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Recriação do Educar

EPISTEMOLOGIA DO EDUCAR
TRANSDISCIPLINAR

Dante Augusto Galeffi


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Recriação do Educar

Epistemologia do Educar
Transdisciplinar

Dante Augusto Galeffi

2009
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Sumário

Prólogo: começando do coração

Parte I
Horizonte e Campo configurador da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar

1. O autoconhecimento como meio universal da ciência de si e plano


de imanência gerativo da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar

2. Delimitando o conceito de epistemologia transdisciplinar a partir


do conceito paradigmático vigente – um exercício fenomenológico
da estrutura e dinâmica do conhecer epistemológico

3. Esboço de uma Ecologia Mental ou Noologia – o


autoconhecimento como meio articulador da Epistemologia do
Educar Transdisciplinar

4. Distinção entre disciplinaridade e transdisciplinaridade: o


advento e a construção de uma ciência e de um educar
transdisciplinares

5. Esclarecimentos dos postulados da Transdisciplinaridade


a. A coexistência de diferentes níveis de realidade e de percepção
b. A lógica do terceiro incluído
c. O pensamento da complexidade

Parte II
Método e Projeto Metodológico do Educar Transdisciplinar

6. Delineamentos do método do Educar Transdisciplinar


a. Coexistência dos diferentes níveis de realidade
b. Lógica do terceiro incluído
i. O lógos em Heráclito como discurso inclusivo – dialógica dos
opostos complementares
ii. O Tao como inclusão e distinção, unidade, identidade,
diferença, fluxo e refluxo do mesmo sem-fundamento. A
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lógica inclusiva de Lao Tsé no Tao Te Ching e o Tei-Gi,


símbolo da unidade e estrutura molar da ontologia da espécie
humana representada no I Ching
iii. Incluindo Buda na Lógica Inclusiva: o Caminho Óctuplo
como Caminho do Educar Transdisciplinar
iv. Retomando o fio condutor: A Lógica do Terceiro Incluído
como meio comum do Educar Transdisciplinar e política de
comum-pertencimento afetivo
c. Teoria da complexidade

7. Pilares Metodológicos do Educar Transdisciplinar


8. A Avaliação no Educar Transdisciplinar: Desenho metodológico
da Avaliação Polilógica Transdisciplinar

9. Reunindo tudo em um único crisol


I
Aforismos do Educar Transdisciplinar

Referências
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Prólogo: começando do coração

Uma coisa sábia: ter ciência do conhecimento que


dirige tudo através de tudo.
Heráclito – Fragmento 85

Faz-se presente um esforço redobrado para apresentar a concepção de uma


Epistemologia do Educar Transdisciplinar com o intuito de investigar o sentido
apropriado do autoconhecimento. E isto no movimento de transformação como Educar
Transdisciplinar para daí configurar linhas de fuga para o alcance de uma práxis
pedagógica construída como campo investigativo articulado em uma teoria ou
epistemologia da complexidade e em uma ética do cuidado habitada poeticamente. Será
isto arte? Será também ciência? Será condizentemente filosofia? Ou será a conjugação
destes três registros criadores?
A intenção do presente livro é mostrar as bases epistemológicas de um educar
transdisciplinar e os tentáculos ou construtos metodológicos de uma prática pedagógica
transformativa transdisciplinar. Portanto, com esta epistemologia contempla-se a
autoformação do educador que se vê implicado em um movimento de conjugação de
relações de pertença e de estranhamentos e se encontra diante do seu próprio enigma. E
pergunta pelo seu mistério, e busca meios para realizar a plenitude vivente.
O que aqui vai descrito não são o conjunto de teorias acerca da educação
transdisciplinar e sim a construção epistemológica do educar transdisciplinar.
Enfatizo o termo construção porque o que se pode chamar de educação
transdisciplinar é um projeto em construção, a partir da intuição ontológica e da
fundamentação epistemológica que parte da compreensão da implicação ser humano e
totalidade vivente manifesta e imanifesta. Até agora a epistemologia tem se ocupado da
crítica e validação do conhecimento científico, considerado como acervo da
humanidade e como campo de permanente experimentação e criação de novas formas
de conhecer e consolidar o conhecimento e difundi-lo. Chegou o momento de se poder
construir uma epistemologia do educar transdisciplinar que não vai a reboque das
formações discursivas da ciência regular experimental, hoje a tecnociência dominante,
que tem a potência do Hubble e das naves espaciais movidas há combustível só usado
em missões interestelares. Uma epistemologia que também não desconhece a potência
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da ciência exitosa e nem a toma como pivô de todas as mazelas humanas. Além da
tecnociência dominante há uma ciência que precisa também ser pensada como
ampliação do horizonte compreensivo dos seres humanos viventes, uma ciência do
educar transdisciplinar. De modo similar às próteses perceptivas que a ciência aplicada
vem desenvolvendo, é preciso construir novas próteses simbólicas que nos permitam
viver plenamente a finitude e os limites necessários ao existir sem a interdição das
oposições metafísicas e hierarquias imperiais, pois, apesar de grande e potente, o sol que
nos dá vida é uma entre bilhões de estrelas de nossa galáxia que é uma entre bilhões de
outras galáxias já visualizadas. Ela é uma ciência muito mais ao modo arcaico do que
moderno. E talvez seja ainda mais futura do que propriamente passada. De qualquer
modo, não se limita ao progresso dos meios, pois pensa primacialmente o
desenvolvimento humano sustentável e aí entra também o aperfeiçoamento dos meios
como consequência e não como princípio ou meta.
A epistemologia do educar transdisciplinar aqui expressa é primacialmente um
movimento de autoconhecimento intensivo e que tem por meta o próprio acontecimento
humano em sua saga aberta e inelutável. Uma retomada do que constitui a potência de
ser transformante. A via invisível e valorosa do que tem coração. Por isso tem
inteligência e sensibilidade transdisciplinar. Sua disciplina é a arte de aprender, que é
por princípio uma não-disciplina, pois é a forma correta de manter-se livre da memória
e do medo psicológico, trazendo Krishnamurti e Noemi Salgado Soares (2007) à cena.
Pela via do coração a Epistemologia do Educar Transdisciplinar é uma ação
dirigida a fins éticos. Isto quer dizer que a ciência aqui encontra morada na poética do
agir correto: o agir transformador – a arte de aprender como ética do viver com sentido.
Mas por que começar pela via do coração e não da razão? Este é um ponto de
decisão que nos abre para o abismo do sentido em seu sendo, em suas dobras e redobras
intermináveis. Sigo o caminho da compreensão antes de qualquer predeterminação
relativa ao mundo real. A via do coração é o caminho do ser-sendo-outro. E o coração é
uma imagem aproximada do que não tem termo e não tem limites em seu poder-ser. O
coração é a morada do sentido em sua efervescência luminosa. A câmara labiríntica de
toda emoção e sentimento. O lugar da vida inteligente e criadora. Que lugar é esse?
Como encontrá-lo? Como procurá-lo?
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De qualquer modo, quem não busca não pode encontrar e quem não encontra
nunca buscou. O lugar da vida inteligente reúne na mais bela harmonia os contrários,
inclui a diferença e a diversidade, a multiplicidade e a variedade criadora sem limites.
Afinal, tudo é um para quem é um com tudo. Isso parece ser uma trivial
tautologia, mas é mais do que trivial e simplesmente o mesmo de coisa nenhuma. É uma
investigação criadora de si na totalidade vivente. Uma aventura humana na procura do
inesperado. E pensando com Heráclito, quem não sabe esperar o inesperado nunca
poderá encontrá-lo. E o inesperado vem ao encontro como um destino criador de outros
caminhos e de outras histórias ainda desconhecidas. Todos os caminhos são procuras,
encontros e despedidas. Os caminhos são as razões da vida vivente em suas
equilibrações criadoras. Todo caminho é único. Todo único é um caminho. Para onde
leva o caminho? Leva sempre para o lugar da fonte e para o encontro amoroso no
encontro amoroso. Por que caminhar? Porque ser humano é o caminho da pro-cura de
si-mesmo. Mas o si-mesmo não é algo como um “eu” ou um “ego”. O si-mesmo é o
caminho livre por onde passa a criança brincando de mundo e munda. A criança é o si
mesmo em sua querência amorosa. O si-mesmo é o si que só mesmo o mesmo sabe que
é mesmo si-mesmo. Ele é anterior ao mundo e às espécies, ao humano e suas crias
cibernéticas. O si-mesmo ama a si mesmo. O si-mesmo é também a si-mesma. Si-mesmo
não é uma entidade dual, como macho e fêmea. Si-mesmo é tão si mesmo que é tudo em
tudo. O Si-mesmo não é um “ego”, não é um “eu”, não é um “sujeito”, não é um
“indivíduo” de uma espécie, não é uma “coisa”. O si-mesmo é tudo que não é nada. É
tudo-nada sendo tudo e nada, aparecendo e desaparecendo sem rastros. Mas o si-mesmo
não é um si qualquer. Ele não é o que não é. Ele só é aquilo que é em seu sendo. O si-
mesmo é um sendo ser si mesmo.
O caminho em caminho da Epistemologia do Educar Transdisciplinar é um
espanto amoroso. Busca uma ciência para além da ciência regular normativa,
sistemática, universal. Procura conhecer o conhecimento do conhecimento e o
conhecimento do desconhecimento tendo em vista a transformação humana para sua
mais elevada aspiração de plenitude justa, harmonia criadora, liberdade partilhada.
Como caminho a caminho, é o lugar de reunião de todo o ciclo historial até agora
cumprido pelos humanos. É também o tempo de preparação do alimento futuro para
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nutrir seres humanos amantes da vida sábia e alegre. Um Seleiro e Weleiro1 em que são
recolhidos os alimentos para nutrir luzeiros em suas sagas poéticas insuspeitadas,
mesmo aquelas que parecem repetir indefinidamente a mesma polifonia originária.
Ao mesmo tempo, o caminho não é uma metáfora e sim uma decisão premida
pela urgência da consciência planetária na construção de um modo de ser sustentável e
aberto ao acontecimento da vida criadora. A inspiração vem da abordagem
transdisciplinar e da teoria da complexidade. É um esforço de reunir meios
metodológicos para a construção de um educar transdisciplinar. Pelo menos tem alguns
que se ocupam da plasmação da sustentabilidade triética: ambiental, social e mental –
cósmica, constelar e conjuntural.

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Seleiro é uma palavra cunhada na ressonância imagética com celeiro. A diferença é o S,
que faz a conexão do alto e do baixo, do céu e da terra. E como a imagem do “celeiro”
parece ter cumprido o seu ciclo, o Seleiro é o âmbito em que se recolhe e armazena o
alimento do Ser-Mundo-Outro. Um âmbito em que o plural se dá na convergência do
que amplia e germina plenitude vivente. O Seleiro pode ser equiparado ao núcleo
atômico e aí à força nuclear forte produzida pela interação e coesão de prótons e
nêutrons. A força nuclear forte une prótons e nêutrons para formar um núcleo atômico e
impede a repulsão entre prótons, carregados positivamente, evitando assim a sua dispersão. A
interação nuclear forte entre prótons e nêutrons parece ser um vestígio de outra força forte
básica, chamada a 'força de côr', que une os quarks em grupos de três para fazer prótons e
nêutrons. Por causa da força forte unir as partículas nucleares com tanta adesão, dá-se uma
libertação de quantidades enormes de energia quando núcleos leves são fundidos (reação de
fusão nuclear) ou quando núcleos pesados são desfeitos (reação de fissão nuclear). A interação
da força nuclear forte é a fonte básica das quantidades vastas de energia que são libertadas pelas
reações nucleares que alimentam as estrelas. O Seleiro, assim, é o lugar da reunião nuclear forte,
congregando também o âmbito que se poderia chamar Weleiro – algo como a força nuclear
fraca. E como se sabe, a força nuclear fraca causa a degradação radioativa de certos núcleos
atômicos. Em particular, esta força governa o processo chamado declínio beta no qual um
nêutron divide-se espontaneamente num próton, num elétron e num anti-neutrino. Se um
nêutron dentro de um núcleo atômico decair desde modo, o núcleo emite um elétron (também
conhecido como uma partícula beta) e o nêutron transforma-se em um próton. Isto aumenta
(por um) o número de prótons nesse núcleo, mudando assim o seu número atômico e
transformando-o no núcleo de um elemento químico diferente. A força nuclear fraca é
responsável por sintetizar elementos químicos diferentes no interior de estrelas e em explosões
de supernovas, através de processos que envolvem a captura e decaimento de nêutrons. Um
nêutron é estável (não é radioativo), e tem vida longa, quando confinado dentro do núcleo
atômico. Uma vez que removido do núcleo atômico, um nêutron livre sofrerá decaimento beta.
O processo de decaimento beta, em reverso, ocorre nos interiores de estrelas em colapso de
supernovas, quando prótons e nêutrons se fundem juntos para criarem as vastas quantidades de
nêutrons que abundam como produto final do colapso - uma estrela de nêutrons. Um Seleiro,
portanto, não desconhece o seu anti-elemento, o Weleiro, porque não poderia constituir a coesão
senão para abundar, multiplicar e potencializar a dádiva da nutrição cooperativa e coesa. Seleiro
e Weleiro são, portanto, as metáforas para a nutrição e propagação transformadora do ser-
humanidade que é feito de variadas humanidades.
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Acolhendo o legado dos que ultrapassaram o âmbito da ciência monológica, a


senda da Epistemologia do Educar Transdisciplinar procura reunir tudo no
Seleiro/Weleiro do tempo instante: ela se dispõe a partir de uma atitude investigativa
radical, na conjugação sapiencial sempre inalcançável nas operações espácio-temporais
da existência. È uma investigação em teoriação.
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PARTE I

Horizonte e Campo configurador da Epistemologia do


Educar Transdisciplinar
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1. O autoconhecimento como meio universal da ciência de si e


plano de imanência gerativo da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar

Começo com o autoconhecimento. Ele não é parente distante da autoajuda e sim


irmão mais velho. Enquanto a autoajuda vende seu produto como uma prostituta, o
autoconhecimento questiona a venda do produto conhecimento e se abre para a
investigação criteriosa e jocosa dos próprios pensamentos que constituem nosso ser
percebido. Se a autoajuda consola, o autoconhecimento questiona o consolo em sua
derivação compensatória. A autoajuda promete cura pela autoimagem redesenhada em
seus costumes. O autoconhecimento não promete nada, apenas observa os efeitos
materiais e simbólicos da própria mente. Perceber-se observador implicado, então, é o
início do autoconhecimento. Mas, o que é o que observa na observação? Quem é o
observador que observa e como observa?
O autoconhecimento, entretanto, não é avesso ao prazer ou à estase dos sentidos,
justamente porque o que o move partilha o amar do verbo. Autoconhecimento é, em
primeiro lugar, autoamar – amar que se autoproduz incessantemente. O amar, diga-se
bem, não ajuda. O amar constitui o que é e o que vem a ser. Quem ajuda é o interesse
pelo amar. Autoconhecer-se não é autoajudar-se e sim autoproduzir-se ciente do que é,
do que não é e do que está sendo e pode vir a ser. Afinal, como fomos levados a
acreditar que algo externo aos seres vivos e viventes pudesse ser a causa de suas
formas?
No autoconhecimento não há comiseração e nem tempo para o “eu”, essa
construção satanizada e satirizada amplamente na história humana. O “eu” particular é
uma construção moderna e atende aos ideais antropocêntricos de um humanismo
estranho e completamente identificado com a promoção da livre iniciativa e da livre
especulação capitalista. Entretanto, a especulação é livre apenas para os que detêm os
meios de produção dominantes, hoje articulados como corporações.
O autoconhecimento não serve para permitir o domínio dos meios e sim para
abrir o discernimento que é, também, uma propriedade dos entes naturais. Discernir,
então, não é o acesso ao livre-arbítrio e sim à compreensão do arbítrio livre. Aquilo que
conhece se autoconhece. Esta parece ser uma propriedade do conhecimento: o
conhecimento compreende aquilo que conhece. O compreender está em toda parte. O
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compreender é o logos que está em toda parte e em parte alguma, que tanto pode
esconder e mentir como pode desvelar e ser revelador. O autoconhecimento é, assim,
uma saga infinita do ser que é enquanto experiência de si mesmo em tudo. O tamanho
deste abismo é mesmo de assustar qualquer Buda atento. E o assustar-se é desde há
muito o pathos do conhecimento sapiencial. O falar dos gregos chamou philosophia
esse estado de espanto amoroso, que é uma busca incessante de instantaneidade vidente.
Diante de tal lampejo quem haverá de interessar-se por qualquer outra coisa?
Para que dar nome ao inominável? Por que insistimos tanto em definições
categóricas finais? Não seria possível uma ciência polilógica que tivesse diante de si
não o determinismo do antagonismo que a tudo perpassa e sim a abertura para a reunião
dos opostos que se reconhecem partícipes do mesmo sem-fundamento e assim festejam
o acontecimento do luzir e transluzir?
Temos aqui uma questão importante. Se quisermos falar de autoconhecimento é
mais importante entrar no conhecimento do que identificá-lo simplesmente por seus
contornos e vistas, fachadas e interiores. Entrar no conhecimento é interessar-se pelo
abundante e indeterminado. Tornar-se conhecimento do conhecimento e do
desconhecimento. Os sábios já deixaram muitos sinais: o conhecimento está em toda
parte e em parte alguma. Há, assim, formas distintas de conhecimento, inclusive o
desconhecimento ou a ignorância. O autoconhecimento é o avesso da retenção e do
acúmulo porque ele sempre começa do início. E todo início é promessa de meio e fim. E
o que está no meio sempre inicia e sempre finaliza. E o que está no fim sempre
recomeça do início: vazio.
Autoconhecimento é esvaziar-se do saber habitual: tornar-se insipiente e doar-se
ao acontecimento ao redor de sua coluna ereta e de sua fibra intensa e de sua coragem
livre.
A ciência nasce da necessidade imperante da vida humana em querer saber de si
e cuidar de suas metamorfoses. O conhecimento germina da dor de ignorar: é um
impulso desejante de poder-ser. A violência desta força germinante é incontornável.
Contemplemos o nascer de estrelas! Elas explodem ao infinito e implodem ao infinito.
Que mistério é esse que nos perpassa do início ao fim? Por ventura somos já dignos de
olhar diretamente a face oculta do sendo?
As coisas só podem ser ditas por figurações. Não percamos tempo com isto.
Tudo é figuração. Tudo é representação. Muitos já disseram o mesmo. Aqui a repetição
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é o começo de uma inesperada compreensão articuladora que nos dá regra, compasso e


leveza surpreendente diante da possibilidade de um educar humano transdisciplinar,
para a nossa felicidade e a felicidade de todos. O autoconhecimento não é estranho à
felicidade. Ele só não é malevolente e indisposto. No autoconhecimento a disciplina é
necessariamente uma transdisciplina. Pode-se dizer que o caráter disciplinar do
autoconhecimento é a coisa mais trivial e corriqueira da sua dinâmica pulsiva e que o
seu traço mais marcante é o transpassamento do dito e do dizer. O autoconhecimento é
sempre instante sem ocaso, porque não tem desenvolvimento e está sempre pronto para
começar de novo. O desenvolvimento é o desdobramento vital de um organismo.
Portanto, o desenvolvimento é a passagem do tempo que é infinito/finito
desenvolvimento. Todo tempo é expansão e contração, ir e vir. O tempo é pulsação de
sensibilidades memorativas. A memória do tempo é o tempo da memória. Como seria
possível uma memória sem conexão, relação, experiência, sem alteridade, interioridade-
exterioridade, causalidade, casualidade? O que é a causa senão o movimento e a relação
de forças que impulsiona algo em uma ou outra direção?
A causa, portanto, é o próprio movimento. E o movimento é sempre
necessariamente uma conexão e relação de forças, que são necessariamente processos
materiais-vitais-mentais, porque se dão na efervescência do instante do manifesto. O
que não significa dizer que o material em algum momento seja algo distinto do mental e
imaterial, e que o mental seja reduzido à compleição cerebral do ser humano. Como
falou Heráclito: Se auscultaram não a mim, mas o logos então é sábio dizer Tudo é Um.
E falou obscuramente, porque não é nada claro que tudo é um e que um é tudo, apesar
de parecer evidente. Trata-se de uma falsa evidência.
Entretanto, há aqui um conceito que é um bem da humanidade e não uma
propriedade privada. A unidade que a tudo reúne no Um é a unidade do diverso, do
disperso, da multiplicidade, da variedade, da distinção, da singularidade, da
diferenciação. Tudo se dá monadicamente, modalizando o conceito de mônada expresso
por Leibniz em sua Monadologia (1974). Esta unidade que só se pode apreender por
intuição direta, implica na reunião da dispersão e no acasalamento das polaridades. Este
sim é um fenômeno que só o ser humano alcança, porque a pedra ou a montanha, as
serras, vales, rios, oceanos e tudo mais que se conhece não dispõe do modo de ser que
compreende por memória e antecipação, e por isso pode agir e projetar possibilidades
criadoras e promotoras de modos de vida inteligentes e dialógicos, colaborativos e
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participativos. Assim como também pode agir ou escolher a negação, o anulamento, a


decomposição e dispersão na multiplicidade desunida.
A vida humana não faria sentido sem a possibilidade da experiência da
consumação abundante de tudo na perspectiva da plena duração do ir e vir dos fluxos
descontínuos. Esta possibilidade não é algo exclusivo das culturas que dispõem dos
meios mais avançados do progresso técnico, porque é da natureza da espécie humana
poder tornar-se um Deus, um Buda, um Cristo, um Confúcio, um Lao Tsé, um
Krishnamurti e todas as mulheres sábias. E este acontecimento divino é tão corriqueiro e
comum que não há mais deuses para serem adorados, porque todos são deuses, e por
isso todos podem ser dignos de igual veneração e incondicional acolhida. Mesmo que
uns pensem diferente ou professem mitos de outras galáxias, ou acreditem em Devas ou
em um único Deus, como se Deus não fosse também diferente para si mesmo. É nesta
medida que se pode compreender o sentido humano em sua gênese própria. O que
significa reconhecer a abertura da espécie humana para possibilidades de ser ainda
insuspeitadas, desde que construídas pela tenacidade e doação dos que se oferecem
como frutos para alimentar a ânsia da vida em sua infindável amorosidade e cuidado
inalienável. Uma ânsia que se ouve em toda parte, no choro da criança, na inquietude do
jovem, na atividade criadora, na dinâmica do ser como querer-ser na iminência do não-
ser, na alegria do viver partilhado, na insegurança, no medo psicológico. Um desejo de
vida abundante que perdura luzente em toda parte, mesmo sem o assentimento dos
humanos tão felizes com sua racionalidade operante.
O ser humano é diferenciado em sua possibilidade de ser ao modo dos seres
divinos, mesmo se ainda mortal ou tendo a morte como polo complementar à vida. Pois
haveremos de compreender que vida e morte não se negam e sim se complementam na
cena do aparecer e desaparecer recorrente: fluxo infinito sem começo, sem fim – fluxo
como o meio do aparecer e desaparecer do que é e não é, sendo: projetar-se em
possibilidades já disponíveis. Um abismo extraordinário em relação ao qual não se deve
temer ou tremer e sim ressoar na leveza do raio perpassante.
O autoconhecimento é, assim, uma autocompreensão articuladora que permite o
desabrochar reluzente da potência ígnea do ser-com-ser-mundo. Entretanto, como
ensinar e aprender o autoconhecimento? Esta é a questão relativa à educação como
atividade de cuidado do ser humano em seu ciclo de vida-morte-transformação.
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A humanidade desde seu aparecer vem educando. Toda sociedade, toda cultura
humana tem suas formas próprias de conduzir a organização e manutenção da vida e
com isso, suas próprias instituições de ensino e aprendizagem. Significa dizer que o
educar é conatural à natureza das espécies vivas. Toda organização vivente tem seus
próprios modos ou costumes de fazer desabrochar os filhos que são a continuidade da
espécie. A educação, portanto, é a forma natural da espécie humana de existir
perpetuando-se. Só com o super desenvolvimento da racionalidade moderna é que
aparece a forma de educação escolar hoje vigente e com isto o modelo conteudista
próprio de um projeto humano que perdeu de vista a natureza própria do conhecimento
em sua plasticidade, unicidade e diferença radical. Sensação, e razão, corpo, mente,
emoção e raciocínio não estão separados ou arquivados em gavetas diferentes. O
acontecimento da consciência na espécie humana é algo que caracteriza e diferencia o
humano dos demais entes naturais. Há, portanto, uma naturalidade na vida da espécie
que não convém desconhecer ou fazer de conta que não é. E dizer isto, não significa
afirmar nada de parecido com a ideia equivocada de que no estado natural se encontre a
paz e a harmonia dos contrários. O estado natural aqui compreendido não é tomado
como modelo e sim como condição prévia para se poder compreender o humano em sua
historicidade material e simbólica, e se poder perceber a abertura vivente do humano
para construir, destruir e transformar, para fazer, desfazer e refazer, e isto em medidas e
proporções sempre diferentes e inusitadas, apesar de toda previsibilidade já projetada no
já feito, no existente, no aí do que é observado e percebido em seu ser mesmo.
Posso afirmar que o autoconhecimento é também algo inerente ao sistema da
espécie humana e não uma técnica que se pode aprender através de mestres apropriados.
Deste modo, autoconhecimento não é nada parecido com a imagem solipsista do
pensamento especulativo ou teorético do Ocidente. Não se trata de algo como uma
consciência subjetiva nem muito menos algo isolado em um eu particular. O
autoconhecimento é o movimento próprio da individuação humana e acompanha todas
as fases de desenvolvimento dos sistemas e organismos vivos. Portanto, não está em
questão a posse única de uma técnica infalível de afirmar o autoconhecimento e aplicá-
lo sequencialmente em processos de educação formal. Isto seria o mesmo que perder de
vista o fundamento autofundante do autoconhecimento que é sempre um fenômeno
coletivo e nunca um fato isolado ou mera expressão subjetiva, apesar de ser sempre um
acontecimento único e intransferível.
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Uma imagem aproximada pode ajudar a compreender isso: quando um indivíduo


alcança a autoconsciência toda à espécie aprende com ele. Há, portanto, uma relação
direta entre o desenvolvimento dos indivíduos e da espécie. Este aprendizado,
entretanto, requer sempre atualizações pontuais, o que significa a concretude da
autoconsciência da espécie. E autoconsciência não significa nada parecido com o
controle sobre o mundo natural. Pelo contrário, a autoconsciência acompanha sempre a
florescência do que está em toda parte, despersonalizando ou desantropologizando o
acontecimento do conhecer. O conhecer próprio da espécie humana tem a peculiaridade
de reunir tudo o que se mostra e tudo o que se esconde em um único âmbito. E tudo
segue o fluxo do devir incessante, inclusive o humano com sua abertura ontológica
radical que sempre busca a plenitude do retorno perpétuo. Talvez essa compreensão se
aproxime do que Nietzsche chamou de eterno retorno do mesmo. Eterno retorno da
plenitude reluzente do vivente!
Autoconhecimento, portanto, não é algo que se possa alcançar sem o transcurso
histórico da espécie em sua totalidade, em movimentos seriados ao infinito. Esta
imagem da seriação é adequada para permitir a figuração das formas de totalização que
são próprias da experiência humana. De alguma maneira, todos são tomados por um
movimento profundo que se liga diretamente à origem sem origem de tudo, que por sua
vez é formada de séries de séries organizadas ao infinito. Com todos os seus limites
corporais, sensoriais, motores, afetivos, sociais e mentais o ser humano se comporta
como um protótipo da totalidade. Em sua estrutura natural ele tem todas as
propriedades de um ente capaz de produzir sentido, o que significa reunir tudo em
unidade e diversidade. A experiência da totalidade, então, é sempre única e irrepetível,
apesar de repetir-se sem começo e nem fim: a vida como meio do viver transformante –
tudo renasce no viver renascente.
O autoconhecimento está sendo apresentado como eixo engendrador desta
Epistemologia do Educar Transdisciplinar, o que não garante nada, não prova nada.
Entretanto, isto permite seguir adiante na elaboração de um conhecer autônomo e
inventivo, o que não significa negar nenhuma das características metafísicas do ser que,
em vida, pode alcançar a compreensão articuladora do que não conhece ocaso, apesar
do ser humano experimentar a morte como condição de sua vida vivente. Isto,
entretanto, nada tem a ver com o autoconhecimento que é sempre um movimento
radical de dissolução de toda construção nascida da vivência humana e um retorno
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radical ao estado de vidavivente. E este estado de natureza é a continuidade do fluxo


vital-inteligente que perpassa a espécie humana como um raio e a lança na aventura de
seu próprio devir gerador de efeitos e inevitáveis transformações.
O autoconhecimento, portanto, é a chave de abertura e o fio condutor da
Epistemologia do Educar Transdisciplinar aqui figurada. Nem melhor, nem pior do que
qualquer outra possibilidade. Mas um desabrochar que pensa a totalidade no movimento
da história e compreende o tempo como devir transformador e superação infinita do
dado, sem nunca abandonar a reluzência do instante sem ocaso e a permanência do que
permanece: a origem do solo, o solo de origem.
O autoconhecimento é o meio comum do florescimento de uma transformação
radical da natureza humana. O ser humano é depositário e portador de uma evolução
consciente que o torna corresponsável por seu meio de existência. A espécie humana
está destinada a evoluir muito além do que ela é no presente ou foi no passado. Como
disse Sri Aurobindo (1974, p. 46), “Sem uma mudança interior, o homem não pode
mais fazer face ao gigantesco desenvolvimento da vida exterior”. E a mudança interior
não pode ocorrer por uma vontade exterior, como uma indução de ação por meio de
uma mecânica de transmissão de informação. A mudança interior é o acontecimento da
mais alta aspiração do ser humano – sua busca de liberdade e maestria compartilhada. A
mudança interior faz germinar a busca humana como a criação da Luz. E esta Luz é
como a criança da Luz. A mudança interior é a abertura da criança da Luz.
Entretanto, o autoconhecimento parece ser atualmente uma representação
egocentrada, o que não corresponde ao âmbito da criança da Luz. Autoconhecer-se não
diz respeito à realização do ego coletivo em busca de sua satisfação impulsiva. A visada
de um autoconhecimento que ajuste o indivíduo ao mundo dos negócios pessoais
radicados na propriedade privada não diz respeito ao que concerne a mais alta aspiração
humana, que é uma condição de princípio e não uma quimera imaginária e fugitiva de si
mesma. O ser humano em sua presentidade está em flagrante contradição com sua
aspiração de princípio – sua propensão para a plenitude vivente. Os ideais persistentes
de plenitude dizem respeito ao programa eco-sócio-ontogenético da espécie humana.
Eles não são produções discursivas idealistas ou realistas, mas condições ontológicas
concretas que não dependem de opiniões terráqueas ou marcianas, mas fazem parte do
que é originário do fenômeno que distingue a espécie humana das demais espécies do
planeta e do universo em sua totalidade. Isto não quer dizer nenhuma forma de
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superioridade sobre outras espécies e níveis de realidade. Pelo contrário, a condição


humana não é propensa ao intervencionismo que caracteriza o atual modo de ser global
do conjunto humano vivente. Toda forma de controle hegemônico e de dominação na
base do artifício e da força é um desvio da aspiração humana em poder alcançar em suas
individuações sequenciais a maestria de cuidar do Universo como âmbito do
nascimento, desenvolvimento e desaparecimento de deuses.
Para conceber o autoconhecimento como um meio universal da evolução da
consciência humana em sua plenitude é preciso uma revolução interior própria e
apropriada. Ela é “interior” como maneira de evidenciar o desenvolvimento de uma
consciência que germina em suas potencialidades lucíferas e que transcende em si
mesma toda exterioridade construída – toda a expansão corporal do Universo. Sri
Aurobindo diz algo que ressoa na mesma compreensão articuladora, ao falar da
aspiração humana pela plenitude e a condição atual de sua negação. Diz ele
(AUROBINDO,1974, p. 17-18):

Estes ideais persistentes da espécie são ao mesmo tempo a contradição


de sua experiência normal e a afirmação de experiências mais altas e mais
profundas, que são anormais à humanidade e só podem ser atingidas em sua
inteireza organizada através de um esforço individual revolucionário ou de uma
progressão geral evolucionária. Conhecer, possuir e ser o ente divino em sua
consciência animal e egoística, converter nossa mentalidade física crepuscular
ou obscura na plena iluminação supramental, erigir a paz e uma alegria auto-
existente onde há somente compulsão de satisfações transitórias imediatas por
dor física e sofrimento emocional, estabelecer uma liberdade infinita em um
mundo que se apresenta como conjunto de necessidades mecânicas, descobrir e
realizar a vida imortal num corpo sujeito à morte e constante mutação – isto é
oferecido a nós como a manifestação de Deus na Matéria e a meta da Natureza
em sua evolução terrestre. Para o intelecto material comum, que toma sua
presente organização de consciência como o limite de suas possibilidades, a
contradição direta dos ideais não realizados com o fato realizado é um
argumento final contra a validade daqueles. Mas se adquirirmos uma visão mais
deliberada dos trabalhos do mundo, esta oposição direta se apresenta antes
como parte do método mais profundo da Natureza e sinal de sua mais completa
sanção.

Os limites aparentes e determinados de nossa mente material comum são


resultantes das sedimentações da evolução orgânica e mecânica da espécie e de seu
meio. A Natureza em sua imanência gerativa perene se constitui de uma bipolaridade
única, a partir da qual todas as possibilidades de conjunção e arranjo, dispersão e
ordenamento, diferenciação e agrupamento se dão. No âmbito unificado da Natureza
tudo é “zero”. Zero à direita, à esquerda, abaixo, acima, dos lados direito e esquerdo,
19

para cima e para baixo, em todas as direções. A unidade primária da Natureza é


equivalente ao “zero”. Do “zero” o um e o dois. Dos dois reunidos, todas as coisas. O
ponto zero da Natureza é o seu ponto de início e de expansão espácio-temporal.
Essa visada intuitiva poderia ser o ponto de partida da evolução do Universo e
da possibilidade de todo Universo. Em cada ponto uma Totalidade diferenciada em suas
atualizações e potencializações. É como pensar cada partícula atômica do Universo
como todo o Universo na partícula. Cada partícula seria todo o Universo em sua
diversidade pontual. O Universo é sempre um conjunto de partículas. Sua unidade não é
visível senão na extensão de cada desenvolvimento, mas não se resume a ela e nem
pode ser capturada em uma única figuração. Toda unidade transcende as partições por
princípio.
O autoconhecimento que se tem como mira não é, portanto, uma equalização da
mente velha condicionada, mas justamente o acesso à infinitude de todo poder ser
plenamente. Trata-se de atualizar a potência inteligente e clarificante da vida vivente.
Não é um ajuste qualquer para uma vida qualquer marcada pela alienação e pela
ignorância do si. Não se trata de uma representação abstrata de algo inalcançável, mas
de uma possibilidade imanente da condição humana em sua condição livre.
A palavra autoconhecimento se associa ao movimento individualista da cultura
humanista passada. Esta associação é devido ao desconhecimento da natureza própria e
criadora do autoconhecimento. Não se trata claramente de uma ideologia, pois antecede
o movimento das ideologias históricas. Não é, portanto, uma posição idealista contrária
à dialética da matéria viva, mas justamente uma eclosão da matéria vivente. O
autoconhecimento não é, portanto, uma ideologia cultural nascida de uma burguesia
urbana qualquer, mas o meio universal do desenvolvimento espiritual da espécie em sua
potência originariamente livre.
Se a contradição faz parte do método geral da Natureza, como apontou Sri
Aurobindo (1974), a contradição não é o empecilho da harmonização dos opostos, mas
justamente sua condição de princípio. O impulso de harmonização é o movente do
autoconhecimento. A harmonização é o a terceira via que conjuga a contradição em sua
dinâmica gerativa. Poder-se-ia conceber todos os problemas da existência como
referentes à harmonização, como o fez Aurobindo. Pois os problemas surgem da
percepção de um desacordo não resolvido e da presença de uma condição de princípio
que se caracteriza por uma unidade dinâmica de harmonização. Assim todo ser existente
20

tende à harmonização em sua constituição. Afinal, por que autoconhecer-se? Seria esta
uma simples resultante histórica e ideológica?
A busca pelo autoconhecimento como harmonização das forças de constituição
dos entes naturais parece ser o caminho da Natureza em suas experimentações e
superações contínuas. Mas a Natureza ama ocultar-se, como disse Heráclito. Seu
ocultamento é sua própria abrangência e complexidade simples. Um paradoxo, sem
dúvida. Mas também uma unidade de princípio, meio e fim. Essencialmente, toda a
Natureza busca harmonia em todos os seus planos de constituição. E quanto maior a
aparente desordem dos materiais antagônicos, mais forte o estímulo para uma harmonia
mais abrangente. Como se a Natureza amasse ocultar-se diante dos desafios para reunir
sempre os planos de sua imanência em uma liberação mais profunda e consistente. A
aparente oposição constitutiva é, assim, o meio da Natureza fazer valer sua força de
harmonização. Em seu poder germinante perene, a Natureza se oculta para harmonizar-
se na aparente disparidade e oposição, fazendo valer sua conjuntura harmônica em seu
dinamismo incessante. Se a Natureza ama ocultar-se é porque ela sempre se surpreende
diante de sua diferença originária.
Sri Aurobindo (1974, p. 19-20) fala de um processo evolutivo da Vida na
Matéria de uma maneira desveladora. Sigamos a compreensão de suas palavras escritas
e traduzidas:

Falamos da evolução da Vida na Matéria, da evolução da Mente na


Matéria; mas evolução é uma palavra que meramente enuncia o fenômeno, sem
explicação. Pois parece não haver nenhuma razão por que a Vida deva evoluir a
partir de elementos materiais ou a Mente a partir de uma forma viva, a não ser
que aceitemos a solução vedântica de que a Vida já está involuída na Matéria e
a Mente na Vida, porque em essência a Matéria é uma forma de Vida que está
velada, a Vida uma forma de Consciência que está velada. E então parece existir
pouca objeção com relação a um passo a mais na série e à admissão de que a
consciência mental possa, ela mesma, ser apenas uma forma e um véu de
estados mais altos que se encontram além da Mente. Neste caso, o invencível
impulso do homem em direção a Deus, à Luz, à Bem-aventurança, à Liberdade,
à Imortalidade se apresenta em seu lugar certo na cadeia como simplesmente o
impulso imperativo pelo qual a Natureza está buscando evoluir para além da
Mente, e parece ser tão natural, verdadeiro e justo como o impulso em direção à
Vida, que ela implantou em certas formas da Vida. Tanto lá como aqui, o
impulso existe, mais ou menos obscuramente, com uma série sempre ascendente
no poder de seu querer-ser, nos diferentes recipientes da Natureza; tanto lá
como aqui, ele está gradualmente evoluindo, e inteiramente obrigado a evoluir,
os órgãos e faculdades necessários. Assim como o impulso em direção à Mente
se estende desde as reações mais sensíveis da Vida no mental e na planta até
sua plena organização no homem, também no próprio homem há a mesma série
ascendente, a preparação, no mínimo, de uma vida mais alta e divina. O animal
21

é um laboratório vivo no qual a Natureza, como se diz, elaborou o homem. O


próprio homem bem pode ser um laboratório pensante e vivente em quem e com
cuja cooperação consciente ela quer elaborar o super-homem, o deus. Ou não
devemos antes dizer – manifestar Deus? Pois se a evolução é a manifestação
progressiva, pela Natureza, daquilo que dormia ou operava nesta, involuindo,
ela é também a realização revelada daquilo que a Natureza secretamente é. Não
podemos então solucionar dela uma pausa num determinado estágio de sua
evolução, nem temos o direito de condenar, juntamente com o religioso
fanático, como perversa e presunçosa, ou, juntamente com o racionalista, como
uma doença ou alucinação, alguma intenção que ela possa evidenciar ou esforço
que ela possa fazer para ir além. Se é verdade que o Espírito está involuindo na
Matéria e a Natureza visível é Deus secreto, então a manifestação do divino no
homem e a realização de Deus dentro e fora são o mais alto e mais legítimo fim
possível ao homem sobre a terra.
Assim, o terno paradoxo e eterna verdade de uma vida divina num
corpo animal, uma aspiração ou realidade imortal habitando uma morada
mortal, uma consciência singular e universal representando-se em mentes
limitadas e egos divididos, um Ser transcendente, indefinível, sem tempo e sem
espaço, que, unicamente ele, torna possíveis tempo e espaço e cosmos, e em
todos estes, realizável a verdade mais alta pelo termo mais baixo, justificam-se à
razão objetiva, bem como ao persistente instinto ou intuição da espécie humana.

Sem o autoconhecimento o ser humano não alcança o seu lugar devido na


evolução da vida na matéria. E a mente não encontra meio para tornar-se divina em sua
infinita transformação criadora, sempre ultrapassando os limites do antagonismo vital
pela inclusão da unidade vivente. E se a manifestação cósmica atual é o resultando de
um movimento duplo de involução e evolução, isto não significa senão a condição de
princípio de toda vida cósmica e o desenvolvimento de infindáveis planos de
consciência, sem que nenhum deles ponha em risco a existências dos outros.
Como fazer, então, para atualizar o autoconhecimento como a força liberadora
de todo poder-ser plenamente? Quais são os meios necessários para a ativação da
supramente criadora de vida abundante e de plenitude atual?
A história humana é rica em casos de autoconhecimento. È uma evidência no
caminho da evolução humana para a plenitude vivente. Um processo em constante
mudança. O que não quer dizer que seja um acontecimento inconsequente, sem levar em
conta o tempo da experiência e a permanência de uma condição de princípio livre e
criadora.
O caminho para o autoconhecimento se delineia pela emergência do ente-espécie
humano em conhecer a si mesmo. O conhecimento é o resultado das experiências
vividas e da evolução cultural da espécie. Mas o conhecer a si mesmo é a marca de
origem do ser humano. E para que serve conhecer a si mesmo?
22

Penso que seja preciso mirar bem alto, o mais alto possível para se alcançar com
clareza a emergência do autoconhecimento. Não é, portanto, algo que se possa
descrever em base aos dados da experiência passada. Mas também não é algo apartado
das experiências passadas. O autoconhecimento diz respeito ao acontecimento da
claridade do ser na concretude de cada existência singular. Cada um em seu ser único
encontra-se aberto à liberdade de ser no si-mesmo.
Sim, o autoconhecimento também é uma anamnese: rememora o vivido para
reconhecer o estado vivente em sua potência maior. A recordação do vivido libera o
vivente do passado. O vivente então conhece a si mesmo. Nada mais difícil do que
conhecer a si mesmo. Se fosse fácil já seríamos deuses entre deuses. A memoração do
passado é também a recordação do futuro. O futuro é o passado do presente no presente
do passado. No autoconhecimento o tempo da memória é também a memória do tempo:
passado, presente e futuro em um contínuo dobrar-se e redobrar-se decidido a só ser
mais ser. Mais ser é ser mais ser no ser. Deixar ser!
A questão capital do autoconhecimento foi-nos desvelada em muitas formas e
línguas. Uma breve arqueologia das culturas históricas poderia indicar a profusão de
tendências de processos relacionados ao autoconhecimento. Ele é multicultural e
multirreferencial, pluricultural e plurirreferencial, intercultural e interreferencial,
transcultural e transreferencial. O autoconhecimento é sempre o conhecimento de
alguém em particular. Ora, alguém em particular é um ente de uma espécie. É, assim,
alguém em particular como espécie. O autoconhecimento é sempre “meu”. Ele é
sempre o conhecimento que alguém tem de si-mesmo. Quer dizer, o si-mesmo já está
presente no autoconhecimento. Ele é sempre um si-mesmo situado, pertencente a
determinado meio, participante de determinados modos de existir, de morar, de
produzir, de valorar, de criar, perpetuar, transformar.
A questão crucial do autoconhecimento é a própria liberdade de ser plenamente
por um princípio inerente ao si-mesmo, e não para uma finalidade reduzida à
generalidade de uma indistinção coletiva inconsciente. É no indivíduo da espécie
humana que o autoconhecimento se realiza para toda a espécie. Não é, portanto, algo
que diz respeito a uma realização egoísta, mas um meio de desenvolvimento das
potencialidades da espécie de poder tornar-se autoconsciente e de poder projetar-se para
além do dado maquínico de sua física e química densa. O autoconhecimento floresce
23

como uma flor de lótus. Está é uma imagem apropriada para apresentar seu
desenvolvimento vivente.

A flor de lótus cresce da escuridão do lodo para a superfície da água. Suas flores
são abertas após ter-se erguido além da superfície da água, distinguindo-se da terra e da
água que a nutriram. Faz-se uma relação com a mente humana e com o
autoconhecimento. A mente humana alcança o autoconhecimento quando, nascida do
corpo vivo, expande suas qualidades (pétalas) após ter-se erguido das turbulências da
paixão e da ignorância, transformando o poder lodoso da profundidade no néctar
depurado da consciência radiante. Apesar das raízes de nossa mente encontrar-se na
profundidade sombria da matéria densa, sua florescência se ergue na totalidade da luz.
A síntese viva do mais profundo e do mais elevado, da escuridão e da luz, do visível e
do invisível, das limitações de cada individualidade e da ilimitada potência, do formado
e do sem forma. Assim, é como se o impulso para a luz não estivesse adormecido na
semente de lótus, escondida na escuridão da terra a flor de “mil pétalas” não poderia
nascer e a mente humana não poderia emergir da escuridão se não existisse a luz e a
potência para o florescimento do si-mesmo. A semente da iluminação está presente em
cada partícula de vida orgânica ou inorgânica. No ser humano ela aparece como
consciência ampliada e pode alcançar a plenitude vivente em sua plena harmonia
criadora. E toda harmonia é reunião de dissonâncias.
Sem o autoconhecimento, portanto, como esperar alcançar o poder-ser mais
próprio da mente livre? Se no plano físico a involução alcança seu último estágio numa
24

inconsciência total, é porque a partir daí começa uma evolução gradual rumo à
iluminação autoconsciente, que não tem por fim senão florescer como uma flor de lótus
e depois desaparecer para reaparecer em outra flor de lótus.
Todo fenômeno é uma efervescência espácio-temporal, aparece para
desaparecer. Assim é o fenômeno das individuações autoconscientes. Toda
autoconsciência é, no plano do indivíduo, o florescimento de uma flor de lótus.
Aparecer para desaparecer. Portanto, não devemos nos apegar a nada e sim aderir ao
plano da nossa florescência instante.
Olhemos para trás no tempo da espécie. Quantas foram as florescências
ocorridas? Quantas flores de lótus foram vistas por cada um que já se foi? Cada um de
nós também desaparecerá. E daí? Sejamos como a flor de lótus em nosso florescimento.
Aprendamos a desaparecer como a flor de lótus. A potência Inteligente que congrega
todo o Universo é como uma flor de lótus que sabe brotar do lodo e por instantes
intensos floresce e fenece, mas volta a florescer. Assim é a vida em sua dinâmica
perene. Perene é vida, mas cada um é uma efervescência do viver.
Assim, o autoconhecimento não é um ajuste modelador do caráter para que se
cumpram as determinações de um sistema coletivo massificado. É preciso ser indivíduo
para alcançar a espécie. E é em cada indivíduo da espécie que a revolução do
autoconhecimento se realiza. Fora do indivíduo não há caminho para o
autoconhecimento. Mas há, também, o autoconhecimento da totalidade da espécie, que
se confunde com o acontecimento da realização de cada indivíduo da espécie.
Enquanto a ciência regular nascida no surto da modernidade procura determinar
o controle objetivo de um dado meio de acontecimentos e propriedades materiais a
ciência do autoconhecimento como uma epistemologia do educar é um meio de
florescimento da plenitude vivente em cada indivíduo da espécie em sua singularidade e
unicidade desconhecida, mas pressentida como a presença da luz do sol nos primeiros
albores do dia.
No autoconhecimento a parte de nossa natureza de que normalmente temos
consciência se mostra como a personalidade de superfície, constituindo-se de corpo vital
e mente de superfície. Mas atrás desta consciência de superfície existe uma cosnciência
muito maior, mais profunda e poderosa. Esta consciência de profundidade está em
contato constante com os planos quânticos (se assim se pode chamar) presentes em toda
a extensão e intensidade do Universo como Mente, Vida e Matéria em um só vórtice
25

criador, conservador e transformador contínuo. Estes três planos, o mental, o vital e o


material, constituem a totalidade da consciência de profundidade. Assim, a consciência
profunda não é algo diferente do material, do vital e do mental, pois é a consciência
material, vital e mental simultaneamente. A consciência, assim, não é uma entidade
derivada dos efeitos materiais e vitais e mentais e sim o campo em que o que é pode
saber de si como é, em qualquer dos seus planos de aparição de superfície e de
profundidade.
Há, portanto, uma consciência de superfície e uma consciência de profundidade,
assim como um autoconhecimento superficial e um autoconhecimento profundo. O
autoconhecimento de superfície já se encontra atualizado nos dispositivos sociais de
regulação do comportamento determinado por repetições e sedimentações históricas.
Mas o autoconhecimento de profundidade é algo que só alguns poucos ainda alcançam
em sua plenitude. E por que isto é assim?
Ora, a consciência profunda está sempre oculta em toda parte. Como pode ser
assim? Só o autoconhecimento pode esclarecer este mistério. E todo autoconhecimento
é sempre o acontecimento de uma expansão da consciência de profundidade na
superfície da vida vivente. Um encontro criador aberto ao poder-ser próprio e
apropriado.
O autoconhecimento mira o nirvana – a dissolução do si individual e
fragmentado, a extinção de toda consciência periférica e o alcance do brilho do Ser?
Não é esta aspiração muito elevada para a maioria dos mortais?
O autoconhecimento é um caminho radical de ultrapassagem de toda forma de
ser fragmentada. Por isso ele é tão difícil como iniciar um Big Bang. No plano cósmico,
o acontecimento de uma flor de lótus é mais complexo do que o suposto surgimento do
Universo na visada da atual cosmologia. A florescência de uma consciência-lótus é algo
mais extraordinário do que o nascimento do tempo que origina a atual deriva cósmica,
apesar de só poder existir a consciência-lótus na deriva cósmica em sua aparente
desordem e inconsciência de si.
O autoconhecimento como meio Universal da ciência de si é o ponto de apoio
para mover o mundo da entidade humana em sua busca de plenitude vivente. Uma
ciência que tem como plano de imanência a consciência profunda de que o ir e vir dos
fluxos cósmicos, o involuir e o evoluir, o expandir e o contrair são a respiração da vida
26

na matéria pelos sentidos e na mente pelo sentir. A matéria tem sentidos. A mente sente.
O vital se reproduz segundo sua marca de origem e o seu meio de vida.
Portanto, o autoconhecimento é uma ciência de si que não necessita do
consentimento político de uma maioria governante para ser o que é. Pois não se busca o
assentimento da autoridade externa para se alcançar a claridade do que está em tudo.
Daí o embaraço dos processos de autoconhecimento quando são subordinados a uma
relação de subserviência e servidão externa. E porque no autoconhecimento a maestria
não é arte de um mestre exterior, e sim o acontecimento do mestre interior, não há
caminho que salve a alma da dissolução se não for o caminho único de cada um.
Ninguém, deste modo, pode autoconhecer-se pelos outros que se autoconhecem e se
tornam mestres de si mesmos. O autoconhecimento não é uma transmissão de mestre a
discípulo, mas uma convivência de mestre e discípulo. A convivência é um meio de
aprendizagem imprescindível, mas não substitui o aprender apropriador de cada um em
sua individualidade aberta e em sua individuação acional e comunitária.
O autoconhecimento é, então, um movimento rigoroso de estudo de si mesmo
através da acolhida dos mestres próximos e distantes. São muitas as entradas e saídas
desta senda. São muitas as vozes que clamam no deserto e no gelo, nos vales e nas
montanhas, na cidade e no campo. Em nossa sociogênese como espécie existe uma
infinidade de escolas e doutrinas que estabeleceram hierarquias no processo de
autoconhecimento. Tudo isso pode até ser respeitável, mas não diz respeito
propriamente ao autoconhecimento. Porque se devemos mirar os mestres de sabedoria
como nossos modelos, que sejam os mestres nossos guias na compreensão da
radicalidade do processo de autoconhecimento propriamente dito. Todo mestre para se
tornar mestre tem que ser amigo e irmão mais novo da Sabedoria. Ele tem que prestar
reverência ao Supremo em si mesmo, e não à majestade e beleza do irmão mais velho.
Sim, todos precisam da presença de mestres. Mas os mestres nem sempre são
outros seres humanos visíveis. Os mestres são presenças viventes em nosso campo
existencial. Sim, o professor “tal” pode ser um grande mestre em Aristóteles, mas ele
não poderá ensinar-me nada daquilo que eu não possa aprender diretamente e sem a
mediação de professores. O que se aprende de um mestre é sempre um método para se
chegar a experienciar diretamente algo determinado. Mas o método requer a prática e a
prática o praticante. Nenhum método, portanto, pode servir ao intento do
autoconhecimento se ele não puder ser praticado diretamente.
27

Estamos vivendo em um tempo em que se tornou possível imaginar uma


aprendizagem humana do que é mais importante na vida através de mediadores que se
encontram à disposição em uma rede de informação acessível a todos os que saibam
usar seus recursos. Acabou-se a época da formação disciplinar, apesar de não ter
acabado o primado da disciplina para que se possa realizar algo de valor. A questão é
que a disciplina não em um modelo geral e homogêneo para ser repetido
indefinidamente. Cada um haverá de desenvolver a sua própria disciplina de
aprendizagem de si. Não é possível, portanto, padronizar algo como o
autoconhecimento. Isto seria o mesmo que pretender moldar o autoconhecimento como
um programa igual para todos os casos, o que seria um contrassenso absurdo.
A ciência do autoconhecimento é o fio condutor da Epistemologia do Educar
delineada em suas articulações éticas, estéticas, políticas, antropológicas, ontológicas,
ecológicas e cosmológicas. Como fio condutor ele não pode ser transmitido como se
transmite um programa de rádio ou de televisão, mas pode ser apontado como método
para se chegar à ciência da consciência da consciência e da consciência da
inconsciência. E só faz sentido para quem se torna o mestre de si mesmo, sem ser mais
um ego ou um eu qualquer à procura de uma satisfação já conhecida. O
autoconhecimento não se satisfaz com o que parece satisfazer ao imediato pragmatismo
de todo ego enraizado em seus hábitos passados. Ele é como uma flecha apontada para o
que não conhece ocaso. Por isso nunca se satisfaz com o fixo e os lugares concluídos,
sempre se projetando em novas possibilidades criadoras e amorosas, sem se tornar
rígido em sua dinâmica vital.
O autoconhecimento como fio condutor da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar é também a evidência de que não se trata de uma ciência da
intervenção e do controle operativo sobre meios determinados, e sim do
desenvolvimento da consciência da consciência de si-mesmo, que nunca é algo
atomizado na fragmentação estabelecida pela razão intelectual dominante, pois se
encontra sendo no mesmo âmbito em que tudo é em seu sendo.
Trata-se claramente de outra “ciência”, de outra “epistemologia”. Uma ciência
que não toma para si a tarefa de regular a normalidade de sua área de atuação, a partir
da negação do que se chama de “subjetividade” por convenção e por conveniência, mas
assume a tarefa de aprender a deixar ser o outro o caminho de sua vida. Uma ciência
cujo objetivo é a geração humana autossustentável e livre das fantasmagorias da Mente,
28

Vida e Matéria condicionadas (MVM), como se poderá ver de modo mais denso na
próxima sessão deste livro.
E porque a epistemologia aqui posicionada é um ato de absoluta liberdade
criadora, ela não precisa prestar contas a nenhuma instância exterior à sua
autodeterminação. E porque também não se opõe às epistemologias consolidadas
academicamente, não estabelece nenhuma zona de conflito com elas, pois o importante
não é combater a mente velha condicionada e sim superá-la justamente pela cessação de
todo o conflito. O conflito é aqui tomado como conflito psicológico que se autoalimenta
no conflito. Cessar o conflito é cessar o funcionamento da psicologia condicionada.
Desse modo, não se trata de uma proposição epistemológica que se apresenta
como um sistema metodológico cuja pretensão é tornar-se o novo paradigma
metodológico da ciência regular instituída, justamente porque compreende o conceito de
paradigma como condição de princípio de todo ente Mental, Vital e Material. E por isso
mesmo, um paradigma epistemológico não poderia tornar-se impositivo de uma
normalização universal, porque por princípio, meio e fim não é possível conter o ímpeto
criador do Universo em sua poligênese incansável, pretendendo controlá-lo a partir da
perspectiva antropológica cega para a potência polilógica do que se encontra sendo em
todos os planos e níveis de realidade.
A intenção de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar não é, portanto,
normativa e nem impositiva de procedimentos metodológicos formalizados e prontos,
como programas computacionais ou procedimentos de montagem de circuitos elétricos,
a serem repetidos em qualquer ponto em que as condições de origem sejam as mesmas.
No campo estrito da individuação humana não há espaço e nem tempo para a aplicação
de um programa que irá funcionar automaticamente. Em relação a este ponto já basta a
nossa programação genética e todos os limites estruturais que daí decorre. Uma
epistemologia que tem o autoconhecimento como fio condutor não tem nada a ver com
a vigência da ciência acadêmica triunfante. Trata-se de outra ciência e de outra
metodologia, de outra concepção de conhecimento técnico e de outra compreensão de
necessidade humana.
O necessário para o ser humano não é o conhecimento tecnológico que o torna
supostamente superior na luta pela sobrevivência. O necessário é justamente o que o
liberte da subjugação e da barbárie, da estupidez e do medo, da ignorância e da má-
querência. O ser humano necessita, portanto, de uma ciência de si, que é uma ciência da
29

conjuntura discreta e Supra Mental, Vital e Material da totalidade da qual é parte


integrante e ressonante. Imaginar, portanto, que o ser humano deva dominar
tecnologicamente todos os rincões alcançáveis do Universo com sua suposta ciência
superior é o sinal de um sério desvio ontológico. Desvio que nega ao ser humano o
privilégio de poder-ser uma plenitude vivente que floresce com a mesma beleza e
desprendimento de uma flor de lótus, que só existe para realizar a beleza de ser o
acontecimento da beleza do florescer acima da indistinção do lodo e da estagnação do
pântano.
30

2. Delimitando e construindo o conceito de Epistemologia


Transdisciplinar a partir do conceito paradigmático de ciência
vigente – um exercício fenomenológico da estrutura dinâmica do
conhecer epistemológico
A dificuldade em entender e descrever a
natureza supramental advém do fato de que
em sua própria essência ela é consciência e
poder do Infinito.
Sri Aurobindo

A palavra epistemologia ganhou no século XX uma notoriedade apenas


comparada a palavras como ciência e conhecimento que são das mais usadas na
contemporaneidade. A palavra ganhou notoriedade a partir do positivismo lógico do
Círculo de Viena2 que pretendeu definir e delimitar o campo do conhecimento científico
criando as regras de validação ou pelo menos oferecendo instrumental para a crítica
filosófica ou lógico-línguístico-analítica do conhecimento científico verdadeiro. Nesta
perspectiva, a palavra epistemologia se associa ao discurso científico logicamente
justificado, sendo necessário pertencer à tradição do positivismo lógico para corroborar
com a crença na ciência como sendo capaz de determinar o verdadeiro e invalidar o
falso a partir de argumentos e verificações empíricas e logicamente formalizadas.
Entende-se, então, por epistemologia uma crítica lógica e metodológica dos conceitos e
postulados da ciência propriamente verdadeira. Isto significa dizer que há um uso
especializado do conceito que parte do pressuposto de que só a ciência que se impõe
publicamente e pode ser empiricamente verificada tem o direito de se chamar
propriamente de ciência verdadeira. O objetivo final perseguido pelo Círculo de Viena
visava unificar a ciência com a construção de um sistema simbólico comum em relação
ao qual cada legítima afirmação é reduzida aos conceitos de nível mais baixo que se
referem diretamente aos dados da experiência. O empreendimento é a unificação que
visa harmonizar as realizações de cada um dos investigadores nos diversos campos da
ciência. A partir deste objetivo, persegue a busca de clareza e conforto, pois a

2
O Círculo de Viena surgiu na primeira década do século XX, sendo responsável pela criação de uma
corrente de pensamento intitulada positivismo lógico. Este movimento surgiu como reação à filosofia
idealista e especulativa que prevalecia nas universidades alemãs. A partir da primeira década do século,
um grupo de filósofos austríacos iniciou um movimento de investigação que tentava buscar nas ciências a
base de fundamentação de conhecimentos verdadeiros.
31

linguagem simbólica elimina os problemas decorrentes da ambiguidade da linguagem


natural.
Pode-se dizer que uma das principais contribuições do Círculo de Viena reside
na noção de verificabilidade. Esta compreende que o sentido de uma proposição está
intrinsecamente relacionado à sua possibilidade de verificação. Ou seja, determinada
sentença só possui significado para quem é capaz de indicar em que condições tal
sentença seria verdadeira, e em quais ela seria falsa. A indicação dessas condições
equivale a apontar as possibilidades empíricas de verificar a verdade ou falsidade da
sentença em questão. Deste modo, as afirmações da filosofia idealista ou metafísica são
excluídas das proposições que contribuem para a questão do conhecimento; seus termos
centrais, tais como "ser" e "nada", dada sua generalidade e ambiguidade, não são
passíveis de verificação, o que torna as sentenças destas filosofias sem significado. Os
enunciados metafísicos, segundo esta concepção, não são verdadeiros nem falsos, pois
carecem de sentido. O sentido para eles é sempre o sentido lógico no sentido lógico do
termo. Dizendo assim parece que algo como sentido lógico já está dado como
evidente por si mesmo. Resta saber se é possível determinar o princípio lógico da
produção discursiva da ciência a partir de paradigmas consagrados. É preciso investigar
mais radicalmente as motivações dos sistemas totalitários, pois a ciência é uma
produção humana e não algo já dado no mundo das ideias. O que leva um grupo de
cientistas autorizados a conceber critérios epistemológicos universalmente válidos para
o exercício da ciência verdadeira? Sem negar a competência de quem quer que seja, há
algo de perverso no Círculo Lógico que se pode questionar e suspender por amor
justamente à verdade. Ah! A verdade... O que é a verdade? Uma verdade é uma
verdade sempre lógica, propositiva, verificável, falsificável? E a falsificabilidade de si
mesmo, quem porá à prova sua própria legitimidade?
Isso também significa que qualquer forma não pública de conhecimento não
pode ser considerada um conhecimento epistemológico válido. A ciência neste caso é o
instituído e burocraticamente funcional, semelhante às instâncias legislativa, judiciária e
executiva do estado. A ciência é um organismo burocrático com suas regras e cortes
específicos, com sua grade de classificação definida, com seus critérios hierárquicos e
seus procedimentos de verificação e validação. Nesta perspectiva, todo o saber que
escape ao crivo do positivismo lógico é considerado como metafísico e, como tal,
insignificante em relação à verdade científica. Aqui o mundo é vivido na visada
32

monológica e hegemônica da verdade construída empiricamente: um eterno jogo de


proposições, consolidações e deposições de paradigmas ou modelos lógicos verificáveis
em experimentos validados pelos membros do Círculo Lógico. Um jogo nitidamente de
cartas marcadas e de prepotência intelectual.
A questão da verdade é sempre polêmica, sobretudo porque imaginar que possa
existir uma “verdade” que só alguns especializados e privilegiados podem ter acesso e
usufruto é no mínimo desconhecer o princípio da heterogênese de todo fenômeno vital.
É pretender moldar com suas marcas e estruturas as formas singulares abertas, impondo
um determinado princípio de realidade como absoluto e indiscutível e controlando a
perpetuação (repetição) e manutenção do mesmo. É também algo assim que David
Bohm e David Peat (1995) denunciam ao dizerem:
No começo deste livro afirmamos que a ciência, que em princípio é
dedicada à busca da verdade, tende a ser capturada pela necessidade, o que
conduz ao jogo falso e bloqueamento da criatividade. Vemos agora claramente
que as assunções de necessidade absoluta, com a sua predisposição para a
rigidez inamovível, são apenas uma parte do muito mais vasto espectro de
respostas semelhantes que impregnam toda a sociedade. Os princípios gerais, os
valores e assunções, que deste modo são tidos como de necessidade absoluta,
são uma das maiores causas da má-informação destrutiva que polui a ordem
generativa da sociedade. (BOHM & PEAT, 1995, p. 313)

No pensamento de Bohm e Peat há um reconhecimento de que o sistema da


ciência regular está em direta conexão com as formas do comportamento das sociedades
humanas e de que a ciência com seus regimes e tentáculos tem sido impedidora da
ordem generativa que deveria marcar toda atividade científica em sua dinâmica
investigativa aberta e criativa. Seria este traço marcante da atividade científica instituída
algo irrevogável?
O que, então, esperar de um conceito de epistemologia enrijecido quando se tem
diante a tarefa de tornar o humano um ser plenamente desenvolvido em suas
possibilidades? Não está na hora de uma ciência que dê conta da gestão humana e seus
projetos futuros? Uma ciência que não se limite à testabilidade, à refutabilidade e à
falsificabilidade?
Epistemologia, então, aqui não significa o mesmo que a reificação do construto
teórico acerca da validade e verificabilidade da ciência experimental e sim a ciência que
diz respeito ao ser humano em seu modo de ser aberto ao acontecimento generativo e
criador. Um conhecimento que é uma partilha e uma doação ao cuidado partilhado. Isto
não significa a inexistência de uma epistemologia que pretende determinar e controlar o
33

princípio de realidade como uma verdade científica. Mas não é desta epistemologia que
se fala. Precisamos, pelo contrário, de uma ciência da nossa condição ontológica como
campo de relações vivas e instantes, sem apegos a fórmulas que cegam a visão e
impedem a compreensão articuladora que liberta de todo jugo externo e interno,
autoproduzindo-se em sua própria luz.
Epistemologia do Educar Transdisciplinar é, pois, uma construção da ciência da
consciência da consciência e da inconsciência, que diz respeito à comum-
responsabilidade da espécie humana em relação ao seu futuro e à qualidade de sua vida.
A potência heterogenética da espécie reclama uma condução saudável de suas
possibilidades como fazedora, conhecedora e inventora de si mesma, na perspectiva da
autossustentabilidade. É preciso reunir e não separar, congregar e não discriminar,
distinguir e não hierarquizar; reconhecer as diferenças e não impor verdades
indiscutíveis, estabelecer linhas dialógicas contínuas com todos os níveis de realidade
passíveis de descrição e reconhecimento nominativo e conceitual e não regular os
modos de ser pela maquinação heterônoma e separatista, monológica e não dialógica. A
autonomia humana partilhada é o desafio da presente Epistemologia do Educar
Transdisciplinar.
E porque precisamos de uma ciência que nos permita aprender a ser plenamente,
a epistemologia do educar aqui constituída é uma resposta positiva aos anseios de uma
humanidade que reclama por outra consciência abrangente de si, sem a perda do que é
próprio da condição ontológica humana: a abertura para o aberto. Por incrível que possa
parecer, continuamos como espécie almejando o alcance de uma sabedoria não
intervencionista, que possa permitir o florescimento de uma humanidade mais elevada
espiritualmente, despojada das infra e superestruturas ocluentes de todo saber-viver
vívido.
O desafio é, portanto, o desenvolvimento humano compatível com o éthos
abrangente e amoroso do cuidado de si, do outro como oikós ambiental, social e mental
– da morada comum nos planos individual, social e eco-noológico.
David Bohm e David Peat (1995, p. 150-156) ao tratarem da relação entre ordem
e categorias afirmam que para compreender a possibilidade da emergência criativa de
uma nova ordem, é necessário examinar em profundidade toda a noção de ordem, o que
pode vir a ser feito de muitas maneiras. De qualquer modo, será sempre necessário usar
34

de certas categorias e definições (reduções) para tratar de qualquer assunto ou objeto em


profundidade.
Para Bohm e Peat, a noção de ordem associa-se a uma série de diferentes
situações e contextos, como por exemplo, a ordem numérica, a dos pontos numa linha, a
ordem do espaço e do tempo, aquela do movimento de uma partícula através do espaço,
a ordem do funcionamento de uma máquina, etc. Entretanto, a ordem não se restringe a
sistemas mecânicos ou inanimados, há também a ordem nos organismos vivos, a ordem
da linguagem, do pensamento, das artes, a ordem social. Nesta proporção, tudo aquilo
que fazemos ou deixamos de fazer pressupõe uma espécie de ordem. Nestes exemplos a
noção de ordem se mostra muito ampla para poder ser abarcada em uma definição
completa. Os autores citados começam sua análise da ordem a partir do modo como ela
é pensada e percebida na atividade humana.
Imediatamente a análise mostra que nossas primeiras noções de ordem
dependem da capacidade de perceber similaridades e diferenças. Há provas de que a
visão que temos das coisas, e isso também se dá em relação aos demais sentidos, é
resultante de um processo seletivo de semelhanças e diferenças. Tal acontecimento pode
ser demonstrado em numerosos experimentos laboratoriais e ilusões óticas. Entretanto,
cada um por sua conta pode experimentar diretamente a fenomenologia do olhar, assim
como a fenomenologia de qualquer sentido. Quer dizer, cada um de nós pode
diretamente observar o seu campo de visão e, assim, descrever a estrutura de
homologação por semelhança e diferença, por percepção lateral e por foco seletivo, o
que permite compreender a percepção como um conjunto de intensidades difusas e
focais simultaneamente, sempre a partir do ponto de vista de quem percebe – o
observador. O campo perceptivo é constituído de muitos pontos congregados e
condensados e se dá como um fluxo contínuo de intencionalidades3. Isto significa dizer
que o perceber é de per si um ato consciente, compreendendo-se consciência como a
efervescência do ser em situação, perpassado pela emergência de ter que ser
autopoiético, no sentido preciso de sua existência viva e continuamente autoprodutiva
do seu estado existencial, pela conjugação de muitos níveis e planos de realidade.

3
Lembro aqui que o termo intencionalidade é uma das palavras e conceitos
fundamentais da Fenomenologia de Edmund Husserl, que investigou justamente os atos
intencionais e sua constituição pelo reconhecimento de suas diversas camadas e
preexistências materiais e simbólicas.
35

A analítica fenomenológica da percepção deve acontecer, portanto, em cada


pessoa interessada em investigar a si mesma. O que significa também investigar a
totalidade vivente a partir de uma situação limite – o ponto de visada do investigador
no contínuo espaço-tempo. Façamos, então, uma descrição atentiva de nossa própria
percepção visual, apenas como exemplo da implicação investigativa a partir de si
mesmo, pois este ato investigativo pode se estender em todos os sentidos e direções.
Precisamente, estou convidando a quem se sentir implicado a tomar consciência de que
o exercício fenomenológico é a base de consistenciação de toda episteme corrigida na
prática investigativa radical. O que é, então, a percepção visual?
Olho para um ponto fixo. O que acontece. Nosso sistema ocular se configura
como campo perceptivo-projetivo. Toda percepção é uma projeção do percebido no
âmbito do percepto (visual, tátil, olfativo, gustativo, auditivo). Funciona como um cone
cujo vértice é o ponto de origem da visada, que se abre em um plano de imanência de
difusão de si mesmo, em uma analogia invertida, o que parece dentro é fora e o que
parece fora é dentro de si. Há, então, uma espécie de lente que faz a correção do
percebido conectando-o ao ato de ler os sinais do percebido processados pelo cérebro e
formados como atos mentais autônomos e interdependentes em sua conjuntura. O
cérebro é um organismo formador da mente e a mente é consciência. A consciência,
assim, encontra no cérebro sua morada operatória, computacional, seu manancial de
possibilidades materiais que são na verdade imateriais por constituição e consistência. A
materialidade é uma formação da imaterialidade. Apesar de parecer clara, esta
afirmação nos coloca diante de um salto transquântico que requisita de cada um a
experiência própria e apropriada. Esta não é uma afirmação leviana. Ela surge como
intuição articuladora resultante de muito trabalho e da reunião de muitas vozes, de
infindáveis presenças, de inumeráveis gerações de luminares do conhecimento da
humanidade, em suas diferentes formas culturais e espirituais, em suas diversas estéticas
e em seus diversos modos éticos. Tudo confluindo na unidade de tudo com tudo, sem
reduções, sem fôrmas privilegiadas, sem centros hegemônicos.
A descrição de todos os planos e níveis de nossa constituição humana é um
exercício fenomenológico intenso, e deve ser realizado por cada um em sua busca
filosófica própria e apropriada, pois cada um é tudo e tudo é cada um. Façamos um
breve exercício fenomenológico da visão. Observemos a figura abaixo:
36

Trata-se, sem dúvida, de uma figura/imagem como outra qualquer. Eu a escolhi


porque ela aciona o fenômeno da ilusão ótica e serve-nos para mostrar a estrutura da
percepção visual como campo perceptivo transfocal, interfocal, polifocal, multifocal,
monofocal simultaneamente. Quero indicar com estes termos para a complexidade do
fenômeno da visão, pois a visão é transfocal, interfocal, polifocal, multifocal e
monofocal ao mesmo tempo. Esclarecendo, o ver se constitui de muitos níveis
elementais que reunidos produzem a focalidade como fluxo intencional contínuo. A
focalidade é em si mesma uma transfocalidade, porque o “foco” não é apenas o que é
focado, mas também o modo como cada coisa focada entra no foco. O foco, portanto,
transpassa todas as possibilidades do campo da visão e tem uma sobra ou elemento
contraditório em si mesmo. Todo foco pressupõe a escolha de um ponto de vista. Todo
ponto de vista tem um ponto cego. E o ponto cego somente é compreendido através da
análise da visão em sua transfocalidade. O ver é também interfocal, porque só ocorre
pela interação de focos e pela interface de focos. É também polifocal porque pode
abarcar de diferentes focos o fenômeno visual em suas possibilidades. É também
multifocal porque compreende uma multiplicidade de pontos de vista na visada dos
objetos. E é também, finalmente, monofocal, porque a visão é sempre visão de alguma
coisa selecionada ou focalizada, sem a perda da totalidade do campo visual.
37

De qualquer modo na percepção visual há o contraste entre um fundo e uma


figuração. Por exemplo, se a mesma figura apresentada no início deste aprofundamento
fenomenológico for esmaecida ela se tornará imprecisa para aquilo que desejo
apresentar como caminho para uma vivência própria da estrutura da percepção visual. O
que também pode ser estendido como exercício fenomenológico para todos os sentidos,
assim como para todos os níveis de nossa constituição complexa, inclusive aqueles
níveis que possuem outros sentidos de captura e processamento além dos cinco sentidos
normais. Vejamos a imagem esmaecida abaixo:

É a mesma imagem com intensidade diferente, provocando uma percepção


diferente da anterior em seu caráter monocromático. Intensidades diferentes em um
mesmo campo imagético. Caso eliminemos todo contraste não aparecerá nenhuma
figura, mas apenas o branco, Se, pelo contrário, escurecermos 100% a imagem ela
alcançará o outro extremo limite da percepção visual, em que nada se distingue. O
campo da visão, assim, é a totalidade de suas possibilidades dentro de limites
predeterminados nos próprios sensores e conectores da visão, que é em primeira
instância um acontecimento cerebral-mental. Pois tudo o que foi descrito e pode ser
descrito já se encontra inscrito no ato de descrever e compreender algo como algo, em
seu aparecer e em sua aparência, Tudo o que se pode saber e conhecer se encontra por
inteiro no próprio fenômeno.
38

A visão, entretanto, é dependente de um elemento fundamental: a luz. O que


produz a visão como ato consciente constitui-se de sensores fotónicos – o meio sensível
de apreensão dos fótons (partículas, ondas) de luz segundo suas intensidades
específicas, sempre a partir de fótons. O fenômeno da refração, anáclase ou difração do
raio de luz esclarece este aspecto fundamental do ver a partir de sensores complexos
fotoelétricos (orgânicos) que fornecem os meios para a tradução cerebral do percepto
visual. E isto utilizando as difrações, anáclases ou refrações sensíveis como correlatos
39

da percepção visual de coisas e objetos materiais e simbólicos, segundo a intensidade


luminosa captada pelas fotocélulas oculares. Ora, se a difração da luz pode ser descrita
como a passagem de uma onda pela borda de uma barreira qualquer ou também através
de uma fenda ou abertura de uma superfície, provocando, em geral, um alargamento ou
diminuição da frequência do comprimento de onda e da interferência das frentes de
onda refletidas, isto também aponta para o dado de que a percepção visual é um
fenômeno fotônico. Sem fótons não há visão. E o que é mesmo um fóton e por que a
visão depende de fótons?
Os fótons da luz visível afetam os sensores da visão, mas a visão não é capaz de
ler os fótons emitidos pelos raios X. Os fótons são produzidos pelo movimento dos
elétrons nos átomos. Os elétrons se distribuem ao redor do núcleo atômico em
diferentes níveis. Quando um elétron passa para um orbital menor precisa receber
energia e quando passa para um maior precisa doar a energia recebida. Esta liberação da
energia recebida se dá em forma de fóton. A energia do fóton depende do nível da
queda dos elétrons entre os orbitais. Para a liberação dos fótons tem que haver a
combinação com a diferença de energia entre as duas posições do elétron. Caso essa
diferença seja pequena demais o fóton não terá força para deslocar elétrons entre os
orbitais. A seguinte imagem representa uma aproximação do fenômeno de produção do
fóton de luz.
40

Entretanto, essa representação do fenômeno da produção dos fótons de luz é


muito reduzida para dar conta do que de fato ocorre na percepção visual humana. O
átomo é uma infinitésima estrutura presente em toda parte em diferentes situações de
frequência e intensidade. Todo átomo se constitui de um núcleo que delimita o seu
comportamento eletromagnético? O núcleo de cada átomo é uma “caixa de ressonância”
eletromagnética? Tudo é feito de átomos? O átomo é luz em estados de desaceleração?
Os choques entre átomos produzem a irradiação fotónica? A luz é partícula ou onda, ou
a luz é partícula e onda? O que é uma partícula? O que é uma onda?
No encaminhamento desse exercício fenomenológico que tem o percepto visual
como foco intencional investigativo, vai-se abrindo um amplo conjunto de outras
complexificações compreensivas. Esse acontecimento já é um salto quântico
considerável. O esforço se concentra na elucidação do que se pode compreender
articulando tudo com tudo e distinguindo tudo segundo sua consistência presencial e
seus limites de complexidade. Cada coisa tem o seu limite de complexidade. Nosso
percepto visual tem um limite previamente determinado pelos sensores de captura
fotoelétricos orgânicos que constituem o aparelho da visão e que estão programados
para identificar apenas uma pequena faixa do espectro de luz.
Entretanto, só se pode afirmar algo assim graças à intuição prévia da unicidade
da Luz, não dizendo com isto que a descrição da luz alcance a Luz em si mesma e por si
mesma, e sim que o que é visível é compreendido pelo que é invisível. Trata-se do salto
da consciência que reúne em si todos os perceptos, afetos e conceitos. Se há o fenômeno
da visão é porque há a consciência do ver. Ter consciência é o mesmo que ter visão que
é a compreensão de algo como algo, sem que tal acontecimento seja decorrente de uma
experimentação empírica linear ou que seja dependente de uma dedução última das
coisas mesmas, ou da somatória de partes computadas corretamente. Nossa consciência
parece ser um órgão sintetizador de perceptos, afetos e conceitos, um meio universal de
conexão e sentido entre as partes, mas que comporta um elemento antagônico que nega
a conectividade e o sentido de tudo com tudo. Esse elemento antagônico, entretanto, é
constitutivo de tudo o que é não podendo ser descartado ou negado. Contudo, não se
deveria associar a função negativa com qualquer juízo moral de bem e de mal. O
negativo é sempre aquela parte que se opõe ao afirmativo. Ora, então, a depender do
polo a negação será sempre o seu oposto. Assim, a negação da vida é a morte, e a
41

negação da morte é a vida. A vida é para a morte o lado negativo, e assim parece ser em
todos os pares de opostos.
Essa compreensão esclarece como não se deva confundir a negação de algo
como o lado sombrio e maligno. Pelo contrário. Então, quando se diz que os elétrons
possuem cargas negativas não se quer dizer que eles são malignos. O negativo indica
para o meio universal da passagem de fluxos energéticos atômicos. Em outras palavras,
os elétrons não possuem cargas estáveis de energia, e são como os sensores de toda
transmissão e propagação da informação atômica e quântica. Por isso eles são
“negativos”: são atratores de energias advindas de outros átomos e mediadores de
informações pela produção de fótons. Como é que algo assim tão precioso pode em
algum momento ser considerado negativo em oposição a um positivo? Os elétrons são
os grandes mediadores da inteligência cósmica. Sem a mediação de elétrons não poderia
haver comunicação e linguagem, codificação e processamento de informações,
computações cerebrais e cogitações mentais. Mas esta é uma questão que será
esclarecida mais adiante.
Voltemos à Luz. A figura abaixo é uma representação do espectro de luz que
evidencia como a nossa percepção visual limitada não impede a compreensão da luz em
seu espectro invisível, o que significa que nossa visão vê além do visível apesar de
nosso olho só poder ver nos limites do espectro da luz visível. O contraste do campo de
visão é uma negação antagônica da própria visão, mas é como se a visão não pudesse
ver sem a não-visão.
42

Penso. Nossa consciência tem muito da visão para quem tem visão. Mas a visão
da consciência é também uma audição e um tato, um palato e um olfato. A visão é
também uma das dimensões perceptivas da consciência, e a consciência mesma é uma
visão. Mas a consciência também é audição e os demais sentidos. Além disso, a
consciência não é apenas um reflexo dos sentidos, porque ela também é afeto ativo e
conceito. De que é feita, então, a consciência da visão e de todo percepto? É a
consciência uma forma de substância corporal? Pode existir consciência sem corpo?
A fenomenologia da visão tomada como pretexto para se falar das estruturas
elementares da Epistemologia do Educar Transdisciplinar convida-nos a realizar em nós
mesmos o rigoroso movimento de investigação e vivência da consciência da
consciência e da consciência da inconsciência em todas as direções e sentidos. Assim
como nosso campo de visão é constituído de relações de similitude e diferença, de
contraste e convergências, de luz e sombra, nossa consciência é necessariamente
proporcional aos limites de nossa corporeidade. Mas, não acredito que a consciência
seja uma substância que se possa localizar em algum ponto do cérebro. Muito mais do
que substância ela é um fluxo contínuo de cheios e vazios, de idas e vindas, sempre
irreversíveis, pois ligadas ao tempo em sua expansão evolutiva acima de todo
acabamento e de toda totalização absoluta pretendida pela limitada razão humana.
A fenomenologia da visão nos instiga a ver além do visível que é em si a
consciência intencional da visão e nos ensina a reconhecer o ilusionismo da visão como
um construto complexo envolvendo diferentes estratos e diferentes níveis de
complexificação e organização/desorganização do percebido. Por exemplo, a figura
abaixo apresenta uma ilusão ótica derivada da composição dos quadrados e retângulos
superpostos, o que provoca a impressão de que as linhas horizontais não são retas.
43

Esse fenômeno revela um princípio fundamental da visão que é o da figuração


por relações de vizinhança e contraste/semelhança. De qualquer modo, nossa visão é
sempre configurada por ilusões necessárias, sem as quais não seria possível visualizar
nada. A correção ótica necessária para se poder enxergar uma imagem com nitidez é um
complexo movimento imaginativo fixado pelo conjunto de relações da consciência
intencional. Toda consciência visual, assim, é uma consciência que resulta de uma
ampla constelação de variáveis e condições específicas já existentes e organicamente
relacionadas à deriva cósmica do tempo em sua historicidade e irreversibilidade. A
imagem provoca na direção de como toda percepção visual é a produção de uma ilusão,
no sentido de um permanente busca de ordem.
Aprofundando um pouco mais o fenômeno da luz, pois no final das contas nossa
visão é produzida por sensores eletromagnéticos semelhantes aos leitores óticos das
ondas de luz, é importante destacar a historicidade do conhecimento sobre a luz para
compreendermos como a nossa consciência perceptiva é instruída pela sua história eco-
sócio-genética-noológica4. Este dado amplia nossa compreensão de que é preciso
investigar os dados imediatos da consciência para que se possa avançar em uma
expansão de consciência própria e apropriada. Nesta expansão já se compreende a
irreversibilidade temporal como um fator da evolução cosmológica, incluindo a espécie
humana como um holograma da totalidade vivente. Nesta direção investigativa, o que
importa deve saltar por cima das partes e alcançar a atenção ao instante conjugado.

4
Esta expressão reúne os planos ambiental (eco), social, genético e mental
(noológico) do fenômeno consciência e conhecimento e da consciência e da
inconsciência.
44

Aprende-se, assim, que precisamos ionizar5 a investigação epistemológica do


conhecimento do conhecimento. Precisamos aprender a praticar a atitude investigativa
radical, pela abertura de consciência que recolhe tudo na unidade do feixe de luz como
metáfora ou holograma da criação humana em suas potências lucíferas. Ver além da
visão, perceber no percebido o imperceptível. Acolher a visão como visão. Aprender
com ela o tempo da consciência de si como abertura para o salto liberador.
Na história da ciência, a luz foi concebida inicialmente como uma espécie de
corrente constituída de partículas minúsculas, invisíveis e indivisíveis. Átomo é o nome
grego dado às invisíveis partículas que a tudo constituíam e que seriam indivisíveis,
provavelmente por Leucipo de Mileto (VI século a.C.) e posteriormente por Demócrito
de Abdera (470 a.C. – 370 a.C.) A palavra “fóton” está associada à teoria das partículas
ou teoria atomista da luz. Somente no final do século XVII o físico Christian Huygens
apareceu com a hipótese de que a luz atuava como uma onda e não como uma corrente
de partículas. Thomas Young em 1807 retoma a teoria de Huygens e consegue mostrar
em um experimento que a luz se espalha como uma onda. Isso define um raio de luz
como uma irradiação para fora, uma expansão, portanto, que se dá em ondas
eletromagnéticas que se tornam mensuráveis segundo o comprimento de suas
frequências em um determinado intervalo de tempo.
Partícula ou onda, ou onda e partícula, a investigação da luz ganha com Albert
Einstein um novo avanço, quando em 1905 ao estudar o efeito fotoelétrico da luz
ultravioleta chega à conclusão de que a luz era constituída de pacotes de energia que ele
chamou de fótons. Seja partícula, seja onda ou ainda onda-partícula, a luz é um
fenômeno muito mais complexo do que as simplificações descritivas já existentes sobre
ela. Tais informações são importantes. Porém, mais importantes do que essas
informações são os termos da nossa compreensão articuladora de todos os dados e
partes do fenômeno Luz.
A teoria das ondas eletromagnéticas é tida como mais apropriada na elucidação
do que os nossos olhos podem ver. Já a teoria dos fótons de Einstein é mais apropriada
para a investigação atômica, o que é bem mais abrangente e complexo. Uma onda
eletromagnética pode encontrar um correlato expressivo nas ondas de água. Já o
conceito de Einstein supõe o comportamento da luz em sua estrutura primária

5
Com a expressão ionizar quero indicar algo semelhante ao que ocorre com a
produção de íons que caracteriza a dinâmica das partículas atômicas.
45

autogerativa, o que não nega a sua propagação como onda. A imagem das ondas na
água é a mais precisa. A água é em si mesma um meio inerte. As ondas em sua
superfície são energias que viajam através da água. Desse modo, a energia viaja pela
água na forma de onda, significando que ela viaja em qualquer meio que não obstrua a
sua passagem, do mesmo modo, em ondas. Uma onda de água é formada por moléculas
que vibram para cima e para baixo como uma marola, fluindo na direção do movimento
da onda, em geral a força eólica em sua corrida direcionada, como mostra a primeira
figura abaixo. Mas pode também ser causada por qualquer outra força que provoque
alterações na água, como uma pedra lançada formando ondas concêntricas até a
exaustão da força, como mostra a segunda imagem abaixo. As areias do deserto e as
nuvens também são meios através dos quais o movimento das forças eólicas se tornam
visíveis, como se pode apreciar nas duas últimas figuras da sequência abaixo.

Imagem - Onda do mar

Imagem – Ondas do choque de um corpo com a água, semelhante à progagação das ondas sonoras pelo ar
46

Imagem – Ondas nas areias do deserto

Imagem – Ondas nas nuvens


Qualquer fonte de energia viaja como onda no meio de sua propagação. A luz é
uma fonte de energia que se propaga como uma onda, a partir de sua emissão fotónica?
A luz de uma fonte luminosa como o nosso sol viaja pelo vácuo livremente em forma de
onda, há uma velocidade de 300.000 km/s de sua emissão fotónica, até encontrar corpos
que a desviam e absorvem em forma de onda e calor. O atrito da luz com os corpos
densos produz energia calorífica porque excita os átomos em equilíbrio estático,
produzindo “trabalho”, acumulando e liberando calor. Será?
Foi graças a este conceito que a luz pôde ser medida e estimada em sua
velocidade constante, quer dizer, em sua frequência eletromagnética contínua, assim
como outras forças. Como se diz na física, todas as ondas são energias viajantes que
dependem de um meio para se moverem. A luz é um tipo de onda bem mais complexa,
a começar do dado de que não necessita de um meio climatizado para se deslocar, pois
viaja no vácuo. Uma onda de luz é uma energia eletromagnética, possuindo campos
elétricos e campos magnéticos correspondentes.
A radiação da luz é eletromagnética, tanto ela é composta de elétrons que
liberam fótons em ondas elétricas como possui o magnetismo inerente aos corpos
atômicos, que variam de densidade e complexidade, como mostra a escala dos
47

elementos atômicos conhecida pelo perspectivismo humano que tem se ampliado de


modo surpreendente com o desenvolvimento moderno da ciência bioquímica. A luz
também é um fenômeno atômico. Tudo no universo é feito de átomos. Resta, porém,
sempre investigar: o que é primeiro, o átomo ou a luz, ou o átomo e a luz
conjuntamente? A luz visível ao olho humano é apenas uma parte do espectro
eletromagnético. Uma especialização seletiva que consiste na qualidade da visão dentro
de limites dados desde uma origem ou não origem, não importa.
As atuais próteses da visão que permitem ver no escuro são construídas de
células fotoelétricas e químicas que capturam a radiação atômica dos objetos. Ora, o que
é a radiação atômica dos objetos? Parece ser a produção de luz própria em diversas
gradações temporais. O que o olho humano não está programado para alcançar, a
prótese de olho com visão dos raios-x permite ao humano ampliar a sua percepção dos
fenômenos visuais. Essas próteses podem ainda ser construídas com o uso da captura de
ondas sonoras que são traduzidas em imagens. As micro-ondas também podem ser
captadas de um ambiente e transformadas em imagens visuais aproximadas. Seria,
assim, possível imaginar no futuro a espécie humana natural dotada de visão de Raios-
X, como algo incorporado em sua programação genética? Este fato nos colocaria diante
da abertura ontogenética da espécie humana e de toda a cosmogênese instante?
Pensemos demoradamente na possibilidade assinalada. Parece não haver dúvida
acerca da evolução da vida. Ficou evidente a impossibilidade de se poder prever
qualquer tipo ou forma de finalismo cosmológico ou de determinismo absoluto. A
imagem do salto quântico é feliz na indicação de um fenômeno que não se explica por
uma causalidade linear e previsível, mostrando-se como um quantum de energia, um
salto de potência fora de qualquer explicação determinista, mas algo que se mostra em
uma mudança de perspectiva compreensiva e amplia o plano de imanência da
autoconsciência da espécie. Em síntese, toda a evolução da vida desde o suposto
momento primeiro é algo que não conhece ocaso, mas conhece transformação e
renovação contínua. Não há nada de concluído na espécie-humana, apesar de sua
estabilidade genética natural. As possibilidades inerentes ao ser humano em seu
caminhar histórico são infinitamente complexas e desconhecidas. No máximo
abarcamos uma pequena zona de articulação compreensiva, semelhante ao nosso
limitado campo de visão, e por isso mesmo não deveríamos permanecer na ilusão de
que o nosso saber é claro, distinto e absoluto.
48

Mais do que certezas acabadas, todo o esforço da presente Epistemologia do


Educar segue o fluxo da expansão de nossa consciência constelada e da abertura para a
comum-responsabilidade de todos com tudo: um aprender a ser que é uma construção
onto-sócio-eco cosmológica, criadora, conservadora e transformadora simultaneamente,
em diferentes contextos e momentos do tempo-espaço contínuos, além do espaço-
tempo.
Pensando a partir dessa abertura compreensiva, posso imaginar o átomo como
uma partícula de luz em determinado comprimento de onda, portanto como uma função
de onda consistentemente determinada. É como se tudo se constituísse de infinitésimas
partículas fotónicas autogerativas que estão presentes na estrutura atômica, a partir da
explosão/expansão temporal da presente deriva cósmica que tem início, segundo o
cálculo humano a partir do grande Big Bang há aproximadamente 15 bilhões de anos
atrás. Isto pode indicar algo importante na compreensão quântica das estruturas
elementares. E justamente por isso podemos aprender a não reduzir a luz ao campo do
que o cérebro humano vê através de suas células fotoelétricas e seu espectro de captura
das ondas eletromagnéticas.
Poder-se-ia afirmar que tudo é originariamente luz? Este seria um conceito
válido para a investigação fenomenológica geral?

Ora, a luz é atômica. Todo átomo é um derivado da luz ou toda luz é um


derivado atômico? O que vem primeiro, a luz ou o átomo? No átomo não existe nenhum
tipo de matéria densa, apenas forças formadoras de campos eletromagnéticos. Mas não é
este justamente o princípio da formação dos corpos densos, que só são densos na visada
de nossa percepção comum, mas que são grandes vazios em sua efetiva constituição
atômica? O desenho do átomo tal como é conhecido nos estudos de química ou
bioquímica é uma espacialização aproximada do seu campo de força formado por um
núcleo, subdividido em prótons e nêutrons e os elétrons que giram alucinados ao redor
do núcleo, como mostra a figura conhecida de todos abaixo.
49

Cada uma das partes do átomo é constituída de outras partículas ainda menores.
E por isso a figuração do átomo anterior é um esquema abstrato que não ajuda nenhum
iniciante nos estudos atômicos a imaginar com mais propriedade o átomo em sua
natureza pulsátil contínua e eletrostática, cujo equilíbrio permite a conjugação atômica
sem limites.
A representação do átomo desse modo estático-estrutural foi uma descoberta-
invenção do físico inglês John Dalton, no início do século XIX. Inicialmente o átomo
foi imaginado como uma partícula sólida indivisível. Entretanto a descoberta-invenção
da radioatividade colocou o modelo de Dalton em questão, pois se observou que os
átomos perdem partículas em forma de radiação. Coube ao neozelandês Ernest
Rutherford a mudança do modelo inicial, ao construir um modelo de átomo em que as
partículas negativas (elétrons) giram em torno do núcleo composto de partículas
positivas e neutras, os prótons e os nêutrons respectivamente. A associação com o
sistema planetário foi inevitável. Para ele os elétrons gravitavam em torno do núcleo
como planetas ao redor do sol. Mas foi o dinamarquês Niels Bohr que aperfeiçoou o
modelo de Rutherford, indicando que os elétrons se encontram girando em alta
velocidade ao redor do núcleo. Para Bohr, a distância entre os elétrons e os prótons
permanece constante devido à ação de forças eletrostáticas, mantendo em repouso os
corpos portadores de carga elétrica.
Entretanto, a visão que se tem hoje do átomo é bem mais complexa. Os elétrons
não são mais associados à microplanetas que giram ao redor de um núcleo, mas sim a
objetos quânticos que não são semelhantes a pontos e nem circulam em trajetórias
previsíveis e definidas. Os elétrons não têm posições precisas e sim difusas. Por isso são
descritos como uma “função de onda” que determina a probabilidade de sua presença
num dado local e num determinado instante, o que pode não ser bem assim. A
representação atual dos elétrons o configura como nuvens ou orbitais de densidade
mediana aparentemente fusiformes. A figura abaixo expressa com propriedade essa
imagem quântica do elétron. Suas órbitas são tridimensionais e elipsoidais.
50

Compreende-se hoje que a dupla função onda / corpúsculo, comum em outras


partículas, não é adequada para descrever a trajetória dos elétrons. O conceito de onda
foi construído a partir da observação dos fenômenos eletromagnéticos através de meios
macrofísicos como a água, as areias do deserto, as nuvens, a atmosfera do planeta etc. O
que implica na variação do fenômeno ondulatório, algo como uma “atmosfera” que
vibra com a passagem de energias eletromagnéticas ou mecânicas, de modo semelhante
às ressonâncias e dissonâncias dos sons nos objetos. A sensibilidade dos meios em que
uma força viaja é fundamental para que o fenômeno ondulatório possa ser
compreendido em sua tipologia ondina. Entretanto, um elétron não se comporta através
de um meio sensível dependente do equilíbrio de forças gravitacionais fortes ou fracas,
e sim como uma complexa estrutura interna com capacidade de produzir fótons e outras
partículas do espectro quântico.
Atualmente o elétron está sendo descrito como um objeto virtualmente discoide
e unidimensional constituído por duas cargas desiguais situadas nos extremos de um
eixo virtual. Seria feito, assim, de dois polos, um visível e outro invisível. Pela
desigualdade das cargas há produção de movimento rotatório com um momento angular
ou spin. Quando projetadas para o exterior, as duas cargas formam com suas rotações
um movimento helicoidal. Supõe-se que um desses dois movimentos é o principal sendo
desse modo considerado o autor do aparente movimento ondulatório. Nessa perspectiva,
acaba a ambígua dualidade onda-corpúsculo. Hoje já há mais clareza em relação às
interferências ondulatórias do elétron. Estas estão sendo consideradas como um
51

corriqueiro fenômeno de interferência estrutural interna do próprio elétron em sua


estrutura bipolar, e já se vem supondo que esta estrutura bipolar está na base de todas as
partículas elementares do universo. É tudo isso apenas imaginação humana? E poderia
ser de outro modo?
Vou aprofundar um pouco mais a descrição que hoje encontramos para os
elétrons atômicos, porque elas bem mostram como tateia a nossa imagem dos limites da
compreensão física e químico-física-biológica dos fenômenos. O elétron está sendo
imaginado e redesenhado, como indiquei acima, como dois pontos independentes de
objetos materiais que formariam com suas distâncias um disco plano e virtual. Diz-se,
então, que os dois pontos ou estruturas do elétron são mantidos reunidos por uma troca
de energias desiguais. A variação de intensidade energética entre os polos extremos do
elétron não passaria de uma troca ou deslocamento de uma única energia invariável,
sem acréscimo externo de potência. Esta estrutura seria comum de outras partículas
quânticas como os gluões entre os quarks, que são as menores partículas luminescentes
encontradas no átomo até o presente. E como tudo se amplia e parece se expandir, o
limite fica cada vez mais distante e mais abstrato porque se torna invisível e
inalcançável ao limite humano.
Afirmar algo assim não é nada fácil de sustentar do ponto de vista da ciência
regular e normativa vigente, mas é justamente esta forma de compreensão que vem
sendo construída por uma nova geração de cientistas que continuam a usar os métodos
de hipótese e experimentação baseados em rigorosos cálculos matemáticos e
verificáveis ao longo da experimentação devidamente sistematizada e documentada.
Então, esta descrição dos elétrons é a mesma que cientistas experimentais que lidam
com a complexidade estão pensando, imaginando e construindo. Pode até haver alguma
imprecisão em algum detalhe, mas o que está sendo visado com todo este
desdobramento discursivo é uma compreensão articuladora da complexidade do
conhecimento humano e da ciência que se tem agora a necessidade de construir e
modelar. Para muitas mentes brilhantes contemporâneas, os elétrons podem ter se
originado de um campo energético homogêneo durante o próprio Big Bang e deslocados
no espaço do Universo que comporta a existência de objetos bipolares. Segundo esta
visada os elétrons adquiriram a partir daí um movimento de rotação passando de objetos
unidimensionais para bidimensionais devido às rotações. Alcançando em seguida a
tridimensionalidade por um fenômeno denominado de precessão, que significa uma
52

mudança perpendicular do eixo rotatório do disco virtual ou plano do átomo, permitindo


a forma de uma esfera que se compõe de superposições do seu movimento precessório.
A imagem abaixo é uma representação reducionista da rotação precessória do elétron

Na concepção atual em formação, o elétron faz parte de um princípio estrutural


binário. Nessa medida, se chegou a compreender que os elétrons de um átomo têm
níveis energéticos quânticos em números bem definidos, o que explica a razão da
estabilidade atômica. Enquanto objetos quânticos os elétrons tanto são corpúsculos
como pacotes de ondas. Por esse motivo são emissores e receptores de fótons. Diz-se,
assim, que os elétrons são ao mesmo tempo emissores e receptores de informações.
Graças a eles há informação em circulação permanente. Eles seriam os grandes
mediadores eletromagnéticos de todo fluxo e refluxo?
A investigação do elétron tem alcançado configurações inusitadas, como aquela
do astrofísico francês Laurente Nottale (1952), diretor de investigação do CNRS
(Centro Nacional de Investigação Científica) e investigador do Observatório de Paris-
Meudon. Para Nottale o elétron é um objeto fractal e composto por todas as partículas
elementares. Como um fractal, ele muda em função da escala em que é observado. De
perto se mostra coerente. Se olhado com mais proximidade emite e absorve fótons
53

constantemente. Mais de perto ainda ele se revela como criador de pares de elétrons-
pósitrons (a antipartícula do elétron que possui carga positiva). Mais longe ainda
aparecem pares de muons-antimuons6 e assim até onde o olho/cérebro/mente alcança. O
elétron contém, como uma entidade quântica e fractal, todas as partículas elementares
existentes no Universo. Diz-se, assim, que o elétron é responsável por toda a
informação existente no Universo como emissor e receptor de fótons. Todo elétron
encontra-se em um estado quântico determinado e é hoje classificado por quatro
números quânticos e por sua geometria orbital. Os quatro números são os seguintes: n =
1, 2, 3, ... (representando algo como a “energia” ou “nível energético”); 1 = 0, 1, ... N-1
(indicando o “momento angular orbital”, significando que quanto mais elevado for esse
momento mais afastado do núcleo do seu átomo estará o elétron); m = - 1,....,1 (o que
indica o “número quântico magnético”); s = -1/2, + 1/2 (representando o “spin” ou
momento angular giratório). Em relação à sua geometria orbital, sabe-se que os elétrons
são orbitais (p, s, d, etc.) que são os espaços de distribuição de suas cargas elétricas. A
série dos quatro números quânticos (n, 1, m, s) possibilita a identificação do “estado
quântico” dos elétrons.
A partir dessa configuração do elétron, seus níveis energéticos confinados ao seu
átomo são afetados pela interação entre o momento magnético do spin e o momento
angular orbital. Por isso ele pode ser visualizado como um campo magnético
decorrente do seu movimento orbital interagindo com o momento magnético do spin.
Isso pode ser expresso como momento orbital angular, isto é, como um dipolo (+ _) em
que a energia E = L x A x B (sendo L = força do momento angular intrínseco; A =
aceleração produzida pela força L na rotação do elétron; B = deriva do movimento

6
Muons e antimuons são partículas quânticas elementares. O muon é um lépton que
decai para formar um elétron ou pósitron. Léptons e quarks são hoje considerados as
menores partículas da matéria, portanto são tidos como "partículas elementares". Na
atual configuração da física das partículas elementares existem seis léptons
identificados: o elétron, o muon e o tauon¸ cada um dos quais com seu respectivo
neutrino ou antielemento complementar. As diferentes variedades das partículas
elementares são comumente chamadas de "sabores", e os neutrinos ou antielementos
têm sabor distintamente diferente de sues opostos. A palavra muon deriva da letra grega
mu (μ). Portanto, juntamente com o elétron, o tauon e os três neutrinos correspondentes
o muon é reconhecido como um lépton. Como todas as partículas elementares, o muon
tem uma correspondente antipartícula o antimuon (também chamado de positivo muon).
O antimuon é o neutrino do muon. Muons são denotadas por μ - e antimuons por μ +. Os
muons foram muitas vezes classificados como mu mesons no passado, mas a física atual
abandonou essa definição.
54

orbital). E essa história de que os elétrons têm um “spin” (ou força rotatória) é resultado
da imaginação criadora dos físicos holandeses Uhlembeck e Goudsmit, em 1925.
Entretanto, a ideia dos holandeses revelou-se relativamente falsa. De qualquer modo, a
evolução do processo descritivo das partículas elementares parece indicar para uma
infinita modificabilidade conceitual e formal em virtude da mudança dos meios e dos
sistemas de captura das informações cósmicas contidas nas partículas quânticas, o que
nos revela a dinâmica incessante da deriva cósmica da qual pertencemos. Em tudo isso
se mostra uma dimensão capital, que é a interação ou força eletromagnética dos átomos.
É desta interação que toda a matéria cósmica se origina e que toda ordem no meio do
caos insondável se torna relativamente estável.
Do ponto de visada da percepção visual, o conhecimento da estrutura fotónica da
luz e de sua constituição atômica não melhora em nada o órgão da visão que nos
constitui, mas amplia o campo de compreensão da complexidade presente em cada
partícula elementar do Universo. Nossa visão, assim, é um campo especializado bem
delimitado e regular de captura de imagens percebidas pelos atos mentais de quem
percebe. Um campo, entretanto, amplamente sofisticado e impossível de ser confinado
ao seu próprio limite porque se encontra em relação complexa com os diversos níveis
primários de constituição dos fenômenos. E o fenômeno é tudo o que “brilha”, é o
brilhante. O que brilha, entretanto, brilha para o ente que vê o brilho. O fenômeno,
assim, já tem em si a curvatura da luz no seu movimento ao redor de si mesma. O órgão
da visão fornece ao cérebro os sinais fotónicos da imagem percebida, mas sem uma
mente não seria possível compreender o brilho que brilha como o brilhante em toda a
sua extensão. A mente, entretanto, não é uma entidade simples de ser identificada em
seus efeitos e estruturas. A ciência da mente é uma metafísica no estrito sentido do
termo. Para tratar da mente é preciso mudar de nível quântico: sair do percepto e ir para
o conceito. Esta mudança de nível requer potência suficiente para ocorrer. Mas, antes de
tratar deste aspecto da mente mais demoradamente, gostaria de fechar o ciclo da
elucidação fenomenológica da visão brincando um pouco com a cor da luz.

A luz visível é aquela que nossos sensores óticos conseguem ver. Quando
olhamos para a luz visível do sol ela parece não ter cor, o que denominamos de branco.
Apesar de podermos ver esta luz branca, o branco não é considerado como parte do
espectro visível. Isto ocorre porque a luz não é feita de uma única cor ou frequência e
sim de muitas frequências de cores. Por exemplo, quando a luz do sol passa por um
55

prisma de vidro as cores se mostram em seu espectro visível, como no arco-íris. Isaac
Newton foi o primeiro a demonstrar este fenômeno: a luz branca é uma mistura de cores
ou uma mistura de luzes com frequências diferentes. Em síntese, a união de todas as
cores do espectro visível produz a luz branca ou incolor. A ausência de luz resulta na
escuridão. O preto aparece como o contrário complementar da luz branca e pode ser
sintetizado pela cor-pigmento com a mistura das cores primárias e das cores
secundárias. Adicionando várias combinações de luz vermelha, verde e azul, se
consegue produzir todas as cores do espectro visível. É assim que o monitor dos
computadores sintetiza as cores. E é assim que nossos sensores óticos sintetizam as
cores em nossa percepção visual, distinguindo e combinando frequências primárias do
amarelo, do vermelho e do verde, pois a luz é multicolor em virtude de suas variações
de frequência. Todas as frequências reunidas formam a luz branca. O preto reúne
igualmente a totalidade das corres por absorção. No campo visual o preto e o branco são
as frequências visuais primárias e dão a base da configuração tridimensional da imagem
por contraste. A relação figura e fundo pode ser reunida na relação entre preto e branco.
Pode-se ainda usar os termos luz e sombra para indicar o movimento primário de
composição de imagens tridimensionais. Pensando alto, o preto pode ser sombra do
branco e o branco a sombra do preto, assim como o branco pode ser a luz do preto e o
preto a luz do branco. Não há, no acontecimento visual um branco sem preto e um preto
sem branco.

Uma estrutura binária elementar é suficiente para dar origem a um campo visual
tridimensional, e esta binaridade parece constituir todas as partículas elementares que
dão seguimento à composição de tudo o que tem sido desde o início ou recomeço do
que se encontra sendo. A estrutura binária está em toda parte e tudo o que é encontra em
si mesmo um alter-elemento antagônico e complementar, campo de toda possibilidade
gerativa sempre correlacionada com uma totalidade de campos. Pois o elementar é de
ordem quântica e pode se precipitar em possibilidades que se combinam a partir de
acervos de informações já sedimentados e gerados nas derivas cósmicas, mas nossa
visão limitada perde de vista o começo e o fim. É como se tudo girasse a partir de seu
elemento opositor e invisível, justamente por ser o contrário de suas propriedades
quânticas. Assim, o polo positivo é sempre aquele que se encontra estabelecido e
inercial e o polo negativo aquele que engendra um movimento pela ressonância sensível
de suas cordas energéticas contínuas.
56

Ora, tudo isso o que foi dito não passa de uma descrição de algo
verdadeiramente incontornável. E este é um aspecto importante da epistemologia aqui
configurada como modelagem do educar transdisciplinar. A ciência humana não pode
pretender ultrapassar os seus limites fenomenológicos, mas também não pode mais
limitar-se ao modelo positivista e intervencionista imperante e hegemônico. Precisamos
de uma ciência nova, capaz de reunir tudo em um único crisol sem a perda de sua
riqueza polilógica, polissêmica, polifônica. Esta é uma grande tarefa epistemológica que
está por ser feita e que aqui ouso esboçar e propor, no seguimento dos vários mestres da
vida abundante. Portanto, não é nenhum mérito pessoal propor o que ainda não está
posto desta forma, pois tudo jorra de uma emergência conjuntural que afirma a
diversidade e a ampliação da potência em todas as direções e sentidos. Um
acontecimento comum-pertencente transpessoal (impessoal e pessoal simultaneamente),
sem a perda de sua singularidade criadora, única, incomunicável, porém muito igual a
tudo o que está sendo.
A elaboração de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar requer um
esforço surpreendente para poder tornar-se algo consistente e mediador de modelagens
humanas abertas à elevação da consciência da totalidade vivente, a partir justamente da
reunião dos opostos e da manutenção da lógica do antagonismo e do contraditório. Uma
das tarefas desta nova epistemologia é a reunião de todas as partes e de todos os níveis
das partes em um âmbito articulado unitariamente. Mas sem a perda da diversidade. A
Diferença ontológica, aliás, é um dos elementos quânticos desta construção
epistemológica. O processo de unificação que se busca não é homogêneo e nem
heterogêneo separadamente, mas é uma fusão de heterogeneidade e homogeneidade em
uma dialógica. Não podemos perder de vista a dinâmica incessante do processo do
conhecimento humano em suas funções corporais, mentais e de consciência.
Inevitavelmente nos deparamos com a linguagem. Tudo o que é se comunica com tudo
o que é. Toda comunicação é linguagem. Toda linguagem é articulação de coisa com
coisa, passagem de informação, tradução do informado, elaboração do formante da
informação. A ação da forma é a correlação de formas. A informação é a passagem de
uma qualidade para outra qualidade por meio de identificadores que também são
quantificadores e qualificadores.
No âmbito dos suportes e eixos de constituição da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar se faz necessário investigar as categorias de organização da
57

compreensão mental que nos é peculiar. Isto exige uma ciência completa corrigida em
seus excessos de certeza e em suas articulações conceituais. Façamos, então, uma
fenomenologia da ordem e das categorias epistemológicas da ciência do educar
transdisciplinar em formação, do ponto de vista mental, pois é neste âmbito que se pode
construir uma epistemologia transdisciplinar.
David Bohm e David Peat (1989) consideram que a ordem da visão processa-se
pela percepção de diferenças como primeiros dados da visão. A partir dos primeiros
dados são construídas em seguida as semelhanças. Assim, a ordem da visão se dá pela
percepção de diferenças e pela criação de semelhanças dessas diferenças. Estendendo
essa estrutura para todos os campos das vivências intencionais é possível saltar para a
investigação do pensamento que se organiza de maneira análoga à percepção visual, por
contraste entre diferença e semelhança. Para estes autores, na investigação das
estruturas de constituição do pensamento é fundamental a identificação das categorias
organizacionais, a começar dos atos de seleção e coleção. O pensamento é um contínuo
processo de seleção e de coleção, de distinção e de agrupamento por similitude.
Peat e Bohm evocam a raiz latina das palavras seleção e coleção. Selecionar
significa “pôr à parte” e colecionar significa “pôr junto”. Para eles, formam-se
categorias quando determinadas coisas são selecionadas mediante a percepção mental
das suas diferenças, em relação a um fundo comum e geral. O segundo momento da
categorização consiste em colecionar os objetos selecionados previamente, a partir da
sua diferenciação em relação ao fundo comum. Categorizar, portanto, implica na
conjunção de selecionar e colecionar. Para categorizar é preciso selecionar e colecionar
alternadamente e simultaneamente.
Ora, selecionar é escolher, colecionar é agrupar por categorias de diferenciação.
Pôr à parte e pôr junto, distinguir e reunir, separar e juntar forma a dinâmica de toda
categorização mental, que é um processo único. E porque a categorização é um processo
único, cada caso implicará em conjuntos diferentes de categorias, pois cada caso tem
sua topologia própria, o que significa dizer que para cada caso as categorias poderão e
deverão variar, mas a categorização será feita de uma maneira única: selecionando e
colecionando. Independente do caso, só há ato mental devido ao movimento dinâmico
da categorização, que pulsa entre selecionar e colecionar. A categorização determina
diferenças e similaridades para cada caso específico. É importante, então, compreender
a categorização como um movimento dinâmico relacionado à vida espiritual (cultural)
58

dos seres humanos. Porque somente o ser humano entre os entes naturais conhecidos
possui a dimensão mental desenvolvida e pode investigar sua estrutura a partir do
espectro da inteligência criadora de novas ordens e do espectro da
consciência/inconsciência de tudo o que se encontra sendo (ardendo, queimando,
combustando).
Trata-se de compreender a mente em sua conjuntura completa, sem dissociá-la
de sua textura espiritual. Como dizem Bohm e Peat (1989, p. 153), lembrando algo
aparentemente trivial, mas fundamental para se compreender a categorização como
traço mental comum a todo ser humano:

As lendas da humanidade primitiva, justamente com os mitos


contemporâneos das tribos na África e na América do Norte, fazem-nos
supor que a categorização é um modo primitivo, mas importante, de
ordenação do universo. Aos deuses, por exemplo, era atribuída a tarefa
de nomear os múltiplos animais e plantas, assim como a de estabelecer
uma ordem no universo. Essas lendas também indicam que as
semelhanças e diferenças selecionadas dependem de contextos que
envolvem toda a atividade e ordem da tribo. Um povo categoriza
diversos animais de acordo com a sua interação e importância para a
vida da tribo. Os animais podem ser selecionados e identificados
consoante o tipo de alimentação, a forma, a cor, os hábitos e a utilidade.
Por exemplo, há um grupo de pastores na África que usa uma série de
palavras indicativas da sua sensibilidade às variações da cor das suas
manadas. Os nomes dessas cores são também usados para descrever
outros objetos. Os Inuit (esquimós) têm prioridades para a
sobrevivência muito diferentes, e, assim, usam uma série de palavras
para descrever as diferentes condições de gelo e de neve. Sem dúvida,
toda a ação de categorização encontra-se inseparavelmente associada à
percepção-comunicação que opera dentro do contexto geral de cada
estrutura dinâmica social.
Na sua maior parte as categorias são-nos tão familiares que as
usamos quase inconscientemente. Todavia, de tempos em tempos, como
fruto de uma mudança importante no modo de olhar o mundo ou do
alargamento da nossa experiência, nascem novas categorias que nunca
tinham existido, passando-se a considerar importantes, em total
inovação, novos conjuntos de semelhanças e diferenças, o que implica
que a percepção seja usada de modo criativo num contexto em
constante mutação.

A criação de novas categorias é fruto de uma percepção que conjuga a mente


com os sentidos. Para seguir a gênese de novas categorias e a criação de uma técnica
apropriada para lidar com novas categorias, Bohm e Peat introduzem a ideia de
inteligência, evidenciando sua raiz latina intelligere, que tem o sentido de “colocar
entre”, ou de ler algo que “está entre as linhas”, inteligir algo a partir de uma relação
entre signos diferentes que se encaixam. Para estes autores, assim, “a inteligência é a
59

capacidade da mente de perceber o que está “entre” e criar assim novas categorias”
(1989, p. 154).
Nossa mente, portanto, tem propriedades inteligentes que podem criar novas
categorias a partir de novas relações conjuntivas. A inteligência é inteligente: ela coloca
entre duas coisas uma terceira que interliga o que antes se encontrava separado. A
inteligência é criadora. Diferente do intelecto que pode ser considerado o espectro
passado da inteligência. No latim, intelectus é o particípio passado de intelligere. O
intelecto retém o fluxo do inteligir como aquilo “que foi classificado” como vivido. Os
esquemas de categorias preexistentes são dados do intelecto. O que já foi classificado
condiciona o processo de classificação.
As categorias do intelecto são os arranjos intencionais do vivido que se mantém
como imagens fotográficas fixas. Sendo relativamente fixo o intelecto não é inteligente
e sim preconceituoso. As categorias do intelecto são os preconceitos da razão prática e
os entraves da razão teorética. A inteligência não é um ato intelectual e sim um ato
mental dinâmico e criativo. O intelecto reflete e retém o vivido em suas semelhanças e
diferenças, a inteligência configura o vivente em suas metamorfoses criadoras. Para
configurar melhor esta distinção tome-se como exemplo o teste de QI, chamado
erroneamente de quociente de inteligência, mas que se limita a ser uma medição do
quociente do intelecto. O teste de QI instituído, assim, não possui meios de captura do
quociente de inteligência porque se limita a enquadrar tudo em categorias
homogeneizantes e estáticas, como se fosse possível medir o poder da inteligência de
alguém pela simples aderência à tabela determinada pelo inventor de tal teste. A
inteligência, pelo contrário, é sempre o arranjo de novas categorias surgidas em virtude
de emergências contextuais. Quando novas formas são percebidas através de sua ação
criadora, a inteligência faz emergir as categorias do jogo livre da mente e não o
contrário. Categorias são criações da inteligência que se tornam categorizadas e se
fixam como estruturas portantes. Quando enrijecidas aprisionam a inteligência criadora
em suas repetições esquemáticas. Para dizer, as categorias são estruturas portantes
necessárias desde que a mente se mantenha aberta à ação criativa da inteligência.
Precisamos sim de categorias. Toda vida é uma forma de categorização.
Entretanto, é preciso aprender a não cair na tentação do conforto psicológico de uma
ciência paradigmática universal, que teria em seus postulados a certeza absoluta como
critério absoluto de definição epistemológica. Precisamos, pelo contrário, de uma
60

crítica epistemológica radical que não se deixe paralisar pela inércia intelectual do
instituído modelado como modelo regulador do conhecimento científico verdadeiro. Por
isso precisa-se praticar uma ciência de si que é uma ciência outra, com o cuidado de não
deixar prevalecer o inercial das categorias intelectuais e sim deixar florescer a
inteligência em sua inteligência própria. Para Bohm e Peat, o que me parece bem
razoável, pode acontecer que algumas categorias se tornem tão fixas no intelecto que a
mente acabe se convencendo e jogando falso para se iludir. “Com efeito, à medida que o
contexto muda, mudam as categorias. No entanto, estas categorias, quando são
introduzidas implicitamente na estrutura global da linguagem e da sociedade, tornam-se
rígidas e persistem de modo inapropriado no novo contexto” (1989, p. 155).
Considerando, assim, que o contexto aqui abordado é novo, é preciso logo de
início reconhecer as categorias que o novo contexto epistemológico apresenta, sem que
a categorização epistemológica hegemônica impeça a expansão de outra articulação
categorial movida pela inteligência criadora e contextualizada. Há uma emergência
reclamando suas próprias categorias. E quais são elas?
A inteligência necessita de liberdade para poder gerar novas ordens. É preciso
considerar a própria emergência em suas entrelinhas, quer dizer, atentar para a
inteligência em sua presença criadora. Isso só se pode fazer pelo autoconhecimento.
Quer dizer, não adianta buscar o sentido do que quer que seja na ilusão de categorias
fixadas pela sedimentação das experiências vividas, porque o sentido não é algo passado
e nem algo futuro, mas o instante em sua efervescência emergente. A emergência
reclama o desenrolar da inteligência criadora capaz de criar novas ordens, o que são
moradas para os que surgem na emergência na compreensão libertadora.
Ora, tudo isso é discurso. E por isso mesmo é possível reconhecer as categorias
da Epistemologia do Educar Transdisciplinar através de uma descrição do que se mostra
imprescindível para se conceber uma epistemologia com outras dimensões de sentido e
articulação compreensiva.
Não se trata de um caminho epistemológico que visa demonstrar a validade de
sua crítica, do ponto de vista de uma analítica da razão pura: a instituição de um
Tribunal da Razão que visa explicar a constituição da realidade e a validade da Razão
em sua certificação crítica. O que não significa negar a grandeza do caminho da teoria
do conhecimento da tradição ocidental até Kant e depois de Kant, mas reconhecer que
as categorias explicitadas por esta tradição não cobrem mais o campo das emergências
61

instantes (contemporâneas) que requisitam outras categorias e outros arranjos de


articulação e sentido.
Trata-se de reconhecer, de maneira inequívoca, os limites dados pelas categorias
já assimiladas pela estrutura global da linguagem associada. Se nos aferramos aos
processos habituais já interiorizados de nossa comum maneira de ver e compreender o
real e o irreal, não lograremos olhar para o que se passa com a vida humana agora, no
instante presente, no presente do presente. O acontecimento da fixação de padrões
resultantes de processos criativos pode levar ao enrijecimento. Este acontecimento
produz uma fragmentação dos fluxos instantes, impondo falsas divisões e ignorando as
novas e significativas conexões entre categorias e suas diferenças internas, o que gera a
falsa e confortável ideia de uniformidade. Para libertar-se dos mecanismos opressores
das estruturas rígidas das categorias resultantes de atos de ordenamentos passados nossa
mente precisa deixar que a inteligência opere de modo livre e criativo. A “mente precisa
deixar que a inteligência opere”..., significa o que mesmo? Por acaso a mente é uma
entidade voluntária? É ela que “deixa” a inteligência livre? A inteligência, assim, seria
uma propriedade da mente?
A mente é em si mesma um mistério insondável? Tanto ela é dinâmica quanto
ela é estática? Tanto ela parece ser uma entidade quântica como se mostra uma entidade
física aparentemente concluída? Como entidade quântica ela é um campo estrutural de
possibilidades abertas? Como entidade física ela se confunde com o ambiente de sua
aparição e desenvolvimento orgânico e cultural – a historicidade da vida social? Se não
é a mente que “precisa deixar”..., qual é a entidade que pode permitir tal feito, deixar
que a inteligência crie novas categorias? O que é a mente?
A mente é tudo o que percebe e processa informação? E o que percebe? O que
percebe é o que tem mundo. E o que é “mundo”? Mundo é associação de campos
criadores de florescimentos e fenecimentos intermináveis. Tudo no mundo muda. A
mente é sempre mundo, seja no átomo seja no humano.
A Mente é, assim, uma categoria da Epistemologia do Educar? Como assim?
A Epistemologia é a ciência da Mente. Este é o dado. Entretanto, a Mente
somente é Mente no Mundo. E o Mundo é Vida e Matéria como Mente. A Mente,
portanto, é uma categoria que não pode ser concebida sem outras duas categorias: Vida
e Matéria. E por que isso? Porque não é possível conceber Mente, sem Vida e sem
Matéria?
62

Na espécie humana a Mente é a categoria que constitui toda possibilidade de


conhecimento articulador, um conhecimento autônomo em relação ao sistema geral da
Vida e da Matéria. Na tradição mentalista relativa à produção discursiva epistêmica a
Mente foi visualizada a partir de faculdades distintas, como memória, imaginação,
raciocínio, razão, definição, linguagem, conceito, compreensão, apercepção7,
percepção, entendimento, previsão, etc. A Mente, portanto, tem seu espectro próprio de
atuação, que varia de uma gama mais confusa e obscura para uma zona mais clara e
distinta. Neste sentido, tudo o que está em conexão com alguma coisa, passando e
recebendo informações é fenômeno mental. O mental, portanto, tem como principal
traço a informação e a conexão informativa.
Nessa perspectiva, tudo o que tem vida e matéria tem mente, em todos os níveis
de configuração da matéria e da vida? A mente é, portanto, uma propriedade conectiva
da matéria viva, e assim um campo de captura formador de consciência?
A Mente é aqui tomada como um dos pilares ou categorias da Epistemologia do
Educar. E a Mente é compreendida em sua modulação humana e extra-humana. Assim,
a Mente não é uma característica apenas da espécie humana, mas está presente em toda
a Natureza. Como é, entretanto, que podemos saber de algo dessa magnitude? Pela
própria mente, é claro, com sua capacitação para a computação e para a cogitação.
Podemos estar enganados ao dizer algo assim? Sem dúvida que sim. Mas, como seria
possível alcançar o sentido mental de tudo sem que já existisse esta possibilidade na
estrutura mesma das coisas?
Há a Mente, a Vida e a Matéria em uma só conjugação verbal. Mentar, Vidar e
Materiar são, assim, os verbos dinamizadores da Epistemologia do Educar. Evitamos o
substantivo porque não se fala mais de substância e sim de ação, que também se
substantiva pela própria ação conjugativa. Mas a substância é um acontecimento do

7
A apercepção é definida como a ação pela qual a mente amplia, intensifica ou
plenifica a consciência dos seus próprios estados internos e de suas representações.
Trata-se de um termo inventado por Leibniz (1646-1716) para cobrir o fenômeno da
consciência das próprias percepções e impressões sensitivas. Kant (1724-1804) usa o
termo para designar a autoconsciência subjetiva que se realiza de forma pura ou
empírica. No campo da Psicologia, apercepção é definida como a articulação das
qualidades apreendidas de um objeto com experiências de conhecimento já realizadas
pelo sujeito do conhecimento, o que caracteriza um processo fundamental da aquisição
do saber. Para a Gestalt, a Psicologia da Forma, a apercepção é uma percepção bruta e
imediata de uma totalidade, que antecede a percepção analítica e minuciosa que revela
seus componentes e conexões internas, por comparação ao já dado. Significa, assim, a
apreensão direta, imediata, não analítica de um fenômeno, uma intuição direta.
63

verbo e não uma entidade em si. Sem o verbo não há como pensar a substância, mas
sem a substância pode-se pensar o verbo. O verbo, assim, vem primeiro na ordem das
organizações mental, vital e material. É o verbo que materializa, vitaliza e mentaliza o
real como campo de possibilidades constituídas previamente, ou melhor, construídas em
sua raiz fenomenal.
Mente, Vida e Matéria se apresentam trinitariamente como um complexo
unitário. Uma é parte da outro. Na Epistemologia do Educar a Mente é o campo em
que a própria Mente é elucidada em suas revelações e invenções condizentes. E é
também a partir da Mente que a Vida e a Matéria passam a formar o campo unitário do
fenômeno em suas distinções e complementações. Entretanto, a função Mente-Vida-
Matéria diz respeito a apenas uma parcela da evolução do Universo na perspectiva
humana. É a Mente humana que concebe e descreve a Vida e a Matéria. A rigor, dever-
se-ia falar de complementações bipolares em relação a cada um desses eixos categoriais.
Assim, a Mente tem em si uma Supramente, a Vida uma Supravida e a Matéria uma
Supramatéria. Até o presente momento a espécie humana só conhece a Mente, a Vida e
a Matéria, desconhecendo a Supramente, Supravida e Supramatéria. Seria, então,
possível caminhar no conhecimento Supra, do ponto de vista de uma evolução da
espécie? A espécie estaria no limiar de um conhecimento Supra Mental, Vital e
Material?
Imaginemos Uma Supramente. Como será possível concebê-la fora do que já se
encontra na mente condicionada? A Mente por si só não está apta a conhecer a
Supramente. E então, como é possível se falar de uma Supramente a partir da Mente
condicionada? Isto não é uma nítida falácia lógica?
A história começa a ficar diferente. A Mente condicionada por si só não é capaz
de alcançar a Supramente. É necessária, então, uma imanência da Supramente na
própria Mente. A Mente precisa receber a Supramente como uma imanência direta. A
Mente passa a buscar a Supramente como sua alteridade complementar, deixando-se
invadir pela Supramente. Isto também pode significar que a Supramente nunca esteve
longe da Mente. A Mente, então, se abre para a Supramente como uma flor de lótus. A
Supramente sempre esteve e está imanente na Mente.
De modo análogo, a Supravida encontra-se imanente na Vida, como um fractal –
se dá como um holograma absoluto, por isso mesmo é como se contivesse em si todas
as partículas elementares do Universo. Sua fenomenologia só pode ser concebida pela
64

Supramente, porque a Supravida não é o oposto da Vida e sim seu prolongamento


evolutivo. A Supravida é o gérmen da Vida evolutiva, porque a Vida é um
acontecimento supravital desde sempre. O gérmen da Supravida está presente na Vida
em toda a sua extensão. A Supravida governa a Vida desde sua origem.
Também na Matéria ocorre o mesmo. Há uma Supramatéria. A Matéria é toda
ela feita de uma Supramatéria atômica e quântica. O potencial dos corpos materiais é
indiscutível em relação ao seu uso energético. Mas a Supramatéria só pode ser
investigada por uma Supramente porque ela não é visível materialmente falando.
No final das contas, Supramente, Supravida e Supramatéria são as mesmas
coisas em suas diferenciações nucleares. Como em uma escala quântica, uma coisa é a
outra em um determinado nível de articulação e conjunção, sendo que cada coisa é em si
uma diferença unitária. O conceito de Mônada de Leibniz é bastante fecundo para que
se inicie a visualização deste fenômeno trinitário Supra, mas também é incompleto em
relação aos níveis não matemáticos e lógicos de constituição dos suprafenômenos. Hoje
o instrumental da física quântica é bem mais avançado do ponto de vista das relações
estruturais das partículas elementares, mas é ainda preciso uma metafísica das partículas
elementares, porque elas são Supra MVM – Mental, Vital, Material. Isto só pode
ocorrer com o advento da Supra MVM – Mente, Vida e Matéria realizando o plano
evolutivo do Universo. Mas qual plano é esse afinal?
Não se trata de uma escatologia qualquer o que se afigura como evolução da
consciência humana e a construção de uma ciência da consciência da consciência e da
consciência da inconsciência. O caráter escatológico da MVM não pode alcançar
nenhum termo final, exceto quando se compreenda “termo final” como sua constituição
evolutiva imanente. Mas não se pode, dadas as condições evolutivas da Mente humana,
conceber nenhum termo final no processo evolutivo da MVM do Universo. Por isso,
mesmo concebendo estes três eixos e seus correlatos complementares como os planos
conceituais e categoriais da Epistemologia do Educar, eles são apenas condizentes com
o intento criador do Universo em suas evoluções e involuções cíclicas.
Para que o sexteto de elementos quânticos e supraquânticos possam fazer
sentido neste exercício de modulação conceitual da Ciência Transdisciplinar do Educar
é preciso que um eixo também bipolar estabeleça a conexão de todas as diferenciações
da complexidade da MVM Supra do Universo. Trata-se da Intuição e da Supra-
65

intuição. Consideramos a Intuição e a Supraintuição como método e contra-método


mestre do exercício epistemológico aqui experimentado.
Sem intuição e supraintuição não há como seguir adiante nesta supraepisteme.
Não se quer comprovar nada e sim agir verbalmente. A importância das categorias
nominadas é a potência de armação de possibilidades de conhecimento liberador, capaz
de ser repetido desde que as condições de sua geração sejam favoráveis a um grande
salto na evolução espiritual da espécie.
Acredito que o momento é favorável para se pensar com mais ousadia as
condições de sustentabilidade de um planeta e de uma espécie que clamam por uma
nova ordem. Justamente porque o momento é de grande perigo para todos é que as
forças Supra são ativadas e operam, por pressão, a modelagem de novas configurações
de sentido. Será isto possível? Não só possível como já é verbo em sua ação criadora
emergente. E porque o momento reclama uma atenção redobrada, é preciso cultivar a
abertura para a consistenciação de um projeto humano que se autoproduza pela
inteligência Supra e que abarque a inteligência comum como um ponto de apoio de sua
organização Supra.
No âmbito Supra da MVM a existência é consciência e a consciência é alegria.
Trata-se do Um em sua natureza tríplice, nominado pela cultura hindu de Sat-Chit-
Ananda (Sachchidananda) ou Existência-Consciência-Alegria. Esta trindade una só
aparece no plano da Supra MVM. Entretanto, como em um estado normal da Mente se
pode conceber algo assim? Estaríamos ativando a Supra MVM no ato de compreendê-la
em sua consistência? O que fazer, então, com esta ativação? Ela nos dará algum poder
de intervenção sobre a Matéria, a Vida e a Mente da Natureza? Ou, pelo contrário, sua
ativação nos torna não intervencionistas em relação ao todo da MVM, apenar de se ter
também um conhecimento epistêmico, portanto, um conhecimento dos limites, das
condições e das possibilidades do conhecer absoluto, dentro de nossos referenciais e
limites?
Mas, seria possível um conhecimento absoluto? Pode existir um conhecimento
absoluto na perspectiva humana? A resposta é sim e não. Não, quando o conhecimento
não ultrapassa o mental. Sim, quando o supramental floresce do interior da mente.
Entretanto, o alcance de um conhecimento absoluto é um acontecimento do modo de ser
da Supravida e da Supramatéria, e nada tem a ver com a forma como este foi sendo
concebido na perspectiva mental da espécie humana.
66

Na perspectiva mental, o conhecimento absoluto é o absoluto de um


determinado caso de pensamento condicionado que alcança a autoconsciência em seu
específico florescimento. Trata-se de um conhecimento absoluto relativo ao alcance da
autoconsciência. Mas a autoconsciência ainda não é a supraconsciência. O absoluto da
autoconsciência é a realização de agrupamentos organizados de Vida-Matéria-Mente. É
como o florescimento dos casos de uma espécie determinada de ente. Uma árvore, nesta
compreensão, alcançaria a sua autoconsciência como árvore em seu próprio florescer e
fenecer. A autoconsciência, assim, seria uma propriedade universal dos entes naturais
em suas existências próprias. Entretanto, esta descrição não coincide com nada material
e aferrável ao modo dos objetos visíveis. Ela descreve o acontecimento da individuação
autoconsciente dos indivíduos de determinada espécie de entes naturais. A espécie
humana é uma dessas espécies que tem o seu modo próprio de alcançar a
autoconsciência e de projetar sua Mente para o domínio das medidas e dos números, do
cálculo e da medição, da computação e da cogitação. E quando a espécie humana
alcança sua autoconsciência isto ocorre em uma compreensão articuladora de tudo com
tudo, mas não é algo cujo privilégio pertence somente à humanidade do planeta Terra.
Na visada da supramente o conhecimento absoluto dá lugar à experiência do
absoluto. Isto é o mesmo que tornar-se aquilo que se é além daquilo que se tem e do que
se sabe. A supramente não conhece por abstração e representação do conhecimento. A
supramante é o luzir do florescimento da flor de lótus em incontáveis trilhões de
miríades e miríades de mundos de Luz. Sua peculiaridade não é a força e sim a
flexibilidade e a amplitude. Por isso ela é tão frágil como a mais frágil pétala de lótus.
Sua força não vem de uma vontade soberana e solar, mas vem da Luz que não vem de
fora como a luz solar que nutre o planeta e doa a vida. A supramente não disputa com
nenhuma outra entidade a primazia de uma regência e nem tem planos mirabolantes
para o domínio dos mundos. Ela não disputa porque não tem espaço e nem tempo, não
tem o que disputar. O que disputa é a mente em sua regência ao modo solar. Mas a luz
do sol é apenas uma mente-vida-matéria em suas possibilidades singulares.
A Supra MVM está além da MVM, permanecendo sempre imanente a esta. Sua
imanência permite abarcar todos os degraus e graus dos estados de natureza MVM. São
muitos, assim, os níveis e os planos da Mente-Vida-Matéria e todos são abarcados
instantaneamente pela Supra MVM. Em nosso estado evolutivo só podemos chegar a
67

isso por aproximação. Mas o fato da aproximação já revela a imanência do


florescimento da Supra MVM na MVM.
Esse florescimento não aumenta a potência de intervenção sobre os elementos da
Natureza, mas aumenta a potência de compreensão e salto de consciência além da
representação da mente condicionada pelos processos de sua experiência fenomenal,
nos níveis mental, vital e material de sua constituição. Nesta medida, não se trata de
construir uma ciência da Supra MVM, no sentido do usufruto deste conhecimento para
alimentar a parafernália do modo de produção insustentável dominante. Não é esta a
ciência do educar aqui perfilada e desfilada. Não se trata de intervenção e sim de
florescimento. Deixar florescer em sua plenitude vivente, eis a máxima aspiração desta
ciência do educar. E deixar florescer não nega a projeção em possibilidades abertas ao
poder-ser.
As categorias reunidas da Mente, Vida e Matéria formam os eixos
epistemológicos para a realização de um educar transdisciplinar. O plano intuitivo e
supra-intuitivo faz a conexão de toda informação necessária para a existência dos
equilíbrios e desequilíbrios mentais, vitais e materiais, alcançando uma potenciação
Supra a partir de um enfrentamento criador originário. A Mente tem Consciência na
Vida e realização na Matéria. A consciência sem Mente não teria Matéria. A Matéria
sem Consciência não teria Mente. A Mente sem Matéria não teria Vida. A Supra MVM
deixa ser cada coisa em sua experimentação. Nada regula e comanda, por isso tudo lhe
obedece. Nunca manda ou ordena, por isso sempre faz a si-mesma além de si mesma.
Em síntese, as categorias da nova ordem configurada nesta aproximação
epistemológica que planeja um educar transdisciplinar têm a Supra MVM como
horizonte deflagrador de sua criação. A imagem a seguir apresenta o campo das
categorias com suas oposições complementares. A Intuição e a Supraintuição formam o
método basilar desta epistemologia, a ser explicitado mais demoradamente na sessão
dedicada ao método – uma indubitável herança do racionalismo cartesiano que não se
pode descartar sem método.
68

Como operar, então, o método intuitivo e supraintuitivo como movimento de


modelagem da Epistemologia do Educar Transdisciplinar?
Falando sério, se operar a intuição já é um grande desafio, como operar algo que
está além da intuição ou é a sua parte oculta?
Para encaminhar a resolução desse impasse é preciso não separar uma coisa da
outra, mas abarcá-las em diferentes níveis de desenvolvimento e atualização. A intuição
é o correspondente conectivo da MVM. A Supraintuição da Supra MVM. Qual é a
diferença? Bem, a diferença é tão abissal que não está ao alcance da MVM, portanto da
Intuição. E como cada um de nós é parte de uma MVM tomemos a intuição que está ao
nosso alcance. A intuição está ao nosso alcance, como?
Não vou recorrer a nenhuma autoridade externa para tratar da intuição como
método para o desenvolvimento MVM da Epistemologia do Educar Transdisciplinar.
Vou recorrer à intuição mesma para elucidá-la em sua dinâmica apropriadora.
A palavra intuição carrega uma riqueza conceitual e imagética bastante
sugestiva. Define-se em geral como a faculdade de perceber, discernir ou pressentir
fatos ou eventos sem a mediação do raciocínio ou da análise. Na definição
enciclopédica é a forma de conhecimento direta, clara e imediata da realidade, capaz de
69

investigar objetos em suas diversas dimensões ao mesmo tempo, intelectual, metafísica


e concreta.
Em Descartes e no cartesianismo, a intuição é o conhecimento de um fenômeno
mental que se apresenta de modo claro e evidente, sem que haja a possibilidade da
dúvida de sua veracidade. Em Descartes, o cogito é a imagem e o conceito da intuição
assim entendida.
Em Kant e no kantismo, a intuição (anschauung) é o conhecimento imediato dos
objetos da sensibilidade, tanto a priori como a posteriori – tanto como espaço e tempo
subjetivo, quanto pelas experiências sensíveis dos objetos.
Para Bergson e o bergsonismo, é o conhecimento metafísico capaz de captar a
essência temporal e fluída de uma realidade, em oposição à quantificação e
espacialização que caracterizam a inteligência conceitual. Na Teologia, é a visão clara e
direta de Deus que santos e bem-aventurados alcançam.
Derivado do verbo latino intuèor,éris,ìtus sum,éri, significando algo como “olhar
em conjunto e atentamente, observar, considerar o conjunto”, intuitìo,ónis, intuição,
quer dizer algo como a “imagem refletida no espelho”. O verbo e o substantivo
apresentam um acontecimento da experiência concreta da mentação humana produtora
de sentidos captados em conjunto, em uma única visada. Portanto, a intuição é comum
à experiência humana desde o momento em que há visualização de uma totalidade
conjuntural – uma consciência de algo como algo em seu sentido conjugado.
Em suas variantes, intuição também se diz apercepção, bacorejo, baque, cheiro,
estalo, eureca, faro, iluminação, inspiração, instinto, insight, lampejo, nariz, olho,
palpite, pancada, perspicácia, pressentimento, suspeita, saque, tino, tirada, visão. A
intuição é a antecipação da compreensão articuladora, sem a qual nada pode ser
visualizado em seu aparecer e em sua aparência. Intuição é também sinônimo de
inteligência criadora, atividade de produção de combinações novas na geração da
MVM. E a Supra MVM sendo a parte oculta da MVM mantém discretamente a
sobriedade de tudo em tudo, porque o conhecer nesta instância não tem limites na
produção do ego MVM, sendo a geração de uma dádiva e não de uma falta e de uma
errância.
A intuição nos dá acesso ao que aparece em um conjunto interligado, e pode
sempre manter o princípio da simplicidade compreensiva, o que significa o primado da
unidade sobre a dispersão e a desconexão. Sua função é a de congregar partes separadas
70

e de reunir imagens distintas em uma mesma totalização, mesmo que sempre provisória.
Pois toda totalização MVM é sempre provisória. Entretanto, mantém sempre um
impulso de unificação em suas visadas, pois sempre totaliza pela superação de focos
específicos e ângulos parciais. Mas a intuição MVM não vai além da MVM, enquanto
que a Supraintuição é a sua contrapartida magmática. Toda intuição se dá em um fundo
supraintuitivo, como todo ente se dá no fundo de um supraente ou não-ente. Uma
Supra-intuição é como uma Não-intuição. É o polo oposto complementar. Na ativação
da Supra MVM ocorre um salto de natureza em relação ao modo de funcionamento da
MVM.
O polo oposto de cada uma das instâncias categoriais indicadas pode
corresponder ao jogo positivo-negativo da energia. Todo campo eletromagnético é
constituído de polaridades opostas. Bastam dois polos para que todo o Universo passe a
existir em suas metamorfoses e permanências intermináveis.
Trata-se evidentemente de uma suposição metafísica, que pode até merecer uma
comprovação empírica qualquer, mas este acontecimento nunca pode ser capturado em
seu termo final, como se a matéria fosse feita de pequeninas partículas e como se tais
partículas fossem a causa primeira de tudo o que é material, vital e mental. A questão
parece ser de uma ordem muito mais complexa e dinâmica em sua geratividade
relacional. É preciso saltar do referencial que isola as partículas elementares de sua
totalidade conjuntural originária para que se possa conceber a unidade indivisível de
tudo. Os gregos chamaram átomos os tijolos indivisíveis da matéria. Como foi que eles
chegaram a esta compreensão? Que saltos mentais, vitais e materiais estão pressupostos
nesta intuição grega do átomo? Na época não existiam aparelhos de captura para essa
visualização, mas a própria mente vital tomou consciência de sua constituição material
primária. Hoje, com todo o avanço tecnológico existente, não se chegou ainda muito
mais longe do que o átomo na constituição da matéria-vida-mente. O átomo se tornou
subdividido ao infinito. O limite alcançado é simplesmente o limite dos instrumentos de
captura das ondas eletromagnéticas. Mas, qual pode ser o limite do que é em si mesmo
indivisível? Todo o Universo seria uma grande malha que se dobra em si mesma? Além
do mais, com a compreensão atômica moderna e contemporânea se chegou a delimitar
os contornos de algo que se mostra consistente e permanente em seu acontecimento.
Hoje já se sabe como medir a regularidade da matéria e dos organismos vivos. Estima-
se o tempo de vida dos átomos por processos dedutivos nascidos da indução e da
71

abdução. Os limites da realidade estão muito bem definidos pela observação científica
qualificada. A questão, então, é saber como sair do círculo vicioso da ciência
qualificada em relação à origem da vida e da matéria-mente.
Pensemos mais demoradamente acerca do indivisível. É inadequado pensar o
indivisível como sendo um elemento material último. É mais apropriado pensar o
indivisível como o limite de nossa visualização material. Tão pouco o indivisível é
apenas um conceito ideal. Que seja um conceito, parece não haver dúvida. O
indivisível, entretanto, é divisível até um determinado limite indivisível. Por que o
conceito de átomo haveria de ser o indivisível de um objeto material invisível aos
olhos? Por que haveria de existir um termo último na matéria? Não seria mais oportuno
pensar a matéria em sua trindade MVM, como dobra e como totalidade indivisível na
sua própria dinâmica fluídica e contínua?
A compreensão aqui divisada apreende a matéria em sua constituição trinitária
MVM. A matéria é um ente vivo e mental simultaneamente. Dependente de seu limite
originário, a matéria se constitui de aglomerados de subpartículas, que são o que são em
virtude de seus campos vibratórios derivados das interações. Por uma compreensão
metafísica, o que compõe um determinado fenômeno em sua constituição primária está
presente em qualquer fenômeno. As variações são determinadas pelas interações entre
os entes individuais. E a individuação é a forma matricial de geração da MVM. Sem
“partículas”, sem “indivíduos” não se pode compor um organismo vivo ou mesmo
apenas atômico. E os “indivíduos” possuem em si a totalidade de sua geração matricial.
Algo semelhante ocorre com a vida no planeta Terra. Ela é parte de uma deriva
cósmica única. Todos os elementos que compõem a vida na Terra estão presentes na
incompreensível extensão do Universo. Isso se sabe graças ao avanço da ciência
experimental. Como, então, conceber a vida na Terra como algo apartado do conjunto
Universo do qual faz parte? Seria de nossa parte prova de falta de “intuição” se
caíssemos vítimas da “atomização” fisicalista da vida, como se fosse possível encontrar
a causa de tudo em partículas elementares de natureza “quântica”, que já é uma forma
de definir e de identificar o “objeto” em si da realidade universal. Como se existisse
apenas um padrão possível de realidade e não diferentes níveis de realidade derivados
de atualizações específicas, que se transmitem em suas formas fixadas pela experiência
e pelo ímpeto de ordenação e equilibração que há em toda vida inteligente.
72

A ciência como ela se desenvolveu historicamente é o limite da realidade que se


pode atestar por provas e demonstrações de todo tipo. Mas, mesmo em sua natureza
empírica matricial, a ciência da física ou da natureza é uma metafísica em si mesma,
porque os seus limites são dados por configurações mentais consideradas evidentes
justamente porque não dependem do ponto de vista de sujeitos humanos implicados
com suas vidas afetivas concretas e desejantes. Objetos materiais se mostram objetivos
em si porque não reagem afetivamente aos seus manipuladores. Mas, como é possível
que o objeto seja percebido fora do modo mental do seu perceptor?
Pode-se até dizer que os objetos materiais são independentes dos sujeitos
humanos. Mas este dizer é decorrente de um ato mental que visualiza a extensão
material em sua individuação não subjetiva. Entretanto, sabemos que aquilo que o ser
humano percebe como objeto material transcendente é decorrente de um
condicionamento MVM muito mais complexo do que se gostaria de imaginar e de
postular.
De qualquer modo, é preciso que se comece sempre do início. E todo início é um
limite em si. Um limite, entretanto, que contém em si de maneira não atualizada todas as
propriedades matriciais do Universo ou da MVM uni-versal.
Começando do início sempre há um meio e um fim. No início está o meio, no
meio está o fim. No início está o fim. No fim está o início: a imagem do contínuo
espácio-temporal e do supra tempo-espaço. A imagem a seguir apresenta o infinito em
sua circularidade recursiva.

Trata-se de uma imagem que tem a propriedade de reunir em unidade o que


parece distinto e desunido. A potência da síntese imagética do infinito é evidente na
história da ciência humana. O exemplo de derivação é a fita de Moebius, que apresenta
73

de maneira direta a dobra como acesso à compreensão da complexidade e diferenciação


dos níveis de realidade.

A fita de Moebius é um constructo que permite imagear o nó mental que salta


além do que habitualmente se concebe como regular e normal. Mas é algo que já está
contido na imagem do infinito. Um espanto que pode atualizar o que se precisa para
conceber a MVM e a Supra MVM como elementos categoriais adequados para cobrir o
campo da Epistemologia do Educar Transdisciplinar.
As categorias eleitas são, assim, os tentáculos para o desenvolvimento
condizente de uma ciência da complexidade que permita ultrapassar os referenciais da
MVM ainda dominante. Como a fita de Moebius, o salto se mostra fecundo e prefigura
possibilidades insuspeitadas. Estas possibilidades precisam daqueles que as
experienciem na convergência da SupraMVM. Isto só se pode fazer pela abertura
própria do autoconhecimento, caso não se queira aceitar uma “verdade científica”
imposta por uma “Super Mente” tirânica objetivamente dada.
O âmbito divisado é deveras extraordinário. O ser SupraMVM realiza a
harmonia de seu si individual/coletivo com o Si cósmico, de sua vontade e ação
individual com a Vontade e Ação cósmica. Acolhendo as descrições de Sri Aurobindo
como documentos de uma Noologia nascente, é possível pausar as seguintes descrições
que desvelam a harmonia entre o si e o Si:
O ser supramental em sua consciência cósmica, vendo e
sentindo tudo como ele próprio, agiria nesse sentido; ele agiria em uma
percepção universal e uma harmonia de seu si individual com o si total,
de sua vontade individual com a vontade total, de sua ação individual
com a ação total. Pois aquilo com que mais sofremos em nossa vida
exterior e suas relações sobre nossa vida interior, é a imperfeição de
nossas relações com o mundo, nossa ignorância para com outros, nossa
desarmonia com o todo das coisas, nossa inabilidade em equiparar
nossa exigência em relação ao mundo com a exigência do mundo em
relação a nós. Há um conflito – do qual parece não haver saída decisiva,
74

exceto uma fuga tanto do mundo quanto de si mesmo – entre nossa


autoafirmação e um mundo ao qual temos que impor essa afirmação,
um mundo que parece ser grande demais para nós e indiferentemente
passar sobre nossa alma, mente, vida, corpo, no arrasto de seu curso
para seu objetivo. A relação de nosso curso e objetivo com o curso e
objetivo do mundo não e manifesta a nós, e para harmonizar-nos com
ele temos ou que impor-nos a ele e torná-lo subserviente a nós, ou
abolir-nos e tornarmo-nos subservientes a ele, ou então conseguir um
equilíbrio difícil entre estas duas necessidades da relação entre o destino
pessoal individual e o todo do cosmos em seu propósito encoberto. Mas
para o ser supramental vivendo na consciência cósmica, a dificuldade
não existiria, uma vez que ele não tem ego; sua individualidade cósmica
conheceria as forças e seu movimento e seu significado como parte dele
mesmo, e a consciência-verdade nele veria a relação certa a cada passo
e encontraria a expressão dinâmica certa dessa relação. (AUROBINDO,
1974, p. 106)

Essas palavras de Aurobindo estão cheias de uma potência que atua supra
intuitivamente, estando além das referências da MVM. Entretanto, o acesso a este
poder não ocorre por adição de informação técnica, sendo um florescimento espiritual
que está protegido por constituição do uso indevido que dele se possa fazer. O que
dizer, então, da manipulação da energia atômica, seja por fissão nuclear ou por fusão
nuclear, hoje disponível? Ter-se-ia alcançado tecnicamente a Supra MVM? A ciência
atômica atual teria alcançado o domínio da potência Supra MVM?
De certa forma, sim. Houve o alcance da grande potência atômica contida na
fissão e na fusão de átomos. O nosso sol é o resultante de uma contínua fusão atômica,
como se ele fosse uma bomba de hidrogênio em uma potência de fusão que comparada
a outras fusões maiores é de uma grandeza pequena, mas suficiente para sustentar o
desenvolvimento da vida orgânica no planeta Terra. É graças à potência atômica do sol
que há vida em nosso planeta. A fusão atômica de átomos de hélio e hidrogênio forma a
fonte da vida no espectro por nós conhecido. O conhecimento da energia atômica é
inerente às possibilidades do conhecimento da MVM. Isto ainda não significa a ativação
da SupraMVM, e sim a manipulação de uma potência Supra sem o devido
conhecimento Supra. Como um ignorante diante de uma usina nuclear, a ciência
atômica brinca com os limites da energia quântica, sem que a humanidade esteja
preparada para lidar com este poder. Para que serve a fissão e a fusão atômica quando a
humanidade se encontra ainda em um nível de desenvolvimento ético muito primário?
A quem beneficia este amplo desenvolvimento energético e eletrônico?
O fato é que tem beneficiado uma minoria. Há cada vez mais grupos humanos
que vivem em condições de absoluta pobreza. Seria preciso primeiro equilibrar a atual
75

desarmonia ecológica MVM, compreendendo uma ecologia mental, uma ecologia vital
e uma ecologia material. A potência de conhecimento disponível pelo desenvolvimento
da tecnociência mais avançada de nada serve se não puder em primeiro lugar beneficiar
a sustentabilidade da MVM planetária. Isto toca diretamente no desenvolvimento
espiritual da espécie humana, como prioridade da ciência transdisciplinar. Um projeto
de construção humana que ative a relação amorosa com a SupraMVM, e que permita o
florescimento de entes extraordinariamente livres e poéticos. É como vencer o medo.
Vencer a morte. E vencer a morte não significa deixar de viver a norte e sim sabê-la
como dobra da vida. Vencer a morte é despertar na SupraMVM. E despertar na Supra
MVM é deixar para trás todo sofrimento e apego, como a metamorfose da borboleta.
A Noologia começa com o exame dos pensamentos condicionados. Isto pode ser
feito a cada instante sem interrupções. Isto não nos trás poder algum e nem nos faz
superiores a nada. Não deixamos de ser um ser humano e nem podemos desconhecer a
fragilidade da vida humana, a profunda necessidade de acolhida e de afeto amoroso.
Somos um ser que somente pode metamorfosear-se como flor de lótus na presença do
amor que é uma dádiva ilimitada e o poder que tudo pode sem nada querer. Como
assim? Justamente porque o ser humano não encontraria meio para sua individuação
sem o sentido do amor. E porque há um sentido no amar e no ser amado, tudo faz
sentido para quem foi invadido pelo poder do amor. O ser humano não seria nada e não
faria sentido algum fora do amar. Porque pode amar pode ligar em si mesmo a Supra
MVM. Sem amar e fora do amor não há saída do tempo psicológico e da vida sem
sentido.
Todo poder e toda dádiva pode ser ativado instantaneamente por cada ser
humano. O poder-ser está disponível para cada um como o ar que se respira. Fazemos
parte da potência amorosa e por condicionamento temporal e psicológico nos
encontramos na indigência ontológica prisioneiros do tempo da mente condicionada. E
quando nos damos conta de que somos livres dos condicionamentos da mente
condicionada, o que acontece conosco? Acontece que nos tornamos seres livres do
medo e da infelicidade, do sofrimento e da causação do sofrimento psicológico.
Tornamo-nos aquilo de que somos feitos na origem, não aquilo que nos fizeram os
condicionamentos psicológicos na experiência temporal. O nosso eu psicológico não é
o nosso ser em sua totalidade, mas apenas uma pequena parte transitória de nossa
entidade SupraMVM. Que velha metafísica é esta?
76

Sim, estamos em um campo metafísico. Mas há por acaso algum impedimento


na ativação de um conhecimento metafísico? Por que não haveríamos de lidar com uma
metafísica? Que princípio de realidade seria capaz de negar a metafísica como
incongruência acional? O princípio da ciência objetiva daria conta da constituição da
realidade? Haveria apenas uma única realidade objetiva capaz de ser expressa em uma
fórmula manuseável ao infinito?
A metafísica nos coloca diante de um acontecimento que não se reduz a
nenhuma causa primeira ou última, e não depende de nenhum raciocínio somatório para
poder ser abarcado. A metafísica não se opõe à física. Ela é uma suprafísica, pois não há
caminho do conhecimento primeiro dissociado de sua constituição MVM. Metafísica é
toda compreensão supramental, supravital e supramaterial. A ciência positiva e
experimental se constitui como uma metafísica fisicalista. Ela tem um plano mental
modulador de seus experimentos e controles. Postula um princípio de realidade
comprovado pela experiência em sua repetição. Um fenômeno é considerado verdadeiro
se possui a regularidade de um sistema autopoético. Isto também é metafísica. Toda
operação mental é em si mesma metafísica. A mente tem vitalidade e materialidade,
mas a mente não é nem vitalidade e nem materialidade. O estudo da mente nos introduz
no movimento do autoconhecimento como ponto de corte da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar.
77

3. Esboço de uma Ecologia Mental ou Noologia – o


autoconhecimento como meio articulador da Epistemologia do
Educar Transdisciplinar
Uma montanha é o universo inteiro.
A água é o universo inteiro.
(Ryotan Tokuda)

O grande pensador de origem indiana, Jiddü Krishnamurti (1895-1986), é o


inspirador da compreensão de autoconhecimento tomada como meio articulador da
ciência nova em construção. Para que se tenha presente qual é a tonalidade afetiva do
movimento de autoconhecimento, apresento a seguir um texto de Krishnamurti em que
se evidencia o chamado para uma investigação radical dos nossos pensamentos
condicionados, base concreta do autoconhecimento.
Temos que entender, desde o início desse novo ano, que
primeiramente estamos interessados no aspecto psicológico da nossa
vida, embora não iremos negligenciar o lado físico, biológico. O que a
pessoa é, interiormente, depois irá produzir uma sociedade boa ou a
deterioração gradual do relacionamento humano. Estamos interessados
nos dois aspectos da vida, não dando predominância a um ou ao outro,
embora psicologicamente, ou seja, o que somos interiormente, irá ditar
o nosso comportamento, o nosso relacionamento com os outros.
Parece que damos importância muito maior aos aspectos físicos
da vida, às atividades do dia-a-dia, sejam relevantes ou irrelevantes, e
negligenciamos completamente as realidades mais profundas e mais
vastas. Assim tenham em mente que nessas cartas estamos abordando
nossa existência do interior para o exterior, não o contrário. Ainda que a
maior parte das pessoas esteja interessada no exterior, nossa educação
deve se interessar em criar uma harmonia entre o exterior e o interior e
isso não tem possibilidade de acontecer se nossos olhos estão fixados
apenas no exterior.
Por interior queremos dizer todo o movimento de pensamento,
os nossos sentimentos – razoáveis ou não –, o que imaginamos, as
nossas crenças e apegos – felizes ou infelizes –, nossos desejos secretos
com suas contradições, nossas experiências, desconfianças, violência,
etc. As ambições escondidas, as ilusões a que a mente se agarra, as
superstições da religião e o conflito aparentemente interminável dentro
de nós mesmos fazem parte da nossa estrutura psicológica. Se somos
cegos a essas coisas, ou as aceitamos como uma parte inevitável da
nossa natureza humana, permitimos que exista uma sociedade da qual
nos tornamos prisioneiros. Isso é realmente importante de entender.
Temos certeza que cada estudante, por todo mundo, vê o efeito
do caos ao redor de nós e espera escapar disso através de algum tipo de
ordem exterior, mesmo que, dentro de si mesmo, ele possa estar em
agitação completa. Ele quer mudar o exterior sem mudar a si mesmo,
mas ele é a fonte e a continuação da desordem. Isso é um fato, não uma
conclusão pessoal.
Assim, em nossa educação, estamos interessados em mudar a
fonte e a continuação. São os seres humanos que criam a sociedade, não
78

certos deuses em algum céu. Assim, começamos com o estudante. A


palavra mesmo quer dizer (implica) estudar, aprender e agir. Aprender
não somente de livros e professores, mas estudar e aprender sobre si
mesmo – isso é educação básica.
Se você não conhece a si mesmo (não sabe sobre você mesmo),
e está enchendo a sua mente com muitos fatos do universo, você está
meramente aceitando e continuando a desordem. Provavelmente como
estudante você não está interessado nisso. Você quer se divertir, seguir
seus próprios interesses, e apenas sob pressão você é forçado a estudar,
aceitando as comparações inevitáveis e os resultados tendo em vista
algum tipo de carreira. Este é o seu interesse básico, o que parece
natural, pois seus pais, e avós, seguiram o mesmo caminho – emprego,
casamento, filhos, responsabilidade.
Desde que você esteja a salvo, em segurança, você se importa
muito pouco com o que acontece a seu redor. Este é o seu
relacionamento real com o mundo, o mundo que os seres humanos
criaram. O imediato é muito mais real, exigente, importante que o todo.
O seu interesse e o do educador é e deve ser o de entender o todo da
existência humana; não uma parte, mas o todo. A parte é apenas o
conhecimento das descobertas físicas.
Assim aqui, nessas cartas, começamos com você, o estudante,
em primeiro lugar, e com o educador que está lhe ajudando a se
conhecer. Essa é a função de toda a educação. Precisamos criar uma
sociedade boa na qual todos os seres humanos possam viver em paz e
felizes, sem violência, com segurança. Você como estudante é
responsável por isso. Uma sociedade boa não surge através de algum
ideal, de um herói ou um líder, ou de algum sistema cuidadosamente
planejado. Você tem que ser bom porque você é o futuro. Você vai
fazer o mundo, ou como ele é, modificado, ou um mundo no qual você
e os outros possam viver sem guerras, sem brutalidades, com
generosidade e afeição.
Assim, o que você vai fazer? Você entendeu o problema, (o)
que não é difícil; então, o que você vai fazer? Em sua maioria, vocês
são instintivamente amáveis, bons e querem ajudar, a menos, é claro,
que tenham sido muito maltratados, marcados e deformados, o que
espero que não. Assim, o que vocês vão fazer? Se os educadores forem
o que devem ser, eles vão querer ajudá-lo e então a questão é – que
vocês vão fazer juntos para ajudar você a estudar a si mesmo, a
aprender sobre si mesmo e agir? Vamos parar aqui com essa carta e
continuar na próxima. (KRISHNAMURTI, 2004)

O sentido adequado para autoconhecimento se encontra na provocação de


Krishnamurti para o estudo de si mesmo. Fica evidente, então, como o
autoconhecimento não possa ser objeto de uma técnica transmissível em seus
procedimentos operacionais. É preciso, em primeiro lugar, cumprir um movimento de
retorno a si mesmo, sem nenhuma ideia solipsista acerca desse retorno sobre si. O
retorno indicado é a tomada de consciência da consciência e da inconsciência, um
termo que tomamos de Stéphane Lupasco (1994), e a percepção de que o mundo
humano é feito pelos humanos, apesar de sua base natural incontornável. Em outras
79

palavras, precisamos do autoconhecimento como um meio para o alcance de uma


ciência dos fenômenos propriamente ditos, uma ciência do mundo, pois mundo é o que
encontra na presença suas formas de ser-sendo. Uma ciência, portanto, da consciência
da consciência e da inconsciência. Uma ciência para além da ciência regular e
hegemônica. Uma ciência não intervencionista e sim curadora. Uma ciência feliz!
Tomar o autoconhecimento como horizonte de antecipação da Epistemologia do
Educar Transdisciplinar aqui “desenhada” é o ponto de diferença entre o conceito
regular e historiográfico de ciência e a prática efetiva de uma ciência de si como sentido
conjugado na totalidade vivente. Quero dizer da possibilidade de termos ciência da
consciência e da inconsciência humanas a partir de nós mesmos. Trata-se de uma
diferença sutil. Ela não pode ser relegada às formalizações pragmáticas produtivistas. A
qualidade que se exige não pode estar sujeita a nenhuma forma externa de comando e
determinação. Toda determinação é sempre um complexo de relações determinantes e
determinadas. A ação causadora é resultante de campos gerativos de forças conflitantes.
As individuações, assim, correspondem a processos de formação identitária definidos
por estruturas atômicas e moleculares que se autoproduzem continuadamente, mas que
sofrem mudanças nas interações com o seu meio de vida, provocando mudanças
estruturais a partir das mudanças ocorridas no interior das estruturas modeladoras dos
indivíduos de uma espécie de entes.
A descrição feita é obviamente uma aproximação, nunca uma conclusão e uma
dedução exata de tudo. Precisamos desenvolver a ciência do ser que o ser humano é
como espécie do planeta terra. Não é uma ciência submetida a uma ordem transcendente
inalcançável, mas uma ciência propriamente humana, que realize suas possibilidades a
partir de sua imanência. O autoconhecimento é aqui afigurado de uma determinada
maneira, mas independente da sua maneira de afiguração ele é algo que só se pode saber
sabendo. Não cabem representações do autoconhecimento na forma de sentenças
oraculares ou de procedimentos técnicos para esvaziar a mente, como fazem as práticas
de meditação.
O autoconhecimento como meio básico da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar não pode ser um método para ser certificado de sua cientificidade
através de provas de falsificação ou testes de consistência propositiva, pois é o meio
metodológico para a prática investigativa de si mesmo, compreendendo essa prática
como o mais urgente e necessário problema vital humano. E para empreender esse
80

caminho metodológico é preciso deixar de lado tudo aquilo que se mostra em sentido
dado. É preciso elevar-se à condição de dialogante no diálogo permanente com o
vivente. Deixar de lado o vivido sem descuidá-lo ou negá-lo. Apenas deixar de lado o
vivido. O ser que somos tem o poder de regenerar-se a cada instante, em diferentes
níveis de complexidade. Deixar de lado o vivido e deixa ser o vivente em sua
efemeridade feliz. Tomar ciência da felicidade vivente.
Do ponto de vista metodológico, o diálogo é o meio universal para a prática de
um autoconhecimento que identifico como conhecimento filosófico. No diálogo levado
a termo em sua dinâmica investigativa radical, o que está sempre em foco é o próprio
pensamento, o conhecimento do pensamento em suas formas de ser. Investigar o
próprio pensamento nada tem a ver com a investigação dos pensamentos particulares.
Investigar o próprio pensamento requer a audição do investigador. Ouvir o que dizem os
pensamentos próprios. Todo pensamento é pensamento porque é falante. O pensamento
se organiza como discurso. O pensamento é discurso. Discurso perceptivo, afetivo,
emocional, político, retórico, poético, religioso, epistêmico, filosófico. A questão é
como ouvir os próprios discursos, atentar para si mesmo. Olhar o modo como nos
tornamos iludidos, entorpecidos, adormecidos. Olhar a forma das ilusões que
constituem nossa identidade. Olhar-se diante do espelho. É um aprendizado do ver a
partir do ouvir, ver que se modula no ouvir dissonante da juntura dos contrários, e se
harmoniza no campo em que os opostos ressoam no mesmo um-tudo. É tudo um, em
tudo um, um em tudo.
O fim do diálogo, assim, é conduzir ao conhecimento das formas de pensamento
que nos condicionam e nos tornam alienados ou livres, tendo em vista apoderar-nos de
uma autocondução liberadora em sentido conjuntural, coletivo, partilhado numa
conjuntura maior. O diálogo é o meio universal do exercício do autoconhecimento
porque o que está em jogo não é o conhecimento do próprio ego individual, mas o
conhecimento em sua totalidade articulada: o conhecimento do conhecimento e o
conhecimento do desconhecimento.
O diálogo é uma meditação auconhecente. Através do diálogo ativamos o
processo do autoconhecimento. Algumas passagens de Krishnamurti favorecem a
compreensão do autoconhecimento como uma prática de meditação que cabe a cada um
aprender.
A meditação é o começo do autoconhecimento. Conhecer a si
mesmo – nada mais do que isso – é meditação.
81

Saberdes o que estais pensando, o que estais sentindo, quais são


os vossos motivos, estar cônscio deles, sem escolha, encará-los como
fatos, sem dar opinião nem formar juízo a respeito desses fatos – eis,
exatamente, o início da meditação.

Assim, o começo da meditação é o conhecimento de vós mesmo


– não o que pensais que deveria ser, não o que Sankara pensa o que
deveria ser: o conhecimento de vós mesmos tal como sois, assim como
vos vedes num espelho.

A meditação é a rejeição de toda espécie de autoridade, porque


vós tendes de ser vossa própria luz.

Ser a luz de si mesmo significa não ter medo; significa não ter
apego de espécie alguma. (...) E, mais ainda, para serdes vossa própria
luz deveis investigar a experiência.

A experiência é a essência do tempo, a experiência constrói o


tempo como conhecimento, a experiência condiciona a mente.

A experiência embota a mente. A experiência não ilumina a


mente, porque é sempre o resultado de “resposta” a um “desafio”,
resposta oriunda de vosso fundo de conhecimento. Assim, cada
experiência só pode tornar mais forte o que conheceis e, por
conseguinte, não podeis libertar-vos do “conhecido”.

A meditação é o verdadeiro começo do libertar-se do


“conhecido”. Vós deveis meditar, não porque uma certa pessoa vos diz
que o façais, porque um certo homem vos fala e vos extasia a respeito
da meditação. Deveis meditar porque esta é a ação mais natural deste
mundo.
A meditação vos confere uma admirável sensibilidade,
sensibilidade que, embora muito forte, é também vulnerável. Isso
poderá parecer-vos contraditório, mas não é. A mente que se formou
pela ação do tempo, da experiência, do conhecimento, do conflito, da
arrogância, da agressividade, da ambição – não é uma mente forte; só
tem capacidade de resistência.
Eu me refiro a uma força de qualidade completamente diferente,
uma força que é “vulnerável”, sem resistência; essa, por conseguinte, é
a mente capaz de ultrapassar a experiência. (KRISHNAMURTI, 1966,
p. 138-141)

O texto de Krishnamurti nos faz ver a relação entre aprender a aprender,


autoconhecimento e meditação. Assim, o horizonte temático do autoconhecimento
como fio condutor da epistemologia do educar fica afigurado como uma prática
meditativa permanente, um autoconhecer-se no dinamismo do autoconhecer-se em
relação com a totalidade Supra MVM.
Como disse Krishnamurti, “a vida é toda de relações; e enquanto não
compreendermos claramente o problemas das relações, em nossa vida, em qualquer
82

nível que tentemos viver, plenamente ou fragmentariamente, nos veremos sempre em


um estado de conflito, confusão e aflição” (1973, p. 20). Pois, a menos que haja uma
revolução em relação às imagens que temos de nós mesmos e da realidade na qual
estamos imersos, a simples mudança produzida pelas ideologias emergentes, pelas
guerras, pelas invenções cada vez mais poderosas de intervenção, nada terá sido feito de
importante para uma radical mudança de nossa MVM. O que queremos, seguindo a
inspiração de Krishnamurti, é compreender a existência total, a totalidade da vida, e não
um mero fragmento dela.
É preciso que desejemos desvelar as coisas claramente, sem subterfúgios e
mascaramentos, pois quando se vê as coisas claramente, e este é o sentido de todo
autoconhecimento correto, isto significa uma poderosa ação. Ver corretamente já é uma
ação. Quando não se vê com muita clareza, toda ação se torna confusa já em sua
origem. Isso nos leva a procurar outra pessoa para nos ensinar a ver bem. Entretanto,
ninguém pode ajudar o outro a ver claramente a causa de toda confusão e ignorância.
Isto só pode ocorrer através de uma escuta correta da conjuntura da MVM. Trata-se aqui
de uma fusão Krishnamurti-Aurobindo, uma fusão movida por uma emergência da
Supra MVM.
Ora, escutar é uma das coisas mais difíceis de alcançar. Escutar significar
apreender com clareza os diversos níveis de constituição da realidade MVM e não
apenas os próprios pensamentos particulares, derivados da psicologia condicionada. A
escuta é um traço fundamental do autoconhecimento. Em geral escutamos aquilo que
nos afeta e nos enreda em nosso ego MVM. Escutar e ver são atividades que requisitam
atenção livre, o que é também algo que exige uma mutação interior.
Há traços marcantes no pensamento de Krishnamurti que indicam para uma
ciência noológica, o que se pode também chamar de Ecologia Mental. Uma ciência
noológica diz respeito ao conhecimento do plano mental da realidade MVM. É um
plano que não pode se separar de sua constituição primeva. Portanto, um plano que
requer a correlação direta com a Vida e a Matéria. Mas uma noologia não se reduz ao
plano material ou àquele vital. O mental tem sua categorização própria, porque sem ele
nem a vida e nem a matéria se explicam. Porque há mente, há teoria da vida, teoria da
matéria e teoria da mente. Apenas como um compacto. A mente é o ente capaz de
computar e memorizar, acumular e distribuir, medir e estimar, antecipar e repetir,
associar e sintetizar, fundir e partir, unir e separar. A vida é o ente capaz de produzir e
83

multiplicar, sentir e reagir, gerar e cuidar, habitar e prolongar, renovar e transmutar,


formar e desformar. A matéria é o ente capaz de agregar e consistir, ocultar e desvelar,
nutrir e oferecer, persistir e propagar, transmitir e reunir.
São aproximações. Mente, Vida e Matéria são entes distintos, com atributos
distintos que formam em conjunto a totalidade conjuntural da existência cósmica. Como
é que uma mente humana pode alcançar essa forma de clarividência? Esse é um
mistério que requisita de todos os indivíduos humanos a ativação do amor pela via do
autoconhecimento. Como descrições de Krishnamurti (1980, p. 7-8):
A maioria de nós parece considerar a ação individual como
coisa sem importância, quando há tanta necessidade de ação à ação
coletiva. Consideramos a ação coletiva bem mais importante e de maior
significação para a sociedade do que a ação individual. Para nós, a ação
individual a nenhuma parte conduz, não sendo suficientemente
expressiva ou bastante criadora para produzir uma positiva alteração da
ordem vigente, uma revolução real na sociedade. Destarte, cremos ser a
ação coletiva muito mais relevante, mais urgente do que a individual.
Do ponto de vista técnico, mecânico, principalmente, num mundo em
que prevalece cada vez mais a mentalidade técnica, mecânica, a ação
individual tem pouca razão de ser; e, assim, gradualmente, decresce o
valor do indivíduo e o “coletivo” se torna o mais importante.
Pode-se observar esse fato hoje em dia quando a mente humana
está sendo controlada, “coletivizada” – se assim me posso expressar – e
mais do que nunca forçada a ajustar-se. A mente já não é livre. Está
sendo moldada pela política, pela educação, pela crença organizada,
pelos dogmas religiosos. Em todas as partes do mundo a liberdade e o
indivíduo estão se tornando cada vez menos significativos. Já deveis ter
observado – não só em vossas vidas, mas também geralmente – que a
liberdade feneceu, liberdade para pensar com independência, liberdade
para descobrir, duvidar, investigar.
Os guias se estão tornando cada vez mais importantes, porque
queremos ser ensinados, queremos ser dirigidos e, infelizmente, quando
isso ocorre, é inevitável a corrupção, a deterioração da mente – não da
mente técnica, da capacidade de construir pontes, reatores atômicos,
etc.; porém deterioração da mente criadora. Estou empregando a palavra
“criadora” num sentido completamente diferente do usual. Não digo
“criadora”, com a significação de escrever poemas, construir pontes,
talhar no mármore ou numa pedra uma certa visão que se está captando
– pois tudo isso são meras expressões do pensamento ou sentimento
pessoal. Falamos de “mente criadora” num sentido todo diferente;
referimo-nos à mente que é livre e, por isso, capaz de criar. A mente
não sujeita aos dogmas, às crenças; a mente que não se refugiou dentro
dos limites da experiência; a que rompeu todas as barreiras da tradição,
da autoridade, da ambição, que já não está presa na rede da inveja – eis
a mente criadora. Num mundo sobre o qual paira a ameaça de guerra,
onde se observa geral deterioração – não tecnologicamente, mas a todos
os outros respeitos – nesse mundo, parece-me, há necessidade dessa
mente criadora.
É absolutamente necessário e urgente alterar de todo o curso do
pensamento humano, da existência humana, que se está tornando cada
84

vez mais mecanizada. E não vejo como operar essa completa revolução
a não ser individualmente. O “coletivo” não pode ser revolucionário; o
coletivo só é capaz de seguir, ajustar-se, imitar, submeter-se. Mas só o
indivíduo – vós – pode romper as muralhas, destroçar todos esses
condicionamentos, e se tornar, assim, criador. É a crise na consciência
que exige essa mente nova. Mas, aparentemente conforme se observa,
ninguém pensa nisso; o que sempre se pensa é que, com mais
melhoramentos – no campo técnico ou mecânico – se criará, como que
miraculosamente, a mente criadora, a mente sem medo.

Sim, a mente criadora, a mente sem medo. O medo psicológico é o principal véu
do autoconhecimento. Uma ciência noológica tem como primeira tarefa investigar e
transcender o medo psicológico. A ecologia mental deve cuidar da raiz do medo como a
ecologia ambiental deve cuidar da raiz da ignorância em relação aos recursos naturais,
assim como a ecologia social deve cuidar da raiz da intolerância nas relações humanas.
A mente criadora, assim, sabe negar a condição de submissão imposta pelo medo. Ela
sabe dizer “Não” ao medo psicológico. Como disse Krishnamurti (1980, p. 8-9):

Dizer “Não” é muito mais importante do que dizer “Sim”.


Todos dizemos “Sim”; nunca dizemos “Não” e nos mantemos firmes no
“Não”. É muito difícil negar, e muito fácil submeter-se; e a maioria de
nós se submete, porque nada mais fácil do que resvalar para o
conformismo, impelido pelo medo, pelo desejo de segurança e ser
levado, assim, à gradual estagnação e desintegração. Mas o dizer “Não”
exige a mais alta forma de pensar, por isso dizer “Não” implica
pensamento negativo – isto é, ver o que é falso. O próprio percebimento
do falso, a clareza com que o percebemos, é ação criadora. O negar uma
coisa, o pô-la em dúvida – por mais sagrada, por mais poderosa que seja
essa coisa, ou por mais firmemente estabelecida – exige profunda
penetração, exige a total demolição de nossas próprias ideias e
tradições. E um indivíduo assim é absolutamente necessário no mundo
moderno, onde a propaganda, onde a religião organizada, onde o
embuste e outros derivados estão assumindo o controle de tudo. Não sei
se vós também percebeis a importância disso – não verbalmente, não
teoricamente, porém de fato.

Aprender a dizer “Não” ao que se encontra posto como norma de conduta e


regra de ação psicologicamente submetida ao medo da liberdade é o primeiro plano do
autoconhecimento. É preciso, assim, que se investigue a raiz do medo psicológico e sua
rede de fantasmas mentais resultantes de condicionamentos passados e ancestrais. E o
mais importante é cada um ter que vencer o medo em si mesmo, como uma iniciação
em que não é possível que qualquer outro realize a superação da estrutura condicionada
da mente em nosso lugar. A mutação interior é um problema de ordem singular e
requisita o saber dizer “Não” ao que está dado e milenarmente consolidado. Entretanto,
85

aparentemente vivemos desde nossa origem prisioneiros de uma condição assustadora.


Krishnamurti chega a dizer que provavelmente continuaremos a viver por mais dois
milhões de anos como seres humanos prisioneiros da eterna dor de existir. Ele mesmo
pergunta e responde acerca da possibilidade de se acabar com essa condição dada (2000,
p. 38):
Haverá um modo, algo que livre o homem inteiramente
disso, de modo que não viva nem por um segundo em
ansiedade? Que não invente uma filosofia que o satisfaça na sua
ansiedade? Que não crie uma fórmula que possa aplicar a todos
os problemas que surgirem, aumentando dessa forma esse
problema? Existe! Há um estado mental que pode resolver
imediatamente os problemas e, portanto, a mente, em si mesma,
não tem problemas, conscientes ou inconscientes.
Iremos analisar isso. Embora o orador vá usar palavras
e penetrar tanto quanto possível através da comunicação das
palavras, vocês têm de ouvir e entender. Vocês são seres
humanos, não indivíduos, porque vocês ainda estão no mundo,
que é a massa; vocês fazem parte desta terrível estrutura da
sociedade. Só há individualidade quando há um estado mental
em que a mente não tem problemas, quando ela se separou
completamente da estrutura social do consumismo, da cobiça e
da ambição.
Dizemos que há um estado da mente que pode viver
sem nenhum problema ou que pode resolver instantaneamente
qualquer problema que apareça.

Como, então alcançar esse estado em que a mente pode viver sem nenhum
problema? É possível que o ser humano massa, depois de ter vivido por milhões de anos
às voltas com o conflito, possa se livrar de um tamanho determinismo? Se for possível,
como fazer isso?
Krishnamurti sugere que o tempo seja analisado, porque os problemas inerentes
à condição humana estão intimamente relacionados ao tempo. Uma noologia, assim,
deve começar por analisar o tempo. O que é, então, o tempo? Tempo é sinônimo de
problema e de aflição? Seguindo Krishnamurti em suas descrições (2000, p. 39), há um
bom motivo para a relação do tempo como a raiz de toda agonia do ente humano:

Há o tempo cronológico, o tempo marcado pelo relógio – este é


óbvio, é necessário; quando vocês tiverem de construir uma ponte, terão
de ter tempo, mas qualquer outra forma de tempo, isto é, “terá de ser”,
“eu farei”, “eu não devo”; tudo isso é falso; é apenas uma invenção da
mente, que diz “eu farei isto”. Se não houver amanhã – e o amanhã não
existe – então, toda a atitude de vocês será diferente. E, na verdade, não
existe esse tempo – quando vocês estão com fome, quando querem fazer
sexo ou quando estão repletos de desejo, vocês não têm tempo, vocês
86

querem isso imediatamente. Assim, entender o tempo significa


solucionar os problemas.
Por favor, analisem a relação íntima entre problema e tempo.
Por exemplo: há a tristeza. Vocês sabem o que é tristeza – não a tristeza
suprema, mas a tristeza de estarem sozinhos, a tristeza de não
conseguirem algo que desejam, a tristeza de não verem com clareza, a
tristeza da frustração, a tristeza de terem perdido alguém a quem
pensam amar e a tristeza de não conseguirem compreendê-lo. E, além
dessa tristeza, há uma tristeza ainda maior: a do tempo. Porque é o
tempo que alimenta a tristeza. Atentem para isto, por favor. Aceitamos
o tempo, que é o processo gradual da vida, o modo gradativo de evoluir,
a mudança gradativa disto para aquilo, da raiva para um estado
gradativo de não-raiva. Aceitamos o processo gradativo da evolução, e
dizemos que ele faz parte da existência, da vida, que é o plano de deus,
ou dos comunistas, ou qualquer outro plano. Aceitamos o fato, e não
vivemos com isso idealmente, mas de verdade.
Ora, para mim, essa é a maior tristeza: permitir que o tempo
dite a mudança, a mutação. Terei de esperar dez mil anos ou mais, terei
de passar por esta miséria, pelo conflito por mais dez mil anos, e lenta e
gradativamente mudar pouco a pouco, esperar meu tempo, mover-me
devagar? Aceitar isso e viver nesse estado é a maior tristeza.
Será possível acabar imediatamente com a tristeza? Esse é o
verdadeiro centro da questão. Porque assim que eu resolver a tristeza –
a tristeza no sentido mais profundo dessa palavra – tudo acabou. Porque
uma mente triste nunca saberá o que significa amar.
Portanto, tenho que aprender imediatamente algo sobre a
tristeza, e o próprio ato de aprender é um completo desvio do tempo.
Ver algo imediatamente, ver o falso imediatamente é a ação da verdade
que liberta vocês do tempo.

O tempo é, então, o que nos ata aos condicionamentos passados e ancestrais?


Como vencer o tempo? É possível viver concretamente além do condicionamento do
“tempo”?
Ora, é preciso que investiguemos o nosso próprio condicionamento psicológico.
Segundo Krishnamurti, este seria o começo do autoconhecimento. Portanto, o
autoconhecimento começa quando aprendemos a investigar a nossa própria mente
condicionada. E como fazer corretamente isto sem a ajuda de mestres externos?
O ato de ver é imediato. Quando olhamos para algo ou alguém, o que vemos?
Vemos em primeira instância a imagem de um ente. Este ver é um acontecimento
mental correlacionado à imagem do ente. É sempre uma imagem MVM (mente-vida-
matéria). Nossa percepção da imagem é um ato instantâneo além do tempo e do espaço,
porque toda imagem é uma forma e toda forma é um ente. O ente existe como espaço e
tempo, mas em si mesmo está além de espaço e tempo. Como é isto mesmo?
Em nosso próprio ente já se encontra o ver corretamente algo como ente. Ver
diretamente o condicionamento da própria mente é algo que não depende de nenhuma
87

teoria e de nenhuma artimanha metodológica para acontecer. Ver diretamente o que se é


como tempo psicológico, é o começo do autoconhecimento. O primeiro passo da
Noologia ou Ecologia Mental.
É disso o que precisamos agora: um ver diretamente nossa atual condição
existencial coletiva. Ver nesta figuração significa “uma mente sem opinião, uma mente
que não tem fórmulas” (KRISHNAMURTI, 2000, p. 41). Uma mente livre da memória
psicológica. Uma mente atenta ao presente de sua presença. Uma mente livre do tempo
psicológico. Isto é possível além da querência imaginária?
Não só possível como aquilo mesmo que é a mente criadora em sua realidade de
ente participante de uma totalidade sem circunscrições. O problema maior é que o ser
humano vive como se possuísse uma verdade particular e não se dá conta de seu
condicionamento psicológico. E só o indivíduo pode acionar (ligar) a superação do
tempo psicológico.
Entretanto não esqueçamos que o tempo é também uma realidade inerente à
origem do Universo. Mas o tempo cósmico não é o tempo psicológico. O tempo nesta
configuração é o acontecimento da geratividade transformativa de tudo o que se projeta
na explosão do início. O tempo psicológico é uma espécie de fantasmação derivada das
impressões sensíveis e afetivas ligadas ao medo. Somente quando nos tornamos capazes
de analisar a natureza do tempo em sua natureza própria se torna possível desfazer a
fantasmação da mente psicológica fundada no eu sou apenas um sobrevivente infeliz da
condição humana escrava de seu medo. O medo é a origem do tempo psicológico.
Como assim?
Qual é o projeto humano para sua inserção no tempo cósmico? O que significa
efetivamente deixar de ser no tempo psicológico e fazer-se no tempo cósmico? Isto está
ao alcance da mente humana não individualizada?
Ora, essas questões confundem a nossa mente psicológica, pois nossa psicologia
não concebe uma vida sem sofrimento e sem infelicidade. Nossa mente psicológica é
determinista e se comporta como uma vítima eterna. Qualquer questionamento que se
faça pondo em vista os processos inconscientes da mente psicológica faz com que ela
reaja e se torne fortalecida em seus apegos e medos. A mente psicológica existe na
medida em que suas fantasmações se tornam realidades incorporadas nas formas de ser
de entidades coletivas. O tempo psicológico, assim, é uma ilusão psicológica
confundida com a realidade vivida das pessoas não individualizadas. No caso, a
88

individualização nada tem a ver com o individualismo ou com a vida psicológica


subjetiva dos seres humanos modernos. Quando ocorre algo como a individuação de
alguém, a mente psicológica e o “tempo” deixam de existir como realidades
deterministas, e passam a ser como fantasmas de uma memória desativada, passada. Isto
ainda é muito raro? Por que isso é raro?
A questão é saber, o que podemos fazer para vencer o medo e a fantasmagoria
da mente psicológica ancestral? É preciso que queiramos em primeiro lugar investigar
isto. O que cada um de nós vai fazer em relação a este saber apropriador? É preciso que
cada um faça esta pergunta para si mesmo, e não procure respostas nos outros ou fora de
si. Mas, o que é este si mesmo? Como buscar em si mesmo as respostas para a saída da
fantasmagoria psicológica? Qualquer “eu” singular não é em si mesmo um nada
absoluto?
É comum ouvir-se dizer que o ser humano é o resultado do seu ambiente. Com
certeza isto é verdadeiro. De nada adianta afirmar-se que isto não é verídico, pois cada
um de nós é parte integrante de um complexo de causas ambientais, tanto no sentido do
meio ambiente físico e geográfico, como no ambiente social e naquele mental. Somos a
resultante de infindáveis ações passadas, desde uma origem muito remota e inalcançável
em seu ponto de início, mas alcançável em sua repetição autopoiética em seus produtos
criados segundo a modelagem de sua origem. Mas, é possível sairmos deste círculo
vicioso? Teoricamente ou verbalmente, seguramente não se consegue ultrapassar este
condicionamento que se mostra insuperável. Entretanto, se começarmos a observar os
condicionamentos de nosso tempo psicológico, se houver o exame atento de nossos
próprios condicionamentos poder-se-á iniciar o processo do autoconhecimento. Isto é o
mesmo que uma prática noológica que tem por fim a saída consciente do medo
psicológico ancestral. Uma mutação interior que não pode ocorrer por uma indução
teórica ou verbal, mas tem que florescer como uma flor de lótus.
Tudo isso, entretanto, não é nada dado por meio de um conhecimento técnico
que se pode reproduzir mecanicamente para todos os casos. Neste sentido, a Noologia
aqui prefigurada inicia com a investigação radical da mente condicionada e cativa do
medo psicológico, tendo-se em vista o florescimento da Supramente em sua
instantaneidade. Como isso é possível?
A possibilidade é inerente ao que já é. Como é possível o florescimento de uma
flor de lótus? A questão do florescimento da Supra MVM está no mesmo nível desta
89

compreensão. A SupraMVM ama ocultar-se. Seu intento é o de sempre proteger-se da


fragmentação e do esquecimento de sua imanência transcendente. É uma questão de
natureza e não uma mera questão do arbítrio de entidades que se pensam isoladas e
apartadas do âmbito maior de tudo, mesmo sendo este âmbito invisível e inalcançável
pela MVM ensimesmada em sua auto-imagem. Que mistério é esse que em sua dádiva
ama ocultar-se diante da solar compreensão intelectual?
Que ciência é essa que não é uma ciência segundo a definição estrita de ciência
moderna e contemporânea? Como uma ciência que queira ser uma ciência pode se
fundamentar no autoconhecimento? O sujeito, então, seria o fundamento desta ciência?
Não, o sujeito não é o fundamento e sim a conjuntura do ente Supra MVM. O sujeito é
uma simples figura para indicar o acontecimento da vida humana em sua peculiaridade
existencial e social. Mas o sujeito não é o fundamento de nada e sim apenas uma figura
representativa de uma determinada maneira de concepção antropológica que tem sua
gênese na história da civilização ocidental. O subjectus latino é o correspondente de
substantia, indicando ser, essência, existência, realidade de uma coisa, sustentáculo,
suporte, alimentação, sustento, meios de subsistência, bens, fortuna. Derivado do verbo
substare, significa “estar debaixo”, “fazer frente a”, “resistir”, “subsistir”. Refere-se,
portanto, ao nível subjacente de constituição do ente humano com suas propriedades
específicas. Indica também “posto diante”, “exposto a”, “subordinado”, “submetido”,
“dependente”, “que está à mão”, “que está à disposição”, “que está pronto”. Significa
também “acrescentado”, “colocado depois”, “colocado perto”, “próximo”, “vizinho”,
“substituído”, “falsificado”, “levado para cima”, “lançar ou pôr debaixo”, “ocultar”,
“esconder”, “submeter”, “subordinar”, “sujeitar”. Mas, o sujeito é o ente que se
encontra abaixo de qual outro ente? Qual é a referência de posição do sujeito?
Claramente o sujeito está lançado abaixo do objeto. Mas qual objeto? O objeto é
um ente distinto do sujeito? Ou o objeto é aquilo que está lançado para adiante por uma
entidade capaz de “lançar”? Não é a mesma entidade que lança para cima e para baixo?
Trata-se de uma entidade coletiva inconsciente, como parece ser inconsciente a vida
natural e todo o universo?
De qualquer modo, o sujeito não é fundamento de nada, nem tampouco o objeto.
Nem sujeito e nem objeto são fundamentos, porque sujeito e objeto estão relacionados a
uma referência maior: ao ser capaz de “lançar-se”. Mas, lançar-se para onde? Lançar-se
no âmbito da SupraMVM. Este âmbito, entretanto, não privilegia nenhuma
90

singularidade ou nenhum ente em especial. O estar lançado é próprio da totalidade


SupraMVM. O ser humano também partilha desta conjuntura, sendo ele mesmo uma
SupraMVM – um holograma SupraMVM.
Se o sujeito não é o fundamento e nem tão pouco o objeto “mundo”, o
fundamento é uma trindade uma: é o sem-fundamento. É uma MVM supra que a tudo
constitui em suas existências. E o que é, afinal, o ser humano? Ele é um animal sujeito
aos imperativos de um mundo predeterminado? Ou, pelo contrário, ele é como uma flor
de lótus em potencial: vive para florescer plenamente e desaparecer alegremente?
O ser humano é o grande enigma a ser decifrado na evolução da MVM em
curso. Mas, será que a sua ciência tem de ser intervencionista e apenas exploratória e
estar a serviço de um modo de produção insustentável? Não poderia ser uma ciência
cooperativa e poética, uma ciência em outra conjugação não controladora e
disciplinadora?
Pensando com Krishnamurti, cumpre a cada ser humano averiguar por si próprio
se é capaz de viver em paz neste mundo, não apenas de forma imaginária e sim por suas
ações efetivas. Como, então, olhar a vida em sua totalidade, e não de modo
fragmentado, quando ainda vivemos em meio a tantos condicionamentos que nos
tornam sujeitos da indigência e da repetição da impotência ontológica?
A ciência noológica ou ecologia mental que aqui consideramos tem como fio
condutor o autoconhecimento. Este não se apresenta como privilégio do mental sobre o
vital e o material, e sim como o lugar em que se pode aprender que a vida é para ser
vivida e não para ser significada como consolação de uma falta irreparável. Como seria
possível descobrir a realidade, a beleza, a veracidade da vida sem vivê-la? E para
vivenciar a vida é necessário compreender o seu movimento total. E somente é possível
alcançar esta compreensão pela ultrapassagem do pensar fragmentário. Como diz
Krishnamurti “tendes de deixar de ser hinduístas, não apenas no título, porém
interiormente; tendes de deixar de ser mulçumano, budista ou católico, abandonar todos
os vossos dogmas, porque essas coisas estão separando os entes humanos, dividindo
vossa própria mente e coração” (1973, p. 28).
A questão, então, é apenas de ordem individual? A ciência do autoconhecimento
não dependeria de nada fora do indivíduo? Qual o sentido, então, em se falar em
ciência do autoconhecimento, em Noologia ou Ecologia Mental, se ela é algo que diz
91

respeito ao indivíduo? Como falar em ciência do indivíduo se a ciência é justamente o


conhecimento objetivo, portanto, coletivamente construído?
A questão nos convida a meditar acerca da ciência em si mesma: a ciência da
consciência da consciência e da inconsciência. Há, assim, um âmbito comum a partir
do qual a individuação é um acontecimento da conjuntura MVM-SupraMVM. Como
uma flor de lótus que é sempre uma individuação, mas que nunca é apenas um caso
singular. A individuação, assim, é o processo de florescimento daquilo que é comum e
conjunto, daquilo que é parte da SupraMVM.
Esse esboço de Ecologia Mental ou Noologia também se traduz como uma
Hermesphainoologia – a compreensão e execução (interpretação) da MVM-SupraMVM.
Apresento abaixo um esquema dos limites gramaticais da Hermesphainoologia a partir
de palavras gregas e outro esquema apresentando diferentes níveis gramaticais ou
constelações gramaticais. O esquema visualizado é uma representação dos campos de
uma Ecologia Mental ou Hermesphainoologia – junção de Hermenêutica,
Fenomenologia e Noologia. Como representação não apresenta nenhuma exclusividade
expressiva, sendo o seu meio operador a Linguagem ou Lógos. Uma Hermenêutica dos
atos da SupraMVM. Outras possibilidades são bem vindas. Neste campo, tudo é
exercício de aproximação. A perfeição consiste na surpresa da imperfeição. A
complexidade depende da simplicidade. Quanto mais abrangente a relação de totalidade
mais simples se torna a intuição da totalidade. Muitas são as linguagens, muitas são as
gramáticas, muitas são as línguas. Todas reunidas formam uma Hermesphainoologia ou
Epistemologia do Educar Transdisciplinar, que começa reunindo a dispersão dos entes
na claridade do ser – o sentido em sentido. Apenas um esboço do que apraz chamar de
Ecologia Mental como traço fundamental da Epistemologia do Educar Transdisciplinar
aqui plasmada.
92
93

De modo potencializador, pode-se falar na reunião de constelações gramaticais


como forma de indicar a vastidão do que se encontra reunido por uma aproximação
imaginante. Um esquema conceitual que não tem um sentido prescritivo e sim um
sentido indicativo de chaves de leituras abarca apenas o conhecido aproximado de uma
historicidade específica, aquela da espécie humana no planeta Terra. Trata-se, assim, de
demarcar os territórios linguísticos que dizem respeito à história de nossa espécie a
partir de suas formas criadas. Cada um dos âmbitos indicados possui suas modulações
gramaticais próprias o que permite observar suas categorizações e seriações no tecido
constituído pelas ações humanas.
Tais constelações se reúnem em planos de imanência congregados em campos
gramaticais convencionais, referentes a campos da experiência espiritual dos seres
humanos. A Noologia, então, se mostra polilogicamente, pois compreende uma
totalidade constituída pela reunião de partes distintas e complementares do mesmo
Todo.

Cada um desses planos de imanência se atualiza como inerentes aos níveis de


Realidade constitutivos do constructo humano em suas interações complexas com a
94

totalidade divisada e com a totalidade indivisa. Sobre a qual não cabe nenhuma razão
epistemológica para dominar a cena, porque está além das lógicas hegemônicas que
afirmam o princípio de Realidade a partir de suas objetivações sempre parciais.

A Noologia ou Ecologia Mental aqui esboçada abre o campo de nossa percepção


dos eventos de modo que possamos investigar a nós mesmos de forma polilógica. A
Noologia, então, se abre como ciência da consciência da consciência e da consciência
da inconsciência (LUPASCO, 1990), uma ciência noológica, ciência do nous: do que é
percebido por uma consciência encarnada que percebe o objeto de sua intencionalidade
compreensiva. Mas, uma Noologia assim pensada não pode isolar-se das outras
instâncias do seu construto MVM-SupraMVM. Uma Noologia, portanto, é o que se
pode chamar de metaponto de vista em relação aos fenômenos mentais. Ora, um
metaponto de vista é assim chamado justamente por abarcar um conjunto de relações
que operam no campo complexo dos fenômenos. O ser humano além de necessitar
conhecer sua biologia e sua afectologia, sua sensibilidade e sua volição, seu desejo e sua
95

potência de ação, seu ambiente e sua cognição, necessita também conhecer suas formas-
pensamento. Mas esse conhecimento não pode ser isolado se quiser ser um campo
transdisciplinar de relações. É preciso, então, não perder de vista o principal: nossa
mente tem uma função plasmadora ainda pouco investigada pelas ciências da cognição e
ciências cognitivas. Sem processar o movimento de “redução fenomenológica radical”
não se pode alcançar a potência transformadora no ato de aprendermos a conhecer e a
saber do funcionamento de nossa mente. O campo mental, apesar de ser triadicamente
indissociável dos planos vital e material, tem suas propriedades distintas dos demais,
pois caso contrário não seria algo consistente – durável – persistente – insistente –
instante – não seria algo Real. Uma Ecologia Mental, assim, é a ciência que tem a tarefa
de investigar os territórios da mente de modo a que se possa operar com maestria o
grande ente que é a vida inteligente e sabedora de tudo que a tudo permeia e invade, a
tudo comanda e deixa ser. A tudo ama e porque ama sempre recomeça do princípio e
quando chega ao fim volta ao princípio.
96

4. Distinção entre disciplinaridade e transdisciplinaridade: o


advento e a construção de uma ciência e de um educar
transdisciplinares

a. O aparecimento do termo transdisciplinaridade

O termo transdisciplinaridade apareceu pela primeira vez no I Seminário


Internacional sobre Pluridisciplinaridade e a Interdisciplinaridade, realizado na
Universidade de Nice (França), em 1970, e foi organizado pelo Centro para a Pesquisa e
a Inovação do Ensino (CERI), patrocinado pelo Ministério da Educação Francês e pela
OCDE (Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico). Jean Piaget
foi o propositor da palavra tendo requisitado aos participantes do Seminário que
pensassem sobre o seu significado. Daí o fato de neste encontro a palavra ter sido usada
por vários participantes.
Em 1970 quando Piaget cria a palavra e lança o desafio para que se investigasse
o seu significado, tem início a construção de uma epistemologia transdisciplinar: uma
epistemologia da complexidade.
A primeira definição de transdisciplinaridade foi dada por Piaget em sua
comunicação no Seminário de Nice (1970). Diz ele:
... à etapa das relações interdisciplinares, podemos
esperar ver sucedê-la uma etapa superior que seria
‘transdisciplinar’, que não se contentaria em encontrar
interações ou reciprocidades entre pesquisas especializadas,
mas situaria essas ligações no interior de um sistema total, sem
fronteira estável entre essas disciplinas”. (Piaget apud
Sommerman, 2006, p. 44)

Na Conferência de Nice três participantes apresentaram concepções de


transdisciplinaridade que acabaram constituindo a plataforma de lançamento de uma
construção epistemológica transdisciplinar, são eles: Jean Piaget, André Lichnerowicz e
Erich Jantsch. Dos três, os dois primeiros consideraram que a transdisciplinaridade
poderia fornecer um quadro conceitual que atravessaria as disciplinas.
Na perspectiva de Piaget, o foco de investigação e de interesse foi a interação
psicofisiológica processada no desenvolvimento humano, acreditando que o
amadurecimento da compreensão das estruturas gerais e dos padrões do pensamento
conduziria a uma teoria geral das estruturas e dos sistemas. Piaget dizia que quando a
física do inanimado pudesse entender o sistema do animado, se aproximaria da biologia
97

e da psicologia, podendo se tornar “uma verdadeira ciência geral”. Esta possibilidade


de unificação epistemológica Piaget chamou de transdisciplinaridade.
Como sintetiza Paul Patrick, 30 anos depois da formulação de Piaget, seguindo a
mesma convergência:
A abordagem transdisciplinar se aprende então como
uma nova organização do conhecimento, como uma nova
hermenêutica das colocações em relação, como um processo
epistemológico e metodológico de resolução de dados
complexos e contraditórios situando as ligações no interior de
um sistema total, global e hierarquizado sem fronteiras estáveis
entre as disciplinas, incluindo a ordem e a desordem, o sabido e
o não sabido, a racionalidade e a imaginação, o consciente e o
inconsciente, o formal e o informal.

Se Piaget e Lichnerowicz deram ênfase às interações transdisciplinares nas


relações entre as ciências, Erich Jantsch deu ênfase às interações com o humano e o
social. Para Jantsch a transdisciplinaridade também era um princípio organizacional
mais abrangente do que o da interdisciplinaridade. Entretanto, seu modelo incluía além
do sistema da ciência (com todas as disciplinas e interdisciplinas) o sistema da educação
e da inovação, alcançando não só o nível empírico, pragmático e normativo, mas
igualmente o nível propositivo. Para Jantsch, apesar da incompletude de qualquer
tentativa de sistema de coordenação geral de todos os conhecimentos, a coordenação
transdisciplinar poderia guiar a ciência em seus desenvolvimentos cada vez mais
desafiadores e complexos.
O modelo de Jantsch, por ser o mais amplo, tornou-se o mais influente.
Nicolescu o chama de “transdisciplinaridade de tipo pluridisciplinar”, por ter elementos
da interdisciplinaridade de tipo pluri e de tipo trans e, além disso, se abrir aos
conhecimentos não disciplinares.
O conceito de transdisciplinaridade foi sendo ampliado e constituído através de
congressos internacionais e seus respectivos documentos 8.

8
São os seguintes os principais eventos e documentos: 1) Colóquio A Ciência Diante das
fronteiras do Conhecimento, organizado pela UNESCO em Veneza, em 1986, que dá origem a
Declaração de Veneza. 2) Congresso Ciência e Tradição: Perspectivas Transdisciplinares
para o século XXI, organizado pela UNESCO, em Paris, 1991., gerou o documento Ciência e
Tradição. 3) I Congresso Mundial da Transdisciplinaridade, organizado pelo CIRET (Centro
Internacional de Pesquisas e Estudos Transdisciplinares – Paris), com parceria da UNESCO,
ocorrido em Arrábida (Portugal), gerando o documento Carta da transdisciplinaridade. 4)
Congresso Internacional de transdisciplinaridade realizado em Locarno, em 1997: “Que
Universidade para o amanhã? Em busca de uma evolução transdisciplinar da Universidade”,
organizado pela UNESCO. “A transdisciplinaridade, como o prefixo trans o indica, diz respeito
98

b. A configuração transdisciplinar

A configuração transdisciplinar aqui desenhada deve a sua metodologia à


Basarab Nicolescu (1995, 1999, 2001, 2002) com sua extraordinária capacidade de
projetar uma nova Ciência da Natureza. De qualquer modo, o que aqui se expõe não é
uma verdade universal acima de qualquer dúvida, e sim uma descrição implicada com
uma revolução em curso, desde há muito tempo vigente no âmbito do ser histórico
humanidade pelo ultrapassamento compreensivo de sua racionalidade monológica.
Trata-se de um salto ontológico de retorno a si mesmo que constitui as bases de uma
epistemologia transdisciplinar. Um salto ontológico que é um salto triético: mental,
vital, material; ambiental, social e espiritual. Um salto auto-sócio-antropológico
(MORIN, 2005d), implicando o indivíduo, a sociedade e a espécie, a mente, a vitalidade
e a materialidade, acrescento à Morin.
Compreendo por transdisciplinaridade também o que já está posto por alguns
dos pensadores mais significativos do século XX e que despontam no século XXI como
pensadores transdisciplinares, pelo uso que também fazem do conceito. A fim de
favorecer a compreensão do plano metodológico da Epistemologia do Educar
Transdisciplinar aqui delineada, vou recorrer a duas passagens de autores da
transdisciplinaridade, uma longa e outra breve, como meio para introduzir no solo
histórico em que se edifica a nova ciência do educar em construção.
A primeira citação é do artista, poeta e pensador Michel Random, pela sua
inspiração e força de pensamento.

ao que está ao mesmo tempo entre as disciplinas, através das diferentes disciplinas e além de
toda disciplina. Sua finalidade é a compreensão do mundo atual, e um dos imperativos para isso
é a unidade do conhecimento” (Passagem da Síntese do Congresso de Locarno). 5) II
Congresso Mundial de Transdisciplinaridade, foi realizado em Vila Velha, Espírito Santo –
Brasil, em 2005. Nesse Congresso o objetivo foi criar um espaço em que as questões
transdisciplinares pudessem ser tratadas em três eixos: atitude, pesquisa e ação. Buscou-se
também o resgate de princípios discutidos no I Congresso Mundial de Transdisciplinaridade
realizado em Arrábida, em 1994, e do Congresso “A Revolução da Transdisciplinaridade” que
ocorreu em Locarno, em 1997. Além desses acontecimentos que estabelecem os horizontes
históricos da transdisciplinaridade, outros eventos já foram realizados no mundo e no Brasil e
alguns outros estão sendo preparados para o futuro. Consulte-se também SOMMERMAN
(2002).
99

A transdisciplinaridade não é, evidentemente, a palavra mágica


que se elevaria como uma barreira contra todos os desastres planetários.
Mas, no contexto ocidental, é uma das palavras fortes que nos oferecem
pelo menos uma tomada de consciência nova do saber e do
conhecimento associados ao ser (...) A transdisciplinaridade é uma
reflexão sobre a natureza do nosso saber, sobre os processos da
Complexidade no seio das disciplinas e na sociedade, mas é uma
reflexão sobre a natureza da própria mente. Uma reflexão sobre o ser e
o fundamento imanente e transcendente do próprio real, sobre sua
natureza sagrada.
A transdisciplinaridade me faz pensar no famoso Ginkgo de
Hiroshima, ‘a árvore de mil escudos’, que se erguia tão longe do
Observatório. Ela também foi aniquilada pela explosão nuclear, mas
oh!, surpresa, ela voltou a se desenvolver e a crescer, tornando-se assim
o símbolo da vida renascendo a despeito da pior de todas as catástrofes.
Esta árvore da esperança parece-me atual (...) O
desmoronamento quantitativo do planeta não significa necessariamente
o desmoronamento definitivo dos valores qualitativos que, felizmente,
continuam a existir e a se manifestar em grande número de pessoas,
pois os valores do ser e os valores espirituais são próprios à consciência
humana. (...)
A árvore da visão física, metafísica, poética ou consciente,
recobra todos os seus direitos. A transdisciplinaridade, em seu sentido
profundo, é o caminho ou os níveis de realidade da visão. (...)
A transdisciplinaridade é o que farão dela os homens que a
encarnam e a manifestam. Sua consciência criadora, visionária pode
servir de pilar central para reatar com a unidade da terra e do céu. Essa
consciência existe porque vocês estão aí para manifestá-la, vocês são
um núcleo, um grupo de amigos; amanhã vocês serão, espero, uma
grande família planetária, e saberemos então que a UNESCO da
transdisciplinaridade existe diante da nova torre de Babel que simboliza
o nosso mundo tecnológico.
Vocês são portadores de uma nova esperança, de uma nova
visão. E quem diz unidade, diz transcendência. O visível e todos os
níveis de realidade são linguagem para aproximar esse invisível que é a
verdadeira arquitetura do visível. Toda dialética, toda racionalidade é
bela, se tivermos a coragem e a modéstia de ligar nosso saber aparente
ao nosso desconhecido infinito. Nossas ciências são apenas um grão do
insondável desconhecimento; o infinito invisível e irredutível é, no
entanto, consubstancial a nós mesmos e aos graus mais misteriosos de
nossa consciência. É nesse nível que o poeta, o educador, o metafísico e
o místico repousam(...)
O importante agora é fazer com que exista essa grande família
de espíritos que praticam desde já o caminho do conhecimento, que
consiste em criar em nossa vida diária um mundo interior qualitativo e
espiritual. (RANDOM, 2002)

A beleza do texto de Michel Random é comovente. Mas o comovente vem da


força do desvelamento da emergência humana planetária e não é um simulacro de força
na elaboração de um estilo literário elegante. Além de elegante o texto de Random é
provocante e profundo em sua aspiração. Nos leva a pensar em nossa comum-
100

responsabilidade diante da tarefa de uma existência qualitativamente elevada, uma


espiritualização pela transformação humana em cada indivíduo da espécie.
Já o segundo texto breve nos diz:
No trans da transdisciplinaridade há, em primeiro lugar, o
mistério do ser humano. (Patrick Paul)

A precisão das palavras de Paul Patrick nos lança na investigação de nosso


mistério, não para exauri-lo, o que seria impensável, mas para bebê-lo em sua força
germinal criadora.
O termo transdisciplinaridade faz um contraponto com o termo disciplinaridade.
É preciso, então, definir a disciplinaridade como plano de referência do conceito de
transdisciplinaridade utilizado. Algumas expressõs recolhidas em autores polilógicos
ajudará no estabelecimento do contraponto compreensivo para a delimitação e
construção da abordagem transdisciplinar do educar.

As disciplinas são um fato histórico, responsável pelo grande


progresso científico e tecnológico. Mas o saber e o fazer das disciplinas
foram se sujeitando a limitações epistemológicas, verdadeiras gaiolas
epistemológicas. Mesmo a interdisciplinaridade não libera o saber e o
fazer dessas gaiolas, ainda que sejam mais espaçosas. A visão de mundo
do engaiolado é, obviamente, restrita e deformada. E assim, ao lado de
maravilhosas conquistas nas ciências e na tecnologia, nota-se um total
descalabro nas relações entre os indivíduos. O humano e o social estão
deploráveis. (...) Sem dúvida, a ação (conhecimento e comportamento)
transdisciplinar permitirá a abordagem de situações nas quais o
conhecimento disciplinar é insuficiente e limitado.
A compartimentalização disciplinar do conhecimento é algo
extremamente limitador e, sobretudo, condicionador. (...) A
compartimentalização do conhecimento em ‘clubes’ disciplinares se faz
obedecendo a critérios fixados a priori e, é claro, permitindo somente a
‘entrada’ de certos conhecimentos e, consequentemente, admitindo a
abordagem apenas de certos aspectos da realidade. Esse procedimento
disciplinar provoca a perda da visão global da realidade. (...) A atual
proliferação das disciplinas e especialidades, acadêmicas e não
acadêmicas, conduz a um crescimento incontestável do poder associado
a detentores desses conhecimentos fragmentados. Essa fragmentação
agrava a crescente iniquidade entre indivíduos, comunidades, nações e
países.
Ubiratan D’Ambrósio

*
O enfoque disciplinar, na atualidade, pode ser considerado um
dos frutos mais típicos e substanciais do racionalismo científico, que
modelou, nos últimos séculos, a mente e a atitude básica do ocidental.
(...) A universidade moderna caracteriza-se por três fragmentos
principais: o físico, o biológico e o humano. Cada um desses ramos, por
101

sua vez, estilhaçou-se em dezenas de sub-ramos, dedicados a objetos


gradativamente mais específicos e de mínimo alcance. O instrumento
básico desta perspectiva é o método analítico. (...) O enfoque disciplinar
analítico gerou a especialização. A sua necessidade deveu-se à vastidão
do conhecimento humano, especialmente a partir da Revolução
Científica, a partir da Revolução Industrial. Diante do acúmulo
crescente do saber-e-fazer humano, foi sepultado o ideal do gênio
enciclopédico e pluriapto, do ‘homem total’. O especialista, expert na
parte, passou a ser o novo herói. Navegante do minúsculo, vidente do
mínimo, o que sabe quase tudo de quase nada, caracterizado pela
unilateralidade de visão e de ação”. (CREMA, 1993, p. 131-132)

*
A perspectiva educativa disciplinar trata do processo de
transmissão/aquisição dos conhecimentos, que são concebidos e
apresentados de forma separada e fragmentada, através das abordagens
das diferentes disciplinas. Nesta perspectiva os conhecimentos da
disciplina matemática, por exemplo, são tratados sem nenhum tipo de
relação com os conhecimentos das disciplinas história, química,
literatura, biologia, artes, geografia, literatura, física etc. Ou seja, na
ação educativa disciplinar não existe nenhum tipo de
comunicação/diálogo/relação do conteúdo de uma disciplina com
qualquer outra disciplina.
Além disso, a prática da educação disciplinar também não
trata/cuida da dimensão da vida interior psicológica do ser humano.
Nesta prática as emoções, os sentimentos, as sensações as intuições, as
percepções e as imaginações inerentes à constituição da psique do ser
humano não podem ser contempladas/cuidadas/tratadas no processo de
aprendizagem do aluno.
A abordagem educativa disciplinar, ao lidar com cada área do
conhecimento como uma disciplina específica, totalmente desvinculada
de qualquer outra e ao negar/desprezar a vida interior psicológica do ser
humano, utiliza procedimentos pedagógicos para o desenvolvimento de
um ensino que não somente prejudicam o funcionamento do cérebro do
estudante, como também mutila e adoece a sua psique. No processo de
negação da vida interior psicológica do ser humano, a ação educativa
disciplinar utiliza métodos e procedimentos didáticos sustentados por
uma pedagogia da crueldade, que não permitem o educando e o
educador vivenciarem o movimento da arte de aprender ou da arte de
autoconhecer-se. (SOARES, 2007)

*
O reducionismo e a insuficiência do enfoque disciplinar
suscitaram inteligentes alternativas reparadoras, como as abordagens
multi, pluri e interdisciplinar. Como os termos indicam, entretanto,
sempre ainda na órbita disciplinar: uma produtiva e ampliada
dialogicidade entre os muitos discursos e enfoques do mesmo
racionalismo científico. (CREMA, 1999)

Somos espiritualmente modelados pelo princípio da disciplinaridade. O que


alguém pode fazer e pode aprender sem disciplina? Como alguém pode ter sucesso na
vida se não tem disciplina?
102

Cada um de nós é constitutivamente disciplinar. A disciplinaridade constituiu o


acervo epistemológico e tecnológico da civilização atual, a partir de um
desenvolvimento humano monolateral pela relação dicotômica de homem e natureza.
Como expressa Ubiratan D’Ambrósio: “O conhecimento disciplinar é um arranjo
segundo critérios internos à própria disciplina, de um aglomerado de modos de explicar
(saber), de manejar (fazer), de refletir, de prever, e dos conceitos e normas associados a
esses modos.”
Toda disciplina, assim, constitui um corpos de conhecimentos técnicos
especializados e desenvolve seus próprios meios de transmissão.
Tornar-se transdisciplinar, assim, é o caminho investigativo para uma
transformação radical do nosso ser-no-mundo-com: mudança de olhar/ser.
Passo a narrar uma pequena história mítica, a dos Titãs, como forma de
configurar a revolução em curso, tomando as estruturas arcaicas que aí aparecem como
modo de antecipação da dinâmica generativa dos processos vitais de criação,
manutenção e transformação. O mito evocado se mostra como figuração da originária
relação de poder inerente ao conhecimento humano e suas conexões com a totalidade
cósmica.
A história dos Titãs refere-se a deuses pertencentes a
um passado tão distante que só os conhecemos através de
histórias de um tipo especial, e apenas como executores de
determinada função. O nome Titã, desde os tempos mais
remotos, tem sido associado à divindade do Sol e parece ter
sido, no início, o título supremo de seres que eram, na verdade,
deuses celestes, mas deuses muito antigos, ainda selvagens e
sujeitos a nenhuma lei. (KERÉNYI, 1994, p. 28)

Simbolicamente, segundo a mitologia, somos descendentes dos Titãs e


Titânidas. Titãs é o nome genérico dos seis filhos da primeira geração divina na
mitologia grega, portanto, de Urano e Geia. O casamento do Céu com a Terra fez nascer
os deuses Oceano, Ceos, Crio, Hiperíon, Jápeto e Crono. Assim como, Titânidas é o
nome genérico das seis filhas do mesmo casal: Téia, Réia, Têmis, Mnemósina, Febe e
Tétis.
Crono, o casula, é o genitor dos principais deuses olímpicos. Do seu casamento
com Réia se inicia a segunda geração divina. Crono toma o poder de seu pai, Urano,
ceifando-lhe a virilidade germinal. Crono é, assim, o ceifador: o tempo da colheita dos
frutos e dos grãos. Crono dá o corte na abundância vital de Urano, iniciando a era do
103

tempo cronológico. A Figura abaixo apresenta o processo gerativo das três gerações
divinas:

Como diz Kerényi, “Desde o ato sanguinário de Crono, o céu nunca mais se
aproximou da terra para o casamento noturno. A geração original chegou ao fim e a ela
se seguiu o reinado de Crono.” O Grande Crono devorava todos os filhos assim que
deixavam o ventre da mãe e caíam entre os joelhos dela. Crono não queria dividir o seu
poder com mais ninguém, e como seu pai havia vaticinado que este seria vencido por
um de seus filhos, ele os engolia para não afastar-se do seu reinado.
Revoltada por não poder fazer crescer nenhum dos seus filhos, Réia arma um
estratagema contra o seu marido, e consegue enganá-lo, salvando Zeus de ser engolido
pelo pai.
Após um longo preparo e amadurecimento, Zeus destrona Crono e se torna o
Senhor do Universo. Tem início a terceira e última geração divina.
*
O que tem essa narrativa mítica a ver com os fundantes epistemológico-
filosóficos da transdisciplinaridade? Que relação é esta? Qual é a sua intenção?
Intenciono com isso enfatizar a existência de diferentes níveis de realidade que
se co-pertencem. As histórias míticas mostram-nos que quando um deus destrona o
outro, aquele que sai de cena não deixa de existir, apenas perde o seu poder de mando,
permanecendo ativo em seu próprio território, mesmo confinado, limitado. Na estrutura
104

discursiva do mito e da mitologia é possível identificar traços das estruturas gerativas


que compõem a constituição das forças viventes. Há uma relação de ascendência e
descendência direta, em que os patriarcas e matriarcas divinos vão dando lugar a outras
gerações e desenvolvimentos, mas não deixam de permanecer assentados como suportes
ou dimensões constituidoras dos próprios horizontes da nova geração. Há também a
presença do conflito, da relação de poder, do estado de guerra pelo poder. Pais e mães,
filhos e filhas lutam entre si em algum plano pela posse de uma soberania qualquer. A
estrutura narrativa mítica pode também ser compreendida como uma estrutura
arquetípica de constituição do antagonismo que parece ser a forma comum da
constituição de todas as coisas existentes ou passíveis de existência.
Os tentáculos epistemológicos e filosóficos da transdisciplinaridade levam em
conta os diversos níveis de constituição das coisas, sem perder de vista que cada nível
tem sua realidade própria e peculiar, independente do observador. Cada nível é em
algum nível ou grau interdependente de todos os outros níveis ou modos constituídos de
ser.
A abordagem transdisciplinar não elimina o conflito da disciplinaridade, mas
trabalha a partir dele.
Ser transdisciplinar é, antes de tudo, permanecer atento ao acontecimento dos
diversos níveis de realidade do real, no presente.
No nível humano comum, cada ser existente partilha do mesmo pertencimento
originário, apesar de encontrar-se em fuga para determinada direção e sentido particular,
como se a vida de todos não fosse a vida de cada um e a vida de cada um a vida de
todos. Existimos como se tudo já estivesse dado e esclarecido a partir de nossa
ignorância ou surdez.
E dada à conformação geral de nosso comum modo de ser disciplinar,
conformação inegavelmente sócio-histórica, não será incomum nos debatermos com os
muros sólidos e intransponíveis da dura disciplinaridade racional instituída e
secularizada. E isto, em primeiro lugar, em nós mesmos. A história mítica evocada faz
intuir uma luta de poder entre o instituído disciplinar e o instituinte transdisciplinar. O
disciplinar faz o papel de Crono, o Transdisciplinar o papel simultâneo das três gerações
divinas. O transdisciplinar é Urano, Crono e Zeus simultaneamente, compreendendo
que cada um desses níveis se diferencia e se complementa.
105

Este não é um problema apenas do outro. Ele é, sobretudo, o problema de cada


um de nós em particular e de todos em geral.
Ultrapassar o horizonte da disciplinaridade é algo semelhante à luta dos deuses
primordiais pela posse do poder de mando?
O ultrapassamento da disciplinaridade não é uma luta de deuses pelo poder de
governo das coisas. Trata-se de uma luta que se trava no fluxar mesmo dos seres. Não é
uma luta contra nada, pois é uma luta pelo acontecimento da vida em sua jorrância.
Ora, definitivamente o ser humano indo-europeu não é o centro do universo e
nem poderia ser. A razão humana e sua ciência não são a medida de todas as coisas,
daquelas que são e daquelas que não são. Assim, qualquer tentativa de absolutização e
completude sistêmica universal não passam de mascaramento diante da vigência do
vigente. O mascaramento esconde justamente a condição humana em sua vigência: um
ser aberto e inconcluso – uma transformação radical permanente, um ser cujo ser
consiste em ser livre. Um ser cuja liberdade consiste em amar. Um ser capaz de não
amar porque ele é livre para ser ou não-ser?
Não, a liberdade da qual me refiro não é um arbítrio que o ser humano dispõe na
sua ignorância ontológica e que pode fazer uso como quiser. A liberdade é algo ainda
mais profundo, muito mais abissal, pois ela é a condição prévia de todo acontecimento
autopoético, em qualquer nível de realidade. A liberdade nos possui como se fôssemos
seu próprio corpo e carne e seu próprio sopro. A liberdade é de tal maneira radical e
imperativa em nossa constituição ontológica como seres linguageiros, que se pode
afirmar com Sartre (1995) que o ser humano “está condenado à liberdade”. Entretanto,
“condenado” não pode ser a palavra certa para “liberdade”. A liberdade não é uma
condenação, ela é uma condição primária da espécie pensante humana. A individuação
humana não se encontra idealizada em formas fixas. A sua correta idealização é a
permanência no instante, a presença no aqui e agora de quem se implica em
autoconhecer-se.
A transdisciplinaridade descortina uma possibilidade de aprendermos na
abertura para o aberto, além do dualismo da razão instrumental dominante. Somos uma
totalidade encarnada. Podemos, porém, não saber disso. A figura abaixo reúne
elementos que a razão moderna separou em um único âmbito de comum-pertencimento.
106

Tudo isso tangencia os fundamentos epistemológicos e filosóficos pressupostos


para se pensar e fazer um educar transdisciplinar.
O plano de imanência epistemológico e filosófico da transdisciplinaridade não é
um objeto ideal estático, e sim a presença no presente. Ser presente.
A unidade de tudo é o tentáculo epistemológico e filosófico primeiro da
transdisciplinaridade: a unidade na diferença e na pluralidade de tudo – fundamento
sem-fundamento.
A transdisciplinaridade é uma atitude de não-dualidade implícita.
A atitude transdisciplinar contempla a totalidade na reunião não-dual das
diferenças. Sua gramática é polilógica e sua linguagem polifônica.
Em sentido atual, a transdisciplinaridade é uma abordagem epistemológica que
desenvolve investigações metodológicas para os estudos da vida e suas relações de
complexidade com os seres humanos e seu comum-pertencimento com a natureza
visível e invisível. O conceito de transdisciplinaridade compreende a
interdisciplinaridade, a pluridisciplinaridade, a multidisciplinaridade e a
disciplinaridade. Os seguintes esquemas reúnem as diferenças entre os termos, incluído
107

os três postulados da metodologia transdisciplinar expressos por Basarab Nicolescu. Há,


podemos dizer com Morin, um metaponto de vista na abordagem transdisciplinar. E este
metaponto de vista está diretamente relacionado ao observador humano – o ser humano
em sua vida comum-pertencente. A Totalidade vivente. A Totalidade vivente do
humano.
Nos esquemas a seguir o plano transdisciplinar verticaliza o ser humano
coligando e reunindo seus diversos níveis de Realidade e de percepção. As
diferenciações entre os termos disciplinaridade, multi, pluri, inter e trans apresentam
distintas maneiras de constituir os fundantes do conhecimento epistemológico, o que
pode ser uma gradação para se compreender a transdisciplinaridade em sua propriedade
de transpassamento do já alcançado anteriormente. O tempo instante é o foco da atitude
transdisciplinar. Ela é uma atitude aprendente originária, para a qual não valem os
acúmulos e os processos associativos em contínua luta de poder. O mais difícil é o mais
simples de tudo. Mas o mais simples é o mais difícil de aprender e difundir.
108

No esquema anterior o termo polilógica do sentido aparece como elo de união de


tudo. A abordagem transdisciplinar é uma polilógica do sentido que projeta o ser
humano em possibilidades livres.
109

O contraponto desses esquemas com a disciplinaridade mostra a diferença de


conceito e de articulação. Na disciplinaridade prevalece apenas um plano de referência
definindo uma única Realidade. Na perspectiva disciplinar, as disciplinas se encontram
no máximo agrupadas e diferenciadas entre Ciências da Natureza e Ciências Humanas.
Na perspectiva disciplinar parece não haver possibilidade de um diálogo efetivo em
relação aos âmbitos comuns da Realidade e da Realidades que o conhecimento
contemporâneo aliado ao saber

O esquema geral da relação entre as ciências objetivas e as ciências subjetivas


mostra a hegemonia de um modelo baseado em uma racionalidade monológica.
110

O modelo disciplinar se fundamenta em uma epistemologia das ciências “duras”.


Ele contamina, metodologicamente, todas as disciplinas constituídas na modernidade.
Este modelo se orienta pela física da matéria densa e pela desatualização
/neutralização da valoração subjetiva: ele quantifica e dispõe para o uso a matéria
observável.
O modelo disciplinar considera o processo do conhecimento como uma
maquinação organizacional, desconsiderando os fatores simbólicos e afetivos do
comportamento humano imprevisível e criador.
Funcionando como uma máquina e organicamente determinado, o ser humano
pode ser programado em série, a partir da imposição ontológica do princípio de
realidade definido objetivamente, segundo o corpo vivo das ciências que tratam de
fenômenos mensuráveis e repetíveis.
Tendo por base esta concepção objetivista do mundo, as disciplinas que
compõem o currículo escolar moderno são marcadas por uma forma de objetividade
anuladora, em nome da neutralidade axiológica (valorativa), do afetivo e efetivo
111

processo do desenvolvimento humano consciente, inconsciente, consciente do


consciente, consciente do inconsciente de si.
Na concepção disciplinar de educação os saberes e aprendizados estão
bipolarmente separados entre si. Prevalece a abstração e a generalização. Dá-se pouca
atenção à concretização e a especificação da aprendizagem em si. Prevalece a repetição
como mecanismo de assimilação dos conteúdos transmitidos. Os processos heurísticos
são raramente valorizados. A valoração do esforço próprio de cada estudante para a
solução de questões vitais não é levada em conta em nenhum momento do processo de
ensino e aprendizagem.
Necessitamos, portanto, de uma nova compreensão da realidade para que seja
possível a transformação da educação disciplinar em educação transdisciplinar. Mas isto
não significa apenas uma mudança de paradigma – modelo epistemológico. Antes disso,
é uma mudança ontológica radical – no âmbito do modo de ser humano em relação a
tudo. Não se trata, assim, de remendar, de ajeitar, de adequar a disciplinaridade ao novo
modo de ser, à nova maneira de ver o real, e sim de constituir outra fundação capaz de
articular todos os saberes específicos, tendo como centro o desenvolvimento humano
autônomo e inventivo com a natureza e não contra ela.
A consequência desta compreensão é a inevitável transformação da estrutura
curricular instituída, tendo por base outra teoria do Real – teoria aberta às metamorfoses
do tempo instante, imprevisível, colaborativa e inventiva. Uma reinvenção do Educar
cotidiano.
Isso sinaliza para o fato da abordagem transdisciplinar constituir-se como campo
epistemológico de investigação dos acontecimentos implicados. Mas é também um
campo ontológico, um campo ético e um campo poético, simultaneamente. Ela é uma
produção que visa realizar uma nova ciência comum, pela elaboração de novas maneiras
co-responsáveis de autoprodução e compartilhamento na celebração do vivervivente.
O transdisciplinar encontra-se reunido na estrutura comum e gerativa do
comportamento humano. Todas as diversas atividades e diversas áreas do conhecimento
se reúnem na formação humana especificamente. O desenvolvimento humano é o foco
da articulação transdisciplinar. É na estrutura comum dos seres humanos que deve recair
toda a atenção. O transdisciplinar, então, realiza a unidade na diferença.
Apresento, assim, o transdisciplinar como plano de reunião das funções MVM
do organismo e entidade humana universal, em que qualquer que seja o campo
112

disciplinar em processo de aprendizagem estará perpassado pela atitude que me apraz


chamar de filosófica, em homenagem à eloquência e amplitude do que se chamou de
Filosofia, como amor à Sabedoria. O esquema abaixo mostra a estrutura comum
transdisciplinar que está na base de toda e qualquer dinâmica de aprendizagem que vise
o pleno desenvolvimento mental, vital e material do conjunto Universo visível e
invisível no qual o ser humano se insere e se relaciona.
113

5. Esclarecimentos dos postulados da Transdisciplinaridade

Visando informar o mais possível acerca do estado da arte da abordagem


transdisciplinar, apresento algumas considerações sobre os três postulados da
metodologia transdisciplinar, sistematizados e criados por Basarab Nicolescu (1999, p.
45), a saber:
1. Há, na Natureza e no nosso conhecimento da Natureza, diferentes níveis de
Realidade e diferentes níveis de percepção.

2. A passagem de um nível de Realidade para outro é assegurada pela lógica


do terceiro incluído.

3. A estrutura da totalidade dos níveis de Realidade ou percepção é uma


estrutura complexa: cada nível é o que é porque todos os níveis existem ao
mesmo tempo

A Epistemologia do Educar toma os postulados da metodologia transdisciplinar


como eixos organizadores de sua construção. Por isso se acrescenta à expressão
Epistemologia do Educar o termo Transdisciplinar. Tomado como horizonte
epistemológico esses três postulados configuram um plano de imanência conceitual na
realização de uma Epistemologia do Educar Transdisciplinar. Cada um dos níveis de
Realidade postulados será a seguir considerado em aproximações infindáveis.
Segundo Basarab Nicolescu (2002, p.47), a abordagem transdisciplinar da
Natureza e do conhecimento pode ser descrita pelo diagrama que foi reproduzido em
sua essencialidade a seguir.
114

O diagrama proposto por Nicolescu expressa “o Objeto transdisciplinar: o


Sujeito transdisciplinar e o termo de interação”. Do lado esquerdo, os diferentes níveis
de Realidade com seu antagonismo. Do lado direito, os diferentes níveis de percepção e
sua estrutura antagônica correlata. O Terceiro termo faz sempre a conexão com
diferentes níveis de Realidade. A palavra “realidade” assume um significado ao mesmo
tempo ontológico e pragmático. Para ele, Realidade (com maiúsculo) é primeiramente
aquilo que resiste às nossas experiências, representações, descrições, imagens e mesmo
às formulações matemáticas. Como diz Nicolescu (2002, p.48-49):

Considerando que a Natureza participa no ser do mundo, temos


que dar uma dimensão ontológica ao conceito de Realidade. Realidade
não é uma mera construção social, o consenso de uma coletividade ou
algum acordo intersubjetivo. Também tem uma dimensão trans-
subjetiva. Exemplo: dados experimentais podem arruinar a mais bela
teoria científica.
Claro que temos de distinguir as palavras ‘Real’ e ‘Realidade’.
Real designa tudo aquilo que é, enquanto Realidade diz respeito à
resistência na nossa experiência humana. Por definição, o ‘Real” está
velado para sempre; enquanto a ‘Realidade’ é acessível ao nosso
conhecimento.
Por ‘nível de Realidade’ – noção que introduzi pela primeira
vez em minha obra Nous, la particule et le monde’ e depois desenvolvi
em vários artigos – designo um conjunto de sistemas que são
invariáveis sob certas leis: por exemplo, as entidades quânticas estão
subordinadas ás leis quânticas, que são radicalmente diferentes das leis
do mundo físico. Isto é, dois níveis de Realidade são diferentes quando,
115

ao se passar de um para outro, há uma quebra nas leis e uma quebra nos
conceitos fundamentais (como por exemplo, a causalidade).
Os níveis de Realidade são radicalmente distintos dos níveis de
organização como estes foram definidos nas abordagens sistêmicas. Os
níveis de organização não pressupõem uma quebra dos conceitos
fundamentais; vários níveis de organização não pressupõem uma quebra
dos conceitos fundamentais: vários níveis de organização podem
aparecer em um único nível de Realidade. Os níveis de organização
correspondem a diferentes estruturas das mesmas leis fundamentais. Por
exemplo, a economia marxista e a física clássica pertencem ao mesmo
nível de Realidade.
O surgimento de no mínimo três diferentes níveis de Realidade
no estudo dos sistemas naturais – o nível macrofísico, o nível
microfísico e o espaço-tempo cibernético – é um evento maior na
história do conhecimento. Isso pode nos levar a reconsiderar nossa vida
individual e social, a dar uma nova interpretação ao conhecimento
antigo, a expor o conhecimento de nós mesmos de maneira diferente,
aqui e agora.
A existência de diferentes níveis de Realidade tem sido
afirmada por diferentes tradições e civilizações, porém essa afirmação
estava fundamentada no dogma religioso ou na exploração de nosso
universo interior.
No nosso século, num esforço para questionar os fundamentos
da ciência, Edmund Husserl e outros estudiosos detectaram a existência
de diferentes níveis de percepção da Realidade a partir do sujeito-
observador. Contudo, esses pensadores foram marginalizados pelos
filósofos acadêmicos e mal compreendidos pelos físicos, com cada área
tendo sido apreendida na sua respectiva especialização. Na verdade,
esses novos pensadores foram pioneiros na exploração de uma realidade
multidimensional e multirreferencial, na qual o ser humano é capaz de
recuperar seu lugar e sua verticalidade.
A perspectiva que estou apresentando aqui está totalmente de
acordo com aquela dos fundadores da mecânica quântica: Werner
Heisenberg, Wolfgang Pauli e Niels Bohr.
Na verdade, Werner Heisenberg chegou muito perto, em seus
escritos filosóficos, do conceito de ‘nível de Realidade’. Em seu famoso
Manuscript of the year 1942 (publicado somente em 1984) Heisenberg,
que conhecia bem Husserl, introduz a ideia de três regiões de realidade
capaz de dar acesso ao próprio conceito de ‘realidade’ : a primeira
região é aquela da física clássica; a segunda, da física quântica, da
biologia e dos fenômenos psíquicos; e a terceira, da religião e das
experiências filosóficas e artísticas. Essa classificação tem um
fundamento sutil: a conectividade cada vez maior entre o Sujeito e o
Objeto.
O ponto de vista transdisciplinar nos permite considerar uma
realidade multidimensional, estruturada por múltiplos níveis, ao invés
do nível único, da realidade unidimensional do pensamento clássico.

As palavras de Nicolescu orientam o sentido utilizado dos postulados da


transdisciplinaridade. Assim, o Terceiro Incluído aparece como segundo postulado da
abordagem transdisciplinar, promovendo o deslocamento de níveis de Realidade e
níveis de percepção sem a perda das peculiaridades de cada nível. Se a lógica clássica
116

está fundamentada em três axiomas, a saber, a identidade, a não-contradição e o


terceiro excluído (a impossibilidade de um terceiro termo ao mesmo tempo A e não-A),
a lógica do terceiro incluído opera em diferentes níveis de combinação, superando a
contraditoriedade que se encontra em cada plano de imanência ou considerado quântico.
De fato, os pares de opostos só aparecem como contraditórios quando são tomados em
um único nível de Realidade, pois algo não pode ser e deixar de ser ao mesmo tempo na
ordem dos acontecimentos causais. Como diz Nicolescu (2002, p. 51-52):

A maior parte das lógicas quânticas modificou o segundo


axioma da lógica clássica – o axioma da não-contradição – introduzindo
a não-contradição com vários valores de verdade no lugar do par binário
(A e não-A). A história dará crédito a Stéphane Lupasco (1900-1988)
por ter mostrado que a lógica do terceiro incluído é uma lógica
verdadeira , formalizável e formalizada, polivalente (com três valores:
A, não-A e T) e não contraditória.
Nossa compreensão do axioma do terceiro incluído – existe um
terceiro termo que é ao mesmo tempo A e não-A – é completamente
clareada quando a noção de ‘níveis de Realidade’ é introduzida.

Nicolescu apresenta o seguinte esquema que é a representação simbólica da


lógica do terceiro incluído, considerando que é a projeção do estado-T num mesmo
nível de Realidade que produz a aparência de pares antagônicos mutuamente exclusivos,
pois um mesmo nível de Realidade só pode produzir oposições antagônicas. Por isso o
estado-T de um antagonismo só é possível a partir de outro nível de Realidade. Mas o
esquema apresentado a seguir apenas aponta para a possibilidade de ultrapassar as
contradições de um determinado nível de realidade pela presença de um terceiro termo
que se encontra em outro nível de Realidade. Por sua vez, as contradições não são
superadas porque cada novo nível de Realidade tem o seu próprio plano de imanência
bi-polar, necessitando, também, de um terceiro termo pertencente a outro nível de
Realidade. Mas o Terceiro Termo Inclusivo é em si mesmo um plano de imanência
interdependente de todos os níveis de Realidade, sejam eles atuais ou apenas potenciais.
117

Em relação à Teoria da Complexidade, a maior contribuição não é de Nicolescu,


apesar de ele ter incluído a Teoria da Complexidade como terceiro postulado de sua
abordagem transdisciplinar. A principal referência é Edgar Morin (1999, 2005a, 2002,
2005b, 2005c, 2005d, 2004). A seguinte descrição dos postulados da
transdisciplinaridade aprofunda aspectos importantes, esclarecendo sua abrangência e
consistência teórica, mas não dá conta da grande abertura metodológica dos mesmos,
como eixos geradores.

a. A coexistência de diferentes níveis de Realidade e diferentes níveis de


percepção

Se as leis da física moderna permitem a objetivação dos fenômenos mensuráveis


matematicamente, os postulados da transdisciplinaridade presentificam a implicação
sujeito / objeto nas configurações dos diferentes níveis de realidade.
Os níveis de realidade coexistem simultaneamente sem que nenhum deles se
confunda com o outro, sendo impossível a cada um deles existir sem os outros.
Os níveis de realidade não são coisas em si, mas campos coexistentes
diferentemente individuados, cuja percepção depende das conexões e relações
contextuais de quem os percebe – o observador.
118

O âmbito histórico dessa compreensão dos diferentes níveis de realidade provém


dos campos da física quântica e das epistemologias das ciências humana demolidoras da
metafísica moderna: fenomenologia, hermenêutica, ontologia fundamental. O esquema
abaixo procura reunir os principais níveis de realidade reconhecidos pela experiência
normal, cada um dos quais regidos por leis diferentes.

Pode-se ainda recorrer a muitas outras representações diagramáticas da


compreensão da coexistência de diferentes níveis de realidade. Inclusive a relação do
nível biológico com “inexistência de tempo e espaço” e “autoconsistência da partícula”
e “unidade instantânea de tudo” é uma provocação, não tem valor de verdade e sim de
diferenciação de níveis entre si. Já as Figuras abaixo mostram de duas maneiras
diferentes o enunciado correspondente ao postulado 1 da metodologia transdisciplinar e
uma representação dos chácaras componentes da estrutura complexa dos seres humanos,
em que diferentes níveis de realidade se mostram mapeados.
119
120

O reconhecimento dos diferentes níveis de realidade permite o desenvolvimento


de uma consciência partilhada, que se dá como contínuo movimento de ir e vir, expandir
e contrair. O ser humano tem a propriedade de conjugar a totalidade conjuntural ouvida
e divisada em sua compreensão de mundo, em sua abertura para o esclarecimento. Na
espécie humana são muitas as experimentações já realizadas em relação à aprendizagem
de uma autocondução atenta ao instante. É nesse ponto, talvez, que a espécie alcança a
sua maior potência: quando um de seus indivíduos aprende a se autoconduzir e a se
autoproduzir. Há o florescimento da autoconsciência em muitos níveis de realidade. A
epistemologia e a ciência, afinal, não são as únicas formas de se produzir conhecimento.
Outras formas são tão complexas e abrangentes como aquelas alcançadas pela
tecnociência em relação ao aparente poder crescente sobre a natureza. Há, também,
níveis de realidade cuja sutileza é o padrão de realidade. Há também níveis em que a
desordem evidencia um acontecimento novo, pois toda dispersão da energia
potencializa a atualização de uma coesão que é um novo processo de fusão e
combinação de elementos díspares, desordenados. Para que se possa transitar entre os
diferentes níveis de realidade sem que seja necessário permanecer fiel a ele é preciso
incluir o terceiro termo, operar uma lógica dialógica intensiva e criadora.

b. A lógica do terceiro incluído

Lógica do Terceiro Incluído: lógica da inclusão do antagonismo em todos os


níveis de realidade pela presença do Terceiro Termo.
A ação da lógica do terceiro incluído nos diferentes níveis de realidade provoca
a compreensão de uma estrutura aberta da unidade dos níveis de Realidade. Isto implica
na impossibilidade de uma teoria completa e autorreferente.
A formulação é a seguinte: Entre A e não-A há um Terceiro. O terceiro afirma a
coexistência de A e não-A nos diferentes níveis de realidade.
A Lógica do Terceiro Incluído assim pensada é uma criação de Stéphane
Lupasco (1900-1988), e aparece formulada pela primeira vez em sua obra Le Principe
d’antagonisme et la Logique de l’energie – Prolégomènes à une science de la contra-
diction (1951), que representa o ensaio de uma formalização axiomática da lógica do
antagonismo.
121

Lupasco começa o seu livro perguntando: “O que aconteceria se rejeitássemos o


absolutismo do princípio de não-contradição, se introduzíssemos a contradição, uma
contradição irredutível, na estrutura, nas funções e nas próprias operações da lógica?”
Ao dizer isto, Lupasco não está negando a lógica clássica, mas apenas coloca em
dúvida seu absolutismo. A formulação essencial é a seguinte. Para Lupasco, o fenômeno
ou acontecimento ou elemento “e” somente poderá ser potencializado pela atualização
de “não-e”, mas não desaparecer em uma espécie de síntese dialética. Quando um e se
atualiza um não-e se potencializa, quando um não-e se atualiza um e se potencializa.
Ou melhor, só há um com o outro antagonicamente consistente: quando um ocorre o
outro permanece sendo /durando.
Existiria, assim, um estado intermediário, um estado T entre os antagônicos?
É justamente este estado T que aparece como Terceiro Incluído, pois se trata de
um estado que não é nem uma coisa nem outra, nem atual, nem potencial.
Para Lupasco, a palavra “estado” refere-se a três princípios do real: Atualização
A, Potencialização P e Terceiro Incluído T.
Nessa visada, o real é A, P e T simultaneamente: ele é uma polarização
unificada. O Terceiro unifica e e não-e sem subsumi-los, porque ele não é nem uma
coisa nem outra, mas o meio de união no âmbito dos acontecimentos ou fenômenos
implicados. Os esquemas abaixo permitem visualizar a estrutura complexa da Lógica do
Terceiro Incluído.
122
123

Dando concretude à formulação da lógica do antagonismo, pode-se compreender


o que Lupasco afirma de muitas formas.
A lógica do antagonismo a tudo governa? Em toda parte há antagonismo? A
figura abaixo procura concretizar essa estrutura em diversas situações linguísticas. O
antagonismo está, afinal, em toda parte. Algo que nos leva a pensar demoradamente.

Para cada um desses casos a lógica é a mesma: e-não-e, sim-não, afirmação-


negação. Traduzir esta lógica na linguagem comum implica em exprimir a relação
funcional entre uma afirmação e uma negação: para toda afirmação uma negação; para
todo e um não-e. Para todo existente um não-existente. Para todo Ser um Não-Ser. Para
todo positivo um negativo. A força estruturante da Lógica do Terceiro Incluído é algo
que se pode experimentar quando se passa a lidar com complexidades relacionais além
da lógica do Terceiro Excluído. O fato de o antagonismo estrutural ser um modo de
organização básica de tudo o que existe no universo não exclui a inclusão de um
Terceiro, o meio justamente da composição do antagonismo na modelagem dos fluxos e
124

refluxos intermináveis dos sistemas organizados. Assim, pela Lógica do Terceiro


Incluído aprende-se que tudo o que é já foi e será. Todo elemento positivo tem uma
contraparte negativa, toda luz tem uma sombra, toda sombra tem uma luz. O Terceiro
não é nem uma coisa e nem outra, nem sombra e nem luz, mas o meio em que ocorre o
sentido e se presentifica o hiato da causalidade determinada. Incluir o Terceiro é a
forma de compreender que tudo o que se afigura no sentido é fluxo incessante de
consciência impessoal, não retendo senão o dínamo mesmo do fluxo: um ser que se
apercebe ser na passagem do tempo instante, e retém suas formas de ser nas formas
culturais materializadas em todos os seus modos de fazer e de operar. Constrói sua
morada humana.

c. O pensamento da complexidade
A complexidade permite compreender a estrutura em rede de tudo o que é. Tudo
o que é se interliga em diferentes níveis de Realidade. Tudo o que é constituí-se de
sistemas de sistemas de sistemas ao infinito, segundo diferentes níveis de organização.
Como afirma Morin (2000), “Pensar a complexidade é o maior desafio do pensamento
contemporâneo, que necessita de uma reforma no nosso modo de pensar”.
A teoria da complexidade que hoje aparece em cena como construção de uma
ciência transdisciplinar pode ser expressa em sua abrangência polilógica na figura
abaixo:
125

A teoria da complexidade tem pela frente a construção de uma ciência que dê


conta dos diversos níveis de realidade e que coordene a dispersão da complexificação da
vida planetária, pelo encontro inteligente e amoroso com o que constitui a grandeza de
existir em um universo misterioso para quem não se abre em seu florescer e fenecer
criador.
Para se compreender melhor a gênese da Teoria da Complexidade é preciso
estabelecer sua diferença em relação ao que se pode chamar de Ciência Clássica ou
Teoria da Simplicidade, construída modernamente pela civilização ocidental e que hoje
define os limites do “real” oficial.
Como afirma Morin (2000), o pensamento científico clássico se edificou sobre
três pilares: a “ordem”, a “separabilidade”, a “razão”. Tais pilares se encontram hoje
abalados em decorrência do próprio desenvolvimento tecnológico da ciência que se
edificou a partir deles.
A noção de “ordem” estabelecida pela ciência clássica tem estreita relação com a
concepção determinista e mecânica do mundo. A desordem é tomada como um estado
provisório de apreensão dos fenômenos, fruto da ignorância. Atrás de toda aparente
desordem existiria uma ordem pronta para ser descoberta.
126

Essa ideia de ordem universal foi abalada em primeira instância pela


termodinâmica, em seguida pela microfísica e depois pela cosmofísica, e agora pela
física do caos. Na nova abordagem, a ideia de ordem e de desordem deixa de lado a
polarização excludente e passa a assumir uma dialógica que coordena a ordem, a
desordem e a organização. É justamente isso que o pensamento complexo tem como
tarefa investigar: a dialógica dos diversos níveis de constituição dos fenômenos que
dizem respeito à totalidade vivente.
A noção de separabilidade, o segundo pilar do pensamento clássico, corresponde
ao princípio cartesiano segundo o qual é preciso sempre decompor um problema ou
fenômeno estudado em elementos simples. Como diz Morin (2000, p. 199), “Esse
princípio se traduziu cientificamente, de um lado, pela especialização, depois pela
hiperespecialização disciplinar, e de outro, pela ideia de que a realidade objetiva possa
ser considerada sem levar em conta seu observador.”
A separabilidade foi deixada de lado pelo desenvolvimento das “ciências
sistêmicas” no século XX, que reúnem campos separados pelas disciplinas tradicionais
e cujo objeto é constituído por interações entre elementos e não mais por sua separação.
Esse é o caso da ecologia-ciência, que tem por objeto os ecossistemas e a biosfera,
portanto, reúne elementos constituintes antes separados por disciplinas como a zoologia,
a botânica, a microbiologia, a geografia, as ciências físicas. A ecologia-ciência reúne as
ciências da terra e compreende o planeta como um sistema complexo autoprodutor e
auto-organizador.
Também em relação ao critério da separabilidade, a disjunção entre o observador
e sua observação que reina na ciência clássica é colocada em xeque pela física quântica.
Desde Heisenberg o observador interfere em sua observação, não sendo mais possível
não levar em consideração a interferência do observador no fenômeno observado. E se
esse juízo é válido para a microfísica deve também valer para as outras ciências. Assim,
também em relação a toda ciência humana particular não é mais possível que uma delas
se arvore à rainha do conhecimento. Pois não basta apenas desenvolver concepções
sociológicas, filosóficas, psicológicas, antropológicas e históricas do mundo humano,
que agora reclama uma polilógica constituída de muitas abordagens diferenciadas,
coordenadas, talvez, pela emergência comum de uma unificação não reducionista,
portanto, transdisciplinar na feliz acepção do termo.
127

Entretanto, como diz Morin (2000, p. 199): “O pensamento complexo não


substitui a separabilidade pela inseparabilidade – ele convoca uma dialógica que utiliza
o separável inserindo-o na inseparabilidade” (Idem).
O terceiro pilar do modo de pensar clássico é o da lógica indutivo-dedutivo-
identitária. Trata-se de uma Razão absoluta, na medida em que rejeita a contradição
pelo uso da lógica da identidade na qual o terceiro termo de uma proposição é sempre
excluído como possibilidade verdadeira. Indução, dedução e identidade são os três
princípios da Razão clássica. O caráter não contraditório da Razão clara e distinta, como
definiu Descartes, encontrou no século XX refutações e novas proposições que
introduzem a contradição e o antagonismo no sistema da Razão e postulam outros
critérios epistemológicos para a definição e a validação da ciência. Assim, a indução foi
contestada por Popper como método de certificação absoluta para o reconhecimento de
leis gerais a partir de exemplos particulares. Pois pelo fato de se poder afirmar, como
exemplo, que “Todos os cisnes são brancos”, por não ter sido encontrado nenhum cisne
de outra cor, não se pode daí deduzir uma lei universal que afirmaria categoricamente e
com toda a certeza de que só há cisnes brancos. Algo como querer afirmar, pela
indução, que só existe vida inteligente no planeta terra porque até agora com toda a
exploração cosmológica empreendida desde a invenção da luneta por Galileu não foram
encontrados sinais de vida inteligente em outros planetas. O princípio da indução,
assim, relativizado em sua função, mantendo seu valor heurístico incontestável, mas
perdendo o seu caráter de prova absoluta.
Do ponto de vista do princípio da dedução, o seu caráter de prova absoluta
encontrou na formulação teoremática de Gödel o limite da incompletude, pois segundo
Gödel nenhum sistema pode encontrar nele mesmo a demonstração absoluta de sua
validade. Tarski na sua lógica semântica anda na mesma direção, pois segundo ele
nenhum sistema possui os meios suficientes para se autoexplicar. Portanto, qualquer
elaboração científica e teórica caracterizada como metaponto de vista, complexo e
articulado, nunca poderá pretender o alcance da completude absoluta. Todo metaponto
de vista, por mais complexo e articulado que seja, é sempre um ponto de vista.
Em relação ao princípio de identidade, o desenvolvimento de ciências como a
microfísica e a cosmofísica chegou, do ponto de vista empírico-racional, a contradições
profundas que levaram à superação da lógica da identidade e do terceiro excluído. A
aparente dupla natureza da partícula (onda-corpúsculo), e todas as ambiguidades
128

relativas à origem do universo, da matéria, do tempo-espaço, levaram ao


desenvolvimento de uma lógica da complexidade ou lógica do terceiro termo incluído,
ultrapassando-se o princípio da identidade da Razão clássica.
Contudo, os três princípios da Razão clássica não perdem sua importância
histórica e sua utilização epistemológica. Eles são, entretanto, colocados entre
parênteses e são depostos de suas funções régias e absolutas. Apresentam, sem dúvida,
um determinado nível de realidade, mas não dão conta da totalidade conjuntural que a
tudo reúne na incompletude do que só se completa como passagem e doação, silêncio e
palavra, aparecer e desaparecer.
Segundo Morin, os três pilares da Razão clássica foram abalados pelo próprio
desenvolvimento das ciências contemporâneas. Ele pergunta: “Assim, como se conduzir
num universo onde a ordem não é absoluta, ou a separabilidade é limitada, onde a lógica
comporta buracos?” (2000, p. 201). Para ele esse é o problema com o qual se defronta o
pensamento da complexidade.
Com sua positividade a toda prova, Morin identifica três linhas de fuga surgidas
no início dos anos 40 do século XX, que ele chama de “as três teorias”: a teoria da
informação, a cibernética e a teoria dos sistemas. Essas três teorias despontam em uma
perspectiva da complexidade e delimitam os novos meios de modelagem da cultura
humana globalizada. Como diz Morin, “O conjunto dessas três teorias nos introduz num
universo dos fenômenos organizados em que a organização é feita com e contra a
desordem” (2000, p. 202).
Além dessas três teorias assinaladas, Morin acrescenta os desenvolvimentos
conceituais advindos da ideia de auto-organização. Essa ideia foi amplamente
desenvolvida por autores importantes como Von Neumann, Von Foerster, Atlan e
Prigogine. Cada um desses autores trás contribuições importantes para a teoria da
complexidade, não cabendo no momento elucidá-las, mas quem quiser aprofundar sobre
as importantes contribuições desses autores pode perfeitamente empreender uma
pesquisa via web, ou mesmo ler na íntegra o texto de Morin referido. Apenas como
indicação, Von Neumann desenvolveu uma “teoria dos autômatos auto-organizadores”,
colocando a diferença entre máquinas artificiais e “máquinas vivas”. Von Foerster
elaborou o “princípio da ordem pelo barulho” (“order from noise”). Atlan concebe a
teoria do “acaso organizador”. Finalmente Prigogine, com sua teoria termodinâmica dos
processos irreversíveis, introduziu a ideia de organização a partir da desordem. Essas
129

organizações se alimentam de energia para consumir e dissipar a energia para se manter.


No caso do ser vivo, há uma autonomia na retirada da energia de seu meio ambiente que
os mantêm em equilíbrio dinâmico. Justamente é isso o que Morin denomina de auto-
eco-organização, bem próximo do conceito de Maturana (2002) de autopoiese, a
capacidade dos organismos vivos de se autoproduzirem extraindo energia e informação
do seu meio ambiente e integrando-os na organização. Desse modo, citando Morin
(2000, p. 204):
O pensamento da complexidade se apresenta, pois,
como um edifício de muitos andares. A base está formada a
partir das três teorias (informação, cibernética e sistêmica) e
comporta as ferramentas necessárias para uma teoria da
organização. Em seguida, vem o segundo andar, com as ideias
de Von Neumann, Von Foerster e Prigogine sobre a auto-
organização. A esse edifício, pretendi trazer os elementos
suplementares, notadamente três princípios, que são o princípio
dialógico, o princípio de recursão e o princípio hologramático.

Os três princípios acrescentados por Morin ao edifício da teoria da


complexidade, o dialógico, o recursivo e o hologramático, são modos de constituir uma
ordem no meio da desordem do conhecimento pulverizado em muitas disciplinas
particulares, promovendo uma alternativa implicada. Vou falar um pouco de cada um
dos princípios assinalados tomando aspectos de Morin e acrescentando outros, pois há
de se compreender que não são as formas de dizer que determinam o poder
transformador de uma teoria e sim a sua potência conceitual gerativa e salutar.
O princípio dialógico reúne os princípios antagônicos em uma investigação
comum da realidade conjuntural, sendo possível lidar com os dois princípios sem que
um deles tenha que prevalecer sobre o outro. A dialogia dissipa a polarização metafísica
instituindo uma abertura para o tratamento emergente das questões comuns pela via
colaborativa e afetiva do respeito mútuo. Na dialogia não há a negação das diferenças
entre os dialogantes, porque o que importa não é que uma das partes sai vencedora e sim
que todos vençam. A dialogia permite reunir múltiplas e diversas ordens discursivas em
um acordo afetivo em que prevalece o reconhecimento do direito do outro de ser como
é, a partir do momento em que o outro reconhece o mesmo. Na dialogia, ninguém sai
perdendo, todos saem ganhando.
O princípio da recursão organizacional pretende ir além do princípio da
retroação (feedback) ao substituir a noção de regulação pela de autoprodução e auto-
organização. A autoprodução implica em um movimento circular progressivo e
130

regressivo permanente na linha do tempo, um ir e vir constante nas trocas entre os


indivíduos pertencentes ao mesmo sistema vital, ao mesmo ambiente ecológico. A
recursão, assim, é relativa à autoprodução e à auto-organização, no sentido dos
indivíduos e da coletividade respectivamente, e isso de tal maneira que há um ir e vir
fluxonal determinante entre processos de individuação e processos de socialização a
partir do meio vital.
Penso que dizendo assim me aproximo do pensamento de Morin em sua
formulação do princípio recursivo ou de recursão:

É um círculo gerador no qual os produtos e os efeitos


são eles próprios produtores e causadores daquilo que os
produz. Dessa maneira, nós, indivíduos, somos os produtos de
um sistema de reprodução oriundo de muitas eras, mas esse
sistema só pode se reproduzir se nós próprios nos tornarmos os
produtores nos acoplando. Os indivíduos humanos produzem a
sociedade em e mediante as suas interações, mas a sociedade,
enquanto um todo emergente, produz a humanidade desses
indivíduos trazendo-lhes a linguagem e a cultura. (2000, p. 204-
205)

O princípio hologramático coloca em evidência o aparente paradoxo de certos


sistemas em que a parte está no todo e o todo está na parte . Pode-se, então, pressupor
que todo sistema existente em todos os diferentes níveis de realidade é hologramático
no sentido enunciado? Tudo parece apontar nessa direção. A estrutura holográfica
parece perpassar todos os âmbitos da realidade em diferentes planos de constituição. A
própria relação entre Modelo e Cópia seria uma forma do princípio hologramático, na
medida em que uma cópia é sempre a realização de um modelo e um modelo a
possibilidade de uma cópia. A relação entre indivíduo e sociedade também pode ser
compreendida como uma relação recíproca entre todo e parte, em que o todo está na
parte e a parte está no todo instantaneamente, sem interstício de tempo. O indivíduo é
um holograma social, a sociedade é um holograma individual. Holon, que em grego
significa “total”, “inteiro”, está indicando justamente o homólogo, a homologia, a
semelhança entre a parte e o todo, o pequeno e o grande: a harmonia dos contrários e
contraditórios. A expressão de Heráclito Hén Panta (Um é Tudo) apresenta a mesma
estrutura hologramática, pois em cada parte a unidade e em cada unidade a diversidade
e em cada diversidade a multiplicidade e em cada multiplicidade a recursão: Tudo é
sempre Um, Um é sempre Tudo. O princípio hologramático é, assim, um princípio que
reúne tudo em uma unidade múltipla e diversa, estabelecendo o campo de relação das
131

conexões complexas. Aliás, essa seria a base lógica de toda analogia e de toda
comparação. Qualquer compreensão articuladora é sempre uma relação da parte com o
todo, pois sem que um todo esteja presente analogamente na parte, nenhuma parte pode
ser compreendida em seu todo. A memória, também seria uma hologramação
continuada entre o vivido, o vivente e o vivível. Para memorar é preciso que a parte fale
do todo e de que o todo fale da parte, que o todo esteja na parte e que a parte esteja no
todo. De qualquer modo, o holograma é um fenômeno também plástico no sentido da
experiência visual. Nesta dimensão, vejo o holograma como uma imagética da
complexidade.
A teoria da complexidade não nega os princípios da ciência clássica, pois ela se
inscreve na história do conhecimento humano. Tais princípios são pertinentes a um
determinado nível de realidade e funcionam sempre a partir das mesmas condições
universais dadas axiomaticamente. São processos produtivos e de autoprodução de
indivíduos-sociais concretos. São formas históricas de desenvolvimentos humanos
específicos, mas não abarcam a totalidade da espécie. Além do mais, o passado do
conhecimento está no seu presente e no seu futuro e é por isso que todo futuro é futuro
do passado presente. Não é possível negar a importância da ciência moderna, mas é
possível superar o seu horizonte paradigmático pela construção de outro modo de
conhecer, que é outro modo de ser. Há, assim, na teoria da complexidade uma
delimitação de princípios e critérios, de procedimentos e ferramentas conceituais que
operam de modo semelhante à ciência clássica. Digo isso para que não pareça ser a
teoria da complexidade algo muito diferente de qualquer outra teoria e para que não se
conclua ser ela a solução de todos os nossos problemas existenciais.
Morin (2000), ao falar da necessidade de um pensamento complexo procura
mostrar a razoabilidade como critério de composição da ciência que podemos chamar de
implicada com a totalidade vivente em seus diferentes níveis de realidade. Para isso,
entretanto, é preciso uma reforma do pensamento. Como, porém, realizar essa reforma
emergente?
A incerteza é hoje um dos pontos capitais de toda pretensão científica, e isso do
ponto de vista da própria consciência humana diante dos mistérios insondáveis da
origem e do fim do universo, do sentido da vida e da finalidade humana. E para lidar
com a incerteza não é mais possível escondê-la debaixo do tapete da visão mecanicista e
monolateral do mundo. É preciso que a incerteza seja reconhecida em sua consistência
132

conjuntural, pois não é possível resolver problemas vitais negando a existência deles. O
incerto é, portanto, um traço permanente de todo conhecimento humano, porque o
humano é um ser vivo que para continuar vivo precisa autoproduzir-se ecologicamente
sempre, e para isso desenvolve suas estratégias e mecanismos de proteção e de
preservação da vida. A incerteza, portanto, é o desafio posto a toda a humanidade
vivente e diz respeito ao seu modo de produção hoje insustentável. Por isso também a
emergência de uma ciência da complexidade, porque queremos continuar existindo com
sentido e dignidade e não desejamos deixar mais de lado a nossa comum-
responsabilidade, como seres conscientes, em relação ao destino da espécie humana
como um todo. Precisamos, assim, aprender a conhecer o conhecimento para que o
conhecimento aprenda a conhecer o seu próprio desconhecimento na deriva cósmica de
nossa pertença comum, e possa convergir na gestação de modos de vida inteligentes e
inventivos, comum-pertencentes e dispostos ao viver instante.
Morin chega a antecipar alguns princípios guias para pensar a complexidade,
compreendendo-os como complementares e interdependentes. Fazendo um esquema
síntese, são eles:
133

Tomo esses princípios propostos por Morin como instrumentos de construção


que podem ser incorporados na polilógica em que se dispõe a abordagem da
Epistemologia do Educar Transdisciplinar.
134

PARTE II

Método e Desenho Metodológico


do Educar Transdisciplinar
135

6. Delineamentos do método do Educar Transdisciplinar

Partindo do desenvolvimento dos estudos levados a termo na investigação de


perspectivas filosóficas e epistemológicas a respeito do significado da
transdisciplinaridade e de sua emergência planetária, faço agora um esforço redobrado
para delinear o método do Educar Transdisciplinar. O que em certa medida já foi
experimentado em um curso de especialização lato sensu, realizado pela UFBA entre
2004 e 2006, e em um curso de formação em Educação Transdisciplinar iniciado em
2007 e concluído em 2008, também pela UFBA.
Usando os três pilares da transdisciplinaridade, considero que o Educar
Transdisciplinar lida com a coexistência de diferentes níveis de Realidade, opera com
uma lógica inclusiva e se articula como teoria da complexidade. Portanto, o educar
transdisciplinar se constitui como modelagem humana para a plenitude vivente, não
como modelo a ser aplicado em uma seriação gerativa planejada, mas como disposição
e dispositivo para o aprendizado do que é comum-pertencente e do que é necessário
para que cada ser humano floresça plenamente em suas possibilidades ontológicas
matriciais e consteladas, lançadas na deriva cósmica presente.
O que chamo de método do educar transdisciplinar compreende os postulados da
transdisciplinaridade como delineadores e orientadores do caminho do educar
transdisciplinar. Se nós que somos humanos não tomarmos as rédeas do nosso destino, e
nos tornarmos conscientes de tudo por um caminhar próprio e apropriado, o que
significaria ser humano livremente determinado?
Passo a delinear o que considero o método do Educar Transdisciplinar, tomando
os três postulados da abordagem Transdisciplinar como eixos estruturadores
epistemológicos.

a. Coexistência dos diferentes níveis de realidade

A compreensão da coexistência dos diferentes níveis de realidade permite


delimitar o processo do educar como deixar ser o outro o caminho de sua vida. Quer
dizer, favorecer que cada um se torne aquilo que é. O que não quer dizer que cada um já
é algo pronto para ser desenvolvido e sim que cada um tem a potência de destinar-se
como humano tendo como medida o extraordinário. Heráclito disse: “O éthos humano,
o extraordinário (daímon)”. Traduzo esse éthos por “medida”, pois o éthos pode ser
136

compreendido como o modo de ser humano de “morar”. O ser humano “habita” mundo
e para ser o que é mira-se no extraordinário como sua medida humana e sua mediação
cósmica. Dizer, então, “A medida do homem, o extraordinário”, é o mesmo que
reconhecer que o ser humano é na medida do extraordinário, quer dizer, o seu éthos se
configura na mirada do extraordinário. O extraordinário em grego corresponde ao
daímon. Daímon quer dizer “bem-aventurado”, no sentido de valoroso e digno de honra
por seus feitos criadores na transposição dos véus da insensatez e da ignorância
naturalizadas. O daímon é um “protetor” da humanidade em sua gestação temporal.
Assim apareceu para Sócrates a voz do lógos, como um daímon. A medida humana de
Sócrates era o seu daímon. Ele tinha no “extraordinário” sua mirada.
Desculpem-me o aparente jogo de palavras vazias. Mas o que foi dito não é
nenhum jogo de palavras vazias indemonstráveis cientificamente, mas uma expressão
do que não se pode pretender dizer de uma maneira absolutamente objetiva, mas se
pode dizer em aproximações cujo efeito é o alcance de intuições articuladoras e
conectoras de distintas camadas do compreender desvelante.
A medida humana do extraordinário não é algo que é válido para alguns
indivíduos e grupos e inválido para outros da mesma espécie. A medida humana é uma
medida válida para todos os indivíduos humanos indistintamente. É algo inerente ao
processo autoprodutivo e auto-organizador da espécie e já se encontra em andamento
desde o surgimento do universo e o aparecimento do planeta em seu desenvolvimento
biológico.
O ser humano sempre se deparou com a miragem do abismo do seu próprio ser
em situação. E vem se perguntando até hoje quem é, por que é, para que é. Ele também
em sua ontogênese e filogênese já alcançou planos de realização que o aproximam da
divindade em muitos sentidos. Uma divindade, porém, que se autoproduz a partir de
uma condição biológica primária, e que não resiste ao movimento entrópico tendencial
de toda energia do universo. Quer dizer, uma divindade que morre. Mas também recolhe
sua heterogênese finita como um movimento infinito na continuidade dos organismos
vivos autopoiéticos. No seu aparecer e desaparecer permanente, no seu viver e morrer
perpétuos os fenômenos biológicos se mantém como afirmação de um princípio
contrário ao da entropia 9, um princípio neguentrópico10, que ao invés de se “recolher”

9
Entropia, do inglês entropy (1875) VCI, acepção em física 'quantidade de energia ou calor que se
perde num sistema físico ou termodinâmico quando ocorrem mudanças de um estado a outro desse
sistema', donde, 'tendência ao estado de inércia, degradação, p.ext., desordem de um sistema'; do alemão.
137

na dispersão, se renova na ação de autoproduzir-se, negando com seu impulso a morte.


Mas a morte sempre chega para o indivíduo que pode não deixar descendentes.
Entretanto, o indivíduo tem sua perpetuação na vida da espécie que se autoproduz além
da entropia inercial dos fenômenos termodinâmicos, que, aliás, também sofrem
alterações pela presença de forças externas ao seu sistema próprio. É possível, então,
compreender uma relação circular permanente entre vida e morte, neguentropia e
entropia em todos os níveis de realidade.
Também do ponto de vista cosmológico, hoje já se admite a possibilidade de
infinitos universos paralelos, alguns em processo de expansão a partir da Grande
Explosão inicial (teoria do Big-Bang), outros em processo de retração como movimento
contrário (teoria do Big-Crunch). O antagonismo é constitutivo de tudo o que é em
todos os níveis de realidade. No plano humano, o antagonismo se mostra também em
todos os níveis de constituição dos indivíduos e das sociedades. Nos processos de
formação haverá sempre antagonismos em diversas gradações e intensidades. É preciso
aprender a lidar com os antagonismos e os diferentes níveis de realidade para se poder
conduzir o processo do educar humano de uma maneira a implicar cada um em sua
própria individuação e subjetivação.
Esta é uma regra áurea do Educar Transdisciplinar: favorecer o florescimento
dos indivíduos da espécie de tal modo que todos possam aprender o básico comum e
possam experienciar seus próprios talentos e projeções de ser em conjunção complexa e
simples simultaneamente com a totalidade vivente. Uma conquista da consciência da
consciência e da consciência da inconsciência. O passo no abismo da completude
dinâmica, como o fogo que arde perpassando instantaneamente a vastidão do abismo,
passo a passo. Uma contradição, sem dúvida. Porém, uma contradição transparente em
sua unidade primeira, porque não nega a totalidade, apenas a partição instante da
totalidade. A totalidade não é uma soma de partes e sim a unidade de todas as partes.
Ter presente a coexistência dos diferentes níveis de realidade no processo do
educar em todos os seus planos de constituição é cuidar para que o outro não seja
violado em seu poder-ser próprio e apropriado, e possa aprender a ser consciente da

Entropie 'volta sobre si mesmo', vocábulo. criado por Clausius em 1865; ocorre no inglês em 1868 e em
1875, como VCI, difundindo-se pelo fr. entropie, a partir de 1877; prende-se ao gr. entropê,ês 'ação de
voltar(-se), mudança de disposição ou de sentimento, ação de ensimesmar-se'; ver entrop. Verbete do
Dicionário HOUAISS (2001).
10
O aprofundamento do conceito de neguentropia pode ser encontrado em LUPASCO (1990), e significa
entropia negativa, a negação da entropia.
138

consciência e da inconsciência, e possa se tornar valoroso por se tornar humano


amoroso. Entenda-se bem: humano capaz de arder no amar aos fatos do vivente.
Humano amante do amar. Do estar junto, do estar só na conjuntura do simples no
complexo que é o volver e revolver do vivente na projeção temporal e espacial do viver.
Pode-se até dizer: nada há além do vivente já vivido e do vivente por viver. Nada há
além do vivente! O vivente é o que sempre está incluído na dispersão primária e se
tensiona na coesão necessária, sem o que nada se faz perceptível ou compreensível, pois
compreender não é mais do que abarcar o vivente em seu viver. Deixar ser o fluxo
contínuo do fogo sempre vivo, que segundo medidas ascende e segundo medidas apaga.
Deixar ser o que inclui, sem deixar de selecionar o que vai para a mesa, o que vai para o
pasto e o que vai para a queima como preparo do novo semear. Tudo se aproveita e se
inclui na combustão perene do vivente. O vivente ama viver sempre mais, no instante
sem ocaso. Viver é arder transformante.

b. Lógica do Terceiro Incluído

A Lógica do Terceiro Incluído permite conceber o educar transdisciplinar pela


inclusão das oposições e das diferenças entre os indivíduos de um mesmo grupo social e
de grupos sociais distintos. No processo do educar transdisciplinar não há nada para ser
excluído ou incluído em uma alternativa identitária: ou é, ou não é. A lógica identitária
do terceiro termo excluído não dá conta da complexidade do comportamento humano,
porque mesmo sendo também uma máquina biológica autopoética, o ser humano é
constituído de pensamento, ele é como é porque há nele um lógos. Pode-se até dizer, o
ser humano é o ente que é enquanto há nele lógos.
Os gregos traduziam lógos por discurso, e compreendiam o falar do lógos na
visada da totalidade. Lógos é a palavra chave do pensamento grego a partir de Heráclito.
Do lógos tudo se divisa em sua totalidade em um ir e vir constante, um aparecer e um
desaparecer, um esconder e um mostrar, um mentir e iludir e um dizer a verdade e
desiludir. A palavra lógos foi traduzida pelos latinos como ratio, razão. A “razão”
passou a ser a tradução de discurso e passou a significar a razão da lógica identitária, do
reconhecimento e da distinção de verdadeiro e do falso. O homem foi definido como
“animal racional”, numa suposta tradução da definição de homem dada por Aristóteles,
compreendendo-se o ser racional como o que é dotado de raciocínio lógico identitário.
139

Sabe-se hoje, e Heidegger foi um dos mais importantes estudiosos do assunto, que a
definição de Aristóteles é bem mais complexa do que a tradução definidora de homem
como “animal racional”. O racional passou a significar o processo indutivo e dedutivo
da lógica identitária formal. Os outros níveis de constituição do linguajar humano foram
subsumidos e classificados como níveis pré-racionais, como se pudesse existir uma
racionalidade identitária sem corpo próprio e sem as formas de pensamento que são
todas as maneiras de afeto e de afecção da alma e do corpo, como pensou Spinoza
(2008). Bem, tudo o que pode ser dito não escapa de sua abrangência primária. O dito é
uma função que ressoa o instante na dimensão do dizer. Só é uma “verdade” para quem
desvela enigmas.

i. O lógos em Heráclito como discurso inclusivo – dialógica dos


opostos complementares

A lógica identitária exclui da sua visada a compreensão dialógica e dialética de


Heráclito, que pensa o ser como não-ser e o não-ser como ser. O lógos de Heráclito não
tem nada a ver com “razão” ou com a identidade lógica formulada por Aristóteles.
Como compreender as seguintes sentenças, como afirmação da lógica identitária ou
como afirmação da harmonia dos contrários e contraditórios, afirmação de uma lógica
da diferença e do terceiro incluído? Disse Heráclito:

I
Ouvindo não a mim, mas o lógos, é sábio concordar ser
tudo-um.

II
Desse lógos, sendo sempre, são os homens ignorantes
tanto antes de ouvir como depois de o ouvirem; todas as coisas
vêm a ser segundo esse lógos, e ainda assim parecem
inexperientes, embora se experimentem nestas palavras e ações,
tais quais eu exponho, distinguindo cada coisa segundo a
natureza e enunciando como se comporta. Aos outros homens,
encobre-se tanto o que fazem acordados como esquecem o que
fazem dormindo.

III
Não sabendo ouvir, não sabem falar.

IV
140

Ignorantes: ouvindo, parecem surdos; o dito lhes atesta:


presentes, estão ausentes.
V
Ignoram como o divergente consigo mesmo concorda:
harmonia de movimentos contrários, como do arco e da lira.

VI
O contrário é convergente, e dos divergentes a mais
bela harmonia.

VII
Harmonia inaparente mais forte que a do aparente.

VIII
Natureza ama ocultar-se.

IX
Bem-pensar é a maior virtude, e sabedoria dizer coisas
verdadeiras e agir de acordo com a natureza, escutando-a.
XI
O éthos do homem: o daímon (o extraordinário).

XV
Como alguém escaparia diante do que nunca se põe?

XVIII
Embora sendo o lógos comum, a massa vive como se
tivesse um pensamento particular.

XIX
O comum: princípio e fim na circunferência do círculo.

XX
É necessário saber que a guerra é comum e a justiça,
discórdia, e que todas as coisas vêm a ser segundo discórdia e
necessidade.

XXII
Conjunções: completas e não-completas, convergentes e
divergentes, consoantes e dissonantes, e de todas as coisas um e
de um todas as coisas.

XXIII
Deus, dia-noite, inverno-verão, guerrra-paz, saciedade-
fome, mas se alterna como o fogo quando se confunde à
fumaça, recebendo um nome conforme o gosto de cada um.

XXVI
Todas as coisas tocam-se a partir do fogo e o fogo a
partir de todas as coisas, como do ouro as mercadorias e das
mercadorias o ouro.
141

XXVIII
Transformações do fogo: primeiro, mar; do mar, metade
terra, metade ardência. O mar distende-se e mede-se no mesmo
lógos, tal como era antes de se tornar terra.

XXIX
O cosmos, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos
deuses nem nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo
sempre vivo, ascendendo-se segundo medidas e segundo
medidas apagando-se.

XXX
Das coisas lançadas ao acaso, a mais bela, o cosmo.

XXXII
Heráclito diz ser o cosmo, para os acordados, uno e
igual, enquanto, dos que estão deitados, cada qual se volta para
o seu cosmo particular.

XXXIII
Os que dormem são operários e cooperadores nas coisas
que vêm a ser no cosmo.

XXXVII
Cadáveres, mais do que excrementos, devem-se jogar
fora.

XXXVIII
Morrendo, aguarda os homens o que não esperam nem
lhes parece.

XXXIX
Erguer-se sobre o que é presente e tornar-se vigilante
guardiães dos vivos e dos mortos.

XLII
O mesmo é vivo e morto, acordado e adormecido, novo
e velho: pois estes, modificando-se, são aqueles e, novamente,
aqueles, modificando-se, são estes.

XLIII
Transmutando-se, repousa.

XLIV
Sol: novo a cada dia.

XLVI
142

A natureza de cada dia é uma e a mesma.

XLVII
Caminho: em cima, embaixo, um e o mesmo.

XLIX
Nos mesmos rios entramos e não entramos, somos e não
somos.

L
Não é possível entrar duas vezes no mesmo rio.

LII
As coisas frias esquentam-se, o quente esfria-se, o
úmido seca, o seco umidifica-se.

LXI
Um, dez mil, se for o melhor.

LXXVIII
O pensar é comum a todos.

LXXIX
Em todos os homens está o conhecer a si mesmo e bem-
pensar.

LXXXV
Uma, a coisa sábia: ter ciência do conhecimento que
dirige tudo através de tudo.

LXXXVII
Para falar com saber é necessário apoiar-se sobre a
comunidade de todas as coisas, como a cidade sobre a lei e
ainda mais vigorosamente. Porque todas as leis humanas são
alimentadas por uma lei una, a divina; pois exerce seu domínio
tão longe quanto se consente, e basta e envolve a todas as
outras.
XCIV
Para os homens não é melhor acontecer-lhes tudo o que
querem.

XCV
Se não esperar, não encontrará o inesperado, sendo não
encontrável e inacessível.

XCVI
Não encontrarias os limites da alma, mesmo todo o
caminho percorrido, tão profundo lógos possui.

XCVII
Da alma é um lógos que a si mesmo aumenta.

C
143

É difícil lutar com o coração, pois se paga com alma.

CIII
Recordar-se também do que esquece por onde passa o
caminho.

CVI
Eu busco a mim mesmo.

CVII
É bem necessário investigar muitas coisas para os
homens serem amantes da sabedoria.

CXXVI
O ensino dos retóricos: princípio dos embustes.

CXXIX
Comédias, tragédias e ritos sagrados: remédios.

CXXXI
O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da
criança.11

Depois de ter passado pela experiência de ler Heráclito como seria possível
traduzir Lógos por Razão? Entretanto, o que parece obvio é obscuro, o que parece
obscuro é claro. O pensamento de Heráclito é o lógos. Esse lógos é a Totalidade. A
Totalidade não é uma soma de partes. Totalidade é o que se reúne no mesmo sem-
fundamento. A Totalidade é a unidade de tudo. A unidade de tudo é nada em particular.
Não há partícula na unidade. A partícula é uma parte. A unidade é anterior ao tempo, à
partícula, à partição, à separação, à dispersão, à desunião. O tempo não tem unidade em
si mesmo. Por exemplo, a unidade de um tempo musical é dada pelo seu compasso.
Então, o tempo é uma partição e não uma unidade. O sentido da unidade não vem do
tempo. Tão pouco vem do espaço. O sentido de unidade vem da própria unidade em si
mesma. O lógos de Heráclito fala dessa unidade. Mas ele fala da unidade a partir da
partição, do tempo, do espaço. A partir da vida humana de seu tempo e de seu lugar.
Heráclito fala a partir de sua pátria, que é outra forma de partição. Mas ao falar de um
lugar específico ele fala de todos os lugares sem nomear lugar algum. Ele fala da
unidade de tudo. Ele fala da diferença na unidade de tudo. Do ir e vir de ser e de não-
ser. Fala da vida na morte e da morte na vida. Fala do inaparente como vaza de todo
aparente, fundo sem fundo sobre o qual todo manifesto desponta.

11
Todos os aforismos de Heráclito transcritos foram tirados da tradução de COSTA (2000).
144

O pensamento de Heráclito é uma homologia da reunião dos contrários como a


mais bela harmonia. O seu lógos é discurso da totalidade vivente. Como alguém pode
manter-se ignorante diante da sabedoria? Heráclito parece perguntar algo assim, pois
diante do que não conhece ocaso como alguém pode imaginar esconder-se?12 O lógos é
a homologia do que é em sua dinâmica vivente. O lógos é o vivente que reúne todos os
vividos e todos os vivíveis, reúne tudo no sem-fundamento, reúne tudo na partilha. O
lógos é o lugar da alétheia: a claridade a partir da qual tudo se divisa em uma mesma
jornada. E tudo se distribui segundo o lógos. A saga do ser humano é o seu discurso. Se
esse discurso é em primeiro lugar uma escuta, o discurso que o lógos é se dá como
diálogo do pensamento. O ser humano capaz de escutar o que o logos diz é o ser
humano que tem um destino na claridade do discurso. Mas, o lógos também sabe
esconder, sabe dissimular, sabe confundir, sabe mentir. O lógos sabe também que nunca
sabe o que é o lógos. Quem sabe é o ser humano capaz de escutá-lo. Escutando o lógos
é sábio concordar ser tudo-um. O saber do lógos é uma autoconsciência divina. Os
contemporâneos de Heráclito não poderiam compreendê-lo. Heráclito não foi
compreendido no seu tempo. Ganhou a fama de obscuro. É em relação aos seus
contemporâneos que ele se refere à inépcia humana de permanecer presente no presente
dos acontecimentos constelados.
Heráclito continua sendo o obscuro, porque nada do que ele ressoou como lógos
serviu de inspiração para os seus contemporâneos e para os seus pósteros no sentido de
um coligar-se à totalidade vivente. Toda dispersão, toda desordem se reúnem no âmbito
em que o discurso é um ressoar da mais bela harmonia no instante sem ocaso. Heráclito
ressoa o que é em seu sendo um fogo sempre vivo. A velocidade do raio. Uma
disposição para aprender com o lógos aquilo que no discurso se pode ouvir como
harmonia dos contrários: o encontrar-se diante da clareira da unidade que a tudo reúne
em seu sem-fundo.
Heráclito diz: “O tempo é uma criança brincando, jogando: reinado da criança”
(o último fragmento). O tempo está lançado como o reinado da criança. Deixar a
criança brincar no tempo da criança. Incluir a criança no jogo cósmico. Deixar ser a
criança-tempo em seu brincar criança. O tempo é uma criança brincando! A medida do
educar transdisciplinar.

12
Veja-se o Fragmento de Heráclito.
145

Heráclito aponta como medida o extraordinário. O tempo é uma criança


brincando. O tempo é uma criança aprendendo. O tempo, reinado da criança brincante.
O seu lógos é inclusivo. Entretanto não é estúpido: “Cadáveres, mais do que
excrementos, devem-se jogar fora”. Para que serve um cadáver? Para que ser o que
perdeu a vida?
O lógos inclusivo de Heráclito é o mais rigoroso: “Bem-pensar é a maior
virtude, e sabedoria dizer coisas verdadeiras e agir de acordo com a natureza,
escutando-a.” A inclusão implica em uma decidida atitude de rigor, pois bem-pensar é
algo que requer escuta e discernimento.
É, pois, o discernimento que se deve buscar no educar transdisciplinar, o
discernimento que se pode aprender através de práticas dialógicas bem plantadas e
articuladas como investigação permanente da totalidade conjuntural. O aprender no
educar transdisciplinar é um movimento que vai do caos à ordem e retoma o caos para
plasmar toda ordem nova. Não há aplicação de modelo e sim modelagem no educar
transdisciplinar.
A lógica do terceiro incluído permite articular outra concepção de avaliação,
pois avaliar não pode significar averiguar se alguém aprendeu o que se considera
conteúdo programático obrigatório, mas sim o modo como se aprende a aprender na
linha do tempo, em que tudo o que é tende para uma resolução e transformação
inevitável. O que está cheio se esvaziará, o que está no alto ficará embaixo, o quente se
torna frio, o pequeno se torna grande, o que é vivo estará morto, o que é morto voltará a
viver da morte. A vida desse lógos é uma vida por inteiro em que não é preciso tomar
partido. Essa é a característica da consciência enquanto fenômeno: ela é um meio
lingüístico que reúne as polarizações antagônicas, apesar de poder também como
consciência, repartir-se e tornar-se polarizada. É o que acontece no desenvolvimento
humano atual, a maioria das pessoas não desenvolve a totalidade dos recursos potenciais
disponíveis, como indivíduos de uma espécie tão complexa como a humana, por falta de
condições e de ambiente cultural que promova o florescimento de indivíduos
conscientes da consciência e da inconsciência. Indivíduos em movimentos de
subjetivações, em que toda a espécie e suas relações com a totalidade vivente se vê
recolhida em uma serenidade abissal, e se aquieta na simplificação das complicações,
deixando ser a plenitude vivente.
146

A vida do cosmo e da espécie humana é perpassada pelo lógos, na concepção de


Heráclito. Entretanto, lógos é uma palavra grega. Acontece que o mundo é maior do que
a fronteira e o território simbólico grego. Há em outras culturas humanas outras palavras
que confluem como lógos?

ii. O Tao como inclusão e distinção, unidade, identidade,


diferença... fluxo e refluxo do mesmo sem fundamento. A
lógica inclusiva de Lao Tsé no Tao Te Ching e o Tei-Gi,
símbolo da unidade e estrutura molar da ontologia da espécie
humana representada no I Ching

Ao que parece, na cultura chinesa milenar Lógos é o correspondente da palavra


Tao. Tao significa caminho, curso, transcurso, passagem, fluxo, movimento. Tao
também diz o que a tudo reúne no mesmo sem-fundamento. O Tao Te Ching atribuído à
Lao Tsé possui uma compreensão do Tao homóloga àquela do Lógos de Heráclito. Isto
significa compreender uma confluência do mesmo diante do que não conhece ocaso?
Em outra ambiência, em um período temporal coetâneo ao de Heráclito, Lao Tsé
concebe uma homologação do Tao, um dizer correspondente ao fluxo, uma expressão
escrita ideogramática, em si mesma ato criador e ato capaz de ser reproduzido em sua
formulação ideogramática. Algo, portanto, que pode ser lido e a partir da leitura pode-se
homologar o dito. Quer dizer, pode-se escutá-lo em seu discurso interminável, cheio de
silêncios e palavras, luzes e sombras, princípio, meio e fim.
Considero que todo ato de leitura procede como execução de uma partitura
ideogramática como experiência de autoconhecimento. A execução do texto
ideogramático consiste em se ater aos dados e fatos sem tirar e nem pôr. Os dados e
fatos são acontecimentos que se desvelam na compreensão articuladora presente. A
presença no presente é o caminho sábio. E sábio é o caminho da reunião dos opostos e
antagônicos, sem que seja preciso acabar o antagonismo e a oposição, que não
desaparecem. A visada de Lao Tsé reúne tudo no Tao. Mas o Tao não é acessível em
sua completude ao modo de ser da espécie humana. O Tao é a origem de todas as “dez-
mil-coisas”. Lao Tsé ideogramou, “escreveu” o que se pode traduz como Escritos do
Curso e sua Virtude. A visada do Tao Te Ching é o caminho sábio. Sábio é o caminho
que sabe aonde vai e por onde pisa. Sábio é o caminho que vai e nunca volta, e mesmo
147

assim sempre voltando ao início como a confluência de todo rio para o mar e o jorrar de
toda fonte.
Sábio é o caminho que como nascente brota de sua ambiência própria e jamais
deixa de ser nascente e jorrar na aparente gratuidade da fonte. Procurar ouvir um pouco
de Lao Tsé no que deixou ideogramado e ficou conhecido como Tao Te Ching é uma
oportunidade de investigarmos mais a fundo o sentido da Lógica do Terceiro Incluído,
necessária para uma condução da vida humana harmonizada à totalidade vivente.

Dao De Jing (Tao Te Ching)

Escritos do Curso e Sua Virtude

Lao Tsé (Lao-tsé)

o curso que se pode discorrer não é o eterno curso


o nome que se pode nomear não é o eterno nome

imanifesto nomeia a origem do céu e da terra


manifesto nomeia a mãe das dez-mil-coisas

portanto
no imanifesto se contempla seu deslumbramento
148

no manifesto se contempla seu delineamento

ambos... o mesmo saindo com nomes diversos


o mesmo diz-se mistério

mistério que se renova no mistério...


porta de todo deslumbramento

II

sob o céu
conhecer-se o que faz o belo belo eis o feio!
conhecer-se o que faz o bom bom eis o não bom!

portanto
o imanifesto e o manifesto consurgem
o fácil e o difícil confluem
o longo e o curto condizem
o alto e o baixo convergem
o som e a voz concordam
o anverso e o reverso coincidem

por isso

o homem santo cumpre os atos sem atuar


pratica a doutrina sem falar
as dez mil coisas operam sem serem impedidas
nascem sem serem possuídas
atuam sem serem dominadas

concluída a obra ele não se atém


e só por não se ater ela não se esvai 13
III

13
Fiz questão de incluir a escrita ideogramática chinesa com os versos de Lao Tsé, para lembrar da
existência de mundos culturais muito diferentes do nosso modo de pensar e de escrever
149

não primando os bons o povo não compete


não prezando bens custosos o povo não alardoa
não exibindo o desejável seu coração não erra

por isso o governo do homem santo

esvazia os corações
sacia as entranhas
enfraquece as vontades
vigora os ossos
nunca deixa o povo com saber e desejos
não deixa o sábio ousar atuar

atuando o não-atuar então não há desgoverno

IV

o curso é um vaso vazio


o uso nunca o replena

abismal!
parece o progenitor das dez mil coisas

abranda o cume
desfaz o emaranhado
harmoniza a luz
congloba o pó

profundo!
parece algo lá existir

eu não sei de quem é filho


afigura-se o anterior do ancestral

o céu e a terra são sem amor-humano


consideram as dez-mil-coisas cães-de-palha

o homem santo é sem amor-humano


considera as dez-mil-coisas cães-de-palha

o vão entre o céu e a terra...


como se parece a um fole!

mas esvazia-se sem se contrair


move-se e ainda extravasa!

muitas palavras e números o limitam


melhor guardá-lo no íntimo
VI
150

o espírito do vale não morre


diz-se místico feminino

a porta do místico feminino


diz-se raiz do céu e da terra

suave e multíflua

parece lá existir
contudo opera fio a fio

VII

o céu dura a terra perdura


céu e terra duram que duram

por não viverem para si


eis porque podem viver eternamente

por isso o homem santo


ficando atrás sobressai
ficando fora persiste

não será por não ter nada seu ?


pode pois realizar o que é seu

VIII

o bem supremo é como água


água... apura as dez-mil-coisas sem disputa
habita onde os homens abominam
por isso abeira-se ao curso

morar bom é onde


coração bom é profundidade
doar bom é amor
falar bom é sinceridade
governo bom é ordem
serviço bom é capacidade
movimento bom é quando

eis que só sem disputa não há oposição

XIV

ao olhá-lo não se vê o nome soa yi


ao escutá-lo não se ouve o nome soa xi
151

ao tocá-lo não se obtém o nome soa wei

estes três não se podem decompor


portanto entremeados constituem um

seu alto não se alumbra


seu baixo não se assombra
contínuo... sem se poder nomear

retorna a não-coisa

isto se diz: forma do não-forma


imagem do não-coisa
isto se diz: claroescurecer

ao defrontá-lo não se vê o rosto


ao seguí-lo não se vê o verso

reintegrando-se ao curso da antiguidade


pode-se reger o presente

poder conhecer a origem da antiguidade


isto se diz: o desemaranhar do curso

XV

na antiguidade os que bem atuavam o curso:


sutilmente sublimes misticamente penetrantes
tão profundos que não podiam ser conhecidos
e só porque incognoscíveis força-se configurá-los

cautelosos! como a transpor águas hibernais


vacilantes! como a temer vizinhos dos quatro cantos
reverentes! como hóspedes
evanescentes! como gelo a derreter
genuínos! como lenho tosco
abertos! como o vale
opacos! como a água turva

quem pode pelo repouso aos poucos clarear o turvo ?


quem pode pelo movimento aos poucos avivar a paz ?

quem guarda este curso não quer ficar pleno


e só por não ficar pleno pode recôndito renovar-se

XVI

atingindo o vazio extremo


conservar-se firme no repouso

as dez-mil-coisas confluindo
152

eu assim as contemplo no refluxo:

eis que as coisas no florescimento


retornam uma a uma à raiz

o retorno à raiz soa: repouso


isto se diz: retornar ao destino
o retorno ao destino soa: eternidade
conhecer a eternidade soa: alumbramento

não conhecer a eternidade é tresloucar no azar


conhecer a eternidade é englobante

englobamento então justiça


justiça então mediação
mediação então céu
céu então curso
curso então duração

dissolvendo-se o corpo não periga

XXII

curvando então fica inteiro


retorcendo então fica direito
esvaziando então fica pleno
desgastando então fica novo
sendo pouco então é obtido
sendo demais então é perturbador

assim
o homem santo abraçando o uno
torna-se modelo sob o céu

não se exibindo então brilha


não se afirmando então figura
não se vangloriando então tem mérito
não se enaltecendo então perdura

só por não disputar


sob o céu ninguém pode com ele disputar

o adágio antigo: "curvando então fica inteiro"


como pode ser palavra vazia?

em verdade integra nele reintegrando

XXIII

falar diluído é o natural

portanto
153

um vendaval não dura uma manhã


um temporal não dura um dia

quem os fomenta ?
céu e terra

céu e terra ... sua fúria não dura


quanto mais a intempérie humana!

portanto
quem segue o curso une-se ao curso
quem segue a virtude une-se à virtude
quem segue a perdição une-se à perdição

quem se une ao curso este o acolhe com alegria


quem se une à virtude esta o acolhe com alegria
quem se une à perdição esta o acolhe com alegria

pouca fé não merece fé

XXIV

Na ponta dos pés não se firma


escarranchado não se anda

quem se exibe não brilha


quem se afirma não figura
quem se vangloria não tem mérito
quem se enaltece não perdura

isto em relação ao curso soa:


superfluidade parasitismo
coisas que todos abominam

portanto
quem no curso nelas não incorre

XXV

Há algo indefinido porém perfeito


antes de nascerem céu e terra

Silente! apartado!
fica só não muda
tudo pervade nada periga

pode ser considerado a mãe sob o céu

eu não sei seu nome


dou-lhe a grafia: (Dao) (Tao)
154

forçado a nomeá-lo digo: grande

grande soa: além


além soa: longínquo
longínquo soa: retornante

portanto
o curso é grande
o céu é grande
a terra é grande
o mediador é grande

no universo há quatro grandes


o mediador é um dos quatro
o homem segue a terra
a terra segue o céu
o céu segue o curso
o curso segue a si mesmo

XXVI

o pesado é raiz do ligeiro


o repouso é senhor do agitado

por isso o homem santo

na jornada não larga o peso da bagagem


embora tenha visões magníficas fica calmo e distante

que fazer?
é senhor de dez mil carros
e por ele desleixa o império?

sendo ligeiro então perde a raiz


sendo agitado então perde a soberania

LXXXI

palavras fiéis não são belas


belas palavras não fazem fé

o bom não se discute


155

o discutível não faz bem

o saber não é extensivo


a erudição não faz saber

o homem santo não acumula bens


quanto mais faz aos outros tanto mais tem para si
quanto mais dá aos outros tanto mais é em si

o curso do céu beneficia sem prejudicar


o curso do homem santo atua sem disputar 14

Lao Tsé é um desses personagens históricos que são tão extraordinários que se
confundem ao mito e aparecem como não tendo existido como pessoa. De qualquer
modo, se existiu ou não existiu Lao Tsé, o escritor do Tao Te Ching, não é isso o que
importa. Existem até notícias de que ele, cujo nome real seria Erh Dan Li, nasceu no sul
da China na região de Ch’u por volta de 604 a.C. Lao Tsé seria um apelido de infância,
pois teria nascido velho. Lao Tsé pode significar “velho sábio”, ou “o aprendiz velho”,
ou “o jovem-velho sábio”. Teria sido contemporâneo de Confúcio (Kung Fu Tsé) e
chegou a ser seu discípulo. Tornou-se um alto funcionário, vivendo como o guardião
dos arquivos do tribunal imperial, e atraiu muitos seguidores com sua sabedoria, embora
sempre haja se recusado a fixar suas ideias por escrito, por temer que as palavras
pudessem ser convertidas em dogma formal. Assim, ele não estabeleceu nenhum código
rígido de comportamento, preferindo ensinar que a conduta de uma pessoa deve ser
governada pelo instinto e pela consciência. Dizia que nenhuma tarefa deveria ser
apressada, que tudo deve acontecer no seu devido tempo. Acreditava que a simplicidade
era a chave para a verdade e a liberdade,
Era desse modo que encorajava seus seguidores para observarem mais a natureza
do que os ensinamentos de mestres de sabedoria, pois a natureza não toma partido e os
mestres são todos partidários. Convidava a todos a empreenderem o caminho sábio,
pelo menos a mirar-se por ele. Dizia que cada um tem que despertar o seu próprio
mestre, tornar-se liberto de toda servidão. Lao Tsé desejava que a sua filosofia

14
Todas as citações de Lao Tsé aqui transcritas foram tiradas da tradução Mário Bruno Sproviero, meio
eletrônico, registro Mirandum Plus 1 - ISSN 1516-5124. Disponível em:
http://www.hottopos.com/tao/dao_de_jing02.htm. Trata-se de uma tradução bilíngue.
156

permanecesse apenas como um modo natural de vida estabelecido sob uma base de
compreensão e despojamento, serenidade e respeito.
Conta-se que aos 80 anos, desiludido com as pessoas da sua terra, Lao Tsé se
dirigiu para o Tibete, na fronteira ocidental da China, sendo acompanhado de um
garoto. Uma das versões mais difundidas conta que um guarda da fronteira o
reconheceu e lhe lembrou que possivelmente todos os seus ensinamentos logo cairiam
no esquecimento se alguma coisa não ficasse gravada, e só permitiu que ele deixasse a
China após escrever seus ensinamentos básicos, para que pelo menos parte de seu
conhecimento pudesse ser preservada para a posteridade. Atendendo ao pedido do
guarda, de uma só vez Lao Tsé redigiu (reza a lenda que escreveu numa grande pedra) a
coletânea dos 81 versos que se tornariam a síntese de sua sabedoria e do pensamento
Taoista Chinês. O Tao Te Ching é, pois, o Livro do Tao, o Livro do Caminho Sábio.
Há muitos sentidos para o significado do nome Tao Te Ching. Suas palavras
isoladas significam: Tao (Infinito, a Essência, a Consciência Invisível, o Insondável, o
como, de como as coisas acontecem), Te (que significa força, virtude, mas de uma
forma não ligada aos nossos valores ocidentais), Ching (livro, escrito, manuscrito).
Literalmente, portanto, significa "O livro de como as coisas são" e na realidade é este o
seu objetivo, mostrar como as coisas no universo são segundo o Tao. Também significa
"O Livro que Revela Deus" e "O livro que leva à Divindade".
Coerentemente com a sua maneira, Lao Tsé não o escreveu por princípios
doutrinários, e sim para exprimir em versos (aforismos) o inexprimível, de forma tal que
pudessem ser compreendidos por qualquer pessoa diante de diversas situações. O
pensamento de Lao Tsé pode ser expresso perfeitamente na figura do Tei-Gi (abaixo).

O Tei-Gi é o símbolo mais feliz para expressar a totalidade comum-pertencente


das polaridades Yin-Yang que se reúnem no mesmo sem-fundamento comum que é o
157

Tao, o fluxo, o refluxo, o âmbito de todo deslumbramento e de toda sabedoria, o imóvel


que também se movimenta. Pois, como escreveu Lao Tsé, o Tao é tanto o inominável
como o nominável. O sem nome é a origem do céu e da terra. O que tem nome é a mãe
de todas as coisas. Desse modo, para se observar as maravilhas do Tao é preciso estar
livre do desejo, do mesmo modo que atento ao desejo é possível justamente observar as
manifestações do Curso. Assim, tanto o deslumbramento – a ausência de desejo – como
o alumbramento – o dar-se conta do desejo – surgem da mesma maneira, apenas
diferem no nome. A unidade é o mistério. Mistério dos mistérios. A unidade é a porta
para todas as maravilhas, todo deslumbramento – toda ação de reunião das polaridades.
A unidade é o que não se pode dizer o que é, pois é e não é ao mesmo tempo, vai e vem
no mesmo fluir de tudo. A unidade é o mistério. Não falemos em vão do mistério!
Sim, quando o ente humano percebe que o bem é o bem, o mal é criado. É a
história do conhecimento humano. O conhecimento humano é conhecimento de bem e
de mal, de belo e de feio, de verdadeiro e de falso. É o conhecimento humano baseado
na desigualdade dos polos complementares que cria a separação de bem e de mal, sem
levar em conta a unidade insondável: o não-forma – o Tao – origem de todas as formas.
O ser e o não ser são gerados mutuamente: um é no outro, o mesmo. A imagem
do contínuo espaço-tempo. O difícil tem em si o fácil. O longo e o curto se revelam
mutuamente. O alto e o baixo se suportam mutuamente. Instrumentos musicais e voz
ressoam harmonizando um ao outro. O que vai à frente mira o que vai atrás, o que vai
atrás segue o da frente.
Lao Tsé discorre acerca do caminho sábio, e diz que o sábio trabalha sem agir e
ensina sem palavras. Trabalha com muitas coisas, mas não as controla. É criador, mas
não possui sua criação, deixa ser o outro o caminho de sua sabedoria, desde que seja
esse um sábio caminho. O sábio age sem expectativas. Tem sucesso, mas não se apega
ao mesmo. Por não se apegar ao sucesso dura eternamente.
Lao Tsé chama a atenção para a não glorificação dos que realizam grandes
feitos, pois a glorificação leva à competitividade entre as pessoas. Para ele, a presença
de ladrões é proporcional à riqueza acumulada. Mostrar coisas desejadas para as pessoas
levam-nas a tornarem-se competitivas. O governo sábio esvazia o coração das pessoas e
enche suas barrigas, enfraquece suas ambições competitivas e fortalece seus “ossos”. As
pessoas precisam da consistência que as torne aptas a seguir o caminho do Tao. Por
isso, é preciso não ensinar o Tao e sim tornar possível pelo agir que ele se faça
158

aprendente. A ganância e a astúcia não devem ser incentivadas nas pessoas, pois o qeu
se precisa aprender é comum a todos, apesar de ser diferente e único em cada um, em
cada parte do todo que também é o todo na parte. O melhor governo é aquele que menos
age. Quanto menos se age menos controle é necessário. O ser humano não foi feito para
dominar a natureza e sim para habitá-la como aquele que a sabe cuidar e preservar em
sua finitude.
Para Lao Tsé a melhor imagem para o Tao parece ser o “vazio”. Do vazio tudo é
extraído e mesmo assim ele não se enche nunca, não se exaure. O Tao parece ser a fonte
de todas as coisas. Nele os cortes são cegos, os nós são desatados, os brilhos são
embaçados, une-se ao pó. O Tao é tão indistinto que parece existir. De quem o Tao é
filho? Sua imagem é anterior à imagem das divindades.
No verso 22 do Tao Te Ching pode-se ouvir: Aquele que conhece o outro é
sábio. Aquele que conhece a si mesmo é iluminado. Aquele que vence o outro é forte.
Aquele que vence a si mesmo é poderoso. Aquele que conhece a alegria é rico. Aquele
que conserva o seu caminho tem vontade. A humildade é o caminho da inteireza. Para
permanecer ereto é preciso curvar-se. Para permanecer pleno é preciso esvaziar-se. Para
permanecer novo é preciso gastar-se. O sábio brilha porque não se exibe. Não fazendo-
se notar é notado. Não elogiando-se tem mérito. E por que não compete e não está
competindo, ninguém no mundo pode competir com ele.
O caminho do Tao, o caminho do Big-Bang e do Big-Crunch. O caminho além e
aquém de todo caminho. Um Terceiro sempre incluído.
Da ciência antiga chinesa há também o I Ching, o Livro das Mutações, que
sintetiza a calculabilidade de um conjunto de possibilidades infinitas, em um recorte
finito, partindo da unidade e abarcando a multiplicidade e a diversidade. A origem de
todas as coisas repousa no “vazio”. Do “vazio”, céu e terra são gerados ao mesmo
tempo. Céu e Terra são o pai e a mãe de todas as “dez-mil-coisas”. A simbólica do I
Ching mostra a magnitude do pensamento chinês ao exprimir as estruturas matriciais do
mediador, que é o ser humano, e sua relação de pertença ao sem-forma em suas
possibilidades ontológicas próprias. O I Ching é a expressão de um sistema
cosmológico completo e suas relações com o mediador que é o ser humano. O I Ching
trata das mutações na experiência humana, de acordo com a unidade que a tudo une no
mesmo sem fundamento. Pensando com Lao Tsé, as mutações, entretanto, são mutações
decorrentes de ações e reações. O I Ching descreve campos arquetípicos que orientam
159

qualquer processo de investigação do curso de sua vida, tomando como medida o curso
natural das coisas. Todas as coisas reunidas no “vazio”. O I Ching se constitui como
um instrumento oracular, pressupondo todo um ritual de acesso, que passa pelo
esvaziamento radical dos pensamentos entulhados e um foco preciso naquilo que se
deseja investigar acerca de sua posição no mundo, de sua situação, de suas condições e
possibilidades. Ele é o oráculo que aponta, sugere, homologa um encontro com o saber
de si em um determinado ponto e momento do curso de sua vida. A sistematização do I
Ching como hoje se conhece parece ter sido feita por Confúcio, e tem um caráter moral
muito específico e representa uma estrutura patriarcal muito plantada. Entretanto, saindo
da linguagem psicológica e atendo-nos à linguagem conceitual e ideogramática do I
Ching, as possibilidades de leitura se tornam multiplicadas. As expressões são agora
linhas contínuas e linhas interrompidas, força Yang e força Yin. Da união de três linhas
contínuas com três linhas interrompidas superpostas de baixo para cima, surgem
combinações gerativas primárias que estarão constituindo os acontecimentos por
homologias e aproximações imagéticas, contextuais e conceituais. A partir de uma
estrutura unitária simples o modelo de combinações possíveis é evidente em si mesmo,
é deduzido dos seus elementos e é previsível em qualquer situação em que apareça o
contínuo e o descontínuo em todas as suas relações possíveis. Do “vazio”, o um e o
dois, o contínuo e o descontínuo, o forte e o fraco, o alto e o baixo. Do um e do dois, o
três, o quatro o cinco, o seis, o sete e o oito. Dos oito, sessenta e quatro. Dos sessenta e
quatro, quatro mil e noventa e seis. Dos quatro mil e noventa e seis, dezesseis milhões,
setecentos e setenta e sete mil e duzentos e dezesseis casos. E isso ao infinito. Podemos
chamar isso de dispersão ao infinito, fragmentação infinita das possibilidades uma vez
ampliada a sua potência gerativa por si mesma. É tudo uma questão de caso.
As figuras abaixo mostram o sistema do I Ching em sua estrutura gerativa
primária, suas derivações e algumas de suas variantes gráficas. A primeira figura é uma
mandala com toda a série de possibilidades de 82. A segunda reúne os 64 hexagramas
em sua sequência gerativa ascendente, pela numeração de 1 a 64. A terceira imagem é
mais simples, apresenta os nove elementos geradores, sendo o nono (o centro) o vazio
ou o fluxo formando o Tei Gi. A quarta imagem é uma variante da série completa dos
hexagramas dispostos em octógono. A quinta e última dispõe os 64 hexagramas em um
círculo e permite visualizar o sistema completo como uma espécie de organização
atômica com suas transações e relações entre as partes e os princípios do todo.
160
161
162
163

A longa passagem por Heráclito e Lao Tsé é uma maneira de enfatizar a


compreensão da inclusão em todos os níveis de realidade do ponto de vista de uma
cosmovisão articuladora que tanto Heráclito como Lao Tsé realizam de maneira radical.
A lógica da inclusão do terceiro no par de opostos não é, assim, uma invenção humana.
O ser humano é em si mesmo um mediador inclusivo. O seu modo de ser é o encontro
de muitas eras e de muitos entes (sistemas de sistemas de sistemas). Sua potência
espiritual é a de ser um complexo organismo ressonante. Uma cria ressonante de um
universo caótico em vias de ordenamento. A espécie humana aparece como resultante
de muitas e muitíssimas conexões criadoras. É parte de uma deriva gerativa que segue
em todas as direções e sentidos. É como a onda de luz, ela se propaga em todas as
direções e sentidos simultaneamente. A onda de luz também se degenera, se gasta, se
164

exaure. Quando isso acontece, ela se desintegra em um ilimitado silêncio. O fluxo


refluxa e volta a fluxar. Temos diante as portas do conhecimento. Tenhamos presente a
responsabilidade conatural diante das possibilidades de nos tornarmos mediadores
conscientes da consciência e da inconsciência.
É um sentido de comum-responsabilidade que nos pervade e nos toma de
assalto. Somos, afinal, ou não somos amantes do caminho sábio? Passar por Buda pode
ser uma maneira feliz de aprofundar ainda mais a lógica da inclusão como eixo
metodológico do educar transdisciplinar.

III - Incluindo Buda na Lógica Inclusiva: o Caminho Óctuplo


como Caminho do Educar Transdisciplinar

Contarei um pouco da história de Buda, para melhor localizar o seu pensamento


inclusivo ao optar por seguir o caminho do equilíbrio, o caminho do meio. Buda
também é um desses personagens marcados por um nascimento sobrenatural. Os
historiadores dizem que por volta do século quinto ou sexto antes de Cristo nasceu
Siddhartha Gautama, em Kapilavastu, no sopé do Himalaia. Era filho de Sudhodhana,
rei da casta dos Sákyas, e deveria por obrigação herdar o trono paterno. Sete dias após o
nascimento, a mãe de Siddhartha morreu. Foi então criado pela tia Mahaprajapati
Gautami, irmã da mãe. O ermitão Asita, que vivia nas montanhas próximas, sabendo do
nascimento do Príncipe decidiu visitá-lo no palácio. Percebendo a aura iluminada da
criança, Asita, aos prantos, revelou aquilo que acabava de prever, Ele viu a história do
príncipe se revelar como um raio: "O pequeno príncipe, se permanecer no palácio, após
a juventude, tornar-se-á um grande rei e governará o mundo. Por outro lado, se
abandonar os prazeres do mundo e ingressar na senda mística, tornar-se-á um Buddha, o
Salvador do Mundo". Siddhartha apresentava também os 32 sinais no corpo, que
revelava as condições indispensáveis para se tornar um Buda, o que deixou o ancião
Asita ainda mais comovido e simultaneamente triste por não poder viver o suficiente
para ouvir os ensinamentos do mestre. Entretanto o rei Suddhodana levou em
consideração apenas a condição de Siddhartha se tornar seu herdeiro no reino de
Kapilavastu.
O espírito de Siddhartha era inquieto e pesquisador, dotado de uma inteligência
aguda e de uma hipersensibilidade. Refletia sobre o significado da vida e do mundo,
165

procurando a verdade por trás das coisas. Conta-se que aos sete anos, o Príncipe
acompanhou o pai a um passeio. Não era comum aos palacianos ultrapassarem as
fronteiras demarcadas pelos altos muros do palácio. Nesse passeio o Príncipe teve uma
experiência muito forte ao deter-se na frente de um campo que estava sendo preparado
para a semeadura. De repente, viu no solo revolvido um verme ser devorado por um
pássaro que lá pousara. Alçando voo, o pássaro foi atacado em pleno ar por uma ave de
rapina. Com o pássaro nas garras, a ave voou alto em velocidade. Mas uma flecha com
ponta de metal foi disparada, cortando o azul do céu para atingir o peito da ave de
rapina. Diante dessa experiência Siddhartha manteve-se por algum momento em transe,
sem entender. Depois, ficou chocado pelo que acabara de assistir, enquanto procurava
uma resposta plausível para a indagação: "O que leva os seres vivos a se matarem entre
si?". O fato o fez lembrar que sua mãe morrera quando ele nasceu. Não conseguia
entender a tragédia que assolava a vida de todos os seres. "Ninguém estava livre do
sofrimento", pensou.
Aos 16 anos o Príncipe se casou com sua prima Yasodhara com quem teve um
filho. O seu pai o cercou de todas as maravilhas da época: os melhores professores de
todas as áreas, as mais caras roupas, as mais finas cortesãs, as iguarias mais sofisticadas.
Ele dispunha de tudo do bom e do melhor. Mas nada disso o fazia feliz. Vivia
introspectivo, meditativo, insatisfeito. Algo o ocupava dia e noite: qual a razão de tudo
o que via, em toda parte luta e sofrimento? O caráter introspectivo de Siddhartha fez
com que o apelidassem Sákyamuni, que significa o sábio silencioso da casta dos
Sákyas. Com este nome ele é também diferenciado de outros Budas.
Por saber de seu comportamento insatisfeito seu pai ordenará total cuidado de
todos para que o mantivessem isolado do mundo ao redor do palácio, temendo a
concretização da profecia feita pelo ermitão Asita.
Um dia Siddhartha resolveu sair sem avisar, vestido sobriamente, acompanhado
de seu fiel servo Channa. Anda pelas ruas estreitas de Kapila e se revelou para ele uma
outra realidade escondida pelo pai e pelo luxo do palácio real. De repente avista um
homem de idade sendo ultrajado por um mais velho. Impressionado com a cena,
pergunta a Channa o que se passava com o homem jovem que insultava o velho.
Channa respondeu que o jovem agia assim porque se tratava de um velho. As pessoas
idosas são afastadas da convivência com os outros porque não têm mais valor. E
Channa repetia o que era sabido de todos e dizia que assim sempre havia sido, que esta
166

era a lei da vida. Mas Siddhartha não se satisfez com o que ouviu de Channa. Um
pouco mais adiante se deparam com um homem cheio de chagas e pus cuja expressão
era de muito sofrimento. Inquieto, volta a perguntar à Channa o que se passava com
aquele homem. Channa responde que o homem estava doente por falta de cuidados com
a saúde e bom alimento, por isso sofria das fraquezas da carne, e que todos estavam
sujeitos a passar pela mesma coisa.
Continuando a caminhada, se deparam agora com um cortejo fúnebre. Havia
muito sofrimento na expressão dos que acompanhavam o cortejo. Adivinhando a
pergunta de Siddhartha, Channa disse: - É a morte. Confuso, quis abandonar o local,
mas uma nova cena chamou-lhe a atenção. Tratava-se de um homem esfarrapado e
esquálido, um pedinte. O olhar desse homem impressionou Siddhartha. Era sereno e
profundo. O olhar sereno de um homem livre, vencedor do sofrimento. Channa logo
falou que se tratava de um homem santo, pois vestia um manto amarelo e tinha a cabeça
raspada, e que homens assim haviam entendido o significado da vida.
Foi a partir da visão tida desse monge que Siddhartha vislumbrou a existência de
uma saída que conduzisse ao despertar. Despertou nele o desejo de descobrir o mistério
daquela serenidade que vira no monge pedinte. Sua intenção passou a ser descobrir o
segredo da serenidade e oferecê-la ao mundo dos sofrimentos como cura. Quis logo
informa seu pai de sua decisão. O rei, entretanto, impediu-o de sair do palácio.
Paralisado como prisioneiro em sua própria casa, passou a meditar atentamente no que
havia visto no seu passeio com Channa.
Após longa meditação, compreendeu que os ignorantes, apesar de naturalmente
fadados ao envelhecimento, desprezam os velhos por pura estupidez. Pois, se todos
passarão pelo estado de envelhecimento e decrepitude física, não é correto ter repulsa ou
desprezo por aquilo que é próprio da condição humana. A partir dai passou a considerar
o sofrimento humano como sendo causado pelo próprio homem em seu modo de ser. O
sofrimento é a condição humana a partir da qual se pode libertar do sofrimento. Há,
portanto, um caminho de conhecimento ser percorrido para se alcançar a libertação.
Siddhartha visualiza o caminho do conhecimento para se alcançar a vitória sobre a
condição humana dada. Começa a se delinear em Siddhartha o sentido do
autoconhecimento como uma busca de conhecimento das causas do sofrimento e a
maneira de transformar o sofrimento em oportunidade de aprendizado.
167

Diz-se que aos 29 anos Siddhartha deixou definitivamente o palácio e partiu para
sua nova vida em busca do conhecimento das causas do sofrimento e de sua cura
definitiva. Deixou para trás tudo o que o ligava à vida real, inclusive o seu filho recém-
nascido Rahula e sua esposa Yasodhara.
Inicia, então, sua vida religiosa de investigador de si mesmo. Viajou em direção
ao sul e ficou em Rajagriha, capital do reino de Magadha, onde se dedicou à prática com
o seu primeiro mestre, Alara Kalama, que havia atingido "os domínios do nada" através
da meditação. Siddhartha atingiu logo o mesmo estágio, mas não ficou satisfeito, pois
não encontrou a resposta que procurava. Foi ter, então, com o mestre Uddaka
Ramaputta, que havia atingido "os domínios além do pensamento". Sakyamuni tornou-
se mestre desta forma de meditação, mas continuava insatisfeito. Os seus dois primeiros
mestres não conseguiram auxiliá-lo a encontrar o que procurava. Abandonando seus
mestres da meditação foi refugiar-se na floresta de Uruvela, cortada pelo rio Nairanjana.
Lá encontrou os ascetas Sadus, e com eles praticou o ascetismo, com grande rigor, por
aproximadamente seis anos.
Um belo dia, ouviu um barqueiro que passava no rio ensinando música ao seu
discípulo. Dizia que as cordas de um instrumento, se muito frouxas, não emitiam um
som adequado, e se muito esticadas, elas arrebentavam. Naquele momento ele
percebeu que as austeridades físicas não eram o caminho para se alcançar a liberação.
Que a privação excessiva debilitara seu organismo e o impossibilitara de meditar como
deveria, afastando-o cada vez mais de seu verdadeiro objetivo, pelo qual havia
renunciado à vida mundana. Passando por lá, uma jovem pastora de nome Sujata
ofereceu-lhe uma tigela de leite coalhado. Com gosto, Siddhartha aceitou, quebrando o
seu jejum. Seus cinco companheiros acharam então que ele era um fraco, por
entenderem que ele já não estava mais resistindo à tentação, e retiraram-se então do seu
convívio. Antes eles ouviram de Siddhartha uma explicação. Apontando o dedo para o
rio Nairanjana, disse "Veja aquele rio. Sua correnteza corre em ritmo normal. Ela nunca
se adianta e nem se atrasa. Ele apenas corre. Nós temos que ser como aquele rio."
Sozinho, Siddhartha resolveu iniciar um novo período de meditação, sem se
deixar abater pelo desânimo: "Mesmo que o sangue se esgote, mesmo que a carne se
decomponha, mesmo que os ossos caiam em pedaços, não arredarei os pés daqui, até
que encontre o caminho da iluminação". Estava decidido a ir às últimas consequências.
Vagando, aproximou-se de uma figueira nas margens do rio e debaixo dela sentou-se
168

em posição de lótus (Zazen), esvaziando todos os pensamentos e não detendo-se ou


apegando-se em nenhum apelo da mente e dos sentidos.

Conta-se que Siddhartha permaneceu em Zazen durante vários dias. Depois de


longo tempo, uma luz começa a brilhar no meio de sua testa. Isto desperta a ira de Nara,
o Grande Tentador, pois ele percebe que o seu poder estava ameaçado pela luz de
Siddhartha. E Nara o tenta de muitas maneiras: sede, luxúria, medo, descontentamento e
distrações de prazer. Foi também tomado por visões de inumeráveis exércitos de
demônios atacando-o de todas as formas e com todas as mais terríveis armas. Sentado
em um estado de total absorção, ele alcança todos os graus de realização incluindo total
onisciência, adquirindo o conhecimento de todo o seu ciclo de mortes e renascimentos.
Finalmente, Mara tentou tirá-lo de sua meditação pelo ataque ao ego. Rugiu: "Quem
pensas que és? Com que direito procuras pela Suprema Iluminação? Quem é tua
testemunha?" Gautama silenciosamente estendeu a mão direita para tocar a terra, que
estremeceu e gritou de suas entranhas "Eu sou tua testemunha".
Uma chuva caiu de um céu totalmente sem nuvens em resposta à sua suprema
conquista. Então uma serpente Naja gigante (conhecida por Naga) postou-se atrás e
acima da cabeça de Gautama, para que os pingos da chuva não atrapalhassem sua
meditação.
Finalmente, na manhã de lua cheia de dezembro, no momento em que olhava o
planeta Vênus brilhando no céu oriental, ele obteve a perfeita Iluminação. Percebeu
então que toda a realidade é uma só. Que, no Cosmo, todos os seres estão
harmoniosamente unidos. Que nada existe por si mesmo, nem pode a natureza de
alguma coisa ser conhecida senão conforme se relaciona com o Cosmo. Com a luz do
Cosmo, a consciência se torna iluminada. E então, aos 35 anos, Siddhartha tornou-se
Buda. E disse assim de sua experiência:

Existe uma esfera onde não é terra, nem água, nem fogo, nem ar... que não é
nem este mundo e nem outro, nem sol e nem lua. Eu nego que esteja vindo ou
indo, que permanece e que seja morte ou nascimento. É simplesmente o fim do
sofrimento. Essencialmente todos os seres vivos são Budas, dotados de
169

sabedoria e virtude, mas como a mente humana se inverteu através do


pensamento ilusório, não o conseguem perceber.

A partir do estado Buda alcançado por Siddhartha, ele compreende a unidade de


tudo. Percebe, assim, que todo ser humano seja ele burro ou inteligente, estúpido ou
gentil, feio ou bonito, homem ou mulher, é perfeito e completo tal como é. A natureza
de cada ser é a mesma natureza de Buda, tem as mesmas possibilidades alcançadas por
Siddhartha em sua busca de autoconhecimento.
Diz-se que Sakyamuni após a sua iluminação permaneceu durante sete dias
sentado no mesmo local. Meditou, então, acerca da “Lei da Organização Dependente”
expressa abaixo:

Havendo isto, há aquilo; quando isto se origina, aquilo se origina. Sendo


assim, havendo a ignorância, há o nome-e-forma. Havendo o nome-e-forma, há
os seis órgãos de percepção, há o contato; havendo o contato, há a percepção;
havendo a percepção, há o apego; havendo o apego, há o desejo; havendo o
desejo, há a existência; havendo a existência, há o nascimento, há a velhice, a
morte, a preocupação, a tristeza, o sofrimento, o pesar e o desespero. Assim,
pois, surge o sofrimento.

O Buda Sakyamuni compreendeu a inter-relação de tudo com tudo. Tudo está


interagindo continuamente dando origem a processos que estão sempre mudando em
virtude das interações sofridas. Nada, portanto, permanece para sempre em parte
alguma. A impermanência é a realidade última de todas as coisas. Todo sofrimento,
então, nasce do apego às coisas passadas. Esta é a lei cósmica derradeira: o fluxo
contínuo de tudo. Os hindus chamam de Dharma a esta lei da impermanência. O
Dharma de todos os seres é o de morrer, pois tudo o que nasce morre, e o que morre
renasce de algum outro modo, de acordo ao Karma de cada um, ao modo de agir nas
infindáveis interações.
Após ter alcançado a iluminação sapiencial ao compreender as causas de todos
os sofrimentos, Buda resolveu ensinar o que aprendeu aos que buscam a iluminação.
Seus primeiros discípulos foram seus cinco companheiros de ascetismo. Ensinou-os o
caminho óctuplo, o caminho das oito atitudes corretas: Compreensão correta,
Pensamento correto, Palavra correta, Ação correta, Vida correta, Esforço correto,
Atenção correta e Meditação correta. As figura abaixo reúnem o caminho óctuplo em
formas de mandalas. É importante seguir a sequência no sentido horário, de cima para
baixo.
170
171

Em sua iluminação, Buda compreende que a fonte de todo sofrimento é a ideia


da existência de um “eu” substancial. Todos os seres que se prendem à ideia de “eu” se
tornam prisioneiros do sofrimento. O “eu” é o produtor do desejo, da cólera e da
ignorância, que são os três venenos que originam os sofrimentos. Eliminada a ideia de
“eu”, os três venenos e os sofrimentos cessarão. Esta é a Nobre Verdade da Cessação do
Sofrimento. Buda ensinou que para se alcançar a cessação, é necessária a prática do
óctuplo caminho. Esta é a Nobre Verdade do Caminho da Cessação do Sofrimento.
Buda não pretendia formar nenhuma religião, nem ter seguidores adorando ele.
Ele pregava a libertação de todas as coisas: "O verdadeiro culto não consiste em
oferecer incenso, flores e outros objetos materiais, mas em esforçar-se para seguir o
mesmo caminho daquele que se venera". Para ele, o eu é o mestre do eu; que outro
mestre poderia existir? Puro ou impuro cada um o é por si mesmo; ninguém pode
purificar outrem. Dizia: “Sede vós mesmos vossa bandeira e vosso próprio refúgio. Não
vos confiei a nenhum refúgio exterior a vós. Apegai-vos fortemente à verdade. Que ela
seja vossa bandeira e vosso refúgio. Aqueles que assim o fizerem atingirão a meta
suprema”.
172

O que foi apresentado são impressões da vida e do pensamento de Buda. Serve-


nos como ampliação do horizonte compreensivo da lógica do terceiro incluído, que é
um dos pilares do Educar Transdisciplinar. A vida de Siddhartha que se tornou Buda é
um dos acontecimentos mais radicais da história da espécie humana, mas ele mesmo
deixou claro que não se pode pretender eliminar o sofrimento enquanto existir um “eu”.
É preciso, pois, aprender a deixar de ser um “eu” para nos tornarmos livres de todo
sofrimento. É isto possível sem que se deixe de ser humano?
A senda do Buda Sakyamuni é muito radical. Buda convidou seus seguidores ao
abandono do mundo humano do sofrimento, pela cessação do desejo, da ira e da
ignorância. De que modo, então, o seu caminho óctuplo pode ser observado com
precisão na condução do educar transdisciplinar? É possível praticar o caminho óctuplo
sem que seja preciso que nos tornemos budistas?
Apropriamo-nos do caminho óctuplo como aprendizagem de si mesmo, além de
si mesmo: uma transdisciplina. Uma disciplina que reúne tudo em uma totalidade
vivente-morrente. Neste ponto, o si mesmo é o ponto chave. Não é o “eu” mesmo, mas
o si mesmo o que ganha relevo. O sentido próprio e apropriador da aprendizagem e da
desaprendizagem corretas: aprender a ser-não-ser, aprender a pensar-não-pensar,
aprender a viver junto-não viver junto, aprender a fazer-não-fazer.
O que, entretanto, os pilares para a Educação no século XXI têm a ver com o
caminho óctuplo budista e com a inclusão do antielemento antagônico em cada um dos
casos assinalados do aprender?
O caminho óctuplo é a forma de Buda indicar a senda do autoconhecimento
passa a passo. É preciso, em primeiro lugar, reconhecer nosso estado de ser
condicionado ao passado. A Compreensão correta nasce do reconhecimento de que
aquilo que chamamos de “eu” é a origem de todos os pensamentos condicionados ao
movimento cármico. O esquema abaixo sintetiza o espectro da compreensão correta.
173

Quando se é capaz de compreender corretamente a condição humana fundada


em um “eu” substancial ilusório, se pode ter consciência da impermanência, do apego,
da ilusão identitária e do nirvana. A compreensão correta é o primeiro passo para se
vencer o “eu” e seus três entraves: o desejo, a ira e a ignorância. Sem uma compreensão
correta não nos desatamos das identificações do “eu” agindo por ressonância aos seus
apelos. A compreensão, portanto, precisa ser correta, rigorosa, radical, criteriosa,
abrangente para poder constituir o primeiro passo da senda do autoconhecimento.
Autoconhecer-se é em primeira instância compreender a impermanência, o apego, a
ilusão identitária e a consciência esvaziada a partir da qual a compreensão é um comum-
pertencimento de ser humano e cosmo. Compreender corretamente é o mesmo que
reunir sempre incluindo o terceiro termo.
A compreensão correta leva ao pensamento correto. O segundo passo do
autoconhecimento diz respeito aos pensamentos. O que vem a ser um pensamento
correto? Significa dizer que há pensamentos incorretos? Qual é o modelo de referência
dos pensamentos corretos e dos incorretos?
O pensamento correto é o que se atém ao próprio pensamento. Correto é o
pensamento não identificado, instante, presente. O que se passa no presente? O
174

pensamento correto é o pensamento presente, o pensamento não condicionado: o


pensamento que sabe que todo pensamento condicionado é resultado do “eu”
psicológico. O acesso ao pensamento correto promana da luz da compreensão. Pensar
correto é pensar luz: aperceber-se da consciência da consciência e da inconsciência.
Será algo assim homólogo ao pensar correto de Buda? Sabemos que é muito mais do
que isso ou aquilo. É muito mais do que tudo o que se possa dizer e o que não se possa
dizer. Esta é uma homologia que ressoa segundo a medida do seu instrumento
ressonante. É uma migalha diante do banquete do pensar correto.
O pensamento correto é o âmbito iluminador da palavra correta. O que vem a
ser a palavra correta? A palavra correta é o meio de realização do pensar correto. A
palavra realiza pensamentos. Palavra é pensamento, pensamento é palavra. Um pensar
correto diz palavras corretas. Palavras corretas são pensamentos corretos. Pensamentos
corretos são palavras corretas. Compreensão, pensamento, palavra confluem na correção
originária do luzir. Compreender correto, pensar correto, falar correto são três
momentos distintos do mesmo autoconhecer-se. A palavra correta é ação correta.
A ação correta é a palavra correta. Correta é a ação que inclui tudo em tudo sem
perder a unidade da ação. Incluir tudo é o agir que compreende corretamente, pensa
corretamente e fala corretamente. Incluir tudo sem submeter-se a nada. Inclinar-se
diante do grande para acolher o que é pequeno: a palavra correta. Não ser um ponto
obscuro e efêmero em sua incompletude. Ser a totalidade na descrição de cada coisa
particular: a palavra correta. Ouvir antes de falar, dizer o que está ao alcance de cada
situação: a palavra correta como ação correta. Como agir diante de uma situação
qualquer emergente? Como é o agir correto?
Agir sem agir, diria Lao Tsé, eis o agir correto. A compreensão correta faz
germinar o pensamento correto. O pensamento correto faz emanar a palavra correta. A
palavra correta faz ser a ação correta. Não agir não é a negação do agir, mas sua
confirmação. Não agindo as coisas seguem o curso, deságuam na completude dinâmica
do mar. O não agir do agir correto é o agir correto. Não intervir, não intrometer-se, não
conduzir, mas deixar ser o que já é. Por ser correta a ação transforma sem deformar,
dirige sem impor, caminha sem apegos. Por isso a ação correta é livre do determinismo
do pensamento condicionado do eu psicológico. A ação correta não age, ela se integra
ao movimento como o fluxo no refluxo, o silêncio na palavra. Toda ação correta é ação
que deixa ser o fluxo como é.
175

Tudo isso dá um nó de marinheiro em nossos pensamentos condicionados sobre


o agir e se resolve no quinto passo do autoconhecimento: o correto modo de vida. O
que é uma vida correta? Trata-se sempre da vida vivida e da vida vivente. Como
vivemos? O que fazemos com a nossa vida? Que formas de relações temos com os
nossos semelhantes e com os dessemelhantes, que compõe igualmente nosso meio de
vida? Como é um modo de vida correto, uma vida correta?
A vida é como água, a tudo se conforma. E por se conformar a todas as formas,
transborda e submerge todo obstáculo. Na perspectiva budista, o modo de vida correto é
o que se abstém dos desejos, não por negá-los, mas por não mais acreditar neles. Não
deixar-se comandar por eles cegamente. A ignorância torna-nos desviantes na condução
do viver conjugado, pois somos inconscientes de nossa ação imediata no imediato
existir mental, social e ambiental. Cada um de nós é um modo de vida correto em estado
latente. Encontrar o modo de vida correto é encontrar-se na totalidade do vivente. O
aqui e o agora é o modo de vida correto. Viver inteligentemente, não acumular, não
apegar-se, não... Isso não para merecer um paraíso eterno, mas por comunhão ao que é
um fogo sempre vivo. Viver o instante é saber que tudo se degrada, acaba, morre, passa,
renasce. É, pois, aprender a viver de maneira radicalmente livre, inteiramente
corresponsável pelo viver e pelo morrer. O viver correto é o viver em paz consigo, com
os outros e com a totalidade conjuntural. A medida do viver correto é o extraordinário.
Mirar-se no extraordinário é almejar tornar-se aquilo que se é: um modo de vida correto.
O modo de vida correto é ação correta, palavra correta, pensamento correto e
compreensão correta, simultaneamente. Viver corretamente é compreender, pensar, falar
e agir corretamente. O que dá no mesmo. Viver corretamente, portanto, é tornar-se
pacificador sem perder a tensão justa. E para ser pacificador é preciso ser muito forte e
muito poderoso. O poder e a força necessários para um viver correto não advém de
nenhuma causa pessoal ou privada, mas do encontro derradeiro com o viver correto. A
compaixão é também um traço do modo de vida correto. Mas a compaixão não é para
fracos e oprimidos, ela é para aqueles que recolhem a força e o poder como dádivas de
bem-aventurados que requisitam a atenção correta no cuidado e zelo amoroso com o
vivo e o vivente. O viver correto não precisa restringir-se à vida monástica, pois todo
ser humano tem em si o viver correto. A questão não é apenas moral, de hábitos, de
costumes, mas é primacialmente ética, no sentido da atitude diante do viver. Como se
176

vive, essa é a questão. Qual é o escopo de nossas vidas? Eis o ponto chave do viver
correto.
Todo modo de vida correto requer um esforço correto. O esforço correto é o
trabalho correto. O trabalho correto é o conjunto de fazeres e afazeres que nos mantém
vivos. O esforço correto se constitui do esforço sem esforço. O que é isso? Isso é o que
é como esforço correto. O esforço correto é a inclusão de um terceiro termo que não é
nem menos e nem mais, nem tanto nem, tão pouco. O esforço correto nunca cansa,
porque repousa a cada momento no tencionamento justo, como as cordas bem afinadas
de um instrumento musical que permitem que o músico realize o esforço de executar a
música corretamente. O esforço correto é semelhante à força das águas em suas
correntes e à dança cósmica em seu incansável fluxo. Esforçar-se corretamente para
manter viva a dinâmica do instante sem ocaso é seguir o fluxo dos ciclos vitais sem
precipitar-se antes do tempo, deixando ser o fluxo pela manutenção do instrumento
afinado. O esforço correto pode-se ainda dizer, é o esforço da criação de si mesmo e de
suas relações de pertença com a totalidade, é o caminho do tornar-se plenamente na
perfeição de cada perfeição. Como diz o Buda Sakyamuni, cada partícula do universo,
incluindo todos os entes e todos os seres, é perfeita em si mesma. Cada coisa no seu
lugar próprio. O que desfaz a perfeição em sua inteireza é o “eu”. Os pensamentos do
“eu” são resultado da fragmentação e do entorpecimento advindos dos próprios
pensamentos que produzem o “eu”. O “eu” é o mestre do “eu”, como diz Buda, ele se
engendra em suas formulações desejantes e ignorantes do ser mesmo do desejo, que é
ânsia de mais-vida mesmo na morte. O “eu” é o produtor do real como esforço
incorreto. O por ser incorreto o esforço do “eu” ele se torna a fonte de seus próprios
sofrimentos e mazelas. Pois o esforço correto é a disposição para fazer tudo com arte e
completude e não deixar passar ressentimentos e apegos que contaminam a livre ação de
encontrar-se sendo na passagem como cântico que ressoa a cada instante do fluxo. E
segue sem olhar para trás, por isso em seu esforço correto deixa um rastro que convida a
cada um a se tornar na medida do extraordinário. Eis o esforço correto.
Sim, todo esforço correto requer uma atenção correta. Estamos no sétimo passo
da senda do autoconhecimento. A atenção correta é a atenção ao instante presente, nem
antes e nem depois. Toda atenção correta demanda energia presente e pressupõe o
esforço correto, a vida correta, o agir correto, a palavra correta, o pensamento correto e
a compreensão correta. A atenção correta é a intenção correta. Qual é o intento do
177

autoconhecimento? Fazer-nos melhor conhecedores e agentes conscientes dos limites,


das condições e das possibilidades do existir? Qual é a atenção correta do
autoconhecimento? Não seria o conhecimento do conhecimento e do desconhecimento?
Ou seria outra coisa? E qual outra coisa?
Estar localizado no presente é atenção correta. Ela acompanha o fluxo dos
acontecimentos em suas variações de intensidade mantendo-nos distanciados das
polarizações. A atenção correta é a distância correta das polaridades. Ela inclui o
terceiro em sua dinâmica instante. A atenção correta é a atitude favorecedora da
meditação correta.
A meditação correta é a contemplação correta. Ela é correta porque não se
excede em devaneios ou partições afetivas, mas segue o fluxo da totalidade sem
identificar-se com nenhuma de suas partes, reunindo tudo na unidade inominável, sem
perder de vista a impermanência. Meditar corretamente é manter atento esforço no viver
correto como agir correto na palavra e no pensamento compreendendo tudo sem nada
exaurir.
O caminho óctuplo é o caminho da inclusão de tudo em tudo, sem que nada seja
gerado além do livre. A modelagem do caminho óctuplo contempla a vivência
continuada do autoconhecimento como deixar ser o fluxo em sua perfeição instante. Ele
é um meio apropriado para o trabalho correto do autoconhecimento, fundamento não
fundado do Educar Transdisciplinar.
Tomar o caminho óctuplo como apropriado para o florescimento da
autoconsciência búdica que em cada ser dormita é compreender, pensar, falar, agir,
viver, esforçar-se, atentar e meditar corretamente, tudo ao mesmo tempo, na unidade
justa de tudo o que é e do que não é no sendo do ser.
O caminho óctuplo é, portanto, um meio transdisciplinar para a ativação de uma
práxis que potencialize o humano para sua perfeição além da mente condicionada e do
“eu” psicológico. Nesta visada, o ser humano se encontra na abertura para a realização
da perfeição divina em sua construção como espécie, o que requer o trabalho continuado
de todos ao longo das infinitas gerações do mesmo UmTudo.
Há, também, no legado budista que se pode incluir como meio adequado para a
investigação de si mesmo, o sublime Sutra de Lótus do Buda Sakyamuni. A palavra
“sutra” em sânscrito significa “linha, fio, regra, aforismo”. Portanto, o Sutra de Lótus
reúne em forma de versos todos os ensinamentos do Buda, de uma forma tão sublime
178

só ao alcance de uma vivência própria e apropriada. Trata-se de uma explicação da vida


no todo e nos detalhes mínimos. O Sutra de Lótus elucida com êxito a energia
fundamental da vida – a energia vital da sabedoria inata em todas as vidas humanas,
dando expressão à força da benevolência que emana no seu íntimo. O Sutra de Lótus
elucida o potencial infinito da vida através de imagens e descrições de acontecimentos
surpreendentes. Sakyamuni descreveu a sua iluminação ensinando-a através de
descrições da Cerimônia do Sutra de Lótus. Pela sua inteireza e força própria o Sutra de
Lótus é o auge dos ensinamentos de Buda.
Pela sua grandeza e beleza, apresento abaixo dois capítulos do Sutra de Lótus,
Hoben (Meios), Juryo - Jigague (Revelação da Vida Eterna do Buda), como forma de
convidar a todos a terem acesso direto à sublime arte do Buda de incluir tudo em tudo,
sem perder de vista a causação advinda de todo desejo-ação consciente ou inconsciente.

Capítulo Hoben (Meios)

Nesse momento, o Buda levantou-se serenamente de sua meditação e dirigiu-se a


Sharihotsu, dizendo: "A sabedoria dos budas é infinitamente profunda e imensurável. O
portal dessa sabedoria é difícil de compreender e de transpor. Nenhum dos homens de
erudição ou de absorção é capaz de compreendê-la.

***

Qual é a razão disso? Um buda é aquele que serviu a centenas , a milhares, a dezenas de
milhares, a incontáveis budas e executou um número incalculável de práticas religiosas.
Ele empenha-se corajosa e ininterruptamente e seu nome é universalmente conhecido.
Um Buda é aquele que compreendeu a Lei insondável e nunca antes revelada, pregando-
a de acordo com a capacidade das pessoas, ainda que seja difícil compreender a sua
intenção.
***
Qual a razão disso? A razão está no fato de o Buda ser plenamente dotado dos meios e
do paramita da sabedoria.

***

Sharihotsu, a sabedoria do Buda é ampla e profunda. Ele é dotado de imensurável


benevolência, ilimitada eloqüência, poder, coragem, concentração, liberdade e samadhis
(meditação), aprofundou-se no reino do insondável e despertou para a Lei nunca antes
revelada.

***

Sharihotsu, o Buda é aquele que sabe como discernir e como expor os ensinos
habilmente. Suas palavras são ternas e gentis e podem alegrar o coração das pessoas.
Sharihotsu, em síntese, o Buda compreendeu perfeitamente a Lei ilimitada, infinita e
nunca antes revelada.
179

***

Chega, Sharihotsu! Não vou mais continuar pregando. Por quê? Porque a Lei que o Buda
revelou é a mais rara e a mais difícil de compreender.

***

A verdadeira entidade de todos os fenômenos somente pode ser compreendida e


partilhada entre os budas. Essa realidade consiste de aparência, natureza, entidade,
poder, influência, causa interna, relação, efeito latente, efeito manifesto e consistência do
início ao fim.

Capítulo Juryo - Jigague (Revelação da Vida Eterna do Buda)

Desde que atingi o estado de Buda, infindáveis asamkhya de kalpas transcorreram.


Constantemente venho pregando, ensinando e propagando a Lei a milhares de seres
vivos. Fazendo com que entrem no Caminho do Buda, e tudo isso durante intermináveis
kalpas.

***

Como um meio hábil aparento entrar no nirvana para salvar todas as pessoas. Mas, na
realidade, não entro em extinção. Sempre estou aqui ensinando a Lei.

Sempre estou aqui. Porém, devido ao meu poder místico as pessoas de mentes
distorcidas não conseguem me ver mesmo quando estou bem perto delas.

***

Quando essa multidão de seres vê que entrei no nirvana, consagra muitas oferendas às
minhas relíquias. Todos abrigam o desejo único e ardente de contemplar-me. Quando
esses seres realmente se tornam fiéis, honestos, justos e de propósitos pacíficos, quando
ver o Buda é o seu único pensamento, não hesitando mesmo que isso custe a própria
vida, então, eu apareço junto à assembléia de discípulos sobre o Sagrado Pico da Águia.

***

Nesse momento, digo à multidão de seres: Eu sempre estou aqui, jamais entro em
extinção. No entanto, como um meio hábil, algumas vezes aparento entrar no nirvana. E
outras vezes, não. Quando em outras terras há seres que desejam respeitosa e
sinceramente crer, então eu também, junto a eles, pregarei esta Lei insuperável. Porém,
não compreendendo minhas palavras, todos aqui insistem em pensar que eu morri.
Quando vejo os seres afogados em um mar de sofrimentos eu não me exponho, para
dessa forma fazer com que anseiem contemplar-me.

Então, quando seu coração se enche de ansiedade, finalmente apareço e ensino a Lei para
eles.

***

Assim são meus poderes místicos. Por asamkhya de kalpas, sempre estive no Pico da
Águia e em muitos outros lugares. Enquanto os seres presenciam o final de um kalpa e
tudo é consumido em chamas, esta minha terra permanece segura e tranqüila, sempre
cheia de seres humanos e seres celestiais. Vários tipos de gemas adornam seus
corredores e pavilhões, jardins e bosques. Árvores preciosas dão flores e frutos em
profusão, sob as quais os seres vivem felizes e tranqüilos. As divindades fazem repicar
180

os tambores celestiais interpretando, sem cessar, a música mais diversa. Uma chuva de
flores de mandara cai, espalhando suas pétalas sobre o Buda e a grande assembleia.

***

Minha terra pura é indestrutível, porém, a multidão a vê consumir-se em chamas,


mergulhada em sofrimentos, angústia e temor. Esses seres devido a suas várias ofensas e
causas provenientes de suas más ações, passam asamkhya de kalpas sem escutar o nome
dos três tesouros.

***

Mas os que praticam os caminhos meritórios, que são nobres e pacíficos, corretos e
sinceros, todos me vêem aqui em pessoa, ensinando a Lei. Às vezes para essa multidão
exponho que a duração da vida do Buda é imensurável; e para aqueles que o vêem
somente após um longo tempo exponho o quanto é difícil encontrar-se com ele.

***

O poder de minha sabedoria é tamanho que seus raios iluminam o infinito. Minha vida,
extensa como incontáveis kalpas, é resultante de uma prática muito longa. Homens de
sabedoria, não abriguem nenhuma dúvida sobre isso! Livrem-se das dúvidas
definitivamente, pois as palavras do Buda são sempre verdadeiras.

***

O Buda é como um excelente médico que se vale de meios hábeis para curar seus filhos
iludidos. Embora na realidade esteja vivo, anuncia que entrou no nirvana. Porém,
ninguém pode acusá-lo de mentiroso. Eu sou o pai deste mundo e salvo aqueles que
sofrem e os que encontram aflitos.

***

Devido à ilusão das pessoas, apesar de eu estar vivo, anuncio que entrei no nirvana. Pois
se me vissem constantemente, a arrogância e o egoísmo tomariam conta de seu coração.
Ignorando as restrições, entregariam–se aos cinco desejos, e cairiam nos maus caminhos
da existência. Estou sempre ciente de que são as pessoas que praticam o Caminho e as
que não o praticam, e, em resposta às suas necessidades de salvação ensino-lhes várias
doutrinas.

***
Medito constantemente: Como posso conduzir as pessoas ao caminho supremo e fazer
com que adquiram rapidamente o corpo de um Buda? 15

As palavras escritas atribuídas ao Buda Sakyamuni serão sempre palavras vazias


sem a audição interna para apurá-las e compreendê-las corretamente, pensá-las
corretamente, dizê-las corretamente, torná-las ação correta, inspirar e instruir no correto

15
As notas e comentários introduzidos nesta tradução do Sutra da Flor de Lótus da Lei Maravilhosa para
a língua portuguesa falada no Brasil são da autoria e inteira responsabilidade de seu tradutor Marcos
Ubirajara de Carvalho e Camargo. http://www.saindodamatrix.com.br/archives/siddhartha.htm. Veja-se
ainda a tradução em http://www.marcosbeltrao.net/viewer/sutradolotus.html
181

modo de viver, preparar para o esforço correto, moldar na atenção correta e iluminar na
meditação correta. Na perspectiva aqui apresentada do Educar Transdisciplinar tudo o
que é acervo espiritual da humanidade deve compor a geografia humana como campos e
camadas de sua história efetiva. A insistência em afirmar que a compreensão do Buda é
um acréscimo de potência de toda a humanidade e de todo o universo não é uma mera
metáfora. Não se trata, portanto, de termos que ser budistas e sim de compreendermos e
acolhermos a dádiva da vida consciente da consciência e da inconsciência. Tornarmo-
nos corresponsáveis pela totalidade vivente. Fazemo-nos na medida do extraordinário. E
porque a medida do Educar Transdisciplinar é o extraordinário, apresento abaixo dois
esquemas que podem servir como indicativos focais para a prática do educar liberador.
Nossa medida é o Buda e nossa prática epistemológica atende à investigação dos dez
atributos inerentes à verdadeira entidade de todos os fenômenos, no Capítulo Hoben
(Meios) do Sutra da Flor de Lótus. E como a verdadeira entidade de todos os fenômenos
só pode ser compreendida entre os Budas é preciso que nos miremos nos Budas na
senda do autoconhecimento. Significa dizer que os campos e atributos indicados não são
conhecidos por nenhum de nós, mas nós já os visualizamos e almejamos alcançar sua
completude e perfeição sem perder de vista a efemeridade de tudo o que existe. Trata-
se de nos inspirarmos na plenitude e dela fazermos a medida de todas as coisas
humanas, e não o contrário. Nosso foco primacial é desfocado porque inclui tudo em
seu âmbito. Mas é desfocado apenas em relação ao particular porque sua visada é nítida
e luminosa na apreensão do todo em um.

O método do Educar Transdisciplinar haverá de ser próprio e apropriado.


Significa dizer que as sugestões aqui recolhidas são indicativas de possibilidades de
ações consistentes no âmbito da plasmação humana já evitando o termo formação. Os
esquemas apresentados abaixo indicam também ferramentas conceituais para a
plasmação de práticas pedagógicas alicerçadas na mais antiga sabedoria ofertada pelos
mais sublimes protetores da humanidade. Para se poder construir um Educar
Transdisciplinar precisamos em primeiro lugar limpar o terreno e demarcar os pontos
capitais da construção. Os sustentáculos de nossa edificação são constituídos de uma
fusão muito apurada de inumeráveis eras cósmicas. A fusão não aglomera, mas reúne
em uma única liga aquilo que antes existia separado. A fusão é a maior alquimia na
reunião dos opostos e contraditórios. A regência de uma vida devotada ao esplendor
vivente, reunida na amplitude do sempre. Afinal, a unidade de tudo não precisa de
182

demonstrações lógicas para ser acolhida, mas precisa da consistência de sua realização
do início ao fim.
183

iv. Retomando o fio condutor: A Lógica do Terceiro Incluído


como meio comum do Educar Transdisciplinar e política de
comum-pertencimento afetivo

Poder-se-ia também incluir outras tradições luminares para a apresentação de


uma lógica inclusiva, como a cristã e a africana. Outros podem fazer isso muito bem.
Importante evidenciar com a lógica inclusiva a não-centralidade do que se desvela: a
diversidade radical do vivervivente. A lógica do terceiro incluído afunda-se no comum-
pertencimento de tudo. Por isso ela reúne tudo no sem-fundamento: o vivervivente. A
diferença é o fundante da lógica inclusiva. Não há, portanto, um modelo único de
realidade e sim uma única MVM-SupraMVM diversa em si mesma, abundante em cada
ponto e parcela de seu todo. Um todo que não é uma soma de partes, mas uma
totalidade indivisível em cada uma de suas partes no todo.
Vejamos, então, as possibilidades bem-aventuradas de todo esse movimento que
é um desvio necessário ao próprio caminhar em busca de si. O foco é a Lógica do
184

Terceiro Incluído como meio comum em todos os níveis do Educar Transdisciplinar.


Assim, os elementos apresentados nas duas figuras anteriores são meios para a
conjugação da complexidade do educar transdisciplinar. A primeira figura mostra os
atributos do Buda e serve-nos como horizonte maior do que está em movimento como
processo de iluminação. A figura seguinte nos indica os níveis de constituição da efetiva
entidade dos fenômenos, apresentando-nos dez planos de investigação: Aparência,
Natureza, Entidade, Poder, Influência, Causa, Relação, Efeito Latente, Efeito Manifesto,
Consistência do Início ao Fim. Tudo reunido na unidade pulsátil que a tudo congrega e
harmoniza sem cessar, do início ao fim. Conceber tais horizontes como estruturas de
grande abrangência do educar transdisciplinar é o mesmo que reconhecer o tamanho da
tarefa de todo ser humano no alcance e realização de sua potência búdica. Afinal, somos
todos Budas adormecidos. E para despertar nossa natureza búdica precisamos reunir e
incluir e não separar e desunir.
Entretanto, vivemos desunindo e separando, julgando e condenando em nome de
certezas e de posições fechadas. Há uma rigidez difícil de ser quebrada em sua inércia
ancestral. Comportamo-nos de maneira dualista, e não sabemos conjugar as
diversidades em sua unidade gerativa. Não sabemos dialogar com as diferenças. Não
sabemos ser dialógicos e sim monológicos. Afirmamos verdades em nome de uma
maioria pública, sem nos darmos conta de que a qualidade de uma ação não depende de
quantidade. Agimos como se fôssemos um grupo maioral. Não sabemos agir de acordo
com o mais apropriado, porque na maioria das vezes o mais apropriado é uma questão
de escolha e de modo de ser, e a maioria não aprendeu a fazer escolhas além do que a
maioria considera viável e verdadeiro. Somos prisioneiros dos nossos hábitos mentais
ancestrais, e não aprendemos ainda a dizer não à força da maioria. O que fazer, então,
para se ultrapassar a condição determinista dualista e separatista? Como agir a partir da
lógica inclusiva e dialógica, deixando para trás todo conflito e ressentimento passado?
Pelo fato de agirmos motivados por nossos interesses particulares, conformados
segundo um plano coletivo dado como “público”, em virtude de uma “força maior”, não
se sabe viver uma vida inteiramente presente. A quantidade da força determinando o
poder de decisão de um grupo parece ser a lei imperante. A maior força, porém, não é a
força mais apropriada para a existência colaborativa e para a reunião comunitária. O
desafio agora é a comunidade baseada na diferença como diferença. Quero dizer, uma
185

comunidade baseada em um cuidado radical com a totalidade MVM-SupraMVM16. Uma


comunidade de iguais na diferença de suas situações e singularidades. Uma reunião das
diferenças a partir da não-dualidade. Ausência de antagonismo e afirmação pessoal.
Presença de harmonia e afirmação comum-pertencente.
Não se trata, entretanto, de desconhecer a força operante do antagonismo, da
dualidade, da reatividade, do desamor, da alienação. Pelo contrário, trata-se do
reconhecimento de que somos seres sociais formados por condicionamentos históricos e
por limites já prefixados no modelo de nossa programação atômica, biológica e
psíquica. Tais condicionamentos formam a nossa situação prévia de entes participantes
da experiência de humanização/desumanização do planeta. As normas e preceitos
condicionados formam o conjunto de couraças a serem perfuradas pelo movimento de
individuação presente. A dualidade imperante é o sinal do enrijecimento das funções
SupraMVM, no sentido próprio do florescimento da abundância livre.
O antagonismo parece constituir tudo o que existe. Sem antagonismo nada
poderia ser por princípio. Entretanto o antagonismo somente é antagônico na
perspectiva humana da mente dual e excludente de uma ação cujo agir não se posiciona
na dualidade, mas floresce no contínuo harmônico MVM. Chamei esse âmbito da
harmonia dos contrários e complementares de SupraMVM, reconhecendo o Supra como
reunião de tudo em uma integração dinâmica permanente, pela superação de todo
dualismo egocêntrico e atomizado, pela morte do eu particular e de todo eu coletivo,
pela criação de espaços de convivência amorosa do que floresce sendo passagem de
florescimento: há também a semente e a gestação da semente, o nascimento da vida e
seu desenrolar vivo no instante presente, no presente do instante.
A superação do antagonismo é um ato consciente da consciência e da
inconsciência e nunca é uma miragem, exceto para quem permanece no antagonismo. A
lógica inclusiva é o alcance da SupraMVM. Mas, como é possível incluir tudo em tudo,
ultrapassar todo e qualquer antagonismo como antagonismo? Como é possível viver a
vida vivente para além da vida vivida? Como é possível sair do círculo vicioso e
determinista da mente apegada à vida passada e à matéria estabelecida no passado?
A dificuldade humana de saltar da dualidade para a não-dualidade parece ser
intransponível. Afinal, somos apenas seres humanos comuns e condicionados! Como

16
A expressão MVM-SupraMVM será daqui para frente usada toda vez que se estiver falando de lógica
inclusiva, e designa a unidade do Mental, Vital e Material e do Supramental, vital e material em uma
unidade não atomizável ou redutível às partes particulares. Uma expressão além da física.
186

seres humanos comuns e condicionados podem gerar o viver livre e incondicionado?


Não é esta intenção uma pretensão descabida e ilusória? Afinal, qual é o caminho do
conhecimento libertador dos condicionamentos que assujeitam o ser humano a viver
como escravo e dependente do medo psicológico?
O caminho do conhecimento liberador da dualidade imperante é o rigoroso
exame de si-mesmo. O si-mesmo é o ponto de partida, pois a dualidade encontra-se no
interior do si-mesmo. A dualidade não é, portanto, uma evidência objetiva incontestável
e sim um hábito mental, vital e material dos seres humanos. Sair do império da
dualidade é abandonar toda e qualquer polarização, sem a parda de processos de
permanente escolha e seleção de campos e modos de ser. A não-dualidade, assim, não
nega a dualidade inerente ao fluir de tudo, e sim o modo de polarização da dualidade.
Como se só fosse possível ser e não-ser em momentos excludentes e assim, só fosse
possível ser Flamengo ou ser Fluminense, ou ser de direita ou de esquerda, do PV ou do
PT. A lógica excludente nega a possibilidade de um terceiro termo que não é nem uma
coisa e nem outra, e sim uma coisa e outra. Amarelo ou azul, preto ou branco, verde ou
vermelho? Por que não, amarelo e azul, preto e branco? O que impede de fato a
possibilidade da inclusão?
O único impedimento efetivo é a crença no impedimento determinista. Com isso
não se nega a funcionalidade da mente dual, que permanece atuando em seu contexto
subjacente. A mente dual continua funcionando em seu contexto pragmático, pois é
ainda inaceitável que algo seja uma banana e uma maça ao mesmo tempo no campo das
precipitações – saindo do campo das probabilidades para o campo dos acontecimentos
pontuais. Sabe-se o conjunto de probabilidades de um jogo de regras finitas, mas não se
pode saber com precisão qual o próximo valor resultante de uma combinatória que
configura apenas uma das situações prováveis, como jogar dados. Na regra do jogo o
somatório das faces dos dados voltados para cima na referência ao observador define o
caso. A questão, entretanto, não é a negação do sistema binário que é o fundamento de
todo cálculo e de toda operação de comando binário, como entrar e sair, ativar e
desativar, “1” e “0”. Esta dualidade digital, entretanto, não é a mesma coisa da
dualidade psicológica e mental, porque para operar qualquer possibilidade de ação é
preciso determinar o modo de configuração do fluxo da ação, em uma programação
algorítmica específica. Assim é evidente como toda ação depende de uma sequência
finita de regras e raciocínios atinentes a um número finito de dados, o que permite
187

resolver problemas de classes semelhantes, como o encadeamento de ações necessárias


para o cumprimento de uma tarefa que pode ser repetida e ensinada, a partir da
experiência. O nosso viver comum é feito de trajetos e percursos previamente
computados e organizados por uma sequência finita de regras e passos. Todo o tempo a
mente está calculando e computando dados e regras, repetindo a repetição de padrões
oriundos das experiências vividas.
Nossa vida diária é feita de repetições de padrões acionais já incorporados. Para
levantar-nos da cama, há necessidade de uma ação específica ativadora de todas as
funções vitais. Toda manhã ao acordarmos agimos de um modo já padronizado.
Cumprimos programas de ação já atualizados pela experiência passada. Sim, há uma
parte mecânica em nossas vidas. Há sequências de ações que funcionam de modo
aparentemente instintivo. Somos sim máquinas biológicas e psíquicas de grande
complexidade. Mas somos também algo que não é máquina e nem condicionamento,
não é tempo e nem espaço, entretanto é a condição de todo tempo e de todo espaço, de
todo aparecer e de toda aparência. Somos um ente que partilha da gênese da totalidade
não-dual de tudo o que é e de nada que não-é como termo final de uma sequência finita.
Partilhamos da infinitude na finitude. Somos finitos e infinitos. Como assim, finitos e
infinitos?
A lógica inclusiva não nega a lógica exclusiva, mas a compreende como uma
programação prática atuante em um contexto finito de ações e reações. A lógica
inclusiva não é neutra no complexo da ação. Não se trata de “ficar em cima do murro”,
como se diz comumente. Quando não se é nem de esquerda e nem de direita, significa
que não se é nada? Ser de centro resolveria o impasse? Nem de lado nem de centro, a
questão não é bipolar e sim transpolar. Não ser nem de direita e nem de esquerda
significa não dualizar-se. Ser não-dual não é deixar-se levar para qualquer lado. Pelo
contrário, significa justamente não deixar-se levar pelo antagonismo dos polos em
conflito. Mas como isso é possível, se vivemos dos condicionamentos MVM?
Bem, é possível pela transcendência dos condicionamentos MVM através da
ativação da SupraMVM. Fácil como abrir os olhos e ver o que se presenta. Tão difícil
como a saída de uma criança do ventre de sua mãe, apesar de parecer natural. A
transcendência, entretanto, não se contrapõe à imanência, pois é sempre a
transcendência em relação a um determinado limite que se impunha como “verdade”
incontestável. Toda transcendência se da na imanência de sua efetuação. Assim, não é o
188

transcendente inalcançável como objeto ideal que se tem em mira e sim o transcendente
na imanência de sua potência MVM-SupraMVM.
Jogo de palavras ao vento? Tudo depende da perspectiva. De qualquer modo na
perspectiva aqui divisada a MVM-SupraMVM é uma expressão do que pode ser indicado
com diversos nomes sem que seja preciso aceitar nenhuma das formulações como a
mais verdadeira. Não há no movimento evolutivo-involutivo do Universo nenhuma
formulação MVM mais verdadeira do que a outra, apesar de haver predominância de
umas sobre outras. Afinal, o que significa a superioridade ou inferioridade das
organizações culturais? O “mais verdadeiro” é sempre o que se encontra aberto ao
instante pleno. Existiria por ventura uma estrela mais estrela do que qualquer outra
estrela, um ser humano mais ser humano do que qualquer ser humano, um leão mais
leão do que qualquer outro leão?
A lógica inclusiva só pode ser operada por uma mente liberta de todo
condicionamento passado. Como isso é possível? Como seria possível superar o
antagonismo bipolar nas relações humanas corriqueiras e por qual motivo se faria isso?
Nossos condicionamentos não nos permitem descolar de nossas crenças
subjacentes e imaginamos que os nossos limites são os limites de nossa linguagem. Isso
nos faz acreditar que os limites de nossa realidade são incontornáveis, pois estaríamos
irremediavelmente determinados pelos limites da linguagem. Entretanto, os limites da
linguagem não são os limites da realidade e sim os limites do “eu” particular ou da
mente-vida-matéria condicionada ao passado. A rigor a linguagem não tem limites em
suas figurações e representações. Os limites da linguagem são os limites de um hábito
mental qualquer, pois não há limites na linguagem do sendo. O problema são os limites
dos condicionamentos do “eu” pessoal e dos aglomerados coletivos. A linguagem
SupraMVM não se restringe à nenhuma formulação lógica reducionista. A linguagem
nesse âmbito é o próprio fluxar de tudo continuamente. Portanto, os limites da
linguagem são apenas limites de fluxos condicionados de linguagem. A linguagem é tão
ilimitada como as partículas quânticas elementares.
A inclusão do terceiro termo permite considerar o campo do sentido como uma
flutuação sem limites de tempo e espaço, apesar da existência de configurações
temporais e espaciais distintas em modulações finitas. O terceiro incluído rompe a
lógica da dualidade funcional introduzindo a conectividade de tudo com tudo, sem a
perda da distinção e da singularidade. Com a lógica inclusiva somos levados à dinâmica
189

de uma aprendizagem que não pode limitar-se à repetição de um padrão estabelecido


por uma programação objetiva qualquer, como uma receita de bolo. A inclusão do
terceiro é a entrada em cena do contínuo da consciência vivente. Entre o sim e o não há
sempre o movimento pulsátil, o fluir e o refluir. Ora, a consciência não é um ente
passivo e nem tão pouco ativo. A consciência é a referência da consistência fluídica do
que se encontra sendo. A consciência é consciência de fluxos intencionais. Os fluxos
intencionais não se explicam em fórmulas e formas padronizadas, porque são flutuações
na superfície de entidades flutuantes.
A lógica inclusiva requer uma radical transformação política da espécie humana:
uma desterritorialização dos territórios de identidade condicionados por uma
mentalidade dualista. Este é o grande desafio do Educar Transdisciplinar: incluir tudo
em tudo, reconhecendo e distinguindo cada coisa segundo sua congruência MVM-
SupraMVM. Isso requer a criação de padrões e a capacidade de dizer Não aos padrões
condicionados da MVM. Entretanto, é preciso lidar com a polilógica dos padrões e
aprender a reconhecer a diversidade de produção de padrões. Isto implica em incluir a
polilógica na criação de padrões de conhecimento do conhecimento e do
desconhecimento. É fundamental abrir-se para a diversidade de possibilidades
abundantes e libertadoras.

c. Teoria da Complexidade

A Teoria da Complexidade, então, apresenta o plano operativo do Educar


Transdisciplinar – o plano gerativo de padrões consistentes e conscientes de
florescimento humano. A questão do nosso tempo é o conhecimento. Na sociedade do
conhecimento e da informação tudo gira em torno do acúmulo de bens materiais e
simbólicos para um número aparentemente crescente de usuários globais. A maior
questão, entretanto, não diz respeito ao conhecimento e à informação e sim ao uso de
tais meios, tendo-se em vista a sustentabilidade global. Ricos e pobres hoje configuram
a política global. Os pobres são a absoluta maioria. Os ricos investem cada vez mais na
sofisticação tecnológica sem que nada seja feito para diminuir as desigualdades do
planeta. Urge, então, operar com a complexidade da situação no sentido de buscar
resolver os grandes problemas globais, que também são os problemas locais. A
190

estupidez parece ser a tônica velada da gestão atual dos recursos ambientais, sociais e
mentais. É preciso que se dê continuidade à construção de uma regência planetária que
não deixe passar nada do que de fato acontece com seres humanos desprovidos dos
meios necessários e suficientes para um florescimento equânime e comum-pertencente à
totalidade vivente. Sem altivez, sem dignidade, sem cuidado, sem sentido comum
nenhum ser humano pode encaminhar-se para o seu desabrochar búdico. O horizonte,
portanto, do educar transdisciplinar não é outro senão lutar de todas as maneiras para
que tudo e todos sem exceção alcancem a perfeição que lhes é inerente por potência e
pertença. Mas para que isto aconteça é preciso educar para a liberdade partilhada,
inteligente, criativa, inovadora, mas sem nunca perder a reverência ao que é
extraordinário e nos acolhe em seu anelo infinitamente duradouro, consistente do início
ao fim. Educar para a liberdade partilhada é o mesmo que convergir na lei do amar sem
que seja preciso excluir nada. O que se deve excluir são os pensamentos do “eu”
psicológico que nos tornam incapazes de ousar ser o que se é na dinâmica serena e
lúcida do instante sem ocaso.
A medida do tempo para uma tamanha abertura não pode ser linear e efêmera. O
tempo que se abre na possibilidade do autodesenvolvimento partilhado é o tempo do
presente. Ou com palavras atribuídas ao Buda Sakyamuni: "Não viva no passado, não
sonhe com o futuro, concentre a mente no momento presente."
A medida de tempo no Educar Transdisciplinar é, pois, o instante presente. E
este é todo o foco da metodologia transdisciplinar aqui construída. O instante presente é
agora um aglomerado de situações que precisam de projetos para seguir adiante em seus
processos de desenvolvimento humano. Hoje a educação já pode ser concebida em uma
clave nova. Sim, é preciso educar em muitas frentes, em muitas dimensões, em muitos
níveis diferentes de constituição. Mas sem a fragmentação que é um efeito da
racionalidade tecnocientífica dominante e servindo aos meios de produção do capital
selvagem. O que está em questão é a efetiva “qualidade da vida humana”. Ora,
qualidade de vida não é algo que se pode medir facilmente, pois requer efetivos
processos de desenvolvimento que implicam em investimentos e construções
organizacionais apropriadas.
O mundo globalizado é e não é uma Babel. Há desequilíbrios profundos e
profundos processos de equilibração. O tempo todo há equilibrações que renovam a
manutenção da vida, em todos os níveis de constituição. Acontece que em muitos
191

aspectos se perdeu a medida da equilibração natural, o que estressa o organismo


terrestre como um todo, precipitando catástrofes naturais e culturais. Há de se conceber
uma nova forma de condução da vida planetária, que tenha início na mudança de
mentalidade dos indivíduos pelo educar que implique a todos no conhecimento
necessário e suficiente para a transformação da vida que garanta a dignidade de todo ser
humano. Trata-se de um projeto de longa duração, que requer total dedicação e
disposição investigativa aberta e cuidadosa.
No mundo atual das redes e das conexões rápidas é preciso aprender a lidar com
múltiplas linguagens e processos diversificados de socialização e humanização, pois o
conjunto da humanidade atual vive a era da competitividade tecnológica e desconsidera
os processos alternativos de produção dos meios de subsistência que lidam com a
temporalidade cíclica da natureza. Isto hoje parece quase impossível, porque se imagina
que se possa abstrair do estado geral em que se vive hoje no planeta. A respiração é
ofegante e insegura. A ansiedade intranqüiliza a quase todos. Quais são as alternativas
para se curar a doença que assola a humanidade? Ou será que a humanidade está
completamente segura e feliz pelos resultados que alcançou?
Não querer reconhecer a urgência de uma teoria da complexidade que possa dar
conta do atual estado de coisas por que passa o mundo, por força também da ação
humana em seu modo de vida capitalista, é querer esconder o real estado de perigo da
condição planetária por força do próprio modo de produção insustentável. O campo do
educar transdisciplinar parte do pressuposto de que é preciso educar para a
sustentabilidade em todos os níveis de realidade.
Nesse sentido, o educar que se mostra emergente já aparece reclamando uma
reforma radical do modo de vida e não se engana em relação ao estado de coisas
resultantes da própria ação humana. Há, portanto, uma projeção da aspiração humana
para o mais abrangente e o mais consistente do início ao fim, sem se perder de vista a
condição humana efetiva, para que não pareça que se pretende transformar a realidade
por decreto transdisciplinar. A questão não é de substituição de modelo epistemológico
e sim de criação de novas modelagens para o acontecimento de vidas inteligentes
multiplicadas ao infinito, sem que precise haver disputa ou maculação da lei maior que
a tudo reúne em harmonia polifônica no mesmo sem fundamento.
Precisamos aprender a aquilatar o valor inestimável de cada vida e aprender a
aprender a distribuir o que é salutar e nutre a existência humana dignificada. O
192

chamado, portanto, é o de uma radical revolução espiritual, uma transvaloração de todos


os valores, sem que seja preciso abdicar de nada, excluir nada, afastar nada, discriminar
quem quer que seja. A questão, portanto, diz respeito em primeira instância ao
aprendizado do ser próprio e apropriado. Isto é um mistério que não cabe pretender
ensinar ou transmitir. Entretanto, cabe cuidar e nutrir, acalentar e deixar ser pelo agir
correto.
O desenho da vida humana encontra-se bem definido pela medicina
contemporânea. O mapeamento dos órgãos vitais e suas funções permitem prever
enfartos e toda espécie de enfermidades com certa margem de segurança. Os estudos na
área de genética encontram-se tão avançados que já se podem projetar modelos
humanos identificados por seus melhores aspectos e atualizados em suas possibilidades.
O futuro promete próteses de toda espécie, prolongamentos artificiais de todas as partes
de um corpo ou de um cérebro com suas operações computacionais multiplicadas. E
tudo isso para que? Para prolongar a vida. O apego à vida na configuração
tecnocientífica acaba por adormecer a centelha sempre viva que habita o mundo e o
humano.
Nada contra as maravilhas da técnica. A técnica é resultado da necessidade
humana diante de sua subsistência e existência. A questão é quando a técnica substitui a
qualidade humana. E a qualidade humana não pode ser medida. Ela pode ser apreciada,
valorada, cuidada, o que é algo bem diferente. Apesar disso, a qualidade humana passou
a ser medida por desempenhos e por quantidade produtiva. Perdeu-se de vista o próprio
do ser humano como ser intrinsecamente livre – livre a partir de sua própria origem e de
suas possibilidades. Entretanto, nenhuma outra espécie do planeta é tão escravagista e
tão violenta como a espécie humana. Apesar de o fundamento humano ser a sua
liberdade ontológica, a maioria vive como se não pertencesse à liberdade.
A tarefa emergente do educar não é a de moldar pessoas para que se adaptem ao
mundo do trabalho, ensinando-lhes operações de manuseio e intervenção, de retenção e
de multiplicação serial do modelo projetado. O educar não pode ser uma fôrma definida
em seus contornos e limites. Uma forma ele será sempre, mas não uma fôrma. Na fôrma
os pães saem sempre no mesmo formato, em uma forma há sempre limites espácio-
temporais, mas não há como reter o fluxo criador do fluxo. No educar transdisciplinar
não se trata de moldar ninguém para que corresponda ao modelo prefixado. Trata-se de
criar as condições necessárias e suficientes para o florescimento de formas humanas
193

convergentes na unidade indivisa de tudo, sem perder de vista a diversidade e a


multiplicidade dos fenômenos. Este ato requer uma compreensão fenomênica que reúna
a totalidade manifesta através de linhas, planos e volumes de contato por meio de
coordenações de coordenações em que as partes partilham do todo e o todo partilha das
partes.
Precisamos, então, delimitar os planos de coordenações necessárias para a
construção do educar transdisciplinar. O método transdisciplinar reúne a totalidade
manifesta para dispor as linhas de ação do desenvolvimento de organismos vivos. O
objeto intencional é a aprendizagem multirreferencial que dê conta do desenvolvimento
humano autossustentável. É preciso partir da diversidade, acolher a singularidade,
aprender com o antagonismo. Não há mais a homogeneização da fôrma como meta, e
sim a formalização da heterogênese como critério de valor comum. Nesta perspectiva,
cada um tem que ser cuidado em seus talentos próprios. E todos têm talentos das mais
variadas formas. A formação de cada um será diferente sem deixar de homogeneizar-se
no plano necessário da empatia e da sensibilidade ressonante. A heterogênese, assim,
não está negando a homogênese, que agora se dá no plano afetivo comum. A
homogênese, deste modo, não é uma redução e sim uma amplitude unificada,
harmonizada em suas disparidades e oposições. Uma homogênese inclusiva e não
excludente. Uma heterogênese que tem a sua homogênese no âmbito da reunião de tudo.
Delimitar os planos de coordenações necessárias é um exercício de
reconhecimento do que já se encontra posto e manifesto como necessário. E o que se
encontra posto?
Está posto que o ente humano é um animal de rebanho, uma máquina biológica
complexa e cheia de funções desconhecidas. Está posto que desde o alvorecer da
História o ser humano vem lutando com seu próprio instinto de vida, produzindo
violência, guerras, usurpações, desvios insanos de toda espécie. Em paralelo também
está posto que as etnias humanas desenvolveram amplas estratégias de equilibração
inteligente em suas relações com o conjunto da vida vivente, o que nos diferencia como
espécie. Há um florescimento espiritual na humanidade que surge de muita luta e de
muito sofrimento. As alternativas espirituais que despontaram ao longo da saga da
espécie humana não são, como se pode pensar apressadamente, fugas imaginantes ou
sublimações intelectuais. Elas foram muito mais realizações da força de reunião inerente
aos fenômenos existentes, como emanações do incriado, e assim, indicaram com seus
194

rastros luminosos fluxos convergentes geradores da mais sublime harmonia. E toda


harmonia é uma homologação convergente do que é diferente e dispare em sua partição.
A espécie humana com suas etnias variadas vivenciou superações espirituais
muito complexas e agora experimenta a possibilidade de não partilhar da plenitude
vivente. O controle aparente dos governos e das organizações sobre o descontrole do
mundo globalizado é um sinal claro de uma mudança radical de época. Não dá mais
para esperar pela decisão certeira. Incluir tudo é a decisão certeira. Seguir firme na
inclusão de tudo, eis o caminho correto. Fazer de si uma inclusão livre, eis o caminho
sábio.
Entretanto, o que está posto é amedrontador, mas é o que é. Não dá para fugir
dos efeitos manifestos, mas dá para investigar a cura pelos efeitos latentes. É possível
sim modificar a estrutura molar/molecular de nosso ser-mundo. Mas para isso
precisamos aprender muitas coisas coordenadamente e não fragmentariamente. Nesta
medida, a idade do disciplinar está no seu ocaso. O emergente agora é a coordenação de
tudo a partir de dentro e de fora simultaneamente, quer dizer, em cada indivíduo e o
conjunto de suas relações no seu meio ambiente. Ora, como poderia algo florescer sem
meio ambiente? Como existiria peixe fora da água? O que poderia ser uma árvore sem
terra e sem céu?
É uma evidência que a espécie humana se encontra toda estratificada e
hierarquizada historicamente. Estão postas as diferenças sociais intransponíveis, as
situações de desigualdades injustificáveis, as relações de poder em toda parte em que há
humanos. Tudo parece desigual, injusto, arbitrário. O mundo é para a grande maioria
um lugar de penas e privações duras. Podemos simplesmente aceitar esse estado de
coisas como natural? Haveria, assim, uma evolução espiritual infinita, e por isso há
tanta desigualdade e tanta discriminação? É natural que assim seja ou a questão é bem
outra?
A questão é de nossa comum-responsabilidade. O passado humano está presente
em obras e palavras, instituições e organizações, hábitos e pontos de vista estabelecidos.
É claro que há diferenças de processos e de desenvolvimento também nos organismos
humanos. A questão não diz respeito à negação dos diferentes talentos e aptidões. O
problema é que há algo comum que passa em geral ao largo das considerações sobre as
necessidades humanas e suas estratificações sociais e históricas. Mas o ser humano
deixado à sua sorte adormece facilmente em seus afazeres cotidianos e se acomoda
195

como um fraco em busca do osso salvador do seu condicionamento psicológico.


Deixado ao seu próprio “eu” o ser humano se apega ao fantasma de si e segue sofrendo
por não querer olhar para si mesmo exatamente como se estivesse diante de um espelho.
O ser humano se deixa enganar pela lassidão por buscar fora de si a solução de suas
aflições. Ele precisa de estímulos externos para satisfazer o seu “eu”. Não aprendeu a
respirar compassivamente. Vive afogado em suas angústias e sofre por antecipação a
cosnciência de que é um ser finito. O ser humano foge de si mesmo quando não se doa à
busca de si mesmo. Buscar-se a si mesmo é investigar a si mesmo. Investigar si mesmo
é esquecer si mesmo, com palavras do mestre Eihei Dogen (1200-1253), pois esquecer
si mesmo é estar identificado a todas as coisas. E estar identificado a todas as coisas é
jogar fora corpo e mente de si e de outros.17
Não que se pretenda que algo tão sublime possa ser objeto de especulação e de
cálculo utilitário. Algo com tamanha amplitude não pode ser objeto de explicação
causal e nem muito menos de demonstração lógica. O autoconhecimento é um
movimento inerente à existência humana. O ser humano como organismo vivo depende
do seu meio ambiente para existir. Entretanto, essa dependência é algo tão natural que é
impossível ser sem mundo. Não se pode conceber uma coisa sem a outra, como não se
pode conceber os frutos sem as árvores, os peixes sem a água, as montanhas sem a terra.
O ser humano é o que tem sido em virtude das condições favoráveis de seu meio de
vida. Pela sua inteligência e engenhosidade, a espécie humana foi inventando meios de
relação com a natureza ambiente como forma autopoiética, autoprodutiva. A simbiose
se dá em um plano de imanência gerado na relação interdependente de campos de força.
O ser humano sendo o que é graças ao ambiente vital, não está sujeito a ter que
submeter-se a padrões externos ao seu próprio ser vivente. Isto só ocorre por um
processo de alienação, que é um processo de anulamento da inteligência criadora que
emana do agir humano em suas propriedades conjuntivas. A alienação torna o humano
tal e qual um pinto de criadouro. Mas em sua própria existência o ser humano é o meio
de ressonância de grandezas muito além da mera biologia. É tudo uma questão de abrir
os olhos e ver, desobstruir os ouvidos e ouvir, desinformar o palato e degustar, despertar

17
As informações sobre Dogen foram tiradas da dissertação de mestrado de Ivone Maia de Mello,
defendida no Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade Federal de Pernambuco, em
2005, em que tive a honra de participar da banca final, o que me permitiu em 2006 acolhê-la como
orientanda do doutorado em educação da UFBA, trabalhando o esmo autor, Dogen, o que tem sido um
exercício dialógico com outras formas de pensamento,. E esta tem sido a linha de condução de minha
pesquisa acadêmica tendo como foco conhecer o conhecimento em sua polilógica criadora.
196

o tato e tocar, acordar o olfato e cheirar. O ser-espécie humano tem sido um meio de
múltiplas experimentações e de inumeráveis acertos e erros. A espécie agora reclama
um plano de compreensão de suas próprias possibilidades, dentro de seus limites e de
suas condições. Chegou à hora de reunir todos os povos do planeta em uma assembléia
permanente de reconhecimento e de investigação conjunta acerca da vida vivente.
Chegou à hora de a espécie reconhecer o seu lugar na deriva cósmica em curso.
Entretanto, é possível sair do estado de alienação e servidão em que nos encontramos e
alcançar um estado de plena liberdade? Quais seriam as condições para a efetivação
desta possibilidade?
Com palavras atribuídas ao Buda Sakyamuni, Se o telhado não for bem
construído ou estiver em mau estado a chuva irá entrar na casa; assim a cobiça
facilmente entra na mente, se ela é mal treinada ou fora de controle. A pessoa que
protege sua mente da cobiça e da raiva desfruta da verdadeira e duradoura paz.
De qualquer modo é preciso saber o sentido próprio da proteção da mente em
relação à cobiça e à raiva, para que se evite uma abstração indevida e se imagine que
com atos mecânicos oriundos da vontade do “eu” se possa alcançar uma proteção
efetiva contra a cobiça e a raiva. É fundamental não perder de vista a compreensão
correta. Sem ela não se pode sequer imaginar a possibilidade de uma vitória livre sobre
o eu psicológico, sem as deformações da mente condicionada.
Na perspectiva da complexidade são muitos os níveis de realidade constituintes
das emergências vitais. Todo fenômeno é a emergência de uma consciência em
diferentes níveis de realidade. Uma consciência é a reunião de inumeráveis conexões de
campos de força. Não há, portanto, consciência individual e sim emergência da
consciência em indivíduos que são reuniões de campos de força. Toda consciência é
consciência de alguma coisa. Está é a máxima de uma fenomenologia que compreende a
consciência como intencionalidade, quer dizer como fluxo de sentido que sempre se
encontra em uma situação determinada em seu próprio modo de visada do sentido.
A complexidade, assim, orienta o educar transdisciplinar em seu movimento de
criação permanente de novas singularidades coordenadas pela diferenciação e
complementação conjuntural. Projeta uma compreensão de método que requisita o
renovado ato criador da simplicidade abundante. Sem criação não há método certo! E o
método certo não é aquele que se exprime em uma fórmula acabada, e sim aquele que
segue o fluxo do acontecimento integrador do sentido em seus diversos sentidos e
197

direções. Deste modo, também a imagética tem o seu lugar na comunicação dos
processos que requisitam a experiência própria e apropriada da cosnciência da
consciência e da incosnciência. A imagem abaixo apresenta uma imageação que recolhe
a totalidade em um quaternário que se pode chamar de, como o fez Heidegger (2001),
Quadratura do Simples. Para uma mente aberta ao acontecimento do sentido em sua
instantaneidade todas as formas de dizer o inaudito são aproximações ressonantes. O
que importa é a ressonância em suas modulações. A simplicidade do quaternário aponta
para o âmbito em que tudo se reúne na simplicidade do simples. Daí todo o complexo
em sua impermanência necessária. A imagem abaixo reúne as forças do céu e da terra,
do extraordinário e do ordinário, dos deuses e dos homens, dos imortais e dos mortais
em um mesmo âmbito: o comum-pertencer. A complexidade requisita de todos nós a
simplicidade do TUDOUM. Apenas uma imagem recolhe a potência do Simples.
198

7. Princípios Metodológicos do Educar Transdisciplinar

O que são princípios metodológicos do Educar Transdisciplinar? O que


compreendo por metodologia do educar transdisciplinar?
Princípios são meios de sustentação de uma articulação constitutiva de uma
relação criadora com o sentido humano habitado ética e poeticamente. Metodologia é o
movimento de construção da morada poética e ética do humano: o caminhar do
florescimento da MVM-SupraMVM. Os princípios metodológicos são: a coexistência
de diferentes níveis de realidade, a lógica do terceiro incluído e a epistemologia da
complexidade. A Metodologia é o caminho de realização de um educar transdisciplinar,
no sentido de uma modelagem da ação livre e criadora, sem limites impostos por
organizações hierarquizadas e por relações baseadas na autoridade externa. Assim, tudo
o que aqui se expõe é o movimento de modelagem metodológica do educar
transdisciplinar, não sendo em momento algum o meio expressivo de uma modelagem
que pode ser aplicada como um programa fechado. Nada há de fechado e concluído nas
modelagens apresentadas ao longo sesta seção do livro. Tudo o que aqui aparece mostra
o movimento de elaboração de elementos e combinações entre elementos visando à ação
compreensiva dos campos metodológicos na práxis pedagógica transdisciplinar. Uma
invenção, sem dúvida. Mas uma invenção que se encontra a serviço de uma revolução
espiritual de longa duração.
A metodologia do educar transdisciplinar seguirá os três princípios
metodológicos assinalados e privilegiará esquemas organizadores de ações criadoras de
aprendizagens polilógicas. Os esquemas são expressões de campos acionais movidos
por interações abertas aos contextos específicos e servem como suportes simbólicos do
Educar Transdisciplinar. Ocupam o lugar de instrumentos conceituais a serviço da arte
de aprender. São também campos imaginantes instigadores de novas formas de ser e de
existir poético e ético, ecológico e noético.

a. Metodologia da coexistência de diferentes níveis de realidade

A coexistência de diferentes níveis de realidade permite considerar a diversidade


como critério do educar transdisciplinar. Os diferentes níveis de realidade podem ser
visualizados na dinâmica MVM-SupraMVM do Universo em sua totalidade. Cada ponto
199

matemático e imaginário do Universo é um diferente nível de realidade com a mesma


natureza MVM-SupraMVM. Os pontos apresentam desempenhos diversificados e são
compostos de campos formados pela coesão atômica. Cada ponto é uma função
ontológica diferenciada: uma MVM-SupraMVM comum-pertencente.

No mapa cosmológico acima cada ponto branco é um aglomerado de


constelações com tamanhos e formas diversas. Cada ponto é a Expressão de uma MVM-
SupraMVM. Diferentes níveis de realidade se apresentam em uma representação
geométrica do Universo imaginado e projetado pela MVM humana. A MVM humana,
entretanto, tateia e conjuga a reunião pelo acúmulo de informações e pela interpretação
dos dados de maneira formal. Há uma inevitável matematização das formas de
pensamento que levam a representações do tipo apreciado acima. De longe tudo parece
igual. De perto tudo parece distinto. O ponto matemático assinala uma presença
discreta. Essa presença discreta é o modelo das atualizações ontológicas. Mudamos,
assim, de nível de realidade. A simples visualização de pontos só nos fornece o
esquema arquetípico da organização mental, mas não nos dá a concretude do ser que a
espécie humana é. Além de um ponto na infinita teia do Universo, a espécie humana
carrega uma potência ontológica que requisita uma epistemologia própria. Pois a
epistemologia dá a dimensão do conhecimento operativo que a espécie humana
desenvolve para manter-se autoprodutiva. Entretanto, a autoprodutividade pode
perfeitamente atender ao princípio da inteireza ecológica. A espécie humana se projeta
em possibilidades de autoprodução marcada por uma infinidade de ritos e mitos, ídolos
e crenças ancestrais profundas. Resta saber o que conflui na plenitude do instante e
200

rasga ao passado o presente instante, sem abandoná-lo como passado. Pois o passado é
o presente e o futuro.
Olhemos um pouco a imagem abaixo, a reunião dos planetas do nosso sistema
solar em uma disposição que apresenta as diferentes volumetrias relacionais. Em ordem
de maior proximidade do Sol temos Mercúrio, Vênus, Terra, Marte, Júpiter, Saturno,
Urano, Netuno e Plutão, cada planeta tem uma cor característica e um ângulo de rotação
diferente. Cada planeta é uma singularidade em uma escala evolutiva-involutiva. Cada
planeta é uma presença diferente das demais presenças. Nesse caso os pontos anteriores
do mapa do Universo se encontram em um grau de aproximação muito mais apurado.
Mesmo assim, diante da imagem dos planetas do nosso sistema solar nossa percepção
das singularidades é genérica e esquemática. Podemos, então, considerar os planetas
como uma série de um determinado conjunto de entes naturais relacionados com o sol.
As diferentes posições formam diferentes configurações e ambientações.
Do ponto de vista da MVM humana atual o sistema solar é o conjunto de
elementos físicos que gravitam em torno da fusão atômica que compõe o Sol em seu
devir-sol. Entretanto, o conjunto de planetas conhecidos dependentes do Sol em algum
grau, podem ser corpos densos anteriores ao surgimento do Sol, que ao aparecerem
atraem para si corpos de gravidade proporcional ao seu campo magnético, que assim
iniciam um processo de criação diferenciada em variadas situação de proximidade,
volume e distância do núcleo solar.

Foquemos nossa atenção no planeta Terra. A próxima imagem realiza este foco.
Estamos diante da imagem que temos de nosso planeta. Pelo que conhecemos, a Terra é
o único planeta do sistema solar com um desenvolvimento MVM complexo, pela
presença da espécie humana dotada de inteligência criadora e destruidora
simultaneamente. Vista desse modo, a Terra parece uniforme e bem comportada em sua
evolução natural.
201

Felizmente na imagem acima aparece também a Lua, pois a Terra não seria tal
sem a Lua. Mesmo nessa imagem tão precisa e unitária, possuímos uma representação
mental da Terra como se tudo estivesse em perfeita harmonia. Mas no âmbito do planeta
são muitas as situações e condições específicas de equilibração e desequilibração.
Matematicamente podemos medir e representar a Terra de muitas maneiras,
topologicamente, pela geometria diferencial, pela teoria dos números, pela teoria dos
grupos, pela teoria do caos, por equações diferenciais, pela aritmética, pela geometria
etc. Todas estas formas atuais da Matemática afirmam uma ciência dos padrões. A
Matemática está sendo definida como ciência dos padrões. A capacidade de
matematização é capacidade de padronização por abstração. Assim, nossa mente
epistêmica tem se ocupado com o estudo dos padrões e tem desenvolvido uma ciência
dos padrões através de metodologias particulares. Tudo reduzido a sequências que
podem ser matematizadas de diversas formas, os padrões podem ser reais e imaginários,
qualitativos e quantitativos, estáticos e dinâmicos, sensíveis e ideais, funcionais ou
estéticos, aplicados ou puramente possíveis. Assim, tudo parece reduzir-se a padrões
numéricos, de forma, de movimento, de comportamento, de previsão, etc. Toda
metodologia, assim, haverá de se referir a padrões, segundo o modo matemático de
concatenação lógica das operações de mensuração e de cálculo.
Estudar padrões de número e contagem, de forma, de movimento, de raciocínio,
de possibilidade, de conjunto de dados estatísticos, de linguagem etc. Tudo isso é
metodologia. A metodologia tem o legado da matematização, daí o diferencial
ontológico da ciência moderna iniciada com Galileu no século XVII. Entretanto, uma
metodologia que parte da intuição articuladora da coexistência de diferentes níveis de
realidade não pode aceitar o princípio da exclusão pela abstração matemática e pela
202

lógica do terceiro excluído. Uma metodologia assim plantada não aceita o primado da
especialização e da fragmentação. Não aceita a metanarrativa hegemônica da ciência
matemática subdividida em campos de controle de padrões mentais, virtuais ou atuais
predeterminados. Sem negar a capacidade matemática como o diferencial do ser
humano em seu desenvolvimento tecnológico e intervencionista, se quer afirmar
funções inteligentes que estão além da matematização e que constituem as
possibilidades da espécie humana em seu movimento de aprendizagem da realidade
SupraMVM. E para que isso? Simplesmente pelo brilho de ser na plenitude do instante
sem máscaras, sem paradas. Como isso é possível humanamente?
Matematicamente inventores de padrões, seguimos o curso das possibilidades
criadoras em uma polilógica aberta às convergências diferenciais e correlacionadas em
unidades singulares e únicas. Entretanto, nossa singularidade não é mais importante do
que qualquer outra do ilimitado Universo. Tão pouco nossa MVM tem a capacidade de
compreender outras MVM’s do Universo, porque uma MVM é sempre um caso único
de florescimento integrado. Apesar de ser constituída de aglomerados de micro-
MVM’s, toda MVM do Universo encontra-se atrelada ao seu próprio campo existencial.
Assim, quando olhamos nossa própria morada no Universo não podemos inicialmente
ultrapassar o conjunto de nossa ontosfera, pois para que isso ocorra precisamos ativar as
funções da SupraMVM, e mesmo assim não ultrapassaremos nossa singularidade
conjuntural. Há, portanto, limites específicos na configuração de processos
metodológicos cuja função atende à trans-formação humana na ação de seu
florescimento criador. Impõe-se um saber-viver-com-sentido. Isto implica no
atendimento de um conjunto integrado de funções aprendentes configuradas a partir da
diferença antagônica entre “luz” e “sombra”, “massa clara” e “massa escura”, campos
complementares de todo “fenômeno” MVM – de todo acontecimento integrador de
Mente, Vida e Matéria. Uma “mente clara” e uma “mente escura”, uma “vida clara” e
uma “vida escura”, uma “matéria clara” e uma “matéria escura”. Um sim e um não: um
“sim-não”, “1-0”. Há sempre um campo “O” que é a referência a toda possibilidade e
probabilidade. Todo “um”, assim, é verbo em ação. Todo “zero” é tudo-nada, ação-não-
ação, potencial-virtual-atual.
No comportamento do ser humano há níveis de realidade que podem ser
expressos em tendências comuns e podem ser projetados como signos de funções
gerativas. Os esquemas abaixo apresentam figurações metodológicas de diferentes
203

saberes correlacionados aos diversos campos do complexo humano. E como a


metodologia é sempre uma forma-padrão que tem a função de ordenar o campo da ação,
como a trama e o tear na tecelagem, os esquemas abaixo apresentam campos modelares
do Educar Transdisciplinar na deriva do saber viver com sentido e das dimensões
intuitivas aprendentes.
204
205

Foram escolhidos, também, os seguintes princípios axiais, como limiar


articulador do Educar Transdisciplinar: Unicidade, Impermanência, Tempo-Espaço
Implicado, Comum-Pertencimento e Compaixão. Como princípios eles também operam
no plano metodológico, na medida em que são intuições livres e guias do movimento de
construção do Educar Transdisciplinar: sua metodologia em diferentes enclaves de ação
e realização.

 Princípio da Unicidade: Tudo é Um.


 Princípio da Impermanência: Tudo está em mudança contínua.
 Princípio do espaço-tempo implicado: A dobra do aparecer e da aparência – O
contínuo transformar-se de tudo.
 Princípio do comum-pertencimento: A Diferença de ser e ente é comum-
pertencimento no mesmo sem-fundamento – Dialogia!
 Princípio da Compaixão: Amar é saber-ser-amante na impermanência do
instante – Acolhimento! Liberação! Compartilhamento!
206

O plano metodológico do Educar Transdisciplinar opera em Polilógica. É


plurifocal em seus princípios. A Polilógica compreende em seu operar uma lógica, uma
interlógica e uma translógica. Como operar no plano da ação programática quando o
que se quer é deixar ser o outro o caminho de sua vida? Como cada um de nós se
dispõe a aprender a aprender a partir da visada polilógica?
A Terra nos parece unitária vista do espaço sideral. Entretanto, de quantas Terras
é feita a Terra? Basta um olhar mais apurado para nos assustarmos com a variedade e
diversidade de condições e situações dos entes viventes do nosso planeta. A que ponto
chegou o ser humano com sua dominação planetária baseada na extorsão e no lucro
como princípio econômico? O ser humano cresceu em demasia? A espécie tornou-se
insustentável para si mesma?
Na metodologia do educar transdisciplinar a coexistência de diferentes níveis de
realidade requer o meio universal dialógico como eixo operativo criador. O diálogo é o
caminho da inclusão metodológica.

b. Metodologia da Lógica do Terceiro Incluído

Como dialogar de maneira efetivamente dialógica? A metodologia da lógica do


terceiro incluído é dialógica. Mas o que isto vem a ser na prática?
A dialogia é em si mesma inclusiva. Sendo inclusiva ela não trabalha na
perspectiva do jogo do ganhar-perder e sim como jogo do ganhar-ganhar18. Na
dialógica não há ganhadores e perdedores. Todos são ganhadores. A dialógica é
polilógica. Como assim?
É simples. Dialogar é percorrer um caminho em companhia. Nesse caminhar o
mestre é aprendiz e o aprendiz é aprendiz. O mestre tem o seu próprio caminho de
aprendiz. O aprendiz caminha como um mestre: pergunta! O diálogo é um caminho
aberto ao acontecimento do sentido comum e compartilhado. O compartilhamento
despersonaliza o âmbito do dialogar. No diálogo não há quem ensina e quem aprende,
mas há um caminho comum de aprendizagem. No diálogo não há um mediador que
seria a autoridade dialógica, pois todos são mediadores na elaboração e no
acontecimento de um questionamento comum que tem consequências e efeitos na
realização da vida prática de todos. O diálogo significa o meio de investigação aprendiz
18
A referência maior ao diálogo como jogo cuja regra é ganhar-ganhar vem de David Bohm (2001),
que desenvolveu uma dialógica referencial para todos os que trabalham dialogicamente.
207

da condição humana em seus diversos planos, níveis e âmbitos de conjugação. O


diálogo é o meio comum do autoconhecimento aprendente, em todas as etapas do
desenvolvimento humano. O diálogo, assim, é o caminho da aprendizagem
transdisciplinar. Nele não há mestres e discípulos disputando posições predeterminadas,
mas há aprendizes colaboradores de um conhecimento comum, flexível, aberto ao
acontecimento criador includente.
O terceiro incluído o que é isso mesmo? É o próprio dialogar! O dialogar só é
dialogar com a inclusão do terceiro termo. Não poderia ser diferente. Dialogar é
investigar acontecimentos através do dizer e do falar conjuntamente – acontecimentos
criadores. A presença do outro é o filamento condutor da comunicação conjunta que é o
diálogo. Sim, aquilo que se dá através da Linguagem e pela Linguagem. Mesmo
quando se dialoga solitariamente, ao se ouvir os próprios pensamentos e corresponder a
eles com perguntas e respostas, o outro constitui o caminhar dialógico. A alteridade,
portanto, é a pedra de toque do diálogo, porque o diálogo é uma relação amorosa que
conjuga ressonâncias distintas em uma convergência comum-pertencente. No diálogo
aprende-se o que é comum-pertencente: a porta de todo alumbramento!
Qual pode ser então, a metodologia dialógica que inclui sempre o terceiro termo
em suas conjugações?
O seguinte esquema apresenta a dinâmica gerativa do dialogar que pode ser
representado em seus traços comuns e gerais como “modelo” metodológico que tem
como objeto a ação aprendente em si mesma, segundo a singularização das
individuações.
208

c. Metodologia da Teoria da Complexidade

O educar transdisciplinar visa o pleno desenvolvimento do educando em sua


autonomia e inventividade, singularidade e propriedade, sensibilidade e intuitividade,
criticidade e afetividade corresponsável e livre, sua força-solidária e Ética mirando a
vida dedicada à Vida – Vida poeticamente habitada - VidaArte. É querer demais?
Toda aprendizagem deve partir das condições existenciais de quem aprende. O
educar transdisciplinar leva em conta a totalidade do educando em suas atualidades e
potencialidades, a partir do seu contexto específico e de sua situação existencial. Daí a
importância do educador transdisciplinar ser como um jardineiro que cultiva variadas
espécies de plantas em seu jardim. Sua tarefa é a de cuidar para que cada uma delas se
desenvolva plenamente.
No educador transdisciplinar todos os educandos são iguais na diferença
ontológica originante, diferença que os projeta nas sendas do ser próprio e apropriado:
campo aberto a possibilidades livres e sábias. Como isso é possível? Só é possível pelo
deixar ser o outro o caminho de sua vida.
A transdisciplinaridade é uma abordagem compreensiva que transcende a forma
de ser da razão moderna, fundada no Princípio de Identidade monológica e dualista –
209

campo formador das relações hegemônicas de poder e do antropocentrismo reducionista


tomado como princípio de realidade.
Para dar conta desta abertura, precisamos de uma ciência do educar construída a
partir da emergência do desenvolvimento humano em um modo de ser sensível,
inventivo, investigativo, questionador, solidário e digno simultaneamente, em que todos
possam aprendam a conhecer no serviço do vivervivente em sua totalidade conjuntural.
A complexidade é a conjuntura do real. A simplicidade é a sua potência ilimitada,
abundante, extraordinária. A lógica do terceiro incluído é uma polilógica, que é uma
teoria da complexidade. O esquema abaixo mostra uma configuração da Teoria
Polilógica do Sentido como campo de disposições da metodologia da complexidade.

Nessa configuração o foco do Educar Transdisciplinar se concentra no processo


de trans-formação do educador. Ele não pode deixar de ser um investigador e um
cientista do desenvolvimento humano polilógico. Por isso ele necessita de uma ciência
do educar polilógica. Está ciência é inclusiva. Seu fundamento sem-fundamento é o
autoconhecimento. Este autoconhecimento é aprender a ver, aprender a conhecer,
aprender a viver junto, aprender a fazer, aprender a ser (com exceção do primeiro
210

termo essas são as expressões dos quatro pilares da educação para o século XXI 19). O
que se pode traduzir de maneira unitária como aprender a aprender com arte de
maneira própria e apropriada. O esquema abaixo reúne as dimensões aprendentes em
torno do campo/eixo do aprender a ser-sendo: a polilógica aprendente – metodologia
da complexidade aprendente.

19
Consulte-se o famoso “Relatório para a UNESCO da Comissão Internacional sobre Educação para
o século XXI”, organizado por Jacques Delors (2004).
211

Tais pilares delimitam o campo geral do desenvolvimento humano que haverá


também de acontecer no espaço-tempo da Educação Básica, em todos os sentidos
possíveis.
O currículo escolar, então, precisa ser concebido a partir de uma nova
compreensão do educar humano que, agora, privilegia o desenvolvimento das funções
MVM-SupraMVM da tríade educador-educando-situação, substituindo as formas
tradicionais de ensino por atividades de aprendizagem efetiva, nas diversas áreas do
conhecimento organizado e disponível e em novas áreas em formação. A
experimentação passa a ser o campo da experiência construída por cada um em sua
formação conjuntural.
Fazer-aprender a ser: potencializar o educando-educador-situação para aprender
a lidar com a complexidade do mundo globalizado cibercultural de maneira autônoma e
inventiva, solidária e corresponsável, harmoniosa e crítica, poética e ética.
Os pilares indicados como estruturadores do educar a ser realizado no século
XXI relacionam-se aos diferentes campos e dimensões que organizaram a experiência
humana geral e particular. Tais campos / dimensões podem ser indicados em uma
referência histórica não universal (porque se poderia muito bem usar outras expressões
que fizessem sentido em outras culturas) nas seguintes palavras/conceitos reunidas na
imagem abaixo:
212

Tais expressões apresentam a cultura humana a partir dos campos constituidores


do complexo MVM nas sociedades históricas burocráticas. Há aqui uma questão muito
séria nesta recriação (reinvenção) do educar. Há níveis de organização que se
apresentam distintos, mas são complementares e revelam a complexidade do educar
humano. Os seres humanos possuem a potência das divindades de maneira adormecida
e agem como crianças. Os jogos humanos são jogos de crianças. A imponderabilidade
da unidade de tudo em sua abissal fenda requisita figurações harmonizadoras que
possam merecer atualização, potencialização e disposição permanente. É como atualizar
programas de ação. Só que os programas são modos de configuração que requisitam o
vivervivente. É preciso viver e estar vivente para que tais expressões sejam apenas
signos de campos distintos de desenvolvimento que requisitam diversas lógicas
diferenciadas. Identificamos o complexo MVM humano em suas distintas articulações.
A vida associada dos seres humanos desenvolveu funções autopoéticas a partir de uma
heterogênese que se expandiu em direções variadas e mostram a concretude do que é
necessário desenvolver nos seres humanos como seres humanos. Pensemos bem. Os
seres humanos podem merecer um campo de possibilidades mais arrojadas em sua
modelagem histórica. Para isso precisamos saber o que é ser humano?
Política, Ontologia, Estética, Epistemologia, Ética e Ecologia são expressões
indicativas da heterogênese criadora da humanidade histórica. Os seres humanos hão de
se haver com seu próprio ser, com sua vida de relação e sua atitude prática, sua
sensibilidade e invenção poética, sua ciência como ciência experimental regular, sua
atitude ética diante do nada, sua forma de relação com o seu meio de vida, sua morada
terrena em conjunto. É como se estivéssemos diante de muitas humanidades que
coexistem em níveis de realidade distintos, mas apenas um modelo hegemônico quer
definir o encaminhamento futuro da humanidade. Uma maquinação preocupante caso
não possa ser utilizada como meio promotor do vivervivente heterogenético.
Só uma revolução para que possa ser de modo liberador sempre. Não há mais
errância cega e sim vivência consequente. Tudo conflui para o florescimento pleno dos
seres humanos em uma escala articulada como conjugação de âmbitos comuns e suas
variações criadoras.
Assim como se está aprendendo a viver ecologicamente e a conhecer com mais
vagar as leis da natureza no plano ambiental, é preciso considerar a diversidade em si
mesma, sem a projeção redutora de seus aspectos e efeitos. Assim, socialmente e
213

mentalmente temos pela frente um grande desafio relativo aos limites comuns do que é
de todos e não é de ninguém. A humanidade haverá de resolver os seus próprios
problemas e dilemas sociais e mentais. Mas é preciso desconstruir a visão antropológica
baseada em uma prepotência racionalista, para que seja possível constituir um educar
transdisciplinar fundado na abertura criadora da espécie humana, em suas florações
epocais cíclicas. Há, assim, a necessidade de projetos que se antecipem à modelagem
humana necessária à sua plena transformação Mental, Vital e Material, tendo em mira a
elegância do cantar e do dançar sem finalidade. A Idade da Guerra chegou ao fim! O
que, fazer, então, se o hábito da guerra irá perdurar e reproduzir-se como um vício ou
um vírus?
Como fazer para que o Educar não alimente o modo de ser do êxito pessoalista e
egoísta? De que vale o ego humano, senão como caixa de ressonância? A complexidade
do Educar Transdisciplinar opera como método na modelagem da ação aprendente. Mas
isso é como um instrumento musical que será tocado por pessoas diversas de maneiras
distintas. O instrumento pode ser o mesmo, mas toda execução feita por seu intermédio
terá uma qualidade sonora única e incomparável, por mais que na mente sempre opere
por comparações e contrastes.
A complexidade operada na metodologia do educar transdisciplinar permite
projetar as condições essenciais da aprendizagem na educação transdisciplinar nas
quatro conjugações verbais seguintes:
Dialogar: ouvir, falar, calar, perguntar, responder, conviver, cultivar,
reconhecer, duvidar, suspeitar, acordar, amar, harmonizar, deixar-ser, ser-com,
etc.
Pensar: conceber, acolher, recolher, guardar, proteger, silenciar, ouvir, ver,
tocar, palatar, degustar, investigar, questionar, experimentar, imaginar, supor,
compreender, conhecer, etc.
Praticar: Cuidar, fazer, nutrir, plantar, colher, partilhar, construir, escrever,
realizar, recolher, preparar, armazenar, renovar, distribuir, preservar, restaurar,
etc.
Partilhar: conviver, ofertar, distribuir, preservar, cuidar, estabelecer, comum-
pertencer, comum-responsabilizar, oferendar, festejar, celebrar, etc.
214

As imagens seguintes reúnem as dimensões do desenvolvimento humano em


uma polilógica aberta ao com-sentido. A complexidade se recolhe na simplicidade
da livre decisão de abundância e elegância.

A complexidade tem sua metodologia na Ética tomada em sua atitude polilógica


como cuidar de todos os planos de imanência da criação humana. Há uma criação que
merece a maestria dos oleiros cósmicos. Uma filosofia além da filosofia.
215

Nas dimensões essenciais do desenvolvimento transdisciplinar a complexidade é


o traço da aprendizagem conjugada: para se conceber o educar que tem como foco o
florescimento humano em seu caminho de radicalidade, é necessário conjugar os verbos
sentir, pensar, conhecer, conviver, fazer de tal forma que sua configuração não perca de
vista as estações do desenvolvimento liberador. Uma polilógica convergente no ser
aprendente no instante de seu florescimento/fenecimento. Um sersendo confluente na
unidade diversa de tudo.

Isso prefigura os horizontes do Educar Polilógico Transdisciplinar assim como


seus âmbitos de atualização/potencialização/inclusão:
216
217

Os horizontes figurados são aberturas para novas possibilidades


polilógicas unificando todo o saber humano sem que se perca um só fio de
singularidade e diversidade, de diferença assim como de repetição.
Pode-se também falar em planos do Educar Transdisciplinar Polilógico, em uma
repetição do mesmo âmbito compreensivo e articulador.

No esquema apresentado aparecem planos de conformação já estratificados e


formas de comportamento já dominantes. A totalidade conjuntural reclama uma
metodologia da complexidade. Mas a complexidade se unifica em sua consistência
absoluta. A coexistência de diferentes níveis de realidade, a lógica do terceiro incluído
e a teoria da complexidade são os eixos metódicos e metodológicos do Educar
Transdisciplinar. Como já disse, os postulados concebidos por Basarab Nicolescu para a
metodologia transdisciplinar são aqui tomados como eixos organizadores da
Epistemologia do Educar. Todos os méritos, portanto, aos epistemólogos da
transdisciplinaridade, pois sem eles não seria possível construir possibilidades de
modelagens do conhecimento em total correspondência com o poder-ser SupraMVM-
218

MVM: um poder-ser muito acima de todo poder quântico já imaginado e atualizado.


Reunindo tudo temos a configuração da complexidade nos seus diferentes planos de
realidade e em sua lógica inclusiva – do ponto de vista do ente-espécie humano. Com
tais horizontes e eixos metodológicos delineamos o modo de constituição das teorias
transdisciplinares e das práticas humanas visando à aprendizagem da qualidade que
diferencia o ente humano de outros entes naturais, não como uma posse e um comando,
mas como um pertencimento e uma partilha amorosa.
219

8. A avaliação no Educar Transdisciplinar: Desenho Metodológico


da Avaliação Polilógica Transdisciplinar

Avaliação Polilógica Transdisciplinar é uma expressão que reúne em seu campo


semântico e sintático o avaliar articulado por lógicas plurais e compreendido além das
disciplinas. Parte-se do avaliar como movimento de valoração que é peculiar ao
desenvolvimento das sociedades humanas e de seus indivíduos e se toma a medida da
avaliação escolar instituída e regular como matéria prima na elaboração de uma
dinâmica de avaliação que atenda à emergência de uma educação humana
transdisciplinar. Isto requer a criação de novas formas de constituição dos processos
avaliativos escolares, no sentido de superar o atual horizonte da educação básica
regular, demasiadamente marcado por processos disciplinares que fragmentam o
movimento de formação e comprometem o desenvolvimento de projetos humanos
sustentáveis, portanto, inteligentes e sensíveis simultaneamente.
220

A proposta de uma Avaliação Polilógica Transdisciplinar atende ao chamado de


uma educação que dê conta do desenvolvimento humano pleno, o que contraria o modo
dominante de produção e consumo do mundo globalizado. O seu campo é o ser humano
em seu desenvolvimento sócio-histórico, corporal-mental, afetivo-simbólico, tendo em
vista o cuidado necessário para a criação de condições favoráveis ao seu florescimento
saudável, feliz e implicado com a dinâmica da vida em seu contínuo transformar-se e
recriar-se.
A questão basilar toca o cerne da condição humana global e investiga as
possibilidades de desenvolvimento de processos formadores que estimulem o
aprendizado do pensar próprio, apropriado e apropriador. Isto implica em uma
problematização da educação instituída e seus métodos avaliativos, tendo em vista o
alcance de uma atitude avaliativa indissociável do ato de aprender e de ensinar, com
foco no concreto movimento polilógico do aprender: aprender a ser, a conhecer, a
pensar, a perceber, a viver junto, a fazer, pela concepção, elaboração e resolução de
problemas emergentes.
O avaliar, assim, é o verbo que permite um salto de natureza na concepção de
educação e em seu campo operativo. Para que se efetive a mudança de uma educação
disciplinar para um educar transdisciplinar o processo avaliativo tem que ser
necessariamente transvalorado. Desenvolver dinâmicas de aprendizagem com foco em
habilidades e competências complexas e polilógicas implica em novas formas de avaliar
que atendam ao processo de cuidado com o florescimento humano em todas as suas
dimensões e possibilidades. Isto implica no reconhecimento de processos materiais que
constituem nossa condição existencial global e no correspondente âmbito de produção
de sentidos culturais que possam circular como formas de ação que possibilitem,
potenciem e atualizem o florescimento e fenecimento humano pleno. Isto requer novas
criações, novas ideias, novas configurações.
E tudo isto no âmbito de um comum-pertencimento que a todos reúne no mesmo
planeta, na mesma Oca, na mesma morada, e que a todos conclama ao trabalho criador
de construção, conservação e transformação da vida na Oca de forma radicalmente
disposta ao acontecimento do instante sem ocaso.
A educação escolar instituída necessita de um novo projeto para alavancar sua
inércia secular e fazer desta massa histórica a plataforma de lançamento de formas de
ser que atendam ao primado da colaboração e da partilha justa e desarmada, o que
221

requer uma evolução nos meios de constituição das relações de poder, sendo
fundamental praticar uma atitude investigativa radical, o que corresponde à investigação
dos próprios pensamentos, e que se pode identificar com a atitude filosófica, que não é
nunca algo que se ensina ou que se transmite por propagação, porque requer de cada
aprendiz que aprenda a aprender por conta própria: aprenda a ouvir, aprenda a falar,
aprenda a ler, aprenda a escrever. Ora, só se pode aprender pela experiência própria e
apropriada. A questão, então, da avaliação diz respeito ao movimento de produção de
valor pela experiência própria e apropriada.
A Avaliação Polilógica, assim, se propõe a construir uma dinâmica avaliativa do
processo educacional como auto-referente e alter-referente em um contínuo diálogo
entre o ser e o parecer, entre o simbólico e o vital, o cheio e o vazio, o alto e o baixo, o
dentro e o fora. Avaliar é, antes de tudo, suspender os juízos e julgamentos e
simplesmente valorar o que se tem diante. E o que se tem diante é um processo material
que tem o seu próprio campo correlato simbólico e semiótico: os pensamentos e afetos,
os humores e as paixões, as atitudes e ações, as palavras e os gestos. Suspender juízos e
julgamentos significa experimentar a coisa mesma que se oferece para julgamento:
Avaliar o aprendiz!
Toda avaliação, assim, nasce de uma suspensão de juízo, um distanciamento
prévio de todo pré-julgamento, de todo preconceito, porque a-valiar significa estimar o
valor, ponderar, pesar o valor. E a medida do valor que se vai avaliar pode ou não
permitir que se valorize corretamente o avaliado. Isto torna a Avaliação Polilógica um
campo fecundo para a transposição da avaliação instituída porque o seu foco é a
totalidade conjuntural, consciente e inconsciente, de cada ser em formação. Isto permite
um avaliar continuamente dialógico e questionador, permanentemente atento ao
conjunto constelado de cada caso, de cada um em seu particular universal.
Por isso mesmo a Avaliação Polilógica tem que começar do começo, tem que
iniciar na fonte e expandir junto com sua jorrância. Neste ponto a radicalidade é a
palavra-chave. A Avaliação Polilógica Transdisciplinar aqui ensaiada encontra-se
radicada na criação de novos valores para a vida presente-futura da humanidade.
Pretensão bastante consciente de que há sempre o que criar quando se está vivo e se
pode oferendar o movimento de sua existência ao eterno refluir de tudo, e se pode
acolher o mistério sem se perder de vista seu sentido-sendo, sempre plural, sempre
diverso, sempre outro-mesmo.
222

A Avaliação Polilógica Transdisciplinar é uma proposta-ação para a realização


de uma prática pedagógica orientada para o florescimento de seres humanos autônomos
e criativos, responsáveis e participativos, questionadores e críticos de suas próprias
condições de existência. O seu ponto de partida é a constatação do complexo acervo de
conhecimentos e informações disponível ao ser humano contemporâneo. São muitas as
referências para se poder compor razoavelmente o humano e suas relações com a
totalidade que o abarca. São muitas as formas de desenvolvimento humano. São muitos
os contextos específicos. São muitas as variações de caráter e personalidade. São muitas
as possibilidades. Entretanto, se tem insistido em um modelo monológico que procede
por generalizações e idealizações prefixadas. Somos, então, levados pela enxurrada de
possibilidades e interdições e atendemos à estrutura do medo psicológico e nos
apegamos em relação ao que parece a única possibilidade, mas é apenas um velho
hábito que não se pode imaginar perder sem a ideia de morte. Mas, o que é, entretanto,
a morte de um velho hábito quando se tem pela frente infinitas possibilidades de
florescimento? Como seria, então, reconhecer a morte de um teatro humano e o
florescimento de outra encenação humana? Reconhecer a morte do sistema
educacional fundado em uma competência cognitiva exclusiva é o mesmo que
reconhecer o florescimento de outra educação humana que dê conta da emergência de
formar seres humanos para lidar com os problemas complexos de sua existência e
convivência, em uma compreensão ética que tem como ponto de radicalidade o comum-
pertencimento de ser humano e natureza, mente e corpo.
Essa perspectiva desenha o horizonte a ser aprendido como desafio da educação
humana daqui para frente. Sem ressentimentos! Este é o primeiro passo. Não se trata,
portanto, de se fazer a crítica ao sistema educacional disciplinar vigente e sim de
oferecer alternativas de ação, em um projeto abrangente e aberto de educação humana
que reúne no mesmo âmbito o tradicional e o inovador, os ancestrais e os descendentes,
os antepassados e os antefuturos. A Avaliação Polilógica Transdisciplinar reúne a
potência e o ato na construção humana conjugada com a vida em sua totalidade em
diferentes situações e intensidades. Apreende o ser humano a partir da totalidade
conjuntural em seus diferentes níveis de Realidade e em suas estruturas basilares de
composição. Sem perder de vista que toda “base” é um centro de força a partir do qual
se edifica uma forma de ser no mundo, e que não há nenhum modelo ideal para ser
imitado, e sim o alcance efetivo de uma vida consciente da consciência e consciente da
223

inconsciência, no aberto de seu acontecimento instante atentivo e cuidadoso. Três


verbos presentificam a obviedade da Avaliação Polilógica: Ensinar, Aprender, Avaliar.
Esta tríade óbvia é o ponto de apoio que move a proposta para sua ação, como um
contínuo dialógico em que o aprender é ensinar e é avaliar simultaneamente, sem e
com solução de continuidade, tudo dependendo do conjunto de um acontecimento
singular/coletivo.

O importante aqui é o verbo. É ele que unifica a dialogia de ensinar, aprender,


avaliar. São todas ações que necessitam de uma correspondência imediata, no plano da
compreensão articuladora. O verbo é a ação. A ação é o verbo. Quem ensina o que
ensina? Quem aprende o que aprende? Quem avalia o que avalia?
Em uma perspectiva linear, quem ensina, ensina, quem aprende, aprende, quem
avalia, avalia. Cada coisa em seu lugar. Mas como? Quem ensina não aprende? Quem
avalia não é avaliado? Quem aprende não ensina?
224

Quando pensamos a partir do verbo e não do substantivo temos diante um novo


campo de possibilidades para a compreensão/ação do educar e do avaliar. O verbo nos
ensina que é possível aprender pelo movimento de reconhecimento do aprender e que
este é possível pelo avaliar contínuo e não fragmentário. O verbo nos ensina a agir como
verbo: aprender, ensinar, avaliar. O substantivo é o resultado do verbo em uma fixação
extensiva e em uma figuração nominal ou icônica. Há algo como memória em todo
substantivo. Memória é o substantivo do verbo memorar (recordar), porque o memorar
é voltar a agir na experiência vivida. O que é retido e o que é descartado compõem o
ciclo do recordar/memorar. Quando é que alguém se dá conta de si? Como se dá o
dar-se conta de si?
A memória é o meio de recordação do vivido. O vivido, porém, só é recordado no
vivente. O vivente tem também, por antecipação, a memória do futuro. A experiência
vivida encontra-se presente na vida vivente como um contínuo sem partições, porém
amplamente identificável em partes e em setores, inclusive em grandes arquiteturas do
sentido unificado, seja na ciência, seja na arte, seja na mística, seja na filosofia. Cada
um de nós é hoje o que já foi e será o que é agora em sua abertura vivente ou em seu
fechamento maquínico.
A dinâmica dos processos vitais é algo comum a todo ser vivente. Como poderia ser
diferente com o ser humano? Por ventura ele não é um ser vivo e vivente? O organismo
humano não é só mental e a inteligência não é apenas cognitiva, pois a cognição é em
primeira instância um acontecimento da sensibilidade: um perceber articulado
compreensivamente – um intuir.
Memória do vivido e do vivente é o verbo. E todo verbo precisa de um
substantivo para fazer-se aparência, superfície, consciência. Verbo é consciência do
instante: superfície. Superfície, porém, que a tudo move como dinâmica efervescente
em fuga. A imagem da luz em seu caminho infinito ao redor de si mesma: o nascimento
de todo espaço e de todo tempo-espaço. A natureza do simples. A complexidade do
simples. A conjuntura simples / complexo. O simples que se desdobra e se dobra e
redobra. O complexo como dobra da dobra do simples. O simples complexo: natureza
em espírito, espírito-natureza – também uma grande e única dança!
A diferença como diferença é o fundante ontológico para uma ação crítica e
radical da avaliação educacional e para a construção de uma avaliação trans-formativa
polilógica: projeto transdisciplinar.
225

Tratamos da função aprendente da avaliação. O seu principal traço é a prática


dialógica. As modalidades polilógicas da avaliação transdisciplinar se configuram como
Arte de Aprender: aprender a ver-ser, aprender a pensar, aprender a viver junto,
aprender a fazer. De imediato se mostra o caráter aberto e imprevisível da avaliação
transdisciplinar: aprender a aprender a sersendo. Aparecem os horizontes da avaliação
polilógica: avaliar o ver-ser, avaliar o pensar/conhecer, avaliar o viver junto, avaliar o
fazer. Tendo-se esta imagem polilógica do avaliar, sua simplicidade favorece a
delimitação de seus critérios como uma apurada fenomenologia: uma prática dialógica
benquerente – potência de poder-ser-sendo, ato criador no fluxar de tudo.
Visa-se inicialmente configurar uma rede de sentidos e significados/significantes
para a fundação e prática de uma avaliação transdisciplinar, como ponte epistemológica
para a vivência avaliativa da arte de aprender.
Assim, é também um convite à instauração do exercício de reconhecimento e
identificação das dimensões aprendentes do ser humano que requisitam avaliações
diferenciadas.
Visa-se, também, apresentar um exercício de reconhecimento das várias
dimensões aprendentes, tendo em vista a compreensão dos fundamentos
epistemológicos e ontológicos da Arte de Aprender.
O que é a avaliação Polilógica? Para que se avalia? Como se deve avaliar?
Isso nos convida a olhar o mundo dado a partir de outras possibilidades: não está
em causa a explicação do como aprendemos a aprender e sim a compreensão
articuladora do aprender a aprender como de-cisão própria e apropriada –
autoconhecimento, meditação: conascimento quântico fundamental – ontologia do que
é-sendo.
O fato é que toda de-cisão é desconcertante: arranca-nos da estabilidade
constituída, joga-nos no turbilhão do acontecimento instante, projeta-nos diante de
possibilidades corresponsavelmente constituídas.
Afinal, o que significa aprender a aprender? Como é que se aprende a aprender?
Qual é o método eficaz para tanto? Qual é a ciência deste fazer? Por qual motivo
devemos aprender a aprender?
Categoricamente, devemos aprender a aprender porque devemos continuar
vivendo. Não há método eficaz nem ciência para este fazer. Há, porém, métodos e
ciências para este fazer. Contudo, é preciso saber-fazer com arte. Necessitamos, com a
226

máxima urgência, aprender a aprender aprendendo. De onde brota, porém, esta


necessidade?
Se cada um de nós não mudar o ponto de vista compreensivo acerca da
Realidade, como poderá partilhar da comum-responsabilidade como uma ciência do ser
ingente e indigente simultaneamente?
Ciência aberta como aprender a ser-sendo compartilhado. Ciência além da
ciência regular.
Aprender a aprender é o mesmo que aprender a ver e não-ver, aprender a
conhecer e não-conhecer, aprender a pensar e não-pensar, aprender a viver-junto e a
não-viver-junto, aprender a fazer e a não-fazer, aprender a ser e a não-ser.
Aprender a aprender é investigar o ser-ente em sua totalidade conjuntural:
investigar si mesmo, investigar outro mesmo, investigar mundo mesmo. Aprender a
aprender é o mesmo que investigar si mesmo, o outro, o mundo.
Aprender a aprender abarca a totalidade conjuntural do ser-ente-espécie. Chamo
este aprender de “atitude filosófica”, usando de uma maneira própria o conceito
filosófico. O campo da atitude aprendente é polilógico, organizando-se como na mistura
das cores a partir das tonalidades primárias. O quaternário abaixo apresenta uma captura
dos elementos estruturadores da aprendizagem humana, e apresenta um conjunto de
verbos que indicam as operações da aprendizagem. A combinação dos elementos
primários de configuração da totalidade MVM humana será sempre um caso específico,
o que não nega sua unidade de princípio, meio e fim.
227

Em primeiro lugar, compreendemos por Avaliação Polilógica uma relação-


vivência dialógica correspondente, ressonante. Avaliar é correlacionar-se com o advento
dialógico.
Advencial, a avaliação é um encontro com o sentido mostrando-se no outro em
seu projetar-se presente. O outro receberá sempre do outro a emanação/imagem de sua
florescência. Neste ser projetivo e efêmero consiste a avaliação. A avaliação é um
distanciamento do fluxar visando rememorar e revisitar a experiência vivida: avalia-se o
fluxar no acontecimento dialógico. Articula-se o antes e o depois em uma consciência
de si
A avaliação é o advento da dialogicidade comum.
Avalia-se o acontecimento do outro no caminho de sua vida.
Avaliação polilógica é deixar ser o outro o caminho de sua vida. Trata-se de
superar o paradigma do exame e da certificação meramente formal e burocratizada, cuja
regulação consiste no controle excludente dos ineptos através do exame e da prova.
A avaliação pensada como reconhecimento do aprendizado realizado na
instância da totalidade MVM-SupraMVM, e não mais como modo de aferição do
conhecimento adquirido pela repetição-assimilação de um dado modelo regulador.
228

Avaliação como desenvolvimento humano singular, plural e comum – diferença


comum-pertencente. Uma avaliação configurada como atitude investigativa
fenomenológico-hermenêutica – atitude filosófica.
O esquema abaixo apresenta percursos que relacionam o conhecimento avaliador
ao ato de constituir trilhas semióticas que funcionam como elementos de configuração
de tramas de produção de sentido dialógico, portanto, de sentido aberto à conjuntura do
instante. As palavras e campos permitem configurar uma linha analítica que não se
desconecta da Totalidade divisada, imaginada, pensada e ideada. A analítica
fenomenológico-hermenêutica indica um caminho para a delimitação epistemológica da
modelagem polilógica do avaliar: como ação construtora de sentidos implicados.

Isso requer uma compreensão articuladora que dê conta de algo como atitude
filosófica. Compreendo como atitude filosófica o mesmo que atitude aprendente.
Concebo o avaliar como filosofar, pois acolho filosofia como filosofar. O esquema
abaixo congrega planos configuradores da atitude filosófica ou atitude aprendente. Uma
maneira de apontar para o que não se pode reduzir ao plano simplesmente intelectual ou
mental. A atitude aprendente, assim, aparece em todos os seus níveis divisados de
229

constituição, o que permite pensar a atitude filosófica como atitude investigativa


radical. Uma configuração além da filosofia escolar: incluir tudo em Tudo, sem perder
nada, o baixo e o alto, o salto e a corda, o sentir e o conceituar. Afinal, o que é o
filosofar senão filosofar? Mas o que é o filosofar? Estaria ele circunscrito ao ciclo
historial Ocidente? Ou já se pode vir a pensar (imaginar, sentir, conceituar) o filosofar
como algo que é próprio do ser-aí em seus desempenhos, sem que seja preciso negar ou
contradizer os luminares da tradição filosófica propriamente dita?

Esse esquematismo da atitude filosófica ou aprendente se correlaciona ao


sentido focal do avaliar, pois importa pôr-em-obra a trans-formação dos indivíduos da
espécie. Na verdade esse esquematismo é vazio sem a prática efetiva do filosofar ou do
aprender. A partir da prática, o esquematismo serve de meio articulador do movimento
de plasmação dos processos aprendentes. É como a pedra, o cimento, a areia, o tijolo em
uma construção. Ter chegado ao grau de compreender os elementos básicos para
edificar uma casa é sem dúvida o sinal de uma grande revolução tecnológica. Mas, sem
aquilo que torna a construção de uma casa – o seu morador – os elementos de
construção não fazem nenhum sentido. Assim, para aqueles que podem perceber com
quantos elementos se faz uma casa o esquematismo pode justamente possibilitar uma
construção para ser habitada e para servir aos viventes.
230

A figura abaixo apresenta um campo articulador da avaliação polilógica, tendo o


que se pode chamar de Filosofia da Diferença como âmbito teórico e o que se projeta
como Educar Transdisciplinar como âmbito acional do avaliar. Formar, ou trans-
formar na Diferença como Diferença é o horizonte ontológico do avaliar polilógico:
correlação de comum-pertencimento total.

Diante disso, fica patente a pressuposição do ato de avaliar: o mundo cultural em


sua historicidade própria – os regimes inerentes ao modo de vida de sociedades
históricas. Qual é, portanto, nosso regime de vida específico? Como produzimos cultura
e de que modo reproduzimos o produzido? Vivemos na Diferença ou abominamos a
Diferença? Mas, como viver na Diferença como Diferença?
Os modos de avaliar são dependentes dos modos culturais instituídos
tradicionalmente. Entretanto, é possível propor um modo de avaliar que procure realizar
a educação humana voltada para a pluralidade de potências vivas, o que significa uma
nova forma de cuidar e cultivar o ser humano em sua liberdade de ser.
231

Em nossa cultura atual predomina ainda a hegemonia da ciência experimental


com seus critérios formais padronizados e regulados. Infelizmente, a maioria dos
discursos sobre avaliação educacional é fundado em uma ideia de cientificidade que só
atesta a trama da manipulação ideológica planetária. É preciso, entretanto, aprender a
pensar para além dos limites instituídos. Afinal, o ser humano encontra-se aberto diante
de sua própria possibilidade de ser sempre ultrapassagem. Mas, será esta tendência um
acontecimento exclusivo do ser humano?
De modo geral, as ciências da natureza e as ciências do espírito encontram-se na
ótica da racionalidade instrumental, com exceção de casos de crítica radical do
conhecimento humano. Isso significa o predomínio de um modelo determinado na
modelagem da “formação” humana. Como, então, ultrapassar essa tendência dominante
de formalização que determina o avaliar como mensuração de desempenhos
programados? Por que o critério de avaliação tem que ser o do “exame” e da “prova”?
É uma hegemonia do modelo de Realidade das ciências positivas, que determina o
princípio de realidade pela mensuração e pela regularidade do comportamento humano?
O que é inadequado aí? Por qual motivo o princípio de Realidade assumido pela ciência
normativa tem que definir o que é verdadeiro como critério de avaliação?
Temos, então, um problema de critério para ser investigado demoradamente,
porque o critério da ciência positiva não pode ser o principal vetor do processo de
avaliação na formação humana transdisciplinar. Mas é também indubitável que não
mais se trata de negar o primado da ciência positiva na condução do destino
tecnocientífico aí vigente. Pelo contrário, trata-se de também aprender o que é próprio
da investigação científica e da modelagem técnica e artística. Portanto, não se trata de
criticar negativamente a ciência positiva e sim de realizar alternativas dialógicas que
conjuguem a instrumentalidade da tecnociência com a emergência humana de geração
de indivíduos realizadores das potências reunidas e coesas. Indivíduos não são ilhas no
oceano cósmico. Indivíduos são individuações de uma dada espécie. Entretanto, é
preciso alertar para o fato de o indivíduo nunca poder ser algo isolado de um todo que o
germina e mantém. O âmbito da experiência humana em seu acontecimento singular e
plural não segue senão a lei do que é vivo e quer viver. A vida quer viver. Mas, não há
vida sem morte. A morte quer morrer. Não há morte sem vida.
Avaliar aparece agora como avivar, valorizar através do destaque, da relevância.
Avaliar é sempre julgar. Julgar, porém, o que é? Ora, julgar o valor, o que vale.
232

Entretanto, o que é o que vale? O que vale é o que afeta e repercute, ressoa. Entretanto,
o que é hoje o que vale? Parece valer o que se pode provar documentalmente. Mas, no
âmbito da complexidade vertical da espécie humana o avaliar é algo pertencente ao
modo de fazer e julgar do ser humano. Avalia-se o que? O que é objeto de avaliação?
Avalia-se, o desempenho em programas específicos, a capacidade de investigar, o modo
de operar de quem aprende o que se está avaliando?
Meu intuito é o de ressignificar o verbo avaliar, porque tornou-e importante
saber o que se vai aprender a avaliar. Há de qualquer modo um aprender. Não se avalia
o que não está em obra. Avalia-se a obra em andamento? Qual obra, aquela de cada um
em sua singularidade e unicidade absoluta ou aquela determinada por uma modelagem
coletiva ideologizada? Ora, o avaliar aqui ressignificado, reformado não tem em vista
esquemas formais reguladores e sim o processo gerativo daquele que é avaliado. O
campo da avaliação polilógica é cada indivíduo em sua individuação compartilhada. Por
isso mesmo se pode pensar o avaliar como uma suspensão do juízo afetado, o que
significa que o julgamento se transforma em apreciação atentiva – apreciação presente.
O avaliar nessa perspectiva é uma abertura dialógica interrogante e afetiva, na medida
do acolhimento do outro em sua alteridade insondável. Sem uma disposição para
apreciar o outro em sua construção própria o avaliar polilógico não serviria para nada.
Considero o avaliar polilógico como algo no serviço de algo muito elevado e radical.
Projeta-se um outro ambiente para o educar transdisciplinar. Vamos direto ao ponto:
avaliação polilógica não significa mais averiguação ou exame do processo de adaptação
do aprendiz ao programa a ele oferecido de aprendizagem.
Para ampliar o campo da polêmica inevitável diante da proposta apresentada,
apresento um jogo epistemológico sucinto para apresentar uma gramática mínima do
avaliar polilógico. Parto do uso corrente do verbo avaliar, segundo sua dicionarização.
O conceito preliminar de avaliação – o preconceito usual: etimologia e
significados prévios do verbo Avaliar:

 AVALIAR - do latim, valeo, valere, VALOR, TER VALOR, VALER:


 1ª - ser forte, vigoroso, valente;
 2ª - estar com saúde, passar bem, estar em bom estado;
233

 3ª - ter força, ter crédito, exceder (em alguma coisa), levar vantagem, estar em
voga; prevalecer; ter bom resultado, sortir efeito; ser eficaz; cumprir-se; ter
influência, contribuir para; ser capaz de, poder;
 4ª - Ser bom, eficaz (ter medida), ter esta ou aquela virtude, ser medicinal;
 5ª - Valer (em relação ao dinheiro); valer um preço;
 6ª - Ter esta ou aquela significação, significar.
Em uma síntese esquemática e gramatical, o avaliar aparece em sua composição
afônica. O “a” suspende a ação de valorar para dar valo, reconhecer o valor, fazer
valer. O “a” ao suspender não altera o sentido da palavra “valorar”: avalorar,
avaliar. Mas o “a” provoca uma desaceleração do valorar. Avaliar aparece, assim,
como ato retroativo e reflexivo do valorar? Avaliar é, portanto, investigar o valor de
alguém em seu acontecimento onto-sócio-genético-ambiental? Mas, para que isso –
em qual regime produtivo? Qual é, portanto, o projeto humano para o qual faz
sentido avaliar no sentido criador?

Em um jogo de linguagem provocante, o que significa ressignificar o conceito de


avaliação? Basta reinventar sentidos para que os sentidos dêem sentido ao avaliar?
Claro que não. Entretanto, por que não ressignificar o que parece já descontado e inútil?
Nada impede de “jogar” o jogo ressignificado a partir de um florescimento próprio.
234

Ora, quando já se viu algo como ter amor no processo avaliativo instituído? O
que significa, por exemplo, “valorar o que vale”? E o que quer dizer “corresponder ao
outro”? E “potencializar” o que? “Partilhar” com quem? “Ter estima” de que?
“Valorizar o outro” por que, para que? “Acolher a diferença” em nome de quem?
Avaliar agora mudou de figuração, por mais que se procure reagir a isso:
“Apesar de tudo, se move!” Avaliar, assim, lida com o nome e a nomeação em uma
atribuição de valor, no ato de a-valorar, estimar o que vale. Avaliar pressupõe uma
tríade: Avaliador, Avaliado, Avaliação. De modo dialógico, há uma relação de agentes,
em que não há o que ensinou e aquele que aprendeu e sim o que se aprendeu em um
processo dialógico construtivo.
Nessa perspectiva de avaliação ninguém é excluído do processo. O que se avalia
não é a adequação a um modelo predefinido e formalizado, mas a efetividade do
florescimento singular. De maneira ampla, cada um aprende na medida de sua expansão
e de sua conexão com suas circunstâncias existenciárias. Cada um é holograma da
totalidade vivente em seu próprio e único lugar.
235

Também os conceitos de Avaliação, Avaliador e Avaliado sofrem uma torção


salutar: um campo dialógico de agentes em diferentes níveis de experiência. Todo
cuidado é pouco no trato com a Diferença de cada um. Uma Diferença, entretanto, que é
uma igualdade originante. O Avaliador aparece desse modo como um esperto, um
artesão em sua arte de educar. O Avaliado se presentifica como agente avaliado. Trata-
se de um reconhecimento de valor. Entretanto, o que é o valor que se deve reconhecer
no agente avaliado?
Seguramente, trata-se de um valor pertencente a uma determinada tradição
histórica. Há história em toda valoração. O Avaliador é mediador da espécie segundo
determinado modo cultural. O Avaliado é o indivíduo que se reconhece implicado na
espécie a partir do seu lugar único – próprio e apropriado. O aprender em que está
implicada a avaliação polilógica diz respeito ao processo de individuação que sempre
ocorre em relação com o outro e com a totalidade Mundo.
Com essa ressignificação do conceito de avaliação, é necessário reconhecer que
o que se faz regularmente com o que se chama avaliação, não avalia nas dimensões
propostas, mas examina e classifica segundo as normas de uma regulação monológica e
rígida, excludente e classificatória.
236

Para sermos consistentes, o que aqui estamos chamando de Avaliação Polilógica


pressupõe outra ação de racionalidade: a compreensão plural dos sentidos implicados.
Pressupõe um educar completamente outro, um educar no vivervivente.
Por onde começar? Da descrição do que não se encontra dado nem
objetivamente nem subjetivamente, mas se encontra velado em seu próprio evento
necessitando de uma elucidação apropriadora. Por isso mesmo, é sempre necessário
interpretar e traduzir para a língua própria os ditos e feitos históricos. E todo dito será
sempre passagem, será sempre outro na mesmidade do que é. Quando nasce a escola
formal nasce também o modo de avaliar coercitivo, autoritário, subordinador. E quando
nasce a escola formal?
Nos moldes conhecidos, a escola formal é um acontecimento da modernidade
européia e dos estados totalitários aí constituídos. Entretanto, suas raízes são medievais
e antigas. Medievalmente, ela toma para si o modelo escolástico. Da Antiguidade ela
extrai a moralidade exemplar das fábulas pedagógicas e seu influxo determinista na
psique humana (o medo, o temor, o pavor, a submissão simbólica à falsa
transcendência).
Da Escolástica, a escola moderna tira para si o princípio de autoridade externa e
a relação de subordinação mestre-discípulo. Neste âmbito, a avaliação é uma prova e
uma provação, um exame do aprendizado, um julgamento moral severo, e se baseia no
aprendizado da submissão à repetição do dito autorizado. A prova é um instrumento
moral de coerção e disciplinamento conveniente. A avaliação da potência do outro e da
singularidade é impensável, pois o educar consiste em transmitir um cabedal de
conhecimentos autorizados e dogmáticos. Em nenhum momento a autoridade pode ser
contestada pelo aluno – o que ainda não tem luz própria, mas irá recebê-la do mestre ou
autoridade instituída. As inteligências rebeldes são aí condenadas e punidas. A punição
é o instrumento coercitivo por excelência: a punição moral (uma moral de escravos). A
prova, aliás, é um correlato da punição, associando-se teologicamente, ao pecado
original.
Da Modernidade a escola extrai a inspiração de uma autojustificação racional
que reifica o modelo autoritário paternalista como a lei da vida social universal. A
Razão é a senhora dos destinos humanos. A razão se torna a rainha do mundo, sua
legítima senhora. Neste sentido, a objetividade científica se faz fundamento para uma
educação racionalmente ordenada. É urgente agora sair do círculo vicioso da
237

autojustificação racional moderna que considera eficaz o regime de punição,


classificando e excluindo, e não vê motivos para mudar isso, como se tudo
permanecesse igual ao que foi sendo como foi a melhor maneira para tomar como
exemplo e como modelo a seguir. Por incrível que possa parecer para certas pessoas
ilustres não há nada de incomum acontecendo no mundo. Desse modo, já estaria tudo
dado. Mais nada a fazer. É só acomodar-se ao já funcional e comprovado. Desconfiar
disso é uma maneira livre de libertar-se dos entraves semióticos e interdições
simbólicas, porque urge esclarecer e cuidar, colaborar e reunir, conjugar e distribuir.
Avaliação Polilógica, portanto, para uma ciência do educar transdisciplinar. Uma
ciência-arte, melhor dizendo, porque sem elegância e corte o que se pode esperar do
fazer humano? Deixar o outro ser uma comum-responsabilidade a partir do comum-
pertencimento inviolável.
A avaliação polilógica ao embasar-se em uma ciência polilógica transdisciplinar
não valoriza a comparação e sim o reconhecimento da diferença de cada um. A
comparação se justifica em dadas situações profissionais condicionadas. Mas não se
justifica negar a potencialidade do valor de quem quer que seja, ou obrigar alguém a ser
aquilo que não quer ser. O princípio da soberania do outro em formação é um indicativo
do cuidado com a potência do que está em formação. Fala-se da formação básica,
daquela sem a qual não se pode conceber a realização do comum-pertencimento de
todos com Tudo.
O avaliar projetado tem, assim, uma ciência polilógica transdisciplinar como
terreno epistemológico a partir do qual pode operar como ação criadora.
Autoconhecimento, teorias da simplicidade e da complexidade, diferença ontológica de
ser e ente, comum-pertencimento ser-ente, coexistência de diferentes níveis de
Realidade e de percepção, lógica do terceiro incluído são as palavras-chave que
articulam a consistenciação verbal do Avaliar Transdisciplinar – Polilógico.
238

Isso projeta também a triunidade do aprender que se vai avaliar: a reunião dos
termos capacidades, competências e habilidades em uma articulação polilógica. Pode-
se, assim, tirar partido dos termos capacidade, competência, habilidade. Na síntese dos
elementos operada pela intuição MVM-SupraMVM, capacidade é poder-se,
competência é saber-ser, habilidade é aprender-fazer-ser. Reunindo a triunidade do
aprender, sem potência não pode haver ser, sem saber não pode haver competência, sem
aprender e fazer não pode haver habilidade. Assim, a triunidade do aprender se abre
para uma polilógica acional. Trata-se de uma ação de poder, de saber e de aprender a
fazer. Poder é capacidade, saber é competência, aprender-fazer é habilidade. Reunindo
capacidade, competência e habilidade se pode projetar um único feixe: aprender que é
um poder e um saber.
239

Há aqui uma intenção de usar a gramática educacional em formação no século


XXI. Uma intenção de reunir os esforços na direção de um projeto humano fundado no
afeto e na aprendizagem compartilhada. Um projeto sustentável para a vida humana e
suas relações de comum-pertencimento á Totalidade.
240

Trata-se de se apresentar também o plano técnico do avaliar polilógico.


Compreende-se por técnicas de avaliação todo e qualquer procedimento regulador de
aprendizagem, no sentido do movimento de construção/elaboração de ações formativas,
tendo em vista o alcance e domínio dos meios de desenvolvimento humano autônomo e
criador – arte de avaliar. Nesta medida, as técnicas são processos instruídos por
aprendizagens continuadas, pois dependem da prática. A prática configura a técnica. Daí
ser possível projetar instrumentos técnicos de ação e modelagem educacional,
formatividade aprendente. Isto é inevitável. Sem “instrumentos” não há “produção
cultural”. A instrumentalidade, portanto, também compõe a Avaliação Polilógica.
Como meio de destacar o caráter diverso da Avaliação Polilógica a imagem abaixo
apresenta a relação dos regimes de avaliação dominantes e a proposta da Avaliação
Polilógica. De qualquer modo, a proposição da Avaliação Polilógica não nega e nem
combate a existência da Avaliação Monológica instituída e reguladora. Trata-se de
mudar a forma de regulação, que será sempre inevitável para qualquer organismo
articulado. A questão, portanto, não é negar a regulação e sim afirmar uma regulação
polilógica, plurifocal por princípio.
241

Assim, aparece a diferença de foco entre a Avaliação Monológica dominante e o


foco da Avaliação Polilógica, como se pode apreciar nas representações baixo.
242
243

Agora interessa saber como fazer-aprender a ser-sendo? Como aprender a


avaliar polilogicamente? O que é certo e o que é errado fazer na Avaliação Polilógica?

Que dispositivos e que instrumentos são necessários para avaliar


polilogicamente? Há a disposição sensível e a disposição artística, o pensamento e a
ação como dispositivos. Fazer falar, fazer escrever, fazer ouvir, fazer sentir, dialogar,
acolher o singular como plural, reconhecer a diferença, saber-sentir, saber-pensar, saber
ser-com, saber fazer são instrumentos do avaliar polilógico. Todo instrumento tem o
sentido do operar e modelar a forma formante. O instrumento é o meio da expressão.
Por isso é preciso sempre aprimorar e refazer os instrumentos, porque só se aprende
através de instrumentos ou meios de expressão. Para construir uma casa é preciso ter
os meios materiais, energéticos e mentais para pôr-em-obra a casa. Para realizar uma
avaliação polilógica os instrumentos são as palavras e as coisas, o pensamento e a ação:
disposição sensível como disposição artística.
244

Pode-se até brincar projetando as “competências” da Avaliação Polilógica.


245

Necessário também se faz conceber os limites da Avaliação Polilógica em uma


aproximação inicial, porque lidamos com a condição humana em sua vasta
complexidade e não se pode pretender abarcar a totalidade por uma modulação teórica
qualquer. Portanto, mais uma vez, tudo aqui é pretexto para a costura do pensamento
articulador da totalidade sem totalizar pela redução a esquemas conceituais, abstrações
mortas.
246

Têm-se, assim, algumas consequências da Avaliação Polilógica:


1. A avaliação polilógica não é partitiva e sim cooperativa. Sua função não é a de
valorar os padrões prefixados do conhecimento já normatizado, mas fazer-
acontecer o florescimento potente de quem é avaliado, em sua valência singular
e solidária.
2. A avaliação polilógica é um processo de conhecimento em que não se transmite
apenas o já dado pela tradição, mas se potencializa o fazer do outro em seu agir
próprio e apropriado: ato aberto de criação do ser-com.
3. A avaliação polilógica não admite polarizações do tipo subordinante, e o que se
avalia não é apenas um dado sujeito/objeto ou uma dada habilidade ou
capacidade cognitiva do mesmo, mas o conjunto de suas condições de existência
em suas relações gerativas potenciais e atuais.
4. A avaliação polilógica não possui modelo ideal a partir do qual quantificadores
(medidores) de valor são estabelecidos, porque ela parte da condição do ser-no-
mundo-com em suas infindáveis possibilidades de realização múltipla. Ela não
teme a multiplicidade e a diversidade, porque o que importa em sua gênese é o
247

alcance de um modo de ser altivo, digno, feliz, sem perder de vista a concreta e
árdua condição humana.

Trata-se de realizar a avaliação polilógica tendo-se presente que não se irá com
isso aquilatar o chamado “rendimento” relativo à aquisição de um dado conhecimento
técnico ou conteudístico.
Nesse sentido, o exercício tem por fim a concretização vivencial de uma
possibilidade em construção: a realização do avaliar como ato de aprendizado amoroso
do ser-no-mundo-com, estruturando-se em quatro campos complementares: o
ontológico, o epistêmico, o ético e o estético.

Tais campos são impensáveis separadamente. Eles formam uma unidade


indivisível no âmbito do ser-sendo – em cada caso singular. Neste sentido, eles
estruturam todo e qualquer fenômeno humano em sua constituição e circunstâncias
248

próprias. Assim, o que importa é a totalidade do nosso ser-no-mundo-com, em cada


caso, em cada circunstância específica e singular. Em outras palavras, importa sempre
aprender-a-ser-sendo.
Tudo isso implica em outros horizontes para o educar daqui por diante, pois não
se trata de remendo e arranjo sem-arte, e sim de coragem e altivez de espírito, de força e
de maleabilidade, de vigor e compaixão, criatividade e justeza, integridade e esperteza,
concretude e paixão pelo viver-com-arte – na conjuntura do Simples. O Complexo!
Essa proposta não se harmoniza, apesar de poder parecer, com a teoria das
inteligências múltiplas, porque crê na diferença como diferença, isto é, a ideia de
inteligências múltiplas é uma representação imprecisa da complexidade gerativa da
natureza humana. Neste sentido, antes de inteligências múltiplas, estamos falando de
condição de origem múltipla – condição ontológica: a diferença como fundante da
igualdade partilhada – o ser-no-mundo-com: passagem, fluxo, acontecimento, ser-sendo
na partilha incondicional.
A ação avaliativa polilógica implica em disposição aprendente radical: seu foco
é a aprendizagem com-sentido: aprendizagem própria e apropriada.
Ela pode ser realizada em qualquer campo de conhecimento, inclusive de
treinamento para situações de risco permanente, desde que conte com educadores
realizadores de vida criadora. Esta é a única condição desta proposta: a existência dos
que são capazes de cuidar criativamente, amorosamente do educar vivervivente: Educar
com arte na bondade além de bem e de mal: doação do livre. Uma bondade que sabe
cortar e que em seu vigor possui a violência dos gestos livres.
Quatro critérios se projetam no âmbito polilógico do ser-no-mundo-com: o
afetivo, o conceitual, o ético e o poético: homo sapiens-demens – homo polilogicus.
249

É possível também jogar com tensões e interrogações, como modo de provocar


processos de construção polilógicos na modelação do avaliar transdisciplinar..

Assim, na Avaliação Polilógica aprende-se a avaliar avaliando-se o ver, o pensar, o


viver junto, o fazer. Uma obviedade irritante.
250

Pode-se também projetar alguns parâmetros da Avaliação Polilógica, levando-se


em conta a liberdade, a solidariedade, a comunidade e a autonomia.
251

Os parâmetros apontados são para-metros – estão além da metrificação


ocupando o lugar de qualificadores. São parâmetros na medida em que o campo da
Avaliação Polilógica tem como horizontes liberdade, solidariedade, comunidade,
autonomia. O que isso significa no plano da ação?
252
253
254
255
256

Atitude fenomenológica...
257

9. Reunindo tudo em um único crisol


I
Aforismos do Educar Transdisciplinar

1.
Aquele que se apega, morre. O que se solta, vive. No soltar-se e no
apegar-se consiste a vida e a morte, o nascer e o morrer.

2.
O fenômeno é a consciência da consciência e a consciência da
inconsciência: superfície e profundidade, extensão e intensidade.

3.
O ser que somos enquanto existimos é vida-morte sem cessar. Mas
o que cessa nele é a compreensão da compreensão e da incompreensão: o
alcance da Unidade na dispersão cósmica da luz no fundo sem fundo
velado.

4.
A Unidade, entretanto, não é algo que se confunde com o
fenômeno enquanto aparecer e aparência na instantaneidade do evento.
A isto se chama Diferença. Diferença e Unidade são o mesmo no sentido
de que Tudo é Um, Um é Tudo.

5.
Em cada Diferença a Unidade, em cada Unidade a Diferença.
Tudo o que é provém de si mesmo na superfície e na profundidade.

6.
Aquilo que é, é sempre sendo de múltiplos modos fenômeno:
aparecer e aparência, profundidade e superfície, ir e vir, subir e descer.

7.
O sábio pensa por imagens, o filósofo por conceitos. Entretanto, o
filósofo aspira alcançar o sábio: deseja pensar por imagens.
258

8.
Nietzsche alcançou o sábio: pensou por imagens – Zaratustra e
Dioniso são os seus personagens imagéticos, secundariamente conceituais:
o gesto criador em si mesmo encarnado no humano como
transpassamento, ultrapassagem, morte na vida, vida na morte: cântico e
dança, música e poesia, palavra e oração – metáfora: vida produzindo
sentido através de mudanças, transposições de algo propriamente dito
para uma figuração propriamente dita em infindáveis vórtices
desejantes, amantes, amados. Por que não?

9.
A produção de atos mentais complexos e abstratos é uma
característica da espécie humana desde sua configuração epocal presente.

10.
Para pensar propriamente é preciso ousar. Para ousar, entretanto,
é preciso pensar. Mas, para pensar propriamente é preciso escutar. Para
escutar é preciso não-pensar. Para não-pensar, deixar-se suspender no
TudoUm: um Todo suspenso no Nada. Um Nada percebido no Todo de
quem percebe. Quem percebe?

11.
Pensar e não-pensar se copertencem: um está sempre onde o outro
não alcança. Ambos se delimitam um no outro, um pelo outro: metáfora
da Diferença Ontológica.

12.
Quando Um se torna Dois tudo se reflete em tudo: diferenciação,
multiplicidade, conjugação, relação, geração, potenciação.

13.
A inteligência é a sensibilidade consciente da consciência e da
inconsciência: o amar polifônico – reverência à Vida Abundante.
Abertura para o aberto: mirar-se no extraordinário.
259

14.
O ser humano busca o absoluto porque ele mesmo é filho do Desejo
inteligente da Vida. O seu esquecimento sensível é sua mortificação
paralisante.

15.
A pergunta pelo ser humano e sua finalidade abrangente é a
questão fundamental: buscar-se a si mesmo – eis a sina do ser humano
como potência vivente. Quem somos nós, então? Como alguém pode
alcançar o verdadeiro e o falso sem o alcance de si mesmo?

16.
Desnudar-se significa abrir-se ao mistério do ser em si mesmo. Será
isto inconsistente, portanto, ilusório, no sentido do efeito imaginoso do
real, “subjetivo”?

17.
Todo fenômeno é fenômeno implicado: o ser humano em sua
compleição ontológica – ser como se é percebido; perceber como ser
percebido: alteridade radical: princípio, meio e fim, e não antes princípio
ou fim.

18.
Princípios do Educar Transdisciplinar (uma possibilidade):

1. Princípio da Diferença Ontológica Originante: Ser e pensar


são o mesmo.
2. Princípio da Igualdade Originante: O fundamento de tudo é
o sem-fundamento. Igual é tudo o que é do sem-
fundamento. Igual é todo ser/ente em sua diferença.
3. Princípio da Complementaridade da Diferença Ontológica:
Tudo o que é permanece sendo em sua diferença. A relação
de comum-pertencimento de tudo reúne a diferença
formando o campo de sua unicidade vivente.
4. Princípio da Abertura Originante do sem-fundamento:
Tudo o que é nasce no sem-fundamento. Tudo o que é está
além de ser e pensar, de vida e morte, tempo e espaço.
5. Princípio Filosófico como Atitude Aprendente: estudar si
mesmo, esquecer si mesmo, identificar-se a todas as coisas
(citando Dogen).
260

6. Princípio do Aprender a sersendo como igualdade originante:


Tudo o que pode ser dito sobre o sentido real e suas
figurações não é o sentido real, mas apenas suas figurações.
O sentido real não pode ser explicado, mas pode ser intuído.
Quando intuído é incomunicável, mas se comunica na
unicidade de sua valência, se transfere na multiplicação da
diversidade, se contai no esvaziamento dos sentidos-cheios.
Recolhe-se na vastidão do inaudito.
7. Princípio da Abertura Originante: tudo se encontra sendo
na doação de si ao aberto – tudo, assim, é ato amoroso do
princípio ao fim, no meio e nas bordas, lá, acolá, cá.

19.
A diversidade realiza a unidade de tudo o que é. O que é, por ser
UNO, é sempre diverso. A diversificação do UNO não se opõe ao
mesmo, mas o realiza como o VAZIO PLENO. O múltiplo do diverso é
sempre a impermanência do UNO, pois qual é a forma do sem-forma?

20.
O UNO ama a impermanência das formas. A unidade mesma é
vazia de formas. A realização do Diverso e do Múltiplo não se opõe ao
UNO. UNO e MÚLTIPLO dá no mesmo. Isto, entretanto, não os
confunde.

21.
Os fundamentos filosóficos da transdisciplinaridade são os modos
de acesso ao ser do ente em sua totalidade. O filosófico diz respeito ao
modo como somos constituídos como seres abertos no comum-
pertencimento de tudo. O filosófico é o modo próprio do
autoconhecimento que se vai construindo polilogicamente, isto é, pela
ultrapassagem continuada da “mente velha condicionada”. Filosófica é a
atitude incondicional de amar a Vida-sendo, amar o Saber-Ser na
conjuntura do Simples: comum-pertencimento de tudo. Conjunção de
corpo e alma, ente e ser, mundo e humanidade aprendente.

22
Autoconhecimento próprio e apropriado. Tudo é um no todo das
partes. A vida abundante da espécie humana em sua ambiência vital é o
chamado comum. A vida humana reclama dignificação e cuidado. O que
precisa ser cuidado é justamente o ser humano que é também capaz de
não-ser humano. Os outros entes por serem “naturais” sabem se cuidar
261

naturalmente. Por que o ser humano se diferenciou dos entes naturais?


Ele deixou de pertencer à conjuntura simples de tudo?

23.
Quais são nossos maiores desafios para a realização de uma prática
transdisciplinar? Educar Transdisciplinar – o que é isto?
O significado amplo e específico da expressão requisita a
compreensão do processo histórico da educação disciplinar moderna. É
preciso que cada um tenha presente o funcionamento efetivo do modelo
vigente de educação, modelo praticado diariamente em nossas atividades
pedagógicas. É preciso que cada um reconheça sua própria prática
docente marcada pela fragmentação característica do modo de produção
da civilização moderna e contemporânea. O reconhecimento das
condições efetivas de nossa existência é o primeiro passo do
autoconhecimento: aprender sendo. Sendo o que? Sendo plenitude
vivente: transformação amorosa.

24.
A questão aqui não é individual e sim conjuntural (coletiva). O
foco não é a deficiência do professor isolado e nem a do aluno, mas a
realidade total na qual estamos inseridos historicamente como seres
humanos concretos. Por que o mundo se encontra tão dividido e
fragmentado em setores e regiões materiais e simbólicas? O que se passa
com nossa educação escolar? O que é necessário para tirá-la da inércia
em que se encontra imersa e acomodada? Será que uma bomba de
nêutrons seria suficiente para perfurar a inércia instituída?

25.
Só uma mudança radical de atitude em relação à vida e ao
trabalho humano podem promover a mudança trans-formativa
necessária para a modelagem humana benquerente. É preciso,
entretanto, encontrar-se disposto a aprender a aprender a ser-sendo – uma
disposição amorosa fundamental.

26.
O transdisciplinar implica em uma mudança de atitude – uma
mudança ontológica – mudança na ordem do modo de ser em relação a si
mesmo, ao outro e ao mundo. Trata-se de aprendermos a conhecer o
caminho radical do desenvolvimento humano autossustentável, que nos
religue ao todo da vida e unifique nosso ser, fazendo-nos co-responsáveis
262

pelo mundo local e global, potencializando nossa ação transformadora,


de modo próprio e apropriado, cuidadoso e solidário, amoroso e sensível.

27.
Transdisciplinar é a atitude de transpassamento do disciplinar – a
transformação da atitude dualista e fragmentadora em atitude aberta ao
aprender a aprender unitário e simples, plural e complexo.

28.
Afinal, o que significa aprender a aprender? Em que sentidos e
direções? O que se deve aprender na escola e na vida? Aprender
disciplinas isoladas, conteúdos dissociados das realidades vividas pelos
seres humanos? Por acaso se deve aprender a ser, aprender a conhecer,
aprender a perceber, aprender a viver junto, aprender a fazer? Mas como
aprender a aprender? Quem vai ensinar?

29.
Como é na prática este aprender a aprender? Como é que isto
implica em uma mudança de atitude radical do professor em relação ao
que deve ser “ensinado” nas aulas das diversas disciplinas do currículo
instituído?

30.
O Educar Transdisciplinar não concebe mais disciplinas isoladas
na composição da prática docente e sim uma rede de saberes e
conhecimentos unificados pela atitude comum a ser aprendida e
realizada por todos: a atitude investigativa potencializadora do aprender
a aprender a tornar-se o que se é.

31.
Só se pode aprender aprendendo. É sempre bom lembrar-se desta
obviedade. O educar é um aprender a saber-fazer próprio e apropriado. No
Educar Transdisciplinar não há mais o professor que ensina. Não há
mais a figura daquele que se limita simplesmente a “transmitir” os
conhecimentos formalizados que ele aprendeu em sua formação
disciplinar. O professor disciplinar dá lugar ao educador transdisciplinar.
Ele não “ensina”, mas oportuniza a aprendizagem dos conhecimentos de
sua área de atuação, estabelecendo relações com os outros saberes a
partir da atitude aprendente radical.
263

32.
Sem a pretensão de “ensinar” e sim com a disposição de deixar o
outro aprender de maneira própria e apropriada, o educador é aquele
que, de repente, aprende a aprender. Para isto ele precisa, em primeiro
lugar, autoconhecer-se. Autoconhecer-se significa desenvolver-se
plenamente: tornar-se aquilo que se é.

33.
O educador transdisciplinar é investigador do conhecimento
abrangente a partir de si mesmo – tendo a si mesmo como campo de
realização do aprender a aprender a ser-sendo.

34.
O educador transdisciplinar não repete o que aprendeu
mecanicamente, para que o outro repita sem compreensão aprendente
própria, mas ressignifica constantemente a abordagem do que deve ser
aprendido essencialmente por todos os educandos.

35.
O educador tem que ser ele mesmo um caminho de
autodesenvolvimento sustentável, caso queira oportunizar o
aprendizado do educando sob sua responsabilidade, dando-lhe acesso ao
desenvolvimento de si mesmo, a partir de uma determinada área do
conhecimento histórico.

36.
Educar, assim, significa cuidar para que o outro possa seguir
desenvolvendo-se e florescendo plenamente: possa aprender a aprender
com Arte.

37.
Sem continuar sempre aprendendo ninguém pode educar ninguém:
faltar-lhe-á a vitalidade aprendente para potencializar no outro a
possibilidade do aprender a aprender.

38.
O Educar Transdisciplinar se articula e organiza a partir da
atitude aprendente fundamental: Disposição amorosa para o saber de si,
do outro e do mundo.Essa disposição amorosa compreende o instituído e
o instituinte, o constituído e o constituinte, o já feito e o por fazer, o
conhecido e o desconhecido, o atual e o potencial, a vida e a morte, a
264

presença e a ausência em um mesmo âmbito, como partes integrantes do


mesmo UmTudo.

39.
No Educar Transdisciplinar há também o saber dizer não: Não
será aplicado nenhum regime normativo relativa à avaliação
educacional, e sim a realização de uma desconstrução crítica dos
processos avaliativos vigentes, visando com isso subsidiar um processo
avaliativo polilógico, o que pressupõe uma revolução no âmbito da
educação formal, a partir de uma revolução de nossa relação com a vida-
sendo em sua totalidade, pelo encontro de nosso lugar no mundo.

40.
Citando Andrei Tarkovski no filme Stalker:
“Que se cumpra o idealizado.
Que acreditem.
Que riam das suas paixões.
Porque o que consideram paixão, na realidade, não é energia
espiritual,... mas apenas fricção entre a alma e o mundo
externo.

O mais importante é que acreditem neles próprios,... e se


tornem indefesos como crianças,... porque a fraqueza é
grande, enquanto a força é nada.

Quando o homem nasce, é fraco e flexível,... Quando morre é


impassível e duro.

Quando uma árvore cresce, é tenra e flexível,... Quando se


torna seca e dura, ela morre.

A dureza e a força são atributos da morte,... flexibilidade e a


fraqueza são a frescura do ser.

Por isso quem endurece, nunca vencerá.”

41
Princípios Axiais para a organização transdisciplinar:
265

1. Princípio do Serviço e da Maestria do seu acontecimento


(Ontológico)

Trata-se de um serviço oferecido à dinâmica da educação excelente –


um mais ser, mais vida, mais plenitude. Um sagrado dizer sim e dizer não
segundo a medida do instante.

2. Princípio Pragmático-Operacional (Epistemológico)

Trata-se de conhecer adequadamente as formas e princípios para a


criação das condições do ensinar e aprender a serviço do pleno
desenvolvimento humano.

3. Princípio Afetivo (Ecológico)

Trata-se de cuidar ecologicamente do ambiente de convivência, em


todas as suas dimensões, sejam físicas ou afetivas, envolvendo micro e
macro relações interpessoais e transpessoais.

4. Princípio Ético-Político (Acional)

Trata-se de definir com precisão o fim da ação formativa, tendo em


vista a autonomia solidária e amorosa. O Princípio se diz Acional
justamente por dizer respeito à Práxis propriamente dita, ao campo em
que se exercita o aprendizado corresponsável da vida em comum.

5. Princípio Estético-Político (Transcendente)

Trata-se de cultivar o exercício da sensibilidade a partir de valores


acionais amplos e específicos, respeitando as diferenças na convergência
da autorrealização e da transformação social.

6. Princípio Autopoético do Cuidado (Retroacional)

Trata-se de investir na continuidade renovada do processo, cuidando


da formação continuada de seus participantes, de maneira que possam
continuar aprendendo a aprender.

42.
266

O transdisciplinar implica na compreensão comum da igualdade


originante: a diferença como diferença.

Igualdade originante: “O mesmo é vivo e morto, acordado e


adormecido, novo e velho: pois estes, modificando-se, são aqueles e,
novamente, aqueles, modificando-se, são estes.” (Heráclito, Frag. XVII)

Reúne no mesmo UM o sem-fundamento: multiplica sua jorrância


impermanente/permanente

“Conjunções: completas e não-completas, convergentes e divergentes,


consonantes e dissonantes, e de todas as coisas um e de um todas as
coisas.” (Heráclito, Frag. XXII)

Transdisciplinar é a atitude aprendente radical: querer-ser


plenamente um caminhar sapiente da sapiência e da insipiência,
consciente da consciência e da inconsciência.

Transdisciplinar é a atitude de pertença à vida em suas


transformações cuidadosas: a confluência do Simples.

O transdisciplinar parte da espécie para chegar ao indivíduo. O


indivíduo é o cuidado ou o descuidado da espécie.

43.
A atitude Transdisciplinar pressupõe um ethos comum e harmonioso –
sem perder de vista a visada de Heráclito (Frag. VI): O contrário é
convergente e dos divergentes, a mais bela harmonia.

44.
Uma compreensão: Transdisciplinar é a realização conjuntural efetiva
– a conjunção intencional do comum-pertencimento compartilhado,
interativo, integrador.

O que acontece na vizinhança do nosso fazer pedagógico? Como cada


um percebe a presença do outro? Como cada um interage com o outro,
na perspectiva da prática pedagógica pontual?

Em que níveis o saber do vizinho é interativo e cooperativo?


267

De que formas pode-se interagir conjuntural, pontual e


estrategicamente?

Que educar se almeja realizar?

O educar do nosso desejo é deixar ser o outro o caminho de sua vida,


ou tornar o outro alienado do seu poder-ser?

Podemos sustentar uma atitude comum em nossas práticas


cotidianas, uma atitude transdisciplinar?

Podemos radicalizar nossa atitude aprendente diante do outro


aprendente?
45.
Parábola do Jardineiro: Uma história de crianças...

Educar é o mesmo que jardinar o alvorecer imperante...

Uma jardineira jardinava um campo repleto de crianças vivas.


Percebeu a possibilidade de implicá-las com a vida para aprender
ciências.

Cuidou, então, para que as crianças fossem nutridas em seus sonhos e


necessidade vitais. Favoreceu o acontecimento da pertença ao solo de
origem – ao mundo-aí – Mente, Vida, Matéria em sua unidade diversa.

O jardim já era bastante cultivado. Muitas espécies se espalhavam


pelas diversas regiões do mesmo. A jardineira, então, reservou um novo
setor do jardim para jardinar crianças aprendentes e implicadas com a
vida-sendo.

Começou, assim, a cuidar com intensidade da nova região do jardim,


com suas crianças jorrantes e altaneiras. Era, preciso, então, cuidar da
continuidade do florescimento da nova região do jardim. Era preciso
garantir espaço e vizinhança adequada para o acontecimento da vida
livre das espécies do jardim.

Era preciso garantir o futuro altivo das novas plantas, deixar


acontecer a pertença ao todo comum e ao solo próprio e apropriado da
mesma.
268

Cultivar as novas plantas é o caminho das espécies. Promover a


amorosidade aprendente é o caminho inteligente e sensível – caminho
com-sentido. O futuro depende do agora, do aqui, do já! O futuro já é
presente na superfície do tempo e no cotidiano dos gestos.

Como princípio da ação: cuidar do que se faz pontualmente – não


desmerecer o devir e o transformar-se em ato; cuidar para que o outro se
faça implicado com a comum-responsabilidade de tudo em relação a
Tudo.

46.
Para que educar?

Podemos responder em consonância com Maturana: “Para recuperar a


harmonia fundamental que não destrói, que não explora, que não abusa, que
não pretende dominar o mundo natural, mas que deseja conhecê-lo na
aceitação e respeito para que o bem-estar humano se dê no bem-estar da
natureza em que se vive.”

47.

E nós, somos iguais ou diferentes? Somos, em algum momento, sem a


Sombra, sem o Outro?
Somos diferentes na superfície e iguais na origem e nas possibilidades.
Somos iguais porque participamos da mesma conjuntura originária:
todos são apenas um em tudo? Pode também ser assim o sentido-sendo?

48.

Ser condizente sem ser coincidente.

49.
Contextualizando:
Como dar continuidade ao que foi construído como morada para um
educar transdisciplinar?

Como pode ser planejada a continuidade de um educar


transdisciplinar?
269

50.

Interações pedagógicas inter e transdisciplinares... Isto o que é?

51.

“O cosmo, o mesmo para todos, não o fez nenhum dos deuses nem
nenhum dos homens, mas sempre foi, é e será fogo sempre vivo,
acendendo-se segundo medidas e segundo medidas apagando-se.”
Heráclito, Fragmento XXIX
270

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