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Natália de Oliveira Correia foi uma escritora e poeta portuguesa, nascida no arquipélago

dos Açores.
A obra de Natália Correia estende-se por géneros variados, desde a poesia ao romance, teatro e
ensaio. Colaborou com frequência em diversas publicações portuguesas e estrangeiras. Ficou
conhecida pela sua personalidade livre de convenções sociais, vigorosa e polémica, que se reflecte
na sua escrita.
Notabilizada através de diversas vertentes da escrita, já que foi poeta, dramaturga, romancista,
ensaísta, tradutora, jornalista, guionista e editora, tornou-se conhecida na imprensa escrita e, mais
tarde, nos anos 80, na televisão, com o programa Mátria, onde advogou uma forma especial de
feminismo (afastado do conceito politicamente correcto do movimento), o matricismo,
identificador da mulher como arquétipo da liberdade erótica e passional e fonte matricial da
humanidade; mais tarde, à noção de Pátria e de Mátria acrescenta a de Frátria.
Natália Correia casou-se quatro vezes. Após dois primeiros curtos casamentos, casou em Lisboa
a 31 de Julho de 1953 com Alfredo Luís Machado (1904-1989), gerente e dono do Hotel do
Império, a sua grande paixão, bem mais velho do que ela e já viúvo, casamento este que durou
até à morte deste, a 17 de Fevereiro de 1989. São notáveis as cartas de amor da ainda jovem
Natália para Alfredo Luís Machado. Em 1990, tinha Natália 67 anos de idade, casou com Dórdio
Guimarães, seu admirador desde sempre, cineasta e filho de Manuel Guimarães.
Na madrugada de 16 de Março de 1993, morreu, subitamente, com um ataque cardíaco.
Poemas:
Auto-retrato
Espáduas brancas palpitantes: Senhores heróis até aos dentes
asas no exílio dum corpo. puro exercício de ninguém
Os braços calhas cintilantes minha cobardia é esperar-vos
para o comboio da alma. umas estrofes mais além.
E os olhos emigrantes
no navio da pálpebra Senhores três quatro cinco e sete
encalhado em renúncia ou cobardia. que medo vos pôs em ordem?
Por vezes fêmea. Por vezes monja. que pavor fechou o leque
Conforme a noite. Conforme o dia. da vossa diferença enquanto homem?
Molusco. Esponja
embebida num filtro de magia. Senhores juízes que não molhais
Aranha de ouro a pena na tinta da natureza
presa na teia dos seus ardis. não apedrejeis meu pássaro
E aos pés um coração de louça sem que ele cante minha defesa.
quebrado em jogos infantis.
Sou um instantâneo das coisas
apanhadas em delito de paixão
A defesa do poeta a raiz quadrada da flor
Senhores juízes sou um poeta que espalmais em apertos de mão.
um multipétalo uivo um defeito
e ando com uma camisa de vento Sou uma impudência a mesa posta
ao contrário do esqueleto. de um verso onde o possa escrever.
Ó subalimentados do sonho!
Sou um vestíbulo do impossível um lápis
de armazenado espanto e por fim A poesia é para comer.
com a paciência dos versos
espero viver dentro de mim.
CREIO NOS ANJOS QUE ANDAM
Sou em código o azul de todos PELO MUNDO
(curtido couro de cicatrizes)
Creio nos
uma avaria cantante
anjos que andam pelo mundo,
na maquineta dos felizes.
Creio na Deusa com olhos de diamantes,
Creio em amores lunares com piano ao
Senhores banqueiros sois a cidade
fundo,
o vosso enfarte serei
Creio nas lendas, nas fadas, nos atlantes,
não há cidade sem o parque
do sono que vos roubei.
Creio num engenho que falta mais fecundo
De harmonizar as partes dissonantes,
Senhores professores que pusestes
Creio que tudo eterno num segundo,
a prémio minha rara edição
Creio num céu futuro que houve dantes,
de raptar-me em crianças que salvo
do incêndio da vossa lição.
Creio nos deuses de um astral mais puro,
Na flor humilde que se encosta ao muro,
Senhores tiranos que do baralho
Creio na carne que enfeitiça o além,
de em pó volverdes sois os reis
dou um poeta jogo-me aos dados
Creio no incrível, nas coisas assombrosas,
ganho as paisagens que não vereis.
Na ocupação do mundo pelas rosas, Sabe-me a sol. Sabe-me a pássaro. Pássaro
Creio que o Amor tem asas de ouro. Ámen. ao sol.

Entre mim e a cidade se ateia a perspectiva


CÂNTICO DO PAÍS EMERSO De uma angústia florida em narinas
frementes.
Os previdentes e os presidentes tomam de Apalpo-me estou viva e o tacto subjectiva-
ponta me
Os inocentes que têm pressa de voar a galope num sonho com espuma nos
Os revoltados fazem de conta fazem de dentes.
conta...
Os revoltantes fazem as contas de somar. E invoco-vos, irmãos, Capitães-Mores do
Instinto!
Embebo-me na solidão como uma esponja Que me acenais do mar com um lenço cor
Por becos que me conduzem a hospitais. da aurora
O medo é um tenente que faz a ronda E com a tinta azulada desse aceno me pinto.
E a ronda abre sepulcros fecha portais; O cais é a urgência. O embarque é agora.

Os edifícios são malefícios da conjura


Municipal de um desalento e de uma Porta.
Com a essência das flores mais
Salvo a ranhura para sair o funeral
coniventes...
Não há inquilinos nos edifícios vistos por
Com a essência das flores mais coniventes
fora
Na formosura, prepara o banho, Lídia.
Os anos murcham e só no corpo sentes
Que é dos meninos com cataventos na aérea
Quente e fagueira a passagem da vida.
Arquitetura de gargalhadas em cornucópia?
Almas bovinas acomodadas à matéria
Não digas, cética, que a carne é vã e passa
Pastam na erva entre as ruínas da memória,
Desfeita em sombra, o negro rio. O Orco
Perséfone raptou rendido à graça.
Homens por dentro abandalhados em unhas
Talvez no além precises do teu corpo.
sujas
Que desleixaram seu coração num
Estima-o; e à beleza mais demora
bengaleiro;
Darão os fados na vida passageira.
Mulheres corujas seriam gregas não fossem
Tépida a água, rescenda a musgo e a rosa.
as negras
De Paros seja o mármore da banheira.
Nódoas deixadas na sua carne pelo
dinheiro;
Nua e rosada imerge na carícia
Emoliente da água perfumada,
Jovens alheios à pulcritude do corpo em
E as folhas lassas dos membros espreguiça
festa
Como uma humanizada flor aquática.
Passam por mim como alamedas de
ciprestes
Não te esqueças porém de no amavio
E a flor de cinza da juventude é uma aresta
Da água verter um brando óleo de malvas
Que me golpeia abrindo vácuos de flores
Que te aveluda as coxas e mais brilho
silvestres
Te dá ao polimento das espáduas.
E essa ansidedade de mim mesma me
E saindo do banho como a deusa
virgula
Sai, das macias ondas, nacarada,
Paula de pátria entressonhada. É um crisol.
Ergue-te para o amor, estátua de seda
E, o fruto agreste da linfa ardente que em
Toda coberta com pérolas de água.
mim circula
Por fim veste a camisa mais picante; sem descobrir o sentido
Com pó de ouro empoa o teu cabelo. do que nos há-de matar.
E vai para a alcova onde o teu amante Rebeldia é o que põe
Te espera radioso e fiel como um espelho. na nossa mão um punhal
para vibrar naquela morte
que nos mata devagar.
De perfil E só depois de informado
Poesia com dor já comprei só depois de esclarecido
ou algo que de poesia rebelde nu e deitado
tinha a cordial dissipação ironia de saber
dos poemas que eu não escrevia. o que só então se sabe
e não se pode contar.
Agora pela romântica
retórica de não ter dinheiro
a vendo avulso mas roubo II - O livro dos amantes
no peso como o merceeiro. Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema
Esse pequeno furto é o meu quarto e és a origem donde ele flui.
(de alva) indicador insone Intuito de ter. Intuito de amor
que disca o número de deus não compreendido.
num sub-reptício telefone Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.
deus movediço que é uma rede
de linhas interrompidas
onde caio morta de sede O poema
de jogar comigo às escondidas. O poema não é o canto
que do grilo para a rosa cresce.
Escondendo o que de frente vejo O poema é o grilo
de perfil me vedes como os egípcios é a rosa
não por vício de esconder um deus e é aquilo que cresce.
mas o deus de esconder um vício.
É o pensamento que exclui
Se um grama de mim sonego uma determinação
a que chamo deus por ínvio rito na fonte donde ele flui
perdoai-me porque só vos roubo e naquilo que descreve.
aquilo em que não acredito. O poema é o que no homem
para lá do homem se atreve.

Do sentimento trágico da vida Os acontecimentos são pedras


Não há revolta no homem e a poesia transcendê-las
que se revolta calçado. na já longínqua noção
O que nele se revolta de descrevê-las.
é apenas um bocado
que dentro fica agarrado E essa própria noção é só
à tábua da teoria. uma saudade que se desvanece
Aquilo que nele mente na poesia. Pura intenção
e parte em filosofia de cantar o que não conhece.
é porventura a semente
do fruto que nele nasce
e a sede não lhe alivia.
Revolta é ter-se nascido
O sol nas noites e o luar nos dias Temos fantasmas tão educados
De amor nada mais resta que um Outubro que adormecemos no seu ombro
e quanto mais amada mais desisto: somos vazios despovoados
quanto mais tu me despes mais me cubro de personagens de assombro
e quanto mais me escondo mais me avisto.
Dão-nos a capa do evangelho
E sei que mais te enleio e te deslumbro e um pacote de tabaco
porque se mais me ofusco mais existo. dão-nos um pente e um espelho
Por dentro me ilumino, sol oculto, pra pentearmos um macaco
por fora te ajoelho, corpo místico.
Dão-nos um cravo preso à cabeça
Não me acordes. Estou morta na quermesse e uma cabeça presa à cintura
dos teus beijos. Etérea, a minha espécie para que o corpo não pareça
nem teus zelos amantes a demovem. a forma da alma que o procura

Mas quanto mais em nuvem me desfaço Dão-nos um esquife feito de ferro


mais de terra e de fogo é o abraço com embutidos de diamante
com que na carne queres reter-me jovem. para organizar já o enterro
do nosso corpo mais adiante

Queixa das almas jovens censuradas Dão-nos um nome e um jornal


Dão-nos um lírio e um canivete um avião e um violino
e uma alma para ir à escola mas não nos dão o animal
mais um letreiro que promete que espeta os cornos no destino
raízes, hastes e corola
Dão-nos marujos de papelão
Dão-nos um mapa imaginário com carimbo no passaporte
que tem a forma de uma cidade por isso a nossa dimensão
mais um relógio e um calendário não é a vida, nem é a morte
onde não vem a nossa idade

Dão-nos a honra de manequim


para dar corda à nossa ausência.
Dão-nos um prémio de ser assim
sem pecado e sem inocência

Dão-nos um barco e um chapéu


para tirarmos o retrato
Dão-nos bilhetes para o céu
levado à cena num teatro

Penteiam-nos os crâneos ermos


com as cabeleiras das avós
para jamais nos parecermos
conosco quando estamos sós

Dão-nos um bolo que é a história


da nossa historia sem enredo
e não nos soa na memória
outra palavra que o medo

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