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Qual o papel do currículo na produção do conhecimento filosófico em sala de aula?

Podemos definir o currículo como uma espécie de organização e seleção de conteúdos,


procedimentos e técnicas de ensino que buscam objetivos específicos e gerais. De inicio, diremos
então que o currículo é um plano formal de experiencias de ensino e aprendizagem que guiam os
procedimentos e as atividades do cotidiano da escola.

Papel formativo

O currículo coloca, para a filosofia em especial, o papel do cânone e levanta a discussão da


importância do legado da tradição para a formação do aluno. Isso porque a seleção e organização de
conteúdos, e por conseguinte, a elaboração de sua didática, pressupõem implicitamente, o recorte de
determinados temas, autores e argumentos, selecionados pelo professor ou escola. Esta seleção
pressupõem uma definição de currículo e o papel que ele terá na formação do aluno como um todo.
A importância do currículo em filosofia, como apontou Ronai, é oriunda do interesse da disciplina
em temas universais o que pode ser benéfico na construção da formação totalizante e holistica do
aluno.
Por isso não é sem motivo que temos o questionamento constante sobre a presença da
filosofia no currículo do ensino médio, e os volumosos textos que debatem respostas a estas
perguntas. Alguns podem dizer que é devido a importância da tradição, pois os alunos não podem
deixar de ter acesso a esses bens culturais legado ao longo dos anos e que produziu conhecimentos
que fazem parte da cultura ocidental. Outros dirão que é para apreender e adquirir as capacidades e
habilidades logicas, abstratas, de leitura e relação de ideias, capacidade de contextualizar,
experiencia e traquejo nas artes argumentativas, entre outras.
Primeiramente gostaria de discutir a importância do que na filosofia pode-se entender como
cultura, ou seja, esta arte ou oficio de construção, elaboração e conclusão de processos formativos
envolvendo certas coletividades, ou nas palavras de Sloterdijk: “Deve-se falar aqui (…) de uma
história social das domesticações, pelas quais os homens originalmente se experimentam como
aqueles seres que se reúnem para corresponder ao todo”1. Neste sentido a escola se insere nesse
contexto de inserção do indivíduo numa coletividade em que impera o uso da razão, de ordem
estabelecidas e cumpridas por todos, regras de boa convivência e de respeito mutuo. Como Ronai
aponta, a escola é o lugar onde a criança aprende a viver numa comunidade orientada por
argumentos racionais, em que as normas são validas para todos, em que os valores podem ser
gerais, não dependendo de nenhum outro, ou absolutos, pois independem de seu valor instrumental
1 SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo.
São Paulo, Estação Liberdade, 2000, p.33.
ou utilitário. Por exemplo o respeito dos alunos uns com os outros deve ter um fundamento em si
mesmo, pois não dependem de nenhum outro, o que propicia na criança a constituição de
comportamentos e submissão a normas e parâmetros que são reguladores da coletividade em que a
escola é formada2.
Abordando a mesma questão, Sloterdijk aborda a questão da forma como os homens são
domesticados, e formaram instituições para domesticar os outros homens. Sua analise do
humanismo leva em conta como a humanidade e a cultura ocidental criou para si uma comunidade
de escritores e leitores, de uma vivencia comum e compartilhada no universo da linguagem, na lenta
e prodigiosa labuta de signos e símbolos que se tornaram uteis e mobilizados em todas as esferas
humanas. Não se pode negar que a constituição de uma comunidade de escritores e leitores, ou nas
palavras de Nietzsche, “um povo de Pensadores” 3
foi fruto de um processo de aculturação, de
seleção e podemos dizer também, de violência e sacrifico. Como Sloterdijik pontua em relação a
Nietzsche, acerca do Übermensch:
“Ele toma como medida os remotos processos milenários pelos quais, graças a um intimo
entrelaçamento de criação, domesticação e educação, a produção de seres humanos foi até
agora empreendida – um empreendimento, é verdade, que soube manter-se em grande parte
invisível e que sob, a mascara da escola, visava ao projeto de domesticação.” p. 41

O importante então é considerar como explicito, o que aparentemente era implícito: em todas as
instituições sociais, politicas e econômicas, e a escola nela incluída, sempre houve um impulso a
domesticação do homem, a produção de formas próprias de antropotécnica, como define Sloterdijik,
ou seja, na elaboração lenta e gradual de formas de sedentarismo do homem, de recolher-se no
âmbito da linguagem, no habitar um mundo sob o império dos signos, e neste sentido, a teoria
filosófica é uma entre outras atividades que poderíamos dizer domesticas, em que o homem, livre
de seu caráter animalesco, mantêm se numa espera e numa contemplação de signos e significados.
Seguindo neste mesmo raciocínio, o processo mais geral de domesticação do homem, pode
ser entendido como cultura, ou seja, formas complexas e diferenciadas de adestramento, de retirar
da humanidade seus apelos bestiais, introduzindo-o num mundo de signos e palavras. Como
Deleuze aponta4, a cultura é o próprio trabalho genérico do homem sobre o homem, mesmo que isso
signifique a obediência a leis arbitrárias, o que não é sem importância é a capacidade de adquirir
hábitos, de obedecer a leis, de imprimir uma constância, adestramento, seleção para a fabricação
adequada de hábitos. É o mesmo o que Nietzsche aponta como moralidade ou eticidade dos
costumes, pois é próprio do homem seguir um costume, obedecer a lei, como também o de criar
costumes, fabricar hábitos, mesmo que apareçam como perigosos ou absurdos:
“(…) eticidade não é nada outro (portanto, em especial, nada mais!) do que obediência a
costumes, seja de que espécie forem; e costumes são o modo tradicional de agir e de

2 ROCHA, Ronai Pires. Ensino de Filosofia e Currículo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008, p. 121.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 47.
4 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 171-172.
avaliar. Em coisas onde nenhuma tradição manda não há nenhuma eticidade; e quanto
menos a vida é determinada por tradição, menor se toma o círculo da eticidade.”5

É devido a importância da constituição e reprodução de costumes que devemos pensar a escola.


Pois é nesta instituição que inicialmente colocamos jovens e crianças sentados, calmos e lendo, ou
seja, adotamos métodos de sedentarização neles a partir da domesticação, treinamento e formação 6.
A escola é o lugar em que os homens criam, domesticam e treinam outros homens, e dessa forma,
introduzem-nos na sociedade aptos a viverem uns com os outros, pois “educados” num sentido mais
geral, podem dispor-se dos meios da linguagem, da razão e, porque não, da técnica, para
relacionarem-se uns com os outros. Nesta dinâmica, tradicionalmente denominada de ensino
aprendizagem, é que pouco a pouco a criança adquire as ferramentas desenvolvidas pelo mundo
ocidental para lidar com o mundo, as coisas e as pessoas. É neste âmbito que podemos inserir
também o ensino de filosofia, como um espaço em que podemos tomar distancia e pensar questões
da humanidade sobre uma outra ótica, tendendo a ser mais questionadora, colocando em duvida
pressupostos do senso comum. Podemos concluir que, apesar de questionadora, toda atividade
teórica, e incluindo-se a filosofia, pressupõem o que já citamos: um processo de demorar-se na
linguagem, de tomar distancia de questões ou ideias que temos como certas e obvias. É este, talvez,
o papel formador da filosofia, e podemos incluir o currículo e de maneira geral os autores, pois,
trazem mais uma bagagem da tradição sobre assuntos não abordados pelas outras disciplinas, e que
inclui uma certa atividade especifica, podemos dizer, a introdução de um novo costume, mais
contemplativo, que tende a demorar-se nos símbolos e signos, para, enfim lidar de forma mais
humana talvez, com os outros e o mundo.
Se a filosofia possui contato com temas fundamentais da humanidade, é porque diz respeito
a cada indivíduo, seu problema particular, como amor, amizade, angústia, como também pode estar
relacionado a um senso de comunidade, como o agir ético, ou o problema do poder e da autoridade
em politica. Isso significa que há um legado da tradição, dos autores mais fundamentais sobre estes
assuntos, e a presença da filosofia no ensino médio por exemplo, pode ser um espaço em que se
ensina aos alunos como muitos autores, em diferentes épocas, pensaram os problemas que assolam
qualquer pessoa. Oferece-se a este aluno, então, uma bagagem, ou um treinamento nestes assuntos
que possam servir de parâmetro ou de um alargamento de horizonte de perspectivas. É neste sentido
que o ensino de filosofia não é e não pode ser apenas conteudista, mas envolve, junto com os textos,
a leitura e a reflexão problemática dos temas, trazendo ao aluno não apenas a memorização, mas a
habilidade de articular o pensamento de um texto, em problemas do cotidiano, ou da vida politica

5 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os pensamentos morais. Trad. Paulo César Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 16-18.
6 SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São
Paulo, Estação Liberdade, 2000, p. 39.
ou ética, tendo enfim, um papel de referencia cultural ao aluno, e no desenvolvimento cognitivo e
de visão de mundo.

Currículo

Passo agora a caracterizar de maneira mais especifica a questão do currículo. No interior do


contexto escolar, currículo envolve conteúdos e métodos, princípios de planejamento do calendário
escolar, das avaliações e dos métodos a serem colocados em prática, e além disso pressupõem o
projeto politico pedagógico estabelecido na escola. na filosofia, área em que é recente a entrada no
currículo e então possui pouca bagagem sobre os métodos e os procedimentos a serem utilizados,
além da pequena experiencia e consolidação dos estudos na área, possui um campo ainda a ser
preenchido sobre como o currículo e as atividades na sala de aula devem ocorrer.
Devemos pensar então currículo no interior da filosofia, longe da ideia simplista de uma lista
de conteúdos, pois pelo menos no ensino publico é facultada ao professor a liberdade de orientar e
organizar o que e como se ensinará aos alunos. Além disso, é importante entender o que Ronai
entende como alfabetização de segunda ordem, ou seja, a aquisição de um vocabulário e conjunto
de conteúdos, a compreensão da metodologia própria a disciplina, e a relação dela com o mundo, o
indivíduo e a sociedade, algo que também as outras disciplinas do currículo escolar compartilham.
Neste sentido é importante compreender o caráter formacional da filosofia, além disso, o
incremento em habilidades de logica e linguagem, e por fim, a questão da contextualização, a
capacidade de relacionar o conhecimento adquirido ao seu contexto socioeconômico-cultural 7.
Digamos que estes três aspectos podem orientar a formulação do currículo e da didática própria a
filosofia, e possibilitam, digamos, responder a questão sobre a produção do conhecimento filosófico
em sala de aula. O aspecto formativo, do cânone e por conseguinte do currículo, o incremento
cognitivo e racional que a filosofia possibilita ao aluno, e as capacidades reflexivas e de
contextualização, complexificação ou abstratas mesmo.
O ensino de qualquer disciplina no ensino médio requer em conjunto com a apresentação
dos conteúdos mínimos, a atenção as formas cognitivas de apreensão desse conteúdo, em suma, o
que Ronai indica como logica do conteúdo e a logica das aprendizagens. O primeiro significa
basicamente a estrutura interna de um campo de conhecimentos, seus conteúdos e o estado da arte
atual e o segundo concerne as estratégias pelos quais apropria-se dos conhecimentos de determinada
área. Se nos atentarmos agora a dimensão da filosofia, devemos pensar que seu ensino não pode cair
na transmissão caduca de teorias retiradas da história da filosofia, como se o objetivo fosse formar
eruditos que possuem na memoria as informações precisas dos filósofos importantes. É preciso que

7 ROCHA, Ronai Pires. Ensino de Filosofia e Currículo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. p. 105.
ao ensinar tal ou qual filosofo, se apreenda também um pouco o processo mesmo de alcançar
aquelas ideias, que se apreenda em conjunto como é utilizado o método que permitiu alcançar este
ou aquele conteúdo. Isso significa que só podemos adquirir conhecimentos filosóficos se somos
capazes de pensar por nos mesmos8, ou como Kant afirma em “O que é o iluminismo”, que
possamos adentrar a maioridade do pensamento e utilizar nossa própria razão na elaboração das
questões e problemas9. Mas para que possamos adquirir essa capacidade, digamos, reflexiva, é
necessário experiencia, contato e aprimoramento de nossos argumentos, raciocínios e capacidade
cognitiva, que é adquirida no contato com os textos filosóficos, como servindo de trampolim ou de
escada para elaborar nossas ideias de modo mais completo, acabado e embasado.
Então podemos pensar essa dinâmica da didática em filosofia em dois lado. Em um temos a
logica dos conceitos em que o objetivo é a transmissão ou transposição de conhecimentos, tecnicas
e habilidades, em suma de um conhecimento segundo critérios, normas e regras próprias segundo o
projeto pedagógico do professor e da escola. Em outro temos os esquemas e formas conceituais
próprias dos alunos, seu arcabouço cultural que deve ser pressuposto e partir como base para a
elaboração de uma logica de aprendizagem. Se o professor não se atentar para esse dois aspectos, e
em especial, a relação intricada entre ambos, as aulas podem perder sentido e os alunos se veem
diante de um fluxo de palavras sem sentido e sem capacidade de absorvê-las, elaborá-las e então
poder utilizá-las e contextualizá-las. Em suma, aprender filosofia consiste em aprender a filosofar,
como diz Kant, isso significa que só podemos alcançar o conhecimento filosófico na medida em que
nos apropriamos dele, utilizamo-nos em na resolução de problemas ou de questões que surgem no
dia a dia, elaborando pensamentos a partir daqueles adquiridos e em consonância com o modo como
o apreendemos, tomando distancia de ideias preconcebidas, e reexaminando nossa maneira de
pensar a partir de uma posição outra, questionadora e critica. Pois, como diz Ronai10
Estudar logica significa reexaminar nossa maneira de pensar, colocar em tela de
juizo os nossos pensamentos, em especial aqueles sobre temas aparentemente profundos
nos quais nos sentimos perdidos e confusos. Para isso, o dominio de alguns conceitos e
habilidades é fndamental. E devemos aqui falar sim em ‘dominar conceitos’, pois a
aquisiçao de conhecimentos de natureza proposicional não é incompativel com o
aprendizado de habilidades criticas.” p. 112

Podemos seguir, e entender, como Leopoldo e Silva11, que a filosofia tem uma “função de
articulação cultural” 12
na medida em que forma o aluno para articulação de si mesmo como
inserido na sociedade, e neste sentido, tomando consciência ou tendo mais autonomia sobre o
processo de sociabilidade em que está inserido. A filosofia, também teria a função de mostrar como
o processo de aprendizagem envolve, não apenas conteúdos, mas um processo cognitivo. Neste

8 Ibid., p.112.
9 KANT, Immanuel. Textos Seletos. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985, p. 100.
10 Ibid., p.112.
11 SILVA, Franklin Leopoldo e. Por que filosofia no segundo grau? Estudos Avançados. São Paulo: 1992, p. 163.
12 Ibid., p. 163.
sentido a formação do estudando se concretiza na medida em que relaciona sua aquisição de
conteúdos, técnicas e habilidades, e a consciência do processo pedagógico envolvido e a
compreensão da origem do conhecimento adquirido e como ele foi produzido.
Esta consciência é o que podemos caracterizar como oriunda ou produtora de um
pensamento crítico. Pois, para compreender o processo em que está inserido, o contexto
sociopolítico-econômico em que a própria sociedade é mobilizada, o aluno precisa adquirir o que
Ronai compreende como atitude filosófica. Num certo sentido é aquela posição diante de questões,
problemas e perguntas em que se suspende os juízos ordinários e se tematiza os conceitos em que
estes juízos estão baseados. Isso significa que devemos passar de um estado em que os conceitos
são operacionalizados e passamos a um estagio em que eles viram objeto de inquirição,
questionamento e duvida.13
É importante frisar aqui que a importância do trabalho discente em mobilizar esta educação
que integre forma e conteúdo, podemos dizer, pois, em muitas escolas no Brasil, na rede privada, os
métodos pedagógicos, os recursos didáticos e os planos de aula são já predeterminados, e a
liberdade de cátedra do professor limitada. Neste sentido, se defendemos aqui, esta especie de
alfabetização de segunda ordem, ela é incompatível com um método tecnicista e de erudição vazia
que costuma ocorre nestas escolas, pois tendem a se apegar a manuais simplistas e resumidos, e a
esquemas de aulas conteudistas. Pois essa visão de educação empresarial não valoriza a dimensão
artesanal, criativa do professor, e tende a reduzir suas capacidades a mero transmissor de
informações compiladas e endereçadas a preparar o aluno para o vestibular.
Por isso apontamos aqui neste texto outros entendimentos sobre o conteúdo e currículo em
filosofia. Pois, como questão cara a disciplina, como o papel da formação humana, devemos pensar
o currículo em sua complexidade filosófica. Isso significa questionar: quais conteúdos são
compatíveis ou se conjugam com os objetivos e estratégias do discente, e que possibilitam alcançar
certos objetivos, como os já elencados, envolvendo reflexão e habilidades especificas. Por isso
importa salientar que filosofia não é apenas uma erudição vazia, ou, no caso do ensino médio, não
pode justificar sua importância, seus conteúdos e métodos com formulas prontas ou que façam
pouco sentido para o aluno. O exemplo mais utilizado para abordar filosofia, de modo introdutório,
é a celebre formulação aristotélica de que filosofia não tem utilidade, apenas um caráter
contemplativo, ou outras, mais ligadas ao senso comum, de que a filosofia teria uma função
subversiva, devido ao seu caráter critico. Certo é que são formulas vazias, pois apenas fazem
sentido no contexto restrito aos acadêmicos, e para o aluno do ensino médio, as possibilidades aqui
elencadas, ou seja, aquela ligada a formação cultural que permite a compreensão dos pormenores do
mundo, da vida e do ser humano, encaixam-se melhor numa proposta de filosofia no ensino básico.

13 Ibid., p. 117.

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