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Especial para um dia especialíssimo: traduzi alguns dos poemas que mais aprecio da poeta

uruguaia Ida Vitale. Hoje ela foi galardoada com o Prêmio Cervantes 2018, considerado
o Nobel de literatura em língua espanhola. Pertencente à tradição das vanguardas latino-
americanas do século XX, Vitale, que traz uma obra caracterizada por poemas curtos, na
busca da essência das coisas e das construções humanas, e que procura por um sentido –
precípuo – das palavras, compondo também um universo metaliterário mais do que
interessante, tornou-se com o tempo a principal representante da poesia essencialista.

"Este prêmio reconhece uma trajetória poética, intelectual, crítica e tradutora de primeira
ordem", disse o ministro espanhol da Cultura da Espanha, lendo a ata do júri.

Fortuna

Por anos, desfrutar do erro


e de sua correção,
ter podido falar, caminhar livre,
não existir mutilada,
não entrar ou sim em igrejas,
ler, ouvir a música querida,
ser na noite um ser como no dia.

Não ser casada num negócio,


medida em cabras,
sofrer o controle de parentes
ou lapidação legal.
Não desfilar já nunca
e não admitir palavras
que ponham no sangue
limalhas de ferro.
Descobrir por você mesma
outro ser não previsto
na ponte do olhar.

Ser humano e mulher, nem mais nem menos.

Gotas

Se ferem e se fundem?
Acabam de deixar de ser a chuva.
Travessas no recreio,
gatinhos de um reino transparente,
correm livres por vidros e corrimãos,
umbrais do seu limbo,
se seguem, se perseguem,
talvez vão, da solidão ao casamento,
a se fundir e se amar.
Ilusionam outra morte.

Inverno
Como as gotas no vidro,
como as gotas de chuva
numa tarde sonolenta,
exatamente iguais,
superficiais,
ávidas todas,
breves,
se ferem e se fundem,
tão, tão breves
que não poderiam acomodar(acolher) o medo,
que o espanto não deveria fazer marca
em nós.

Depois, já mortos, rodaremos,


redondos e esquecidos.

Em 15 de novembro de 2018, recebeu o Prêmio Cervantes, considerado o Nobel de Literatura Espanhola.

Quadro

Construímos a ordem da mesa,


a folhagem da ilusão,
um festim de luzes e sombras,
a aparência da viagem na imobilidade.
Esticamos um branco campo
para que nele esplendam
as reverberações do pensamento
em torno do ícone nascente.
Então soltamos nossos cachorros,
incitamos a caçada,
a imagem sereníssima, virtual,
cai desgarrada.

Exílios

…tras tanto acá y allá yendo y viniendo.


Francisco de Aldana

Estão aqui e ali: de passagem,


em nenhum lado.
Cada horizonte: onde uma brasa atrai.
Poderiam ir até qualquer fissura.
Não há bússola nem vozes.

Cruzam desertos que o bravo sol


ou que a geada queimam
e campos infinitos sem o limite
que os torna reais,
que os faria de solidez e pasto.

O olhar se acomoda como um cachorro,


sem mesmo o recurso de mover uma cauda.
O olhar se acomoda ou retrocede,
se pulveriza pelo ar
se ninguém o devolve.
Não regressa ao sangue nem alcança
quem deveria.

Se dissolve, tão só.

Fortuna

Por años, disfrutar del error


y de su enmienda,
haber podido hablar, caminar libre,
no existir mutilada,
no entrar o sí en iglesias,
leer, oír la música querida,
ser en la noche un ser como en el día.

No ser casada en un negocio,


medida en cabras,
sufrir gobierno de parientes
o legal lapidación.
No desfilar ya nunca
y no admitir palabras
que pongan en la sangre
limaduras de hierro.
Descubrir por ti misma
otro ser no previsto
en el puente de la mirada.

Ser humano y mujer, ni más ni menos.

Gotas

¿Se hieren y se funden?


Acaban de dejar de ser la lluvia.
Traviesas en recreo,
gatitos de un reino transparente,
corren libres por vidrios y barandas,
umbrales de su limbo,
se siguen, se persiguen,
quizá van, de soledad a bodas,
a fundirse y amarse.
Trasueñan otra muerte.

Invierno

Como las gotas en el vidrio,


como las gotas de la lluvia
en una tarde somnolienta,
exactamente iguales,
superficiales,
ávidas todas,
breves,
se hieren y se funden,
tan, tan breves
que no podrían dar cabida al miedo,
que el espanto no debiera hacer huella
en nosotros.

Después, ya muertos, rodaremos,


redondos y olvidados.

Cuadro

Construimos el orden de la mesa,


el follaje de la ilusión,
un festín de luces y sombras,
la apariencia del viaje en la inmovilidad.
Tensamos un blanco campo
para que en él esplendan
las reverberaciones del pensamiento
en torno del icono naciente.
Luego soltamos nuestros perros,
azuzamos la cacería,
la imagen serenísima, virtual,
cae desgarrada.
Exilios
…tras tanto acá y allá yendo y viniendo.
Francisco de Aldana

Están aquí y allá: de paso,


en ningún lado.
Cada horizonte: donde un ascua atrae.
Podrían ir hacia cualquier fisura.
No hay brújula ni voces.

Cruzan desiertos que el bravo sol


o que la helada queman
y campos infinitos sin el límite
que los vuelve reales,
que los haría de solidez y pasto.

La mirada se acuesta como un perro,


sin siquiera el recurso de mover una cola.
La mirada se acuesta o retrocede,
se pulveriza por el aire
si nadie la devuelve.
No regresa a la sangre ni alcanza
a quien debiera.

Se disuelve, tan solo.

______________
Ida Vitale (Montevidéu-Uruguai, 1923). Poeta, crítica literária e tradutora. Estudou
Humanidades, tendo trabalhado como professora de literatura até 1973, quando a ditadura
a forçou a viver no exílio. Residiu no México entre 1974 e 1984, e, desde 1989, em Austin.
Publicou em poesia La luz de esta memoria (1949), Palabra dada (1953), Cada uno en
su noche (1960), Oidor andante (1972), Jardín de sílice (1980), Parvo reino (1984),
Sueños de la constancia (1988) e Procura de lo imposible (1998); em prosa Léxico de
afinidades (1994), entre outros.
Mariana Basílio (Bauru-São Paulo, 1989). Escritora, poeta, ensaísta e tradutora. Mestre
em Educação pela Universidade Estadual Paulista (Unesp). Autora de Nepente (São
Paulo: Giostri Editora, 2015), Sombras & Luzes (Brasil, Editora Penalux, 2016; Portugal,
prelo 2019) e Tríptico Vital (São Paulo: Editora Patuá, 2018. Prêmio ProAC; finalista
Residência Literária Sesc 2018). Colabora em portais e revistas nacionais e
internacionais. Mantém o site www.marianabasilio.com.br.

Publicado 17th November 2018 por conselho mallarmargens


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