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Metodologia

de Pesquisa
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

Os mundos qualitativo e
quantitativo das coisas na saúde
Michelle Fernandez
Rafael Moreira
Bárbara Maia
Ranna Ferreira
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização
Michelle Fernandez
Rafael Moreira
Bárbara Maia
Ranna Ferreira
Editora CRV - Proibida a impressão e/ou comercialização

METODOLOGIA DE PESQUISA:
Os mundos qualitativo e
quantitativo das coisas na saúde

Editora CRV
Curitiba – Brasil
2023
Copyright © da Editora CRV Ltda.
Editor-chefe: Railson Moura
Imagem de Capa: Freepik
Diagramação e Capa: Designers da Editora CRV
Revisão: Os Autores

DADOS INTERNACIONAIS DE CATALOGAÇÃO NA PUBLICAÇÃO (CIP)

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CATALOGAÇÃO NA FONTE
Bibliotecária responsável: Luzenira Alves dos Santos CRB9/1506

O46

Fernandez, Michelle
Metodologia de pesquisa: os mundos qualitativo e quantitativo das coisas
na saúde / Michelle Fernandez, Rafael Moreira, Bárbara Maia, Ranna Ferreira
– Curitiba: CRV, 2023.
136 p.

Bibliografia
ISBN Digital 978-65-251-5425-1
ISBN Físico 978-65-251-5427-5
DOI 10.24824/978652515427.5

1. Saúde pública 2. Metodologia de Pesquisa 3. Metodologia Científica


4.Bioestatística I. Moreira, Rafael, Maia, Bárbara, Ferreira, Ranna II. Título III.
Série

CDU 001.8:616-083 CDD 001.42


Índice para catálogo sistemático
1. Metodologia cientifica – 001.42

2023
Foi feito o depósito legal conf. Lei nº 10.994 de 14/12/2004
Proibida a reprodução parcial ou total desta obra
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Tadeu Oliver Gonçalves (UFPA)
Tania Suely Azevedo Brasileiro (UFOPA)

Este livro passou por avaliação e aprovação às cegas de dois ou mais pareceristas ad hoc.
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SUMÁRIO
PREFÁCIO ...................................................................................9
Domício Aurélio de Sá

PARTE 1
CAPÍTULO 1
METODOLOGIA DE PESQUISA E MÉTODOS
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QUALITATIVOS .........................................................................13
CAPÍTULO 2
ABORDAGENS QUALITATIVAS PARA COLETA E
ANÁLISE DE DADOS ................................................................29
CAPÍTULO 3
TÉCNICAS QUALITATIVAS DE COLETA DE DADOS ...........45
CAPÍTULO 4
ANÁLISE DE DADOS QUALITATIVOS ....................................59

PARTE II
CAPÍTULO 5
PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE O MÉTODO
QUANTITATIVO .........................................................................73
CAPÍTULO 6
A MEDIDA DO MUNDO .............................................................85
CAPÍTULO 7
DEFINIÇÃO DE “QUANTITATIVO” E “QUALITATIVO”
NOS ESTUDOS QUANTITATIVOS .........................................95
CAPÍTULO 8
A CLASSIFICAÇÃO DE VARIÁVEIS QUANTITATIVAS E
QUALITATIVAS COM EXEMPLOS PRÁTICOS ....................103
CAPÍTULO 9
POPULAÇÃO E AMOSTRA EM ESTUDOS
QUANTITATIVOS ....................................................................115
CAPÍTULO 10
CALCULANDO E INTERPRETANDO O Z-SCORE (Z-RES)123
ÍNDICE REMISSIVO ...............................................................131

SOBRE OS AUTORES ............................................................133

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PREFÁCIO
Este livro é fruto de um processo de qualificação teórico-
-prática destinado à equipe técnica da Ouvidoria-Geral do SUS
do Ministério da Saúde (OUVSUS/MS), desenvolvido por meio
do projeto de cooperação técnico-científica com o Instituto Aggeu
Magalhães – Fundação Oswaldo Cruz Pernambuco (IAM – Fio-
cruz PE) (TED 192/2019). Essa parceria tem a educação per-
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manente da equipe como um dos objetivos. Nesse sentido, por


demanda específica da OUVSUS, foi ofertado um curso de atua-
lização sobre metodologia científica, com o objetivo de oferecer
noções teóricas e práticas sobre as principais abordagens nas pes-
quisas em saúde, com enfoque em avaliação de políticas. A oferta
visava ao aprimoramento das pesquisas e análises de dados da
Ouvidoria do SUS e, consequentemente, à melhoria da qualidade
das informações produzidas pelo setor. O curso foi realizado no
segundo semestre de 2020, na modalidade EaD (através da plata-
forma Moodle IAM/Fiocruz), com aulas on-line ministradas pelo
ambiente Zoom. Esse processo possibilitou gravação e posterior
transcrição das aulas, impulsionando esta publicação. Assim, o
livro foi organizado de acordo com a dinâmica do curso, sendo
subdividido em duas partes, dez capítulos no total.
A parte I, com quatro capítulos, liderada pela professora
Michelle Fernandez, aborda os “Estudos qualitativos”, sinteti-
zando os aspectos teóricos e práticos nas análises de políticas
públicas, especialmente no âmbito do setor saúde. O capítulo 1,
intitulado “Metodologia de pesquisa e métodos qualitativos”, faz
uma introdução temática, a partir desde os principais conceitos e
definições até a estruturação de um projeto de pesquisa. No capí-
tulo 2, “Abordagens qualitativas para coleta e análise de dados”,
são descritas as principais estratégias utilizadas em pesquisas
qualitativas, sendo os aspectos práticos de cada etapa aprofun-
dados especificamente nos dois capítulos seguintes: as “Técnicas
qualitativas de coleta de dados”, capítulo 3; e “Análise de dados
qualitativos”, capítulo 4, que finaliza a primeira parte do livro.
10

A parte II, destinada aos “Estudos quantitativos”, com a


liderança do professor Rafael Moreira, foi subdividida em seis
capítulos, sendo os três primeiros com abordagens mais teóricas
e reflexivas; e os três últimos trazendo as principais aplicações
práticas para o desenvolvimento de pesquisas. Nesse sentido, o
capítulo 5 traz as “Primeiras reflexões sobre o método quantita-
tivo”; o capítulo 6, intitulado “A medida do mundo”, discute as
formas de medir; e o capítulo 7 aborda a “Definição de ‘quanti-
tativo’ e ‘qualitativo’ nos estudos quantitativos”. Na sequência,

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visando à aplicação prática na área de saúde, o capítulo 8 discute
“A classificação de variáveis quantitativas e qualitativas com
exemplos práticos”; o capítulo 9, “População e amostra em estu-
dos quantitativos”, aborda as definições metodológicas; por fim, o
capítulo 10, denominado “Calculando e interpretando o Z-Score
(Z-RES)”, trata de processos fundamentais nas análises de dados.
Em suma, podemos concluir que esta obra, haja vista ter
sido elaborada por pesquisadores experientes, a partir de um pro-
cesso de qualificação de trabalhadores da saúde, buscou desde o
princípio usar uma linguagem didática e objetiva à práxis. Com
conteúdo, ao mesmo tempo, denso e sintético, o livro vai além
de seu propósito inicial. Dessa forma, tem potencial de tornar-se
mais uma referência também no âmbito acadêmico, sobretudo
para os programas de pós-graduação e cursos de graduação, espe-
cialmente na área da saúde.

Domício Aurélio de Sá
Departamento de Saúde Coletiva – IAM/Fiocruz
Coordenador do projeto (TED 192/2019)
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PARTE 1
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CAPÍTULO 1
METODOLOGIA DE PESQUISA
E MÉTODOS QUALITATIVOS
O termo “metodologia” faz referência à perspectiva sobre
a natureza da realidade (ontologia) e do conhecimento (episte-
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mologia) em que os métodos estão fundamentados. Por outro


lado, o termo “método” representa o modo como são coletados
e analisados os dados. O surgimento da metodologia qualitativa
deve-se à necessidade de analisar em profundidade as percepções
e experiências humanas nas sociedades. Através de métodos que
proporcionam mais proximidade com o objeto de pesquisa, a
metodologia qualitativa permite a realização de um estudo deta-
lhado do ente pesquisado.
O aparecimento dos qualitativistas, ou seja, dos pesquisado-
res adeptos da pesquisa baseada na metodologia qualitativa, está
atribuído a Max Weber. Essa vertente de pesquisa centra-se no
estudo da ação social em detrimento da estatística, instrumento
de análise da pesquisa quantitativa, como única ferramenta ana-
lítica. De acordo com Weber (1978, p. 15), “podemos ir além
da mera demonstração de relações funcionais e uniformidades.
Podemos alcançar [...] o significado subjetivo da ação dos indiví-
duos.” Assim, a metodologia qualitativa questiona a objetividade
e propõe o entendimento das subjetividades de acordo com as
diferentes perspectivas dos fatos, seus significados e percepções
(Mayoux, 2006, p. 118). Essa vertente metodológica é empre-
gada de maneira adequada nas pesquisas cujo objetivo principal
é explorar as experiências subjetivas das pessoas e o significado
agregado a essas experiências (Devine, 2002, p. 199). Assim,

Compreender subjetivamente uma ação implica entender os


motivos que levam à pessoa a atuar de maneira determinada
prestando atenção ao contexto no qual a ação acontece. Se a
ênfase está posta na ação, as técnicas de pesquisa utilizadas
14

irão variar. Se optará por técnicas mais interpretativas (como


a hermenêutica), pelo contato direto com o objeto de estudo
(como a observação participante), pela recopilação de grande
quantidade de informação sobre o fenômeno estudado para
observá-lo desde diferentes ângulos (Coller, 2005, p. 19-20).

Portanto, a metodologia qualitativa trabalha com um con-


junto de fenômenos humanos que fazem parte da realidade social
(Minayo, 2009), no contexto onde ocorrem e do qual fazem parte

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(Kripka; Scheller; Bonotto, 2015).
Na pesquisa qualitativa, podemos dizer que a metodologia
é o conjunto de pressupostos teóricos que fundamentam a esco-
lha dos métodos, os processos de coleta e análise de dados que
baseiam sua busca por conhecimento (Taylor; Francis, 2013).
Desse modo, os métodos e processos para coletar e analisar dados
dependem da escolha de metodologia. Para pesquisadores quali-
tativos, isso pressupõe interesse nessa aproximação com o objeto
e com o fenômeno social, e especificações quanto ao modo de
entender esse objeto e esses fenômenos a partir da observação e
da coleta de dados.
Os métodos são aquilo que se usa para coletar, analisar e
processar os dados, para entender determinado fenômeno ou
situação. Existem diferentes formas de observar determinadas
situações; usualmente, escolhem-se estratégias distintas para
essa observação e para coletar dados sobre fenômenos. Um
estudo de caso, por exemplo, leva em consideração um ou mais
casos para entender determinado evento. Para coletar os dados,
os pesquisadores também se apropriam de certas técnicas. Em
alguns casos, o pesquisador busca informações (dados) sobre
fatos sociais em documentos (atas de reunião, diários oficiais,
prontuários); em outros, esse levantamento é feito a partir da
observação do fenômeno. Para cada técnica, há um “modo de
fazer” específico a contribuir para que o pesquisador compreenda
melhor seu objeto de pesquisa e responda as perguntas que a nor-
teiam. Da mesma maneira, esses dados também são analisados
de formas específicas, dado que usualmente assumem uma forma
“bruta” e precisam ser tratados antes de serem tiradas conclusões.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 15

A esses “passos” da pesquisa, podemos dar o nome de “dese-


nho de pesquisa”. Esse desenho se refere à lógica do estudo: o
quê, como e por quê da produção do projeto, da realização de
uma pesquisa. Incluem-se aí o tipo de estudo proposto (por exem-
plo, um estudo de caso) e os métodos pretendidos de produção
de dados (como o uso de entrevistas ou observação).
No caso da saúde, pesquisas qualitativas podem explorar
alguns determinantes sociais da tomada de decisão, da intera-
ção médico-paciente, de experiências de pacientes acometidos
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por alguma questão de saúde, da prestação de cuidados, da ges-


tão em saúde e de outros elementos sociais da saúde (Eakin;
Mykhalovskiy, 2005). Por essa razão, pesquisas qualitativas vêm
ganhando cada vez mais espaço para pesquisadores de saúde das
mais diversas áreas. Segundo Turato (2009, p. 509), “no contexto
da metodologia qualitativa aplicada à saúde, emprega-se a con-
cepção trazida das ciências humanas, segundo as quais não se
busca estudar o fenômeno em si, mas entender seu significado
individual ou coletivo para a vida das pessoas”.
Taylor e Francis (2013) apontam uma série de trabalhos que
abraçam a metodologia qualitativa na área. Bower e Scambler
(2007), por exemplo, trazem as contribuições da pesquisa qua-
litativa para a prática odontológica em saúde coletiva. Égalité,
Özdemir e Godard (2007) utilizam entrevistas com pesquisadores
para entender a percepção desse grupo em relação a farmacogenô-
mica, raça e ciência – e daí derivar entendimentos sobre questões
de ética social nesse meio. McKeown et al. (2010) utilizam a
pesquisa qualitativa, a partir de estudos de caso com pessoas com
demência, para analisar e melhorar o cuidado a esses pacientes.
Ainda, o trabalho de Caprara e Landim (2008) faz uma análise
do uso da etnografia nas pesquisas em saúde.
Entendendo as potencialidades das análises com métodos
qualitativos, algumas perguntas surgem ao pesquisador: meu tra-
balho é qualitativo? Como estruturar a pesquisa? Que técnicas
utilizar? Neste e nos próximos capítulos, buscaremos aprofundar
essas questões. Em primeiro lugar, cabe pensar no que faz uma
boa pesquisa; depois, sobre como escolher a melhor forma de
análise; em seguida, há que escolher as ferramentas mais indi-
cadas para tal análise.
16

1.1 Como construir uma boa pesquisa qualitativa?

Não raras vezes, as pesquisas qualitativas têm sido apontadas


como “não científicas”, com potencial de replicabilidade baixo e
com análises superficiais (Pope; Mays, 1995). Essa má interpre-
tação está geralmente ligada a uma concepção equivocada sobre
a forma de se fazer pesquisas qualitativas.
Para Minayo (2009, p. 14), a metodologia de pesquisa se
constitui tanto pelo caminho do pensamento como pela prática

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exercida: “[...] a metodologia inclui simultaneamente a teoria da
abordagem (o método), os instrumentos de operacionalização do
conhecimento (as técnicas) e a criatividade do pesquisador (sua
experiência, sua capacidade pessoal e sua sensibilidade).” Assim,
embora parte do processo investigativo seja da imaginação do
pesquisador em perceber e explorar questões sociais, a maior
parte da atividade de pesquisa diz respeito ao planejamento e à
sistematização do “modo de fazer”. O resultado desse processo
é a geração de conhecimento para fins diversos, que perpassam
a contribuição ao campo científico, a melhoria de processos de
trabalho, a descoberta de novas teorias e tendências, o subsídio
para a tomada de decisão.
Uma boa pesquisa qualitativa, portanto, envolve criativi-
dade e imaginação para observar diferentes fenômenos sociais,
capacidade crítica e analítica para entender essa realidade e,
principalmente, habilidade para estruturar a pesquisa com
embasamento teórico, com uma metodologia bem estruturada e
coerente com o que se quer entender.
A estruturação de uma pesquisa, que também pode ser cha-
mada de “protocolo de pesquisa”, é importante por três razões:
em primeiro lugar, auxilia o pesquisador a ter uma organização
acerca de o que fazer, como um “mapa” que deve percorrer para
atingir determinados objetivos de pesquisa e responder a questões
específicas; um segundo aspecto relevante é que a boa descrição
de protocolos de pesquisa, ou da metodologia empregada em
um projeto de pesquisa, revelará seu potencial explicativo e sua
adequação; por terceiro, em muitos casos, quando os estudos têm
(ou buscam pleitear) financiamentos, é requerida uma descrição
dos protocolos de pesquisa e métodos utilizados.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 17

Finalmente, uma boa pesquisa se justifica. Pesquisadores


precisam explicitar as razões pelas quais o desenvolvimento de
um estudo é relevante e importante. A contribuição científica,
ou para alguma intenção específica de trabalho – melhoria de
processos e tomada de decisão, por exemplo –, é o propósito do
pesquisador. Para King, Keohane e Verba (2021), as contribuições
do trabalho podem ser científicas (trazer novos insights ao corpo
de conhecimento do campo ou trazer novas discussões teóricas)
e/ou sociais (que diz respeito ao impacto social que pode vir do
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trabalho). Podemos pensar na justificativa em termos das contri-


buições que o trabalho terá: de um lado, as contribuições podem
vir na forma de uma compreensão que afetará a vida das pessoas;
de outro, como uma contribuição para as explicações científicas
de algum aspecto do mundo (King; Keohane; Verba, 2021).

1.2 Como estruturar a pesquisa qualitativa?

A estruturação de qualquer pesquisa, quantitativa ou qua-


litativa, segue algumas etapas básicas, que buscam estruturar o
trabalho do pesquisador, justificá-lo e embasá-lo teoricamente.
Para a pesquisa qualitativa, isso é extremamente relevante pois
auxiliará o pesquisador a definir suas técnicas de coleta de dados,
de análise e a produzir um bom estudo.

a) Definindo um problema

O primeiro passo de uma pesquisa qualitativa é definir o


problema. As problemáticas surgem a todo momento, e são uma
parte comum da observação da vida humana. O aumento da mor-
talidade materna em uma unidade de saúde pode ser visto como
uma problemática a ser explorada, por exemplo. O problema é o
objeto em estudo, isto é, o fenômeno que será explicado. Podemos
definir essa etapa como uma observação curiosa do cotidiano que
gera perguntas. Pesquisar, neste sentido, é dar uma resposta, é
resolver problemas. O primeiro momento da pesquisa, portanto,
é aquele em que iremos definir claramente qual é o problema que
a gente vai investigar.
18

b) Objeto e objetivos

De modo mais geral, as pesquisas têm uma razão de ser


clara, uma intencionalidade por parte do pesquisador. Isso quer
dizer que se explora um objeto específico para um fim específico.
O objeto de pesquisa é o tema ou fenômeno de estudo, aquilo que
está sendo investigado. Uma pesquisa pode ter como objeto de
estudo a qualidade do ensino de medicina em instituições federais
de ensino superior.

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O objetivo da pesquisa é a meta, o propósito geral da pes-
quisa. O objetivo é usualmente pensado em termos de contribui-
ção científica que a pesquisa trará. Normalmente, ele assume a
forma de declarações concisas a indicar o que o pesquisador quer
alcançar com a pesquisa. No exemplo da pesquisa anterior, um
objetivo poderia ser “compreender as diferentes percepções de
estudantes de medicina sobre a qualidade de seu curso”. No caso
de pesquisas qualitativas, geralmente esses objetivos estão rela-
cionados à obtenção de uma compreensão mais aprofundada do
objeto de estudo. Alguns pesquisadores dividem esses objetivos
em objetivos gerais (mais abrangentes, descritivas do propósito
mais geral) e objetivos específicos (que detalham melhor as etapas
ou ações específicas para realização dos objetivos gerais).

c) Pergunta de pesquisa

Na lógica do desenvolvimento de protocolos de pesquisa,


identificar uma pergunta de pesquisa é um processo fundamen-
tal. É a partir dela que se desenvolverá um projeto de pesquisa
apropriado para gerar dados que respondam à questão. As pergun-
tas de pesquisa são um refinamento do problema ou do tópico de
interesse do pesquisador. A pergunta é “o que” se busca entender.
Uma pergunta de pesquisa “[...] enquadra com bastante precisão
qual pergunta será respondida e identifica claramente como ela
será abordada. Boas questões de pesquisa são ‘pesquisáveis’ à
medida que são contidas e especificadas o suficiente para que o
estudo proposto produza os dados para respondê-las” (Thoro-
good; Green, 2018, p. 29).
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 19

Muitas vezes, identificar uma pergunta de pesquisa pode


ser um processo desafiador; além da observação cotidiana, a
prática profissional também é uma fonte de inspiração de ques-
tionamentos. Em alguns casos, as perguntas surgem como parte
de proposições por instituições que contratam pesquisadores ou
que demandam pesquisas a seus funcionários. Por outro lado, a
leitura da literatura também pode ajudar a identificar novas
questões, levar ao questionamento de pressupostos estabelecidos,
ou encontrar “vazios” de pesquisa.
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d) Revisão de literatura

Esta etapa é uma apropriação adequada do tema de pesquisa.


A escolha de uma boa literatura é fundamental para conhecer a
temática e embasar as hipóteses; como dito anteriormente, tam-
bém pode trazer insights teóricos. É importante a qualquer pes-
quisa entender de que modo as discussões foram feitas por outros
pesquisadores da área, ou o status de determinado tema entre os
especialistas, o chamado “estado da arte” da temática.
Os textos podem ser escolhidos por indicação, com a utiliza-
ção de protocolos de revisão sistemática ou pela busca do próprio
pesquisador. Uma boa forma de selecionar bons materiais de
aprofundamento é a partir da busca por eles em manuais, livros
e periódicos conceituados na área. Fazer fichamentos é um exer-
cício interessante nessa etapa, bem como fazer uma leitura à luz
da pergunta e dos objetivos da pesquisa, buscando dialogar com
outros pesquisadores da área a partir de pontos de aproximação
ou diferenciação.
Inicialmente, a revisão da literatura tem o sentido de con-
textualizar a pesquisa, situando-a dentro do que já foi produzido
anteriormente por outros autores da área. Esse tipo de revisão
ajuda a entender o contexto histórico do qual emerge a questão
de pesquisa, as teorias que já foram produzidas sobre o tema e
fornecem uma base para construir o estudo a partir de debates,
lacunas e potencialidades. A partir dessa revisão de teorias e con-
ceitos, são escolhidas aquelas mais relevantes para a pesquisa – a
abordagem teórica que será utilizada, variáveis, conceitos-chave
e outros subsídios que auxiliarão na construção de hipóteses.
20

Por fim, a revisão de literatura auxilia, ainda, na identifica-


ção de métodos de pesquisa qualitativos apropriados, técnicas de
amostragem, métodos de coleta de dados e estratégias analíticas.
A compreensão dos pontos fortes e das limitações de pesquisas
anteriores influencia na escolha e aplicação da abordagem meto-
dológica do próprio trabalho do pesquisador.
A revisão da literatura é um processo contínuo, que evolui
ao longo da jornada de pesquisa. À medida que se conduz um
estudo e se coletam dados, é essencial a atualização contínua da

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revisão de literatura para incorporar novas descobertas, teorias ou
perspectivas que surjam durante o processo de pesquisa (King;
Keohane; Verba, 2021).

e) Hipóteses e proposições

As hipóteses são as propostas da pesquisa. Usualmente, os


estudos quantitativos se utilizam em maior profundidade de hipó-
teses de pesquisa, uma vez que, em sua maioria, trabalham com
relações entre variáveis específicas.
Segundo King, Keohane e Verba (2021), na pesquisa quali-
tativa, as hipóteses são muitas vezes exploratórias por natureza,
em vez de estritamente preditivas. Elas servem como proposições
experimentais ou ideias orientadoras que ajudam a direcionar a
pesquisa e fornecem um ponto de partida para a investigação. As
hipóteses qualitativas são tipicamente amplas e flexíveis, permi-
tindo o raciocínio indutivo e a descoberta de novos insights. A
pesquisa qualitativa geralmente envolve um processo iterativo
em que as hipóteses evoluem e se desenvolvem ao longo do pro-
cesso de pesquisa. O pesquisador se engaja em constante coleta
de dados, análise e reflexão teórica, o que permite o surgimento
de novas hipóteses ou o refinamento das já existentes.
Ao contrário da pesquisa quantitativa, as hipóteses qualita-
tivas não são normalmente testadas por meio de procedimentos
estatísticos; em vez disso, a pesquisa qualitativa se concentra
na compreensão e interpretação da complexidade e da riqueza
dos dados. As hipóteses, na pesquisa qualitativa, servem como
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 21

lentes através das quais os dados são examinados, permitindo a


identificação de padrões, temas e relacionamentos.
No caso de pesquisas qualitativas, muitas vezes, as hipóteses
são chamadas de “proposições”. Essas proposições são afirmações
sujeitas a exploração, modificação ou confirmação por meio da
coleta e análise de dados qualitativos; servem para orientar a
atenção do pesquisador e são base para interpretações e derivação
de conclusões. A formulação de hipóteses em pesquisas qualitati-
vas também depende do paradigma da pesquisa, da metodologia
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utilizada e da pergunta de pesquisa.

f) Metodologia

Então, escolhe-se um método de análise. Trata-se do cami-


nho que o pesquisador irá trilhar para investigar de fato o pro-
blema definido, para chegar à solução da pergunta formulada.
Os caminhos para solucionar problemas são muitos, e cada per-
gunta pode pedir ferramentas analíticas distintas. A discussão
sobre esses diferentes tipos de análise será feita mais a fundo
em outros capítulos.
Segundo Creswell e Poth (2016, p. 13), “O design de pes-
quisa trata-se do plano, da estrutura e da estratégia de investigação
concebidos de forma a obter respostas para questões ou proble-
mas de pesquisa.” Nesse momento, operacionaliza-se a pesquisa,
pensando se ela será qualitativa ou quantitativa, quais técnicas de
coleta de dados serão utilizadas, como serão analisados os dados,
em que recorte temporal e espacial, quais as unidades de análise.
São feitas as definições fundamentais para tratar e analisar os
dados, a fim de iniciar o processo analítico.

g) Análise

Por fim, o pesquisador prossegue à análise das informações,


quando os resultados e as informações coletadas são observados
e analisados à luz das teorias e dos conceitos elencados. A partir
dessa análise, o pesquisador pode fazer inferências e contribuir
com a teoria mais geral da área.
22

1.3 Quais são os tipos de pesquisa?

a) Quanto à abordagem

Uma das primeiras decisões que o pesquisador deve tomar


no rumo de sua pesquisa é quanto à abordagem que pretende
utilizar. As pesquisas podem ser qualitativas ou quantitativas.
De modo geral, podemos dizer que as pesquisas qualitativas têm

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como propósito central em suas pesquisas a identificação das
causas de determinados resultados para os casos dentro de sua
investigação. Os analistas qualitativos, assim, adotam uma abor-
dagem para suas explicações, chamada por Mahoney e Goertz
(2012) de “causa dos efeitos”. Nesse tipo de abordagem, o obje-
tivo central é entender nuances e subjetividades não necessaria-
mente quantificáveis.
Pesquisas quantitativas usualmente operam sob uma lógica
contrária: buscando entender os “efeitos das causas” (Mahoney;
Goertz, 2012). A ideia é justamente entender como a média de
determinado evento afeta uma ou mais causas numa população
de casos. Nesse tipo de pesquisa, normalmente, toma-se como
base o uso de elementos quantificáveis, utilizando ferramentas
estatísticas. Os números, nesse sentido, são informações anali-
sáveis. Mahoney e Goertz (2012, p. 231) definem a diferença
entre as duas abordagens: “A abordagem de causas de efeitos, na
qual o objetivo da pesquisa é explicar resultados específicos, e a
abordagem de efeitos de causas, na qual o objetivo da pesquisa
é estimar efeitos médios.”
Tradicionalmente, há uma divergência entre pesquisadores
que se concentram em uma ou em outra abordagem de pesquisa.
Muito está ligado a essas diferentes abordagens explicativas, às
interpretações que cada corrente faz sobre efeito causal, ao escopo
e à capacidade de generalização, seleção de casos, conceitos e
mensuração (Mahoney; Goertz, 2012). Entretanto, pode-se dizer
que, em ambas as abordagens, o objetivo é evidenciar inferências
descritivas e/ou causais.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 23

A escolha por uma abordagem quantitativa ou qualitativa


está muito ligada ao tipo de pergunta que se busca responder.
Usualmente, o uso de métodos quantitativos tem sido mais uti-
lizado pelas ciências da saúde. Entretanto, conforme já apon-
tado neste capítulo, há um crescente espaço, e potencial, para a
pesquisa qualitativa.
Ainda que existam divergências, muitos pesquisadores têm
optado pelo uso conjunto das abordagens, ao que nos referimos
como “multimétodos”: utiliza-se uma abordagem quantitativa
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para generalizações sobre determinados temas, e casos especí-


ficos são utilizados para estudos qualitativos em profundidade.
Essa interação entre os métodos e o diálogo com outras áreas do
conhecimento são extremamente salutares para a construção de
pesquisas mais ricas.
No caso das pesquisas em saúde, é ainda mais importante
uma intersecção com outras formas de fazer pesquisa, como o uso
de métodos qualitativos, para aprofundar conhecimentos e refletir
a realidade de aplicação de teorias mais gerais. Neste sentido, é
válido lembrar: um projeto de pesquisa mal elaborado é um pro-
jeto ruim, quer pela abordagem quantitativa, quer pela qualitativa.
Lembrando da elaboração de um bom projeto, deve-se,
inclusive, justificar a escolha por uma abordagem qualitativa,
deixando claro de que modo os métodos qualitativos são adequa-
dos para abordar sua questão de pesquisa, como eles permitem
uma compreensão mais sutil dos fenômenos em estudo e como
eles complementam outros métodos de pesquisa (King; Keohane;
Verba, 2021).

b) Quanto aos objetivos

Muitas vezes, em uma pesquisa, o pesquisador tem algum pro-


pósito (objetivo) com o estudo, que implica o tipo de investigação
feita. Gil (2008) identifica três grandes grupos de tipos de pesquisa
quanto aos objetivos: exploratórios, descritivos e explicativos.
Os estudos podem ter um propósito de explorar uma temá-
tica. Nas pesquisas exploratórias, visa-se explorar uma nova área
ou tópico, proporcionando maior familiaridade com o problema.
24

A ideia é explorar o fenômeno, explicitando-o e construindo hipó-


teses sobre ele. A pesquisa descritiva se concentra em fornecer
uma descrição detalhada de um fenômeno, tem como caracte-
rística marcante o uso de técnicas para coletas de dados, como
questionários e observações sistemáticas. Por fim, pesquisas
explicativas têm como preocupação central identificar fatores
determinantes para a ocorrência de fenômenos – em pesquisas
das ciências naturais, usualmente, essas pesquisas são feitas a
partir de métodos experimentais.

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Segundo Gil (2008, p. 42),

Pode-se dizer que o conhecimento científico está assentado


nos resultados oferecidos pelos estudos explicativos. Isso
não significa, porém, que as pesquisas exploratórias e des-
critivas tenham menos valor, porque quase sempre consti-
tuem uma etapa prévia indispensável para que se possa obter
explicações científicas.

Nesse sentido, embora tenha propósitos educativos e de


compreensão metodológica, esse tipo de divisão pode ser enten-
dido como menos separado do que à primeira vista pode parecer.
Pesquisas descritivas se confundem com as exploratórias e podem
fazer parte de uma explicação mais ampla.

1.4 Sugestões para pesquisadores qualitativistas

A abordagem qualitativa vem sendo cada vez mais utilizada


por pesquisadores das mais diversas áreas, inclusive nas ciências
da saúde. Por proporcionar um importante conhecimento acerca
das relações sociais nesses espaços, o uso de métodos qualitativos
se mostra importante ferramenta analítica da realidade.
A construção de uma boa pesquisa qualitativa é um processo
que requer planejamento e uma estruturação metodológica do
que se pretende pesquisar e de como fazê-lo. Neste capítulo,
apresentamos uma visão geral da abordagem qualitativa e de
alguns passos para estruturar projetos de pesquisa que utilizam
essa abordagem. De maneira geral, a elaboração de uma boa
pesquisa requer que um pesquisador:
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 25

• articule claramente sua questão de pesquisa e expli-


que seu significado dentro do campo acadêmico
mais amplo;
• demonstre como seu estudo preenche uma lacuna no
conhecimento, desafia as teorias existentes ou aborda
um problema social relevante;
• estabeleça uma estrutura teórica sólida que sustente sua
pesquisa e forneça uma base para gerar novos insights
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ou explicações;
• descreva a abordagem metodológica que escolheu e
justifique por que ela é apropriada para abordar a ques-
tão de pesquisa;
• discuta os pontos fortes e as limitações da metodologia
escolhida e explique como ela permite que se coletem
dados valiosos e válidos;
• justifique técnicas de amostragem, métodos de coleta de
dados e estratégias analíticas para garantir credibilidade
e confiabilidade das descobertas;
• discuta novas evidências, dados ou perspectivas que
traz para o campo e como eles aprimoram nossa com-
preensão do tópico sob investigação;
• destaque quaisquer novas descobertas, padrões ou
insights que surjam de sua pesquisa;
• discuta quaisquer proposições ou hipóteses teóricas
que gerou e como elas expandem nossa compreensão
do fenômeno que está sendo estudado;
• discuta como suas descobertas podem informar deci-
sões, moldar debates públicos ou contribuir para solu-
ções práticas para desafios sociais;
• discuta as implicações de sua pesquisa para estudos
futuros e caminhos para pesquisas futuras.

Nos próximos capítulos, aprofundaremos o conhecimento


sobre as técnicas para análise e coleta de dados em pesqui-
sas qualitativas.
26

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CAPÍT ULO 2
ABORDAGENS QUALITATIVAS
PARA COLETA E
ANÁLISE DE DADOS
Após realizar a definição de uma pergunta de pesquisa e de ter
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clareza quanto ao objetivo da pesquisa, surge a necessidade de defi-


nir a melhor forma de compreender esse objeto. Para tal propósito,
algumas estratégias são utilizadas pelos pesquisadores qualitativos.

2.1 Etnografia

Na pesquisa qualitativa, a influência dos princípios etnográ-


ficos está fortemente presente (Lombard, 2009). De acordo com
Atkinson e Hammersley (1994, p. 15),

A etnografia é um método de pesquisa social [...]. O etnó-


grafo [...] participa, abertamente ou de maneira encoberta
da vida cotidiana de pessoas durante um tempo relativa-
mente extenso, vendo o que ocorre, escutando o que é dito,
perguntando coisas; ou seja, recolhendo todos os tipos de
dados acessíveis para poder esclarecer sobre temas que ele
escolheu estudar.

Assim, pelas características apresentadas, a etnografia tem a


capacidade de desvendar o lugar como uma construção espacial,
social, cultural e política, temas-chave que demandam pesquisa
(Lombard, 2009, p. 151). Porém, mesmo sendo um modo de
análise que enriquece significativamente a pesquisa, a etnografia
é ainda pouco usada como ferramenta investigativa na ciência
política, estando geralmente subordinada a outros modos de estu-
dar os fenômenos políticos (Auyero, 2005).
O método etnográfico, originário da antropologia e tipi-
camente situado em seu âmbito, é composto por técnicas e
30

procedimentos de coleta de dados associados a uma prática do


trabalho de campo que supõe a imersão do pesquisador no con-
texto investigado e, portanto, uma convivência com o grupo social
a ele relativo (Rocha; Ecket, 2008). Tal prática de pesquisa res-
ponde a uma demanda científica de produção de dados a partir de
uma inter-relação entre pesquisador e sujeitos pesquisados que
interagem no contexto, recorrendo, primordialmente, a técnicas
de pesquisa da observação direta, conversas formais e informais,
entrevistas não diretivas, etc. Assim, a etnografia fornece uma

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contribuição valiosa para as ciências sociais, que pode ser levada
em conta tanto por pesquisadores quantitativistas quanto pelos
qualitativistas (Bray, 2008).
Para Rocha e Ecket (2008), no bojo dos procedimentos dis-
poníveis para a execução de uma etnografia, a observação direta
seria a técnica privilegiada para investigar os saberes e as práticas
na vida social e reconhecer as ações e representações coletivas na
vida humana. Nesse sentido, as primeiras inserções no universo
de pesquisa devem ser orientadas pelo olhar atento ao contexto
pesquisado e a tudo que nele ocorre. Esse olhar curioso deve ser
paulatinamente substituído pelo estranhamento capaz de gerar
questionamentos relativos à constituição daquela realidade social.
Tal processo supõe a interação como uma condição da pesquisa
etnográfica, o que requer uma presença regular do pesquisador
na rotina estudada; tal presença, aos poucos, vai adquirindo con-
tornos mais profundos.
Nesse contexto, Kuschnir (2005) argumenta que o investi-
gador leva para o campo um conjunto de dados acumulados ao
longo de sua trajetória; somente com sensibilidade e experiência
pode aprofundar sua capacidade de compreensão acerca do seu
objeto de estudo, percebendo que naturalizou certos significados
das práticas sociais, políticas e ignorou outros. Refere, ainda, que
essas mudanças também ocorrem no sentido contrário: as pessoas
que compõem o universo analisado também transformam seu
modo de lidar com o pesquisador e com o seu trabalho.
Assim, em vez de perseguir uma neutralidade impossível,
o pesquisador deve refletir sobre as posições e identidades a
ele conferidas ao longo do trabalho de campo. E este é um dos
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 31

elementos centrais para revelar a natureza da relação entre os


envolvidos, à medida que, durante o trabalho de campo, pes-
quisador e pesquisados passam por um processo de socialização
intenso, que vai redefinindo as identidades de um em relação ao
outro (Kuschnir, 2005).
Ao longo desse processo interativo, o pesquisador deve inter-
pretar os significados dos momentos, acontecimentos e arranjos
sociais com os quais se deparou e descrevê-los nos seus próprios
termos, num exercício de apreender essa lógica e incorporá-la
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de acordo com os padrões de seu próprio aparato intelectual, até


mesmo de seu sistema de valores e percepções (Magnani, 2009).
Isso envolve, de acordo com Rocha e Ecket (2008), registros,
classificações, correlações e comparações que serão retomados
pelos etnógrafos em forma de escrita, através do uso de conceitos
teóricos e metodológicos do seu campo disciplinar, e não dos
sujeitos analisados. A sistematização desses processos gera lógi-
cas inteligíveis que, por sua vez, produzem conhecimento sobre a
situação pesquisada e sobre as dinâmicas sociais a ela relativas;
assim, redefinem-se os contornos das teorias antropológicas e
sociais. Dito de outro modo:

A etnografia é uma forma de operar em que o pesquisador


entra em contato com o universo dos pesquisados e compar-
tilha seu horizonte, não para permanecer lá ou mesmo para
atestar a lógica de sua visão de mundo, mas para, seguindo-
-os até onde seja possível, numa verdadeira relação de troca,
comparar suas próprias teorias com as deles e assim tentar
sair com um modelo novo de entendimento ou, ao menos,
com uma pista nova, não prevista anteriormente. Esse é
um insight, uma forma de aproximação própria da abor-
dagem etnográfica que produz um conhecimento diferente
do obtido por intermédio da aplicação de outros métodos
(Magnani, 2009, p. 135).

Notoriamente, a etnografia, situada na disciplina antropoló-


gica, está preocupada com a peculiaridade, a especificidade do
contexto analisado, buscando submeter conceitos preestabeleci-
dos a contextos diferentes, examinando, então, a adequação de
32

tais conceitos. Seu objetivo mais geral é procurar visões alternati-


vas da universalidade dos conceitos sociológicos e políticos, bus-
cando encontrar, na pesquisa in loco, “resíduos” não explicados
pelas teorias postas. Assim, o progresso da técnica pode ser útil
para transformação e ressignificação de conceitos (Peirano, 2014).
Com relação a essa discussão, Peirano (2014) dirá que a
etnografia abriga estilos muito diferentes a depender do contexto
da pesquisa, momento sócio-histórico em que está inserida, sua
orientação teórica, personalidade do pesquisador e éthos do pes-

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quisado. E, se esse pode ser o elemento distintivo que justifique
seu uso, oferece também o perigo de, não respeitado o equilíbrio
sutil entre teoria e prática, resvalar numa situação na qual exis-
tam tantas etnografias quanto sejam seus pesquisadores. O que a
autora, no entanto, argumenta é que o fazer etnográfico deve ter
como horizonte não descrever o curioso, o exótico ou o diferente,
mas, sim, utilizar as observações do particular para gerar conheci-
mentos passíveis de serem universalizados. A busca por análises
das especificidades dos casos concretos e a conexão desses acha-
dos com o caráter universalista de sua manifestação permitem um
refinamento dos objetos de estudo e dos conceitos que a etnografia
busca discutir. Dessa maneira, não se incorreria nos estereótipos
a respeito de seu empirismo esvaziado de rigor científico. Ainda
nesse sentido, Pires, Lotta e Torres Junior (2018) postulam que a
descrição fina das práticas individuais nas situações de interação
deve ser colocada em perspectiva mais ampla, pensada de modo
conectado com as relações sociais e políticas na qual está inserida.
Assim como em qualquer opção metodológica, são neces-
sários rigor e parcimônia ao se adotar um desenho de pesquisa
etnográfico. A realização de uma etnografia implica uma série
de técnicas e cuidados relativos à forma de aproximação e de
entrada no campo; às relações entre pesquisadores e pesquisados;
ao formato de construção da narrativa; às possíveis constatações
feitas; ao engajamento no debate teórico.

a) Ferramentas da pesquisa etnográfica

A abordagem etnográfica em pesquisas envolve fundamen-


talmente três etapas: formulação inicial do tema de pesquisa e
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 33

identificação do objeto de pesquisa; coleta de dados; escrita e


análise de material empírico. Na primeira etapa, o pesquisador
se concentra nos chamados “conceitos sensibilizadores” (Bray,
2008); estes indicam a direção em que o pesquisador deve olhar
quando estiver realizando seu trabalho de campo. Portanto, de
acordo com essa abordagem, além de carregar consigo para o
campo um marco teórico amadurecido, o pesquisador deve explo-
rar categorias que o ajudarão a entender o microcosmo analisado.
Na fase de coleta de dados, o etnógrafo tenta conhecer o
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objeto de estudo da melhor forma possível, principalmente pas-


sando um período significativo de tempo exposto a esse objeto.
Nesta fase, o pesquisador tem a oportunidade de conhecer em
profundidade o objeto de pesquisa. A exposição continuada pos-
sibilita uma relação “íntima” entre pesquisador e objeto, fazendo
com que características subterrâneas possam ser observadas e
contribuam para a análise.
Na terceira fase, deparamo-nos com a escrita etnográfica.
Esse processo envolve a anotação durante o trabalho de campo. O
pesquisador registra suas descobertas e, a posteriori, analisa-as,
de forma exploratória e autorreflexiva (Bray, 2008).
A primeira ferramenta utilizada na etnografia que apresen-
tamos é a observação. A observação em trabalhos de pesquisa
genuinamente etnográficos é fundamental para o desenvolvimento
do estudo. Nesse tipo de estudo, o pesquisador se torna um com-
ponente do objeto que estuda e passa um período considerado
longo desenvolvendo suas atividades de pesquisa e participando
da comunidade observada. Esse tipo clássico de observação é a
observação participante. Por outro lado, em uma pesquisa em
que o pesquisador observa desde “fora” o objeto pesquisado e
desenvolve suas atividades de investigação durante um espaço
de tempo mais restrito caracteriza a ferramenta de pesquisa que
chamamos observação in loco.
Um segundo instrumento utilizado em estudos etnográfi-
cos são as entrevistas. As entrevistas semiestruturadas, um tipo
concreto de entrevista qualitativa (Valles, 2007), são instrumento
de pesquisa apropriado para um projeto de pequena escala e téc-
nica adequada para estudos focalizados na perspectiva de lugar
34

(Lombard, 2009, p. 154). Esse tipo de entrevista permite ao pes-


quisador conduzir a conversa mantida com o entrevistado, ainda
que este possa, em qualquer ponto da entrevista, colocar temas
que considera pertinente.
Segundo Bogdan e Biklen (2010), entrevistas são utiliza-
das para encontrar dados descritivos na linguagem do próprio
sujeito, permitindo ao investigador desenvolver ideias sobre
como os sujeitos interpretam aspectos do mundo. Em entrevistas
em profundidade, para cada objetivo, o entrevistador delineia

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três ou mais questões, encadeadas sequencialmente e formula-
das com base nos estudos prévios. No entanto, podem surgir
novas questões no decorrer da entrevista, pois, à medida que
esse tipo de entrevista permite acessar grande quantidade de
informação, eventualmente pode ser necessário algum tipo de
esclarecimento respectivo.
Tendo sida feita essa discussão sobre a etnografia nas ciên-
cias sociais, vale ressaltar que, de acordo com Azevedo et al.
(2013), uma das formas mais populares para se buscar confir-
mações em pesquisas qualitativas é a técnica de triangulação, ou
seja, a combinação de diversos métodos na investigação de um
determinado fenômeno, tendo por finalidade dirimir as fragilida-
des encontradas em projetos que empregam um único método.
Para os autores, a triangulação reduziria o risco de viés nas con-
clusões obtidas e também minimizaria as limitações próprias de
um único método, levando a conclusões mais críveis. Sugerem,
portanto, que a combinação de métodos e materiais empíricos
diversos, bem como a participação de vários investigadores num
só estudo, acrescenta rigor, amplitude, complexidade, riqueza
e profundidade às investigações. Assim, a etnografia configura
uma ferramenta útil para ser utilizada nesse tipo de estratégia
metodológica, a fim de dar robustez às pesquisas realizadas.

2.2 Estudo de caso

Na pesquisa qualitativa, é muito comum a combinação de


diferentes métodos de análise. Esse trabalho de combinação
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 35

possibilita maior e melhor entendimento do fenômeno anali-


sado. A integração de diversos métodos é chamada de “plu-
ralismo metodológico” (Coller, 2005). Sob a perspectiva da
pesquisa qualitativa, o método de pesquisa através do estudo
de caso faz com que seja mais fácil a combinação de diferentes
métodos; em termos de pesquisa qualitativa, ele vem sendo
utilizado como estratégia de análise tanto nas ciências sociais
quanto nas ciências aplicadas.
O principal objetivo do estudo de caso é facilitar o enten-
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dimento de fenômenos sociais complexos, permitindo ao pes-


quisador capturar características significativas dos eventos da
vida real. Apesar disso, observa-se uma falta de clareza sobre a
metodologia do estudo de caso (Yin, 2003). Existe confusão espe-
cificamente sobre o nome, a natureza e o uso do termo “estudo
de caso” (Merriam, 1998; Zucker, 2001).
Estudos de caso podem ser entendidos como projetos de
pesquisa (Bergen; White, 2000), como um método de pesquisa
(Jones; Lyons, 2004), como um método de coleta de dados (Gan-
geness; Yurkovich, 2006), como uma técnica de ensino (Henning
et al., 2006; Kells; Koerner, 2005) ou como uma estratégia de
pesquisa (Yin, 2009). Neste capítulo, filiamo-nos à compreen-
são do estudo de caso como uma estratégia de coleta de dados
para pesquisadores. Assim, “um caso é um objeto de estudo com
fronteiras mais ou menos claras que se analisa no seu contexto e
que se considera relevante, para comprovar, ilustrar ou construir
uma teoria ou parte dela” (Coller, 2005, p. 29). Segundo Hyett,
Kenny e Dickson-Swift (2014, p. 2), “Os pesquisadores que usam
o estudo de caso são instados a buscar o que é comum e o que é
particular sobre o caso. Isso envolve uma consideração cuidadosa
e profunda da natureza do caso, contexto histórico, ambiente
físico e outros fatores institucionais e políticos contextuais.”
Deste modo, como Yin (2009) aponta, os estudos de caso
envolvem as demais etapas de pesquisa, que serão melhor explo-
radas nos demais capítulos deste livro: definição da pergunta de
pesquisa, definição da unidade de análise (seleção do caso) e
critérios de seleção, protocolos de pesquisa e análise dos dados.
36

a) Características de estudos de caso

Há uma gama de estudos de caso que visam elucidar carac-


terísticas específicas de um caso particular. Em outros estilos de
pesquisa, os estudos de caso dizem respeito a uma abordagem em
que se analisa intensamente uma unidade ou um pequeno número
delas, e o objetivo é compreender de maneira mais ampla o fenô-
meno estudado (Gerring, 2007). Nesse sentido, os estudos de caso
podem se ater tanto a um caso específico quanto a casos diversos.

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Segundo Yin (2009), os estudos de caso único são relevan-
tes para casos críticos, a fim de testar a teoria, ou para analisar
casos que podem ser extremos, típicos ou desviantes. Os casos
múltiplos têm sua vantagem na construção de um framework no
qual a replicação literal prevê resultados semelhantes em vários
casos ou visa à replicação teórica em que resultados diferentes
são prováveis por razões teóricas.
Sendo assim, os casos podem se referir a sistemas especí-
ficos (limitados), que são definidos também de formas diversas
pelos indivíduos, grupos, organizações, comunidades, nações,
eventos, períodos de tempos, entre outros elementos que com-
põem esses sistemas (Ridder; Hoon; Mccandless, 2009). Em
termos do objetivo da pesquisa, parte dos trabalhos tem uma
natureza mais descritiva, enquanto outros operam sob uma lógica
mais inferencial.
Em termos de técnicas de coletas de dados, podem incluir
tanto abordagens quantitativas quanto qualitativas, e também
estudos de caso único ou múltiplos; ademais, podem incluir dados
diversos: trabalho de campo, entrevistas, relatos, observação,
documentos, relatórios, reportagens. Usualmente, esse tipo de
estratégia se utiliza de uma combinação de métodos para levantar
evidências sobre o problema de pesquisa proposto.

b) Seleção dos casos

Parte fundamental dessa estratégia está na seleção dos casos


a serem estudados. A seleção de casos na pesquisa qualitativa é
feita de maneira intencional, dado que o interesse desse tipo de
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 37

pesquisa é na explicação de resultados particulares (Mahoney;


Goertz, 2006). Os pesquisadores usualmente selecionam os casos
em que o resultado de interesse ocorre – os casos “positivos”;
porém, é também comum que escolham casos “negativos”, para
testar suas teorias (Mahoney; Goertz, 2006).
A seleção de casos está intimamente ligada à pergunta de
pesquisa e aos objetivos do pesquisador. Importante, ainda, é
entender a opção pelo estudo de um caso como uma escolha
metodológica, que, portanto, exige que se identifique a relevância
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do caso selecionado justificando essa escolha à luz dos propósitos


da pesquisa (Gerring, 2007; Mahoney; Goertz, 2006). Os casos
não são escolhidos de maneira aleatória, mas têm um propósito
de pesquisa bem definido, auxiliando a elucidar questões sociais.
Nesse sentido, escolher um caso meramente por conveniência
do pesquisador é uma fraqueza do desenho da pesquisa, dado
que dificilmente auxiliará a entender melhor uma dada questão
ou servirá como representativo de um universo maior de casos.
Assim, é importante pensar em técnicas para auxiliar na
seleção de casos, isto é, nos critérios a considerar para esco-
lher casos que permitam um diálogo com o universo ou com
a população mais geral. Aqui, destacamos três tipos de casos
que podem ser tomados como estratégia para seleção: típicos,
extremos ou desviantes.
De modo geral, entende-se que “o caso típico exemplifica
o que é considerado um conjunto típico de valores, dado algum
entendimento geral de um fenômeno” (Gerring, 2007, p. 91).
Ao se fazer referência a esse tipo de caso, quer-se dizer que
a probabilidade de um caso é alta em relação a outros casos
(Gerring, 2007). É um tipo de caso que se aproxima de um “tipo
ideal” do todo analisado, e sua identificação é possível a partir do
conhecimento do campo e do objeto de estudo analisado. O caso
típico não serve apenas para confirmar e testar hipóteses, mas
também para investigar (testar/medir) mais a fundo mecanismos
causais (como ele funciona?). Mesmo que haja pontuações que
variem dentro das variáveis, esse caso ainda é típico, no entanto,
a variação ainda deve estar dentro do caso (Gerring, 2007; Sea-
wright; Gerring, 2008).
38

Para exemplificar a situação, podemos utilizar o exemplo de


Gerring (2007) sobre a associação positiva entre a qualidade da
democracia e o valor do Produto Interno Bruto (PIB): boa parte
dos estudos apontam que países ricos são quase exclusivamente
democráticos; nesse sentido, o caso típico possibilita investigar
o mecanismo causal que gera essa relação, selecionando um país
típico em termos dessas variáveis (rico e com alto PIB).
O caso extremo é caracterizado por ser um valor longe da
média da distribuição em uma variável independente ou depen-

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dente de interesse. Um valor extremo é entendido aqui como uma
observação que está longe da média de uma determinada distri-
buição; isto é, é incomum (Gerring, 2007; Seawright; Gerring,
2008). A abordagem de casos extremos não pode ser confundida
com o esquecimento dos outros casos do universo de pesquisa;
como aponta Gerring (2007), a abordagem de casos extremos é
uma tentativa de maximizar a variação da análise e não de redu-
zi-la, propiciando entender os limites entre os quais as variáveis
podem oscilar.
Trazendo mais uma vez o exemplo dos estudos que fazem
associações entre a qualidade da democracia e o valor do Produto
Interno Bruto (PIB), um caso extremo seria a investigação de
países como o Qatar, que tem um PIB elevado, mas uma baixa
qualidade democrática.
Os casos desviantes ou atípicos tratam de valores fora do
campo da distribuição, um valor considerado surpreendente.
Importante destacar que a característica “desviante” pode ser
alterada a depender do tipo de modelo (teoria específica ou senso
comum) aplicado. Por essa razão, “[...] ao discutir o conceito do
caso desviante, é útil fazer a seguinte pergunta: em relação a qual
modelo geral (ou conjunto de fatores de segundo plano) é o caso
desviante?” (Gerring, 2007, p. 106).
Utilizando o exemplo da associação do PIB anterior: alguns
países como Chile e Costa Rica apresentam elevadas taxas de
qualidade da democracia, ainda que tenham PIBs baixos. Trata-se
de uma anomalia em alguma teoria ou entendimento geral sobre
um tópico (Gerring, 2007). Deste modo, o objetivo da análise de
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 39

casos desviantes é geralmente a investigação de novas explicações,


que ainda não foram especificadas (Seawright; Gerring, 2008).

c) Limites e possibilidades

Com utilização em diversas áreas do conhecimento, o uso de


estudos de caso é uma importante estratégia de pesquisa – quan-
titativa e qualitativa. Sua importância para pesquisas de distintas
naturezas reside justamente no aprofundamento em relação ao
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fenômeno estudado.
A metodologia de estudo de caso é amplamente reconhecida
como uma abordagem de pesquisa apropriada para descrever,
explorar e compreender fenômenos em seu contexto da vida real,
que se concentra em analisar um caso específico em detalhes
– seja uma pessoa, um grupo, uma organização ou um evento.
Por meio dessa abordagem, é possível obter uma compreensão
abrangente e detalhada do caso estudado. No caso das ciências
da saúde, por exemplo, permite uma compreensão mais profunda
das experiências dos pacientes, das práticas clínicas, dos desafios
organizacionais e de questões de saúde pública, contribuindo
para a geração de conhecimento e aprimoramento das práticas e
políticas de saúde.
Permite, ainda, que os pesquisadores examinem relações
de causa e efeito, processos de mudança ao longo do tempo e
múltiplos fatores influenciadores. Além disso, o estudo de caso é
útil quando o pesquisador tem pouco controle sobre o fenômeno
em estudo, uma vez que é baseado em observação e análise de
eventos já ocorridos. Embora por vezes as fronteiras entre o fenô-
meno e o contexto estudado não sejam tão evidentes, os casos são
entendidos em seu contexto mais amplo em momentos específicos
do tempo (em que a pesquisa está sendo feita).
Por essa razão, o uso de estudos de caso possibilita uma
infinidade de aplicações para pesquisadores de todas as áreas
do conhecimento, fornecendo comparações entre casos seme-
lhantes, reforçando ou refutando teorias, destacando situações
atípicas, etc.; figura, portanto, como uma estratégia funda-
mental para melhor capturar a complexidade da sociedade e
40

do comportamento social. Segundo Gerring (2007, p. 1), “nós


conhecemos melhor o todo quando focamos em pedaços-chave”.
Parte dos limites do uso de casos diz respeito à sua capaci-
dade de representação da realidade, à dificuldade de seleção dos
casos e à impossibilidade de generalizar os achados. Gerring
(2007, p. 6) resume a série de críticas ao uso de estudos de caso:

Um trabalho que concentra sua atenção em um único exem-


plo de um fenômeno mais amplo pode ser descrito como

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um “mero” estudo de caso, e é frequentemente identificado
com teorias fracamente estruturadas e não generalizáveis,
seleção de casos enviesada, projetos de pesquisa informais
e indisciplinados, fraca estrutura empírica. alavancagem
(muitas variáveis e poucos casos), conclusões subjetivas,
não replicabilidade e determinismo causal.

Os resultados de um estudo de caso são específicos para o


caso estudado; não podem ser generalizados para uma população
maior sem uma base teórica sólida ou sem a realização de estudos
adicionais. Portanto, embora seja uma abordagem valiosa para
obter insights detalhados e ricos sobre um fenômeno, o estudo
de caso tem limitações em termos de generalização.
Para minimizar essas críticas, cabe ao pesquisador, em pri-
meiro lugar, o cuidado atento à seleção dos casos utilizados;
isso porque uma seleção errônea pode levar a generalizações
e resultados equivocados e incompatíveis com o cenário mais
amplo. Se o objetivo da pesquisa é possibilitar generalizações a
partir do caso estudado, as estratégias apresentadas nesta seção
são ponto crucial de atenção. Se, por outro lado, objetiva-se
uma exploração e descrição de um caso mais específico, sem a
pretensão de uma generalização mais ampla, o pesquisador deve
ainda ficar atento às conclusões muito determinísticas apontadas
em sua observação.
Por fim, independentemente do objetivo da análise, a apli-
cação rigorosa de métodos de pesquisa deve ser observada, em
especial na definição das técnicas de coleta de dados, de análise
e na justificativa da seleção do caso a ser estudado.
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CAPÍTULO 3
TÉCNICAS QUALITATIVAS
DE COLETA DE DADOS
De modo geral, as pesquisas qualitativas envolvem o estudo
e a coleta de dados provenientes de fontes diversas: experiências,
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histórias, entrevistas, observações, registros, documentos, entre


outros materiais que descrevem e captam situações sociais (Denzi
et al., 2006). Essa gama de instrumentos é utilizada para facilitar
interpretações, hipóteses e a compreensão mais geral sobre os
temas que o pesquisador busca estudar. Para Minayo (2008), isso
significa uma intercessão entre o marco teórico-metodológico
(revisão de literatura) e a realidade empírica.
A coleta de dados está intimamente ligada aos propósitos
da pesquisa. Nesse sentido, a escolha por uma ou outra técnica,
ou uma combinação dessas, é feita com base no objetivo da pes-
quisa e na pergunta que se quer responder. Por essa razão, esse
questionamento inicial funciona como norteador, inclusive na
coleta de dados (quantos? quais? como? por quê?), afinal, “o que
determina como trabalhar é o problema que se quer trabalhar:
só se escolhe o caminho quando se sabe aonde se quer chegar”
(Goldenberg, 1999, p. 14).
O processo de coleta de dados pode ser feito de formas
distintas, ou mesmo pela combinação de diferentes técnicas
que permitirão ao pesquisador uma compreensão mais aprofun-
dada de seu objeto de pesquisa. Este capítulo busca apresentar
alguns dos instrumentos utilizados para coleta de dados em
pesquisas qualitativas.
Antes de dar início à apresentação dessas técnicas, é impor-
tante ressaltar que muitas técnicas de coleta de dados em pesqui-
sas qualitativas envolvem seres humanos – é o caso do uso de
entrevistas, por exemplo, ou de resultados de exames e prontuá-
rios médicos. Essa interação e apreensão de informações pessoais
requer que o pesquisador tenha especial atenção quanto à ética
46

do processo de pesquisa. Isso porque algumas pesquisas podem


representar riscos aos participantes, ou mesmo tratar de dados
sensíveis que precisam ser analisados e tratados em sigilo. Por
essa razão, instituições de pesquisa usualmente possuem Comitê
de Ética em Pesquisa (CEP), para discernir, entre outras questões,
sobre pesquisas envolvendo seres humanos. No caso brasileiro,
a Comissão Nacional de Ética em Pesquisa, uma das comissões
do Conselho Nacional de Saúde (CNS) do Ministério da Saúde,
coordena os CEPs (Comitês de Ética em Pesquisa).

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A seguir, destacamos algumas técnicas comumente utilizadas
em estudos de natureza qualitativa.

3.1 Pesquisa documental

A pesquisa documental tem como foco materiais que não


receberam qualquer tratamento analítico (Helder, 2006). As fontes
de pesquisa documental são bastante variáveis e envolvem fontes
como artigos de jornal, documentos de arquivos públicos, diá-
rios oficiais, revistas, cartas, relatórios, reportagens, entre outros.
Embora inicialmente a ideia de “documentos” estivesse ligada ao
texto escrito, com a evolução da técnica, outros materiais, como
fotografias e filmes, passaram a ser entendidos como fonte nesse
tipo de estratégia (Cellard, 2008; Sá-Silva; Almeida; Guindani,
2009). Segundo Cellard (2008, p. 295), “por possibilitar alguns
tipos de reconstrução, o documento [...] muito frequentemente
permanece como o único testemunho de atividades particulares
ocorridas num passado recente”.
A técnica envolve seleção, tratamento e interpretação das
informações (Kripka; Scheller; Bonotto, 2015). Aí está o desafio
em relação ao uso desse tipo de informação: a capacidade do
pesquisar em selecionar os documentos, tratá-los e interpretar os
dados, possibilitando uma compreensão mais ampla dos objetos
estudados, isto é, dando sentido aos documentos: “as ações dos
investigadores – cujos objetos são documentos – estão impregna-
das de aspectos metodológicos, técnicos e analíticos” (Sá-Silva;
Almeida; Guindani, 2009, p. 4).
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 47

Para levantar os dados, é importante entender a sua per-


tinência à análise. Lüdke e André (1986, p. 40) apontam que
“[...] a escolha dos documentos não é aleatória. Há geralmente
alguns propósitos, ideias ou hipóteses guiando a sua seleção.”
A construção de um corpus documental, isto é, a base de dados
documentais do pesquisador, deve, portanto, estar conectada
ao que busca compreender em sua pesquisa. Como importantes
fontes para análise, os documentos podem se apresentar como
fontes primárias, que são aquelas produzidas pelo próprio autor
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– caso das entrevistas, por exemplo; ou secundárias, que são


aquelas advindas de outros autores – caso das bases de dados
estatísticos disponibilizadas por instituições diversas, como o
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE) ou o Con-
selho Nacional de Saúde (CNS).
Como são muitas as fontes de pesquisa, cabe ao pesquisador
definir estratégias para identificar os materiais, sistematizar e
organizar suas fontes de dados. O levantamento desse material
deve ser sempre acompanhado de um olhar crítico. Dado que
documentos são produtos de contextos sociais, econômicos e
políticos, apresentando, por vezes, um viés na forma em que
foram produzidos, a criticidade perante o material apresentado
é essencial ao pesquisador, levando em consideração uma con-
textualização das falas, de textos e imagens que venha a analisar.
Assim, esse processo de análise é justamente o tratamento
do material, trata-se de interpretá-lo à luz do questionamento
da pesquisa, da teoria e do contexto; “é a qualidade da informa-
ção, a diversidade das fontes utilizadas, das corroborações, das
intersecções que dá profundidade, riqueza e refinamento a uma
análise” (Cellard, 2008, p. 305).

3.2 Observação

Observar um dado contexto e situação social é também


uma forma de coletar dados para uma pesquisa, uma vez que
ajuda o pesquisador a “identificar e obter provas a respeito de
objetivos sobre os quais os indivíduos não têm consciência, mas
que orientam seu comportamento” (Lakatos, 1996, p. 79). Essa
48

técnica aproxima o pesquisador da realidade pesquisada, ao passo


que capta práticas, costumes e ações à medida que acontecem.
Por essa razão, esse tipo de observação exige um conhecimento
aprofundado do objeto de estudo e, usualmente, os resultados
são colocados em um diário de campo. Essas anotações podem
assumir formas diversas: registros cronológicos do vivenciado
no cenário, descrições do observado, registro de conversas com
participantes, relatos mais amplos das impressões do trabalho
de campo. Tal como acontece com outras técnicas de coleta de

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dados qualitativos, a observação fornece uma enorme quantidade
de dados a serem capturados e analisados.
Usualmente, diz-se que uma observação pode ser partici-
pante ou não participante. A observação participante é um tipo
de observação que, como o próprio nome revela, implica a partici-
pação do pesquisador na vida coletiva. Essa participação é a parte
fundamental do estudo de dado conjunto social, que normalmente
se dá por um longo período de tempo. Nesse tipo de observação,
estabelecem-se contatos, conversas com atores, e daí derivam
as interpretações sobre os acontecimentos e fatos observados
(Vernaglia; Cruz; Peres, 2020). No caso de observações não par-
ticipantes, o investigador observa as interações e vivências “de
fora”. Esse método é especialmente utilizado quando o objetivo
é analisar o não verbal – cultura, condutas, relações, organização
social e outros códigos comportamentais. No caso das pesquisas
em saúde, por exemplo, um pesquisador pode observar as técnicas
de cuidado empregadas por profissionais de saúde, ou o método
de organização de agentes comunitários.
Entre suas principais dificuldades, estão a não aceitação do
pesquisador como parte integrante do grupo e a interpretação dos
dados coletados, também vinculados à vivência do pesquisador, a
sua capacidade específica de apreensão da realidade e de relatar
os fatos vividos que se confiam na memória do pesquisador. Mais
uma vez, reforça-se que o pesquisador não é neutro, e a sua capa-
cidade de observar é também mediada por suas vivências próprias,
que dão ao mundo uma lente específica de análise da realidade.
Três pontos podem ser levantados sobre a técnica. Pri-
meiro, uma parte da comunidade científica irá preconizar o
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 49

distanciamento do pesquisador e de seu objeto, com vias a man-


ter a objetividade científica (Costa, 1987). Em segundo lugar,
as observações podem influenciar o comportamento dos atores
(Quivy; van Campenhoudt; Santos, 1992); nesse sentido, a pre-
sença do pesquisador pode alterar costumes, condutas e práticas
de um grupo social, dificultando uma apreensão do “real” modo de
vida e o valor das descobertas – comumente, entretanto, relata-se
que o processo de convivência diminui as alterações causadas pela
presença estranha ao grupo. Por fim, do ponto de vista ético, o
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pesquisador precisará considerar quando e como deve intervir se


observar práticas inadequadas que possam colocar os observados
em risco – no caso de pesquisas em saúde, por exemplo, quando se
identificam práticas que podem ser danosas à saúde de pacientes.

3.3 Entrevistas

Entrevistas são procedimentos bastante usuais na pesquisa


qualitativa e no trabalho de campo. A partir da coleta de fala dos
atores sociais, o pesquisador busca obter informações sobre o
objeto em estudo: “[...] num primeiro nível, essa técnica se carac-
teriza por uma comunicação verbal que reforça a importância
da linguagem e do significado da fala. Já num outro nível, serve
como um meio de coleta de informações sobre um determinado
tema científico” (Minayo, 2009, p. 57).
As entrevistas são uma abordagem direta e eficaz para cole-
tar dados detalhados e ricos sobre um fenômeno específico. O
tipo de entrevista utilizado pode variar de acordo com a questão
de pesquisa, as características dos participantes, a preferência do
pesquisador e entraves logísticos.
As entrevistas face a face são frequentemente consideradas a
forma mais tradicional e comum de conduzir uma entrevista. Essa
abordagem permite uma interação direta entre o entrevistador e
o entrevistado, possibilitando uma compreensão mais profunda
e uma análise mais rica dos dados coletados. Aqui, a comunica-
ção não verbal também desempenha um papel importante nas
entrevistas presenciais, fornecendo informações adicionais para
a interpretação dos resultados.
50

Com o avanço da tecnologia, as entrevistas por telefone, por


e-mail ou chat têm-se tornado mais comuns, e podem ser especial-
mente úteis quando há barreiras geográficas para o recrutamento
de participantes. As entrevistas dessa natureza permitem uma
comunicação em tempo real, sem a necessidade de deslocamento
físico, oferecendo flexibilidade tanto para o entrevistador quanto
para o entrevistado, permitindo que as respostas sejam enviadas
e recebidas em momentos convenientes para ambos.
Em qualquer dos casos, é importante evidenciar que a entre-

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vista não é uma conversa neutra, posto que parte de objetivos cla-
ros por parte do pesquisador ao elaborar as perguntas e introduzir
o tema, mas as respostas conduzem a respostas mais objetivas
ou mais subjetivas (Minayo, 2009). Uma das riquezas desse tipo
de técnica é a possibilidade de comparar diferentes conjuntos de
vivências sobre um mesmo tema ou situação social. As respostas
dadas serão objeto de análise por parte do pesquisador, servindo
de suporte para testar suas hipóteses e/ou responder sua pergunta
de pesquisa. Reforça-se também, aqui, a importância do olhar
crítico do pesquisador: se nem as perguntas por ele elaboradas
são neutras, tampouco é neutra a resposta do entrevistado, que
vem carregada com suas visões e percepções pessoais.
As entrevistas podem ser classificadas, ainda, pelo tipo de
pergunta feita aos entrevistados, isto é, a estrutura dos questio-
namentos – se as conversas são mais ou menos dirigidas. Decidir
como será a estrutura dos questionamentos dependerá, mais uma
vez, da pergunta a ser respondida, bem como das habilidades
do pesquisador. Decidir onde colocar um desenho de entrevista
nesse “espectro estrutural” dependerá da pergunta a ser respon-
dida e das habilidades do pesquisador. Outros pontos importantes
da técnica são a escolha dos entrevistados e a preparação do
roteiro de entrevista.
As entrevistas não estruturadas ou abertas são elaboradas
a partir de perguntas fechadas e previamente estabelecidas pelo
pesquisador. Geralmente, esse tipo de entrevista toma como base
uma única pergunta; então, o entrevistador e o entrevistado mol-
dam a conversa em tempo real, em vez de seguir um cronograma
já previamente estabelecido.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 51

Esse tipo de entrevista é particularmente relevante quando


o objetivo é levantar histórias de vidas ou experiências dos par-
ticipantes. Um exemplo do tipo de estudo em que essas entrevis-
tas abertas e conversacionais são bem adequadas é a percepção
de profissionais de saúde sobre condições de trabalho durante
a pandemia da covid-19 (Fernandez et al., 2021). Uma aborda-
gem aberta permite liberdade e flexibilidade, mas requer que o
pesquisador tenha habilidade na condução da conversa: ao passo
que precisa manter o foco da entrevista, não deve forçar os par-
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ticipantes a áreas específicas de discussão.


As entrevistas estruturadas (ou fechadas) são aquelas elabo-
radas a partir de perguntas fechadas e previamente estabelecidas
pelo pesquisador. Nesse tipo de entrevista, os elementos centrais
do fenômeno pesquisado são explicitamente questionados. Nesse
tipo de entrevista, há maior controle ao pesquisador, e as entre-
vistas se aproximam da aplicação de um questionário. Nesses
casos, permite-se um grau de comparabilidade maior por parte do
pesquisador, uma vez que as mesmas perguntas serão aplicadas a
diferentes respondentes. Apesar de mais fácil de conduzir – dado
o controle por parte do entrevistador –, uma abordagem mais
estruturada pode não permitir a plena expressão do entrevistado.
Uma combinação das duas técnicas é a entrevista chamada
de semiestruturada, quando há um roteiro que serve como um guia
para orientar a conversa, permitindo que o entrevistado levante
pontos que não estão contemplados nas questões previamente
estabelecidas, ao passo que há certo controle por parte do entre-
vistador. Boas entrevistas semiestruturadas garantem que os dados
sejam capturados em áreas-chave, ao mesmo tempo que permite
flexibilidade para que os participantes tragam sua própria perso-
nalidade e perspectiva para a discussão.

a) Seleção dos entrevistados/participantes da pesquisa

Os conjuntos sociais a serem analisados estão intimamente


ligados ao objeto de pesquisa. Usualmente, podem ser pensados
interlocutores de naturezas diversas, a depender do tema pesqui-
sado e das hipóteses que o pesquisador busca investigar. Podem
52

ser entrevistados outros pesquisadores e acadêmicos sobre o tema;


atores centrais que, por sua atuação e responsabilidades, têm
aproximação da temática; e, por fim, o público potencial, aquele
diretamente atingido pelo problema da pesquisa.
Por exemplo, em uma pesquisa sobre a Atenção Básica à
Saúde, poderiam ser entrevistados pesquisadores ligados à temá-
tica, médicos e gestores públicos, usuários do sistema. A escolha
dos entrevistados também deve levar em consideração a rele-
vância das perspectivas apresentadas para o conjunto maior de

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pessoas ligadas à temática: um conjunto baixo de entrevistados
dificilmente refletirá a realidade que se busca compreender.
A seleção dos entrevistados pode ser feita combinando
outros tipos de técnicas, como a técnica da bola de neve: nesta,
para coleta de uma amostra (conjunto de entrevistados), os entre-
vistados iniciais indicam novos nomes, e assim ocorre sucessi-
vamente até que seja atingido um ponto de saturação – quando
os novos entrevistados passam a repetir nomes já obtidos em
entrevistas anteriores (Baldin; Munhoz, 2011).
A seleção dos entrevistados também coloca outra questão
ao pesquisador: quantas pessoas entrevistar? O número total de
participantes dependerá, novamente, desse já mencionado ponto
de saturação e de aspectos para atingi-lo, que podem se ligar ao
referencial teórico, ao recorte do estudo, à profundidade que se
deseja, às características dos participantes (Moré, 2015). Segundo
Moré (2015, p. 128),

A relação entre a entrevista em profundidade e o número


final de participantes, no contexto da pesquisa, ainda é um
tema que tem consensos diferentes e que giram em torno
da ideia da saturação de dados. Assim, temos autores que
apontam que o número de participantes numa pesquisa qua-
litativa, seria até 20, 14 e 12 participantes.

A ideia é análoga à anterior: o ponto de saturação é atingido


quando as novas falas dos entrevistados passam a repetir conteú-
dos já obtidos em entrevistas anteriores sem que haja acréscimo
de informações relevantes à pesquisa.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 53

b) Roteiro

No caso do roteiro de entrevista, é imprescindível pensar em


como alinhar esse instrumento de modo que as respostas sejam
suficientes para auxiliar na compreensão da temática mais geral
da pesquisa. Perguntas de difícil compreensão ou que incidem
sobre tópicos sensíveis podem aumentar a recusa nas respostas
ou gerar respostas equivocadas. Testar o roteiro de entrevistas é
uma boa maneira de evitar esses erros.
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Há muitos desafios na realização de entrevistas. Em pri-


meiro lugar, a maioria das entrevistas precisará ser gravada e
transcrita antes da análise; por si só, esse procedimento demanda
tempo e disponibilidade do pesquisador – basta lembrar que uma
hora de entrevista pode corresponder a até 5 horas de trabalho
para transcrição. Em segundo lugar, a análise também é um
processo mais lento, exigindo que as transcrições sejam minu-
ciosas: palavra por palavra e linha por linha. Por fim, reforça-se
o dito anteriormente: entrevistas tem um viés, e o pesquisador
deve ser cuidadoso ao evitar perguntas que induzam respostas
específicas ou reagir (verbal e fisicamente) de modo a influenciar
as respostas dos participantes.

3.4 Grupo focal

O uso de grupos focais é uma técnica comum em pesquisas


qualitativas (Minayo, 2008). Essa técnica é um tipo de entrevista
em grupos homogêneos, cujos participantes são selecionados por
certas características comuns, de interesse para a pesquisa. Para
a realização dessas entrevistas, o pesquisador reúne determinada
quantidade de atores (geralmente não mais do que 6 a 12) em um
mesmo local, por determinado período de tempo, objetivando
obter informações acerca do fenômeno pesquisado. A quantidade
de grupos a serem formados será determinada pelo pesquisador,
de acordo com as necessidades de pesquisa e a obtenção de dados.
O grupo focal busca não apenas a informação individual, mas
as interações coletivas, ao passo que amplia a escuta. Nesse sen-
tido, a técnica favorece não só relatos de experiência, mas uma
54

compreensão sobre atitudes, crenças, valores, consensos e dissensos


(Giacomini, 2011). Assim, o grupo focal oferece ao pesquisador
um método eficiente em reunir as opiniões de muitos participantes
ao mesmo tempo. As discussões em grupo podem resultar, ainda,
em um maior nível de debate, em uma discussão de fluxo livre.
Isso oferece uma oportunidade para reunir dados ricos de uma
população específica sobre uma determinada área de interesse.
Do ponto de vista dos participantes, o grupo focal propicia
um ambiente mais acolhedor do que uma entrevista individual.

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Como o participante não é o centro individualmente, pode ficar
mais à vontade para expressar pontos de vista quando incentivado
pela discussão do grupo. Esse tipo de técnica também permite
que os participantes “troquem” ideias uns com os outros, o que
às vezes resulta em diferentes perspectivas emergindo da dis-
cussão. Os grupos focais são especialmente utilizados quando
o pesquisador tem por objetivo apreender essas interações. São
ainda mais úteis quando pensamos na manifestação de temas
sensíveis que, em entrevistas individuais, podem constranger os
participantes. Na área da saúde, podemos pensar em questões
sensíveis como violências de gênero, perda gestacional, saúde da
população LBGTQIAP+, pacientes com AIDS/HIV, entre outros.
Entre as dificuldades dessa técnica, está, como nas entre-
vistas, o volume de dados a serem transcritos e analisados,
especialmente levando em consideração o tempo das discussões
(geralmente de 1 a 2 horas de duração). Os moderadores também
precisam ser altamente qualificados para garantir que a discus-
são possa fluir enquanto permanecem focados e que todos os
participantes sejam encorajados a falar, garantindo que nenhum
indivíduo domine a discussão. Também é válido considerar que,
se o objetivo é obter respostas sem intervenções, o grupo focal
não é a melhor técnica para obtenção de dados.

3.4. Conclusão

As técnicas de coleta de dados qualitativas são ferramentas


importantes para a compreensão de fenômenos sociais de forma
aprofundada e contextualizada. Elas permitem ao pesquisador
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 55

acessar a perspectiva dos participantes, captar suas experiências


e significados, e analisar comportamentos e interações.
O quadro a seguir sumariza as principais características das
técnicas apresentadas neste capítulo:

Quadro 1 – Um resumo das diferentes técnicas de coleta de dados


Técnica
Descrição Potencialidades Desafios
de coleta
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Pesquisa Utilização de • Estabilidade da • Dados incompletos ou


documental documentos, registros informação desatualizados
e outros materiais • Baixo custo de acesso • Dificuldade de acesso
escritos, gravados • Análise crítica quanto
ou imagéticos para ao contexto (histórico,
coletar dados.que não político, cultural, social,
receberam ainda um econômico)
tratamento analítico

Entrevistas Interação direta • Aplicação mais universal • Seleção dos


entre pesquisador • Flexibilidade de entrevistados
e participante, por aplicação e adaptação dos • Número de
meio de perguntas protocolos de pesquisa entrevistados
e respostas, para • Elaboração do roteiro
coletar dados. de entrevista
Observação Observação do • Coleta imediata de • Custos altos (tempo,
comportamento e informações deslocamento, troca)
das interações de • Pureza do dado para realização
participantes. • Necessidade de
aceitação por parte da
comunidade
• Influência do
observador na população
observada
• Subjetividade da
observação

Grupo focal Coleta de • Flexibilidade na • Capacidade


experiências aplicação de mediação do
coletiva, reunião • Baixo custo pesquisador
de participantes • Obtenção de • Não garantia de
para discutir um informações no curto prazo anonimato
tema ou questão, • Medição de • Seleção criteriosa dos
sob a mediação do experiências e interações participantes
pesquisador. simultaneamente • Não generalizável

Fonte: elaboração própria.


56

Este capítulo buscou apresentar algumas das técnicas mais


utilizadas pra coleta de dados em pesquisas qualitativas. A esco-
lha da técnica mais adequada para uma pesquisa dessa natureza
deve considerar o objetivo da pesquisa, a pergunta que se busca
responder, o contexto em que a pesquisa será realizado e as carac-
terísticas dos participantes. É importante ressaltar que a combi-
nação de diferentes técnicas pode ser uma estratégia eficaz para
obtenção de dados mais completos e robustos.

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CAP ÍTULO 4
ANÁLISE DE DADOS
QUALITATIVOS
Os dados em pesquisas qualitativas geralmente vêm em
formas “brutas”, que necessitam de um processo analítico para
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compreensão mais geral. Segundo Labuschagne (2003), a aná-


lise de dados qualitativos envolve a organização não numérica
(ou não necessariamente numérica) dos dados para descobrir
padrões, temas, formas e qualidades encontrados em notas de
campo, entrevistas, transcrições, questionários abertos, diários,
estudos de caso, entre outros.
Assim, após o planejamento da pesquisa e o levantamento
das informações, procede-se a um rigoroso processo de siste-
matização e análise desse corpus de dados para confirmar ou
negar hipóteses predeterminadas. Aqui, apresentamos três tipos de
análises utilizadas comumente por pesquisadores qualitativos: a
análise do discurso, a análise documental e a análise de conteúdo.

4.1 Análise documental

A análise documental é um processo sistemático para revi-


sar e analisar documentos – físicos ou digitais. Como em outros
métodos, a análise documental exige exame e interpretação para
obter significados, compreensões e desenvolver conhecimento
empírico (Bowen, 2009). Esses documentos contêm palavras
(textos) e imagens registradas sem intervenção do pesquisador,
e podem ser entendidos como “fatos sociais”, produzidos e com-
partilhados de maneira socialmente organizada (Atkinson; Coffey,
2004). Como já observado no capítulo 3, os documentos podem
ter origens diversas: atas, minutas, diários, prontuários, jornais,
entre outros. Segundo Merriam (1988, p. 118), “documentos
de todos os tipos podem sim ajudar o pesquisador a descobrir
o significado, desenvolver a compreensão e descobrir insights
60

relevantes para o problema de pesquisa”. A partir desses docu-


mentos previamente coletados e organizados, procede-se, então,
a um processo de análise desse corpus documental.
O processo analítico consiste em achar, escolher, avaliar
(atribuir significado), sintetizar e combinar informações presentes
em documentos. Para Cellard (2008, p. 303), é o “[...] momento
de reunir todas as partes – elementos da problemática ou do qua-
dro teórico, contexto, autores, interesses, confiabilidade, natureza
do texto, conceitos-chave.” De acordo com Bowen (2009), é um

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processo que envolve pelo menos duas etapas: um exame super-
ficial (skimming) e um exame minucioso (leitura). Essa análise
preliminar envolve compreender a natureza e a lógica do texto, o
contexto em que foi escrito, o autor (ou os autores) e determinar
a autenticidade de confiabilidade do texto. A análise em si, mais
minuciosa, por sua vez, trata de obter informações relevantes
do corpus documental, que auxiliarão na resposta à pergunta de
pesquisa (Cellard, 2008). A análise de documentos resulta na
obtenção de dados – trechos, citações ou passagens completas.
Segundo Bardin (2011), é uma forma de condensação das infor-
mações para consulta e armazenamento.
Usualmente, a análise documental é utilizada em combi-
nação com outros métodos de análise qualitativa. Esses dados
obtidos, por exemplo, podem ser organizados em temas princi-
pais, categorias e exemplos de casos, principalmente através da
análise de conteúdo (Labuschagne, 2003).

4.2 Análise de discurso

A análise do discurso é um tipo de análise utilizado por


diversas áreas do conhecimento, inclusive em estudos da área da
saúde (Cheek, 2004). Como aponta o nome, esse tipo de análise
foca em discursos para o estudo de questões específicas ou para
subsidiar pesquisas em distintas áreas. Esse tipo de análise é
influenciado por diversas disciplinas, como antropologia, estudos
culturais, linguística, psicologia e sociologia.
Não há muito consenso na literatura sobre esse tipo de
análise, iniciando pela definição do que seria o discurso em si.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 61

Tomando como base a teoria foucaultiana, podemos entender


o discurso como um instrumento que fornece um conjunto de
afirmações possíveis sobre uma determinada área, organizando
e estruturando a maneira pela qual temas, objetos ou processo
são tratados.
A definição de discurso tem uma longa tradição no pensa-
mento científico, em especial nas definições trazidas por Foucault.
Nesse tipo de perspectiva, traz-se à tona a ideia de que diferentes
discursos representam diferentes formas de pensar e de poder.
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Nesse sentido, entende-se que discursos não são neutros, mas,


sim, socialmente construídos e influenciados por relações de
poder. Portanto, a análise de discurso busca revelar as assime-
trias de poder, as ideologias subjacentes e as estratégias discur-
sivas utilizadas para legitimar ou contestar determinadas visões
de mundo. A abordagem foucaultiana, foco deste capítulo, pode
ser considerada uma abordagem de nível macro, cujo objetivo é
a compreensão do poder na sociedade.
Como a própria definição de discurso, a análise do discurso
também tem significados múltiplos e é usada de formas distintas
por diferentes pesquisadores. Podemos citar duas formas distintas
de análise de discursos: uma mais tradicional, focada na análise
do conteúdo dos textos quanto às formas como eles foram estru-
turados em termos de sintaxe, semântica, por exemplo; e outra
utilizada mais comumente na atualidade, ligada ao pensamento
anteriormente descrito, que pretende analisar o discurso a partir
da compreensão de como os próprios textos foram construídos
em termos de sua “situação” social e histórica (Cheek, 2004;
Macedo et al., 2008).
Deste modo, entende-se a análise do discurso como método
que considera os textos como imbuídos de cultura, contextos,
política e intenções. Cabe ao pesquisador entender de que modo
essas relações se expressam nos discursos e como capturar o
subentendido e o não dito. Observa-se que, na realização da aná-
lise de discurso, é necessário ir além do escrito no documento
e nas falas; há que entender como eles são construídos, como
refletem as relações de poder e como influenciam as interações
sociais. Para Macedo et al. (2008, p. 655), no caso das pesquisas
62

em saúde, sua importância está na “possibilidade de se com-


preender o discurso individual e coletivo, histórico e socialmente
determinado, evidenciando elementos que permitam redirecionar
as práticas sanitárias”.
Para van Dijk (1997, p. 1),

Uma análise do discurso é uma análise acadêmica apenas


quando se baseia em preocupações, métodos ou teorias mais
ou menos explícitas. Apenas fazer comentários de “senso

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comum” em um texto ou conversa raramente será suficiente
em tal caso. De fato, todo o objetivo deve ser fornecer
insights sobre a estrutura, estratégias ou outras propriedades
do discurso que não poderiam ser fornecidas prontamente
por destinatários ingênuos.

Usualmente, pesquisadores que se utilizam desse tipo de


ferramenta analítica utilizam falas de personalidades midiáticas,
líderes ou outras pessoas em posição de destaque que comu-
mente têm suas falas divulgadas. Apesar disso, outros usos para
esse tipo de ferramenta vêm sendo explorados. Imafuku, Saiki e
Woodward-Kron (2022) trazem uma revisão do uso da análise do
discurso em educação médica. Nos exemplos citados pelos auto-
res, estão a análise de nível macro de instituições sociais (caso
de documentos curriculares em políticas para seleção), a análise
de nível médio da prática discursiva (caso de comportamentos
verbais e aprendizagem em um contexto de sala de aula) e a
análise de nível micro em um contexto específico (por exemplo,
interações paciente-profissional).
Em síntese, podemos dizer que esse tipo de análise envolve
dois momentos de pesquisa: em um primeiro momento, analisa-se
o que efetivamente está escrito/dito no discurso em questão; em
um segundo momento, o entendimento da semântica que está
por trás do discurso, por meio do contexto e também por meio
das características sociais, políticas e ideológicas de quem está
proferindo aquele discurso. Por esse motivo, diz-se que a análise
do discurso parte do mais concreto, ou seja, do discurso em si,
para o mais abstrato, isto é, o subtexto da fala, o que está por
trás do discurso.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 63

4.3 Análise de conteúdo

“Análise de conteúdo” é termo geral que se refere a dife-


rentes estratégias usadas para analisar textos (Bardin, 2011).
Podemos defini-la como uma forma sistemática de codificar e
categorizar utilizada para explorar quantidades de informações
textuais e determinar tendências – padrões de palavras, fre-
quências de falas, discursos específicos, entre outros aspectos
(Mayring, 2000; Pope; Zeibland; Mays, 2006).
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Parte relevante do uso feito da análise de conteúdo é a pos-


sibilidade de fazer inferências sobre os conteúdos analisados: “o
analista tira partido do tratamento das mensagens que manipula,
para inferir (deduzir de maneira lógica) conhecimentos sobre o
emissor da mensagem ou sobre o seu meio” (Bardin, 2011, p. 39).
Com esse tipo de análise, permite-se uma compreensão qualitativa
e quantitativa dos dados, uma vez que, ao mesmo tempo, anali-
sam-se o teor dos textos e as contagens quantitativas dos códigos
(Bardin, 2011; Gbrich, 2007). Segundo Bardin (2011, p. 38), “o
interesse não reside na descrição dos conteúdos, mas sim no que
estes nos poderão ensinar após serem tratados”.
Deste modo, podemos sintetizar a análise de conteúdo como
uma ferramenta de pesquisa usada para determinar a presença de
certas palavras, temas ou conceitos em dados qualitativos (ou
seja, textos). Usando a análise de conteúdo, os pesquisadores
podem quantificar e analisar a presença, os significados e rela-
cionamentos dessas palavras, temas e conceitos.
Nessa ferramenta de análise, usam-se fontes diversas: entre-
vistas, notas de pesquisa de campo, conversas, ensaios, discursos,
documentos históricos, prontuários e qualquer outro tipo de docu-
mento em que ocorre uma linguagem comunicativa. Um estudo
pode usar uma ou diversas formas desses materiais. Para analisar
o texto usando a análise de conteúdo, o texto deve ser codificado
ou dividido em categorias de código gerenciáveis para análise
(ou seja, “códigos”). Depois que o texto é codificado em códigos,
estes podem ser categorizados em “categorias de código” – para
resumir ainda mais os dados.
64

Bardin (2011) é uma das grandes expoentes dessa técnica


de análise de dados. A autora apresenta como critérios para a
análise de conteúdo três momentos: a pré-análise, a exploração
do material e o tratamento dos resultados. Outros autores trazem
contribuições aos processos necessários à análise de conteúdo,
caso de Lacy et al. (2014).
Na teorização de Bardin (2011), boa parte do que efetiva-
mente é entendido como análise de conteúdo se dá na pré-análise,
etapa com diversas outras subetapas que vão desde a seleção à

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categorização. A exploração do material, então, se refere à análise:
“a administração sistemática das decisões tomadas [...] consiste
essencialmente das operações de codificação, desconto ou enu-
meração, em função de regras previamente formuladas” (Bardin,
2011, p. 101). A última etapa, por fim, consiste no tratamento dos
resultados e respectiva interpretação: “os resultados brutos são
tratados de maneira a serem significativos (‘falantes’) e válidos”
(Bardin, 2011, p. 101). Aqui, podem ser efetuadas análises de
frequência, além de estabelecidos quadros de resultados e mode-
los para explicitar as informações obtidas na análise, os quais
subsidiarão inferências.
A fim de sumarizar as contribuições e distintas etapas de
análise apresentadas por Bardin (2011) e outros autores, siste-
matizam-se as etapas de análise em cinco: seleção e organização
dos materiais de pesquisa; definição das unidades e categorias de
análise; codificação; análise; resultados.

a) Preparo da pesquisa

Como em qualquer técnica de análise de dados, parte funda-


mental está ligada ao planejamento da pesquisa em si. A definição
de objetivos e de uma pergunta de pesquisa é um pré-requisito
básico também para a análise de conteúdo, pois dessas definições
derivará todo o processo de categorização e de seleção dos melho-
res materiais para a pesquisa. Assim, é essencial ter clareza sobre
o propósito da análise, ou seja, o que se espera obter de deter-
minada análise e quais questões específicas se deseja responder.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 65

b) Seleção dos materiais de pesquisa

Com base na pergunta de pesquisa, o pesquisador irá esco-


lher o conjunto de textos a analisar, com base nas informações que
melhor podem responder à pergunta ou ao objetivo da pesquisa.
Os dados, que, além de escritos, podem ser verbais ou derivados
de observações, devem apresentar-se (ser transformados) em tex-
tos escritos para a análise.
Para a seleção dos documentos, Bardin (2011) estabelece
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algumas “regras”: a) exaustividade: os temas devem ser aborda-


dos à exaustão, sem omissão de conteúdos; b) representatividade:
seleção de amostras efetivamente representativas do universo em
questão; c) homogeneidade: a coleta de dados que se referem a
um mesmo tema.
Com isso em mente, o pesquisador pode optar por escolher
um meio ou vários meios específicos para analisar (discursos,
sites, atas), de um gênero específico (discursos de campanha,
por exemplo, ou Diários Oficiais da União). O pesquisador deve,
então, criar alguns parâmetros para excluir ou incluir documentos
em sua análise – com base no tema, em local de publicação, em
datas específicas, entre outros. Se o conjunto de documentos for
muito grande, militantes como tempo e fôlego do pesquisador
podem dificultar a tarefa; será necessário escolher uma amostra
dentre os documentos.
Com esse processo, delimita-se o corpus documental, que
são os documentos efetivamente submetidos ao processo analí-
tico. É importante se apropriar dos materiais, lê-los e familiari-
zar-se com seu teor. Uma boa forma de fazer isso é observar as
ideias principais e os padrões gerais. Esse processo ajudará no
processo de análise subsequente.

b) Criação de um sistema de categorias/códigos

A característica mais distintiva da análise de conteúdo é


ser baseada em categorias analíticas. As categorias referem-se
a aspectos dentro do texto, que resumem o significado desses
aspectos. A avaliação do texto é, portanto, restrita ao sistema de
66

categorias selecionado. Conteúdos de texto que não são aborda-


dos pelas categorias ou impressões holísticas não são levados em
consideração, ou deveriam ser abordados com outros métodos de
análise de texto (Mayring, 2015).
Para Bardin (2011), trabalhar com categorias significa agru-
par elementos (ou ideias e expressões, por exemplo) em torno
de um único conceito, que é capaz de abranger todos esses ele-
mentos. De acordo com Janis (1982 apud Carlomagno; Rocha,
2016, p. 178), isso significa que “[...] as regras de uma análise

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de conteúdo especificam quais os sinais que devem ser classifi-
cados e em que categorias. Essas regras são, com efeito, regras
semânticas para a linguagem da comunicação a ser analisada.”
Assim, a partir da análise de conteúdo, é possível decodificar e
interpretar cada trecho das mensagens originais.
De maneira geral, nessa etapa, busca-se desenvolver um con-
junto de categorias ou códigos que serão utilizados para classificar
as informações encontradas nos textos. As categorias devem ser
relevantes para o seu objetivo de pesquisa e abranger todos os
aspectos importantes do conteúdo. A criação de categorias é o
aspecto principal da análise de conteúdo.
Mayring (2015) aponta que as categorias podem ser deri-
vadas de dois processos: indutivo ou dedutivo – ainda, da com-
binação de ambos. Na abordagem dedutiva, as teorias ou os
conceitos existentes orientam a criação de categorias, garantindo
uma conexão com o conhecimento prévio. Por outro lado, a
abordagem indutiva permite a emergência de novas categorias
a partir dos próprios dados, captando aspectos ou perspectivas
imprevistas. Ao integrar abordagens dedutivas e indutivas, os
pesquisadores podem desenvolver um sistema de codificação
abrangente que combina conhecimento preexistente com novos
insights derivados dos dados.
Um bom método para criar categorias, então, se inicia na
identificação de temas e conceitos relevantes. Com base em uma
leitura inicial dos materiais, certos elementos, tópicos ou temas
recorrentes podem ser identificados. Cabe ao pesquisador entender
quais são os principais elementos para o seu objetivo de pesquisa.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 67

Esses elementos-chave podem ser ideias principais, palavras-


-chave, conceitos teóricos ou outros aspectos relevantes à análise.
Tomando como base esses temas e conceitos identificados,
é possível criar categorias amplas que abarcam aspectos mais
abrangentes do conteúdo. Essas categorias devem ser mutuamente
exclusivas, ou seja, não devem se sobrepor. Por exemplo, em
um estudo sobre a Atenção Primária à Saúde (APS), poderíamos
utilizar como categorias amplas a “Integralidade” e a “Acessibili-
dade”, tomando como base os princípios da APS no Brasil. Essas
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categorias amplas devem ser revisadas e refinadas. É importante


que o pesquisador considere se elas são adequadas para abranger
todos os aspectos do conteúdo e se estão claramente definidas.
Por vezes, será preciso adicionar categorias adicionais, combinar
categorias semelhantes ou redefinir categorias – para torná-las
mais precisas e abrangentes.
Uma vez estabelecidas as categorias amplas, é possível
desenvolver subcategorias mais específicas. Essas subcategorias
representam elementos mais detalhados ou nuances dentro de cada
categoria. Num estudo sobre a Atenção Primária à Saúde no con-
texto da pandemia de Covid-19, uma categoria ampla “Vigilância
Epidemiológica” considerou as subcategorias “Rastreamento de
casos suspeitos”, “Rastreamento de contatos”, “Testagem fora
da UBS”, “Monitoramento da pandemia” e “Testagem na UBS”
(Fernandez et al., 2021).
Essas categorias devem ser testadas e revisadas. Uma forma
de fazer esse processo é aplicar as categorias a uma amostra do
corpus textual. Esse teste inicial é necessário para verificar a
adequação das categorias, o nível de abrangência, a consistência
e a confiabilidade. Novamente, ajustes e refinamentos deverão
ser feitos conforme a necessidade.
Por fim, um importante passo do processo de criação das
categorias é a definição de cada uma. A criação de um “livro de
códigos” por parte do pesquisador auxilia a tornar claros os signi-
ficados específicos de cada categoria, que podem ser consultados
por ele e por outros que venham a utilizar dessa categorização.
Além da definição das categorias, é preciso estabelecer crité-
rios claros para cada uma delas, para garantir a consistência da
68

aplicação das categorias. Isso ajudará a guiar o processo de codi-


ficação e a garantir que diferentes analistas cheguem a resultados
semelhantes ao aplicarem-se as categorias aos textos.

c) Codificação

Após a criação das categorias, o pesquisador irá aplicá-las.


Isso requer a leitura de cada documento ou de trechos respecti-
vos, para que se atribuam os códigos ou categorias a cada parte

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significativa do conteúdo, marcando o texto com os códigos cor-
respondentes. Os dados codificados devem ser organizados de
modo que sejam possíveis a visualização e a análise de maneira
sistemática. Essa organização pode ser feita com o auxílio de pla-
nilhas, softwares, quadros, entre outros métodos de organização.

d) Análise dos dados e interpretação dos resultados

Os dados codificados podem ser analisados utilizando-se


métodos quantitativos e/ou qualitativos. Aqui podem ser apli-
cadas diferentes técnicas para entender o processo de categori-
zação, como o número de ocorrências de categorias específicas,
a identificação de tendências e padrões comuns, a relação entre
categorias, entre outras. Com base nessa análise, os resultados
são interpretados à luz do objetivo da pesquisa e das respostas
às perguntas de pesquisa.

e) Programas para auxiliar na análise de conteúdo

A análise de conteúdo pode ser feita tanto manualmente


quanto com a ajuda de softwares e programas que foram sendo
desenvolvidos nos anos mais recentes para auxiliar na catego-
rização e interpretação dos resultados. Entre os softwares que
podemos citar para esse tipo de análise, há o NVivo, o MAXQda,
o Atlas.ti e o pacote RQDA para o R.
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PARTE II
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CAPÍTULO 5
PRIMEIRAS REFLEXÕES SOBRE
O MÉTODO QUANTITATIVO
Falar sobre metodologia implica discutir sobre a medição e
o estudo de fenômenos. Isso nos leva a questionar os limites do
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conhecimento e do pensamento. Quando nos referimos a méto-


dos quantitativos, diversas ideias surgem à mente: quantitativo,
quantidade, estatística, conhecimento, clareza, compreensão,
qualidade, cálculo, pesquisa, complexidade, roteiro definido,
coleta de dados primários, precisão da mensuração, análise dos
números, técnicas, soluções, consolidação de dados, coleta de
dados primários, números, análise, métodos. Essas palavras são
evocadas ao pensarmos em métodos quantitativos.
A questão que surge é a seguinte: será que só podemos ter
conhecimento sobre algo se conseguirmos mensurá-lo? Em outras
palavras, será que só podemos conhecer algo que é passível de
mensuração? Essa pergunta é profundamente instigante. A per-
cepção de algo nem sempre corresponde à realidade objetiva.
Podemos ter percepções durante estados de vigília ou sono, caso
da imaginação e da alucinação. Por exemplo, em sua obra Medi-
tações Metafísicas, Descartes (2000) suspende seu julgamento
sobre todo conhecimento que adquiriu ao longo da vida, inclusive
sobre a própria existência e as coisas externas a ele.
Em um sonho, podemos pensar que estamos vivendo algo
real. Muitas vezes, experimentamos essa sensação durante um
sonho, e é por isso que acordamos com medo, acreditando que o
sonho era real e sentindo alívio ao percebermos que era apenas
um sonho. Porém, quando estamos imersos no sonho, não temos
consciência de que é um sonho; se tivéssemos, poderíamos fazer
qualquer coisa. Essa situação se assemelha um pouco ao conceito
apresentado no filme Matrix, não é verdade?
É verdade que a percepção nem sempre corresponde à rea-
lidade em si. Será que a realidade só pode ser compreendida por
74

meio da experiência? Essa questão nos remete a uma expres-


são de Quine (1960) ao afirmar que devemos submeter nosso
conhecimento ao “tribunal da experiência sensível”, ou seja, tudo
que conhecemos deve passar pela experiência das sensações.
No entanto, o que garante o saber e o conhecimento? Em que
se baseiam as coisas? Será que o conhecimento é puramente um
processo racional, como sugere Descartes (2000) em sua famosa
frase “penso, logo existo”? Será que é suficiente utilizar o raciocí-
nio para chegar a conclusões sem experimentar o mundo externo?

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Ou será que o conhecimento é possível por meio da experiência
com o mundo externo?
Seria o conhecimento a capacidade de submeter as coisas
que desejamos conhecer a algum tipo de medida? Nesse contexto,
minha resposta seria a de que a mensuração das coisas é uma evi-
dência contundente do conhecimento sobre o que elas são, ainda
mais sólida do que a simples percepção. Em outras palavras, não
basta apenas sentir, perceber ou realizar experiências; é neces-
sário também quantificar a experiência, mensurar as sensações e
a percepção. Dessa forma, argumento que só é possível afirmar
que se conhece algo se for possível mensurá-lo. Afinal, é possível
conhecer algo sem medi-lo?
Vamos considerar um exemplo: o sentimento. Não consigo
medir exatamente a intensidade de um sentimento de raiva, mas
posso reconhecer quando uma pessoa está com raiva. Podemos
atribuir uma certa intensidade e qualificação a esse sentimento.
A mesma lógica se aplica a outros sentimentos, como felicidade
e expectativa. Mas e quanto à alma? Ao amor? Será que tudo
pode ser medido ou, então, não existe? Existem entidades – como
Deus, o universo e os sentimentos – que realmente constituem
um conjunto de coisas que não podem ser mensuradas.
Agora, vamos tentar fazer um exercício quando se trata de
nomear algo, como a felicidade. Felicidade é um conjunto de
palavras que possui um símbolo. No entanto, ela representa um
conteúdo, uma experiência. Quando começamos a refletir sobre
o conteúdo das palavras que expressamos, parece que, ao conhe-
cermos o conteúdo, conhecemos a essência daquilo sobre o que
estamos falando. Portanto, a felicidade tem uma representação no
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 75

mundo real. Se pensarmos em um mundo limitado pelas coisas


que possamos expressar, como ficam as coisas além dos limites
do meu mundo? O que não posso expressar? Pois, se não posso
falar sobre algo, esse algo nunca se revelará para mim. Logo, meu
mundo é definido pelo alcance da minha linguagem. O mundo
é tão grande quanto aquilo que posso expressar. Portanto, falar
sobre algo já é uma forma de medição dessa coisa.
Nesse sentido, quando expresso algo que possui um signi-
ficado e uma representação com o mundo real, estou, de certa
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forma, atribuindo uma medida a essa coisa. Vamos retornar à


questão da felicidade, que sempre surge quando abordamos esse
assunto; a felicidade é um sentimento, uma experiência resultante
de sensações. No entanto, vamos considerar outro sentimento: a
dor. Podemos abordá-la qualitativamente, por exemplo, avaliando
se a dor é forte, moderada ou fraca. Se pensarmos em uma escala
de intensidade quantitativa, podemos utilizar graduação de zero
a dez. Qual seria a nota que você daria para a sua dor? Portanto,
se podemos medir a dor em uma escala de zero a dez, também
podemos medir a nossa felicidade nessa mesma escala. Podemos
medir o nosso amor em uma escala de zero a dez, ou até mesmo
de forma qualitativa, classificando-o como pequeno, moderado
ou intenso em relação a algo ou alguém.
Quando utilizamos um método de medida, buscamos essen-
cialmente expressar algo. E o simples ato de expressar algo já
expande nossa mente, permitindo-nos tentar medir tudo o que
existe no mundo. O limite do que podemos conhecer restringe-se
às coisas presentes em nosso mundo, que vai além do material;
abrange o mundo simbólico, o mundo das sensações e o mundo
espiritual – tudo isso está intrinsecamente ligado à nossa capa-
cidade de comunicar sobre algo. A estatística, nesse contexto, é
meramente uma linguagem que utilizamos, e os métodos quanti-
tativos representam um conjunto de ferramentas e conceitos que
formam o vocabulário desse idioma, permitindo-nos representar
algumas facetas do mundo. No entanto, é importante destacar que
o mundo é definido pelo que podemos expressar sobre ele. Não
há nada além disso. Nada existe fora do nosso mundo que não
esteja contido dentro dele.
76

É interessante abordar sobre o critério de verdade. Quando


buscamos conhecer algo, surge sempre a perspectiva de ques-
tionarmos: o que estou conhecendo corresponde realmente ao
que penso que estou conhecendo? É a verdade? Ou estou sendo
enganado? Descartes (2000), em particular, desenvolveu uma
grande desconfiança, pois suspeitava estar sendo enganado. Ele
se perguntava se o que pensava era verdade ou se estava apenas
sonhando. Surgia em sua mente a dúvida: poderia existir um
gênio maligno fazendo-o acreditar que dois mais dois é igual a

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quatro quando, na realidade, não o fosse? Ele começou a buscar
uma verdade pura, absoluta, indubitável. A única certeza que
encontrou foi a de que ele existia para ser colocado em dúvida.
Em outras palavras, a única certeza que possuía era a de que
havia alguém que duvidava de sua própria existência. A reflexão
se torna extremamente profunda.
No debate em torno do critério de verdade, existem dife-
rentes posições filosóficas. Alguns filósofos aceitam a existência
desses critérios, enquanto outros argumentam que não há critério
objetivo de verdade, apenas crenças subjetivas. Os céticos, por
sua vez, acreditam que é impossível estabelecer a existência da
verdade, o que os leva a adotar a suspensão do juízo em relação
a ela. Mas como eles fazem isso? Se defendemos que essa dis-
cussão é indiscutível, ou seja, que não podemos debater sobre a
verdade, então provamos que devemos suspender qualquer tipo
de juízo sobre a existência de critérios de verdade. No entanto, se
acreditamos que podemos decidir essa questão, precisamos utili-
zar algum critério de verdade para sustentar essa decisão. E aqui
reside o grande problema: a própria existência de um critério de
verdade. Se nos preocupamos com a presença ou a ausência desse
critério, somos obrigados a assumir uma posição em relação a ele,
o que implica adotar um critério que justifique tal decisão. Nesse
sentido, o critério de verdade já estaria implicitamente aceito, e
não seria mais necessário demonstrar ou discutir a existência de
critérios de verdade, pois, ao assumirmos um critério, já decidi-
mos essa questão. Em outras palavras, quando se afirma ter um
critério de verdade, para provar sua existência, deve-se assumir
tudo o que vem antes dele, o que implica pressupor uma hipótese
fundamental, pois estar-se-ia assumindo sua subsequência.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 77

Wittgenstein (1969), de fato, é uma figura importante na


filosofia da linguagem; em sua obra Da Certeza, ele apresenta
um argumento interessante contra a dúvida radical dos filósofos
céticos em relação à existência de coisas exteriores: questiona
como um cético, ao duvidar de tudo, pode estar seguro de que
suas palavras têm significado. Se alguém está imerso em uma
dúvida radical, como no caso de não saber se está acordado ou
não, como essa pessoa pode ter certeza de que suas palavras serão
compreendidas por outros? Essa questão revela uma contradição:
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o cético lança dúvidas sobre a existência do mundo exterior, mas,


ao mesmo tempo, pressupõe que as palavras que usa possuem
significado compreensível para os outros. Dessa forma, Wittgens-
tein (1969) sugere que a própria capacidade de se comunicar e
expressar dúvidas implica uma crença implícita na existência de
um mundo compartilhado.
E Wittgenstein (1969) apresenta outro dilema intrigante para
os céticos: argumenta que duvidar de todas as coisas pode ser tão
limitante quanto não duvidar de nada. Se uma pessoa não duvida
de nada, ela se torna dogmática e não se engaja em investigações
que possam levá-la além, pois não há objeto de dúvida. Por outro
lado, para duvidar de todas as coisas, é necessário assumir que
nada pode ser aceito sem ser provado, incluindo a própria afirma-
ção de que “nada deve ser admitido sem que antes seja provado”.
No entanto, essa proposição em si não pode ser provada, uma
vez que a dúvida radical coloca todas as possibilidades de prova
em questão. Essa linha de raciocínio cria um impasse, em que a
dúvida excessiva não leva a nenhum lugar conclusivo.
Essa argumentação apresentada por Wittgenstein (1969)
lança luz sobre as dificuldades inerentes ao ceticismo extremo.
Ao duvidarmos de tudo, não podemos estabelecer uma base sólida
para a construção do conhecimento. A exigência de provas para
tudo pode nos aprisionar em uma busca incessante, tornando-nos
incapazes de alcançar qualquer conclusão substancial. Portanto,
precisamos encontrar um equilíbrio entre questionar e investigar,
reconhecendo a importância da validade dos fundamentos e das
premissas para o avanço do conhecimento.
78

Embora concordemos com a justificativa que defende a sus-


pensão do juízo em relação à existência dos critérios de verdade, é
importante exercer certa cautela para evitar cair no niilismo cien-
tífico, em que nada pode ser considerado verdadeiro. Em vez de
questionarmos incessantemente a verdade das coisas, talvez seja
mais interessante e produtivo focarmos na validade dessas coisas.
Podemos realizar testes e análises por meio do empirismo ou do
racionalismo, discutindo a validade dos fundamentos e das pre-
missas, em vez de nos apegarmos apenas ao critério de verdade.

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Dessa forma, ao adotarmos uma abordagem que privilegie a
validade, podemos avaliar a solidez dos argumentos e evidências
que sustentam determinadas afirmações. Essa perspectiva nos
permite examinar a coerência lógica, a consistência empírica e
a razoabilidade dos fundamentos, buscando um embasamento
mais sólido para nossos conhecimentos.
Ao nos concentrarmos na validade, estamos preocupados em
examinar a adequação das informações disponíveis e a capacidade
de sustentarmos nossas crenças. Isso nos afasta do extremo de
negar a existência de qualquer verdade e nos direciona para um
caminho mais rico de investigação e análise crítica.
Assim, em vez de nos fixarmos apenas no critério de ver-
dade, exploramos a validade das ideias, o que nos permite avan-
çarmos na compreensão do mundo ao questionar e testar os
fundamentos que sustentam nosso conhecimento.

5.1 Como devemos medir?

Podemos começar explorando os métodos de mensuração e


quantificação. Um dos primeiros passos nesse processo é a conta-
gem, que é algo intuitivo e presente em diversas situações. Uma
criança conta quantos dedos possui em suas mãos, ou quantos
anos tem: 5 anos, 4 anos, e assim por diante. Um náufrago conta
quantos dias passou preso em uma ilha deserta. Um pastor conta
o número de ovelhas em seu rebanho.
A contagem é uma forma básica e universal de mensura-
ção, permitindo-nos atribuir números a objetos, quantidades e
eventos. É um meio fundamental para compreender e expressar
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 79

a quantidade de algo presente em nosso mundo. Desde os primei-


ros estágios do desenvolvimento humano, a contagem nos ajuda
a organizarmos e compreendermos o ambiente ao nosso redor.
Esses exemplos ilustram como a contagem está presente em dife-
rentes contextos e situações, demonstrando sua importância na
mensuração. Através desse processo, somos capazes de atribuir
valores numéricos e quantitativos às coisas, o que nos possibilita
compreender e comunicar informações sobre a quantidade e a
extensão de diversos fenômenos. Assim, a contagem é um dos
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primeiros passos na jornada de quantificar e mensurar o mundo


ao nosso redor, permitindo-nos explorar e compreender diferentes
dimensões e aspectos da realidade.
Vamos explorar um paradoxo interessante relacionado à
contagem e à medida; podemos chamá-lo de paradoxo discreto
e contínuo. A contagem é uma forma discreta de quantificar, na
qual podemos contar objetos individualmente, como duas bola-
chas ou seis balas de goma; por outro lado, a medida é uma forma
contínua de quantificar, que não envolve a contagem exata. No
entanto, medir algo de forma contínua não é tão simples quanto
contar; por exemplo, peso e temperatura são grandezas que não
podem ser contadas diretamente, no entanto podemos perceber
o peso e a temperatura de forma qualitativa: podemos pegar um
objeto e dizer se ele é pesado ou leve, se algo está quente ou frio.
Nesse sentido, temos um universo que pode ser contado, como o
número de balas ou biscoitos, mas também temos grandezas que
não podem ser contadas individualmente. Em vez disso, usamos
termos qualitativos para expressar a medida, como dizer que uma
cadeira “está pesada”. Esse paradoxo nos leva a refletir sobre a
natureza da quantificação e como diferentes objetos e proprieda-
des podem ser quantificados de maneiras distintas.
A quantificação das propriedades de um objeto é uma abs-
tração que nos permite compreender seus atributos. Quando que-
remos quantificar a temperatura ou o peso, parece que estamos
realizando um processo artificial. Intuitivamente, ao pegarmos
uma cadeira, percebemos apenas se ela é pesada ou leve, sem
atribuir um valor numérico, como “três quilos”; essa forma de
quantificação parece ser uma tentativa artificial de expressar que
80

uma cadeira é mais pesada do que outra, atribuindo valores como


três quilos, dois quilos, um quilo e assim por diante. Aristóteles
acreditava que a matemática deveria atuar somente após a per-
cepção qualitativa por meio dos nossos sentidos, baseada em
contradições como quente e frio, leve e pesado. Esses fenômenos
qualitativos, quando abordados quantitativamente, são conside-
rados condições, não coleções.
Vamos, agora, considerar o comprimento de uma lança como
exemplo. Podemos utilizar os pés para quantificar o tamanho

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da lança, mas como faremos isso? Parece mágico pensar em
medir o calor. O calor não pode ser medido em pés. Quantos
pés tem um calor? E o mesmo acontece com aceleração e velo-
cidade. Medir esses fenômenos é desafiador. No caso da lança,
nos afastamos um pouco do objeto; mas o que estamos realmente
interessados é no tamanho da lança, não em pés. Portanto, toda
vez que estabelecemos uma relação entre uma lança e outra, não
estamos falando da lança em si, mas da relação entre os pés de
cada lança. Estamos falando da relação entre um pé e outro pé.
Ao medirmos as coisas, nos afastamos delas e procuramos algo
que possamos medir, algo que não é o próprio objeto, mas uma
relação com esse objeto. No entanto, devemos questionar se o
afastamento do objeto poderia distorcer nossas conclusões, uma
vez que passamos a baseá-las em relações entre os atributos dos
objetos, em vez de nos objetos em si.
Estamos lidando com a medição de relações entre predica-
dos, que aplicamos de forma arbitrária às coisas; e utilizamos leis
numéricas para estabelecer essas relações. Surge, então, a pergunta:
será que a natureza e a ciência sempre seguem a lei dos números?
Vocês estão compreendendo o que eu quero dizer com isso?
Quando questionamos se a natureza sempre obedece à lei dos
números, devemos considerar que os números foram inventados
pelo ser humano e não pela natureza. Portanto, estamos apli-
cando os números aos fenômenos externos, à natureza, tentando
vesti-la com uma vestimenta que reconhecemos. Nesse sentido,
colocamos em dúvida o critério de verdade. Será que, quando
introduzimos algo na natureza, isso automaticamente se torna
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 81

verdadeiro? Ou será que devemos adotar uma postura mais cética


e suspender nosso juízo sobre a verdade das coisas?
O que estamos medindo são predicados das coisas, mas
nunca será a própria essência das coisas. É importante estar
ciente desse dilema, e acompanhá-lo. Estamos discutindo algo
que nunca será a coisa em si, mas, sim, uma construção nossa.
O desejo de medir – não apenas o tamanho, mas também calor,
peso – não poderia abrir espaço para medir outras qualidades,
como a virtude, a graça, o amor, a honestidade? Se posso medir
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tudo, já que medir é falar sobre algo, então parece que qualquer
coisa sobre a qual posso falar é passível de medição. A princípio,
pensamos dessa forma. É claro que teremos medidas, como, por
exemplo, a dor: ela não será tão objetiva quanto a altura. Mas o
fato de a dor ser subjetiva e autorreferente não significa que ela
não possa ser medida. A cor da pele também é autorreferente,
pois a pessoa descreve a cor que tem. Não podemos deixar de
medir apenas porque não é objetiva; devemos medir cientes de
que é uma medida autorreferente.
Estas são algumas notas conclusivas para refletirmos sobre
este capítulo: como um atributo essencialmente qualitativo se tor-
nou paradoxalmente quantitativo? Como leve e pesado se trans-
formaram em quilogramas? Como quente ou frio se tornaram
graus Celsius? Afinal, o mundo é quantitativo ou qualitativo? O
mundo é contínuo ou discreto?
Como mencionei anteriormente, ao darmos forma à natu-
reza, vestimos ela de acordo com nossas preferências. Estamos
revisando a revolução copernicana da medida, em que a Terra gira
em torno do Sol, e não o contrário. De maneira similar, estamos
fazendo uma analogia com o conhecimento: o objeto não é mais
o centro, mas, sim, o ser humano.
O objeto do conhecimento não é nada se ninguém falar
sobre ele. Existe algo no mundo que existe sem ser mencionado?
Podemos afirmar a existência de algo que não existe? Clara-
mente não. Quando nomeio algo, ele passa a existir. O centro do
conhecimento se torna o ser humano. Assim, é o ser humano que
fornece a forma para que a natureza possa se manifestar. Nesse
sentido, essa forma pode ser qualitativa ou quantitativa. Portanto,
82

a temperatura pode ser quente ou fria, ou pode ser expressa em


50 graus ou 10 graus negativos. O que atribui a qualidade ou a
quantidade às coisas que observamos é a nossa régua. Para tudo
no mundo, há uma régua. Pois, desde o momento em que nos
propomos a falar sobre algo, a própria nomeação da coisa, que
é uma relação de identidade, já contém uma medida embutida
sobre o que desejamos abordar.
O mundo é tanto quantitativo quanto qualitativo, depen-
dendo do nosso estado de espírito. A princípio, poderíamos afir-

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mar que ele é contínuo; em outras palavras, ele é quantitativo,
pois, embora nossos olhos percebam apenas qualidades, como
o céu sendo azul, cinza ou uma tonalidade intermediária, eles
não captam a quantidade de pixels no céu. No entanto, surge
outra questão: será que a natureza se manifesta em pixels ou em
qualidades? Ao quantificarmos, buscamos apenas determinar se
um elemento é mais ou menos pesado, ou diferente, a fim de
estabelecermos relações. Assim, a codificação é uma estratégia
para aprimorarmos nossos sentidos; e criada pelo homem, não
pela natureza.
Então, será que o homem captou a essência da natureza ao
considerá-la como contínua, ou apenas encobriu sua natureza
intrinsecamente qualitativa? São questões que vamos explorar nos
próximos capítulos para discernirmos se o que estamos fazendo é
mais benéfico em termos qualitativos ou quantitativos. Portanto,
é prudente desconfiar dos números, inicialmente porque podem
ser manipulados, envoltos em obscuridade.
Vamos sempre utilizar algum tipo de conceito para ten-
tar compreender os fenômenos, pois não temos acesso direto à
essência das coisas. É como se os fenômenos estivessem sempre
vestidos; nunca os vemos em sua nudez. Essa é uma interes-
sante contradição. Não temos acesso à coisa em si, pois tudo o
que vemos é mediado pela nossa percepção. Qualquer coisa que
observamos é vista por nós e para nós, e não é uma representação
completa da própria coisa. Portanto, nunca saberemos o que a
coisa é em sua totalidade. Esse fato pode ser um tanto desani-
mador, pois nos impede de acessar a essência das coisas; mas
ainda temos acesso aos predicados, ou seja, às características e
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 83

qualidades observáveis. Ao conhecermos uma pessoa, por exem-


plo, não conseguimos conhecer sua alma em si; somente podemos
atribuir qualidades ou quantidades à sua alma. A essência oculta
por trás dos predicados não nos é acessível, pois, ao tentarmos
conhecer essa essência, estamos atribuindo qualidades e medidas
a ela. Como, então, poderíamos falar da essência de uma alma?
Neste livro, iremos explorar os atributos dos dados, ou
seja, os predicados que eles apresentam. Vamos considerar, por
exemplo, o fenômeno da violência obstétrica. Embora eu não
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possa conhecer a essência da violência em si, posso identificar


suas características observáveis. Os dados apresentarão variáveis
que serão interpretadas de forma qualitativa ou quantitativa. Por
exemplo, posso constatar que a incidência de violência obstétrica
é cinco vezes maior entre mulheres negras em comparação com
mulheres brancas. Dessa forma, posso falar sobre a intensidade e
a gravidade dessa violência por meio de medições quantitativas.
84

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WITTGENSTEIN, L. Da certeza. Trad. Maria Elisa Costa. Lis-

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boa: 70, 1969.
CAPÍTULO 6
A MEDIDA DO MUNDO
Como discutido anteriormente, a percepção que temos das
coisas nem sempre corresponde à sua realidade objetiva, pois nos-
sas experiências podem ser influenciadas pelo estado de vigília,
bem como por estados de sono, imaginação ou alucinação. Nesse
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sentido, Descartes (2000), em sua obra Meditações Metafísicas,


realiza uma reflexão profunda sobre a natureza do conhecimento.
Descartes, por meio de seu racionalismo, adota uma pos-
tura de suspensão do juízo sobre todos os conhecimentos que
havia adquirido ao longo da vida, inclusive quanto à própria
existência e à existência das coisas externas a ele. Essa atitude de
dúvida metódica permite a ele estabelecer uma base sólida para
a construção de seu sistema epistemológico, que abrange tanto
as entidades corpóreas quanto as espirituais. Ao utilizar a razão
como guia, Descartes busca alcançar uma clareza e uma distinção
inabaláveis em relação ao conhecimento.
A investigação dos frutos de nossas percepções, conhecida
como empirismo, desempenhou um papel fundamental no avanço
do nosso entendimento sobre as coisas. Ao longo da história,
pensadores como David Hume, Francis Bacon, Immanuel Kant
e o movimento do Empirismo Lógico, representado pelo Círculo
de Viena, contribuíram para a consolidação dessa abordagem. Em
sua essência, o empirismo sustenta que a realidade só pode ser
compreendida por meio da experiência.
Uma ideia expressada por Quine (1975) é particularmente
relevante nesse contexto. Ele argumenta que os enunciados sobre
o mundo exterior devem ser submetidos ao escrutínio do “Tri-
bunal da Experiência Sensível como corpo organizado”. Isso
implica que a validade das afirmações que fazemos sobre a rea-
lidade deve ser confrontada e testada por meio de observação e
experiência empírica.
Essa perspectiva ressalta a importância da evidência con-
creta e da verificação empírica na construção do conhecimento.
86

Segundo essa visão, não podemos simplesmente formular teorias


ou hipóteses sem basearmos nossas afirmações em dados empí-
ricos. A experiência sensível, organizada de forma sistemática,
funciona como um tribunal que julga a validade das afirmações
sobre o mundo exterior.
Essa abordagem epistemológica, que une a experiência à
formulação de conhecimento, desempenha um papel central no
método científico. Através de observação cuidadosa, experimenta-
ção e análise crítica dos resultados, buscamos construir uma com-

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preensão mais precisa e fundamentada do mundo que nos rodeia.
Portanto, a abordagem empirista, em conjunto com o argu-
mento de Quine (1975) sobre o Tribunal da Experiência Sen-
sível, ressalta a importância de fundamentar nossas crenças e
afirmações em evidências empíricas. Ao fazermos isso, podemos
desenvolver um conhecimento mais sólido e confiável sobre a
realidade. Contudo, o que garante o saber (conhecimento) sobre
o que são as coisas é apenas sua percepção sensorial (entendida
tanto racional quanto empiricamente) ou a capacidade dessas
coisas em se submeterem às formas de medida?
Antecipo minha resposta a essa inquietação defendendo que
a mensuração das coisas é uma evidência forte do conhecimento
sobre o que elas são, mais forte que a simples percepção senso-
rial (racional ou empírica). Em outras palavras, não basta sentir,
perceber ou fazer experiências. É necessário medir a experiência,
o sentir, a percepção. Sendo assim: só é possível SABER que
algo é se for possível mensurar esse algo.
A medida ou a mensuração de algo (coisa), independente-
mente de sua natureza física ou metafísica, consiste em uma forte
evidência sobre a possibilidade de conhecermos esse algo; ela nos
confere maior conhecimento desse algo. Neste capítulo, explora-
mos a maneira pela qual as coisas podem ser classificadas para
facilitar sua compreensão por meio de medidas que lhes conferem
significado e nos permitem conhecer suas características. Embora
não afirmemos que a mensuração seja uma condição necessária
e suficiente para a existência das coisas, reconhecemos que a
capacidade de mensurá-las está diretamente relacionada à nossa
possibilidade de conhecimento.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 87

Ao longo do texto, refletimos sobre a importância da men-


suração como uma ferramenta para obter informações significa-
tivas sobre o mundo ao nosso redor. Reconhecemos que, embora
existam aspectos da realidade que podem escapar à mensuração
direta, a busca por mensuração desempenha um papel fundamen-
tal na busca do conhecimento. Por fim, chegamos à conclusão
de que o esforço de compreender algo que não pode ser medido
acaba se mostrando estéril. Isso não significa que a mensuração
seja o único caminho para o conhecimento, mas reconhecemos
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que ela desempenha um papel essencial na nossa capacidade de


interpretar e compreender as coisas ao nosso redor.
Ao adotarmos uma abordagem que valoriza a mensuração,
somos capazes de acessar informações mais concretas e objetivas,
permitindo-nos construir um conhecimento mais fundamentado e
significativo. No entanto, reconhecemos a importância de manter
uma mente aberta para aquilo que transcende a mensuração, pois
há aspectos da existência que podem resistir à quantificação, mas
que ainda merecem nossa atenção e apreciação.

6.1 Medidas do mundo

Embora as medidas sejam uma forma de formalizar nossa


percepção sensorial, é importante destacar que existe uma lógica
por trás desse processo, especialmente por meio das definições
dos objetos a serem mensurados. Resumidamente, a maneira
como medimos os acidentes ou predicados das coisas fortalece
nosso conhecimento sobre sua natureza. Podemos falar sobre o
mundo, mas a forma como o fazemos está intrinsecamente ligada
à forma como o medimos. O mundo assume a forma de suas
medidas. Mas como podemos medir o mundo?
Campbell (2000) levanta a reflexão de que nem todos os
predicados das coisas podem ser medidos quantitativamente.
Existem outras propriedades que não se submetem à lei dos núme-
ros. Essas propriedades são qualidades e não quantidades. Para
ilustrar esse ponto, ele usa o exemplo de dois sacos de batatas
do mesmo tipo, com as mesmas medidas quantitativas de peso
e preço (adequadas para o cozimento): quando esses dois sacos
88

são combinados em um único saco, suas medidas quantitativas


mudam (o saco se torna mais pesado e mais caro), mas sua qua-
lidade permanece a mesma (ainda são batatas do mesmo tipo,
adequadas para o cozimento).
A medição do mundo e das coisas depende da definição do
tipo de coisa que desejamos medir, mais especificamente do tipo
de atributo ou propriedade da coisa que queremos quantificar.
Todas as coisas no mundo possuem atributos ou variáveis, que
podemos chamar de predicados, que variam de uma coisa para

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outra, sem comprometer sua identidade como substância. Essas
variáveis podem ser fundamentalmente divididas em dois tipos:
variáveis qualitativas e variáveis quantitativas.
Quando se fala em pesquisa qualitativa, estão se referindo
a uma abordagem de pesquisa que envolve observação, regis-
tro, gravação de campo, entrevistas abertas, transcrição de falas,
análise do discurso, análise de conteúdo e análise documental.
Nesse caso, não há preocupação em fazer descrições quantita-
tivas. Podem-se realizar descrições quantitativas para ter uma
noção do perfil dos participantes, por exemplo, mas o foco prin-
cipal não é realizar análises métricas. A abordagem qualitativa
tem uma perspectiva discursiva, narrativa e subjetiva. Por outro
lado, a pesquisa quantitativa envolve a coleta de dados em uma
amostra da população ou através de um censo, e tem interesse em
quantificar e utilizar várias métricas. Dentro da pesquisa quanti-
tativa, é possível ter tanto quantidades quantitativas quanto quan-
tidades qualitativas, mas isso é diferente da pesquisa qualitativa.
As quantidades qualitativas contam o número de qualidades. Por
exemplo, no caso do estado civil, é uma qualidade e pode-se
quantificar quantos por cento estão casados ou solteiros; isso
envolve a quantificação de uma variável qualitativa. Por outro
lado, a idade é uma variável quantitativa em si; então, pode-se
quantificar a própria quantidade, com média de idade, mediana e
desvio padrão – portanto, é importante ter essa distinção.
É necessário abordar a diferença entre média, moda e
mediana. Essa distinção está relacionada ao tipo de medida
estatística que cada uma representa e como elas descrevem um
conjunto de dados.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 89

Quadro 1 – Quadro-resumo dos conceitos


de “média”, “moda” e “mediana”
Média

É uma medida de tendência central para variáveis quantitativas que representa o valor médio
de um conjunto de dados. É calculada somando-se todos os valores e dividindo o resultado pelo
número total de observações. A média é sensível a valores extremos, pois leva em consideração
todos os dados. É representada pelo símbolo “μ” (média populacional) ou “x̄ ” (média amostral).

Moda
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É o valor que ocorre com maior frequência em um conjunto de dados. Em outras palavras, é o
valor mais comum. Um conjunto de dados pode ter uma moda (unimodal), duas modas (bimodal)
ou mais de duas modas (multimodal). A moda é útil para identificar padrões de ocorrência e
pode ser aplicada a dados qualitativos e quantitativos.

Mediana

É um valor que divide o conjunto de dados em duas partes iguais, quando os dados estão
ordenados em ordem crescente ou decrescente. Se houver um número ímpar de observações,
a mediana é o valor do meio; se houver um número par de observações, a mediana é calculada
como a média dos dois valores do meio. A mediana é uma medida robusta, não afetada por
valores extremos, e é aplicada aos dados quantitativos.
Fonte: elaboração própria.

Em resumo, a média representa o valor médio de um con-


junto de dados, a moda representa o valor mais comum e a
mediana representa o valor que divide o conjunto de dados em
duas partes iguais. Cada uma dessas medidas fornece uma pers-
pectiva diferente sobre os dados e é útil em diferentes contextos
de análise estatística.
Conforme a análise dos dados se complexifica, torna-se mais
interessante utilizar a estatística de maneira mais criteriosa e com
uma abordagem mais detalhada. Dessa forma, torna-se possível
analisar os dados com propriedade e obter insights além do que
é visível. A estatística permite explorar questões de forma mais
aprofundada. Ora, é importante fazer a distinção entre pesquisa
qualitativa e pesquisa quantitativa, bem como entender a natureza
das variáveis envolvidas em cada abordagem.
As variáveis qualitativas podem ser classificadas em dois
tipos: nominais e ordinais, representando diferentes qualidades
das coisas. As variáveis nominais estão relacionadas aos nomes
90

desses predicados. Por exemplo, as cores das coisas são variáveis


nominais. Um ser humano pode ser identificado como branco,
indígena ou negro, ou pode ter o gênero masculino ou feminino,
entre outras características; essas qualidades se distinguem apenas
pelos seus nomes, sem haver uma disputa de ordem ou intensi-
dade entre elas.
Por outro lado, as variáveis qualitativas ordinais estabelecem
uma ordem entre seus valores. Por exemplo, a estatura de um
ser humano pode ser classificada como baixa, média ou alta. No

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entanto, essas qualidades não são apenas nomes, elas possuem
uma ordem específica. Sabemos que a estatura baixa vem antes
da estatura média, que, por sua vez, vem antes da estatura alta,
em uma ordem crescente. No entanto, essa ordem não é encon-
trada em qualidades como gênero ou cor da pele; não podemos
afirmar que uma categoria de cor ou gênero vem antes ou depois
de outra. As variáveis qualitativas também são conhecidas como
categóricas, pois apresentam categorias distintas de qualidades.
As variáveis quantitativas podem ser classificadas em discre-
tas ou contínuas. Ao contrário das qualidades, que nos fornecem
informações sobre as categorias das coisas, as quantidades nos
permitem avaliar a intensidade de um determinado atributo da
substância. Não se trata de uma qualidade da coisa, mas de uma
quantidade. Essa quantidade, quando contada, é considerada dis-
creta; quando medida usando-se instrumentos de medição, como
uma régua, é classificada como contínua.
No caso das quantidades discretas, contamos objetos intei-
ros, sem frações na contagem. Por exemplo, uma pessoa pode ter
cinco dedos ou quatro em uma das mãos, mas nunca 0,38 dedos.
Da mesma forma, alguém pode ter 32 dentes ou 31, mas não 32,74
dentes. Geralmente, essas contagens são resultado direto da con-
tagem de um atributo específico da coisa. Em alguns casos, pode
ser necessário o uso de instrumentos para acessar a contagem,
como um microscópio para contar as células sanguíneas, já que
não conseguimos fazer isso a olho nu.
No caso das variáveis quantitativas contínuas, sempre neces-
sitamos de um instrumento de medida. Nossa capacidade natural
de contar não é capaz de distinguir os intervalos infinitamente
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 91

pequenos entre uma intensidade e outra. Por exemplo, não pode-


mos contar o peso de uma pessoa apenas com nossa percepção;
é necessário o uso de uma balança. Da mesma forma, não con-
seguimos medir a altura de uma pessoa sem o auxílio de uma
fita métrica. A precisão do instrumento de medida determinará a
quantidade contínua do valor medido. Quanto mais preciso for o
instrumento, maior será sua capacidade de medir esse intervalo
contínuo. Dependendo da balança utilizada, podemos medir uma
mesma pessoa como tendo 83,5623 quilogramas ou 83,6 quilogra-
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mas. Essa precisão pode se aproximar do infinito em teoria, uma


vez que, entre 83 e 84 quilogramas, existem infinitos números
possíveis – o mesmo princípio se aplica à medida da altura de
uma pessoa. Sendo assim, todas as coisas no mundo podem ser
classificadas como qualidades ou quantidades em relação aos
seus predicados. As qualidades podem ser nominais ou ordinais,
enquanto as quantidades podem ser discretas ou contínuas.
A forma como medimos as coisas é determinada pela tipo-
logia apresentada por cada coisa em seus predicados/variáveis.
É impossível conhecer algo sem mensurar seus predicados. Toda
coisa possui condições de ser medida, seja qualitativa ou quanti-
tativamente. Ao experienciarmos qualquer coisa, imediatamente
detectamos suas qualidades, como a cor, a forma geométrica, a
quantidade de um determinado atributo ou a mensuração de outro.
Ampliando essa forma de conhecer as coisas, podemos
aplicá-la a aspectos que extrapolam a manifestação física. Por
exemplo, podemos medir sentimentos e virtudes. A dor que uma
pessoa sente pode ser medida em uma escala de zero a dez, seja
por números inteiros (contagem discreta) ou fracionados (medida
contínua). Também podemos descrever se a dor é leve, moderada
ou intensa, como uma variável qualitativa ordinal. A medida da
dor é de extrema importância para o tratamento e controle do
sofrimento humano, tornando a medição das coisas uma prática
utilitária (embora esse tópico não seja explorado aqui).
Se podemos medir a dor, por que não seria possível medir
o amor, o ódio, a honestidade e outras virtudes? O fato de essas
características não possuírem uma expressão objetiva não signi-
fica que devamos renunciar ao seu conhecimento. Trata-se apenas
92

de uma medida autorreferente, referente ao ser humano que a


experiencia. Ora, a cor da pele também é autorreferente e não
deixamos de medi-la por conta de sua natureza subjetiva.

6.2 Antes de medir, deve-se saber o que medir!

Para realizar uma medição, é necessário primeiro determinar


o que será medido. A escolha da coisa a ser medida define a escala
de medição adequada. No entanto, essa abordagem parece impli-

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car uma prova ontológica a priori da existência da coisa, pois,
ao precisarmos usar uma escala apropriada para medir algo, já
estamos pressupondo a existência da coisa que requer essa escala.
Por exemplo, ao medir o peso de um cavalo, precisamos utilizar
uma balança calibrada, com a unidade de medida em quilogramas.
A exigência de uma balança para pesar algo implica a existência
prévia da coisa a ser pesada; afinal, não é possível medir o peso
de algo que não exista para ser pesado.
De fato, mesmo que o cavalo exista independentemente
da presença de uma balança para medi-lo, é provável que haja
outras formas de obtenção de conhecimento sobre sua existência.
Nesse caso, a afirmação sobre o conhecimento de sua existência
dependerá de alguma experiência de mensuração com o cavalo.
A simples afirmação de que o estamos vendo pode nos levar a
cair nas armadilhas dos enganos dos sentidos, como Descartes
(2000) apontou. Qualquer forma de percepção sensorial pode nos
levar ao engano, fazendo-nos pensar que o cavalo pode existir
apenas em um sonho, não na realidade.
No entanto, podemos argumentar que as formas de medi-
ção dependem dos nossos sentidos. Por exemplo, posso pensar
que estou pesando um cavalo quando, na verdade, estou apenas
sonhando que estou pesando um cavalo, e o valor de peso que
vejo na balança depende do meu sentido visual, que é passível de
erros. No entanto, não posso negar que tenho consciência de que
o cavalo está passando por uma determinada medição, o que me
confere um maior conhecimento sobre um de seus atributos – no
caso, seu peso. Sendo assim, mesmo sem disputar a existência do
cavalo, não posso negar que passo a conhecê-lo apenas quando
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 93

utilizo formas de mensuração. Mesmo sem conferir algum esta-


tuto ontológico ao cavalo pelas suas medidas, poderia, de modo a
posteriori, chegar ao seu conhecimento pensando nas exigências
de instrumentos que fazem com que eu o conheça. Eu sei algo
sobre o cavalo porque eu o medi com algum instrumento que me
permitiu conhecê-lo.
A corrente filosófica conhecida como instrumentalismo
defende que as teorias científicas são meros instrumentos para
descrever os fenômenos observados, mas não refletem a reali-
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dade do mundo. Essa abordagem nos leva a aderir ao idealismo


dos fenômenos, sem questionar seu realismo. No entanto, minha
perspectiva difere desse ponto de vista, pois argumento que os
instrumentos de medida que sustentam as teorias científicas são,
eles próprios, expressões do mundo real. Como podemos com-
preender o encaixe do mundo real ou, utilizando o pensamento
aristotélico, como o mundo real pode ser comunicado pela lingua-
gem das medidas? Essa abordagem reflete o realismo que pode
ser alcançado por meio de uma abordagem idealista instrumental.
Resumidamente, ao conhecermos algo sem recorrermos à
medida (seja qualitativa ou quantitativa), perdemos a oportuni-
dade de obter um maior entendimento sobre o objeto. Ficamos
privados dos benefícios enriquecedores que a experiência mensu-
rada nos oferece. Nesse caso, mergulhamos no vazio dogmático
de teorias hipotéticas cujas bases são tão frágeis quanto plumas
ao vento, esperando serem levadas aleatoriamente para qualquer
lugar ao sabor dos caprichos do destino.
94

REFERÊNCIA
CAMPBELL, N. R. Measurement. In: NEWMAN, J. The world
of mathematics. v. 3. Mineola: Dove Publications, 2000. p.
1797-1831.

DESCARTES, R. Meditações Metafísicas. São Paulo: Martins


Fontes, 2000.

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PEREIRA, J. C. R. Análise de dados qualitativos: estratégias
metodológicas para as ciências da saúde, humanas e sociais. 2.
ed. São Paulo: Edusp, 1999.

QUINE, W. V. O. Os dois dogmas do empirismo. In: RYLE, G. et


al. Ensaios. São Paulo: Abril Cultural e Industrial, 1975. Coleção
os Pensadores, v. LII. p. 237- 254.
CAPÍTULO 7
DEFINIÇÃO DE “QUANTITATIVO”
E “QUALITATIVO” NOS
ESTUDOS QUANTITATIVOS
Vamos considerar as figuras geométricas como exemplo.
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Podemos contar o número de volumes de quadrados – um volume,


dois volumes, três volumes, etc. –, o que representa uma medida
discreta. Além disso, podemos realizar medições das áreas desses
quadrados em metros quadrados, o que representa uma forma
contínua de mensurar a área das figuras. A medição é precisa e
captura a precisão da medida, sendo que teoricamente podemos
ter um número infinito de casas decimais de precisão, dependendo
do instrumento de medida utilizado.
Outra forma de distinguir as variáveis é através da qualita-
tiva nominal, em que podemos apenas dizer se algo é igual ou
diferente de outra coisa, se é masculino ou feminino, se é oval
ou quadrado, se é olho castanho ou azul. Na qualitativa ordinal,
além de igual ou diferente, podemos estabelecer uma relação
de ordem, como maior ou menor. Nesse caso, há uma sensação
de magnitude ou ordem, em que algo pode ser considerado de
baixo para cima, grave, muito bom, ruim, leve, moderado, entre
outras mensurações.
Já as variáveis quantitativas podem abranger todas as pos-
sibilidades. Podemos dizer se 1,50 metro é diferente de 1,70
metro, podemos afirmar que 1,70 metro é maior que 1,50 metro
e também quantificar a diferença entre as duas medidas, ou seja,
em quanto 1,70 metro é maior que 1,50 metro.

7.1 O banco de dados

Ao lidar com bancos de dados, é comum encontrar uma


formatação em que as variáveis são representadas apenas por
96

números. Nas variáveis quantitativas, os números são autoexpli-


cativos; por exemplo, se uma pessoa tem 30 anos, o número 30
representa diretamente o valor da variável “idade” para aquela
pessoa – esse valor não possui um significado além de si mesmo.
No entanto, quando um número possui um significado espe-
cífico, ele passa a representar uma categoria, ou seja, uma variá-
vel qualitativa. Por exemplo, em uma variável que representa o
sexo, poderíamos atribuir o número 1 para masculino e o número
2 para feminino. No entanto, isso não implica que a categoria

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feminina seja duas vezes maior que a categoria masculina. Os
números servem apenas como códigos para representar as dife-
rentes categorias, e não possuem uma relação de magnitude ou
proporcionalidade entre si.
Por outro lado, na variável idade, o valor numérico em si
não possui um significado específico além de representar a idade
da pessoa. Por exemplo, o número 35 representa simplesmente
a idade de 35 anos e não está relacionado a algum código, nome
ou qualidade específica.
Uma vez que tenhamos observado as variáveis em nosso
banco de dados, é necessário sintetizar essas informações de
forma organizada. Normalmente, utilizamos tabelas e gráficos
para esse fim. Vamos considerar um exemplo hipotético de um
banco de dados com as variáveis sexo, idade, escolaridade e salá-
rio, conforme apresentado na tabela 1, que contém uma amostra
de 15 pessoas.

Tabela 1 – Base de dados hipotética


Sexo Idade Escolaridade Salário
2 52 7 3.003
2 46 8 7.240
1 46 7 3.333
2 24 8 4.900
1 30 9 12.800
1 31 4 1.200
1 52 7 2.800
continua...
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 97

continuação
Sexo Idade Escolaridade Salário
2 22 6 2.810
1 19 2 2.002
2 30 8 5.820
1 80 1 1.320
2 44 7 4.003
2 68 2 3.203
2 50 9 9.340
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1 30 8 4.520
Fonte: elaboração própria.

O primeiro passo é criar um dicionário de variáveis, como


mostrado no quadro 1. Por exemplo, a primeira pessoa do banco
de dados possui o código de sexo “2”. Para determinar o signi-
ficado desse código, consultamos o dicionário de variáveis, que
nos informa que sexo é uma variável qualitativa nominal, em que
“1” representa masculino e “2” representa feminino. Nesse caso,
a primeira pessoa é do sexo feminino.

Quadro 1 – Dicionário de variáveis


Nome da Significado Tipo de medida ou Significado dos valores
variável do nome tipo de variável que assume
1. Masculino;
V1 Sexo Qualitativa nominal
2. Feminino;

V2 Idade em anos Quantitativa discreta Contagem de anos completos.

1. Analfabeto;
2. Lê e escreve;
3. Ensino fundamental incompleto;
4. Ensino fundamental completo;
5. Ensino médio incompleto;
V3 Escolaridade Qualitativa ordinal
6. Ensino médio completo;
7. Ensino superior incompleto;
8. Ensino superior completo;
9. Acima do ensino superior
completo.

V4 Salário Quantitativa discreta Contagem de reais.


Fonte: elaboração própria.
98

Em relação à idade, a primeira pessoa tem 52 anos. A variá-


vel idade é considerada quantitativa discreta, medida em anos
completos. O salário é de R$ 3003,20: uma variável quantitativa
contínua, com casas decimais. Na escolaridade, o sujeito está
cursando o ensino superior (tem ensino superior incompleto),
que, nesse caso, é uma variável qualitativa ordinal.
Essas informações podem ser apresentadas para cada
pessoa individualmente, mas, quando lidamos com um banco
de dados maior, com diversas variáveis e uma amostra maior,

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torna-se exaustivo e pouco informativo apresentar cada dado
de forma detalhada. Portanto, é necessário fazer um resumo
dessas informações.
O resumo das variáveis qualitativas é mais simples. Por
exemplo, considerando a variável sexo, temos duas opções:
masculino e feminino. Podemos contar quantos indivíduos são
classificados em cada categoria; no exemplo, temos sete homens
e oito mulheres, totalizando 15 pessoas. Podemos expressar essa
informação por meio da frequência absoluta, ou seja, o número de
ocorrências de cada categoria (masculino: 7; feminino: 8; total:
15). Além disso, é útil calcular a frequência relativa, que repre-
senta a proporção de cada categoria em relação ao total. No caso,
temos 47% de homens (7 em 15) e 53% de mulheres (8 em 15),
sendo a soma sempre igual a 100%.

Tabela 2 – Distribuição da frequência de sexo no grupo estudado


Sexo n %

Masculino 7 47%

Feminino 8 53%

Total 15 100%

Fonte: elaboração própria.

Esses são alguns exemplos de como resumir as informa-


ções do banco de dados de modo mais simplificado e informa-
tivo, principalmente quando lidamos com uma amostra maior
e diversas variáveis.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 99

Outra forma de visualizar as variáveis qualitativas é por


meio de gráficos de barras. Nesses gráficos, podemos representar
tanto a frequência absoluta quanto a frequência relativa. A altura
de cada barra é determinada pela quantidade de ocorrências na
categoria em questão. Por exemplo, se a categoria “masculino”
possui sete pessoas, a barra correspondente terá altura igual a
7, enquanto a categoria “feminino” terá uma barra de altura 8,
conforme demonstrado na gráfico 1.
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Gráfico 1 – Variável sexo em um gráfico de barras

8
7
6
5
4
3
2
1
MASCULINO FEMININO
MASCULINO FEMININO

Fonte: elaboração própria.

Ao lidar com bancos de dados que possuem várias categorias


em uma variável qualitativa, é importante determinar a quantidade
total de categorias. Em alguns casos, os bancos de dados podem
conter inúmeras categorias, especialmente quando as perguntas
são abertas (e não fechadas). Isso pode resultar em uma grande
quantidade de informações, com uma variável podendo ter até
30 categorias diferentes. Nesses casos, apresentar todas as cate-
gorias individualmente pode se tornar exaustivo e dificultar a
interpretação dos gráficos.
Uma abordagem recomendada é agrupar as categorias em um
número menor de grupos, de forma a evitar gráficos muito exten-
sos. Para isso, é necessário realizar a recategorização conforme
exemplificado no quadro 2. Essa estratégia permite simplificar a
visualização das informações, evitando gráficos excessivamente
grandes, tornando-os mais acessíveis e compreensíveis.
100

Quadro 2 – Recategorizando a variável escolaridade


Variável inicial Variável recategorizada
Analfabeto Analfabeto
Lê e escreve Alfabetizado
Ensino fundamental completo
Ensino fundamental
Ensino fundamental incompleto
Ensino médio completo
Ensino médio
Ensino médio incompleto
Ensino superior completo
Ensino superior
Ensino superior incompleto

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Especialização
Mestrado
Pós-graduação
Doutorado
Pós-doutorado
Fonte: elaboração própria.

No entanto, ao lidarmos com variáveis quantitativas, depa-


ramo-nos com uma questão um pouco mais complexa: dife-
rentemente da variável qualitativa, em que cada observação se
enquadra em uma categoria específica (por exemplo, masculino
ou feminino), nas variáveis quantitativas, cada indivíduo possui
uma medida única. Por exemplo, ao considerarmos a variável
salário, podemos ter remunerações diferentes, pois a moeda pode
assumir mil valores diferentes. Seria impraticável e pouco infor-
mativo contar quantas pessoas possuem salário específico – como
R$ 5820,63 ou R$ 5820,40, por exemplo –, pois provavelmente
teríamos apenas uma pessoa em cada caso. Nesse sentido, des-
crever a frequência relativa de cada valor de salário resultaria em
uma tabela com mil linhas, o que não seria significativo e não
forneceria uma síntese útil dos dados. Portanto, surge a pergunta:
qual é a opção viável para descrever variáveis quantitativas por
meio de tabelas de frequência?
Uma opção recomendada é agrupar os valores em interva-
los ou classes. Por exemplo, em vez de apresentar cada salário
individualmente, podemos criar intervalos de salário: R$ 0,00 a
R$ 1320,00; R$ 1320,01 a R$ 2640,00; e assim por diante. Dessa
forma, podemos contar quantas pessoas estão dentro de cada inter-
valo e representar essas frequências em uma tabela de frequência
agrupada. Essa abordagem permite uma descrição mais resumida
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 101

e compreensível dos dados, ao mesmo tempo que mantém a infor-


mação relevante sobre a distribuição dos salários na amostra.

Quadro 3 – Agrupamento de valores em intervalos ou classes

Salário Faixa De Salário Classificação


3003 Menos que 1 salário-mínimo
0l-- 1320
7240
3333 De 1 até menos de 2 salários-mínimos
1320l-- 2640
4900
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12800 De 2 até menos de 3 salários-mínimos


2640l-- 3960
1200
2800
2810
2002
 3960l-- 6600

Acima ou igual a 6600l--


De 2 até menos de 5 salários-mínimos

5 salários-mínimos ou mais
5820
1320
4003 O lado fechado da barra indica a inclusão do valor que se inicia
3203 (l--). O contrário também se aplica: --l. Apenas traços indicam
9340 que o intervalo é aberto (--) e nenhum dos extremos é incluso.
4520
Fonte: elaboração própria.

Quando se trata da construção de gráficos, a escolha ade-


quada depende da natureza da variável em questão, ou seja, se
ela é quantitativa ou qualitativa. Por exemplo, é mais apropriado
utilizar um gráfico de pizza para representar uma variável quali-
tativa ou uma variável quantitativa?
O gráfico de pizza é mais indicado, primariamente, para
variáveis qualitativas, como sexo ou cor da pele (cada fatia da
pizza representa uma categoria específica). Alternativamente, o
gráfico de barras também pode ser utilizado.

Gráfico 2 – Gráfico de pizza na variável sexo no grupo estudado

SEXO

MASCULINO FEMININO

Fonte: elaboração própria.


102

No entanto, tentar representar uma variável quantitativa,


como a idade, por meio de um gráfico de pizza pode se tornar
complicado devido à quantidade de categorias possíveis. Por
exemplo, se tivermos mil pessoas com idades variando de 1 a
100 anos, teríamos 100 fatias, o que dificulta a síntese dos dados.
Nesse caso, uma abordagem mais adequada seria utilizar
um gráfico de barras especializado, conhecido como histograma.
Nesse tipo de gráfico, as barras são dispostas de forma contígua
para representar a continuidade das faixas de idade. Dessa forma,

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é possível visualizar a distribuição dos dados quantitativos de
maneira mais eficiente.

Gráfico 3 – Histograma da distribuição de frequência


de idade em anos completos no grupo estudado

3
Frequência

0
0 10 20 30 40 50 60 70 80 90 100
Idade

Fonte: elaboração própria.

Portanto, a escolha adequada entre gráfico de pizza ou grá-


fico de barras depende da natureza da variável e da informação
que se deseja transmitir. É importante considerar as características
dos dados, a fim de selecionar o tipo de gráfico mais apropriado
para representá-los de forma clara e eficiente.
CAPÍTULO 8
A CLASSIFICAÇÃO DE
VARIÁVEIS QUANTITATIVAS
E QUALITATIVAS COM
EXEMPLOS PRÁTICOS
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Aqui podemos observar uma lista de pacientes, totalizando


30 indivíduos, e as variáveis relacionadas a eles. Um banco de
dados geralmente é organizado da mesma forma, como ilus-
trado na tabela 1 Nas colunas, temos as diferentes variáveis; nas
linhas, as pessoas correspondentes. Se estivéssemos realizando
um estudo ecológico, por exemplo, as colunas representariam
as variáveis dos municípios – renda média, população, IDH e
proporção de fumantes –, enquanto as linhas seriam os diferen-
tes municípios.

Tabela 1 – Dados dos pacientes na emergência de um hospital geral


Paciente Tratamento Idade Sexo Parâmetro Peso
1 1 59 2 4 56
2 1 74 1 3 67
3 2 58 1 2 68
4 2 59 1 2 65
5 1 62 1 1 61
6 1 76 1 4 66
7 2 71 1 4 90
8 2 56 1 4 57
9 2 57 2 4 89
10 2 41 1 1 52
11 2 56 2 2 65
12 1 76 2 3 62
13 1 75 1 1 75
14 1 68 2 3 76
15 1 89 2 3 72
16 1 74 1 3 82
17 1 68 1 1 65
continua...
104
continuação
Paciente Tratamento Idade Sexo Parâmetro Peso
18 1 94 2 1 50
19 1 87 2 2 49
20 1 93 2 4 98
21 2 56 2 4 105
22 2 21 1 4 44
23 2 53 1 4 160
24 2 52 2 2 52
25 2 53 1 3 66

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26 2 44 1 4 98
27 1 69 1 4 75
28 1 82 2 4 74
29 1 98 2 1 65
30 2 76 2 2 63
Tratamento para: Sexo: Parâmetro adotado para avaliação renal:
1. Infarto agudo do 1. Feminino; 1. Ureia;
miocárdio; 2. Masculino. 2. Creatinina;
2. Sepse; 3. Débito urinário;
3. Câncer de pulmão; 4. Ureia + Creatinina + Débito urinário.
4. Hemorragia
digestiva alta;
5. Doenças
respiratórias.
Fonte: elaboração própria.

Independentemente de estarmos lidando com pessoas, muni-


cípios, escolas ou países, cada linha do banco de dados repre-
senta as unidades da nossa amostra e, em cada coluna, temos
as variáveis correspondentes a essas unidades. Na tabela 1, as
colunas representam as variáveis e os pacientes estão represen-
tados nas linhas.
Também existe um dicionário de variáveis que descreve o
significado de cada código quando se trata de variáveis qualitati-
vas. Por exemplo, no caso do tratamento, cada código representa
uma doença específica. O tratamento é uma variável qualitativa,
pois, se fosse quantitativa, não haveria necessidade de códigos.
Em uma variável quantitativa, o número 1 seria simplesmente o
número 1, o número 2 seria o número 2, e assim por diante. No
entanto, no caso do tratamento, utilizamos códigos que corres-
pondem a diferentes doenças.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 105

A variável “tratamento” é considerada qualitativa nominal,


pois não implica uma ordem de gravidade ou crescimento. São
apenas diferentes nomes atribuídos a doenças distintas. Por exem-
plo, uma sepse pode ser muito mais grave do que uma doença
respiratória em determinadas circunstâncias, mas não existe uma
ordem inerente entre elas. No entanto, é importante mencionar
que a existência de uma ordem ou hierarquia entre as catego-
rias pode depender da perspectiva do pesquisador em relação
ao fenômeno estudado. Caso haja evidências claras na literatura
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ou em revisões de que existe uma linearidade entre as doenças,


por exemplo, começando com uma e progredindo para outra,
então a variável “tratamento” poderia ser considerada ordinal; no
entanto, no momento, não possuímos essa informação específica.
Por outro lado, “idade” é uma variável quantitativa; ela é expressa
em números inteiros completos: uma pessoa pode ter 57 anos e,
em seguida, passar a ter 58 anos – não há unidades fracionárias
entre esses valores, apenas anos completos. Podemos contar a
quantidade de anos que uma pessoa tem.
No caso da variável “sexo”, ela é qualitativa. A existência
de um dicionário com códigos para essa variável indica que se
trata de uma variável qualitativa. No entanto, ela é considerada
qualitativa nominal, uma vez que não há uma ordem ou hierarquia
entre as categorias (masculino e feminino).
A variável “parâmetro” é qualitativa nominal. Geralmente,
quando há um dicionário que relaciona o valor “1” a uma palavra,
trata-se de uma variável qualitativa – palavra representa uma
categoria, uma substância ou uma qualidade. Se houvesse uma
relação numérica direta, como “1” sempre sendo igual a 1 e “2”
igual a 2, então seria uma variável quantitativa. No entanto, no
caso da variável “parâmetro”, ela é qualitativa nominal, pois não
possui uma ordem específica.
Quanto à variável “peso”, ela é uma variável quantitativa.
Mesmo que os dados não apresentem casas decimais, a medida do
peso não pode ser contada, mas pode ser medida. Determinar se
é uma variável quantitativa discreta ou contínua é simplesmente
uma questão de verificar se você está medindo algo: por exemplo,
a idade pode ser contada em anos, enquanto o peso não pode ser
106

contado; portanto, o peso é considerado uma variável quantitativa


contínua. Embora os valores estejam arredondados, sabemos que
existem infinitos números entre 60 e 61 kg, porém foram arredon-
dados para caber na coluna. Já a idade é uma variável que está
no limite, pois em anos completos é considerada discreta, mas,
se fosse expressa em meses, dias, minutos, segundos ou centési-
mos, ela se tornaria uma variável fracionada. No caso da idade
em anos completos, estamos contando a idade, não a medindo.
Consideramos a idade como discreta, pois pulamos de um ano

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para o próximo sem levar em conta frações de tempo entre uma
idade e outra. Por outro lado, a estatura e o peso são considerados
contínuos desde o nascimento, pois são abstrações que requerem
instrumentos de medição para serem determinados.
Contudo, a presença de um instrumento de medição nem
sempre indica que a variável é contínua. Por exemplo, posso
utilizar um instrumento para contar o número de hemácias, já que
não é possível contar a olho nu. No entanto, não significa que a
contagem de hemácias seja uma variável contínua apenas pelo
fato de usar-se um instrumento. O instrumento é utilizado para
visualizar e contar as hemácias. A quantidade de hemácias é uma
variável quantitativa discreta, mas o instrumento é necessário para
facilitar a contagem. No entanto, em muitos casos, o uso de um
instrumento está associado a variáveis contínuas.
Agora, considerando o conjunto de variáveis que temos,
com apenas 30 pessoas, não é tão complexo realizar resumos dos
dados. No entanto, em um banco de dados com 100.000 pessoas,
é necessário ter uma forma de resumir os dados. Para as variáveis
qualitativas, é mais simples: basta contar quantas pessoas estão
em cada categoria da variável e criar uma tabela de frequência.
Por exemplo, quantos são homens, quantos são mulheres: quantos
têm o código 1 e quantos têm o código 2. Em seguida, pode-se
calcular a frequência relativa, a frequência absoluta acumulada,
a frequência relativa acumulada, e assim por diante.
No caso das variáveis quantitativas (idade e peso), também é
possível criar uma tabela de frequência, mas é necessário agrupar
os dados em classes e utilizar pontos de corte para determinar em
qual faixa etária cada pessoa se encontra. No caso da estatura,
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 107

também é possível estabelecer pontos de corte, além de calcular


medidas de tendência central e dispersão.
Com relação à mediana da idade, sobre a pergunta de quem
estará entre 15 e 16, considerando que temos 30 pessoas, um
número par, não é possível determinar com base apenas nessa
informação. Seria necessário conhecer os valores específicos de
idade das pessoas para identificar qual delas estará entre 15 e 16
anos. Os sujeitos 15 e 16 estão justamente no meio da amostra,
com 14 pessoas antes e 14 pessoas depois deles. Portanto, tanto
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a mediana quanto a média possuem o mesmo valor: 68.


Agora, vamos calcular a moda para identificar se há algum
valor que se repete com mais frequência. Observamos que exis-
tem duas modas: 56 e 76 – ambas repetindo três vezes. Isso
indica uma distribuição bimodal. A média é calculada somando-
-se todos os valores e dividindo-se o resultado pelo número de
pessoas (66,6).
Como podemos caracterizar essa amostra? A média de idade
é de 66,6 anos e a mediana é 68, o que significa que metade da
amostra tem até 68 anos e a outra metade tem mais que isso.
Portanto, há um número significativo de pessoas idosas, já que
mais da metade delas têm mais de 60 anos. As modas mais fre-
quentes são 56 e 76.
No entanto, percebemos que a média sozinha não fornece
muita informação sobre a homogeneidade dos dados. É impor-
tante analisar se as pessoas estão próximas da média, se há um
grupo homogêneo, ou se há heterogeneidade nos dados. Para
isso, vamos calcular o desvio padrão, pois sabemos que os valo-
res mínimo e máximo (21 e 98) por si só não revelam muito
sobre a dispersão dos dados. Poderíamos ter uma distribuição
em que todos os valores fossem 21 e apenas o último fosse 98,
por exemplo.
Podemos ter uma situação em que a mediana seja baixa e a
média seja alta, o que torna a análise baseada apenas na mediana
ou na amplitude pouco informativa. Vimos que a média é uma
medida de dispersão. No entanto, a amplitude não é suficiente.
Portanto, uma boa medida de dispersão é aquela que avalia a
dispersão individual de cada pessoa de forma resumida. Quando
108

temos um grande número de pessoas, não podemos falar sobre a


dispersão individual de todas elas; precisamos calcular a média
da dispersão. O desvio de cada pessoa em relação à média é
calculado, por exemplo, se uma pessoa está 45,6 anos abaixo da
média. Esse cálculo é realizado para todas as pessoas na amostra.
Todos os indivíduos do grupo fazem parte de um grupo
cuja média é 66,6. Portanto, queremos calcular o desvio de cada
pessoa em relação à média, pois, se o grupo é homogêneo, eles
desviarão muito pouco. Por exemplo, se a média é 66 e todos têm

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66 anos, o desvio é 0 porque é igual à média, ou seja, ninguém
está desviando. No entanto, na realidade, percebemos que as pes-
soas se desviam um pouco mais ou um pouco menos em relação
à média. Por exemplo, uma pessoa pode ter um desvio de -45,6
e assim por diante. Calculamos esses desvios individualmente
para cada pessoa.
Alguns desvios são negativos, como no caso de 68, onde 68
é maior que 66,6, resultando em um desvio positivo. Por exem-
plo, 68 - 66,6 = 1,4 – e assim por diante. Agora, que temos os
desvios individuais, podemos calcular a média desses desvios.
No entanto, ao somarmos esses desvios, teremos um problema:
a soma será igual a zero. Podemos fazer uma analogia com a
situação da cantina, em que eu comi seis brigadeiros e meu colega
não comeu nenhum, então a média foi três: se eu desviei mais
três e ele desviou menos três, quando somarmos os desvios para
calcular a média dos desvios, o resultado será zero (-3 + 3 = 0).
É o mesmo princípio.
Então, o que devemos fazer? Para quem pensou “elevar ao
quadrado”, está correto. Isso mesmo: desvio ao quadrado. Para
isso, vamos calcular o desvio padrão. Mas, como se faz isso?
Iremos elevar ao quadrado cada desvio individual. Faremos isso
para todos os casos, conforme tabela 2; dessa forma, teremos
apenas valores positivos, o que nos permitirá realizar a soma
corretamente. Vamos somar esses valores e obter um resultado
diferente de zero. Podemos dividir essa soma pelo total de pes-
soas, mas lembrando: para calcular a variância, não dividiremos
por N, e sim por N-1. Nesse caso, como temos N = 30, faremos a
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 109

divisão pelo valor de 29. Portanto, a variância será igual à soma


dos desvios ao quadrado dividida por 29.
Agora que encontramos a variância, que é uma medida de
dispersão semelhante ao desvio médio, mas dividida por N-1 em
vez de N, precisamos retornar à sua forma original. Como eleva-
mos os desvios ao quadrado, devemos encontrar uma maneira de
reverter isso. Para isso, usaremos a raiz quadrada da variância,
que chamaremos de desvio padrão. Nesse caso, o desvio padrão
é de 17,15.
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Tabela 2 – Exemplo de cálculo da variância


e desvio padrão para a idade
Paciente Idade Desvio (x) x² Soma de x² 8530,9
Divide-se x² por N - 1
1 59 -7,6 57,3 294,17
(variância)
2 74 7,4 54,8
Raiz quadrada
3 58 -8,6 74,0 da variância é o √294,17
desvio padrão
4 59 -7,6 57,8
5 62 -4,6 21,2 Desvio padrão 17,15
6 76 9,4 88,4
7 71 4,4 19,4
8 56 -10,6 112,4
9 57 -9,6 92,2
10 41 -25,6 655,4
11 56 -10,6 112,4
12 76 9,4 88,4
13 75 8,4 70,6
14 68 1,4 2,0
15 89 22,4 501,8
16 74 7,4 54,8
17 68 1,4 2,0
18 94 27,4 750,8
19 87 20,4 416,2

20 93 26,4 697,0
continua...
110
continuação

Paciente Idade Desvio (x) x² Soma de x² 8530,9


Divide-se x² por N - 1
21 56 -10,6 112,4 294,17
(variância)
22 21 -45,6 2079,4
Raiz quadrada
23 53 -13,6 185,0 da variância é o √294,17
desvio padrão
24 52 -14,6 213,2
25 53 -13,6 185,0 Desvio padrão 17,15
26 44 -22,6 510,8

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27 69 2,4 5,8
28 82 15,4 237,2
29 98 31,4 986,0
30 76 9,4 88,4

Fonte: elaboração própria.

Agora, se quisermos avaliar se o grupo é homogêneo ou


heterogêneo, podemos calcular outra medida: o coeficiente de
variação. Essa medida nos dará uma ideia do desvio em relação à
média. Para calcular o coeficiente de variação, dividimos o desvio
padrão pelo valor da média. No nosso caso, o desvio é 17,15 em
relação à média de 66,6. Portanto, o coeficiente de variação é de
aproximadamente 0,25, que pode ser multiplicado por 100 para
expressar porcentagem. Nesse caso, teremos um coeficiente de
variação de cerca de 25,7%. Isso indica que o grupo tem uma
variação de aproximadamente 25% em torno da média.
Essa informação facilita a comparação da homogeneidade
desse grupo em relação a outro. Podemos fazer o mesmo cálculo
para a estatura e comparar os resultados. O coeficiente de variação
é uma medida que pode ser usada independentemente da unidade
de medida (anos, centímetros, graus Celsius etc.) e nos fornece a
magnitude do desvio padrão em relação à média. Portanto, pode-
mos comparar a homogeneidade do grupo em relação à idade e
à estatura, mesmo que sejam medidas em unidades diferentes. É
interessante calcular o coeficiente de variação.
Lembrando que o coeficiente de variação é uma medida
estatística informativa, mas não possui uma classificação
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 111

específica que determine se os dados são homogêneos ou


heterogêneos. Ele fornece uma informação quantitativa sobre
a dispersão relativa dos dados em relação à média, mas não
estabelece um ponto de corte definido para classificar os dados
como homogêneos ou heterogêneos.
Agora, visualizar a homogeneidade ou heterogeneidade
dentro da variável sem calcular o coeficiente de variação seria
possível apenas em amostras pequenas. Por exemplo, é possível
observar visualmente uma amostra com apenas 10 pessoas; no
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entanto, se tivermos uma amostra com 1.000 pessoas, é impos-


sível fazer essa análise a olho nu. É necessário calcular a média,
o desvio padrão e o coeficiente de variação. Portanto, ao utilizar
o coeficiente de variação, é importante considerar outros fatores,
como o contexto da análise e o conhecimento prévio sobre a
natureza dos dados, para interpretar adequadamente a dispersão
dos valores em relação à média.
Muitos de vocês podem estar se perguntando sobre qual a
diferenciação de moda e frequência, pois é algo que pode trazer
um pouco de confusão. A moda é o valor que ocorre com maior
frequência em um conjunto de dados. Para calcular a moda, é
possível utilizar a frequência absoluta e a frequência relativa.
A frequência absoluta conta o número de ocorrências de cada
categoria, enquanto a frequência relativa calcula a proporção
dessa categoria em relação ao total de observações.
Por exemplo, considerando as categorias branco, preto,
pardo, negro e indígena, podemos contar quantas pessoas se
enquadram em cada categoria. Com base nisso, obtemos a fre-
quência absoluta de cada categoria. Em seguida, dividindo a fre-
quência absoluta pela quantidade total de observações, obtemos a
frequência relativa, que pode ser expressa como um valor decimal
ou em porcentagem.
Ao analisar as frequências relativas, identificamos a catego-
ria com a maior frequência, que é considerada a moda. Na área
quantitativa, a moda também pode ser calculada para valores
numéricos. No entanto, pode haver casos em que não há uma
moda clara, especialmente quando os valores são altamente
112

individuais e não repetitivos. Por exemplo, em uma medição de


peso com alta precisão (várias casas decimais), é improvável que
duas pessoas tenham exatamente o mesmo peso. Portanto, não
haveria uma moda clara nesse caso. No entanto, se a precisão
da medição for menor (uma casa decimal), é possível encontrar
várias pessoas com o mesmo peso, e a moda seria o valor mais
frequente. Em resumo, a moda representa o valor com a maior fre-
quência em um conjunto de dados, e a frequência relativa auxilia
na identificação da moda. É importante entender esses conceitos e

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realizar cálculos manualmente para obter uma compreensão mais
profunda, mas também é possível utilizar software estatístico para
realizar esses cálculos de forma mais automatizada.
Ao lidar com uma variável qualitativa que foi categorizada
como ordinal, é possível gerar a frequência dessa variável. No
entanto, calcular medidas de média e desvio padrão não faz sen-
tido nesse contexto, pois as categorias representam classes e
não quantidades. No caso das variáveis qualitativas, é mais inte-
ressante analisarmos a frequência, uma vez que podemos obter
informações valiosas. Não é necessário marcar essas medidas
de tendência central e dispersão, uma vez que são categorias e
não quantidades. Ao calcularmos a frequência, podemos obser-
var que a faixa etária de 20 a 29 anos possui a maior frequência
relativa e absoluta. Quando temos uma maior quantidade absoluta
de pessoas em uma categoria, isso reflete automaticamente na
frequência relativa.
Além da frequência absoluta, é possível calcular a frequência
relativa acumulada, que consiste na soma das frequências rela-
tivas consecutivas; isso proporciona uma visão interessante dos
dados. Vale ressaltar que, ao trabalhar com esse banco de dados, é
importante distinguir as variáveis qualitativas das variáveis quan-
titativas. Por exemplo, mencionamos anteriormente a variável
raça/cor: podemos analisar a frequência relativa de cada categoria
dessa variável para obter insights adicionais. Para as variáveis
qualitativas, a análise é mais fácil, utilizando-se apenas a tabela
de frequência. Já para as variáveis quantitativas, é mais comum
utilizarem-se medidas como média, mediana, desvio padrão e
moda, além da criação de tabelas de frequência.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 113

Algumas vezes, ao observarmos as distribuições, podemos


notar que elas se assemelham a uma curva normal, com um
início gradual, seguido de um aumento e, posteriormente, uma
diminuição. Se desejarmos, podemos plotar um histograma para
a variável idade, acreditando que se aproximará de uma curva
normal. É possível que não tenhamos a oportunidade de abordar
esse assunto neste livro, mas é importante termos essa noção.
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CAPÍTULO 9
POPULAÇÃO E AMOSTRA EM
ESTUDOS QUANTITATIVOS
Quando buscamos compreender fenômenos universais a par-
tir de observações particulares, seria ideal termos acesso a todos
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os casos particulares possíveis. Essa abordagem é chamada de


“pesquisa censitária”. No caso específico em que consideramos as
pessoas como unidade de observação, denominamos tal pesquisa
de “censo demográfico”.
Na pesquisa censitária, toda a população do universo sele-
cionado é investigada. O universo é definido como o conjunto
de coisas que possuem características semelhantes. Por exemplo,
podemos considerar o universo de hospitais do SUS que realiza-
ram partos na região Nordeste em 2021: a população seria com-
posta por todos os hospitais cadastrados no SUS. Outro exemplo
seria o universo de gestantes que tiveram seus partos realizados
pelo SUS no Brasil em 2021. Nos dois exemplos, o universo e
a população não englobam todos os hospitais que realizaram
partos na região Nordeste, nem todas as gestantes que deram
à luz pelo SUS no Brasil; apenas incluem os hospitais do SUS
do Nordeste e as gestantes que tiveram seus partos pelo SUS no
período mencionado.
Portanto, é equivocado pensar que pesquisas censitárias se
referem apenas a grandes números de pessoas, populações exten-
sas, altos recursos financeiros e muito tempo de coleta de dados.
No caso dos censos demográficos decenais realizados pelo IBGE,
isso é verdadeiro devido ao universo com o qual o IBGE trabalha,
ou seja, toda a população brasileira. No entanto, podemos realizar
um censo com apenas 100 pessoas se definirmos nosso universo,
nossa população como sendo todos os servidores do Ministério
da Saúde que atuam na Ouvidoria do SUS em Brasília, em 2021,
por exemplo. Dessa forma, a abrangência do censo dependerá da
definição do universo, da população escolhida.
116

Muitas vezes, deparamo-nos com a necessidade de lidar com


um universo de pesquisa amplo, no qual a população é numerosa.
No entanto, devido a restrições financeiras, disponibilidade de
recursos humanos e limitações de tempo, a realização de um
censo completo se torna inviável. Nesses casos, é preciso recorrer
a uma amostra, que é uma parte representativa da população do
universo selecionado.
A amostra consiste em um subconjunto da população, e os
indivíduos incluídos nessa amostra são chamados de “unidades

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amostrais”. A forma como selecionamos essas unidades é deno-
minada “desenho amostral”. É importante compreender que a
amostra não fornece todas as informações completas sobre a
população, o que leva algumas pessoas a desconfiar dos resulta-
dos obtidos por meio de amostragens. Porém, essa desconfiança
não é fundamentada, uma vez que também confiamos em exames
de amostras de sangue, que não representam todo o líquido vital
do nosso organismo. Se seguíssemos essa lógica, seria necessá-
rio realizar um censo completo de nossas hemácias, removendo
todo o sangue das pessoas para obter informações exatas sobre
os elementos sanguíneos investigados.
É importante ressaltar que as amostras não fornecem infor-
mações precisas e absolutas sobre os fenômenos investigados
nas pesquisas; existe sempre uma margem de incerteza. O que
podemos fazer é mensurar o grau dessa incerteza: quanto menor
for a incerteza, maior será a confiança nas informações obtidas.
A incerteza se torna uma medida de probabilidade relacionada
às crenças que formulamos: uma probabilidade de certeza igual
a zero por cento (0%) representa a completa falsidade da propo-
sição estabelecida, uma dúvida absoluta sobre o que desejamos
conhecer, ou seja, a ausência total de conhecimento; cem por
cento (100%) de probabilidade de certeza representa a confiança
total, a ausência de qualquer dúvida em relação ao conhecimento
proposto (os censos eliminam a incerteza ao investigarem todos os
casos possíveis do fenômeno). No entanto, ao utilizarmos amos-
tras, nossa probabilidade de incerteza em relação aos fenômenos
varia entre zero e cem (0 e 100), nunca alcançando os extremos.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 117

Considerando que as amostras sempre apresentam certo grau


de incerteza, isso não implica abandonar seu uso. Intuitivamente,
tendemos a escolher amostras de tamanho máximo possível, que
se aproximem ao máximo do tamanho completo da população
definida. Se a amostra for grande o suficiente, quase igualando o
tamanho total da população, nosso erro ou nossa incerteza serão
pequenos. No entanto, se a amostra for muito pequena, é natural
pensar que ela carrega uma grande incerteza.
Por exemplo, se desejamos conhecer a prevalência de seden-
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tarismo em uma população de 1.000 usuários de um programa


público de atividade física e selecionamos uma amostra de 999
usuários, a prevalência será praticamente igual à da população.
Porém, se selecionamos uma amostra de apenas 10 usuários, é
provável que a prevalência de sedentarismo nessa amostra seja
significativamente diferente da prevalência na população (pre-
valência verdadeira). Em outras palavras, haverá mais incerteza.
Dessa forma, qual é o tamanho ideal de uma amostra que
equilibra o menor esforço necessário e o maior grau de certeza
possível? A resposta a essa pergunta depende de diversos fatores.
Primeiramente, devemos considerar o tempo disponível, os recur-
sos materiais e humanos à nossa disposição. Se a população for
muito grande, mas dispusermos de tempo e recursos suficientes
para realizar um censo, não será necessário utilizar uma amostra.
Se tivermos pouco tempo e poucos recursos, mas a população for
pequena, também podemos realizar um censo. A necessidade de
utilizar uma amostra surge quando temos pouco tempo, poucos
recursos e uma população grande.
O segundo passo é determinar o tamanho da amostra neces-
sário para obter conhecimento sobre um fenômeno específico.
Para responder a essa questão, é necessária uma análise mais apro-
fundada, até mesmo a consulta a um estatístico especializado em
amostragem para auxiliar no processo. O nível de especialização
exigido para certos tipos de amostragem pode requerer a assistên-
cia de alguém com maior experiência no campo. No entanto, em
termos gerais, é importante definir o tipo de estudo que desejamos
realizar. Por exemplo, para um estudo epidemiológico do tipo
118

caso-controle, o cálculo do tamanho amostral requer informações


diferentes em comparação a um estudo transversal. O desfecho
de interesse precisa ser definido, em termos de prevalência ou
em alguma outra medida, como a média. Esse desfecho também
deve ter algum valor de referência com base em estudos anteriores
para orientar o cálculo amostral.
Desfechos raros geralmente exigem uma amostra maior,
enquanto desfechos frequentes podem demandar uma amostra
menor. Além disso, o tamanho da amostra é fortemente influen-

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ciado pelo nível de erro ou incerteza que estamos dispostos a
assumir em nossa pesquisa. Se esperamos encontrar uma pre-
valência de um determinado evento que, de acordo com estudos
anteriores semelhantes (ou quando não há estudos equivalentes
e optamos por um valor mediano), foi de 50%, podemos consi-
derar um erro aceitável em torno desse valor de 5%. Isso resul-
taria em um erro de 10% em relação ao valor esperado (10% de
50 é 5). No entanto, se esperamos encontrar uma prevalência
de 10% e consideramos o mesmo erro de 5% como aceitável,
permitimos uma margem de erro de 50% em relação ao valor
esperado (50% de 10 é 5).
Em resumo, se não nos importamos em cometer erros subs-
tanciais, uma amostra pequena é suficiente. No entanto, se dese-
jamos minimizar o erro, precisamos de uma amostra grande. É
fácil concordar que, quanto mais próximo do valor verdadeiro
(erro pequeno), maior será o tamanho da amostra (aproximando-
-se de um censo). Por outro lado, quanto mais distante do valor
verdadeiro, maior será o erro e menor será o tamanho da amostra
(não há que se preocupar em estar próximo do valor verdadeiro,
pode-se utilizar uma amostra pequena).
Outra questão importante a ser considerada no cálculo amos-
tral é a precisão do intervalo de confiança esperado nos resultados.
Essa precisão está relacionada ao erro padrão e à probabilidade.
Em outras palavras, ela depende da variância amostral, que repre-
senta o nível de homogeneidade da medida de interesse. O erro
padrão é diretamente influenciado pela variância da amostra e
inversamente proporcional ao tamanho da amostra.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 119

Como mencionado, o cálculo do tamanho amostral requer


uma série de informações que vão além do escopo introdutório
deste texto. Uma vez que o tamanho necessário da amostra tenha
sido calculado, surge a questão de como selecionar os indivíduos.
Uma forma de seleção comumente utilizada é a amostragem por
conveniência ou intencional. Nesse tipo de seleção, os indivíduos
são escolhidos com base em critérios de facilidade operacional,
sem que haja a preocupação em oferecer a todos os indivíduos
da população uma chance de serem incluídos na amostra.
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Um exemplo seria selecionar as pessoas em uma sala de


espera de uma unidade de saúde: a população seria composta
por todos os usuários dessa unidade de saúde; mas, ao escolhe-
rem-se apenas aqueles que estavam aguardando atendimento em
um determinado dia na sala de espera, exclui-se a possibilidade
de outros usuários serem elegíveis para a amostra. Esse estudo
terá validade apenas internamente, ou seja, seus resultados serão
aplicáveis somente à amostra e não poderão ser extrapolados para
a população da qual ela foi selecionada. Seria semelhante a obter
uma medida da taxa de colesterol em um pequeno tubo de ensaio
ou lâmina, e não poder aplicar esse resultado à pessoa de quem
o sangue foi coletado.
A fim de aprimorar a validade externa do estudo, ou seja,
garantir que os resultados possam ser generalizados para a popu-
lação da qual a amostra foi selecionada, mesmo sem examinar
todos os indivíduos, é recomendado o uso de amostras aleatórias
ou probabilísticas. Nesse tipo de amostra, todos os indivíduos da
população têm uma chance (mesmo que sejam chances diferen-
tes entre si) de participar da amostra selecionada, por meio de
um processo de sorteio. A aleatorização é realizada para evitar a
seleção intencional de indivíduos com base em critérios diferentes
de acaso ou casualidade.
Vamos discutir, agora, quatro formas de seleção de amostras
probabilísticas. A primeira delas é a amostra aleatória simples
(AAS), que é a mais simples em termos de procedimento. Con-
siste basicamente em sortear, a partir de um cadastro de toda a
população, o número de pessoas previamente calculado para a
amostra. É como realizar um sorteio de papéis contendo os nomes
120

das pessoas em uma urna que abrigue todos os nomes. Por exem-
plo, se precisamos selecionar 100 pessoas de uma população de
1000, basta realizar o sorteio (sem reposição) dessas 100 pessoas
a partir desse cadastro. É importante destacar que, na prática,
utilizamos programas e planilhas computacionais que possuem
recursos para realizar esse sorteio.
A segunda forma é a amostragem sistemática (AS): como
o próprio nome sugere, envolve algum tipo de sistematização na
seleção aleatória dos participantes. Também requer um cadastro

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de cada indivíduo da população, organizado de forma crescente
e numericamente ordenada. O passo seguinte é calcular os inter-
valos de seleção (k), que resultam da divisão do tamanho da
população (N) pelo tamanho da amostra (n). A partir desse inter-
valo, sorteamos apenas um primeiro indivíduo e, em seguida,
selecionamos os demais indivíduos em intervalos fixos (k).
Para ilustrar o processo de seleção amostral, vamos consi-
derar o seguinte exemplo: precisamos selecionar uma amostra de
300 pessoas em uma população de 1.800 indivíduos. Primeiro,
calculamos o intervalo de seleção (k), que é a razão entre o tama-
nho da população (1800) e o tamanho da amostra desejada (300).
Nesse caso, o valor de k é igual a 6. Portanto, se selecionarmos
uma pessoa a cada 6, chegaremos ao total desejado de 300 pessoas.
No entanto, surge a dúvida: por onde começar? Devemos ini-
ciar pela primeira pessoa ou pela segunda dentre as 6 primeiras?
É importante destacar que essa escolha não pode ser intencional,
ela precisa ser casual. Portanto, a primeira pessoa a ser selecio-
nada deve ser sorteada entre as seis primeiras. Vamos supor que o
número sorteado seja o 5 (entre as seis primeiras pessoas); assim,
a primeira pessoa selecionada será a de número 5, a segunda será
a de número 11 (5 + 6), a terceira será a de número 17 (11 + 6), e
assim por diante – sempre saltando de seis em seis pessoas. Dessa
maneira, seguindo esse padrão, alcançaremos automaticamente
um total de 300 pessoas. Esse método de seleção sistemática
permite uma abordagem imparcial e aleatória na escolha dos
participantes da amostra, garantindo que todos os indivíduos da
população tenham uma chance igual de serem selecionados.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 121

A terceira forma de seleção é a amostragem estratificada


(AE), também conhecida como amostragem proporcional. Nesse
método, a população é dividida em estratos com base em critérios
ou variáveis de interesse definidos pelo pesquisador. O objetivo
é garantir que a amostra selecionada respeite a mesma propor-
ção desses estratos encontrada na população. Por exemplo, se a
população apresenta uma proporção de 70% de mulheres e 30%
de homens, deseja-se que a amostra sorteada também mantenha
essa proporção de gênero – dizemos, então, que a amostra foi
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estratificada pelo sexo. Usando o exemplo anterior, se a popula-


ção tem um total de 4.890 pessoas, com 3.423 (70%) mulheres e
1.467 (30%) homens, e precisamos de uma amostra de 150 pes-
soas, 70% dessa amostra deve ser composta por mulheres (150 x
0,70), o que equivale a 105 mulheres, e 30% deve ser composta
por homens (150 x 0,30), o que equivale a 45 homens. A seleção
dessas mulheres e homens pode ser feita usando as formas de
amostra aleatória simples (AAS) ou amostragem sistemática (AS).
Por último, temos a amostra por conglomerados (AC) ou
amostra complexa. Nesse tipo de amostra, não possuímos um
cadastro individual de todos os indivíduos da população (como
nas três formas anteriores de seleção amostral probabilística).
No entanto, temos cadastros de outras unidades de amostra-
gem, chamadas “conglomerados”. Por exemplo, se não temos o
cadastro de todos os alunos matriculados em escolas públicas e
particulares de um município, mas temos o cadastro de todas as
escolas, podemos sortear as escolas e selecionar todos os alunos
das escolas sorteadas para participar da pesquisa. À medida que
sorteamos mais níveis de conglomerados, a amostra se torna mais
complexa. Os indivíduos dentro do mesmo conglomerado se tor-
nam dependentes um do outro, o que exige recursos analíticos
adicionais para levar em consideração a homogeneidade dessas
variações dentro dos conglomerados. Imagine uma pesquisa em
que precisamos sortear primeiro os municípios, depois os bairros,
depois as escolas e, por fim, as salas de aula, apenas para chegar
aos indivíduos da pesquisa! Embora seja uma tarefa complexa, é
muito útil quando a pesquisa abrange uma grande área geográfica
e não temos o cadastro dos indivíduos elegíveis para participação.
122

Essas quatro formas de seleção amostral probabilística


(amostra aleatória simples, amostragem sistemática, amostragem
estratificada, amostra por conglomerados) oferecem abordagens
diferentes para garantir que a amostra selecionada seja repre-
sentativa da população e permita a generalização dos resultados
obtidos (validade externa). A escolha da técnica adequada depen-
derá das características da população, dos objetivos da pesquisa
e dos recursos disponíveis.
Vamos discutir sobre resíduo relativo, que é um desvio

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individual em relação ao desvio grupal, conhecido como Z-RES
ou Z-Score. Essa medida consiste em calcular o desvio de cada
pessoa em relação à média do grupo, e então dividir esse valor
pelo desvio padrão do grupo. Por exemplo, se considerarmos a
medida de LDL colesterol, temos a média do grupo e o valor
individual de cada pessoa. O resíduo é a diferença entre o valor
individual e a média do grupo. Por exemplo, se alguém possui
um valor de LDL de 55 e a média do grupo é 112, o resíduo será
-57. Esse cálculo é feito para cada pessoa, gerando um desvio
individual absoluto.
CAPÍTULO 10
CALCULANDO E
INTERPRETANDO O
Z-SCORE (Z-RES)
Vamos discutir sobre o resíduo relativo, que é um desvio
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individual em relação ao desvio do grupo (desvio padrão). Cha-


mamos isso de Z-RES ou Z-Score. Basicamente, é calcular o
desvio de cada pessoa em relação à média do grupo e dividir o
resultado pelo desvio padrão do grupo. Vamos usar como exemplo
a medida do peso na tabela 1 do capítulo anterior: temos a média
do grupo (72,2 kg), que é a mesma para todos, pois é o mesmo
grupo; o resíduo é a diferença entre o valor de uma pessoa e a
média do grupo ao qual ela pertence. Por exemplo, se uma pes-
soa tem um peso de 56 kg e a média é 72,2 kg, o resíduo é -16,2
kg. Da mesma forma, se outra pessoa tem um peso de 160 kg,
considerando a mesma média, o desvio é +87,8 kg. Essas duas
pessoas têm um desvio grande ou pequeno? Cada pessoa tem
um desvio individual absoluto, mas comparar apenas os valores
absolutos pode ser difícil; portanto, é necessário relativizar esses
desvios para que se possa compará-los de forma significativa.
Algumas medidas absolutas, como o número de doentes, são
importantes para se ter uma noção de quantos leitos devem ser
abertos, por exemplo. No entanto, elas não são muito úteis para
fazer comparações. Por exemplo, ter 1.000 doentes na cidade de
São Paulo é diferente de ter 1.000 doentes em uma cidade do inte-
rior do Nordeste, onde 1.000 doentes podem representar talvez a
metade de sua população. Para comparações adequadas, é impor-
tante utilizar medidas relativas, como razões, taxas e proporções.
No caso dos resíduos absolutos individuais, eles não fornecem
muita informação por si só. Não podemos dizer se um resíduo de
-16,2 é grande ou pequeno em relação à média sem compará-lo
com o desvio padrão. O raciocínio é semelhante ao coeficiente
124

de variação que vimos anteriormente: para determinar se o des-


vio absoluto é grande em relação ao desvio padrão, dividimos o
desvio absoluto pelo desvio padrão. Nesse caso, usamos a medida
chamada Z-RES ou resíduo relativo, também conhecido como
Z-Score ou desvio padronizado. Ao dividirmos o resíduo absoluto
pelo desvio padrão do grupo, podemos determinar se um valor
como -16,2 é grande ou pequeno em relação ao desvio padrão.
Vamos explorar essas questões com exemplos mais adiante.
Nos grupos, temos uma medida absoluta, o desvio padrão, e uma

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medida relativa, o coeficiente de variação. Nos indivíduos, temos
o desvio absoluto, que é a diferença entre uma pessoa e a média
do grupo, e o desvio relativo, que é o desvio absoluto em relação
ao desvio padrão. Agora, vamos analisar alguns exemplos.
Vamos considerar dois vestibulares em duas instituições dis-
tintas: Universidade 1 e Universidade 2. Suponha que tenhamos
500 candidatos em cada uma delas. João obteve 235 pontos na
Universidade 1, enquanto Maria também obteve 235 pontos na
Universidade 2. As informações fornecidas são suficientes para
afirmar se João e Maria têm as mesmas chances de passar? O
que vocês acham?
A resposta não é tão simples. Para avaliar o desempenho
com base nos 235 pontos, é crucial considerar o contexto, como a
média de referência e o ponto de corte. Temos várias informações
aqui que precisam ser levadas em conta para uma avaliação ade-
quada. Portanto, são situações distintas que exigem uma análise
mais aprofundada.
Vamos calcular a média para ambas as situações, que foi de
250 pontos. Além disso, vamos considerar a dispersão dos dados.
Na Universidade 1, o desvio padrão foi de 5; na Universidade 2,
foi de 15. Agora, quem vocês acham que teve um desempenho
melhor? Essas informações ajudam a identificar quem se saiu
melhor ou pior? Observem que tanto João quanto Maria obti-
veram 235 pontos; a média em ambas as faculdades foi de 250
pontos; o desvio padrão foi de 5 em uma e 15 na outra. Então,
quem está em melhor posição e quem está em pior?
A resposta depende do desvio padrão. Essas diferenças indi-
cam uma maior dispersão em uma faculdade do que na outra.
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 125

À primeira vista, não é possível determinar a resposta de forma


direta; não é viável fazer uma comparação direta entre eles. No
entanto, se perguntarmos como podemos verificar isso, prova-
velmente precisaremos aplicar a fórmula do “Z-RES” (desvio
absoluto/desvio padrão).
Na sua intuição, você já percebeu que pelo menos uma coisa
foi diferente: o desvio padrão. Portanto, o desvio padrão dife-
renciado desde o início é um aspecto importante. Essa diferença
no desvio padrão parece ser fundamental para responder à nossa
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pergunta. Se João e Maria têm 235 pontos, ambos estão 15 pon-


tos abaixo da média de 250; ambos têm a mesma diferença em
relação à média; no entanto, na Universidade 1, o desvio padrão
foi de 5. Isso significa que João está três desvios padrão abaixo
da média (-15 pontos abaixo da média correspondem a 3 vezes
o valor do desvio padrão da Universidade 1, que é 5); em outras
palavras, ele está três vezes o valor do desvio padrão abaixo da
média: se o desvio padrão é 5, João está três vezes 5, totalizando
15; portanto, três desvios padrão abaixo da média (-3 Z-RES). Por
outro lado, Maria, na Universidade 2, também obteve 15 pontos a
menos, mas o desvio padrão lá foi de 15; portanto, ela está apenas
um desvio padrão abaixo da média (-1 Z-RES).
Ao calcularmos o Z-RES, podemos ter uma medida quanti-
tativa para entendermos quem está mais próximo ou mais distante
da média. Tanto João quanto Maria estão 15 pontos abaixo da
média (desvio absoluto de -15). No caso de Maria, aplicando a
fórmula (nota individual de Maria menos a média, dividido pelo
desvio padrão), temos (235 - 250) / 15 = -1; isso significa que
ela está um desvio padrão abaixo da média. No caso de João, na
Universidade 1, o desvio padrão é de 5 e ele obteve 15 pontos a
menos, o que equivale a (235 - 250) / 5 = -3; portanto, calculando
o Z-RES, podemos imaginar que João, mesmo obtendo a mesma
pontuação que Maria, está três desvios padrão abaixo da média.
O Z-RES é uma medida bastante utilizada, especialmente na
área de nutrição, para determinar se uma pessoa está dentro dos
parâmetros normais em relação a uma determinada variável, como
o colesterol. Por exemplo, se considerarmos que a média de coles-
terol na população é 200, coletaremos os valores de colesterol
126

de cada pessoa e observaremos que alguns têm valores iguais


à média, outros abaixo e outros acima. Essa variação é natural,
pois todos somos diferentes; no entanto, é importante definir um
limite para distinguir o que é considerado “normal” e “anormal”,
o que nos leva ao conceito de “distribuição normal”.
A estatística utiliza muito os termos “normal” e “anormal”
nesse contexto, principalmente em termos biológicos, não no
sentido social. Geralmente, define-se um ponto de corte com
base no Z-RES. Por exemplo, estudos podem considerar como

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“normais” aqueles que estão dentro de mais ou menos dois des-
vios padrão em relação à média. Valores abaixo de -2 ou acima
de +2 desvios 33padrão são considerados “anormais”. Isso ocorre
porque é raro encontrar pessoas com colesterol muito baixo ou
muito alto; a maioria estará dentro desse intervalo de mais ou
menos dois desvios padrão.
O Z-RES é utilizado para estabelecer pontos de corte que
indicam o que é considerado saudável dentro da variação de uma
variável. Isso é útil, por exemplo, ao calcular-se a prevalência de
anemia; em vez de utilizarem-se pontos de corte estabelecidos
pela literatura, pode-se preferir usar o Z-RES. Assim, podemos
considerar “anormais” aqueles que estão abaixo de -2 ou acima
de +2 desvios padrão; quem estiver dentro desse intervalo de -2 a
+2 desvios padrão, em relação à média, é considerado “normal”.
Também podemos fazer o caminho inverso: se já sabemos
que mais ou menos 2 desvios padrão é o intervalo para ser con-
siderado “normal”, podemos encontrar o valor absoluto neces-
sário para estar dentro ou fora desse intervalo. Podemos usar
a fórmula inversa, substituindo o Z-RES por -2 para encontrar
o limite inferior e o +2 para encontrar o limite superior. Dessa
forma, obtemos o valor necessário para ser classificado como
“normal” ou “anormal”.
O Z-RES é uma ferramenta versátil que nos permite com-
parar diferentes variáveis usando desvios padrão padronizados.
Isso significa que podemos comparar variáveis de diferentes uni-
dades – como peso, altura, hemoglobina e IMC – utilizando o
desvio padrão e o Z-RES. Além disso, podemos usar o Z-RES
para determinarmos os pontos de corte das variáveis, ou seja, o
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 127

valor que separa o “normal” do “anormal”. Para fazer isso, basta


substituir a incógnita na fórmula (valor individual) e encontrar o
valor absoluto necessário.
Como no exemplo, quando aplicamos o Z-RES às notas dos
alunos (João e Maria) de diferentes faculdades, obtemos duas
curvas chamadas “curvas normais padronizadas”. Essas curvas
possuem média zero, pois todos os valores foram transformados
em Z-RES. Elas nos permitem visualizar quem está afastado ou
próximo da média, com desvios negativos e positivos. Dessa
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forma, ao utilizarmos o Z-RES, podemos simplificar a análise


de dados, eliminando a necessidade de calcular histogramas
para cada variável com diferentes unidades. A transformação
em Z-RES permite que trabalhemos com uma única curva nor-
mal padronizada, facilitando a localização daqueles que estão
distantes ou próximos da média.
No contexto da análise de distribuição normal e cálculo de
probabilidades, geralmente utilizam-se variáveis quantitativas.
Isso ocorre porque a distribuição normal é baseada em medidas
como média e desvio padrão, que são características das variáveis
quantitativas. Variáveis qualitativas não possuem média e desvio
padrão da mesma forma que as variáveis quantitativas. No caso
da distribuição normal, ela possui uma forma característica: em
formato de sino ou chapéu de palha. A maioria dos valores está
concentrada próximo à média, e a frequência diminui à medida
que se afasta da média. Essa distribuição é chamada de “normal”
porque é comumente encontrada em fenômenos naturais.
A probabilidade, nesse contexto, é utilizada para estimar a
chance de ocorrência de eventos com base na distribuição normal.
A área sob a curva representa a probabilidade de um determinado
intervalo de valores. Ao dividir a curva em diferentes frações,
é possível determinar a probabilidade de ocorrência de eventos
em cada intervalo. Por exemplo, se dividirmos a curva em des-
vios padrão, podemos calcular a probabilidade de ocorrência de
eventos dentro de cada intervalo. Entre mais ou menos um desvio
padrão em torno da média, encontramos aproximadamente 68%
da área sob a curva; entre mais ou menos dois desvios padrão,
128

encontramos cerca de 95% da área; entre mais ou menos três


desvios padrão, temos aproximadamente 99,7% da área.
Portanto, utilizando essas probabilidades, é possível determi-
nar a chance de um evento ocorrer em relação a um determinado
ponto na distribuição. Por exemplo, se Maria está a -1 desvio
padrão, podemos calcular a área sob a curva entre a média e -1,
que corresponde a aproximadamente 34%: a probabilidade de
pessoas com notas iguais ou inferiores à de Maria seria de 16%.
No caso de João, que está a -3 desvios padrão, a probabilidade

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de notas inferiores a ele seria muito baixa, pois ele está entre os
últimos colocados; portanto, a probabilidade seria muito pequena.
Ao dividirmos 99,7 por 49,85, obtemos 1,995; então, teremos
49,85 de cada lado. Se considerarmos que cada lado tem 50, a
diferença é de 0,15; portanto, 50 menos 49,85 é igual a 0,15. A
probabilidade não pode ser negativa, pois ela varia de 0 a 100; o
que pode ser negativo é o desvio padrão – mas a probabilidade
nunca é negativa. No entanto, quando falamos em probabilidade,
consideramos que abaixo da média (João) temos 50%, o que
corresponde à metade de 99,7 entre a média e -3 desvios padrão;
então, sobram apenas 0,15. Isso significa que há 0,15% de pro-
babilidade de encontrar pessoas abaixo de João, o que é muito
raro. Em contraste, para Maria, há 16% de pessoas abaixo dela.
É assim que calculamos e interpretamos a probabilidade.
Quando nos referimos ao nível de significância (valor p) nos
artigos, geralmente usamos 5% e um teste bicaudal, que leva em
consideração as duas caudas da curva. O que isso significa é que
consideramos significante tudo o que tem um valor-p bicaudal
menor que 5%. Um valor menor que 5% indica 2,5% em cada
cauda, o que equivale a aproximadamente dois desvios padrão.
Se temos 95% entre os dois desvios, sobram apenas 5% para
100%. No entanto, esses 5% são divididos em 2,5% para cada
cauda. Portanto, quando dizemos que o intervalo de confiança
normal é de 95%, estamos considerando que as pessoas dentro
desse intervalo são consideradas saudáveis. Aquelas abaixo de
-2 ou acima de +2 representam apenas 2,5% de probabilidade em
cada extremidade; ou seja, é muito raro encontrar pessoas nesses
METODOLOGIA DE PESQUISA: Os mundos qualitativo e quantitativo
das coisas na saúde 129

extremos. Isso pode indicar alguma deficiência, doença ou uma


probabilidade extremamente baixa ou alta. Portanto, são proba-
bilidades baixas, mas com valores extremamente altos ou baixos.
Para exemplificar, a altura das pessoas consideradas normais
está dentro do intervalo de probabilidade com 95% de ocorrência.
Portanto, aquelas que estão fora desse intervalo representam ape-
nas 2,5% de probabilidade em cada extremidade. Por exemplo, a
probabilidade de encontrar alguém com uma altura muito baixa
é de apenas 2,5% – isso indica uma anomalia rara. Da mesma
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forma, a anomalia do gigantismo, em que alguém está acima


de dois desvios padrão, tem apenas 2,5% de chance de ocorrer.
Portanto, é muito raro encontrar qualquer tipo de anomalia ou
disfunção de crescimento.
Quando utilizamos programas estatísticos, eles fornecem os
valores de probabilidade calculados previamente. Ao lermos um
artigo científico, nos deparamos com o valor de p, e nos questio-
namos de onde vem esse valor. Temos a confiança de que o que
estudamos está correto e acreditamos em sua interpretação. Às
vezes, decoramos que um valor de p menor que 5% é conside-
rado significante, mas nem sempre compreendemos o significado
de ser significante ou insignificante. Embora não aprofundemos
muito nesse assunto aqui, é importante ter uma noção de que a
área total da curva é igual a 100%; portanto, existem partes da
área que somam 100%. Essa ideia do valor de 68% está relacio-
nada a aproximadamente um desvio padrão e é calculada por uma
função matemática que não iremos aprender aqui.
Podemos entender a probabilidade como uma representação
geométrica ou simbólica da distribuição empírica dos fenômenos
observados. A partir dessa representação, fazemos uma abstra-
ção para determinar se podemos calcular a probabilidade e se
esses fenômenos seguem uma distribuição normal. Assim, se
observamos uma pessoa na curva, sabemos que ela está dentro
da distribuição normal com determinada aparência e podemos
calcular a porcentagem de pessoas abaixo ou acima dela. Assim
como em um gráfico de pizza, em que a pizza inteira representa
100% e cada fatia é uma proporção do total, aqui também temos
130

várias “fatias” na curva. Embora não seja uma pizza, a curva é


em formato de sino; essa curva também tem uma área total que
soma 100%. Por meio de uma função matemática específica para
o formato de sino, podemos encontrar as probabilidades de um
ponto a outro, calculando a probabilidade de fenômenos abaixo
ou acima de determinado desvio padrão.

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ÍNDICE REMISSIVO
A
Análise de conteúdo 59, 60, 63, 64, 65, 66, 68, 69, 88
Análise documental 57, 59, 60, 69, 88
Análise do discurso 59, 60, 61, 62, 70, 88
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B
Banco de dados 95, 96, 97, 98, 103, 104, 106, 112

C
Coleta de dados 9, 14, 17, 20, 21, 25, 30, 33, 35, 40, 45, 48, 54,
55, 56, 65, 73, 88, 115

E
Estudo de caso 14, 15, 34, 35, 39, 40, 43
Etnografia 15, 26, 29, 30, 31, 32, 33, 34, 42, 43

F
Frequência absoluta 98, 99, 106, 111, 112
Frequência relativa 98, 99, 100, 106, 111, 112
Fundação Oswaldo Cruz 9, 55, 133, 134

P
Pesquisa qualitativa 14, 15, 16, 17, 20, 23, 24, 27, 29, 34, 35,
36, 49, 52, 57, 58, 69, 88, 89
Pesquisa quantitativa 13, 20, 88, 89

T
Tamanho da amostra 117, 118, 119, 120
Técnicas de pesquisa 13, 26, 27, 30, 58
Trabalho de campo 30, 31, 33, 36, 48, 49
132

V
Variável qualitativa 88, 91, 96, 97, 98, 99, 100, 101, 104, 105, 112

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SOBRE OS AUTORES

Bárbara Maia
Graduada em Economia pela Universidade Federal do Rio Grande
do Norte (UFRN). Mestra em Estudos Urbanos e Regionais
(UFRN), na linha de pesquisa Estado, Sociedade e Políticas
Públicas. Doutoranda em Ciência Política no Instituto de Ciên-
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cia Política da Universidade de Brasília (IPOL – UnB). Realiza


pesquisas em políticas públicas, burocracia e federalismo.

Michelle Fernandez
Doutora e mestre em Ciência Política pela Universidade de
Salamanca (2008-2012). Graduada em Ciência Política pela
Universidade de Brasília (2006). Foi pesquisadora visitante na
Universidade Autônoma de Barcelona (Espanha), na Universi-
dade de Oxford (Inglaterra) e na Universidade de Manchester
(Inglaterra). É professora e pesquisadora no Instituto de Ciência
Política da UnB e pesquisadora-colaboradora do Instituto Aggeu
Magalhães – Fundação Oswaldo Cruz Pernambuco (IAM – Fio-
cruz PE). Coordena o Núcleo de Estudos de Políticas de Saúde
(Nepos) dentro do Laboratório de Pesquisa em Comportamento
Político, Instituições e Políticas Públicas (LAPCIPP/UnB).

Rafael Moreira
Graduado em Odontologia pela Faculdade de Odontologia da
Universidade Federal de Goiás (UFG – 2002) e em Filosofia pela
Universidade Federal de Pernambuco (UFPE – 2021). Especia-
lista em Odontologia em Saúde Coletiva (UFG – 2003), mestre
em Saúde Coletiva pela Faculdade de Medicina de Botucatu
da Universidade Estadual Paulista (Unesp – 2005) e mestre em
Gerontologia pela Faculdade de Ciências Médicas da Univer-
sidade Estadual de Campinas (Unicamp – 2009). Doutor em
Saúde Pública na Faculdade de Saúde Pública da Universidade
de São Paulo (FSP-USP), área de concentração em Epidemio-
logia (2009). Pesquisador Titular em Saúde Pública no Instituto
134

Aggeu Magalhães – Fundação Oswaldo Cruz Pernambuco (IAM


– Fiocruz PE) e docente adjunto da Área Acadêmica de Saúde
Coletiva da Faculdade de Medicina da Universidade Federal de
Pernambuco (UFPE).

Ranna Ferreira
Enfermeira, formada pela Universidade de Pernambuco (UPE).
Pós-graduada em Saúde Coletiva, com Residência Multiprofis-
sional do Instituto Aggeu Magalhães – Fundação Oswaldo Cruz

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Pernambuco (IAM – Fiocruz PE). Mestranda em Saúde Pública
pelo Instituto Aggeu Magalhães – Fundação Oswaldo Cruz Per-
nambuco (IAM – Fiocruz PE).
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SOBRE O LIVRO
Tiragem não comercializada
Formato: 14 x 21 cm
Mancha: 10,3 x 17,3 cm
Tipologia: Times New Roman 10,5 | 11,5 | 13 | 16 | 18
Arial 8 | 8,5
Papel: Pólen 80 g (miolo)
Royal | Supremo 250 g (capa)

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