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AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT

50
POEMAS
ESCOLHIDOS PELO AUTOR

o.

M I N I S T É R I O DA EDUCAÇÃO E CULTURA

SERVIÇO DE DOCUMENTAÇÃO
ARS POÉTICA

Enquanto procuravam conceituar a poesia


E velavam sua face
Com palavras perfeitas,
Enquanto marcavam com sinais agudos
As fronteiras do domínio poético,
Enquanto a inteligência perseguia o mistério
Veio descendo a tarde
E uma doçura mortal
Envolveu a rua e o mundo.
No céu quase roxo,
No céu incerto e delicado,
Asas escuras fugiam
Do noturno próximo
E, subitamente, sinos
Soluçaram.
Lembrou-se de um tempo enevoado e distante.
A mulher que morreu na casa iluminada.
Tinha-a encontrado no circo.

E sorriu. No fim, sorrindo também a acompanhou.


LEMBROU-SE DE OUTRAS NOITES DE REPENTE
As ruas não tinham fim, escuras ruas!

Depois uma porta se abriu, na doçura de um choro


Lembrou-se de outras noites, de repente.
A mulher lhe sorriu pela segunda vez.
No céu o mesmo luar. Mais estrelas, porém.
Tinha um anel de ouro e uma pulseira fina.
E frio, também, mais frio. Vagos vultos passando
E os seus pés eram brancos, tão brancos os seus pés!
E um silêncio gelado, um silêncio terrível,
A solidão de um poeta é a maior solidão.
Tão terrível como este, ou mais talvez.
À mulher lhe falou, olhando-o tristemente.
Lembrou-se de outras noites, de repente.
Tinha sido menina de cabelos castanhos.
De uma grande praça escura e silenciosa.
O portão era alto e o muro ainda maior.
Grandes árvores, grandes árvores
Em casa a voz do pai gritava atormentado!
E sobre um rio velhas pontes
A mãe morrera cedo. Só a vira em retrato.
E frio também. Mais frio. Vagos vultos passando.
Sua mãe, sua mãe! Ainda lembrava um pouco.
Lembrou-se de outras noites de repente. Um chalé preto aos ombros. O olhar fundo.
Lembrou-se de uma solidão ainda maior. O olhar fundo ainda pregado nela estava.
Lembrou-se de sua angústia e seu tormento, Depois, na solidão, entre árvores correndo
Diante das desertas noites, sem fim. Certa noite que um vulto a espiava notou.
Lembrou-se de sua vida esquecida, esquecida...
— 5
Quem era o vulto? Tão trémula ela estava! Uma noite o vulto a agarrou. Levou-a,
Uma luz se acendeu. Tinha uma barba enorme, Pela mão, docemente. No silêncio sem termo
Nos olhos um fulgor como não viu maior. Um pássaro cantou. Que noite aquela!
Quem era o vulto e o que queria dela? Que silêncio augurai envolveu a amplidão.
Em casa a voz do pai gritava atormentado! Ao longe a voz do pai, ainda clamar se ouvia.

Dias tristes para a angústia de quem espera. De onde viera a mulher? De onde viera?
De quem
s
espera a noite, intérmina chegar. Encontrou-a no circo. E seguiu-a sorrindo.
Dias de sol ou chuva, dias indiferentes. Num grande e misterioso encantamento.
Monotonia atroz dos dias que não passam Horas graves, grandes horas, a fitá-la
Do tempo que parou e não quer avançar. Dormindo. Os cabelos em longas tranças separados.

Dias de reclusão. Trancada no seu quarto. Por que se deixou seguir? Era estranha e tão boa!
A olhar fora, de quando em vez, sem interesse algum. Viu que ele estava triste e era poeta.
A paisagem igual de sempre, igual E que os poetas nada têm neste mundo.
Àquela que os olhos seus sempre e somente viram. Viu que ele estava só e que era um irmão perdido.
Dias escuros, bem mais negros do que as noites. Viu que era o pobre irmão que ela não teve nunca.

Só quando na quietude das horas silenciosas A mulher que morreu na casa iluminada.
O vulto a passos lentos se chegava. Chorou nos braços seus e depois, soluçando,
E perto do portão se esquecia a fitá-la. Criança, tão criança e fraca adormeceu.
Só quando a voz do pai sonâmbulo clamava. No entanto o corpo seu era uma flor dolente.
, É que ela era feliz no seu grande terror. E o poeta a desejou com seu desejo mau.

— 7
De nada se lembrou senão do corpo claro.
De nada se lembrou senão dos seios nus,
Esqueceu seu olhar tristonho, imenso e puro
Esqueceu do mistério, da casa abandonada
E a quis possuir como a qualquer mulher. P O E S I A

No entanto de repente, a Luz entrou. Pasmo


Não a viu mais. Tinha partido. Partido?
A poesia flutua nos teus olhos.
Como a mulher partira 3 As janelas fechadas.
É uma luz que nasce
Nem o mais leve ruido. A rua abandonada
Do teu ser, do teu espírito,
E no alto, sem fim, as estrelas brilhavam.
E floresce nos teus olhos.
Ela era sua irmã. Tinha um anel de ouro.
Era um anjo, e o poeta era um seu irmão. A poesia se desprende de ti, oh! árvore
Seguiu-o pela rua, viu seu tédio De raízes fixadas no eterno.
E teve dó da imensa solidão. A poesia vibra na tua voz, perpassa na tua voz.
No entanto o poeta quis colher a flor do seu deseje. Atravessa a tua voz molhada, veemente.

E ela o deixou de novo só, mais só ainda. A poesia agita, estremece a tua voz
As ruas eram escuras. A grande praça. O rio. Como o vento do largo às velas dos navios
Velhas pontes. Vagos vultos passando. E as asas dos pássaros.
Solidão! Solidão! Surdos clamores. Desconsolo.
A poesia ronda o teu sono
Lembrou-se de outras noites de repente! E nele mergulha e se aprofunda
Quando adormecida te transformas numa flor escura.

8 — — 9
Moinho d'agua moendo em silêncio
Mói o que tem a moer
E a dor dói até cansar.

E nem o largo vento canta


POETA FUI
E nem canta a água que cai.
Poeta no exílio da poesia
Poeta fui. E cantava quando triste. Que fizeste da voz
No canto, as mágoas, lavadas, Que Deus te deu?
Não doíam mais.

Poeta fui. E cantava quando saudoso.


No canto os mortos refloriam
E o que perdera voltava.

Poeta fui. E quando a ausência da infância


A alma secava^ no canto, úmida de lágrimas
A inocência tornava.

Hoje poeta não sou.


Não lavo mais, cantando
Mágoas e solidão.

10 — 11
As estrelas chegaram loucas dos seus infinitos silêncios
E falavam incessantemente.
Foi o orvalho de suas asas
Que molhou meus olhos!

CHEGARAM AS ESTRELAS

As estrelas chegaram úmidas


E suas frias pétalas pousaram
No meu rosto seco.

As estrelas chegaram trémulas.


Pareciam flores que o vento esfolhara.
Da noturna árvore.

Murado e exausto,
Que consolo encontro nas estrelas
Que chegaram de repente!

Falaram-me de suas viagens,


Das regiões nuas que atravessaram,
Das fontes que cantam pelos espaços,
Das vozes que se acendem em caminhos nunca vistos,
Na figura de Aglais adormecida no céu,
E no sorriso de infância que na sua face flutua.
12 —
PRINCESA AMARELA DIANTE DO MAR

O metal de sua voz se aquece


Guardo o teu perfil duro
Na tarde, fria lá fora, mas tépida
Recortado na tarde veneziana.
Pousada na sua pele, nos seus
Respiravas força e ódio.
Cabelos longos, nos seus pequenos pés.
Os teus cabelos em luta com o vento.
Palpitavas esplêndida.
Desce dos seus olhos um fio d'água
Havia febre, desejo de ferir, anseio,
Que parece cantar mas é silencioso e manso,
revolta
E atravessa indolente o seu rosto,
No teu ser.
Como c braço ténue e fino de um rio,
Avança debruando uma paisagem triste. Vivias a ambição de enfrentar tudo.
Chama-se Ismênia e olha pelas vidraças o tempo Do teu olhar metálico nascia fogo verde
Que passa como a ave do outono nos céus Que se misturava com o ouro e rosa
Do crepúsculo.
Garços, quase noturnos, onde palpitarão,
Frescas, em breve, as primeiras estrelas, Guardo a tua imagem, pura e nítida
De pé em frente ao mar,
Que as mãos da aurora desfolharão.
Contemplando no céu o voo de um pássaro
14 —
15
GÉNESIS AMOR

Ouço-a, cega. avançar pelo mundo secreto A porta aberta está.


Em que reina e domina sem clemência. Rubro é o vestido.
Ouço-a mover-se e vir, entre plantas e flores Vem sem meias. Senhor!
E frios animais de formas raras. Cantá-la, como poderei?

As vozes que nas águas se estendiam, Mas canta por mim


Estão contidas e apagadas; o silêncio Canta manhã, verdura
É dividido pela lâmina fria do seu corpo Dos campos canta
Verde; terrível, desolado, estéril. Que nem tenho voz!
Ouço os seus olhos me contarem:
O olhar vazio que devora o abismo — Dormi, sonhei, morri, quem sabe!
Distingue na face líquida da treva Quanto mistério esta noite, meu amor!
A luz que não foi gerada ainda.
Penso num vago luar, penso na estrela
Ela é a essência da vida, a indiferente Na andorinha do céu avoando, avoando,
De cujo seio, brotarão amargos frutos Adeus — Julieta — vou fugir daqui!
Condenados ao amor, ao sonho e à morte.

16 — 17
Alguma coisa de fundo cresce da grande tristeza desses
[ chamados,
São as mortas que eram claras e meninas
São as delicadas que o beijo da morte prendeu miste-
AS DESAPARECIDAS [ riosamente
São os chamados das moças, da minha prima e de todas
[as outras,
As moças desaparecidas estão chamando Este chamado que estou ouvindo com o silêncio desta noite.
Ouço suas vozes. São vozes de fogueiras.
São vozes de vento nas vidraças!
Em torno de mim, há a noite que se debruça como se
[estivesse me espiando.
Ouço a voz da minha prima Julieta, os seus cabelos
[se agitam.
As suas mãos fazem gestos e ruídos de pulseiras finas.

As moças desaparecidas estão chamando


Que agitação de sombra desce pelo jardim,
Pelo ermo jardim agora povoado!
As moças desaparecidas estão chamando
Caminham para mim com os seus sorrisos.
Estou vendo Maria Helena, estou vendo as outras,
Estou vendo as que brincavam de amor nos portões
[ pequeninos.
18 -
— 19
Por que chorar — meu Deus se estou feliz e pobre,
Feliz como os pobres desconhecidos dos hospitais
Feliz como os cegos para quem a luz é mais bela do
[que a luz
Feliz como os mendigos alimentados
POR QUE CHORAR Feliz como os desamados que tiveram um beijo
Feliz como as velhas dançarinas aplaudidas de repente
Feliz como um prisioneiro dormindo
Por que chorar se o céu está róseo
Por que chorar?
Se as flores estão nas trepadeiras balançando, ao sopro
[leve do vento.

Por que chorar se há felicidade nos caminhos,


E há sinos batendo nas aldeias de Portugal?
Por que chorar se os meninos estão nos circos
Se a poesia está rolando nas pedras da serra do
[nunca mais?
Por que chorar se há clarinetes entardecendo
Se há missas no fundo do Brasil?
Por que chorar se há virgens morrendo
Se há doentes sorrindo
Se há estrelas no céu de junho
Por que chorar?
Por que chorar se há jasmins nos caminhos
E moças de branco namoradas
Por que chorar?
20 — — 21
A Beleza não morre,
Deus recolhe as flores que o tempo desfolha;
Deus recolhe a música das fisionomias que o tempo
[escurece e silencia;
Deus recolhe o que venceu as substâncias frágeis
DESTINO DA BELEZA E realizou o milagre do Espírito Impassível

Quando o tempo desfaz as formas perecíveis, No movimento e na matéria.


Para onde vai, qual o destino da Beleza, Deus recolhe a Beleza, como o corpo absorve a sua sombra
Que é a expressão da própria eternidade? Na hora em que a luz realiza o seu destino de unidade
[e pureza.
Na hora da libertação das formas,
Qual o destino da Beleza, que as formas puras realizaram?

Qual o destino do que é eterno


Mas está configurado no efémero,
No momento inexorável da purificação?

A Beleza não morre.


»
Não importa que o seu caminho
Seja visitado pela destruição, que é a própria lei,
E pelas sombras .

— 23
SILÊNCIO DEPRESSA APOCALIPSE

Silêncio depressa! Tragam dos mares fundos silêncios As velas estão abertas como luzes.
Tragam do ar mais distante silêncio! As ondas crespas cantam porque o vento as afagou.
Tragam silêncio do centro da terra depressa! As estrelas estão dependuradas no céu e oscilam.
Tragam do inferno o silêncio dos condenados que des- Nós as veremos descer ao mar como lágrimas.
f cansam. As estrelas frias se desprenderão do céu
Tragam do céu o silêncio das beatitudes E ficarão boiando, as mãos brancas inertes, sobre as
[ águas frias.
O silêncio do voo dos anjos pelos tempos sem espaço,
[tragam depressa. As estrelas serão arrastadas pelas correntes boiando nas
O silêncio dos mortos recém-nascidos, tragam depressa. [águas imensas
Tragam o silêncio dos corpos, dos bêbados dormindo Seus olhos estarão fechados docemente
Tragam o silêncio dos loucos E seus seios se elevarão gelados e enormes
O silêncio dos mundos, dos tempos, Sobre o escuro do tempo.
O silêncio do que ainda vai se realizar, tragam depressa
Tragam por Deus, que eu quero morrer depressa!

24 — — 25
Em breve, todas as figuras mudarão,
Serão outras, tudo terá passado,
Os homens e as mulheres, o salão,
Os móveis, nem lembrança sequer restará.

LUCIANA Luciana terá desaparecido como a poeira da estrada.


Como a poeira, o tempo dispersará a fisionomia de Luciana
E — atentai bem — Luciana não se repetirá.
As raparigas que dançavam, Ninguém se repete ,no tempo. Cada um é diferente.
Luciana, a pálida, todas Cada um existe uma vez só. E não é substituído.
Como os frutos apodrecerão. Contemplai bem pois, Luciana, que não se repete.
Porque só há um destino,
Com muitos caminhos, embora.
Depois outras raparigas é que dançarão.

Luciana passará, com seu sorriso triste.


Suas mãos brancas repousarão,
Porque só há um destino
Com muitos caminhos, embora.

Cada um conhece o seu destino.


Luciana, a pálida, e as outras, também,
Todas as raparigas que dançavam.
Cada um traz seu destino no rosto.
No rosto de Luciana e das outras também,
— 27
26 —
A DANÇARINA ESCRAVO EM BABILÓNIA ESPERO A MORTE

A dançarina, as pernas brancas Escravo em Babilónia espero a morte.


Em repouso. O quarto tranquilo; as rosas Não me importam os céus tristes e escuros
Desfolhando. Lá fora o outono longo, Nem claridades, nem azuis felizes,
Que silêncio depois do apito dos trens, Se espero a morte, escravo em Babilónia.

Depois do último apito de trem! Escravo em Babilónia, não me importam


Pelas vidraças o olhar contempla Cantos, que de Sião os ventos trazem
A paisagem que é doce e triste, Com as inaudíveis vozes da lembrança,
Um rio rola sem ruído, folhas morrem. Se espero a morte, em Babilónia, escravo.

Alguém acendeu uma candeia Não me importam amores e esperanças


E caminha procurando na terra Se escravo sou e a morte aspiro
Escura instrumentos perdidos. Em Babilónia, onde me esqueço

A dançarina de pernas brancas sonha; Do que fui, das auroras e dos sonhos
E no sonho seu corpo estremece E da enganosa e pérfida doçura
À carícia de longínquos aplausos. Que neste exílio me precipitou.

28 — — 29
A CHUVA NOS CABELOS Ó TENDAS DE ISRAEL MERGULHADAS NA NOITE

A chuva molhava os seus cabelos, Ó tendas de Israel mergulhadas na noite,


A chuva descia sobre os seus cabelos Belas filhas de Elfir, de Cibrão e de Olgonda,
Voluptuosamente. Dançarinas — o luar vai crescendo
A chuva chorava sobre os seus cabelos, E inundando o deserto., que é um mar.
Macios,
A chuva penetrava nos seus cabelos, Raparigas de mãos tão úmidas e quentes,
Profundamente, Sobre os longos areais o vento geme e sopra
Até as raízes! E um noturno terror vossos olhos acende,
Ó noivas de Israel à espera do Senhor.
Ela era uma árvore,
Uma árvore molhada Mornos corpos em flor que a noite mais enflora,
E coberta de flores. Loucas que soluçais na ansiedade amorosa.
Que sono vos prendeu como um muro de trevas?

Ó Virgens de Israel, que suspiros gelados


Sobem da noite antiga em que dormis, perdidas,
Filhas que o Amor tornou prisioneiras da Noite.

30 — 31
SÃO OS ASSASSINOS DELICADOS O BÊBADO NA ESTRADA

São os assassinos delicados Um bêbado está cantando na estrada


As mãos modestas e discretas. A voz do bêbado vem de longe,
Lá de baixo da estrada molhada.
São os assassinos sem delírio
A voz do bêbado vem da noite úmida,
Tão realistas como os poetas. Vem da estrada que as chuvas da tarde ensoparam.
São os assassinos sem violência Foi a noite que exaltou o bêbado,
Ele é um pedaço de voz dentro da noite.
Tristes e lúcidos, são poetas,
É uma voz exaltada clamando,
Escondem íntimas tristezas É alguma coisa de exaltado
São os assassinos que deslizam. Dentro da noite.
A noite envolve a rua escura, É um bêbado, longe é um bêbado
Bebem na sombra os assassinos Que está na estrada
Sonhando antigas aleluias. Como um sapo,
Como urn pedaço de voz dependurada numa cerca.
São os assassinos delicados É um bêbado que está clamando, é um profeta no deserto,
Que os mortos maus seguem É um náufrago na estrada, no mar, no caminho.
Sorrindo, indefiníveis e secretos. Ê urn bêbado que está exaltado pela noite,
É um furioso entre as furiosas forças invisíveis.

32 — — 33

;
É uma voz gritando contra as árvores,
É uma voz que se levanta da lama,

E procura se libertar do terror e do mistério


É um bêbado gritando. A ÁRVORE
Pensará que está cantando?
É um bêbado na noite,
É um homem na noite, No seio da aurora,
É uma alma no mundo, Murcho e desbotado,
É um bicho misterioso que fala, Não cantavam pássaros.
É um participante do mistério.
Sobre o corpo frio,
É um homem esse bêbado, Se estendera a neve
É um ser que se levantará bêbado, O lençol dos mortos.
Ao som das trombetas
E virá exaltado, Os ruidos primeiros,
E virá cambaleando, Roucos e abafados,
E virá clamando. Quebrar não podiam
Pelo grande caminho. O silêncio enorme,
É um ser, é um bêbado na noite, Que subia lento
É um perseguido pelos cães, Da morte presente,
Mas a sua voz é um milagre
E bêbado na estrada úmida Da morte palpa vê),
E perseguido pelos cães Como um fruto antigo.
Ele povoa o mundo noturno de terror, de gravidade e do Não era tristeza,
[sentimento da morte.
É um bêbado na estrada. Mas um pasmo inquieto
— 35
34
Que tudo invadira.
Não cantavam pássaros
Mas, madura e alegre,
Coberta de flores,
Feliz aos afagos POEMA
Dos ventos despertos,
A árvore apenas
Não participava Meu coração paterno está vazio.
Do funéreo tempo Ninguém o virá habitar!
E brincava doida, A ninguém transmitirei esse amor
Desgrenhada e bela Puro e perfeito, que nada exige ou reclama.
Molhada de orvalho
Coberta de flores. A ninguém poderei dar o meu carinho paterno.
E a minha experiência de criança voltará comigo
Para a grande noite próxima.
Os meus pobres traços, não os herdará ninguém.
E desaparecerei contigo — ó tu que não vieste jamais
E que sinto misterioso e vivo, ao afagar cabelos que não
[ cresceram
E mãos que não chegaram a se modelar.

36 — 37
Estávamos perdidos no tédio.
Trazíamos conosco o peso das nossas longas mocidades.
Foi então que Josefina surgiu!
Era a pequena flor, era a pequena alegria, era a vida que
[nos era de súbito restituída!
LAMENTAÇÃO SOBRE JOSEF1NA
Ouvíamos o ,som da sua humilde música, da jovem
[música de Josefina!
Vamos, amigo, vamos, companheiro,
Vamos chorar a leve Josefina. Josefina não se lembra mais de si mesma!
Vamos amigo meu, chora aquela Seu corpo é uma pobre casa perdida e escura.
Que foi a ingénua nuvem branca Chorar Josefina é chorar sobre nós mesmos
Em escuros céus! E sentir a dura existência,
Vamos, amigo, vamos lavá-la Inflexível aos nossos anseios e aos nossos sonhos!
Em nossas lágrimas!

Era branca, era pura, era alegre!


Um dia, sorriu-nos
Lembras-te? Era no inverno.
Ouvíamos os ventos que brigavam
Nas escuras florestas.
Sentíamos em nós os grandes esquecimentos.
Éramos seres abandonados da alegria!
Os nossos olhares não tinham mais o brilho dos que
[esperam.
38 — — 39
Teremos de novo nas nossas mãos
As frias e delicadas mãos de Josefina
Tal como aconteceu no tempo morto.
Teremos de novo pousada em nosso peito
JOSEFINA NO CORAÇÃO DAS FOGUEIRAS A cabeça gentil de Josefina,
Num gesto manso de abandono.

Junho virá de novo! Num gesto de pássaro cansado,


Sentiremos as úmidas estrelas A cabeça gentil de Josefina pousará de novo
Junto ao nosso coração pacificado,
Nos mesmos céus de outrora.
Junho virá de novo! Tal como aconteceu na hora perdida,
Na hora em que a dança envolveu o tempo morto.
E de novo fixada no tempo,
Junho virá de novo!
Livre, pura e alta,
Josefina voltará com os primeiros frios de Junho!
Surgirá a eterna Josefina,
No coração das fogueiras a fisionomia de Josefina nos
Morena e simples, com a fonte límpida. [ sorrirá.
As flores inocentes nos cabelos, Ela não será efémera como as flores e a pobre mocidade.
Tal como o Amor a configurou Josefina virá de novo, na hora de liberdade e trans-
Tal como se revelou à poesia, [ figuração.
Na sua humilde hora de glória. O Sonho a trará adormecida nos seus longos braços,
Com as sandálias balançando nos pequenos pés morenos,
Junho virá de novo!
Fogueiras ardendo, vozes macias! Com as flores simples nos cabelos,
Veremos de novo, nos céus em flor, a fuga das estrelas. Tal como o Amor a fixou para sempre.
Junho trará de novo Josefina!
40 — >
— 41
Hoje está no triste caminho das renúncias
- — E foi o Sonho, e tinha as mãos frias e os pés pequenos
[e leves
Era uma Graça morena, era a presença do Amor. eia a
PERDIÇÃO DE JOSEFINA [rosa mal-nascida.
Um dia nos convidou para a fuga,
E sentimos que os ventos da noite falavam pela sua voz
Eu vi o lírio debruçado sobre a escura terra. [ inocente,
Eu vi o lírio manchado e murcho. Sentíamos que era a própria fantasia que palpitava
Eu vi o lírio perdido para mim e perdido para os tempos! Nos seus seios virginais!
E senti no coração as mágoas das grandes culpas.
Ah! perdida - • Josefina! •
Por que não salvamos Josefina, Senhor? Senhor! tudo isso não é mais;
Por que deixamos a perdida filha da noite Tudo isso está escondido, e mal podemos lembrar o que
Abandonada às míseras prisões cotidianas? [foi um dia
Por que não salvamos aquela que era a Graça e cantava? Hoje nos poderemos debruçar sobre a que foi Josefina!
Por que não a violentamos com o nosso ímpeto, Seu destino foi mais triste que o das flores que a tempes-
E por que a deixamos brincando na sua inconsciência? [tade sufocou.
Seu destino foi mais triste que o dos passarinhos mortos
Josefina, será a presa das coisas baças e melancólicas
[ainda implumes!
No entanto, foi um sorriso, foi um instante de frescura
[e repouso, Josefina, Senhor, é a serva das coisas mais pobres e feias!
Uma sombra de velhas árvores
Urn inquieto regato.

42 —
— 43
A TRISTEZA DA TARDE ENCONTRO DE JOSEFINA

A tristeza da tarde é leve e alta. Trazei-me, horas passadas, tão vividas,


Vem da cidade, e sobe ao ar como fumaça. Essa imagem que em vão o tempo esconde!
A tristeza da tarde envolve as árvores delicadas, Trazei-me, ó débil vento da lembrança,
Envolve jardins crepusculares. Esse perfume que em meu ser penetra
A tristeza da tarde vem das agonias diárias,
Dos pequeninos doentes, dos amorosos infelizes, das lágri- E muda o que já foi em vivo tempo.
[mas dos pobres. Trazei-me, antigas vozes, que em silêncio
Vos transformastes, pela dura lei,
A tristeza da tarde vem das grandes partidas,
Trazei-me a sua voz estranha e doce.
Dos soluços de adeus, para as viagens e para as incom-
[ preensões. Era o mar. Era a tarde. Eram errantes
Olho a tristeza da tarde caminhar pelo espaço. Pássaros a buscar os rudes ninhos
Invadirá os quartos dos que vão morrer, se debruçará Entre os negros e aspérrimos penhascos.
[sobre os berços,
E iluminará a alma de todos os poetas! Era o princípio de uma grande viagem.
O seu rosto era o sonho, e eu vi o Sonho
Desmaiado de amor, nos braços meus!
44 — — 45
Josefina é a nossa pátria.
Vem dela as auras encantadas,
Vem dela os sorrisos e as flores.

Ah! nós a encontraremos de novo,


LEMBRANÇA DA ESQUECIDA Na hora em que as coisas forem verdadeiras,
Na hora em que a aurora abraçar as terras distantes,
[noturnas e tristes!
Esta ideia de que Josefina está abandonada,
E esta ideia de que nos esquecemos dela
E esta ideia de que Josefina está intata,
Com as suas brancas e pequeninas mãos ainda puras
Dos ásperos contatos,
Com os seus pequenos seios em flor ainda intocados. .

E esta ideia de que Josefina está adormecida


Naquela mesma fria noite de outrora,
Quando recebíamos, com os noturnos ventos,
O perfume das árvores resinosas. . .

E esta ideia de que Josefina está dormindo,


Com os seus pequenos pés escondidos do frio,
Com os seus doces olhos brincando nos jardins do Sonho.
E esta ideia de Josefina, que esquecemos,
Nos ilumina e nos enternece.
.» 47.
46 —
Bendito seja o livre! Oh! Bendito seja o livre!
Bendita seja a boca! Oh! Bendita seja a boca!
(A que não tem palavras, a que contém os beijos.)
Bendito seja o olhar! Oh! Bendito seja o olhar!
(Não o que chora, mas o que penetra em nós como
CANTAR [ punhal.)
Benditas sejam as mãos! Oh! Benditas sejam as mãos!
(Não as que trabalham, mas as que falam de amor no
Cantar — claro cantar — para não ficar louco. [escuro„ )
Ver a voz se formar num milagre, e se erguer Benditos sejam os pés! Oh! Benditos sejam os pés!
Até o céu azul, ao céu azul, ao céu azul, azul. (Não os que caminham, mas os que afagam a ponta fria
[ dos lençóis. )
Cantar! Encher o abismo, encher o escuro e o frio,
Benditos sejam os cabelos! Oh! Benditos sejam os cabelos!
De som, de voz, de ritmo, de música;
(Não os cabelos brancos de dor, mas os rudes, sensuais.)
Encher esta loucura atroz, que é vazio sem termo.
Bendita seja a dança! O perfume que marcha!
Cantar a vida, que é e não é;
A filha de Israel! A filha de Sião!
Cantar o Amor, que é e não é,
A mulher de Labão! A mulher de Booz!
E a volúpia de carnes róseas a descer sobre lábios fre-
[ mentes! Cantar! Cantar! Cantar! para não ficar louco!
Oh! ter perdido o ritmo — e dizer a poesia em bloco, em Balaão! Balaão! Balaão! Balaão!
[coágulos, violenta!

Seios túmidos, reais, seios mornos, pequenos,


Seios de sal e espuma, amargos e infinitos,
Seios para os grandes saltos solitários!
Bendito seja o inútil! Oh! Bendito seja o inútil!

48 — „ 49
Partias, grisalho e triste.
De certo, choravas no tombadilho.
Choravas a cidade
E a mocidade inútil.
MARINHA
E choravas no mar
Que semeavas de lágrimas.
Vi teu navio passar,
Era um triste cargueiro
Tisnando o mar azul.

Vi teu navio passar.


Era um velho navio, humilde
No esplendor do mar azul
E do céu.

Vi teu navio passar.


Partias, grisalho e incerto
Com as tuas lembranças
De namoradas, de ruas antigas
De tranças e serenatas.

50 —
51
Grande, fria e feliz
Quero-te assim para sempre,
Quero-te forte e inclemente,
Mas dadivosa e secreta
Porque a tudo indiferente.
GRANDE, FRIA, FELIZ
Grande, fria e feliz!
Grande, fria, feliz.
Que seios os teus amor!
Que olhar de febre caindo
Sobre os abismos em flor.

Grande, fria, feliz —


Que mãos as tuas amor
Feitas para as agonias,
Para os delírios frementes
Para as carícias selvagens,
Que mãos as tuas amor!

Que corpo violento amor!


Que energia soberana
Dele vem, cresce e domina.
No entanto sem coração
Às desgraças vais sorrindo,
Grande, fria e feliz!
52 — -r 53
Candeia acesa
Na noite quente,
Rio do sonho,
Do esquecimento.
A LUA DO LIMA Que luz estranha
Desce das vinhas
Ao CONDE DE AURORA Que se enforcaram
Nos altos céus?
Que luz é essa
É sumo quente
Que vem surgindo
De brancas uvas
Tão vagarosa?
Que vai caindo
Candeia acesa, Nas águas tuas
Rio dormindo, Ó velha Lima?
Vinho maduro,
É a lua, a oblonga,
Parreiras novas,
A doida, a errante
Que luz é essa
Que vem tardinha
Que vem nascendo
Madura e quente,
Tão vagarosa?
Que nasce e canta
Ó doce Lima Que se levanta
Que lua se molha Na noite antiga,
Nas águas tuas? Por essas bandas
Do Rio Lima.
54
É a lua, a incerta Lua que surges
A doida mansa, Tardonha e quieta,
Que a alma dos poetas Lua do Minho
Adormecidos Uva da vinha
Cantando chama De outra ribeira
Nas horas mortas. Nos altos céus.
Lua do Lima, Deixa que um poeta
Do poeta e frei De além mares
Que despedido Das quentes terras do Brasil
Foi para Arrábida Siga em silêncio
Cavar na Serra Teu giro lento
E os sortilégios
A sepultura
Que vais semeando
Do seu irmão
Nestas paragens adormecidas,
Diogo Bernardes
Lua do Lima,
E de Feijó, António,
Lua da ponte,
Que a morte pálida
Lua mais bela,
Cantou.
Que jamais vi.
Lua do Lima
Noiva do rio,
Que o verde escuro
Dos campos tinge
De argêntea luz.
56 — — 57
O Filho Pródigo sofria, e os seus olhos procuravam na
[ noite antiga
O caminho novo e misterioso da evasão.
E o seu sono era difícil e visitado pelas imagens que um
[louco desejo modelava. . .
E enquanto no lar tranquilo os outros dormiam e encon-
A VOLTA DO FILHO PRÓDIGO [ travam no abandono noturno
A reparação das longas fadigas do dia,
O Filho Pródigo era assistido pelas miragens e pelas
O Filho Pródigo era noturno. [ provocações.
Os seus olhos viviam escondendo desejos de fuga. Formas calorosas e lábios frescos o convidavam para a
[viagem.
O Filho Pródigo sonhava com os festins e com as estradas Para a dissipação e para o abismo.
[deste mundo.
Na hora, em que na mesa sombria, a família se reunia E não encontrava ele consolo, nem no amor paterno,
. [para o alimento da noite. Nem nas colheitas, nem no pastoreio dos humildes reba-
Depois dos trabalhos ásperos do campo, [nhos, nem no amor das servas
O Filho Pródigo tinha propósitos e sonhos. E das simples raparigas dos países vizinhos ao país de
Ele mesmo não sabia porque, mas se sentia diferente dos [seu Pai,
[outros, dos que nasceram na vasta casa paterna, E não encontrava consolo nem no céu, nem nas estrelas
Dos que trabalhavam com o Pai no engrandecimento e Que envolviam os campos, os rios, e os raros tetos pací-
[na propriedade familiar. [ficos e alegres.
Ele sentia-se desprendido da velha árvore O próprio irmão, o que nascera do mesmo amor conjugal,
Cujas raízes se tinham fixado desde os tempos indeci- E que se formara, com ele, no mesmo ventre,
[sos e nus O Irmão que compartilhara do. seu mundo de alegrias,
Naquela mesma terra, naquela mesma fazenda
[sofrimentos e assombrações nas terras perdidas da
Que o suor do Pai, do irmão mais velho, dos parentes [ infância
[e dos servos.
Fizera crescer e aumentar sempre mais.
— 59
58 —
— Ele não o amava, porque o sentia diferente, II
E tinha para Êie, sempre inalterável, o mesmo senti-
[ mento prevenido, Nada é tão triste como o olhar do Pai que se despede
De um homem que olha outro homem pela primeira vez. [do filho.
Nada é tão triste como o olhar do Pai
Quando ele pediu ao Pai que lhe entregasse a parte que Que sente e compreende enfim que o Filho é alguma
[possuía na fazenda e na fortuna comum, [coisa diferente dele próprio
O seu gesto foi como um fruto maduro que a mão indi- E que tem um caminho diverso do seu caminho.
[ f crente do tempo colheu da árvore.
Nada é tão triste como o olhar de um Pai
Quando ele pediu ao Pai que lhe entregasse o que possuía, Que subitamente reconhece no Filho
O seu coração não se perturbou com a mágoa subitamente Um outro homem, com pensamentos desconhecidos,
[revelada na rude fisionomia paterna. Com ambições escondidas, com desejos frios e ásperos
Guardados no coração já distraído do coração paterno.
É que o Filho Pródigo, no momento em que se dirigiu Nada é tão triste como o olhar de um homem
[ao Pai para reclamar, Que fundou no efémero a eternidade de um sentimento
Já se decidira a partir para a viagem que o atormentava E reconhece enfim que o destino sorri do seu dilacera-
[e o consumia. [ mento.
Ê que na hora em que ele falou na separação Nada é tão triste como as mãos que se levantam para
O seu espírito já estava em caminho para o encontro [a última bênção sobre a inquieta cabeça de um homem
[com a vida, Que foi um dia pequenino nos paternos braços e cresceu
Para o encontro com o vazio e com as sombras que estão [ao lado do Pai protetor e vigilante
[no fim das luminárias e das multidões, E principiou a pensar e a caminhar,
Para o encontra com o silêncio e o frio A sofrer os primeiros sofrimentos e as alegrias primeiras,
Que se escondem no fundo dos ruídos da alegria e no Amparado pelo conforto de quem lhe transmitiu o mis-
[calor das dissipações e dos folguedos. [tério, glória e dor desta vida.

60 — — 61
O Pai que viu o Filho partir para as núpcias com o mundo Para o milagre da criação,
É um ser a quem a solidão do destino do homem já se O amor sem sofrimento, o amor que não abdicou.
[revelou nua e terrível. O amor que os sentidos e a inteligência iluminaram,
Desde os festejos que receberam o Filho Pródigo — e a O amor glorioso, o amor satisfeito, o amor ágil e livre,
[ sua fortuna — — Esse amor não conhece o dom misterioso e terrível da
Até o estado de servidão a que ele desceu; [ Misericórdia.
Desde a alucinação dos seus amores A Misericórdia é a essência do Amor do Pai.
(Os corpos das mulheres que ele machucou e escureceu A Misericórdia está presente na hora oportuna.
[com a chama do seu desejo - Na hora precisa em que o desespero se apossou do
Eram frios, perfeitos e frágeis como os lírios) [seu objeto
Até o seu contato com os imundos animais de um senhor E o vai mergulhar nas águas abissais.
[intratável;
Feliz o Filho Pródigo, porque no país do desespero,
Desde a euforia dos primeiros instantes
Na noite estrangeira, na hora da fome,
Ao desalento dos momentos em que a realidade surgiu
Se lembrou de que o Pai o receberia na velha casa.
Com o olhar apagado e vil e as mãos intratadas e magras
— Feliz o Filho Pródigo, porque sofreu a sedução da
— Sempre e sempre o olhar misericordioso do Pai o se-
[partida,
[guiu, fixado nele,
E conheceu e verificou com a sua própria experiência
Participando da sua tormenta, e, escondido dentro dele,
Que só na Casa Paterna está a salvação,
Espeí t u sempre a hora de ser reconhecido e compreendido.
A segurança e o abrigo.
Só o coração do Pai é iluminado pela Misericórdia.
Feliz o Filho Pródigo, porque do fundo do abismo
A Misericórdia é o mistério do amor que criou. Soube reconhecer a fisionomia paterna.
O amor infecundo, o amor que não deu fruto, E descobrir a Pátria Antiga e a Estrada da Volta,
O amor que não realizou o esquecimento de si mesmo, Quando esgotados os recursos e dissipado o património,
O amor que não sufocou a sua semente no suplício da terra O seu mundo se reduziu à miséria, à sujeição, aos mais
[baixos misteres
62
— 63
O filho que não prodigalizou os seus recursos, Substancialmente e o que está em nós pousado
O filho que não sentiu o desejo de partir, Como a cor na superfície das águas
O filho que se deixou ficar nas grandes noites, E como a neve nos caminhos que o primeiro raio de sol
Depois dos trabalhos dos campos, [desfaz,
Junto ao fogo do lar, O sentimento do Pai, ao ver voltar o Filho,
Participando da vida simples, Foi o de alegria, dessa alegria que o Amor faz nascer,
Da mesa generosa e farta, Dessa Alegria desinteressada e pura;
— Esse que não guardou os imundos rebanhos, E a alegria do Pai apagou as mágoas do Abandono e da
Como o último dos servos, [ Ingratidão.
Esse que não adormeceu — Rejubilai-vos" - gritou Ele aos que o cercavam -
De fadiga, deixando pender na poeira da estrada a cabeça, "O que estava perdido se encontrou,
Como um fruto podre que o vento desprende, O que estava transviado tornou ao lar,
O que não fez sangrar o coração paterno O que estava cegc recuperou a vista".
Nas horas em que a lembrança do Ausente
Umedecia os grandes olhos antigos, No entanto quem estava perdido na perdição do Filho era
Esse r ao compreenderá a alegria com que o Pai viu surgir [o próprio Pai?
[esquálido e faminto Pois tal é o destino de quem ama,
O que voltava ao seu amor. Tal é o Destino do Homem a quem Deus transmitiu
Só a Ausência dá o exato valor aos seres que amamos. A graça de criar,
É preciso perder para que possamos sentir A graça de fazer com que o Homem
O que é um filho para a nossa vida. Transmita ao seu semelhante, pelo fecundo milagre do
È preciso perder o Amor para que o amor [ Amor,
Esteja em nós e em nós se revele A glória e o martírio de viver!
Em toda a sua profundidade.
Ê preciso que a Ausência faça estremecer as raízes
Do que nos é precioso, para que possamos sentir
Como é diferente o que a nós se ligou

64 —
— 65
A UM POETA JOVEM
EXERCÍCIO N° 2

Tu salvaste da infância o segredo,


Ela dançando parecia a imagem A frescura, o mistério
Da roseira que os ventos estremecem, E, por isso, é que afrontas o mundo
Tais os perfumes que fugiam dela, E abres, sorrindo, o coração
Tal a impressão de rosa espetalada. Ao primeiro passante!

Rodopiava ligeira: os pés tão leves E cantas, porque és inocente


Mal tocavam no chão; nos doces ares E a todos as chagas vais
Parecia pairar, visão graciosa, Exibindo contente
Com o seu branco vestido inesquecível. E as lágrimas do amor,
Do exílio, da pobreza,
Que pensamentos fáceis e felizes Em flores vais mudando.
Se escondiam por trás dos seus cabelos
Soltos à força do rodar das valsas! E porque és simples,
Os teus terrores vais semeando,
Que sentimentos doces de esperança
Tuas queixas, tuas mágoas, transformando
Não te animavam, clara Josefina,
Em doces frutos.
Ó dançarina frágil como as rosas. . .
67
66 —
E vaíS mentindo, Poeta,
E vais contando histórias
De estrelas sangrando
E noivas mortas!

NÃO DEIXES

Não deixes de beber.


Quero que bebas muito.
Quero-te bêbada e confusa,
As tranças desfeitas.

Quero-te bêbada,
Áspera, natural,
As mãos doidas,
Quero-te assim
Como não és mais,
Quero redescobrir
Em ti, na que és hoje,
Prevenida e triste,
O mesmo riso de outrora,
O teu claro riso
Inocente e mau de outrora.

— 69
Lembrava um pássaro do mar.
Os lábios fechados
Eram túmulos em que dormiam
Segredos que se não libertariam nunca.
RETRATO A solidão moldara-lhe o rosto,
Um rosto em que o sorriso
Era ausente ou morto.
Lembrava um pássaro do mar, Parecia feita para durar tanto
O olhar era agudo Quanto as águas amargas
Um olhar cheio do mistério Nascidas para não murchar.
Das distâncias escuras.
Um olhar frio e brumoso, Lembrava um pássaro do mar.
Em que pousava a poesia Desprendia-se da sua natureza
Das regiões cruéis. Uma ardência selvagem.
Um olhar grave, sério, atento Nada pedia e nada queria
Aos impulsos violentos. Senão o silêncio e a liberdade.

Lembrava um pássaro do mar.


Os cabelos cheiravam às flores.
E plantas submersas.
Os cabelos desgrenhados
Refletiam o verde sombrio
Das líquidas planícies.

70 — 7L
Posso mesmo por milagre,
Da minha janela alta,
Sentir pousados nas águas,
Os olhos verdes-escuros,
Os olhos do pescador.
POEMA DO PESCADOR
Posso mesmo, por milagre,
Da minha janela alta,
Da minha janela alta Debruçado sobre o mar,
Posso olhar o mar de perto Ouvir por entre os anseios
Posso ouvir seu canto eterno, E os ruídos tristes das ondas,
Seu canto amargo e constante. Ouvir bater sossegado,
Com o seu ritmo sereno,
Posso olhar o mar noturno O coração do pescador.
Da minha janela alta
E acompanhar a passagem Posso ver as mãos calosas
De um pobre barco de pesca Dos remos e dos trabalhos;
Posso olhar o rosto calmo,
Que torna da lide diária.
A pele escura e curtida
Posso seguir pela estrada, Dos sóis e das maresias;
Estrada de escuras águas, Posso ver o peito largo
A luz que ilumina o barco, Que os ventos fortes afagam.
O barco do pescador. Da minha janela alta
Debruçada sobre as águas
Posso mesmo lhe falar,
E um dia direi assim:
— 73
72 —
— "Pescador que tanto pescas
Nos mares dias inteiros; De frias flores que nascem
Pescador que estás passando, E vivem tão só no mar;
Com a tua lanterna acesa. Da que repousa cansada
Devagar, em frente a minha Dos seus estranhos passeios,
Janela perto do mar; Perto dos bancos vermelhos
Onde dormem os corais?
Pescador que tanto pescas
Nos mares calmos ou crespos Pescador, por que não pescas
De ondas rudes e agressivas; O corpo da minha Amada,
Pescador que vejo sempre Daquela doida donzela
Da minha janela alta Que aos fundos mares desceu?
- Por que não pescas um dia, Pescador, por que não trazes
Por que não trazes um dia, No teu pobre e velho barco
Misturada com os teus peixes,
Deitada sobre as tuas redes, Aquela flor de naufrágio
No fundo do barco teu, Que aos céus dos mares desceu
Cantando como uma louca,
O corpo da minha Náufraga, Tendo nos olhos um riso
De que há tanto vive ausente, Todo molhado de lágrimas?
Nua no fundo do mar,
Da que anda há tanto dormindo Pescador, por que não pescas
No berço móvel das ondas Essa por quem sempre espero
A buscar com os peixes claros; Na minha alta janela
Da que passeia no abismo
Debruçada sobre o mar?
Toda enfeitada de flores,
74 —
75
Pescador, se a não trouxeres,
Essa por quem desespero,
Um dia, já bem cansado,
Irei procurá-la eu mesmo.
OS PRÍNCIPES
Pescador, meu corpo é grande,
Pescador, meu peso é muito,
Não poderás me pescar. Tudo é inexistente, disseram os príncipes deitados na areia.
— Antes melhor recolhesses E veio o grande pálio aberto e se estendeu sobre o céu
A Doida que anda nas águas [sem manchas
De flores frias ornada, Destroços, ruínas, podridões ameaçavam desabar.
A Doida que anda no mar". E veio o lírio boiando brando e manso.
O mar ficou alto e agressivo
Os barqueiros cantaram remando
E tudo se encaminhou implacàvelmente para a noite mais
[ próxima.
Tudo é inexistente, disseram os príncipes deitados na areia;
Ninguém atingirá a última noite
Porque virão sempre outras noites
E os mesmos pássaros ficarão espalmados no ar.

Mas os barqueiros tinham sede


E correram com os príncipes
Mas os barqueiros tinham fome e mataram os príncipes.
77
76 —
O lírio veio boiando docemente
E era a filha do rei
E era a única irmã dos príncipes mortos.
E o lírio ficou no sangue dos mortos como a gota de orva-
[Iho na rosa nascida. SONETO
Os barqueiros ficaram escravos do lírio
E o seguem de joelhos chorando no deserto.
A hora é virgiliana. Um vento manso vem dos campos
[em flor.
Do seio da noite — da noite antiga e tranquila —
Surge o canto da terra fecunda e adormecida.
As águas vivas viajam cantando e rindo.

Tvleu coração agradece a Deus esta hora plena,


E o meu espírito repousa, como o vinho nas velhas
[ botelhas.
Sinto as flores em botão nos jardins.
S'ntc a germinação dos frutos, e os gestos fundos das raízes.
As árvores avançam para os astros.
Os bichos da terra e os pássaros inquietos
Estão dormindo nesta hora de abandono e esquecimento.
O tempo parece vencido pela volúpia criadora,
E os meus olhos assistem, no denso escuro,
Aos movimentos das virgens formas que estão nascendo!
— 79
78 —
E serei como luz inútil,
Como a lanterna balançando
Nas pequenas estações passadas,
Nessa longa viagem sem termo.

POEMA

Repousarei na tua memória


A minha imagem.
Quando chegar a noite
E o vento me arrastar para os largos espaços,
Repousarei ria tua memória a minha imagem
E estarei em ti pousado,
Como a cor na superfície dos mares;
E estarei em ti como a emoção nas lágrimas;
E estarei em ti como a saudade nos olhos imóveis.

Irá da minha imagem


Para a tua compreensão
O sentimento do meu mistério,
O ignorado segredo dos movimentos do meu ser.
E ficarei em ti, iluminado
E distante,

80 — — 81
MOMENTO MORTE DA ÍNDIA

Está morta agora. Não poderá mais fugir


Desejo de não ser nem herói e nem poeta Não poderá mais fugir, rindo selvagem.
Desejo de não ser senão feliz e calmo. Está morta. Tem os pés frios, os olhos fechados
Desejo das volúpias castas e sem sombra As mãos estão cruzadas. Tudo morto.
Dos fins de jantar nas casas burguesas. Menos os cabelos, os cabelos estão vivos,
São vermelhos, estão vivos e continuarão a crescer.
Desejo manso das moringas de água fresca
Das flores eternas nos vasos verdes. Olho a morta. E lembro sua maldade livre
Desejo dos filhos crescendo vivos e surpreendentes Lembro sua beleza desigual e ágil
JDesejo de vestidos de linho azul da esposa amada Lembro o perfume de jasmim de uma noite
Em que a quis tomar nos braços e me contive.
Oh! não as tentaculares investidas para o alto Agora o repouso trouxe para ela uma inocência impres-
E o tédio das cidades sacrificadas. [ sionante
Desejo de integração no cotidiano Ficou inocente. Vi agora que era uma criança!
Está triste tudo. O dia vem nascendo sem sol
Desejo de passar em silêncio, sem brilho O vento matinal entra frio pelas janelas.
E desaparecer em Deus — com pouco sofrimento Vejo-a imóvel. A cruz sobre seu coração virgem
E com a ternura dos que a vida não maltratou. Flores sobre seu corpo queimado e bárbaro.
82 — — 83
A morte como que aumentou sua beleza diferente. Foi uma flor misteriosa que se perdeu e nunca mais florirá.
I lá no meu coração um grande sossego final. Foi a última flor de uma espécie desaparecida. Lembro
Pense que não poderá mais fugir, ágil, [do seu perfume.
Correndo pela mata, escondendo-se misteriosamente. Está morta. O sol não virá hoje. Tudo está quieto.
Sei bem onde ela está. Irei vê-la sempre. Meu coração está parado. Meus olhos fixam seu corpo.
Rezarei humilde pela paz da sua alma que era natural Os seios pequenos. As mãos em cruz. Os lábios. Tudo
E sem espiritualidade nenhuma, espontânea como as [ morto.
[árvores Menos os cabelos. Sua beleza está fria. Sinto-me inteira-
Alma úmida como a relva das madrugadas. [ mente lúcido.

Sua morte me dá uma liberdade vertiginosa


Respiro o ar da manhã com força e não choro
No entanto sei que vão levá-la da minha esperança,
Sei que me perderei morto também vivendo,
Mas só de contemplá-la neste momento, estou feliz.
Me vingo da sua maldade que era impetuosa e simples.
Lá em baixo está o mar, os rochedos e a espuma.
Lá em baixo está o mar. o mar de ondas enormes.
Quando fechou os olhos e ficou imóvel, sua alma
Desceu a montanha, entrou pelo mar a dentro como
[um raio.
Um grande frio me acordou. A noite morria.
Já a vi morta. Sua mão está pendente da rede.

84 — — 85
Mas não achei o motivo desta tristeza que desceu
[sobre mim.
No entanto este motivo escondido existe.
Não veio, esta tristeza, da saudade da que é sempre a
[ Ausente
TRISTEZA DESCONHECIDA Nem da sua graça desaparecida, nem do desespero que
[me causou
É que esta tristeza não é minha.
Como o vento desta noite, como a chuva e o frio Nunca a tive assim, é diferente de todas as minhas tristezas
Chegou faz pouco ainda, de muito distante de mim mesmo E habita o coração como o viajante que batido pela tem-
Esta tristeza imensa e indefinida! [pestade se abrigou numa casa desconhecida do caminho.
Nenhuma razão no entanto desta mágoa subiu à flor da É que de certo minha alma estava distraída
[ lembrança.
E, como as janelas abertas sobre a noite recebem vento frio
Tudo ficou confusamente em mim mesmo
Minha alma recebeu esta tristeza não minha
Mas foi uma tristeza de passarinho morto num caminho
[chovendo Vinda talvez como mensagem de longe para um morto
Tristeza de animais com frio e de casebres miseráveis. [há pouco
E que andava perdida procurando um coração qualquer
Pensei em destinos desconhecidos que me atormentam [abandonado àquela hora.
Em rostos de homens que não vi e me acompanham
Pensei em emigrantes que ficaram para sempre longe das
[pátrias, de que eu tenho misteriosas saudades
Pensei em mortos que morreram entre indiferentes
Pensei nas velhas mulheres de todos, humilhadas e sor-
[ ridentes
86 — — 87

l
Porque o amor que tanto esperei nunca chegou
Porque a fortuna que eu quis passou de longe,
A glória que sonhei nem sequer me sorriu.
Sinto que estou sozinho e pobre como a noite
DESCANSO Sinto que estou pobre e que darei sem remorso tudo que
[me resta.
A solidão é o meu conforto e o meu consolo.
Olho o céu e enfim descanso! Estou mais perto de Deus!
Olho o céu e as estrelas frias Minh'alma se perde na noite simples e infinita.
E o vão tormento que me segue sempre
De repente se vai com a leveza do fumo que o vento
[atira para longe.
Olho o céu alto e enorme e descanso.
Uma serenidade de renúncia desce sobre minh'alma
[rota e feia.
O que horas antes me exaltava, amores, ódios, temor,
[miséria, e ingratidão, não é.

Olho o céu frio e simples e descanso.


Vem de súbito para o meu coração ferido a compreensão
[da caridade.
Sinto que sou feliz por não ter tido nada.
Sinto que posso seguir porque nada me prende

88
O GRANDE MOMENTO APARIÇÃO DA AMADA

A varanda era batida pelos ventos do mar No princípio foi a voz.


As árvores tinham flores que desciam para a morte, com Vinha do alto da casa, escondida.
[a lentidão das lágrimas. Foi a voz que eu ouvi primeiro.
Veleiros seguiam para crepúsculos com as asas cansadas
[e brancas se despedindo. Depois foi ela mesmo que surgiu.
O tempo fugia com uma doçura jamais de novo experi- Disse rindo, disse alegremente o meu nome.
[mentada Lembro que disse o meu nome.
Mas o grande momento era quando os meus olhos con- A noite não permitia que eu a fitasse.
[seguiam entrar pela noite fresca dos seus olhos... Estava no alto da casa escondida.
Mas eu a vi, seu vulto eu vi.

Não estou certo, mas parece que me chamou.


Mas chamou rindo e foi por isso que fugi.
Fugi em desespero, o coração voando e batendo como
um bicho medroso.

— 91
Não poderei dizer onde encontrei sua voz e seu corpo.
Sei que ela surgiu do alto da casa, escondida.
Sei que estava alegre como se desconhecesse tudo.

Sei que fugi rápido como o vento da tarde


Rápido como a estrela do mar no coração da noite HISTÓRIA DA BORBOLETA BRANCA
Rápido como o canto da morta e como o soluço do pobre.
Fugi rápido, temendo que ela me olhando risse mais. Eu queria cantar a borboleta branca,
A misteriosa dançarina
Que eu vi, palpitante e estranha,
Na rnanhã estival.
Eu queria contar a borboleta branca
Que eu vi, inquieta,
Na orla da montanha áspera,
Lutando e vivendo.
Era uma flor. Era uma pétala de rosa.
Leve e branca.
Era uma flor, mas viva e trágica,
Em luta com o mundo.
Na estrada, sob o sol extremo e inflexível,
As árvores pacientes
Esperavam a distante consolação da noite,
Da noite libertadora.
92 — 93
Mas a borboleta branca vivia a sua hora única, A borboleta branca era a vida, a frágil vida,
E era como um espírito, Na sua efémera plenitude.
E era como um pensamento claro Vendo-a, meu coração sofreu a compreensão dos destinos
Surgido da terra. [delicados
Das lágrimas e da poesia!
Vendo-a dançar, inquieta e muito branca,
Na ardente manhã, Vendo-a> senti a luta misteriosa do que é branco e eterno
Lembrei-me que a noite triste e inevitável Como o que é, no tempo
A encontraria em pouco morta. Duração e força, escuro e resistência,
Limitação e certeza.
Lembrei-me que as sombras a surpreenderiam
— Com as suas frágeis asas, A montanha e as árvores pareciam não existir
Que se agitaram nos céus azuis como velas no mar, A borboleta branca dançava,
Machucadas e escuras. E era a poesia e o eterno espírito da vida,
Na sua mais clara e efémera imagem.
Lembrei-me que a noite a encontraria exausta e desmaiada
— à dançarina flor branca,
Virgem louca, que o amor do sol violentamente
Destruiu e perdeu.

No entanto a borboleta branca era um claro pensamento,


Era uma ideia inocente
Perdida entre as coisas rudes e ásperas,
Na manhã luminosa.

94 — — 95
GRANDE AZUL, CLAROS CÉUS CANTO DA LOUCA

Grande azul, claros céus! Sou como um jardim noturno.


Flores rubras co sol! Os ventos bruscos visitam-me
Flores morenas, mornas, deslumbradas! Os meus rosais estão perdidos.
Harmonia das árvores crescendo. As rosas, ainda em botão,
Corpos flexíveis sobre as águas, Foram arrancadas pela mão do vento.
Corpos flexíveis sobre as relvas.
Dança! Sou como um jardim noturno.
Abrindo novos caminhos, ritmos desconhecidos! A terra dos meus canteiros foi revolvida.
O amor elástico e eterno sobre o esplendor matinal. As flores estão decepadas no chão.
Música eterna dos efémeros sorrisos, A noite está suspensa sobre mim,
Graças de Deus no Amor fecundo. Como um véu de desespero.
Laços de fita azul nos cabelos castanhos!
Sou como um jardim noturno.
Meus perfumes, as almas das minhas flores,
Das minhas pobres flores mártires,
Estão sendo roubados pelo vento,
O vento está roubando os meus perfumes.
96 — 97
Sou como um jardim noturno.
A lua — com o seu rosto de morta -
Caiu sobre as águas da piscina.
A lua desceu, como um triste seio murcho,
Sobre a piscina, de águas geladas.
OBRA POÉTICA
Sou como um jardim noturno.
O sol não virá esquentar minhas entranhas.
A noite, como um véu de desespero, CANTO DO BRASILEIRO AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT
- 1928.
Ficará para sempre suspensa CANTO DO LIBERTO AUGUSTO FREDERICO SCHMIDT -
Sobre o meu corpo misterioso. 1929.
NAVIO PERDIDO — Rio de Janeiro, Cisneiro, 1929.
Sou como um jardim noturno. PÁSSARO CEGO — Rio de Janeiro, Gráf. Ipiranga, 1930.
Os meus rosais, ah! os meus rosais! DESAPARIÇÃO DA AMADA — Rio de Janeiro, Schmidt, 1931.
CANTO DA NOITE — São Paulo, Comp. ed. nacional, 1934; nova
Há um pássaro de voz desesperada ed. Rio de Janeiro, Liv. Agir, 1946.
Que está cantando no meu peito, ESTRELA SOLITÁRIA — Ric de Janeiro, J. Olympio, 1940.
Que está chorando as rosas mortas. MAR DESCONHECIDO -- Rio de Janeiro, J. Olympio, 1942.
POESIAS ESCOLHIDAS — Rio de Janeiro, Americ ed. 1946.
Sou como um jardim noturno. O GALO BRANCO — Rio de Janeiro. J. Olympio, 1948.
FONTE INVISÍVEL -- Rio de Janeiro, J . Olympio, 1949.
POESIAS COMPLETAS -- Rio de Janeiro, J. Olympio, 1956.

98 99
40 • RlMCAUI) Unia Estação no Inferno
ÍJ(jema 37
41 • SÍLVIO NI:VES Postais Ingleses
Lamentação Sobre josefui^ 38 42 JOÃO NEVES DA FONTOURA . . Poeira de Palavras
40 43 . JOSUÉ MONTELO 'Fontes Tradicionais de António N i / l m -
Josefina no Coração das Fogueiras 44 • ÁLVARO LINS No Mundo do Romance Policial
Perdição de Josefina 42 45 STEF/1N BACIU Servindo à Poesia
4G Luís SANTA CRUZ Poética Menor
A Tristeza da Tarde 44
47 MIGUEL PAEANHOS DE Rio
Encontro de Josefina 45 BRANCO . Alexandre clc Gusmão e o Tratado
46 de 1750
Lembrança da Esquecida ia SÉRGIO PORTO . . . . Pequena História do Jazz
Cantar 48 49 WILSON LOUSADA . . . O Caçador e as Raposas
50 50 ALFREDO MAHGARIDO C C. E.
Marinha COSTA Doze Jovens Poetas Portugueses
Grande, Fria, Feliz 52 51 OTTO MARIA CARPEAUX . Respostas e Perguntas
54 52 ARTHUR CEZAH FERREIRA REIS Portugueses e Brasileiros nu Guiana
A Lua do Lima
Francesa
A Volta do Filho Pródigo ....... 58 53 — THEODORE HARNPERCER . . . . Os Estados Unidos Através de sim
06 Literatura
Exercício N.° 2
54 — EURICO NOGUEIRA FRANÇA A Música no Brasil
A Um Poeta Jovem 67 55 — DANTE ALIGHIEBI Três Cantos do Inferno
69 50 — EVARISTO DE MORAIS FILI;^ . Francisco Sanches na Renascença
Não Deixes
Portuguesa
Retraio 70 57 — LOURIVAL GOMES MACHADO . . Teorias do Barroco
72 53 — ALMEIDA FISCHER A Ilha e Outros Contos
Poema do Pescador 59 — CASSIANO RICARDO A Poesia na Técnica do Romance
Os Príncipes 77 00 — ROBERTO ALVIM CORRÊA . . . Hebe ou da Educação
79 Gl — Luís COSME horizontes de Música
Soneto 02 — CELSO KELLY Três Génios Rebeldes
]Joema 80 03 — RUDEM BRAGA Três Primitivos
64 — MANUEL BANDEIRA De Poetas e de Poesia
Momento 82
05 — ADONIAS FILHO Jornal de um Escritor
Morte da índia 83 66 — JOSÉ Fí-RNANDO CARNEIRO . Apresentação de Jorge de Lima
07 — FRANCISCO DE Assis BARBOSA Testamento de Mário de Andvade
Tristeza Desconhecida 86
08 — ANÍSIO TEIXEIRA A Universidade e a Liberdade Humnmi
Descanso 88 09 — PEREGRINO JÚNIOR O Movimento Modernista
70 — AFRÃNIO COUTINHO Por uma Crítica Estética
O Grande Momento 90
71 — PEDRO DE BOTELHO 3 Fragmentos
Aparição da Amada 91 72 — OLÍVIO MONTINEGRO Ensaios
73 — PAULO RONAI Roteiro do Conto Húngaro
História da Borboleta Branca 93
74 — EDGARD CAVALHEIRO Evolução do Conto Brasileiro
Grande Azul, Claros Céus 95 75 — ROBERTO MENDES GONÇALVES . O Barão Hubner na Corte de São
97 Cristóvão
Canto da Louca 76 — EDGARD CAVALHEIRO . A Correspondência entre Monteiro Lo-
bato e Lima Barreto
77 MANUEL BANDEIRA 50 Poemas Escolhidos pelo Autor
78 SÉRGIO MILLIET . Três Conferências
79 GILBERTO FRHTYRE . Reinterpretando José de Alencar
102 80 GILBERTO FREYRE . Manifesto Regionalísta de 1926
DEPARTAMENTO DE IMPRENSA NACIONAL
RIO DE JANEIRO — BRASIL — 1957

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