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Nietzsche e Freud

Nome: Eduardo Freitas Pimenta Peres

Nesse trabalho pretendo desenvolver as noções de consciência da qual tanto Nietzsche


como Freud desenvolveram, cada um com suas particularidades, mas ainda sim tendo
pontos interessantes em comum. Outro ponto teórico na qual é interessante notar e que
está, como pano de fundo em Freud e em Nietzsche, é uma certa homologia entre as
pulsões destrutivas e agressivas que geram um “sentimento de culpa”, e a genealogia da
moral1 que Nietzsche desenvolve, a partir das noções de “má consciência” que será o
ponto de partida para a gênese de uma consciência moral. Os pontos de análise do Freud
estarão centrados no Mal Estar na Civilização.

Critica a Consciência

Nietzsche desenvolve no aforisma 354 da Gaia Ciência uma contundente critica á


consciência, afirmando que ela é originada não pelo “impulso á verdade”, mas derivada
da necessidade do homem de se reunir num coletivo, numa gregariedade. O homem,
frágil, necessitando de outros para sobreviver, se uniu, e disso decorre sua necessidade
também de se comunicar. Para viver em grupo, na grege humana, ele também
prescindiu de uma linguagem para exercer essa comunicação. O fato de o homem viver
com os outros é que permitiu a partir da comunicação, o surgimento da consciência.
Longe da vivencia em coletivo, o homem, na natureza, não necessitaria de se
comunicar, de pensar conscientemente, mas antes, de se proteger e sobreviver.
Nietzsche acentua isso num trecho:

“Posso passar á suposição de que consciência em geral só se desenvolveu sob a


pressão da necessidade de comunicação – que previamente só entre homem e homem
(entre mandante e obediente em particular) ela era necessária, era útil, e também que
somente em proporção ao grau dessa utilidade ela se desenvolveu.” 2

Percebem-se claramente as criticas contundente ao poder da consciência e da razão


concedidas pelas filosofias modernas anteriores. Tanto Kant como Descartes
acreditavam no poder do “eu” pensante em compreender a si mesmo como “coisa
pensante”, ou no “sujeito transcendental” em compreender os dados sensíveis a partir
das categorias do entendimento. Nietzsche afirma, ao contrário, que todas essas
filosofias tiranizavam a razão em detrimento dos impulsos, dos desejos, das vontades,
que não chegavam a consciência.

Decorre dessa necessidade de se comunicar a invenção da linguagem, que terá a mesma


característica gregária da consciência. Só comunicará aquilo do qual o homem tem de
mais comum, vulgar – “que tudo que se torna consciente justamente com isso se torna
1
Não pretendo nesse trabalho desenvolver tal genealogia, pois preferir atentar somente ao ponto de
contato entre as duas noções de consciência dos autores e como elas se desenvolveram em meio a um
florescimento da culpa.
2
Nietzsche, F. A Gaia Ciência In: Obras Incompletas, Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978
pag. 217
raso, ralo, relativamente estúpido, geral, signo, marca de rebanho, que, com todo tornar-
consciente, está associada uma grande e radical corrupção, falsificação,
superficialização, generalização.” 3

Já que a linguagem, a consciência, a razão, e também o “eu” estão ligados aquilo que é
comum, superficial, eles não podem por isso, conhecer além dessas fronteiras.
Nietzsche assim estabelece uma critica ao limite da razão. Muito mais radical do que
Kant, ele define que a razão e a consciência só são resultado temporário da luta de
forças que existe tanto no homem quanto na natureza, sendo somente a vitoriosa aquela
que consegue submergir a consciência. O que submerge, não é, portanto a compreensão
da totalidade da realidade, e sim uma pequena parcela da luta das forças constitutivas do
homem. Quando Descartes fala de um “eu”, está se esquecendo que a subjetividade
humana que emerge na consciência é muito maior, muito mais ampla do que essa
pequena frase gramatical. A linguagem, criada pela consciência, só consegue expressar
aquilo que corresponde à sua origem, ao espírito gregário. Todo o universo dos desejos,
vontades, pensamentos, instintos, pulsões que estão no homem e fazem parte dele, não
consegue e não pode ser expresso por essa linguagem, porque é característico desses
elementos o fato de eles serem singulares, incomuns e portanto, não serem expressos
pela linguagem. Nas palavras de Nietzsche:

“Poderíamos, com efeito, pensar, sentir, querer, recordar-nos, poderíamos


igualmente agir em todo o sentido da palavra: e, a despeito disso, não seria preciso que
tudo isso nos ‘entrasse na consciência’”.4

Segue-se que a crítica de Nietzsche está centrada nessa supervalorização da razão,que


para ele, não faz nada diferente da arte, ou seja, não tem a função de compreender,
explicar a realidade. Pelo contrário, ela tem tanto quanto a arte, um aspecto criativo,
interpretativo. Nietzsche destrói a marteladas o império da razão.

Freud quando desenvolve sua teoria do Ego e do Id, afirma que a linguagem ordinária, a
linguagem racional só consegue expressar aquilo que está no Ego, aquilo que passou
pelos processos secundários e pode ser verbalizado. As pulsões inconscientes, não
podem ser assim verbalizadas, não encontram correspondência na linguagem, por seu
caráter extremamente ambíguo e paradoxal. O Ego, pelo seu principio de realidade,
pode não suportar algumas pulsões sexuais derivadas do inconsciente, e com isso, a
reprimi, investindo contra ela, uma anticatexia. Retirando ela de seu “território”, tal
pulsão e sua libido, vão tentar encontrar outras formas de se manifestar, de alcançar
satisfação. Percorrendo caminhos longínquos no inconsciente, e sofrendo
incessantemente a repressão do ego, ela vai de alguma forma, muito tortuosa e
paradoxal, encontrar satisfação, perto, também dos desejos mais infantis, constituídos na
infância do sujeito. Disso se segue a satisfação sintomática, no qual, um desejo
reprimido pelo ego, encontra alguma forma de se satisfazer, sem que com isso o ego
perceba.

3
Ibidem pag. 218
4
Ibidem pag. 216
A consciência para o Freud está situada naquelas repressões aos desejos inconscientes
que conseguiram reprimi-lo de algum modo, pelo ego, que assim formou uma instancia
repressiva, o superego. Essas constantes forças repressivas é que de algum modo
constituíram a consciência e a fortalecem.

Veja como Nietzsche antecipa as contribuições de Freud. A consciência embora, para os


dois seja diferente, ela não se constitui como totalidade da subjetividade. Para
Nietzsche, ela é só uma pequena parcela que tem a função de comunicação numa
gregariedade. Para Freud, a consciência é também só uma pequena instancia do
aparelho psíquico, e não consegue ter conhecimento de todos os processos que ocorrem
em tal aparelho. Percebe-se, pois a semelhança da critica dos limites da consciência,
antes tirana e poderosa, detentora da capacidade de compreender a realidade. Agora,
mera componente do homem, possui apenas funções secundárias e por vezes
destrutivas.

Civilização e Gregariedade

Nietzsche compreende, portanto que a consciência é fruto da pressão que a vida em


sociedade forneceu. Mais ainda, ele afirma que os impulsos agressivos presente no
homem solitário na natureza, foram adestrados, apaziguados, e assim internalizados,
direcionados para dentro do sujeito, quando eles se reunirão numa gregariedade. Esses
impulsos agressivos direcionados para o interior do sujeito que se seguiu a formação da
consciência, ou nos termos de Nietzsche, de uma “má consciência”. Como ele mesmo
afirma:

“Vejo a má consciência como a profunda doença que o homem teve de contrair


sob a pressão da mais radical das mudanças que viveu - a mudança que sobreveio
quando ele se viu definitivamente encerrado no âmbito da sociedade e da paz.”5

“Todos os instintos que não se descarregam para fora voltam-se para dentro -
isto é o que chamo de interiorização do homem: é assim que no homem cresce o que
depois se denomina sua "alma". Todo o mundo interior, originalmente. delgado, como
que entre duas membranas, foi se expandindo e se estendendo, adquirindo profundidade,
largura e altura, na medida em que o homem foi inibido em sua descarga para fora”

Dessa forma, esses impulsos dirigidos para o interior do homem, foi o resultado do fato de
ele viver em sociedade. O maior problema para Nietsche, contudo não é esse, e sim, o fato
do asceta cristão, o sacerdote ter utilizado tal sentimento, que originalmente era mais
primitivo e ainda não tinha relação com uma certa moral religiosa, de modo a constituir um
verdadeiro sentimento de culpa. Num trecho:

“O "pecado", pois assim se chama a reinterpretação sacerdotal da "má consciência"


animal (da crueldade voltada para trás) foi até agora o maior acontecimento na história da
alma enferma: nele temos o mais perigoso e fatal artifício da interpretação religiosa.
Sofrendo de si mesmo de algum modo, em todo caso fisiologicamente, como um animal
5
Nietzsche, F. Genealogia da moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2012, Parte II aforisma 16
encerrado na jaula, confuso quanto ao porquê e o para quê, ávido de motivos - motivos
aliviam -, ávido também de remédios e narcóticos, o homem termina por aconselhar-se com
alguém que conhece também as coisas ocultas – e vejam! ele recebe uma indicação, recebe
do seu mago, o sacerdote ascético, a primeira indicação sobre a "causa" do seu sofrer: ele
deve buscá-la em si mesmo, em uma culpa, um pedaço de passado, ele deve entender
seu sofrimento mesmo como uma punição”6

Essa reviravolta do asceta permite que esse sentimento contra si mesmo que o homem
realiza, agora seja encarado como uma punição, como uma verdadeira culpa. O homem
entende agora que seu sofrimento é uma espécie de punição. Isso para Nietzsche é uma
indicação da decadência do homem, que reprime seus impulsos mais constitutivos e se
autodestrói com essa inversão dirigida a si mesmo.

Com Freud, ocorre de tal forma semelhante que assusta, a primeira vista. A civilização,
para ele, só é possível por meio das restrições das pulsões tanto sexuais quanto
agressivas. Porém, tais pulsões agressivas são constitutivas do homem, fazem parte de
seu aparelho psíquico, e por mais que a civilização trabalhe no esforço de compensar
essa agressão, seja por meio da amizade7, seja por meio do incentivo do amor ao
próximo, tais instintos não são fáceis de abandonar. Freud mesmo encara esse problema
da agressividade como um dos maiores empecilhos a civilização:

“Em tudo o que se segue, adoto, portanto, o ponto de vista de que a inclinação
para agressão constitui, no homem, uma disposição instintiva original e auto-
subsistente, e retorno á minha opinião de que ela é o maior impedimento á civilização” 8

Uns dois meio, não antes citados, para inibir a força destrutiva dessas pulsões é a sua
internalização por parte do ego, que agora não dirige suas pulsões a agentes estranhos e
sim para si mesmo. Desse modo, o ego vai se construindo uma instancia contra si
mesmo: o superego, que como autoridade submete ao ego uma eterna vigilância. O que
se modifica é que, ao invés do sujeito buscar satisfação de um desejo, fora da vigilância
de uma autoridade externa, agora com o superego, não fará diferença se o agente realiza
uma ação condenável ou somente almeja fazê-la. Nada escapa, na instancia mental, ao
superego, e ele recriminará a mínima pretensão de um desejo, mesmo que o sujeito nem
o realize. Nessa força do superego, que gera medo, surge um sentimento de culpa.
Porém, Freud faz uma distinção entre o medo da autoridade externa e o superego, em
relação às restrições pulsionais. Enquanto a mera renuncia aos desejos já basta para
fugir do medo á autoridade externa, isso por si só não basta para fugir do medo do
superego. Este, sabendo de todos os pensamentos do ego, irá agir invariavelmente
contra as forças pulsionais de satisfação, que não se cessam. Disso resulta-se um
sentimento de culpa.
6
Ibidem Parte III aforisma 20
7
Freud, S. O Mal Estar na Civilização, In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural, 1978, pag. 165
8
Ibidem pag. 175. Ressalto que nesse trecho, como na maior parte da obra de Freud, ele usa o termo
“Trieb”, que é traduzido por instinto. Contudo, essa não é uma boa tradução por se referir a algo próximo
ao animal, o que talvez seja realmente aquilo a que Nietzsche alude quando fala em “instintos
agressivos”. A melhor tradução é “pulsão”, ou seja, aquilo que é próprio da constituição humana, é um
desejo de satisfação próprio do humano.
O superego então, agindo constantemente para reprimir as pulsões agressivas, a cada
nova repressão, age novamente com mais força. Freud supõe até, muito semelhante a
Nietzsche, que a consciência é então formada por essa repressão, e reforçada pelas
repressões subseqüentes. Nas palavras dele:

“Podemos verdadeiramente afirmar que, de inicio, a consciência surge através da


repressão de um impulso agressivo, sendo subseqüentemente reforçada por novas
repressões do mesmo tipo” 9

Desse modo, o superego mantém uma vigilância que permite a civilização persistir de
algum modo. O sentimento de culpa assim atua como um agente coercitivo de
manutenção da civilização. Freud alude a isso num trecho:

“Visto que a civilização obedece a um impulso erótico interno que leva os seres
humanos a se unirem num grupo estreitamente ligado, ela só pode alcançar seu objetivo
através de um crescente fortalecimento do sentimento de culpa” 10

Conclusão

Mesmo havendo diferenças importantes entre os dois autores, que aqui não era meu
intuito desenvolver, pode-se ver interessantes analogias entre os dois. A consciência e a
critica á ela, em Nietzsche é bem mais contundente que em Freud, embora se veja a
mudança de compreensão dela em relação aos filósofos modernos, que a consideravam
quase como uma instancia onipotente. Interessante também como a culpa, o sentimento
de culpa, presente nos dois autores referidos, é algo que acompanha tanto o processo
civilizatório quanto a formação da cultura ocidental, vista por Nietzsche. Conclui-se que
tanto um quanto o outro foram grandes críticos das formas de subjetividade oriundas
das filosofias modernas e grandes precursores das importantes teorias que irão
submergir no século XX.

Referencias Bibliográficas

Nietzsche, F. A Gaia Ciência. São Paulo: Companhia das Letras, 2012

________. Obras Incompletas. In: “Os Pensadores”, São Paulo: Abril Cultural, 1978

________. Genealogia da Moral: uma polêmica. Tradução de Paulo César de Sousa.


São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

Freud, S. O Mal Estar na Civilização, In: Os Pensadores, São Paulo: Abril Cultural,
1978.

9
Ibidem pag. 181
10
Ibidem pag. 183

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