Você está na página 1de 408

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

CONSTRUINDO
uma
~
Educacao
,
ANTIRRACISTA
reflexões, afetos e experiências

Neli Edite dos Santos


(organizadora)

Fernanda Cássia dos Santos


Gabriela Martins Silva
Léa Aureliano de Sousa
(colaboradoras)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Neli Edite dos Santos
(organizadora)
Fernanda Cássia dos Santos
Gabriela Martins Silva
Léa Aureliano de Sousa
(colaboradoras)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

CONSTRUINDO UMA
EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA:
reflexões, afetos e experiências

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2022
Copyright © Autoras e Autores
Editor-chefe: Railson Moura
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Imagem de capa: rawpixel | Freepik
Revisão: Autoras e Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

C743

Construindo uma educação antirracista: reflexões, afetos e experiências / Neli Edite dos
Santos (organizadora), Fernanda Cássia dos Santos, Gabriela Martins Silva, Léa Aureliano de
Sousa (colaboradoras). – Curitiba : CRV, 2022.
408 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-3356-0
ISBN Físico 978-65-251-3355-3
DOI 10.24824/978652513355.3

1. Educação 2. Equidade 3. Educação básica antirracista 4. Racismo – Leis I. Santos, Neli


Edite dos, org. II. Santos, Fernanda Cássia dos, col. III. Silva, Gabriela Martins, col. IV. Sousa,
Léa Aureliano de, col. V. Título VI. Série.

2022 CDD 372.41098121


CDU 371.214
Índice para catálogo sistemático
1. Educação antirracista - 372.41098121

Esta obra foi realizada com recursos do Edital Equidade Racial na Educação Básica:
Pesquisa aplicada e Artigos científicos, organizado pelo CEERT, em parceria com Itaú
Social, UNICEF, Instituto Unibanco e Fundação Tide Setubal.

2022
Foi feito o depósito legal conf. Lei 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra sem autorização da Editora CRV
Todos os direitos desta edição reservados pela: Editora CRV
Tel.: (41) 3039-6418 – E-mail: sac@editoracrv.com.br
Conheça os nossos lançamentos: www.editoracrv.com.br
Conselho Editorial: Comitê Científico:
Aldira Guimarães Duarte Domínguez (UNB) Altair Alberto Fávero (UPF)
Andréia da Silva Quintanilha Sousa (UNIR/UFRN) Ana Chrystina Venancio Mignot (UERJ)
Anselmo Alencar Colares (UFOPA) Andréia N. Militão (UEMS)
Antônio Pereira Gaio Júnior (UFRRJ) Anna Augusta Sampaio de Oliveira (UNESP)
Carlos Alberto Vilar Estêvão (UMINHO – PT) Barbara Coelho Neves (UFBA)
Carlos Federico Dominguez Avila (Unieuro) Cesar Gerónimo Tello (Universidad Nacional
Carmen Tereza Velanga (UNIR) de Três de Febrero – Argentina)
Celso Conti (UFSCar) Diosnel Centurion (Univ Americ. de Asunción – Py)
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Cesar Gerónimo Tello (Univer. Nacional Eliane Rose Maio (UEM)


Três de Febrero – Argentina) Elizeu Clementino de Souza (UNEB)
Eduardo Fernandes Barbosa (UFMG) Fauston Negreiros (UFPI)
Elione Maria Nogueira Diogenes (UFAL) Francisco Ari de Andrade (UFC)
Elizeu Clementino de Souza (UNEB) Gláucia Maria dos Santos Jorge (UFOP)
Élsio José Corá (UFFS) Helder Buenos Aires de Carvalho (UFPI)
Fernando Antônio Gonçalves Alcoforado (IPB) Ilma Passos A. Veiga (UNICEUB)
Francisco Carlos Duarte (PUC-PR) Inês Bragança (UERJ)
Gloria Fariñas León (Universidade José de Ribamar Sousa Pereira (UCB)
de La Havana – Cuba) Jussara Fraga Portugal (UNEB)
Guillermo Arias Beatón (Universidade Kilwangy Kya Kapitango-a-Samba (Unemat)
de La Havana – Cuba) Lourdes Helena da Silva (UFV)
Helmuth Krüger (UCP) Lucia Marisy Souza Ribeiro de Oliveira (UNIVASF)
Jailson Alves dos Santos (UFRJ) Marcos Vinicius Francisco (UNOESTE)
João Adalberto Campato Junior (UNESP) Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC)
Josania Portela (UFPI) Maria Eurácia Barreto de Andrade (UFRB)
Leonel Severo Rocha (UNISINOS) Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA)
Lídia de Oliveira Xavier (UNIEURO) Mohammed Elhajji (UFRJ)
Lourdes Helena da Silva (UFV) Mônica Pereira dos Santos (UFRJ)
Marcelo Paixão (UFRJ e UTexas – US) Najela Tavares Ujiie (UTFPR)
Maria Cristina dos Santos Bezerra (UFSCar) Nilson José Machado (USP)
Maria de Lourdes Pinto de Almeida (UNOESC) Sérgio Nunes de Jesus (IFRO)
Maria Lília Imbiriba Sousa Colares (UFOPA) Silvia Regina Canan (URI)
Paulo Romualdo Hernandes (UNIFAL-MG) Sonia Maria Ferreira Koehler (UNISAL)
Renato Francisco dos Santos Paula (UFG) Suzana dos Santos Gomes (UFMG)
Rodrigo Pratte-Santos (UFES) Vânia Alves Martins Chaigar (FURG)
Sérgio Nunes de Jesus (IFRO) Vera Lucia Gaspar (UDESC)
Simone Rodrigues Pinto (UNB)
Solange Helena Ximenes-Rocha (UFOPA)
Sydione Santos (UEPG)
Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
Pareceristas convidados pela
comissão organizadora do livro:
Adalberto de Salles-Lima (UNB e SEEDF)
Adna Cândido de Paula (UFVJM)
Catarina de Almeida Santos (UNB)
Cláudio Eduardo Rodrigues (UFVJM)
Daniel Trevisan Samways (IFTM)
Fernanda Cássia dos Santos (UFU)
Florisvaldo Paulo Ribeiro Júnior (UFU)

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Gabriela Martins Silva (UFU)
Gercina Santana Novais (UNIUBE)
Roberta Paula Gomes Silva (UFU)
Tânia Maia Barcelos (UFCAT)
SUMÁRIO

PREFÁCIO
TRAVESSIAS PEDAGÓGICAS ANTIRRACISTAS: entre afetos,
reflexões e experiências ..................................................................................11
Rita Silvana Santana dos Santos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

C��ST�����O ��A ��U�A��O �N�IR�A��S�A


NA ESCOLA DE EDUCAÇÃO BÁSICA DA
UNIVERSIDADE FEDERAL DE UBERLÂNDIA

DOS DESAFIOS EM ENEGRECER UMA ESCOLA BRANCA: um


olhar sobre o racismo estrutural em práticas educacionais ............................ 17
Fernanda Cássia dos Santos
Gabriela Martins Silva
Neli Edite dos Santos

REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO CONTINUADA DE


DOCENTES NO ÂMBITO DO PROJETO “CONSTRUINDO UMA
ESCOLA ANTIRRACISTA” ............................................................................ 47
Léa Aureliano de Sousa
Astrogildo Fernandes Silva Junior

AS CORES DA GENTE: relato de sequência didática .................................. 63


Flaviane Malaquias
Mariza Barbosa de Oliveira

A MINHA, A SUA, AS NOSSAS MÃOS: percepções sobre diversidade


de cores de pele por crianças da Educação Infantil e suas famílias ............... 77
Paula Amaral Faria
Vanessa de Souza Ferreira Dângelo

AFRICANIDADES EM SALA DE AULA: caminhos para uma


educação antirracista ...................................................................................... 85
Roberta Paula Gomes Silva

A EDUCAÇÃO LITERÁRIA PELA VIA ESTÉTICA, ÉTICA E POLÍTICA ... 95


Fernanda Cristina de Campos

OUTROS SACIS: o Saci e a literatura infantil diante das


questões étnico-raciais .................................................................................. 109
Getúlio Ribeiro Baccelli
DESEJOS PARA A CONTINUIDADE DAS AÇÕES DE COMBATE AO
RACISMO INSTITUCIONAL NO CAP-ESEBA-UFU ................................. 123
Fernanda Cássia dos Santos

RE�L��Õ�S, EXPERIÊNCIAS E AFETOS

SOBRE CIDADANIA E A QUESTÃO DAS DESIGUALDADES ................ 127


Adalberto de Salles-Lima
Rita Silvana Santana dos Santos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


REPENSANDO A LEI Nº 10.639/2003: política e novas epistemologias
no espaço escolar ......................................................................................... 133
Gerson Alves de Oliveira

EXPRESSÕES DO RACISMO NO BRASIL E SUAS


INTERSECÇÕES: entre dispositivos de racialidade e resistências
ingovernáveis na escola ................................................................................ 149
Mariana Alves de Sousa

O RACISMO E A MISOGINIA NAS ENTRANHAS DE UM BRASIL


NÃO CONTADO ........................................................................................... 169
Dandara Tonantzin Silva Castro

ENTRE FIOS E EXPERIÊNCIAS: o cabelo como símbolo de


resistência de uma educação antirracista ..................................................... 179
Fernanda de Souza Cardoso

PRECONCEITOS RACIAIS COTIDIANOS EM VERSOS DE


JEREMIAS BRASILEIRO ............................................................................ 189
Jeremias Brasileiro

AFE��S, REFLEXÕES E EXPERIÊNCIAS

PROSEANDO COM GUIMES RODRIGUES FILHO ................................ 201


Neli Edite dos Santos

OMÓ ORÙNMILÁ (FILHOS DE ORÙNMILÁ): a cultura da comunidade


tradicional Yorubá .......................................................................................... 217
Ellen Faria
Baba Paulo Tolomi Ifatide Ifamoroti Ojewale
Renata Sangoranti

MISCIGENAÇÃO DE POESIAS ................................................................. 227


Samara Rodrigues Oliveira
AS VOLTAS DO MUNDO ............................................................................ 229
Gilberto Neves

CANTOS DE AFRO-JACK WILL! ............................................................... 233


Jack Will

A FOTOGRAFIA E O SOM DOS TAMBORES ANTIRRACISTAS ............ 235


Eduardo Ramos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ANCESTRALIDADE E SUCESSÃO, RESISTÊNCIA E AFIRMAÇÃO


DE IDENTIDADE NO CONGADO DE UBERLÂNDIA ............................... 247
Antônio César Ortega

MEMÓRIAS DE UMA CONGADEIRA ........................................................ 261


Cristina Peron

��PE�I�N���S, AFETOS E REFLEXÕES

A ÉTICA DA DIFERENÇA: a educação escolar quilombola como direito


humano inalienável........................................................................................ 265
Alan Alves-Brito
Carla Meinerz
Fabiani Franco de Alves
Wellington Porto
Maria Geralda de Almeida

DIAGNÓSTICO SOBRE A IMPLEMENTAÇÃO DAS DIRETRIZES


CURRICULARES NACIONAIS PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR
QUILOMBOLA NO TERRITÓRIO QUILOMBOLA DE JAMBUAÇU/PA ... 281
Ana D’Arc Martins de Azevedo
Aymê Jilvana C. Fergueira
Eduardo Silva dos Santos
Elziene Souza N. Nascimento
Flora Cristine da C. Scantlebury
Gabriela da Conceição P. S. Ferreira
Josiane de Carvalho Souza
Laís Rodrigues Campos
Sandra Haydée Petit
Silvandra Cardoso Gonçalves
Thaila Cristina B. Damasceno
Waldirene dos Santos Castro
PROJETO DE PESQUISA APLICADA LITERÊTURA: formação em
literatura infantil e juvenil com temática da cultura africana e afro-brasileira ... 301
Débora Cristina de Araujo
Ariane Celestino Meireles
Joelma dos Santos Rocha Trancoso
Lucilene Aparecida Soares

A LEI Nº 10.639/2003: UM INSTRUMENTO PARA A EDUCAÇÃO PARA


SUPERAÇÃO DO RACISMO: um relato de experiência no Vale do

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Mucuri / Minas Gerais.................................................................................... 311
Cláudio Eduardo Rodrigues

PARANAUÊ: em roda de capoeira tem bebê! .............................................. 327


Míghian Danae F. Nunes

SHIRSHASANA DO CONHECIMENTO: desconstrução do


racismo eurocêntrico ..................................................................................... 337
Deividi de Santana Silva

RESSIGNIFICANDO AS RELAÇÕES ÉTNICO-RACIAIS E


DE GÊNERO: uma experiência escolar com fundamento teórico
nas africanidades .......................................................................................... 351
Vanderleia Reis de Assis
Ana Cristina Juvenal da Cruz

ANCESTRALIDADE NEGRA NA HISTÓRIA E CULTURA LOCAL .......... 367


Cicera Nunes
Wilma de Nazaré Baía Coelho

SEQUÊNCIA DIDÁTICA

MEMÓRIAS DE UMA SENZALA ................................................................ 375


Alinne Grazielle Neves Costa

ÍNDICE REMISSIVO ................................................................................... 389

SOBRE AUTORAS E AUTORES ................................................................ 397


PREFÁCIO
TRAVESSIAS PEDAGÓGICAS
ANTIRRACISTAS: entre afetos,
reflexões e experiências
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Os escritos e as imagens que compõem este livro expressam modos de


existir advindos de desejos, reflexões e experiências com educações antir-
racistas em contextos brasileiros. As travessias pedagógicas compartilhadas
por autoras e autores de cada texto transcorrem em um país marcado pelo
racismo e, ao mesmo tempo, por conhecimentos produzidos pela população
negra, como estratégia de resistência e existência.
A educação é um dos pilares fundamentais para a construção de socie-
dades antirracistas. A partir dela, construímos compreensões do mundo e res-
pectivos modos de agir, de ser e de se relacionar. Problematizar qual educação
estamos vivenciando e promovendo é essencial para a contextualização sobre
o mundo que construímos e onde chegaremos.
Em uma sociedade, como a brasileira, onde o racismo se expressa algu-
mas vezes sutis e outras explícitas, entender as armadilhas que nos conduzem
ao mito da democracia racial é tão importante quanto a construção de ações
antirracistas e comprometidas com a equidade racial. Para tanto, é fundamental
promover “educação como prática de liberdade” (bell hooks, 2017), consti-
tuída pela unidade conhecimento–ação que nos ajuda a desvelar o racismo e
realizar atos políticos e revolucionários.
Educações essas ocorridas a todo tempo e em diferentes contextos
socioambientais. Educações advindas das interações e convivências com
os seres humanos e não humanos que constituem o planeta e o universo.
Educações inclusivas de conhecimentos atuais e ancestrais de povos negros,
possibilitando a socialização das potências culturais, científicas, tecnológicas
e naturais africanas e afrodiaspóricas.
Educações que nos permitem construir cosmopercepções (Oyěwùmí,
2021) condutoras de existências inclusivas, nas quais nos reconhecemos como
parte constitutiva do outro e vice-versa. Um outro que é indivíduo/comuni-
dade, mas também é natureza e ancestralidade, uma tríade composta por ele-
mentos inseparáveis, como na maioria das sociedades tradicionais africanas.
Estamos considerando educações fundadas em nossas ancestralida-
des negras, alicerçadas em princípios de inclusão, cooperação e múltiplas
existências, mesmo em situações de conflitos e divergências. Trabalhar
12

pedagogicamente, a partir dessas ancestralidades, possibilita dialogar com


heranças africanas e afrodiaspóricas, de modo equitativo em relação a outras
ancestralidades e, no presente, construir novas leituras, sentidos, conheci-
mentos e práticas antirracistas.
No Brasil, a atuação do Movimento Negro possibilitou importantes
avanços normativos referes à inclusão da história e culturas afro-brasileiras,
a exemplo da Lei de Diretrizes e Bases da Educação (Lei 9.394/96), das Dire-
trizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


(Resolução CNE/CP nº 01/2004) e da Lei 12.711/2012, que regulamenta
reserva de vagas para população negra e indígena em instituições federais
de educação. Entretanto, as leis são letras vivas que se efetivam por meio
das subjetividades das pessoas, do modo como indivíduos e coletividades
se posicionam frente a elas. Se as subjetividades racistas ainda imperam, as
referidas leis pouco se materializam ou, ainda, regridem, a exemplo do que
vivemos hoje no país com a Base Nacional Comum Curricular.
Por isso, a promoção de educação antirracista transcende a existência ou
aplicação de normativas legais. Ela requer, inicialmente, o reconhecimento
do racismo subjacente e sistêmico que impede a efetividade de leis, ideias e
ações em prol da equidade racial. Isso perpassa por questionamentos acerca
dos privilégios de pessoas brancas disfarçados pelo discurso capitalista-merito-
crata, bem como a invisibilidade institucionalizada de conhecimento, valores,
modos de educar, ser e produzir sentidos do povo negro.
Para além da denúncia do racismo, precisamos anunciar modos de existir
antirracistas. E, como nos ensina o ideograma da Sankofa, retornar ao passado
(distante ou próximo) para (re)significar o presente e construir, a cada dia,
modos de educar racialmente equitativos, inclusivos e democráticos.
Nesse movimento de denúncia-anúncio, destaco as experiências advindas
do projeto “Construindo uma educação antirracista: ingresso e permanência
de cotistas na educação básica” desenvolvido pela Escola de Educação Básica
da Universidade Federal de Uberlândia”. O referido projeto foi contemplado,
em 2020, pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica, promovido pelo
Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT.
Atuar na supervisão, acompanhando e vivenciando ações pedagógicas
desenvolvidas no e a partir do projeto, permitiu-me ratificar o potencial edu-
cativo para a expansão da consciência acerca do racismo, assim como para
a construção de conhecimentos referentes às contribuições afrodiaspóricas
comumente silenciadas na sociedade – em especial, no contexto escolar.
As potencialidades, desafios e resistências encontradas para superar o
branqueamento da instituição e trabalhar com a equidade racial, nos mos-
tram os caminhos ardilosos ainda vivenciados no contexto educacional, mas
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 13

ao mesmo tempo revelam nossa capacidade de contribuir para subverter


o racismo.
Um diferencial do projeto foi o desenvolvimento de ações articuladas
entre ensino, extensão, gestão, formação de profissionais da educação, de
estudantes e suas famílias, além da produção de materiais didático-pedagó-
gicos e bibliográficos, a exemplo do presente livro.
Um livro que traz, reflexos de musicalidades, danças, cores, corporei-
dades, poemas, estéticas, memórias, envolvimentos, incertezas, resistências,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sonhos, afetos, identidades, conhecimentos, infâncias, pesquisas, intercâm-


bios, rodas de conversa, questionamentos, parcerias, política, enfim, vivências
de corpos que acessam mundos anteriormente não permitidos pelo racismo.
Mundos construídos a partir das nossas percepções e experiências advindas
das relações possíveis estabelecidas com os seres que compõem o universo.
Mundos que convido você a criar, ao interagir, como leitora e leitor, no
universo que constitui este livro. Um livro estruturado a partir do entrelaça-
mento de diferentes formas de expressão das ideias, experiências, afetos e
construções relacionadas à concretização do sonho de educações para equi-
dade racial.
A primeira seção da obra, intitulada “CONSTRUINDO UMA EDUCA-
ÇÃO ANTIRRACISTA”, apresenta o projeto que originou o livro e ações
pedagógicas desenvolvidas na escola e reflexões produzidas por profissionais
nela atuantes. Encontramos aqui relatos, sequências didáticas, ensaios e ima-
gens que nos convidam a esperançar ações educativas de combate ao racismo.
Nas seções subsequentes, reflexões-afetos-experiências compõem a tríade
que expressa a inseparabilidade que fundamentou a construção de educações
antirracistas. O brincar com a ordem das palavras da tríade remete a impor-
tância de lembrar que educar é um ato político, constituído de afetividade e
reflexão.
Na seção “REFLEXÕES, experiências e afetos” somos convidadas e
convidados a aguçarmos os sentidos e significados atribuídos às relações entre
cidadania e questões raciais, perpassando pelas identidades negras, estética
capilar, modernização do racismo, políticas públicas, misoginia, efetivação de
leis, ações pedagógicas, dentre outros necessários à identificação e superação
do racismo, explícito ou não, ocorridos no cotidiano.
A seção “AFETOS, reflexões e experiências” tem como ponto de par-
tida os vínculos afetivos que nos movem em busca da nossa ancestralidade.
Imagens, poemas, letras de música e relatos trazem as inteligências utilizadas
para manutenção das memórias negras ameaçadas pelo racismo. A celebração
de um casamento, o nome dado a uma criança, a festa do Congado, a música
para Xangô, o sonho da moradia digna, o clamor pelo direito de ser quem é,
14

a partir das histórias de seu povo, são algumas das reflexões e experiências
com as quais você poderá dialogar. Destaco ainda as possibilidades de refletir
acerca da educação existente para além das instituições educativas.
O livro é finalizado com “EXPERIÊNCIAS, afetos e reflexões”. Um
conjunto de artigos e sequências didáticas que expressam conhecimentos
advindos de práxis educativas antirracistas desenvolvidas em instituições
de ensino ou via implementação de políticas públicas em distintas regiões
brasileiras. Experiências envolvendo educação quilombola, gênero e relações

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


étnico-raciais, literatura infanto-juvenil, educação antirracista com bebês,
implementação de legislações e diretrizes, formação docente, dentre outros,
as quais nos inspiram a pensar/fazer implicações curriculares comprometidas
com a equidade racial.
A organização deste livro, sustentada na tríade reflexões-afetos-experiên-
cias, é um convite para retomar nossas esperanças e forças diante das lutas
que ainda precisamos travar, sem deixar de reconhecer os feitos já realizados.
Afinal, como nos ensina o provérbio yorubá: “Enikan ki fio yin senu ki o tu
u” (ninguém põe mel na boca e joga fora).
Assim, termino desejando que cada leitora e leitor possa ingerir e se nutrir,
a partir deste livro, para continuar suas travessias pedagógicas antirracistas.

Rita Silvana Santana dos Santos


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

C��ST�����O ��A
��U�A��O �N�IR�A��S�A
NA ESCOLA DE EDUCAÇÃO
BÁSICA DA UNIVERSIDADE
FEDERAL DE UBERLÂNDIA
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
DOS DESAFIOS EM ENEGRECER UMA
ESCOLA BRANCA: um olhar sobre o
racismo estrutural em práticas educacionais
Fernanda Cássia dos Santos
Gabriela Martins Silva
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Neli Edite dos Santos

Às vezes tem mesmo que criar maneiras de enfrentar regras,


disciplinas, que chegam de cima para baixo, hierarquias que não
dançam congada, não vivem congado, mas impõem obrigações
demais para quem vive esta fé, este ritual, esta cultura negra, que
tem o tempo todo de resistir a tudo na cidade de Uberlândia.
(Antônia Aparecida Rosa, Capitã do Terno
Marinheiro de Nossa Senhora do Rosário).

Introdução: uma escola-espelho de Uberlândia


Qualquer pessoa que, porventura, conhecesse Uberlândia no segundo
domingo de um mês de outubro, certamente, encontraria a cidade tomada
por cores e cantos acompanhados de sons de tambores, patangomes e gungas.
Entoando rezas e cantorias, podem ser vistos generais, madrinhas, capitães,
guardas, alferes, caixeiros e soldados que compõem os ternos de congada.
Também são vistas centenas de outras pessoas – devotas, admiradoras, pes-
quisadoras, curiosas, céticas, comerciantes ambulantes – que formam um
cortejo ou zanzam daqui para ali na consecução de seus objetivos. Um enorme
coletivo movente, com singularidades publicizadas em gestos ritmados e
palavras cantadas ou mantidas secretas no íntimo de cada pessoa, constitui o
amálgama chamado Festa do Congado em Louvor a Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito de Uberlândia1.
A Festa da Congada é uma tradição que perdura na cidade, mediante forte
resistência, desde, pelo menos, 1874. Ao ocupar as ruas das periferias e do
centro, os 25 ternos de congada expressam devoção a Nossa Senhora do Rosá-
rio e São Benedito e reforçam a presença da cultura afro-brasileira na cidade.
Nas letras dos cânticos, nos tons das vozes, nas coreografias, nos tecidos de
que são feitas as vestes, nos acessórios, a história dos povos escravizados,
em sua travessia forçada do continente africano para o Brasil, é rememorada
por todos os grupos com simultânea alegria e tristeza.

1 Para mais detalhes, acesse: https://irmandadernsrsb.wixsite.com/irmandadeuberlandia/grupos.


18

Essa festa, que enlaça fé e luta, passado, presente e futuro, denuncia a


permanência da violência contra os corpos negros, o racismo e a discriminação
predominantes ainda na atualidade. Ao mesmo tempo, celebra o Rei Perpétuo
e a Rainha Perpétua, que, em seus tronos instituídos à porta da Igrejinha do
Rosário, recebem seu povo. Nas saudações às majestades, são renovados os
vínculos com a sabedoria ancestral africana, que, mesmo longínqua, inspira,
fortalece, vive e é reverenciada.
Aquela hipotética pessoa visitante de Uberlândia poderia encantar-se

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


pela potência dessa festa e partir com a impressão de que a cidade possui uma
população majoritariamente negra, que nela vive com equidade racial, tendo
sua cultura e sua história reconhecidas e valorizadas. Contudo, a tomada das
ruas pela tradição da congada não se dá sem enfrentamentos. Conforme afirma
o historiador Jeremias Brasileiro da Silva (2020), parecem existir duas cidades
que não se abraçam: uma negra e invisibilizada e outra branca, que interpreta
a si mesma como um símbolo de civilização e de progresso no interior do
triângulo mineiro.
A Escola de Educação Básica (Eseba), Colégio de Aplicação da Univer-
sidade Federal de Uberlândia (CAp – UFU), por bastante tempo, espelhou
fielmente essa Uberlândia branca, excludente, sem que isso fosse questionado.
Fundada em 1977, funcionou como escola benefício por onze anos, aten-
dendo filhas e filhos de servidoras/es da UFU. A partir de 1988, o ingresso
de estudantes passou a ocorrer por meio de sorteio público. Atualmente, a
escola oferece Educação Infantil (1º e 2º períodos), Ensino Fundamental e as
modalidades Educação Especial e Educação de Jovens e Adultos (EJA). Além
disso, oportuniza campo preferencial para pesquisas e estágios de estudantes
de cursos de licenciatura e de pós-graduação da UFU.
Sem contar com transporte escolar gratuito e marcada por seu passado
de beneficiar uma classe específica, a Eseba construiu-se e manteve-se, por
pelo menos quatro décadas, como um espaço ocupado por uma maioria pri-
vilegiada de pessoas brancas, na condição de estudantes e docentes, e poucas
pessoas negras, no desempenho laboral, principalmente, de funções subalter-
nizadas como limpeza e cantina. Referência por oferecer educação pública,
gratuita e de qualidade, a Eseba colaborou para a exclusão étnico-racial da
negritude, reforçando a imagem de uma Uberlândia branca, sem que as bases
de sustentação desta configuração fossem questionadas na perspectiva do
racismo estrutural.
As primeiras discussões a respeito dos impactos do racismo estrutural
no cotidiano da Eseba ocorreram em outubro de 2017, quando foi divulgada
uma peça publicitária em redes sociais e em uma das páginas da instituição
intitulada “Crianças são formas puras de olhar o mundo”. No material, bastante
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 19

celebrado pela comunidade, figuravam seis crianças e nenhuma delas era


negra. Tal ausência não passou despercebida a integrantes da comunidade
sensíveis ao racismo estrutural e a atos de discriminação racial. A situação foi
(de)enunciada e gerou incômodo suficiente para abalar a naturalização dessa
invisibilidade institucionalizada, provocando questionamentos: por que não
havia nenhuma criança negra naquela homenagem a crianças e adolescentes
da Eseba? Qual valor a negritude ocupa na escola? As imagens passaram
pelo olhar de diversas pessoas até serem publicadas: por que a ausência de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

representação da negritude não foi percebida?


No bojo dessas inquietações e como forma de assumir, institucional-
mente, a pertinência da reflexão sobre o racismo estrutural e a necessidade de
ação para mudar esse cenário, a direção da escola instituiu, no início de 2018, a
Comissão para a Diversidade Étnico-Racial e Socioeconômica da Eseba. Entre
as principais ações, a Comissão e o Setor de Serviço Social realizaram uma
pesquisa voltada para a identificação e análise do perfil discente da escola, a
qual teve participação voluntária e recebeu, sobre o perfil socioeconômico das
famílias, 387 respostas e, sobre a sua identificação étnico-racial de discentes,
385 respostas. Quanto ao perfil socioeconômico, 2% de estudantes declararam,
ou foram declaradas/os por pessoas responsáveis por elas/es, possuir até R$
998 (salário mínimo à época) de renda familiar; 2%, de R$ 999 a R$ 1.497;
8%, de 1.498 a R$ 2.994; 20%, de R$ 2.995 a R$ 4.990; 29%, de 4.991 a R$
7.984; 8%, de 7.985 a 9.980; 6%, de 9.981 a 14.970; 4%, acima de 14.971.
Quanto ao perfil étnico-racial, a pesquisa demonstrou que 60% de estudan-
tes identificaram-se, ou foram identificadas/os por pessoas responsáveis por
elas/es, brancas/os; 31%, pardas/os; 3%, pretas/os; 4% não informaram; 2%,
amarelas/os. A opção ‘indígena” não foi assinalada.
No mesmo ano, a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios contínua
(PNAD) do IBGE indicava que 55,8% da população brasileira se declarava
negra (IBGE, 2019). A comparação entre o perfil étnico-racial de discentes
da Eseba e os resultados dessa PNAD corroborou a principal inquietação que
motivou o debate e a proposição de ações afirmativas por cotas étnico-racial
e socioeconômica: apesar de pública e de adotar o sistema de sorteio para
ingresso, as vagas da escola mantinham-se pouco ocupadas por estudantes
negras/os e por aquelas/es oriundas/os de famílias com baixa renda – conforme
dados acima informados.
Em diálogo com a direção da escola, com seu Conselho Pedagógico e
Administrativo, com a Reitoria, a Pró-Reitoria de Graduação e o Núcleo de
Estudos Afro-brasileiros, a referida Comissão dedicou-se a estudar a respeito
de políticas de ações afirmativas, reserva de vagas para pessoas indígenas e
negras, processos de autodeclaração e de heteroidentificação, buscando formar
uma sólida compreensão do perfil discente da Eseba, de seu sorteio público
20

e de sua responsabilidade na promoção de ações afirmativas com vistas à


igualdade de fato.
Buscando corresponder ao compromisso de a escola contribuir para redu-
zir e/ou superar desigualdades e injustiças, a Comissão para a Diversidade
Étnico-Racial e Socioeconômica e a Direção da Eseba, em trabalho articulado,
apresentaram, nas devidas instâncias deliberativas institucionais, uma proposta
que alinhasse o ensino fundamental oferecido pela escola às políticas afirma-
tivas já instituídas e implementadas na graduação, pós-graduação e ensino

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


técnico da UFU. Como resultado desse esforço, em 2019, a Eseba divulgou seu
primeiro edital contemplando a reserva de vagas para pretos, pardos, indígenas
(PPI) e estudantes com perfil socioeconômico de baixa renda (PSE)2.
No bojo desse complexo processo, no primeiro ano de execução dessa
política afirmativa na escola, 2020, surgiu a oportunidade de realizar a
pesquisa-ação intitulada “Construindo uma escola antirracista: ingresso e
permanência de cotistas na educação básica”3. O objetivo geral dessa pesqui-
sa-intervenção foi analisar o impacto de ações de ingresso e de permanência
na implementação da política afirmativa de cotas étnico-raciais na Eseba.
Além de divulgar algumas das ações e resultados do projeto, pretendemos,
neste texto, apresentar reflexões que surgiram ao longo das diferentes atividades
realizadas. Sem a pretensão de relatar procedimentos em sua integralidade,
propomos uma discussão a respeito dos desafios encontrados ao iniciar o pro-
cesso de enegrecer uma escola branca, em um cenário profundamente marcado
pelo racismo. Para tanto, na parte intitulada “‘Quem é branco/a e quem é
negro/a?’ Processos de identificação e de heteroidentificação”, analisamos as
estratégias utilizadas para ampliar a conscientização da comunidade escolar a
respeito dos critérios de heteroidentificação adotados pela escola. Em “Amar a
negritude”, abordamos a constituição de identidades negras – tema que surgiu
em intervenções pedagógicas realizadas, em sala de aula, com estudantes da
educação infantil e em rodas de conversa com famílias desses estudantes. Na
sequência, em “As marcas perversas do racismo estrutural”, voltamos o olhar
para a nossa própria branquitude e seus impactos na prática docente, abordando
dados de raça e gênero das/os alunas/os e os processos de formação docentes
promovidos pelo projeto. Na parte intitulada “Resistências e enfrentamentos”,

2 Para conhecer mais detalhes a respeito da construção dessa política de ação afirmativa, consulte: MACHADO,
L. A. de S.; SANTOS, N. E. dos; SANTOS, F. C. dos; SILVA, G. M. Trajetória de uma política: cotas étnico-
-raciais na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia. Revista Educação e Políticas
em Debate, v. 9, n. esp., p. 905-920, 2020. Disponível em: https://seer.ufu.br/index.php/revistaeducaopoliticas/
article/view/55604. Acesso em: 22 maio 2022.
3 Contemplado no Edital Equidade Racial na Educação Básica, promovido pelo Itaú Cultural, Instituto Unibanco,
Fundação Tide Setúbal, Fundo das Nações Unidas para a Infância e realizado pelo Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades, o projeto foi redigido por Fernanda Cássia dos Santos, Gabriela
Martins Silva, Léa Aureliano Sousa Machado e Neli Edite dos Santos.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 21

refletimos sobre os questionamentos e reações empreendidos pela branquitude


durante a realização do projeto, bem como sobre as formas que encontramos
para enfrentá-los. Por fim, em “Anansi: tecendo redes”, apresentamos nossas
considerações finais.

“Quem é branco/a e quem é negro/a?” Processos de identificação


e de heteroidentificação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em um país profundamente racializado como o Brasil, ser branco/a ou


negro/a significa ter acesso a escolarização, mercado de trabalho, remuneração,
sistema de saúde e à socialização de formas radicalmente diferentes. Ainda que
sejam utilizadas inúmeras palavras para denominar as variações de cor de pele
(muitas delas de caráter racista, tais como mulato/a, mestiço/a, moreninho/a,
cor-de-telha, cafuzo/a, encardido/a, sarará etc.) e que a eficácia do discurso da
mestiçagem sustente, em certa medida, o mito da democracia racial, análises
de indicadores sociais apontam de forma explícita para a existência de uma
oposição binária entre brancos/as e não brancos/as no nosso país. Como afirma
Schucman (2016, p. 68), essa oposição é produzida pelo próprio racismo, uma
vez que é a sua experiência que unifica negros/as de forma reativa, apesar do
universo de diferenças que existem entre estes indivíduos. Em outras palavras,
é o olhar racista que uniformiza e conecta as vivências de pessoas negras,
ainda que a percepção a respeito de quem é “negro/a” ou “branco/a” seja
atravessada por subjetividades e possua variações de acordo com os traços
fenotípicos mais presentes nas diferentes regiões do país.
Em seu texto clássico “Preconceito racial de marca e preconceito racial
de origem”, Oracy Nogueira (2007) defende a ideia de que, no Brasil, dife-
rente do que ocorre nos Estados Unidos, onde o preconceito é marcado pela
ancestralidade ou ascendência negra, a discriminação se dá a partir da aparên-
cia dos indivíduos. Por essa razão, há uma valorização estético-cultural dos
traços brancos e de cabelos lisos em detrimento de características fenotípicas
negroides, de forma que a probabilidade de ascensão social é inversamente
proporcional à intensidade da presença delas nos indivíduos negros.
Longe de contribuir para a superação das diferenças, a mestiçagem bra-
sileira carrega as marcas das políticas de branqueamento que contribuíram
para a instituição de novas e mais aprimoradas hierarquias entre brancos/as e
negros/as. Disso decorre a importância das análises realizadas por comissões de
heteroidentificação que complementam a declaração das/os responsáveis pelas
crianças candidatas à política de cotas. Uma vez que o objetivo dessa política
pública é combater os efeitos do racismo que recaem sobre sujeitos social-
mente identificados como pretos e pardos e que, na dinâmica social brasileira,
o preconceito racial ocorre em função da aparência, e não da ancestralidade
22

dos indivíduos, é tarefa das comissões de heteroidentificação assegurarem a


efetivação das ações afirmativas sem deixar de reconhecer a diversidade das
pessoas negras4.
Na Eseba, a heteroidentificação ocorre a partir da análise de imagens da
criança sorteada nas modalidades de reserva de vagas para crianças negras,
abarcando: a) foto 5x7 colorida, recente e individual da criança, cuja imagem
tenha sido captada em ambiente com boa iluminação, fundo branco, sem
maquiagem, sem lentes de contato coloridas, sem filtros de edição, com boa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


resolução e cabelos à mostra; b) vídeo, cuja gravação é realizada na escola,
por equipe específica para tal fim, sem participação de membros que realizam
trabalhos em outros procedimentos. Com a filmadora ligada, a pessoa adulta
responsável mostra o RG da criança, toma-a no colo e declara, em voz alta,
que a criança sob sua responsabilidade é negra (preta ou parda). Esse material
é organizado pela Secretaria Escolar, para que seja avaliado pela comissão de
heteroidentificação, composta por três membros. Caso a família não concorde
com eventual não homologação de declaração de pertencimento étnico-racial
negra/o, tem o direito de protocolar recurso administrativo, o qual é analisado
por outra comissão de heteroidentificação, composta por cinco membros.
Nesse processo, prioriza-se a avaliação de características fenotípicas negroi-
des, como cor da pele, textura do cabelo e formato do nariz e boca, como meca-
nismo imprescindível para que a política de cotas para estudantes negros/as atinja
seu objetivo e para inibir fraudes. As/os profissionais da escola responsáveis
pela realização de tal procedimento administrativo, isto é, docentes e técnicas/
os, participam de constantes processos formativos com foco, principalmente,
na identificação positiva de fenótipos, na compreensão da construção histórica
da racialização no Brasil e dos objetivos das políticas públicas de promoção da
equidade, as quais incluem, por exemplo, questões de raça, gênero, classe, defi-
ciências. O procedimento de heteroidentificação, além de um ato administrativo,
é um processo permeado pelo compromisso de contribuir para mudar estruturas
excludentes e violentas de nosso país, que precisam ser enfrentadas sob múltiplas
dimensões, acionando saberes em mais de uma área de conhecimento.
Desde a instituição das cotas, nos preocupa o aprimoramento dos pro-
cessos de homologação e a promoção de diálogo com a comunidade Eseba
e com a sociedade. Decorre dessa preocupação a necessidade de contribuir
para a compreensão mais ampla da política de cotas e de seus alvos – crianças
negras – pela comunidade externa, entendendo que, a partir dessa compreensão,

4 Como já citado anteriormente, o Supremo Tribunal Federal, em 8 de junho de 2017, na Ação Declaratória
de Constitucionalidade nº 41, considerou a legitimidade da heteroidentificação como procedimento comple-
mentar à autodeclaração, a fim de exercer controle de fraudes e de contribuir para a garantia da efetividade
da política afirmativa voltada para pessoas negras.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 23

teríamos um menor número de indeferimentos. Então, no bojo da realização de


nossa pesquisa, nos dedicamos à análise dos documentos relativos ao processo
de heteroidentificação praticados com vistas ao ingresso em 2020, 2021 e 2022,
incluindo atas de deferimento e indeferimento e recursos contra indeferimentos.
Importa destacar que o cumprimento do Edital de Ingresso ocorre meses antes
dos inícios dos anos letivos, ou seja, no presente caso: 2019, 2020 e 2021.
Com isso, pudemos verificar que a taxa de não homologação do direito
à vaga de candidatas/os sorteadas/os na modalidade de cotas étnico-raciais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

caiu de 30% no primeiro ano, 2020, para 12,5% e 12%, respectivamente, nos
anos seguintes, 2021 e 2022. Nesse processo, observamos que solicitações
de matrícula por cotas étnico-raciais (crianças pretas, pardas ou indígenas)
não homologadas na heteroidentificação, foram contestadas por famílias, na
forma de recursos administrativos, nos quais argumentaram pelo direito à
vaga com base no genótipo, na ancestralidade, a despeito do edital, que esta-
belece o enfoque no conjunto de características fenotípicas negroides. Dos
oito recursos recebidos nesses três anos de início da reserva de vagas para
negros/as no sorteio público para ingresso, sete apresentaram a presença de
pessoas negras na família como principal argumento, o que não corresponde
ao objetivo da política afirmativa de cotas no Brasil.
Com o projeto “Construindo uma escola antirracista”, visávamos a reali-
zação de ações educativas à comunidade externa para promover a compreensão
dos objetivos da política de cotas. Contudo, com a redução do número de
indeferimentos, entendemos que essa compreensão se deu, como vimos, antes
mesmo que as ações do projeto fossem iniciadas, uma vez que, em novembro
de 2020, data de início do projeto, o sorteio público para ingresso em 2021,
segundo ano de implementação de cotas étnico-raciais, já havia sido feito.
Uma explicação possível para essa redução pode ser a própria experiência do
primeiro ano de aplicação da política afirmativa na Eseba e das respostas das
comissões aos recursos a não homologação, as quais enfatizam o critério do
fenótipo negroide e a não contemplação do genótipo (ancestralidade).
Apesar disso, a partir da realização do projeto, conseguimos a mobili-
zação institucional para a produção de um vídeo-animação explicativo que
vem sendo divulgado juntamente com o edital, desde o sorteio público rea-
lizado em 2021, para ingresso em 20225. Essa produção se deu pela própria
Universidade Federal de Uberlândia, em diálogo com a equipe do projeto
e com a Comissão para a Diversidade Étnico-racial e Socioeconômica da
escola. Com isso, é possível que continue ocorrendo redução de indeferi-
mentos, incidindo em eventual prevenção de frustrações nas famílias que

5 Para conhecer as orientações às famílias, com maior ênfase no fenótipo negroide, acesse: https://www.
youtube.com/watch?v=sK_07avpyIk.
24

têm o resultado de não homologação nas modalidades de cotas étnico-raciais


e, principalmente, garantindo a efetividade da política afirmativa voltada
para crianças negras.
No mais, cabe destacar que a análise de características fenotípicas visíveis
por comissões de heteroidentificação não é feita com o intuito de se verificar
a existência de traços biológicos específicos e fixos, por meio dos quais seria
possível atestar a identidade racial das pessoas. Quando falamos em “raça”
nos referimos tão somente a uma construção histórico-cultural, que produziu,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


através do racismo, uma escala classificatória dos indivíduos a partir de sua
cor, e não à existência de qualquer dado biológico relacionado à raça. Essa
compreensão é necessária para que os objetivos da política pública sejam
cumpridos sem que sejam reforçadas imagens estereotipadas que muitas vezes
aprisionam pessoas negras, tal como afirma Sueli Carneiro (2011, p. 70):

uma das características do racismo é a maneira pela qual ele aprisiona o


outro em imagens fixas e estereotipadas, enquanto reserva para os racial-
mente hegemônicos o privilégio de serem representados em sua diversidade.
[Brancos]... são individualidades, são múltiplos, complexos, e assim devem
ser representados. Isso é demarcado também no nível fenotípico, em que
se valoriza a diversidade da branquitude: morenos de cabelos castanhos
ou pretos, loiros, ruivos, são diferentes matizes da branquitude que estão
perfeitamente incluídos no interior da racialidade branca, mesmo quando
apresentam alto grau de morenice, como ocorre com alguns descendentes de
espanhóis, italianos ou portugueses, os quais, nem por isso, deixam de ser
considerados ou de se sentir brancos. A branquitude é, portanto, diversa e
policromática. A negritude, no entanto, padece de toda sorte de indagações.

A violência da discriminação racial incide sobre a materialidade dos


corpos negros abarcando toda sua diversidade. Ampliar a compreensão da
comunidade escolar a respeito de quem são as crianças beneficiárias da polí-
tica de inclusão social por meio de cota étnico-racial, neste sentido, significa
tanto manter a higidez do processo, quanto contribuir para a construção de
identidades negras em um contexto social de apagamento de corpos e de
vivências sob a égide do branqueamento.

Amar a negritude
Em 16 dezembro de 2020, realizamos primeira roda de conversa on-line
com famílias de estudantes que ingressaram na Eseba, nas modalidades crianças
pretas, pardas e indígenas e crianças pretas, pardas e indígenas oriundas de famí-
lias com baixa renda. Nosso objetivo era tornar os/as responsáveis pelas crian-
ças parceiros/as do projeto, de forma que as reflexões realizadas nos encontros
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 25

servissem como ponto de partida para o desenvolvimento das intervenções peda-


gógicas com docentes e discentes. Para essa primeira experiência, preparamos
um breve momento de sensibilização, através da apreciação do livro infantil
Benedito, de Josias Marinho.
Benedito é um livro que nos apresenta um bebê que tem sua curiosidade
despertada por um tambor e inicia algumas experimentações sonoras com o
instrumento. Enquanto descobre o formato, as cores e sons do objeto, ele vai
também descobrindo a si mesmo como uma criança negra, seus lugares de
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

pertencimento, cultura e identidade. Mais do que um brinquedo, o tambor de


Benedito representa a memória do povo negro e uma porta de passagem para
a descoberta de sua própria negritude.
Não há palavras em Benedito. Tudo é transmitido através de uma lin-
guagem exclusivamente imagética, na qual a sensibilidade e o repertório do
leitor são cruciais para a construção do texto. Sem cor no início da narrativa,
o menino vai recebendo retoques sutis de preto ao longo da história, até que
surge completamente enegrecido. É neste momento que recebe, das mãos de
um homem mais velho, um chocalho que coloca nas pernas para marcar suas
passadas precisas e ritmadas. Na sequência, ganha também um traje típico dos
Ternos Moçambiques e, ao vestir a indumentária, remove a chupeta, em um
gesto que expressa seu crescimento. Por fim, o menino entrelaça a pequena
mão com a de um adulto ao lado do qual caminha consciente do legado que
recebeu e de sua identidade.
Quando convidamos as famílias a compartilharem suas impressões sobre
o livro, nos deparamos com relatos de autoidentificação com a trajetória de
Benedito. A forte tradição congadeira na cidade de Uberlândia fez com que
participantes da roda, mães e pais, dissessem de sua negritude. Dividiram,
então, com o grupo, memórias e silenciamentos a respeito de suas participa-
ções nos ternos. Como afirma Jeremias Brasileiro (2012), o Congado reúne
adultos, jovens, meninas e meninos não apenas nos períodos de festa, mas
também durante os meses de sua preparação, quando andores, bandeiras,
imagens de santos e tambores tomam as ruas de diversos bairros da cidade,
visitando casas e reunindo vozes em coros e rezas que ecoam vivências afro-
-brasileiras. Assim, os diferentes eventos realizados pelos ternos ao longo do
ano os convertem em espaços de sociabilidade, de preservação de tradições
e de resistências negras.
No processo de escuta compartilhada nessa e em outras rodas, pais e mães
revisitaram suas infâncias para falar a respeito da experiência do racismo em
ambientes escolares. Humilhações, apelidos, discriminação aberta e naturali-
zada nas práticas entre estudantes e entre estudantes e docentes marcam as vidas
de pessoas negras desde a mais tenra idade. Os desafios da parentalidade, nesse
sentido, fazem com que os traumas vividos em função das violências racistas
sejam recordados, em um esforço de reelaboração e, também, de resistência.
26

Há estudos que demonstram que as crianças iniciam sua aprendizagem a


respeito de questões raciais e de gênero antes mesmo de aprenderem a andar.
Em sua pesquisa realizada com crianças de quatro a seis anos de idade, Eliane
dos Santos Cavalleiro (2004) percebeu que crianças negras dessa faixa de
idade já apresentavam uma identidade negativa em relação ao grupo étnico
ao qual pertencem, enquanto crianças brancas revelavam um sentimento de
superioridade e assumiam, em diversas situações, atitudes de discriminação.
Considerando suas experiências relacionadas ao racismo na infância,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


inclusive em espaços escolares, familiares negros e negras trouxeram para
a roda de conversa sua dificuldade em tratar sobre o racismo com as suas
crianças. Entre o medo de despertar algum tipo de “racismo antecipado” e a
tentativa de proteger suas crianças de um tema “tão difícil e pesado”, algumas
das famílias tinham optado, até então, por silenciar a respeito das desigual-
dades raciais, da história dos povos negros no Brasil e até mesmo sobre as
diferenças de cores de pele humanas. Mães e pais não negras/os também
manifestaram sua preocupação com as dores vividas por suas/seus filhas/os,
o reflexo disto nas relações familiares e sociais e seu desejo de encontrar
formas de lidar com elas.
O depoimento de um pai6 nos tocou de forma particular. Analisando os
desenhos do filho, percebeu que ele não usava o lápis de cor marrom para se
auto representar. Questionando a criança, então com quatro anos de idade,
sobre qual seria sua cor de pele, o pai ouviu o filho negro responder que ele era
bege. Surpreso com a resposta, o pai não soube como reagir naquele momento,
mas levou a reflexão para a roda de conversa com outras famílias negras: “Por
que uma criança negra tão pequena se diz ‘bege’ e não ‘marrom’?” O pai
que trouxe esse depoimento talvez não soubesse, mas, de alguma maneira, o
menino já havia percebido que há diferença entre se ver e ser representado
por “bege” ou “marrom” na sociedade em que vivemos e já reagia a ela.
Tais partilhas nos levaram a ler e discutir em nosso grupo de estudos
– Interseccionalidades, saberes e práticas na educação básica (INSPRE) – o
livro “Do silêncio do lar ao silêncio escolar”, de Eliane Cavalleiro. Tamanha
foi nossa mobilização com as proposições do livro que decidimos convidar
a autora para realizar uma palestra, em sábado letivo, aberta a toda a comu-
nidade escolar, constituindo um evento de extensão gratuito. Uma vez que
compreendemos que a subalternização das pessoas negras acontece por meio
do silenciamento a respeito do racismo estrutural, que constitui a base da
sociedade em que vivemos, romper com o silêncio que permite a reprodução

6 Trecho recuperado a partir de escuta e registro livre, feito pelas docentes, nas Rodas de Conversa, com
o objetivo de produzir pistas para as demais estratégias da pesquisa ação: intervenções pedagógicas dis-
centes; formação de professores e da comunidade em geral; grupo de estudos e pesquisa. Tais registros
não guardam correspondência exata com o dito no momento da interação.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 27

das ideias racistas nos pareceu ser a primeira tarefa sobre a qual precisaríamos
nos debruçar.
Tal como nos orienta Cavalleiro (2020), quando temos receio em falar
a respeito de diferenças étnicas e silenciamos a respeito delas, tanto em
casa quanto na escola, fortalecemos os discursos racistas que se ancoram na
falácia da democracia racial. Em uma sociedade racializada como a nossa,
inevitavelmente as crianças aprenderão a respeito das diferenças étnicas,
muitas vezes de forma violenta. Para as crianças negras, em especial, essa
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

aprendizagem se dá através do enfrentamento do racismo em seu cotidiano.


Não há maneira, portanto, de protegê-las por meio da manutenção do silên-
cio. Pelo contrário, é necessário ajudá-las a reconhecer, nomear e enfrentar
essa e as outras formas de violência às quais estão sujeitas. E, paralelamente,
é preciso que as crianças tenham acesso a referenciais positivos, de afir-
mação e elevação de seus valores relacionados à negritude, de forma que
possam fortalecer sua autoestima, desnaturalizando estereótipos racistas,
sempre violentadores.
Nesse sentido, visando abordar a temática das diferentes cores de pele
com as crianças, preparamos a intervenção pedagógica “Pintando as Cores das
Gentes”7, em parceria com as docentes da Educação Infantil e com a professora
Mariza Barbosa de Oliveira, da área de Arte da Eseba. Uma vez estabelecidos
os objetivos da atividade, convidamos a arte-educadora Flaviane Malaquias
para desenvolver uma oficina on-line com as crianças, em que as diferentes
tonalidades de pele fossem abordadas de forma lúdica e artística. Para que
as crianças pudessem ter materiais adequados para a realização da atividade,
garantimos que as cento e vinte crianças da Educação Infantil tivessem, cada
uma, um kit com papel e uma caixa de giz de cera com doze diferentes tons
de pele. A preparação para a oficina já foi impactante, pois relataram a alegria
das crianças ao receberem o material em casa, tendo em vista o contexto de
aulas remotas – especialmente, as crianças negras, ao perceberem, na caixa
de giz, que ali estavam cores aproximadas dos tons de suas peles.
De forma indireta, as famílias também viram naquele material algo que
as levou a pensarem para além de “uma simples caixa de gizes de cera tons de
pele”. Como organizadoras da atividade, temos consciência de que a quanti-
dade de tons de pele humana são muito mais do que as doze contidas naquelas
caixas com as quais as crianças trabalharam. No entanto, romper com a noção
de tom de pele rosada/bege como única representação de tom de pele humana
desencadeia um processo de reflexão extremamente importante para sulear
novas aprendizagens sobre a pluralidade de fenótipos. Na roda de conversa

7 Neste livro, os capítulos intitulados “A minha, a sua, as nossas mãos: percepções sobre diversidade de cores
de pele por crianças da educação infantil e suas famílias” e “Pintando as cores da gente” trazem importantes
relatos e reflexões sobre essa intervenção e seus desdobramentos.
28

posterior, um dos pais trouxe para o grupo o relato de que, a partir daquela
atividade, a filha passara a se reconhecer como negra.
Nas rodas de conversa seguintes8, as famílias continuaram trazendo situa-
ções de racismo vivenciadas, de modo a construir, naqueles curtos tempos,
momentos-espaços de acolhimento de dores provocadas pelo racismo de que
foram/são vítimas, mas também de fortalecimento do desejo de buscar formas
para que as histórias de violência racial não se repitam com suas crianças.
A necessidade de valorização da negritude foi um tema sempre presente.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nesse sentido, foram temas das discussões a questão da representatividade negra,
das religiões de matriz africana, da estética e dos cabelos afro, das representações
do negro na sociedade e nos materiais didático-pedagógicos trabalhados nas
escolas. Em seu conjunto, as ponderações apontavam para a questão da cons-
trução das identidades negras em um contexto de hegemonia da branquitude.
Analisando os relatos, foi possível perceber e compreender a profunda
preocupação das famílias em propiciar que suas/seus filhas e filhos tenham
forças para construir suas identidades, internalizando o amor pela sua cor,
sua cultura, seus traços e seus modos, a fim de que a negritude não seja, para
elas e eles, motivo de vergonha ou constrangimento – por exemplo, quando a
temática da “escravidão” é tratada na escola. É preciso formar a compreensão
de que imagens de pessoas negras em situação de espancamento, castigo, nudez
– entre outras que reduzem a dignidade humana –, a depender da forma com
que são abordadas em aula e em livros didáticos, acabam por constranger e
gerar sofrimento em crianças e adolescentes negras/os. Além disso, tais imagens
têm o potencial de convidar o racismo a se reproduzir nas relações entre estu-
dantes – muitos delas/es, brancas/os ou não, chegam a pronunciar ofensas e a
reproduzir gestos de castigos, reatualizando o passado escravagista. As marcas
de subalternidade, opressão, humilhação e desmerecimento – entre outras – são
muito profundas. Trata-se, como afirma bell hooks (2019), da necessidade de
“amar a negritude”, rompendo com o pensamento supremacista branco que
insinua, afirma e continua defendendo que pessoas negras são inferiores.
Descobrir-se negra/o no Brasil e afirmar sua própria negritude demandam
rupturas com a reprodução de normas e valores que objetivam desumanizar
pessoas negras; no entanto, ao mesmo tempo, é urgente e imprescindível
intensificar os investimentos na reelaboração de discursos e práticas que
possam reinventar seus corpos e suas experiências (FIGUEIREDO, 2020,
p. 250). Nesse processo, que é intersubjetivo, as representatividades negras
8 Ao todo foram realizadas cinco rodas de conversa, com frequência trimestral. A partir delas, foram planejadas
ações de intervenção no espaço escolar, buscando contribuir para a solução dos problemas levantados,
compondo o ciclo de reflexão, ação e avaliação, típico de metodologias de pesquisa-ação (FALS BORDA,
2009). Essas ações incluíram intervenções pedagógicas junto ao corpo docente, discente e voltadas à
comunidade escolar e à sociedade, como aqui exemplificamos.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 29

possuem um importante papel de conferir visibilidade e permitir que as crian-


ças possam se identificar com pessoas negras fora de estereótipos servis e/ou
desumanizados. No entanto, ao falarmos do papel das pessoas negras nesse
processo, é preciso nos atentarmos ao papel das pessoas brancas, a fim de
que sua representatividade opressora, violenta, hierarquizadora, também seja
reinventada à luz da igualdade de fato.
Acompanhando as reflexões realizadas nas rodas de conversa, as demais
intervenções discentes procuraram valorizar a musicalidade, as danças, a histo-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ricidade e as narrativas dos povos negros compreendidos em sua diversidade.


De forma lúdica e artística, as oficinas com as crianças serviram como um
convite para brincar, fantasiar e construir um universo no qual contos, heróis
e artistas também são negros. Era necessário que todas as crianças fossem
cuidadas a fim de evitar que a violência racial fosse abordada sem ponderações
e mediações entre o passado, o presente e o futuro. Nessa dinâmica, foi um
desafio presente em todo o tempo não tentar enganar as crianças a respeito
da violência do racismo, amenizando ou desconsiderando o sofrimento que
ela causa às vítimas, e encontrar/inventar uma dose adequada à faixa etária
e ao seu processo de constituição de pertencimento racial (negro e branco) e
de interação na escola e na sociedade.
No mesmo sentido, investimos grande parte dos recursos financeiros do
projeto, cerca de 62% do recurso, na aquisição e construção de um acervo
antirracista, composto por: obras de literatura, que apresentam um universo
plural; obras para estudo sobre racismo e educação e antirracismo; bonecas com
diversas tonalidades de pele, texturas capilares, cadeirantes e outras condições
de deficiência; instrumentos tradicionais utilizados no Congado e na Capoeira;
tecidos típicos africanos – capulanas cujas estampas remetem a diversas tradi-
ções étnicas presentes no continente africano e no Brasil. Com isso, esperamos
contribuir para o trabalho pedagógico com vistas à construção de identidades
negras com mais recursos, a fim de oferecer subsídios para não sucumbir à
violência racista e para constituir identidades brancas mais dispostas a se repo-
sicionarem pelo fim de hierarquias raciais.
Ainda nessa direção, deliberamos que as oficinas com as crianças seriam
conduzidas por profissionais negras e negros. As arte-educadores Mafuane
Oliveira, Flaviane Malaquias, Milena Sampaio e Cleia Rodrigues e o músico
Jack Will, que realizaram as intervenções pedagógicas, encantaram as crianças
com suas performances. A quebra do cotidiano escolar, somada às expectati-
vas criadas em torno de cada atividade oferecida pelo projeto e aos trabalhos
realizadas em sala de aula a partir delas, fez com que as oficinas ganhassem
um lugar especial na memória não somente das crianças, mas também de
suas famílias e das docentes que participaram dessa experiência. Para além
disso, a negritude, ao ocupar um espaço de protagonismo, compartilhar seus
30

conhecimentos e habilidades, contribuiu para ampliar as referências dos/as


estudantes, em um cenário quase que totalmente tomado por docentes brancas/
os e por currículos que continuam reproduzindo violências raciais por meio
das mais variadas estratégias.

As marcas perversas do racismo estrutural

A branquitude, como um padrão, faz-se presente no cotidiano da Eseba.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Como parte da rede federal de ensino, a escola oferece a suas/seus docentes
oportunidades de atuação no Ensino, na Pesquisa, na Extensão e na Gestão,
com uma carga horária em sala de aula relativamente reduzida em comparação
com outras redes de ensino e salários acima da média nacional na carreira,
em especial quando consideramos a média da remuneração do magistério na
educação básica. As vagas são preenchidas através de concurso público e,
sobretudo nos últimos anos, têm mobilizado muitas/os profissionais interes-
sadas/os, incluindo não apenas professoras/es da região de Uberlândia, mas
também de outras localidades do país. Apesar de os cargos da carreira do
Magistério do Ensino Básico, Técnico e Tecnológico (EBTT) exigirem apenas
graduação como pré-requisito para credenciamento, observa-se, na Eseba, o
mesmo que ocorre nos Institutos Federais e demais Colégios de Aplicação:
hoje, a maior parte de docentes aprovadas/os em concursos públicos possui o
título de mestrado e/ou doutorado. No entanto, apesar de vigorar a lei 12.990,
de 2014, que determina a reserva de 20% das vagas dos concursos públicos
para pessoas negras, ela nunca foi cumprida na escola, o que contribui para
que o corpo docente permaneça majoritariamente branco, com apenas 5% de
docentes negras/os aproximadamente9.
Instituir debates acerca do combate ao racismo no interior de uma
instituição na qual os cargos de maior prestígio são ocupados por pessoas
brancas inclui, necessariamente, realizar uma reflexão acerca da branquitude.
Durante a escrita do projeto, pensávamos na importância de reconhecer o
racismo e suas manifestações no espaço escolar e aprimorar a formação
docente no tocante às relações étnico-raciais. Não nos propusemos, inicial-
mente, tratar das questões que se referem à branquitude. Esse esquecimento
dos impactos do racismo na construção histórica das identidades brancas
9 A lei 12.990/2014 pouco alterou a proporção de docentes negras/os nas instituições federais de ensino
brasileiras. Isso porque, na grande maioria dos casos, a gestão de vagas se dá no interior das unidades
que compõem cada instituição, de modo que sejam anunciadas apenas as vagas disponíveis em disciplinas
determinadas. Ao manter essa forma de gestão de vagas, as instituições acomodam-se no descumprimento
da legislação e na prática de racismo institucional. Por sua vez, o Ministério Público também tende à inércia
nessa questão. Nesse sentido, a luta pela conquista da lei e pelo seu cumprimento continua sendo atribuição
quase que exclusiva do movimento negro. No texto intitulado “Prosa com Guimes”, há maior aprofundamento
desse problema.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 31

revela o racismo estrutural e a dificuldade que brancas/os têm em reconhecer


a branquitude e os lugares sociais privilegiados que ocupam através dela
como uma das heranças da colonização e dos séculos de escravização dos
povos negros e indígenas.
Quando escrevemos o projeto, dedicamos um espaço especial para a
formação de professores/as para as relações étnico-raciais10, pois tínhamos a
compreensão de que as marcas do racismo estrutural se reproduzem na escola,
em todas as suas relações. O preconceito incutido em ações pedagógicas, a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

não formação para lidar com a pluralidade e a discriminação, somados aos


conteúdos e abordagens de livros didáticos, muitas vezes preconceituosos em
relação a negras/os e indígenas, desestimulam a/o estudante negra/o, prejudi-
cando seu aprendizado e seu sucesso escolar e contribuindo para a evasão e
repetência (MUNANGA, 2005; SANTANA et al., 2019). Além disso, tínha-
mos a consciência da necessidade de ampliar as discussões acerca da apli-
cação das Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, com os objetivos de subsidiar
práticas pedagógicas e superar os desafios que limitam a formação cidadã, tais
como o mito da democracia racial e as marcas de uma educação eurocêntrica
(GOMES; PETRONILHA, 2007). O que nos escapou, à época, foi o impacto
da nossa própria branquitude na nossa formação pedagógica.
Como afirmam Bento (2002) e Schucman (2016), as relações raciais
precisam ser compreendidas de forma relacional, pois brancos também são
indivíduos racializados. Com frequência, no entanto, os efeitos da bran-
quitude não são objeto de análise, pois ela é vista como padrão, neutra,
sem cor/raça. Ainda que não exerçam o racismo de forma consciente ou
que não concordem com ele, pessoas brancas obtêm privilégios materiais
e simbólicos em função de sua identidade racial por estarem inseridas em
uma sociedade estruturalmente racista. Esse enquadramento é necessário
para que possamos compreender a forma como docentes brancas/os, que
constituem cerca de 95% do corpo docente da Eseba, se relacionam com as
temáticas étnico-raciais.
Quando dialogamos com as professoras que atuam na Educação Infantil
a respeito das questões que elas identificavam como importantes, para abor-
dá-las nas formações docentes, a primeira demanda solicitada foi uma espécie
de curso básico sobre relações raciais na história do Brasil. Para algumas das
professoras, as lacunas deixadas por uma formação universitária eurocêntrica
e por um processo de socialização quase que exclusivamente branco foram
despertadas por meio do projeto. Ao trabalhar, com as crianças, as diferentes
cores de pele, as professoras também se reconheceram – em alguns casos,
pela primeira vez – como brancas.
10 Neste livro, o capítulo “Por uma educação antirracista: reflexões sobre o projeto ‘Construindo uma escola
antirracista’ (CAp Eseba/UFU)” apresenta os processos de formação docente com mais detalhes.
32

Ao escrever sobre a racialidade branca, Piza (1996) observou a invisibili-


dade e o silenciamento do outro (não branco) no discurso de brancas/os. O uso
corrente de expressões como “não sei”, “não conheço”, “não convivo”, nesse
sentido, demonstra o desconforto de pessoas brancas perceberem a si mesmas
como parte de um sistema racista. Se transpusermos essa discussão para a nossa
realidade escolar, podemos compreender, inclusive, as razões pelas quais nos
permitimos desconhecer aspectos tão importantes da História do nosso país,
como os mecanismos através dos quais a discriminação racial se perpetuou entre

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nós por meio do discurso da democracia racial. Por certo, tivemos falhas em
nossa formação, especialmente porque muitas/os de nós concluímos a maior
parte dos estudos antes da implementação das leis 10.639/2003 e 11.645/2008,
no entanto, também é fato que não buscamos saber, por inúmeras razões, dentre
elas o privilégio branco daquela absoluta maioria de docentes na Eseba.
Percebemos esse desconforto também quando procuramos analisar a
documentação escolar com o objetivo de identificar possíveis relações entre
raça e gênero com queixas escolares. Para termos acesso à documentação
que pretendíamos analisar, mesmo sendo docentes da escola e tendo obtido
aprovação do Comitê de Ética em Pesquisa para a realização da investiga-
ção, precisamos aguardar meses. Em nenhum momento, ouvimos qualquer
comentário que pudesse ser qualificado como racista. Ao contrário, desde o
início recebemos felicitações pelo projeto; docentes e servidores manifestaram
satisfação em participar da construção de uma escola antirracista. Quando,
no entanto, buscávamos dados para mapear a existência de práticas racistas
em nossa escola, as burocracias, as autorizações e as rotinas institucionais
tornaram o processo lento ao ponto de termos que adequar a amostragem às
nossas possibilidades de realização da pesquisa no tempo que ainda nos res-
tava. Trabalhamos, então, com a análise quantitativa dos registros de retenção,
nos anos de 2019 e 2020, e de estudantes com queixas escolares acompanha-
das/os pelas áreas de Psicologia Escolar e Serviço Social da instituição, nos
anos de 2019, 2020 e 2021, comparando-os com os dados raça e gênero de
todas/os estudantes. Vale ressaltar que, a partir de 2019, a escola passou a
solicitar os dados de raça/cor ao efetivar a matrícula ou rematrícula das/os
estudantes, gerando, então, dados sobre todo o universo discente, registrados
na secretaria escolar.
Nos anos de 2019 e 2020, as/os estudantes autodeclaradas/os, ou decla-
rados pelos/as responsáveis, como negros/as representaram apenas 5% do
total de discentes da escola. Nesse contingente, os estudantes negros repre-
sentaram 3% do total. A proporção de pardas/os foi de 25%; a de brancas/os
foi de 62%; a de amarelas/os, 1%; e a proporção de não declaradas/os foi de
7%. Já a porcentagem de gênero ficou balanceada, sendo 49% de meninas e
51% de meninos.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 33

Em relação às queixas escolares e ao fracasso escolar, buscamos examinar


a realidade da escola com base em dados da literatura que nos informam haver
uma correlação entre pertencimento étnico-racial negro, gênero e origem em
classe social de baixa renda e queixas escolares e reprovação (PATTO, 1992;
2000). Nesse sentido, quando analisamos dados referentes a retenção/reprova-
ção, no ano de 2019, os estudantes negros representaram 8% do total de repro-
vados. A situação dos estudantes pardos foi a mesma, também correspondendo
a 8% de reprovados. Considerando que a porcentagem de estudantes negros na
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

escola era de 3% nos anos de 2019 e 2020, a taxa de reprovação deles chama
a atenção e se torna reveladora da reprodução de processos de exclusão, rela-
cionados ao racismo estrutural, pela escola.
Já as estudantes brancas foram a maioria dentre estudantes reprovadas/
os em 2019, representando 50% do total. Esses dados se alteraram de modo
significativo no ano de 2020, quando foi adotada a progressão automática para
todas/os estudantes que participaram das atividades remotas. Assim, foram
reprovadas/os, no total, cinco estudantes que não haviam participado das ati-
vidades remotas. Entre elas/es, três estudantes pardas, correspondendo a um
percentual de 60%. Nesse ano, não houve reprovação de estudante branca/o.
A presença de um número maior de estudantes negras dentre aquelas/es
reprovadas/os, em 2020, não é uma exclusividade da Eseba. Nesse sentido, a
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, realizada em 2020, revelou que
a quantidade de estudantes negros/as e indígenas sem atividade escolar era o
triplo da de estudantes brancos/as. No mesmo ano, o Geledés – Instituto da
Mulher Negra – realizou a pesquisa “A educação de meninas negras em tem-
pos de pandemia: o aprofundamento das desigualdades”, no município de São
Paulo, e levantou uma série de dados que apontam para o fato de que as meninas
negras foram as mais afetadas pela adoção do ensino remoto decorrente da
pandemia da covid-19. Os motivos, de acordo com a pesquisa, seriam inúmeros
e passariam pelas dificuldades de acesso à internet enfrentadas pelas famílias
negras, pelo fato de adolescentes negras assumirem atividades domésticas e
tarefas relacionadas aos cuidados de irmãos mais novos com maior frequência
que todos os outros grupos que participaram da pesquisa e pelos estereótipos
enfrentados pelas meninas negras desde a mais tenra idade, carregados de
racismo e de misoginia (GELEDÉS, 2021, p. 109-111). Assim sendo, a ausên-
cia de políticas públicas que atentem para as desigualdades enfrentadas pelas
meninas negras compromete seu percurso escolar e, no contexto da pandemia,
de forma especial, coloca-as em situação de maior vulnerabilidade que meninas
brancas e que meninos brancos e negros.
Já em relação ao acompanhamento pelas áreas de Psicologia Escolar e/ou
Serviço Social da escola, devido a queixas escolares nos anos de 2019, 2020
e 2021, temos uma maior proporção de meninos, 58%, do que de meninas,
34

42%. No total, o número de estudantes negras/os acompanhados/as por esses


serviços, no triênio 2019-2021, representa 7%, sendo que meninos negros
representaram 4,5% do total de estudantes de todos os gêneros e raças acom-
panhadas/os pelas áreas, no período. Estudantes brancas/os representaram,
somados, 55% das/os acompanhadas/os pelas áreas no triênio, mas os dis-
centes brancos se destacam como maioria dos acompanhados, representando
31% do total. Vale destacar que, dentre as/os estudantes, de todos os gêneros e
etnias/cores, acompanhadas/os pelo Serviço Social e pela Psicologia Escolar,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os estudantes negros representam 10%, isto é, o dobro da proporção total de
discentes (ambos os gêneros) negros/as na escola e mais que o triplo da pro-
porção de meninos negros na escola. Os demais – brancos, amarelos, pardos e
não declarados – apresentaram números proporcionais aos computados como
caracterização do quadro discente.
A amostragem que apresentamos neste texto é pequena. No entanto, é
importante destacar que os estudantes negros, autodeclarados ou declarados
por seus/suas responsáveis, são 3% dos matriculados, mas 8% dos retidos em
2019 e 10% dos acompanhados pelo Serviço Social e pela Psicologia Escolar
concomitantemente, no triênio 2019/2021. Assim, mais uma vez, os dados nos
sinalizam para a reprodução do racismo estrutural na escola, colocando-a em
sintonia com a literatura: são as crianças negras as mais vulneráveis social,
pedagógica e psicologicamente na Eseba. Ao mesmo tempo, a existência de
espaços de cuidado para tais estudantes pode se constituir como formas de
enfrentamento ao racismo estrutural, desde que ele seja encarado como aspecto
fundamental na produção das queixas escolares.
Nos chama atenção, ainda, os dados de reprovação de meninas, que
é maior do que o de meninos, por mais que eles sejam em maior número
acompanhados pelo Serviço Social e Psicologia Escolar. Esses dados nos
convidam a questionamentos: será que punimos mais as meninas no contexto
educacional? Será que acreditamos que elas demandam menos acompanha-
mento, que podem (e devem) se virar mais sozinhas? Nesse sentido, enten-
demos ser importante a continuidade dessa avaliação de dados, bem como
complementá-los com a análise qualitativa de Atas de Conselhos Docentes,
compreendendo também, desta forma, os critérios utilizados pela equipe para
avaliar, processualmente e qualitativamente, as/os estudantes e decidir por
sua aprovação ou reprovação.
Avançar na investigação a respeito das formas através das quais as desi-
gualdades de gênero e de raça perpassam nossas práticas institucionais é uma
tarefa fundamental para a promoção de relações mais igualitárias na escola. E
isso deve ocorrer não porque é preciso resolver “a questão das crianças negras
na escola”, mas porque compreender as questões de raça é essencial para
que possamos desvelar o funcionamento da nossa sociedade e a construção
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 35

histórica das desigualdades que afetam a nós todas/os. O racismo não é um


problema de pessoas negras, mas de toda a sociedade e, por isto, a construção
de políticas antirracistas precisa também ser assumida por brancos/as. Reco-
nhecer-se beneficiado/a por uma estrutura que prioriza pessoas com a cor de
pele branca é um primeiro passo para isso.

Resistências e enfrentamentos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Não é possível iniciar um movimento de deslocamento das estruturas


racistas sem provocar desconforto ou questionamento. Enquanto as rodas de
conversas com famílias de estudantes negros/as fervilhavam de ideias para a
desconstrução do racismo institucional e para a promoção da cultura afro-bra-
sileira no interior da escola, docentes refletiam sobre seu papel na sustentação
do racismo estrutural e preparavam propostas pedagógicas inspiradas pelo pro-
jeto “Construindo uma escola Antirracista”, também lidávamos, vez ou outra,
com reações racistas de familiares de estudantes. Em diversas falas, dirigidas
a professoras que atuam na educação infantil, pudemos perceber o incômodo
causado pelo projeto em algumas famílias brancas: “essa escola agora só fala
disso? Não têm outro tema?”; “se for uma atividade relacionada ao congado,
meu filho/a não irá participar, pois isso é contrário à nossa religião.”
Os movimentos conservadores que têm promovido disputas em torno
de currículos escolares nos últimos anos no Brasil, tais como o “Escola sem
Partido” e a campanha anti-“ideologia de gênero”, têm atingido a Eseba.
Embasados em propostas revisionistas amplamente difundidas pela internet,
familiares de estudantes de todas as idades têm abordado docentes e a direção
escolar questionando temáticas abordadas pelo currículo e metodologias de
ensino. Buscando compreender melhor esse movimento, em 2021, a Comissão
de Articulação Escola-Família, em conjunto com a direção da Eseba, propiciou
um espaço de escuta no qual familiares de estudantes tiveram a oportuni-
dade de apontar temáticas e conteúdos do currículo escolar que lhes causam
incômodos. Na pesquisa, realizada através de um formulário encaminhado
a responsáveis por estudantes da escola, em 10% das respostas afirmava-se
que a família discordava de algum conteúdo do currículo. Desse conjunto,
em 57% dos casos, as preocupações das famílias foram relacionadas com o
trabalho acerca das relações de gênero, das sexualidades e do feminismo em
sala de aula. Conteúdos relacionados a religiões de matriz africana foram
citados em 35% das respostas e questões políticas em 21%.
A análise dos dados e das justificativas apontadas pelas famílias que
participaram da pesquisa explicita que os pontos de contestação do currí-
culo da Eseba são justamente aqueles relacionados às lutas democráticas
36

promovidas nos últimos anos no Brasil. Por meio de ações políticas, desde o
fim da ditadura militar, foi possível inserir na legislação curricular brasileira,
desde a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional, de 23 de dezembro
de 1996, as seguintes disposições:

Art. 1º A educação abrange os processos formativos que se desenvolvem


na vida familiar, na convivência humana, no trabalho, nas instituições de
ensino e pesquisa, nos movimentos sociais e organizações da sociedade

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


civil e nas manifestações culturais.
§ 1º Esta Lei disciplina a educação escolar, que se desenvolve, predomi-
nantemente, por meio do ensino, em instituições próprias.
§ 2º A educação escolar deverá vincular-se ao mundo do trabalho e à
prática social11.

Dada a necessidade de vinculação entre a educação escolar e a prática


social, a legislação brasileira estabelece a obrigatoriedade de se trabalhar com
a discussão sobre gênero e sexualidade em sala de aula (tema transversal dos
PCNs, publicados em 1998), a educação para os direitos humanos (Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação em Direitos Humanos, de 2012) e com
o ensino da história e cultura Afro-Brasileira e Indígena (Leis nº 10.639/2003
e 11.645/2008). A contestação ao currículo, portanto, quando acontece, faz-se
com base em um movimento antidemocrático de reação à ampliação da esfera
pública, que passa a reconhecer o papel das chamadas minorias políticas na
construção da sociedade brasileira.
Sem perceber a contradição existente na base desse tipo de questiona-
mento, muitas famílias se utilizam de uma retórica de defesa da democracia,
da laicidade e da liberdade religiosa para se opor ao trabalho com conteúdos
e metodologias que se referem a elementos da cultura afro-brasileira. Não
há, no entanto, no formulário encaminhado às famílias nem em reuniões que
fazem parte das rotinas escolares, questionamentos a propostas pedagógicas
que se propõem a investigar questões referentes ao imaginário judaico-cris-
tão. Atividades escolares envolvendo música sacra renascentista, a cultura
barroca, a história do catolicismo e das reformas protestantes, entre muitas
outras temáticas que envolvem religiosidades e a cosmovisão judaico-cristã,
ocorrem habitualmente sem qualquer questionamento por parte das famílias.
Quando são trazidas referências a aspectos culturais relacionados a religio-
sidades de matriz africana, no entanto, os questionamentos são frequentes
e escancaram preconceitos, como podemos observar em críticas realiza-
das por famílias de crianças matriculadas na educação infantil, registradas
no formulário:
11 Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/l9394.htm. Acesso em: 25 maio 2022.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 37

Pedimos que nossa filha não participe de aulas com conteúdos de matrizes
africanas, nem religiosos e/ou sob o cunho da tradição ou cultural, de forma
nenhuma. Somos evangélicos. [...] Assumimos toda a responsabilidade
por eventual prejuízo12.

Em um primeiro momento, não achei ruim ela (a professora) trazer a lenda


de Oxum, porém, nas aulas subsequentes ela trouxe músicas da religião
umbanda. Como a escola é laica, mesmo que de forma subjetiva, os seus
docentes não devem tratar de religião13.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

A própria crítica ao trabalho em sala de aula com temáticas relacionadas


a tradições religiosas e culturais afro-brasileiras remonta a uma visão mora-
lizante do ensino, defendida pela pedagogia cristã tradicional. Nessa pers-
pectiva, a fé é considerada como uma questão de convencimento intelectual
e, por isto, todo o tipo de conhecimento que possa vir a enfraquecê-la deve
ser censurado, afastado das crianças. Assim, para aqueles que acreditam na
possibilidade de “doutrinar” estudantes, conteúdos escolares que apontem
para o reconhecimento das diversidades humanas devem ser combatidos.
Quando consideramos os elementos da retórica clássica, adotada pela
pedagogia jesuítica, a persuasão lógica (conduz ao convencimento), a per-
suasão afetiva (induz à comoção) e a persuasão estética (leva ao deleite),
compreendemos os motivos pelos quais, em um dos relatos, o trabalho com
uma música, que trata de Oxum, é considerado mais problemático que a
simples apresentação de uma narrativa. O deleite estético e o despertar da
afetividade, através da manifestação artística, são considerados perigosos por-
que estimulam a imaginação e libertam corpos que conservadores pretendem
moldar. Não deixa de ser irônico, portanto, que a laicidade do Estado seja
utilizada como argumento para sustentar ideias que remontam a concepções
pedagógicas profundamente amparadas em um certo cristianismo, e não nos
princípios da educação democrática.
O fundamentalismo religioso tem sido um obstáculo para a implemen-
tação da Lei nº 10.639/2003 em diversas regiões do país. Nesse sentido,
concordamos com o pesquisador Caio Cândido Ferraro (2019), ao afirmar
que esses impactos podem ser sentidos não apenas no âmbito do currículo
formal das escolas, mas também nas relações sociais que ali se estabelecem
através do chamado currículo oculto. Experiências de estudantes e profes-
soras/es que vivenciam, fora da escola, religiosidades de matrizes africa-
nas são habitualmente silenciadas em sala de aula em função de discursos
discriminatórios. Pela forte tradição congadeira na cidade de Uberlândia,

12 Depoimento anônimo 1, registrado em resposta à questão: “Você discorda de algum conteúdo estudado por
seu/sua filho/a na Eseba? Qual?”.
13 Depoimento anônimo 2, idem.
38

essas tentativas de silenciamento muitas vezes recaem também sobre o


Congado, como outra queixa familiar registrada no formulário de pesquisa
deixa explícito:

Não concordamos com usar termos religiosos durante as aulas, uma vez
que a escola é laica. Por exemplo, o Congado, que é movimento cultural,
porém de cunho religioso. Usar histórias de Orixás como elementos da
terra. Nada disso deveria ser tratado na escola14.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Essas manifestações preconceituosas, enraizadas na sociedade brasileira,
adentram à escola na forma de questionamento ao currículo e ao Projeto Polí-
tico Pedagógico da Eseba, causando transtornos à direção e à equipe pedagó-
gica. Algumas vezes em tom sutil, em outras, através de ameaças, elas revelam
incompreensões a respeito do papel da escola enquanto espaço de promoção do
dissenso e de que a política é marcada, como nos lembra Arendt (2009), pela
pluralidade de ideias. Temos procurado encará-las, no entanto, como sinais de
que estamos produzindo mudanças significativas através de nossa proposta de
quebrar o silêncio a respeito do racismo e de seus impactos no âmbito escolar.
Longe de nos intimidarem, essas narrativas e reações preconceituosas são
acrescentadas às nossas análises como indicativos a respeito de quais são os
pontos sensíveis sobre os quais ainda precisamos atuar. As temáticas das reli-
giões afro-brasileiras e da festa do Congado, enquanto patrimônio histórico e
cultural da cidade de Uberlândia, certamente são exemplos de questões que
devem ter maior atenção em propostas pedagógicas, de forma que possamos
desenvolver um projeto educacional inclusivo e aberto às diversidades.
Pensando nisso é que propusemos como uma das atrações culturais
da Semana Preta, celebração que marcou a finalização dos dezoito meses
do projeto e que foi realizada de 25 a 30 de abril de 2022, uma apresenta-
ção do Terno Marinheiro de Nossa Senhora do Rosário na quadra escolar.
Através dessa atividade, os/as estudantes tiveram a oportunidade não apenas
de contemplar o cortejo e de conhecer a história da tradição congadeira na
cidade, mas também de dançar o congado. Ao som do cantar insubmisso e
do batuque dos instrumentos, a negritude demonstra sua resistência, tomando
o espaço embranquecido do Colégio de Aplicação da Universidade Federal
de Uberlândia.

Anansi: tecendo redes

Por reconhecermos a importância do estudo, da alegria e da ginga para


a continuidade e o fomento da luta antirracista, durante a Semana Preta da
14 Depoimento anônimo 3, idem.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 39

Eseba, promovemos uma maratona de formações docentes, oficinas com


discentes e apresentações culturais que repercutiram na Eseba, em diferen-
tes espaços e tempos. Ao longo dos 18 meses de realização da pesquisa, as
intervenções propiciaram uma fecunda aproximação da escola com pesqui-
sadores e artistas negros/as que nos trouxeram referenciais teóricos, práticos
e poéticos antes ignorados ou pouco valorizados. Finalizada a pesquisa, as
ações antirracistas precisam continuar, gerar efeitos e provocar mudanças nas
práticas institucionais e pedagógicas da Eseba.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nesse sentido, a constituição do acervo antirracista, com livros, brinque-


dos, instrumentos musicais e outros materiais didáticos, é uma estratégia que
visa à continuidade do movimento antirracista.
Esses feitos e desafios, contudo, extrapolam a reflexão sobre resultados.
Durante seu período de realização, foram vários os momentos em que nos
propusemos a sistematizar e apresentar, em termos qualitativos e quantitativos,
metas que foram previstas e realizadas e as que não foram possíveis de atender.
Caldas Aulete15 nos apresenta alguns significados de resultado: “1) O
que resulta de alguma coisa; consequência ou efeito de uma ação, fato ou
princípio. Exemplo: Qual foi o resultado do jogo?” Reagindo ao exemplo,
recuamos, pois ainda não temos resultado final: nosso violento jogo já dura
pouco mais de 500 anos.
Estamos tratando de processos e processualidades extremamente amea-
çadoras por suas potencialidades de desencarcerar corpos e mentes, de driblar
a colonização ainda em curso, de instalar dúvidas e reinventar conceitos e
práticas, de incidir nas territorialidades dos corpos, de refletir a respeito de
currículos limitantes, excludentes, violentos. Assim, resultados foram, são e
estarão sendo produzidos. Resultados qualificáveis, quantificáveis, previsíveis
e imprevisíveis.
Sim, gingamos em contextos adversos; promovemos aquilombamentos;
contribuímos para manter a pauta do racismo, do preconceito racial, da equi-
dade e da interseccionalidade como princípios; fomentamos a potência das
linguagens artísticas e suas imprevisibilidades; sofremos com a pandemia
covid-19 e sua grave ameaça à vida; padecemos com maior risco sanitário
mediante a gestão da saúde pública baseada no deboche e no descaso pre-
meditado... mas, ainda assim, criamos espaços para falas afetivas e escuta
ativa; mobilizamos afetos entre crianças, entre crianças e suas famílias, entre
crianças e suas/seus professoras/es; provocamos ruídos em uma sociedade
com dificuldade de se compatibilizar com sua própria história.
O projeto nos trouxe também estreitamento de laços institucionais impor-
tantes: com o Ceert, seus parceiros e demais projetos contemplados no Edital

15 Disponível em: https://aulete.com.br/resultado. Acesso em: 29 abr. 2022.


40

Equidade Racial, estabelecemos um diálogo que ampliou nosso olhar para


todas as regiões do Brasil, enxergando nelas a relevância de se pensar a equi-
dade racial na educação infantil, na educação quilombola, no ensino médio e
em áreas do conhecimento mais insurgentes, como a literatura.
Ouvimos o movimento negro, indígena e da classe trabalhadora e con-
fiamos neles como um braço forte a que podemos sempre recorrer para sulear
nossas pautas. Nelas, estão as pistas para uma educação que urge se compro-
meter mais vertical e amplamente com a descolonização de corpos e mentes.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Como a escritora Cidinha da Silva disse: o que é bom para esses grupos, é
bom para o país16.
Por fim, um convite à reflexão: a maioria de declarações de pertenci-
mento étnico-racial branco entre estudantes da Eseba contrasta com o fato de
a escola localizar-se em uma territorialidade congadeira. A escola está situada
a 500 metros da Presidência da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito de Uberlândia e distante apenas 400 a 2000 metros de oito
grupos – Congo Camisa Verde, Catupé Azul e Rosa, Congo Rosário Santo,
Congo Santa Efigênia, Marinheiro de São Benedito, Moçambique de Belém,
Sainha e o Marinheiro de Nossa Senhora do Rosário. Portanto, há décadas
os sons desses grupos, sua musicalidade potente, expressando reverência à
ancestralidade, indignação, agradecimento, devoção, esperança, recordação,
denúncia, clamor por justiça, rompem barreiras acústicas, políticas, sociais
e raciais e ecoam nas ruas do entorno e adentram nos corredores da escola,
causando, entre outras reações, alegria, ânimo, vontade de cantar e dançar,
desejo de também ocupar as ruas. Provocam, também, silenciamentos, olhares
arredios, estranheza, indiferença e, até mesmo, medo.
Enquanto os sons cumprem sua função de percutir e repercutir, atraves-
sando barreiras, os corpos que os produzem, nos quase 45 anos de existência
da Eseba, ao contrário, se depararam com as barreiras para nela ingressarem
em proporção ao máximo próxima da proporção da população negra de Uber-
lândia. A comunidade da escola, por muito tempo, transitou nesse espaço como
se ela não estivesse inserida, mesmo que à revelia, em uma territorialidade
congadeira, parecendo sequer cogitar sua inserção nessa territorialidade nem
ela à escola. No entanto, os sons ancestrais, ressoados, cumpriram e seguem
cumprindo seu papel decolonizador: rompem barreiras, para além das acústi-
cas, apontam caminhos, perturbam a casa grande, adormecida em seus sonos
injustos – como nos ensina Conceição Evaristo17.

16 Cidinha da Silva foi ministrante na mesa de encerramento da “Semana preta: Anansi!”. Sua fala está dis-
ponível em https://www.youtube.com/watch?v=-BsmB_ZPes0&t=7s. Acesso em: 25 maio 2022.
17 Trecho de sua fala em entrevista disponível em: https://tvbrasil.ebc.com.br/estacao-plural/2017/06/escritora-
-conceicao-evaristo-e-convidada-do-estacao-plural produção. Acesso em: 25 maio 2022.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 41

Ouvir os ensinamentos dos tambores congadeiros nos convida à constru-


ção do pertencimento mútuo – a Eseba pode pertencer, integrar-se, à territoria-
lidade congadeira e a territorialidade congadeira pode pertencer, integrar-se,
à Eseba – e convoca ao suleamento das reflexões no campo da educação para
as relações étnico-raciais e suas intersecções na escola, principalmente se
suleadas por subsídios decolonial e antirracista.
Compreendemos que o “Projeto Construindo uma Escola Antirracista”,
realizado de novembro de 2020 a abril de 2022, foi um primeiro e importante
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

passo de enfrentamento ao racismo institucional que permeia práticas esco-


lares. Como afirma Antônia Aparecida Rosa, capitã do Terno Marinheiro de
Nossa Senhora do Rosário, na frase que aqui nos serve de epígrafe18, é preciso
o tempo todo criar formas de resistir às cadeias de opressão que marcam nossa
experiência em sociedade. Nesse texto, apontamos caminhos que estão sendo
percorridos a fim de corrigir essa discrepância histórica e romper algumas
das barreiras que têm impedido e/ou dificultado que corpos negros ocupem
a escola tanto quanto o som dos tambores congadeiros.

18 Antônia foi uma das pessoas entrevistadas por Jeremias Brasileiro da Silva durante a elaboração de sua
tese de doutorado em História, defendida em 2019. O depoimento em que essa frase foi proferida data de
22 de julho de 2011.
42

REFERÊNCIAS
ABRAMOWICZ, A.; OLIVEIRA, F. de. As relações étnico-raciais e a socio-
logia da infância no Brasil: alguns aportes. In: BENTO, M. A. S. (ed.). Edu-
cação infantil: igualdade racial e diversidade. São Paulo: Centro de Estudos
das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, 2012.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ALMEIDA, S. L. de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte: Letra-
mento, 2018.

ARENDT, Hannah. A promessa da política. 2. ed. Organização e introdução:


Jerome Kohn; tradução: Pedro Jorgensen Jr. Rio de Janeiro: DIFEL, 2009.

BENTO, M. A. S. Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas


organizações empresariais e no poder público. Tese (Doutorado em Psicologia
Escolar e Desenvolvimento Humano) – Instituto de Psicologia, Universidade
Federal de São Paulo, 2002.

BENTO, M. A. S. (ed.). Educação infantil, igualdade racial e diversidade:


aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, 2012.

BRASILEIRO, J. O Congado (a) e a permanência do racismo na cidade de


Uberlândia-MG: resistência negra, identidades, memórias, vivências (1978-
2018). Tese (Doutorado em História) – Universidade Federal de Uberlândia,
Uberlândia, 2019.

BRASILEIRO, J. O ressoar dos tambores do Congado: entre a tradição e a


contemporaneidade: cotidiano, memórias, disputas (1955-2011). Dissertação
(Mestrado em História) – Programa de Pós-Graduação em História, Univer-
sidade Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2012.

CANDIDO FERRARO, C. Religiões afro-brasileiras na escola. Dissertação


(Mestrado em Educação e Ciências Sociais: desigualdades e diferenças) –
Faculdade de Educação, Universidade de São Paulo, 2019.

CARNEIRO, S. Racismo, sexismo e desigualdade no Brasil. São Paulo:


Selo Negro, 2011.

CONSELHO UNIVERSITÁRIO DA UNIVERSIDADE FEDERAL DE


UBERLÂNDIA. Resolução nº 7/2019. 2019. Disponível em: http://www.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 43

reitoria.ufu.br/Resolucoes/resolucaoCONSUN-2019-7.pdf. Acesso em: 11


jun. 2020.

DOS SANTOS CAVALLEIRO, Eliane. Do silêncio do lar ao silêncio esco-


lar: racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. Editora Con-
texto, 2004.

FALS BORDA, O. Una sociología sentipensante para América Latina.


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 2009.

FIGUEIREDO, A. Carta de uma ex-mulata a Judith Butler. In: HOLLANDA,


H. (org.). Pensamento feminista hoje: perspectivas decoloniais. Rio de
Janeiro: Bazar do Tempo, 2020.

FREIRE, P. Pedagogia da esperança. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2003.

FREIRE, P. Pedagogia do oprimido. 59. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 2015.

GELEDÉS, I. M. N. A educação de meninas negras em tempos de pande-


mia: o aprofundamento das desigualdades. Coordenação: Suelaine Carneiro.
São Paulo: Geledés, 2021.

GOMES, N. L.; PETRONILHA, B. G. Experiências étnico-culturais para


a formação de professores. 3. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

hooks, bell. Olhares Negros: Raça e Representação. Editora Elefante, 2019.

INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA (IBGE).


Pesquisa Nacional por amostra de domicílios contínua: características
gerais dos domicílios e dos moradores 2018. Disponível em: https://static.
poder360.com.br/2019/05/ibgepnad-2019.pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.

LIMA, D. da C. B. P.; REGO, T. L. Educação das relações étnico-raciais


na educação infantil. Revista Contemporânea de Educação, v. 12, n. 23,
p. 175-191, 27 abr. 2017.

MACHADO, L. A. de S.; SANTOS, N. E. dos; SANTOS, F. C. dos; SILVA,


G. M. Trajetória de uma política: cotas étnico-raciais na Escola de Educação
Básica da Universidade Federal de Uberlândia. Revista Educação e Políticas
em Debate, v. 9, n. esp., p. 905-920, 2020.
44

MUNANGA, K. Algumas considerações sobre “raça”, ação afirmativa e iden-


tidade negra no Brasil: fundamentos antropológicos. Revista USP, n. 68,
p. 46-57, 1 fev. 2006.

MUNANGA, K. Apresentação. In: MUNANGA, K. (ed.). Superando o


racismo na escola. 2. ed. rev. Brasília: Ministério da Educação, Secretaria
da Educação e Diversidade, 2005.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


MUNANGA, K. Rediscutindo a mestiçagem no Brasil: identidade nacional
versus identidade negra. 5. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.

MUNANGA, K. Uma abordagem das noções de raça, racismo e etnia.


Disponível em: https://www.geledes.org.br/wp-content/uploads/2014/04/
Uma-abordagem-conceitualdas-nocoes-de-raca-racismo-dentidade-e-etnia.
pdf. Acesso em: 11 jun. 2020.

NOGUEIRA, O. Preconceito racial de marca e preconceito racial de origem:


sugestão de um quadro de referência para a interpretação do material sobre
relações raciais no Brasil. Tempo Soc., São Paulo, v. 19, n. 1, jun. 2007.

NOGUERA, R. Denegrindo a educação: um ensaio filosófico para uma peda-


gogia da pluriversalidade. Revista Sul-Americana de Filosofia e Educação
(RESAFE), n. 18, p. 62-73, 2012.

PATTO, M. H. S. A família pobre e a escola pública: anotações sobre um


desencontro. Psicologia USP, v. 3, n. 1-2, p. 107-121, 1992.

PATTO, M. H. S. Mutações do cativeiro: escritos de psicologia e política.


São Paulo: Hacker, 2000.

PIZA, E. Percepção de mulheres negras por mulheres brancas entre os


anos 60 e 70. Relatório (Pesquisa) – Instituto de Psicologia, Universidade de
São Paulo, São Paulo; CNPq, 1996.

SANTANA, J. V. J. de et al. “Eu tenho vergonha em dizer que sou negra,


ninguém gosta, né”? As crianças e as relações étnico-raciais em Itapetinga-
-BA. Revista Tempos e Espaços em Educação, v. 12, n. 28, p. 323-346, 1
jan. 2019.

SCHUCMAN, L. V. Entre o encardido, o branco e o branquíssimo: bran-


quitude, hierarquia e poder na cidade de São Paulo. Veneta, 2016.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 45

SILVA, J. B. Congo, Congado, Congadas: tradição cultural afro-brasileira de


resistência ao racismo e discriminação e os tempos de diásporas e escravidão.
Em tempo de Histórias, n. 36, p. 47-65, jan./jun. 2020.

SILVA, J. B. O congado(a) e a permanência do racismo na cidade de


Uberlândia-MG: resistência negra, identidades, memórias, vivências (1978-
2018). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Univer-
sidade Federal de Uberlândia. Disponível em: https:// doi.org/10.14393/ufu.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

te.2019.609. Acesso em: 13 abr. 2022.


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
REFLEXÕES SOBRE A FORMAÇÃO
CONTINUADA DE DOCENTES NO
ÂMBITO DO PROJETO “CONSTRUINDO
UMA ESCOLA ANTIRRACISTA”
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Léa Aureliano de Sousa


Astrogildo Fernandes Silva Junior

Introdução
Não consigo respirar.
(George Floyd, 25 maio 2020)

Iniciamos o texto registrando as últimas palavras do estadunidense


George Floyd (40 anos), que perdeu a vida devido à ação de um policial branco
que, mesmo já tendo imobilizado Floyd, continuou pressionando o pescoço
da vítima com os joelhos, apesar de ouvir inúmeras vezes de Floyd: “Não
consigo respirar”. Esse fato aconteceu no ano de 2020, em Minessota (EUA)1.
Ainda em 2020, no Brasil, no dia 20 de novembro, em que se comemora
o “Dia da Consciência Negra”, aconteceu um evento similar: o brasileiro João
Alberto Silveira Freitas (40 anos) é espancado até a morte em um hipermer-
cado em Porto Alegre/RS2.
Os dois fatos, apesar da distância em termos de localização geográfica,
trazem inúmeros pontos que os relacionam entre si, visto que, nas duas situa-
ções, a violência teve um mesmo alvo, “homem negro”, e um mesmo agressor
“homem branco”. As duas situações foram praticadas por homens em posição
de autoridade, os quais, em tese, deveriam “proteger” a população. Nos dois
cenários, a violência fez vítimas fatais. Esses foram dois exemplos recentes,
amplamente divulgados e que causaram grande comoção. O mundo ainda
não havia se refeito da morte trágica de George Floyd e, aqui, no Brasil, no
dia em que se comemora “a consciência negra” – data que reúne várias ações
que visam a discussão do combate ao racismo e traz à tona o debate sobre a

1 Caso George Floyd. Disponível em: https://g1.globo.com/mundo/noticia/2020/05/27/caso-george-floyd-morte-


-de-homem-negro-filmado-com-policial-branco-com-joelhos-em-seu-pescoco-causa-indignacao-nos-eua.
ghtml. Acesso em: 16 set. 2021.
2 Homem negro é espancado até a morte em Porto Alegre. Disponível em: https://g1.globo.com/rs/rio-grande-
-do-sul/noticia/2020/11/20/homem-negro-e-espancado-ate-a-morte-em-supermercado-do-grupo-carrefour-
-em-porto-alegre.ghtml. Acesso em: 17 set. 2021.
48

chegada da população negra ao país, reflexões sobre o período em que essa


população foi escravizada e sobre o racismo estrutural que permeia toda a
sociedade – uma tragédia similar ocorre.
Fato é que as duas mortes, apesar de chocantes, não foram as únicas.
Detendo-nos no caso brasileiro, podemos citar o Mapa da Violência de 20123,
que apresenta estatísticas alarmantes com um recorte de cor/raça e idade. No
estudo, fica evidente que, nos últimos anos, a mortalidade de negros (pretos e
pardos) tem aumentado consideravelmente, enquanto na população não negra

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os números têm diminuído. Essa pesquisa indica que a população negra tem
muito mais chances de ser vítima de homicídio do que a branca, mas, quando
direcionamos nosso olhar para o jovem negro, de 13 a 21 anos, a diferença
chega a ser de 89,6% para os negros, contra 37,3% para os jovens brancos na
mesma faixa etária. De acordo com o IBGE (2010), a diferença em termos
de porcentagem vai aumentando na medida em que as crianças vão ficando
mais velhas.
Esse cenário exige que nós, educadoras e educadores, empreendamos
reflexões e ações que promovam uma educação antirracista. Nessa perspectiva,
o CAp Eseba/UFU (Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Uber-
lândia), representado por um grupo de professoras da própria escola, vindas
de áreas de conhecimentos distintas, pensou e materializou um projeto para
a educação infantil, que teve início no ano de 2020, intitulado “Construindo
uma escola antirracista: ingresso e permanência de estudantes cotistas na
educação básica”. Esse projeto só foi possível em função da participação e
contemplação das docentes no edital Equidade Racial na Educação Básica,
promovido pelo Centro de Estudos de Relações de Trabalho e Desigualdades,
2020, para o financiamento de iniciativas de combate ao racismo e promoção
da equidade racial na educação básica.
O projeto “Construindo uma escola antirracista” teve como foco o tra-
balho na educação infantil, por ser “a porta” de entrada de estudantes cotistas
na instituição. Nessa direção, contemplou diferentes métodos e instrumentos,
sendo eles: construção de um acervo antirracista, análise documental, inter-
venção pedagógica, eventos de extensão e roda de conversa.
O projeto e seus impactos são objetos de nossa pesquisa de mestrado que
está sendo desenvolvida no Programa de Pós-Graduação em Educação na Uni-
versidade Federal de Uberlândia (PPGED/UFU). A investigação busca analisar
as marcas da implementação de uma educação antirracista na formação, nos
saberes e práticas das professoras da Educação Infantil do CAp Eseba/UFU.
Ressaltamos a necessidade de considerar a formação docente como sendo

3 Mapa da violência. Disponível em: https://flacso.org.br/files/2020/03/mapa2012_cor.pdf. Acesso em: 19


set. 2021.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 49

continuada, tecendo reflexões sobre a educação antirracista na Eseba/UFU


e suas inter-relações como desenvolvimento profissional das professoras da
educação infantil, tendo em vista que as docentes (todas mulheres, na área de
educação infantil da Eseba, durante a realização da pesquisa) estão diretamente
em contato com as crianças. Nos limites deste texto, temos como objetivo
registrar e analisar os primeiros momentos formativos que foram permeados
de intenso diálogo e troca entre as docentes e os/as formadores/as.
Além da introdução, o texto está organizado em três partes. Na primeira,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

problematizamos o conceito de democracia racial. Na segunda, registramos


a perspectiva teórico-metodológica da pesquisa em desenvolvimento. Na
terceira, analisamos os primeiros momentos formativos. Por fim, tecemos
algumas considerações.

Democracia racial: mito ou realidade?

O Brasil já foi visto, por muitos anos, como um paraíso racial, um país
onde negros e brancos conviviam pacificamente. O antropólogo Gilberto
Freyre contribuiu bastante para difundir a ideia de “democracia racial”,
baseando-se sobretudo na existência da miscigenação étnica como fator
para tal harmonia. Ao contrário do que pregou Gilberto Freyre, em sua obra
“Casa Grande e Senzala”, e seus seguidores, a democracia racial não passa
de um mito. A experiência escravocrata, que perdurou por séculos, deixou
marcas profundas na sociedade brasileira, entre elas estão as atitudes racis-
tas e preconceituosas que atingem as pessoas negras cotidianamente e que
são apenas alguns dos aspectos que precisam de enfrentamento urgente na
sociedade brasileira.
Ao consultar a palavra “mito” nos dicionários, advém a seguinte defini-
ção: “Algo ou alguém cuja existência não é real ou não pode ser comprovada.
Conhecimento desprovido de verdade e sem fundamento, algo fantasioso,
lenda”. E, ainda, dando sequência à pesquisa, observa-se que a palavra “demo-
cracia” é definida como “Regime que se baseia na ideia de liberdade e de
soberania popular; regime em que não existem desigualdades e/ou privilégios
de classes: a democracia, em oposição à ditadura, permite que os cidadãos
se expressem livremente”. Por fim, o conceito de racial que provém de raça:
“categorização que pretende classificar os seres humanos, pautando-se em
caracteres físicos e hereditários”.
Considerando as definições acima, reforçamos que o termo faz referência
a uma situação fantasiosa, que nunca existiu no Brasil para o povo negro:
igualdade de direitos e de oportunidades, sem privilégios para uns em detri-
mento de outros. Domingues (2003-2004, p. 276) define:
50

Democracia racial, a rigor significa um sistema racial desprovido de qual-


quer barreira legal ou institucional para a igualdade racial, e, em certa
medida, um sistema racial desprovido de qualquer manifestação de pre-
conceito ou discriminação.

Essa situação jamais foi vivida por pessoas negras no Brasil. É conve-
niente recordar que esse mito vem sendo transmitido no decorrer dos anos e é
defendido como verdade por muitos, uma vez que a prevalência do mito, em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tese, impede que a população negra reivindique seus direitos. Depreende-se
que esse fato se dá, posto que o Brasil não teve oficialmente uma lei que
segregasse a população negra da branca de forma explícita, porém o racismo
persiste até os dias de hoje de forma velada, mas não menos nociva, e permeia
toda a estrutura da sociedade por meio de palavras, gestos, pensamentos,
relações interpessoais, hábitos e ações cotidianas.
Kilomba (2019) ressalta três características do racismo que estão pre-
sentes de modo simultâneo. A primeira é a construção da diferença: a pessoa
é vista como “diferente” devido sua origem racial e/ou pertença religiosa. A
segunda é que essas diferenças construídas estão inseparavelmente ligadas a
valores hierárquicos. A diferença é articulada por meio do estigma, da desonra
e da inferioridade. Por fim, afirma que ambos processos são acompanhados
pelo poder. A autora define o “racismo estrutural”, “racismo institucional” e o
“racismo cotidiano”. O racismo é revelado em nível estrutural, pois as pessoas
negras estão excluídas da maioria das estruturas sociais e políticas. O racismo
institucional implica que o racismo não é apenas um fenômeno ideológico, mas
é institucionalizado. O termo se refere a um padrão de tratamento desigual nas
operações cotidianas tais como em sistemas e agendas educativas, mercados
de trabalho, justiça criminal etc. Por fim, o racismo cotidiano, que se refere
a todo vocabulário, discursos, imagens, gestos, ações e olhares que colocam
o Outro como outridade, personificando aspectos reprimidos na sociedade
branca (KILOMBA, 2019, p. 77-78).
Consideramos que uma sociedade estruturada por princípios racistas
impõe à população negra inúmeros desafios diariamente vivenciados, que
restringem, excluem, marginalizam, atingem seus direitos mais básicos como
o direito à vida – como aconteceu com Floyde e com João Alberto, citados
na introdução deste texto.
No ano de 2003, foi instituída, no Brasil, a Lei nº 10.639, que estabelece
a obrigatoriedade da inserção nos currículos da temática história e cultura
afro-brasileira nos estabelecimentos de ensino fundamental e médio. Dessa
forma, fica demarcada a obrigação de se ensinar a história da África e dos
africanos, a luta dos negros no Brasil, a cultura negra brasileira e o negro
na formação da sociedade nacional. Essa lei tem o objetivo de ressaltar a
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 51

contribuição do povo negro nas áreas social, econômica e política pertinentes


à história do Brasil.
A Lei nº 10.639/2003 foi um grande avanço na pauta antirracista, um
passo significativo para a construção de uma educação sensível à realidade
do outro, que considere as especificidades dos discentes e valorize as con-
tribuições do negro na história do Brasil. No entanto, para que seja possível
sua efetivação, é preciso ir além e compreender que o racismo está entra-
nhado em toda a estrutura da sociedade e que coloca como comum, trivial, o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

“ser negro” com ser pobre, ausente das instituições de ensino e estar sempre
ocupando posições servis, lugares de ser comandado e não o de comando ou
outra posição de destaque.
Nesse contexto, cabe ressaltar que uma reviravolta no cenário só é possí-
vel com a ação direta de docentes, uma ação consciente e concreta, que com-
preenda o movimento de silenciamento e apagamento que os negros sofreram
durante mais de um século. Isso posto, os/as professores/as, que são quem
têm mais contato com estudantes em uma escola, são, portanto, os principais
agentes de transformação.
Sob esse ponto de vista, uma formação antirracista urge para que haja um
rompimento com a hegemonia dominante, pautada nos princípios coloniais
que desconsideram as minorias. Munanga (2005) destaca a importância da
formação antirracista para que o professor consiga administrar e intervir em
sala de aula.
A problematização sobre o discurso da “democracia racial”, a perma-
nência do racismo em nossa sociedade, abordados nesse tópico, justificam a
necessidade de aprofundar os estudos sobre os desafios da implementação de
uma educação antirracista. Na continuação deste texto, registramos a pers-
pectiva teórico-metodológica da pesquisa em desenvolvimento.

A perspectiva teórico-metodológica da pesquisa

Com o objetivo de analisar o Projeto “Construindo uma escola antirra-


cista”, desenvolvido no CAp Eseba/UFU e seus impactos na formação, nos
saberes e nas práticas das professoras da Educação Infantil, optamos pela abor-
dagem qualitativa. Nessa abordagem, os pesquisadores frequentam os locais
de estudo, porque se preocupam com o contexto, e os dados são descritivos e
recolhidos pelo próprio investigador, que se interessa mais pelo processo que
pelos resultados ou produtos; os investigadores qualitativos tendem a analisar
seus dados de forma indutiva.
De acordo com Chizzotti (2003, p. 83),
52

[...] na pesquisa qualitativa, todas as pessoas que dela participam são reco-
nhecidas como sujeitos que elaboram conhecimentos e produzem práticas
[...] elas têm um conhecimento prático, de senso comum e representações
relativamente elaboradas que formam uma concepção de vida e orientam
as suas ações individuais. (CHIZZOTTI, 2003, p. 83).

Ainda, segundo o autor, a abordagem qualitativa revela uma relação


dinâmica entre o investigador e o sujeito-investigado. Há também uma inter-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


dependência constante entre o sujeito e o objeto, na qual o conhecimento não
se limita a dados isolados. O sujeito-investigador não é alheio e neutro ao que
está sendo desenvolvido, ele é parte integrante do processo de conhecimento e
interpreta os fenômenos, atribuindo-lhes um significado. O termo qualitativo
implica uma partilha densa com pessoas, fatos e locais que constituem objetos
de pesquisa, para extrair desse convívio os significados visíveis e latentes que
somente são perceptíveis a uma atenção sensível.
Acompanhamos o desenvolvimento de todas as etapas do Projeto reali-
zado na escola, a construção de um acervo antirracista, análise documental,
intervenção pedagógica, eventos de extensão e roda de conversa. A proposta
foi organizada seguindo a sequência da oferta de intervenção pedagógica com
os discentes que consistiram em atividades que intencionam à formação antir-
racista, roda de conversa com as famílias dos estudantes cotistas, quando se
estabelecia um diálogo com as famílias, mediado por uma das pesquisadoras, e
a partir dessas duas etapas eram articulados momentos formativos organizados
pelas pesquisadoras junto ao corpo docente. Além do acompanhamento dessas
etapas foram produzidas notas de campo e entrevistas com as professoras da
Educação Infantil participantes do Projeto.
As entrevistas (gravadas, transcritas e textualizadas) e as narrativas
produzidas são utilizadas no processo de análise. Consideramos que o uso
das narrativas é particularmente relevante para estudos que procuram com-
preender a concepção e o comportamento a partir da perspectiva dos sujeitos
investigados. A forma como se relata a vida cotidiana reflete os fatores que
influenciam o comportamento, e a narrativa se torna, então, uma forma de
expressar e compartilhar a experiência.
Nesse sentido, a pesquisa narrativa permite que os sujeitos estejam
presentes na pesquisa. Cladinin e Conelly (2015, p. 77) apontam que: “Na
pesquisa narrativa, as pessoas são vistas como corporificação das histórias
vividas”. Essa participação na pesquisa permite que os pesquisadores sejam
desafiados a questionarem a todo momento suas percepções ao se confronta-
rem com as experiências do outro. Ao se produzir narrativas, o narrador conta
sua história, possibilitando, assim, uma produção colaborativa.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 53

Neste texto, nos detemos na apresentação e reflexão sobre algumas


atividades de formação docente prevista no Projeto “Construindo uma
escola antirracista”.

Uma conversa sobre o racismo: reflexões necessárias


Em função da pandemia da covid-19 as atividades do Projeto ocorreram
de forma on-line. A primeira atividade de formação docente contou com a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

participação da Profa. Dra. Eliane dos Santos Cavalleiro, autora do livro Do


silêncio do lar ao silêncio da escola – racismo, preconceito e discriminação
na educação infantil, em um evento foi aberto a a toda a comunidade Eseba,
contando com a participação de professores, técnicos, estudantes e familiares.
O evento foi conduzido pela equipe gestora do projeto e contou com a fala
inicial do magnífico reitor desta universidade, bem como com a participação
da direção e assessoria da escola.
A palestra proferida pela Profa. Dra. Eliane Cavalleiro foi intitulada
“Socialização e pertencimento racial na Educação Infantil”, que provocou
discussões e reflexões relevantes sobre o racismo na escola. A autora pontuou
as formas sutis nas quais o racismo se manifesta, como uma atitude ou uma
omissão pode fortalecer o racismo, a quem os professores destinam prefen-
cialmente seus afetos, como atitudes de acolhida ou “o não enxergar” ou “não
ouvir” também são manifestações de racismo e como, mesmo na educação
infantil, ele está presente e tem sido causa de sofrimento para muitas crianças.
Os docentes e a comunidade escolar interagiram ativamente pelo chat, o que
enriqueceu e ampliou ainda mais as reflexões.
Nessa direção, os participantes colocaram depoimentos como: “Quando
eu era criança, minha pele era mais clarinha, minha mãe, negra, as pessoas
perguntavam se era minha babá, era muito humilhante, me lembro dela ficar
triste com isso”. Relatos que explicitavam a violência do racismo vivenciado
por alguns presentes e/ou familiares.
Chamou a atenção a ausência de uma identidade étnica por parte de
alguns sujeitos que relatavam que, em alguns momentos, eram heteroiden-
tificados como pardos e, em outros momentos, lidos pela sociedade como
brancos. Frente a essas situações, a pessoa não conseguia se autodeclarar
parda ou branca e, mesmo que não tivesse consciência, o racismo estrutural
contribuía fortemente para que ela não conseguisse se posicionar. O trecho
abaixo, narrativa de uma das participantes, exemplifica bem esse fato:

Eu fui crescendo a pele escurecendo, para profissionais de saúde eu era


parda, para os demais Branca, porque meu cabelo era liso, nunca soube
me declarar porque alguns diziam branca e outros parda. ... Nós não decla-
ramos a cor de nossa pele são as pessoas que definem. (H.T.).
54

Observa-se que tal cenário reflete como o apagamento da história e cul-


tura das pessoas afro-brasileiras e, até hoje, é extremamente nocivo para essa
população. O professor de filosofia da escola também se manifestou pelo chat:

Meu nome é R. A., sou negro (um dos 04 da escola) e professor de Filosofia
da Eseba e faço parte desta comissão. Certa vez em um trabalho de campo
com os/as estudantes do 9º ano em Brasília, durante uma palestra um
assessor parlamentar disse que não havia muitos/as negros/as e mulheres
na política por falta de interesse deles/as. A única aluna negra da turma

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


me olhou assustada e me questionou se eu ficaria calado. Fizemos uma
intervenção e rapidamente o assessor disfarçou e fugiu do assunto. Gostei
da manifestação dela e, sobre a dele, lamentável. (R.A.).

O episódio descrito pelo professor revela outro ponto importante e que


precisa ser considerado: em um país constituído, em sua maioria, por uma
população parda ou negra, como os espaços de poder não refletem esta propor-
ção? Seria realmente falta de interesse desses sujeitos ou seria o racismo estru-
tural que tira dessa população as oportunidades de ocuparem esses espaços, até
então reservados para homens, brancos e heteros seguindo o padrão europeu?
Diante da intervenção do professor e da aluna o silêncio foi a resposta.
Outro relato surgiu, dessa vez, de uma professora da educação infantil
que ressaltou uma experiência vivenciada em aula, logo após a realização
de uma intervenção pedagógica com os discentes e promovida pelo comitê
gestor do projeto:

Em uma aula embasada nas questões étnico-raciais, uma semana rica de


conteúdos sugeridos pela comissão étnico-racial, uma criança, ao observar
imagens de crianças de várias etnias, apontou para o desenho e, ao relatar
diferenças entre as crianças do desenho, observou o tom de pele como cor
certa... e cor errada... Tive que parar naquele momento e dialogar com
elas sobre os tons de pele, todos serem “certos”, falar das diferenças e no
quanto elas são importantes para nossas relações etc. (F.Q).

Ressaltamos que conceitos como raça e racismo não são inatos, não
nascem com o sujeito, mas são construções sociais. Merece destaque que o
racismo encontrou espaço – conforme se pode perceber no comportamento
de uma criança de 4 anos, certamente com um restrito ciclo de convivência,
considerando sua idade e o período pandêmico vivenciado por todo o mundo.
Cabe também pontuar que o episódio relatado se colocou como mais um
desafio do ensino remoto, ou seja, trazer à discussão uma ideia ou crença que
em alguns casos foi iniciada em casa, pela família.
Outra professora manifestou já ter vivenciado situações tratadas pela
colega; continuou dizendo que percebe ausências de recursos para essas
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 55

intervenções e que sentia a necessidade de formações nesse sentido. Mais uma


docente apresentou a preocupação sobre como abordar a questão no núcleo
familiar com crianças muito pequenas e compartilhou sobre um experimento
sociológico (“The doll experiment”) e reforçou “... é perturbador!”. O expe-
rimento mostra crianças negras americanas pequenas que sempre escolhem
uma boneca branca em detrimento a uma boneca negra como a “mais bonita”,
“a mais legal”. Ao final, se reconhecem como a boneca negra. A professora
pontuou “...É de cortar o coração”. Ao final de sua fala reforçou a importância
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de se tratar essa questão desde muito cedo.


É essencial trazer pessoas negras como referências positivas positivadas,
de forma que as crianças percebam que existem caminhos possíveis, que se
afastam das posições subalternas, humilhantes, e que elegem o protagonismo
negro como algo factível.
Uma estagiária da escola, futura profissional da educação, fez um relato
e, ao final, uma pergunta:

Sou estagiária e estou começando minha formação como professora. Em


minha educação básica já vi casos de bullying/racismo com colegas negros,
não sei se os professores não percebiam, mas nunca tomaram atitude, qual
seria o tipo de atitude que estes deveriam tomar, naquele momento que
aconteceu a situação? além da prevenção, claro. (B.M.).

A professora foi ouvindo as angústias dos participantes e esclareceu que,


em situações de conflito, é importante acolher as crianças, especialmente as
que estiverem em prantos, mas na sequência é essencial conversar com as
crianças envolvidas e se inteirar do acontecido. Isso normalmente não ocorre,
visto que, em função da tensão do momento, a tendência é, na maioria das
vezes, acolher a criança que chora e de imediato repreender a outra criança
antes de saber do ocorrido. A professora continuou ponderando que, frente
a casos de preconceito ou racismo, as crianças pequenas veem como único
recurso revidar fisicamente e, quando o adulto chega para intervir, só vê a outra
criança chorando. Dessa forma, a criança negra sofre uma dupla violência,
inicialmente quando é ofendida e depois quando é repreendida pelo adulto.
Familiares de estudantes cotistas manifestaram sua alegria “...Como mãe
de aluna negra, fico extremamente feliz em saber que a instituição tem esse
trabalho maravilhoso. Ótima formação!” (D.M.), exaltando a iniciativa do
projeto como o início de um trabalho que fará a diferença na vida de estudantes
cotistas e não cotistas, uma possibilidade real de vivenciar valores tão caros
e tão escassos em nossa sociedade.
Na medida em que a palestra foi avançando, vários/as professores/as
foram expressando como aquele momento formativo estava sendo rico de
aprendizagens. Outro momento muito polêmico foi quando a palestrante
56

pontuou que a violência se manifesta inclusive em situações de silencia-


mento ou mesmo de omissão dos profissionais da educação; sobre isso, uma
professora se manifestou: “Importante reconhecer o silêncio como violência.
Nosso silêncio docente e nossa expectativa ‘pacífica’ em relação às pessoas
negras quando sofrem violências” (R.S.S.S).
Nessa direção, outros docentes se manifestaram relatando que as situa-
ções comentadas já foram vivenciadas por alguns. Assim, como não colocar
os questionamentos: “Como o docente deve se posicionar frente a situações de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


racismo? Como intervir de maneira pontual e assertiva? Como contribuir para
a formação da criança sem traumatizar a outra?”. Esse foi um momento ímpar,
no qual se evidenciou como a violência encontra espaço também na ausência de
informações ou mesmo no despreparo para lidar com determinadas situações.
A formação teve seu auge com a manifestação de uma ex-aluna que
expressou como esse projeto é importante e teria sido na época em que ela
era aluna na escola – na ocasião, ela era a única aluna negra de sua turma.
Professores/as que já haviam ministrado aula para ela manifestaram pelo chat
como essas falas os sensibilizaram, pois não se deram conta de como ela se
sentia na época.
As demonstrações dos docentes exprimiam um misto de orgulho pela pes-
soa que ela se tornou, ao mesmo tempo que compreendiam a necessidade de
repensar suas práticas e concepções. Um grande contrassenso foi evidenciado:
“as crianças e adolescentes são muito novas para se discutir o racismo, mas
não para sofrer com o racismo ou para praticá-lo”. Ficou explícito que mais
difícil que o constrangimento em se tocar no assunto é a dor que a violência
causada pelo racismo provoca.
A mãe da ex-aluna se expressou: “Minha vida foi de não questionamento.
E hoje a minha filha são meus olhos para esse mundo de pertencimento”. O
racismo que veio passando de geração em geração enfim encontra um obs-
táculo, uma voz que ressoa a força de uma jovem estudante negra que vem
escrevendo sua história e fazendo ressoar a voz de seus ancestrais.
A comunidade continuou interagindo ativamente e outras perguntas
sendo feitas. A professora foi tecendo reflexões acerca dos questionamentos
de maneira a fazer com que a comunidade coletivamente pudesse ampliar o
debate e repensar situações de racismo que acontecem no cotidiano escolar.
Foi possível pensar possibilidades e fazer a discussão de caminhos viáveis.
Destacamos que, em meio a tantos questionamentos, a comunidade foi
brindada com palavras que revigoraram e fortaleceram o sentimento de que a
escola começa a dar seus primeiros passos na direção da “Construção de uma
escola antirracista”, que faça a diferença positiva na vida dos seus discentes
e no corpo docente da instituição. Isso ficou explícito nas palavras de uma
das professoras:
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 57

Me sentindo ALIMENTADA de conceitos, experiências, falas desafia-


doras... Ao mesmo tempo me sentindo com FOME de ver esse assunto
fazendo parte dos nossos raros momentos de planejamento coletivo. FOME
de traçarmos coletivamente estratégias mais efetivas e intencionais que
cheguem realmente ao chão da sala de aula e aos diversos espaços de
convivência da escola. (S. C.).

A atividade encerrou deixando para todos a certeza de que o caminho é


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

longo, mas a luta continua. Sigamos juntas/os na luta por uma escola e uma
sociedade mais justa, humana e igualitária, por um caminho que atravessa,
transpassa, transforma!
A segunda intervenção, com o tema “Educação antirracista: conceitos
e práticas”, foi ministrada pelo Prof. Dr. João Gabriel Nascimento Nganga,
consultor em educação, diversidade étnico-racial e inclusão. Foi uma forma-
ção voltada às professoras, bolsistas e estagiários que estivessem atuando na
educação infantil.
A dinâmica da formação foi aberta com a apresentação dos participantes
da oficina, momento em que as preferências, potencialidades e crenças emer-
giram; por fim, o palestrante fez sua apresentação, dizendo sobre quem ele é
e trazendo elementos que faziam referência à sua ancestralidade, que é algo
marcante na cultura africana. Na sequência, apresentou uma pesquisa realizada
pelo IBGE, com recorte étnico-racial, que aponta que 56,2% da população
brasileira é negra, ou seja, mais da metade da população total do país.
Nesse viés, foi iniciado um debate sobre os conceitos de raça, etnia,
racismo, bullying, preconceito, discriminação e branquitude. Esses temas têm
sido recorrentes no ambiente escolar, nas relações entre estudantes e outros
estudantes, entre estudantes e professores, e criado significações fantasiosas
ou equivocadas sobre os temas em questão.
Dessa forma, o conceito de “raça” abriu a conversa, esclarecendo que
o termo é utilizado para justificar o racismo e que “raça” está alicerçada na
crença da existência de raças fictícias. O professor, citando Munanga (2003),
ressaltou que, na atualidade, “raça é um conceito carregado de ideologia e,
como tal, esconde algo não proclamado: a relação de poder e de dominação”.
Na literatura contemporânea, “raça” é entendida como um conceito sociopo-
lítico-cultural, uma vez que é uma construção histórica e social consolidada
como realidade social.
Na continuação da oficina, o professor João Gabriel retomou o conceito
de etnia, também amparado por uma citação de Munanga (2003), que ressalta
que a substituição de raça por etnia não modifica a realidade do racismo,
pois não altera a relação hierarquizada entre culturas diferentes. O professor
João Gabriel reforçou que a substituição do termo raça por etnia não muda a
58

existência do racismo, uma vez que a relação de poder entre as culturas não
sofre alteração. A discussão caminhou no sentido de conceituar e caracterizar o
racismo que vem sendo colocado sob uma falsa noção de superioridade e que
se utiliza de características intelectuais, comportamentais, biológicas, fazendo
referência, inclusive, à moral dos indivíduos que teriam a ver com “sua raça”.
A narrativa do professor nos permite empreender reflexões sobre o meio
escolar. Há uma confusão recorrente que acomete os termos racismo, pre-
conceito e discriminação que, vez ou outra, são confundidos com bullying.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Essa distinção é muito pertinente e veio por meio de conceitos defendidos
por Mezan (1998).
Esses estudiosos colaboraram para o entendimento sobre o termo precon-
ceito. Giddes (2012) defende que preconceito “são opiniões ou comportamen-
tos disseminados por membros de um grupo acerca de outro que tem origem
a partir de boatos, situações que não tem comprovação”. Já o teórico Mezan
(1998) argumenta que “é um conjunto de crenças, atitudes e comportamentos
que atribui a qualquer integrante de qualquer grupo social uma característica
negativa, pelo simples fato de pertencer àquele grupo”.
Não obstante, ao se debater o termo “discriminação”, ressaltamos que o
mesmo tem sua origem no latim como discriminatio que significa separatio,
separação, distinção. O verbo discriminar, no latim discriminare, traz os fortes
componentes dis- e crimin- associado a crime, fazendo referência a qualquer
ação que haja separação de alguns elementos em relação a outros. Após um
tempo, o significado de exclusão foi incorporado ao termo, seja por motivos
religiosos, sociais, étnicos ou econômicos.
Nessa direção, ao se tecer um paralelo entre os termos, é possível iden-
tificar que, em se tratando do bullying, geralmente acontece em ambiente
escolar, e é caracterizado por uma série de atitudes violentas (verbais, físicas
e/ou psicológicas) e intencionais que são repetidas contra pessoas que não
podem ou não conseguem se defender. O bullying humilha, amedronta e pode
gerar traumas nas pessoas que passam por esse tipo de violência.
Dessa forma, entendemos que o bullying, apesar de ser extremamente
danoso, tem características bem distintas do racismo, do preconceito e da
discriminação. Esse momento formativo trouxe várias contribuições para a
discussão e ampliou o debate para se pensar também sobre o lugar da “bran-
quitude” que, historicamente, tem sido o lugar de legitimar a violência.
Segundo Peter McLaren (2000), o conceito de branquitude ou de con-
dição branca surgiu instalado no conceito de identidade em 1860. Tornou-se
medida para raças superiores e inferiores. É uma condição fundamentalmente
ocidental e eurocêntrica. Para o autor, ser branco constitui práticas (euroa-
mericanas e masculinas) não estigmatizadas, que tem efeitos negativos para
aqueles que não participam delas. O autor ressalta que não se nasce branco,
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 59

mas alguém se torna branco pelo contexto social no qual se encontra e, tam-
bém, pelas escolhas que se faz.
Em perspectiva semelhante, Ruth Frankenberg (1999) define a branqui-
tude como lugar estrutural em que o branco vê os outros sujeitos e a si mesmo
em uma posição de poder, um lugar confortável do qual se pode atribuir ao
outro aquilo que não se atribui a si mesmo.
Dialogar sobre branquitude é fazer referência à identidade racial do
sujeito branco, tendo a compreensão de que essa identidade é algo construído
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

socialmente. A branquitude é um lugar de privilégios reais que favorecem não


apenas a construção, mas também a manutenção e reprodução do racismo.
Debate-se muito correntemente que, para além da teoria, o “Como?”
ainda é uma questão desafiadora e inquieta os/as docentes. Concordamos com
McLaren (2000) ao afirmar que é tarefa dos educadores críticos lutar constan-
temente de forma que desestabilize formas eurocêntricas e referenciadas na
supremacia branca de cidadania formal, neutra para com a diferença e baseada
no pacto liberal como o ponto teleológico e final da história da civilização.
No eixo “Construindo práticas antirracistas”, foi disponibilizada a biblio-
grafia, por sugestão do professor João Gabriel, da coleção “A cor da cultura”,
que tem um conteúdo vasto sobre a temática étnico-racial, com uma linguagem
voltada para a criança e com temas muito relevantes como a edição intitulada
“A memória das palavras”, que revela inúmeras palavras que compõem nosso
vocabulário e que não sabemos que elas têm origem africana. É importante
que as crianças saibam que essas palavras carregam uma história.
A coleção apresenta a temática por meio de diversas linguagens e aborda
a história e cultura afro-brasileira de uma forma positiva e objetiva. O traba-
lho com vídeos de boa qualidade, disponíveis gratuitamente no YouTube, se
apresenta também como uma alternativa viável. Outra proposta seria o tra-
balho com os símbolos adinkra, que é um conjunto de símbolos ideográficos
dos povos Acã, que vem a ser um grupo linguístico da África Ocidental, para
além de se pensar em inúmeras interfaces com as artes, história, geografia
e matemática. Enfim, como nos mostrou o professor, as possibilidades são
diversas e o acesso também.
Outro ponto que merece destaque é o uso de um vocabulário que ainda
reproduz falas racistas no dia a dia das pessoas e tem sido naturalizado por
todos durante anos. Nesse sentido, conhecer a origem e a história das palavras
nos auxilia a descolonizar nosso vocabulário. Nessa direção, é feito um convite
para revisitarmos nosso vocabulário e identificar as palavras e expressões que
traduzem e reproduzem o racismo.
Nessa seara, o professor João Gabriel do Nascimento Nganga apresentou
alguns caminhos possíveis para se falar sobre diversidade étnicoracial em sala
de aula e viabilizar a construção de práticas antirracistas na escola, o que só
60

é factível mediante a formação continuada de profissionais da educação em


temáticas étnico-raciais que convirjam em uma educação antirracista.
Em setembro de 2021, aconteceu a terceira intervenção pedagógica com a
equipe de docentes da educação infantil, juntamente com estagiários/as e bol-
sistas. O tema da palestra foi “As joias de Oxum: perspectivas afro-brasileiras
de infâncias e brincadeiras”. A palestra foi proferida pela Ma. Juliane Olívia
dos Anjos, na qual foi possível oportunizar diálogos teórico-metodológicos
entre referenciais afro-brasileiros de infâncias e brincadeiras na educação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


infantil como forma de promoção da educação para as relações étnico-raciais.
Esse momento formativo possibilitou analisar situações em que os referen-
ciais afro-brasileiros qualificam o currículo, a ação docente e a participação
dos estudantes. Propiciou também momentos de reflexão com o grupo sobre
possíveis estratégias para implementação de ações no processo pedagógico.
Nesse contexto, a estudiosa, na discussão sobre os referenciais afro-
-brasileiros, problematizou o lugar das religiões afro-brasileiras na produção
de epistemologias negras, as formas de presença e participação de crianças
em espaços afro-religiosos, as relações comunitárias estabelecidas sobre e
com as crianças em espaços afro-religiosos, noções de brincar, brincadeira
e ludicidade nas filosofias dadas a partir dos contextos afro-religiosos. A
pesquisadora dialogou inclusive sobre como essas dimensões religiosas são
silenciadas, desconsideradas e recebem um olhar preconceituoso no espaço
escolar. Ao se analisar o currículo de história da educação básica, é possível
perceber, em anos distintos, o trato das religiões como conteúdo. No entanto,
em nenhum desses anos, as religiões de matriz africana estão contempladas.
É conveniente recordar que a opção religiosa é um marco identitário que traz
indícios de quem é o sujeito e suas crenças; é uma parte da vida do indivíduo.
Conquanto, se essa parte da vida faz intersecção com relgiões de matrizes
africanas, o sujeto é “condenado” a se calar, a omitir esta parte da sua vida,
da sua história. Nessa esteira de pensamentos, a pesquisadora Juliane debate
as dimensões Oxumísticas e Exuísticas como parte das epistemologias negras.
As falas dos participantes revelaram que o tempo foi pouco para tantos
questionamentos e que, embora a disussão se encerrasse naquele dia, a sede
por aprender e dialogar mais sobre as formas de prevenção ao racismo, promo-
ção da equidade e a vontade de superar os inúmeros desafios que certamente
se colocarão no caminho permaneceram presentes naquele grupo.

Algumas considerações

Ao analisarmos as três etapas desenvolvidas por meio do Projeto “Cons-


truíndo uma escola antirracista”, podemos afirmar que o ser e tornar-se pro-
fessora é um processo contínuo. As professoras, participantes do Projeto, se
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 61

desconstruíram e se reconstruíram, pois, com certeza, não são mais as mesmas.


As atividades desenvolvidas nos levou a compreender que, para efetivar uma
educação antirracista, é necessário trangredir, ou seja, ir além do que está no
currículo prescrito.
Para se efetivar uma educação antirracista, é preciso compreender que
“raça” é um conceito fictício, mas que tem relação com o poder. Por muito
tempo, esse conceito serviu de amparo para subaltenizar sujeitos não brancos.
Agora, é importante que esse mesmo conceito contribua para a desconstru-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ção da condição branca. O sujeito branco precisa negar os privilégios de ser


branco. Só assim avançaremos para uma sociedade mais justa e plural.
Concordamos com Quijano (2005) ao afirmar que é importante contestar
as formas de saber do eurocentrismo e apoiar as diferenças e a heterogeneidade
histórica das sociedades e dos povos. Nesse sentido, as diferenças que brotam
dessa recusa consistem em uma afirmação do outro, não na sua eliminação.
Quanto mais se afirmar a diferença do outro e se atribuir a ele um espaço de
existência e de agência, mais será possível uma prática decolonial.
No caso da educação, ressaltamos a afirmação de Catherine Walsh (2009),
que nos diz que é preciso reconsiderar e refundar, e não simplesmente reformar
a educação, uma vez que esta nunca foi pensada para o conjunto da população,
para a pluralidade de suas realidades, lógicas, cosmovisões civilizatórias,
conhecimentos e sistemas de vida.
Registrar esse processo vivenciado é um ato político, uma forma de
descolonização. George Floyd, antes de morrer, repetiu várias vezes: “não
consigo respirar!”. “Não conseguimos respirar!” é o grito de toda a população
negra que entende que o racismo é um mal que precisa ser extirpado – um
caminho possível para isto é através da educação. Reforçamos: Vamos res-
pirar! Vamos propiciar “ar”, refrigério, espaço, apoio, referências positivas
para nossas crianças. Esse é o clamor de inúmeras vozes que se juntam no
combate ao racismo no Brasil e no mundo.
62

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei nº 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Diário Oficial da União,
Brasília, 10 jan. 2003. (Altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996,
que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no
currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “história e
cultura afro-brasileira” e dá outras providências. Disponível em: http://www.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


senado.gov.br/legislacao/. Acesso em: 19 set. 2021.

CHIZZOTTI, Antônio. A pesquisa qualitativa em ciências humanas e sociais:


evolução e desafios. Revista Portuguesa de Educação, Braga, v. 16,
n. 2, p. 221-236, 2003. Disponível em: http://www.redalyc.org/articulo.
oa?id=37416210. Acesso em: 18 mar. 2022.

DOMINGUES, Petrônio José. O mito da democracia racial e mestiçagem


em São Paulo no pós-abolição (1889-1930). Revista Tempos Históricos,
v. 5-6, [2003-2004].

FRANKENBERG, Ruth. White women, race masters: the social construction


of whiteness. USA: University of Minnesota. 1999.

IBGE. Retrato das desigualdades de gênero e raça. Brasília: IPEA, 2011.

KILOMBA, Grada. Memória da Plantação: episódios de racismo cotidiano.


Rio de Janeiro: Editora Cobogó, 2019.

MCLAREN, Peter. Multiculturalismo Revolucionário: pedagogia do dis-


senso para o novo milênio. Porto Alegre: Artes Médicas do Sul, 2000.

MEZAN, Renato. Tempo de muda: ensaios de psicanálise. São Paulo: Cia


das Letras, 1998.

QUIJANO, Aníbal. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências


sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO – Consejo
Latinoamericano de Ciencias Sociales, 2005.

WALSH, Catherine. Interculturalidade, Estado, sociedade: luchas (de)


coloniales de nuestra época. Quito: Universidad Andina Simon Bolivar; Abya
Yala, 2009.
AS CORES DA GENTE: relato
de sequência didática
Flaviane Malaquias
Mariza Barbosa de Oliveira
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Introdução

A proposta foi motivada por um debate que aconteceu durante uma ativi-
dade de formação do Projeto “Construindo uma escola antirracista: ingresso
e permanência de cotistas na educação infantil” com a comunidade escolar. A
equipe do projeto diagnosticou a importância de abordar a temática da diver-
sidade de cores da pele, a partir de falas de pessoas da comunidade escolar
que revelavam incômodos em discursos naturalizados que usavam o termo
“cor de pele” para se referir a uma cor específica, o bege rosado, na paleta de
lápis de cor, giz de cera, tinta ou objetos em geral.
Surgiu então a ideia de desenvolver ações para superar o equívoco que
envolve o imaginário referente a uma cor específica para denominar cor de
pele, consequência do racismo estrutural, que cria uma hierarquia racial e
coloca a branquitude no topo, a ponto de definir a cor que mais se aproxima
da representação da pele branca como a “cor de pele”.
Para desconstruir essa ideia, a equipe do projeto, em diálogo com a
docente de Artes Visuais, Mariza Barbosa, vislumbrou a possibilidade de
uma oficina para abordar as questões da cor, tratando de aspectos específicos
do conhecimento da área de Artes Visuais no intuito de propor reflexões que
envolveriam a percepção e valorização da diversidade étnico-racial por meio
da abordagem das cores da pele e da produção artística.
Neste texto, a professora e artista Flaviane Malaquias traz as estratégias
acionadas durante a oficina de Artes Visuais ministrada para oito turmas de 1º
e 2º períodos da Educação Infantil da Escola de Educação Básica – Colégio
de Aplicação da Universidade Federal de Uberlândia. Por meio de referên-
cias artísticas, compartilhamento de sua produção poética e proposição de
atividade para as crianças, o tema foi abordado de forma propositiva a partir
do trabalho da artista Adriana Varejão e de seus próprios trabalhos artísticos.
Nas aulas de Artes Visuais, ministradas pela professora Mariza Barbosa após
a oficina, a reflexão se desdobrou na ampliação do repertório visual por meio
da referência ao Projeto Humanae da fotógrafa Angélica Dass e por meio de
atividades de criação e expressão artística com as turmas.
64

Pintando as Cores da Gente

Professora e artista plástica, eu, Flaviane Malaquias, atuo, no momento,


como pesquisadora do Núcleo de Pesquisa em Pintura e Ensino da Universi-
dade Federal de Uberlândia (NUPPE). Meus trabalhos atuais em pintura vêm
sendo desenvolvidos na linha de pintura em interface com outras linguagens,
e têm buscado refletir sobre a imagem do Brasil no estrangeiro, construída
através de estereótipos. O processo de trabalho se dá ao transformar figuras

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


negras em silhuetas recortadas, a partir de fotografias realizadas em campo no
contexto da cidade em que vivo, Uberlândia, de forma que a pesquisa plástica
enfatize a memória e contribuição da raça negra para a formação da cultura
nacional e reafirme a presença das manifestações culturais afro-brasileiras no
contexto uberlandense.
Meu interesse pela temática advém de estudos de pós-graduação em
Educação para as relações étnico-raciais e História e Cultura Afro-brasileira
e Africana. Nessa trajetória, as composições criadas como representações
pictóricas são silhuetas negras que se constituem como pintura “não tinta”,
representadas em adesivos. Enquanto a cor preta, nesse trabalho, delineia e
reforça a identidade de indivíduos negros de forma literal, já que eles podem
ser reconhecidos apenas pelo formato do contorno, ao mesmo tempo ela apaga
a identidade de cada figura, possibilitando ao espectador se imaginar ou se
reconhecer na cena. Se o autocontraste promove esse apagamento, o uso das
cores destaca elementos simbólicos dessas expressões culturais, reforçando
sua identidade. A pintura, no contexto dessa produção, é figurativa, pois o
pigmento se encontra nas camadas de adesivo vinílico (papel/adesivo).
A oficina de desenho para crianças do 1º e 2º períodos objetivou con-
tribuir para que as crianças aprendam que as pessoas possuem tonalidades
de pele diferentes e que todas as pessoas devem ser respeitadas em suas
singularidades. A atividade pretendeu possibilitar também que as crianças
ampliassem seu repertório acerca da pluralidade da pele humana, de forma
a desmistificar o “bege” ou “rosa” como as únicas tonalidades para a repre-
sentação de tons da pele humana. A revista Geledés deu ênfase nessa questão
em 2016, quando apresentou uma marca brasileira de produtos de arte que
contemplava 12 tonalidades de pele. Essa iniciativa representou um avanço
no desenvolvimento de materiais pedagógicos para crianças, uma vez que
consegue contemplar uma maior diversidade de cores nas quais mais crianças
possam se sentir representadas. A imagem oferecida pela revista foi apresen-
tada como referência para convidar as crianças a participarem da oficina por
meio de um vídeo1, contendo imagens de crianças de vários lugares do mundo,

1 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n29u9mJOi_U


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 65

com aparências diferentes, utilizando a música ‘De toda cor’, do compositor


Renato Luciano. As professoras apresentaram o vídeo para as crianças antes
da realização da oficina com cada uma das oito turmas, no formato on-line,
através da plataforma Microsoft Teams. No primeiro momento, exercitamos
leitura de imagens da obra da artista plástica Adriana Varejão: uma paleta
com 33 tons de pele (Figura 1).

Figura 1 – Polvo (tinta a óleo)


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Big Polvo Color Wheel V, 2018, óleo sobre tela, 180 cm (diâmetro). Foto:
Jaime Acioli. Imagem gentilmente cedida pela artista Adriana Varejão. Fonte
disponível em: http://www.adrianavarejao.net/br/imagens/categoria/10/obras.

Essa imagem despertou o interesse das crianças, favorecendo o desen-


volvimento de reflexões sobre pluralidade étnica no Brasil e sobre como
as pessoas se identificam quanto aos tons de suas peles. Tendo em vista a
dificuldade de encontrar tintas adequadas, optamos por utilizar gizes de cera.
Cada estudante recebeu, em sua casa, uma caixa de giz de cera tons de pele da
Pintkor e da Amora Brinquedos e folhas de papel. As crianças ficaram felizes
por receberem o material para a participação na oficina virtual, sobretudo
devidos às restrições impostas pela pandemia de covid-19.
No segundo momento, foi proposto um jogo de adivinhações, usando
obras de minha autoria, com pessoas afro e manifestações de sua cultura, em
que as figuras são apresentadas em silhuetas negras (Figura 2). Não consegui-
mos visualizar os atores, mas percebemos itens que compõem a sua identidade:
cabelos afro, instrumentos musicais, roupas, adereços.
66

Figura 2 – Grupo de Empoderamento Crespo, Rio de Janeiro, Flaviane Malaquias

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Vinil sobre polietileno, 130 cm x 90 cm, 2017. Fonte: Acervo das autoras.

As crianças foram convidadas a observarem a obra, adivinharem o tom da


pele da figura que estava por trás da silhueta e selecionarem giz ou gizes de cera
que imaginavam ser correspondente à figura. A seguir, foram mostradas a elas
as fotos das pessoas por trás da figura e a tonalidade de sua pele. Dessa forma,
as crianças foram interagindo e usando diversas tonalidades de giz de cera. Na
sequência, mostrei às crianças um autorretrato, de forma a me demonstrar como
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 67

mulher negra, e outras obras de minha autoria, relativas às manifestações cul-


turais afro da cidade de Uberlândia, tais como silhuetas da capoeira e congado.
Após esse momento de adivinhações, os/as estudantes foram convidados/
as a desenharem a silhueta de suas próprias mãos, com as tonalidades de giz de
cera que escolhessem de suas caixas de giz. Enquanto desenhavam, foram feitos
alguns questionamentos, tais como: Todas as pessoas são iguais? Por que as
pessoas têm tons de pele diferentes? Por que devemos respeitar as diferenças?
O que é uma escola antirracista? Sobre o último questionamento, apenas uma
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

criança negra soube responder o que significa uma escola antirracista, talvez por
alguma experiência familiar. Em outras turmas, crianças relataram que estavam
com saudades de seus colegas. Uma criança negra quis mostrar suas bonecas
negras e logo várias outras quiseram mostrar que também tinham bonecas
negras em casa. Essas experiências propiciaram um momento de diálogo em
que colocaram que o respeito e o amor ao coleguinha são muito importantes.
Em linguagem apropriada para a faixa etária, debatemos também o quanto
discriminar pessoas pela cor da pele gera sofrimentos e que o respeito deve
existir independente das características raciais e das diversas aparências das
pessoas. Realizamos, em cada turma, um momento avaliativo de encerramento,
no qual as crianças puderam mostrar as produções das silhuetas de suas mãos.
Essa oficina estabeleceu diálogo com outras prática de diferentes docentes
– a exemplo da professora Mariza Barbosa, que compõe este texto comigo;
e das professoras Paula Amaral Faria e Vanessa de S. Ferreira Dângelo, que
podem ser lidas no capítulo intitulado “A minha, a sua, as nossas mãos: percep-
ções sobre diversidade de tons de pele por crianças e suas famílias na Escola
de Educação Básica”, o qual também faz parte da presente obra. Por meio dela,
foi possível perceber que as crianças conseguiram atribuir significado ao que
seria uma escola antirracista, respeitando as diferenças na escola independente
da raça. Essa iniciativa é importantíssima na infância para que vislumbremos
uma sociedade não racista. É necessário, desde cedo, o reconhecimento do valor
da interação de culturas e da pluralidade de aparências das pessoas (Figura 3).

Figura 3 – Produções de estudantes da Educação


infantil com 12 gizes de cera tons de pele
68

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 69
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Acervo das autoras.

Referências artísticas incentivam crianças a crescerem empoderadas e


sem prejuízos em sua autoestima e socialização, ao perceberem que pode
existir o protagonismo negro no meio artístico – inclusive de sua cidade.
70

Nesse sentido, o ato de pintar torna-se um veículo de promoção da valorização


e da cultura negra, de sua representatividade e de sua resistência, sendo um
incentivo a um mundo mais igualitário.

Desdobramentos: as cores das peles e das coisas

Após a oficina, as imagens produzidas pelas crianças foram com-


partilhadas por meio de avaliação coletiva na aula de Artes Visuais. As

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


crianças apresentaram seus resultados e conversaram sobre o processo. O
tema continuou a ser desenvolvido, por meio da ampliação do repertório
artístico, com a apresentação do projeto Humanae (Figura 4) da fotógrafa
Angélica Dass.
Angélica Dass é brasileira e vive na Espanha. Em Humanae, ela promove
uma discussão a respeito da diversidade das cores da pele, selecionando um
fragmento da cor da pele da pessoa e fazendo a equivalência da tonalidade
da cor encontrada neste fragmento com a escala Pantone2.

Humanæ é uma reflexão invulgarmente direta sobre a cor da pele, tentando


documentar as verdadeiras cores da humanidade em vez das etiquetas
falsas “branco”, “vermelho”, “preto” e “amarelo” associadas à raça. É um
projeto em constante evolução buscando demonstrar que o que define o
ser humano é sua inescapável singularidade e, portanto, sua diversidade.
O fundo de cada retrato é matizado com um tom de cor idêntico a uma
amostra de 11 x 11 pixels tirada do nariz do sujeito e emparelhada com a
paleta industrial Pantone®, o que, em sua neutralidade, põe em questão
as contradições e estereótipos relacionados com a questão racial3.

O projeto conta com aproximadamente 4000 voluntários, de variados paí-


ses, cujos retratos exploram a diversidade humana, abarcando desde pessoas
integrantes da lista Forbes, refugiados, moradores de favelas a familiares da
artista, que divulga seu projeto na internet, exposições em galerias, espaços
públicos e projetos educativos e escolares.
No âmbito do trabalho com as turmas de 2º período, o projeto foi apre-
sentado para ampliar a discussão a respeito da diversidade de cores de pele,
a valorização da beleza dessa diversidade por meio da análise das imagens,
bem como o repertório imagético para abordar o tema na perspectiva artística.

2 A escala Pantone é um sistema de catalogação de cores usado mundialmente na indústria em geral, nos
ramos de gráfica, têxtil, design etc. A escala foi criada em 1963 por Lawrence Hebert, que organizou um
sistema de identificação, combinação e comunicação de cores por um sistema de códigos, cada tonalidade
de cor é representada por números e letras. (Disponível em: https://www.pantone.com.br).
3 Disponível em: https://angelicadass.com/pt/foto/humanae/.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 71

Figura 4 – Humanae
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte disponível em: https://angelicadass.com/pt/foto/


humanae/. Imagem gentilmente cedida pela artista.

Foi proposta uma atividade de fotografia na qual as crianças deveriam,


com a ajuda de uma pessoa adulta, fotografar um fragmento do corpo, reve-
lando a cor de sua pele. Com elas, formamos uma escala (Figura 5) de dife-
rentes tonalidades de pele de estudantes das turmas:
72

Figura 5 – Escala cromática montada a partir das fotografias de


fragmentos da pele de crianças do 2º período, fotografia, 2021

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fonte: Acervo das autoras.

Por meio do exercício e da apresentação dos resultados, foi possível


destacar a diversidade presente nas turmas e contribuir para a superação do
equívoco de uma única cor para representar peles. A análise das imagens apon-
tou para a importância de valorização das diferenças. Outro aspecto levantado
foi a percepção de diferentes tons da pele de uma mesma pessoa, visto que
partes do corpo mais expostas ao sol ficam com uma tonalidade mais escura.
É importante ressaltar que o exercício tem interferência da luz, o que pode
ter alterado as tonalidades registradas em relação às tonalidades dos fragmentos
da pele, diferente do trabalho da fotógrafa Angélica Dass, no qual ela controla
a iluminação. Nesse caso, não foi possível ter tal controle, pois cada criança
fez o exercício com os recursos disponíveis e em diferentes ambientes das suas
casas. Esse aspecto é próprio das técnicas da fotografia, conteúdo que faz parte
da abordagem das linguagens expressivas em Artes Visuais e que foi discutido
com as turmas. Ainda tratando de Angélica Dass, foi exibido na aula um trecho
de um vídeo em que ela diz do processo de criação do projeto Humanae:

Eu nasci em uma família cheia de cores. Meu pai é filho de uma empre-
gada doméstica de quem ele herdou um intenso tom de chocolate [...] A
matriarca, minha avó, tem a pele de porcelana e o cabelo de algodão, meu
avô era algo entre um iogurte de baunilha e morango, assim como meu
tio e meu primo, minha mãe canela, é filha de uma brasileira, mistura de
avelã com mel e um homem, mistura de café com leite, mas com muito
café. Ela tem duas irmãs uma no tom amendoim tostado e a outra bege,
mais ou menos como um pudim de leite (DASS, 2016).

Ela também relata a sua experiência na escola com o desenho.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 73

Eu lembro na minha primeira lição de desenho como uma mistura de sen-


timentos contraditórios, eu estava feliz, super emocionada, mas eu nunca
entendi o único lápis de cor pele, porque eu tenho pele, mas não sou rosa.
Minha cor é marrom e as pessoas diziam que eu era negra (DASS, 2016).

Na sequência da exploração desse trecho do vídeo, foi proposto que as


crianças procurassem, em suas casas, objetos e/ou alimentos com cores próximas
às cores de suas peles, montassem uma composição e a fotografassem (Figura 6).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Figura 6 – Cores nas gentes e nas coisas

Fonte: Acervo das autoras.

Ao estabelecermos relações das cores da pele com objetos e alimentos,


buscamos ampliar as referências e estabelecer parâmetros menos excluden-
tes de nomeação e classificação de cores. Para finalizar a série de atividades
abordando o tema das cores de pele, foi proposta uma atividade de desenho
gravado em papel mágico artesanal (Figura 7).
74

Figura 7 – Trabalhos realizados por estudantes do 2º período, criação


de papel mágico e desenho gravado sobre papel mágico, 2021

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fonte: Acervo das autoras.

Para a criação do papel mágico, foram usados giz de cera em diferentes


tons de pele, podendo escolher as cores e organizar a composição de forma
livre, mas com o cuidado para cobrir toda a superfície do papel. Depois, foi
usada a tinta gauche preta para cobrir o giz e, por fim, foi feito o desenho
gravado usando palito para representar um autorretrato. Por meio do processo
que envolveu as referências artísticas, as discussões, as propostas e a produção
das crianças, foi possível abordar de forma significativa o tema das cores e
tons da pele. O contato com o tema por meio da experiência faz com que a
valorização da diversidade e de materiais e propostas que ressaltem estes
aspectos, façam parte da vida escolar destas crianças.
É importante buscar uma continuidade de ações e estratégias com o
intuito de romper com o racismo estrutural durante a vida escolar destas
crianças, para que possamos avançar na construção de uma escola antirracista,
que valorize as diferenças e propicie a discussão e a superação dos discursos
racistas naturalizados em nosso contexto social. Precisamos manter sempre
a atenção e incorporar essas práticas no cotidiano escolar.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 75

REFERÊNCIAS
ANCINE. Projeto Audiovisual. Dudu e o lápis cor da pele. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=-VGpB_8b77U. Acesso em: 1º abr. 2021.

BALISCEI, João Paulo. Conflitos com o “lápis cor de pele”: a série polvo,
de Adriana Varejão e o multiculturalismo no ensino de Arte. Disponível em:
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

https://online.unisc.br. Acesso em: 1º abr. 2021.

DASS, Angélica. Somos todos Humanae/Angélica Dass/TED x São Paulo.


Youtube, 18 jul. 2016. Disponível em: https://youtu.be/kcYKRNbW_iw.
Acesso em: 2 abr. 2021.

Disponível em: https://angelicadass.com/pt/foto/humanae/. Acesso em: 3


nov. 2021.

Disponível em: https://www.pantone.com.br/. Acesso em: 30 out. 2021.

DUARTE, Maria Lúcia Batezat. Arte, ensino e procedimentos de criação.


Revista Tuiuti Ciência e Cultura, Curitiba, n. 23, p. 27-41, 2001.

MALAQUIAS, Flaviane dos Santos. Intercâmbio cultural: uma proposta


de desenvolvimento da competência intercultural no ensino de artes visuais.
2018b. 167 f. Dissertação (Mestrado Profissional em Artes) – Universidade
Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2018. http://dx.doi.org/10.14393/ufu.
di.2018.1435

MARTINS, Mirian Celeste. O sensível Olhar-Pensante. In: WEFFORT, Mada-


lena Freire (coord.). Observação, registro, reflexão: instrumentos metodoló-
gicos I. 2. ed. Espaço Pedagógico, 1996. (Série Seminários). p. 21-33.

ROSSI, Maria Helena Wagner. Imagens que falam, leitura de Arte na


Escola. Porto Alegre, RS: Editora Mediação, 2006.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
A MINHA, A SUA, AS NOSSAS
MÃOS: percepções sobre diversidade
de cores de pele por crianças da
Educação Infantil e suas famílias
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Paula Amaral Faria


Vanessa de Souza Ferreira Dângelo

As práticas pedagógicas e reflexões acerca da diversidade cultural e


étnico-racial estão presentes no currículo e nas ações cotidianas da Educação
Infantil do Colégio de Aplicação – Escola de Educação Básica da Universidade
Federal de Uberlândia (CAp Eseba/UFU). Dentre as ações desenvolvidas com
as crianças dessa etapa de ensino, percebemos não só a importância, mas,
sobretudo, a necessidade de abordar a temática sobre a diversidade de cores
de pele, a partir das reflexões durante rodas de conversas com as famílias e
das percepções sobre diálogos e representações das crianças, professores e
famílias quando utilizam o termo “cor da pele”, referindo-se à cor de lápis
bege rosado claro como a única cor adequada para colorir pessoas, para repre-
sentar “cor de pele”.
Nesse sentido, alinhada às atividades do currículo na Educação Infantil,
considerou-se oportuna a proposição da oficina intitulada: “Pintando as cores
da gente”, com a arte educadora Flaviane Malaquias, viabilizada como ativi-
dade do projeto “Construindo uma escola antirracista: ingresso e permanência
de cotistas na educação infantil”.
Nesta Galeria, socializamos imagens compartilhadas pelas famílias
das crianças dos primeiros e segundos períodos da Educação Infantil, que
representam a diversidade de cores de pele, após o processo vivenciado
na Oficina “Pintando as cores da gente”. As crianças dos primeiros perío-
dos (com quatro anos de idade) são ingressantes no ano de 2021 e as dos
segundos períodos (com cinco anos de idade), em 2020. Essas turmas são as
primeiras ingressantes desde a implementação da política de ação afirmativa
por cotas étnico-racial e sócio econômica na escola, instituída no Edital de
Ingresso 2020.
A escola é um espaço importante no que tange à proposição de ações
que contribuam para a desconstrução do imaginário coletivo que reforça o
racismo estrutural, que se materializa na discriminação racial enraizada na
78

sociedade, principalmente relativas a aspectos fenotípicos como tipo de cabelo


e cor da pele. Nesse sentido, oportunizar às crianças e famílias a percepção
de que naturalizar uma cor ideal para colorir as figuras humanas, ou seja,
que o lápis mais adequado é o rosa claro, é uma atitude que prejudica a cons-
trução identitária das crianças, interferindo na maneira como se enxergam,
se classificam e são percebidas pelas outras. Concordamos com Nilma Lino
Gomes, ao afirmar que:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O racismo constitui-se um sistema de dominação e opressão estrutural
pautado numa racionalidade que hierarquiza grupos e povos, baseada na
crença da superioridade e inferioridade racial. No Brasil ele opera com a
ideologia de raça biológica, travestida no mito de democracia racial [...] A
ideologia da raça biológica encontra nos sinais diacríticos “cor da pele”,
“tipos de cabelo”, “formato do nariz”, “formato do corpo” o seu argumento
central para inferiorizar os negros, transformando-os (sobretudo a cor da
pele) nos principais ícones classificatórios dos negros e brancos no Brasil
(GOMES, 2017, p. 98).

Nessa perspectiva, em parceria com o projeto “Construindo uma escola


antirracista: ingresso e permanência de cotistas na educação infantil”, bus-
camos, nas ações curriculares cotidianas com as crianças, a efetivação de
propostas educativas em que as mesmas e suas famílias pudessem revelar,
registrar em fotografias, nomear e assim valorizar culturalmente as suas parti-
cularidades e as diversidades de cores em suas peles, propiciando a percepção
das diferenças que as constituem.
As crianças tiveram a oportunidade de refletir e perceber que as pessoas
possuem diferentes tonalidades de pele, a partir do uso de diversos recursos:
vídeo produzido e compartilhado previamente por Flaviane Malaquias para a
Oficina, em que evidencia crianças de aparências e cores diferentes; utilização
de gizes de cera da Pintkor e da Amora Brinquedos, enviados à casa de cada
criança para realização de atividade durante a oficina; a leitura de imagens
produzidas pela artista Adriana Varejão, intitulada Polvo1, de 2014, em que
a artista explora diferentes tonalidades de pele, e também obras artísticas de
Flaviane Malaquias.
Como resultado, oportunizou-se a leitura de imagens associando-
-as a diferentes cores disponibilizadas na caixa de giz de cera recebida
pelas crianças e, por fim, a proposição para cada criança desenhar e pin-
tar a silhueta de suas próprias mãos. Foi um momento muito importante

1 Disponível em: https://revistatrip.uol.com.br/tpm/adriana-varejao.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 79

de diálogos e percepções sobre a diversidade de tons de pele e respeito


às diferenças.
Inspiradas nesse processo vivenciado na Oficina mencionada, as ações
educativas se desdobraram no Espaço Cultural – componente curricular da
Educação Infantil, que se constitui em um ambiente da escola que se propõe
a dar visibilidade ao plural, ao diverso, às linguagens, ao lúdico, à imagina-
ção e às culturas, sendo espaço/tempo para favorecer o desenvolvimento das
múltiplas capacidades do humano (PCEEI, 2020).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Logo, a participação na Oficina e os diálogos com as crianças tornaram-se


o fio condutor do planejamento das aulas do Espaço Cultural, efetivando-se
em diferentes propostas de atividades que contribuíram para a percepção das
crianças sobre a diversidade de tons de pele. Entre elas, destacamos a atividade
em que foi proposto às crianças e famílias compartilharem uma foto das mãos
da família, dando continuidade ao diálogo sobre diversidade, diferenças e,
principalmente, a percepção de que existem muitas cores de pele, provocando
uma reflexão racial e identitária.
Acreditamos que observar as imagens compartilhadas oportunizou às
crianças e famílias a construção de diálogos e percepções reveladores sobre
diversidade, identidades e alteridades, reconhecendo que a cor da pele é
diferente na própria família e também nas famílias de colegas. O sentido
da descoberta suscitou o interesse em se representar por meio de desenho,
pintar com o giz de cera correspondente ou aproximada à cor de cada um/
uma e, também, para que a diversidade seja compreendida para além da cor
da pele, em diferentes configurações familiares, evidenciando a importân-
cia do respeito e da inclusão, contribuindo assim para uma educação ativa
e antirracista.
Nos registros a seguir (Figura 1), percebemos cores das peles das crianças
e das suas famílias, traços que podem dizer de masculino e feminino, faixas
etárias, quantidade de membros da família e tantas outras marcas. Nas fotos,
podemos afirmar que há um processo estético, ético e político, que dá ênfase
a belezas e maravilhas que cada um é individualmente e que compõem um
coletivo multicolorido e diverso.
Esse processo de registro fotográfico e partilha das imagens entre famí-
lias e as crianças possibilitou, na nossa visão, indícios de uma percepção de
si e do outro e a valorização da diversidade étnico-racial entre estudantes
das turmas.
80

Figura 1 – Mãos de crianças e famílias da Educação Infantil

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 81
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
82

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 83
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Acervo das autoras – 2021.


84

REFERÊNCIAS
ESEBA. Parâmetros Curriculares Educacionais da Educação Infantil.
2020. Disponível em: novo_pce_2020_2021_0.pdf (ufu.br). Acesso em: 2
fev. 2022.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.
AFRICANIDADES EM SALA DE AULA:
caminhos para uma educação antirracista
Roberta Paula Gomes Silva

Tema: Cultura Africana


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Autoria: Roberta Paula Gomes Silva, professora no Colégio de Aplica-


ção – Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlân-
dia (Eseba/UFU)
Ano: Essa sequência didática é voltada para o 4º ano do Ensino Fundamental I
Modalidade: Ensino Regular / Fundamental I
Disciplina: História

Esta Sequência Didática decorre de reflexões sobre o ensino de Histó-


ria, tendo como base o projeto de ensino intitulado “Conhecendo a África”,
desenvolvido nos anos de 2015, 2016 e 2017, na Eseba/UFU, no 4º ano
do ensino fundamental I. No processo de construção desse projeto, parti do
conhecimento prévio dos estudantes sobre os temas infâncias e África, a fim
de realizar intervenções pedagógicas que valorizassem a cultura africana e
que educassem os estudantes para as questões étnico-raciais, conforme os
objetivos estabelecidos na lei federal 11.645/2003.
As ações desenvolvidas buscaram valorizar a construção de conheci-
mentos históricos baseados em vivências, na autonomia e na criticidade dos
estudantes de maneira a contribuir para (re)construir representações sobre a
África e para a constituição de sujeitos capazes de analisar e agir no contexto
em que estão inseridos.

Objetivos

• Registrar e problematizar o imaginário dos estudantes sobre o con-


tinente africano;
• Problematizar estereótipos a respeito de africanos e da África;
• Refletir sobre os aspectos da cultura e da infância de crian-
ças africanas;
• Conhecer e valorizar culturas africanas;
• Estimular a percepção da presença africana no Brasil;
• Educar para a diversidade;
• Reconhecer as contribuições das culturas africanas na formação das
culturas brasileiras.
86

Conteúdo

Pluralidade cultural; lendas africanas; infância africana; brincadei-


ras africanas.

Metodologia

Esta proposta de sequência didática buscou inserir o estudo da cultura

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


africana a partir das vivências das crianças africanas, por considerar a abor-
dagem da infância mais significativa para os estudantes do 4º ano.
A partir dos objetivos citados, a metodologia consistirá em apresenta-
ção; audição e análise de música; produção de cartaz e desenhos; exibição de
filmes; produção textual; leitura de livro; leitura cartográfica e brincadeiras;
roda de conversa e debate entre os alunos.

Aula 1: África (Duração: 45 min)

Nesta aula, sugere-se apresentar aos estudantes a música África, do grupo


musical Palavra Cantada, de Sandra Peres, Paulo Tatit e Arnaldo Antunes,
disponível no canal Palavra Cantada Oficial1.
Será necessário realizar a leitura da letra da música. O docente pode
fazer o registro da letra no quadro de aula ou em um papel pardo. Em seguida,
convide os estudantes para, em uma grande roda, ouvirem, dançarem e can-
tarem. Dê preferência a um ambiente espaçoso e sem móveis para facilitar a
movimentação das crianças.
Antes da execução da música, solicite aos alunos uma atenção especial
ao som e apresente algumas questões como:

• Qual é o ritmo ou estilo da música?


• Quais são os instrumentos utilizados?
• Algum instrumento é mais perceptível?
• Que sentimentos esse som me traz?

Após a escuta da música, inicie uma roda de conversa sobre o que eles
compreenderam do texto musical. Para motivar a participação dos estudantes,
sugiro alguns questionamentos.

• Alguém já conhecia essa música?

1 Disponível em: https://www.youtube.com /watch?v=yGv47mv7874.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 87

• Já conhecia o grupo Palavra Cantada?


• Quem gostou da música?
• Qual é o trecho da música que você mais gostou? Pode comentar?
• Sobre o que a música está falando?
• Quais são os países citados na música?
• Há alguma analogia?
• Quais informações a letra da música apresenta?
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

As informações levantadas pelos estudantes devem ser registradas em


um cartaz de papel pardo ou cartolina que, juntamente com a letra da música,
poderão ser afixadas em um painel na escola para que, ao longo desta sequên-
cia didática, possam ser alimentadas com outras produções da turma. Comente
com os estudantes que os temas das próximas aulas serão sobre a África e a
Cultura Africana.

Aula 2: O que vocês sabem sobre a África? (Duração: 40 min)

Utilizo nesse texto o conceito de representação elaborada por S. Mos-


covici. Para o referido autor:

a noção de representações sociais recupera o conhecimento do sentido


comum que inclui aspectos tanto cognitivos quanto afetivos e orienta a
conduta dos indivíduos no mundo social. Essencialmente, trata de uma
representação de um sujeito social imerso em um contexto histórico e
social a respeito de um objeto (CASTORINA, 2007, p. 78).

Com o objetivo de realizar um levantamento das principais representa-


ções que os estudantes têm sobre a palavra África e valorizar os conhecimentos
prévios deles, coloque no quadro de aula a seguinte pergunta: O que vocês
sabem sobre a África?
Em seguida, peça que os estudantes registrem, por meio de desenhos e
escritas, os seus conhecimentos sobre o assunto. Assim que concluído, convi-
de-os para apresentarem suas respostas e conversarem sobre as representações
mais recorrentes na turma. Finalize esse momento recolhendo as produções
que serão retomadas ao final desta proposta de sequência didática.
A seguir, entre as produções dos estudantes (Figura 1), apresento uma
imagem de desenho, que foi muito significativo, e uma resposta cujo conteúdo
foi bastante semelhante e recorrente em outras respostas:
88

Figura 1 – Produção de estudante do 4º ano

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fonte: Acervo da autora.
Legenda: Pergunta: “O que você sabe sobre a África?”. Resposta da criança:
“A África é um continente que moram Africanos pobres e escravos”.

Observamos que a grande maioria das representações elaboradas pelos


estudantes associaram a África à pobreza, à escravidão e castigos físicos. Em
decorrência disso, as demais intervenções desta sequência didática buscaram
abordar a cultura africana com o objetivo de valorizar, positivar e dar visibi-
lidade à História da África, de forma que não fosse uma abordagem apenas
pelo viés da escravidão atlântica e nem das relações com o Brasil escravista
– temas presentes no ambiente escolar.
A partir das produções dos estudantes, o professor poderá avaliar quais
representações foram mais presentes e, no decorrer da proposta, buscar mobi-
lizar os alunos a perceberem criticamente suas representações e lançarem um
olhar de alteridade frente à cultura africana.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 89

Aulas 3 e 4: Oxalá: hoje tem cinema na sala de aula! (Duração: 50


min cada)

Apresente o filme Kiriku e a feiticeira (1998).


Esse longa-metragem de animação é uma produção franco-belga, dirigido
pelo francês Michel Ocelot, que passou parte da sua infância na República da
Guiné, onde teve contato com a lenda do Kiriku.
O filme retrata a saga de um garoto recém-nascido, minúsculo e muito
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

inteligente que, com sua sabedoria e esperteza, salva o povo da sua aldeia das
maldades da feiticeira Karabá. Por causa da sua estatura, Kiriku é menos-
prezado pelos adultos e demais crianças da sua aldeia. A sua mãe era a única
pessoa que o tratava bem. O filme está disponível no YouTube2.
Após a exibição do filme, proponha uma roda de conversa sobre as
principais impressões que marcaram os estudantes.
Iniciamos esse momento com um roteiro de perguntas:

• O que você mais gostou no filme?


• Quem é o protagonista? Quais são as suas características?
• Como as pessoas tratavam o protagonista? Por quê?
• Onde o filme se passa?
• Você consegue descrever o ambiente em que se passa o filme?
• Quais são as brincadeiras que aparecem no filme?
• Como são as músicas apresentadas no filme?
• Como a cultura africana é representada no filme?
• O que você aprendeu sobre a cultura africana apresentada no filme?
• Com o que você mais se identificou no filme (músicas, personagens,
cenário, entre outros)?

No decorrer do debate, é importante fazer intervenções chamando a aten-


ção dos estudantes para alguns aspectos da cultura africana apresentados no
filme: moradias, músicas e relações pessoais. Destaque também que o filme
foi produzido a partir de uma lenda africana e que, além dele, foram produ-
zidos livros, musicais e peças teatrais sobre o personagem principal. Devido
ao sucesso do filme, também foram produzidas duas sequências: Kiriku e os
animais selvagens (2005) e Kiriku: os homens e as mulheres (2012).
Converse com os estudantes sobre o modo como os adultos da aldeia e as
demais crianças tratavam o menino Kiriku. O docente poderá relacionar essas
formas de preconceito abordadas no filme com as vivências das crianças no
ambiente escolar. Para isso, questione se alguém já foi vítima de algum precon-
ceito ou se já presenciou alguma cena de intolerância e se querem compartilhar

2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=Q4IuNCxQ-gs.


90

com os demais colegas. É importante que os estudantes se sintam à vontade


para expor as suas vivências e que possam ser acolhidos durante os seus relatos.
Ao final do debate, solicite aos estudantes que façam uma produção tex-
tual, podendo ser uma poesia, um texto narrativo ou uma crônica sobre o filme,
considerando as suas impressões e as discussões realizadas na roda de conversa.
Em seguida, proponha aos estudantes a elaboração de desenhos do
momento do filme que consideraram mais interessante. Para finalizar, orga-
nize uma exposição com os desenhos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Figura 2 – Exposição dos desenhos produzidos por estudantes
dos 4º anos, sobre o filme Kiriku e a feiticeira

Fonte: Acervo da autora.

Após a organização da exposição, os estudantes podem observar os dese-


nhos produzidos pela turma. Oriente-os a verificarem quais foram as cenas e
os personagens mais representados pelos estudantes. Comente com os estu-
dantes que, nos próximos encontros, eles conhecerão um pouco mais sobre a
cultura africana por meio de um livro intitulado Ndule Ndule assim brincam
as crianças africanas, de Rogério Andrade Barbosa.

Aula 5: Conhecendo as brincadeiras africanas! (Duração: 50 min)

Apresente o livro Ndule Ndule assim brincam as crianças africanas para


os estudantes e deixe que eles o manipulem, observem a capa, as imagens na
parte interna e, em seguida, pergunte se alguma criança conhece o livro ou
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 91

se sabem qual é o assunto abordado. Após a fala dos estudantes, questione


também se eles conhecem alguma brincadeira ou jogo de matriz africana. Em
seguida, mostre as brincadeiras presentes na publicação.
Nessa obra, os personagens Korrir e Chentai vão pesquisar como as crian-
ças de vários países africanos brincam. Para conhecer as brincadeiras apresenta-
das no livro, elabore com os estudantes um quadro – como no exemplo abaixo
– para registrar o nome de cada brincadeira, o país em que essa brincadeira
é popular e como se brinca. Esse registro pode ser feito em forma de cartaz
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e exposto no mural, juntamente com os registros das atividades anteriores.

Quadro 1 – Conheça como as crianças africanas brincam!


Nome da brincadeira País onde se brinca Como se brinca
Apresentar uma breve descrição da
Mamba África do Sul
brincadeira
Apresentar uma breve descrição da
Ntsa Kameshi Ne Mpuku Congo
brincadeira
... ... ...

Fonte: A autora.

Após a apresentação do livro, convide os estudantes a comentarem qual


é a brincadeira que eles mais gostaram de conhecer e se perceberam alguma
semelhança com as realizadas no Brasil. Na oportunidade, ressalte a importân-
cia da cultura africana na constituição da cultura brasileira e como podemos
valorizar a nossa ancestralidade.

Aula 6: Vamos conhecer como as crianças africanas brincam?


(Duração: 50 min)

Apresente duas brincadeiras do livro trabalhado na aula anterior, dando


destaque ao nome e ao país em que essas brincadeiras são recorrentes e como
se brinca. Nessa ocasião, o professor deverá apresentar um mapa político da
África, de proporções grandes. O mapa deverá ser afixado na sala durante a
realização das sequências de aprendizagem para que os estudantes consigam
identificar cada país a partir de cada brincadeira. Importante ressaltar aos
estudantes que a África é um continente com 54 países, sendo, portanto, um
lugar com uma grande diversidade cultural.
Para explorar melhor o mapa da África com os estudantes, retome a
música África do grupo Palavra Cantada, apresentada na Aula 1, e solicite
que eles identifiquem no mapa os países citados na música.
Após a apresentação das duas brincadeiras, convide os estudantes para
escolherem uma delas de acordo com a preferência da turma. Para isso orga-
nize uma votação que escolherá a brincadeira a ser realizada naquele dia. A
92

brincadeira escolhida pode ser praticada no pátio ou na quadra de esporte


da escola. Cada docente poderá organizar esse momento de acordo com a
disponibilidade de carga horária e interesse dos estudantes.
Quando essa sequência didática foi realizada, separamos três encontros,
sendo cada um de 50 minutos, para as brincadeiras; a cada encontro, realiza-
mos a mesma dinâmica da votação para a escolha da brincadeira.
Após realizado o momento lúdico, convide os estudantes para tentarem
identificar semelhanças entre as brincadeiras africanas e aquelas realizadas

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


no Brasil. Certamente, muitos estudantes vão perceber analogia com as brin-
cadeiras que já conhecem. No caso da brincadeira Mamba, vivenciada pelos
estudantes no CAp/Eseba/UFU, foram muitos os apontamentos de equiva-
lência com uma famosa brincadeira no Brasil conhecida em nossa região, no
Triângulo Mineiro, como pique corrente.
Assim, ressalte a importância de conhecer a nossa história e as influências
que recebemos da cultura africana, não só nas brincadeiras como também em
outros aspectos como na linguagem, na dança, na música entre outros momentos.

Figura 3 – Os estudantes do CAp/Eseba/UFU brincam de


Mamba Negra no campo de futebol da escola

Fonte: Acervo da autora.

Aula 7: Refletindo sobre o nosso aprendizado (Duração: 45 min)

Requisite aos estudantes que comentem o que mais gostaram de conhe-


cer sobre a cultura africana, a lenda do Kiriku ou as brincadeiras africanas. É
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 93

importante garantir que todos possam falar e ouvir os demais. Em seguida,


proponha novamente a pergunta inicial da sequência didática: O que você
sabe sobre a África?
Sugira que os alunos expressem suas respostas com bastante criatividade,
por meio de registro escrito – poemas e textos – e desenhos, assim como
fizeram no início dessa sequência didática.
Ao término da atividade organize um mural com as produções realizadas
juntamente com o material de sondagem implementado durante a segunda
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

intervenção e peça aos estudantes que observem as primeiras representações


que fizeram sobre a África e aquelas que elaboraram após as intervenções –
filmes e brincadeiras – e discussões realizadas em sala de aula.
Faça mediações e ponderações para que os estudantes observem e compa-
rem se ocorreram mudanças nas representações elaboradas, se ocorreu a incor-
poração de um novo elemento e quais foram estas alterações. Problematize
também se os conteúdos permaneceram iguais nas duas ocasiões. O docente
deverá tecer comentários reflexivos frente às observações dos estudantes.
Confronte opiniões, estimulando-os a justificarem seus posicionamentos a
partir de uma análise crítica e desprovida de preconceito.
O docente poderá registrar as hipóteses mais recorrentes, os equívocos,
os preconceitos e os estereótipos que ainda possam se apresentarem nas falas
dos estudantes, intervindo de modo que os mesmos possam refletir sobre
esse processo.

Recursos: Lápis grafite; lápis de cor; papel sulfite; papel pardo ou cartolina;
aparelho de som e TV; fita adesiva; quadro branco; mapa do continente africano.
Filme: Kiriku e a Feiticeira.
Duração prevista: Sete aulas de, aproximadamente, 50 min cada.

Avaliação
A avaliação será processual e ocorrerá durante todas as aulas desta
sequência didática. Espera-se que os estudantes possam expressar suas refle-
xões; pontos de vistas e questionamentos durante as rodas de conversas. Os
registros escritos e imagéticos produzidos pelos estudantes podem servir de
indicadores sobre o processo de ensino e aprendizagem dos alunos.

Observações
Sugerimos que todas as produções elaboradas pelos estudantes durante a
realização desta sequência didática sejam feitas em papel sulfite A4 e que os
cartazes sejam afixados em um painel da escola, compondo um grande mural
representativo da cultura africana.
94

REFERÊNCIAS
BARBOSA. Rogério Barbosa. Ndule Ndule, assim brincam as crianças
africanas. São Paulo: Melhoramentos, 2011.

CASTORINA, José Antônio. Um encontro de disciplinas: a história das men-


talidades e a psicologia das representações sociais. In: CARRETERO, Mario,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ROSA Alberto; GONZÁLEZ, Maria Fernanda (org.). Ensino de História e
memória coletiva. Porto Alegre: Artmed, 2007.

CUNHA, Debora Alfaia da. Brincadeiras africanas para a educação cul-


tural. Castanhal, PA: Edição do autor, 2016.

RICCI, Cláudia Sapag. Pesquisa como ensino: textos de apoio. Propostas de


trabalho. Belo Horizonte: Autêntica, 2007.

SILVA, Petronilha B. G. e. Aprender, ensinar e relações étnico-raciais no


Brasil. Educação, Porto Alegre, v. 30, p. 489-506, 2007.

SIMAN, Lana Mara de Castro. Representações e memórias sociais compar-


tilhadas: desafios para processos de ensino e aprendizagem da História. Cad.
Cedes, Campinas, v. 25, n. 67, 2005.
A EDUCAÇÃO LITERÁRIA PELA VIA
ESTÉTICA, ÉTICA E POLÍTICA
Fernanda Cristina de Campos

Preâmbulo de uma trajetória estética, ética e política para uma


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

educação literária antirracista


Antes da apresentação e descrição da sequência didática intitulada “A
educação literária pela via estética, ética e política”, faz-se necessário expor,
mesmo que de modo sucinto, as reflexões crítico-teóricas que permeiam as
ações pedagógicas pensadas e postuladas em cada atividade de leitura, inter-
pretação e escrita literária. Nessa esteira, a obra freiriana foi o principal arca-
bouço teórico para pensar as ações literárias e antirracistas executadas em sala
de aula sob uma perspectiva progressista.
A educação literária pela via estética, ética e política proposta neste tra-
balho compreende que nenhum educador detém todos os conhecimentos que
cercam os textos literários. Pelo contrário, há sempre um ponto de vista a ser
acrescentado à leitura de uma narrativa ou de um poema. E, nesta vertente
progressista, o docente deve convidar os estudantes a um enfrentamento da
obra literária, mostrando-lhes que eles são capazes de contribuir com o estudo
literário trazendo para a sala de aula suas próprias leituras. Dessa forma, as
aulas devem propiciar um encontro com o texto literário tanto pela via do
trabalho estético com a linguagem e a imaginação quanto pela ética e política,
ao fazer reverberar reflexões importantes sobre temas como, dentre outros, o
racismo, a desigualdade social, a negação de atos democráticos.
Como bem destaca Paulo Freire, na obra A importância do ato de ler:
em três artigos que se completam, em um país como o Brasil, que possui em
suas bases estruturais problemas gigantescos como as disparidades socioe-
conômicas, o racismo, as injustiças sociais, dentre outros, “é urgente que a
questão da leitura e da escrita sejam vistas enfaticamente sob o ângulo da luta
política” (FREIRE, 2006, p. 9). Assomada à visão freiriana, destaca-se que
é ponto de decisão e de responsabilidade do docente de literatura selecionar
estes temas como agregadores do currículo em sala de aula.
Dessa forma, dois pilares do pensamento freiriano fundamentam cada
atividade exposta nesta sequência didática. A saber, o primeiro pilar com-
preende que o ensino-aprendizado não se pauta em transferir conhecimento ao
educando, mas privilegia o estudo a partir de trocas de saberes e de vivências.
O segundo vê uma premente necessidade de transformar a sala de aula em
um espaço onde o ato de ensinar e de aprender são construídos a partir de
96

uma atmosfera de alegria capaz de diluir todo ranço autoritário e dogmático


que se fazem opositores à criação, à investigação e à pesquisa. Tais pilares,
que atravessam toda a obra freiriana, foram alvos a serem sorvidos em cada
atividade desta sequência didática.
Em Pedagogia do Oprimido (2019), Paulo Freire concebe a expressão
educação dialógica estabelecendo novos rumos às práticas pedagógicas, tendo
como base a dialogicidade como ação fundante no ensino-aprendizagem.
Com essa nova concepção, Freire questiona a educação autoritária tida como

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


uma “educação bancária” ao problematizar suas práticas alienantes que não
permitem a participação dos estudantes como sujeitos críticos do processo de
ensino-aprendizagem. Na esteira desse pensamento freiriano, esta sequência
didática privilegia o diálogo como um caminho para reflexões que valorizam
a ação e a práxis do educador-educando. As práticas literárias se movem rumo
à transformação do mundo por meio da palavra em debate, em um movimento
de ação e de reflexão sobre os temas trazidos pela literatura. Assim, as inter-
pretações das leituras literárias vão sendo construídas a partir dos debates.
Por exemplo, na leitura de um determinado poema, uma imagem importante
que é ignorada por um leitor desatento, é reivindicada pelo diálogo propor-
cionado pela condição crítica do aprendizado. E o que não foi compreendido
incialmente ganha forma na compreensão coletiva, porque “nas condições de
verdadeira aprendizagem, os educandos vão se transformando em reais sujei-
tos da construção e reconstrução do saber, ao lado do educador, igualmente
sujeito do processo” (FREIRE, 2018, p. 28).
Dessa forma, as práticas pedagógicas libertárias se dão a partir do
momento em que o docente concede ao aluno o direito de falar, de expor sua
opinião, numa dinâmica exposta pela ação-reflexão, do diálogo que se abre
em encontros entre os sujeitos envolvidos na leitura e o mundo de cada um,
minimizando a função dicotomizada do eu-tu (FREIRE, 2019, p. 109). Nesse
sentido, as aulas de literatura nunca devem negar aos estudantes o direito ao
debate sobre obra literária, a exposição subjetiva e o diálogo. Ademais, esse
debate não deve ser voltado apenas para o estudo da linguagem, mas para
uma compreensão pautada em ressignificações amplas que se configuram em
necessidades existenciais voltadas para o diálogo:

Se é dizendo a palavra com que, pronunciando o mundo, os homens o


transformam, o diálogo se impõe como caminho pelo qual os homens
ganham significação enquanto homens. Por isto, o diálogo é uma exigência
existencial. E, se ele é o encontro em que se solidarizam o refletir e o agir
de seus sujeitos endereçados ao mundo a ser transformado e humanizado,
não pode reduzir-se a um ato de depositar ideias de um sujeito no outro,
nem tampouco torna-se simples troca de ideias a serem consumidas pelos
permutantes (FREIRE, 2019, p. 109).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 97

Esse audacioso projeto freiriano, exposto, inicialmente, no livro Peda-


gogia do Oprimido e, depois, ampliado em Pedagogia da Autonomia e nas
demais obras, descreve práticas pedagógicas calcadas em atos de criação que
promovem a libertação dos homens por meio da palavra em ação crítica. O
diálogo fomenta o pensamento crítico e sem ele não há comunicação autêntica
entre educador e educando. Isso porque é no processo dialógico que os sujeitos
se impõem como agentes pensantes do contexto, superando a “contradição
educador-educandos”, em que o primeiro detém o conhecimento a ser depo-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sitado em sala e sorvidos pelo alunado (FREIRE, 2019, p. 115).


É no processo dialógico que esta sequência didática se fundamenta,
buscando apoio nas concepções de práticas pedagógicas libertárias em que
o educador-educando se encontram lado a lado nas tomadas de consciências
ao estudar uma obra literária. Assim, nesta sequência didática, cada ação
foi planejada a partir da via comunicativa entre docente e discentes, ambos
mediatizados pelo seu próprio contexto de mundo e sendo desafiados pelo
debate literário. A sala de aula, nesse aspecto, transforma-se em um ambiente
propício para uma organização ampla, plural, de sugestões que vão sendo
agregadas às interpretações e ao estudo da obra literária.
Em oposição à concepção bancária de ensino, que apresenta o conteúdo
programático sem diálogo, depositando-o de modo autoritário, por meio de
ações automatizadas como os questionários fechados, esta sequência didática
convida os estudantes a refletirem sobre a temática do racismo e do precon-
ceito a partir do envolvimento imaginativo do alunado com a obra literária.
O objetivo é levar os estudantes a se posicionarem no debate, instigando-os
para a problematização dos textos, com objetivo de transporem os limites da
ficção rumo às situações existenciais das crianças.
Vale ressaltar que mesmo diante de um conteúdo aberto e plural como o
literário, há sempre o perigo de o docente resumir as atividades em imposições
sorrateiras por meio de conclusões simplórias ou fechadas sobre a temática,
obrigando os estudantes a tomarem posições alienantes. Nesse sentido, cada
atividade, desde as que se voltam ao estudo da linguagem do texto ou à con-
textualização da temática, foi organizada na perspectiva freiriana, em que o
papel primordial do educador não é prescrever interpretações baseadas em
pontos de vista redutores, mas gerar reflexões que incluem as do próprio
educador e as dos alunos:

Nosso papel [do educador] não é falar ao povo sobre a nossa visão do
mundo, ou tentar impô-la a ele, mas dialogar com ele sobre a sua e a
nossa. Temos de estar convencidos de que a sua visão do mundo, que se
manifesta nas várias formas de sua ação, reflete a sua situação no mundo,
em que se constitui. A ação educativa e política não pode prescindir do
98

conhecimento crítico dessa situação, sob pena de se fazer “bancária” ou


de pregar no deserto (FREIRE, 2019, p. 120).

E, para que nenhum docente fique pregando no deserto, esta sequência


didática exige que o educador afine, de modo dialético, a sua linguagem à
dos estudantes como uma abertura autêntica para a própria linguagem da obra
literária. Isso porque o maior objetivo é oportunizar, por meio do debate, o
encontro dos alunos com a forma e o conteúdo literários. Concomitantemente

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a esse esforço de adequação às linguagens, uma outra ação importante é a de
escuta maior por parte do educador. O arcabouço metodológico pensado em
cada atividade exige que a sala se transforme em um espaço onde os estudantes
tenham bastante liberdade para expor suas interpretações. Daí a necessidade
de uma escuta focada na premissa freiriana, ratificando que “ensinar não é
transferir conhecimentos, conteúdos” (FREIRE, 2018, p. 25), mas é abrir-se
ao outro por meio da escuta, da empatia diante do debate do outro. É promo-
ver interação de conhecimentos sem fazer imperar apenas uma leitura, pelo
contrário, é um processo em que docente e discentes descobrem que juntos
têm muito a dizer sobre as temáticas literárias.
Além da dialogicidade e da escuta, outro aspecto que permeou as práticas
desta sequência didática, adequando-as em ações libertárias, foi a tomada de
decisão de trazer, para a sala de aula, o racismo e o preconceito como temas
centrais a serem trabalhados e suas formas de discriminação. É uma decisão
que expõe, de certo modo, o dever do educador de levar para o centro das
discussões temáticas que não apenas se configuram como um pensar certo,
mas desafiam os educandos a tecerem críticas contra pensamentos retrógrados
ou reacionários advindos de um passado colonial que estão ainda embrenha-
dos em várias práticas escolares. Segundo Freire, faz parte de uma educação
política e libertária o debate aberto sobre temas que negam ou escamoteiam
a democracia, como é o caso de práticas racistas e discriminatórias:

Faz parte igualmente do pensar certo a rejeição mais decidida a qualquer


forma de discriminação. A prática preconceituosa de raça, de classe, de
gênero ofende a substantividade do ser humano e nega radicalmente a
democracia. [...] Quão ausentes da democracia se acham os que queimam
igrejas de negros porque certamente, negros não têm alma. Negros não
rezam. Com sua negritude, os negros sujam a branquitude das orações...
(FREIRE, 2018, p. 37).

Assim, amparados nesses dizeres freirianos, o objetivo central desta


sequência didática é oferecer ao educando compreensões críticas acerca de
ações polêmicas que fragilizam uma convivência social fundada em práti-
cas democráticas, mesmo que o alvo seja estudantes do 5º ano do Ensino
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 99

Fundamental I. Cabe destacar, também, que o ambiente fundado no respeito


e na alegria de ensinar e de aprender foi importantíssimo para o desenvolvi-
mento dos temas. Os resultados positivos dos debates e dos exercícios sobre
os textos literários e midiáticos provam que, mesmo sendo crianças de dez
a onze anos, há uma construção de entendimento lúcida sobre o racismo e o
preconceito. As crianças se mostraram abertas às discussões, expondo livre-
mente suas opiniões. Algumas se sentiram totalmente à vontade para expor
suas próprias experiências e testemunhos acerca de atos discriminatórios
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

experienciados. Ao final, a maioria se mostrou sedenta em ampliar seus saberes


sobre o racismo, o preconceito e suas formas de discriminação.
No mais, esta sequência didática assume o seu compromisso ferrenho
com a lei 10.639/2003, no sentido de oportunizar aos estudantes reflexões
sobre a cultura afrodescendente brasileira a partir de um olhar crítico da pro-
tagonista negra da narrativa literária diante do preconceito e do racismo que
se assumem sorrateiramente nos ambientes escolares. O pesquisador Mau-
rício Silva, em seu artigo intitulado “Da educação eurocêntrica à educação
antirracista: uma introdução”, destaca que a discriminação racial na escola
é complexa, por estar enraizada e camuflada, embora bastante difundida, de
modo estrutural, nos três âmbitos da esfera escolar: na prática docente, no
currículo e na avaliação (SILVA, 2013, p. 3). Isso revela a necessidade de
posturas radicais que demandam mudanças urgentes nas práticas pedagógicas
em prol de uma educação antirracista.
Assim, uma educação que se propõe antirracista é uma luta deflagrada
contra inimigos invisíveis que se configuram em pensamentos e falas fala-
ciosos disseminados no ambiente escolar por meio de brincadeiras, piadas
ou expressões nocivas impensadas. Exemplo é o discurso sempre propagado
de que no Brasil não há discriminação racial, mas que esta se põe apenas no
âmbito social. São ranços de pensamentos advindos do colonialismo e que se
perfazem em atitudes racistas por meio de discursos cordiais, mas perversos.
Nessa esteira, o pensador Ronaldo Sales Jr. também expõe, em seu texto
“Democracia racial: o não dito racista”, que essa minimização do racismo
se solidifica no Estado Novo com a ideia da “cordialidade das raças”, que
objetivava diminuir a tensão racial entre patrões brancos e os trabalhadores
negros. É, em outras palavras, deter a luta dos “negros impertinentes” por meio
de uma falsa tolerância que dissemina os ideais reacionários e paternalistas,
o que explica a “manutenção de um racismo institucional não-oficial – rela-
ções sociais difusas e informais que se infiltram e “aparelham” as instituições
oficiais” (SALES, 2006, p. 230) como é o caso da escola.
Ademais, as metodologias pensadas para as atividades destinadas aos
alunos do quinto ano do ensino fundamental, quando esta sequência didática foi
aplicada, foram fundamentais para a apresentação e discussão das temáticas. O
100

espaço alegre e criativo, mesmo num ambiente virtual do ensino remoto, devido
às exigências sanitárias imposta pela pandemia da covid-19, contribuiu para
trocas surgidas a partir dos questionamentos e de experiências sobre o racismo
e o preconceito. A própria narrativa literária concorreu para a construção desse
ambiente, pois, desde o início da leitura, os estudantes foram fisgados pelas
reflexões inteligentes e imaginativas da protagonista da história, Coraline.
Assim, por meio da valoração da criatividade presente nos exercícios
literários, vê-se que é possível oportunizar ao alunado uma posição clara da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


perversidade por trás de práticas racistas ecoadas na relação escola-socie-
dade. A escolha por uma trajetória estética, ética e política foi responsável
pela sedimentação de pensamentos e saberes fortemente antirracistas. Isso
revela a importância de se construir uma educação fundada na criatividade
estética, ética e política – como bem afirma Freire: “uma das notas centrais
de uma prática educativa, principalmente nesses tempos atuais de avanços
tecnológicos em que você pode virar um tecnicista, é você viver intensamente
a esteticidade da educação” (FREIRE, 2004, p. 299).

Descrição da sequência didática

1. Modalidade de ensino: 5º ano do Ensino Fundamental I.

2. Disciplina: Língua Portuguesa: leitura literária e produção de texto.

3. Objetivos: ao final de cada atividade proposta, o estudante poderá estar


apto a:

• Reconhecer os elementos da narrativa, em especial o foco narrativo,


que abre caminho para questionamentos sobre a falácia acerca da
existência de apenas um tom de pele.
• Observar, analisar e apropriar-se dos recursos linguísticos em torno
dos questionamentos feitos pela protagonista-narradora, a fim de
utilizá-los na compreensão da temática sobre o racismo, o precon-
ceito e a discriminação racial.
• Levantar imagens poéticas e imaginativas na obra literária como
meios de elucidação e compreensão das temáticas estudadas.
• Trazer para o debate experiências da protagonista relacionadas às
próprias experiências.
• Identificar, nos questionamentos da protagonista-narradora, a revolta
de Coraline contra a concepção da existência falaciosa e sorrateira
de apenas um tom de pele representado pelo lápis de cor de pele
em tom claro.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 101

• Relacionar os vídeos “Caras e cores” e “Ninguém nasce racista:


continue criança” com a obra A cor de Coraline.
• Apropriar-se dos questionamentos da protagonista, ampliando-os
ao longo dos debates com outros pontos de vistas apresentados nos
vídeos, nas pesquisas e citações utilizadas para criação de outros textos.
• Produzir textos escritos e orais sobre o racismo, o preconceito e suas
discriminações a partir dos conhecimentos adquiridos ao longo da
sequência didática.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

4. Duração das atividades em hora/aula: quatro encontros de 50 minutos

5. Metodologia: Assim como foi esboçado na introdução, o arcabouço


metodológico desta sequência didática pauta-se na dialogicidade freiriana
rumo a uma pedagogia progressista. Nessa esteira, cada atividade pressupõe
uma interação constante entre professor(a) e estudantes por meio do diálogo
e da reflexão. Quanto ao estudo da linguagem, as ações pedagógicas voltam-
se para uma educação literária, libertária e antirracista, que levam em conta
a indissociabilidade entre o ensino de língua e o de literatura no ensino
fundamental, como bem afirma Juracy Assmann Saraiva: “a leitura de textos
literários preenche a função de ativar a percepção do funcionamento da língua
e oportuniza a vivência daquilo que não pode ser cognitivamente aprendido”
(SARAIVA, p. 47, 2006).

6. Estratégias e recursos

• Plataforma M. Teams.
• Youtube.
• Slides.
• Obra literária.
• Caderno para anotação.
• Formulário digital: Forms.

7. Apresentação das aulas

Aula 1

Primeiro momento: Antes da apresentação da obra literária, A cor de


Coraline, de Alexandre Rampazo, promova um debate. Peça aos estudantes
que peguem a caixa de lápis de cor e observem as cores que compõem o
conjunto de lápis. Depois, faça a seguinte pergunta: “Se fosse para vocês
pintarem a pele de seus familiares, que cor vocês usariam?”.
102

Frutos do debate: Ao ser aplicada esta sequência didática, muitos alunos


expuseram que precisariam de muitas cores para retratar a pele de seus
parentes, o que demostrou previamente uma percepção multirracial por
parte das crianças. Vale relatar uma experiência interessante dos estu-
dantes: quando eles cursavam o terceiro ano do Ensino Fundamental I,
na sala de aula, alguns colegas começaram a usar a seguinte expressão:
“me passa o lápis cor de pele”. Foi quando a professora interveio e
chamou a atenção da classe dizendo que não existia o lápis cor de pele.
Ela ressaltou o quanto era incoerente tal fala, destacando a diversidade

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


étnico-racial do povo brasileiro. Tal problematização, pontuada pela
educadora e relembrada pelas crianças, abriu caminho para a explanação
inicial sobre o racismo e o preconceito.

Segundo momento: Depois de os alunos ouvirem as questões pontuadas


no debate, passe o vídeo do anúncio da Faber Castel: Caras e cores (contém
1 minutos de duração). Apesar de este vídeo anunciar um produto, ele também
celebra a diversidade racial das crianças brasileiras por meio do tom poético da
letra recriada da canção Aquarela, de Toquinho. É importante que as crianças
percebam que a letra é um convite à celebração das nossas diferenças étni-
co-raciais. Depois de assistirem ao vídeo, retome o debate e peça aos alunos
para relacionarem as imagens do vídeo com a pergunta feita anteriormente: “Se
fosse para vocês pintarem a pele de seus familiares, que cor vocês usariam?”.
Terceiro momento: Depois do vídeo, mostre os slides contendo a nar-
rativa A cor de Coraline, de Alexandre Rampazo. O destaque inicial deve
ser dado para o título. Professor(a), explore o título, problematizando-o de
imediato: Por que esse nome? Por que Coraline e não Caroline? Por que o
rosto da menina da capa não foi colorido? Depois das discussões, convide
os alunos para o encontro com a narrativa por meio de uma leitura silenciosa.
Tarefa assíncrona: Como tarefa assíncrona, peça à classe para produzir
um texto de, no mínimo, cinco linhas respondendo à pergunta: O que diz o
anúncio sobre a existência de apenas uma cor para pintar o tom de pele e a
reação de Coraline à pergunta do personagem Pedrinho? Explique que os
textos serão lidos para os colegas na próxima aula.

Aula 2

Primeiro momento: Continuação da apresentação da obra literária, A cor


de Coraline, mas, antes, promova um momento de escuta dos textos produzi-
dos em casa pelos estudantes sobre a seguinte pergunta: O que diz o anúncio
sobre a existência de apenas uma cor para pintar o tom de pele? Por que
Coraline ficou tão perplexa diante da pergunta do personagem Pedrinho? A
escuta atenta do professor e dos colegas nesse momento é muito importante
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 103

porque contribui para a atmosfera de reflexão e valorização do ponto de


vista do colega. Tal momento dever ser sempre reivindicado pelo docente. A
autonomia da escrita se fortalece quando o estudante reconhece, no coletivo –
colegas e professor(a) –, interlocutores, isto é, leitores reais para seus textos.
Em sequência, retome aspectos importantes do debate sobre o vídeo Caras e
cores – Faber Castell, relacionando-os com a obra literária.
Segundo momento: Depois do debate, é hora de aprofundar o estudo da
obra literária por meio da leitura audível. Solicite a leitura audível do livro por
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

alguns estudantes. Sugestão: combine com os alunos uma leitura performática,


criando tons de vozes diferentes para cada mudança de ação ou de conflito.
Combine antecipadamente com esses estudantes para assumiram os perso-
nagens que, no caso do livro em questão, são poucos. Em sequência, inicie a
discussão da obra a partir da exploração oral dos elementos da narrativa com
as seguintes sugestões de perguntas:

1) Quem são os personagens envolvidos na história?


2) Onde acontece a narrativa? E quem narra a história?
3) Como a história inicia?
4) Quando Coraline ouve a pergunta de Pedrinho, o que acontece?
5) Coraline diz que, ao ouvir a pergunta, ficou “assim, meio com cara
de Lagosta”. Por quê?

Terceiro momento: Nesse momento, almeja-se uma compreensão mais


ampla da obra por meio da revisitação de fragmentos específicos que vão
explorar mais abertamente os temas sobre o preconceito e o racismo. Profes-
sor(a), peça aos estudantes que abram seu caderno, depois, voltem ao livro
e escolham três questionamentos feitos por Coraline que revelam o espanto
da menina diante da pergunta de Pedrinho. Peça à turma que anotem tais
fragmentos no caderno. É preciso ressaltar que a protagonista-narradora se
mostra como uma grande questionadora, sendo esta a marca mais forte de
sua personalidade.
Tarefa: A partir dos questionamentos da narradora, contidos nos frag-
mentos copiados no caderno, peça aos alunos a escrita de um texto descritivo
de Coraline focando aspectos físicos e psicológicos. Essa tarefa pode ser feita
em dupla ou em grupo.

Aula 3

Primeiro momento: A aula deve iniciar com a leitura dos textos produzi-
dos pelos alunos. Após a leitura dos alunos que se dispuseram a compartilhar
a escrita, promova um debate a partir das reflexões retiradas dos textos lidos.
104

Busque relacionar os aspectos destacados pelos discentes sobre o racismo e


o preconceito, destacando-os com a descrição da protagonista. É importante
que os alunos entendam que, mesmo que Coraline não pronuncie, em nenhum
momento, questões sobre o racismo e sobre o preconceito, as temáticas estão
postas. Destaque que a menina oferece aos leitores uma aula de como se deve
posicionar diante de ações escamoteadas de preconceito e de racismo. Ela, por
meio de seus questionamentos sutis, deixa explícita a sua posição totalmente
antirracista diante da expressão velada de preconceito.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fruto da escrita: Ao colher a escrita dos alunos, quando da aplicação dessa
sequência, foi observado como eles compreenderam de modo crítico os
questionamentos de Coraline. Os alunos perceberam que estes questiona-
mentos não eram apenas a incompreensão da menina diante da exigência
do colega, um lápis cor de pele. Mas se tratava da revolta de Coraline ao
assimilar o que estava por trás desta expressão que, na verdade, era uma
noção racista e preconceituosa falseada. As crianças também responderam
que, pelo fato de Coraline ser uma menina muito imaginativa, esperta e
questionadora, ela foi capaz de apresentar inúmeras possibilidades criativas
que justificam o porquê de não haver apenas uma possibilidade de cor de
pele. As respostas dos estudantes evidenciaram que, por meio da ludicidade
e da imaginação, a protagonista-narradora revela sua revolta diante da
exigência do coleguinha e cria justificativas muito bem argumentadas. É
por meio das explicações de Coraline que as crianças solidificam os saberes
sobre o racismo e o preconceito. Sob a perspectiva do foco narrativo, as
temáticas deixam de ser tangenciadas e ganham foco no debate e são depois
transferidas em argumentos para a produção de texto.

Segundo momento: Como continuação do debate, o foco deverá ser dado


no personagem Pedrinho, a partir das seguintes perguntas: Como é Pedrinho?
Será que Pedrinho é racista? Como será o relacionamento de Pedrinho e
Coraline em sala de aula?. Não exija respostas imediatas, reserve alguns
segundos para a turma pensar. Depois, abra o debate.
Terceiro momento: inserção do vídeo intitulado Ninguém nasce
racista: continue criança
Para fomentar ainda mais a discussão em torno de Pedrinho, convide os
estudantes a assistirem ao vídeo Ninguém nasce racista: continue criança
(duração de 3min40s) produzido pela TV Globo – Criança Esperança – o
qual aborda questões sobre o racismo de modo didático. Os protagonistas na
filmagem também são crianças, e elas serão desafiadas, em uma encenação,
a dizerem frases repletas de racismo e preconceito a uma pessoa negra. Em
resumo, as crianças não conseguem e transmitem uma mensagem antirracista
impactante. Em seguida, peça aos alunos para relacionarem a mensagem
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 105

do vídeo com a narrativa lida. Logo, os estudantes vão compreender que o


racismo e o preconceito devem ser combatidos por meio de ações criativas
como o vídeo e as reflexões de Coraline.
É preciso, durante todo o debate, retomar a obra, chamando a atenção
dos estudantes para o final da narrativa. É bom destacar que Pedrinho, ao
pegar o lápis marrom, surpreende-se e acaba ficando com cara de lagosta.
Nesse momento, ele percebe (ou não) a pergunta incoerente que fez à colega
e aprende com Coraline que não existe apenas um tom de pele. A sala deve
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

descobrir que a expressão do rosto de Pedrinho, descrita como cara de lagosta,


revela aprendizado e dilui pensamentos hegemônicos que privilegiam a bran-
quitude, gerando preconceito e racismo. Daí a necessidade de essas expressões
serem combatidas não apenas em sala de aula como em todos os lugares,
como o fez a professora do terceiro ano relatada nas experiências dos alunos.

Aula 4

Primeiro momento: Antes de concluir o debate, vale lembrar que as temá-


ticas postas pela obra literária não vão se esgotar nestas aulas, mas serão ecoadas
e retomadas pelos estudantes durante muito tempo. E, como último momento
desta sequência didática, professor(a), apresente à turma o slide com uma citação
de Nelson Mandela: “Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua
pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para odiar, as pessoas precisam
aprender, e se podem aprender a odiar, elas podem ser ensinadas a amar”.
Depois da leitura da citação por vários alunos, uma vez que repetir a
leitura amplia a compreensão, pergunte aos alunos se eles conhecem o autor
dos dizeres. A maioria poderá não conhecer. Então, peça aos estudantes para
fazerem uma rápida pesquisa na internet sobre essa importante persona negra.
Estabeleça um tempo (cinco minutos) para tal ação. Em seguida, peça para
relatarem as curiosidades e as informações colhidas na pesquisa.

Fruto da pesquisa sobre Mandela: Os alunos ficaram impactados quando


leram que Nelson Mandela foi julgado e condenado à prisão perpétua
por lutar contra o racismo, o preconceito e suas diversas discriminações.
Muitos alunos e alunas compartilharam sua perplexidade ao descobrirem
que as causas das prisões de Mandela foram a luta para prevalecer os
direitos humanos e por uma democracia multirracial. Houve um interesse
muito grande por parte das crianças de conhecerem mais sobre os feitos
e lutas de Mandela.

Agora, peça aos alunos para relacionarem oralmente a citação de Mandela


com a narrativa lida e estudada. Abra o debate em torno das considerações
de cada aluno.
106

Segundo momento: No segundo e último momento desta sequência


didática, apresente aos alunos o trabalho final. São perguntas publicadas no
aplicativo de tarefas Forms. Essa etapa exige uma organização e sistemati-
zação dos conhecimentos aprendidos ao longo das aulas. É importante que o
educador abra o Forms e retome as perguntas, explicando cada questão. Essas
atividades vão sedimentar os conhecimentos linguísticos literários a partir de
compreensão e interpretação da narrativa e dos vídeos assistidos. Conceitos
já estudados devem ser resgatados – como o sentido figurado e o sentido

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


real; os conhecimentos específicos dos elementos da narrativa: personagens,
narrador, enredo, espaço e tempo. Todos esses aprendizados, relacionados ao
texto literário e aos vídeos, devem destacar os conhecimentos aprendidos nos
debates sobre as temáticas do racismo e do preconceito1.

Sugestões de questões para os exercícios

1) Sobre o livro, descreva os personagens.


2) Onde acontece a narrativa? E quem narra a história?
3) A história é iniciada com uma pergunta, que pergunta é essa? Por
que esta pergunta foi feita?
4) Coraline diz que, ao ouvir a pergunta, ficou “assim, meio com cara
de Lagosta”. Por quê?
5) A expressão meio com cara de Lagosta está no sentido figurado ou
no sentido real? Explique:
6) Coraline diz que é uma sorte ter “uma caixa de lápis de cor somente
com 12 cores”. Por quê?
7) Ao pensar sobre as cores possíveis de pele, Coraline associa os
tons de pele a seres e situações diferentes. Quais são esses seres e
tons de pele?
8) Coraline reflete e descobre que é impossível ter apenas um tom de
pele. Volte à narrativa e copie a justificativa exposta por ela que
explica que é impossível existir apenas um tom de pele.
9) Coraline entrega que cor de lápis para Pedro? Por que ela esco-
lheu esta cor?
10) Ao final, quem fica com cara de lagosta; isso ocorre por quê?
11) Sobre os vídeos: Qual a temática retratada nos vídeos 1 e 2? Explique.
12) Relacione o terceiro vídeo com a narrativa lida, A cor de Coraline,
buscando semelhanças entre o conteúdo e as temáticas.
13) Leia com atenção os dizeres abaixo do grande pensador Nel-
son Mandela:

1 Segue o link da tarefa: https://forms.office.com/Pages/ResponsePage.aspx?id=I21ezZnLiUGIqxqQIaDEUS


GT6jo4tFRAh3cJOF_SztRUOE9QVVlLM0tWSzlHRDRTN0JTRFlDNzJOWi4u.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 107

“Ninguém nasce odiando outra pessoa pela cor de sua


pele, por sua origem ou ainda por sua religião. Para
odiar, as pessoas precisam aprender, e se podem aprender
a odiar, elas podem ser ensinadas a amar.”

Você concorda com esses dizeres? Explique. Depois, relacione a men-


sagem de Mandela à narrativa e aos vídeos estudados, destacando os pon-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tos semelhantes.

8. Avaliação

A avaliação, ao longo da sequência didática, deverá ser diagnóstica,


processual, reflexiva e contínua. Deve-se centrar na participação dos alunos
ao longo das aulas, observando a interação dos mesmos nas atividades pro-
postas: debates, realização da atividade de análise dos exercícios propostos.
O mais importante é perceber, principalmente no momento dos debates, se
os estudantes realmente estão envolvidos e compreendendo as discussões
colocadas pelo coletivo. No entanto, uma avaliação final, mais formativa,
pode ser exigida, desde que seja feito um feedback dos exercícios em forma
de correção das atividades de escrita propostas.
108

REFERÊNCIAS
ASSMANN. Juracy Saraiva; MÜGGE, Ernani. Literatura na escola: pro-
postas para o ensino fundamental. Porto Alegre: Artmed, 2006.

BRASIL. Secretaria de Educação Fundamental. Parâmetros curriculares


nacionais: terceiro e quarto ciclos do ensino fundamental: língua portuguesa.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Brasília: MEC/SEF, 1998.

FABER CASTELL BR. Caras e cores: Faber Castell. Youtube. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=gJ5HZHAYbtk. Acesso em: 8 nov. 2021.

FREIRE, Paulo. A importância do ato de ler: em três artigos que se com-


pletam. 48. ed. São Paulo: Cortez Editora, 2006.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da autonomia: saberes necessários à prática


educativa. 57. ed. São Paulo: Paz e Terra, 2018.

FREIRE, Paulo. Pedagogia da tolerância. Organização e notas: Ana Maria


Araújo Freire. São Paulo: UNEPS, 2004.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 67. ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 2019.

RAMPAZO, Alexandre. A cor de Coraline. São Paulo: Rocco, 2017.

SALES JR., R. Democracia racial: o não-dito racista. Tempo Social, [S. l.],
v. 18, n. 2, p. 229-258, 2006. DOI: 10.1590/S0103-20702006000200012.
Disponível em: https://www.revistas.usp.br/ts/article/view/12523. Acesso
em: 4 nov. 2021.

SILVA, Maurício. Da educação eurocêntrica à educação antirracista: uma


introdução. Dialogia, São Paulo, n. 38, p. 1-10, e20213, maio/ago. 2021.
https://doi.org/10.5585/38.2021.20213.

TV GLOBO. CRIANÇA ESPERANÇA. Ninguém nasce racista. Continue


criança. Youtube. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=qmY-
ucZKoxQA. Acesso em: 8 nov. 2021.
OUTROS SACIS: o Saci e a literatura
infantil diante das questões étnico-raciais
Getúlio Ribeiro Baccelli

Poucas semanas antes do início da escrita deste texto, na data de 31 de


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

outubro de 2021, a internet e as mídias sociais se viram inundadas por legiões


de vampiros, abóboras risonhas, bruxas e zumbis, por ocasião dos festejos
relativos ao Halloween, também referido entre nós como “dia das bruxas”.
Ao lado das monstruosidades mais convencionais relacionadas ao período,
figurava o Saci-Pererê, ocorrência também habitual, ao menos desde quando
se propôs, via projeto de Lei Federal, no ano de 20031, a data de 31 de outubro
como o “Dia do Saci”.
Menos previsíveis, no entanto, foram as pontuais aparições do Jaxy
Jaterê, figura espiritual vinculada à tradição cosmogônica do povo indígena
Guarani, e – mais pontuais ainda – as de Aroni, entidade ligada à religiosi-
dade de matriz africana pertencente ao complexo Iorubá. As ocorrências de
menções a tais figuras na internet, no contexto do dia 31 de outubro, davam-se
por suas explícitas linhas de identificação com o Saci, mas também se faziam
permeadas por conteúdos de pautas étnico-raciais que, dentre outros tópicos,
apontavam para o racismo e o esvaziamento étnico inerentes às “lendas” do
folclore nacional, não raramente mencionando o nome de um de seus princi-
pais representantes e divulgadores, Monteiro Lobato2.
Tais ideias e práticas, por meio das quais se dispõem as figuras dissonan-
tes de Jaxy Jaterê e Aroni no tabuleiro das narrativas relacionadas ao “Dia do
Saci”, encontram eco em algumas das preocupações fundamentais que orien-
tam a pesquisa e o desenvolvimento de uma educação antirracista pautada nas
Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008. São elas: a crítica e o rompimento com
imagens e representações históricas de viés racista referentes aos diferentes
grupos étnicos constituintes da nossa sociedade; e a ampliação do acesso a

1 O Dia do Saci consta do projeto de Lei Federal nº 2.762 de 2003 (apensado ao projeto de Lei Federal
nº 2.479, de 2003, proposto por Aldo Rebelo), sob a justificativa de “fortalecer o processo de consolidação da
identidade nacional” por meio do “resgate e [d]a valorização de nossas tradições e manifestações folclóricas
originais”. O estado de São Paulo oficializou a data em 13 de janeiro de 2004 com a Lei nº 11.669.
2 “A narrativa mais conhecida do Saci é aquela escrita por Monteiro Lobato, que, como em outras de suas
obras, é perpassada de diversas formas pelo racismo do autor. Aliás, a maior parte do ‘folclore nacional’
esvazia nossos símbolos étnicos, nossa espiritualidade, nossas cosmogonias. Esse esvaziamento é um
dos efeitos do etnocídio que busca nos tornar seres genéricos, misturados no ‘povo brasileiro’.” (NÚÑEZ,
Geni. 31 out. 2021. Instagram: @genipapos. Disponível em: https://www.instagram.com/p/CVs5SbVvHLk/.
Acesso em: 19 nov. 2021).
110

outras narrativas, representativas desta mesma sociedade em sua diversidade.


Abordaremos tais tópicos tomando como referência algumas produções atual-
mente disponíveis relacionadas ao Saci, voltadas ao público infantil.

O Saci lobatiano: a reimpressão da obra O Saci no panorama


das questões étnico-raciais

Sem dúvida, a matriz retórica básica que elege, no dia 31 de outubro, o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Saci como privilegiado representante do “folclore” e da “identidade nacional”
brasileira encontra seus principais alicerces em Monteiro Lobato e em seu
contexto histórico. Esclarece-nos Maressa de Freitas Vieira:

Ao divulgar a imagem do Saci, Lobato, talvez levado pela necessidade de


afirmação da nação brasileira após o período imperial, busca caracterís-
ticas reveladoras da identidade nacional. Assim, o Saci acaba adquirindo
uma nova imagem: os brasileiros veem nele uma mistura de elementos
africanos, indígenas e europeus (VIEIRA, 2009, p. 62).

A imagem de figura canônica do folclore nacional – e consagrada pela


literatura infantil – atribuída ao Saci por Lobato permanece um dos mais
difundidos e influentes retratos do personagem nos dias atuais. Testemunho
disso fora a reimpressão, em 2019, de sua obra, editada originalmente em
1921, O Saci, em edição de luxo com capa dura e ilustrações em cores pela
editora Companhia das Letrinhas. Para além do formato luxuoso, essa edi-
ção traz uma peculiar diferença com relação a suas antecessoras, pois conta
com prefácio escrito por Cilza Bignotto, no qual, dentre outros conteúdos,
aborda-se a questão racial vinculada às narrativas ali presentes. Destacamos
algumas de suas contribuições a esse respeito:

Quando os personagens foram criados, a escravidão era lembrança recente:


fazia pouco mais de trinta anos que, finalmente, tinha sido abolida. Muitas
pessoas negras, que haviam sido escravizadas, quando se viram livres,
acabaram permanecendo nos lugares onde já viviam. Afinal, nunca haviam
saído de lá e não tinham tido a oportunidade de ter outra formação. Não
era uma opção, mas uma realidade. Talvez fosse o caso de Tia Nastácia e
de Tio Barnabé (BIGNOTTO, 2019, p. 8).

Em sequência, a autora comenta que, no início do século XX, não era


comum encontrar “personagens negros com a autonomia e a importância de
Tia Nastácia, Tio Barnabé e o saci”, e acrescenta: “para os leitores de hoje”,
“o modo como o narrador e alguns personagens se dirigem aos personagens
negros é ofensivo”, e, “felizmente, os costumes mudaram”. Ao concluir,
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 111

deixa-nos a ressalva de que, ainda nos dias atuais, “persistem tratamentos


diferentes que todos nós precisamos combater”.
Muito se debate em torno das possíveis figuras reais que teriam fornecido
inspiração a Lobato para compor seus personagens infantis. Em Histórias
de Tia Nastácia, o personagem Pedrinho, em diálogo com a boneca Emí-
lia, refere-se a Tia Nastácia como uma “segunda tia Esméria”, a qual, por
sua vez, teria sido uma “negra velha”, “verdadeiro dicionário de históricas
folclóricas”, escravizada pelo avô do personagem (LOBATO, 2002, p. 7).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Outra referência feita por Lobato à Esméria, já fora da dimensão ficcional,


encontra-se na seguinte passagem da obra O Saci-Pererê: Resultado de um
Inquérito, de 1918:

À memória da saudosa tia Esméria, e de quanta preta velha nos pôs, em


criança, de cabelos arrepiados com histórias de cucas, sacis e lobisomens,
tão mais interessantes que as larachas contadas hoje aos nossos pobres
filhos por umas lambisgoias de touca branca, numa algaravia teuto-íta-
lo-nipônica que o diabo entenda. Vieram estas corujas civilizar-nos; mas
que saudades da tia velha que em vez de civilização requentada a 70.000
réis por mês, afora bicos, nos apavorava de graça! (LOBATO, 1918, p. 5).

Posto que o trecho se trata de uma “dedicatória”, é fácil supor que Esmé-
ria teria feito parte da infância de Lobato, e que, de fato, fora uma mulher
escravizada, talvez em uma das fazendas de seu avô José Francisco Monteiro,
também conhecido por “Visconde de Tremembé”, destacado cafeicultor e
proprietário de escravizados da região norte de São Paulo no século XIX.
Causam espanto o tom saudosista e os exaltados comentários a respeito do
trabalho das “pretas velhas” escravizadas, aqui representadas por Esméria,
os quais apontam para uma “lembrança recente” do autor, como indicado por
Cilza Bignotto em sua introdução para a nova edição de O Saci, mas conduzem
a camadas ainda mais profundas do problema.
Não apenas a imagem de Tia Nastácia, mas também a do Saci, são per-
passadas, nos escritos de Lobato para o público infantil, por referências diretas
ao imaginário escravista da sociedade rural norte-paulista do século XIX, onde
o autor nasceu e viveu parte de sua infância:

O saci – começou ele [Tio Barnabé] – é um diabinho de uma perna só que


anda solto pelo mundo, armando reinações de toda sorte e atropelando
quanta criatura existe. Traz sempre na boca um pito aceso, e na cabeça
uma carapuça vermelha. A força dele está na carapuça, como a força de
Sansão estava nos cabelos. Quem consegue tomar e esconder a carapuça
de um saci fica por toda vida senhor de um pequeno escravo (LOBATO,
2019, p. 21).
112

Nesse trecho de O Saci, reproduzido em diversos materiais que discutem


a problemática do racismo nos escritos de Lobato, chamam-nos a atenção as
expressões “diabinho” e “pequeno escravo”, pungentes amostras do rol de
referências ofensivas a personagens negros ao qual se refere Bignotto3. Em
estudo publicado em 1995, Renato da Silva Queiroz identificou tais elementos
em narrativas referentes ao Saci difundidas entre os integrantes da “camada
dominante rural” instalada nas áreas de expansão geográfica paulista nos
séculos XVIII e XIX:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Para esta camada dominante rural, os traços fisionômicos do Saci são
semelhantes aos de um macaco, bode, morcego ou corvo – animais que
se prestam às comparações e às ofensas dirigidas ao negro. Mal-cheiroso,
hematófogo, demoníaco, ladrão, claudicante e feiticeiro, seus hábitos notur-
nos correspondem aos das aves agourentas que circulam à noite. Ademais, o
Saci pode ser escravizado (como todos os negros), e suas manifestações no
interior das moradias limitam-se ao cômodo mais desqualificado, lugar dos
subalternos e das negras domésticas: a cozinha (QUEIROZ, 1995, p. 145).

O autor acrescenta ainda que o Saci, nas narrativas daquela “elite rural”,
exalava “cheiro de enxofre”, exibia “parentesco com o demônio” e temia
“símbolos cristãos”. Ao mesmo tempo, revela-nos não ter identificado em sua
pesquisa quaisquer destes traços em relatos sobre o Saci provindos, no mesmo
período, de outras camadas que compunham a mesma sociedade, como a dos
“camponeses-caipiras”4 e a dos “negros escravos”5.
Por outro lado, tratam-se de atributos facilmente identificáveis – com
exceção da caracterização zoomórfica – nas narrativas infantis sobre o Saci
elaboradas depois por Monteiro Lobato, desde a designação diabólica, o cheiro
de enxofre e as frequentes aparições na cozinha, até a possibilidade de ser
aprisionado e escravizado com o emprego de símbolos cristãos6.

3 Embora o texto de Lobato se encontre, nessa nova edição, repleto de notas destinadas e explicar, “sempre
ao pé da página, o sentido de palavras em desuso e contextualizando certas passagens a partir da visão
atual” (BIGNOTTO, 2019, p. 9), não foi incluído qualquer comentário acerca dessa e de outras passagens
com teor racista dispostas ao longo do texto.
4 “Para os camponeses-caipiras, entretanto, o Saci-moleque também é preto, mas não exala cheiro de enxofre
nem exibe parentesco com o demônio. Segundo essas representações, as manifestações do nosso trickster
(dançarino, pregador de peças, fazedor de cócegas, assíduo frequentador das fronteiras, entidade que se
manifesta através de assovios sarcásticos) denotam uma inequívoca vocação contestadora, a zombaria e
o deboche constituindo as suas armas prediletas” (QUEIROZ, 1995, p. 145).
5 “De seu lado, os negros escravos atribuíam às peraltagens do moleque travesso uma série de ocorrências —
pequenos furtos, quebra de utensílios e ferramentas etc. — pelas quais, não fosse o Saci, acabariam sendo
mais seriamente responsabilizados e punidos. Sabe-se, a propósito, que os senhores temiam a feitiçaria e
as divindades dos negros cativos, e que estes faziam uso desse temor como estratégia de sobrevivência”
(QUEIROZ, 1995, p. 145).
6 Em um dos primeiros capítulos de O Saci, o personagem Pedrinho, instruído por Tio Barnabé, captura o
Saci utilizando uma “peneira de cruzeta”, tipo de peneira reforçada por duas tiras de bambu mais largas
nela afixadas em forma de cruz.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 113

Inspirado em sua busca pela “afirmação da nação brasileira”, Lobato


parte de elementos cristalizados em representações de viés racista e escravista
sobre o personagem, para em seguida despojá-lo, de forma gradual ao longo
da narrativa, dos traços associados a “situações que colocavam em confronto
grupos sociais antagônicos” (QUEIROZ, 1995, p. 147). Desse modo, à medida
em que o enredo de O Saci se desenrola, com o personagem auxiliando Pedri-
nho a resgatar Emília da vilã Cuca, enquanto apresenta ao menino diversos
personagens e histórias do folclore popular, o “diabinho de uma perna só”
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e “autor de reinações de toda sorte” vai adquirindo, nos termos de Queiroz,


ares “bem-comportados” e de “pedagogo”, em oposição a seus traços mais
“sarcásticos, agressivos e contestadores”. Caberá, por fim, à mídia, com sua
atuação, complementar a tarefa de “domesticar” o Saci, permitindo-o ingressar
definitivamente na “era da indústria cultural e da publicidade”, convertido
em símbolo nacional.
Salvo o atenuante de algumas breves notas introdutórias, o Saci lobatiano
segue conservando, em suas recentes reedições, o mesmo caráter de distan-
ciamento das narrativas de matriz indígena e africana que o compuseram e
ainda o compõem, em concomitância à sua imortalização como clássico da
literatura infantil e ícone da cultura nacional.

Outros sacis: o retorno de Jaxy Jaterê

Durante a primeira metade do século XX, era comum entre os folclo-


ristas a ideia de que o Saci-Pererê se originara de narrativas indígenas, as
quais teriam passado por um processo de “africanização” a partir do final do
século XVIII nas áreas meridionais brasileiras, sobretudo na região de São
Paulo, para, em momento posterior, receber influências do folclore europeu.
Também era de amplo conhecimento daqueles intelectuais a figura, descrita
por Câmara Cascudo como procedente de relatos de camponeses de origem
Guarani em regiões do Paraguai, do Yací-Yateré, caracterizado como um
duende vermelho com a estatura aproximada de uma criança de sete anos
(CASCUDO, 1947, p. 58).
Ao longo das décadas, identificou-se uma multiplicidade de variantes
da mesma figura entre diferentes grupos Guarani nos territórios brasileiro e
paraguaio, inclusive sob outras denominações, como atsýyguá, pyharê rupiguá
e kambá’í. Egon Schaden afirmou que, em algumas destas versões, a repre-
sentação indígena se transformava em consequência de “contatos culturais”,
sem, no entanto, chegar a “identificar-se com o Saci corrente na região, entre
a população rural de origem ibérica” (SCHADEN, 1974, p. 157).
Enquanto o Saci-Pererê nacional preenchia as páginas dos livros infan-
tis e ganhava os holofotes midiáticos, as narrativas sobre o Yací-Yaterê
114

permaneciam invisibilizadas em tais âmbitos, reproduzindo-se e multipli-


cando-se entre as comunidades indígenas das quais se originaram, e figurando
eventualmente em círculos restritos a folcloristas e antropólogos.
Tal quadro começou a se modificar por volta de 2003, no bojo de um
crescente processo de ascensão e divulgação de autores indígenas, quando o
escritor guarani Olívio Jekupé começou a produzir narrativas infantis tendo
como protagonista o “Jaxy Jaterê”.
Na concepção do autor, Jaxy Jaterê é um “protetor da floresta”. Em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


entrevista concedida ao site Hypeness, no ano de 2020, afirma: “em qualquer
aldeia guarani em que você for, você pode ouvir sobre um personagem que é
o protetor da floresta, chamado Jaxy Jaterê” (MARTINS, 2020). E comple-
menta, a respeito de seu personagem: “não é um folclore, ele é uma história
viva, que é contada até os dias de hoje”.
Jekupé expõe, ainda, sua própria interpretação sobre o processo de “afri-
canização” do Jaxy Jaterê:

Eles foram escravizados por muitos, muitos anos. Eles ficavam revoltados
com tudo isso que acontecia e, na época, eles amarravam o rabo do cavalo;
à noite, eles faziam um monte de bagunça pra se vingar dos senhores de
engenho. [...] Os negros, pra tentar se proteger, falavam que não foram eles
que fizeram aquilo. Daí, eles falavam que quem fez aquilo foi o “negui-
nho de uma perna”, que ele é bagunceiro, que ele faz bagunça, que ele
amarrava o rabo do cavalo, essas coisas7. [...] Na verdade, esse “neguinho
de uma perna” seria o protetor da floresta na África, nas crenças. Daí, por
coincidência, eles falavam que era ele, mas só que não falavam o nome
dele. Então, usaram como uma proteção (MARTINS, 2020).

A referência a um “protetor da floresta na África”, componente de “cren-


ças” africanas, remete à mencionada figura de Aroni, entidade unípede que, na
tradição religiosa de matriz iorubá, atua no âmago da floresta junto ao orixá
Ossain8. Jekupé induz seu leitor a imaginar que, ao denunciar tal entidade
como autora de suas “bagunças”, os africanos escravizados teriam substituído
seu nome pelo de Jaxy Jaterê, “como uma forma de proteção”, originando,
assim, a variante Saci-Pererê.
O autor publicou, ao todo, três obras protagonizadas pelo personagem
destinadas ao público infantil: O Saci Verdadeiro (2003), Ajuda do Saci (2006)

7 Pode-se acrescentar à lista algumas “bagunças” mais enfáticas, como a quebra de utensílios e ferramentas
de trabalho, conforme os relatos obtidos por Renato da Silva Queiroz a tal respeito.
8 A esse respeito, argumenta Luiz Rufino, em entrevista ao site Hypeness: “Eu destacaria, dentro do complexo
Iorubá, a figura de Exu, que talvez seja mais evidente, e também a figura de Aroni, que é uma espiritualidade,
um agente que opera em imbricação junto ao orixá Ossain, que é um orixá que se manifesta nos domínios
das plantas, da mata, da mata profunda” (MARTINS, 2020).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 115

e O Presente de Jaxy Jaterê (2017). Dessas, apenas a primeira e a última se


encontram em catálogo.
A julgar pelos títulos dos dois primeiros livros, nota-se que, em suas
narrativas, Olívio não prescinde da imagem do Saci nacional e midiático, mas
se apoia habilmente na mesma para apresentar a seu público o Jaxy Jaterê
como figura distinta e independente.
Na obra O Saci Verdadeiro, reeditada em 2021 pela editora Panda Books,
em versão quadrinizada com ilustrações de Stefano Lolli, o leitor acompa-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nha o percurso de uma criança guarani de nome Karaí, ouvinte costumaz de


histórias sobre o Jaxy Jaterê contadas por sua mãe. Porém, ao frequentar a
escola regular, o garoto toma conhecimento da existência do Saci-Pererê, fator
desencadeador de um dilema em sua cabeça. Após um encontro na floresta
com o próprio Jaxy Jaterê, que lhe explica a distinção entre os sacis africano
e guarani, Karaí, certo de que as histórias de seus antepassados são verdadei-
ras, leva adiante o ideal de se tornar professor, o qual culmina com a escrita,
em idade adulta, de um livro sobre o Jaxy Jaterê. Tal livro é o próprio O Saci
Verdadeiro, de Olívio Jekupé.
A referência ao protagonismo indígena em ambientes escolares, aca-
dêmicos e literários, aliada à ênfase no Jaxy Jaterê como expressão de uma
“crença”, distinta da noção de folclore por seus atributos de presença “viva”
e “verdadeira” na concepção de seu povo, são marcas que tornam essa e
outras produções de Olívio Jekupé9 referências imprescindíveis à promoção
da diversidade étnica e cultural junto ao público infanto-juvenil e para edu-
cadores atuantes nos campos da literatura, história e cultura.

Outros sacis: Saci, Saçaruê, Dudu Calunga


Antes mesmo das produções de Olívio Jekupé sobre o Jaxy Jaterê alcan-
çarem notoriedade, o Saci havia extrapolado a esfera lobatiana para encontrar
outras vias de expressão no campo da literatura infantil. Nesse percurso,
ocuparam lugar de destaque os trabalhos desenvolvidos pelo historiador e
escritor Joel Rufino dos Santos.
Em sua trajetória como intelectual e contador de histórias, Santos se
ocupou de projetos destinados a conferir voz e protagonismo a sujeitos subal-
ternizados e invisibilizados pelos discursos e narrativas hegemônicas cons-
tituintes da história oficial10. Sua produção para o público infantil situa-se,
9 Outra de suas obras, O Presente de Jaxy Jaterê, narra a história de uma jovem guarani de nome Kerexu,
que penetra na floresta em busca do Jaxy Jaterê, a fim de fazer-lhe um pedido. A edição bilíngue, com texto
em guarani por Werá Jeguaka Mirim, acrescida das ilustrações de Fran Junqueira, faz deste livro uma das
mais belas obras de literatura indígena produzidas para o público infantil.
10 “A literatura é a única história do pobre — assim como a música popular, o enredo da escola de samba, a
arquitetura e a decoração dos mocambos, o artesanato artístico, o futebol-arte e a literatura oral — porque
o institui como sujeito desejante” (SANTOS, 2004, p. 35).
116

assim, na dimensão de um fecundo contato entre a história, a literatura e a


educação. As temáticas transitam entre abordagens sobre a luta dos povos
africanos escravizados – A Botija de Ouro (1984), O Presente de Ossanha
(2000) –, rememorações e ressignificações de símbolos e contextos da cultura
africana e afro-brasileira – Rainha Quiximbi (1986), Dudu Calunga (1986)
–, e recomposições de narrativas folclóricas – História de Trancoso (1983),
O Saci e o Curupira (1984).
Em 2021, o livro O Saci e o Curupira e Outras Histórias do Folclore

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


alcançou sua vigésima-primeira impressão pela editora Ática. Originalmente
lançado em 2002, trata-se de uma coletânea de histórias publicadas pelo autor
nas décadas anteriores, em diversos livros avulsos. Destacaremos, dessa obra,
as narrativas O Saci e o Curupira e Dudu Calunga.
Na história que dá título ao livro, Santos apresenta um Saci bastante
diverso do “pequeno escravo” a ser capturado e empregado como coadjuvante
de um protagonista privilegiado. Maria Gomes e João Galafoice são perso-
nagens do enredo junto ao Saci, oriundos – como ele próprio – do folclore, e
situam a narrativa no contexto das camadas populares rurais, remetendo ao
território simbólico dos mencionados “camponeses-caipiras”, referenciados
por Renato da Silva Queiroz. Diante desses personagens, o Saci se projeta
como uma entidade da floresta, perigosa e senhora de seus próprios domínios,
a qual negocia com Galafoice a permissão para caçar durante a noite, em troca
de fumo para seu cachimbo. Tais traços aproximam o Saci de Santos do Jaxy
Jaterê de Jekupé, ao retratá-lo como uma espécie de sentinela da mata, que
transita batendo nas árvores “para saber se a árvore vai resistir à tempestade
que vem”, vigia os caçadores e exige oferendas11 em troca de pedidos. Como
parte de seu esforço para dar visibilidade à identidade cultural de grupos
sociais inferiorizados, o autor faz uso de diferentes designações provindas do
vocabulário popular para se referir ao Saci, como “Saçaruê”12 e “calunga”13.
Na quarta narrativa do livro, intitulada Dudu Calunga, Santos conduz o
foco a uma das mais singulares e enigmáticas figuras integrantes do repertório
11 As oferendas também nos remetem aos ebós, oferecidos aos orixás nas religiões de matriz afro-brasileira.
Consta de algumas narrativas referentes a Aroni, entidade associada ao Saci, as oferendas e a correta
pronúncia dos ofós (palavras mágicas) como fatores imprescindíveis para que Aroni não tome a pessoa para
si e a conduza às profundezas da floresta, de onde será devolvida ao convívio com a humanidade apenas
após ter aprendido o uso e as magias de todas as ervas.
12 Não identificamos a procedência do nome “Saçaruê”, porém, localizamos, em Geografia dos Mitos Bra-
sileiros (1947), de Câmara Cascudo, referências a um “tipo de saci” denominado “Saçurá”. Entretanto, tal
personagem é descrito como uma figura de olhos vermelhos e maligna, diversa da imagem adotada por
Joel Rufino dos Santos em seu conto.
13 De acordo com Celso Sisto Silva: “Este nome é usado para designar os descendentes de escravos fugidos
e libertos das minas de ouro, que viveram isolados por anos em regiões remotas. Também pode ser uma
divindade secundária dos ritos bantos ou uma imagem da divindade, um boneco. As libélulas também são
chamadas de calungas. Também pode ser o herói civilizador para algumas regiões de Angola” (SILVA,
2011, p. 184).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 117

das histórias populares ligadas às tradições afro-brasileiras. Dentre as matrizes


narrativas de proveniência africana que, se supõe, contribuíram para germinar
o Saci-Pererê em nossas terras, a menos difundida é a de Dudu Calunga. Até
meados dos anos de 1980, as referências ao personagem se reduziam a um
capítulo na pioneira obra de Antônio Joaquim de Souza Carneiro, Os Mitos
Africanos no Brasil, de 1937. Na ocasião, Carneiro partia na contramão da
maior porção dos folcloristas de seu período, para estabelecer o Saci como
a versão brasileira de um “mito” africano, ao contrário de uma narrativa
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

indígena africanizada:

Os folcloristas dizem que os nossos mitos foram “varejados” pelos dos


negros “pobres de imaginação”, mas, certamente nenhuma das peças que
publicaram até agora vale essa do roubado pelo Saci, pelo Caipora e outros
tantos de seus repertórios muito batidos e muito estragados (CARNEIRO,
1937, p. 258).

De acordo com os escritos de Carneiro, Dudu Calunga está relacionado ao


culto do orixá Ossain, aqui citado, em diversos casos também referido como
Ossanha, e representado como uma divindade de uma única perna. Trata-se de
um jovem elegante, com “a cabeça coberta por uma banda vermelha” e “uma
córa [instrumento musical] debaixo do braço”. Surge montado em um cavalo14,
em uma noite de festa em homenagem a Ossanha, de modo que os presentes
chegam a suspeitar de que sejam o mesmo ente. Entretanto, ao final da festa,
após o rapaz ter atraído as mulheres ialês e iawós que dançavam no terreiro
para o interior de sua córa, seu cavalo mágico o convida a partir, chamando-o
pelo nome Dudu, desfazendo a desconfiança de que seria Ossanha disfarçado.
Na adaptação de Joel Rufino dos Santos para o público infantil, publicada
em 1986 e depois incluída em O Saci e o Curupira e Outras Histórias do
Folclore, o personagem não se modifica, exceto pela “córa debaixo do braço”,
substituída pelo “pandeiro debaixo do sovaco”, com o qual atrai as ialês15 do
terreiro. Por outro lado, Santos não se priva de acrescentar à narrativa uma
profusão de elementos associados à oralidade e às ancestralidades africana e
afro-brasileira, construindo uma rica e estimulante representação do candom-
blé por meio de seu conto. A narrativa é clara e contínua, porém, impregnada
de termos como “nhanhá”, “peji”, “ialês” e “balangandãs”, além de expressões

14 “O cavalo tinha o corpo torto e do lado que tinha mão não tinha pé. A cabeça também era torta. Do lado
que tinha venta não tinha olho e do lado que tinha chifre não tinha orelha. Um bicho mesmo pra encantado.”
(CARNEIRO, 1937, p. 17-18)
15 Ialê, na língua iorubá, designa a “mulher preferida”. Trata-se de uma explícita referência à poligamia praticada
por estes povos. No suplemento pedagógico que acompanha a nova edição de O Saci e o Curupira e Outras
Histórias do Folclore, o gesto de Dudu Calunga ao levar “para sempre” consigo as ialês ganha o sentido de
“um alerta para não se deixar enganar por pessoas que não são conhecidas”.
118

como “festão animado”, “cê precisava ver”, “ficandinho pequenas” e “da


banda que tinha chifre”. A conexão entre sabedoria e ancestralidade é enfa-
tizada em repetidos momentos pelo autor, nas figuras das “vovós” presentes
no terreiro, das quais parte o reconhecimento de Dudu Calunga como figura
análoga à de Ossanha (“É Ossanha – uma vovó explicou – É Ossanha, na
certa, porque acabei de achar aquele sapato que perdi no mato.”).
Trata-se do exercício de rememorar aspectos e valores componentes das
tradições africanas, de modo a estabelecer pontes entre temporalidades diver-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sas na construção e compreensão das identidades afro-brasileiras, promovendo,
assim, sua ressignificação, com base nas dimensões política e pedagógica.
Esta produção de Santos traz, ainda, uma particular contribuição à forma-
ção identitária positiva de sujeitos negros, especialmente no que concerne
à identificação religiosa, alvo frequente de preconceitos, discriminação e
silenciamento, dos quais não se isentam os contextos escolares16.
A associação do personagem Dudu Calunga com o Saci-Pererê é reto-
mada na seção de paratextos ao final do livro, escritos por Jurema Aprile, sob
o título “Mitos de uma perna só”: “O mito africano de Dudu Calunga [...] é
muito parecido com o do saci” (2021, p. 60).

Diferentes sacis para uma educação sobre as diferenças

As problemáticas levantadas acerca das produções literárias aqui reunidas


refletem a dinâmica das relações étnico-raciais e seu rebatimento em projetos
educacionais orientados pelas Leis nº 10.639/2003 e 11.645/2008, indicadas
no início deste estudo.
No que tange às reedições do Saci de Monteiro Lobato, é indispensável
ampliar a interpretação da questão racial para além da distinção do momento
histórico de sua escrita, evitando o risco de naturalizar o racismo e a escra-
vização como componentes de um contexto superado, bem como restringir
o racismo nos dias de hoje – de natureza estrutural e institucional – a “trata-
mentos” anacrônicos endereçados a pessoas negras17. O questionamento da
imagem do Saci nacional, de pretensão universal e democrática, frente às
questões étnicas presentes em nossa sociedade atual, vem atender às Diretri-
zes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e
16 “Nas pesquisas que desenvolvo sobre educação de crianças em terreiros de candomblé são muitos os
relatos de discriminação. Nos terreiros, crianças e adolescentes sentem orgulho da religião que praticam,
ocupam cargos importantes na hierarquia do culto, partilham um conhecimento vasto sobre mitos, canções
e o ioruba, uma das línguas que circulam na comunidade, por exemplo. Na escola, no entanto, são discri-
minadas, sentem vergonha da religião, escondem seu conhecimento e sua fé” (CAPUTO, 2010, p. 150).
17 Nota-se ainda, na edição de luxo de O Saci (2021) pela Companhia das Letrinhas, a ausência de qualquer
referência às origens indígenas do personagem e ao Jaxy Jaterê, embora o oposto não aconteça, a exemplo
do quadro explicativo sobre Monteiro Lobato, no livro O Saci Verdadeiro (2021), de Olívio Jekupé.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 119

para o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira e Africana na Educação


Básica em seus seguintes pontos:

• à desconstrução, por meio de questionamentos e análises críticas,


objetivando eliminar conceitos, ideias, comportamentos veiculados
pela ideologia do branqueamento, pelo mito da democracia racial,
que tanto mal fazem a negros e brancos; [...]
• o rompimento com imagens negativas forjadas por diferentes meios
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de comunicação, contra os negros e os povos indígenas; [...]


• a crítica pelos coordenadores pedagógicos, orientadores educacionais,
professores, das representações dos negros e de outras minorias nos
textos, materiais didáticos, bem como providências para corrigi-las
(BRASIL, 2004, p. 19-20).

Por sua vez, a incorporação das produções de Olívio Jekupé e Joel Rufino
dos Santos — com seus respectivos Jaxy Jaterê, Saci e Dudu Calunga — ao
quadro das referências aplicáveis a uma abordagem educacional da figura
do Saci sob o prisma das relações étnico-raciais, vincula-se aos seguintes
tópicos integrantes das mesmas diretrizes, estendidas ao ensino da história e
cultura indígena:

• a ampliação do acesso a informações sobre a diversidade da nação


brasileira e sobre a recriação das identidades, provocada por relações
étnico-raciais; [...]
• Em História da África, tratada em perspectiva positiva, [...] serão
abordados temas relativos: [...] à história da ancestralidade e religio-
sidade africana; [...] às relações entre as culturas e as histórias dos
povos do continente africano e os da diáspora; [...] à diversidade da
diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa, Ásia; [...]
• Divulgação, pelos sistemas de ensino, [...] de uma bibliografia afro-
-brasileira e de outros materiais [...], reprodução de obras de arte
afro-brasileira e africana a serem distribuídos nas escolas da rede,
com vistas à formação de professores e alunos para o combate à
discriminação e ao racismo (BRASIL, 2004, p. 19-25).

Tais indicações referendam e destacam a importância da literatura e de


sua criteriosa abordagem na construção e no exercício de uma educação crítica,
emancipadora e antirracista. E nutrem em nós o anseio de que se multipliquem
e se diversifiquem os sacis em nosso imaginário e no imaginário de nossos
educandos, seja ou não dia 31 de outubro.
120

REFERÊNCIAS
BIGNOTTO, Cilza. Antes de O Saci começar... In: LOBATO, Monteiro. O
Saci. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019.

BRASIL. Lei nº 10.639/2003, 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9. 394, de


20 de dezembro de 1996. Brasília, 2003. Disponível em: http://www.planalto.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


gov.br/ccivil_03/leis/2003/l0.639.htm. Acesso em: 19 nov. 2021.

BRASIL. Lei nº 11.645/08, 10 de março de 2008. Brasília, 2008. Disponível


em: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2008/lei/l11645.
htm. Acesso em: 19 nov. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Diretri-


zes curriculares nacionais para a educação das relações étnico-raciais e
para o ensino de história e cultura afro-brasileira e africana na educação
básica. Brasília, 2004.

CAPUTO, Stela Guedes. Educação nos terreiros: e como a escola se rela-


ciona com crianças de Candomblé. Rio de Janeiro: Pallas, 2012.

CARNEIRO, Antônio Joaquim de Souza. Os mitos africanos no Brasil:


ciência do folk-lore. São Paulo: Cia Ed. Nacional, 1937.

CASCUDO, Luís da Câmara. Geografia dos mitos brasileiros. Rio de


Janeiro: José Olympio, 1947.

JEKUPÉ, Olívio. O presente de Jaxy Jaterê. São Paulo: Panda Books, 2017.

JEKUPÉ, Olívio. O Saci verdadeiro. São Paulo: Panda Books, 2021.

LOBATO, Monteiro. Histórias de Tia Nastácia. 32. ed. São Paulo: Brasi-
liense, 2002.

LOBATO, Monteiro. O Saci. São Paulo: Companhia das Letrinhas, 2019.

LOBATO, Monteiro. O Sacy-Perêrê: resultado de um inquérito. São Paulo:


Secção de Obras de “O Estado de São Paulo”, 1918. Edição fac-similar.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 121

MARTINS, B. O Saci é indígena: origem parte da cultura Guarani e len-


das têm grande influência africana. Hypeness, 2020. Disponível em: https://
www.hypeness.com.br/2020/11/o-saci-indigena-jaxy-jatere/. Acesso em: 19
nov. 2021.

QUEIROZ, R. S. Migração e metamorfose de um mito brasileiro: o saci,


trickster da cultura caipira. Revista do Instituto de Estudos Brasileiros,
São Paulo, n. 38, p. 141-148, 1995.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SANTOS, Joel Rufino dos. Dudu Calunga. Rio de Janeiro: Ática, 1986.

SANTOS, Joel Rufino dos. Épuras do social: como podem os intelectuais


trabalhar para os pobres. São Paulo: Global, 2004.

SANTOS, Joel Rufino dos. O Saci e o Curupira e outras histórias do fol-


clore. Rio de Janeiro: Ática, 2021.

SCHADEN, Egon. Aspectos fundamentais da cultura Guarani. São Paulo:


Ed. da Universidade de São Paulo, 1974.

SILVA, Celso Sisto. Bô sukuta! Kada kin ku su manera: as junbai tradi-


cionais africanas recriadas na literatura infantojuvenil brasileira, eué! 2012.
Tese (Doutorado) – Faculdade de Letras, Pontifícia Universidade Católica do
Rio Grande do Sul, Porto Alegre, 2012.

VIEIRA, Maressa de Freitas. O Saci da tradição local no contexto da mun-


dialização e da diversidade cultural. 2009. Tese (Doutorado) – Faculdade
de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2009.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
DESEJOS PARA A CONTINUIDADE DAS
AÇÕES DE COMBATE AO RACISMO
INSTITUCIONAL NO CAP-ESEBA-UFU1
Fernanda Cássia dos Santos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

• Que a paisagem da Eseba seja cada vez mais diversa.


• Que as cotas étnico-raciais para docentes sejam realidade, e que
possamos superar a ausência de professores negros em nossa escola.
• Que as crianças que ingressaram por cotas étnico-raciais recebam
afeto, acolhimento e que se sintam representadas como merecem.
Que consigam se manter na escola e que não haja qualquer distinção
entre elas e as demais crianças que estudam na Eseba.
• Que nós, docentes, não tenhamos expectativas de que as crianças
cotistas sejam mais comportadas que as demais ou que demonstrem
que valorizam a “oportunidade” de estudar na nossa escola. Que
possamos compreender que nós, brancos e neurotípicos, é que temos
a oportunidade única de vivenciar a diversidade.
• Que pessoas negras estejam presentes nas temáticas que trabalhamos
em sala de aula fora do estereótipo subserviente, oprimido, casti-
gado. Que possamos colorir nossas referências e nosso currículo,
povoando nosso imaginário com a diversidade humana.
• Que situações de racismo que ocorrem no cotidiano da escola sejam
reprimidas e punidas sem jamais serem naturalizadas como “brin-
cadeiras”. Racismo é crime e deve ser tratado como tal.
• Que nós, brancos, possamos compreender que o lugar que nós
ocupamos na sociedade é também um legado da escravidão. Que
possamos compreender nosso lugar de privilégio nessa estrutura de
hierarquia de cor.
• Que nós, docentes brancos, não nos sintamos tão benevolentes
e antirracistas porque implementamos as cotas étnico-raciais na
nossa instituição tampouco porque participamos do projeto “Cons-
truindo uma Escola Antirracista”, pois as estruturas do racismo
são muito fortes e estas ações foram apenas um primeiro passo
de enfrentamento.

1 Texto escrito para o encerramento da I Semana Preta da Eseba, ocorrido no dia 30 de abril de 2022. A
Semana Preta foi construída como uma celebração de resultados do Projeto Construindo uma Escola
Antirracista: ingresso e permanência de cotistas na educação básica.
124

• Que possamos refletir sobre o quanto nossos processos de avaliação


refletem e contribuem para a manutenção das desigualdades em
nossa sociedade.
• Que sejamos capazes de nos abster do ato de julgar a realidade
de nossos estudantes a partir de nossa própria realidade e de nos-
sos privilégios.
• Que situações que envolvem comportamentos, vivências e valores
de nossos estudantes não interfiram em decisões sobre quais alunos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


devem ou não ser acompanhados pela psicologia e pela assesso-
ria escolar.
• Que ao deliberar sobre a aprovação ou retenção de estudantes que
não obtiveram nota suficiente para a promoção para a série seguinte
sem discussão pelo conselho de classe, consigamos estabelecer cri-
térios claros e objetivos. Que nesses, e em todos os outros momen-
tos, possamos nos questionar se nosso olhar sobre nossos alunos
não está carregado de nossos preconceitos de raça, classe, gênero
e sexualidade.
• Que nossa prática pedagógica seja de enfrentamento às desigual-
dades e não de reprodução das exclusões que já permeiam toda
nossa sociedade.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

E AFETOS
RE�L��Õ�S, EXPERIÊNCIAS
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE CIDADANIA E A QUESTÃO
DAS DESIGUALDADES
Adalberto de Salles-Lima
Rita Silvana Santana dos Santos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Neste capítulo desenvolvemos um ensaio acerca da relação entre a questão


racial no Brasil e o debate eurocêntrico em torno da Cidadania. A escolha do
tema emerge da nossa vivência enquanto negro e negra em uma sociedade pro-
fundamente desigual. Na vida real, a cidadania não é um direito universalmente
concretizado, pois possui natureza restritiva às populações historicamente mar-
ginalizadas. O que não deveria ser motivo de espanto, uma vez que a construção
desse termo e quem a possui plenamente não é originária das massas populares.
Para além de uma definição jurídico-legal de cidadania enquanto o sujeito
portador de direitos e deveres determinados por Leis, a mesma é um fenômeno
social que condiciona o status de cidadão a processos históricos em curso.
No caso dos países colonizados, a exemplo do Brasil, a condição do exer-
cício pleno da cidadania difere entre grupos sociais, não por uma condição
naturalizante, e, sim, na interação entre marcadores sociais da diferença (raça,
classe, gênero, deficiência e sexualidade) que produzem desigualdades sociais.
De modo geral, o campo de estudo que remete ao debate mais clássico, por
assim dizer, sobre o tema cidadania mostra o surgimento desta em contextos
europeus com finalidade de atribuir papéis específicos da vida urbana na cidade:
o direito a pertença e participação na vida pública, a exemplo da Roma Antiga e
da Grécia. Na sociabilidade urbana, demarcada por um conjunto de privilégios,
concentração e distribuição de poderes, haveria de distinguir quem seria cidadão:
o homem branco, adulto, cristão e com propriedades. Os/As demais – mulheres,
crianças e escravizados – jamais fizeram parte da proteção jurídica.
Essa cidadania se constitui então como um mecanismo estrutural e multi-
setorial organizador da sociedade. De algum modo, essa construção estrutural
de cidadania, limitada a determinados marcadores sociais da diferença, foi
se mantendo ao longo dos processos históricos fora da Europa. Independente
das localidades e conjunturas políticas, culturais e institucionais, a expansão
do eurocentrismo pelo projeto colonial tratou de universalizá-lo no mundo
ocidental, ao reproduzi-la, tanto no sistema jurídico (conceito) quanto no
cotidiano dos sujeitos (fenômeno social).
Entre os séculos XVII e XVIII, John Locke contribui para o conceito de
cidadania, cuja natureza restrita considerou a liberdade individual e o direito
de propriedade privada, para garantir à burguesia os direitos políticos nega-
dos pela nobreza que era a classe dominante (LOCKE, 2014). Na Revolução
Francesa (1789-1799), o entendimento de cidadania foi globalizado junto
128

com o verdadeiro caráter ideológico da burguesia liberal1, através do lema:


igualdade, liberdade e fraternidade. A Revolução Francesa buscou romper
com a rígida hierarquização social não benéfica à burguesia, tendo em vista
que a concentração de privilégios estava no clero (regime absolutista).
A Revolução Francesa é considerada o marco histórico do desenvolvimento
do pensamento liberal no século XVIII. Baseada no princípio iluminista do lema
acima (igualdade, liberdade e fraternidade), substituiu a monarquia, a aristocracia
e enfraqueceu o poder da igreja. Como parte dos resultados desses acontecimen-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tos, houve a implantação da república democrática, militarização dos aparelhos
de Estado, estímulo à propriedade privada, nacionalismo e a noção de cidada-
nia (BOBBIO, 1997; SANTOS, 1997). Como doutrina política, o liberalismo
é uma ideologia de classe, especificamente burguesa. Suas bases ideológicas
estão alicerçadas no Estado, através da ordem como princípio, para assegurar a
liberdade individual e a propriedade privada (DEMO, 1995; GUSMÃO, 2001).
As mudanças sociais e econômicas decorrentes das dinâmicas do mer-
cado internacional somadas à concretização da tomada de poder pelas elites
burguesas representaram diretrizes na busca de um indivíduo pertencente a
um Estado democrático de direito e a ideia de que todos os homens nascem
livres e, portanto, possuidores de direitos. Essa cidadania francesa demonstra
um espírito político, que adentra relações de poder local. É também universal,
replicado do âmbito nacional para o internacional, como forma de romper a
estrutura de dominação (sobretudo nas colônias) e no intuito de beneficiar o
capitalismo liberal junto com outros propósitos imperialistas.
Esses ideais da Revolução Francesa e a Declaração Universal dos Direitos
Humanos (publicada em 1948) subsidiam a perspectiva de cidadania hege-
mônica no Brasil. A ideia de tornar universal os direitos básicos a todos os
humanos intencionou transcender a nacionalidade e os marcadores sociais de
exclusão, respectivamente. A referida declaração é aprovada no período da
ditadura militar no Brasil, em que o direito à liberdade de expressão, a parti-
cipação nas decisões políticas, o acesso aos direitos sociais como educação e
saúde eram cerceados. Além destes, o racismo, o machismo, o capacitismo e
a homofobia eram ostensivos, intensificando a lógica restritiva da cidadania
e o silenciamento do Estado frente a determinados grupos sociais. A reivin-
dicação pelos direitos básicos, dentre eles o de existir, subsidiou a criação de
movimentos/coletivos sociais que, dentre outros, contribuíram para desvelar
a hegemônica ideia restritiva de cidadania, mesmo após a ditadura militar e
a promulgação da Constituição Federal de 1988.
A literatura especializada mostra a cidadania como um conceito em disputa
e fenômeno de origem cultural que se tornou universal. Estar em disputa faz

1 É importante ressaltar que o liberalismo foi uma doutrina político-econômica originada durante o processo
de transição do sistema feudal para o capitalismo. Surge gradativamente como uma forma de oposição às
monarquias absolutas e ao seu correspondente regime econômico, o mercantilismo (STEWART, 1995).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 129

parte de sua natureza eminentemente política e, por isto, pode ser interpretada e
reivindicada sob diferentes interesses ideológicos e necessidades históricas. Seja
na academia, nas políticas públicas ou de forma mais ampla na sociedade civil,
por diferentes segmentos da sociedade, já é consenso que a definição jurídica
não garante a concretização da cidadania no cotidiano dos sujeitos.
Outro ponto observado é que a cidadania ressalta a dualidade entre: a) o
discurso oficial-hegemônico, marcado pelas definições revestidas da abstração
dos conceitos e convenções, cuja aplicabilidade não condiz com a realidade da
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

maioria da população; b) aquela idealizada cidadania que sujeitos de “carne e


osso”, que sofrem as desigualdades sociais, ainda não experimentaram. Esse
termo, que transita entre o conceito jurídico e o fenômeno social, é dicotô-
mico e ajuda a entender parte da estrutura social alicerçada em relações de
hierarquias entre diferentes grupos sociais e na capacidade desigual destes
em reivindicar direitos frente ao Estado.
A literatura também ressalta que a cidadania consolidou a universalização
dos direitos humanos no sistema capitalista mais contemporâneo. Sustentado
no desenvolvimento do direito político, avanços e retrocessos no campo dos
direitos humanos e civil e transformações das forças produtivas e relações de
trabalho, a cidadania é mais próxima da dimensão individual e de propriedade
e cada vez mais distante da dimensão coletiva, da garantia de direitos a todos/
as (GOHN, 1995). Há uma sobreposição da ideia liberal de liberdade (indivi-
dual) e igualdade (jurídica) entre os homens, vista na Revolução Francesa, e
pressupostos liberais, reforçada pela agenda de Estado neoliberal que reforça
a representação de cidadania à mobilidade social meritocrática, e não coletiva,
garantida pelo próprio Estado.
Enquanto, na Europa, o entendimento de cidadania sustentado no dis-
curso liberal defendia a liberdade individual, o enfraquecimento da igreja, a
consolidação da democracia, a propriedade privada e Estado soberano, como
podemos imaginar tal perspectiva e suas intenções nas periferias do sistema?
Essa questão é desafiadora para refletir sobre a cidadania fora do comodismo
dos marcos teóricos clássicos e eurocêntricos que tendem a explicar o mundo
a partir da Grécia e que silenciam processos históricos no Sul global.
Na América Latina, a cidadania é vinculada a marcadores sociais da dife-
rença construídos na colonização: raça, gênero, sexualidade e religiosidade.
A lógica dominante de determinação da cidadania, a partir de hierarquias
sociais, parece atravessar a Grécia Antiga e chegar na América Latina com a
modernidade. Isso faz sentido, uma vez que a América Latina é construção
histórica de um processo civilizacional: a Europa-Latina.
A íntima relação entre Estado e Igreja na manutenção da estrutura de
dominação colonial na região reforçou a imobilidade social por muitos séculos.
Mesmo que a cidadania, tal qual estudamos e conhecemos hoje, tenha aparecido
no mundo durante o século XVII, no campo da garantia dos direitos humanos,
130

das liberdades, proteção social e realização humana pelas Constituições Fede-


rais e outras Leis, no caso brasileiro, a cidadania ainda não superou os lega-
dos da colonização, a exemplo da racialização do trabalho (QUIJANO, 2005;
MBEMBE, 2011) e patriarcado (SEGATTO, 2003). Mas a mesma deveria supe-
rar esses legados coloniais, considerando os propósitos do sistema internacional?
Ao pensar no alargamento da cidadania, enquanto fenômeno social que
serve para visualizar parte das desigualdades, a colonização europeia nas
Américas mostrará a existência de uma cidadania anterior aos próprios marcos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


teóricos e jurídicos do século XVII, onde a legitimação da liberdade individual
e o direito à propriedade não estavam no horizonte das populações negras,
indígenas e mulheres. E também há de se pensar nas pessoas com deficiência,
de sexualidades não normativas e de práticas religiosas não cristãs. Mas essa
demarcação estrutural não é explicada somente pelo agrupamento entre os
marcadores sociais da diferença que determinaria quem seriam os sujeitos
protegidos pelo modus operandi.
No caso das relações étnico-raciais, a legitimação do homem branco
enquanto sujeito universal (determinação autointitulada), e, portanto, sujeito
de direito, se pautava também na desumanização do Outro, ao envolver um
conjunto de barbáries aplicadas e mantidas pelo colono (CAMPOS, 2005;
THEODORO, 2008). Não sabemos ao certo em que medida o conjunto de
práticas perversas aplicadas nos escravizados eram justificadas somente pelo
discurso amplo da estrutura colonial. Nos é curioso imaginar como a suposta
superioridade racial em pleno sistema escravagista mexia com o imaginário
perverso e de dominação do branco e, por muitas vezes, o estimulava a exercer
torturas, castigos, estupros e assassinatos generalizados.
Há um certo costume, em parte do campo de estudo, em reproduzir os
clássicos que se aproximam mais de uma abordagem abstrata. Tal abordagem
dialoga com campo jurídico que pensa o sentido amplo de cidadania desde sua
presença, a partir da modernidade na região, em especial, no Brasil, até seus
desdobramentos no contemporâneo com atenção na relação com os marcadores
sociais da diferença. As análises em torno deste conceito legal (jurídico) –
noção (senso comum) – fenômeno social (processos sociais) sinalizam para
uma produção histórica fora da Europa e crítica ao eurocentrismo acadêmico
que apresenta análises não hegemônicas.
Por fim, a cidadania pode ser entendida como um horizonte a ser alcan-
çado, sobretudo no caso dos marginalizados. Com base nos propósitos desse
ensaio, a cidadania tem sentido mais relevante ao analisar a capacidade e
condições que permitem, ao defrontar o Estado, que entende o mundo e sua
condição (SANTOS, 1997). Sua presença nas leis e no cotidiano tem sentido
utópico para a maioria da população. Nesse sentido, a cidadania é muito mais
uma abstração que algo concreto.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 131

REFERÊNCIAS
BOBBIO, Norberto. Locke e o Direito Natural. Tradução: Sérgio Bath.
Brasília: Ed. UnB, 1997.

CAMPOS, Andrelino. Do quilombo à favela: a produção do “espaço crimi-


nalizado” no Rio de Janeiro. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 2005.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

DEMO, Pedro. Cidadania tutelada e cidadania assistida. Campinas: Editora


Autores Associados, 1995.

GUSMÃO, Luís Augusto Sarmento Cavalcanti de. Constant e Berlin: a liber-


dade negativa como a liberdade dos modernos”. In: SOUZA, Jessé (org.)
.Democracia hoje: novos desafios para a teoria democrática contemporânea.
Brasília: Ed. UnB, 2001.

LOCKE, Jonh. Cartas sobre a tolerância. Tradução: Jeane B. Duarte Rangel.


São Paulo: Ícone, 2014.

MBEMBE, Achille. Necropolítica seguido sobre el governo privado indi-


recto. Traducción, edicíon: Elisabeth F. Archambault. Melusina, 2011.

QUIJANO, Aníbal. Colonialidad del poder, eurocentrismo y América


Latina. In: CLACSO. A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciên-
cias sociais. Perspectivas latino-americanas. Buenos Aires: CLACSO,
2005, p. 117-142. Disponível em: http://biblioteca.clacso.edu.ar/clacso/sur-
-sur/20100624103322/12_Quijano.pdf.

SANTOS, Milton. As Cidadanias Multilada. In: BUCCI, Eugênio et al. (orgs.).


O preconceito. São Paulo: Imprensa Oficial do Estado, 1997. p. 133-144. Dis-
ponível em: http://www.miltonsantos.com.br/site/wp-content/uploads/2011/12/
As-cidadanias-mutiladas_MiltonSantos1996-1997SITE.pdf.

SANTOS, Wanderley Guilherme dos. Do laissez-faire repressivo à cidada-


nia em recesso. In: CIDADANIA e justiça. Rio de Janeiro: Campus, 1979.
p. 71-82.

SEGATTO, Rita Laura. Las estructuras elementares de la violencia: ensayos


sobre género entre la antropología, el psicoanálisis y los derechos humanos.
Bernal: Universidad de Quilmes, 2003.
132

STEWART, Donald Jr. O que é o Liberalismo? Rio de Janeiro: Instituto


Liberal, 1995.

THEODORO, Mário (org.) et al. As políticas públicas e a desigualdade


racial no Brasil: 120 anos após a abolição. Brasília: IPEA, 2008.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


REPENSANDO A LEI Nº
10.639/2003: política e novas
epistemologias no espaço escolar
Gerson Alves de Oliveira
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Majoritariamente, o processo de ensino aprendizagem está ancorado


em uma perspectiva dicotômica, enquanto paradigma pedagógico que pro-
cura simplificar a realidade de modo a criar e estabelecer uma dissociação
no processo de conhecimento. Nessa conjuntura, o conceito de diferença
é o elemento central, pois se caracteriza de modo a reduzir o exercício da
aprendizagem a uma mera construção idealizada, fruto de um ponto de vista
uníssono. Verifica-se a existência de um dualismo nessa narrativa, que se
constitui como parte de um exercício político em que a dominação aparece
como uma ideologia precisa de um “Outro”, imagem estereotipada que possa
se contrapor a um “Eu” universal.
Essa divisão, enquanto metodologia existente no campo educacional, é
parte de um discurso em que o medo ao estranho e desconhecido são inventa-
dos como coisas que precisam ser combatidas, caracterizadas como ameaças
à ordem e à estabilidade social. Reforça-se, assim, um discurso que busca
suprir as necessidades do poder em que a sociabilidade reinante exige uma
resposta aqui e agora, pragmática e válida em todo lugar. Não é só o poder
enquanto instituição material, concreta ou que pode ser expresso em estrutura
econômica ou de classe, mas, sobretudo, o poder pensado enquanto discurso
que captura os corpos através da coerção e da disciplina.
Nessa perspectiva, é preciso problematizar as memórias como elemento
capaz de revelar uma experiência seletiva, cujo significado evidencia aspectos
históricos importantes que estruturam o pensamento coletivo enquanto um
fenômeno construído socialmente. No caso, é necessário entender a identi-
dade como parte dessa memória histórica, pois “o que a memória individual
grava, recalca, exclui, relembra, é evidentemente o resultado de um verdadeiro
trabalho de organização” (POLLACK, 1992, p. 5).
Vale chamar atenção para a desigualdade como instrumento de otimiza-
ção de uma sociabilidade marcada pela meritocracia, que, por definição, con-
figura a própria essência da ideologia justificadora de privilégios existentes no
universo brasileiro. Nessa linha, procura-se descaracterizar os determinantes
sociais e toda uma estrutura, de modo a fazer valer a ideia de que prevalecem
os indivíduos, livrem, conscientes e críticos, submetidos à mesma realidade
134

social e econômica. No caso, o debate e o entendimento sobre a desigualdade


são compreendidos a partir de uma dicotomia em que sucesso e fracasso são
dois campos e situações em que as pessoas são localizadas e em que pode-
mos identificar quem pode ou não pode, quem tem ou não capacidade para
conquistar um lugar de destaque no mercado da vida.
De outro modo, a meritocracia, enquanto fundamento ideológico e polí-
tico, justifica e normatiza pontos de vistas em que a ideia de harmonia social
acaba se sobrepondo. Essa justaposição entre mérito e nacionalidade, no mer-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cado da “brasilidade”, é sempre colocada na mesa na hora em que se discutir
medidas de combate ao racismo e as políticas de implementação das ações
afirmativas: cotas para negros nas universidades ou a Lei nº 10.639/20031.
No caso, não se reconhece que tais ações representam mudanças históricas
significativas que refletem o movimento de luta no tocante à constituição de
um sentimento de questionamento sobre aquilo que se denomina “identi-
dade nacional”.
Nesse caso, falar de educação das relações étnicos-raciais e/ou de um pro-
cesso de ensino que considere a diversidade e a multirracialidade no ambiente
escolar, implica em partir da diferença/identidade ou da classificação racial/
social enquanto ponto de partida, ou seja, enquanto início de diálogo pedagó-
gico, revelador de um novo paradigma. Nessa conjuntura, é correto afirmar
que a Lei nº 10.639/2003, além de demonstrar o reconhecimento do racismo
como elemento estrutural por parte do poder público, iniciou um processo de
desconstrução de um sentimento de nacionalidade cujo objetivo era investir na
produção de consenso em meio à diversidade de grupos étnicos subordinados.
Dito isto, é necessário pensar o espaço escolar e os agentes nele envol-
vidos como peças fundamentais nesse contexto de mudanças em que se con-
solida a ressignificação da educação e do conhecimento centrado no discurso
colonial. Esse cenário implica na sistematização de novas informações, novas
conceituações sobre esse novo ambiente educacional em que o Estado passa
a ser protagonistas de ações afirmativas que visam discriminar positivamente
com o objetivo de compreender quais são as necessidades de grupos anterior-
mente excluídos do ambiente escolar.
A respeito disso, pode-se dizer que o espaço escolar se constitui em um
ambiente dialógico, marcado pela necessidade de um empreendimento cientí-
fico voltado para a compreensão do fenômeno do racismo e de sua reprodução.
Não obstante, o campo educacional transformou-se em um ambiente de ação

1 A Lei nº 10.639/2003 altera a Lei nº 9.394, de 20 de dezembro 1996, que estabelece as Lei de Diretrizes e
Base da Educação Nacional (LDBEN)). Mais tarde é promulgada a Lei nº 11.645/2008, que faz mais uma
alteração na Lei nº 9.394/1996, modificada pela Lei nº 10.639/2003, que estabelece as diretrizes e bases da
educação nacional, para incluir no currículo oficial da rede de ensino a obrigatoriedade da temática “História
e Cultura Afro-Brasileira e Indígena”.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 135

política em que a inclusão da população negra, sua cultura e história, era


condição necessária para fazer valer a lei que fazia da educação das relações
étnico-raciais um meio para:

[...] a divulgação e produção de conhecimentos, bem como de atitudes,


posturas e valores que eduquem cidadãos quanto à pluralidade étnico-ra-
cial, tornando-os capazes de interagir e de negociar objetivos comuns que
garantam, a todos, respeito aos direitos legais e valorização de identidade,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

na busca da consolidação da democracia brasileira (BRASIL, 2004, p. 19).

De outro modo, o processo de ensino-aprendizagem, a partir da Lei


nº 10.639/2003, foi central enquanto política de combate ao racismo, tendo
como instrumentos conceituais a ressignificação dos conceitos de diferença e
identidade. Podemos dizer que a Lei potencializou tais conceitos à medida que
evidenciou suas possibilidades em um desafio político. Além disso, tal ação
reforça que a ideia de identidade e diferença deve ser compreendida como
referenciais capazes de alargar a estrutura curricular para além das grades que
excluem saberes. Isto é, identidade e diferença deixam de ser meras categorias
de classificação, para se tornarem expressões de saberes diversos, de expe-
riências culturais e memórias históricas, reveladores de um novo paradigma.

Um novo paradigma pedagógico

Todo discurso está submetido àquele que fala, cujos sentidos e significa-
dos são frutos de um conjunto de valores e de uma determinada sociabilidade,
bem como de um tempo histórico específico, que faz surgir sistemas de repre-
sentação (HALL, 2001). Isso posto, é preciso reconhecer que o conhecimento
não é fruto do abstrato, mas do embate entre diferentes “tempos simbólicos”.
Tal perturbação existe no espaço escolar, principalmente, quando analisamos
o contexto de implementação da Lei nº 10.639/2003 e as dificuldades na mate-
rialização de ações que consideram aspectos políticos históricos na discussão
sobre afirmação da identidade étnica que não seja racializada. Ser partidário
dessa premissa é admitir que o processo de ensino precisa ser entendido como
um exercício crítico da realidade social em que a escola está inserida. Além do
mais, exige modificar as atitudes e posições dos atores/agentes responsáveis
no processo de ensino-aprendizagem.
Nessa situação, a identidade negra e o reconhecimento de um sentimento
étnico, como aceitação de um novo paradigma pedagógico, fundamentado na
Lei nº 10.639/2003, servem como facilitadores na luta da população afro-bra-
sileira. Podemos dizer que o fortalecimento dos direitos sociais e do processo
de inclusão e participação na cidadania, com consequente reconhecimento e
136

incorporação à prática pedagógica da história da cultura da população negra,


tornou-se um fator de inquietação epistemológica, gerador de conhecimento.
Essa alteração, no tocante ao processo de ensino-aprendizagem, evidencia
uma necessária inclusão de saberes, trazendo visibilidade a outras experiên-
cias a partir da aceitação de novas abordagens históricas. Tudo isso implica
na aceitação de uma identidade mais horizontalizada, necessária para que
se possa construir um movimento capaz de pôr em questão uma identidade
mais verticalizada. Subtende-se, nesse sentido, reconhecer a escola como um

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ambiente de conflitos ideológicos, uma sociabilidade capaz de gerar indagação
enquanto ferramenta metodológica para pensar uma educação multiétnica,
inclusiva e diversa.
Na obra Pedagogia do Oprimido, Paulo Freire alerta para a existência
de um falso dualismo, cuja característica central consiste na desumanização,
fruto de uma determinada ordem de coisas, fazendo valer uma certa funcio-
nalidade contraditória que opressores e oprimidos acabam por reproduzir.
Segundo argumenta Freire, a superação dessa falsa ordem estabelecida, em
que o opressor cria e reforça sua dominação, desaparecerá no momento em
os oprimidos se colocarem no mundo, reconhecendo sua própria condição
sociocultural como não contaminada pela opressão, mas por um sentimento
de luta pela humanização, uma ação propositiva e crítica que não cabe na
ação do dominador.

[É] aquela que tem de ser forjada com ele e não para ele, enquanto homens
ou povos, na luta incessante de recuperação de sua humanidade. Pedagogia
que faça da opressão e de suas causas objeto da reflexão dos oprimidos,
de que resultará o seu engajamento necessário na luta por sua libertação,
em que esta pedagogia se fará e refará (FREIRE, 1987, p. 20).

Segundo a pista indicada pelo mestre Paulo Freire, podemos dizer que
esses polos, aparentemente antagônicos, que reforçam e manutenção da opres-
são e da dominação no tocante à educação, passa hoje por um processo de
desconstrução. Essa tese é reforçada por Valter Silvério, professor e um reno-
mado pesquisador da educação das relações étnicos-raciais no Brasil. Silvé-
rio ressalta que esse desmonte iniciou-se graças ao protagonismo de grupos
sociais que pautaram uma agenda de mudanças no tocante a certas categorias
chaves para se pensar a identidade nacional. A diversidade étnica cultural,
como elemento chave para pensar a história da nação brasileira (SILVÉRIO,
2005), aparece já na Constituição Federal de 1988.
O campo educacional tornou-se um espaço de disputa em que o protago-
nista foi o movimento negro organizado, cuja principal reivindicação foi fazer
valer o princípio do texto constitucional de 1988. Isto é, pautar transformações
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 137

no tocante à renovação da cultura educacional enquanto instrumento de ques-


tionamento do racismo estrutural. Tais esforços foram intensificados a partir da
década de 1990 e se materializam em ações de políticas públicas direcionadas
para o combate ao racismo e o preconceito no ambiente escolar.
O importante nesse contexto foi o reconhecimento das experiências his-
tóricas e culturais da população negra, consagrado com a aprovação da Lei
nº 10.639/2003, e a implementação da Resolução nº 3/2004 e do Parecer do
Conselho Nacional de Educação (Conselho Pleno 001/2004). Tais conquistas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

se caracterizam pelo reconhecimento do racismo estrutural por parte do Estado


e pela aceitação de parâmetros legais com objetivo de atender demandas
diretamente relacionadas às identidades étnico-raciais.
Cabe dizer que os desafios relacionados à discussão e à aplicação de
uma educação para as relações étnico-raciais, história e cultura afro-brasi-
leira, tornaram-se um tema presente no universo escolar – algo que fomenta
um conjunto significativo de ações em torno de uma prática educacional
antirracista. No caso, as possibilidades e a superação das dificuldades na
implementação da Lei nº 10.639/2003 suscitam o envolvimento de professo-
res e professoras e da escola, bem como o reconhecimento, hoje, do ensino
como sendo uma categoria em disputa. Observa-se uma ascensão em posições
políticas de enfrentamento das chamadas ações afirmativas, principalmente
no campo político institucional. Paralelamente a esse processo, ocorre uma
agitação social no tocante ao tema da educação e da relação entre o papel do
professor e do ensino. Vale destacar o famigerado projeto escola sem partido2,
capitaneado por setores mais conservadores da sociedade e questionadores,
também, das políticas de reparação e valorização da história e cultura negra.
Pode-se afirmar que estamos vivenciando um momento de transição,
cujo processo coloca profissionais da educação e a escola no centro do debate
político, mesmo que este debate seja raso quando se trata de projetos e medidas
voltados para a melhoria do ensino no país. O que se vê é uma discussão pouco
produtiva e mais atrelada ao calor ideológico em que o ambiente escolar se
transformou: uma ameaça aos costumes, à família e a ordem política social.
No caso, a Lei nº 10.639/2003 precisa ser encarada a partir de uma pos-
tura de resistência ativa e criativa, que possa reflorestar o imaginário educa-
cional e responder a essa monocultura do saber pedagógico e da ação política
que tende a privilegiar uma cultura, um saber e um currículo adequado a

2 O projeto Escola sem Partido se caracteriza por ser uma iniciativa de cunho político conservador que visa
a partir da mobilização de parte da sociedade criar mecanismo de contensão para o que eles acreditam
ser uma “contaminação político-ideológica das escolas brasileiras, em todos os níveis: do ensino básico ao
superior”. O movimento foi [...] “criado para dar visibilidade a um problema gravíssimo que atinge a imensa
maioria das escolas e universidades brasileiras: a instrumentalização do ensino para fins ideológicos, políticos
e partidários”. Disponível em: https://www.escolasempartido.org/. Acesso em: 11 set. 2021.
138

uma só episteme. Frente a isso, se impõe o desafio de repensar os currículos,


a formação docente e o conhecimento histórico que prevalecem no âmbito
educacional enquanto saberes dominantes.
A essa realidade, é preciso ter claro que a polifonia do mundo real quebra
a sonoridade unilateral presente no universo escolar em meio a tanta diversi-
dade étnica, cultural, histórica e de saberes. Nesse sentido, o questionamento
desse canto belo e único se coloca no campo educacional, como bem reforça
Nilma Lino Gomes, pedagoga e pesquisadora do tema da educação das rela-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ções étnico-raciais. Para essa autora, a educação se coloca como um ponto
de articulação entre a teoria e a prática, uma vez que:

embora não seja uma relação linear, os avanços, as novas indagações e


os limites da teoria educacional têm repercussões na prática pedagógica,
assim como os desafios colocados por essa mesma prática impactam a
teoria, indagam conceitos e categorias, questionam interpretações clássicas
sobre o fenômeno educativo que ocorre dentro e fora do espaço escolar
(GOMES, 2012, p. 99).

Tal premissa considera que o processo de ensino-aprendizagem não deve


ser pensado a partir da reprodução nua e crua do currículo e do conteúdo,
mas, sobretudo, como mecanismo que permite reconhecer que a realidade
escolar está conectada com as pessoas e suas consequentes posições políti-
cas, ideológicas, culturais e sociais. Todavia, essa postura significa indagar,
questionar e problematizar o ambiente escolar enquanto espaço de produção
do conhecimento, cuja dinâmica envolve sujeitos com experiências e olha-
res antagônicos.
Nesse contexto, vale considerar a realidade de grande parte das escolas
dos mais diversos municípios em nosso país, o que nos leva a fazer uma
análise que exige o enfrentamento de um cenário não muito favorável no
que diz respeito à implementação de ações que visam o fortalecimento de
uma educação antirracista. Não obstante, é necessário reconhecer que existe
o entendimento de que o combate ao racismo não pode instaurar um conflito
étnico, em um país onde o mito da democracia racial sempre aparece como
narrativa, cujo sentido político é deslocar o debate em torno do fortalecimento
de ações ressaltadas na Lei e as consequentes diretrizes.
Como foi dito, a Lei nº 10.639/2003 e sua concretização é parte de um
processo político que foi fomentado a partir da Constituição de 1988, quando
esta ressalta, no artigo 242, inciso primeiro, que: “O ensino da história do
Brasil levará em conta as contribuições das diferentes culturas e etnias para a
formação do povo brasileira”. No entanto, apesar de enfatizar o caráter diverso
em nossa formação, o texto constitucional realça a ideia de uma contribuição.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 139

Ou seja, acaba por corroborar a noção de um lugar menor e não tão importante
quando se trata de pensar a população negra em comparação com o branco
europeu na formação da nação.
É válido relacionar esse ponto com aquilo que foi consolidado a partir
de uma obra como Casa Grande e Senzala (1933), de Gilberto Freyre, antro-
pólogo e pensador brasileiro, que se consagrou ao defender a ideia de existir
uma cultura brasileira oriunda da mistura entre negros, brancos e índios. Para
esse consagrado pensador brasileiro, “nossa cultura” tinha como característica
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

principal a convivência passiva e a incapacidade para o conflito que deu na


formação de uma identidade nacional, fundamenta na democracia racial3.
Não obstante, enquanto perspectiva teórica defensora do mito da demo-
cracia racial, esse movimento tende a despolitizar qualquer manifestação
por parte população negra4, de modo a realçar os aspectos folclóricos de
suas experiências e da sua identidade étnica. Esse empreendimento teó-
rico e histórico-político buscou sempre descaracterizar o valor da cons-
ciência identitária dos povos africanos, de modo a fragilizar e destruir
uma memória que pudesse se contrapor ao projeto colonizador escravista
(MUNANGA, 2015).
Sobre essa questão, é importante citar o protagonismo do movimento
negro5, cuja luta se traduz em uma tentativa de politizar a identidade negra,
buscando ressaltar a positividade de um conjunto de costumes, práticas e tra-
dições. Seu ativismo está na defesa da identidade negra enquanto etnicidade
que precisa ser considerada e aceita pelo Estado. Seu papel e sua atuação,
a partir do final dos anos 1970 até a década de 1990, no que diz respeito ao
questionamento de chamada democracia racial, foi o de tentar desconstruir

3 O pensamento de Gilberto Freyre é partidário de uma antropologia, cujo fundamento é a escola culturalista
de Franz Boas, antropólogo norte-americano, crítico do evolucionismo clássico e das ideias partidárias
das chamadas “teorias raciais” muito em voga até meados do século XX. Essa prerrogativa acabou por
tornar-se referencial nas reflexões sobre a formação do Brasil. Pode-se afirmar que a insistência de Freyre
na harmonia entre os grupos étnicos formadores da nação brasileiro tem origem nessa tentativa de rejeitar
qualquer hierarquização racial/cultural. Assim, motivado na antropologia de Boas, Freyre cria “uma nova
imagem, uma espécie de mito de origem de uma nova nação nos trópicos: em Casa grande e senzala, ele
constrói os alicerces da idéia de que existe, de fato, uma ‘cultura brasileira’, produto de um amalgama de
diferentes ‘raças’/ ‘culturas’, que constituiria a ‘essência’ de uma nova nação” (HOFFBAUER, 2006, p. 35).
4 Nesse contexto o conceito de “raça” se coloca como central, uma vez que serviu com fundamento ideológico
para o projeto de consolidação do homem universal. Isto é, o ideal de humanidade precisava do seu oposto:
o selvagem. Nesse aspecto, a “raça” enquanto categoria científica justificou a diferença e a necessária
desumanização do “Outro” negros e indígenas (ALMEIDA, 2019).
5 Cabe chamar atenção para o caráter multifacetado do movimento negro no que tange a luta política e
pela ampliação da cidadania da população afro-brasileira e africana. Nesse caso, vale a pena ver a obra
de PEREIRA, Amilcar Araujo. “O mundo Negro”: a constituição do movimento negro contemporâneo no
Brasil (1970-1995). Tese (Doutorado) – Programa de Pós-Graduação em História, Universidade Federal
Fluminense, Niterói, 2010, p. 220.
140

uma identidade circunscrita ao aspecto folclórico. Essa postura incisiva e


combativa permitiu um agenciamento do espaço escolar enquanto lugar de
alargamento do paradigma pedagógico restrito ao olhar eurocêntrico.
Nessa conjuntura, a Lei nº 10.639/2003 é reflexo desse processo histó-
rico em que o movimento negro foi figura central, é parte de um conjunto
de ações afirmativas de reconhecimento da história e cultura do povo negro,
o que pode ser caracterizado como uma discriminação positiva frente ao
processo histórico de exclusão. Além do mais, a lei se caracteriza por um

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


posicionamento político que revitaliza o protagonismo da população negra
e, ao mesmo tempo, evidencia o enfraquecimento de uma visão ideológica
sobre a identidade nacional, caracterizada pelo mito da mestiçagem e da
valorização da harmonia entre os grupos étnicos responsáveis pela consoli-
dação da nação brasileira.
Podemos dizer que o movimento negro suscita uma postura crítica do
processo educacional ao denunciar um conformismo quando se trata de ensinar
sobre a história e cultura das populações africanas e afro-brasileiras. Prevalece,
desse modo, uma postura política de reconhecer que a escola é um espaço
em disputa quando se trata de proposições que visam o estabelecimento da
Lei 10.639/2003.
No caso, a Lei significa o reconhecimento, por parte do Estado brasi-
leiro, de que o processo é político, cuja materialização de ações positivas
no tocante à sua implementação implica em discutir os conceitos de “raça”
e “racismo”, para além de uma dicotomia em que a harmonia entre negros
e brancos é sempre permeada por uma oposição gritante. Assim, a Lei e sua
materialização no ambiente escolar suscitam uma análise sobre uma trajetória,
uma experiência, uma memória em que o próprio existir reflete uma resistên-
cia e um posicionamento frente ao mundo. Nilma Lino Gomes destaca que a
postura de agenciamento já estava colocada na luta que constituiu o próprio
movimento negro, pois:

o movimento negro ressignifica e politiza afirmativamente a ideia de raça,


entendendo-a como potência de emancipação, e não como regulação con-
servadora; explicita como ela opera na construção de identidades étnicos-ra-
ciais. [Além disso], indaga a própria historia do Brasil e da população negra
em nosso país, constrói novos enunciados e instrumentos teóricos, ideoló-
gicos políticos e analíticos para explicar como o racismo brasileiro opera
não somente na estrutura do Estado, mas também na vida cotidiana de suas
próprias vítimas. Além disso, dá outra visibilidade a questão étnico-racial,
interpretando-a como trunfo, e não como empecilho para a construção de
uma sociedade democrática, onde todos reconhecidos na sua diferença, sejam
tratados igualmente como sujeitos de direitos (GOMES, 2017, p. 21-22).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 141

Ainda segundo Nilma Lina Gomes, podemos dizer que o papel do movi-
mento negro foi o de suscitar o debate e repensar uma certa celebração da
identidade negra, restrita à exotização da cultura afro-brasileira e africana no
ensino de um modo em geral. No caso, esse exotização ainda aparece quando
vemos como se organiza as datas como o 13 de maio e o 20 de novembro.
Essa postura evidencia certa hierarquia no modo como a população negra
é representada em sala de aula. Diante dessa realidade, é preciso fazer uma
análise não só do ambiente educacional ou da Lei nº 10.639/2003 e suas pos-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sibilidades no tocante ao fortalecimento, inclusão e garantia de uma educação


multirracial, mas, sobretudo, mostrar que há uma reivindicação por parte da
população negra para ter acesso à cidadania de maneira horizontal e equânime.
Nesse cenário, é interessante destacar alguns pontos importante que estão
realçados na Lei nº 10.639/2003 que são: reivindicação ao acesso a educação,
reconhecimento cultural e histórico, combate ao racismo e conquista da cida-
dania. É notório que essa lei se materializa como expressão de um reclame
por parte dos movimentos negros em suas diversas configurações históricas.
Uma posição sobre a necessidade de tornar a democracia racial uma realidade,
de modo a incluir grupos minoritárias e segregados da cidadania.

A Lei e o currículo: teoria e prática pedagógica

A possível materialização da Lei implica em uma discussão sobre a


estrutura curricular e sua relação com a produção do conhecimento na reali-
dade escolar. Isto é, tornar a lei uma ferramenta de desconstrução do racismo
implica em posicionar-se frente ao epistemicidio cotidiano, que anula qualquer
manifestação identitária que não esteja em sintonia com o perfil colonializado.
É preciso evidenciar ações e práticas pedagógicas que possibilitem mostrar a
relação entre conhecimento, cultura e ação política enquanto linguagem que
atravessa as pessoas e fortalece identidades coletivas e cujos sentidos podem
ser traduzidos como “lugares” em que todos possam habitar.
Nessa perspectiva, cabe analisar o modo como a população negra, acuada
pelo medo da violência do racismo, atua e resiste através de um comporta-
mento em muitos casos ambíguos, mas cuja lógica tem relação com a pró-
pria sistematização das relações entre negros e brancos no Brasil. Vejamos,
portanto, registro de Sidney Chalhoub, em sua obra intitulada A força da
escravidão: ilegalidade e costume no Brasil oitocentista, publicado em 2012.
Nesta obra, o autor chama a atenção para o fato de que libertos nos idos do
século XIX, em plena vigência da escravidão, viviam entre a fronteira da
escravidão e da liberdade.
Essa análise de Chalhoub alerta para o fato de que havia na escravidão
uma resistência que não se enquadrava na linguagem de um conjunto de ações
142

marcadas por um sentido político clássico em que prevalece o enfrentamento


entre dois grupos antagônicos. Partindo dessa observação, é correto dizer que,
assim como no passado, hoje, no espaço escolar, o professor deve esmiuçar
as experiências da identidade negra, realçar sua etnicidade de modo a fazer
com que o aluno possa observar elementos do seu cotidiano que podem ser
ressaltados enquanto ponto de partida para fazer valer a aplicação da Lei.
É válido ressaltar aqui a análise de Sueli Carneiro, em sua tese de douto-
rado, intitulada A construção do outro como não-ser como fundamento do ser,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade de
São Paulo, em 2005. Nesse trabalho, Aparecida Sueli Carneiro demonstrou a
consolidação de um pensamento fundamentado na dicotomia entre o “Outro”
e um “Eu” enquanto oposição que se completa, através de uma associação
racial, cuja dimensão política tende a perpetuar um certo dualismo identitário.
Para essa autora, a relação entre negros e brancos foi pautada ao longo
da história moderna a partir de uma classificação racial em que aparecem dois
polos e/ou identidades sempre de maneira hierarquizada. No caso, a escola
funciona como um lugar de justificação dessa lógica enquanto epistemologia
unívoca, caracterizada pela eliminação de qualquer saber e identidade que
não se enquadra na relação hierarquizada/racializada. Diante desse paradigma
eurocentrado, Sueli nos alerta:

Isso nos inspira a apreciar conceitos para, exploratoriamente, conceber a


irredutibilidade da negritude para inscrever-se efetivamente no “paradigma
do Outro” que está dado. Propomos, porém, que, no caso da negritude, a
sua irredutibilidade consiste no seu deslocamento para uma alteridade que
a institui como a dimensão do não-ser do humano. Se o Outro é aquele
através do qual o eu se constitui, o Outrem será aquele intrinsecamente
negado pelo ser, o limite de alteridade que o ser concede reconhecer e se
espelhar. De que nos serviria essa distinção? Para compreender pactos em
que houve oportunidade para que algum e qualquer Outro, pudesse ser
incluído na sociedade brasileira, e que recorrentemente o negro é rejeitado,
situação da qual a nossa história é prenhe de exemplos (CARNEIRO,
2005, p. 27).

Assim, em consonância com a necessidade de desconstruir a falsa dico-


tomia, produto do empreendimento de um “Eu” colonizado/colonizador,
as manifestações artísticas culturais da população negra, sua experiência,
memória e história, devem ser compreendidas não só no plano folclórico, de
modo a fazer com que as vivências, a religião, costumes e as tradições que
existam em uma dada comunidade escolar, caracterizadas pela multirracia-
lidade, típica da sociedade brasileira, merecem ser destacadas como atitudes
políticas que fogem à linguagem institucional, o que poderíamos denominar
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 143

de uma resistência por vezes dissimulada (SCOTT, 2011). Tal reflexão serve
para fortalecer um ambiente educacional em que o currículo possa se fazer
sentir sem necessariamente ficar no plano de uma reprodução técnica da mera
aplicação do conteúdo.
De outro modo, trazer a vivência dos alunos e dos agentes envolvidos na
materialização do espaço escolar permite a criação de um diálogo entre escola/
sociedade/escola e, ao mesmo tempo, alarga o protagonismo de professores e
professoras no sentido de elaborar uma reflexão sobre as culturas negadas e
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

silenciadas quando da aplicação das famigeradas grades curriculares.


Nesse caso, a obrigatoriedade do ensino de história e cultura afro-brasi-
leira e africana, por mais que apareça somente em datas específicas, suscita
debates e discussões acerca da importância do tema no ensino, uma vez que
aflora sentimentos de racismos que acabam se materializando na postura de
como a escola encara a exigência da Lei. Isso ocorre através de ações que
tornam possíveis uma atuação mais crítica sobre a realidade da população
negra, bem como por meio da politização de datas, fatos históricos, eventos
cotidianos e conceitos como o de democracia racial e mestiçagem, além de
frases usadas para reforçar o estereotipo no tocante a identidade negra, seja
por meio da piada, do jargão relacionado ao trabalho, à educação e à vida
sexual do afro-brasileiro.
Podemos dizer que a existência da Lei nº 10.639/2003 e o seu reconhe-
cimento geram uma inquietação e mobilizam o ambiente escolar em torno
de questões cujo fundamento é o resgate da contribuição da população negra
na formação da nação. Algo que pode ser denominado de um novo para-
digma pedagógico, cuja grande mensagem é a desconstrução de uma postura
educacional ancorada no chamado racismo institucional em que o Estado é
capturado por uma ideologia das relações raciais discriminatórias.
A escola, portanto, tornar-se reflexo de práticas conscientes e incons-
cientes em que o racismo é sistematicamente reproduzido, naturalizando uma
episteme colonializada. A Lei nº 10.639/2003 e a inclusão da história e cultura
afro-brasileira e africana no currículo evidenciam uma ressignificação do
ambiente escolar, uma vez que impulsionam e pressionam o Estado no que diz
respeito a ações de fortalecimento da população negra no Brasil, e à medida
que reconhecem esse grupo como sujeito histórico pleno (GOMES, 2017).
Nesse contexto, o currículo tornar-se instrumento de ação fundamental,
pois deixa de ser aquela mera grade cujo enquadramento cria e consolida um
distanciamento entre professor e aluno, escola e sociedade. Não obstante, a
mesma lei que assegura a inserção da população negra no currículo também
admite a existência do racismo estrutural como preponderante nas ações didá-
ticas pedagógicas.
144

No caso, vale ressaltar a importância das Diretrizes Curriculares Nacio-


nais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de Histó-
ria e Cultura Afro-Brasileira e Africana, homologada em 18 de maio de 2004.
A questão central que permeia esse documento é a reestruturação das relações
étnicos-raciais e sociais, desalienando processos pedagógicos. Isso implica,
segundo realça essa diretriz, o fortalecimento de uma consciência histórico-
-política da diversidade que caracteriza nossa realidade social enquanto país
marcado pelo encontro entre diferentes grupos étnicos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Esse ponto é importante, pois suscita um exercício no ambiente escolar
capaz de superar a indiferença quando se trata da discriminação étnico-racial.
Essa indiferença aparece no silêncio e na aceitação da harmonia que ainda
vigora no espaço escolar quando se questiona sobre ações ligadas à imple-
mentação da Lei nº 10.639/2003. A existência dessa realidade diz respeito à
preponderância de uma leitura que acaba por não problematizar a existência
do racismo.
No caso, é preciso pensar em como o racismo se reproduz e encontrar
mecanismo para combatê-lo, o que exige uma postura de análise sobre o
conteúdo que é ensinado e como tal conteúdo pode ser utilizado como ferra-
menta de ressignificação. Essa incursão vai fortalecer a identidade negra por
meio de uma metodologia em que a história dos povos africanos apareça de
forma positiva e incisiva no ambiente escolar, algo que leve em consideração
a necessidade de uma ruptura daquela imagem negativa presente na realidade
do aluno, do professor e da sociedade.
Enfatizar essa metodologia combativa é trazer filmes, livros, músicas/
canções e atividades artísticas culturais que realcem figuras e imagens da
diversidade étnica, bem como da realidade local, marcada por experiências
e saberes capazes de reafirmar o caráter multiétnico da nação brasileira. A
escola deve pautar-se na valorização de ações de combate ao racismo e à
discriminação de modo a permitir e incentivar atividades de formação docen-
tes, discente e com a participação de setores da sociedade ao seu redor que
possa evidenciar a representatividade dos grupos étnicos existentes na escola.
Tudo isso nos permite ponderar sobre o caráter político do currículo e sua
consequente relação com o projeto político pedagógico, base e fundamento
das ações que orientam o funcionamento do ambiente escolar.
Não obstante, vale ressaltar a adequação do currículo frente a implemen-
tação da Lei nº 10.639/2003, enquanto empreendimento construído a partir de
práticas pedagógicas que possibilitem um ambiente escolar dialógico, onde as
realidades sociais, culturais, históricas e políticas do aluno estejam representa-
das (GOMES, 2012). No caso, é necessário repovoar o imaginário pedagógico
caracterizado por uma sociabilidade em que a trajetória da população negra
ganhou destaque e passou a ser vivenciada no universo social brasileiro. A
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 145

adoção de políticas afirmativas, das quais a Lei aqui realçada faz parte, não
pode ser despolitizada, mas, sobretudo, deve servir como ponto de partida,
conteúdo didático a ser utilizada no ambiente escolar.

Considerações finais

Entende-se que, como objeto de inflexão, a Lei nº 10.639/2003 deve ser


compreendida como a viabilidade de práticas pedagógicas mais alargadas e
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

inclusivas. Todavia, a dificuldade reside no discurso que apregoa uma pretensa


harmonia entre negros e brancos, algo que se caracteriza por ações mais incisi-
vas em torno da aplicação de tal Lei, criando obstáculos políticos ideológicos
para sua efetiva materialidade no cotidiano escolar. Essa realidade é reflexo
de uma tentativa de naturalizar o racismo estrutural em um país onde vigora
um ethus especifico, cujo significado é o da boa convivência entre negros e
brancos. Para os defensores desse ponto de vista, quando se trata da identidade
nacional, não é possível discriminar, mesmo que positivamente, pois isso
caracteriza a reprodução do processo de racialização e não de valorização do
potencial humano quando este é estimulado e reconhecido sem exaltação da
diferença no âmbito negativo.
Essa postura aparece no momento da aplicação de ações que têm como
ponto a implementação da Lei nº 10.639/2003 e a consequentes Diretrizes
Curriculares Nacionais relacionadas à educação das relações étnicos-raciais,
pois o que ser observa é a dificuldade na aplicação de metodologias que
fogem à epistemologia eurocentrada. Gestores, professores e comunidade
escolar ainda não são capazes de perceber as potencialidades da Lei enquanto
ferramenta de ensino-aprendizagem. Em boa parte, o que se sobressai é uma
interpretação técnica e pouco aprofundada sobre tal referencial, associada
a uma cultura de reprodução curricular enquanto expressão de um compor-
tamento burocrático e pouco crítico sobre o que é o racismo e como ele se
estrutura na sociedade. Cabe ainda realçar o viés político partidário de algu-
mas escolas em que os gestores são escolhidos por influência de lideranças
locais nem sempre preocupadas com essa discussão e que, em muitos casos, é
substanciada pela participação do conjunto dos educadores/professores, cujos
vínculos de trabalho se dá em uma relação de subordinação e dependência.
Penetrar nesse universo oligárquico, que domina o ambiente escolar
no Brasil, bem como analisar uma postura pedagógica engessada e pouco
aberta ao que a lei propõe, é reconhecer a existência do combate e do embate
em torno de atitudes ressignificadoras do processo de ensino. É, sobretudo,
correr o risco de ser alijado em qualquer tentativa de intervenção que vise
a implementação da Lei. Isso pressupõe um certo protagonismo e o enten-
dimento da necessidade de que é preciso fortalecer o espaço escolar como
146

ambiente autônomo, lugar de (re)produção do conhecimento para o exercício


da cidadania.
Não obstante, essa posição de enfrentamento, no tocante a um currí-
culo eurocentrado, levando-se em conta a importância da Lei nº 10.639/2003
enquanto paradigma epistêmico, quando se analisar o cotidiano escolar de
hoje e do passado, suscita considerar o processo histórico de luta por parte
do movimento negro. Vale reforçar que o que se entende por movimento
negro não é aquele do enquadramento ideológico de uma luta engessada,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cuja dimensão política se pode visualizar a partir de um movimento de pes-
soas, organizadas conforme uma bandeira específica, algo muito comum na
linguagem política clássica.
A ideia de luta e de resistência, enquanto locus e símbolo que deu mate-
rialidade e substancialidade para a existência da Lei, quando se observa a
própria realidade política e social brasileira, aponta para a história da popu-
lação negra ao longo dos nossos mais de 500 anos de história. E, portanto,
nos coloca frente ao desafio de (re)conhecer o cotidiano e a experiência de
homens e mulheres que souberam consolidar espaços coletivos, em meio ao
desafio de resistir ao autoritarismo da escravidão. De pessoas que, mesmo
frente ao racismo estrutural, souberam organizar um cotidiano em que sua
cultura, sua identidade e sua etnicidade aparecem predominante enquanto
linguagem política.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 147

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro;
Polén, 2019.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino da História Afro-Brasileira e Africana.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Brasília: SECAD/ME, 2004.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como


fundamento do ser. 2005. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade
de São Paulo, São Paulo, 2005.

CHALHOUB, Sidney. A força da escravidão: ilegalidade e costume no Brasil


oitocentista. São Paulo: Companhia das Letras, 2012.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e


terra, 1987.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos


na luta por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos


currículos. Currículo sem Fronteiras, v. 12, n. 1, p. 98-109, jan./abr. 2012.

HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro:


Dp&a, 2001.

HOFBAUER, Andreas. Uma história de branqueamento ou o negro em


questão. São Paulo: Editora Unesp, 2006.

MUNANGA, Kabengele. Negritude usos e sentidos. 3. ed. Belo Horizonte:


Autêntica Editora, 2015.

PEREIRA, Amilcar Araujo. “O mundo Negro”: a constituição do movimento


negro contemporâneo no Brasil (1970-1995). Tese (Doutorado) – Programa de
Pós-Graduação em História, Universidade Federal Fluminense, Niterói, 2010.

POLLACK, Michel. Memória e identidade social. Estudos históricos, Rio


de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992.
148

SCOTT, C. James. Exploração normal, resistência normal. Revista Brasileira


de Ciência Política, Brasília, n. 5, p. 217-243, jan./jul. 2011.

SILVÉRIO, V. R.; TRINDADE, C. T. A (re)configuração do nacional e a


questão da diversidade. In: ABRAMOWICZ, A.; SILVÉRIO, V. R. (org.).
Afirmando diferenças: montando o quebra-cabeça da diversidade na escola.
Campinas: Papirus, 2005.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


SILVÉRIO, V. R.; TRINDADE, C. T. Há algo novo a se dizer sobre as rela-
ções raciais no Brasil contemporâneo? Educ. Soc., Campinas, v. 33, n. 120,
p. 891-914, jul./set. 2012.

Sites

ESCOLA sem partido. Disponível em: https://www.escolasempartido.org/.


Acesso em: 11 set. 2021.
EXPRESSÕES DO RACISMO NO
BRASIL E SUAS INTERSECÇÕES:
entre dispositivos de racialidade e
resistências ingovernáveis na escola1
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Mariana Alves de Sousa2

As facetas do racismo e suas intersecções na sociedade brasileira

O estudo e a compreensão sobre os mecanismos de perpetuação do


racismo sistêmico na sociedade brasileira são umas das principais vias pelas
quais a desnaturalização deste fenômeno social pode ocorrer. Este tópico do
texto reúne interpretações críticas sobre como o racismo foi naturalizado no
Brasil de modo a ser negado como um problema social. Nesse sentido, bus-
ca-se propor uma reflexão crítica sobre como a modernização da tecnologia
do racismo e suas intersecções com outras formas de opressão se manifestam
na realidade social vigente, em especial no contexto escolar brasileiro.
Conforme exposto por Antonio Sérgio Guimarães (1995), diferente-
mente do contexto norte-americano, o racismo no Brasil se consolidou sob
a égide do racismo “científico”, oriundo das doutrinas racialistas inspiradas
por autores europeus interessados em afirmar o engodo da superioridade da
raça branca no período pós-escravista. A partir da década de 30, a ideia de
“democracia racial” defendida por Gilberto Freyre foi divulgada mundial-
mente e promoveu a ideia de que o Brasil não possuía conflitos etnicorraciais
em função da miscigenação. Em outras interpretações críticas à de Freyre, a
democracia racial representava apenas um “mito fundador da nacionalidade
brasileira” que deveria ser denunciado em função de “seu caráter ‘mítico’ de
promessa não cumprida’” (GUIMARÃES, 1995, p. 43), uma vez que nem a
equidade racial tampouco a democracia racial se manifestaram efetivamente
na realidade social brasileira.
Para Guimarães (1995, p. 31), a naturalização dos fenômenos sociais é
um elemento constituinte de hierarquias, pois a negação e a naturalização das
mesmas contribuem para a sustentação de uma visão de mundo “a-histórica”,
que forja a ideia de que essas hierarquias são isentas de interesses particulares,
1 Este artigo foi desenvolvido com apoio concedido para o processo nº 2021/04365-0 – Fundação de Amparo
à Pesquisa do Estado de São Paulo (FAPESP).
2 As opiniões, hipóteses e conclusões ou recomendações expressas neste material são de responsabilidade
da autora e não necessariamente refletem a visão da FAPESP.
150

quando, na realidade, são projetos de sociedade construídos por e para grupos


socialmente dominantes. Por conseguinte, é possível considerar que a nega-
ção da existência de conflitos raciais no Brasil representa uma ideologia que
favoreceu aos interesses dos grupos sociais dominantes da década de 30 e
segue o momento presente com a finalidade de manter os privilégios sociais
dos referidos grupos em detrimento de outros.
Ao conceber o mito da democracia racial como “mito fundador da nacio-
nalidade brasileira”, torna-se possível destacar que um de seus aspectos cor-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


responde à negação das diferenças etnocorraciais e culturais. Nesse contexto
de formação nacional brasileira, o racismo assume um caráter “heterofóbico”
que também se constitui a partir da “negação absoluta das diferenças” e da
inferiorização de qualquer aspecto dissidente da homogeneidade (TAGUIEFF,
1987, p. 29 apud GUIMARÃES, 1995, p. 37). Guimarães (1995) nos permite
perceber que a negação das diferenças, contudo, não é uma forma tímida e
vergonhosa de expressão do racismo, mas expressa uma “timidez” que tam-
bém possui um propósito característico do racismo brasileiro “disfarçado”.
Apesar das diferenças das formas de expressão do racismo institucio-
nalizado e hostil dos Estados Unidos e do racismo silenciado e naturalizado,
ou “racismo à brasileira” (MUNANGA, 1996), o racismo no Brasil não é
inexistente. De acordo com o antropólogo Kabengele Munanga (1996), uma
das facetas mais nocivas do racismo é a forma silenciosa com que se manifesta
em determinados contextos sociais. É justamente sob esse aspecto “silencioso”
que o racismo brasileiro se engendra na sociedade e no imaginário social,
reforçando sua negação.

[...] se perguntarmos a qualquer brasileiro [...] se existe discriminação


racial, a maioria responderia negativamente. Costuma-se buscar a expli-
cação dessa falha consciência da discriminação racial na falta de instru-
ção, ou seja, no bode expiatório cultural. Essa justificativa não convence,
porque os seres humanos não precisam de instrução para sentir dor, o
menosprezo, a injustiça, a exclusão. Sem dúvida, um certo nível cultural
é indispensável para abrir os horizontes [...]; mas a falta de consciência
não pode ser atribuída, absolutamente, à falta de instrução. A tendên-
cia em geral, mesmo do brasileiro esclarecido, é negar a discriminação
(MUNANGA, 1996, p. 214).

Nesse ponto, torna-se inteligível que a naturalização do racismo no Brasil


é um dos fenômenos que se estrutura a partir da negação do mesmo e que se
sustenta através da ideologia da democracia racial. Lélia Gonzalez (1984)
foi uma das intelectuais que questionou com afinco a aceitação e repercussão
desse mito na sociedade brasileira e se propôs a compreendê-lo a partir de
seu estudo sobre o racismo e o sexismo na cultura.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 151

Partindo de referenciais da psicanálise como Freud e Lacan, Lélia (1984)


problematizou o fato de que as histórias dos povos africanos e afrodescenden-
tes no Brasil, comumente foram retratadas por meio de referenciais produzidos
por pensadores sociais brancos que eufemizaram a exploração e as heranças
do período escravocrata e, consequentemente, retroalimentaram a lógica da
dominação colonialista.

Dizer mais do que sabe, não saber o que diz, dizer outra coisa que não o
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que se diz, falar para não dizer nada, não são mais, no campo freudiano,
os defeitos da língua que justificam a criação das línguas formais. Estas
são propriedades inelimináveis e positivas do ato de falar. Psicanálise e
Lógica, uma se funda sobre o que a outra elimina. A análise encontra seus
bens nas latas de lixo da lógica. Ou ainda: a análise desencadeia o que a
lógica domestica (MILLER, 1976, p. 17).

Em outras palavras, a linguagem e a leitura da história produzida pela


perspectiva de grupos sociais dominantes prevalece sobre a história dos gru-
pos sociais dominados, de forma a negligenciar as narrativas, as culturas, os
saberes e as existências do sujeitos que compõem a população negra brasi-
leira. Para Lélia (1984), os(as) negros(as) estão na “lata de lixo da sociedade
brasileira” não por uma condição essencialista, mas porque é este lugar social
que a lógica da dominação naturaliza reiteradamente no imaginário social.
Contudo, é justamente porque ressoa na sociedade uma história sobre os
povos africanos, afro-brasileiros e outras minorias sociais, contada sem seu
protagonismo, que se admite a necessidade de se reforçar a narrativa destes
sujeitos, contada por eles mesmos. “Ou seja, o lixo vai falar” (GONZALEZ,
1984, p. 225).
Nessa perspectiva, Lélia (1984) caracterizou o racismo – articulado
ao sexismo –como “neurose cultural brasileira” resultante da democracia
racial e de todo processo histórico do colonialismo que ainda reverbera de
diferentes formas no imaginário social, nas instituições e na estrutura social
moderna, ou seja, pela modernização das tecnologias do racismo. Podemos
entender essa “neurose” como a omissão da branquitude nos processos de
discriminação racial, que, quantitativamente e qualitativamente, expressam
que a população preta e parda3 ainda vive à margem da sociedade em termos
de acesso aos direitos e oportunidades, representando os maiores índices em
taxas de desemprego, genocídio pelo Estado, feminicídio, transfobia, mortes
por covid-19 e os menores índices em cargos de liderança política ou espaços
de prestígio social amplamente reconhecidos, e, sobretudo, tendo suas his-
tórias e contribuições para a formação social, cultural, política e econômica

3 Denominação atribuída pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE).


152

da sociedade brasileira desconsideradas nos livros didáticos e referenciais


teóricos de trabalhos acadêmicos.
Negras e negros compuseram o percentual de 72,9% de desocupados(as)
no primeiro trimestre de 2020, conforme apontado pela Pesquisa Nacional por
Amostra de Domicílios Contínua (Pnad Contínua). A causa desses indicadores
não se refere apenas à crise sanitária e econômica ocasionada pela pandemia
do coronavírus, mas ao racismo estrutural que se arraiga à sociedade brasi-
leira desde o período colonial e adiante, na República (MACHADO, 2021)4.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A Agência Pública divulgou que, em abril de 2020, o número de pretos
e pardos vítimas fatais do coronavírus no Brasil chegou a ser cinco vezes
maior que o número de vítimas brancas. Os dados foram extraídos de Bole-
tins Epidemiológicos do Ministério da Saúde. De acordo com a Articulação
dos Povos Indígenas do Brasil (Apib)5, em 2020, as populações dos territó-
rios indígenas brasileiros também integraram expressivamente o número de
óbitos ocasionados pelo coronavírus. Dados como esse expressam que as
populações preta, parta e indígena, no Brasil, são as mais suscetíveis a ter o
acesso à saúde pública negligenciado em função da desigualdade social e do
racismo sistêmico.
Em termos de representação política, a participação de pessoas pretas e
pardas em espaços de mobilizações, organizações e deliberações políticas é
fundamental para viabilizar a defesa das pautas sociais dessa população e a
garantia de seus direitos. Entretanto, a participação de minorias sociais em
espaços como o parlamento é irrisória. O Brasil apresenta uma sub-repre-
sentação da população preta ou parda em espaços políticos como câmaras e
assembleias legislativas, pois, apesar de representar 55,8% da população, este
grupo etnicorracial soma o percentual de apenas 14,4% na câmara dos(as)
deputados(as) federais e 28,9% dos deputados estaduais eleitos em 2018
(IBGE, 2019, p. 11).
A violência doméstica é um dos elementos que integram as causas de
feminicídio. Em 2018, as mulheres pretas e pardas foram as maiores vítimas
de homicídio em âmbito doméstico e fora dele, de acordo com as Estatísticas
de Gênero do IBGE publicadas em 2021. A Associação Nacional de Travestis
e Transsexuais (Antra) pontuou que a violência contra pessoas trans aumen-
tou em 2020. Para a Antra, esses índices ainda não refletem a realidade da
transfobia no Brasil, pois a forma imprecisa com que os dados são coletados

4 Análise realizada pela pós-doutora em Relações Étnicas pela Universidade Estadual do Sudoeste da Bahia
(Uesb), Edilene Machado. Disponível em reportagem do Correio Braziliense: “Pretos no topo: desemprego
recorde entre negros é resultado de racismo”.
5 Dados quantitativos secundários presentes na entrevista realizada pela Agência Pública “Abandono dos
povos indígenas na pandemia deixa dúvida se governo age por ‘omissão ou estratégia’”. Disponível em:
https://apublica.org/2020/08/abandono-de-povos-indigenas-na-pandemia-deixa-duvida-se-governo-age-por-
-omissao-ou-estrategia/. Acesso em: 27 jul. 2021.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 153

invisibiliza a população trans. A associação também denunciou a omissão do


Estado frente a essas pessoas que, historicamente, são vulnerabilizadas pela
estrutura de sociedade cisheteronormativa e submetidas a condições precárias
que vêm se recrudescendo no contexto da pandemia.
Retomando a perspectiva de Lélia (1984) sobre o apagamento das nar-
rativas de pessoas negras contadas por si mesmas, um processo semelhante
também ocorre com pessoas trans que, além de terem suas identidades de
gênero e existência constantemente suprimidas pela cisheteronormatividade,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

usualmente não aparecem como sujeitos de pesquisa, protagonistas de suas


próprias histórias de vida. Nas palavras da psicóloga e ativista Jacqueline
Gomes de Jesus (2017):

É estratégico que pessoas cis aliadas falem sobre pessoas trans. As aliadas
não apenas falam sobre, elas falam positivamente sobre as pessoas trans
(demonstrando o básico: pessoas trans são humanas, mulheres trans são
mulheres e homens trans são homens), e são ouvidas pelas pessoas cis que
ainda não questionaram sua própria transfobia. Por identificação. A pessoa
cis vai ser ouvida. A pessoa trans, tipicamente vista com menosprezo, não
é ouvida. Por isso as pessoas cis aliadas podem e devem fazer muito. Mas
que não percam o horizonte de fazer referências, que indiquem, e que
empoderem as pessoas trans nas suas falas (JESUS, 2017 apud REGO,
2019, p. 171).

Conforme ponderou Yordanna Lara Rego (2019), a afirmação de um


indivíduo enquanto sujeito ocorre a partir da contextualização sócio-histórica
de suas narrativas que também são constituídas por suas subjetividades. Em
alguns momentos, esse processo de “tornar-se sujeito” pode promover apro-
ximações com outros sujeitos que vivenciam realidades distintas, constituindo
formas de pertencimento e identidade (HALL, 1999, p. 39 apud REGO, 2019,
p. 172). Nesse sentido, enquanto mulheres negras cisgênero, podemos e deve-
mos assumir o compromisso ético e político de nos aliar ao movimento trans,
cumprindo o propósito de reiterar a importância do protagonismo dos sujeitos
dissidentes na apresentação de suas próprias narrativas e no fortalecimento da
mobilização conjunta pela construção de uma sociedade mais democrática.
A relevância dos dados supracitados se justifica pela intenção de desvelar
o mito da democracia racial e consubstanciar a análise sobre as formas de
perpetuação do racismo e suas intersecções na sociedade brasileira. Importante
ressaltar que, ao contrário do que discursos racistas “científicos” buscaram
naturalizar no imaginário social, a realidade à qual as minorias sociais estão
submetidas não está relacionada a incapacidade dos sujeitos que as compõem,
mas ao projeto de sociedade brasileira hierárquica e desigual que se estabele-
ceu no período colonial e veio se modernizando e se adaptando aos dias atuais.
154

Nesse sentido, a interseccionalidade nos apoia como instrumento teórico


metodológico para compreender como os problemas sociais se articulam e
produzem “consequências estruturais e dinâmicas entre dois ou mais eixos
de subordinação” (CRENSHAW, 2002, p. 117). Tais eixos de subordinação
podem ser definidos pelas opressões, que se produzem no âmbito da sociedade
moderna disciplinar, baseadas em marcadores sociais da diferença como a
raça, identidade de gênero, sexualidade, deficiência, dentre outros. Ou seja, a
interseccionalidade nos permite perceber como o racismo se articula a outras

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


opressões de modo a produzir aspectos dinâmicos de subalternização sobre
determinados grupos sociais, cujas identidades são atravessadas por marca-
dores sociais distintos da branquitude, da cisheteronormatividade e de outros
padrões construídos historicamente de forma hegemônica na estrutura social.
Considerando que a instituição escolar é um espaço que agrupa diferen-
tes sujeitos que vivenciam realidades distintas, é fundamental compreender
que os marcadores sociais mencionados ao longo desta discussão também
emergem nos contextos de educação formal. Consequentemente, a ideologia
da democracia racial e a tendência de homogeneização das diferenças se
manifestam na construção histórica da sociedade brasileira e se expressam
no cotidiano escolar.
A pesquisa de Eliane Cavalleiro (1998) expõe que a harmonia apregoada
pela democracia racial também se faz presente na perspectiva dos(as) profes-
sores(as) que atuam no contexto escolar, velando o debate sobre as relações
etnicorraciais. A perspectiva comumente adotada nesse contexto é a de que
a escola é espaço positivo capaz de promover a integração, o respeito e o
desenvolvimento daqueles(as) que a compõem. Por vezes, são atribuídas à
atividade docente responsabilidades alheias a ela, como o assistencialismo
e a maternidade. Tende-se a justificar o preconceito que emerge no espaço
escolar como “fase” na qual a criança ou até mesmo adolescente está se
desenvolvendo, cabendo ao(à) professor(a) explicar pontualmente para que
tal situação não se repita.
Na pesquisa de Cavalleiro (1998, p. 88), as professoras de educação
infantil do campo analisado não se referiram em nenhum momento às diferen-
ças etnicorraciais no espaço escolar e tampouco na sociedade. Comumente, as
professoras empregavam termos eufêmicos para diferenciar as crianças com
base na cor e ocultar suas identidades etnicorraciais: “a moreninha”, “a bran-
quinha”, “aquela de cor”. A problemática desses termos consiste na hierarquia
étnica que se constituiu na formação nacional de base colonialista. Além disso,
os comentários proferidos a respeito da cor da pele de alunos(as) tendem a ser
interiorizados por elas de forma acrítica. Situações como essas contribuem
para a desmobilização do pertencimento etnicorracial e dão margem para a
naturalização do preconceito racial e violências objetivas e subjetivas.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 155

O modo como as professoras concebem o cotidiano escolar e as rela-


ções interpessoais nele estabelecidas dificulta a percepção dos conflitos
étnicos e inclusive a realização de um trabalho sistemático que propicie
a convivência [sic] multi-étnica, já que para elas esse problema inexiste
(CAVALLEIRO, 1998, p. 92).

A existência ou o uso de materiais didáticos que retratem a realidade e


a história de crianças e da cultura africana, afro-brasileira e indígena é pouco
expressivo. Há ainda professores(as) que negligenciam em seus planejamentos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

a importância da representação da história e da existência do povo africano


e afro-brasileiro para a formação dos(as) estudantes não brancos enquanto
sujeitos protagonistas neste processo. Para Cavalleiro (1998, p. 94), a des-
valorização da presença do(a) estudante negro(a) – ou indígena – na escola
pode causar uma sensação de inferioridade e a negação de sua identidade
etnicorracial. Por outro lado, o(a) estudante branco(a) pode se reconhecer
equivocadamente como participante de um grupo racial superior, viabilizando
as formas de discriminação.
Embora a Lei 10.639/2003 tenha alterado a Lei de Diretrizes e Bases da
Educação – LDB (1996) para incluir o ensino da cultura e história africana
e afro-brasileira no currículo de instituições de ensino públicas e privadas
e, posteriormente, a Lei nº 11.645/2008 tenha implementado a inclusão o
estudo da cultura indígena, o comprometimento para a efetivação destas leis
nas instituições escolares acontece de forma pouco abrangente, se comparada
à proporção das demandas populares por políticas públicas e educacionais
que propiciem a promoção da equidade racial. Em geral, o trato das questões
etnicorraciais ocorre apenas no dia 20 de novembro, data também prevista
na Lei nº 10.639/03 para integrar o calendário escolar como “Dia Nacional
da Consciência Negra”. Entretanto, apenas uma data em todo ano letivo é
insuficiente para que o ensino das relações etnicorraciais ocorra de forma
satisfatória e, além disso, o “Dia da Consciência Negra” na escola comumente
é celebrado de forma folclorizada e estereotipada, o que tende a contribuir
para reforçar a suposta harmonia racial.

[...] acho bom lembrar certas datas importantes em que a negrada (espe-
cialmente o mulherio) está muito presente. Estamos cansados de saber
que nem a escola, nem os livros onde mandam a gente estudar, não se
fala da efetiva contribuição das classes populares, da mulher, do negro e
do índio na nossa formação histórica e cultural. Na verdade, o que se faz
é folclorizar todos eles (GONZALEZ, 1982, p. 3)6.

6 Este texto bem como outros artigos escritos por Lélia Gonzalez ao longo de sua trajetória, estão reunidos
no livro Primavera para as Rosas Negras: Lélia Gonzalez em primeira pessoa. Diáspora Africana: Editora
Filhos da África, 2018. 486 p. 1ª edição.
156

Em geral, a influência das heranças coloniais, de teorias racialistas e da


democracia racial, contribui para o cenário na qual o conhecimento sobre a
história e a cultura africana, afro-brasileira e sobre outras formas de existência
dissidentes aos padrões provenientes do modelo patriarcal – cisheteronorma-
tivo – não seja efetivamente incluído nos currículos e cotidianos escolares.
Contudo, para corroborar com um projeto de educação emancipadora, é fun-
damental refletir sobre como as formas de poder se rearticulam historicamente,
de modo a servirem aos interesses dominantes da sociedade vigente.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Por outro lado, também é importante enunciar estratégias de resistência
pelas quais esses silenciamentos podem ser transformados em possibilidades
concretas de uma educação que reconheça as diferenças e a importância de
suas especificidades no processo de construção das identidades dos sujei-
tos, e não de forma a homogeneizá-las em prol de apagamentos velados por
meio de discursos de inclusão e igualdade. Para tanto, a discussão do tópico
a seguir destina-se a sistematizar alguns os limites e as possibilidades diante
dos dispositivos que operam no contexto escolar.

A ingovernabilidade das diferenças como forma de resistência


ao dispositivo de racialidade na escola

Conforme mencionado no tópico anterior, o racismo pode se interseccio-


nar com outros eixos de poder baseados em marcadores sociais da diferença,
como a identidade de gênero, sexualidade, classe social, deficiência, dentre
outros, atendendo às demandas de controle determinadas objetivamente e
subjetivamente por uma sociedade moderna colonial e disciplinar. O esta-
belecimento da cultura e conhecimento Europeu e norte-americano como
parâmetro de existência e racionalidade tende a homogeneizar as diferenças,
reforçando a ideia de que afirmá-las e problematizar as desigualdades que
emergem sobre elas é algo dispensável.
Desse modo, tanto a racionalidade produzida por sujeitos dissidentes
quanto suas próprias existências são negadas quando os dispositivos de poder
são acionados, evidenciando o funcionamento da tecnologia de poder disci-
plinar que integra todas as instituições sociais, inclusive a escola. A fim de
melhor explanar as expressões do dispositivo sobre as relações etnicorraciais
no contexto escolar, é importante compreender a biopolítica7.

7 O conceito de biopolítica surgiu em meados da década de 1970 a partir das proposições de Michel Foucault
sobre a transição entre o poder soberano para as formas de governo no Estado Moderno no século XVIII.
Na dinâmica biopolítica, surgiu uma nova tecnologia de poder que envolveu o controle de um conjunto de
processos como as taxas de natalidade, de mortalidade, de reprodução, de fecundidade etc. Diante do
contexto de crises econômicas e políticas, esses processos determinaram os primeiros alvos de controle
da biopolítica que passou a operar como forma de manutenção da vida pelo Estado, sobretudo a partir da
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 157

O governo característico das sociedades modernas disciplinares é a bio-


política, uma forma de governo que rege vidas. Para Foucault (2008, p. 141),
a transição de um regime dominado pelas “estruturas de soberania” para um
regime dominado por “técnicas de poder” emergiu sobre a sociedade e a eco-
nomia política a partir do século XVIII. Tal forma de governo promoveu o
surgimento de outros instrumentos de controle da vida em sociedade, como
a população (os corpos múltiplos); a busca pelo controle sobre os fenômenos
coletivos e aleatórios; e o poder que consiste em fazer viver e deixar morrer
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

(CARNEIRO, 1995). O soberano que detinha o poder de matar, agora não pode-
ria mais aplicá-lo explicitamente. Contudo, este era um mecanismo de controle
de determinados corpos ainda recorrente na sociedade disciplinar do biopoder.
Diante desse paradoxo vigente, em um governo biopolítico, atento à
necessidade de “fazer viver”, mas que também reproduzia de mortes evitáveis,
Foucault incluiu, em suas reflexões, a análise do racismo de estado como
tecnologia de poder que é capaz de assegurar o direito de “fazer morrer”.

Foi nesse momento que o racismo se inseriu como mecanismo fundamental


do poder, tal como exerce nos Estados modernos, e que faz com que quase
não haja funcionamento moderno do Estado, que em certo momento, em
certo limite e em certas condições, não passe pelo racismo (FOUCAULT,
2002, p. 304 apud CARNEIRO, 1995, p. 74).

O dispositivo é uma tecnologia de poder constituinte do biopoder que


atua de modo a atender alguma urgência em um determinado momento histó-
rico. O dispositivo se faz presente pelo “dito e no não dito”, ou seja, está nos
“discursos, instituições, organizações arquitetônicas, decisões regulamentares,
leis, medidas administrativas, enunciados científicos, proposições filosóficas,
morais, filantrópicas” (FOUCAULT, 1993, p. 2016).
Partindo desse referencial teórico, a filósofa Sueli Carneiro (1995) siste-
matizou o conceito de “dispositivo de racialidade8”, a fim de evidenciar sua
capacidade de subalternizar seres humanos de acordo com a raça e articular
outras estratégias de poder capazes de ressignificá-lo e instrumentalizá-lo a
partir das necessidades de controle sobre a racialidade.

disciplinarização e do controle da população. Enquanto o poder soberano que tinha autonomia para “deixar
viver” ou “fazer morrer”, o biopoder passou a agir sobre a população como uma tecnologia de poder disciplinar
para “fazer viver”. Tais considerações podem ser aprofundadas em Foucault (1993; 2002).
8 Sueli Carneiro (1995) se baseou no referencial teórico foucaultiano, mais especificamente em torno dos
conceitos de dispositivo e biopoder, para analisar o domínio das relações raciais no Brasil. Na dinâmica de
poder das sociedades disciplinares, o dispositivo opera como uma forma de poder que pode ser objetiva ou
subjetiva, a fim de garantir a disciplinarização do corpo social. Nesse sentido, Carneiro atribui ao conceito
de dispositivo a dimensão de “racialidade”, a fim de compreender como o poder também incide sobre os
seres humanos por meio do atributo racial.
158

Nesse sentido, o dispositivo de racialidade é acionado para perpetuar


a disseminação do racismo em diferentes contextos sociais e históricos. Ou
seja, as sociedades multirraciais, como o Brasil, aderem ao dispositivo de
racialidade para disciplinar as relações raciais no contexto pós-colonial, esta-
belecendo relações de dominação sobre grupos racialmente inferiorizados.
Desse modo, a racialidade na sociedade brasileira determina “a preservação
da vida de uns e o abandono de outros” sob a égide do direito de fazer viver
e deixar morrer (CARNEIRO, 1995, p. 75-77).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A atuação do dispositivo de racialidade na sociedade brasileira nos per-
mite perceber como a correlação entre o racismo articulado a outras formas
de opressão conduz os sujeitos marcados pelos signos da diferença à subal-
ternidade. Essa subalternização ocorre por meio da atuação dos dispositivos
disciplinares que promovem a negação da humanidade do Outro, atribuindo
a ele a incapacidade para o desenvolvimento humano, produção de cultura,
civilização e conhecimento em favor de uma hegemonia do padrão europeu.
“Ou seja, o Ser constrói o Não-ser, subtraindo-lhe aquele conjunto de carac-
terísticas definidoras do Ser: [sic] auto-controle, cultura, desenvolvimento,
progresso e civilização” (CARNEIRO, 1995, p. 99).
Com base no referencial teórico sistematizado por Boaventura de Sousa
Santos (1995), o epistemicídio é “um dos instrumentos mais eficazes e dura-
douros da dominação étnica/racial”, uma vez que deslegitima o conhecimento
produzido por grupos subalternizados e a própria humanidade dos sujeitos
que constroem e partilham desse conhecimento.

O genocídio que pontuou tantas vezes a expansão [sic] européia foi tam-
bém um epistemicídio: eliminaram-se povos estranhos porque tinham
formas de conhecimento estranho e eliminaram-se formas de conhecimento
estranho porque eram sustentadas por práticas sociais e povos estranhos.
Mas o epistemicídio foi muito mais vasto que o genocídio porque ocorreu
sempre que se pretendeu subalternizar, subordinar, marginalizar, ou ilega-
lizar práticas e grupos sociais que podiam ameaçar a expansão capitalista
[...]; e também porque ocorreu tanto no espaço periférico, extra-europeu e
extra-norte-americano do sistema mundial, como no espaço central euro-
peu e norte-americano, contra os trabalhadores, os índios, os negros, as
mulheres e as minorias em geral (étnicas, religiosas, sexuais) (SANTOS,
1995, p. 328 apud CARNEIRO, 2005, p. 96).

Sueli Carneiro aprofunda a reflexão sobre a forma com que o dispositivo


de racialidade opera na sociedade brasileira ao afirmar que a rede pelo qual
ele se articula possui elementos bem predefinidos pelo Contrato Racial. Na
concepção do filósofo jamaicano Charles Mills (1997), o Contrato Racial
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 159

emergiu de uma sucessão de eventos históricos a partir do fim do século


XV, como as conquistas territoriais e o imperialismo europeu, estruturando
o dispositivo de racialidade. Foi o Contrato Racial que determinou a conso-
lidação da supremacia branca, de modo que os processos denominados por
“descobrimentos” mobilizassem o surgimento de novas formas de poder, saber
e subjetividades determinadas pela racialidade, constituindo novas identidades
como a de brancos e não brancos (CARNEIRO, 2005, p. 46-47).
O Contrato Racial possui especificidades em relação ao contrato social,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

uma vez que tem como signatários grupos racialmente homogêneos e atribui a
violência e a exclusão aos grupos racialmente subalternizados. Dessa forma, o
Contrato Racial se firma entre sujeitos iguais e dominantes e concebe a hege-
monia branca em sociedades estruturadas pelo colonialismo e imperialismo
(CARNEIRO, 2005, p. 48-49). Oriundo do Contrato Racial, o dispositivo de
racialidade determina papéis sociais desiguais e estabelece o epistemicídio
como uma de suas tecnologias.
É possível considerar que, no contexto escolar, o epistemicídio é um
fenômeno presente, tendo em vista que os(as) alunos(as) cujas identidades são
tangenciadas pelas diferenças que a sociedade disciplinar insiste em aniquilar,
internalizam a sensação de não pertencimento social, rejeição, inferiorização
da autoimagem, além de estarem suscetíveis ao desconhecimento da cultura
e história que enuncia o protagonismo de outras personalidades com as quais
poderiam se identificar.
A tendência que alguns/algumas professores(as) têm de considerar que
a escola deve cumprir uma função assistencial e familiar e afirmar que as
crianças devem ser respeitadas com a visão de mundo que trazem de casa, a
fim de buscar compreender que os preconceitos disseminados nesse espaço
são “fases” (CAVALLEIRO, 1995), é uma das formas pela qual o dispositivo
de racialidade pode se manifestar no espaço escolar.

Assim, sob a égide do biopoder no pólo subordinado da racialidade, as


desvantagens se manifestam desde a infância, em que se acumulam pre-
disposições genéticas com condições desfavoráveis de vida para inscrever
a negritude sob o signo da morte (CARNEIRO, 1995, p. 78).

A visão de que o trato das relações etnicorraciais e das demais expressões


da diferença que a elas se interseccionam é algo complexo, desnecessário ou
suficientemente abordado no “Dia da Consciência Negra”, representa outra
via pela qual o dispositivo de racialidade, acionado sob a forma de episte-
micídio, viabiliza a perpetuação do racismo na escola de forma “disfarçada”
e “silenciosa”, porém nociva para o processo de construção da identidade
etnicorracial dos sujeitos e de uma educação emancipadora.
160

Assim, o biopoder aciona o dispositivo de racialidade para deixar morrer


aqueles que são marcados pelo “signo da negritude” (CARNEIRO, 1995).
Essa morte pode ser inclusive “simbólica” (PELBART, 2018, p. 19 apud
SILVA; ALMEIDA; PAGNI, 2021, p. 7), tendo em vista que não reconhecer
as formas de violência que se manifestam na vida de grupos socialmente e
racialmente desprivilegiados, suas racionalidades, epistemologias, culturas e
histórias corrobora com a lógica de dominação.
A compreensão sobre as várias formas de funcionamento do dispositivo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de racialidade nos permite perceber que, além se “disfarçar”, através dos dis-
cursos naturalizados pelo mito da democracia racial, o racismo brasileiro se
reinventa e se rearticula constantemente com a finalidade de manter a estrutura
capitalista, moderna e disciplinar próspera, bem como os grupos sociais que
dela se beneficiam.
A abertura de possibilidades para a afirmação das diferenças corres-
ponde a uma forma de resistência necessária nesse contexto. O caráter de
“ingovernável” comumente utilizado pelos conservadores, na década 60, para
se referirem aos grupos que se mobilizavam de forma contrária ao projeto
político de Bem-Estar Social (CHAMAYOU, 2020), pode ser empregado
para vislumbrar tais possibilidades. Para tanto, deve-se reconhecer a inci-
dência da racionalidade empresarial, liberal e individualista sobre o governo
das diferenças, que tem como um de seus objetivos a construção da ideia de
que os sujeitos que compõem as minorias sociais podem acessar políticas de
igualdade e inclusão.
No governo neoliberal, as políticas de inclusão não reparam as desigual-
dades, mas despolitizam os indivíduos ao atenuar a visão de que os grupos
sociais minoritários são excluídos e forjar uma inclusão que ocorre apenas em
uma lógica do “multiculturalismo liberal”. Na doutrina do multiculturalismo
liberal, a inclusão integra os diversos grupos culturais ao mainstream, ou seja,
na sociedade de consumo, baseando-se em uma cidadania universal e indivi-
dual, receptiva às diferenças apenas em domínio privado (HALL, 2003, p. 53).
O dispositivo de racialidade é novamente acionado quando a visão geral
é a de que a população negra – e demais minorias sociais – já possui políticas
de inclusão e representatividade nas mídias suficientemente para afirmarmos
que “somos todos iguais”, de modo a reiterar a ideologia da democracia racial
de décadas atrás. Quando as políticas públicas e educacionais não se efetivam
para os sujeitos subalternizados, percebe-se que a implementação das mesmas
ocorre apenas para prevenir suas ações ingovernáveis. Em outras palavras, o
intuito dessas políticas é governar as diferenças e homogeneizá-las.
Uma contrapartida ao Contrato Racial (MILLS, 1997), que concebe os
dispositivos de racialidade nas diversas áreas da vida social, é reconhecer que
a função da educação formal, em sua perspectiva emancipadora, é propiciar
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 161

que estudantes tenham suas diferenças afirmadas e referenciadas do ponto de


vista epistemológico. Desse modo, torna-se possível criar possibilidades para
que o processo de construção das diferentes identidades no espaço escolar e na
sociedade ocorra positivamente. Para isso, também é necessário desmistificar
as desigualdades que se estruturam a partir dessas diferenças e viabilizar que
a desconstrução das mesmas não seja pontual, mas faça parte do cotidiano
escolar. O conhecimento da história, cultura e contribuições políticas das
minorias sociais para a construção de uma sociedade efetivamente democrática
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

é fundamental nesse processo.


Tão importante quanto reconhecer as expressões do dispositivo de racia-
lidade no contexto escolar, é reconhecer as falhas dos dispositivos de inclusão
e suas estratégias para combater o ingovernável e homogeneizar as diferenças.
Faz-se oportuno ressignificar a ingovernabilidade e concebê-la como uma
característica constituinte da resistência, ou seja, como uma recusa do sujeito
em ser domado, subordinado, governado (CHAMAYOU, 2020, p. 22). Nesse
sentido, é necessário reconhecer que as diferenças na sociedade moderna,
colonial, capitalista e disciplinar são, essencialmente, ingovernáveis e assim
devem ser, pois o governo das diferenças tende a retroalimentar as tecnologias
de poder disciplinares por meio dos dispositivos.
Em suma, é inegável que as políticas afirmativas e educacionais mobi-
lizadas pelos movimentos sociais como o Movimento Negro, feministas,
LGBTQIAPN+9, anticapacitistas, dentre outros, contribuíram significativa-
mente para ampliar o acesso dos direitos sociais pelas e das minorias sociais.
Contudo, as contradições sociais e políticas intrínsecas ao capitalismo e às
formas de governos neoliberais também devem ser pontuadas, de forma a não
contribuírem com a despolitização e a subordinação dos sujeitos ao governo
das diferenças. Em outras palavras, a ingovernabilidade deve ser reconhe-
cida como uma estratégia de resistência aos dispositivos de inclusão que se
engendram na vida cotidiana objetivamente e subjetivamente, disciplinando
e homogeneizando as diferenças que constituem aos sujeitos.

Considerações finais

Enquanto educadores(as) e pesquisadores(as) comprometidos(as) com a


construção de uma educação emancipadora, é necessário que estejamos dispos-
tos(as) a conceber estratégias de resistência às opressões que emergem sobre
os sujeitos cujas identidades são atravessadas pelas diferenças. Para tanto,
é fundamental compreender os mecanismos pelos quais essas opressões se

9 Sigla para representar o movimento de pessoas lésbicas, gays, bissexuais, trans, queer, intersexo, assexuais/
arromânticas/agênero, pan/polissexuais, não binárias e mais. Disponível em: https://orientando.org/o-que-
-significa-lgbtqiap/. Acesso em: 30 jul. 2021.
162

estruturam, a fim de vislumbrar possibilidades efetivas para a consolidação de


um tempo presente em que seja possível reconhecer as diferenças e afirmá-las
positivamente e, por conseguinte, construir coletivamente um futuro no qual
a equidade seja um aspecto consistente da democracia.
Neste trabalho, nos ativemos a discutir como as diferentes dimensões
do racismo se manifestam na realidade social, sobretudo no contexto esco-
lar, tendo se intensificado a partir de perspectivas e práticas que corroboram
com as ideologias calcadas no mito da democracia racial. Tais articulações

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


contribuíram para que a negação do racismo fosse característico do “racismo
à brasileira” (MUNANGA, 1996) que se expressa de forma “silenciosa” e
“disfarçada”, além de contar com as tecnologias de poder que acionam dis-
positivos que se adaptam à urgência do contexto.
No caso da sociedade brasileira pós-colonial, é possível inferir que a
urgência se caracterizava pela necessidade de manter as hierarquias entre
colonizadores e escravizados de forma apta ao contexto, rearticulando as for-
mas de exclusão sobre a população negra, indígena em favor da manutenção
das benesses sociais da população branca. Ou seja, se essas populações não
podem mais ser escravizadas, serão deixadas à margem da sociedade, sem
acesso a políticas concretas de acesso às oportunidades de ascensão social,
tendo suas racionalidades deslegitimadas e, sobretudo, sendo responsabilizadas
pelo seu insucesso. Nas palavras de Munanga (2017)10, o racismo brasileiro
é um “crime perfeito” porque mata duas vezes: pelo silêncio que impede
que a população o reconheça e pela aniquilação da consciência daquele que
é sua vítima.
O racismo estrutural brasileiro pode ser diagnosticado pelos dados quan-
titativos do IBGE, que expressam que a população preta e parda ainda integra
o maior percentual em indicadores de vulnerabilidade social. Quando outros
marcadores sociais da diferença se interseccional à cor/raça, a condição de
vulnerabilidade se torna ainda maior. Isso expressa que a democracia racial,
de fato, é um mito.
Considerando que os fenômenos sociais que se manifestam na socie-
dade também refletem na escola, fez-se necessário pontuar como as relações
etnicorraciais são (des)percebidas neste contexto. A negação dos conflitos
marcados pela racialidade se expressam na sociedade e no espaço escolar.
Observa-se que a tendência em geral é que professores(as) não identificam
as problemáticas do preconceito e da discriminação racial entre alunos(as) e
tampouco percebem a relevância de abordar regularmente referenciais teóri-
cos que abordam a história e cultura africana e afro-brasileira em suas aulas.
10 Transcrição da fala do professor Kabengele Munanga no evento “Trajetória entre Culturas: Kabengele
Munanga, um intérprete africano no Brasil”, realizado pelo grupo Diálogos Interculturais do Instituto de
Estudos Avançados (IEA) da USP, em 28 de setembro de 2016.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 163

Tal situação contribui para retroalimentar a inferiorização de alunos(as) não


brancos(as) postos(as) à margem do processo de ensino e aprendizagem,
bem como para demarcar a suposta superioridade de alunos(as) brancos(as)
(CAVALLEIRO, 1998).
Diante dessas ponderações, torna-se notável como as heranças colo-
nialistas contribuem fortemente para que conhecimento sobre a história e a
cultura indígena, africana, afro-brasileira e sobre outras formas de existên-
cias dissidentes aos padrões cisheteronormativos não sejam efetivamente
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

incluídas nos currículos e cotidianos escolares nem afirmadas positivamente


na sociedade. Tal cenário demanda que estratégias sejam elaboradas para o
enfrentamento dessas formas de exclusão que afetam negativamente a for-
mação dos(as) estudantes(as).
Para tanto, é necessário compreender como o racismo se rearticula cons-
tantemente de acordo com o contexto vigente sob a forma de dispositivo de
racialidade (CARNEIRO, 2005). Esse dispositivo se encarrega de manter a
subalternização dos sujeitos marcados por uma racialidade não hegemônica
independente do tempo histórico e do contexto. No contexto escolar, o episte-
micídio (SOUSA, 1995) é uma forma que o genocídio se adequou ao campo
dos saberes, de modo a promover o apagamento de racionalidades outras
dissidentes à racionalidade ocidental, branca e europeia. Por conseguinte, os
sujeitos que constroem essas racionalidades também se tornam destituídos
de humanidade e submetidos à “indigência cultural”:

pela negação ao acesso à educação, sobretudo de qualidade; pela produ-


ção da inferiorização intelectual; pelos diferentes mecanismos de des-
legitimação do negro como portador e produtor de conhecimento e de
rebaixamento da capacidade cognitiva pela carência material e/ou pelo
comprometimento da [sic] auto-estima pelos processos de discriminação
correntes no processo educativo (CARNEIRO, 2005, p. 97).

Enquanto o dispositivo de racialidade atua como forma de perpetuar a


exclusão daqueles sujeitos que compartilham de uma racialidade não hegemô-
nica, os dispositivos de inclusão atuam como forma de manter o controle das
diferenças, a fim de precaver sua ingovernabilidade (CHAMAYOU, 2020). Em
se tratando das expressões do dispositivo de racialidade na escola como forma
de perpetuar o racismo, os dispositivos de inclusão aparecem para despolitizar
as demandas populares ao apresentar políticas públicas e educacionais com
o propósito de promover a igualdade racial e de oportunidades. No âmbito
da sociedade neoliberal, essa igualdade não se manifesta efetivamente, e os
dispositivos de inclusão cumprem a função de controlar os diferentes e até
homogeneizar suas diferenças.
164

Nesse sentido, é fundamental reconhecer que o racismo e suas intersec-


ções operam nas sociedades disciplinares como uma tecnologia de poder bem
aprimorada. Portanto, não haverá um fim único para combater as opressões que
dele emergem, mas as estratégias deverão se rearticular constantemente para
que esse combate ocorra em uma dinâmica proporcional. Tendo em vista que
os dispositivos de inclusão tendem a governar as diferenças para prevenir sua
ingovernabilidade, esta é justamente a ferramenta catalizadora nesse processo.
Sendo assim, a educação deve ser entendida como uma via para possibili-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tar que as múltiplas expressões de diferenças dos sujeitos sejam reconhecidas,
valorizadas e afirmadas positivamente, de modo que as políticas educacionais
que visam a inclusão e equidade não operem meramente como instrumentos
de controle das ações ingovernáveis daqueles que são diferentes. Em outras
palavras, as políticas de inclusão não devem operar apenas como estratégias
para que os sujeitos que as reivindicam sejam governados para não mobili-
zarem críticas diante de suas inconsistências. Por outro lado, tais políticas e,
sobretudo, as ações cotidianas, devem ser instrumentos para que o ambiente
escolar seja um espaço que viabilize afirmação das diferenças e valorização
da diversidade etnicorracial, e não somente de modo a possibilitar o resgate
da memória e da cultura que constituem as noções de pertencimento.
O caráter ingovernável das diferenças pode ser o que de mais potente elas
possuem para resistir ao conservadorismo de discipliná-las, enquadrá-las em
discursos de igualdade que tendem a sua homogeneização em prol do con-
trole. Em suma, afirmar as diferenças perpassa pelo processo de reconhecer as
opressões que sobre elas emergem e, por conseguinte, conceber espaço para
a afirmação das mesmas e não para a sua disciplinarização.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 165

REFERÊNCIAS
CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como
fundamento do ser. 2005. 339 f. Tese (Doutorado em Educação – Filosofia
da Educação) – Programa de Pós-Graduação em Educação, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2005.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

CAVALLEIRO, Eliane dos Santos. Do silêncio do lar ao silêncio escolar:


racismo, preconceito e discriminação na educação infantil. 1998. 240 f. Disser-
tação (Mestrado) – Curso de Educação, Faculdade de Educação, Universidade
de São Paulo, São Paulo, 1998. Cap. 5.

CHAMAYOU, Grégoire. Introdução. In: CHAMAYOU, Grégoire. A socie-


dade ingovernável: uma genealogia do liberalismo autoritário. Tradução:
Letícia Mei. Ubu Editora, 2020. p. 21-28.

CRENSHAW, Kimberlé. Documento para o encontro de especialistas em


aspectos da discriminação racial relativos ao gênero. Revista Estudos
Feministas, v. 10, n. 1, p. 171-188, jan. 2002. Disponível em: https://doi.
org/10.1590/S0104-026X2002000100011. Acesso em: 27 jul. 2021.

DANTAS, Sylvia; FERREIRA, Ligia; VÉRAS, Maria Pardini Bicuro. Um


intérprete africano no Brasil: Kabengele Munanga. Revista USP, São Paulo,
n. 114, p. 31-44. 2017. Disponível em: https://www.revistas.usp.br/revusp/
article/view/142366. Acesso em: 31 jul. 2021.

FOUCAULT, Michel. Aula de 1º de fevereiro de 1978. In: FOUCAULT,


Michel. Segurança, Território, População. Tradução: Eduardo Brandão.
São Paulo: Martins Fontes, 2008. p. 117-154.

FOUCAULT, Michel. Em defesa da sociedade: curso no Collège de France.


São Paulo, Martins Fontes, 2002.

FOUCAULT, Michel. Sobre a história da sexualidade. In: FOUCAULT,


Michel. Microfísica do poder. 8. ed. São Paulo: Graal, 1993. Cap. 16,
p. 215-251.

GONZALEZ, Lélia. De Palmares às escolas de samba, tamos aí. Mulherio,


ano II, n. 5, jan./fev. 1982. p. 3.
166

GONZALEZ, Lélia. Racismo e sexismo na cultura brasileira. Revista Ciên-


cias Sociais Hoje, Anpocs, p. 223-244, 1984.

GUIMARÃES, Antonio Sérgio Alfredo. Racismo e anti-racismo no Brasil.


Novos Estudos CEBRAP, São Paulo, n. 43, p. 26-44, nov. 1995.

HALL, Stuart. Questão multicultural. In: HALL, Stuart. Da diáspora: iden-


tidades e mediações culturais. Belo Horizonte: Editora UFMG, 2003. Cap.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


1, p. 51-89.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.


Desigualdades sociais por cor ou raça no Brasil. Estudos e pesquisas. Infor-
mação demográfica e socioeconômica, n. 41, 2019. Disponível em: https://
biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf. Acesso
em: 27 jul. 2021.

IBGE – INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA.


Estatísticas de gênero: indicadores sociais das mulheres no Brasil. 2. ed.
Estudos e pesquisas. Informação demográfica e socioeconômica, n. 38, 2021.
Disponível em: https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101784_
informativo.pdf. Acesso em: 27 jul. 2021.

JESUS, Jaqueline. Gomes. Transfobia e crimes de ódio: assassinatos de pes-


soas transgênero como genocídio. História Agora, v. 16, p. 101-123, 2014.
Disponível em: https://www.researchgate.net/publication/281321251_Trans-
fobia_e_crimes_de_odio_Assassinatos_de_pessoas_transgenero_como_geno-
cidio. Acesso em: 30 jul. 2021.

LISBOA, A. P; OLIVEIRA, I.; SOUZA, T. Pretos no topo: desemprego


recorde entre negros é resultado de racismo. Disponível em: https://www.
correiobraziliense.com.br/euestudante/trabalho-e-formacao/2021/03/
4913182-pretos-no-topo-desemprego-recorde-entre-negros-e-resultado-de-
-racismo.html. Acesso em: 26 jul. 2021.

MILLER, Jacques Alain. Teoria da Alíngua. Revista Lugar, Rio de Janeiro,


n. 4, 1976.

MILLS, Charles. The Racial Contract. Cornell University, 1997.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 167

MUNANGA, Kabengele. As facetas de um racismo silenciado. In: SCH-


WARCZ, Lilia Moritz; QUEIROZ, Renato da Silva (org.). Raça e Diversi-
dade. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo, 1996. p. 213-229.

MUNIZ, B.; FONSECA, B.; PINA, R. Em duas semanas, número de negros


mortos por coronavírus é cinco vezes maior no Brasil. Disponível em:
https://apublica.org/2020/05/em-duas-semanas-numero-de-negros-mortos-
-por-coronavirus-e-cinco-vezes-maior-no-brasil/. Acesso em: 27 jul. 2021.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

PELBART, P. Peter. O devir-negro do mundo. Revista CULT, n. 240,


nov. 2018.

REGO, Yordanna L. P. Reflexões sobre afronecrotransfobia: políticas de


extermínio na periferia. Revista Humanidades e Inovação, Tocantins, v. 6,
n. 16, p. 167-181, 2019. Disponível em: https://revista.unitins.br/index.php/
humanidadeseinovacao/article/view/1838. Acesso em: 27 jul. 2021.

SANTOS, S. Boaventura. Pela Mão de Alice. São Paulo: Cortez Editora, 1995.

SILVA, Divino José da; ALMEIDA, Jonas Rangel de; PAGNI, Pedro Angelo.
Necropolítica, governo sobre as infâncias negras e educação do rosto. Chil-
dhood & Philosophy, Rio de Janeiro, v. 17, n. 1, p. 1-23, abr. 2021. Dispo-
nível em: https://doi.org/10.12957/childphilo.2021.56149. Acesso em: 30
jul. 2021.

TAGUIEFF, Pierre-André. La force du préjugé: essai sur le racismeet ses


doubles. Paris: Gallimard, 1987.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
O RACISMO E A MISOGINIA
NAS ENTRANHAS DE UM
BRASIL NÃO CONTADO
Dandara Tonantzin Silva Castro
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Dandara, líder feminina do Quilombo de Palmares, foi uma das figuras


importantes que se rebelou e lutou para a liberdade e emancipação do povo
negro no Brasil, sendo resistência, mesmo que isso não conste nas páginas da
história oficial contada pelas elites. Dandara é também o nome que carrego,
como um título, para que a luta que é anterior à Dandara dos Palmares continue
existindo e se estenda para além de mim. Mulher, negra, jovem, da periferia,
eleita a vereadora mais votade de Uberlândia/MG, nas Eleições Minicipais
de 2020, que viu na militância e no abalo das estruturas, ainda coloniais, uma
tentativa de modificar a ideia de poder, instaurada e exercida pela branquitude.
Exemplo da passibilidade que a branquitude exerce sobre as normas
de conduta do Brasil, em um ato às vésperas das eleições presidenciais de
2018, Rodrigo Amorim e Daniel Silveira, ambos candidatos a deputado pelo
PSL-RJ, rasgaram a placa que homenageava a vereadora Marielle Franco,
mulher preta, lésbica, do Complexo da Maré/RJ, que foi executada covarde-
mente com quatro projéteis na cabeça em março daquele ano, um crime ainda
sem solução1. Simbolicamente, ao romper o objeto que simulava uma placa
de rua e que, por sua vez, representava o sentimento de revolta e justiça que
germinou depois do assassinato dessa mulher preta que ocupava um lugar
de poder, os candidatos e o seu partido, o bolsonarismo e a ascensão de um
pensamento ultraconservador, passaram uma mensagem: não há espaço para
oprimidos no projeto de país que eles defendem.
E isso ergueu-se como um pesadelo: Jair Messias Bolsonaro se elegeu
presidente com falas que exprimem ao seu eleitorado suas ideologias e o pro-
jeto de conduta que ocupa hoje o Palácio do Planalto, passando por cima de
todo senso de humanidade, atacando pessoas e o movimento negro, mulheres,
indígenas, quilombolas, a comunidade LGBTIA+ e a própria democracia.
Disseminando com a sua voz, que é, infelizmente, audível, a cultura do ódio
e todos os desdobramentos que ela culmina.

1 Para saber mais: https://www.gazetadopovo.com.br/politica/republica/candidatos-do-psl-rasgam-placa-que


-homenageava-vereadora-assassinada-b4z8ev8c6bhvhxmoxr6junv15/.
170

O assassinato de Moa do Katendê2, motivado por ódio partidário, ainda


no período eleitoral, desagua no mar de sangue que se tornou o Brasil. Desde
o dia em que a faixa presidencial cruzou o peito de Bolsonaro, a desgover-
nança, a sede de poder e o projeto genocida prejudicaram a vida de milhares
de famílias que perderam (e ainda perdem) seus entes queridos e amigos para
a covid-19, para o racismo estrutural, para uma aliança que “passa a boiada”3,
enquanto a cultura indígena se vai, nada deixando nem mesmo o passado.
Um país sem memória, sem afeto, descendo uma ladeira sem pés firmes para

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


usar como freio.
Nesse declínio, o Brasil entrou novamente para o mapa da fome4 e vive
o avanço dos preços em produtos básicos como botijão de gás, carne e demais
itens de supermercado, além do valor exorbitante da gasolina, da desvalori-
zação do dólar, do desmonte da ciência, da educação e do Sistema Único de
Saúde (SUS), da precarização de serviços – transformando, imageticamente,
o país do agronegócio, no país da miséria.
Tem sido cada vez mais comum ver a população, em situação de miséria,
revirando lixo em busca de restos de comida, filas para comprar ossos (item
que antes era doado) e o aumento da quantidade de pessoas em situação de
vulnerabilidade. Além de tudo isso que fere a dignidade humana, as condições
de sobrevivência, a garantia do mínimo, existe ainda a ascensão de esquemas
e planos que chantageiam a nossa frágil e prematura democracia.
Exemplo disso, no dia 7 de setembro de 2021, data que se comemora
a Independência do Brasil, Bolsonaro convocou um ato de represália ao
Supremo Tribunal Federal (STF) com o argumento de que as manifestações
pró-governo seriam o “ultimato” a pessoas que estavam “usando da força de
poder” contra ele. Além de ataques ao STF, o presidente e seus apoiadores
intensificaram o chamado para o ato após a rejeição da PEC do voto impresso5,
que foi uma demanda da bancada bolsonarista diante de supostas fraudes nas
eleições, sobre as quais não há indícios, nem provas, como admitiu o próprio
presidente. As expectativas de que os atos do dia 7 de setembro seriam um
novo golpe militar foram contrariadas com a baixa adesão ao movimento,
uma vez que Bolsonaro enfrenta baixa na sua popularidade, além de uma
nefasta crise econômica.

2 Mestre Moa do Katendê foi um compositor, percussionista, artesão, educador e mestre de capoeira brasileiro.
Para saber mais sobre o assassinato de Moa do Katendê: https://g1.globo.com/ba/bahia/noticia/2018/10/17/
investigacao-policial-conclui-que-morte-de-moa-do-katende- foi-motivada-por-briga-politica-inquerito-foi-
-enviado-ao-mp.ghtml.
3 Para saber mais: https://g1.globo.com/politica/noticia/2020/05/22/ministro-do-meio-ambiente-defende-passar-
-a-boiada-e-mudar-regramento-e-simplificar-normas.ghtml
4 Para saber mais: https://www.cartacapital.com.br/opiniao/frente-ampla/com-bolsonaro-o-brasil-voltou-ao
-mapa-da-fome/.
5 Disponível em: https://www.camara.leg.br/proposicoesWeb/fichadetramitacao?idProposicao=2220292.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 171

Todas ações e falas do governo Bolsonaro dão ao Brasil uma qualidade de


demérito, nacional e internacionalmente. Dentre elas, posicionamentos rudes
e insensíveis sobre o número de mortos na pandemia do novo coronavírus,
uma assídua campanha antivacina, um besteirol sobre toda e qualquer pauta
que não seja sobre ele e o país “verde e amarelo” que ele acredita existir. A
candidatura de Bolsonaro se apropriou das cores da bandeira do Brasil, da
camisa da seleção brasileira de futebal masculino, trazendo uma falsa sensação
de patriotismo em consonância com a defesa de instituições como “Deus” e a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

“família, mas o Brasil que ele panfletou não existe. Ou existe, de certa maneira,
dentro dos padrões militares que ainda restam da ditadura vivida de 1964 a
1985: um Brasil que tem como herói Coronel Brilhante Ustra – torturador
que foi citado por Bolsonaro, então deputado federal, na votação do golpe em
16 de abril de 2016, como “o terror de Dilma Rousseff”. Um Brasil contado
pelos opressores, pela casa grande, pelos colonizadores, por todo ideal que
fez e faz deste país um lugar violado e de violências.
Dentre elas, neste ensaio, me desdobro sobre o racismo.
Institucionalizado a ponto das mortes de pessoas pretas serem apenas
estatísticas que aparecem nos noticiários; estrutural a ponto da nossa voz,
nosso poder, nossos estudos, produções, nossa existência serem, o tempo
todo, colocados em dúvida. O Brasil escravizou pessoas negras por 300 anos.
Isso é um fato que ressoa pela nossa história, por mais que as estruturas de
poder aleguem o esquecimento. Três séculos dividem um homem branco de
uma mulher negra; três séculos que ainda perduram quando nossos traços são
questionados, nossas crianças abatidas, nosso cabelo ridicularizado, nossa
fé queimada nas fogueiras e nas lâminas quentes do discurso, nosso lugar
reservado da cozinha pra lá, no quarto sem ventilação, no sufoco de um povo
asfixiado pela “segurança pública”, nos incontáveis de nós que foram amon-
toados nos navios, nas prisões, nas covas, na história. Quando há o levante
de todas essas indagações, que são inerentes às pessoas pretas bem antes da
alfabetização, torna-se urgente agir para que o nosso futuro não seja uma
vertente do nosso passado.
Gomes (2017), no livro “O Movimento Negro educador: saberes cons-
truídos nas lutas por emancipação”, apresenta o movimento negro brasileiro
como educador, responsável pela produção de saberes emancipatórios sobre
a questão racial no Brasil. Os saberes produzidos pelo movimento negro sub-
vertem a teoria educacional, ainda embranquecida e colonizada, sendo capaz
de construir a pedagogia das ausências e das emergências, dando à escola,
à universidade e aos currículos um novo prisma. As Leis nº 10.639/2003
(BRASIL, 2003) e nº 11.645/2008 (BRASIL, 2008) são exemplos dessa
construção, ao instituírem a obrigatoriedade do ensino da história e cultura
afro-brasileira e indígena a educação para as relações étnico-raciais no Brasil
172

(SILVA; RIBEIRO, 2019). Essas mudanças na legislação só foram possíveis


neduabte a dedicação e a luta do Movimento Negro brasileiro que, através de
debates, manifestações e uma imposição da voz, buscou (e continua buscando)
modificar as estruturas de poder da sociedade brasileira.
Os “coletivos negros” se destacam no exercício da educação emanci-
padora e antirracista, criados, na maioria das vezes, a partir da ausência das
temáticas étnico-raciais nos currículos, seja como disciplina ou como um tema
enviesado na grade curricular. Também é uma atividade dos coletivos negros

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a criação de espaços antes inacessíveis. Na mídia, por exemplo, se expressam
através de veículos de imprensa, jornais e redes sociais, divulgando narrativas
negras, desde o espaço cultural até as recorrentes denúncias de racismo na
sociedade brasileira.
Uma das políticas públicas que, também decorrente de pressão e arti-
culação do movimento negro, veio para afirmar a nossa existência enquanto
seres pensantes, tirando da nossa bagagem o tom animalesco e servil, foi a
Lei de Cotas, a qual Bolsonaro, quando ainda era deputado federal pelo Rio
de Janeiro, fez a seguinte observação em entrevista ao programa CQC, do
canal de televisão Band, em 2011: “Quem usa cota, no meu entender, está
assinando embaixo que é incompetente. Eu não entraria num avião pilotado
por um cotista nem aceitaria ser operado por um médico cotista” (2011).
A fala foi feita num momento em que o Brasil discutia a Lei
nº 12.711/2012, chamada Lei de Cotas, que garante reserva de 50% das matrí-
culas por curso e por turno para o ensino superior, abrangendo: condição
socioeconômica de estudantes, aplicando como parâmetro a renda familiar
de até um salário mínimo e meio per capita; estudantes oriundos de escolas
públicas com renda familiar superior a um salário mínimo e meio; percentual
mínimo correspondente à soma de pretos, pardos e indígenas no estado, em
conformidade com o último censo demográfico. A lei estabelece também a
capilaridade de seu cumprimento nas 59 Universidades Federais (UFs) e nos
38 Institutos de Educação, Ciência e Tecnologias (IFs).
A opinião de Bolsonaro esboça um país que busca o desmonte de con-
quistas do povo brasileiro e a manutenção de privilégios. Cabe dizer que a
Lei de Cotas é de caráter reparatório. Está previsto que o Congresso Nacional
faça sua avaliação em 2022, ainda no governo Bolsonaro.
No cerne da discussão sobre cotas, está a readequação social de grupos
que tiveram suas vivências roubadas. Não há como pensar uma educação
antirracista sem passar pela Lei de Cotas, uma vez que só é possível avan-
çar no discurso neutralizador de “igualdade” quando nossos relatos forem
produzidos por nós. Para que isso aconteça, é primordial que nossos corpos
e nossas vozes estejam inseridos na academia e nas engrenagens científicas
que movimentam os currículos desde a educação básica até o ensino superior.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 173

A Lei de Cotas é a garantia de que nossas vivências não estarão apenas nos
lugares que a sociedade racista reservou para nós, mas, sim, construindo a
nossa narrativa de um ponto de vista de quem sente na pele, como Petronilha
Silva argumenta:

Não admitimos as equivocadas análises que fazem de circunstâncias que


nos são impostas, tampouco aceitamos limitadas definições do que sejam
as mulheres negras. Somente nós mesmas podemos nos definir. Somos as
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

fontes mais genuínas de conhecimento sobre nós; exigimos que estudos


que nos tomem por temática tenham como centralidade nossos pontos de
vista [...] (SILVA, 1998).

O dito de Silva (1998) manifesta um projeto que atribui às pessoas negras


o poder de erguer a voz e construir o próprio discurso, com o objetivo de apre-
sentar uma nova versão para os fatos que são ensinados nas escolas. Há nessa
citação uma convocação para que exista a voz dos oprimidos nas narrativas
que foram, durante muito tempo, construídas pelo opressor.
Em 2003, na tentativa de modificar o espaço enrijecido da educação,
foi sancionada a Lei nº 10.639, que tornou obrigatório o ensino de história e
cultura afro-brasileira, além de estabelecer o 20 de novembro como o dia da
Consciência Negra no calendário escolar. Porém, há uma falha na execução
dessa lei nas escolas, condensando, na maioria das vezes, a vastidão da cultura
afro- brasileira apenas em um dia, semana ou mês de novembro, e também
uma falta de formação e instrução para que professoras e professores incor-
porem a temática em todo o ano letivo.
Importante refletir que, além do sucateamento da educação, essa temática
se torna de difícil execução pelo racismo que paira sobre o nosso território
como uma névoa que nunca cessa. Um projeto de lei não quer dizer, subs-
tancialmente, que as tensões e regulações serão fadadas aos “panos quentes”.
Ressalto que, para além de um aparato que impulsione a execução, é impor-
tante que exista um direcionamento político: ensinar sobre história e cultura
afro- brasileira nas escolas é criar, no espaço da educação, a emancipação
que refletirá em questões da cidadania, uma vez que, conforme reflexões de
Ângela Davis: em uma sociedade racista, não basta não ser racista, é preciso
ser antirracista.
Afinal, “o que os currículos educacionais têm a aprender com os pro-
cessos educativos construídos por movimentos sociais negros na América
Latina?”. A indagação de Gomes (2017) nos leva a uma percepção sobre os
saberes emancipatórios executados pelo povo negro e estruturado pelo movi-
mento negro, pois “trata-se de uma maneira de conhecer o mundo, da produ-
ção de uma racionalidade assinalada pela vivência da raça numa sociedade
174

racializada e direcionada da população negra ao longo da história” (GOMES,


2017, p. 67-68). Quanto ao Brasil, a autora destaca que tais pontos provém de
um aprendizado e simbolizam, de certa forma, “um tributo ao investimento
intelectual, político, de vida e, de outro, trajetória persistente e tensa construída
por tantos militantes do movimento negro” (GOMES, 2017, p. 67); e que,
ainda conforme a autora, “podemos dizer que consideramos que a comuni-
dade negra e o Movimento Negro produzem saberes, os quais se diferem do
conhecimento científico, mas em hipótese alguma podem ser considerados

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


menos saber ou saberes residuais” (GOMES, 2017, p. 67).
Em razão da relevância da raça na formação da sociedade brasileira é
que tais saberes necessitam ser inseridos na educação escolar, nos projetos
com poder educativo não escolares e nas vertentes do conhecimento de uma
maneira geral. Dentre esses, elenco os saberes produzidos pela comunidade
negra e planificado pelo Movimento Negro Brasileiro: os saberes identitários;
os saberes políticos, na figura do Estado, principalmente nos aparelhos que
dizem respeito ao Ministério da Educação, que se movimentam na tematização
sobre as desigualdades étinico-raciais; e os saberes estéticos-corpóreos, que
respeitam as performances estéticas, sejam elas na arte, na forma de sentir o
mundo ou na forma de viver o corpo.
Para Gomes (2017, p. 77), estes saberes “estão interligados de maneira
dinâmica, apesar de suas especificidades”. Compreende-se que várias pautas
que contribuíram e contribuem para a formação da sociedade brasileira advém
do movimento negro. Dentre elas, políticas que aliam recognição, identidade,
cidadania e um poder equitativo. A autora reafirma, ainda, que o movimento
negro constrói um projeto educativo emancipatório e, dentro deste, socializa os
saberes construídos pelos negros ao longo de sua trajetória histórica (GOMES,
2017; SANTOS, 2009; 2017).
Por isso que, dentro do campo da educação, se torna essencial a existência
da circulação de vozes negras erguidas, uma vez que “a fala verdadeira não é
somente uma expressão de poder criativo; é um ato de resistência, um gesto
político que desafia políticas de dominação que nos conservam anônimos e
mudos” (HOOKS, 2019, p. 36). Dessa forma, a disputa de pessoas negras
pelo discurso na sociedade, mais especificamente, na educação, tira as pautas
do movimento negro apenas do caráter informativo e as eleva para um lugar
de luta, transformando a informação em ação, até que o combate ao racismo
se torne um bem comum.
Para consolidar lutas ancestrais de caráter emancipatório do movimento
negro, a estratégia geral da nossa atuação tem sido aquela que aprendemos
nos quilombos há mais de 400 anos: resistir coletivamente e ocupar todos
os espaços. As eleições de 2020 significam um marco nessa luta. Em mui-
tas câmaras legislativas municipais, as parlamentares mais votadas foram
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 175

mulheres negras – a exemplo da vereadora Érika Hilton (PSOL), eleita a


mulher mais bem votada, com 50.508 votos em São Paulo-SP; e eu (PT), em
Uberlândia, mais votada com 5.237 votos. Ao ocupar esses espaços, a nossa
presença incomoda profundamente os herdeiros da casa grande, que se sentem
donos, proprietários dos espaços de poder. Desde o primeiro dia de mandato,
tentam imputar sobre os nossos corpos um sentimento de não pertencimento,
de estranheza e não legitimidade.
Com as tensões provocadas pelo governo Bolsonaro e, de forma mais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

profunda, pelo bolsonarismo, a violência política de gênero e racial se apro-


funda. Ao longo do primeiro ano de mandato, passei pelas mais diversas
situações, desde ataques racistas durante uma audiência pública, que debatia
a militarização das escolas municipais, na qual, no chat do canal do YouTube
da TV Câmara, pessoas levantaram a hashtag #ForaTurbante, tentando ferir
aquilo que mais me caracteriza como mulher preta empoderada num espaço
privilegiado; até ser barrada na portaria da Câmara Municipal, por seguranças
que, com tom de voz agressivo, me perguntaram: “Em qual gabinete você
vai?”, como se eu não tivesse autorizada a entrar na casa do povo. Além de
piadinhas, deboche nos corredores, tentativa de interrupção de fala, deslegiti-
mação do projeto que represento. Esses frequentes ataques racistas provocam
ondas de ódio, mas também de muita solidariedade. Por inúmeras vezes, os
movimentos negros de Uberlândia se organizaram para mostrar aquilo que
diz Lélia Gonzalez: “não andamos só”.
Em um desses atos, o movimento negro promoveu uma reunião na
Câmara Municipal, nos aquilombamos para nos fortalecer, debatemos estra-
tégias e pautas prioritárias para o nosso mandato, para seguir resistindo. Dentre
elas, estratégias para efetivar a Lei 10.639/2003, a qual não é cumprida no
nosso município, realidade comum em todo território nacional. Saímos em
marcha da sala de reuniões para o protocolo do técnico-legislativo, segurando,
a muitas mãos, um projeto para criar ciclos de formação para docentes se
prepararem, de forma continuada, para trabalhar a história e cultura africana
e afro-brasileira nas salas de aula. Naquele momento, já sabíamos as lutas que
teríamos que travar para que tal proposição fosse aprovada como lei.
O projeto percorreu os caminhos burocráticos e chegou ao plenário no
mês de outubro de 2020. Na segunda reunião ordinária desse mês, articulamos
para que pudesse entrar em votação. O único voto contrário foi do vereador
que se autointitula “bolsonarista raiz” e, em seu discurso de justificativa do
voto, disse “o racismo vai acabar o dia que a gente parar de olhar a cor das
pessoas e tratar todo mundo como ser humano”. Discurso que o movimento
negro contesta veementemente, uma vez que negar que o racismo existe não
resolve a opressão racial. É preciso ler a sociedade tal qual ela é e enfrentar
as mazelas que a constituem. O “bolsonarista raiz” se referiu ao projeto como
176

“uma mentalidade de esquerda vitimista”, negando a todo momento que a


escravização produziu efeitos nefastos, que existe uma dívida histórica e
atribuindo, equivocadamente, a escravização ao próprio povo negro.
Assim como os integrantes do PSL reforçaram, em seu gesto, a segunda
morte de Marielle Franco, o vereador bolsonarista, em seu discurso, dilacera
um contexto histórico, com argumentos vazios e fúria, tentando justificar o
racismo como uma invenção dos próprios negros e se pautando apenas no
conservadorismo para a manutenção de privilégios. É por isso que a educação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


antirracista incomoda tanto, porque é uma educação para autonomia, para um
processo profundo e irreversível de tomada de consciência. Afinal, a partir
do momento em que nós, negras e negros, entendemos como a manivela da
estrutura opressora gira, dificilmente nós voltamos para o lugar da submissão.
O projeto foi aprovado e sancionado pelo prefeito no dia 4 de novembro,
justamente no mês da Consciência Negra. Ainda lutaremos para sua efetiva-
ção, porque, de uma coisa temos certeza, a luta antirracista não começa nem
termina em nós. Desde Zumbi dos Palmares, Antônio Conselheiro, Abdias
do Nascimento, Lélia Gonzalez até Benedita da Silva, Marielle Franco, Érika
Hilton, estamos movimentando as águas do balde da transformação. Tem dias
que cai uma enxurrada, em outros, a conta-gotas, mas o importante é que cada
pingo forme uma onda incontrolável e capaz de transbordar o balde; e assim,
a educação antirracista se efetiva como um princípio essencial da vida. Em
nós, não há mais espaço para sede.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 177

REFERÊNCIAS
GOMES, Nilma Lino. Movimento negro e educação: ressignificando e poli-
tizando a raça. Educação & Sociedade, Campinas, v. 33, n. 120, p. 727-744,
2012. Disponível em: https://doi.org/10.1590/S0101-73302012000300005
Acesso em: 2 fev. 2022.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

GOMES, Nilma Lino. O Movimento Negro Educador: saberes construídos


nas lutas por emancipação. Petrópolis: Vozes, 2017.

HOOKS, bell. Erguer a voz: pensar como feminista, pensar como negra.
Tradução: Catia Bocaiuva Maringolo. São Paulo: Elefante, 2019.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ENTRE FIOS E EXPERIÊNCIAS:
o cabelo como símbolo de resistência
de uma educação antirracista
Fernanda de Souza Cardoso
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Introdução
Mostra o seu cabelo crespo dane-se quem não gostou
abana a cabeça pra cima e pra baixo
orgulho de quem nos criou
dela se originou
África se consagrou
berço da humanidade
então por favor respeite o que eu sou
meu cabelo é nossa raiz
independente de qualquer país
(NEGRA JAQUE, 2017).

A transição capilar é um processo pelo qual passaram e passam negras


e negros, assumindo o cabelo em seu formato natural, abandonando alisa-
mentos ou outros procedimentos químicos, com o intuito de reafirmarem
suas identidades.
Esse processo, surgido nos Estados Unidos e impulsionado pelas redes
sociais, rapidamente ganhou muitas pessoas adeptas no Brasil, sendo carac-
terizado pela passagem dos cabelos quimicamente tratados para a textura
natural, principalmente de cabelos cacheados e crespos. “Tal movimento tem
como referências, jovens que passaram por essa experiência de modificação,
que transforma, aos poucos, as suas imagens e que influencia diretamente em
suas autoestimas” (MATOS, 2016, p. 845).
Assim como muitas mulheres negras, eu também passei por esse processo
de transição capilar no ano de 2014. Nessa época, eu já ministrava aulas de
Educação Física desde 2002, nos anos iniciais do ensino fundamental, em
uma escola da rede estadual, em Montes Claros, norte de Minas Gerais. Como
acontece com muitas negras, a “aceitação” por parte de muitas pessoas do
meu entorno não foi fácil, uma vez que o olhar da maioria não é educado
nem sensibilizado para perceber e conviver com as diferenças. Meus alunos
e minhas alunas diziam frases como: “Ah, tia, eu preferia seu cabelo do outro
jeito”, ou seja, preferiam meu cabelo alisado. E falavam também coisas do
180

tipo: “Achava a senhora mais bonita com o cabelo liso”. Naquele período, eu
optei por não escovar os cabelos, ficando totalmente aparente o processo de
transição, e isso parecia incomodar ainda mais os(as) alunos(as) e certamente
muitas outras pessoas na escola e fora dela. Como, em geral, as crianças
se comunicam bem, falam o que estão pensando, então, ouvia esse tipo de
comentário mais delas.
Cabe destacar que, quando eu fazia tranças, algumas crianças também
pareciam incomodadas, já que esta técnica de trançar os cabelos faz referência

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a uma estética afro.

Saber adornar o cabelo com penteados trançados não é nenhuma novidade


para muitas mulheres negras, pelo contrário, estilizar os cabelos com tran-
ças é uma prática do íntimo, normalmente aprendida no contexto familiar
ou em outros espaços de sociabilidades negras (SANTOS, 2019, p. 64).

Dessa forma, notamos que as tranças

estão presentes nas discussões políticas identitárias como uma das refe-
rências culturais que constituem o patrimônio cultural legado pelos
povos africanos. Sendo colocadas pelos movimentos negros como parte
da memória africana apresentada e traduzida nos corpos negros. Neste
sentido, podemos compreender as práticas e técnicas de estilizar cabelos
através de penteados trançados como um bem cultural do patrimônio afro-
-brasileiro por serem significativas para os grupos negros e ocuparem um
lugar de destaque nos debates de formação de identidade étnica e racial
(SANTOS, 2019, p. 65).

Embora, naquele momento, eu ainda não estivesse familiarizada com


a teoria antirracista, acredito que minhas atitudes diante do processo viven-
ciado estiveram em conformidade com pressupostos e orientações do que
chamamos educação antirracista; uma vez que a mesma está relacionada com
o ensino das relações étnico-raciais, promoção de valores que viabilizem a
igualdade na sociedade, abordando temas como preconceito, discrimina-
ção, racismo e diversidades culturais. Os professores e professoras devem
contribuir para que as relações étnico-raciais do e no nosso país tenham
novos significados e interpretações por parte de estudantes, rompendo com
o mito da democracia racial que nega a desigualdade racial no Brasil, bus-
cando uma educação que ensine a convivência com as diferenças (SILVA;
COSTA, 2018).
De acordo com Brandt (1986, p. 125), apud Ferreira (2012, p. 277), “[...]
o objetivo de educação antirracista deve ser, por definição, de oposição”. E foi
exatamente assim que eu, mulher negra e educadora, escolhi me comportar:
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 181

em oposição. Tive que me opor aos olhares e discursos de rejeição, me opor


aos estereótipos e ditames sociais que sempre colocaram o corpo negro no
lugar de subalternidade e inferioridade; um corpo negro e toda sua estética
sempre tratada como feia, indigna ou exótica demais.
Quando, em 2002, iniciei minha carreira como professora de Educação
Física dos anos iniciais do ensino fundamental, na rede pública da minha
cidade natal, não imaginava a quantidade nem a intensidade das tensões e
transformações com as quais me depararia no cotidiano do meu fazer peda-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

gógico. E uma das problemáticas fortemente presentes na minha rotina, assim


como na sociedade, dizia respeito às relações étnico-raciais. Dessa maneira,
este relato tem como propósito apresentar minha experiência como professora
da educação básica, tendo passado pela transição capilar, (re)descobrindo
minha identidade negra, o que transformou minha prática pedagógica. Os
procedimentos metodológicos usados para o desenvolvimento deste relato se
constituíram em revisão bibliográfica que respondesse ao objetivo do estudo,
buscando um diálogo entre a literatura e a experiência por mim vivenciada
durante meu processo de transição capilar, gerando impactos em mim e na
minha relação com meus alunos e alunas.

O cabelo como símbolo de resistência de uma educação


antirracista
Os crespos soltos no ar, as madeixas todas são minhas
porque seu cabelo é o poder, é poderosa, é uma rainha
tira mão sai daqui meu cabelo não é moda
não aliso não raspo não chapo aceite assim
eu sei que incomoda (NEGRA JAQUE, 2017).

O cabelo é parte do corpo, portanto, é parte daquilo que somos e de como


nos apresentamos ao/no mundo. Ele é considerado em diferentes culturas
como elemento marcante da construção da beleza feminina. Os cabelos são
muitas vezes definidos como “a moldura do rosto”, podendo dar informações
sobre as origens, pertencimento a grupos sociais e hábitos de uma pessoa,
aproximando ou afastando sujeitos enquanto elementos de identidade corporal
(KING, 2015).
O cabelo afro, também identificado como cabelo crespo, é um dos
principais alvos dos comentários e práticas racistas. “Visto como feio, duro,
pixaim ou simplesmente o ‘cabelo ruim’, acaba gerando uma tensão para
que seja adequado a algo visto como bonito, arrumado e, assim, aceitável em
nossa sociedade, o padrão determinado pelo branco” (CASTRO; OLIVEIRA;
PEREIRA, 2021, p. 5).
182

Na escola, os poderes são exercidos por quem tem hegemonia; neste caso,
os brancos e a educação eurocentrada. Consequentemente, as instituições de
ensino passam a ser locais em que surgem situações de racismo, preconceito e
discriminação e dependem das práticas pedagógicas e da postura do(a) docente
saber lidar com tais situações que acontecem frequentemente no cotidiano da
sala de aula, sendo que a escola pode ser também um lugar para promoção da
igualdade e da cidadania (SILVA; COSTA, 2018).
As representações em torno do cabelo crespo têm sido um dos elementos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


centrais das análises e ações da juventude negra e vêm se tornando cada vez
mais ponto de reflexão científica. “Seja para falar de dicas de beleza, seja para
politizar a sua relação com o mundo, o corpo negro1 vem ganhando destaque,
sobretudo, a partir da segunda década dos anos 2000” (GOMES, 2017, p. 94).

O cabelo crespo é um marcador identitário e houve, por parte da sociedade


brasileira, um esforço em busca de apagá-lo, de torná-lo próximo ao padrão
eurocêntrico do cabelo liso, que é o padrão aceito em nossa sociedade.
Tudo que remete à negritude é mal visto, é menosprezado e empobrecido
devido aos reflexos de mais de 350 anos de escravização que ocorreu em
nosso país, reflexos esses que ainda vivenciamos através do racismo que
estrutura nossa sociedade (CASTRO; OLIVEIRA; PEREIRA, 2021, p. 6).

Então, parecem ser muito coerentes os discursos e narrativas de enfren-


tamento do racismo em vigor que enaltecem os cabelos como elementos de
orgulho racial, pois amá-lo significa afrontar o sistema racista, devolvendo a
ele todos os insultos, rejeições, exclusões que nos são direcionadas ao longo
de toda uma vida (BERTH, 2018).
A construção da identidade (uma noção absurdamente complexa) de
uma pessoa está, sem dúvida, implicada no processo de assumir os cabelos
crespos e cacheados. O corpo não é uma entidade finita: ele está sempre em
construção e transformação. Há, portanto, diferentes “categorias” de pessoas
que se constroem ao longo do tempo, de acordo com interesses e sentimentos
comuns. O cabelo e o penteado podem servir tanto para esconder como para
afirmar um pertencimento a uma dada categoria social. “É também possível
ler todo este processo do ponto de vista da identidade da qual se busca fugir:
o que se evita quando se alisa os cabelos?” (KING, 2015, n. p.).
Assim, ao falar sobre o complexo conceito de identidade, Hall (1997)
argumenta que nossas identidades são formadas culturalmente; isto significa
1 Sobre este “destaque” dado ao corpo negro, cabe ressaltar uma importante questão sobre a percepção
do mercado com relação à uma nova demanda, ou seja, a sagacidade do sistema capitalista em busca de
satisfazer desejos e anseios de consumidores(as) negros(as), se adequando rapidamente para oferecer uma
quantidade considerável de produtos para embelezamento destes corpos. Nesse sentido é que a transição
capilar foi logo captada e cooptada por este sistema que quer, de fato, ampliar cada vez mais seus lucros.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 183

dizer que devemos pensar as identidades sociais como construídas no interior


da representação, por meio da cultura, não fora dela. Elas são o resultado de
um processo de identificação que viabiliza que nos posicionemos no interior
das definições que os discursos culturais (exteriores) concedem ou que nos
subjetivemos (dentro deles). “Nossas chamadas subjetividades são, então,
produzidas parcialmente de modo discursivo e dialógico” (HALL, 1997, p. 8).

A identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de pro-


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cessos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento


do nascimento. Existe sempre algo “imaginário” ou fantasiado sobre sua
unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre “em processo”,
sempre “sendo formada”. [...]. Assim, em vez de falar da identidade como
uma coisa acabada, deveríamos falar de identificação, e vê-la como um
processo em andamento. A identidade surge não tanto da plenitude da
identidade que já está dentro de nós como indivíduos, mas de uma falta de
inteireza que é “preenchida” a partir de nosso exterior, pelas formas através
das quais nós imaginamos ser vistos por outros (HALL, 2005, p. 38-39).

No Brasil, paulatinamente, ter um corpo negro, expressar a negritude,


começa a ser entendido socialmente como uma maneira positiva de expressão
da cultura e da afirmação da identidade.

Essa percepção passa de um movimento interno construído no seio da


comunidade negra – não sem conflitos e contradições – para um movi-
mento externo de valorização da estética e da corporeidade negra no plano
social e cultural – também não sem conflitos (GOMES, 2017, p. 94-95).

qualquer processo identitário é conflitivo na medida em que ele serve para


me afirmar como um “eu” diante de um “outro”. A forma como esse “eu”
se constrói está intimamente relacionada com a maneira como é visto e
nomeado pelo “outro”. E nem sempre essa imagem social corresponde à
minha auto-imagem e vice-versa (GOMES, 2008, p. 20).

E foi exatamente com o que me deparei quando resolvi passar pelo


processo de transição capilar: com muitos conflitos e tensões. Aceitar o
meu cabelo em sua forma natural trouxe não somente a certeza do quanto a
sociedade foi e está despreparada para eleger outros corpos como bonitos e
legítimos, mas trouxe também o desafio de aceitar minha identidade negra,
como também me colocar enquanto professora, que tem diante de si muitas
responsabilidades sociais – dentre elas, contribuir com a formação da criança
e do(a) jovem que ora precisa se reconhecer e respeitar a si mesmo(a) ora
valorizar e respeitar outros corpos, outras formas de ser e existir no mundo.
184

Nesse sentido, a reeducação que acontece junto à transição capilar é


também uma forma de educação antirracista, “em que ocorre um processo de
conhecimento, de descoberta de novos saberes, saberes estes que nos foram
negados, e onde, ao mesmo tempo, ocorre um empoderamento2 desse sujeito”
(CASTRO; OLIVEIRA; PEREIRA, 2021, p. 13).
Assim, todas as vezes em que eu ouvia que meu cabelo era mais bonito
quando “estava liso”, eu sentia necessidade de reafirmar a meus alunos e alu-
nas que eu estava feliz com que eu estava vendo, que eu me achava bonita sim,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


embora eles(as) falassem o contrário, repetindo o que aprenderam sobre nós,
negros e negras, sobre nossos cabelos e nossos corpos. E eu, mesmo diante
daquela rejeição inicial, sustentava que aquele cabelo crespo, cacheado, era o
meu cabelo verdadeiro, real: aquela sim era “eu”. Embora no início de minha
transição eu provocasse todo esse estranhamento e aversão (sendo difícil,
inclusive, a aceitação por parte de alguns familiares), fui identificando certas
mudanças com o passar do tempo, principalmente ao final do processo de
transição, em que o cabelo ganhou “nova” forma, voltando a ser o que sempre
poderia ter sido e não foi. Notei que os comentários foram cessando; e, mais,
que algumas meninas pareciam se sentir representadas, iniciando também
um processo de aceitação, sendo que algumas vezes iam para a escola com
seus cabelos naturalmente crespos ou usando adereços que eu já havia usado,
como flores ou lenços.
Especificamente sobre as mudanças ocorridas em minha prática pedagó-
gica enquanto professora do componente curricular Educação Física, posso
aqui rememorar algumas que se fizeram importantes. Embora a Educação
Física seja uma área muitas vezes relacionada apenas à dimensão procedi-
mental3, ou seja, o “saber fazer”, diante de tantos conflitos que se davam
no contexto da própria aula (inclusive étnico-raciais), era sempre essencial
não negligenciar as demais dimensões (conceitual e atitudinal) na busca da
resolução destes conflitos. Muitas vezes, era sim necessário “parar a aula”
(comumente chamada prática), pois ensinar um gesto, um ato motor, não era
2 Ao fazer referência ao conceito de “empoderamento”, cabe destacar as ideias de Joice Berth (2019), muito
bem argumentadas em seu livro Empoderamento, quando a mesma diz que: “quando assumimos que esta-
mos dando poder, em verdade estamos falando na condução articulada de indivíduos e grupos por diversos
estágios de autoafirmação, autovalorização, autorreconhecimento e autoconhecimento de si mesmo e de
suas mais variadas habilidades humanas, de sua história, e principalmente de um entendimento quanto
a sua posição social e política e, por sua vez, um estado psicológico perceptivo do que se passa ao seu
redor. Seria estimular, em algum nível, a autoaceitação de características culturais e estéticas herdadas pela
ancestralidade que lhe é inerente para que possa, devidamente munido de informações e novas percepções
críticas sobre si mesmo e sobre o mundo em volta, e ainda, de suas habilidades e características próprias,
criar ou descobrir em si mesmo ferramentas ou poderes de atuação no meio em que vive e em prol da
coletividade” (BERTH, 2019, p. 21).
3 A dimensão procedimental seria o que se deve saber fazer; a dimensão conceitual, o que se deve saber, e
a dimensão atitudinal, o como se deve ser (ZABALA, 1998, p. 31).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 185

mais importante do que discutir sobre o fato de um(a) aluno(a) não dar a mão
a um colega ou porque um(a) outro(a), de forma pejorativa, chamava o seu
colega de “nego preto fedorento”. Essas problemáticas também precisavam
ser entendidas como parte da aula, e da Educação Física, pois antes de tudo
somos educadores(as).
Uma outra questão que passou a fazer parte da minha prática foi a valo-
rização da beleza negra, uma atenção e um olhar mais sensível para aqueles
corpos que geralmente não eram “vistos”. Difícil esquecer uma festa junina em
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que, ao invés do famoso sorteio para escolher quem seria a noiva da quadrilha,
eu optei por uma menina negra e que ainda tinha duas outras características
que eram quase sempre condenadas: era uma aluna gordinha e que normal-
mente usava tranças afro no cabelo. Muitos conflitos apareceram a partir dessa
escolha, inclusive com a mãe do aluno que seria par da referida menina. O
aluno não aceitou dançar com ela, e tive que enfrentar a situação, pois ele
quis trocar de par – algo não permitido a nenhum(a) outro(a) aluno(a). Não
sendo aceita a proposta, ele preferiu não dançar. Eu e a diretora não recua-
mos e ainda ajudamos com a roupa da noiva da quadrilha. E foi perceptível
alguns olhares estranhos no dia da Festa Junina; um “tapa na cara” daquela
comunidade que parecia nunca ter visto uma aluna negra como protagonista
de nada. Aponto ainda a preocupação em incluir no planejamento mais temas
da cultura afro-brasileira: jogos, cantigas, danças que são parte do nosso
patrimônio cultural e que muitas vezes não eram (re)conhecidos ou pouco
vivenciados nas aulas de Educação Física.
Percebi o quanto tudo aquilo tinha valido a pena, descobri o quanto
era significativo e dizia respeito a mim, mas também a tantos(as) outros e
outras. E tive essa certeza quando um dia, uma de minhas alunas, se dirigiu
a mim sorrindo e disse: “tia, olha, estou com o cabelo igual ao seu”. E
sorrimos juntas, e eu fiz questão de elogiá-la e ressaltar o quanto ela estava
linda daquele jeito. E dia a dia diante de tantos outros embates e tensões, mas
também de ganhos e alegrias, fui me fortalecendo. Entendi ainda mais sobre
mim mesma, entendi que este processo de reconhecer meu cabelo era parte
de me reconhecer enquanto mulher negra, e isto só se ampliou; pois, quando
esse processo se iniciou em mim, não foi mais possível recuar e todas as
transformações que este movimento suscitou se expandiu para outros espa-
ços (família, universidade em que eu também dava aulas e onde mais fosse
viável). Fui observando e compreendendo que a mesma mudança pela qual
eu havia passado era buscada por muitas outras meninas e mulheres negras
(e homens também) e que nada era mais empático, representativo e belo do
que as acolher nesta redescoberta de si. Como já dizia Ângela Davis: “quando
a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta
186

com ela” (ALVES, 2017). E poderíamos acrescentar que, quando uma mulher
negra se aceita e se “levanta”, outras(os) tantas(os) se “levantam” com ela.
E é assim que tem que ser!

Considerações finais

A intenção aqui foi apresentar minha própria experiência diante do pro-


cesso que vivenciei de aceitação e reconhecimento de minha identidade de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mulher negra. Reconhecer a mim mesma e o consequente reconhecimento
dos(as) meus(minhas) semelhantes foi parte essencial de outras descobertas,
dentre elas a expansão de minha responsabilidade social enquanto professora.
Ao protagonizar minha própria história, pude e ainda posso ampliar espaços
de diálogo, representatividade, empoderamento, cidadania, autonomia e cole-
tividade, pois nenhuma mudança que se anuncia é somente individual, ela é
capaz de também transbordar, transformando o entorno.
Partilhar essa experiência e os conflitos e transformações advindas dela
me fizeram mais forte, mais sensível e mais preparada para outros enfren-
tamentos relacionados ao corpo negro, ao racismo e tantos dos seus desdo-
bramentos. Esta partilha, através da escrita, desponta como um ato político,
pois, enquanto escrevo, “me torno a narradora e a escritora da minha própria
realidade, a autora e a autoridade na minha própria história. Neste sentido,
eu me torno a oposição absoluta do que o projeto colonial predeterminou”
(KILOMBA, 2019, p. 28).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 187

REFERÊNCIAS
ALVES, Alê. Angela Davis: “Quando a mulher negra se movimenta, toda a
estrutura da sociedade se movimenta com ela”. El País, 2017. Disponível
em: https://brasil. elpais.com/brasil/2017/07/27/politica/1501114503_610956.
html. Acesso em: 15 fev. 2022.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

BERTH, Joice. Empoderamento. São Paulo: Sueli Carneiro; Pólen, 2019.

BERTH, Joice. O que é empoderamento?. Belo Horizonte: Letramento, 2018.

CASTRO, Amanda Motta; OLIVEIRA, Elina; PEREIRA, Gabriele. Educação


antirracista e resistência: o cabelo como posicionamento político. Revista
Pedagógica, v. 23, p. 1-18, 2021. Disponível em: https://bell.unochapeco.edu.
br/revistas/index.php/pedagogica/article/view/6293 Acesso em: 7 fev. 2022.

FERREIRA, Aparecida de Jesus. Educação antirracista e práticas em sala


de aula: uma questão de formação de professores. Revista de Educação
Pública, Cuiabá, v. 21, n. 46, p. 275-288, maio/ago. 2012. Disponível em:
https://periodicoscientificos.ufmt.br/ojs/index.php/educacaopublica/article/
view/408. Acesso em: 7 fev. 2022.

GOMES, Nilma Lino. O movimento negro educador: saberes construídos


nas lutas por emancipação. Petrópolis, RJ: Vozes, 2017.

GOMES, Nilma Lino. Sem perder a raiz: corpo e cabelo como símbolos da
identidade negra. Belo Horizonte: Autêntica, 2008.

HALL, Stuart. A centralidade da cultura: notas sobre as revoluções culturais do


nosso tempo. Educação & Realidade, v. 22, n. 2, jul./dez. 1997. Disponível
em: https://www.seer.ufrgs.br/educacaoerealidade/article/view/71361/40514.
Acesso em: 25 mar. 2022.

HALL, Stuart. A identidade cultura na pós-modernidade. 10. ed. Rio de


Janeiro: DP&A, 2005.

KILOMBA, Grada. Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano.


Rio de Janeiro: Cobogó, 2019.
188

KING, Ananda Melo. Os cabelos como fruto do que brota de nossas cabe-
ças. Geledés Instituto da Mulher Negra, 2015. Disponível em: http://www.
geledes.org.br/os-cabelos-como-fruto-do-que-brota-de-nossas-cabecas/#ax-
zz3ZBeYdmWu. Acesso em: 11 fev. 2022.

MATOS, Lígia. Transição capilar como movimento estético e político. In:


SEMINÁRIO NACIONAL DE SOCIOLOGIA DA UFS, 1., 2016. Anais...
UFS, 2016. Disponível em: https://ri.ufs.br/bitstream/riufs/12871/2/Transi-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


caoCapilarMovimento.pdf. Acesso em: 11 fev. 2022.

NEGRA JAQUE. Cabelo Crespo. Youtube, 26 mar. 2017. Disponível


em: https://www.youtube.com/watch?v=vOC8M6pEM2g. Acesso em: 15
fev. 2022.

SANTOS, Luane Bento dos. Entre tramas e adornos: o legado africano de


trançar cabelos por uma perspectiva do patrimônio cultural. REPECULT-
Revista Ensaios e Pesquisas em Educação e Cultura, v. 4, n. 6, p. 63-75,
2019. Disponível em: http://costalima.ufrrj.br/index.php/REPECULT/article/
view/276/621. Acesso em: 11 fev. 2022.

SILVA, Andressa Queiroz da.; COSTA, Rosilene Silva da. Educação


antirracista é educação transformadora: uma análise da efetividade da Lei
nº 10.639/03. Revista Em Favor da Igualdade Racial, v. 1, n. 1, fev./
jul. 2018.

ZABALA, Antoni. A prática educativa: como ensinar. Porto Alegre: Art-


med, 1998.
PRECONCEITOS RACIAIS COTIDIANOS
EM VERSOS DE JEREMIAS BRASILEIRO
Jeremias Brasileiro

Quem nunca sentiu minha dor


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

não tem o direito de mensurá-la a bel prazer.


Jeremias Brasileiro

Este ensaio é oriundo de meu duplo trabalho com a linguagem poética.


Um deles, ao abordar as temáticas do racismo, da discriminação, dos proces-
sos de difusões culturais e envolvimento social em poemas que escrevi em
diferentes tempos. O outro, realizado no tempo de agora, quando volto a essa
criação para roteirizar propostas para suas leituras, por exemplo, em ambiente
que adota a literatura como propiciadora de formação e impulsionadora de
reflexões e transformações sociais.
Meu ponto de partida, em ambos os momentos, tem como ponto central
proporcionar uma discussão sobre discriminações raciais cotidianas, que afe-
tam a sociedade nos espaços educacionais, religiosos, mercado de trabalho,
relações sociais e de lazer, bem como no âmbito dos poderes públicos.
Tal qual em um passado recente, presencio, em Uberlândia, inclusive
noticiado em redes nacionais, uma variedade de atos racistas e de discrimina-
ções raciais sobretudo no ambiente escolar, o que torna mais relevante discutir
por quais motivos as ações de racismo continuam acontecendo. Minha his-
tória, é, também, infelizmente, permeada de vivências de preconceito racial,
as quais, desde a década de 1990, abordo poeticamente.
Ao propor estratégias para a leitura de meus poemas, objetivo construir
a noção de que a responsabilidade de combater a discriminação racial não é
somente das pessoas que são vítimas dela, mas, sim, de todo um conjunto da
sociedade, principalmente dos poderes públicos através de políticas efetivas
para enfrentar o racismo de fato, nos lugares onde atua, em todos os espaços,
educacionais ou não.
Nessa perspectiva, proponho alinhavar uma proposta didático-pedagó-
gica possível de ser construída por educadores em sala de aula, por meio de
reflexões históricas, tendo como suporte o texto poético.
Neste ensaio, apresento estratégias de leitura de sete poemas autorais na
perspectiva que denomino afro-racial.
De início, destaco que, aqui, o termo afro-racial pressupõe duas ver-
tentes de interpretações. Nessa pressuposição, igualmente percebida por Iris
190

Amâncio1, trabalhar o afro sem problematizar a questão racial é como se


optássemos, de certo modo, por fazer uso do que possa parecer mais confor-
tável, o que nos levaria a uma sensação de alívio, posto que, ao trazermos as
discussões sobre cultura afro, etnicidades negras, nos sentiríamos ao mesmo
tempo desobrigados de enfrentarmos situações que nos colocariam fora de
uma zona de conforto.
Isso posto, comento o Rap de Maio, também disponível em suporte
audiovisual2, para retratar as contradições de uma abolição que, de fato, não

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


aconteceu na perspectiva dos libertados, mas que, historicamente, teve e con-
tinua tendo seus impactos na sociedade brasileira:

Rap de maio

Abolição da escravatura
Liberdade de Isabel
Decreto de papel
Sem compensação.
Abolicionismo inteligente
Pra evitar que negro escravo
Inspirado em quilombos
Parta pra revolução
Derrubando os poderosos
Conquistando o poder
Sua própria liberdade.
Abolição da escravatura
Liberdade de Isabel
Decreto de papel
Sem compensação.
O dia 13 de maio
Manda negro pro hospício
Manda negro pra favela..
Manda negro pro cortiço.
Abolição da escravatura
Uma ducha de água fria
Nos escravos que buscavam
Lutar contra a escravaria
Através da luta armada
Que iriam conquistar
Sua própria autonomia.

1 Íris Amâncio é professora de Literaturas Africanas de Língua Portuguesa, de Literatura Portuguesa e de


Estudos Comparados em Literaturas de Língua Portuguesa na Universidade Federal Fluminense.
2 Consultar: RAP DE MAIO – Jeremias Brasileiro. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=x6bdWA-
-b0jQ. Publicado em: set. 2016. Acesso em: 14 mar. 2022.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 191

Construir reforma agrária


Condições de implantá-la.
Abolição da escravatura
Temor de negro escravo
Com rebeliões constantes
Se alastrando pelo Império.
Negro revolucionário
Ameaça permanente
Que precisa ser calado
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Que se não seu grito ecoa


Explodindo as correntes
Destruindo os mandatários
Da política do poder da economia do Brasil

Esse poema pode contribuir para que estudantes desenvolvam uma pers-
pectiva crítica sobre a abolição e seus desdobramentos. Utilizando cantos e
versos do Rap, o poema questiona a história oficial do Estado que, ainda no
século 21, continua propagando a existência de um negro brasileiro como
produto da escravidão, e não como agente de luta, de transformação.
Por outro lado, o texto permite adentrar em questionamentos referentes
às lutas quilombolas e ao protagonismo negro que precisava ser cessado, pois
o abolicionismo libertou os poucos escravizados das correntes, mas não dos
vários problemas da época e de agora: moradia, saúde, educação e trabalho,
por exemplo.
Em síntese, para o negro livre, acostumado à lida do campo, do trabalho
em plantações, do conhecimento técnico de agricultura, não existiu reforma
agrária para incluí-lo em outro campo de política social desenvolvimentista
no Brasil.
Fica de igual modo evidenciado, no poema, que rebeliões constantes
ocorriam por todo o país, e não somente em Palmares. Esse é outro detalhe
que precisa ser posto em discussão: o privilégio historiográfico de Palmares,
de certa forma, invisibiliza centenas de outros pequenos redutos de lutas e de
resistências contra o escravismo, como o Quilombo de Campo Grande ou de
Ambrósio, em Minas Gerais, que, em extensão, foi possivelmente maior do
que o Quilombo Zumbi dos Palmares, em Alagoas.
É importante destacar que a história, por muito tempo, esteve arraigada
à visão do negro escravo – como se fosse inerente à condição do negro ser
escravo (sua essência) – e não à noção de escravizado, posto que não se
nasce escravo, mas, por forças diversas, em contextos diversos, se é vítima
de escravização. Aliado a isso, no imaginário das pessoas, permanece a noção
equivocada – e racista – de que negros estavam e continuam estando a serviço
de afazeres vinculados a essa história fundante da escravidão.
192

No próximo poema, “Ritualidades afro-corporais”, sugiro uma leitura


que destaque a cultura, as tradições, o contar histórias e que busque mostrar
os diversos conhecimentos trazidos pelos escravizados, destituindo, assim,
a noção de que a cultura afro-brasileira tem relação somente com espetá-
culo, festividades, ritmos, danças, tambores. Seria interessante que docentes
levassem estudantes a festas da Congada para presenciarem um outro modo
de contar história.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ritualidades afro-corporais

No corpo que dança e encanta o olhar


Os pés sincronizados junto a terra
Executam movimentos ora lentos, ora febris
A lembrar de argolas escravistas
Cujos tilintar de dores não cessaram as danças
Que redimensionadas mimetizaram-se nos paiás
No corpo percussivo dos reais congadeiros.

Com as bateias de garimpos a balouçar em mãos


Construíram patagomes, engomes, sinos e sons
Corpos dançantes, corpos sineiros, corpos guerreiros
A voz do corpo na gestualidade das resistências negras
Em que algemas, mordaças, máscaras em placas de metais
Não conseguiram calcificar essas vozes.

O corpo carrega memórias dos tempos de antes


Traduzidas nos gestos dançantes
Nos movimentos dos pés e das mãos
Dos braços como se a peneirar a vida marcada
Pelo trabalho incansável
De épocas outrora escravistas.

Como estratégia de leitura, é possível extrairmos pelo menos três con-


cepções que estão conectadas à vida dos escravizados por meio da história
de resistência e sobrevivência cultural, bem como da capacidade intelectual
para lidar com determinadas categorias de trabalho. Para ilustrar essas reali-
dades, cito os paiás ou gungas, que remetem aos tempos do escravismo e são
instrumentos rítmicos utilizados há séculos pelos congadeiros, principalmente
de Minas Gerais, cujas singularidades merecem ser destacadas3.

3 Ver: BRASILEIRO, Jeremias. História e tradição em cada detalhe da festa da Congada de Uberlândia. TV
Paranaiba, Uberlândia, set. 2017. Suporte em Mídia Digital e DVD/vídeo, som, color, 20’ (NTSC). Banco
de dados em audiovisual. Acervo do pesquisador. Também possível de acessar em: https://www.youtube.
com/watch?v=WvCxKkGqEWY&t=21s. Disponível desde 17 set. 2017.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 193

A primeira versão é do olhar escravizador que considera as gungas como


ferramentas amarradas nas pernas dos escravizados para que, em caso de fuga,
o barulho produzido pudesse informar as suas localizações.
A segunda versão, amparada na oralidade dos congadeiros antigos, conta
que o uso desses instrumentos nos tornozelos objetivava justamente “espantar
animais peçonhentos”, quando os escravizados estivessem em fuga e aden-
trassem os densos matagais.
A terceira, chamada de “dança-de-beira-mar”, diz que, mesmo com as
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

correntes escravistas, os escravizados instituíram modos culturais capazes


de fazer com que as suas memórias e histórias sobrevivessem a ambientes
inóspitos, tornando-os táticas de sobrevivência e constituidora da cultura
afro-racial e afro-brasileira.
Já o instrumento oval patagomes ou patagongas, cuja procedência é a
bateia, bastante utilizada na mineração e garimpos, tornou-se, para os escra-
vizados, de objeto utilizado pelo trabalho opressivo, a um semióforo, artefato
portador de uma mensagem, de significados históricos. Essa representação
extrapola o uso enquanto musicalidade rítmica e induz a pensar que, na reali-
dade, os homens escravizados, oriundos de algumas regiões de Congo, Angola
ou Moçambique, trabalhavam nas minerações por serem portadores dos conhe-
cimentos científicos e técnicos dos processos de garimpagens, principalmente
em minas de escavação profunda.
Isso posto, o próximo poema pode ser lido com os olhos da contempora-
neidade. Ele explicita o quão arraigado é o preconceito racial resultante de um
longo processo histórico em que determinadas pessoas se sentem superiores
unicamente por terem impregnadas em si uma “cor de pele branca”, mesmo
que, social e materialmente, tenham e estejam em condições materiais eco-
nômicas idênticas àqueles que são notoriamente discriminados.

Subconsciente de sinhá

Dentro do Campus Universitário


Encostada em seu carro zero
Branca loira aguarda alguém.

Quatro estudantes brancos


Por ela passam a sorrir
Nenhum deles ela chama.

Quando vê o João Sabino


Negro forte e vestes simples
Ela quase que ordena:
194

- Você troca o pneu do meu carro!


João Sabino retrucou sem gaguejar:
- Fica ativo, sô!
- Chama os brancos que passô!

Como estratégia para desencadear um debate, podemos questionar: o que


levou a mulher branca a pensar que João Sabino poderia trocar o pneu de seu
carro? Teria ela ficado incomodada com a possibilidade de solicitar ajuda a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


seus pares “brancos”, e eles não aceitarem essa tarefa? Teria ela imaginado
que, sendo eles “brancos”, naturalmente, estavam em uma representação social
diferenciada? Caso fossem interpelados para realizar o serviço de trocar o
pneu furado, eles poderiam recriminá-la? Seria possível que a atitude, para
ela inusitada, de João Sabino modificasse o seu comportamento em relação
à percepção das pessoas negras a partir de então?
Esse campo de problematizações permite que, além do racismo, sejam
abordadas também questões de gênero e classe.
Como resultado de se privilegiar o contexto afro e o consequente distan-
ciamento das temáticas raciais, cria-se uma falsa noção de enfrentamento a
demandas relacionadas ao racismo. Assim, também pedagogicamente, pela de
ausência de abordagem didática, metodológica e historiográfica de assuntos
relacionados a preconceitos, discriminações, intolerâncias, os crimes raciais
vão sendo ocultados e naturalizados. Enfim, o lugar desses negros, menos
como sujeitos sociais e mais como indivíduos culturais, quase que fica restrito
a um reconhecimento apenas em ocasiões festivas.
Uma pedagogia congadeira, já proposta em trabalhos anteriores4, deveria
ter esses pressupostos como basilares para discutir com viés mais problema-
tizador essa manifestação sociocultural em qualquer lugar do Brasil. Olhar
unicamente para a plasticidade das festas, posto que as mesmas são inegáveis
e representam, em seu ápice, um arco-íris cultural de cores, de indumentárias
estilizadas, de performances gestuais e de objetos ritualísticos, a cada ano mais
sofisticados, mais riquíssimos, não é, de modo algum, trabalhar na perspectiva
de uma cultura afro-racial.
Olhar para tudo isso e ficar estático, no mesmo estágio, sem nenhum
propósito de adentrar nas contradições, nas relações de poder, na força que
emana dessa cultura como tática de sobrevivência cotidiana, principalmente
dos sujeitos negros nela inseridos, é incorrer em sérios riscos de monumen-
talizar uma tradição como sendo a representação folclórica, exótica, bonita,

4 BRASILEIRO, Jeremias. Cultura afro-brasileira na escola: o Congado em sala de aula. São Paulo: Ícone
Editora, 2010. Igualmente ver: REICHERT, Maiquel Cristian. Pedagogia da tradição: Africanização das
mentalidades. 2017. 20 f. Curso (Graduação em Arte – Teatro) – Laboratório de Expressões Culturais do
Brasil, Licenciatura em Arte-Teatro, Universidade Estadual Paulista, 2017.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 195

plástica, estética, que aparece no mês de realização das festas, mas que seu
povo desaparece do cenário social das cidades, durante o restante do ano.
Sair desse lugar comum de quase reproduzir aquilo que parece natura-
lizado não é um desafio fácil. Possivelmente, mais confortável seria repro-
duzir ou não contrariar as coisas que já estão preestabelecidas, seguindo-as
sem criar constrangimentos pessoais, políticos, acadêmicos, religiosos e de
outras naturezas.
Considero que o/a pesquisador/a, qualquer que seja a sua linha temática
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nesse campo de estudo, deveria atentar-se, mesmo que o mínimo possível, para
outras possibilidades de análises ou de apontamentos que possam contribuir
para um melhor conhecimento do objeto pesquisado, oportunizando, deste
modo, a crítica por meio de uma pedagogia congadeira.
Daí a pertinência de pensar nos estudos sobre a cultura e, mais especi-
ficamente a cultura afro-racial, como práticas em que os atores sociais, de
igual modo, estão integrados ao mundo, à sociedade e, consequentemente, à
cidade e que estes não podem ser tipificados como meros objetos culturais
de exposição pública para satisfazer olhares curiosos e ávidos para aplicar
aos corpos, aos gestos, às danças, aos ritmos, uma noção de espetacularidade
temporária, descartando-os posteriormente, até que a próxima festa aconteça.
A seguir, apresento uma leitura do poema “Seu nome vai ser Maria”.
Pertencer à cidade, trabalhar na cidade, em outros tempos, como na
década de 1970, em Uberlândia, Minas Gerais, principalmente em serviços
domésticos, não foi algo simples. As relações cotidianas estavam permeadas de
preconceitos. Com as mulheres negras, os absurdos produzidos pelas “sinhás
modernas” continuavam latentes. São vários os casos de mulheres negras
que, servindo, devem esperar a hora “certa” e o lugar “certo” de comerem
(na despensa, no quintal ou em outros espaços semelhantes).
A realidade de Uberlândia, nesse aspecto, figura neste poema:

Seu nome vai ser Maria

Onde já se viu coisa dessa


Seu nome não é Marilisa
Marilisa é nome de gente
É nome de minha nora
Vou falar para meu filho
Se quiser ficar aqui
Seu nome será Maria
Isso é nome de empregada
Sem contar que ainda é negra
Se não quiser vai embora.
Marilisa sentiu por instantes
196

Falta de chão sob os pés


Refez-se da agressão racista
Foi embora para longe
Resolveu ser professora
De educação superior
Ano, 1995.

Para quem já foi vítima desse tipo de agressão, nada mais constrange-
dor do que ter a sua dor questionada, mensurada ironicamente como sendo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


vitimismo (“mi mi mi”). Por isso, declaro: quem nunca sentiu minha dor não
tem o direito de mensurá-la a bel prazer.
No poema “Coquetel em dose dupla”, defendo o poder da poesia como
ferramenta de combate e denúncia ao preconceito racial cotidiano, que rara-
mente surge nas manchetes de jornais:

Coquetel em dose dupla

Fosse ele o reclamante


Era mais um complexado
Mesmo assim, colega branco
Interpela o garçom:
- Qual motivo não servi-lo? Se à mesma mesa está?
Garçom responde com ironia:
- Ele nada pediu para nós!
Outro branco à mesa não concorda
E questiona o garçom:
- Nós também nada pedimos! E estamos bem servidos!
Garçom chefe aceitou reclamação
E assumiu a própria mesa.
Só que a cada dose de uísque servida aos brancos
Duas doses eram servidas ao negro.
Advogado branco que também estava à mesa
Demonstra satisfação ao perguntar:
- Agora está tudo bem, né, Jeremias?
Jeremias com ironia no olhar responde assim:
- Isso não passa de um coquetel dose dupla, meu prezado!

Nenhum dos três brancos que estavam à mesa identificaram ou com-


preenderam o ato racista. Precisei explicar que o preconceito foi duplicado
quando o chefe dos garçons resolve sempre servir a mais para o negro que
à mesa estava. Estavam ali, comigo, um poeta, um escritor e um advogado,
todos de renome. Naturalmente que, tempos depois, eles esqueceram de tudo
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 197

isso que havia acontecido naquele famoso clube, no mês de novembro do ano
de 1998. Afinal de contas, a dor não era deles, era somente minha.
Esse poema propicia também uma encenação teatral, pois os elementos
nele contidos podem ser trabalhados de forma subliminar ou de forma a retra-
tar uma das realidades mais perversas do preconceito racial em consequência
da cor da pele de uma pessoa. Isso ocorre de forma tão sutil que, às vezes, a
própria vítima se torna culpada pelo acontecimento racista. Se observarmos
o tempo, o lugar e os personagens, descobriremos que, tanto antes quanto
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

agora, os preconceitos, reatualizados, permanecem em Uberlândia e no Brasil.


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

E EXPERIÊNCIAS
AFE��S, REFLEXÕES
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
PROSEANDO COM GUIMES
RODRIGUES FILHO
Neli Edite dos Santos

Não se aborreça, moço da cabeça grande,


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Você vem não sei de onde


Fica aqui, não vai pra lá
Esse negócio da Mãe Preta ser leiteira
Já encheu sua mamadeira
Vá mamar em outro lugar
(‘Cada macaco no seu galho’, canção composta por Riachão
e gravada por Caetano Veloso e Gilberto Gil em 1972)

Estamos no primeiro trimestre de 2022, quando ainda persiste a pan-


demia de covid-19, declarada pela Organização Mundial da Saúde, em 11
de março de 2020. Não bastasse a vulnerabilidade da saúde e da vida frente
ao maior risco de adoecimento e morte por covid-19, no Brasil e em outros
tantos países, forças políticas e sociais negacionistas atuam para ampliar e
aprofundar desigualdades, dificultando e/ou negando a milhões de pessoas
em todo o mundo direitos que deveriam ser inalienáveis como alimentação,
saúde, educação, moradia, cultura.
Atualmente, no Brasil, essas forças ocupam posição vitoriosa em instân-
cias de decisões governamentais e vêm, mais que ameaçando, implementando
e ampliando ações de retirada e não reconhecimento de direitos, de modo a
configurar, por ações e omissões, o extermínio de brasileiros e brasileiras como
uma não disfarçada política de Estado. A precarização da vida e a banaliza-
ção da morte, principalmente, de negras e negros, povos indígenas, pobres
e miseráveis, mulheres, idosos, pessoas LGBTIA+, têm se verticalizado nos
últimos anos e se agravado com a pandemia de covid-19.
É nesse contexto que convidamos o Prof. Dr. Guimes Rodrigues Filho
para uma prosa sobre universidade, movimento negro, ações afirmativas e
sua atuação nesses campos. As perguntas querem servir como isca para que
a leitura nos favoreça conhecer um pouco mais desse mestre.
Boa leitura!
202

1) Prof. Guimes, aceita tecer seu retrato 3x4, de modo a dar-se


a conhecer?

Com certeza, aceito. Eu nasci em São Paulo, capital, em 30 de novembro


de 1959, no bairro do Limão, Zona Norte. Sou filho de Guimes Rodrigues (in
memorian) e Aparecida Rodrigues. Dona Cida e a mãe dela, Vó Maria, me
criaram, porque meu primeiro pai morreu quando eu tinha 4 anos, e, assim,
tive também meu “avôdrasto” Artur, nosso macumbeiro favorito. Mais adiante,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


por volta dos meus 11 anos de idade, minha mãe se casou com o irmão do meu
pai, Previz Rodrigues Lopes, Seu Prê, que também se somou à minha criação.
Irmãos, tenho 3: João, Pery e Janaína, a mais nova. Filhas: Inaê e Yara Lissá.
Netas: Carolina e Camila. Neto mais novo: Theodoro Guimes. Sou fruto de
uma política de ação afirmativa – apesar dos meus atuais 62 anos. Aconteceu
que, para fazer a transição do chamado ensino primário para o ginásio e acessar
as melhores escolas públicas, era necessário fazer um exame de admissão ao
ginásio. Para isso, existiam os chamados cursos preparatórios, uma espécie
de ancestrais dos atuais cursinhos. Como eu não podia pagar, consegui uma
bolsa através da Dona Nair, uma vizinha umbandista, amiga da minha mãe.
Para encurtar um pouco a história, fiz graduação em Química, na Univer-
sidade de São Paulo, campus de Ribeirão Preto-SP, Mestrado e Doutorado em
Ciências, na Universidade Federal de São Carlos. No meio desse caminho, tive
algumas tretas com a Polícia. Cheguei à Universidade Federal de Uberlândia
(UFU) como docente substituto, em 1987, e me efetivei em 1989. A partir
de 2006, passei a Coordenar o Núcleo de Estudos Afro-brasileiros (NEAB)
da UFU, promovendo formação e ações políticas na temática afro-racial. A
luta negra na UFU me rendeu um processo, o qual foi extinto, mas não sem
cumprir as penalidades da Lei.
Em outubro de 2019, me aposentei, mas estava lá no fim do túnel a luz
da luta negra que iluminaria a cabeça dos dirigentes brancos da UFU para que
o NEAB, após 13 anos de existência, fosse institucionalizado. Desse modo,
foi criada a Diretoria de Estudos e Pesquisas Afro-raciais (DIEPAFRO), vin-
culada ao Gabinete do Reitor. Desde então, o NEAB-UFU está finalmente
aconchegado na DIEPAFRO-UFU. Sou Mestre de Capoeira Angola do Grupo
Malta Nagoa, que fez 25 anos em 2021, no meio da pandemia de covid-19,
que mata mais o povo preto. Quando dá certo, eu canto e componho na Banda
Dikika e com os 3Pretos. Vou começando outra parceria com meu filho Caê (o
guimezcaes). Sou um louco no bando do Todo Poderoso Timão (Corinthians)
e adoro cerveja gelada (com conversa, é melhor).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 203

2) Logo acima, citamos uma estrofe de Riachão que data de, pelo
menos, 1972. Quais destaques você pode fazer em relação às últimas
décadas para nos ajudar na compreensão do processo histórico de
construção de corpos negros desatrelados de condições exclusiva-
mente subalternizadas?

Gosto muito de um verso dessa música que diz que a Mãe Preta não é
leiteira e de outro que manda o algoz branco ir mamar em outro lugar. Eles
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

marcam as rebeldias necessárias para construirmos a libertação do povo negro,


que ainda está longe de ser alcançada. Não esquecendo toda a luta negra ao
longo da história do Brasil, penso que 1971 é um ano importante, quando o
poeta Oliveira Silveira lança o Feriado Zumbi dos Palmares, que, posterior-
mente, se transformaria no dia da Consciência Negra. Saltando para 2001, a
Conferência de Durban, na África do Sul, é um marco valioso para desenca-
dear as políticas de ações afirmativas, apesar de não ter firmado a necessária
indenização financeira para a população negra devido à escravização de afri-
canos e afrodescendentes no Brasil.
A partir desse momento, podemos destacar: alterações significativas no
âmbito da Lei nº 9.394/1996, que estabelece as Diretrizes e Bases da Educação
Nacional, por meio da Lei nº 10.639/2003, que dispõe sobre a obrigatoriedade
da temática História e Cultura Afro-Brasileira, e da Lei nº 11.645/2008, que
altera a Lei nº 10.639/2003, ampliando seu escopo para História e Cultura
Afro-Brasileira e Indígena; a Lei nº 12.288/2010, denominada Estatuto da
Igualdade Racial; a Lei nº 12.711/2012, que dispõe sobre cotas para as escolas
públicas nas instituições federais de ensino superior, contemplando as sub-
cotas raciais para negros (pretos e pardos) e indígenas; a Lei nº 12.990/2014,
que dispõe sobre cotas raciais para negros nos concursos públicos; Decreto
nº 9.427/2018, que trata de cotas raciais nos estágios no âmbito federal; a
conquista de cotas raciais na pós-graduação e cursos técnicos; o início do
processo de discussão sobre o perfil discente em creches, educação infantil e
ensino fundamental em instituições vinculadas a universidades públicas. Além
dessas, foi conquistada a criminalização, pelo Supremo Tribunal Federal, da
LGBTQIA+fobia como racismo.
Essas legislações se contrapõem frontalmente à construção racista do
Estado brasileiro que, ao longo dos séculos, operou e ainda opera em desfa-
vor da população negra – a exemplo da Lei da Terra, de 1850, que impedia
que a população negra tivesse acesso à terra; do Código Penal, de 1890, que
criminalizou o corpo negro e suas práticas culturais; do Decreto Couto Ferraz,
de 1854, que impedia a população negra de ter acesso à educação.
204

No entanto, é preciso destacar que, apesar dos avanços, nós temos, em


pleno século XXI, um Estado que ainda opera fortemente contra a popula-
ção negra, como ocorre com a Lei de Drogas, nº 11.343/2006, que contribui
para o encarceramento em massa da população negra, principalmente de sua
juventude. Ou seja, ao mesmo tempo, portas se abrem para ingresso nas gra-
duações e, posteriormente, para o emprego público federal e se fecham, por
meio do encarceramento de jovens negra/os. Além do extermínio, também
em massa, do povo negro – seja por ações deliberadas ou por omissões, em

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


muitas circunstâncias, operadas por negação de direitos ou por ausência de
vontade política e social de garanti-los.

3) Corpos negros nascem, vergam, quebram, requebram, pensam,


criam, sentem, existem, re(existem) em processos seculares de lutas.
Como você situa a conquista das Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008
no bojo dessas lutas?

A luta negra no Brasil possibilita a inclusão social de várias camadas da


nossa sociedade. Por exemplo: a luta histórica do movimento negro levou à
criminalização do racismo e, recentemente, a LGBTQIA+fobia foi também
enquadrada dentro do crime de racismo. Da mesma forma, a discussão que
se iniciou no país com as cotas para os/as negros/as no ensino superior foi
expandida para incluir indígenas e estudantes de escolas públicas de forma
geral. Do mesmo modo, as Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 trazem
a possibilidade de um benefício para a população em geral, uma vez que
contribuem para equilibrar a correlação de forças nos currículos, de modo
que os conhecimentos indígenas e afro-brasileiros possam ocupar espaço em
conjunto com os conhecimentos europeus.
Essas Leis possibilitam uma formação antirracista em todos os níveis de
ensino do país tanto no setor público como no privado. Com elas, é possível
conhecermos a verdadeira história da trajetória dos povos negros e indígenas
na nossa sociedade assim como as suas contribuições nos diferentes campos
dos saberes e fazeres. Isso possibilita, inclusive, uma formação mais huma-
nizada dos nossos profissionais em todas as áreas do conhecimento. Podemos
imaginar médicas/os que tratem a saúde das mulheres negras de forma dife-
rente daquela que, sistematicamente, mata mais mulheres negras no parto.
Podemos imaginar juízes que não usem a cor da pele como critério a priori
e definidor para o encarceramento da população negra. Podemos imaginar
policiais que não perpetuem o extermínio da população negra. Podemos ima-
ginar professoras/es que não discriminem as religiões de matrizes africanas no
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 205

âmbito escolar. Podemos imaginar governantes que escolham pessoas negras e


indígenas para governarem em conjunto, ocupando cargos etc. Podemos ima-
ginar mais pessoas negras e indígenas nas representações política e estética.
Podemos imaginar uma sociedade com diversidade étnico-racial de fato e de
direito. Podemos imaginar a população negra ocupando espaços de poder.

4) A Lei nº 10.639/2003 está prestes a completar vinte anos, quais


aspectos você avalia que precisam receber maior atenção e quais os
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

atores deveriam ser acionados para o protagonismo nessa atenção?

A Lei nº 10.639/2003 foi conquistada a partir da chegada da primeira


mulher negra no Conselho Nacional de Educação (CNE): a Professora Dou-
tora Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva. Isso já demonstra a dificuldade que
temos de a sociedade brasileira pensar as questões negras. Ou seja, se não
fosse a chegada de uma pessoa negra, totalmente comprometida com a luta
negra, no CNE, talvez até hoje não tivéssemos essa modificação na Lei de
Diretrizes e Bases da Educação Nacional. Lembrando sempre que educação
é poder e que ele precisa ser compartilhado de forma equilibrada entre as
raças branca, negra e indígena. Desse modo, considero que as Instituições de
Ensino Superior públicas e privadas são as grandes vilãs dessa história que
completará 20 anos em 2023. Isso porque elas são as responsáveis pela for-
mação dos profissionais de forma geral e, em particular, dos/as profissionais
da educação (gestores/as, docentes, pedagogos/as, coordenadores/as etc.).
Sendo assim, se as universidades não alteram os seus currículos para o
cumprimento da Lei, as/os profissionais da educação vão continuar, via de
regra, sem saber o que fazer com os conteúdos, com situações de racismo no
ambiente escolar etc. Penso que o principal problema se concentra na for-
mação universitária. Na dificuldade de implantação real nos currículos que
a lei exige. Não quero dizer com isso que a Lei é um fracasso, uma vez que
existem várias/os profissionais da educação que se dispõem a fazer formação
na temática, contribuindo para que a discussão ganhe corpo no ambiente esco-
lar da educação básica. Nas Instituições de Ensino Superior também vamos
encontrar uma série de ações para que a temática étnico-racial seja discutida
nos seus cursos. Mas ainda estamos muito longe do ideal. As principais atrizes
e atores nesse desafio são as/os estudantes, os Núcleos de Estudos Afro-brasi-
leiros (NEABs) e Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas (NEABIs),
os movimentos sociais negros e indígenas, as famílias, as/os educadoras/es
antirracistas e os Ministérios Públicos Estaduais e Federais.
206

5) Também em relação a processos de luta com incidência na legislação,


conte-nos sobre as articulações que resultaram na Lei nº 12.711/2012
e na Lei nº 12.990/2014 e sobre as articulações que têm sido tecidas
para impedi-las de atingirem seus objetivos com a eficácia necessária.
Se possível, além de uma visão geral, poderia também focalizar a tra-
jetória específica Universidade Federal de Uberlândia?

Penso que as Leis nº 12.711/2012 e nº 12.990/2014 são resultados da luta

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


histórica de negros e negras no nosso país, desde o primeiro momento em que
nossos ancestrais chegaram trazidos à força. Durante a travessia do Atlântico,
várias foram as formas de resistência – inclusive o suicídio. Vários movi-
mentos contribuíram para a construção da luta pela equidade racial aqui no
Brasil, por exemplo: a Revolta dos Malês, a Revolta da Chibata, os Lanceiros
Negros, a Frente Negra, o Teatro Experimental Negro, a Capoeira, os Quilom-
bos, o Movimento Negro Unificado (MNU), as Irmandades de Congados, as
Religiões de Matrizes Africanas, a reivindicação do 20 de novembro como
referência da luta negra, na década de 1971, encabeçada por Oliveira Silveira
e outras pessoas. Quero dizer, com isso, que essa articulação é historicamente
criada ao longo dos séculos de presença negra no território brasileiro. Por isso,
em 1978, o MNU é criado, se tornando um dos movimentos de referência para
que as questões negras avançassem na nossa sociedade. Assim, chegamos à
Constituição Cidadã, em 1988, criminalizando o racismo após 100 anos da
chamada abolição, e ao Estatuto da Igualdade Racial, em 2010, o qual é fruto
de uma negociação desigual, racialmente, no Congresso Nacional, tendo, por
isto, certa rejeição por parte de alguns dos movimentos sociais negros. No
entanto, as Leis de Cotas nada mais são do que a regulamentação do Estatuto
– sendo ele uma das nossas maiores conquistas após a Lei nº 10.639/2003.
A trajetória das Leis nº 12.711/2012 e nº 12.990/2014 na UFU é de uma
crueldade sem limites do poder branco, que domina não só esta instituição
pública, mas o país de forma geral. Em 2003, eu e o professor José Carlos
Gomes da Silva, atualmente na UNIFESP, fizemos um manifesto no Conselho
Universitário (CONSUN), em favor da instituição de cotas raciais na univer-
sidade (Manifesto dos Docentes Negros da UFU), que está registrado em ata.
Essa discussão durou 4 anos. Em 2007, foi instituído o chamado Programa de
Ação Afirmativa de Ingresso no Ensino Superior – PAAES –, que reservou
vagas para estudantes de escolas públicas, as chamadas cotas sociais, mas não
fez o recorte racial. Ou seja, da luta dos negros na UFU, surgiu um sistema
de cotas para a escola pública. O PAAES substituiu o antigo Programa Alter-
nativo de Ingresso no Ensino Superior – PAIES. O incrível disso tudo é que
estudos sobre o PAIES mostravam que 75% dos estudantes que ingressavam
por esse sistema vinham de escolas privadas, enquanto 25% eram oriundos
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 207

de escolas públicas. E, no PAAES, a reserva de vagas foi apenas de 25%, ou


seja, o percentual que já existia. Dito isso, damos um salto para quando a Lei
nº 12.711/2012 reserva o percentual de 50% das vagas para estudantes das
escolas públicas, mas agora com subcotas dentro deste percentual: subcota
PPI (Pretos, Pardos e Indígenas), subcota por renda e subcota PCD (Pessoas
com deficiência). A subcota PCD foi criada pela Lei nº 13.409/2016, que
modificou a Lei nº 12.711/2012.
Em novembro de 2014, dois anos depois da Lei nº 12.711, a universidade,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

por ações do movimento social negro e do NEAB-UFU, emitiu a Portaria


nº 854, que criava a Comissão de Acompanhamento das Cotas Raciais. No
entanto, essa Portaria tinha o prazo determinado de um ano. Deliberação
totalmente questionável: como uma Comissão pode acompanhar as subcotas
raciais na universidade em apenas um ano? Ainda em 2014, foi denunciado
junto ao Ministério Público Federal (MPF) que alguns estudantes haviam
fraudado o sistema de cotas raciais. O MPF instaurou o Inquérito Civil Público
(ICP) nº 1.22.003.000709/2014-76.
Entre as devolutivas da UFU ao MPF, sem o conhecimento da Comissão,
passaram-se dois anos. Apenas em 2016 é que a universidade foi obrigada a
criar a Comissão Permanente de Acompanhamento e Averiguação da Imple-
mentação das Cotas Raciais para Ingresso de Discentes na UFU, instituída
pela Portaria R N 1.095/2016. Essa Comissão tem sido chamada de Comissão
de Denúncias das Cotas Raciais e está vinculada à Pró-Reitoria de Gradua-
ção (PROGRAD).
Em 2017, baseada em um relatório da Comissão de Denúncias, a UFU
criou uma outra Comissão, então alocada na Diretoria de Processos Seletivos
(DIRPS), da PROGRAD, que viria a ser chamada de Comissão de Ingresso,
para tratar apenas das cotas no processo de ingresso dos estudantes, mas não
das denúncias de fraudes. No primeiro ano, os trabalhos da Comissão da
DIRPS/PROGRAD foram muito questionados, até que foi aberto um canal
de diálogo com o NEAB-UFU para a promoção de ajustes.
Em 2018, o Conselho de Graduação (CONGRAD) regulamentou os crité-
rios para a heteroidentificação de candidatas/os PPI, delegando a indicação dos
nomes que viriam a integrar as Comissões de Heteroidentificação, Resolução
SEI 12/2018, ao NEAB-UFU e à PROGRAD. É importante ressaltar que a
base para a resolução do CONGRAD foi o Trabalho de Conclusão de Curso
de Régis Rodrigues Elísio, estudante negro do curso de História, pesquisador
associado e ex-bolsista do NEAB-UFU.
Em síntese, posso afirmar que o MPF foi o responsável pela existência
efetiva das Comissões de Heteroidentificação da UFU. Para isso, colaboraram
as/os estudantes que tiveram a coragem de denunciar as pessoas que estavam
ocupando irregularmente as vagas destinadas a Pretos, Pardos e Indígenas.
208

Infelizmente, muitas vagas foram perdidas por parte da população negra, já


que as Comissões de Heteroidentificação foram criadas apenas cinco anos
após a promulgação da Lei nº 12.711/2012. Além disso, o prejuízo aumenta
quando uma pessoa branca, que se autodeclara parda, via de regra, ganha na
justiça o direito de permanecer no curso, e a UFU não recorre até as últimas
instâncias jurídicas. Por outro lado, felizmente, esse trabalho de contestação
judicial é realizado pelo MPF de Uberlândia, na figura do Procurador da
República Onésio Soares Amaral. As ações do MPF são fundamentais para

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


garantir a punição daqueles/as estudantes que ocupam indevidamente as vagas
destinadas à população negra (pretos e pardos).
No que diz respeito à Lei nº 12.990/2014, o quadro geral das universida-
des e institutos federais é ainda mais perverso. Estudos de Mello e Resende5
demonstraram que, entre 2014 e 2018, de 15.000 vagas ofertadas por 63 uni-
versidades e 38 institutos federais, entraram somente 5% de docentes negras/
os, isto é, 750. Se essa Lei tivesse sido devidamente aplicada, deveriam ter
entrado 20%, ou seja, 3.000.
Mediante as diversas estratégias usadas para se burlar esse dispositivo
legal, o que devemos pensar de instituições de ensino superior que se dizem
não racistas? No mínimo, tal desproporção demonstra que há resistência e
oposição das chamadas academias, fundamentalmente brancas, em receber
uma pessoa negra para a docência no ensino superior. Se assim não fosse,
as instituições, assim que a Lei foi sancionada, deveriam ter alterado as suas
formas de distribuição de vagas nos concursos para docentes, de modo a
efetivar seu cumprimento. No entanto, o que a maioria das instituições fez
foi manter a forma de distribuição das vagas antes da promulgação da Lei,
ou seja, as vagas para o magistério superior continuam fragmentadas entre as
várias unidades acadêmicas e suas áreas de concentração.
Essa forma de gestão político-administrativa de vagas dificulta e impede
que o mínimo de três vagas numa determinada área seja atingido, visto que três
é a quantidade mínima de vagas necessárias para que seja aplicada a reserva
de vagas. Se houvesse compromisso com a mudança do perfil docente e com
o cumprimento da Lei nº 12.990/2014, de modo a diminuir a vergonhosa
discrepância da desigualdade racial na ocupação de vagas docentes, as ins-
tituições deveriam aplicar, primeiramente, o percentual de 20% no número
total de vagas, o que garantiria a presença de negros e negras nos seus brancos
campi do saber e fazer científicos.
Tomando-se o caso da UFU como exemplo, de 2014 a 2021, foram
geradas apenas duas vagas para negros (uma na Faculdade de Medicina, que

5 MELLO, L.; RESENDE, U. P. Revista Sociedade e Estado, v. 34, n. 1, p. 161-184, 2019; e Cad. Pesqui.,
São Paulo, v. 50, n. 175, p. 8-28, 2020.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 209

não foi preenchida, e a outra no Instituto de Química). O Parecer 06/2020/


Conselho Diretor (CONDIR) Processo SEI 23117.071001/2019-45 mostrou
que, no período de 2014, quando houve a sanção da Lei nº 12.990, até o ano de
2020, foram geradas 342 vagas para a contratação de docentes. Dessas, apenas
duas foram destinadas a negros/as, o que significa um vergonhoso valor de
0,6%. Ainda que a instituição alegue que vinha sistematicamente cumprindo
a Lei nº 12.990/2014, esse número desfaz qualquer possibilidade de sensatez
na promoção da igualdade e equidade racial. Entretanto, felizmente, por ação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

minha e de uma advogada negra, Dra. Vera Lúcia Kátia Sabino Gomes, o
MPF instaurou o Processo Preparatório n. 1.22.003.000005/2021-22, o qual
foi transformado em ICP para que a UFU cumpra de forma efetiva a Lei
nº 12.990/2014, incluindo a reposição das vagas perdidas.

6) Conforme nos ensina o Prof. Dr. Achille Mbembe (2003), a sub-


missão da vida à morte está legitimada pelo Estado. O matar e o
morrer de corpos negros, indígenas, mulheres, pessoas travestis e
transexuais têm se naturalizado facilmente. As violências potenciali-
zadas nos modos como se deram os assassinatos do refugiado congo-
lês Moisë Kabagambe, da vereadora Marielle Franco e do motorista
Anderson Gomes, do consumidor João Alberto, do músico Evaldo
Costa, da trabalhadora Cláudia Silva – entre outras tantas pessoas
negras – desencadeiam manifestações sociais de indignação e apelos
por justiça. No entanto, tais mortes parecem tender ao esquecimento.
Você concorda com essa observação? Poderia compartilhar conosco
suas reflexões a esse respeito?

Concordo plenamente com a tendência ao esquecimento, que, infeliz-


mente, é naturalizado num país racista como o nosso, onde as vidas negras
de fato não importam. Basta apenas que olhemos para o caso do assassinato
da Marielle Franco, que ocorreu em 14 de março de 2018 e, até hoje, em
março de 2022, quando escrevo, os mandantes não foram identificados e,
muito menos, julgados e punidos. O problema maior é que os corpos negros
continuam considerados corpos matáveis. Isso é confirmado anualmente com
os dados oficiais do Atlas da Violência, produzido por órgãos do próprio
governo federal – o Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada em conjunto
com o Fórum Brasileiro de Segurança Pública, por exemplo.
Todo ano, os números nos açoitam em uma abolição que não ocorreu de
fato e de direito para a população negra brasileira. Os números, insistente-
mente, mostram que a população negra é a mais exterminada, inclusive com a
participação do Estado brasileiro. Ainda, dados do sistema prisional mostram
que, depois da Lei de Drogas de 2006, o encarceramento da população negra
210

aumentou vertiginosamente, concentrando-se principalmente na juventude.


Ao mesmo tempo, dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística,
Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios, de 2020, demonstram que a
juventude negra é a maior vítima de evasão no sistema escolar. Ou seja, vive-
mos num país que expulsa a juventude negra da escola, a aprisiona e mata.
Por isso que a naturalização da violência contra a população negra significa
o êxito de uma política bem-sucedida de manutenção do poder branco hege-
mônico imperante em todas as instâncias do Estado brasileiro e da sociedade

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de forma geral.

7) Guimes, você aceita ampliar um pouco mais seu retrato 3x4, con-
tando-nos do trânsito de seu corpo no espaço da Universidade Federal
de Uberlândia?

Para falar do trânsito do meu corpo como homem negro nesse espaço
branco chamado universidade pública, em particular na UFU, vou começar
do final, a partir de um vômito. Por que vomitei no caminho da UFU para a
minha casa?
Me aposentei em outubro de 2019 – uma aposentadoria judicializada.
Em novembro de 2019, fiz uma cirurgia na coluna. Por causa disso, reagendei
uma reunião com o reitor, que estava marcada para 08 de novembro de 2019,
para o dia 28 de novembro de 2019. Fui para essa reunião com a Dra. Jane
Maria do Santos Reis (atual Coordenadora Executiva do NEAB) e a Dra.
Cristiane Coppe de Oliveira (atual Diretora da DIEPAFRO), para tratar do
assunto específico das cotas raciais para negras/os nos concursos públicos. A
reunião era para cobrar da Reitoria, pela enésima vez, a alteração na forma de
se aplicar o percentual de 20%, como já mencionei anteriormente na resposta
da pergunta número 5. Eu não estava bem, pois, afinal, a minha cirurgia era
recente e eu havia tido muitos problemas no pós-cirúrgico, tendo operado
no dia 08 de novembro, com alta no dia seguinte, e reinternado no dia 13
de novembro. A reunião foi simples: a branquitude exerceu o seu papel com
requintes de crueldade. O reitor ouviu a nossa reivindicação e o pró-reitor
de gestão de pessoas fez as suas considerações para nos explicar que havia
cancelado a Portaria 4 de janeiro de 2019, que era resultado de um trabalho
conjunto do NEAB com a Pró-Reitoria de Gestão de Pessoas (PROGEP),
realizado em 2018, e que garantia a aplicação efetiva do percentual de 20% de
reserva de vagas para negros estabelecido na Lei nº 12.990/2014. O Pró-reitor
justificou ainda que o entendimento da gestão era de que havia a necessidade
de que as modificações na forma de se aplicar a reserva de vagas para negros
deveriam passar pelo CONDIR.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 211

Ainda assim é preciso ressaltar que, apesar da resistência, foi na gestão


do Professor Valder, Reitor da UFU, de 2016 a até o momento, que a ques-
tão das cotas raciais mais avançou. Mas também devemos enfatizar que isto
ocorreu por força do MPF e dos movimentos do NEAB-UFU. Para finalizar a
violência, o reitor nos disse que, se fosse demorar muito para que o CONDIR
apreciasse a matéria, ele iria emitir outra Portaria novamente com o mesmo
teor daquela anterior. É possível entender? A reitoria emite uma Portaria no
começo de 2019, no final do mesmo ano é feita a reunião com representantes
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

do NEAB, e o reitor diz que, se houvesse demora, emitiria outra Portaria. Ao


sair da reunião, eu vomitei naquele 28 de novembro de 2019. Era como se eu
botasse para fora tudo aquilo que engoli de racismo durante trinta e três anos
em que estive na UFU. A reação de meu corpo simbolizava o fim de uma fase
de luta dentro da estrutura racista da universidade. Significava que a estrutura
racista da UFU deveria agora ser atacada de fora da instituição.
Eu não estava sozinho neste episódio catártico, em que meu corpo reagiu
ao que não pode ser naturalizado. Meu irmão João havia me conduzido até o
Campus Santa Mônica da UFU e me levou para minha casa – o porto a que
voltamos não para desistir, mas para nos fortalecer. Para dizer da intensidade
da reação de meu corpo, dou passos atrás, à época em que ingressei na UFU
como professor substituto do Instituto de Química: 1987. Em 1989, fui efeti-
vado por meio de concurso público. Professor de uma universidade federal,
primeiro da família a ter se formado no ensino superior. E agora? O jeito é não
esquecer que sou uma comunidade do bairro do Limão de São Paulo, capital. É
isto mesmo: sou porque represento aquela comunidade de onde vim; a minha
negritude não poderia ser embranquecida. Mas sou também porque passei a
representar, na UFU, várias comunidades negras com as quais me amarrei em
Uberlândia e Região para ser um Professor Negro na universidade branca.
Assim, depois de um certo tempo na UFU, fui coordenar o NEAB-UFU,
em 2006. Mas, antes disso, eu tinha que ser um professor de Química, um
pesquisador da área de Físico-Química, enfim ser simplesmente um negro que
foi criado para fazer três vezes mais do que os brancos. E, no meu caminho,
havia também a extensão. E foi aí, na extensão, que achei a saída para não
embranquecer, para não enlouquecer, apesar do fato de que a docência negra
na UFU iria de fato me açoitar e me adoecer.
Apesar das violências, entrei preto e saí ainda mais enegrecido. Foi
na extensão que desenvolvi minhas ações iniciais com a cultura negra, a
Capoeira Angola, para trazer jovens da periferia para fazer graduação na
UFU. Posteriormente, o NEAB-UFU seria o mais novo Quilombo de Zumbi
na universidade permeada pelo racismo estrutural e institucional. Acho que
devo ter sido a primeira pessoa da área de exatas a coordenar um NEAB no
país. O NEAB foi e espero que continue sendo o reduto da luta negra na UFU,
212

promovendo formação inicial e continuada na temática da Lei 10.639/2003;


participando de ações junto com a comunidade negra como a criação, em
2012, do Conselho Municipal de Igualdade Racial da Prefeitura de Uberlândia;
atuando para a criação, em 2013, da Lei de Cotas para negros nos concursos
da Prefeitura de Uberlândia; lutando para a criação do Feriado Municipal
Zumbi dos Palmares, em Uberlândia, em 2016; e, mais recentemente, somando
com as articulações institucionais, entre 2018 e 2019, que culminaram com
a aprovação de ações afirmativas, aplicando os critérios da equidade e da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


interseccionalidade, também na educação básica oferecida pela UFU em seu
colégio de aplicação – a Eseba.
A partir de 2009, com a orientação da Tese de doutorado intitulada “A
Bioquímica e a Lei Federal nº 10.639/2003 em espaços formais e não for-
mais de educação”, intensifiquei o meu desafio em trazer as africanidades e
as afro-brasilidades para a área da Química. Decorrente dessa pesquisa, de
Patrícia F. S. D. Moreira (atualmente, professora da Universidade Federal do
Rio Grande do Norte), foi publicado o artigo intitulado “A Bioquímica do Can-
domblé”. Gostaria ainda de ressaltar um outro doutorado importante no campo
da temática afrorracial, de Juliana Moraes Franzão (atualmente, professora
do Instituto Federal de Goiás, Campus Itumbiara), com a tese intitulada “A
comunidades Kalunga e Jardim Cascata: realidades, perspectivas e desafios
para o ensino de química no contexto da educação escolar quilombola”.
Com base nessa tese, publicamos o livro O Kalunga tem História. Desa-
fios para o Ensino de Química na Educação Escolar Quilombola. Destaco
essas duas, entre outras orientações que fiz, porque a tese da Patrícia abriu o
caminho para trazer a Lei nº 10.639/2003 para a minha pesquisa em Química;
e a tese da Juliana, porque envolveu conhecimentos das comunidades Qui-
lombolas. Na pós-graduação em Química, aproveitei a minha docência negra
para ministrar disciplinas como Ciência e Tecnologias de Matrizes Africanas
e História da Educação do Negro no Brasil, rompendo, por algum tempo,
com o currículo branco. Quero destacar também a presença de antropólogos
e quilombolas nas bancas de doutorado da Química: uma interlocução que
pareceria impossível se não fosse a Lei nº 10.639/2003.
Antes de me aposentar, travei uma luta acirrada para criar uma disci-
plina obrigatória no curso de Licenciatura em Química, chamada Ciência e
Tecnologia de Matrizes Africanas. Infelizmente, não consegui fazer o mesmo
no curso de Química Industrial. No período de 2002 a 2011, ministrei uma
disciplina optativa de Capoeira no curso de Teatro da UFU. De 2000 a 2005,
desempenhei a função de Coordenador dos Cursos de Graduação em Química.
Na Coordenação, ocupei cadeira no CONGRAD e no CONSUN. No CON-
SUN, junto com o professor José Carlos, exigimos a discussão das cotas raciais
nos cursos de graduação da UFU, conforme já relatado, e também entrei com
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 213

o pedido de outorga de título de Doutor Honoris Causa para o Mestre João


Pequeno de Pastinha (já falecido). Esse título foi concedido, não sem muita
luta, ao Senhor João Pereira dos Santos por ter trazido a Capoeira Angola, na
palma de sua mão, no suor do seu corpo, por ter mantido as africanidades vivas
nas terras brasileiras e por promover a igualdade racial. Foi uma concessão
com luta, porque a votação não foi por aclamação: houve votos contrários.
Mas o interessante é que o relator, Prof. José Rubens, do Instituto de Econo-
mia, soube, na ginga universal daqueles que balançam o corpo quando ouvem
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

um berimbau, se fazer respeitado ao defender a legitimidade da trajetória


de um homem negro brasileiro que merece ser Doutor de uma universidade
branca, mesmo que parte da branquitude não o queira. Mestre João Pequeno
já era Doutor, assim profetizado pelo seu pai, e já era reconhecido por várias
comunidades de capoeiristas.
Fui candidato a reitor da UFU em 2008 e 2012. Afinal, nós, negros e
negras, precisamos ocupar os espaços de decisões. Ao menos, as candidatu-
ras são oportunidades macro de discutir as questões raciais de forma ampla,
em espaços de televisão, rádio e com toda a comunidade universitária e não
universitária. A eleição para a Reitoria da UFU é um fenômeno que mobiliza
as cidades onde a universidade tem campus. Ser candidato a reitor é uma
oportunidade de demonstrar que o racismo impede a universidade de travar
a luta antirracista. É a oportunidade de mostrar que nós, negros e negras,
também somos competentes para ocupar os distintos cargos de gestão de uma
universidade. Somos competentes para discutir todos os assuntos de uma uni-
versidade pública como os hospitais universitários, entre outros. Ser candidato
a reitor possibilita levar outras formas de pensar e agir que aprendermos desde
cedo nas comunidades negras, é entender que a filosofia certa é o Ubuntu.
Por exemplo, defendemos a paridade entre técnicos/as, docentes e discentes
na composição em todos os conselhos de decisões da UFU; defendemos que
os/as técnicos/as pudessem ser candidatos/as a reitores/as, defendemos que
algumas pró-reitorias são de natureza específica dos/as técnicos/as – como
a de Planejamento e a de Gestão de Pessoas; defendemos que haja cotas
para as mulheres, para as pessoas com deficiência, para indígenas e para os/
as negros/as nos cargos de direção. Enfim, deve ser por isso que perdemos
as duas eleições. No entanto, nessas eleições, o embrião, principalmente do
levante negro, foi plantado. Quero dizer com isso que nós, negros e negras,
não podemos nos deslumbrar com as ofertas dos brancos. Nós é que temos que
colocar as nossas pautas nas mesas e exigir o seu cumprimento. Precisamos
e devemos lutar pelo poder.
Em 2016, já com um contingente de negros e negras jovens cotistas,
realizamos a Primeira Marcha Negra por Direitos Civis na UFU. Levamos
214

nossas reivindicações para o CONSUN. Protestamos, lutamos, nos demos


visibilidade étnica no campo majoritário das pessoas brancas.
Não vi a Lei nº 10.639/2003 ser realmente implantada na UFU. Vi, depois
de 30 anos, o primeiro pró-reitor considerado negro tomar posse na UFU. Mas
saí da universidade com a certeza de que não era um ato para aplauso, e sim
para reflexão da comunidade negra.
Pude contribuir intensamente com o processo de conquista de cotas
raciais e socioeconômicas na Escola de Educação Básica, colégio de apli-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


cação da UFU, capitaneadas pela luta incessante da Profa. Dra. Neli Edite
dos Santos, mulher negra que soube ocupar o espaço da educação básica na
universidade para articular e promover a equidade racial e social.
Agora, de fora, tenho notícias de que reinvindicações antigas para a per-
manência de cotistas como as cotas raciais nos Programas PETs (Programa
de Educação Tutorial) foram aprovadas pela Prograd, em dezembro de 2021,
devido à continuidade da luta do/a NEAB/Diepafro-UFU.
É necessário ainda mencionar que coordenei, no período de 2010 a 2014,
o subprojeto História e Cultura Afro-brasileira no Programa Institucional
de Bolsas de Iniciação à Docência (PIBID). Esse subprojeto era importante
porque procurava cumprir as exigências da Lei nº 10.639/2003 nas escolas de
educação básica e na UFU. Os/as bolsistas eram de diversas áreas do conhe-
cimento: Química, Teatro, História, Ciências Sociais, Geografia, Pedagogia,
Filosofia, Matemática, Letras, Biologia e Educação Física. Infelizmente essa
foi a primeira e única edição do subprojeto de História e Cultura Afro-brasi-
leira na CAPES.
Outra conquista extremamente importante a se ressaltar foi a parceria do
NEAB-UFU com a TV Futura/Fundação Roberto Marinho. Essa parceria teve
início em 2010 e término em 2016. As ações foram baseadas no Projeto “A cor
da cultura”. A equipe do NEAB trabalhou com a formação de profissionais da
educação básica em diversas partes do país – por exemplo: Uberlândia-MG,
Juiz de Fora-MG, Codó-MA, Pinheirinhos-MA e Vitória-ES.
Essa parceria possibilitou também a criação do Primeiro Projeto de
Permanência para Cotistas Raciais da UFU (PPPCR). Esse foi um projeto
temporário, por causa da duração do contrato, mas que tinha a intenção de
ser repassado como modelo para a UFU torná-lo permanente. Infelizmente
isso não aconteceu. No PPPCR, estudantes cotistas negros (pretos e pardos)
recebiam uma bolsa e recebiam formação para serem multiplicadores/as do
Projeto “A cor da cultura”, em espaços como Terreiros de Religiões de Matri-
zes Africanas, Ternos de Congado e Movimentos Sociais Negros. Ao mesmo
tempo, os/as discentes da UFU recebiam formação nesses espaços negros. Os/
as discentes eram das seguintes áreas: Engenharia Mecatrônica, Fisioterapia,
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 215

Serviço Social, Geografia, História, Direito, Letras, Relações Internacionais,


Pedagogia, Economia e Ciências Sociais.
Cabe aqui agradecer à Profa. Dra. Azoilda Loretto da Trindade (in memo-
rian), por sua atuação como coordenadora do Projeto “A cor da Cultura”,
que possibilitou me enegrecer ainda mais. E também ao Dr. João Gabriel do
Nascimento Nganga, por ter sido o idealizador da parceria com a TV Futura,
no período em que ainda era estudante do curso de história da UFU e mem-
bro do NEAB.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Por fim, é preciso falar do Programa Abdias do Nascimento da SECADI/


CAPES, do qual também fui coordenador. Esse Programa foi desenvolvido
no período de 2017 a 2019 e tratou de intercâmbio internacional de estudan-
tes de doutorado negros e negras da UFU para a Universidade de Minnesota
(Minneapolis – Estados Unidos) e de estudantes de graduação para a Univer-
sidade do Porto (Porto – Portugal). O NEAB-UFU, com recursos próprios,
financiou curso de inglês para os estudantes que foram para a Universidade
de Minnesota.
Essa trajetória de lutas marcou profundamente a minha passagem por
uma universidade enraizada no racismo brasileiro. Devo confessar que saí
muito ferido das batalhas que enfrentei, enfrento e enfrentarei; entretanto,
Elza Soares também me sustenta.

Meu choro não é nada além de carnaval


É lágrima de samba na ponta dos pés
A multidão avança como vendaval
Me joga na avenida que não sei qual é
Pirata e Super-Homem cantam o calor
Um peixe amarelo beija minha mão
As asas de um anjo soltas pelo chão
Na chuva de confetes deixo a minha dor
Na avenida, deixei lá
A pele preta e a minha voz
Na avenida, deixei lá
A minha fala, minha opinião
A minha casa, minha solidão
Joguei do alto do terceiro andar
Quebrei a cara e me livrei do resto dessa vida
Na avenida, dura até o fim
Mulher do fim do mundo
Eu sou e vou até o fim cantar
Eu quero cantar até o fim
Me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar
216

Eu vou cantar até o fim


Eu sou mulher do fim do mundo
Eu vou, eu vou cantar, me deixem cantar até o fim
Até o fim eu vou cantar, eu quero cantar
Eu quero é cantar eu vou cantar até o fim
Eu vou cantar, me deixem cantar até o fim
(Mulher do fim do mundo, Elza Soares)

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


8) Em “A carne”, canção composta por Seu Jorge, Marcelo Yuca e
Wilson Capellette e interpretada magistralmente por Elza Soares,
ouvimos que “A carne mais barata do mercado é a carne negra”.
Tempos depois, esse verso ganha uma outra roupagem: “A carne mais
barata do mercado foi a carne negra”. Sabemos, Guimes, que ritmo
e poesia também atravessam e potencializam seu corpo. Por isso te
convidamos a dividir conosco um pouco das implicações sugeridas no
trânsito do ‘é’ para o ‘foi’:

Acho que a música pode tudo sonhar. Então, encontraram na poesia uma
forma de apontar para o “foi” que, infelizmente ainda “é”. Eu, particular-
mente, não consigo hoje cantar o “foi”. Mas espero cantar ainda hoje já que
amanhã será hoje também. Enfim nosso povo está lutando por esse trânsito
do “é” para o “foi” desde que aqui foi traficado como escravizado e vamos
transformando o nosso luto em luta.

Se hoje ainda não “foi”, o que queremos mesmo não é o “é”


Se o “é” ainda é, o que queremos mesmo é o “foi”
“Foi” ainda “é” e “é” “foi” será.

Axé, Saravá!
Guimes.
OMÓ ORÙNMILÁ (FILHOS
DE ORÙNMILÁ): a cultura da
comunidade tradicional Yorubá
Ellen Faria
Baba Paulo Tolomi Ifatide Ifamoroti Ojewale
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Renata Sangoranti

O Centro Cultural Orùnmilá é uma entidade sem fins lucrativos, locali-


zado em Ribeirão Preto/SP, que tem como função primordial a elevação da
condição humana mediante a promoção da cidadania, da busca dos elementos
da identidade sociocultural, da reconquista da dignidade e da autoestima, par-
ticularmente, da população negra e demais integrantes das classes populares,
excluídos dos benesses da sociedade contemporânea e marginalizados por
razões socio-político-culturais. Desde sua fundação, o C.C. Orùnmilá, para
atingir o seu objetivo junto à população citada, pautou-se por uma filosofia
que prioriza a Educação, a Arte e a Cultura como elementos fundamentais
para a superação de muitos dos problemas sociais.
As fotos a seguir foram produzidas no C. C. Orùnmilá, por Ellen Faria,
em passagens tradicionais da cultura desta comunidade: nascimento de uma
criança e celebração de um casamento. Os textos foram redigidos por Baba
Paulo Tolomi Ifatide Ifamoroti Ojewale e Renata Sangoranti e são importantes
para contextualizar passagens dessa tradição.

Igbeyawo: casamento tradicional Yorubá

O Igbeyawo é uma cerimônia de casamento tradicional da cultura Yorubá,


marcada por ser celebrada sempre com muita alegria. Os noivos entram na
cerimônia acompanhados da família e amigos, usando vestes específicas para
casamento denominadas Aso Oke e acompanhados por toques e cantigas tra-
dicionais. Sempre há um celebrante, pessoa responsável por fazer a interação
entre as/os convidadas/os e os ritos de passagem.
O povo Yorubá acredita que cada pessoa mais velha é uma biblioteca
viva, sendo comum, portanto, reverenciar os mais velhos e lhes pedir a bên-
ção. Assim, o noivo e a noiva, ao entrarem na cerimônia, como primeiro ato,
reverenciam seus pais e mães e os/as pais e mães da/o cônjuge. Durante a
cerimônia, são realizadas passagens repletas de significado, como a partilha
do Obi (semente africana) com os noivos. O Obi é um “facilitador sagrado”
218

que traz felicidade e boa comunhão, alegria e conforto para a celebração das
passagens mais importantes da vida.
Outros exemplos de rituais: retirada do véu da noiva por seu pai e do
Fila (chapéu) do noivo pela noiva, com a recolocação dele novamente em
sua cabeça. Esses gestos simbolizam a aceitação do casamento. Há também
o momento em que a irmã mais velha ou a pessoa mais velha da família da
noiva lava e enxuga seus pés, simbolizando a purificação e o início de uma
nova etapa.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


A tradição Yorubá sempre visa a comunidade e a coletividade, portanto,
quando há um motivo de alegria, uma celebração, a comunidade presenteia os
noivos com dinheiro (antigamente se davam búzios ou Naira - moeda) como
forma de demonstrar a satisfação e votos de prosperidade ao casal. Ao final
da cerimônia, toda a comunidade e convidados festejam a união dos noivos
com comida, música e alegria.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 219
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
220

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 221
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
222

Isomoloruko / Ikomojade: dia de dar o nome à/ao recém-nascida/o

O Isomoloruko/Ikomojade, dia de dar o nome ao recém-nascido, nada


tem a ver com o batizado cristão. O batismo é o primeiro sacramento do cris-
tianismo, que apaga o pecado original de quem o recebe e a este confere o
caráter de cristão. Ora, se não somos herdeiros do pecado original nem somos
cristãos, como o batizado poderia se encaixar na nossa tradição?
Para o povo yoruba, o nome é Amutoruwa, nome dado de acordo com as

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


características que envolvem o nascimento, ou Oruko Abiso, nome ligado ao
histórico ancestral familiar ou do orixá patrono da família. Sendo de tradição
oral, acreditamos que o nome e o exercício de chamar a pessoa por toda a
sua vida pelo nome que ela trouxe consigo ao nascer, e que foi revelado pelo
oráculo, reforça a sua identidade e o seu destino.
A cerimônia yorubá do dia de dar o nome ao recém-nascido, o Ikomojade
começa com um rito privado chamado Iponri, no qual é preparado o Isansun
onde será colocado o Idodo, que mais tarde será transformado em um Onde.
No dia marcado para a cerimônia pública, conforme seja menino, menina ou
gêmeos, a primeira a ouvir o nome será a própria criança, só depois ele será
proclamado para que todas as pessoas ouçam.
Ao final da cerimônia, toda a comunidade e convidadas/os festejam
o/a recém-nascido/a.
A seguir, exemplificamos algumas formas de construção do nome na
tradição Yorubá e nomes comumente usados.
Em relação ao Oruko Abiso, nome ligado ao histórico ancestral familiar
ou do orixá patrono da família, diversos radicais podem ser usados. Refe-
renciando ao Orixá, citamos como exemplo Fasinan (Ifa abre o caminho),
Sangofemi (Sango me ama).
Sobre o Amutoruwa, nome dado de acordo com as características que
envolvem o nascimento, também trazemos alguns exemplos: no caso de filhos
gêmeos, o primeiro a nascer recebe o nome de Taiwo, que significa “o primeiro
a ver o mundo”; o segundo a nascer é chamado de Kéhìndé, que significa “os
eminentes vêm depois”. Kéhìndé, o segundo a nascer, é considerado o mais
velho, pois teve a sabedoria de deixar o outro nascer primeiro para conferir
se o mundo que os esperava valia a pena.
Quando os pais e mães não pretendem ter mais filhos, a criança nascida,
caçula, recebe o nome de Titilayo, que significa a última a trazer alegria.
Crianças nascidas após a morte dos avós podem ser chamadas pelos pais de
Babatunde (meu pai voltou), no caso do avô; e de Yetunde ou Iyabode (minha
mãe voltou), no caso da avó. Acreditamos que alguém que morre em idade
avançada, de morte natural, e que teve vida plena, se transforma em ancestral,
podendo retornar no seio da própria família.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 223

Nossos ancestrais foram trazidos de maneira forçada para as Américas


na condição de escravizados. Nesse processo de desterritorialização e violên-
cia, eram batizados por um pecado que não cometeram e forçados a assumir
um nome cristão, negando o nome significativo e significante que lhe fora
dado. Para nós, herdeiros das tradições africanas, assumir o nome africano é
também uma ação política de combate ao racismo, através da afirmação da
nossa origem, da nossa história, enfim da nossa ancestralidade.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
224

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 225
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
MISCIGENAÇÃO DE POESIAS
Samara Rodrigues Oliveira

Eu sou a “mina” que nasceu sem cor, por nascer em um país


sem memória,
com amnésia,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que apaga da história todos os registros e símbolos de resistência,


que embranquece a sua população a cada brecha.
Em legítima defesa contra o sistema: depredação.
E o que patriarcado faz com as “minas”?
Chega botando a mão,
obriga a depilação, pele clara e alisamento.
Baderna é viver no século 21.
É ouvir que as cotas são reafirmação de inferioridade,
que existe racismo reverso.
Vai ter mais preto e indígena sim na faculdade.
Gosto de uma poesia da grande poetisa GABZ que diz:

“E se eu não tivesse que gritar ainda ia ter graça me ver sangrar?


E se eu quisesse me vingar?
Ou cês acha que nois não lembrava da preta e da indígena escravizada,
ou da comemoração?
Resultado disso a linda miscigenação.”

Cês tem que entender nosso lado, porque o papo não faz curva.
Aqui o papo é reto.
Vocês vão se arrepender de me fazer de objeto.
Isso é o combo do meu horror.
Uns morto na matéria, mas vivo na memória.
Eu canto aqui é pra lembrar nossas histórias.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
AS VOLTAS DO MUNDO
Gilberto Neves

As voltas do mundo trazem surpresas boas e ruins. Trouxe-me a lava-


deira Tia Gina. Benzedeira dos quebrantos. De olhos embaçados e líquidos,
sua voz saía aos sopros, baixinha. Tossia fraco. Idosa perrengue. “Nega da
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

tosse”, este era seu apelido. Apesar da fraqueza, ela acordava todos os dias e
aflorava à porta com seu sorriso gentil. Tinha uma irmã louca, que ela cuidou
até que um dia “Deus levou” – contava e se benzia. Gatos, algumas galinhas
e um vira-lata sarnento eram sua companhia. Meia dúzia de vizinhos fiéis e a
molecada, que ela acolhia, compunham seu ambiente familiar.
O casebre faltava reboco nas paredes. Sem caiação. O teto feito de telhas
mal encaixadas. Chão de terra batida. Dois cômodos geminados. Uma única
porta de entrada e saída da sala, que era metade cozinha. As paredes enfuma-
çadas pela incessante atividade do fogão de lenha. Numa das paredes, pendia
uma antiga folhinha, impregnada de gordura e fuligem, com a imagem de
São Benedito. Um vão retangular na parede oposta ao fogão dava acesso ao
quarto escuro com uma janela de tábuas de caixote quase sempre fechada.
Do lado de fora, uma fossa cercada de pré-moldados, coberta com telhas
de zinco retorcidas e piso de tábuas com um recorte central para as neces-
sidades fisiológicas. Era também onde ela tomava banho de caneca, com o
auxílio de uma tampa de madeira.
Recostado nas placas e sustentado em tocos de pau, havia um bacião de
cimento cru ladeado pelo batedor de roupas. Do chão, subia um cano de ferro
com uma torneira envolta em tira de pano, sempre pingando. Ficava atado
com arame a um sarrafo fincado no solo úmido da poça de água barrenta que
escorria para a fossa. Logo atrás, duas fileiras horizontais de arames farpados
serviam como varal das roupas lavadas.
O detalhe que fazia daquela pobreza um ambiente de aconchegante sim-
plicidade era o pé de manga bourbon, quase na divisa ao fundo, e o grande
flamboyant verde-vermelhante, que crescera à frente do casebre em copas
de generosa folhagem, flores e compridas vagens. Um capricho solidário
da natureza que oferecia frutas, beleza e sombra fresca. O cartão de visitas!
Sob a sombra do flamboyant, dois banquinhos onde cabiam quatro ou cinco
pessoas – ela fazia questão. Esse cenário era suficiente para encher Tia Gina
de contentamento. Louvava a sua sorte: “Deus é pai!”.
Não sabíamos de onde viera nem como Tia Gina fora morar ali. Seria uma
posse de usucapião ou um patrimônio daqueles doados a negros sem eira nem
beira pós-Abolição? Ela beirava os 80 anos de idade quando eu tinha meus
230

13. “Herdei de meus pais, nunca vi papel nenhum”, explicava. Um mistério


mal esclarecido, que nunca ela nem ninguém quis resolver.
O quintal da Tia Gina entrava no roteiro das nossas molecagens: apanhar
mangas maduras e trepar o flamboyant à cata das vagens. Nas brincadeiras,
convertíamos as compridas vagens secas em artefatos das imaginárias lutas
de espadas que vibravam com a sonoridade das sementes. Mas o destino
da maioria delas era o rabo do fogão de lenha. Fazia parte do nosso deleite
presenciar o crepitar do fogo estourando os bagos das vagens. Dia após dia,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a chaminé seguia baforando véus de fumaça rala e amarelada. Farol de vida
para quem o avistasse da rua. Estava viva. Mais um dia, ela estava viva!
Depois das nossas estripulias, Tia Gina oferecia café requentado nas
miúdas xícaras esmaltadas. Às vezes não tinha, e ela dizia ter se esquecido
de comprar. Ela mais ganhava do que comprava o que comia. Caridade dos
Espíritas. Recebia o suficiente para não passar fome. Vestia as mesmas roupas
envelhecidas. As perebas nas canelas nunca cicatrizavam. Machucava-se nos
cantos das madrugadas escuras. Luz? Somente a claridade do dia. No breu
da noite, ela guiava-se com a lamparina. Por que tanto sobrava a alguns e
tanto faltava a outros? À Tia Gina, quanto mais lhe faltavam as coisas, mais
generoso o seu coração de “mãezona” se tornava... Resignada e feliz.
Outras voltas deram o mundo trazendo o progresso. A prefeitura anun-
ciou que a rua de paralelepípedos seria asfaltada e a débil iluminação substi-
tuída. Acabariam os buracos de blocos mal calçados e as valas resultantes dos
consertos de canos rompidos. Desapareceriam as pontas de pedras salientes
causadoras de tombos. Os serviços de asfalto e luz foram rápidos. “Gratui-
tos!” – anunciou o prefeito. Ano eleitoral, sabe como é. Depois de concluídos
os serviços, a rua ganhou outra cara. A via de asfalto lisinha, limpinha. Bem
iluminada. As melhorias mexeram com os sentimentos. Alegria geral. Valo-
rizou o bairro e os imóveis. Para Tia Gina, era indiferente, mas se contentou
com a alegria dos vizinhos.
A novidade dos tempos não parou nas melhorias. No ano seguinte, che-
garam os talões de impostos e taxas. Valores lá no alto. Nem todos suportaram
os impostos. Frustração. Muita reclamação, pouca atitude. Surgiram ofertas
de aquisição das casas. Gente graúda, corretores impertinentes. Cada proposta
mais tentadora que a outra. Que fazer? Vender a casa e comprar um chão nos
loteamentos afastados? O progresso chegara para todos, mas usufrui quem pode.
Não tardou e a maioria dos imóveis foi vendida. Casas de alto padrão
surgiram no lugar das antigas. Aconteceu de uma casa ser construída à direita
e uma à esquerda da posse de Tia Gina. Uma delas: um sobrado bem alto,
a maior casa da rua. Um luxo! A outra, uma mansão imponente. O terreno
cercado de arame farpado, com o pequeno casebre, destacou-se. A beleza
das mansões tornou a simplicidade da tapera um estorvo. Antes integrada ao
convívio da vizinhança, agora era vista com maus olhos. Uma feiura!
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 231

“Dente podre tem que extrair para salvar dentes sãos” – dizia a madame
da mansão. Não fazia questão alguma de esconder o orgulho. Desprezo de
cor mal disfarçado. A comparação soava como pancada seca aos ouvidos de
Tia Gina. Magoada, ela se calava. Sentia tristeza, não vergonha. A indiferença
era sua resposta, sua luta.
Com o tempo, diminuíram as visitas. Metade dos vizinhos fiéis vendeu
suas casas e saiu do bairro. Os moleques mudaram-se, outros cresceram. As
galinhas acabaram. O sarnento morreu de velho. Ficou apenas um gato. O
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

flamboyant foi ficando ressequido. Raleadas folhas e flores murchas. Vagens


esparsas. A chaminé ainda resistia, mas as baforadas minguaram. Na maior
parte dos dias, ela permanecia enfiada no casebre sem ser vista. Sumida em
si mesma. Seu sorriso desaparecendo, o vigor da vida esvaindo-se...
Um após outro, os golpes sucediam-se. Sobre a pequena mesa, os talões
de impostos, taxas de água, luz, lixo e esgoto amontoavam-se. O ganho com
raras lavações de roupas pagava um talão ou outro. Alguns vizinhos ajudavam
com trocados, mas a pilha não baixava. As dívidas da velha e a posse precária
do imóvel atiçaram a nova vizinhança incomodada com o casebre. Chegou
um papel timbrado da Justiça. Tia Gina mal via as letras miúdas, ela que nem
sabia ler. “Ordem de Despejo” – li para ela. Transitara um processo em julgado
por revelia, ela mal fazia ideia. Um vizinho encontrara os perdidos herdeiros
do antigo proprietário do terreno, levando-os a exigir reintegração de posse.
O imóvel seria levado a leilão.
Sempre resignada, dessa vez Tia Gina reclamou: “Deus está tão ocupado
que me esqueceu?”. Sentia sua vida escapando-lhe, como se atormentada por
um furioso redemoinho carregando as coisas para longe. Desanimou de lutar
pelo chão que pisava. Viria um primo do interior de Goiás e a levaria embora.
Restou à idosa poucos dias até o prazo final do despejo. Os minguados
amigos fiéis ultimaram as visitas. Jamais a veríamos. Ferida no coração, o
gosto de Tia Gina pela vida evaporou de vez. Emudeceu e não mais lamentou.
Antes da última visita que faríamos a ela no domingo, a fatal surpresa:
Tia Gina não mais acordou. Partira desse mundo. Como iríamos à casa, fomos.
Agora, para vê-la ausente. Sobre a cama, o seu corpo franzino, envolto numa
mortalha de lençol envelhecido. Emagrecera bastante, o corpo quase só osso
e pele. Os olhos fundos, um pouco remelados. Mas ela mantivera uma feição
terna e serena: a face do adeus! Derradeira e tinhosa resposta ao destino atroz:
negar-lhe júbilo por sua melancolia.
Em pouco tempo, leiloaram o imóvel. Nas voltas dos litígios judiciais,
uma construtora venceu a disputa contra os vizinhos. Derrubaram o pé de
manga bourbon e o flamboyant. Ergueram um barracão para depósito de
máquinas destoando da imponência das mansões.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
CANTOS DE AFRO-JACK WILL!
Jack Will

FALA PRA XANGÔ

Estou aqui, mais uma vez, eu vim entoar este mantra groove pra vocês
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Estou aqui, mais uma vez, eu vim entoar este mantra groove pra vocês
É muito sonora a percussão!
Sonoras as batidas do meu coração!
Olha lá, olha quem chegou! Salve! Chama ele, avisa, chama, fala
Xangô chegou!
Saravá, viva Xangô!
Então fala pra ele:
Fala pra Xangô abençoar nossos tambores,
Fala pra Xangô iluminar nossos terreiros,
Fala pra Xangô abençoar nossos tambores.
Por quê?
Fala pra Xangô iluminar nossos terreiros,
Hoje tem batucada, hoje tem batucada, hoje batuca a noite inteira
Hoje tem batucada, hoje tem batucada, hoje batuca a noite inteira
Pra quem que tem batucada?
Para os Hare Krishnas e os Babalorixás
Para os Hare Krishnas e os Babalorixás
Viva Zumbi! Viva Zumbi!
Viva Zambê! Viva Zambê!
Viva Zumbi Zambê!
Viva Zumbi Zambê!

É SAMBA QUE DÁ!

É samba que dá na cabeça de preeetooo


É samba que dá na cabeça de preeetooo
É samba que dá na cabeça de preeetooo
É samba que dá na cabeça de preeetooo
Ahhh, ahh, ahhh! Demorou, mas grooveou! A neguinha sambou ali!
Ahhh, ahh, ahhh! Demorou, mas grooveou! A neguinha sambou ali!
Sambou ali, sambou, sambou, sambou, sambou, ali, ahh, ahh, eeeooo.
Sambou ali, sambou, sambou, sambou, sambou, ali, ahh, ahh, eeeooo.
234

É samba que dá na cabeça de preeetooo


É samba que dá na cabeça de preeetooo
É samba que dá na cabeça de preeetooo
É samba que dá na cabeça de preeetooo

MITOLOGIA AFROJACKIANA

Agora eu quero ver:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Quem vai me dizer de onde vem o samba?
Ahahahaha, de onde vem? Fala aí, vai…
De onde vem essa história de samba?
Essa história de samba começa lá, no século XVI.
Quando os meus, os seus, os nossos ancestrais foram traficados da África
para o Brasil.
Eh.... Diziam que no Brasil precisavam de negrinho forte para trabalhar.
Mas isso não é verdade: não, não, não.
Isso era a escravização.
É isso mesmo: escravização de pessoas, africanas, trazidas à força para o Brasil.
Lá de longe, estava vindo algo sob o mar.
O que era? O que era?
Era o navio negreiro.
Nesse navio tinha várias culturas:
Bantos, sudaneses, benguelas, moçambiques...
Infelizmente, muitos escravizados morreram na travessia... vidas ao mar.
Mas aconteceu um fato: alguém também aparece no mar.
Quem?
Quem é a mamãe das águas salgadas?
Saravá! É ela: salve, salve! Viva ela, Dona Janaína!
Iemanjá, salve Iemanjazz! Saravá!
O samba começa lá e vem em porões de navios negreiros.
Quando o mar começa a balançar, o negro samba pra sobreviver.
O negro samba pra sobreviver.
Vem comigo assim, vai…
O mar balançou e a galera sambou!
O mar balançou e a galera sambou!
Não quis morrer: lá e aqui. O negro sambou!
O mar balançou e a galera sambou!
O mar balançou e a galera sambou!
A FOTOGRAFIA E O SOM DOS
TAMBORES ANTIRRACISTAS
Eduardo Ramos

Era manhã de um domingo de outubro; o ano, 2003. Havia combinado


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

com um amigo acompanharmos e fotografarmos o Terno de Congado Camisa


Verde durante seu trajeto até a igreja de Nossa Senhora do Rosário e São
Benedito na cidade de Uberlândia-MG. Vale explorar o Inventário de Proteção
do Acervo Cultural de Uberlândia-MG, redigido por Fabíola Benfica Marra1,
para dizer um pouco mais sobre o terno Congo de Camisa Verde, que é um
dos ternos mais antigos da cidade de Uberlândia, está ligado à família que
comanda a Irmandade do Rosário e possui relações próximas com os ternos
Congo de Camisa Verde das cidades de Araguari e de Ituiutaba.
Ainda conforme o Inventário, Maria do Rosário Nascimento foi presi-
dente do terno Congo de Camisa Verde, nasceu no dia 15/09/1937 na cidade
de Araguari e faleceu em 12 de abril de 2011. Mudou-se para Uberlândia em
1952 para trabalhar de doméstica e foi através do casamento com José Olímpio
do Nascimento que passou a integrar o Congo de Camisa Verde. José Olimpio
era sobrinho de Elias Nascimento, na época presidente da Irmandade de Nossa
Senhora do Rosário e São Benedito em Uberlândia, além de comandar o Terno
Congo de Camisa Verde. Dona Gercina, esposa do seu Elias, comandava o
Marinheiro de Nossa Senhora do Rosário, o Marinheirinho. Dona Fátima
recorda que o terno foi primeiro do Manoel Angelino, que passou para o seu
Elias Nascimento e para o José Mendes, que passou para o José Olimpio.
Após a morte de José Olimpio, o senhor Deny Nascimento, então presidente
da Irmandade, filho de Elias Nascimento, passou o comando do terno Congo
de Camisa Verde para os cuidados de Dona Fátima.
Quem mora em Uberlândia já deve estar acostumado com a festa do
congado no mês de outubro. As manhãs do segundo domingo do mês sem-
pre são recebidas com fogos de artifícios, numa espécie de alvorada, sau-
dando e convidando para o desfile dos ternos de congado. Nesse dia, acordei
talvez antes do foguetório. Como morador do bairro Aparecida e vizinho
do quartel do terno da Dona Fátima, lá fui eu cedinho, pronto para as tirar
minhas fotografias.
Em 2003, eu havia comprado uma máquina semiprofissional e estava me
arriscando na arte da fotografia. Era um equipamento analógico, que utilizava

1 Texto extraído do Inventário de Proteção do Acervo Cultural de Uberlândia-MG. Redigido por Fabíola Benfica
Marra em agosto de 2006. Disponível em: https://livrozilla.com/doc/1271598/terno-congo-camisa-verde.
236

ainda os filmes fotográficos. Bem cedinho, como de costume, só estavam nos


quartéis os que haviam trabalhado a noite toda para que a festa e o desfile do
terno acontecessem de maneira bela. De máquina em punho e atento, saúdo
o primeiro componente a chegar no quartel. Era meu amigo Ademir. Nossas
famílias são amigas e nos conhecemos desde a infância. Cumprimentos feitos,
peço que ele se posicione e lhe digo: – Vou tirar uma foto sua.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Sr. Ademir Silva, conhecido como Goiaba. Terno Camisa


Verde. Fonte: Foto e acervo do autor, 2003.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 237

Minha primeira leitura dessa imagem me traz ao pensamento sobre orgu-


lho negro, de questionamentos e de compreensão do que seria o orgulho
negro. Nessa fotografia, eu percebia um homem negro feliz, um homem negro
orgulhoso, altivo sem ser prepotente. As outras imagens que fiz durante a festa
naquele ano de 2003 buscaram, acredito, os mesmos sentimentos. Orgulho,
alegria e identidade. Naquele ano, o congado se mostrou, para mim, não
apenas uma festa folclórica/religiosa ou uma manifestação cultural, ele se
apresentou subjetivo, com atores atuando como personagens deles mesmos,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

com suas identidades preservadas e que lutam para que essas identidades se
mantenham fortes. O termo “folclórica” inserido aqui, nesse momento do
texto, faz referência apenas ao olhar equivocado que eu possuía sobre a festa
de congado. Utilizo semanticamente com o intuito de demonstrar como o
conhecimento nos liberta de preconceitos principalmente sobre as culturas
afro-brasileiras. O congado é um lugar de abrigo e de reconexão com a ances-
tralidade dos afro-brasileiros.
Com todo o impacto que a experiência fotográfica me trouxe no ano de
2003, continuar com os registros fotográficos do congado foi uma necessidade
prazerosa. Registrei a festa e os ternos do congado de Uberlândia durante
anos, entre 2003 e 2019.

A reconexão com a ancestralidade

As tentativas de apagamento da cultura africana no Brasil são sistemáticas


e incansáveis. Todavia, uma manifestação cultural com mais de 100 anos de
história, como é a festa de congado de Uberlândia, com incontáveis tentativas
de destruição e proibições, é, sem dúvida, muita mais forte e incansável que
todos os reveses e enfrentamentos. As manifestações afro-brasileiras foram
vistas durante muito tempo como um apêndice do corpo social. Acredito que
essa forma de ver as histórias negras da sociedade brasileira afeta diretamente
a forma como uma grande parte dos negros e negras também se olham e
se percebem.
Fotografar a festa do congado me colocou como um participante, um
congadeiro. Compreender a negritude através das imagens captadas foi como
uma ponte de ligação entre passado e presente. É deixar de ser apêndice
para se compreender como corpo pleno dentro da sociedade que construímos
todos os dias, desde o momento em que o primeiro negro pisou nas terras do
Pau-Brasil. Esse corpo cultural e religioso negro, mesmo permeado pelo sin-
cretismo é uma de muitas demonstrações puras e fundamentais da resistência
cultural afrobrasileira.
238

Tambores e estandartes

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nota: Sr. Valdecir Anastácio de Souza. Terno Marujo Azul de
Maio. Fonte: Foto e acervo do autor, 2003.

Nota: Tambores e estandartes do Moçambique de Belém. Fonte: Foto e acervo do autor, 2003.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 239

Os sons desses tambores ressoam durante todo o ano. Os ternos de con-


gado de Uberlândia conseguiram, com muita batalha, estender e dar visibi-
lidade à sua manifestação para datas diversas à data oficial, que é o segundo
domingo de outubro. Entre essas visibilidades, podemos citar a Festa do
Congado em cidades do Triângulo Mineiro como Ituiutaba, Monte Alegre
de Minas, Uberaba, Araguari e, ainda, a Festa de Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito na cidade de Catalão-GO.
Durante as festas de congado das cidades vizinha a Uberlândia, muitos
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

ternos uberlandenses são convidados a participar. Nesses encontros, presen-


ciamos um congraçamento repleto de sons, cores e religiosidade. Vale destacar
também que os ternos realizam diversas ações sociais e culturais na cidade
de Uberlândia e em diversas outras cidades em todo o país, participam de
performances musicais em eventos educacionais e cuidam de suas memórias,
por exemplo, produzindo CDs com canções de devoção congadeira. Entre os
eles, cito o Terno de Moçambique Estrela Guia, o Moçambique de Belém e
o Grupo Sainha.
De carona nessa extensão da festa de congado, eu realizei trabalhos
expositivos tematizando o congado, em que a imagem e a palavra se uniram
a sons e danças para ensurdecer o Congresso Nacional. Era 2005 quando o
historiador, pesquisador, doutor em História Social e poeta Jeremias Brasileiro
e eu lançamos um catálogo com fotos minhas e textos de Jeremias Brasileiro,
sobre o congado em Uberlândia. Na ocasião do lançamento do catálogo, o
terno Moçambique de Belém foi convidado a se apresentar em Brasília-DF. Foi
deslumbrante, com aproximadamente 30 componentes do Terno Moçambique
de Belém, que fizeram valer cada batida do tambor, cada passo de dança e
cada voz entoada. De tão potente que foi a apresentação, até hoje, ela ressoa
nos salões do Senado e da Câmara dos Deputados Federais.
Outras exposições foram acontecendo durante esse período de 16 anos
que fotografei a Festa da congada da irmandade de Nossa Senhora e São
Benedito, em escolas, bibliotecas, associações de bairro, centros culturais e
plotagens em ônibus urbanos. A proposta de registro documental das fotogra-
fias foi se transformando em processos criativos interartísticos entre o som dos
tambores e a imagem captada pelas lentes da máquina fotográfica. A imagem
trouxe outras possibilidades de registro e manipulação gráfica.
240

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nota: Apresentação do Marinheiro de São Benedito. Fonte: Foto e acervo do autor, 2018.

Nota: Apresentação do Marinheiro de São Benedito. Fonte: Foto e acervo do autor, 2018.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 241

A imagem utiliza o espaço como local de sua materialidade, subjetiva


ou não; já o som usa o tempo como lugar de sua manifestação, subjetivo ou
objetivo. Acredito que a fotografia tem uma maneira mágica de unir esses
pontos diversos, tempo e espaço. Ela é intermedial – ou seja, em uma foto-
grafia, teremos o som e imagem. Uma teoria de intermidialidades artísticas
que combinam, integram e transformam (LUND, 1992) realidades em outras
realidades ou artes em várias outras artes. Intermedial e intermidialidades são
termos utilizados para descrever o rompimento de fronteiras entre as mídias
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

como TV, rádio, Jornal e internet. Tais termos foram apropriados pelo campo
das artes e fazem referências às relações entre as linguagens artísticas. O
pesquisador Hans Lund, acima citado, busca as interfaces e interartes entre a
pintura e a música. No nosso caso, a música dos tambores e a imagem fotográ-
fica. Assim, mais do que sons de tambores, essas imagens fotográficas trazem
sonoridades diversas como vozes silenciadas, choros, gritos que merecem e
precisam ser ouvidos.
Poder ser ouvido possui uma enorme importância para todos afro-brasi-
leiros, posto que o silêncio de nossas vozes e nossas culturas trouxe junto o
esquecimento e o desprezo sobre as questões raciais negras no Brasil. Ouvir
e falar enquanto sentidos do corpo realizados por canais diferentes, ouvido e
boca, podem, num sentido artístico, ser unidos para posteriormente se apre-
sentarem como um novo objeto de arte. Nesse novo trabalho fotográfico
busco explorar, dentro da linguagem imagética, um campo de pesquisa muito
interessante: o processo de criação sinestésico. Esse processo almeja, através
da imagem, incentivar o espectador a também “ouvir” o que a imagem foto-
gráfica “diz”. Qual o som, qual o grito que pode ser ouvido através do olhar,
através da imagem fotográfica? O inverso também é possível: qual imagem,
retrato ou paisagem o som do tambor pode nos conferir? Ao espectador dessas
imagens o silêncio será apenas externo e, quiçá, por dentro de si, ele possa
escutar as vozes que clamam por justiça, por igualdade, por semelhança, por
pertencimento. Essa é a poética que todo esse trabalho documental e artístico
fotográfico que realizei tentou, e, de alguma forma, ainda almeja alcançar.

O trabalho fotográfico como proposta pedagógica

“Mulheres Congadeiras” é um ensaio fotográfico de 2017, no qual bus-


quei ressaltar a importância das reflexões e ações sobre o racismo e a mulher
negra dentro dos ternos de congado. Trata-se de uma proposta contemplada
pelo Festival de Arte da UFU e que foi exposta em diferentes espaços educa-
tivos, entre 2017 e 2018. É um dos trabalhos mais importantes que realizei.
242

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nota: Sra. Dagmar (ao centro), Moçambique do Oriente. Fonte: Foto e acervo do autor (sem data).

Nota:“Mulheres Congadeiras” – Ensaio fotográfico, 2017. Saguão da Biblioteca do Campus


Santa Mônica da Universidade Federal de Uberlândia. Fonte: Fotografias e acervo do autor.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 243

Meu acervo fotográfico de 2003 a 2019 pertence a congadeiros e conga-


deiras e será doado à Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito.
São registros de uma das mais impactantes manifestações afro-brasileiras que
temos em Minas Gerais. Falo isso sem qualquer constrangimento.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Festa do Congado – Catupé Azul e Rosa. Fonte: Foto e acervo do autor, 2018.

Nota: Festa do Congado – Moçambique Estrela Guia. Fonte: Foto e acervo do autor, 2018.
244

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Festa do Congado – Bastão de Capitão. Fonte: Foto e acervo do autor, 2018.

Como proposta pedagógica antirracista, essas fotografias podem auxiliar


ações educacionais, como as que já foram realizadas, projetos que possam
incentivar estudantes a conhecerem, participarem e produzirem arte a partir de
olhares sensíveis e sem preconceitos, despertados pela imagem e o som dos
tambores, pelas imagens e movimentos das danças, pelas imagens e alegorias
dos ternos, pela imagem e canto negro dos ternos Moçambique, Catupés,
Marinheiros e Congos. Ir até as estéticas africanas para percebê-las como
parte de um todo. Um processo pedagógico no qual os sentidos estejam todos
unidos. Olhos, odores, abraços, sabores ao som de muito canto e muito toque
de tambores, tambores antirracistas.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 245

REFERÊNCIAS
BRAGANÇA, G. F. F. Parâmetros para o estudo da sinestesia na música:
1. ed. Belo Horizonte: Per Musi, 2010.

BRASILEIRO, Jeremias. O Congado (a) e a permanência do racismo na


cidade de Uberlândia-MG: resistência negra, identidades, memórias, vivên-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

cias (1978-2018). 2019. 268 f. Tese (Doutorado em História) – Universidade


Federal de Uberlândia, Uberlândia, 2019. http://dx.doi.org/10.14393/ufu.
te.2019.609

FREITAS, Alexandre Siqueira de. Ressonâncias, reflexos e confluências: três


maneiras de conceber as semelhanças entre o sonoro e o visual em obras do
século XX. 2012. 341 p. Tese (Linguística, Letras e Artes – Artes – Música)
– Universidade de São Paulo, São Paulo, SP, 2012.

LUND, Hans. Texto como Imagem: Estudos nas transformações literárias de


imagens. 1. ed. Tradução: Kacke Gotrick. Lewiston, NY: Edwin Mellen, 1992.

SOURIAU, Étienne. A correspondência das artes: elementos de estética


comparada. Tradução: Maria Cecília Queiroz; Maria Helena Ribeiro da Cunha.
São Paulo: Cultrix, 1983.

ZAMBONI, Silvio. Pesquisa em arte: um paralelo entre arte e ciência. 4. ed.


rev. Campinas: Autores associados, 2012.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ANCESTRALIDADE E SUCESSÃO,
RESISTÊNCIA E AFIRMAÇÃO
DE IDENTIDADE NO CONGADO
DE UBERLÂNDIA
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Antônio César Ortega

Segundo domingo de outubro de 2018. Sou despertado com o batuque


dos tambores da Festa de Congado em Louvor à Nossa Senhora do Rosário
e São Benedito. Rapidamente me troco, tomo meu café da manhã, pego meu
equipamento fotográfico e vou ao encontro daquele som. Já vai alto o sol e o
calor é forte. O céu azul estonteante. Para os poucos afeitos à fotografia, seria
um dia ideal para registrar toda a beleza do Congado, mas a luz dura gerada
pelo sol inclemente traz dificuldades.
Vou sendo guiado pelo som dos tambores, que, nas ruas estreitas, explo-
dem no peito. Saio do Fundinho e vou chegando ao Centro. Agora, além dos
tambores, as gungas, as folhas, acordeons, os reco-recos e os adufes já inva-
dem meus ouvidos mais claramente. A melodia do Terno que vai chegando
na Praça de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito ecoa um canto de
louvação, exprimindo a devoção à santa e ao santo reverenciados. A multidão
se encolhe nas calçadas e nas arquibancadas e é embalada pelos cânticos.
Quase entra em êxtase!
Abro passagem entre a assistência e supero as grades que separam as
apresentações dos Ternos do público. Já sou conhecido dos organizadores
e ganho status de fotógrafo para registrar o evento. A dança cadenciada ao
ritmo dos instrumentos e do canto vem trazendo a bandeira da Irmandade
para reverenciar Nossa Senhora do Rosário e São Benedito. Mas já não é
somente o som que me causa espanto, mas também o colorido vivo dos grupos
de congado. São azuis de várias tonalidades, verdes, rosa, laranja, amarelo,
branco, que enfeitam os componentes de congos, moçambiques, marinheiros,
marujos e catupés para a devoção à virgem e ao santo.
As vestimentas me atraem! Começo a fotografar chapéus ornamentados
com miçangas, flores, fitas coloridas. Camisas, lenços, capas e chapéus na
cor de seus grupos de congados revelam hierarquias. Faço tomadas abertas,
busco detalhes e, aos poucos, depois da atração pelas vestimentas coloridas,
começo ser atraído pela beleza de homens e mulheres jovens, que, sorriden-
tes e orgulhosos, abrem o peito e cantam, rodopiam e sacodem suas gungas,
batem forte o tambor.
248

A beleza da mulher negra aparece em meu visor. Começo a buscá-las!


Todas com seus cabelos afro, alguns bem trançados, outros soltos e arma-
dos, missangas na cabeça, colares coloridos, sorrisos no rosto demonstrando
a felicidade em preservar suas tradições. Todas imponentes, orgulhosas de
sua negritude.
Delas, meus olhares vão para os jovens. Que também não deixam por
menos para valorizar suas belezas. Além do físico, percebo cabelos bem cor-
tados, muitos com seus óculos escuros para suportar o sol e criar um charme.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Todos cheios de estilo e não importa a profissão que possuem, pois, ali, todos
são príncipes negros mantendo a ancestralidade de um povo.
Essa ancestralidade é repassada por idosos, “o nego veio, a nega veia”.
Presentes nos ternos, adornados de maneira a demonstrar a hierarquia, a
sabedoria, o passado transmitido àqueles jovens. Por sua vez, a presença do
pároco, sentado ao lado de membros da Irmandade, fortalece o sincretismo
religioso do presente.
Senhores de cabelo branco parecem nos lembrar que aquele povo já
foi escravizado, sobreviveu e está ali para lembrar que a luta continua, para
superar o racismo, que teima em ser preservado na sociedade. Esses senhores
não deixam de demonstrar sua altivez. Por sua força, eles são sobreviventes
e, com sua postura de resistência, certamente, passam aos mais jovens a
necessidade de seguir em frente, preservando suas tradições, enaltecendo
suas lutas e glórias.
De repente, foco no olhar de uma “nega veia”. Tudo muda em meus sen-
timentos. O olhar amoroso e um sorriso acolhedor cativam ao primeiro olhar.
A presença delas, seus olhares e seu caminhar tranquilo parecem abençoar
a todos. São mães e avós, colos seguros de gerações. E é no colo delas ou
pelas suas mãos que, caminhando ao seu lado, as crianças vêm nos relembrar
que aquela ancestralidade será repassada, com resistência e afirmação de
identidade. É a garantia da sucessão, de sua tradição, orgulhosos por estarem
presentes, com vestimentas coloridas, com instrumentos nas mãos, já dando
os primeiros passos de dança acompanhando o ritmo musical.
Tem sido com esses sentimentos que miro minha câmera sem jamais
receber um olhar reprovador por não pedir autorização para fotografar. Ao
contrário, meu olhar é recebido por sorrisos largos, felicidade contagiante,
orgulhosos pela beleza de festa que nos proporciona. Todos demonstram com
nobreza a sua fé, dançando e cantando sua música. E, dessa maneira, trans-
mitem força e valorizam sua ancestralidade e sucessão.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 249

O meu olhar fotográfico


“As fotografias não são ilustrativas. Elas e o texto são
coiguais, mutuamente independentes e plenamente
colaborativa.” (AGEE, 2009, p. 13)1.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Sra. Darci Ferreira Rodrigues e Sr. José Rodrigues – Rainha Perpétua e Rei Perpétuo.

Nota: Sr. Gasparino Gregório Afonso (apelidado, carinhosamente, de


Tazinho) – Orador e Conselheiro do Terno Rosário Santo.

1 AGEE, J. E Evans, W. Elogiemos os homens ilustres. São Paulo, Cia das Letras, 2009, p. 13.
250

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Nota: Moçambique Pena Branca.

Nota: Franciele Martins – Terno Moçambique Estrela Guia.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 251
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Lucianderson Ferreira Justino – Congo Camisa Verde.


252

Nota: Soldados – Marinheiro de São Benedito.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 253
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Soldada caixeira – Marinheiro de São Benedito.


254

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Prof. Dr. Jeremias Brasileiro – Comandante Geral da Irmandade de


Nossa Senhora do Rosário e São Benedito de Uberlândia/MG.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 255
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Sra. Mariza de Fátima Lima e sua Nota: Padre Hudson Inácio de Almeida e
bisneta, Vitória Isabele – Terno Camisa Verde. Acólito Pedro Henrique Amélio A. Ferreira.

Nota: Thayna Ribeiro Cunha e Josianny Ribeiro Vieira – Terno Catupé Dona Zulmira.
256

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Davi Lucas Miguel Amorim Eloy – Moçambique de Belém.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 257
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Aline Ferreira Martins e Eloah Ferreira – Moçambique Estrela Guia.


258

Nota: Marcos Elias Mendes, Silvano Batista Oliveira (Babá Silvano) e Flávio Lúcio Artur dos Santos – Terno Rosário Santo.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 259
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Nota: Bianca Laraine – Moçambique Estrela Guia.


260

Nota: Laryssa Artur – Terno Rosário Santo.


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
MEMÓRIAS DE UMA CONGADEIRA
Cristina Peron

Este texto é uma homenagem Terno de Congo Sainha!


O Sainha, situado na Rua Coronel Antônio Alves, nº 2475, no Bairro
Saraiva, em Uberlândia/MG, conta com 140 componentes, aproximadamente,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e faz parte de minha caminhada de mulher negra.


Na infância e na juventude, tive a oportunidade de carregar sua bandeira
de cor rosa, que é uma das atribuições das mulheres nos ternos de congado.
Esse papel é definido pelo capitão em comum acordo com a diretoria e com
a madrinha da bandeira.
Antigamente, era costume que, para carregar a bandeira, fosse uma ado-
lescente virgem. Só que as coisas mudaram. As madrinhas de ontem são
senhoras. Hoje, adolescentes e jovens carregam a bandeira e pouco ou nada
se fala sobre virgindade.
No Sainha, eu tive a oportunidade de participar de várias ações, o que
me proporcionou conhecimentos práticos como cantar e dançar. Ajudei em
projetos da Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e São Benedito e do
Sainha. Esses projetos respondem a necessidades dos tempos atuais, segundo
o capitão Eustáquio Marques – conhecido por Zezão. Sendo assim, ao longo
dos anos, a direção do terno tem tido novos desafios na cidade de Uberlândia;
entre eles, a inclusão de mulheres, visando instruí-las para tocarem instrumen-
tos musicais que eram específicos para os homens no passado – por exemplo:
caixa, meia lua, pandeiro e violão.
As mulheres, então, passaram a ter mais protagonismo no presente,
aumentando sua relevância social. A madrinha da bandeira, por exemplo,
organiza leilões, que são importantes para ajudar no custeio das despesas do
terno. Essa tarefa é dividida com o capitão do terno, que articula para marcar
a casa onde o leilão vai acontecer.
O Congado tem várias ações simbólicas. Eu fui formando essa com-
preensão a partir de minha militância no movimento negro, que me levou a
compreender a transmissão desse simbolismo de geração a geração, princi-
palmente, no terno do Congo de Sainha, que pratica a sucessão hereditária.
Minha experiência me permite refletir a respeito da história do congado e
da negritude em Uberlândia. Fui atribuindo sentido a essa experiência, apren-
dendo o lugar das narrativas em minha memória de congadeira. Nunca escrevi
minhas lembranças dos cânticos, louvores, orações, mas elas permanecem
em mim. Tenho vontade de estudar mais sobre toda a performance singular
da congada que envolve música, dança e devoção. Toda essa complexidade
262

pode ser incorporada em um projeto de pesquisa futuro, seguindo o exemplo


da Profª Drª Vânia Aparecida Martins Bernardes. Com ela, aprendi que as
narrativas reconstroem a história e revelam sujeitos que vivem no anonimato.
Ser congadeira é uma questão de herança cultural, que busca romper barreiras,
cruzar espaço e abrir trilhas – e esta história merece ser contada.
Vale ressaltar que o congado, de maneira em geral, é um grupo que
busca difundir a história e a cultura afro-brasileira. Entretanto, os desafios
enfrentados são muitos, desde recursos financeiros até o de incluir a juventude

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


negra. Como exemplo de resistência, o Terno do Congo de Sainha é composto
de pessoas da melhor idade, negros e brancos. Nele, desenvolvi um projeto
intitulado “Resgate Histórico do Congado de Sainha”, em em parceria com
uma equipe do próprio terno, com a produção e distribuição de um DVD,
atingindo, aproximadamente, 200 participantes diretos e 1500 indiretos.
Esse projeto foi subsidiado pelo Programa de Formação Continuada em
Saúde e Cultura Populares, da Pró Reitoria de Extensão, Cultura e Assuntos
Estudantis da Universidade Federal de Uberlândia, em 2010.
Nessa ocasião, foi possível oferecer oficinas cujo resultado foi a con-
fecção de instrumentos musicais, capacete, saias para dançar e um DVD,
os quais conquistaram destaque na festa realizada da congada na cidade de
Uberlândia, no mês de outubro daquele ano. As músicas gravadas no DVD
podem ser ouvidas no conforto do lar. Canções inéditas. Um verdadeiro res-
gate e registro histórico.
O Sainha desempenha o papel relevante de continuar mantendo seus
costumes como cultural popular e religiosa, como patrimônio cultural, uma
herança histórica de décadas. Constituído no contexto de familiares, com base
na diversidade e na pluralidade, ele valoriza nossa ancestralidade. Um outro
objetivo importante do Sainha é valorizar a cidadania e o legado deixado por
nossos antepassados – por exemplo: José Rafael dos Santos, Ciro Ribeiro
Bastos, Maria Abadia dos Santos, Maria Luciana Ferreira.
O atual capitão do Sainha e seu presidente, Eustáquio Marques, continua
a lutar para romper com a desigualdade social, sendo este um grande legado
herdado dos antepassados.
É importante destacar também a Irmandade de Nossa senhora do Rosário
e São Benedito. Uma entidade centenária sem fins lucrativos, de utilidade
pública municipal e estadual, apartidária, cuja presidência é hereditária. Tem
um cunho religioso e cultural, sendo conhecida antigamente como Irmandade
dos Homens Pretos.
Por fim, nesta homenagem ao Sainha, quero continuar contribuindo,
junto com as demais senhoras, madrinhas de bandeiras, para formar as novas
gerações, em ações voluntárias e humanistas. Quero manter essa trajetória que
vem de longe, como expressão de meu agradecimento a nossos ancestrais.
Vamos continuar a lutar para manter nossos costumes.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

E REFLEXÕES
��PE�I�N���S, AFETOS
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
A ÉTICA DA DIFERENÇA:
a educação escolar quilombola como
direito humano inalienável
Alan Alves-Brito
Carla Meinerz
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fabiani Franco de Alves


Wellington Porto
Maria Geralda de Almeida

“Quilombo é uma história. É uma palavra que tem história.”


Beatriz Nascimento

Introdução

O projeto de pesquisa-ação colaborativa Zumbi-Dandara dos Palma-


res (ZDP): desafios estruturais e pedagógicos da EEQ para a promoção da
equidade racial no Brasil do século XXI, coordenado por um dos autores do
presente texto, Alan Alves-Brito, conta com o apoio financeiro do Centro de
Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdade (CEERT) e é executado
no âmbito do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da
Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS), em parceria com
o Instituto Federal do Rio Grande do Sul (IFRS), Instituto de Assessoria
das Comunidades Remanescentes de Quilombos (IACOREQ/RS), Instituto
Comunidade Morada da Paz (CoMPaz/RS), movimentos sociais, escolas,
comunidades quilombolas e secretarias de educação (estadual e municipal)
do Rio Grande do Sul (RS).
A metodologia empregada é de pesquisa-ação crítico-colaborativa
(PIMENTA, 2005) e ampara-se em dados quanti-qualitativos, históricos e
geográficos; assim, o projeto ZDP busca promover a equidade racial na educa-
ção básica com foco, particularmente, na Educação Escolar Quilombola (EEQ)
diferenciada no RS. Cabe ressaltar que, para além das questões inerentes à
discussão das relações étnico-raciais no RS, estado majoritariamente branco,
somente recentemente teve o reconhecimento da EEQ como uma modalidade
de ensino, sendo, portanto, um direito humano inalienável. Com base nos
resultados parciais da pesquisa-ação em andamento, apresentamos, no presente
texto, breves notas crítico-reflexivas de avanços em nossas compreensões
sobre categorias essenciais da EEQ. Isto é, as formas com as quais as cate-
gorias quilombo, educação escolar e direitos humanos, com seus desafios e
266

potências ressemantizadas, articulam-se não só no RS mas em todo território


nacional para reafirmar as humanidades dos sujeitos quilombolas.

O conceito de quilombo

Os resultados parciais de pesquisa-ação reafirmam que as categorias


quilombo, educação escolar e direitos humanos entrecruzam-se na dimensão
epistemicida do projeto cosmofóbico da colonização europeia no Brasil, a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


qual é marcadamente ibérica. Elas emergem do interior dos navios negreiros
e persistem nos acompanhando até os nossos dias atuais, pensando sobretudo
os efeitos das múltiplas pandemias que se ramificam da pandemia de covid-
19 (do inglês, Coronavirus Disease 2019) no país. Esta é uma das maiores
crises sanitárias globais e que tem, uma vez mais, feito valer lógicas temporais
de um presente permeado de passado, no âmbito das relações neocoloniais,
que atinge, de cheio, os corpos negros e, particularmente, o corpo das pes-
soas quilombolas.
Do Kilombo com K, com sua sonoridade e origem africana, até o Qui-
lombo com Q, com sua sonoridade lusitana forjada na diáspora africana no
Brasil, são muitas lutas que permitem construir uma contranarrativa em res-
posta ao projeto Plantation, tão belamente expresso de forma crítica na escrita
de Kilomba (2019). Nesses movimentos de ressemantização da palavra qui-
lombo, novas cosmopercepções oriundas de tensionamentos socioantropoló-
gicos devolvem potência existencial às comunidades quilombolas, periféricas
e faveladas, todas elas territórios negros. Nesses deslocamentos a uma outra
alteridade, a palavra quilombo, antes carregada de sentido de fuga, reposicio-
na-se espaço-temporalmente ante à repressão, dando textura à r(existência)
em contornos de liberdade que celebram a memória ancestral africana e que
humaniza os corpos negros nas vivências excludentes do Brasil profundo.
Entre idas e vindas, lutas e disputas, avanços e retrocessos, a educação, uma
das mais robustas tecnologias sociais para o Brasil do século XXI, um país
mergulhado em sua política de morte, foi e tem sido negada aos corpos negros
na égide do projeto baseado no sequestro e alienação colonial dos corpos e
mentes negras. São os corpos-territórios, conceito cunhado e aprofundado
pela pesquisadora e pensadora negra Beatriz Nascimento1 (1942-1955), os
elementos (humanos) essenciais do protagonismo de transformação sócio-ra-
cial no Brasil. Enfatizamos que estes corpos-histórias não nasceram com o
artigo 68º do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias da Constituição

1 Ver Nascimento (2008) para uma discussão sobre o conceito de quilombo. Beatriz Nascimento, historiadora,
ativista, uma das maiores intelectuais brasileiras, vítima do feminicídio que segue eliminando mulheres
compulsoriamente no Brasil, preferencialmente as mulheres negras.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 267

Federal de 1988 que, em uma esfera legal, os reconhecem como sujeitos


políticos de direitos. As pessoas quilombolas, tampouco, nascem a partir dos
termos do Decreto nº 4.887, de 2003, que afirma que “as terras ocupadas por
remanescentes das comunidades dos quilombos e utilizadas por eles para a
garantia de sua reprodução física, social, econômica e cultural, lhes pertence
de fato”. A identidade quilombola é produto da luta política e da resistência
que impulsiona corpos-quilombos à organização e à movimentação dinâmica,
e, portanto, trata-se de uma identidade histórica forjada na dinâmica da vida,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

que é cultural. O Decreto nº 4.887/2003 segue exaltando que

no uso comum da terra pelas comunidades, está implícita a noção de ter-


ritório, que os agrupam por questões étnico-raciais, segundo critérios de
autoatribuição, mas sem perder de vista suas trajetórias históricas próprias,
ancoradas no princípio de ancestralidade negra que está vinculada com a
resistência à opressão historicamente sofrida [...].

Completamos que esta luta é legítima desde o dia em que os antepas-


sados negros africanos foram sequestrados do seu continente raiz. Portanto,
as pessoas quilombolas não nascem 18 anos atrás (promulgação da Lei
nº 10.639/2003 – BRASIL, 2003) e, muito menos, 9 anos atrás (publicação
das Diretrizes Curriculares Nacionais para a EEQ – DCNEEQ – BRASIL,
2012). A luta antirracista é antiga, em que quilombos do passado e do pre-
sente se encontram em uma dança que desafia as escalas temporais lineares
da modernidade. Para o pesquisador e pensador negro africano radicado no
Brasil, Kabengele Munanga,

Pelo conteúdo, o quilombo brasileiro é, sem dúvida, uma cópia do qui-


lombo africano reconstituído pelos escravizados para se opor a uma estru-
tura escravocrata, pela implantação de uma outra estrutura política na qual
se encontram todos os oprimidos. Escravizados, revoltados, organizaram-
-se para fugir das senzalas e das plantações e ocuparam partes de territórios
brasileiros não-povoados, geralmente de difícil acesso. Imitando o modelo
africano, eles transformaram esses territórios em espécie de campos de
iniciação à resistência (MUNANGA, 1996, p. 63).

Os dados e apontamentos acima reafirmam a urgência de debatermos e


aprofundarmos as formas com as quais as lutas e disputas em torno da iden-
tidade quilombola acontecem no chão das escolas e das comunidades qui-
lombolas, seja nas questões internas destes espaços, seja nos tensionamentos
destes com gestores e esferas de poderes externos instituídos que têm papel
fundamental na implementação de políticas estruturais de estado. A discussão
desfolclorizada, desromantizada e não essencialista de quilombo e quilombolas
268

é fundamental para avançarmos na promoção da equidade racial no Brasil


a partir de um projeto de educação antirracista que reconheça quilombos e
quilombolas como lugares de reverberância do coletivo diferenciado e, por-
tanto, de forma ontológica e epistemológica, promotores e articuladores de
uma ética da diferença.

Há educação escolar quilombola diferenciada no Brasil?

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Quando se trata da construção da identidade quilombola, no contexto
urbano e rural, nota-se a urgência no aprofundamento de princípios básicos
que possam dar conta das questões éticas que envolvem conceitos como
alteridade (universalidade) e ontologia da diferença (o ser que é diferente,
singular). Em torno desse dilema, surgem então algumas perguntas funda-
mentais: onde e como construir e afirmar a identidade quilombola tão bem
discutida e defendida por Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento2 (1914-
2011), Clóvis Moura3 (1925-2003) e tantas e tantos outros pensadores negros?
Como descolonizar o ser, o saber e o poder, três esferas de articulação da vida
moderna e contemporânea, a fim de reconhecermos que as pessoas negras,
quilombolas principalmente, são pessoas? E o que isso tem a ver com o direito
a uma escola pública diferenciada (ética), capaz de articular outras potências
epistêmicas e de preparar as pessoas quilombolas para os desafios do Brasil e
do mundo do século XXI, tão racialmente desigual, sádico e opressor? Como
contribuir para a criação de uma identidade quilombola que seja capaz de
dialogar, criticar e auxiliar com a construção de um outro jeito de pensar, fazer
e vivenciar a Quarta Revolução Industrial no Brasil? Como ressignificar os
mitos em torno da identidade quilombola?
A partir dos nossos dados, interpretamos que a escola (não isolada nem
em esforços individualizados), enquanto uma das teias sociais mais estrutu-
rantes do Brasil, tem papel fundamental para delinear movimentos que nos
ajudem a responder às perguntas anteriormente colocadas. No entanto, con-
traditoriamente, nota-se que a educação escolar não acompanha, na prática,
a mesma dinâmica dos entendimentos legais (DCNEEQ, por exemplo), per-
cepções e lutas quilombolas no país, o que dificulta o projeto de construção de
humanidades quilombolas a partir da escola. Como em um apagão indiferente
de memória, as escolas quilombolas (localizadas nos territórios remanescentes)

2 Um dos mais respeitados pensadores negros da História do Brasil, articulador da ideia de quilombismo a
partir de uma crítica contundente ao mito da democracia racial, de Gilberto Freyre, vinculando sistemas de
pensamento em torno das ideias de resistência, revolta e negritude.
3 Um dos mais importantes intelectuais negros no que concerne reflexões e aprofundamentos sobre a orga-
nização social brasileira em torno do conceito de raça/escravidão, ressignificando a luta e a resistência
quilombola no país.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 269

ou aquelas que atendem estudantes quilombolas, na zona urbana ou rural,


territórios estes que, embora majoritariamente frequentados por estudantes
negros, têm seu corpo docente majoritário branco, insistem em colocar em
prática o pacto narcísico da branquitude, ideia proposta pela pesquisadora
Cida Bento, discutida em Bento (2002) e retomada por Cardoso (2011):

A autora, com o mesmo conceito, sustenta a tese de que a branquitude


traz vantagens que se acumulam e reproduzem as desigualdades raciais.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Em outras palavras, para compreender melhor as desigualdades raciais em


nossa sociedade, seria importante entender o pacto entre os brancos, ou
seja, seria necessário refletir sobre os preconceitos e práticas racistas que
ocorrem “por interesse”, porque tanto a prática racista oriunda da igno-
rância (leia-se preconceito) quanto por interesse resultam na manutenção
dos privilégios da branquitude. Mesmo porque a desigualdade racial entre
negro e branco não ocorre apenas pelo preconceito da pessoa ou grupo
branco, mas também pelo interesse da pessoa e grupo branco de proteger
e preservar suas vantagens raciais. Se o pacto narcísico ocorre também
pelo interesse dos brancos em preservarem seus privilégios étnicos-raciais,
obviamente podemos considerar que o branco ao se compactuar se enxerga
enquanto pessoa e grupo racializado (CARDOSO, 2011, p. 89).

Lamentavelmente, como parte das barreiras epistêmicas acima relatadas


que se concatenam com o racismo estrutural e institucional (ALMEIDA,
2018), notamos silenciamentos e/ou invisibilização dos saberes e fazeres que
acontecem no chão das comunidades quilombolas. O diálogo escola-comu-
nidade quilombola é pouco exercitado. Qual é, por exemplo, a história dos
quilombos aos quais as escolas estão associadas e como estes se inserem nesse
contexto, no RS e no país? Essas histórias não somente precisam chegar às
escolas como também precisam ser contadas e experimentadas (con-vividas)
por todos os estudantes e membros da comunidade escolar. Os nossos dados
revelam dificuldades nestas construções dialógicas representativas, do ponto
de vista dos avanços materiais e simbólicos rumo à desconstrução de precon-
ceitos, receios e desconfianças historicamente alicerçadas.
Notamos que as histórias das lideranças comunitárias quilombolas não
são vistas, discutidas e partilhadas nas escolas. Também não há, em raros
momentos, (roda de) conversas entre as crianças, adolescentes e pessoal
administrativo das escolas e os membros mais velhos das comunidades qui-
lombolas. Esse é um grave erro, uma vez que as comunidades quilombolas,
forjadas na matriz africana construída na diáspora, carregam em si os ele-
mentos da ancestralidade. E, uma vez mais, a valorização dos mais velhos da
comunidade é uma poderosa estratégia didática-pedagógica empoderada de
sentidos que, no conjunto, reafirma os laços dos estudantes quilombolas com a
270

instituição escolar. Ambos, os mais velhos e os jovens, dessa maneira, estarão


contribuindo para o desenvolvimento de uma noção muito mais dinâmica de
pertencimento à unidade escolar em questão.
Um outro ponto dessa reflexão diz respeito às nossas percepções sobre
as formas com que esses territórios, com suas geografias e histórias (des)
racializadas, podem articular outros marcos civilizatórios no chão das escolas.
Nesse quesito, notamos que, para a nossa subamostra (15 escolas) no RS,
com exceção à Escola Comkola Kilombola Epè Layiè4 e às escolas Quitéria

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Pereira do Nascimento, Bahia e Paraná, os nomes das escolas quilombolas5,
num gesto simbólico e que desterritorializa o imaginário coletivo, carregam e
expressam, numa relação hierárquica de poder, herança europeia-colonizadora.
Isso acarreta estragos e reforça traumas no imaginário social e simbólico dos
estudantes e das comunidades quilombolas. Na amostragem de baixa esta-
tística, destaca-se também a predominância de nomes masculinos próprios
nas escolas: dez nomes de homens em detrimento a dois de mulheres; dois
nomes aleatórios (Bahia e Paraná) e um nome em Yorubá, como já destacado
previamente. Esse resultado é interessante, uma vez que, sabemos, a educa-
ção escolar — e principalmente a EEQ — é predominantemente um espaço
feminino, como é discutido em outros artigos do nosso grupo (MEINERZ
et al., 2021, submetido). A discussão sobre a sub-representação de mulheres
e, especialmente, homens e mulheres negras nas ciências e em espaços de
poder, mesmo em contextos majoritariamente compostos por mulheres, tem
sido amplamente aprofundada na literatura especializada (ALVES-BRITO,
2020, e referências lá citadas).
Em se tratando ainda dos elementos simbólicos, vale também nos ques-
tionar: como estão sendo tratados, em sala de aula, as brincadeiras, as religio-
sidades e os costumes das comunidades quilombolas? As expressões culturais
e as tradições das comunidades quilombolas, sem essencialismos, devem fazer
parte do dia a dia das escolas. Esse aspecto é fundamentalmente importante
no RS, em que o tradicionalismo gaúcho, bastante fortalecido como um ele-
mento identitário no estado e no Brasil, instigou a criação do célebre Centro
de Tradição Gaúcha (CTG). Dessa maneira, ele pode priorizar certas matri-
zes culturais. Sabemos que há, historicamente, no bojo destes movimentos
tradicionalistas, sérias tensões raciais na perspectiva de não integração da
matriz negra gaúcha.
A partir da nossa análise parcial, com raríssimas exceções (2 casos em 9),
os projetos políticos pedagógicos e as matrizes curriculares das escolas não

4 Terra Viva, em Yorubá.


5 Joao Cadore; Telbio Farias Cardoso; Marcílio Dias; Quitéria Pereira do Nascimento; Tomás Antônio Gonzaga;
Manuel Albino Carvalho; Santo Ângelo; Domingos Saraiva; Liberato Salzano Vieira da Cunha; Bahia; Gabriel
Obino; Afonso Emilio Massot; Paraná; Leopolda Barnewitz; Epè Layiè.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 271

integram os jeitos de ser e de viver das comunidades quilombolas vinculadas


aos seus espaços. Em geral, as comunidades quilombolas não são convocadas
ao diálogo para a construção curricular escolar. Evidenciamos que escolas e
professores não estão preparados para mediar os conflitos que aparecem no
chão de suas práticas e experiências na relação com as pessoas e comunidades
quilombolas. Do mesmo jeito, vemos desconfianças e resistências por parte
de algumas comunidades quilombolas em estabelecer diálogo aberto, franco
e próximo com as escolas. As comunidades desconhecem e/ou desconfiam
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

do poder de transformação de suas vidas pelas escolas. Como parte destes


estranhamentos, tememos que, quando narradas ou representadas em sala de
aula, as pessoas quilombolas continuem sendo vistas e refletidas desde o lugar
de subjugação, do passado estático, presas às lógicas do Brasil Colônia, do
Brasil Império e do Brasil República, todas elas pautadas no projeto histórico
de desumanização das pessoas negras e quilombolas. Em cada uma destas
janelas históricas segue-se, tristemente, o projeto de produção, exploração,
dominação, expropriação e naturalização da morte (física e epistêmica) dos
corpos negros. Mesmo quando a história negra/quilombola é contada em sala
de aula, nota-se que esta história não aparece contextualizada ou devidamente
articulada com sistemas globais de opressão (colonialismo, capitalismo e
patriarcado) que operam o tempo inteiro por meio do racismo. É preciso
abandonar, portanto, as perspectivas exóticas-folclorizantes que, até mesmo
em propostas tratadas como interculturais em sala de aula ou em comunidades,
deixam de lidar com diálogos decoloniais e do pensamento negro quilombola.
Esses novos olhares epistêmicos são necessários para construir outras narrati-
vas históricos-interpretativas a ponto de entender que o encontro histórico dos
europeus com os povos originários e a perspectiva destes povos colonizadores
em relação aos corpos negros africanos escravizados nunca foram sob uma
lógica intercultural de troca de saberes, mas, sim, de sequestro e opressão.
Do ponto de vista quanti-qualitativo, ao ampliar o olhar e interpretar
os dados numéricos a partir de uma integração destes com as análises qua-
litativas em suas relações geográficas racializadas, mostramos que a EEQ,
enquanto política pública, padece de questões estruturais e pedagógicas sérias.
O ataque e o descaso epistêmico a esta política pública se justifica no mito da
democracia racial, de Gilberto Freyre (1900-1987), e no racismo estrutural
e epistêmico discutidos, respectivamente, por Almeida (2018) e Carneiro
(2005). As escolas quilombolas não têm acesso aos bens mais básicos da
Quarta Revolução Industrial, ethos do projeto moderno e contemporâneo da
educação do século XXI (ALVES-BRITO, 2021).
No que tange à formação inicial e continuada, professores de diferentes
áreas do conhecimento não têm formação específica (EEQ) e, com raras exce-
ções, são poucas/os os que de fato conhecem, leram e/ou se aprofundaram
272

nos marcos expressos nas DCNEEQ, muitas vezes confundidas ou tratadas


de forma geral apenas no arcabouço da Educação para as Relações Étnicas-
-Raciais (ERER) e/ou Educação do Campo. Conforme salienta o Parecer
nº 16/2012 das DCNEEQ:

Apesar dos pontos de confluência na luta por educação entre os povos do


campo e os quilombolas, há particularidades históricas, culturais, étnico-ra-
ciais, regionais e econômicas que os distinguem entre si, bem como o tipo

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de educação escolar por eles demandada. Tais singularidades exigem dos
sistemas de ensino a necessária oferta de uma educação escolar que garanta
uma educação igualitária e que, ao mesmo tempo, reconheça o direito à
diferença aos coletivos sociais diversos que compõem a nossa sociedade.
Incide sobre os quilombolas algo que não é considerado como uma ban-
deira de luta dos povos do campo: o direito étnico (BRASIL, 2012, p. 22).

Não há, tampouco, materiais didáticos-pedagógicos específicos nas esco-


las para que professores possam trabalhá-los em sala de aula. Pensamos que
a escassez desses materiais contribui para a evasão e o desinteresse dos estu-
dantes quilombolas pela escola, que não os representam. O resultado dessa
roda gigante do apagamento e da apatia é um alto contingente de estudantes
negros e quilombolas sem o letramento adequado (no sentido mais específico
e mais amplo do que letramento significa) que, desestimulados, vão ficando
pelo caminho, entregues às dinâmicas do racismo à brasileira, que se atualiza
cotidianamente. Sem referências culturais e com a autoestima abalada, muitos
estudantes negros e quilombolas acabam por não colocar a formação univer-
sitária no horizonte de possibilidades e, quando o fazem, enfrentam barreiras
epistemológicas torturantes, de forma que a experiência, que deveria ser de
potência e de reafirmação, configura-se em frustração e sofrimento psíquico.
A universidade passa a ser, ela mesma, uma reprodução mais acentuada dos
processos de apagamento, silenciamento, sofrimento e exclusão já colocados
em prática ao longo da educação básica. E assim o ciclo de desigualdade e
de extermínio de sonhos e oportunidades se retroalimenta, e, como produto,
temos o naturalismo do racismo simbólico e epistêmico, que fere, marca e
ultraja a psiquê negra e quilombola desde o século XVI no Brasil.
Nesses movimentos realizados com a base do projeto ZDP, notamos que
as mediações feitas por pessoas que se colocam entre as escolas e as comu-
nidades quilombolas são, por vezes, baseadas em projetos individuais e de
controle, quando deveriam ter uma perspectiva de coletivo, espinha dorsal da
luta quilombola. Certas interferências, entendemos, se não alinhadas à ideia do
aquilombar-se coletivamente, prejudicam a abertura ao diálogo e à construção
de um projeto de EEQ crítica e, de fato, libertadora. São aquelas interferências
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 273

servindo apenas para manipular e tutoriar as comunidades, estabelecendo


perspectivas puramente assistencialistas que já deveriam estar ultrapassadas.
Deixamos também à reflexão sobre como poderemos de fato medir o
valor que é dado à EEQ por parte de lideranças quilombolas (no nosso estudo,
mais acentuado no caso das comunidades urbanas). Há, nesses movimentos,
uma interpretação muito marcada de hierarquias entre a EQ e a EEQ: a pri-
meira sendo realmente a que produz conhecimento válido, enquanto a segunda
é vista como projeto de apagamento e acirramento das relações comunitárias;
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

o eu (sozinho) versus o ser comunitário (social e coletivo). Nestas relações


EQ versus EEQ há, a nosso ver, uma ambiguidade entre os interesses e orga-
nizações do grupo (EQ: comunidades: concreto) e o valor que estes dão às
instituições escolares (EEQ: indivíduo: abstrato).
Por fim, argumentamos que a EEQ diferenciada passa, assim, no limiar
do presente século, a ocupar papel crucial de nos conduzir no desmantela-
mento de estruturas opressoras de poder colocadas e engendradas em todos
os níveis da sociedade brasileira, que não é e nunca foi neutra, ateórica e
ahistórica. Nos estabelecimentos e defesas da norma padrão de uma educa-
ção escolar hegemônica há lugar somente para uma humanidade possível,
movida à perpetuação de privilégios, espinha dorsal dos processos civiliza-
tórios dominantes da sociedade brasileira, direcionada e guiada pelo padrão e
perspectiva da humanidade branca, masculina, elitista, hetero-cis-normativa,
europeia, judaico-cristã e ocidental, superior, portanto, no sistema-mundo.
A EEQ diferenciada é um projeto político e ético e deve se constituir em
um espaço físico-temporal reterritorializado de forma simbólica e cultural,
de valorização das pessoas quilombolas, devolvendo a elas a humanidade
usurpada ao longo de séculos.

EEQ e as relações topológicas des-contextualizadas: quem é


humano e tem direitos?

Que é humanidade como um projeto diferenciado de educação que pode


devolver um outro senso existencial e uma dimensão espaço-temporal cosmo-
lógica (topológica, portanto) potente aos corpos negros quilombolas? Como
des-contextualizar a des-humanização das pessoas quilombolas?
Para respondermos a estas questões não há, com base em nossa expe-
riência no âmbito do projeto ZDP, como desalinharmos a construção de um
projeto de EEQ diferenciada do projeto de educação escolar antirracista
em seus marcos teóricos, metodológicos e ontoepistemológicos focados no
pensamento negro quilombola e que são nutridos nos seus territórios, politi-
camente gestados e liderados pelas mulheres, no contexto comunitário, nos
movimentos sociais e na produção acadêmica. A humanização das pessoas
274

quilombolas no presente século tem nascido, assim, do ventre público (do


espaço das tensões) e político das mulheres, que concebem a identidade, a
diversidade e a diferença por uma lógica de afeto que não leva em conta apenas
a racionalização circunscrita nos movimentos do projeto de educação moderna.
Nesses movimentos de mulheres negras quilombolas, há o reconhecimento de
que a dinâmica da cultura é essencial para se fortalecer a humanidade poten-
cial negra quilombola amalgamada na ética (atitude) e na estética (forma). A
arte, a literatura, a música, a dança, a comida, as ervas, os rios, as plantas, a

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


natureza, as artes vivas que transbordam das existências negras, forjadas na
luta, entram em cena como fortes aliados na construção de uma perspectiva
cosmológica do outro que não exclui, integra. A negritude quilombola adi-
ciona, assim, um elemento a mais para a construção de uma identidade que
se desloca o tempo inteiro para os outros: é importante estar junto.
Outra estratégia de humanizar os corpos negros quilombolas é partir da
concepção cosmopolítica desses corpos em movimento para romper defini-
tivamente a ambiguidade raça-classe6 que insiste em se manter no RS e no
país, como forma de confundir e justificar opressões que são historicamente
racializadas. É necessário reconhecer que há quilombos urbanos e rurais. Desta
forma, urge entender que os quilombos são múltiplos em suas caminhadas de
autoafirmação, singulares mas distintos, representando uma constelação de
trajetórias guiadas pelo co-mover-se. A dimensão política da luta quilombola,
re-colocada no cenário nacional pelas mulheres, nos permite entender as vio-
lentas relações de classe/raça/gênero/orientação sexual/origem geográfica no
Brasil e, portanto, pontuar a forma como o racismo, enquanto estrutura, vai
historicamente posicionando os corpos negros em lugares de inferioridade
com base na categoria classe, por vezes destituída da generificação e desar-
ticulada de outros marcadores sociais da diferença. No entanto, as próprias
mulheres em movimentos estão o tempo inteiro a nos lembrar, de forma plena
e pedagógica, que os seus úteros7 foram desde sempre sequestrados para a
produção de mãos negras para o trabalho escravizado, seja ele organizado em
tempo histórico colonial, imperial ou republicano. Seja qual for o modelo de
produção – colonial, feudal, capitalista, neoliberal –, os corpos negros sempre
estiveram na condição de sub-humanos.
Conforme amplamente notificado na literatura especializada, as pes-
soas negras estão preferencialmente sujeitas aos surtos e às consequências de
covid-19 e, muitas de suas crianças e adolescentes menores de 15 anos, como

6 Conceitos dinâmicos no tempo e no espaço. Classe capitalista (marxista: materialismo histórico) e classe de
mercado (weberiana: pessoas livres que atuam em mercados) são articuladas de formas diferentes no Brasil.
Mas, independente da forma, a discussão da raça antecede às questões de classe no nosso entendimento.
7 Útero aqui pensado não apenas no âmbito das bio-lógicas, mas da potência de gestação de um outro mundo,
mais incluso e cheio de possibilidades para jovens negros e negras.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 275

parte da distorção sistêmica de série-idade acentuada, são incapazes de juntar


vogais e consoantes para soletrar e ler o mundo ou para ressignificar palavras
como política, corpos-territórios e direito, cruciais para a construção de sua
própria identidade e autoestima quilombola. Ainda que esses letramentos de
mundo não precisem/aconteçam somente na escola (não passam somente
pela via da alfabetização institucionalizada nas esferas de poder), entendemos
aqui que é dever principal da EEQ diferenciada permitir que esses processos
alcem os corpos negros às interpretações críticas do mundo, fazendo parte da
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

constituição bem alicerçada de sua célula sociocultural e de seu chamamento


ao cumprimento do dever ético enquanto política antirracista.
Por fim, uma terceira via de humanização que se apresenta em nos-
sas incursões via projeto ZDP, dar-se por meio do entendimento visceral da
r(existência) como ferramenta de luta do movimento negro quilombola que,
por meio das mulheres, vive uma dinâmica desestabilizadora para o sistema
excludente. Mulheres quilombolas e professoras (brancas e negras, quilom-
bolas ou não) conscientes do seu papel antirracista, não têm tido medo de
promover o enfrentamento e buscar novos caminhos. Ainda que a luta seja
desigual, a dinâmica e o senso de resistência coletiva é, certamente, uma
das vertentes mais poderosas que deve ser estimulada no chão das escolas
quilombolas rumo ao fortalecimento de suas próprias identidades como pro-
motoras e executoras de uma educação que precisa ser diferenciada. Não
se trata aqui de essencializar ou bio-logizar os movimentos das mulheres,
mas também compreender, conforme nos aponta Sueli Carneiro e Cristiane
Cury, em 2008, que o estado de letargia em que homens negros (incluindo os
homens quilombolas) por vezes se encontram, tampouco é natural, mas parte
de processos políticos, econômicos, sociais e culturais. Os corpos dos homens
negros são/estão atravessados também por diferentes marcadores sociais nas
encruzilhadas das múltiplas opressões:

A libertação dos escravos trouxe para o negro, especialmente para o


homem, uma nova forma de constrangimento social. Libertos, eles se
viram completamente alijados da nova ordem econômica que emergiu
com a decadência do ciclo de açúcar, da extração de ouro, do café e assim
por diante. O processo de industrialização que se iniciava estava baseado
fundamentalmente na mão de obra imigrante, seja por sua especialização,
seja pela ideologia de branqueamento da sociedade brasileira que tomava
grande fôlego nessa época em função do grande contingente de popula-
ção negra no país. Ao homem negro, despreparado e marginalizado do
processo de industrialização nascente, restaram as tarefas sociais mais
humilhantes e a marginalidade. Nesse contexto, a mulher negra toma
para si a responsabilidade de manter a unidade familiar e a coesão grupal,
preservando as tradições culturais particularmente religiosas. Apesar das
276

condições subumanas em que a escravidão/liberdade deixou a população


negra, as mulheres negras encontraram maiores opções de sobrevivência
que os homens negros. Elas foram para a cozinha das patroas brancas,
criaram e amamentaram os filhos delas destas, lavaram e passaram suas
roupas, foram para os mercados vender quitutes e desenvolveram inúme-
ras estratégias de sobrevivência. Assim criaram seus filhos carnais, seus
filhos-de-santo, abriram seus candomblés, adoraram seus deuses, cantaram,
dançaram e cozinharam para eles (CARNEIRO; CURY, 2008, p. 121).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Os homens negros, mortos majoritariamente no país e subrepresenta-
dos em muitas esferas de poder, tendo escasso acesso aos bens materiais e
simbólicos que a educação e a cultura permitem alçar, têm ocupado lugares
(pontos) complexos no diagrama de intersecções em que questões étnico-ra-
ciais, de gênero, de classe, de geração e de origem geográfica se encontram de
forma avassaladora, excluindo cada vez mais os homens negros do projeto de
conscientização/alienação sobre o seu ser-estar no mundo. Falta aos homens
negros (e homens quilombolas em particular), alto grau de organização social,
política, cultural e ética que não os faça reproduzir as lógicas dos sistemas
globais que têm funcionado para excluir as suas próprias existências.
Por fim, como um ato de desobediência sistêmica, salientamos que as
DCNEEQ precisam ser lidas, discutidas, problematizadas, ampliadas e colo-
cadas em prática no chão das escolas, secretarias, universidades, órgãos ins-
titucionalizados de educação e comunidades quilombolas. As DCNEEQ são
compromissos éticos e ontoepistemológicos que devem nos guiar o tempo
inteiro rumo à construção de um projeto político pedagógico de fato antirra-
cista, que é, em essência, humanizador. São as DCNEEQ que trazem, a partir
de uma experiência coletiva, os delineamentos para nos ajudar a construir a
agenda da EEQ diferenciada como uma ferramenta importante para assegurar
políticas de direitos humanos que reconheçam

a história e a cultura afro-brasileira como elementos estruturantes do pro-


cesso civilizatório nacional, considerando as mudanças, as recriações e as
ressignificações históricas e socioculturais que estruturam as concepções
de vida dos afro-brasileiros na diáspora africana (BRASIL, 2012).

A identidade, a cultura e a linguagem, exploradas e aprofundadas em sala


de aula com afeto, são chaves tecnológicas sociais necessárias para fomentar
o ser-sendo-quilombola, humano e humanizado, que movimenta, que tem
dinâmica própria e, mais importante, que cria os meios de r(existência) às
políticas de morte que, por meio do racismo, destroem e corroem o tecido
social brasileiro. Não haverá transformação social no Brasil sem nos debru-
çarmos na questão do racismo e, particularmente, em uma de suas vertentes
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 277

mais perversas: a desapropriação do senso ético e humano das pessoas qui-


lombolas, vistas como remanescentes estáticos, o resto e as cinzas.
Para Frantz Fanon8 (1925-1961), não há como transformarmos os contex-
tos racializados sem a perspectiva antirracista e anticolonial do mundo. Neste
sentido, como bem nos aponta Beatriz Nascimento, “Quilombo é uma história.
É uma palavra que tem história”, e esta história no Brasil é perpassada por
um sopro vital (axé) que dialoga com o passado ancestral e que nos convida
à luta e à resistência no presente racista permeado de passado colonial.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

8 Um dos maiores pensadores negros do século XX, autor do clássico Peles Negras, Máscaras Brancas
(FANON, 2008).
278

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte (MG):
Letramento: 2018.

ALVES-BRITO, Alan. Educação escolar quilombola: desafios para o ensino de


Física e Astronomia. Plurais Revista Multidisciplinar, v. 6, n. 2, p. 60, 2021.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ALVES-BRITO, Alan. Os corpos negros: questões étnico-raciais, de gênero
e Suas intersecções na Física e na Astronomia Brasileira. Revista da Asso-
ciação Brasileira de Pesquisadores/as Negros/as (ABPN), [S. l.], v. 12,
n. 34, p. 816-840, out. 2020.

BENTO, Maria Aparecida da Silva. Pactos narcísicos no racismo: bran-


quitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. Tese
(Doutorado) – Instituto de Psicologia, Departamento de Psicologia da
Aprendizagem, do Desenvolvimento e da Personalidade, Universidade de
São Paulo, São Paulo, 2002. Disponível em: https://www.teses.usp.br/teses/
disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/publico/bento_do_2002.pdf.
Acesso em: 2 nov. 2021.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Reso-


lução nº 08, de 20 de novembro de 2012. Parecer CNE/CEB nº 16 de 2012.
Define diretrizes curriculares nacionais para educação escolar quilombola na
educação básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 20 nov. 2012.

BRASIL. Ministério da Educação. Lei nº 10.639/2003, de 9 de janeiro de


2003. Altera a Lei nº 9. 394, de 20 de dezembro de 1996. Diário Oficial da
União, Brasília, DF.

CARDOSO, Lourenço. O Branco-Objeto: o movimento negro situando a


branquitude. Instrumento: R. Est. Pesq. Educ., Juiz de Fora, v. 13, n. 1, jan./
jun. 2011.

CARNEIRO, Aparecida Sueli. A construção do outro como não-ser como


fundamento do ser. Tese (Doutorado) – Universidade de São Paulo, São
Paulo, 2005.

CARNEIRO, Aparecida Sueli; CURY, Cristiane. O Candomblé. In: NASCI-


MENTO, Elisa Larkin (org.). Sankofa: matrizes africanas da cultura brasileira.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 279

São Paulo: Selo Negro, 2008. v. 3: Guerreiras da Natureza: mulher negra,


religiosidade e ambiente.

FANON, Frantz. Pele negra, máscaras brancas. EDUFBA, 2008.

KILOMBA, Grada. Memórias da Plantação: episódios de racismo cotidiano.


Cobogó: Rio de Janeiro, 2019.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

MUNANGA, Kabengele. Origem e histórico do Quilombo na África. Revista


USP, São Paulo, n. 28, 1996.

NASCIMENTO, Beatriz. O conceito de quilombo e a resistência afro-brasi-


leira. In: NASCIMENTO, Elisa. L. (org.). Cultura em movimento: matrizes
africanas e ativismo negro no Brasil. São Paulo: Selo Negro, 2008.

PIMENTA, Selma Garrido. Pesquisa-ação crítico-colaborativa: construindo


seu significado a partir de experiências com a formação docente. Educação
e Pesquisa, São Paulo, v. 31, n. 3, p. 521-539, set./dez. 2005.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
DIAGNÓSTICO SOBRE A
IMPLEMENTAÇÃO DAS DIRETRIZES
CURRICULARES NACIONAIS
PARA A EDUCAÇÃO ESCOLAR
QUILOMBOLA NO TERRITÓRIO
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

QUILOMBOLA DE JAMBUAÇU/PA
Ana D’Arc Martins de Azevedo
Aymê Jilvana C. Fergueira
Eduardo Silva dos Santos
Elziene Souza N. Nascimento
Flora Cristine da C. Scantlebury
Gabriela da Conceição P. S. Ferreira
Josiane de Carvalho Souza
Laís Rodrigues Campos
Sandra Haydée Petit
Silvandra Cardoso Gonçalves
Thaila Cristina B. Damasceno
Waldirene dos Santos Castro

Introdução

Jambuaçu encontra-se distante do município do Moju, do qual faz parte,


por aproximadamente 15 km. Segundo Azevedo (2019, p. 28), “Este território
está localizado na Região Amazônica, ao Norte do Pará, cujo rio principal
é o Rio Jambuaçu, que, com seus afluentes, tornou-se o caminho de fuga de
escravos”. Essa informação é muito relevante já que grande parte dos nossos
territórios quilombolas contam com a presença das águas como riqueza natural
e, também, porque, neste caso, foi por meio delas que os povos que foram
escravizados fugiram e ocuparam esse espaço, transformando-o em resistência.
O estudioso Vicente Salles (1988) relata que foi nesse território que houve os
maiores engenhos e fazendas agrícolas e consequentemente também, o maior
contingente de escravizados e escravizadas. Existe uma narrativa fundadora
de que três escravizadas se instalaram nesse local, trazendo tralhas velhas e a
imagem de Nossa Senhora, e passaram a viver da cultura do arroz. A partir da
chegada dessas mulheres, inicia-se a trajetória que iria culminar na formação
do território quilombola de Jambuaçu.
282

O contingente populacional de Jambuaçu é de aproximadamente 850


famílias e residências, que ocupam uma área de cerca de 70 km em linha reta.
O território compõe várias comunidades, dentre as quais podemos destacar:
São Bernardino, Poacê, e Juqueri, as quais sobrevivem principalmente da
agricultura de subsistência.
Este artigo é resultado de uma pesquisa intervenção em andamento,
realizada no Jambuaçu, no âmbito do projeto “Poronga da Equidade: Sabe-
res tradicionais e Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Quilombola, em práticas escolares de Jambuaçu/Pará”. É mister assinalar
que esse projeto foi um dos selecionados via edital do Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades (CEERT), na categoria pesquisa apli-
cada, o que favorece um apoio importante em termos de recursos materiais
que se revertem para as comunidades pesquisadas.
A nossa investigação está vinculada ao Grupo de Pesquisa Saberes e
Práticas Educativas de Populações Quilombolas – EDUQ –, da Universi-
dade do Estado do Pará, que, desde sua criação, em 2012, fomenta estudos e
debates sobre a aplicabilidade das Leis nº 10.639/2003, nº 11.645/2008 e as
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola, que
constam da Resolução nº 8 de 2012. Investiga também como as políticas e
estratégias pedagógicas de Educação para as Relações Étnico-racias (ERER)
são implementadas nas escolas do estado e dos municípios do Pará. O qui-
lombo estudado está situado entre os municípios de Moju e Acará, os quais
têm sua política educacional regida pela Secretaria Municipal de Educação
(SEMED), responsável pela educação escolar de crianças, adolescentes e
jovens. Tanto a SEMED como o movimento social quilombola, representado
pela MALUNGU – Coordenação das Associações das Comunidades rema-
nescentes de quilombo do Pará–, são parceiros desta investigação.
O termo “poronga”, constante no título do projeto, nos remete à luz de
lamparina que os seringueiros utilizavam para clarear os caminhos da seringa
na floresta amazônica. Aqui, em junção com o termo equidade, o usamos como
metáfora para a necessidade que temos de ganhar compreensão da realidade
daquele lugar, tornando visíveis os obstáculos, mas também abrindo caminhos
de acesso, inclusive, encurtando o distanciamento concreto das escolas de
Jambuaçu. Essa distância se constitui em dificuldade para nossas comunidades,
pois, na maioria das vezes, as/os estudantes frequentam escolas localizadas a
quilômetros de suas casas.
Já o termo “equidade” nos remete à busca de superação das desigualdades
raciais e sociais e limitações que perpassam a educação escolar quilombola,
considerando que muitas decisões, tomadas de cima para baixo, não con-
templam as comunidades escolares do Território Quilombola de Jambuaçu.
A equidade refere-se ao desenvolvimento de políticas públicas capazes de
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 283

minimizar os atuais obstáculos, garantindo acesso efetivo a direitos sociais e


materiais, justiça democrática, respeito às trajetórias comunitárias, ancestrali-
dades, diversidade e culturas locais, promoção da solidariedade e consideração
aos coletivos quilombolas.
Na fase de diagnóstico da pesquisa, o que nos interessava, particular-
mente, era saber até que ponto estavam efetivadas as Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola (DCNEEQ) no referido ter-
ritório, já que elas são responsáveis por orientar as práticas pedagógicas e a
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

gestão das escolas situadas em comunidades quilombolas. Para o diagnóstico,


conseguimos depoimentos de seis pessoas entre professoras e professores e das
cinco respectivas coordenações/direções das escolas e foram aplicados ques-
tionários com moradoras/es das cinco comunidades estudadas. Visamos, assim,
colher dados que nos fornecessem informações sobre as necessidades formati-
vas das escolas pesquisadas. Esses dados deverão subsidiar a segunda fase da
investigação, que será a realização de intervenções pedagógicas formativas.
A pesquisa de campo para realização do diagnóstico obedeceu aos seguin-
tes eixos temáticos: equidade, currículo escolar, educação escolar quilombola,
diretrizes curriculares nacionais para a educação escolar quilombola, saberes
tradicionais no território e saberes tradicionais trabalhados nas escolas. Apre-
sentaremos aqui um recorte dos resultados obtidos com a categoria docente.
Para tanto, a seguir, faremos a apresentação da legislação conquistada desde
a Constituição de 1988 (Leis nº 10.639/2003 e nº 11.645/2008 e alguns de
seus antecedentes importantes para o movimento quilombola), com foco nas
Diretrizes Curriculares Nacionais da Educação Escolar Quilombola, contidas
na Resolução nº 8 de 2012. Depois, trataremos do recorte da nossa pesquisa
de campo realizada com seis docentes das escolas quilombolas estudadas.
Por fim, concluíremos este texto com reflexões e pistas para as subsequentes
ações de formação.

O cenário que fundamenta a educação escolar quilombola

O histórico de institucionalização da educação escolar quilombola é


uma conquista dos movimentos negro e quilombola para que o acesso ao
ensino chegasse de forma satisfatória às populações quilombolas, como reco-
nhecimento do direito à educação. Esse processo foi sendo impulsionado
por diferentes marcos históricos no seio da sociedade brasileira. Segundo
Medeiros (2015), no período de 1950 a 1980, duas mudanças foram centrais
nas discussões raciais e na legislação brasileira: o deslocamento do termo
“preconceito racial” ou “preconceito de cor” para “discriminação racial” e
da noção de “homens de cor” para negros ou afro-brasileiros.
284

Ao longo desse percurso, é importante ressaltar que a Constituição Fede-


ral de 1988 foi um marco legal significativo em relação ao combate da prática
de racismo no Brasil. No entanto, o mesmo autor (MEDEIROS, 2015) pontua
que, apesar da questão quilombola no texto constitucional ter sido um ganho
significativo da luta do movimento negro, a tecnicidade e a cultura do povo
quilombola não foram apresentadas no texto, sendo colocado apenas o reco-
nhecimento da legalização das terras.
Na década de 1990, não houve medidas do governo no âmbito de polí-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ticas de combate ao racismo. Em contraposição, a mobilização intensa do
movimento negro gerou um marco significativo e de extrema importância: a
Marcha Zumbi dos Palmares, realizada em 20 de novembro de 1995 (exatos
300 anos depois da morte de Zumbi), com 50.000 pessoas do movimento
negro e simpatizantes, reunidas no Planalto de Brasília, apresentando suas
reivindicações relativas à questão do racismo e das desigualdades raciais.
No prolongamento desse ato de força política, o Movimento Negro con-
seguiu estabelecer um diálogo mais incisivo com o governo, o que serviu de
preparação para a III Conferência Mundial de Combate ao Racismo, Discri-
minação Racial, Xenofobia e Intolerância Correlata, realizada em Durban
(África do Sul) 2001, que discutiu questões como raça e políticas de ações
afirmativas, estabelecendo propostas concretas de combate ao racismo e seus
correlatos. Essa Conferência gerou um ato inédito muito importante para a
Nação Brasileira, pois foi a primeira vez que um presidente, no caso, Fernando
Henrique Cardoso, reconheceu que o Brasil é um país racista e necessita
de políticas públicas para combater a herança escravagista. O Movimento
percebeu aqui o resultado de sua força de pressão pela mobilização, pois tal
reconhecimento ia de encontro à propalada falácia da democracia racial e abria
caminho para que se obtivesse, enfim, políticas públicas visando confrontar
a mazela secular do racismo.
Fruto dessa pressão do movimento negro por políticas públicas, em 2003,
sob a presidência de Luís Inácio Lula da Silva, aconteceu a aprovação da
Lei 10.639 ,que alterou a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Brasileira
de 1996, tornando obrigatório o ensino da História e Cultura Afro-brasileira e
Africana na Educação Básica. Neste mesmo ano, ocorreu a criação da Secre-
taria Especial de Políticas de Promoção da Igualdade Racial (SEPPIR) no
âmbito do Governo Federal.
Em 2004, foram aprovadas as Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-brasileira e Africana. Anos depois, houve a aprovação do Estatuto da
Igualdade Racial, em julho de 2010.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 285

Merece nossa atenção as Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação


da Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Bra-
sileira, de 2004, pois foram um marco extraordinário, pois constituíram a
primeira política pública curricular voltada para a equidade racial na edu-
cação. Essas diretrizes argumentam e apresentam quais são os conteúdos e
como devem ser implementados no sistema de educação. Pela sua importância
para as subsequentes Diretrizes quilombolas, é mister enfatizar aqui alguns
de seus elementos fundantes. Vejamos agora alguns pontos de destaque (os
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

grifos são nossos):

– “valorização da oralidade, da corporeidade e da arte, por exemplo,


como a dança, marcas da cultura de raiz africana, ao lado da escrita e da
leitura (2004, p. 20); [...]
– educação patrimonial, aprendizado a partir do patrimônio cultu-
ral afro-brasileiro;
– participação de grupos do Movimento Negro, e de grupos culturais
negros, bem como da comunidade em que se insere a escola, sob a
coordenação dos professores, na elaboração de projetos político-peda-
gógicos que contemplem a diversidade étnico-racial [...];
– articulação entre passado, presente e futuro no âmbito de experiências,
construções e pensamentos produzidos em diferentes circunstâncias e
realidades do povo negro [...] (2004, p.20);
– “diferentes formas de expressão e de organização de raciocínios e
pensamentos de raiz da cultura africana;,como conteúdo de disciplinas
(particularmente, Educação Artística, Literatura e História do Brasil, sem
prejuízo das demais), em atividades curriculares ou não, trabalhos em
salas de aula, nos laboratórios de ciências e de informática, na utilização
de sala de leitura, biblioteca, brinquedoteca, áreas de recreação, quadra
de esportes e outros ambientes escolares;
– O ensino de História Afro-brasileira abrangerá, entre outros conteúdos,
iniciativas e organizações negras, incluindo a história dos quilombos, a
começar pelo de Palmares, e de remanescentes de quilombos, que têm
contribuído para o desenvolvimento de comunidades, bairros, locali-
dades, municípios, regiões (exemplos: associações negras recreativas,
culturais, educativas, artísticas, de assistência, de pesquisa, irman-
dades religiosas, grupos do Movimento Negro). Será dado destaque
a acontecimentos e realizações próprios de cada região e localidade;
– Datas significativas para cada região e localidade serão devidamente assi-
naladas”. Nesse ponto são citadas as datas de 13 de maio, 20 de novembro e
21 de março, como destaques do calendário nacional (BRASIL, 2004, p. 21).

Já com relação à história do continente africano, elas afirmam que seja


tratada em perspectiva positivada e:
286

– “abordados temas relativos ao papel dos anciãos e dos griots como


guardiões da memória histórica – à história da ancestralidade e reli-
giosidade africana;– aos núbios e aos egípcios, como civilizações que
contribuíram decisivamente para o desenvolvimento da humanidade; – às
civilizações e organizações políticas pré-coloniais, como os reinos do
Mali, do Congo e do Zimbabwe; – ao tráfico e à escravidão do ponto
de vista dos escravizados; [...] – às lutas pela independência política dos
países africanos; – [...] às relações entre as culturas e as histórias dos
povos do continente africano e os da diáspora; [...]” – “à diversidade

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


da diáspora, hoje, nas Américas, Caribe, Europa, Ásia; [...]
– O ensino de Cultura Afro-Brasileira destacará o jeito próprio de ser,
viver e pensar manifestado tanto no dia-a-dia, quanto em celebra-
ções como congadas, moçambiques, ensaios, maracatus, rodas de samba,
entre outras;
– O ensino de Cultura Africana abrangerá: – as contribuições do
Egito para a ciência e filosofia ocidentais; – as universidades africanas
Timbuktu, Gao, Djene que floresciam no século XVI; – as tecnologias
de agricultura, de beneficiamento de cultivos, de mineração e de edifi-
cações trazidas pelos escravizados, bem como a produção científica,
artística (artes plásticas, literatura, música, dança, teatro), política, na
atualidade [...];
– destacando-se a atuação de negros em diferentes áreas do conheci-
mento, de atuação profissional, de criação tecnológica e artística, de
luta social (tais como: Zumbi, Luiza Nahim, Aleijadinho, Padre Maurício,
Luiz Gama, Cruz e Souza, João Cândido, André Rebouças, Teodoro Sam-
paio, José Correia Leite, Solano Trindade, Antonieta de Barros, Edison
Carneiro, Lélia Gonzáles, Beatriz Nascimento, Milton Santos, Guerreiro
Ramos, Clóvis Moura, Abdias do Nascimento, Henrique Antunes Cunha,
Tereza Santos, Emmanuel Araújo, Cuti, Alzira Rufino, Inaicyra Falcão
dos Santos, entre outros).[...]” (2004, p. 21-22) A atuação de negros em
diferentes áreas do conhecimento, também em África e na diáspora, com
as seguintes personalidades em destaque: “rainha Nzinga, Toussaint-L’Ou-
verture, Martin Luther King, Malcom X, Marcus Garvey, Aimé Cesaire,
Léopold Senghor, Mariama Bâ, Amílcar Cabral, Cheik Anta Diop, Steve
Biko, Nelson Mandela, Aminata Traoré, Christiane Taubira” (BRASIL,
2004, p. 23).

As Diretrizes de 2004 estipulam que, para tanto,

os sistemas de ensino e os estabelecimentos de Educação Básica, nos níveis


de Educação Infantil, Educação Fundamental, Educação Média, Educa-
ção de Jovens e Adultos, Educação Superior, precisarão providenciar:
– Registro da história não contada dos negros brasileiros, tais como
em remanescentes de quilombos, comunidades e territórios negros
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 287

urbanos e rurais. – Apoio sistemático aos professores para elaboração de


planos, projetos, seleção de conteúdos e métodos de ensino, cujo foco seja
a História e Cultura Afro-Brasileira e Africana e a Educação das Relações
Étnico-Raciais (BRASIL, 2004, p. 23).

Percebemos, com esse breve resumo, a preocupação com a mudança de


mentalidade e suas estratégias antirracistas: princípios gerais de conscientiza-
ção; contraposição à desqualificação de negros e negras resultante do racismo
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

estrutural; os conhecimentos históricos que precisam ser enfatizados a partir


de uma perspectiva afrodescendente positivada; a valorização das construções
negras em todas as áreas do conhecimento, considerando a importância de
negros e negras para o desenvolvimento da sociedade brasileira, com ênfase
nos aportes culturais e civilizatórios africanos, afro-brasileiros e afrodiaspóri-
cos em geral, envolvendo datas de fatos e eventos e nomes de personalidades
negras do Brasil, do continente africano e das Américas e diáspora negra em
geral. Para tanto, sugere pedagogias que valorizem a oralidade africana, a cor-
poreidade e a arte e suas diversas formas de expressão, entendendo que existe
a necessidade de uma educação patrimonial afro-brasileira. Insiste também
nas relações democratizadas focando a participação da comunidade escolar
no currículo, não somente como receptora, mas também como colaboradora,
fortalecendo os protagonismos negros dentro e fora da escola, inclusive dos
grupos negros de resistência, como os movimentos sociais negros. Nesse
documento, chama a atenção, ainda, a importância dada à história dos qui-
lombos, citada expressamente, e a necessidade dos registros dos quilombos
entre os territórios negros de resistência.
Ainda em 2004, ocorreram a Conferência Nacional de Educação
(CONAE) e o 1º Seminário Nacional de Educação Quilombola, organizado
pelo Ministério da Educação (MEC) em parceria com a Confederação Nacio-
nal de Articulação das Comunidades Quilombolas (CONAQ).
Assim, criou-se um Grupo de Trabalho (GT) com participação de lideran-
ças quilombolas de vários estados brasileiros, professoras quilombolas, pesqui-
sadores universitários da temática, representantes do MEC, da antiga Secretaria
de Políticas de Promoção para a Igualdade Racial (SEPPIR), da Fundação
Palmares e de outras entidades da luta quilombola. Desse modo, “a modalidade
de Educação Escolar Quilombola foi estabelecida no âmbito da educação básica
por meio da Resolução CNE nº 4/ 2010, que instituiu as Diretrizes Curriculares
Nacionais Gerais para Educação Básica” (MIRANDA, 2015, p. 75).
Após vários debates e estudos sobre essa modalidade de ensino, no ano
de 2012, conforme aponta o parecer CNE/CEB nº 16/2012, cuja relatora foi
a professora Doutora Nilma Nilo Gomes, da Universidade Federal de Minas
Gerais, aprovaram-se as Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação
288

Escolar Quilombola (Resolução nº 08/2012) pela Câmara de Educação Básica


do Conselho Nacional de Educação. Desse modo, o ensino destinado às popu-
lações quilombolas como política pública educacional abrange a seguinte
definição central (grifos nossos):

Art. 1º Ficam estabelecidas Diretrizes Curriculares Nacionais para a Edu-


cação Escolar Quilombola na Educação Básica, na forma desta Resolução.
§ 1º A Educação Escolar Quilombola na Educação Básica:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


I – organiza precipuamente o ensino ministrado nas instituições educacio-
nais fundamentando-se, informando-se e alimentando-se:
a) da memória coletiva;
b) das línguas reminiscentes;
c) dos marcos civilizatórios;
d) das práticas culturais;
e) das tecnologias e formas de produção do trabalho;
f) dos acervos e repertórios orais;
g) dos festejos, usos, tradições e demais elementos que conformam
o patrimônio cultural das comunidades quilombolas de todo o país;
h) da territorialidade.
II – compreende a Educação Básica em suas etapas e modalidades, a
saber: Educação Infantil, Ensino Fundamental, Ensino Médio, Educação
do Campo, Educação Especial, Educação Profissional Técnica de Nível
Médio, Educação de Jovens e Adultos, inclusive na Educação a Distância;
III – destina-se ao atendimento das populações quilombolas rurais e
urbanas em suas mais variadas formas de produção cultural, social, polí-
tica e econômica;
IV – deve ser ofertada por estabelecimentos de ensino localizados em
comunidades reconhecidas pelos órgãos públicos responsáveis como qui-
lombolas, rurais e urbanas, bem como por estabelecimentos de ensino
próximos a essas comunidades e que recebem parte significativa dos
estudantes oriundos dos territórios quilombolas;
V – deve garantir aos estudantes o direito de se apropriar dos conheci-
mentos tradicionais e das suas formas de produção de modo a contribuir
para o seu reconhecimento, valorização e continuidade;
VI – deve ser implementada como política pública educacional e estabelecer
interface com a política já existente para os povos do campo e indígenas,
reconhecidos os seus pontos de intersecção política, histórica, social, edu-
cacional e econômica, sem perder a especificidade. (BRASIL, 2021, p. 3).

Ao contextualizar a educação escolar quilombola, destacamos como


pontos centrais da Resolução nº 08/2012, a partir da pesquisa que está sendo
realizada no território quilombola de Jambuaçu, os seguintes eixos: respon-
sabilidade político estrutural, conteúdos e cotidiano escolar e projeto políti-
co-pedagógico. Para tanto, destacamos como artigos principais (grifo nosso):
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 289

Art. 2º Cabe à União, aos Estados, aos Municípios e aos sistemas de


ensino garantir:
I) apoio técnico-pedagógico aos estudantes, professores e gestores em
atuação nas escolas quilombolas;
II) recursos didáticos, pedagógicos, tecnológicos, culturais e literários que
atendam às especificidades das comunidades quilombolas;
III) a construção de propostas de Educação Escolar Quilom-
bola contextualizadas.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Art. 7º A Educação Escolar Quilombola rege-se nas suas práticas e ações


político pedagógicas pelos seguintes princípios:
I – direito à igualdade, liberdade, diversidade e pluralidade;
II – direito à educação pública, gratuita e de qualidade;
III – respeito e reconhecimento da história e da cultura afro-brasileira
como elementos estruturantes do processo civilizatório nacional;
IV – proteção das manifestações da cultura afro-brasileira;
V – valorização da diversidade étnico-racial;
VI – promoção do bem de todos, sem preconceitos de origem, raça, sexo,
cor, credo, idade e quaisquer outras formas de discriminação;
VII – garantia dos direitos humanos, econômicos, sociais, culturais,
ambientais e do controle social das comunidades quilombolas;
VIII – reconhecimento dos quilombolas como povos ou comunida-
des tradicionais;
XIX – conhecimento dos processos históricos de luta pela regulariza-
ção dos territórios tradicionais dos povos quilombolas;
X – direito ao etnodesenvolvimento entendido como modelo de desen-
volvimento alternativo que considera a participação das comunidades
quilombolas, as suas tradições locais, o seu ponto de vista ecológico, a
sustentabilidade e as suas formas de produção do trabalho e de vida;
XI – superação do racismo – institucional, ambiental, alimentar, entre
outros – e a eliminação de toda e qualquer forma de preconceito e discri-
minação racial;
XII – respeito à diversidade religiosa, ambiental e sexual;
XV – superação de toda e qualquer prática de sexismo, machismo,
homofobia, lesbofobia e transfobia;
XVI – reconhecimento e respeito da história dos quilombos, dos espaços
e dos tempos nos quais as crianças, adolescentes, jovens, adultos e idosos
quilombolas aprendem e se educam;
XVII – direito dos estudantes, dos profissionais da educação e da comu-
nidade de se apropriarem dos conhecimentos tradicionais e das formas
de produção das comunidades quilombolas de modo a contribuir para o
seu reconhecimento, valorização e continuidade;
XVIII – trabalho como princípio educativo das ações didático-pedagógicas
da escola;
290

XIX – valorização das ações de cooperação e de solidariedade presen-


tes na história das comunidades quilombolas, a fim de contribuir para
o fortalecimento das redes de colaboração solidária por elas construídas;
XX – reconhecimento do lugar social, cultural, político, econômico,
educativo e ecológico ocupado pelas mulheres no processo histórico
de organização das comunidades quilombolas e construção de práticas
educativas que visem à superação de todas as formas de violência racial
e de gênero. (BRASIL, 2021, p. 3-6).

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Diante desses princípios que definem a Educação Escolar Quilombola, é
necessário pensarmos na função da escola na comunidade escolar – professo-
res/as, alunos/as, mães, pais, lideranças, agentes governamentais, movimento
social, dentre outros – e nas ações a serem desenvolvidas. Entendemos que
o espaço escolar quilombola não se apresenta apenas como um palco de
reprodução social e cultural a partir do habitual modelo de instituição esco-
lar, mas como um local de saberes revelados nas diversas dimensões sociais
que simbolizam pluralidades de tempo, espaço e modo de vida de diferentes
grupos sociais. Assim, destacamos que (grifo nosso):

Para que a escola consiga avançar na relação entre saberes escolares/


realidade social/diversidade étnico-cultural é preciso que os educadores
(as) compreendam que o processo educacional também é formado por
dimensões como a ética, as diferentes identidades, a diversidade, a cultura,
as relações raciais, entre outras. E trabalhar com essas dimensões não sig-
nifica transformá-las em conteúdos escolares ou temas transversais, mas
ter a sensibilidade para perceber como esses processos constituintes
da nossa formação humana se manifestam na nossa vida no próprio
cotidiano escolar. Dessa maneira, poderemos construir coletivamente
novas formas de convivência e de respeito entre professores, alunos e
comunidade (GOMES, 2005, p. 147).

Tais questões estão diretamente interligadas à concepção de educação e


ao processo de efetivação dessa modalidade de ensino dos povos quilombolas.
Nesse quesito, é válido ressaltar que, para o reconhecimento das unidades
escolares que atuam com essa modalidade, um elemento principal é a elabora-
ção de um Projeto Político Pedagógico (PPP) pelos membros da comunidade
escolar articulados com a comunidade local. Nesse aspecto, vejamos o que
reza a Resolução nº 8 (grifo nosso):

Art. 31 O projeto político-pedagógico, entendido como expressão da auto-


nomia e da identidade escolar, é primordial para a garantia do direito
a uma Educação Escolar Quilombola com qualidade social e deve se
pautar nas seguintes orientações:
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 291

I – observância dos princípios da Educação Escolar Quilombola constantes


desta Resolução;
II – observância das Diretrizes Curriculares Nacionais e locais, estas últi-
mas definidas pelos sistemas de ensino e seus órgãos normativos;
III – atendimento às demandas políticas, socioculturais e educacionais das
comunidades quilombolas;
IV – ser construído de forma autônoma e coletiva mediante o envol-
vimento e participação de toda a comunidade escolar.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Art. 32 O projeto político-pedagógico da Educação Escolar Quilom-


bola deverá estar intrinsecamente relacionado com a realidade
histórica, regional, política, sociocultural e econômica das comuni-
dades quilombolas.
§ 1º A construção do projeto político-pedagógico deverá pautar-se na rea-
lização de diagnóstico da realidade da comunidade quilombola e seu
entorno, num processo dialógico que envolva as pessoas da comuni-
dade, as lideranças e as diversas organizações existentes no território.
§ 2º Na realização do diagnóstico e na análise dos dados colhidos sobre
a realidade quilombola e seu entorno, o projeto político-pedagógico
deverá considerar: I – os conhecimentos tradicionais, a oralidade, a
ancestralidade, a estética, as formas de trabalho, as tecnologias e a
história de cada comunidade quilombola; II – as formas por meio das
quais as comunidades quilombolas vivenciam os seus processos educati-
vos cotidianos em articulação com os conhecimentos escolares e demais
conhecimentos produzidos pela sociedade mais ampla.
§ 3º A questão da territorialidade, associada ao etnodesenvolvi-
mento e à sustentabilidade socioambiental e cultural das comunidades
quilombolas deverá orientar todo o processo educativo definido no pro-
jeto político-pedagógico.

Art. 33 O projeto político-pedagógico da Educação Escolar Quilombola


deve incluir o conhecimento dos processos e hábitos alimentares das
comunidades quilombolas por meio de troca e aprendizagem com os
próprios moradores e lideranças locais (BRASIL, 2021, p. 12-13).

Por isso, a construção de um PPP fundamentado nas DCNs para Educação


Escolar Quilombola é tão necessária. Entendemos que a escola quilombola é
mais do que um espaço institucionalizado. É necessário focar no reconheci-
mento do território quilombola, das identidades historicamente construídas e
mobilizadas pelo saber local. Nessa relação, é preciso articular as temáticas
curriculares com a identidade quilombola para a efetivação desse processo.
As discussões teóricas apresentadas até aqui sobre essa modalidade de
ensino da Educação Básica nos possibilitam analisar com maior profundidade,
292

na seção seguinte, os dados empíricos coletados no território quilom-


bola Jambuaçu a respeito da efetivação da Educação Escolar Quilombola
nessa localidade.

Análise dos depoimentos de professoras e professores das escolas


estudadas

No quilombo de Jambuaçu, o ensino básico, série fundamental I e II,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


é de reponsabilidade dos/as professores/as e moradores/as do território. São
turmas multisseriadas1, que desafiam os/as professores/as do quilombo. São
docentes do quilombo, os principais fomentadores da identidade quilombola,
da conscientização dos/as alunos/as com sua história, seus saberes e realidade
atual. O compromisso social e cultural quilombola é fator determinante para
que a educação quilombola se faça presente na rotina da comunidade. Dessa
forma, o currículo pensado e materializado em Jambuaçu na perspectiva da
educação quilombola “é o currículo escolar exercendo função social entre a
escola e o contexto sociocultural” (AZEVEDO, 2011, p. 130).
Para dialogar com as seis pessoas docentes do grupo que estudamos,
selecionamos as seguintes categorias analíticas: formação docente, questões
curriculares, práticas pedagógicas culturais, saberes tradicionais e Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Para garantir
o anonimato, a cada docente foi atribuído um dígito (P1); (P2); (P3), (P4);
(P5); (P6) – a letra “P” significa “Professor/a”. Para facilitar a compreensão
desses dados, grifamos os termos que consideramos de destaque.
No primeiro quesito, que foi formação geral, todos/as os/ responderam
que possuem formação em Pedagogia, sendo que, dos seis entrevistados,
quatro possuem pós-graduação. Professoras/es têm, em suas experiências
pedagógicas, que ministrar suas aulas para turmas multisseriadas. O tempo
de atuação dos mesmos varia de dois a vinte anos em sala de aula. São
nascidos no território de Jambuaçu e se identificam como quilombolas
e ribeirinhos.
No segundo quesito, foi indagada a formação específica relativa à his-
tória e cultura da população negra no Brasil e, principalmente, sobre povos
tradicionais. Nesse ponto, notamos que as/os professoras/es tiveram, em
sua maioria, acesso a alguma formação sobre história e cultura africana
e afro-brasileira no sentido da aplicação da Lei 10.639/2003. A aplicabi-
lidade da Lei 10.639/2003 e alguns aspectos da vida dos povos tradicionais

1 “As escolas/classes multisseriadas são uma forma de organização escolar em que alunos de diferentes
idades e tempo ou níveis de escolarização (o que conhecemos por série) ocupam uma mesma sala de aula,
sob a responsabilidade de um mesmo professor” (JANATA; ANHAIA, 2015, p. 686).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 293

foram destacados por P3: “Povos das águas, quilombolas, etc”. O fomento
de “debates” sobre as identidades étnicas está presente na fala de P6, que
diz: “Muitos, porque tinham vários debates sobre esse assunto. E devido a
essa formação, ainda podemos que nos identificar enquanto quilombolas”. A
respeito do tema “História da África e afro-brasileira”, ainda é um incomodo
social nos espaços educacionais de formações. A professora P4 diz: “Teve.
Mas dá pra perceber uma certa rejeição ao tema na formação de professores,
não é muito valorizado”. Entendemos, nessa resposta, que há conhecimento
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

e compreensão da lei 10.639/2003, atinente à população negra em geral e


sua incidência no currículo embora com alguns limites de valorização. No
entanto, não fica evidente que tenha havido destaque ou aprofundamento
quanto às culturas e especificidades quilombolas e a temática geral ainda
encontra resistências.
No terceiro quesito, pedimos para fornecerem informações a respeito
do seu conhecimento sobre as Diretrizes Curriculares Quilombolas e até que
ponto se referenciavam nelas. Algumas respostas demonstram dificuldades
de efetivação das Diretrizes para além de momentos pontuais. Para P1, o
conteúdo se restringe ao material de comemoração do 20 de novembro. Já
P2 considera como foco de sua intervenção evitar as manifestações pejorativas
relacionadas às características diacríticas negras e não menciona se trabalha
com conteúdos relativos às culturas e histórias negras e/ou povos tradicionais/
quilombolas. P3 enfatiza como foi formado o povo brasileiro. As respostas
ficam um tanto restritas em relação à amplitude que rege tanto as Diretri-
zes Curriculares, de 2004, como às Diretrizes Curriculares Quilombolas, de
2012, expressando mais situações desconfortáveis da rotina de sala de aula.
P6 trata dos conteúdos programáticos como separados da ERER e reconhece
não se aprofundar sobre esses assuntos; com três anos exercendo a docência
na escola, diz que “só ouve falar”. Existe uma contraposição favorável, pois
P5 afirma realizar a valorização e a preservação da cultura e identidade
quilombola”, dando a entender que está em consonância com a Resolução
nº 8 de 2012 neste ponto fundamental.
Entendemos que o corpo docente das escolas quilombolas de Jambuaçu
precisa de formações continuadas voltadas para as Diretrizes Curriculares da
Educação Quilombola e, desta forma, construir suas referências pautadas nas
culturas do território quilombola, conforme orientado abaixo:

Os processos de formação continuada poderão ser realizados por meio de


ofertas de oficinas, cursos de atualização, extensão, aperfeiçoamento e espe-
cialização, presenciais e a distância, que correspondam às principais deman-
das de formação dos professores. Tais cursos inserirão em seus currículos
294

os temas apontados nestas Diretrizes, bem como nas Diretrizes Curriculares


Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de
História e Cultura Afro-Brasileira e Africana (BRASIL, 2012, p. 4).

O quarto item objetivou fornecer informações da prática pedagógica das


professoras e professores relacionada às Diretrizes Curriculares Quilombolas.
Foi perguntado: de que forma a compreensão sobre as Diretrizes Curriculares
Quilombolas se concretiza no seu fazer pedagógico? As professoras e os pro-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


fessores das escolas quilombolas de Jambuaçu demonstraram conhecer a
importância da aplicabilidade da política curricular quilombola, quando
destacam que a ausência de uma política curricular de ações afirmativas para
a EEQ é prejudicial às/aos estudantes. A grande ênfase das e dos docentes é a
busca da elevação da autoestima da turma (P5 e P4), eliminar o estigma do
negro reduzido à figura de escravo na história, usando a literatura infantil (P2),
trabalhar com afirmação étnica e quilombola (P1 e P3), para poderem “se inserir
como seres humanos” (P6). Tais destaques nos sugerem que o pertencimento
afroquilombola é um assunto de grande pertinência para professoras e pro-
fessores, que todas/os percebem como importante para o reconhecimento
do quilombo no presente e no futuro e para a afirmação do ser quilombola.
Sem dúvida, é necessário dar conta dessa demanda nas formações continuadas.
No quinto item, foi formulada a pergunta: “Qual o seu papel na constru-
ção do Projeto Político-Pedagógico da Escola?” Todas/os concordam que há
total ausência de um Projeto Político-Pedagógico nas escolas pesquisadas.
P1 responde enfaticamente que esse documento “não é aplicado”, afirma que
“sem PPP, só BNCC”, demonstrando que não há um direcionamento oficial
da escola, apenas seguem a BNCC, que não é uma matriz curricular vol-
tada para a educação escolar quilombola, e sim para o país como um todo.
Enquanto P2 afirma, de forma clara, que o mesmo tampouco é trabalhado
“[...] um bicho de sete cabeças [...] a gente nunca se atentou pra construir
o projeto, nunca se sentou com os coordenadores para tirar um momento,
infelizmente [...]”. P3 diz “ainda não”, e P4 revela uma situação beirando
o descaso pois não haveria PPP algum; segundo ela, o conselho escolar não
teve acesso e até estaria vencido:

participei da gestão, mas não consegui pegar dos antigos gestores esse
documento. Para que haja o conselho escolar, é preciso ter um Projeto
Político-Pedagógico. Fui por dois biênios presidente do conselho da escola,
fiz uma boa movimentação, mas eu nunca encontrei na escola um docu-
mento, e eu perguntei várias vezes na SEMED se tinha esse documento
em algum arquivo, mas o PPP tem que ficar na escola, porque é um docu-
mento em sequência que representa a escola e a comunidade e atualmente
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 295

o conselho escolar está vencido [...] Tem recursos, mas o conselho escolar
não está atuando.

O que demonstra prejuízos à organização pedagógica das escolas.


P5 concebe que o PPP deve “ajudar a construir um conteúdo voltado para
a realidade da escola quilombola”, mas não confirma sua existência. Já para P6,
a pandemia impediu a construção do documento: “PPP não tem. Tentei fazer,
mas, por conta da pandemia, isso ficou parado”. Todas as pessoas entrevistadas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

reconheceram o problema enfrentado pelas escolas referentes à construção


democrática do PPP e apontaram diversas causas para o problema como a falta
de articulação da escola com a comunidade, e, no contexto interno da escola,
do diálogo entre professores/as e a gestão escolar na organização desse valioso
documento que expressa os valores cultivados pelas instituições educacionais.
No sexto quesito, perguntamos a respeito das práticas pedagógicas dos/
as professores/as em sala de aula e se estavam articuladas com as Diretrizes
Curriculares Nacionais para Educação Quilombola e com os saberes tradi-
cionais da comunidade.
P2 relata que, “quando a gente estuda a história do Moju, a gente recai
nas culturas, mandioca, se pegar o documento, aí vem as panelas de barro que
parou. Se estudar geografia aí cai na questão cultural, é a identidade do povo
mojuense”. Assim, existe uma riqueza cultural do Território de Jambuaçu
envolvendo a cultura da mandioca e o artesanato de barro, a dúvida é
como é trabalhado enquanto currículo vivo e contínuo.
P3 aposta nas “danças, culinária e artesanato quilombola” enquanto saberes
tradicionais locais, mas não explicitou como aborda esses assuntos. P4 fala que
“Uma proposta importante é a BNCC, mas eu nunca vi no município. A gente
que vai tentando, daqui e dali, uma coisa voltada para o povo tradicional”. Assim,
mesmo que a BNCC tenha grande importância nas escolas do quilombo de Jam-
buaçu, ela não é bem aplicada e faltam diálogos profícuos com o planejamento
curricular das instituições de ensino do município, então fica a critério do edu-
cador ou da educadora buscar os saberes tradicionais e compor seu material.
P5 traz “os cadernos de saberes, contação de histórias, ou seja, uma
aprendizagem que garanta um ensino de qualidade”, evidenciando a impor-
tância da mediação pedagógica. P6 afirma que trabalha “mais com a vivência
deles mesmo. Principalmente quando vem material, porque eu sei que não
vai estar de acordo com a realidade deles, mas eu tento adaptar o máximo
possível, porque muitos já perguntaram para quê certos conteúdos, alegando
não os compreender.” Há uma adaptação curricular para atender à reali-
dade vivenciada pelos alunos, porque muitos dos materiais didáticos não
condizem com o mundo vivido no contexto educacional quilombola. P6
reconhece que não há aprofundamento, que fica a critério individual, inclusive
296

cita que materiais muito bons, produzidos por determinada professora, ficaram
trancados com medo de serem alvo de morcegos.

Quando eu posso, eu sempre insiro também algumas coisas, porque, como


eu já falei, a gente não se aprofundou [...] e eu não sei como é que tá, porque
um outro departamento dessa escola que tinha esses materiais foi trancado
por conta de foco de morcegos, e aí eu não tive acesso a esses materiais.

A impressão que passa é que não há uma política curricular que

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


garanta a continuidade das ações e que há uma dificuldade de dar destino
pedagógico ao material produzido.
No último item aqui apresentado, foi perguntado: “A presente escola pos-
sui projetos em construção, em andamento ou já executados que valorizem os
saberes tradicionais e estejam em consonância com a Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola?”
A professora P1 disse logo que: “não há projetos, pelo menos não há na
comunidade”. A fala da professora P1 foi crítica ao enfatizar a ausência de
projetos educacionais palpáveis para efetivação da Diretrizes Curriculares
Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. P2 nos diz que “na escola
a gente trabalha”, mas é uma reflexão que está muito aquém de responder à
questão levantada, pois não revela de que forma os projetos educacionais são
realizados, o que inviabiliza compreendermos o alcance. De forma semelhante,
P3 e P5 respondem somente que “sim”, sem mais detalhe.
P4 respondeu que sim, mas especificou

como eu havia dito, só temos atividades que enfoquem na temática étnico-


-racial em novembro, com o dia da Consciência Negra, que ocorre durante
uma semana ou dois dias, e é só isso. Se o professor não for da localidade
e não for discutir sobre esse assunto com as crianças e estar explicando,
vai ser só mesmo naquela data.

Dessa forma, revela uma falta de atenção às referidas Diretrizes uma


vez que só se realizam atividades comemorativas do dia 20 de novembro.
P4 atribui isso às atitudes de quem não mora no quilombo. P6 afirma que
“sim” e pontua que “com o diagnóstico que eu fiz ainda em 2019, descobri
que os alunos tinham uma necessidade de leitura ampla, porque a dificuldade
maior dos alunos é essa”, o que deixa algumas dúvidas, pois não sabemos
se a necessidade de projeto de leitura é atendida dentro do contexto cultural
afroquilombola. Sobre esse ponto, podemos deduzir que há uma dificuldade
em especificar melhor os projetos elaborados, talvez pela falta de um
direcionamento oficial através de PPP, favorecendo uma apropriação
muito individual de trabalho a ser feito.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 297

Conclusão

O recorte da pesquisa em andamento nas cinco escolas quilombolas de


Jambuaçu, que aqui apresentamos, revela que as professoras e os professo-
res indagados possuem uma consciência da pertinência e importância das
DCNEEQ no que tange à valorização da comunidade quilombola para exis-
tência e resistência. Percebem também a necessidade de superação dos efeitos
do racismo na subjetividade de seus estudantes, que, segundo as/os docentes,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

não se reconhecem nem se valorizam necessariamente como afroquilombo-


las, por sofrerem preconceitos, racismo, gerando uma baixa autoestima e um
déficit de afirmação quilombola.
Além de possuírem formação em pedagogia, a maioria das pessoas inda-
gadas tem pós-graduação; no entanto, a formação mais específica em ERER e
EEQ não parece ter se dado de forma consistente enquanto matriz curricular,
e, sim, mais na forma de “debates”. Pode ser resultado de uma falha comum
dos nossos cursos universitários que pouco espaço dedicam a temas como
raça, etnia e quilombo no currículo obrigatório, pois tais temas são relegados
a componentes optativos organizados por docentes de NEABs ou NEABIS
(Núcleos de Estudos Afro-brasileiros e Indígenas).
De modo geral, os cursos de formação inicial não têm se preocupado em
atender às Leis nº 10.639/2003, nº 11.645/2008 e Resolução nº 8 nos seus PPP,
programas e ementas curriculares nem mesmo nas licenciaturas de pedagogia
isto é garantido. Assim, ainda é ínfima a bibliografia sobre tais temáticas nos
currículos das nossas universidades. Apesar disso, nosso grupo diz estar a par
de vários assuntos, por participarem de debates (não foi especificado se foram
ações de secretarias de educação, movimentos sociais ou outras instituições).
Para se contraporem à desqualificação e baixa autoestima das e dos estudan-
tes, procuram realizar projetos, identificando saberes tradicionais relativos ao
cultivo da mandioca e das artesanias de barro. Alguns buscam produzir mate-
rial didático diante do que consideram uma inadequação do material didático
recebido pela Secretaria de Educação, mas nem sempre esse material é bem
guardado e reutilizado. Parece haver uma falta de continuidade das ações
pedagógicas que se concentram nas comemorações ao 20 de novembro. A
descontinuidade e a dificuldade de transformar essas atividades em matriz
curricular parecem justificar-se em parte na falta de um PPP, pois nenhuma
das escolas possui este direcionamento estrutural. Individualmente, alguns e
algumas docentes declaram que realizam sim trabalhos em consonância com
as DCNEEQ, mas não descrevem como o fazem. E, mesmo com a compreen-
são e vontade de realizar esses trabalhos, nem sempre conseguem envolver
a comunidade nesse empreendimento escolar, até o trabalho conjunto com a
gestão sobre essas temáticas pode não estar acontecendo. Tal situação ficou
298

agravada pela pandemia que dificultou ainda mais o trabalho docente. Encon-
tramos, assim, algumas problemáticas comuns a outros tantos quilombos do
país, que são resultantes, em grande parte, das lacunas das formações iniciais
e continuadas pouco consistentes e da descontinuação dos cursos fornecidos.
Seria importante indagar até que ponto as formações inicias universitárias e os
cursos eventuais dão conta de fomentar pedagogias afrorreferenciadas/afroqui-
lombolas. Não parece haver uma apropriação aprofundada das pistas fornecidas
pelos dois principais documentos oficiais conquistados pela população negra,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


que são respectivamente as Diretrizes de 2004 (ERER) e as de 2012 (EEQ).
Talvez se deva considerar mais o estudo e apropriação das referidas
Diretrizes, tão importantes para a valorização do povo negro do Brasil, des-
cendente do berço da humanidade, e não, como se insiste em tratar, resultante
apenas do escravismo criminoso que gerou narrativas extremamente nocivas
de desvalorização, apagamento e desumanização da negritude. Urge serem
realizadas formações continuadas que enfatizem particularmente: a memória
coletiva negra e quilombola no país e na região específica, as cosmopercepções
africanas e afroquilombolas, as tecnologias e formas de trabalho próprios,
os patrimônios culturais dessas localidades, particularmente seus saberes e
ciências ancestrais, a compreensão de sua história anterior ao escravismo, sua
ancestralidade biológica, mas também a simbólica, o estudo de suas trajetórias
de resistências enquanto quilombolas, envolvendo direitos humanos, sociais
e ambientais, combate ao racismo e sexismo, valorização das matriarcas e
patriarcas, ênfase no papel das mulheres na luta quilombola, participação
democrática nas elaborações político-pedagógicas da escola, colaboração das
anciãs e dos anciões no currículo.
Algumas necessidades já detectamos: A partir da identificação e valori-
zação dos saberes tradicionais estéticos, tecnológicos e históricos do território
estudado e do envolvimento de suas e seus protagonistas, convém buscar, em
conjunto com as comunidades das cinco escolas, a realização de um PPP que
venha a ser mais do que uma base teórica, mas um currículo vivo da realidade
local. Isso talvez não seja possível no âmbito do projeto CEERT, que tem sua
finalização para abril de 2022, pois, com os efeitos dramáticos da pandemia
de covid-19 e a baixa inserção digital, o tempo das intervenções pedagógi-
cas ficou encurtado; no entanto é certamente viável montar alguns alicerces
para que aconteça a identificação e valorização conjunta com a comunidade
escolar dos saberes tradicionais, numa amplitude maior do que a mencionada,
levantando a multiplicidades de marcadores das africanidades (PETIT, 2015)
das comunidades estudadas e fornecendo pistas para maior apropriação das
Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola. Temos
certeza que Esperançar coletivamente é o caminho!
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 299

REFERÊNCIAS
AZEVEDO, Ana D’Arc Martins de. Tensões na construção das identidades
quilombolas: a percepção de professores de escolas do quilombo de Jam-
buaçu Moju (PA). 2011. 163 f. Tese (Doutorado em Educação) – Programa
de Pós-Graduação em Educação da Pontifícia Universidade Católica de São
Paulo, São Paulo, 2011.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

BRASIL. Artigo 68 (do Ato das Disposições Constitucionais Transitórias).


Constituição Federal. 1988. Disponível em: http://bit.ly/2SzyP1V. Acesso
em: 5 ago. 2020.

BRASIL. Ministério da Educação. Conselho Nacional de Educação. Reso-


lução nº 1, de 17 de junho de 2004. Diretrizes Curriculares Nacionais para a
Educação das Relações Étnico-raciais e para o Ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira e Africana. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 22 jun.
2004. Seção 1, 36 p.

BRASIL. Resolução CNE/CEB nº 8, de 20 de novembro de 2012. Define as


Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação Escolar Quilombola na
Educação Básica. Diário Oficial da União, Brasília, DF: MEC/CNE/CEB,
21 nov. 2012. Seção 1, p. 26.

GOMES, Nilma Lino. Educação e Relações Raciais: Refletindo sobre Algu-


mas Estratégias de Atuação. In: MUNANGA, Kabengele (org.). Superando
o Racismo na Escola. 2. ed. rev. Brasília: SECADI, 2005. p. 143-154.

GOMES, Nilma Lino. Relações étnico-raciais: educação e descolonização


dos currículos. Revista Currículo sem fronteiras, Porto Alegre, v. 12, n. 1,
p. 98-109, 2012. Disponível em: http://www.curriculosemfronteiras.org/
vol12iss1articles/gomes.pdf. Acesso em: 12 dez. 2012.

JANATA, Natacha Eugênia, ANHAIA. Escolas/classes multisseriadas do


campo: reflexões para a formação docente. Universidade Federal de Santa
Catarina (UFSC), Florianópolis/SC – Brasil. Educação & Realidade, Porto
Alegre, v. 40. 2015.

MEDEIROS, Priscila Martins. O descentramento e a desracialização do


nacional: Estado, Relações Étnico-raciais e ações afirmativas no Brasil. (Tese
de Doutorado em Sociologia) – Universidade Federal de São Carlos, 2014.
300

MIRANDA, Shirley A. de. Dilemas do Reconhecimento: a escola quilombola


“que vi de perto”. Revista da ABPN, v. 8, n. 18, 2015.

MOORE, C. O racismo através da história: da antiguidade à modernidade.


Brasília: SECAD/MEC, 2007.

MOORE, Carlos. A África que incomoda: sobre a problematização do legado


africano no cotidiano brasileiro. Novas bases para o ensino da História da

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


África no Brasil. Belo Horizonte: Nandyala, 2008. Cap. 5.

NUNES, Georgina Helena Lima. Educação quilombola. In: BRASIL. Minis-


tério da Educação. Orientações e ações para a educação das relações étni-
co-raciais. Brasília: Secad/MEC, 2006. p. 139-161.

SALLES, Vicente. O Negro no Pará: sob o regime da escravidão. 2. ed. Bra-


sília: Ministério da Cultura; Belém: Secretaria de Estado da Cultura; Fundação
Cultural do Pará “Tancredo Neves”, 1988.

SEDUC (PA) – SECRETARIA EXECUTIVA DE ESTADO DE EDUCA-


ÇÃO. Lei nº 7.806, de 29 de abril de 2014. Dispõe sobre a regulamentação
e o funcionamento do Sistema de Organização Modular de Ensino – SOME.
Belém: SEDUC, 29 abr. 2014. Disponível em: http://www.pge.pa.gov.br/sites/
default/files/lo7806.pdf. Acesso em: 14 Nov. 2021.

SOUSA, Leliana Santos (org.). Saberes Práticas e Sustentabilidade: indí-


genas, afrobrasileiras e tecnologias sociais. Curitiba: CRV, 2014.
PROJETO DE PESQUISA APLICADA
LITERÊTURA: formação em literatura
infantil e juvenil com temática da
cultura africana e afro-brasileira
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Débora Cristina de Araujo


Ariane Celestino Meireles
Joelma dos Santos Rocha Trancoso
Lucilene Aparecida Soares

Contextualização

Em 2020, o LitERÊtura – Grupo de estudos e pesquisas em diversidade


étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para as infân-
cias1 vivenciou uma grande alegria ao ter um projeto de pesquisa aplicada
selecionado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualda-
des – Ceert. Trata-se do projeto LitERÊtura: formação em literatura infantil
e juvenil com temática da cultura africana e afro-brasileira, submetido e
aprovado pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica: pesquisa aplicada
e artigo científico (2020, p. 3) – uma “[...] iniciativa do Itaú Social e realiza-
ção do Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades, [que]
busca identificar e apoiar pesquisas que apontem soluções para os desafios da
equidade racial na educação básica”. O referido Edital foi constituído de três
linhas temáticas: 1 – Políticas Públicas Afirmativas e Processos de Gestão da
Equidade Racial nas secretarias e escolas; 2 – Perspectivas Epistemológicas
e Processos de Aprendizagem e Ensino; 3 – Processos Curriculares e Abor-
dagens Pedagógicas Inovadores. Durante a análise das características dessas
linhas, identificamos que a proposta que estávamos submetendo tinha maior
aproximação com a terceira.
Assim, propusemos o projeto LitERÊtura: formação em literatura infantil
e juvenil com temática da cultura africana e afro-brasileira, cujo objetivo
é realizar formações sobre práticas de mediação da leitura literária infantil
e juvenil, com foco na cultura africana e afro-brasileira, na EMEF Antonio
Vieira de Rezende – Serra-ES. Trata-se do município mais populoso do estado
do Espírito Santo, e a escola selecionada localiza-se em um bairro de periferia,
composto, em sua maioria, de população negra.

1 Para mais informações sobre o LitERÊtura, ver o blog e a página do Instagram: https://literetura.wordpress.
com/ e https://www.instagram.com/literetura/. Acesso em: 9 nov. 2021.
302

Ao articular, em seu título, os vocábulos “literatura” e “erê”, o Projeto


aciona a dimensão inovadora ao elencar a criança em um processo interseccio-
nal com a literatura a ela endereçada e a diversidade étnico-racial. E, por isso, é
válido recuperar brevemente o fato de que a produção literária infantil e juvenil
brasileira assumiu, desde seu surgimento, um viés didatizante e fundamen-
tado em valores morais e racistas (ROSEMBERG, 1985; GOUVEA, 2005).
Assim, esse Projeto se justifica, pois visa a promover ações de superação
desse modelo cristalizado de literatura, propondo o acesso e o conhecimento

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de outros referenciais de humanidade nos textos literários (ARAUJO; SILVA,
2011; DEBUS, 2017). Nesse mesmo sentido, ao vincularmos nossa proposta
à linha temática 3, reconhecemos relação com o subtema “3.3.4. Propostas
pedagógicas de mediação estética e lúdica”, devido ao fato de enforcarmos
formações de mediação da leitura literária (com ênfase na apropriação da sua
dimensão artística).
Por isso, as parcerias estabelecidas têm sido muito importantes. Além da
escola diretamente envolvida no Projeto, outra importante, e uma das princi-
pais parcerias, foi realizada com a Secretaria Municipal da Serra (Sedu-Serra),
em especial com a Coordenação de Estudos Étnico-Raciais, que vem contri-
buindo nas ações de difusão do projeto a toda a rede municipal de educação.
E assim vem se realizando o projeto...
Ainda que modificado em alguns aspectos devido à pandemia de
covid-19, neste texto apresentaremos as principais ações já realizadas e/ou
em andamento.

Principais ações

Na primeira etapa do projeto, correspondente aos seis primeiros meses,


produzimos um curso de formação, com 10 encontros síncronos e atividades
remotas, para docentes da escola parceira e outras convidadas. Paralelamente,
com vistas a expandir os conteúdos promovidos pelo curso, incluímos uma
importante ação ao projeto: o “Ciclo de debates sobre educação das relações
étnico-raciais e literatura infantil” – foram quatro lives realizadas com espe-
cialistas no tema das relações étnico-raciais e literatura infantil. As transmis-
sões foram realizadas pelo canal do YouTube Educa Serra (SEDU-SERRA2)
e seus links completos estão disponíveis nas referências deste texto. Outra
importante ação é a aquisição de livros de literatura infantil com temática da
cultura africana e afro-brasileira.

2 Disponível em: https://www.youtube.com/channel/UCL3c92T--cbRermt50s_BZQ. Acesso em 9 nov. 2021.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 303

Na segunda etapa, foram realizadas pesquisas de iniciação científica e


de mestrado. O quadro a seguir reúne tais estudos:

Quadro 1 – Pesquisas concluídas


NATUREZA AUTORA TÍTULO OBJETIVO RESULTADOS
No acervo adquirido pelo PNLD
Literário para a escola vinculada
ao Projeto, ficou evidente a sub-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

representação da população negra


nas obras. Outro elemento é que os
poucos livros identificados abordam
Investigar discursos
um contexto único sobre África: um
Análise Crítica em obras literárias
mundo rural e mítico, ignorando
do Discurso nos do PNLD Literário do
a pluralidade histórica e cultural
Iniciação Amanda materiais do ano de 2018, sobre
do continente e realçando, para o
Científica Ribeiro de PNLD Literário: o a temática étnico-
público que acessa tais obras no
PRPPG/UFES Almeida lugar das relações racial, e averiguar se
Brasil, a ideia de uma “história única”
étnico-raciais nos existem estratégias de
sobre África.
acervos escolares racialização operando
Em contrapartida, com a aquisição
nestes discursos.
de mais de 200 livros com
valorização da cultura africana e
afro-brasileira por meio do projeto
LitERÊtura, a escola passou a
ser uma referência nacional em
diversidade literária e étnico-racial.
Investigando obras do acervo
Analisar as adquirido pelo projeto LitERÊtura, foi
Literatura
organizações possível identificar que os enredos
negro-brasileira:
Iniciação Daniela familiares de pessoas evidenciam relações afetivas
representações
Científica Santos negras na literatura positivas entre as personagens,
de famílias negras
PRPPG/UFES Alacrino infantil e como são realçam laços comunitários e
em narrativas
estabelecidas as representam mais uma forma de
literárias
dinâmicas afetivas. resistência edificada em vínculos
afetuosos.
Por meio do curso realizado pelo
projeto LitERÊtura foi possível
Propor, a partir de
observar que, ainda que os/as
Literatura infantil processos formativos
docentes/cursistas demonstrassem
com temática da a professoras/es da
pouca proximidade com os
Dissertação de cultura africana e educação básica,
Sonia Dalva conteúdos propostos, os quais
mestrado afro-brasileira em questões teóricas e
Pereira da eram muito novos para a maioria,
PPGMPE/ foco: formação práticas de mediação
Silva os conteúdos explorados no curso
UFES de professoras/ de leitura literária com
atuaram para despertar o interesse
es e mediação da obras com temática
desse grupo no aprofundamento do
leitura da cultura africana e
tema e desejo de modificação de
afro-brasileira
suas práticas de mediação da leitura
literária.

Fonte: Organização das autoras.


304

Além de tais estudos já concluídos, pesquisadoras do grupo também


apresentaram trabalhos (com resultados parciais ou finais) sobre o projeto
durante o “II Encontro Nacional de Literatura Infantil/Juvenil e I Congresso
Internacional de Literatura Infantil/Juvenil: questões e temáticas de ontem e
de hoje – II ENLIJ / I CILIJ”, realizado na UERJ, entre 29 de setembro a 01
de outubro de 2021. Foram os seguintes trabalhos3:

Quadro 2 – Trabalhos apresentados no II ENLIJ / I CILIJ – UERJ

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


TÍTULO AUTORAS
Análise crítica do discurso nos materiais do PNLD
Amanda Ribeiro de Almeida e Débora Cristina de Araujo
literário: relações étnico-raciais e a literatura na escola
Diálogos afrodiapóricos entre literatura infantil e o espírito
Daniela dos Santos Alacrino e Débora Cristina de Araujo
da intimidade: famílias negras e a construção de afeto
A produção literária capixaba: autoras negras de literatura
Jamile Menezes da Silva e Débora Cristina de Araujo
infantojuvenil
A literatura na educação infantil: fortalecimento da Rosângela Pereira dos Santos e Débora Cristina de
identidade de crianças negras? Araujo
Ações formativas em literatura infantil e juvenil com
Sonia Dalva Pereira da Silva e Débora Cristina de Araujo
temática da cultura africana e afro-brasileira

Fonte: Organização das autoras.

Outra importante ação do Projeto, em curso, envolve a EMEF Antônio


Vieira de Rezende, que tem sofrido uma transformação imensa por meio
dos projetos de intervenção que estão ocorrendo atualmente por intermédio
de docentes que participaram do curso de formação. Um diferencial desses
projetos de intervenção é a presença de uma equipe de tutoria/supervisão,
formada por integrantes do comitê gestor e com direta relação com o Projeto
LitERÊtura. Além de orientar as atividades, fornecer apoio material e humano,
a equipe atua na supervisão das ações.

3 Tais trabalhos apresentados e registrados no Caderno de Programação do evento estão em fase de escrita
para compor um e-book.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 305

O Quadro 3 apresenta os projetos em fase de realização na escola:

Quadro 3 – Projetos de intervenção em andamento


TURMAS/
TÍTULO DO
ANOS DOCENTES OBJETIVOS TUTORA
PROJETO
ENVOLVIDOS
Alexandro da Silva; Eliete Vivenciar, a partir de obras de literatura
Aparecida Stens Baier; infantil produzidas na diáspora
1os anos Fabiana Paraizo Costa; africana, possibilidade de diálogo Lucilene
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Tudo vai dar


do ensino Jane Cleide Maria de com estudantes dos anos iniciais do Aparecida
certo
fundamental O. Rosário; Maria Zilma Ensino Fundamental, considerando a Soares
Pereira de Anchieta; perspectiva da Educação das Relações
Mariana Galego Pansani Étnico-raciais
Ingrid Maciel da Silva; Promover conhecimento e valorização
Histórias: 2os anos Jéssica Batista; Kassiellen da história dos povos africanos e da Ariane
contos e do ensino de Paula Lauers; Alda cultura afro-brasileira e sua importância Celestino
encantos fundamental Lúcia Dias Cruz Cunha; na construção histórica e cultural Meireles
Marcos Isaías brasileira por meio da literatura infantil.
1os aos
Safári: um Explorar as artes cênicas e visuais por Ariane
4os anos
mergulho na Marcos Isaías meio da temática da fauna africana Celestino
do ensino
fauna africana expressa em livros literários. Meireles
fundamental
Oferecer, por meio da literatura infantil,
Entre espaços
meios e espaços para fortalecer traços
e memórias: a Joelma
4os anos Fernanda Silva dos Santos; positivos da identidade daqueles/as que
(re) construção dos Santos
do ensino Patrick Florindo Rodovalho se entendem como pretos/as ou pardos/
de uma Rocha
fundamental Toledo as e potencializar a (re)construção
identidade Trancoso
dessa identidade forjada na sociedade
negra
estruturalmente racista.

Fonte: Organização das autoras.

Considerações preliminares
Por meio desses projetos de intervenção, aspectos sobre identidade,
autoestima, conhecimentos acerca da história e cultura afro-brasileira e afri-
cana vêm sendo explorados com as crianças, revelando elementos nem sempre
observados no cotidiano das aulas, sobre como elas encaram sua comunidade,
sua escola e a si próprias.
Assim, os resultados parciais indicam que o projeto vem conseguindo,
ainda que com desafios, sobretudo em relação ao distanciamento social, cum-
prir seus objetivos formativos, tanto in loco – com o corpo docente da escola
parceira – quanto com todo o município da Serra. As discussões promovidas
pelas lives, com uma média de 2 mil visualizações, ainda reverberam, haja
vista os nomes das palestrantes, como Aparecida de Jesus Ferreira, Nilma
Lino Gomes, Lucimar Dias, Eliane Debus, Maria Anória de Jesus Oliveira.
306

O curso de formação impactou diretamente o trabalho docente da escola,


especialmente por meio dos projetos de intervenção em curso. A aquisição
dos livros incrementou a biblioteca da escola, que agora passa a ter um dos
maiores (ou talvez o maior) acervos de literatura infantil com temática da
cultura africana e afro-brasileira do país, com mais de 200 títulos já compra-
dos. Especialmente, essa ação realça os impactos sociais do projeto, já que
não somente os 900 estudantes matriculados, mas toda a comunidade escolar
(em uma região de população predominantemente negra) serão beneficiados.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Com isso, ratifica-se a relevância deste Projeto de Pesquisa Aplicada,
que tem produzido impacto na formação continuada e na difusão da literatura
infantil de valorização da população africana e na diáspora. Destaca-se, por
fim, a ampla divulgação das ações em jornais, sites institucionais e redes
sociais de um modo geral, conforme indicam os links nas referências.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 307

REFERÊNCIAS
ALACRINO, Daniela dos Santos; ARAUJO, Débora Cristina de. Diálogos
afrodiapóricos entre literatura infantil e o espírito da intimidade: famílias
negras e a construção de afeto. In: MICHELLI, Regina; GREGORIN FILHO,
José Nicolau; GARCÍA, Flavio (orgs.). Caderno de Programação e Resu-
mos do II ENLIJ / I CILIJ II Encontro Nacional de Literatura Infantil/
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Juvenil, I Congresso Internacional de Literatura Infantil/Juvenil: ques-


tões e temáticas de ontem e de hoje. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2021. p. 45.
Disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/
cadres_IIENLIJ_ICILIJ.pdf. Acesso em: 9 nov 2021.

ALMEIDA, Amanda Ribeiro de; ARAUJO, Débora Cristina de. Análise crítica
do discurso nos materiais do PNLD literário: relações étnico-raciais e a litera-
tura na escola. In: MICHELLI, Regina; GREGORIN FILHO, José Nicolau;
GARCÍA, Flavio (orgs.). Caderno de Programação e Resumos do II ENLIJ
/ I CILIJ II Encontro Nacional de Literatura Infantil/Juvenil, I Congresso
Internacional de Literatura Infantil/Juvenil: questões e temáticas de ontem
e de hoje. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2021. p. 43. Disponível em: http://www.
dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/cadres_IIENLIJ_ICILIJ.pdf.
Acesso em: 9 nov 2021.

ARAUJO, Débora O. C.; SILVA, Paulo Vinicius B. Diversidade étnico-ra-


cial e a produção literária infantil: análise de resultados. In: BENTO, Maria
Aparecida Silva (org.). Educação infantil, igualdade racial e diversidade:
aspectos políticos, jurídicos, conceituais. São Paulo: Centro de Estudos das
Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT, 2012. p. 194-220.

CORRÊA, Nábila. Grupo de estudos realiza palestra sobre a presença de


autoras negras de literatura infantil. Universidade Federal do Espírito Santo,
15 jun. 2021. Disponível em: http://www.serra.es.gov.br/noticias/participe-
-live-vai-abordar-trabalho-de-autoras-negras-na-literatura-infantil. Acesso
em: 21 jun. 2021.

DEBUS, Elaine. A temática da cultura africana e afro-brasileira na litera-


tura para crianças e jovens: lendo Joel Rufino dos Santos, Rogério Andrade
Barbosa, Júlio Emílio Brás, Georgina Martins. São Paulo: Cortez, 2017.

DEBUS, Eliane; OLIVEIRA, Maria Anória de Jesus. Literatura infantil de


temática da cultura africana e afro-brasileira. Live. Youtube, Canal Educa
308

Serra. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=NAcxI8HPZdQ&-


t=2s. Acesso em: 21 jun. 2021.

DIAS, Lucimar Rosa; GOMES, Nilma Lino. A escrita literária: autoras negras
de literatura infantil. Live. Youtube, Canal Educa Serra. Disponível em:
https://www.youtube.com/watch?v=dQAokzhici0. Acesso em: 21 jun. 2021.

FERREIRA, Aparecida de Jesus; PAIVA, Jacyara. Letramento racial crítico:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


perspectivas para a educação básica. Live. Youtube, Canal Educa Serra. Dis-
ponível em: https://www.youtube.com/watch?v=X-Yr3rqtEqk. Acesso em:
21 jun. 2021.

GOUVÊA, Maria Cristina Soares. Imagens do negro na literatura infantil


brasileira: análise historiográfica. Educação e Pesquisa. São Paulo, v. 31,
n. 1, p. 77-89, jan./abr. 2005.

NEAB – UFES. LitERÊtura – Grupo de estudos e pesquisas em diversi-


dade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos culturais para
as infâncias. Disponível em: https://neab.ufes.br/conteudo/literetura-grupo-
-de-estudos-e-pesquisas-em-diversidade-etnico-racial-literatura-infantil-e.
Acesso em: 21 jun. 2021.

QUARTO, Leonardo. Live vai abordar trabalho de autoras negras na literatura


infantil. Prefeitura Municipal da Serra, 15 jun. 2021. Disponível em: http://
www.serra.es.gov.br/noticias/participe-live-vai-abordar-trabalho-de-autoras-
-negras-na-literatura-infantil. Acesso em: 21 jun. 2021.

ROSEMBERG, Fúlvia. Literatura infantil e ideologia. São Paulo: Glo-


bal, 1985.

SANTOS, Rosângela Pereira dos; ARAUJO, Débora Cristina de. A literatura


na educação infantil: fortalecimento da identidade de crianças negras? In:
MICHELLI, Regina; GREGORIN FILHO, José Nicolau; GARCÍA, Flavio
(orgs.). Caderno de Programação e Resumos do II ENLIJ / I CILIJ II
Encontro Nacional de Literatura Infantil/Juvenil, I Congresso Interna-
cional de Literatura Infantil/Juvenil: questões e temáticas de ontem e de
hoje. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2021. p. 113. Disponível em: http://www.
dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/cadres_IIENLIJ_ICILIJ.pdf.
Acesso em: 9 nov. 2021.

SEDU-SERRA. Educa Serra. Disponível em: https://www.youtube.com/c/


EducaSerraES/featured. Acesso em: 21 jun. 2021.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 309

SILVA, Jamile Menezes da; ARAUJO, Débora Cristina de. A produção literária
capixaba: autoras negras de literatura infantojuvenil. In: MICHELLI, Regina;
GREGORIN FILHO, José Nicolau; GARCÍA, Flavio (orgs.). Caderno de
Programação e Resumos do II ENLIJ / I CILIJ II Encontro Nacional
de Literatura Infantil/Juvenil, I Congresso Internacional de Literatura
Infantil/Juvenil: questões e temáticas de ontem e de hoje. Rio de Janeiro:
Dialogarts, 2021. p. 113. Disponível em: http://www.dialogarts.uerj.br/admin/
arquivos_tfc_literatura/cadres_IIENLIJ_ICILIJ.pdf. Acesso em: 9 nov. 2021.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SILVA, Sonia Dalva Pereira da; ARAUJO, Débora Cristina de. Ações for-
mativas em literatura infantil e juvenil com temática da cultura africana e
afro-brasileira. In: MICHELLI, Regina; GREGORIN FILHO, José Nicolau;
GARCÍA, Flavio (orgs.). Caderno de Programação e Resumos do II ENLIJ
/ I CILIJ II Encontro Nacional de Literatura Infantil/Juvenil, I Congresso
Internacional de Literatura Infantil/Juvenil: questões e temáticas de ontem
e de hoje. Rio de Janeiro: Dialogarts, 2021. p. 58. Disponível em: http://www.
dialogarts.uerj.br/admin/arquivos_tfc_literatura/cadres_IIENLIJ_ICILIJ.pdf.
Acesso em: 9 nov. 2021.

SOARES, Andreia. Ciclo de debates virtuais reforça processo formativo


na Serra, 15 abr. 2021. Disponível em: http://www.serra.es.gov.br/noticias/
ciclo-de-debates-virtuais-reforca-processo-formativo-na-serra. Acesso em:
21 jun. 2021.

SOARES, Andreia. Literatura infantil é tema de nova live para educadores na


Serra. Prefeitura Municipal da Serra, 18 maio 2021. Disponível em: http://
www.serra.es.gov.br/noticias/literatura-infantil-e-tema-de-nova-live-para-e-
ducadores-na-serra. Acesso em: 21 jun. 2021.

TEMPO NOVO, Jornal da Serra. Canal Educa Serra vai transmitir palestra
sobre autoras negras na literatura infantil, 21 jun. 2021. Disponível em:
https://www.portaltemponovo.com.br/canal-educa-serra-vai-transmitir-pa-
lestra-sobre-autoras-negras-na-literatura-infantil/. Acesso em: 21 jun. 2021.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
A LEI Nº 10.639/2003: UM INSTRUMENTO
PARA A EDUCAÇÃO PARA SUPERAÇÃO
DO RACISMO: um relato de experiência
no Vale do Mucuri / Minas Gerais
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Cláudio Eduardo Rodrigues

Introdução

Segundo Nilma Lino Gomes, o percurso que levou à promulgação da Lei


nº 10.639/2003, que estabelece a obrigatoriedade do ensino de História e Cul-
tura Afro-Brasileira, é pouco conhecido pelos educadores e educadoras (LINO,
2011). Questionamos se os impactos gerados a partir da lei também não são
desconhecidos, assim como é preciso indagar se este desconhecimento não pode
gerar entendimentos equivocados quanto: a) a sua origem – imposição desvincu-
lada da realidade escolar e das relações étnico-raciais no Brasil aos educadores
e educadoras das escolas públicas e privadas; b) a efetividade e extensão de sua
aplicabilidade; c) a avaliação dos seus resultados quando aplicada.
Nessa perspectiva, através da interação, principalmente, com algumas
ideias de Nilma Lino Gomes e de Abdias do Nascimento, o presente traba-
lho tem por objetivo realizar um relato de experiência de aplicação da Lei
nº 10.639/2003 na mesorregião do Vale do Mucuri, em Minas Gerais / Brasil,
e outras experiências, avaliando alguns avanços, dificuldades e perspectivas
desse processo. Também se propõe a apresentar algumas obras e pessoas que
contribuíram e ainda contribuem para a promoção de uma educação para
superação do racismo e que podem ser usadas como referências para nosso
trabalho educativo.

Um pouco da luta pela implantação do ensino de História e


Cultura Afro-Brasileira

O portal Geledés: Instituto da Mulher Negra é uma importante referência


para os estudos sobre relações étnico-raciais, racismo, xenofobia, oferecen-
do-nos publicações relacionadas à educação, comunicação e direitos huma-
nos que tomam posição “em defesa de mulheres e negros por entender que
esses dois segmentos sociais padecem de desvantagens e discriminações no
acesso às oportunidades sociais em função do racismo e do sexismo vigente
na sociedade brasileira” (GELEDÉS).
312

Nilma Lino Gomes, mulher, negra, pedagoga, doutora em Antropologia


Social, ex-Ministra das Mulheres, Igualdade Racial e Direitos Humanos do
Brasil no governo Dilma (2015-2016) e ex-Reitora da Universidade Federal
da Integração Internacional da Lusofonia Afro-Brasileira (UNILAB) (2013-
2014), em texto publicado no Geledés, intitulado Educação, Relações Étni-
co-raciais e a Lei nº 10.639/2003 (2011), aborda o histórico, importância,
dificuldades e avanços decorrentes da promulgação da Lei nº 10.639/2003.
Nas palavras de Nilma:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O percurso de normatização decorrente da aprovação da Lei nº 10.639/03
deveria ser mais conhecido pelos educadores e educadoras das escolas
públicas e privadas do país. Ele se insere em um processo de luta pela
superação do racismo na sociedade brasileira e tem como protagonistas
o Movimento Negro e os demais grupos e organizações partícipes da luta
antirracista. Revela também uma inflexão na postura do Estado, ao pôr em
prática iniciativas e práticas de ações afirmativas na educação básica brasi-
leira, entendidas como uma forma de correção de desigualdades históricas
que incidem sobre a população negra em nosso país. (GOMES, 2011).

O desconhecimento da trajetória de lutas pela aprovação da Lei


nº 10.639/2003 nos faz lembrar o engajamento e as ideias de Abdias do Nas-
cimento (1914-2011) na defesa do ensino de História e Cultura Afro-Brasileira,
principalmente com o conteúdo do livro O genocídio do negro brasileiro:
processo de um racismo mascarado1.
Graduado em Economia, Abdias do Nascimento foi professor em univer-
sidades dos Estados Unidos e da Nigéria. Foi Deputado Federal (1983-1987)
e Senador da República (1997-1999). Ele representa para a comunidade e
para o movimento negro um dos expoentes da intelectualidade negra brasi-
leira. Abdias do Nascimento militou em diversas frentes culturais e artísticas,
religiosas, política e principalmente como ativista de direitos humanos das
pessoas negras brasileiras. Por causa desse ativismo, Abdias do Nascimento
foi indicado ao Prêmio Nobel da Paz em 2010.
Em O genocídio do negro brasileiro, Abdias do Nascimento discute e
denuncia – como o próprio subtítulo da obra aponta – o processo e as formas
históricas e sistemáticas de extermínio social, cultural, religioso, político,
linguístico do negro no Brasil e aponta que essa realidade foi enfrentada
de diferentes maneiras, destacando a experiência da criação, “em 1944, no
Rio de Janeiro, do Teatro Experimental do Negro – TEN”, cujos objetivos
básicos foram:
1 O conteúdo do livro foi inicialmente elaborado para ser apresentado durante o Segundo Festival Mundial
de Artes e Culturas Negras e Africanas, realizado na Nigéria em 1977 e, segundo Abdias do Nascimento,
foi rejeitado sem maiores explicações da programação do evento (NASCIMENTO, 2016, p. 27-46).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 313

a. A resgatar os valores da cultura africana (negrito meu), margi-


nalizados por pre-conceito (sic) à mera condição folclórica, pito-
resca ou insignificante; b. através de uma pedagogia estruturada
no trabalho de arte e cultura, tentar educar a classe dominante
“branca”, recuperando-a da perversão etnocentrista (negrito
meu) de se autoconsiderar superiormente europeia, cristã, branca,
latina e ocidental; c. erradicar dos palcos brasileiros o ator branco
maquilado de preto (negrito meu), norma tradicional quando a per-
sonagem negra exigia qualidade dramática do intérprete; d. tornar
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

impossível o costume de usar o ator negro em papéis grotescos


ou estereotipados (negrito meu): como moleques levando cascudos,
ou carregando bandejas, negras lavando roupa ou esfregando o chão,
mulatinhas se requebrando, domesticados Pais Joões e lacrimogêneas
Mães Pretas; e. desmascarar como inautêntica e absolutamente inútil
a pseudocientífica literatura que a pretexto de estudo sério focalizava
o negro, salvo raríssimas exceções, como um exercício esteticista
ou diversionista: eram ensaios apenas acadêmicos, puramente des-
critivos, tratando de história, etnografia, antropologia, sociologia,
psiquiatria, e assim por diante, cujos interesses estavam muito dis-
tantes dos problemas dinâmicos que emergiam do contexto racista
da nossa sociedade (2014, p. 161-162).

Para Abdias do Nascimento, esses objetivos não seriam restritos ao Teatro


Experimental do Negro – TEN –, pois eles representam a instauração de um
processo necessário e urgente de “revisão de conceitos e atitudes, visando
à liberação espiritual e social da comunidade afro-brasileira. Processo que
está na sua etapa inicial, convocando a conjugação do esforço coletivo da
presente e das futuras gerações do negro brasileiro” (NASCIMENTO, 2014,
p. 163). Razão pela qual tais objetivos são estendidos e influenciaram outros
segmentos brasileiros que perceberam sua importância para a possível organi-
zação de movimentos de “tomada de consciência e de uma afirmação original
afro-brasileira” (NASCIMENTO, 2014, p. 164).
Ao longo dos anos, o movimento negro muito lutou por políticas públicas
voltadas para educação, cobrando a implantação do ensino de história, cultura
e religiosidade africana e afro-brasileira nas escolas.
Nesse contexto, há que considerar a importância da criação da Associação
Brasileira de Pesquisadores Negros – ABPN – e dos Núcleo de Estudos Afro-
-Brasileiros – NEABs – em diferentes universidades do Brasil, que congregam
pesquisadores em torno de eixos comuns de abordagens e muito lutaram pela
implantação de uma educação sobre História e Cultura Afro-Brasileira (SILVA,
2018). O que somente veio a ocorrer em 2003, com a promulgação da Lei
nº 10.639/2003, que, cremos, foi uma das formas pelas quais se concretizou
aquela aspiração das pessoas pioneiras do TEN.
314

Transcorridos quase 80 anos da criação do TEN, 40 anos da elaboração de


O genocídio do negro brasileiro e 19 anos da promulgação da Lei 10.639/2003,
ao voltarmos o olhar para a trajetória histórica destas estratégias de luta, per-
cebemos como a estrutura racista brasileira mantém-se operante em face da
comunidade negra, quer seja ela brasileira ou de outras nacionalidades. Os
racistas perderam a vergonha. Eles vociferam, publicamente, o ódio, a discri-
minação e acirram o processo de eliminação de milhares de pessoas, valores,
culturas, religiosidades etc. dos povos pretos, sem que o poder público tome as

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


medidas cabíveis e efetivas para combatê-las. Portanto, desvela e escancara-se
a falácia do chamado mito da democracia racial que já era denunciado como
irreal por Nascimento e tantas outras pessoas.
Por isso, como pessoas africanas e afro-brasileiras, nos indignamos contra
essa realidade e lutamos pelo estabelecimento de ações de resgate amplo e
integral da nossa dignidade humana e de promoção de uma educação para a
superação do racismo.
Contudo, é preciso compreender que a educação para a superação do
racismo não deve ser direcionada apenas para a classe dominante “branca”,
para recuperá-la da perversão etnocentrista, como afirmado por Nasci-
mento, assim como não pode ser desenvolvida e/ou voltada apenas pelas
pessoas pretas.
Hoje a nossa luta desdobrou-se e temos verificado a intensificação de
campanhas que defendem que o antirracismo é e deve ser uma luta de todas as
pessoas – indígenas, negras, brancas –, bem como para a necessidade de não
ser racista. É preciso ser antirracista, isto é, as pessoas devem ser educadas
para não serem racistas e para combaterem o racismo.

Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira: a luta contínua

A promulgação da Lei nº 10.639/2003 é resultado de luta e ação política


histórica de pessoas pretas e de movimentos negros organizados, que teve e
tem por objetivos

afirmar o direito à diversidade étnico-racial na educação escolar, romper


com o silenciamento sobre a realidade africana e afro-brasileira nos cur-
rículos e práticas escolares e afirmar a história, a memória e a identidade
de crianças, adolescentes, jovens e adultos negros na educação básica e
de seus familiares (GOMES, 2011).

A implantação dela também tem sido realizada através da luta contínua


dos mesmos agentes.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 315

É pela atuação, engajamento, organização, militância e luta de diferentes


agentes educacionais e do movimento negro que o ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira está se fazendo presente na educação brasileira, na medida
em que a lei apenas estabeleceu a obrigatoriedade desse ensino.
Por isso, Nilma Lino tem consciência de que, a despeito da aprovação e
dos avanços que a Lei nº 10.639/2003 trouxe para a educação brasileira, há
resistências. Seu cumprimento está aquém do desejado (GOMES, 2011) e nos
provoca a relatar e compartilhar algumas observações sobre as dificuldades
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de implantação da Lei 10.639/2003 no Vale do Mucuri / Minas Gerais.


Em 2008, a Secretaria de Educação Superior (SESu) e a Secretaria de
Educação Continuada, Alfabetização e Diversidade (Secad), com recursos
do Fundo Nacional de Desenvolvimento da Educação – FNDE –, promove-
ram processo seletivo de instituições de ensino superior para desenvolverem
ações relacionadas ao chamado programa Uniafro. Alguns docentes negros
do Campus do Mucuri da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha
(UFVJM) apresentaram projeto para desenvolver o Curso de Formação
Continuada de Professores do Vale do Mucuri: Relações Étnico-raciais
e o Ensino de História e Cultura Afro-brasileira, que foi realizado no
período de 2008 a 2011.
A previsão era de capacitar 960 professores das redes estadual e munici-
pal pertencentes à Superintendência Regional de Ensino de Teófilo Otoni-MG,
em três etapas. Contudo, o número de participantes foi reduzido, verificando-se
que 299 professores concluíram todas as etapas da formação proposta, sendo
que 219 professores estiveram na primeira etapa, 18 professores na segunda
etapa e 62 na última etapa.
Os números apresentados acerca da participação dos professores carecem
de questionamentos e profunda avaliação para verificarmos a efetividade da
implantação da Lei nº 10.639/2003, dentre eles: a) os proponentes do curso
não superestimaram o número de pessoas que seriam capacitadas em um país
em que o racismo e a resistência às questões afro-brasileiras são marcantes?;
b) para além da possível alta previsão de beneficiários do curso, quais as causas
da baixa adesão à proposta de formação continuada em questões étnico-raciais,
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira?
No que se refere à questão da superestimativa de participantes, é possível
que ela seja derivada do fato de a equipe proponente do referido curso ser
composta por professores universitários oriundos de outras regiões de Minas
Gerais e de São Paulo e que tinham ingressado naquela universidade no Vale
do Mucuri há pouco mais de dois anos. Assim como pelo fato de que, nesse
curto espaço de tempo, não tinham realizado qualquer tipo de estudo ou pes-
quisa para verificar a demanda, o interesse, a disponibilidade e as condições
316

efetivas dos professores da região para participação em cursos de formação


continuada na temática proposta.
Outro fator que provavelmente tenha influenciado a superestimativa de
participantes do Curso seria o fato de se acreditar que a obrigatoriedade do
ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, por ter força de lei promulgada
– Lei nº 10.639/2003 –, forçaria a adesão imediata e voluntária ao curso por
parte dos gestores escolares e de professores. Talvez também pairasse entre
os professores organizadores do projeto a ideia de que a admoestação sobre

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


os riscos legais de descumprimento da lei, por parte de todo aparato estatal e
privado da rede de ensino, poderia garantir a ampla e irrestrita adesão ao curso.
Basta uma leitura das correspondências enviadas a prefeitos, secretários
municipais de educação, superintendência de ensino para se verificar como
o apelo legal da obrigatoriedade do ensino de História e Cultura Afro-Bra-
sileira são evocadas nelas. Por outro lado, a despeito do apelo legal sobre a
obrigatoriedade do ensino da temática, podemos pensar, hipoteticamente, nas
ideias que passavam na cabeça dos referidos gestores: “a lei torna obrigatório
o ensino de História e Cultura Afro-Brasileira, mas não torna obrigatória a
participação dos docentes em capacitações sobre essa temática”. Portanto,
como a lei poderia se impor sobre os gestores e professores nessa ausência
de obrigação de capacitação sobre essas temáticas?
No que tange às causas para a baixa adesão à proposta de formação conti-
nuada em questões étnico-raciais, ensino de História e Cultura Afro-Brasileira
diversos fatores devem ser considerados.
O público previsto de 960 docentes de escolas contemplava os profes-
sores de 31 municípios do Vale do Mucuri que estão subordinadas à Superin-
tendência de Ensino de Teófilo Otoni – SRE – ou das Secretarias Municipais
de Educação2. Nesse contexto, a ausência de apoio das diretorias escolares,
da SRE e dos secretários municipais de educação, através da liberação dos
docentes, disponibilização de transporte para deslocamento de suas cidades
de origem e o pagamento de diárias para garantir hospedagem e alimenta-
ção para os participantes, foi um dos fatores que muito contribuíram para o
número reduzido de participantes, principalmente a partir da segunda etapa
do curso de formação.
Nesse sentido, é importante que se leve em consideração que o estabe-
lecimento de uma legislação federal sem a criação de instrumentos e outras
políticas públicas nos níveis estadual e municipal tende a dificultar a sua
implantação e pleno cumprimento, principalmente quando dizem respeito à
população negra no Brasil.
2 Cabe destacar que o Vale do Mucuri é uma das regiões de Minas Gerais marcado pela pobreza e baixo IDH
-Índice de Desenvolvimento Humano, bem como o fato de que alguns desses municípios estão localizados
a mais de 100 km de Teófilo Otoni onde o curso foi ofertado, a exemplo de Águas Formosas e Nanuque.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 317

Como reflexo disso, muitos foram os relatos dos participantes que se


mantiveram presentes em todas as etapas do curso de que elas estavam arcando
com os custos com transporte e hospedagem e, principalmente, enfrentando
as pressões de gestores para que não participassem da capacitação, inclusive
com corte de ponto, pois estariam fora de sala de aula nos dias do curso.
Consequentemente, verifica-se que a promulgação da Lei nº 10.639/2003
não foi suficiente, em si mesma, para resgatar “a contribuição do povo negro
nas áreas social, econômica e política pertinentes à História do Brasil” (BRA-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SIL, 2003).
Compreendemos que, junto a essa lei, deveriam ter sido estabelecidas
outras políticas públicas visando garantir a sua efetivação, por exemplo:
a) abertura de vagas para concursos nas universidades específicas para esse
tipo de ensino, garantindo que não seja abordada de forma equivocada, detur-
pada, estereotipada e à mercê da vontade ou conhecimentos de professores
engajados na questão do racismo no Brasil; b) a capacitação obrigatória con-
tinuada do corpo docente das escolas públicas – ensino infantil, fundamental
e médio – em torno da temática.
Em nossa avaliação, a maioria das pessoas capacitadas em todas as eta-
pas do curso já tinha certa afinidade e disposição para abordar a temática.
Consequentemente, a estrutura racista continuou operando e o preconceito
religioso em relação às religiões de matriz africana afastou diversas pessoas
da área da educação das capacitações oferecidas.

Avanços e perspectivas na pesquisa e na educação Afro-Brasileira

As dificuldades narradas anteriormente acerca da implantação da Lei


nº 10.639/2003 não podem reduzir a importância desta legislação para a pro-
moção de uma educação antirracista ou a levar-nos a afirmar que se trata de
uma lei impraticável.
Nesse sentido, são importantes as análises de Nilma Lino Gomes acerca
dos impactos e transformações positivas que a aprovação da Lei nº 10.639/2003
ocasionou na educação escolar brasileira especialmente no que se refere: a) a
formação de professores para abordagem da temática da diversidade étnico-
-racial; b) o estabelecimento de temáticas de pesquisa sobre relações raciais
no Brasil; c) ampliação da produção científica e intelectual de pessoas negras
sobre a temática, a compreensão de que a abordagem pedagógica e demo-
crática de temáticas étnico-raciais constitui-se em um direito, dentre outros
(GOMES, 2011).
Nessa tentativa de promover o diálogo entre os objetivos do TEN com
a aprovação e implantação da Lei nº 10.639/2003, mediado pelas ideias de
318

Abdias de Nascimento e Nilma Lino Gomes, podemos compreender que esta


legislação abarcou e muito contribuiu para o cumprimento daqueles objetivos
propostos pelo TEN, especialmente no que tange à busca da superação da
representação da pessoa negra com uma essência de escrava ou como des-
cendente de escravos domesticados.
O estudo e aprofundamento de pesquisas sobre História e Cultura da
África, a partir da Lei nº 10.639/2003, possibilitou-nos condições de funda-
mentar e contestar a falsidade do discurso europeu, branco e cristão que nos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


negou papéis de protagonistas nos enredos da arte, da vida e da história, de
maneira que muito tem se descoberto e ensinado sobre as contribuições negras
e africanas para a constituição da sociedade, filosofia, religião, cultura, ciência
e tecnologia, dentre outras.
A experiência relatada de formação de professor sobre História e Cultura
Afro-Brasileira no Vale do Mucuri também nos exigiu a ampliação de temá-
ticas de pesquisa e da produção científica e intelectual através da conjugação
de forças com outras pesquisadoras da ABPN e dos NEABs de diferentes
universidades do Brasil.
Percebemos que estudar e capacitar os professores da rede pública e
privada de ensino em torno de História, Cultura e Religiosidade Afro-Brasi-
leira era tão importante quanto promover e ampliar a abordagem de temáticas
relacionadas à Arte, Literatura e Geografia Afro-Brasileira, atraindo docentes
de outras áreas do conhecimento da rede pública e privada de ensino para
participarem do curso.
Nesse sentido, em 2010, tivemos a grata satisfação de recebermos as
contribuições da Doutora Maria Suzana Moreira do Carmo, doutora em Letras
e professora da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), em torno da
temática da “Literatura Africana: contos africanos e educação”, assim como
do professor, geógrafo e pesquisador Felippe Jorge Kopanakis, que ministrou
o curso sobre “Cartografia do Continente Africano”.
Também merece destaque a abordagem da temática da Arte Africana e
Afro-Brasileira que foi ofertada pela equipe do Museu Afro Brasil, em São
Paulo, durante visita dos professores inscritos na 3ª etapa de nosso curso, na
maioria pessoas simples do interior de Minas Gerais. Essa visita foi ação ímpar
no curso, pois possibilitou a participantes do curso: a) conhecer um grande
centro urbano como São Paulo; b) capacitar-se sobre algumas características
da Arte Afro-Brasileira; c) ter contato com diferentes expressões culturais e
artísticas Afro-Brasileiras que estavam expostas naquela ocasião.
Graças à necessidade de ampliação de temáticas abordadas nas nossas dis-
cussões sobre relações étnico-raciais e racismo, tivemos a oportunidade de saber
da existência e/ou ampliar nossas bibliografias e leituras da produção escrita
de pessoas africanas e afro-brasileiras antes desconhecidas e que nos oferecem
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 319

importantes contribuições, por exemplo, na ciência, filosofia, artes, literatura.


Pessoas e contribuições que também são objeto de genocídio ou, melhor dizendo,
epistemicídio, e que requerem de nós uma atuação contundente para o resgate
de sua dignidade científica, cultural e filosófica, dentre outras áreas.
Hoje, graças ao esforço de implantação da Lei nº 10.639/2003 e à conse-
quente ampliação de pesquisas, tivemos a oportunidade de conhecer, valorizar
e defender a ampla produção sobre geografia, urbanismo do terceiro mundo
e globalização de Milton Santos – geógrafo, jornalista e advogado –, reco-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

nhecido internacionalmente com diversos títulos de Doutor Honoris Causa,


a literatura de Carolina Maria de Jesus, com suas obras Quarto de despejo e
Casa de alvenaria, a poesia de Conceição Evaristo em Becos da Memória e
Olhos D’agua, a filosofia de Frantz Fanon, por meio da obra Pele negra, más-
caras brancas, e Achille Mbembe, através dos livros Necropolítica e Crítica
da Razão Negra, a antropologia da África e da população Afro-Brasileira,
nos estudos de Kabengele Munanga – exemplos de pessoas negras africanas
e afro-brasileiras dignas de amplo reconhecimento intelectual.
Concordamos, conforme Nilma Lino Gomes, que a ampliação da pro-
dução científica e intelectual de pessoas negras sobre a temática é um fato.
Se compararmos a quantidade de autores, obras e de editoras que publicavam
materiais sobre a História e Cultura Afro-Brasileira na época da promulgação
da Lei nº 10.639/2003 e, em 2008, quando oferecemos o nosso curso sobre
Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira na mesorregião do Vale do Mucuri
/ Minas Gerais, podemos verificar o quanto foi expressiva a demanda desse
material e o crescimento de sua oferta.
A ampliação e a publicação da produção científica e intelectual de pes-
soas negras, assim como sua visualização em livrarias, bibliotecas e sítios
eletrônicos, também são muito importantes para o processo de uma educação
para a superação do racismo.
A escassez de publicações sobre a temática ou a exclusão delas – episte-
micídio – pelo mercado editorial nos primeiros anos posteriores à promulgação
da Lei 10.639/2003 exigiu que o movimento pelo ensino de História e Cultura
Afro-Brasileira se desdobrasse não só em torno do estudo e da pesquisa sobre
a temática, mas também para a produção científica sobre ela. Não bastou
estudá-las, era preciso também produzir e publicar os resultados dessas ações,
ampliando o referencial bibliográfico e temático sobre relações étnico-raciais,
racismo, história e Cultura Afro-Brasileira, e, consequentemente, oferecer
vasto material para que os professores das redes pública e privada de ensino
fundamentem suas aulas.
Durante as etapas de nosso curso, muitas eram as demandas dos partici-
pantes para que disponibilizássemos os textos, slides, vídeos e outros materiais
que utilizamos em cada etapa.
320

Nessa perspectiva, os docentes e agentes culturais e sociais que oferece-


ram algum módulo do nosso curso foram convidadas a elaborar textos sobre
as temáticas que desenvolveram nele, culminando na publicação de um livro
organizado pelos professores Aparecida da Silva e Cláudio Eduardo Rodrigues
intitulado Formação de professores no Vale do Mucuri: história e cultura da
África e afro-brasileira. Obra que, graças aos recursos provenientes do Projeto
UNIAFRO / Sesu / Secad, foi distribuída gratuitamente para as escolas da área
de abrangência da SER – Teófilo Otoni, e para pesquisadores e pessoas interes-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


sadas na temática, contribuindo também para a ampliação do acesso à temática.
A experiência de ensino, estudo, pesquisa, publicação e divulgação de
História e Cultura Afro-Brasileira também proporcionou a modificação de
entendimento sobre algumas convicções e ideias que defendíamos ou para as
quais não nos atentávamos anteriormente, a exemplo da existência de uma filo-
sofia africana e das contribuições de pretos e africanos para a ciência e filosofia.
Dentre esses materiais produzidos desde então, destacamos a publicação
da Coleção Feminismos Plurais, publicada pela então Editora Pólen e atual-
mente denominada Editora Jandaíra, que nos possibilita o acesso a textos de
pessoas que ganharam destaque nacional e internacional, a exemplo da filósofa
Djamila Ribeiro, que coordena a coleção citada e também aborda de forma
brilhante a questão do nosso lugar de fala, a luta antirracista e feminismo
ou mulherismo da mulher preta. A coleção nos brinda, por exemplo, com a
importante abordagem sobre racismo estrutural, feita pelo advogado e filósofo
Silvio Almeida, e a discussão feita pela arquiteta e pós-graduada em Direito
Joice Berth sobre empoderamento feminino negro.

Não nascemos escravos! Fomos escravizados!

Embora tenhamos registrado diversos avanços na educação com a pro-


mulgação da Lei nº 10.639/2003, isso não significa que tenhamos superado o
racismo, pois temos vivenciado e assistido o crescimento de manifestações de
ódio e racismo contra pessoas negras, seja pela violência física, psicológica e
verbal – situações de violência racial que tomamos conhecimento pelas redes
sociais e imprensa, tais como: “Tu é minha empregada”, dirigida por uma
mulher branca à vereadora preta de Porto Alegre / Rio Grande do Sul; “tenho
preguiça desse povo encardido”, proferido por um vereador em face de outra
vereadora preta de Uberlândia / Minas Gerais; “Preto não vai entrar no meu
carro a essa hora da manhã”, direcionada por motorista por aplicativo contra
homem negro e seu filho de 3 anos em Brasília / Distrito Federal.
Todas essas falas são racistas, pois preto, encardido, empregado somente
são designações atribuídas pejorativamente aos africanos e afrodescendentes a
partir de sua insistente e contínua propagação histórica. Suas origens remetem
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 321

ao período escravocrata, refletem e perpetuam uma visão de mundo, filosófica


e antropológica, segundo a qual o ser humano possui uma essência, isto é, uma
condição que é imprescindível, necessária, para a qual não há possibilidade
de ser diferente.
Nessa lógica de raciocínio estabelecida pelos europeus, brancos e cris-
tãos, teríamos o seguinte resultado: se uma parte da população do planeta,
africanos e afrodescendentes, possui uma essência, esta essência é de escravo,
logo, é válido, natural e necessário submeter estas pessoas à escravidão. Em
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

outros termos, a escravidão é, para esse público, algo intrínseco e necessário


à realidade de toda pessoa africana ou afrodescendente.
Nesse sentido, ainda é um desafio romper e contestar esse tipo de teoria.
Para isto, precisamos também aprofundar os estudos filosóficos sobre o uso
de teorias essencialistas que insistem em defender a manutenção das pessoas
negras em determinados lugares e postos da sociedade, negando e impedin-
do-nos de acessar os direitos previstos na Declaração Universal dos Direitos
Humanos, na Constituição Federal do Brasil de 1988 e no Estatuto da Igual-
dade Racial e em outras legislações – como é o caso da Lei nº 10.639/2003.
A educação para superação do racismo também deve estar voltada para a
conscientização das pessoas sobre nossos direitos, para que possamos defen-
dê-los como cidadãos e cidadãs. Assim, a intensificação dos estudos, pesquisas
e publicações de história, cultura, religião africana e afro-brasileira, propor-
cionada pela Lei nº 10.639/2003, deve também levar ao conhecimento sobre
o nosso direito e fomentar a defesa das conquistas que obtivemos a duras
penas ao longo da história.
Por isso, a cada ataque racista sofrido, precisamos mobilizar a comuni-
dade para a sua contestação nas esferas legal, política, social, religiosa, assim
como científica e filosófica.
Temos em mãos “muitas coisas de preto”; isto é, coisas elaboradas por
pessoas e povos africanos ou afrodescendentes, que indicam uma rica e grande
gama de produções intelectuais, científicas, artísticas, culturais, filosóficas e
tecnológicas, para contestar as afirmações e teorias preconcebidas e racistas
que a chamada civilização europeia, branca, cristã propagou e ainda propaga.
Nesse sentido, o livro A História preta das coisas: 50 invenções cientí-
fico-tecnológicas de pessoas negras, escrito pela professora do Instituto de
Química da Universidade Federal da Bahia (UFBA), Bárbara Carine Soares
Pinheiro, graduada em Química e Filosofia, doutora em Química, é uma obra
fundamental para promover o resgate da “dignidade histórica intelectual do
povo preto, propiciando auto-estima [sic] à juventude” (PINHEIRO, 2021,
p. xv). No livro, são apresentadas algumas das produções científico-tecno-
lógicas africanas e de seus descendentes ao longo do tempo, demonstrando
que nossas histórias, artes, culturas, religiosidades, assim como ciências e
322

filosofias foram duramente apropriados, roubados, apagados ou reduzidos a


produtos típicos da selvageria primitiva.
Com subsídio de obras como essa, podemos negar e combater de forma
veemente o essencialismo racista descrito anteriormente e reforçar nossa
afirmação, como tem feito os povos indígenas. Nossas histórias não come-
çaram com o processo colonizador escravagista estabelecido pela chamada
civilização branca, europeia e cristã. Nossa história não começa em 1500!
Não nascemos escravos! Fomos escravizados!

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Mencionamos, anteriormente, que muitos professores não participaram
ou se afastaram do curso que oferecemos sobre História e Cultura Afro-Bra-
sileira por preconceito e fundamentalismo religioso em face da religiosidade
Afro-Brasileira. Isso se deve ao fato de que a diversificada religiosidade afri-
cana também foi eliminada ou reduzida a uma única coisa – coisa do diabo.
Assim, também se desconsidera ou rejeita a existência de outras experiências
religiosas judaicas, cristãs, islâmicas de alguns povos africanos e as influências
que esses povos exerceram sobre essas religiosidades.
Por isso, pensamos que é importante também recuperarmos elementos
da nossa história antes de 1500 d.C., abordando e relendo inclusive as origens
do cristianismo para verificarmos as contribuições africanas (RIBLA, 2000)
para a expansão de um modelo de religiosidade totalmente diferente daquele
“cristianismo” que se tornou religião oficial do Império Romano, tornando-se
sinônimo de opressão, da sustentação de ideias e práticas escravocratas, do
epistemicídio e do apagamento de personagens dos povos africanos e de seus
descendentes na história do cristianismo.
Os estudos bíblicos realizados na perspectiva inter-religiosa, popular e
libertadora também muito contribuíram para a compreensão de como certo tipo
de cristianismo, denominado pelos estudiosos como cristianismo originário3
(RIBLA, 1996), recebeu muitas influências de África. Reforça-se que a ade-
são ao modelo de vida e ensinamentos de Jesus4, originalmente, por algumas
pessoas ou povos africanos era livre e voluntária, de modo que ela não pode

3 Os autores que escreveram os artigos que compõem o número 22 da RIBLA denominam cristianismo
originário o movimento das comunidades e dos seguidores de Jesus no período compreendido entre os
anos 30 e 70 d.C. O estudo desse tipo de cristianismo constitui-se em forma de contraposição aos autores
da Patrística que manifestaram euforia com a conversão do imperador Constantino a cristianismo e viam
nesse fato um triunfo da igreja (PIXLEI, 1996, p. 5). Dentre os autores da Patrística defensores dessa euforia
está Eusébio (265-339), bispo de Cesareia, que escreveu a obra História Eclesiástica.
4 Os estudos e pesquisas bíblicas que se fundamentam em metodologias científicas – exegese e na hermenêu-
tica – especialmente numa hermenêutica libertadora, ecumênica, inter-religiosa e popular. Elas identificaram
diversas contribuições de África para as ciências da religião, para a formação de Israel e da Palestina, bem
como para a contestação do racismo. Sobre isso recomendamos também as publicações sobre Bíblia
e Negritude do CEBI – Centro de Estudos Bíblicos – https://cebi.org.br/ – que são disponibilizadas com
preços populares, bem como a Revista Identidade da Escola Superior de Teologia da IECLB, disponíveis
gratuitamente em http://periodicos.est.edu.br/index.php/identidade.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 323

ser confundida ou reduzida à imposição religiosa feita, posteriormente, pela


Igreja Católica Apostólica Romana ou pela Reforma Protestante.
Nesse caso, merece destaque a experiência do cristianismo Copta desen-
volvido na Etiópia, a partir do primeiro século da era cristã, quando um
estudioso e alto comissário da rainha de Candace se converteu livremente ao
cristianismo primitivo – Atos dos Apóstolos 8, 26-39.
Atos dos Apóstolos 8, 26-39 é exemplo de trecho bíblico que não é lido
nas liturgias ou estudos realizados nas igrejas, principalmente aquelas que
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

preferiram seguir as linhas de um cristianismo helenista de Paulo em detri-


mento do cristianismo de Pedro, em Jerusalém, ou de Felipe, que caminhou
rumo à Etiópia, muito menos pela Igreja Católica Apostólica Romana ou
pela Reforma Protestante, que vieram a apoiar e defender a escravização de
africanos e afrodescendentes.
Recuperar a história de rainha de Candace nos permite afirmar a realeza
e o poder político dos povos africanos, principalmente da mulher africana no
início da era cristã. Além de Candace, precisamos estudar e conhecer melhor
Santa Efigênia, que é muito venerada no Brasil, principalmente pelas pessoas
pretas que participam dos ternos de congado nos estados de Minas Gerais,
São Paulo, Goiás e Espírito Santo.
Efigênia, a filha dos reis Eggipus e Eufenisa da Núbia, reino da Etió-
pia, cujo nome significa “nascida forte”, é uma das mulheres etíopes que se
converteu voluntariamente ao cristianismo, sendo uma das primeiras santas
negras africanas já no primeiro século da era cristã.
Esses são dois exemplos importantes para fundamentarmos nossas ori-
gens e contestarmos o racismo, especialmente o racismo religioso. Não somos
escravos ou descendentes de escravos, somos descendentes de reis e rainhas
que nos inspiram a sentir orgulho de quem nós somos, da nossa própria his-
tória e da nossa pele.
Seguindo esse sentimento orgulhoso de pertencimento e descendência
africana, valho-me das palavras de Carolina Maria de Jesus, outra grande
mulher negra de nosso tempo que, mesmo vivendo as agruras da pobreza, do
racismo e da marginalização, reafirma suas origens, sua existência e resistência
como pessoa negra em Quarto de Despejo:

... Eu escrevia peças e apresentava aos diretores de circos.


Eles respondia-me [sic]:
– É pena você ser preta. [sic]
Esquecendo eles que eu adoro a minha pele negra, e o meu cabelo rustico
[sic] [...]. Se é que existe reincarnações [sic], eu quero voltar sempre preta
(JESUS, 2014, p. 64).
324

REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Sílvio Luiz de. Racismo estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro;
Pólen, 2019.

BÍBLIA. Atos dos Apóstolos. Trad. João Ferreira de Almeida. 1948. Dis-
ponível em: http://www.ebooksbrasil.org/eLibris/biblia.html. Acesso em: 10

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


fev. 2022.

BRASIL. Lei 10.639 de 09 de janeiro de 2003. Altera a Lei no 9.394, de


20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática “História e Cultura Afro-Brasileira”, e dá outras providências.
Disponível em http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/leis/2003/l10.639.htm .
Acesso em: 8 fev. 2022.

GOMES, Nilma Lino. Educação, relações étnico-raciais e a


Lei 10.639/2003. Disponível em: https://www.geledes.org.br/educa-
cao-relacoes-etnico-raciais-e-lei-10-63903-2/?gclid=EAIaIQobChMI75i-
yqcmC9gIVgQyRCh1i6Qu9EAAYAiAAEgIFz_D_BwE. Acesso em: 10
fev. 2022.

JESUS, Carolina Maria de. Quarto de despejo: diário de uma favelada.


10. ed. São Paulo: Editora Ática, 2014.

NASCIMENTO, Abdias. O genocídio do negro brasileiro: processo de um


racismo mascarado. 3. ed. São Paulo: Perspectivas, 2014.

PINHEIRO, Bárbara Carine Soares. A história preta das coisas: 50 inven-


ções científico-tecnológicas de pessoas negras. São Paulo: Editora Livraria
da Física, 2021.

PIXLEI, Jorge. Editoral. In: RIBLA. Cristianismos originários: 30-70 d.C.


Quito, 1996. n. 22.

PORTAL GELEDÉS. Disponível em: https://www.geledes.org.br/. Acesso


em: 9 fev. 2022.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 325

RIBLA. Cristianismos originários: 30-70 d.C. Quito, 1996. n. 22. Disponível


em: https://abiblica.org.br/novo/revista-de-interpretacao-biblica-latino-ame-
ricana/. Acesso em: 18 fev. 2022.

RIBLA. Mundo negro y lectura bíblica. Quito, 2000. n. 19. Disponível em:
https://abiblica.org.br/novo/revista-de-interpretacao-biblica-latino-americana/.
Acesso em: 18 fev. 2022
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SILVA, Eva Aparecida; RODRIGUES, Cláudio Eduardo (orgs.). Formação de


professores no Vale do Mucuri: história e cultura da África e afro-brasileira.
Goiânia: Gráfica e Editora Conceito, 2012.

SILVA, Luiz Gustavo Santos da. A Associação Brasileira de Pesquisadores/


as Negros/as (ABPN) e os Núcleos de Estudos afro-brasileiros (Neabs):
por uma educação antirracista e pluricultural. Disponível em: https://www.
copene2018.eventos.dype.com.br/resources/anais/8/1535924712_ARQUIVO_
TRABALHOCOMPLETOXCOPENE.pdf. Acesso em: 6 fev. 2022.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
PARANAUÊ: em roda de capoeira tem bebê!
Míghian Danae F. Nunes

O ano de 2018 foi o meu último como professora de crianças pequenas.


Foram 15 anos de trabalho com crianças entre 11 meses e 5 anos e 11 meses em
três cidades: Salvador (BA), São Paulo (SP) e São Francisco do Conde (BA).
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Este relato de experiência trata de um projeto que foi desenvolvido em 2017,


em uma creche, a qual integra a rede municipal da cidade de São Francisco
do Conde (BA), com 15 bebês (idades entre 02 anos e 02 anos e 06 meses), e
que trabalhou com eles/as alguns elementos da capoeira, dança-luta que faz
parte da história da diáspora da população negra no Brasil, sendo também
um dos pilares da cultura local, cuja população é majoritariamente negra.
Esse projeto acabou por ser escolhido e ganhou destaque na etapa estadual
do Prêmio Professoras do Brasil do Ministério de Educação e Cultura, em
sua 11ª edição (2018)1. Duas das intenções desse trabalho eram, a partir do
que preconiza a Lei 10.639/2003 e o Parecer CNE/CP 01/2004, incorporar os
saberes e fazeres africanos e afro-brasileiros desde a educação infantil, além de
refletir sobre a importância de valorizarmos os saberes que as crianças e suas
famílias trazem de suas vivências, as quais, conforme nosso entendimento,
devem estar presentes no cotidiano da creche.
Ao introduzir a capoeira no espaço da creche, a intenção foi retirá-la de
um possível lugar folclórico a que pode estar relacionada em nossa sociedade,
trabalhando suas potencialidades pedagógicas, a saber, entre outras: circula-
ridade, sacralidade, comunalidade, oralidade, musicalidade, transversalidade
e alacridade (TRINDADE, 2010). Entendemos que o espaço escolar pode
colaborar para reforçarmos a importância da capoeira como saber consti-
tuído da população negra, saber este que contém uma historicidade inscrita
no corpo. Através do projeto, intentamos articular não apenas os aspectos da
capoeira para trabalhar música e movimento com as crianças dentro da cre-
che, mas também valorizar a história e a cultura afro-brasileira, preconizada
pela Lei 10.639/2003 e que foi promulgada a partir das lutas dos movimentos
sociais brasileiros, nomeadamente os movimentos sociais negros, para fazer
acontecer uma educação sem racismo.
A escolha por realizar o projeto com capoeira deu-se também porque
percebemos que a turma de bebês em questão (crianças entre 1 ano e 11 meses
e 2 anos e 11 meses) tinha uma relação com a capoeira, visto que alguns/

1 Cf. em Prêmio Professores do Brasil (mec.gov.br) – http://premioprofessoresdobrasil.mec.gov.br/2018-home/


premiados-e-relatos-11-edicao-2018/estadual/99-bahia.
328

algumas dos familiares deles/as a praticavam; sendo assim, não apenas por
isso, mas também por compreender a capoeira como uma prática cultural
que poderia nos trazer elementos de trabalho pedagógico referenciado com
crianças pequenas, a elegemos como pilar das atividades desenvolvidas na
experiência pedagógica que relatamos neste texto.
A população negra é majoritária em São Francisco do Conde – segundo o
IBGE, 77% de pessoas declararam-se negras em 2010. A cidade é considerada
de pequeno porte (em torno de 39 mil habitantes em 2016, segundo o IBGE,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


em 2010). Essa constatação nos fez perceber que escolher falar da cultura local
era tão somente dar a conhecer as práticas culturais-educativas da população
negra brasileira. Nesse sentido, na jornada pedagógica iniciada no ano letivo
de 2017, compreendeu-se que valorizar a própria história, apresentando-a às
crianças da cidade, consistia um importante ponto de partida para o reconhe-
cimento da participação da população negra na formação social do Brasil.
Nesse sentido, nossas ações comungaram-se com as ações de vários setores
do Movimento Negro, que priorizaram a educação como importante ferra-
menta para a inserção da população negra em variados espaços da sociedade
brasileira (RODRIGUES, 2004).
As oportunidades de aprendizagem para as/os bebês, que vimos no tra-
balho com a capoeira, estiveram ligadas tanto a aspectos corporais, lúdicos,
artísticos, estéticos e musicais bem como àquelas ligadas à oralidade, ao
conhecimento matemático, à história da população negra e à história local e
ciências. Percebemos, na capoeira, uma linguagem potente para dar conta de
oferecer aos/às bebês uma gama de conhecimentos sobre si e sobre o mundo
que os/as cerca, já que ela trata de questões ligadas a todas as áreas descritas
neste parágrafo.
Os/as bebês sentem o mundo a partir do corpo e, como tal, devem ser esti-
mulados/as a viverem essa experiência de modo pleno e prazeroso (DCNEI,
2009). Entendemos os/as bebês como pessoas que podem dizer das suas pró-
prias preferências, e a infância não como um estágio preparatório para a vida
adulta, mas um lugar em que eles/as vivem e experimentam coisas importantes
não apenas para o futuro, mas para novas aprendizagens no cotidiano presente.
Tais orientações teóricas estiveram presentes na realização do projeto ora
relatado, o qual buscou sensivelmente escutar as/os bebês para realizar com
eles/as as atividades que mais lhes interessavam. Encontramos, na sociologia
da infância, as discussões necessárias para balizar nosso trabalho (CORSARO,
2011), já que ela afirma que as crianças são pessoas que participam do mundo
e devem ser consideradas quando realizamos qualquer ação que seja do seu
interesse. A sociologia da infância nos instiga, assim, a olhar para as crianças
numa perspectiva mais horizontal, dando condições para que sua participação
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 329

seja efetiva e os projetos de trabalhos sejam não apenas pensados para elas,
mas com elas.
A creche Zaide Daltro Dias, em 2017, oferecia atendimento integral (8h
às 16h) e possuía seis salas de aula, um salão para atividades e áreas livres
cimentadas. A turma de bebês que realizou o projeto era constituída de 15
crianças, sendo 10 meninos e 5 meninas, todas com idades entre 2 anos e 2
anos e seis meses. A maioria das crianças tem pais e mães que comparecem
à creche, bem como avós, e se conhece antes de estar junta na creche. Todas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

as crianças andavam; uma boa parte já falava.


A seguir, apresentamos as etapas e algumas das atividades relacionadas
a cada uma delas:

Primeira etapa

1. Roda de conversa sobre a capoeira;


2. Apresentação de instrumento musical: o pandeiro já era utilizado
na roda de conversa para animar nossas músicas. Nesse momento,
foi apresentado como um dos instrumentos da capoeira e ressaltada
sua importância na marcação das cantigas e do jogo;
3. Exibição de vídeos com crianças jogando capoeira e ensinando
alguns movimentos básicos2 (7 dias);
4. Produção de desenhos sobre a capoeira;
5. Jogo de capoeira livre: esta atividade não foi prevista inicialmente,
mas as crianças, ao verem os vídeos com as instruções sobre alguns
dos movimentos da capoeira, começaram a jogar capoeira entre
elas, recriando os movimentos a partir de sua própria consciência
corporal. Esses momentos passaram a acontecer diariamente na
hora destinada à música e movimento (10h30 às 10h45).

Segunda etapa

6. Audição de cantigas de capoeira: na roda de conversa, que demons-


tramos ter o mesmo formato da roda de capoeira, começamos a
cantar algumas cantigas de capoeira. Na segunda semana do pro-
jeto, levamos cantigas de capoeira regional e de Angola. Durante

2 Cf. vídeos: Aula de capoeira para crianças na escola Ursinho da Neném – https://www.youtube.com/
watch?v=pNPy8nGqK6M; Pedro e Arthur de 6 anos na Capoeira – criança vem jogar – https://www.
youtube.com/watch?v=g2GZd1160m4; Kids Capoeira Instructional Video – https://www.youtube.com/
watch?v=BI_3bkY3mO4.
330

as atividades de música e movimento, destinamos sempre algum


tempo para a audição das cantigas;
7. Visita de um professor de capoeira com crianças mais velhas;
8. Apresentação do berimbau;
9. Confecção de pandeiro e berimbau com materiais reciclados3;
10. Realização de atividades pedagógicas que estimulem a observação
do tempo rítmico das músicas da capoeira;
11. Visita de um dos pais das crianças (professor de capoeira) com o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


irmão de um dos bebês;
12. Contação da história “O herói de Damião em a descoberta da
capoeira”, de Iza Lotito;
13. Exposição de instrumentos e roupas de capoeira para as crianças:
a creche abriga uma roda de capoeira nos dias de segunda, quarta
e sexta, a partir das 17h30. Pedimos ao grupo que trouxesse, para
o dia da apresentação, os instrumentos da capoeira, bem como as
roupas utilizadas. Além desse material, ele também disponibilizou
o estandarte do grupo de capoeira.

Terceira etapa

14. Confecção do instrumento caxixi com material reciclável, usado


na capoeira4;
15. Ensaios abertos para apresentação das crianças em Mostra Cultural
da Secretaria de Educação com a participação de familiares das
crianças que praticam a capoeira;
16. Confecção de moldes com papelão das crianças jogando capoeira,
para produção de um painel tridimensional. Esses moldes foram
feitos do tamanho das crianças, com movimentos da capoeira para
montagem do painel.

Quarta etapa

17. Audição da música Oh, Berimbau, do grupo Olodum;


18. Apresentação da roda de capoeira para a creche: Após três semanas
de ensaios livres e dois ensaios abertos, realizamos uma pequena

3 Cf. dica para confecção de instrumentos em Como fazer um pandeiro com material reciclável – Artesanato
Passo a Passo! (artesanatopassoapassoja.com.br)
4 Cf. vídeo em Aprenda a fazer seu caxixi de material Reciclável – https://www.youtube.com/
watch?v=Lwhu7buzE2w.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 331

apresentação para as crianças de outras turmas na creche, no salão


de eventos que dispomos para as festividades escolares;
19. Apresentação dentro da mostra cultural do Projeto Voarte, organi-
zado pela Secretaria da Educação, dia 06 de setembro de 2018: soli-
citamos às famílias que vestissem as crianças com roupas brancas,
fazendo referência à roupa utilizada na capoeira. As crianças pude-
ram, então, não apenas jogar capoeira entre elas, mas também foram
incentivadas a convidar as demais pessoas que estavam na plateia;
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

20. Relato dessa experiência na I Semana de Pedagogia dos Malês, dia


17 de abril de 2018.

Com o desenvolvimento do projeto, notamos o interesse dos/as bebês em


movimentar-se a partir dos jogos de corpo aprendidos nas aulas de capoeira
ministradas por amigos/as e familiares; além disso, o interesse pelo som dos
instrumentos utilizados na capoeira e nas cantigas também foi grande; notamos
também a ampliação do vocabulário dos/as bebês, que passou a contar com
expressões da capoeira. Estas conclusões demonstram o quão importante é
que a creche, em qualquer etapa da educação básica, se ocupe de apresentar
às crianças sua própria história e cultura.

Saberes das crianças negras compartilhados na creche

Conforme o projeto ia acontecendo, começamos a perceber que ele se


constituiu a partir de uma experiência viva, transformada a partir do contato
com as/os bebês e com seus próprios interesses, e não como uma ideia estéril
que saiu da cabeça de adultos/as que pouco tinham contato com os/as bebês.
Além daquilo que aqui já foi salientado, algumas observações valiosas pude-
ram ser retiradas dos registros diários que fazíamos em um caderno:

1) Gênero: a turma contém 10 meninos e apenas 5 meninas. Notamos


que, no início das atividades de movimento, as meninas participa-
vam menos, mas não sabíamos dizer se notávamos a não partici-
pação delas porque eram em menor número, e isso nos chamava
mais atenção, ou se havia algum tipo de cerceamento à atividade
do jogo por serem meninas. Com o passar do tempo, notamos que
as meninas participavam, mas, por serem poucas – nos dias em que
estas faltavam, o número poderia ficar entre 2-3 meninas –, sua
ausência fazia uma enorme diferença no recorte de gênero, caso
não desejassem participar da atividade de movimento. Estivemos
332

atentas para estimular a participação das meninas nas atividades de


movimento durante todo o projeto e não refrear sua livre expressão;
2) Capoeira versus briga: quando as crianças começaram a movimen-
tar-se livremente para o jogo da capoeira, pensamos se, por ventura,
elas não usariam os gestos do jogo para machucarem-se entre si ou
em momentos em que estivessem brigando. Observamos que tal
ação não ocorreu e, apesar de sabermos, a partir do conhecimento
da história da capoeira, que ela foi/é usada não apenas para defesa,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mas também para ataque, não presenciamos nenhuma cena em que
as crianças utilizaram o que estavam aprendendo para tal finalidade.
Essa observação é importante, já que não temos a intenção de esti-
mular tais ações entre as crianças. Além disso, ela demonstra que
os/as bebês foram exímias em observar de que modo a capoeira lhes
foi apresentada no espaço da creche, dela fazendo uso como jogo,
dança, enfim, como arte corporal e não como ferramenta de ataque.
Este saber, inscrito nos corpos, demonstra sutilmente o domínio
de uma técnica específica de aprender a capoeira. É certo que nem
nós imaginamos tais análises ao postular o projeto; neste sentido,
aprendemos a ver a partir daquilo que as crianças nos apresentaram;
3) Aprender com o corpo: observamos as crianças nas mais variadas
atividades e suas ações demonstraram o quanto elas prestaram aten-
ção nas atividades propostas, em detalhes que talvez não tivéssemos
dimensionado inicialmente. Ao exibir os vídeos com as instruções
dos movimentos da capoeira, as crianças já passaram a “repeti-los”.
Utilizo a palavra repetir entre aspas porque entendo que as crianças
não repetiram o que viram, mas criaram movimentos a partir daquilo
que podiam fazer de acordo com suas possibilidades – o que viram,
além sempre retirarem o sapato para iniciarem o jogo, mesmo sem
ninguém lhes ter dito que era necessário. Em alguns momentos,
uma das crianças chegou a retirar a blusa, dando a entender que
havia também observado alguns jogadores sem camisa. O pandeiro,
objeto muito desejado pelas crianças, também foi recriado nos brin-
quedos, já que algumas crianças utilizavam os brinquedos como se
estivessem a tocar o instrumento;

A partir do projeto, notei que as crianças passaram a expressar seus


interesses e preferências não apenas no âmbito do projeto, como quando
pediam que trocássemos as músicas para que pudessem dançar capoeira;
passaram a escolher as cores que mais gostavam, os livros que queriam ler e
os brinquedos, não aceitando apenas aquilo que lhes dávamos, mas também
negociando seus interesses. Penso que o modelo do projeto, pensado para
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 333

aceitar as interferências das crianças, colaborou para a construção de um


clima de troca e mais horizontal entre nós e as crianças.
Os/as bebês não demonstraram dificuldade em acompanhar as atividades
propostas, portanto, não avaliamos que houve alguma atividade com algum
nível de dificuldade para elas/es; havia, é claro, maior ou menor interesse para
realizar esta ou aquela tarefa, mas todas/os se saíram muito bem nas atividades
nas quais se empenharam. Os desafios que surgiram foram superados pelas
crianças, além daqueles que elas/es mesmo se colocaram ao longo do projeto.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Entendemos que as possibilidades de aprendizagem dos/as bebês são sempre


infinitas quanto mais forem as oportunidades a que tiverem acesso; assim,
tenho em mente que esse projeto é apenas a partida para o início de muitas
atividades que levem em consideração os saberes das crianças inscritos no
corpo e os saberes locais referentes à população negra brasileira. Os desafios
que temos de superar, ainda hoje, dizem respeito não apenas à estrutura física
para o atendimento das crianças pequenas no município, que ainda não é
adequada para conseguirmos realizar mais atividades com as/os bebês, mas
também o de aprender com as crianças estratégias de escuta sensível e de
convivência coletiva, além de descobrir como estabelecer entre nós, crianças e
adultos/as, relações mais horizontais e partilhadas. Essas ações vão colaborar
para a construção de um espaço educativo mais democrático e de relações
mais horizontais entre adultos/as e crianças.
Percebemos sensivelmente, no cotidiano das/os bebês, que as aprendi-
zagens no âmbito do projeto puderam ser observadas quando:

a) Uso do vocabulário da capoeira (oralidade): os/as bebês incluíram


nas palavras que estão iniciando a falar algumas que passamos a
utilizar por conta do projeto;
b) Música: as cantigas de capoeira foram incorporadas ao cotidiano
da creche;
c) Movimento: as/os bebês passaram a utilizar os movimentos bási-
cos – aprendidos através da observação e prática – nas atividades
de movimento;
d) Ritmo: as palmas que aprenderam a bater no ritmo das canti-
gas também foram usadas para marcar o ritmo – e o tempo – em
outras atividades;
e) Interação: as relações entre as/os bebês foram ampliadas porque, além
de terem contato com outras crianças e outros/as adultos/as, também
passaram a brincar mais juntas sem o uso de brinquedos, o que também
é muito importante para que se conheçam e aprendam a viver juntas;
334

f) Artes plásticas e visuais: os/as bebês foram estimulados a realizar


diversas atividades com materiais diferentes, ampliando o acesso
à produção artística.

As crianças interagiram com o tema de maneira gradual; ao passo que


conheciam mais sobre a capoeira, sentiam-se mais à vontade para participar
das atividades, jogar, bater palmas, cantar, desenhar e criar. Entre elas, como
já havia a interação por se conhecerem, as atividades foram importantes para

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


mantê-las coesas no grupo de bebês. Inicialmente, pensamos ser importante
fazer com que as crianças desejassem jogar capoeira, sem que fosse uma
obrigação por conta do projeto ou por um pedido nosso. Inserir a capoeira
nas atividades da rotina – cantigas na roda de conversa, cantigas na hora da
música e do movimento, vídeos sobre capoeira nos momentos de vídeo, entre
outras estratégias – preencheram o tempo das crianças com a linguagem da
capoeira, o que fez com que elas se sentissem estimuladas a jogar e manifestar
no corpo a apropriação da linguagem da capoeira. Vimos também que algumas
crianças conseguiam acompanhar o ritmo das cantigas com as palmas mais do
que outras; chamamos a atenção para tal ação e fizemos com que as crianças
que demonstravam mais facilidade para esta atividade pudessem ajudar outras
a encontrar o ritmo, não apenas com as palmas, mas também com a produção
de sons em outros objetos (mesa, cadeira etc.).

Considerações finais

Sabemos que a avaliação, na educação infantil, não deve ter a intenção


de promoção das crianças para uma etapa seguinte, a saber, o ensino funda-
mental (RCNEI, 1998; DCNEI, 2009). Nesse sentido, quando consideramos
avaliar aqui, desejamos avaliar todo o processo de realização do projeto, do
envolvimento e da participação de toda a equipe escolar, do envolvimento dos
bebês e das experiências que foi possível oferecer a eles/as. Nesse contexto,
entendemos que só podemos avaliar se avaliamos o contexto em que o projeto
foi desenvolvido, e estimulamos que as demais etapas da educação também
possam compreender a avaliação como parte de um processo formativo, e não
um momento estanque em que se miram apenas os resultados de uma prática.
Reforçamos, assim, nossa filiação aos pressupostos teóricos explicitados não
apenas nos documentos legais brasileiros, mas também às teorias que balizam
estes documentos, produzidas a partir de experiências de diversas redes de
atendimento às crianças pequenas no Brasil e no mundo (RCNEI, 1998).
Os objetivos, tanto aquele geral como os específicos, davam conta de
buscar preencher lacunas no que diz respeito ao trabalho pedagógico com a
história e a cultura da cidade de São Francisco do Conde; a partir do contato
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 335

com a comunidade escolar é que fomos desenhando práticas possíveis para


a realização daquilo que esperávamos acontecer. Entendemos que nossos
objetivos foram alcançados e mesmo alargados, pois, quando pensamos no
projeto, não tínhamos ideia do número de atividades que foram organizadas
até o fim, muitas delas vindas do envolvimento das próprias crianças e das
pessoas próximas (familiares e amigos/as).
A forma com que avaliamos a aprendizagem dos/as bebês deu-se a partir
da observação e do registro do envolvimento e participação dos/as bebês nas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

atividades propostas; ainda hoje, as/os bebês solicitam a continuidade das


atividades propostas no cotidiano da creche, demonstrando o interesse em
realizar as atividades do projeto, o que para nós indica o quanto elas foram
absorvidas por elas/es e o quanto estiveram empenhados/as em realizá-las.
Percebemos que os/as bebês, a partir da observação do jogo da capoeira
jogado pelos/as praticantes que nos visitaram, passaram a descalçar os pés tão
somente ouviam o som da capoeira que era tocado no mini system. Essa ação
miúda – não porque insignificante, mas sim porque talvez pudesse passar des-
percebido caso não conhecêssemos o contexto das atividades que estávamos a
desenvolver – demonstrava o quanto os/as bebês estavam atentos/as ao que se
passava ao redor delas/es e recriavam seus modos de fazer e jogar a capoeira.
Entendemos como significativos os momentos em que as crianças expressa-
ram suas preferências, ao pedir que colocássemos as cantigas de capoeira,
verbalizando tal desejo. A incorporação do repertório das palavras existentes
na capoeira no vocabulário das crianças não foi algo inicialmente imaginado,
mas que acabou por se tornar parte das ações que as crianças desempenharam
com desenvoltura; percebemos assim que os objetivos alcançados foram além
do que esperávamos, no contato das crianças com o tema.
É importante ressaltar que não houve resistência com relação ao projeto,
por parte das famílias, mesmo entre aquelas em que não havia capoeiristas.
Podemos inferir que o fato de a capoeira ser algo muito comum na cidade fez
com que atividades escolares envolvendo capoeira não fossem vistas como um
problema; não recebemos nenhuma reclamação das famílias quanto à escolha
do projeto durante e ao final dele. Sabemos que essa não é uma realidade per-
cebida em diversas escolas da Bahia e do Brasil, mas devemos lembrar que
a região onde a cidade está inserida carrega em sua história a luta constante
contra a escravização, sendo a presença da capoeira algo que acompanha a
trajetória da população negra no território.
É também pela especificidade do território e de tudo que ele enseja que
entendemos que este relato de experiência pode colaborar com o registro do
trabalho pedagógico e educativo que tem sido realizado a partir dos saberes
africanos e afro-brasileiros, bem como com a continuidade da Lei 10.639/2003
nas creches brasileiras.
336

REFERÊNCIAS
BRASIL. Ministério da Educação. Parecer CNE/CP nº 3/2004. Diretrizes
Curriculares Nacionais para a Educação das Relações Étnico-Raciais e para
o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e Africana. Brasília, DF, 2004.

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria de Educação Fundamental. Refe-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


rencial Curricular Nacional para a Educação Infantil. Brasília, DF, 1998.

BRASIL. República Federativa do. Ministério da Educação. Lei


nº 10.639/2003. Altera a Lei no 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que esta-
belece as diretrizes e bases da educação nacional, para incluir no currículo
oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade da temática “História e Cultura
Afro-Brasileira. Diário Oficial da União, Brasília, DF, 2003.

CORSARO, William. Sociologia da infância. Curitiba: Artmed, 2001.

RODRIGUES, Tatiane Cosentino. Embates e contribuições do movimento


negro à política educacional nas décadas de 1980 e 1990. In: OLIVEIRA,
Ione; SILVA, Petronilha Gonçalves; PINTO, Regina Pinto (orgs.). Negro e
educação: escola, identidades, culturas e políticas públicas. São Paulo: Ação
Educativa, 2004. p. 251-263.

TRINDADE, Azoilda. Modos de brincar: caderno de atividades, saberes e


fazeres. Rio de Janeiro: Fundação Roberto Marinho, 2010.
SHIRSHASANA DO CONHECIMENTO:
desconstrução do racismo eurocêntrico
Deividi de Santana Silva

Você chegou
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

No meu mundo ao contrário


Me olhou bonito
E entendeu o meu não entender.
(MELLO, 2018).

Shirshasana, postura invertida praticada por yoguis, circenses, ginastas


olímpicos, bailarinos de balé contemporâneo e crianças em suas traquinagens.
Nela, o indivíduo permanece de ponta cabeça enquanto seus sentidos são
atravessados por um mundo que, aos seus olhos, se encontra de pernas para
o ar. Nesse momento, o praticante parece estar acometido por uma síndrome
cerebral rara, conhecida como Má Identificação Delirante, em que o cérebro
não consegue inverter as imagens, que entram por nossas retinas invertidas
e são recolocadas na sua posição natural por este órgão brilhante que guar-
damos no crânio. As pernas, por não possuírem as válvulas de circulação,
diminuem drasticamente a corrente sanguínea; a região da cabeça e do tronco
são irrigadas por uma quantidade extra de sangue; a pressão arterial, depois
de alterada bruscamente nos segundos iniciais, começa a se estabilizar com o
espaçamento de tempo. Dessa forma, a percepção sobre si e sobre os corpos
que tocam nossos sentidos parece estar em outra sintonia, que destoa daquela
a que estamos acostumados1. O mundo, literalmente, parece não ser o mesmo.
Para que as benesses desta invertida aconteçam, indica-se que seus prati-
cantes permaneçam ao menos um minuto, com respirações longas por meio do
septo ventral. Ao desmontarem a shirshasana, deve-se permanecer em bala-
sana, conhecida como a postura da criança, com joelhos e quadris dobrados,
com as canelas tocando o chão, o peito em repouso entre os joelhos, a cabeça
estendida em contato com o solo, os braços ao longo do corpo ou esticados
adiante. Assim, tal momento, posterior à invertida, auxilia na descompressão
dos discos da coluna vertebral, alivia as tensões do pescoço, relaxa as mus-
culaturas recrutadas na execução do movimento anterior

1 Para o presente artigo, não usaremos a concepção de corpo cartesiana, que separa corpo e mente, mas a
concepção de corpo ou corpos será espinosiano. Para Espinosa, o corpo é uma singularidade intercorpórea.
Para ele, os corpos são energias que não são definidas por encontros e choques ao acaso, mas por conexões
e processos de união e decomposição de acordo com maior ou menor compatibilidade. Entretanto, quando
empregamos outro conceito de corpo, e iremos empregar, explicitaremos no artigo.
338

Ao longo dos processos descritos, os iniciados em shirshasana começam


a experienciar os ganhos da invertida. No momento em que os praticantes
estiverem na posição, os principais órgãos da digestão (estômago, intestino
delgado e intestino grosso) serão massageados, aumentando a capacidade de
digestibilidade; a coluna vertebral será descomprimida, diminuindo os incô-
modos lombares; as glândulas suprarrenais liberarão hormônios do prazer,
como serotonina e dopamina; a irrigação sanguínea incomum na região do
cérebro aumentará exponencialmente as sinapses neurais, contribuindo para

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


a concentração dos praticantes (BROAD, 2012).
O devaneio descrito no início do presente artigo, que a princípio parece
estar dissociado do nosso devir pedagógico, pode muito nos ensinar. Na labuta
docente, muitas vezes, para que alcancemos nossos propósitos, como edu-
cadores, devemos estar em “shirshasana” perante o nosso conhecimento e o
modo como lidamos com os educandos. Ferramentas como livros didáticos,
músicas, recursos audiovisuais, passeios, conhecimentos acadêmicos são
instrumentos necessários e importantes para atendermos os estudantes, mas
eles, por si sós, não produzem uma educação emancipadora e libertadora.
Em diversos momentos, precisamos realizar “invertidas pedagógicas”
que busquem apresentar para nossos educandos uma maneira de compreen-
der, assimilar e criar conhecimentos nem sempre encontrados nos manuais.
Inverter a percepção sobre nosso conhecimento a respeito da realidade
e a maneira como lecionamos pode nos proporcionar outra visão perante
nós mesmos, o mundo a nossa volta e, sobretudo, como lidamos com nos-
sas práticas educativas. Entretanto, não incomum, quando colocamos o que
sabemos “de ponta cabeça” podemos sentir certo incomodo, pois, muitos de
nós, ao longo da trajetória como docentes, nos acostumamos a seguir regras
preestabelecidas pelos manuais didáticos, currículos e ordens de terceiros.
Para os educadores que acreditam ser necessário olhar para suas pos-
turas educativas como se estivessem acometidos pela síndrome cerebral de
Má Identificação Delirante, os resultados não chegarão como fast food ou
como uma receita de bolo que, para alcançar o esperado, basta apenas seguir
as instruções. O processo de desconstrução do olhar pode ser lento, com ten-
tativas, erros e sem garantias de sempre realizar as expectativas. Entretanto,
por vezes, devemos optar pelo caminho de intensa reflexão.
O conceito de Corpo sem Órgãos, desenvolvido pelos intelectuais
Deleuze e Guattari, aprimorado no livro Anti-Édipo (2011), pode contribuir
para o entendimento do que venho nominando de “invertida pedagógica”.
A questão ontológica que aparece no Anti-Édipo, o Corpo Pleno, sem
Órgãos, no sentido da substância, tem como premissa que, para criarmos con-
ceitos, precisamos primeiro construir as bases em que eles crescerão. Para os
autores, o corpo é o espaço onde o desejo se move (DELEUZE; GUATTARI,
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 339

2011, p. 30). Nessa perspectiva, o corpo se torna o plano onde circulam as


intensidades não no sentido de uma individualidade, mas de uma base. O órgão
é parte de uma estrutura de um organismo vivo. Todo organismo se compõe
de órgãos, tecidos e sistemas. Sob esse prisma, o órgão pode ser entendido
como um instrumento que mantém o corpo em sua funcionalidade.
Os intelectuais propõem que, para se desvencilhar das estruturas capita-
listas aprisionadas nas sociedades modernas, necessitamos criar um corpo não
capitalista, ou seja, um Corpo sem Órgãos. Para eles, o Corpo sem Órgãos seria
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

uma estrutura construída com a ausência de mecanismos predeterminantes de


ações. A Educação Bancária (FREIRE, 1983) cria resultados determinados
a priori pelas exigências de uma sociedade que busca, na educação, otimi-
zar seus resultados de mais valia e manter suas desigualdades. Presos nessa
pedagogia monetária, não conseguiremos tecer uma educação que privilegie
a justiça, a igualdade social, entre outros elementos do bem coletivo2.
Os conceitos apontados serviram como base para minha desconstrução,
inversão de meu olhar em relação aos educandos e a realidade que me toca.
Coloquei o docente que sou “de ponta cabeça” e inventei, para mim, um Corpo
sem Órgãos. A necessidade de uma nova perspectiva de me perceber como
educando adveio da ânsia de ampliar meus horizontes para trabalhar a Lei
nº 10.639/2003, que altera a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacio-
nal para incluir a obrigatoriedade do ensino da História e Cultura Africana
e Afro-Brasileira.
O relato a seguir trata-se de parte de uma série de mediações pedagógi-
cas permeadas por um processo dialógico e uma metodologia ativa com os
educandos, por meio de investigações sobre práticas racistas e eurocêntricas
que permeiam o nosso vivido. No decorrer do caminho, o leitor percorrerá um
arcabouço de estratégias educacionais que envolvem o trabalho com mapas,
visões sobre o Egito, dança e canção, e um sarau em prosa e poesia que ques-
tionam o eurocentrismo para promover uma educação antirracista.

Mapa como ideologia


[...] Esse ocultamento da realidade chama-se ideologia. Por seu intermédio,
os dominantes legitimam as condições sociais de exploração e dominação,
fazendo com que pareçam verdadeiras e justas (CHAUÍ, 2008, p. 23).

Em uma tarde de quinta-feira, os estudantes do oitavo ano entraram


na sala de leitura e a encontraram com as cadeiras dispostas em um círculo.
2 Para Freire, o termo bancário significa que o docente vê o educando como um banco, no qual deposita o
conhecimento. Na prática, quer dizer que o estudante é como um cofre vazio em que o professor acrescenta
o conhecimento.
340

Com certa liturgia, sentaram-se em seus assentos, com cadernos e canetas


à espera da aula. O que capturava suas retinas era o mapa-múndi no centro
da roda de conversa. Perante a perplexidade instalada entre os discentes, os
cumprimentei e solicitei que se voluntariassem para explicar o planisfério de
acordo com seus conhecimentos. Como era habitual, diversos estudantes se
dispuseram a colaborar com a atividade proposta. Selecionei cinco educandos
e pedi que realizassem a leitura do mapa. Ao longo da atividade, as respostas
dos discentes se assemelhavam, apenas com pequenos acréscimos.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


As chaves explicativas baseavam-se em apontar os pontos colaterais
(Norte, Sul, Leste e Oeste), a Linha do Equador, Meridiano de Greenwich,
Latitude e Altitude. Ao terminarem suas explicações, perguntei se alguém
poderia nos trazer outras respostas a respeito do mapa, que não haviam sido
comentadas anteriormente.
Com expressões que transpareciam apreensões e dúvidas, a turma foi
unânime ao responder que, para dar outra resposta, precisaria de outro mapa.
Os discentes apontaram diversos dados que poderiam estar em outros pla-
nisférios. Em linhas gerais, disseram que existiam mapas que privilegiavam
o clima, a vegetação, tensões políticas e outros.
Nessa altura, retomei a palavra e explanei o que se tornaria o ponto
nevrálgico do debate, o momento da invertida pedagógica. De saída, os para-
benizei e disse que as diversas análises estavam corretíssimas. Entretanto,
haveria outras chaves explicativas que poderiam mostrar outros detalhes a
respeito de nosso objeto de investigação. Para tanto, inseri a análise do histo-
riador britânico Edward Palmer Thompson (1997) sobre o “não dito”, conceito
utilizado para compreender os diversos interesses que sustentam a intenção
da produção de determinado documento ou ideia3.
Todo documento carrega consigo paradigmas que estruturam a maneira
como percebemos a realidade e interpretamos nossas relações sociais no tempo
e espaço. Diversos conceitos e ideias encontram-se invisibilizados de nossas
percepções concretas acerca do modo como vivemos e agimos. Todavia, as
produções humanas que estão implícitas ou explícitas operam com a mesma
intensidade sobre o modo como nos articulamos, individualmente e coleti-
vamente, na teia de relações humanas.
Após a explicação, iniciei algumas provocações. Primeiro, nosso planeta
é um círculo elipsoide que gira em torno do sol. A Terra, nesta disposição

3 Em seu livro: Senhores e caçadores, o historiador inglês Thompson emprega o conceito do “não dito”
para compreender as ações dos agentes sociais das camadas populares que não estavam presentes nos
documentos produzidos pelo Estado. Entretanto, Thompson não negligencia os documentos oficiais, apenas
aponta a necessidade de criar outro olhar para alcançar a ação dos sujeitos históricos que não estavam
presentes implicitamente na documentação disponível. Ver: THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e
caçadores: a origem da Lei Negra. Tradução: Denise Bottmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997.
(Coleção Oficinas da História).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 341

plana, carrega em si uma incapacidade de compreensão da realidade em sua


totalidade. Sob este ponto de vista, as coordenadas geográficas, entre outros
modos de análises, eram passíveis de serem questionadas como único modo
de entendimento. Solicitei aos adolescentes que pensassem os motivos de o
Continente Europeu estar ao Norte e não ao Sul. Antes que pudessem res-
ponder, projetei, no slide, dois mapas e expliquei brevemente o contexto de
produção de cada um deles.
Produzido pelo pensador e matemático grego, Anaximandro de Mileto,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

no século IV a.C, o mapa baseado no conhecimento dos navegantes do período


foi uma das primeiras representações circulares de nosso planeta, conforme
pesquisas históricas, e sua disposição circular serviu como base para produ-
ção de mapas posteriores. Ele se limitava às terras conhecidas pelos gregos4.
Os mapas se assemelham por serem circulares e por apontarem os mes-
mos três continentes: Europa, Ásia e África. Entretanto, o mapa de Richard
of Haldingham of Lafford, desenhado no século XVIII, mostra a alteração
do espaço pela ação humana. Conhecido como o maior mapa do medievo,
o planisfério possui cerca de 500 desenhos: 420 vilas e cidades, 15 eventos
bíblicos, animais, plantas, além de 32 imagens de povos do mundo e oito da
mitologia greco-romana5. No mapa, a cidade de Jerusalém se encontra no
centro do mundo, da vida e da espiritualidade6.
Com olhares de “sacação”, depois da breve explicação sobre os mapas,
os estudantes começaram a dar diversas respostas a respeito dos motivos de
o Continente Europeu estar ao Norte e não ao Sul. Respostas como: “pode-
mos até utilizar as coordenadas, mas não com o mesmo sucesso”; “o Norte,
provavelmente estaria em outro lugar”; “as intenções de quem produziu os
mapas eram outras”.
Reassumi as vozes para dizer que os mapas, normalmente, dizem respeito
à visão de mundo de quem os criou e de grande parcela da sociedade em que
os cartógrafos estão inseridos. No primeiro desenho, temos o olhar dos gregos
sobre nosso planeta, motivados, provavelmente, por interesses comerciais
com povos asiáticos e líbios; no segundo desenho, há uma visão eclesiástica
e helenística que entendia o mundo como a união destas duas culturas.
Em suma, os mapas podem ser utilizados para rotas comerciais e mesmo
para sustentar discursos que dividem sociedades entre evoluídas e atrasadas,
civilizadas e bárbaras, exploradoras e exploradas, ocultadas e visíveis. Pon-
tuei com a turma que nossa intenção era de entender os discursos não ditos

4 Disponível em: https://medium.com/petrobras/5-mapas-que-explicam-como-as-sociedades-viam-o-mundo-


-a98eb4155e79. Acesso em: 17 jul. 2019.
5 Idem.
6 Para ilustrar melhor a explicação sobre os mapas, foi utilizado o seguinte vídeo legendado https://www.
youtube.com/watch?v=n4uHbTtWbe8. Acesso em: 20 abr. 2021.
342

presentes nos mapas. Ao terminar o encontro, entreguei aos estudantes o


artigo impresso e exibi a palestra de Chimamanda Ngozi Adichie: O perigo
de uma história única (ADICHIE, 2019)7. Pedi que lessem e assistissem ao
vídeo para o próximo encontro.

Egito em um não lugar


Não só este passado não é o mesmo para todos, como ainda a sua recor-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


dação se modifica para cada um de nós ao correr do tempo: tais imagens
mudam à medida que se vão transformando os saberes, as ideologias,
à medida que se altera, nas sociedades, a função da história. (FERRO,
1994, p. 55).

Em nosso encontro, como de costume, iniciamos com a roda de conversa


na sala de leitura. Nessa mediação, o mapa que serviu de âncora do encontro
anterior não mais ocupava o centro da sala, mas daria o ar e a graça de nossa
aula. Perguntei para os adolescentes em qual região do planeta se encontrava
o Egito. As respostas colocavam o Egito em três lugares: Europa, Oriente
Médio e África.
Explanei com a turma que as respostas diversas, muito além de seus sabe-
res prévios sobre geografia, eram provenientes de uma construção de saberes
acadêmicos, aulas de história e interesses estratégicos de nações europeias
que, por muito tempo, perceberam, e em certos casos ainda entendem, o Egito
como uma extensão da Europa.
Depois dessa explicação, uma estudante perguntou sobre a construção da
sociedade egípcia, como uma continuidade da Europa, e se tratava daquilo que
eu havia nominado no encontro anterior de intenções implícitas presentes em
documentos e ideias. Respondi que, em certo sentido, sim, uma vez que uma
representação do Egito havia sido capturada pelo eurocentrismo, responsável
pela criação de uma visão como ordenadora civilizatória do mundo. Sendo
assim, para os povos do Velho Continente, o berço da civilização humana e
o ápice do progresso humano estariam na Europa.
Sob esse prisma, para os europeus não reconhecerem o Egito como
continuidade da Europa seria o mesmo que, de maneira velada, admitirem as
civilizações do Sul como produtoras de culturas e conhecimentos superiores
às sociedades do Velho Continente. Os egípcios desenvolveram elementos,
como arquitetura, medicina, engenharia, matemática, bem antes de muitas
civilizações europeias.

7 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY. Acesso em: 19 abr. 2021


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 343

Com certo insight, outro educando, corroborando com a linha narrativa


que desenvolvíamos, nos disse que provas do “ar de superioridade” dos povos
europeus eram as hipóteses de que as pirâmides egípcias e outras tecnolo-
gias tinham sido produzidas por extraterrestres. A perspicácia do estudante
provocou uma série de risos e comentários dos seus colegas que diziam que
os europeus eram tão pobres de espírito, pois optavam por acreditar em alie-
nígenas em vez de reconhecer a capacidade de outros povos não europeus.
Aproveitei o clima entre adolescentes para perguntar se, em algum
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

momento de suas vidas, haviam assistido a um filme que retratava Cleópatra


como negra. As respostas eram cravadas em seus rostos, provocados pelo
entendimento do que estávamos discutindo e uma indignação de saberem
como o racismo opera nas relações mais sutis que passam diversas vezes por
nós. Como bem demostrou o africanista congolês Yves Mudimbe (MUDIMBE,
1988), as categorias e sistemas conceituais do Egito, por muito tempo, depen-
deram de uma ordem epistemológica ocidental, que se tornaram responsáveis
por “educar” nosso olhar a respeito da sociedade egípcia.
Procedendo à aula, abordei a trajetória de vida da intelectual negra Chi-
mamanda para mostrar como modos de vida e de entendimento da realidade
podem ser cortinados pelas mazelas raciais que permeiam sociedades inteiras.
Pontuei com os discentes que estávamos desenvolvendo, em nossa mediação,
um olhar que o africanista brasileiro Carlos Lopes (LOPES, 1995) nominou
de “pirâmide invertida da historiografia”, em que egiptólogos africanos, como
Joseph Ki-Zerbo, Theóphile Obenga e Cheikh Anta Diop, passaram a estudar
o Egito para desconstruir egiptólogos racistas que desconsideravam as raízes
negras do Egito.
Pontuei que o racismo era estrutural e não se restringe apenas à sociedade
brasileira, mas permeia o mundo como um todo e direciona políticas públicas,
vagas de emprego, relações afetivas, níveis de escolaridade e, sobretudo, a
autoestima de pessoas que são acometidas pelo racismo (ALMEIDA, 2018).
Ao término da mediação, explicitei que os povos europeus tiveram um
papel relevante na construção do mundo contemporâneo, e muitas destas
contribuições eram importantes, como a literatura, a arte, a ciência, a cultura
e outras, mas que precisávamos compreender o mundo sob vieses de povos,
em especial negros e indígenas, que são igualmente importantes para a cons-
trução da sociedade brasileira e mundial8.

8 Em outro módulo do Projeto Mais Educação, que nominei: “O Egito e Uma Nova Ordem Decolonial”, abor-
damos três visões acadêmicas sobre o Antigo Egito: uma que considera sua origem como indo-europeia;
outra que defende a origem como africana; e a mais recente que privilegia uma formação mista desde os
primórdios. Minha intenção era de abordar as pesquisas acadêmicas sobre o Egito e as lutas antirracistas
a partir do movimento panafricanista ao longo do século XX.
344

Criação de ficções e (des)construção de corpos


A dança é o meio de dizer o indizível, da mesma forma que a característica
da poesia é ultrapassar o sentido estrito das palavras (LABAN, 1978, p. 9).

Ao entrarem na sala de leitura, os educandos não sabiam, mas a dinâmica


do dia consistiria em despertar e criar um plano em que seus corpos não se
movessem por movimentos preestabelecidos, mas por conexões e processos de

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


união e decomposição de acordo com maior ou menor compatibilidade. Para
tanto, (des)organizei a sala com cadeiras empilhadas no canto, dois projetores
posicionados de lados opostos e a única iluminação era a que passava entre as
brechas das cortinas. Neste momento de estranheza, provocada pela alteração
do espaço, solicitei aos estudantes que colocassem suas mochilas empilhadas
em algum canto da sala e, se sentissem vontade, poderiam tirar seus calçados.
Perante a perplexidade dos adolescentes, disse como seria a dinâmica
do dia: iríamos nos postar em círculo, realizaríamos cinco longas respirações
pelo septo ventral de olhos cerrados e, assim que o som da música começasse,
deveríamos nos movimentar, mesmo com movimentos quase estáticos. Relatei
que cada corpo possuía sua dança, uma gramática própria de perceber e ser
percebido pelos atravessamentos do mundo. A intenção com essa explanação
era propor uma pedagogia que pudesse desconstruir corpos domesticados pela
escola e pela sociedade (FOUCAULT, 2009).
Realizadas nossas longas respirações, apertei o play, e o clipe da canção
chamada Diáspora, do artista Thiago Elniño, começou a tocar9. Nessa hora,
nossa roda naturalmente se dissolveu; as alunas, algumas iniciadas em balé,
começaram a passear realizando movimentos que lembravam danças con-
temporâneas; os meninos, em sua maioria cautelosos, caminhavam a passos
curtos como quem anda na beira de um penhasco.
À medida que repetidamente o refrão tocava: “Busca sua raiz, vai/ Busca
sua raiz, vai/ Busca sua raiz / Ou morra pela raiz”, mesmo com minha visão
semicerrada, sentia como se a música criasse intensidades que atravessavam
nossos corpos, enquanto nosso dançar, receoso ou espontâneo, desbravava
nossos espaços internos e externos.

9 Nascido em 1988, na cidade de Volta Redonda, Rio de Janeiro, Thiago Miranda se envolveu com a música
por volta dos 15 anos de idade, seu nome artístico, Thiago Elniño, adveio de sua alteração drástica de
temperamento nos palcos em que alterna momentos tranquilos e tempestivos em suas performances artís-
ticas. Seus videoclipes, com letras fortes e viscerais, denunciam o racismo e tratam de questões ligadas à
ancestralidade como mecanismo de construção da identidade do Povo Preto. Suas músicas “Amigo Branco”
(2013), “Diáspora” (2016) e “Pedagoginga” (2017) sintetizam seu trabalho que vai além de apresentar
músicas, mas sim de usar a arte como mecanismo de luta e emancipação social. Para ver o clipe: https://
www.youtube.com/watch?v=L6q2EkkQLLs. Acesso em: 10 out. 2019.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 345

Ao acabar a música, abri vagarosamente as cortinas, para que a luz do


sol pudesse entrar com maior tenacidade na sala, e pedi que novamente nos
acomodássemos em círculo, sentados no chão ou em cadeiras. Isso feito,
iniciamos as escutas de diversas experiências percorridas naquele momento.
As experiências ouvidas foram diversas. Era consenso entre os adoles-
centes que, no decorrer da canção, passear na sala de aula se tornava mais
natural, e a timidez passava despercebida. Algumas das estudantes contaram
que a sensação era semelhante àquela sentida na aula de dança ou mesmo em
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

casa, quando dançavam e cantavam sem que ninguém as estivesse olhando.


Cativou-me, em particular, o depoimento de um estudante negro que, por
meio da citação de parte da letra da música: “Foi por falta de identidade, /Que
eu vacilei, ramelei, / não vi que eu era bem diferente dos caras que estavam
ali”, discorreu um discurso a respeito de como ele, negro, havia negligenciado
sua cor para se enquadrar nos padrões da branquitude da escola e da sociedade.
Depois de inclinarmos os ouvidos para o depoimento deste estudante,
os colegas espontaneamente começaram a citar diversos relatos baseados em
peças publicitárias, telenovelas, no próprio cotidiano escolar em que negros e
negras são praticamente obrigados a podar suas raízes para se adaptar a uma
sociedade racista como a nossa. Acabei a mediação desde dia solicitando aos
discentes que, novamente, ouvissem a canção e refletissem se era possível
recuperar uma identidade negra semelhante à relatada na música Diáspora.

África um Maya Potente


Existe uma história dos negros e da África sem o Brasil, mas não existe
uma história do Brasil sem os negros e sem África (GARCIA, 2006, p. 24).

Ao entrarem para mais um dia de mediação, os estudantes encontraram


um elemento estranho no centro da roda: uma caixa. Antes que um ar de
estranhamento pairasse no ambiente, solicitei que pegassem um dos pequenos
escritos dentro do recipiente. A caixa continha pequenos textos de intelectuais
reconhecidos por debaterem o racismo. Autores e autoras, como Ângela Davis,
Beatriz Nascimento, Conceição Evaristo, Frantz Fanon, Florestan Fernandes
e outros, davam o ensejo de nossa dinâmica10.
10 Ressalto aqui que nos dois módulos anteriores ao presente relato, discutimos as autoras e autores men-
cionados. Os módulos foram: “Vacas Sagradas da Intelectualidade Brasileira e a Questão Racial”, em que
trabalhamos as perspectivas raciais de autores, como Nina Rodrigues, Gilberto Freyre e Florestan Fernandes,
para compreendermos o papel dos intelectuais na manutenção ou denúncia do racismo em nossa sociedade;
e “Nanã e Jaci Nosso Território de Potência”, trabalhadas nos meses de junho e julho, em comemoração
ao dia 25 de Julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha, em que, por meio do
estudo da trajetória de mulheres negras e indígenas, debatemos os papéis de mulheres negras e indígenas
na academia e na militância nas batalhas antirracistas.
346

Após pegarem seus textos, dei um tempo para que lessem e trocassem
com os colegas. Realizado o processo de leitura, começamos a escrever poe-
mas e prosas a respeito da cultura negra e do racismo estrutural e suas inter-
secções de gênero, classe e tons de pele. Nesse encontro, e nos dois seguintes,
compartilhamos nossos poemas e prosas em um sarau, no qual cada educando
se posicionava no centro da roda para declamar seu poema ou ler sua prosa.
A cada prosa lida ou poema declamado por um estudante, investigávamos
juntos o texto. Em alguns escritos, cerramos os olhos para imaginarmos o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


acontecido; em outros, caminhávamos livres pela sala para elevarmos nossa
intensidade. Os textos escritos abordaram diversos temas a respeito da ocul-
tação com que pretos e pretas são tratados; o Black Power como valorização
dos povos negros; relatos de denúncia do racismo; a necessidade da luta
antirracista para emancipação da comunidade negra e outros temas. O poema
“Para os que nos enterram: somos sementes” (RABAQUIM, 2019, p. 147),
escrito por um de nossos estudantes em nossos momentos de interação, foi
parte de nossas imersões pedagógicas11.
Caracterizo tal poema como um épico da negritude, pois narra a origem,
a saga e o desenvolvimento das etnias no Continente Negro, pessoas que, arre-
batadas de seus modos de vida e culturas, passaram a ser escravizadas: “Na
raiz da humanidade, o negro é a semente/ em seu caule, as etnias cresceram/
em seus galhos, a praga do preconceito se instalou/ No início do cotidiano
cultural/ depois a escravidão” e, após a conquista da tão sonhada liberdade,
ainda permanecem em submissão por moradias precárias, pobreza, pelo ódio,
pela ausência de políticas públicas. Todavia, apesar das condições inóspitas,
negros e negras continuam suas lutas que, como termina o poema, “terá final
de superação”.
Mais do que sintetizar séculos da triste história de muitos negros, negras
e seus descendentes, o poema cria Mayas possíveis. Mayas, uma palavra
sânscrita, que pode ser traduzida como ilusão ou ficção – seu sentido não diz
respeito à criação de uma irrealidade, mas sim à construção de uma reali-
dade que deve ser imaginada, como plena em si mesma, possuidora do poder
de construção de uma sociedade concreta em que as mazelas que nos ator-
mentam, em nosso caso o racismo, possam ser extirpadas para produzirmos

11 Após uma palestra na EMEF JARDIM MONTE BELO, ministrada por Natanael dos Santos, professor da
Faculdade Zumbi dos Palmares e militante do movimento negro desde os anos oitenta, recebemos o con-
vite para participarmos de um concurso organizado pela Faculdade Zumbi dos Palmares em parceria com
Divisão Pedagógica da SME. Disse a ele que, em um dos módulos do Projeto, havia trabalhado a escrita
de prosa e poesia com os estudantes, conversei com os estudantes a respeito do concurso e disse que,
se quisessem, poderíamos participar com nossos textos já escritos. Os educandos animados aceitaram e
enviamos nossos escritos. Participamos do concurso literário com certo êxito. Os escritos produzidos por
estudantes de nossa unidade escolar podem ser encontrados no livro Estes africanos Brasileiros, de Regina
Brunhns Andrade.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 347

as bases de uma sociedade justa e igualitária. A urgência de superarmos o


racismo passa, impreterivelmente, por uma educação antirracista que rompa
com o eurocentrismo.

Conclusão

Deleuze e Guattari (2011) nos apontam que, para superarmos o aparelho


do Estado e seus modos operantes institucionalizados, devemos criar máquinas
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

de guerra criativas. Assim, por vezes, educar deve ser entendido como uma
ação constante de mudanças para avançarmos nas prescrições dos currículos e
dos modos de ensinar ainda estanques. O relato pedagógico descrito, ao longo
do presente artigo, mais do que representar uma ruptura com uma Educação
Bancária é, antes de tudo, uma construção de uma educação antirracista.
Para tanto, coloquei a maneira como lecionava de “ponta cabeça” e passei
a imergir em outros caminhos necessários para a aprendizagem dos educandos.
Desse modo, criamos outras perspectivas sobre as questões raciais e as mazelas
de nosso país. Entretanto, devo ressaltar que nossa “invertida pedagógica” não
se trata de sistematizar um novo padrão, mas sim de proporcionar um olhar
nômade sobre o conhecimento que, impreterivelmente, deve ser revisitado
para não se tornar sedentário.
Em nossa caminhada, passeamos por mapas e criamos outro olhar para
percebermos as intenções de um documento ou ideia, por vezes, ocultadas.
Percorremos o Egito, que nos aparece no imaginário coletivo como um não
lugar, para desconstruir o eurocentrismo que nos impede de perceber o desen-
volvimento da humanidade para além do Velho Continente; pela dança e pela
canção, criamos corpos espinosianos para dissolver uma visão cartesiana,
que separa corpos e mentes, e assim aumentar nosso espaço de contato com
o mundo. Por último, realizamos nosso sarau, no qual cada adolescente, por
meio da prosa e poesia, expressou visões sobre o racismo e, acima de tudo,
criou linhas criativas antirracistas.
348

REFERÊNCIAS
ADICHIE, Chimamanda Ngozi. Os perigos de uma história única. Tradução:
Julia Romeu. São Paulo: Cia das Letras, 2019.

ALMEIDA, Silvio Luiz de. O que é racismo estrutural? Belo Horizonte,


MG: Letramento, 2018.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


ANDRADE, Regina Brunhns; SANTOS, Natanael dos (orgs.). Estes Afri-
canos Brasileiros. São Paulo: BAOBA, 2019.

BROAD, William. A moderna ciência do Yoga: os riscos e as recompensas.


Rio de Janeiro: Valentina, 2012.

CHAUÍ, Marilena, O que é ideologia. São Paulo: Brasiliense, 2008.

DELEUZE, G.; GUATTARI, F. O anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia


1. São Paulo: Editora 34, 2011.

DESCARTES, René. Discurso do método. Tradução: J. Guinsburg; B. P.


Júnior. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983.

ESPINOSA, Baruch. Ética. Lisboa: Relógio d’Água, 1992.

FERNANDES, Dirley (org.). O que você sabe sobre a África?: uma viagem
pela história do continente e dos afro-brasileiros. São Paulo: Nova Fron-
teira, 2016.

FERRO, Marc. Falsificações da história. Portugal: Fórum da História, 1994.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro:


Vozes, 2009.

FREIRE, Paulo. Pedagogia do oprimido. 17. ed. Rio de Janeiro: Paz e


Terra, 1983.

GARCIA, Januário (org.). 25 anos 1980-2005: movimento negro no Brasil.


Brasília: Fundação Cultural Palmares, 2006.

LABAN, Rudolf Von. Domínio do movimento. São Paulo: Summus, 1978.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 349

LOPES, Carlos. A pirâmide invertida: historiografia africana feita por afri-


canos. In: COLÓQUIO CONSTRUÇÃO E ENSINO DA HISTÓRIA DA
ÁFRICA. Actas... Lisboa: Linopazas, 1995.

MELLO, Fernanda. O mundo tá ao contrário. Blog Mensagem das flores,


2018. Disponível em: https://mensagemdasflores.blogspot.com/2018/06/o-
-mundo-ta-ao-contrario.html. Acesso em: 12 maio 2021.

MUDIMBE, Yves. The invention of Africa: gnosis, philosophy and the order
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

of knowledge. London: James Currey, 1988.

RABAQUIM, Lucas. Para os que nos enterram somos sementes. In: RABA-
QUIM, Lucas; ANDRADE, Regina Brunhns, SANTOS, Natanael dos (org.).
Estes Africanos Brasileiros. São Paulo: BAOBA, 2019. p. 147.

THOMPSON, Edward Palmer. Senhores e caçadores: a origem da Lei Negra.


Tradução: Denise Bottmann. 2. ed. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1997. (Coleção
Oficinas da História).

Sites

Disponível em: http://portal.sme.prefeitura.sp.gov.br/Portals/1/Files/10017.


pdf. Acesso em: 10 out. 2021.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=L6q2EkkQLLs. Acesso


em: 10 out. 2019.

Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=ZUtLR1ZWtEY. Acesso


em: 19 abr. 2021.

MEDIEVAL world map, Mappa Mundi, what does it show? (We get close up
to this national treasure). 2019. 1 vídeo (15min). Publicado pelo canal Modern
History TV. Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=n4uHbTt-
Wbe8. Acesso em: 20 abr. 2021.

O PERIGO de uma história única. Chimamanda Ngozi Adichie. Disponível


em: https://www.youtube.com/watch?v=qDovHZVdyVQ. Acesso em: 10
abr. 2021.

PETROBRAS. 5 mapas que explicam como as sociedades viam o mundo.


Medium, 2019. Disponível em: https://medium.com/petrobras/5-mapas-que-
-explicam-como-as-sociedades-viam-o-mundo-a98eb4155e79. Acesso em:
10 ago. 2019.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
RESSIGNIFICANDO AS RELAÇÕES
ÉTNICO-RACIAIS E DE GÊNERO:
uma experiência escolar com fundamento
teórico nas africanidades
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Vanderleia Reis de Assis


Ana Cristina Juvenal da Cruz

Introdução

Este texto discute e apresenta dados do projeto de pesquisa “Ressignifi-


cando as Relações Étnico-raciais e de Gênero: pensando os conteúdos, conhe-
cimentos, saberes e práticas escolares a partir das africanidades”, aprovado
no Edital Equidade Racial na Educação Básica, promovido e organizado pelo
Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades – CEERT – e
demais associações, em 2020, que tem sido realizado na Escola Estadual
Álvaro Laureano Pimentel, na região metropolitana de Belo Horizonte, Minas
Gerais. A proposta visa apresentar as motivações e localizar o projeto no
interior do campo da educação e das relações étnico-raciais.
O povo Akan, cuja localização é historicamente atribuída à região onde
atualmente situam-se Gana e a Costa do Marfim, possui um provérbio que diz:
“não é errado voltar atrás e buscar o que você esqueceu”. Desse provérbio, “se
wo were fi na wosan kofa a yenki”, deriva o conceito de Sankofa, do Sanko =
voltar; fa = buscar, trazer. No interior da escrita africana adinkra, Sankofa é
imageticamente traduzido pelo ideograma de um pássaro mítico que voa para
frente enquanto olha para trás com um ovo em sua boca. Neste pensamento
filosófico africano, Sankofa está relacionado ao tempo e à memória, pois nele
o passado e o futuro se metaforizam. Seu desenho lembra a forma do coração
ocidental e está direcionado à compreensão individual e coletiva – Sankofa:
“volte e pegue”.

Figura 1 – Reprodução Sankofa


352

A forma imagética permite-nos guiar para o que o projeto em tela, reali-


zado na Escola Estadual Álvaro Laureano Pimentel, está produzindo. Ele foi
iniciado em 2020, antes do início da pandemia da covid-19, a qual forçou o
fechamento das escolas, levando ao que foi denominado de “ensino remoto”,
o que levou à modificação das etapas previstas para serem realizadas presen-
cialmente. No entanto, os temas e propósitos gerais têm sido alcançados. De
maneira geral, o projeto versa sobre a produção e elaboração de práticas peda-
gógicas fundamentadas em conhecimentos históricos de matrizes africanas,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


com o objetivo de pensar novas relações raciais e de gênero entre professoras
e professores bem como entre estudantes.
Ainda que construída como uma proposta transdisciplinar, o projeto
se ancora no campo da história, de modo a utilizá-lo como recurso base ao
repertório conceitual que sustenta e organiza a intenção de uma formação
específica dirigida à constituição de práticas pedagógicas fundamentadas na
educação das relações étnico-raciais. A base conceitual se amplia no pensa-
mento da intelectualidade da diáspora negra que, a partir da da contribuição
de africanos e africanas (SILVA, 2001) e suas ontologias.
Michel-Rolph Trouillot, em livro sobre a função da história, avança para
um título ao qual se volta ao longo do texto: o silenciamento do passado e
o poder na produção da história. O argumento central é de que a ação desse
poder de silenciar, por vezes é invisibilizado, de modo que cabe a nós “expor
suas raízes” (TROUILLOT, 2016, p. 18).
Arjun Appadurai trata o passado como um “recurso simbólico” (1981).
Segundo ele, há uma “construção cultural do passado” a qual ocorre por
“regras gerais mínimas” na administração que as pessoas e agrupamentos
fazem do passado. Considerando a realidade indiana, Appadurai (1981, p. 216)
coloca que “o passado é um elemento consciente de interações contemporâ-
neas”. Diz o autor que “o passado é um componente extremamente importante
de debate e divisão no presente” (APPADURAI, 1981, p. 217).
Em muitos países, há investimentos em experiências que buscam rees-
crever a história, atravessar as camadas de silenciamento que as compõem
(NDIAYE, 2005). No Brasil, a Comissão da Verdade e a Lei de Acesso a
Informações Públicas no Brasil de 2011, cujos objetivos foram, entre outros,
visualizar e colocar em análise pública os acontecimentos da ditadura, pre-
via rever o ensino de história nesta matéria. A instituição de uma pesquisa
histórica sobre o período da ditadura com a disponibilização de um banco de
dados, publicações e materiais de memória “para que não se esqueça” e “para
que nunca mais aconteça”, é exemplo de uma prática de dever de memória
(LEDOUX, 2019). Legislações como essa colocam no centro das discussões
não apenas o modo pelo qual se constitui o conhecimento histórico, mas as
relações de poder intrínsecas ao fazer histórico. Nesse sentido, argumentar
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 353

sobre os artefatos e linguagens é central; e, assim, se localiza o debate sobre


as relações étnico-raciais.
O Parecer nº CNE 003/04 e as Diretrizes que o regulamentam, em virtude
da aprovação da Lei nº 10.639/2003, que estabeleceu a alteração dos artigos
26A da Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional e a obrigatoriedade do
Ensino de História Afro-Brasileira e Africana, promoveram o termo educação
das relações étnico-raciais como descrito nas Diretrizes Curriculares Nacionais
para Educação das Relações Étnico-Raciais e para o Ensino de História Afro-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

-Brasileira e Africana. Assim, referem-se não apenas a um campo específico de


ação e pensamento pedagógico em educação, mas a uma proposição política.
Nilma Lino Gomes e Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva (2002) afirma-
ram que a consolidação da temática da diversidade étnico-racial na formação
deveria ocorrer em “articulação com os processos escolares e não-escolares”,
oportunizando que as diferenças não sejam um componente para o ensino
daqueles considerados diferentes, mas que a diferença seja um “constituinte
dos processos educativos”. No texto “Aprender, ensinar e relações étnico-ra-
ciais no Brasil”, Petronilha Beatriz Gonçalves e Silva, com base em legislações
específicas sobre educação das relações étnico-raciais, dirige-se ao aspecto
cognitivo da formação, do seu caráter político a partir dos princípios de “cons-
ciência política e histórica da diversidade; fortalecimento de identidades e
de direitos; ações de combate ao racismo e às discriminações” – tal como
preconizado nas Diretrizes, na qual atuou como relatora junto ao Conselho
Nacional de Educação em 2004.
Em 2008, com objetivo de estabelecer metas e responsabilidades para
a implementação das referidas Diretrizes, foi aprovado o Plano de Imple-
mentação das Diretrizes Curriculares Nacionais para Educação das Relações
Étnico-Raciais. A proposta resultou de fóruns regionais de discussão para a
efetivação do ensino desses conteúdos.

Ressignificando as práticas pedagógicas em relações étnico-


raciais e gênero

As mudanças provocadas por esse conjunto de legislações, às quais pode-


-se nomear de antirracistas, pautaram a agenda educacional principalmente a
partir da promulgação da Lei nº 10.639/2003. No entanto, há ainda um longo
caminho para promover deslocamentos radicais, que levem nossas escolas
a romper com uma lógica educacional hegemônica de base eurocêntrica e
tragam a diversidade e as diferenças, as quais incluem a história e cultura
afro-brasileira e africana, para o centro do projeto educacional.
Temos ainda o desafio de enfrentar o epistemicídio, ou seja, a partir da
descrição de Sueli Carneiro da “construção do outro como não-ser como
354

fundamento do ser” (CARNEIRO, 2005, p. 135). Esse movimento deixa em


situação de desvantagens a tradição e contemporaneidade de intelectuais
negros(as) brasileiros(as), invisibilizando boa parte de suas obras, e impede
que pessoas em processo de aprendizagem conheçam e reconheçam uma
pluralidade de pensamentos.
As experiências pelas quais passam estudantes negras e negros e não
negros no interior das escolas de educação básica, sejam públicas ou privadas,
devem ser objeto constantemente de análise. Segundo Nilma Lino Gomes, “o

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


processo tenso e conflituoso de aceitação e rejeição do ser negro é construído
social e historicamente e permeia a vida desse sujeito em todos os seus ciclos
de desenvolvimento humano: infância, adolescência e vida adulta” (GOMES,
2006, p. 141).
A autora destaca ainda a importância da presença negra em todos os
espaços sociais para problematizar e enfrentar os conflitos. Na maior parte
das escolas públicas brasileiras, os corpos negros são a maioria, entretanto, as
práticas escolares cotidianas, ainda vinculadas em um currículo eurocêntrico
e em uma visão heteronormativa, acabam por invisibilizar questões que são
estruturais para construção das identidades, principalmente a étnico-racial e
de gênero.
A construção da identidade, o papel social da população negra no Brasil
e as africanidades brasileiras são temas ainda tratados à margem do currículo
e Projeto Político Pedagógico (PPP) de grande parte das escolas, sendo que,
muitas vezes, o trabalho só acontece devido ao desejo pessoal ou militante
de um(a) ou outro(a) docente.
Saraiva (2014) analisou o desempenho dos(as) estudantes e as políticas
de equidade racial na Rede Municipal de Educação. Para tanto, utilizou os
resultados do AVALIA-BH, avaliação sistêmica da Rede Municipal de Ensino
de Belo Horizonte, explorando este sistema de avaliação a partir dos resultados
em Língua Portuguesa do ano de 2013. A pesquisa destacou a ausência de
equidade nos resultados, apontou ainda que alunos(as) pretos(as) e pardos(as)
apresentam proficiência média menor que a de alunos(as) brancos(as).
Apesar de não se tratar de um estudo da rede estadual de educação,
conhecê-lo nos ajudou a definir as melhores estratégias para atuação que
desenvolvemos, no espaço que se tornaria nosso local de estudo. A relevância
se encontra no fato de se tratar dos mesmos estudantes, que, após concluírem
o ensino fundamental na rede municipal, são encaminhados para a rede esta-
dual, para cursar o ensino médio. Por outro lado, confirma a necessidade de
aprofundarmos nossos estudos nessa temática.
Na Rede Estadual de Ensino de Minas Gerais, o problema se torna ainda
mais grave. Entre as diversas razões disso, destaca-se o fato de que projetos
de promoção da igualdade racial, que vinham avançando nos anos de 2014
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 355

a 2018, não tiveram continuidade na atual gestão. Apesar da tentativa que se


tornassem política de Estado, o governo (2018-2022) não demonstrou empe-
nho em dar continuidade a vários projetos de promoção da igualdade racial.
Os cortes de verbas na Educação Integral, que atende os(as) estudantes
mais vulneráveis, na maioria negros(as), atingiram cerca de 81 mil estudan-
tes – de acordo com Cajazeiro (2019). Todos esses dados foram ainda mais
impactados pela pandemia da covid-19, que forçou o fechamento das escolas
e, consequentemente, elevou a taxa de abandono, além de uma certa descrença
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

na função da escola e do conhecimento como ferramentas de formação.


Nesse contexto, buscamos a experiência e saberes construídos na edu-
cação básica, aliada aos conhecimentos acadêmicos elaborados na trajetória
da pesquisa de mestrado: “ Equidade Étnico-racial e de Gênero: possíveis
caminhos para o trabalho coletivo e uma educação afrocentrada” (ASSIS,
2020), como um possível caminho para elaboração de uma prática pedagó-
gica mais plural e democrática, que respeite a diversidade, a individualidade
e a construção das identidades, implicando em mudanças significativas nas
relações sociais e étnicas.

O território

A escola Escola Estadual Álvaro Laureano Pimentel, objeto do projeto


em tela, foi escolhida porque agrega a dinâmica de exclusão interseccionada,
vivenciada pelos(as) que foram colocados(as) na condição de subalternidade:
população majoritariamente negra, território periférico, vulnerabilidade social,
violência urbana e policial.
A referência para seleção da escola foi o Índice de Desenvolvimento
da Educação Básica, o IDEB. O resultado aponta as faces já conhecidas do
caráter do racismo na sociedade brasileira de cunho estrutural e sistêmico,
cujo substrato se mostra na educação: repetência, evasão, baixo desempenho
e falta de interesse em disputar uma vaga nas universidades públicas através
do ENEM. Esta última foi decisiva para nossa escolha. Apesar de a escola
atender turmas de toda Educação Básica: Fundamental I e II, Ensino Médio,
Educação de Jovens e Adultos do Ensino Médio, o enfoque da pesquisa são
os(as) estudantes e docentes do Ensino Médio.
De modo esquemático, apenas 29% dos(as) estudantes da Escola Esta-
dual Álvaro Laureano Pimentel fizeram a inscrição para o Exame Nacional
do Ensino Médio (ENEM) 2018. A escola apresentava ainda índices de pro-
ficiência baixos, reprovação e evasão altíssimas. Destaca-se também que, nos
últimos anos, ela teve uma queda significativa nas avaliações sistêmicas e no
ranking do ENEM, se encontrando entre as que tiveram menor desempenho
356

no estado de Minas Gerais. De acordo com o gráfico do IDEB, entre 2013


a 2017, a escola vem sofrendo um declínio acentuado no seu desempenho.

A escola e seu entorno

A maioria dos(as) estudantes do território no qual se localiza a Escola


Estadual Álvaro Laureano Pimentel, é de Vila CEMIG e Corumbiara, negra,
periférica e marcada pela violência urbana e doméstica. O bairro da Vila

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


CEMIG é localizado em uma das regiões consideradas mais violentas e de
Belo Horizonte. A ausência de políticas públicas específicas de combate à
violência e de aparelhos para o desenvolvimento social leva a altos índices de
violência, causando inclusive perdas de estudantes desta região. Neste lugar,
o genocídio da população jovem negra é ostensivo.
Os dispositivos de exclusão marcam trajetórias de escolas como a Escola
Estadual Álvaro Laureano Pimentel e operam na reprodução da desigual-
dade racial e social através da colonialidade do Ser (TORRES, 2019). Tais
dispositivos podem ser combatidos com projetos e pesquisas que tenham por
objetivo o desenvolvimento de uma educação antirracista. Ações como essas
possibilitam refletir sobre como o racismo, um dos efeitos da colonialidade,
interfere na experiência pessoal dos sujeitos subalternizados. Pensar e fazer a
descolonização dos currículos, fazendo uma leitura articulada entre racismo e
colonialidade, são importantes para compreendermos a sustentação de relações
coloniais na modernidade (QUIJANO, 2005).
A construção positiva do pertencimento étnico-racial, o currículo, pro-
jeto político pedagógico e formação docente são questões ainda tencionadas.
Causa preocupação, ainda, a falta de consistência e conhecimento que pautam
muitas ações educativas na perspectiva da igualdade racial – como nos aponta
Gomes (2012), em pesquisa que buscou verificar projetos pedagógicos em
âmbito nacional. Sendo assim é cara a possibilidade de uma luta contra-hege-
mônica no currículo, nas ações pedagógicas e na estrutura da escola, através,
principalmente, de conceitos como a afrocentricidade, interseccionalidade
e decolonialidade, presentes no referencial teórico da pesquisa aplicada e,
consequentemente, no cronograma de formação dos(as) docentes.

Abordagens de uma educação antirracista

A metodologia abordada em nossa pesquisa procurou estabelecer os


passos, reflexões, atitudes e proposições. De forma atenta ao momento espe-
cífico que as escolas brasileiras estão passando, nos aspectos relacionados
às africanidades, nosso propósito foi a elaboração de alguns percursos que
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 357

nos guiassem no caminho rumo à construção de uma postura política e de


enfrentamento ao racismo.
Nosso trabalho vem sendo desenvolvido, desde o início do ano de 2020,
tendo em vista: formação docente continuada em serviço, formação discente,
perspectiva de práticas pedagógicas decoloniais, currículo e intersecciona-
lidade. Essas ações têm colocado em evidência o trabalho coletivo transdis-
ciplinar e as contribuições da crítica afrocentrada. Para isso, organizamos a
metodologia em quatro etapas, a saber: análise do território e da comunidade
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

onde se localiza a escola; formação e acompanhamento da prática pedagógica


das professoras e professores; interdisciplinaridade entre áreas de conheci-
mento e, por fim, a avaliação.
Na primeira etapa de análise do território e da comunidade onde se loca-
liza a escola, foi desenvolvida a estratégia denominada “Mapa da Mina”, que
tratou de realizar um mapeamento das atividades pedagógicas existentes na
escola sobre as relações étnico-raciais. Ainda nesse ponto, avaliou-se a exis-
tência de experiências com potencial para promoção da igualdade racial na
escola. Descobrimos que, mesmo em ações desarticuladas, docentes traziam
em seu trabalho essa preocupação, ainda que de forma isolada.
Nessa primeira etapa, adicionou-se uma ação denominada “Conhecer o
território”, cujo objetivo foi o de compreender a comunidade escolar, o prota-
gonismo da comunidade externa, história local, pessoas idosas da comunidade,
cultura juvenil do entorno da escola, movimento negro ou religioso de matrizes
africanas e centros culturais. No entanto, a pandemia da covid-19 prejudicou
nosso trabalho e várias dessas ações estão em processo de reelaboração, tendo
em vista a finalização do projeto junto ao CEERT, no início de 2022.
Mesmo diante dos desafios impostos pela pandemia da covid-19, conse-
guimos fazer a readequação do acervo da biblioteca (Figura 2), mapeando os
livros e materiais que a escola já possuía e potencializando o acervo biblio-
gráfico com novos materiais que tratam da temática. Foram adquiridas cerca
de 150 obras de literatura afro-brasileira, indígena e sobre relações de gênero,
além dos Indicadores de Qualidade da Educação (Ação Educativa em par-
ceria.), a coleção História Geral da África (UNESCO), A Cor da Cultura
(SEPPIR em parceria), Gênero e Raça nas Políticas Públicas (CEERT), Polí-
ticas Públicas de Promoção da Igualdade racial (CEERT).
358

Figura 2 – Acervo de livros da biblioteca Álvaro Laureano Pimentel

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fonte: Fotógrafa Nayara, estagiária do projeto – 2022.

Criamos ainda um blog1 contendo materiais audiovisuais, orientações


sobre livros, revistas, sites, documentários e informações sobre outros blogs.
É lá também que se encontra boa parte do material que temos produzido. A
escola conta também com uma sala ambiente afro-brasileira toda equipada para
pesquisas, palestras e áudio visual. A estética imagética, nesse ambiente, tem
bonecas negras, bandeiras dos países africanos de Língua Portuguesa, tecidos
com estampas afro, pufes temáticos, jogos africanos e indígenas, entre outros.
A segunda etapa de desenvolvimento do projeto aglutina ações para a
formação e acompanhamento da prática pedagógica de professoras e profes-
sores, em três esferas de ação:

A. A primeira é a da formação em serviço com assessoria pedagógica,


a qual, devido ao ensino não presencial decorrente da pandemia da
covid-19, ocorreu de forma híbrida. De todo o modo, é importante
mencionar que, mesmo em face da catastrófica pandemia, esse foi
um dos pontos mais privilegiados. Docentes e demais trabalhadoras
e trabalhadores da escola têm conseguido participar de maneira bem
dinâmica de todas as formações.

1 Disponível em: https://africanidadesproje.wixsite.com/projeto.


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 359

B. A segunda esfera é e das oficinas pedagógicas ofertadas para estu-


dantes da escola com profissionais externos. As oficinas estudantis
estão ocorrendo virtualmente, junto com o coletivo de educadoras/
es da escola, sendo focadas em produção Áudio-visual, Literatura e
Poesia Marginal. Temas como identidades, juventude gênero, sexua-
lidade, cultura e arte são os que mais se destacam. Selecionamos
vinte estudantes que não tinham acesso à internet e a equipamentos,
para receberem aparelhos celulares e pacotes de internet.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

C. A terceira esfera constitui-se de trabalho de campo com atividades


presenciais, as quais estão em processo de elaboração com o retorno
das atividades presenciais em um Circuito de Museus: Território
Negro; Território História de Mulheres; Território História de Minas
Gerais; Território África/Brasil.

A terceira etapa trata de ações para promover a interdisciplinaridade


entre áreas de conhecimento. Tais ações centram-se em projetos específicos
voltados para reformulação e adequação dos currículos frente aos conteúdos
da educação das relações étnico-raciais. Nesse processo, verificamos avanços
na postura de docentes, os quais têm procurado a equipe da pesquisa com a
mesma pergunta: “Como fazer?”. Isso tem sido potente e encorajador.
Os projetos, realizados em 2020, foram elaborados para abordarem temá-
ticas vinculadas aos meses letivos da escola, em articulação com datas histó-
ricas contra-hegemônicas e divididos em três eixos. Os temas buscaram fazer
uma articulação entre os saberes escolares e os conhecimentos acadêmicos.
O primeiro eixo está presente em todos projetos específicos e procura
fazer uma relação interseccional entre gênero, raça e classe. Outro eixo em
destaque é sobre o mercado de trabalho e os desafios que hoje se estabeleceram
com o que tem sido denominado de “uberização” como um novo estágio de
exploração da classe trabalhadora. Sendo uma escola de ensino médio, com
maioria de estudantes adolescentes e jovens, o terceiro e o último eixo diz
respeito às novas tecnologias midiáticas e as juventudes, com debates sobre
mídia, racismo e protagonismo juvenil.
A quarta etapa trata da avaliação, contínua e processual, na qual procu-
ramos identificar o que é preciso melhorar, refletindo sobre o que está sendo
realizado. Optamos por ações como uma avaliação por segmentos da escola,
de forma que cada segmento trouxesse seu olhar específico para o trabalho
em desenvolvimento. Por meio da avaliação geral, é possível compreender
uma perspectiva mais coletiva e, por isto, partimos da tabulação de dados
captados através de questionários. Como instrumento para a compreensão de
todo o processo, construímos seminários semestrais. Os(As) docentes também
deveriam elaborar instrumentos de avaliação sobre o desempenho dos(as)
360

estudantes no projeto, entretanto esta etapa foi prejudicada devido a pandemia


e deverá ser retomada logo que seja possível executá-la.
Importante destacar que, devido ao contexto de pandemia da covid-19,
as avaliações estão sendo feitas através de relatórios gerais. Os seminários e
encaminhamentos coletivos ocorrem semestralmente e têm sido muito bons
para adequarmos nossa prática ao contexto de ensino híbrido. Apesar de
vivermos tempos críticos, de aprofundamento das desigualdades, abandono
escolar, casos de Síndrome de Burnout, devido à pressão que os(as) docentes

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


vêm passando, acreditamos termos avançado na proposta de uma educação
antirracista, pautada nas africanidades e na descolonização do currículo.
Como já afirmado, embora as atividades tenham sido idealizadas para
realização presencial, com o advento do fechamento das escolas, uma nova
organização temporal e espacial foi necessária, a qual foi desenvolvida a partir
da expertise docente e dos conhecimentos acadêmicos.

Novos tempos, velhos desafios

No decorrer deste texto, reafirmamos a importância da capacitação de


trabalhadores(as) da escola; e, mesmo com o distanciamento, tivemos opor-
tunidade de investirmos muito na formação continuada em serviço. Alguns
resultados já estão aparecendo – como o fato de muitos docentes estarem nos
procurando com propostas de intervenções pedagógicas, atividades de cunho
decolonial e a possibilidade de um trabalho transdisciplinar.
O grande desafio tem sido desenvolver as atividades com estudantes,
devido à baixa participação, que se justifica em parte pela falta de acesso a
equipamentos adequados e acesso à rede de internet. Em 2020, foram adquiridos
20 celulares, que foram carregados com créditos mensalmente. Outro motivo
é que, na pandemia da covid-19, muitas/os estudantes foram forçados a optar
pelo trabalho, em virtude do aumento da desigualdade e da pobreza agravadas
pelo contexto da pandemia. Adiciona-se, ainda, o fato de que o estudo presen-
cial ficou suspenso por 18 meses, de março de 2020 e ao início de 2022; com o
processo de retorno, em que o ensino é híbrido e a presença não é obrigatória.
Soma-se a isso, novamente, a baixa adesão ao ENEM.
No entanto, temos um olhar esperançoso! Acreditamos que as inter-
venções feitas na escola, tanto do ponto de vista do conhecimento quanto da
estrutura, trouxeram um novo clima para aquele território, com a eminência
de reverberar em uma prática educacional mais inclusiva e equânime, vis-
lumbrando uma educação antirracista.
Avançamos no campo do conhecimento e nos debates teóricos. Docentes
têm vivenciado as africanidades brasileiras, promovendo atividades e trazendo
práticas educacionais antes invisibilizadas no contexto escolar.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 361

Ainda na estrutura, o muro da escola está recebendo grafites do artista


Guilherme Maizena: Daniel Munduruku, Carolina Maria de Jesus, Conceição
Evaristo, Jaqueline Góes de Jesus, Chadwick Boseman e Alforiado Matias,
este foi um negro escravizado que viveu no século XIX na Fazenda Barreiro,
que da nome ao território onde está situada a escola (Figura 3).

Figura 3 – Muro da escola Álvaro Laureano Pimentel


– Grafites de Guilherme Maizena
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Fotógrafa Nayara, estagiária do projeto – 2022.

Fonte: Fotógrafa Nayara, estagiária do projeto – 2022.


362

Considerações finais

A experiência da pandemia da covid-19 foi desastrosa em todos os aspec-


tos. No contexto brasileiro, vivenciamos uma tragédia particular com um
elevado número de mortes, visto que muitas delas poderiam ter sido evitadas.
De modo mais amplo, no campo intelectual, ocorreram inúmeras tentativas de
mapear esse momento e estabelecer parâmetros e diagnósticos do que seria o
mundo e nossas formas de vida no pós-pandemia. Entre proposições em tex-

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


tos de reflexão teórica e intervenção crítica, análises se aliaram à proposição
de que a pandemia se constituiria em uma oportunidade para mudanças que
poderiam transformar nossas formas de desejo, de linguagem, de trabalho e
de se relacionar (BUTLER, 2020). Desde 2020, verificamos que pouco mudou
nestes aspectos: a desigualdade se acentuou e as discriminações e preconcei-
tos mostraram sua face mais avassaladora. A experiência das manifestações
por todo o mundo contra o racismo, a violência policial e as desigualdades
colocaram em questão nossas alternativas políticas (MBEMBE, 2014). Em
resumo, essas experiências mostraram os limites do capitalismo e da demo-
cracia liberal contra as estruturas do racismo e dos preconceitos de gênero e
de sexualidades que balizam nossas sociedades.
bell hooks, no livro “Ensinando a Transgredir: a educação como prática
da liberdade”, relata o pavor de tomar o cargo de professora. Argumenta que
tinha o desejo de se tornar escritora. O pavor a que se referia, pela iminência
de tornar-se professora, se dava pelas obrigações que um cargo lhe daria,
sendo a docência a única opção possível no contexto machista do período de
segregação racial estadunidense. Entretanto, foi nas escolas segregadas que ela
experimentou “a experiência do aprendizado como revolução”. Uma revolução
feita, em parte, por mulheres. O texto, atravessado pela trajetória que bell
hooks, compartilha desejos e sonhos com leitoras/es, fala de seu encontro com
professoras que faziam uma “pedagogia revolucionária de resistência, uma
pedagogia profundamente anticolonial” (hooks, 2013, p. 30). As professoras
de bell hooks tinham, naquele momento, como ela afirma, “uma missão”.
Naquele contexto específico, seu objetivo era evidente: formar intelectual-
mente as crianças negras para que se mantivessem vivas. Era um aprendizado
politicamente orientado para o contexto em que viviam.
Voltando ao provérbio akan, Sankofa nos permite olhar para o passado
como uma experiência de aprendizagem que é possível recuperar de outra
forma, com outra estética, neste outro tempo, o presente, o passado, que
deve ser preservado. Trata-se das práticas e metodologias do aprender-ensi-
nar-aprender às quais podem ser enriquecidas na pluralidade. O provérbio se
refere à possibilidade de compreender o presente e garantir o futuro, olhando
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 363

e conhecendo o passado, ou seja, estabelecer uma experiência histórica com


o tempo e a memória.
No texto “Por Uma Geografia Cidadã. Por uma Epistemologia da Exis-
tência”, Milton Santos, na dimensão da Corporeidade, afirma que a dimensão
da individualidade trata-se da “forma com que eu me apresento e me vejo
[...] considerar os graus diversos de consciência dos homens: consciência
do mundo, consciência do lugar, consciência de si, consciência do outro,
consciência de nós” (SANTOS, 1996, p. 8). Tal movimento não será feito
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

sem afirmar e retomar a herança de pensamento e luta de pessoas negras e


não negras por uma justiça efetiva (CRUZ, 2021). Isso somente será feito,
se afirmarmos o compromisso com a educação – especialmente, neste nosso
tempo histórico.
364

REFERÊNCIAS
APPADURAI, A. The past as a scarce resource man. The Journal of the
Royal Anthropological Institute, n. 16, 1981, p. 201-219.

ASSIS, V. R. Equidade Étnico-racial e de gênero: possíveis caminhos para o


trabalho coletivo e uma educação afrocentrada. 2020. Dissertação (Programa

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


de Pós-Graduação em Educação e Formação Humana. Universidade do Estado
de Minas Gerais, 2020.

BRASIL. Diretrizes Curriculares Nacionais para a Educação das Relações


Étnico-Raciais e para o Ensino de História e Cultura Afro-Brasileira e
Africana. Brasília: Conselho Nacional de Educação, MEC, 2004.

BUTLER, J. Traços humanos nas superfícies do mundo. Tradução: André


Arias; Clara Barzaghi. São Paulo: N-1 Edições, 2020. (Col. Pandemia Crítica).

CAJAZEIRO. D. Corte de vagas na educação integral em Minas vai afetar 81


mil alunos. SINPRO, 2019. Disponível em: http://sinprominas.org.br/noticias/
corte-na-educacao-integral-em-minas-vai-afetar-81-mil-alunos/. Acesso em:
8 jun. 2020.

CARNEIRO, S. A.; FISCHMANN, R. A construção do outro como não-ser


como fundamento do ser. 2005. Universidade de São Paulo, São Paulo, 2005.

CRUZ, A. C. J. Questão racial e educação brasileira. In: TELES, Edson;


CALAZANS, Marília O. (org.). A pandemia e a gestão das mortes e dos
mortos. 1. ed. São Paulo: Centro de Antropologia e Arquivologia Forense
(CAAF), 2021. v. 1, p. 207-214.

GOMES, N. L. Relações étnico-raciais, educação e descolonização dos currí-


culos. Currículo sem fronteiras, Belo Horizonte, v. 12, n. 1, p. 98-109, 2012.

hooks, b. Ensinando a Transgredir: a educação como prática da liberdade.


Tradução: Marcelo Brandão Cipolla. São Paulo: Martins Fontes, 2013.

LEDOUX, S. Devoir de mémoire or travail de mémoire? The choice of for-


mulas in political speeches (2000-2017). Guerres mondiales et conflits con-
temporains, v. 276, n. 4, p. 99-112, 2019.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 365

MBEMBE, A. Crítica da Razão Negra. Antígona, 2014.

NDIAYE, P. Pour une histoire des populations noirs en France: preálables


theoriques. Le Mouvement Social, n. 215, p. 91-208, 2005.

QUILANO, A. Colonialidade do poder, eurocentrismo e América Latina.


In: LANDER, Edgardo (org.). A colonialidade do saber: eurocentrismo e
ciências sociais – perspectiva latino-americanas. Buenos Aires: Clasco, 2005.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SANTOS, M. Por uma Geografia cidadã. Por uma Epistemologia da Existên-


cia. Boletim Gaúcho de Geografia, v. 21, n. 1, p. 1-9, 1996.

SILVA, P. Aprendizagem e ensino das africanidades brasileiras. In:


MUNANGA, K. (org.). Superando o racismo na escola. Brasília: Minis-
tério da Educação/Secretaria de Educação Fundamental, 2001. p. 151-168.

TORRES, N. M. Da colonialidade dos Direitos Humanos. In: SANTOS, Boa-


ventura de Sousa; MARTINS, Bruno Sena. Introdução: o pluriverso dos
Direitos Humanos. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica, 2019. p. 110.

TROUILLOT, M.-P. Silenciando o passado: poder e a produção da história.


Curitiba: Huya, 2016.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ANCESTRALIDADE NEGRA NA
HISTÓRIA E CULTURA LOCAL
Cicera Nunes
Wilma de Nazaré Baía Coelho
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Plano de aula

Tema: memórias negras e (re)conexão com o continente africano


Público almejado: anos finais do ensino fundamental
Área: Ciências Humanas
Modalidade: presencial
Tempo estimado: 5 aulas e mais uma atividade de campo
Materiais necessários: livro de história infanto-juvenil, celular, papel madeira,
canetinhas coloridas, lápis de cor, gizes de cera, cola, fita adesiva, datashow e
notebook para exibição de vídeo, imagens de práticas de sociabilidades, lide-
ranças e práticas culturais da população negra presentes na história do lugar.

Objetivos

• Identificar expressões culturais de base africana expressas na história


do bairro, tendo como referências a memória e a oralidade.
• Estabelecer a relação entre escola e comunidade, fortalecendo a
relação de pertencimento com a história e a cultura negra.
• Organizar, na escola, de forma colaborativa, um painel que articule
produção textual, entrevistas, trabalhos artísticos e acervo documen-
tal sobre a história e a cultura da população negra local.

Conteúdos

A ação proposta busca: positivar a presença negra; retratar as memórias


históricas a partir das experiências vividas pelas pessoas do lugar; aprender
a partir da tradição oral e da ancestralidade; compreender o bairro como um
livro vivo, que pode ser lido para ressignificar a nossa relação com o territó-
rio, atribuindo sentido ao que se ensina e se aprende na escola, estabelecendo
conexão entre o conhecimento sistematizado e aqueles relativos aos saberes
tradicionais, oriundos da comunidade. Essa ação pedagógica contempla os
seguintes conteúdos:
368

• Reflexões sobre a relação da história brasileira com a história do


continente africano;
• Conhecimento e reconhecimento da própria história na relação com
a história e a cultura local;
• Identificação de referências de memórias negras contadas pelos(as)
mais velhos(as) do lugar.

Metodologia (desenvolvimento)

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


O desenvolvimento do trabalho deve se dar de forma participativa, inter-
disciplinar, privilegiando o debate, as discussões e reflexões grupais e abor-
dando, de modo positivo, as africanidades e afrodescendências locais.

1ª etapa: Pode-se começar o trabalho em uma roda, contando a história


Os nove pentes d’África, de Cidinha da Silva, ilustrado por Iléa Ferraz e publi-
cado, em 2019, pela Mazza Edições. Esse livro aborda valores civilizatórios
como ancestralidade, amor, circularidade, a importância de conhecermos a
nossa história, o conhecimento e o legado das tradições transmitidas, inclusive
oralmente, pelas pessoas mais velhas.
Na sequência, dê início a reflexões com as/os estudantes sobre a impor-
tância dessa relação e, em seguida, convide-as/os para, juntas/os, cantarem a
música ‘Semba dos Ancestrais’, de Martinho da Vila e Martnália1.
Nesta etapa, espera-se que as/os estudantes reflitam sobre a importância
de conhecermos a nossa história a partir da (re)conexão com o continente
africano e com as trajetórias da população negra no contexto brasileiro. Essa
relação poderá ser buscada em imagens das ancestralidades negras do uni-
verso cultural e suas práticas de sociabilidades, pois pessoas e situações assim
contribuem para se compreender a tradição oral como forma de transmissão
e produção de conhecimentos. Uma estratégia para a conclusão dessa etapa
é solicitar que a turma conte histórias relacionadas às suas vidas nas suas
comunidades e que tenham alguma relação com as imagens visualizadas.
2ª etapa: No segundo momento, sugere-se a exibição do vídeo “Bao-
bá” , para subsidiar reflexões sobre a ancestralidade, resistência da população
2

negra e simbologia desta árvore no continente africano e na diáspora. Dando


sequência a essa etapa, a leitura do livro Uma Aventura do Velho Baobá, de
Inaldete Pinheiro de Andrade, pode ser uma ferramenta interessante para
convidar os(as) estudantes a confeccionarem, em grupos, silhuetas do Baobá.
Com essa silhueta, o trabalho poderá ser iniciado na sala de aula e terminado

1 Disponível em: https://youtu.be/HjRYUzKBL58.


2 Disponível em: https://www.youtube.com/watch?v=g-LZgQRqJ30.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 369

em casa, com ajuda para compor a árvore genealógica da família, incluindo


seus nomes, fotografias e desenhos.
Na aula seguinte, em roda, os(as) estudantes podem ser convidadas(os)
a contarem as suas histórias a partir do que foi levantado. Para finalizar essa
etapa, uma grande árvore poderá ser colocada na parede da sala de aula para
que cada um(a) cole a sua árvore genealógica. Também como finalização,
realizaremos uma pesquisa escolar no site do Prof. André Lucio, que mapeia
os baobás pelo Brasil3, para que situem onde existem Baobás na cidade,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

com vistas a realizarmos uma visita para fotografar, para ter contato direto
e saber a história da sua existência. Se possível, encaminhar a plantação de
um Baobá na escola para que os(as) estudantes acompanhem o crescimento
e vivam uma experiência coletiva em relação ao nascimento de uma árvore e
o fortalecimento das relações de sociabilidades e de identidade das crianças
e adolescentes que desse momento participarem.
3ª etapa: Proponha uma atividade de pesquisa onde, em dupla ou trio,
os/estudantes possam fazer um levantamento dos elementos da cultura negra
presentes na localidade com base em entrevistas com moradores(as) que sejam
referências importantes na memória ancestral. Poderão ser entrevistados(as)
mestres ou mestras da cultura, lideranças religiosas de matriz africana, ati-
vistas dos movimentos negros, artistas, lideranças comunitárias ou outros. As
entrevistas poderão ser gravadas no celular. Importante que o(a) professor(a)
disponha de um termo de consentimento para autorização das imagens e
áudios. O roteiro das entrevistas poderá ser organizado na sala de aula com
o auxílio do(a) professor(a). Perguntas que poderão conter no questionário:
o nome do(a) entrevistado(a); idade; como se autodeclara em relação à raça/
etnia; prática cultural/tipo de arte em que atua; há quanto tempo mora na
localidade; contar um pouco da história da formação do lugar; como foi a
infância no bairro; como era o lugar e que transformações sofreu ao longo
do tempo; se tem fotos dessa época e se podem disponibilizá-las; com quem
aprendeu o conhecimento que carrega na sua arte/prática cultural; como tem
repassado esses conhecimentos para as gerações mais jovens; qual a impor-
tância desse conhecimento na preservação da memória das pessoas do lugar;
se ele/a conhece outras pessoas importantes na preservação da memória negra
do bairro ou cidade; pedir que deixem uma mensagem que considerem impor-
tante no enfrentamento ao racismo.
4ª etapa: No retorno da pesquisa de campo, em roda, as equipes socia-
lizarão as entrevistas levantadas estabelecendo aproximações e diferenças
entre as informações. Como fechamento, a turma será convidada a montar
um painel coletivo com imagens e que contextualize a história e a cultura do

3 Disponível em: https://www.baobabrasil.com/mapa-dos-baob%C3%A1s.


370

bairro, tendo como referências as memórias ancestrais e contendo trechos das


entrevistas. As informações também poderão ser organizadas numa página
virtual (blog ou Instagram) para que outras pessoas possam conhecer as tra-
jetórias e a cultura da população negra do lugar. O painel ou página virtual
poderá ser complementado com frases, poesias, imagens que retratem o cada
um/a sentiu ao realizar a atividade e sobre a importância da construção positiva
com as memórias do povo negro.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Avaliação

A avaliação se dará de forma processual, considerando-se o envolvimento


das/os estudantes em todas as atividades propostas e na sistematização de
trabalhos escritos e na pesquisa de campo. Outra sugestão é proporcionar
um momento de discussão dos principais temas abordados no decorrer das
aulas, acompanhado de uma autoavaliação. Por fim, poderá ser solicitado que
as/os estudantes escrevam um texto a respeito de sua posição em relação à
atividade: quais aspectos foram importantes para elas/es?

Sugestões de páginas, músicas e vídeos para aprofundamento


dos temas

• Canção do Baobá:
https://www.youtube.com/watch?v=Mvn62nLFAwM
• Baobá – Tio Som: https://www.letras.mus.br/tio-som/baoba/
• Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades –
CEERT: https://ceert.org.br/
• Geledés: https://www.geledes.org.br/educacao/
• Ensino de Ciências e relações étnico-raciais. Página do Professor Alan
Alves Brito – UFRGS: https://www.if.ufrgs.br/~aabrito/extensao.html
• Revista África e Africanidades: https://africaeafricanidades.online/
• Baobá árvore da vida:
https://www.youtube.com/watch?v=g-LZgQRqJ30
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 371

REFERÊNCIAS
ANDRADE, Inaldete Pinheiro de. Uma aventura do Velho Baobá. Rio de
Janeiro: Pequena Zahar, 2022.

JESUS, Tiago Souza de.; MATIAS, Emanuela Ferreira. Memórias territoriali-


zadas: a infância afrodescendente em bairros negros de Fortaleza. In: CUNHA
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

JR., Henrique et al. Memórias e histórias de bairros negros e populações


negras no século XX. Curitiba: XI COPENE – Congresso Brasileiro de Pes-
quisadores/as Negros/as; Universidade Federal do Paraná, 2021.

MARTINHO DA VILA; MARTNÁLIA. Semba dos Ancestrais. São Paulo:


Gravadora Galeão, 1994. Duração: 3min40s. Disponível em: https://youtu.
be/HjRYUzKBL58. Acesso em: 22 fev.2022.

SILVA, Cidinha. Os nove pentes d’África. Belo Horizonte: Mazza Edi-


ções, 2019.

SOUZA, Juliana de. Afrodescendência: identidade desvelada na memória. In:


SIMPÓSIO NACIONAL DISCURSO, IDENTIDADE E SOCIEDADE (III
SIDIS): Dilemas e desafios na contemporaneidade, 3., s. d.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SEQUÊNCIA DIDÁTICA
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
MEMÓRIAS DE UMA SENZALA
Alinne Grazielle Neves Costa

A equipe participante do projeto, 2021


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Acervo da autora (2021)1.

uma educação para o reconhecimento do “outro”, para o diálogo entre os


diferentes grupos sociais e culturais. Uma educação para a negociação
cultural, que enfrenta os conflitos provocados pela assimetria de poder
entre os diferentes grupos socioculturais nas nossas sociedades e é capaz
de favorecer a construção de um projeto comum, pelo qual as diferenças
sejam dialeticamente integradas (CANDAU, 2008, p. 52).

Tema: Das dores à re-existência da cultura afro brasileira em cenas de


uma senzala.

Justificativa do projeto
A Lei no 10.639, do ano de 2003, institui no currículo das escolas brasilei-
ras a História da África e da Cultura afro-brasileira2 resultado dos esforços dos
1 Reportagem para o Jornal Online: Diário de Uberlândia. Disponível em: https://diariodeuberlandia.com.br/
noticia/29827/dia-nacional-da-consciencia-negra-tem-programacao-especial-em-uberlandia
2 Vale mencionar que, para atender as injustiças históricas realizadas à população ameríndia no Brasil, essa
Lei sofre alteração e dá lugar à Lei nº 11.645/2008, que inclui também a obrigatoriedade de História e Cultura
indígena nos currículos escolares.
376

movimentos sociais para evidenciar as desigualdades históricas que marcaram


as populações negra e parda no país. Dessa conquista, resulta o “Dia da Cons-
ciência Negra”, em 20 de novembro, momento ímpar para reflexão sobre a per-
sistência discriminação racial no Brasil e também de valorização das identidades
negras, de suas heranças, conquistas e contribuições para a nossa sociedade.
Desta forma, é imperativa, para uma escola comprometida com a ética e
a estética preconizada por Paulo Freire, uma educação que desperte as men-
tes de educandos(as) para uma relação passado e presente, assim como uma

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


leitura do mundo que compreenda, de maneira crítica, as desigualdades entre
negros e brancos, mas, também, das desigualdades sociais em geral oriundas
de um passado colonial que compromete a evolução democrática do país e a
construção de uma sociedade mais justa, igualitária e antirracista.
Assim, na tentativa de reverter esse quadro de desigualdades, precon-
ceitos, racismo e estigmas sobre os corpos negros e buscando promover uma
educação cidadã e antirracista, no qual a identidade negra possa ser respeitada
em toda à sua dignidade humana, pensamos o projeto ora apresentado.

A BNCC e a relevância do projeto

Segundo a BNCC, as disciplinas que compõem as Ciências Humanas e a


prática artística deverão auxiliar os alunos e as alunas a interpretar o mundo, a
compreender processos e fenômenos sociais, políticos e culturais e a atuar de
forma ética, responsável e autônoma diante de fenômenos sociais. Conside-
rando esses pressupostos, a discussão sobre a escravização dos corpos negros,
a valorização das identidades negras e da cultura afro-brasileira e o Dia da
Consciência Negra são temas que serão explorados nas atividades do projeto
e que dialogam com os objetivos educacionais objetivados pela BNCC como
veremos nas competências e habilidades que serão abaixo listadas:

Competências em Arte

1. Explorar, conhecer, fruir e analisar criticamente práticas e produções


artísticas e culturais do seu entorno social, dos povos indígenas, das
comunidades tradicionais brasileiras e de diversas sociedades, em
distintos tempos e espaços, para reconhecer a arte como um fenô-
meno cultural, histórico, social e sensível a diferentes contextos e
dialogar com as diversidades.
4. Experienciar a ludicidade, a percepção, a expressividade e a
imaginação, ressignificando espaços da escola e de fora dela no
âmbito da Arte.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 377

7. Problematizar questões políticas, sociais, econômicas, científicas,


tecnológicas e culturais, por meio de exercícios, produções, inter-
venções e apresentações artística

Habilidades:

(EF69AR31) Relacionar as práticas artísticas às diferentes dimensões da


vida social, cultural, política, histórica, econômica, estética e ética
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

(EF69AR32) Analisar e explorar, em projetos temáticos, as relações


processuais entre diversas linguagens artísticas

Competências em História

1. Compreender a si e ao outro como identidades diferentes, de forma a


exercitar o respeito à diferença em uma sociedade plural e promover
os direitos humanos.
2. Analisar o mundo social, cultural e digital e o meio técnico-cien-
tífico-informacional com base nos conhecimentos das Ciências
Humanas, considerando suas variações de significado no tempo e
no espaço, para intervir em situações do cotidiano e se posicionar
diante de problemas do mundo contemporâneo.

Habilidades

(EF07HI16) Analisar os mecanismos e as dinâmicas de comércio de


escravizados em suas diferentes fases, identificando os agentes responsáveis
pelo tráfico e as regiões e zonas africanas de procedência dos escravizados
(EF08HI14) Discutir a noção da tutela dos grupos indígenas e a partici-
pação dos negros na sociedade brasileira do final do período colonial, iden-
tificando permanências na forma de preconceitos, estereótipos e violências
sobre as populações indígenas e negras no Brasil e nas Américas
(EF08HI20) Identificar e relacionar aspectos das estruturas sociais da
atualidade com os legados da escravidão no Brasil e discutir a importância
de ações afirmativas
(EF08HI27) Identificar as tensões e os significados dos discursos civiliza-
tórios, avaliando seus impactos negativos para os povos indígenas originários
e as populações negras nas Américas.
378

Objetivo geral

Promover, em uma escola privada, a efetivação da Lei no 11.645/2008,


assim como uma educação cidadã e antirracista, segundo a qual as identidades
negras possam ser respeitadas em toda a sua dignidade humana.

Objetivos específicos

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


• Fazer um trabalho performático de conscientização a partir da his-
tória colonial brasileira, especialmente, com lócus na senzala.
• Compreender a importância da cultura africana para a construção
de identidade do povo brasileiro e de suas heranças culturais.
• Refletir a importância da comemoração do Dia da Consciência
Negra, resultado da intensa luta do movimento negro no Brasil por
igualdade de oportunidade e direitos.
• Desenvolver diálogos, discussões e reflexões com os alunos e as
alunas sobre os preconceitos que ainda estão muito presentes na
sociedade brasileira e apresentar alternativas para uma cultura da
paz e do respeito aos direitos humanos de todas e todos.
• Implementar uma educação antirracista.

Público desse projeto

• Alunas e alunos do ensino fundamental 2 (6º ao 9º ano)

Duração do projeto

• Essa proposta foi desenvolvida no período de 8 a 20 de novembro


no ano de 2021. Foram destinados, para esse projeto, 1 aula de 50
minutos para cada turma dos sextos aos nonos anos que fizeram
o percurso.
• Vale mencionar que, para preparar a escola para esse trajeto e,
principalmente, a senzala, é necessário, no mínimo, dois dias
de organização.

Recursos para realização

• Foram usados papel pardo, papel A4 para impressão, barbante, tin-


tas coloridas de guache, pincel colorido, pano branco de algodão
para fazer a bandeira, pano preto para fazer a divisão da senzala,
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 379

plantas artificiais, plantas de bananeira, terra, tronco de madeira,


pedra grande, corrente, tapete de palha, vasos de cerâmica, bonecas,
velas, objetos para representar as heranças culturais afro-brasileiras
que conseguimos.

Metodologia

• Ativa e expositiva, em que as alunas e os alunos fazem um per-


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

curso na escola para compreender a trajetória da população negra na


História do Brasil e vão ativando seus sentidos durante o percurso,
além de poder dialogar com a apresentações como explicitado no
decorrer do desenvolvimento a seguir.

Desenvolvimento

1º momento: reflexões iniciais

Neste momento inicial do percurso, são apresentados aos/as discentes:

• O nome e a proposta do projeto;


• Solicita-se aos alunos e alunas respeito com as reflexões que serão
feitas durante o percurso;
• Para sensibilização, os versos abaixo são recitados/lidos:

“Nego esta molhado de suor,


mas feliz, por que Deus o libertou,
oi sinhá sinhá, segura o chicote,
não deixa bater, faz uma prece
pra nego morrer,
nego não quer mais sofrer.
Nego esta molhado de suor,
mas feliz, por que Deus o libertou,
oi sinhá sinhá, segura a chibata,
não deixa bater, faz uma prece,
pra nego morrer,
nego não quer mais sofrer.” (Adorei as Almas.)

2º momento: personalidades negras: presente e passado se cruzam

Em geral, no Brasil, é muito comum que ruas e avenidas recebam nomes


em homenagem a pessoas muito conhecidas, que fizeram parte do cenário
político, religioso, científico e artístico do nosso país. Aqui, na relação passado
380

e presente e abrindo caminho para nossa travessia, homenageamos personali-


dades negras (vivas e mortas), com intuito de mostrar aos alunos e às alunas
que a pessoa negra é inteligente, capaz, criativa, inventora e pode ser o que ela
deseja ser. Se o aluno e a aluna estiverem com o celular, poderá direcioná-lo a
um QR code que o levará para uma breve biografia de personalidades negras
como os irmãos Rebouças, Djamila Ribeiro, Machado de Assis, Jean-Michel
Basquiat, Barack Obama, Shonda Rhimes – entre outras.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


3º momento: África, berço da humanidade

Saindo das ruas com o nome de personalidades negras, um cordão nos


leva ao continente africano. África da diversidade, hoje com 54 países, berço
da humanidade e das primeiras civilizações, de grandes reinos, do deserto do
Saara, dos griots, das grandes savanas e do personagem Pantera Negra.
Mas a África também foi palco do grande desencontro com os países
europeus que, munidos de um sentimento etnocêntrico e eurocêntrico, se
acharam no direito de oprimir, dominar e escravizar os corpos negros.

4º momento: lá vem o navio negreiro

Navio Negreiro

Lá vem o navio negreiro


Lá vem ele sobre o mar
Lá vem o navio negreiro
Vamos minha gente olhar...

Lá vem o navio negreiro


Por água brasiliana
Lá vem o navio negreiro
Trazendo carga humana...

Lá vem o navio negreiro


Cheio de melancolia
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de poesia...

Lá vem o navio negreiro


Com carga de resistência
Lá vem o navio negreiro
Cheinho de inteligência...

Solano Trindade, O poeta do povo, p. 45


CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 381

A escadaria do navio negreiro 2


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Acervo da autora, 2021

Nesse momento, a leitura do poema se mistura com a entrada no navio


negreiro. A narrativa da dor e do sofrimento é importante, inclusive para
chamar a atenção para a grande quantidade de negros e negras que morreram
durante essa travessia, e por isso, o nome navios tumbeiros. Mas o povo
preto é potência, é afeto, é ressignificação das dores; e, por isso, chamamos a
atenção dos alunos e das alunas para a confecção das bonecas Abayomi, que
significam encontro precioso.
382

5º momento: nos engenhos: quem tá gemendo? Negro ou carro de boi

A lavoura no Engenho

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Fonte: Acervo da autora, 2021.

Chegamos às plantações do Engenho! Aqui, um pouco desse Brasil Colonial


que nos legou o patriarcado, o machismo, o racismo e tantas outras desigualdades
sociais. Essa estrutura da nossa História tratou os corpos negros como mercado-
ria, chibatados dia e noite, humilhados, sem qualquer respeito a sua dignidade.
Não é possível entrar na senzala sem uma sensibilização: é preciso se
preparar para este momento, para as cenas que estão por vir. É necessário
preparar a mente e o coração para o respeito a todas as dores e sofrimentos
que as ancestralidades negras experienciaram.
Leitura do poema Quem tá gemendo?, de Solano Trindade

Quem tá gemendo, Negro ou carro de boi?


Carro de boi geme quando quer, Negro, não,
Negro geme porque apanha,
Apanha pra não gemer...
Gemido de negro é cantiga,
Gemido de negro é poema...

Gemem na minh’alma,
A alma do Congo, Da Niger, da Guiné,
De toda África enfim...
A alma da América... A
alma Universal...
Quem tá gemendo, negro ou carro de boi?
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 383

A porta para a Senzala


Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Acervo da autora, 2021.

6º momento: senzala das dores as heranças afrobrasileiras

O escravo castigado

Fonte: Acervo da autora, 2021.


384

A porta se abre; chibatadas e gritos de dor são ouvidos. Um feitor saí


carregando um chicote. Entramos na Senzala.

Parte 1: A escuridão, o fedor, a dor, o choro de quem está ali subme-


tido a uma situação degradante, humilhante e opressora. Ao fundo, toca um
tambor de lamento, de não concordância com tal situação. Mas, em meio a
toda essa violência, a África é ubuntu; é empatia. Um negro, em cena, caído
e machucado, depois de muitas chibatadas é tratado e curado por um negro e

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


uma negra que entoam cânticos de sua terra África, aos seus orixás e fazendo
usa do poder curativo das plantas, passando-as sobre o corpo ensanguentado
do negro que acabara de apanhar.

Transição

O negro machucado é erguido e levado para outra parte da senzala. Faze-


mos uma breve fala para preparar os presentes para o poder negro, de ressigni-
ficar a dor e o sofrimento em cultura, em raízes do nosso Brasil. A capacidade
dos negros e das negras em criar e recriar a cultura afro-brasileira, que é gerada/
parida na senzala, é a resistência potente e bela da cultura africana em nós.

Parte 2: – A força vital do axé se faz presente nesse momento, o tambor


que chorava, agora traz a força e a alegria da criação. Negro se ergue e celebra
a vida e faz nascer a Congada. É momento de celebração!!!!! Negro é vida!!!
E as heranças afro-brasileiras estão presentes em nosso cotidiano, em nossas
palavras, alimentos e estilos musicais.
Não podemos sair da Senzala do mesmo jeito que entramos. É preciso
refletir sobre tudo que foi vivenciado. Perguntamos aos alunos e as alunas,
nesse momento: se você pudesse voltar no tempo, estivesse dentro de uma
senzala e diante de um negro, o que você diria a ele? Fale ou escreva nas
paredes desta senzala.
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 385

Nasce a Congada
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Fonte: Costa, Alinne, 2021.

7º momento – o compromisso com a educação antirracista

Ao retornar, os alunos e as alunas se deparam com nomes de lideranças


negras: Zumbi, Dandara e Luís Gama e devem se comprometer a continuar
a luta para que a dignidade de todos os negros e todas as negras sejam res-
peitadas, pois os dados sobre a situação da população negra no Brasil são de
total desrespeito aos seus direitos mesmo que a nossa Constituição preveja o
racismo enquanto crime. Para celebrar esse pacto com a educação antirracista
e com a luta pela igualdade racial, os alunos e as alunas deixaram as marcas de
suas mãos, frases e desenhos em uma grande bandeira que será confeccionada
durante a realização do projeto.

8º momento – avaliação

Os alunos e as alunas, ao retornarem à sala de aula, deverão responder


um breve questionário feito no Google Forms sobre as sensações que tive-
ram nessa viagem passado/presente, as reflexões que foram surgindo e o seu
compromisso com a construção de uma sociedade antirracista.
386

Uma sugestão para essa etapa é fazer a avaliação por meio de um ques-
tionário em papel A4 (caso não seja possível usar a internet e o Google Forms)
a ser distribuído ao final do percurso para obter as impressões e as refle-
xões das(os) discentes. O importante é permitir que esse momento ocorra
logo após a exposição para que assim elas e eles consigam expressar tudo
que vivenciaram.
Seguem alguns depoimentos de alunas e de alunos coletados no
Google Forms:

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Quado eu ouvi os gritos eu fiquei com medo e pensei, se eu tô com medo
e nem vivi, imagina quem viveu e ainda vive isso. Quando entrei lá dentro
e a tia Alinne começou a falar sobre tudo que as pessoas negras já viveram
e que elas nunca pararam de lutar, eu comecei a pensar dentro de mim que
isso era horrível pois pela a sua cor de pele ela estava sendo julgada como
lixo [...] e o pior isso acontece até hoje, pessoas negras tem medo de sair na
rua pois as pessoas ficam olhando para elas [...] racismo é errado as pessoas
não se colocam na pele dos negros porque se elas ficassem na pele deles
somente por um dia apenas iriam parar de ser racista (aluna de 6º ano).

Quando a professora abriu a porta , a gente ouviu os gemidos de dor de


uma pessoa negra sendo chicoteada , eu fiquei muito triste com aquele
situação , porque eu sei que já aconteceu isso e muito , depois saiu a pessoa
que bateu de lá e eu fiquei com medo , quando entramos , estava claro o
pânico nas pessoas , a pessoa que foi chicoteada estava muito triste e com
dor , isso me fez sentir raiva do agressor , porque pessoas negras tinham
que apanhar e ser inferiores a pessoas brancas ? Foi isso que eu pensei
na hora. Lá tinha um cheiro muito forte e a professora nos falou que era
pior. Depois a gente foi para outro canto da sala e lá tinha as heranças
culturais da África, isso me fez lembrar o quanto de coisa que pessoas
negras nomearam ou fizeram e o tamanho de sua importância, depois o
professor de dança começou a cantar uma música e dançar, foi bem legal
a música (aluna de 6º ano).

Meu compromisso será de conscientizar pessoas sobre o racismo e tentar


fazer eles apoiarem e serem antirracistas (aluno de 7º ano).

Finalizo a descrição desse projeto com a célebre frase: “Em uma


sociedade racista, não basta não ser racista. Temos que ser antirracistas”
(Ângela Davis).
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 387

REFERÊNCIAS
BRASIL. Lei no 10.639, de 9 de janeiro de 2003. Altera a Lei nº 9.394, de
20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação
nacional, para incluir no currículo oficial da Rede de Ensino a obrigatoriedade
da temática ‘História e Cultura Afro-Brasileira’, e dá outras providências.
Diário Oficial da União, Brasília, 10 jan. 2003.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

BRASIL. Ministério da Educação. Secretaria da Educação Básica. Base nacio-


nal comum curricular. Brasília, DF, 2017. Disponível em: http://basenacio-
nalcomum.mec.gov.br/#/site/inicio. Acesso em: out. 2021.

CANDAU, Vera Maria. Direitos humanos, educação e interculturalidade: as


tensões entre igualdade e diferença. Revista Brasileira de Educação, v. 13,
n. 37, jan./abr. 2008.

RIBEIRO, Djamila. Pequeno manual antirracista. São Paulo: Companhia


das Letras, 2019.
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
ÍNDICE REMISSIVO
A
África 50, 59, 85, 86, 87, 88, 91, 93, 114, 119, 155, 179, 203, 234, 279, 284,
286, 293, 300, 303, 318, 319, 320, 322, 325, 341, 342, 345, 348, 349, 357,
359, 368, 370, 371, 375, 380, 382, 384, 386
Afro-Jack 233
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Anansi 21, 38, 40


Ancestralidade 11, 13, 21, 40, 57, 91, 118, 119, 184, 223, 237, 247, 248, 262,
267, 269, 286, 291, 298, 344, 367, 368
Antirracismo 29, 314, 401, 402, 405
Antirracista 3, 4, 12, 13, 14, 15, 20, 23, 29, 31, 32, 35, 39, 41, 47, 48, 49, 51,
52, 53, 56, 57, 60, 61, 63, 67, 74, 77, 78, 79, 85, 95, 99, 101, 104, 108, 109,
119, 123, 137, 138, 172, 173, 176, 179, 180, 181, 184, 187, 188, 204, 213,
244, 267, 268, 273, 275, 276, 277, 312, 314, 317, 320, 325, 339, 346, 347,
356, 360, 376, 378, 385, 387, 400, 402, 403, 405, 406
Aprendizado 31, 92, 95, 96, 105, 174, 285, 362
Arte 27, 29, 64, 75, 77, 115, 119, 174, 194, 217, 235, 241, 244, 245, 274,
285, 287, 313, 318, 332, 343, 344, 359, 369, 376, 399, 401, 403
Atividade 20, 27, 28, 29, 33, 35, 36, 38, 52, 53, 57, 61, 63, 64, 71, 73, 77, 78,
79, 91, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 106, 107, 144, 154, 172, 229, 285,
296, 297, 302, 304, 328, 329, 330, 331, 332, 333, 334, 335, 336, 340, 357,
359, 360, 367, 369, 370, 376, 397
Aula 28, 29, 30, 35, 36, 37, 51, 54, 56, 57, 59, 70, 72, 85, 86, 87, 89, 90, 91,
92, 93, 95, 97, 98, 101, 102, 103, 104, 105, 123, 141, 165, 175, 182, 184,
185, 187, 189, 194, 270, 271, 272, 276, 285, 292, 293, 295, 317, 329, 340,
342, 343, 345, 367, 368, 369, 378, 385
Aulas 37, 38, 63, 79, 87, 89, 93, 95, 96, 101, 105, 106, 107, 162, 179, 185,
292, 305, 319, 331, 342, 367, 370, 403
Avaliação 5, 22, 28, 34, 70, 93, 99, 107, 124, 172, 311, 315, 317, 334, 354,
357, 359, 370, 385, 386

B
Base Nacional Curricular Comum (BNCC) 294, 295, 376
Brincadeira 60, 86, 89, 90, 91, 92, 93, 94, 99, 123, 230, 270
Brincadeiras africanas 86, 90, 92, 94
390

C
Cabelo 21, 22, 24, 28, 53, 65, 72, 78, 111, 171, 179, 180, 181, 182, 183, 184,
185, 187, 188, 248, 323
Capoeira 29, 67, 170, 202, 206, 211, 212, 213, 327, 328, 329, 330, 331, 332,
333, 334, 335, 403
Cinema 89
Cor 13, 17, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 31, 35, 48, 53, 54, 59, 63, 64, 65, 67,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


70, 71, 72, 73, 74, 75, 77, 78, 79, 93, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 107,
108, 110, 123, 154, 162, 166, 171, 175, 193, 194, 197, 204, 214, 215, 227,
231, 239, 247, 261, 283, 289, 332, 345, 357, 367, 386
Corpo 13, 18, 24, 28, 30, 31, 37, 39, 40, 41, 52, 56, 71, 72, 78, 117, 133, 157,
172, 174, 175, 180, 181, 182, 183, 184, 185, 186, 187, 192, 195, 203, 204,
205, 209, 210, 211, 213, 216, 231, 237, 241, 266, 267, 269, 271, 273, 274,
275, 278, 293, 305, 317, 327, 328, 331, 332, 333, 334, 337, 338, 339, 344,
347, 354, 376, 380, 382, 384, 398, 401, 407
Criança 13, 19, 21, 22, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 31, 34, 36, 37, 39, 44, 48, 49,
53, 54, 55, 56, 59, 60, 61, 63, 64, 65, 66, 67, 69, 70, 71, 72, 73, 74, 77, 78,
79, 80, 85, 86, 88, 89, 90, 91, 94, 97, 99, 101, 102, 104, 105, 108, 111, 113,
115, 118, 120, 123, 127, 154, 155, 159, 171, 180, 183, 217, 222, 248, 269,
274, 282, 289, 296, 302, 304, 305, 307, 308, 314, 327, 328, 329, 330, 331,
332, 333, 334, 335, 337, 362, 369, 405, 407
Cultura africana 57, 85, 86, 87, 88, 89, 90, 91, 92, 93, 116, 155, 156, 162, 175,
237, 285, 286, 292, 301, 302, 303, 304, 306, 307, 309, 313, 339, 378, 384, 398
Cultura afro-brasileira 35, 36, 50, 59, 62, 64, 119, 120, 134, 137, 141, 143,
144, 171, 173, 185, 192, 194, 203, 214, 262, 276, 284, 285, 286, 287, 289,
294, 299, 305, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 318, 319, 320, 322, 324, 327,
336, 353, 364, 375, 376, 384, 387
Cultura local 327, 328, 367, 368
Currículo 35, 36, 37, 38, 60, 61, 62, 77, 95, 99, 123, 134, 137, 138, 141, 143,
144, 146, 147, 155, 212, 283, 287, 292, 293, 295, 297, 298, 299, 324, 336,
354, 356, 357, 360, 364, 375, 387, 397, 398, 407

D
Democracia racial 11, 21, 27, 31, 32, 49, 50, 51, 62, 78, 99, 108, 119, 138,
139, 141, 143, 149, 150, 151, 153, 154, 156, 160, 162, 180, 268, 271, 284, 314
Desafio 12, 17, 20, 25, 29, 31, 39, 50, 51, 54, 60, 62, 94, 131, 135, 137, 138,
146, 183, 195, 205, 212, 261, 262, 265, 268, 278, 301, 305, 321, 333, 353,
357, 359, 360, 371, 407
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 391

Desconstrução 35, 61, 77, 119, 134, 136, 141, 143, 161, 269, 337, 338, 339
Desigualdade 12, 26, 33, 34, 35, 42, 43, 48, 49, 62, 95, 124, 127, 129, 130,
132, 133, 134, 152, 156, 160, 161, 166, 174, 180, 201, 208, 262, 265, 269,
272, 282, 284, 301, 307, 312, 339, 351, 356, 360, 362, 370, 376, 382, 400,
401, 402, 404, 405, 406
Diferença 48, 50, 55, 56, 59, 61, 110, 127, 129, 130, 133, 134, 135, 139, 140,
145, 154, 156, 158, 159, 162, 265, 268, 272, 274, 331, 353, 377, 387
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Direitos humanos 36, 105, 128, 129, 265, 266, 276, 289, 298, 311, 312, 321,
365, 377, 378, 387, 397
Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) 12, 36, 118, 120, 144, 145, 147,
267, 278, 281, 282, 283, 284, 285, 287, 288, 291, 292, 294, 295, 296, 298,
299, 336, 353, 364

E
Educação antirracista 3, 4, 12, 13, 14, 15, 31, 48, 49, 51, 57, 60, 61, 85, 99,
108, 109, 138, 172, 176, 179, 180, 181, 184, 187, 188, 268, 317, 325, 339,
347, 356, 360, 378, 385
Educação escolar quilombola 212, 265, 268, 278, 281, 282, 283, 287, 288,
289, 290, 291, 292, 294, 296, 298, 299, 407
Educação Infantil 18, 20, 27, 31, 35, 36, 40, 42, 43, 48, 49, 51, 52, 53, 54,
57, 60, 63, 67, 77, 78, 79, 80, 84, 154, 165, 203, 286, 288, 304, 307, 308,
327, 334, 336, 405, 407
Educação literária 95, 101
Enegrecer 17, 20, 215
Enfrentamento 18, 20, 27, 35, 41, 49, 95, 123, 124, 137, 138, 142, 146, 163,
182, 186, 194, 275, 357, 369
Ensino Fundamental 18, 20, 50, 85, 98, 99, 100, 101, 102, 108, 179, 181,
203, 288, 305, 334, 354, 367, 378, 402, 406
Epistemologia 60, 133, 142, 145, 160, 363, 365
Escola antirracista 20, 23, 31, 32, 35, 41, 47, 48, 51, 53, 56, 60, 63, 67, 74,
77, 78, 123, 400, 402, 403, 405, 406
Escravizados 17, 111, 114, 116, 127, 130, 162, 191, 192, 193, 223, 234, 267,
271, 281, 286, 320, 322, 377
Escravos 88, 112, 116, 190, 275, 281, 318, 320, 322, 323
Estética 13, 28, 37, 95, 100, 180, 181, 183, 195, 205, 245, 274, 291, 302,
358, 362, 376, 377
Ética 95, 100, 265, 268, 274, 276, 290, 348, 376, 377, 399
392

Étnico-racial 12, 14, 18, 19, 20, 22, 23, 24, 30, 31, 40, 41, 42, 43, 44, 54, 57,
59, 60, 63, 64, 77, 79, 85, 94, 102, 109, 110, 118, 119, 120, 123, 130, 135,
137, 138, 140, 144, 147, 171, 172, 180, 181, 184, 205, 265, 267, 272, 276,
278, 284, 285, 287, 289, 294, 296, 299, 300, 301, 302, 303, 304, 305, 307,
308, 311, 314, 315, 316, 317, 318, 319, 324, 336, 351, 352, 353, 354, 355,
356, 357, 359, 364, 370, 398, 399, 403, 405, 406, 407
Exercício 72, 99, 100, 106, 107, 118, 119, 127, 133, 135, 144, 146, 172,
222, 313, 377

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Experiência 3, 4, 11, 12, 13, 14, 21, 23, 25, 26, 28, 29, 37, 41, 43, 49, 52,
54, 57, 67, 72, 74, 99, 100, 102, 105, 125, 133, 135, 136, 137, 138, 139, 140,
142, 144, 146, 179, 181, 186, 199, 237, 261, 263, 271, 272, 273, 276, 279,
285, 292, 311, 312, 318, 320, 322, 323, 327, 328, 331, 334, 335, 345, 351,
352, 354, 355, 356, 357, 362, 363, 367, 369, 399, 401, 402, 404, 405, 407

F
Ficção 97, 344, 346
Fotografia 71, 72, 235, 237, 241, 247

H
História 12, 17, 18, 25, 26, 31, 32, 36, 38, 39, 41, 42, 45, 50, 51, 52, 54, 56,
59, 60, 62, 64, 85, 88, 92, 94, 100, 103, 106, 114, 115, 116, 119, 120, 134, 135,
136, 137, 138, 139, 140, 142, 143, 144, 146, 147, 151, 155, 156, 159, 161,
162, 163, 165, 166, 169, 171, 173, 174, 175, 184, 186, 189, 191, 192, 202,
203, 204, 205, 207, 212, 214, 215, 223, 227, 234, 237, 239, 245, 261, 262,
265, 268, 269, 271, 276, 277, 284, 285, 286, 287, 289, 290, 291, 292, 293,
294, 295, 298, 299, 300, 303, 305, 311, 312, 313, 314, 315, 316, 317, 318,
319, 320, 321, 322, 323, 324, 325, 327, 328, 330, 331, 332, 334, 335, 336,
339, 340, 342, 345, 346, 348, 349, 352, 353, 357, 359, 364, 365, 367, 368,
369, 375, 377, 378, 379, 382, 387, 397, 398, 399, 400, 402, 403, 405, 406, 407

I
Intersecção 41, 60, 149, 153, 164, 276, 278, 288, 346

J
Jeremias 18, 25, 41, 189, 190, 192, 194, 196, 239, 245, 254, 403

L
Língua Portuguesa 100, 108, 190, 354, 358, 401, 405
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 393

Literatura infantil 109, 110, 113, 115, 294, 301, 302, 303, 304, 305, 306,
307, 308, 309, 399

M
Mão 25, 27, 67, 77, 78, 79, 80, 117, 167, 175, 181, 185, 192, 213, 215, 227,
248, 274, 275, 321, 385
Misoginia 13, 33, 169
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Mitologia 234, 341

N
Navio negreiro 234, 380, 381
Negritude 18, 19, 20, 24, 25, 27, 28, 29, 38, 98, 142, 147, 159, 160, 182, 183,
211, 237, 248, 261, 268, 274, 298, 322, 346, 400, 401
Negro 11, 12, 13, 17, 18, 19, 20, 21, 22, 23, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31,
33, 34, 35, 40, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 49, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57, 60,
61, 64, 65, 67, 69, 70, 73, 78, 84, 92, 98, 99, 104, 105, 110, 111, 112, 114,
117, 118, 119, 123, 127, 130, 134, 135, 136, 137, 139, 140, 141, 142, 143,
144, 145, 146, 147, 151, 152, 153, 155, 158, 159, 160, 161, 162, 163, 166,
167, 169, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 177, 179, 180, 181, 182, 183, 184,
185, 186, 187, 188, 190, 191, 192, 193, 194, 195, 196, 201, 202, 203, 204,
205, 206, 207, 208, 209, 210, 211, 212, 213, 214, 215, 216, 217, 229, 234,
237, 241, 244, 245, 248, 261, 262, 266, 267, 268, 269, 270, 271, 272, 273,
274, 275, 276, 277, 278, 279, 283, 284, 285, 286, 287, 292, 293, 294, 296,
298, 300, 301, 303, 304, 305, 306, 307, 308, 309, 311, 312, 313, 314, 315,
316, 317, 318, 319, 320, 321, 323, 324, 325, 327, 328, 331, 333, 335, 336,
340, 343, 345, 346, 348, 349, 352, 354, 355, 356, 357, 358, 359, 361, 362,
363, 365, 367, 368, 369, 370, 371, 375, 376, 377, 378, 379, 380, 381, 382,
384, 385, 386, 399, 401, 406

O
Olhar fotográfico 249
Oxalá 89

P
Paradigma 133, 134, 135, 140, 142, 143, 146, 340
Pele 21, 22, 26, 27, 29, 31, 35, 53, 54, 63, 64, 65, 66, 67, 70, 71, 72, 73, 74,
75, 77, 78, 79, 100, 101, 102, 104, 105, 106, 107, 154, 173, 193, 197, 204,
215, 227, 231, 277, 279, 319, 323, 346, 386
394

Política 13, 20, 21, 22, 23, 24, 38, 42, 43, 44, 51, 54, 77, 95, 97, 98, 100,
118, 128, 129, 133, 135, 137, 139, 140, 141, 142, 144, 146, 148, 151, 152,
157, 175, 184, 191, 201, 202, 204, 205, 210, 223, 266, 267, 271, 274, 275,
276, 282, 284, 285, 286, 288, 291, 294, 296, 312, 314, 317, 321, 336, 353,
355, 357, 377, 399
Prática educacional 17, 137, 360, 406
Preconceito 21, 31, 36, 39, 43, 44, 50, 53, 55, 57, 58, 89, 93, 97, 98, 99, 100,
101, 102, 103, 104, 105, 106, 118, 124, 131, 137, 154, 159, 162, 165, 180,

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


182, 189, 193, 194, 195, 196, 197, 237, 244, 269, 283, 289, 297, 317, 322,
346, 362, 376, 377, 378

Q
Questões étnico-raciais 54, 85, 109, 110, 267, 276, 278, 315, 316
Quilombo 131, 169, 191, 211, 265, 266, 267, 277, 279, 282, 292, 294, 295,
296, 297, 299, 398
Quilombola 14, 40, 212, 265, 267, 268, 269, 271, 272, 273, 274, 275, 276,
278, 281, 282, 283, 284, 287, 288, 289, 290, 291, 292, 293, 294, 295, 296,
297, 298, 299, 300, 398, 402, 407

R
Racismo 4, 11, 12, 13, 17, 18, 19, 20, 21, 24, 25, 26, 27, 28, 29, 30, 31, 33,
34, 35, 38, 39, 41, 42, 43, 44, 45, 47, 48, 50, 51, 53, 54, 55, 56, 57, 58, 59, 60,
61, 62, 63, 74, 77, 78, 95, 97, 98, 99, 100, 101, 102, 103, 104, 105, 106, 109,
112, 118, 119, 123, 128, 134, 135, 137, 138, 140, 141, 143, 144, 145, 146,
147, 149, 150, 151, 152, 153, 154, 156, 157, 158, 159, 160, 162, 163, 164,
165, 166, 167, 169, 170, 171, 172, 173, 174, 175, 176, 180, 182, 186, 187,
189, 194, 203, 204, 205, 206, 211, 213, 215, 223, 227, 241, 245, 248, 269,
271, 272, 274, 276, 278, 279, 284, 287, 289, 297, 298, 299, 300, 311, 312,
314, 315, 317, 318, 319, 320, 321, 322, 323, 324, 327, 337, 343, 344, 345,
346, 347, 348, 353, 355, 356, 357, 359, 362, 365, 369, 376, 382, 385, 386, 399
Racismo estrutural 17, 18, 19, 20, 26, 30, 31, 34, 35, 42, 48, 50, 53, 54, 63,
74, 77, 137, 143, 145, 146, 147, 152, 162, 170, 211, 269, 271, 278, 287, 320,
324, 346, 348
Racismo eurocêntrico 337
Racismo institucional 30, 35, 41, 50, 99, 123, 143
Reconexão 237
Resistência 11, 12, 13, 17, 20, 25, 35, 38, 42, 45, 70, 137, 140, 141, 143,
146, 148, 149, 156, 160, 161, 169, 174, 179, 181, 187, 191, 192, 206, 208,
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 395

211, 227, 237, 245, 247, 248, 262, 267, 268, 271, 275, 277, 281, 287, 293,
297, 298, 303, 315, 323, 335, 362, 368, 380, 384

S
Saci 109, 110, 111, 112, 113, 114, 115, 116, 117, 118, 119, 120, 121
Senzala 49, 139, 375, 378, 382, 383, 384
Sequência didática 63, 85, 86, 87, 88, 92, 93, 95, 96, 97, 98, 99, 100, 101,
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

102, 105, 106, 107, 373


Sucessão 159, 247, 248, 261

T
Tambor 17, 25, 41, 42, 192, 233, 235, 238, 239, 241, 244, 247, 384
Território 116, 165, 173, 175, 206, 266, 267, 281, 282, 283, 288, 291, 292,
293, 295, 298, 335, 345, 355, 356, 357, 359, 360, 361, 367

Y
Yorubá 14, 217, 218, 222, 270
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
SOBRE AUTORAS E AUTORES
Adalberto de Salles-Lima
Doutor e mestre em Ciências Sociais pela Universidade de Brasília (UnB). Cur-
sou licenciatura em Geografia pela Universidade do Estado da Bahia. Professor
da UnB (membro externo) e da Secretaria de Educação do Distrito Federal.
E-mail: sallesvitoria@hotmail.com
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Alan Alves-Brito
Astrofísico, doutor em Ciências pela Universidade de São Paulo, com estágios
de pós-doutorado no Chile e na Austrália. Atua como professor adjunto no
Instituto de Física da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS)
e coordena o Núcleo de Estudos Africanos, Afro-Brasileiros e Indígenas da
UFRGS. Exerce atividades de ensino, pesquisa, extensão e divulgação em
ciências. Membro de variadas instituições científicas. Idealizador e coordena-
dor do Projeto Zumbi-Dandara dos Palmares, é também finalista do Prêmio
Jabuti 2020, na categoria Ensaio de Ciências, e ganhador do Prêmio José Reis
de Divulgação Científica e Tecnológica do Conselho Nacional de Desenvol-
vimento Científico e Tecnológico 2022, na categoria Pesquisador e Escritor.
E-mail: alves.brito.a@gmail.com

Alinne Grazielle Neves Costa


Mestre em Educação pela Universidade Federal de Uberlândia, professora de
História na rede privada de ensino, em Uberlândia, e educadora em e para os
Direitos Humanos. E-mail: historialinne@hotmail.com

Ana Cristina Juvenal da Cruz


Professora adjunta da Universidade Federal de São Carlos (UFSCar), junto
ao Departamento de Teorias e Práticas Pedagógicas e no Programa de Pós-
-Graduação em Educação, integra o Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros da
UFSCar e, atualmente, é Diretora do Centro de Educação e Ciências Humanas
da UFSCar. E-mail: anacjcruz@ufscar.br

Ana D’Arc Martins de Azevedo


Doutora em Educação/Currículo pela Pontifícia Universidade Católica de
São Paulo, 2011. Professora Adjunta da Universidade do Estado do Pará.
Professora Titular do Programa Stricto Sensu em Comunicação, Linguagens
e Culturas e do Programa Mestrado Profissional em Gestão de Conhecimen-
tos para o Desenvolvimento Socioambiental da Universidade da Amazônia.
E-mail: azevedoanadarc@gmail.com
398

Antônio César Ortega


Economista, com graduação e mestrado pelo Instituto de Economia da Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp), doutor pela Universidade de Córdoba
(Espanha) e pós-doutor pela Unicamp. É professor titular aposentado da Uni-
versidade Federal de Uberlândia e professor visitante da Universidade Federal
de Minas Gerais. Fotógrafo autodidata. E-mail: acortega1960@gmail.com

Ariane Celestino Meireles

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Integrante do comitê gestor do projeto LitERÊtura, doutoranda em Educação
pela Universidade do Porto, coordenadora da Comissão Permanente de Estu-
dos Afro-Brasileiros de Vitória e pesquisadora do LitERÊtura.

Astrogildo Fernandes Silva Junior


Professor associado da Universidade Federal de Uberlândia, onde atua na
Faculdade de Educação, no Programa de Pós-Graduação em Educação e no
ProfHistoria. Pesquisa temáticas relacionadas à formação de professores, ensino
de história e relações étnico-raciais. E-mail: silvajunior_af@yahoo.com.br

Aymê Jilvana Castro Fergueira


Graduanda em Licenciatura em História, quilombola militante no Movimento
de Mulheres/Juventude de Quilombo. Integra o Grupo de Pesquisa Saberes
e Práticas Educativas de Populações Quilombolas. É bolsista no Grupo de
Pesquisa em Educação e Meio Ambiente da Universidade Federal do Pará.

Baba Paulo Tolomi Ifatide Ifamoroti Ojewale


Especialista em História e Cultura Africana. Formado em Língua e Cultura
Yoruba pela Universidade de Ibadan – Nigéria. Fundador e mantenedor do
Centro Cultural Orùnmilá, em Ribeirão Preto.

Carla Beatriz Meinerz


Docente do Departamento de Ensino e Currículo e do Programa de Pós-Gra-
duação em Educação da Faculdade de Educação da Universidade Federal
do Rio Grande do Sul, onde também atua no Núcleo de Estudos Africanos,
Afro-Brasileiros e Indígenas.

Cicera Nunes
Doutora em Educação pela Universidade Federal do Ceará (UFC) e professora
do Departamento de Educação da Universidade Regional do Cariri (URCA).
Integra o corpo docente do Programa de Mestrado Profissional em Educação e
do Mestrado Profissional em Ensino de História da URCA e é líder do Núcleo
de Estudos e Pesquisas em Educação, Gênero e Relações Étnico-Raciais.
E-mail: cicera.nunes@urca.br
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 399

Cláudio Eduardo Rodrigues


Doutor em Filosofia pela Universidade Federal de São Carlos e professor
associado da Universidade Federal dos Vales do Jequitinhonha e Mucuri,
Campus Janaúba. É congadeiro na Irmandade de Nossa Senhora do Rosário e
São Benedito de Uberlândia. Desenvolve ações e estudos relacionados à ética
e filosofia política, bem como sobre cultura, religiosidade, filosofia africana
e afro-brasileira. E-mail: claudio.eduardo36@gmail.com
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Cristina Peron
Possui graduação em Pedagogia pelo Centro Universitário do Triângulo. Cur-
sou especialização em Saúde Coletiva pela Universidade Federal de Uberlân-
dia (UFU). Aposentou-se do cargo de técnica administrativa da UFU. Tem
experiência na área de Educação, e principalmente nos seguintes temas:
doença falciforme, racismo e educação. E-mail: cristina.r.peron@gmail.com

Dandara Tonantzin Silva Castro


Pedagoga pela Universidade Federal de Uberlândia e mestre em Educação
pela Universidade Federal de Minas Gerais. É militante feminista, ativista do
movimento negro e a vereadora mais votada de Uberlândia, nas eleições de
2020. E-mail: dandara.tonantzin@gmail.com

Débora Cristina de Araujo


Coordenadora do Projeto de Pesquisa Aplicada LitERÊtura – Grupo de estudos
e pesquisas em diversidade étnico-racial, literatura infantil e demais produtos
culturais para as infâncias – e doutora em Educação pela Universidade Federal
do Paraná. Atua como professora da Universidade Federal do Espírito Santo
e coordenadora do grupo LitERÊtura. E-mail: deboraaraujo.ufes@gmail.com

Deividi de Santana Silva


Graduado – bacharelado e licenciatura – e mestre em História pela Universi-
dade Federal de São Paulo. Como educador, leciona na Prefeitura Municipal
de São Paulo, onde desenvolve pesquisas e projetos sobre as questões étni-
cas, de gênero e raciais. Considera que a educação é uma shirsasana, postura
invertida do yoga em que o coração está acima da cabeça, ou seja, a mente
racionaliza os processos educacionais, e o coração dota o sentido do quê e
por que ensinamos. E-mail desantanasilva@bol.com.br

Eduardo Ramos
Artista visual, músico, bacharel e licenciado em Artes Visuais pela Univer-
sidade Federal de Uberlândia e mestre em Música pela mesma universidade.
Atualmente é professor de Arte na rede municipal de ensino de Uberlândia e
desenvolve trabalhos de pesquisas de intermidialidade entre a música e a pintura.
E-mail: eduardoramosart@gmail.com
400

Eduardo Silva dos Santos


Graduado em Licenciatura em Pedagogia. Cursa especialização em Gestão
Educacional e Docência do Ensino Básico e Superior na Faculdade Estratego.
É bolsista de Iniciação Científica no Projeto Poronga da Equidade, o qual é
vinculado ao Edital Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisa Aplicada
e Artigos Científicos, organizado pelo Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades, com o apoio do Itaú Social, Instituto Unibanco,
Fundação Tide Setubal e do Fundo das Nações Unidas para a Infância.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Ellen Faria
Graduada em Comunicação Social, publicitária, fotógrafa e diretora audio-
visual. Em seus trabalhos, contempla a negritude e o feminismo, ressaltando
a urgência e a necessidade da equidade de gênero e etnia. Foi premiada no
FestClip 2019, nas categorias Melhor Música, Escolha do Público e Melhor
Videoclipe Nacional. Há nove anos, Ellen é membro e fotógrafa do Centro
Cultural Orùnmilá, em Ribeirão Preto. E-mail: ellencarolinaf@gmail.com

Elziene Souza Nunes Nascimento


Doutoranda em Comunicação, Linguagens e Cultura na Universidade da Ama-
zônia. Atua como professora da Secretaria de Educação do Estado do Pará e
da Secretaria Municipal de Educação de Marituba.

Fabiani Franco de Alves


Licenciada em Educação do Campo pela Universidade Federal do Pampa,
mestranda em Sustentabilidade na UnB. Técnica em Agroindústria pelo Ins-
tituto Federal de Educação, Ciência e Tecnologia Sul-rio-grandense. Foi bol-
sista de Iniciação Científica do Projeto Zumbi-Dandara dos Palmares, Edital
Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisa Aplicada e Artigos Científicos,
organizado pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades.

Fernanda Cássia dos Santos


Professora de História no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de
Uberlândia. É mestra e doutora em História pela linha de pesquisa Intersub-
jetividade e Pluralidade: reflexão e sentimento na História, do Programa de
Pós-Graduação em História da Universidade Federal do Paraná. Como pes-
quisadora, atua, principalmente, com temáticas que envolvem a História das
relações de gênero e suas articulações com discursos moralizantes e o ensino de
História. É líder do Grupo de Estudos e Pesquisas Interseccionalidades, Saberes
e Práticas na Educação Básica da UFU. É membra do comitê gestor do Projeto
‘Construindo uma Escola Antirracista: ingresso e permanência de cotistas na
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 401

educação básica’, contemplado pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica,


promovido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades.
E-mail: fernanda.cassia@ufu.br

Fernanda Cristina de Campos


Possui doutorado em Estudos Literários pela Universidade Federal de Uber-
lândia (UFU), 2018; mestrado em Literatura Brasileira pela Universidade
de Brasília, 2006, e graduação em Letras pela UFU, 2003. Atua como pro-
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

fessora do Colégio de Aplicação da UFU – ESEBA/UFU. Tem experiência


nas áreas de Letras, Educação, com ênfase em Literatura, Teoria da Lite-
ratura e Metodologia e Práticas de Ensino de Língua Portuguesa, atuando
– inclusive com publicações – nos seguintes temas: poesia, narrativa, dis-
curso literário, teoria do imaginário, literatura brasileira, práticas de ensino
de língua materna e antirracismo na educação. É pesquisadora/coordenadora
do Grupo de Pesquisas Poéticas e Imaginário e membra do Grupo de Estu-
dos e Pesquisas Interseccionalidades, Saberes e Práticas, ambos na UFU.
E-mail: fernandacristinacampos@yahoo.com.br

Fernanda de Souza Cardoso


Doutora em Ciências da Religião pela Pontifícia Universidade Católica
de São Paulo. Cursou graduação em Educação Física pela Universidade
Estadual de Montes Claros (UNIMONTES), onde é professora efetiva.
Atuou também como professora da educação básica. Coordena o Projeto
de extensão Ciclo de Debates sobre a Dança (UNIMONTES) e desen-
volve ações e estudos relacionados à Educação Física, Dança e Negritude.
E-mail: fernanda.cardoso@unimontes.br

Flaviane Malaquias
Graduada em Artes Plásticas e mestre em Arte-Educação pela Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). É artista visual, arte-educadora e pesquisadora
do Núcleo de Pesquisa em Pintura e Ensino da UFU. A artista parte de suas
próprias vivências relacionadas ao “ser mulher negra” e amplia a discussão
para outras realidades, indo a campo investigar o corpo negro em diferentes
contextos. E-mail: flavinhamalaquias@hotmail.com

Flora Cristine da Costa Scantlebury


Graduada em Licenciatura em Letras na Universidade do Federal do Pará
(UFPA) e Especialista em Saberes Africanos na UFPA. Atua como professora
da Secretaria de Estado de Educação do Estado do Pará.
402

Gabriela da Conceição Pereira Soares Ferreira


Graduada em Licenciatura em Pedagogia na Universidade da Amazônia.
Atua como professora do Ensino Fundamental no Colégio Nossa Senhora
da Anunciação.

Gabriela Martins Silva


Professora de Psicologia no Colégio de Aplicação – Eseba da Universidade
Federal de Uberlândia e doutora em Psicologia pela Universidade de São

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Paulo. Atualmente, tem pesquisa e atuação voltadas às temáticas de gênero,
sexualidade, antirracismo e saúde mental. É líder do Grupo de Estudos e Pes-
quisas Interseccionalidades, Saberes e Práticas na Educação Básica da UFU.
É membra do comitê gestor do Projeto ‘Construindo uma Escola Antirracista:
ingresso e permanência de cotistas na educação básica’, contemplado pelo Edi-
tal Equidade Racial na Educação Básica, promovido pelo Centro de Estudos
das Relações de Trabalho e Desigualdades. E-mail: gabrielampsico@ufu.br

Gerson Alves de Oliveira


Doutor em Ciências Sociais pela Faculdade de Filosofia e Ciências da Uni-
versidade Estadual de São Paulo/Marília. Atua desde 2010 como professor
de Sociologia e Filosofia do Instituto Federal de Educação do Tocantins
(IFTO), onde ocupa também a função de presidente do Núcleo de Estudos
Afro-brasileiro e Indígena do IFTO – Campus Araguaína. Tem experiên-
cias nos seguintes temas: luta pela terra, identidade e cultura quilombola.
E-mail: gerson.oliveira@ifto.edu.br

Getúlio Ribeiro Baccelli


Mestre em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia (UFU),
docente da Escola de Educação Básica (Eseba/UFU), pesquisador nas áreas
da história, educação e cultura e autor de literatura e histórias em quadrinhos.
E-mail: getulioeseba@gmail.com

Gilberto Neves
Professor de História, advogado e escritor de contos e poesias. Publicou nos
livros Os olhos de luna e outros contos (1984), e Uberlândia – 20 autores
(2013). Foi classificado em 2º lugar no Concurso Nacional de Dramaturgia do
Instituto Nacional de Artes Cênicas (1983), com a peça “As Ambrósias”. Em
breve, publicará Cenas urbanas e o amor (2022). Foi Secretário Municipal
de Cultura, em Uberlândia, de 2013 a 2016. E-mail: gnevesmg@gmail.com

Guimes Rodrigues Filho


Professor titular da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), foi coordena-
dor executivo do Núcleo de Estudos Afro-brasileiros da UFU no período de
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 403

2006 a 2019. É mestre de Capoeira Angola do Grupo Malta Nagoa. E-mail:


guimes.rodriguesfilho@gmail.com

Jack Will
Graduado em música pela Universidade Federal de Uberlândia. Percussio-
nista e baterista, com fortes raízes afro-mineiras, há 18 anos vem atuando
profissionalmente em shows, gravações e aulas. Apresenta-se em diversos
lugares no Brasil e em alguns países da Europa. Em 2022, vai lançar o seu
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

primeiro álbum autoral celebrando a arte da música instrumental. E-mail:


jackwilliamjazz@gmail.com

Jeremias Brasileiro
Doutor em História Social pela Universidade Federal de Uberlândia. Membro
do Instituto Histórico e Geográfico Sul de Minas, sediado em Poços de Caldas,
MG, ocupante da Cadeira 05, cujo Patrono é Rei Ambrósio.

Joelma dos Santos Rocha Trancoso


Integrante do comitê gestor do projeto LitERÊtura, doutoranda em Educação
em Ciências e Matemática pelo Instituto Federal do Espírito Santo, assessora
da Coordenação de Estudos Étnico-Raciais do município da Serra e integrante
do LitERÊtura.

Josiane de Carvalho Souza


Graduada em Pedagogia e especialista em Educação Especial com Ênfase em
Libras, na Faculdade Montenegro. Atua como coordenadora pedagógica da
Secretaria Municipal de Educação de Moju.

Laís Rodrigues Campos


Graduada em Pedagogia pela Universidade do Estado do Pará (UEPA) e Geo-
grafia pelo Instituto Federal do Pará (IFPA). É especialista em Educação para
Relações Étnico-raciais pelo Núcleo de Estudos Afrobrasileiros do IFPA e Mestre
em Educação pela Universidade Federal do Pará. Doutorou-se em Geografia pela
Universidade Federal de Goiás (UFG). Atualmente, é professora adjunta da UFG.

Léa Aureliano de Sousa


Professora no Colégio de Aplicação da Universidade Federal de Uberlândia
(UFU). Atua nas séries iniciais do ciclo de alfabetização. Cursa mestrado em
Educação. Pesquisa temáticas relacionadas à formação inicial e continuada
de professores, relações étnico-raciais e alfabetização como processo dis-
cursivo. É membra do Grupo de Estudos e Pesquisas Interseccionalidades,
Saberes e Práticas na Educação Básica da UFU e do comitê gestor do Projeto
‘Construindo uma Escola Antirracista: ingresso e permanência de cotistas
404

na educação básica’, contemplado pelo Edital Equidade Racial na Educação


Básica, promovido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desi-
gualdades. E-mail: lasmach@hotmail.com

Lucilene Aparecida Soares


Integrante do comitê gestor do projeto LitERÊtura, mestra em Educação pela
Universidade Federal do Paraná, professora da Secretaria de Estado da Edu-
cação do Paraná e pesquisadora do LitERÊtura.

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Maria Geralda de Almeida (in memoriam)
Graduou-se em Geografia pela Universidade Federal de Minas Gerais. Cur-
sou mestrado e doutorado em Geografia pela Université de Bordeaux III,
pós-doutorado em Geografia Humana pela Universidad de Barcelona, em
Geografia Cultural pela Université Laval, Università degli Studi di Genova e
Université de Paris IV Paris-Sorbonne. Foi presidente da Associação Nacional
de Pós-Graduação e Pesquisa em Geografia, de 2009 a 2011. Foi professora
colaboradora da Universidade Federal de Sergipe e integrante do Programa
de Docente Voluntária da Universidade Federal de Goiás, onde atuou como
pesquisadora do Laboratório de Estudos e Pesquisas das Dinâmicas Territo-
riais. Com vasta experiência nacional e internacional em Geografia Cultural,
foi Supervisora Externa do Projeto Zumbi-Dandara dos Palmares, contem-
plado pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica: Pesquisa Aplicada
e Artigos Científicos, organizado pelo Centro de Estudos das Relações de
Trabalho e Desigualdades.

Mariana Alves de Sousa


Graduada em Ciências Sociais pela Universidade Federal de Uberlândia e
mestra em Sociologia pela Universidade Estadual Paulista Júlio de Mesquita
Filho, onde cursa doutorado em Educação. Integra o Núcleo Negro para Pes-
quisa e Extensão Universitária, o Laboratório de Ensino e Pesquisa Educação
e Sociedade e o Grupo de Estudos Psicologia, Cultura e Coletivos Queer. Atua
como pesquisadora bolsista da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de
São Paulo. E-mail: ma.sousa@unesp.br

Mariza Barbosa de Oliveira


Artista visual e Professora de Artes Visuais na Escola de Educação Básica da
Universidade Federal de Uberlândia (ESEBA – UFU). Graduada em Artes
Plásticas – Licenciatura e Bacharelado pela Universidade Federal de Uberlân-
dia (UFU) e Mestra pelo Programa de Pós-Graduação em Artes Universidade
Federal de Uberlândia (UFU). Doutoranda em Artes Visuais na Universi-
dade Estadual de Campinas (Unicamp). Pesquisadora do Grupo de Pesquisa
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 405

Poéticas da Imagem (UFU/CNPq) e do GRUPA – Grupo de Pesquisa em Arte


(UFU/CNPq). E-mail: mariza.oliveira@ufu.br

Míghian Danae Ferreira Nunes


Cursou graduação em Pedagogia pela Universidade do Estado da Bahia, 2003,
e mestrado e doutorado pela Faculdade de Educação da Universidade de
São Paulo. Foi professora na educação infantil por quinze anos, na educação
pública. Tem experiência na área de Educação, com ênfase em Educação
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Infantil, atuando, principalmente, nos seguintes temas: relações étnico-raciais


e antirracismo, gênero, estudos sociais da infância, pesquisa com crianças.
Atualmente, é professora da Universidade Internacional da Integração da Luso-
fonia Afro-Brasileira/Campus Malês. E-mail: mighiandanae@unilab.edu.br

Neli Edite dos Santos


Aposentou-se recentemente do cargo de professora de Língua Portuguesa e
Literatura na Escola de Educação Básica da Universidade Federal de Uberlândia
UFU. Estudou na UFU, onde cursou Licenciatura Plena em Português/Inglês,
1988, e doutorado em Estudos Literários, 2019. Na Universidade Estadual de
Campinas, cursou mestrado, 1999, e doutorado incompleto em Teoria e História
Literária, 2008. É membra do Grupo de Estudos e Pesquisas Interseccionalida-
des, Saberes e Práticas na Educação Básica da UFU. É coordenadora do Projeto
‘Construindo uma Escola Antirracista: ingresso e permanência de cotistas na
educação básica’, contemplado pelo Edital Equidade Racial na Educação Básica,
promovido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho e Desigualdades.
E-mail: neli.santos@ufu.br

Paula Amaral Faria


Doutora em Educação pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da
Universidade Federal de Uberlândia (UFU), 2020. Graduou-se em Peda-
gogia pela UFU, 2003. Atua como docente e coordenadora pedagógica da
área de Educação Infantil no Colégio Escola de Aplicação da Universidade
Federal de Uberlândia (CAp. Eseba/UFU). Tem experiência em educação
infantil, principalmente nos temas: crianças, infâncias e linguagens. E-mail:
paula_afaria@ufu.br

Renata Sangoranti
Produtora cultural e advogada. Preside e coordena o Centro Cultural Orùnmilá.

Rita Silvana Santana dos Santos


Professora da Universidade de Brasília no âmbito da Faculdade de Educação,
do Programa de Pós-Graduação em Diretos Humanos e do Programa de Pós-
-Graduação em Educação – Modalidade Profissional. Atua como colaboradora
406

associada da Cátedra UNESCO em Educação a Distância, UnB. É supervisora


do Projeto ‘Construindo uma Escola Antirracista: ingresso e permanência de
cotistas na educação básica’, contemplado pelo Edital Equidade Racial na
Educação Básica, promovido pelo Centro de Estudos das Relações de Trabalho
e Desigualdades. E-mail: ritasilvana@gmail.com

Roberta Paula Gomes Silva


Docente da área de História no Colégio de Aplicação Escola de Educação

Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização


Básica da Universidade Federal de Uberlândia (UFU), desde 2013, com atua-
ção no Ensino Fundamental I e II. Possui graduação, mestrado e doutorado
em História pela UFU. E-mail: roberta.silva@ufu.br

Samara Rodrigues Oliveira


Completou 18 anos de idade. É estudante do curso de Agropecuária no Ins-
tituto Federal do Triângulo Mineiro e formada no Conservatório Estadual de
Música Cora Pavan Capparelli.

Sandra Haydée Petit


Doutora em Ciências da Educação, no Núcleo de Africanidades Cearenses
da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Ceará (UFC). Atua
como professora da UFC. E-mail: entrelugares@ufc.br

Silvandra Cardoso Gonçalves


Graduada em Licenciatura em História na Universidade Federal do Pará
(UFPA), especialista em Educação para as Relações Étnico- Raciais na UFPA
e Especialista em Saberes, Linguagens e Práticas Educacionais na Amazônia,
no Instituto Federal do Pará (IFPA). Atua como professora de História na
Secretaria Municipal de Educação de Belém.

Thaila Cristina Barbosa Damasceno


Graduada em Licenciatura Plena em Pedagogia, pela Universidade Estadual
do Pará (UEPA). Participa dos Grupo de Pesquisa, Saberes e Práticas Edu-
cativas de Populações Quilombolas e Grupo de Educação Popular, ambos da
UEPA. Atua como professora na instituição Acompanhamento Pedagógico e
Reforço Escolar Kalinne Cabral.

Vanderleia Reis de Assis


Mestra em Educação e Formação Humana pela Universidade do Estado de
Minas Gerais (UEMG), professora de História da Rede Municipal de Ensino
de Belo Horizonte, Pesquisadora das relações étnico-raciais e de gênero,
integra a Associação Brasileira de Pesquisadoras(es) Negras(os). E-mail:
vanderleiaagape@hotmail.com
CONSTRUINDO UMA EDUCAÇÃO ANTIRRACISTA: reflexões, afetos e experiências 407

Vanessa de Souza Ferreira Dângelo


Mestre pelo Programa de Pós-Graduação em Educação da Universidade
Federal de Uberlândia (UFU), 2010. Graduou-se em Pedagogia pela UFU,
2004. Atua como Docente da área de Educação Infantil no Colégio Escola
de Aplicação da UFU (CAp. Eseba/UFU). Tem experiência em Educação
Infantil, principalmente nos temas: crianças e história das infâncias. E-mail:
vanessa.dangelo@ufu.br
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Waldirene dos Santos Castro


Graduada em Pedagogia e possui capacitação em Educação do Campo: Escola
Ativa e Escola da Terra, pela Universidade Federal do Pará (UFPA). Especia-
lista em Educação para as Relações Étnico-Raciais pela UFPA e em Educação
do Campo, com ênfase em Pedagogia da Alternância e Agricultura Familiar,
pelo Instituto Federal do Pará. Atualmente, cursa mestrado em Antropologia
Social pela UFPA.

Wellington Luan Porto


Estudante de Letras na Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS),
proponente dos GTs “Educação para as Relações Étnico-Raciais na Educação
Básica” do Colégio de Aplicação e “Relações Étnico-Raciais na Letras”, ambos
vinculados ao Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indígenas e Africanos da
UFRGS. Proponente do Programa de Extensão “Relações Étnico-Raciais na
Letras”. Atualmente é bolsista do Núcleo de Estudos Afro-Brasileiros, Indí-
genas e Africanos, membro da equipe coordenadora do Programa de Exten-
são “Relações Étnico-Raciais na Letras”. Compõe a equipe de pesquisa do
projeto “Zumbi-Dandara dos Palmares: desafios estruturais e pedagógicos da
Educação Escolar Quilombola para a promoção da equidade racial no Brasil
do século XXI”.

Wilma de Nazaré Baía Coelho


Doutora em Educação pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte,
2005. É professora da Universidade Federal do Pará (UFPA). Integra o
corpo docente da Pós-Graduação em Currículo e Gestão da Escola Básica,
do Programa em Educação em Ciências e Matemáticas e do Doutorado
em Rede Educanorte. Líder do Núcleo de Estudos e Pesquisas sobre For-
mação de Professores e Relações Étnico-Raciais da UFPA. É bolsista de
produtividade do CNPq. E-mail: wilmacoelho@yahoo.com.br
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 16 x 23 cm
Mancha: 12,3 x 19,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5/11,5/13/16/18
Arial 8/8,5
Papel: Couché fosco 90 g (miolo)
Royal Supremo 250 g (capa)

Você também pode gostar