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Psicanálise e Arte Aurélio Souza

A arte e o ato

Aurélio Souza*

Unitermos: gozo; arte; ato. Mesmo que os artistas ensinem aos A partir daqui, vou procurar formalizar
analistas, este é um enunciado que um limite entre a modalidade
deve ser tomado com alguma impossível do discurso analítico, em
prudência, pois não se faz análise a oposição ao possível das Artes, levando
partir de uma obra de arte. Não existe em conta noções do sujeito e do ato.
Resumo psicanálise aplicada.
Não existe psicanálise aplicada.
Mesmo que o discurso analítico tenha Desde que Freud inventou a DO LADO DA PSICANÁLISE
servido para desenvolver explicações psicanálise, que ela tem servido de
sobre o ato criativo, não se pode instrumento para abordar, interpretar ou O que é a psicanálise? Uma prática
implicá-lo ao sujeito do inconsciente. justificar os diferentes atos criativos no que não deve ser vista como uma
Esse sujeito da psicanálise, humano, através de uma via que ele terapêutica, mas submetida a uma
testemunho do ensino de Lacan, não nomeou de sublimação. Uma das ÉTICA que passa a ter conseqüências
clínicas. Mais tarde, no ensino de
corresponde ao homem, a um vicissitudes da pulsão. Todavia, ele não
Lacan, a psicanálise adquiriu o estatuto
indivíduo, nem mesmo a um artista. deixou de considerar que o desejo
de um Discurso conduzido pelo
Ele só se realiza no curso de uma inconsciente era a causa destes atos. analista. Assim, não mantém qualquer
análise em intenção, em ato, que o
Lacan, por sua vez, procurou também relação com a bioquímica, com o
funda como um lugar de gozo. individuo, nem com o homem como um
manter a idéia da criação relacionada à
ser vivo que se mantém submetido às
noção de sublimação. Diferente de Freud
noções do normal e do patológico. O
tomou-a como uma operação que teria a
objeto da psicanálise é um ser mental
função de colocar um objeto da realidade que é afetado pelo sujeito do
com a hierarquia do real. Procurou dar ao inconsciente.
objeto, a dignidade da Coisa, formulando
a idéia da criação a partir da presença de A ética da psicanálise, portanto, é
relativa ao discurso-do-analista. Aquele
um vazio, de um vacúolo que viria
que segue uma pequena etiqueta que
desempenhar uma função inaugural
regula e propõe as vias que se deve
como causa do ato criador. seguir numa psicanálise em intenção,
A finalidade da sublimação seria a procurando estabelecer uma reflexão
própria reprodução da falta de onde ela do que se pratica e como se pratica.
procede. É uma repetição indefinida do
1
Baudelaire, C., L'Héautontimorouménos In : Les engendramento de um buraco fundado Trata-se de uma prática que se
fleurs du mal. As flores do mal. Rio de Janeiro: pelo próprio significante e em torno do mantém submetida a uma Lei que não
Nova Fronteira. (A tradução é de minha busca um ideal, nem mesmo de
responsabilidade). qual ele gravita para produzir na estrutura
o próprio ato criativo. A atividade colocar o sujeito numa condição de
2
Lacan, J., Sem. XXI, Les non-dupes errent, harmonia em suas diferentes
significante vem fundar só depois o in-
aula de 09/04/1974. Publicação interna da realidades. A psicanálise tem como
Association Lacanienne Internationale. mundo do sujeito, num tipo de criação
princípio regulador para seu ofício, um
ex-nihilo. Algo que surgiria do nada, enunciado que intervém sobre o desejo:
como na concepção religiosa. Aqui, no "não ceder quanto ao desejo". Uma
entanto, Lacan não guarda qualquer condição que guarda uma estreita
idéia a respeito do mito das origens. relação com a ordem e com o dever...
Mais tarde, procurou ainda colocar a com fazer o dever e com uma ética
sublimação, como algo que viesse que Lacan designou do Bem-Dizer.
suprir a não proporção sexual que Embora a noção de Ética esteja
*Psicanalista, Membro do Espaço Moebius. existe entre o homem e a mulher. relacionada aos usos, costumes,

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A arte e o ato

normas, leis que regulam as relações O sujeito é uma função, é um buraco, psicanálise. Esse a-objeto torna-se
entre os indivíduos, ou entre os sujeitos é lugar vazio. É um lugar de gozo. Ele causa do sujeito e de sua divisão.
do conhecimento, para a psicanálise só se realiza como uma metonímia de Assim como causa do desejo. Ele se
é algo que fundamenta as relações do seu ser e, como tal, estará sempre constitui também como uma produção
sujeito com o objeto. A ética do Bem- representado por um significante. Por do discurso analítico sob a condição
Dizer, portanto, não procura determinar isso mesmo sua divisão se realiza de mais-gozar e relacionado à própria
que se diga bem ou bonito aquilo que entre o UM do significante que o noção de repetição. Lacan o
diz, mas de buscar um bem-dizer que representa [S1] e o Saber inconsciente considerou como um "ludion lógico".
satisfaça. [S2], que é equivalente à própria rede Embora se o nomeie objeto, ele deve
de significantes, aonde o sujeito habita ser tomado como uma letra, letra [a].
Tendo colocado estas questões iniciais numa relação de extimidade. Uma
sobre a Arte e do Ato, do ponto de exterioridade lógica e topológica em Lacan ainda atribuiu ao objeto [a] o
vista da psicanálise e de seu efeito na relação à estrutura da linguagem estatuto de Real. Na análise em
cena social, vou formular três aonde habita, assim como em relação intenção, é a partir desse caroço do
perguntas: o que é o sujeito, o sujeito ao próprio corpo que o sustenta. real, ou ainda como Lacan o também
do inconsciente? O que é o ato, na o chamou de uma "semente que é
psicanálise? Qual sua diferença com Ele se multiplica e se manifesta na tirada da arte"2, desta "semente da
o ato criativo, aquele que se realiza nas dependência do significante que o arte", que adquire o estatuto topológico
Belas-Artes? representa e, desta maneira, não de um buraco, que o inconsciente será
corresponde àquele que pensa. É um inventado. Por isso mesmo, não é o
Para encaminhar minhas respostas, sujeito que guarda ainda uma disjunção desejo que preside o Saber
vou afirmar que esta noção de sujeito com a idéia do subjetivo. O sujeito do inconsciente, mas é o real. É a partir
vem testemunhar uma hipótese do inconsciente se fundamenta numa do objeto [a], o que de horror e de
ensino de Lacan. De início, existiria um condição lógica de certeza e não de dejeto que existe no objeto que o
sujeito primitivo que deverá ser uma subjetividade psicológica e inconsciente é inventado.
contaminado, que será adoecido pela imaginária. Para o sujeito, portanto, o início não é o
linguagem. Como um produto desta Verbo, a Ação, ou o Movimento. É esse
operação linguageira, esse sujeito Como o tema da Jornada implica a buraco em-forma de [a], que passa a
primitivo se desnaturaliza, perde seu ARTE, as Belas-Artes, vou me utilizar corresponder à própria noção de
saber instintivo e se transmuda num de um eufemismo, para afirmar que estrutura e de Lei, que irá manter uma
sujeito dividido, num ser de linguagem esse sujeito dividido pode ser relação de alteridade com o sujeito e se
e de sexo. considerado como aquele que participa torna causa do inconsciente. Como um
destas posições que estão corolário, nenhuma ação, movimento ou
Essa concepção do sujeito divido não contempladas numa das estrofes de objeto podem desfazer ou preencher
é contemplada em nenhuma acepção Baudelaire, em As flores do mal: esse buraco em-forma de [a].
filosófica ou psicológica. Nem mesmo No plano ético da psicanálise,
corresponde a qualquer modelo Eu sou a ferida e a faca! [Je suis la portanto, essa noção de buraco será
existente na história do pensamento, plaie e le couteau!] definida através de uma condição lógica
anterior ao ensino de Lacan. É uma Eu sou a bofetada e a cara que e topológica. Trata-se de um lugar
formulação nova. Ele não se constitui apanha! [Je suis le soufflet et la impossível do real que não pára de se
a partir de qualquer substancia ou joue!] não inscrever e que vem se realizar
essência. Só realiza sua presença e Eu sou os braços e a roda que como lugar de gozo e causa do desejo.
seu sofrimento, no curso de uma tortura, [Je suis les membres et la De um desejo sem objeto e, como tal,
análise em intenção , quando é roue,] se torna inimigo do Bem.
solicitado a tomar a palavra em E a vítima e o carrasco! [Et la victime Mais tarde, em seu ensino, Lacan
associação automática. et le bourreau!]1 também veio colocar objeto [a] fazendo
parte de uma estética da modernidade,
Esse sujeito dividido, esse sujeito da No ato de constituição do sujeito, o algo que equivaleu a uma estética do
psicanálise não corresponde ao efeito que a linguagem causa sobre o dejeto. Antes da modernidade, o in-
homem, a um indivíduo ou a uma organismo, determina uma perda radical mundo do sujeito não conhecia uma
pessoa. Ele não deve ser confundido e irreversível em sua estrutura. Isso que superprodução de destruição, como
com o sujeito gramatical, com o se perde, Lacan vai atribuir o estatuto aconteceu a partir do discurso-do-
interlocutor e nem mesmo com essa de objeto. O objeto pequeno [a]. capitalista. Com essa estética do
instância que é eu [moi], com a qual dejeto, a civilização se constitui no
próprio esgoto da cultura.
mantém uma relação de alteridade Essa noção de objeto percorre uma
radical. De uma maneira equivocada, variação de sentidos, sem que possa Aqui, ao me referir ao efeito da
muitas vezes se afirma que essa ser identificado a qualquer um deles, linguagem sobre o organismo,
divisão se faz entre a consciência e o desde quando ele só pode ser tornando-se responsável pela
inconsciente. fundamentado no campo da inauguração do sujeito e causa do

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inconsciente, assim como pela ex- diferentes maneiras através da noção ele possa ser inserido no campo
sistência do objeto [a], ela não de repetição. analítico, será necessário que passe
corresponde àquela dos lingüistas e a fazer parte de uma "pulsação do
Para a psicanálise, a noção de
que se fundamenta no signo. A inconsciente". Isto é, que esteja
repetição não corresponde à
estrutura da linguagem passou a ser incluído numa análise em intenção.
reprodução no presente de um
nomeada por Lacan de lalíngua.
acontecimento passado, nem mesmo Desta maneira, o Ato, o sujeito que só
Uma estrutura que não se inscreve na a reprodução de algo idêntico a um fato pode ser recolhido numa psicanálise em
dimensão do espaço-tempo euclidiano, já realizado anteriormente. Trata-se de intenção. Diante do real, deste buraco
como a lingüística saussuriana. Neste uma operação significante que funda em-forma de [a], o sujeito deve usar de
caso, os significantes não mais o sujeito e celebra a satisfação, o gozo sua arte e de sua poiesis para instituir
obedecem a um sistema simples de de seus desencontros com o real, que limites ao gozo do Outro, ainda que este
diferenciação, nem mesmo a idéia da sempre vem fazer rupturas em sua Outro nem mesmo exista. Ele o faz,
polissemia deve ser privilegiada. O que hystória. utilizando-se das letras ou mesmo do
passa a importar em lalíngua é uma significante que o representa. Elementos
No discurso analítico, diferente dos que se repetem, mapeando o ato de um
relação de vizinhança dos elementos
outros discursos, toda persistência do dizer que institui, dá contornos e
que a constitui. Um tipo de
sujeito em seu in-mundo de linguagem, consistência à própria noção do buraco.
coexistência de significantes onde "se
toda a idéia da continuidade é
injeta uma ponta a mais de Diante do real, portanto, o Saber
substituída por uma descontinuidade,
onomatopéia", determinando com isso inconsciente se reduz ao próprio
por uma fratura causada pela própria
um sistema fonemático ("A Terceira"). tempo do ato que o constitui. Ele se
intervenção de lalíngua, causando
Lalíngua, portanto, é uma estrutura repetições. transmuda num saber, em ato. Um
topológica que se torna solidária à Saber que é inventado pelo sujeito e
polifonia, isto é, àquilo que de sonoro Vou insistir nesta questão, pois na que se contenta sempre em começar,
vem impregná-la. Trata-se de uma prática da análise em intenção, o valor realizando-se como um redobramento
estrutura que visa o real e, desta da repetição não implica do significante.
maneira, agrega uma importância necessariamente a fala, desde quando
as palavras ficam esvaziadas de Assim, o sujeito inventa o Saber
essencial às noções de letra e de
significação e passam a fazer parte de inconsciente em ato, fibrando no
escritura, como elementos essenciais simbólico estes pedaços do real, essa
do discurso analítico. um Dizer que transforma a psicanálise
num tipo de discurso essencialmente "semente do real"3. Ele o faz através
Por isso mesmo, a jaculação mesmo sem palavras. de uma função contínua, com cada
isolada de um significante vai reduzi- uma das unidades do espaço-tempo
lo ao que ele é - "a uma torção da voz". A estas duas noções - a paixão pelo do real. Assim, diferentes pontos no
Algo que não se define como um som significante e a repetição - Lacan as simbólico são produzido, numa
que se registra num disco ou numa fita elevou à categoria de ato. Após esse operação equivalente àquela do modelo
magnética, mas que corresponde à desvio, retorno à minha segunda de Kripke dos "mundos possíveis". Isto
própria idéia de escansão. Assim, a questão: o que é essa noção de Ato? quer dizer, "mundos" que são dotados
voz se torna um objeto, uma das O que é o ato analítico? de um caráter de acessibilidade e
mostrações do objeto [a] que vai aonde se pode identificar, localmente,
Não é excessivo se dizer que essa
permitir que numa psicanálise em os efeitos de sujeito, onde se realiza
noção do Ato tornou-se uma referência
intenção , as palavras possam ser condições de gozo que vão possibilitar
de passagem entre a topologia do
dobradas, fletidas, curvadas, diferentes fixcões do real que buscam
significante e a topologia da cadeia
decompostas e deformadas, dar conta do sexo, da vida, da morte,
borromeana. O Ato, na análise, resulta
produzindo diferentes sentidos. A voz de sua origem, dos eventos de sua ex-
numa operação significante. O analista
pode permitir ruídos e efeitos fonéticos, sistência.
investido desta condição de Sujeito
caindo como letras que se prestam
suposto ao Saber, elemento essencial Para a psicanálise, portanto, o Saber
também a equívocos, anagramas e
da transferência, sustenta a análise inconsciente não se origina de
aliterações.
como semblante de objeto . Desta qualquer substância, de um
Desta maneira, o sujeito do maneira, ele se converte em causa de conhecimento científico ou
inconsciente por sua implicação à um dizer que satisfaça ao sujeito, um epistemológico, nem mesmo se trata
lalíngua desenvolve um tipo de paixão, dizer que faça o suficiente. de um saber pré-existente. Não guarda
uma pura e simples paixão pelo qualquer relação com as origens, com
significante. Não se trata de qualquer Tornando-se uma operação topológica, a ontologia, ou com algo que possa
relação de prazer, mas ao contrario, ele deixa de se realizar através da fala, existir nas profundidades da mente ou
guarda uma referência ao sofrimento e de uma ação, de um movimento, de da alma e que poderia emergir na
ao gozo, como efeitos do real. Essa uma descarga motora, nem mesmo de consciência.
dimansão que não pára de não se um "ato reflexo". Até mesmo o que se
escrever e que afeta o sujeito de considera como "ato falho", para que O inconsciente é um saber singular que

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3
Idem, aula de 15/01/74. se estrutura como uma linguagem um sinthoma. Uma condição que vem
4
Lacan, J., sem. XV, L'acte psychana-lytique, aula solidária à lalíngua, à polifonia e ao real. instituir efeitos de estrutura que
de 29/11/1967. Publicação interna da Um Saber que se cola na superfície estarão ligados à hystória do sujeito.
Associação freudiana internacional. do corpo que sustenta o sujeito e que
5
Idem, aula de 20/05/68. Publicação interna da ainda trabalha fora de sua vontade. Este "saber-fazer aí com", o sujeito o
Association Lacanienne Internationale. Torna-se testemunho de um Saber adquire como um Estilo. Não se trata
topológico que não se estrutura como de um Estilo-Tipo do analista, mas de
uma cadeia, mas como um conjunto uma função que ele se apropria no
aberto em que não se pode enumerar curso da análise que realiza. Para a
os elementos que contém, nem psicanálise, o Estilo não corresponde
encontrar lugares definitivos para eles. à maneira de falar ou àquilo que pode
Nem mesmo se trata de um Saber que identificar um analista em sua forma
possa ser investigado a partir de seus de conduzir uma cura. Trata-se de algo
conteúdos, como muitas vezes tem que é apre(e)ndido como coordenadas
sido concebido, ou mesmo que se do discurso, sob a forma do objeto [a].
possa deduzi-lo pela dialética. Será através de seu estilo que o
analista vai definir sua posição, seus
Desde quando a psicanálise é um limites e a maneira que, sem saber,
discurso, qualquer enunciado recolhido irá intervir na associação automática
na prática de uma análise em intenção do analisante.
se constituirá sempre num enigma
para o analisante. Isto é, num tipo de Quando o "pensamento brota" para o
enunciação que não é de ninguém e sujeito, numa análise em intenção,
que não corresponde a qualquer instituindo "uma nova harmonia", ele
enunciado de saber. É uma verdade se ordena e se desenvolve seguindo
que o sujeito terá que decifrá-la a partir um duplo caminho, num "bivium"5,
de seus efeitos, desde quando na num tipo de bifurcação que guardará
análise o sujeito não pode se sempre um duplo sentido.
reconhecer no ato que o funda. Ele fica O primeiro que vou considerar tem
sem saber o que era antes e mesmo o como paradigma a Ciência. Embora
que vai vir a ser após o ato, pois o ato Lacan tenha afirmado que o discurso
o modifica4. da Ciência é equivalente ao discurso-
No ato é o real que responde. Na do-histérico, não se pode deixar de
análise em intenção, embora o ato não considerar que a Ciência se
comporte no momento em que se fundamenta no discurso-do-mestre.
realiza a presença do sujeito, ele o Uma estrutura discursiva que foraclui
constitui como uma resposta do real. o sujeito inconsciente e se volta para
O sujeito da psicanálise, portanto, é que "isso funcione". O discurso-do-
uma resposta do real. mestre, portanto, se encaminha para
uma "tentação irresistível de fazer" algo
Por isso mesmo, o sujeito do que possa estar relacionado com a
inconsciente se inventa numa operação ordem e a eficiência.
significante que se realiza num só golpe.
Um pequeno golpe, uma pequena Quando ao segundo sentido, o
manipulação no discurso do analisante paradigma será dado pela psicanálise,
fará ressoar algo de sonoro que "deve pelo discurso analítico. Aqui, o
consoar com o que é do inconsciente". pensamento se escreve fazendo borda
Portanto, é por tocar em pedaços do no real e determinando um efeito
real, num caroço do real, que o sujeito que vai estar relacionado ao ato,
pensamento brota. à repetição e à própria invenção do
Saber inconsciente. Trata-se de um ato
O sujeito através de um saber fazer aí
que se apreende no tempo em que se
com… pedaços do real ("savoir y faire
produz e que funda de um único golpe
avec" ), ele inventa o Saber
o Saber, ou melhor, o sujeito do
inconsciente, que o determina. A partir
inconsciente.
de uma constelação de "falas
impostas" que não necessitam ser Mais tarde, com a topologia da cadeia
compreendidas, nem mesmo borromeana, Lacan retoma esta
elocubradas, vai-se produzindo um questão do ato para afirmar que é
elemento novo, um significante novo, preciso escrever a cadeia borromeana

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e tomá-la neste sentido de que ela dá um "espaço vazio". Algo que parecia Lacan, J., Sem. XXIV, Le Sinthome, aula de
11/05/76. Publicação interna da Association
um apoio ao pensamento coincidir com aquele vazio que existia
Lacanienne Internationale.
("appensée")6. Ele vai afirmar que "se em Ruth. Uma condição que se 6
Lacan, J., Sem. XXI, Les non-dupes errent,
eu posso dizer… isso pode se fazer" transformou num fato precipitador de aula de 18/12/74. Publicação interna da
e que, portanto, "é preciso fazê-lo" ("il uma nova crise de depressão: "o Association Lacanienne Internationale.
faut le faire"). Um enunciado que vem espaço vazio zombava horrivelmente 8
Klein, M., Situações infantis de angústia
dar suporte à própria atividade mental, dela". refletidas em uma obra de arte e num impulso
assim como a esse "osso", que é a Essa condição se arrastou por algum
criador, em Contribuições à Psicanálise, Mestre
letra [a], e que passa a ter um efeito Jou, 289/293.
tempo, até que num determinado dia,
na cena social, desde quando "parece de uma maneira súbita, Ruth resolveu
bem ser algo"6. fazer algo. Disse ao marido: "vou dar
Aqui, nas vezes que esta injunção da umas pinceladas" ("to daub a little").
Ciência não funciona, o discurso que Ele provavelmente gostou da idéia e
se produz pode alcançar outras procurou incentivá-la. Logo em
condições na cena social, inclusive o seguida, comprou as tintas
ofício das ARTES. necessárias para ela pudesse dar
"suas pinceladas". Comprou-as nas
mesmas cores que seu irmão utilizava
DO LADO DAS BELAS-ARTES para pintar seus quadros.
Para dar suporte ao título de meu Ruth se lançou ao trabalho. Ela não
trabalho - A ARTE e o ATO - vou usou de pranchetas, preferindo se
apresentar, de início, o fragmento de utilizar do "espaço vazio" que havia
um caso relatado por Melanie Klein ficado na parede para fazer um esboço
(1929)8 e que Lacan também o comenta inicial. Em seguida, deu "suas
em vários momentos de seu ensino. pinceladas". Pintou um nu. Uma
Melanie Klein se refere ao artigo de uma mulher negra, em tamanho natural.
psicanalista Karin Michaelis - "O Após ter concluído seu trabalho,
Espaço Vazio". É o relato de algo aguardou com grande expectativa a
ocorrido com uma amiga, Ruth Kjär. presença do cunhado, que foi chamado
Embora não se saiba bem qual era o para opinar sobre a pintura. Ele ficou
problema de Ruth, ela sofria de crises espantado e não acreditou que ela
depressivas com alguma freqüência, pudesse tê-lo feito. Era a obra de um
um tipo de "melancolia suicida", como artista. Não poderia, portanto, ser de
aparece no texto. Nestas ocasiões sua cunhada.
sempre se queixava de algo que a A partir desta primeira experiência,
afetava com intensidade: um espaço Ruth continuou a pintar. Excluindo um
vazio, em seu interior. Um espaço que único quadro de flores, dedicou-se a
nunca pôde ser preenchido, ou pintar retrato de mulheres, inclusive
desfeito, por qualquer coisa que tivesse mulheres já envelhecidas. Sua obra
realizado até então. Com a ajuda da serviu de motivação para a
analista, que era sua amiga, Ruth veio interpretação de Melanie Klein sobre
a se casar. Após o casamento, passou o ato criativo.
um período sem maiores problemas, Era uma tentativa de reparação pelo
sem depressão. que ela havia feito ao corpo da mãe.
Embora não fosse pintora, Ruth Por ter lesado o corpo materno, ela
possuía um grande interesse pelas procurou lhe restituir os objetos
artes. Assim, logo em seguida ao roubados: o pênis do pai, os filhos, as
casamento passou a usar sua casa fezes... .
como uma espécie de galeria, como Após algum tempo, Ruth conseguiu
um local de exposição para os quadros reconhecimento público, fazendo seu
do irmão de seu marido, que era um nome como artista e tendo um
artista conhecido e renomado. Um dos sucesso financeiro com seu trabalho.
melhores do país. Tendo colocado este pequeno
Certo dia, perto do Natal, o cunhado fragmento desse caso clínico, vou
vendeu um dos quadros que se procurar estabelecer os pontos de
encontrava exposto em sua casa. Foi convergência e disjunção que existem
até lá e o retirou da parede, deixando entre estes dois tipos de Ato: aquele

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A arte e o ato

que se realiza no curso de uma análise ainda, toda criação é uma mimesis, a que causa horror do real possa ser
em intenção, em oposição àquele que busca de se realizar a imagem de algo mostrado através de uma
se desenvolve na cena social como um inimaginável. Como tal, é uma ficção representação. Ou aquilo que no
ato criativo relacionado às diferentes que busca dar contornos à ex-sistência pensamento é impensável, possa
artes, tais como a pintura, a literatura, desse buraco do real. Em qualquer ato aparecer. Ou ainda onde aquilo que não
a música, a escultura, o cinema, a criativo, da literatura à escultura, se pode dizer ou ver do real, possa ser
poesia, entre outras. mesmo que se realize algo que retorne mostrado. Desta maneira, se o que o
Como me referi, anteriormente, o Ato, sobre o sujeito num tipo de percurso pode ser dito, pode ser visto e vice-
na análise, resulta numa operação acéfalo e guarde alguma relação com versa, o visível e o dizível se recobrem
significante que funda o sujeito e só a sublimação, ele se dirige para o na obra de arte.
pode ser recolhido numa análise em público através das galerias, das Se uma obra de arte reserva para o
intenção, sob transferência. Como tal, exposições, dos livros e adornos... . artista uma quota de gozo que tem
submetido aos efeitos sugestivos da Desta maneira, a noção de sublimação justificado sua condição de sofrimento,
invenção do inconsciente. talvez não deva só corresponder a cada ou mesmo de horror causado pelo real
Todavia, se digo algo e faço, e isso não uma das obras de um artista, ou de em sua ex-sistência, também para
se encontra sob transferência, deve- um autor, mas a uma operação capaz cada um que é capturado e afetado por
se se olhar como algo que participa de produzir suas obras. Uma condição ela, isso goza. A arte, de alguma
ou mesmo que interfere na cena social. que poderia determinar o reconhe- maneira, vem interrogar os efeitos que
Uma produção que mesmo mantendo cimento do perfil de um autor ou de esta condição de gozo pode determinar
alguma relação com o objeto [a], ex- cada artista, mesmo que sua obra não para o artista e para o observador, onde
siste do real e passa a fazer parte das se mostre homogênea. Não quis me cada um sofre à sua maneira.
realidades plurais do sujeito. referir ao "estilo", pois na psicanálise A Arte serve para aplacar, circunscrever,
o estilo não possibilita a produção de minimizar o horror do real. Diferentes
Com o ARTISTA, mesmo que se leve um traço que possa sequer identificar
em conta as diferenças que existem pedaços do real vêm causar o desejo
o analista em sua prática. e produzir gozo, como uma condição
na produção de um poeta, de um
Através de sua arte o artista pode até que leva o artista a produzir sua arte.
escritor, de um pintor, do escultor, do
mesmo fissionar o significante e Não é, portanto, o objeto de arte que
músico..., pode-se considerar algo de
introduzir no in-mundo algo como uma produz o artista. Ela se revela fazendo
comum, de invariante, entre eles, na
imagem, uma escultura, um texto. Ele parte da produção de um artista, sendo
sua produção. Refiro-me a uma
pode procurar com isso, sem saber, capaz de determinar um conjunto para
dimansão do Real que venha funcionar sua obra. Trata-se de algo que pode
contornar, limitar, ou mesmo tornar
como causa, determinando uma até mesmo se diversificar no tempo e
ausente isso que Freud identificou
condição ética ou mesmo estética que em diferentes doutrinas, como causa
como A Coisa.
possa sensibilizá-los a produzir um de uma miragem que venha dar suporte
objeto que lhe proporcione uma outra Qualquer processo criativo que venha
para uma noção idealizada das
satisfação. comparecer nas diferentes formas de
realidades do artista.
"arte", nas Belas-Artes, como uma
Dito de outra maneira, trata-se sempre produção de gozo capaz de justificar Uma produção artística pode se
de uma estética e de uma ética que sua existência num espaço público, constituir num conhecimento estético,
se direciona através de um aspecto mesmo que ela venha ocupar o lugar ou mesmo se transformar num tipo de
político que busca corresponder à do vazio, ela não poderá tamponar ou objeto que possibilite uma narrativa ou
perspectiva de ideais da cultura. Uma desfazer o buraco do real que causa o uma descrição que venha se converter
Ética do Bem, da Felicidade, do Belo, sujeito. Só dará ao objeto que vem num tipo de janela para aquilo que se
mesmo nos casos em que a estética substituir ao objeto [a] a dignidade da chama a História. Mesmo que uma
considerada, possa conter uma marca Coisa, essa condição do real que peça ou uma obra de arte possa ser
de horror e que possa causar espanto. padece do significante e que, por uma tratada como parte de um conjunto, em
que se pode se identificar, ou seguir o
Ainda nestes casos, pela implicação condição lógica e descritiva, será
traço de um artista, em sua
que estas produções artísticas possam sempre representada por "outra coisa".
singularidade ela não deve ser vista
ter, de um ponto de vista lógico e AArte se converte num instrumento para como algo que contenha uma
topológico, com o objeto [a], um a- que, através de um elemento estético homogeneidade. Por isso mesmo,
objeto, um ab-jeto, Lacan vai inferir que ou mesmo de uma natureza ética, o Lacan chega a afirmar que as obras
em qualquer obra de arte o que atrai o artista venha criar com sua obra um de arte, assim como as religiões são
olhar é aquilo que ela é desde sempre lugar que possa dar acesso àquilo que uma lata de lixo, não guardam qualquer
e por toda parte: uma ob-scenidade. não se pode ver ou falar - o real. homogeneidade.
Qualquer ato criativo, qualquer A Arte, portanto, é a produção de algo O que é essencial, portanto, é que em
pesquisa, toda ação, toda deliberação que possibilita uma visibilidade do que nenhum caso de uma produção
refletida, todo "se dar conta", tendem não se pode ver. Ela serve para se artística, pode-se produzir um Ato que
para algum BEM (13/02/1973). Ou produzir algo onde o irrepresentável, o venha determinar um efeito sujeito. Nos

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9
atos criativos dos artistas, as noções Lacan, J., Subversion du sujet et dialectique
de Ato, de Repetição e, sobretudo, a du désir dans l'inconscient freudien, Écrits,
Invenção são fundamentos excluídos Seuil, 1966, p. 819.
de suas realizações. O que se pode
considerar como um ato criativo do
artista está "fora" do discurso, não
obedecendo à pequena etiqueta do
discurso analítico.
Por isso mesmo, a arte é algo incapaz
capaz de realizar e, sobretudo, inventar
o Saber inconsciente. Nenhum Ato
criativo realiza um dispositivo
topológico e discursivo que possa
produzir esta resposta do real que é o
sujeito do inconsciente. No ato criativo
não existe um discurso onde se possa REFERÊNCIAS
revelar a languidez desse ser do sujeito
como lugar de gozo que o identifica ao LACAN, J., Seminário 21, Les non-dupes errent, aula de 09/04/1974. Publicação
próprio objeto [a]9. interna da Association Lacanienne Internationale.
Com sua arte, o artista pode mesmo LACAN, J., Seminário 15. L'acte psychanalytique, aula de 29/11/1967. Publicação
fazer um Nome, um Nome-Próprio, até interna da Associação freudiana internacional.
mesmo um Sinthoma, inscrevendo no
LACAN, J., Seminário 24. Le Sinthome, aula de 11/05/76. Publicação interna
real algo do simbólico. Condições que
da Association Lacanienne Internationale.
podem convocar a psicanálise ou os
psicanalistas a falarem algo sobre eles. LACAN, J., Seminário 21. Les non-dupes errent, aula de 18/12/74. Publicação
Todavia, quando a psicanálise é interna da Association Lacanienne Internationale.
convocada para tratar destas questões, KLEIN, M., Situações infantis de angústia refletidas em uma obra de arte e
ela se realiza como psicanálise em num impulso criador. In:____. Contribuições à Psicanálise. Rio de Janeiro: Mestre
extensão. Uma condição diferente da Jou, 1980. p. 289/293.
psicanálise aplicada, já que esta não
LACAN, J., Subversion du sujet et dialectique du désir dans l'inconscient freudien.
existe.
In: ____. Écrits. Paris: Seuil, 1966, p. 819.
Na análise em intenção, o objeto [a]
se produz como um efeito do discurso
analítico, realizando-se como mais-
gozar. Uma condição que escapa não
só a uma medida comum com o
significante, mas à idéia de uma
universalidade, desde quando o objeto
[a] é incomensurável e irracional. O
sujeito no Ato que o funda, torna-se
equivalente a um lugar de gozo, ao
efeito da repetição e mesmo àquilo que
diz respeito ao mais além do princípio
do prazer. Condições essenciais da
Ética que regula a psicanálise: a do
Bem-Dizer, que se separa dos ideais,
do prazer e mesmo do Bem-Estar.

Cógito • Salvador • n. 9 • p. 19 - 25 • Outubro. 2008 25

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