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EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR
TRANSDISCIPLINAR
Recriação do Educar
Epistemologia do Educar
Transdisciplinar
2009
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Sumário
Parte I
Horizonte e Campo configurador da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar
Parte II
Método e Projeto Metodológico do Educar Transdisciplinar
Referências
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da ciência exitosa e nem a toma como pivô de todas as mazelas humanas. Além da
tecnociência dominante há uma ciência que precisa também ser pensada como
ampliação do horizonte compreensivo dos seres humanos viventes, uma ciência do
educar transdisciplinar. De modo similar às próteses perceptivas que a ciência aplicada
vem desenvolvendo, é preciso construir novas próteses simbólicas que nos permitam
viver plenamente a finitude e os limites necessários ao existir sem a interdição das
oposições metafísicas e hierarquias imperiais, pois, apesar de grande e potente, o sol que
nos dá vida é uma entre bilhões de estrelas de nossa galáxia que é uma entre bilhões de
outras galáxias já visualizadas. Ela é uma ciência muito mais ao modo arcaico do que
moderno. E talvez seja ainda mais futura do que propriamente passada. De qualquer
modo, não se limita ao progresso dos meios, pois pensa primacialmente o
desenvolvimento humano sustentável e aí entra também o aperfeiçoamento dos meios
como consequência e não como princípio ou meta.
A epistemologia do educar transdisciplinar aqui expressa é primacialmente um
movimento de autoconhecimento intensivo e que tem por meta o próprio acontecimento
humano em sua saga aberta e inelutável. Uma retomada do que constitui a potência de
ser transformante. A via invisível e valorosa do que tem coração. Por isso tem
inteligência e sensibilidade transdisciplinar. Sua disciplina é a arte de aprender, que é
por princípio uma não-disciplina, pois é a forma correta de manter-se livre da memória
e do medo psicológico, trazendo Krishnamurti e Noemi Salgado Soares (2007) à cena.
Pela via do coração a Epistemologia do Educar Transdisciplinar é uma ação
dirigida a fins éticos. Isto quer dizer que a ciência aqui encontra morada na poética do
agir correto: o agir transformador – a arte de aprender como ética do viver com sentido.
Mas por que começar pela via do coração e não da razão? Este é um ponto de
decisão que nos abre para o abismo do sentido em seu sendo, em suas dobras e redobras
intermináveis. Sigo o caminho da compreensão antes de qualquer predeterminação
relativa ao mundo real. A via do coração é o caminho do ser-sendo-outro. E o coração é
uma imagem aproximada do que não tem termo e não tem limites em seu poder-ser. O
coração é a morada do sentido em sua efervescência luminosa. A câmara labiríntica de
toda emoção e sentimento. O lugar da vida inteligente e criadora. Que lugar é esse?
Como encontrá-lo? Como procurá-lo?
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De qualquer modo, quem não busca não pode encontrar e quem não encontra
nunca buscou. O lugar da vida inteligente reúne na mais bela harmonia os contrários,
inclui a diferença e a diversidade, a multiplicidade e a variedade criadora sem limites.
Afinal, tudo é um para quem é um com tudo. Isso parece ser uma trivial
tautologia, mas é mais do que trivial e simplesmente o mesmo de coisa nenhuma. É uma
investigação criadora de si na totalidade vivente. Uma aventura humana na procura do
inesperado. E pensando com Heráclito, quem não sabe esperar o inesperado nunca
poderá encontrá-lo. E o inesperado vem ao encontro como um destino criador de outros
caminhos e de outras histórias ainda desconhecidas. Todos os caminhos são procuras,
encontros e despedidas. Os caminhos são as razões da vida vivente em suas
equilibrações criadoras. Todo caminho é único. Todo único é um caminho. Para onde
leva o caminho? Leva sempre para o lugar da fonte e para o encontro amoroso no
encontro amoroso. Por que caminhar? Porque ser humano é o caminho da pro-cura de
si-mesmo. Mas o si-mesmo não é algo como um “eu” ou um “ego”. O si-mesmo é o
caminho livre por onde passa a criança brincando de mundo e munda. A criança é o si
mesmo em sua querência amorosa. O si-mesmo é o si que só mesmo o mesmo sabe que
é mesmo si-mesmo. Ele é anterior ao mundo e às espécies, ao humano e suas crias
cibernéticas. O si-mesmo ama a si mesmo. O si-mesmo é também a si-mesma. Si-mesmo
não é uma entidade dual, como macho e fêmea. Si-mesmo é tão si mesmo que é tudo em
tudo. O Si-mesmo não é um “ego”, não é um “eu”, não é um “sujeito”, não é um
“indivíduo” de uma espécie, não é uma “coisa”. O si-mesmo é tudo que não é nada. É
tudo-nada sendo tudo e nada, aparecendo e desaparecendo sem rastros. Mas o si-mesmo
não é um si qualquer. Ele não é o que não é. Ele só é aquilo que é em seu sendo. O si-
mesmo é um sendo ser si mesmo.
O caminho em caminho da Epistemologia do Educar Transdisciplinar é um
espanto amoroso. Busca uma ciência para além da ciência regular normativa,
sistemática, universal. Procura conhecer o conhecimento do conhecimento e o
conhecimento do desconhecimento tendo em vista a transformação humana para sua
mais elevada aspiração de plenitude justa, harmonia criadora, liberdade partilhada.
Como caminho a caminho, é o lugar de reunião de todo o ciclo historial até agora
cumprido pelos humanos. É também o tempo de preparação do alimento futuro para
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nutrir seres humanos amantes da vida sábia e alegre. Um Seleiro e Weleiro1 em que são
recolhidos os alimentos para nutrir luzeiros em suas sagas poéticas insuspeitadas,
mesmo aquelas que parecem repetir indefinidamente a mesma polifonia originária.
Ao mesmo tempo, o caminho não é uma metáfora e sim uma decisão premida
pela urgência da consciência planetária na construção de um modo de ser sustentável e
aberto ao acontecimento da vida criadora. A inspiração vem da abordagem
transdisciplinar e da teoria da complexidade. É um esforço de reunir meios
metodológicos para a construção de um educar transdisciplinar. Pelo menos tem alguns
que se ocupam da plasmação da sustentabilidade triética: ambiental, social e mental –
cósmica, constelar e conjuntural.
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Seleiro é uma palavra cunhada na ressonância imagética com celeiro. A diferença é o S,
que faz a conexão do alto e do baixo, do céu e da terra. E como a imagem do “celeiro”
parece ter cumprido o seu ciclo, o Seleiro é o âmbito em que se recolhe e armazena o
alimento do Ser-Mundo-Outro. Um âmbito em que o plural se dá na convergência do
que amplia e germina plenitude vivente. O Seleiro pode ser equiparado ao núcleo
atômico e aí à força nuclear forte produzida pela interação e coesão de prótons e
nêutrons. A força nuclear forte une prótons e nêutrons para formar um núcleo atômico e
impede a repulsão entre prótons, carregados positivamente, evitando assim a sua dispersão. A
interação nuclear forte entre prótons e nêutrons parece ser um vestígio de outra força forte
básica, chamada a 'força de côr', que une os quarks em grupos de três para fazer prótons e
nêutrons. Por causa da força forte unir as partículas nucleares com tanta adesão, dá-se uma
libertação de quantidades enormes de energia quando núcleos leves são fundidos (reação de
fusão nuclear) ou quando núcleos pesados são desfeitos (reação de fissão nuclear). A interação
da força nuclear forte é a fonte básica das quantidades vastas de energia que são libertadas pelas
reações nucleares que alimentam as estrelas. O Seleiro, assim, é o lugar da reunião nuclear forte,
congregando também o âmbito que se poderia chamar Weleiro – algo como a força nuclear
fraca. E como se sabe, a força nuclear fraca causa a degradação radioativa de certos núcleos
atômicos. Em particular, esta força governa o processo chamado declínio beta no qual um
nêutron divide-se espontaneamente num próton, num elétron e num anti-neutrino. Se um
nêutron dentro de um núcleo atômico decair desde modo, o núcleo emite um elétron (também
conhecido como uma partícula beta) e o nêutron transforma-se em um próton. Isto aumenta
(por um) o número de prótons nesse núcleo, mudando assim o seu número atômico e
transformando-o no núcleo de um elemento químico diferente. A força nuclear fraca é
responsável por sintetizar elementos químicos diferentes no interior de estrelas e em explosões
de supernovas, através de processos que envolvem a captura e decaimento de nêutrons. Um
nêutron é estável (não é radioativo), e tem vida longa, quando confinado dentro do núcleo
atômico. Uma vez que removido do núcleo atômico, um nêutron livre sofrerá decaimento beta.
O processo de decaimento beta, em reverso, ocorre nos interiores de estrelas em colapso de
supernovas, quando prótons e nêutrons se fundem juntos para criarem as vastas quantidades de
nêutrons que abundam como produto final do colapso - uma estrela de nêutrons. Um Seleiro,
portanto, não desconhece o seu anti-elemento, o Weleiro, porque não poderia constituir a coesão
senão para abundar, multiplicar e potencializar a dádiva da nutrição cooperativa e coesa. Seleiro
e Weleiro são, portanto, as metáforas para a nutrição e propagação transformadora do ser-
humanidade que é feito de variadas humanidades.
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PARTE I
compreender é o logos que está em toda parte e em parte alguma, que tanto pode
esconder e mentir como pode desvelar e ser revelador. O autoconhecimento é, assim,
uma saga infinita do ser que é enquanto experiência de si mesmo em tudo. O tamanho
deste abismo é mesmo de assustar qualquer Buda atento. E o assustar-se é desde há
muito o pathos do conhecimento sapiencial. O falar dos gregos chamou philosophia
esse estado de espanto amoroso, que é uma busca incessante de instantaneidade vidente.
Diante de tal lampejo quem haverá de interessar-se por qualquer outra coisa?
Para que dar nome ao inominável? Por que insistimos tanto em definições
categóricas finais? Não seria possível uma ciência polilógica que tivesse diante de si
não o determinismo do antagonismo que a tudo perpassa e sim a abertura para a reunião
dos opostos que se reconhecem partícipes do mesmo sem-fundamento e assim festejam
o acontecimento do luzir e transluzir?
Temos aqui uma questão importante. Se quisermos falar de autoconhecimento é
mais importante entrar no conhecimento do que identificá-lo simplesmente por seus
contornos e vistas, fachadas e interiores. Entrar no conhecimento é interessar-se pelo
abundante e indeterminado. Tornar-se conhecimento do conhecimento e do
desconhecimento. Os sábios já deixaram muitos sinais: o conhecimento está em toda
parte e em parte alguma. Há, assim, formas distintas de conhecimento, inclusive o
desconhecimento ou a ignorância. O autoconhecimento é o avesso da retenção e do
acúmulo porque ele sempre começa do início. E todo início é promessa de meio e fim. E
o que está no meio sempre inicia e sempre finaliza. E o que está no fim sempre
recomeça do início: vazio.
Autoconhecimento é esvaziar-se do saber habitual: tornar-se insipiente e doar-se
ao acontecimento ao redor de sua coluna ereta e de sua fibra intensa e de sua coragem
livre.
A ciência nasce da necessidade imperante da vida humana em querer saber de si
e cuidar de suas metamorfoses. O conhecimento germina da dor de ignorar: é um
impulso desejante de poder-ser. A violência desta força germinante é incontornável.
Contemplemos o nascer de estrelas! Elas explodem ao infinito e implodem ao infinito.
Que mistério é esse que nos perpassa do início ao fim? Por ventura somos já dignos de
olhar diretamente a face oculta do sendo?
As coisas só podem ser ditas por figurações. Não percamos tempo com isto.
Tudo é figuração. Tudo é representação. Muitos já disseram o mesmo. Aqui a repetição
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A humanidade desde seu aparecer vem educando. Toda sociedade, toda cultura
humana tem suas formas próprias de conduzir a organização e manutenção da vida e
com isso, suas próprias instituições de ensino e aprendizagem. Significa dizer que o
educar é conatural à natureza das espécies vivas. Toda organização vivente tem seus
próprios modos ou costumes de fazer desabrochar os filhos que são a continuidade da
espécie. A educação, portanto, é a forma natural da espécie humana de existir
perpetuando-se. Só com o super desenvolvimento da racionalidade moderna é que
aparece a forma de educação escolar hoje vigente e com isto o modelo conteudista
próprio de um projeto humano que perdeu de vista a natureza própria do conhecimento
em sua plasticidade, unicidade e diferença radical. Sensação, e razão, corpo, mente,
emoção e raciocínio não estão separados ou arquivados em gavetas diferentes. O
acontecimento da consciência na espécie humana é algo que caracteriza e diferencia o
humano dos demais entes naturais. Há, portanto, uma naturalidade na vida da espécie
que não convém desconhecer ou fazer de conta que não é. E dizer isto, não significa
afirmar nada de parecido com a ideia equivocada de que no estado natural se encontre a
paz e a harmonia dos contrários. O estado natural aqui compreendido não é tomado
como modelo e sim como condição prévia para se poder compreender o humano em sua
historicidade material e simbólica, e se poder perceber a abertura vivente do humano
para construir, destruir e transformar, para fazer, desfazer e refazer, e isto em medidas e
proporções sempre diferentes e inusitadas, apesar de toda previsibilidade já projetada no
já feito, no existente, no aí do que é observado e percebido em seu ser mesmo.
Posso afirmar que o autoconhecimento é também algo inerente ao sistema da
espécie humana e não uma técnica que se pode aprender através de mestres apropriados.
Deste modo, autoconhecimento não é nada parecido com a imagem solipsista do
pensamento especulativo ou teorético do Ocidente. Não se trata de algo como uma
consciência subjetiva nem muito menos algo isolado em um eu particular. O
autoconhecimento é o movimento próprio da individuação humana e acompanha todas
as fases de desenvolvimento dos sistemas e organismos vivos. Portanto, não está em
questão a posse única de uma técnica infalível de afirmar o autoconhecimento e aplicá-
lo sequencialmente em processos de educação formal. Isto seria o mesmo que perder de
vista o fundamento autofundante do autoconhecimento que é sempre um fenômeno
coletivo e nunca um fato isolado ou mera expressão subjetiva, apesar de ser sempre um
acontecimento único e intransferível.
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tende à harmonização em sua constituição. Afinal, por que autoconhecer-se? Seria esta
uma simples resultante histórica e ideológica?
A busca pelo autoconhecimento como harmonização das forças de constituição
dos entes naturais parece ser o caminho da Natureza em suas experimentações e
superações contínuas. Mas a Natureza ama ocultar-se, como disse Heráclito. Seu
ocultamento é sua própria abrangência e complexidade simples. Um paradoxo, sem
dúvida. Mas também uma unidade de princípio, meio e fim. Essencialmente, toda a
Natureza busca harmonia em todos os seus planos de constituição. E quanto maior a
aparente desordem dos materiais antagônicos, mais forte o estímulo para uma harmonia
mais abrangente. Como se a Natureza amasse ocultar-se diante dos desafios para reunir
sempre os planos de sua imanência em uma liberação mais profunda e consistente. A
aparente oposição constitutiva é, assim, o meio da Natureza fazer valer sua força de
harmonização. Em seu poder germinante perene, a Natureza se oculta para harmonizar-
se na aparente disparidade e oposição, fazendo valer sua conjuntura harmônica em seu
dinamismo incessante. Se a Natureza ama ocultar-se é porque ela sempre se surpreende
diante de sua diferença originária.
Sri Aurobindo (1974, p. 19-20) fala de um processo evolutivo da Vida na
Matéria de uma maneira desveladora. Sigamos a compreensão de suas palavras escritas
e traduzidas:
Penso que seja preciso mirar bem alto, o mais alto possível para se alcançar com
clareza a emergência do autoconhecimento. Não é, portanto, algo que se possa
descrever em base aos dados da experiência passada. Mas também não é algo apartado
das experiências passadas. O autoconhecimento diz respeito ao acontecimento da
claridade do ser na concretude de cada existência singular. Cada um em seu ser único
encontra-se aberto à liberdade de ser no si-mesmo.
Sim, o autoconhecimento também é uma anamnese: rememora o vivido para
reconhecer o estado vivente em sua potência maior. A recordação do vivido libera o
vivente do passado. O vivente então conhece a si mesmo. Nada mais difícil do que
conhecer a si mesmo. Se fosse fácil já seríamos deuses entre deuses. A memoração do
passado é também a recordação do futuro. O futuro é o passado do presente no presente
do passado. No autoconhecimento o tempo da memória é também a memória do tempo:
passado, presente e futuro em um contínuo dobrar-se e redobrar-se decidido a só ser
mais ser. Mais ser é ser mais ser no ser. Deixar ser!
A questão capital do autoconhecimento foi-nos desvelada em muitas formas e
línguas. Uma breve arqueologia das culturas históricas poderia indicar a profusão de
tendências de processos relacionados ao autoconhecimento. Ele é multicultural e
multirreferencial, pluricultural e plurirreferencial, intercultural e interreferencial,
transcultural e transreferencial. O autoconhecimento é sempre o conhecimento de
alguém em particular. Ora, alguém em particular é um ente de uma espécie. É, assim,
alguém em particular como espécie. O autoconhecimento é sempre “meu”. Ele é
sempre o conhecimento que alguém tem de si-mesmo. Quer dizer, o si-mesmo já está
presente no autoconhecimento. Ele é sempre um si-mesmo situado, pertencente a
determinado meio, participante de determinados modos de existir, de morar, de
produzir, de valorar, de criar, perpetuar, transformar.
A questão crucial do autoconhecimento é a própria liberdade de ser plenamente
por um princípio inerente ao si-mesmo, e não para uma finalidade reduzida à
generalidade de uma indistinção coletiva inconsciente. É no indivíduo da espécie
humana que o autoconhecimento se realiza para toda a espécie. Não é, portanto, algo
que diz respeito a uma realização egoísta, mas um meio de desenvolvimento das
potencialidades da espécie de poder tornar-se autoconsciente e de poder projetar-se para
além do dado maquínico de sua física e química densa. O autoconhecimento floresce
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como uma flor de lótus. Está é uma imagem apropriada para apresentar seu
desenvolvimento vivente.
A flor de lótus cresce da escuridão do lodo para a superfície da água. Suas flores
são abertas após ter-se erguido além da superfície da água, distinguindo-se da terra e da
água que a nutriram. Faz-se uma relação com a mente humana e com o
autoconhecimento. A mente humana alcança o autoconhecimento quando, nascida do
corpo vivo, expande suas qualidades (pétalas) após ter-se erguido das turbulências da
paixão e da ignorância, transformando o poder lodoso da profundidade no néctar
depurado da consciência radiante. Apesar das raízes de nossa mente encontrar-se na
profundidade sombria da matéria densa, sua florescência se ergue na totalidade da luz.
A síntese viva do mais profundo e do mais elevado, da escuridão e da luz, do visível e
do invisível, das limitações de cada individualidade e da ilimitada potência, do formado
e do sem forma. Assim, é como se o impulso para a luz não estivesse adormecido na
semente de lótus, escondida na escuridão da terra a flor de “mil pétalas” não poderia
nascer e a mente humana não poderia emergir da escuridão se não existisse a luz e a
potência para o florescimento do si-mesmo. A semente da iluminação está presente em
cada partícula de vida orgânica ou inorgânica. No ser humano ela aparece como
consciência ampliada e pode alcançar a plenitude vivente em sua plena harmonia
criadora. E toda harmonia é reunião de dissonâncias.
Sem o autoconhecimento, portanto, como esperar alcançar o poder-ser mais
próprio da mente livre? Se no plano físico a involução alcança seu último estágio numa
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inconsciência total, é porque a partir daí começa uma evolução gradual rumo à
iluminação autoconsciente, que não tem por fim senão florescer como uma flor de lótus
e depois desaparecer para reaparecer em outra flor de lótus.
Todo fenômeno é uma efervescência espácio-temporal, aparece para
desaparecer. Assim é o fenômeno das individuações autoconscientes. Toda
autoconsciência é, no plano do indivíduo, o florescimento de uma flor de lótus.
Aparecer para desaparecer. Portanto, não devemos nos apegar a nada e sim aderir ao
plano da nossa florescência instante.
Olhemos para trás no tempo da espécie. Quantas foram as florescências
ocorridas? Quantas flores de lótus foram vistas por cada um que já se foi? Cada um de
nós também desaparecerá. E daí? Sejamos como a flor de lótus em nosso florescimento.
Aprendamos a desaparecer como a flor de lótus. A potência Inteligente que congrega
todo o Universo é como uma flor de lótus que sabe brotar do lodo e por instantes
intensos floresce e fenece, mas volta a florescer. Assim é a vida em sua dinâmica
perene. Perene é vida, mas cada um é uma efervescência do viver.
Assim, o autoconhecimento não é um ajuste modelador do caráter para que se
cumpram as determinações de um sistema coletivo massificado. É preciso ser indivíduo
para alcançar a espécie. E é em cada indivíduo da espécie que a revolução do
autoconhecimento se realiza. Fora do indivíduo não há caminho para o
autoconhecimento. Mas há, também, o autoconhecimento da totalidade da espécie, que
se confunde com o acontecimento da realização de cada indivíduo da espécie.
Enquanto a ciência regular nascida no surto da modernidade procura determinar
o controle objetivo de um dado meio de acontecimentos e propriedades materiais a
ciência do autoconhecimento como uma epistemologia do educar é um meio de
florescimento da plenitude vivente em cada indivíduo da espécie em sua singularidade e
unicidade desconhecida, mas pressentida como a presença da luz do sol nos primeiros
albores do dia.
No autoconhecimento a parte de nossa natureza de que normalmente temos
consciência se mostra como a personalidade de superfície, constituindo-se de corpo vital
e mente de superfície. Mas atrás desta consciência de superfície existe uma cosnciência
muito maior, mais profunda e poderosa. Esta consciência de profundidade está em
contato constante com os planos quânticos (se assim se pode chamar) presentes em toda
a extensão e intensidade do Universo como Mente, Vida e Matéria em um só vórtice
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na matéria pelos sentidos e na mente pelo sentir. A matéria tem sentidos. A mente sente.
O vital se reproduz segundo sua marca de origem e o seu meio de vida.
Portanto, o autoconhecimento é uma ciência de si que não necessita do
consentimento político de uma maioria governante para ser o que é. Pois não se busca o
assentimento da autoridade externa para se alcançar a claridade do que está em tudo.
Daí o embaraço dos processos de autoconhecimento quando são subordinados a uma
relação de subserviência e servidão externa. E porque no autoconhecimento a maestria
não é arte de um mestre exterior, e sim o acontecimento do mestre interior, não há
caminho que salve a alma da dissolução se não for o caminho único de cada um.
Ninguém, deste modo, pode autoconhecer-se pelos outros que se autoconhecem e se
tornam mestres de si mesmos. O autoconhecimento não é uma transmissão de mestre a
discípulo, mas uma convivência de mestre e discípulo. A convivência é um meio de
aprendizagem imprescindível, mas não substitui o aprender apropriador de cada um em
sua individualidade aberta e em sua individuação acional e comunitária.
O autoconhecimento é, então, um movimento rigoroso de estudo de si mesmo
através da acolhida dos mestres próximos e distantes. São muitas as entradas e saídas
desta senda. São muitas as vozes que clamam no deserto e no gelo, nos vales e nas
montanhas, na cidade e no campo. Em nossa sociogênese como espécie existe uma
infinidade de escolas e doutrinas que estabeleceram hierarquias no processo de
autoconhecimento. Tudo isso pode até ser respeitável, mas não diz respeito
propriamente ao autoconhecimento. Porque se devemos mirar os mestres de sabedoria
como nossos modelos, que sejam os mestres nossos guias na compreensão da
radicalidade do processo de autoconhecimento propriamente dito. Todo mestre para se
tornar mestre tem que ser amigo e irmão mais novo da Sabedoria. Ele tem que prestar
reverência ao Supremo em si mesmo, e não à majestade e beleza do irmão mais velho.
Sim, todos precisam da presença de mestres. Mas os mestres nem sempre são
outros seres humanos visíveis. Os mestres são presenças viventes em nosso campo
existencial. Sim, o professor “tal” pode ser um grande mestre em Aristóteles, mas ele
não poderá ensinar-me nada daquilo que eu não possa aprender diretamente e sem a
mediação de professores. O que se aprende de um mestre é sempre um método para se
chegar a experienciar diretamente algo determinado. Mas o método requer a prática e a
prática o praticante. Nenhum método, portanto, pode servir ao intento do
autoconhecimento se ele não puder ser praticado diretamente.
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Vida e Matéria condicionadas (MVM), como se poderá ver de modo mais denso na
próxima sessão deste livro.
E porque a epistemologia aqui posicionada é um ato de absoluta liberdade
criadora, ela não precisa prestar contas a nenhuma instância exterior à sua
autodeterminação. E porque também não se opõe às epistemologias consolidadas
academicamente, não estabelece nenhuma zona de conflito com elas, pois o importante
não é combater a mente velha condicionada e sim superá-la justamente pela cessação de
todo o conflito. O conflito é aqui tomado como conflito psicológico que se autoalimenta
no conflito. Cessar o conflito é cessar o funcionamento da psicologia condicionada.
Desse modo, não se trata de uma proposição epistemológica que se apresenta
como um sistema metodológico cuja pretensão é tornar-se o novo paradigma
metodológico da ciência regular instituída, justamente porque compreende o conceito de
paradigma como condição de princípio de todo ente Mental, Vital e Material. E por isso
mesmo, um paradigma epistemológico não poderia tornar-se impositivo de uma
normalização universal, porque por princípio, meio e fim não é possível conter o ímpeto
criador do Universo em sua poligênese incansável, pretendendo controlá-lo a partir da
perspectiva antropológica cega para a potência polilógica do que se encontra sendo em
todos os planos e níveis de realidade.
A intenção de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar não é, portanto,
normativa e nem impositiva de procedimentos metodológicos formalizados e prontos,
como programas computacionais ou procedimentos de montagem de circuitos elétricos,
a serem repetidos em qualquer ponto em que as condições de origem sejam as mesmas.
No campo estrito da individuação humana não há espaço e nem tempo para a aplicação
de um programa que irá funcionar automaticamente. Em relação a este ponto já basta a
nossa programação genética e todos os limites estruturais que daí decorre. Uma
epistemologia que tem o autoconhecimento como fio condutor não tem nada a ver com
a vigência da ciência acadêmica triunfante. Trata-se de outra ciência e de outra
metodologia, de outra concepção de conhecimento técnico e de outra compreensão de
necessidade humana.
O necessário para o ser humano não é o conhecimento tecnológico que o torna
supostamente superior na luta pela sobrevivência. O necessário é justamente o que o
liberte da subjugação e da barbárie, da estupidez e do medo, da ignorância e da má-
querência. O ser humano necessita, portanto, de uma ciência de si, que é uma ciência da
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O Círculo de Viena surgiu na primeira década do século XX, sendo responsável pela criação de uma
corrente de pensamento intitulada positivismo lógico. Este movimento surgiu como reação à filosofia
idealista e especulativa que prevalecia nas universidades alemãs. A partir da primeira década do século,
um grupo de filósofos austríacos iniciou um movimento de investigação que tentava buscar nas ciências a
base de fundamentação de conhecimentos verdadeiros.
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princípio de realidade como uma verdade científica. Mas não é desta epistemologia que
se fala. Precisamos, pelo contrário, de uma ciência da nossa condição ontológica como
campo de relações vivas e instantes, sem apegos a fórmulas que cegam a visão e
impedem a compreensão articuladora que liberta de todo jugo externo e interno,
autoproduzindo-se em sua própria luz.
Epistemologia do Educar Transdisciplinar é, pois, uma construção da ciência da
consciência da consciência e da inconsciência, que diz respeito à comum-
responsabilidade da espécie humana em relação ao seu futuro e à qualidade de sua vida.
A potência heterogenética da espécie reclama uma condução saudável de suas
possibilidades como fazedora, conhecedora e inventora de si mesma, na perspectiva da
autossustentabilidade. É preciso reunir e não separar, congregar e não discriminar,
distinguir e não hierarquizar; reconhecer as diferenças e não impor verdades
indiscutíveis, estabelecer linhas dialógicas contínuas com todos os níveis de realidade
passíveis de descrição e reconhecimento nominativo e conceitual e não regular os
modos de ser pela maquinação heterônoma e separatista, monológica e não dialógica. A
autonomia humana partilhada é o desafio da presente Epistemologia do Educar
Transdisciplinar.
E porque precisamos de uma ciência que nos permita aprender a ser plenamente,
a epistemologia do educar aqui constituída é uma resposta positiva aos anseios de uma
humanidade que reclama por outra consciência abrangente de si, sem a perda do que é
próprio da condição ontológica humana: a abertura para o aberto. Por incrível que possa
parecer, continuamos como espécie almejando o alcance de uma sabedoria não
intervencionista, que possa permitir o florescimento de uma humanidade mais elevada
espiritualmente, despojada das infra e superestruturas ocluentes de todo saber-viver
vívido.
O desafio é, portanto, o desenvolvimento humano compatível com o éthos
abrangente e amoroso do cuidado de si, do outro como oikós ambiental, social e mental
– da morada comum nos planos individual, social e eco-noológico.
David Bohm e David Peat (1995, p. 150-156) ao tratarem da relação entre ordem
e categorias afirmam que para compreender a possibilidade da emergência criativa de
uma nova ordem, é necessário examinar em profundidade toda a noção de ordem, o que
pode vir a ser feito de muitas maneiras. De qualquer modo, será sempre necessário usar
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Lembro aqui que o termo intencionalidade é uma das palavras e conceitos
fundamentais da Fenomenologia de Edmund Husserl, que investigou justamente os atos
intencionais e sua constituição pelo reconhecimento de suas diversas camadas e
preexistências materiais e simbólicas.
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negação da morte é a vida. A vida é para a morte o lado negativo, e assim parece ser em
todos os pares de opostos.
Essa compreensão esclarece como não se deva confundir a negação de algo
como o lado sombrio e maligno. Pelo contrário. Então, quando se diz que os elétrons
possuem cargas negativas não se quer dizer que eles são malignos. O negativo indica
para o meio universal da passagem de fluxos energéticos atômicos. Em outras palavras,
os elétrons não possuem cargas estáveis de energia, e são como os sensores de toda
transmissão e propagação da informação atômica e quântica. Por isso eles são
“negativos”: são atratores de energias advindas de outros átomos e mediadores de
informações pela produção de fótons. Como é que algo assim tão precioso pode em
algum momento ser considerado negativo em oposição a um positivo? Os elétrons são
os grandes mediadores da inteligência cósmica. Sem a mediação de elétrons não poderia
haver comunicação e linguagem, codificação e processamento de informações,
computações cerebrais e cogitações mentais. Mas esta é uma questão que será
esclarecida mais adiante.
Voltemos à Luz. A figura abaixo é uma representação do espectro de luz que
evidencia como a nossa percepção visual limitada não impede a compreensão da luz em
seu espectro invisível, o que significa que nossa visão vê além do visível apesar de
nosso olho só poder ver nos limites do espectro da luz visível. O contraste do campo de
visão é uma negação antagônica da própria visão, mas é como se a visão não pudesse
ver sem a não-visão.
42
Penso. Nossa consciência tem muito da visão para quem tem visão. Mas a visão
da consciência é também uma audição e um tato, um palato e um olfato. A visão é
também uma das dimensões perceptivas da consciência, e a consciência mesma é uma
visão. Mas a consciência também é audição e os demais sentidos. Além disso, a
consciência não é apenas um reflexo dos sentidos, porque ela também é afeto ativo e
conceito. De que é feita, então, a consciência da visão e de todo percepto? É a
consciência uma forma de substância corporal? Pode existir consciência sem corpo?
A fenomenologia da visão tomada como pretexto para se falar das estruturas
elementares da Epistemologia do Educar Transdisciplinar convida-nos a realizar em nós
mesmos o rigoroso movimento de investigação e vivência da consciência da
consciência e da consciência da inconsciência em todas as direções e sentidos. Assim
como nosso campo de visão é constituído de relações de similitude e diferença, de
contraste e convergências, de luz e sombra, nossa consciência é necessariamente
proporcional aos limites de nossa corporeidade. Mas, não acredito que a consciência
seja uma substância que se possa localizar em algum ponto do cérebro. Muito mais do
que substância ela é um fluxo contínuo de cheios e vazios, de idas e vindas, sempre
irreversíveis, pois ligadas ao tempo em sua expansão evolutiva acima de todo
acabamento e de toda totalização absoluta pretendida pela limitada razão humana.
A fenomenologia da visão nos instiga a ver além do visível que é em si a
consciência intencional da visão e nos ensina a reconhecer o ilusionismo da visão como
um construto complexo envolvendo diferentes estratos e diferentes níveis de
complexificação e organização/desorganização do percebido. Por exemplo, a figura
abaixo apresenta uma ilusão ótica derivada da composição dos quadrados e retângulos
superpostos, o que provoca a impressão de que as linhas horizontais não são retas.
43
4
Esta expressão reúne os planos ambiental (eco), social, genético e mental
(noológico) do fenômeno consciência e conhecimento e da consciência e da
inconsciência.
44
5
Com a expressão ionizar quero indicar algo semelhante ao que ocorre com a
produção de íons que caracteriza a dinâmica das partículas atômicas.
45
autogerativa, o que não nega a sua propagação como onda. A imagem das ondas na
água é a mais precisa. A água é em si mesma um meio inerte. As ondas em sua
superfície são energias que viajam através da água. Desse modo, a energia viaja pela
água na forma de onda, significando que ela viaja em qualquer meio que não obstrua a
sua passagem, do mesmo modo, em ondas. Uma onda de água é formada por moléculas
que vibram para cima e para baixo como uma marola, fluindo na direção do movimento
da onda, em geral a força eólica em sua corrida direcionada, como mostra a primeira
figura abaixo. Mas pode também ser causada por qualquer outra força que provoque
alterações na água, como uma pedra lançada formando ondas concêntricas até a
exaustão da força, como mostra a segunda imagem abaixo. As areias do deserto e as
nuvens também são meios através dos quais o movimento das forças eólicas se tornam
visíveis, como se pode apreciar nas duas últimas figuras da sequência abaixo.
Imagem – Ondas do choque de um corpo com a água, semelhante à progagação das ondas sonoras pelo ar
46
Cada uma das partes do átomo é constituída de outras partículas ainda menores.
E por isso a figuração do átomo anterior é um esquema abstrato que não ajuda nenhum
iniciante nos estudos atômicos a imaginar com mais propriedade o átomo em sua
natureza pulsátil contínua e eletrostática, cujo equilíbrio permite a conjugação atômica
sem limites.
A representação do átomo desse modo estático-estrutural foi uma descoberta-
invenção do físico inglês John Dalton, no início do século XIX. Inicialmente o átomo
foi imaginado como uma partícula sólida indivisível. Entretanto a descoberta-invenção
da radioatividade colocou o modelo de Dalton em questão, pois se observou que os
átomos perdem partículas em forma de radiação. Coube ao neozelandês Ernest
Rutherford a mudança do modelo inicial, ao construir um modelo de átomo em que as
partículas negativas (elétrons) giram em torno do núcleo composto de partículas
positivas e neutras, os prótons e os nêutrons respectivamente. A associação com o
sistema planetário foi inevitável. Para ele os elétrons gravitavam em torno do núcleo
como planetas ao redor do sol. Mas foi o dinamarquês Niels Bohr que aperfeiçoou o
modelo de Rutherford, indicando que os elétrons se encontram girando em alta
velocidade ao redor do núcleo. Para Bohr, a distância entre os elétrons e os prótons
permanece constante devido à ação de forças eletrostáticas, mantendo em repouso os
corpos portadores de carga elétrica.
Entretanto, a visão que se tem hoje do átomo é bem mais complexa. Os elétrons
não são mais associados à microplanetas que giram ao redor de um núcleo, mas sim a
objetos quânticos que não são semelhantes a pontos e nem circulam em trajetórias
previsíveis e definidas. Os elétrons não têm posições precisas e sim difusas. Por isso são
descritos como uma “função de onda” que determina a probabilidade de sua presença
num dado local e num determinado instante, o que pode não ser bem assim. A
representação atual dos elétrons o configura como nuvens ou orbitais de densidade
mediana aparentemente fusiformes. A figura abaixo expressa com propriedade essa
imagem quântica do elétron. Suas órbitas são tridimensionais e elipsoidais.
50
constantemente. Mais de perto ainda ele se revela como criador de pares de elétrons-
pósitrons (a antipartícula do elétron que possui carga positiva). Mais longe ainda
aparecem pares de muons-antimuons6 e assim até onde o olho/cérebro/mente alcança. O
elétron contém, como uma entidade quântica e fractal, todas as partículas elementares
existentes no Universo. Diz-se, assim, que o elétron é responsável por toda a
informação existente no Universo como emissor e receptor de fótons. Todo elétron
encontra-se em um estado quântico determinado e é hoje classificado por quatro
números quânticos e por sua geometria orbital. Os quatro números são os seguintes: n =
1, 2, 3, ... (representando algo como a “energia” ou “nível energético”); 1 = 0, 1, ... N-1
(indicando o “momento angular orbital”, significando que quanto mais elevado for esse
momento mais afastado do núcleo do seu átomo estará o elétron); m = - 1,....,1 (o que
indica o “número quântico magnético”); s = -1/2, + 1/2 (representando o “spin” ou
momento angular giratório). Em relação à sua geometria orbital, sabe-se que os elétrons
são orbitais (p, s, d, etc.) que são os espaços de distribuição de suas cargas elétricas. A
série dos quatro números quânticos (n, 1, m, s) possibilita a identificação do “estado
quântico” dos elétrons.
A partir dessa configuração do elétron, seus níveis energéticos confinados ao seu
átomo são afetados pela interação entre o momento magnético do spin e o momento
angular orbital. Por isso ele pode ser visualizado como um campo magnético
decorrente do seu movimento orbital interagindo com o momento magnético do spin.
Isso pode ser expresso como momento orbital angular, isto é, como um dipolo (+ _) em
que a energia E = L x A x B (sendo L = força do momento angular intrínseco; A =
aceleração produzida pela força L na rotação do elétron; B = deriva do movimento
6
Muons e antimuons são partículas quânticas elementares. O muon é um lépton que
decai para formar um elétron ou pósitron. Léptons e quarks são hoje considerados as
menores partículas da matéria, portanto são tidos como "partículas elementares". Na
atual configuração da física das partículas elementares existem seis léptons
identificados: o elétron, o muon e o tauon¸ cada um dos quais com seu respectivo
neutrino ou antielemento complementar. As diferentes variedades das partículas
elementares são comumente chamadas de "sabores", e os neutrinos ou antielementos
têm sabor distintamente diferente de sues opostos. A palavra muon deriva da letra grega
mu (μ). Portanto, juntamente com o elétron, o tauon e os três neutrinos correspondentes
o muon é reconhecido como um lépton. Como todas as partículas elementares, o muon
tem uma correspondente antipartícula o antimuon (também chamado de positivo muon).
O antimuon é o neutrino do muon. Muons são denotadas por μ - e antimuons por μ +. Os
muons foram muitas vezes classificados como mu mesons no passado, mas a física atual
abandonou essa definição.
54
orbital). E essa história de que os elétrons têm um “spin” (ou força rotatória) é resultado
da imaginação criadora dos físicos holandeses Uhlembeck e Goudsmit, em 1925.
Entretanto, a ideia dos holandeses revelou-se relativamente falsa. De qualquer modo, a
evolução do processo descritivo das partículas elementares parece indicar para uma
infinita modificabilidade conceitual e formal em virtude da mudança dos meios e dos
sistemas de captura das informações cósmicas contidas nas partículas quânticas, o que
nos revela a dinâmica incessante da deriva cósmica da qual pertencemos. Em tudo isso
se mostra uma dimensão capital, que é a interação ou força eletromagnética dos átomos.
É desta interação que toda a matéria cósmica se origina e que toda ordem no meio do
caos insondável se torna relativamente estável.
Do ponto de visada da percepção visual, o conhecimento da estrutura fotónica da
luz e de sua constituição atômica não melhora em nada o órgão da visão que nos
constitui, mas amplia o campo de compreensão da complexidade presente em cada
partícula elementar do Universo. Nossa visão, assim, é um campo especializado bem
delimitado e regular de captura de imagens percebidas pelos atos mentais de quem
percebe. Um campo, entretanto, amplamente sofisticado e impossível de ser confinado
ao seu próprio limite porque se encontra em relação complexa com os diversos níveis
primários de constituição dos fenômenos. E o fenômeno é tudo o que “brilha”, é o
brilhante. O que brilha, entretanto, brilha para o ente que vê o brilho. O fenômeno,
assim, já tem em si a curvatura da luz no seu movimento ao redor de si mesma. O órgão
da visão fornece ao cérebro os sinais fotónicos da imagem percebida, mas sem uma
mente não seria possível compreender o brilho que brilha como o brilhante em toda a
sua extensão. A mente, entretanto, não é uma entidade simples de ser identificada em
seus efeitos e estruturas. A ciência da mente é uma metafísica no estrito sentido do
termo. Para tratar da mente é preciso mudar de nível quântico: sair do percepto e ir para
o conceito. Esta mudança de nível requer potência suficiente para ocorrer. Mas, antes de
tratar deste aspecto da mente mais demoradamente, gostaria de fechar o ciclo da
elucidação fenomenológica da visão brincando um pouco com a cor da luz.
A luz visível é aquela que nossos sensores óticos conseguem ver. Quando
olhamos para a luz visível do sol ela parece não ter cor, o que denominamos de branco.
Apesar de podermos ver esta luz branca, o branco não é considerado como parte do
espectro visível. Isto ocorre porque a luz não é feita de uma única cor ou frequência e
sim de muitas frequências de cores. Por exemplo, quando a luz do sol passa por um
55
prisma de vidro as cores se mostram em seu espectro visível, como no arco-íris. Isaac
Newton foi o primeiro a demonstrar este fenômeno: a luz branca é uma mistura de cores
ou uma mistura de luzes com frequências diferentes. Em síntese, a união de todas as
cores do espectro visível produz a luz branca ou incolor. A ausência de luz resulta na
escuridão. O preto aparece como o contrário complementar da luz branca e pode ser
sintetizado pela cor-pigmento com a mistura das cores primárias e das cores
secundárias. Adicionando várias combinações de luz vermelha, verde e azul, se
consegue produzir todas as cores do espectro visível. É assim que o monitor dos
computadores sintetiza as cores. E é assim que nossos sensores óticos sintetizam as
cores em nossa percepção visual, distinguindo e combinando frequências primárias do
amarelo, do vermelho e do verde, pois a luz é multicolor em virtude de suas variações
de frequência. Todas as frequências reunidas formam a luz branca. O preto reúne
igualmente a totalidade das corres por absorção. No campo visual o preto e o branco são
as frequências visuais primárias e dão a base da configuração tridimensional da imagem
por contraste. A relação figura e fundo pode ser reunida na relação entre preto e branco.
Pode-se ainda usar os termos luz e sombra para indicar o movimento primário de
composição de imagens tridimensionais. Pensando alto, o preto pode ser sombra do
branco e o branco a sombra do preto, assim como o branco pode ser a luz do preto e o
preto a luz do branco. Não há, no acontecimento visual um branco sem preto e um preto
sem branco.
Uma estrutura binária elementar é suficiente para dar origem a um campo visual
tridimensional, e esta binaridade parece constituir todas as partículas elementares que
dão seguimento à composição de tudo o que tem sido desde o início ou recomeço do
que se encontra sendo. A estrutura binária está em toda parte e tudo o que é encontra em
si mesmo um alter-elemento antagônico e complementar, campo de toda possibilidade
gerativa sempre correlacionada com uma totalidade de campos. Pois o elementar é de
ordem quântica e pode se precipitar em possibilidades que se combinam a partir de
acervos de informações já sedimentados e gerados nas derivas cósmicas, mas nossa
visão limitada perde de vista o começo e o fim. É como se tudo girasse a partir de seu
elemento opositor e invisível, justamente por ser o contrário de suas propriedades
quânticas. Assim, o polo positivo é sempre aquele que se encontra estabelecido e
inercial e o polo negativo aquele que engendra um movimento pela ressonância sensível
de suas cordas energéticas contínuas.
56
Ora, tudo isso o que foi dito não passa de uma descrição de algo
verdadeiramente incontornável. E este é um aspecto importante da epistemologia aqui
configurada como modelagem do educar transdisciplinar. A ciência humana não pode
pretender ultrapassar os seus limites fenomenológicos, mas também não pode mais
limitar-se ao modelo positivista e intervencionista imperante e hegemônico. Precisamos
de uma ciência nova, capaz de reunir tudo em um único crisol sem a perda de sua
riqueza polilógica, polissêmica, polifônica. Esta é uma grande tarefa epistemológica que
está por ser feita e que aqui ouso esboçar e propor, no seguimento dos vários mestres da
vida abundante. Portanto, não é nenhum mérito pessoal propor o que ainda não está
posto desta forma, pois tudo jorra de uma emergência conjuntural que afirma a
diversidade e a ampliação da potência em todas as direções e sentidos. Um
acontecimento comum-pertencente transpessoal (impessoal e pessoal simultaneamente),
sem a perda de sua singularidade criadora, única, incomunicável, porém muito igual a
tudo o que está sendo.
A elaboração de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar requer um
esforço surpreendente para poder tornar-se algo consistente e mediador de modelagens
humanas abertas à elevação da consciência da totalidade vivente, a partir justamente da
reunião dos opostos e da manutenção da lógica do antagonismo e do contraditório. Uma
das tarefas desta nova epistemologia é a reunião de todas as partes e de todos os níveis
das partes em um âmbito articulado unitariamente. Mas sem a perda da diversidade. A
Diferença ontológica, aliás, é um dos elementos quânticos desta construção
epistemológica. O processo de unificação que se busca não é homogêneo e nem
heterogêneo separadamente, mas é uma fusão de heterogeneidade e homogeneidade em
uma dialógica. Não podemos perder de vista a dinâmica incessante do processo do
conhecimento humano em suas funções corporais, mentais e de consciência.
Inevitavelmente nos deparamos com a linguagem. Tudo o que é se comunica com tudo
o que é. Toda comunicação é linguagem. Toda linguagem é articulação de coisa com
coisa, passagem de informação, tradução do informado, elaboração do formante da
informação. A ação da forma é a correlação de formas. A informação é a passagem de
uma qualidade para outra qualidade por meio de identificadores que também são
quantificadores e qualificadores.
No âmbito dos suportes e eixos de constituição da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar se faz necessário investigar as categorias de organização da
57
compreensão mental que nos é peculiar. Isto exige uma ciência completa corrigida em
seus excessos de certeza e em suas articulações conceituais. Façamos, então, uma
fenomenologia da ordem e das categorias epistemológicas da ciência do educar
transdisciplinar em formação, do ponto de vista mental, pois é neste âmbito que se pode
construir uma epistemologia transdisciplinar.
David Bohm e David Peat (1989) consideram que a ordem da visão processa-se
pela percepção de diferenças como primeiros dados da visão. A partir dos primeiros
dados são construídas em seguida as semelhanças. Assim, a ordem da visão se dá pela
percepção de diferenças e pela criação de semelhanças dessas diferenças. Estendendo
essa estrutura para todos os campos das vivências intencionais é possível saltar para a
investigação do pensamento que se organiza de maneira análoga à percepção visual, por
contraste entre diferença e semelhança. Para estes autores, na investigação das
estruturas de constituição do pensamento é fundamental a identificação das categorias
organizacionais, a começar dos atos de seleção e coleção. O pensamento é um contínuo
processo de seleção e de coleção, de distinção e de agrupamento por similitude.
Peat e Bohm evocam a raiz latina das palavras seleção e coleção. Selecionar
significa “pôr à parte” e colecionar significa “pôr junto”. Para eles, formam-se
categorias quando determinadas coisas são selecionadas mediante a percepção mental
das suas diferenças, em relação a um fundo comum e geral. O segundo momento da
categorização consiste em colecionar os objetos selecionados previamente, a partir da
sua diferenciação em relação ao fundo comum. Categorizar, portanto, implica na
conjunção de selecionar e colecionar. Para categorizar é preciso selecionar e colecionar
alternadamente e simultaneamente.
Ora, selecionar é escolher, colecionar é agrupar por categorias de diferenciação.
Pôr à parte e pôr junto, distinguir e reunir, separar e juntar forma a dinâmica de toda
categorização mental, que é um processo único. E porque a categorização é um processo
único, cada caso implicará em conjuntos diferentes de categorias, pois cada caso tem
sua topologia própria, o que significa dizer que para cada caso as categorias poderão e
deverão variar, mas a categorização será feita de uma maneira única: selecionando e
colecionando. Independente do caso, só há ato mental devido ao movimento dinâmico
da categorização, que pulsa entre selecionar e colecionar. A categorização determina
diferenças e similaridades para cada caso específico. É importante, então, compreender
a categorização como um movimento dinâmico relacionado à vida espiritual (cultural)
58
dos seres humanos. Porque somente o ser humano entre os entes naturais conhecidos
possui a dimensão mental desenvolvida e pode investigar sua estrutura a partir do
espectro da inteligência criadora de novas ordens e do espectro da
consciência/inconsciência de tudo o que se encontra sendo (ardendo, queimando,
combustando).
Trata-se de compreender a mente em sua conjuntura completa, sem dissociá-la
de sua textura espiritual. Como dizem Bohm e Peat (1989, p. 153), lembrando algo
aparentemente trivial, mas fundamental para se compreender a categorização como
traço mental comum a todo ser humano:
capacidade da mente de perceber o que está “entre” e criar assim novas categorias”
(1989, p. 154).
Nossa mente, portanto, tem propriedades inteligentes que podem criar novas
categorias a partir de novas relações conjuntivas. A inteligência é inteligente: ela coloca
entre duas coisas uma terceira que interliga o que antes se encontrava separado. A
inteligência é criadora. Diferente do intelecto que pode ser considerado o espectro
passado da inteligência. No latim, intelectus é o particípio passado de intelligere. O
intelecto retém o fluxo do inteligir como aquilo “que foi classificado” como vivido. Os
esquemas de categorias preexistentes são dados do intelecto. O que já foi classificado
condiciona o processo de classificação.
As categorias do intelecto são os arranjos intencionais do vivido que se mantém
como imagens fotográficas fixas. Sendo relativamente fixo o intelecto não é inteligente
e sim preconceituoso. As categorias do intelecto são os preconceitos da razão prática e
os entraves da razão teorética. A inteligência não é um ato intelectual e sim um ato
mental dinâmico e criativo. O intelecto reflete e retém o vivido em suas semelhanças e
diferenças, a inteligência configura o vivente em suas metamorfoses criadoras. Para
configurar melhor esta distinção tome-se como exemplo o teste de QI, chamado
erroneamente de quociente de inteligência, mas que se limita a ser uma medição do
quociente do intelecto. O teste de QI instituído, assim, não possui meios de captura do
quociente de inteligência porque se limita a enquadrar tudo em categorias
homogeneizantes e estáticas, como se fosse possível medir o poder da inteligência de
alguém pela simples aderência à tabela determinada pelo inventor de tal teste. A
inteligência, pelo contrário, é sempre o arranjo de novas categorias surgidas em virtude
de emergências contextuais. Quando novas formas são percebidas através de sua ação
criadora, a inteligência faz emergir as categorias do jogo livre da mente e não o
contrário. Categorias são criações da inteligência que se tornam categorizadas e se
fixam como estruturas portantes. Quando enrijecidas aprisionam a inteligência criadora
em suas repetições esquemáticas. Para dizer, as categorias são estruturas portantes
necessárias desde que a mente se mantenha aberta à ação criativa da inteligência.
Precisamos sim de categorias. Toda vida é uma forma de categorização.
Entretanto, é preciso aprender a não cair na tentação do conforto psicológico de uma
ciência paradigmática universal, que teria em seus postulados a certeza absoluta como
critério absoluto de definição epistemológica. Precisamos, pelo contrário, de uma
60
crítica epistemológica radical que não se deixe paralisar pela inércia intelectual do
instituído modelado como modelo regulador do conhecimento científico verdadeiro. Por
isso precisa-se praticar uma ciência de si que é uma ciência outra, com o cuidado de não
deixar prevalecer o inercial das categorias intelectuais e sim deixar florescer a
inteligência em sua inteligência própria. Para Bohm e Peat, o que me parece bem
razoável, pode acontecer que algumas categorias se tornem tão fixas no intelecto que a
mente acabe se convencendo e jogando falso para se iludir. “Com efeito, à medida que o
contexto muda, mudam as categorias. No entanto, estas categorias, quando são
introduzidas implicitamente na estrutura global da linguagem e da sociedade, tornam-se
rígidas e persistem de modo inapropriado no novo contexto” (1989, p. 155).
Considerando, assim, que o contexto aqui abordado é novo, é preciso logo de
início reconhecer as categorias que o novo contexto epistemológico apresenta, sem que
a categorização epistemológica hegemônica impeça a expansão de outra articulação
categorial movida pela inteligência criadora e contextualizada. Há uma emergência
reclamando suas próprias categorias. E quais são elas?
A inteligência necessita de liberdade para poder gerar novas ordens. É preciso
considerar a própria emergência em suas entrelinhas, quer dizer, atentar para a
inteligência em sua presença criadora. Isso só se pode fazer pelo autoconhecimento.
Quer dizer, não adianta buscar o sentido do que quer que seja na ilusão de categorias
fixadas pela sedimentação das experiências vividas, porque o sentido não é algo passado
e nem algo futuro, mas o instante em sua efervescência emergente. A emergência
reclama o desenrolar da inteligência criadora capaz de criar novas ordens, o que são
moradas para os que surgem na emergência na compreensão libertadora.
Ora, tudo isso é discurso. E por isso mesmo é possível reconhecer as categorias
da Epistemologia do Educar Transdisciplinar através de uma descrição do que se mostra
imprescindível para se conceber uma epistemologia com outras dimensões de sentido e
articulação compreensiva.
Não se trata de um caminho epistemológico que visa demonstrar a validade de
sua crítica, do ponto de vista de uma analítica da razão pura: a instituição de um
Tribunal da Razão que visa explicar a constituição da realidade e a validade da Razão
em sua certificação crítica. O que não significa negar a grandeza do caminho da teoria
do conhecimento da tradição ocidental até Kant e depois de Kant, mas reconhecer que
as categorias explicitadas por esta tradição não cobrem mais o campo das emergências
61
7
A apercepção é definida como a ação pela qual a mente amplia, intensifica ou
plenifica a consciência dos seus próprios estados internos e de suas representações.
Trata-se de um termo inventado por Leibniz (1646-1716) para cobrir o fenômeno da
consciência das próprias percepções e impressões sensitivas. Kant (1724-1804) usa o
termo para designar a autoconsciência subjetiva que se realiza de forma pura ou
empírica. No campo da Psicologia, apercepção é definida como a articulação das
qualidades apreendidas de um objeto com experiências de conhecimento já realizadas
pelo sujeito do conhecimento, o que caracteriza um processo fundamental da aquisição
do saber. Para a Gestalt, a Psicologia da Forma, a apercepção é uma percepção bruta e
imediata de uma totalidade, que antecede a percepção analítica e minuciosa que revela
seus componentes e conexões internas, por comparação ao já dado. Significa, assim, a
apreensão direta, imediata, não analítica de um fenômeno, uma intuição direta.
63
verbo e não uma entidade em si. Sem o verbo não há como pensar a substância, mas
sem a substância pode-se pensar o verbo. O verbo, assim, vem primeiro na ordem das
organizações mental, vital e material. É o verbo que materializa, vitaliza e mentaliza o
real como campo de possibilidades constituídas previamente, ou melhor, construídas em
sua raiz fenomenal.
Mente, Vida e Matéria se apresentam trinitariamente como um complexo
unitário. Uma é parte da outro. Na Epistemologia do Educar a Mente é o campo em
que a própria Mente é elucidada em suas revelações e invenções condizentes. E é
também a partir da Mente que a Vida e a Matéria passam a formar o campo unitário do
fenômeno em suas distinções e complementações. Entretanto, a função Mente-Vida-
Matéria diz respeito a apenas uma parcela da evolução do Universo na perspectiva
humana. É a Mente humana que concebe e descreve a Vida e a Matéria. A rigor, dever-
se-ia falar de complementações bipolares em relação a cada um desses eixos categoriais.
Assim, a Mente tem em si uma Supramente, a Vida uma Supravida e a Matéria uma
Supramatéria. Até o presente momento a espécie humana só conhece a Mente, a Vida e
a Matéria, desconhecendo a Supramente, Supravida e Supramatéria. Seria, então,
possível caminhar no conhecimento Supra, do ponto de vista de uma evolução da
espécie? A espécie estaria no limiar de um conhecimento Supra Mental, Vital e
Material?
Imaginemos Uma Supramente. Como será possível concebê-la fora do que já se
encontra na mente condicionada? A Mente por si só não está apta a conhecer a
Supramente. E então, como é possível se falar de uma Supramente a partir da Mente
condicionada? Isto não é uma nítida falácia lógica?
A história começa a ficar diferente. A Mente condicionada por si só não é capaz
de alcançar a Supramente. É necessária, então, uma imanência da Supramente na
própria Mente. A Mente precisa receber a Supramente como uma imanência direta. A
Mente passa a buscar a Supramente como sua alteridade complementar, deixando-se
invadir pela Supramente. Isto também pode significar que a Supramente nunca esteve
longe da Mente. A Mente, então, se abre para a Supramente como uma flor de lótus. A
Supramente sempre esteve e está imanente na Mente.
De modo análogo, a Supravida encontra-se imanente na Vida, como um fractal –
se dá como um holograma absoluto, por isso mesmo é como se contivesse em si todas
as partículas elementares do Universo. Sua fenomenologia só pode ser concebida pela
64
e de reunir imagens distintas em uma mesma totalização, mesmo que sempre provisória.
Pois toda totalização MVM é sempre provisória. Entretanto, mantém sempre um
impulso de unificação em suas visadas, pois sempre totaliza pela superação de focos
específicos e ângulos parciais. Mas a intuição MVM não vai além da MVM, enquanto
que a Supraintuição é a sua contrapartida magmática. Toda intuição se dá em um fundo
supraintuitivo, como todo ente se dá no fundo de um supraente ou não-ente. Uma
Supra-intuição é como uma Não-intuição. É o polo oposto complementar. Na ativação
da Supra MVM ocorre um salto de natureza em relação ao modo de funcionamento da
MVM.
O polo oposto de cada uma das instâncias categoriais indicadas pode
corresponder ao jogo positivo-negativo da energia. Todo campo eletromagnético é
constituído de polaridades opostas. Bastam dois polos para que todo o Universo passe a
existir em suas metamorfoses e permanências intermináveis.
Trata-se evidentemente de uma suposição metafísica, que pode até merecer uma
comprovação empírica qualquer, mas este acontecimento nunca pode ser capturado em
seu termo final, como se a matéria fosse feita de pequeninas partículas e como se tais
partículas fossem a causa primeira de tudo o que é material, vital e mental. A questão
parece ser de uma ordem muito mais complexa e dinâmica em sua geratividade
relacional. É preciso saltar do referencial que isola as partículas elementares de sua
totalidade conjuntural originária para que se possa conceber a unidade indivisível de
tudo. Os gregos chamaram átomos os tijolos indivisíveis da matéria. Como foi que eles
chegaram a esta compreensão? Que saltos mentais, vitais e materiais estão pressupostos
nesta intuição grega do átomo? Na época não existiam aparelhos de captura para essa
visualização, mas a própria mente vital tomou consciência de sua constituição material
primária. Hoje, com todo o avanço tecnológico existente, não se chegou ainda muito
mais longe do que o átomo na constituição da matéria-vida-mente. O átomo se tornou
subdividido ao infinito. O limite alcançado é simplesmente o limite dos instrumentos de
captura das ondas eletromagnéticas. Mas, qual pode ser o limite do que é em si mesmo
indivisível? Todo o Universo seria uma grande malha que se dobra em si mesma? Além
do mais, com a compreensão atômica moderna e contemporânea se chegou a delimitar
os contornos de algo que se mostra consistente e permanente em seu acontecimento.
Hoje já se sabe como medir a regularidade da matéria e dos organismos vivos. Estima-
se o tempo de vida dos átomos por processos dedutivos nascidos da indução e da
71
abdução. Os limites da realidade estão muito bem definidos pela observação científica
qualificada. A questão, então, é saber como sair do círculo vicioso da ciência
qualificada em relação à origem da vida e da matéria-mente.
Pensemos mais demoradamente acerca do indivisível. É inadequado pensar o
indivisível como sendo um elemento material último. É mais apropriado pensar o
indivisível como o limite de nossa visualização material. Tão pouco o indivisível é
apenas um conceito ideal. Que seja um conceito, parece não haver dúvida. O
indivisível, entretanto, é divisível até um determinado limite indivisível. Por que o
conceito de átomo haveria de ser o indivisível de um objeto material invisível aos
olhos? Por que haveria de existir um termo último na matéria? Não seria mais oportuno
pensar a matéria em sua trindade MVM, como dobra e como totalidade indivisível na
sua própria dinâmica fluídica e contínua?
A compreensão aqui divisada apreende a matéria em sua constituição trinitária
MVM. A matéria é um ente vivo e mental simultaneamente. Dependente de seu limite
originário, a matéria se constitui de aglomerados de subpartículas, que são o que são em
virtude de seus campos vibratórios derivados das interações. Por uma compreensão
metafísica, o que compõe um determinado fenômeno em sua constituição primária está
presente em qualquer fenômeno. As variações são determinadas pelas interações entre
os entes individuais. E a individuação é a forma matricial de geração da MVM. Sem
“partículas”, sem “indivíduos” não se pode compor um organismo vivo ou mesmo
apenas atômico. E os “indivíduos” possuem em si a totalidade de sua geração matricial.
Algo semelhante ocorre com a vida no planeta Terra. Ela é parte de uma deriva
cósmica única. Todos os elementos que compõem a vida na Terra estão presentes na
incompreensível extensão do Universo. Isso se sabe graças ao avanço da ciência
experimental. Como, então, conceber a vida na Terra como algo apartado do conjunto
Universo do qual faz parte? Seria de nossa parte prova de falta de “intuição” se
caíssemos vítimas da “atomização” fisicalista da vida, como se fosse possível encontrar
a causa de tudo em partículas elementares de natureza “quântica”, que já é uma forma
de definir e de identificar o “objeto” em si da realidade universal. Como se existisse
apenas um padrão possível de realidade e não diferentes níveis de realidade derivados
de atualizações específicas, que se transmitem em suas formas fixadas pela experiência
e pelo ímpeto de ordenação e equilibração que há em toda vida inteligente.
72
Essas palavras de Aurobindo estão cheias de uma potência que atua supra
intuitivamente, estando além das referências da MVM. Entretanto, o acesso a este
poder não ocorre por adição de informação técnica, sendo um florescimento espiritual
que está protegido por constituição do uso indevido que dele se possa fazer. O que
dizer, então, da manipulação da energia atômica, seja por fissão nuclear ou por fusão
nuclear, hoje disponível? Ter-se-ia alcançado tecnicamente a Supra MVM? A ciência
atômica atual teria alcançado o domínio da potência Supra MVM?
De certa forma, sim. Houve o alcance da grande potência atômica contida na
fissão e na fusão de átomos. O nosso sol é o resultante de uma contínua fusão atômica,
como se ele fosse uma bomba de hidrogênio em uma potência de fusão que comparada
a outras fusões maiores é de uma grandeza pequena, mas suficiente para sustentar o
desenvolvimento da vida orgânica no planeta Terra. É graças à potência atômica do sol
que há vida em nosso planeta. A fusão atômica de átomos de hélio e hidrogênio forma a
fonte da vida no espectro por nós conhecido. O conhecimento da energia atômica é
inerente às possibilidades do conhecimento da MVM. Isto ainda não significa a ativação
da SupraMVM, e sim a manipulação de uma potência Supra sem o devido
conhecimento Supra. Como um ignorante diante de uma usina nuclear, a ciência
atômica brinca com os limites da energia quântica, sem que a humanidade esteja
preparada para lidar com este poder. Para que serve a fissão e a fusão atômica quando a
humanidade se encontra ainda em um nível de desenvolvimento ético muito primário?
A quem beneficia este amplo desenvolvimento energético e eletrônico?
O fato é que tem beneficiado uma minoria. Há cada vez mais grupos humanos
que vivem em condições de absoluta pobreza. Seria preciso primeiro equilibrar a atual
75
desarmonia ecológica MVM, compreendendo uma ecologia mental, uma ecologia vital
e uma ecologia material. A potência de conhecimento disponível pelo desenvolvimento
da tecnociência mais avançada de nada serve se não puder em primeiro lugar beneficiar
a sustentabilidade da MVM planetária. Isto toca diretamente no desenvolvimento
espiritual da espécie humana, como prioridade da ciência transdisciplinar. Um projeto
de construção humana que ative a relação amorosa com a SupraMVM, e que permita o
florescimento de entes extraordinariamente livres e poéticos. É como vencer o medo.
Vencer a morte. E vencer a morte não significa deixar de viver a norte e sim sabê-la
como dobra da vida. Vencer a morte é despertar na SupraMVM. E despertar na Supra
MVM é deixar para trás todo sofrimento e apego, como a metamorfose da borboleta.
A Noologia começa com o exame dos pensamentos condicionados. Isto pode ser
feito a cada instante sem interrupções. Isto não nos trás poder algum e nem nos faz
superiores a nada. Não deixamos de ser um ser humano e nem podemos desconhecer a
fragilidade da vida humana, a profunda necessidade de acolhida e de afeto amoroso.
Somos um ser que somente pode metamorfosear-se como flor de lótus na presença do
amor que é uma dádiva ilimitada e o poder que tudo pode sem nada querer. Como
assim? Justamente porque o ser humano não encontraria meio para sua individuação
sem o sentido do amor. E porque há um sentido no amar e no ser amado, tudo faz
sentido para quem foi invadido pelo poder do amor. O ser humano não seria nada e não
faria sentido algum fora do amar. Porque pode amar pode ligar em si mesmo a Supra
MVM. Sem amar e fora do amor não há saída do tempo psicológico e da vida sem
sentido.
Todo poder e toda dádiva pode ser ativado instantaneamente por cada ser
humano. O poder-ser está disponível para cada um como o ar que se respira. Fazemos
parte da potência amorosa e por condicionamento temporal e psicológico nos
encontramos na indigência ontológica prisioneiros do tempo da mente condicionada. E
quando nos damos conta de que somos livres dos condicionamentos da mente
condicionada, o que acontece conosco? Acontece que nos tornamos seres livres do
medo e da infelicidade, do sofrimento e da causação do sofrimento psicológico.
Tornamo-nos aquilo de que somos feitos na origem, não aquilo que nos fizeram os
condicionamentos psicológicos na experiência temporal. O nosso eu psicológico não é
o nosso ser em sua totalidade, mas apenas uma pequena parte transitória de nossa
entidade SupraMVM. Que velha metafísica é esta?
76
caminho metodológico é preciso deixar de lado tudo aquilo que se mostra em sentido
dado. É preciso elevar-se à condição de dialogante no diálogo permanente com o
vivente. Deixar de lado o vivido sem descuidá-lo ou negá-lo. Apenas deixar de lado o
vivido. O ser que somos tem o poder de regenerar-se a cada instante, em diferentes
níveis de complexidade. Deixar de lado o vivido e deixa ser o vivente em sua
efemeridade feliz. Tomar ciência da felicidade vivente.
Do ponto de vista metodológico, o diálogo é o meio universal para a prática de
um autoconhecimento que identifico como conhecimento filosófico. No diálogo levado
a termo em sua dinâmica investigativa radical, o que está sempre em foco é o próprio
pensamento, o conhecimento do pensamento em suas formas de ser. Investigar o
próprio pensamento nada tem a ver com a investigação dos pensamentos particulares.
Investigar o próprio pensamento requer a audição do investigador. Ouvir o que dizem os
pensamentos próprios. Todo pensamento é pensamento porque é falante. O pensamento
se organiza como discurso. O pensamento é discurso. Discurso perceptivo, afetivo,
emocional, político, retórico, poético, religioso, epistêmico, filosófico. A questão é
como ouvir os próprios discursos, atentar para si mesmo. Olhar o modo como nos
tornamos iludidos, entorpecidos, adormecidos. Olhar a forma das ilusões que
constituem nossa identidade. Olhar-se diante do espelho. É um aprendizado do ver a
partir do ouvir, ver que se modula no ouvir dissonante da juntura dos contrários, e se
harmoniza no campo em que os opostos ressoam no mesmo um-tudo. É tudo um, em
tudo um, um em tudo.
O fim do diálogo, assim, é conduzir ao conhecimento das formas de pensamento
que nos condicionam e nos tornam alienados ou livres, tendo em vista apoderar-nos de
uma autocondução liberadora em sentido conjuntural, coletivo, partilhado numa
conjuntura maior. O diálogo é o meio universal do exercício do autoconhecimento
porque o que está em jogo não é o conhecimento do próprio ego individual, mas o
conhecimento em sua totalidade articulada: o conhecimento do conhecimento e o
conhecimento do desconhecimento.
O diálogo é uma meditação auconhecente. Através do diálogo ativamos o
processo do autoconhecimento. Algumas passagens de Krishnamurti favorecem a
compreensão do autoconhecimento como uma prática de meditação que cabe a cada um
aprender.
A meditação é o começo do autoconhecimento. Conhecer a si
mesmo – nada mais do que isso – é meditação.
81
Ser a luz de si mesmo significa não ter medo; significa não ter
apego de espécie alguma. (...) E, mais ainda, para serdes vossa própria
luz deveis investigar a experiência.
vez mais mecanizada. E não vejo como operar essa completa revolução
a não ser individualmente. O “coletivo” não pode ser revolucionário; o
coletivo só é capaz de seguir, ajustar-se, imitar, submeter-se. Mas só o
indivíduo – vós – pode romper as muralhas, destroçar todos esses
condicionamentos, e se tornar, assim, criador. É a crise na consciência
que exige essa mente nova. Mas, aparentemente conforme se observa,
ninguém pensa nisso; o que sempre se pensa é que, com mais
melhoramentos – no campo técnico ou mecânico – se criará, como que
miraculosamente, a mente criadora, a mente sem medo.
Sim, a mente criadora, a mente sem medo. O medo psicológico é o principal véu
do autoconhecimento. Uma ciência noológica tem como primeira tarefa investigar e
transcender o medo psicológico. A ecologia mental deve cuidar da raiz do medo como a
ecologia ambiental deve cuidar da raiz da ignorância em relação aos recursos naturais,
assim como a ecologia social deve cuidar da raiz da intolerância nas relações humanas.
A mente criadora, assim, sabe negar a condição de submissão imposta pelo medo. Ela
sabe dizer “Não” ao medo psicológico. Como disse Krishnamurti (1980, p. 8-9):
Como, então alcançar esse estado em que a mente pode viver sem nenhum
problema? É possível que o ser humano massa, depois de ter vivido por milhões de anos
às voltas com o conflito, possa se livrar de um tamanho determinismo? Se for possível,
como fazer isso?
Krishnamurti sugere que o tempo seja analisado, porque os problemas inerentes
à condição humana estão intimamente relacionados ao tempo. Uma noologia, assim,
deve começar por analisar o tempo. O que é, então, o tempo? Tempo é sinônimo de
problema e de aflição? Seguindo Krishnamurti em suas descrições (2000, p. 39), há um
bom motivo para a relação do tempo como a raiz de toda agonia do ente humano:
totalidade divisada e com a totalidade indivisa. Sobre a qual não cabe nenhuma razão
epistemológica para dominar a cena, porque está além das lógicas hegemônicas que
afirmam o princípio de Realidade a partir de suas objetivações sempre parciais.
potência de ação, seu ambiente e sua cognição, necessita também conhecer suas formas-
pensamento. Mas esse conhecimento não pode ser isolado se quiser ser um campo
transdisciplinar de relações. É preciso, então, não perder de vista o principal: nossa
mente tem uma função plasmadora ainda pouco investigada pelas ciências da cognição e
ciências cognitivas. Sem processar o movimento de “redução fenomenológica radical”
não se pode alcançar a potência transformadora no ato de aprendermos a conhecer e a
saber do funcionamento de nossa mente. O campo mental, apesar de ser triadicamente
indissociável dos planos vital e material, tem suas propriedades distintas dos demais,
pois caso contrário não seria algo consistente – durável – persistente – insistente –
instante – não seria algo Real. Uma Ecologia Mental, assim, é a ciência que tem a tarefa
de investigar os territórios da mente de modo a que se possa operar com maestria o
grande ente que é a vida inteligente e sabedora de tudo que a tudo permeia e invade, a
tudo comanda e deixa ser. A tudo ama e porque ama sempre recomeça do princípio e
quando chega ao fim volta ao princípio.
96
8
São os seguintes os principais eventos e documentos: 1) Colóquio A Ciência Diante das
fronteiras do Conhecimento, organizado pela UNESCO em Veneza, em 1986, que dá origem a
Declaração de Veneza. 2) Congresso Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares
para o século XXI, organizado pela UNESCO, em Paris, 1991., gerou o documento Ciência e
Tradição. 3) I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, organizado pelo CIRET (Centro
Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares – Paris), com parceria da UNESCO,
ocorrido em Arrábida (Portugal), gerando o documento Carta da transdisciplinaridade. 4)
Congresso Internacional de transdisciplinaridade realizado em Locarno, em 1997: “Que
Universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade”,
organizado pela UNESCO. “A transdisciplinaridade, como o prefixo trans o indica, diz respeito
98
b. A configuração transdisciplinar
ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de
toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos para isso
é a unidade do conhecimento” (Passagem da Síntese do Congresso de Locarno). 5) II
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, foi realizado em Vila Velha, Espírito Santo –
Brasil, em 2005. Nesse Congresso o objetivo foi criar um espaço em que as questões
transdisciplinares pudessem ser tratadas em três eixos: atitude, pesquisa e ação. Buscou-se
também o resgate de princípios discutidos no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade
realizado em Arrábida, em 1994, e do Congresso “A Revolução da Transdisciplinaridade” que
ocorreu em Locarno, em 1997. Além desses acontecimentos que estabelecem os horizontes
históricos da transdisciplinaridade, outros eventos já foram realizados no mundo e no Brasil e
alguns outros estão sendo preparados para o futuro. Consulte-se também SOMMERMAN
(2002).
99
*
O enfoque disciplinar, na atualidade, pode ser considerado um
dos frutos mais típicos e substanciais do racionalismo científico, que
modelou, nos últimos séculos, a mente e a atitude básica do ocidental.
(...) A universidade moderna caracteriza-se por três fragmentos
principais: o físico, o biológico e o humano. Cada um desses ramos, por
101
*
A perspectiva educativa disciplinar trata do processo de
transmissão/aquisição dos conhecimentos, que são concebidos e
apresentados de forma separada e fragmentada, através das abordagens
das diferentes disciplinas. Nesta perspectiva os conhecimentos da
disciplina matemática, por exemplo, são tratados sem nenhum tipo de
relação com os conhecimentos das disciplinas história, química,
literatura, biologia, artes, geografia, literatura, física etc. Ou seja, na
ação educativa disciplinar não existe nenhum tipo de
comunicação/diálogo/relação do conteúdo de uma disciplina com
qualquer outra disciplina.
Além disso, a prática da educação disciplinar também não
trata/cuida da dimensão da vida interior psicológica do ser humano.
Nesta prática as emoções, os sentimentos, as sensações as intuições, as
percepções e as imaginações inerentes à constituição da psique do ser
humano não podem ser contempladas/cuidadas/tratadas no processo de
aprendizagem do aluno.
A abordagem educativa disciplinar, ao lidar com cada área do
conhecimento como uma disciplina específica, totalmente desvinculada
de qualquer outra e ao negar/desprezar a vida interior psicológica do ser
humano, utiliza procedimentos pedagógicos para o desenvolvimento de
um ensino que não somente prejudicam o funcionamento do cérebro do
estudante, como também mutila e adoece a sua psique. No processo de
negação da vida interior psicológica do ser humano, a ação educativa
disciplinar utiliza métodos e procedimentos didáticos sustentados por
uma pedagogia da crueldade, que não permitem o educando e o
educador vivenciarem o movimento da arte de aprender ou da arte de
autoconhecer-se. (SOARES, 2007)
*
O reducionismo e a insuficiência do enfoque disciplinar
suscitaram inteligentes alternativas reparadoras, como as abordagens
multi, pluri e interdisciplinar. Como os termos indicam, entretanto,
sempre ainda na órbita disciplinar: uma produtiva e ampliada
dialogicidade entre os muitos discursos e enfoques do mesmo
racionalismo científico. (CREMA, 1999)
tempo cronológico. A Figura abaixo apresenta o processo gerativo das três gerações
divinas:
Como diz Kerényi, “Desde o ato sanguinário de Crono, o céu nunca mais se
aproximou da terra para o casamento noturno. A geração original chegou ao fim e a ela
se seguiu o reinado de Crono.” O Grande Crono devorava todos os filhos assim que
deixavam o ventre da mãe e caíam entre os joelhos dela. Crono não queria dividir o seu
poder com mais ninguém, e como seu pai havia vaticinado que este seria vencido por
um de seus filhos, ele os engolia para não afastar-se do seu reinado.
Revoltada por não poder fazer crescer nenhum dos seus filhos, Réia arma um
estratagema contra o seu marido, e consegue enganá-lo, salvando Zeus de ser engolido
pelo pai.
Após um longo preparo e amadurecimento, Zeus destrona Crono e se torna o
Senhor do Universo. Tem início a terceira e última geração divina.
*
O que tem essa narrativa mítica a ver com os fundantes epistemológico-
filosóficos da transdisciplinaridade? Que relação é esta? Qual é a sua intenção?
Intenciono com isso enfatizar a existência de diferentes níveis de realidade que
se co-pertencem. As histórias míticas mostram-nos que quando um deus destrona o
outro, aquele que sai de cena não deixa de existir, apenas perde o seu poder de mando,
permanecendo ativo em seu próprio território, mesmo confinado, limitado. Na estrutura
104
ao se passar de um para outro, há uma quebra nas leis e uma quebra nos
conceitos fundamentais (como por exemplo, a causalidade).
Os níveis de Realidade são radicalmente distintos dos níveis de
organização como estes foram definidos nas abordagens sistêmicas. Os
níveis de organização não pressupõem uma quebra dos conceitos
fundamentais; vários níveis de organização não pressupõem uma quebra
dos conceitos fundamentais: vários níveis de organização podem
aparecer em um único nível de Realidade. Os níveis de organização
correspondem a diferentes estruturas das mesmas leis fundamentais. Por
exemplo, a economia marxista e a física clássica pertencem ao mesmo
nível de Realidade.
O surgimento de no mínimo três diferentes níveis de Realidade
no estudo dos sistemas naturais – o nível macrofísico, o nível
microfísico e o espaço-tempo cibernético – é um evento maior na
história do conhecimento. Isso pode nos levar a reconsiderar nossa vida
individual e social, a dar uma nova interpretação ao conhecimento
antigo, a expor o conhecimento de nós mesmos de maneira diferente,
aqui e agora.
A existência de diferentes níveis de Realidade tem sido
afirmada por diferentes tradições e civilizações, porém essa afirmação
estava fundamentada no dogma religioso ou na exploração de nosso
universo interior.
No nosso século, num esforço para questionar os fundamentos
da ciência, Edmund Husserl e outros estudiosos detectaram a existência
de diferentes níveis de percepção da Realidade a partir do sujeito-
observador. Contudo, esses pensadores foram marginalizados pelos
filósofos acadêmicos e mal compreendidos pelos físicos, com cada área
tendo sido apreendida na sua respectiva especialização. Na verdade,
esses novos pensadores foram pioneiros na exploração de uma realidade
multidimensional e multirreferencial, na qual o ser humano é capaz de
recuperar seu lugar e sua verticalidade.
A perspectiva que estou apresentando aqui está totalmente de
acordo com aquela dos fundadores da mecânica quântica: Werner
Heisenberg, Wolfgang Pauli e Niels Bohr.
Na verdade, Werner Heisenberg chegou muito perto, em seus
escritos filosóficos, do conceito de ‘nível de Realidade’. Em seu famoso
Manuscript of the year 1942 (publicado somente em 1984) Heisenberg,
que conhecia bem Husserl, introduz a ideia de três regiões de realidade
capaz de dar acesso ao próprio conceito de ‘realidade’ : a primeira
região é aquela da física clássica; a segunda, da física quântica, da
biologia e dos fenômenos psíquicos; e a terceira, da religião e das
experiências filosóficas e artísticas. Essa classificação tem um
fundamento sutil: a conectividade cada vez maior entre o Sujeito e o
Objeto.
O ponto de vista transdisciplinar nos permite considerar uma
realidade multidimensional, estruturada por múltiplos níveis, ao invés
do nível único, da realidade unidimensional do pensamento clássico.
c. O pensamento da complexidade
A complexidade permite compreender a estrutura em rede de tudo o que é. Tudo
o que é se interliga em diferentes níveis de Realidade. Tudo o que é constituí-se de
sistemas de sistemas de sistemas ao infinito, segundo diferentes níveis de organização.
Como afirma Morin (2000), “Pensar a complexidade é o maior desafio do pensamento
contemporâneo, que necessita de uma reforma no nosso modo de pensar”.
A teoria da complexidade que hoje aparece em cena como construção de uma
ciência transdisciplinar pode ser expressa em sua abrangência polilógica na figura
abaixo:
125
conexões complexas. Aliás, essa seria a base lógica de toda analogia e de toda
comparação. Qualquer compreensão articuladora é sempre uma relação da parte com o
todo, pois sem que um todo esteja presente analogamente na parte, nenhuma parte pode
ser compreendida em seu todo. A memória, também seria uma hologramação
continuada entre o vivido, o vivente e o vivível. Para memorar é preciso que a parte fale
do todo e de que o todo fale da parte, que o todo esteja na parte e que a parte esteja no
todo. De qualquer modo, o holograma é um fenômeno também plástico no sentido da
experiência visual. Nesta dimensão, vejo o holograma como uma imagética da
complexidade.
A teoria da complexidade não nega os princípios da ciência clássica, pois ela se
inscreve na história do conhecimento humano. Tais princípios são pertinentes a um
determinado nível de realidade e funcionam sempre a partir das mesmas condições
universais dadas axiomaticamente. São processos produtivos e de autoprodução de
indivíduos-sociais concretos. São formas históricas de desenvolvimentos humanos
específicos, mas não abarcam a totalidade da espécie. Além do mais, o passado do
conhecimento está no seu presente e no seu futuro e é por isso que todo futuro é futuro
do passado presente. Não é possível negar a importância da ciência moderna, mas é
possível superar o seu horizonte paradigmático pela construção de outro modo de
conhecer, que é outro modo de ser. Há, assim, na teoria da complexidade uma
delimitação de princípios e critérios, de procedimentos e ferramentas conceituais que
operam de modo semelhante à ciência clássica. Digo isso para que não pareça ser a
teoria da complexidade algo muito diferente de qualquer outra teoria e para que não se
conclua ser ela a solução de todos os nossos problemas existenciais.
Morin (2000), ao falar da necessidade de um pensamento complexo procura
mostrar a razoabilidade como critério de composição da ciência que podemos chamar de
implicada com a totalidade vivente em seus diferentes níveis de realidade. Para isso,
entretanto, é preciso uma reforma do pensamento. Como, porém, realizar essa reforma
emergente?
A incerteza é hoje um dos pontos capitais de toda pretensão científica, e isso do
ponto de vista da própria consciência humana diante dos mistérios insondáveis da
origem e do fim do universo, do sentido da vida e da finalidade humana. E para lidar
com a incerteza não é mais possível escondê-la debaixo do tapete da visão mecanicista e
monolateral do mundo. É preciso que a incerteza seja reconhecida em sua consistência
132
conjuntural, pois não é possível resolver problemas vitais negando a existência deles. O
incerto é, portanto, um traço permanente de todo conhecimento humano, porque o
humano é um ser vivo que para continuar vivo precisa autoproduzir-se ecologicamente
sempre, e para isso desenvolve suas estratégias e mecanismos de proteção e de
preservação da vida. A incerteza, portanto, é o desafio posto a toda a humanidade
vivente e diz respeito ao seu modo de produção hoje insustentável. Por isso também a
emergência de uma ciência da complexidade, porque queremos continuar existindo com
sentido e dignidade e não desejamos deixar mais de lado a nossa comum-
responsabilidade, como seres conscientes, em relação ao destino da espécie humana
como um todo. Precisamos, assim, aprender a conhecer o conhecimento para que o
conhecimento aprenda a conhecer o seu próprio desconhecimento na deriva cósmica de
nossa pertença comum, e possa convergir na gestação de modos de vida inteligentes e
inventivos, comum-pertencentes e dispostos ao viver instante.
Morin chega a antecipar alguns princípios guias para pensar a complexidade,
compreendendo-os como complementares e interdependentes. Fazendo um esquema
síntese, são eles:
133
PARTE II
compreendido como o modo de ser humano de “morar”. O ser humano “habita” mundo
e para ser o que é mira-se no extraordinário como sua medida humana e sua mediação
cósmica. Dizer, então, “A medida do homem, o extraordinário”, é o mesmo que
reconhecer que o ser humano é na medida do extraordinário, quer dizer, o seu éthos se
configura na mirada do extraordinário. O extraordinário em grego corresponde ao
daímon. Daímon quer dizer “bem-aventurado”, no sentido de valoroso e digno de honra
por seus feitos criadores na transposição dos véus da insensatez e da ignorância
naturalizadas. O daímon é um “protetor” da humanidade em sua gestação temporal.
Assim apareceu para Sócrates a voz do lógos, como um daímon. A medida humana de
Sócrates era o seu daímon. Ele tinha no “extraordinário” sua mirada.
Desculpem-me o aparente jogo de palavras vazias. Mas o que foi dito não é
nenhum jogo de palavras vazias indemonstráveis cientificamente, mas uma expressão
do que não se pode pretender dizer de uma maneira absolutamente objetiva, mas se
pode dizer em aproximações cujo efeito é o alcance de intuições articuladoras e
conectoras de distintas camadas do compreender desvelante.
A medida humana do extraordinário não é algo que é válido para alguns
indivíduos e grupos e inválido para outros da mesma espécie. A medida humana é uma
medida válida para todos os indivíduos humanos indistintamente. É algo inerente ao
processo autoprodutivo e auto-organizador da espécie e já se encontra em andamento
desde o surgimento do universo e o aparecimento do planeta em seu desenvolvimento
biológico.
O ser humano sempre se deparou com a miragem do abismo do seu próprio ser
em situação. E vem se perguntando até hoje quem é, por que é, para que é. Ele também
em sua ontogênese e filogênese já alcançou planos de realização que o aproximam da
divindade em muitos sentidos. Uma divindade, porém, que se autoproduz a partir de
uma condição biológica primária, e que não resiste ao movimento entrópico tendencial
de toda energia do universo. Quer dizer, uma divindade que morre. Mas também recolhe
sua heterogênese finita como um movimento infinito na continuidade dos organismos
vivos autopoiéticos. No seu aparecer e desaparecer permanente, no seu viver e morrer
perpétuos os fenômenos biológicos se mantém como afirmação de um princípio
contrário ao da entropia 9, um princípio neguentrópico10, que ao invés de se “recolher”
9
Entropia, do inglês entropy (1875) VCI, acepção em física 'quantidade de energia ou calor que se
perde num sistema físico ou termodinâmico quando ocorrem mudanças de um estado a outro desse
sistema', donde, 'tendência ao estado de inércia, degradação, p.ext., desordem de um sistema'; do alemão.
137
Entropie 'volta sobre si mesmo', vocábulo. criado por Clausius em 1865; ocorre no inglês em 1868 e em
1875, como VCI, difundindo-se pelo fr. entropie, a partir de 1877; prende-se ao gr. entropê,ês 'ação de
voltar(-se), mudança de disposição ou de sentimento, ação de ensimesmar-se'; ver entrop. Verbete do
Dicionário HOUAISS (2001).
10
O aprofundamento do conceito de neguentropia pode ser encontrado em LUPASCO (1990), e significa
entropia negativa, a negação da entropia.
138
Sabe-se hoje, e Heidegger foi um dos mais importantes estudiosos do assunto, que a
definição de Aristóteles é bem mais complexa do que a tradução definidora de homem
como “animal racional”. O racional passou a significar o processo indutivo e dedutivo
da lógica identitária formal. Os outros níveis de constituição do linguajar humano foram
subsumidos e classificados como níveis pré-racionais, como se pudesse existir uma
racionalidade identitária sem corpo próprio e sem as formas de pensamento que são
todas as maneiras de afeto e de afecção da alma e do corpo, como pensou Spinoza
(2008). Bem, tudo o que pode ser dito não escapa de sua abrangência primária. O dito é
uma função que ressoa o instante na dimensão do dizer. Só é uma “verdade” para quem
desvela enigmas.
I
Ouvindo não a mim, mas o lógos, é sábio concordar ser
tudo-um.
II
Desse lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes
tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas
vêm a ser segundo esse lógos, e ainda assim parecem
inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações,
tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a
natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens,
encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que
fazem dormindo.
III
Não sabendo ouvir, não sabem falar.
IV
140
VI
O contrário é convergente, e dos divergentes a mais
bela harmonia.
VII
Harmonia inaparente mais forte que a do aparente.
VIII
Natureza ama ocultar-se.
IX
Bem-pensar é a maior virtude, e sabedoria dizer coisas
verdadeiras e agir de acordo com a natureza, escutando-a.
XI
O éthos do homem: o daímon (o extraordinário).
XV
Como alguém escaparia diante do que nunca se põe?
XVIII
Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se
tivesse um pensamento particular.
XIX
O comum: princípio e fim na circunferência do círculo.
XX
É necessário saber que a guerra é comum e a justiça,
discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e
necessidade.
XXII
Conjunções: completas e não-completas, convergentes e
divergentes, consoantes e dissonantes, e de todas as coisas um e
de um todas as coisas.
XXIII
Deus, dia-noite, inverno-verão, guerrra-paz, saciedade-
fome, mas se alterna como o fogo quando se confunde à
fumaça, recebendo um nome conforme o gosto de cada um.
XXVI
Todas as coisas tocam-se a partir do fogo e o fogo a
partir de todas as coisas, como do ouro as mercadorias e das
mercadorias o ouro.
141
XXVIII
Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar, metade
terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo
lógos, tal como era antes de se tornar terra.
XXIX
O cosmos, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos
deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo
sempre vivo, ascendendo-se segundo medidas e segundo
medidas apagando-se.
XXX
Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo.
XXXII
Heráclito diz ser o cosmo, para os acordados, uno e
igual, enquanto, dos que estão deitados, cada qual se volta para
o seu cosmo particular.
XXXIII
Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas
que vêm a ser no cosmo.
XXXVII
Cadáveres, mais do que excrementos, devem-se jogar
fora.
XXXVIII
Morrendo, aguarda os homens o que não esperam nem
lhes parece.
XXXIX
Erguer-se sobre o que é presente e tornar-se vigilante
guardiães dos vivos e dos mortos.
XLII
O mesmo é vivo e morto, acordado e adormecido, novo
e velho: pois estes, modificando-se, são aqueles e, novamente,
aqueles, modificando-se, são estes.
XLIII
Transmutando-se, repousa.
XLIV
Sol: novo a cada dia.
XLVI
142
XLVII
Caminho: em cima, embaixo, um e o mesmo.
XLIX
Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos.
L
Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio.
LII
As coisas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o
úmido seca, o seco umidifica-se.
LXI
Um, dez mil, se for o melhor.
LXXVIII
O pensar é comum a todos.
LXXIX
Em todos os homens está o conhecer a si mesmo e bem-
pensar.
LXXXV
Uma, a coisa sábia: ter ciência do conhecimento que
dirige tudo através de tudo.
LXXXVII
Para falar com saber é necessário apoiar-se sobre a
comunidade de todas as coisas, como a cidade sobre a lei e
ainda mais vigorosamente. Porque todas as leis humanas são
alimentadas por uma lei una, a divina; pois exerce seu domínio
tão longe quanto se consente, e basta e envolve a todas as
outras.
XCIV
Para os homens não é melhor acontecer-lhes tudo o que
querem.
XCV
Se não esperar, não encontrará o inesperado, sendo não
encontrável e inacessível.
XCVI
Não encontrarias os limites da alma, mesmo todo o
caminho percorrido, tão profundo lógos possui.
XCVII
Da alma é um lógos que a si mesmo aumenta.
C
143
CIII
Recordar-se também do que esquece por onde passa o
caminho.
CVI
Eu busco a mim mesmo.
CVII
É bem necessário investigar muitas coisas para os
homens serem amantes da sabedoria.
CXXVI
O ensino dos retóricos: princípio dos embustes.
CXXIX
Comédias, tragédias e ritos sagrados: remédios.
CXXXI
O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da
criança.11
Depois de ter passado pela experiência de ler Heráclito como seria possível
traduzir Lógos por Razão? Entretanto, o que parece obvio é obscuro, o que parece
obscuro é claro. O pensamento de Heráclito é o lógos. Esse lógos é a Totalidade. A
Totalidade não é uma soma de partes. Totalidade é o que se reúne no mesmo sem-
fundamento. A Totalidade é a unidade de tudo. A unidade de tudo é nada em particular.
Não há partícula na unidade. A partícula é uma parte. A unidade é anterior ao tempo, à
partícula, à partição, à separação, à dispersão, à desunião. O tempo não tem unidade em
si mesmo. Por exemplo, a unidade de um tempo musical é dada pelo seu compasso.
Então, o tempo é uma partição e não uma unidade. O sentido da unidade não vem do
tempo. Tão pouco vem do espaço. O sentido de unidade vem da própria unidade em si
mesma. O lógos de Heráclito fala dessa unidade. Mas ele fala da unidade a partir da
partição, do tempo, do espaço. A partir da vida humana de seu tempo e de seu lugar.
Heráclito fala a partir de sua pátria, que é outra forma de partição. Mas ao falar de um
lugar específico ele fala de todos os lugares sem nomear lugar algum. Ele fala da
unidade de tudo. Ele fala da diferença na unidade de tudo. Do ir e vir de ser e de não-
ser. Fala da vida na morte e da morte na vida. Fala do inaparente como vaza de todo
aparente, fundo sem fundo sobre o qual todo manifesto desponta.
11
Todos os aforismos de Heráclito transcritos foram tirados da tradução de COSTA (2000).
144
12
Veja-se o Fragmento de Heráclito.
145
assim sempre voltando ao início como a confluência de todo rio para o mar e o jorrar de
toda fonte.
Sábio é o caminho que como nascente brota de sua ambiência própria e jamais
deixa de ser nascente e jorrar na aparente gratuidade da fonte. Procurar ouvir um pouco
de Lao Tsé no que deixou ideogramado e ficou conhecido como Tao Te Ching é uma
oportunidade de investigarmos mais a fundo o sentido da Lógica do Terceiro Incluído,
necessária para uma condução da vida humana harmonizada à totalidade vivente.
portanto
no imanifesto se contempla seu deslumbramento
148
II
sob o céu
conhecer-se o que faz o belo belo eis o feio!
conhecer-se o que faz o bom bom eis o não bom!
portanto
o imanifesto e o manifesto consurgem
o fácil e o difícil confluem
o longo e o curto condizem
o alto e o baixo convergem
o som e a voz concordam
o anverso e o reverso coincidem
por isso
13
Fiz questão de incluir a escrita ideogramática chinesa com os versos de Lao Tsé, para lembrar da
existência de mundos culturais muito diferentes do nosso modo de pensar e de escrever
149
esvazia os corações
sacia as entranhas
enfraquece as vontades
vigora os ossos
nunca deixa o povo com saber e desejos
não deixa o sábio ousar atuar
IV
abismal!
parece o progenitor das dez mil coisas
abranda o cume
desfaz o emaranhado
harmoniza a luz
congloba o pó
profundo!
parece algo lá existir
suave e multíflua
parece lá existir
contudo opera fio a fio
VII
VIII
XIV
retorna a não-coisa
XV
XVI
as dez-mil-coisas confluindo
152
XXII
assim
o homem santo abraçando o uno
torna-se modelo sob o céu
XXIII
portanto
153
quem os fomenta ?
céu e terra
portanto
quem segue o curso une-se ao curso
quem segue a virtude une-se à virtude
quem segue a perdição une-se à perdição
XXIV
portanto
quem no curso nelas não incorre
XXV
Silente! apartado!
fica só não muda
tudo pervade nada periga
portanto
o curso é grande
o céu é grande
a terra é grande
o mediador é grande
XXVI
que fazer?
é senhor de dez mil carros
e por ele desleixa o império?
LXXXI
Lao Tsé é um desses personagens históricos que são tão extraordinários que se
confundem ao mito e aparecem como não tendo existido como pessoa. De qualquer
modo, se existiu ou não existiu Lao Tsé, o escritor do Tao Te Ching, não é isso o que
importa. Existem até notícias de que ele, cujo nome real seria Erh Dan Li, nasceu no sul
da China na região de Ch’u por volta de 604 a.C. Lao Tsé seria um apelido de infância,
pois teria nascido velho. Lao Tsé pode significar “velho sábio”, ou “o aprendiz velho”,
ou “o jovem-velho sábio”. Teria sido contemporâneo de Confúcio (Kung Fu Tsé) e
chegou a ser seu discípulo. Tornou-se um alto funcionário, vivendo como o guardião
dos arquivos do tribunal imperial, e atraiu muitos seguidores com sua sabedoria, embora
sempre haja se recusado a fixar suas ideias por escrito, por temer que as palavras
pudessem ser convertidas em dogma formal. Assim, ele não estabeleceu nenhum código
rígido de comportamento, preferindo ensinar que a conduta de uma pessoa deve ser
governada pelo instinto e pela consciência. Dizia que nenhuma tarefa deveria ser
apressada, que tudo deve acontecer no seu devido tempo. Acreditava que a simplicidade
era a chave para a verdade e a liberdade,
Era desse modo que encorajava seus seguidores para observarem mais a natureza
do que os ensinamentos de mestres de sabedoria, pois a natureza não toma partido e os
mestres são todos partidários. Convidava a todos a empreenderem o caminho sábio,
pelo menos a mirar-se por ele. Dizia que cada um tem que despertar o seu próprio
mestre, tornar-se liberto de toda servidão. Lao Tsé desejava que a sua filosofia
14
Todas as citações de Lao Tsé aqui transcritas foram tiradas da tradução Mário Bruno Sproviero, meio
eletrônico, registro Mirandum Plus 1 - ISSN 1516-5124. Disponível em:
http://www.hottopos.com/tao/dao_de_jing02.htm. Trata-se de uma tradução bilíngue.
156
permanecesse apenas como um modo natural de vida estabelecido sob uma base de
compreensão e despojamento, serenidade e respeito.
Conta-se que aos 80 anos, desiludido com as pessoas da sua terra, Lao Tsé se
dirigiu para o Tibete, na fronteira ocidental da China, sendo acompanhado de um
garoto. Uma das versões mais difundidas conta que um guarda da fronteira o
reconheceu e lhe lembrou que possivelmente todos os seus ensinamentos logo cairiam
no esquecimento se alguma coisa não ficasse gravada, e só permitiu que ele deixasse a
China após escrever seus ensinamentos básicos, para que pelo menos parte de seu
conhecimento pudesse ser preservada para a posteridade. Atendendo ao pedido do
guarda, de uma só vez Lao Tsé redigiu (reza a lenda que escreveu numa grande pedra) a
coletânea dos 81 versos que se tornariam a síntese de sua sabedoria e do pensamento
Taoista Chinês. O Tao Te Ching é, pois, o Livro do Tao, o Livro do Caminho Sábio.
Há muitos sentidos para o significado do nome Tao Te Ching. Suas palavras
isoladas significam: Tao (Infinito, a Essência, a Consciência Invisível, o Insondável, o
como, de como as coisas acontecem), Te (que significa força, virtude, mas de uma
forma não ligada aos nossos valores ocidentais), Ching (livro, escrito, manuscrito).
Literalmente, portanto, significa "O livro de como as coisas são" e na realidade é este o
seu objetivo, mostrar como as coisas no universo são segundo o Tao. Também significa
"O Livro que Revela Deus" e "O livro que leva à Divindade".
Coerentemente com a sua maneira, Lao Tsé não o escreveu por princípios
doutrinários, e sim para exprimir em versos (aforismos) o inexprimível, de forma tal que
pudessem ser compreendidos por qualquer pessoa diante de diversas situações. O
pensamento de Lao Tsé pode ser expresso perfeitamente na figura do Tei-Gi (abaixo).
aprendente. A ganância e a astúcia não devem ser incentivadas nas pessoas, pois o qeu
se precisa aprender é comum a todos, apesar de ser diferente e único em cada um, em
cada parte do todo que também é o todo na parte. O melhor governo é aquele que menos
age. Quanto menos se age menos controle é necessário. O ser humano não foi feito para
dominar a natureza e sim para habitá-la como aquele que a sabe cuidar e preservar em
sua finitude.
Para Lao Tsé a melhor imagem para o Tao parece ser o “vazio”. Do vazio tudo é
extraído e mesmo assim ele não se enche nunca, não se exaure. O Tao parece ser a fonte
de todas as coisas. Nele os cortes são cegos, os nós são desatados, os brilhos são
embaçados, une-se ao pó. O Tao é tão indistinto que parece existir. De quem o Tao é
filho? Sua imagem é anterior à imagem das divindades.
No verso 22 do Tao Te Ching pode-se ouvir: Aquele que conhece o outro é
sábio. Aquele que conhece a si mesmo é iluminado. Aquele que vence o outro é forte.
Aquele que vence a si mesmo é poderoso. Aquele que conhece a alegria é rico. Aquele
que conserva o seu caminho tem vontade. A humildade é o caminho da inteireza. Para
permanecer ereto é preciso curvar-se. Para permanecer pleno é preciso esvaziar-se. Para
permanecer novo é preciso gastar-se. O sábio brilha porque não se exibe. Não fazendo-
se notar é notado. Não elogiando-se tem mérito. E por que não compete e não está
competindo, ninguém no mundo pode competir com ele.
O caminho do Tao, o caminho do Big-Bang e do Big-Crunch. O caminho além e
aquém de todo caminho. Um Terceiro sempre incluído.
Da ciência antiga chinesa há também o I Ching, o Livro das Mutações, que
sintetiza a calculabilidade de um conjunto de possibilidades infinitas, em um recorte
finito, partindo da unidade e abarcando a multiplicidade e a diversidade. A origem de
todas as coisas repousa no “vazio”. Do “vazio”, céu e terra são gerados ao mesmo
tempo. Céu e Terra são o pai e a mãe de todas as “dez-mil-coisas”. A simbólica do I
Ching mostra a magnitude do pensamento chinês ao exprimir as estruturas matriciais do
mediador, que é o ser humano, e sua relação de pertença ao sem-forma em suas
possibilidades ontológicas próprias. O I Ching é a expressão de um sistema
cosmológico completo e suas relações com o mediador que é o ser humano. O I Ching
trata das mutações na experiência humana, de acordo com a unidade que a tudo une no
mesmo sem fundamento. Pensando com Lao Tsé, as mutações, entretanto, são mutações
decorrentes de ações e reações. O I Ching descreve campos arquetípicos que orientam
159
qualquer processo de investigação do curso de sua vida, tomando como medida o curso
natural das coisas. Todas as coisas reunidas no “vazio”. O I Ching se constitui como
um instrumento oracular, pressupondo todo um ritual de acesso, que passa pelo
esvaziamento radical dos pensamentos entulhados e um foco preciso naquilo que se
deseja investigar acerca de sua posição no mundo, de sua situação, de suas condições e
possibilidades. Ele é o oráculo que aponta, sugere, homologa um encontro com o saber
de si em um determinado ponto e momento do curso de sua vida. A sistematização do I
Ching como hoje se conhece parece ter sido feita por Confúcio, e tem um caráter moral
muito específico e representa uma estrutura patriarcal muito plantada. Entretanto, saindo
da linguagem psicológica e atendo-nos à linguagem conceitual e ideogramática do I
Ching, as possibilidades de leitura se tornam multiplicadas. As expressões são agora
linhas contínuas e linhas interrompidas, força Yang e força Yin. Da união de três linhas
contínuas com três linhas interrompidas superpostas de baixo para cima, surgem
combinações gerativas primárias que estarão constituindo os acontecimentos por
homologias e aproximações imagéticas, contextuais e conceituais. A partir de uma
estrutura unitária simples o modelo de combinações possíveis é evidente em si mesmo,
é deduzido dos seus elementos e é previsível em qualquer situação em que apareça o
contínuo e o descontínuo em todas as suas relações possíveis. Do “vazio”, o um e o
dois, o contínuo e o descontínuo, o forte e o fraco, o alto e o baixo. Do um e do dois, o
três, o quatro o cinco, o seis, o sete e o oito. Dos oito, sessenta e quatro. Dos sessenta e
quatro, quatro mil e noventa e seis. Dos quatro mil e noventa e seis, dezesseis milhões,
setecentos e setenta e sete mil e duzentos e dezesseis casos. E isso ao infinito. Podemos
chamar isso de dispersão ao infinito, fragmentação infinita das possibilidades uma vez
ampliada a sua potência gerativa por si mesma. É tudo uma questão de caso.
As figuras abaixo mostram o sistema do I Ching em sua estrutura gerativa
primária, suas derivações e algumas de suas variantes gráficas. A primeira figura é uma
mandala com toda a série de possibilidades de 82. A segunda reúne os 64 hexagramas
em sua sequência gerativa ascendente, pela numeração de 1 a 64. A terceira imagem é
mais simples, apresenta os nove elementos geradores, sendo o nono (o centro) o vazio
ou o fluxo formando o Tei Gi. A quarta imagem é uma variante da série completa dos
hexagramas dispostos em octógono. A quinta e última dispõe os 64 hexagramas em um
círculo e permite visualizar o sistema completo como uma espécie de organização
atômica com suas transações e relações entre as partes e os princípios do todo.
160
161
162
163
procurando a verdade por trás das coisas. Conta-se que aos sete anos, o Príncipe
acompanhou o pai a um passeio. Não era comum aos palacianos ultrapassarem as
fronteiras demarcadas pelos altos muros do palácio. Nesse passeio o Príncipe teve uma
experiência muito forte ao deter-se na frente de um campo que estava sendo preparado
para a semeadura. De repente, viu no solo revolvido um verme ser devorado por um
pássaro que lá pousara. Alçando voo, o pássaro foi atacado em pleno ar por uma ave de
rapina. Com o pássaro nas garras, a ave voou alto em velocidade. Mas uma flecha com
ponta de metal foi disparada, cortando o azul do céu para atingir o peito da ave de
rapina. Diante dessa experiência Siddhartha manteve-se por algum momento em transe,
sem entender. Depois, ficou chocado pelo que acabara de assistir, enquanto procurava
uma resposta plausível para a indagação: "O que leva os seres vivos a se matarem entre
si?". O fato o fez lembrar que sua mãe morrera quando ele nasceu. Não conseguia
entender a tragédia que assolava a vida de todos os seres. "Ninguém estava livre do
sofrimento", pensou.
Aos 16 anos o Príncipe se casou com sua prima Yasodhara com quem teve um
filho. O seu pai o cercou de todas as maravilhas da época: os melhores professores de
todas as áreas, as mais caras roupas, as mais finas cortesãs, as iguarias mais sofisticadas.
Ele dispunha de tudo do bom e do melhor. Mas nada disso o fazia feliz. Vivia
introspectivo, meditativo, insatisfeito. Algo o ocupava dia e noite: qual a razão de tudo
o que via, em toda parte luta e sofrimento? O caráter introspectivo de Siddhartha fez
com que o apelidassem Sákyamuni, que significa o sábio silencioso da casta dos
Sákyas. Com este nome ele é também diferenciado de outros Budas.
Por saber de seu comportamento insatisfeito seu pai ordenará total cuidado de
todos para que o mantivessem isolado do mundo ao redor do palácio, temendo a
concretização da profecia feita pelo ermitão Asita.
Um dia Siddhartha resolveu sair sem avisar, vestido sobriamente, acompanhado
de seu fiel servo Channa. Anda pelas ruas estreitas de Kapila e se revelou para ele uma
outra realidade escondida pelo pai e pelo luxo do palácio real. De repente avista um
homem de idade sendo ultrajado por um mais velho. Impressionado com a cena,
pergunta a Channa o que se passava com o homem jovem que insultava o velho.
Channa respondeu que o jovem agia assim porque se tratava de um velho. As pessoas
idosas são afastadas da convivência com os outros porque não têm mais valor. E
Channa repetia o que era sabido de todos e dizia que assim sempre havia sido, que esta
166
era a lei da vida. Mas Siddhartha não se satisfez com o que ouviu de Channa. Um
pouco mais adiante se deparam com um homem cheio de chagas e pus cuja expressão
era de muito sofrimento. Inquieto, volta a perguntar à Channa o que se passava com
aquele homem. Channa responde que o homem estava doente por falta de cuidados com
a saúde e bom alimento, por isso sofria das fraquezas da carne, e que todos estavam
sujeitos a passar pela mesma coisa.
Continuando a caminhada, se deparam agora com um cortejo fúnebre. Havia
muito sofrimento na expressão dos que acompanhavam o cortejo. Adivinhando a
pergunta de Siddhartha, Channa disse: - É a morte. Confuso, quis abandonar o local,
mas uma nova cena chamou-lhe a atenção. Tratava-se de um homem esfarrapado e
esquálido, um pedinte. O olhar desse homem impressionou Siddhartha. Era sereno e
profundo. O olhar sereno de um homem livre, vencedor do sofrimento. Channa logo
falou que se tratava de um homem santo, pois vestia um manto amarelo e tinha a cabeça
raspada, e que homens assim haviam entendido o significado da vida.
Foi a partir da visão tida desse monge que Siddhartha vislumbrou a existência de
uma saída que conduzisse ao despertar. Despertou nele o desejo de descobrir o mistério
daquela serenidade que vira no monge pedinte. Sua intenção passou a ser descobrir o
segredo da serenidade e oferecê-la ao mundo dos sofrimentos como cura. Quis logo
informa seu pai de sua decisão. O rei, entretanto, impediu-o de sair do palácio.
Paralisado como prisioneiro em sua própria casa, passou a meditar atentamente no que
havia visto no seu passeio com Channa.
Após longa meditação, compreendeu que os ignorantes, apesar de naturalmente
fadados ao envelhecimento, desprezam os velhos por pura estupidez. Pois, se todos
passarão pelo estado de envelhecimento e decrepitude física, não é correto ter repulsa ou
desprezo por aquilo que é próprio da condição humana. A partir dai passou a considerar
o sofrimento humano como sendo causado pelo próprio homem em seu modo de ser. O
sofrimento é a condição humana a partir da qual se pode libertar do sofrimento. Há,
portanto, um caminho de conhecimento ser percorrido para se alcançar a libertação.
Siddhartha visualiza o caminho do conhecimento para se alcançar a vitória sobre a
condição humana dada. Começa a se delinear em Siddhartha o sentido do
autoconhecimento como uma busca de conhecimento das causas do sofrimento e a
maneira de transformar o sofrimento em oportunidade de aprendizado.
167
Diz-se que aos 29 anos Siddhartha deixou definitivamente o palácio e partiu para
sua nova vida em busca do conhecimento das causas do sofrimento e de sua cura
definitiva. Deixou para trás tudo o que o ligava à vida real, inclusive o seu filho recém-
nascido Rahula e sua esposa Yasodhara.
Inicia, então, sua vida religiosa de investigador de si mesmo. Viajou em direção
ao sul e ficou em Rajagriha, capital do reino de Magadha, onde se dedicou à prática com
o seu primeiro mestre, Alara Kalama, que havia atingido "os domínios do nada" através
da meditação. Siddhartha atingiu logo o mesmo estágio, mas não ficou satisfeito, pois
não encontrou a resposta que procurava. Foi ter, então, com o mestre Uddaka
Ramaputta, que havia atingido "os domínios além do pensamento". Sakyamuni tornou-
se mestre desta forma de meditação, mas continuava insatisfeito. Os seus dois primeiros
mestres não conseguiram auxiliá-lo a encontrar o que procurava. Abandonando seus
mestres da meditação foi refugiar-se na floresta de Uruvela, cortada pelo rio Nairanjana.
Lá encontrou os ascetas Sadus, e com eles praticou o ascetismo, com grande rigor, por
aproximadamente seis anos.
Um belo dia, ouviu um barqueiro que passava no rio ensinando música ao seu
discípulo. Dizia que as cordas de um instrumento, se muito frouxas, não emitiam um
som adequado, e se muito esticadas, elas arrebentavam. Naquele momento ele
percebeu que as austeridades físicas não eram o caminho para se alcançar a liberação.
Que a privação excessiva debilitara seu organismo e o impossibilitara de meditar como
deveria, afastando-o cada vez mais de seu verdadeiro objetivo, pelo qual havia
renunciado à vida mundana. Passando por lá, uma jovem pastora de nome Sujata
ofereceu-lhe uma tigela de leite coalhado. Com gosto, Siddhartha aceitou, quebrando o
seu jejum. Seus cinco companheiros acharam então que ele era um fraco, por
entenderem que ele já não estava mais resistindo à tentação, e retiraram-se então do seu
convívio. Antes eles ouviram de Siddhartha uma explicação. Apontando o dedo para o
rio Nairanjana, disse "Veja aquele rio. Sua correnteza corre em ritmo normal. Ela nunca
se adianta e nem se atrasa. Ele apenas corre. Nós temos que ser como aquele rio."
Sozinho, Siddhartha resolveu iniciar um novo período de meditação, sem se
deixar abater pelo desânimo: "Mesmo que o sangue se esgote, mesmo que a carne se
decomponha, mesmo que os ossos caiam em pedaços, não arredarei os pés daqui, até
que encontre o caminho da iluminação". Estava decidido a ir às últimas consequências.
Vagando, aproximou-se de uma figueira nas margens do rio e debaixo dela sentou-se
168
Existe uma esfera onde não é terra, nem água, nem fogo, nem ar... que não é
nem este mundo e nem outro, nem sol e nem lua. Eu nego que esteja vindo ou
indo, que permanece e que seja morte ou nascimento. É simplesmente o fim do
sofrimento. Essencialmente todos os seres vivos são Budas, dotados de
169
vive, essa é a questão. Qual é o escopo de nossas vidas? Eis o ponto chave do viver
correto.
Todo modo de vida correto requer um esforço correto. O esforço correto é o
trabalho correto. O trabalho correto é o conjunto de fazeres e afazeres que nos mantém
vivos. O esforço correto se constitui do esforço sem esforço. O que é isso? Isso é o que
é como esforço correto. O esforço correto é a inclusão de um terceiro termo que não é
nem menos e nem mais, nem tanto nem, tão pouco. O esforço correto nunca cansa,
porque repousa a cada momento no tencionamento justo, como as cordas bem afinadas
de um instrumento musical que permitem que o músico realize o esforço de executar a
música corretamente. O esforço correto é semelhante à força das águas em suas
correntes e à dança cósmica em seu incansável fluxo. Esforçar-se corretamente para
manter viva a dinâmica do instante sem ocaso é seguir o fluxo dos ciclos vitais sem
precipitar-se antes do tempo, deixando ser o fluxo pela manutenção do instrumento
afinado. O esforço correto pode-se ainda dizer, é o esforço da criação de si mesmo e de
suas relações de pertença com a totalidade, é o caminho do tornar-se plenamente na
perfeição de cada perfeição. Como diz o Buda Sakyamuni, cada partícula do universo,
incluindo todos os entes e todos os seres, é perfeita em si mesma. Cada coisa no seu
lugar próprio. O que desfaz a perfeição em sua inteireza é o “eu”. Os pensamentos do
“eu” são resultado da fragmentação e do entorpecimento advindos dos próprios
pensamentos que produzem o “eu”. O “eu” é o mestre do “eu”, como diz Buda, ele se
engendra em suas formulações desejantes e ignorantes do ser mesmo do desejo, que é
ânsia de mais-vida mesmo na morte. O “eu” é o produtor do real como esforço
incorreto. O por ser incorreto o esforço do “eu” ele se torna a fonte de seus próprios
sofrimentos e mazelas. Pois o esforço correto é a disposição para fazer tudo com arte e
completude e não deixar passar ressentimentos e apegos que contaminam a livre ação de
encontrar-se sendo na passagem como cântico que ressoa a cada instante do fluxo. E
segue sem olhar para trás, por isso em seu esforço correto deixa um rastro que convida a
cada um a se tornar na medida do extraordinário. Eis o esforço correto.
Sim, todo esforço correto requer uma atenção correta. Estamos no sétimo passo
da senda do autoconhecimento. A atenção correta é a atenção ao instante presente, nem
antes e nem depois. Toda atenção correta demanda energia presente e pressupõe o
esforço correto, a vida correta, o agir correto, a palavra correta, o pensamento correto e
a compreensão correta. A atenção correta é a intenção correta. Qual é o intento do
177
***
Qual é a razão disso? Um buda é aquele que serviu a centenas , a milhares, a dezenas de
milhares, a incontáveis budas e executou um número incalculável de práticas religiosas.
Ele empenha-se corajosa e ininterruptamente e seu nome é universalmente conhecido.
Um Buda é aquele que compreendeu a Lei insondável e nunca antes revelada, pregando-
a de acordo com a capacidade das pessoas, ainda que seja difícil compreender a sua
intenção.
***
Qual a razão disso? A razão está no fato de o Buda ser plenamente dotado dos meios e
do paramita da sabedoria.
***
***
Sharihotsu, o Buda é aquele que sabe como discernir e como expor os ensinos
habilmente. Suas palavras são ternas e gentis e podem alegrar o coração das pessoas.
Sharihotsu, em síntese, o Buda compreendeu perfeitamente a Lei ilimitada, infinita e
nunca antes revelada.
179
***
Chega, Sharihotsu! Não vou mais continuar pregando. Por quê? Porque a Lei que o Buda
revelou é a mais rara e a mais difícil de compreender.
***
***
Como um meio hábil aparento entrar no nirvana para salvar todas as pessoas. Mas, na
realidade, não entro em extinção. Sempre estou aqui ensinando a Lei.
Sempre estou aqui. Porém, devido ao meu poder místico as pessoas de mentes
distorcidas não conseguem me ver mesmo quando estou bem perto delas.
***
Quando essa multidão de seres vê que entrei no nirvana, consagra muitas oferendas às
minhas relíquias. Todos abrigam o desejo único e ardente de contemplar-me. Quando
esses seres realmente se tornam fiéis, honestos, justos e de propósitos pacíficos, quando
ver o Buda é o seu único pensamento, não hesitando mesmo que isso custe a própria
vida, então, eu apareço junto à assembléia de discípulos sobre o Sagrado Pico da Águia.
***
Nesse momento, digo à multidão de seres: Eu sempre estou aqui, jamais entro em
extinção. No entanto, como um meio hábil, algumas vezes aparento entrar no nirvana. E
outras vezes, não. Quando em outras terras há seres que desejam respeitosa e
sinceramente crer, então eu também, junto a eles, pregarei esta Lei insuperável. Porém,
não compreendendo minhas palavras, todos aqui insistem em pensar que eu morri.
Quando vejo os seres afogados em um mar de sofrimentos eu não me exponho, para
dessa forma fazer com que anseiem contemplar-me.
Então, quando seu coração se enche de ansiedade, finalmente apareço e ensino a Lei para
eles.
***
Assim são meus poderes místicos. Por asamkhya de kalpas, sempre estive no Pico da
Águia e em muitos outros lugares. Enquanto os seres presenciam o final de um kalpa e
tudo é consumido em chamas, esta minha terra permanece segura e tranqüila, sempre
cheia de seres humanos e seres celestiais. Vários tipos de gemas adornam seus
corredores e pavilhões, jardins e bosques. Árvores preciosas dão flores e frutos em
profusão, sob as quais os seres vivem felizes e tranqüilos. As divindades fazem repicar
180
os tambores celestiais interpretando, sem cessar, a música mais diversa. Uma chuva de
flores de mandara cai, espalhando suas pétalas sobre o Buda e a grande assembleia.
***
***
Mas os que praticam os caminhos meritórios, que são nobres e pacíficos, corretos e
sinceros, todos me vêem aqui em pessoa, ensinando a Lei. Às vezes para essa multidão
exponho que a duração da vida do Buda é imensurável; e para aqueles que o vêem
somente após um longo tempo exponho o quanto é difícil encontrar-se com ele.
***
O poder de minha sabedoria é tamanho que seus raios iluminam o infinito. Minha vida,
extensa como incontáveis kalpas, é resultante de uma prática muito longa. Homens de
sabedoria, não abriguem nenhuma dúvida sobre isso! Livrem-se das dúvidas
definitivamente, pois as palavras do Buda são sempre verdadeiras.
***
O Buda é como um excelente médico que se vale de meios hábeis para curar seus filhos
iludidos. Embora na realidade esteja vivo, anuncia que entrou no nirvana. Porém,
ninguém pode acusá-lo de mentiroso. Eu sou o pai deste mundo e salvo aqueles que
sofrem e os que encontram aflitos.
***
Devido à ilusão das pessoas, apesar de eu estar vivo, anuncio que entrei no nirvana. Pois
se me vissem constantemente, a arrogância e o egoísmo tomariam conta de seu coração.
Ignorando as restrições, entregariam–se aos cinco desejos, e cairiam nos maus caminhos
da existência. Estou sempre ciente de que são as pessoas que praticam o Caminho e as
que não o praticam, e, em resposta às suas necessidades de salvação ensino-lhes várias
doutrinas.
***
Medito constantemente: Como posso conduzir as pessoas ao caminho supremo e fazer
com que adquiram rapidamente o corpo de um Buda? 15
15
As notas e comentários introduzidos nesta tradução do Sutra da Flor de Lótus da Lei Maravilhosa para
a língua portuguesa falada no Brasil são da autoria e inteira responsabilidade de seu tradutor Marcos
Ubirajara de Carvalho e Camargo. http://www.saindodamatrix.com.br/archives/siddhartha.htm. Veja-se
ainda a tradução em http://www.marcosbeltrao.net/viewer/sutradolotus.html
181
modo de viver, preparar para o esforço correto, moldar na atenção correta e iluminar na
meditação correta. Na perspectiva aqui apresentada do Educar Transdisciplinar tudo o
que é acervo espiritual da humanidade deve compor a geografia humana como campos e
camadas de sua história efetiva. A insistência em afirmar que a compreensão do Buda é
um acréscimo de potência de toda a humanidade e de todo o universo não é uma mera
metáfora. Não se trata, portanto, de termos que ser budistas e sim de compreendermos e
acolhermos a dádiva da vida consciente da consciência e da inconsciência. Tornarmo-
nos corresponsáveis pela totalidade vivente. Fazemo-nos na medida do extraordinário. E
porque a medida do Educar Transdisciplinar é o extraordinário, apresento abaixo dois
esquemas que podem servir como indicativos focais para a prática do educar liberador.
Nossa medida é o Buda e nossa prática epistemológica atende à investigação dos dez
atributos inerentes à verdadeira entidade de todos os fenômenos, no Capítulo Hoben
(Meios) do Sutra da Flor de Lótus. E como a verdadeira entidade de todos os fenômenos
só pode ser compreendida entre os Budas é preciso que nos miremos nos Budas na
senda do autoconhecimento. Significa dizer que os campos e atributos indicados não são
conhecidos por nenhum de nós, mas nós já os visualizamos e almejamos alcançar sua
completude e perfeição sem perder de vista a efemeridade de tudo o que existe. Trata-
se de nos inspirarmos na plenitude e dela fazermos a medida de todas as coisas
humanas, e não o contrário. Nosso foco primacial é desfocado porque inclui tudo em
seu âmbito. Mas é desfocado apenas em relação ao particular porque sua visada é nítida
e luminosa na apreensão do todo em um.
demonstrações lógicas para ser acolhida, mas precisa da consistência de sua realização
do início ao fim.
183
16
A expressão MVM-SupraMVM será daqui para frente usada toda vez que se estiver falando de lógica
inclusiva, e designa a unidade do Mental, Vital e Material e do Supramental, vital e material em uma
unidade não atomizável ou redutível às partes particulares. Uma expressão além da física.
186
transcendente inalcançável como objeto ideal que se tem em mira e sim o transcendente
na imanência de sua potência MVM-SupraMVM.
Jogo de palavras ao vento? Tudo depende da perspectiva. De qualquer modo na
perspectiva aqui divisada a MVM-SupraMVM é uma expressão do que pode ser indicado
com diversos nomes sem que seja preciso aceitar nenhuma das formulações como a
mais verdadeira. Não há no movimento evolutivo-involutivo do Universo nenhuma
formulação MVM mais verdadeira do que a outra, apesar de haver predominância de
umas sobre outras. Afinal, o que significa a superioridade ou inferioridade das
organizações culturais? O “mais verdadeiro” é sempre o que se encontra aberto ao
instante pleno. Existiria por ventura uma estrela mais estrela do que qualquer outra
estrela, um ser humano mais ser humano do que qualquer ser humano, um leão mais
leão do que qualquer outro leão?
A lógica inclusiva só pode ser operada por uma mente liberta de todo
condicionamento passado. Como isso é possível? Como seria possível superar o
antagonismo bipolar nas relações humanas corriqueiras e por qual motivo se faria isso?
Nossos condicionamentos não nos permitem descolar de nossas crenças
subjacentes e imaginamos que os nossos limites são os limites de nossa linguagem. Isso
nos faz acreditar que os limites de nossa realidade são incontornáveis, pois estaríamos
irremediavelmente determinados pelos limites da linguagem. Entretanto, os limites da
linguagem não são os limites da realidade e sim os limites do “eu” particular ou da
mente-vida-matéria condicionada ao passado. A rigor a linguagem não tem limites em
suas figurações e representações. Os limites da linguagem são os limites de um hábito
mental qualquer, pois não há limites na linguagem do sendo. O problema são os limites
dos condicionamentos do “eu” pessoal e dos aglomerados coletivos. A linguagem
SupraMVM não se restringe à nenhuma formulação lógica reducionista. A linguagem
nesse âmbito é o próprio fluxar de tudo continuamente. Portanto, os limites da
linguagem são apenas limites de fluxos condicionados de linguagem. A linguagem é tão
ilimitada como as partículas quânticas elementares.
A inclusão do terceiro termo permite considerar o campo do sentido como uma
flutuação sem limites de tempo e espaço, apesar da existência de configurações
temporais e espaciais distintas em modulações finitas. O terceiro incluído rompe a
lógica da dualidade funcional introduzindo a conectividade de tudo com tudo, sem a
perda da distinção e da singularidade. Com a lógica inclusiva somos levados à dinâmica
189
c. Teoria da Complexidade
estupidez parece ser a tônica velada da gestão atual dos recursos ambientais, sociais e
mentais. É preciso que se dê continuidade à construção de uma regência planetária que
não deixe passar nada do que de fato acontece com seres humanos desprovidos dos
meios necessários e suficientes para um florescimento equânime e comum-pertencente à
totalidade vivente. Sem altivez, sem dignidade, sem cuidado, sem sentido comum
nenhum ser humano pode encaminhar-se para o seu desabrochar búdico. O horizonte,
portanto, do educar transdisciplinar não é outro senão lutar de todas as maneiras para
que tudo e todos sem exceção alcancem a perfeição que lhes é inerente por potência e
pertença. Mas para que isto aconteça é preciso educar para a liberdade partilhada,
inteligente, criativa, inovadora, mas sem nunca perder a reverência ao que é
extraordinário e nos acolhe em seu anelo infinitamente duradouro, consistente do início
ao fim. Educar para a liberdade partilhada é o mesmo que convergir na lei do amar sem
que seja preciso excluir nada. O que se deve excluir são os pensamentos do “eu”
psicológico que nos tornam incapazes de ousar ser o que se é na dinâmica serena e
lúcida do instante sem ocaso.
A medida do tempo para uma tamanha abertura não pode ser linear e efêmera. O
tempo que se abre na possibilidade do autodesenvolvimento partilhado é o tempo do
presente. Ou com palavras atribuídas ao Buda Sakyamuni: "Não viva no passado, não
sonhe com o futuro, concentre a mente no momento presente."
A medida de tempo no Educar Transdisciplinar é, pois, o instante presente. E
este é todo o foco da metodologia transdisciplinar aqui construída. O instante presente é
agora um aglomerado de situações que precisam de projetos para seguir adiante em seus
processos de desenvolvimento humano. Hoje a educação já pode ser concebida em uma
clave nova. Sim, é preciso educar em muitas frentes, em muitas dimensões, em muitos
níveis diferentes de constituição. Mas sem a fragmentação que é um efeito da
racionalidade tecnocientífica dominante e servindo aos meios de produção do capital
selvagem. O que está em questão é a efetiva “qualidade da vida humana”. Ora,
qualidade de vida não é algo que se pode medir facilmente, pois requer efetivos
processos de desenvolvimento que implicam em investimentos e construções
organizacionais apropriadas.
O mundo globalizado é e não é uma Babel. Há desequilíbrios profundos e
profundos processos de equilibração. O tempo todo há equilibrações que renovam a
manutenção da vida, em todos os níveis de constituição. Acontece que em muitos
191
17
As informações sobre Dogen foram tiradas da dissertação de mestrado de Ivone Maia de Mello,
defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em
2005, em que tive a honra de participar da banca final, o que me permitiu em 2006 acolhê-la como
orientanda do doutorado em educação da UFBA, trabalhando o esmo autor, Dogen, o que tem sido um
exercício dialógico com outras formas de pensamento,. E esta tem sido a linha de condução de minha
pesquisa acadêmica tendo como foco conhecer o conhecimento em sua polilógica criadora.
196
o tato e tocar, acordar o olfato e cheirar. O ser-espécie humano tem sido um meio de
múltiplas experimentações e de inumeráveis acertos e erros. A espécie agora reclama
um plano de compreensão de suas próprias possibilidades, dentro de seus limites e de
suas condições. Chegou à hora de reunir todos os povos do planeta em uma assembléia
permanente de reconhecimento e de investigação conjunta acerca da vida vivente.
Chegou à hora de a espécie reconhecer o seu lugar na deriva cósmica em curso.
Entretanto, é possível sair do estado de alienação e servidão em que nos encontramos e
alcançar um estado de plena liberdade? Quais seriam as condições para a efetivação
desta possibilidade?
Com palavras atribuídas ao Buda Sakyamuni, Se o telhado não for bem
construído ou estiver em mau estado a chuva irá entrar na casa; assim a cobiça
facilmente entra na mente, se ela é mal treinada ou fora de controle. A pessoa que
protege sua mente da cobiça e da raiva desfruta da verdadeira e duradoura paz.
De qualquer modo é preciso saber o sentido próprio da proteção da mente em
relação à cobiça e à raiva, para que se evite uma abstração indevida e se imagine que
com atos mecânicos oriundos da vontade do “eu” se possa alcançar uma proteção
efetiva contra a cobiça e a raiva. É fundamental não perder de vista a compreensão
correta. Sem ela não se pode sequer imaginar a possibilidade de uma vitória livre sobre
o eu psicológico, sem as deformações da mente condicionada.
Na perspectiva da complexidade são muitos os níveis de realidade constituintes
das emergências vitais. Todo fenômeno é a emergência de uma consciência em
diferentes níveis de realidade. Uma consciência é a reunião de inumeráveis conexões de
campos de força. Não há, portanto, consciência individual e sim emergência da
consciência em indivíduos que são reuniões de campos de força. Toda consciência é
consciência de alguma coisa. Está é a máxima de uma fenomenologia que compreende a
consciência como intencionalidade, quer dizer como fluxo de sentido que sempre se
encontra em uma situação determinada em seu próprio modo de visada do sentido.
A complexidade, assim, orienta o educar transdisciplinar em seu movimento de
criação permanente de novas singularidades coordenadas pela diferenciação e
complementação conjuntural. Projeta uma compreensão de método que requisita o
renovado ato criador da simplicidade abundante. Sem criação não há método certo! E o
método certo não é aquele que se exprime em uma fórmula acabada, e sim aquele que
segue o fluxo do acontecimento integrador do sentido em seus diversos sentidos e
197
direções. Deste modo, também a imagética tem o seu lugar na comunicação dos
processos que requisitam a experiência própria e apropriada da cosnciência da
consciência e da incosnciência. A imagem abaixo apresenta uma imageação que recolhe
a totalidade em um quaternário que se pode chamar de, como o fez Heidegger (2001),
Quadratura do Simples. Para uma mente aberta ao acontecimento do sentido em sua
instantaneidade todas as formas de dizer o inaudito são aproximações ressonantes. O
que importa é a ressonância em suas modulações. A simplicidade do quaternário aponta
para o âmbito em que tudo se reúne na simplicidade do simples. Daí todo o complexo
em sua impermanência necessária. A imagem abaixo reúne as forças do céu e da terra,
do extraordinário e do ordinário, dos deuses e dos homens, dos imortais e dos mortais
em um mesmo âmbito: o comum-pertencer. A complexidade requisita de todos nós a
simplicidade do TUDOUM. Apenas uma imagem recolhe a potência do Simples.
198
rasga ao passado o presente instante, sem abandoná-lo como passado. Pois o passado é
o presente e o futuro.
Olhemos um pouco a imagem abaixo, a reunião dos planetas do nosso sistema
solar em uma disposição que apresenta as diferentes volumetrias relacionais. Em ordem
de maior proximidade do Sol temos Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno,
Urano, Netuno e Plutão, cada planeta tem uma cor característica e um ângulo de rotação
diferente. Cada planeta é uma singularidade em uma escala evolutiva-involutiva. Cada
planeta é uma presença diferente das demais presenças. Nesse caso os pontos anteriores
do mapa do Universo se encontram em um grau de aproximação muito mais apurado.
Mesmo assim, diante da imagem dos planetas do nosso sistema solar nossa percepção
das singularidades é genérica e esquemática. Podemos, então, considerar os planetas
como uma série de um determinado conjunto de entes naturais relacionados com o sol.
As diferentes posições formam diferentes configurações e ambientações.
Do ponto de vista da MVM humana atual o sistema solar é o conjunto de
elementos físicos que gravitam em torno da fusão atômica que compõe o Sol em seu
devir-sol. Entretanto, o conjunto de planetas conhecidos dependentes do Sol em algum
grau, podem ser corpos densos anteriores ao surgimento do Sol, que ao aparecerem
atraem para si corpos de gravidade proporcional ao seu campo magnético, que assim
iniciam um processo de criação diferenciada em variadas situação de proximidade,
volume e distância do núcleo solar.
Foquemos nossa atenção no planeta Terra. A próxima imagem realiza este foco.
Estamos diante da imagem que temos de nosso planeta. Pelo que conhecemos, a Terra é
o único planeta do sistema solar com um desenvolvimento MVM complexo, pela
presença da espécie humana dotada de inteligência criadora e destruidora
simultaneamente. Vista desse modo, a Terra parece uniforme e bem comportada em sua
evolução natural.
201
Felizmente na imagem acima aparece também a Lua, pois a Terra não seria tal
sem a Lua. Mesmo nessa imagem tão precisa e unitária, possuímos uma representação
mental da Terra como se tudo estivesse em perfeita harmonia. Mas no âmbito do planeta
são muitas as situações e condições específicas de equilibração e desequilibração.
Matematicamente podemos medir e representar a Terra de muitas maneiras,
topologicamente, pela geometria diferencial, pela teoria dos números, pela teoria dos
grupos, pela teoria do caos, por equações diferenciais, pela aritmética, pela geometria
etc. Todas estas formas atuais da Matemática afirmam uma ciência dos padrões. A
Matemática está sendo definida como ciência dos padrões. A capacidade de
matematização é capacidade de padronização por abstração. Assim, nossa mente
epistêmica tem se ocupado com o estudo dos padrões e tem desenvolvido uma ciência
dos padrões através de metodologias particulares. Tudo reduzido a sequências que
podem ser matematizadas de diversas formas, os padrões podem ser reais e imaginários,
qualitativos e quantitativos, estáticos e dinâmicos, sensíveis e ideais, funcionais ou
estéticos, aplicados ou puramente possíveis. Assim, tudo parece reduzir-se a padrões
numéricos, de forma, de movimento, de comportamento, de previsão, etc. Toda
metodologia, assim, haverá de se referir a padrões, segundo o modo matemático de
concatenação lógica das operações de mensuração e de cálculo.
Estudar padrões de número e contagem, de forma, de movimento, de raciocínio,
de possibilidade, de conjunto de dados estatísticos, de linguagem etc. Tudo isso é
metodologia. A metodologia tem o legado da matematização, daí o diferencial
ontológico da ciência moderna iniciada com Galileu no século XVII. Entretanto, uma
metodologia que parte da intuição articuladora da coexistência de diferentes níveis de
realidade não pode aceitar o princípio da exclusão pela abstração matemática e pela
202
lógica do terceiro excluído. Uma metodologia assim plantada não aceita o primado da
especialização e da fragmentação. Não aceita a metanarrativa hegemônica da ciência
matemática subdividida em campos de controle de padrões mentais, virtuais ou atuais
predeterminados. Sem negar a capacidade matemática como o diferencial do ser
humano em seu desenvolvimento tecnológico e intervencionista, se quer afirmar
funções inteligentes que estão além da matematização e que constituem as
possibilidades da espécie humana em seu movimento de aprendizagem da realidade
SupraMVM. E para que isso? Simplesmente pelo brilho de ser na plenitude do instante
sem máscaras, sem paradas. Como isso é possível humanamente?
Matematicamente inventores de padrões, seguimos o curso das possibilidades
criadoras em uma polilógica aberta às convergências diferenciais e correlacionadas em
unidades singulares e únicas. Entretanto, nossa singularidade não é mais importante do
que qualquer outra do ilimitado Universo. Tão pouco nossa MVM tem a capacidade de
compreender outras MVM’s do Universo, porque uma MVM é sempre um caso único
de florescimento integrado. Apesar de ser constituída de aglomerados de micro-
MVM’s, toda MVM do Universo encontra-se atrelada ao seu próprio campo existencial.
Assim, quando olhamos nossa própria morada no Universo não podemos inicialmente
ultrapassar o conjunto de nossa ontosfera, pois para que isso ocorra precisamos ativar as
funções da SupraMVM, e mesmo assim não ultrapassaremos nossa singularidade
conjuntural. Há, portanto, limites específicos na configuração de processos
metodológicos cuja função atende à trans-formação humana na ação de seu
florescimento criador. Impõe-se um saber-viver-com-sentido. Isto implica no
atendimento de um conjunto integrado de funções aprendentes configuradas a partir da
diferença antagônica entre “luz” e “sombra”, “massa clara” e “massa escura”, campos
complementares de todo “fenômeno” MVM – de todo acontecimento integrador de
Mente, Vida e Matéria. Uma “mente clara” e uma “mente escura”, uma “vida clara” e
uma “vida escura”, uma “matéria clara” e uma “matéria escura”. Um sim e um não: um
“sim-não”, “1-0”. Há sempre um campo “O” que é a referência a toda possibilidade e
probabilidade. Todo “um”, assim, é verbo em ação. Todo “zero” é tudo-nada, ação-não-
ação, potencial-virtual-atual.
No comportamento do ser humano há níveis de realidade que podem ser
expressos em tendências comuns e podem ser projetados como signos de funções
gerativas. Os esquemas abaixo apresentam figurações metodológicas de diferentes
203
termo essas são as expressões dos quatro pilares da educação para o século XXI 19). O
que se pode traduzir de maneira unitária como aprender a aprender com arte de
maneira própria e apropriada. O esquema abaixo reúne as dimensões aprendentes em
torno do campo/eixo do aprender a ser-sendo: a polilógica aprendente – metodologia
da complexidade aprendente.
19
Consulte-se o famoso “Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI”, organizado por Jacques Delors (2004).
211
mentalmente temos pela frente um grande desafio relativo aos limites comuns do que é
de todos e não é de ninguém. A humanidade haverá de resolver os seus próprios
problemas e dilemas sociais e mentais. Mas é preciso desconstruir a visão antropológica
baseada em uma prepotência racionalista, para que seja possível constituir um educar
transdisciplinar fundado na abertura criadora da espécie humana, em suas florações
epocais cíclicas. Há, assim, a necessidade de projetos que se antecipem à modelagem
humana necessária à sua plena transformação Mental, Vital e Material, tendo em mira a
elegância do cantar e do dançar sem finalidade. A Idade da Guerra chegou ao fim! O
que, fazer, então, se o hábito da guerra irá perdurar e reproduzir-se como um vício ou
um vírus?
Como fazer para que o Educar não alimente o modo de ser do êxito pessoalista e
egoísta? De que vale o ego humano, senão como caixa de ressonância? A complexidade
do Educar Transdisciplinar opera como método na modelagem da ação aprendente. Mas
isso é como um instrumento musical que será tocado por pessoas diversas de maneiras
distintas. O instrumento pode ser o mesmo, mas toda execução feita por seu intermédio
terá uma qualidade sonora única e incomparável, por mais que na mente sempre opere
por comparações e contrastes.
A complexidade operada na metodologia do educar transdisciplinar permite
projetar as condições essenciais da aprendizagem na educação transdisciplinar nas
quatro conjugações verbais seguintes:
Dialogar: ouvir, falar, calar, perguntar, responder, conviver, cultivar,
reconhecer, duvidar, suspeitar, acordar, amar, harmonizar, deixar-ser, ser-com,
etc.
Pensar: conceber, acolher, recolher, guardar, proteger, silenciar, ouvir, ver,
tocar, palatar, degustar, investigar, questionar, experimentar, imaginar, supor,
compreender, conhecer, etc.
Praticar: Cuidar, fazer, nutrir, plantar, colher, partilhar, construir, escrever,
realizar, recolher, preparar, armazenar, renovar, distribuir, preservar, restaurar,
etc.
Partilhar: conviver, ofertar, distribuir, preservar, cuidar, estabelecer, comum-
pertencer, comum-responsabilizar, oferendar, festejar, celebrar, etc.
214
requer uma evolução nos meios de constituição das relações de poder, sendo
fundamental praticar uma atitude investigativa radical, o que corresponde à investigação
dos próprios pensamentos, e que se pode identificar com a atitude filosófica, que não é
nunca algo que se ensina ou que se transmite por propagação, porque requer de cada
aprendiz que aprenda a aprender por conta própria: aprenda a ouvir, aprenda a falar,
aprenda a ler, aprenda a escrever. Ora, só se pode aprender pela experiência própria e
apropriada. A questão, então, da avaliação diz respeito ao movimento de produção de
valor pela experiência própria e apropriada.
A Avaliação Polilógica, assim, se propõe a construir uma dinâmica avaliativa do
processo educacional como auto-referente e alter-referente em um contínuo diálogo
entre o ser e o parecer, entre o simbólico e o vital, o cheio e o vazio, o alto e o baixo, o
dentro e o fora. Avaliar é, antes de tudo, suspender os juízos e julgamentos e
simplesmente valorar o que se tem diante. E o que se tem diante é um processo material
que tem o seu próprio campo correlato simbólico e semiótico: os pensamentos e afetos,
os humores e as paixões, as atitudes e ações, as palavras e os gestos. Suspender juízos e
julgamentos significa experimentar a coisa mesma que se oferece para julgamento:
Avaliar o aprendiz!
Toda avaliação, assim, nasce de uma suspensão de juízo, um distanciamento
prévio de todo pré-julgamento, de todo preconceito, porque a-valiar significa estimar o
valor, ponderar, pesar o valor. E a medida do valor que se vai avaliar pode ou não
permitir que se valorize corretamente o avaliado. Isto torna a Avaliação Polilógica um
campo fecundo para a transposição da avaliação instituída porque o seu foco é a
totalidade conjuntural, consciente e inconsciente, de cada ser em formação. Isto permite
um avaliar continuamente dialógico e questionador, permanentemente atento ao
conjunto constelado de cada caso, de cada um em seu particular universal.
Por isso mesmo a Avaliação Polilógica tem que começar do começo, tem que
iniciar na fonte e expandir junto com sua jorrância. Neste ponto a radicalidade é a
palavra-chave. A Avaliação Polilógica Transdisciplinar aqui ensaiada encontra-se
radicada na criação de novos valores para a vida presente-futura da humanidade.
Pretensão bastante consciente de que há sempre o que criar quando se está vivo e se
pode oferendar o movimento de sua existência ao eterno refluir de tudo, e se pode
acolher o mistério sem se perder de vista seu sentido-sendo, sempre plural, sempre
diverso, sempre outro-mesmo.
222
Isso requer uma compreensão articuladora que dê conta de algo como atitude
filosófica. Compreendo como atitude filosófica o mesmo que atitude aprendente.
Concebo o avaliar como filosofar, pois acolho filosofia como filosofar. O esquema
abaixo congrega planos configuradores da atitude filosófica ou atitude aprendente. Uma
maneira de apontar para o que não se pode reduzir ao plano simplesmente intelectual ou
mental. A atitude aprendente, assim, aparece em todos os seus níveis divisados de
229
Entretanto, o que é o que vale? O que vale é o que afeta e repercute, ressoa. Entretanto,
o que é hoje o que vale? Parece valer o que se pode provar documentalmente. Mas, no
âmbito da complexidade vertical da espécie humana o avaliar é algo pertencente ao
modo de fazer e julgar do ser humano. Avalia-se o que? O que é objeto de avaliação?
Avalia-se, o desempenho em programas específicos, a capacidade de investigar, o modo
de operar de quem aprende o que se está avaliando?
Meu intuito é o de ressignificar o verbo avaliar, porque tornou-e importante
saber o que se vai aprender a avaliar. Há de qualquer modo um aprender. Não se avalia
o que não está em obra. Avalia-se a obra em andamento? Qual obra, aquela de cada um
em sua singularidade e unicidade absoluta ou aquela determinada por uma modelagem
coletiva ideologizada? Ora, o avaliar aqui ressignificado, reformado não tem em vista
esquemas formais reguladores e sim o processo gerativo daquele que é avaliado. O
campo da avaliação polilógica é cada indivíduo em sua individuação compartilhada. Por
isso mesmo se pode pensar o avaliar como uma suspensão do juízo afetado, o que
significa que o julgamento se transforma em apreciação atentiva – apreciação presente.
O avaliar nessa perspectiva é uma abertura dialógica interrogante e afetiva, na medida
do acolhimento do outro em sua alteridade insondável. Sem uma disposição para
apreciar o outro em sua construção própria o avaliar polilógico não serviria para nada.
Considero o avaliar polilógico como algo no serviço de algo muito elevado e radical.
Projeta-se um outro ambiente para o educar transdisciplinar. Vamos direto ao ponto:
avaliação polilógica não significa mais averiguação ou exame do processo de adaptação
do aprendiz ao programa a ele oferecido de aprendizagem.
Para ampliar o campo da polêmica inevitável diante da proposta apresentada,
apresento um jogo epistemológico sucinto para apresentar uma gramática mínima do
avaliar polilógico. Parto do uso corrente do verbo avaliar, segundo sua dicionarização.
O conceito preliminar de avaliação – o preconceito usual: etimologia e
significados prévios do verbo Avaliar:
3ª - ter força, ter crédito, exceder (em alguma coisa), levar vantagem, estar em
voga; prevalecer; ter bom resultado, sortir efeito; ser eficaz; cumprir-se; ter
influência, contribuir para; ser capaz de, poder;
4ª - Ser bom, eficaz (ter medida), ter esta ou aquela virtude, ser medicinal;
5ª - Valer (em relação ao dinheiro); valer um preço;
6ª - Ter esta ou aquela significação, significar.
Em uma síntese esquemática e gramatical, o avaliar aparece em sua composição
afônica. O “a” suspende a ação de valorar para dar valo, reconhecer o valor, fazer
valer. O “a” ao suspender não altera o sentido da palavra “valorar”: avalorar,
avaliar. Mas o “a” provoca uma desaceleração do valorar. Avaliar aparece, assim,
como ato retroativo e reflexivo do valorar? Avaliar é, portanto, investigar o valor de
alguém em seu acontecimento onto-sócio-genético-ambiental? Mas, para que isso –
em qual regime produtivo? Qual é, portanto, o projeto humano para o qual faz
sentido avaliar no sentido criador?
Ora, quando já se viu algo como ter amor no processo avaliativo instituído? O
que significa, por exemplo, “valorar o que vale”? E o que quer dizer “corresponder ao
outro”? E “potencializar” o que? “Partilhar” com quem? “Ter estima” de que?
“Valorizar o outro” por que, para que? “Acolher a diferença” em nome de quem?
Avaliar agora mudou de figuração, por mais que se procure reagir a isso:
“Apesar de tudo, se move!” Avaliar, assim, lida com o nome e a nomeação em uma
atribuição de valor, no ato de a-valorar, estimar o que vale. Avaliar pressupõe uma
tríade: Avaliador, Avaliado, Avaliação. De modo dialógico, há uma relação de agentes,
em que não há o que ensinou e aquele que aprendeu e sim o que se aprendeu em um
processo dialógico construtivo.
Nessa perspectiva de avaliação ninguém é excluído do processo. O que se avalia
não é a adequação a um modelo predefinido e formalizado, mas a efetividade do
florescimento singular. De maneira ampla, cada um aprende na medida de sua expansão
e de sua conexão com suas circunstâncias existenciárias. Cada um é holograma da
totalidade vivente em seu próprio e único lugar.
235
Isso projeta também a triunidade do aprender que se vai avaliar: a reunião dos
termos capacidades, competências e habilidades em uma articulação polilógica. Pode-
se, assim, tirar partido dos termos capacidade, competência, habilidade. Na síntese dos
elementos operada pela intuição MVM-SupraMVM, capacidade é poder-se,
competência é saber-ser, habilidade é aprender-fazer-ser. Reunindo a triunidade do
aprender, sem potência não pode haver ser, sem saber não pode haver competência, sem
aprender e fazer não pode haver habilidade. Assim, a triunidade do aprender se abre
para uma polilógica acional. Trata-se de uma ação de poder, de saber e de aprender a
fazer. Poder é capacidade, saber é competência, aprender-fazer é habilidade. Reunindo
capacidade, competência e habilidade se pode projetar um único feixe: aprender que é
um poder e um saber.
239
alcance de um modo de ser altivo, digno, feliz, sem perder de vista a concreta e
árdua condição humana.
Trata-se de realizar a avaliação polilógica tendo-se presente que não se irá com
isso aquilatar o chamado “rendimento” relativo à aquisição de um dado conhecimento
técnico ou conteudístico.
Nesse sentido, o exercício tem por fim a concretização vivencial de uma
possibilidade em construção: a realização do avaliar como ato de aprendizado amoroso
do ser-no-mundo-com, estruturando-se em quatro campos complementares: o
ontológico, o epistêmico, o ético e o estético.
Atitude fenomenológica...
257
1.
Aquele que se apega, morre. O que se solta, vive. No soltar-se e no
apegar-se consiste a vida e a morte, o nascer e o morrer.
2.
O fenômeno é a consciência da consciência e a consciência da
inconsciência: superfície e profundidade, extensão e intensidade.
3.
O ser que somos enquanto existimos é vida-morte sem cessar. Mas
o que cessa nele é a compreensão da compreensão e da incompreensão: o
alcance da Unidade na dispersão cósmica da luz no fundo sem fundo
velado.
4.
A Unidade, entretanto, não é algo que se confunde com o
fenômeno enquanto aparecer e aparência na instantaneidade do evento.
A isto se chama Diferença. Diferença e Unidade são o mesmo no sentido
de que Tudo é Um, Um é Tudo.
5.
Em cada Diferença a Unidade, em cada Unidade a Diferença.
Tudo o que é provém de si mesmo na superfície e na profundidade.
6.
Aquilo que é, é sempre sendo de múltiplos modos fenômeno:
aparecer e aparência, profundidade e superfície, ir e vir, subir e descer.
7.
O sábio pensa por imagens, o filósofo por conceitos. Entretanto, o
filósofo aspira alcançar o sábio: deseja pensar por imagens.
258
8.
Nietzsche alcançou o sábio: pensou por imagens – Zaratustra e
Dioniso são os seus personagens imagéticos, secundariamente conceituais:
o gesto criador em si mesmo encarnado no humano como
transpassamento, ultrapassagem, morte na vida, vida na morte: cântico e
dança, música e poesia, palavra e oração – metáfora: vida produzindo
sentido através de mudanças, transposições de algo propriamente dito
para uma figuração propriamente dita em infindáveis vórtices
desejantes, amantes, amados. Por que não?
9.
A produção de atos mentais complexos e abstratos é uma
característica da espécie humana desde sua configuração epocal presente.
10.
Para pensar propriamente é preciso ousar. Para ousar, entretanto,
é preciso pensar. Mas, para pensar propriamente é preciso escutar. Para
escutar é preciso não-pensar. Para não-pensar, deixar-se suspender no
TudoUm: um Todo suspenso no Nada. Um Nada percebido no Todo de
quem percebe. Quem percebe?
11.
Pensar e não-pensar se copertencem: um está sempre onde o outro
não alcança. Ambos se delimitam um no outro, um pelo outro: metáfora
da Diferença Ontológica.
12.
Quando Um se torna Dois tudo se reflete em tudo: diferenciação,
multiplicidade, conjugação, relação, geração, potenciação.
13.
A inteligência é a sensibilidade consciente da consciência e da
inconsciência: o amar polifônico – reverência à Vida Abundante.
Abertura para o aberto: mirar-se no extraordinário.
259
14.
O ser humano busca o absoluto porque ele mesmo é filho do Desejo
inteligente da Vida. O seu esquecimento sensível é sua mortificação
paralisante.
15.
A pergunta pelo ser humano e sua finalidade abrangente é a
questão fundamental: buscar-se a si mesmo – eis a sina do ser humano
como potência vivente. Quem somos nós, então? Como alguém pode
alcançar o verdadeiro e o falso sem o alcance de si mesmo?
16.
Desnudar-se significa abrir-se ao mistério do ser em si mesmo. Será
isto inconsistente, portanto, ilusório, no sentido do efeito imaginoso do
real, “subjetivo”?
17.
Todo fenômeno é fenômeno implicado: o ser humano em sua
compleição ontológica – ser como se é percebido; perceber como ser
percebido: alteridade radical: princípio, meio e fim, e não antes princípio
ou fim.
18.
Princípios do Educar Transdisciplinar (uma possibilidade):
19.
A diversidade realiza a unidade de tudo o que é. O que é, por ser
UNO, é sempre diverso. A diversificação do UNO não se opõe ao
mesmo, mas o realiza como o VAZIO PLENO. O múltiplo do diverso é
sempre a impermanência do UNO, pois qual é a forma do sem-forma?
20.
O UNO ama a impermanência das formas. A unidade mesma é
vazia de formas. A realização do Diverso e do Múltiplo não se opõe ao
UNO. UNO e MÚLTIPLO dá no mesmo. Isto, entretanto, não os
confunde.
21.
Os fundamentos filosóficos da transdisciplinaridade são os modos
de acesso ao ser do ente em sua totalidade. O filosófico diz respeito ao
modo como somos constituídos como seres abertos no comum-
pertencimento de tudo. O filosófico é o modo próprio do
autoconhecimento que se vai construindo polilogicamente, isto é, pela
ultrapassagem continuada da “mente velha condicionada”. Filosófica é a
atitude incondicional de amar a Vida-sendo, amar o Saber-Ser na
conjuntura do Simples: comum-pertencimento de tudo. Conjunção de
corpo e alma, ente e ser, mundo e humanidade aprendente.
22
Autoconhecimento próprio e apropriado. Tudo é um no todo das
partes. A vida abundante da espécie humana em sua ambiência vital é o
chamado comum. A vida humana reclama dignificação e cuidado. O que
precisa ser cuidado é justamente o ser humano que é também capaz de
não-ser humano. Os outros entes por serem “naturais” sabem se cuidar
261
23.
Quais são nossos maiores desafios para a realização de uma prática
transdisciplinar? Educar Transdisciplinar – o que é isto?
O significado amplo e específico da expressão requisita a
compreensão do processo histórico da educação disciplinar moderna. É
preciso que cada um tenha presente o funcionamento efetivo do modelo
vigente de educação, modelo praticado diariamente em nossas atividades
pedagógicas. É preciso que cada um reconheça sua própria prática
docente marcada pela fragmentação característica do modo de produção
da civilização moderna e contemporânea. O reconhecimento das
condições efetivas de nossa existência é o primeiro passo do
autoconhecimento: aprender sendo. Sendo o que? Sendo plenitude
vivente: transformação amorosa.
24.
A questão aqui não é individual e sim conjuntural (coletiva). O
foco não é a deficiência do professor isolado e nem a do aluno, mas a
realidade total na qual estamos inseridos historicamente como seres
humanos concretos. Por que o mundo se encontra tão dividido e
fragmentado em setores e regiões materiais e simbólicas? O que se passa
com nossa educação escolar? O que é necessário para tirá-la da inércia
em que se encontra imersa e acomodada? Será que uma bomba de
nêutrons seria suficiente para perfurar a inércia instituída?
25.
Só uma mudança radical de atitude em relação à vida e ao
trabalho humano podem promover a mudança trans-formativa
necessária para a modelagem humana benquerente. É preciso,
entretanto, encontrar-se disposto a aprender a aprender a ser-sendo – uma
disposição amorosa fundamental.
26.
O transdisciplinar implica em uma mudança de atitude – uma
mudança ontológica – mudança na ordem do modo de ser em relação a si
mesmo, ao outro e ao mundo. Trata-se de aprendermos a conhecer o
caminho radical do desenvolvimento humano autossustentável, que nos
religue ao todo da vida e unifique nosso ser, fazendo-nos co-responsáveis
262
27.
Transdisciplinar é a atitude de transpassamento do disciplinar – a
transformação da atitude dualista e fragmentadora em atitude aberta ao
aprender a aprender unitário e simples, plural e complexo.
28.
Afinal, o que significa aprender a aprender? Em que sentidos e
direções? O que se deve aprender na escola e na vida? Aprender
disciplinas isoladas, conteúdos dissociados das realidades vividas pelos
seres humanos? Por acaso se deve aprender a ser, aprender a conhecer,
aprender a perceber, aprender a viver junto, aprender a fazer? Mas como
aprender a aprender? Quem vai ensinar?
29.
Como é na prática este aprender a aprender? Como é que isto
implica em uma mudança de atitude radical do professor em relação ao
que deve ser “ensinado” nas aulas das diversas disciplinas do currículo
instituído?
30.
O Educar Transdisciplinar não concebe mais disciplinas isoladas
na composição da prática docente e sim uma rede de saberes e
conhecimentos unificados pela atitude comum a ser aprendida e
realizada por todos: a atitude investigativa potencializadora do aprender
a aprender a tornar-se o que se é.
31.
Só se pode aprender aprendendo. É sempre bom lembrar-se desta
obviedade. O educar é um aprender a saber-fazer próprio e apropriado. No
Educar Transdisciplinar não há mais o professor que ensina. Não há
mais a figura daquele que se limita simplesmente a “transmitir” os
conhecimentos formalizados que ele aprendeu em sua formação
disciplinar. O professor disciplinar dá lugar ao educador transdisciplinar.
Ele não “ensina”, mas oportuniza a aprendizagem dos conhecimentos de
sua área de atuação, estabelecendo relações com os outros saberes a
partir da atitude aprendente radical.
263
32.
Sem a pretensão de “ensinar” e sim com a disposição de deixar o
outro aprender de maneira própria e apropriada, o educador é aquele
que, de repente, aprende a aprender. Para isto ele precisa, em primeiro
lugar, autoconhecer-se. Autoconhecer-se significa desenvolver-se
plenamente: tornar-se aquilo que se é.
33.
O educador transdisciplinar é investigador do conhecimento
abrangente a partir de si mesmo – tendo a si mesmo como campo de
realização do aprender a aprender a ser-sendo.
34.
O educador transdisciplinar não repete o que aprendeu
mecanicamente, para que o outro repita sem compreensão aprendente
própria, mas ressignifica constantemente a abordagem do que deve ser
aprendido essencialmente por todos os educandos.
35.
O educador tem que ser ele mesmo um caminho de
autodesenvolvimento sustentável, caso queira oportunizar o
aprendizado do educando sob sua responsabilidade, dando-lhe acesso ao
desenvolvimento de si mesmo, a partir de uma determinada área do
conhecimento histórico.
36.
Educar, assim, significa cuidar para que o outro possa seguir
desenvolvendo-se e florescendo plenamente: possa aprender a aprender
com Arte.
37.
Sem continuar sempre aprendendo ninguém pode educar ninguém:
faltar-lhe-á a vitalidade aprendente para potencializar no outro a
possibilidade do aprender a aprender.
38.
O Educar Transdisciplinar se articula e organiza a partir da
atitude aprendente fundamental: Disposição amorosa para o saber de si,
do outro e do mundo.Essa disposição amorosa compreende o instituído e
o instituinte, o constituído e o constituinte, o já feito e o por fazer, o
conhecido e o desconhecido, o atual e o potencial, a vida e a morte, a
264
39.
No Educar Transdisciplinar há também o saber dizer não: Não
será aplicado nenhum regime normativo relativa à avaliação
educacional, e sim a realização de uma desconstrução crítica dos
processos avaliativos vigentes, visando com isso subsidiar um processo
avaliativo polilógico, o que pressupõe uma revolução no âmbito da
educação formal, a partir de uma revolução de nossa relação com a vida-
sendo em sua totalidade, pelo encontro de nosso lugar no mundo.
40.
Citando Andrei Tarkovski no filme Stalker:
“Que se cumpra o idealizado.
Que acreditem.
Que riam das suas paixões.
Porque o que consideram paixão, na realidade, não é energia
espiritual,... mas apenas fricção entre a alma e o mundo
externo.
41
Princípios Axiais para a organização transdisciplinar:
265
42.
266
43.
A atitude Transdisciplinar pressupõe um ethos comum e harmonioso –
sem perder de vista a visada de Heráclito (Frag. VI): O contrário é
convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia.
44.
Uma compreensão: Transdisciplinar é a realização conjuntural efetiva
– a conjunção intencional do comum-pertencimento compartilhado,
interativo, integrador.
46.
Para que educar?
47.
48.
49.
Contextualizando:
Como dar continuidade ao que foi construído como morada para um
educar transdisciplinar?
50.
51.
“O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem
nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo,
acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”
Heráclito, Fragmento XXIX
270
Referências
AUROBINDO, Sri. A evolução futura do homem. A Vida Divina sobre a Terra. São
Paulo: Cultrix, 1976.
BOHM, David; PEAT, David. Ciência, Ordem e Criatividade. São Paulo: Gradiva,
1995.
LUPASCO, Stéphane. O Homem e suas Três Éticas. Lisboa: Instituto Piaget, 1994.
NIETZSCHE, Friedrich. Assim falou Zaratustra. Um livro para todos e para ninguém.
Tradução de Mário da Silva. 11ª ed. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000.