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Por que interessa o conceito de pulsão?

Thianne Rezende dos Santos

Este escrito parte do meu movimento de retomada dos fundamentos da teoria


psicanalítica e também das notas que fiz ao longo do tempo do Percurso. Esse
movimento de retorno ao que é fundamental, tanto no campo da psicanálise quanto na
minha própria formação, foi suscitado pela instabilidade imposta pela pandemia que nos
atravessa, e soa, então, como uma saída interessante para o mal-estar inerente a este
tempo. Com este texto, proponho uma aproximação do conceito de pulsão, conceito
elaborado por Freud na medida em que ele reconhecia em sua experiência clínica o papel
fundamental da sexualidade na etiologia das neuroses. Conceito-efeito da escuta de
Freud de que a sexualidade do ser falante passa pela rede significante e por ela é
constituída.

O caráter conjectural do conceito de pulsão versa sobre a necessidade de Freud de


contar com uma construção significante, uma ficção que lhe permitisse abordar o que se
apresenta de mais real na clínica psicanalítica. Lacan, que retoma o texto de Freud,
ultrapassa suas elaborações e reitera a pulsão como um conceito "essencial à experiência
analítica” (2008, p 159).

A primeira afirmação de Freud, de que a pulsão é um conceito-limite entre o psiquismo e o


somático, aponta para sua diversidade e inacabamento. As pulsões são indeterminadas,
desde as suas origens até os seus destinos, elegendo pelo caminho objetos incertos que
dependem da articulação com a linguagem para que se constituam. Logo, o objeto
variável da pulsão é uma vicissitude da história do sujeito. Há pulsão porque há
linguagem. Não fosse pela linguagem, haveria somente necessidade, instinto.

Freud situa que a origem das pulsões nos é absolutamente desconhecida, escapando
totalmente à psicanálise. A teoria das pulsões “é, por assim dizer, a nossa mitologia”
(Freud, 1996, p. 98). As pulsões “são entidades míticas, magníficas na sua imprecisão.”
(Freud, 1996, p. 98). Sendo assim, só podemos acessá-las através de seus efeitos, já que
sua origem está no campo do Real, do impossível, do que não pode ser representado ou
simbolizado. Por isso nos interessa o conceito de pulsão, uma vez que nos deparamos
com os efeitos desse impossível no discurso em psicanálise.

A principal característica da pulsão é a emergência de um impulso contínuo e inesgotável,


do qual não se pode escapar e que não é detido nem mesmo pela repressão. Sobre essa
incessante atividade, Lacan diz: “ela não tem dia nem noite, não tem primavera nem
outono, não tem subida nem descida. É uma força constante” (2008, p. 163). Logo, o
sujeito está ininterruptamente se havendo com o seu pulsional, que busca por satisfação.
Embora os caminhos para alcançá-la variem muito, essa satisfação, mesmo que atingida
de forma parcial e provisória, é alcançável, tão alcançável que está presente no
padecimento sintomático de cada sujeito. Isso coloca consequências clínicas importantes,
e, para Lacan, a pergunta pela satisfação tem um lugar central, uma vez que

O que temos diante de nós, em análise é um sistema onde tudo se arranja, e que atinge
seu tipo próprio de satisfação. Se nós nos metemos com isto, é na medida em que
pensamos que há outras vias, mais curtas por exemplo. Em todo caso, se nos
referimos à pulsão é na medida em que é no nível da pulsão que o estado de
satisfação deve ser retificado. (Lacan, 2008, p. 164).
“Sofrer demais é a única justificativa à nossa intervenção” (Lacan, 2008, p. 164). Essas
são indicações muito precisas de Lacan quanto à direção da análise e que toca à ética
psicanalítica, ética do desejo e não da moral do bem e do mal.

A importância da teoria das pulsões se deve ao seu valor enquanto hipótese acerca dos
modos de satisfação. Hipótese que Freud se viu instigado a construir ao se deparar com
os efeitos dos modos de satisfação no interior da cena analítica das análises que ele
conduziu, modos de satisfação que são completamente atravessados pela linguagem.

A maneira pela qual o sujeito alcança a satisfação parcial da pulsão depende de um


objeto que não está enlaçado originalmente, mas que precisa ser produzido, uma vez que
não há objeto adequado e capaz de satisfazê-la. É a própria atividade pulsional que
recorta o objeto através do tour realizado em torno de um oco. A inexistência de um objeto
adequado à pulsão faz com que suas voltas ao redor do vazio sejam uma tarefa jamais
concluída, mas sempre recomeçada. Uma vez que a satisfação é atingida pela própria
atividade pulsional, pelo tour em si, a pulsão, a um só tempo, atinge sua satisfação e
produz seu objeto, que não é outro senão o objeto a, objeto causa do desejo.

É no ato de se lançar em direção ao objeto que a pulsão vai encontrar sua satisfação. É a
atividade que está em questão e não o objeto em si, pois a satisfação está no próprio
percurso. A atividade pulsional seria como um jogo de tiro ao alvo cuja intenção é acertar
o tiro, e não o alvo. A finalidade é se deslocar circundando o objeto e não atingi-lo, por
isso sempre se repete… Ou seja, a satisfação da pulsão se dá em fazer voltas ao redor
desse oco, desse vazio que dá testemunho de que o objeto falta eternamente. O objeto
da pulsão já se produz enquanto perdido, enquanto semblante de objeto e se converte em
objeto a ser recuperado, sendo que nunca o tivemos.

Por produzir esse objeto perdido, a pulsão não é auto-erótica. Ainda que possa se utilizar
de partes do corpo para satisfazer-se, ela não está fechada sobre o próprio corpo, pois,
neste circuito pulsional que recorta um objeto que não é parte do corpo do sujeito,
introduz-se a dimensão da alteridade. Lacan diz que na pulsão há um movimento de
chamado em direção ao Outro e que não há outro modo de relação com o Outro a não ser
através do objeto.

Quando a pulsão conclui o seu recorrido, o que aparece como novidade é o sujeito. Os
destinos das pulsões são maneiras dessa última organizar tanto sua satisfação quanto
seu fracasso. Com o fechamento do circuito, a pulsão encontra uma maneira muito
particular de se satisfazer, pois trata-se de uma satisfação paradoxal em que, por um
lado, há a possibilidade da pulsão se articular ao desfiladeiro dos significantes, sob forma
de demanda, e, por outro lado, há o impossível. Conforme Lacan, o sujeito topa com duas
muralhas do impossível, sexualidade e morte, o que não tem inscrição. A imensa
cobertura da linguagem encontra seu limite diante da sexualidade e da morte, não
dispondo de significantes para simbolizá-las. Apesar de ficarem fora da inscrição, sexo e
morte seguem produzindo efeitos. São esses efeitos o que nos faz seguir falando?
Tentando dizer do indizível? Ao menos podemos falar. Essa é nossa condição...

Originalmente a gramática da pulsão é muda. Com o fechamento de seu circuito, tempo


em que o sujeito advém, ela é recalcada e se faz inconsciente. Assim, passa a poder
fazer uso dos significantes, a falar através das (de)formações do inconsciente e a se
articular com os significantes da demanda do Outro. Sendo constituída pelo significante,
aquilo que engana, a demanda é sempre demanda de outra coisa, pois “...uma vez que se
entre na roda do moinho de palavras, o discurso sempre diz mais do que aquilo que se
diz”, (Lacan, 1999, p. 21). Assim, os objetos da demanda ganham certa substancialidade,
muito embora a hiância, o desencontro, estejam sempre em questão. A assimetria, a
exterioridade, na qual o "outro não pode ser abarcado pelo regime do eu" (Han, 2017,
p.5), ensejam o desejo e possibilitam a experiência erótica, retirando o sujeito do "inferno
do igual" (Han, 2017, p.5). Não se demanda o que se deseja porque o que se deseja é
indemandável, não se deixa capturar pelo significante.

Quando a necessidade é introduzida pela demanda no registro simbólico, o que se


evidencia é a relação do sujeito com seu gozo, que é organizado pela dimensão
simbólica.Lacan trabalha o gozo marcado pela falta que o significante provoca, mas
também trabalha o conceito de gozo como não-todo ordenado pela linguagem, apontando
para o que há de mais singular: o gozo do corpo, que não chega a se comunicar com o
outro. Esse gozo de um sozinho faz oposição ao desejo, já que se sustenta do Um. Se,
por um lado, o desejo é desejo do Outro e não pode existir sem seu suporte, por outro
lado, o gozo é do Um, é gozo do corpo e o lugar do Outro permanece vazio.

A suposição lacaniana do corpo como substância gozante advém do limite da linguagem,


do que o sujeito não pode dizer, não por sua incapacidade, mas por ser-lhe impossível. O
sujeito é o fato de um dito a se deparar, constantemente, com o que não pode saber
sobre o que lhe constitui, com o que resta impossível de se escrever por ser-lhe interdito e
que por isso mesmo é dito entre palavras, entre linhas.

A partir desse interdito, o sujeito pode enunciar sobre seus modos de gozo e sobre suas
tentativas diante do impossível, sobre os caminhos que elege para tentar recuperar o
objeto, para sempre perdido, que lhe constitui. É antes sobre o movimento de lançar-se
do que acertar o alvo. Nessa dança, mais vale dar o próximo passo do que dar o passo
certo e os objetos que cada sujeito chama para dançar consigo compõem variações
inéditas.

Esse trânsito, que vai da abstração da linguagem ao particular de cada sujeito falante,
está cotidianamente presente na escuta analítica, assim como no decorrer da obra de
Jacques Lacan, que, com a invenção de Lalangue, nos ensina sobre a particular
dimensão de gozo da fala, que se coloca muito antes de qualquer organização gramatical
e sintática.

Nesse sentido, a escuta analítica é vastidão e é um pequeno detalhe. Vai da imensidão do


universo da linguagem e da cultura, onde o próprio analista é incluído e cujos ditos fazem
eco em seu próprio corpo, até o Um do discurso do analisante. Faz parte desse ofício a
escuta telescópica dos significantes que engrossam o caldo da cultura e sustentam o laço
social e a escuta microscópica da singularidade de como o sujeito goza da língua. A
escuta analítica está constantemente atravessada pelo movimento entre o universal da
linguagem e o modo particular como cada sujeito é habitado por ela. Os efeitos da
atividade pulsional estão no cotidiano da clínica psicanalítica, seja através do
padecimento implicado nas formas de satisfação que o sujeito elege a partir de seu
sintoma, seja pelo que lhe resta de interdito e que lhe pede sempre uma palavra a mais
na tentativa de bordejar o impossível.

Referências bibliográficas

HAN, Byung-Chul. A agonia do Eros. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017. Versão e-book.
FREUD, Sigmund. – As pulsões e seus destinos (1915). Tradução Pedro Heliodoro
Tavares. – Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2019. – (Obras Incompletas de Sigmund
Freud)

FREUD, Sigmund. Novas conferencias introdutórias sobre psicanálise e outros trabalhos


(1932 - 1936) Vol. XXII. Obras completas de Sigmund Freud edição standard brasileira.
Rio de Janeiro: Imago, 1996.

LACAN, Jaques. Seminário V – As formações do inconsciente. Rio de Janeiro: Jorge


Zahar, 1999

LACAN, Jaques. Seminário VII – A ética da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2008
LACAN, Jaques. Seminário XI – Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de
Janeiro: Jorge Zahar, 2008

LACAN, Jaques. Seminário XX – Mais, ainda. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1985

Autor: Thianne Rezende dos Santos

Thianne Rezende dos Santos é psicóloga, psicanalista, especialista em atendimento


clínico (UFRGS). E-mail: thiannerezende@gmail.com

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