta paulista e sua obra idem contribuiram
para que essa riquíssima coletânea não obtivesse junto à crítica a atenção
merecida. Outro fator, porém, talvez tenha sido mais decisivo. Por mais denso
que seja o "Retrato" pignatariano, a reunião dos quatro autores resultou --em
termos editoriais, bem entendido-- numa espécie de indiferenciação em face
do público e numa consequente falta de apelo mercadológico. Teria sido
provavelmente mais proveitoso publicar inicialmente cada autor num volume
próprio no qual interagiriam sinergisticamente seu nome e o do tradutor.
Muitos leitores potenciais deixaram, portanto, de notar que, no "Retrato",
realizavam-se algumas das experiências poético-tradutórias mais interessantes
da língua como, por exemplo, a criação de um idioma moderno --que, em vez
de recorrer ao "tu", segunda do singular, utiliza o "você", alterando a dicção
da poesia amorosa traduzida-- para a aclimatação de Dante Alighieri no
português do Brasil.
Infelizmente, um mal-entendido semelhante pode acontecer com a recepção
do novo volume de traduções de Pignatari, "31 Poetas 214 Poemas"
(Companhia das Letras). Desta vez, além do mais, os textos se escondem atrás
de um título que não deve seduzir muita gente. E, no entanto, eis aqui algumas
das traduções mais saborosas, divertidas e brilhantes feitas no país. Décio,
num percurso de 25 séculos, seleciona poetas de origens as mais variadas
possíveis, compondo com eles um painel originalíssimo que revela tanto
acerca dos originais quanto do tradutor. O amor, particularmente o carnal, e a
sátira, quanto mais desabusada melhor, são suas características onipresentes.
Não há texto nessa "antologia pessoal" que não funcione como um bom
poema contemporâneo e todos têm versos, imagens e outros achados
memoráveis. Alguns, principalmente os traduzidos de versões intermediárias
(chineses, japoneses e indianos), preservam muito da estranheza que deve
proceder dos originais e se configuram como criações realmente inéditas entre
nós.

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É, porém, entre os poetas latinos --Catulo, Marcial, Propércio, Juvenal-- e
entre Heine, Byron e Apolinaire que o tradutor está absolutamente em casa.
Raramente alguém conseguiu tornar tão atuais, vivos e tridimensionais poetas
mortos há dois mil anos. Quanto a Heine e Byron, autores fartamente
traduzidos no Brasil do século passado, Décio atuou sobre todas as suas
minúcias de modo a lhes dar cidadania brasileira e os poemas traduzidos de
Apolinaire, bem como a maneira como são traduzidos, colocam de fato este
poeta em circulação nesses trópicos pela primeira vez. Mas o ápice da arte
tradutória de Décio se encontra em dois poemas específicos: "Minha Última
Duquesa" de Robert Browning e "As Catadoras de Piolhos" de Rimbaud.
Haroldo de Campos, por seu turno, reuniu finalmente suas 22 traduções de
poemas chineses --várias já inseridas antes em ensaios seus e/ou publicadas
em lugares diversos-- num único livro, "Escrito sobre Jade" (Tipografia do
Fundo de Ouro Preto). Essa coletânea --impressa com requintes de
refinamento gráfico-- confirma o que já se suspeitava previamente: que
Haroldo faz jus, em português, ao título que T.S. Eliot dera ao Pound de
"Cathay", ou seja, o de verdadeiro "inventor da poesia chinesa" para o público
de língua inglesa. Sem ser um sinólogo profissional, Haroldo dedicou-se ao
estudo do chinês, mas suas traduções recorrem não apenas aos originais como
também a toda uma série de estudos, investigações, exegeses e a inúmeras
outras traduções para vários idiomas. O que ele faz é sobretudo sintetizar
toneladas de informações de todo tipo em poemas que são tão breves quanto
exatos.
Exatidão e brevidade são, no entanto, somente os méritos mais
imediatamente visíveis desses textos. A tradição na qual eles nasceram é tão
diferente de tudo o que conhecemos que, para (na expressão haroldiana)
"reimaginá-los" em outro contexto, tornou-se necessário mobilizar um
autêntico arsenal de recursos poéticos provenientes desde os cancioneiros
medievais até a poesia concreta e a posterior. Em cada qual dos poemas o
tradutor oferece soluções não apenas originais como também diferentes entre
si. Da aliteração à espacialização, do hipérbato à palavra-valise, ele inventa
uma dicção consistente que transforma os 22 textos num conjunto coeso.
Como é que ele o consegue?
A resposta está na evolução de sua própria poesia. Paralelamente ao que
sucedeu nas artes plásticas, a poesia do extremo-oriente vem, por vias
diversas, contaminando as modernas tradições ocidentais. Poetas tão
diferentes entre si quanto Pound e Brecht interessaram-se profundamente pela
poesia chinesa a ponto de, no caso do dramaturgo alemão, Elias Canetti ter
afirmado que é a esse contato que ele devia sua maturidade poética. Parte
substancial dos poetas norte-americanos do pós-guerra, de Kenneth Rexroth

69
ao já mencionado Gary Snyder, achou do outro lado do Pacífico uma fonte
perpétua de renovação e o mesmo se pode dizer de mexicanos como José Juan
Tablada ou Octávio Paz. Em termos brasileiros, é em Haroldo que esse
fenômeno se repete mais exemplarmente. De livro em livro, sua poesia se
aproxima cada vez mais das vertentes modernas que voltaram o olhar para o
Oriente. Uma certa imagem do "não-Ocidente" (do Japão também, mas
sobretudo da China) parece coordenar todo o feixe de recursos que Haroldo
domina e, por assim dizer, mais do que incorporando poemas remotos, é sua
obra que está se "sinificando". Ou, em outras palavras, o Oriente é seu Norte.
Um dos melhores desdobramentos do trabalho dos concretos é o interesse
crescente das novas gerações pela tradução. Um território para o qual eles
haviam, com a "Antologia da Poesia Russa Moderna", aberto uma janela era o
Leste europeu, uma região quase tão desconhecida neste país quanto a Ásia.
Dois tradutores em particular têm ampliado consideravelmente esse território:
Aleksandar Jovanovic e Henryk Siewerski. O primeiro, nascido numa região
da então Iugoslávia que, antes da Primeira Guerra, pertencera à Hungria,
aprendeu ali o servo-croata e o húngaro e, chegando ainda criança ao Brasil,
tornou-se um falante nativo do português. O segundo nasceu na Polônia e
mudou-se para cá depois de residir em Portugal. Jovanovic, cujo currículo
tradutório e ensaístico é extenso, acaba de publicar "Céu Vazio - 63 Poetas
Eslavos" Hucitec). Siewierski, tradutor das duas coleções de contos do genial
Bruno Schulz, lançou há dois anos, em colaboração com José Santiago Naud,
"Quatro Poetas Poloneses" (Secretaria do Estado da Cultura do Paraná), uma
antologia que, não tendo sido suficientemente comentada na época, recobra
sua atualidade por incorporar poemas da recente ganhadora do Nobel de
Literatura, Wislawa Szymborska.
Jovanovic abre seu volume com poemas do renascentista polonês Jan
Kochanowski (há pouco traduzido para o inglês por outro Nobel, o irlandês
Seamus Heaney), mas se concentra em seguida em poetas que começaram a
escrever no final do século passado. Especialista nas literaturas eslavas, ele
seleciona poemas de sérvios, croatas, eslovenos, macedônios, búlgaros,
ucranianos, tchecos, eslovacos e poloneses, apresentando ao público brasileiro
nomes tão importantes quanto impronunciáveis. A poesia da região esconde
valores que nada ficam a dever àquela escrita em paragens mais conhecidas da
Europa e a elegância dessas traduções não deixa dúvidas acerca disso. Entre as
pequenas (em termos de extensão) obras-primas traduzidas por Jovanovic
merecem destaque o ciclo "Horto de Ferro" do iugoslavo Vasko Popa e o
"Informe da Cidade Sitiada" do polonês Zbigniew Herbert.
Herbert é também um dos quatro vertidos por Siewierski em sua coletânea
que contém, além de Szymborska, o patriarca da moderna poesia polonesa,

70
Czeslaw Milosz (Nobel de 1980) e Tadeusz Rozewicz. A poesia que se
escreveu depois da Segunda Guerra na Polônia --um país de história trágica,
espremido entre Alemanha e Rússia-- é uma das criações máximas da
modernidade. Ocupados sucessivamente por nazistas e soviéticos, vítimas de
massacres e opressões variadas, os poloneses criaram, com conhecimento de
causa, uma poesia que exibe o horror e o esmiúça de um modo a um tempo
preciso e pudico, atingindo em seus melhores momentos um despojamento
supremo.
Mais do que uma mera apresentação de curiosidades "exóticas", as
antologias traduzidas por Aleksandar e por Henryk trazem informações
preciosas ao Brasil, informações úteis, ou melhor, vitais até mesmo para que
os jovens poetas daqui comecem a saber de/e para onde estão soprando alguns
dos ventos mais fortes da poesia atual. Eles estão soprando do Leste.

(LIVRO ABERTO No. 3, novembro de 96)


DRAMATURGOS

71
15) ARTAUD*

**
Escrito no centenário do nascimento de Artaud.

72
Antonin Artaud (Marselha, 1896/Ivry-sur-Seine, 1948) é o mais maldito
dentre todos os autores malditos deste século. Certo? Enquanto ator, diretor e
teórico, ele enterrou de vez as antigas e desgastadas formas dramáticas e
propôs um teatro inteiramente novo que, mais do que arte, é uma verdadeira
revolução social, política, existencial. Certo? Ele se revoltou contra o
conformismo e a mediocridade da vida burguesa, foi por isso chamado de
louco e encerrado num manicômio. Certo? Sua assim chamada loucura era
infinitamente mais lúcida do que a habitualmente chamada normalidade.
Certo? Ele não encarava o mundo do ponto de vista esclerosado da cultura,
mas do ponto de vista radical da própria vida. Certo? A intelectualidade
assustou-se com seu radicalismo e lhe voltou as costas. Certo? Ele enveredou
pela experiência dos limites, valendo-se, para tanto, das drogas pesadas.
Certo? Não. Errado, errado, errado.
Maldito e desprezado? Artaud esteve associado desde a juventude à fina flor
da intelectualidade; publicou seus poemas nas melhores revistas; participou do
movimento surrealista como figura central, editando sozinho um dos números
de "La Révolution Surrealiste"; trabalhou com os principais diretores teatrais e
cinematográficos (em filmes clássicos de Abel Gance, Carl Dreyer, Fritz
Lang, Pabst); teve, por algum tempo, seu próprio teatro, o Théâtre Alfed Jarry;
e recebeu as atenções, homenagens e bajulações dos escritores e dos críticos
mais importantes da época.
Suas aventuras intelectuais foram geralmente custeadas por amigos ou
admiradores influentes e sua famosa viagem ao México (que rendeu o livro
"Os Tarahumaras", sobre uma tribo com a qual conviveu brevemente,
consumindo no entretempo muita mescalina) foi financiada pelo governo
daquele país. O público de sua performance solo, no teatro Vieux-Colombier
em janeiro de 1947, incluía, além de renomados atores e diretores, gente como
André Gide, Albert Camus (um ganhador recente e outro futuro do prêmio
Nobel), André Breton, Henri Michaux e Jean Paulhan.
Revolucionário e anti-intelectual? Talvez. Mas há poucas coisas mais
tradicionais do que a revolução dramática proposta em "O Teatro e Seu
Duplo", uma coletânea de panfletos, ataques, diatribes e manifestos que,
resumidamente, contrapõe, à dramaturgia realista/naturalista de fundo
psicologizante de meados do século 19, um espetáculo total que lance mão de
recursos ritualísticos e místicos normalmente encontrados nas religiões,
embora, nos textos em questão, estas religiões pretendam ser não-européias.
Qualquer semelhança com o Nietzsche de "A Origem da Tragédia" ou mesmo

73
com Richard Wagner não é mera coincidência, pois esse tipo de revolta
sempre foi uma das constantes centrais, mais que do modernismo, de todas as
teorias românticas, como Susan Sontag demonstra bem em seu excelente
ensaio sobre o autor.
Seu apego às tradições não-européias --ao contrário do de seu conterrâneo e
contemporâneo René Daumal, que estudara a fundo as artes indianas e a
língua sânscrita-- decorria de um contato fugaz com o teatro balinês e ficava
entre o "orientalismo" (no mau sentido) e o mito do bom selvagem. Quanto ao
seu anti-intelectualismo, trata-se naturalmente de um velho clichê demagógico
próprio dos intelectuais que, para assumir, contra a cultura, o "ponto de vista
da vida ou da experiência", fazem o que podem fazer os intelectuais: lêem
vorazmente e escrevem sem parar. A obra completa do francês, composta de
poemas, roteiros, peças, ensaios, artigos, ficção, cartas e mais cartas, beira
trinta grossos volumes.
No que diz respeito à loucura e às drogas, porém, ele era efetivamente louco,
viciado e, apesar de toda a literatura criada ao redor desses fatos --começando
em boa parte com a sua própria: "Van Gogh o Suicidado da Sociedade"-- isso
lhe causou transtornos bastante reais, muito sofrimento e, provavelmente, a
morte. Como diz um de seus admiradores/tradutores, o poeta norte-americano
Clayton Eshleman: "Aos cinco anos de idade, ele pegou meningite grave e
quase morreu. Entre 1917 e 1920, crises mentais tornaram necessário seu
confinamento em vários hospitais e numa clínica suíça. Como resultado dos
vários sedativos que lhe foram administrados na adolescência, ele tornou-se
depois, em sua juventude, um viciado em láudano, morfina e heroína. Dadas
as distorções de sua imagem (especialmente nos EUA), é importante observar
que a 'loucura' de Artaud, na casa dos 30 e 40, não era nem pose nem sequer
decorrência de experiências arbitrárias com as drogas. Artaud esteve doente
durante toda a vida." Em outras palavras, tudo indica que sua obra foi escrita a
despeito e de certa forma contra a doença, não devido a ela.
Só que o mito que transforma a loucura em agente criativo (mesmo num
tempo como o nosso, no qual a "piração" deixou de ser "in", pelo menos
temporariamente), não se desfaz facilmente, sobretudo quando filósofos,
críticos, psicanalistas etc., em geral franceses, insistiam e insistem em
mitificar Artaud de acordo com as conveniências de teses e programas
estéticos ou políticos. Roger Shattuck, todavia, num artigo de 1976 --talvez o
melhor e mais equilibrado que já se escreveu sobre o francês--, afirma que,
após passar por manicômios hediondos, ele foi finalmente internado em
Rodez, sob os cuidados de um especialista competente que, sem dispensar os
eletrochoques, incentivou-o a escrever porque via nisto a melhor terapia. E,
embora ele tivesse sido sempre extremamente talentoso, produtivo e não raro

74
brilhante (como na sua poesia da década de 20), foi nessa época e
imediatamente depois que atingiu o melhor de suas forças, redigindo os
poemas violentos, obcecados com a fecalidade e contaminados pela
glossolalia dos dois ou três últimos anos de sua vida conturbada.

(Folha de S. Paulo, 1/9/96)

16) BRECHT: UMA NOVA BIOGRAFIA*

**
THE LIFE AND LIES OF BERTOLT BRECHT. JOHN FUEGI. HARPER COLLINS. LONDON. 1994.

75
"Quem escreveu a ‘Ópera dos Três Vinténs’?
No livro está o nome de Bertolt Brecht.
Redigiu ele o texto?
E a ‘Vida de Galileu’ várias vezes corrigida --
Quem a reescreveu tantas outras vezes? Quanto
de direitos ganharam suas autoras?"

Esta paráfrase de um dos melhores poemas que Brecht escreveu --


"Perguntas de um Trabalhador que Lê" (cf.a tradução de Paulo Cesar Souza
em "Poemas 1913-1956")-- poderia perfeitamente ser a epígrafe do livro de
John Fuegi, "The Life and Lies of Bertolt Brecht", publicado nos EUA com o
título de "Brecht and Company". Sua tese é simples: quase nada do que fez a
fama e a fortuna do dramaturgo, poeta e prosador alemão mais célebre deste
século é realmente de sua autoria.
Faz muito tempo que o mau-caráter de Brecht já havia se tornado proverbial
exceto, talvez, entre seus admiradores e partidários mais enrustidos. Faz
tempo também que se tornou corriqueiro não julgar uma obra pela biografia
do autor, nem mesmo pelos seus pontos mais negros ou baixos. É essa atitude,
afinal, que tem permitido uma avaliação objetiva de facistas como Pound e
Yeats ou de antissemitas como Eliot, cummings e William Carlos Williams.
Mas, desde a metade do século, essa suspensão da desconfiança ética havia
sido reivindicada quase que exclusivamente em benefício de autores de
direita. Para os de esquerda ela não havia sido requerida pelo motivo simples
de que, até uma época bem recente, crimes à esquerda não eram crimes.
Nada mais justo, assim, do que estarmos hoje em dia em plena lavagem das
roupas sujas de personalidades que, há menos de uma geração, eram
celebradas incondicionalmente como heróis da humanidade. Além disso, no
caso da Europa Oriental --que inclui meia Alemanha-- só agora é que, por
razões óbvias, se começam a estudar os documentos oficiais. Há muitos fatos
ainda a serem estabelecidos, mas, para se ter uma idéia, pesa atualmente sobre
dois conhecidos escritores alemães --Christa Wolff e Heiner Müller-- a
acusação de terem sido informantes da Stasi, a polícia secreta do regime
defunto. Tudo indica, portanto, que sólidas reputações estão sendo revistas em
vários países num processo que remonta a pelo menos outubro de 1917.
Não que isso fosse necessário no caso de Brecht. Sua política sempre foi
conhecida: afinal ele era a principal estrela cultural do regime comunista
instalado pelos russos na assim chamada República Democrática Alemã. Suas
peças e declarações, seus poemas e idéias foram usados, com seu apoio e

76
conivência, como vitrine literária, para justificar uma tirania incompetente em
tudo exceto na opressão. E essa tirania lhe foi grata e o recompensou em vida,
dando-lhe, entre outras coisas, um teatro completo com atores, o Berliner
Ensemble, financiado com o trabalho de uma população à qual nada se
perguntara e, depois de morto, com incessantes reencenações de sua obra e
divulgação em todos os cantos do mundo. Mesmo no Brasil, Brecht ainda é o
mais traduzido e estudado dos dramaturgos contemporâneos, algo que não está
necessariamente vinculado a uma suposta superioridade de seu teatro em
relação, digamos, ao de Beckett e O'Neill, Frisch ou Ionesco.
Enquanto personalidade moral ou exemplar, Brecht já havia sido
desqualificado muito antes de 1989 e só convencia os previamente
convencidos de uma causa na qual, aliás, nem ele mesmo depositava muita fé.
Contudo, de certa forma, ele também já começara a se beneficiar da anistia
que o médio e longo prazo concedem aos grandes autores. Até agora, pelo
menos.
Como é que fica Brecht depois destas novas e devastadoras revelações?
Segundo Fuegi, o alemão era um misógino empedernido, com pendores
homossexuais, que apesar disso, ou por causa disso, atraía mulheres talentosas
e as explorava sem piedade, fazendo-as escrever inteiramente, ou em boa
parte, as peças que ele em seguida assinava. Estas não apenas o celebrizaram,
como lhe renderam proventos consideráveis que ele jamais compartilhou com
suas, por assim dizer, "auxiliares". Mesmo quando a fama era compartilhada,
o dinheiro não o era e, no caso da "Ópera dos Três Vinténs", cujo sucesso
decorre de forma nada desprezível da música de Kurt Weill, Brecht se
beneficiou de um contrato leonino que privava o compositor de quase tudo a
que teria direito.
No caso específico da "Ópera" nunca foi segredo que ela era um adaptação
livre --plágio, diriam alguns-- da peça setecentista do inglês John Gay, “The
Beggar’s Opera”. Parcela substancial do teatro brechtiano se compõe de
releituras --punguistas, diriam outros-- desse tipo, pois seu forte não eram,
seguramente, os enredos originais --e isto já se sabia. Só que, ao que parece,
nessa época Brecht não dominava o inglês. Como é que então ele "adaptou"
John Gay? Com a ajuda de sua amante Elizabeth Hauptmann que conhecia tão
bem a língua que escreveu nesta a letra da célebre "Alabama Song",
posteriormente incluída numa coletânea de Brecht. Quanto do texto alemão da
"Ópera" pertence a ela? Pelo menos 3/4 segundo Fuegi. Quanto ela ganhou
por isso? Melhor não comentar. E, pior ainda, qual a parcela do público desse
"hit" dos anos 20 que conhece ao menos o nome de sua possível autora?
Estas mesmas perguntas são cabíveis, de acordo com Fuegi, no caso de
todas as suas peças de meados dos anos 20 em diante --"Baal" estaria

77
relativamente a salvo--, de sua prosa de ficção, de sua teoria (a idéia do "teatro
épico" seria uma "adaptação livre" --e confusa-- do conceito de
"estranhamento" elaborado pelos formalistas russos, particularmente por
Victor Shklóvski) e até mesmo --mas é raro-- de alguns dentre seus poemas
que, não raro, são brilhantes "traduções livres" de textos ingleses, língua que,
como já foi dito, ele parecia não dominar na época.
Resumindo, Fuegi argumenta que, sob o nome de Brecht, oculta-se uma
verdadeira companhia de autores, ou melhor, de autoras que faziam o grosso
do trabalho, tinham provavelmente as melhores idéias, raramente eram
creditadas e nunca foram pagas. Além de Elizabeth Hauptmann, Grete Steffin
e Ruth Berlau prtagonizaram este verdadeiro "Brecht Ensemble", sendo elas as
verdadeiras autoras de clássicos como "A Vida de Galileu", "O Círculo de Giz
Caucasiano", "Mãe Coragem" etc. Brecht teria sido, quando muito, seu
empresário (o "demimonde" reserva uma expressão mais dura para atividades
semelhantes). Essas mulheres teriam trabalhado por amor a Brecht ou por
devoção à "causa" que ele representava --ou dizia representar-- e nem sempre
tiveram um final feliz. Quem o teve foi, sem sombra de dúvida, a esposa
oficial do dramaturgo, Helene Weigel, que ficou com seu espólio, sua
documentação e, mais importante, com os consideráveis direitos autorais. De
acordo com Fuegi, ela e os filhos de Brecht, controlando seus arquivos com
apoio do governo alemão oriental (e, portanto, dos Partidos Comunistas em
geral), teriam conseguindo, durante quatro décadas, esconder os fatos e manter
inalterada a situação.
O livro de Fuegi, porém, é problemático. Uma argumentação simples, que
diz respeito a fatos (comprováveis ou não), arrasta-se por mais de 700 páginas
entremeada de juízos de valor raramente apoiados numa análise adequada dos
textos. O anedotário a respeito de Brecht é imenso e, às vezes, contundente,
mas freqüentemente confuso, contraditório ou apenas irrelevante. Fatos de
importância e credibilidade desigual são justapostos sem cotejo ou verificação.
O âmago da questão, ou seja, a autoria das peças atribuídas a Brecht, é mais
insinuado obliquamente do que efetivamente demonstrado. Fuegi procura,
sobretudo, convencer através da repetição quase obsessiva. O
desenvolvimento cronológico da obra não poderia ser menos apropriado, toda
a informação está pessimamente organizada e, em nenhum momento, num
livro volumoso como este, há uma seção destinada a mostrar, através, por
exemplo, de tabelas, quanto de cada peça individual teria sido escrito por
quem. Artigos e cartas no "New York Review of Books" apontam que há
inclusive no livro afirmações derivadas de uma compreensão deficiente, por
parte do autor, do alemão dos textos originais. "Last but not least", seu inglês
é particularmente pedregoso.

78
Trata-se, em suma, de uma obra destinada a "queimar" um autor. Ela o
consegue? Sim e não. Seu argumento central --o das autorias alheias-- é
plausível no quadro do que já foi devidamente estabelecido a respeito de
Brecht. Mas no que isso muda o conceito em que ele é tido? Em pouco, pois a
suspeita afeta principalmente seu teatro cuja reputação já andava em quarto
minguante. É cada vez menor o número de pessoas dispostas a agüentar uma
peça didática que pretenda incutir-lhes uma doutrina relegada atualmente ao
lixo da história. O que Fuegi diz a respeito do homem Brecht tampouco muda
muita coisa. Sua imagem de oportunista e misógino, de individualista no
fundo apolítico que usou e se deixou usar pelos comunistas, de "bon vivant"
travestido de idealista etc. etc. etc. não só era mais do que conhecida como
também lhe empresta um certo charme. É, em todo caso, menos repelente do
que a imagem de militante bem-comportado. E sua poesia? Ela sai
praticamente incólume de "The Life and Lies". Não é, porém, necessário
atravessar esse calhamaço para se chegar a tal constatação. Martin Esslin, num
livro pioneiro --e infinitamente superior-- "Brecht: A Choice of Evils"
traduzido por Bárbara Heliodora como “Brecht: dos Males, o Menor”), já
havia concluído o mesmo em 1959. Escritores tão diferentes quanto Elias
Canetti e W.H. Auden também afirmaram, muito antes, que o verdadeiro
Brecht, aquele que conta, é o poeta. Sua carreira, no entanto, é exemplar do
emaranhamento equívoco de cultura e política no presente século e só resta
esperar por um livro que discuta com rigor as dúvidas levantadas, mas não
resolvidas, por Fuegi.

(Folha de S. Paulo, 2/7/95)

17) IONESCO*

**
Escrito por ocasião da morte do dramaturgo.

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Uma aluna chega à casa do professor para sua primeira aula e é recebida
pela criada. Ela se comporta como uma jovem normal e o professor, como um
velho tímido e excessivamente obsequioso. Fala-se do doutoramento que ela
está prestes a fazer e ele começa a instruí-la em aritmética. Durante as somas
--1+1, 1+2 etc.-- tudo vai bem. A aluna revela-se logo incapaz de realizar a
mais simples subtração. O professor tenta --com palitos de fósforo, um quadro
negro e giz (todos imaginários)-- mostrar-lhe como se faz, mas sem sucesso.
Diz-lhe que se nem isso ela consegue, como fará a astronômica multiplicação
que lhe apresenta. Ela responde com o resultado correto desta e observa que,
incapaz de multiplicar, decorara os resultados de todas as possíveis (e
infinitas) multiplicações.
Passa-se em seguida à filologia, onde se comprova que todas as palavras em
todas as línguas --existentes ou não-- são idênticas, apesar de diferentes, ou
vice-versa. Para exemplificar, o professor recorre a uma faca (também
imaginária) e a chama várias vezes de "faca" nas distintas línguas idênticas,
existentes ou não, terminando por matar com ela sua aluna. A criada, que já
tentara antes interromper a aula, volta para recriminar o professor, lembra-lhe
que "aritmética leva à filologia e esta ao crime", dispõe-se a enterrar mais esta
vítima (precedida, só no dia em questão, por outras 49), consola-o dando-lhe
uma braçadeira (talvez com uma suástica) e abre a porta para a aluna seguinte.
Eis, em resumo, a ação de "A Lição" , encenada pela primeira vez em 1951,
em Paris e escrita pelo dramaturgo francês Eugene Ionesco, nascido em 1912
na Romênia e morto esta semana. Evidencia-se aqui uma subcorrente de
humor negro típica tanto de seu país --Tristan Tzara, o dadaísta, e Cioran, o
mórbido, também nasceram romenos-- quanto da Europa do Leste em geral.
Seria difícil, contudo, encontrar exemplo mais clássico do que já passou para a
história com o nome de "teatro do absurdo". Inúmeros livros e artigos foram
dedicados a esta vertente, ou escola ou, melhor, a este estilo. Muitos chegaram
a traçar paralelos entre esta aparente simplificação geométrica da ação
dramática e o que os pintores, desde o fim do século passado, vinham fazendo
com o aspecto figurativo das artes visuais. O "teatro do absurdo", assim,
passou a ser considerado habitualmente a contrapartida no palco da pintura
abstrata.
Agrupar autores tão radicalmente distintos como o próprio Ionesco, Samuel
Beckett, Jean Genet e Harold Pinter sob uma mesma rubrica era, sem dúvida,
uma simplificação brutal, embora de início bem intencionada. Identificá-los
com desenvolvimentos complexos em outros campos esclarecia menos ainda
e, em pouco tempo, passou a ser feito apenas pelos adversários menos desses

80
artistas do que de toda a modernidade. Ou seja, tornou-se apanágio quase
exclusivo dos marxistas falar disso tudo em conjunto para desqualificar seus
resultados criativos como mais um capítulo da inevitável degenerescência da
arte burguesa, manifestação decadente dos últimos estertores do imperialismo
e do capitalismo internacional. O epílogo mais cômico dessa controvérsia
antiga é que um dramaturgo arrolado no clássico "O Teatro do Absurdo" de
Martin Esslin, um dramaturgo a quem Beckett dedicou seu “Catastrophe”,
tenha se tornado o primeiro presidente da (ex)-Tchecoslováquia pós-
comunista: Vaclav Havel.
Como no resto da arte moderna, Ionesco procede --em "A Lição", "As
Cadeiras" (1952), "A Cantora Careca" (58), "O Rinoceronte" (60) etc.-- a uma
estilização explícita do teatro, propondo convenções alternativas aos
pressupostos implícitos, mas nem assim menos convencionais, do realismo
cujos defensores querem que seja reconhecido como a realidade pura e
simples, sem aspas. Sua obra, naturalmente, presta-se a várias interpretações
simbólicas, políticas... "A Lição" pode ser uma peça sobre a alienação, a
incomunicabilidade, a relatividade do conhecimento, o totalitarismo (veja-se a
menção à suástica) a banalidade do mal e tantas outras coisas. Mas a variedade
de suas possíveis interpretações não equivale à infinitude --e seu tom, entre
cínico e pessimista, bem como seu caráter incisivo são inconfundíveis.
Se há elementos em comum entre suas peças e a dos outros mencionados,
eles convergem numa oposição de fato aos auto-denominados realismos,
principalmente aqueles apoiados pelo oficialismo de algum partido ou estado.
A bifurcação está talvez entre todo um leque de possibilidades dramáticas de
um lado e o dogmatismo brechtiano do outro. De um ou de outro lado dessa
bifurcação encontra-se quase todo o drama da segunda metade do século 20.
Apesar de sua embalagem modernosa e internacionalista, o teatro brechtiano
só fez mesmo escola onde contasse com verbas públicas e ideologicamente
direcionadas, em países que o apoiassem ou em determinadas universidades.
As encenações de textos do próprio Brecht parecem ser cada vez mais raras. O
que se colocou, porém, sob o inconveniente rótulo do "absurdo" penetrou
profundamente a consciência e a vida quotidiana do Ocidente, a ponto de se
apresentar não só no cinema e na propaganda, nos filmes do grupo "Monthy
Python" ou nos programas da "Casseta & Planeta", mas também no humor das
piadas corriqueiras, nas charges jornalísticas e nos comentários mais triviais.

(Folha de S. Paulo, 3/4/94)

81
PROSADORES BRASILEIROS

82
18) PAGU*

**
PARQUE INDUSTRIAL. PATRÍCIA GALVÃO. 3a EDIÇÃO. MERCADO ABERTO. 1994.

83
Os primeiros anos do modernismo brasileiro foram pródigos em obras de
exceção, inqualificáveis segundo categorias prévias: "Macunaíma", "Cobra
Norato", "Serafim Ponte Grande". Não se pode mais deixar de acrescentar a
esta lista o "Parque Industrial -- Romance Proletário" de Pagu, publicado em
janeiro de 1933 a expensas de Oswald de Andrade.
Este romance de Patrícia Galvão que, por imposição do Partido Comunista
no qual militava, assinou-o com o pseudônimo de Mara Lobo, pertence
concomitantemente a várias exceções. É modernista e urbano, marxista e
feminista. Para os padrões da época, é também desabusadíssimo na linguagem
e aborda questões tabu tanto para o leitor burguês quanto para a militância,
realizando um verdadeiro inventário dos recursos estilísticos da vanguarda.
Sua autora tinha então apenas 22 anos.
Sua vida, seu envolvimento com Oswald e a vertente antropofágica do
modernismo tornaram-se conhecidos graças ao trabalho de Augusto de
Campos, onde se patenteia que, ao contrário da maioria dos "engajados",
Pagu, antes de escrever seu livro, foi realmente "às massas", trabalhando e
convivendo com operários a partir de 1931. Ela já havia sido presa como
agitadora durante um comício em homenagem a Sacco e Vanzetti e voltaria a
sê-lo em 1935, passando cinco anos nos cárceres da ditadura varguista.
"Parque Industrial", assim, apesar de todo esquematismo e maniqueísmo,
idealiza muito menos o povo do que a literatura realista-socialista corriqueira.
O romance se apresenta como um painel que retrata fragmentos da vida do
proletariado, da pequena e da grande burguesia. Seus personagens são quase
todos femininos: as moças da fábrica e do ateliê de costura, militantes do PC,
normalistas etc. Os homens --o padrasto bêbado, o operário traidor da classe,
os rapazes do Automóvel Club-- são sobretudo seus espancadores, delatores e
sedutores.
Na galeria de protagonistas constam: Rosinha Lituana, a militante presa e
deportada; Otávia, outra militante, que se apaixona por Alfredo Rocha e
rejeita Pepe; Corina, a bela costureira mulata que, seduzida por um burguês,
engravida, é abandonada, se prostitui, mata o filho recém-nascido e vai parar
na cadeia; Eleonora, normalista que deixara de trabalhar e que, depois de se
casar com o rico Alfredo Rocha, aburguesa-se e se entrega aos vícios da classe
adotiva: festas, bebida, devassidão hetero e homossexual; Pepe, o operário
que, rejeitado por Otávia, embebeda-se e é seviciado por burgueses num
carnaval, traindo em seguida sua classe e delatando, por dinheiro, Rosinha às
autoridades; Alfredo Rocha, o burguês leitor de Marx que se enoja com sua

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própria classe e, abandonando sua esposa e posição, "vai às massas", trabalhar
e militar.
Esquemática mas bem articulada, a trama, cujo foco é a maneira como as
classes se interrelacionam através de indivíduos que transitam de uma para
outra por idealismo/oportunismo, consciência/alienação, desenrola-se num
tempo indefinido durante o trabalho e o descanso, o carnaval e a greve, na São
Paulo do Brás e dos Jardins, em fábricas, confeitarias, lupanares, clubes,
cortiços e hotéis de luxo. Os personagens estão em trânsito contínuo entre
lugares e condições diferentes, Se há algo de que o romance não pode ser
acusado é de falta de ambição, pois pretende abarcar toda a sociedade
paulistana, na horizontalidade de sua geografia e na verticalidade de suas
classes.
Tampouco se pode acusar a autora de neutralidade, já que sua perspectiva
explícita corresponde à de seu partido. Ainda assim, com ressalvas: Pagu
parece ter se auto-delegado uma lição-de-casa militante, mas como era ótima
aluna ultrapassou as expectativas de seus professores, esmiuçando inclusive
aspectos que não lhes agradariam. Em primeiro lugar, o paralelismo entre
exploração econômica do proletariado e exploração sexual das mulheres, com
ênfase no fato de que a pior situação seria a da mulher proletária. Em seguida,
o realismo de linguagem que não se esquiva ao modo grosso como as pessoas
falam. Finalmente, a franqueza sexual. Nada disso correspondia ao moralismo
pequeno-burguês dos comunistas em geral --e o livro causou escândalo em
todos os quadrantes, sendo, porém, elogiado na imprensa por ninguém menos
que João Ribeiro.
O que "Parque Industrial" tem de pior é seu simplismo partidário, cuja visão
estereotipada de mundo decorre não da observação mas do catecismo
comunista. Pagu, no entanto, manteve-se suficientemente fiel à sua
experiência pessoal de participante e observadora para desenhar, ignorando-
lhe ainda as consequências, uma cena que prefigura, sem escalas, os expurgos
stalinistas dos anos seguintes. Trata-se do trecho em que, confrontada por
acusações de que Alfredo, o ex-burguês (personagem inspirado em Oswald),
seria trotskysta, Otávia, a militante, dispõe-se não só a expulsá-lo do partido
mas também a abandoná-lo como amante.
O que o romance, por seu turno, tem de mais realizado se evidencia tanto em
suas observações sintéticas sobre fatos ou questões concretas quanto no elenco
de recursos inovadores que vão da apresentação em painel de personagens
intercalados e pedaços de ação à composição esmerada de parágrafos breves e
frases concisas. A autora foge constantemente do discursivo, procurando
expor seu material de um modo imediato, simultaneísta, que evoca, como já se
observou, as técnicas pictóricas do cubismo. Quando surge alguma

85
discursividade, ela está menos para a a amenidade da literatura do que para a
contundência do comício. "Parque Industrial" combina um arcabouço
comunista tosco e datado com uma carnadura modernista e
surpreendentemente moderna, consistindo, afinal, numa série de poemas pau-
brasil emoldurados pelos ditames dogmáticos do irrealista realismo socialista.
Estes envelheceram a ponto de não serem nem mais caricatos; aqueles
continuam inspirados.

(Folha de S. Paulo, 10/4/94)

19) PAULO RÓNAI*

**
POIS É. PAULO RÓNAI. NOVA FRONTEIRA. 1990.

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Prova central da qualidade de um crítico literário é sua capacidade de
despertar interesse por obras desconhecidas. Criticar, para muitos, é sinônimo
de atacar, desqualificar, reduzir a nada. Talvez, no caso de inúmeros críticos,
seja assim mesmo, mas o bom crítico só realiza essas operações a contra-
gosto; seu verdadeiro prazer, aquilo que o move a escrever, deve ser, antes de
mais nada, o prazer de compartilhar com outros uma boa obra, iniciando um
diálogo potencialmente infinito. É a essa rara categoria que pertence Paulo
Rónai. Pode-se discordar de uma ou outra opinião sua – afinal, esse é o móvel
do diálogo –, mas não há, em "Pois É", um artigo que não leve o leitor atento a
querer examinar o livro ou autor em questão.
Esse tipo de ensaísmo tornou-se infelizmente raro entre nós. Daí a
importância de se revisitar o trabalho de Rónai. Sua carreira brasileira
começou nos anos 40. Seu país de origem, a Hungria, que já vivia dois
decênios de uma ditadura direitista e algo anti-semita, havia se aliado à
Alemanha nazista e principado a mover uma guerra contra uma parcela de
seus cidadãos, os judeus, uma parcela que não tinha meios de se defender.
Nessa guerra suja foram assassinados muitos dos melhores intelectuais do
país: o poeta Miklós Radnóti, o contista Endre Andor Gelléri, o crítico
literário Antal Szerb; todos amigos de Paulo Rónai, que se salvou quase
milagrosamente, por ter iniciado um intercâmbio entre Hungria e Brasil,
intercâmbio do qual se tornaria o maior representante. Condenado a
desaparecer como seus amigos, ele foi resgatado por um país cuja
generosidade pagaria com dividendos.
Traço característico da literatura húngara é sua abertura para o que se faz no
exterior. A tradução lá sempre foi uma atividade levada em alta conta e foram
poucos os poetas húngaros que não a praticaram. Rónai havia traduzido para
seu idioma materno poesia latina e brasileira, bem como literatura húngara
para o francês. Na sua bagagem ele trouxe não só o respeito por essa atividade
– tão essencial quanto a própria criação – mas os critérios de rigor que mais de
um século de tradução havia implantado na Hungria. Tendo convivido, em seu
país, com os melhores autores vivos, ele repetiu aqui essa experiência,
tornando-se amigo de, entre outros, João Guimarães Rosa e Carlos Drummond
de Andrade. Resultado do referido convívio foram os ensaios coletados em
"Encontros com o Brasil" (1958, que mereceria reedição), além de seu
trabalho de decifração e esclarecimento dos aspectos mais difíceis da obra do
criador de "Grande Sertão: Veredas" (Alguns desses trabalhos encontram-se
reunidos em "Pois É"). No seu quase meio século de Brasil, a atividade de
Rónai desdobrou-se fertilmente em ramos diversos: o ensaio, a lexicografia, a
tradução, todos resultantes de sua curiosidade imensa e de sua paixão pela

87
literatura. Rónai dirigiu o maior empreendimento tradutório na área de prosa
já realizado no país: a tradução integral da "Comédia Humana" de Balzac.
Junto com seu amigo Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, selecionou e
traduziu aquela que é a antologia padrão do conto mundial em português: os
dez volumes de "Mar de Histórias". Entre suas inúmeras traduções constam,
com destaque, as de obras húngaras: dois volumes de contos, o poema
dramático "A Tragédia do Homem" de Imre Madách e o clássico juvenil "Os
Meninos da Rua Paulo" de Ferenc Molnár.
No ensaio, além de colaborar como poucos para a reavaliação,
reconhecimento ou compreensão de autores nacionais, Rónai publicou dois
livros básicos para quem quer que resolva se dedicar à tradução: "Escola de
Tradutores" e "A Tradução Vivida". Assim, no seu caso, cabe observar quão
produtivo ele conseguiu tornar o legado de seu país, associando, como
raramente havia sido feito antes no Brasil, a atividade crítica à tradutória como
duas modalidades de uma mesma paixão, de um mesmo interesse pela
literatura. A lexicografia não seria, portanto, um interesse menor, mas uma
decorrência lógica de sua familiaridade com tantas línguas e culturas.
A importância de "Pois É" está justamente em reunir, nos limites de um
volume, exemplos de toda essa variada gama de interesses: literatura brasileira
(Guimarães Rosa, Cecília Meireles, Drummond), francesa (Vigny), russa
(Tolstói), húngara (Mikszáth, Karinthy) etc.; tradução, língua, dicionários etc.
Por sua variedade, o volume constitui-se numa crítica aos excessos da
especialização, a pior herança dos cursos de letras. Seu rigor, por sua vez,
torna-se uma denúncia da leviandade à qual foi rebaixada a crítica jornalística.
Cada artigo, por seu equilíbrio entre certezas e indagações, entre erudição e
humor, pela curiosidade intelectual sempre manifesta, é um exemplo da
possibilidade de um estilo que contém autoridade sem perder a leveza, capaz
de abordar temas complexos ou estranhos sem se tornar afetado. Convém
repetir: "Pois É" é, sobretudo, uma amostra da multiplicidade de atividades do
autor, e a melhor maneira de lê-lo é não só dirigir-se aos livros e autores de
que fala, mas voltar ao resto da obra de Rónai de modo a poder avaliar a
contribuição de uma pequena nação danubiana ao Brasil.

(Folha de S. Paulo, 21/7/90)

20) PAULO RÓNAI – OBITUÁRIO

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Com a morte de Paulo Rónai o Brasil perde o último membro da notável
diáspora intelectual européia provocada pelo nazismo e pela Segunda Guerra,
uma diáspora que trouxe para cá, entre outros, Anatol Rosenfeld e Otto Maria
Carpeaux. Uma das diferenças importantes de Rónai em face de seus pares,
contudo, é que ele foi o único que acabou parando aqui por causa da língua e
não a despeito dela, embora na primeira metade de sua vida provavelmente
jamais tivesse imaginado que passaria a segunda nestes trópicos.
Nascido em Budapeste, (na época, a segunda capital do Império Austro-
Húngaro), em 1905, filho de um livreiro que pertencia à próspera e ilustrada
classe média judaica da Hungria, Rónai (pronuncia-se, em húngaro, seu
sobrenome em três sílabas: Rô-nó-i, com tônica na primeira) interessou-se
cedo por livros e línguas estrangeiras. Estudou latim e foi continuar em Paris
seus estudos de literatura francesa, apresentando tese sobre Balzac (uma
paixão que o acompanharia pelo resto da vida). De volta à Hungria dedicou-se
ao ensino do latim e à tradução. Publicou uma ótima antologia de poesia latina
em húngaro e traduziu contistas e poetas de seu país para uma publicação em
francês. Participou de uma jovem intelectualidade que, em boa parte formada
por judeus, estava prestes a converter a cultura literária de Budapeste em algo
semelhante ao que havia sido a vienense na virada do século – o que não
aconteceu porque esses escritores foram dizimados pelos nazistas alemães
e/ou nativos.
É neste ponto da história que entra a língua portuguesa, pois foi por meio
dela que Rónai conseguiu se salvar. Latinista, ele seguira estudando as línguas
neolatinas até chegar ao português, que aprendeu sozinho, gramática e
dicionário nas mãos. Dominada a língua, obteve uma antologia de poesia
brasileira e traduziu-a, nas vésperas da guerra, para sua própria língua,
tornando-se assim o introdutor da nossa literatura naquele canto do mundo. O
aprendizado da língua trouxe-lhe contatos com seus falantes, o que lhe rendeu
certo (re)conhecimento por parte do país e a amizade de alguns escritores,
sobretudo Ribeiro Couto (cujos poemas traduziu e reuniu numa pequena
antologia) que, embaixador na Europa, conseguiu-lhe um visto para o Brasil
quando, como judeu, já havia sido internado (em 1940) num campo de
trabalhos forçados, antecâmara dos futuros campos de extermínio.
Chegando ao Brasil, Rónai se empenhou em tentar salvar amigos e
familiares que haviam ficado para trás, mas toda a situação degenerou
rapidamente e, se bem que tivesse conseguido se casar, através das
embaixadas, com sua noiva, não conseguiu retirá-la da Hungria em tempo: ela
e sua mãe foram assassinadas por membros do Partido da Cruz Flechada (os

89
nazistas húngaros) durante o cerco da capital pelos russos, pouco antes do fim
da guerra.
No entretempo, ele começou a reconstruir sua vida no novo país, tornando-
se em breve amigo íntimo de gente que apenas principiava a ser conhecida:
Aurélio Buarque de Holanda Ferreira, João Guimarães Rosa, Cecília Meireles,
Carlos Drummond de Andrade. Trazendo para cá, salvando-a do incêndio (na
sua expressão), a cultura humanista centro-européia, trabalhou em tantas áreas
que se tornou tão difícil enumerá-las quanto dizer em qual delas foi mais
relevante sua contribuição.
Rónai apresentou também a literatura húngara aos leitores brasileiros com
duas deliciosas coletâneas de contos e outras tantas traduções. O rigor de suas
formulações, a elegância de sua prosa numa língua adquirida, a latitude de sua
cultura, tudo isso já havia sido reconhecido pela comunidade intelectual e pelo
público leitor no seu primeiro decênio brasileiro. Desde então, Rónai tornou-
se não um papa totalitário e indiscutível das letras, mas um orientador que, em
vez de dogmas fáceis, tratava de veicular às novas gerações exemplos de rigor
e seriedade intelectual.

(Folha de S. Paulo, 1992)


21) DOIS BRASILEIROS NA SEGUNDA GUERRA*

*
GUERRA EM SURDINA. BORIS SCHNAIDERMAN. 3a EDIÇÃO. BRASILIENSE. 1995./ MINA R.
CLÁUDIO MELO E SOUZA. 2a EDIÇÃO. DUAS CIDADES. 1995.

90
Há poucas experiências tão absolutamente coletivas quanto a da guerra
moderna, particularmente do ponto de vista dos combatentes. Não é à toa
que seu traje se chama uniforme. Numa guerra como a que acabou há meio
século, forças impessoais determinam a vida de cada indivíduo. E mesmo
sua morte é resultado de um ou vários pedaços de metal, fabricados em série,
aos milhões, e destinados não a tal ou qual pessoa, mas simplesmente a quem
estiver pela frente. Ainda assim, o tema da literatura, distinto do da história,
são sobretudo as pessoas concretas.
Daí que, por necessidade, a literatura de guerra consista numa perpétua
oscilação entre a uniformidade do movimento coletivo e, nos interstícios
deste, a singularidade de cada experiência individual. A dificuldade está
quase sempre em achar um ponto de equilíbrio entre duas séries desiguais e
praticamente incompatíveis de fenômenos que, no entanto, não podem ser
compreendidas se não forem narradas concomitantemente.
O modo como "Guerra em Surdina", publicado originalmente em 1964,
resolve essa dificuldade define também o caráter do livro. O personagem
central, essencialmente autobiográfico, participa da guerra por convicção, ao
contrário da maioria de seus companheiros. Sua preocupação central, no
correr da narrativa, é entender como, de episódio em episódio, homens
recrutados a contragosto para uma guerra que não consideram sua,
transformam-se num exército de verdade --e lutam.
As diferenças entre a motivação do observador e a dos observados não
apenas garantem ao livro uma pergunta contínua e original, como lhe
fornecem um acesso privilegiado para o esmiuçamento de outras questões.
Embora ajude a entender a narração em painel de "Guerra em Surdina", isso
não explica o porquê da escolha de cada questão, algo que deve ser buscado
no caráter do narrador.
Há nele uma espécie de timidez profundamente entranhada, um pudor em
falar de si mesmo exceto quando o esclarecimento de fatos relevantes o
impõe. Assim, é o próprio narrador que oscila entre a relevância das
circunstâncias históricas que descreve e a certeza de que, se ele tem algum
papel importante, este só pode ser o do observador. De um observador que,
aliás, não se sente no direito de julgar, e que, reproduzindo tudo a que teve
acesso com o máximo de exatidão, prefere delegar o julgamento aos leitores.
Essa opção determina o ritmo da narrativa. Embora seu tema seja a guerra, o
que menos se encontra nela é ação no sentido convencional ou esperado e só
se registra o primeiro disparo depois da metade de um livro que, apesar de se
organizar enquanto ficção, trata-a com extremo pudor e repele com certo

91
desdém qualquer recurso à retórica literária. Nada mais apropriado nele,
portanto, do que a idéia de uma guerra em surdina, ou seja, do registro dos
ecos amortecidos da guerra de fora sob a forma de uma incessante batalha
íntima contra o tédio ou o desânimo e pela manutenção da lucidez
observadora.
Já Roberto de Mello e Souza opta por uma narração diferente da de Boris
Schnaiderman. O fato de, ao contrário deste (que serviu na artilharia), ter ele
estado no front, envolvendo-se diretamente nos combates, não dá conta, por si
só, das diferenças. Que "Mina R" tenha sido escrito uma década depois de
"Guerra em Surdina" talvez ajude a explicar um pouco, mas a questão é que,
partindo de acontecimentos semelhantes, cada um dos autores procura algo
distinto.
Se o livro de Boris se desenrola em rigorosa cronologia, Roberto escreve
uma narrativa onde tudo é simultâneo. Se o personagem do primeiro é, antes
de mais nada, alguém que vê, o do segundo sobretudo sente. Aquele chega ao
conflito íntimo como um observador externo, este relata a guerra que está fora
como uma experiência mais que pessoal, propriamente sensível.
Não há, portanto, outra ordem a impor ao seu material que a da relevância
de cada evento para o narrador. Este, um perito em armar/desarmar minas,
está desde o começo --e durante toda a narrativa-- envolvido com um novo
artefato explosivo, a Mina R, que ainda não se sabe como neutralizar. No meio
dessa operação, equivalente a uma concentração do tempo, é que surgem as
recordações, os quadros, as impressões. Elas não se hierarquizam temporal ou
espacialmente, de modo que, por exemplo, um companheiro morto pode
reaparecer em páginas posteriores.
Mas, como no livro de Boris, o ponto de fuga deste painel é o da fadiga, só
que, nesse caso, mais precisamente física. O narrador de "Mina R", porém, é,
de certa forma, mais romântico, na medida em que registra algumas pequenas
epifanias às quais o outro se fecha quase que programaticamente.
Roberto é também mais explicitamente literário, pois, se "Guerra em
Surdina" se define por uma técnica de recusas, "Mina R" lança mão de um
certo lirismo que não deixa de ser exato e adequado aos seus objetivos.
Enquanto uma obra adota uma linguagem seca e descarnada para mostrar até
que ponto momentos de exceção acabam sendo vividos como rotina, a outra,
através de uma intensificação do discurso, revela como, em determinadas
circunstâncias, até mesmo os detalhes mais técnicos de um mecanismo se
revestem de relevância pessoal. E se Boris é consistente no seu uso da terceira
pessoa, Roberto transita seguidamente entre esta e a primeira como um modo
de prismatizar a imersão de seu protagonista na narrativa.

92
O mais interessante é, como na leitura conjunta, ambas as obras se
complementam. Cada uma exibe preferencialmente um aspecto da experiência
da guerra, um aspecto que, embora não ausente, é secundário na outra. Seria
curioso imaginar um intercâmbio entre os dois protagonistas/narradores, pois
o provável é que cada um se admiraria ao reconhecer imediatamente sua
própria experiência na tradução fiel de uma outra sensibilidade.

(Folha de S. Paulo, 9/7/95)

22) BORIS SCHNAIDERMAN*

**
OS ESCOMBROS E O MITO. BORIS SCHNAIDERMAN. COMPANHIA DAS LETRAS. 1997.

93
Alguns anos atrás o jornalista norte-americano Robert Kaplan publicou em
revista um artigo sobre as futuras zonas de desastre social no mundo,
despertando o interesse do Departamento de Estado, que lhe financiou tudo
que fosse necessário para transformar o texto em livro. Obras sobre política ou
cultura internacional se multiplicam, com o apoio de governos, universidades
e instituições privadas, nas livrarias européias e norte-americanas.
E no Brasil? O interesse parece tão mínimo que nem mesmo livros --
recentes mas já clássicos-- como "Fantasmas Balcânicos" do próprio Kaplan
ou "O Túmulo de Lênin" (sobre o fim da URSS) de David Remnick foram
ainda traduzidos no país. Cada vez mais, o pior provincianismo parece
campear nas terras brasílicas. O fato, pouco denunciado, de que praticamente
nenhum romancista nacional de primeira linha ambientou sequer parte de uma
narrativa importante sua no exterior bastaria para demonstrar que o fenômeno
é antigo. E só tem se agravado.
Não há, portanto, como qualificar "Os Escombros e o Mito" de Boris
Schnaiderman com outro adjetivo: trata-se de um livro heróico.
Schnaiderman, sozinho, por conta própria, sem virtualmente nenhum apoio
oficial ou institucional, realizou um trabalho que, em lugares mais
interessados, exigiria o esforço de uma pequena legião de eruditos,
historiadores, críticos de literatura, arte e música, jornalistas, todos eles
merecendo verbas generosas, num esquema VIP, com hotéis cinco estrelas,
secretárias executivas e passagens na primeira classe dos aviões.
O tema ostensivo de seu ensaio são as revelações da Glasnost, ou seja, os
fatos novos (porque anteriormente ocultados pelas autoridades) que
começaram a vir à luz, na URSS, tão logo Mikhail Gorbatchov, o último líder
soviético, iniciou sua política de liberalização, em 1985. Sabe-se que cada
virada ideológica do regime comunista fazia a história ser reescrita. Pois bem,
esse ano marcou a reescritura definitiva da história, pois o que começou a
emergir dos escombros, o que começou a sobressair de incontáveis camadas
de mitos fabricados, levava um único nome: a verdade.
Do fundo dos arquivos da tantas vezes rebatizada polícia secreta (Tcheká,
OGPU, NKVD, KGB), dos porões inacessíveis dos museus, de debaixo do
papel de parede ou do assoalho falso das casas das viúvas ou órfãos de
escritores perseguidos e executados, a quantidade de informações, de velhos
dados (novos, pois suprimidos), de telas, livros, memórias, que surgiu foi tão
imensa que nem mesmo a informática proscrita nos anos 40 pelo então ditador
das ciências, Lyssenko, teria conseguido dar rapidamente conta de tudo. As
convulsões da "outra" superpotência nuclear tendo que processar sete décadas

94
de memória recém recuperada enquanto se convertia (ou se reconhecia?)
subitamente num país de terceiro-mundo assolado pela criminalidade, pela
inflação e dominado por centenas de organizações mafiosas operando em
conjunto com uma administração corrupta são sem dúvida um tema épico, mas
que se ramifica em tantas direções que se torna quase impossível segui-las
numa só narrativa.
Para dar conta dessa complexidade labiríntica, Schnaiderman optou por um
mosaico narrativo composto de capítulos dedicados a tópicos específicos que,
no entanto, insistem em se interpenetrar. A intersecção entre as artes já fôra
feita pelos próprios autores, pois em raros países a poesia, a prosa, a pintura, o
teatro, o cinema e a crítica colaboraram entre si tão ativamente quanto na
Rússia dos anos 10/30. A política e a história, por sua vez, focos privilegiados
de interesse dos criadores, tampouco deixaram de mostrar por eles seu
interesse recíproco silenciando-os e matando-os, geralmente. Nessa trama, o
que mantém os fios entretecidos, impedindo-os, porém, de se emaranhar é a
própria voz do narrador.
Crítico e estudioso da literatura russa, tradutor de, entre outros, Púchkin,
Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov, co-autor (com Haroldo e Augusto de
Campos) da exemplar "Antologia da Poesia Russa Moderna", fundador da
cadeira de russo da USP, Schnaiderman escreveu também um belo romance
sobre sua participação, enquanto soldado da FEB, na campanha da Itália,
"Guerra em Surdina". Embora semi-autobiográfico, esse livro se caracterizava
por uma espécie de pudor narrativo destinado a despir o autor de qualquer
traço de heroísmo pessoal. O que acontece em "Os Escombros e o Mito" não é
diferente.
Numa certa leitura, este novo livro é também a autobiografia intelectual de
um eslavista que, nascido justamente em 1917 (ano da revolução), na cidade
ucraniana de Uman (perto do cosmopolita porto de Odessa) e tornando-se de
fato brasileiro sete anos depois, assiste, sobretudo de longe, à mais
revolucionária reviravolta no seu campo de estudos. Para um especialista em
cultura russa --que, daqui, acompanhava a cena soviética mais ou menos como
Drummond esperando "notícias da Espanha"--, o que ocorreu nos últimos dez
e tantos anos não é qualitativamente diferente daquilo que, para os estudiosos
da Bíblia, do judaísmo e do cristianismo, aconteceu quando, em 1947, um
pastor beduíno de cabras descobriu, às margens do Mar Morto, uma enorme
biblioteca esquecida há quase dois milênios.
Chegando, neste mês, aos oitenta anos, o autor realiza, no contexto das
revelações da Glasnost, o balanço cultural concomitante de uma carreira
prolífica e de um período excepcional. Ele o faz, além disso, com um apetite e
uma abertura que não apenas não caracterizam as novas gerações intelectuais

95
como tampouco são freqüentes num Brasil onde só se reafirmam a inapetência
e o isolacionismo.

(Folha de S. Paulo, 18/5/97)

23) ANTONIO CANDIDO*

**
RECORTES. ANTONIO CANDIDO. COMPANHIA DAS LETRAS. 1993.

96
Há algo de intrigante na recepçao da obra de Antonio Candido. Uma enquete
recente demonstrou o que já se sabia: que ele é o mais famoso nome da crítica
literária do país. Tornou-se marca de distinçao ser seu discípulo ou ter sido seu
aluno. No entanto, seus livros novos, quando publicados, recebem em geral,
por parte da imprensa diária e das publicaçoes especializadas, uma atençao
consideravelmente inferior, em termos tanto quantitativos quanto qualitativos,
à que é dada a trabalhos bem menos relevantes. Acrescente-se que nao só uma
parcela substancial de seus artigos publicados em jornais continua inédita em
livro como várias de suas coletaneas ficaram décadas sem reediçoes, tendo no
entretempo se tornado itens avidamente procurados nos alfarrábios.
Mas talvez nao se trate de fenomeno de exceçao. A maior parte do que
escreveram, por exemplo, Álvaro Lins e Anatol Rosenfeld é hoje raridade
bibliográfica. A exceçao se encontra antes no fato de vários dentre os volumes
esgotados de Candido terem sido reeditados no último meio ano, embora o
acontecimento, se bem que noticiado, nao tenha recebido parcela sequer da
atençao que merece. Coloca-se, assim, a questao seguinte: será que a
qualidade da leitura de sua obra corresponde às dimensoes de seu prestígio?
Questao delicada: mas, a esta altura, inadiável. O que se observa, grosso
modo, é a justa multiplicaçao das homenagens contrapondo-se à relativa
ausencia de discussoes propriamente críticas, para nem falar da escassez de
trabalhos aptos a dar continuidade a temas explorados pelo crítico, ou
dispostos a seguir seriamente sua orientaçao metodológica.
A confusao entre o afa de elogiar a qualquer preço e a apreciaçao inteligente
chega às vezes a beirar o comico. Notável é o caso de um resenhista que
insinuou que a inferioridade da crítica praticada no Rio de Janeiro em face da
paulista (uma disputa na qual nao é mais simples tomar partido do que numa
rixa entre duas tribos africanas nos idos do paleolítico) deve-se ao fato de
residir Antonio Candido em Sao Paulo. A louvaçao transformou-se aqui no
seu oposto, pois o que o resenhista sem querer afirma é que só a presença
pessoal do autor garante sua influência, nao sendo seus livros e artigos
suficientes para levá-la até o Rio de Janeiro. O que tampouco deixa de ser uma
avaliaçao injusta de excelentes leitores de sua obra naquela cidade.
As observaçoes acima tornaram-se necessárias devido ao caráter particular
deste seu novo livro, "Recortes", que corre o risco de nao transparecer nas
leituras corriqueiras às quais infelizmente tem se habituado nossa crítica.
Elogios apenas nao podem dar conta deste volume, que requer atençao e
sensibilidade para que se evidencie o que há por trás de sua aparente
simplicidade. Eis aqui um livro raro, único na trajetória de seu autor.

97
Antonio Candido foi o instigador do livro de memórias de Oswald de
Andrade. Segundo ele, obras de caráter memorialístico faziam (e fazem)
imensa falta na literatura nacional. Cabia, portanto, a um homem de
imaginaçao e intelecto invulgar, como Oswald, que além disso vivera
plenamente seu tempo e convivera com as personalidades mais interessantes,
registrar sua trajetória. Como o crítico vê na literatura nacional um sistema
tendente à integraçao, nao poderia deixar de constatar, ao lado de realizaçoes
do mais alto nível, lacunas problemáticas no cenário brasileiro. Sua missão
implica nao só a denúncia destas como o esforço de preenchê-las. Conseguiu-
o com Oswald e, talvez com sucesso ainda maior, em "Recortes", que, sem ser
autobiografia, delineia com traços fortes seu percurso intelectual.
Cabe observar que essa coletânea de cinquenta artigos, resenhas, prefácios
etc., seis dos quais inéditos, aos quais o autor atribui caráter circunstancial e
que formariam um "livro solto", possui mais coerencia interna e unidade do
que o próprio título dá a entender, porque sao recortes dispondo-se num
mosaico. Aparentemente nao há conexão possível entre textos sobre a prosa de
Drummond, a poesia de Murilo Mendes, a dupla personalidade de Oswald, a
influência de Xavier de Maistre sobre Machado de Assis, ou textos sobre
Rimbaud, Proust, Roger Bastide, Gilberto Freyre, os primeiros contatos com o
cinema mudo e o falado, uma temporada durante a infância do autor em
Berlim pouco antes da chegada do nazismo ao poder, o mundo caipira etc.
Subjaz a todos, porém, uma preocupação comum: a memória.
Este é o tema de praticamente todos os textos, ou seja, mais que um simples
livro de memórias, "Recortes" é um livro sobre a memória. Demonstra-se nele
que ela nao age de forma linear, abrindo-se preferencialmente no espaço de
modo a dispor num desenho coerente as peças do quebra-cabeças acumuladas
no correr dos anos. Revela-se também como ela opera através de dois
mecanismos complementares: o envolvimento pessoal "desarmado" e a visão
"armada" minuciosamente analítica. No que concerne a esta última, nao é
exagero dizer que suas melhores análises de poesia estão neste volume.
Considere-se o seguinte parágrafo: "Como se vê, estou bordando à roda do
ponto de vista de Jakobson, que se poderia simplificar dizendo que o discurso
poético é aquele que chama a atenção sobre si mesmo. No limite
(acrescentemos) ele tanto chama a atenção sobre si que faz esquecer o mundo,
tornando-se outro mundo. Ora, para isso são fundamentais não apenas os
efeitos de alteração sintatica, mas também os de ritmo e sonoridade, que
formam a base para as alterações no terreno da analogia ou do nexo, por sua
vez atuantes no significado." Que pensarão os que demonizaram a expressao
"formalismo" acerca de tamanha preocupaçao formal, ilustrada, além do mais,
por uma exemplar análise de um poema de Murilo Mendes?

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Do lado do envolvimento pessoal, por sua vez, o livro é potencialmente
amargo, pois quase todas as personalidades abordadas são amigos mortos do
crítico. Nesse preciso ponto intervém justamente a inteligência crítica para
redimir de maneira estruturada a memória deles, dirimindo nesse gesto a
amargura. Na verdade, em determinados pontos, a interrelação necessária
entre rememoração e reestruturação pensada do rememorado transforma-se
quase numa tese a ser (ou sendo) demonstrada. São tres os textos-chave dessa
proposição. Num deles, Candido discorre sobre coisas que presenciou no final
dos anos 20 em Berlim, entre eles uma suástica desenhada sobre um muro, e
cujo significado só seria capaz de perceber posteriormente. Em outro, ele fala
sobre um austríaco, paciente de seu pai em Poços de Caldas, que era,
conforme descobriria depois, um importante poeta do círculo de Stefan
George. O terceiro --absolutamente central-- é sobre Marcel Proust. Em
conjunto, o que os tres artigos parecem dizer é que o tempo não danifica os
acontecimentos; pelo contrário, é ele que, requisitando sua análise, torna-os
efetivamente recuperáveis, permitindo sua fixação imperecível sob a forma de
memória.

(Folha de S. Paulo, 93)

24) PAULO FRANCIS *

*
TRINTA ANOS ESTA NOITE – 1964: O QUE VI E VIVI. PAULO FRANCIS. COMPANHIA DAS
LETRAS. 1994.

99
1964. 31 de março ou 1 o de abril? Revolução ou golpe? Com essas
perguntas, Paulo Francis abre seu novo livro, para fechá-lo confessando que se
distanciou do tema prometido. Ele de fato faz uma crônica pessoal dos
acontecimentos em questão, fala de suas personagens centrais: João Goulart e
os militares, ministros, políticos, intelectuais e jornalistas. O banco de dados
de que se vale são suas próprias reminiscências. Embora não fosse
protagonista, estava suficientemente próximo do centro para poder amarrar
algumas de suas pontas desconexas.
Como se trata, porém, de Paulo Francis, ninguém que lhe tenha
acompanhado a carreira esperaria um relato frio, impessoal, impassivelmente
analítico, nem ele mesmo se posiciona enquanto historiador --e reclama, aliás,
da omissão dos profissionais, de quem cobra muito mais trabalho. As
memórias do golpe/revolução, desde o começo, vão sendo entremeadas por
suas considerações favoritas --sobre arte e literatura, religião e política, a
mortalidade e a natureza humana.
Uma de suas características sempre foi, não se pretendendo filósofo ou coisa
semelhante, a de discorrer sobre tópicos assim sem resvalar na normatividade,
nem abrir demasiadamente sua intimidade ao leitor, que é sempre mantido a
uma distância civilizada. A criação dessa distância, maior que a da amizade,
menor que a da estranheza, talvez seja a chave de seu estilo e depende,
seguramente, de seu modo de começar, conduzir e fechar uma frase ou
período, do desenvolvimento da argumentação que, não raro, envolve o
interlocutor numa digressão para interrompê-lo em seguida com uma síntese
epigramática. Sua insistência em chamar as opiniões de opiniões permite que
seja lido mesmo por quem --excluindo-se os dogmáticos-- não as compartilhe.
Mas não é tanto o prazer da digressão que norteia o livro. Aferrando-se na
medida do possível a um tema que poderia ser antes definido como a questão
brasileira do ponto de vista de uma geração que chegou à idade adulta entre a
era Vargas e o ciclo militar, Francis parece ter começado a escrever seguro de
que 1964 resumia em si os principais aspectos do problema, para ir
descobrindo, à sua revelia, que o evento central se encontrava em outra data.
Apesar do título e do subtítulo, "Trinta Anos Esta Noite - 1964 - O que Vi e
Vivi" poderia perfeitamente se chamar "Quarenta Anos este Ano", "1954" ou,
emulando Rubem Fonseca, "Agosto".
Muitos retratos são traçados nas suas páginas, mas as personagens que
acabam se impondo são duas: Getúlio Vargas e Carlos Lacerda. Fica também
a impressão forte de que as coisas teriam se decidido de verdade com o
suicídio do primeiro. O que aconteceu dez anos depois não passaria de um

100
"post scriptum" longamente adiado. Quem considera o autor um cosmopolita
desenraizado ou algo assim (esquerda e direita possuem inúmeros sinônimos
para essa expressão) pode eventualmente se admirar com o quanto ele se
preocupa em tentar entender este país. Francis, no entanto, não apenas
ambientou toda sua ficção no Brasil como nunca deixou de buscar
compreênde-lo e explicá-lo. Entre os projetos de que já falou mas não trouxe
ainda a público havia uma peça sobre a Guerra dos Farrapos, de cujas
minúcias, em entrevista, ele se provou conhecedor.
Além de declarações bem claras, há detalhes no texto indicando que o
público desejado é sobretudo o de pessoas que, ainda jovens, eram no máximo
crianças em 1964. Dois exemplos: Francis esclarece que a Guanabara é o atual
estado do Rio; e se vê obrigado a dizer quem era Tito. Isso torna "Trinta
Anos" sua obra mais didática e menos polêmica. É claro que ele ainda
denuncia a esquerda e suas mentiras, o conformismo subdesenvolvido e suas
pretensões, as simplificações maniqueístas. Não o faz, porém, para irritar os
pterodáctilos impenitentes. Confirmado pela história recente, ele se abstém de
chutar cachorros mortos.
Há tranquilidade na sua exposição traçada nos pontos de encontro da
memória com a análise. Ambas remetem a um país que, embora seja o Brasil,
surge remoto, perdido num tempo diferente, quase incompreensível. Assim, o
que mais faz falta no livro é uma quantidade ainda maior de digressões.
Francis foi crítico de teatro, cinéfilo e participou do meio literário e
jornalístico brasileiro. Ele se concentrou no tema escolhido às custas de outros
tantos retratos pessoais, considerações críticas e episódios da "petite histoire"
que, atualmente, não fazem menos falta que interpretações mais amplas,
históricas ou políticas.

(Folha de S. Paulo, 2/3/94)

P.S. (1998)
No começo de fevereiro deste ano quando, após uma semana turbulenta, o
escândalo Clinton/Monica Lewisnki já se encontrava em refluxo, o programa
televisivo “Manhattan Connection”, em meio à discussão do assunto,
aproveitou para celebrar seu mais ilustre participante, falecido um ano antes,
exibindo flashes nos quais ele opinava sobre o presidente americano. Tendo
acompanhado atentamente não só o desenrolar da crise (algo que o finado
obviamente não poderia fazer) como também o brilhante “State of the Union

101
Address” proferido por Clinton diante do Congresso e tendo tirado minhas
próprias conclusões, as observações prévias de Francis me pareceram quase
ultrajantemente equivocadas e, para dizer a verdade, mal-intencionadas.
O que ouvi estava além do ataque vigoroso de um opositor político extremo,
ou mesmo da caricatura maldosa de um satirista selvagem: as palavras de
Francis não procediam de uma visão minimamente organizada, coerente ou
racional do mundo, da sociedade ou do ser humano e, sim, de um rancor
pessoal que o levava a fazer afirmações desabonadoras e inconseqüentes como
uma maneira de provar, a si mesmo e aos outros, que estava vivo e ainda era
alguém, que tinha peso e seu tempo não havia passado irrecorrivelmente.
Veio-me à mente um provérbio húngaro adequado à situação: “Quem berra é
sempre aquele cuja casa está em chamas.” O mais melancólico, porém, é que
em meio ao alarido de todo o destampatório vicioso, não se ouvia um eco
sequer de sua antiga verve.
Não pretendo agora nem criticá-lo nem fazer um balanço de sua carreira,
mas sim lembrar de uma maneira quase elegíaca quem foi Paulo Francis e
como ele se deixou morrer ao poucos antes de sua morte física.
Francis nunca foi de fato um jornalista. O que se requer dessa profissão, ou
seja, informações “quentes”, dados corretos, análises iluminadoras e previsões
concretas, nada disso era o seu forte. Sua importância, para mais de uma
geração de brasileiros, mas seguramente para a minha (que tem hoje cerca de
40 anos), residia em outras características. Ele era um escritor cujo
virtuosismo estilístico o punha com destaque acima da média dos jornalistas
(de verdade ou não), da intelectualidade universitária e até mesmo dos
escritores profissionais, gente que geralmente usava (e usa) nosso português
do Brasil de uma forma tão anódina, morna e sem brilho que o mero fato de
encontrar um texto onde, como no de Francis, fosse possível distinguir as
opiniões a favor das opiniões contra já constituía, em si, um verdadeiro alívio.
Além disso, no apogeu de sua carreira (mais ou menos 75/85), suas opiniões
foram importantes. Nossa intelectualidade jornalística ou universitária andava
particularmente desconectada do que se pensava fora do país e, como
agravante, ainda carregava ufanista o andor de um ideário que o ano de 89
cuidaria de revelar constrangedoramente míope e obsoleto. Nesse período ele
foi a mais estridente e pública personalidade a nos lembrar de que os Estados
Unidos eram inquestionavelmente o centro e o modelo de nosso mundo e que,
heresia das heresias, isso não era necessariamente ruim. Para dar um único
exemplo, ele discutia, não raro elogiosamente, os produtos da indústria
cinematográfica americana quando, para o grosso da “intelligentsia” nacional,
isso era tabu e apenas os filmes europeus (e alguns japoneses ou provenientes
do Terceiro Mundo) mereciam ser qualificados de “cinema de arte”; este selo,

102
na melhor e mais rara das hipóteses, era concedido a contragosto às poucas
películas americanas previamente aprovadas pelos “Cahiers du Cinéma”. E
enquanto obras-primas como “Godfather” (O Chefão) eram vistas de viés
como algum tipo de propaganda imperialista subliminar, o lixo esteticista e
ideológico (freqüentemente cripto-nazista) de Wim Wenders, Hans Jürgen
Sybeberg ou Rainer Werner Fassbinder, despejado em nossos cineclubes pela
rede de Institutos Goethe, era saudada como grande arte. Que mais tarde
descobríssemos quão derivativas eram as opiniões de Francis, quanto ele devia
a críticos como Pauline Kael, não desmerecia a importância intrínseca de suas
opiniões nem a boa escolha (nem sempre adequadamente creditada) de seus
“originais”. Que quase ninguém no Brasil consultasse regularmente as
“fontes” de Francis é algo muito mais grave do que o uso, digamos, “liberal”
que ele fazia delas.
Francis, mais do que um jornalista ou um intelectual propriamente dito
(acadêmico ou não) era, portanto, um escritor, mas suas virtudes estilísticas se
encontravam não onde ele pensava ou desejaria que estivessem –na sua ficção,
na sua autobiografia “O Afeto que se Encerra”— e sim no seu jornalismo. Ele
era aquilo que antigamente se chamava de "publicista", seu fôlego era curto
demais para sustentar qualquer coisas mais extensa e/ou complexa do que um
encadeamento de sucessivos lampejos memorialísticos (algo que realizou da
forma mais bem-sucedida em “Trinta Anos Esta Noite”), e sua única obra
convincente de ficção foi a “persona” que inventou para si: Paulo Francis, o
papai-sabe-tudo cosmopolita e “au dessous de la melée”. Ainda está para ser
examinado em que medida esta imagem é desmentida não pelas suas próprias
limitações, mas por aquele que talvez tenha sido seu interesse mais sincero e
constante, a saber, seu próprio país. Apesar de morar em Nova York e posar
de auto-exilado desencantado com/e desinteressado por seu torrão natal, ele
jamais conseguiu nem provavelmente quis deixar de ser tipicamente
brasileiro: um carioca da era Vargas. Prova disso é que sua última grande
performance, a última manifestação fulgurante de sua “persona” jornalística
(se bem que não “de jornalista”), ocorreu durante a passagem de Sarney por
Nova York, quando a comitiva desse presidente favorável à desastrosa Lei da
Informática saiu, num frenesi consumista, pelas lojas da cidade comprando
computadores e mais computadores. É através das descrições hilárias dessa
tragicomédia que Francis mereceria ser recordado.
Quando, no entanto, ele tentou transformar sua “persona” em narrador ou
protagonista de romances, como “Cabeça de Papel” e “Cabeça de Negro”, o
resultado foi pior do que se podia esperar: quem se materializava diante do
leitor era um pequeno-burguês delirante que, sentindo-se acossado por
inimigos imaginários, buscava demonstrar das formas mais estabanadas que

103
era mais esperto do que tudo e todos. O fim da ditadura brasileira e, entre
89/91, a derrocada do bloco soviético, seguida pela crise de nossas esquerdas,
eliminaram os alvos preferenciais da maioria de seus melhores ataques.
Desorientado, ele parece não ter entendido o que acontecera ou, quem sabe,
era tarde demais para mudar. Reivindicado pelos acontecimentos e esmagado
pelo triunfo de suas opiniões, Paulo Francis se viu confinado ao/e insistiu no
mais antipático dos papéis: o de tripudiar causas e pessoas convincentemente
derrotadas. E o que havia nele de antipático adquiriu finalmente sobretons
melancólicos quando, nos seus últimos anos, o avatar romanesco de sua
“persona” tomou também conta de seu jornalismo. Francis fará seguramente
falta, mas ele já a fazia anos antes de seu infarto.

25) MOACYR SCLIAR*

**
O AMANTE DE MADONNA & OUTRAS HISTÓRIAS. MOACYR SCLIAR. 1997.

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"O Amante de Madonna & Outras Histórias" do gaúcho Moacyr Scliar reúne
14 brevíssimas narrativas. A mão de um dos dois ou três mestres do conto no
Brasil contemporâneo é tão segura que, no fluir de histórias que começam e
terminam num abrir e fechar de olhos, a complexidade de sua arte corre o
risco de passar despercebida.
Às vezes, o autor não resiste mesmo à tentação de impor uma pausa,
chamando a atenção do leitor para os problemas envolvidos num exíguo
espaço-tempo. Assim, em "Teste", Scliar, afetando tédio e cansaço, arremata
quase mecanicamente a trama de uma cartomante que, valendo-se de suas
informações privilegiadas, pretende dar o golpe-do-baú num cliente rico, para,
logo em seguida, alinhavar uma série de perguntas que é, a rigor, a pauta
resumida de uma verdadeira teoria do gênero que pratica. Aliás, a chave de
seu "métier" --como ele o demonstra-- é criar o clima propício para que surjam
as perguntas. E a consumação, naturalmente, está em não lhes dar resposta --
pelo menos não as esperadas.
Embora pertença oficialmente à categoria "prosa de ficção", o conto, na sua
forma mais acabada, é algo essencialmente primitivo, no sentido de vir
primeiro, de ser originário, e nisso aproxima-se antes da poesia do que dessa
invenção recentíssima, o romance. O verdadeiro conto exige extrema precisão
e a margem de manobra que permite é mínima. Como uma espécie de
administração de recursos obrigatória e propositadamente escassos, esse
gênero requer uma potencialização de cada detalhe, algo que, na coletânea em
questão, evidencia-se no uso que o autor faz da profissão do protagonista do
conto-título.
Um carpinteiro do interior sonha acordado que a cantora americana dará, em
sua cidade, um improvável, ou melhor, impossível show durante o qual,
convocado para fazer um reparo de emergência no cenário, ele não só
chamaria a atenção dela como conquistaria o seu amor. Caindo, porém, "na
real", ele passa a pensar na moldura que decerto fará para um pôster de
Madonna a ser colocado em seu quarto. É pelos trilhos de seu ofício que o
pensamento do carpinteiro desliza livremente entre a fantasia dourada e a
realidade mesquinha, numa narração que, podendo (balzaquianamente)
chamar-se "Esplendor e Miséria da Carpintaria", remete, como que por meio
de um eco fantasmagórico, a tantas outras histórias antigas nas quais um
humilde artesão, por ser --na hora certa-- bom no que faz, acaba desposando
alguma princesa.

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Ecos que nem esse, além de nuances, "understatements", situações e
paradoxos imprevistos, multiplicam-se num livro no qual --dos devaneios
assassinos de um homem bem-amado ('Morte Experimental da Amada') ao
desamor que, para um outro, revela-se grotescamente através do exame das
fezes (devidamente conservadas no vaso sanitário avariado de um escritório)
de sua amada e de seu rival; da encenação que, com consequências graves,
toma conta da vida real ('No Tribunal do Povo', 'Os Efeitos da Orfandade
Desamparada') à minúscula metáfora encenada que a salva ('A Pequena Vida
dos Pêlos'); das pequenas tragédias ('O Dedo') às grandes ('O Índio', que
remete, talvez premonitoriamente, a eventos recentes de Brasília) -- Moacyr
Scliar oferece um rico e variado mostruário de tudo o que se pode fazer com/e
no conto.

(Folha de S. Paulo, 25/5/97)

26) JOSÉ GUILHERME MERQUIOR*

**
O VÉU E A MÁSCARA. JOSÉ GUILHERME MERQUIOR. T. A QUEIROZ, EDITOR. 1997.

106
José Guilherme Merquior, morto em 1991 aos 49 anos, era uma dessas
curiosidades intelectuais que, às vezes, surgem em países como o nosso.
Começou sua carreira cedíssimo, como crítico literário, e, quando morreu
precocemente, era conhecido, no Brasil, sobretudo enquanto polemista
cultural conservador – uma espécie de flagelo da autocomplacência dos
pensadores da esquerda nacional— e, no exterior, como um bom expositor de
teorias das ciências sociais.
Excelente ''public-relations'' de si mesmo, ele conseguiu aquilo a que todo
intelectual subequatoriano aspira no imo do seu ser, mas nem sempre confessa
a alunos e seguidores: ser publicado em inglês e francês nos grandes centros
mundiais. Ele mesmo, aliás, escrevia nessas línguas seus textos –uma proeza
para alguém nascido num país cuja intelectualidade nem sempre domina o
próprio idioma. E se, como muitas coisas indicam, essa era mesmo uma de
suas aspirações centrais, ele mereceu, sem dúvida, vê-la realizada antes de
morrer, pois à sua atuação não faltavam necessariamente méritos.
Seus primeiros artigos, escritos ainda na adolescência, revelavam um crítico
lido e com a coragem juvenil de enfrentar os poderes do momento, algo bem
exemplificado no texto em que atacava a geração de 45. Além disso, nesse
começo de carreira, ele estava sintonizado com a literatura (então) recente e
não havia desenvolvido ainda seus posteriores preconceitos e/ou desinteresses.
Logo depois, um pouco menos jovem, mas não muito, ele esteve entre os
primeiros a falarem aqui da Escola de Frankfurt ou do formalismo russo. Em
seguida, num país em que só não rende vassalagem absoluta à França o
intelectual que se julga superior por saber alemão, ele cuidou de lembrar
constantemente que o mundo anglo-americano também pensava e discutia –
não raro melhor.
Entre seus deméritos há alguns de ordem pessoal que, em princípio, não
deveriam prejudicar a justa avaliação de seu legado. Naturalmente, o pior de
todos foi ter-se associado ao regime militar. Por mais que fontes isentas
garantam que fez bom uso de seus contatos, ajudando oposicionistas
perseguidos e todo o resto, isso não o desculpa, pois o problema principal não
estava tanto no caráter direitista do movimento, quanto em sua absoluta
mediocridade. Em todo caso, essa associação tem sido usada, nem sempre de
boa-fé, para, qualificando-o de conservador, desqualificar seu trabalho.
É uma pena, por duas razões: a primeira é a de que Merquior sempre
veiculava informação interessante nas áreas que abordava; a segunda é que

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descartar seu trabalho apenas devido ao conservadorismo equivale também a
anistiar suas falhas mais graves.
"O Véu e a Máscara", escrito em inglês e publicado na Inglaterra ainda nos
anos 70, com um prefácio de Ernest Gellner, é um volume que dá bem a
medida de seus prós e contras. Trata-se de uma coleção de sete ensaios em que
o autor discute temas de sociologia, antropologia social, história das idéias e
outros, analisando o conceito de ideologia, expondo a trajetória do conceito de
cultura, sua nova definição pelos românticos alemães, o nascimento, mais ou
menos a partir disso, da moderna antropologia, polemizando com o marxismo
althusseriano, discutindo a obra de Jürgen Habermas etc. Embora tenha suas
próprias opiniões, ele as coteja honestamente com as alheias e sempre abre um
leque amplo de idéias no qual a omissão intencional ou a deturpação
voluntária não são recursos admissíveis.
Merquior, como era seu hábito, dispunha das melhores informações e, se
não havia lido com absoluta atenção, pelo menos tinha acesso a todas as obras
relevantes em qualquer área. Para 138 páginas de texto (incluindo-se o
prefácio), ele oferece nada menos que 18 de bibliografia. Não está nada mal. E
o que ele faz com tudo isso? Muito pouco. Seus tópicos interessantíssimos são
tratados com uma aridez exemplar e, pior, praticamente isenta de idéias
realmente originais. Ele se contenta em expor o pensamento alheio,
acrescentando-lhe um pequeno julgamento próprio. Seu estilo é burocrático e
seus textos, mais do que ensaios (na definição rigorosa do termo), são notas de
leitura. Merquior demonstra, neste livro, como em tantos outros, que não era
tanto um bicho-papão arqui-reacionário quanto um geniozinho precoce que
virou adulto insosso.
Mais do que o grande intelectual orgânico do regime militar ou agente do
imperialismo, ele foi, até o fim da vida, apenas aluno hiperaplicado, sempre
em busca de um mestre a quem pudesse mostrar –em várias línguas— quão
bem decorara sua lição.

(Folha de S. Paulo, 13/7/97)

27) CONTARDO CALLIGARIS*

**
CRÔNICAS DO INDIVIDUALISMO COTIDIANO. CONTARDO CALLIGARIS. ÁTICA. 1996.

108
"Crônicas do Individualismo Cotidiano" reúne as intervenções que
Contardo Calligaris, psicanalista de origem italiana radicado sucessivamente
na França, no Brasil e, atualmente nos EUA, divulgou nos últimos quatro anos
sobretudo no "Mais!" da Folha de S. Paulo, mas também em publicações
francesas e norte-americanas. O título do livro, embora perfeitamente
adequado ao seu conteúdo, tem também, como, aliás, adverte o autor, um quê
de enganoso, pois o peso e o significado que ele dá ao termo "individualismo"
é distinto daquele que se lhe atribui corriqueiramente no Brasil.
A palavra "individualismo" se traduz geralmente como pecado ou desvio
ideológico e, acompanhada de expressões como "hedonista" ou "pequeno-
burguês", deve ser considerado, nas Comunidades Eclesiais de Base, um crime
capital. Não é sob esse prisma que Calligaris nem tanto a tematiza quanto tece
variações ao seu redor. Esta entidade (marcada por uma culpa muito peculiar)
é, para ele, a característica principal (mas não exclusiva) do homem ocidental
moderno. Cercá-la, defini-la, criticá-la e --por que não?-- defendê-la é menos
uma meta fixada de antemão que o resultado final dos textos reunidos.
Vivendo nos EUA, os assuntos que o autor seleciona, tanto para tentar
entendê-los quanto para testar suas próprias idéias, dizem quase todos respeito
à realidade norte-americana atual. O que esmiúça são questões como o
feminismo e a relação entre os sexos, a fisiocultura e os padrões "Barbie" ou
"Top-Model" de beleza, a condição dos negros e seu(s) movimento(s), a
sociedade de consumo, os ditames da correção política e da Ação Afirmativa,
o problema das minorias étnicas, raciais, comportamentais, crimes hediondos
e "causas célebres", crianças e o absuso de crianças etc. Como se vê, suas
preocupações procedem diretamente dos debates que se travam agora mesmo
nos EUA, gerando, no resto do mundo, um misto de incompreensão
boquiaberta e ironia condescendente. E no que é que esses debates interessam
a nós, brasileiros? Resposta: em tudo.
O genial romancista e poeta holandês Cees Nooteboom, legítimo sucessor de
Italo Calvino, conta que é com frequência convidado por alguns ministérios
franceses para discutir a cultura e/ou política cultural da nova Europa em vias
(?) de unificação. Invariavelmente os anfitriões acabam reclamando da
insensibilidade e da falta de alarme com que seus colega neerlandês trata o
suposto perigo representado pela invasão da cultura norte-americana. Em
novembro último, ao ser perguntado por alguns conhecidos parisienses sobre
meu domínio do alemão, retruquei, brincando (mas não muito) que ele se
limitava a alguns conceitos elementares: "Lebensraum" (espaço vital);
"Herrenvolk" (povo superior, ou de senhores); e "Judenrein" (limpo de

109
judeus). Confesso que me surpreendi com o desconforto gerado por minha
inocente piada. Afinal, diante de observações semelhantes sobre os
americanos e sua língua, a aprovoção de meus interlocutores teria sido
explícita, porque na França --um país duas vezes invadido neste século pela
Alemanha, e duas vezes salvo pelos anglo-americanos-- o anti-americanismo,
seja à esquerda, seja à direita, é de rigor.
No Brasil também, é claro -- mas apenas entre a esquerda intelectualizada, já
que há poucas populações mais pró-americanas no mundo do que a nossa. A
aspiração nacional média é passar a infância em Disneyworld, a juventude na
Califórnia, a maturidade em Nova York e a velhice em Miami. Se isso não for
possível, hambúrgueres, Coca-Cola, McDonald's, tênis Nike, jeans e
Hollywood foram, são e seguirão sendo muito bem-vindos. E, como sempre, o
cidadão comum demonstra mais acuidade. Pois obviamente o parentesco mais
próximo do Brasil (chamado há não muito tempo de Estados Unidos do
Brasil) é com os EUA, de modo que as polêmicas que lá se colocam são tanto
mais relevantes aqui quanto mais se reafirma a inescapável tendência nacional
a afogá-las em desconversa e em "deixa-disso". Como Calligaris observa:
"Uma parte da desconfiança ou mesmo do ódio que os Estados Unidos, por
exemplo, parecem inspirar no Terceiro Mundo é certamente ódio de nossa
própria paixão por sua imagem, que nos persegue." Assim, embora pouco fale
do Brasil em seu livro, Calligaris está de fato contribuindo para que
determinados debates se enraízem nestas terras.
Que seja um psicanalista a fazê-lo é tão natural quanto paradoxal. A
psicanálise oscila não raro entre dois pólos: num, ela é o conjunto rígido e
fechado de respostas dogmáticas; no outro, um sistema flexível de indagações
pertinentes. Mas essa bipolaridade não se repete a toda hora nas outras
disciplinas? Para se abordar, portanto, o temário esmiuçado por Calligaris,
conta menos de fato em qual disciplina o autor se especializou do que o modo
como a pratica. Consequentemente, há figuras que, mais do que Freud,
parecem tutelar esta coletânea: os frankfurtianos Adorno e Horkheimer (se
bem que despidos do esnobismo de sua nostalgia "biedermeier"); Richard
Rorty, Christopher Lasch, Phillip Arriès e os historiadores franceses da vida
cotidiana; os antropólogos clássicos e os sociais. As lições do marxismo
tampouco se perderam, mas, por exemplo, o abstratíssimo "fetichismo da
mercadoria" reaparece numa palpável "tirania dos objetos" que substituiu a
das castas e nobrezas hereditárias, ou seja, enquanto consumismo.
Nem por isso "Crônicas do Individualismo Cotidiano" é uma obra
meramente informativa, de divulgação. O autor não reproduz neutra ou
impessoalmente o debate. Pelo contrário: ele toma partido, argumenta,
combate e em parte alguma isso se mostra mais claramente do que no seu

110
"Quatro Dias em Gaza", um tríptico onde reúne suas "notas de viagem", a
entrevista que lá realizou com o publicitário Oliviero Toscani, diretor de arte
da Benneton, e seus próprios comentários à entrevista.
Se seu livro tem, no entanto (e entre tantas outras), uma tese central, esta é a
de que o ideário basicamente iluminista de nossa cultura --representado, por
exemplo, pela defesa da liberdade de consciência, pela tolerância em face das
diferenças, pelo questionamento das fontes tradicionais de autoridade-- não
deveria nos levar nem a pensar ilusoriamente que o universalismo é um dado
consensual e livre de inimigos inaceitáveis (o integrismo islâmico é seu
exemplo mais conspícuo), nem deveria nos convencer de que se encontra
isento de contradições. Como diz o autor: "...a tolerância não é uma
escancarada indiferença, mas a defesa positiva de um valor. Portanto, ela pode
implicar também uma oposição declarada contra quaquer cultura que se
aproveite da tolerância dela sem praticá-la." Nem etnocentrismo, nem
relativismo absoluto, mas sim universalismo não-ingênuo, crítico e auto-
crítico.

(Folha de S. Paulo, 3/11/96)

111
28) MARCELO RUBENS PAIVA*

"Bala na Agulha" é um romance policial. Ou talvez seja melhor chamá-lo de


romance bandido. Um traficantezinho de somenos importância, um jovem
brasileiro em Nova York que vive de pequenas transações de cocaína, é meio
que pego no pulo --e se vê obrigado a dar no pé. Quanto mais corre mais
problemas encontra. E vai se envolvendo com tudo: um homicídio, dois
homicídios, assalto, identidades falsas, política, corrupção etc.
Marcelo Rubens Paiva, claramente, não pretendeu, ao que tudo indica, fazer
qualquer literatura que possa ser chamada de "grande". Escolheu determinada
faixa e apostou nela. Seu máximo representante brasileiro, Rubem Fonseca,
parecer ser o modelo --no tema, no estilo, na trama, na linguagem. Tema:
crime, sexo, drogas, submundo. Estilo: direto, objetivo, agressivo,
cinematográfico. Trama: complexa mas redonda, "esperta" e "entendida",
informada. Linguagem: lacônica, contemporânea, musculosa.
Se há nesse tipo de ficção uma meta a se atingir, essa é a de manter
determinadas questões, devidamente envoltas em interesse (de preferência
crescente), em suspenso até o final. Isso é suspense. Que, com lacunas e
esmorecimentos aqui e ali, o livro sustenta. Uma leitura várias vezes adiada do
"Daily News", por exemplo, é um sucesso narrativo. E saber prender a
atenção, numa literatura como a brasileira para a qual tédio representa
qualidade, não é pouca coisa.
O tema do livro tem um ponto de partida bem pensado: as interrelações de
certa marginalidade novayorkina com a política brasileira e o lugar do desvio
criminoso na alta classe média nacional. O desenvolvimento, porém, nem
sempre fica à altura da idéia, de modo que a primeira parte da história (em
NY) e a segunda (no Brasil) acabam se separando como água e óleo. O final,
com as tão esperadas explicações (que sejam esperadas é mérito do que veio
antes) e com um humor que faz uma falta dos diabos no resto do livro,
ameniza um pouco essa impressão. Em termos de narrativa, o ponto alto se
situa no começo, onde o leitor se vê jogado no torvelinho antes de saber que se
trata de uma perseguição.
Quanto ao estilo e à linguagem, dentro do modelo proposto são apenas
corretos. O que não é culpa só do autor. O Brasil ainda não produziu um
romance urbano classe B decente cuja apresentação não fosse mais que uma
imitação dos modelos americanos. Esta, aliás, a principal deficiência do
próprio Rubem Fonseca. Em termos de estilo, o cinematográfico funciona na
primeira parte de "Bala na Agulha", mas quando se chega ao Brasil, o cinema
C se vê substituído pela TV da novela das 8. Mais que um problema do livro,
**
BALA NA AGULHA. MARCELO RUBENS PAIVA. 1992.

112
trata-se de um problema da ficção nacional. A novela das 8
(independentemente de seus méritos e deméritos) é o único modelo narrativo à
mão para se usar numa abordagem da classe média alta e urbana. Que fazer?
Criar outros modelos. Nisso está o desafio que o autor não enfrentou ao passar
da primeira à segunda parte de seu romance. Resultado: situações similares às
que deve conhecer pessoalmente parecem mais pobres e estereotipadas que
outras, conhecidas provavelmente de segunda mão. (E, falha de continuidade
ou gozação: como saber que um cadáver sem cabeça teve agulhas de injeção
enfiadas na gengiva?) De fato, a parte família quase cancela a parte bandida.
O leitor sente-se mais à vontade entre traficantes em Nova York do que com
familiares em SP ou Brasília.
Talvez seja mais fácil transformar em literatura o que já nos chegou sob essa
forma, mas se se quer apresentar o familiar, convém transformá-lo em
literatura também --e, sobretudo, amalgamar e tornar indistinguíveis ambos os
produtos. O que faz mais falta, porém, é uma linguagem adequada. Não que o
estilo cinematográfico funcione sempre; laconismo e contenção, quando
repetidos inúmeras vezes, deixam de ser laconismo e contenção. Mesmo
assim, a prosa mantém certa musculatura, exceto quando o narrador fala da
família (e psicologiza) ou quando intervém sua mãe. Mas, para tomar dois
modelos arquetípicos desse tipo de prosa, a musculatura de um Hemingway
depende da escolha adequada de substantivos-chave, e a de um Raymond
Chandler, não só da vertiginosidade da ação, como de o narrador dar
ininterruptamente ao leitor a impressão tanto de saber mais (do acontecido e
da natureza das coisas em geral) quanto de não ter saco algum para ficar
explicando.
Por isso, classe B ou C, pouco importa, não é desculpa para deixar de
experimentar e conseguir resultados melhores. Um ponto ideal de partida é
não tanto a linguagem quanto o linguajar. Ou seja, para se fazer no Brasil um
classe B ou C realmente bem-sucedido, falta investigar como funciona a
mente trivial no registro do linguajar cotidiano. Falta verificar e pesquisar
sobretudo qual a latitude do português falado no Brasil (não o brasileirês
inventado por escritores desprovidos de curiosidade), qual o seu alcance, onde
estão gíria, argot, lunfardo, calão, slang. Os mestres fizeram isso e se Marcelo
Rubens Paiva pretende jogar o que quer que seja no ventilador, sangue, suor
ou esperma, cabe-lhe, e a todos que tiverem semelhantes intenções, achar um
linguajar que corresponda a tudo isso, ou seja, que fira, doa e feda.

(Folha de S. Paulo, 1992)

113
29) BERNARDO CARVALHO*

**
ONZE. BERNARDO CARVALHO. COMPANHIA DAS LETRAS. 1995.

114
"Onze" de Bernardo Carvalho é um romance ambicioso -- e isso é um
mérito. Logo de início, ele escapa ao vício mais comum hoje no país: o de
vender como ficção algum tipo de rememoração pseudo-lírica. Ele se
posiciona também claramente diante de suas obrigações fundamentais:
fabular, olhar ao redor e narrar. Não que um romance tenha que assumir
necessariamente qualquer uma delas, mas sua aceitação ou negação precisa ser
justificada por resultados concretos.
O livro lança mão de uma realidade reconhecível para criar personagens
plausíveis. Opera com muitos fatos perfeitamentes viáveis e, até o ponto que o
deseja, constrói ficções verosssímeis. O autor olhou ao redor e pinçou o que
lhe era útil. Algumas das histórias que se emaranham na trama são no mínimo
desvairadas, mas sua coerência interna --no sistema elaborado pelo escritor--
as mantêm de pé. Particularmente positivo é como estas histórias todas se
interrelacionam. Pois não apenas se tocam acidentalmente, como há entre elas
significativas intersecções. Freqüentemente o que numa é detalhe secundário
(embora irremovível) torna-se em outra elemento central
Mais interessante ainda é a variedade tipológica de histórias
interrelacionadas. Uma é um tanto psicológica, sobre jovens casais
intercambiantes e seus pequenos traumas. Outra é sórdida, policialesca e
envolve gente da periferia. Uma diz respeito a seitas ideológico-religiosas
vigaristas. Outra tematiza questões ligadas à ditadura militar. Elas se
desenrolam no Brasil, nos EUA, na Europa e, enquanto algumas parecem
"faits-divers", outras remetem ao cinema.
Esta variedade também se expressa segundo uma diversidade ampla de
estilos narrativos, desde a carta pessoal às narrações em primeira e terceira
pessoas, passando pelo primeiro capítulo --ponto alto em termos técnicos--, no
qual blocos de algo que poderia ser chamado de monólogo interior oblíquo
levam o leitor da cabeça de uma personagem à da seguinte, fazendo de um
grupo de pessoas uma única personagem compacta. É apenas num plano mais
"micro", o da seleção verbal, da frase, talvez do parágrafo, que a variedade
acaba ficando aquém do esperado. Sem dúvida, uma elaboração maior das
especificidades de cada fala individual teria enriquecido o conjunto.
O romance como um todo opta por reunir suas diversas histórias não tanto
numa grande trama quanto num mosaico ou painel, onde cada pedaço ilumina
ou problematiza o seguinte, este um terceiro e assim por diante. Dentro de
cada uma e entre elas existe seguramente suspense suficiente para manter
curioso o leitor. Quem quer que as leia, porém, pode perfeitamente se dar ao
luxo de hierarquizá-las em termos de preferência. Se tecnicamente o primeiro

115
capítulo é o mais realizado, a melhor história é a do artista e seu discípulo --"o
a e o o e o e"--, inclusive pelo mistério dessas vogais. Um ótimo momento,
por exemplo, ocorre quando o casal heterossexual aidético de uma única noite
reencontra-se e cada qual pede desculpas ao outro por lhe ter transmitido o
vírus.
O vírus HIV, aliás, embora não seja central, é de fato a personagem mais
constante do livro. Em vez de fazer da AIDS sua principal preocupação, o
autor preferiu deixá-la aparecer nas dobras de cada capítulo. Seu surgimento
aqui e ali dá uma coesão mórbida ao livro, pois a doença é perfeitamente
adequada ao modo como as histórias se encontram e desencontram em
contatos aparentemente casuais que só depois se revelam importantes, até
mesmo fatais. Sem melodrama ou obsessão, quase hiperrealisticamente, o
tema da AIDS perpassa o romance assim como seu vírus permeia a vida
contemporânea.

(Folha de S. Paulo, 8/3/95)

PROSADORES ESTRANGEIROS

116
30) JACQUES CAZOTTE*

**
O DIABO ENAMORADO. JACQUES CAZOTTE. TRADUÇÃO DE CLEONE RODRIGUES. IMAGO.
1991.

117
Quem é, no final do século 20, o diabo? Tomemos a principal forma
narrativa de nosso tempo, o cinema. A verdade é que ele aparece pouco.
Lobisomens e vampiros não faltam --e os efeitos especiais cuidam de torná-los
cada vez mais convincentes, até o ponto de se mostrarem caricatos. Onde se
conseguiu, afinal, um vampiro mais assustador do que o Nosferatu de Murnau,
filmado há 60 anos? A besta de "Um Lobisomem Americano em Londres" é,
por sua vez, tão bem feita, que só resta domesticá-la e transformá-la em bicho
de estimação. Assim, as próprias monstruosidades que habitavam os pesadelos
ancestrais se curvam ao conservacionismo ecológico. Mas e o diabo, com seus
cascos fendidos, cauda pontuda, chifres etc.? Este, como tal, já saíra de
circulação antes do nosso século.
O melhor paralelo talvez seja fornecido pelo zoólogo do fantástico, Jorge
Luis Borges, quando, discorrendo sobre o dragão, lembra que essa criatura,
emblemática de tudo que causava pavor ao homem medieval, chegou até nós –
se é que chegou mesmo— como algo pouquíssimo convincente e ainda menos
assustador, digno de ironia e, no limite (num filme como o "Jabberwocky" do
grupo Monthy Python), como alvo do humor moderno. O diabo perdeu, assim,
seu encanto, embora, conceda-se que há quem ache que este é o seu melhor
truque, o de convencer-nos de que não existe.
Foi de fato o romantismo, precedido por John Milton, que transformou a
imagem do "cão", do "inominável", do "antagonista". Em ambos os "Faustos"
de Goethe ele é uma personagem prometéica que incita o protagonista à ação,
aparece esbanjando ironia desde o momento em que, no prólogo no Céu,
elogia Deus por tratá-lo de forma "tão humana", e é mesmo logrado no final,
quando os anjos lhe roubam a alma que lhe fôra prometida. Há muito da idéia
de uma energia elementar nas forças demoníacas de William Blake que, aliás,
via em Milton um precursor, na medida em que este, no "Paraíso Perdido",
estaria do lado do demônio sem sabê-lo.
Toda a demonologia posterior serviria apenas para problematizar ainda mais
a figura de Satã ou Mefisto, tornando-a complexa demais para o uso simples
que dela fizera o cristianismo. A única exceção de fato apresenta-se na
subliteratura racista e/ou ideológica, onde os adversários são mesmo
demonizados e o diabo segue sendo o terrível rival que precisa ser destruído a
qualquer preço. Os "Protocolos dos Sábios de Sião" --o famoso panfleto anti-
semita forjado pela Ochrana, a polícia secreta do tsar da Rússia-- são talvez o
exemplo mais bem sucedido deste gênero.
Como encarar então Biondetta, a linda forma feminina que o diabo assume
no clássico "O Diabo Enamorado" de Jacques Cazotte? Publicado pela

118
primeira vez em 1772, esta novela celebrizou-se quase que instantaneamente.
Nela, um jovem fidalgo espanhol, Álvaro, servindo no exército do rei de
Nápoles, incitado por colegas, conjura o demônio numa caverna. E este lhe
aparece primeiro sob a imagem de uma horrenda cabeça de camelo, logo
como um cocker spaniel e, em seguida, sem que se tenha certeza disso durante
a maior parte da trama, enquanto um jovem pajem que, aliás, é uma moça
formosíssima e talentosa, cantora e harpista. Alvaro faz as forças ocultas
servirem uma elegante ceia aos seus amigos e, depois, não consegue mais se
livrar do pajem em questão que, mostrando-se mulher, confessa-se
apaixonado(a) por ele. Resistindo por algum tempo, ele acaba por ceder ao
amor aparentemente inquebrantável da beldade. Viaja com ela pela Itália,
instala-se em Veneza e é só quando está prestes a chegar à casa de sua mãe na
remota Estremadura que Biondetta (o nome que ele mesmo dera à sedutora
loira) revela-lhe sua identidade. O final é feliz para Alvaro, ou pelo menos,
assim parece ser.
A narrativa é de uma elegância e de um comedimento que hoje não parecem
mais possíveis (e a bela tradução preserva tais características; a edição, aliás, é
exemplar, ao trazer uma cronologia, uma apresentação da tradutora e um
belíssimo ensaio de Gérard de Nerval). Nada de fogos de artifício, nada dos
cenários pretensamente exóticos e/ou assustadores que, quase ao mesmo
tempo, a literatura "gótica" popularizava do outro lado do canal. Uma das
marcas da época é a geografia da trama: ela começa na Itália, terra de
maravilhas; seu protagonista vem da Espanha, país atrasado e supersticioso; o
demônio deseja levá-lo à corte parisiense, o que não deixa de ser uma crítica
francesa aos costumes de seu país, embora portadora do reconhecimento
explícito de que sua capital é o centro do mundo.
Em clareza e fluência, "O Diabo Enamorado" rivaliza com as novelas de
Voltaire. Eis aqui um dos poucos franceses que são tão claros quanto os outros
proverbialmente se dizem ser. Por isso, apesar do desenlace moralizante, o que
se observa aqui é um momento privilegiado na transformação do diabo. Trata-
se, sem dúvida, de um súcubo, mas tão discreto e conforme às regras sociais
que parece um anjo quando contraposto à cortesã veneziana que tenta
assassiná-lo. Enfim, o diabo não procura convencer com prodígios, mas
seduzir com o aparato normal dos seres humanos do sexo feminino. Daí a
possibilidade de que, em Cazotte, o conflito cristão entre o bem e o mal já
tenha deixado de ser cosmogônico, internalizando-se não tanto na decantada
psique humana quanto em todas as pequenas e grandes situações reais,
sobretudo na esfera amorosa.
Mais do que no romantismo, essa última idéia haveria de ser desenvolvida
de forma profunda --mas também kitsch-- no decadentismo do "fin-de-siècle",

119
cem anos depois. A partir de "O Diabo Enamorado", o demônio abandonaria
sua eventual capa vermelha para transformar-se na mulher fatal que, apesar
dos protestos femininos, tem menos a ver com a misoginia do que com o
reconhecimento, da parte dos autores (ou cineastas) masculinos, de uma
diferença feminina inconquistável. Quem quiser, contudo, ver o verdadeiro
diabo de outrora, terá que recorrer a Guimarães Rosa. Mas aí já se trata de
outra "estória".

(Folha de S. Paulo, 1991)

31) HERMAN MELVILLE*

**
BENITO CERENO. HERMAN MELVILLE. EDITORA 34.

120
Que certa diferença na concentração de melanina na pele das pessoas
justifique não só debates acalorados mas também conflitos tão violentos
quanto persistentes e, ao que tudo indica, insolúveis, é menos natural do que
parece. Distintas colorações de pele explicam-se simplesmente pelo efeito da
seleção natural sobre populações diversamente expostas às radiações solares,
associando-se, num período suficientemente longo de tempo, às diferentes
latitudes de modo praticamente automático. O resto, ou seja, os conflitos
étnicos ou raciais que se estendem da Califórnia à África do Sul, desborda os
limites da biologia.
Tema fértil para os inventores de utopias instantâneas, não deixa de ser
estranha sua relativa ausência na grande ficção. Parece, de fato, que no século
19, quando os choques decorrentes dessas dessemelhanças começaram a
tornar-se explosivos, apenas três narrativas, todas elas curtas, aprofundaram
sua discussão. São elas: "Casamento em São Domingos" de Heinrich Von
Kleist (mais conhecido por uma novela, "Michael Kohlhaas que, re-escrita por
E. L. Doctorow no seu romance "Ragtime", transformou-se no filme
homônimo), "Tamango" de Prosper Merimé (o autor do conto "Carmen" do
qual se originou a ópera de Bizet), e "Benito Cereno" de Herman Melville.
As três narrativas tratam de revoltas de escravos negros; duas delas ocorrem
no mar. Kleist descreve as viscissitudes vividas por brancos quando eclode a
revolta que, em São Domingos e no Haiti, levariam um país negro das
Américas a ser o primeiro no continente a conseguir, depois dos EUA, a sua
independência; "Tamango" narra um motim a bordo de um navio negreiro,
chefiado por um líder guerreiro africano equivocadamente embarcado junto
com escravos que ele mesmo aprisionara; "Benito Cereno" aborda uma revolta
de escravos em 1799, no Pacífico, num navio que se dirigia do Chile ao Peru,
mas a ação contada no tempo presente ocorre depois de ele ter ancorado numa
ilha deserta. Em todo caso, é somente por ocasião do conflito aberto que nas
três histórias se revela o verdadeiro substrato das relações entre brancos e
negros no regime da escravidão. A revelação diz respeito, a rigor, ao que são,
pensam e querem realmente --segundo os três autores-- os negros
aparentemente submissos e infantilmente bem comportados. Produtos
conceituais de uma quase imediato pós-iluminismo, os personagens negros são
tudo menos bons selvagens. E, como se poderia esperar, aguardam apenas a
chance de acertarem as contas com seus secretamente odiados senhores,
pretendendo, em "Benito Cereno", regressar à África.
Kleist e Merimée primam, sobretudo, pela violência que descrevem e por
iluminarem minuciosamente a crueldade. Convém lembrar que a ficção
européia ou americana do século passado abstêm-se em geral de grandes

121
episódios ou cenas de selvageria inter-individual, sendo freqüentemente difícil
para um leitor contemporâneo imaginar que nas batalhas de Borodino ou de
Waterloo, conforme expostas respectivamente por Tolstói e Stendhal, o
assunto central era gente matando gente. Isso se repete, por exemplo, em
Dostoiévski onde o mero assassinato de duas velhas e um simples parricídio
bastam para alimentar centenas de páginas nos seus dois maiores romances.
Os principais narradores dessa época clássica mostram-se quase sempre
avessos à violência e mais ainda à crueldade. Por isso, seus dois melhores
exploradores europeus são justamente figuras algo marginais tanto na
literatura francesa quanto na alemã; nem mesmo são romancistas, aliás, mas
(de acordo com a escala de valores de seu tempo) tão somente novelistas e
contistas.
Melville tampouco é uma figura central --no sentido acima-- da tradição
anglo-americana, sobretudo se, em vez de seu épico "Moby Dick",
focalizarmos sua poesia e, sobretudo, suas narrativas mais breves. "Billy
Budd" e "Bartleby" (esta última muito admirada por Borges), para citar apenas
duas, voltam constantemente a surpreender pela sua modernidade. É esse
caráter precursor que coloca "Benito Cereno" ao lado de Kleist e Merimée
como leituras obrigatórias para uma introdução às relações interraciais no
Novo Mundo. Fala-se muito, nesse contexto, do "Heart of Darkness" (que é
tanto "coração" quanto "âmago" das trevas) de Joseph Conrad, mas as três
histórias em foco são muito mais factuais e objetivas.
O trabalho de desenterrar alegorias ou interpretar profundidades em Melville
já foi mais do que bem feito pela crítica. O espantoso mesmo nesse
oitocentista é seu realismo, substancialmete reforçado pela fato de sua
narrativa ser quase integralmente verdadeira, consistindo na "ficcionalização"
de uma história real extraída das memórias de um de seus participantes, que
aparece com seu próprio nome, o capitão norte-americano Amasa Delano.
Aparentemente racista, esta história em (literalmente) preto e branco, onde a
primeira cor parece representar a vilania e o mal e a segunda o seu oposto,
revela-se antes de mais nada pragmaticamente observadora, pois, acima dos
juízos morais de valor, ela apresenta os negros como tão bons no que fazem
quanto (ou melhores que) os brancos. Não é demasiado insistir nesse ponto ao
se tratar de uma novela escrita na década anterior à abolição da escravidão nos
EUA.
A construção da trama também se mostra precursora em seu recurso
eminentemente moderno de apresentar à sua maneira ambos os pontos de
observação, o do capitão americano e o do espanhol, nessa sequência. Nesta
elaboração reside sua superioridade em face dos contos de Kleist e Merimée,
para os quais perde, no entanto, na reduzida ênfase dada à questão da

122
violência e da crueldade, que quase desaparece entre dois parênteses. Ainda
assim, o tríptico em que "Benito Cereno" se inscreve com os dois outros
contos demonstra mais uma vez a capacidade antecipatória da melhor ficção
ao colocar em debate temas que haveriam de levar decênios para serem
convenientemente tratados por disciplinas científicas, e quase um século para
voltarem à literatura (e insuficientemente mesmo nesta) em livros como "O
Reino deste Mundo" do cubano Alejo Carpentier.

(Folha de S. Paulo)

32) LEWIS CARROLL

123
E então, seguindo a menina que, cansada de ler livros sem diálogos nem
ilustrações, perseguia um estranhíssimo coelho branco que lhe chamara a
atenção menos por mumurar para si mesmo "Ai, meu Deus! Ai, meu Deus!
Vou chegar muito atrasado!" do que pelo modo compulsivo com que olhava o
relógio que tirara do bolso do colete, o reverendo Charles Lutwige Dodgson,
professor de matemática, estudioso de lógica e fotógrafo amador, entrou na
toca do supracitado bicho (se cabia ou não dentro dela não vem exatamente ao
caso) e começou a cair, cair... algo que, obviamente, se visto do lado oposto de
nosso planeta esférico equivale a subir, subir...
Sua queda-ascensão lógico-linguística se configurou primeiro (em termos
ontológicos, não necessariamente cronológicos) no seu próprio
pseudonomeamento ou auto-re-batismo trans-idiomático-palindrômico:
transpondo para o latim Charles Lutwidge, ele obteve (aproximadamente)
Carolus Ludovicus que, por sua vez, invertido e retransposto
(aproximadamente, de novo) ao inglês resultou em: Lewis Carroll. Persona?
Máscara? Heterônimo fernandopessoano "avant-la-lettre"? Não
obrigatoriamente. Carroll não deixou jamais de ser Dodgson e os trabalhos
deste --"papers" sobre matemática e lógica, fotografias vitorianamente
convencionais de adultos e, segundo alguns críticos, fotos extremamente
originais de meninas, não raro nuas (dizem que ele adorava todas as crianças,
exceto os meninos)-- não se contrapõem (embora tampouco realmente
complementem ou expliquem) as obras daquele. Não há personalidade clivada
e, muito menos, dupla ou múltiplas personalidades, nada de médico vs.
monstro. Há sim uma personalidade diferente, talvez nova, certamente
estranha, estranhíssima, quase inatingível.
Dodgson-Carroll escreveu muito e de tudo, mas são três as suas obras
verdadeiramente clássicas, todas elas assinadas com o segundo nome: os dois
livros "alicianos" (aliciadores de menores e de maiores) "Aventuras de Alice
no País das Maravilhas", "Através do Espelho e o que Alice Encontrou Lá"
(ambos disponíveis entre nós na ótima tradução de Sebastião Uchoa Leite e na
bela adaptação de Nicolau Sevcenko), e sua balada épica "The Hunting of the
Snark" (traduzida inspiradamente para o português por Alvaro A. Antunes
como "A Caça ao Turpente"). O restante do que escreveu serve antes para se
tentar entender como e por que o autor fez o que fez de melhor.
Carroll (1832-98) viveu toda a sua vida adulta na Inglaterra vitoriana.
Professor e pregador (mau pregador, devido à timidez e à gagueira: note-se
que o estilo de seu contemporâneo e também tímido primo espiritual,
Machado de Assis, já foi outrora chamado de gago), ele passou discretamente

124
pelo mundo, como convém a um "gentleman" britânico, mas, como lhe
convém ainda mais tipicamente, ele tinha lá suas manias, sobretudo a da
ordem, na qual era verdadeiramente obsessivo (classificava tudo, diagramava
de antemão o fechamento de um pacote, escrevia aos correios sugerindo-lhes
como melhorar seus regulamentos) . Não é demais, porém, afirmar que seu
amor à ordem, seu horror ao caos tornaram-se nele, mais que uma simples
mania ridícula, um – talvez o – princípio criativo/imaginativo central. Pois a
linguagem é um sistema de ordem (embora potencialmente desordeiro,
caógeno) e a lógica é outro --e é da combinação de ambos (ampliando uma
colocação do crítico Michael Holquist) que nascem tanto Alice quanto o
Turpente.
De volta, no entanto, ao começo. Alice foi contada pela primeira vez às
crianças da família de Henry George Liddell no verão de 1862 e escrita entre
novembro desse ano e fevereiro do seguinte num manuscrito preparado para
Alice Liddell, uma pré-adolescente. Retrabalhada e ampliada, a primeira Alice
foi publicada em 1865 e sua sequência, redigida a partir de 1868, apareceu em
1871. A versão definitiva de "A Caça ao Turpente" saiu ao redor de 1885.
Esses vinte e poucos anos, que resultaram em três livrinhos magros, são os
responsáveis por uma obra cuja fortuna tem sido, no mínimo, estraordinária.
De Edmund Wilson a W.H. Auden, de André Breton (que a menciona, em
1924, no primeiro manifesto surrealista) a Louis Aragon (tradutor francês do
"Turpente"), de James Joyce (que aprendeu com suas "palavras-valise") a
Vladimir Nabokov (que traduziu "Alice" para o russo), passando por seu fã de
carteirinha Guillermo Cabrera Infante, pelos poetas concretos brasileiros
(Augusto de Campos transcriou, entre outros poemas "alicianos", o
"Jabberwocky/Jaguadarte") e chegando tanto a Walt Disney quanto ao grupo
inglês Monthy Python (que, ao seu modo, filmou o "Jabberwocky") -- enfim,
de A a Z, quem quer que seja (ou fosse) alguém ("anybody who is/was
somebody") e inumeráveis outros reconhecem, cultuam, admiram, imitam etc.
o discreto reverendo inglês que assinou com um pseudônimo engenhoso três
pequenas obras-primas da sátira e da paródia e sobretudo do nonsense
dirigidas inicialmente às crianças (meninas, de preferência).
O enxame crítico ao redor da obra em questão foi apenas marginalmente
menor. Não houve uma vertente dos últimos cem anos que, através de algum
praticante ou porta-voz, não tenha eleito as Alices ou o Turpente como sua
prova-dos-nove. E assim, a menina que mergulhou na toca do coelho branco
que tinha um relógio no bolso de seu colete, a menina que desafiou gente tão
temível como a Rainha de Copas, cuja frase favorita era "Cortem-lhe a
cabeça", a menina que já tinha visto um gato sem sorriso, mas nunca antes um
sorriso sem gato, entrou também no mundo das maravilhas do existencialismo,

125
do estruturalismo, da psicanálise, do marxismo, do desconstrutivismo, de
Jung, da escola de Frankfurt, do dr. Lacan..., onde foi esmiuçada por filósofos,
médicos, lógicos, místicos e deus sabe quem mais, saindo, no entanto, sempre
do outro lado do espelho.
Assim, se a proverbial guerra nunclear destruir todas as bibliotecas (e
filmotecas etc.) do planeta, deixando incólumes apenas as três obras de Lewis
Carroll e o que se escreveu sobre elas, ainda assim nosso pesquisador futuro,
pós-apocalíptico, poderá, com esse material, reconstruir fidedignamente todas
as principais discussões literárias, culturais e ideológicas do presente século.
Isso não se deve somente ao caráter precursor de uma obra que parece
freqüentemente ser contemporânea de Joyce, Kafka, Pessoa e Borges, pois, se
há algo de que a modernidade está cheia, é de precursores -- que remontam,
aliás, ao princípio dos tempos (Borges explica: todo autor cria seus próprios
precursores; a modernidade também). E, embora Carroll fosse um adepto da
fotografia, uma tecnologia, lembremos, muito mais revolucionária em meados
do século passado do que hoje uma informática que, provavelmente, só é tão
cultuada entre nós devido aos atrasos acarretados pelo provincianismo
corrupto da lei da informática, sua modernidade nada tem a ver com isso --ela
está, isto sim, mais que aos materiais, ligada aos procedimentos e, como a
inteligência e seu auto-questionamento, começa no cérebro (não o eletrônico,
mas o humano). É para lá também que, no seu eterno-retorno e com o sorriso-
sem-gato do gato de Cheshire, ela volta.

(Folha de S. Paulo, 28/4/96)

33) ) H.G. WELLS*

**
ESCRITO NO CINQUENTENÁRIO DA MORTE DO ESCRITOR.

126
O bom e velho H(erbert) G(eorge) Wells (1866-1946), nascido numa família
de classe média baixa da Inglaterra vitoriana e morto há meio século,
encarnou como poucos aquilo que não mais se costuma chamar de "espírito de
sua época". Principiando sua carreira como um candidato a cientista letrado,
transformou-se num homem de letras fascinado pelas ciências. Aluno de
biologia de T.H. Huxley, ele ensinou em várias escolas e escreveu jornalismo
científico até sua carreira literária decolar. Isso ocorreu em torno de 1895,
quando publicou "A Máquina do Tempo", um conto longo escrito num estilo
límpido e elegante (elogiado por um crítico tão exigente quanto Hugh
Kenner), uma narrativa ágil e imaginativa que muitos ainda consideram a sua
melhor.
A partir de então, tornou-se uma figura pública, produzindo mais de cem
livros, entre romances, coletâneas de contos, história, autobiografia, tratados e
panfletos sobre reformas sociais etc., além de peças radiofônicas e roteiros
cinematográficos. Em toda sua obra ele defendeu causas que, sem maiores
restrições, podem ser qualificadas de progressistas: da emancipação feminina
e do "amor livre" ao pacifismo e algum tipo de socialismo. A maior parte do
que escreveu já foi devidamente esquecido e está relegado à poeira das
bibliotecas. Aqueles para quem o nome de Wells não evoca apenas um rede de
lanchonetes, lembram-se dele devido a duas ou três narrativas cuja fama
persiste sobretudo através de filmagens: "Os Primeiros Homens na Lua"
(1964), "A Máquina do Tempo" (1960 ou sua versão para TV de 1978) e "A
Guerra dos Mundos" (1953); ou talvez tenham ouvido falar na célebre
adaptação para a rádio desta última feita pelo quase homônimo Welles: Orson.
Esta situação não teria causado espanto ao próprio H. G. Imensamente
popular em seu tempo, ele produzia para satisfazer as necessidades imediatas
de seu público e, enfatizando o contraste de seu trabalho com o de seu amigo
Henry James (com quem polemizou depois de tê-lo satirizado num romance),
afirmava que "artista" de fato era o americano enquanto ele mesmo não
passava de um "jornalista". Como entre as principais funções de um jornalista
estão anunciar e provocar mudanças, quando estas se realizam (ou se revelam
irrealizáveis) seu arauto ou agente pode se dar por satisfeito e não tem razão
para ser lembrado. A literatura pretende freqüentemente criar um mundo
paralelo, crítico ou simplesmente alheio à realidade propriamente dita e,
portanto, Wells, querendo antecipar ou influenciar a história, estava certo, no

127
sentido amplo, ao qualificar assim sua obra, embora se tratasse de um
jornalismo distinto do que hoje em dia leva esse nome, uma atividade que, em
suma, se via como portadora de uma missão cultural e civilizatória.
É justo que o Wells defensor de causas sociais --ganhas ou perdidas-- tenha
sido esquecido, pois os reformistas capazes e/ou responsáveis por alguma
melhoria no estado das coisas se diluem no movimento geral destas, deixando
espaço na memória coletiva apenas para os revolucionários que ocasionaram
alguma piora considerável. Mas é curioso, por outro lado, que o Wells
lembrado seja o autor de narrativas de ficção científica, quando livros escritos
nessa veia sofrem rapidamente de obsolescência e requerem uma reciclagem
contínua.
Este gênero já teve popularidade maior e a deve, numa parcela não
desprezível, à imaginação do inglês. Como nas tramas de Julio Verne, a idéia
wellsiana de ciência relacionava-se intimamente com a máquina, isto é, tinha a
função primordial de fazer avançar a tecnologia mecânica (ou eletro-
mecânica), desenvolvendo novos meios de transporte (através do espaço ou do
tempo) e de destruição ou construção. Embora não inteiramente ausentes de
suas inferências (veja-se o conto "O Bacilo Perdido", onde um anarquista, o
terrorista de então, planeja um atentado com o bacilo da cólera, ou seja, pensa
em termos de guerra bacteriológica), os ramos científicos mais cotados
atualmente, como a cibernética ou a microbiologia e a tecnologia eletro-
eletrônica das comunicações, eram coisas quase inimagináveis no seu tempo
(se bem que ele ainda estivesse vivo quando se inventou a penicilina e se
construiu o primeiro computador).
Ainda assim, foi na década posterior à de sua morte que a ficção-científica
conheceu sua segunda "idade de ouro", para se eclipsar depois sob a forma
escrita e conhecer uma breve ressurreição cinematográfica nos anos 80,
quando os efeitos especiais e a falta da imaginação dominaram as telas. A
ficção científica era um dos gêneros através dos quais o "espírito da época"
que Wells encarnava se manifestou claramente; o outro era o romance policial.
Ambos, na sua forma antiga, têm obviamente menos a ver com seus temas
explícitos --o crime, a ciência-- do que com a reafirmação de um sentimento
mais abstrato: o otimismo. Por mais hediondo que seja o crime (pouquíssimo
hediondo nos clássicos do gênero), por mais terríveis que sejam os
extraterrestres ou o futuro do planeta, ambos os gêneros confiavam no
raciocínio dedutivo ("científico") como o meio correto, provavelmente
infalível, para a resolução de qualquer problema.
Já a ficção-científica posterior, particularmente a dos anos 80, é seu exato
oposto, não porque ao otimismo contraponha um pessimismo moderno, mas
porque, sendo a forma contemporânea da imaginação apocalíptica, substitui o

128
otimismo ingênuo do fim do século 19 pela religiosidade difusa e confusa do
final do milênio. O romance policial, aliás, também tem se transformado em
algo diverso: numa materialização de fantasias ancestrais de caça ou
sacrifício, de vingança e justiça com as próprias mãos. Prospectivismo
otimista e regressão obscurantista são, ao que parece, os espíritos de duas
épocas bem diferentes.
Traçando mais ou menos implicitamente a linha que separa ambas, foi um
grande admirador seu, George Orwell, quem melhor definiu, num artigo
escrito durante a Segunda Guerra (em 41), tanto o fascínio que Wells lhe havia
causado na infância quanto suas limitações: "Você estava num mundo de
pedantes, clérigos e golfistas, com seus empregadores futuros exortando-o a
‘batalhar ou cair fora’, seus pais podando sistematicamente sua vida sexual e
seus professores maçantes rindo à socapa com seus chavões latinos; e eis que
surgia esse homem maravilhoso que podia falar sobre os habitantes de outros
planetas ou do fundo do mar e que sabia que o futuro não seria o que as
pessoas respeitáveis imaginavam. (...) Mas, como pertencia ao século 19 e a
uma nação e a uma classe não militaristas, ele não podia compreender a
tremenda força do velho mundo, simbolizada em sua mente pelos 'Tories' que
caçavam raposas. Ele era e continua inteiramente incapaz de entender que
nacionalismo, fanatismo religioso e lealdade feudal são forças muito mais
poderosas do que aquilo que ele mesmo decreveria como sanidade. Criaturas
oriundas da Idade das Trevas entraram marchando no presente e, se são
fantasmas, são fantasmas que, em todo caso, precisam de uma magia
fortíssima para serem derrubados."

(Folha de S. Paulo, 11/8/96)

34) THOMAS MANN

129
Certo historiador, cujo nome não vem ao caso, conta nas suas memórias que,
entre seus amigos de juventude, havia um mais velho, poeta de talento e
algum renome, e um outro, novato no mesmo mister. Quando o novato
mostrou seus versos ao primeiro, este pediu-lhe, por favor, que nunca mais
voltasse a escrever poesia. Em vez de se ofender, o jovem não só acatou o
conselho como, mudando de ramo, tornou-se romancista de sucesso. Cabe
observar que no país centro-europeu onde isso ocorreu nos anos 30, Thomas
Mann era, de longe, o narrador vivo mais lido e estimado pela intelectualidade
liberal. E um dos primeiros temas do romancista alemão foi o risco que o
quase-artista, o amador e o diletante corriam: o de cair no ridículo.
Bastante explorado mais tarde, o tema do ridículo já surge, cristalino e
inescapável, em dois contos escritos em 1896-97, ou seja, quando o autor
tinha apenas 21-22 anos: "O Pequeno Senhor Friedemann" (título também de
sua coletânea de estréia) e "O Diletante" (como é chamado na tradução
brasileira; o original significa antes "palhaço").
O senhor Friedemann em questão é pequeno, porque um acidente,
provocado na infância pelo alcoolismo de sua babá, tornara-o anão e
corcunda. Apesar da deformidade, ele cresce amando a existência e suas
coisas boas: pelo menos aquelas a que tem acesso. Obviamente excluído do
comércio erótico-amoroso, programa-se para uma vida de deleites puramente
estéticos, sobretudo a música. Até se apaixonar por uma mulher.
O palhaço da história seguinte não carrega qualquer deformação física.
Oriundo de uma rica família que, embora falida, legara-lhe alguns recursos,
pode se dar ao luxo de não pertencer à sociedade, não ter emprego nem outra
ocupação a não ser a de apreciar as artes, sobretudo a música. É verdade que
não sabe de fato tocar piano, mas se diverte algumas horas por dia
improvisando para si mesmo ao teclado. Até, claro, não tanto se apaixonar,
mas simplesmente descobrir que sua posição --ou melhor, a falta dela--
tornou-lhe inacessível uma mulher pela qual poderia vir a se interessar.
Ao deixar de lado sua auto-desprogramação amorosa, Friedemann é
rudemente rejeitado, com um safanão, pela amada que nem sequer deixa de
escarnecer de sua condição impossível. Ao "palhaço", quando de seu esboço
de aproximação, basta-lhe a suspeita de um entreolhar irônico entre a amada
presuntiva e o noivo desta para que tudo se configure. O senhor Friedemann --
a cena ocorrera num jardim-- arrasta-se até um córrego onde, num acesso
derradeiro de ódio a si mesmo, deixa-se afogar. O outro conto termina com o
protagonista constatando que não conseguirá levar a cabo nem mesmo suas
ânsias suicidas. Ambos os personagens, cuja trajetória Mann traça desde o

130
começo, têm cerca de 30 anos de idade. Ambos são também pessoas
excluídas, por alguma razão, do mundo dito normal. Não é tanto a exclusão,
porém, que fascina o autor quanto o fato de que a ela se vincula a apreciação
artística.
Adorno --que assessoraria musicalmente o criador de "Doutor Fausto"--
observou, num ensaio, a crescente dissociação entre a música erudita européia
e um público cada vez menos capaz de compreender formas elaboradas que,
todavia, continuava apreciando. Na música --que requer de quem a compõe a
fluência numa linguagem complexa e de quem a executa, o domínio de uma
técnica difícil-- essa dissociação se evidencia com mais obviedade do que nas
outras artes; por exemplo, a da prosa.
Seria desta arte, a sua, que Mann, encarnando talvez seus personagens,
falava? A abordagem psicobiográfica não goza hoje em dia de grande
prestígio, mas a quantidade de material autobiográfico nessas histórias,
principalmente em "O Diletante", fala por si mesma. Antes de aparecerem os
grupos de teatro experimental nos colégios progressistas, alguém só era artista
na medida em que conseguisse demonstrá-lo no seu trabalho. Algo que, antes
do surgimento das terapias não ortodoxas, gerava infelizmente certa
ansiedade. Não ser mais do que parte do público e ainda assim se julgar
artista: isso podia ser punido com o ridículo.
Não que este seja o único tema. A erupção do erótico como desestruturador
da disciplina estética --tópico central de "Morte em Veneza"-- mostra-se
nessas narrativas com todos os contornos. O que ressalta, no entanto, é seu
caráter distinto de exorcismo. Na crueldade sádica com que trata os
fracassados, o escritor parece retratar o castigo que ardentemente deseja não
vir a merecer. Honestamente, ele demarcou a idade de 30 anos como a data
limite na qual seu sucesso ou fracasso estaria inapelavelmente decidido. Em
julho de 1900, Mann enviou o manuscrito completo de "Os Buddenbrooks" ao
seu editor. Tinha, então, 25 anos.

(Folha de S. Paulo, 6/2/94)

35) KÁREL TCHÁPEK*

**
Apresentação de HISTÓRIAS APÓCRIFAS. KAREL TCHÁPEK. TRADUÇÃO DE ALEKSANDAR
JOVANOVIC. EDITORA 34.

131
Qual o nome atual do país cuja capital é a bela cidade barroca chamada
Praga? Parece que é República Tcheca, pois ainda não se ouve aqui ninguém
dizer Tchéquia. Um país cujo nome é apenas um adjetivo? Pode-se falar em
Federação Brasileira ou em Reino Unido, mas se pensa em Brasil e Inglaterra.
Que país é este? É a metade ocidental de um outro, a ex-Tchecoslováquia, ou
melhor, da ex-Tcheco-Eslováquia. O que nos interessa, porém, é
especificamente o penúltimo.
Trata-se de um país que, antes da Primeira Guerra, nunca havia existido.
Criado no final desta, durou vinte anos, até ser fatiado como um salame: um
pedaço foi incorporado ao Reich alemão (o 3 o, de mil anos); outro, dado
(devolvido, diriam alguns) à Hungria; o pedaço principal foi dividido entre o
protetorado ("protegido" pelos nazistas) da Boêmia-Morávia (um nome duplo)
e a república (títere) da Eslováquia. Reconstituído depois da Segunda Guerra,
tornou-se novamente um protetorado: desta vez, soviético. Meio século
depois, quando os russos ("go home") foram para casa, divorciou-se
(consensualmente, é verdade) em dois países cujas línguas são mutuamente
inteligíveis, mas os habitantes, ao que consta, não.
Tchecoslováquia: em menos de um século, nasceu e morreu duas vezes, uma
de morte matada, outra de morte morrida. Suas datas mais importantes: 1938,
quando seus aliados a entregaram numa bandeja a Hitler (data conhecida pelo
nome de uma cidade que não fica nem na metade tcheca, nem na eslovaca:
Munique); e 1968, ano em que a "Primavera de Praga" terminou abruptamente
devido à chegada imprevista do inverno russo.
Tchecoslováquia. Há razão para se surpreender com o fato de que seu
escritor nacional fosse sobretudo um humorista? Não é óbvio que Karel
Tchápek só poderia ter escolhido mesmo o humor como seu modo favorito de
expressão? Não que ele fosse apenas zombeteiro, mas, quando o era,
trabalhava seu meio segundo uma maneira cuja amplitude e variedade seriam
inimagináveis em países menos impossíveis do que o seu. Sua obra preconiza
as formas mais modernas de ironia e sátira que, alhures, só se manifestariam
50 anos mais tarde, por exemplo, nos programas e filmes dos ingleses do
grupo Monthy Python. Ele epitomiza também uma região que só pode ser
entrevista segundo o prisma da sátira -- ou da demência.
Romancista, contista, ensaísta, dramaturgo e jornalista, Tchápek nasceu em
1890 e foi, não necessariamente por acidente, conterrâneo e contemporâneo de
Franz Kafka. Traduzido ainda em vida para as principais línguas européias,
ele encarnou perfeitamente o espírito da primeira república tcheca que, com
todos os seus problemas e contradições, era a única democracia entre os

132
estados sucessores da Monarquia Austro-Húngara. Entre outras atividades, ao
traduzir poesia francesa para sua língua, ele deu início, quase sem querer, à
moderna poesia de sua terra, um movimento riquíssimo, cujo último
sobrevivente, Jaroslav Seifert, ganhou o Nobel de Literatura em 84, o único do
país.
Estas "Histórias Apócrifas" --escritas intermitentemente ao longo de vários
anos-- ilustram em miniatura sua obra. Oscilando entre o pastiche e a sátira,
entre a piada e a ironia fina, entre a arqueologia de algibeira e a ficção-
científica, elas atualizam o passado e colocam em perspectiva histórica a
atualidade. Seu anacronismo não poderia ser mais contemporâneo -- e gente
tão diferente quanto Mel Brooks e Umberto Eco têm usado esse mesmo
recurso, mas nem sempre com tanta precisão e elegância.
Os raros livros tchecos que chegaram ao Brasil foram em geral traduzidas de
líguas intermediárias. A presente tradução --do lingüista e eslavista
Aleksandar Jovanovic-- tem não apenas o mérito de ser uma das poucas de
qualquer obra tcheca feitas neste país diretamente do original, como revela
também sua excelência no fato de encarar de frente e resolver problemas que
outras versões --como a inglesa-- ignoraram ou simplesmente omitiram.
Em 1938, quando a Tchecoslováquia faleceu pela primeira vez, Karel
Tchápek, não necessariamente por coincidência, morreu sua única morte.

36) SIGISMUND KRZYZANOWSKI*

**
Apresentação de O MARCADOR DE PÁGINA. SIGISMUND KRZYZANOWSKI. EDITORA 34. 1997.

133
Acompanhando, do cemitério à cidade, um morto insepulto que, embora
insista em continuar andando e falando, apodrece e se enrijece como qualquer
cadáver normal, um coveiro o perde de vista em meio à multidão. Numa época
futura (que, por pouco não é a nossa) em que já se esgotaram todos os demais
combustíveis e a indústria moderna está prestes a estagnar definitivamente,
um cientista descobre como extrair energia da bile, ou seja, do ódio humano.
Temas como estes são o ponto de partida dos contos reunidos em "O
Marcador de Páginas", mas simplesmente resumi-los não dá nem sequer uma
vaga idéia do modo sutil e inusitado como são desenvolvidos.
As informações sobre seu autor, Sigismund Krzyzanowski, são escassas,
imprecisas, não necessariamente confiáveis e difíceis de obter. Ele era russo,
mas seu nome e seu sobrenome (praticamente impronunciável para nós) são
poloneses. Ele teria nascido no final do século passado e morrido em meados
deste, sem ter publicado, em vida, quase nada. De foto ou retrato — nem falar.
Seu redescobridor refere algum verbete equívoco em uma ou outra misteriosa
enciclopédia literária. Não é necessário mais nada para que se reconheça em
sua trajetória uma dessas biografias —não de todo verdadeiras, mas tampouco
inteiramente inventadas-- que proliferam nas páginas de Jorge Luis Borges.
O que torna, porém, o caso em questão um tanto mais complicado é o fato de
que a Rússia do século XX, previamente conhecida como União Soviética,
era, ela mesma, a materialização do universo borgiano e, no seu âmbito,
tornava-se no mínimo temerário rotular de realismo fantástico ou de pura
ficção pura algo que poderia ter realmente ocorrido.
E as narrativas desse russo estão à altura de sua biografia ausente. Seu
mundo é a um só tempo mágico, intemporal e tipicamente soviético. (Como,
aliás, era tipicamente russo o de Gógol e do jovem Dostoiévski.) Após aplicar
às paredes um produto milagroso que ampliaria o espaço entre elas, o
personagem de uma das estórias perde o controle sobre o crescimento
acelerado do quarto que habita. Se a idéia é louca, os 8 m2 do quarto são
rigorosamente moscovitas e a inescapável obsessão com o desconforto, idem.
É justo, portanto, que uma obra assim só tenha vindo à luz recentemente:
como esta não tinha lugar entre os livros compulsoriamente otimistas do
realismo-socialista oficial, o autor rapidamente deixaria de encontrar o seu
próprio entre os vivos. O conto que dá título à coletânea pode, na ausência de
maiores dados sobre sua existência, ser lido como a combinação sintética de
uma autobiografia subjetiva e de uma "arte poética". Seu protagonista é o
"caçador de temas", um escritor sucessivamente rejeitado pelas editoras, que
passa o tempo desenvolvendo oralmente, a partir do que quer que visse por
perto, estórias complexas para a platéia circunstancial de uma praça da

134
capital. E, naquilo que relata ao narrador acerca de como um redator rejeitara
seu textos, é fácil entreouvir o que teria sido dito, mais de uma vez, a
Krzyzanowski em pessoa: "O senhor tem uma pena. Mas uma pena precisa ser
contida por uma caneta, e a caneta, pela mão. Seus contos são...bem, como
vou dizer — prematuros. Esconda-os. Que esperem."

37) WALTER BENJAMIN*

**
Escrito no centenário de nascimento do autor.

135
Vinte anos atrás começava-se a ler um certo Walter Benjamin sobre quem
Theodor W. Adorno escrevera e chegava-se, há dez, a um estranho amigo seu,
especialista em cabala, Gershom Scholem. Em breve, os estudiosos deste é
que descobrirão Benjamin e talvez até se interessem por um tal de Adorno. Há
quinze anos, Benjamin era uma estrela meio excêntrica na galáxia dos
pensadores marxistas e nessa sua constelação reluzente, a Escola de Frankfurt,
pois o marxismo o definia e prestigiava enquanto seu judaísmo era
considerado esotérico. Hoje fala-se menos na sua contribuição ao marxismo
do que no bem (ou mal) que este fez a uma obra que se inscreve, junto com a
de Franz Kafka, Karl Kraus e Elias Canetti, na cultura judaica centro-européia.
Tudo que se considerava central em sua trajetória --ser marxista e escrever
em alemão-- tornou-se contigente; e o que não passava de periférico --a
condição judaica, a marginalidade política e em face do "establishment"
acadêmico, o interesse pela mística, pelo "flâneur" parisiense do século
passado e pelos brinquedos de criança-- é o que garante agora sua relevância.
Ironicamente, se antes ele foi quase marginalizado por ser insuficientemente
marxista, sua reputação anda hoje eclipsada justamente por tê-lo sido em
demasia --o que é, no mínimo, injusto, pois ele em nada corresponde à
tipologia corriqueira dos críticos dessa vertente.
A crítica marxista da literatura em particular e da cultura em geral propôs-se
uma tarefa na qual é difícil perceber atualmente um lapso sequer de nobreza: a
fiscalização e a triagem ideológica de obras e, mais do que isso, de autores. De
modo grosseiro (onde estava no poder) ou relativamente refinado (onde não
estava), distribuiu rótulos de burguês ou proletário, reacionário ou
progressista, facista ou revolucionário, agente do imperialismo ou paladino do
nacional-popular, racionalista ou irracional. O que se espera especificamente
de um crítico autêntico --a descoberta de novos talentos, a compreensão da
literatura de seu tempo, a reavaliação do passado, a mudança dos cânones, a
crítica do gosto vigente etc.-- raramente foi propiciado pela referida tendência.
Ora, Benjamin é esse raro crítico até certo ponto marxista que não apenas se
afinava com o espírito criativo de sua época, escrevendo, em 1929, a favor do
surrealismo e, em 35-36, um ensaio clássico sobre o cinema, como estava na
vanguarda dos estudos literários de então, repensando o barroco na Alemanha
ao mesmo tempo em que Lorca e seu grupo o faziam na Espanha e Eliot e
outros na Inglaterra, chegando mesmo a antecipar em decênios as teorias
vigentes da narrativa e da tradução bem como os estudos sobre o romantismo.
Ele pertence sobretudo a essa categoria ainda mais rara de críticos que
descobrem autores --traduziu Proust, foi amigo de Brecht, escreveu sobre

136
Kafka, Alfred Doeblin e Robert Walser-- muito antes de sua real importância
começar a ser reconhecida.
Sem nunca se rebaixar, em nome de causa ou partido, a censor, ele usou sua
inteligência em prol da imaginação, não de seu cerceamento. Mais que
instigantes formulações teóricas, Benjamin engendrou uma maneira específica
de pensar. Muitos já observaram que nele coexistem uma propensão para o
abstrato e uma visão aguda para fenômenos concretos. Isto porque não
pensava a interrelação de diferentes esferas: vivia de fato nos seus limites e
interstícios. A questão para ele não era a da importância da arte na sociedade
ou vice-versa, mas o ponto onde ambas se tocam. Daí a ênfase que dava à
esfera da produção ao perscrutar não a simpatia do escritor pelo proletário,
mas o ponto nodal onde ele é mesmo proletário, não nas brumas
estratosféricas da ideologia, mas na materialidade de seu fazer.
A verdadeira glória de um crítico, porém, é ser associado menos a idéias
abstratas que a autores concretos e obras, ou seja, efetuar interpretações
importantes o suficiente para serem consideradas um marco na recepção de
determinados escritores, leituras capazes, por exemplo, de mudar sua imagem
corrente. Nessa prova ele passa com louvor. E assim como se pode falar no
Góngora de Dámaso Alonso, no Blake de Northrop Frye ou no Leonardo da
Vinci de Paul Valéry, não há dúvida que existem tanto o Kafka e o Brecht de
Benjamin, quanto seu Baudelaire e, principalmente, sua Paris, "capital do
século 19".

(Folha de S. Paulo, 16/1/94)

38) RAYMOND QUENEAU*

EXERCÍCIOS DE ESTILO. RAYMOND QUENEAU. TRADUÇÃO DE LUÍS CARLOS DE BRITTO


**

REZENDE. IMAGO. 1995

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Pode-se escrever um livro inteiro com uma história banal e desinteressante
que não é, a rigor, nem ao menos uma história? Podem-se escrever cento e
tantas páginas com a simples repetição de dois episodiozinhos idiotas sem que
ao final da leitura se saiba mais a respeito deles, porque não havia mais nada a
se saber? Pode-se fazer disso um livro brilhante, divertido e único? Sim: mas
terá que ser um livro diferente e inesperado.
"Exercícios de Estilo", escrito originalmente em 1947 pelo francês Raymond
Queneau, é esse livro. Sua trama --se é que isso tem alguma importância-- é
simples: o narrador descreve uma rápida altercação num ônibus parisiense
entre dois sujeitos e acrescenta que viu um deles depois, num outro canto da
cidade, recebendo de um amigo conselhos sobre alterações necessárias no seu
sobretudo. Só que essa história irrelevante é repetida, na primeira versão do
livro, 99 vezes de acordo com estilos retóricos, gêneros literários e outras
tantas coisas diferentes.
Essas 99 variações, inspiradas pela idéia da variação musical, não fornecem
ao leitor informações suplementares acerca do que se passou ou de seus
participantes, mas lançam mão de uma gama monstruosamente grande de
recursos literários. Ao lado de exercícios com nomes que são, no mínimo,
exóticos para o não especialista --Litotes, Sínquises, Palavras-Valise,
Apóstrofe-- há outros que podem ser imaginados sem um PhD: Empolado,
Soneto, Gincana Verbal. Todos repetem a mesma coisa, mas, depois da leitura
de apenas alguns, o livro já começa a entremostrar a que vem: de uma forma
assistemática, aliás, verdadeiramente caótica, o livro compendia não
exaustivamente e ilustra no registro de uma sátira peculiar a ossatura sobre o
qual o Ocidente --e provavelmente o Oriente também-- assenta há três mil --ou
mais-- anos a sua imaginação literária.
Em outras palavras, Queneau realiza enquanto literatura imaginativa o que
se espera mais ou menos em vão da maior parte da crítica, história e teoria
literária. E, ao contrário das obras destas últimas categorias, o livro do francês
é, antes de mais nada, legível. Se alguém quer se tornar escritor, o autor em
questão fornece não só 99 modelos do que é escrever como parece igualmente
afirmar, primeiro, que quem não dominar essa capacidade proteica de variar,
de percorrer vários registros não é do ramo e, segundo, que esse domínio
ainda não é o bastante para transformar alguém em escritor. "Exercícios de
Estilo" é, assim, a redução ao absurdo de toda uma idéia da literatura.
Não é difícil achar no mundo --e é muito fácil achar no Brasil-- gente que
acha que uma vez que consiga alinhavar 14 decassílabos (ou alexandrinos),
um atrás do outro, rimados segundo algum esquema padrão, haverá de obter

138
um soneto. Tampouco será impossível encontrar leitores --e até mesmo
críticos-- que digam, por exemplo, que esse soneto resultante é poesia: aliás, a
verdadeira poesia. O livro de Queneau desfaz, provavelmente para sempre,
concepções tão simplistas. Pois há nele uma coisa absolutamente clara: cada
exercício, por mais simples ou complexo, é apenas isso: um exercício. Ele
ainda não é literatura ou, no caso de variações em forma de Ode, Soneto,
Haiku etc., não se trata ainda de poesia. Cada exercício é insignificante e,
dado o teor (ou falta de) da trama, propositadamente idiota. É somente o seu
conjunto que funciona e o salto imaginativo, neste caso, está em transformar
os velhos e complicados manuais de retórica ou estilo, os catálogos de gêneros
e tratados de versificação, em literatura. É essa uma operação que se pode
fazer apenas uma vez, pois se torna em seguida óbvia e redundante, fica fácil.
Mas quem a fez pela primeira vez leva a palma. Por outro lado, uma vez feita
a operação, não há retorno e uma massa literária maior do que se possa
conceber acaba perdendo todo e qualquer sentido. No fundo, esse era mesmo
um dos projetos centrais da modernidade: reduzir a lixo a parcela
desnecessária do beletrismo passado e torná-la, através do ridículo, irrepetível.
Os "Exercícios" são um desafio à crítica. Já que essa em geral não passa
também de um exercício --a paráfrase às vezes reorganizadora do texto
original, a busca de significados ocultos ou latentes que é uma forma de
variação--, o que pode ela dizer de uma obra que se vale de seus próprios
recursos? Pouco ou nada: o livro de Queneau simplesmente prescinde da
crítica literária. Mas ele é um desafio delicioso para o tradutor. As opções e as
encruzilhadas são infinitas. Além de tentar reproduzir aquilo que o autor fez
em francês, o tradutor é implicitamente convidado a, dentro de cada exercício
e no seu conjunto, adaptar, retorcer, perverter as variações segundo ou contra
a natureza de sua língua. Surge, além do mais, a possibilidade de criar novos
exercícios peculiares à língua para a qual se traduz. Umberto Eco fez tudo isso
na sua versão italiana e, na sua tradução excelente, Luiz Rezende faz tanto ou
mais. Numa época em que a prosa nacional sofre de todos os tipos de carência
--falta de idéias, falta de estilo, falta de competência pura e simples-- a
tradução brasileira de Queneau mostra que o problema não é da língua
portuguesa e de suas possibilidades. Se, em anos surgiu uma obra que pode
ajudar nossa prosa a retomar seu melhor caminho, essa é o Queneau de Luiz
Rezende.

(Folha de S. Paulo, 9/11/95)


39) ELIAS CANETTI *

**
Publicado por ocasião da morte do escritor, mas escrito dois anos antes.

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O prêmio Nobel de literatura de 1981 causou espécie ao ser concedido a um
escritor não só desconhecido do grande público como ignorado pelos
principais círculos literários internacionais: Elias Canetti. A nacionalidade é
apenas uma dentre suas muitas estranhezas. Nascido em 1905 em Rutschuk,
na Bulgária, a primeira língua que aprendeu foi uma variante arcaica do
espanhol, o ladino, falado pela família de judeus sefarditas; seus pais, que
haviam estudado em Viena, usavam entre si o alemão --não da Alemanha, mas
da Monarquia Austro-Húngara. Garoto ainda, devido aos negócios da família,
seguiu com os pais para Manchester, onde foi alfabetizado em inglês. O
alemão, a língua em que viria a escrever, ele só aprendeu posteriormente,
quando, após a morte do pai, mudou-se com a mãe para Zurique, Viena e
Berlim. Com a ascensão do nazismo passou a viver na Inglaterra e, depois da
guerra, veio a dividir o ano entre Londres e a Suíça.
Sua obra não é menos peculiar. Antes da guerra publicou um único romance,
"Auto-da-Fé" (1935), parte de um projeto maior, um ciclo inacabado. Décadas
depois apareceu "Massa e Poder" (1960), uma densa investigação sócio-
antropológica das raízes da destrutividade humana. O autor, porém, não era
nem romancista nem sociólogo ou antropólogo. Suas outras obras pertencem a
gêneros estranhos ou transitam nos interstícios dos gêneros convencionais.
Seus três volumes autobiográficos abordam infância e juventude, mas, no
século de Freud, contrapõem-se decididamente ao pensamento psicanalítico.
"Testemunha Auricular" ressuscita e moderniza um gênero, a criação de
"caracteres", praticado, na antiguidade, por Teofrasto e, no "grand siècle"
francês, por La Bruyère. Seus ensaios, "O Outro Processo de Kafka" e "A
Consciência das Palavras", transformam-no num anti-ensaísta preocupado
com temas e autores no mínimo marginais. O relato de sua visita ao Marrocos,
"Vozes de Marrakesch", não é bem um livro de viagem. E seus aforismos,
recolhidos em "A Província Humana" e "O Coração Secreto do Relógio",
embora o inscrevam numa tradição que, de Karl Kraus, passando por
Nietzsche, remonta pelo menos a Lichtenberg, tampouco ajudam a defini-lo
ou delimitá-lo melhor.
Seu traço central talvez seja esse mesmo, a indefinibilidade, pois não são
apenas suas obras mais conhecidas que escapam a classificações simples;
mesmo suas peças de teatro remetem, segundo vários críticos, a uma tradição
distinta, quase desaparecida com o império dos Habsburgos; e seu alemão, ao
que consta, soa estranho aos falantes nativos do idioma. Em suas memórias e
ensaios, ao tratar de seus anos de aprendizado, Canetti não se cansa de
reconhecer possíveis mestres, sobretudo o satirista vienense Karl Kraus,

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Hermann Broch e Franz Kafka. Uma primeira possibilidade seria a de ligá-lo,
então, à literatura dos judeus que escreviam em alemão na Monarquia Dual.
Seus livros, contudo, dispensam o tom elegíaco de muitos desses escritores e
não parecem particularmente preocupados com a questão central do exílio.
Rigorosamente, a um primeiro exame, ele é muito pouco judeu e menos
exilado ainda: o problema de pertencer simplesmente não lhe diz respeito.
E, apesar de escrever ininterruptamente sobre si mesmo, seu trabalho é tudo
menos autocentrado ou egocêntrico, e seus sentimentos mais profundos nunca
vêm à tona. Quanto mais se persegue sua personalidade em seus textos, mais
fugidia ela se mostra. Em seus escritos, Canetti não aparece como uma
personalidade, nem faz de si uma personagem. O que ele deixa entrever, ou
melhor, entreouvir, é uma voz, nem mais, nem menos. Trata-se, entretanto, de
uma voz com timbre e entonação absolutamente particulares, uma voz calada,
como convém a algo que surge da escrita. Discreta, sutil e duradoura, ela
deriva autoridade de sua própria articulação e se impõe ao leitor-ouvinte como
uma segunda consciência, a consciência inescapável de nosso tempo.

(Folha de S. Paulo, 19/8/94)

40) ISTVÁN ÖRKÉNY*

Apresentação de A FAMÍLIA TÖT/A EXPOSIÇÃO DE ROSAS. ISTVÁN ÖRKÉNY. TRADUÇÃO DE


**

ALEKSANDAR JOVANOVIC. EDITORA 34.

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Até o final da Primeira Grande Guerra, a maior parte da Europa Centro-
Oriental pertencia a dois impérios, o russo e o austro-húngaro. Ambas as
construções políticas eram tão intrncadas, tão carregadas de contradições e
contra-sensos, que não chega a causar espanto o fato de tantos autores
modernos dessa região terem se dedicado a uma literatura do absurdo ou do
grotesco. Essa tendência, celebrizada, por exemplo, pelo cidadão de Praga
Franz Kafka ou pelo romeno Ionesco, reforçou-se ainda mais na medida em
que as mudanças históricas subseqüentes patentearam que, nessa "outra"
Europa, todos os tipos de desvario eram mesmo autóctones.
Assim, o que nas duas novelas do húngaro István Örkény pode parecer mais
estranho para o público brasileiro é justamente o que seus leitores originais
reconhecem como familiar. Isso se repete no confronto entre os dois textos,
pois a ambientação urbana e quase contemporânea de a "Exposição de Rosas",
embora beirando a ficção-científica para uma sensibilidade húngara,
assemelha-se mais a uma metrópole brasileira do que o clima provinciano e
arcaico de "A Família Tót", no qual sem dúvida os conterrâneos do autor se
reconhecem.
O que importa, porém, é que ambas as narrativas representam perfeitamente
não só o que de melhor se produziu, no último meio século, na Hungria e nos
países vizinhos, mas também as peculiaridades literárias nativas que, a partir
pelo menos dos anos 60, despertaram a atenção do Ocidente para os autores
que trabalhavam nas terras localizadas, grosso modo, entre a Alemanha e a
Rússia. São a secura específica, o humor corrosivo, a intimidade com os
desastres históricos, a recusa de compromissos fáceis e o desdém pelas
crendices utópicas que se tornaram a marca registrada dos sobreviventes (ou
filhos dos sobreviventes) da guerra, da devastação, do extermínio, dos
expurgos etc.
Ninguém corresponde melhor à definição do sobrevivente do que o judeu,
perseguido tanto por nazistas quanto pelos stalinistas (aliás, não foi por falta
de vontade que os soviéticos e seus satélites deixaram de se transformar em
sinônimo de anti-semitismo máximo, mas pela superior eficiência e
determinação dos alemães), e o intelectual independente. Örkény se incluía em
ambas as categorias, o que torna representativa sua trajetória.
Filho de um farmacêutico, ele formou-se engenheiro químico e publicou
suas primeiras estórias, na década de 30, na revista "Szép Szó", de orientação
socialista independente (ou seja, desvinculada de Moscou), que tinha entre
seus editores o famoso historiador das "democracias populares" François
Fejtö. Quando seu primeiro volume saiu, em 1941, a guerra já havia começado

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e o autor, convocado, sendo judeu, seria em breve enviado à frente russa (a
Hungria se aliara à Alemanha) não como combatente, mas num batalhão de
trabalhos forçados. Prisioneiro de guerra na URSS, ele conheceria a fundo a
vida nos campos russos de concentração e viria a descrevê-la num livro e
tematizá-la em vários contos. Seu apoio à revolução húngara de 1956
resultaria num silêncio forçado de vários anos, com a proibição de publicar e
uma mal-sucedida tentativa de se adaptar ao compulsório modelo realista-
socialista, com herói positivo e todo o restante.
Sua principal produção começa no decênio seguinte e compreende contos,
novelas, peças de teatro e uma contribuição particular à criação de um novo
gênero: o que ele chamou de "contos de um minuto", ou seja, estórias
instantâneas, freqüentemente brevíssimas, que borravam os limites entre a
prosa e a poesia, a ficção e a notícia, recorrendo inclusive ao "object trouvé".
A este período pertencem as duas novelas que seguem. Uma delas, "A Família
Tót", existe também em versão teatral do próprio escritor, e as duas já contam
com traduções para o inglês e o francês.
O pano de fundo de ambas é, obviamente, a morte e tudo o que se faz para
evitá-la ou apressá-la. Desnecessário dizer o quanto de distanciadamente
irônico há na atitude do escritor em face dos percalços de seus personagens.
Outra de suas características centrais é a sutileza, tudo o que se diz ou se
insinua nas entrelinhas. Vale a pena prestar atenção à maneira como o
narrador de "A Família Tot" se refere aos judeus da cidadezinha. Eles
simplesmente não estão mais lá --sabemos que já foram deportados e, talvez,
exterminados--, mas o texto fala apenas, inocentemente, de um cinema ou de
uma casa que pertenciam a tal ou qual pessoa, mencionando um nome judeu,
sem sequer indagar sobre seu desaparecimento, e isto não por vileza, só por
ver o fato como ligado menos ao mundo dos homens que ao reino da natureza.
Os textos do presente volume foram traduzidos diretamente do original
húngaro pelo lingüista, ensaísta e tradutor Aleksandar Jovanovic, responsável
por uma excelente antologia de poesia sérvia moderna, pela tradução do poeta
iugoslavo Vasko Popa e do romancista Milorad Pavic, entre outros. Trata-se,
sobretudo, de uma continuação do trabalho de divulgação no Brasil da
literatura húngara, inciado há meio século por Paulo Rónai que, nas suas duas
antologias de contos magiares, apresentou em português os melhores autores
clássicos e modernos de seu país de origem, chegando ao limiar da atualidade
com um conto de Tibor Déry, contemporâneo mais velho de Örkény. Ao
iniciar com este último nossa coleção, acreditamos estar abrindo para o
público nacional uma janela verdadeiramente cosmopolita para um filão
riquíssimo da imaginação contemporânea.

143
41) LÉVI-STRAUSS*

**
OLHAR ESCUTAR LER. CLAUDE LÉVI-STRAUSS. TRADUÇÃO DE BEATRIZ PERRONE-
MOISÉS. COMPANHIA DAS LETRAS. 1997.

144
Ponto de partida: uma abordagem minuciosa das telas de Poussin, onde se
discute como o pintor francês tratara a expressão "Et in Arcadia Ego". Ponto
de chegada: os significados distintos, atribuídos por duas tribos do Alasca, aos
mitos acerca das relações entre um chefe e a estátua de sua mulher morta.
Entre esses pontos, percorre-se um caminho balizado pelo esmiuçamento de
certa nuance musical numa ópera de Rameau; por algumas pinceladas a
respeito da memória em Proust; pelo modo como as teorias de um músico e
musicólogo do Antigo Regime antecipam a lingüística saussuriana; pelas
idéias estéticas de Rousseau e Diderot; por Delacroix antevendo os fractais;
pela análise estrutural do soneto das vogais de Rimbaud (informada, aliás,
pela neurofisiologia da percepção visual); por cartas trocadas entre o autor e o
fundador do surrealismo, André Breton; pela, digamos assim, mitopoética da
arte arcaica da cestaria; e muitos etcs.
Se o leitor imagina que se trata de uma paráfrase do final do "Ulisses"
joyceano, com Molly Bloom em pleno monólogo interior depois de deixar
uma festa beatnik dos anos 50 devidamente possuída pelo espírito do
chapeleiro louco de "Alice no País das Maravilhas" -- isso é porque não há
como lhe demonstrar aqui a coesão, a coerência e o brio do "tour de force" em
questão, exceto, talvez, esgrimindo o nome do responsável: o antropólogo
francês Claude Lévi-Strauss.
Quem já tenha lido algo daquele que é hoje o maior intelectual vivo, estará
propenso a aceitar que, além de ter percorrido o trajeto acima, ele, de resto,
conseguiu apresentá-lo num livro eminentemente legível, inclusive para os
não (inteiramente) iniciados. O que se pode acrescentar? Ah, sim: que,
conjugando das mais diversas maneiras pintura, música e literatura, a obra é
uma reflexão, ao mesmo tempo pessoal e teoricamente impecável, sobre a
arte.
"Olhar Escutar Ler" não pode, a rigor, ser parafraseado e seu resumo, num
estilo necessariamente mais pobre que o do autor, acabaria ocupando páginas
e páginas além das exíguas cerca de 150 do original. A tentação, portanto,
seria de dizer que o livro encapsula uma espécie de súmula do pensamento
lévi-straussiano, isto é, que poderia ser lido como um testamento. Mas
ninguém escreve um testamento assim. E o texto representa tanto a
culminação de várias preocupações quanto a inauguração de inúmeras outras.
Poder-se-ia dizer que este ensaio amalgama décadas (serão séculos?) de
observação aguda com uma curiosidade e um apetite juvenis. Mas há muito
tempo que os inapetentes jovens parecem ter abdicado da curiosidade.

145
Descendo às minúcias da linguística estrutural ou observando o painel de
toda a história humana; transitando sem qualquer embaraço do "grand siècle"
de Racine e Corneille à idade média japonesa de Zeami (o
fundador/codificador do teatro Nô), da tetralogia wagneriana aos mitos
guaranis, da "Encyclopédie" a Marcel Duchamp -- Lévi-Strauss aplica aos
problemas conjugados da essência, natureza, função individual e social,
origem e avaliação das artes sua perspicácia proverbial de decifrador de
enigmas, mostrando claramente que o assunto delas é estabelecer relações e,
indo mais além, revelando como elas o realizam e, afinal, que relações são
essas.
Num tempo em que as disciplinas humanísticas vêm se degradando nos
bocejos pomposamente herméticos das politicagens departamentais ou dos
micro-sensacionalismos midiáticos, deveria ser um choque saudável para
todos contar com um despertador capaz, como esse, de anunciar a grande
notícia do dia, ou seja: a de que há muito trabalho a fazer. Lévi-Strauss
continua a fazê-lo.

(Folha de S. Paulo, 25/3/97)

42) KOBO ABE*

**
Prefácio a A MULHER DAS DUNAS. KOBO ABE. 1995.

146
Eu tenho um pequeno pesadelo recorrente. Na realidade tenho vários, mas
vou me deter neste. Embora esteja tentanto telefonar, não consigo jamais
completar a ligação, pois sempre erro um dos dígitos no teclado, o penúltimo
ou o antepenúltimo. Nunca se trata de uma chamada essencial, de uma questão
de vida ou morte. Ainda assim, a cada tentativa frustrada, minha irritação
cresce e, durante o sono, especulando sobre as causas, começo a pensar em
eventualidades incômodas como a senilidade precoce ou até mesmo a
demência. Por que estou, afinal, falhando numa tarefa tão simples quanto a de
teclar sete botões corretamente? Não que depois eu acorde taquicárdico,
banhado em suor -- longe disso. É um consolo, porém, sair desse labirinto
digital de equívocos inevitáveis.
A lógica do pesadelo --quem negaria o que há de sistemático em seu
desdobramento?-- tem sido o ponto de partida para muitos livros e filmes,
sobretudo de suspense ou horror. Em geral, são tanto mais eficientes e
realizados quanto menos elementos estranhos e desnecessários interfiram na
sua trama. Um engano minúsculo, uma obsessão, insignificante no início,
contra o pano de fundo da familiaridade corriqueira, constituem a semente
recôndita das experiências mais aterrorizantes. Os melhores filmes de terror,
por exemplo, raramente recorrem à parafernália dos efeitos especiais.
Na história de Niki Jumpei, o autor Kobo Abe segue a lição dos mestres do
gênero. Um entomólogo amador --professor nos dias úteis-- aproveita seus
três dias de licença para procurar insetos estranhos nas dunas de uma região
distante do Japão. E acaba caindo numa armadilha preparada pelos aldeões do
lugar, que o induzem a trabalhar praticamente como seu escravo, enchendo
baldes e baldes de areia o dia todo, todos os dias, numa imensa depressão ou
cratera arenosa da qual simplesmente não há saída. Em outras palavras, ele é
capturado num pesadelo. (Depois de quase ter tido uma síncope escalando
uma duna em Natal, onde cada passo para cima só me fazia afundar mais os
pés na areia escaldante e deslizar para baixo, posso, no mínimo, garantir que
as descrições do autor são suficientemente realistas.)
Não estou cometendo o pecado --indesculpável num prefácio-- de entregar a
trama ou, pior, seu desenlace, pois logo nas primeiras páginas o romancista
anuncia que seu personagem desapareceu há mais de sete anos e foi declarado
legalmente morto. Tampouco, ao abordar o aspecto de pesadelo do livro, estou
dando mais que uma vaga noção do seu clima. A habilidade de Abe
transcende de muito a requerida por uma simples história de terror. Esta não
passa de um dos múltiplos recursos de sua narrativa. Que, por outro lado, o
terror permaneça sem empalidecer, estreitar ou condicionar todo o resto, isso

147
já é uma realização acima do que normalmente se espera -- e combina
perfeitamente com uma prosa cujo estilo, abrindo mão da pirotecnia dos
efeitos superficiais, opta decididamente, em sua limpidez, por quanto há de
imperceptível numa organização complexa.
Como é que age o escritor? Não me parece absurdo supor que tenha
articulado seu tema e sua trama sob influência de "A Metamorfose" de Kafka.
Os problemas que, nesta, Gregor Samsa enfrenta são interessantes devido a
uma idéia simples que não é a de sua transformação num inseto, mas sim a
investigação de tudo o que acontece se esse fato for abordado de uma forma
mais ou menos corriqueira. Colocada em terminologia contemporânea, a idéia
que pôe em movimento a fábula kafkiana consiste na recusa em desenvolver
sua premissa como ficção científica --"A Mosca da Cabeça Branca" ou algo
parecido--, dando-lhe, pelo contrário, um tratamento naturalista. Simples, sem
dúvida, mas surpreendentemente eficaz.
O protagonista de Abe é um entomólogo, ou seja, lida com insetos. E,
conforme a situação piora, ele mesmo se vê reduzido à condição de inseto
preso e manipulado em suas ações, pensamentos, instintos. Seus captores,
prevendo facilmente todas as suas reações prováveis, tratam-no como um ser
biologicamente inferior na escala evolutiva. Consequentemente, seu interesse
por esses bichos repelentes decresce à medida que sua entomologia, tomando
o sujeito como verdadeiro objeto, transforma-se numa espécie de auto-análise.
Sob seu próprio olhar, ele se torna, para todos os efeitos, um inseto, mas um
inseto autoconsciente em termos científicos. O próprio ambiente o obriga a
tanto, pois, além do instinto copulatório básico, só lhe restam duas
preocupações: areia e sua contrapartida, a água. Um dos subtítulos da obra
poderia ter sido: "Tudo que Você sempre (ou nunca) Quis Saber sobre a
Areia".
O inseto-sapiens, contudo, não perde sua humanidade essencial. Esta, pelo
contrário, reafirma-se não na gama --agora inacessível-- de preocupações
civilizadas, mas na variedade de maneiras que ele encontra para se ocupar das
poucas coisas que objetivamente lhe restam. Tal variedade dá espessura a uma
trama aparentemente rala, caracterizada pela escassez de elementos. A
decorrência é uma focalização dos detalhes, uma imersão no emaranhado de
suas interrelações. Algo, enfim, como imergir na areia movediça, mantendo-se
concomitantemente atento à estrutura de cada um de seus grãos, sem que, no
entanto, essa operação se torne obsessiva.
Há mais outra fonte possível para a história. Trata-se do livro bíblico de
"Jó", que narra o que sucede a um homem reto e justo quando o Senhor,
instigado pelo demônio, submete-o a uma sucessão de desgraças cada vez
piores para testar a tenacidade de sua fé. O ponto alto do relato é o diálogo do

148
protagonista com seu Senhor que, invisível, dirige-se a ele de dentro de um
torvelinho. O paralelo entre "A Mulher das Dunas" e o texto bíblico se
justifica não só porque, num certo momento, Niki Jumpei dialoga com uma
voz --advogado, promotor, juiz ou todos juntos?-- que vem da neblina, mas
também porque "Jó" subjaz a toda a obra kafkiana, especialmente a "O
Processo". Uma diferença, todavia, se impõe: é nesse colóquio que o livro de
Abe patenteia um lado, se não humorístico, pelo menos humorado e
seguramente irônico. Se seu protagonista passa por tormentos dignos de um Jó
de câmara, ele tampouco deixa de encará-los --como indica o crítico
americano J. Thomas Rimer-- com o espírito especulativo de um Robinson
Crusoe.
Kafka, a Bíblia, Daniel Defoe. O que é que Abe quis dizer ao se inspirar
nesses modelos? Um homem confinado, sem explicação ou apenas com
explicações ridiculamente utilitárias e exteriores à sua condição: não se trata
obviamente de uma metáfora do totalitarismo? Alguém que entra distraído
numa situação que o modifica inteiramente, um entomólogo em situação de
inseto: não seria isto uma alegoria do amor, um perverso "transforma-se-o-
amador-na-coisa-amada"? Um homem que, atraído por uma mulher, revolta-
se contra as forças superiores que dispôem dele a seu bel-prazer: uma óbvia
parábola acerca da condição humana? Metáfora, alegoria, parábola: todas
essas leituras ou interpretações são claramentes plausíveis, embora não sejam
muito importantes. O que conta é que, na sua coerência narrativa, na escolha
certeira de minúcias pertinentes, no equilíbrio dinâmico de sua economia
interna, o texto permite todas, além de inúmeras outras.
Não são, contudo, estranhas essas referências --ou, ao menos, a
possibilidade de supô-las-- num romance japonês? Não seriam, por assim
dizer, "idéias fora do lugar"? Afinal, às vezes, os únicos detalhes capazes de
lembrar que o livro se ambienta no Japão são algumas peculiaridades
alimentares --arroz, peixe etc.-- e uma ou outra menção a kimonos. Caso
fossem suprimidas, o romance continuaria igual. As dunas do autor poderiam
estar no deserto do Saara ou no litoral do Rio Grande do Norte. Sem dúvida,
uma crítica mais minuciosa e especializada encontraria aqui, em
entrelaçamentos sutis e continuidades secretas, traços da grande tradição
literária japonesa. Em tradução, porém, o livro é um puro destilado de outra
tradição, a do modernismo não apenas ocidental mas, a esta altura,
internacional. Ele é uma prova evidente não só de quão internacional se tornou
esse modernismo, mas de quão abrangente tem sido a modernização japonesa,
já que é capaz de exibir uma realização como esta.
A vida e a carreira do autor são típicas de tal processo. Nascido em 1924, ele
cresceu longe da terra natal, na Manchúria. De volta ao seu país, professou

149
inicialmente o marxismo ao mesmo tempo em que alcançou a fama como um
dos líderes do teatro de vanguarda. O presente romance, escrito em 1962,
pertence a uma fase posterior, pós-marxista. No ano seguinte foi filmado com
sucesso por Teshigahara Hiroshi e transformou-se num dos produtos célebres
da única cinematografia não-ocidental a se tornar universalmente conhecida e
reconhecida não só em cineclubes e através de diretores isolados, mas em
bloco, no circuito comercial. Os paralelos entre a divulgação mundial do
cinema e da literatura do Japão --detentora esta de dois merecidos prêmios
Nobel-- falam por si.
Isso tudo dito, como é que fica o pesadelo inicial? Já me ocorreu de,
acordado, discar ou digitar um número errado. Tendo em vista o
congestionamento de nossas linhas telefônicas e a obsolescência de nossos
equipamentos, é desnecessário recorrer à demência ou à senilidade para
explicar tal equívoco. Não é descabido imaginar que, num desses enganos, eu
poderia acabar sem querer contatando um(a) interlocutor(a) para o/a qual até
queria ligar, mas cujo número, como de hábito, havia anotado numa folha
solta e, obviamente, perdido. O pesadelo começaria a se transformar em algo
diferente, numa conversa não tanto assustadora quanto potencialmente
interessante. Como seria essa conversa? Nas páginas que seguem, Kobo Abe
nos responde.

ABRIL/1995

43) CABRERA INFANTE

150
Os jogos de palavras são, na literatura, um recurso cujo prestígio oscila
segundo a alternância dos padrões de gosto. Às vezes estão em alta; outras, em
absoluta baixa. O problema, contudo, não está no trocadilho em si, mas no uso
que se faz dele e, sobretudo, na sua qualidade. Os trocadilhos (desculpem-me
o trocadilho) abundam na fala do dia a dia e, por isso, são, em sua maioria,
banais ou infames. Um jogo bem feito de palavras é raro e, quando funciona,
quase sempre aponta para o cômico.
Essa questão é relevante no caso de Guillermo Cabrera Infante. Pois o
cubano exilado em Londres, além de ser um dos maiores prosadores hispano-
americanos, um dos melhores estilistas que a língua espanhola já teve e o
principal e mais ácido dissidente da ditadura castrista, é reconhecido também
como o grande gênio cômico das letras contemporâneas em qualquer língua.
A obra de Cabrera Infante (nascido em 1929, em Havana) não se restringe,
é claro, aos jogos de palavras. Seu tema central poderia ser definido como
uma ininterrupta evocação memorialística do que era Cuba ou, mais
precisamente, sua capital, antes de Fidel (e não o tão decantado bloqueio
americano) reduzi-la aos escombros de um sistema falido, atrelando-a à finada
URSS. Ele celebra o lado bordel tropical da ilha, algo que julga, no mínimo,
mais divertido do que o Gulág soviético de seus últimos quase quarenta anos,
fazendo-o, além disso, segundo o ponto de vista de alguém que passou parte
substancial da infância e juventude diante de uma tela de cinema. Ambos, o
cinema e a velha Cuba, convergem nos seus dois grandes romances: "Três
Tristes Tigres" (1964) e "Havana para um Infante Defunto" (1979).
Saltam aos olhos, nestes e em seus outros livros, a ironia e o sarcasmo que
se materializam em trocadilhos incontidos, ininterruptos e perfeitos. Seus
títulos mesmo, como "Havana para um Infante Defunto" ou "Mea Cuba" (seu
livro, de 1993, de ensaios literários e políticos), já são jogos imbatíveis —e, o
que é mais difícil, adequadíssimos— de palavras respectivamente com a
"Pavana para uma Infanta Defunta" de Maurice Ravel e com a expressão
latina "mea culpa".
O texto de "Mea Cuba" em que traça uma rápida biografia comparada dos
dois grandes "gays" da literatura cubana, José Lezama Lima e Virgílio Piñera,
leva o nome de "Vidas para Lê-las", remetendo às "Vidas Paralelas" do
biógrafo clássico Plutarco. Quando, em "Holy Smoke" (1985, sua história
escrita originalmente em inglês da única coisa que ele e o ditador têm em
comum, ou seja charutos — e cujo título não quer dizer "fumaça sagrada"),
fala da bula papal que proibiu o uso do tabaco nas igrejas, ele a chama de
"raging bull", "bula enfurecida", mas também "touro enfurecido", o nome
original do filme de Scorcese que passou no Brasil como "Touro Indomável".

151
Esses são apenas alguns dos exemplos que vêm à memória e as páginas do
cubano estão repletas deles. O que de fato assombra é que sempre funcionam.
Quando se constata, contudo, quão desesperadamente escritores em toda parte
tentam ser espirituosos sem consegui-lo, ou quantos outros há que, despidos
de senso de humor, tornam-se personagens involuntários do humor cujos
autores pensavam ser, é que fica patente que o talento e os recursos de Cabrera
Infante, sem pertencer a regra alguma, são uma espécie raríssima de exceção.

(Folha de S. Paulo, 7/10/97)

44) A ÍNDIA DE NAIPAUL*

**
ÍNDIA: UM MILHÃO DE MOTINS AGORA. V.S.NAIPAUL. COMPANHIA DAS LETRAS. 1997.

152
V.S. Naipaul, um dos maiores autores contemporâneos de ficção em inglês,
nasceu em 1932, em Trinidad, neto e bisneto de imigrantes indianos que
deixaram o subcontinente natal nas últimas décadas do século 19, e vive
atualmente na Inglaterra. Com esse "background" não é de estranhar que o
tema central de seus romances e contos sejam as ambiguidades e as
contradições, as falsas esperanças e os fracassos reais, a corrupção e a
violência em que vivem imersas as nações pós-coloniais do Terceiro Mundo.
O modo como tratou esses temas tanto em seus romances e contos quanto
em sua obra de não-ficção serviu para que muitos o caracterizassem, no
mínimo, como conservador e, no limite, como um traidor da causa anti-
imperialista. Um caso típico é o do palestino cristão radicado nos EUA,
Edward Said, que chamou Naipaul de algo que, em tradução livre, soaria
como "preto de alma branca". Até mesmo gente mais talentosa, no entanto,
embarcou nesse tipo de crítica. Por exemplo, quando Naipaul publicou seu
brilhante relato analítico de uma viagem feita, na virada dos anos 70/80, a
quatro países islâmicos, "Among the Believers" (Entre os Crentes), um
resenhista reprovou-o pela sua visão etnocêntrica e preconceituosa do país dos
aiatolás, o Irã. Curiosamente, quem assinava essa resenha era ninguém menos
que Salman Rushdie, ele mesmo condenado, alguns anos depois, à morte pelo
aiatolá Khomeini devido a um livro que o líder iraniano considerara blasfemo
e sacrílego.
"Índia, Um Milhão de Motins Agora", uma narrativa minuciosa de repórter-
romancista, escrita entre 88/90, corresponde em boa parte ao que os detratores
esperariam de Naipaul. Em suas mais de 500 páginas (na edição inglesa), o
autor retrata os dilemas, conflitos, rupturas e outros problemas variados que
assolam e dilaceram a terra de seus ancestrais. Retomando um livro anterior,
dos anos 60, "India, a Wounded Civilization" (Índia, Uma Civilização Ferida),
o escritor procede, segundo seu método próprio, do particular ao geral,
elaborando um imenso mosaico a partir de pequenas unidades, geralmente
diálogos com diversos interlocutores, entremeados de descrições e acrescidos
de um mínimo de comentário.
A Índia é todo um continente, com uma população mais numerosa que a das
Américas, onde se falam cento e tantas línguas e praticam-se, a sério, várias
religiões subdivididas em numerosas seitas. Para complicar o quadro, muito
do antigo sistema de castas continua funcionando. Cada qual dessas linhas
divisórias --idiomáticas, étnicas, religiosas, sociais etc.-- é razão
suficientemente para conflitos potenciais, muitos dos quais já se realizaram ou
seguem se realizando, como o terrorismo dis sikhs, as disputas sangrentas

153
entre hinduístas e muçulmanos, as reivindicações de autonomia dos povos
dravidianos do sul do subcontinente etc. Não é só isso, porém. A Índia é
também uma nação em rápido crescimento econômico, a maior democracia
eletiva do planeta (embora obviamente imperfeita), uma civilização cada vez
mais urbana...
Ouvindo o que têm a dizer, em cidades como Bombaim ou Madras,
hinduístas e brâmanes, muçulmanos e sikhs, tamiles e bengalis, motistas de
táxi, homens de negócio, políticos, poetas, cineastas, jornalistas ou
funcionários públicos, Naipaul monta devagar o seu mosaico para chegar,
depois, a algumas conclusões que estão meio na contracorrente do que se está
habituado a ouvir.
De acordo com ele, a Índia, com suas intermináveis querelas interiores entre
reinozinhos impossíveis, infinitamente subdividida em castas e assolada pela
conquista islâmica de sua metade setentrional já estava em plena decadência
quando os ingleses começaram a conquistá-la no século 18. A ocupação
britânica --contra a qual eclodiu, em meados do século passado, o grande
"Motim" a que o título faz referência-- foi uma humilhação inominável mas,
concomitantemente, transformou uma civilização estilhaçada numa nação
relativamente coerente e viável.
Quem quer que veja no complexo processo de interação entre povos e
culturas rotulado simplisticamente de colonialismo apenas um mal absoluto
perpetrado contra populações idealizadas, só poderá ver nessas conclusões
uma abominação. Talvez sejam, talvez não. Mas derivam de um quadro muito
mais rico, instigante e complexo do que aquele que é apresentado, em branco
e preto, segundo os dogmas corriqueiros.

(Folha de S. Paulo, 8/2/97)

154
45) A.B.YEHOSHUA *

O título do novo romance do escritor israelense A.B.Yehoshua é falso, ou


melhor, enganosamente verdadeiro, pois não há apenas um Sr. Máni, mas
muitos, numa linha reta (não necessariamente contínua) que, regressiva, leva
de Roni Máni, nascido em 1983, até Eliahu Máni, morto em 1807. E o próprio
romance é menos uma narrativa que uma série de monólogos, ou melhor, de
diálogos onde se ouve apenas uma voz (de cujos titubeios, hesitações etc.
infere-se algo da outra) tentando, obsessiva, durante um tempo limitado,
contar, sem entendê-la de todo nem conseguindo sempre concluí-la, uma
história complexa e confusa a um interlocutor que serve também de advogado,
promotor e juiz.
Os monólogos a dois ou diálogos a um ocorrem em Israel, 1982, Creta,
1944, Jerusalém, 1918, Polônia, 1899, e Atenas, 1848, e com exceção do
último (cronologicamente o primeiro), cuja voz pertence a um Máni, são
levados a cabo por pessoas que travaram um contato breve porém decisivo
com uma ou mais gerações dessa família. Através do que dizem,
respectivamente, uma jovem egressa de um kibutz sobre o pai de seu
namorado, um oficial nazista sobre sua vítima, um promotor militar judeu do
exército britânico sobre seu réu, um médico sionista sobre seu anfitrião em
Jerusalém, e um pai sobre si e seu filho, delineiam-se, cheios de incertezas e
de assustadoras simetrias, mais de dois séculos da vida não tanto de uma
família judia sefardita (os sefarditas são, simplificadamente, os judeus
mediterrâneos, contrapostos aos ashkenazis, habitantes da Europa centro-
oriental), como de sua linhagem masculina.
Dizer que se trata de uma desconstrução da narrativa tradicional, seja a do
romance histórico, seja a das sagas familiares, inverteria a operação do texto,
pois o que o autor faz é, constatando que são as questões do presente que
dirigem o interesse para passados cada vez mais remotos, tentar
mimeticamente apresentar os fatos como eles costumam ser transmitidos em
toda parte --exceto nos romances realistas e nas reconstruções historiográficas.
Ele acompanha, aliás, o esforço malogrado de cada voz para se tornar uma
verdadeira narradora de uma histórica coerente. Que haja, no correr de mais de
duzentos anos, tanto lacunas e mistérios quanto coincidências absolutamente
inverossímeis, surpreenderá somente àqueles que procuram não realidade na
ficção, mas coerência na realidade.
Como não poderia deixar de ser, conforme o livro avança dos enigmas de
1982 para os mistérios de 1848, retorna-se, num nível, às origens, e
**
O SR. MÁNI. A.B.YEHOSHUA. TRADUÇÃO DE NANCY ROZENCHAN. IMAGO. 1991.

155
redescobre-se, em outro, o pecado original, raiz possível da maldição dos
Máni, isto é, as propensões suicidas ou auto-destrutivas que os sucessivos
observadores verificam ou das quais suspeitam. O mimetismo narrativo de
Yehoshua chega ao virtuosismo de adequar à sua devida época o estilo e,
sobretudo, a trama de cada uma das conversas, de modo que a mais recente é
uma novela pós-existencialista cuja narradora busca e de certa forma
reencontra, no mundo desconexo da cidade grande, seu pai morto, enquanto a
mais remota, na melhor tradição de um romantismo "noir", envolve amores
não correspondidos, um assassinato não resolvido e paixões incestuosas.
O romance como um todo transita entre a subjetividade mais psicológica e a
objetividade histórica mais documentada, ciente, por um lado, que estas são as
margens não transbordáveis do que tem a contar e, por outro, que elas são, no
mínimo, impenetráveis e, no limite, ininteligíveis. Coloca-se, assim, na zona
crepuscular onde se constrói a individualidade, acima da indiferenciação
inconsciente e abaixo da despersonalização coletiva, insinuando, contudo,
uma continuidade, de geração em geração, que não se explica nem pela
genética (pesam dúvidas sobre a legitimidade de pelo menos um Máni, o que
basta para romper a cadeia cromossômica), nem pela influência direta (já que
um Máni não conheceu o pai e outros perderam cedo os seus). Pode-se até
dizer que, afinal, amalgama-se, a partir das vidas de seus ancestrais e
descendentes, um único Sr. Máni supratemporal --mas isso não passa de uma
interpretação, entre tantas outras possíveis.

(Folha de S. Paulo, 1991)

46) MICHAEL ONDAADTJE*

**
O PACIENTE INGLÊS. MICHAEL ONDAADTJE. EDITORA 34. 1994.

156
Uma das características nunca suficientemente enfatizadas da Segunda
Guerra é quão mundial ela foi de fato. É por isso que quatro personagens de
origens tão diferentes quanto o paciente inglês, a enfermeira canadense, o
ladrão italiano e o perito em explosivos indiano podem se encontrar numa
vila, ao norte de Florença, em 1945, no romance de um poeta cingalês
educado na Inglaterra e radicado no Canadá. A trama de "O Paciente Inglês"
de Michael Ondaatje, ganhador do prestigioso Bookers Prize, é mínima, ocupa
poucos meses, envolve a obsessão de uma enfermeira por seu último doente,
um reencontro e uma breve história de amor. O resto são conversas e
memórias.
Hana, com apenas 20 anos, já havia cuidado de um sem número de soldados
moribundos, mas por alguma razão, quase no final da guerra na Europa, ela se
apega a um paciente cuja identidade ninguém consegue descobrir, todo
queimado e desfigurado num acidente aéreo ocorrido no deserto africano.
Quando a Vila San Girolamo, que servia de hospital, é abandonada, ela se
recusa a deixá-la e fica lá sozinha com o homem sem nome, fraco demais para
ser transportado. David Caravaggio, ladrão que pusera suas habilidades
específicas a serviço dos aliados e, na qualidade de espião, fora preso e
mutilado, está se recuperando num hospital --onde se viciara em morfina--
quando fica sabendo do paradeiro da moça, filha de um amigo seu, morto em
combate na França. E vai ao seu encontro, preocupado com sua segurança,
pois a região havia sido minada de explosivos pelos alemães que se retiravam.
Pouco depois, Kip, um jovem sikh oriundo do Punjab, oficial do exército
britânico e perito em desarmar minas chega ao local para realizar seu trabalho
e acaba se juntando aos outros três.
O paciente e o ladrão, em maior ou menor grau, são pessoas fisicamente
destruídas pela guerra. Hana, por sua vez, só permanece incólume em termos
físicos. Kip, no entanto, parece saudável de corpo e alma e sai alegre toda
manhã para desarmar mais uma mina que pode, obviamente, explodir nas suas
mãos. Para ele, a guerra vinha sendo a grande oportunidade de descobrir a
civilização européia, materializada na arte italiana, sobretudo nos afrescos das
igrejas pelas quais passou com as tropas aliadas que subiam a Itália rumo ao
norte. Essa civilização reservava-lhe, porém, outras surpresas. Ainda assim,
conforme os personagens aparecem, não é só para o leitor que eles são
estranhos: eles ou não conhecem a si mesmos ou, afogados nos
acontecimentos, esqueceram quem eram. No convívio comum, a redescoberta
se opera através da memória. No entrechoque de várias memórias, os fatos
começam a se tornar inteligíveis e emergem as identidades.

157
No decorrer da história, essas personagens etéreas, apresentadas de uma
maneira quase abstrata, vão adquirindo concretude e os fios tênues das
lembranças tranformam-se primeiro num esboço e, aos poucos, em desenhos
complexos. Há engenho, sem dúvida, no modo como o emaranhamento dos
distintos fios individuais resulta não em confusão, mas numa claridade cada
vez maior. E há elegância na descrição de vários tipos de minúcias que vão da
distinção detalhada das várias espécies de ventos do deserto ao trabalho
penoso de inutilizar uma mina.
"O Paciente Inglês" não se encaixa facilmente num gênero fixo e, na
realidade, percorre vários com virtuosismo, revelando-se sucessivamente
romance psicológico, de guerra, de aventuras e de espionagem. Mas talvez o
que seu autor tenha de mais original seja mesmo uma maneira particularmente
oblíqua de narrar, de dispor seu material. Quando se inicia uma nova seção é
difícil às vezes saber de quem o narrador está falando, em qual das quatro
cabeças está se delineando um determinado episódio ou uma sensação
qualquer. A exposição --vazada numa prosa cuja limpidez clássica faz passar
quase despercebidas imagens pouquíssimo convencionais- não é linear ou
discursiva. Pelo contrário, em cada capítulo, seção ou parágrafo, materiais
aparentemente desconexos se acumulam até que, num momento
imperceptível, tudo o que foi exposto toma uma forma definida e começa a
fazer sentido.
Idêntico princípio articula o romance inteiro. Assiste-se nele, assim, menos à
elucidação de um mistério do que à construção de um panorama
tridimensional. A curiosidade do leitor tende a se dirigir, portanto, não a uma
resposta para cada indagação, mas à avaliação do papel ou lugar desta numa
conversa que, espiralada em vários planos, espraia-se pelos teatros da guerra e
mergulha num passado anterior e diferente. Fascinado por um conflito cuja
geografia é tão variada quanto a sua própria, Ondaatje criou através de seu
microcosmo um romance que, na babélica literatura que a Segunda Guerra
ensejou nos últimos 49 anos, se destaca tanto pelo ineditismo de seu enfoque
quanto por ter conseguido escapar à maioria de seus infinitos clichês.

(Folha de S. Paulo, 1/5/94)

47) A REVOLUÇÃO SEXUAL*


**
WHAT WILD ECSTASY - THE RISE AND FALL OF THE SEXUAL REVOLUTION. JOHN
HEIDENRY. SIMON & SCHUSTER. NOVA YORK. 1997.

158
No começo estão as investigações de um médico no interior dos EUA, o dr.
Alfred C. Kinsey, cujos primeiros resultados, publicados em 1948, revelavam
que a realidade da vida sexual dos machos norte-americanos destoava
chocantamente da imagem oficial. Logo depois, outra dupla de médicos
interioranos, os drs. Masters e Johnson, começam a estudar a fisiologia do
orgasmo feminino, filmando, inclusive, um ao vivo e por dentro.
Em seguida vêm as estatísticas mostrando que, década a década, a idade da
iniciação diminuía e a rotatividade dos parceiros, para ambos os sexos,
aumentava. Chegam, com os anos 60, a pílula, a "Women's Lib", o ativismo
gay e o movimento hippie. Em 1973, os EUA legalizam o aborto. No
entretempo, institucionalizam-se em todo país associações de "swingers" (para
trocas de casais), clubes de sexo promovem orgias, ocorrem em boates gays
sadomasoquistas sessões de "fist-fucking" (sodomia com o punho). A
indústria do sexo floresce. Tudo isso e mais é o que se chamou a Revolução
Sexual.
No recém-lançado "What Wild Ecstasy - The Rise and Fall of the Sexual
Revolution" (“Que Êxtase Selvagem - A Ascensão e Queda da Revolução
Sexual”, título que remete a um verso da “Ode sobre uma Urna Grega” do
poeta romântico inglês John Keats), o jornalista norte-americano John
Heidenry traça a história desse fenômeno. Para tanto, suas qualificações
parecem adequadas, pois ele foi, entre outras coisas, editor da "Penthouse
Forum". O livro acompanha a trajetória exemplar de uma série de indivíduos
centrais ou típicos, descreve a formação, atividades e desintegração de firmas
e instituições, enumera dados, cifras e faz excursos científicos.
O quadro róseo da ascensão começa a se turvar pela metade do volume, com
a reação cada vez mais organizada dos conservadores religiosos (protestantes
e católicos) ou políticos (a administração Reagan) e da grande imprensa (a
revista "Time", o "New York Times"), com a formação, entre as feministas, de
uma ala puritana anti-homem e anti-sexo, com o surgimento da AIDS (cujo
alarme soa em 1981), com os problemas legais, fiscais e administrativos da
indústria do sexo.
O panorama é informativo e seletivamente recenseado como em poucas
obras do gênero. Mas cabem alguns senões. Embora a Revolução Sexual seja
o tema explícito, a parte do leão é ocupada pela formação, crescimento e
relativo declínio da indústria do sexo. Descontados alguns jornalistas
(principalmente Gay Talese, autor de “Thy Neighbor’s Wife”, ou seja, “A
Mulher do Próximo”, livro pioneiro no qual Heidenry confessamente se

159
inspirou), ativistas, sibaritas, cientistas etc., as personagens principais são
gente como Hugh Hefner, Bob Guccione e Larry Flynt, fundadores,
respectivamente das revistas "Playboy", "Penthouse", "Hustler", como Reuben
Sturman, criador do maior império de distribuição (e depois de produção) de
material pornográfico, ou, então, como os pastores Jerry Falwell e Jim Bakker,
seus mais ou menos mal-sucedidos oponentes.
Como nunca fica suficientemente claro quanto essa indústria --que, segundo
o autor, movimenta anualmente mais de U$ 2 bilhões só nos EUA-- tem de
causa e quanto de efeito da revolução tematizada, este seria um outro senão, a
saber, a falta de mais interpretação, algo que poderia também envolver dados
obtidos em outras fontes que, como a literatura, as artes e o cinema, são
acessos clássicos a muito do que subjaz às mudanças de comportamento e de
atitudes.

(Folha de S. Paulo, 29/4/97)

48) O manifesto do "subcomandante Marcos"*

**
Análise do manifesto POR QUE COMBATEMOS do “Subcomandante Marcos”, líder do Movimento
Zapatista do estado de Chiapas, México; o manifesto foi publicado em tradução para o português na mesma
edição do suplemento MAIS! Da Folha de S. Paulo em que saiu a presente análise.

160
“Por que Combatemos”, o manifesto do "subcomandante Marcos", líder da
guerrilha zapatista do estado de Chiapas, no México, é um exemplo típico da
retórica revolucionária clássica. Não lhe falta nenhum dos componentes
elementares desse estilo consagrado na esquerda (desde pelo menos o
“Manifesto Comunista”) por um século e meio de incessante repetição.
Segundo o “subcomandante Marcos”, seu movimento não é apenas uma
guerrilhazinha latino-americana entre tantas, sediada num canto perdido de um
país secundário e lutando por alguns alqueires de terra, por algumas verbas
federais ou por alguns “greencards” a mais. Ele é, isto sim, a ponta-de-lança
da derradeira batalha entre as forças do Bem a as do Mal, ou seja, a Quarta —
e última— Guerra Mundial.
Aparentemente todos os panfletos e manifestos, tanto de direita quanto de
esquerda, são iguais, descendem diretamente da literatura apocalíptica dos
primórdios da era cristã e se resumem numa incansável glossolalia sem
relação direta com a realidade sobre a qual fazem de conta que falam. Seria,
no entanto, injusto não levá-los a sério e ler apenas suas declarações
explícitas, pois faz tempo que, em muitos manifestos, o sentido que importa
não é, obviamente, o manifesto, mas o implícito. É verdade que, no século
passado, a retórica que os define pertencia a grupelhos delirantes que se
formavam e se desfaziam à margem da política real e não expressava nada
além da megalomania compensatória da falta absoluta de poder. Acontece
que, em 1917, um desses grupelhos chegou ao poder e, desde então, o que era
um estilo marginal tornou-se, em boa parte do planeta e durante quase todo o
presente século, o discurso oficial.
Foi a partir desse momento que a desconversa intercambiável da direita e da
esquerda realmente se bifurcou. Antes disso, as mesmas imagens, metáforas,
grandiloquência etc. transitavam tranquilamente de um extremo ao outro do
espectro político. Depois da Revolução de Outubro, porém, a forma vazia da
retórica revolucionária começou a ganhar sentidos inimaginavelmente sutis.
Enquanto, na direita, sua histeria aumentava, mas continuava relativamente
transparente (quem quer que tenha posto em dúvida a sinceridade do que
Hitler propunha em seu “Mein Kampf” deu-se muito, muito mal), ela se
transformou, entre as esquerdas, numa refinada linguagem cifrada.
Seguindo essa tradição, o arrazoado do subcomandante Marcos não deve ser
somente mais um “samba do crioulo doido” ou algo parecido. Na falta da
chave decodificadora, no entanto, só resta especular sobre os significados
ocultos nas dobras da retórica convencional. Há uma disputa interna

161
ocorrendo entre os zapatistas? O subcomandante estará se preparando para
isolar uma facção rival e expurgar um antigo companheiro ou anunciando uma
aliança inesperada com algum inimigo de ontem? É aos especialistas que cabe
responder.
Ainda assim, algumas coisas em “Por que Combatemos” podem ser lidas
sem maiores dificuldades. O texto continua a choradeira dos movimentos para
os quais o fim da URSS foi de fato uma derrota terrível: a perda do maior
aliado. Ele amalgama ou confunde num único e imenso adversário entidades
em princípio distintas, como neoliberalismo, globalização, instituições
financeiras, Estados Unidos, “american way of life”, apostando (corretamente)
na virtual inexistência de alguém que não deteste ao menos uma delas. E,
sobretudo, expressa a necessidade de novas alianças. São três os alvos de sua
campanha que é também um pedido de socorro: a facção “multicultural” ou
“políticamente correta” do liberalismo norte-americano; os neo-nacionalismos
em geral; e todas as tendências européias que, por alguma razão corporativista
qualquer, opõem-se à unificação econômica do continente.
Muito desse manifesto deve soar como música para a parcela da
intelectualidade francesa que, surpreendida pela greve de fins de 1995, tentou
pegar uma carona de última hora num evento que tinha mais de caótico do que
de ideológico. Esse talvez seja o grupo preferencialmente bajulado pelo
manifesto. Não que os sofisticados parisienses não desdenhem o primarismo
teórico do mexicano ou de seu(s) “ghostwriter(s)”, mas abraçar (como Régis
Debray já havia feito com o “Che”) uma nova revolução no Terceiro Mundo
que, embora primitiva, não se envergonha de portar, por assim dizer, a “velha
chama”, pode ter lá seus atrativos para novos filósofos ociosos.
O texto em si nada tem de excepcional, mas está à altura de um objetivo
desses. Sua única falha relativamente grave é a conclusão “poética”. Mais do
que ao bolero hispano-americano ou ao dramalhão mexicano, o “lirismo”
envolvido remete especificamente ao tom “disney de esquerda” que,
desenvolvido em Cuba e celebrizado pelo “Unicórnio Azul” de Sílvio
Rodríguez, não parece mais agradar a quem quer que seja. Se “la Revolución”
para a qual aponta o manifesto evoca até uma certa nostalgia, leva o leitor a
lembrar devaneando uma época em que as escolhas eram mais simples e
definitivas, seu final chega a dar saudades de gente como Lênin que, atendo-se
ao economês, não arriscava nenhum grande vôo poético.

(Folha de S. Paulo, 5/10/97)

162
49) ELIOT WEINBERGER*

**
WRITTEN REACTION -- POETICS POLITICS POLEMICS. ELIOT WEINBERGER. MARSILIO
PUBLISHERS. NEW YORK. 1997.

163
A crítica literária é hoje, nos EUA, uma enorme e ramificada instituição. De
um lado, há centenas de universidades, com seus departamentos cada vez mais
subdividos segundo linhas étnicas, políticas e sexuais (ou seja, cada vez
menos literárias). Por outro, uma profusão de jornais e revistas nacionais ou
locais estampa periodicamente "reviews" (resenhas) e outros comentários.
Nesse quadro, Eliot Weinberger é uma autêntica raridade, na medida em que
não pertence ao mundo das universidades (não chegou, aliás, a concluir seus
nenhuma) nem é um "reviewer" (resenhista). Mais raro ainda --enquanto os
universitários se dedicam a resolver (no papel, naturalmente) os problemas do
mundo e os jornalistas literários detêm-se na ficção-- é o fato de que ele
discorra sobre questões propriamente (mas não só) literárias e, entre estas,
prefira as relacionadas à poesia contemporânea.
A poesia está no centro de seus interesses sob uma forma peculiar: a da
tradução. Weiberger é atualmente o principal tradutor de poesia hispano-
americana em seu país. Sua obra máxima nesse campo é a tradução da poesia
reunida do mexicano Octavio Paz. Seu "tour de force" tradutório, no entanto, é
a versão inglêsa da dificílima epopéia moderna do chileno Vicente Huidobro:
"Altazor". Além disto, ele verteu outros poetas mexicanos, Xavier Vilaurrutia
e Homero Aridjis, a prosa dos argentinos Jorge Luis Borges e Julio Cortázar e
organizou uma importante antologia de poesia norte-americana escrita dos
anos 50 em diante.
Ele já havia também escrito dois livros de ensaios tão anticonvencionais
quanto o resto de sua carreira: "Works on Paper" (New Directions, 1986),
"Outside Stories" (New Directions, 1992). A esses junta-se agora "Written
Reaction (algo tradutível como "Reação por Escrito") publicado no final do
ano passado. Os dois primeiros compunham-se de textos onde, discorrendo
sobre poetas americanos modernos (Oppen, Reznikoff, Rexroth, Langston
Hughes) ou sobre Paz e Huidobro, falando sobre poesia chinesa antiga ou
moderna e analisando o ambiente literário, ele desenvolvia uma prosa
surpreendente que quase transformava seus textos em narrativas ficcionais
sem no entanto sacrificar a especificidade dos fatos. O ápice desse estilo --que
ele, confessamente, aprendeu com gente como Artaud e Borges-- foi atingido
em algumas peças que, difíceis de definir, abordam os massacres do Khmer
Vermelho, o papel literário dos tigres e aquilo que as holotúrias (os pepinos-
do-mar) estariam sonhando.
Já "Written Reaction" reúne textos geralmente mais breves, sobretudo
observações, intervenções polêmicas e notas de leitura. Mas, seja discutindo
questões de tradução e a trajetória de Mircea Eliade, seja chamando a atenção
para de Nathaniel Tarn, Jerome Rothenberg, Hugh MacDiarmid e Kamau

164
Brathwaite ou polemizando com a "Language Poetry", seu estilo continua
exato, penetrante e isso, em particular, quando aborda autores de que não
gosta, como o poeta "yuppie" Frederick Seidl ou o ecológico-místico Robert
Bly. Ele chega a deliciosos extremos de crueldade, por exemplo, quando
define o que este último escreve: "Os poemas de Bly são uma floresta de
pontos de exclamação através da qual a frase 'Eu amo' corre como o fugitivo
de um hospício".
O melhor, porém, deste seu livro --bem como dos dois anteriores-- é sua
legibilidade. Sua prosa, ao contrário daquela que os críticos profissionais
parecem apreciar, está inteiramente livre de todo jargão pseudo-técnico e
pseudo-científico que polui hoje em dia o campos das Letras. Os textos de
Weinberger são uma demonstração clara de que pode existir uma crítica de
verdade --informada e informativa-- que, sem ser ostensiva e pretensiosamente
literária, seja também literatura.

(Folha de S. Paulo, 29/3/97)

CINEMA

165
50) ALMODÓVAR

166
Quando, há setenta anos, Bunuel filmou "Um Cão Andaluz", A Espanha era
um país majoritariamente agrário, esmagadoramente iletrado e
assustadoramente atrasado. Havia menos diferença entre a zona rural ibérica
da época (os anos vinte) e a dos tempos de Isabel, a Católica, do que entre essa
região e, a poucos quilômetros de lá, os cafés da Granvía madrilenha.
Talvez o tema do primeiro filme de Buñuel seja precisamente o do contraste
entre o arcaísmo do que se filma e a modernidade do meio cinematográfico.
Sua câmera se mostra concomitantemente fascinada e aterrorizada ao poder
revelar um mundo que ainda existia "e --meu Deus!--é o nosso."
O mundo do seu sucessor legítimo, Almodóvar, é outro --modernizado a
contragosto por décadas de conservadorismo franquista--, e, no entanto, as
memórias do que ele era ainda há pouco estão ali, em toda a parte, e não como
as ruínas benjaminianas que o "Angelus Novus" de Paul Klee vê, assombrado,
acumularem-se até tocar os céus, nem como as recordações do pesadelo da
história do qual Sephen Dedalus gostaria de despertar, mas simplesmente
como breguice.
Almodóvar é hoje em dia, no plano internacional, o maior fenomenologista
da breguice --e é sua sorte trabalhar na/com a sociedade brega mais opulenta
do planeta. É por isso que ele provavelmente revolta seus conterrâneos. Uma
população em geral e sua elite em particular não gostam de ser lembrados de
suas origens infelizes nem de seu presente relativamente inferior ou "nouveau
riche".
A breguice de que Almodóvar nem mesmo fala, porque transparece
naturalmente em cada um de seus fotogramas, consiste no deslumbramento
diante de uma modernização recente e pouco enraizada e merece ser
considerada porque se trata justamente da breguice em seu estado mais
avançado, um estado no qual, sem deixar de ser o que é, ela já acena com uma
possibilidade de autoperpetuação independente e, o que é mais curioso, torna-
se quase que um estilo alternativo sedutor.
Vários países tentam vender, às suas populações e às outras, seus estilos
próprios de vida, autênticos ou não. O cinema é, há muito, um veículo central
desse empenho, um empenho em meio ao qual os países europeus, com toda
sua aparente nobreza, nunca estiveram inteiramente afastados do interesse
comezinho mais imediato de colocar seus produtos no mercado dos
abominados norte-americanos. Pauline Kael descreveu deliciosamente como o
cinema europeu tenta empurrar, sob a capa da alta e antiga cultura, seus
variados "kitsches" locais. Num caso específico ela observa quão
ostensivamente soturnas são as crianças em "Asas do Desejo"; segundo ela,
Wim Wenders deve ter lhes administrado "doses pediátricas de Weltshmerz".

167
No fundo, cada cinema do Velho Mundo aspirava e aspira à condição de
Hollywood. Prova disso é um filme como "A Rainha Margot",
fundamentalmente indistinguível de Cecil B. de Mille em tudo exceto no fato
de ter sido feito quarenta anos mais tarde com um orçamento
proporcionalmente muito menor. Mas a indústria cinematográfica americana
também têm lá seus problemas, que ajudam a viabilizar, à sua sombra, todas
as outras. A cerca de U$ 10 mil o segundo, um filme deixa de ser mero
investimento e se transforma em bem de capital. Por que se surpreender,
portanto, diante da supervalorização do "hardware" e seus derivados
(sobretudo os efeitos especiais) em face de roteiristas, atores e diretores. Com
o capital não se brinca --e isso até Marx subscreveria.
Por mais que se reclame, o verdadeiro cinema de hoje é, na sua melhor
encarnação, Spielberg (como bem observou Marcelo Coelho) e, na sua pior,
"Waterworld", ou seja, preferencialmente, um produto de engenheiros,
técnicos, programadores e, nos casos mais felizes, de brilhantes "rackers".
Este cinema só pode ser feito nos EUA, mas, devido à natureza tanto do
produto quanto do país, há determinados riscos que ele não pode assumir: o
principal é o de ser banido das salas de projeção por algum rumoroso
"lawsuit", um processo judicial movido por algum dos inúmeros grupos
lobbystas, cartoriais e moralistas em que se fragmentaram o liberalismo e a
esquerda dos Estados Unidos.
Quem é que pode, assim, desafiar a hegemonia legal e pseudo-legalista do
politicamente correto, do multiculturalismo etc.? Somente o cinema
relativamente pobre feito fora das terras cobertas pelas leis norte-americanas
(e o próprio Polanski, um polonês, teve que fugir de lá depois de cair numa
armação que o envolvia com o abuso de crianças, mais especificamente, ao
que parece, uma adolescente agenciada pela própria mãe).
O cinema não muda o mundo. Mas é possível se fazer um filme
minimamente atraente evitando as questões que os grupos acima proibem?
Obviamente, não. O sucesso de Almodóvar decorre não só de fazer filmes tão
baratos que, se não conseguirem um retorno adequado, não obrigarão seu
produtor a recorrer ao FMI, mas de poder mostrar mulheres que gostam de ser
estupradas ("Ata-me") ou matam seus maridos menos pelo abuso sexual do
que pela falta dele ("De Salto Alto"), lésbicas grotescamente bigodudas
("Kika"), advogadas feministas que passam para trás suas clientes para roubar
seus homens ("Mulheres à beira de um Ataque de Nervos"), homens que
maltratam as mulheres e são, por isso mesmo, adorados por elas (Antonio
Banderas, Peter Coyotte).
Ora, tudo isso é de uma breguice incrível, para não falar do fato de que
existia em quantidades industriais no cinema B americano de meio século

168
atrás. Mas tudo isso faz também o cinema funcionar de uma maneira que
"lesbians chic", homossexuais que são heróis existenciais ("Filadelfia") e,
principalmente, os intermináveis e assexuados contos de fada "high tec", não
fazem. Sexo e sangue e crueldade são bregas, mas sem eles não há cinema. E
quem disse que o próprio cinema não é também essencialmente brega?

(Folha de S. Paulo, 15/10/95)

51) O PACIENTE INGLÊS

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"O Paciente Inglês" é o nome de um livro para meninos e de um filme para
meninas. O romance do poeta cingalês de origem holandesa, educado na
Inglaterra e radicado no Canadá, Michael Ondaatje, fala da exploração do
deserto, da Segunda Guerra, de mutilação e morte, ou seja, é uma história de
aventuras na qual as mulheres aparecem basicamente para acender a
imaginação dos homens, preencher suas (poucas) horas vagas ou tratar de
seus ferimentos. A versão cinematográfica, no entanto, mostra as coisas do
ponto de vista delas e, assim, o que importa nos homens é precisarem de amor
ou de cuidados.
Não é à toa, portanto, que o paciente inglês própriamente dito (que, aliás, é
um conde húngaro inspirado numa pessoa real), um homem moribundo e
confinado ao leito, que na história original só se torna o protagonista perto do
fim da narrativa, assume, na película, essa importância desde o começo — e
Kip, o sikh desarmador de minas, única personagem inteiramente saudável,
cuja trajetória era o foco preferencial do romancista, reduz-se nas telas a uma
presença secundária.
Muito da melhor arte de Ondaatje consistia em evocar as condições vigentes
no Punjab natal de Kip, em discorrer sobre o aprendizado de um perito em
explosivos, as minúcias de seu trabalho, sua revolta contra o colonialismo e
sua descoberta apaixonada da arte renascentista italiana. Mas isso nada tem a
ver com o amor como, aliás, tampouco se relaciona com a paixão por
Catherine tudo o que o paciente inglês sabia do deserto, incluindo as
características de seus ventos. Condizentemente, assuntos como esses são, se
tanto, relegados pelo filme ao segundo plano.
Não se trata de recriminar o filme por ter se afastado do romance, mas de
mostrar como, além das diferenças óbvias entre literatura e cinema, ambas as
obras pertencem a gêneros diferentes, pois o cingalês-canadense, a rigor,
escreveu, com os recursos da ficção comercial contemporânea, algo que pode
ser qualificado como um livro dos anos 40, um "thriller" retrospectivo cujo
mistério —a verdadeira identidade do paciente— se oculta na memória e no
passado, enquanto o diretor filmou um melodrama dos anos 50 adaptado aos
padrões estéticos atuais.
E, sendo um melodrama, não é particularmente grave o fato de que, quando
não se encontram reduzidos a uma bidimensionalidade simplificada, percam-
se os fios complexos da narrativa. O que conta é que uma história trágica de
amor, não —graças a Deus— entre mais dois adolescentes despidos de libido
e posando de gente grande, mas envolvendo, isto sim, jovens adultos que têm,
por um lado, as feições sutilmente femininas de Ralph Fiennes e, por outro, a

170
difícil beleza, a um tempo angelical e quase feia, de Kristin Scott Thomas,
dispõe de tudo para ser irresistível — e facilmente esquecível.

(Folha de S. Paulo, 8/9/97)

52) GOSTO DE CEREJA

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"Gosto de Cereja", de Abbas Kiarostami, é um filme extremamente barato e
particularmente rico. Barato, pelas razões óbvias, e rico, porque, dentro de
estreitos limites tecnológicos e orçamentários, maximiza inteligentemente seus
recursos escassos. O cineasta se compraz, além do mais, com o virtuosismo
que extrai desta escassez.
A trama, se é que se pode chamá-la disto, diz respeito a um suicida em
busca de um estranho qualquer que lhe faça o favor, bem pago, de sepultá-lo.
Mas não é fácil achar alguém assim e muito do filme se ocupa de mostrar os
mal-entendidos que, gerados sem querer pelo próprio protagonista, impedem
estranho após estranho de aceder a um pedido inicialmente interpretável como
uma cantada homossexual.
Ambientado numa paisagem árida nos arredores de uma cidade pobre,
"Gosto de Cereja" duplica e reduplica em suas imagens o enterro que o
protagonista, sem sucesso, busca, seja sepultando-lhe a sombra com a terra
seca despejada por uma escavadeira, seja cobrindo a própria tela com nuvens
de poeira. Como se realizasse um "Lawrence da Arábia" filmado do ponto de
vista da areia, o cineasta apresenta-nos uma espécie de epopéia minimalista do
pó (do qual, obviamente, viemos e ao qual voltaremos), e é na secura desse
contexto que o título, remetendo ao contraste representado pelo sabor
suculento de uma fruta, assume plenamente seu sentido, aliás ausente.
Para deixar claro que sua opção é consciente, Kiarostami trata de tangenciar,
apenas tangenciar, os "grandes" temas alternativos que poderia estar
abordando (homossexualismo, religião, miséria, situação dos curdos, guerra
Irã-Iraque, problemas do Afeganistão vizinho etc). Ele transforma, portanto, a
aridez do ambiente numa metáfora eficaz, apropriada e praticamente
inevitável da escassez (de verbas, recursos, tecnologia) de sua própria obra,
chegando assim a uma espécie de metacinema (desnecessariamente realçado
no final pela exibição de uma equipe de filmagem em plena atividade).
O resultado não é um filme para todos os gostos. Otavio Frias Filho, cuja
opinião a seu respeito está mais para o negativo, chama-o, apropriadamente de
"road movie". Caberia acrescentar que o iraniano realizou, num país de
estradas de terra ruins e poeirentas, um "road movie" de baixa velocidade,
quase estático, o que é, naturalmente, não apenas uma contradição em termos,
mas também, novamente, metacinema.
Deste modo, quem o assiste à espera do exotismo étnico acaba se deparando
com mais uma variação de um subgênero quintessencialmente ocidental,
norte-americano, pois este meta-ou-anti-"road movie" (que se encerra com
acordes jazzísticos) pertence antes à companhia de, digamos, "Um Dia de

172
Fúria" (um "road movie" sem automóvel por causa de um congestionamento
monstro) ou o recente "Breakdown", que retoma honestamente a reticência
enxuta dos clássicos do gênero como o ''Encurralado'', de Steven Spielberg.
É verdade que "Gosto de Cereja" é um exercício não raro soporífero. O
curioso disso tudo, porém, é que seu tipo de narração, a ironia de apenas
tangenciar as grandes questões e o modo de evitar quase sempre o melodrama
são características evidentes não das tradições exóticas, mas precisamente de
muito da melhor ficção (literária ou cinematográfica) ocidental moderna.

(Folha de S. Paulo, 11/1/98)

173
ESPECULAÇÕES

174
53) A DIFICULDADE DE ESCREVER

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A linguagem talvez seja, como querem os linguistas chomskyanos, uma
habilidade de algum modo inscrita no patrimônio genético da espécie. Nada,
no entanto, indica que a escrita também o seja. Pelo contrário: é
assustadoramente fácil enumerar exemplos que na sua proliferação
demonstram quão difícil é para um indivíduo --qualquer indivíduo-- assimilar
o conjunto de requisitos, técnicas e práticas que conduz a, ou propicia como
resultado final um texto escrito dotado de alguma qualidade. Refiro-me,
naturalmente, não à mera tanscrição, mais ou menos mecânica ou automática,
de algo formulado/formulável oralmente, mas de um texto pensado e
articulado no/e para o papel (monitor de computador etc.). Isto é, o texto cuja
natureza é ser escrito e no qual esta natureza salta, literalmente, aos olhos. Do
que decorre tal dificuldade?
Muitos estudiosos já se debruçaram sobre as diferenças intrínsecas que
distinguem o oral do escrito, mas creio que o canadense Eric Havelock está
entre os que têm a visão mais simples, elegante e esclarecedora. Para ele, a
composição escrita é essencialmente diferente da oral, algo que ele constata,
por exemplo, na prosa (filosófica e historigráfica) que nasce com os gregos
dos gregos. O pressusposto para que isso --o nascimento de uma verdadeira
prosa-- se realize é, obviamente, a criação de uma escrita que não seja apenas
notação (como eram as ideográficas, hieroglíficas, silábicas ou as
consonantais semíticas), mas permita ir além, uma escrita que só surgiu
quando os gregos inventaram, com a devida separação entre vogais e
consoantes, seu alfabeto.
Enfim, a discusssão desse assunto é longa e complexa, mas uma coisa
parece bem demonstrada por Havelock: depois da invenção do alfabeto grego,
cria-se um novo campo linguístico, o da verdadeira escrita, que, mais do que
talento ou empatia, requer aprendizado, dedicação e disciplina.
Todos os povos historicamente conhecidos sabem contar e dispõem de
números, mas a álgebra e as coordenadas cartesianas, o zero e o sistema
decimal, as equações e o cálculo são descobertas ou invenções únicas e
recentes. A maioria dos jovens, não só no Brasil, conclui duas décadas de
educação formal tendo assimilado mal e porcamente os rudimentos das
matemáticas para esquecê-los em seguida. O mesmo acontece com a escrita.
Vinte anos de treino não são suficientes para fazer gente egressa seja de um
grupo escolar do interior paulista, seja de um liceu francês, sentir-se
inteiramente à vontade com uma caneta na mão ou um teclado na ponta dos
dedos. No currículo profissional e na carta para a namorada, no relatório à
diretoria ou numa moção de protesto encaminhada ao sindicato ou ao síndico

176
do condomínio, as pessoas que não estão no "ramo" da escrita pressentem e
logo também sentem, com toda a justiça, uma "via cruxis" sofrida e
trabalhosa.
O curioso é que isso tampouco é diferente para aqueles que são do "ramo".
Basta dar uma olhada na qualidade textual das teses, não as dos engenheiros
ou médicos, mas as dos pós-graduandos em letras, filosofia ou jornalismo, ou
seja, gente cuja matéria-prima profissional é a palavra escrita, para se ter uma
idéia de como andam, ou melhor, de como são e sempre (com as habituais
oscilações) foram as coisas. Veja-se, no caso brasileiro, a média dos textos
jornalísticos ou, nos casos estrangeiros, veja-se quão difícil e custoso é manter
uma qualidade superior. Vamos mais longe: republicaram-se, na primeira
metade dos anos 90, dois ou três volumes ensaísticos que um dos maiores
estilistas do século, Jorge Luis Borges, tendo-os escrito na juventude, havia
posteriormente renegado. Ora, trata-se, sem dúvida, de uma prosa bem escrita,
demasiadamente bem escrita, aliás, e, mais do que qualquer equívoco
eventualmente expresso, é seguramente o "bem-escrever" de sua juventude
que incomodava o Borges maduro, pois, diante das exigências estilísticas
deste, aquela era nitidamente uma péssima escrita. A eloquência fácil e as
fórmulas consagradas de que seus primeiros livros lançam mão devem, mais
tarde, ter lhe parecido toscas como, para um matemático profissional, uma
espécie de tabuada decorada. O aprendizado estilístico do argentino implicou,
entre outra coisas, livrar-se dos automatismos impensados, uma operação nem
um pouco fácil, mas essencial para quem queira escrever de verdade, escrever
seus próprios textos.
Isso, além do mais, vale tanto para a prosa quanto para a poesia.
Muitos teóricos e outros tantos críticos gostam de lembrar que a poesia
precede a prosa, que ela já era praticada muito antes do surgimento da escrita
e que as marcas dessa origem oral seguem caracterizando-a. Nada disso está
em questão, embora as conclusões seguintes de alguns investigadores sejam
mais questionáveis. Estas se resumem a dois grandes argumentos
aparentemente contraditórios, mas afinal complementares: o primeiro é o de
que, surgida na oralidade, é nesta que está toda a verdadeira essência da poesia
e, portanto, a escrita não passa de uma forma (talvez parcial e redutora) de
notação, substituível, com vantagens, por gravações em fita, performances ao
vivo etc.; o segundo argumento, confirmando o primeiro, inverte-lhe o sinal
valorativo, dizendo que, se foi esse o estado de coisas até o presente, cabe
agora criar uma poesia que, rompendo seu cordão umbilical com o passado
oral, seja autenticamente uma poesia escrita.
Vários movimentos poéticos da segunda metade do século tomaram uma
dessas duas propostas como seu ponto doutrinário de partida e o fato de ambas

177
se mostrarem ingênuas e reducionistas não deduz da qualidade de inúmeros
poemas produzidos sob sua influência, simplesmente porque a natureza de um
poema acabado raramente tem algo a ver com os pressuspostos teóricos com
os quais seu autor julgava estar operando. Esse é o ponto mais frequentemente
ignorado pelos críticos --favoráveis ou hostis-- que discutem a obra de um
poeta à luz de seus manifestos, programas ou ensaios. No que diz respeito a
controvérsia acerca da essência da poesia ou, pelo menos, de seu caráter, o
problema todo poderia ser colocada em termos um pouco melhores.
O escrito pressupõe sempre o oral sem se reduzir necessariamente a ele de
uma forma que ilustra (graficamente) a transição da natureza
(especificamente: a natureza humana) para a cultura. Acontece que a
"natureza" humana consiste, entre outras coisas, em produzir cultura e
ninguém há de negar que a poesia oral das sociedades iletradas é tão culta
quanto qualquer outra. Bom, esse paradoxo talvez requeira uma longa
discussão que redefina, no caso humano, os limites entre natureza e cultura.
Apesar do que pensa um Freud, ambos os conceitos não parecem ser
contraditórios. Recorramos a uma definição da oralidade enquanto cultura
natural e da escrita enquanto cultura culta. Esta pode ser historicamente
perdida (em proporções maiores ou menores, já o foi), aquela não, exceto no
caso de mutações genéticas ou danos físicos ao cérebro. Para todos os efeitos,
a cultura culta potencializa imensamente a cultura natural, não apenas
acentuando seu caráter cumulativo, mas descerrando possibilidades antes
impensadas na tarefa mesma da elaboração de seus produtos. No caso
específico da poesia --aliás, de qualquer manifestação verbal-- a diferença
central reside na possibilidade de se retornar inúmeras vezes ao mesmo texto
antes de dar-lhe a forma final. Na performance oral anterior à invenção da
escrita, a assim chamada inspiração (por mais treinada e disciplinada) e sua
forma final são basicamente idênticas e o tempo da composição é linear e
absoluto. No texto escrito, a inspiração passa a ser apenas mais um recurso, o
autor pode se valer de um leque não simultâneo de inspirações, voltando
quando e quanto quiser a cada ponto de seu texto segundo os ditames de uma
composição que não é mais linear e cujo tempo é relativo, ou seja, escrevendo,
por exemplo, primeiro o final, depois o começo e, em seguida, o meio.
A brilhante descoberta de Walter Benjamin, a "aura" --que distingue a
singularidade do objeto artesanal contraposta à reprodutibilidade do produto
industrial-- aplica-se perfeitamente ao nosso caso. O poema oral das
sociedades arcaicas, combinando a composição com a performance, a voz do
poeta com o momento da apresentação, tende, para todos os efeitos, ao único e
irreprodutível. Tem "aura". Qualquer texto escrito é uma combinação seleta de
inúmeras possibilidades que, se não foram experimentadas, poderiam ter sido.

178
Ele é uma síntese, sem "aura", da linguagem reprodutível possibilitada pela
escrita, provavelmente o primeiro paradigma de tudo o que nos evoca a
palavra "indústria". Convém frisar: a reprodutibilidade não é uma latência da
escrita que se realiza na multiplicação de textos idênticos: ela está presente no
ato de sua composição, diferenciando-o do da composição oral ao mesmo
tempo em que pressupõe tudo o que caracteriza esta última. Daí, portanto, os
dois equívocos, ou antes, reducionismos acima: os apóstolos da pureza oral
parecem ignorar que em cada poema escrito há dezenas ou centenas de
poemas puramente orais enquanto os pregadores de uma escrita pura não
levam em conta que, no fundo, aquilo que propõem é nada mais, nada menos
do que o que já vem sendo feito há 2.500 anos.
Termos como "texto" e "trama" --implicando o processo têxtil de tramar
fibras e fios "naturais" diversos na fabricação de um tecido "cultural"--
referem-se sobretudo ao que foi acima descrito. Nas discussões literárias das
últimas décadas, a contraposição entre o valor negativo atribuído a expressões
como "artificialidade" ou "formalismo" e o valor positivo que subjaz a
adjetivos como "espontâneo" ou "autêntico" entremostra menos uma
predisposição para entender a literatura na sua dificuldade do que uma certa
demagogia que busca ampliar seu círculo de adeptos acenando-lhes com a a
miragem de uma facilidade capaz de abolir magicamente --por meio de um
desvio milagroso-- os rigores inerentes ao aprendizado. Muito do que, hoje em
dia, passa por literatura em geral ou poesia em particular tem tanto a ver com
aquilo que se diz ser quanto as charlatanices medicamentosas têm a ver com o
emagrecimento efetivo que, afinal, requer atitudes desagradáveis como deixar
de comer coisas saborosas e começar a fazer exercícios físicos. Muito da
crítica atual é também tão honesta quanto os anúncios de panacéias. Isso tudo,
porém, já é assunto para um artigo futuro.

(LIVRO ABERTO No. 4, maio de 97)


54) O AMBIENTE LITERÁRIO BRASILEIRO: LACUNAS E OMISSÕES

179
A literatura brasileira, como todas as outras, tem seus altos e baixos, suas
épocas de criatividade e suas épocas de estagnaçâo. Ninguém sabe direito
como e porque elas acontecem ou o quê leva à sua alternância. Talvez seja
apenas uma questão estatística: numa geração nascem autores interessantes, na
outra não. Mas o ambiente literário nacional parece estar numa depressão
perpétua, num túnel que, no fim, não entremostra luz alguma. Várias coisas
são sintomáticas desse estado, mas a questão das antologias poéticas é, de
certa maneira, a que mais salta aos olhos.
Todos os países europeus ou de colonização européia que eu conheça
possuem o saudável costume de publicar periodicamente (de ano em ano, de 5
em 5 ou de 10 em 10 anos) seleções da sua poesia contemporânea ou de sua
poesia mais antiga. No que diz respeito à poesia contemporânea, a última
significativa a ser publicada aqui foi "26 Poetas Hoje", de Heloísa Buarque de
Hollanda, em 1976, ou seja, há 21 anos. Essa antologia foi importante porque
estabeleceu um recorte da produção poética de então e consolidou
criticamente os traços de uma geração. Eu não concordo necessariamente com
todos os seus critérios, mas tenho que admitir que a antologista reconheceu
uma vertente relevante e identificou precocemente seus melhores nomes.
Desde então, as poucas antologias publicadas consistem na reunião caótica de
dezenas de nomes, de justaposições carentes de maior critério. E, ainda assim,
são poucas e mal circularam.
As antologias de poesia mais antiga talvez estejam numa situação ainda pior.
As últimas realmente importantes foram feitas por gente como Manuel
Bandeira, Péricles Eugênio da Silva Ramos ou Antonio Candido e, se não me
falha a memória, todas elas têm mais de 20 anos de idade. Há uma antologia
significativa, em três maciços volumes, organizada por Alexandre Pinheiro
Torres e publicada mais recentemente em Portugal. Trata-se de uma boa
antologia, que reproduz "O Uraguai" inteiro, reconhece a importância de
Gregório de Mattos e de Sousândrade e destaca Joâo Cabral. No entanto, nem
esta está livre de problemas, pois seu autor parece desconhecer totalmente o
"Panorama do Movimento Simbolista" de Andrade Muricy, o melhor e mais
exemplar trabalho de recuperação e mapeamento literário já feito no Brasil, e,
consequentemente, na seção de simbolistas só concede lugar de honra a Cruz e
Souza e Alphonsus de Guimarães. Sua seleção de modernistas também é
criticável, pois, além de incluir Menotti del Picchia e Cassiano Ricardo, ele
nem sempre é feliz na eleição de poemas de Drummond, Bandeira, do próprio
Cabral e outros.

180
O estranho, no que tange as antologias, é que elas não são difíceis de fazer.
Elas requerem uma leitura mais ou menos cuidadosa de algumas dezenas de
poetas e de algumas centenas de livros (coisa que os jurados de prêmios
literários fazem --ou deveriam fazer-- em questão de poucas semanas), uma
visita à xerocopiadora mais próxima e a redação de outras tantas notinhas
biográficas. Uma antologia é mais simples de se fazer do que um tratado, um
ensaio longo ou uma edição crítica. Por que, então, elas são tão escassas entre
nós? Examinemos um país onde as coisas ocorrem de modo diferente.
Os americanos são antologistas obsessivos em todas as áreas possíveis. No
caso da poesia, não há período histórico ou autor relativamente reconhecido
que não conte pelo menos com uma e, geralmente, com várias. A poesia
moderna, recente ou contemporânea não poderia ser uma exceção e as
antologias que a estampam em seleções variadas encheriam algumas
prateleiras de uma estante. Dentre as que cobrem a época que vem dos anos 50
aos nossos dias, há duas que se destacam: a de Eliot Weinberger (Marsilio
Publishers) e a de Helen Vendler (Faber & Faber). Ambas têm praticamente o
mesmo tamanho e reúnem trinta e poucos poetas, daqueles que estavam
terminando sua carreira literária nos anos 50, aos que estavam em plena
atividade nos 80/90. Tirando isso, no entanto, elas diferem em todo o resto, ou
seja, basicamente, na seleção de poetas.
Eliot Weinberger é um tradutor de poesia hispânica, responsável pela
excelente versão americana da poesia do mexicano Octavio Paz e da epopéia
vanguardista "Altazor" do chileno Vicente Huidobro. Como ensaísta, ele é um
crítico duro da política dos EUA e do seu "establishment" literário,
defendendo autores geralmente rejeitados pela universidade ou pelas grandes
publicações. Sua antologia começa com Ezra Pound e William Carlos
Williams, sem sequer fazer menção a Wallace Stevens, que é o autor com o
qual Helen Vendler, professora universitária e crítica que representa o
"establishment", abre a sua própria seleção sem, por seu lado, mencionar os
outros dois poetas. O saldo final é que, entre os mais de trinta autores de cada
livro, apenas 5 são comuns a ambos, 5 que não estão entre os principais em
nenhum deles. Esse cotejo diferencial pode ser repetido, em graus maiores ou
menores, com os mais diversos pares de antologias americanas
contemporâneas.
Em outras palavras, há, nos EUA, (pelo menos) duas vertentes poéticas e
críticas muito diferentes, até mesmo antagônicas. Assim, um dos ídolos de
Vendler, Robert Lowell, não passa, para Weinberger, de um versejador
convencional e ridículo, enquanto Charles Olson, um poeta central na seleção
deste, deve ser para aquela um sujeito que escrevia coisas sem pés nem
cabeça. Ambas as seletas, no entanto, são apenas o palco mais conspícuo de

181
uma disputa que se ramifica em revistas, livros, ensaios, debates etc. Cada
vertente e outras tantas sub-vertentes têm seus defensores e seus difamadores,
seu teóricos e seus seguidores e assim por diante. A bibliografia é imensa e
aumenta dia a dia, ou melhor, hora a hora.
Grosso modo, a disputa pode ser resumida em termos que nenhum dos lados
rejeitaria de todo: conservadores vs. inconformistas. Vendler representa os
primeiros; Weinberger os outros. A querela, em termos históricos e teóricos
muito simplificados, diz respeito à contraposição entre a poesia que dá
continuidade ao romantismo e aquela que vê no modernismo dos anos 10/20
um momento de ruptura. Essa mesma querela se repete em vários outros
países, como a França, a Alemanha e a Rússia. Ela existe também no Brasil,
onde, desde 1922, uma linhagem poética inconformista volta, a cada geração,
a se confrontar com algum tipo de conservadorismo.
O notável, no Brasil, não é esse confronto, mas a vitória contínua, até o
momento, da vertente inconformista. A estranheza disso se patenteará melhor
se lembrarmos que deve haver algum tipo de correlação entre a modernidade
sócio-econômico-política e o modernismo cultural, embora ninguém saiba
direito que correlação é essa. Os EUA e a Europa Ocidental são países em que
a modernidade, no sentido amplo, triunfou e se enraizou. O Brasil, não. Lá, o
modernismo cultural continua sendo relativamente rejeitado e nem sempre
penetra nas universidades. Aqui, se bem que conte com uma oposição
conservadora sempre renovada, o modernismo e seus sucessores não só
ganham batalha após batalha como têm se transformado rapidamente no
cânone, inclusive nos currículos do ensino superior. Não deixa de surpreender
quão absoluta foi, num país que, sob muitos aspectos, é extremamente arcaico,
a vitória do espírito de 1922 sobre os parnasianos. Nas décadas seguintes,
alguns poetas conservadores, disfarçando-se de inconformistas, conseguiram
sucesso imediato e retumbante: Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo, Jorge
de Lima, Augusto Frederico Schmit. Mal haviam sido enterrados, porém, e já
foram esquecidos. Algo semelhante ocorreu com a Geração de 45, com um
agravante: foram esquecidos antes de serem enterrados.
Nem por isso as vertentes críticas e poéticas brasileiras atuais deixam de se
contrapor, às vezes de maneira bastante exaltada. No entanto, se pedíssemos a
cada uma delas uma antologia da poesia nacional anterior aos anos 60, o
cotejo posterior traria muito mais coincidências do que divergências. Mário e
Oswald de Andrade ocupariam o lugar de fundadores de nossa poesia
moderna; Luis Aranha e Raúl Bopp seriam --injustamente-- colocados como
modernistas menores; Drummond, Bandeira, Murilo Mendes e João Cabral
seriam, em doses minimamente oscilantes reconhecidos enquanto os
consolidadores do modernismo; Menotti del Picchia, Cassiano Ricardo,

182
Augusto Frederico Schmit e a Geração de 45 seriam --justamente-- jogados às
traças; haveria alguma discordância quanto ao lugar que deveriam ocupar
Jorge de Lima e Vinícius de Morais, mas se confirmaria a tendência geral de
ascensão deste e declínio daquele.
É melhor que eu deixe claro que escrevo, neste caso, não como um crítico
descomprometido e distanciado, mas como alguém envolvido no processo. Há
poucos meses publicou-se nos Estados Unidos uma antologia de poesia
brasileira contemporânea da qual sou co-organizador. Ela traz poemas de 20
poetas nacionais nascidos depois de 1940, no original e em tradução para o
inglês. A rigor, ela seria uma antologia a mais, como tantas outras, se
existissem tantas outras. Ela foi bem recebida tanto pela crítica americana
quanto pela brasileira e, até o momento, só num caso foi duramente criticada,
por dois rapazes que se esqueceram de mencionar dois fatos aos seus leitores:
o de que pelo menos um deles também escreve poesia e, portanto, criticava a
nossa do ponto de vista de um poeta excluído; e de que ambos estão também
organizando uma antologia bilíngue e, assim, são não apenas rivais, mas
concorrentes comerciais da empreitada já publicada. Que a Pepsi-Cola fale
mal da Coca-Cola (ou vice-versa) nos seus comerciais, é justo e natural. Mas
se se publica uma matéria aparentemente neutra e desinteressada criticando
um dos refrigerantes e se omite que quem a escreveu é o diretor da companhia
rival, aí já temos um caso flagrante de concorrência desleal e desonesta. Tendo
em vista o ânimo rancoroso de nossos colegas/competidores, pode-se supor
facilmente que seu trabalho se configurará menos como uma antologia do que
como uma retaliação. Em todo caso, tanto no que diz respeito a essa futura
quanto a outras antologia, ou melhor, ao processo de antologizar, eu falo como
antologista. Só que a antologia que ajudei a organizar pretendia não tanto
oferecer uma visão crítica da poesia atual, quanto promovê-la no exterior. Ela
não supre nem é seu objetivo suprir as lacunas locais.
Numa antologia como a nossa, as dificuldades principais foram: achar bons
tradutores para os poemas e convencer um editor americano de que a poesia
brasileira é tão interessante quanto as outras. Embora os antologistas
tivéssemos divergências aqui e ali, selecionar os autores e seus respectivos
poemas não foi exatamente uma proeza. Uma antologia publicada no Brasil
dispensa obviamente a tradução e, quanto aos editores, há muitos que estão
famintos por antologias. Poetas podem, é claro, organizá-las, mas mesmo se
deixarmos de lado qualquer hipótese de má fé e de inimizades pessoais, ainda
assim eles não seriam as pessoas ideais pela razão simples de que um poeta,
qualquer poeta, tende naturalmente a se interessar por textos que se pareçam
com aquilo que escreve. Nenhum poeta tem o dever de ser neutro e
desinteressado quando o assunto é poesia; pelo contrário, espera-se dele que

183
tenha um gosto mais ou menos idiossincrático. Tornou-se quase um dogma o
princípio de que os poetas são os melhores críticos ou leitores de poesia, mas,
como todo dogma, esse é mais ou menos míope. Cada poeta sabe como se faz
poesia ou, ao menos, alguns tipos de poesia e tem, portanto, uma visão mais
complexa do caminho difícil que conduz ao produto acabado. Todos os
poetas, no entanto, apostam desde cedo em apenas alguns tipos de poesia e se
tornam, talvez inconscientemente, cegos a outras variedades que podem ser
igualmente válidas. A história literária está repleta de casos de grandes
escritores que foram simplesmente incapazes de reconhecer a grandeza alheia:
Goethe rejeitou Hölderlin e Heinrich von Kleist (além do maior compositor de
seu tempo, Beethoven); W.B.Yeats rejeitou T.S.Eliot e Ezra Pound; Mário de
Andrade rejeitou Luis Aranha; Mário Faustino escreveu que Drummond era
somente um grande poeta menor (seja lá o que isso quer dizer), preferindo
Jorge de Lima (ainda que com ressalvas) ao mineiro; Vinícius de Morais
segue rejeitado; os poetas marginais rejeitaram João Cabral; e assim por
diante. É por isso que críticos --bons críticos-- são necessários. Só um
conjunto mais substancial de críticos decentes e dedicados pode oferecer um
quadro equilibrado da produção literária. E isso nós não temos, pois, no nosso
país, quando eles são dedicados não são decentes e quando são decentes eles
não são dedicados. No entanto, é a eles que competiria organizar
periodicamente as antologias que nos faltam.
Por definição, não há antologias corretas. Uma antologia é uma aposta e
quem quer que, ao fazê-la, consiga, digamos, 65/70% de acerto, terá realizado
uma façanha. Aliás, o conceito de acerto aqui é meio duvidoso, mas, como o
tempo é geralmente o grande e inapelável juiz das vaidades humanas, acerto
equivaleria a alguma durabilidade e acertar quer dizer aproximadamente o
seguinte: elencar autores e poemas de um modo que algumas décadas depois o
resultado não pareça absolutamente incompreensível. Ou seja, os méritos
pertencem a quem cosiga reunir muitos dos poetas que a geração seguinte
também considere importantes, excluindo concomitantemente aqueles que,
parecendo relevantes no seu tempo, não resistiram sequer ao teste de
sobreviver literariamente à sua própria morte física. E, como não há antologias
nem corretas nem definitivas, as chances de acerto crescem conforme aumenta
o número de tentativas. Criticar uma antologia é trabalho fácil e irrelevante: a
verdadeira tarefa é a de cotejá-las, mas, para tanto, é preciso que haja várias.
Por que nossos críticos não estão fazendo antologias?
O período anterior aos anos 60 não está sendo coberto em parte porque os
juízos não se alteraram. Com poucas alterações ou com nenhuma, qualquer
uma das antologias já citadas (Bandeira, Péricles, Antonio Candido) continua
valendo, seus critérios são os mesmos que os das gerações seguintes. E o

184
período posterior? Isso é um mistério, pois, descontada a antologia de Heloisa
Buarque de Holanda, há três ou quatro décadas de poesia brasileira que não
foram colocadas entre duas capas; há de dezenas poetas brasileiros que não
foram justapostos. E isso se repete na crítica: não há simplesmente críticos que
tenham escrito sobre um número significativo de poetas contemporâneos,
exceto, talvez, sumariamente, numa obra histórica de mais fôlego. A crítica se
recusa a fazer seu trabalho. Uma consequência imediata é que os próprios
poetas são convocados para substituí-los e, quando isso acontece, um certo
grau de autopromoção se torna virtualmente inevitável. A poesia requer
esforço e empenho. É natural que quem a escreva acredite no seu trabalho e
que, mesmo que não faça a apologia de seus próprios textos, defenda os
princípios que o norteiam. Não é pecado, mas raramente é boa crítica. Se o
campo é abandonado pelos críticos aos poetas, a discussão se transforma, na
melhor das hipóteses, numa polêmica entre princípios e, na pior, numa disputa
entre personalidades, egos e arrogâncias particulares. E é assim que as coisas
estão, entre nós, há muito tempo. A não ser que os críticos --talvez uma nova
geração deles-- intervenham honestamente, apresentando critérios mais
objeticos, julgando mais equilibradamente, arriscando-se a errar, o ambiente
só vai piorar.

Junho de 1997
(LIVRO ABERTO No. 5, agosto de 97)
55) ESPLENDOR E GLÓRIA DA MPB

185
“O que será, que será/ que andam murmurando pelas alcovas/ que andam
sussurrando em versos e trovas...?” Esta adivinha, formulada em meados dos
anos 70, por Chico Buarque de Holanda, era na verdade uma pergunta
retórica, ou seja, uma indagação cuja resposta, por ser pública e notória, não
precisa ser enunciada. O país, ou melhor, aquilo que então parecia ser o país,
isto é, a classe média urbana liberal e sua intelectualidade (termo que incluía
dos alunos universitários aos seus professores, dos jornalistas aos seus
leitores), parou para ouvir essa banda passar cantando coisas que, no fundo,
não eram de amor, embora tampouco fossem propriamente de ódio, raiva ou
rancor: tratava-se de coisas de cansaço, exaustão, tédio. A resposta
implicitamente audível na própria pergunta era a de que ninguém mais queria
saber da censura, pois esta impedia todos de mandarem uma outra banda, a
militar, passar para sempre. O que a letra da canção dizia, ou melhor, o que
todo mundo ouvia, alto e bom som, nela era o seguinte: o país mudou,
modernizou-se e não quer mais temer nem ser tutelado por essas
sobrevivências uniformizadas do passado. A exigência difusa de uma
“Perestroika” brasileira, expressa publicamente em “À Flor da Terra”, foi algo
a um tempo tão intenso, generalizado, unânime, que, na década que lhe
restava, nossa ditadura militar se reduziu a uma sombra atenuada e senil de si
mesma, um espectro incapaz de assustar ou intimidar a população do país ou,
para ser exato, do país descrito acima.
A canção que se atribuiu e/ou à qual os ouvintes atribuíram a missão de
anunciar nossa entrada na era da transição rumo à democracia dificilmente
seria hoje em dia considerada uma obra excepcional. Mesmo no âmbito da
MPB ela se eclipsa diante de inúmeras outras. Ainda assim (se bem que menos
de dez anos depois já precisasse de notas de rodapé) ela cumpriu o papel de
canção certa na hora certa. O que deveria (mas não parece) retrospectivamente
ser espantoso é o fato de que uma questão política se expressasse tão natural e
inteligivelmente sob essa forma. O sucesso de “À Flor da Terra” marca o
momento preciso quando a MPB, chegando ao apogeu de sua popularidade,
desempenhava tarefas que, em outros cantos do planeta, não são
habitualmente delegadas à “chanson” ou à “pop song”.
Há exceções, é claro: Bob Dylan, Joan Baez e o festival de Woodstock
protestando contra a Guerra do Vietnã; o “Chant de Partisans” ou a “Bella,
ciao” incentivando respectivamente franceses e italianos a combater os
nazistas; Victor Jarra, Violeta Parra, Daniel Viglietti e a inescapável Mercedes
Sosa –com seu igualmente inescapável tambor— reclamando das injustiças

186
sociais de “nuestra América” –a das “venas abiertas”— e denunciando a
sanguinolência –como se esta fosse segredo para alguém— de suas ditaduras
militares etc. O que aconteceu no Brasil, porém, é diferente: a canção de
Chico Buarque não era um protesto explícito e, na relativa sutileza de sua
pergunta, retórica entrelia-se, além de um ataque implícito à censura e à
ditadura (tanto mais eficaz porque “encenava” no que não dizia a proibição de
dizê-lo transformando automaticamente quem quer que lhe decifrasse a
“mensagem”, ou seja, todo mundo, em co-autor desse não-dito escancarado), a
manifestação de uma vontade que, indo além do “contra”, afirmava, ou dava a
impressão de afirmar, de ser a favor de uma série de coisas. Em meados dos
anos 70, a MPB era o resultado consolidado de mais de quinze anos durante os
quais, na mão (e boca) de vários compositores e/ou cantores, ela se
transformara tanto na porta-voz de um programa sócio-cultural e político
difuso quanto na trilha sonora da imagem de Brasil que (sem ter realmente
sido formulada de uma maneira precisa) habitava, como aspiração otimista e
bem-intencionada, os corações e mentes da classe média urbana e liberal.
Enquanto combinação de poesia modernista e ritmos populares e nacionais
submetidos a um tratamento mais ou menos “culto” e internacional (sobretudo
jazzístico e norte-americano), a MPB desempenhou tarefas e ocupou, por um
quarto de século (digamos, de 1960 a 85), na cultura brasileira, um lugar
reservado, em outros países, à poesia, ao romance, ao ensaio, ao cinema.
Durante o período discutido, embora subdividida em variantes políticas ou
estéticas do mesmo “projeto nacional”, ela foi entendida como uma entidade
única. É fácil ver agora que tanto seus compositores quanto seu público a
sobrecarregaram de expectativas das quais ela jamais teria podido dar conta,
mas isto é menos culpa dela do ques das pessoas que ou não buscaram ou não
encontraram formas mais apropriadas e complexas de expressá-las. Seja como
for, sucumbindo ao peso dessas exigências desmesuradas ou devido ao
sucesso de sua difusão, as cancões da MPB já tinham, em torno de 1985, se
transformado em objetos diferentes e mais de acordo com o que se fazia no
resto do mundo.
O começo dessa MPB (que é, para todos os efeitos, a MPB e ponto) não
está em questão e se situa nos anos da era Kubischek quando Vinicius de
Morais, Tom Jobim e outros criaram a Bossa Nova. Seu final – como o final
do que quer que não acabe abruptamente, mas esmoreça e se metamorfoseie
até, descaracterizado, converter-se em algo diferente – não pode ser datado
com tanta precisão, mas uma pequena história talvez ilustre um momento do
processo que culminaria com o fim daquela MPB. Durante uma apresentação
qualquer num festival de jazz no Anhembi, assisti a uma cena ainda insólita
para mim: meia-dúzia de adolescentes (de 13/15 anos, porque dois decênios

187
atrás a adolescência acabava uns cinco anos mais cedo), em vez de ouvir em
silêncio o que estava sendo tocado/cantado, levantaram-se e começaram a
dançar. Eu não estava sozinho na minha surpresa, pois, havia na platéia um
compositor (creio que Jards Macalé) que ficou irritado o suficiente para passar
uma descompostura na garotada, dizendo que estava lá para OUVIR música e
não queria que o atrapalhassem. Naqueles dias –final de 77 ou começo de 78
— ouvir música e dançar eram atividades diferenciadas para as quais havia
lugares distintos e, até mesmo, músicas diversas. Podia-se até dançar ao som
de alguma canção da MPB em festas, boates, discotecas, mas ninguém
pensaria em fazê-lo num show de Chico ou Caetano, eventos que implicavam
outro tipo de atenção e certa solenidade. “Garota de Ipanema”, “Alegria,
Alegria”, “Domingo no Parque”, “Ponteio”, “Arrastão”, “Disparada”, “Rita”
etc. não foram realmente feitas para serem dançadas. Muito mais comumente
alguns amigos sentavam-se em roda, um deles dedilhava o violão e todos,
lembrando de cor letras longas e rebuscadas, cantavam em coro essas canções.
O que parecia, naquele festival de jazz, uma exceção desrespeitosa, invasiva e
idiótica naquele final de década, tornar-se-ia, em meados da seguinte, a regra
confirmada pelo surgimento e ascensão de todas as bandas mais ou menos
roqueiras, de Ultraje a Rigor, RPM e Titãs para baixo.
Para as pessoas cuja idade formativa mais ou menos coincide com esse
período (isto é, quem tenha nascido entre o fim da Segunda Guerra e o golpe
de 64), a MPB, mais que a prosa de Dalton Trevisan, Rubem Fonseca,
Antonio Callado, mais que a poesia dos concretos, do Violão de Rua, de
Gullar ou da “geração mimeógrafo”, mais que o cinema de Glauber, Sganzerla
e Bressane, foi a verdadeira e onipresente representante da cultura brasileira
de então. Prova disso é que personalidades respeitadas da alta cultura, como
Augusto de Campos, Walnice Nogueira Galvão, Roberto Schwartz ou
Gilberto Vasconcelos, intelectuais que, em condições habituais, discorriam
sobre Mallarmé, Brecht, Euclydes da Cunha ou o integralismo, não resistiram
à tentação de deixar temporariamente seus interesses específicos e escreveram
sobre a MPB. A opção por tal ou qual vertente, por esta ou por aquela canção
lhes (nos) parecia, com justiça, um ponto estética e politicamente central e
convergente, representativo e simbólico de todo o debate maior. Aliás, tendo
em vista que este último, antes de se desnaturar completamente e ser, para
todos os efeitos, descontinuado, não chegou a superar sua fase preliminar,
pode-se a rigor dizer que o único tema efetivamente discutido com um mínimo
de empenho foi mesmo a MPB. Assim, as canções compostas entre 1960-85
nos chegam acompanhadas de um legado de interpretações, de idéias boas ou
ruins e de “insights” numa medida que não tem semelhante no caso das outras
artes da época. O tropicalismo e seus criadores, que estão na casa dos 50 anos,

188
já dispõem de uma bibliografia passiva que os romancistas ou poetas da
mesma geração invejam em vão, pois o único literato vivo capaz de competir,
nesses termos, com os compositores é , do alto de seus quase 80 anos, João
Cabral de Melo Neto.
E não se trata de uma questão meramente quantitativa: os críticos
investiram vigor e massa encefálica na demonstração de que Chico era
superior a Caetano ou vice-versa ou, então, de que os prováveis ideários
subjacentes às suas canções não se contrapunham; os comentadores e
hermeneutas se revezaram tentando descobrir o que significava “o Sol nas
bancas de revista” e o que o “carcará” simbolizava; amizades se fizeram ou
(mais freqüentemente) se desfizeram em meio a sessões acaloradas nas quais
se discutia se as guitarras elétricas representavam ou não uma concessão
inadmissível ao “imperialismo cultural anglo-saxão”, se, em “Construção” ,
Chico se vendera ou não ao “formalismo vazio” dos concretos, se, apesar de
tudo, Caetano pregava ou não a revolução ao traduzir o slogan "socialismo ou
barbárie" por “bomba de hidrogênio, luxo para todos”. Que eu saiba, fora de
círculos estreitíssimos, ninguém neste país rompeu com a namorada ou passou
a virar a cara para o melhor amigo depois de descobrir que ele(a) gostava mais
de Drummond que de Cabral, de Graciliano Ramos que de Clarice Lispector,
de Bressane que de Glauber, da alegoria que da metáfora....
Convém, no entanto, lembrar que nem todas essas disputas, refregas e
pelejas decorriam somente de alguma espécie esotérica de sobre-interpretação
ou de uma variante exegética extrema. Tomar o partido (a expressão é esta
mesmo) de qualquer compositor era, particularmente nos anos 70, mais do que
torcer para o Flamengo ou para o Corinthianas, pois as tendências musicais
correspondiam muitas vezes a distintas orientações políticas. Consciente ou
inconscientemente, os principais compositores se identificaram ou foram
identificados com alguma(s) das infinitas subdivisões da esquerda nacional.
Assim, embora seja verdade também que a procura por MPB era ampla o
bastante para acolher até mesmo gente favorável à ditadura militar (como
Dom e Ravel que, aliás, fizeram sucesso considerável com “Eu te amo meu
Brasil...”), a MPB propriamente dita pertencia à oposição. Na segunda metade
dos anos 70, por exemplo, não constituía mistério maior descobrir a que grupo
do Movimento Estudantil um universitário pertencia: bastava perguntar o
nome de seu compositor favorito. Se dissesse Chico, ele simpatizava com a
Refazendo ou era do “Pecezão”; quem gostava de Geraldo Vandré andava
com os maoístas da Caminhando; e os defensores mais ardorosos de Caetano
(que, de quebra, também ouviam rock) estavam, no mínimo, próximos da
Libelu ou de algum outro grupelho trotskista. Infelizmente os desgastes das
memórias individuais inviabilizariam uma enquete que renderia resultados

189
interessantes: quantos estudantes ingressaram numa determinada tendência
não devido a uma convicção ideológica pré-formada, mas tão somente em
decorrência do tipo de MPB que se tocava nas suas festas? Só os
desinformados acham que os violões (ou guitarras) quebrados nos nossos
festivais não passavam de uma emulação de eventos semelhantes ocorridos em
palcos ianques: eles são, isto sim, o avatar inovadoramente brasileiro das
selvagens e intricadas de discussões travadas meio século antes nas reuniões
de um Politburo, de um Comitê Central ou do Comintern.
Não era, porém, exclusivamente no universo da macropolítica da micro-
esquerda que a MPB produzia ecos prolongados. Sua existência e sua
capacidade de acumular tamanha carga de sentidos não raro díspares e muitas
vezes disparatados colocava-a de um dos lados da linha que, nos anos 60,
separava duas gerações. Os adultos talvez até ouvissem, entre outras coisas,
canções brasileiras; mas os jovens se tornaram ouvintes da Bossa Nova, da
Jovem Guarda, da Tropicália (além, é claro, do pop internacional) de um
modo diferente. A música popular em geral passou a ocupar um lugar muito
maior e mais central na vida dos jovens e não há dúvida de que radinhos de
pilha, vitrolas, novos equipamentos de som, rádios e toca-fitas nos automóveis
bem como os shows ao vivo e a televisão, contribuíram, cada qual ao seu
modo, para isso. Esses foram os tempos quando os jovens se transformaram
em criadores e/ou adeptos de uma subcultura diferenciada da cultura de seus
pais e, concomitantemente, num segmento especializado e promissor do
mercado. Sua subcultura era também uma ruidosa, explícita e voluntária
ruptura sócio-política com os hábitos ou estilos de vida da geração mais velha
e estava associada a outras tantas revoltas em áreas como a da sexualidade.
Rupturas desse gênero não acontecem a toda hora nem entre todas as
gerações, uma constatação que ajuda a explicar o papel especial, se bem que
temporário, desempenhado pela MPB nos seus 25 anos de (por assim dizer)
esplendor e glória.
A explicação principal, contudo, sem desmerecer os talentos e realizações de
nossos letristas e/ou compositores e/ou intérpretes, é infelizmente menos
gloriosa. Muita gente que cresceu imersa naquela MPB sente, quando volta a
ouvir com alguma atenção suas canções favoritas do passado, um misto de
decepção e constrangimento. “Como pude gostar disso?” é uma frase que, sem
confessá-lo em público, inúmeras pessoas que têm hoje algo entre 35 e 55
anos devem ter murmurado minutos depois de seu CD Player começar a tocar
“Odara” , “Geni” ou uma faixa de “Clube da Esquina”. Não há como fugir aos
fatos: a maioria das canções que pareciam importantíssimas, autênticas e
geniais obras-primas, não resiste a uma nova audição. O lugar ocupado pela
MPB de então ou pela música atual tanto na vida de sua audiência de outrora

190
quanto na da atual é outro e mais modesto: ninguém mais a discute
apaixonadamente. Nós, porém, não estávamos enganados quando as achamos
boas, pois elas eram boas, só que, com o tempo, tornaram-se ruins. É quase
como se elas só fizessem sentido quando tocadas numa vitrola ou no rádio de
um DKW, de um Simca Chambord, de um Aero Willis e ouvidas por gente
que usava calças boca-de-sino multicoloridas ou batas indianas e falava mal
de Richars Nixon e do general Medicci. Há obras que são boas num contexto e
deixam de sê-lo quando este muda. Há outras que, de um modo misterioso,
encapsulam em si o que seu contexto possuía de relevante e, sobrevivendo
com ele, melhoram a cada ano que passa. Praticamente todas as cancões são
apenas isso: canções. Um contexto cultural de exceção no qual se mesclavam
modernização, urbanização, classe-medianização, ditadura militar, discussões
políticas, uma alta cultura mal divulgada etc., um contexto cultural assim
pediu à MPB coisas impossíveis e o fez porque as demais artes e disciplinas
ou não se encontravam num momento particularmente feliz, ou não
conseguiam, com a urgência e clareza necessárias, chegar ao público. Em
outras palavras, a MPB parecia imensa porque, diante da avalanche de
desafios, o resto da cultura encolhera-se assustadamente. Não que, desde
então, a cultura tenha crescido ou melhorado: acontece que ouvir os velhos
sucessos com um ouvido que não seja apenas o da memória, faz com que eles
se aproximem mais realisticamente de suas proporções. Que sob a decepção
posterior dos fãs de outrora da MPB se possa, no entanto, discernir uma ponta
residual de nostalgia por tempos que tais ou quais canções ainda envolvem
numa certa aura não é, afinal, o menor de seus méritos.

(LIVRO ABERTO No. 7, março de 98)


56) PREVISÕES

191
O ano 1000 da era cristã foi comemorado apenas numa pequena região do
planeta, por uma fração reduzida da humanidade. A data só tinha significado
para uma cristandade sitiada, numa parte da Europa, por pagãos do Norte,
invasores nômades ao Leste e muçulmanos ao Sul. Meio milênio mais tarde, a
cristandade começou sua conquista do mundo rebatizando-se aos poucos de
Ocidente e impondo seu calendário. O ano 2000, embora longe de gerar a
ansiedade da virada anterior de milênio, suscitará uma comemoração mais ou
menos planetária. O ano 1000 foi precedido de profecias apocalípticas. O que
acontecerá no ano 2000 e depois tem sido tema para escritores, economistas,
politicólogos e cineastas. Todo um gênero literário nasceu dessas
especulações: a ficção-científica.
Dois de seus primeiros praticantes, o francês Jules Verne e o inglês H.G.
Wells, fizeram predições interessantes. Verne concentrou-se na evolução da
tecnologia e os desenvolvimentos que tematizou concretizaram-se antes do
que se previa. A viagem à lua de Wells também é coisa do passado. Mas este,
em "A Máquina do Tempo", abordou as possíveis consequências de um
aprofundamento do abismo entre as classes, imaginando que ele chegaria a
gerar uma mutação que subdividiria a humanidade em duas espécies distintas.
Num país como o Brasil, isto talvez não esteja tão longe de acontecer.
No entanto, as três obras de antecipação mais discutidas pertencem ao que
poderíamos chamar de ficção científico-política. A primeira delas é "Nós" do
russo Ievguêni Zamiátin que, por sua vez, inspirou as duas outras, "Admirável
Mundo Novo", de Aldous Huxley, e "1984", de George Orwell, ambos autores
ingleses.
As três imaginavam qual seria o destino do homem num mundo concebido
segundo as fórmulas dessa invenção particularmente moderna: a engenharia
social. Seu pano de fundo era o totalitarismo e todas se mostravam
profundamente pessimistas.
Hiroshima e Nagasaki, em 1945, realimentaram a ficção-científica com o
elemento central da ansiedade do primeiro milênio, pois a Bomba
transformara, durante a Guerra Fria, o apocalipse numa possibilidade real.
Mas em 1989 aconteceu o que nenhum escritor do ramo ousara profetizar: o
bloco comunista começou a desmoronar e, pouco depois, Leningrado foi
desrebatizada, voltando a se chamar São Petersburgo. Nos Bálcãs, o futuro
voltou ao passado, primeiro a 1941 e, agora, a 1912 ou mesmo antes. No
Cáucaso e na África Central o que está ocorrendo é um renascimento do
neolítico ou talvez do paleolítico, com guerras tribais de todos contra todos,
como já dizia, séculos atrás, Thomas Hobbes. Isso, novamente, quase ninguém
previu.

192
O passado, aliás, tornou-se no século 20 um assunto muito mais palpitante
do que o futuro, principalmente porque a arqueologia produziu mais
novidades do que a política ou a ciência. Não é a toa, portanto, que os livros
dedicados a recontar a história de acordo com novas teorias e conhecimentos
–"O Nome da Rosa" de Umberto Eco, ou "Memórias de Adriano" de
Marguerite Yourcenar– obtiveram mais sucesso que obras proféticas e/ou
especulativas. Assim, as fantasias futuristas deslocaram-se dos livros para o
cinema. Não há uma única obra literária desse gênero que tenha conseguido a
repercussão do "2001 - Uma Odisséia no Espaço", filme de Stanley Kubrick.
No entanto, seu porvir asséptico e seu imenso computador rebelde parecem
hoje obsoletos. Afinal, os anos 80 domesticaram definitivamente o
computador e a nova consciência ecológica faz muita gente imaginar o
próximo milênio como algo superpovoado, poluído e sujo. A encarnação mais
durável, até o momento, da fantasia futurista se encontra em "Blade Runner"
de Ridley Scott, que tematiza não apenas a degradação ambiental, mas
também a engenharia genética. O autor do livro em que se baseou o filme,
Phillip K. Dick, foi dos poucos que, na ficção-científica, aproximou-se da
profecia ao tratar tanto desses assuntos como da importância crescente das
drogas no mundo moderno.
As previsões mais exatas, contudo, foram recentemente realizadas não por
um futurólogo profissional nem por um roteirista hollywoodiano, mas pelo
poeta e ensaísta alemão Hans Magnus Enzensberger. O posfácio ao seu "A
Outra Europa" é uma reportagem ficcional extraída do "The New New
Yorker" de 21 de fevereiro de 2006. O repórter americano que a escreve fala
de Ceausescu, o ditador comunista da Romênia: "Aquele velho gângster
demoliu o que pôde, até ser morto à tiros por seu próprio pessoal". Só que
Enzensberger escreveu de fato seu texto em 1987, enquanto Ceausescu foi
morto em fins de 1989. A reportagem refere-se também às ruínas do muro de
Berlim e à abolição do tabagismo nos EUA. Tal clarividência é rara, mas
existe. E onde menos se espera.

(Folha de S. Paulo, 11/7/94)

57) UMA DEFESA DA FOFOCA*

**
Escrito por ocasião da morte de Lady Di, num acidente automobilístico em Paris, supostamente pelo fato de
estar sendo perseguida por paparazzi.

193
O homem, como alguns insetos, vários pássaros e muitos de seus primos, os
primatas, é um ser social. Dois detalhes, no entanto, o diferenciam: a fala e o
sexo feito preferencialmente às escondidas. Desde que o ser humano é
humano, aquela tem sido usada para tornar pública a privacidade deste,
sobretudo quando há em jogo algum tipo de transgressão. Tão logo um Cro-
Magnon qualquer começou a combinar vogais e consoantes, antes mesmo de
arriscar uma frase como “Vamos acender uma fogueira para assar este
mamute recém-caçado”, ele já dispunha de um tema preferencial, qual seja:
“Sabe o que aqueles dois estão fazendo lá no fundo da caverna vizinha?”
Quem achar essa hipótese um pastiche anedótico, que leia o antropólogo
Napoleon Chagnon. O grande especialista nos índios Ianomamo assegura que,
se existe um lugar impossível para o adultério, esse lugar é a floresta tropical,
pois nenhum casal ilícito pode sair discretamente de sua taba sem ser seguido
sorrateiramente por um bando de curumins disposto a voltar correndo e contar
à tribo inteira o que testemunhou. Em resumo, basta haver linguagem
articulada e libido praticada privadamente para que haja fofocas.
Restam, porém, mais duas pré-condições: uma é a capacidade de mentir, ou
pelo menos, exagerar, que já vem mesmo incluída, como um brinde, na
linguagem; a outra é um padrão característico de comportamento sexual que
desperte ainda mais a curiosidade geral. Segundo o etno-biólogo Jarred
Diamond, o padrão humano não poderia, neste sentido, ser mais ideal, pois
tudo indica que o macaco que ele chama de o “terceiro chimpanzé” associa, à
monogamia habitual, uma poligamia oportunista.
Os antigos gregos já tinham a decência de reconhecer isso na sua mitologia,
pois Zeus, o “big boss” do Olimpo, só possuía uma esposa, Hera que, no
entanto, passava parte substancial de sua vida eterna perseguindo os
“casinhos” do maridão. E Afrodite, a deusa do amor, que havia se casado com
um ferreiro manco, o deus Vulcano, deu também sua escapada com Ares, o
másculo deus da gerra, escapada que, como no caso dos Ianomamo, foi
imediatamente descoberta e comentada, entre dois goles de néctar ou
hidromel, por toda a boa sociedade divina.
No mundo inferior dos homens, a primeira epopéia, a “Ilíada”, ocupa-se
principalmente das batalhas dos gregos contra os troianos, embora mesmo
nela haja espaço para se insinuar um rápido “affair” entre Aquiles e Pátroclos
e, a bem da verdade, não só a guerra de Tróia havia se originado num
adultério (decorrente, por sua vez, de um concurso de beleza fraudado), como
também a trama do poema de Homero é desencadeada pelo desentendimento
entre Aquiles e Agamenon. E qual havia sido o motivo? Obviamente uma

194
mulher: Criseida. Se isso não é mexerico, então o finado Ibrahim Sued era um
poeta épico e os Departamentos de Letras Clássicas não deveriam esperar
mais para acrescentar, ao seu currículo básico, os tablóides britânicos.
Boa parte da epopéia homérica seguinte, a Odisséia, consiste na narrativa
das deusas, feiticeiras e rainhas com as quais Odisseu deu um tempinho
enquanto alegava, como a média dos maridos, ter ficado (dez anos) preso num
engarrafamento daqueles no mar Egeu. E, se bem que Robert Graves tivesse
sugerido que o texto poderia ter tido não um autor, mas uma autora, a história
paralela dos vinte anos de fidelidade da mulher de Odisseu, Penélope, deve
levar o leitor sensato a entrever a mão censória do marido na versão que nos
chegou.
Depois dos gregos Heródoto, o “pai da mentira”, que estava mais para guia
turístico, e Tucídides, demasiadamente ocupado com a Guerra do Peloponeso,
vieram os historiadores latinos que, por sorte, tinham uma família real ou,
mais precisamente, imperial para bisbilhotar. Assim, o “best-seller” já quase
duplamente milenar, “Os Doze Césares” de Suetônio, é basicamente uma
crônica dos escândalos da corte. Tácito nem sempre é melhor —se é que isso é
ruim— e, no começo da era bizantina, 1.500 anos atrás, um outro historiador,
Procópio, superou a todos escrevendo sua “História Secreta” (que título,
não?), cujo assunto central era a (segundo ele) escabrosa vida íntima da
imperatriz Teodora.
Alguns séculos depois surgiu um poema narrativo que muitos consideram
não só o melhor da Idade Média, mas também o ápice da literatura ocidental: a
“Divina Comédia” de Dante Alighieri. Nela, o italiano distribuiu tanto seus
conhecidos quanto pessoas das quais só ouvira falar pelo Inferno, Purgatório e
Paraíso, contando direitinho por que cada qual fora parar onde parou. Não é à
toa que um dos maiores maiores críticos atuais, George Steiner, apelidou a
obra de “the gossip of eternity”, isto é, “o mexerico da eternidade”.
A fofoca, além de ter uma trajetória respeitável, é uma das responsáveis
pela existência da literatura e da historiografia, além da biografia, que é a
fofoca respeitável. Sua necessidade em nossa espécie é tão patente que
chegamos a inventar algo chamado genericamente de ficção só para podermos
nos intrometer na vida privada de pessoas que nem sequer existem.
Perseguir uma princesa em alta velocidade para obter algumas fotos é
naturalmente um abuso e vasculhar joalherias para saber que colar lhe deu seu
namorado, mais do que invasivo, mais do que de mau-gosto, é profundamente
tedioso. Mas afirmar —da boca para fora— que não se deve invadir a
intimidade dos ricos, famosos e poderosos é pura hipocrisia. Uma hipocrisia
destinada, aliás, a salvaguardar a hipocrisia deles que, ditando, ao comum dos

195
mortais, padrões de moralidade e comportamento, raramente se julgam
obrigados a cumpri-los.
Sempre que a imprensa dita marrom flagra, agarrando um garoto, um padre
que prega a castidade ou, entrando num motel com uma loira oxigenada, um
pastor que combate a pornografia ou, numa suruba, um deputado que vota
contra o aborto, ela presta à sociedade um serviço inestimável. Há algo de
saudavelmente humano, civilizado e democrático nos mexericos, fofocas,
fuxicos, diz-que-diz-que, boatos, rumores e bisbilhotice, porque eles
reafirmam que reis e rainhas, príncipes e princesas, presidentes e papas,
atores, atrizes, popstars e topmodels são gente de carne e osso como todos nós.

(Folha de S. Paulo, 7/9/97)

58) NORMA CULTA, GÍRIA, LITERATURA

196
Reclama-se com frequência --e há um bom tempo também-- do fato de que
os estudantes, mesmo os universitários, não dominam mais o português
padrão, a norma culta ou literária. Por outro lado, gente que se poderia
genericamente denominar de populista advoga a irrelevância desse domínio,
dizendo que essa variante do idioma não passa do dialeto de uma elite e que as
outras variantes, mais populares, são igualmente boas ou, talvez, melhores.
Esse ponto de vista demagógico, mesmo se estivesse correto em termos
linguísticos, não justificaria nenhum tipo de ignorância, na medida em que é
sempre vantajoso para as pessoas se tornarem fluentes em mais de um
"dialeto" de sua própria língua, algo que lhes faculta um acesso privilegiado a
diferentes grupos sociais. Esse ponto de vista, porém, é equivocado, em
primeiro lugar, porque a norma culta não é uma variante como qualquer outra,
mas a mais completa, expressiva, precisa e rebuscada dentre todas, devido
justamente ao trabalho sucessivo e cumulativo de gerações de escritores,
gramáticos etc.; e, em segundo, porque no Brasil ela não é mais patrimônio de
uma elite política ou econômica.
Esse estado de coisas decorre em boa parte, como se sabe, do colapso do
sistema educacional brasileiro. Mas, se se tratasse apenas disso, não se
apresentariam dois outros fenômenos concomitantes. Um é o empobrecimento
absoluto do português das elites com acesso à rede privada de ensino, um
português que, agora sim, em quase nada supera as variantes praticadas pelas
massas despossuídas. O outro é o ainda mais surpreendente empobrecimento
da gíria, ou melhor, das gírias. A conjunção de ambos os fatos aponta para
uma relação profundamente degradada de toda a população com sua língua.
A norma culta desenvolvida pelas elites pretende normalmente ser um
instrumento melhor do que qualquer variante setorial ou regional, um
instrumento capaz, entre outras coisas, de absorver, quando preciso, as
nuances específicas de todas as outras variantes. Ela também serve muitas
vezes de instância legitimadora das elites às quais agrada afirmar que não
estão por cima apenas por segurarem as rédeas do poder ou da economia, mas
sobretudo porque dispõem de uma cultura pretensamente superior,
evidenciável na sua maneira de se expressar. Por detestável que isso possa
parecer, elites como as européias fizeram um bom, embora interesseiro,
trabalho ao aperfeiçoar suas respectivas normas cultas -- e o próprio fato de se
sentirem obrigadas a buscar alguma legitimidade, que não se limitasse à força
pura e simples, já era um fato positivo que contribuiu, pelo menos tenuemente,
para a democratização de suas sociedades. Já a relação das elites brasileiras

197
com a norma culta indica que elas sentem uma necessidade cada vez menor de
legitimação.
A gíria, por sua vez, é tradicionalmente a fala mais ou menos cifrada de um
grupo ou setor --profissional, etário, social, fora-da-lei etc.-- que serve tanto
para reforçar sua identidade e coesão interna quanto para fazer a triagem dos
que estão fora e eventualmente excluí-los. Quanto mais fechado um grupo,
mais impenetrável a sua gíria e sabe-se que, em muitas sociedades, existem
gírias características de bandidos, prostitutas, estudantes universitários,
soldados... Estas gírias, aos poucos, penetram os demais registros de uma
determinada língua, enriquecendo-os. A literatura, especificamente o romance,
desempenhou o papel histórico de promover esta interpenetração. Nos Estados
Unidos, foi o romance policial que se distinguiu nessa função, mas na França,
um país cuja norma culta é extremamente normativizada foi um de seus dois
ou três maiores romancistas modernos, Louis Ferdinand Céline, que cuidou de
realizar essa tarefa.
E no Brasil? Bom, aqui o romance policial urbano virtualmente inexiste. Um
Rubem Fonseca recorre pouco à gíria e, quando o faz, usa-lhe uma versão
atenuadíssima. Plínio Marcos, a única verdadeira exceção, ficou relegado a
uma posição marginal na literatura e no teatro brasileiros, enquanto o escritor
que melhor sintetizou variantes distintas do português do Brasil, Guimarães
Rosa, trabalhou sobretudo com dialetos regionais, não com as falas de grupos
diferentes que convivessem num mesmo lugar. E, para falar a verdade, nem
haveria como fazer algo diverso, pois, com exceção das do Rio de Janeiro, as
gírias brasileiras são minguadas e pobres. Para se verificar isto, basta
compará-las com a riqueza do "slang" americano, do "argot" parisiense, do
"lunfardo" portenho. O Rio é um caso à parte, mas não muito. Ser uma cidade
portuária onde se mesclam vários idiomas já ajuda, mas a razão central de o
Rio ter algum tipo mais interessante de gíria deve-se antes à coexistência
muito mais próxima e forçada da população do morro com a que vive a beira-
mar. É possível, no entanto, que o que se gesta continuamente lá já não seja
uma gíria de grupo, mas o dialeto próprio dessa cidade. Ainda assim, é um
pouco mais interessante do que o quê se fala no resto do país.
Seja como for, a degradação da norma culta e a da gíria são fenômenos
paralelos que parecem também ser irreversíveis. Sem a combinação de ambas,
num bom estado, raramente costumam aparecer obras realmente significativas
de ficção. Essa pode ser uma explicação para o nível melancólico do romance
brasileiro atual.

(REVISTA ‘E’, 1997)


59) A MORTE DE UM PATAXÓ

198
Mendigos, como todo mundo sabe (mas ninguém achará de bom tom
declarar -- não, pelo menos, esta semana), são criaturas repelentes. Acossam-
nos nos cruzamentos, infestam nossas redondezas, deixam, por onde passam,
um rastro de garrafas quebradas e restos de comida, defecam diante de nossas
portas. Se, outrora, o solitário mendigo do bairro era uma figura quase
folclórica, atualmente as hordas ou as imensas famílias de rua --"meu Deus,
como essa gente procria!"-- são uma ameaça.
Cerca de vinte anos atrás, no meu bairro, um "boyzinho", dirigindo em alta
velocidade, perdeu o controle de seu carro, abalroou e matou alguns mendigos
na calçada. Com o veículo destruído, ele ficou por lá, enquanto uma multidão
se aglomerava ao redor, até que sua mãe chegou e o resgatou, arrematando:
"Vamos embora, meu filho, que aqui só tem índio".
Cinco rapazes de classe média são acusados de terem assassinado, em
Brasília, um cidadão brasileiro que, perante a lei, é igual a eles. ("A lei, ora, a
lei", disse nosso grande ditador.) Alegam que foi "brincadeira". Qualquer
criança, no entanto, sabe quanto dói queimar um dedinho que seja. OK:
adolescentes do sexo masculino são seres problemáticos e agressivos.
Antigamente os adultos tinham o recurso de enfiá-los em uniformes e
despachá-los para que resolvessem seus choques hormonais entre gente
remota. Hoje em dia lhes dão carteira de motorista e carta branca. (Nossa
verdadeira clivagem de classes está entre os que têm e os que não têm carro; e
o melhor exemplo de impunidade brasileira são as leis de trânsito e sua
aplicação.)*
Curiosamente, o azar dos rapazes é que, por engano, a vítima em questão era
um índio, ou seja, um membro de um grupo maltratado, mas que dispõe de
algumas organizações de defesa e de alguma atenção internacional. É
perfeitamente plausível que os acusados só quisessem torturar um mendigo,
vê-lo queimar um pouco, sem sequer pensar em matá-lo, porque, para todos os
efeitos, ele nem estava de fato vivo, ele não era como nós, "a gente" (essa
curiosa forma pronominal brasileira). Seus pais seguramente não lhes
disseram que "aqui só tem índio", nem lhes sugeriram que exterminassem
aqueles que não são "a gente". Mas talvez tenham involuntariamente lhes
passado a idéia de que no Brasil não há cidadãos no nível da lei e sim, apenas
"a gente", acima da lei, e o resto, abaixo da lei. Quem sabe, esqueceram-se
também de enfatizar que a pobreza é um problema. A pobreza, bem entendido,
não os pobres.
Generaliza-se, entre os privilegiados deste país, a noção de que os
miseráveis são uma raça inferior, um bando de sub-humanos
**
O novo código de trânsito é posterior à publicação deste texto.

199
("Untermenschen", em alemão), uma espécie animal diferente. O Brasil não
sofre dos problemas que assolam outras nações: nada, aqui, de conflitos
étnicos explosivos, de ocupação estrangeira, de inimigos nas fronteiras, de
territórios contestados. Temos, em compensação, a miséria, se bem que nossos
miseráveis, segundo todos os padrões, sejam comportadíssimos.
Reduzir a inflação, aumentar a produção, racionalizar o Estado são,
obviamente, metas necessárias e louváveis. Há, no entanto, uma outra, que
precisa ser claramente formulada, professada, difundida, pois só ela pode
legitimar a própria existência do país: a abolição da miséria. Se a geração que
está no poder não se aplicar explicíta e urgentemente à meta prioritária de
eliminar a miséria, muitos de seus filhos, descobrindo um atalho fácil, vão se
dedicar, cada vez mais, à eliminação dos miseráveis.

(Folha de S. Paulo, 27/4/97)

60) PROPAGANDA ELEITORAL EM SÃO PAULO

200
Um dos fatos que, nas atuais eleições municipais paulistanas, mais têm
inquietado os setores pensantes é o do papel crescente, talvez preponderante
nelas, da publicidade que estaria se sobrepondo à discussão político-
ideológica. Eles se espantam, por exemplo, diante da constatação de que os
usuários de um péssimo sistema de transportes coletivos preferem, contra
todas as evidências racionais, eleger para a prefeitura um candidato que
enfatiza --sem que se saiba se pode realizá-las-- obras viárias que, na melhor
das hipóteses, beneficiarão apenas os proprietários de veículos privados.
As críticas às deformações acarretadas pela publicidade eleitoral (por meio
da qual se vende um candidato a prefeito como se fosse um produto qualquer
de consumo), embora fundamentalmente corretas, parecem insuficientes para
dar conta da simples enormidade do paradoxo. Pois mesmo em sociedades
melhores do que a nossa, o que ocorre é, em linhas gerais, semelhante. Nem
há como se esperar que, em países voltados para a produção e geralmente
descrentes da política, o grosso do "know how" publicitário não esteja
concentrado na esfera econômica. Ainda assim, o caso brasileiro,
exemplificado em São Paulo, está longe de ser normal.
O Brasil conseguiu, como se sabe, efetuar uma das duas ou três piores
distribuições de renda do planeta, um feito que resultou numa espécie de
divisão tripartite do país: uma elite mínima; uma classe média minguada e
frágil; e uma imensa massa de despossuídos. A retórica neoliberal dominante
não esconde que qualquer coisa semelhante à economia de mercado só existe
concretamente no Brasil de cima. Mas há um --e apenas um-- produto cujo
consumo é provavelmente mais generalizado aqui do que em qualquer outra
parte do mundo: a própria publicidade.
Habitualmente, ela serve aos produtos ao mesmo tempo em que se vende
como qualquer um deles. Acontece que, no Primeiro Mundo, ela é subsidiária
diante do que vende, ou seja, sua função principal é a de anunciar bens e
serviços para um público que, em sua maioria, pode adquiri-los. Nos países
absolutamente pobres ela deve ser tão rara quanto são as mercadorias. Já entre
nós, seu contexto e o modo como ocorre reproduzem as deformações do país.
Dirigida, em princípio, aos ricos, ela atinge a classe média e praticamente
todos os miseráveis. Para os primeiros ela é transitiva e desempenha suas
tarefas corriqueiras enquanto entre os "remediados" ela se traduz no misto de
frustração e ressentimento que é o caldo de cultura clássico do fascismo.
Chegando ao grosso dos que estão à margem do mercado, porém, ela se
torna uma entidade misteriosa, auto-centrada e afásica, que se anuncia
perpétua e intransitivamente sem ter outro assunto real além dela mesma: a

201
publicidade em si. Trata-se de um fenômeno original, absolutamente novo. O
universo paralelo, de ficção científica, decorrente de sua interrelação com um
público majoritário de não-consumidores, é o que gera não só os pretensos
"charme", imaginação e criatividade de nossa publicidade (tão superiores,
como se diz, à aridez de sua correspondente européia ou americana, que se
concentra na divulgação de aspectos palpáveis e/ou mensuráveis do produto)
como também a diferença brasileira em face do seu papel na política dos
países abastados.
As eleições paulistanas foram em boa parte decididas pela publicidade, só
que a massa de eleitores não se compõe --nem mesmo na cidade mais afluente
do país-- de gente que, persuadida pelos anúncios televisivos, vai ao Shopping
comprar tal ou qual produto. Presume-se que as pessoas capazes de fazer isso
acabem, ao testar no médio ou longo prazo a adequação do anúncio ao
produto, desconfiando da publicidade em geral. O que sucede entre nós,
porém, é muito pior. E a propaganda malufista parece ter descoberto
instintivamente que, para seu público principal, a idéia de adequação entre
publicidade e produto não existe. O que está em jogo, portanto, é algo distinto:
a maioria dos eleitores em questão está habituada a julgar não o produto mas
somente o anúncio.
Daí, novamente, a genialidade intuitiva da campanha malufista: como os
eleitores em sua maioria estão acostumados apenas a ver --e não a usar-- os
produtos de que fala a publicidade, eles tendem instintivamente a escolher não
serviços que apesar de essenciais são quase invisíveis, mas antes obras
públicas explícitas e, entre essas, não tanto o metrô --um sistema de galerias
subterrâneas cujo conjunto dificilmente é visualizável-- quanto, por mais
hipotético que seja (porque isso pouco lhes importa), algo muito mais
tridimensional e fotogênico: o "fura-fila".
A campanha malufista, além do mais, intuiu corretamente que certos mitos
nacionais também trabalham a favor do que quer que se assemelhe a viadutos,
vias expressas etc.: o arquétipo solar de um país que disporia de imensos
espaços verticais e horizontais a serem ocupados ou colonizados; a idéia de
uma cidade que pretende "arranhar os céus" com suas edificações; o equívoco
de se imaginar que o espaço urbano pertence igualmente a todos; e a
consequente resistência, por parte da massa despossuída, a ser confinada às
catacumbas metroviárias. Nesse quadro, é inteiramente plausível que um
eleitor pobre demais para comprar qualquer veículo, mas exposto o tempo
todo a comerciais, outdoors e anúncios de automóveis, vote não num
candidato que proponha melhorias ou serviços factíveis e necessários, mas sim
numa campanha que, associando-se complementar e parasitariamente à

202
publicidade comercial, anuncie obras virtuais destinadas a facilitar a
circulação dos carros que ele não tem nem terá jamais.

(Folha de S. Paulo, 17/11/96)

61) REAGE SÃO PAULO

203
A meta do Reage São Paulo, ou seja, exigir do Estado maior segurança
contra a criminalidade, não poderia ser mais legítima, pois, por definição, é
sobretudo para isso que serve qualquer Estado não tirânico. Mas a
criminalidade vem produzindo milhares de vítimas anuais há muito tempo e
esse movimento, cujos participantes pertencem majoritariamente à classe
média, só se constituiu recentemente, em decorrência da morte violenta de
alguns jovens dessa mesma classe.
Acontece que exigências ligadas à justiça viabilizam-se somente quando
representam a totalidade dos cidadãos. Isso, claro, se a sociedade se pretender
democrática. E, no entanto, o Reage São Paulo, tanto na data em que surge,
quanto em seu espírito, aproxima-se perigosamente de uma das propostas
menos democráticas que já se fizeram publicamente neste país: a idéia que
tiveram alguns bairros elegantes dessa capital de pagar um "extra" à polícia
em troca de uma vigilância privilegiada. Além disso, ele veio cercado de
invectivas e diatribes proto-facistas contra os direitos humanos e defensores
seus como D. Paulo Evaristo Arns.
A criminalidade e a violência têm inúmeras causas e a resposta mais simples
e imediata que se pode dar a elas é policial e penal. No limite, porém, corre-se
o risco de se transformar uma sociedade aberta em totalitária e, se as vítimas
da criminalidade privada naquela se contam aos milhares, os atingidos por
estados criminosos chegam aos milhões. Como nenhuma polícia é capaz de
resolver todos os problemas que se originam na política, uma sociedade que
queira se manter aberta e deseje ao mesmo tempo melhorar a segurança
individual não tem outra escolha que a de levar a mão ao bolso e começar a
investir em medidas redistributivas
O senso-comum basta para evidenciar que este é o caso do Brasil, onde a
classe média não parece ter outro projeto político que o do consumismo
escancarado associado à exclusão total da maior parte da população do paraíso
dos shoppings centers. Nossa classe média talvez não note, mas essa
combinação se assemelha à atitude da moça que, usando trajes sumários,
resolve passear sozinha, à noite, num bairro perigoso e reclama em seguida do
estupro. Culpada ela não é, mas ingênua. E esse tipo de ingenuidade subjaz ao
Reage São Paulo, um movimento que fala em nome de uma classe que nem é
grande o bastante para pesar de fato na política eleitoral, nem rica o suficiente
para adquirir os privilégios com que talvez sonhe.
Distante do verdadeiro poder, acuada pela violência e pelo próprio
empobrecimento, comprimida entre a massa enfurecível de despossuídos e
uma elite voraz que dispõe, entre outras coisas, de condomínios fechados e de

204
um verdadeiro exército de guardas privados, a classe média brasileira, se
quiser de fato se proteger, terá que formular projetos que não representem
apenas a ela mesma. Embora não o entenda, ela é a maior beneficiária
potencial dos direitos humanos e da legalidade num país onde os ricos estão
acima da lei e os pobres, abaixo dela, um país onde um batedor de carteiras
pode ser extra-judicialmente executado enquanto os políticos prestam
ruidosamente solidariedade a um ministro cujo filho é acusado de atropelar e
matar uma pessoa, mas não ao pai do atropelado. Cabe a essa classe média não
combater os direitos humanos, mas estender sua implementação aos de baixo e
obrigar os de cima a respeitá-los, por exemplo, exigindo que garotos 15/16
anos que dirigem sem carta seus carros japoneses --e seus respectivos pais--
sejam punidos tão duramente quanto se deseja castigar os menores infratores
da periferia.
Finalmente, talvez convenha ao pessoal representado pelo Reage São Paulo
não só exigir mais policiamente e punição, mas começar igualmente a
arrecadar e investir recursos para educar, alimentar e abrigar os meninos de
rua que, caso contrário, daqui a alguns anos estarão matando seus filhos. Tudo
isso custará muito, mas ninguém nunca disse que democracia e segurança
sairiam de graça.

(Folha de S. Paulo, 29/9/96)

62) DO NOTICIÁRIO FUTURO*

**
A edição de número 25 mil da Folha de S. Paulo (13/9/97) estampou em cada um de seus cadernos uma
notícia, reportagem ou comentário ficcional referente à edição de número 50 mil (de 23/2/2066). O presente
texto foi publicado no caderno “São Paulo”.

205
“Assaltantes escapam à perseguição” (São Paulo, 23/2/2066)

Após intensa perseguição, que começou nas torres gêmeas do condomínio


fechado Ibirapuera, um grupo de assaltantes escapou, nas proximidades do
shopping center Cidade Universitária, aos helicópteros de combate da Guarda
Metropolitana Paulistana. Obuses perdidos durante o tiroteio atingiram vários
dos veículos presos no congestionamento monstro de cerca de 1.500 km, que
perdura há mais de um mês em São Paulo. Apesar da blindagem obrigatória,
23 dentre os ocupantes dos carros morreram imediatamente e 11 dos que
sofreram ferimentos estão internados em estado grave na UTI do Hospital
Privado das Clínicas. Houve mais de cem outros feridos. Devido, porém, a
problemas de carência ou de atraso nas mensalidades de seus planos de saúde,
eles continuam agonizando no local.
Essa é a primeira vez, neste ano, que as Torres Gêmeas são assaltadas.
Erguidas, nos anos 40, no antigo parque Ibirapuera (doado pela prefeitura à
empreiteira beneficente da Fundação para a Construção de Moradias
Populares da Câmara Municipal), elas são o refúgio da alta classe média da
capital. Tudo indica que os ladrões buscavam obras do MAM e Masp, museus
já fechados, cujos acervos decoram a recepção das Torres e os apartamentos
dos moradores. Os habitantes da região, preocupados com a intensificação do
tiroteio, chamaram a GMP às 14h30 de ontem. "Geralmente são só os
adolescentes do condomínio atirando nas famílias de mendigos que se abrigam
do lado de fora das muralhas eletrificadas", disse um observador que não quis
se identificar, "mas quando ouvimos as bazucas e os mísseis terra-terra,
concluímos que havia alguma coisa no ar".
A GMP chegou às Torres Gêmeas às 17h, mas foi impedida de entrar pela
segurança interna, pois esse é um dos condomínios aos quais o imperador
Fernando 3º Collor concedeu autonomia administrativa. O tenente-coronel
Máicou Géquiçon de Souza declarou que muitos moradores devem ter sido
atingidos pelo fogo cruzado, alguns provavelmente se aproveitando da
situação para acertar contas com vizinhos. A assessoria de imprensa das
Torres Gêmeas não quis fazer comentários.
Às 18h45, os ladrões conseguiram se evadir do condomínio usando Hondas
12 mil W, as motos de alta potência que os fotógrafos de celebridades
tornaram famosas. Depois de uma escaramuça com a segurança interna, que
queria agir fora de seus limites, a GMP saiu no encalço dos assaltantes que,
enveredando pelo viaduto Gov. Gugu Liberato, costuraram seu caminho em
direção à marginal do rio Pres. Paulo Maluf Jr. e, de lá, pouco antes de
alcançar a única ponte que ainda não desabou, a pte. Sta. Xuxa, cruzaram,

206
correndo, sobre o lodo radiativo, o rio rumo ao shopping Cidade Universitária,
o luxuoso megapalácio futurista projetado pela arquiteta Madonna Niemayer e
construído também pela empreiteira beneficente da Câmara Municipal, no
terreno da última universidade brasileira, a extinta USP.
Perto do megapalácio, os assaltantes desapareceram. O tenente-coronel de
Souza disse que eles provavelmente dispunham de salvo-condutos para obter
asilo no shopping (que está fora da jurisdição da prefeitura) e reclamou: "Não
temos verbas e nosso equipamento é obsoleto, do tempo da guerra civil
interétnica norte-americana". Mas outro observador, que tampouco quis ser
identificado, declarou: "Eles nunca pegam ninguém; como o condomínio é da
elite evangélica protegida pelo imperador, ainda encenaram uma perseguição;
se as vítimas pertencessem às massas islâmicas da periferia, a GMP nem teria
saído de seu QG".

(Folha de S. Paulo, 13/9/97)

63) A CANONIZAÇÃO DO HOLOCAUSTO*

**
Conferência apresentada no seminário “Holocausto e Representação” do prof. Arthur Nestrovski, na pós-
graduação da PUC-SP.

207
Entre os objetivos declarados da Igreja Católica há um que, pelos menos nas
duas últimas décadas, tem eclipsado todos os outros: o combate ao aborto.
Este combate —uma verdadeira campanha universal que não se restringe ao
público efetiva ou apenas nominalmente católico, mas recorre também a
alianças inusitadas tanto com os mais variados setores do protestantismo
quanto, quem diria, até mesmo com o Islã— vem sendo conduzido, pelo
Vaticano, com tamanho ardor e empenho, que não seria descabido qualificá-lo
de obsessivo. Seu argumento principal, caso se admitam determinados
pressupostos, é absolutamente imbativel e refere-se ao direito à vida.
Convém, no entanto, ressaltar um ou outro senão. Na sua história já quase
duplamente milenar a Igreja se mostrou frequentemente empenhada, ardorosa
e até mesmo obsessiva, mas, que eu saiba, raramente em nome do direito à
vida, particularmente se se tratava do direito à vida terrena dos não fiéis. Algo
então terá mudado nessa instituição que, depois de se opor, desde sua eclosão,
à Revolução Francesa de 1789 e ao seu ideário, resolveu tomar o partido da
doutrina dos direitos? Só isso já seria motivo para uma comemoração e tanto.
Mas talvez seja o caso de adiar um pouco o júbilo irrestrito, uma vez que não
faltam indícios apontando para metas diferentes. Encurtando essa história
toda, poder-se-ia sugerir que, ao adotar a linguagem secular dos direitos
humanos, a Igreja pretende menos promovê-los do que colocar a sociedade
civil diante de um paradoxo, obrigando-a a se abrir à interferência da
autoridade religiosa no âmago mesmo de questões que deveriam competir
apenas ao discernimento dela, da sociedade civil. Num brilhante lance
enxadrístico, o Vaticano se recolocou no centro das discussões e descobriu
uma maneira elegantemente inquestionável de se intrometer em assuntos que
dizem respeito à política, à legislação, ao policiamento, à medicina e à
autonomia dos indivíduos.

208
Para reforçar não só o direito, mas a obrigação mesma que a Igreja assumiu,
o Papa João Paulo 2o traçou, alguns anos atrás, um paralelo extremo,
comparando o que, de acordo com ele, seriam duas abominações equivalentes:
os milhões de gestações voluntariamente interrompidas e o Holocausto. A
indignação foi ampla, geral e quase irrestrita: como, perguntaram-se muitos,
seria possível comparar homens, mulheres e crianças, as vítimas inocentes do
genocídio planejado e indsutrialmente realizado pelos nazistas, com meros
embriões que nem sequer haviam nascido? No entanto, se examinarmos esta
comparação segundo um prisma mais classicamente católico ou cristão,
constataremos que seu despropósito se encontra precisamente do lado oposto.
A verdadeira pergunta a se colocar é a seguinte: como é que se pode achar
uma equivalência entre incontáveis milhões de embriões inocentes (uma parte
substancial dos quais, se lhes fosse permitido nascer, seria salva do limbo
através do batismo e integraria em seguida o rebanho cristão) com alguns
poucos milhões de membros de um povo deicida, um povo aliado ao próprio
demônio e cujos indivíduos já demonstraram, no correr das eras, sua escassa
propensão a se arrependerem e reconhecerem sinceramente a divindade de
Jesus? Em outras palavras, o verdadeiro escândalo das declarações papais está
em elevar os sequazes de uma fé condenada ao nível de embriões
potencialmente cristãos.
Usam-se muito, atualmente, os termos “cânone” e “canonização” num
contexto literário, ou mais genericamente cultural, para se falar de tendências,
autores ou obras que são, ou se tornaram, centrais, dominantes, influentes. O
termo, no entanto, procede do vocabulário religioso e, nesse âmbito, poucos
haverão de questionar que a última palavra pertence ao Sumo Pontífice.
Quando, para enfatizar o horror da interrupção voluntária da gestação, ele
procurou uma metáfora do horror máximo, o que encontrou foi o extermínio
dos judeus durante a Segunda Guerra. Distração? Preguiça mental? Pouco
provável, pois o nome de batismo de João Paulo 2 o é Karol Woytila e, entre
1939 e 1945, ele estava exatamente no seu país de origem, aquele que os
alemães escolheram como palco para a maior parte da Solução Final: a
Polônia.
A verdade é que o caminho da metaforização tem duas mãos. Quando
associamos a morte à noite ou a velhice ao outono, estamos falando não só
sobre morte e velhice, mas também sobre noite e outono. Aquelas, que às
vezes estão distantes, beneficiam-se da imediaticidade reconhecível destes,
enquanto estes revestem-se do caráter mais transcendente e desalentador
daquelas. E se noite e outono parecem fenômenos menores, atenuados e
mesmo reversíveis em relação à morte e à velhice, não se pode ignorar que há
metáforas cujo segundo termo tende a sobrepujar o primeiro. Assim, o símile

209
clássico que associa, aos olhos da amada, as estrelas do céu pressupõe a idéia
tradicional de que nada é mais belo do que estas, nem mesmo os olhos da
amada. E, quando o equilíbrio entre os termos de uma comparação pende
fortemente para o segundo, a metáfora se transforma numa hipérbole do tipo:
“esse homem é um monstro” ou “seu coração estava estraçalhado”.
Tudo, incluindo o tipo de escândalo que decorreu de sua declarações, indica
que o Papa, ao defender, como diria ele, o direito à vida dos não nascidos,
estava recorrendo voluntária e conscientemente a uma hipérbole. Todavia, o
uso —por parte do Papa ainda por cima— do Holocausto como exemplo
indiscutível e insuperável da abominação e do horror não é nem tão óbvio,
nem tão antigo. Este uso, cada vez mais generalizado, é o que se pode chamar
de “Canonização do Holocausto” e não só não coincidiu, em termos
cronológicos, com o genocídio dos judeus, como passou por um tipo difuso de
processo judicial, uma espécie de Tribunal Popular Eclesiástico, antes de
conquistar seu prestígio atual.
Poucos não judeus, ou mesmo judeus com menos de, digamos 35/40 anos,
haverão de se lembrar de um filme que, em sua época, atingiu certa
celebridade: “Exodus” de John Frankenheimer. O filme, que chegou às telas
em 1960, é a versão cinematográfica de um livro homônimo, obra, talvez a
mais famosa, de Leon Uris, escritor judeu norte-americano especializado em
longos romances que, dirigidos ao grande público, tematizavam os momentos
decisivos pelos quais os judeus europeus passaram nos anos finais da primeira
metade do presente século. (Explicarei, mais adiante, porque recorro a um
circunlóquio tão desajeitado, em vez de dizer simplesmente: o Holocausto.)
“Exodus” de Leon Uris é um calhamaço de 600/700 páginas que narra, em
tom de epopéia, a criação do Estado de Israel, centrando-a na saga de dois
irmãos judeus que, na virada do século, após verem seu pai religioso ser
assassinado enquanto buscava defender os rolos da Torá durante um pogrom
numa cidadezinha de sua Rússia natal, resolvem abandonar definitivamente o
império dos tsares e, viajando meses a pé, chegam, como pioneiros sionistas, à
Palestina. Os eventos posteriores impõem uma bifurcação à trajetória dos
irmãos, de modo que, no correr dos anos, um deles, tomando o partido da luta
política, torna-se líder dos trabalhistas e o outro, para combater diretamente os
ingleses, opta pela clandestinidade e passa a liderar a facção terrorista dos
revisionistas. Não é difícil entrever, no primeiro, muitos dos traços que
caracterizavam Ben Gúrion e, no segundo, uma combinação de Vladímir
Jabotinsky e Menachem Béguin. O título do livro, por sua vez, remete ao
nome de um dos navios que, fretados pela Agência Sionista no interegno que
vai do fim da Segunda Guerra à independência de Israel, tentaram ilegalmente
(pelo menos segundo os critérios do governo de Sua Majestade) furar o

210
bloqueio britânico para levar, dos campos europeus de refugiados à Palestina,
sobreviventes do extermínio nazista.
O livro, além de uma epopéia popular típica, é também uma peça de
propaganda sionista, uma narrativa que busca justificar e legitimar a existência
de um país recém-criado. Essa afirmação poderia levar o leitor desavisado a
supor que se trata de mero lixo ideológico, tão mistificador quanto mentiroso,
e, por isso mesmo, talvez coubesse enfatizar que, nos domínios da alta
cultura, não são poucas as narrativas poéticas entre cujos objetivos centrais se
encontra precisamente a ilustração e defesa de uma fé, um povo, um país, um
estado ou mesmo de um império. Os exemplos mais conspícuos são a epopéia
imperial de Virgílio, a “Eneida”, a nacional-imperialista de Camões, “Os
Lusíadas”, a católica de Torquato Tasso, “A Jerusalém Liberada” ou a
protestante de John Milton, “O Paraíso Perdido”. As intenções iniciais de
obras como o poema narrativo cristão de Dante, “A Divina Comédia”,ou as
peças sobre a realeza britânica de Shakespeare, nem sempre são
essencialmente distintas. É verdade que “Exodus”, o livro, nem sequer se
aproxima da dignidade literária das antigas epopéias, mas ele tampouco
pretende se filiar à alta cultura e, pertencendo ao universo da cultura de
massas, vale-se de outros recursos. Em todo caso, ainda se poderia argumentar
que ele defende uma causa consideravelmente menos perniciosa que a dos
dois principais poemas longos deste século, “Os Cantos” de Ezra Pound e o
“Canto General” de Pablo Neruda, cantos que cantam loas, respectivamente, a
Mussolini e Stálin.
O filme de Frankenheimer acompanha, na medida do possível e com seus
próprios recursos, a trama e o ideário do livro. E, tanto no livro quanto no
filme, uma coisa salta, diríamos mesmo avulta, aos olhos até daqueles que não
tenham visto “A Lista de Schindler” de Steven Spielberg, ou seja, a quase
total ausência de um tema: o Holocausto. Acredito que estamos todos tão
acostumados a reconhecer no Holocausto a justificação máxima e última da
necessidade de um estado judeu, que vê-lo apenas tangenciado numa obra que,
seja em sua versão impressa, seja na filmada, pretendeu um dia ser a epopéia
por excelência da criação de Israel, configura-se quase como um escândalo. E,
no entanto, não é acidental. Outros livros de Leon Uris mantém essa mesma
relação —para nós, estranha— com a catástrofe que, sobretudo nos anos 40,
acometeu os judeus da Europa. Vários de seus romances abordam assuntos
relacionados a ela, mas nenhum a tematiza diretamente. A contrapartida de
“Exodus” chama-se “Mila 18” e discorre sobre a desesperada insurreição, em
1943, dos últimos sobreviventes do Gueto de Varsóvia. “Armageddon” trata
da ocupação aliada da Alemanha derrotada e “QB7” da batalha judicial entre
um escritor judeu norte-americano e um criminoso nazista secundário, um

211
médico que realizara algumas experiências com prisioneiros de campos de
concentração e que nem ao menos era alemão, mas polonês.
É em torno do Holocausto que toda essa ficção gravita, mas cada volume
prefere tão somente evocá-lo através de algum aspecto, por assim dizer,
“positivo”. “Exodus” não fala de judeus exterminados, mas de um estado
judeu ressuscitado; “Mila 18” não fala de judeus exterminados mas de judeus
que caíram bravamente numa batalha desigual; “Armageddon” não fala de
judeus exterminados mas de uma Alemanha ocupada e de nazistas derrotados;
“QB7” não fala de judeus exterminados, mas de um judeu perseguindo
vitoriosamente um anti-semita culpado de crimes de guerra. Por que esses
livros tratam com tanta circunspecção, ou melhor, a rigor nem mesmo tratam
do evento central? Devido, talvez, à dificuldade ou mesmo impossibilidade de
representá-lo? A resposta é: não. Acontece que, talvez até meados dos anos 70
pelo menos, pouquíssima gente, mesmo entre os judeus, estava disposta a/ou
interessada em ouvir nomes como Auschwitz, Belzec, Treblinka, Sobibor etc.
Nas primeiras três décadas que se seguiram ao fim da guerra, a atitude pública
em face do que ocorreu nesses lugares transitou sem escalas (depois de um
brevíssimo choque inicial cuja sinceridade merece ser discutida) da
indiferença ao tédio.
Vários fatores explicam essa atitude. O primeiro e principal é o anti-
semitismo do Ocidente cristão que, além do próprio Holocausto, precisou de
muitos anos de exposição insistente ao que havia acontecido (bem como a
campanhas como, por exemplo, a dos direitos civis nos Estados Unidos) para
não tanto desaparecer quanto começar a se tornar pouco respeitável. Nada
patenteia tão explicitamente este fenômeno quanto o contraste entre o atual
discurso público do Ocidente e o de países do antigo bloco socialista —
Rússia, Polônia, Hungria, Romênia, Croácia, Eslováquia— que, protegidos
pelo seu partido único de meio século de modernização da etiqueta interétnica
(nem sempre livre de uma hipocrisia conveniente), recorrem com frequência a
um jargão tão caricaturalmente racista que parece saído de algum esquecido
documentário de época.
Uma segunda causa, decorrente da primeira mas nem por isso menos
relevante, foi a migração, durante a Guerra Fria, do anti-semitismo da direita
rumo à esquerda. Conforme essa paixão tipicamente cristã e européia se
tornava publicamente indefensável no centro ou na direita, por assim dizer,
“civilizada”, ela ganhava foros de respeitabilidade seja na esquerda, seja no
Terceiro Mundo pós ou simplesmente não cristão. Há um ditado italiano que
diz: “Não cutuques o russo, pois de dentro dele há de saltar o cossaco”.
Transposto ao século 20, ele poderia significar algo como: “Debaixo da União
Soviética sempre esteve a Rússia.” Se, por uma ou outra razão, a União

212
Soviética pôs de lado, no período que vai da Revolução ao fim da Segunda
Guerra, seu tradicional anti-semitismo russo e, ainda em 1948, apoiou
pioneiramente a criação de Israel, ela logo passou a fazer o máximo possível
para recuperar o tempo perdido, embora, como convinha ao seu gosto por
perífrases transparentes, declarasse combater não tanto os judeus quanto esse
ramo malévolo e insidioso do imperialismo internacional: o sionismo. Os
expurgos perpetrados, nas novas “democracias populares”, por Stálin durante
seus últimos anos de vida —o Processo Rajk de 1949 na Hungria e o Processo
Slansky de 1952 na Tchecoslováquia— não tardaram em demonstrar que tudo
o que alguém precisava para se tornar um réu condenado por sionismo era ser
judeu. Como guia e farol da maior parte da esquerda mundial até, pelo menos,
a ascensão rival da China, a União Soviética não apenas exportou seu anti-
semitismo, desculpem, seu anti-sionismo para o mundo inteiro, como lhe
conferiu também uma nova respeitabilidade, algo que, depois do Holocausto,
parecia ter se tornado difícil. Entre o que de mais deletério fez nesse sentido
encontra-se a ocultação mesma dos fatos. A historiografia oficial soviética e
todas as tributárias trataram, praticamente até sua abolição ou desmoralização
final em 1989, de negar que, no quadro generoso e variado de suas vítimas, os
nazistas haviam concedido aos judeus a honra dispensável de considerá-los
seus inimigos preferenciais, votados à completa extinção. Os ocupantes russos
não deixaram, o melhor seria dizer, não obrigaram, por exemplo, os países que
capitanearam o extermínio, como a metade oriental da Alemanha, ou
participaram ativamente dele, como a Hungria, Romênia, Lituânia, Letônia,
Eslováquia e Croácia, a pagar indenizações aos sobreviventes. E só muito
mais tarde é que deram o sinal verde para que algo das reparações pagas pela
Alemanha Ocidental começasse a chegar a residentes de seus satélites. Sob
influência russa, além disso, consagrou-se a interpretação esquerdista de que o
Holocausto, se é que de fato ocorrera, não passava de um epifenômeno da luta
entre as forças do bem —os países socialistas, os partidos comunistas, a
burguesia nacional progressista do Terceiro Mundo, as frentes de libertação
nacional dos países coloniais etc.— e as do mal —o nazi-fascismo (como se
fascismo e nazismo fossem fenômenos comensuráveis), a burguesia
internacional, o capitalismo etc. Nas suas versões mais grosseiras, nem por
isso menos difundidas, essa interpretação rezava que uma cabala de judeus
ricos —os Rotschild de sempre da mitologia direitista— havia financiado o
lumpenproletariado representado pelo nazismo para que esse erradicasse os
judeus pobres — e isso com objetivos que iam do estabelecimento de uma
nação judaica no Oriente Médio à decantada dominação do planeta. No que
diz respeito à compreensão do Holocausto, uma conseqüência imediata desse
estado de coisas foi o seqüestro de praticamente toda a documentação

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pertinente, que passou quase 50 anos acumulando poeira nos arquivos da KGB
ou de suas sucursais.
Outro fator, mais compreensível, seria, para as gerações que viveram a
Segunda Guerra, a própria magnitude do conflito. Assim, qualquer pesquisa
que procurasse recensear os toponímicos mais importantes associados à
conflagração, chegaria, nos anos 40 ou 50, variando de acordo com a
nacionalidade ou inclinação política dos entrevistados, a nomes como:
Stalingrado, Kursk, Tobruk, El Alamein, Coventry, Monte Casino,
Guadalcanal, Hiroxima, Dunkirk, Dresden. As primeiras atrocidades a serem
lembradas, ainda assim ofuscadas pelas grandes batalhas, seriam Oradour ou
Lídice. Se a alguém acaso ocorresse o nome relativamente pouco familiar de
algum campo de extermínio, poder-se-ia ter certeza de que o entrevistado era
algum judeu mais uma vez tentando, na frase memorável de um ministro
trabalhista inglês, conseguir um lugar melhor na frente da fila dos sofredores.
Hoje, é claro, com todos os lugares acima já devidamente confundidos com
outros tantos —Somme, Paschaendale, Verdun, Przemysl, Porto Arthur,
Solferino, Sedan, Gettysburg, Sebastopol, Waterloo, Trafalgar, Leyden,
Lepanto, Mohács, Agincourt, Aljubarrota, Kóssovo, Hastings, Massada,
Actium, Cannae, Zama, Termópilas, Salamis, Tróia...—, o toponímico mais
frequentemente associado à Segunda Guerra é o nome de uma pequena cidade
que, conhecida atualmente por seu habitantes como Oswiécim, chamava-se,
em alemão, Auschwitz. Auschwitz tornou-se o traço diferencial da guerra de
39-45 e gente que não faz mais a menor idéia do que alguma vez significaram
nomes como Stálin, Roosevelt, Churchill, De Gaulle, Montgomery,
Eisenhower, Júkov, Patton, Rommell, Guderian etc., gente que nem mais
desconfia que houve, meio século atrás, uma conflagração que, maior do que
todas as anteriores e, até o momento, as posteriores, arrasou países, devastou
cidades, acarretou a morte de dezenas de milhões de pessoas, sabe que ela se
diferencia das outras não devido a suas dimensões, mas por causa de um
nome: Auschwitz.
Um último fator, pouco entendido e realmente difícil de explicar, é o que
tentaria dar conta da paradoxal circunspecção com que os próprios judeus,
fossem os sobreviventes, fosse o “establishment” israelense, trataram e, até
certo ponto, ainda tratam a questão. Diz-se, não raro, que as vítimas de um
grande choque ou trauma podem emudecer por um longo tempo, talvez para
sempre. A avidez com que minorias étnicas ou sexuais, denominações ou
seitas religiosas, grupos políticos e povos ou nações inteiras se aferram a/e
ostentam traumas reais, hipertrofiados ou imaginários parece indicar o
contrário. O cristianismo como um todo e o islamismo na sua versão xiita
celebram tradicionalmente, com júbilo masoquista, o martírio de seus

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respectivos fundadores. Cada qual dos grupos atualmente em guerra na Bósnia
adora discorrer longamente, em qualquer oportunidade, sobre os massacres de
que teria sido vítima. Os exemplos podem ser multiplicados, mas uma coisa é
certa: os horrores parecem incitar menos à mudez que à loquacidade. No
entanto, não só a maioria dos sobreviventes do Holocausto preferiu se calar a
respeito dele, como seus principal porta-voz, o Estado de Israel, por cerca de
15 anos mas, sob certos aspectos, até hoje, envolveu o assunto numa espécie
de tabu. Por quê?
Quem veja o Holocausto de fora e simpatize com suas vítimas não tem como
não considerá-lo o paradigma do horror e, conseqüentemente, o que lhe
sobressairá há de ser a infinita quantidade de sofrimento humano envolvida.
Suspeito, porém, que para muitos dos sobreviventes e seus descendentes —e
isso vale, de certa maneira, para toda a nação israelense — membros ou
herdeiros nominais de uma religião originalmente militar e triunfalista que, se
não o exclui inteiramente, reserva ao martírio um lugar bem mais modesto do
que o que esse ocupa no cristianismo ou no islamismo xiita –, uma outra
experiência compete incessantemente com a do sofrimento, ou seja, a da
humilhação. Mais do que qualquer dor, a humilhação e a impotência é que são
as razões do emudecimento. Os romances de Leon Uris podem, portanto, não
ter nenhum mérito literário digno de nota, mas isto eles refletiram com
acuidade: a necessidade que havia entre os atingidos direta ou indiretamente
pelo extermínio de que sua suprema vergonha fosse atenuada, mesmo que
apenas um mínimo, mesmo que apenas simbolicamente.
E, no que diz respeito ao Estado de Israel, há um agravante que só pode ser
qualificado de desastroso. A história européia do século 20 demonstrou, sem
dar margem à dúvida, que os sionistas estavam certos desde o começo, pois a
cristandade não só não havia se secularizado tanto quanto afirmava, como
tampouco estava disposta a aceitar a assimilação da única etnia ou nação que,
nos tempos modernos caracterizados pelo culto obsessivo da identidade —isto
é, a reafirmação maníaca de qualquer microscópico traço diferencial—,
predispôs-se mesmo, embora nem sempre com empenho, convicção ou prazer,
a abrir mão da sua própria. O diagnóstico sionista do quadro europeu estava
correto e a solução proposta —fundar um refúgio nacional judaico, por mais
problemas que implicasse com os árabes—, também. Prova clara disso é que
a população do Gueto de Varsóvia em 42/43 e a do Yishuv em 47/48 eram
praticamente iguais: cerca de meio milhão de pessoas. Não há nenhum motivo
para supor que houvesse, entre ambos os grupos, alguma diferença notável de
composição social ou nível intelectual, de perícias técnicas ou vontade de
viver, de apego ou desapego à religião e à tradição etc. O Yishuv, no entanto,
dispunha dos elementos fundamentais de um estado-nação: uma base

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territorial, organização, uma administração independente, forças armadas etc.
O Gueto não tinha nada disso e, conseqüentemente, enquanto quase 100% dos
habitantes deste pereceram, aquele não apenas derrotou, perdendo cerca de 1%
de sua população, um inimigo mais numeroso e mais bem armado, como
sobreviveu para vencer três guerras e consolidar-se enquanto uma potência
regional. O desastre, associado para sempre à história triunfante de Israel, é
que os sionistas, embora tivessem razão em tudo, só conseguiram implementar
sua solução tarde demais, uma fração de tempo histórico, seis anos apenas e
seis milhões de mortos depois da hora certa. Trocando em miúdos, Israel é o
mais irônico fracasso que um povo, qualquer povo, já amargou.
Seguramente, porém, 42 anos depois do fim da guerra, o Holocausto não é
mais considerado, um epifenômeno secundário, uma questão irrelevante ou
um assunto vergonhoso. Não há semana e talvez nem mesmo haja dia em que
as grandes redes de televisão ou a TV a cabo não exibam um novo filme, a
reprise de uma minissérie qualquer ou um documentário recente sobre o
assunto. Os filmes de guerra que 20 ou 30 anos atrás se ambientavam nas
cidadezinhas italianas ou no deserto africano, nas estepes russas russas ou no
“maquis” francês, trocaram aos poucos esses espaços vastos por lugares
menores e geralmente confinados pelo arame farpado. “Jews are news”,
“judeus são notícia”, diz um adágio jornalístico marcado, é óbvio, pela
amnésia de que, na primeira metade dos anos 40, eles não mereciam a
dignidade das manchetes. Hoje são notícia não só quando hà turbulência no
Oriente Médio, mas sobretudo quando emerge uma novidade relativa a coisas
que aconteceram mais de meio século atrás e cujas vítimas e perpetradores já
estão geralmente mortos. Um bom exemplo disso é o escândalo que emergiu
no ano passado envolvendo os bancos e as autoridades suíças que, além de
lavarem o dinheiro sujo roubado em toda a Europa pelos alemães, ainda por
cima se apropriaram das contas dos judeus mortos. É verdade que, mediante a
apresentação da documentação adequada, os suíços teriam entregue, aos
legatários daqueles, o que tão zelosamente guardavam. Só que, como foi
lembrado mais de uma vez, os campos de extermínio não emitiam atestados de
óbito.
Seja como for, esse interesse por uma história a rigor antiga não se restringe
aos “mass media” nem à cultura popular e gera uma torrente de publicações
que, dos testemunhos aos grandes tratados históricos, ramifica-se e se amplia
sem parar. E o fenômeno se mostraria ainda mais surpreendente se fosse
comparado à sobrevivência de eventos que algum dia foram universalmente
considerados avassaladores ou decisivos, como as Guerras Napoleônicas, as
Revoluções de 1848, a Revolução Russa e a Primeira Guerra Mundial. Quão
difundido e vigoroso era o interesse por esses eventos respectivamente em

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1867, 1900, 1969 e 1970. Quantos romances, contos, dramas ou poemas de
Maupassant ou Zola, de Dostoiévski, Tolstói e Tchékhov, de Ibsen e de
Strindberg, de Thomas Hardy, Henry James ou Joseph Conrad ainda falavam
de Bonaparte ou da Primavera dos Povos? De importante mesmo, só um:
“Guerra e Paz”. Fora dos círculos de esquerda, quem é que, sem ser um
historiador profissional, debruçava-se, na era dos Beatles, de Woodstock, das
revoltas estudantis e da pílula anticoncepcional, sobre as minúcias da
Revolução de Outubro. “A guerra para acabar com todas as guerras” que,
segundo se diz, redundou numa “paz para acabar com toda a paz” era, durante
o ápice da Guerra do Vietnã, um tema cinematográfico priviligiado?
O Holocausto deixou de ser um acontecimento histórico: ele não segue sua
rotina de fadiga e desinteresse crescentes. A cada ano mais discutido, mais
esmiuçado, mais rememorado, ele tornou-se algo —difícil dizer exatamente o
quê— canônico. Ignorá-lo, desconsiderá-lo ou minimizá-lo são hoje em dia
razões suficientes para se levantar uma suspeita de antissemitismo manifesto
ou latente. A transformação qualitativa do extermínio maciço do judeus de um
evento pouco lembrado e já em vias de ser esquecido no foco das maiores
discussões contemporâneas foi desencadeada, em 1961/62, pelo prisão, em
Buenos Aires, e posterior julgamento, em Jerusalém, de Adolf Eichmann —o
brilhante espetáculo orquestrado pelo pai-fundador de Israel, Ben Gúrion para,
através do ritual da mais justa das justiças, romper o tabu que prevalecia em
seu país— e se acelerou decisivamente a partir do fim da Guerra Fria em
1989. Um de seus marcos decisivos é o recente “A Lista de Schindler”, de
Steven Spielberg, um filme que não só documenta instantaneamente, se
contrastado com “Exodus”, tudo o que ocorreu com o tema, mas que, apesar
de seus óbvios defeitos, ao converter o extermínio dos judeus em
superespetáculo hollywoodiano —e Hollywood, cabe lembrar, é exatamente o
centro cinematográfico mundial que, fundado no começo do século por sete
judeus da Europa Oriental, nunca, nunca mesmo, acolheu muito bem os temas
judaicos— representa a ascensão do Holocausto ao estrelato, com direito a
vários Óscars . O outro marco se encontra, obviamente, nas declarações do
Papa João Paulo 2o e representa, na acepção quase literal do termo, a sua
canonização.

SÃO PAULO, SETEMBRO DE 1997

(LIVRO ABERTO No. 6, novembro de 97)

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