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Vicente Ferreira da Silva: Uma Interpretação do


Sensível

Por Vicente Ferreira da Silva¹

A sensação foi sempre algo de incômodo para o pensamento, como elemento incorrigível
e noturno da mente. Mesmo a loso a sensualista que pretendia inspirar-se unicamente
nas notas sensíveis, o que realmente fazia era ultrapassar prontamente a sensação na
percepção, daí construindo os outros momentos da razão. A sorte do processo sensorial
foi sempre a de subordinar-se e absorver-se nos processos noéticos superiores ou a de
ser eliminado em dialéticas de separação do tipo platônico. De qualquer forma, seja pela
sua integração em estratos superiores do conhecimento, seja pela sua expulsão do saber
fundado, a sensação foi raramente objeto de uma vontade radical de esclarecimento.

Nas loso as de tipo eidético-platônico, uma aproximação losó ca do sensível não podia
ser proposta a não ser sob a forma de alusões míticas. O devir sensível, confundindo-se
com o não-ser, com a privação in nita, com a matriz passível de todas as formas, não
manifestando entretanto nenhuma forma própria, escapava a qualquer categoria do
conhecimento.

Encontramos, por outro lado, nas loso as que não implicam uma separação entre o
sensível e o eidético, mas supõem uma permanente elaboração de um pelo outro, a
mesma impaciência no concernente à interpretação do sensível enquanto tal e uma
decidida relutância na franca abertura do problema. Assim, Kant, depois de dizer, no limiar
da Crítica da Razão Pura, que os objetos nos são dados somente através da sensibilidade, e
depois de denominar “matéria” aquilo que corresponde à sensação na apreensão dos
objetos, passa imediatamente ao estudo dos processos que ordenam e estrati cam o
diverso sensorial, dentro de certas formas da razão. Dessa maneira, a estética
transcendental torna-se o estudo, não do mundo da sensibilidade, mas de seus princípios
a priori: o espaço e o tempo. Desde o início, Kant ultrapassa o campo da experiência
imediata, cingindo-se à investigação das condições de possibilidades dessa experiência.

Em nossos dias, deparamos com uma atitude análoga na fenomenologia de Husserl,


encontrando o mesmo descaso no que se refere ao fundo hilético da consciência. Husserl,
após a rmar que a corrente da consciência possui dois estratos, um material ou hilético e
outro noético, observa que os problemas funcionais ou noéticos são mais importantes
para a fenomenologia, pois determinam o domínio objetivo da consciência. “Eles [os
problemas funcionais] dizem respeito à maneira segundo a qual, por exemplo, em relação
à natureza, a noésis, animando e apreendendo o material em multiplicidades unitárias, em
sínteses contínuas, traz ao ser a consciência de algo, de forma que através dessa atividade
se constitui a unidade objetiva do campo dos objetos…”

Husserl mantém em suas investigações o tradicional dualismo entre o momento sensorial


e o momento intencional da consciência, entre a parte receptiva e a parte formativa na
constituição da objetividade. Como já foi fartamente observado, o idealismo husserliano é,
em essência, um intelectualismo propenso a reduzir todos os modos de ser ao modo de
ser do representado, do conhecido. Como veremos subsequentemente, esta característica
da fenomenologia impediu uma compreensão adequada da componente sensorial da
nossa experiência.

Há algo anterior ao conhecimento, que este não pode compreender. O diverso sensorial,
em sua originalidade, não se apresenta como um momento cognitivo, como uma notícia
ou informação sobre algo — em que, sem dúvida, depois se transforma — mas tem mais
a nidade e analogia com os processos volitivos, com o desejo, o apetite e a aspiração.
Para compreender a relação entre o momento sensorial e a capacidade volitiva podemos
nos reportar a Benedetto Croce que nos diz em sua Filoso a da prática ser o homem um
microcosmo de volições no qual se re ete todo o cosmo e contra o qual ele reage,
“querendo” em todas as direções. Estas palavras poderiam fazer surgir a suspeita de que
este cosmo “querido”, e querido em todas as direções, nada mais seria do que o relevo
externo, o negativo, a projeção exterior desse âmbito do querer, que é o nosso eu
passional.

Se no recinto das estruturas noético-noemáticas não encontramos um lugar para o


mundo sensorial, para uma derivação e explicação de sua origem transcendental, e
devemos continuar a considerá-lo como um dado inexplicável e uma presença incômoda,
isso nos leva a supor que a redução intelectualista do cogito é insu ciente para
fundamentar a totalidade da vida da consciência. Há algo irredutível aos problemas
próprios da consciência noética. O primeiro encontro com a esfera sensível não se realiza,
como pensou Hegel, como “certeza” sensível, como saber do imediato ou do existente,
logo ultrapassado pelo próprio movimento de determinação desse sensível. Partindo do
sensível, como saber do sensível, muito longe de relacioná-lo com o seu fundamento, de
procurar uma interpretação de seu sentido último, imediatamente o abandonamos por
outras formas da consciência.

Todas estas concepções da componente sensorial da realidade a concebem como um


“dado”, como algo que não é o resultado de uma produção interior da consciência, mas
que a consciência encontra como sendo outra coisa, diversa dela mesma. As sínteses
perceptivas e uni cadoras da consciência, que desenvolvem ao redor de nós o orbe
objetivo, elaboram suas produções com um material cuja origem e sentido cai fora de seu
campo de elucidação.

Essa irredutibilidade do mundo sensorial à vontade de elucidação losó ca encontrou em


Fichte o seu primeiro e grande opositor. Em Fichte desponta pela primeira vez a ideia de
uma possível relação do “em si” do momento sensorial com o próprio mecanismo da
consciência absoluta, com a esfera do “por si”. O eu, como realidade cerrada em sua
própria atividade, deveria produzir o mundo de seus próprios limites e em primeiro lugar
o mundo do limite sensorial. Não vamos reproduzir aqui os passos da dedução chteana
do “não eu” porque o que nos interessa é a ideia central e não o formalismo dialético
empregado.

Quando descartamos todas as concepções adventícias sobre o mundo sensorial e


procuramos nos voltar para a experiência originalíssima e imediata em que ele se nos dá,
notamos que a alteridade da sensação é posta pela própria consciência. Descobre-se-nos,
então, um cenário sensorial, porque existe em nós um “ir a”, um movimento, um
transcender hilético cujo resultado é o desvendar-se da própria sensação. A sensação é a
“coisa” produzida por esse transcender, sem que tenhamos consciência desse
transcender, mas unicamente da sensação como resultado. Nessa linha de pensamento
a rma Schelling: “Do limite não persiste agora, na consciência, mais do que o vestígio de
uma absoluta passividade. Pelo fato de que o Eu, no sentir, não se torna consciente do ato,
permanece apenas o resultado”. Esta passagem da não-sensação para a sensação pode
parecer coisa extravagante e inverossímil. De fato, continuamos a pensar a experiência
sensorial, dentro das categorias representativas, como um momento intelectual; no
entanto, essa passagem é indevida, pois equivale à passagem do não-fenômeno ao
fenômeno. Não é isto, entretanto, que desejamos sugerir com a ideia de um transcender
hilético, pois como já a rmamos, não é a partir de um momento intelectual que nos
defrontamos com o sistema sensível. Aproximar-nos-emos de uma primeira inteligência
da conexão sensorial da consciência se procurarmos entender essa passagem da não-
sensação à sensação como falta, carência e desejo em geral. Este momento excêntrico da
privação se confundiria com um constante tender e apetecer como impulsividade original.
Não se trata aqui de um apetecer particular, de um desejo disto ou daquilo, mas, se assim
podemos falar, da condição de possibilidade de todo apetecer ou desejar. O resultado
desse momento excêntrico da impulsividade como traço sensível é a própria sensação.
Esse colocar fora de nós mesmos do apetite teria como consequência um mostrar-se da
sensorialidade como passividade posta pela atividade do apetecer. O meio sensível seria,
portanto, forma exteriográ ca ou projetada da estrutura a priori da impulsividade.
Denominamos transcendência hilética esse movimento inexaurível em sua fonte, que
determina o regime sensorial e se põe como condição de possibilidade de todo nosso
desejar particular. Esse ato de transcender manifesta-se como o radicar-se ativo do
homem no mundo sensorial, de maneira que esses dois momentos do “radicar-se” e do
“transcender” são no fundo um só. As sensações nada mais seriam do que a consciência
desse atirar-se, desse escapar que continuamente as institui em sua realidade. Ao
colocarmo-nos em dependência (como atividade), apareceria o “de que” dessa
dependência, como sensação. O mundo da sensorialidade não cairia do céu, não seria um
dado enigmático como pensaram muitos, mas seria uma realidade contraída por essa
gehemmte Aktivität², por essa produção negativa que denominamos o apetecer
transcendental. A positividade da realidade sensorial seria uma contínua exposição (um
pôr fora) da negatividade, da atividade impulsiva, cada uma se forti cando e se
constituindo a expensas da outra. Diz Novalis: “Jene Verstärkung fremder Kraft durch
Aufhebung seiner eignen ist Anziehung. Je mehr Negation des einen, desto mehr Position
des andern”. (Cada consolidação de uma força estranha através da própria supressão
constitui uma atração. Quanto mais uma se nega mais a outra se con rma.) E em outra
passagem: “Das aktive is nur soweit aktiv, als es a ziert ist, soweit a ziert, als es aktiv ist”.
(O ativo é unicamente ativo na medida em que é afetado e é afetado na medida em que é
ativo.)

Ao falarmos numa impulsividade fundamental, referimo-nos evidentemente, não a uma


tendência ou impulso circunscrito, já em dependência de um objeto de atração particular,
mas à função a priori da apetecibilidade que abre campo às tendências particulares. O
desejo particular é possível porque já está posto todo um campo de forças atrativas e
criado um teatro próprio de atuação do desejo. Como vimos, entretanto, essas forças
atrativas são continuamente suscitadas pelo transcender hilético do sujeito. A
substantividade do mundo sensorial, a sua solidez e inapelável realidade é uma
substantividade e solidez outorgada, é o resultado de sua contínua produção em nosso
ânimo. A contínua tensão passional do nosso eu suscita a profusão sensorial e nos imerge
em seu meio inde nido. Quanto mais irresistível for essa tensão, quanto mais “terrestre”
for a nossa impulsividade, mais realidade cobra a dimensão sensorial da existência.
Sentindo esse transcender como passividade, como um ser determinado e não como um
determinar, o sistema sensorial surge como um sistema de “limites”, como a limitação
original do homem. Sentimo-nos perdidos na sensorialidade sem ter consciência de nossa
conivência original. Essa limitação sensorial só se patenteia como limitante, como bem
notou Schelling, para um tender que vai além desse tender apetitivo. “O Eu, portanto, não
é sensível se não existe nele uma atividade que ultrapassa o limite. Devido a essa
atividade, o Eu deve, para ser sensível a si mesmo, acolher em si (o ideal) o estranho; mas
tal elemento estranho está, por sua vez, no Eu, é a atividade subtraída ao Eu.”

A primeira onda de transcendência só é sentida como resistência, limite e oposição em


relação às outras ondas sucessivas, que a vão incorporando ao seu próprio movimento de
superação. O poder limitante das sensações só se denuncia ao poder ilimitado que o
envolve e ultrapassa.

A componente hilética da consciência se manifesta como um puro dado, isto é, como algo
alheio ao produzir interno da consciência unicamente à consciência noética e às formas de
transcendência ulteriores. Com efeito, é impossível reduzir o extrato sensorial a qualquer
função meramente teorética ou representativa, pois a sensação não se origina como
representação, mas sim como resultado da impulsividade original. É com o material
fornecido por essa primeira posição da consciência que a função representativa vai
elaborar a sua esfera própria de determinações.

Notas:
[1] O presente Ensaio pode ser lido em seu livro “Dialética das Consciências“, na edição
mais recente da editora É Realizações.

[2] “Atividade inibida”.

Publicado: Lázaro Macêdo

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MARCADO Crítica da Razão Pura Edmund Husserl Exegese da Ação Immanuel Kant

Vicente Ferreira da Silva

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