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O importante então é considerar como explicito, o que aparentemente era implícito: em todas as
instituições sociais, politicas e econômicas, e a escola nela incluída, sempre houve um impulso a
domesticação do homem, a produção de formas próprias de antropotécnica, como define Sloterdijik,
ou seja, na elaboração lenta e gradual de formas de sedentarismo do homem, de recolher-se no
âmbito da linguagem, no habitar um mundo sob o império dos signos, e neste sentido, a teoria
filosófica é uma entre outras atividades que poderíamos dizer domesticas, em que o homem, livre
de seu caráter animalesco, mantêm se numa espera e numa contemplação de signos e significados.
Seguindo neste mesmo raciocínio, o processo mais geral de domesticação do homem, pode
ser entendido como cultura, ou seja, formas complexas e diferenciadas de adestramento, de retirar
da humanidade seus apelos bestiais, introduzindo-o num mundo de signos e palavras. Como
Deleuze aponta4, a cultura é o próprio trabalho genérico do homem sobre o homem, mesmo que isso
signifique a obediência a leis arbitrárias, o que não é sem importância é a capacidade de adquirir
hábitos, de obedecer a leis, de imprimir uma constância, adestramento, seleção para a fabricação
adequada de hábitos. É o mesmo o que Nietzsche aponta como moralidade ou eticidade dos
costumes, pois é próprio do homem seguir um costume, obedecer a lei, como também o de criar
costumes, fabricar hábitos, mesmo que apareçam como perigosos ou absurdos:
“(…) eticidade não é nada outro (portanto, em especial, nada mais!) do que obediência a
costumes, seja de que espécie forem; e costumes são o modo tradicional de agir e de
2 ROCHA, Ronai Pires. Ensino de Filosofia e Currículo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008, p. 121.
3 NIETZSCHE, Friedrich. Genealogia da moral: uma polêmica. São Paulo: Companhia das Letras, 2009, p. 47.
4 DELEUZE, Gilles. Nietzsche e a filosofia. São Paulo: n-1 edições, 2018, p. 171-172.
avaliar. Em coisas onde nenhuma tradição manda não há nenhuma eticidade; e quanto
menos a vida é determinada por tradição, menor se toma o círculo da eticidade.”5
5 NIETZSCHE, Friedrich. Aurora: reflexões sobre os pensamentos morais. Trad. Paulo César Souza. São Paulo:
Companhia das Letras, 2004, p. 16-18.
6 SLOTERDIJK, Peter. Regras para o parque humano – uma resposta à carta de Heidegger sobre o humanismo. São
Paulo, Estação Liberdade, 2000, p. 39.
ou ética, tendo enfim, um papel de referencia cultural ao aluno, e no desenvolvimento cognitivo e
de visão de mundo.
Currículo
7 ROCHA, Ronai Pires. Ensino de Filosofia e Currículo. Petrópolis/RJ: Vozes, 2008. p. 105.
ao ensinar tal ou qual filosofo, se apreenda também um pouco o processo mesmo de alcançar
aquelas ideias, que se apreenda em conjunto como é utilizado o método que permitiu alcançar este
ou aquele conteúdo. Isso significa que só podemos adquirir conhecimentos filosóficos se somos
capazes de pensar por nos mesmos8, ou como Kant afirma em “O que é o iluminismo”, que
possamos adentrar a maioridade do pensamento e utilizar nossa própria razão na elaboração das
questões e problemas9. Mas para que possamos adquirir essa capacidade, digamos, reflexiva, é
necessário experiencia, contato e aprimoramento de nossos argumentos, raciocínios e capacidade
cognitiva, que é adquirida no contato com os textos filosóficos, como servindo de trampolim ou de
escada para elaborar nossas ideias de modo mais completo, acabado e embasado.
Então podemos pensar essa dinâmica da didática em filosofia em dois lado. Em um temos a
logica dos conceitos em que o objetivo é a transmissão ou transposição de conhecimentos, tecnicas
e habilidades, em suma de um conhecimento segundo critérios, normas e regras próprias segundo o
projeto pedagógico do professor e da escola. Em outro temos os esquemas e formas conceituais
próprias dos alunos, seu arcabouço cultural que deve ser pressuposto e partir como base para a
elaboração de uma logica de aprendizagem. Se o professor não se atentar para esse dois aspectos, e
em especial, a relação intricada entre ambos, as aulas podem perder sentido e os alunos se veem
diante de um fluxo de palavras sem sentido e sem capacidade de absorvê-las, elaborá-las e então
poder utilizá-las e contextualizá-las. Em suma, aprender filosofia consiste em aprender a filosofar,
como diz Kant, isso significa que só podemos alcançar o conhecimento filosófico na medida em que
nos apropriamos dele, utilizamo-nos em na resolução de problemas ou de questões que surgem no
dia a dia, elaborando pensamentos a partir daqueles adquiridos e em consonância com o modo como
o apreendemos, tomando distancia de ideias preconcebidas, e reexaminando nossa maneira de
pensar a partir de uma posição outra, questionadora e critica. Pois, como diz Ronai10
Estudar logica significa reexaminar nossa maneira de pensar, colocar em tela de
juizo os nossos pensamentos, em especial aqueles sobre temas aparentemente profundos
nos quais nos sentimos perdidos e confusos. Para isso, o dominio de alguns conceitos e
habilidades é fndamental. E devemos aqui falar sim em ‘dominar conceitos’, pois a
aquisiçao de conhecimentos de natureza proposicional não é incompativel com o
aprendizado de habilidades criticas.” p. 112
Podemos seguir, e entender, como Leopoldo e Silva11, que a filosofia tem uma “função de
articulação cultural” 12
na medida em que forma o aluno para articulação de si mesmo como
inserido na sociedade, e neste sentido, tomando consciência ou tendo mais autonomia sobre o
processo de sociabilidade em que está inserido. A filosofia, também teria a função de mostrar como
o processo de aprendizagem envolve, não apenas conteúdos, mas um processo cognitivo. Neste
8 Ibid., p.112.
9 KANT, Immanuel. Textos Seletos. Petrópolis/RJ: Vozes, 1985, p. 100.
10 Ibid., p.112.
11 SILVA, Franklin Leopoldo e. Por que filosofia no segundo grau? Estudos Avançados. São Paulo: 1992, p. 163.
12 Ibid., p. 163.
sentido a formação do estudando se concretiza na medida em que relaciona sua aquisição de
conteúdos, técnicas e habilidades, e a consciência do processo pedagógico envolvido e a
compreensão da origem do conhecimento adquirido e como ele foi produzido.
Esta consciência é o que podemos caracterizar como oriunda ou produtora de um
pensamento crítico. Pois, para compreender o processo em que está inserido, o contexto
sociopolítico-econômico em que a própria sociedade é mobilizada, o aluno precisa adquirir o que
Ronai compreende como atitude filosófica. Num certo sentido é aquela posição diante de questões,
problemas e perguntas em que se suspende os juízos ordinários e se tematiza os conceitos em que
estes juízos estão baseados. Isso significa que devemos passar de um estado em que os conceitos
são operacionalizados e passamos a um estagio em que eles viram objeto de inquirição,
questionamento e duvida.13
É importante frisar aqui que a importância do trabalho discente em mobilizar esta educação
que integre forma e conteúdo, podemos dizer, pois, em muitas escolas no Brasil, na rede privada, os
métodos pedagógicos, os recursos didáticos e os planos de aula são já predeterminados, e a
liberdade de cátedra do professor limitada. Neste sentido, se defendemos aqui, esta especie de
alfabetização de segunda ordem, ela é incompatível com um método tecnicista e de erudição vazia
que costuma ocorre nestas escolas, pois tendem a se apegar a manuais simplistas e resumidos, e a
esquemas de aulas conteudistas. Pois essa visão de educação empresarial não valoriza a dimensão
artesanal, criativa do professor, e tende a reduzir suas capacidades a mero transmissor de
informações compiladas e endereçadas a preparar o aluno para o vestibular.
Por isso apontamos aqui neste texto outros entendimentos sobre o conteúdo e currículo em
filosofia. Pois, como questão cara a disciplina, como o papel da formação humana, devemos pensar
o currículo em sua complexidade filosófica. Isso significa questionar: quais conteúdos são
compatíveis ou se conjugam com os objetivos e estratégias do discente, e que possibilitam alcançar
certos objetivos, como os já elencados, envolvendo reflexão e habilidades especificas. Por isso
importa salientar que filosofia não é apenas uma erudição vazia, ou, no caso do ensino médio, não
pode justificar sua importância, seus conteúdos e métodos com formulas prontas ou que façam
pouco sentido para o aluno. O exemplo mais utilizado para abordar filosofia, de modo introdutório,
é a celebre formulação aristotélica de que filosofia não tem utilidade, apenas um caráter
contemplativo, ou outras, mais ligadas ao senso comum, de que a filosofia teria uma função
subversiva, devido ao seu caráter critico. Certo é que são formulas vazias, pois apenas fazem
sentido no contexto restrito aos acadêmicos, e para o aluno do ensino médio, as possibilidades aqui
elencadas, ou seja, aquela ligada a formação cultural que permite a compreensão dos pormenores do
mundo, da vida e do ser humano, encaixam-se melhor numa proposta de filosofia no ensino básico.
13 Ibid., p. 117.