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A obrrr dc Edgar Morin tem muiras
l.rr ctrr e cstii dividida em várias partes. No
»rrllr,,r cstilo dlrcluele que escreve, trata-se de Edgar Morin
rurr lroLrgrlrrrl: o todo está na parte que está
rrn torhr. lnrlnrcra.s são as janelas e portas que
,1.1,r r,,'csso il cssa lcitura do mundo feita de
l.rllri\ nirs c dc tantos links. Tudo se
rntcl'lig.r. N.ulrr podc ser descartado sem
,rrrálirc rrrirruciosa. Existe a grande reflexão
r.rrglrrlrrrl.r rros scis volumes de O Método.
M.rr lrl t.rrrrlrérn os texros de investigação
c,,l,re J .lntropologia, a política e a cultura de
ruJrr-1. NÍo lllstasse isso, Morin investiu
t,rnrlrérrr ll;l ilprcscntação das suas ideias de
rrr,rrrcirl tlitlítica, num colossal esforço de
, l,rrr/i ll.lrrl ul'n público mais amplo. É o .rro Introdução ao
rlr IttIrrx\uçiio ao pensamento complexo.Náo
u' tr.lt.l.,,'otrtudo, de uma simplificação nem pensamento complexo
,1,' rrrrr crtrprlllrccimento, mas de uma forma
lrrç1'fliçx rlc lpresentação de ideias.
f 'lr,r.1,,xllrrrcntc, daria para garantir que,

n('\rr tcxto dc ampliação do horizonte de


lcitrrrcs, Morin realíza uma operação
r rr1111rfç111g,rtar e ântagônica: produz a Tradução de Eliane Lisboa
r,rrêtre il tkl scu pensamento, um
{ on('rlltril(kr altamente exigente e preciso das
ilrl\ te()rills! c, ao mesmo tempo, âpresenta
mn tcxt() rlc uma simplicidade cristalina e de
pir ltr,le potcncial de comunicação.
5". Edição
l'lste livro permite a qualquer um
r onrl)rcender «rs fundamentos do

retrsrnlcnto complexo. Em primeiro lugar,


t'lirrtitut ilusircs c mal-entendidos. A

a
r,rtrrplexidldc não é uma receita de bolo nem
,r lr'rrrrrrrh rnrigica para decifrar fenômenos
atd ,tgorl rcsistcntcs aos esforços científicos.
Editoru Sulina
I )rpois, trilt.l dc mostrar a necessidade e a
v*lirl*rle da dc'fcsa de uma interpretação
@ Éditions du Seuil, 2005
@ Editora MeridionaUSulina, 2005

Tradução
Eliane Lisboa
Capa
Eduardo Miotto Sumário
Projeto gÍáfico e editoração
Daniel Ferreira da Silva w
Revisão
Matheus Gazzola Tussi

Editor
Luis Antonio Paim Gomes

Impressão
Grífica Pallotti Prefácio,S
b

NA PUBLICÀçÃO ( CP )
DADOS INTERNACIONAIS DE CATÀLOGAÇÁO
l. A inteligência cega, 9
BrBlrorEcÁu mrcNsÁw: DNSE Me DeÁÀDws Soua cm l0/l2M
A tomadq de consciência, 9
M858i Morin, Edgü
Introdução ao pensmento complexo / Edgil Morin; O problema da organização do conhecimento, I 0
Íadução Eliane Lisboa. 5.ed. - Porto Alegre : Sulina, 2015.
l2O p.
A patologia do saber, a inteligência cega, 11
Título original: IntÍoduction à la pensée complexe
A necessidade do pensamento complexo, 13
ISBN: 978-85-205-0598-4

l. Filosofia. 2. Complexidade. 3. Sociologia do conhecimento.


I. Título.
2. O desenho e q intenÇão complexos.
O esboço e o projeto complexos, 17
CDD: 170
153.42 A indo-qrnérica, 18
306.4
CDU:101 A teoria sistêmica, l9
316
O sistema aberto, 20
Inform aç ão /Organiz aç ão, 2 4
A organização, 27
A auto-organização, 29
Todos os direitos desta edição reservados à A complexidade, 33
Eorron.l Mrnrorou.lr Lro.n. O sujeito e o objeto, 37
Coerência e abertura epistemológica, 44
Av. OsvaldoAranha,4z() cj. 101
Scienza nuova, 48
Cep: 90035-190 Porto Alegre-RS
Tel: (0xx51) 33ll-4082 Pela unidade da ciência, 49
www.editorasulina.com.br A integração das realidades banidas pela ciãncia classica, 51
e-mail: sulina@editorasulina.com.br A superação das alternativqs classicas, 53
A virada paradigmática, 54
{Setembro/2O15}

hmnrsso No BnasilPnNED rN BRAzn


3. O paradigma complexo, 57
O paradigma simplificqdor 59
Ordem e desordem no universo, 6l
Auto-organização, 64
Autonomia,66 Prefacio
Complexidade e completude, 68
Razão, racionalidade, racionalização, 69 VF
Necessidade dos macroconceitos, 7 2
Três princípios, 73
O todo esta na parte, que está no todo, 75
Rumo à complexidade, 76

4. A complexidade e a aÇão, 79 Pedimos legitimamente ao pensamento que dissipe as brumas


A ação é também um desafio, 79 e as trevas, que poúa ordem e cldieza no real, que revele as leis
A ação escapa às nossas intenções, 80 que o governam. A palawa complexidade só pode exprimir nosso
A máquina não trivial, 82
incômodo, nossa confusão, nossa incapacidade para definir de modo
Preparar-se para o inesperado, 82
simples, para nomear de modo claro, para ordenar nossas ideias.
5. A complexidade e a empresa, 85 O conhecimento científico também foi durante muito tempo
Três causalidades, S6 e com frequência ainda continua sendo concebido como tendo por
D a aut o - organiz aç ão à aut o - e c o - organiz aç ão, I 7 missão dissipar a aparente complexidade dos fenômenos a fim de
Wver e lidar com a desordem, 89 revelar a ordem simples a que eles obedecem.
A estratégia, o prograrí7a, a organização, 90 Mas se resulta que os modos simplificadores de conhecimento
Relações complementares e antagônicas, 9l
mutilam mais do que exprimem as realidades ou os fenômenos de
Precisa-se de verdadeiras solidariedades, 93
que tratam, torna-se evidente que eles produzem mais cegueira do
6. Epistemologia da complexidade, 95 que elucidação, então surge o problema: como considerar a com-
Os mal-entendidos, 96
plexidade de modo não simplificador? Esse problema, entretanto,
Falar da ciência, 100 não pode se impor de imediato. Ele deve provar sua legitimidade,
Abordagens da complexidade, 102 porque a palawa complexidade não tem por trás de si uma nobre
O desenvolvimento da ciência, 105 herança fllosóflca, científica ou epistemológica.
Ruído e informaçõo, 107 Ela suporta, ao contrétrio, uma pesada carga semântica,
Informação e conhecimento, 109
pois traz em seu seio confusão,incerteza, desordem. Sua primeira
Paradigma e ideologia, lll
Ciênciaefilosofia, 112 definição não pode fornecer nenhuma elucidação: é complexo o
Ciência e sociedade, I I 4 que não pode se resumir numa palavra-chave, o que não pode ser
Ciência e psicologia, 114 reduzido a uma lei nem a uma ideia simples. Em outros termos, o
Competências e limites, ll6 complexo não pode se resumir à palawa complexidade, referir-se a
Um autor não oculto, ll6 uma lei da complexidade, reduzir-se à ideia de complexidade. Não
A migração dos conceitos, ll7
se poderia fazer da complexidade algo que se definisse de modo
Arazão, ll8
simples e ocupasse o lugar da simplicidade. A complexidade é uma onisciência. Ele faz suas as palavras de Adorno: "A totalidade é a
palavra-problema e não uma palavra-solução. não verdade". Ele implica o reconhecimento de um princípio de
Não seria possível justificar num prefácio a necessidade incompletude e de incerteza. Mas traztambemem seu princípio o
do pensamento complexo. Uma tal necessidade só pode se impor reconhecimento dos laços entre as entidades que nosso pensamento
progressivamente ao longo de um percurso onde surgiriam pri- deve necessariamente distinguir, mas não isolar umas das outras.
meiro os limites, as insuficiências e as carências do pensamento Pascal tinha colocado, com razáo, que todas as coisas são "cau-
simplificador, depois as condições nas quais não se pode escamo- sadas e causantes, ajudadas e ajudantes, mediatas e imediatas, e
tear o desafio do complexo. Em seguida será preciso perguntar-se que todas (se interligam) por um laço natural e insensível que liga
se há complexidades diferentes umas das outras e se elas podem as mais afastadas e as 5nais diferentes". O pensamento complexo

ser unificadas num complexo dos complexos. Será preciso, enfim, também é animado por uma tensão permanente entre a aspiração
ver se há um modo de pensar, ou um método capaz de responder a um saber não fragmentado, não compartimentado, não redutoq
ao desafio da complexidade. Não se ttata de retomar a ambição do e o reconhecimento do inacabado p da incompletude de qualquer
pensamento simples, que é a de controlar e dominar o real' Trata-se conhecimento.
de exercer um pensamento capaz de lidar com o real, de com ele Essa tensão animou toda a minha vida.
dialogar e negociar. Em toda a miúa vida, jamais pude me resignar ao saber
Vai ser necessário desfazer duas ilusões que desviam as fragmentado, pude isolar um objeto de estudo de seu contexto, de
mentes do problema do pensamento complexo. seus antecedentes, de seu devenir. Sempre aspirei a um pensamento

A primeira é acreditar que a complexidade conduz à elimi- multidimensional. Jamais pude eliminar a contradição interna.
nação da simplicidade. A complexidade surge, é verdade, lá onde Sempre senti que verdades profundas, antagônicas umas às outras,
o pensamento simplificador falha, mas ela integra em si tudo o que eram para mim complementares, sem deixarem de ser antagônicas.
põe ordem, clareza,distinção, precisão no conhecimento. Enquanto Jamais quis reduzir à força a incerteza e a ambiguidade.
o pensamento simplificador desintegra a complexidade do real, o Desde meus primeiros liwos confrontei-me com a complexi-
pensamento complexo integra o mais possível os modos simpliflca- dade. que se tomou o denominador comum de tantos trabalhos diver-

dores de pensar, mas recusa as consequênc ias mutiladoras, reduto- sos que a muitos pareceram dispersos. Mas a palawa complexidade

ras, unidimensionais e finalmente ofuscantes de uma simplificação mesmo não me vinha à mente. Foi preciso que ela chegasse a mim,
que se considera reflexo do que há de real na realidade. no final dos anos 60, através da teoria da informação, da ciberné-
A segunda ilusão é confundir complexidade e completude. É tica, da teoria dos sistemas, do conceito de auto-organizaçáo,para
verdade, a ambição do pensamento complexo é dar conta das arti- que emergisse sob minha pena, ou, melhor, sobre meu teclado. Ela

culações entre os campos disciplinares que são desmembrados pelo entâo se desvinculou do sentido comum (complicação, confusão)
pensamento disjuntivo (um dos principais aspectos do pensamento paratrazer em si a ordem, a desordem e aorganização, e no seio da
simplificador); este isola o que separa, e oculta tudo o que religa, organização o uno e os múltiplos; esqas noções influenciaram umas
interage, interfere. Neste sentido, o pensamento complexo aspira às outras, de modo ao mesmo tempo complementar e antagônico;

ao conhecimento multidimensional. Mas ele sabe desde o come- colocaram-se em interação e em constelação. O conceito de com-
plexidade formou-se, cresceu, estendeu suas ramificações, passou
ço que o conhecimento completo é impossível: um dos axiomas
da complexidade é a impossibilidade, mesmo em teoria, de uma da periferia ao centro de meu discurso, tornou-se macroconceito,
lugar crucial de interrogações, ligando desde então a si o nó górdio
do problema das relações entre o empírico, o lógico e o racional.
Esse processo coincide com a gestação de O Metodo, que se inicia
em 1970; a organizaçáo complexa, e mesmo hipercomplexa, está 1.
visivelmente no centro direcionador de meu livro O paradigma
perdido (1973). O problema lógico da complexidade foi objeto de
um artigo publicado eml974 (Para alem da complicação, a comple- A inteligência cega*
xidade, retomado na primeira edição de Ciência com consciência).
O Metodo é e será de fato o método da complexidade.
Este livro, constituído de um reagrupamento de textos di-
versosl, é uma introdução à problemática da complexidade. Se a
complexidade não é a chave do mundo, mas o desafio a enfrentar, ll
por sua vez o pensamento complexo não é o que evita ou suprime o
desafio, mas o que altdaarevelá-lo, e às vezes mesmo a superá-lo. A tomada de consciência

Edgar Morin Adquirimos coúecimentos inauditos sobre o mundo fisico, bio-


lógico, psicológico, sociológico. Na ciência há um predomínio cadavez
maior dos métodos de verificação empírica e lógica. As luzes daRazáo
parecem fazer refluir os mitos e trevas para as profundezas da mente.
E, no entanto, por todo lado, erro, ignorância e cegueira progridem ao
mesmo tempo que os nossos conhecimentos.
Necessitamos de uma tomada de consciência radical:
1. A causa profunda do erro não está no erro de fato (falsa percep-

ção) ou no erro lógico (incoerência), mas no modo de organiza'


ção de nosso saber num sistema de ideias (teorias, ideologias);
2.Hâamanova ignorância ligada ao desenvolvimento da própria
ciência;
3. Há uma nova cegueira ligada ao uso degradado datazáo;
4. As ameaças mais graves em que incorre a humanidade estão
ligadas ao progresso cego e incontrolado do conhecimento
(armas termonucleares, manipulações de todo tipo, desregra-
mento ecológico etc.).

* Exfaído da contribúção ao colóqúo Georges Orwell, Blg BroÍhet um desconhecido


1
Meus agradecimentos a Françoise Bianchi por seu indispensável e precioso tra-
balho de análise: crítica, seleção, eliminação de meus textos dispersos relativos à ./imiliar,1984, "Mitos e realidades", organizadopelo Conselho daEuropa em colabo-
complexidade. Sem ela, este volume não teria tomado forma. Estes textos foram ração com a Fundação Europeia das Ciêncrfs, das Artes e da Cultura, apresentado por
revistos, corrigidos e parcialmente modiflcados para a presente edição. Ir. Rosenstiel e Shlomo Giora Shoham (L Àge d'homme, 1986, p. 269-274).

8 w
Gostaria de mostrar que esses erros, ignorâncias, cegueiras e que, conforme as operações de cenffalismo, de hierarquização, de
perigos têm um caráter comum resultante de um modo mutilador de disjunção ou de identificação, a visão da URSS muda totalmente.
organizaçáo do conhecimento, incapaz de reconhecer e de apreender Esse exemplo nos mostra que é muito difícil pensar um
a complexidade do real. fenômeno como "a nattreza da URSS". Não porque nossos pré-
julgamentos, nossas "paixões", nossos interesses estejam emjogo
O problema da organização do conhecimento por trás de nossas ideias, mas porque não dispomos de meios
para conceber a complexidade do problema. Trata-se de evitar a
Qualquer conhecimento opera por seleção de dados signi- identificação a priori (que reduz a noção de URSS à de Gulag),
ficativos e rejeição de dados não significativos: separa (distingue assim como a disjunçflo a priori que dissocia, como estranha
ou disjunta) e une (associa, identifica); hierarquiza (o principal, o uma à outra, a noção de socialismo soviético e a de sistema
secundário) e centraliza(em função de um núcleo de noções-chave); concentrador. Trata-se de evitar a visão unidimensional, abstrata.
essas operações, que se utilizam da lógica, são de fato comandadas Para isso é preciso, antes de mais nada, tomar consciência da
por princípios "supralógicos" de organizaçào do pensamento ou nattJÍeza e das consequências dos paradigmas que mutilam o
paradigmas, princípios ocultos que govemamnossavisão das coisas conhecimento e desfiguram o real.
e do mundo sem que tenhamos consciência disso.
Assim, no momento incerto dapassagem davisão geocêntrica A patologia do sabeti a inteligência cega
(ptolomaica) à visão heliocêntrica (copémica) do mundo, a primeira
oposição entre as duas visões residia no princípio de seleção/rejeição Vivemos sob imperio dos princípios de disiunção, de redução e
o
dos dados: os geocêntricos rejeitavam como não significativos os de abstração, cujo conjunto constitui o que chamo de o "paradigma
dados inexplicáveis segundo sua concepção, enquanto que os outros de simplificaçáo". Descartes formulou este paradigma essencial
sebaseavam nesses dados para conceber o sistema heliocêntrico. O do Ocidente, ao separar o sujeito pensante (ego cogitans) e a coisa
novo sistema engloba os mesmos constituintes do antigo (os pla- entendida (res extensa), isto é, filosofia e ciência, e ao colocal como
netas), utiliza com frequência os antigos cálculos. Mas a visão do princípio de verdade as ideias'oclaras e distintas", ou seja, opróprio
mundo mudou totalmente. A simples permutação entre Terra e So1 pensamento disjuntivo. Esse paradigma, que controla a aventura do
foi muito mais do que uma permutaçáo, já que foi uma mudança do pensamento ocidental desde o século XVII, sem dúvida permitiu
centro (a Terra) em elemento periférico e de um elemento periferico os maiores progressos ao conhecimento científico e à reflexão fllo-
(o Sol) em centro. sófica; suas consequências nocivas últimas só começam a se revelar
Tomemos agora um exemplo no coração mesmo dos pro- no século XX.
blemas antropossociais de nosso século: o do sistema concentrador Tal disjunção, rareando as comunicações entre o conheci-
(Gulag), na União Soviética. Mesmo reconhecido, de facto, o Gtr- mento científico e a reflexão filosófica, devia finalmente privar a
lag pôde ser empuÍrado à periferia do socialismo soviético, como ciência de qualquer possibilidade de ela conhecer a si própria, de
fenômeno negativo secundário e temporário, em razáo essencial- refletir sobre si própria, e mesmo de se conceber cientiflcamente.
mente do cerco capitalista e das dificuldades iniciais da consffução do Mais ainda, o princípio de disjunção isolou radicalmente uns dos
socialismo. Ao contriírio, pode-se considerar o Gulag como o núcleo outros três grandes campos do conhecimento científico: a fisica, a
central do sistema, revelador de sua essência totalitÍrt'ra. Vê-se, pois, biologia e a ciência do homem.

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A única maneira de remediar essa disjunção foi uma outra ela própria ignorada pelos estudiosos. Estes, que praticamente não
simplificação: a redução do complexo ao simples (redução do bio- dominam as consequências de suas descobertas, sequer controlam
lógico ao fisico, do humano biológico). Uma hiperespecialização
ao intelectualmente o sentido e anaf.treza de sua pesquisa.
devia, além disso, despedaçar e fragmentar o tecido complexo das Os problemas humanos são entregues, não só a este obscu-
realidades, efazer crer que o corte arbitrário operado no real era o rantismo científico que produz especialistas ignaros, mas também a
próprio real. Ao mesmo tempo, o ideal do conhecimento científico doutrinas obtusas que pretendem monopoli zar a cientificidade (após o
clássico era descobrir, atrás da complexidade aparente dos fenô- marxismo althusseriano, o econocratismo liberal), a ideias-chave ain-
menos, uma Ordem perfeita legiferando uma máquina perpétua (o da mais pobres por sua pretensão de abrir todas as portas (o desejo,
cosmos), ela própria feita de microelementos (os átomos) reunidos a mimese, a desordemçtc.), como se a verdade estivesse fechada
de diferentes modos em objetos e sistemas. num cofre-forte de que bastaria possuir a chave, e o ensaísmo não
Tal coúecimento, necessariamente, baseava seu rigor e sua verificado partilha o terreno com o cientismo limitado.
operacionalidade na medida e no cálculo; mas, cada vezmais, ama- Infelizmente, pela visão mutiladora e unidimensional, paga-
tematizaçáo e aformalização desintegraram os seres e os entes para só se bem caro nos fenômenos humanos: a mutilação corta na carne,
considerar como únicas realidades as formulas e equações que gover- verte o sangue, expande o sofrimento. A incapacidade de conceber
nam as entidades quantificadas. Enfim, o pensamento simplificador a complexidade da realidade antropossocial, em sua microdimensão
e incapaz de conceber a conjunção do uno e do múltiplo (unitat (o ser individual) e em sua macrodimensão (o conjunto da humani-
multiplex). Ou ele unifica abstratamente ao anular a diversidade, dade planetária), conduz a infinitas tragédias e nos conduz à tragédia
ou, ao contrário, justapõe a diversidade sem conceber a unidade. o'deve"
suprema. Dizem-nos que a política ser simplificadora e ma-
Assim, chega-se à inteligência cega. A inteligência cega desffói niqueísta. Sim, claro, em sua concepção manipuladora que utiliza
os conjuntos e as totalidades, isola todos os seus objetos do seu meio as pulsões cegas. Mas a estratégia política requer o conhecimento
ambiente. Ela não pode conceber o elo inseparável entre o observador complexo, porque ela se constrói na ação com e contra o incerto, o
e a coisa observada. As realidades-chave são desintegradas. Elas acaso, o jogo múltiplo das interações e retroações.
passam por entre as fendas que separam as disciplinas. As disci-
plinas das ciências humanas não têm mais necessidade da noção / necessidade do pensamento complexo
de homem. E os pedantes cegos concluem então que o homem não
tem existência,anáo ser ilusória. Enquanto que os mídias produzem O que é a complexidade? Aum primeiro olhar, a complexidade
abaixa cretinizaçáo, a Universidade produz a alta cretinização. A ri um tecido (complexus: o que é tecido junto) de constituintes hetero-
metodologia dominante produz um obscurantismo acrescido, já que gêneas inseparavelmente associadas: ela coloca o paradoxo do uno e
não há mais associação entre os elementos disjuntos do saber, não tlo múltiplo. Num segundo momento, a complexidade é efetivamente
há possibilidade de registrá-los e de refleti-los. o tecido de acontecimentos, ações, interações, reffoações, determina-
Aproximamo-nos de uma mutação inaudita no conhecimento: ções, acasos, que constifuem nosso mundo fenomênico. Mas então a
este é cadavez menos feito para serrefletido e discutido pelas men- complexidade se apresenta com os traços inquietantes do emaranhado,
tes humanas, cadavez mais feito para ser registrado em memórias do inextricável, da desordem, da ambiguidade, da incerteza... Por isso
informacionais manipuladas por forças anônimas, em primeiro o conhecimento necessita ordenar os fenômenos rechaçando a desor-
lugar os Estados. Ora, esta nova, maciça e prodigiosa ignorância é rlcm, afastar o incerto, isto é, selecionaÍ os elementos da ordem e da

t2 13
ceÍteza,precisar, clarificar, distinguir, hierarquizar... Mas tais operações, de disjunção/redução/unidimensionalização, seria preciso substituir

necessárias à inteligibilidade, correm o risco de provocar a cegueira, se um paradigma de distinção/conjunção, que permite distinguir sem
elas eliminam os oufios aspectos do complexus; e efetivamente, como disjungir, de associar sem identificar ou reduzir. Esse paradigma
eu o indiquei, elas nos deixaram cegos. comportaria um princípio dialógico e translógico, que integraria a
Ora, acomplexidade chegou a nós, nas ciências, pelo mesmo lógica clássica sem deixar de levar em conta seus limites de facto
caminho que a tinha expulsado. O próprio desenvolvimento da ciência (problemas de contradições) e de jure (limites do formalismo). Ele
fisica, que se consagrava a revelar a Ordem impecável do mundo, seu traria em si o princípio do (Jnitas multiplex, que escapa à unidade
determinismo absoluto e perpétuo, sua obediência a uma Lei única e abstrata do alto (holismo) e do baixo (reducionismo).
sua constituição de uma forma original simples (o átomo) desembocou Meu propósito aqui não é enumerar os "mandamentos" do
finalmente na complexidade do real. Descobriu-se no universo fisico pensamento complexo ilue tentei apresentar2. É sensibilizar para as
um princípio hemorrágico de degradação e de desordem (segundo enorÍnes carências de nosso pensamento, e compreender que um
princípio da termodinâmica); depois, no que se supunha ser o lugar pensamento mutilador conduz necessariamente a ações mutilantes.
da simplicidade fisica e lógica, descobriu-se a extrema complexidade E tomar consciência da patologia cbntemporânea do pensamento.

microfisica; a partícula não é um primeiro tijolo, mas uma fronteira A antiga patologia do pensamento dava uma vida independente
sobre uma complexidade talvez inconcebível; o cosmos não é uma aos mitos e aos deuses que criava. A patologia modema da mente esta
máquina perfeita, mas um processo em vias de desintegração e de na hipersimpliflcação que não deixa ver a complexidade do real. A
organizaçáo ao mesmo tempo. patologia da ideia está no idealismo, onde a ideia oculta a realidade
Finalmente, viu-se que o caminho não é uma substância, que ela tem por missão ffaduzir e assumir como a única real. A doença

mas um fenômeno de auto-eco-organizaçáo extraordinariamente da teoria esüí no doutrinarismo e no dogmatismo, que fecham ateona

complexo que produz autonomia. Em função disso, é evidente que nela mesma e a enrijecem. A patologia darazáo é aracionalização que

os fenômenos antropossociais não poderiam responder a princípios oncerra o real num sistema de ideias coerente, mas parcial e unilateral,
de inteligibilidade menos complexos do que estes requeridos desde e que não sabe que uma parte do real e irracionalizável, nem que a
então para os fenômenos naturais. Precisamos enfrentar a comple- racionalidade tem por missão dialogar com o trracionalizáxel.
xidade antropossocial, e não dissolvê-la ou ocultá-la. Ainda estamos cegos ao problema da complexidade. As
Adificuldade do pensamento complexo é que ele deve enfren- clisputas epistemológicas entre Popper, Kuhn, Lakatos, Feyerabend
tar o emaranhado (o jogo infinito das inter-retroações), a solidarie- ctc., não fazem menção a ele3. Ora, essa cegueira fazparte de nossa
dade dos fenômenos entre eles, a bruma, aincerteza, a contradição. r 11. Morin, Ciência com consciência, Paris, Fayard, 1982. Nova edição, col.
Mas podemos elaborar algumas das ferramentas conceituais, alguns "Points", Le Seuil, 1990, p. 304-9.
I
dos princípios para esta aventura, e podemos entrever o semblante l,lntretanto, o filósofo das ciências, Bachelard, tinha descoberto que o simples não
cxiste: só o que há é o simpliflcado. A ciência constrói o objeto extraindo-o de seu
do novo paradigma de complexidade que deveria emergir. mcio complexo para pôJo em situações experimentais não complexas. A ciência
Já indiquei, nos dois volumes de O Métodor, algumas das rtÍkr é o estudo do universo simples, é uma simplificação heurística necessaria para

ferramentas conceituais que podemos utilizar. Assim, no paradigma rlcscncadear certas propriedades, até mesmo certas leis.
(icorges Lukács, o filósofo marxista, diziana sua velhice, criticando sua própria
visilo dogmática: "O complexo deve ser concebido como o primeiro elemento exis-
1
E. Morin. O Método, vol. 1 e 2.Pais, Le Seuil, 1977-1980. Nova edição col. lcnto. Daí resulta que é preciso primeiro examinar o complexo enquanto complexo
"Points", Le Seuil, 1981-1985. c passar em seguida a seus elementos e processos elementares".

14
barbárie. Precisamos compreender que continuamos na erabârbara
das ideias. Estamos aindanapré-história do espírito humano. Só o
pensamento complexo nos permitirâ civllizar tosso conhecimento.

2.

O desenho e a intenção complexos.*


O esboço e o projeto complexos

it

A ciência do homem não possui um princípio que enraíze


o f'enômeno humano no universo natural, nem um método apto a
upreender a extrema complexidade que o distinga de qualquer outro
l'enômeno natural conhecido. Seu arcabouço explicativo ainda é o
da fisica do séculoXIX, e sua ideologia implícita continua sendo a
do cristianismo e do humanismo ocidental: anaturezasobrenatural
tlo Homem. Que se compreenda,apartir disso, meu direcionamen-
to: é um movimento de duas frentes, aparentemente divergentes,
nntagônicas, mas, a meu ver, inseparáveis: trata-se, é vérdade, de
reintegrar o homem entre os seres nafurais para distingui-lo nesse
meio, mas não para reduzi-lo aesse meio. Trata-se, por consequên-
cia, ao mesmo tempo de desenvolver uma teoria, uma lógica, uma
epistemologia da complexidade que possa convir ao conhecimento
do homem. Portanto, o que se busca aqui é ao mesmo tempo a
unidade da ciência e a teoria da mais alta complexidade humana.
Íi um princípio de raizes profundas cujos desenvolvimentos se
divcrsificam cada vez mais rumo à frondescência. Situo-me, por-
lanto. totalmente fora dos dois clãs antagônicos, um que esmaga a

I llnscado em "Ciência e complexidade" em ARK'ALL, Communications, vol.


l. I'urc, l. 1976.

l6
w 17
diferença reenviando-a à unidade simples, o outro que oculta a uni- ção de mundo tinham acabado de se soltar nos dois infinitos, que,
o'onda
dade porque só vê a diferença: totalmente fora deles, mas tentando om nossa média", não estávamos no solo flrme de uma ilha
integrar a verdade de um e do outro, isto é, superar a altemativa. cercada pelo oceano, mas num tapete voador.
Abusca que empreendi levou-me cadavezmais à convicção Não há mais solo firme, aoomatéÍia" não é mais a realidade
de que tal superação deve implicar umareorganização em cadeia do rnaciça elementar e simples à qual se podia reduzir aphysis. O es-
que entendemos pelo conceito de ciência. Paradizer averdade, uma paço e o tempo não são mais entidades absolutas e independentes.
mudança fundamental, uma revolução paradigmáúica,parecem-nos Não só não há mais uma base empírica simples, como também
necessárias e próximas. uma base lógica simples (noções claras e distintas, realidade não
A espessura das evidências foi destruída, a tranquilidade das arnbivalente, não cont6pditória, estritamente determinada) para
ignorâncias foi abalada, as alternativas ordinárias perderam seu constituir o substrato flsico. Resulta daí uma consequência capital: o
carâter absoluto, outras alternativas se desenham;apartir disso, o simples (as categorias da fisica clássica que constituem o modelo de
que a autoridade ocultou, ignorou, rejeitou, sai da sombra, enquanto qualquer ciência) não é mais o fundEmento de todas as coisas, mas
que o que parecia o pedestal do conhecimento se quebra. uma passagem, um momento entre complexidades, a complexidade
rnicrofisica e a complexidade macrocosmofisica.
A indo-américa
A teoria sistêmica
Estamos, nesse senüdo, ao mesmo tempo müto mais avançados e
muito mais afasados do que sepoderiacrer. Jádescobrimos asprimeiras A teoria dos sistemas e a cibernética se interseccionam numa
costas da América, mas continuamos acreditando que se fata da Índia. zona incerta comum. Em princípio, o campo da teoria dos sistemas
As rachaduras e as fendas emnossaconcepção de mundo não sóviraram é muito mais amplo, quase universal, já que num certo sentido toda
enoÍmes aberturas, mas também essas aberturas deixam entrever, rcalidade conhecida, desde o átomo ate a galéxia, passando pela
como sob a carapaça de um crustáceo em mutação, como sob o tttolécula, a cél.ula, o organismo e a sociedade, pode ser concebida
descolamento do casulo, os fragmentos ainda não ligados entre si, cotno sistema, isto é, associação combinatória de elementos dife-
a nova pele ainda dobrada e amassada, a nova fi gura, a nova forma. rentos. De fato, a teoria dos sistemas, iniciada com von BertalanfSr
Assim, houve de início duas brechas no quadro epistemológi- tttttna reflexão sobre a biologia, apartir dos anos 50 se expandiu de
co da ciência clássica. A brecha microflsica revela a interdependên- rttotlo selvagem nas mais diferentes direções.
cia do sujeito e do objeto, a inserção do acaso no conhecimento, a Pode-se dizer da teoria dos sistemas que ela oferece um rosto
desreificação da noção de matéria, a imrpção da contradição lógica ittçcrto ao observador externo, e pata quem nela penetra revela
na descrição empírica; a brecha macrofisica une numa mesma enti- luo rncnos três faces, três direções contraditórias. Há um sistema
dade os conceitos até então absolutamente heterogêneos de espaço I'ecundo que traz em si um princípio de complexidadea; há um
e de tempo e quebra todos os nossos conceitos apartir do momento ritrtctnismo vago e raso, baseado na repetição de algumas verdades
em que eles eram transportados para além da velocidade da luz. Mas
pensava-se que essas duas brechas estavam infinitamente longe de ! ('í', .1. 1,. l,c Moigne, Za théorie du systàme général, PUE édition 1990; cf . igal-
nosso mundo, uma no pequeno demais, outra no grande demais. Itlstrlc (r númcro especialdaRevue InÍernational de SysÍémique, 2,90, "Systémique
Não queríamos dar-nos conta de que as amalras de nossa concep- ,le ht ü),ttplexile ", apresentado por J. L. Le Moigne.

18 19
primeiras asseptizadas ("holísticas") que jamais poderão ser ope- tura dependem de uma alimentação externa, e no caso dos sistemas
racionalizadas; há enflm a system analysis, que é a correspondente v ivos, não apenas materiaVenergética,mas também organizacionaU

sistêmica da engineering cibemetica, mas muito menos confiável, inf'ormacional.


e que transforma o sistema em seu contrário, isto é, como o termo Isto signiflca:
analysis o indica em operações redutoras. a) que uma ponte está constituída entre a termodinâmica e a
O sistema tem para começar os mesmos aspectos fecundos ciência da vida;
que a cibernética (esta, referindo-se ao conceito de máquina, man- b) que se desencadeia uma ideia nova, oposta às noções fisicas
tém na abstração alguma coisa de sua origem concreta e empírica). de equilíbrio/desequilíbrio, e que está além de uma e de outra
A virtude sistêmica é: nurn certo sentido"contendo a ambas.
a) ter posto no centro da teoria, com a noção de sistema, não uma
unidade elementar discreta, mas umaunidade complexa, um Um sistema fechado, como uma pedr4 uma mesa, está em estado
"todo" que não se reduz à o'soma" de suas partes constitutivas; tlc equilíbrio, ou seja, as trocas de mqtéria/energia com o exterior são
a noção de sistema como uma noçáo*Íeal",
b) não ter concebido rrulas. Por oufo lado, a constância da chama de uma vela e a cons-
nem como uma noção puramente formal, mas como uma tiirrcia do meio intemo de uma célula, ou de um organismo, não estão
noção ambígua ou fantástica; ruhsolutamente ligadas a tal equilíbrio; ao contrário, há desequilíbrio no
c) situar-se a um nível transdisciplinar, que permite ao mesmo lluxo energético que os alimenta, e, sem esse fluxo, haveria desordem
tempo conceber a unidade da ciência e a diferenciação das organizacional levando rapidamente ao definhamento.
ciências, não apenas segundo anaixezamaterial de seu ob- Num primeiro sentido, o desequilíbrio alimentador permite
jeto, mas também segundo os tipos e as complexidades dos ruu sistema manter-se em aparente equilíbrio, isto é, em estado de
fenômenos de associaçã ol organizaçáo. Neste último sentido, cslabilidade e de continuidade, e esse aparente equilíbrio só se
o campo da teoria dos sistemas é não apenas mais amplo tlcgradará se for deixado entregue a si mesmo, isto é, se houver
que o da cibernética, mas de uma amplitude que se estende l'cchamento do sistema. Esse estado assegurado, constante e, no
a todo o conhecimento. entânto, frâgil - steady state, terÍno que conservaremos, vista a
rliíiculdade de encontrar seu equivalente francês -, tem alguma
O sistema aberto coisa de paradoxal: as estruturas peÍmanecem as mesmas, ainda
quc os constituintes sejam mutantes; assim acontece não apenas
O sistema aberto está na origem de uma noção termodinâmi- e()tn o turbilhão, ou a chama da vela, mas com nossos organismos,
ca, cuja prim eira característica era permitir circunscrever, de modo ontft: nossas moléculas e nossas células renovam-se sem cessar,
negativo, o campo de aplicação do segundo princípio, que neces- enquanto o conjunto permanece aparentemente estável e estacioná-
sita da noção de sistema fechado, isto é, que não dispõe de fonte t'io, Por um lado, o sistema deve se fechar ao mundo exterior a fim
energética"/material exterior a si próprio. Tal definição não teria de ele manter suas estruturas e seu meio interior que, não fosse isso,
modo nenhum oferecido interesse se não se pudesse a partir dela rc tlcsintegraria. Mas é sua abertura que permite esse fechamento.
considerar um certo número de sistemas fisicos (a chama de uma O problema toma-se mais interessante ainda quando se supõe
vela, o movimento de um rio em torno do pilar de uma ponte), e ttnu rclação indissolúvel enffe a manutenção da estrutura e a mudança
sobretudo os sistemas vivos, como sistemas cuja existência e estru- rlos constituintes, e desembocamos num problema-chave, primeiro,

20 21
central, evidente, do ser vivo, problema, entretanto, ignorado e É extraordinário que uma ideia tão fundamental quanto o sis-
ocultado, não apenas pela antiga fisica, mas também pela metafisica tema aberto tenha emergido tão tardia e localmente (o que já mostra
ocidental/cartesiana, para quem todas as coisas vivas são conside- a que ponto o mais dificil a perceber seja a evidência). De fato, ela
radas como entidades closes,e não como sistemas organizando seu está presente, mas não explicitamente declarada, em certas teorias,
fechamento (isto é, sua autonomia) na e pela abertura. sobretudo em Freud, onde o EGO é um sistema aberto ao mesmo
Porüanto, duas consequências capitais decorrem da ideia de tempo sobre o id e o superego, só podendo se constituir a partir de
sistema aberto: a primeira é que as leis de organizaçáo da vida não um e do outro, mantendo relações ambíguas, mas fundamentais com
são de equilíbrio, mas de desequilíbrio, recuperado ou compensado, um e com outro; a ideia de personalidade, na antropologia cultural,
de dinamismo estabilizado. Em nosso trabalho vamos beber na fonte implica igualmente que esta seja um sistema aberto sobre a cultura
dessas ideias. A segunda consequência, talvez ainda maior, é que (mas infelizmente, nessaãisciplina, a cultura é um sistema fechado).
a inteligibilidade do sistema deve ser encontrada, não apenas no O conceito de sistema aberto tem valor paradigmâtico. Como
próprio sistema, mas também na sua relação com o meio ambiente, observa Maruyama, conceber todo objeto e entidade como fechado
e que essa relação não é uma simples dependência, ela é constitutiva implica uma visão de mundo classifrcadora, analitica. reducionis-
do sistema. ta, numa causalidade unilinear. Foi exatamente essa visão que se
A reolidade está, desde então, tqnto no elo quanto na distin- instaurou na fisica do século XVII ao XIX, mas que hoje, com os
ção entre o sistema aberto e seu meio ambiente. Esse elo é absoluta- aprofundamentos e os avanços rumo à complexidade,vazapor todos
mente crucial seja no plano epistemológico, metodológico, teórico, os lados. Trata-se de fato de operar uma reversão epistemológica
empírico. Logicamente, o sistema só pode ser compreendido se nele a partir da noção de sistema aberto. "As pessoas que vivem no
incluímos o meio ambiente, que lhe é ao mesmo tempo íntimo e universo classificatório agem com a percepção de que todo siste-
estranho e o integra sendo ao mesmo tempo exterior a ele. ma é fechado, a menos que ele seja especificado de outro modo.s,,
Metodologicamente, toma-se dificil esfudar os sistemas aber- De meu ponto de vista, o teorema de Gôdel, ao abrir uma brecha
tos como entidades radicalmente isoláveis. Teórica e empiricamente, irreparável em todo sistema axiomático, permite conceber a teoria
o conceito de sistema aberto abre aportaalmateoria da evolução, e a lógica como sistemas abertos.
que só pode provir das interações entre sistema e ecossistema, e A teoria dos sistemas reúne sincreticamente os elementos
que, em seus saltos organizacionais mais admiráveis, pode ser mais diversos: num sentido, excelente caldo cultural; num outro
concebida como a superação do sistema por um metassistema. A tcntido, confusão. Mas esse caldo cultural suscitou contribuições
partir desse momento, aporta está aberta p ara ateoriados sistemas em geral muito fecundas em sua própria diversidade.
auto-eco-organizadores, eles próprios abertos, claro (porque longe De maneira um pouco análoga à cibernética, mas num campo
de escapar à abertura, a evolução rumo à complexidade aumenta), diferente, a teoria dos sistemas se move mtm middle-range. por
isto é, dos sistemas vivos. um lado, ela explorou muito pouco o próprio conceito de siste-
Enflm, sendo arelação fundamental enffe os sistemas abertos tnê, satisfazendo-se neste ponto fundamental com um "holismo,,
e o ecossistema de ordem ao mesmo tempo materiaUenergetica e vale- tudo. Por outro, ela absolutamente não explorou o lado da
organizacional/informacional, poderemos tentar compreender o +
I M. Maruyama, Paradigmatology, and its applicaÍion to cross-disciplinary,
carâter ao mesmo tempo determinado e aleatório da relação ecos-
QÊ*tl.pnfessional and cross-cultural communication, Cybemetika, 17,1974, p.
sistêmica. l3ô'156.27-51.

22
23
auto-organização e da complexidade. Resta um enorÍne vazio con- mento de tal ou tal unidade elementar portadora de informação, ou
ceitual entre a noção de sistema aberto e a complexidade do mais binary digit, bit). Seu primeiro campo de aplicação foi seu campo
elementar sistema vivo, que as teses de von Bertalan$r sobre a de emergência: a telecomunicação.
"hierarquia" não preenchem. (Desde esse texto de 1976, surgiram Mas, muito rapidamente, a transmissão de informação gaúou
trabalhos admiráveis no sentido complexo, sobretudo os de Jean- um sentido orgxtizacional com a cibernética: de fato, um "progra-
Louis Le Moigne emA teoriq geral do sistema, PUF, nova edição ma" portador de informação não só comunica uma mensagem a um
1990, a obra de Yves Barel, O Paradoxo e o sistema, PUG, 1979 e computador, ele lhe ordena certo número de operações.
O conceito de sistema político de Jean-Louis Vuillerme, PUF, 1989.) Mais espantosa ainda foi a possibilidade de extrapolar muito
Enflm, como a teoria dos sistemas responde a uma necessi- heuristicamente a teorig ao campo biológico. Desde que se estabe-
dade cada vezmaisurgente, ela com frequência tem ingressado nas leceu que a autorreprodução da célula (ou do organismo) podia ser
ciências humanas por dois lados ruins, um tecnocrático6e o outro concebida a partir de uma duplicação de um material genético ou DNA,
tmvale-tudo: uma abstração geral excessiva afasta do concreto e desde que se concebeu que o DNA ponstituía uma espécie de escada
não chega a formar um modelo. Mas não esqueçamos, o germe da dupla cujas barras eram constituídas de quase signos químicos cujo
unidade da ciência estâ aí. Se o sistemismo deve ser ultrapassado, conjunto podia constituir uma quase mensagem hereditaria, etrtão a
deve, de todo modo, ser integrado. reprodução pode ser concebida como a cópia de uma mensagem, isto
é,uma emissão-recepção ingressando no quadrc da teoria da comuni-
I nfo rm a ç ã o / O rg an iz a ç ão cação: pode-se assimilar cada um dos elementos químicos a unidades
discretas desprovidas de sentido (como os fonemas ou as lefas do
Já encontramos a noção de informação na cibernética, alfabeto), combinando-se em unidades complexas dotadas de sentido
também teríamos podido encontrá-la na teoria dos sistemas; mas (como as palavras). Ainda mais, a mutação genética foi assimilada a um
precisamos considerar a informação não como um ingrediente, e "ruído" perturbando a reprodução de uma mensagem e provocando um
sim como uma teoria que pede um exame preliminar independente. "erÍo" (ao menos em relação mensagem original) na constituição da
à
A informação é uma noção central, mas problemâtica. Daí nova mensagem. O mesmo esquema informacional pode ser aplicado
toda sua ambiguidade: não se pode dizer quase nada sobre ela, mas ao próprio funcionamento da célula, em que o DNA constitui uma
não se pode mais deixar de levá-la em conta. espécie de "programa" orientando e govemando as atividades meta-
A informação emergiu com Hartley e, sobretudo, com bólicas. Assim, a célula podia ser cibemetizada, e o elemento-chave
Shannon e Weawer, sob um aspecto, de um lado, comunicacional dessa explicação cibemética se enconfava na informação. Aqui, ainda,
(tratava-se da transmissão de mensagens, e ela foi integrada a uma uma teoria de origem comunicacional era aplicada a uma realidade
teoria da comunicação); de outro lado, sob um aspecto estatístico de tipo organizacional. E, nessa aplicação, seriapreciso considerara
(relativo à probabilidade, ou melhor, à improbabilidade do surgi- informação organizacional, seja como uma memória, seja como uma
*tr.t foi útil em seu aspecto espetacular: o estudo sistêmico do relatório lnensagem, seja como um programa, ou melhor, como tudo isso ao
'E"t., "t",o crescimento (MIT)
Meadows sobre introduziu a ideia de quLe o planeta Terra é mesmo tempo.
um sistema aberto sobre a biosfera e suscitou uma tomada de consciência e um
Mais ainda: se, por um lado, a noção de informação podia se
alarme fecundos. Mas, evidentemente, a escolha de parâmetros e de variáveis foi
arbitrâria, e é na pseudoexatidão de cálculo, na simpliflcação "tecnocrática" que integrar na noção de organização biológica, por outro ela podia ligar
reside o lado ruim do sistemismo triunfante.
tle modo espantoso a termodinâmica, isto é, a física, à biologia.

24 25
Com efeito, o segundo princípio da termodinâmica tinha
fatal do "ruído". O que significa que a teoria atual não e capaz de
sido formulado por uma equação de probabilidade que exprimia a
compreender nem o nascimento nem o crescimento da informação'
tendência à entropia, isto é, ao crescimento, no seio de um sistema,
Assim, o conceito de informação apresenta grandes lacunas e
da desordem sobre a ordem, do desorganizado sobre o organizado.
grandes incertezas. Essa não é uma razáo para rejeitáJo, mas paÍa
ora, tinha-se observado que a equação shannoniana da informa-
aprofundá-lo. Há, sob esse conceito, umariquezaeÍtotme, subjacen-
ção (H:K1nP) era como o reflexo, o negativo daquela da entropia te, que gostaria de tomar forma e corpo. Isso está, evidentemente,
(s:KlnP) no sentido em que a entropia cresce de maneira inversa à
nos antípodas da ideologia "informacional" que reiflca a informação,
informação. vem daí a ideia explicitada por Brillouin de que havia
a substancializa, faz dela uma entidade de mesma natureza que a
equivalência entre a informação e a entropia negativa ou neguen-
matéria e a energia, ert1suma, faz o conceito recuar a posições que
tropia. Ora, a neguentropianáo e mais do que o desenvolvimento
ele tem como função ultrapassar. Significa dizer que a informação
da organização, da complexidade. Encontramos aqui também o
não é um conceito de chegada, é um conceito ponto de partida' Ele
elo entre organizaçáo e informação, e, além disso, um fundamento
só nos revela um aspecto limitadq e superficial de um fenômeno
teórico que permite apreender o elo e a ruptura entre a ordem fisica
ao mesmo tempo radical e poliscópico, inseparável da organização'
e a ordem viva.
A informação é, pois, um conceito que estabelece o elo com A organização
a fisica, sendo ao mesmo tempo o conceito fundamental ignorado
pela Íisica. Ela é inseparáwel da organizaçào e da complexidade
Assim, como acabamos de ver, e çada uma a sua maneira, a
biológicas. Ela opera a entrada na ciência do objeto espiritual que só
cibemética, a teoria dos sistemas, a teoria da informação, tanto em
podia encontrar lugar na metafisica. É uma noção realmente crucial,
sua fecundidade quanto em suas insuficiências, pedem uma teoria da
um nó górdio, mas como o nó górdio, emaranhado, impossível de
orgarruaçáo.De modo correlato, a biologia modema passou do orga-
ser desenredado. A informação é um conceito indispensável, mas
nicismo ao organizacionismo. Para Piaget, a coisajá esta feita: "Final-
ainda não é um conceito elucidado e elucidativo.
mente viemos a conceber o conceito de orgarruação como o conceito
Pois, lembremos, os aspectos provindos da teoria da informa_
central da biologia"T. Mas François Jacob julga que a "teoria geral das
ção, o aspecto comunicacional e o aspecto estatístico, são como a fina
organizações" ainda não foi elaborada, mas está para ser consfruída'
superficie de um imenso iceberg. o aspecto comunicacional úsoluta-
A organização, noção decisiva, apenas vislumbrada, não é
mente não consegue abarcar o caráterpoliscópico da informação, que
ainda,se ouso dizer, um conceito organizado. Essanoção pode se
se apresenta ao olhar ora como memória, ora como saber, ora como
elaborar apartir de uma complexificação e de uma concretizaçáo
mensagem, oÍa como programa, ora como mafrz organizacional.
do sistemismo, e surgir então como um desenvolvimento, ainda
O aspecto estatístico ignora, inclusive dentro do quadro co_
não alcançado, da teoria dos sistemas; ela pode também se decan-
municacional, o sentido da informação, ele só apreende o caréúer
tar a partir do "organicismo" à condição que haja uma curetagem
probabilístico-improbabilitário, não a estrutura das mensagens.
e modelização que façam aparecer a atganizaçáo no organismo'
E, claro, ignora tudo do aspecto organizacional. Enfim, a teoria
É importante indicar, desde já, a diferença de nível entre o
shannoniana mantém-se ao nível da entropia, da degradação da
organizacionismo, que nós acreditamos necessário, e o organicis-
informação; ela se situa no quadro dessa degradação fatal, e o que
ela permitiu foi conhecer os meios que podem retardar o efeito 7
J. Piaget, Biologia e conhecimento, Paris' Gallimud, 1967 '

26 27
mo tradicional. o organicismo é um conceito sincrético,
histórico, presciência de que a organizaçáo vital não pode ser compreendida
confuso, romântico. Ele parte do organismo concebido como
to- segundo a mesma lógica que a da máquina artificial, e que a origi-
talidade harmoniosamente organizada, mesmo quando traz
em si nalidade lógica do organismo se traduz pela complementaridade de
o antagonismo e a morte. provindo do organismo, o organicismo
termos que, segundo alógicaclássica, se repelem, são antagônicos,
faz daquele o modelo seja do macrocosmo (concepção
organicista contraditórios. O organicismo, numa p alavra,supõe uma organizaçáo
do universo), seja da sociedade humana; assim, toda uma
corrente complexa e rica, mas não a ProPõe.
sociológica, no último século, pretende ver na sociedade um anárogo
O organismo é também uma máquina no sentido em que
do organismo animal, procurando minuciosamente a equivalência
esse termo significa totalidade organizada,mas de um tipo diferente
entre vida biológica e vida social.
do das máquinas artificiais; a alternativa ao reducionismo não está
Ora, o organizacionismo não se dedica a descobrir analogias num princípio vital, mas numa realidade otganizacional viva. Vê-se
fenomênicas, mas a enconffar os princípios comuns organizacionais,
aqui a que ponto estamos totalmente defasados em relação às alter-
os princípios de evolução desses princípios, os caracteres
de sua nativas tradicionais : mâqtúnal orgaqismo, vitalismo/reducionismo.
diversificação. Apartir disso, e somente apartfudisso, as analogias
Ora, se decidimos complementar a noção de organizaçáo e a
fenomênicas podem eventualmente ter algum sentido.
de organismo, se a primeira não é estritamente redutora, analitica,
Mas embora opostos, o organizacionismo e o organicismo
têm mecanicista, se a segundanáo é apenas totalidade portadora de um
alguma base comum. Anova consciência cibernética não
tem mais mistério vital indizível, então podemos nos aproximar um pouco
repugnância pela analogia, e não é porque o organicismo
se baseia mais do problema do ser vivo. Porque é exatamente com a vida que
na analogia que isso deva nos causaÍ repulsa. Mas porque
apoiava_se a noção de organização toma uma espessura orgânica, um mistério
numa analogia rasa e trivial, porque não havia fundamento
teórico romântico. E lá que surgem traços fundamentais inexistentes nas
em suas analogias é que o organicismo deve ser criticado.
máquinas artificiais: uma relação nova em relação à entropia, isto é,
como diz Judith schlanger em seu trabalho admirável sobre uma atitude , aindaque temporária, a criar da neguentropia, a partir
o organicismo: 'oAs equivalências minuciosas entre a
vida biológica da própria entropia; uma lógica muito mais complexa e sem dúvida
e a vida social, tais como as desenham Schâffie, Lilienfeld,
Wor_ diferente da de qualquer máquina artificial. Enfim, relacionado
ms, e até mesmo Spencer, estas aproximações termo a termo
não indissoluvelmente aos dois traços que acabamos de enunciat,há o
são a base da analogia, mas sua espuma,,8. Ora, como
dissemos há fenômeno da aulo-organização.
pouco, essa base é uma concepção ao mesmo tempo
confusa e rica
da totalidade orgânica.
A auto-organização
Acabamos de .,denunciar,, o romantismo dessa concepção.
Convém agora nos corrigir. O organicismo romântico, comoo
da A organização viva, isto é, a auto-organização, está muito
Renascença, como o do pensamento chinês
seedham, lgZ3),sempre além das possibilidades atuais de apreensão da cibemética, da teoria
pensou que o organismo obedece a uma organ izaçáocomplexa
e rica, dos sistemas, da teoria da informação (claro, do estruturalismo...)
que ele não pode ser reduzido a leis lineares, a princípios
simples, a e mesmo do próprio conceito de otganizaçáo,talcomo ele aparece
ideias claras e distintas, a uma visão mecanicista. sua ürhrde
está na no seu ponto máximo, em Piaget, em que ele ignora o pequeno
prefixo recursivo 'oauto", cuja importância tão fenomenal quanto
t J§"lrl*g"rl s metáforas do organismo.paris, Vrin, 1971,p.35. epistemológica vai se revelar, para nós, capital.

28 29
E longe disso que o problema da auto-organização emerge:
2.YonNeumann inscreve o paradoxo na diferença entre a
de um lado, a partir da teoria dos autômatos autorreprodutores
(sely' máquina viva (auto-organizadora) e a máquina artefato (simples-
reproducing automata) e, de outro lado, a partir de uma tentativa
mente organizada). com efeito, a máquina artefato constitui-se
de teoria metaciberné tica (s e lf- org an iz i ng sy s t em s) .
de elementos extremamente confiáveis (um motor de carro, por
No primeiro sentido, é a reflexão genial de von Neumann que
exemplo, constitui-se de peças verificadas e constituídas de matéria a
coloca os princípios fundamentaise. No segundo sentido,
oo .rriro mais durável e resistente possível, em função do trabalho que devem
de três encontros em 1959, 1960,196l (self_organizing systems),
fornecer). Entretanto, a máquina, em seu conjunto, é muito menos
foram audaciosamente tentados mergulhos teóricos, sobretudo por
confiável que cada um de seus elementos tomados isoladamente.
Ahsby, von Foerster, Gottard Gunther e alguns outros.
Com efeito, basta umqralteração num de seus constituintes para
Mas o destino da teoria da auto-organizaçáo foi dupramen- que o conjunto pare, entre em pane, e só possa ser reparado com a
te desafortunado com relação à cibernética. como foi diio, foi
a intervenção externa (o mecânico).
aplicação das máquinas artificiais que fez a gró.i,a da cibernética
Por outro lado, tudo se passqde outro modo com a máquina
e atrofiou seu desenvolvimento teórico. Ora, ainda que se possa
viva (auto-organizada). seus componentes são muito pouco confiá-
conceber, em princípio, a teoria de uma máquina artificial
auto- veis: são moléculas que se degradam, muito rapidamente, e todos
organizada e autorreprodutora, o estado da teoria e da tecnologia
os órgãos são evidentemente constituídos dessas moléculas; no
tornava, então, e continuava a toÍrraÍ inconcebível afualmente,
a mais, observa-se que num organismo as moléculas, como as células,
possibilidade de criar uma tal máquina. Ao contrário disso,
ateoria moffem e se renovam, a tal ponto que um organismo resta idêntico
da auto-organizaçáo fora feita para compreender a vida.
Mas ela a ele mesmo ainda que todos os seus constituintes se renovem. Há
restava muito abstrata,muito formal para tratar os dados processos
e pois, ao contrário da máquina artificial, grande confiabilidade do
fisico-químicos que fazem a originalidade da organiziçáo viva.
conjunto e fraca confi abilidade dos constituintes.
Portanto, a teoria da auto-organizaçáonão podia ainda se
aplicar a Isso não mostra só a diferençadenattreza, de lógica entre os
nada de prático. Também os créditos logo deixaram de alimentar
sistemas auto-organizados e os outÍos, mostra também que há um
o primeiro esforço teórico, e os próprios pesquisadores,
saídos de elo consubstancial entre desorganização e organização complexa, iir
diversas disciplinas, se dispersaram.
que o fenômeno de desorganização (entropia) segue seu percurso no
Além disso, ateoria da auto-organizaçáonecessitava de uma
ser vivo, mais rapidamente ainda do que na máquina artificial; mas,
revolução epistemológica mais profunda ainda que a da cibemética.
de modo inseparável, há o fenômeno de reorganizaçáo (neguentro-
E isso contribuiu para estancá-la nas posições iniciais.
pia). está o elo fundamental entre entropia e neguentropia, que

No entanto, existem posições iniciais, embora não se possa não tem nada de oposição maniqueísta ent.e duas entidades contrárias:
verdadeiramente falar de teoria.
ou seja, o elo entre vida e morte é muito mais estreito, profundo, do
1. Primeiro, Schrôdinger põe em relevo desde 1945 pa_
o que jamais se pôde metafisicamente imaginar. A entropia, num certo
radoxo da organização viva, que não parece obedecer uo
,.g,rrdo sentido, contribui para aorganizaçáo que tende a amrinar e, como o
princípio da termodinâmica.
veremos, a ordem auto-organizada só pode se complexificar apartir
da desordem, ou melhor, j á que estamos numa ordem informacional,
' J-., N"r- ann. Theory of Self-Reproducing Automata, 1966, University
of a partir do
ooruído" (von Foerster).
Illinois Press, Urbana.

30 31
Isso é um fundamento da auto_organização, e o Mas, ao mesmo tempo, que o sistema auto-organizador se
caráúer pa_
radoxal dessa proposição nos mostra que a ordem das destaca do meio ambiente e dele se distingue, por sua autonomia e
coisas vivas
não é simples, nem diz respeito à lógica que aplicamos sua individualidade, ele se liga ainda mais a este pelo aumento da
a todas as
coisas mecânicas, mas posfula uma lógica da complexidade. abertura e da troca que acompaúam todo progresso de complexida-
3. A ideia de auto-organ izaçáo opera uma grande de: ele é auto-eco-organizador.Enquanto o sistema fechado não tem
mutação no
estatuto ontológico do objeto, que vai arém da ontologia qualquer individualidade, nenhuma troca com o exterior, e mantém
cibernética.
a) Primeiro, o objeto é fenomenalmente individual, que relações muito pobres com o meio ambiente, o sistema auto-eco-
o
constitui uma ruptura com os objetos estritamente fisicos organizador tem sua própria individualidade ligada a relações com
encontrados na natureza.A fisica_química estuda,
de um lado, o meio ambiente muito ricas, portanto dependentes. Mais autôno-
as leis gerais que regem esses objetos e, de outro mo, ele está menos isolâdo. Ele necessita de alimentos, de matéria./
lado, suas
unidades elementares, a molécula, o átomo, que são
desde energia, mas também de informação, de ordem (Schrôdinger)' O
então isolados de seus contextos fenomênicos (isto meio ambiente está de repente no interior dele e, como veremos,
é, quehá
dissociação do meio ambiente, julgado sempre negligenk), joga um papel coorg anizador. O sistema auto-eco-organizador não
os
obj etos fenomênicos do universo eskitamente
fi sico-quimico pode, pois, bastar-se a si mesmo, ele só pode ser totalmente lógico
não têm princípio de organização interna. por outro ao abarcar em si o ambiente externo. Ele não pode se concluir, se
lado,
para os objetos auto-organizadores, há adequação fechar, ser autossuficiente.
total entre
a forma fenomênica e o princípio de organização.
Também
neste ponto há dissociação de perspectivas entre A complexidade
o vivo e
o não vivo. De fato, o objeto cibernético, quando se trata
de uma máquina artificial, dispõe de uma individualidade A ideia de complexidade estava muito mais presente no voca-
ligada a seu princípio de organização;mas esse princípio bulário corrente do que no vocabulário científico. Elatrazia sempre
de
organizaçáo é externo, ele se deve ao homem. É aqui uma conotação de conselho ao entendimento, uma observação de
que a
individualidade do sistema vivo se distingue da dos cuidado contra a clarificação, a simplificaçáo, o reducionismo ex-
ort o.
sistemas cibernéticos. cessivo. De fato, a complexidade tiúa também seu terreno eleito,
b) com efeito, ela é dotada de autonomia, autonomia relativa, mas fazer uso mesmo da palavra em si, na filosofia: num certo
claro, precisamos lembrar (não podemos deixar de), sentido, a dialetica,e sobre o plano da lógica, a dialética hegeliana,
mas
autonomia organizacional, organísmica e existencial. era seu domínio, pois essa dialética introduzia a contradição e a
A
atto-organizaçáo é efetivamente uma metaorganização transformação no coração da identidade.
com
relação às ordens de organização preexistentes, comrelação Na ciência, no entanto, a complexidade surgira sem ainda
evidentemente à das máquinas artificiais. Essa relação dizer seu nome, no século XIX, na microfisica e na macroÍisica.
estra-
nha, esta coincidência entre o meta e o auto,merece
reflexão. A microfisica desembocava não apenas numa relação complexa
Aqui, com müto mais profundidade do que fana acibemética, entre o observador e o observado, mas também numa noção mais
somos levados a inocular no objeto alguns dos privilégios
até então do do que complexa, desconcertante, da partícula elementar que se
sujeito, o que nos permite ao mesmo tempo entoever
como a sújetiüdade apresenta ao observador, ora como onda, ora como corpúsculo'
humanapode encontrar suas fonúes, s,as raízes, no Mas a microfisica era considerada caso limite, fronteira." e esque-
mundo dito ,bbjetivo,,.

32
cramos que essa fronteira conceifuar
dizia respeito de fato a todos
os fenômenos materiais, aí compreendidos entre um número muito grande de unidades. De fato, todo sistema
Â, O. ,o.ro i.*rio
corpo e de nosso proprio cérebro. auto-organizador (vivo), mesmo o mais simples, combina um número
AmacroÍisica, po^ uuuJ),"rLiu
depender a observação do locar muito grande de unidades da ordem de bilhões, seja de moléculas numa
do observador e complexificava
relações entre tempo e espaço concebidos as célula, seja de células no organismo (mais de 10 bilhões de células para
até então como essências
transcendentes e independentes. o cérebro humano, mais de 30 bilhões para o organismo).
Mas essas duas complexidades micro Mas a complexidade não compreende apenas quantidades de
e macrofísicas eram
lançadas para a periferia de nosso unidade e interações que desafiam nossas possibilidades de cálculo:
universo, ainda que se tratassem
dos fundamentos de nossa physis ela compreende também incertezas, indeterminações, fenômenos
e dos caracteres intrínsecos
nosso cosmos. Entre as duas, no de aleatórios. A complexidade num certo sentido sempre tem relação
campo físico, biológico, t r.ilrro,
a ciência reútzia a complexidade com o acaso.
fenomênica à ord-em ,rÀri".
unidades elementares. Essa simplificação, . Assim, a complexidade coincide com uma parte de incerteza,
reiteremos, tinha aI_
mentado o impulso da ciência ocidental seja proveniente dos limites de nqçso entendimento, seja inscrita
do XVII ao final do século
XIX' A estatística, no século XIX e início nos fenômenos. Mas a complexidade não se reduz à incerteza, é
do XX, permitiu tratar
interação, da interferênciar 0. da
Tenta-se refi nar, trabalhar covariância
a incerteza no seio de sistemas ricamente organizados. Ela diz
e multivariância, mas sempre num respeito a sistemas semialeatórios cuja ordem é inseparável dos
grau insuf,ciente, e sempre
mesma ótica redutora que ignora na acasos que os concernem. A complexidade está, pois, ligada a certa
a realidade do sisiema ud**o
no qual se inserem os elementos mistura de ordem e de desordem, mistura íntima, ao contrário da
a considerar.
É comWiener,Ashby, os f,rndadores ordem/desordem estatística, onde a ordem (pobre e estática) reina
da cibemétic4 que a comple_
xidade entra verdadeiramente em no nível das grandes populações e a desordem (pobre, porque pum
cena na ciência. E com von
que, pelaprimeira vez'o caráúerfundamentar
Neumann indeterminação) reina no nível das unidades elementares'
do conceiúo de complexidade
Quando a cibernética reconheceu a complexidade, foi
aparete em sua relação com os fenômenos para
de auto_organização.
o que é a complexidade? A primeira vista, contorná-la, pô-la entre parêntese, mas sem negâ-la: é o princípio
. é um fenômeno
quantitativo, a extrema quantidade da caixa preta (black-box); considera-se as entradas no sistema
de interações e de interferências
(inputs)e as saídas (outputs),o que permite estudar os resultados do
funcionamento de um sistema, a alimentação de que ele necessita,

ü"?
jH:i:Hn?#"j::.1:,Hft;;,.ft H:"á3í::'permanentesnumsistema,
de relacionar inputs e outputs, sem entrar enffetanto no mistério
bém, paradoxarr.ni" JÀao;i;gê,,*;;;ffii*tTr:XHff ::.,ffi J:lil
da caixa-preta.
ol q,".o, pretensiosos
frXT,i:TJ::'.:'ú ::T:,'o::^'*."i''".""i"'iin'ã':;' estudos Ora, o problema teórico da complexidade é o da possibilidade
Á.,r,u.oni..;:.;;*.;ií'"iir,",**,::';';'"il'":llXTiff de entrar nas caixas-pretas. É considerar a complexidade otganiza-
ooJl*fffil cional e a complexidade lógica. Aqui, a dificuldade não está apenas
,.ffi ::;rffi tX1;,"#*-iaro.à"rÀr*ãr.r".*rru"sociatmurtidim"o.ionur
ao.u.oni.J.i"ii;;t:ji,li;tl#r",f 'J::;fl .l,i?i,Lil..#ll;X:,TflTT:: na renovação da concepção do objeto, está na reversão das perspec-
múltiplos aspecros dos fenômeror,
* ,,**eis tivas epistemológicas do sujeito, isto é, do observador científico:
religar sempre' era um método ,,ui."1"irãffi.rà.i relações. Religt*,
.i.o,ãol.iuãii"àr,.o...,,o. do que as teoãas era próprio da ciência, até o momento, eliminar a imprecisão, a
blindadas, encouraçadas eoi.r.-árãli"ã.i.grlir""i*. metodorogicamente apks
a hrdo enfrentar. salvo evidenrer.ni" u .oÃ.püil" arnbiguidade, a conffadição. ora, é preciso aceitar certaimprecisão e
do real.
uma imprecisão certa, não apenas nos fenômenos, mas também nos

34
35
conceitos, e um dos grandes progressos da matemática de hoje é a individualidade,iqtezas de relações com o ambiente, atitudes para
consideração dosfuzzi sets, os conjuntos imprecisos (cf. Abraham a aprendizagem, inventividade, criatividade etc.) Mas, no final,
A. Moles, As ciências do impreciso, Le Seuil, 1990). chegaremos a considerar, com o cérebro humano, os fenômenos
Uma das conquistas preliminares no estudo do cérebro hu- verdadeiramente espantosos da mais alta complexidade, e a colocar
mano é a compreensão de que uma de suas superioridades sobre uma noção nova e capital para considerar o problema humano: a
o computador é a de podeÍ trabalhar com o insuficiente e o vago; hipercomplexidade.
é preciso, a partir de então, aceitar certa ambiguidade e uma am-
biguidade precisa (na relação sujeito/objeto, ordem/desordem, Osujeitoeoobjeto
auto-hetero- organização). E preciso reconhecer fenômenos, como
liberdade ou criatividade, inexplicáveis fora do quadro complexo Assim, u t oliu da auto-organ izaçáoe a da complexidade,
que é o único a permitir sua presença. tocamos os
"o-
substratos comuns à biologia, à antropologia, fora de
Von Neumann mostrou a porta lógica da complexidade. Va- qualquer biologismo e de qualqug antropologismo. Eles nos per-
mos tentar abri-la, mas não possuímos as chaves do reino, e neste mitem ao mesmo tempo situar os diferentes níveis de complexidade
sentido nossa viagem vai ficar inconclusa. Vamos entrever essa em que se colocam os seres vivos, compreendendo-se aí o nível de
lôgica, a partir de alguns de seus caracteres exteriores, mas não mais alta complexidade e às vezes de hipercomplexidade próprio
chegaremos à elaboração de uma nova lógica, sem saber se está ao fenôrneno antropológico.
provisoriamente ou para sempre fora de nosso alcance. Mas o que Tâl teoria permite revelar a relação entre universo fisico e uni-
estamos persuadidos é que, se nosso aparelho lógico-matemático verso biológico, e assegura a comunicação enfe todas as partes do que
atlualo'cola" com certos aspectos da realidade fenomênica, ele não nós nomeamos o real. As noções de fisica e de biologia não devem ser
cola com os aspectos verdadeiramente complexos. Isso significa reificadas. As fronteiras do mapa não existem no tetitóno,mas sobre
que ele próprio deve se desenvolver e se ultrapassar no sentido da o território, com os arames farpados e os aduaneiros. Se o conceito
complexidade. Foi aqui, a despeito de seu senso profundo da lógica de fisica se amplia, se complexifica, então tudo é fisica. Eu digo que
da organização biológica, que Piaget se deteve à beira do Rubi- então a biologia, a sociologia, a anfiopologia são ramos particulares da
cão, e limitou-se a buscar acomodar a organização viva (reduzida fisica; do mesmo modo, se o conceito de biologia se amplia, se com-
essencialmente à regulação) à formalizaçáo lógico-mateméttica jér plexifica, então tudo o que é sociológico e anffopológico é biológico.
constituída. Nossa única ambição será a de atravessar o Rubicão e A fisica e também a biologia paÍam de ser redutoras, simplificadoras
de aventurar-nos nas terras novas da complexidade. e tomam-se fundamentais. Isso é quase incompreensível quando se
Vamos tentar ir,não do simples ao complexo, mas da comple- estano paradigmadisciplinar em que fisica, biologia, anfopologia são
xidade para cadavezmais complexidade. Nós repetimos, o simples coisas distintas separadas, não comunicanks.
não passa de um momento, um aspecto entre várias complexidades Trata-se de fato de uma abertura teórica, de uma teoria aberta
(microÍisica, macrofisica, biológica, psíquica, social). Tentaremos que vamos tentar elaborar. Desde já o leitor pode ver que ela permite
considerar as linhas, as tendências da complexiflcação crescente, a emergência, em seu próprio campo, do que até então tinha sido
o que nos permitirá, muito grosseiramente, determinar modelos de deixado fora da ciência: o mundo e o sujeito.
baixa complexidade, média complexida de, altacomplexidade, isso A noção de sistema aberto se abre, com efeito, não apenas
em função dos desenvolvimentos da auto-organizaçáo (autonomia, sobre a fisica, pela mediação da termodinâmica, mas, mais ampla

36 37
profundamente, sobre aphysis, isto é, sobre anaturezaordenada/
e
rável: o mundo só pode aparecer como tal, isto é, como horizonte
desordenada damateia, sobre um devir fisico ambíguo que tende
de um ecossistema de ecossistema, horizonte da physis, para um
ao mesmo tempo à desordem (entropia) e à organização (consti-
sujeito pensante, último desenvolvimento da complexidade auto-
tuição de sistemas cadavez mais complexos). Ao mesmo tempo,
organizadora. Mas tal sujeito só pode aparecer ao final de um pro-
a noção de sistema aberto faz apelo à noção de meio ambientá,
e cesso fisico no qual se desenvolveu, através de mil etapas, sempre
aí surge não só aphysis como fundamento materiar,mas o mundo
condicionado por um ecossistema, tornando-se cadavez mais rico
como horizonte de realidade mais vasta, abrindo-se para além, ao
e vasto o fenômeno da auto-organizaçáo. O sujeito e o objeto apa-
inflnito (porque todo ecossistema pode tornar-se sistema aberto num
recem assim como as duas emergências últimas inseparáveis da
outro ecossisterna mais vasto etc.); assim, a noção de ecossistema,
relação sistema auto-o{ganizador/ecossistema.
de ampliação em ampliação, estende-se para todos os azimutes,
Aqui, pode-se ver que sistemismo e cibemética são como o
todos os horizontes.
primeiro estágio de um foguete que permite o desencadear de um
O sujeito emerge ao mesmo tempo que o mundo. Ele emerge
segundo estágio, a teoria da auto-organizaçáo,aqural a seu turno põe
desde o ponto deparndasistêmico e cibemético, lá onde certo número
em combustão um terceiro estágio, epistemológico, o das relações
de traços próprios aos sujeitos humanos (finalidade, programa,
comu- entre o sujeito e o objeto.
nicação etc.) são incluídos no objeto máquina. Ele emerge, sobretudo,
A partir daí chegamos sem dúvida ao ponto crucial da fisica
a partir da auto -organizaçáo, onde autonomi4 individualidade,
comple- e da metafisica do Ocidente, que, desde o século XVII, ao mesmo
xidade, incerteza,ambiguidade tomam-se caracteres próprios ao objeto.
tempo funda a ambos e os opõe irredutivelmente.
Onde, sobretudo, o termo 'oauto" traz em si araizda subjetividade.
De fato, a ciência ocidental fundamentou-se na eliminação
Desde efltáo, pode-se conceber, sem que haja um fosso
positivista do sujeito a partir da ideia de que os objetos, existindo
epistêmico intransponível, que a autorreferência desemboque na
independentemente do sujeito, podiam ser observados e explicados
consciência de si, que a reflexividade desemboque na reflexãã, em
enquanto tais. A ideia de um universo de fatos objetivos, purgados
resumo, que apareçam 'osistemas,, dotados de uma capacidade tão
de qualquer julgamento de valor, de toda deformação subjetiva,
alta de auto-organização que produzam uma misteriosa qualidade
graças ao método experimental e aos procedimentos de verificação,
chamada consciência de si (consciousness or self-awarenessr).
permitiu o desenvolvimento prodigioso da ciênciamoderna. De fato,
Mas o sujeito emerge também em seus caracteres existenciais
como define muito bemJacques Monod, trata-se aí de umpostulado,
que, desde Kierkegaard, foram postos em relevo. Ele ftazem
si sua isto é, de um desafio sobre a nattxeza do real e do conhecimento.
irredutível individualidade, sua suficiência (enquanto ser recursivo
Nesse quadro, o sujeito é ou o "ruído", isto é, aperturbação, a
que sempre se fecha sobre si mesmo) e sua insuficiência (enquanto
deformação, o elro que se deve eliminar a fim de atingir o conheci-
ser ooaberto" irresolúvel em si rnsgÍno). Ele traz em si a brecha, a
mento objetivo, ou o espelho, simples reflexo do universo objetivo.
rachadura, o desgaste, a morte, o além.
O sujeito é dispensado, como perturbação ou ruído, pre-
Assim, nosso ponto de vista supõe o mundo e recoúece o
cisamente porque ele é indescritível segundo os critérios do
sujeito. Melhor, ele coloca a ambos de maneira recíproca e insepa-
objetivismo: "Não hânada nas teorias presentes do pensamento
que nos permita distinguir logicamente entre um objeto como
G' Gunthericyuey;ticar and transjunctionnal operations,,,
in yoúiz, Ja-
'1 Qnplo^€v uma pedra e um sujeito como unidade de consciência, o qual nos
cobi, Goldstein ed., Self organizing Systems, Spartan Books, W*t irgt"", iô;õ,
;.1ã; surge apenas como um pseudo-objeto se o alojamos no corpo de

38
39
um animal ou humano e o chamamos de Ego,,r2. O sujeito torna_ Ora,estestermosdisjuntivos/repulsivos,anulando-semutu-
se um espectro do universo objetivo: isto é, ..o misterioso X que
amente, são ao mesmo tempo inseparáveis' A parte da realidade
desafia a descrição em termos de predicados aplicáveis a qualquer
escondida pelo objeto reenvia ao sujeito, aparle de realidade
es-
objeto contido no universo,,l3. condida pelo sujeito reenvia ao objeto. Ainda mais: só existe objeto
Mas expulso da ciência, o sujeito assume sua revanche na há
em relação a um sujeito (que observa, isola, define, pensa) e só
moral, na metafísica, na ideologia. Ideologicamente, ele é o suporte sujeito em relação a um meio ambiente objetivo (que lhe permite
do humanismo, religião do homem considerado como o sujeito reconhecer-se, definir-se, pensar-se etc., mas também existir)'
reinante ou devendo reinar sobre um mundo de objetos (a possuir, O objeto e o sujeito, entregues cada um a si próprios' são
manipular, transformar). Moralmente, é a sede indispensável de conceitos insuficientesrA ideia de universo puramente objetivo
toda ética. Metafisicamente, é a realidade última ou primeira que está privada não apenas de sujeito, mas de entorno, de além;
ela é
dispensa o objeto como um pálido espectro ou, no máximo, um de uma extremapobreza,fechada sobre si mesma, não repousando
lamentável espelho das estruturas de nosso entendimento. por
sobre nada mais do que o postulado de objetividade, cercado
De todos esses lados, gloriosa ou vergonhosamente, implícita um vazio insondável tendo em seu centro, lá onde há o pensamento
ou abertamente, o sujeito foi transcendentalizado.Excluído do mun- deste universo, um outro vazio insondável. o conceito de sujeito,
do objetivo, "a subjetividade ou consciência (foi identificada) com quer vegetando ao nível empírico, quer hipertrofiado ao nível
o conceito de um transcendental que chega do Além" (Gunther). úanscendental, está por sua vez desprovido de entorno e, anulando
Rei do universo, hóspede do universo, o sujeito se desdobra, pois, o mundo, enceffa-se em seu solipsismo'
no reino não ocupado pela ciência.paraaeliminação positivista Assim,suÍgeograndeparadoxo:zujeitoeobjetosãoindisso-
do
sujeito, responde, no outro polo, a eliminação metafisica do objeto: ciáveis, mas nosso modo de pensar exclui um ou outro, deixando-
o mundo objetivo se dissolve no sujeito que o pensa. Descartes é
o nos apenas liwes para escolher, conforme os momentos do dia'
primeiro a ter feito surgir em toda sua radicalidade essa dualidade entre à sujeito metafisico e o objeto positivista. E quando
o sábio
que iria marcaÍ o ocidente moderno, colocando alternativamente
expulsa de seu espírito as preocupações de sua carreira, as invejas
o universo objetivo da res extensa, aberto à ciência, e o cogito e as rivalidades profissionais, sua mulher e sua amante, para se
subjetivo irresistível, primeiro princípio irredutível de realidade. inclinar sobre suas cobaias, o sujeito se anula de repente, por um
Depois disso, efetivamente, a dualidade do objeto e do sujeito fenômeno inaudito que, num relato de ficção científica, coffespon-
se coloca em termos de disjunção, de repulsão, de anulação recí-
deria à passagem de um universo a outro por um hiperespaço'
Ele
proca. O encontro entre sujeito e objeto anula sempre um dos dois
se torna'6ruído", sendo ao mesmo tempo a sede do conhecimento
termos: ou bem o sujeito torna-se,,ruído,, (perfurbação), ausência objetivo, já que o próprio sábio é ele mesmo o observador"' Esse
de sentido, ou bem é o objeto, poderíamos dizer o mundo, que
se observador, esse sábio que precisamente trabalha sobre o objeto'
toma "ruído": que importa o mundo ,,objetivo,, para quem entende o desapareceu. o grande mistério, ou seja, que a objetividade
cien-
imperativo categórico da lei moral (Kant), paÍa quem vive o tremor tífica deve necessariamente surgir na mente de um ser humano'
é
existencial da angústia e da busca (Kierkegaard). completamente evitado, afastado ou estupidamente reduzido ao

tema da consciência reflexo.


Esse tema do reflexo é, entretanto, muito mais rico do
t2
G. Gunther, op. cit., p.383 que
t3
lbid., p.351. para
parece, desde que se paÍe de fazer dele uma solução de avestruz

40 4t
. i.-

Y*u contradição gritante. Ele levanta o paradoxo do duplo espe_


lho' Nosso caminho foi aberto de um lado pela microfísica, onde
De fato, o conceito positivista de objeto lado
faz daconsciência ao sujeito e objeto têm relação, mas são incongruentes' de outro
,,esmo tempo uma realidade (espelho) e uma da
ausência de realidade pela cibemética e o conceito de auto-orgarrizaçáo. Já declinamos
(reflexo)' E pode-se efetivamente adiantar que tem
a consciência, de alternativa determinismo/acaso, pois o sistema auto-organizador
u,.=ra maneira incerta sem dúvida,
reflete o mundo: mas se o sujeito necessidade de indeterminação e <le acaso para sua autodetermina-
reflete o mundo, isso pode também significar que e a anulação do sujeito
o mundo reflete o
suj eito. Por que .onosso Ego sentindo,-pa..".,r"rurdo ção. Do mesmo modo evitamos a disjunção
e pensando não e do objeto, já que partimos do conceito de sistema
aberto' que até
é reencontrado em nenhum lugar
de nossa visão do (worrd em seu catâtet mais elementar implica a presença consubstancial
picture)", perguntava Schr<idinger? E ele respondia mundo,Çu.qu"
qrre é do meio ambiente, isto é, na iqterdependência sistema/ecossistema'
ele próprio é esta visão do de comple-
-rrdor
ele é idêntico ao todo e deste Se parto do sistema auto-eco-organízador e subo'
não pode ser contido como uma parte deste pensante
lodo pode todo,,ra. Assim, xidade em complexidade, chego flnalrnente a um sujeito
taÍrto ser o objeto o esperho para o sujeito como o sujeito sujeito-
que não é mais do que eu mesmo tentaqdo pensar a relação
pa,.a o objeto. E schr<idinger mostra
a dupla face da consciência do
sujeito: "De um lado, é o palco e o único palco újeto. E, inversamente, se parto des3e sujeito da reflexão para
onde o conjunto do encontrar seu fundamento ou ao menos sua origem, encontro
minha
processo mundial acontece; de outro,
sociedade, a história desta sociedadLe na evolução da
é um acessório insignificante humanidade,
que pode estar ausente sem afetar em nada o
cory.unto,,l{ o homem auto-eco-or ganizador.
Enfim, é interessante observar que a disjunção que está no interior
sujeito/objeto, Assinr, o mundo esta no interior de nossa mente,
ao do sujeito um.,ruído,,, um..erro,,, operava ao
-fazer -Lr_o tempo do mundo. sujeito e objeto nesse processo são constitutivos um do outro.
a di sjunção entre o determinismo, Não podemos
próprio ao mundo dos objetos, e Mas isso não resulta numa üa unifrcadora e harmoniosa.
a indeterminação em que como na microfi -
se tornava o próprio sujeito. escapm de um princípio de incerteza generalizada Assim
Conforme se valorize o objeto, valoriza_sá neste perturba suapercepção' do mesmo
impulso o sica o observadorperturba o objeto, qtre
determinismo. Mas se o sujeito évaronzado,
então a indeterminação modoasnoçõesdeobjetoedesujeitosãoprofundamenteperturbadas
torrra-se riqueza, fervilhar de possibilidades, Ha' como veremos'
liberdade! E assim uma pela ouüa; cada uma abre uma trrecha na outra'
torna' forma o paradigma-chave do ocidente: e o meio
o objeto é o coúecível, umaincertezafimdamental, ontológicanarelação entre o zujeito
o {eterminável, o isolável, porconsequência, (falsa)
ambiente, que só pode ser cortadapela decisão ontológica
e, o manipulável. Ele absoluta
detérn a verdade objetiva e, neste nova concepção emerge
el" e tudo para aciência, sobre a realidade do objeto ou a do srrjeito. IJma
mas manipulável pela técnica, ele "aro,
da relação complexa do sujeito s flo objeto, e do caráúer
não é nada. o sujeito é o des- insúciente e
contrecido, desconhecido porque indeterminado, poique O sujeito deve permanecer aberto'
espelho, incompleto de uma e de outanoç5,6r-
porçf,e estranho, porque totalidade. Assim, nele próprio; o objeto deve
na ciência do ocàente, desprovido de umprincípio de decidíbilidade
o suj eito é o tudo-nada;nadaexiste
pelmanecer abefto, de um lado sobre o sujeito, de outo lado
sem ele, mas tudo o exclui; ele sobre seu
é corno o sustentáculo de toda
meio ambiente, que, por sua vez, se abre necessariamente
verdade, mas ao mesmo tempo ele e continua a
não tr:assa de .,ruído,, e erro frente
ao objeto. nosso entendimento'
abú-se para além dos limites de
Estarestriçãodeconceitos,estaflssuraontológica'estare-
er,Mind and Matter cambidse, universiry press, gressão da objetividade, do deterrninismo, parecem trazer'
como
HEm 1959, p. 52.
aincerteza"'
primeiros frutos, a regressão gerail do conhecimento'

42 43
Mas essa restrição necessária é um estímulo
ao conhecimento. É, antes de mais nada, o ponto de vista que nos situa ecos-
o erro ontológico foi o de terfechado,isto é, petrificado os conceitos sistemicamente ao tomar consciência das determinações/condicio-
de base da ciência (e da filosofia).
E preciso, ao contrário, abrir a namentos do meio ambiente. É preciso considerar:
possibilidade de um coúecimento
aà mesmo tempo mais rico e a) o ponto de vista que, nos situando no ecossistema natural, nos
menos certo. pode_se extrapolar, para
o conjunto dà ciência, e de incita a examinar os caracteres biológicos do conhecimento:
modo mais amplo para o problema do
conhecimento, o que Niels essa biologia do conhecimento diz respeito evidentemente
Bohr disse após a introdução do quantum
na microÍisica: .,Num às formas cerebrais a priori constitutivas do conhecimento
primeiro momento, esta sifuação pàdiu
p*"rer muito lamentável; humano, e também seus modos de aprendizagem através do
mas, em geral, ao longo da história
da ciência, quando novas des- diálogo com o mgio ambiente;
cobertas revelaram os limites das
ideias de que jamais se contestara b) o ponto de vista que nos situa em nosso ecossistemasocialhic
o valor universal, fomos recompensados:
nossa visão se ampliou e et nunc, o qual produz as determinações/condicionamentos
nos tornamos capazes de unirentre
si fenômenos que antes podiam ideológicos de nosso conhecimento'
parecer contraditórios,,
§iels Bohr) 16.

Assim, a consideração do ecossistema social permite que


Coerência e abertura epistemológica
nos distanciemos de nós mesmos, nos olhemos do exterioq nos
objetivemos, isto é, que ao mesmo tempo reconheçamos nossa
o esforço teórico do qual indicamos o movimento,
ao desem_ subjetividade.
bocar naturalmente na relação sujeito_objeto,
desemboca ao mesmo Mas esse esforço, necessário, é insuficiente' Há, entre o
tempo na relação entre o pesquisador
(aqui eu mesmo) e o objeto sistema cerebral humano e seu meio ambiente, uma incertezafiin-
de seu conhecimento: ao trazer
consubstancialmente um p.irr""ípio damental que não pode ser preenchida: a biologia do conhecimento
de incerteza e de autorreferência,
ele trazem si um princípio auto_
nos mostra, de fato, que não há nenhum dispositivo, no cérebro
crítico e autorreflexivo; através desses
dois traços, elejá traz em si humano, que permita distinguir apercepção da alucinação, o real do
mesmo sua própria potencialidade
epistemológica. imaginário; há igualmente incertezasobre o caráter do coúecimen-
A epistemologia tem necessidade de encontrar
vista que possa considerarnossaprópria
um ponto de to do mundo exterior, dado que esta se inscreve nos "padrões" de
consciência como àu;"to a. organizaçáoem que os mais fundamentais são os inatos. Do lado da
conhecimento, isto é, um metaponto
de vista, como no caso em que sociologia do conhecimento, chegamos igualmente a uma incerteza
uma metalinguagem se constifui para
objeto. Ao mesmo tempo_, esse metaponto
considerar a linguag"m f"itu irredutível: a sociologia do conhecimento nos permitirá relativizat
de vista deve fermitir a nossos conceitos, nos situar no jogo das forças sociais, mas ela não
autoconsideração criticado coúecimento,
enriquecendo uo rrr"r*o nos dirá nada de certo sobre a validade intrínseca de nossa teoria.
tempo a reflexividade do sujeito
conhecedor. Precisamos, pois, de um outro metassistema, de caráter
Aqui podemos esboçar o ponto de vista
permite controlar, isto é, criticar,
epistemológico que lógico, que examine a teoria do ponto de vista de sua consistência
ultrapassar e refletir nossa teoria. interna. Aqui, entramos no campo clássico da epistemologia, mas
esbarramos no problema da indecidibilidade gôdeliana. O teorema
t6
N. Bohr, Luz e vida,Congresso Internacional de Gôdel, aparentemente limitado à lógica matemática,vale afor-
de Terapia pel aluz,1932.
tiori para qtalquer sistema teórico: ele demonstra que, num sistema

44
45
formalizado, existe ao menos umaproposição
que é indecidida: essa rompe no sistema o que determinava ao mesmo tempo suacodfotrcia
indecidib,idade abre uma brecha no sistema,
que então torna-se e seu fechamento. Uma teoria se substitui à antiga teoria e. e{en\al-
incerto. É fab,a proposição indecidíver pode
ser demonstrada num mente, integra a antiga teoria, provincial izando-ae relativilano\-a.
outro sistema, até mesmo num metassist giste\'ma
ema' mas este comportará Ora, esta visão da evolução como superação de urn
também sua brecha lógica.
e constituição de um metassistema, por sua vez elepróptio \.-
Hâ aí como que uma barreira intransponív
el para a finaliza_ rável, vale não apenas para as ideias científlcas, mas para oss\te-
ção do conhecimento. Mas pode-se ver aí também
uma incitação mas auto-ec o-organizadores vivos. E encontramos, mais úí14^\ez,
à superação do conhecimento, à constituição
de um _"ru..i*u, uma coincidência necessári aparanossa ligação epistemo-tdit\ O
movimento que, de metassistema em metassistema,
tu, urunçu, o teoria da auto-organizagão naturalmente traz emsi o prinÚiplo, e a
conhecimento, mas ao mesmo tempo sempre
gera uma nova igno_ possibilidade de uma epistemologia que, longe de fechá-la "q tip-
rância e um novo desconhecido. átP'\tos
sisticamente em si mesma, confi.rma e aprofunda seus dois
Aqui podemos ver de que modo essa incertezaestá rela\ões
ligada fundamentais: a úertura e a reflexivldade (auto) e suas duas
à teoria do sistema aberto. De fato,
o metassistema de um sistema fundamentais: ecossistêmicas e metassistêmicas.
aberto só pode ser ere próprio aberto, e por p^o-
sua vez necessita de um Assim, longe de tentar uma unific açáo rigidll O.-
metassistema' Há, pois, correspondência
entre a perspectiv a aberta mos garantir uma conexão flexível, mas indispensávdt'-''\tre
na base da teoria do sistema aberto e a
brecha innnita uU"iu ,ro abertura sistêmica e brecha gôdeliana, incerteza rmP"'\u .
cume de todo sistema cognitivo pelo teorema
de Gôdel. indecidibilidade teórica, abertura Íisica/termodinâmica e
abt\ru
Tudo isso nos incita a uma epistemolog
ia aberta.A epis_ epistêmica/teórica.
temologia, é preciso sublinhar, nestes tempos a n\ssa
de epistemologia Finalmente, podemos dar um sentido epistêmico
policialesca, não é um ponto estratégico Q\. o
a ocupar para controrar concepção aberta da relação sujeito-objeto. Esta nos indiÚa
soberanamente qualquer conhecimento,
rejeita. qualquer t"oria objeto deve ser concebido em seu ecossistema e mais umplu[\nt"
adversa, e dar asi o monopólio da verificação,
portanto da verdade. num mundo aberto (que o conhecimento não pode preaoc§r) e
A epistemologia não é pontifical nemjudicitária;
ela é o trgu, uoã.*
e oq;"to
num metassistema, uma teoria a elaborar em que sujeito
mo tempo da incerteza e da dialógica.
De fato, todas uJir.".t"ru. poderiam integrar-se um ao outro.
que consideramos relevantes devem
ser confrontuau.,
às outras, enkedialogar sem que, no
.ooigir ríu, O sujeito isolado fecha-se nas insuperáveis dificul/ades do
entanto, se imagine possível solipsismo. A noção de sujeito só toma sentido rr, .roátttt§rru
tapar com esparadrapo ideológico a última
brecha. (natural, social, familiar etc.) e deve ser integrada numr/efa\r1r-
Aqui, a expressão citada mais acima de Mets
Bohr, segrmdo a tema. Cada uma das duas noções, portanto, objeto . rr;elr\, na
qual uma limitação ao coúecimento
se tuansforma rr_u u,,,]-fi-a,o medida em que se apresentam como absolutas, deixam 'ff t rnu
do coúecimento, gaúa todo o seu sentido
epistemológi"o àOri.o. fenda enorme, ridícula, insuperável. Mas se elas reclnhe§em
Todo progresso importante no conhecimento, " a o^\rttr,
como indicou essa fenda, então essa fenda torna-se abertura, de uma par4
Kuhn, opera-se necessariamente pela quebra
e rupfura dos sistemas abertura para o mundo, abertura para uma eventual suplÍaçq§ da
fechados, que não trazemem si mesmàr
r_u atifude A" .rp.ruçãã. altemativa, para um eventual progresso do conhecimentd'^,^.
Acontece, pois, desde que uma teoria
se mostra incapaza.lrt.g.* Recapitulemos: a concepção complexa que tentarno â."-l,l-\orar
observações cada vez mai.s centrais,
uma verdadeir, ,"rorrçao,!tl" pede e dá os meios da autocrítica. Ela pede num desenvdlvlqento

46
47
as
natural o segundo olhar epistemológico; elatraz verdades que são arelação em detrimento da substância, mas que tambémprioriza
do
biodegrad.áveis, isto é, mortais, isto é, ao mesmo tempo vivas. as interferências, como fenômenos constitutivos
"mergêo.ius,existe uma única rede formal de relações' hâ realida-
objetã. Não
são
Scienza nuoya d"r, qu"não são essências, que não são uma única substância'
.o-pó.ito*, produzidos pelos jogos sistêmicos, mas' entretanto'
Assim, acabamos de esboçar, atravessando ciberné- dotados de uma certa autonomia'
tica, sistemismo, teoria da informação, o discurso que nos Enfim, sobretudo o que tentamos e acreditamos encontrar
propomos desenvolver. Estas preliminares esquematizam, foi este lugar de cruzamento para as pesquisas fundamentais'
de modo não inteiramente cronológico, é verdade, mas de ao mesmo
um conjunto teórico/mçtodológico/epistemológico
modo bastante lógico, meu próprio itinerário. Ele me fez tempo coerente e abertó. Nós o consideramos muito mais coe-
entrar na biologia, paÍa melhor sair dela, entrar na teoria sobre um
rente do que todas as outras teorias que se estendem
suas
dos sistemas, na cibernética, tambémpara melhor sair delas, campo tão vasto que se limitam agepetir incansavelmente
interrogar as ciências avançadas que recolocam em questão generalidades. Nós o consideramol mais vasto e
mais aberto do
o velho paradigma de disjunção/redução/simplificação. Isso Nós o consideramos mais
[ue todas as outras teorias coerentes'
nos serviu para limpar o terreno e reconsiderar teorias ricas de abertas (que
lrógico e mais vasto do que todas as outras teorias
Vamos
tesouros ignorados, mas cuja face iluminada reflete a platitude mãrgulham no ecletismo, na falta de coluna vertebral)'
teórico'
tecnocrática (cibernética, teoria dos sistemas). Ao mesmo tem- tentar aqui um discurso multidimensional não totalitário'
po, pode-se ver que o discurso que empreendo já está esboçado autossuficiente'
mas nãodoutrinário (a doutrina é a teoria fechada'
não
por todo lado, que a maioria desses esboços são antigos, alguns portanto insuficiente), aberto para a incerteza e a superação;
com mais de cinco anos (microfísica). Outros já com mais de fechada
ideal/idealista, sabendo que a coisa jamais será totalmente
vinte anos. Não pretendo levar o discurso a sua conclusão (ainda no conceito, o mundo jamais aprisionado no discurso'
mais que mostrei que ele só pode ser inconcluso). procedendo que emprestamos
Essa é a ideia da sc ienza nuova. Esse termo,
vico, num contexto e num texto diferentes, quer indicar
por quebra, integração e reflexão, tentei dar-lhes uma forma. que
de
Tentei situar-me num lugar em movimento (não o lugar-trono transformação'
nosso esforço se situa numa modificação, numa
onde sempre pretendem sentar-se os doutrinadores arrogantes), que' como tinha
num enriquecimento do conceito atual de ciência
o'nem
num pensamento complexo que conecta a teoria à metodologia, dito Bronovski, não é absoluto nem eterno"' Trata-se de uma
à epistemologia e até mesmo à ontologia. por ciência'
transformação multidimensional do que nós entendemos
De fato, como já se vê, a teoria não se quebra na passagem seus imperativos
com respeito ao que parecia constituir alguns de
do fisico ao biológico, do biológico ao antropológico, passando ao u.o*.çu, pela inelutúilidade da fragmentação disci-
intangíveis,
mesmo tempo, em cada um desses níveis, por um salto metassistê- plinar e do espedaçamento teórico'
mico, da entropia à neguentropia, daneguentropologia à antropo-
logia (hipercomplexidade). Ela pede uma metodologia ao mesmo Pela unidade da ciência
tempo aberta (que integre as antigas) e específica (a descrição das
unidades complexas). possibilidade e a necessidado
Colocamos ao mesmo tempo a
Ela supõe e explicita uma ontologia, que não apenas prioriza de uma unidade da ciência.

48 *
Tal unidade é, evidentemente, impossível e incompreensível Vê-se a diferença com a tentativa de unidade da ciência lançada
no quadro atual onde miríades de dados se acumulam nos alvéolos pelo positMsmo lógico. Este só pode jogar o papel de uma epistemo-
disciplinares cadavezmais estreitos e fechados. Ela é impossível no logia policialesca proibindo o olhar de se voltar exatamente para onde
quadro onde grandes disciplinas parecem colresponder a essências e se ffata de olhar hoje, para o incerto, o ambíguo, o contraditório.
a matérias heterogêneas: o fisico, o biológico, o antropológico. Mas Como sempre, uma teoria que se quer fundamental escapa
ela é concebível no campo dewaphysis generalizada. ao campo das disciplinas, atravessa-as, como fizetam,mas cadaum
Evidentemente, tal unificação não teria nenhum sentido se com sua própria cegueira e sua própria arrogància. o marxismo, o
fosse unicamente reducionista, reduzindo ao nível mais simples de freudismo, o estruturalismo.
organizaçáo os fenômenos de organização complexa; ela seria insí- Significa dizer qrre a perspectiva aqui é transdisciplinar.
pida se se efetuasse embandeirando-se numa generalidade de toda Transdisciplinar significa hoje indisciplinar. Toda uma enorÍne
ordem, como a palawa sistema. Ela só tem sentido se for capaz de instituição burocratizada - a ciência -, todo um corpo de princípios,
apreender ao mesmo tempo unidade e diversidade, continuidade e resiste ao mínimo questionamento, 6pjeita com violência e despreza
o'não
rupfuras. Ora, parece-nos sim que isso seja possível para uma teoria como científico" tudo o que não corresponde ao modelo.
da auto-eco-organizaçáo, aberta sobre uma teoria geral da physis. Mas há uma incerteza no conceito de ciência, uma brecha,
Física, biologia, antropologia deixam de ser entidades fechadas, mas uma abertura, e qualquerpretensão a definir as fronteiras da ciência
não perdem sua identidade. A unidade da ciência respeita a fisica, de maneira assegurada, qualquer pretensão ao monopólio da ciência
a biologia, a antropologia, mas quebra o fisicismo, o biologismo, é por isso mesmo não científico. Vão me atacar até a morte, eu sei
o antropologismo (fig. 1). (miúa morte e sua morte), pelas inocentes verdades que profiro aqui
mesmo. Mas é preciso que eu thes diga, porque a ciência tornou-se
cega em sua incapacidade de controlar, prever, até mesmo conceber
seu papel social, em sua incapacidade de integrar, articular, refletir
sobre seus próprios conhecimentos. Se, efetivamente, a mente hu-
mana não pode apreender o enorme conjunto do saber disciplinaq
então é preciso mudar um dos dois.

A integração das realidades banidas


pela ciência clássica

A nova unidade da ciência só toma sentido com o retorno


dos banidos dos séculos XVIII e XIX, que reintegram lentamente,
localmente ou em segredo, as ciências. Esse banimento correspondia
talveza uma necessária colocação entre parênteses, que foi de resto
heurística, já que permite o extraordinário desenvolvimento das
ciências; mas talvez tenha sido também um prejuízo muito pesado
que, hoje, asfixia, sufoca a nova e necessária metamorfose.

50 51
Assim, trata-se não apenas de reconhecer sua presença, Ora, o que propõe a scienza nuova é simplesmente isto,
mas de integrar o acaso, tanto em seu caráter de imprevisibilida-
cujas consequências, em cadeia, serão incalculáveis: o objeto não
de quanto em seu caráúer de acontecimentorT; kata-se não só de
deve somente ser adequado à ciência; aciência deve também ser
localizá-lo de modo estatístico, mas de conceber em seu caráúer
adequada ao seu objeto.
radical e polidimensional a informação, conceito não redutível à
matéria e à energia. Trata-se de integrar sempre o meio ambiente,
A superação das alternativas clássicas
inclusive mesmo no conceito de mundo. Trata-se de integrar o ser
auto-ecoorganizado, até mesmo no conceito de sujeito.
No caminho que vimos seguindo, vê-se que as alternativas
Trata-se ao menos de recoúecer o que é sempre silenciado nas
clássicas perdem seu ccráter absoluto, ou melhor, mudam de carâ-
teorias da evolução: a inventividade e a criatividade. A criatividade
ter: ao "ou isto/ou aquilo" substitui-se ao mesmo tempo um "nem/
foi reconhecida por chomss como um fenômeno antropológico nem" e um e/e". Assim acontece, nós o virnos, com a oposição entre
de base. É preciso acrescentar que a criatividade marca todas as
unidade/diversidade, acaso/necessiç1ade, quantidade/qualidade, su-
evoluções biológicas de maneira ainda mais inaudita que a evolução jeito/objeto; assim acontece, deve-se desde agora indicálo, com a
histórica, que está longe de ter redescoberto todas as invenções da
alternativa holismo/reducionismo. De fato, o reducionismo sempre
vida, a começar pela maravilha que constitui a célula.
suscitou por oposição uma corrente "holística" baseada na proemi-
A ciência clássica tinha rejeitado o acidente, o acontecimen-
nência do conceito de globalidade ou de totalidade; mas, sempre, a
to, o acaso, o individual. Qualquer tentativa para reintegrá_los só
totalidade não passou de um saco plástico envolvendo não importa
podia parecer anticientífica no quadro do antigo paradigma. Ela
o quê, não importa como, e envolvendo muito bem: quanto mais a
tinha rejeitado o cosmos e o sujeito. Ela tinha rejeitado o alfa e o
totalidade tornava-se plena, mais ela frcavavazia. Ora, o que que-
ômega, para se manter numa faixa média, mas desde então essa
remos resgatar, mais além do reducionismo e do holismo, é a ideia
faixa média, esse tapete voador, à medida que se avançava no
de unidade complexa, que liga o pensamento analítico-reducionista
macro (astronomia, teoria da relatividade) e no micro (Íisica das
e o pensamento da globalidade, numa dialetizaçáo cujas premissas
partículas), revelava-se ao mesmo tempo miserável e mitificador.
apresentaremos mais à frente. Isso significa que se à redução - a
os problemas essenciais, os grandes problemas do conhecimento,
busca de unidades elementares simples, a decomposição de um
eram sempre reenviados ao céu, tornavam-se espectros errantes da
sistema em seus elementos, a passagem do complexo ao simples
filosofia: Espírito, Liberdade. A ciência, do mesmo jeito, tornava_
- resta um caráter essencial do espírito científlco, ela não é mais a
se cada vez mais exangue, mas seu fracasso enquanto sistema de
única nem, sobretudo, a última palavra.
compreensão era mascarado por seu sucesso, correlativo, enquanto
Assim, a scienza nuovanão destrói as alternativas clássicas,
sistema de manipulação.
não oferece solução monista como se fosse a essência da verdade.
Mas os termos alternativos tornam-se termos antagônicos, contra-
ditórios, e ao mesmo tempo complementares no seio de uma visão
" Nr^ é p...t* ao mesmo tempo romper o quadro objetivo/metafisico em que o
mais ampla, que vai precisar reencontrar e se confrontar com novas
acaso era absurdo, para passar ao nível da relação entre o observador e a
observáção,
o sujeito e o objeto, o sistema e o ecossistema onde encontramos sempre
o u"áro, alternativas.
isto é' uma fenda na determinação e na predição. E. Morin, ..L,acontecimento
esfinge", Communications : I'Evénement. 15, tólZ.

52 53
A virada paradigmática no primeiro instante, tiúam sido fantasias, hipóteses, proliferação
de ideias, invenções, descobertas.
E, aqui, sentimos que nos aproximamos de uma revolução Ota, esse parudigma do Ocidente, afinal um fllho fecundo
considerável (tão considerável que talvez não aconteça) relativa da esquizofrênica dicotomia cartesiana e do puritanismo clerical,
ao grande paradigma da ciência ocidental (e de modo correlato, comanda também o duplo aspecto da práxis ocidental, de um lado
da metafisica, que ora é seu negativo, ora o seu complemento). antropocêntrica, etnocêntrica, egocêntrica quando se trata do sujeito
Repitamos, as falhas, as fissuras se multiplicam nesse paradigma, (porque baseada na autoadoração do sujeito: homem, nação ou etnia,
mas ele sempre se mantém. indivíduo), de outro lado e correlativamente manipuladora, frieza
O que afeta um paradigma, isto é, a pedra angular de todo "objetiva" quando se trgta do objeto. Não deixa de ter relação com
um sistema de pensamento, afeta ao mesmo tempo a ontologia, a a identificação da racionalização com a efrcírcia, daeficácia com os
metodologia, a epistemologia, a lógica,e por consequência apráti- resultados contabilizáveis; ele é inseparável de toda uma tendência
ca, a sociedade, a política. A ontologia do ocidente estava baseada classificacional reiflcadoÍa etc., teqdência corrigida, às vezes com
em entidades fechadas, como substância, identidade, causalidade vigor, às vezes suavemente, por contratendências aparentemente
(linear), sujeito, objeto. Essas entidades não se comunicavam entre "irracionais", o'sentimentais", românticas, poéticas.
elas, as oposições provocavam a repulsão ou a anulação de um Efetivamente, a parte ao mesmo tempo grávida e pesada,
conceito pelo outro (como sujeito/objeto); a..realidade,, podia, pois, etérea e onírica da realidade humana (e talvez da realidade do
ser circunscrita pelas ideias claras e distintas. mundo) foi assumida pelo irracional, parte maldita, patte bendita
Neste sentido, a metodologia científi ca era reducionista e onde a poesia cariavae decantava suas essências, ![ue, filtradas e
quantitativa. Reducionista, jâ qre era preciso chegar às unidades destiladas um dia, poderiam e deveriam chamar-se ciência'
elementares não decomponíveis, as quais só podiam ser circunscritas Entrevê-se, pois, de fato a radicalidade e a amplitude da
clara e distintamente; quantitativista, jáque essas unidades descontí- reforma paradigmáúica. Trata-se, num certo sentido, do que há de
nuas podiam servir de base a todas as computações. A lógica do oci- mais simples, de mais elementar, de mais "infantil"; de mudar as
dente era uma lógica homeostática, destinada a manter o equilíbrio bases de lançamento de um raciocínio, as relações associativas e
do discurso pela expulsão da contradição e do erro; ela confolava ou repulsivas entre alguns conceitos iniciais, mas dos quais depen-
guiava todos os desenvolvimentos do pensamento, mas ela própria se dem toda a estrutura do raciocínio, todos os desenvolvimentos
colocava, com toda evidência, como impossibilitada de desenvolvi- discursivos possíveis. E é, bem entendido, o mais dificil' Porque
mento. A epistemologia, de repente, desempeúava sempre o papel não há nada mais fácil do que explicar uma coisa dificil a partir de
verificador do aduaneiro, ou proibidor do policial. premissas simples admitidas ao mesmo tempo pelo locutor e pelo
A imaginação, a iluminaçáo, a criaçáo, sem as quais o pro_ ouvinte, nada mais simples do que perseguir um raciocínio sutil por
gresso das ciências não teria sido possível, só entravam na ciência vias comportando as mesmas engrenagens e os mesmos sistemas de
secretamente: elas não eram logicamente identificáveis e episte- sinais. Mas nada mais dificil do que modiflcar o conceito angulaq
mologicamente eram sempre condenáveis. Falava-se nas biografias a ideia maciça e elementar que sustém todo o edificio intelectual.
dos grandes sábios e jamais nos manuais e nos tratados, de que, Porque é evidentemente toda a estrutua do sistema de pen-
entretanto, apálida compilação, como as camadas subterrâneas de samento que se encontra abalada, fansformada, é toda uma enolme
cawáo, era constituída pela fossilização e a compreensão do que, superesfrutura de ideias que desaba. Eis para o que é preciso se prcpaftIr.

54 55
i.
O paradigma complexo*

\
Não se deve acreditar que a questão da complexidade só se
coloque hoje em função dos novos progressos científicos. Deve-se
buscar a cornplexidade 1á onde ela parece em geral ausente, como,
por exemplo, na vida cotidiana.
Essa complexidade foi recebida e descrita pelo romance do
século XIX e início do século XX. Enquanto, nessa mesma época,
a ciência tenta eliminar o que é individual e singular, para só reter
leis gerais e identidades simples e fechadas, enquanto expulsa até
mesmo o tempo de sua visão de mundo, o romance, ao contrário
(Balzac na França, Dickens nà Inglaterra), nos mosffa seres singu-
lares em seus contextos e em sua época. Ele mostra que a vida mais
cotidiana é, de fato, uma vida em que cada um joga vários papéis
sociais, conforme esteja em sua casa, no seu trabalho, com amigos
ou desconhecidos. vê-se aí que cada ser tem uma multiplicidade de
identidades, uma multiplicidade de personalidades em si mesmo,
ummundo de fantasias e de soúos que acompanhamsuavida' Por
exemplo, o próprio tema do monólogo interior, tão poderoso na obra
de Faulkne r, faz parte dessa complexidade. Este inner speech, esta

;g.h"rd" d" C" ltura, signos, críticas.Imprensa da Université do Québec, 1988


(Cahiers recherches et tÀéories, Coll. "symbolique et idéologie", no' S 16), p'
à5-87. Textos publicados sob a direção de Josiane Boulad-Ayoub'

w 57
fala permanente é revelada pela literatura e pelo romance, assim paradigma s imPlificador
O
como este também nos revela que todo mundo se conhece muito
pouco: em inglês, chama-se a isso self-deception, mentir para si é preciso
Para compreender o problema da complexidade
mesmo. Só conhecemos uma aparência de nós mesmos; enganamo_ A palavra para-
saber primeiro que há um paradigma simplificador'
nos sobre nós mesmos. Mesmo os escritores mais sinceros como lógica extremamente
digmá é constituída por certo tipo de relação
Jean-Jacques Rousseau, Chateaubriand, esqueciam sempre, em seu princípios-chave' Essa
forte entre noções mestras, noções-chave'
os propósitos que
relação e esses princípios vão comandar todos
esforço de sinceridade, alguma coisa importante de si próprios.
A relação ambivalente com o outro, as verdadeiras mu_ obedecem inconscientemente a seu império'
danças de personalidade como acontece em Dostoiévski, o fato paradigma que põe
Assim, o paradiggna simplificador é um
de que sejamos agarrados pela história sem saber muito como,
ordem no universo, dele a desordem' A ordem se reduz a
tal Fabrice Del Dongo ou o príncipe André, o fato de que o pró_ "*fol'u o uno' ou o múltiplo' mas
uma lei, a um princípio. A simplicidade vê
prio ser se transforma com o passar do tempo, como mostram Ou
não consegue ver que *o pádt sef ao mesmo tempo múltiplo'
o
admiravelmente Em busca do tempo perdido e,sobretudo, o final está ligado (disjunção)' ou
o princípiã da simplicidade separa o'que
do Tempo Reencontrado, de Proust, tudo isso indica que não é unifica o que é diverso (redução)'
simplesmente a sociedade que é complexa, mas cada átomo do é um ser evr-
Tomemos o homem como exemplo' O homem
mundo humano. um ser evidentemente
dentemente biológico. É ao mesmo tempo
Ao mesmo tempo, no século XIX, a ciência tem um cultural, metabiológico e que vive num universo
de linguagem'
ideal exatamente contrário. Esse ideal se afirma na visão de deideiasedeconsciência.Ora,estasduasrealidades,arealidade
mundo de Laplace, no início do século XIX. Os cientistas, de simplificação nos
biológica e a realidade cultural, o paradigma
de Descartes a Newton, tentavam conceber um universo que ao menos com-
obrigá a disjuntá-las ou a reduzir o mais complexo
fosse uma máquina determinista perfeita. Mas Newton, como no departamento
pte*ã. Varnos, pois, estudar o homem biológico
Descartes, tinha necessidade de Deus para explicar como esse f,siológico etc' e vamos es-
àe biologia, como um ser anatômico,
mundo perfeito era produzido. Laplace elimina Deus. tudar o ho-"- cultural nos departamentos das
ciências humanas
euando
Napoleão lhe pergunta: "Mas senhor Laplace, q:ue faz o senhor órgão biológico e vamos
e sociais. Vamos estudar o cérebro como
de Deus em seu sistema?", Laplace responde: .oSenhor, eu não realidade psicológica'
estudar a mente, the mind,como função ou
necessito desta hipótese". Para Laplace,o mundo é uma máquina ainda mais que um
Esquecemos que um não existe sem a outra'
determinista verdadeiramente perfeita, que se basta a si mesma. tratados por termos e
é a outra ao mesmo tempo, embora sejam
Ele supõe que um demônio possuindo uma inteligência e sen_ conceitos diferentes.
tidos quase infinitos poderia conhecer qualquer acontecimento científico
Nessa vontade de simplificação' o conhecimento
do passado e qualquer acontecimento do futuro. De fato, esta tinhapormissãodesvelarasimplicidadeescondidaportrásdaapa-
concepção que acredita poder dispensar Deus tinha introduzido
rentemultiplicidadeedaaparentedesordemdosfenômenos.Talvez
em seu mundo os atributos da divindade: a perfeição, a ordem em quem não podiam creq
isso se desse porque, privados de um deus
absoluta, a imortalidade e a eternidade. É este mundo que vai
oscientistastinhamnecessidadeinconscientedesertranquilizados.
se desequilibrar, depois se desintegrar.
Aindaqueserecoúecendovivernumuniversomaterialista'mortal'
de saber que havia alguma
sem salvação, eles tinham necessidade

58 59
coisa de perfeito e de eterno: o próprio universo. Essa mitologia todas se dispersam. Efetivamente, chega-se
à desordem total' A
a qualquer trabalho'
extremamente poderosa, obsessiva ainda que escondida, animou o desordem esiá pois no universo físico, ligada
movimento da física. É preciso reconhecer que essa mitologia foi a qualquer transformação.
fecunda porque a pesquisa da lei maior do universo conduziu às
descobertas de leis importantes tais como a gravitaçào, o eletro- Ordem e desordem no universo
magnetismo, as interações nucleares fortes depois fracas.
reflexão sobre o universo se choca-
Hoje, ainda, os cientistas e os Íisicos tentam encontrar o elo No início do século XX, a

entre essas diferentes leis que fariam delas uma lei única verdadeira. um paradoxo. De um lado, o segundo
princípio da termodinâmi-
va a
A geraf isto é' à desordem
mesma obsessão conduziu à busca da peça elementar ca indicàva que o universo tende à entropia
com a qual se constituiria o universo. De início acreditou-se en- e, de outro lado, revelava-se que neste
mesmo unlverso as
máxima
e se desenvolvem'
contrar a unidade de base na molécula. o desenvolvimento dos coisas se organizam, se complexifrcam
instrumentos de observação revelou que a própria molécula era Enquanto nos limitávamos ao planeta' alguns puderam pensar
composta de átomos. Depois nos demos conta de que o átomo era que se traásse da diferença entre aoiganizaçáo
viva e aorgan\zaçáo
mas a otgatizaçáo
ele próprio um sistema muito complexo, composto de um núcleo fisica: a organizaçio Íisica tende à degradação'
muito mais nobre' tende
e de elétrons. Então, aparticula tornou-se a unidade primeira. viva, fundada sobreumamatéria especifica'
coisas' Primeiro: como
Depois nos demos conta de que as partículas elas próprias eram ao desenvolvimento... Esquecíamos duas
Como são constituídos
fenômenos que podiam ser divididos teoricamente em quarks. essa própria otganizaçáofísica se constituiu?
E, no momento em que se acreditou atingir a peça elementar Depois' esquecíamos
o, urt or, como são constituídas as moléculas?
que se paga com a morte dos
com a qual nosso universo era construído, essa peça desapareceu de outra coisa: a vida é um progresso
a morte de inúmeras
enquanto peça. E uma entidade fluida, complexa, que não se pode indivíduos; a evolução biológica se paga com
a origem
isolar. A obsessão da simplicidade conduziu a aventura científlca às espécies; há muito mais espécies que desapareceram desde
descobertas impossíveis de conceber em termos de simplicidade. da vida que espécies que sobreviveram'
A degradação e a desordem
Além disso, no século XIX, houve este importante acon_ concemem também à vida'
necessárias
tecimento: a imrpção da desordem no universo fisico. De fato, o Então, a dicotomia não era mais possível' Foram
conta de que a desor-
segundo princípio da termodinâmica, formulado por carnot e clau- estas últimas décadas para que nos déssemos
cooperavam de certa
sius, é no início um princípio de degradação de energia. o primeiro dem e a ordem, sendo inimigas uma da outra'
princípio, o princípio da conservação da energ ia, se fazacompanhar maneira pata otganizar o universo'
de Bénard'
de umprincípio que diz que a energia se degrada sob forma de calor. Percebemos isso, por exemplo, nos turbilhões
qual há um líquido, que aque-
Toda atividade, todo trabalho pro duz calor;dizendo de outro modo Tomemos um recipiente cilíndrico no
todaúilização da energia tende a degradar a dita energia. cemos por baixo. A certa temperatura' o
movimento de agitação'
orgarr\zada turbilhonar
Depois nos demos conta comB oltzmanque o que se chamava em lugar de aumentar, produz uma forma
células hexagonais
de calor era, narealidade, a agitaçáo desordenada de moléculas ou de carárterestável, formando sobre a superfície
de átomos. Cada um pode verificar, quando começa a esquentar regularmente ordenadas'
e um obstáculo'
um recipiente de ágn, que surgem tremores e que um fervilhar de Com frequência, no encontro entre um fluxo
constante e que
moléculas se efetua. Algumas se volatizam na atmosfera até que cria-se um turbilhão, isto é, uma forma organizada

60
6t
reconstitui sem cessar a si própria; a união do fluxo e do contrafluxo que, logicamente, parecem se excluir: ordem e desordem. Além
produz essa forma organizada que vai durar indefinidamente, ao disso, pode-se pensar que a complexidade desta ideia é ainda mais
menos tanto quanto dure o fluxo e enquanto o arco da ponte estiver fundamental. De fato, o universo nasceu de um momento indizível,
lá. Isto é, uma ordem organizacional (turbilhão) pode nascer a partir quie faz nascer o tempo do não tempo, o espaço do não espaço, a
de urn processo que produz desordem (turbulência). materiada não matéria. Chega-se por meios totalmente racionais a
Essa ideia precisou ser amplificada de modo cósmico quando ideias trazendo nelas uma contradição fundamental.
se chegou, apartir dos anos 1960-1966, à opinião cada vez mais A complexidade da relação ordem/desordem/organizaçáo
plausível de que nosso universo, que se sabia estar em curso de surge, pois, quando se constata empiricamente que fenômenos de-
dilatação com a descoberta da expansão das galáxias por Hubble, sordenados são necessiigios em certas condições, em certos casos,
era também um universo de onde provinha de todos os horizontes para a produção de fenômenos organizados, os quais contribuem
uma irradiação isótropa, como se essa irradiação fosse o resíduo para o crescimento da ordem.
fóssil de uma espécie de explosão inicial. Daí a teoria dominante A ordem biológica é uma ogdem mais desenvolvida que a
no mundo atual dos astrofisicos, de uma origem do universo que ordem flsica; é uma ordem que se desenvolveu com a vida. Ao
seja uma deflagração , um big bang. Isso nos conduz a uma ideia mesmo tempo, o mundo da vida comporta e tolera muito mais
espantosa: o universo começa como uma desintegração, e é ao se desordens que o mundo da física. Dizendo de outro modo, a de-
desintegrar que ele se organiza. De fato, é no curso dessa agitação sordem e a ordem ampliam-se no seio de uma organização que
calorífica intensa - o calor e da agitaçáo, do turbilhonamento, do se complexifica.
movimento em todos os sentidos - que partículas vão se formar e Pode-se retomar a frase célebre de Heráclito, que, sete séculos
que certas partículas vão se unir umas às outras. antes de Cristo, dizia de modo lapidar: "Viver de morte, morrer de
Assim vão surgir núcleos de hélio, de hidrogênio, e depois vida". Hoje, sabemos que esse não é um paradoxo futil. Nossos
de outros processos, devido, sobretudo, à gravitação, as poeiras de organismos só vivem por seu trabalho incessante durante o qual
partículas vão se reunir, e vão se concentrar cadavezmais até chegar se degradam as moléculas de nossas células. Não só as moléculas
um momento em que, com o aumento do calor, se produzirá uma de nossas células se degradam, mas nossas próprias células mor-
temperatura de explosão ou se dará a iluminação das esffelas, e essas rem. Sem parar, durante nossa vida, várias vezes nossas células
próprias estrelas se auto-organizaráo entre implosão e explosão. são renovadas, com exceção das do cérebro e de algumas células
Além disso, podemos supor que no interior dessas esfelas vão, hepáticas provavelmente.
vezes, se unir, em condições exfiemamente desordenadas, fês núcle-
àrs De todo modo, viver é, sem cessar, morrer e se rejuvenescer'
os de hélio, os quais vão constituir o átomo de carbono. Nos sóis que Ou seja, vivemos da morte de nossas células, como uma sociedade
se sucederam, havia bastante carbono para que, finalmente sobre um vive da morte de seus indivíduos, o que the permite rejuvenescer.
pequeno planeta excêntrico, a Terra, houvesse este material necessário Mas à força de rejuvenescer, envelhecemos e o processo de
sem o qual não haveria isto que nós chamamos vida. rejuvenescimento desanda, se desequilibra e, efetivamente, vive-se
Vemos como a agitação, o enconffo casual são necessários de morte, moffe-se de vida.
paraaorganizaçáo do universo. Pode-se dizer que é se desintegran- Hoje a concepção fisica do universo nos coloca na impossibi-
do que o mundo se organiza. Eis uma ideia tipicamente complexa. lidade de pensar isso em termos simples. A microfisica encontrou
Em que sentido? No sentido em que devemos unir duas noções um primeiro paradoxo onde a própria noção de matéria perde sua

62 63

t
substância, onde a noção de partícula encontra uma contradição
matéria substancial desapareceu. Então, eles substituem a matéria
interna. Depois ela encontrou um segundo paradoxo. Este vem
pelo espírito. Mas o espiritualismo generalizado não vale, em nada,
do sucesso da experiência de Aspect mostrando que as partículas
mais do que o materialismo generalizado. Eles se reenconffam numa
podem se comunicar a velocidades infinitas. ou seja, em nosso
visão unificadora e simplificadora do universo.
universo, submetido ao tempo e ao hâ alguma coisa que
espaço , Eu falei da fisica, mas se poderia falar também da biologia. A
parece escapar ao tempo e ao espaço.
biologia chegou hoje, na miúa opinião, às portas da complexidade
Há uma tal complexidade no universo, que apareceu uma
ao não dissolver o individual no geral.
série tão grande de contradições que certos cientistas acreditam
Pensava-se que só há ciência geral. Hoje não apenas a fisica
ultrapassar essa contradição, no que se pode chamar de uma nova
nos põe num cosmos singular, mas as ciências biológicas nos dizem
metaÍísica. Estes novos metaÍisicos buscam nos místicos, sobretudo
que a espécie não é um quadro geral no qual nascem indivíduos
extremo-orientais, e em particular budistas, a experiência do vazio
singulares, a espécie é ela propria tmpadrão singular muito preciso,
que é tudo e do tudo que não e nada. Eles percebem aí uma
espécie um produtor de singularidades. Alfur disso, os indivíduos de uma
de unidade fundamental, onde tudo está ligado, tudo é harmània,
mesma espécie são muito diferentes uns dos outros.
de todo modo, e eles têm uma visão reconciliada, eu diria euÍórica,
Mas deve-se compreender que há alguma coisa além da
do mundo.
singularidade ou que a diferença de um indivíduo a um outro está
Assim fazendo, eles escapam, do meu ponto de vista, da no fato de que cada indivíduo é um sujeito.
complexidade. Por quê? Porque a complexidade encontra-se onde
Apalavra sujeito é uma das palavras mais dificeis, mais mal
não se pode superar uma contradição, até mesmo uma tragédia.
entendidas que possam existir. Por quê? Porque na visão tradicio-
sob certos aspectos, a física atual descobre que alguma coisa nal da ciência, em que tudo é determinismo, não há sujeito, não há
escapa ao tempo e ao espaço, mas isso não anula o fato de que
consciência, náo hâ autonomia.
ao mesmo tempo estejamos incontestavelmente no tempo e no
Se concebemos não um esffito determinismo, mas um univer-
espaço.
so onde isto que se cria, se cria não apenas no acaso e na desordem,
Não podemos reconciliar essas duas ideias. Devemos aceitâ-
mas em processos auto-organizadores, isto é, onde cada sistema cria
las tais quais? A aceitação da complexidade é a aceitação de uma
suas próprias determinações e suas próprias finalidades, podemos
contradição, e a ideia de que não se pode escamotear as contradições
compreender primeiro, no mínimo, a autonomia, depois podemos
numa visão eufórica do mundo.
começar a compreender o que quer dizer ser sujeito.
Claro, nosso mundo comportaharmonia, mas essaharmonia
Ser sujeito não quer dizer ser consciente: também não quer
está ligada à desarmoni a.É exatamente o q,e diziaHeráclito:
há a dizer ter afetividade, sentimentos, ainda que evidentemente a subje-
harmonia na desarmonia. e vice-versa.
tividade humana se desenvolva com a afetividade, com sentimentos.
Ser sujeito é colocar-se no cenho de seu próprio mundo, é ocupar o
Auto-organização
lugar do "eu". É evidente que cada um denüe nós pode dizeÍ "eri';
todo mundo pode dizer "eu", mas cada um só pode dizer "eÚ'para si
É oiticit conceber a complexidade do real. Assim, os fisicos próprio, ninguém pode dizê-lo pelo outro, mesmo que ele teúa um
abandonam felizmente o antigo material ingênuo, o da matéria
irmão gêmeo, homozigoto, que se pareça exatamente com ele, cada
como substância dotada de todas as virtudes produtivas, já que essa
um dirá'oeu" por si próprio e não por seu gêmeo.

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O fato de poder dizet "etÍ' , de ser sujeito, significa ocupar um The Origine of Consciousness (A origem da consciêncial8)'
lugar, uma posição onde a gente se põe no centro de seu mundo paÍa é um livro talvezcontestável, mas interessante pela seguinte
ideia:
poder lidar com ele e lidar consigo mesmo. E o que se pode chamar nas civilizações antigas, os indivíduos tinham duas câmaras não

de egocentrismo. Claro, a complexidade individual é tal que quando comunicantes em sua mente. uma câmara era ocupada pelo poder:
nos colocamos no cenffo de nosso mundo, nós ali colocamostambém o tei, a teocracia, os deuses; a outra càmataera ocupada pela vida
os nossos: isto é, nossos pais, nossos filhos, nossos concidadãos; so- cotidiana do indivíduo: suas preocupações pessoais, particulares'
mos mesmo capazes de sacrificar nossas vidas pelos nossos. Nosso Depois, num dado momento, na cidade gtegaantiga,houve a ruptura
egocentrismo pode se encontrar englobado numa subjetividade do muro que separava as duas câmaras. A origem da consciência
comunitária mais ampla; a concepção do sujeito deve ser complexa. vem dessa comunicação"
Ser sujeito é ser autônomo, sendo ao mesmo tempo depen- Ainda hoje conservamos duas câmaras em nós' Nós continu-
dente. É ser alguém provisório, vacilante, incerto, é ser quase tudo amos numa parte de nós mesmos pelo menos a ser possuídos. com
para si e quase nadapara o universo. muita frequência, ignoramos que sop:Ios possuídos'
É o caso, por exemplo, da experiência muito chocante em
Autonomia que se submete um sujeito a uma dupla sugestão hipnótica. Diz-se
a ele: "A partir de amanhã, você vai parar de fumar", sendo que
A noção de autonomia humana é complexa, já que ela de- o sujeito é um fumante e que não pediu para paÍff de fumar' E
.,Amanhã você tomará tal itinerário para chegar a
pende de condições culturais e sociais. Para sermos nós mesmos acrescenta-se:
precisamos aprender uma linguagem, uma cultura, um saber, e é seu trabalho,,, itinerário completamente inabitual para ele. Depois
preciso que essa própria cultura seja bastante variadaparu que pos- faz-se apagar de sua memória essas injunções. No dia seguinte de
samos escolher no estoque das ideias existentes e refletir de maneira manhã, ele acorda e se diz: 'oOra, eu vou deixar de fumar' Com
autônoma. Portanto, essa autonomia se alimenta de dependência; efeito, é melhor, porque se respira melhor, evita-se o câncer"'"'
nós dependemos de uma educação, de uma linguagem, de uma Depois ele se diz: "Para me recompensar, vou passar por talrua,lít
cultura, de uma sociedade, dependemos claro de um cérebro, ele há uma confeitaria, eu vou me comprar um doce". É evidentemente
mesmo produto de um programa genético, e dependemos também o trajeto que the foi ditado.
de nossos genes. O que nos interessa, aqti, é que ele tem a impressão de ter
Dependemos de nossos genes e, de uma certa maneira, so- livremente decidido deixar de fumar, e de ter racionalmente deci-
mos possuídos por nossos genes, já que estes não cessam de ditar dido passar na rua onde não tiúa nenhumarazáo para ir. com que
a nosso organismo o meio de continuar a viver. Reciprocamente, frequência temos a impressão de ser livres sem o sermos' Mas, ao
possuímos os genes que nos possuem, isto é, graças a esses genes mesmo tempo, somos capazesde liberdade, como somos capazes de
somos capazes de ter um cérebro, de ter uma mente, de poder as- examinar hipóteses de conduta, de fazer escolhas, de tomar decisões.
sumirnuma cultura os elementos que nos interessam e desenvolver somos uma mistura de autonomia, de liberdade, de heteronomia
nossas próprias ideias. e, eu diria mesmo, de possessão por forças ocultas que não são
Aí também é preciso voltar à literatura, a esses romances que
(como Os possuídos justamente) nos mostram a que ponto podemos 18
J. Jaynes, The Origine of consciousness in the Breakdown of bicameral Mind.
ser autônomos e possuídos. Boston, Houghton Miffin, 1976.

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de multidão'
simplesmente as do inconsciente trazidas à luz pela psicanálise. menos econômicos stricto sensu attarnos fenômenos
Eis uma das complexidades propriamente humanas. os fenômenos ditos de pânico, como se viu
recentemente ainda em
contém as
Wall Street e em outros lugares. Adimensão econômica
nenhuma realidade
Complexidade e completude outras dimensões e não se pode compreender
de modo unidimensional.
conduz à ideia
Inicialmente a complexidade surge como uma espécie de A consciência da multidimensionalidade nos
furo, de confusão, de dificuldade. Há, claro, várias espécies de de que toda visão unidimensional, toda visão
especializada'parce-
outras dimensões; daí a
complexidade. Eu digo a complexidade por comodidade. Mas há trraà, epobre. É preciso que ela seja ligada a
a completude'
complexidades ligadas à desordem, outras complexidades que são, que se pode identiflcar a complexidade com
"r.oçuà"Num certo sentido eu diria que a aspiração à complexidade
sobretudo, ligadas a contradições lógicas.
que tudo é
Pode-se dizer que o que é complexo diz respeito, porum lado, traz emsi a aspiração à completrtde,iâ que se sabe
num outro sentido'
ao mundo empírico, à incerteza, à incapacidade de ter certeza de solidário e que tudo é multidimensiqnal'Mas'
que jamais
tudo, de formular uma lei, de conceber uma ordem absoluta. Por a consciência da complexidade ,ot'iu' compreender
poderemos escapar da incerleza e que
jamais poderemos ter um
outro lado diz respeito a alguma coisa de lógico, isto é, à incapaci-
dade de evitar contradições. sabertotal: "Atotalidade é anão verdade"'
a um pensamento
Na visão clássica, quando srrge uma contradição num ra- Estamos condenados ao pensaÍnento incerto'
não tem nenhum fun'
ciocínio, é um sinal de erro. É preciso dar marcha a ré e tomar um trespassado de fi,ros, a um pensamento que
outro raciocínio. Ora, na visão complexa, quando se chega por vias damento absoluto de cetteza.Mas somos capazes de pensar nessas
se deve confundir com-
empírico-racionais a contradições, isso não significa um erro, mas condições dramáticas. Do mesmo modo, não
o atingir de uma camada profunda da realidade que, justamente por plexidade e complicação. A compl icaçáo, que é o emaranhamento
elementos da
ser profunda, não encontra tradução em nossa lógica. extremo das inter-retroações, é um aspecto, um dos
mais com'
Desse modo, a complexidade é diferente da completude. Imagi- complexidade. Se, por exemplo, uma b actériaiáemltito
é evidente
na-se com frequência que os defensores da complexidade pretendem pticada que o conjunto das usinas que cercam Montreal'
que thq
ter visões completas das coisas. Por que pensariam assim? Porque é que essa-própria complicação está ligada à complexidade
contra seus agressores' ter q
verdade que pensamos que não se podem isolar os objetos uns dos iermite toterar em si a desordem, lutar
não são dois
outros. No fim das contas, tudo é solidário. Se você tem o senso da qualidade de sujeito etc. Complexidade e complicação
outra' A complicação
dados antinômicos e não se reduzem uma à
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complexidade, você tem o senso da solidariedade. Além disso, você
tem o senso do caráter multidimensional de toda realidade. um dos constituintes da complexidade'
A visão não complexa das ciências humanas, das ciências
sociais, considera que há uma realidade econômica de um lado, uma Razão, racionalidade, racionalização
realidade psicológica de outro, uma realidade demográfica de outro
conhecer o uni'
etc. Acredita-se que essas categorias criadas pelas universidades Chego às ferramentas que vão nos permitir
de naturezq
sejam realidades, mas esquece-se que no econômico, por exemplo, verso complexo. Essas ferramentas são, evidentemente'
há as necessidades e os desejos humanos. Atrás do diúeiro, há todo racional. Apenas, aqui também, é preciso fazet trma autocríticq
um mundo de paixões, há a psicologia humana. Mesmo nos fenô- complexa da noção deruzào.

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Arazáo corresponde a uma vontade de ter uma visão coerente de que sejam espiões; essas pessoas, vendo o seu olhar estranho,
dos fenômenos, das coisas e do universo. Arazáo tem um aspecto passam a olhá-lo de modo cadavez mais estranho, e você se vê,
incontestavelmente lógico. Mas, aqui também, é possível distinguir cadavezmais racionalmente, cercado cadavez de mais espiões.
entre racionalidade e racionalizaçáo. Entre a paranoia, aracionalização e a racionalidade, não há
Aracionalidade é ojogo, é o diálogo incessante entre nossa fronteira clara. Devemos sem cessarprestar atenção. Os filósofos do
mente, que cria estruturas lógicas, que as aplica ao mundo e que século XVIII, em nome daruzão, tinham uma visão bem pouco ra-
dialoga com este mundo real. Quando este mundo não está de cional do que eram os mitos e do que era a religião. Eles acreditavam
acordo com nosso sistema lógico, é preciso admitir que nosso que as religiões e os deuses tivessem sido inventados pelos padres
sistema lógico é insuflciente, que só encontra uma parte do real. A para enganar as pessoa$ Eles não se davam conta da profundidade
racionalidade, de todo modo, jamais tem a pretensão de esgotar num e da realidade da potência religiosa e mitológica do ser humano.
sistema lógico a totalidade do real, mas tem a vontade de dialogar Por isso mesmo, tinham se abrigado na racionalizaçào, isto é, na
com o que lhe resiste. Como já dizia Shakespeare: "Há mais coisas explicação simplista do que sua razflo não chegava a compreender'
no mundo que em toda nossa fllosofia". O universo é muito mais Foram precisos novos desenvolvimentos da razào para começar a
rico do que podem conceber as estruturas de nosso cérebro, por compreender o mito. Para isso, foi preciso que a razáo crítica se
mais desenvolvido que ele seja. tornasse autocrítica. Devemos lutar sem cessar contra a deiflcação
O que é a racionalizaçáo? A palavra racionalização é em- da razáo que, entretanto, é nossa única ferramenta confiável, à
pregada, muito justamente, na patologia por Freud e por muitos condição de ser não só cntica, mas autocrítica.
psiquiatras. A racionalização consiste em querer prender a realidade Eu sublinharia a importância disto: no início do século, os
num sistema coerente. E tudo o que, na realidade, contradiz esse antropólogos ocidentais, como Lévy-Bruhl na França, estudavam
sistema coerente é afastado, esquecido, posto de lado, visto como as sociedades que supunham "primitivas", que hoje denominamos
ilusão ou aparência. com mais justeza "sociedades caçadoras-coletoras", que fizeram a
Aqui nos damos conta de que racionalidade e racionalizaçáo pré-história humana, estas sociedades de algumas centenas de in-
têm exatamente a mesma fonte, mas ao se desenvolverem tornam- divíduos que, durante dezenas de milhares de anos, constituíram de
se inimigas uma da outra. É muito dificil saber em que momento algum modo a humanidade. Lévi-Bruhlvia esses ditos primitivos,
passamos da racionalidade à racionalização; não há fronteira; não com a visão de sua própriarazáo ocidental-cêntrica da época, como
há sinal de alarme. Todos nós temos uma tendência inconsciente a seres infantis e irracionais.
afastar de nossa mente o que possa contradizê-la, em política como em Ele não se colocava a questão que se colocou Wittgenstein
fllosofia. Tendemos a minimizar ou rejeitar os argumentos contrários. quando se perguntava, lendo o Ramo de ouro, de Ftazer:'oComo
Exercemos uma atenção seletiva sobre o que favorece nossa ideia e pode ser que todos esses selvagens que passam seu tempo afazer
uma desatenção seletiva sobre o que a desfavorece. Com frequência ritos de feitiçaria, ritos propiciatórios, bruxarias, desenhos, etc., não
aracionalização se desenvolve na própria mente dos cientistas. se esqueçam de fazer flechas reais com arcos reais, com estratégias
A paranoia é uma forma clássica de racionalização delirante. reais?"re. Efetivamente, essas sociedades ditas primitivas têm uma
Você vê, por exemplo, alguém que lhe olha de modo estranho e, se
você tem a mente um pouco maníaca, você vai achar que está sendo re
L. Wittgenstein, "Observações sobre o -Raz o de ouro deFruzet" , Atas da pesquisa
seguido por um espião. Então, você olha as pessoas suspeitando em ciências sociais, 16, setembro 1977 , p. 35-42.

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racionalidade muito grande, difusa efetivamente em todas as suas que Descartes pensava que a distinçáo e a clareza eram caracteres
práticas, em seu conhecimento do mundo, difusa e misfurada com intrínsecos da verdade de uma ideia.
alguma outra coisa que é a magia, a religião, a crença nos espíritos Tomemos o amor e aamizade-Pode-se reconhecer claramen-
etc. Nós mesmos, que vivemos com certos setores de racionalida- te em seu núcleo o amor e a amizade, mas há também a amizade
de desenvolvidos, como a filosofia ou a ciência, também vivemos amorosa, amores amigáveis. Há, pois, intermediários, mistos entre
embebidos de mitos, embebidos de magia, mas de um outro tipo, o amor e aamizade: não há uma fronteira clara' Não se deve jamais
de uma outra espécie. Portanto, temos necessidade de uma racio- procurar definir por fronteiras as coisas importantes. As fronteiras
nalidade autocrítica, de uma racionalidade que exerça um comércio são sempre fluidas, são sempre interferentes. Deve-se pois buscar
incessante com o mundo empírico, único corretivo ao delírio lógico. definir o centro, e essa {efinição pede em geral macroconceitos'
O homem tem dois tipos de delírio. Um evidentemente é
muito visível, é o da incoerência absoluta, das onomatopeias, das T\ês princípios
palavras pronunciadas ao acaso. O outro, bem menos visível, é o lr
delírio da coerência absoluta. Conffa esse segundo delírio, o recurso Eu diria, enfim, que há três princípios que podem nos ajudar
é a racionalidade autocritica e o apelo à experiência. a pensar a complexidade. o primeiro é o princípio que denomino
A filosofia jamais teria podido conceber esta formiúível com- dialógico. Tomemos o exemplo daorganizaçãoviva' Elanasce, sem
plexidade do universo atlual,tÃlcomo nós temos podido observar com dúvida, do enconffo entre dois tipos de entidades químico-fisicas, um
os quanta, os quasars, os buracos negros, com sua origem incrível e tipo estavel que pode se reproduzir e cuja estabilidade pode trazer
seu devir incerto. Jamais algum pensador teria podido imaginar que em si umamemóriatornando-se hereditaria: o DNA, e de outro lado,
uma bactéria fosse um ser de uma complexidade tão exfuema. Tem-se aminoácidos, que formam proteínas de múltiplas formas, extrema-
necessidade do diálogo permanente com a descoberta. A virtude da mente instiíveis, que se deg&dam, mas se reconstituem sem cessar
ciência que a impede de mergulhar no delírio é que sem cessar dados apartk de mensagens que emanam do DNA. Dito de outro modo,
novos chegam e a levam a modificar suas visões e suas ideias. há duas lógicas: uma, a de uma proteína instavel, que vive em con-
tato com o meio, que permite a existência fenomênica, e outra que
Nec es s idade do s macro c onc eit o s assegura a reprodução. Esses dois princípios não são simplesmente
justapostos, eles são necessários um ao outro. O processo sexual
Quero concluir com alguns princípios que podem nos ajudar produz indivíduos, os quais produzem o processo sexual' Os dois
a pensar a
complexidade do real. princípios, o da reprodução transindividual e o da existência indi-
Primeiro, creio que temos necessidade de macroconceitos. vidual hic et nonc, são complementares mas também antagônicos.
Assim como um átomo é uma constelação de partículas, o sistema Às veres, nos espantamos de ver mamíferos comerem seus filhotes
solar uma constelação em volta de um astro, do mesmo modo e sacrificarem sua progenitura para sua própria sobrevivência. Nós
temos necessidade de pensar por constelação e solidariedade de mesmos podemos nos opor violentamente a nossa família e dar
conceitos. preferência a nosso interesse frente ao de nossos filhos ou nossos
Além disso, devemos saber que, nas coisas mais importan- pais. Há uma dialógica entre esses dois princípios'
tes, os conceitos não se definem jamais por suas fronteiras, mas O que digo a respeito da ordem e da desordem pode ser
a partir de seu núcleo. É uma ideia anticartesiana, no sentido em concebido em termos dialógicos. A ordem e a desordem são dois

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inimigos: um suprime o outro, mas ao mesmo tempo, em certos o espírito linear. Mas, na lógica recursiva, sabe-se muito bem que
casos, eles colaboram e produzem organizaçáo e complexidade. o adquirido no conhecimento das partes volta-se sobre o todo' O
O princípio dialógico nos permite manter a dualidade no seio da que se aprende sobre as qualidades emergentes do todo, tudo que
unidade. Ele associa dois termos ao mesmo tempo complementares não existe sem organização, volta-se sobre as partes. Então pode-
e antagônicos. se enriquecer o conhecimento das partes pelo todo e do todo pelas
O segundo princípio é o da recursão organizacional. Para partes, num mesmo movimento produtor de conhecimentos.
o significado desse termo, lembro o processo do turbilhão. Cada Portanto, a própria ideia hologramáúica está ligada à ideia
momento do turbilhão é, ao mesmo tempo, produto e produtor. Um recursiva, que está ligada, em parte, à ideia dialógica.
processo recursivo é um processo em que os produtos e os efeitos
são ao mesmo tempo causas e produtores do que os produz. Temos o O todo está na part), quu está no todo
exemplo do indivíduo, da espécie e da reprodução. Nós, indivíduos,
somos os produtores de um processo de reprodução que é anterior A relação antropossocial é çromplexa, porque o todo está na
a nós. Mas uma vez que somos produtos, nos tornamos os produ- parte, que está no todo. Desde a inÍância, a sociedade, enquanto
tores do processo que vai continuar. Essa ideia é válida também todo, entra em nós, inicialmente através das primeiras interdições e
sociologicamente. A sociedade é produzida pelas interações entre das primeiras injunções familiares: de higiene, de sujeira, de polidez
indivíduos, mas a sociedade, uma vezprodrzida, retroage sobre os e depois as injunções da escola, da língua, da cultura.
indivíduos e os produz. Se não houvesse a sociedade e sua cultura, O princípio "a ninguém é permitido ignorar a lei" impõe a
uma linguagem, um saber adquirido, não seríamos indivíduos hu- presença forte do todo social sobre cada indivíduo, mesmo se a
manos. Ou seja, os indivíduos produzem a sociedade que produz divisão do trabalho e a fragmentação de nossas vidas fazem com
os indivíduos. Somos ao mesmo tempo produtos e produtores. A que ninguém possua a totalidade do saber social.
ideia recursiva é, pois, uma ideia em ruptura com a ideia linear Daí o problema do sociólogo que reflete um pouco sobre seu
de causa/efeito, de produto/produtor, de estrutura,/superestrutura, estatuto. Ele precisa abandonar o ponto de vista divino, o ponto de
já que tudo o que é produzido volta-se sobre o que o produz num üsta de uma espécie de ffono superior de onde contempla,a sociedade.
ciclo ele mesmo autoconstitutivo, auto-organizador e autoprodutor. O sociólogo é uma parte desta sociedade. O fato de ser detentor de
O terceiro princípio é o princípio hologramático. Num ho- uma cultura sociológica não o coloca no centro da sociedade. Ao
lograma fisico, o menor ponto da imagem do holograma contém a contrário, ele faz parte de uma cultura periférica na universidade
quase totalidade da informação do objeto representado. Não apenas e nas ciências. o sociólogo é tributário de uma cultura particular.
a parte está no todo, mas o
todo está na parte. O princípio hologra- Não só ele é uma parte da sociedade como, além disso, sem o saber,
mático está presente no mundo biológico e no mundo sociológico. ele é possuído por toda a sociedade que tende a deformar sua visão.
No mundo biológico, cada célula de nosso organismo contém a Como sair disso? Evidentemente, o sociólogo pode tentar confrontar
totalidade da informação genética desse organismo. A ideia, pois, seu ponto de vista com o de outros membros da sociedade, conhecer
do holograma vai além do reducionismo, que só vê as partes, e do sociedades de um tipo diferente, imaginar talvez sociedades viáveis
holismo, que só vê o todo. É um pouco a ideia formulada por Pascal: que ainda não existam.
"Não posso conceber o todo sem as partes e não posso conceber as Aúnica coisa possível do ponto de vista da complexidade, e
partes sem o todo". Essa ideia aparentemente paradoxal imobiliza que já se revela muito importante, é ter metapontos de vista sobre

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nossa sociedade, exatamente como num campo de concentração de todo um desenvolvimento cultural, histórico, civilizatório. O
onde poderíamos edificar mirantes que nos permitiriam olhar me- paradigma complexo resultará do conjunto de novas concepções,
lhor nossa sociedade e nosso meio ambiente externo. Não podemos de novas visões, de novas descobertas e de novas reflexões que vão
jamais atingir o metassistema, ou seja, o sistema superior que seria se acordar, se reunir. Estamos numa batalha incerta e não sabemos
meta-humano e metassocial. Mesmo que pudéssemos alcançá-lo, ainda quem será o vencedor. Mas pode-se dizet, desde já, que se
não seria um sistema absoluto, porque a lígica de Tarski, assim o pensamento simpliflcador se baseia no predomínio de dois tipos
como o teorema de Gôdel, nos diz que nenhum sistema e capaz de de operações lógicas, disjunção e redução, que são ambas brutais
se autoexplicar totalmente nem de se autodemonstrar totalmente. e mutiladoras, então os princípios do pensamento complexo serão
Dito de outro modo, qualquer sistema de pensamento é aberto necessariamente principios de disjunção, de conjunção e de im-
e comporta uma brecha, uma lacuna em sua própria abertura. Mas plicação.
temos a possibilidade de ter metapontos de vista. O metaponto de Junte a causa e o efeito, e o efeito voltar-se-á sobre a causa,
vista só é possível se o observador-conceptor se integrar na obser- por retroação, e o produto será tar4bém produtor. Você vai distin-
vação e na concepção. Eis por que o pensamento da complexidade guir essas noções e juntá-las ao mesmo tempo. Você vai juntar o
tem necessidade da integração do observador e do conceptor em Uno e o Múltiplo, você vai uni-los, mas o Uno não se dissolverá no
sua observação e em sua concepção. Múltiplo e o Múltiplo farâ ainda assim parte do Uno. O princípio
da complexidade, de todo modo, se fundará sobre a predominância
Rumo à complexidade da conjunção complexa. Mas, ainda aí, creio profundamente que se
trata de uma tarefa cultural, histórica, profunda e múltipla. Pode-se
Pode-se diagnosticar, na história ocidental, a hegemonia de ser o São João Batista do paradigma complexo e anunciar sua vinda
um paradigma formulado por Descartes. Descartes separou de um sem se ser o Messias.
lado o campo do sujeito, reservado à filosofia, à meditação inte-
rior, de outro lado o campo do objeto em sua extensão, campo do
conhecimento científico, da mensuração e da precisão. Descartes
formulou muito bem esse princípio de disjunção, e essa disjunção
reinou em nosso universo. Ela separou cadavezmais a ciência e a
filosofia. Separou a cultura dita humanista, a da literatura, da poesia
e das artes, da cultura científica. A primeira cultura, baseada na
reflexão, não pode mais se alimentar nas fontes do saber objetivo.
A segunda cultura, baseada na especializaçáo do saber, não pode
se refletir nem pensar a si própria.
O paradigma simplificador (disjunção e redução) domina
nossa cultura hoje e é hoje que começa a reação contra seu domínio.
Mas não é possível tirar, eu não posso tirar, não pretendo tirar de meu
bolso um paradigma complexo. Um paradigma, ao ser formulado
por alguém, por Descartes, por exemplo, é, no fundo, o produto

76 77
4.

Acomplexidadeeaação*

tt

A ação é também um desafio

À vezes tem-se a impressão de que a açáo simplifica, porque,


frente à altemativq tomada a decisão, corta-se sem piedade. 0 exemplo
da açáo que simplifica tudo é o gládio de Alexandre que corta o nó
górdio, que ninguém tinha conseguido desfazer com os dedos. Claro,
aaçáo é uma decisão, uma escolha, mas é também um desafio'
Ora, nanoção de desafioháa consciênciadorisco e daincerteza'
Qualquer esüategista, não importa em que domínio, tem consciência
do desafio, e o pensamento moderno compreendeu que nossas cÍen-
ças mais f,rndamentais são objeto de desafio. Foi isso que, no século
XVII, Blaise Pascal nos disse sobre a fe religiosa. Também devemos
ter consciência de nossos desafios filosóficos ou políticos.
A ação é estratégia. A palavra estratégia não designa um
programa predeterminado que basta aplicar ne variatur no tempo'
A estratégia permite, a partit de uma decisão inicial, prever certo
número de cenários paÍa a açio, cetátrlios que poderão ser modifi-
cados segundo as informações que vão chegar no curso da ação e
segundo os acasos que vão se suceder e perturbar aaçáo.

* Extraído de "A complexidade é um nó górdio", em Management France,


fevereiro-março 1987, p. 4-8.

<F 79
Aestratégia luta contra o acaso e busca a informação. Um esta começa a escapar de suas intenções. Ela entra numuniverso de
exército envia batedores, espiões para se informar, isto é, para interações e flnalmente o meio ambiente apossa-se delanum sentido
eliminar ao máximo a incerteza. Além disso, a estratégia não se que pode se tornar contrário ao da intenção inicial. Com frequência
limita a lutar contra o acaso, também procura úilizâ-lo. Assim, aaçáoretorna em bumerangue sobre nossa cabeça. Isso nos obriga
a genialidade de Napoleão em Austerlitz foi fazer uso do acaso a seguir a açáo, a terfiar corrigi-la se ainda é tempo -, às vezes
-
meteorológico que cobria de bruma os mangues por eles mesmos a bombardeá-la como os responsáveis da NASA que, no caso de
reputados de impraticáveis ao avanço dos soldados. Ele construiu desvio de trajetória de um foguete, enviam um outro foguete para
sua estratégia em função dessa bruma que lhe permitiu camuflar explodir o primeiro.
os movimentos de sua armada e atacar de surpresa, sobre seu A ação supõe a cqmplexidade, isto é, acaso, imprevisto, ini-
flanco mais desprovido, o exército imperial. ciativa, decisão, consciência das derivas e transformações. Apalawa
A estratégia aproveita-se do acaso e, quando se trata de es- estratégia se opõe à programa. Para as sequências integradas a um
tratégia em relação a um outrojogador, a boa estratégia utiliza-se meio ambiente estável, convém ut{lizar programas. O programa
dos erros do adversário. No jogo de futebol, a estratégia consiste em não obriga a estar vigilante. Ele não obriga a inovar. Assim, quando
tttilizar as bolas que lança involuntariamente a equipe adversária. vamos para o trabalho no volante de nosso cato, parte de nossa
A construção dojogo se faz na desconstrução dojogo adversário conduta é programada. Se um engaffafamento inesperado surge,
e finalmente o melhor estrategista - se ele se beneficia de qualquer é preciso decidir se vai se mudar ou não de itinerário, infringir o
chance - ganha. No campo da estratégia, o acaso não é apenas o fator regulamento: deve-se fazer uso de estratégia.
negativo a serreduzido. E também a chance que se deve aproveitar. Por isso devemos utllizar múltiplos fragmentos de ação
O problema da açáo também deve nos tomar conscientes das programada para podermos nos concentrar no que é importante, a
derivas e bifurcações: situações iniciais muito próximas podem con- estratégia no acaso.
útzr a afastamentos irremediáveis. Assim, quando Martinho Lutero Não há de um lado um campo da complexidade, que seria o
empreende seu moümento, ele imagina estar de acordo com a Igreja do pensamento, da reflexão, e de outro o campo das coisas simples,
e deseja simplesmente reformar os abusos cometidos pelo papado na que seria o da ação. A ação é o reino concreto e às vezos vital da
Alemanha. Depois, apaÍtr do momento em que deve renunciar, ou complexidade.
continuar, ele ulffapassa um limiar, e de reformador toma-se protestante. A ação pode, claro, contentar-se com a esfatégia imediata que
Uma deriva implacável o arrasta-é o que acontece comtodo desvio-e depende das irúuições, dos dons pessoais do estrategista. Também lhe
vai resultar na declaração de guerra, nas teses de Wittemberg (1517). seria útil beneflciar-se de um pensamento da complexidade' Ora, o
O campo da açáo é muito aleatório, muito incerto. Ele nos pensamento da complexidade é antes de mais nada um desafio.
impõe uma consciência bastante aguda dos acasos, derivas, bifur- Uma visão simplificada linear tem todas as chances de ser
cações, e nos impõe a reflexão sobre sua própria complexidade. mutiladora. Por exemplo, a política do "só petróleo" levava em conta
unicamente o fatorpreço sem considerar o esgotamento das fontes,
A ação escapa às nossas intenções a tendência à independência dos países detentores dessa fonte, os
inconvenientes políticos. Os especialistas tinham afastado de sua
Aqui intervém a noção de ecologia da ação. Desde o momento análise a história, a geografra, a sociologia, apolitica, ateligiáo, a
em que um indivíduo empreende uma ação, qualquer que seja ela, mitologia. Elas se vingaram.

80 81
A máquino não trivial aparente mecânica e na aparente trivialidade dos determinismos.
Ela nos mostra que não devemos nos fechar no "contemporane*
Os seres humanos, a sociedade, a empresa, não são máquinas ísmo", isto é, na crença de que o que acontece hoje vai continuar
triviais: uma máquina trivialé aquela da qual, ao se conhecer todos indefinidamente. Por mais que saibamos que tudo o que aconteceu
os inputs e todos os outputs,pode-se predizer o seu comportamento de importante na história mundial ou em nossa vida era totalmente
desde que se saiba tudo o que entra na máquina. De certa maneira, inesperado, continuamos a agir como se nada de inesperado devesse
nós também somos máquinas triviais das quais se pode em grande acontecer daqui para frente. Sacudir essa preguiça mental é uma
parte predizer os comportamentos. lição que nos oferece o pensamento complexo.
De âúo, aüda social exige que nos comportemos como naáquinas O pensamento cogrplexo não recusa de modo algum aclaÍeza,
tiüais. Esta claro, não agimos como puÍos autômatos, buscamos meios a ordem, o determinismo. Ele os considera insuficientes, súe que não
rÊo friviais quando constatamos que nãopodemos alcançarnossos fins. O se pode programar a descoberta, o conhecimento, nem a ação.
impoftante é que surgem momentos de crise, momentos de decisão, em que A complexidade necessita dquma estratégia. Claro, segmen-
amâqutna se toma não trivial: ela age de uma maneira imprevisível. tos programados com sequências em que o aleatório não intervenha
Tudo o que diz respeito ao surgimento do novo não é frivial e não são úteis ou necessários. Em situação normal, a pilotagem auto-
pode ser dito antecipadamente. Assim, quando os estudantes chineses mâticaé possível, mas a estratégia se impõe desde que sobrevenha
estão na rua aos milhares, a China toma-se uma máquina não ffivial. o inesperado ou o incerto, isto é, desde que apaÍeça um problema
Em 1987-89, na União Soviética, Gorbatchev se comporta como uma importante.
máquina não trivial! Tudo o que se passou na história, sobretudo nas O pensamento simples resolve os problemas simples sem
épocas de crises, são acontecimentos não hiüais que não podem ser problemas de pensamento. O pensamento complexo não resolve
preditos. Joana d'Arc, que escuta vozes e decide procuÍilr o rei da por si só os problemas, mas se constitui numa ajuda à estratégia que
França, temum comporüamentonão fivial. Tudo o quevai acontecerde pode resolvê-los. Ele nos diz: "Ajuda-te, o pensamento complexo
importânte na política francesa ou mundial diz respeito ao inesperado. te ajudará".
Nossas sociedades são máquinas não triviais no sentido em que O que o pensamento complexo pode fazer e daÍ, a cada um,
elas também coúecem sem cessar crises políticas, econômicas e sociais. um memento, um lembrete, avisando: 'Não esqueça que a realidade
Qualquer crise é um acréscimo de incertezas. A probabilidade de divisão é mutante, não esqueça que o novo pode surgir e, de todo modo,
diminui. As desordens tomam-se ameaçadoras. Os antagonismos inibem as vai surgir".
cornplementaridades, os virtuais conflitos se atualizam. Os confooles falham A complexidade situa-se num ponto de partida para uma
-!
ou se quebram. E preciso abandonar os programas, inventar estrategias ação mais rica, menos mutiladora. Acredito profundamente que
para sair da crise. Com frequência necessitamos abandonar as soluções quanto menos um pensamento for mutilador, menos ele mutilará
que remediavam as antigas crises e elaborar novas solu@es. os humanos. É preciso lembrar-se dos estragos que os pontos de
vista simplificadores têm feito, não apenas no mundo intelectual,
Preparar-se para o inesperado mas na vida. Milhões de seres sofrem o resultado dos efeitos do
pensamento fragmentado e unidimensional.
A complexidade não uma receita para conhecer o inespera-
é
do. Mas ela nos torna prudentes, atentos, não nos deixa dormir na

82 83
5.

A complexidade e a empresa*

it

Tomemos uma tapeçaria contemporânea. Ela comporta fios de


liúo, de seda, de algodãoe de 1ã de várias cores. Para conhecer essa
tapeçaia, seria interessante coúecer as leis e os princípios relativos
a cada um desses tipos de fio. Entretanto, a soma dos coúecimentos
sobre cada um desses tipos de fio componentes da tapeçaria é insu-
ficiente para se conhecer esta nova realidade que é o tecido, isto é, as
qualidades e propriedades próprias dessa textura, como, além disso,
é incapaz de nos ajudar a conhecer sua forma e sua configuração.
Primeira etapa da complexidade : temos conhecimentos sim-
ples que não ajudam a conhecer as propriedades do conjunto. Uma
constatação banal cujas consequências não são banais: a tapeçaria
é mais do que a soma dos fios que a constitlem. Um todo é mais
do que a soma das partes que o constituem.
Segunda etapa da complexidade: o fato de haver uma tape-
çariafaz com que as qualidades deste ou daquele tipo de fio não
possam se exprimir plenamente. Elas são inibidas ou virtualizadas.
O todo é então menor do que a soma das partes.

* Extraído de: "A complexidade, grade de leitura das organizações" em Manage-


ment France,janeiro-fevereiro 1986, p. 6-8,e de: "Complexidade e organização"
em "A produção dos conhecimentos científicos da administração", The generation
of scientifique admnistrative lcnowledge, sob a direção de Michel Audet e Jean-
Louis Maloin, Presse de l'Université Laval, Québec, 1986, p. 135-154.

w 85
Terceira etapa: isto apresenta dificuldades para nosso enten- produção em função das necessidades externas, de sua força de
dimento e nossa estrutura mental. O todo é ao mesmo tempo mais trabalho e de suas capacidades energéticas internas. Ora, nós sa-
e menos do que a soma das partes. bemos - jáhâ cerca de quarenta anos, graças à cibernética - que o
Nessa tapeçaria, como na organizaçáo, os fios não estão dis- efeito (uma boa ou má venda) pode retroagir para estimular ou fazer
postos ao acaso. Eles são organizados em função de um roteiro, de regredir a produção de objetos e de serviços na empresa.
uma unidade sintética em que cadaparte contribui para o conjunto. krceiro ângulo: a causalidade recursiva. No processo re-
E a própria tapeçana é um fenômeno perceptível e cognoscível, que cursivo, os efeitos e produtos são necessários para o processo que
não pode ser explicado por nenhuma lei simples. os gera. O produto é produtor do que o produz.
Essas três causa[idades se encontram em todos os níveis de
organizaçóes complexas. A sociedade, por exemplo, é produzida
Três causalidades pelas interações dos indivíduos que a constituem. Aprópria socieda-
de, como um todo organizado e orgpnizador, retroage paraprodtzir
Uma organizaçáo de tipo empresarialfazparte de um merca- os indivíduos pela educação, a linguagem, a escola. Assim os indi-
do. Ela produz objetos ou serviços, coisas que se tornam exteriores víduos, em suas interações, produzem a sociedade, que produz os
a ela e entram no universo do consumo. Limitar-se a uma visão indivíduos que a produzem. Isso se faz num circuito espiral através
heteroprodutora da empresa seria insuflciente. Porque ao produzir da evolução histórica.
coisas e serviços, a empresa, ao mesmo tempo, se autoproduz. Isso Essa compreensão da complexidade necessita de uma mudan-
quer dizer que ela produz todos os elementos necessários para sua
ça bastante profunda de nossas estruturas mentais. O risco, se essa
própria sobrevivênciaeparu sua própria organizaçáo. Ao organizar mudança de estruturas mentais não se produz, seria de caminhar-se
aprodução de objetos e de serviços, ela se arÍo-organiza, se auto- rumo à pura confusão ou à recusa dos problemas. Não temos de
entretém, se necessário se autoconserta, e, se as coisas vão bem, se um lado o indivíduo, de outro a sociedade, de um lado a espécie,
autodesenvolve ao desenvolver sua produção. do outro os indivíduos, de um lado a empresa com seu diagrama,
Assim, ao produzir produtos independentes do produtor, gera-se seu programa de produção, seus estudos de mercado, do outro seus
um processo em que o produtor produz a si mesmo. De um lado, sua problemas de relações humanas, de pessoal, de relações públicas.
autoprodução é necessária para a produção de objetos, de oufo lado Os dois processos são inseparáveis e interdependentes.
a produção dos objetos é necessiiria para sua própria autoprodução.
A complexidade surge neste enunciado: produz coisas e se Da auto-organização à auto-eco-organização
autoproduz ao mesmo tempo; o produtor é seu próprio produto.
Esse enunciado coloca um problema de causalidade. Como organismo vivo, a empresa se auto-organiza e faz srua
Primeiro ângulo: a causalidade linear Se uma dada matéia- autoprodução. Ao mesmo tempo, elafaz a auto-eco-organizaçáo e a
prima, ao sofrer um dado processo de transformação, produz um auto-eco-produção. Esse conceito complexo merece ser elucidado.
dado objeto de consumo, esse movimento se inscreve numa linha Aempresaé colocadanummeio ambiente externo quepor sua
de causalidade linear: tal causa produz tais efeitos. vez integra um sistema eco-organizado ou ecossistema. Tomemos o
Segundo ângulo: a causalidade circular retroativa. Uma exemplo das plantas ou dos animais: seus processos cronobiológicos
empresa tem necessidade de ser controlada. Ela deve efetuar sua suportam a alternância do dia e da noite, como a das estações. A

86 87
ordem cósmica encontra-se de algum modo integrada no interior Wver e lidar com a desordem
da organização das espécies vivas.
Vejamos mais longe, a partir de uma experiência re- Uma empresa se auto-eco-orgatriza com respeito a seu mer-
alizada em 1951 no planetário de Bremen com um pássaro cado: que é um fenômeno ao mesmo tempo ordenado, organizado e
migrador, a toutinegra falante. O planetário fez desfilar, dian- aleatório. Aleatório porque não existe wacertezaabsoluta sobre as
te desse pássaro que emigra no inverno para o vale do Nilo, a chances e as possibilidades de se vender os produtos e os serviços,
abóbada celeste e as constelações que vão do céu da Alemanha mesmo que haja possibilidades, probabilidades, plausibilidades' O
ao do Egito. No planetário, a toutinegra acompanhou o mapa mercado é uma mistura de ordem e de desordem.
do céu sem falhas e se colocou sob o céu de Louxor. Ela "com- Infelizmente - og felizmente - o universo inteiro é um co-
putou" assim seu itinerário em função de marcos celestes. Essa quetel de ordem, desordem e otganizaçáo. Estamos num universo
experiência prova que a toutinegra tinha, de certa maneira, o do qual não se pode eliminar o acaso, o incerto, a desordem. Nós
céu em sua cabeça. devemos viver e lidar com a desor{em.
Nós seres humanos conhecemos o mundo através das men- A ordem? E tudo o que é repetição, constância, invariância,
sagens transrnitidas por nossos sentidos a nosso cérebro. O mundo tudo o que pode ser posto sob a égide de uma relação altamente
está presente no interior de nossa mente, que está no interior de provável, enquadrado sob a dependência de uma lei.
nosso mundo. A desordem? E tudo o que é irregularidade, desvios com
O princípio da auto-eco- organizaçáo tem valor hologramático: relação a uma estrutura dada, acaso, imprevisibilidade.
assim como a qualidade daimagemhologramáticaestá ligadaao fato Num universo de pura ordem, não haveria inovaçáo, criaçáo,
de que cada ponto possui a quase totalidade da informação do todo, evolução. Não haveria existência viva nem humana.
do mesmo modo, de certa maneira, o todo, enquanto todo de que Do mesmo modo nenhuma existência seria possível na pura
fazemos parte, está presente em nossa mente. desordem, porque não haveria nenhum elemento de estabilidade
A visão simplificada diria: a parte está no todo. A visão para se instituir uma organizaçáo.
complexa diz: não só a parte está no todo; o todo está no interior As organizações têm necessidade de ordem e necessidade
da parte que está no interior do todo! Essa complexidade é algo de desordem. Num universo onde os sistemas sofrem incremento
diferente da confusão de que o todo está em tudo e reciproca- da desordem e tendem a se desintegrar, sua organizaçáo permite
mente. refrear, captar e ttilizar a desordem.
Isso é verdade para cada célula de nosso organismo que Toda organi zaçáo,como todo fenômeno fisico, organizacional
contém a totalidade do código genético presente em nosso corpo. e, claro, vivo, tende a se degradar e a degenerar. O fenômeno da de-
Isso é verdade para a sociedade: desde a infância ela se imprime sintegração e da decadência é um fenômeno normal. Ou seja, o normal
enquanto todo em nossa mente, através da educação familiar, a não é que as coisas permaneçam tais como são, pelo contrário, isso
educação escolar, a educação universitária. seria inquietante. Não há nenhuma receita de equilíbrio. A única
Estamos diante de sistemas extremamente complexos, em maneira de lutar contra a degenerescência está na regeneração per-
que a parte está no todo e o todo eslá na parte. Isso é verdade para manente, melhor dizendo, na atitude do conjunto daotganizaçáo a
a empresa que tem suas regras de funcionamento e no interior da Se regenerar e a Se reorganizar fazendo frente a todos os pfocessos
qual vigoram as leis de toda a sociedade. de desintegração.

88 89
A estratégia, o programa, a organização considerada como um conjunto parasitário em que se desenvolve
toda uma série de bloqueios, de atravancamentos que se transfor-
Ordem, desordem, programa, estratégia! mam em fenômeno parasitário no seio da sociedade.
A noção de estratégia se opõe à de programa. Pode-se então considerar o problema da burocracia sob este
Umprograma é uma sequência de ações predeterminadas que duplo ângulo parasitário e racional, e é uma pena que o pensamento
deve funcionaÍ em circunstâncias que permitem sua efetivação. Se sociológico não tenha rompido a bareira dessa alternativa. Sem
as circunstâncias externas não são favoráveis, o programa se detém dúvida ele não podia rompê-la porque o problema da burocracia ou
ou fracassa. Como vimos, a estratégia elúora um ou vários cenários. da administração deve ser colocado antes de mais nada em termos
Desde o início ela se prepara, se há o novo ou o inesperado, para fundamentais no plano da complexidade.
integrá-lo, para modificar ou enriquecer sua ação. Na empresa, o vício da concepção tayloriana do trabalho foi o
A vantagem do programa é evidentemente uma economia de considerar o homem unicamente como uma máquina fisica. Num
muito grande: não se precisa refletir, tudo se faz por automatismo. segundo momento, compreendeu-se que há também um homem bio-
Para se determinar uma estratégia, ao contrário, leva-se em conta lógico; adaptou-se o homem biológicô a seu trabalho e as condições
uma situação aleatória, elementos adversos, até mesmo adversários, e de trúalho a esse homem. Depois, quando se compreendeu que
ela é levada a se modificar em função das informações fornecidas ao existe também um homem psicológico, frustrado pela divisão do
longo do caminho; ela pode ter uma flexibilidade muito grande. Mas trabalho, inventou-se o enriquecimento das tarefas. A evolução do
para que uma organização desenvolva uma estratégia, é necessário trabalho ilustra a passagem da unidirnensionalidade para a multidi-
que ela não esteja concebida para obedecer à programação, que mensionalidade. Estamos apena§ no início desse processo.
possa absorver os elementos capilzes de contribuir para a elaboração O fator'Jogo" é um fator de desordem mas também de flexi-
e o desenvolvimento da estratégia. bilidade: a vontade de impor no interior de uma empresa uma ordem
Acredito, então, que nosso modelo ideal de funcionalidade e implacável não é eficiente. Todas as instruções que, em caso de pane,
de racionalidade não seja apenas um modelo abstrato, mas um mo- de incidentes, de acontecimentos inesperados, exigem aparada ime-
delo nocivo. Nocivo para os administradores, enfim, para o conjunto diata do setor ou da máquina, são contraeficientes. É preciso deixar
da vida social. Tal modelo é evidentemente rígido, e tudo o que está uma parcela de iniciativa acada escalão e a cada indivíduo.
programado sofre de ngidez em relação à estratégia. Claro, numa
administração não se pode dizer que todo mundo possa vir a ser Relações complementares e antagônicas
um estrategista, caso em que se teria uma total desordem. Mas, em
geral, evita-se colocar o problema darigidez e das possibilidades As relações no interior de uma otganizaçáo, de uma so-
de flexibilidade e de "adaptatividade", o que favorece as escleroses ciedade, de uma empresa são complementares e antagônicas ao
no fenômeno burocrático. mesmo tempo. Essa complementaridade antagônica está baseada
A burocracia é ambivalente. A burocracia é racional porque numa ambiguidade extraordinária. Daniel Mothé, antigo operário
aplica regras impessoais válidas para todos e assegura a coesão e a profissional da Renault, descreve como na sua fábrica uma asso-
funcionalidade de uma organização.Mas, por outro lado, essa mes- ciação informal, secreta, clandestina, manifestava a resistência dos
ma burocracia pode ser criticada como sendo um puro instrumento trabalhadores contra a orgarizaçáo rígida do trabalho, permitindo-
de decisões não necessariamente racionais. A burocracia pode ser thes ganhar um pouco de autonomia pessoal e de liberdade. Curio-

90 91
samente, essa organização secreta crjayauma organização flexível Realmente, o sistema não se afundou. Foi uma decisão
do trabalho. A resistência era colaboradora, pois graças a ela as política que escolheu abandoná-lo, visto seu enofine desperdício,
coisas funcionavam. suas fracas performances, sua ausência de inventividade. Enquanto
Pode-se estender esse exemplo a inúmeras esferas. Ao durou,foiaanarquiaespontâneaqtefezaplanlfi caçáoprogramada.
campo de concentração de Buchenwald, criado em 1933 para os Foi a resistência no interior da máquina que fez a máquina andar.
presos políticos e de direito comum alemães. No início, os "direitos A desordem constitui a resposta inevitável, necessária, e mes-
comuns" ocupavam os postos de Kapos e de menor responsabili- mo com frequência fecunda, ao carâter esclerosado, esquemático,
dade na contabilidade, na cozinha. Os ,.políticos,, mostraram que abstrato e simplificador da ordem.
poderiam fazer as coisas funcionarem melhor, sem depredação Coloca-se então uqr problema historico global: como integrar nas
nem desperdício. os sS então confiaram aos políticos comunistas empresas as liberdades e desordens que podem Úazer a adaptabilidade
o cuidado dessa organizaçáo. Assim, uma organização comunista e a inventividade, mas também a decomposição e a morte.
tinha colaborado com os ss enquanto lutava contra eles. A vitória
aliada e a libertação do campo deram visivelmente a essa colabo- Precis a-se de verdadeiras soliàriedades
ração o sentido de uma resistência.
Tomemos o caso da economia soviética até 1990. Ela era Há, pois, uma ambiguidade de luta, de resistência, de co-
regida, em princípio, por uma planificação central hiper-rígida, laboração, de antagonismo e de complementaridade necessária
hiperdetalhista etc. O caráter extremamente rigoroso, programado paÍa a complexidade organizacional. Coloca-se então o problema
e imperativo dessa planificação tornava-a inaplicável. No entanto do excesso de complexidade que, finalmente, é desestruturador.
ela funcionava, através de muita incúria, mas apenas porque se Pode-se dizer, grosso modo, que quanto mais complexa uma or-
trapaceia e se dá um jeito em todos os níveis. por exemplo, os ganizaçáo,mais ela tolera a desordem. Isso lhe dá vitalidade, pois
diretores das empresas se telefonam paraftocar produtos. Ou seja, os indivíduos estão aptos a tomar iniciativa para resolver tal ou tal
no alúo há ordens rígidas; mas embaixo há uma anarquia organi- problema sem ter de passar pela hierarquia central. É uma maneira
zadora espontânea. os casos bastante frequentes de absenteísmo mais inteligente de responder a certos desafios do mundo exterior.
são ao mesmo tempo necessários porque as condições de trabalho Mas um excesso de complexidade finalmente é desestruturador. No
são tais que as pessoas necessitam ausentar-se para encontrar um máximo, maorganização que só tivesse liberdades, e muito pouca
outro servicinho de quebra-galho que lhes permita completar seu ordem, se desintegraria a menos que houvesse em complemento a
salário. Essa anarquia espontânea exprime assim a resistência e a essa liberdade uma solidariedade profunda entre seus membros. A
colaboração da população ao sistema que a oprime. verdadeira solidariedade é a única coisa que permite o incremento
Dito de outro modo, a economia da URSS funcionou graças a de complexidade. Finalmente, as redes informais, as resistências
essarespostadaanarquia espontânea de cadauma das ordens anônimas colaboradoras, as autonomias, as desordens são ingredientes neces-
vindas de cima, e, claro, é preciso que haja elementos de coerção para sários para a vitalidade das empresas.
que isso funcione. Mas isso não funciona só porque há a polícia etc. Isso nos oferece um mundo de reflexões... Assim, a ato-
Isso funciona também porque há uma tolerância de fato ao que se mizaçáo de nossa sociedade requff novas solidariedades espon-
passa na base e essa tolerância de fato garante o funcionamento de taneamente constituídas e não apenas impostas pela lei, como a
uma máquina absurda que, de outro modo, não poderia funcionar. Previdência Social.

92 93
6.

Epis temologia da complexidade*

l}

Durante este intervalo, antes desta discussão, eu tinha dois


problemas de complexidade resolver. Um eu resolvi, o outro não. O
a

primeiro problema era restrito. Tratava-se para mim de tentar rever


todas as anotações feitas sobre as densas intervenções desta manhã,
e isso enquanto comia, porque ao mesmo tempo tiúa fome. Pude
resolver esse problema, não longe daqui, numa sala aqui embaixo.
Servi-me de lulas grelhadas, bebi vinho verde. Infelizmente, durante
esse tempo não pude resolver o segundo exercício de complexidade,
isto é, aparlir de todas as anotações feitas, tentar articular sem ho-
mogeneizar, e respeitar a diversidade sem fazer um puro e simples
catálogo. Encontrei-me diante desse dramático problema, entre a
desordem e a ordem, a desordem que é a dispersão generalizada
e a ordem que é um constrangimento arbitrário imposto a essa

* Francisco Lyon de Castro, diretor da Editora Europa-América, ofereceu a


possibilidade de se organizar em Lisboa, nos dias 14 e 15 de dezembro de 1983,
um encontro, preparado por Ana Barbosa, entre Edgar Morin e sete professores
da universidade portuguesa de diferentes disciplinas (fllosofia, fisica, biologia,
história, psicologia social, literatura).
l'problemas de uma epistemologia complexa", Edgar Morin
Após expor os
reipondeu às observações, às objeções e às críticas dos participantes. São essas
intêrvenções que vamos encontrar a seguir. Elas são extraídas do liwo, inédito
em francês, O problema epistemológico da Complexidade, publicado em Lisboa
por Europa-América. Agradecemos a Francisco Lyon de Castro por ter autorizado
esta publicação.

w 95
diversidade. Ainda uma.vez o problema do uno e do múltiplo. Não conclusão, uma parcela de incerteza, uma parcela de indecidibilidade
consegui. Dou como desculpa o fato de que não tive muito tempo, e o reconhecimento do confronto final com o indizível. Por oufio lado,

mas talvez seja muito mais grave. isso não significa que a complexidade de que falo se confirnda com o

Primeiro, creio que a própria necessidade do tipo de pen- relatMsmo absoluto, o ceticismo do tipo Feyerabend.
samento complexo que sugiro precisa da reintegração do obser- Se começo por me autoanalisar, há em mim uma tensão paté-

vador em sua observação. Eu próprio era aqui totalmente sujeito tica, ou ridícula, entre dois impulsos intelectuais contrários. De um
e totalmente objeto, entre suas mãos. Tenho desta dupla situação lado, é o esforço infatigável de articulação dos saberes dispersos, o
uma impressão muito estimulante e um pouco desencorajadora. esforço de reunificação, e, do outro lado, ao mesmo tempo, o con-
Muito estimulante porque - não digo para lisonjeá-los - todas as tramovimento que o des$ói. Por inúmeras vezes, e desde há muito
suas intervenções me sensibilizaram por sua inteligência. Partici- tempo, citei esta frase de Adorno, que cito mais uma vez no prefiício
pei de colóquios, de debates, mas aqui tudo o que vocês falavam de Ciência com consciência: "Atotalidade é a não verdade"2o, fala
me dizia respeito, me interessava. E, além disso, tive a impressão maravilhosa vinda de alguém quesse formou evidentemente no
de que, para mim, isso podia me ser útil não apenas para refletiq pensamento hegeliano, isto é, movido pela aspiração à totalidade.
mas talvez para me exprimir melhor. Devo dizer também que isso Creio que a aspiração à totalidade é uma aspiração à verda-
me deu o desejo de que se renovem tais experiências, não apenas de, e que o reconhecimento da impossibilidade da totalidade é uma
para mim, mas para outros que vivam uma aventura que, defacto, verdade muito importante. Porque a totalidade é simultaneamente
senío de jure, os leve acruzaÍ disciplinas, afazerviagens no saber. a verdade e a não verdade. Li um texto onde se dizia que havia um

Creio ser muito importante para quem quer que efetue esse tipo de hegelianismo subliminar em minhas concepções. Minha posição
encaminhamento poder confrontar-se com pessoas a quem se possa sobre isso é ao mesmo tempo complexa e clara. O que me fascina
chamar de especialistas, possuindo uma competência precisa num em Hegel é o enfrentamento das contradições que se apresentam sem

campo, e que ele esteja disposto a receber suas críticas. É importante cessar a sua mente, e é o reconhecimento do papel da negatividade.

também considerar o que pode ser o mal-entendido. Não é a síntese, o Estado absoluto, o Espírito absoluto.
Claro, gosto muito de integrar os pensamentos diversos e
Os mal-entendidos adversos. E aí também vocês dirão: "Eis ainda este mórbido desejo
de totalidade, de abarcar tudo". Sim, mas mesmo se retomo o que
Antes de mais nada, primeiro tipo de mal-entendido. Inúmeras disse agora há pouco sobre a totalidade, sobre a frase de Adorno,
vezes pareceu-me que a ideia que fazem de mim é a de uma mente renuncio a qualquer esperança de uma doutrina e de um pensamento
que se pretende sintética, pretende-se sistemática, pretende-se global, verdadeiramente integrados.
pretende-se integradora, pretende-se unificadora, pretende-se afirma- Enquanto alguns veem em mim um mercador de sínteses
tiva e pretende-se suficiente. Tem-se a impressão de que sou alguém integrativas, outros me veem como uma espécie de apologista da
que elaborou um paradigma que tira do bolso dizendo: "Eis o que é desordem, alguém que, neste sentido, se deixa tomar pela desor-
preciso adorar, e queimem as antigas tabuas daLei". Assim, várias dem e que finalmente dissolve qualquer objetividade no seio da
vezes, me atribuíram a concepção de uma complexidade perfeita que subjetividade.
eu oporia à simplificação úsoluta. Or4 aprópria ideia de complexidade
20
Paris, Fayard, 1982. Nova edição revista, Point, Le Seuil, 1990.
comporta em si a impossibilidade de unificar, a impossibilidade da

96 97
Efetivamente, o conjunto seria verdade à condição de provinciali- direita" no sentido em que eu sou muito sensível aos problemas das
zar e associar, se fosse possível, meu gosto pela síntese e meu gosto pela liberdades, dos direitos do homem, das transições não violentas, e
desordenr, isto é, se fosse possível conceber o que em mim é uma tensão "de esquerdt',no sentido em que penso que as relações humanas
trágica. Digo tágica não para me assumir como personagem fágico, mas e sociais poderiam e deveriam mudar em profundidade'
para colocar atagediado pensamento condenado a enfrentar contradi- Então, me denunciavam como'oconfuso", porque era evidente
ções semjamais poder liqúda-las. Além disso, para mim, esse mesmo que, na mente dos que me escutavam, só é possível ser um ou outro.
sentimento tnígico vem acompanhado dabusca de ummetanível em que Querer associar os dois parecia imbecil, suspeito e perverso. Assim, eu
se possa 'lrhapassar" a contadição sem negá-la. Mas o metanível não é sempre teúo a impressão de ser visto como um confuso. Dizem-me:
o da sÍntese cumprida; o metanível tambem comporta sua brecha, suas "Mas o que você é? Você qêo é verdadeiramente um cientista, então
incertezas e seus problemas. Somos levados pela aventura indefinida ou você é filósofo". E os filósofos me dizem: "Você não está inscrito
infnita do conhecimento. em nosso registro". De fato, devo assumir esta espécie de interface,
Uma outra fonte de mal-entendidos se refere a uma palavra entre ciência e filosofla, nem em uma nqm na outra, mas indo de uma
que foi pronunciada, apalavra velocidade. Neste caso, pÇnso que à outra, tentando talvez estabelecer para mim, em mim, por mim, uma
talvez não se trate só da velocidade de minha escrita - pequena certa comunicação. Sou compartimentado numa categoria enquanto
confidência: ettalvezdê a impressão de escrevermuito rápido, mas que me situo fora das categorias. Isso me incomoda sobremaneira,
escrever me faz sofrer enormemente e refaço inúmeras vezes meus visto que eu não compartimento os que me compartimentam, a não
textos. O que me desola é que se tem a impressão de que aperto o ser como compartimentadores.
botão e pronto! Façojorrar trezentas páginas. Quero dizer que isso Após essa introdução um pouco longa, precisamos ver os
não se passa assim. Avelocidadetalveznão seja só a velocidade de problemas-chave. E muito dificil selecioná-los, hierarquizar os
minha escrita, talvez seja a velocidade de leitura de meus leitores, temas e talvezos pré-temas, que estavam por trás dessa jornada. É
que causa alguns mal-entendidos. o que eu vou tentar, cadavez com mais desordem.
No que concerne aos mal-entendidos, talvez não se trate só Eu vou tentar situar-me em meu lugar, em minha vontade,
de constatá-los, de querer diminuí-los ou reduzi-los, mas também de recolocar o que entendo por complexidade, em seguida, muito
se interrogar. E eu me coloco a questão: por que os mal-entendidos rapidamente, o que entendo por paradigma, e, depois, como con-
são tão duradouros e tão numerosos? Eu absolutamente não me cebo o problema sujeito-objeto. Vou abordar esses nós górdios,
considero uma vítima particular dos mal-entendidos. Penso que mas também lhes digo que, de passagem, indicarei os pontos onde
muitos outros, pesquisadores, pensadores, foram vítimas de mal- creio precisar reconhecer insuficiências e subdesenvolvimento no
entendidos ainda mais graves. que já escrevi ou produzi.
Dito isso, a fonte mais profunda de mal-entendidos a meu Diflcilmente posso nomear meu local, meu lugar, já que
respeito está no modo de compartimentar e de estruturar, de ventilar navego entre ciência e não ciência. Sobre o que me fundamento?
meu próprio pensamento, ou seja, finalmente, na organização dos Sobre a ausência de fundamentos, isto é, a consciência da destrui-
elementos do conhecimento. Isso coloca o problema do paradigma ção dos fundamento s da certeza. Essa destruição dos fundamentos,
ao qual voltarei. própria ao nosso século, atinge o próprio conhecimento científlco.
Dou-lhes um exemplo das ideias políticas. Eu era (ainda me No que acredito?Acredito na tentativa de um pensamento, o menos
consideró) ao mesmo tempo de direita e de esquerda. Eu digo "de mutilador possível e o mais racional possível. O que me interessa

98 99
é respeitar as exigências de investigaçáo e de verificação, próprias como os dois princípios podiam ser as duas faces de uma mesma
ao conhecimento científico, e as exigências de reflexão propostas realidade. Perguntei-me como associar os dois princípios, o que co-
ao conhecimento filosófico. locou problemas de lógica e de paradigma. Era esse o meu interesse,
muito mais do que vulgarizar a termodinâmica, do que sou incapaz.
Falar da ciência Gostaria também de tentarjustificar a missão impossível que
pareço ter me determinado. Sei que ela é impossível no plano da
Quando José Mariano Gago falou dessa oposição entre os completude e da finalização, mas pessoalmente não posso aceitar
produtores e os não produtores dos saberes, os vulgarizadores, os estragos e devastações resultantes da compartimentação e da
pensei que de fatohâvárias zonas intermediárias e que a oposição especialização do conhegimento.
não é tão rigida. Há o cientista que reflete sobre sua ciência e que A segunda coisa que me justifica, a meu ver, situa-se no nível
aí mesmo, ipso facto, faz filosofia - Jacques Monod fez um livro das ideias gerais. É certo que as ideias gerais são ideias vazias, mas
sobre a filosofia natural da biologia -, depois há os historiadores não é menos certo que a recusa daqideias gerais é em si mesmo
da ciência, os epistemólogos e os vulgarizadores. uma ideia geral ainda mais vazia, porque é uma ideia hipergeral a
Não gosto que me digam: "Você é um vulgarizador". Por quê? respeito das ideias gerais.
Por duas razões. Primeiro porque tentei discutir ideias na medida em De fato, as ideias gerais não podem ser banidas e terminam
que creio tê-las compreendido, mas sobretudo porque tentei, namedida por reinar às cegas no mundo especializado. O que é interessante na
em que acreditava tê-las assimilado,reorganuÍrlas a miúa maneira. ideia dos themata de Holton ou na dos postulados ocultos de Popper
l, é que os themata e os postulados estão escondidos. São ideias gerais
Tomemos, por exemplo, em meu primeiro volume2 a questão
do segundo princípio da termodinâmica. Devo dizer que, para mim, sobre a ordem do mundo, sobre racionalidade, sobre o determinis-
a

os problemas das ciências fisicas são os últimos em que adentrei, mo etc. Ou seja, há ideias gerais ocultas no próprio conhecimento
e a respeito deles tenho conhecimentos não só superficiais como científico. Isso não é um mal, nem uma deformidade, já que elas
extremamente lacunares. lJmavez concluído esse volume, dei-me têm uma função motize produtora. Eu acrescentaria que o cientista
conta de que havia o liwo de Tonnelat que punha em questão o que mais especial izado tem ideias sobre a verdade. Ele tem idçias sobre
eu pensava ser consenso entre os termodinamicianos. a relação entre o racional e o real. Ele tem ideias ontológicas sobre
Mas o que me interessava era interrogar-me sobre o proble- o que é anab,treza do mundo, sobre a realidade.
ma espantoso que nos legava o século XIX. De um lado, os fisicos Uma vez consciente disso, é preciso olhar para as próprias
ensinavam ao mundo um princípio de desordem (o segundo prin- ideias gerais e tentar colocar em comunicação seus saberes espe-
cípio tendo se tornado um princípio de desordem com Boltzman) cíficos e suas ideias gerais.
que tendia a destruir qualquer coisa organizada; de outro lado, Eu não pretendo triunfar na missão impossível. Busco des-
simultaneamente, os historiadores e os biologistas (Darwin) ensi- lindar um percurso no qual seria possível haver uma rcorganizaçáo
navam ao mundo que havia um princípio de progressão das coisas e um desenvolvimento do conhecimento. Chega um dado momento

organizadas. De um lado, o mundo fisico tende aparentemente à em que algo muda e o que era impossível mostra-se possível. Deste
decadência e o mundo biológico tende ao progresso. Perguntei-me modo, o bipedismo parecia impossível aos quadÚpedes.
É a história de Ícaro. Evidentemente, em A queda de Ícaro,
21
E. Morin, O Método, vo! |, A natureza da natureza , Paris, Seuil, 1 980. de Breughel, o trabalhador tinharazáo de trúalhar sem se importar

100 10t
com o infeliz Ícaro que acreditava voar e que caía lamentavelmen- mento redutor, que só vê os elementos, e o pensamento globalizado,
te. Depois, após muitos Ícaros, cadavezmais evoluídos, houve o que só vê o todo.
primeiro avião e hoje o Boeing 747 que todos usamos, inclusive Como dizia Pascal: "Considero impossível conhecer as partes
eventualmente Ícaro. Não debochem demais dos Ícaros de espírito. enquanto partes sem coúecer o todo, mas não considero menos
Limitem-se a ignorá-los, como o trabalhador de Breughel. Eles impossível a possibilidade de conhecer o todo sem conhecer sin-
gostariam de nos aÍrancaÍ da pré-história do espírito humano. Mi- gularmente as partes". A frase de Pascal nos envia à necessidade
nha ideia de que estamos na pré-história do espírito humano é uma dos vaivéns que coffem o risco de gerar um círculo vicioso, mas
ideia muito otimista. Ela nos abre o futuro, à condição, entretanto, que podem constituir um circuito produtivo como num movimen-
de que a humanidade disponha de um futuro. to da naveta que tece o desenvolvimento do pensamento. Isso eu
disse e repeti durante unia polêmica com J.P. Dupuy, que também
Abordagens da complexidade me acreditava buscando o ideal de um pensamento soberano que
englobasse tudo. Ao contrário, coloc*o-me do ponto de vista da en-
Agora, para sifuar o que quero fazeq vou voltar ao osso duro fermidade congênita do conhecimenià,ia q.r. aceito a contradição e
de roer que é a ideia complexa. aincerleza;mas, ao mesmo tempo, a consciência dessa enfermidade
Antes de mais nada devo dizer que a complexidade,para me pede para lutar ativamente contra a mutilação.
mim, é o desafio, não a resposta. Estou em busca de uma possi- É efetivamente lutar com o anjo. Hoje, eu acrescentaria isto:
bilidade de pensar através da complicação (ou seja, as inflnitas a complexidade não é apenas a união da complexidade e da não
inter-retroações), através das incertezas e através das contradi- complexidade (a simplificação); a complexidade esta no coração
ções. Eu absolutamente não me reconheço quando se diz que da relação entre o simples e o complexo, porque uma tal relação é
situo a antinomia entre a simplicidade absoluta e a complexidade ao mesmo tempo antagônica e complementar.
perfeita. Porque para mim, primeiramente, a ideia de complexi- Creio profundamente que o mito da simplicidade foi exftaor-
dade comporta a imperfeiçáo, jâ que ela comporta a incerteza e dinariamente fecundo parao coúecimento científlco que se querum
o reconhecimento do irredutível. coúecimento não ffivial, que não busca no nível da espuma..dos fenô-
Em segundo lugar, a simplificação é necessária, mas deve menos, mas que buscao invisívelportiâs do fenômeno. Bachelardizia:
ser relativizada. Isto é, eu aceito a redução consciente de que ela é "Só existe ciência no oculto" . Ora,ao procurar o inüsível, enconfa-se,
redução, e não a redução arrogante que acredita possuir a verdade por trás do mundo das aparências e dos fenômenos, o mundo invisível
simples, atrás da aparente multiplicidade e complexidade das coisas. das leis que, juntas, constituem a ordem do mundo. Seguindo-se esse
Além disso, no segundo volume de O Metodo22, eu disse processo, chega-se à visão de um mundo invisível mais real que o
que a complexidade é a união da simplicidade e com a da comple- mundo real, jâ que esüá fundado sobre a ordem, e nosso mundo real
xidade; é a união dos processos de simplificação que são seleção, tende a se tomar um pouco, como na filosofia hinduísta, o mundo das
hierarquização, separação, redução, com os outros contraprocessos aparências, de maya, das ilusões, dos epifenômenos.
que são a comunicação, que são a articulação do que foi dissociado O verdadeiro problema, voltarei a isso, é que esse mundo das
e distinguido; e é a maneira de escapar à alternação entre o pensa- aparências, dos epifenômenos, da desordem, das interações, é ao
mesmo tempo nosso mundo e que, no mundo invisível, náo é a
22E.Moin,La méthode,vol.2,Lavie de lavie,
op. ciÍ.(O Método 2, Sulina,2002). ordem soberana que existe, é uma outra coisa. Essa outra coisa

102 103
nos é indicada pela estranha coexistência da fisica quântica e da
pensamento que considera o mundo, e não como o principio reve-
fisica einsteiniana. Ela nos é revelada pela experiência de Aspect,
iador da essência do mundo. É nesse sentido regulador que procurei
realizadapara testar o paradoxo de Einstein-Podols§-Rosen. Essa
formular algumas regÍas. Elas se encontram nas páginas que chamo
experiência mostra que o que Einstein considerava absurdo, ou seja,
de "Os mandamentos da complexidade"23. Não vou lê-las aqui a
falso, é verdadeiro.
vocês, mas há dez princípios: da incontornabilidade do tempo, da
Gostariadequestionar seu amigo fisico sobre o significado dessa
relação do observador com a observação, da relação do objeto e de
experiência. Coúeço fês tipos de interpretações relativas a ela: a de
seu meio ambiente etc. Peço-lhes que as releiam' Eis o que e para
Bohm acompanhada por J. P. Vigier, a de Espagnat e a de Costa de
mim a cumplicidade, efetivamente, a complexidade'
Beauregard. Nosso universo, onde todas as coisas estão separadas
for que disse invqluntariamente cumplicidade? É que me
no e pelo espaço, é ao mesmo tempo um universo onde não há
sinto em profunda cumplicidade com meu crítico Antonio Mar-
separação. Isso mostra que, em nosso universo da distinção, há
ques. creio que euo encontro nesse plano. A complexidade não
alguma outra coisa a mais (por trás?) onde não hrá distinção. No plano
é um fundamento. É o princípio regrdador que não perde de vista
da complexidade, isso quer dizer que por trás das aparências não há
a realidade do tecido fenomênico no qual estamos e que constitui
complexidade, nem simplicidade, nern ordem, nem desordem, nem
nosso mundo. Tínhamos falado também de monstros; de fato, eu
organizaçáo. Então, alguns poderão reconsiderar sob esse ângulo as
creio efetivamente que o real é monstruoso. Ele é enonne, fora de
ideias taoístas sobre o vazio insondável considerado como a única
norÍna, escapa a nossos conceitos reguladores no mais alto grau,
e fundamental realidade.
mas podemos tentar controlar ao máximo essa regulação'
Para mim, a ideia fundamental da complexidade não é a de
que a essência do mundo seja complexa e não simples. É que essa
O desenvolvimento da ciência
essência seja inconcebível. A complexidade é a dialógica ordem/
desordem/organizaçáo. Mas, por trás da complexidade, a ordem
Eu gostaria de dizer, para passar a um outro ponto, que, ao
e a desordem se dissolvem, as distinções se diluem. O mérito da
falar daciência clássica, eu, como fizerama sua maneira Prigogine
complexidade é o de denunciar a metafisica da ordem. Como dizia não
e stengeq enfrentei um tipo ideal, um tipo abstrato. Sem dúvida
muito justamente Whitehead, por trás da ideia de ordem havia duas ideal", uma'oraciona-
explicitei bastante que se ffatavade um "tipo
coisas: havia a ideia mágica de Pitágoras, de que os números são
lizaçáoutópica", como dizia Max Weber. No que já publiquei até o
a realidade última, e a ideia religiosa ainda presente, em Descartes
momento, há uma carência que vocês não encontrarão mais em meu
como em Newton, de que a inteligência é o fundamento da ordem
próximo livro. Deixei de mostrar como, e a despeito de seu ideal
do mundo. Então, ao se retirar a inteligência divina e a magia dos
simplificador, a ciência progrediu porque ela era de fato complexa.
números, o que resta? Leis? Uma mecânica cósmica autossuficien-
Ela é complexa porque ao nível de sua própria sociologia há uma
te? Será a verdadeira realidade? Será a verdadeira natureza? A essa
luta, um antagonismo complementar entre seu princípio de rivali-
frágil visão eu oponho aideia da complexidade.
dade, de conflito de ideias outeorias e seuprincípio deunanimidade,
Nesse quadro, diria que aceito plenamente relativizar a
de aceitação da regra de verificação e argumentação'
complexidade. De um lado, ela integra a simplicidade e, de outro
lado, abre-se para o inconcebível. Estou totalmente de acordo,
nessas condições, em aceitar a complexidade como princípio do 23
Ciência com consciência, op. cit.

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A ciência se baseia ao mesmo tempo no consenso e no con- Então, o desenvolvimento da ciência segue este princípio
flito. Anda ao mesmo tempo sobre quatro patas independentes e espantoso: nunca encontramos o que procuramos. Até mesmo
interdependentes: a racionalidade, o empirismo, a imaginação, a encontramos o contrário do que procuramos. Acreditamos ter
verificação. Há conflito permanente entre racionalismo e empirismo; encontrado a chave, acreditamos encontrar o elemento simples e
o empírico destrói as construções racionais que se reconstituem a encontramos alguma coisa que relança ou reverte o problema. Eu
partir das novas descobertas empíricas. Há uma complementaridade acrescento, sempre no que diz respeito a essa ideia de redução que,
conflitual entre a veriflcação e a imaginação. Enfim, a complexi- como vocês disseram, redtzit a química à microfisica não impede
dade científica é a presença do não científico no científico, o que que a química permaneça. Hâ, de fato, níveis, escalas, ou melhor,
não anula o científico; ao contrário, lhe permite exprimir-se. Creio não só escalas; há igualrtente os ângulos de visão, o ponto de vista
que efetivamente toda a ciência moderna, a despeito das teorias do observador; há também níveis de organização. Nos diferentes
simplificadoras, é uma empresa muito complexa. Você tem total níveis de organização emergem certas qualidades próprias a esses
razáo em dar exemplos para dizer que em seu processo ela nem níveis. E preciso, pois, fazer interrrir considerações novas a cada
sempre procurou obsessivamente a simplificação. nível. Também, nesse caso, são limites ao reducionismo.
Depois, teríamos que falar, se fôssemos fazer a história da Tudo isso para dizer que o ceme da complexidade é a impossibi-
ciência, deste período visto como um fracasso, mas no entanto tão lidade de homogeneizar e de reduzir, é a questão do unitas multiplex.
rico, denominado a ciência romântica. Negligenciei problemas mui-
to interessantes e pequei por simplificação, não por complexiflcação. Ruído e informação
A propósito da redução, efetivamente, o jogo é muito
mais sutil do que parece. Toda conquista da redução se faz, na Na construção de meu roteiro, no entanto, houve alguma coisa
realidade, ao preço de uma nova complexiflcação. Tomemos o que não me foi possível enquadrar. Foi o discurso do sr. Manuel
exemplo bem recente da biologia molecular. Aparentemente, Araujo Jorge.
ela anunciava a vitória dos reducionistas sobre os vitalistas, já Sem querer fazet tête-à-tête, nem tampouco corpo a co{po,
que se mostrava que não há matéria viva, mas sistemas vivos. quero seguir os pontos de articulação dessa discussão critica.
Ora, Popper nos indicou que o reducionismo físico-químico se Antes de mais nada, algumas de minhas formulações talvez
fez ao preço da reintrodução de toda a história do cosmos, isto possam ter dado a entender que de meu ponto de vista o ruído é a
é, ao menos quinze bilhões de anos de acontecimentos. Porque única fonte do novo. No entanto, eu reagi imediatamente às teses
para poder redlzir o biológico ao químico, será precis o refazer canônicas da biologia molecular e à explicação pelo acaso de toda
toda a história da matéria viva, a constituição das partículas, a novidade evolutiva. Escrevi que o acaso, sempre indispensável,
constituição dos astros, os átomos, o átomo de carbono. Assim, jamais está sozinho e não explica tudo. E preciso que haja o en-
essa redução se faz ao preço de uma complexificação histórica. contro entre o acaso e uma potencialidade organizadora. Portanto,
Atlan nos mostra que reduzir o biológico ao físico-químico não reduzi o novo ao o'ruído". É preciso alguma coisa semelhante
obriga a complexificar o físico-químico. Eu acrescentei que o a uma potencialidade reorganizadora inclusive na auto-organizaçáo
reducionismo biológico paga seu preço ao introduzir noções que que recebe o acontecimento aleatório.
não estavam previstas neste programa reducionista: a ideia de Em segundo lugar, o senhor faz alusão à crítica de Atlan sobre
máquina, a ideia de informaçáo, a ideia de programa. a alta e baixa complexidade. Levei em conta essa crítica em meu

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segundo volum e de O Metodo2a. Eu corigi. Eu flz miúa autocrítica. Acrescento que, no desenvolvimento da esfera biológica, há
Se o senhor me psicanalizou, sem dúvida com muita razão,talvez não só capacidade para integrar desordens ou para tolerá-las, mas
não teúa psicanalizado o suficiente minhas atitudes autocorretivas. igualmente um incremento da ordem. A ordem biológica é uma
De fato, continuo a considerar muito rica a ideia de que ordem nova, já que é uma ordem de regulação, de homeostasia, de
quanto mais é complexo, mais é diverso, mais há interações, mais programação etc. Também digo hoje que a complexidade é corre-
há acasos, ou seja, que a mais alta complexidade desemboca final- lativamente a progressão da ordem, da desordem e daorganização.
mente na desintegração. Continuo a pensar que os sistemas de alta Digo também que a complexidade é a mudança da qualidade da
complexidade que tendem a se desintegrar só podem lutar contra a ordem e a mudança das qualidades da desordem. Na mais alta com-
desintegração através de sua capacidade de criar solução aos proble- plexidade, a desordem prna-se liberdade e a ordem é muito mais
mas. Mas subestimei, sem dúvida, anecessidade de limites, ou seja, regulação que constrição. Em cima disso, portanto, modifiquei meu
de imposição da ordem. É preciso dizer-lhes também que na minha ponto de vista e uma vez mais eu o modifiquei complexificando.
luta contra a metafisica da ordem, reinante no início dos anos 1970 No que diz respeito à teoria {a informação, também evoluí.
(hoje ela não reina mais de modo algum), a obsessão de destronar Eu lamento um pouco ter introduzido a informação no primeiro
a ordem pode parecer privilegiar a desordem. Apesar disso creio volume de O Método26. O que me tinha fascinado era descobrir a
que desde o primeiro volume de O Metodo2r, eu formulo alguma partir de Brillouin que a informação podia ser definida fisicamen-
coisa completamente diferente do princípio da ordem a partir do te. Na realidade, era uma verdade parcial. A informação deve ser
ruído de Atlan, sendo ainda parte dessa ideia, ela própria provinda definida de maneira fisico-bio-antropo1ógica.
da ideia de von Foerster: "Orderfrom noise". A informação tem alguma coisa de fisica, incontestavelmen-
Não apenas eu introduzi ai a ideia de organização que estií te, mas ela só aparece com o ser vivo. Nós o descobrimos muito
ausente das duas concepções, como coloquei o tefagrama ordem/ tardiamente no século XX. Eu acrescento que o papel da noção de
desordem/interação/organizaçáo. Esse tetragrama é incompressível. informação como o de entropia e de neguentropia diminuiu para
Não se pode conduzir a explicação de um fenômeno a um princípio mim. A teoria da informação me parece cadavez mais um instru-
de ordem pura, nem a um princípio de desordem pura, nem a um mento teórico heurístico e não mais uma chave fundarnental da
princípio de organização última. É preciso misturar e combinar inteligibilidade. Não posso me situar no interior dessa teoria. Só
esses princípios. posso utilizar o que essa te oiatraz,ou, melhor, seus prolongamentos
A ordem, a desordem e a organização são interdependentes e do tipo Brillouin ouAtlan. De resto, apalavraneguentropia quase
neúuma é prioritária. Se alguém disse que a desordem e oiginátia, desaparece da sequência de meus escritos porque não a julgo tão útil.

foi Serres, mas não eu, nem Atlan, nem Prigogine. Minha ideia do
tetragramanão é de modo algum análoga à formula do tetragramado Informação e conhecimento
monte Sinai que dá as tabuas da Lei. É, ao contrário, um tetragrama
que diz: eis aqui as condições e os limites da explicação. Dito isso, vamos ao problema da diferença entre informação
e conhecimento. Problema-chave, eu creio. Aqui me vem uma frase
de Elliot: "Que conhecimento nós perdemos na informação e que
2a
E. Morin, O Método, vol.2, A vida da vida, op. cit.
25
E. Morin, O Método, vol. I , A natureza da natureza, Paris, Seuil, 1977.
26
E. Morin, O Método, vol.l, A natureza da natureza, op. cit.

108
r09
sabedoria perdemos no conhecimento?". São níveis de realidade Aqui surge uma ideia na qual acredito muito: o conheci-
completamente diferentes. Eu diria que a sabedoria é reflexiva, que mento supõe não apenas uma separação certa e certa separação
o conhecimento é organizador e que a informação se apresenta sob a com o mundo exterioE mas supõe também uma separação consigo
forma de unidades a rigor designáveis sob forma de bits. Para mim, mesmo. Minha mente, por mais esperta que seja, ignora tudo do
a noção de informação deve absolutamente ser secundarizada em cérebro do qual ela depende. Ela não pode descobrir soziúa que
relação à ideia de computação. Apassagem do primeiro ao segundo ela funciona através das interações intersináticas entre miríades
volume de O Método é a passagem paÍa a dimensão computacional. de neurônios. O que é que minha mente conhece de meu corpo?
O que é importante? Não é a informação, é a computação que Nada. O que minha mente conhece de meu corpo ela só o pode
f:atae, eu diria mesmo, que extrai informações do universo. Eu estou conhecer por mejos externos, os meios da investigação científica.
de acordo com von Foerster ao dizer que as informações não existem Eu dei o exemplo de MarcoAntônio e Cleópatra. No momento em
na nattxeza. Nós as extraímos da nabxeza; nós transformamos os que MarcoAntônio proclama seu amorpor Cleópatra, ele não sabe
elementos e acontecimentos em signos, nós arrancamos a informação que ele é composto de algurç bilhões de células que, elas mesmas,
do ruído a parlir das redundâncias. Claro, as informações existem ignoram quem é Cleópatra. Elas ignoram que elas constituem um
desde que seres vivos se comuniquem entre si e interpretem seus homem que se chama Marco Antônio que está apaixonado por
signos. Mas, antes da vida, a informação não existe. Cleópatra. É inaudito que o conhecimento emerge de um iceberg
A informação supõe a computação viva. Além disso, devo de descoúecimento prodigioso em nossa relação conosco mesmog,
fazet esta precisão: a computação não se resume de modo algum O desconhecido não é apenas o mundo exterior; somos, sobrejtu-
ao tratamento das informações. A computação viva comporta aos do, nós mesmos. Assim, vejamos como o conhecimento supõe a
meus olhos uma dimensão não digital. A vida é uma organizaçáo separação entre o conhecendo e o conhecível e supõe a separação
computacional que, por isso mesmo, comporta uma dimensão interna conosco mesmos.
cognitiva indiferenciada em si mesma. Esse conhecimento não se
conhece a si próprio. A bactéria não conhece o que ela conhece, e Paradigma e ideologia
ela não sabe que sabe. O aparelho cerebral dos animais constitui
um aparelho diferenciado do conhecimento. Ele não computa di- Conhecer é produzir uma tradução du, ..rlidrd"s do mundo
retamente os estímulos selecionados e codiflcados pelos receptores exterior. De meu ponto de vista, somos produtores do objeto quo
sensoriais; ele computa as computações que fazemseus neurônios. coúecemos; cooperamos com o mundo exterior e é essa coprodu-
Surge então adiferençaenfe informação e coúecimento, porque ção que nos dá a objetividade do objeto. Somos coprodutores de
o conhecimento é organtzador. O conhecimento supõe uma relação de objetividade. Por isso faço da objetividade científica não apena§
abertua e de fechamenúo entre o conhecendo eo conhecido. O problema do um dado, mas também um produto. A objetividade concerne
coúecimento como o da organização úva é de ser ao mesmo tempo aberto igualmente à subjetividade. Acredito que se possa fazer ruma
e fechado. É o problema do ómputo.auto-exo-referente. E o problema da teoria objetiva do sujeito apartir da auto-orgarização própria ao
fronteiraque isolaacélulae que ao mesmotempo afaz se comunicmcom ser celular, e essa teoria objetiva do sujeito nos permite conceber
o exterior. O problerna é conceber a abertura que condiciona o fechamento os diferentes desenvolvimentos da subjetividade até o homem
e üce-versa. O aparelho cerebral esta separado do mundo exteriorpor seus sujeito-consciente. Mas essa teoria objetiva não anula o caráter
mediadores que o ligam a este mundo. subjetivo do sujeito.

110 lll
Vou passar muito rapidamente pela ideia de paradigma, já que me pelas ideias inclusas ou implícitas nas teorias científicas. Eu
dou uma definição diferente daquela, hesitante e incerta, de Kuhn. me interesso, sobretudo, pelo repensar que os avanços das ciências
Dei uma definição que aparentemente se situa entre a deflnição da fisicas e biológicas exigem. Assim, para tomar ainda o exemplo
linguística estrutural e a definição da vulgata, ao estilo de Kuhn. da partícula, passou-se da particula conceito-fundamento para a
Um paradigma é um tipo de relação lógica (indução, conjunção, partícula conceito-fronteira; a partir de então, a partícula não nos
disjunção, exclusão) entre certo número de noções ou categorias remete de modo algum à ideia de substância elementar simples; ela
mestras. Um paradigma privilegia certas relações lógicas em detri- nos conduz à fronteira do inconcebível e do indizível. Então faço a
mento de outras, e é por isso que um paradigma controla a lógica aposta de que entramos na verdadeira época de revolução paradig-
do discurso. O paradigma é uma maneira de controlar ao mesmo máticaprofunda, digamos talvezmais radical que a do século XVI-
tempo o lógico e o semântico. XVII. Creio que particiframos de uma transformação secular que é
Uma palavrinha também sobre a questão da ideologia. para muito dificilmente visível porque não dispomos do futuro que nos
mim, a palawa ideologia tem um sentido inteiramente neutro: uma permitiria considerar o cumprimento da metamorfose. Para dar uma
ideologia é um sistema de ideias. Quando falo de ideologia, não comparação, diria que é como no pa&fico durante a Segunda Guerra
denuncio nem designo as ideias dos outros. Levo uma teoria, uma Mundial, quando as frotas americanas e japonesas estavam em luta.
doutrina, uma filosofia a seu gÍav zeÍo, que é o de ser um sistema Navios, torpedeiros, tanques, submarinos, aviões atacavam-se uns
de ideias. aos outros por centenas de quilômetros. Eram milhares de combates
singulares, cada um aleatório e ignorando os outros. Finalmente,
Ciência efilosofia uma frota bate em retirada,e dizem: os americanos gaúaram. Então,
enfim, cada um dos combates singulares ganha sentido...
Agora, sobre o problema ciência-filosofla, eis uma precisão Hoje, há um nó górdio, e uma revolução em curso, combates
que também me parece indispensável. Meu livro Ciência com muito dificeis. Não há coincidência entre a consciência do cientista e
consciêncidTse inicia por um artigo intitulado "para a Ciência,,. O o que ele fazverdaderamente... Então, vocês me dizem,é o cientista
que significa que para mim a ciência é a aventura da inteligência que tem razáo. Mas ele sabe o que faz? A ciência tem consciência
humana que trouxe descobertas e enriquecimentos inauditos, aos de sua transformação? Não é absolutamente certo. A consciência
quais a reflexão não seria capaz de aceder sozinha. Shakespeare: de si não é uma garantia de extralucidez. Nós o verificamos sem
"Há mais coisas no céu e na terra que em toda vossa filosofia',. Isso cessar na vida cotidiana.
não me leva de modo algum a desprezar, no entanto, a filosofla, já De meu ponto de vista, as tomadas de consciência necessitam
que hoje, neste mundo glacial, é o refrrgio da reflexividade. penso da autocrítica, mas esta tem necessidade de ser estimulada pela crí-
que a união de ambas, por mais dificil que seja, é desejável, e não tica.Hâ, infelizmente, no universo dos cientistas um conformismo,
me resigno ao estado de disjunção ou de divórcio que reina e que uma satisfação tanto maior porque ela lhes mascara a questâo cada
geralmente é sofrido ou aceito. vez mais terrível: para onde vai a ciência? Colocou-se uma questão
Segundo ponto de vista sobre a ciência: sou completamente externa, após Hiroshima, depois interna à consciência do sábio ato-
distante dos laboratórios das ciências especializadas, mas interesso- mista; a tecnoburocratizaçáo da ciência coloca ao cidadão, como ao
cientista, o problema da ciência como fenômeno social.
" f-tuto"", Ciencia com consciência,nova edição, coll. Points, 1990.

lt2 lt3
Ciência e sociedade Além disso, dei-me conta, ao reler o volume da Plêiade, que Piaget
tivera esta ideia de o'círculo das ciências", de circuito das ciências,
A relação ciência-sociedade é muito complexa porque a ideia que exprimi de maneira um pouco diferente no que chamo de
ciência, saída da periferia da sociedade, graças a alguns espíritos meu círculo epistemológico, em que frato com muita insistência dos
independentes, tornou-se uma instituição através das sociedades beneficios e das dificuldades. Da mesma forma, Piaget nos traz a
científicas, as academias. Hoje, ela está instalada no coração da ideia do sujeito epistêmico que considero fecunda. Sou partidário do
sociedade. Ao difundir sua influência sobre a sociedade, ela própria construtivismo piagetiano, mas com a reserva de que ele esquece do
sofre a determinação tecnoburo cráúica da organização industrial do construtivismo. Piaget ignorava a necessidade de forças complexas
trabalho. E muito dificil perceber as inter-retroações entre ciência e organizadoras inatas pgra que houvesse aptidões importantes para
sociedade. Será também uma sociologia complexa, um coúecimen- conhecer e aprender. E preciso que haja nisso muito de inato, não
to complexo que permitirá compreender essas relações. Colocamo- no sentido de programa inato de comportamentos, mas de estruturas
nos essas questões muito tardiamente. Foi muito recentemente que, inatas capazes de adquiri-lo.
b
por exemplo, na França - há dois anos - criou-se um comitê STS, O diálogo Piaget-Choms§ é umpouco um diálogo de surdos,
"Ciência, Técnica, Sociedade", para elucidar esses problemas, afacetabítrbara de uma discussão entre dois espíritos civilizados.
porque nenhuma disciplina instituída permite elucidar esse tipo de Piaget tinha uma dificuldade grande em admitir o papel forte do que
interações. Isso se inicia muito mal e com muita dificuldade, tanto se pode chamar de estruturas inatas de percepção de construção.
que é dificil criar um quadro conceitual transdisciplinar. Choms§permaneciarígido nesse inatismo sem se colocara questão
colocada por Piaget: mas de onde vem a construção das estruturas
Ciência e psicologia inatas? Essa construção só pode ser fruto de uma dialógica com o
meio exterior, mas o estado atual dos conhecimentos não permite
Jorge Correia Jesuíno apontou miúa insuficiência com respei- nenhuma explicação. Por isso Piaget se empenhava em encontrar
to a Piaget. Estou de acordo com isso . É por razões às vezes aleatórias uma chave com sua teoria da fenocópia. Enfim, estou com Piaget
e contingentes que me refiro bem pouco a Piaget de maneira explíci- no que se refere à origem biológica do conhecimento. Mas ficava
ta. Antes de mais nada, os autores abundantemente citados em meu espantado com minhas descobertas ulteriores, pelo fato de que
trabalho são os que descobri após os anos de 1968 e sobre os quais Piaget permanecia ao nível da ideia de organização e de regulação
tomava notas em função de O Metodo28. Conhecia Piaget de antes sem aceder à problemática complexa da auto-organização.
e eu o reli pouco. Reli a obra coletivapiagetianada Plêiade sobre a Sem me justificar, digo isso para me explicar e também
epistemologia2e,emque há textos muito importantes. Assim, Piaget para lamentar um silêncio injusto. Você tem razáo também sobre a
parece subestimado em meus livros embora seja um autor crucial. dimensão psicológica que parece ausente de miúa preocupação,
Ele se encontra no cruzamento das ciências humanas, da biologia, ainda que conte integráJa no livro que escrevo. Recordo-lhes que
da psicologia e da epistemologia. Creio que, em O conhecimento em meus estudos sobre O homem e a morte3oe sobre O homem
do conhecimento, eu não subestimarei a epistemologia genética. imaginário3r, essa dimensão estava realmente presente.

28
E. Morin, O Método, op. cit. 30
E.i|.4orjn, L'homme et la mort, Pais, Le Seuil, nouvelle éd. Coll. Points, 1976.
2e 3r
J. Piaget, Lógica e conhecimento científico, Paris, Gallimard, 1967. E. Morin, Ze cinéma ou I'homme imaginaire, Paris, Minuit, nouvelle éd. 1978.

tt4 u5
Competências e limites
O conceito de trabalho, de origem antropossociológico, tornou-se
um conceito fisico. O conceito científico de informação, provindo
Chego ao problema-chave dos limites: como, apesar desses
do telefone, tornou-se um conceito Íísico, depois migrou à biologia,
limites, pensar em seÍrnos ajudados pelas contradições? Como as onde os genes se tornaram portadores de informação.
aporias que nos interditam pensar podem, de uma outra maneira, nos
estimular apensar? Recordemos aporias bem conhecidas. Como se
A migração dos conceitos
pode aprender sejá não se sabe? Sejá sabemos, então não apren-
demos nada. E no entanto, aprende-se anadar, aprende-se a dirigir,
Os conceitos viajam e é melhor que viajem sabendo que via-
aprende-se a aprender. Não devemos, pois, nos deixarmos bloquear jam. E melhor que não rriajem clandestinamente. É bom também
pelas contradições lógicas, mas não devemos, evidentemente, cair
que eles viajem sem serem percebidos pelos aduaneiros! De fato, a
no discurso incoerente.
circulação clandestina dos conceitos ao menos permitiu às discipli-
nas respirar, se desobstruir. A ciência ustaria totalmente atravancada
Um autor não oculto
se osconceitos não migrassem clandestinamente. Mendelbrot dizia
que as grandes descobertas são frutos de erros na transferência dos
Devo responder às questões a meu respeito? Escutem, não
conceitos de um campo a outro, realizadas, acrescentava ele, pelo
vou responder sobre as coisas mais subjetivas, ainda que minha pesquisador de talento. É preciso talento para que o effo se torne
subjetividade tenha vontade de lhes responder. Mas, ainda assim,
fecundo. Isso mostra também a relatividade do papel do erro e da
talvez deva exprimir a consciência de existir pessoalmente em mi-
verdade.
nha obra. Sou um autor não oculto. Quero dizer com isso que me
Vocês fizeram alusãoamiúatendência aosjogos de palawas
diferencio dos que se dissimulam ahás da aparente objetividade
como "os limites da consciência e a consciência dos limites". He-
de suas ideias, como se a verdade anônima falasse por sua pena.
gel, Marx, Heidegger dedicaram-se aos jogos de palavras. Isso me
Ser autor é assumir suas ideias no melhor e no pior. Sou
diverte. Muitos amigos, ao lerem meus manuscritos, me disseram:
um autor que, além disso, se autodesigna. Preciso dizer que essa
"Retire estes trocadilhos, os cientistas não vão te levar a sério!".
exibição comporta também a humildade. Entrego minha dimensão
Fui tentado a seguir o conselho de meus amigos. Depois disse: não,
subjetiva, coloco-a na mesa, dando ao leitor a possibilidade de
eu estaria me lesando. Quis me dar um pequeno prazeÍ subjetivo
detectar e de controlar minha subjetividade. Tento ser denotativo
complementar. É grave? Creio que não é somente o autor, mas
ao dar definições e creio definir todos os conceitos que prenuncio.
também as palavras que brincam com elas mesmas. Como dizia o
Mas, uma vez colocada a definição, deixo-me levar pela linguagem,
poeta, as palavras fazem amor. Na formula citada sobre os limites
com tudo o que a conotação nos traz de ressonância e de evocação.
da consciência, o que é interessante é o balanço e o retorno: você
Sou sensível aos poderes, aos encantos da conotação. Cedo a
inverte, você permuta os termos e o predicado vira sujeito, o sujeito
isso, mas também me sirvo disso. No que concerne à analogia, cri-
predicado. Por aí mesmo, você opera eventualmente um movimento
ticam-me por minhas metáforas. Primeiro, faço metáforas sabendo
circular e o pensamento recomeça, de uma maneira recursiva. É o
que são metáforas. E muito menos grave do que fazer metáforas sem
efeito que retroage sobre a causa e o produto que se volta sobre o
saber que se o faz. Além disso, sabe-se que a história das ciências
produtor. Essa própria ideia de circularidade recursiva pode ser dita
é feita de migração de conceitos, isto é, literalmente de metáforas.
poeticamente. Gérard de Nerval disse: '.A décima terceira retorna, é

tt6
n7
sempre a primeira". Vocês não dirão "senhor, por que o senhor fala nica, no conhecimento danatureza, mas nos mitos. Por todas essas
desse modo? Pode-se simplesmente dizer que quando forem treze razões, creio que estamos no início de uma grande aventura. Em O
horas é uma horapronto". Mas vocês perdem o círculo. Ou, como
e paradigma perdido32, digo que a humanidade tem vários começos.
diz Elliot: "O fim está no ponto de partida". Compreende-se muito A humanidade não nasceu rtmayez, ela nasceu várias vezes e eu
bem o que ele quer dizer. Deve-se compreender que as metáforas sou daqueles que esperam por um novo nascimento.
fazem parte da convivialidade da linguagem e da convivialidade Eu me explico agora sobre o termo de idade de ferro plane-
das ideias. tária. A idade de ferro planetáriaindica que nós entramos na era
planetátria em que todas as culturas, todas as civilizações, estão a
A razão partir de agora em interconexão permanente. Ela indica, ao mesmo
tempo, que, apesar das intercomunicações, vive-se uma barbárie
A razã"o? Eu me considero como racional, mas parto da total nas relações entre raças, entre culturas, entre etnias, entre po-
ideia de qtue a razão é evolutiva e que a razão traz em si seu tências, entre nações, entre superpotências. Nós estamos na idade
pior inimigo! E a racionalização, que corre o risco de sufocá-la. de ferro planetária e ninguém sabe se sairemos dela. A coincidência
É preciso levar em consideração tudo o que foi escrito sobre a entre a ideia de idade de ferro planetâia e a ideia de que estamos
razáopor Horkheimer, Adorno ou Marcuse. Arazáonáo é dada, na pré-história do espírito humano, na era de barbárie das ideias
arazáo não corre sobre trilhos, arazáo pode se autodestruir, por tal coincidência não é fortuita.
processos internos que são a racionalização. Esta é o delírio Pré-história do espírito humano signiflca dizer que, no plano
lógico, o delírio da coerência que deixa de ser controlada pela do pensamento consciente, estamos apenas no começo. Ainda esta-
realidade empírica. mos submissos a modas mutiladoras e disjuntivas de pensamento
Do meu ponto de vista, arazáo se define pelo tipo de diálogo e ainda é muito dificil pensar de modo complexo.
que mantém com um mundo exterior que lhe resiste; finalmente, a A complexidade não é areceita que trago, mas a chamada à
verdadeira racionalidade reconhece a irracionalidade e dialoga com civilizaçáo das ideias. A barbárie das ideias significa também que
o irracionalizável. Deve-se repetir que na história do pensamento, os sistemas de ideias são bárbaros uns em relação aos outros. As
pensadores irracionalistas com frequência trouxeram o corretivo teorias não sabem conviver umas com as outras. Não sabemos, no
racional.a racionalizações dementes. Kierkegaard disse de Hegel: plano das ideias, ser verdadeiramente conviviais. O que quer dizer a
"O senhor professor sabe tudo sobre o universo, ele simplesmente palavra barbárie?Apalavrabarbárie quer dizer o incontrolado. Por
esqueceu quem é". Foi necessário esse crente místico para fazet exemplo, a ideia de que o progresso da civilizaçáo se acompanha
essa constatação racional. Niels Bohr, muito racionalmente, nos de um progresso da barbárie é uma ideia muito aceitável quando
faz aceitar a apoia da onda e do corpúsculo, pelo menos enquanto se compreende um pouco da complexidade do mundo histórico-
não se pode ir além disso. Falemos de novo de Piaget. A razão é social. É verdade, por exemplo, que numa civilizaçào urbana que
evolutiva e vai ainda evoluir. oferece tanto bem-estar, desenvolvimentos técnicos e outros, a
Creio que a verdadeira racionalidade é profundamente to- atomizaçáo das relações humanas conduz a agressões, a barbáries,
lerante com respeito aos mistérios. A falsa racionalidade sempre a insensibilidades incríveis.
tratou de "primitivas", de o'infantis", de "pré-lógicas" populações
onde havia uma complexidade de pensamento, não apenas na téc- " Elt4"rtr, Op aradigma perdido: a natureza humana, Paris, Seuil, 1979.

118 119
complexa do existente. Edgar Morin não
tenta inventar mais um sistema filosófico
Devemos compreender esses fenômenos e não nos espantar-
abstrato, fechado e coerente por não se
mos com eles. Creio que essa tomada de consciência é ainda mais
referir ao vivido. Ao contrário, busca Pensar
importante pelo fato de que, até uma época bem recente, estivemos
o que todos vivem, desde a interação entre
tomados pela ideia de que a história ia acabar, que nossa ciência
cultura e narureza até os desvãos do
tinha conquistado o essencial de seus princípios e de seus resultados,
imaginário, do sonho, da utopia e da poesia.
que nossa razão estaya enfim no ponto, que a sociedade industrial
Conceitos, definiçóes, hipóteses,
se puúa nos trilhos, que os subdesenvolvidos iam se desenvolver,
terminologia e principais referências de um
que os desenvolvidos não eram subdesenvolvidos; teve-se a ilusão
pensamento denso e trabalhado durante
euforica de quase fim dos tempos. Hoje, não se trata de mergulhar
décidas apârecem nesta obra com uma
no apocalipse e no milenarismo; trata-se de ver que talvez esteja-
transparência de dar inveia a muitos escritos.
mos no fim de um certo tempo e, nós esperamos, no começo de
novos tempos.
A mensagem flui como uma história contada
sem arrogâncif mas com muita sabedoria e
reflexão. O leitor sente o homem pensando,
amadurecendo as ideias, dialogando com o
passado, o presente e o futuro. Sem
nenhuma dúvida, este é o livro para aqueles
que sentem vontade de fugir do
reducionismo e temem os delírios dos
filósofos encerrados na adoração áapalavra e
do conceito. Mais rtmaYez,Edgar Morin
provâ que pensamento e clarezapodem
andar de mãos-dadas sem preiuízo do
conteúdo nem da forma.

Juremir Machado da Siloa

Edgar Morin, pesquisador emérito do


CNRS, nasceu em Paris, em 1921. Formado
em História, Geografia e direito, migrou
para aFilosofia, a Sociologia e a
Epistemologia, depois de ter participado da
Resistência ao nazismo, na França ocupada,
durante a Segunda Guerra Mundial. A Sulina,
no Brasil, publicou os seis volumes de O
Método,sendo Ética o último livro.
120
In 1n a

O que é a complexidade? A um primeiro olhar, a


complexidade é um tecido(complexus: o que é tecido junto) de
constituintes heterogêneas inseparavelmente associadas: ela coloca
o paradoxo do uno e do múltiplo. Num segundo momenro, a
complexidade é efetivamente o tecido de aconrecimenros, ações,
interaçóes, retroações, determinações, acasos, que constituem
nosso mundo fenomênico. Mas então a complexidade se apresentâ
com os traços inquietantes do emaranhado, do inextricâvel, da
desordem, da ambiguidade, da incerteza...

Edgar Morin

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