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Freud situa que a origem das pulsões nos é absolutamente desconhecida, escapando
totalmente à psicanálise. A teoria das pulsões “é, por assim dizer, a nossa mitologia”
(Freud, 1996, p. 98). As pulsões “são entidades míticas, magníficas na sua imprecisão.”
(Freud, 1996, p. 98). Sendo assim, só podemos acessá-las através de seus efeitos, já que
sua origem está no campo do Real, do impossível, do que não pode ser representado ou
simbolizado. Por isso nos interessa o conceito de pulsão, uma vez que nos deparamos
com os efeitos desse impossível no discurso em psicanálise.
O que temos diante de nós, em análise é um sistema onde tudo se arranja, e que atinge
seu tipo próprio de satisfação. Se nós nos metemos com isto, é na medida em que
pensamos que há outras vias, mais curtas por exemplo. Em todo caso, se nos
referimos à pulsão é na medida em que é no nível da pulsão que o estado de
satisfação deve ser retificado. (Lacan, 2008, p. 164).
“Sofrer demais é a única justificativa à nossa intervenção” (Lacan, 2008, p. 164). Essas
são indicações muito precisas de Lacan quanto à direção da análise e que toca à ética
psicanalítica, ética do desejo e não da moral do bem e do mal.
A importância da teoria das pulsões se deve ao seu valor enquanto hipótese acerca dos
modos de satisfação. Hipótese que Freud se viu instigado a construir ao se deparar com
os efeitos dos modos de satisfação no interior da cena analítica das análises que ele
conduziu, modos de satisfação que são completamente atravessados pela linguagem.
É no ato de se lançar em direção ao objeto que a pulsão vai encontrar sua satisfação. É a
atividade que está em questão e não o objeto em si, pois a satisfação está no próprio
percurso. A atividade pulsional seria como um jogo de tiro ao alvo cuja intenção é acertar
o tiro, e não o alvo. A finalidade é se deslocar circundando o objeto e não atingi-lo, por
isso sempre se repete… Ou seja, a satisfação da pulsão se dá em fazer voltas ao redor
desse oco, desse vazio que dá testemunho de que o objeto falta eternamente. O objeto
da pulsão já se produz enquanto perdido, enquanto semblante de objeto e se converte em
objeto a ser recuperado, sendo que nunca o tivemos.
Por produzir esse objeto perdido, a pulsão não é auto-erótica. Ainda que possa se utilizar
de partes do corpo para satisfazer-se, ela não está fechada sobre o próprio corpo, pois,
neste circuito pulsional que recorta um objeto que não é parte do corpo do sujeito,
introduz-se a dimensão da alteridade. Lacan diz que na pulsão há um movimento de
chamado em direção ao Outro e que não há outro modo de relação com o Outro a não ser
através do objeto.
Quando a pulsão conclui o seu recorrido, o que aparece como novidade é o sujeito. Os
destinos das pulsões são maneiras dessa última organizar tanto sua satisfação quanto
seu fracasso. Com o fechamento do circuito, a pulsão encontra uma maneira muito
particular de se satisfazer, pois trata-se de uma satisfação paradoxal em que, por um
lado, há a possibilidade da pulsão se articular ao desfiladeiro dos significantes, sob forma
de demanda, e, por outro lado, há o impossível. Conforme Lacan, o sujeito topa com duas
muralhas do impossível, sexualidade e morte, o que não tem inscrição. A imensa
cobertura da linguagem encontra seu limite diante da sexualidade e da morte, não
dispondo de significantes para simbolizá-las. Apesar de ficarem fora da inscrição, sexo e
morte seguem produzindo efeitos. São esses efeitos o que nos faz seguir falando?
Tentando dizer do indizível? Ao menos podemos falar. Essa é nossa condição...
A partir desse interdito, o sujeito pode enunciar sobre seus modos de gozo e sobre suas
tentativas diante do impossível, sobre os caminhos que elege para tentar recuperar o
objeto, para sempre perdido, que lhe constitui. É antes sobre o movimento de lançar-se
do que acertar o alvo. Nessa dança, mais vale dar o próximo passo do que dar o passo
certo e os objetos que cada sujeito chama para dançar consigo compõem variações
inéditas.
Esse trânsito, que vai da abstração da linguagem ao particular de cada sujeito falante,
está cotidianamente presente na escuta analítica, assim como no decorrer da obra de
Jacques Lacan, que, com a invenção de Lalangue, nos ensina sobre a particular
dimensão de gozo da fala, que se coloca muito antes de qualquer organização gramatical
e sintática.
Referências bibliográficas
HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. Versão e-book.
FREUD, Sigmund. – As pulsões e seus destinos (1915). Tradução Pedro Heliodoro
Tavares. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. – (Obras Incompletas de Sigmund
Freud)
LACAN, Jaques. Seminário VII – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008
LACAN, Jaques. Seminário XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008
LACAN, Jaques. Seminário XX – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985