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A angústia tem saber. Isso levou Lacan a se referir a ela como o afeto que não engana.
Freud, ao formulá-la em sua segunda teoria da angústia como sinal de perigo, também
introduziu aí um elemento da ordem de um saber, algo que sinaliza que ali existe alguma coisa
que aponta para uma verdade. Verdade que é um perigo.
Talvez o que paradoxalmente é algo do qual "não se quer saber nada disso".
Se por um lado Freud alude a uma disposição do sujeito em direção ao saber, chegando a
formular uma pulsão de saber - Wissenstrieb –, por outro lado Lacan enfatizou uma direção
oposta no sentido de uma paixão da ignorância.
Estes dois pólos se articulam uma vez que o saber e o não querer saber se conjugam nos três
tempos da experiência freudiana: Inibição, Sintoma e Angústia.
Não irei me deter nos dois primeiros onde o saber e o não querer saber enodam-se: inibição,
ou onde eles encontram a saída de compromisso: sintoma. Irei centrar minha atenção no
terceiro tempo da formulação freudiana: a angústia.
Dissemos que a angústia aponta para algo que sinaliza a verdade do sujeito. Verdade que
toma corpo, literalmente.
A natureza dessa verdade que a angústia veicula será o objeto do nosso trabalho.
Nas primeiras lições do Seminário da Angústia, Lacan, num determinado momento, ressalta: "A
verdade vem de Kierkegaard através da angústia".1
Ao formular o conceito de angústia (l844) Kierkegaard suscita o paradoxo pois a angústia não
pode ser de modo algum objeto de um conceito, mais ao mesmo tempo ela é o
fundamento não conceitual de todos os conceitos.
Sartre, por sua vez, se referiu à angústia como um falso-conceito, definindo-a como um- ponto
de universalização do singular.
O que se revela aí é o confronto com a vacuidade, o vazio, que não pode ser abordado através
dos recursos conceituais que o pensamento filosófico ou a lógica formal aristotélica oferece.
É também em Kierkegaard que encontramos uma referência que nos permite abordar o
estatuto desse traço de repetição.
Em 1843 ele escreve sobre a repetição mostrando que o homem não pode repetir cada uma de
suas experiências estéticas e éticas a fim de gozar um prazer passado. A repetição, entretanto,
é possível no plano do futuro, na aceitação da vida como um constante recomeçar, conversão
que se abre ao sentimento do prodigioso e do divino. Em outros termos, a repetição só é
possível como impulso de submissão ao desconhecido e radica-se no próprio absurdo da
impossibilidade de recomposição e reprodução das experiências estéticas e condutas éticas do
passado.
Isso porque ele entra a partir do momento em que começa a ser contado como UM? E como
que ele é contado como UM? Seria a cada vez que um sujeito se precipita, se lança em um ato
em que, antes de reproduzir uma identificação do passado, ele cria uma nova identificação,
mas que traz como um carimbo a marca de origem?
É aí que tentarei articular o tempo da angústia como este tempo de passagem, esse intervalo
entre gozo e desejo. Entre o atrelamento a uma forma repetitiva – que busca a reprodução de
um encontro, que se fará sempre faltoso, com algo de uma experiência passada – e a asserção
antecipada de um sujeito que só pode se apresentar com S, ou seja, na vacilação de um
certo fading onde ele se lança antes mesmo de tomar forma.
Seria o traço unário a projeção para o futuro de que nos fala Kierkegaard, a qual lança o sujeito
ao desconhecido, ao novo, criando novas formas de lidar com velhas questões?
De qualquer forma, para que isso ocorra é preciso que o sujeito se desprenda dos envólucros
que o envolveu e se desloque da via pela qual ele procura o impossível que é apreender-se
como um objeto, o a que ele não deixa cair, soltar.
O que ocorre é que apreender-se como objeto é sempre uma posição masoquista. O deixar
cair o a que ele é aí na estrutura, não significa lançar-se na linha do trem como a jovem
homossexual, do texto de Freud, mostrando que ela não se desprende, ela vai junto como
sendo ela o próprio a numa passagem ao ato. Nem tampouco se lançar em tramas e aventuras
com a dama de reputação duvidosa, para mostrar ao pai o que ela queria dele, em forma
de acting-out.
O a é o que resta da relação com o Outro, daquilo que se pode nomear, representar nesta
relação. Resta como um ponto irredutível, não assimilável, não especularizável, e é preciso que
ele caia como resto para que a repetição imponha o novo, aponte para o futuro e não apenas
reproduza o mesmo, tentando-se reencontrar o a que não se tem mais, pela via regressiva sob
a forma de identificação.
Mas de qualquer forma esse a aparece num primeiro momento tomando a consistência de uma
passagem ao ato ou do acting-out. É aí que o sujeito mostra sua causa, deixando cair este
resto que é onde ele paga com o corpo, pondo o corpo em cena.
É por isso que quando o sujeito atua, ele sente isso como algo estranho nele próprio, como
algo que ele faz a sua própria revelia; como um duplo de si mesmo que toma forma em suas
ações.
Como se perguntasse:
– Por que faço isso que me faz sofrer, mas não consigo deixar de fazer?
Mas o a pode vir como resposta no fantasma S<>a, como também pode vir como falta,
constituindo a rocha onde Freud coloca o limite da experiência analítica.
O surgimento da angústia aponta para algo, este Etwas que nos assinala Freud quando insiste
que a angústia é diante de algo - Angst is Angst vor Etwas.
É preciso ouvir as formas fantasmáticas com que o a se reveste e se apresenta, pois é através
do fantasma que ele opera, como suporte do desejo.
É este saber que insiste através do acting-out quando a fala não é suficiente para fazer ouvir a
causa, o analisante então irá mostrá-la colocando o corpo em cena.
Lacan destaca a função do corte; é por isso que ele usa o exemplo da circuncisão. Um corte e
uma torção para que se possa efetuar a castração, que instaura o sujeito na ordem simbólica.
A prática psicanalítica visa alcançar um ser sem substância que é o próprio corte, como
escansão que promove a queda do objeto, fazendo advir o sujeito sem substância.
Mas para que isso ocorra é preciso que o objeto que toma corpo na análise seja desencarnado.
O objeto pode tomar corpo de várias formas. Nasio fala em formações do objeto a, que
não se regem pelas mesmas leis significantes que se aplicam às formações do inconsciente.
Cria-se uma nova realidade ali onde o objeto deveria cair, ele toma corpo.
"Isso comporta a idéia, que a realidade é uma questão de limite, de borda, e eu acrescento...
que é uma questão de nó, não no sentido de nó borromeano, mas de algo que se fecha como
um nó".2
A forma mais comum de o objeto tomar corpo na análise é através do acting-out, onde ele
literalmente coloca o corpo em cena agindo em vez de falar.
A consistência do a que nos interessa enquanto analistas, é esta que toma forma encarnado no
fantasma.
Por isso, é preciso ouvir a verdade que há neste pequeno nó que surge como obstáculo à
análise.
A objetividade, ou conhecimento objetivo, é correlativo de uma razão pura, último termo que se
pode articular por uma lógica formal.
Ao formular a produção do objeto a como decorrência da fala, Lacan assinala que essa
produção irá afetar estruturalmente a forma de apreensão do conhecimento e da realidade pelo
homem.
Tendemos a pensar na construção fantasmática que se impõe como meio que inscreve o gozo,
como um conhecimento objetivo, como se fosse possível apreendê-lo, nomeá-lo pelos mesmos
instrumentos que usamos para decifrar e fazer deslizar os sintomas. Não se trata entretanto
dessa mesma forma de operar quando se trata do objeto.
Daí a correlação com a prática da circuncisão. Um corte que é uma marca. Uma marcação
estrita da falta, tanto quanto a depuração de um a.
A relação com o campo do Outro se fará não mais através do que toma corpo, mas através
desse pequeno fragmento de carne que cai, que se perde – o a.
Neste sentido, Lacan outorga à objetividade uma tripa causal, ou seja, há uma implicação
visceral que estaria na raiz do conhecimento científico.
A subsistência dessa causa, a sua irredutibilidade se deve ao fato de ela ser idêntica a essa
parte de nossa carne que fica presa na máquina formal da lógica do fantasma de cada um.
Sem isso, o formalismo lógico não teria sua própria eficácia imperativa de gozo.
Isso é que faz com que demos o sangue, a carne, o corpo por uma causa. Um pedaço de carne
arrancado de nós quando nos engajamos numa posição de desejo, através da criação de uma
teoria, de uma obra qualquer.
"É essa parte de nós mesmos tomada na máquina do formalismo lógico para sempre
irrecuperável, este objeto como que perdido nos diferentes níveis da experiência corporal onde
se produz o corte, é ele que é o suporte, o substrato autêntico de toda função como tal da
causa."3
"Deu o sangue por uma causa". "Suar a camisa". "Ter que ralar".
Enfim, esse coração está aí, como toda metáfora de órgão, para se tomar ao pé da letra. Aí, no
sentido da letra mesmo, do a como letra.
É como parte do corpo que ela funciona, a causa. É isso que Lacan irá chamar de Tripa
Causal.
A tripa como as vísceras, aquilo que às vezes nos leva a dizer que algo é visceral. Algo que nos
invade ao nível visceral mesmo, e que chega a doer.
Quando Freud formula as teorias sexuais criadas pelas crianças, já estaria apontando para a
raiz dos grandes pressupostos teóricos e científicos criados pelos adultos.
Raiz esta que estamos situando aqui como não só a partir de um dos pólos – pulsão de saber
ou ephistemológica, mas enfatizando este outro: a falta de saber, que levaria uma criança a
criar uma resposta, através de seus próprios recursos, àquilo que estruturalmente não teria
resposta: o sexo e a morte. O que moveria esta pulsão ephistemológica seria a falta de saber
estrutural onde, para não cair nesse abismo da ignorância radical, o sujeito se engancha, se
ancora num significante qualquer que inaugura a cadeia de todas as respostas que poderão a
partir daí se produzir.
Há portanto um nível de saber que passa pelo corpo, a medida que toca num ponto onde todo
o saber formulado é esgotado, um ponto de ignorância radical portanto, limite entre o somático
e o psíquico, diríamos com Freud a respeito da pulsão.
Trata-se de algo que concerne à divisão constituinte do sujeito, o qual só pode surgir neste
saber que é consequência da articulação significante.
É assim a experiência analítica. Não adianta estudar psicanálise sem passar pela análise, sem
pôr o corpo no divã.
Mas também há um momento em que se tem que tirar o corpo do divã e se colocar na vida,
final de uma análise.
Momento em que é preciso que o sujeito, num mais além de tudo que é possível dizer,
interpretar, analisar, ponha seu corpo numa ação nova, pela qual ele se faz sujeito.
Não se trata de acting-out ou de passagem ao ato, mas de ato. Ato de sujeito que se funda no
próprio ato, que levou Freud a parodiar Goethe no final de Totem e Tabu afirmando: "No
princípio era o ato".
Para isso é preciso que o sujeito possa deixar cair o a que como operador movimenta a cadeia
onde o sujeito pode aparecer.
Trata-se de uma asserção de certeza antecipada, onde o sujeito se precipita numa resposta e
se cria por isso mesmo como sujeito.
Não mais o sujeito da certeza mas a certeza de um sujeito como decorrência lógica.
Não se trata mais dos atributos com os quais o sujeito se define e que lhe são oferecidos pelo
Outro, juízo de atribuição, mas do juízo de existência, aquele na qual o sujeito sem substância,
sem essência, sem predicados, tem sua certeza antecipada. Pela sua própria condição de
prematuridade ele não está lá, ele se precipita numa resposta que o Outro significará.
A certeza antecipada aponta para o lugar vazio na estrutura que exige a escolha forçada de se
dizer o indizível. Daí se pode dizer da perspectiva criacionista da psicanálise.
O fantasma é o último resíduo mais primitivo, último ponto de predicado com que o sujeito se
garante. Ponto de ancoragem do desejo. Daí a certeza que a angústia sinaliza quando se toca
no fantasma.
Para se ir além desse ponto é preciso sair das predicações fálicas com as quais o neurótico
responde à sua falta-a-ser, desabando a cada destituição subjetiva.
Uma nova forma de operar se faz necessária, onde a existência do sujeito lhe é dada através
das escansões temporais.
Tal como no sofisma dos três prisioneiros, cada um de nós tem um disco que desconhecemos,
este ponto de não-saber que carregamos nas costas, e que nos leva a ter que fazer a hora,
fazer o encontro, saber encontrar o real onde seu ser tem suporte.
Notas
FREUD, Sigmund. Inibição, Sintoma e Angústia. ESB. Rio de Janeiro: Imago, 1976, v.XX.
FORBES, Jorge. Notas de Curso – 1989 – Módulo sobre identificação. Matema. BH.
HARARI, Roberto. Seminário A angústia de Lacan: uma introdução. Porto Alegre: Artes Ofícios,
1997.
KIERKEGAARD, Sören Aabye. Os Pensadores. Rio de Janeiro: Abril Cultural, 1974, v.XXXI,
cap. 45.