Você está na página 1de 8

A ciência

enquanto
prática
Pedro Abrantes
Universidade Aberta & ISCTE-IUL
Março de 2020

Pensei que certas virtudes — a astúcia ganha na prova de todas as inspirações


da inocência, uma sensibilidade adivinhadora desenvolvida através da
indistinção espiritual entre luz e treva — acabariam por conduzir-me a
qualquer entendimento.

Herberto Helder, 1979


in Photomaton & Vox

É comum uma visão da ciência enquanto regulada por normas ou princípios exteriores à
condição humana, aos processos cognitivos, sociais e culturais. Tal abordagem
essencialista ou transcendental dos processos científicos deriva de uma perspetiva ingénua
e positivista da ciência ou, na maior parte dos casos, emana de normativos epistemológicos
e metodológicos que pretendem orientar o trabalho científico sem o analisar
cientificamente. Mesmo no plano epistemológico, existem sérios inconvenientes em não
considerar as implicações de a ciência constituir uma atividade humana.
Mas a ciência também não é uma fachada ou a mera soma de criações individuais, locais
ou arbitrárias, movidas por interesses económicos, ideológicos e/ou políticos. Tal
abordagem hiper-relativista e subjetivista da ciência, partindo de uma crítica ao
positivismo, ignora as próprias especificidades da ciência — enquanto corpo de
conhecimentos, metodologias, disposições, linguagens, etc. — bem como a sua capacidade
de produção e crítica de conhecimentos acerca da realidade. Existem também sérios riscos
a essa dissolução da ciência no social.
A ciência constitui uma prática. Partindo de uma dupla ruptura — com ambas as posições
expressas nos parágrafos anteriores — o presente ensaio procurará apresentar uma
perspectiva da ciência como prática, simultaneamente, resultante de processos sociais e
culturais e produtora de enunciados que podem transcender as condições sociais de
produção. Esta perspectiva é defendida como uma base fértil quer para a sociologia da
ciência quer para uma epistemologia da ciência.

1
Para uma visão socio-histórica da ciência

O que é a ciência? Esta questão tem fascinado inúmeros pensadores — sobretudo, filósofos
e cientistas — desde o surgimento da ciência moderna. Combinando os argumentos de
vários destes pensadores, existem bons argumentos para conceber a ciência enquanto
prática, uma vez que se baseia na interiorização e exteriorização, pela atividade humana
quotidiana, de disposições e competências específicas, parcialmente institucionalizadas ao
longo do tempo, em instrumentos, manuais e cursos de metodologia, no seio de
universidades e centros de investigação, parcialmente transmitidas e incorporadas no
inconsciente dos membros da comunidade científica. 1
Durante muito tempo, os discursos sobre os fundamentos da atividade científica
enfatizavam a prossecução, mais ou menos acrítica, de normativos e guias metodológicos
rígidos. A dinâmica da ciência, com desenvolvimentos permanentes e revoluções
frequentes, demonstra claramente quão redutor e mesmo erróneo pode ser este "fetichismo
do método".2 Pelo contrário, as potencialidades da ciência resultam do seu método se
encontrar em constante ebulição, sujeito a críticas e reformulações, o que não significa que,
doravante, na célebre expressão de Feyerband, "anything goes". É esta dualidade
(reprodução e produção), aliás, que permite ao conhecimento científico ser,
simultaneamente, criativo e cumulativo.
Os próprios cientistas têm, muitas vezes, dificuldade em traduzir discursivamente o seu
método.3 É que, mesmo a nível individual, a atividade científica não se guia totalmente por
aparelhos de normas e enunciados verbalizáveis (ainda que em constante transformação),
mas é, grande medida, orientada por uma sensibilidade incorporada pela prática e acionada
performativamente, de modo crítico e criativo, permitindo associar um vasto conjunto de
experiências, dados, procedimentos, competências adquiridos — a tal memória científica,
parcialmente incorporada nos agentes, parcialmente objectivada nos instrumentos — à
produção de novas experiências, dados, procedimentos, competências. As figuras mais
emblemáticas da ciência moderna são uma boa prova disso, visto que aliam uma notável
capacidade criativa (ou mesmo subversiva) a um enorme conhecimento do seu campo
científico.
Em todo o caso, essa valorização dos grandes saltos cognitivos produzidos por alguns
cientistas geniais não deve negligenciar o facto, aliás bem evidente nos bons estudos
biográficos sobre esses personagens, de a ciência ser sempre construída e desenvolvida na
interacção de inúmeros atores, grupos e organizações, alargada no tempo (a ciência
moderna tem vários séculos) e no espaço (a condição quase-universal). Constitui, pois, um
processo histórico-cultural de grandes proporções (este processo é analisado com detalhe,
por exemplo, na obra de Merton, 1973).

1
Note-se que esta designação de "prática social" subentende uma distinção analítica, isto é, visa salientar, por
um lado, o processo mobilizado (de tipo performativo) e, por outro, o conjunto de actores, instituições e
estruturas envolvidos. No entanto, reconhece-se — como lembrou José Madureira Pinto numa conferência
recente (12/01/2004) no ISCTE — que não existem práticas que não sejam sociais.
2
Como assinala Bachelard (1971: 136), entre muitos outros, "o método científico é um método que procura o
risco. O pensamento científico é um pensamento empenhado. Está constantemente a pôr em causa a sua
constituição (...) O método não pode ser uma rotina".
3
Como assinala Bourdieu (2001: 80), à semelhança dos artistas ou dos desportistas, os cientistas revelam, em
geral, uma grande em dificuldade em explicar o seu ofício e a forma como o aprenderam: “ils la décrivent
comme une pratique demandant du métier, de l’intuition et du sens pratique” .

2
Isolando certas partículas da atividade científica quase podemos concebê-la como uma
prática localizada e individualizada. É verdade que uma parte substancial do trabalho
científico é (talvez em demasia) uma realização individual ou de um grupo muito restrito
de atores, em locais muito específicos (laboratórios e centros de investigação). Todavia,
mesmo nessa situação, o isolamento é relativo, visto que o cientista, em geral, possui já
incorporado um conjunto de disposições e competências desenvolvidas por outros
cientistas — o tal habitus científico, consciência teórica incorporada em estado prático
(Bourdieu, 2001) — e recorre frequentemente a diversos materiais científicos já
produzidos (livros, instrumentos, etc.) para sustentar a sua pesquisa. Aliás, como têm
notado diversos autores, os resultados científicos sustentam-se sempre no aparelho teórico-
metodológico mobilizado e que é, regra geral, desenvolvido em referência a investigações
anteriores realizadas por outros cientistas.
Além disso, desenrola-se uma constante regulação coletiva sobre as condições de produção
científica, também alargada no tempo e no espaço — daí falar-se frequentemente da
existência de uma "comunidade científica". O campo científico é, pois, dinamizado por
recensões, críticas, referências, conferências, elogios, controvérsias. Esta vertente
interacional não reflecte apenas lutas de poder entre os agentes envolvidos (cientistas,
instituições, escolas), embora seja inquestionável que, através delas, os agentes procuram
ampliar o seu capital simbólico.4 Esta dinâmica interacional permite também o
desenvolvimento e refinamento da própria prática científica (e dos conhecimentos por ela
produzidos), pois ativa um processo de objetivação pela construção/desconstrução
intersubjectiva (Berthelot, 2000). Ou seja, precisamente porque existe uma luta de
argumentos — e os atores se empenham nela, de forma mais cínica ou mais
"desinteressada", pouco importa para o caso5 —, esses argumentos vão sendo
desenvolvidos, refinados, "objetivados".
Por fim, a um terceiro nível, se é verdade que o campo científico é apenas mais um campo
social, também não podemos esquecer que conquistou uma legitimidade e uma autonomia
relativa face aos restantes, alicerçada num conjunto de práticas singulares que permitem
obter determinados resultados, considerados de uma certa utilidade para diversos outros
sectores da sociedade. Aliás, esta singularidade relativa é comum a todos os campos da
atividade humana. Assim sendo, o campo científico é (re)conhecido por práticas e
produções específicas — que, por um lado, são permanentemente (re)construídas pelos
próprios agentes envolvidos no decurso da prática científica, mas, por outro lado, são-lhes
parcialmente impostas pela "comunidade científica" enquanto condição necessária para
participarem nesse mesmo campo (para serem aceites enquanto cientistas) — úteis (em
grau variável) para outros campos da actividade humana.
Chegamos, então, à ideia de que o átomo da empresa científica é a prática quotidiana do
investigador (ou de uma equipa de investigadores), em parte, individualizada e localizada,
mas que requer uma sensibilidade específica, obtida através da incorporação de (e recurso
constante a) um património partilhado e socialmente reconhecido. Mais uma vez, é esta

4
Como nota Bourdieu (2001: 163), “Un bom savant est quelqu’un qui a le sens du jeu scientifique, qui peut
anticiper la critique et s’adapter par avance aux critères définissant les arguments recevables, faisant ainsi
avancer le processus de reconnaissance et de légitimation”.
5
Embora se possa também falar de uma "cultura do desinteresse", que seria interessante de analisar em
pormenor — aperfeiçoando, por exemplo, a linha de pesquisas iniciada por Merton (1973) — no seu duplo
papel: de fachada identitária face ao exterior; mas também de (possível) norma cultural controlada inter-
pares. Neste sentido, podemos recuperar as representações ideais da ciência, não as confundindo com as
práticas, mas considerando (criticamente) o seu (possível) papel referencial relativamente às práticas
científicas.

3
dualidade que permite que os "produtos" da ciência (teorias, análises, experiências,
instrumentos de pesquisa, etc.) sejam intensamente criativos e intensamente cumulativos.6
Curiosamente, as abordagens hiper-relativistas da ciência (veja, por exemplo, Latour e
Woolgar, 1986), embora anunciem a sua intenção de analisar a ciência através das
interações quotidianas que se estabelecem entre os seus actores, têm claras dificuldades em
conceber a ciência enquanto prática, como foi aqui entendida, pois reduzem-na às ações
estratégicas individuais (com especial ênfase nas estratégias discursivas), esquecendo: na
vertente prática, as disposições incorporadas, accionadas, transmitidas e reproduzidas nos
quotidianos da actividade científica; na vertente social, as estruturas, instituições,
processos históricos e culturais, interação com a sociedade envolvente, etc.
Danermark e outros (2002) comentam, sensatamente, que uma construção social é sempre
uma construção de alguma coisa, não redutível às (inter)acções e condições em que essa
construção ocorreu. Utilizando uma metáfora, podemos considerar que uma casa é uma
mistura de betão, cimento, madeira e alguns outros materiais. Todavia, não
compreendemos grande parte da realidade se não virmos que essa mistura dá origem algo
com características, significados e potencialidades que vão muito além dos seus elementos
constituintes.

Para uma reconstrução da epistemologia da ciência

Ao nível de uma pesquisa sobre a ciência, é possível manter uma posição agnóstica face à
própria ciência. Como dizia Berger (1970) relativamente à religião, a questão não é se o
cientista social acredita ou não em Deus, mas que mecanismos e processos sociais dão
sentido a uma determinada representação da (e crença na) divindade. Aceitemos, então, o
tal princípio de simetria, regra número 1 do "programa forte".
No entanto, num outro plano, caso nos afirmemos como cientistas, temos de enfrentar um
corpo distinto de questões que têm a ver com as possibilidades e os limites do
conhecimento que produzimos sobre uma realidade e, em particular, dos processos
científicos de produção desse conhecimento. O presente ensaio propõe que, também neste
plano epistemológico e com as devidas diferenças semânticas, vejamos a ciência
fundamentalmente enquanto prática.
Isto implica, em primeiro lugar, romper com todas a noções absolutas e intemporais de
verdade ou de racionalidade, no sentido em que ambas, pelo menos enquanto propriedades
tangíveis pelos homens, são socialmente construídas. Segundo Bachelard (1971), não
existe um racionalismo a priori, anterior à experiência, a-local, a-temporal, a-social, mas
sim um racionalismo dialético. Como explica, "a cultura é um acesso a uma emergência;

6
Este trabalho baseia-se, em parte, na obra recente e fundamental de Bourdieu (2001). Neste trabalho, o
autor francês desenvolve a teoria de que a ciência constitui um campo social de intensas lutas de poder, mas
que possui regras e procedimentos singulares, parte deles incorporados em disposições específicas — o
habitus científico. Como escreve, “la véritable principe des pratiques scientifiques est un système de
dispositions génératrices, pour une grande part inconscientes, transposables, qui tendent à se généraliser” (p.
85). Sendo um magistral contributo para pensar cientificamente a ciência, este trabalho não está imune a
críticas, nomeadamente, no que concerne a um excessivo centramento na estrutura, já recorrente nas análises
do autor. Por vezes, a dialéctica entre estruturas e práticas reduz-se a uma colonização da segunda pela
primeira. O habitus produz a prática, mas a matriz do habitus é a prática. Por exemplo, argumentar que “un
savant est un champ scientifique fait homme” (p. 84) é claramente exagerado. Um cientista é alguém que
incorporou certas competências que lhe permitem movimentar-se dentro do campo científico e ser
reconhecido como parte dele, mas não incorporou certamente o campo científico.

4
no domínio científico, estas emergências estão de facto constituídas socialmente (...) Em
resumo, o consenso que define socialmente um racionalismo regional é mais do que um
facto, é o sinal de uma estrutura" (p. 115).
E implica, em segundo lugar, romper com uma visão empirista da ciência como uma forma
de conhecimento que se baseia na observação sistemática e imediata do real. Como
argumentam João Ferreira de Almeida e José Madureira Pinto — na linha de Bachelard
(1971) ou de Bourdieu e outros (1968) — "o vector epistemológico vai do racional ao real"
(1975: 16), ou seja, "só o património acumulado de interpretações provisoriamente
validadas a que se chama teoria constitui, em princípio, adequado ponto de partida para a
pesquisa” (1986: 56).
Claro que podemos sempre mergulhar em questões metafísicas acerca da existência da
realidade ou acerca da possibilidade de nós conhecermos de facto essa realidade. São
questões interessantes e para as quais a ciência não tem resposta. Todavia, podemos
recentrar essa questão dizendo que o conhecimento científico é um conhecimento de
carácter prático, num duplo sentido: (1) é um conhecimento testado através de dispositivos
de experimentação, ou seja, é um corpo de conceitos e proposições iminentemente teórico-
abstractos mas que, ao contrário de outras produções metafísicas, são experimentados
(através de práticas específicas) — podendo ser refutados ou corroborados — no mundo
exterior; (2) é um conhecimento que funciona no mundo exterior — mesmo que de forma
sempre imperfeita —, ou seja, fornece-nos recursos para lidarmos com (agirmos sobre ou,
até certo ponto, controlarmos) a realidade. 7
Com isto é importante não esquecer que a objetividade científica é (também) uma
construção alicerçada, em parte, em critérios lógicos e, em parte, em processos
intersubjetivos (Gil, 1986) — a tal duplicidade sócio-lógica da ciência, de que fala
Bourdieu (2001). Todavia, ambos os critérios não distinguem a ciência de outras formas
abstratas de conhecimento, como a filosofia. O que distingue a ciência é a combinação dos
dois com um critério de adequação das teorias explicativas à realidade, o que requer
formas controladas de experimentação. Como afirma Sayer (1992: 70), "knowledge is
useful where it is "practically-adequate" to the world". Ou, como acrescentam Danermark e
outros (2002: 24), "the connection between the real world and our knowledge of it is
fundamentally a question of practical relevance".
Neste sentido, o processo científico de argumentação, experimentação e contra-
argumentação constitui "une réalisation pratique qui génère de nouvelles experiences (agir
sur le monde) et de nouvelles théories (représenter le monde)" (Gingras, 1995). Esta ideia,
aliás, encontra-se já no pensamento de alguns dos principais epistemólogos deste século.
Sobretudo com Popper,8 a ciência ganhou um carácter dinâmico em que o progresso é feito
à custa da invenção de novas teorias, da experimentação sistemática, da detecção dos erros,
do debate livre e racional (em que as ideias morrem em vez dos homens), como formas de
ir gerando uma cada vez melhor adaptação do conhecimento à realidade.
A linguagem científica é um bom exemplo deste processo, na medida em que não é
(apenas) um código específico que protege os cientistas do "mundo dos leigos", mas
também não é uma simples tradução da realidade exterior. É uma construção contínua da
comunidade científica, em que os conceitos se vão propondo, discutindo e desenvolvendo

7
Ao definir-se dois sentidos pretende-se, sobretudo, enfatizar a sua duplicidade: procedimento metodológico
e funcionalidade social. Todavia, reconhece-se que esta distinção é fundamentalmente analítica, visto que, na
prática, ambos os sentidos são, até certo ponto, convergentes.
8
Da vasta e fascinante obra do filósofo, destaque-se, neste contexto, The Logic of Scientific Discovery, obra
central em que Popper apresenta os traços gerais da sua proposta epistemológica (Popper, 1975).

5
— aperfeiçoados em termos lógicos e experimentados metodicamente na realidade — de
forma a ampliarem o seu poder explicativo sobre a realidade. Constitui um sistema
simbólico produzido (socialmente) pela comunidade científica em diálogo com uma
realidade que a transcende, que confere autonomia e legitimidade aos cientistas e fornece,
a cada momento, recursos para ler essa mesma realidade, mesmo que de forma sempre
provisória e aproximativa.

Um jogo em dois tabuleiros?


(Onde as ciências sociais se encontram com a epistemologia)

Procurou-se, com este ensaio, apresentar um modesto contributo para uma abordagem
praxiológica da ciência, equacionando-se algumas das implicações e aplicações desta
abordagem. Mais do que propor uma nova perspectiva revolucionária, pretendeu-se operar
algumas clarificações conceptuais — em ruptura com certos dualismos aparentes que
tendem a sobreviver no campo científico — e contribuir, desta forma, para o incessante
exercício de reforma teórica e epistemológica que deve acompanhar o trabalho das
ciências.
Nas últimas linhas, gostaria de dedicar-me a uma questão fundamental e ainda não referida
neste texto: partindo do pressuposto de que as ciências sociais e a epistemologia são
domínios diferentes, que relações existirão entre eles? Se é impensável que as ciências
sociais não sejam orientadas por princípios epistemológicos, será que não devem, por outro
lado, produzir contributos para o trabalho de reflexão e de reforma epistemológica?
Estaremos condenados a trabalhar em dois tabuleiros ou devemos explorar as relações que
se estabelecem entre ambos?
Respondendo aquilo que considera ser uma tendência relativista para a indistinção entre
sociologia da ciência e epistemologia (ou dissolução da segunda na primeira), Sokal (1998)
propõe que os dois campos se situam em níveis de análise diferenciados, levantam
questões diferentes e conduzem a pesquisas distintas. 9 Todavia, não será também esta
posição demasiado radical? As ciências sociais e a epistemologia não deverão aprender
uma com a outra?
Na medida em que são investigações sistemáticas e rigorosas que permitem compreender
(e objetivar) as condições sociais da prática científica, trabalhos como os de Dubois (2001)
ou Bourdieu (2001) são certamente contributos importantes para a reflexão epistemológica.
Bourdieu (2001) propõe, neste sentido, que qualquer investigação científica considere uma
dimensão de análise de sociologia da ciência, considerando que o processo de produção de
conhecimento científico deve ser sempre acompanhado por uma reflexão acerca das
condições e dinâmicas sociais de produção desse conhecimento. Sendo possivelmente
imperialista e utópica na sua formulação literal, esta proposta não deixa de ser valiosa se
pensarmos o processo científico no seu conjunto (e não necessariamente cada pesquisa
particular).
Aliás, se pensarmos nos principais avanços da epistemologia no século XX, de Popper a
Kuhn, de Lakatos a Bachelard, todos eles combinaram, de forma criativa e em doses
variadas, questões lógicas internas, com contributos externos, da história da ciência, da
psicologia da ciência, da sociologia da ciência, etc. Se a ciência não é solúvel no social,
como tão bem demonstra Berthelot (1994), não é de crer, por outro lado, que a ciência
9
Situando o nível epistemológico num patamar superior ao nível da sociologia da ciência, supõe-se —
porque o autor nunca o afirma claramente — que as perspectivas epistemológicas conduzam as pesquisas
sociológicas mas que o contrário não aconteça.

6
possa ser indiferente ao social. Tende, pois, a estabelecer-se uma reflexividade cruzada
entre epistemologia e ciências sociais.
Esta questão é particularmente atual, visto que nas últimas duas décadas temos assistido a
um debate aceso acerca dos limites e intersecções entre ambos os domínios. Este debate
tem bloqueado frequentemente o diálogo e a colaboração entre ciências naturais e sociais,
as primeiras mais próximas do paradigma positivista e quantitativista, as segundas
dominadas pela crítica a esse modelo. Ainda assim, esses conflitos têm marcado o
desenvolvimento recente das diferentes disciplinas, particularmente evidentes em áreas
como a Economia ou a Psicologia, nas quais os elementos naturais e sociais se entrecruzam
permanentemente. Esperamos que este ensaio tenha contribuído para evitarmos os
extremismos de cada uma das abordagens e, desta forma, possamos encontrar bases mais
integradas e sustentáveis de continuar a desenvolver o projeto científico.

Bibliografia

Almeida, João Fereira de e José Madureira Pinto (1975, 1995), A Investigação nas
Ciências Sociais, 5ª edição, Lisboa, Editorial Presença.
Almeida, João Fereira de e José Madureira Pinto (1986), "Da teoria à investigação
empírica: problemas metodológicos gerais", em Augusto Santos Silva e José
Madureira Pinto (orgs.), Metodologia das Ciências Sociais, 9ª edição, Porto, Edições
Afrontamento, pp. 55-78.
Bachelard, Gaston (1971), A Epistemologia, Lisboa, Edições 70.
Berger, Peter (1970) A Rumor of Angels: Modern Society and the Rediscovery of the
Supernatural, Doubleday Anchor.
Berthelot, Jean Michel (1994), "La science est-elle soluble dans le social? Notes sur la
norme du vrai et les sciences socials", Revue Européene des Sciences Sociales, 34
(104), pp. 181-186.
Berthelot, Jean Michel (2000), "Os novos desafios epistemológicos da sociologia",
Sociologia, Problemas e Práticas, 33, pp. 111-131.
Bourdieu, Pierre, Jean-Claude Chamboredon e Jean-Claude Passeron (1968), Le Métier de
Sociologue: Préalables Épistémologiques, La Haye, Mouton.
Bourdieu, Pierre (2001), Science de la Science et Reflexivité, Paris, Raison d'Agir.
Danermark, Berth, Mats Ekstrom, Liselotte Jakobsen e Jan Karlson (2002), Explaining
Society: Critical Realism in the Social Sciences, Londres, Routledge.
Dubois, Michel (2001), La Nouvelle Sociologie des Sciences, Paris, PUF.
Gil, Fernando(1986), Provas, Lisboa, Imprensa Nacional Casa da Moeda.
Gingras, Yves (1995), "Un air de radicalisme: sur quelques tendances récentes en
sociologie de la science et de la technologie", Actes de la Recherche en Sciences
Sociales, 108.
Latour, Bruno e Steve Woolgar (1986), Laboratory Life: The Construction of Scientific
Facts, Princeton, Princeton University Press.
Merton, Robert (1973), The Sociology of Science: Theorerical and Empirical
Investigations, Chicago, Chicago University Press.

7
Popper, Karl (1975), The Logic of Scientific Discovery, 8ª edição, Hutchinson &
Co., Ldt.
Sayer, Andrew (1992), Method in Social Science: A Realist Approach, Londres, Routledge.
Sokal, Alan (1998), "What the social text affair prove and does not prove", em Noretta
Koertge (org.), A House Built on Sand, New York, Oxford University Press, pp. 9-
22.

Você também pode gostar